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O meu avô chamava-se Mário. Antes de o conhecer, sei que foi muitos Mários.

Foi Mário, o
carteiro, Mário, o marinheiro, e foi sempre Márinho para toda a gente. Mas antes de saber
que tinha sido carteiro ou marinheiro, só sabia que era Mário, o meu avô, e que tinha sempre
as respostas para todas as minhas perguntas. Eram sempre respostas muito curtas porque o
meu avô Mário gostava muito de palavras e, por isso, usava-as pouco e devagar, “para não
lhes estragar a poesia”.
O meu avô era muito grande e muito alto. Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei se
poderiam dar a volta ao mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino, que
talvez até fosse possível. O meu avô usava uma camisa aos quadrados com um bolso ao peito,
onde guardava um lápis de carvão. Tinha mãos enormes e ásperas que cheiravam a casca de
laranja ou a páginas de livros antigos, mas nunca aos dois ao mesmo tempo. O meu avô era
muito calado e muito sério. Vivia numa casa pintada de azul que de um lado tinha um pomar e
do outro um campo de trigo dourado de perder de vista. Do portão do jardim, via-se primeiro
o pomar de laranjas onde o meu avô nunca quisera plantar outra coisa. Um dia, perguntei-lhe
se não se importava de só as poder comer durante metade do ano. Respondeu-me que as
laranjas lhe tinham ensinado a respeitar o tempo das coisas. Dentro de casa, só existia uma
divisão que servia para tudo. Ao centro estava uma lareira que o meu avô acendia todos os
dias no inverno. De um lado, via-se um fogão, um lavatório e uma mesa que o meu avô usava
para cozinhar e também para comer. A um canto, tinha uma cama coberta de almofadas e, ao
lado, um cadeirão onde se sentava para ler. Não tinha televisão, só pilhas e pilhas de livros.
Outro dia, perguntei-lhe se me podia contar as histórias daqueles livros. O meu avô
respondeu-me que eram todos de poesia e escolheu um para me mostrar que se chamava
mesmo assim. Eu estava habituado aos livros da escola com as páginas cheias de palavras,
como um grande nevoeiro, mas os livros de poesia não eram assim. Os poemas eram nuvens
pequeninas e às vezes até havia páginas só com três ou quatro palavras! O meu avô disse-me
que era mesmo isso que gostava na poesia. Explicou-me que existem palavras para quase
tudo. Palavras que dão nomes às pessoas, às coisas e aos animais. Palavras que são cores, têm
cheiro ou sabor. Palavras que carregam sentimentos e palavras que não dizem nada. Existem
palavras que só são precisas para colar umas palavras às outras. Cada pessoa aprende as
palavras à sua maneira e nem todas as palavras significam o mesmo para toda a gente. E
embora haja uma palavra para quase tudo, às vezes, pode acontecer-nos ficarmos sem
palavras. O meu avô ensinou-me que a poesia é o que acontece quando queremos falar, mas
não queremos dar grandes explicações.
Quando era pequeno, passava muito tempo na casa do meu avô. A minha casa, onde eu vivia
com os meus pais, era demasiado grande, cheia de curvas e becos sem saída, por isso, gostava
mais da casa pequenina do meu avô. Lá, estava tudo à mão de semear - podia brincar em
frente à lareira e vê-lo sentado no cadeirão com um livro nas mãos, o lápis ao peito e o olhar
em mim. A minha mãe cansava-se rápido das minhas perguntas e, em vez de me responder,
dizia para as fazer ficava.
Nos dias de semana, o meu avô ia buscar-me à escola. Lanchávamos e fazíamos os
trabalhos de casa, mas eu não gostava de os fazer. Não percebia porque é que depois de um
dia inteiro na escola, ainda tinha de trazer a escola para casa. Os textos de português
demasiado longos cansavam-me. Os problemas de matemática cansavam-me. Os enigmas de
ciências cansavam-me. O meu avô conhecia-me bem e quando via o meu cansaço a chegar,
levantava-se da mesa devagarinho, escolhia um livro e punha-se a lê-lo em voz alta. Uma vez,
disse-me que acreditava que a poesia também era uma forma de aprender.
Aos sábados de manhã, o meu avô ia buscar-me a casa dos meus pais. Segurava a minha mão
direita com a sua mão esquerda e subíamos até à vila. Começávamos pela padaria do Manel,
onde comprávamos o pão e um pastel de feijão, que não chegava sequer até ao talho da D.
Isaura. À entrada, o meu avô perguntava à D. Isaura então, como é que vai isso. A D. Isaura
chamava-o logo pelo carinho, Márinho!, e perguntava-lhe o que é que ia ser. Nos dias em que
a mãe não precisava de nada para a canja de galinha, o meu avô respondia nada, só os bons
dias. Continuávamos pela rua acima, até chegarmos à peixaria do Sr. Hermínio. O meu avô
pescava muito e, por isso, do Sr. Hermínio só trazia o isco. O Sr. Hermínio piscava-me o olho e
dizia sempre que o isco estava tão fresco, tão fresquinho, que todo o peixe o ia querer trincar.
A seguir, comprávamos o jornal no quiosque da Maria e do Zé e terminávamos a volta no café
do Sr. Jorge, para o meu avô beber uma bica. Se lhe pedisse muito, deixava-me lamber a colher
e inventar palavras na sopa de letras do jornal. Certo sábado, estávamos sentados no café e
perguntei-lhe: Porque é que o Manel sempre tinha sido padeiro? E a D. Isaura talhante e o Sr.
Hermínio peixeiro? A Maria e o Zé sempre foram donos do quiosque? E o Sr. Jorge? Já tinha
nascido sentado atrás do balcão? Sem tirar os olhos do jornal, o meu avô respondeu que há
pessoas que a vida que têm é a vida que lhes basta.
Depois do passeio pela vila, almoçávamos em casa dos meus pais e íamos à praia. Lembro-me
muito bem da primeira vez que fomos ver o mar. Às vezes há memórias que temos porque
vimos uma fotografia ou porque alguém nos contou a história - mas este não é o caso. O meu
avô disse-me que toda a gente sabe que o sol na praia brilha com mais força e até havia
histórias de pessoas que de tanto olhar o sol, queimavam os olhos. Por isso, na primeira vez
que fomos ver o mar, levava uma mão sobre os meus. Quando a tirou devagarinho e vi o mar
pela primeira vez, pensei que era grande - tão grande quanto o meu avô! Naquele dia, o meu
avô pediu-me para não me esquecer de que lado da memória guardava o mar. É por isso que
sei que esta memória é minha: nunca me esqueci onde é que a guardei. Quando chegámos a
casa, lembrei-me de lhe perguntar se tinha sido perigoso ser marinheiro. Disse-me que tinha
sido cozinheiro da Marinha, mas que até na cozinha se sentia o medo. Pedi-lhe que me
mostrasse os sítios onde tinha ido. Abriu um mapa cheio de pó em cima da mesa e traçou com
o dedo um círculo à volta de um continente só. Disse-me que se chamava logo. Guardou
devagar o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério do que o
costume quando me disse que em África, em África não tinham feito nada de bom. Pelo
silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre as viagens e as
marés. Quis saber sobre quando tinha sido carteiro. O meu avô contou-me que distribuía
cartas pela vila numa lambreta vermelha e, às vezes, para lhe fazer companhia, levava o cão
preto dos vizinhos entre as pernas com as patas apoiadas no guiador. Perguntei-lhe onde
levava as cartas. Respondeu que umas iam na mala da lambreta, mas que as mais importantes
as encontrava no meio dos livros.
Eu e o meu avô Mário passámos muitos anos assim. Durante todos eles, sempre achei que o
meu avô muito grande, com braços de abraçar o mundo e mãos-de-laranja e poesia, nunca
havia de envelhecer mais. O meu avô seria aquele avô para sempre. Mas as horas somam-se
sempre em dias, os dias multiplicam-se em semanas, depois em meses e os meses aninham-se
nos anos.
Quando fiz 8 anos, a minha mãe deixou-me ir brincar para casa do Miguel. Saímos sozinhos da
escola e tudo. Foi tão divertido que comecei a pedir à minha mãe para ir brincar a casa do
Miguel mais vezes. Aos poucos, o meu avô deixou de me ir buscar à escola e já só me ia buscar
a casa dos pais ao sábado de manhã. Dávamos a nossa volta pela vila e, depois de almoço,
ficávamos a ver o mar. Num desses sábados, a seguir ao pão do Manel e aos bons dias da D.
Isaura, reparámos que o Sr. Hermínio não abriu a peixaria. No sábado seguinte, a peixaria
continuou fechada e o avô sem isco para pescar. O meu avô tinha passado aquela semana
muito sério e mais calado que o costume e olhava o horizonte com os olhos semicerrados
como se procurasse qualquer coisa. Achei que estava triste por não poder pescar e que olhava
o horizonte com saudades. Quando ao terceiro sábado a peixaria continuou fechada, perguntei
ao meu avô o que tinha acontecido ao Sr. Hermínio. Sentou-se devagarinho numa cadeira da
esplanada e disse-me ainda mais devagarinho que às vezes há pessoas que levam a vida que
lhes basta, mas que não lhes basta o tempo que tiveram para a viver. Não percebi o que ele
quis dizer, mas senti-me muito triste, como se o mundo tivesse encolhido de repente. No
sábado seguinte, a peixaria voltou a abrir e ao balcão estava o filho do Sr. Hermínio. O peixe
vendeu-se como sempre, mas o meu avô disse-me depois que o isco nunca mais foi tão fresco.
Tinham-se passado poucos meses deste último sábado, quando o meu avô me pediu que o
fosse ajudar a colher as laranjas. Achei estranho, porque ele nunca tinha precisado de ajuda
antes. Quando cheguei ao pomar, vi-o ao longe, em cima de um banco e de braços esticados.
Perguntei-lhe logo porque é que precisava da minha ajuda. Apoiou uma mão no meu ombro
para descer do banco, colocou as laranjas que tinha nas mãos dentro de um saco de plástico e
só depois é que disse que já não tinha força para chegar onde era preciso. De repente, achei-o
menos grande do que o costume, mas abanei a cabeça para afastar um pensamento tão tonto.
O meu avô era enorme e seria sempre enorme.
Não voltei a pensar mais no assunto até ao dia em que o encontrei a dormitar no cadeirão,
com um livro aberto no colo. Bati devagar na porta da entrada, para o avisar que tinha
chegado. Acordou logo e sorriu-me. Desta vez, pareceu-me mesmo pequenino. Antigamente, o
cadeirão parecia quase não ter espaço para tanto avô, mas agora, parecia engoli-lo quase
inteiro. Pediu-me que me sentasse ao seu lado e que o ajudasse a acabar de ler aquele poema.
Disse-me que já não via bem o suficiente para dar conta das letras mais miudinhas. Naquele
dia, ganhei muitas perguntas novas. Se eu estava a crescer, será que o meu avô estava a
diminuir? Seria possível que o meu avô enorme, pudesse algum dia ficar mais pequenino? Será
que poderia ficar pequenino até desaparecer? E se desaparecesse, quem é que ia responder às
minhas perguntas? Precisava muito de saber todas as respostas, mas naquele dia, guardei as
perguntas todas para mim.

Depois daquele dia, o mundo não parou de girar. As horas viravam-se em anos e eu não parava
de crescer. A mãe queixava-se que a roupa não me servia. Os ténis magoavam-me os dedos
gordos dos pés. Já não brincava só no parque, podia ir com os meus amigos onde quisesse. Até
podíamos ir à vila comer bolos com as moedas de dois euros que o pai dizia que eram raras. Às
vezes, os meus amigos combinavam ir andar de bicicleta no bosque ao sábado de manhã.
Ficava sempre muito dividido, porque queria muito ir com eles, mas também queria muito
ficar com o avô. Só que sempre que eu não ia eles subiam às maiores árvores, as raposas saiam
das tocas e deixavam-se ver e os sapos davam os maiores saltos para o lago. Por isso, eu não
resistia. Quando lhe perguntei, o meu avô disse-me que não se importava porque agora era a
minha vez de conhecer o mundo.
Houve um sábado, em que disse aos meus pais que ia ao bosque, mas decidi fazer uma
surpresa ao meu avô. Saí de casa e fui até ao pomar. Havia muitas laranjas caídas no chão e eu
achei muito estranho, o meu avô nunca desperdiçava uma laranja que fosse. Entrei em casa,
mas não o encontrei. Dei a volta ao jardim até ao campo de trigo. Muito lá ao fundo,
pequenino como uma miragem, lá estava ele. Chamei-o três vezes, mas ele não ouviu
nenhuma. Corri na sua direção e quando cheguei ao pé dele, aninhei a minha mão direita na
sua mão esquerda. Senti que a minha mão já não cabia tão bem na dele. Foi neste momento
que lhe perguntei porque é que sempre me tinha parecido tão grande e agora me parecia tão
pequeno. No meio da seara de trigo, o meu avô, sem nunca deixar de olhar em frente, contou-
me que começamos a vida rodeados de estímulos. Queremos conhecer tudo: todas as cores,
todas as flores e animais, todos os objetos, todas as pessoas, todas as histórias. Devagarinho,
começamos a conhecer o mundo pelas palavras e, por isso, temos muitas perguntas. À medida
que vamos crescendo, vamos encontrando as respostas que procurávamos. Vamos guardando
todas dentro de nós. Quando começamos a envelhecer, percebemos que afinal não sabemos
tudo, mas o que sabemos, queremos partilhar com quem não sabe ainda nada. É só a quem
não sabe nada que ainda parecemos muito grandes e com muita grandes, e que têm as
respostas todas quando os netos são só perguntas. Quando os netos começam a apanhá-los
em tamanho e sabedoria, estão prontos para começar a minguar. Disse-me que todos os avós
são minguantes, porque todos os netos são crescentes, e é nesse cruzamento que se
encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis ficar ali para sempre. Queria que o
meu avô fosse aquele avô para sempre, mas lembrei-me que já um dia tinha desejado o
mesmo e que a mão que me segurava agora era já uma mão diferente da mão que um dia me
segurou. Apertei-lhe a mão ainda com mais força e quis fazê-lo prometer que não ficaria mais
pequenino, que não desapareceria. Lá de cima, olhou para mim, ainda cá em baixo e disse-me
que não podia prometer-me uma coisa dessas, mas que me podia contar um segredo: “O
tempo vai continuar a passar. Tu vais continuar a crescer e eu vou continuar a minguar. Um dia
vou ser muito pequenino, vou deixar de ser um livro inteiro e passarei a ser apenas um poema,
ou talvez várias palavras. Mas para ti, serei apenas uma. Daqui a muitos anos, essa palavra
pode ganhar significados diferentes, mas eu serei essa palavra primeiro e para sempre. E, por
isso, é certo que nunca vou desaparecer”.

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