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A ANATOMIA DA AMIZADE SEGUNDO ARISTÓTELES

À minha mulher, Teresa. Já provamos muito sal juntos!

A amizade, φιλία (philia) no dizer antigo de Aristóteles. Uma realidade tão


quotidiana e tão banal, tantas vezes pretexto de crítica, maltratada, quando distribui
benesses e prebendas e se usa como instrumento de poder, mas também louvada e
apreciada, como o melhor que uma vida plena pode ter. A amizade que nos
acompanha nos primeiros passos, nos primeiros amigos da tenra idade, essa
empatia inexplicável, e também mais tarde, quando crescemos e essa mesma
espontaneidade vai lentamente fenecendo, um tempo em que se pondera mais e se
ama menos. Mas eles sempre lá, os amigos, os bons, os verdadeiros. Sem sabermos
ao certo o que são, intuímos o seu valor. Acaso nos esquecemos, a vida se
encarrega de nos demonstrar a sua indispensabilidade. Uma realidade tão
rigorosamente imprescindível como as restantes necessidades básicas da vida.
Aristóteles, há mais de dois milénios, com o seu inigualável espírito
analítico, dotado de uma formidável eficiência e rigor, escalpeliza de um jeito
impressionante esta coisa que é a amizade, tão central para as pessoas, para as
sociedades, até para as nações e para o mundo no seu todo, e ainda assim tão pouco
conhecida em si, no seu âmago mais profundo. É assim que, como numa viagem
fantástica, daquelas à maneira de Júlio Verne, a cada página virada do livro VIII
da “Ética a Nicómaco” [1] se mergulha cada vez mais fundo na substância
filosófica dessa realidade quotidiana que é a amizade, desfibrada, nervo a nervo,
até ao osso, e para lá dele, de volta à carne, à pele, à superfície. Um exercício de
anatomia em que tudo é examinado até ao mais ínfimo detalhe, a sua essência
desvelada, o seu caldo criador perfeitamente assimilado, na sua verdadeira
dimensão ontológica. Um bem tão imperativo que começo a achar que sem ele,
provavelmente não estaria hoje aqui, a escrever estas linhas.
Mas de que fala Aristóteles afinal, na sua tese sobre a amizade? Começa
por nos dizer que é uma virtude e apresentar a sua indispensabilidade à vida, na
riqueza ou na pobreza, um verdadeiro cimento dos Estados, louvando a sua
nobreza (1155a). Discute se esta pode surgir entre todo o tipo de pessoas ou, se
pelo contrário existirão pressupostos que determinam uma maior predisposição
para que surja num determinado tipo, entre iguais, parecidos ou ao invés, em
diferentes e afastados (1155b). A investigação leva-o mais longe, será que existe
entre pessoas más também, ou é antes e só um apanágio dos bons? Aristóteles
procura destrinçar as espécies de amizade no objecto do amor que subjaz a essa
amizade. Ama-se o que é estimável, ninguém ama o que não lho parece. Ora o
estimável é o bom, o útil ou o agradável. Mas o homem quando ama o bom ama-
o em si mesmo, enquanto tal, ou antes o bom para si, desejando apenas e só o bem
que este lhe faz? Diferença radical e que marca a rota da sua investigação sobre as
espécies da amizade. É claro que em primeiro lugar há que reconhecer a
necessidade de reciprocidade, de que o amor seja correspondido pelo objecto desse
mesmo amor, condição essencial da amizade (1156a 5). Para acontecer um tal
afecto mútuo haverá assim três ordens de razões, diferentes em espécie e
coincidentes com as espécies de amizade que procura o autor: os que se amam em
virtude da utilidade que veem em tal amor, os que se amam pelo prazer que retiram
dessa mesma amizade (1156a 10) e os que se amam pelo amor que nutrem um pelo
um outro, pelo bem que desejam ao objecto dessa amizade, independentemente de
este ser, ou não, retribuído em igual medida (1156b 5) a única amizade verdadeira
e passível de perdurar. Estão portanto enunciadas, em pincelada larga e com grande
economia as diferentes espécies de amizade.
Começando com a forma de amizade mais baixa, aquela que é útil,
Aristóteles descreve com assinalável precisão a sua natureza, constatando que se
aplica a praticamente todo o tipo de pessoas, sendo especialmente frequente entre
aquelas de espírito mercantil. Até os maus podem ser amigos nesta modalidade
(1557a 15). São portanto os que vêm interesse mútuo numa relação que a procuram
e praticam, já que lhes aporta, em maior ou menor medida, um determinado
benefício. Servindo-me de um conhecido aforismo de origem inglesa, gente de
grandes qualidades, mas igualmente dotada de iminente espírito prático, diria para
resumir: “you scratch my back and I’ll scratch yours” que se encontra também na
versão ao contrário “I'll scratch your back if you scratch mine” maravilhosa
metáfora que ilustra bem esta natureza comercial da troca de favores que tão bem
retrata a amizade útil. Somos amigos e amigos nos manteremos, desde que tu me
sejas útil e eu faça alguma coisa por ti. Trata-se portanto de uma amizade efémera
e totalmente dependente de um conjunto de factores exteriores à relação, como a
posição relativa, social, económica ou outra, dos dois amigos e consequentes
vantagens que cada um, em determinado momento, pode trazer ao outro, que por
sua vez está obrigado a responder em igual medida. Esta amizade tem âmbito
muito vasto, pode surgir até entre inimigos, se esta condição lhes é favorável por
quaisquer outras razões. De geometria variável, neste nível posso ser hoje amigo
de alguém, de quem amanhã me torno inimigo, voltando a considerá-lo amigo
algum tempo mais tarde. Posso ser amigo de muitos ao mesmo tempo,
incrementando a carteira de amigos úteis, na exacta medida em que me torno mais
poderoso e posso distribuir mais benesses por mais gente, essência da prática desta
relação. É habitual assistir a este tipo de exibição na vida política dos dias de hoje,
plena de hipocrisia e tacticismo. Imagens televisivas recentes, de um viral braço
dado, um tanto forçado, dão a justa medida do exercício de vileza que por vezes
comporta este patamar de amizade. Não que seja imperativa tal vileza extrema,
admito que uma amizade por interesse possa ser o início de algo mais profundo.
Mas na verdade, uma amizade que não passe deste nível material e primário, ou
então feneça em definitivo, uma vez esgotado o seu verdadeiro propósito, é antes
de tudo, assunto de comércio e nada deve ao verdadeiro amor. A amizade política,
em senso estrito, seria assim o paradigma da forma útil de amizade. Aristóteles
intui esta importância da amizade na vida política há mais de dois mil anos, que
trata com a perícia habitual já na parte final do livro VIII (1161a 10 e seguintes).
Subindo um degrau, ainda que não especialmente elevado, voltemo-nos
agora para a amizade pelo prazer na relação. Parente da primeira, para Aristóteles
a amizade de prazer é contudo mais próxima da verdadeira amizade (1158a 15/20).
Isto porque o objecto dessa mesma amizade já não é redutível à pura esfera do
interesse, do meu interesse, ascendendo outrossim, ao patamar da satisfação que
os amigos retiram da mútua relação. Há interesse aqui, sem sombra de dúvida, mas
este é agora centrado na relação e não em si próprio e na utilidade pura e dura do
outro. Neste tipo de amizade a generosidade floresce com maior vigor, é mais
típica de pessoas felizes que buscam o que lhes é mutuamente agradável (1158a
20/25). Existe também igualdade uma vez que os amigos tendem a receber e a dar
em igual medida. Mas a sua perenidade é dependente de uma condição volátil, só
amo enquanto retiro prazer da relação, no dia em que tal não se verificar para mim
ou para o outro, a amizade cessa. Espiritualmente mais rica, pois já não olho para
mim e para o meu benefício em exclusivo e sim para a relação, que me é exterior,
não atinge contudo a perfeição da amizade verdadeira.
Vejamos então em que consiste esta amizade perfeita e verdadeira,
característica dos homens bons e virtuosos. Os amigos nesta condição desejam o
bem do outro, pelo bem em si e pelo amor que ao seu amor dedicam. Não existe
aqui comércio ou hedonismo, sou amigo porque gosto do meu amigo, porque lhe
quero bem. Não importa se me é útil, poderia não o ser, mas traz-me a riqueza de
ser meu amigo, e para um homem bom que maior riqueza pode existir que essa da
pura amizade? Também não é pelo prazer que retiro da sua presença, que gosto do
meu amigo, ainda que isso ocorra quando partilho da sua agradável companhia. É
patente que a amizade verdadeira partilha com as duas anteriores as suas
qualidades de utilidade e de prazer, mas não se esgota aí e é diferente em qualidade.
Desejar bem ao outro, ao seu amigo, é apanágio dos homens bons, que prezam o
bem em si, e não o fazem por acidente, em razão de uma qualquer circunstância
utilitária ou prazerosa (1156b 10) e por isso passageira e impermanente. É-se bom
porque se é, e ama-se porque se ama. Não se tende a ser bom em um dia, mau no
outro e assim-assim no seguinte, em função de humores ou disposições. Este tipo
de amizade tende a ser perene, porquanto não é função de causas circunstancias
que dependem de factores exteriores à amizade em si. Está também blindada contra
a calúnia e maledicência, se gosto do meu amigo e sei da sua bondade, não creio
que possa praticar o mal, pelo menos de maneira consciente ou intencional.
Também é imune ao erro e infortúnio, o meu amigo errou, cometeu uma falta, mas
eu como seu companheiro dou-lhe a mão e ajudo-o a levantar-se, empresto-lhe o
meu ombro para nele se apoiar. Aristóteles alerta muito bem para a raridade da
vera amizade, não é algo que se crie em dois dias, demora a construir-se e não se
constrói com toda a gente, ou mesmo com muita gente. Os verdadeiros amigos são
necessariamente poucos e na essência, aqueles que “provaram o sal juntos” (1156b
25). A amizade verdadeira sobrevive enquanto os seres que assim se dedicam o
amor existirem, dado que amam o outro em si e não por acidente e de maneira
circunstancial. Um amor assim pode até sobreviver à dor que a sua relação possa
causar, porque é o ser do outro que se ama, ama-se a essência do outro. Pode
envolver sacrifício e desagrado, pelo menos na superfície, mas a espessa corrente
do amor não se quebra com a erosão do desagrado. Esta afeição não corre apenas
entre iguais, pode surgir de igual modo entre pessoas desiguais, como os amores
paternal e filial, ou de um rei pelos seus súbditos.
Em síntese e para finalizar a profundidade e rigor com que Aristóteles trata
um assunto tão pouco aprofundado como este da amizade é fascinante e de extrema
utilidade, ontem como hoje e sempre, fornecendo um conjunto de ferramentas
essencial para a boa compreensão da vida em sociedade e um guia de grande valor
para uma ética pessoal. Muito se ganharia com o seu ensino e divulgação.

Lisboa 30 de Maio de 2016


José António Amaral
BIBLIOGRAFIA

1. ARISTOTE, “Étique à Nicomaque”, traduction (éd. de 1959) de Jean


Tricot (1893-1963). Éditions Les Échos du Maquis (ePub, PDF), v. 1.0,
Janvier 2014.
2. PEREIRA, Américo, “Lições de Axiologia e Ética, Nº 1 a 10”. UCP,
2015.

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