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Revista Mundo Antigo – Ano IV, V.

4, N° 08 – Dezembro – 2015 – ISSN 2238-8788

Ortodoxia e Heterodoxia:
os debates e conflitos em torno das heresias nos primeiros
séculos

Rosana Brito da Cruz1


Submetido em Agosto/2015
Aceito em Agosto/2015

RESUMO:
Este artigo é resultado da defesa de monografia realizada na Universidade Federal do Pará sob a
orientação do Prof. Msc. Thiago de Azevedo Porto cujo título foi “Eusébio de Cesaréia e a História
Eclesiástica: um discurso identitário acerca da ortodoxia via alteridade das heresias” (2013). Com o
objetivo de verificar os processos formadores de identidade através do contexto de escrita da obraHistória
Eclesiástica do bispo Eusébio de Cesaréia,produzida nas primeiras décadas do século IV,pois a mesma
possui elementos que serviram como modelo para os textos hagiográficos posteriores. Essa obra foi o
ponto de partida para elaboração deste artigo, no qual será analisado mais precisamente um aspecto da
obra, no que concerne a análise de um discurso formador de identidade que se dá através da afirmação da
ortodoxia pela alteridade das heresias, buscando consolidar sua legitimidade.
Palavras- chave: Heresia, Ortodoxia, Identidade.

ABSTRACT:
This article is the result of the monograph defense held at the Federal University of Pará under the
guidance of Prof. MSc. Thiago de Azevedo Porto cujo title was "Eusebius of Caesarea and the
Ecclesiastical History: an identity discourse about orthodoxy via otherness of heresies" (2013). In order to
verify the formation processes of identity through the Ecclesiastical obra História writing context of the
bishop Eusebius of Caesarea, produced in the first decades of the fourth century, because it has elements
that served as a model for later hagiographic texts. This work was the starting point for the preparation of
this article, which will be analyzed more precisely one aspect of the work, as regards the analysis of a
trainer discourse of identity that is through the orthodoxy of the statement by the otherness of heresies,
seeking to consolidate its legitimacy.
Key words: Heresy, Orthodoxy, Identity.

1
Licenciada em História pela Universidade Federal do Pará. Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Linguagens e Saberes na Amazônia da UFPA Email: rosanabc87@gmail.com

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O objetivo deste artigo pauta-se em analisar um aspecto da obra História Eclesiástica


do bispo Eusébio de Cesaréia, no que concerne a análise de um discurso formador de
identidade que se dá através da afirmação da ortodoxia pela alteridade das heresias,
buscando consolidar sua legitimidade.Abordaremos em nosso trabalho apenas os aspectos
considerados cruciais para entendermos a relação que se estabeleceu entre Igreja e Império
Romano ao longo de sua trajetória, principalmente no que diz respeito ao processo de
legalidade pelo qual passou o cristianismo e os discursos apologéticos de autores cristãos
para legitimar uma identidade cristã ortodoxa.
Com o processo de hierarquização discursiva no âmbito da organização eclesiástica,
consideramos que as heresias assim definidas pela Igreja estavam intimamente ligadas com
o desenvolvimento do poder eclesiástico: quanto mais intenso ele fosse maior seria seu
poder de coerção. Observamos nesse momento do século IV, grandes discussões
teológicas, concílios ecumênicos e controvérsias, sobretudo no que concerne à necessidade
de definir a essência de Cristo, causando posteriormente um grande problema dogmático,
que seria o de estabelecer a relação entre Deus, o Pai e o Filho, se estes seriam da mesma
essência ou não. É nesse cenário que surge Ário que negava a divindade do verbo, tais
questões foram resolvidas nos concílios que se seguiram de Nicéia e de Constantinopla.
Diante desse cenário é que trabalharemos sobre os movimentos chamados de
heréticos, primeiramente fazendo uma breve conceituação do termo heresia para um
melhor entendimento sobre o tema discorrido. Posteriormente, faremos considerações
gerais sobre alguns movimentos apontados como heréticos nos primeiros séculos da Igreja.
Finalizando o trabalho, abordaremos sobre as contendas em torno do cristianismo e do
arianismo, além do posicionamento da Igreja perante as correntes de pensamentos que
estavam em evidência no cenário eusebiano, de escrita da obra HE2.

2.1. Conceituando heresia


É fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho, e para uma melhor
compreensão do mesmo, apresentarmos, desde já, as bases conceituais do termo heresia,
bem como algumas reflexões sobre o desenvolvimento histórico dos movimentos
considerados heréticos nos primeiros séculos de organização da Igreja. Pois tanto o
surgimento do conceito, quanto a sua aplicação pela Igreja (e seus representantes) nos

2
Ao longo do trabalho, eventualmente, utilizaremos a sigla HE como substituto para História
Eclesiástica.

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primeiros séculos, constituem uma base importante para analisar o discurso de Eusébio de
Cesaréia acerca das heresias na História Eclesiástica, objetivo principal destetrabalho.
As heresias tem sido uma temática muito discutida por diferentes autores,
principalmente com o advento de novas modalidades historiográficas, sobretudo a história
cultural, possibilitando um estudo acerca das relações que se estabeleceram entre heresia e
religiosidade. Surgem, portanto obras que dialogam com tal temática, que são mais
contemporâneas a nós, como Pequena História das Heresiasde João Ribeiro, publicada em
1989, e ainda História das Heresias (séculos I- VII): conflitos ideológicos dentro do cristianismo de
Roque Frangiotti, que aprofunda tais assuntos de forma a nos mostrar a diversidade de
posicionamentos contrários ao que estava sendo imposto pelo cristianismo primitivo.
O termo Heresia vem do grego (haíresis) que significa escolha, foi criado
historicamente e ganhando outros significados com o passar do tempo, na época
helenística tinha o sentido de doutrina ou escolha. Com o advento do cristianismo, a
palavra recebeu uma conotação pejorativa de “doutrina que está fora da Igreja”, ou seja,
contrária aos princípios da fé cristã3. A definição e aplicação deste conceito foi um
instrumento fundamental para a própria organização eclesiástica: definir quem eram os
hereges era uma maneira de demarcar o que era certo dentro da Igreja, ou seja, delimitar
um aspecto particular ou uma interpretação doutrinária como verdade, através da escolha
feita por determinados grupos cristãos ou individualmente4.
Essas escolhas sempre irromperam conflitos, controvérsias e desentendimentos
desde o inicio das comunidades cristãs, pois não era algo estável, o que fez com que uma
doutrina se sobressaísse sobre as demais. É interessante esclarecer que inicialmente as
heresias surgidas na Antiguidade eram de divergências teológicas, diferente das que surgem
na Idade Média prenunciando a Reforma Protestante do século XVI5.
A partir desse processo que envolveu escolhas, debates e conflitos, a Igreja foi
delimitando a doutrina tida como verdadeira, e a única a possuir a verdade revelada pelos
apóstolos, apontando nas demais o errado e denominando-as de heresias. O surgimento
das heresias não corresponde a uma visão pueril de que aos poucos a fé cristã tivesse sido
deturpada por falsas doutrinas, mas deve-se ao fato de que havia uma multiplicidade dos
testemunhos da fé, que resultaram em escolhas pessoais e na formação de comunidades

3
RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 19.
4
OLIVEIRA, Elisana Ribeiro; CRUZ, Rosana Brito da.Eusébio de Cesaréia e a História Eclesiástica:
um discurso identitário acerca da ortodoxia via alteridade das heresias.Alétheia – Revista de Estudos
sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, julho a dezembro de 2011, p. 78.
5
BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. (Série A Igreja na História). p. 55.

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segregadas, desviando-se da doutrina fiel aos princípios. Desta forma, com o passar do
tempo foi se afirmando a noção de ortodoxia, através da delimitação doutrinária e
dogmática de tudo o que se considerava verdadeiro em questão de fé.
Nesse sentido, a heresia está estritamente ligada com a evolução do poder
eclesiástico, ou seja, através do discurso propagado pela Igreja a respeito das práticas
heréticas é que está inserido o objetivo de se alcançar o poder. O poder, muito além de
gerar dominação, é o propagador do saber, das relações, do discurso, portanto quanto mais
forte ele é mais as heresias são identificadas, condenadas e perseguidas. Percebe-se isto a
partir do momento em que se dá a aliança entre Igreja Cristã e Império Romano, com
Constantino, que não só legitimou o cristianismo como também as perseguições feitas aos
hereges, que foram cada vez mais identificados e perseguidos por meios mais fortes e
coercitivos.
O herege não é designado “herege” senão porque alguém investido de poder
eclesiástico e institucional classifica suas práticas ou idéias como contrárias a uma ortodoxia
tida como verdadeira. Todo herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas.
Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros6.
As heresias, no entanto, sendo nomeadas como “desvios de conduta”, possuem
elementos positivos para a evolução da doutrina cristã e para aprofundar o mistério e
compreensão da fé, através de seus estudos. Sendo assim, são também consideradas como
ocasião de progresso no seio da igreja.
No judaísmo essas escolhas passaram a ser responsáveis pelas várias seitas que nele
existia, e com isso o termo recebe o significado pejorativo de heterodoxia, indicando quem
se afastava da verdadeira doutrina da tradição rabínica, sendo acusados de serem os
inimigos da fé.

“Realmente, todas as religiões soçobram no hábito e acabam por cansar.


Cansam à medida que seus adeptos perdem fervor. A fé se enfraquece,
perde dinamismo. Deixa de ser contagiosa como era na origem. O
homem, pois, tem necessidade de ressuscitar-se a si mesmo, de morrer e
de reviver; daí serem necessárias as pulsões da novidade, o empurrão das
heresias, para retomar seu caminho em direção aos cumes da perfeição.
Por isso, São Paulo dizia que “É preciso que haja heresias” (1Cor.
11,19)”7.

6
DUBY apud BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2012. (Série A Igreja na História). p. 56.
7
RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989,p. 20.

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Com o passar do tempo a Igreja buscou se fortalecer através das heresias, como uma
forma de reavivar a fé que muitas vezes se enfraquecia no âmbito da mesma. Assim como
no inicio do cristianismo, a Igreja sempre buscou se consolidar e legitimar seu poder
através das heresias, identificando nelas o errado e se afirmando como a verdadeira
doutrina. Quando passava por algum enfraquecimento, buscava se fortalecer identificando
outras heresias.
O cristianismo conheceu crises profundas, devido principalmente às interpretações
pessoais das sagradas escrituras no contexto do século IV, e ainda os mais diversos cultos
que tendiam para a capital do Império Romano. Havia diferentes tendências que afirmavam
serem os defensores da verdadeira fé, grupos cristãos seguiram determinadas propensões
religiosas à medida que iam recebendo a mensagem de Cristo, uma multiplicidade de
testemunhos da fé levou à formação de comunidades segregadas8. No interior desses grupos
surgiu o que ficou conhecido como heresias, a começar pela tendência judaizante na qual
havia um conflito entre judeus-cristãos e os recém-convertidos do paganismo que não
necessitavam passar pela circuncisão nem observar todas as práticas judaicas. Deveriam
apenas aceitar o monoteísmo e os mandamentos. Diante desse judaísmo heterogêneo
carregado de ideias cristãs e não- cristãs, que têm raízes pagãs, surgiram às chamadas
heresias judaicas.

2.2 Considerações sobre algumas heresias, das origens ao século IV


É imprescindível fazermos algumas apreciações sobre o que entendemos por
discurso e seus reflexos nas chamadas heresias de acordo com as interpretações tecidas por
Helena HathsueNagamine Brandão, o discurso constitui um dos aspectos materiais de
ideologia. Logo, pode se afirmar que é uma espécie pertencente ao gênero ideológico, ou
seja, “os discursos são governados por formações ideológicas, pois, a formação ideológica
tem essencialmente várias formações discursivas interligadas”9.
Partimos do pressuposto que o discurso é transmitido ao longo do tempo, fruto das
relações sociais nas quais o poder está interligado com as práticas discursivas, que por sua
vez apontam para os processos formadores de identidade no contexto de escrita das fontes.
Helena Brandão faz uma análise do conceito de discurso em Foucault, sobretudo no que
diz respeito à relação do enunciado com seu sujeito.

8
Cf. STOCKMEIER,Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef etalli.
História da Igreja Católica. 3ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p. 24.
9
BRANDÃO, Helena HathsueNagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2004, p. 47.

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“situa-se na vertente oposta a uma concepção idealista do sujeito que,


interpretado como o fundador do pensamento e do objeto pensado, vê a
história como um processo sem ruptura em que os elementos são
introduzidos continuamente no tempo concebido como totalização”10.

Partilhamos da concepção de Helena Brandão quando afirma ser o processo


discursivo uma produção de sentido, que passa a ser o espaço no qual emergem as
significações, noção que juntamente com a de condição de produção e formação
ideológica, são as bases para a formulação da análise do discurso que utilizaremos na
documentação. Ou seja, o discurso não é abarcado pela unidade do sujeito e sim pela sua
dispersão, que decorre das várias posições possíveis de serem assumidas por ele no
discurso.
O surgimento dos movimentos heréticos e as formas geradas no âmbito eclesiástico
revelam os diferentes posicionamentos sobre os assuntos da fé, a começar pelo gnosticismo
que é uma forma de teologia que promete salvação pela compreensão dos enigmas do céu e
da terra. Tal compreensão é adquirida quando o ser humano, orientado por um mestre,
dirige sua atenção para dentro de si mesmo11. A palavra gnóstico significa “aquele que
conhece”12, por isso, o gnosticismo trata sobre conhecimento secreto, que resultou do
sincretismo entre judaísmo e cristianismo. Os primeiros movimentos gnósticos apareceram
na Palestina e na Síria, tinham um caráter materialista, pois consideravam Jesus Cristo um
simples homem nascido de Maria.
Simão Mago e seu discípulo Menandro são apontados por representantes da Igreja
como os fundadores do gnosticismo, que desenvolveu-se consideravelmente no século IV.
Os gnósticos formaram vários movimentos com visões que se aproximavam, porém havia
também divergências que os afastavam, seus princípios se caracterizavam entre bem e mal,
um dualismo que dividia o mundo em físico e espiritual13. A seguir um documento que
retrata a tentativa de explicar Cristo na concepção gnóstica síria:

O gnosticismo
1.Gnosticismo de tipo sírio
Saturnino (ou Saturnilo) (c.120)
Irineu, Adv. Haer. I.XXIX.1-2

“Saturnino era antioquiano. Pensava, como Menandro, que há um pai


absolutamente desconhecido, que fez anjos, arcanjos, virtudes e

10
BRANDÃO, op. cit., p.33-34.
11
MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 101.
12
HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008, p. 65.
13
Ibidem, p. 65.

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potestades; o mundo, porém, e tudo quanto nele existe, foi feito por
anjos em número de sete...
O Salvador, conforme Saturnino, não nasceu, não teve corpo nem
forma, mas foi visto em forma humana apenas em aparência. O Deus
dos judeus, segundo ele, era um dos sete anjos. Visto que todos os
príncipes quiseram destruir seu Pai, Cristo veio para aniquilar o Deus dos
judeus e para salvar os que nele mesmo acreditassem. Esses são os que
possuem uma faísca da vida de Cristo. Saturnino foi o primeiro que
afirmou a existência de duas estirpes de homens formadas pelos anjos:
uma de bons e outra de maus. Tendo em vista que os demônios davam
seu apoio aos maus, o Salvador veio para destruir os demônios e os
perversos, salvando os bons. Mas, ainda segundo Saturnino, casar-se e
procriar filhos é obra de Satanás”14.

Percebemos nesse documento o dualismo entre o bem e o mau e a busca pelo


conhecimento que somente será alcançado com a libertação do espírito que está preso a
matéria. Diante da gnose o cristianismo estava frágil, pois os hereges gnósticos se
consideravam “ortodoxos”, uma vez que também se baseavam na escritura, na tradição e
no credo15. O gnosticismo estava pautado em quatro traços característicos, que em toda a
sua peculiaridade, prometem ao “eu” humano uma redenção através do caminho do
conhecimento e podem ser sintetizados nas seguintes ideias:
1. Dualismo entre bem e mal, reino da luz e reino das trevas;
2. Libertação da centelha de luz aprisionada na matéria;
3. O conhecimento do “eu” só é alcançado quando este consegue se libertar dos
grilhões da matéria e volta para o reino do verdadeiro Deus;
4. O discurso sobre “queda” e “ascensão” está permeado de elementos filosóficos,
religiosos e astrológicos da época, evidenciando seu caráter sincrético.

Diante do alcance que o gnosticismo havia tomado, o cristianismo lançou mão de


guardar a revelação bíblica e garantir seu caráter histórico16, reagiu contra as aspirações
gnósticas com a memória de uma tradição apostólica. Com esse embate entre cristianismo
e gnosticismo, se delineou cada vez mais a imagem de um único Deus verdadeiro.
Já o Marcionismo representou um grave confronto com a Igreja, liderada por
Marcião, que era filho do bispo de Sinope, no Mar Negro, tendo sido expulso da
congregação da qual participava (os motivos de tal expulsão não são claros). Marcião
estabeleceu-se posteriormente na comunidade romana, onde passou a pregar um “Deus de

14
BETTENSON,Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2007, p. 77.
15
DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo, RS: Sinodal 1993. (Coleção História
da Igreja v. 1). p. 33.
16
STOCKMEIER,Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef etalli. História
da Igreja Católica. 3 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p. 25.

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Amor”17, em detrimento do Deus do Antigo Testamento, que para ele era cheio de ira. O
fato é significativo, pois mostra a força e a penetração do movimento gnóstico 18. Sua
afinidade com o dualismo gnóstico, na existência de um Deus justo e outro semelhante ao
Demiurgo, encontrou afinidade para tal doutrina no apóstolo Paulo, que segundo ele foi o
único que entendeu a revelação de Deus em Cristo19. Sua tentativa de separar do
cristianismo qualquer ligação com o judaísmo e suas tradições é uma das suas principais
características. Os principais elementos do marcionismo são:
 Afinidades com o dualismo gnóstico: existência de um Deus justo e cheio de ira, Javé,
identificado com o demiurgo, e de um Deus de amor e de toda consolação, o Deus
do evangelho; o Deus bom assumiu um corpo aparente em Cristo; desprezo da
matéria.
 Rígido antijudaísmo: separação do cristianismo de qualquer ligação com o judaísmo.
 Repúdio integral do AT: AT e NT estão em plena contradição; rejeição da explicação
alegórica do AT.
 Rigorismo ético: abstenção de todas as obras do Deus criador, especialmente o
matrimônio, a carne e o vinho20.

A Igreja proclamou-se diante de Marcião para recusar suas idéias: que o Antigo e o
Novo Testamento são normativos para seu ensino e ao declarar que o Deus do Antigo
Testamento, o criador, é o pai de Jesus Cristo, portanto a criação é e continua sendo a boa
criação de Deus21, e que todas as declarações devem partir dessa premissa. Podemos
perceber que a partir desse momento a Igreja instituiu seu primeiro dogma de fé, ou seja,
ponto fundamental e indiscutível da sua doutrina religiosa.
Outro movimento que se destacou foi o ebionismo, que se caracterizava por judeus-
cristãos que observavam a lei mosaica e reconheciam Jesus Cristo como Messias 22; porém
compreendiam que Jesus não era filho de Deus e sim um simples homem.

“Essa doutrina dos primeiros séculos de nossa era afirmava que Jesus
possuía apenas uma natureza, a saber, a humana. Ainda, de acordo com
esta heresia, também ensinava ser o Cristianismo uma mera continuação
do Judaísmo, no qual o Nazareno não tinha nenhum dos atributos

17
Idem, p. 26.
18
DREHER, Martin N. Op. Cit., p. 34.
19
DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1993. (Coleção História
da Igreja v. 1). p. 35.
20
MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006,p. 104.
21
Idem, p. 36.
22
RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 23.

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naturais e atributos que caracterizam a natureza divina (ANDRADE,


1996). Eles também rejeitavam o nascimento virginal, sustentando que
Jesus nascera de José e Maria normalmente (MATERA, 1989, p. 47). Ao
rejeitar a divindade real ou ontológica de Jesus, asseverava que Jesus era
um homem comum que possuía dons incomuns (ERICKSSON, 1997).
Mas não sobre-humanos, ou sobrenaturais. Segundo Daniélou (apud
FRANGIOTTI, 1995), os ebionitas representavam uma tendência
judaico-cristã herética”23.

O movimento ebionita enfatizava a natureza humana de Jesus, como filho carnal de


Maria e José, que teria se tornado Filho de Deus no batismo. Desvalido por cristãos e
judeus, o ebionismo constituiu uma vertente separada com suas interpretações da Sagrada
Escritura. A concepção ebionita compreendia Jesus como um mero homem, para eles, era
importante decidir sobre a identidade ontológica de Jesus de Nazaré conforme João
Ribeiro Júnior24, “entendiam que ele não era o filho de Deus e sim um simples homem, o
profeta anunciado por Moisés”. Os ebionitas eram condenados porque consideravam Jesus
um ser humano e nada além, mas parece que para eles tinha sido bem mais que isso. Seu
nome vem do aramaico ebyon “pobre”, os ebionitas consideravam-se judeus que
acreditavam em Jesus25, a Igreja dos ebionitas resistiu até o século V.
O século IV foi, sem dúvidas, um período de grandes contendas no âmbito da Igreja,
principalmente os conflitos teológicos que ocorriam em torno da questão trinitária, da
definição da divindade entre Deus, o Pai, e o Filho. As controvérsias sobre questões
cruciais da fé também tiveram a interferência imperial, e muitas vezes se caracterizaram por
lutas políticas26. Diante desse contexto surge um conflito que se apresentou entre Ário, que
se considerava um teólogo conservador, e os bispos cristãos. Um dos temas centrais da
doutrina de Ário é que o Pai é o único não gerado, ou seja, que o Filho não era divino, mais
sim uma criatura como qualquer outra e possuía um caráter subordinacionista em relação
ao Pai.
Diante desse conflito foi convocado um concilio em Nicéia (325), que reuniu
diversos bispos de todas as regiões para que fosse estabelecida a paz para a Igreja. Dentre
eles destacavam-se Eustácio de Antioquia e Marcelo de Ancira, e entre o grupo que apoiava
Ário estava presente Eusébio de Nicomédia e também Eusébio de Cesaréia27. Os arianos
propuseram uma formulação da fé cristã, Eusébio de Cesaréia fez então uma proposta, ele

23
SILVA, José Orlando da.A encarnação como a suprema hierofania: Releitura interpretativa do
cristianismo.Dissertação – Mestrado, Recife: UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO,
2012,p. 54.
24
JÚNIOR, João Ribeiro. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 23.
25
HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008, p. 64.
26
MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 121.
27
STOCKMEIER,Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef etalli. História
da Igreja Católica. 3 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p. 62.

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formularia a fé num único Deus e verbo divino, buscava-se, portanto confirmar que o
Filho pertence à esfera divina, indo contra a idéia ariana do logos ser uma criatura28. Eusébio
posteriormente justificou sua atitude a comunidade a qual pertencia, afirmando que havia
agido desse modo para conseguir a paz da Igreja, que pretendia o imperador.
É interessante averiguarmos os motivos pelos quais havia tantos bispos que estavam
seriamente divididos sobre a questão ariana, sabemos que muitos simpatizantes da doutrina
de Ário foram silenciados à força por ordens do imperador29.
Ário tinha muitos seguidores e mesmo com a sua condenação ao exílio, após o
concilio de Nicéia, a questão não estava encerrada e perdurou até o ano de 381. O
arianismo adentrou até mesmo na corte, especialmente por causa da irmã do imperador,
chamada Constância, que levou Constantino a adotar uma política mais flexível, permitindo
aos exilados, dentre eles Ário e Eusébio de Nicomédia, que inclusive se tornou de sua
intima confiança, que voltassem e readquirissem suas sedes. Talvez essa atitude de
Constantino se caracterize por interesses políticos já que os arianos eram a maioria nas
regiões orientais30.
Partindo da análise documental de tais questões, podemos presumir que Eusébio de
Cesaréia entendia a questão herética como uma ameaça ao cristianismo e a fé na verdade
professada pela Igreja. Podemos perceber o posicionamento arbitrário de Eusébio quando
se trata de escrever a respeito das heresias que surgiram na Antiguidade, e de qualquer
outro pensamento que fosse contra seus princípios dogmáticos, ou que se apresentasse
como negação da verdade original segundo seus preceitos. É importante ressaltar que não
era somente o bispo de Cesaréia que se posicionava dessa forma, pois ele fazia parte de um
grupo social, cujo pensamento convergia com seus posicionamentos, contudo deve-se
perceber que o significado da palavra “heresia” foi adquirindo novos matizes com os
desenvolvimentos medievais31.

2.3 Ortodoxia e Heterodoxia: os debates e conflitos em torno do


arianismo
Ário (260-335) nascido na Líbia, educado na escola catequética de Luciano de
Antioquia, era sacerdote em Alexandria, um centro do pensamento helenístico e lugar de

28
Idem, p. 63.
29
HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008, p. 81.
30
MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p.129.
31
BARROS,José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. (Série A Igreja na História). p. 57.

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uma escola famosa dedicada à expansão do Cristianismo entre as classes mais cultas32.
Nesse contexto começa a se propagar o pensamento ariano (entre 318 e 381 d.C.) através
de cartas, homilias, canções sacras e escritos33. A Controvérsia Ariana pautava-se em torno
de uma definição bíblica legítima da relação entre Deus, o Pai, e o Filho.
Ário interpretou o Filho de Deus em um sentido subordinacionista, ou seja, estava
numa posição inferior ao Pai, que teria sido criado do nada. O logos, desse modo, teria sido
“produzido”, através da obra de criação do Pai, era uma criatura como outra qualquer.Os
pontos principais da doutrina ariana são: o Pai é o único não-gerado, não-criado, eterno e
sem princípio, o único que é a origem; é anterior ao Filho; portanto se o Pai gerou o Filho,
este passou a existir no tempo, consequentemente houve um momento em que o Verbo
não existia; o Verbo é pura criatura e mutável, podendo conquistar novas perfeições34.
É interessante observarmos que a controvérsia do arianismo surge no âmbito do
cristianismo, difundida por um sacerdote cristão. Portanto, o arianismo não se configurava
como desvio da tradição ou como construção de uma nova seita, mas no nosso ponto de
vista numa busca pela verdadeira essência de Cristo, em um consenso sobre a gênese da
doutrina cristã.
Ário apoiava-se nas seguintes premissas bíblicas: Pr 8,22 (Deus me criou), Mc 10, 18
(só Deus é bom) e 13, 32 (o Filho ignora o dia do julgamento), Jo 14, 28 (o Pai é maior do
que eu), 1 Cor 15,28 (o Filho será submisso ao Pai), Cl 1,15 (o primogênito de toda
criatura)35.
Constantino resolve intervir nos debates sobre a essência de Cristo e convoca um
concilio, denominado de Concilio de Nicéia (em 335) que reuniu vários bispos para que
fosse deliberada a questão ariana e outras que estavam em discussão na época. No concilio,
alguns bispos estavam preocupados com a unidade da Igreja, e outros com as distorções
dos dogmas e doutrinas cristãos36.
O grupo em torno de Ário contava com os bispos Eusébio de Nicomédia e Eusébio
de Cesaréia, as discussões teológicas se acirraram ainda mais por causa da formulação da fé
cristã proposta pelos arianos, originando resistências. Eusébio de Cesaréia propôs uma
profissão de fé da sua comunidade que professava a fé num único Deus, dessa forma

32
MANDONI, op. cit., p.121.
33
MANDONI, op. cit., p.122.
34
MANDONI, op. cit., p.122.
35
MANDONI, op. cit., p.123.
36
PAPA, Helena Amália.Cristianismo Ortodoxo versus Cristianismo Heterodoxo: uma análise político-
religiosa da contenda entre Basílio de Cesaréia e Eunômio de Cízico (séc. IV d.c.).Dissertação –
Mestrado, Franca : UNESP, 2009, p. 45.

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apaziguando as contendas, foram feitas apenas alguns complementos no que concerne ao


emprego da palavra homoousios que significa (da mesma essência).
O símbolo de Nicéia, portanto, visa confirmar que o Filho pertence à esfera divina
assim como o Pai, posicionando-se contra as ideias de Ário. Todos os bispos assinaram a
fórmula, inclusive Eusébio de Cesaréia, que concordou com os termos impostos de fé,
menos Ário e dois de seus seguidores. Numa carta enviada posteriormente a sua
comunidade, o bispo de Cesaréia busca explicar tal atitude, declarando que a paz na Igreja
era necessária e devia-se ao Imperador37. Ário e seus seguidores foram exilados na Ilíria.
Podemos analisar que, nesse contexto de fortes debates em torno da figura de Cristo,
revela-se um ideal político-religioso que diz respeito a afirmar uma doutrina perante o
Império e seu poder central. Também podemos perceber que se trata, sobretudo, de
interesses e benefícios que seriam conseguidos com a definitiva proteção do Estado com
relação à Igreja. A seguir uma carta de Ário ao bispo de Nicomédia, Eusébio, revela as
disputas em torno das explicações sobre a natureza de Cristo e as represálias sofridas por
aqueles que fossem contra as definições da Igreja sobre o assunto.

O arianismo
1.Carta de Ário a Eusébio, bispo de Nicomédia (c. 321)
Teodoreto, bispo de Ciro (423-458), H.E.I.V

“Ao seu queridíssimo, homem de Deus, cheio de fé e ortodoxia,


Eusébio, saudações no Senhor da parte de Ário, injustamente perseguido
pelo Papa Alexandre, sabendo que a verdade que de tudo triunfa tem em
Eusébio seu defensor.
Visto que meu pai Amônio está de saída para Nicomédia, creio de meu
dever enviar por seu intermédio minhas saudações e, confiando na vossa
natural inclinação para acolher os irmãos por amor de Deus e de Cristo,
avisar-vos-ão quão gravemente somos atacados e perseguidos pelo bispo,
que se volta contra nós chegando ao extremo de nos expulsar da cidade
como ateu, porquanto não concordamos com ele nas suas pregações:
“Deus sempre, o Filho sempre; ao mesmo tempo o Pai, ao mesmo
tempo o Filho; o Filho coexiste com Deus, não sendo gerado no tempo;
gerado desde a eternidade, Ele não nasceu por geração; o Pai não é
anterior ao Filho, nem por pensamento nem por um momento de
tempo; Deus sempre, o Filho sempre; o Filho existe desde que existe o
próprio Deus”.
Vosso irmão Eusébio, bispo de Cesaréia, Teodoto, Paulino, Atanásio,
Gregório, Aécio e os demais bispos do Oriente foram condenados
porque diziam que Deus existe sem começo, antes do Filho; apenas
discordaram Filogônio, Helânico e Macário, os quais são hereges e
ignorantes na fé; não falta entre eles quem afirme ser o Filho uma
efluência; outros, uma projeção do Pai; outros ainda que éco-ingênito
com o Pai.
Mas não podemos dar ouvidos, nem mesmo pensar em debelar estas
heresias, sem que nos ameacem com mil mortes. Nós pensamos e

37
STOCKMEIER,Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef etalli. História
da Igreja Católica. 3ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p.63.

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afirmamos como temos pensado e continuamos a ensinar: que o Filho


não é ingênito, nem participa absolutamente do ingênito, nem derivou de
alguma substância, mas que por sua própria vontade e decisão existiu
antes dos tempos e era inteiramente Deus, unigênito e imutável.
Mas, antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido, ele
não existia, pois ele não era ingênito. Somos perseguidos porque
afirmamos que o Filho tem inicio, enquanto Deus é sem inicio. Eis por
que somos perseguidos, e também porque afirmamos que ele é do que
não é, justificando essa afirmação, porquanto ele não é parte de Deus
nem deriva de substância alguma. Por isso somos perseguidos. Vós
sabeis o resto.
Confio, caro Eusébio, fiel discípulo de Luciano, que permaneçais firmes
no Senhor e lembrado de nossas aflições” 38.

Como observamos a carta de Ário a Eusébio de Nicomédia exemplifica os debates,


os conflitos e os interesses envolvidos em torno das questões cristológicas daquele
momento. Percebemos, ao longo dessas considerações, que as percepções de movimentos
tidos como heréticos sobre questões relacionadas à fé e ao mundo sobrenatural, não
estavam desconectadas. Muitas concepções se assemelhavam umas com as outras, porém
divergiam também sobre várias temáticas, ou seja, ao mesmo tempo em que se aproximam
elas se afastam em suas discussões sobre a fé. Os posicionamentos da Igreja em relação a
elas foram bastante hostis, a partir do momento em que os eclesiásticos perceberam o risco
de tais opiniões contrárias à verdade imposta pelo cristianismo, pois ameaçavam seus
privilégios e sua hegemonia frente aos fiéis.
Ao tratarmos especificamente da HE, fica evidente na obra a tentativa de justificar a
postura da Igreja com relação às heresias. Eusébio inicia seu discurso sobre as heresias no
livro II, quando identifica Simão Mago como o chefe de todas as heresias, eis o que relata
sobre ele:
“Por aquele tempo Simão tinha conseguido tamanha fama com seu
mágico poder sobre os iludidos que ele mesmo acreditava ser o grande
poder de Deus. Foi então que, pasmo ante as incríveis maravilhas
operadas por Felipe com o poder divino, infiltrou-se e levou o
fingimento de sua fé em Cristo ao ponto de ser batizado”39.

A partir dessa passagem Eusébio começa a tecer sua fala sobre as diversas heresias,
que ele aponta como sendo calunias contra a Igreja cristã. Nesse trecho Simão é apontado
como o precursor das heresias, que enganou até mesmo Filipe, que estava em Samaria para
evangelizar. Compreendemos que existe uma concorrência na pregação daquilo que se
acredita, Simão Mago é visto como o primeiro herege e o representante do demônio. É
interessante observarmos que nesse momento as querelas e as heresias em questão são

38
BETTENSON,Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2007, p. 82.
39
EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida
Salmeron). São Paulo: Novo Século, 2002. Livro II: 11, p. 33.

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sobre aspectos puramente teológicos, posicionamentos que diferem de uma doutrina


privilegiada, que no caso é o cristianismo ortodoxo, são colocados em uma posição de
ilegalidade.
Eusébio não consegue ver nas outras correntes religiosas o caminho certo, ou uma
nova forma de interpretação das Sagradas Escrituras, mas somente a direção errada
induzida pelo demônio. Ao longo da HE percebemos no discurso de Eusébio um
confronto incessante entre Deus e o diabo, tudo é justificado e depende da relação entre o
bem e o mau:

“No entanto, havendo-se propagado a fé em nosso Salvador e Senhor


Jesus Cristo a todos os homens, o inimigo da salvação dos homens já
tramava antecipar-se na captura da cidade imperial e para lá conduziu
Simão, de quem já falamos acima. De fato, seguindo as hábeis artes deste
homem, ganhou para o erro muitos habitantes de Roma.

E depois da ascensão do Senhor ao céu, os demônios levaram alguns


homens a dizer que eram deuses, e estes não somente não foram
perseguidos por vós, mas até foram considerados dignos de honras. Um
tal Simão, samaritano, originário da aldeia chamada Giton, que em
tempos do César Cláudio realizou mágicos prodígios em vossa imperial
cidade, Roma, por arte dos demônios que nele operavam, foi tido por
deus, e como a um deus foi honrado por vós com uma estátua no
rioTibre, entre as duas pontes, com a inscrição latina seguinte:
SIMONIDEO SANCTO, ou seja: A Simão, o Deus santo” 40.

A partir da leitura dessa passagem, podemos perceber que Simão é salientado como o
inimigo da fé cristã, aquele que trabalha para o mau, e como principal concorrente dos
apóstolos. Eusébio aponta Simão Mago como sendo aquele que incitado pelo demônio
propagou uma doutrina falsa para atrapalhar a ascensão da Igreja. Tudo que não é tido
como parte da Igreja Romana passa a ser demonizado, para o autor as heresias eram as
obras do mau.

Considerações finais
Como podemos observar ao longo do trabalho, existia toda uma trajetória de
movimentos considerados heréticos anteriores a vida de Eusébio e de discursos sobre esses
movimentos na tradição da Igreja. Portanto, quando ele fala das heresias ele se posiciona
em relação a essa tradição, sendo por ela influenciado. Nosso intuito neste artigo foi de
verificar os processos formadores de identidade através do contexto de escrita da obra

40HE, II, 1 e 3, p. 39.

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História Eclesiástica do bispo Eusébio de Cesaréia e compreender o momento histórico


destes debates em torno da verdade estabelecida pelo cristianismo em matéria de fé.
O arianismo é um dos movimentos pelos quais abordamos as controvérsias
religiosas, surgiu dentro do próprio cristianismo, foi formulado por um eclesiástico cristão,
justamente em um momento em que a Igreja buscava a afirmação e legitimação de suas
crenças: o cristianismo utilizou-se do discurso como forma de estabelecer uma identidade
cristã ortodoxa. Partindo da ideia de que só existe ortodoxia pela alteridade das heresias, já
que a identidade porta sempre o traço da diferença. As construções identitárias nascem das
relações dos sujeitos, das suas práticas e os seus efeitos são múltiplos que se concretizam
nos encontros estabelecidos em contextos únicos, de situações precisas influenciadoras de
práticas discursivas que estão em constante transformação, inclusive a partir da apropriação
social de tal discurso.
Nessa perspectiva, pode-se entender a partir do autor que o poder como verdade
pode ser estabelecido pelos discursos produzidos e pelas relações que ele determina, sem a
devida reflexão crítica dos sujeitos. Os processos de exclusão fazem parte do mecanismo
de pertença de determinado grupo social, as relações de poder impostas partem também de
instituições das quais estamos inseridos, questionando quem fala e o que fala. O discurso
não é atribuição exclusiva de quem o enunciou, este é produto da interação entre os
sujeitos, mergulhados em uma situação social específica.
Sobre o discurso identitário presente nos fragmentos da obra HE, podemos
identificar que Eusébio assumia um posicionamento no qual estavam implícitos os seus
pensamentos políticos. Ou seja, o discurso que constitui a nova identidade cristã é o
elemento de unidade fundamental no qual o cristianismo se pauta para convencer novos
fiéis a sua doutrina. Nesse sentido, Eusébio, assim como outros autores de seu tempo, deve
ser visto como um propagador do conjunto de enunciados formulados pelos intelectuais
católicos para difundir e universalizar o cristianismo.

Bibliografia
1. Documentação Primária Impressa:
EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria
Aparecida Salmeron). São Paulo: Novo Século, 2002.

2. Documentação Secundária Impressa:


BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2007.

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4. Obras Gerais:
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