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Paul Ricoeur
Sempre se soube e muitas vezes se repetiu que a vida tem algo a ver com a
narrativa; falamos de uma história de vida para caracterizar o intervalo entre o
nascimento e a morte. E, no entanto, assimilar a vida a uma história dessa maneira não é
realmente óbvio; é um lugar-comum que deve primeiro ser submetido à dúvida crítica.
Essa dúvida é obra de todo o conhecimento adquirido nas últimas décadas sobre a
narrativa, um conhecimento que parece distanciar a narrativa da experiência vivida e
confiná-la à região da ficção. Vamos, em primeiro lugar, passar por essa zona crítica no
esforço de repensar de outra forma essa relação simplista e direta demais entre história e
vida, de tal forma que a ficção contribua para tornar a vida, no sentido biológico da
palavra, uma vida humana. Quero aplicar à relação entre narrativa e vida a máxima de
Sócrates de que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida.
Tomarei como ponto de partida, ao atravessar esta zona de crítica, a observação
de um comentador: as histórias são contadas e não vividas; a vida é vivida e não
contada. Para esclarecer essa relação entre viver e narrar, sugiro que examinemos
primeiro o próprio ato de narrar.
A teoria narrativa que discutirei agora é ao mesmo tempo muito recente, pois em
sua forma desenvolvida data dos formalistas russos e tchecos dos anos 20 e 30 e dos
estruturalistas franceses dos anos 60 e 70. Mas também é bastante antigo, pois pode ser
visto como prefigurado na Poética de Aristóteles. É verdade que Aristóteles reconheceu
apenas três gêneros literários: épico, tragédia e comédia. Mas sua análise já era
suficientemente geral e formal para permitir transposições modernas. De minha parte,
guardei da Poética de Aristóteles o conceito central de enredo, que em grego é muthos,
e que significa tanto fábula (no sentido de uma história imaginária) quanto intriga (no
sentido de uma história bem construída). É este segundo aspecto do mythos de
Aristóteles que estou tomando como meu guia; e é desse conceito de enredo que espero
extrair todos os elementos capazes de me ajudar posteriormente a reformular a relação
entre vida e narrativa.
O que Aristóteles chama de enredo não é uma estrutura estática, mas uma
operação, um processo integrador, que, como tentarei mostrar mais adiante, só se
completa no leitor ou no espectador, ou seja, no receptor vivo da história narrada. Por
processo integrador entendo o trabalho de composição que dá uma identidade dinâmica
à história contada: o que é contado é uma história particular, una e completa em si
mesma. É esse processo estruturante da implantação que colocarei à prova na primeira
parte de minha apresentação. [Aristóteles criou a importância do enredo (muthos) para a
narrativa; é algo como um processo que integra elementos múltiplos em uma história
narrada].
DA NARRATIVA À VIDA
Agora podemos atacar o paradoxo que estamos considerando aqui: histórias são
contadas, a vida é vivida. Uma lacuna intransponível parece separar ficção e vida. Para
cruzar essa lacuna, os termos do paradoxo devem, a meu ver, ser completamente
revistos.
Fiquemos por enquanto do lado da narrativa, portanto, do lado da ficção, e
vejamos de que maneira ela nos reconduz à vida. Minha tese é que o processo de
composição, de configuração, não se completa no texto, mas no leitor e, nessa condição,
possibilita a reconfiguração da vida pela narrativa. Devo dizer, mais precisamente: o
sentido ou o significado de uma narrativa decorre da intersecção do mundo do texto e
do mundo do leitor. O ato de ler torna-se assim o momento crítico de toda a análise.
Nela repousa a capacidade da narrativa de transfigurar a experiência do leitor.
Permitam-me enfatizar os termos que usei aqui: o mundo do leitor e o mundo do
texto. Falar de um mundo do texto é acentuar a característica própria de toda obra
literária de abrir diante de si um horizonte de experiência possível, um mundo no qual
seria possível viver. Um texto não é algo fechado em si mesmo, é a projeção de um
novo universo distinto daquele em que vivemos. Apropriar-se de uma obra pela leitura é
desdobrar o horizonte de mundo implícito nela que inclui as ações, os personagens e os
acontecimentos da história contada. Como resultado, o leitor pertence ao mesmo tempo
ao horizonte de experiência da obra na imaginação e ao de sua própria ação real. O
horizonte da expectativa e o horizonte da experiência continuamente se confrontam e se
fundem. Gadamer fala a esse respeito da 'fusão de horizontes' essencial à arte de
compreender um texto.
Estou bem ciente de que a crítica literária tem o cuidado de manter a distinção entre o
interior do texto e o seu exterior. Considera qualquer exploração do universo linguístico
como fora de seu alcance. A análise do texto se estende, então, às fronteiras do texto e
proíbe qualquer tentativa de sair do texto. Aqui, parece-me, a distinção entre o dentro e
o fora é produto do próprio método de análise dos textos e não corresponde à
experiência do leitor. Essa oposição resulta de estender à literatura as propriedades
características do tipo de unidades com as quais a linguística trabalha: fonemas,
lexemas, palavras; para a linguística, o mundo real é extralinguístico. A realidade não
está contida nem no dicionário nem na gramática. É precisamente esta extrapolação da
linguística para a poética que me parece convidar à crítica: a decisão metodológica,
própria da análise estrutural, de tratar a literatura em categorias linguísticas que impõem
a distinção entre dentro e fora. Do ponto de vista hermenêutico, isto é, do ponto de vista
da interpretação da experiência literária, um texto tem um significado inteiramente
diferente daquele reconhecido pela análise estrutural em seus empréstimos à linguística.
É uma mediação entre o homem e o mundo, entre o homem e o homem, entre o homem
e ele mesmo; a mediação entre o homem e o mundo é o que chamamos de
referencialidade; a mediação entre os homens, a comunicabilidade, a mediação entre o
homem e si mesmo, a autocompreensão. Uma obra literária contém essas três
dimensões: referencialidade, comunicabilidade e autocompreensão. O problema
hermenêutico começa, então, onde a linguística termina. Tenta descobrir novos traços
de referencialidade que não sejam descritivos, traços de comunicabilidade que não
sejam utilitários e traços de reflexividade que não sejam narcisistas, pois são
engendrados pela obra literária. Em uma palavra, a hermenêutica é colocada no ponto
de intersecção da configuração (interna) da obra e da refiguração (externa) da vida. Na
minha opinião, tudo o que foi dito acima sobre a dinâmica da configuração própria da
criação literária é apenas uma longa preparação para compreender o verdadeiro
problema, o da dinâmica da transfiguração própria da obra. Nesse sentido, a trama é
obra comum do texto e do leitor. Devemos seguir, acompanhar a configuração e efetivar
sua capacidade de ser seguido para que a obra tenha, mesmo dentro dos seus próprios
limites, uma configuração. Seguir uma narrativa é reatualizar o ato configurador que lhe
dá forma. É também o ato de ler que acompanha o jogo entre inovação e sedimentação,
o jogo com os constrangimentos narrativos, com as possibilidades de desvio, até mesmo
a luta entre o romance e o anti-romance. Enfim, é o ato de ler que completa a obra,
transformando-a em guia de leitura, com suas zonas de indeterminação, sua riqueza
latente de interpretação, seu poder de ser reinterpretado de novas maneiras em novos
contextos históricos.
Nesta etapa da análise, já podemos vislumbrar como narrativa e vida podem se
conciliar, pois a leitura já é uma forma de viver no universo fictício da obra; nesse
sentido, já podemos dizer que as histórias são contadas, mas também são vividas no
modo do imaginário.
Devemos agora reajustar o outro termo dessa oposição, o que chamamos de vida.
Devemos questionar a auto-evidência errônea segundo a qual a vida é vivida e não
contada.
Para tanto, gostaria de destacar a capacidade pré-narrativa do que chamamos de vida. O
que deve ser questionado é a equação excessivamente simples feita entre vida e
experiência. Uma vida não é mais do que um fenômeno biológico, desde que não tenha
sido interpretada.
E na interpretação, a ficção desempenha um papel mediador. Para abrir caminho para
esta nova fase da análise, devemos sublinhar a mistura de agir e sofrimento que
constitui o próprio tecido de uma vida. É essa mistura que a narrativa tenta imitar de
forma criativa. Ao falar de Aristóteles, de fato omitimos a própria definição que ele dá
da narrativa; é, diz ele, 'a imitação de uma ação' mimesis praxeos . Devemos, portanto,
buscar os pontos de apoio que a narrativa pode encontrar na experiência viva do agir e
do sofrimento; e o que, nessa experiência, demanda o auxílio da narrativa e expressa a
necessidade dela.
O primeiro ponto de ancoragem que encontramos para a compreensão narrativa na
experiência vivida consiste na própria estrutura do agir e do sofrimento humano. A este
respeito, a vida humana difere amplamente da vida animal e, com mais razão, da
existência mineral. Entendemos o que é ação e paixão por meio de nossa competência
de usar de forma significativa toda a rede de expressões e conceitos que nos são
oferecidos pelas linguagens naturais para distinguir entre ação e mero movimento físico
e comportamento psicofisiológico . Dessa forma, entendemos o que significa projeto,
objetivo, meios, circunstâncias etc. Todas essas noções juntas constituem a rede do que
poderíamos chamar de semântica da ação. Nessa rede encontramos todos os
componentes da síntese do heterogêneo. Nesse sentido, nossa familiaridade com a rede
conceitual do agir humano é da mesma ordem que a familiaridade que temos com os
enredos das histórias que conhecemos; é a mesma compreensão fonética que preside à
compreensão da ação (e da paixão) e à da narrativa.
O segundo ponto de ancoragem que a narrativa encontra na compreensão prática está
nos recursos simbólicos do campo prático. Esse recurso decidirá quais aspectos do
fazer, do poder fazer e do saber fazer pertencem à transposição poética.
Se de fato a ação pode ser contada, é porque ela já está articulada em signos, regras e
normas; é sempre mediada simbolicamente. Essa característica da ação foi fortemente
enfatizada pela antropologia cultural.
Se falo mais especificamente de mediação simbólica, é para distinguir entre os símbolos
de natureza cultural aqueles que fundamentam a ação a ponto de constituir seu
significado primário, antes que os conjuntos autônomos pertencentes à fala e à escrita
sejam separados do nível de prática. Nós os encontramos quando discutimos a questão
da ideologia e da utopia. Hoje, limitarei minhas observações ao que poderia ser
chamado de simbolismo implícito ou imanente em oposição a esse simbolismo explícito
ou autônomo.
O que, de fato, para um antropólogo, caracteriza o simbolismo implícito na ação é que
ele constitui um contexto de descrição para ações particulares. Em outras palavras, é em
relação a... uma dada convenção simbólica que podemos interpretar um determinado
gesto como significando isto ou aquilo: o mesmo gesto de levantar o braço pode,
dependendo do contexto, ser entendido como uma forma de dizer olá, de chamar um
táxi, ou de votar. Antes de serem submetidos à interpretação, os símbolos são os
intérpretes internos da ação. Desta forma, o simbolismo dá uma legibilidade inicial à
ação. Faz da ação um quase-texto para o qual os símbolos fornecem as regras de
significação em termos das quais uma determinada conduta pode ser interpretada.
O terceiro ponto de ancoragem da narrativa na vida consiste no que se poderia chamar
de qualidade pré-narrativa da experiência humana. É por isso que temos razão para
falar da vida como uma história em seu estado nascente e, portanto, da vida como uma
atividade e uma paixão em busca de uma narrativa. A compreensão da ação não se
restringe a uma familiaridade com a rede conceitual da ação, e com suas mediações
simbólicas, estende-se até mesmo a reconhecer na ação características temporais que
pedem narração. Não é por acaso ou por engano que comumente falamos de histórias
que nos acontecem ou de histórias em que estamos presos, ou simplesmente da história
de uma vida.
Pode-se objetar aqui que nossa análise repousa em um círculo vicioso. Se toda
experiência humana já é mediada por todos os tipos de sistemas simbólicos, também é
mediada por todos os tipos de histórias que ouvimos. Como podemos então falar da
qualidade narrativa da experiência e de uma vida humana como uma história em estado
nascente, já que não temos acesso ao drama temporal da existência fora das histórias
contadas sobre isso por outras pessoas além de nós mesmos?
A esta objecção responderei com uma série de situações que, a meu ver, obrigam-nos a
conceder à experiência como tal uma narratividade virtual que nasce, não da projecção
da literatura sobre a vida, mas que constitui uma genuína exigência de narrativa. A
expressão apresentada acima de estrutura pré-narrativa da experiência servirá para
caracterizar essas situações.
Sem sair da esfera da experiência cotidiana, não estamos inclinados a ver em uma
determinada cadeia de episódios de nossa própria vida algo como histórias que ainda
não foram contadas, histórias que exigem ser contadas, histórias que oferecem pontos
de ancoragem para a narrativa? ? Mais uma vez, as histórias não são contadas por
definição? Isso é indiscutível quando estamos falando de histórias reais. Mas a noção de
uma história potencial é inaceitável?
Pararei para considerar duas situações menos comuns em que a expressão 'uma história
ainda não contada' se impõe com força surpreendente. O paciente que se dirige ao
psicanalista lhe traz fragmentos dispersos de histórias vividas, sonhos, "cenas
primárias", episódios conflitantes. Pode-se legitimamente dizer com respeito às sessões
analíticas que seu objetivo e seu efeito é permitir que o analisando extraia desses
fragmentos de histórias uma narrativa que seja ao mesmo tempo mais suportável e mais
inteligível. Essa interpretação narrativa da teoria psicanalítica implica que a história de
uma vida se desenvolve a partir de histórias que não foram contadas e que foram
recalcadas na direção de histórias reais das quais o sujeito poderia se encarregar e
considerar constitutivas de sua identidade pessoal. É a busca da identidade pessoal que
assegura a continuidade entre a história potencial ou virtual e a história explícita pela
qual assumimos a responsabilidade.
Há outra situação para a qual a noção de uma história não contada parece ser adequada.
É o caso de um juiz que tenta entender um réu desvendando a meada de tramas em que
o suspeito está enredado. Pode-se dizer que o indivíduo está "enredado em histórias"
que lhe acontecem antes de qualquer história ser contada. Esse emaranhado aparece
então como a pré-história da história contada, cujo início é escolhido pelo narrador. A
pré-história da história é o que a conecta a um todo mais vasto e lhe dá um pano de
fundo. Esse pano de fundo é constituído pela imbricação viva de todas as histórias
vividas. As histórias que são contadas devem então ser feitas para emergir desse pano
de fundo. E à medida que surgem, emerge também o sujeito implícito. Podemos então
dizer: a história responde ao homem. A principal consequência dessa análise existencial
do homem enredado em histórias é que narrar é um processo secundário enxertado em
nosso 'estar enredado em histórias'. Recontar, seguir, entender histórias é então
simplesmente a continuação dessas histórias não ditas.
Desta dupla análise, segue-se que a ficção, em particular a ficção narrativa, é uma
dimensão irredutível da autocompreensão. Se é verdade que a ficção só se completa na
vida e que a vida só pode ser compreendida através das histórias que contamos sobre
ela, então uma vida examinada , no sentido da palavra que tomamos emprestada de
Sócrates, é uma vida contada .
O que é a vida contada? É uma vida em que encontramos todas as estruturas básicas da
narrativa mencionadas na primeira parte, e em particular o jogo entre concordância e
discordância, que nos pareceu caracterizar a narrativa. Esta conclusão não é de forma
alguma paradoxal ou surpreendente. Se abrirmos as Confissões de Santo Agostinho no
Livro XI, descobriremos uma descrição do tempo humano que corresponde inteiramente
à estrutura de concordância discordante que Aristóteles havia discernido vários séculos
antes na composição poética. Agostinho, neste famoso tratado sobre o tempo, vê o
tempo como nascido da incessante dissociação entre os três aspectos do presente –
expectativa, que ele chama de presente do futuro, memória que ele chama de presente
do passado e atenção que é o presente do presente. Daí vem a instabilidade do tempo; e,
mais ainda, sua contínua dissociação. Assim, Agostinho define o tempo como uma
distensão da alma, distante animi. Consiste no contraste permanente entre a natureza
instável do presente humano e a estabilidade do presente divino que inclui passado,
presente e futuro na unidade de um olhar e uma ação criadora.
Assim, somos levados a colocar lado a lado e a confrontar a definição de enredo de
Aristóteles e a definição de tempo de Agostinho. Pode-se dizer que em Agostinho a
discordância vence a concordância: daí a miséria da condição humana. E que em
Aristóteles a concordância prevalece sobre a discordância, daí o valor inestimável da
narrativa para ordenar nossa experiência temporal. Essa oposição, no entanto, não deve
ser levada muito longe, pois, para o próprio Agostinho, não haveria discordância se não
estivéssemos nos esticando, tendendo a uma unidade de intenção, como mostra o
exemplo simples que ele dá de recitar um poema: quando estou prestes a recitar o
poema, ele está totalmente presente em minha mente, então, enquanto o recito, suas
partes passam uma após a outra do futuro ao passado, transitando pelo presente até que
o futuro tenha sido exausto, o poeta moveu-se inteiramente para o passado. Uma
intenção totalizadora deve, portanto, presidir à investigação para que sintamos a cruel
mordida do tempo, que não cessa de dispersar a alma ao colocar em desacordo
expectativa, memória e atenção. Assim, se na experiência viva do tempo a discordância
prevalece sobre a concordância, esta continua a ser o objeto permanente de nosso
desejo. O oposto pode ser dito sobre Aristóteles. Afirmamos que a narrativa é uma
síntese do heterogêneo. Mas a concordância nunca é encontrada sem discordância. A
tragédia é um bom exemplo nesse sentido. Não há tragédia sem peripécia, golpes do
destino, acontecimentos aterradores e lamentáveis, erro profundo, hamartia, feito de
ignorância e de desprezo mais do que de mesquinhez. Se a concordância vence, então,
sobre a discordância, o que constitui a narrativa é de fato a luta entre elas.
Apliquemos a nós mesmos esta análise da concordância discordante da narrativa e da
discordância concordante do tempo. Nossa vida, quando então abraçada em um único
olhar, aparece-nos como o campo de uma atividade construtiva, emprestada da
compreensão narrativa, pela qual tentamos descobrir e não simplesmente impor de fora
a identidade narrativa que nos constitui. Estou enfatizando a expressão 'identidade
narrativa', pois o que chamamos de subjetividade não é uma série incoerente de eventos
nem uma substancialidade imutável, impermeável à evolução. Este é precisamente o
tipo de identidade que somente a composição narrativa pode criar através de seu
dinamismo.
Essa definição de subjetividade em termos de identidade narrativa tem inúmeras
implicações. Para começar, é possível aplicar à nossa autocompreensão o jogo de
sedimentação e inovação que vimos em ação em todas as tradições. Da mesma forma,
nunca deixamos de reinterpretar a identidade narrativa que nos constitui, à luz das
narrativas que nos são propostas por nossa cultura. Nesse sentido, nossa
autocompreensão apresenta as mesmas características de tradicionalidade que a
compreensão de uma obra literária. É assim que aprendemos a nos tornar o narrador e o
herói de nossa própria história, sem nos tornarmos de fato o autor de nossa própria
vida. Podemos aplicar a nós mesmos o conceito de vozes narrativas que constituem a
sinfonia de grandes obras como épicos, tragédias, dramas e romances. A diferença é
que, em todas essas obras, é o autor que se disfarça de narrador e que usa a máscara dos
vários personagens e, entre todos eles, a máscara da voz narrativa dominante que conta
a história que lemos. Podemos nos tornar nosso próprio narrador, imitando essas vozes
narrativas, sem poder nos tornar o autor. Essa é a grande diferença entre a vida e a
ficção. Nesse sentido, é verdade que a vida é vivida e que as histórias são contadas.
Uma diferença intransponível permanece, mas essa diferença é parcialmente abolida
pelo nosso poder de aplicar a nós mesmos as tramas que recebemos de nossa cultura e
de experimentar os diferentes papéis assumidos pelos personagens favoritos das
histórias mais queridas para nós. É, portanto, por meio das variações imaginativas de
nosso próprio ego que tentamos obter uma compreensão narrativa de nós mesmos, o
único tipo que escapa à aparente escolha entre a pura mudança e a identidade absoluta.
Entre os dois está a identidade narrativa.
Para concluir, permita-me dizer que o que chamamos de sujeito nunca é dado no início.
Ou, se for, corre o risco de ser reduzido ao ego narcisista, egoísta e mesquinho, do qual
a literatura, justamente, pode nos libertar.
Então, o que perdemos do lado do narcisismo, ganhamos de volta do lado da narrativa.
No lugar de um ego enamorado de si mesmo surge um auto - instruído por símbolos
culturais, os primeiros entre os quais são as narrativas transmitidas em nossa tradição
literária. E essas narrativas nos dão uma unidade que não é substancial, mas narrativa.