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ARTE
Personagens:
Marcos
Sérgio
Ivan
Cenários e contexto:
Marcos, sozinho.
...........
Na casa de Sérgio.
Apoiada diretamente sobre o assoalho, uma tela branca com finas linhas brancas
transversais. Sérgio contempla contente, o seu quadro. Marcos contempla o quadro.
Sérgio contempla Marcos, que contempla o quadro. Uma longa pausa durante a qual
os sentimentos se traduzem em palavras.
Marcos: Caro?
Marcos: Quem?
Sérgio: Hudson?!
3
Marcos: Certo!...
......
Sérgio: Então?
Sérgio: Sua posição aí não é boa. Olhe daqui... Você percebe as linhas?
Marcos: Famoso?
........
Pausa
Marcos: Sérgio, você não comprou esse quadro por duzentos mil?
.....
Sérgio: Meu amigo Marcos é um homem inteligente, uma pessoa que eu sempre
admirei, tem uma boa situação, engenheiro aeronáutico, mas faz parte desse grupo
de novos intelectuais, que se orgulham de serem inimigos da modernidade. De uns
tempos pra cá, esses saudosistas começaram a ficar insuportavelmente arrogantes.
........
4
Marcos: Sérgio, um pouco de humor. Ria. Ria, meu velho. Eu acho incrível que você
tenha comprado esse quadro!
Sérgio: Que você ache essa compra incrível, tudo bem. Que isso te faça rir, OK. Mas
eu gostaria de saber o que você quer dizer com “essa merda”.
Marcos: Esquece!
Sérgio: Não, espera aí. “Essa merda” em relação a que? Quando se diz que alguma
coisa é uma merda, é por que temos um critério pra avaliar essa coisa.
Marcos: Com quem você está falando? Com quem você tá falando agora?Oi oiiiiii ! ...
.....
Sérgio, sozinho.
Nenhum esforço.
Marcos, sozinho.
Marcos: Eu estou engasgado com essa coisa do Sérgio comprar esse quadro, tô
inquieto... Isso provoca em mim uma angústia que eu não consigo definir. Quando
eu saí da casa dele tive que tomar 4 glóbulos de Gelsenium 30CH que a Mariza me
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aconselhou - ela me disse Gelsenium ou Inácia? Você prefere Gelsenium ou Inácia?
Como é que eu vou saber Mariza?!! - porque eu não posso entender como é que o
Sérgio, que é meu amigo, pôde comprar aquele quadro.
Ele tá bem... Mas... Quem compra um quadro branco por duzentos mil...
Eu preciso falar com Ivan, ele é nosso amigo em comum... Eu vou falar com ele. Se
bem que Ivan é um cara tolerante, o que em matéria de relações humanas é o pior
defeito. Ivan é tolerante porque ele não se importa. Se Ivan aceitar que o Sergio
tenha comprado aquela merda branca por 200 mil, é porque ele não tá nem aí pro
Sérgio. Isso é claro.
Na casa de Ivan.
Ivan: Eu sou Ivan. Eu tô um pouco tenso por que, depois de ter passado a vida toda
trabalhando no ramo textil, eu acabei de arrumar um emprego de representante de
uma grande papelaria. Eu sou um cara simpático. Minha vida profissional sempre foi
um fracasso, e vou me casar daqui a quinze dias com uma moça muito gentil,
brilhante e de boa família.
Pausa.
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Marcos: Deixa pra lá.
Marcos se abaixa para ajudar a procurar. Os dois procuram juntos por um instante.
Marcos se levanta.
Ivan: Esse pilot é fantástica, você pode desenhar com ela em qualquer lugar. Isso me
irrita. Se você soubesse como essas coisas me irritam! Eu estava com essa tampa há
cinco minutos.
......
Marcos: E a papelaria?
Ivan: Um pouco. Que merda, não acho essa tampa. Agora o pilot vai secar. Mas senta
aí...
.......
Marcos: Vi ontem.
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Ivan: Ele vai bem?
Ivan: É mesmo?
Marcos: Mmm.
Ivan: Bonito?
Marcos: Branco.
Ivan: Branco?
Marcos: Branco.
Marcos: O que?
Ivan: As linhas brancas. Se o fundo é branco, como é que você vê as linhas brancas?
Marcos: Vendo. Porque talvez as linhas sejam um pouco cinzas ou o contrário, enfim,
tem nuances de branco! O branco é mais ou menos branco.
Ivan: Entendi.
......
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Marcos: Antrios. Você conhece?
Ivan: Lógico
Ivan: Claro que é lógico, você me pede pra adivinhar o preço, e você sabe muito bem
que o preço depende da cotação do pintor...
Marcos: Eu não estou pedindo pra você avaliar esse quadro em função deste ou
daquele critério, não estou te pedindo uma avaliação profissional, eu quero saber
quanto você, Ivan, pagaria por um quadro branco com umas riscas diagonais brancas
Marcos: Continua.
Ivan: Não
Marcos: Sim.
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Marcos: Não é?
.....
Marcos: O quê?
Ivan: Eu não.
Marcos: É curioso que você não veja o âmago da questão. Você só percebe o que tá
por fora. Você não vê que isso é grave?
Marcos: Você não vê que, de uma hora pra outra, da maneira mais grotesca possível,
o Sérgio pensa que virou “colecionador”?
Marcos: De agora em diante, nosso amigo Sérgio faz parte da "fina flor" dos grandes
amantes da arte.
Marcos: Claro que não é assim. Por esse preço ninguém faz parte de nada, Ivan. Mas
ele acredita que sim.
..........
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Marcos: Isso não te incomoda não?
Marcos: O que você quer dizer com “se ele tá feliz”? Como é essa filosofia do “se ele
tá feliz”?
Marcos: Mas ele está prejudicando, sim! Eu estou perturbado, meu velho, estou
perturbado e estou até magoado sim, sim de ver o Sérgio, um cara que eu adoro, se
deixar levar pelo esnobismo, sem um pingo de discernimento.
Ivan: Parece até que você não conhece o Sérgio. Ele sempre zanzou pelas galerias,
sempre foi um rato de exposição.
Marcos: Ele sempre foi um rato, mas um rato com quem a gente podia rir. E è isso
que, no fundo, me machuca de verdade, é que agente não pode mais rir com ele.
Marcos: Não!
Marcos: Claro. Eu ri. Numa boa,( de coração aberto, sem maldade)O que você queria
que eu fizesse? Ele não esboçou o menor sorriso. Se bem que duzentos mil é um
pouco caro pra rir, não é verdade?
Ivan: É.
Eles riem.
.......
Na casa de Sérgio.
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Sérgio: Você se dá bem com os pais dela?
Ivan: Muito bem, eles devem falar : “esse rapaz andou pulando de um emprego pra
outro, mas agora finalmente se acertou”... Eu estou com um negócio aqui na mão, é
o que hein? (Sérgio examina.) É grave?
Sérgio: Não.
.......
Sérgio: Você está brincando! Deixe um recado com a minha secretária que eu ligo na
mesma hora.
.....
....
Ivan: Sei.
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Ivan: Parece que você acha que ele não estava muito bem.
.....
Ivan: É mesmo?
Ivan: É mesmo?
.....
Ivan: Quero!
Sérgio sai e volta com o Antrios, que ele vira e coloca na frente de Ivan. Ivan olha o
quadro e, curiosamente, não consegue rir como tinha previsto. Pausa longa. Ivan
observa o quadro, e Sérgio observa Ivan.
Sérgio: Antrios.
Ivan: Olha!...
Sérgio: É um Antrios da década de 70. Atenção, hein, ele está numa fase parecida
hoje, mas esse aqui é da década de setenta.
Caro?
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Ivan: Ah, sim, sim.
Sérgio: Magnético.
Ivan: Um pouco?
Sérgio: Não, não. Você tem que vir aqui de dia. A vibração do monocromático não
acontece com luz artificial.
Ivan: Ah é.
Sérgio: Se bem que não podemos dizer que esse quadro seja monocromático
Ivan: Não!
Quanto?
Ivan:... Ah é
Sérgio: Duzentos mil. (Eles riem. Param. Entreolham-se. Recomeçam a rir. Depois
param. Acalmam-se.)
.....
Ivan: É mesmo?
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Sérgio: Ficou arrasado.
Ivan: É mesmo?
Sérgio: Ele me disse que era uma merda. Um Termo completamente inapropriado.
Ivan: É verdade.
Ivan: Não.
Sérgio: Você pode dizer “ eu não entendo, eu não acompanho, mas não você pode
dizer “é uma merda”.
Sérgio: Nada a ver. Você também é... enfim, quero dizer... por exemplo, você não se
incomoda...
Sérgio: Ele começou a rir de uma maneira debochada, sem o menor charme, sem
um pingo de humor.
Sérgio: Ele não tem senso de humor. Com você eu posso rir. Com ele, eu travo,
congelo.
Sérgio: Eu não condeno o Marcos por não ser sensível a essa pintura, ele não tem as
ferramentas pra isso. Ele tem muito que aprender ainda, talvez ele não queira, ou
não tenha competência pra isso, pouco importa. O que me incomoda é o tom, a
pretensão, a falta de tato. O que eu não aceito é a indelicadeza dele e não o fato de
ele não se interessar pela arte contemporânea, eu não estou nem aí pra isso, eu
gosto dele apesar de tudo.
Sérgio: Não, não, não, não. Eu senti nele outro dia uma espécie... Uma espécie de
condescendência... de chacota... Amargo, mordaz...
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Ivan: Não!
Sérgio: É Sim! Não venha você tentar apaziguar as coisas. Pare de querer ser o
grande conciliador da humanidade. Admita que o Marcos se estagnou. Porque ele se
estagnou.
Silêncio.
Na casa de Marcos.
Ivan: Nós rimos. Nós dois. nós rimos. Eu juro pela Catarina que nós rimos juntos, os
dois.
Marcos: Você disse pra ele que era uma merda e vocês riram.
Ivan: Não, eu não disse pra ele que era uma merda, nós rimos espontaneamente.
Marcos: Você chegou lá, olhou o quadro e riu. E ele riu também.
Marcos: Olha só, tá vendo, eu me enganei. Melhor assim. Vc me deixa até mais
tranquilo.
Ivan: Foi.
Ivan: Foi.
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Marcos: Mas ele riu por que?
Ivan: Ele riu porque sentiu que eu ia rir. Então ele riu pra me deixar à vontade. Tá
bom assim?
Marcos: Então não vale. Se ele riu primeiro para evitar um constrangimento, não
significa que tenha rido de verdade.
Marcos: Ele riu de verdade mas não por uma razão verdadeira
Marcos: Ele não ria do ridículo do quadro dele. Você e ele não estavam rindo pela
mesma razão. Você ria do quadro, e ele ria pra te agradar, pra entrar no teu tom, pra
te mostrar que, além de ser um esteta que pode investir num quadro o que você não
ganha em um ano, ele continua sendo seu velho amigo iconoclasta, com quem
podemos nos divertir.
Marcos: Fala.
Marcos: É mesmo
Marcos: Mas é claro. Não se pode detestar o invisível, não se detesta o nada.
Ivan: Eu não sou tão rígido quanto você. É uma obra de arte, tem um pensamento
por trás..
Marcos: Um pensamento?
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Ivan: É, um pensamento!
Ivan: Sabe, Marcos, você deveria tomar cuidado com a sua arrogância. Você está
ficando desagradável e antipático.
Marcos: Que se dane. Quanto mais o tempo passa, mais eu tenho vontade de ser
desagradável.
Ivan: Bravo.
Marcos: Um pensamento!
Marcos: Um pensamento atrás daquilo...! O que você vê ali é uma merda... Mas tudo
bem, tem um pensamento atrás daquela merda! ...Você acha que tem um
pensamento atrás desta paisagem? (Marcos mostra o quadro pendurado na parede
da sua sala.) Não, né? Não poderia ser mais explícita. Tudo está na tela. Não tem
como ter um pensamento! ...
Marcos: Ivan, você tem que ter opinião própria. Tem que dizer as coisas como vocês
as sente – você, o Ivan.
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Marcos: Porque eu conheço você. Porque, fora os teus delírios de indulgência, você
é um cara saudável.
Marcos: Ivan, olhe nos meus olhos. (Marcos aponta os próprios olhos.)
Ivan: Não
Marcos: Então me responda: amanhã você se casa com a Catarina e ganha aquele
quadro de presente de casamento. Você ficaria contente?
Ficaria contente?...
Ivan, sozinho.
Ivan: Claro que eu não ficaria contente. Mas, em geral, eu não sou um cara
contente... Eu não sou uma pessoa que possa dizer "eu estou contente". Eu procuro,
eu busco alguma coisa da qual eu pudesse dizer “ isso me deixou contente”... Você
está contente de se casar?” me perguntou um dia inocentemente minha mãe “ Você
está mesmo contente de se casar?” Claro, claro mamãe.” “Como assim, ‘claro’? Você
está ou não está contente? O que significa ‘claro’?
Sérgio, sozinho.
Sérgio: Pra mim ele não é branco. Quando eu digo “ pra mim”, quero dizer
objetivamente. Objetivamente ele não é branco. Tem o fundo branco, com traços em
tons de cinza...
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Marcos acha que é branco porque ele tá preso à ideia de que o quadro é branco.
Marcos, sozinho.
Marcos: Definitivamente, eu devia ter tomado Inácia. Por que eu tenho que ser tão
categórico? O que me incomoda, no fundo? Será que é o fato do Sérgio se deixe
enganar pela Arte Contemporânea?...
Sim, isso é grave. Mas eu poderia ter dito isso de uma outra maneira.
Se eu não suporto, fisicamente, que meu melhor amigo compre um quadro branco,
eu não posso agredi-lo por isso. Eu devo ser gentil com ele. De agora em diante, eu
vou dizer coisas gentis pra ele...
.....
Na casa de Sérgio.
Marcos: Diga.
Sérgio: Ivan?
Marcos: Mostra.
Sérgio: Eu sabia que você ia reconsiderar (Sai e volta com o quadro. Um curto
silêncio de contemplação.) Ivan captou tudo. Imediatamente.
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Sérgio: Bom, não vamos insistir mais nesta obra, a vida é curta... Por acaso você leu
isso? (Pega A vida feliz, de Sêneca, e a joga sobre a mesa baixa que está diante de
Marcos.) Leia. Uma obra-prima. ( Marcos pega o livro e o folheia.)
Moderníssimo. Você lê isso e não precisa ler outra coisa. Com o consultório, o
hospital e a Francis, que agora decretou que devo ver as crianças todo fim de
semana – novidade da Francis, as criança precisam do pai - eu não tenho mais
tempo pra ler. Sou obrigado à ir direto ao essencial.
Marcos: Como na pintura... Onde você eliminou a forma e a cor. Essas duas escórias.
Sérgio: Sim, mas enfim... ele tem um pequeno toque flamengo... A janela, a vista, o...
Não importa, ele é muito bonito.
Sérgio: Isso não importa!... Aliás, só Deus sabe quanto valerá o Antrios um dia.
Marcos: Sabe, eu estive pensando... eu refleti e mudei meu ponto de vista. Outro
dia, no trânsito, eu pensei em você e me perguntei: será que não há no fundo uma
poesia no gesto de Sérgio? Será que a coragem de fazer essa compra, incoerente não
é um ato extremamente poético?
Sérgio: Nossa, como você está doce hoje! Não estou te reconhecendo. Você usou
um tom suave, subalterno, que não é muito a sua cara ultimamente.
Marcos: Eu sou muito superficial, sou nervoso demais, fico vendo as coisas de uma
maneira primária. Está me faltando sagacidade.
Marcos: Taí. Tá vendo, por exemplo agora, você me diz “leia Sêneca!, e isso poderia
me irritar profundamente. Eu seria capaz de me irritar profundamente por você,
durante a nossa conversa, dizer “leia Sêneca”. É um absurdo!
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Sérgio: Não, não é absurdo.
Marcos: Ah não?
Sérgio: Que você poderia ficar profundamente irritado, eu entendi. Porque, no meu
“leia Sêneca”, você achou que havia uma arrogância da minha parte. Você me diz
que te falta sagacidade, e eu lhe respondo “leia Sêneca”. É um horror!
Sérgio: Sendo assim, é verdade que te falta sagacidade, porque eu não disse “leia
Sêneca”, mas sim “leia Sêneca!”.
Marcos: Claro.
Sérgio: Você não tem senso de humor, Marcos. Te falta humor de verdade, meu
velho. Ivan e eu, outro dia, chegamos a esta conclusão: você não tem nenhum senso
de humor. Aliás, onde é que o Ivan se meteu? Ele é incapaz de chegar na hora, é
infernal! Já perdemos o filme.
Sérgio: O Ivan disse a mesma coisa que eu, que de uns tempos pra cá você perdeu o
senso de humor.
Marcos: Na última vez que vocês se viram, o Ivan disse que gostava muito do seu
quadro e que eu não tinha senso de humor?...
Sérgio: Ah, sim, o quadro. Ele gostou muito, de verdade E foi sincero... O que está
tomando?
Marcos: Inásia.
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Sérgio: Ah, agora você acredita em homeopatia?
Marcos: Pois é.
Eles riem.
Marcos: Ah é?
Marcos: É de esparadrapo?
Marcos: Sei lá, você poderia dizer... “ o pintor” ou... como é que ele se chama...
“Antrios”...
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Marcos: Você diz “o artista” como uma espécie de... enfim, deixa pra lá. O que
vamos ver? Vamos tentar ver um filme consistente dessa vez.
Sérgio: Já são quase dez. A gente não pega mais nenhuma sessão a essa hora. Esse
Ivan é inacreditável. Ele não tá nem aí - tá sempre atrasado. Parece que não tem
relógio.
Sérgio: É já são quase dez. Nós marcamos entre nove e nove e meia... Mas o que
você queria dizer? Eu digo “o artista” como uma espécie de que?
Marcos: Você fala “o artista” como uma... Sei lá, uma entidade intocável. O artista.
Uma espécie de divindade...
Sérgio: (Sérgio ri.) Mas pra mim é uma divindade! Você acha que eu ia gastar essa
fortuna com um simples mortal?
Marcos: Claro.
Sérgio: Domingo eu fui ao MAM. Você sabe quantos Antrios tem no Museu de Arte
Moderna? Três! Três Antrios!... No MAM.
Marcos: Nossa!
Sérgio: E o meu não é menos bonito! Escute, vamos fazer uma coisa: se o Ivan não
chegar em cinco minutos, nós vamos embora. Eu descobri um restaurante chinês
excelente.
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Sérgio: O pobre do Ivan!... Você está me gozando? E depois você não me irrita, por
que você me irritaria?
Sérgio, sozinho.
Ele me irrita.
Ele tem um tonzinho afetado. Um risinho superior atrás de cada palavra. Como se
ele estivesse se esforçando pra ser amável. Não se faça de amável, meu velho! Por
favor, não se faça de amável.
Será que foi o Antrios? Será que foi o Antrios que desencadeou esse mal-estar entre
nós? Uma compra... que ele não teria aprovado?
Mas eu tô me lixando para aprovação dele! Tô cagando pra sua aprovação, Marcos!
Marcos , sozinho.
Ela vem exatamente do dia em que nós estávamos discutindo sobre alguma obra de
arte e você pronunciou, sem o menor senso de humor, a palavra “desconstrução”.
Nesse dia eu devia ter te dado um soco no meio da cara dele. E quando ele estivesse
agonizado no chão, eu diria: “ E você, que tipo de amigo é você, que não considera o
seu amigo tão especial?”.
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Na casa de Sérgio.
Marcos: Um chinês, você falou? Pesado, né? Meio gorduroso, porco, amendoim,...
Você não acha não?
Tocam a campainha.
Ivan: É uma merda mesmo, não tem solução, é um drama familiar, as duas
madrastas querem estar no convite de casamento. Catarina adora a madrasta, que é
quase mãe dela, criou ela desde pequena, enfim ela quer o nome da madrasta no
convite. A madrasta, por sua vez, nem cogita a possibilidade de não ter o nome dela
ao lado do pai de Catarina no convite, é normal, claro a mãe dela já morreu. Eu
odeio a minha madrasta e não quero o nome dela no meu convite de casamento,
mas meu pai não quer que eu coloque o nome dele se eu não colocar o dela, a
menos que eu tire o nome da madrasta de Catarina, o que é absolutamente
impossível. Eu sugeri tirar o nome de todo mundo, afinal nós temos mais de vinte
anos, podemos ser responsáveis por tudo e convidar as pessoas nós mesmos.
Catarina ficou doida, gritou comigo dizendo que era uma falta de consideração com
os pais dela que estavam gastando uma fortuna na festa e especialmente pela
madrasta que já tinha se matado de trabalhar para o casamento, e olha que nem
filha dela de verdade ela era. Eu acabei me convencendo por cansaço. Eu aceitei que
a minha madrasta, que eu odeio, que é uma vaca, esteja no meu convite de
casamento. Eu telefonei pra minha mãe, pra prevenir ela. Eu falei, mamãe eu fiz de
tudo pra evitar isso, mas não consegui, vou ter que colocar o nome da Ivone no
convite de casamento, ela me respondeu que se o nome de Ivone estiver no convite,
o meu não estará. Eu falei, mamãe pelo amor de Deus, não envenene mais as coisas,
ela me disse como você ousa me propor que meu nome apareça solitário no convite,
como de uma mulher abandonada, abaixo do nome de Ivone, que estará
solidamente amarrado ao nome de seu pai. Eu disse, mamãe, meus amigos estão
me esperando, eu vou desligar, nós falaremos sobre isso amanhã, com a cabeça
descansada, ela me disse, porque que eu tenho que ser sempre a última roda da
carroça, como assim mamãe, você não é a última roda da carroça, claro que sou,
quando você me diz para não envenenar mais, isso quer dizer que as coisas já estão
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resolvidas, que tudo se organizou sem mim, tudo foi tramado pelas minhas costas,
que a Santa Joelma tem que dizer amem pra tudo, e tem mais, me disse ela, o pior é
que tudo isso é por um casamento afobado que eu não entendo a razão (eu não
entendo a urgência desse casamento) mamãe meus amigos estão me esperando,
sim, sim, você tem sempre alguma coisa melhor para fazer, tudo é mais importante
que eu, tchau, e desligou na minha cara. Catarina, que estava do meu lado, mas que
não tinha escutado nada, me perguntou o que que ela disse, eu falei que ela não
queria o nome dela junto com o nome da Ivone no convite, o que é normal, eu não
estou falando disso, o que que ela falou sobre o casamento, nada, mentira, não
Catita, eu juro, ela não quer estar junto com a Ivone no convite, liga de novo pra ela
e diga que quando se casa um filho, temos que deixar de lado o amor próprio, você
deveria dizer a mesma coisa para sua madrasta, isso não tem nada à ver, gritou
Catarina, sou eu, eu que quero o nome dela, não ela coitada, a delicadeza em
pessoa, se ela soubesse os problemas que isso está causando, ela me suplicaria para
tirar o nome dela do convite, liga para sua mãe, eu ligo, naquela tensão, Catarina
pega a extensão pra ouvir, Ivanzinho, diz minha mãe, você que até hoje levou a sua
vida da maneira mais caótica do mundo, resolve de uma hora para outra se meter
num casamento, e por isso eu me vejo obrigada à passar uma tarde e uma noite com
seu pai, um homem que eu não vejo a mais de dezessete anos e a quem eu não
quero expor as minhas rugas nem os meus quilinhos a mais, me desculpe, e com
Ivone que, eu preciso te dizer, começou a jogar pôquer, soube disso pelo Domingos
Bica - minha mãe também joga pôquer - tudo isso eu não posso evitar, mas o
convite, esse objeto simbólico, que todo mundo vai receber, analisar e criticar, nele
eu gostaria de estar(brilhar) sozinha, Catarina na extensão sacudia a cabeça com
uma expressão de nojo, eu disse mamãe porque você é tão egoísta, eu não sou
egoísta, eu não sou egoísta Ivan, não venha você também me dizer isso, já chega
dona Rosa que me disse hoje de manhã que eu tenho um coração de pedra, que
todos da nossa família têm uma pedra no lugar do coração, pode uma coisa dessas, e
ela me disse isso porque eu me recusei - aí ela já estava completamente louca -
aumentar o salário dela, só por isso ela se achou no direito de jogar na minha cara
que todos nós temos uma pedra no lugar do coração, bem agora que nós acabamos
de colocar um marca-passo no coitado do Andrézinho, e você nem para dar um
telefonema para ele, ah é, é muito engraçado mesmo, você ri de qualquer coisa, não
sou eu que sou egoísta viu Ivanzinho, você ainda tem muita coisa que aprender na
vida, vai lá, meu filho, vai, vai encontrar os seus amigos queridos..
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Silêncio.
Sérgio: E aí?
Marcos: Mas por que você deixa essa mulherada te encher o saco?
Ivan: Ah é?...
Ivan: Ah não?
Marcos: Não, mas Sérgio diz toda hora que é uma “obra-prima”.
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Marcos: Você tá louco! De jeito nenhum!... Pelo contrário, foi você que falou. Você
ainda acrescentou “moderníssimo”.
Marcos: Você disse “moder níssimo” como se moderno fosse o maior elogio
possível. Como se modernos fosse o auge, definitivo.
Sérgio: E daí?
Marcos: E daí nada. E olha que eu nem mencionei o “íssimo” do seu “moder -
níssimo”!
Sérgio: Você não acha extraordinário que um homem que escreveu algo há quase
dois mil anos atrás seja atual ainda?
Ivan: Então, o que que a gente vai fazer? O Cinema dançou, né, por minha causa,
desculpa. Vamos jantar?
Marcos: Sérgio me disse que você ficou muito tocado com o quadro dele.
Marcos: Não.
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Sérgio: Nós só iremos à esse restaurante se isso for do agrado de todos. Senão, não
iremos. (Para Ivan.) Você quer comer comida chinesa?
Marcos: Ele, ele faz o que a gente quiser, ele faz sempre o que a gente quer.
Ivan: Mas o que deu em vocês dois, hein? Vocês estão muito esquisitos!
Sérgio: Ele tem razão, você podia uma vez na vida ter uma opinião própria!
Ivan: Escutem aqui, se vocês querem me pegar pra Cristo, eu vou embora! Eu já fui
muito crucificado hoje.
Ivan: Hein?
Marcos: Você não acha que tá faltando humor na minha vida ultimamente?
Sérgio: Tá bom, chega! Vamos decidir logo. Pra dizer a verdade, eu nem estou com
fome.
Sérgio: Você quer saber a minha opinião sobre essa sua história com essa
mulherada?
Ivan: Diga.
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Sérgio: E, se você já está tendo que engolir isso agora, se prepara, seu futuro será
uma desgraça.
Marcos: Desista.
Ivan: Porque eu não posso! Está tudo organizado. Estou na papelaria só tem um
mês...
Ivan: A papelaria é do tio dela, que não precisava absolutamente contratar ninguém,
ainda mais um cara que trabalhou a vida inteira no ramo textil.
Ivan: Olha Sérgio, me desculpe, eu não quero te ofender não, mas você é a última
pessoa de quem eu ouviria conselhos matrimoniais. Não podemos dizer que a sua
vida seja um sucesso nesse aspecto.
Ivan: Eu não posso desistir desse casamento. Sei que a Catarina é uma histérica, mas
ela tem qualidades também. Qualidades imprescindíveis para um cara como eu...
( Mostrando o Antrios.) Onde é que você vai pendurar?
Ivan: Ah, é.
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Sabe que eu lembrei de você, hoje, na papelaria? Nós imprimimos quinhentos
cartazes de um cara que pinta flores brancas, completamente brancas, sobre fundo
branco.
Ivan: Não, eu sei, claro. Só tô me lembrando.(Não, claro eu sei. Falei por falar.
Marcos: Você não acha que esse quadro não é branco, Ivan?
Ivan: Tem cores... Vejo amarelo, cinza, umas linhas meio ocre...
Curto silêncio
Marcos: (Para Ivan.) Como é que você pode, Ivan? Na minha cara. Na minha cara,
Ivan.
Ivan: Na sua cara o que? ...Na sua cara o que? ... Essas cores me tocam. Mesmo que
isso te desaponte. E para de querer comandar tudo.
Marcos: Como é que você pode dizer, na minha cara, que essas cores te tocam?
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Marcos: Essas cores te tocam, Ivan?
Marcos: Não.
Sérgio: Por que ele não tem o direito? Olha Marcos, você não anda nada bem, acho
que você devia procurar um médico.
Marcos: Ele não tem o direito de dizer que essas cores o tocam, porque é mentira.
Marcos: Não tem nenhuma cor ali. Você não vê nada. E elas não te tocam.
Sérgio: Mas quem é você, Marcos?! Quem é você pra impor a sua lei? Um cara que
não gosta de nada, que despreza todo mundo, que faz questão de não ser
contemporâneo...
Ivan: Tchau. Eu vou embora. Não sou obrigado a agüentar a crise de vocês.
Sérgio: Espera aí! Não vai bancar o coitadinho. Se você vai embora agora, vai dar
razão a ele. (Ivan pára, hesitando entre duas decisões.) Um homem contemporâneo
é um homem que enxerga e vive o presente .
Marcos: Que babaquice! Como um homem pode não viver o presente? Me explique.
Sérgio: Um homem contemporâneo é alguém que daqui a 20 anos, cem anos, vai
representar a sua época.
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Marcos: Hum, hum. E pra que?
Marcos: Serve pra que dizerem que um dia eu representei a minha época?
Sérgio: Mas quem é que está falando de você, meu velho? Eu tô me lixando pra
você! Um homem contemporâneo, como eu estou tentando te explicar, são todos
aqueles que você admira. Um homem contemporâneo não limita a história da
pintura à uma paisagem de Cavaillon...
Marcos: Carcassonne.
Sérgio: Não é bom nem mau. Por que você quer moralizar? Está na natureza das
coisas.
Sérgio: Sim.
Marcos: E o Ivan?...
Ivan: Não, eu não. Um cara mole, flácido como eu não participa de nada.
Marcos: E onde é que você vê isso nele ? Na porcaria que ele tem pendurada na
parede da sala?
Sérgio: É sim!
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lamento dizer, um homem contemporâneo. Na verdade, quanto mais você não quer
ser, mais você é.
Ouvindo essas palavras, Ivan toma uma decisão e sai precipitadamente. Breve
pausa.
Silêncio.
Marcos: Seria melhor a gente não ter se encontrado essa noite, né? Acho melhor eu
ir embora também.
Sérgio: Talvez...
Marcos: Bom...
Sérgio: Você é que é covarde. Agride um cara que é incapaz de se defender... Você
sabe muito bem disso.
Marcos: Você tem razão... Tem razão, e falando essas coisas você me deixa pior
ainda... Tá vendo, de repente eu não entendo mais, eu não sei mais o que me liga ao
Ivan. Não entendo do que é feita a minha relação com esse cara.
Marcos: Não. Ele tinha uma loucura, ele tinha uma incoerência. Ele era frágil mas a
sua loucura nos desarmava.
Sérgio: E eu?
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Sérgio: Vambora...
Sérgio: Ah! Enfim uma palavra levemente humana na sua boca... E depois, eu acho
que aquela porcaria que ele tem pendurada na sala dele foi o pai dele que pintou.
Sérgio: Pois é.
Sérgio: Mmm...
Ligeira pausa. A campainha toca. Sérgio vai abrir. Ivan entra imediatamente na sala
e, como da outra vez, começa logo a falar
Ivan: A volta de Ivan! O elevador tava ocupado, eu resolvi descer pela escada, e
quando eu estava descendo, pensei, covarde, frouxo, inconsistente, eu vou voltar lá
com um revólver e dar um tiro nele, ele vai ver se eu sou frouxo e servil, quando
cheguei na portaria, eu falei meu velho você não fez seis anos de análise para acabar
matando seu melhor amigo, e você não fez seis anos de análise pra não perceber
que por trás dessa demência verbal tem um profundo mal-estar, eu subi tudo de
novo, e enquanto eu subia os degraus do perdão, eu disse, o Marcos está pedindo
socorro, eu tenho que ajuda-lo mesmo que seja penoso pra mim... Aliás, outro dia
eu falei sobre vocês com o Frias.
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Sérgio: Porque é que você falou de nós?
Ivan: Eu senti que a relação de vocês estava tensa e queria que o Frias me
esclarecesse
Ivan: Não, essa gente não dá opinião, mas dessa vez ele deu a opinião dele, ele até
fez um gesto, ele, que nunca faz gesto nenhum, parece que tá sempre com frio, eu
falo pra ele, se mexe vai!
Ivan: “Se eu sou eu porque eu sou eu, e se você é você porque você é você, então eu
sou eu e você é você. Por outro lado, se eu sou eu porque você é você e se você é
você porque eu sou eu, então eu não sou eu e você não é você.” Entenderam porque
eu tive que escrever?
Curto silêncio.
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Ivan: Quatrocentos a sessão, e eu vou duas vezes por semana.
Marcos: Bonito.
Ivan: E em dinheiro. Eu descobri uma coisa, você não pode pagar em cheque. Foi
Freud que disse, é preciso que você sinta o dinheiro indo embora.
Sérgio: Ah é!... Você podia fazer uma cópia desse mandamento para nós.
Ivan: (dobrando cuidadosamente o papel) Vocês estão errados. Isso aqui é muito
profundo.
Marcos: Se foi graças a ele que você voltou pra dar a cara a tapa, você pode lhe
agradecer, porque ele fez de você um capacho, mas se você tá contente, isso é
essencial.
Ivan: (Para Sérgio) Tudo isso porque ele não quer acreditar que eu gostei do seu
Antrios
Sérgio: Vamos parar de falar desse quadro de uma vez por todas, OK? É um assunto
que não me interessa.
Sérgio: Eu não me ofendi não, Marcos. Vocês deram suas opiniões. Muito bem.
Assunto encerrado.
Marcos: Se você se ofende, quer dizer que você tá preso ao julgamento dos outros...
Sérgio: Eu estou cansado, Marcos! Isso tudo não serve pra nada... Pra dizer a
verdade, eu tô com o saco cheio ( eu estou enjoado) de vocês, agora.
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Sérgio: Vão vocês dois! Por que não vão vocês?
Ivan: Eu não entendo o que está acontecendo. Vamos nos acalmar. Não tem
nenhuma razão pra gente brigar, muito menos por causa de um quadro.
Sérgio: Você não percebe que só piora as coisas com esse seu “vamos nos acalmar”
e esse jeito de monge!?
Marcos: Tô impressionado com você. Acho que vou procurar esse Frias!
Ivan: Não dá, ele não tem mais horário. O que você está comendo?
Marcos: Gelsênium.
Movido por um súbito impulso, Sérgio pega o Antrios e o leva para fora da sala.
Volta logo depois.
Sérgio: Exato.
Marcos: Ou você está com medo que, na minha presença, você acabe vendo as
coisas com os meus olhos.
Sérgio: Não. Você sabe o que diz Paul Valéry? Eu vou te ajudar.
Sérgio: Foi você quem me apresentou. Você mesmo me apresentou Paul Valéry.
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Marcos: Não me cite Paul Valéry. Não me interessa o que Paul Valéry disse.
Marcos: Que você tenha comprado aquele quadro. Que você tenha gastado
duzentos mil naquela merda!
Marcos: É verdade, eu não consigo imaginar que você goste de verdade desse
quadro.
Marcos: Porque eu amo o Sérgio e eu sou incapaz de amar o Sérgio que compra esse
quadro.
Sérgio: Por que você diz “que compra ”, e não diz “que gosta”?
Marcos: Porque eu não posso dizer, eu não posso acreditar que você goste.
Sérgio: (Para Ivan) Olha só a arrogância com que ele me responde. Eu pareço um
idiota e ele é tranqüilamente o dono da verdade (Para Marcos) Será que você não
imaginou, nem por um segundo, que eu pudesse gostar de verdade do quadro, e
que a sua opinião tão categórica, com um certo tom de desprezo, pudesse me
magoar?
Marcos: Não.
Sérgio: Quando você me perguntou o que eu achava da Mariza, - uma mulher que
me alugou um jantar inteiro dizendo que era possível curar Artrite com homeopatia -
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eu não disse pra você que eu achava sua mulher chata, nojenta, e sem graça. E eu
poderia.
Ivan: Não, ele não acha isso, não! Não se pode falar isso da Mariza!
Marcos: Pior, Sérgio? Pior do que “nojenta”? Você pode me explicar o que é pior do
que nojenta?
Sérgio: Ah, Ah! quando isso te toca pessoalmente, o sabor das palavras é mais
amargo, não é...
Sérgio: Pára com esse ar de superioridade. Você nota - eu vou te responder- você
nota o jeito com que ela abana a fumaça do cigarro?
Sérgio: É, o jeito com que ela abana a fumaça de cigarro. Um gesto que para você
parece insignificante, um gesto banal pra você, mas não, isso mostra exatamente o
quanto ela é nojenta
Marcos: Você me fala da Mariza, a mulher com quem eu divido minha vida, nesses
termos inadmissíveis , só porque você não gosta da maneira como ela abana a
fumaça do cigarro?
Marcos: Sérgio, me explique isso, antes que eu perca o controle. É muito grave o que
você está fazendo.
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Sérgio: Qualquer mulher diria, me desculpe, mas a fumaça me incomoda um pouco,
você poderia afastar o seu cinzeiro, não, ela não se rebaixa, não se dá ao trabalho de
falar, ela desenha seu desprezo no ar, com um gesto calculado, um pouco maldoso,
que ela acha que é imperceptível mas que quer dizer, Fuma, fuma, é desesperador,
mas não adianta reclamar?”, e você se pergunta se é você ou o cigarro que
incomoda.
Sérgio: Tá vendo? Ele não diz que estou errado, ele diz que estou exagerando, ele
não diz que estou errado. O jeito que ela abana a fumaça do cigarro mostra uma
natureza fria, complacente e fechada pro mundo. E você tá ficando igual . É uma
pena, Marcos, realmente é uma pena que você tenha encontrado uma mulher tão
negativa.
Sérgio: Não.
Marcos: Sérgio, pela última vez, eu exijo que você retire o que disse.
Segue-se uma luta grotesca, rápida, que termina com um golpe desajeitado que
atinge Ivan.
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Sérgio: Deixa eu ver, deixa eu ver... (Ivan geme mais do que o necessário) Quer deixar
eu ver! Não é nada... Espera um pouco... (Sérgio sai e volta com uma compressa.)
Toma, coloca isso aí, um minuto.
Ivan: Como é que você sabe? Você não é otorrino. Amigos como vocês, inteligentes,
cultos..
Sérgio: Calma!
Ivan: Você não pode destruir uma pessoa só porque não gosta do jeito que ela
abana a fumaça do cigarro!
Sérgio: O que é que você sabe do sentido do que quer que seja?
Sérgio: É um rato!
Ivan: Um rato?
Ivan: O que é que vocês têm? O que aconteceu com vocês? Deve ter acontecido
alguma coisa pra deixar vocês loucos desse jeito!
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Ivan: Você insiste!... Vocês dois estão numa espiral, não conseguem mais parar.
Parece eu e a Ivone. A relação mais patológica que existe!
Curto silêncio.
Marcos: Por que você não falou antes o que você achava da Mariza?
Sérgio: Isso...
Marcos: Hoje a sua opinião sobre a Mariza, na verdade, sobre mim não é tão
positiva.
Marcos: Como eu não posso acompanhar você nesse seu furioso e recente desejo
pela novidade, eu me tornei “complacente”, “fechado pro mundo”, ...”fossilizado”...
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Sérgio: Quer um conhaque?
Ivan: Será... eu estiver com alguma coisa solta no meu cérebro, você não acha que o
alcool pode me fazer mal?...
Ivan: Não se preocupe comigo. Continuem com essa conversa absurda de vocês e
faz de conta que eu não estou aqui.
Sérgio: Eu aceito a sua relação com a Mariza, não fico chateado com você por isso.
Sérgio: Mas o Antrios é uma razão para você ficar chateado comigo
Marcos: Sim!
Marcos: Sim.
Marcos: Sim. Pelo Antrios...e tudo que vem junto com ele.
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Marcos: No tempo em que você me distinguia dos outros, em que você considerava
as coisas pelo meu ponto de vista.
Marcos: (Apontando para Ivan)Se Ivan não fosse esse “ser vaselina” que ele se
tornou, ele me apoiaria.
Marcos: (Para Sérgio) Houve um tempo em que você tinha orgulho do seu amigo
aqui. Você adorava o meu jeito bizarro, fora do comum. Adorava exibir a minha
selvageria para os outros, você que era todo certinho. Eu era seu álibi. Mas com o
tempo essa espécie de afeição acaba... E você, ainda que tarde, se torna
independente...
Silêncio
Sérgio: (Para Ivan) Ele era meu mestre, ... se eu entendi bem...(Ivan não responde.
Marcos o olha com ligeiro desprezo. Pausa breve) Se eu amava você como mestre, ...
e você...qual era a natureza do teu sentimento por mim?
Marcos: Adivinha.
Marcos: Eu gostava do jeito que você via as coisas. Eu ficava lisonjeado. Eu sempre vi
que você me considerava diferente. Diferente no sentido superior, até que um dia
você me diz o contrário.
Sérgio: É triste.
Marcos: É a verdade.
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Sérgio: Que fracasso!
Marcos: Sobretudo pra mim... Você, você descobriu uma nova turma. Encontrou
outros objetos para idolatrar. O Artista. A Desconstrução.
Curto Silêncio.
Marcos: Você não sabe o que é desconstrução? Pergunte ao Sérgio, ele domina
muito bem esse termo.
(Para Sérgio) Pra fazer que eu veja algum sentido nesse quadro absurdo, você foi
procurar as suas terminologias na Revista da Construção Civil. Ah, você ri! Tá vendo,
quando você ri assim, eu volto a ter esperanças...
Ivan: Façam as pazes! Vamos passar uma noite agradável, vamos rir disso tudo.
Marcos: A culpa é minha. A gente não tem se visto muito ultimamente. Eu fiquei
ausente e você começou a freqüentar a alta roda... os Leite Lopes, os Montenegro...
Aquele dentista, Raul Gusmão , foi ele que te...
Sérgio: Não, não, não, de jeito nenhum. Esse não é o universo dele. O Raul só gosta
de Arte Conceitual...
Marcos: Está vendo? Mais uma prova que eu deixei você se afastar de mim. A gente
não se entende mais nem numa simples conversa.
Marcos: Sob minha posse, não! A gente nunca deve deixar de vigiar os amigos. É
preciso vigiar sempre os amigos. Senão eles nos escapam...Olhe o infeliz do Ivan,
que nos encantou com a sua espontaneidade e que nós deixamos virar um covarde,
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um empregado de papelaria... daqui à pouco, um marido. Um cara que nos trazia
originalidade e que agora se esforça para apagar tudo isso!
Sérgio: “Que nos trazia...” Você se dá conta do que fala? Tudo sempre em função de
você. Você tem que aprender a amar as pessoas por elas mesmas, Marcos.
Marcos: Mas o que são elas? O que é que elas são?!... Fora a esperança que eu
deposito nelas? Eu procuro desesperadamente um amigo que exista sem mim, mas
até agora não tive essa sorte. Eu tive que formar vocês. Mas, como você vê, isso não
funciona. Porque um belo dia a pessoa vai jantar na casa dos Morente Fortes e, pra
consolidar sua nova tendência, compra um quadro branco.
Silêncio
Ivan: Lastimável.
Pausa
Marcos: Eu gostaria que você parasse apitar o jogo, Ivan, e também que parasse de
achar que está fora dessa conversa.
Ivan: Você quer que eu participe disso, de jeito nenhum. O que eu tenho a ver com
isso? Eu já estou com o tímpano furado, se entendam vocês sozinhos, agora!
Marcos: Escuta aqui, Ivan, o que eu não agüento mais em você - além de tudo que já
te disse e que eu penso - é você p Ivan. Você tem que escolher de que lado você fica.
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Marcos: Perfeito.
Ivan: Por que a gente se vê se a gente se odeia? A gente se odeia, tá claro! Enfim, eu
não odeio vocês, mas vocês se odeiam! E me odeiam! Então, por que se ver? Eu
pensei em passar uma noite relaxada depois de uma semana absurda, encontrar
meus dois melhores amigos, ir ao cinema, rir, esquece os aborrecimentos ...
Ivan: Não, mas me respondam, fui eu que acabei com a noite de vocês?!
Marcos: Você chega quarenta e cinco minutos atrasado, não pede desculpas e nos
aluga com seus problemas de família...
Sérgio: Você e teu jeito frouxo, teu jeito frouxo e em cima do muro, levou Marcos e
eu pro fundo do poço.
Sérgio: É, porque nesse ponto eu concordo com ele. Você criou as condições dessa
briga.
Marcos: Essa piegas e humilde voz da razão que você defende é isuportável.
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Ivan: Vocês sabem que eu posso chorar... Eu posso chorar agora... Aliás, eu tô quase
chorando...
Marcos: Chora.
Sérgio: Chora.
Marcos: Você tem todos os motivos pra chorar: vai se casar com uma jararaca,
perde os seus melhores amigos que você achava que eram eternos...
Marcos: Foi você mesmo que disse, por que a gente se vê se a gente se odeia?
Ivan: É proibido.
Sérgio: É nada
Marcos: É verdade!
(Ivan cai no choro. Pausa.) É horrível o que vocês estão fazendo! Vocês poderiam ter
brigado depois do dia 12, não, vocês resolveram acabar com meu casamento, um
casamento que já é uma calamidade, que já me fez perder quatro quilos, vocês
acabaram definitivamente com ele! As duas únicas pessoas que me dariam alguma
alegria, estando do meu lado no dia do meu casamento, estão aí, se matando. Ah!
Eu sou um cara de sorte!
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(Para Marcos.) Você acha o que, que eu adoro pastas com elástico, rolos de durex?
Você acha que um cara normal tem vontade de vender papel sulfite? O que você
quer que eu faça? Eu fui um babaca até fazer quarenta anos. Claro, eu te divertia,
divertia muito meus amigos com as minhas besteiras, mas à noite, quem ficava
sozinho como um rato? Quem voltava sozinho depois pra casa? O palhaço solitário,
que ligava todos aparelho que emitiam som , e ouvia quem na secretária eletrônica?
A mamãe, a mamãe e a mamãe.
Curto silêncio.
Ivan: “Não fique assim!” e quem me deixou assim? Eu não sou frio como vocês.
Quem eu sou? Um cara frouxo, que não tem opinião. Eu sou um palhaço, sempre fui
um palhaço.
Ivan: Não me peça pra ficar calmo! Eu não tenho nenhuma razão pra me acalmar. Se
você quer me deixar louco, é só dizer FICA CALMO! “Fica calmo” é a pior coisa pra
falar pra quem que não está calmo! Eu não sou como vocês, eu não quero ter
autoridade, não quero ser referência, eu não quero ganhar sempre, eu quero ser
Ivan, o amigo de você! Ivan o engraçado!
Silêncio.
Ivan: Eu terminei.
Você tem alguma coisa pra beliscar? Qualquer coisa, só pra não desmaiar.
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Sérgio pega um pires sobre a mesa.
Sérgio: Sim.
Pausa
Ivan: (Enquanto come azeitonas.) À que ponto chegamos... Na lama por causa de um
quadro branco...
Ivan: Uma merda branca! (Ivan tem um ataque de riso.) Porque é uma merda
branca! ... Admita meu velho. Foi insensata a sua compra.
Ivan dá a caneta a Sérgio. Sérgio a segura, tira a tampa, observa a ponta da caneta
por alguns instantes e torna a colocar a tampa. Sérgio sai da sala. Em seguida volta
com Antrios e o recoloca no mesmo lugar.
Breve Pausa.
Marcos se abaixa para ficar no nível do quadro. Sob o olhar horrorizado de Ivan, ele
passa a caneta por umas “escarpas” diagonais. Sérgio permanece impassível.
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Depois, Marcos desenha sobre esse declive um pequeno esquiador de gorro. Ao
terminar, levanta-se e olha sua obra. Sérgio continua impassível. Ivan está
petrificado. Silêncio.
Na casa de Sérgio.
O Antrios voltou à brancura inicial. Marcos coloca a bacia no chão e olha para o
quadro. Sérgio se volta para Ivan, que está sentado um pouco mais longe, atrás. Ivan
aprova. Sérgio recua e, por sua vez, contempla o quadro.
Silêncio.
Ivan: (Como se estivesse sozinho, ele fala c/0 cautela.) No dia seguinte ao
casamento, Carolina foi ao cemitério e colocou seu buquê de noiva e um saquinho
de brigadeiros da festa no túmulo da mãe dela. Eu me escondi pra chorar atrás de
uma capela e a noite, lembrando desse gesto comovente, eu ainda chorei em
silêncio na minha cama.
Preciso falar com o Frias dessa minha propensão a chorar. Eu choro o tempo todo, o
que não é normal pra um cara da minha idade. Isso começou, ou pelo menos, se
manifestou claramente naquela noite do quadro branco na casa de Sérgio. Depois
que o Sérgio mostrou ao Marcos, num ato de pura loucura, que ele, Marcos era mais
importante que o quadro branco, nós fomos jantar no tal restaurante chinês.
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A expressão “período de experiência”, para nossa amizade, me abalou de uma
maneira absurda.
Na verdade, eu não suporto mais nenhum discurso racional. Tudo que se fez de
importante no mundo, tudo que foi bonito e grandioso nessa mundo, jamais nasceu
de um discurso racional.
Pausa
Sérgio enxuga as mãos e vai esvaziar a bacia de água. Depois começa a guardar os
produtos, fazendo desaparecer os vestígios da limpeza. Olha mais uma vez para o
quadro e então se volta e avança até a frente do palco.
“Eu também não”, respondi bem rápido,... e mentindo. Na hora quase respondi que
eu sabia. Mas será que eu devia estragar nosso período de experiência com uma
confissão assim tão decepcionante? Por outro lado, começar com uma traição? ...
Traição! Não vamos exagerar. De onde será que vem essa minha tendência estúpida
ao exagero? Por que será que a minha relação com Marcos tem que ser assim tão
complicada?
Marcos: Sob as nuvens brancas, a neve cai. Não vemos nem as nuvens brancas nem
a neve. Nem o frio, nem o brilho branco do gelo.
A neve cai.
Sérgio é um amigo meu de muito tempo. Ele comprou um quadro. É uma tela de
mais ou menos um metro e sessenta por um metro e vinte.
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FIM