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Reflexão sobre a Cultura de Massa

Luís Campos Brás


luiscbras@gmail.com
Universidade Aberta, Universidade do Algarve

qual o papel das novas tecnologias na formação do homem-massa de acordo com a obra
de Ortega y Gasset? De que forma as vanguardas reagiram às novas tecnologias de produção
e de reprodução da imagem?

Para responder a esta questão, é essencial questionar a formulação de Ortega y Gasset sobre
Homem-massa1. Esta formulação foi suscitada não só pela questão das novas tecnologias que
permeavam a sociedade Europeia no inicio do século vinte e, principalmente, entre o culminar da
primeira guerra e o inicio da segunda, mas pela visão, muito contemporânea, de que o estrato
media-social em vigência criava a possibilidade (visível pela primeira vez) da ascenção do homem-
massa ao poder, ele, homem snob (sem nobreza).2

Como escreve Ortega y Gasset (2013), o que é característico do momento é que a alma
vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito de vulgaridade e o impõe por toda a
parte.

Uma sociedade não se constitui do acordo das vontades. Ao contrário, todo acordo de
vontades pressupõe a existência de uma sociedade, de pessoas que convivem, e o acordo não
pode consistir senão em precisar uma ou outra forma dessa convivência, dessa sociedade
preexistente. (Ortega y Gasset, 2013, p.18)

Ortega y Gasset predica que o homem-massa veio ocupar um lugar que era antes por “Ele”
inalcançável, não só pela regência política das elites, mas também por que faltava uma
generalização do conhecimento.

Como o cinematógrafo e a ilustração põem ante os olhos do homem médio os lugares mais
remotos do planeta, os jornais e as conversações lhe fazem chegar a notícia destas
performances intelectuais que os aparelhos técnicos recém- inventados confirmam desde as

1 "A Rebelião das Massas", de José Ortega y Gasset, começou a ser publicado em 1926 no jornal madrilenho "El Sol”.
2Na Inglaterra as listas de residências indicavam junto a cada nome o ofício e classe da pessoa. Por isso, junto ao nome
dos simples burgueses aparecia a abreviatura s. nob., quer dizer, sem nobreza. Esta é a origem da palavra snob. (in
Ortega y Gasset, J. (p.22)


















vitrinas. Tudo isso decanta em sua mente a impressão de fabulosa prepotência.
(Ortega y Gasset, 2013, p.63)

Portanto, naquilo que faz ascender o homem-massa, não há iluminação. Ortega y Gasset
distingue o homem-massa não só das elites, mas do intelectual e do artista. Diz Ortega y Gasset,
tudo no mundo é estranho e é maravilhoso para umas pupilas bem abertas. Isso, maravilhar-se, é a
delícia vedada ao futebolista e que, ao contrário, leva o intelectual pelo mundo em perpétua
embriaguez de visionário (Ortega y Gasset, 2013, p.42)

Tal como Ortega y Gasset, também Jaques Rancière, citando Deleuze, quando este discute
Epstein, formula sobre os artistas, neste caso os cineastas – “deixem o químico deitar apenas umas
misteriosas gotas num copo de água cristalina e logo uma massa de cristais surgirão, revelando-nos
assim tudo o que estava velado aos nossos olhares incompletos” (Deleuze as cited in RANCIÈRE,
2006. p.3). Ao homem-massa tal vislumbre está vedado. Assim, o homem massa usa as novas
capacidades tecnológicas, também elas massificadoras, de forma a iludir a sua falta de mestria, sem
consciência, mas de forma determinante. Apoia-se em qualquer razão para justificar a sua ascensão,
acriticamente, justamente o contrário do indivíduo.

De um certo modo é disso que fala Benjamin (1955) em “A obra de arte na era da sua
reprodutibilidade técnica”. Benjamin refere que a arte se dessacrilou com a nova era de
reprodutibilidade.

Na medida em que a era da reprodutibilidade técnica da arte a desligou dos seus


fundamentos de culto, extinguiu para sempre a aparência da sua autonomia. Mas a alteração
da função da arte, que com isso se verificou, deixou de existir na perspectiva do século XX
(Benjamin, 2010, p.9)

Ortega y Gasset dá um passo a frente do sustentado por Benjamin. A razão de Ortega y


Gasset, aplicada ao inicio do século vinte, torna-se explicita com o advento das tecnologias
mundializadas e massificadas. Nomeadamente a internet e as redes sociais.

Benjamin, W. (2010). A Obra De Arte Na Época Da Sua Reprodução Mecanizada. Biblioteca Da


Escola Superior De Teatro E Cinema

Ortega Y Gasset, J. (2013). A Rebelião Das Massas. Ruriak

Rancière, J. (2006). Film fables. Berg.





















como esta ruptura de massas in uenciou as artes e como os aparatos técnicos moldaram a
percepção dos artistas e dos movimentos artísticos?

No início da história do cinema, em Nantes, André Breton e Jacques Vaché passaram


tardes a visitar salas de cinema, uma após outra: entravam ao acaso em qualquer filme que
estivesse a passar e ficavam até acharem que tinham visto o suficiente. Depois saíam em busca do
próximo filme aleatório. (Burgin, 2004; p.3)

Mais que aborrecimento, o que estava em causa neste movimento era o “desejo-de-cinema”
(Burgin, 2004; p.7). Breton e Vaché queriam, antes de ser possível por inúmeros outros meios, ter
alguma responsabilidade de ‘edição’ sobre o que viam. Mas essa edição era livre e surpreendente,
não restritiva.

Em Tavares (2016) esta deriva é englobada num ponto de vista artístico, que dará azo
ao surgimento do movimento surrealista… “Mas se os surrealistas defendiam uma criação
espontânea através das várias técnicas propostas por eles (como a escrita automática), como falar
de um cinema surrealista, já que não é possível este grau de espontaneidade na realização de um
filme?”

Benjamin cita o aqui e agora da obra de arte, um preambulo do que vem a intitular de
aura da obra3 . Como já referimos, Benjamin refere também que a arte se dessacrilizou com a nova
era de reprodutibilidade. As novas tendências artísticas, tanto no DADA como o surrealismo, foram
atrás dessa dessacralização.

A arte distancia-se da natureza e cria um novo mundo. Alterando a estrutura espacial


utilizada no renascimento, busca formas novas de traduzir um outro espaço. A perspectiva
renascentista e seu desejo de reproduzir o mundo o mais fielmente possível será relegada
para dentro das objetivas das câmeras fotográficas e cinematográficas. Liberadas de uma
certa função reprodutora e identificatória, as artes plásticas ficam mais próximas das letras e
da poesia, (Tavares, 2016. p.19)

Podemos mesmo referir que a conduta outrora avant-gard de Bretón e Vaché, na sua
deriva ambulatória, completou agora sua viagem da poesia até à prosa.

A deriva que falamos era parte de um processo livre, indo ao encontro das ideas e
ideais surrealistas. esse processo, existente neste movimento era muito mais difícil de replicar na
sua ambição fílmica, tal como explicita Tavares, que estabelece também que o olhar e a percepção,
bem como o pensamento iam ao encontro das novas formas de arte, “o homem das imagens

3“Rastro e Aura. O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo que esteja aquilo que a deixou. A aura é
a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura,
ela se apodera de nós” - BENJAMIN, Walter (1927-1940) - Passagens. UFMG, 2006. p.16.













fl










fotográficas e cinematográficas que vieram para alterar definitivamente a nossa percepção do
mundo” (Tavares, 2016, p.15).

É por isso que a arte da imagem em movimento pode destruir a velha hierarquia
aristotélica que privilegia o Mythos – a coerência do plot – e desvaloriza o Opsis – o efeito sensível
do espetáculo. (Rancière, J., 2006. p. 2).

A questão da velocidade é fulcral na forma como vemos esta questão, tanto a


velocidade é sinónimo dos avanços tecnológicos a partir da revolução cultural, como a velocidade
quer estar presente nos novos movimentos artísticos. A fotografia e o cinema foram um mecanismo
de alteração da perceção e de mudança profunda na maneira de ver, pensar e recordar a realidade.

Talvez nunca a expressão moving pictures fez tanto sentido: o que os dadaístas buscavam,
mais que realizar filmes, era a possibilidade física de dotar os seus quadros de movimento,
utilizando a técnica para revelar também o próprio processo da técnica que estava embutido
na criação. (Tavares, 2016, p.54)

A forma “como vemos é inseparável daquilo que vemos. As tecnologias que


estruturam a nossa visão são inseparáveis do ambiente construído que apreendemos.” (Schwarzer,
2004; p. 20) . A nossa forma de ver é diferente se virmos algo da janela de um carro a uma certa
velocidade ou se formos espectadores da mesma cena num longo take de um filme, por exemplo.
Este olhar pode até ser ensinado, mas mais que tudo ele é apreendido através do meio.

Benjamin, W. (1992). Sobre arte, técnica, linguagem e política. Relógio D’Água.

Branigan, E. (2006). Projecting a Camera: Language Games in Film Theory. Routledge.

Burgin, V. (2004). The Remembered Film. Reaktion Books.

Rancière, J. (2006). Film fables. Berg.

Schwarzer, M. (2004). Zoomscape: architecture in motion and media. Princeton Architectural Press.

Tavares, M. (2016). Buñuel e o Surrealismo: a arquitetura do sonho. Coleção Humanitas.

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