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Artigo de Revisão
OFIDISMO
*F.M.O. P INHO , I.D. P EREIRA
DisciplinadeNefrologiadaFaculdadedeMedicinadaUniversidadeFederaldeGoiás,GOOfidismo
INTRODUÇÃO madamente 250 espécies de serpentes, no campo. A faixa etária acometida varia de
sendo que destas, 70 são peçonhentas. A 15 a 49 anos, sendo o sexo masculino o
Os acidentes ofídicos representam sé- maioria destes acidentes deve-se a serpen- mais prevalente. Quanto ao local da picada,
rio problema de saúde pública nos países tes do gênero Bothrops (jararaca, jarara- o pé e a perna são os mais atingidos.
tropicais pela frequência com que ocorrem cuçu, urutu e outros) e Crotalus (cascavel), As serpentes peçonhentas do gênero
e pela morbi-mortalidade que ocasionam. sendo raros os produzidos por Lachesis Bothrops, Crotalus e Lachesis possuem den-
Existem no mundo aproximadamente (surucucu, surucutinga) e Micrurus (coral) 7. tes inoculadores bem desenvolvidos e fos-
3000 espécies de serpentes, das quais de Segundo a Coordenação Nacional de seta loreal, um orifício situado entre o olho e
10 a 14% são consideradas peçonhentas1. Controle de Zoonoses e Animais Peço- a narina, sendo um órgão termorreceptor
A OMS (Organização Mundial de Saúde) nhentos ( CNCZAP ) do Ministério da Saú- que indica que a serpente é peçonhenta (por
calcula que ocorram no mundo 1.250.000 de, no período de 1990 a 1993 ocorreram isso é também conhecida popularmente por
a 1.665.000 acidentes por serpentes peço- 81.611 acidentes, com uma média de 20 “serpente de quatro ventas”). As serpentes
nhentas por ano, com 30.000 a 40.000 mil casos/ano para o país. A média de inci- do gênero Micrurus são uma exceção, pois,
mortes2. A mortalidade dos acidentados va- dência foi de 13,5 acidentes /100 mil habi- apesar de serem peçonhentas, não apresen-
ria nas diferentes regiões do mundo 3. Na tantes, com a região Centro-Oeste contri- tam fosseta loreal e possuem dentes inocula-
Ásia, principalmente na Índia, Paquistão e buindo com o maior índice do país (33 dores pouco desenvolvidos8.
Birmânia, os acidentes ofídicos provocam acidentes/100 mil habitantes). Seguido pela Identificar o animal causador do aciden-
de 25 mil a 35 mil óbitos por ano, sendo região Norte (24 acidentes/100 mil habitan- te é procedimento importante na medida
uma das serpentes mais importantes a Vipe- tes), Sul (16 acidentes/100 mil habitantes), em que possibilita a dispensa imediata da
ra russeli4. Na Nigéria, ocorrem 500 casos Sudeste (13 acidentes/100 mil habitantes), maioria dos pacientes picados por serpen-
por 100 mil habitantes, com taxa de morta- deixando para o Nordeste o título de me- tes não peçonhentas, viabiliza o reconheci-
lidade de 10%5. Nos Estados Unidos, 12 a nor índice (7 acidentes/100 mil habitantes), mento das espécies de importância médica
15 dos 8 mil casos anuais são fatais, levando provavelmente devido à subnotificação, a nível regional e auxilia na indicação mais
a uma mortalidade de 0,2%6. Na África, tendo em vista as dificuldades de acesso aos precisa do antiveneno a ser administrado8.
ocorrem de 400 a 1.000 mortes por ano, serviços de saúde dessa região8. Dentre os As serpentes peçonhentas possuem
causadas principalmente pelas serpentes casos em que o gênero da serpente foi presas anteriores, com orifício central ou
conhecidas como Naja 4 . informado, Bothrops foi responsável por sulco; fosseta loreal presente (exceto no
No Brasil, segundo dados do Ministério 90,5% dos casos, Crotalus por 7,7%, La- gênero Micrurus); pupilas em fenda; cabeça
da Saúde, ocorrem entre 19 mil a 22 mil chesis por 1,4% e Micrurus por 0,4%. A destacada do corpo; a cauda afina abrupta-
acidentes ofídicos por ano 3. Existem aproxi- letalidade geral foi de 0,45%, sendo maior mente, possuem hábitos noturnos e costu-
nos acidentes crotálicos (1,87%)8. mam ser vagarosas. As serpentes não peço-
*Correspondência: A ocorrência do acidente ofídico está, nhentas não possuem presas anteriores e
Av. Multirão, 1868 – Setor Bueno em geral, relacionada a fatores climáticos e fosseta loreal; possuem pupilas circulares;
Cep: 74215-240 – Goiânia – GO
E-mail: pfabia@zaz.com.br aumento da atividade humana nos trabalhos cabeça não destacada do corpo; a cauda
afina progressivamente; hábitos diurnos e neste tipo de acidente 7,8,9. tempo parcial de tromboplastina (PTT). São
costumam ser ágeis 8,9. É importante ressaltar que a quantidade exames importantes para diagnóstico, con-
de veneno inoculado varia de acordo com o duta e evolução clínica. O hemograma ge-
ACIDENTE BOTRÓPICO tamanho da serpente e, também, se ela ralmente revela leucocitose com neutrofilia
atacou alguma outra presa recentemente 11. e plaquetopenia de intensidade variável. O
A serpente No caso de serpente do gênero botró- exame de urina pode apresentar protei-
As serpentes do gênero Bothrops pico, há uma diferença entre o veneno do núria, hematúria e leucocitúria. Outros exa-
compreendem cerca de 30 espécies, dis- filhote, que é predominantemente coagu- mes complementares importantes incluem
tribuídas por todo o território nacional. As lante, e do adulto, com maior ação proteo- dosagem de eletrólitos, uréia e creatinina,
espécies mais conhecidas são: B. atrox, lítica e menor ação coagulante9. com a finalidade de detectar precocemente
encontradas no norte do Brasil; B. eryt- Quadro clínico distúrbios hidroeletrolíticos e insuficiência
hromelas, encontradas na região nordes- renal aguda8,11.
O quadro clínico caracteriza-se por
te; B. neuw iedi, encontradas em todo ter- Baseado nas alterações clínicas e labo-
manifestações locais importantes como
ritório nacional, exceto região norte do ratoriais e visando orientar a terapêutica a
dor e edema de caráter precoce e pro-
país; B. jararaca, distribuídas na região sul ser empregada, os acidentes botrópicos são
gressivo. Freqüentemente, surgem equi-
e sudeste; B. jararacussu, encontradas no classificados em casos leves, moderados e
moses, lesões bolhosas e sangramentos
cerrado da região central e em florestas graves (Quadro I).
no local da picada 11. Nos casos mais gra-
tropicais do sudeste e B. alternatus, distri- ves, pode ocorrer necrose de tecidos Tratamento
buídas ao sul do país 8. moles com formação de abscessos e de- O tratamento específico consiste na
Possuem cauda lisa, não tem chocalho e senvolvimento de síndrome comparti- administração o mais precocemente possí-
as suas cores variam muito, dependendo da mental, podendo deixar como sequelas a vel, por via endovenosa do soro antibotró-
espécie e da região onde vivem. São popular- perda funcional ou mesmo anatômica do pico (SAB) e, na falta deste, das associações
mente conhecidas como jararaca, ouricana, membro acometido 8,9. antibotrópico-crotálico (SABC) ou antibo-
jararacuçu, urutu-cruzeira, jararaca do rabo As manifestações sistêmicas incluem, trópico-laquético (SABL), em ambiente
branco, malha de sapo, patrona, surucu- além de sangramentos em ferimentos cutâ- hospitalar8. Se o TC permanecer alterado
curana, combóia e caiçaca. Habitam zonas neos preexistentes, hemorragias à distância 24 horas após a soroterapia, está indicada
rurais e periferias de grandes cidades, prefe- como gengivorragias, epistaxes, hematê- dose adicional de antiveneno8,15.
rindo ambientes úmidos como matas e áreas mese e hematúria. Podem ocorrer náuseas, As medidas gerais incluem procedi-
cultivadas e locais onde haja facilidade para vômitos, sudorese, hipotensão arterial e, mentos indicados para tratamento das al-
proliferação de roedores (paióis, celeiros, mais raramente, choque8,12. terações locais. O local de inoculação do
depósitos de lenha). Tem hábitos predomi- As complicações sistêmicas mais co- veneno deve ser limpo com água e sabão.
nantemente noturnos ou crepusculares8,10. muns são o choque, a insuficiência renal A elevação do membro acometido pouco
A peçonha aguda, a septicemia e a coagulação intra- acima do resto do corpo pode facilitar a
vascular disseminada, tendo patogênese diminuição do edema. Analgésicos são co-
Sua peçonha possui importantes ativida-
multifatorial e sendo causas frequentes de mumente necessários nos casos mais gra-
des fisiopatológicas, com lesões locais e
óbitos8,13,14.
destruição tecidual (ação proteolítica ), ativa ves. Os tecidos necrosados devem ser
a cascata da coagulação podendo induzir Diagnóstico cuidadosamente debridados e os absces-
incoagulabilidade sanguínea por consumo A confirmação laboratorial do acidente sos drenados. A fasciotomia deve ser rea-
de fibrinogênio (ação coagulante), promove pode ser feita através de antígenos do vene- lizada se ocorrer síndrome compartimen-
liberação de substâncias hipotensoras e no botrópico que podem ser detectados no tal. Adequada hidratação e profilaxia con-
provoca lesões na membrana basal dos ca- sangue ou outros líquidos corporais do pa- tra o tétano são medidas complementares
pilares por ação das hemorraginas (ação ciente, através da técnica de ELISA8,11. importantes. A antibioticoterapia é reser-
hemorrágica), que associada à plaquetope- A avaliação laboratorial é realizada atra- vada para casos onde sejam verificados
nia e alterações da coagulação, promovem vés do tempo de coagulação (TC), que sinais clínicos e laboratoriais de infecção.
as manifestações hemorrágicas, freqüentes geralmente está aumentado, bem como o Considerar a necessidade de cirurgia repa-
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PINHO FMO ET AL.
radora nas perdas extensas de tecidos, e Quadro 1 – Acidente botrópico: classificação quanto à gravidade e soroterapia recomendada.
preservar o segmento acometido até que
se tenha certeza de que nada poderá ser Manifestação e Caso leve Casos moderado Caso grave
feito para recuperá-lo ou se está em risco tratamento
a vida do paciente 8,9,11 . Locais: dor, Ausentes ou Evidentes Intensas
O paciente deve permanecer, pelo me- edema e equimose discretas
nos por 72 horas após a picada, internado Sistêmicas:
em hospital para controle clínico e hemorragias Ausentes Ausentes Presentes
laboratorial11. choque e anúria
Tempo de Normal ou Normal ou Normal ou
ACIDENTE CROTÁLICO coagulação (TC) alterado alterado alterado
Soroterapia* 2 a 4 ampolas 4 a 8 ampolas 12 ampolas
A serpente SAB-SABC-SABL
As serpentes do gênero Crotalus estão Via de Endovenosa Endovenosa Endovenosa
representadas no Brasil por apenas uma administração
espécie, a Crotalus durissus, e distribuídas
em cinco subespécies: C. durissus terrificus,
encontrada nas zonas altas e secas da região
sul oriental e meridional; C. durissus collil- consumo de fibrinogênio; e atividade mio- palatina, com dificuldade à deglutição, alte-
ineatus, distribuídas nas regiões secas da tóxica sistêmica, causando rabdomiólise rações do paladar e olfato 17. A miotoxi-
região centro-oeste, Minas Gerais e norte generalizada, podendo evoluir para insufici- cidade do veneno é evidenciada por intensa
de São Paulo; C. durissus cascavella, encon- ência renal aguda 7,9,15. mialgia generalizada, que pode ser acompa-
trada nas áreas da caatinga do nordeste; nhada por discreto edema muscular. A
Quadro clínico
C. durissus ruruima, observada na região miólise causa mioglobinúria que confere
norte do país; C. durissus marajoensis, ob- O quadro clínico local habitualmente cor avermelhada ou vinhosa à urina 16-19.
servada na Ilha de Marajó 8,9. causa manifestações discretas, como dor, Pode haver incoagulabilidade sanguínea ou
São popularmente conhecidas por casca- eritema, edema, e parestesia local ou regi- aumento do tempo de coagulação em apro-
vel, boicininga, maracambóia e maracá8,16. onal8,13. ximadamente 40% dos pacientes, obser-
São encontradas em campos abertos , áreas As manifestações sistêmicas gerais in- vando-se raramente gengivorragia7,8,9,15.
secas, arenosas e pedregosas, raramente na cluem mal-estar, prostração, sudorese, ná- As complicações locais são raras, po-
faixa litorânea. Não têm hábito de atacar e, useas, vômitos, sonolência ou inquietação e dendo ocorrer parestesias locais duradou-
quando ameaçadas, denunciam sua presen- sensação de boca seca, que podem apare- ras, porém reversíveis após algumas sema-
ça pelo ruído característico do guizo ou cer precocemente8. nas. A principal complicação desse tipo de
chocalho, presente na cauda 8,9,13. As manifestações neurológicas surgem acidente é a insuficiência renal aguda, com
nas primeiras horas e melhoram a partir do necrose tubular, geralmente de instalação
A peçonha 2º dia do acidente. O fácies miastênica é nas primeiras 48 horas 7,8.
O veneno crotálico quase não produz característico e denominado "fácies neuro-
lesão local, possuindo principalmente três tóxico de Rosenfeld", evidenciando ptose Diagnóstico
atividades com importância clínica conheci- palpebral uni ou bilateral, flacidez da muscu- A confirmação laboratorial do acidente
da. Atividade neurotóxica, com ação peri- latura da face, midríase bilateral semipa- pode ser feita através de antígenos do vene-
férica, causando paralisia flácida da muscula- ralítica, oftalmoplegia, visão turva e/ou di- no crotálico que podem ser detectados no
tura esquelética, principalmente ocular, fa- plopia, indicando, portanto, o comprometi- sangue ou outros líquidos corporais do pa-
cial e às vezes, da respiração, com conse- mento do III, IV e VI pares cranianos, ciente através da técnica de ELISA8,11.
qüente insuficiência respiratória; atividade diplopia secundária à oftalmoplegia e visão Na avaliação laboratorial, encontramos
coagulante, provocando a ocorrência de turva. Como manifestações menos fre- como resultado da miólise, valores eleva-
sangramento e distúrbios da coagulação por quentes, pode-se encontrar paralisia velo- dos de creatinofosfoquinase (CPK), desi-
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OFIDISMO
Diagnóstico
Quadro 3 – Acidente laquético: tratamento específico indicado
Hemograma, dosagens séricas de uréia,
creatinina e eletrólitos são indicados dependen- Orientação para o tratamento Soroterapia Via de administração
do da evolução do paciente. A determinação do Gravidade avaliada
tempo de coagulação (TC) é importante me- pelos sinais e intensidade das 10 a 20 ampolas de Endovenosa
dida auxiliar no diagnóstico e acompanhamen- manifestações vagais SAL ou SABL*
to dos casos. O ELISA vem sendo utilizado em (bradicardia, hipotensão
e diarréira
caráter experimental, não estando disponível
na rotina nesse tipo de envenenamento8. *SAL = Soro antilaquético / SABL = Soro antibotrópico-laquético
Por serem serpentes de grande porte
considera-se grande a quantidade de peço- mão de indivíduos que as manipulam 8,9,11. ptose palpebral, oftalmoplegia e a presença
nha inoculada em um acidente (Quadro 3). O mesmo padrão de coloração possu- de fácies miastênica ou “neurotóxica”. Tam-
Tratamento em as falsas-corais, porém a configuração bém podem surgir mialgia localizada ou
dos anéis não envolve toda a circunferência generalizada, dificuldade para se manter na
O tratamento específico consiste na in- e são desprovidas de dentes inoculadores, posição ereta, dificuldade para deglutir, de-
fusão endovenosa do soro antilaquético portanto, não peçonhentas8. vido à paralisia do véu palatino. A paralisia
(SAL) ou antibotrópico-laquético (SABL). flácida da musculatura respiratória compro-
A peçonha
Na falta dos soros específicos, o tratamento mete a ventilação, podendo evoluir para
deve ser realizado com soro antibotrópico, O veneno elapídico possui constituintes
tóxicos denominados de neurotoxinas, subs- insuficiência respiratória aguda e apnéia,
apesar deste não neutralizar de maneira semelhante ao que ocorre no acidente
eficaz a ação coagulante do veneno laqué- tâncias de baixo peso molecular que são
rapidamente absorvidas e difundidas para os crotálico8. O acidente elapídico é conside-
tico8,9. As medidas gerais são as mesmas rado muito grave, podendo causar a morte
indicadas para o acidente botrópico. tecidos, explicando a precocidade dos sinto-
mas de envenenamento8,11. Este veneno da vítima em curto intervalo de tempo 8,9.