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PINHO FMO ET AL.

Artigo de Revisão

OFIDISMO
*F.M.O. P INHO , I.D. P EREIRA
DisciplinadeNefrologiadaFaculdadedeMedicinadaUniversidadeFederaldeGoiás,GOOfidismo

UNITERMOS: Acidente ofídico. Bothrops. Crotalus. Micrurus. Lachesis.

KEY WORDS: Snakebite. Bothrops. Crotalus. Micrurus. Lachesis.

INTRODUÇÃO madamente 250 espécies de serpentes, no campo. A faixa etária acometida varia de
sendo que destas, 70 são peçonhentas. A 15 a 49 anos, sendo o sexo masculino o
Os acidentes ofídicos representam sé- maioria destes acidentes deve-se a serpen- mais prevalente. Quanto ao local da picada,
rio problema de saúde pública nos países tes do gênero Bothrops (jararaca, jarara- o pé e a perna são os mais atingidos.
tropicais pela frequência com que ocorrem cuçu, urutu e outros) e Crotalus (cascavel), As serpentes peçonhentas do gênero
e pela morbi-mortalidade que ocasionam. sendo raros os produzidos por Lachesis Bothrops, Crotalus e Lachesis possuem den-
Existem no mundo aproximadamente (surucucu, surucutinga) e Micrurus (coral) 7. tes inoculadores bem desenvolvidos e fos-
3000 espécies de serpentes, das quais de Segundo a Coordenação Nacional de seta loreal, um orifício situado entre o olho e
10 a 14% são consideradas peçonhentas1. Controle de Zoonoses e Animais Peço- a narina, sendo um órgão termorreceptor
A OMS (Organização Mundial de Saúde) nhentos ( CNCZAP ) do Ministério da Saú- que indica que a serpente é peçonhenta (por
calcula que ocorram no mundo 1.250.000 de, no período de 1990 a 1993 ocorreram isso é também conhecida popularmente por
a 1.665.000 acidentes por serpentes peço- 81.611 acidentes, com uma média de 20 “serpente de quatro ventas”). As serpentes
nhentas por ano, com 30.000 a 40.000 mil casos/ano para o país. A média de inci- do gênero Micrurus são uma exceção, pois,
mortes2. A mortalidade dos acidentados va- dência foi de 13,5 acidentes /100 mil habi- apesar de serem peçonhentas, não apresen-
ria nas diferentes regiões do mundo 3. Na tantes, com a região Centro-Oeste contri- tam fosseta loreal e possuem dentes inocula-
Ásia, principalmente na Índia, Paquistão e buindo com o maior índice do país (33 dores pouco desenvolvidos8.
Birmânia, os acidentes ofídicos provocam acidentes/100 mil habitantes). Seguido pela Identificar o animal causador do aciden-
de 25 mil a 35 mil óbitos por ano, sendo região Norte (24 acidentes/100 mil habitan- te é procedimento importante na medida
uma das serpentes mais importantes a Vipe- tes), Sul (16 acidentes/100 mil habitantes), em que possibilita a dispensa imediata da
ra russeli4. Na Nigéria, ocorrem 500 casos Sudeste (13 acidentes/100 mil habitantes), maioria dos pacientes picados por serpen-
por 100 mil habitantes, com taxa de morta- deixando para o Nordeste o título de me- tes não peçonhentas, viabiliza o reconheci-
lidade de 10%5. Nos Estados Unidos, 12 a nor índice (7 acidentes/100 mil habitantes), mento das espécies de importância médica
15 dos 8 mil casos anuais são fatais, levando provavelmente devido à subnotificação, a nível regional e auxilia na indicação mais
a uma mortalidade de 0,2%6. Na África, tendo em vista as dificuldades de acesso aos precisa do antiveneno a ser administrado8.
ocorrem de 400 a 1.000 mortes por ano, serviços de saúde dessa região8. Dentre os As serpentes peçonhentas possuem
causadas principalmente pelas serpentes casos em que o gênero da serpente foi presas anteriores, com orifício central ou
conhecidas como Naja 4 . informado, Bothrops foi responsável por sulco; fosseta loreal presente (exceto no
No Brasil, segundo dados do Ministério 90,5% dos casos, Crotalus por 7,7%, La- gênero Micrurus); pupilas em fenda; cabeça
da Saúde, ocorrem entre 19 mil a 22 mil chesis por 1,4% e Micrurus por 0,4%. A destacada do corpo; a cauda afina abrupta-
acidentes ofídicos por ano 3. Existem aproxi- letalidade geral foi de 0,45%, sendo maior mente, possuem hábitos noturnos e costu-
nos acidentes crotálicos (1,87%)8. mam ser vagarosas. As serpentes não peço-
*Correspondência: A ocorrência do acidente ofídico está, nhentas não possuem presas anteriores e
Av. Multirão, 1868 – Setor Bueno em geral, relacionada a fatores climáticos e fosseta loreal; possuem pupilas circulares;
Cep: 74215-240 – Goiânia – GO
E-mail: pfabia@zaz.com.br aumento da atividade humana nos trabalhos cabeça não destacada do corpo; a cauda

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afina progressivamente; hábitos diurnos e neste tipo de acidente 7,8,9. tempo parcial de tromboplastina (PTT). São
costumam ser ágeis 8,9. É importante ressaltar que a quantidade exames importantes para diagnóstico, con-
de veneno inoculado varia de acordo com o duta e evolução clínica. O hemograma ge-
ACIDENTE BOTRÓPICO tamanho da serpente e, também, se ela ralmente revela leucocitose com neutrofilia
atacou alguma outra presa recentemente 11. e plaquetopenia de intensidade variável. O
A serpente No caso de serpente do gênero botró- exame de urina pode apresentar protei-
As serpentes do gênero Bothrops pico, há uma diferença entre o veneno do núria, hematúria e leucocitúria. Outros exa-
compreendem cerca de 30 espécies, dis- filhote, que é predominantemente coagu- mes complementares importantes incluem
tribuídas por todo o território nacional. As lante, e do adulto, com maior ação proteo- dosagem de eletrólitos, uréia e creatinina,
espécies mais conhecidas são: B. atrox, lítica e menor ação coagulante9. com a finalidade de detectar precocemente
encontradas no norte do Brasil; B. eryt- Quadro clínico distúrbios hidroeletrolíticos e insuficiência
hromelas, encontradas na região nordes- renal aguda8,11.
O quadro clínico caracteriza-se por
te; B. neuw iedi, encontradas em todo ter- Baseado nas alterações clínicas e labo-
manifestações locais importantes como
ritório nacional, exceto região norte do ratoriais e visando orientar a terapêutica a
dor e edema de caráter precoce e pro-
país; B. jararaca, distribuídas na região sul ser empregada, os acidentes botrópicos são
gressivo. Freqüentemente, surgem equi-
e sudeste; B. jararacussu, encontradas no classificados em casos leves, moderados e
moses, lesões bolhosas e sangramentos
cerrado da região central e em florestas graves (Quadro I).
no local da picada 11. Nos casos mais gra-
tropicais do sudeste e B. alternatus, distri- ves, pode ocorrer necrose de tecidos Tratamento
buídas ao sul do país 8. moles com formação de abscessos e de- O tratamento específico consiste na
Possuem cauda lisa, não tem chocalho e senvolvimento de síndrome comparti- administração o mais precocemente possí-
as suas cores variam muito, dependendo da mental, podendo deixar como sequelas a vel, por via endovenosa do soro antibotró-
espécie e da região onde vivem. São popular- perda funcional ou mesmo anatômica do pico (SAB) e, na falta deste, das associações
mente conhecidas como jararaca, ouricana, membro acometido 8,9. antibotrópico-crotálico (SABC) ou antibo-
jararacuçu, urutu-cruzeira, jararaca do rabo As manifestações sistêmicas incluem, trópico-laquético (SABL), em ambiente
branco, malha de sapo, patrona, surucu- além de sangramentos em ferimentos cutâ- hospitalar8. Se o TC permanecer alterado
curana, combóia e caiçaca. Habitam zonas neos preexistentes, hemorragias à distância 24 horas após a soroterapia, está indicada
rurais e periferias de grandes cidades, prefe- como gengivorragias, epistaxes, hematê- dose adicional de antiveneno8,15.
rindo ambientes úmidos como matas e áreas mese e hematúria. Podem ocorrer náuseas, As medidas gerais incluem procedi-
cultivadas e locais onde haja facilidade para vômitos, sudorese, hipotensão arterial e, mentos indicados para tratamento das al-
proliferação de roedores (paióis, celeiros, mais raramente, choque8,12. terações locais. O local de inoculação do
depósitos de lenha). Tem hábitos predomi- As complicações sistêmicas mais co- veneno deve ser limpo com água e sabão.
nantemente noturnos ou crepusculares8,10. muns são o choque, a insuficiência renal A elevação do membro acometido pouco
A peçonha aguda, a septicemia e a coagulação intra- acima do resto do corpo pode facilitar a
vascular disseminada, tendo patogênese diminuição do edema. Analgésicos são co-
Sua peçonha possui importantes ativida-
multifatorial e sendo causas frequentes de mumente necessários nos casos mais gra-
des fisiopatológicas, com lesões locais e
óbitos8,13,14.
destruição tecidual (ação proteolítica ), ativa ves. Os tecidos necrosados devem ser
a cascata da coagulação podendo induzir Diagnóstico cuidadosamente debridados e os absces-
incoagulabilidade sanguínea por consumo A confirmação laboratorial do acidente sos drenados. A fasciotomia deve ser rea-
de fibrinogênio (ação coagulante), promove pode ser feita através de antígenos do vene- lizada se ocorrer síndrome compartimen-
liberação de substâncias hipotensoras e no botrópico que podem ser detectados no tal. Adequada hidratação e profilaxia con-
provoca lesões na membrana basal dos ca- sangue ou outros líquidos corporais do pa- tra o tétano são medidas complementares
pilares por ação das hemorraginas (ação ciente, através da técnica de ELISA8,11. importantes. A antibioticoterapia é reser-
hemorrágica), que associada à plaquetope- A avaliação laboratorial é realizada atra- vada para casos onde sejam verificados
nia e alterações da coagulação, promovem vés do tempo de coagulação (TC), que sinais clínicos e laboratoriais de infecção.
as manifestações hemorrágicas, freqüentes geralmente está aumentado, bem como o Considerar a necessidade de cirurgia repa-
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radora nas perdas extensas de tecidos, e Quadro 1 – Acidente botrópico: classificação quanto à gravidade e soroterapia recomendada.
preservar o segmento acometido até que
se tenha certeza de que nada poderá ser Manifestação e Caso leve Casos moderado Caso grave
feito para recuperá-lo ou se está em risco tratamento
a vida do paciente 8,9,11 . Locais: dor, Ausentes ou Evidentes Intensas
O paciente deve permanecer, pelo me- edema e equimose discretas
nos por 72 horas após a picada, internado Sistêmicas:
em hospital para controle clínico e hemorragias Ausentes Ausentes Presentes
laboratorial11. choque e anúria
Tempo de Normal ou Normal ou Normal ou
ACIDENTE CROTÁLICO coagulação (TC) alterado alterado alterado
Soroterapia* 2 a 4 ampolas 4 a 8 ampolas 12 ampolas
A serpente SAB-SABC-SABL
As serpentes do gênero Crotalus estão Via de Endovenosa Endovenosa Endovenosa
representadas no Brasil por apenas uma administração
espécie, a Crotalus durissus, e distribuídas
em cinco subespécies: C. durissus terrificus,
encontrada nas zonas altas e secas da região
sul oriental e meridional; C. durissus collil- consumo de fibrinogênio; e atividade mio- palatina, com dificuldade à deglutição, alte-
ineatus, distribuídas nas regiões secas da tóxica sistêmica, causando rabdomiólise rações do paladar e olfato 17. A miotoxi-
região centro-oeste, Minas Gerais e norte generalizada, podendo evoluir para insufici- cidade do veneno é evidenciada por intensa
de São Paulo; C. durissus cascavella, encon- ência renal aguda 7,9,15. mialgia generalizada, que pode ser acompa-
trada nas áreas da caatinga do nordeste; nhada por discreto edema muscular. A
Quadro clínico
C. durissus ruruima, observada na região miólise causa mioglobinúria que confere
norte do país; C. durissus marajoensis, ob- O quadro clínico local habitualmente cor avermelhada ou vinhosa à urina 16-19.
servada na Ilha de Marajó 8,9. causa manifestações discretas, como dor, Pode haver incoagulabilidade sanguínea ou
São popularmente conhecidas por casca- eritema, edema, e parestesia local ou regi- aumento do tempo de coagulação em apro-
vel, boicininga, maracambóia e maracá8,16. onal8,13. ximadamente 40% dos pacientes, obser-
São encontradas em campos abertos , áreas As manifestações sistêmicas gerais in- vando-se raramente gengivorragia7,8,9,15.
secas, arenosas e pedregosas, raramente na cluem mal-estar, prostração, sudorese, ná- As complicações locais são raras, po-
faixa litorânea. Não têm hábito de atacar e, useas, vômitos, sonolência ou inquietação e dendo ocorrer parestesias locais duradou-
quando ameaçadas, denunciam sua presen- sensação de boca seca, que podem apare- ras, porém reversíveis após algumas sema-
ça pelo ruído característico do guizo ou cer precocemente8. nas. A principal complicação desse tipo de
chocalho, presente na cauda 8,9,13. As manifestações neurológicas surgem acidente é a insuficiência renal aguda, com
nas primeiras horas e melhoram a partir do necrose tubular, geralmente de instalação
A peçonha 2º dia do acidente. O fácies miastênica é nas primeiras 48 horas 7,8.
O veneno crotálico quase não produz característico e denominado "fácies neuro-
lesão local, possuindo principalmente três tóxico de Rosenfeld", evidenciando ptose Diagnóstico
atividades com importância clínica conheci- palpebral uni ou bilateral, flacidez da muscu- A confirmação laboratorial do acidente
da. Atividade neurotóxica, com ação peri- latura da face, midríase bilateral semipa- pode ser feita através de antígenos do vene-
férica, causando paralisia flácida da muscula- ralítica, oftalmoplegia, visão turva e/ou di- no crotálico que podem ser detectados no
tura esquelética, principalmente ocular, fa- plopia, indicando, portanto, o comprometi- sangue ou outros líquidos corporais do pa-
cial e às vezes, da respiração, com conse- mento do III, IV e VI pares cranianos, ciente através da técnica de ELISA8,11.
qüente insuficiência respiratória; atividade diplopia secundária à oftalmoplegia e visão Na avaliação laboratorial, encontramos
coagulante, provocando a ocorrência de turva. Como manifestações menos fre- como resultado da miólise, valores eleva-
sangramento e distúrbios da coagulação por quentes, pode-se encontrar paralisia velo- dos de creatinofosfoquinase (CPK), desi-
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drogenase lática (LDH) e aspartase-ala-


nino-transferase (ALT). O aumento da CPK Quadro 2 – Acidente crotálico: classificação quanto à gravidade e soroterapia recomendada.
é precoce, com pico de máxima elevação Manifestaçaõ e Caso leve Caso moderado Caso grave
dentro das primeiras 24 horas após o aci- tratamento
dente. O aumento da LDH é lento e gra- Fáceis miastênica Ausentes ou Discreta ou Evidente
dual, constituindo-se, pois, um exame para e visão turva tardia evidente
diagnóstico tardio do envenenamento cro-
Urina vermelha Ausente Ausente ou Presente
tálico. O hemograma pode mostrar leuco-
ou marrom pouco evidente
citose, com neutrofilia e desvio à esquerda.
O TC freqüentemente está prolongado. O Oligúria ou Ausente Ausente Presente ou
exame de urina pode apresentar protei- Anúria Ausente
núria discreta, presença de mioglobina, Tempo de Normal ou Normal ou Normal ou
com ausência de hematúria. Elevação dos coagulação (TC) Alterado Alterado Alterado
níveis de uréia, creatinina, ácido úrico, fós- Soroterapia 5 Ampolas 10 Ampolas 20 Ampolas
foro, potássio e diminuição da calcemia, são SAC-SABC*
observadas na fase oligúrica da IRA8,11. Via de Endovenosa Endovenosa Endovenosa
Baseados nas alterações clínicas e labo- administração
ratoriais e visando orientar a terapêutica a
ser empregada, os acidentes crotálicos são
classificados em casos leves, moderados e de diuréticos de alça, como a furosemida 8,1. nogenemia e incoagulabilidade sanguínea;
graves (Quadro 2). Nos casos em que for constatado insuficiên- ação hemorrágica, pela presença de he-
cia renal aguda (IRA) deve se instalar um morraginas e ação neurotóxica, com ação
Tratamento
tratamento dialítico precoce 8,9. do tipo estimulação vagal, alterações de
O tratamento específico é a infusão do sensibilidade no local da picada, da gustação
soro anticrotálico (SAC) ou o soro antibo- ACIDENTE LAQUÉTICO e da olfação8,9.
trópico-crotálico (SABC) endovenosamen-
te, com a dose variando com a gravidade do Quadro clínico
A serpente
caso, devendo-se ressaltar que a quantida- As serpentes do gênero Lachesis per- As manifestações clínicas são seme-
de a ser administrada na criança é a mesma lhantes às descritas no acidente botrópico,
tencem à espécie L. muta com duas subes-
da do adulto8. pécies. É a maior das serpentes peçonhen- predominando a dor e o edema, que po-
O tratamento geral inclui medidas sim- tas das Américas, atingindo até 3,5 m de dem progredir para todo o membro aco-
ples, porém de grande importância para o comprimento e possuem cauda com esca- metido. Podem surgir equimose, necrose
prognóstico. É recomendado lavar a região mas eriçadas. São popularmente conheci- cutânea, vesículas e bolhas de conteúdo
afetada com água e sabão, analgesia e das por surucucu, surucucu-pico-de-jaca, seroso ou sero-hemorrágico nas primei-
profilaxia do tétano, se necessário. Os pa- surucutinga e malha-de-fogo. Habitam ras horas do acidente. As manifestações
cientes devem ser bem hidratados para pre- áreas florestais como Amazônia, Mata hemorrágicas limitam-se ao local da picada
venir a insuficiência renal. A alcalinização da Atlântica e alguns enclaves de matas úmi- na maioria dos casos 8.
urina e a diurese osmótica estão indicadas das do Nordeste 8. As manifestações sistêmicas incluem
nos casos que evoluam com mioglobinúria, hipotensão arterial, tonturas, escurecimen-
no intuito de diminuir a toxicidade renal. A A peçonha to da visão, bradicardia, cólicas abdominais
alcalinização é realizada através da adminis- O veneno laquético possui as três ativi- e diarréia (“síndrome vagal”)8,9.
tração parenteral de bicarbonato de sódio, dades principais do veneno botrópico, com As complicações locais descritas no aci-
monitorizada por controle gasométrico. A quadro clínico semelhante, entretanto, roti- dente botrópico, como síndrome compar-
diurese osmótica pode ser induzida com a neiramente mais grave. O veneno laquético timental, necrose, infecção secundária, abs-
administração endovenosa de manitol a possui ação proteolítica, produzindo lesão cesso e déficit funcional, também podem
20%. Em casos de oligúria, indica-se o uso tecidual; ação coagulante, causando afibri- estar presentes nesse tipo de acidente8.
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Diagnóstico
Quadro 3 – Acidente laquético: tratamento específico indicado
Hemograma, dosagens séricas de uréia,
creatinina e eletrólitos são indicados dependen- Orientação para o tratamento Soroterapia Via de administração
do da evolução do paciente. A determinação do Gravidade avaliada
tempo de coagulação (TC) é importante me- pelos sinais e intensidade das 10 a 20 ampolas de Endovenosa
dida auxiliar no diagnóstico e acompanhamen- manifestações vagais SAL ou SABL*
to dos casos. O ELISA vem sendo utilizado em (bradicardia, hipotensão
e diarréira
caráter experimental, não estando disponível
na rotina nesse tipo de envenenamento8. *SAL = Soro antilaquético / SABL = Soro antibotrópico-laquético
Por serem serpentes de grande porte
considera-se grande a quantidade de peço- mão de indivíduos que as manipulam 8,9,11. ptose palpebral, oftalmoplegia e a presença
nha inoculada em um acidente (Quadro 3). O mesmo padrão de coloração possu- de fácies miastênica ou “neurotóxica”. Tam-
Tratamento em as falsas-corais, porém a configuração bém podem surgir mialgia localizada ou
dos anéis não envolve toda a circunferência generalizada, dificuldade para se manter na
O tratamento específico consiste na in- e são desprovidas de dentes inoculadores, posição ereta, dificuldade para deglutir, de-
fusão endovenosa do soro antilaquético portanto, não peçonhentas8. vido à paralisia do véu palatino. A paralisia
(SAL) ou antibotrópico-laquético (SABL). flácida da musculatura respiratória compro-
A peçonha
Na falta dos soros específicos, o tratamento mete a ventilação, podendo evoluir para
deve ser realizado com soro antibotrópico, O veneno elapídico possui constituintes
tóxicos denominados de neurotoxinas, subs- insuficiência respiratória aguda e apnéia,
apesar deste não neutralizar de maneira semelhante ao que ocorre no acidente
eficaz a ação coagulante do veneno laqué- tâncias de baixo peso molecular que são
rapidamente absorvidas e difundidas para os crotálico8. O acidente elapídico é conside-
tico8,9. As medidas gerais são as mesmas rado muito grave, podendo causar a morte
indicadas para o acidente botrópico. tecidos, explicando a precocidade dos sinto-
mas de envenenamento8,11. Este veneno da vítima em curto intervalo de tempo 8,9.

ACIDENTE ELAPÍDICO produz bloqueio neuromuscular (pós-sináp-


DIAGNÓSTICO
tico) levando à paralisia muscular, competin-
A serpente do com a acetilcolina (Ach) pelos receptores Nos acidentes laquéticos não há uma
As serpentes do gênero Micrurus compre- colinérgicos, atuando de modo semelhante avaliação laboratorial específica para o
endem 18 espécies distribuídas em todo o ao curare. O uso de substâncias anticolines- diagnóstico.
território brasileiro. As espécies mais comuns terásicas (neostigmina) antagonizam esse
são a M. corallinus, encontrada na região sul efeito, levando a uma rápida melhora da TRATAMENTO
e litoral da região sudeste; M. frontalis, tam- sintomatologia. A ação pré-sináptica, presen- O tratamento específico é a administra-
bém encontrada nas região sul, sudeste e te na M. corallinus e alguns viperídeos, atua ção, por via endovenosa do soro antie-
parte do centro-oeste e M. lemniscatus, dis- na junção neuromuscular, bloqueando a libe- lapídico (SAE). Todos os casos que apre-
tribuídas nas regiões norte e centro-oeste. ração de Ach pelos impulsos nervosos, impe- sentam manifestações clínicas são conside-
Apresentam anéis vermelhos, pretos e dindo a deflagração do potencial de ação. rados potencialmente graves (Quadro 4).
brancos em qualquer tipo de combinação. Nesses casos, substâncias anticolinesterá- O tratamento geral baseia-se numa ade-
Consideradas animais de pequeno a médio sicas não antagonizam esse mecanismo8,9,11. quada assistência ventilatória, boa hidra-
porte são conhecidas por coral, coral verda- Quadro clínico tação, analgesia, cuidados locais e antibio-
deira, ibiboboca ou boicorá. Estas serpentes O quadro clínico caracteriza-se por sin- ticoterapia, se necessário. Os anticolinér-
são bem menos agressivas, tem habitat sub- tomas que surgem precocemente, em me- gicos (neostigmina), por atuarem como an-
terrâneo, apresentam presa inoculadora pe- nos de uma hora após a picada. Há discreta tagonistas da ação pós-sináptica, podem ser
quena e não tem a mesma possibilidade de dor local, geralmente acompanhada de benéficos a pacientes picados por espécies
abertura da boca que as outras serpentes. parestesia com tendência a progressão pro- que possuem neurotoxinas pós-sinápticas
Raramente causam acidentes, e quando o ximal. As manifestações sistêmicas incluem no veneno. Cada administração de neos-
fazem, geralmente picam os dedos da vômitos, fraqueza muscular progressiva, tigmina deve ser precedida de uma injeção

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endovenosa de 0,6mg de sulfato de atro-


pina para se obter o aumento da freqüência Quadro 4 – Acidente elapídico: tratamento específico indicado
cardíaca e evitar a hipersecreção 8,9. Orientação para o tratamento Soroterapia Via de administração
Acidentes raros.
PROGNÓSTICO E PREVENÇÃO Pelo risco de 10 ampolas de SAE* Endovenosa
insuficiência respiratória
A literatura científica faz referência a aguda, devem ser
vários fatores que interferem na gravidade considerados graves
dos acidentes ofídicos e que estão relacio- *SAE = Soro antielapídico
nados à serpente, ao paciente e à assistência
médica prestada.
O prognóstico pgeralmente é bom nos doenças ocupacionais com adequada vigi- 12. Burdmann EA et al. IRA nefrotóxica: Animais
peçonhentos. In: Schor N, Boim MA, Santos
acidentes classificados como leves e mode- lância poderia representar um avanço em OFP. (ed). Insuficiência renal aguda: fisiopa-
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Artigo recebido: 02/09/1999
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