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APRESENTAÇÃO
O livro que se segue está dividido em uma introdução e duas partes. Trata-
se de um esforço para compreender o fenômeno da judicialização da vida no Brasil e da fronteira
tênue e móvel que hoje separa o direito da política entre nós. Não têm sido tempos fáceis nem
banais por aqui.
Na Parte I, são três os capítulos que pretendem trazer uma reflexão teórica
e crítica sobre o fenômeno da judicialização. O primeiro deles, intitulado Constituição,
Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo, traz um esforço
de compreensão da ascensão do Poder Judiciário no Brasil e no mundo, explora as dificuldades
na demarcação da fronteira entre direito e política e faz uma investigação acerca dos fatores que
influenciam uma decisão judicial, além do material jurídico. Quanto a este último ponto, ao
analisar as relações entre justiça e opinião pública, registrei:
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tornam, em ampla medida, co-participantes do processo de criação do direito. Este é um fato
inexorável da realidade contemporânea, para desalento de muitos. Mas de nada adianta quebrar o
espelho por não gostar da imagem. Porém, juízes e tribunais têm sua criatividade limitada pelas
possibilidades semânticas da Constituição e das leis, bem como pelo uso apropriado das
categorias jurídicas:
“O juiz não faz escolhas livres nem suas decisões são estritamente
políticas. Esta é uma das distinções mais cruciais entre o positivismo e o
não-positivismo. Pela concepção não-positivista aqui sustentada, (...) o
direito é informado por uma pretensão de correção moral, pela busca de
justiça, da solução constitucionalmente adequada. Essa ideia de justiça, em
sentido amplo, é delimitada por coordenadas específicas, que incluem a
justiça do caso concreto, a segurança jurídica e a dignidade humana. Vale
dizer: juízes não fazem escolhas livres, pois são pautados por esses valores,
todos eles com lastro constitucional. (...) O juiz constitucional não está
autorizado a impor as suas próprias convicções. Pautado pelo material
jurídico relevante (normas, conceitos, precedentes), pelos princípios
constitucionais e pelos valores civilizatórios, cabe-lhe interpretar o
sentimento social, o espírito de seu tempo e o sentido da história. Com a
dose certa de prudência e de ousadia”.
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imposição do processo civilizatório. Isso não quer dizer que suas decisões sejam sempre
acertadas e revestidas de uma legitimação a priori, como procuro advertir:
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(v) indulto de José Dirceu, decisão na qual procuro discutir
abertamente o modo como o direito brasileiro trata a execução
penal, e a percepção social de leniência do modelo vigente.
1Luís Roberto Barroso, Efetividade das normas constitucionais: por que não uma Constituição para
valer? V. Anais do Congresso, publicado em volume intitulado XIII Congresso Nacional de Procuradores
do Estado. Teses. Brasília, 1987. E minha tese de livre docência depositada em 1988, publicada
comercialmente como O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1990.
2A expressão que veio a identificar tal movimento doutrinário foi utilizada por Cláudio Pereira de Souza
Neto, Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do
princípio democrático. In: Luís Roberto Barroso (org.), A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas, 2003.
3O constitucionalismo da efetividade beneficiou-se de trabalhos anteriores, de autores como J.H.
Meirelles Teixeira, José Afonso da Silva e Celso Antonio Bandeira de Mello. Merece registro, no
desenvolvimento do tema, Clemerson Merlin Cleve, que reuniu diversos dos seus textos nessa matéria
no livro Para uma dogmática constitucional emancipatória, 2012. E, também, a contribuição trazida, um
pouco mais à frente, por Ingo Wolfgang Sarlet, com o livro Eficácia dos direitos fundamentais, cuja 1a
edição é de 1998.
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Nos anos 90, a agenda acadêmica se deslocou para o tema da interpretação
constitucional4. Conquistada a efetividade da Constituição, reconhecida a sua força normativa e o
papel decisivo do Judiciário na sua concretização, tornou-se indispensável incorporar à prática
jurisprudencial brasileira uma discussão mais sofisticada sobre os princípios e métodos de
interpretação constitucional praticados no mundo. Já não bastavam os elementos tradicionais de
hermenêutica jurídica – literal, histórico, sistemático e teleológico – para dar conta da
concretização da Constituição em um mundo que se tornara complexo e no qual não era possível
pré-formular soluções para todos o problemas da vida em textos normativos prontos e acabados.
Nem tudo poderia ser resolvido com produtos encontráveis em uma prateleira de enlatados
jurídicos. Juízes começaram a ter reconhecido o seu papel criativo. Foi o momento da ascensão
dos princípios entre nós, ao lado das regras.
4O tema da minha tese de titularidade, escrita em 1994 e defendida em 1995, era Interpretação e
aplicação da Constituição.
5Sobre o tema, v. meu artigo Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo
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ser ousadas, outras vezes prudentes. Em certos casos devem ser proativas, em outros autocontidas.
Muitos fatores são determinantes para a dosagem adequada dessas atitudes, e sequer há uma regra
universal e permanente. Mais que outros, este é um caminho que se faz ao andar. Os países vivem
diferentes momentos históricos e estão sujeitos a variadas exigências sociais. Muitas vezes, o que
foi bom para a Alemanha, não funcionará no Chile. O que produziu bons resultados nos Estados
Unidos não dará certo na Polônia. Cada país traça a sua própria trajetória. A vida não é um
destino que se cumpre, mas um caminho que se escolhe.
6Um desses debates foi organizado pelo Professor Oscar Vilhena Vieira, na Escola de Direito GV São
Paulo, com duas dezenas de juristas de primeira linha, realizado em agosto de 2015. Os três blocos de
críticas respondidas a seguir foram tabuladas naquele evento.
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1. a de que eu forneço uma legitimação móvel e apriorística para qualquer
atuação do Tribunal;
2. o risco democrático de o STF se arvorar em representante da
sociedade; e
3. a impossibilidade de prestação de uma jurisdição constitucional de
qualidade, à vista do volume de processos apreciados pelo Tribunal.
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A segunda crítica é referente ao risco democrático. Não deixa de ser
curioso que a teoria constitucional tenha superado suas angústias em relação à dificuldade
contramajoritária das cortes constitucionais, mas que veja maiores problemas em uma atuação
representativa. Aqui cabem duas observações importantes. A primeira é que o Tribunal não pode
se investir de uma pretensão de representação metafísica da sociedade, qual um Oráculo de
Delfos fora de época, com as respostas certas para todas as aflições. É necessário que estejam
presentes condições concretas e socialmente controláveis de demanda social não atendida pelo
processo político majoritário para justificar uma intervenção. A segunda é que este papel
representativo – a representação argumentativa da sociedade, na terminologia de Robert Alexy –
é eventual e necessariamente subsidiário. Por evidente, o órgão de representação popular por
excelência é o Legislativo. Portanto, aprimorar o sistema representativo é a prioridade número
um. Somente nas suas falhas mais graves é que se justifica a representação supletiva pelo
Supremo. Não há troca de papéis. E mais: juízes constitucionais não são os reis filósofos da
República de Platão, portadores da virtude e da verdade. Seu único poder é o do convencimento
racional e moral. Se falharem nesse propósito, nada os salvará.
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Na vida real, o que acontece é que os ministros e o presidente fazem, de
modo individual e improvisado, o que no resto do mundo é feito de maneira institucional. Cada
ministro, com seu gabinete, seleciona o que vai levar a Plenário, cabendo ao presidente fazer a
pauta. De modo que julgamentos efetivos em Plenário são cerca 100 ou 200 processos por ano
(julgamentos em lista não contam), o que não destoa quantitativamente de outros países. Mas, de
fato, o volume de processos e a pouca antecedência da pauta compromete a qualidade da atuação
do Tribunal e motivam os controvertidos pedidos de vista, apelidados, em alguns casos com justa
razão, de “perdidos de vista”. De modo que os que professam essa crítica podem se juntar a mim
no esforço de transformar o Tribunal, reduzindo a voracidade terceiro-mundista de tudo julgar, na
crença equivocada de que competência é poder, mesmo que mal exercida.
7De longa data sou defensor do sistema eleitoral denominado de distrital misto, em que o eleitor exerce
dois votos: um no seu distrito e outro no partido de sua preferência.
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iguais, e possam participar como parceiros em um projeto de autogoverno coletivo. Tivemos
muitos avanços nessa área: liberdade de expressão, de associação e de reunião assinalam a
paisagem institucional brasileira. Ao lado delas, foram agregadas conquistas importantes em
temas de direitos sociais, como educação e saúde, e avanços nas liberdades existenciais, com o
reforço na proteção dos direitos de mulheres, negros e homossexuais. O protagonista dessa
dimensão da democracia é o Judiciário e, particularmente, o Supremo Tribunal Federal.
V. CONCLUSÃO
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O Judiciário não pode presumir demais de si mesmo. Na frase feliz de Gilberto Amado: “Querer
ser mais do que se é, é ser menos”. É preciso buscar, permanentemente, o equilíbrio adequado
entre supremacia constitucional, interpretação judicial da Constituição e processo político
majoritário. A vida institucional, assim como a vida social e a vida individual, é a busca
permanente de equilíbrio. Viver é fazer a travessia contínua de uma corda bamba. Ora se inclina
um pouco para um lado, ora para o outro, e segue-se em frente. Por vezes o público poderá ter a
ilusão de que o equilibrista está voando. Não há problema nisso. A vida é feita de certas ilusões.
Mas o equilibrista tem que saber que não está voando. Porque se ele acreditar nisso, se ele
presumir ser mais do que pode ser, não haverá salvação. Ele vai cair. A jurisdição constitucional
exercida pelo Supremo Tribunal Federal deve ser prestada do mesmo modo que a vida deve ser
vivida: com valores, com determinação, com a leveza possível e com humildade.
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