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A JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA E O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

APRESENTAÇÃO

I. O LIVRO E SUAS IDEIAS CENTRAIS

O livro que se segue está dividido em uma introdução e duas partes. Trata-
se de um esforço para compreender o fenômeno da judicialização da vida no Brasil e da fronteira
tênue e móvel que hoje separa o direito da política entre nós. Não têm sido tempos fáceis nem
banais por aqui.

Na Introdução, procuro apresentar uma fotografia do momento atual


brasileiro, em que a judicialização que já vem de algum tempo se embaralha com o combate à
corrupção, intensificado mais recentemente. Esta combinação terminou por jogar o Judiciário no
universo das paixões desordenadas que movem a política. A corrupção no Brasil não foi produto
de falhas individuais, pequenas fraquezas humanas. Foi um fenômeno sistêmico, generalizado,
envolvendo empresas estatais, empresas privadas, agentes públicos e privados, partidos políticos,
membros do Executivo, do Legislativo e até integrantes dos órgãos de fiscalização. É impossível
não sentir vergonha pelo que aconteceu por aqui. E as reações às mudanças indispensáveis vêm
de toda parte, como assinalei no texto:

“Como seria de se esperar, o enfrentamento à corrupção tem


encontrado resistências diversas, ostensivas ou dissimuladas. Há os que
não querem ser responsabilizados por delitos cometidos e há os que não
querem ficar honestos nem daqui para frente. Triste como seja, os dois
grupos têm aliados em toda parte: em postos chaves da República, na
imprensa, nos Poderes e mesmo onde menos seria de se esperar. Têm a seu
favor, também, a cultura da desigualdade, privilégio e compadrio que
sempre predominou no Brasil. O Judiciário tem procurado, ele próprio, sair
desse círculo vicioso e romper o pacto oligárquico que uniu grande número
de empresários, políticos e burocratas no saque ao país. Mas parte da elite
brasileira ainda milita no tropicalismo equívoco de que corrupção ruim é a
dos outros, a dos adversários. E que a dos amigos, a dos companheiros de
mesa e de salões, esta seria tolerável”.

Na Parte I, são três os capítulos que pretendem trazer uma reflexão teórica
e crítica sobre o fenômeno da judicialização. O primeiro deles, intitulado Constituição,
Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo, traz um esforço
de compreensão da ascensão do Poder Judiciário no Brasil e no mundo, explora as dificuldades
na demarcação da fronteira entre direito e política e faz uma investigação acerca dos fatores que
influenciam uma decisão judicial, além do material jurídico. Quanto a este último ponto, ao
analisar as relações entre justiça e opinião pública, registrei:

“No constitucionalismo democrático, o exercício do poder envolve


a interação entre as cortes judiciais e o sentimento social, manifestado por
via da opinião pública ou das instâncias representativas. A participação e o
engajamento popular influenciam e legitimam as decisões judiciais, e é
bom que seja assim. Dentro de limites, naturalmente. O mérito de uma
decisão judicial não deve ser aferido em pesquisa de opinião pública. Mas
isso não diminui a importância de o Judiciário, no conjunto de sua atuação,
ser compreendido, respeitado e acatado pela população. A opinião pública
é um fator extrajurídico relevante no processo de tomada de decisões por
juízes e tribunais. Mas não é o único e, mais que isso, nem sempre é
singela a tarefa de captá-la com fidelidade”.

O segundo capítulo – A Razão sem Voto: O Supremo Tribunal Federal e o


Governo da Maioria – discute a evolução da teoria constitucional no Brasil, do
constitucionalismo chapa branca do regime militar ao neoconstitucionalismo, que colocou o
Judiciário no centro do cenário político e transformou a proteção dos direitos fundamentais e da
democracia na sua grande missão. Na medida em que as sociedades vão se tornando mais
complexas, a Constituição e as leis vão perdendo sua capacidade de regular previamente as
múltiplas situações da vida, aumentando, assim, a discricionariedade de juízes e tribunais, que se

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tornam, em ampla medida, co-participantes do processo de criação do direito. Este é um fato
inexorável da realidade contemporânea, para desalento de muitos. Mas de nada adianta quebrar o
espelho por não gostar da imagem. Porém, juízes e tribunais têm sua criatividade limitada pelas
possibilidades semânticas da Constituição e das leis, bem como pelo uso apropriado das
categorias jurídicas:

“O juiz não faz escolhas livres nem suas decisões são estritamente
políticas. Esta é uma das distinções mais cruciais entre o positivismo e o
não-positivismo. Pela concepção não-positivista aqui sustentada, (...) o
direito é informado por uma pretensão de correção moral, pela busca de
justiça, da solução constitucionalmente adequada. Essa ideia de justiça, em
sentido amplo, é delimitada por coordenadas específicas, que incluem a
justiça do caso concreto, a segurança jurídica e a dignidade humana. Vale
dizer: juízes não fazem escolhas livres, pois são pautados por esses valores,
todos eles com lastro constitucional. (...) O juiz constitucional não está
autorizado a impor as suas próprias convicções. Pautado pelo material
jurídico relevante (normas, conceitos, precedentes), pelos princípios
constitucionais e pelos valores civilizatórios, cabe-lhe interpretar o
sentimento social, o espírito de seu tempo e o sentido da história. Com a
dose certa de prudência e de ousadia”.

O terceiro capítulo chama-se Contramajoritário, Representativo e


Iluminista: Os Papeis das Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais nas Democracias
Contemporâneas. Embora apresente diversos exemplos da experiência constitucional americana,
o texto procura analisar o fenômeno dentro da perspectiva de um constitucionalismo global,
trabalhando categorias que se tornaram correntes nas principais democracias do mundo. Como
observo na narrativa apresentada, supremas cortes desempenham três papeis diversos:
contramajoritário, quando invalidam atos dos outros Poderes; representativo, quando atendem
demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas; e iluminista, quando promovem
determinados avanços sociais que ainda não conquistaram adesão majoritária, mas são uma

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imposição do processo civilizatório. Isso não quer dizer que suas decisões sejam sempre
acertadas e revestidas de uma legitimação a priori, como procuro advertir:

“Cada um desses papeis pode padecer do vício da desmedida ou do


excesso: o papel contramajoritário pode degenerar em excesso de
intervenção no espaço da política, dando lugar a uma indesejável ditadura
do Judiciário; o papel representativo pode desandar em populismo judicial,
que é tão ruim quanto qualquer outro; e a função iluminista tem como
antípoda o desempenho eventual de um papel obscurantista, em que a
suprema corte ou tribunal constitucional, em lugar de empurrar, atrasa a
história”.

Na Parte II do livro, reúno cinco votos em questões emblemáticas


apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal. A teoria aplicada na prática. São eles os relativos a:

(i) foro privilegiado, figura constitucional que se tornou símbolo de


ineficiência e impunidade, e que traz desgaste e desprestígio ao
STF;
(ii) aborto, em que procuro enfrentar o tabu da interrupção voluntária
da gestação, que não é tratada como crime em nenhuma democracia
relevante do mundo;
(iii) execução penal após condenação em segundo grau, fórmula
necessária para superar a procrastinação indefinida, impunidade ou
punição excessivamente tardia que caracterizam o processo penal
brasileiro, sobretudo em relação à criminalidade do colarinho
branco;
(iv) descriminalização da maconha, em que a legalização regulada e
monitorada é cogitada como uma alternativa à guerra às drogas que
fracassou dramaticamente; e

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(v) indulto de José Dirceu, decisão na qual procuro discutir
abertamente o modo como o direito brasileiro trata a execução
penal, e a percepção social de leniência do modelo vigente.

2. UM POUCO DE PERSPECTIVA HISTÓRICA

A construção democrática do direito constitucional e das instituições


políticas e jurídicas brasileiras remontam ao início da década de 80 do século passado. O
primeiro desafio da nossa geração, naquele final de regime militar, era construir uma ordem
institucional efetiva, com uma Constituição que fosse para valer. Este foi o tema do meu primeiro
trabalho acadêmico relevante, no qual defendia que a própria Constituição de 1967-69 possuía
dispositivos libertários e progressistas, e que era papel dos advogados e dos operadores jurídicos
em geral cobrarem uma postura mais proativa do Poder Judiciário na concretização da
Constituição e dos direitos fundamentais nele previstos 1 . Ali tinha início o movimento
doutrinário que veio a ser conhecido como doutrina brasileira da efetividade2. Mais do que uma
escola teórica, o constitucionalismo da efetividade representou uma mudança de mentalidade dos
operadores jurídicos em geral em relação ao papel da Constituição. Éramos poucos no começo3.
Mas a verdade é que, em menos de uma geração, o direito constitucional se libertou do papel
subalterno de legitimar uma ditadura e o Supremo Tribunal se transformou em um efetivo
guardião da Constituição.

1Luís Roberto Barroso, Efetividade das normas constitucionais: por que não uma Constituição para
valer? V. Anais do Congresso, publicado em volume intitulado XIII Congresso Nacional de Procuradores
do Estado. Teses. Brasília, 1987. E minha tese de livre docência depositada em 1988, publicada
comercialmente como O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1990.
2A expressão que veio a identificar tal movimento doutrinário foi utilizada por Cláudio Pereira de Souza
Neto, Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do
princípio democrático. In: Luís Roberto Barroso (org.), A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas, 2003.
3O constitucionalismo da efetividade beneficiou-se de trabalhos anteriores, de autores como J.H.
Meirelles Teixeira, José Afonso da Silva e Celso Antonio Bandeira de Mello. Merece registro, no
desenvolvimento do tema, Clemerson Merlin Cleve, que reuniu diversos dos seus textos nessa matéria
no livro Para uma dogmática constitucional emancipatória, 2012. E, também, a contribuição trazida, um
pouco mais à frente, por Ingo Wolfgang Sarlet, com o livro Eficácia dos direitos fundamentais, cuja 1a
edição é de 1998.

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Nos anos 90, a agenda acadêmica se deslocou para o tema da interpretação
constitucional4. Conquistada a efetividade da Constituição, reconhecida a sua força normativa e o
papel decisivo do Judiciário na sua concretização, tornou-se indispensável incorporar à prática
jurisprudencial brasileira uma discussão mais sofisticada sobre os princípios e métodos de
interpretação constitucional praticados no mundo. Já não bastavam os elementos tradicionais de
hermenêutica jurídica – literal, histórico, sistemático e teleológico – para dar conta da
concretização da Constituição em um mundo que se tornara complexo e no qual não era possível
pré-formular soluções para todos o problemas da vida em textos normativos prontos e acabados.
Nem tudo poderia ser resolvido com produtos encontráveis em uma prateleira de enlatados
jurídicos. Juízes começaram a ter reconhecido o seu papel criativo. Foi o momento da ascensão
dos princípios entre nós, ao lado das regras.

Nos anos 2000, este conjunto de transformações, oriundos de causas e


circunstâncias diferentes, se agruparam sob a designação genérica de neoconstitucionalismo,
novo direito constitucional, constitucionalismo de direitos ou nova ordem constitucional 5 . O
rótulo não é importante. Mas, no Brasil e em diversas partes do mundo, o direito constitucional
passou a se identificar com constituições mais analíticas, catálogos densos de direitos
fundamentais, tribunais dispostos a assegurá-los e métodos interpretativos menos formalistas e
mecânicos. Foram imposições dos novos tempos e de novas realidades. A Constituição,
progressivamente, passou para o centro do sistema jurídico, de onde foi deslocado o bom e velho
Código Civil, depois efetivamente substituído por um novo. A centralidade da Constituição
trouxe a constitucionalização do direito – isto é, a leitura de todo o ordenamento
infraconstitucional através da lente da Constituição – e uma judicialização abrangente.

Assim, nos anos 2010, o tema dominante tem sido a judicialização e os


limites e possibilidades de atuação legítima dos tribunais. Este livro se insere neste ambiente.
Cortes constitucionais alternam os comportamentos que devem desempenhar: por vezes precisam

4O tema da minha tese de titularidade, escrita em 1994 e defendida em 1995, era Interpretação e
aplicação da Constituição.
5Sobre o tema, v. meu artigo Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo

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ser ousadas, outras vezes prudentes. Em certos casos devem ser proativas, em outros autocontidas.
Muitos fatores são determinantes para a dosagem adequada dessas atitudes, e sequer há uma regra
universal e permanente. Mais que outros, este é um caminho que se faz ao andar. Os países vivem
diferentes momentos históricos e estão sujeitos a variadas exigências sociais. Muitas vezes, o que
foi bom para a Alemanha, não funcionará no Chile. O que produziu bons resultados nos Estados
Unidos não dará certo na Polônia. Cada país traça a sua própria trajetória. A vida não é um
destino que se cumpre, mas um caminho que se escolhe.

Tendo sido um defensor ardoroso da efetividade plena da Constituição e da


ampliação do papel do Judiciário na sua concretização, tenho me dedicado nos últimos anos a
procurar demarcar os espaços próprios da judicialização, bem como a controlar o ativismo
judicial, para que não degenere em voluntarismos e, em última análise, em arbítrio. No geral,
devo dizer, avanços importantes na democracia brasileira foram conseguidos por intermédio do
Poder Judiciário, da vedação ao nepotismo ao casamento de pessoas do mesmo sexo, passando
pelo combate à corrupção e à proteção das regras democráticas. Mas, inegavelmente, há
intervenções problemáticas, de que é exemplo a judicialização da saúde. Muitas das ideias que
defendo neste livro, embora contem com largo apoio na academia, também sofreram críticas de
autores respeitáveis. No tópico seguinte, enfrento algumas dessas críticas.

3. RESPOSTA A ALGUMAS CRÍTICAS

Em debates públicos com colegas de academia em diferentes lugares, tive


oportunidade de ouvir preocupações, objeções e críticas à minha visão sobre o papel do Judiciário
e do Supremo Tribunal Federal no Brasil contemporâneo6. Muitas delas foram absorvidas e se
refletiram no modo como hoje penso a jurisdição constitucional. Outras, conquanto bem
embasadas, não foram acolhidas, mas merecem ser enfrentadas com seriedade e rigor científico.
Destaquei três delas para rebater brevemente:

6Um desses debates foi organizado pelo Professor Oscar Vilhena Vieira, na Escola de Direito GV São
Paulo, com duas dezenas de juristas de primeira linha, realizado em agosto de 2015. Os três blocos de
críticas respondidas a seguir foram tabuladas naquele evento.

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1. a de que eu forneço uma legitimação móvel e apriorística para qualquer
atuação do Tribunal;
2. o risco democrático de o STF se arvorar em representante da
sociedade; e
3. a impossibilidade de prestação de uma jurisdição constitucional de
qualidade, à vista do volume de processos apreciados pelo Tribunal.

A primeira crítica é a de que meus argumentos transformariam o STF em


um alvo móvel, que nunca pode ser atingido pela crítica democrática, já que lhe conferi uma
legitimidade apriorística. Nessa linha, segue o argumento, se o Tribunal age
contramajoritariamente – i.e., contra o Congresso –, ele está legitimado pela defesa, por exemplo,
dos direitos fundamentais. Por outro lado, se ele age no vácuo do Congresso, mas com apoio da
sociedade, está legitimado por sua função representativa. Por fim, se ele age contra o Congresso e
a opinião pública, mas em nome de um avanço civilizatório, está legitimado por seu papel
iluminista. Em suma, não erraria nunca. O argumento é engenhoso, mas a defesa da minha
posição é simples. Esses papéis – contramajoritário, representativo e iluminista – não são
fungíveis. Se o Tribunal desempenhar um deles, quando deveria desempenhar o outro, sua
atuação será ilegítima.

Assim, se o Tribunal for contramajoritário quando deveria ter sido


deferente, sua linha de conduta não será defensável. Se ele se arvorar em ser representativo
quando não haja omissão do Congresso em atender determinada demanda social, sua ingerência
será imprópria. Ou se tiver a pretensão de ser iluminista fora das situações excepcionais em que
deva, por exceção, se imbuir do papel de agente da história, não haverá como validar seu
comportamento. Para que não haja dúvida: sem armas nem a chave do cofre, legitimado apenas
por sua autoridade moral, se embaralhar seus papéis ou se os exercer atrabiliariamente, o
Tribunal viverá o seu ocaso político. Quem quiser se debruçar sobre um case de prestígio mal
exercido, de capital político malbaratado, basta olhar o que se passou com as Forças Armadas no
Brasil de 1964 a 1985. E quantos anos no sereno e com comportamento exemplar têm sido
necessários para a recuperação da própria imagem.

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A segunda crítica é referente ao risco democrático. Não deixa de ser
curioso que a teoria constitucional tenha superado suas angústias em relação à dificuldade
contramajoritária das cortes constitucionais, mas que veja maiores problemas em uma atuação
representativa. Aqui cabem duas observações importantes. A primeira é que o Tribunal não pode
se investir de uma pretensão de representação metafísica da sociedade, qual um Oráculo de
Delfos fora de época, com as respostas certas para todas as aflições. É necessário que estejam
presentes condições concretas e socialmente controláveis de demanda social não atendida pelo
processo político majoritário para justificar uma intervenção. A segunda é que este papel
representativo – a representação argumentativa da sociedade, na terminologia de Robert Alexy –
é eventual e necessariamente subsidiário. Por evidente, o órgão de representação popular por
excelência é o Legislativo. Portanto, aprimorar o sistema representativo é a prioridade número
um. Somente nas suas falhas mais graves é que se justifica a representação supletiva pelo
Supremo. Não há troca de papéis. E mais: juízes constitucionais não são os reis filósofos da
República de Platão, portadores da virtude e da verdade. Seu único poder é o do convencimento
racional e moral. Se falharem nesse propósito, nada os salvará.

A terceira crítica diz respeito à impossibilidade de prestação de uma


jurisdição de qualidade, à vista do volume de processos. Esta talvez seja a crítica mais difícil de
responder. Até porque, desde que ingressei no Tribunal, venho insistindo, em conversas internas
e em manifestações públicas, na necessidade de se fazerem mudanças profundas, revolucionárias,
no modo como o Supremo Tribunal Federal atua. A mais radical é a de que o STF não pode
admitir mais recursos extraordinários com repercussão geral do que possa julgar em um ano.
Tudo o mais, que não tenha sido selecionado, transita em julgado. Também tenho proposto que a
seleção dos recursos com repercussão geral seja feita por semestre, por um critério comparativo.
Feita a escolha, designa-se a data de julgamento daquele processo. Também é procedente a crítica
de que o volume astronômico transforma o processo decisório do Tribunal, em mais de 90% dos
casos, em uma Corte de decisões monocráticas. Por isso mesmo, no primeiro semestre de 2017,
encaminhei à Presidência do Tribunal proposta de emenda regimental que permita que o relator
proponha, em Plenário Virtual, com decisão sumariamente motivada, a negativa de repercussão
geral, com efeitos limitados ao caso concreto.

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Na vida real, o que acontece é que os ministros e o presidente fazem, de
modo individual e improvisado, o que no resto do mundo é feito de maneira institucional. Cada
ministro, com seu gabinete, seleciona o que vai levar a Plenário, cabendo ao presidente fazer a
pauta. De modo que julgamentos efetivos em Plenário são cerca 100 ou 200 processos por ano
(julgamentos em lista não contam), o que não destoa quantitativamente de outros países. Mas, de
fato, o volume de processos e a pouca antecedência da pauta compromete a qualidade da atuação
do Tribunal e motivam os controvertidos pedidos de vista, apelidados, em alguns casos com justa
razão, de “perdidos de vista”. De modo que os que professam essa crítica podem se juntar a mim
no esforço de transformar o Tribunal, reduzindo a voracidade terceiro-mundista de tudo julgar, na
crença equivocada de que competência é poder, mesmo que mal exercida.

IV. AS TRÊS DIMENSÕES DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Minha concepção da jurisdição constitucional – e, portanto, da atuação das


supremas cortes e tribunais constitucionais – é coerente com a minha visão de democracia, que se
apresente em três dimensões: representativa, constitucional e deliberativa. Na sua dimensão de
democracia representativa, o elemento essencial é o voto e os protagonistas são o Congresso
Nacional e o Presidente da República. Há problemas diversos na dimensão representativa da
democracia brasileira, sobretudo no tocante à eleição para a Câmara dos Deputados. Nela, um
sistema eleitoral proporcional e de lista aberta cria um modelo em que mais de 90% dos
deputados não são eleitos com votação própria, mas mediante transferência de voto partidário.
Nessa fórmula, o eleitor não sabe exatamente quem elegeu e o parlamentar não sabe exatamente
por quem foi eleito. Como consequência, eleitores não têm de quem cobrar e os eleitos não
sabem a quem prestar contas. Não há legitimidade democrática que possa ser adequadamente
satisfeita por uma equação como essa7.

A segunda dimensão é a da democracia constitucional. Para além


do componente puramente representativo/majoritário, a democracia é feita também, e sobretudo,
do respeito aos direitos fundamentais. São eles pré-condições para que as pessoas sejam livres e

7De longa data sou defensor do sistema eleitoral denominado de distrital misto, em que o eleitor exerce
dois votos: um no seu distrito e outro no partido de sua preferência.

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iguais, e possam participar como parceiros em um projeto de autogoverno coletivo. Tivemos
muitos avanços nessa área: liberdade de expressão, de associação e de reunião assinalam a
paisagem institucional brasileira. Ao lado delas, foram agregadas conquistas importantes em
temas de direitos sociais, como educação e saúde, e avanços nas liberdades existenciais, com o
reforço na proteção dos direitos de mulheres, negros e homossexuais. O protagonista dessa
dimensão da democracia é o Judiciário e, particularmente, o Supremo Tribunal Federal.

A terceira dimensão da democracia contemporânea identifica a democracia


deliberativa, cujo componente essencial é a apresentação de razões, tendo por protagonista a
sociedade civil. A democracia já não se limita ao momento do voto periódico, mas é feita de um
debate público contínuo que deve acompanhar as decisões políticas. Participam desse debate
todas as instâncias da sociedade, o que inclui o movimento social, imprensa, universidades,
sindicatos, associações, cidadãos comuns, autoridades etc. A democracia deliberativa significa a
troca de argumentos, o oferecimento de razões e a justificação das decisões que afetem a
coletividade. A motivação, a argumentação e o oferecimento de razões suficientes e adequadas
constituem, também, matéria prima da atuação judicial e fonte de legitimação de suas decisões.

V. CONCLUSÃO

Está feita, assim, a apresentação do livro. Cabe enfatizar, ao concluir, que


o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa da nossa geração. Nele se condensam
as grandes promessas da modernidade: soberania popular, poder limitado, dignidade da pessoa
humana, proteção dos direitos fundamentais e – quem sabe? – até felicidade. Trata-se de uma fé
racional, que ajuda a acreditar no bem e na justiça, mesmo quando não estejam ao alcance da
vista. O Estado democrático de direito significa o ponto de equilíbrio entre o governo da maioria,
o respeito às regras do jogo democrático e a promoção dos direitos fundamentais. Naturalmente,
se em uma sala houver seis cristãos e três muçulmanos, os cristãos não podem deliberar jogar os
muçulmanos pela janela. A maioria pode muito, mas não pode tudo.

A judicialização das relações políticas e sociais – que é inevitável em


algum grau – não pode, no entanto, suprimir o espaço da política, eliminar o governo da maioria.

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O Judiciário não pode presumir demais de si mesmo. Na frase feliz de Gilberto Amado: “Querer
ser mais do que se é, é ser menos”. É preciso buscar, permanentemente, o equilíbrio adequado
entre supremacia constitucional, interpretação judicial da Constituição e processo político
majoritário. A vida institucional, assim como a vida social e a vida individual, é a busca
permanente de equilíbrio. Viver é fazer a travessia contínua de uma corda bamba. Ora se inclina
um pouco para um lado, ora para o outro, e segue-se em frente. Por vezes o público poderá ter a
ilusão de que o equilibrista está voando. Não há problema nisso. A vida é feita de certas ilusões.
Mas o equilibrista tem que saber que não está voando. Porque se ele acreditar nisso, se ele
presumir ser mais do que pode ser, não haverá salvação. Ele vai cair. A jurisdição constitucional
exercida pelo Supremo Tribunal Federal deve ser prestada do mesmo modo que a vida deve ser
vivida: com valores, com determinação, com a leveza possível e com humildade.

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