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Análise Psicológica (1989), 1-2-3 (VII): 287-304

Quando Chegar a Primavera (*)

MASUD KHAN

Nada havia de invulgar na minha visita a que mais aprendia com DWW. Ele falava
D. W. Winnicott nesta manhã de domingo, livremente e sobre vários assuntos, dificil-
pelas 10 horas, em Novembro de 1969. Após mente se cingindo por muito tempo ao texto
o meu passeio a cavalo dirigia-me directa- escrito. Frequentemente caía num silêncio
mente para casa de DWW todas as manhãs sonolento, quase ressonando. Estes momen-
de domingo, desde há dois anos, ali perma- tos permitiam-me ler o texto escrito ou
necendo duas horas ou mais, conforme repensar no que me tinha dito. Em breve se
aquilo que de mim queria. Nunca fiquei recompunha e começava outra vez a falar.
para almoçar. A saúde e o vigor físico de O mais engraçado é que, por vezes ao emer-
DWW tinham enfraquecido muito nestes gir para o estado consciente, DWW cen-
anos. Era seu desejo que eu o ajudasse a que surava-me carinhosamente: «Sabe, Khan,
o seu livro «Playing and Reality)) ficasse [tratava-me sempre pelo apelido] quase
escrito e pronto a ser publicado. Era para sonhei. Mas não consegui porque a sua
mim um prazer ajudar DWW. Ele entregar- presença aqui se interpôs no caminho do
-me-ia textos batidos a máquina ou histórias sonho)). Eu ouvia DWW com um estado de
clínicas e trabalhariamos este material até espírito indulgente, provocava-o e pros-
que ficasse com a dimensão e a forma pró- seguiamos com o trabalho. DWW traba-
prias para publicação. Era nestes encontros lhava sobre os seus textos como uma criança

(*) Quando convidei Masud Khan a juntar-se a nós neste ciclo de conferências em comemoração dos 25 anos
de vida activa do ISPA, a resposta foi imediatamente positiva.
Enviou-me duas propostas, e sugeri-lhe que falasse do «Caso Veroniquen. Infelizmente, o seu estado de saúde
agravou-se, e ele não pôde estar presente, tendo a sua conferência sido lida na sua ausência.
Esta conferência, que foi apresentada pela primeira vez no ISPA, veio a ser publicada um ano depois no último
livro de Khan, <( When Spring Comes», cujo subtítulo é paradigmático: dwakenings in clinical Psychoanaly-
sis», (M. Khan: «When Springs Comes - Awakenings in Clínica1 Psychoanalysisn).
A publicação de «Quando chegar a Primavera» honra-nos e dá-nos prazer. Mas para além da honra e do
prazer, gostariamos que Khan visse nesta publicação em língua portuguesa uma pequeníssima homenagem e
a expressão de uma profunda solidariedade e respeito em relação aos contributos fundamentais para a Clínica
e para a Teoria Psicanaiítica, não na perspectiva de ensinar, mas naquela muito mais difícil, e radicalmente autên-
tica, de partilhar. Aliás, não será verdade que só na perspectiva da partilha de espaços, cenas, posturas, pensa-
mentos, objectos tem a publicação dos últimos trabalhos de Khan sentido?... (E P.)

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como uma criança ebuliente, instável, de balhando em grande proximidade, mantendo
nove anos. Frequentemente dizia em ar de ao mesmo tempo, as nossas distâncias.
desafio: «n i d o me aconteceu quando eu Nunca fiz parte da sua vida familiar ou
tinha nove anos. Nunca envelheci em espí- social, nem ele da minha.
rito ou estilo desde aí». Aquilo que todos DWW sentou-se, voltou-se e «encaixou«
nós, os que trabalhámos intimamente com a face entre as mãos, como era seu estilo e
DWW nos Últimos anos da sua vida, mais começou com: «Sabe, Khan, vi esta jovem,
nele apreciávamos era a sua irrepreensível Veronique, na consulta de ontem. Tem treze
frescura de pensamento criativo e de capa- anos. Recusa-se a comer ou a ir a escola por-
cidade clínica. Ainda continuava a ver doen- que, diz, tornou-se ((ridiculamente magra))
tes, embora apenas para pareceres, crianças (é a frase dela, Khan). Disse ao médico dela
e adultos. A maioria destes eram psicanalis- e aos pais, que eu não podia tratar a filha
tas de todo o mundo, com reputações firma- mas que a observaria em consulta e a aju-
das, que procuravam o auxílio de DWW, que daria a encontrar o tipo de auxílio certo)).
conheciam por terem lido os seus escritos. Eu notara a utilização, por DWW, da frase
Todos tinham efectuado longas análises pes- «O tipo de auxílio certo)) em vez de «trata-
soais por uma de duas razões: ou por treino mento)). Sempre escrevinhava ((apontamen-
ou por sofrimento. DWW discutia apenas os tos» quando tínhamos estas conversas;
casos que eu podia auxiliar a escrever, ou em DWW não as levava muito a sério pois que
narrativa clínica ou por forma a que ele os era a sua forma de descarregar o seu carre-
pudesse organizar em pensamento. Que eu gamento de pensamentos, como eu lhe cha-
saiba, DWW nunca escreveu aquilo que se mava, Este ((partilham de experiências
pudesse classificar de escrito puramente teó- clínicas era bastante teórico por parte de
rico. Começava sempre com um trabalho DWW. Prosseguiu: (Veronique é uma rapa-
clínico recente e, a partir daí, partia a «teo- riga muito [deu grande ênfase a esta pala-
rizar». A razão para a ausência ou escassez vra] intelectual. Fala inglês e francês
de material clínico nos seus escritos como, fluentemente)). InterpuzxCom esse nome,
por exemplo, no cThe use of an object)) DWW, ela é de qualquer forma francesa,
(1969), reside no cuidado de DWW em man- não?)). «Sim, a mãe é francesa, mas isso não
ter o anonimato dos seus clientes, mesmo de é importante)). Sorri e deixei-o prosseguir:
crianças de cinco anos, e não citar o mate- «Bom, eu não sabia, porque não mo disse-
rial clínico que o levara a uma noção teórica ram, que ela me procurava vinda de uma
específica. Nunca o incitei a incluir dados Clínica particular. Há dois meses que está lá
clínicos, pois eu sabia que isso o perturba- internada por recusa em alimentar-se e em
ria de tal forma que se fecharia em si pró- ir a escola)). Notei, novamente, que DWW
prio e deixaria de escrever. evitava o recurso ao calão psiquiátrico ou
Esta manhã encontrei DWW em estado de médico. Prosseguiu: «É bastante bonita.
excitação. Mal tinha acabado de tirar a capa Monta a cavalo. Isso vai torna-los amigos,
de montar e de me sentar para tomar uma Khan)). Sabia, agora, que DWW decidira
chávena de chá que ele próprio preparava, que eu devia cuidar da rapariga. Continuei
no pequeno gabinete da secretária onde sem- a ouvir: «Sabe, ela não está verdadeirumente
pre trabalhávamos em conjunto e onde doente. Ela não está verdadeiramente a
podíamos manter a nossa privacidade, quase recusar nada: alimentação, estudos ou sexo.
pressenti que DWW me ía fazer algum Podia, com facilidade, ter descoberto du-
pedido inesperado. Dar-me uma nova tarefa! rante a consulta o que ela estava a recusar
Pouco foi dito especificamente entre nós. e porquê, mas decidi não o fazer e deixá-lo
Conheciamo-nos desde há duas décadas, tra- descobrir isso com o auxílio dela. Sim, vai

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gostar dela, Khan. É uma aristocrata. Uma DWW pegou no telefone e combinou que eu
filha única. O pai adora-a. A mãe tem muito visitaria Veronique nesse mesmo dia, por
orgulho nas suas realizações como estudante volta da hora do almoço. Pouco passava das
e como promissora cavaleira. Quase a sua 11 horas. DWW acompanhou-me ao carro.
infância, Khan. Sim, Khan, a única ambi- Como despedida disse-me, com a sua habi-
ção de Veronique é treinar para representar tual ironia: «Oh Khan, vá vestido assim
a Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos». mesmo. As suas botas de montar e o pinga-
[Como você DWW, devia ter representado a lim farão com que Veronique tenha mais
Grã-Bretanha em 1914, mas a primeira confiança em si do que tudo aquilo que
Guerra Mundial impediu-o]. «Pensei, pois, possa dizer. Boa sorte, Khan)). E assim parti
imediatamente em si», prosseguiu. «Claro para me encontrar com Veronique.
que há alguns jovens analistas, com quali-
ficações médicas, que seriam talvez mais Conduzia de forma a chegar a Clínica a
apropriados para conduzir a situação dela. hora do almoço. Todo o ambiente tinha uma
Mas ela fala, quando se descontrai, em atmosfera agradável. O edifício era de um
inglês e francês, indiferentemente, como é estilo rústico, victoriano, com relvados cui-
seu hábito em casa; fala de cavalos e de con- dados e canteiros de flores por todo o lado.
cursos de saltos com um zelo voraz [notei No início do caminho estreito reparara num
que DWW usara o adjectivo ‘voraz’]; e, com cartaz que dizia: Por favor conduza devagar
os diabos, ela é uma intelectual. A propó- - Cavalos e cavaleiros. A mãe, ou o
sito, quem é essa Simone de Beauvoir, em médico, escolhera um lugar agradável para
Paris? Escreveu bastante sobre as mulheres Veronique; sabia que não tinha sido esco-
e o sexo. Como você lê tudo, certamente lhido por Winnicott. Fui recebido pelo
também leu a obra dela». Deixei passar a dono/director, um escocês afável de cabelo
piada de DWW. Sabia que ele estava ener- grisalho. Pediu a uma senhora, rotunda, com
vado por duas razões: a rapariga era uma os seus quarenta anos, que me levasse junto
proposta profissional invulgar e ele não de Veronique Era bastante faladora. «É uma
estava certo de que eu a recebesse. A Clínica rapariga tão encantadora. Dá-se bem com
particular era a umas vinte milhas de Lon- todos. Se aquela velha querida comesse)).
dres e eu teria que lá me deslocar. DWW Não pude deixar de sorrir com a incon-
prosseguiu, após um curto ((desapareci- gruência de chamar a Veronique (velha que-
mento)) em si próprio: «Ah sim, Khan, eu rida». Como não perguntara como me devia
prometi que ihes telefonaria hoje, para a Clí- apresentar, não lhe disse o meu nome.
nica, para lhes dizer o que você decidiu. Dirigiu-se de imediato a Veronique, que
Posso dizer-lhes que j á falámos sobre o estava sentada a ler, no que me parecia ser
assunto e que você vai lá e a verá, por volta uma sala de estar muito espaçosa. Veronique
da hora do almoço? No seu carro pode, levantou-se. Era muito magra, alta, ruiva,
facilmente, chegar lá em menos de uma com olhos verdes suaves e uma face pálida,
hora, especialmente num domingo. Clinica- muito pálida. Apresentei-me: «Sou Masud
mente, o importante é ver a Veronique Khan». «Eu sei, Sir. [replicou com voz fria].
quando ela recusa a alimentação)). «Quer O Dr. Winnicott falou-me de si». Começou
dizer, DWW, corno é que ela o faz?». «Sim! a andar na direcção da porta. Virando-se
Sim!! Mas, por amor de Deus, Khan, não para mim, disse com um sorriso apagado:
seja demasiado esperto com a Veronique, ou «Escolhi um quarto no segundo andar. A
nunca descobrirá o que a leva a não comer comida é servida no meu quarto. Não como
ou a não ir a escola)). «Como queira, com os outros visitantes)). Tentando marcar
DWWD. Só com esta minha concordância a minha presença disse, como que por acaso:

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«Ah, não come apenas consigo própria». ((Espereum pouco, por favor)). Olhando-me,
Olhou para mim com ar intrigado. Passámos perguntou: «Quer comer alguma coisa,
por outros «visitantes» de diversas idades. Sir?)). «Não, obrigado Veronique. Comi no
Sentia-me estranho com as botas, os calções caminho. Gostaria de uma chávena de chá.
de montar e um sweater branco de gola alta. Aqui ou no jardim? Está bastante ventoso
Subir as escadas tirara o fôlego a Veronique. lá fora, por isso, vamos tomá-lo aqui)). Deli-
Ao entrarmos no seu quarto, os meus olhos beradamente dissera «vamos». Veronique
captaram a presença de um pingalim de disse a criada: «Um bule de chá, leite, açú-
senhora. Tinha um punho de prata. O car e duas chávenas, por favor)). Sentei-me
quarto estava recheado de mobiliário em na Única cadeira confortável da sala e per-
cores pastel. Nada cheio. «Gosto disto aqui. guntei: ((Importa-se que eu fume cachimbo,
[disse Veronique]. Em casa ocupo o sótão. Veronique?)). «De forma nenhuma, Sir. O
Gosto de olhar para os relvados)). Entrou Papá está sempre a fumar cachimbo, e, a
uma mulher jovem que perguntou a Veroni- mamã fuma cigarros franceses uns atrás dos
que se queria que lhe servisse de imediato o outros». Eu observava veladamente Veroni-
almoço. «Sim, por favor)), disse quase que que. A criada voltou com a bandeja do chá,
com entusiasmo. Comecei a pensar se não que colocou na mesa. «É tudo por agora.
teria já recuperado a sua capacidade de Tornaremos a chamá-la. Obrigada)). Tratou
comer. Com a refeição veio uma médica a criada pelo nome, mas esqueci-me dele.
jovem. A criada dispôs a refeição na mesa. Veronique tirou a minha chávena da ban-
A médica dirigiu-se-me: «É o dr. Khan?)). deja, colocou-a na mesa, deitou-lhe leite e
«Por favor, doutor não. Só Khan. Não sou depois perguntou-me: «Quer o seu chá fraco
médico)). Teve uma apagada exclamação ou forte?». «Forte e com quatro cubos de
ininteligível, deslocou-se para perto de Vero- açúcar, por favor)). Veronique sorriu deiicio-
nique e destapou a travessa. Pausa. (Vai samente, deitou o chá e passou-me a chá-
comer o seu almoço?». «Não, obrigada», vena. Notei que afastara a cadeira da mesa
respondeu Veronique, educada mas firme- e que se sentara. Não ia, pois, tomar
mente. A médica tapou a travessa e deslizou nenhum chá. Não lhe ia falar no assunto.
para fora do quarto, para regressar acompa- Seguiu-se um silêncio estranho. Então, Vero-
nhada por um médico de meia idade. Ao nique perguntou: «Vaifazer-me muitas per-
aproximarem-se da porta podiamos ouvi-la guntas?)). «Não, de forma nenhuma
dizer: «Não, só tomou meia chávena de chá Veronique. Vim cá, para que nos pudessemos
ao pequeno almoço)). O médico dirigiu-se a conhecer. Partirei cedo, pois vou tomar chá
Veronique dizendo-me «Olá» quando passou com uns amigos as quatro horas)). «E claro,
por mim. Destapou a travessa. «Coma um a sua mulher deve estar A sua espera. É pena
pouco, Veronique. O que é que gostaria de ter vindo aqui A hora do almoço)). «Não!
comer?)), perguntou apontando os diversos Não foi maçada nenhuma, Veronique. A
alimentos. «Nada, muito obrigada)). «Sabe minha mulher está em Paris e volta hoje a
que a sua mãe vai ficar muito perturbada noite)). Outro silêncio vazio. O pingalim cap-
quando chegar esta tarde e souber que tor- tou outra vez a minha atenção. «Não pode
nou a não comer?)). «Pode ser que coma um andar a cavalo no seu estado actual)). «Não,
bocado com o Papá a hora do chá. O Papá não mo permitem. O Dr. X diz que estou
vem, não vem?)). «Sim, vem», respondeu o demasiado fraca)). Nervosamente fez uma
médico bastante bruscamente. pausa. «Quando pensa que volta a comer?».
Mais umas insistências e recusas após o ((Quando chegar a Primavera! Ainda está
que ambos os médicos se retiraram. A criada longe. Tenho sempre mais apetite na Prima-
veio levantar a mesa. Veronique disse-lhe: vera», acrescentou ela. «Nunca me alimentei

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bem no Inverno. Só que desta vez foi pior)). tante determinada para permitir que tal
Eu deixara Veronique conduzir a conversa suceda)). «Não. Não desmaiei até ao mo-
como lhe apetecera. Disse-me que quase se mento. Muitas vezes quase que desmaiei. Até
tinha afogado, quando o seu gasolina se vol- os homens valentes desmaiam. O Papa quase
tara na Sardenha, durante as férias. Acon- desmaiou quando me viu na maca. E foi
tecera apenas há escassos meses, no princípio condecorado com a D. S. O., como oficial
de Setembro. «O Papá quase desmaiou de comando, na Última guerra)). «Sim, o seu
quando me trouxe para casa. A mamã estava pai é uma pessoa invulgar. Ainda se dedica
furiosa quando me viu tão confortavelmente ao steepiechasing?» «Não, já não. Teve um
embrulhada e a conversar com o pessoal que ligeiro ataque de coração no último Verão.
me tirou de lá)). Veronique falava criptica- Em Junho, para ser mais precisa. Essa foi
mente. Deixou cair o assunto e caminhou a razão pela qual eu estava a nadar só com
para a janela. Virou-se: «(%m a certeza, Sir, duas amigas da escola quando o barco se
que não quer fazer quaisquer perguntas?)). virou. Sou muito má nadadora. O Papá sem-
«Sim, estou certo Veronique)). «Mais chá?)). pre fora comigo)). «Não é uma coisa bas-
«Não, obrigado)). Reparara no esboço, em tante excessiva para se fazer, Veronique, só
aguarela, de uma cabeça de homem, ligeira- por uma falta de companhia?)). Veronique
mente inclinada. Levantei-me e endireitei-a. olhou atentamente para mim. Levantou-se
«Oh, fui eu que fiz esse desenho do Papá, para ir buscar qualquer coisa. Eu levantei-
no Verão passado, na Sardenha. Disse-lhe -me também. (Vai-se embora?)). «Sim, Vero-
que quase me afogara ali em Setembro pas- nique». «Voltará?». «Não posso dizer-lhe.
sado. O &pá ainda não recuperou. Terá Dependerá do Dr. Winnicott. Devo falar
pena que não fique para o chá. O Papá com ele hoje, mas já é tarde. Deverei telefo-
conhece-o. A mamã conheceu a Mme Beno- nar para si amanhã».
zova dançar a Giselle. Fomos aos camarins. A Veronique acompanhou-me em silêncio
Vi-o lá)). Era verdade que conhecera o pai. até ao carro. Agradeci ao Dr. X, que encon-
Era uma figura importante dos círculos poli- trei a saída. Ao entrar no carro, a Veronique
ticos. Pensei para mim mesmo: certamente perguntou-me: ((Quantotempo julga que me
o DWW devia saber que, de uma forma ou vão manter aqui?)). «Até a Primavera, cal-
doutra, toda a família me conhecera de uma culo eu, Veronique)).E parti. Podia ver a sua
forma ou doutra. Retivera aquela ((informa- figura frágil, alta, envolvida num vestido
ção», talvez receando que eu recusasse ver verde claro, agitado pelo vento, de pé,
Veronique. De facto, ao regressar a casa, des- parada. Ao virar para o caminho, Veronique
cobri que DWW desconhecia tudo isto e desapareceu no retrovisor. Todo o encontro
muitas outras coisas. Veronique falou com tinha um ar estranho, frágil, triste. A volta
prazer, sem vergonhas, sobre várias coisas. toda a paisagem estava prisioneira das cores
Da escola. Tinha saudades das aulas de ocres do Inverno.
grego. E das aulas de equitação. «Aqui só Decido não pensar mais na Veronique até
posso pintar. O Dr. X (o dono/director) não falar mais tarde com DWW.
aprova muita leitura durante o dia. Gosta
que passeemos pelo jardim. Que joguemos Tinha sido um dia agradavelmente cheio
croquet. Ele próprio é muito bom nesse de acontecimentos que não tinham apresen-
jogo. Ainda cá não o joguei. Sinto-me fraca, tado quaisquer problemas especiais. A Vero-
mesmo após um pequenino exercício. De nique tinha sido o mais acomodativa pos-
momento estou muito fraca)). Pergunto-lhe sível comigo e, de igual modo, eu não fora
de repente: ((Certamente que, até a o insistente com ela. Sublinhara algumas
momento, não desmaiou? É uma jovem bas- observações para mim próprio e chegara

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apenas a duas (conclusões)). Comecei a notado também)). Não fora minha intenção
sentir-me nervoso a medida que se aproxima- começar assim o relato. Decidira, de modo
va o momento de visitar DWW e relatar-lhe bastante infantil, assustar DWW. Anunciei
a minha visita i clínica e o meu encontro com alguma pompa: (Tinha toda a razão,
com Veronique. Se bem que nunca mo dis- DWW. A Veronique não está a recusar nada.
sesse pessoalmente eu sabia, por outros, Não está doente, de forma alguma . Então
quanto DWW esperava por mim. Ele era, em de que sofre? Bem, DWW, creio que ela está
muitos aspectos, a menos exigente das pes- a guardar uma queixa não formulada con-
soas o que tornava as suas exigências, não tra a mãe. O seu olhar de alma cândida,
verbalizadas e não explícitas, altamente mascara um ódio vingativo. A primeira
cobradoras. Era inútil preparar os nossos vítima é a própria Veronique. Por isso nada
textos para DWW já que ele tinha o condão houve que lhe pudesse oferecer)). DWW
de nos desarmar com alguma pergunta ingé- sentou-se contra as almofadas. «Sim, eu não
nua, quase idiota. Por isso decidi chegar pensei que pudesse ou fizesse. Obrigado por
chez DWW sem ter ensaiado. Eram 19 horas. não lho ter dito. Falou muito com ela?)).
A porta foi aberta pela sua irmã. Nada de «Não, DWWD.«E ela?». «Um bocado, mas
alarmante nisso. Mrs. Winnicott nunca me de forma muito afável)). DWW pensou e
abria a porta. Disseram-me: «Faça o favor disse um tanto distantemente: «O pai de
de subir. O Donald esta a sua espera)). Veronique telefonou-me há pouco. Teve pena
DWW recebia-me «lá em cima)) (como nós que não ficasse para o chá. Vocês conhecem-
dizíamos) apenas quando estava ((indis- -se, Khan?)). «Sim DWW, conhecemo-nos».
posto)): o nosso eufemismo por um ataque ((Sirva-se de mais, Khan)). Eu fi-lo. «O que
de angina do coração, que o incapacitara por sugere que os pais devem fazer?)). «A pro-
vários dias. A porta do seu quarto estava pósito dos pais, não sei. Mas sei o que o pai
aberta. DWW estava deitado na cama, con- devia fazem. «Sim?», perguntou DWW. «O
fortavelmente enrolado na roupa e com o pai deveria levá-la para a Sardenha, sózinha
fogão de gás sibilando, quente. Sorriu-me com ele. A mulher tem o suficiente que a
discretamente e disse: «Então regressou em ocupe em Londres e Paris para que não
segurança, Khan)). Agora tinha a certeza de notasse muito a falta de Veronique)). «E o
que ainda sofria dores consideráveis. Não trabalho político do pai?». «Não creio que
liguei ao que me disse. ((Sente-se. Sirva-se do o espere um trabalho muito pesado durante
Whisky). «Só se tiver de puro malte!». este Inverno. Será um Verão frio, na Sarde-
«Sim, há algum na garrafa de trás)). Servi- nha. A Veronique pode andar a cavalo e
-me de uma quantidade generosa. Estava estudar grego com o pai. Não precisará de
agora ainda mais nervoso. Quaisquer sinais se afogar para chamar a atenção sobre si
de perda de força por parte de DWW mesma)). «Oh! Ela falou-lhe nisso? A mãe
deixavam-me muito ansioso. Ele tentava diz que ela odeia falar nisso)). «O que eu
sempre escondê-lo de mim e concluí que o penso, DWW, é que a mãe é que se sente cul-
conseguira. Tratava-se de um estúpido jogo pada e desconfortável com o assunto)).
britânico que ele jogava melhor do que eu. ((Desculpe-me Khan, sinto-me um pouco
Nascera e criara-se nesse jogo. Eu não. cansado agora. Poderia ver a Veronique
Comecei com a observação mais desabrida amanhã? O pai irá lá ao almoço.A mãe pre-
do meu encontro. ({Veronique[disse a DWW] side a inauguração de uma festa qualquer na
servia o chá como um experiente mordomo aldeia deles. Por isso vocês os três podem
irlandês)). ((Porquê irlandês, Khan?)). «Tem decidir, de modo pacífico e positivo, o rumo
um sentido muito seco de humor)). «Eu a tomar)). DWW chamou a irmã. Quando
notei isso, Khan. Fico contente por ter ela chegou, disse: «Khan vai sair agora. Por

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favor telefona para a Clínica e diz-lhes que 3. O Papá não fizera qualquer comentário
irá almoçar com a Veronique e com o pai)). por Veronique não ter comido nem um
A velha raposa premeditara tudo. Quando bocadinho da finíssima fatia de salmão
saía, DWW disse: «Khan, não se esquece de fumado que tinha no prato. Só lhe dera
como tratar a mãe de Veronique? Sim, Sua essa fatia e nada mais. Mas Veronique
Senhoria, ou ela vai voltar para se vingar)). bebera a sua única taça de champagne e
«Como quiser DWW. A propósito, o meu comido um pouco de Camembert em
telefone ficará desimpedido para o caso de meia bolacha;
precisar de me telefonar)). «Para quê, 4. Veronique e o Papá estavam também bas-
Khan?)). «Oh, por preocupação e interesse tante habituados a tomarem decisões por
DWW)), disse eu com uma aspereza cal- si, isto é, entre ambos, sem consultarem
culada. lXs trocas de palavras eram pergun- Sua Senhoria.
tas entre nós. Mal nos sentámos a mesa eu dissera,
casualmente, ao Papá qual fora a recomen-
O almoço com Veronique e o pai correu dação do Dr. Winnicott; ou seja que o Papa
sobre esferas. Ela telefonara de manhã para devia levar Veronique para a sua propriedade
perguntar o que eu gostaria para o almoço na Sardenha durante os meses de Inverno.
e a minha secretária dissera-lhe que geral- O Papá não pareceu ter ficado surpreendido,
mente comia uma refeição muito ligeira: de forma alguma, embora tivesse soerguido
peixe, um copo ou dois de vinho branco ligeiramente as sobrancelhas. Calmamente
gelado, se possível seco. Cheguei pontual- corrigiu-me dizendo: «A propriedade na
mente. O pai chegara uma hora, mais ou Sardenha não é minha. Comprei-a para o
menos, antes de mim. Não havia necessidade
meu segundo filho. Nos Últimos quatro
de apresentações pois que já nos conhecía- verões fomos para lá porque a Veronique
mos. Veronique pedira que o almoço fosse gosta muito de lá estar e sente-se mais A von-
servido, numa mesa maior, no seu quarto; tade que em Cap Ferrat, onde temos uma
este era suficientemente espaçoso para esse casa encantadora que dei a Veronique Claro,
fim. Novamente era notório que Veronique depois da minha morte, a mansão e a quinta
não só estava habituada a receber em grande que aqui tenho irá para o meu filho mais
estílo, como gostava de o fazer. Em primeiro velho. Tenho dois filhos da minha primeira
lugar fiquei surpreendido que uma Clínica mulher, de quem me divorciei há uns quinze
em Inglaterra pudesse servir salmão fumado
anos)). Riu um pouco e acrescentou: «Foi há
e champagne; claro que do Fortnum and tanto tempo que já não consigo recordar)).
Mason, adientei eu para a picar. «Sim, sei)), Veronique brincando meteu-se na conversa:
e saltara alegremente para dar um sonoro «Um momento Papá, eu não sou assim tão
beijo na testa do pai, exclamando: ((Querido, velha. Ainda». Ele acariciou-lhe afectuosa-
querido Papá. Tem estado tão preocupado)). mente os cabelos e disse: «Ela é a única filha
Fiquei satisfeito por ter optado por não que- do segundo casamento e a Única que me faz
rer a presença de Sua Senhoria. Quatro pes-
companhia a andar a cavalo todos os fins de
soas não podiam almoçar tranquiiamente no semana)). Fez uma pausa e acrescentou: «As
quarto de Veronique. Notei ainda:
crianças dão-se muito bem umas com as
outras. Ambos os meus filhos estão casados.
1. Que o Papá dera a Veronique um copo de
Só o meu segundo filho é que não se dá bem
champagne; com a mãe de Veronique)). Aqui, Veronique
2. Que não podia ser aquela a primeira vez interrompeu bruscamente: «E a Mamã dá-
que os dois patifes recebiam um convi- -lhe alguma oportunidade?». Virou-se para
dado na ausência de Sua Senhoria;

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mim e disse de forma determinada: «Por três Não pensei que houvesse para mim qual-
vezes a Mamã arranjou alguma desculpa de quer urgência em encontrar DWW para dis-
Último momento para cancelar a ida a Sar- cutir o caso de Veronique. Telefonei-lhe
denha. A verdadeira razão é que ela conhece quando terminei as consultas da tarde. Pare-
muita gente na região de Cap Ferrat e quase cia cansado ao telefone. Disse-lhe rapida-
ningém nas imediações da nossa proprie- mente que tudo correra a contento de todos.
dade. Ela foi a resmungar no Verão passado Disse-me, bastante laconicamente: «Sim,
e foi um desastre)). O Papá parecia extrema- Khan! Obrigado por quase nunca me aban-
mente embaraçado. Fui em seu auxílio donar. Boa noite)). Isto era um grande elo-
dizendo: «Então Veronique, assim embara- gio da parte de DWW. De repente dei-me
ças o Papá. Estou certo de que não o dese- conta de quanto também estava cansado. A
jas fazer)). «Não. [Disse ela arrefecendo] A Veronique fora mais exigente do que eu espe-
razão porque disse isto, é porque se o Papá rava. De qualquer forma entreguei-me a
concordar em que eu vá com o meu irmão rotina da semana profissional. Quando efec-
para a Sardenha até ao fim do próximo tuei a minha visita semanal a DWW, no
Verão, não será necessário que o Papá fique domingo seguinte, encontrei-o estranha-
comigo todo esse tempo. Tem coisas muito mente exausto e inquieto. Fez-me uma chá-
importantes a fazer em Londres. Dou-me vena de chá. Notei que não tinha pressa em
esplendidamente com o meu irmão. Brinca- falar de Veronique. Mexeu em vários papéis.
mos e falamos em italiano. Prefiro o italiano Não era capaz de decidir o que queria fazer.
ao francês)). Notei essa preferência. «O Dr. Esperei. Deitou algumas folhas ao chão.
Winnicott disse-me ao telefone o que você Numa delas havia um «desenho» feito por
lhe sugerira e eu disse ao Papá que não pre- uma criança. «Não se preocupe com isso.
cisarei dele. De qualquer forma não nada- Não resultou. Não fui eu próprio esta
rei nem andarei no gasolina nos meses de semana, Khan. Estou mesmo a envelhecer!)).
Inverno. Mas gostaria que o Papá me levasse Pensei para comigo que ele tinha 70 anos.
Sardenha para que a Mamã não pense que Tivera três graves ataques de coração nos
a estou a desafiar. Telefonei para a escola, Últimos vinte anos. De facto era incrível
a nossa directora, e ela concordou em que como DWW ainda funcionava. Esperei.
estivesse ausente por mais dois períodos. Só Senti que ele estava zangado a propósito de
que pede um certificado psiquiátrico)). «O qualquer coisa. «Bem, Khan, ela levou-o a
Dr. Winnicott terá o maior prazer em lho certa. Sua Senhoria telefonou-me há uma
passar)), disse eu. Cá por dentro espumava hora para me dizer que a irmã adoeceu gra-
contra DWW por ele ter dado mais um vemente, em Paris, durante a semana. Bom,
passo sem mo dizer. ela vai buscar a Veronique a Clínica, por
Durante este espaço de tempo, enquanto volta do meio dia, e depois, tomará um
Veronique falara bastante depressa, o Papá avião para ir ter com a irmã. O pai não
olhava e ouvia de uma forma indulgente e as pode acompanhar. Isso complica tudo,
amorosa. Assim, tudo se combinou: Veroni- sem dúvida. De qualquer forma, Khan,
que ficaria mais duas semanas na Clínica, espero que a experiência tenha valido o
passaria o Natal com a família em Inglaterra esforço». DWW fez uma pausa e brusca-
e partiria com o Papá para a Sardenha no mente mudou de assunto: «De que forma
Ano Novo. Quando me despedia de Veroni- supõe que Sua Senhoria vai prejudicar
que e do Papá, aquela disse: «O Dr. Winni- Veronique, Khan?)). Deixei DWW expôr as
cott vê a Mamã na sexta-feira)). Eu disse suas próprias ideias. ((Aquele acidente do
muito secamente: «Isso é bom para ambos. afogamento. A mãe nunca o mencionou.
Poupa-me uma data de explicações)). A filha só fala disso. Espero que ela não

294
afogue a filha». «Não tem que se preo- DWW espreitava-me através das fendas que
cupar, DWW. A Veronique não é assim tão os dedos das suas mãos formavam, colo-
frágil, nem tão vulnerável)). «Mas ela pode cadas sobre a face. «Interessante! Faz sen-
ferir o marido e isso seria muito mau para tido. Bom trabalho, Khan. Apesar disso é
a Veronique. Diga-me mais coisas. Afinal pena que Sua Senhoria lho tivesse estra-
você passou umas horas com Veronique no gado». «Não para mim, DWW, para si. Se
domingo e na segunda)). Disse ao DWW Veronique procurar ou necessitar de tera-
que, de forma muito deliberada, não só me pia, não vou ficar com ela. Sou mais
abstivera de recolher as intrigas familiares, valioso para ela como um conhecido inte-
como não deixara Veronique mencioná-las. ressado do que como terapeuta. De qual-
%to quanto eu podia dizer, havia três gru- quer forma sabe perfeitamente, DWW, que
pos. O primeiro era Veronique, o Papá e os desde a sua consulta que criou em Veroni-
I
meios-irmãos (com as esposas). O segundo que uma esperança e uma confiança tais
era apenas Veronique e o Papá. Era o ter- que mais ninguém pode ser seu terapeuta.
ceiro grupo que estava a rebentar pelas cos- Tenhamos esperança de que ela não tenha
I turas. Fiz uma pausa. ((Prossiga, Khan. necessidade de terapia. E como é que o vai
Ajuda fantasiar na presença de outro. Só recusar quando ela o procurar? Já disse a
é árido quando se faz sózinho». Prossegui: Veronique e ao Papá que a estou a seguir
«Sua Senhoria é uns vinte anos mais nova porque você, neste momento, não está sufi-
que o Papá. É uma parisiense ambiciosa. cientemente bem para receber um novo
Primorosamente educada, desejava estar no doente. Mas que terá tudo pronto para
teatro como a sua bem sucedida irmã mais quando ela voltar da Sardenha no Outono
velha. Falhou. O seu Único sucesso foi de 1970. Não creio que esse plano se tenha
I
casar-se com o Papá. E não o perderá. afundado, DWW. Veronique irá para a Sar-
Mudou de país para bem dele. Tem-no aju- denha e conseguirá que o Papá e você
dado, de verdade, na vida política. Dirige façam todas as negociações com Sua
uma casa de campo muito 6 la mode. Mas Senhoria. Porque é nisso que tudo se
Veronique foi-se introduzindo sem que Sua resume. A propósito, a irmã não está tão
Senhoria notasse. DWW, eu fiquei impres- doente como Sua Senhoria disse. Adoeceu
sionado com o que Veronique sabia da vida na penúltima semana e já está a pé e a cir-
diária do pai. Até age como secretária dele cular». «Como sabe isso, Khan?». «Vinha
em dados momentos. Ao contrário de Sua no Le Monde de sábado. A irmã de Sua
Senhoria, fala fluentemente italiano e tam- Senhoria é uma directora de teatro d’avant-
bém anda a cavalo com o pai todos os -garde, muito conhecida em Paris e Nice.
domingos. & então que falam sobre tudo. A minha mulher conhece-a. Como vê,
É esta «intimidade» entre Veronique e o pai DWW, eu fico melhor fora das suas estra-
que começa a afectar Sua Senhoria. Pelo tégias terapêuticas para a Veronique)).
menos é como eu vejo a situação, DWW». Ainda falávamos quando o telefone tocou.
((Prossiga, Khan. Estou a ouvir». «Para Era Veronique, de Paris. DWW compreen-
agravar ainda mais a situação, Veronique dera tudo mal. Sua Senhoria telefonara-lhe
decidiu que irá estudar línguas. Sua Senho- de Heathrow, depois de ter ido buscar Vero-
ria esperava que ela seguisse a carreira da nique a Clínica. DWW estava furioso, Per-
tia. Por outras palavras, fazer e realizar o guntou a Veronique quando regressava a
que Sua Senhoria não conseguiu fazer. Em Inglaterra. Ela disse-lhe que iria directa-
vez disso, segue as pisadas do Papá: clássi- mente para a Sardenha dentro de dois ou
cos, depois línguas modernas e história. três dias. Assim que o Papá pudesse ir a
Veronique tem todos os caminhos abertos. Paris para a levar para a Sardenha. Deixei

295
DWW sózinho na saia para falar com Vero- vintage de malte. Argumentava que, diluído
nique. Depois perguntei-lhe porque estava em agua, o whisky agia mais rapidamente.
tão furioso. <*do correu como todos dese- DWW, que eu soubesse, só tomava whisky
javam, excepto para Sua Senhorias disse- quando as dores da angina de peito come-
-me DWW, bruscamente. «Cada um deles çavam ou quando estava a recuperar de um
é mais omnipotente que o outro. Metem- ataque de angina. Tentando que a visita
-se sem respeito. Veronique não quer vol- fosse breve, em especial por sua causa, per-
tar a Inglaterra. Sabe isso, Khan?». «Sim, guntei: «Tem a ver com os Veroniques?».
DWW, ela irá para Roma. O sogro do Tinhamos começado a chamar ao trio Vero-
irmão da Sardenha é professor de línguas nique, Papá e Mamã pelo nome colectivo.
clássicas na Universidade de Roma. O pro- «Sim e não». DWW lá chegaria, a seu
blema agora é o que irá o Dr. Winnicott tempo e a sua maneira. Perguntou-me:
arranjar para Sua Senhoria? Ela vai-lhe «Teve tempo para dar uma vista de olhos
aparecer i3 porta furiosa e a uivar, DWW». ao texto revisto, já dactilografado, do capí-
Fiz uma pausa, peguei nalgumas provas que tulo X? Até Mrs. Colling já começa a estar
estavam na secretária e comecei a lê-las. farta de o bater tantas vezes. Parece que
Não tornámos a falar mais de Veronique não consigo fazer a destrinça entre fanta-
nessa manhã de domingo. sia e fantasiar, segundo me dizem». Estava
um pouco zangado com DWW. «Porque é
Quatro dias depois, na 5" feira, DWW que lhes pede a opinião? Nunca os levo a
telefonou-me as 21 horas e pediu-me que sério». «Isso não é justo Khan. Levo em
fosse ter com ele. Precisava de falar urgen- consideração o que dizem. Mas tem razão,
temente de qualquer coisa. Acrescentou: não o devo mostrar a tantas pessoas. Mas
«Khan, está a chover muito. Se o seu carro então dizem mal de si; que me está a impe-
estiver na garagem posso muito bem ir dir de me dar com eles». ((Importa-lhe o
buscá-lo no meu». Disse-lhe que o meu que eles dizem, DWW? Para mim não faz
carro estava A porta e que dentro de 5 diferença)). «Faz sim, Khan. Tenho medo
minutos estaria com ele. DWW morava que lhe façam mal quando eu já cá não
quase do outro lado da esquina. A chegada estiver». «Já falámos disso uma centena de
levou-me para a «prisão», como chamáva- vezes, DWW. Laissez alier! Se me aborre-
mos entre nós sala da secretária, no rés- cerem demais posso ir para Paris. De qual-
-do-chão. Como sempre, aos fins de tarde, quer forma, Miss Freud ainda está muito
a chaleira estava em cima dos bicos de gás firme e saudável por cá. Portanto, não se
e numa travessa havia bolachas digestivas preocupe». Sabia que estávamos apenas a
com pedaços de queijo tipo «Cheddar», falar para nos descontrairmos, até que
uma tigela para mim e uma chávena para DWW estivesse pronto para me dizer o que
ele, açúcareiro, uma garrafa de whisky de queria, e como o queria. Preparou para si
malte, um jarro de água e dois copos. Sem- outra chávena de chá, outro dos seus hábi-
pre me acalmava, nas minhas visitas de fim tos bárbaros, misturar chá com whisky de
--
de tarde, se eu notasse os objectos. Não
__
gostavã de visitar DWW nos fins de dia.
malte. Sentou-se para trás, inclinaáo, na
cadeira giratória de Mrs. Coles. Manter-se-
Estragava a sua vida privada, ou, pelo -ia constantemente em movimento, girando
menos eu assim pensava. DWW estava num de um lado para o outro e para trás. Tinha
estado misto, não decidido. Estava simul- sempre medo que balouçasse demais e
taneamente excitado e preocupado. Bebia caísse. DWW ainda se comportava como se
um whisky muito diluído. Sempre conside- fosse o jovem e ágil atleta de 1914, trei-
rei isso um ultraje bárbaro ao bom whisky nando para as corridas longas . Acalmou

296
até parar. «Vi Sua Senhoria esta tarde. Eles isso?)). «Sim, lucro, Khan, lucro com isso.
tinham acabado de voltar de Paris)). Não concorda?)). «Não, DWW. Eu sei que
«Quantos eram hoje os «eles», DWW?)). lucro é um respeitável conceito da burgue-
«Os mesmos: Veronique, o Papá e Sua sia inglesa, esvaziado pelo seu uso ao longo
Senhoria. Sua Senhoria veio sózinha. Disse dos séculos, mas Sua Senhoria não é
que Veronique gostava de estar em Paris. inglesa. É francesa: temperamentaí, alta-
Esqueci-me: trouxeram com eles, a tia de mente intelectual e cheia de truques. Não
Veronique que está doente. Agora, isto é vai manter a gravidez até ao parto, DWW)).
que é bizarro. Espere até o ouvir, Khan. Sua «O que é que o leva a pensar que irá per-
Senhoria está grávida. Foi exactamente isto der esta gravidez?)). «Não sei. Pressinto que
que ela me disse, ‘Estou grávida, Dr. Win- a não quer. Ao engravidar já deve ter
nicott’, ainda nem tirara o casaco de peles. obtido o que queria)). «E o que era isso,
Por vezes é directa como os americanos. Khan?)). «Fazer Veronique sentir que está
Que situação detestável)). DWW mudou de a faltar como filha. Um filho completará
assunto: «Acha que esta versão revista é a equação para Sua Senhoria. Depois, por-
melhor, Khan?)). ((Certamente que não! que hoje nos seus círculos sociais, ela é
Quem é que lhe disse para meter uma notícia. Não o será daqui a quatro sema-
pitada de material clínico? Em primeiro nas. A novidade de vir a ser mãe cederá a
lugar, não cabe no argumento; em segundo chatice de ser uma fêmea pranhe)). «Você
lugar, é demasiado fraco e posto de forma consegue mesmo dar cabo de uma pessoa
casual». «Bom, agora reescreva-o. Para mim quando não gosta dela, Khan!)). «Não é
chega, Khan. Falemos de Sua Senhoria. que eu não goste de Sua Senhoria. €? que
Não tinha compreendido que só tinha 35 não posso confiar nela. Você pode. É-lhe
anos. Ainda a não tinha visto a sós. É mais bemvindo)). «Mas você fica com a Veroni-
viva e francesa quando está sózinha. Na que?)). «Sim, DWW! Você e Sua Senhoria
companhia do marido e/ou da filha desem- deixaram-me sem alternativa. Eu proporcio-
penha o papel de uma britânica de provín- narei a cobertura de Veronique se você tiver
cia. Porque é que estes estrangeiros nos a bondade de a ver de tempos a tempos.
macaqueiam?)). «Estes estrangeiros, DWW? E não a mandar para Clínicas ou para tera-
Eu também o sou e não macaqueio. O pro- pias. Por enquanto não! Combinado?)).
blema, DWW, é que vocês ingleses não gos- Parti. Enquanto conduzia, a caminho de
tam que os estrangeiros se conformem com casa, reparei que DWW aceitara os meus
os vossos procedimentos)). «Não! Não! Isso termos demasiado rapidamente porque eles
não é democrático)). «Mas encorajam -nos eram, afinal, os seus próprios termos. A
a que vos macaqueiem)). «Sua Senhoria velha raposa, afinal, sempre se preocupava
estava muito excitada com a ideia de terem com cada um e todos que via em consulta.
um filho. Tem a certeza que vai ser um Se exigia muito dos outros, pacientes incluí-
filho». Não comentei. «Julgo que lhe fará dos, dava mais de si próprio i situação do
bem estar grávida e criar um filho. Ela era que qualquer um de nós jamais dera ou
muito nova quando concebeu Veronique e daria. Quando cheguei a casa, a minha
estava demasiado ocupada a aprender a ser mulher disse-me que Veronique telefonara
esposa de um rico proprietário ruraL fi para me dizer que, «A mãe está grávida».
espantoso o que uma mulher pode lucrar Minha mulher disse-o numa voz de felici-
ao criar o seu próprio f i o ) ) . Estava a ficar dade, trocista. Perguntei-lhe se achava que
aborrecido com a aclamação eufórica que Veronique estava a falar a sério. Disse:
DWW fazia A nova aventura de Sua Senho- «Sem dúvida. Por favor telefona-lhe ama-
ria. «Diz que Sua Senhoria lucrará com nhã)). A Primavera já chegou, pensei. Bas-

297
tante paradoxalmente, sem saber o que fazer ao telefone. Suporta-o alegremente. Bastante
com a situação total. convidativamente também! Aí tem a razão.
Agora ouça-me, Veronique. Eu estou fora
O que iria suceder nas semanas que se deste ((acontecimento)).Vamos baptizá-lo A
seguiram, não podia ter sido previsto por mãe está grávida)).Veronique tornou a fazer
nenhum de nós. Por nós, quero dizer Sua risinhos ao telefone. «Sim, Senhor)). Ela
Senhoria (daqui em diante com letras maiús- ainda não sabia como devia de se me diri-
culas. Tout jours!),DWW, Veronique, Papá gir. «Ouça! Estou, como lhe disse, no limite,
e Khan. As coisas tomaram um rumo, ou no mais afastado limite do acontecimento e
ditaram-no. Mesmo uma década ou mais aí irei permanecer. Não mais longe, mas não
depois, ainda não consigo saber se Sua mais perto. De forma que facilmente me
Senhoria foi a autora dos acontecimentos, possa contactar. Bom, eu vou sair nos dois
a vítima deles, ou meramente um inesperado, próximos fins de semana, da noite de quinta
se bem que muito conhecedor, agente do pri- até segunda-feira)).«Sabia do próximo fim-
meiro acontecimento. Tiro esta noção de -de-semana. O Papá disse-me. Ele também
acontecimento do (Theatre of Happening)) vai. A Barcelona, quero dizer. Só que ele vai
e do seu ramo, o atheatre of happening)). ver e o Senhor vai jogar. Boa sorte! Vai jogar
Telefonei a Veronique tal como minha contra a equipa britânica. Tenha pena deles!
mulher lhe prometera que eu faria. A minha Não temos rematadores esquerdinos. Espe-
mulher não me disse nada mais do que cialmente do lado interno do ataque. Vai
aquilo que referi lá atrás. Quando recebia ganhar facilmente)). ((Primeiro não é a
um telefonema de um «doente» ou de um minha equipa, Veronique. Sou apenas um
colega, o que era raro, dizia apenas o dos quatro. Se a equipa ganhar será por
mínimo a ele/ela ou a mim. Veronique estava causa dos outros três: o alemão, o espanhol
radiante. Claramente maníaca. «A mãe está e o argentino. São jogadores mais experien-
grávidas. Risinhos abafados na sua voz. tes que eu e melhor preparados, por treina-
«Isso mantêm-nos ocupados, a todos, no rem diariamente. De qualquer forma, é um
próximo ano. Não irei a Sardenha. Nem visi- jogo amigável para fins de caridade! Não é
tas (os longos, longos fins de semana) para de competição)). ((Espero que os vossos
o Papá, em Barcelona)). Sem o fazer osten- cavalos não fiquem coxos com o chão duro
sivamente deixei cair a seguinte pergunta: «E de Barcelona. O Papá diz que é o Último
a sua mãe, Veronique?)). «A mãe estará ocu- jogo da época. Não era a favor da sua rea-
pada a destinar trabalhos para todos nós. Os lização, mas acedeu. O Papá cede sempre a
que estiverem ao pé, ou ao seu alcance. Sim, opinião da maioria. Disse-me que o solo ali
o Dr. Winnicott é o primeiro da lista. Não, não é favorável aos cavalos criados em Ingla-
o quarto. O primeiro é o Papá, depois o terra. Dois dos seus são argentinos. Estou
nosso mordomo irlandês, Mac [de Mac certa?)). «Sim, Veronique! Bom, no fim-de-
Coy], depois eu, Veronique, e depois o Dr. -semana seguinte estarei em Genebra. Não
Winnicott. A mãe já falou com ele, ao tele- creio que precise de mim, mas se precisar,
fone, duas vezes». «O Dr. Winnicott gosta telefone para aqui e dir-lhe-ão onde me pode
que lhe telefonem e de falar ao telefone?)). encontrar. Não sei ainda com quem é que
«Deve gostar. Já devem estar a falar há meia irei ficar em Barcelona e em Genebra. De
hora. Também, ainda são só 9 e 15 h.». qualquer forma, o Dr. Winnicott estará cá
«Não, realmente não, Veronique)), tento e completamente disponível)). «Tal como o
corrigi-la para a acalmar um pouco. Vero- Papá! De qualquer forma podia pedir a sua
nique estava audivelmente demasiado exci- secretária que telefonasse a directora da
tada. «O Dr. Winnicott não gosta de falar minha escola para lhe dizer, da sua parte,

298
que não tem que verificar a todas as horas domo pensou que seria demasiado trabalho
aquilo que comi? Ou melhor, o que não extra. Por isso, Sua Senhoria decidiu pôr-lhe
comi... hoje.. até agora)). Veronique disse ou termo)). Repreendi Veronique: «Não se
melhor, não comido, hoje e até agora, num esqueça que o Papá tem mais a ver com isto
tom trocista, bem inglês. Podia sentir que se do que a família dele e os amigos)). Pergun-
estava a divertir. No momento, como diria tei ao Papa «Há alguma forma de eu poder
Veronique. ajudar?)). «Sim, por favor ajude-me a redi-
Na terceira semana recebi uma carta de gir um comunicado para a imprensa)). Dis-
Veronique. Estava escrita com clareza. Dizia cutimos várias formas. Aconselhei contra a
sucintamente: adição de ((psiquiátricos após «médico». O
Papá achou que era uma boa ideia. No final
((Contentepor a sua’equipa ter empatado ficou assim: «Por conselho médico e fragi-
em Barcelona; para mim é sempre o melhor lidade da sua condição física foi decidido,
resultado. Estou bem. Obrigada pela sua por ambas as partes pôr termo a gravidez)).
carta a directora. As nossas notícias. Agora Chamei a minha secretária e pedi-lhe que
a mãe quer matar a gravidez. O Papá e eu ligasse ao Dr. Winnicott quando tivesse aca-
queremos vê-lo o mais depressa possível. bado de dactilografar o comunicado. Ela fê-
Todos temos telefonado ao Dr. Winnicott. -lo. DWW já sabia que Veronique e o Papá
Até o Papá». me iam ver naquela manhã. Perguntou-me:
Indiquei-lhes uma data e recebi ambos na «O que lhe parece isto tudo, Khan?». Disse-
minha saia de estar. Decidi-me tornar aquilo -lhe que, no momento, tudo o que lhe podia
um encontro social. Reparei que Veronique transmitir era a curta declaração que o Papá
tinha um ligeiro toque, ou melhor, uma e eu tínhamos preparado para a Imprensa.
Li-lha. DWW ficou em silêncio. Depois
sugestão de cor nas suas bochechas. O Papá
disse: «Muito habilidosa. Muito, Khan. Boa
parecia preocupado e cansado. Chegaram as
sorte. É pena que ele tivesse sido arrastado
11 horas. Ofereci ao Papá um sherry. Vero-
para ela. Até logo a noite».
nique interveio: «O Papá já gosta mais de
Pouco havia que pudessemos fazer para
champagne a esta hora)). Calmamente o além de esperarmos pelos acontecimentos.
Papá tentou silenciar Veronique «Queres Quer o Papá, quer DWW, estavam profun-
calar-te? Eu não sou um snob)). Toquei a damente magoados. Pensavam que se tratava
campainha chamando a minha secretária de um erro horrível. Eu pensava que era
para que trouxesse uma garrafa de cham- meramente escandaloso, nada mais. A longo
pagne gelado e três copos. Veronique estava prazo todos ficariam contentes e aliviados,
a brincar e disse: «Está tudo resolvido. A porque ele viera só algumas semanas e fora
mãe fará a operação este fim-de-semana. destruído! Foi o que disse DWW quando
Boa viagem...)). O Papá interveio com um com ele me encontrei nessa noite. Também
«Cala-te. Não tem graça». Depois, virou-se adientei como, desde o momento em que
para mim e perguntou-me: «Tem estado em Sua Senhoria tirara Veronique da Clínica e
contacto com o Dr. Winnicott?)). Respondi: a levara com ela para Paris, ninguém mais
«Não. Desde há quinze dias, mais ou menos. falara dos problemas das recusas escolares
Vou telefonar-lhe, hoje, pelas 20,30. É bas- ou alimentares de Veronique. Apenas com
tante desencorajante que Sua Senhoria deci- uma excepção, a da própria Veronique ao
disse interromper a gravidez)). «Então a Ve- telefone, quando me pediu que escrevesse
ronique disse-lhe. Não tem graça nenhuma. directora.
Ambas pensam que sim. Será assunto das
noticias. Nos jornais. Que motivos poderei DWW suportou o maior peso das consul-
alegar?)). ((Diga-lhes, querido Papá: o mor- tas e dos aconselhamentos aos Veroniques.

299
Nós, DWW e eu, concordáramos que tal Natal em família. Significava muito para
deveria ser assim até ao Natal. DWW era um ambos e para os dois filhos. Sabia que o
clínico de grande reputação e autoridade e filho da Sardenha e a mulher viriam de
com vastas ligações no mundo médico. O avião, para o Natal, por causa da aindispo-
meu papel cingia-se a falar com Veronique sição» de Sua Senhoria - expressão da
e o Papá. Durante as três Últimas semanas, família para o caso. Mas muito mais impor-
das quais Sua Senhoria passara duas numa tante do que qualquer coisa referente aos
casa de repouso junto a mansão, vira DWW Veroniques, era a minha forte decisão de que
quatro vezes e telefonara muitas mais do que DWW tivesse um Natal pacífico na compa-
aquelas que recordo. Veronique e o Papá só nhia das suas irmãs. DWW era uma pessoa
me tinham telefonado duas vezes e isso para difícil de ajudar. Não podia suportar o
pedir conselhos práticos. Eu tinha uma con- depender de qualquer pessoa; excepção feita
siderável influência na imprensa, o que fazia as irmãs!
muito geito ao Papá, que constituía notícia.
Durante todo o tempo tive bem presente que Não me surpreendeu que Sua Senhoria
os Veroniques tinham varrido para debaixo atravessasse a sua «hospitalização» nobre e
do tapete (e DWW parecia ter-se-lhes jun- resolutamente; tenho de a louvar neste
tado nisso): aspecto. Mas isto não mudou a minha con-
1. A hospitalização de Veronique por recusar vicção de que ela eventualmente «cairia». O
alimento e o estudo. Só porque não cris- que me surpreendeu foi a forma como
DWW se juntou ao estilo dos Veroniques. A
talizara a ‘doença’ na sua forma adequada
velha raposa tinha qualquer estratégia na
(o que quer que isso signifique), também
manga. Mantive-me tranquilamente a obser-
a sua ‘hospitalização’ não era adequada.
A Clínica particular era um agradável var todas as charadas e parti com minha
mulher para Paris, afim de passarmos ali o
local na província: para tréguas, ideal!
Natal com alguns amigos. Para mim, o Natal
Mas não para terapia.
é um acontecimento não social tremenda-
2. O «eu quase me afoguei na Sardenha»
não fôra mencionado, excepto uma vez mente maçador, quando passado em Lon-
dres! Não posso ser cúmplice das sazonais
pela Veronique no nosso primeiro encon-
amenidades das famílias inglesas que,
tro. A esse propósito achava que DWW e
durante o resto do ano, nem se levantam
o Papá se mantinham curiosamente silen-
para se cumprimentarem uns aos outros.
ciosos. Não perguntei. Eu tinha a certeza
Todas as culturas têm as suas hipocrisias mas
de que havia mais, muito mais do que um
os britânicos estão admiravelmente apetre-
simples ‘acidente’. DWW já tinha bastante
chados.
trabalho com os Veroniques. Não lhe que-
Uma pequena carta de DWW aguardava-
ria causar mais cansaço com a minha
-me no meu regresso de Paris, pedindo-me
curiosidade e as minhas conjecturas.
que lhe telefonasse para o sítio no campo
Estava também seguro que DWW falaria
onde passava o Natal. Assim Fiz. Disse-me
disso um dia, talvez quando chegasse a
que a mãe de Veronique atravessava uma
Primavera.
ligeira depressão. Acrescentou, rapidamente,
Todos os acontecimentos absurdos do ano que isso era de esperar. «Claro, DWW, acon-
que se seguiu a declaração de Sua Senhoria tece e sempre como você o prepara!)).
a DWW, «Estou grávida)), nem me interes- ((Agora, Khan, eu prometi ao pai de Vero-
savam nem me divertiam. A minha peque- nique que você lhe telefonava assim que
nina preocupação era conseguir que regressasse. Eu devo voltar pelo Ano Novo.
Veronique e o Papá tivessem um agradável Feliz Ano Novo!)). «Para si também, DWWD.

300
Telefonei ao Papá e vi-o nessa mesma tarde. peito deles por umas três semanas. Então
Tinha vindo sózinho com o acordo total de numa das visitas de domingo, ele disse cal-
Veronique. Decidira qual o rumo a tomar mamente: ((Aquele sonho de Veronique é
para que Sua Senhoria recuperasse por com- muito interessante, considerando tudo o que
pleto. Era tão simples como mandá-la, nos sucedeu)). Sem descanso mexia e mudava
meses de Inverno, com Veronique, o filho da papéis e estranhos escritos que tinha sobre
Sardenha e sua mulher para fora, regres- a secretária. <iTomeinota dele não sei onde.
sando na Páscoa. Perguntei-lhe: «Na Prima- De qualquer forma recordo-o. Sonhou que
vera?)). Ele não se apercebeu! Deixei passar estava de pé a falar, bastante contente, com
e cordialmente ouvi o seu plano e intenções. uns convidados quando viu a mãe sentada
Segundo ele, todos estavam muito felizes numa cadeira, bastante mais forte do que
com o plano. Os ingleses têm uma forma é na realidade e chorando. Sentiu-se muito
I
muito estranha de usar a palavrafeliz; torna- preocupada e dirigia-se para ela quando
-se neutra nas suas bocas. Havia um pro- acordou)). «Quando e onde é que a Vero-
blema, acrescentou nervosamente o Papá. nique teve esse sonho, DWW?)). «Na Sar-
r Como «explicá-lo» a imprensa. A sua denha, claro está, e antes do seu acidente)).
I mulher detinha muitos lugares em organiza- «E não confiou em ninguém senão em si
I
ções de caridade. Fui em seu socorro suge- para falar disso?)). «Não, não o creio)).
rindo o seguinte comunicado: «A Sra. X «Então quando é que ela lho contou?».
I
ficou profundamente perturbada pela inter- «Muito apressadamente na primeira con-
rupção da sua gravidez e partirá para o sulta, quando a mãe saíu para ir telefonar
estrangeiro para descansar. Acompanham-na para uma organização qualquer)). Fui sar-
sua filha, seu filho e nora». Mais sugeri que cástico: «É muita generosidade da sua parte
I o Papá não deveria «assinar» o comunicado, partilhá-lo hoje comigo, quando os Vero-
mas que ele deveria ser emitido pelo médico niques estão definitivamente fora do cami-
de Sua Senhoria. O Papá ficou francamente nho, DWW. Se fôr esse o seu desejo, vamos
aliviado. Não queria mudar uma Única pala- hoje trabalhar nos textos finais do seu livro
vra. Li-o ao telefone a DWW enquanto o Playing and Reality. Gosto do título que lhe
Papá ainda estava comigo. Ouviu pensativa- deu, embora dele não resulte claro que o
mente e pediu-me que repetisse a leitura. livro seja sobre a sua brincadeira, DWW,
Manteve-se silencioso, por um momento, e com a realidade deles)). Riu-se. lhbalhámos
depois disse: «Muito bem, Khan! Matam-se no texto que ficou pronto para seguir para
os Veroniques. Obrigado por me salvar. Feliz o editor na terça feira seguinte. Mrs. Coles
Ano Novo para todos)). Desligou. Os Vero- teve de reescrever muitas páginas. Era sem-
niques partiram para a Sardenha escassos pre assim com DWW, Revisões maciças de
dias após o Ano Novo. Aqui termina a última hora. Tinha-se, literalmente, que lhe
minha narrativa acerca deles. arrancar os textos das mãos e dizer ((aca-
bou agora», para que ele parasse. Também
O verdadeiro propósito ao escrever este eu ia manter DWW a espera para me dizer,
capítulo é o de partilhar com o leitor as quando eu quisesse. Brincávamos a estes
minhas experiências divertidas, embora jogos infantis a toda a hora. É raro encon-
muito duras, de ((trabalhar com» DWW em trarmos uma personalidade com a estatura
casos vividos. Uma vez os Veroniques longe de DWW, de maturidade tão idosa, e con-
e no estrangeiro, continuei a encontrar o seguir achar nela tanta expontânea alegria
Papá em vários acontecimentos sociais e em reciprocidade. DWW era um quarto de
políticos tal como sucedera antes. DWW século mais velho que eu. Mas já tinha
manteve-se propositadamente evasivo a res- reparado que os ingleses têm um verdadeiro

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talento para afastar tais amizades com gera- dade. Não Jones, claro; não me recordo dele
ções mais jovens, com o afecto e a cerimó- ter ido ouvir uma Única comunicação de
nia exactos. Eu fui sempre Khan para ele DWW. Eu queria que DWW prosseguisse
e para mim ele era, em privado, DWW e, nos seus «pensamentos» acerca de Veroni-
em público, o Dr. Winnicott. que sonhando o sonho, por isso disse: «Vol-
tando ao sonho de Veronique)). Mas DWW
«Khan, o que eu não entendo no sonho não desistia: «Veja, Khan, eu tive este pro-
de Veronique, é porque é que ela o sonhou. blema com os sonhos desde os tempos em
Não é um sonho». Espicacei DWW «Tem que estava a fazer didáctica com James
a certeza disso?». «Sim, a certeza absoluta)). Strachey. Nunca fiz análise com Mrs Klein.
Compreendendo que eu me estava a meter Não posso dizer que tenha feito análise com
consigo, tornou-se defensivo. ((Diga-me, Joan Rivière; é, no entanto, verdade que ela
letrado Khan, onde estão nele os aspectos me analisou durante uns dez anos. E con-
próprios do sonho? Há pouca imaginação tinuava a analisar-me durante os debates dos
na composição deste sonho». Como eu Encontros Científicos)). Mantive-me calado
estava a tomar rapidamente notas (tomar e deixei-o descarregar e livrar-se de todas
notas tornava-nos mais seguramente fecha- as memórias que o perturbavam. Frequen-
dos em nós próprios e um com o outro), temente picava-o dizendo: «Sabe, DWW,
deve ter pensado que o não ouvira. «Está você tem uma coisa em comum com Freud,
bem, ponha isso ? sua
i maneira, há um pro- que Q tinha com o Príncipe Hamlet ...».
cesso primário muito escasso. Pouco traba- «Que coisa?», perguntava-me sempre. (Você,
lho do sonho (significando a distorção do Freud e Hamlet podiam viver felizes numa
sonho). Está pouco reprimido ou trai o casca de ovo se não tivessem maus sonhos)).
facto de algum material estar igualmente «Voltemos ao sonho que Veronique podia
incrustado em detalhes igualmente inócuos. ter pensado para si própria, acordada)).
O sonho, Khan, é um comunicado. Sim, tão Notei a forma como DWW usara as pala-
simples como isso. Por isso, porque é que vras. Era nestes aspectos que mostrava a sua
o sonha? Podia tê-lo dito a si mesma». verdadeira genialidade. Mas DWW tinha
«Assim mesmo, DWW?». «Sim, Khan, tal primeiro que marcar pontos. (Você veja,
qual. As pessoas gostam de sonhar! Isto Khan, eu também posso identificar os seus
não é novidade para mim. Já vi mais de temas freudianos no sonho. Um, Veronique
7000 crianças em consulta. Algumas entram está a exibir a sua supremacia sobre a mãe,
a sonhar e voltam para casa a sonhar. que envelhece e engorda; está a conversar
Então, o trabalho clínico é o de não per- com os convidados, sucedeu-lhe. Dois, a
turbar o seu sonho. Não o de dar as suas mãe é «gorda», não é j á uma mulher que
interpretações». DWW salientara as suas de possa competir com uma jovem pelo inte-
uma forma estranha. Qualquer coisa o per- resse dos homens. Temas edipianos de riva-
turbava. Estranho o número de fantasmas lidade sexual. Três, culpa expressa em
que este sábio clínico guardava dentro de preocupações. Mas ela acorda. Incapacidade
si, como seus juízes: Melanie Klein, Ernest de odiar. Falha na posição depressiva de
Jones (que ensinava acerca do sonho na Mrs. Klein, em Veronique. Concorda com
Sociedade Britânica quando DWW foi can- tudo isto, Khan?)). «Sim, DWW. Só que eu
didato, há uns 36. anos atrás) e até Miss não pensara no sonho de Veronique nesses
Anna Freud. Eram capazes de o fazer des- termos». «Porquê não? Não há nada de mal
carrilar na sua linha de pensamento da na técnica clássica». «A resposta ao seu
forma mais ridícula. Testemunhara-o eu, ‘porque não’, DWW, é porque Veronique
durante os Encontros Científicos na Socie- não me contou o sonho. Pensei mais pelo

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ângulo de que Veronique escondera consigo seus «esboços», notas manuscritas, etc., edi-
qualquer coisa pertencendo, ou relacionada, tados em conjunto comigo. Já fizera isso
com a mãe, e que manteve cuidadosamente antes, há uns 37 anos. Para e com o meu
escondida de mim até ela estar fora do pai, Khan Bahadur Raja Fazaldad Khan,
caminho e no estrangeiro. Você protege durante o seu último ano de vida. Ajudara-
mesmo os seus casos». «Não é isso, Khan. -o disciplinadamente a preparar as suas vas-
Tudo o que eu disse do sonho ser edipiano, tas propriedades e a distribuí-las entre os
etc., pode ser verdade mas é irrelevante para seus oito filhos e duas mulheres, conforme
o significado e o fim do sonho». ((Então o seu desejo. Ele sabia que o seu fim che-
qual é o fim, DWW?». «Simplesmente que gara, e com tranquilidade e alegria aceitava
o sonho é sobre o ódio reprimido (incons- o facto. Tivera uma boa vida durante 93
ciente) da mãe pela filha, e não no nível anos. DWW só tinha 70, mas vinha sendo
sexual, e nem ela nem a filha o podiam seriamente afectado por ataques de coração
suportar. Compreende-me? Veja, a mãe não desde 1950. Sim! Ele era uma pessoa reali-
está a chorar por rivalidade ou angústia. zada e compIeta a medida que percorria o
Mas por incapacidade. Ou talvez pela sua seu caminho até ao fim. Isso causava tris-
incapacidade)). ((Então qual é o desejo teza a todos e a cada um de nós que o ama-
latente do sonho, DWW?)). ((Simplesmente vamos. Eu não era o único. Era um de um
isto: o desejo de Veronique de salvar a mãe grande grupo. Tinha sido o mesmo no feliz
da sua incapacidade de odiar a filha! Ela final de meu pai. Dificilmente, em muitos
foi sonhar um sonho que a mãe devia ter aspectos, duas pessoas podem ser mais dife-
tido quando estava grávida de Veronique. rentes do que o foram meu pai e DWW.
Não o sonhou. Pelo menos não creio que Mas, tinham isto em comum: uma inexau-
o tenha feito. Assim, quer ela quer Veroni- rível energia para viver; uma infatigável
que ficam potencialmente doentes e demo- capacidade para trabalhar; um compromisso
rarão ainda algum tempo até adoecer. Veja total nos cuidados a prestar e no bem estar
Khan, a prova de que uma pessoa, ou um dos outros.
doente, sonhou um sonho não é o lembrar- Cada um deles, sem disso se aperceber,
-se posteriormente dele. Vi pessoas adoece- era brutaImente exigente com aquele ou
rem aos 60 anos de idade, e mais, por causa aqueles a quem respeitavam e/ou por quem
de um sonho que tinham sonhado na tinham afecto. Por isso chegara a nossa rela-
puberdade ou na infância e que não con- ção, bem preparado por dezanove anos de
seguiram recordar! O único aspecto positivo aprendizagem resmungona e amorosa com
no sonho é que Veronique acorde antes de o meu pai. Eu estava ciente da correspon-
chegar a mãe. Recusa ser a guardiã do ódio dência. Assim estava DWW. E nunca dis-
reprimido da mãe. As crianças passam a semos uma palavra sobre isso um ao outro.
vida a fazer isso. Quando um dos factos Os observadores da profissão tinham as
não-externos entram nos seus sonhos, acor- suas próprias versões interpretativas para
dam. Não querem nada com ele». intrigarem e espalharem ao redor. Mas vol-
Agora quero partilhar com os meus lei- temos ao que eu «pensei» sobre o sonho de
tores a minha resposta ao sonho ouvido em Veronique. Mantive as notas das minhas
segunda mão, via DWW. Quando acabou reflexões. Sentia que DWW e eu próprio
de dizer o que queria, passámos a outros tinhamos falta de tempo e, por isso, não
assuntos, em especial aos que referiam os surgiu a minha vez de lhe dizer o que pen-
seus escritos e a sua publicação. DWW tinha sava. O importante era ter ouvido DWW.
um sentimento de urgência naquele ano de A minha primeira resposta ao sonho foi:
1970, sobre o ter, tanto quanto possível, os tendo sonhado este sonho, onde residia a

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necessidade de Veronique engendrar o acon- gorda que o habitual)). Assegurava-lhe o di-
tecimento «Quase que me afoguei na Sar- reito a viver pois que a própria vida se lhe
denha»? oferecia. E a maior parte dessa nova vida,
Pensei, tal como DWW, que curto-cir- para Veronique, era o Papá. Precisava dele
cuitar a experiência do sonho era auto-con- para o sublinhar. Aqui cada gesto actual,
servador, mas por razões diferentes das dele. ancorado a realidade, cada acto, cada pala-
Para mim significava ter um outro sonho, vra é simultaneamente simbólico e imagi-
nário, no idioma da linguística moderna.
desta feita não uma criação de Veronique; Lacan (1966) deu-nos a sua gramática sob
só possível de ser feito por ela. As suas duas cuidadosa mistificação. O que sucedeu
declarações «Quase que me afoguei na Sar- desde o sonho «mãe» e «Eu quase que me
denha)) e «O Papá quase desmaiou», vi afoguei)) confirma, pelo menos para mim,
como sendo partes da mesma ((experiência- as minhas inferências. Nas duas outras vezes
-sonhando» (Khan, 1976), mas fragmenta- que estive com Veronique, depois dela vol-
das e espalhadas ao longo do tempo. Para tar a Inglaterra, esqueci, com uma desejada
mim, o acidente-sonhando anulava as obri- facilidade, tudo referente a estes assuntos e
gações e preocupações de «mãe... mais nunca sequer os sugeri.

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