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O Programa de Pós-Gradu­

ação em Educação do Centro de


Ciências Sociais Aplicadas e o Cur­
so de Mestrado em Ciências Soci­
ais do Centro de Ciências Huma­
nas, Letras e Artes da Universida­
de Federal do Rio Grande do Nor-

PUC/SP, e com o apoio local de


Gustavo de Castro. E5ta obra con­
solida uma prcxlução dentífico-aca­
dêmica em desenvolvimento que
não se comporta nos clássicos pa­
drões da departamentaliz.ação bu­
rocrática do saber.
Ensaios de
Complexidade
EDGAR MORIN
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA
FREI BETTO
HERMANO MACHADO F. LIMA
LEONARDO BOFF
NELSON FIEDLER-FERRARA
WINIFRED KNOX
JUREMIR MACHADO DA SILVA
NORVAL BAITELLO JR.
ALEXGALENO
DIETMAR KAMPER
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
JOSIMEY COSTA
MARCELO BOLSHAW
ÂNGELA ALMEIDA
GUSTAVO DE CASTRO
DALCY DA SILVA CRUZ
WANI FERNANDES PEREIRA
OTÁVIO TAVARES
MARIA APARECIDA NOGUEIRA
VÂNIA GICCO
MARCOS ROLIM
SÉRGIO GONZALEZ MOENA
JOEL DE ROSNAY
PABLO NAVARRO

Ensaios de
Complexidade
GUSTAVO DE CASTRO
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA
organizadores

0
Editora Sulina
PORTO ALEGRE, 1 997
© de Gustavo de Castro (org.), 1997.

Capa: Rogerio Costa Arantes.


Projeto gráfico: Traço Comunicação.
Fotolito de capa: Solução Fototlitos.

Editor: Luis Gomes

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


Bibliotecária Responsável: Rosemarie Bianchessi dos Santos CRB 10/797

E56 Ensaio de complexidade / Coordenação


de Gustavo de Castro ... et. at. - -
Porto Alegre : Sulina, 1 997.
272 p.

ISBN 85-205-0 1 64-8


1. Ciências Sociais. 2. Sociologia
CDU 3
316

Todos os direitos desta edição reservados à


ORGANIZAÇÃO SULINA DE REPRESENTAÇÕES S.A.

Editora Sulina
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Porto Alegre, RS

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL


Í ndice

Abertura, 11

Apresen taçã.o, 13

EDGAR MORIN
Complexidade e ética da solidariedade, 15

MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA


Complexidade, do casulo à borboleta, 25

FREI BETTO
Indeterminação e complementaridade, 47

HERMANO MACHADO F. LIMA


Ciência e complexidade, 55

LEONARDO BOFF
Identidade e complexidade, 61

NELSON FIEDLER-FERRARA
Literatura e complexidade, 75

WI NI FRED KNOX
Apontamentos para um diálogo complexo, 91

J UREMI R MACHADO DA SI LVA


Em busca da complexidade esquecida, 103
NORVAL BAITELLO JR.
Síndrome da máquina, 115

ALEX GALENO
Complexus andarilhos, 123

DIETMAR KAMPER
Os padecimentos dos olhos, 131

EDGARD DE ASSI S CARVALHO


Estrangeiras imagens, 139

JOSIMEY COSTA
Criar, comunica.r e expandir, 153

MARCELO BOLSHAW
Linguagens imaginais e complexidade, 159

ÂNGELA ALMEIDA
Corpo CorPensamentoComplexus, 165

GUSTAVO DE CASTRO
... Da fragilidade do homem-rede, 171

DALCY DA SI LVA CRUZ


Como bons timoneiros, 187

WANI FERNANDES PEREI RA


Museu imaginário, arte e complexidade, 193

OTÁVIO TAVARES
ldéiasforça em ação, '199

MARIA APARECIDA LOPES NOGUEI RA


Caleidoscópio de vidas e idéias, 203
VANIA GICCO
Câmara Cascudo: intelectual complexo, 211

MARCOS ROLI M
Utopia, democracia e complexidade, 219

SÉ RGI O GONZALEZ MOENA


A complexidade da política e a política da complexidade, 229

JOEL DE ROSNAY
O homem: gênio individual idiota coletivo, 241

PABLO NAVARRO
A metáfora do holograma social 261
Abertura
EDGAR MORIN l

e ouso falar do pensamento complexo, não é com o propósito de


Sdefinir um modelo padrão para pensar, mas exatamente no sentido
de que, como tudo que é humano, a unidade do pensamento comple­
xo é una e múltipla e comporta em si a multiplicidade, assim como a
multiplicidade comporta a unidade. Ensaios de complexidade é um bu­
quê que nos permite ver as cem flores da complexidade, nascidas de
uma mesma preocupação comum: responder ao mais grave desafio
posto à nossa inteligência. Essa coletânea incita o leitor a sorver cada
um dos textos, a confrontá-los com o seu espírito, convidando-o a
pensar de modo autônomo a partir dessas contribuições, segundo o
adágio "ajuda-te que o pensamento complexo te ajudará".
O pensamento complexo tenta religar o que o pensamento dis­
ciplinar e compartimentado disjuntou e parcelarizou. Ele religa não
apenas domínios separados do conhecimento, como também - dialogi­
camente - conceitos antagônicos como ordem e desordem, certeza e
incerteza, a lógica e a transgressão da lógica. É um pensamento da
solidariedade entre tudo o que constitui nossa realidade; que tenta dar
conta do que significa originariamente o termo complexus. "o que tece
em conjunto", e responde ao apelo do verbo latino complrxere: "abra­
çar". O pensamento complexo é um pensamento que pratica o abraço.
Ele se prolonga na ética da solidariedade.
Ao mesmo tempo, o pensamento complexo redescobre o indivi­
dual, o contingente e o perecível que haviam sido desprezados pela
metafísica, pela ciência e pela técnica ocidental. O que há de mais belo,
de mais comovente, de mais precioso, é o que é o mais frágil, ou seja,
o mais perecível, o mais contingente, o mais individual...
Enquanto o pensamento científico-disci plinar e suas con­
cepções unicamente quantitativas trivializam a realidade, o pensa­
mento complexo redescobre o surpreendente e o desconhecido. Em
vez de ocultá-los ele redescobre o mistério d as coisas, dos seres e do
mundo. Esforça-se por se aproximar o mais possível do indizível e
do indecifrável.
De fato, os problemas cruciais da complexidade são invisíveis
para os que pensam de modo simplificador, e as soluções simplificado­
ras dadas aos problemas constituem, em si mesmas, os problemas mais
urgentes e mais graves a resolver.
A aventura intelectual da complexidade necessita, também, de
vontade, paixão e entusiasmo.
Foram justamente a vontade, a paixão e o entusiasmo que ani­
maram o Grecorn, fundado em 1992, primeiro foco e caldo de cultura
do pensamento complexo não apenas no Brasil, mas na América Lati­
na. Esses Ensaios, aliás, constituem a primeira publicação desse tipo na
América Latina.
Corno se sabe, a lagarta, envolta pela crisálida, começa por
destruir seu organismo de larva, à exceção de seu sistema nervoso.
Esse trabalho de autodestruição é, ao mesmo tempo, um trabalho de
auto-criação de onde emerge um novo ser, outro, e entretanto, com
a mesma identidade. Ao final da metamorfose aparece a borboleta,
de início paralisada, entorpecida ... até que, subitamente, ela estende
as asas e alça vôo. Esse livro é a borboleta nascida de um longo
trabalho interior, de urna longa transformação, e, com toda a nossa
ternura nós saudamos este vôo.
Aproveito esta oportunidade para enviar em comunhão de espí­
rito e coração, com todas as virtudes e os vícios da paixão, meu abraço
a Ceiça Almeida, fundadora, criadora, organizadora e animadora do
Grecorn Grupo de Estudos da Complexidade.
-

Tradução: Maria da Conceição Lima de Andrade.


Revisão: Maria da Conceição de Almeida.

12
1 Apresentação
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA 1
EDGARD DE ASSIS CARVALHO

sses Ensaios de complexidade expressam a tentativa de construir en­


E tendimentos do mundo norteados pela razão aberta. Movido pelo
fenômeno conhecido como panapaná migração em bandos, de bor­
-

boletas, induzida pelo "vento nordeste" - este livro investe em "reser­


vas de complexidades", expressas em pensamentos simultaneamente
singularizantes e universalistas.
Longe de caminhar na direção confortável das fragmentações, o
livro rascunha um horizonte cognitivo que se situa na contracorrente
e nas brechas de um paradigma agônico, que opera na fragmentação
do conhecimento e da vida, que ainda goza da mesmicidade das cida­
delas culturais, dos narcisismos territoriais e conformismos escusos.
Os vinte e cinco textos não constituem um todo orgânico. Asse­
melham-se mais a um holograma, no qual parte e todo constroem-se
mutuamente, por vezes se ligam, por outras se desconectam, numa
totalidade cercada de incertezas e indeterminações, imbuída da neces­
sidade urgente de implodir o paradigma antropocêntrico, causalista,
linear e determinista, para, em seu lugar, exercitar um estilo de pensa­
mento ecocêntrico e cosmológico que privilegie a síntese, a coopera­
ção e cumplicidade entre homens e coisas, a sabedoria intuitiva, o
imaginário, o poético, enfim, o intercâmio entre vida e idéias.
Qiando a leveza e a tenacidade de um pensamento errático e
mestiço instigam a produção de novas narrativas sobre o mundo; quando
a obstinação de Sísifo alerta para os novos patamares da vocação cien­
tífica; quando um sol negro enfraquece a resistência das ortodoxias;
quando a fogueira das vaidades e a endogamia acadêmica começam a
perder a combustão, podemos dar-nos conta de que investir na idéia
de complexidade e na contramão da vigilância cognitiva é o mínimo
que se espera do pensador afinado com os destinos do planeta Terra.
Mesmo que seja mais fácil e confortável chafurdar nos limites da razão
fechada e dos determinismos, do que navegar à deriva, no oceano das
desordens e reorganizações cognitivas, é tempo de promover uma re­
volução radical capaz de superar o dualismo entre matéria e vida, sujei­
to e objeto, numa démarche que ultrapasse o conformismo intelectual,
esse produto perverso do liberalismo mundializado que se abateu so­
bre todos os sapiens danens deste "astro-errante" em que vivemos.
Se a morte do homem foi decretada nos idos dos anos sessenta,
a vida do homem deverá ser promulgada já, reativando no sujeito a
unidade e a multiplicidade de uma condição humana inacabada e
desconhecida. Pode ser que uma "onda interminável de borboletas
alaranjadas com laivos de açafrão nas asas inquietas'', de que falou
Câmara Cascudo, tenha sobrevoado todos os ensaios aqui presentes.
De algum modo, os escritores aqui agrupados se alimentaram da radi­
calidade para expor seus sentimentos e escutas sobre este mundo que se
ressente de uma nova possibilidade de encantamento, de utopia, de
civilização.
O sonho acalentado pelo Grecom - Grupo de Estudos da Com­
plexidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Nor­
deste do Brasil - pode, agora, com esses Ensaios de complexi.da.de, prover
elos importantes para a constituição planetária da tão almejada rede
para o pensamento complexo, assim como retroalimentar a utopia de
uma verdadeira democracia cognitiva.
Esse sonho não seria possível- sem uma farta porção d e
cumplicidade e partilha: Vicente Madeira, coordenador do Programa
de Pós-Graduação em Educação, apostou nesse vôo das borboletas. O
Serviço Nacional da Indústria (Sesi-Nacional), por mediação de Otto
Euphrásio de Santana, patrocinou parte desta publicação. Júlio César
Gurgel, Geísa Pereira Alves e Rachel Medeiros Germano, bolsistas do
CNPq, viveram viceralmente a metamorfose do casulo à borboleta. A
doçura desta publicação se deve a eles.

14
1 Complexidade e ética da solidariedade
EDGAR MORI N' 1

U incapazes de separar e rejuntar os elementos dos quais estamos


tilizamos freqüentemente a palavra complexidade, mas somos

falando. Não conseguimos encontrar uma explicação e uma defini­


ção. É por isso que a palavra complexidade toma-se uma palavra vazia,
que tapa buracos. E, se ela é cada vez mais utilizada, isso só prova
nossa importância, cada vez maior, de poder falar desses fenômenos
que chamamos de complexos.
Então por que estamos desarmados perante a complexidade?
Porque nossa educação nos ensinou a separar e a isolar as coisas. Sepa­
ramos os objetos de seus contextos, separamos a realidade em discipli­
nas compartimentadas umas das outras. Mas, como a realidade é feita
de laços e interações, nosso conhecimento é incapaz de perceber o
complexus- o tecido que junta o todo. Ao mesmo tempo, nosso sistema
de educação nos ensinou a saber as coisas deterministas, que obede­
cem a uma lógica mecânica; coisas das quais podemos falar com muita
clareza e que permitem, evidentemente, a previsão e a predição.
Vivemos num mundo onde cada vez mais há incertezas. A cren­
ça no determinismo universal, que era o dogma da ciência no século
passado, desmoronou. O problema é como enfrentar e rejuntar a in­
certeza.
Todos nós, quando percebemos alguma coisa no nosso campo
de visão, temos uma percepção complexa, pois com o olhar podemos
ver o conjunto, selecionar e isolar uma coisa entre outras ou passar de
uma para outra, indo da pane ao todo e do todo à pane. Mas, se
aplicamos espontaneamente a percepção complexa, é muito mais difí-
cil alcançar um conhecimento complexo, pois conhecer é sempre po­
der rejuntar uma informação a seu contexto e ao conjunto ao qual
pertence.
Por exemplo, quando ouvimos falar pela primeira vez na guer­
ra da Bósnia, a palavra Sarajevo não nos significava nada. No entanto,
com a ajuda dos jornais e dos programas de televisão, começamos a
situar, não só geograficamente, mas também política e culturalmente,
a cidade de Sarajevo. Mas, evidentemente, para ter um melhor conhe­
cimento de Sarajevo e da Bósnia, é preciso conhecer o passado dos
Bálcãs, a ocupação turca, a Primeira Guerra Mundial e seus efeitos na
região, pois não podemos esquecer que a Primeira Guerra Mundial
começou com um atentado em Sarajevo. Depois, é necessário compre­
ender a Segunda Guerra Mundial, o comunismo iugoslavo do mare­
chal Tito e a crise desse comunismo.
Assim, nos damos conta de que o conhecimento torna-se cada
vez mais pertinente quando é possível encaixá-lo num contexto mais
global. Em contrapartida, se temos um conhecimento muito sofistica­
do, mas que é isolado, somos conduzidos ao erro e à ilusão.
Por exemplo, a economia, que é a ciência humana mais sofisti­
cada no plano matemático e formal, e que já possui vários prêmios
Nobel conferidos a economistas. Percebemos, hoje, que os economis­
tas são incapazes de prever as crises econômicas que estão por aconte­
cer. Como se trata de uma ciência quantitativa, ela elimina da sua
visão tudo o que diz respeito à vida, às paixões, aos sofrimentos e aos
gozos humanos. E, no entanto, todas essas dimensões humanas estão
presentes na vida econômica. Se uma jovem estudante vai ao super­
mercado e compra um creme de beleza, esse ato econômico está relaci­
onado ao seu desejo de agradar e seduzir. Em todo ato econômico,
colocamos nossas necessidades, nossas aspirações e, talvez, nossa pró­
pria mitologia.
Vemos, então, que o desafio da complexidade pode ser encara­
do de modo tanto mais sério quando consideramos que, da mesma
maneira que aquilo que no passado foi certo e seguro, e que hoje nos
parece erro e ilusão, o que hoje temos por certo e seguro poderá ser
visto, no futuro, como erro e ilusão.
Karl Marx dizia que os homens não sabem o que fazem e o que
são. Mas ele acreditou achar a explicação do que eles fazem e do que

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eles são. Hoje sabemos que ele pr6prio se enganou em muitos aspectos
importantes.
O trabalho que realizei chamado de "O Método" objetiva en­
frentar esse desafio cognitivo, elaborar e encontrar operadores - ins­
trumentos do conhecimento, que efetivamente permitam abordar a
complexidade. Esses instrumentos não foram inventados, mas, em al­
guns aspectos, foram desenvolvidos e sobretudo reagrupados por mim.
O primeiro deles é a noção de sistema. Um sistema é o conjun­
to de partes diferentes, unidas e organizadas. Assim, por exemplo, a
sociologia define a sociedade como um sistema; e, evidentemente, ela
é constituída de indivíduos e grupos sociais extremamente diferentes.
Mas não podemos conhecer a sociedade a partir de indivíduos e gru­
pos tomados isoladamente. É preciso juntar as partes ao todo, e o todo
às partes.
E por que o todo? Porque a sociedade é um conjunto de panes,
que produz qualidades e propriedades como a linguagem, a cultura, as
regras, as leis. Ela mesma retroage sobre os indivíduos e lhes permite
ser perfeitamente humanos. Pois, sem a linguagem e a cultura, sería­
mos macacos de nível inferior.
Essa idéia � muito importante: um todo organizado produz
qualidades e propriedades que não existem nas partes tomadas isola­
damente. Sabemos, por exemplo, que uma bactéria é constituída uni­
camente de elementos químicos que encontramos na natu�eza. A vida
é constituída de moléculas, mas a organização vivente tem qualidades
que não podemos encontrar nas moléculas tomadas isoladamente. A
qualidade é de poder se mover, conhecer e se regenerar.
Portanto é necessário ter um pensamento que possa conceber o
sistema e a organização, pois tudo o que conhecemos é constituído da
organização de elementos diferentes - os átomos, as moléculas, os
astros, os seres vivos, os ecossistemas, a biosfera, a sociedade e a huma­
nidade. Este, um operador de primeiro nível.
A segunda idéia é de circularidade, em inglês looping, formulada
por Nobert Wiener, que diz respeito ao caráter retroativo do sistema.
Tomemos como exemplo o sistema de aquecimento central, onde o
apartamento que é aquecido tem um termostato. Q.iando a tempera­
tura que desejamos é alcançada, o termostato pára o aquecimento; se a
temperatura não é suficiente, o termostato desencadeia o sistema fa-

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zendo-o reaquecer. Este exemplo muito simples tem conseqüências
importantes: ao contrário da idéia linear de que toda causa tem um
efeito, ele sugere uma causalidade circular, onde o próprio efeito volta
à causa. Graças a este sistema obtém-se a autonomia térmica do aparta­
mento que se quer aquecer. Há uma ruptura com o determinismo
banal, porque o determinismo banal diria que quando está frio fora
deveria estar fazendo frio dentro.
A terceira idéia, mais uma vez, uma idéia de circularidade, de
looping, mas um looping autoprodutivo. Por exemplo, nós somos o
produto de um ciclo de reprodução, que produz gerações após gera­
ções. Mas, para continua.rmos este ciclo, é necessário que nós, que
somos produtos, nos transformemos em produtores. Portanto, neste
sistema, o produto é ele próprio produtor. O efeito é ao mesmo tem­
po uma causa.
Retomando o exemplo da sociedade, sabemos que toda socieda­
de é produzida pela interação entre os indivíduos, e, se não há mais
indivíduos, não haverá mais sociedade; poder haver monumentos, par­
lamentos, mas não sociedade. Os indivíduos produzem a sociedade,
mas, como dizíamos, a própria sociedade, ela mesma com sua cultura
e linguagem, retroage sobre os indivíduos. Somos produtos e produto­
res ao mesmo tempo.
Vemos aqui a diferença entre o pensamento clássico, que tem
uma casualidade linear, e uma casualidade complexa, que permite re­
juntar fenômenos que, senão, permaneceriam isolados em nosso
espírito.
Outro operador é aquele que chamo de "hologramático". Por
que hologramático? Qiando temos a imagem de um holograma, a
diferença entre esta e uma imagem de fotografia é que, na fotografia,
cada ponto corresponde a um ponto do objeto fotografado. Enquanto
no holograma, um ponto contém praticamente toda informação do
objeto. Por exemplo, se temos uma locomotiva num holograma e a
cortamos ao meio, nós não ficamos com duas metades de uma loco­
motiva, mas com duas locomotivas inteiras.
A mesma coisa acontece com o organismo vivo e a organização
social. Nós somos constituídos de 80 a 100 bilhões de células. No
entanto, cada célula contém a totalidade de nosso patrimônio genéti­
co. Alguns já estão pensando que é possível construir clones a partir de

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uma célula da pele. E cada um entre nós poderia reproduzir-se em
centenas de milhares de exemplares.
Esta idéia não só quer dizer que a parte está dentro do todo,
mas que o todo está no interior da partes. Nós mesmos somos indi­
víduos que estamos dentro da sociedade, mas a sociedade como um
todo está presente em nós desde o nosso nascimento. Nós recebemos
as proibições, as normas, a linguagem e, finalmente, a presença da
sociedade entre nós. Há um outro operador, ao qual chamo de "dialó­
gico", que significa que, para compreendermos alguns fenômenos com­
plexos, é necessário que juntemos duas noções que a princípio são
antagônicas, e que são, ao mesmo tempo, complementares.
Por exemplo, a fórmula de um grande filósofo da antiguidade
Heráclito, "viver de morte e morrer de vida". Trata-se de uma fórmula
paradoxal, pois se há duas idéias que são totalmente antagônicas são a
morte e a vida. Um grande cientista do século XIX, que se chamava
Bichat, definia a vida como um conjunto de forças que resiste à morte.
No entanto, hoje em dia, com o progresso do conhecimento
biológico, ficamos sabendo que estas forças resistem à morte utilizan­
do a morte. Como? Sem parar, nosso organismo tem moléculas que se
degradam, e nossas células as substituem por moléculas novas; nossas
próprias células morrem e novas células vêm no lugar destas. Dito de
outra maneira, nossa vida, através da morte das nossas células e das
nossas moléculas, continua. Este processo esclarece a fórmula de Herá­
clito "viver de morte"; da mesma forma as sociedades vivem da morte
dos seus indivíduos, pois a cultura é transmitida às novas gerações, e
assim se regenera.
Mas por que morrer de vida? Porque a grande diferença entre
nós, nosso organismo, e as máquinas artificiais é que elas são construídas
de materiais extremamente resistentes e sólidos, que começam a ser
usados pouco a pouco, a partir do momento em que são postos em
funcionamento. Mas nós não nos usamos como máquina, as moléculas
e as células usadas se reproduzem e são trocadas.
Por outro lado, a cada respiração, inspiramos oxigênio, que é
uma forma de desintoxicação e que vai circular em nosso sangue,
limpando-o em cada batida cardíaca. Viver é um processo de rejuve­
nescimento permanente. Nos rejuvenescemos a cada batida do cora­
ção, de 60 a 80 por minuto. Multiplicando por 60 temos o tempo de

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rejuvenescimento por hora, e assim, multiplicado por meses e pelos
anos, compreendemos que morremos de tanto nos rejuvenescer. Nós
morremos porque rejuvenescemos demais. Deste modo entendemos o
sentido do princípio dialógico: a vida integra, ela própria, a morte;
ainda que finalmente ela sucumba.
Qiando observamos o que os ecologistas chamam de "ciclo
nutritivo da natureza", que permite aos seres humanos, aos animais e
aos vegetais viverem e se alimentarem, vemos que é um ciclo de vida
que também é um ciclo de morte. Pois temos animais herbívoros que
comem as plantas, que serão comidos por pequenos carnívoros, que
serão comidos por grandes carnívoros, e, quando os grandes carnívo­
ros morrerem, haverá insetos, vermes, que vão se alimentar. E os sais
minerais, que são frutos dessa decomposição, serão aproveitados pelas
raízes das plantas. Vemos o ciclo de morte e o ciclo de vida. Isso induz
evidentemente ao princípio dialógico.
Outro princípio muito importante, indispensável nas ciências
humanas e sociais, permite rejuntar aquele que conhece ao seu conhe­
cimento, ou seja, integrar o observador à sua observação, e o conhece­
dor ao seu conhecimento. Por exemplo, o sociólogo, ele é a parte de
um todo social, e o todo está dentro dele. Evidentemente ele não pode
ter um ponto de vista objetivo, que lhe permita dominar, como de um
trono, o conjunto da sociedade. Ele tem de fazer um trabalho de auto­
análise, de auto-exame, para tentar se situar e saber que não é proprie­
tário de um verdadeiro conhecimento já de início, mas que esse co­
nhecimento é relativo.
O mesmo acontece com os antropólogos. No início do século,
os antropólogos ocidentais pensavam que eram proprietários da razão
e do conhecimento objetivo. Lévy-Bruhl, grande antropólogo francês
do início do século, caracterizava as sociedades, que chamava de pri­
mitivas, de sociedades compostas de indivíduos de mentalidades má­
gicas e místicas. Ele não se perguntava como esses indivíduos eram
capazes de construir instrumentos e estratégias de caça extremamente
racionais e eficazes. Diante de novas condições históricas, a Europa
ocidental deixou de ser o centro do mundo e se transformou numa
pequena região marginalizada, houve uma mudança no ponto de vis­
ta dos antropólogos, que descobriram que havia riquezas de conheci­
mento nas populações arcaicas, que havia conhecimento de plantas e

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remédios. Eles não só tinham um conhecimento da natureza, que
nossa farmacêutica não conhecia, mas praticavam também arte de vida
e sabedoria que nós não tínhamos.
É preciso notar que toda cultura, que poderia ser considerada
por nós arcaica e primitiva, contém, nela própria, uma mistura de
sabedoria, de verdades profundas, de conhecimentos, e de erros e su­
perstições. Mas nossa sociedade também tem os mesmos elementos de
conhecimento, de verdade, de erros e superstições. Freqüentemente o
que chamamos de razão é algo profundamente irracional.
A introdução do conhecedor no conhecimento é indispensável
nas ciências humanas. É também indispensável para a nossa reflexão
sobre a ciência da natureza saber quem somos nós na história da vida?
Nós não somos a finalização lógica da evolução biológica. Essa evolu­
ção aconteceu em todas as direções, foi animal e vegetal, e, depois de
toda uma seqüência de linhagem, desembocou na humanidade. Nós
somos um elemento na história da vida, da mesma forma que nós
consideramos hoje o cosmos, estamos num pequeno planeta, satélite
de um sol de periferia que, por sua vez, faz parte de uma galáxia
periférica - a da Via Láctea. É impossível considerar a humanidade o
centro do mundo, é impossível pensar que o objetivo da humanidade
seja conquistar a natureza. Se integrarmos nosso conhecimento, pode­
remos situar-nos com a nossa consciência, uma consciência Ínais váli­
da do que se não fizéssemos esses exames.
Eu lhes apresentei alguns instrumentos, e todos eles têm a pro­
priedade de reunir o que está separado, sendo que os dois mais impor­
tantes são as idéias de circularidade e de dialógica. Qiando temos
esses instrumentos, que aprendemos sozinhos, não basta uma aula ou
conferência, a questão é de estrutura de pensamento, e, quando esta
estrutura é fixada muito cedo na escola, ela se endurece e se torna
diflcil de mudar. Trata-se de um princípio que chamamos de "para­
d igma". Os paradigmas são estruturas de pensamento que de modo
inconsciente comandam nosso discurso.
A história do mundo e do pensamento ocidentais foi comanda­
da por um paradigma de disjunção, de separação. Separou-se o espíri­
to da matéria, a filosofia da ciência; separou-se o conhecimento parti­
cular que vem da literatura e da música, do conhecimento que vem da
pesquisa científica. Separaram-se as disciplinas, as ciências, as técnicas.

21
Separou-se o sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento.
Assim, vivemos num mundo em que é cada vez mais difícil
estabelecer ligações, quando se trataria de enraizar outra estrutura de
pensamento. Para isso é preciso, evidentemente, uma ruptura do
ensino, que permita juntar ao mesmo tempo que separa. O conheci­
mento complexo conduz ao modo de pensar complexo, e esse modo
de pensar complexo, ele próprio, tem prolongamentos éticos e exis­
tenciais, e talvez até políticos.
Por exemplo, uma sociedade extremamente complexa, uma
sociedade em que indivíduos e grupos têm muita autonomia e que,
evidentemente, há desordens e liberdades, no limite ela se destrói,
pois os indivíduos e grupos não mais têm relações entre si. Pode-se
manter a coesão da sociedade através de medidas autoritárias, mas a
única maneira de salvaguardar a liberdade, é que haja o sentimento
vivido de comunidade e solidariedade, no interior de cada membro,
e é isso que dá uma realidade de existência a uma sociedade comple­
xa. Portanto, a solidariedade é constituinte desta sociedade. O pen­
samento que une o modo de conhecimento se prolonga para o plano
da ética, da solidariedade e da política. Há uma ética d a complexida­
de que é uma ética de compreensão.
Essa ética se explicita quando compreendemos que cada ser hu­
mano é, ao mesmo tempo, múltiplo em sua unidade, que ele não é o
mesmo quando está apaixonado ou enraivecido, que ele mesmo pode
viver situações que o fazem pegar outro caminho, em vez do que deve­
ria. Chegamos à compreensão de que, da mesma maneira que vemos
nossos próximos, as pessoas com as quais vivemos, em vez de reagir de
modo mecânico cada vez que entramos em conflitos, achando que são
elas que estão erradas, lembrando apenas das coisas desagradáveis que
nos dizem, esquecemos as coisas desagradáveis que nós lhes dizemos.
Qiando fazemos isso não percebemos que há uma circularida­
de numa briga e num conflito. Na maioria das vezes não é um que
está certo ou errado, mas é a circularidade na incompreensão que os
leva ao conflito e à incompreensão.
Portanto há uma ética da compreensão e, por outro lado, uma
ética da aposta em relação à incerteza. Sabemos que Kant formulou
uma moral, um princípio de universalidade que diz que "nós deve­
mos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles fizessem a nós

22
mesmos e tratar com eqüidade todo outro, independente de sua raça e
de sua religião».
No entanto essa ética kantiana só leva em conta a intenção e
não a materialidade da ação. O pensamento complexo nos diz que há
uma ecologia da ação. A partir do momento em que lançamos uma
ação no mundo, essa vai deixar de obedecer às nossas intenções, vai
entrar num jogo de ações e interações do meio social no qual acontece,
e seguir direções muitas vezes contrárias daquela que era nossa inten­
ção. Logo nunca estamos certos se nossas boas intenções vão gerar
boas ações.
É por isso que a resposta a essa incerteza se encontra ao mesmo
tempo na aposta e na estratégia. Na aposta, pois não temos absoluta­
mente certeza de conseguir os resultados que queremos; na estratégia,
que permite corrigir nossa ação, se vemos que ela deriva e vai para
outro caminho.
Q!iantas pessoas estavam persuadidas de agir para o bem da
humanidade, sem se dar conta de que, na verdade, trabalhavam para
sua escravidão. Aqueles que puderam se dar conta disto tiveram, de
certo modo, de abandonar esta ação, para melhor obedecer àquilo que
era a sua intenção primeira. Eles foram chamados de "traidores e rene­
gados". É por isso que a ética se toma difícil e complexa, senão nós
corremos o risco de errarmos demais.
Existe uma ética da tolerância fundada em três princípios. O
·
primeiro foi enunciado por Voltaire, que dizia a um adversário de
idéias: "suas idéias me são odiosas, mas morrerei pelo direito que você
tem de exprimi-las,.; dessa maneira ele enunciava o princípio da livre
expressão, que é um dos direitos humanos. O segundo princípio de
tolerância está na instituição democrática, porque a democracia é o
sistema que permite e encoraja o conflito de idéias, à condição que
isso não assuma a forma de afrontamento físico e violento, mas que
seja um conflito de idéias e de argumentação com a sanção de eleições
periódicas. A democracia exige o respeito às minorias, inclusive às
minorias desviantes. O problema difícil que se coloca é que se têm de
suportar algumas minorias que querem destruir a democracia. Esse é
um dos problemas da democracia, mas que se deve respeitar.
O terceiro princípio de tolerância foi enunciado por Pascal,
filósofo francês do século XVII, de uma forma quase que idêntica a

23
Niels Bohr, físico dinamarquês do século XX. Pascal dizia que "o con­
trário da verdade não é um erro, mas uma verdade contrária" e Niels
Bohr, que "o contrário de uma verdade profunda não é um erro, mas
uma outra verdade profunda". Qiando estamos a par disso, embora
tenhamos nossa opinião, permanecemos tolerantes.
Muitos dizem que o pensamento complexo desencoraja a ação,
que o reconhecimento da incerteza é desencorajador, muitos pensam
que para agir é preciso odiar o inimigo, ou seja, que é necessário um
pensamento maniqueísta: achar que o inimigo é uma encarnação do
mal absoluto e que nós somos a encarnação do bem absoluto. M as
sabemos que na realidade as coisas não são tão claras. Na nossa época
entendemos que o inimigo está dentro de nós mesmos.
De fato, quando imaginamos a aventura humana, imaginamos
que nossos antepassados habitavam um meio extremamente inóspito
e incerto, que tinham de caçar, quando imaginamos que as sociedades
em conflito e guerra nunca tinham certeza da vitória; quando pensa­
mos que estamos numa aventura descon:hecida. Eu acredito que, se
tivermos força suficiente, força de participação, de solidariedade e de
comunidade, corrigiremos a própria ação, mas sem medo de se lançar
nela.
Partindo de um método do conhecimento cheguei em um pen­
samento e, de certo modo, em uma filosofia. Filosofia que não signi­
fica somente o conhecimento isolado da ética e da ação, mas que se
prolonga nos diferentes campos da existência.

Conferência realizada no Tuca, em 23 de outubro de 1996.


Tradução consecutiva: Caterina Koltai.
Transcrição de fita: Natalia Montebello e Maurício S. Ferrewa e Milton T�to Jr.
Revisão técnica: Edgard de Assis Carvalho.

24
1 Comp lexidade, do casulo à borboleta
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA1 1

O sábio chinês Chuang-Tzu sonhou que era uma


borboleta e, ao acordar, se perguntou se até mtão fora um
homem sonhando, 011 se poderia ser naq11tle mommto uma
borboleta sonhando que era um homem.
.Q}lt vimos a esta terra para viver é uma inverdade: nós
vimos apmas para dormir, para sonhar
(Poema asteca. Anônimo.)

M
anda quem pode, obedece quem tem juízo. Esse aforismo, cujo
sentido é marcadamente autoritário, pode ser metamorfoseado nos
limites de um pensamento mais libertário. Assim transformo, mutilo e
ressignifico o aforismo acima, enunciando-o na seguinte expressão: "Soli­
cita quem tem sabedoria, empresta adesão quem é curioso e atrevido". Sou
naturalmente cúmplice de atitudes pouco disciplinares, pois sei o quanto
é desafiante e gratificante dialogar com outras áreas do conhecimento.
Tenho aprendido muito com filósofos, educadores, cientistas da cogni­
ção, psicanalistas. Nos momentos de debate, tento manter em suspensão
meus pontos de vista e minhas referências teóricas, para escutar o que os
colegas têm a dizer.
Nunca saio do mesmo jeito desses encontros. Às vezes, me sinto
acrescida de idéias novas, de pontos de vista que amplificam ou ques­
tionam minhas lentes de olhar o mundo. Por vezes, descubro trocas
promissoras, onde imaginava haver uma dificuldade enorme de cone­
xão. Ou, ainda, percebo que contribuí de alguma forma para o diálo­
go - seja porque desconstruí e desnudei os argumentos nos quais me
aporto, seja porque expus idéias e noções ainda em gestação. Uma
coisa é certa: atitudes não circunscritas à disciplinaridade fechada es­
tão como que acondicionadas em um navio sem âncoras - mas não
flutuamos à deriva totalmente. Ao perigo de flutuação sem rumo,
respondemos, coletivamente, com as singularidades dos saberes acu­
mulados que nos fazem submergir e emergir num caldo transindivi­
dual e transdisciplinar. Temos, entretanto, de ressaltar os perigos e
desperdícios que acercam esses rendez-vous. �anto aos desperdícios, se e
quando eles ocorrem, só tenho a lamentar. Dos perigos, tenho pouco
a dizer, uma vez que deles não procuro fugir. Na vida, como nas
idéias, só é possível dar um passo à frente, se o fazemos perigosamen­
te. Não há meio-termo: o perigo prefigura quase sempre "reservas de
complexidade", prontas a emergir e recolocar o sistema em metapata­
mares de reorganização. Daí que, para alcançar metapatamares de com­
preensão do mundo, o especialista terá de se deslocar do seu mundo
confortável e abrir-se às múltiplas armadilhas da narrativa científica,
que, de resto, comporta nossas próprias armadilhas. Sobre essa pre­
missa é que desnudo os sentimentos de incerteza, de risco e de curio­
sidade, que me motivam a expor, a partir de uma certa ótica, a idéia de
complexidade. É o que faço a seguir.
Parto de quatro momentos, quatrofragmentos que, mesmo interco­
nectados, guardam uma certa singularidade temático-discursiva. Começo
por apresentar um perfil da crise paradigmática que estamos atravessando,
chamando a atenção para o fato de que se trata mais de uma crise do
pensamento do que, propriamente, da falência das intetpretações científi­
cas, das teorias. Em seguida, exponho a idéia de complexidade a partir da
ótica de Edgar Morin por três motivos. Em primeiro lugar, por entender
que as proposições/provocações de um "contrabandista dos saberes" (como
ele próprio se denomina) representam uma referência singular na convo­
cação de parte da comunidade científica mundial para uma nova reorga­
nização do conhecimento. Pautadas na transdisciplinaridade, as proposi­
ções morinianas religam os conhecimentos sobre a matéria, a vida, o ho­
mem e a sociedade. Em segundo lugar, porque, desde 1985, venho me
alimentando das idéias instigantes desse pensador, o que, se não me faz
sentir completamente familiarizada com sua obra, me instiga a falar dela.
Em terceiro lugar, falo da complexidade em Edgar Morin porque já não
falo em nome próprio, mas em nome do Grecom -, Grupo de Estudos da
Complexidade - base de pesquisa que tem como referência maior nosso
assessor internacional. O terceiro fragmento é movido pelo desejo de apro­
ximação entre as idéias que tenho trabalhado e aquelas postas em discus­
são pela física Cristina Dai Pian, em disciplinas que ministramos juntas
no âmbito do doutorado em Educação da UFRN. Por fim, um último
fragmento que exibe algumas sugestões para um novo entendimento do
papel do educador no mundo contemporâneo.

26
Fragmento 1 - Crise e incerteza

De forma sintomática ou não, esse final de século parece permi­


tir ecoar um protocolo de premissas que, mesmo já esboçadas anteri­
ormente, eram mantidas silenciadas. Assim, temos escutado hoje, com
relativa freqüência, enunciados que denotam a insuficiência das expli­
cações científicas; explicações inadequadas ao mundo contemporâneo;
mundovisões simplificadoras, redutoras, fragmentadas/fragmentárias;
interpretações da cultura endurecidas, porque não refratárias aos des­
mentidos sociais. Em síntese, emergem hoje a intuição, a desconfiança
e a tomada de consciência de que o modelo cartesiano de pensar co­
meça a esgotar as estratégias que moldaram, nos últimos séculos, um
homem dolorosamente fraturado e permitiram imaginar o mundo
pautado pela tirania da ordem. Fritjoff Capra sugere que uma tal crise
do pensamento articula-se e decorre de uma crise maior que tem por
suporte três fenômenos: a ameaça de esgotamento dos recursos energé­
ticos do planeta, a contestação do modelo patriarcal de condução da
sociedade e, por fim, uma crise generalizada da cultura. Edgar Morin
pisa mais forte nesse terreno movediço, e responsabiliza a casta inte­
lectualizada moderna por parte dos males sociais do nosso tempo.
Todo pensamento redutor, dirá, implica políticas sociais redutoras,
parciais, cerceadoras das potencialidades e liberdades humanas.
Como Capra e Morin, outros pensadores têm se posto à tarefa
de d iagnosticar a crise por que passa hoje o mundo, a cultura, o ho­
mem e a ciência, e, num esforço certamente anticartesiano, têm sacu­
dido o império das certezas incontestes. Interroga-se hoje sobre os
frágeis fundamentos que fazem do homem um ser ímpar, superior em
tudo, a todos os outros seres e matérias - fundamento esse que legiti­
mou, durante muito tempo, a relação a um só tempo perversa e suici­
da da dominação da natureza pelo homem.
Essa temática, a crise do "grande paradigma do ocidente'', cons­
titui um importante ingrediente que tem alimentado o debate atual
nos espaços acadêmicos e extra-acadêmicos (isso é importante) da co­
munidade brasileira e internacional.
Discute-se a falência das explicações unilaterais e totalizadoras e
propõe-se uma nova articulação do conhecimento num apelo claro e
aberto, mas também incerto e difuso, à "civilização das idéias". Um

27
tal apelo fundamenta-se no desejo de superação da disciplinaridade
fechada, da especialização impotente, mas acima de tudo, penso, na
urgente necessidade de refletir sobre a arrogante supremacia da cultu­
ra científica sobre os saberes da tradição secular do homem. "A Decla­
ração de Veneza", de 1986, e a "Carta de Caracas", de 1992, são, nesse
sentido, documentos emblemáticos, porque, ao mesmo tempo que pre­
figuram a insatisfação de pensadores pouco paradigmáticos diante da
parcialidade das interpretações científicas sobre o mundo, lançam tam­
bém as bases para uma prática científica ancorada numa ética/estética de
solidariedade universal entre o cientista e o mundo. É nesse sentido que
as provocativas palavras de Michel Foucault, de que "há mais idéias na
terra do que os intelectuais imaginam", facilitam a abertura do pensa­
mento para abraçar questões novas, por vezes desconcertantes. Nada
de mal, por exemplo, em hipotesiar com David Bohm sobre a idéia
audaciosa de que, mesmo que o conhecimento se processe no cérebro,
ele se dá principalmente e, em primeiro plano, pela pele, pelo corpo.
A partir de caminhos metodológicos certamente diferenciados,
mas complementarf's, Claude Lévi-Strauss e Edgar Morin vêm demons­
trando a relação forte, por vezes indissociável, entre os estados de ser
ou estratégias do pensamento humano, chamando a atenção para o
intercâmbio instável operado pela rigidez/fechamento e autonomia/
abertura das representações sobre o mundo. Desse modo, a estratégia
do bricoleur, não prisioneira das experiências já solidificadas, asseme­
lha-se aos "desvios" operados pelo pensamento na contramão d as "ob­
sessões cognitivas'', impressas na rigidez paradigmática.
A lista de pensadores que se puseram a afirmar direta ou indire­
tamente a crise paradigmática de nosso século, mas também a existên­
cia de um núcleo insubmisso e revolucionário do pensamento huma­
no, pode ser certamente ampliada. Aos nomes já citados, poderíamos
acrescentar outros como os de Werner Heisenberg, com o princípio
da incerteza, e, mais proximamente, Ilya Prigogine, Renée Weber, Daniel
Dennett, Francisco Varela, Edgard Carvalho, para citar apenas alguns
dos pensadores insatisfeitos com as certezas disciplinares endogamica­
mente aferidas.
Mas é preciso cautela. Se é impossível desconhecer a efervescên­
cia e não apostar na possibilidade de avanço que o atual debate sobre
a crise paradigmática apresenta, é, por outro lado, um delírio sentir-se

28
vanguardista ao pôr-se essa discussão, e mais ainda, uma insensatez
advogar uma nacionalidade para ela. Malgrado os enunciados equivo­
cados que defendem nacionalidades distintas para a ciência, o pata­
mar do debate que começa a se consolidar nesse final de século é,
necessariamente, transnacional, planetário.
Pôr-se, portanto, a serviço de um projeto de reconstrução da
ciência supõe hoje, entre outras coisas: diferenciar entre universalis­
mo e generalismo; abdicar do papel de árbitro da verdade; criar espa­
ços para a dialogia entre saberes múltiplos, deslocando o debate so­
bre a ciência para a reflexão sobre o conhecimento; demolir os mu­
ros das idéias-pátrias; conviver com a incerteza própria aos momen­
tos de criação; trabalhar para o afrouxamento das infra-estruturas
tácitas dos conceitos unívocos, fixando horizontes mais ampliados
em busca da complexidade.
Tal projeto, uma utopia talvez, requer seriedade, perseverança e,
permitam-me a construção, um sujeito euforicamente sereno. Requer tam­
bém, esse projeto, a vigilância contra a roupagem nova dos discursos
velhos; a atenção necessária para não transformá-lo em trem do mo­
dismo para onde afluirão passageiros que temem, oportunisticamen­
te, o antigo; requer, por fim, o exercício firme da desconstrução dos
particularismos vulgares que dificultam uma "ecologia do conheci­
mento" humanizante e fundamentalmente "selvagem" (Carvalho, 1992).
Como um exercício auto-reflexivo, devo dizer, ao final desse
primeiro fragmento que, a rigor, o conteúdo já exposto desnuda, ele
próprio, o lugar do qual falo, a mundovisão da qual parto. Feito isso,
passo agora para o segundo fragmento.

Fragmento 2 - A idéia de complexidade em Edgar Morin

Seria falacioso, e no mínimo ficaríamos em débito com o rigor,


se atribuíssemos a Edgar Morin a descoberta da palavra "complexida­
de". Ele próprio reconstitui as origens da palavra atribuindo ao filóso­
fo G. Bachelard (O Novo Espírito Científico) e a Shannon e Warren
Weawer, nas áreas da teoria da informação e da cibernética, as primei­
ras referências substantivas que, por fim, abrem o espaço para os estu­
dos sobre a complexidade. Assim, já no início dos anos 60, uma certa
brecha sucumbe um biologismo fechado puramente fisiologista, e a

29
vida passa a ser entendida a partir de tudo aquilo que nos seres vivos
é comunicação, conhecimento, inteligência. Em suma, a teoria da in­
formação e a cibernética (anos 50) vão fornecer uma nova perspectiva
teórica, aplicável simultaneamente às máquinas artificiais, aos orga­
nismos biológicos, aos fenômenos psicológicos e sociológicos.
A idéia de complexidade tem, pois, uma origem dispersa. Mas,
se não é rigoroso atribuir uma paternidade única à origem do vocábu­
lo nem às suas primeiras zonas de interferência, é imperativo creditar
a Edgar Morin o papel do grande artesão do pensamento complexo e
da idéia de complexidade. Caminhando transversalmente entre os do­
mínios da biologia, da física, da teoria da informação, da filosofia, das
ciências da cognição, entre outros domínios, esse pensador errático
tem-se posto a prefigurar as possibilidades de um conhecimento ver­
dadeiramente transdisciplinar.
De que metier Morin faz uso para isso? Se é possível identificar
as ferramentas morinianas, estas são a migração conceitua! e a cons­
trução de metáforas. Migração conceitua! de um domínio para outro,
o que garante a ressignificação e ampliação de conceitos e noções,
originariamente disciplinares; construção de metáforas e analogias,
que permitem religar homem e mundo, sujeito e objeto, natureza e
cultura, mito e logos, objetividade e subjetividade, ciência, arte e filoso­
fia, vida e idéias. A partir desse metier, melhor dizendo, dessas ferra­
mentas, Morin tem, sobretudo a partir dos anos 50, formulado incan­
savelmente os argumentos, as premissas e os fundamentos de uma
"ciência nova", fundamentos, premissas e argumentos esses que de­
vem alimentar, segundo suas palavras, "uma reforma do pensamen­
to". Em sua extensa produção - obras metodológicas, temáticas, de
conjuntura, autobiográficas -, uma mesma obsessão: rejuntar, religar,
bricolar, fazer dialogar as áreas e disciplinas fragmentadas pela ciência
e pelo pensamento simplificador/disjuntor.
Mas o que é mesmo complexidade para Edgar Morin?
Poderia dizer numa palavra, como às vezes o faz Morin: comple­
xidade é tecer junto, religar, rejuntar. Mas isso é pouco, eu sei e devo
apressar-me para expor, mesmo correndo o risco de simplificação, a
natureza da complexidade e seus três princípios fundamentais.
A primeira coisa a ser dita é que a complexidade está no mun­
do, em todas as coisas (materiais ou não). A vida cotidiana é impreg-

30
nada de complexidade. Referindo-se a um romance de Proust, Morin
afirma que "não é simplesmente a sociedade que é complexa, mas
cada átomo do mundo humano". Portanto, a complexidade, antes de
ser uma teoria, um paradigma, um modelo para pensar a matéria, a
vida e o homem, é mais propriamente um atributo de toda a matéria.
Para Morin, ela não se reduz a um modelo científico ou mental ad hoc,
sem sintonia com o mundo. Só é possível pensar complexo porque o
próprio pensamento se move segundo características comuns a toda a
matéria. É obviamente a noção de sistema aberto que está em pauta. A
complexidade é o estado de ser de todos os sistemas abertos, quer
dizer, auto-eco-organizados e organizadores.
Assim, o homem, a sociedade, o meio ambiente, os sistemas de
idéias interagem entre si, por meios de trocas, porque são sistemas
abertos. As informações são, pois, os códigos da dinâmica de comple­
xificação de qualquer sistema, sendo que as trocas se dão simultanea­
mente, intra e inter-sistemas. Daí que cada sistema - da célula ao
mundo das idéias -, ao receber novas informações, promove uma
reorganização do padrão anterior, que permite a expressão das singu­
laridades e desvios, resguardadas as características universais, porque
comuns a todos objetos e fenômenos do mundo. Na acepção morini­
ana de complexidade está contida a noção de auto-organização pelo
ruído, ou "ordem pelo ruído'', metamorfose do princípio do "acaso
organizador" proposto por Henri Atlan para o estudo dos seres vivos.
Mas não é só na biologia, na teoria da informação e na ciberné­
tica que nosso "contrabandista dos saberes" vai buscar os fios para
tecer o exercício do pensamento complexo. Também da física retira
princípios e leis que funcionam como operadores de interconexão entre
as ciências da vida, do mundo físico e do homem. A dialógica ordem­
desordem-reorganização qualifica o movimento de complexificação
dos sistemas. Por isso, a noção de entropia agrega-se a outras tantas
para exemplificar que tanto a desordem como o ruído e o acaso estão
no interior e no exterior de qualquer fenômeno, o que lhes possibilita
permanentes reorganizações, ou seja, novas ordens que se desordenam
e reordenam sem cessar. Esse argumento, facilmente aceito em se tra­
tando de fenômenos físicos, climáticos ou ecológicos, encontra terre­
no de ressonância extremamente fértil no âmbito dos fenômenos soci­
ais e dos sistemas de idéias. Não se trata de uma transposição de mo-

31
delos, mas de operadores cognitivos que facilitam a compreensão d a com­
plexidade do mundo.
A fecundidade de uma tal construção intelectual está no fato de
religar, no domínio do pensamento, o que já se encontra direta ou
indiretamente interconectado no mundo das materialidades e das to­
pologias imaginárias. Longe das transposições mecânicas de conceitos,
oriundas da biologia, da física ou da teoria da informação, trata-se
mais propriamente de exercitar o pensamento metafórico no que ele
tem de mais incitador: aproximar, relacionar, fazer dialogar e buscar
pontos de aproximação entre as complexas singularidades da matéria.
É nesse sentido que o primeiro e o segundo princípios da termodinâ­
mica formulados por Carnot e Clausius, que tratam da concentração
e dispersão da energia e calor, permitem a Morin construir a metáfora
do "calor cultural", para dizer da metamorfose, complexificação e cri­
ação (vida e morte) nos sistemas sócio-históricos. Segundo ele, só há
transformação criadora a partir da efervescência cultural, clima de
ebulição permitido pela troca intensa, em outras palavras, por um
"caldo de cultura".
A aproximação com o momento de ebulição da água da chalei­
ra é aqui evidente. Assim como somente a partir de um certo ponto se
dá mudança de estado da matéria, assim também a mudança de ponto
de vista ou a transformação social/individual é favorecida enorme­
mente pela efervescência das idéias e pela troca intensa entre as experi­
mentações cognitivas, sociais e históricas. Mas há que se considerar,
também, os desperdícios, a dispersão e os resíduos que ficam, por
vezes, de fora do sistema ou do acontecimento recém-organizado. Tais
fragmentos, longe de permanecer átomos isolados, vão habitar outros
sistemas, outros eventos, outros acontecimentos, seja de forma perifé­
rica, marginal ou nuclear. Pensemos, por exemplo, em interpretações
tidas como irrelevantes num determinado momento e que só muito
depois são aceitas e postas em apreciação. O mesmo se diga dos valo­
res e inovações cuja excentricidade de origem é reformatada em pa­
drões culturais aceitos a posteriori. Os exemplos podem ser multiplica­
dos, mas não cabe aqui descer a detalhes. O mais importante é frisar
que há sempre uma parte que morre ou é dispensada para fazer viver
outras partes. Essa metamorfose contínua, aberta e incerta circunstan­
cia as noções do todo e da vida. Daí por que Morin se apóia na célebre

32
frase de Heráclito "Viver de morte, morrer de vida". Tal paradoxo,
que "não é fútil", permite compreender por que "não somente as
moléculas de nossas células se degradam, mas nossas células, elas mes­
mas, morrem". Portanto "viver é sem cessar, morrer e rejuvenescer".
Bem-vistas as coisas, esse metapatamar de reorganização do co­
nhecimento, maestrado por um "bricoleur sem registro de patente",
como se autodenomina Morin, afere uma verdadeira garimpagem de
noções e conceitos advindos de vários campos disciplinares. Poder-se­
ia afirmar com convicção que, se um tal sistema de idéias é reconheci­
do por vários especialistas como uma "transposição" de cada uma de
suas áreas, é porque as contém a todas e, portanto, é, tout court, trans­
disciplinar, complexo, aberto. A esse respeito, é fundamental reaver a
relação entre universalidade e singularidades. A dialógica do uno e do
múltiplo, que caracteriza a complexidade, afasta-se definitivamente
do generalismo estéril das leis gerais, tanto quanto do relativismo pu­
eril que insulariza o singular.
Cabe, ainda, explicitar sumariamente os três princípios reitores
que comandam a noção de complexidade em Edgar Morin. O primei­
ro princípio, a dialógica, diz respeito às trocas, simbioses e retroações
entre as entidades físico-químico-psíquicas que comandam a organiza­
ção viva, em especial, o homem e a sociedade. O princípio dialógico
não opõe ordem e desordem, natureza e cultura, mas entende tais
fenômenos como simultaneamente concorrentes, antagônicos e comple­
mentares, o que permite manter a dualidade no seio na unidade. O
segundo princípio Recursividade OrgamZa.cional nega a cadeia line­
- -

ar causa - efeito, produtor - produto, infra-estrutura - superestrutura e


fundamenta a idéia de que a causalidade é necessariamente recursiva,
de modo que uma causa produz um efeito, que se torna causa nova­
mente, e assim sucessivamente. O terceiro princípio, Hologramático,
parte da proposição de que a parte está no todo, que está na parte. Esse
princípio diferencia-se da visão holística, uma vez que, para Morin, o
todo é, por vezes, maior ou menor que a soma das partes. O importan­
te aqui é observar a dialógica parte-todo, e asseverar, conforme Pascal:
"Eu não posso conceber o todo sem conceber as partes e não posso
conceber as partes sem conceber o todo". Esses três princípios são
indissociáveis, e, nas palavras do Morin, a idéia de holograma está ela
mesma ligada à de recursividade, que por sua vez supõe a idéia dialógica.

33
Como artifício de retotalização narrativa, transcrevo três metá­
foras que, para Morin, exibem a contento a idéia de complexidade.

A Tapeça.ria

"Pense numa tapeçaria contemporânea. Ela comporta fios de


linho, de seda, de algodão e de lã, com cores variadas. Para conhecê-la,
seria interessante conhecer as leis e os princípios de cada um desses
tipos de fios. Entretanto, a soma dos conhecimentos sobre cada um
des5es tipos de fios da tapeçaria é insuficiente para conhecer não so­
mente essa nova realidade já tecida, ou seja, as qualidades e proprieda­
des próprias a esta textura, mas também é incapaz de nos ajudar a
conhecer sua forma e configuração" (Morin, 1990, p.1 13).

O Copo de Vinho

"Se pegarem um copo de vinho do Porto e o interrogarem,


podem ter a certeza de que nesse vinho do Porto há partículas que se
formaram nos primeiros segundos do Universo; ou sej a, há cerca de
sete a quinze milhões de anos; há também o hid rogênio, um dos
primeiros elementos a ser formado no Universo e produtos do áto­
mo de carbono, que se formou quando da existência de um sol ante­
rior ao nosso. No copo de vinho do Porto, existe a formação dessas
macromoléculas que se juntaram na Terra para dar origem à vida, e
há ainda a evolução do mundo vegetal até o aparecimento d a vinha
selvagem; mas não existe apenas a evolução do mundo vegetal, há
também a evolução animal até o homem e a evolução técnica que
permitiu ao ser humano extrair o sumo da uva e transformá-la, atra­
vés da fermentação, em vinho [ . ] Dito de outra maneira, num copo
..

de vinho do Porto, temos toda a história do Cosmos e, simultanea­


mente, a originalidade de uma bebida que apenas se encontra na
região do Douro" (Morin, 1996, p 13) . .

34
A Árvore

"Era uma vez um grão de onde cresceu uma áivore, que foi
abatida por um lenhador e cortada numa serração. Um marceneiro
trabalhou-a e entregou-a a um vendedor de móveis. O móvel foi deco­
rar um apartamento e, mais tarde, deitaram-no fora. Foi apanhado
por outras pessoas que o venderam numa feira. O móvel estava lá no
adeleiro, foi comprado barato e, finalmente, houve quem o partisse
para fazer lenha. O móvel transformou-se em chama, fumo e cinzas.
Eu quero ter o direito de refletir sobre esta história, sobre o grão que
se transforma em áivore que se toma móvel e acaba fogo, sem ser
lenhador, marceneiro, vendedor, que não vêem senão um segmento ·
da história. É esta história que me interessa e me fascina" (Morin,
1 984, p. 1 34).

Fragmento 3 - Cultura, cognição e complexidade

O tema da complexidade tangencia perigosamente as armadi­


lhas do pensamento simplificador, desde que não obseivemos dois
alertas, que proponho sejam entendidos como ferramentas inibidoras
do sentimento de certeza, de completude argumentativa e do desejo
de proferir a interpretação definitiva.
O primeiro alerta sugere o devido cuidado, diria mesmo, um
sutil manuseio intelectual, com os termos que, juntos, dão o título
deste fragmento: cultura, cognição e complexidade, que, mais que três con­
ceitos - mestres que explicam a totalidade do processo educacional2, os
três vocábulos dialogam entre si num movimento de recursividade e
de retroação, que ultrapassa em qualquer direção, qualquer cadeia de
causalidade entre eles. Se há uma causalidade esta é, seguramente, uma
causalidade circular (em espiral), onde o que é efeito se torna causa,
que provoca novo efeito, e assim sucessivamente. Portanto, a cultura,
senha de acesso ao paradigma humano inacabado, é alimentada pelos
processos cognitivos3, que se reorganizam através de sinapses instaura­
doras de novas imagens e simbolizações que se culturalizam, e assim
por diante. De sua parte, a palavra complexidade, longe de se reduzir
a um conceito insular, a uma palavra mestra salvadora, a um novo

35
ingrediente na trajetória da cultura humana ou, por fim, a um para­
digma cuja hegemonia precisaria ser instaurada, diz mais de um esti­
lo/estado de ser, próprio ao mundo e ao homem. Dado, pois, que a
complexidade é um atributo de toda a matéria, e que ela está impres­
sa como possibilid ade nas estruturas cognitivas do sistema humano
(cultural, simbólico e comunicacional) devemos concluir que tal atri­
buto - a complexidade - não tem morada privilegiada, uma vez que
contamina simultaneamente todos os objetos, todo produto de ex­
perimentação sócio-histórica, bem como a objetivação do pensamento
humano pelas vias das representações mentais.
Como um diamante que lapida, reconstrói e reformata a im­
ponderável aventura da cultura e do conhecimento, a complexidade
religa, permanentemente, o homem às coisas, a natureza à cultura, o
sujeito ao objeto, o processo de aprendizagem às experiências solitári­
as, imaginárias e afetivas. Essa característica, a de estar potencialmente
presente em todos os sistemas e, por isso, se constituir numa argamas­
sa que une, mas não dissolve, produtos por vezes fortemente heterócli­
tos, permite entender a idéia de complexidade acalentada pela expres­
são "tecer junto" cunhada por Morin. É o sentido do "tecer junto" que
permite relacionar estreitamente os campos nacionais - cultura, cog­
nição e complexidade -, que nos seivem aqui de guias importantes.
Em suma, mais que um jogo de palavras que, justapostas, pro­
duzem uma frase de efeito retórico, os três vocábulos intercambiam
entre si campos tensionais - simultaneamente antagônicos, contradi­
tórios e complementares. Daí por que a metáfora da rede, do "tecer
,,
junto , nos alerta para a sutileza intelectual de não reduzir um termo
a outro nem dissecá-los isoladamente. É no campo tensional das no-
ções de cultura, cognição e complexidade, melhor dizendo, na identi­
ficação dos "nós" dessa rede, que poderemos abrir novas janelas para
nos aproximarmos de panoramas e fragmentos que prefiguram a ex­
perimentação humana em relação à sua prÓpria humanidade e ao
mundo, em suas várias dimensões - educacionais, políticas, imaginá­
rias, telemáticas ou outras.
O segundo alerta decorre do primeiro. Trata-se de desvencilhar­
se do equívoco histórico da compartimentalização disciplinar d a cul­
tura científica. De modo geral, dada a retaliação do mundo maestrado

36
pelas ciências, não causaria espanto, nem incômodo, afirmar que "da
,,
cultura, tratam os antrop6logos ; "da cognição, os cientistas cogniti­
,,
vistas ; e assim por diante. E da complexidade, quem trata? Os episte­
m6logos? Os biólogos? Os físicos? Q.iem? É bem verdade que o uso da
palavra entra para o glossário acadêmico a partir dos anos 50, quando
se fala mais propriamente da complexidade da ciência, classificando
esta última de modo diferente em relação aos séculos XIX e XX. Hoje
os estudos da complexidade se ampliam por territórios disciplinares e
temáticos os mais variados (a biologia, a teoria dos sistemas, a infor­
mática, a antropologia, a física e a análise literária), fomentando um
importante espaço transdisciplinar que rejunta fragmentos, enfraque­
ce os limites das áreas do saber, intercambia conceitos e noções e,
sobretudo, busca os elos de intercessão entre a physis, a vida e o ho­
mem. Cabe perguntar: a que disciplina caberia, pois, o estudo da com­
plexidade? Haveria um especialista para tal? Seria ele um complexis­
ta4?
Essa mesma linha de argumentação pode-se estender aos estu­
dos da cognição e, mutatis mutandi, aos da cultura. Vamos por partes.
Comecemos pelas ciências cognitivas. Ou deveríamos chamar ciência
da cognição5 ?
Conforme Howard Gardner (1995), os estudos da cognição nas­
cem oficialmente por volta de 1956, com o psicólogo George A. Mil­
ler, durante um simpósio sobre teoria da informação que ocorreu no
M.I.T., de 10 a 12 de setembro daquele ano. Gardner, no livroA Nova
Ciência da Mente, não poupa espaço para expor sua arqueologia rica de
fragmentos que antecedem e propiciam o aparecimento dessa "nova
ciência,,. Ora, mesmo me eximindo aqui de grifar os pertencimentos
disciplinares ou escolas do pensamento (psicologia, filosofia, lingüísti­
ca, neurociências, ou behaviorismo, construtivismo etc.), é plausível
afirmar que o empenho intelectual para tratar do fenômeno da cogni­
ção humana tem origem incerta e dispersa. E, mais que isso, se incrus­
ta em cavernas nem sempre acessíveis nos mapas de localização da
cultura científica. Assim, se é possível elencar nomes de diversas linha­
gens teóricas e disciplinares, como Popper, Wittgenstein, Dennett,
Putnam, Fedor, Piaget, Holton, Lévi-Strauss e tantos outros, que, nas
palavras de Gardner, trataram da origem, estrutura e dinâmica dos

37
processos mentais, é porque essa temática requer necessariamente um
tratamento transdisciplinar.
Daí, pois, a dificuldade, diria mesmo a impossibilidade, de re­
duzir a cognição a um objeto de uma especialidade qualquer - sej a aos
quadrantes da tecnociência, da teoria das máquinas artificiais, da epis­
temologia, da psicologia, ou outros quaisquer recortes burocráticos­
disciplinares do conhecimento. É pertinente assinalar que "só pode­
mos conhecer fragmentando o real e isolando um objeto do todo de
que faz parte. Mas podemos articular os nossos saberes fragmentários,
reconhecer as relações parte/todo, complexificar o nosso conhecimen­
to ... " (Morin, 1987, p. 2 15) sem, entretanto, aspirar à pretensão à tota­
lidade.
Daí que, mesmo reconhecendo as competências disciplinares
no tocante aos estudos da cognição, há que se assegurar o espaço de
interconexão entre esses saberes como a única forma de não reduzir a
cognição a alguma de suas faces - genética, psíquica, social. É nesse
movimento de religação das áreas disciplinares que se terá de executar
um pensamento transversal, transdisciplinar, que possa operar a supera­
ção da noção de totalidade em favor de um pensamento mais totaliza­
dor, ampliado. A proposição de Joel de Rosnay sintetiza muito bem o
espírito dessa empreitada. Segundo o autor, para além do olhar micros­
cópico e telescópico, teremos de exercitar uma tomada de plano macroscó­
pica que religue parte e todo, singular e universal, micro e macro (Ros­
nay, 1995).
Tratemos, agora, de cultura. Da mesma forma como submeti as
noções de complexidade e cognição ao termômetro argumentativo
que sinaliza para o enfraquecimento do tratamento disciplinar e redu­
tor por parte de uma área especializada do conhecimento, devo trans­
formar uma afirmação feita anteriormente numa pergunta. Da cultu­
ra trata a antropologia? Os antropólogos? É pertinente circunscrevê-la
ao domínio da ciência antropológica? A resposta a essa pergunta só é
possível com a ajuda de uma outra. De que concepção de cultura
estamos a falar? Se entendemos cultura como "o capital cognitivo cole­
tivo dos conhecimentos adquiridos, das aptidões aprendidas, d as ex­
periências vividas, da memória histórica e das crenças míticas de qual­
quer sociedade" (Morin, 1992, p. 17), depreende-se, de pronto, que

38
também essa noção não pode ser reduzida a nenhum dos enquadra­
mentos disciplinares que lhes reduza ou simplifique o campo de inter­
cessão entre os fatores físico-genéticos, simbólicos, cognitivo-estrutu-
rais e imaginários. \
De nossa perspectiva, ancorada nas proposições levistraussiana
e morinianas, sobretudo, a cultura não pode ser entendida em oposi­
ção à natureza. A cultura, como produto de emergências de complexi­
dades oriundas da natureza, não se distingue dessa última senão pela
singularidade, sempre eventual, de uma comunicação hipercomplexa
e aberta, consciente ou inconsciente. Ou seja, a cultura é sobretudo
marcada pela manutenção/metamorfose dos registros da memória
primordial e histórica de todos os homens e de cada um deles. Daí
por que é possível argumentar em favor de uma transversalidade que
une natureza e cultura. Mais qUe isso, é importante assinalar que a
dialógica entre esses dois termos pulveriza-se em mestiçagens e diagra­
mas mais ou menos clonados, mais ou menos mitéticos; mais forte ou
mais fracamente contaminados pela criatividade e pelo afloramento
das transformações, diga-se afloramentos e criatividades marcados pela
transgressão que reformata o design padrão anterior.
-

Em suma, natureza e cultura estão definitivamente ligadas pelo


eixo comum das estruturas sistêmicas das trocas abertas, trocas estas
que se dão a partir de um mapa generativo comum a toda matéria.
Se há uma face de singularidade da cultura, tal face se arma sobretu­
do pela capacidade imaginária, pelo afloramento do desejo e pelo
dispositivo da curiosidade, do desregramento e do excesso que apa­
recem mais fortemente em alguns sistemas - no homem, por exem­
plo. Talvez sej a nesse sentido, o de aproximar ao invés de separar,
que possamos entender as proposições provocativas de David Bohm
quando fala de uma hierarquia de ordens presente em todos os siste­
mas, o que desloca o cérebro do epicentro privilegiado dos estudos
cognitivos. Bohní, numa reflexão provocativa, chega mesmo, em seu
último livro, a falar que o conhecimento se processa, em primeira
estância, pela pele, pelos sentidos (Bohm, 1994).
Na mesma direção, mesmo que a partir de um enfoque singu­
lar, Daniel Dennett nos instiga a pensar sobre os sistemas intencio­
nais e na provocativa idéia de um "mundo nocional, proposto por ele

39
em 1 988 e que diz respeito ao exercício cognitivo que acondiciona,
num mesmo conjunto mental/representacional/imagético, objetos
materiais e crenças. Assim, um mesmo conjunto de representações
mentais poderia conter a idéia de um conceito, a imagem de um
objeto físico e a representação de uma crença - um duende, por
exemplo. Segundo W. Becktel, Dennett propõe que esse mundo no­
cional não seja submetido ao mundo factal.
A indicação de que a dinâmica dos estados cognitivos de uma
pessoa não deva ser submetida ao mundo factual (uma vez que, con­
tendo sua representação, contém igualmente experiências não verossí­
meis), alarga o campo de entendimento da cognição humana, liberan­
do-o das narrativas insularizadas nos domínios da genética, d as psico­
logias ou outros locus disciplinares. Mais que isso, penso que a propo­
sição de que as crenças e desejos alimentam a "instância" do design
pode ser aproximada da idéia moriniana de "recursividade", cujos
termos de referência prefiguram a instância relacional homem - mun­
do - estruturas imaginárias. Por conseqüência, podemos estabelecer
uma meta-ponto de vista a partir do qual, nas palavras de Becktel,
"todas as crenças seriam verdadeiras e todos os desejos seriam razoá­
veis" (Becktel, 1988).
Ora, que rede argumentativa é essa senão um tratamento tan­
gencial ao estudo da cultura? Há sem dúvida uma aproximação visível
entre a conjectura que trata dos estados mentais contaminados por
fragmentos da instância imaginária e a concepção de cultura como
"capital cognitivo coletivo", que contempla, igualmente, as experiên­
cias vividas, a memória histórica (que não suprime, mais inclui, os
mapas/deszgn genéticos) e as ciências míticas.
Esse movimento de desconstrução, do que foi historicamente
firmado como verdadeiras cartas de habilitação por áreas temáticas do
conhecimento, tem aqui o objetivo de enfraquecer as resistências dis­
ciplinares que se instalam nos tênues limites entre as ciências. Não
decorre, daí, nenhuma palavra de ordem de "fim às disciplinas", mas
decorre, sim, o alerta de que a disciplinaridade fechada reduz e simpli­
fica a complexidade inerente a qualquer temática. De maneira análoga
e por conseqüência, o especialista que não se abre à troca com outras
áreas do saber é um míope diante de algumas das múltiplas dimensões

40
nas quais transita sua problemática de estudo - para não falar de
objeto. Postulemos, pois, uma axiomática da incerteza diante da pre­
missa já explicitada, segundo a qual, da cultura, devem tratar, exclusi­
vamente e por autorização, os antropólogos. Uma tal provocação, lon­
ge de propor a morte da antropologia, convoca os estudiosos da cultu­
ra para a tarefa inadiável da reconstrução de uma antropologia geral,
capaz de deter-se sobre o fragmento, mas somente na condição de o
retotalizar/inserir no todo do qual faz parte e de abrir-se à escuta do
campo de ressonância do todo, que delimita as singularidades.
Mantidas as originalidades argumentativas e o manuseio de
referências distintas, podemos afirmar que essas idéias têm sido su­
geridas por pensadores como Ilya Prigogine, Fritjof Capra, David
Bohm e, em particular, Edgar Morin. Rediscutindo, como hipóte­
ses, postulados tidos como indiscutíveis; imprimindo importância a
fatos concebidos como aleatórios pela ciência; refutando a ortodo­
xia e o maniqueísmo; pondo à luz a rigidez dos paradigmas; e, por
fim, apelando para o diálogo e a criatividade do pensamento, esses
autores têm aventurado um novo ofício científico, sincronizados na
proposição de uma nova paradigmatologia. Há que se investir, se­
gundo eles, na disposição para ampliar os limites do conhecimento
e permitir uma reorganização mais democrática dos redutos discur­
sivos do poder disciplinar. Uma tal tarefa, longe de configurar mais
uma especialidade, pertence igualmente aos epistemólogos, físicos,
educadores, sociólogos, antropólogos e intelectuais da tradição.

Fragmento 4 - Educação, desconstrução e reconstrução

No que se refere aos profissionais da educação que aqui nos


interessam mais de perto, é preciso sublinhar o importante papel que
esses atores desempenham enquanto mediadores da transferência e
difusão dos conteúdos da cultura científica. Mais que um simples
transmissor de conhecimento, o professor constitui-se numa referên­
cia privilegiada para a construção da visão de mundo e da estrutura de
pensar do aluno, diga-se, do cidadão planetário. Ele é um operador
cognitivo pleno de subjetividades, marca que institui o sujeito históri­
co. Mas isso só não basta. Investido da autoridade aferida pelo estoque

41
do conhecimento acumulado e do poder instituído pelo lugar discur­
sivo do qual fala, ao educador caberia também a instauração de um
terceiro pólo: o do prazer do conhecimento.
O incitamento à criatividade, a atividade de interditar a orto­
doxia e a certeza podem vir a prefigurar um novo perfil do educador,
em sintonia com as demandas culturais do próximo milênio. Esse
novo educador talvez tenha de incluir, na sua agenda, duas tarefas
que, mesmo distintas, são complementares. Uma diz respeito à recons­
trução de seu próprio perfil enquanto profissional da educação: a morte
do sujeito narcisicamente investido do poder é o mínimo que se espe­
ra para reformatar-se os espaços discursivos do diálogo professor -
aluno. Essa tarefa amplia-se numa outra, sem dúvida investida de maior
envergadura e desafio. Trata-se de exercitar uma verdadeira aeróbica dos
neurônios no sentido de descobrir e desconstruir os imprintings paradig­
máticos que impedem novas e ampliadas "sinapses cognitivas" de alu­
nos cada vez mais ávidos em expor suas subjetividades, seus mapas
cognitivos autobiográficos e de compreender o conteúdo das discipli­
nas científicas pela via da partilha e da co-produção.
Certamente, a tarefa inadiável para reintroduzir o prazer na
praxis docente supõe a reconstrução de um conhecimento mais aber­
to, onde as noções de "polifonia" e "ambivalência" possam emitir
novas mensagens a um espírito - cérebro em permanente "inacaba­
mento" . Para isso, ter-se-á de exercitar um esforço fu ndamental para
acessar o "poliprograma cerebral" atualmente adormecido pela hege­
monia da ratio cartesiana. Em outras palavras, ter-se-ão de questio­
nar as imposições radicais das mundovisões estreitas sugeridas pelos
códigos científico-culturais.
É preciso, pois, ampliar as escolhas cognitivas impostas pela
cultura. É necessário que a escola se coloque como um estoque de
múltiplas escolhas que induzam uma perspectiva intertextual do pen­
samento/conhecimento/sujeito. É com esse objetivo que tomo aqui,
de empréstimo, duas idéias originadas em campos ainda pouco disci­
plinarizados da ciência: a noção de auto-organização formulada por
Henri Atlan (1 992), e o argumento defendido por Pierre Lévy ( 1993),
,
de que o sistema cognitivo humano tem por base uma diversidade de
operações simultâneas. Vamos por partes.

42
Henri Atlan sugere que a complexidade dos sistemas vivos su­
põe a auto-organização pelo ruído6• É a partir da decodificação do
ruído que se desestrutura a fixação do padrão cognitivo e se ampliam
os modelos de referência internos ao sistema. É por isso que os proces­
sos de aprendizagem "não dirigidos" são responsáveis, em grande par­
te, pelo aparecimento de novos padrões de leitura do mundo. O nú­
cleo das idéias de Atlan a esse respeito comporta duas noções/proces­
sos fundamentais: o delírio e o transbordamento.
O delírio passa a ser entendido como uma projeção do imagi­
nário sobre o real e o elemento que exibe a condição de "ambigüida­
de" do imaginário. Sublinha o autor que qualquer hipótese científica
realmente nova é, na sua origem, "da ordem do delírio". O passo
seguinte é, supondo sempre a auto-ecoorganização do pensamento, a
exposição dessa projeção ao real. É o feedback, ou seja, o resultado da
digestão e adequação do delírio ao mundo real, que evitará sua poten­
cial metamorfose patológica. A ausência desse feedback, a partir do
fechamento do sistema cognitivo, pela via da "memorização excessi­
va" (fixação de um molde inalterável) ou da "precisão demasiada"
(fixação numa projeção particular), encerra o delírio no reduto de sua
negatividade.
Daí por que os processos/mecanismos de transbordamento
do pensamento, pelos excessos de imagens e leituras complexas, po­
dem vir a se constituir em importantes "anticorpos" frente à violên­
cia cognitiva que impõe padrões redutores e economizadores do po­
licentrismo cerebral e da polifonia imaginária. As noções de aceita­
ção do ruído e do "delírio organizador" parecem se impor, hoje,
como idéias sobre as quais é preciso pensar. A esse respeito, é preciso
não deixar passar despercebido um certo desacordo, senão pelo me­
nos um descompasso entre a necessidade do feedback para Atlan e a
idéia de Dennett, de que não é necessário submeter a "instância no­
cional" ao mundo factual. Na ausência de uma análise mais matiza­
da sobre a questão, prefiro tomar os dois argumentos como comple­
mentares, apesar de seus fragmentos antagônicos. No momento, é
preferível manter em "incubação" tal reflexão, a apressadamente,
identificar seus pontos de oposição e de afastamento.
Da parte de Pierre Lévy, para o qual "pensar é um devir coletivo

43
no qual se misturam homens e coisas", interessa reter a simultaneidade
das operações cognitivas. Sendo a cultura um dispositivo que limita, pela
seletividade7, a escolha de métodos de leitura do mundo, ela comporta,
em si, a possibilidade de fechamento e redução do pensamento humano,
o que se constitui numa virtual violência cognitiva, pensamos nós. Isto é,
a cultura reduz a polifonia do pensamento. Mas não é só. Numa síntese
arrojada, Pierre Lévy mostra como a história do pensamento no homem
foi traduzida como sendo a sucessão do que ele chamou "os três pólos do
espírito" - oralidade, escrita, informática.
Manter-se em sintonia com o mundo atual é, para Pierre Lévy,
pôr-se a tarefa inadiável de promover a dialógica entre essas distintas
"tecnologias do pensamento". Essa parece ser uma das estratégias fe­
cundas na prática do ensino. Tal proposição sugere que não se deva
excluir nenhum desses três pólos, mais ao contrário, é necessário bri­
colá-los num grande hipertexto da cultura, onde o mito e o logos, os
desejos e as interdições, as narrativas e os diagramas, as subjetividades
e as objetividades teçam, conjuntamente, os "nós" de um homem menos
fraturado. "A sucessão da oralidade, da escrita e da informática como
modos fundamentais da gestão social do conhecimento não se dá por
simples substituição, mas antes por complexificação e deslocamento
dos centros de gravidade" (Lévy, 1993).
Em suma, a desconstrução da educação como adestramento e a
reconstrução do perfil do educador supõem a aceitação da morte e d a
metamorfose d o sujeito cindido e fechado. Nas palavras de Henri
Atlan, "na verdade, foi o homem, enquanto sistema fechado, que desa­
pareceu; sistemas cibernéticos abertos, auto-organizados, são candida­
tos a sua sucessão" (Atlan, 1992).

Notas

1 Professora e coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade (Gre­


com), UFRN.
2 Por educação, entendo a arte de experimentação do capital
sóci0<ultural
acumulado e em reprocessamento permanente.
3 Entendo processo cognitivo como um especial contêimr semi-aberto, que
abriga, em ebulição, elementos mestiçados pela herança genética e sócio-histórica,
bem como elementos por vezes em estado primordial, fruto de insigts criativos

44
(individuais/coletivos) que alimentam o produto já mestiçado, emprestando-lhe
fermento de criatividade e reformatação mestiça.
4 Isso se poderia perguntar também do intelectual que se convencionou
chamar de '"ecologista". Ele não seria na verdade um artesão da tecitura complexa
que expõe e protege o intercâmbio e a simbiose entre os diversos sistemas vivos e
não vivos? Nesse sentido seria adequado tomá-lo como um especialista?
5 A problematização a respeito das ciências cognitivas ou a ciência da cog­

nição é posta por Edgar Morin logo nas primeiras páginas de O Método III (especi­
almente na página 21 da edição portuguesa).
6 Para o caso do processo de aprendizagem, entenda-se ruído como o que é

estranho, o que desordena a interpretação, a desordem criativa, o acaso, a contra­


venção. No caso das teorias científicas: as teorias concorrentes, as hipóteses comple­
mentares e as variantes fatuais, que não se enquadram no sistema de explicação já
consolidado.
7 A adtNra fimcio11a como paradigma quando garante princípios ocultos que

impõem uma certa mundovisão e quando alimenta a intransigência diante do


pensamento não-convencional. Mas, ao mesmo tempo, quando possibilita a trans­
gressão e a formulação de uma nova visão de mundo. É de Edgar Morin a idéia de
que a cultura comporta, simultaneamente, abertura e fechamento (Método l\t).

Bibliografia

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45
I ndeterminação e comp lementaridade
FREI BETT0 1 I

s paradigmas da modernidade sustentam-se na filosofia de Des­


O cartes e na física de Newton. Racionalismo e determinismo seri­
am as chaves para se chegar ao conhecimento científico, livre de inter­
ferências subjetivas, preconceitos e superstições. Levada ao paroxismo,
a mecânica clássica - que descreve as leis determinísticas que regem o
macrocosmo - sugeriu ao pensamento marxista a idéia, tida como
inelutável e científica, de que o determinismo histórico regeria as soci­
edades para formas mais perfeitas de convivência humana. Assim, o
materialismo histórico explicaria o avanço do feudalismo ao capitalis­
mo e, deste, ao socialismo, sem indícios de retrocessos substanciais.
Ora, o Muro de Berlim caiu também sobre essa transposição da
mecânica clássica às ciências sociais, soterrando o determinismo histó­
rico e, com ele, os paradigmas que davam uma aparente consistência à
modernidade. Para salvar-nos das hipotéticas teorias do caos e do aca­
so, a formulação de novos paradigmas deve levar em conta dois parâ­
metros fundamentais, derivados da física quântica (que trata do mi­
crocosmo ou das partículas quanta existentes no interior do áto­
- -

mo): o princípio da indeterminação ou da incerte:za, de Werner Heisen­


berg, e o princÍJ!Ío da romplementaridade, de Niels Bohr.

Um salto quântico e epistemológico

A carteira de identidade química do átomo encontra-se no nú­


mero de prótons contidos em seu núcleo. São eles que determinam a
carga elétrica do núcleo que, por sua ve�, fornece o número de elé-
trens em órbita em torno do núcleo. Um átomo simples de hidrogê­
nio possui um único próton - que é também o seu núcleo - cercado
por um elétron. Os átomos mais pesados possuem mais prótons e
nêutrons, e também mais elétrons que coroam o núcleo.
Medir a localização e a trajetória de bilhões de partículas e, com
os resultados, prever o movimento dos prótons é física clássica. Hei­
senberg pretendeu demonstrar que jamais poderemos conhecer tudo
sobre os movimentos de uma partícula. Mesmo conscientes de que em
ciência todo resultado é provisório, não se pode deixar de admitir que
o princípio da indeterminação revolucionou a visão que a física newto­
niana tinha do mundo. Agora, a física quântica desafia a nossa lógica.
Q!iando um fóton - que é um quantum - atinge um átomo e obriga
o elétron a passar instantaneamente da órbita inferior para a superior,
o elétron, como um acrobata, o faz sem atravessar o espaço intermedi­
ário. É o que se chama salto quântico que, além de desafio científico,
é também um problema filosófico. É essa mesma incerteza quântica
que explica a colisão de próton com próton no seio das estrelas - o
que, à luz da física clássica, parece tão impossível quanto um boi voar.
É mais fácil acreditar no boi voador que acolher sem interroga­
ções a teoria quântica. O próprio Einstein, um dos pioneiros desta teo­
ria e que formulou a hipótese do fóton como quantum de luz, chegou a
afirmar que estava intimamente persuadido de que os flsicos não pode­
riam se contentar por muito tempo com essa "descrição insuficiente da
realidade". Discordou da interpretação probabilística da mecânica qu­
ântica. Só que, em geral, a insuficiência não está na natureza, e sim em
nossas cabeças, o que não significa que possamos alimentar a pretensão
de penetrar todos os segredos da natureza. Moça pudica, ela preservará
para sempre certos mistérios, como argumenta a Escola de Copenhague
ao demonstrar que certos acessos não estão permitidos pela própria
natureza.
Entretanto, quando Aristarco afirmou, quinze séculos antes de Co­
pérnico, que a Terra gira em torno do Sol, os gregos apelaram para o bom
senso e convocaram os nossos sentidos como testemunhas fidedignas de
que a Terra não se move, mesmo porque, se tal ocorresse, os habitantes de
Atenas seriam atirados pela ventania em direção ao leste, e os atletas de
Olímpia dariam um salto maior que as pernas. Séculos depois, a mesma

48
lógica foi aplicada, em vão, para tentar descartar as teorias de Copérnico e
de Galileu.

Realidades excludentes e, no entanto, complementares

A ruptura decisiva da flsica quântica com a flsica clássica ocorreu


em 1927, quando o alemão Wemer Heisenberg estabeleceu o princípio
da indeterminação: pode-se conhecer a posição exata de uma partícula
- um elétron, por exemplo - ou a sua velocidade, mas não as duas
coisas ao mesmo tempo. Impossível saber, simultaneamente, onde um
elétron se encontra e para onde ele se dirige. Pode-se saber onde ele se
encontra, mas jamais captar, ao mesmo tempo, a sua velocidade. Pode­
se medir sua trajetória, nunca sua localização exata. Numa câmara úmi­
da podemos observar a direção na qual um próton se move, até que ele
passe pelo vapor d' água, quando sua desaceleração impedirá que saiba­
mos onde se encontra. A outra alternativa, irradiar o próton, tomando
uma foto dele, mas a luz ou qualquer outra radiação usada em fotogra­
fia o desviará de sua trajetória, de modo que jamais saberemos qual seria
seu percurso se não tivesse sido incomodado pelo cientista-paparazzo.
Ao contrário do que supunha Einstein, Deus parece jogar da­
dos com o Universo. As imutáveis e previsíveis leis da natureza em sua
dimensão macroscópica não se aplicam à dimensão microscópica - eis a
descoberta fundamental da flsica quântica. Na esfera do infinitamente
pequeno, segundo o princípio quântico da indeterminação, o valor de
todas as quantidades mensuráveis - velocidade e posição, momento e
energia, por exemplo - está sujeito a resultados que permanecem no limi­
te da incerteza. Isso significa que jamais teremos pleno conhecimento
do mundo subatômico, onde os eventos não são, como pensava Newton,
determinados necessariamente pelas causas que os precedem. Todas as
respostas que, naquela dimensão, a natureza nos fornece estarão inelu­
tavelmente comprometidas por nossas perguntas.
Essa limitação do conhecimento não estaria anualmente condi­
cionada pelos recursos tecnológicos de que dispomos? Não se poderia
criar, no futuro, um aparelho capaz de acompanhar o movimento do
próton sem interferir na sua trajetória? A incerteza quântica não de­
pende da qualidade técnica dos equipamentos utilizados na observa-

49
ção do mundo subatômico. Esta é uma limitação absoluta.
No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e dialógica.
Dual, e não dualista, no sentido platânico, mas sim, como ressaltava
Niels Bohr, numa interação de complementaridade. Foi também em
1927 que o físico dinamarquês Niels Bohr formulou o princípio da
complementaridade. No interior do átomo, a matéria apresenta-se
com aparente dualidade, ora se comportando como partículas, que
possuem trajetórias bem definidas, ora se comportando como onda,
interagindo sobre si mesma.
De fato, no mundo quântico onda e partícula não são exclu­
dentes, embora o sejam à luz de nossa linguagem, que ainda não con­
segue se desprender dos parâmetros da física clássica. Ao estabelecer o
princípio da complementaridade, Bohr articulou duas concepções que,
à luz da física clássica, são contraditórias.
Bohr demonstrou que a noção de complementaridade pode ser
aplicada a outras áreas do conhecimento, como a psicologia, que reve­
la a complementaridade entre razão e emoção; a linguagem (comple­
mentaridade entre o uso prático de uma palavra e sua definição eti­
mológica); ética (complementaridade entre justiça e compaixão) etc.
Em suma, há mais conexões do que exclusões entre fenômenos que o
racionalismo cartesiano pretende distintos e contraditórios.
Se um elétron se apresenta ora como onda, ora como partícula,
energia e matéria, Yin e Yang, isso significa que cessa o reino da obje­
tividade: há uma interelação entre observador e observado. Desmorona­
se, assim, o dogma da imaculada neutralidade científica. A natureza res-­
ponde às questões que levantamos. A consciência do observador influi na
definição e, até mesmo, na existência do objeto observado. · Entre os dois
reina um único e mesmo sistema. Olho o olho que me olha.
Em 1926, numa conversa com Heisenberg, Einstein dizia-lhe: "Ob­
servar significa que construímos alguma conexão entre um fenômeno e a
nossa concepção do fenômeno". Assim, a flsica quântica afirma que não é
possível separar cartesianamente, de um lado, a natureza e, de outro, a infor­
mação que se tem sobre ela. Em última instância, predomina a interação
entre o observado e o observador. É dessa interação sujeito - objeto que trata
o princípio da indeterminação. E, sobre ele, ergue-se a visão holística do
Universo: há uma íntima e indestrutível conexão entre tudo o que existe -

50
das estrelas ao soxvete saboreado por uma criança, dos neurônios de nosso
cérebro aos neutrinos no interior do Sol.

Uma visão holística do real,


onde diferença não coincide com divergência

Para o princípio da indeterminação - que supõe o da comple­


mentaridade - há uma intrínseca conexão entre consciência e realida­
de. Assim como se chega à plenitude espiritual também pela abstinên­
cia, renunciando ao império dos sentidos, não é possível entender a
teoria quântica sem abdicar do conceito tradicional de matéria como
algo s6lido e palpável. Nos umbrais desse novo paradigma - que um
dia também será velho - devemos deixar para trás idéias que, no de­
correr de gerações, foram tidas como universais e imutáveis. Segundo
os pais da teoria quântica, Heisenberg e Bohr, na esfera subatômica,
conceitos sensatos como distância e tempo, e a divisão entre consciên­
cia e realidade deixam de existir. De modo que os cientistas são obri­
gados a abrir mão da simetria que tanto os seduz para se dobrarem à
imposição da natureza, pois quem governa o átomo não é a mecânica
newtoniana, mas a mecânica quântica.
Um dos grandes problemas em qualquer esquema de pensamento é
a migração de sentido. Assim como achamos que, na esfera microscópica, a
natureza deve refletir o que estamos acostumados a ver na esfera macroscó­
pica, do mesmo modo achamos que os outros deveriam pensar politica­
mente como pensamos, ou que a nossa língua expressa a realidade melhor
que as outras, ou que a nossa religião é mais autêntica que as demais, ou que
o nosso estilo individual de vida é bem melhor que o do vizinho. Ao longo
dos séculos, a migração de sentido provocou muitas confusões. C.Oloniza­
dos insistiam em imitar os colonizadores, como hoje o estilo de vida dos
ricos da metrópole exerce fascínio em muitos pobres da periferia. Te6logos,
montados na carruagem bíblica, teimavam em conduzir os cavalos empíri­
cos na direção dos pressupostos da fé. Psicólogos reduziam a política a uma
questão de sanidade mental. Ora, a ciência é filha da dúvida. Qiando era
considerado senso comum que o éter petpassa o Universo como uma malha
invisível, Einstein ousou discordar, tirando a pesquisa cientifica de um beco
sem saída

51
Na esfera do infinitamente pequeno, a ciência é obrigada a in­
gressar no imprevisível e obscuro reino das probabilidades. O princí­
pio da indeterminação revoluciona nossa percepção da natureza e da
história. E nos faz tomar consciência de que, na natureza, a incerteza
quântica não se faz presente apenas nas partículas subatômicas. Bi­
lhões de anos após a predominância quântica no alvorecer do Univer­
so, um estranho e inteligente fenômeno despontaria dotado de impre­
visibilidade inerente a seu livre-arbítrio: os seres humanos.

Resgate quântico do sujeito histórico

O princípio da indeterminação aplica-se também à história. A


liberdade humana é um reduto quântico. Muitas vezes observamos
pessoas que poderíamos qualificar de "partículas", como os políticos,
e outras que mais parecem "ondas", como os artistas. Em cada um de
nós essa dimensão dual também se manifesta, sobrepondo-se, como
análise e intuição, razão e coração, inteligência e fé. Uma expressão
humana tipicamente quântica é o jazz, onde cada músico improvisa
dentro das leis da harmonia, interpretando com o seu instrumento a
sua própria melodia. Não se pode prever exatamente a intensidade e o
ritmo de cada improviso e, no entanto, o resultado é sempre harmônico.
Não há leis ou cálculos que prevejam o que fará um ser huma­
no, ainda que seja um escravo. Lá no núcleo central de nossa liberdade
- a consciência - ninguém pode penetrar. Nem mesmo à aceitação da
verdade o ser humano pode ser obrigado. São Tomás de Aquino, que
nada entendia de física quântica mas muito sabia da condição huma­
na, chega a afirmar que é "ilícito até mesmo o ato de fé em Cristo feito
por quem, por absurdo, estivesse convencido de agir mal ao fazê-lo".
O resgate da liberdade humana pela ótica quântica e, por conseguinte,
o abandono dos velhos esquemas deterministas reinstauram o ser hu­
mano como sujeito histórico, superando toda tentativa de atomização
e realçando a sua interelação com a natureza e com os seus semelhan­
tes. Essa visão holística descarta também as tentativas de encarcerar o
indivíduo num mundo sem história, sem ideais e sem utopias, restrito
aos meios de sobrevivência e submisso às implacáveis leis do mercado.
Toda síntese incomoda a quem se situa num dos extremos. A

52
reintrodução da subjetividade na esfera da ciência mexe com bloque­
ios emocionais arvorados em profundas raízes históricas. Em nome
da fé - uma experiência subjetiva - inúmeros cientistas, taxados de
hereges ou bruxos, foram condenados à fogueira da Inquisição. Em
pleno Renascimento, Giordano Bruno morreu queimado e Galileu
viu-se obrigado a retratar-se. Com o Iluminismo, no século XVIII, os
cientistas assumiram a hegemonia do saber e o controle das universi­
dades, identificando criatividade e liberdade com objetividade, e rele­
gando à subjetividade tudo que parecesse irracionalidade e intolerância.
Na prática, ainda estamos longe do resgate da unidade. No Oci­
dente, as universidades continuam fechadas a métodos de conheci­
mento e vivência simbólica, como a intuição, a premonição, a astrolo­
gia, o tarô, o I Ching e, no caso da América Latina, às religiões e aos
ritos e mitos de origem indígena e africana. Tais "superstições" são
ignoradas pelos currículos acadêmicos, embora haja professores e alu­
nos que freqüentam terreiros e mães-de-santo, e consultam as cartas do
Zodíaco e os búzios. Por sua vez, nas escolas de formação religiosa ou
neológica ainda não há espaço para a atualização científica, nem se
olha o céu pelas lentes de astronomia ou a intimidade da matéria
pelas equações quânticas. A pluridisciplinaridade, rumo à epistemolo­
gia holística, permanece como desafio e meta.
Porém, há razões para otimismo quando se constata a abertura
cada vez maior da cartesiana medicina ocidental à acupuntura e o
interesse de renomados cientistas pela sabedoria contida nas culturas
da Í ndia e da China. Na política fala-se cada vez mais em ética e, nas
religiões, recupera-se a dimensão mística. A ecologia re-humaniza a
relação entre os seres humanos e a natureza e as comunicações redu­
zem o mundo a uma aldeia global. Resta enfrentar o grande desafio de
fazer com que o capital - na forma de dinheiro, de tecnologia e de
saber - esteja a serviço da felicidade humana, rompendo as barreiras
das d iscriminações raciais, sociais, étnicas e religiosas. Então, reencon­
traremos as veredas que conduzem ao jardim do Éden.

Nota

1 Dominicano, jornalista e escritor.

53
1 Ciência e comp lexidade
HERMANO MACHADO F. LIMA1 l

Q
uando Sir Isaac Newton, em seu Princípio da Matemática, esta­
beleceu uma lei física sólida' para todo I! qualquer universo pos­
sível e não só para o mundo conhecido, tomou possível uma nova e
revolucionária visão da ciência. O impacto causado pela lei da gravita­
ção universal foi, sem sombra de dúvida, um dos mais veementes e
contundentes feitos científicos da história da ciência, quer do ponto de
vista da metodologia, quer de uma lógica da ciência. Como conseqüên­
cia metodológica, deslocou as teorias científicas do experimentalismo
galileano fazendo com que as leis científicas passassem a ser aceitas em
função do alcance explicativo e preditivo, independentemente da possi­
bilidade de serem efetivamente experimentadas. Se estamos falando de
qualquer mundo possível, estamos nos referindo a um campo ulterior a
um reconhecimento factual de sua existência, mas no mais legítimo e
puro campo da possibilidade.
Desde já, é necessário que nos acautelemos para que as teorias
científicas não se tomem meras especulações gratuitas. Surge a segun­
da conseqüência da lei da gravitação universal. Se do ponto de vista
metodológico ela abre possibilidades à simples especulação, do ponto
de vista lógico aumenta seu vigor. É necessário uma .enorme coerência
entre os seus conceitos. A lógica interna à própria teoria é que garante
sua aceitabilidade. Imaginar uma lei da gravitação universal é dar con­
ta de todas as conseqüências de tal postulação. No caso específico de
Newton implicava a aceitação simultânea de uma série de outros con­
ceitos e das resultantes de sua aplicação, ou seja, a ela estavam imbrica­
dos: a postulação de um universo infinito, aceleração constante, movi-
menta retilíneo, puro vácuo etc.
Portanto, mesmo caracterizando-se como uma lei estritamente
teórica, em que sua possibilidade de experimentação é extremamente
limitada (para não dizer impossível), é através de um rigor lógico­
conceitual que fica garantida sua aceitação. Além do mais, para imagi­
nar sua lei física da gravitação universal era imperioso a Newton uma
outra suposição básica não explícita à sua teoria e que poderíamos
designar de pressuposto metafísico que era o princípio da ordem da
natureza. Somente em uma natureza absoluta e rigorosamente orde­
nada é possível imaginar um corpo em aceleração constante ou em
movimento retilíneo. Qualquer perturbação por mínima que fosse
alteraria a aceleração ou desviaria a trajetória.
Este fato extremamente importante não só revolucionou a ciên­
cia na física como também espalhou um rastro de influência nos mais
variados campos do saber. Nem a filosofia escapa incólume. Na estei­
r-a de Newton, Kant também tentou e propôs estabelecer como tarefa
da filosofia a determinação de uma metafísica com leis tão precisas e
tão abrangentes como a lei da gravitação universal.
O célebre prefácio à 2.! edição da Crítica da Rraão Pura não só
infunde esta tese como também a justifica de maneira entusiástica.
Todos sabemos que, apesar do esforço e da importância da filosofia de
Kant, sua pretensão saldou fracassada. De fato, esses princípios meta­
físicos de aceitação indubitável nunca foram efetivamente estabeleci­
dos. No entanto esta busca, a partir de Kant, foi arduamente persegui­
da. Em finais do século passado e início do atual, um grande esforço
foi desenvolvido e um sem-número de filósofos engajou-se numa tare­
fa semelhante à de Kant. Se não é possível estabelecer uma ciência da
metafísica ou uma metafísica científica capaz de dar suporte a toda
filosofia, é desejável e necessário estabelecer uma linha demarcatória
entre o conhecimento científico e não-científico. Nisso consistiria a
tarefa da filosofia. Dos analistas ingleses, passando pelo círculo de
Viena e o falsificacionismo de Karl Popper, muitos formularam e ela­
boraram as tentativas. Para não nos alongarmos excessivamente nessas
discussões, tomaremos apenas os exemplos dos esforços de Popper e
seu critério de falseabilidade e Carnap e o verificacionismo.
Para Popper, o que distingue uma teoria científica de uma não-
científica é a possibilidade, que a teoria científica tem, de ser falsificá­
vel. Toda teoria científica deverá possuir pelo menos um de seus enun­
ciados que, se testado e não sendo os resultados condizentes e coeren­
tes com as predições possíveis desse enunciado, a teoria está definitiva
e irreversivelmente falsificada. Este experimento capaz de falsificar a
teoria é chamado de "experimento crucial,,. Porém, se o enunciado
testado resistir aos testes, isto é, se as predições condizerem com os
resultados do experimento, a teoria estará confirmada e, portanto,
poderá ser aceita como científica. Resumidamente, seria esta a propos­
ta de Popper. Qyanto ao verificacionismo de Carnap, o que pretende
este filósofo da ciência é que a linha demarcatória entre a teoria cien­
tífica e a nã0<ientífica reside na possibilidade inerente à primeira de
ter seus postulados submetidos a experimentos empíricos que confir­
mem suas predições.
Todo enunciado científico implica um certo número ou um
certo tipo de predição, submetidos a verificações, através de testes
empíricos; os mesmos devem se coadunar com as predições preestabe­
lecidas. Esta preocupação em estabelecer uma linha demarcatória en­
tre o que é e o que não é ciência advém da convicção de que há uma
ordem na natureza e que o objetivo principal da ciência é desvendar
essa ordem. E, correlatamente, só é científico aquele tipo de conheci­
mento que é capaz de descobrir e explicar de forma universal, repetida
e constante, o ordenamento natural do Universo. Todo outro tipo de
conhecimento incapaz de sustentar predições acerca da ordem da na­
tureza é tido como nã0<ientífico.
O que importa destacar é que para esses pensadores há uma
rigorosa e incessante ordem na natureza. Como se a natureza cami­
nhasse irremediavelmente para um ponto determinado de mais or­
dem. Qyalquer distúrbio, qualquer ruído, qualquer alteração é imedi­
atamente atacado de forma que a ordem seja restabelecida.
É exatamente contra essa visão que se insurge Edgar Morin:
entender o Universo, a natureza, os seres vivos, o homem como ente
ordenado que busca infindavelmente mais ordem. É este olhar linear,
até certo ponto estático, que preocupa Morin. Em seu livro Ciência
com Consciência, ele nos chama a atenção para três possibilidades de
- olharmos o céu estrelado:

57
IA) à primeira vista, impressiona-nos pela sua desordem; é um
amontoado de estrelas dispersas ao acaso;
2.!) num segundo momento percebemos que não é bem assim:
aparece uma ordem cósmica, imperturbável; cada estrela em seu lugar,
cada planeta realizando seu ciclo impecável;
3.!) por fim, nos d amos conta de que vemos um Universo em
expansão, em dispersão, estrelas nascem, explodem, morrem; este
terceiro olhar exige-nos que concebamos, conj untamente, a ordem
e a desordem.
Se o céu estrelado nos sugere estes três tipos de olhar, a vida
também nos remete a situação idêntica: no primeiro olhar a fixidez
das espécies reproduzindo-se impecavelmente, através dos séculos; no
segundo as espécies evoluem, há revoluções; por fim, vemos que, para­
lelamente à evolução, irrompe o acaso, mutações ao acaso, acidentes,
perturbações geoclimáticas, hecatombes. Este terceiro olhar nos leva a
pensar conjuntamente a ordem e a desordem (evolução e involução).
A história humana também padece os mesmos tipos de olhares.
"Temos, pois, tanto na história como na vida que conceber as errânci­
as, os desvios, os desperdícios, as perdas, os aniquilamentos, e não
apenas as riquezas, não só de vida, mas também de saber, de saber
fazer, de talentos, de sabedoria" (CC, p. 72).
Há que, simultaneamente, pensar a ordem e suas perturbações,
indícios de desordem. Um Universo estritamente ordenado impossi­
bilitaria o surgimento do novo, cercearia qualquer possibilidade de
criação. "Um mundo absolutamente determinado, assim como um
mundo absolutamente aleatório, são pobres e mutilados: o primeiro é
incapaz de evoluir e o segundo é incapaz de nascer" (CC, p. 76).
Entre a estática do mundo organizado e a esterilidade da desor­
ganização absoluta é necessário pensar o mundo, os seres vivos e o
homem de maneira mais complexa. Como proceder? Acrescentando
outros elementos a esta polaridade: a ordem e a desordem não subsis­
tem sozinhas - interagem entre si. A desordem está sempre presente,
como elemento perturbador, na ordem. Por sua vez, a ordem pressu­
põe um certo grau de desorganização. Portanto, uma visão mais com­
plexa de ordem implica uma interação com � desordem, e qualquer
desordem supõe um grau de organização. Esses quatro elementos: or-

58
dem, desordem, interação e organização possibilitam uma compreen­
são mais complexa das várias realidades do Universo.
Desde já cabe a ressalva de que, para Morin, complexidade não
é sinônimo de complicação. A noção de complicação estaria mais pró­
xima da quantidade. Um número excessivamente grande de informa­
ções não significa necessariamente uma melhor visão de um certo
fenômeno, sobretudo se não temos condições de averiguar o porquê
daquelas informações, seu significado e significância para o problema
que se quer explicar. Citando um exemplo do próprio Morin, seria
como alguém que fosse capaz de determinar os outputs de um certo
processador de dados pelos inputs por ele fornecidos, sem se dar conta
da maneira como esses dados foram trabalhados dentro do processador.
Muitos cientistas podem dispor e trabalhar com massas bastan­
te numerosas e diversificadas de dados, e nem por isso teriam uma
visão complexa dos fenômenos que estudam.
Como define o próprio Morin: "A complexidade não é uma
noção quantitativa, é uma noção lógica, é a confrontação do uno e do
múltiplo, é a autonomia que é, ao mesmo tempo, dependente sem
deixar de ser autonomia; é, de certo modo, a necessidade de sastadizar
os nossos instrumentos conceituais e renunciar a um princípio unifi­
cador mestre e supremo" (PEC, p. 13 1).
Desta definição de complexidade podemos extrair várias conse­
qüências. Uma delas diz respeito ao estudo do homem. Para além das
dicotomias advindas do platonismo socrático (corpo/alma, bem/mal,
sujeito/objeto etc.), Morin define o homem como um ser auto-eco­
organizador, isso em decorrência da hipercomplexidade do cérebro
humano. É esta hipercomplexidade do cérebro que permite ao ho­
mem não só processar informações - isso os outros seres vivos, sobre­
tudo os mamíferos, também o fazem - permite a esse ser cogitar.
Assim, não há apenas uma animalidade do conhecimento (computa­
ção), mas uma humanidade (cogitação). Uma capacidade não se sobre­
põe a outra, constituem um todo indissolúvel. Essa indissociabilidade
é conseqüência da própria constituição biológica do cérebro. Toman­
do emprestado os conceitos e expressões de MacLean, Morin define o
cérebro como sendo triúnico. Haveria de fato três cérebros interagen­
tes: o cérebro reptílico (responsável por funções como o cio, agressão),

59
o cérebro mamífero (responsável pela afetividade) e o neoc6rtex cere­
bral (inteligência lógica e conceitual). Nenhum desses cérebros pre­
pondera sobre os demais, ao contrário, interagem continuamente a
cada situação.
Retornando às nossas colocações iniciais, há ainda uma outra
conseqüência desta postura assumida por Morin e que eu gostaria de
chamar a atenção. Trata-se de sua postura quanto à organização da
ciência e à prática dos cientistas. No afã de demarcar a ciência do que
não é ciência, o cientista ou o filósofo vê-se tentado também a separar
uma ciência da outra. Na busca compulsiva pela demarcação dos vári­
os campos do saber e a ânsia de apartar o objeto de uma ciência do
objeto da outra, os cientistas não se dão conta de que, muitas vezes, o
problemático está exatamente no campo nebuloso de intercessão entre
uma ciência e outra. Com isso, muitos problemas são deixados de
lado ou simplesmente não conseguem emergir. E, quando isso aconte­
ce, as tentativas de solução são quase sempre soluções parciais, simpló­
rias. Recorrendo, mais uma vez, ao texto Ciência com consciência, Morin
nos incita - estudiosos, pensadores e cientistas - a uma nova postura.
É preciso instaurar um novo paradigma, é preciso promover uma nova
transdisciplinaridade. A nova transdisciplinaridade terá de romper com
os padrões atuais de causalidade linear (causa & efeito) à objetividade
simples.
"Precisamos, pois, para prçimover uma nova transdisciplinari­
dade, de um paradigma que, decerto, permite distinguir, separar, opor
e, portanto, disjuntar relativamente estes domínios científicos, mas
que possa fazê-los comunicarem sem operar a redução. (... ) É preciso
um paradigma de complexidade que, ao mesmo tempo, disjunte e
associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem reduzi­
los a unidades elementares e às leis gerais" (CC, p. 2 1 9).

Bibliografia

MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995.


__ . O problema epistemológico da complexidade. Lisboa, Europa-América,
1 986.

60
Identidad e e complexidade
LEONARDO BOFF 1 l

ornem vem de humus, que significa terra fecunda. Adão, Adam,


H em hebraico, "criatura humana feita de terra'', provém de ada­
má, que quer dizer Mãe-Terra. O ser humano é filho e filha da Mãe­
Terra. Ele é a Terra em seu momento de consciência, de responsabili­
d ade e de amor. Estas palavras, Homo-humus, Adam-adamá, já apontam
para a estreita relação do ser humano para com a Terra e através da
Terra para com todo o Universo. É nesta conexão que devemos buscar
a identificação de sua natureza e de sua missão.

A carteira de identidade do ser humano

A história pessoal é parte da história bio-sócio-cultural. Esta,


por sua vez, é parte da história cósmica. Esse enraizamento confere ao
ser humano concreto uma quádrupla identidade.
Uma cósmica: somos feitos daquelas partículas elementares que
têm a idade do Universo (15 bilhões de anos) e daqueles materiais
forj ados há bilhões de anos no interior das grandes estrelas, especial­
mente os átomos de carbono, oxigênio e nitrogênio imprescindíveis à
vida. Segundo informações do Tycho Brahe, Planetarium de Copenha­
gen, cada dia caem cerca de 30 toneladas de poeira cósmica sobre a
Terra. Na Groenlândia, pode ser vista e recolhida da neve junto com a
poeira terrestre (com 2/3 de pureza). Bilhões destas partículas podem
ser mais antigas que a própria Terra e o sistema solar.
Outra terrena!: surgimos a partir de formas primitivas de vida
que se anunciaram na Terra há mais de 3,8 bilhões de anos com todos
os seus componentes físico-químicos e ecológicos. Essas formas foram
se complexificando até aparecerem os homínidas bípedes com um
cérebro de 600 centímetros cúbitos. Este lhes permitia fabricar utensí­
lios e abrigos. Com o evoluir da espécie homínida em milhões de
anos, emergiu, por fim, o homo sapiens com um cérebro de 1 .500 centí­
metros cúbitos, do qual nós somos descendentes diretos. Ele não rom­
peu a linha evolutiva nem perdeu a herança acumulada de toda a
trajetória terrena! da vida.
A partir do surgimento dos mamíferos, há 2 1 6 milhões de
anos, incorporou o calor afetivo que une mãe/pai/filhos. Soube
estendê-lo para um círculo maior na fo rma de enternecimento, de
amizade e de amor.
Em terceiro lugar, temos uma identidade cultural: o ser hu­
mano criou a cultura, realidade especificamente humana. Criou-a
a partir de intervenções sobre si mesmo e sobre a natureza. Essas
intervenções permitiram que criasse o habitat humano que o grego,
com justeza, chamava de ethos. Ethos, em grego - donde vem a
palavra ética -, é a morada humana. Quer dizer, aquele pedaço do
mundo que escolhemos cuidadosamente, organizamos e nele cons­
truímos nossa habitação permanente.
Intervir é trabalhar. O trabalho é o meio maior de forjamento
da cultura. Ele não só cria instrumentos e aparatos tecnológicos para
transformar a natureza, como também suscita conteúdos da consciên­
cia, formas de sentir, de valorar, de se relacionar psicológica e social­
mente com os outros. Pertence ao trabalho cultural a criação de lin­
guagens, idéias, mitos, artes, etnias, organizações sociais, como a cida­
de, os estados-nações e hoje a globalização. Cada cultura projetou seu
grande sonho para cima e testemunhou seu encontro com o mistério
que se esconde e se revela no Universo e em cada coisa. Chamou-o por
mil nomes: Olorum, da cultura nagô; Javé, da cultura hebraica; Alá,
da cultura muçulmana; Tao, da cultura chinesa e japonesa; Pai e Mãe,
da cultura cristã. Tudo na cultura leva a marca registrada do ser huma­
no, que vem marcado também por ela.
Por fim, temos uma identidade pessoal: cada um possui um nome
próprio, porque cada um representa um ponto onde termina e se
compendia o processo evolutivo. Pelo fato de ser consciente, cada um

62
faz uma síntese singular, única, irrepetível de tudo o que capta, sente,
entende e ama. Com os materiais acumulados em seu inconsciente
coletivo e com aqueles recolhidos em seu consciente faz uma leitura e
uma apreciação que só ele e ninguém mais pode fazer. Por isso, cada
pessoa humana representa um absoluto concreto. Ele é a ponta da
pirâmide para onde convergem todas as linhas ascendentes da evolu­
ção. Cada um está no topo. Em razão disso se entende a dignidade
humana. Entende-se também a afirmação dos filósofos que ensinam:
o ser humano singular é um fim em si mesmo e não pode ser meio
para nada.
Tal afirmação não deve levar a pessoa à arrogância, imaginan­
do-se o centro do Universo. A ponta da pirâmide não está isolada.
Está unida a toda a pirâmide, com a intricada teia de solidariedades
e interdependências.
Assim como na nossa carteira de identidade estão inscritos os
nomes de nosso pai, de nossa mãe e de nosso lugar de origem, assim
também aqui, na nossa complexa carteira de identidade humana, apa­
recem os nossos quatro enraizamentos: o cósmico, o terrena!, o cultu­
ral e o pessoal. Somos efetivamente um microcosmos. Não precisamos
ter vergonha de nossas múltiplas raízes. Ao contrário, temos razões de
orgulho de nossa mestiçagem universal. Precisamos humildemente aco­
lher nosso bilionário processo de fazimento, saudar a imensa riqueza
cósmica que em nós deságua e que ganha um perfil pessoalíssimo em
cada indivíduo. Ele surge como um Amazonas de interrogações, um
mar de desejos e um oceano de utopias.
Hoje, graças à civilização tecnológica, aprofundamos ainda mais
o nosso enraizamento, seja na dimensão micro seja na dimensão ma­
cro. Estamos deixando a Terra e nos lançando para os espaços celestes.
Sim, algo nosso, como a nave espacial Voyager 2, já virou corpo
interestelar, pois, como ultrapassou os confins do sistema solar liberta­
da das forças gravitacionais de nosso sistema, viajará, se nada acontecer,
por mais de 1 bilhão de anos ao redor do centro da Via Láctea. Carrega
dentro de si um disco fonográfico de ouro contendo nele e no seu
invólucro dourado saudações em 59 línguas humanas; uma em língua
de baleia; um ensaio sonoro de doze minutos, que inclui um beijo, um
choro de bebê e o registro eletrencefalográfico das emoções de uma

63
jovem apaixonada; 1 16 imagens codificadas sobre nossa ciência, sobre
nossa civilização e sobre o ser humano; e noventa minutos dos maiores
sucessos musicais da Terra, desde músicas primitivas, passando por Bach
e Stravinski, até os blues modernos. Algo nosso se perenizou no Universo.
Se um dia a nave for abordada por seres inteligentes de outros
mundos, estes poderão saber da história dos humanos deste minúscu­
lo planeta Terra do sistema solar. Talvez a Terra e a humanidade pos­
sam já ter desaparecido. Ou, pela evolução, nossa espécie possa j á ter se
transformado em outra. Permaneceu, entretanto, a Voyager como um
sacramento da Terra. Sem qualquer intencionalidade agressiva, ela
mesma significa uma mensagem de comunhão, uma busca respeitosa
de relação com outros eventuais companheiros de aventura cósmica.

O ser humano, o último a chegar ao cenário da História

De saída devemos renunciar a qualquer arrogância ou pretensão de


privilégio ou de domínio. Não assistimos ao nascimento do Universo. Ela
não é a Terra para nós; nós somos para a Terra. Ela não é fruto de nosso
desejo. Nem precisou de nós para produzir sua imensa complexidade e
biodiversidade. Nós somos resultado de processos cósmicos e planetários
anteriores ao nosso aparecimento. Somos os últimos a chegar. Entramos
em cena quando já havia transcorrido 99,980/o da história do Universo.
Há 3,8 bilhões de anos, nossos antepassados eram micróbios
nas fendas profundas dos oceanos; há meio bilhão de anos éramos
peixes; há 235 milhões de anos éramos dinossauros; há 1 50 milhões de
anos éramos pássaros; há 10 milhões de anos éramos primatas pulan­
do alegremente de galho em galho nas savanas africanas; há um mi­
lhão de anos éramos já plenamente humanos, tentando domesticar o
fogo; há 100 mil anos enterrávamos com rituais e flores nossos mor­
tos; há 40 mil anos já nos comunicávamos com a linguagem; há 10
mil anos fazíamos as primeiras plantações e domesticávamos cachor­
ros e galinhas. Desde aquela época a galinha ficou confinada nos gali­
nheiros e virou expressão de uma dimensão humana, da história e do
Universo.
Viemos desta longa história. Como a vida emergiu da Terra,
assim o ser humano emergiu da vida. Somos parentes e consangüíneos

64
com todos os seres e os viventes do planeta. Entre o humanos e os chim­
panzés há, por exemplo, 99,6% de genes ativos em comum. A versão
humana do cromossomo o difere da do macaco reso por um único ami­
noácido. Das versões do cachorro, da rã, do bicho-da-seda e do trigo por
1 1, 18, 43 e 53 aminoácidos. Poderia haver um parentesco maior entre as
espécies que esta? Os primatas superiores não são nossos ancestrais. São
nossos primos irmãos junto com os demais seres vivos.
Mas estes quatro décimos de diferença e esse único aminoácido
fazem toda a diferença. Precisamos nos deter nela, pois aí emerge o
humano da humanidade. Em que reside?

O espírito: primeiro no Cosmos depois na pessoa

A singularidade do humano reside na autoconsciência, na liber­


dade, na autodeterminação, na capacidade de responsabilizar-se e de
assim se mostrar um ser ético, capaz até de tomar decisões em sua des­
vantagem para defender desvalidos. Reside na capacidade de compai­
xão, de enternecimento e de entreter laços de comunhão com todos os
seres e de sentir-se como eles. Reside na capacidade de criação pela qual
modifica seu mundo circundante. Reside na abertura ao mundo, à cul­
tura e ao infinito. O ser humano é tudo isso e ainda mais, pois é habi­
tado por uma paixão insaciável que não encontra no Universo nenhum
objeto que lhe seja adequado e que o faça repousar. Ele é um projeto
infinito.
Todas estas determinações podem ser resumidas pela palavra
espírito. Ele é um portador singular do espírito. Mas não é o único,
como logo veremos.
Para entendermos o espírito precisamos superar duas compre­
ensões: a clássica e a moderna. A clássica diz que o espírito é uma parte
do ser humano ao lado da matéria, que é seu corpo. Seria o lado
imortal, vital, inteligente, capaz de amor e transcendência. Convive
por um determinado tempo, com o lado mortal, opaco e pesado: o
corpo. Esta visão é dualista e não responde pela unidade concreta do
ser humano. Todo inteiro, vivo e aberto, com um desejo de eternidade
para o corpo e para o espírito.
A concepção moderna diz que espírito é o modo de ser singular

65
do homem/mulher, cuja essência é a liberdade. Ele seria o portador
exclusivo da dimensão de espírito. Com certeza o espírito na pessoa é
liberdade. Mas o espírito humano não pode ser compreendido desco­
nectado do processo cosmogênico, do espírito na natureza, na Histó­
ria e no Cosmos. Ele não pode ficar ilhado como uma realidade à
parte sem relação com o processo global que se apresenta como um
sistema aberto e marcado pela indeterminação e pela criação contínua.
Há a concepção contemporânea de espírito, elaborada a partir
da nova cosmologia. Essa é a que assumiremos e que coloca o espírito
dentro do imenso processo da evolução ascendente. Aí dentro, o espí­
rito foi se constituindo e ganhando crescente emergência e autocons­
ciência até implodir no espírito humano. O espírito possui uma an­
cestralidade como aquela do Universo. Daí ser importante arrancar­
mos, primeiramente, do espírito em sua dimensão cósmica. A partir
daí veremos uma realização singular no espírito humano. Qie é então
o espírito?
Na perspectiva cosmogênica, entendemos por espírito a capaci­
dade d as energias primordiais e da própria matéria de interagirem
entre si, de se auto-organizarem, de se constituírem em sistemas aber­
tos, de se comunicarem e de formarem a teia complexíssima de inter­
retro-relações que sustentam o Universo. O espírito é fundamental­
mente relação, interação e auto-organização. Desde o primeiro mo­
mento da explosão primordial, criaram-se relações e interações, gerin­
do unidades ainda rudimentares que se foram organizando de forma
sempre mais complexa. Emergia então o espírito.
O Universo é cheio de espírito porque é reativo, panrelacional,
auto-organizativo e complexo. Neste sentido não há seres inertes à
diferença de outros chamados "seres vivos". Todos participam, em seu
grau, do espírito � da vida. A diferença entre o espírito de uma rocha
e o espírito humano não é de princípio, mas de grau. O princípio de
relação, de interação e de auto-organização complexa se realiza em
ambos, apenas de forma diferente.
O espírito humano é este mesmo dinamismo tornado consci­
ente. Sente-se inserido no todo e vinculado a um corpo animado e
vivificado. Por meio desse corpo entra em contato com todos os de­
m�is corpos e energias do Universo. No nível reflexo, espírito signifi-

66
ca comunicação, irradiação, entusiasmo. Significa também criação e
autotranscendência para além dele mesmo, gerindo comunidade com
o mais distante e o mais diferente até com absoluta Alteridade, Deus.
O homem/mulher/espírito é o que de mais aberto e de mais universal
existe. É um nó de relações e re-ligações para todos os lados e dimen­
sões. A vida consciente, livre, criadora, amorizadora caracteriza vid �
humana. É o espírito. É a águia na pujança de sua natureza de águia.
É o símbolo em sua verdadeira acepção de ligar e re-ligar.
Se o espírito é vida e relação, seu oposto não é matéria, mas
morte e ausência de relação. Pertence ao espírito também sua capaci­
dade de encapsulamento, de recusa à comunicação com o outro, sua
vontade de dominação. A águia pode virar galinha. É o império do
diabólico como energia de desestruturação e morte.

A subjetividade é cósmica e pessoal

Os seres todos do Universo quanto mais complexos mais vitais


se apresentam. E, quanto mais vitais, também mais interioridade e
subjetividade possuem. Esta interioridade e subjetividade vai, por sua
vez, se densificando até atingir um grau eminente no ser humano. Ele
possui um centro a partir donde organiza toda sua vida consciente.
Possui profundid:-:de, din��nsfo ameaçada dt desaparecer na cultura
materialista de consumo e de massas. Seu eu consciente dialoga com o
seu eu profundo. Tão complexo quanto o macrocosmo é o microcos­
mo interior do ser humano. Vem habitado por energias ancestrais,
por visões e arquétipos abissais, paixões, eventualmente tão virulentas
quanto tufões e terremotos. Habitado por anjos e demônios, pelo sim­
bólico e pelo diabólico, por tendência de ternura e compaixão que
enxugam qualquer lágrima e desanuviam qualquer perplexidade.
Dialogar com este universo interior, integrá-lo a partir de um
centro pessoal e livre, canalizar as pluriformes energias, particularmente
ligadas à libido, aos arquétipos do masculino e do feminino e do Se!f,
harmonizar o simbólico com o diabólico num projeto coerente, livre e
revelador da pessoa é realizar o processo de individuação/personalização.
Assumir este processo é conferir um perfil singular e único ao
espírito de cada pessoa humana. Significa construir a sua própria espi-

67
ritualidade. Esta espiritualidade não vem enquadrada num marco reli­
gioso. Ela pertence à caminhada de cada um, rumo à escuta e à con­
quista de seu pr6prio coração. Obviamente, para uma pessoa religiosa,
dialogar com sua realidade profunda, escutar apelos que afloram de
seu centro, significa ouvir Deus e escutar a sua Palavra.

Qual é a missão do ser humano no Universo?

As reflexões que vertebramos acima colocam-nos naturalmente a per­


gunta: qual o sentido do ser humano no conjunto dos seres e no Universo?
Vamos logo dizendo: certamente não foi chamado à existência
para dominar, ameaçar e destruir as demais espécies. Seria contra o
sentido da seta do tempo que se rege pela lei mais universal que existe:
a solidariedade c6smica. Ele é membro, entre outros tantos, da imensa
comunidade universal, planetária e biótica.
Por ser portador singular do espírito que pervade todas as coi­
sas, é chamado a agradecer, a celebrar e a louvar a indescritível beleza
e simetria dinâmica da criação. A admirar sua complexidade e sua
criatividade. Convocado a ser capaz de fazer do caos e do diabólico
condição para um cosmos mais rico e mais simbólico.
A tradição judaico-cristã fala do sábado como a festa da criação.
Os seis dias da criação representam o trabalho de Deus. No sábado Ele
mesmo descansou, alegrou-se e festejou o resultado de sua ação criado­
ra. O descanso é a plenitude do trabalho e da criação.
Esse relato simbólico oferece uma indicação para o ser huma­
· no. Há seis dias para trabalhar e produzir. Mas há o dia da gratuidade,
do ócio, da festa e da dança. O trabalho é penoso e divide as pessoas
por seus vários interesses, distinta repartição de seus frutos. No sábado
todos devem olvidar estas diferenças e se colocar no mesmo chão,
iguais e confraternizados, como filhos � filhas da Terra, e irmãos e
irmãs universais. Não cabe produzir nem obras, nem pensamentos,
nem estruturar interesses. Importa festejar, comer, dançar e extasiar-se.
Ao viver esta dimensão, o ser humano comparte da profunda
gratuidade do Universo. Cumpre sua missão cósmica na esteira d a
festa d o próprio Deus. Qyando volta, trabalhará sem sentir-se escravi­
zado por ele ou vítima da 16gica da produtividade.

68
Por seu espírito e por sua autoconsciência, o ser humano se
mostra sempre concriador. Ele inteivém no seu projeto. Ele se faz
responsável pelo sentido de sua liberdade e de sua criatividade. Emerge
então como um ser ético. Ele pode agir com a natureza ou contra ela.
Pode desentranhar virtualidades presentes em cada coisa e em cada ecos­
sistema. C.Onhecendo as leis da natureza, ele pode usar esse conhecimento
para prolongar a vida, reduzir e até anular a entropia dos processos evolu­
tivos. O futuro da Terra dependeria assim do ser humano.
As tradições dos povos falam do ser humano como jardineiro.
Cultiva a Terra com cuidado e senso de estética. É um verdadeiro
culto que gera cultura. Ele é chamado a completar a criação deixada
incompleta. A acrescentar-lhe dimensões que possivelmente sem ele
j amais viriam à luz. Tal vocação não deve seivir de pretexto para o
antropocentrismo e a ideologia da dominação do mundo. Sua inter­
venção no mundo deve se fazer sem sacrificar a comunidade plane­
tária e cósmica da qual participa. Ele é vocacionado para ser o sím­
bolos e não o d ia-bólos da criação.
Ele tem ainda a missão de médico da Terra. Historicamente se
mostrou demente. Ameaçou, desestruturou e matou. A máquina que
mata pode também salvar. Somos chamados a revitalizar, a animar e a
reintegrar o que foi durante séculos agredido, ferido e desestruturado.
Não podemos, numa atitude obscurantista, dar as costas à ciência e à
técnica e deixar a Terra com suas chagas e enfermidades. Se a ferimos
outrora e continuamos a magoá-la, devemos hoje saná-la e dar-lhe
condições de saúde integral. As soluções terapêuticas devem se inspi­
rar em muitas fontes e tradições curativas, ensaiadas pelos povos dos
mais originários aos mais contemporâneos. Nesse afã não devemos
desprezar o concurso de nossa civilização técnico-científica, apesar de
ter sido ela a principal causadora de seus traumatismos.
Por fim, nossa civilização tecnológica, tão simbólica quanto di­
abólica, suscita uma pergunta radical: qual é seu significado mais trans­
cendente? A que ela, finalmente, se ordena? À dominação da Terra? A
fazermo-nos apenas mais ricos materialmente, ao preço de ficarmos
mais pobres espiritualmente, porque mais alienados de nossas raízes
cósmicas? Ao responder a estas indagações, surge outro aspecto da
missão humano: a de salvar a Terra e a própria espécie homo.

69
Importa reconhecer os inestimáveis méritos da civilização tecnoló­
gica. Foi ela que nos permitiu sair da Terra. Avançar para dentro do
espaço exterior. Chegar à Lua e, mediante sondas, satélites e robôs, estudar
quase todos os planetas e luas do sistema solar. Esta civilização tecnológica
propiciou a realização de uma das aspirações mais ancestrais da humani­
dade: poder voar como os pássaros; poder viajar até onde pudéssemos ir.
Até onde podemos ir? Até o sem fronteiras. Para além do Sol,
das estrelas, das galáxias e do inteiro Universo. Até o infinito. Pois até
lá chega nosso sonho e nosso desejo. E não voamos porque temos aviões
e foguetes espaciais. Voamos porque ansiamos voar. É por causa desta sede
irreprimível que criamos o avião e os foguetes. É a águia em nós que nos
convoca sempre mais para cima e sempre mais para o alto.
A aventura espacial, iniciada nos anos sessenta, revela a dimen­
são cósmica do projeto humano. Ela nos fornece uma compreensãc
mais concreta do radical desejo humano de sempre transcender, de
violar todas as barreiras e de só se satisfazer com o infinito.
O céu profundo, acima de nossa cabeças, é o maior símbolo
desta transcendência. Por isso os seres humanos querem chegar lá.
Bem o expressou o astronauta russo Yuri Romanenko ao retornar à
Terra, depois de ter ficado dois anos no espaço: "O cosmos é um
ímã. Depois de ter estado lá em cima, você só pensa em voltar para
lá". Q!ieremos voltar para o céu porque somos mais do que filho e
filhas da Terra. Somos, na verdade, seres celestiais e cósmicos. Do
cosmos viemos e para o cosmos queremos consciente e inconsciente­
mente voltar. Sempre fomos errantes. A partir do neolítico, ficamos,
por breve tempo, sedentários em moradias, cidades e estados. Agora
retomamos nossa errância rumo às estrelas, nossa verdadeira mora­
da. Os materiais que nos constituem não foram formados no seio
das grandes estrelas vermelhas?
Mas não é a nossa origem estelar que explica a exploração do
espaço acima de nossas cabeças. É por uma razão bem mais prática:
sentimos a urgência de sobreviver como espécie.
Primeiramente, o desenvolvimento exponencial do projeto téc­
nico-científico deu origem ao princípio de autodestruição. Pela pri­
meira vez na História nossa espécie pode se dizimar a si mesma. É
natural que as pessoas não queiram aceitar esse eventual veredito de

70
morte. Os que podem, querem fugir para o espaço, bem longe da casa
em chamas.
Em segundo lugar, as ciências da Terra nos forneceram dados
bastante precisos dos impactos que o planeta sofreu durante o tempo
de sua formação. Algumas vezes quase todo seu capital biológico foi
destruído, como, por exemplo, no período cretáceo-terciário, 67 mi­
lhões de anos atrás. Desaparecem, então, num lapso curto de tempo,
os dinossauros. Curiosamente, constatou-se que todas as vezes que
ocorreram dizimações em massa na biosfera seguiu-se uma plurifera­
ção fantástica de novas formas de vida. É uma espécie de vendetta do
sistema-vida.
Sabemos hoje que existem próximos à Terra cerca de 300 mil
asteróides com mais de 100 metros de diâmetro e mais de 2.000 com
um quilômetro ou mais. Na nuvem de Oort, nos confins do sistema
solar (entre 20 e 100 mil unidades astronômicas), existem mais de 1
trilhão de meteoros, asteróides e cometas, alguns muito grandes. De
vez em quando saem de lá, por razões gravitacionais ainda não esclare­
cidas, e colidem com os planetas solares. Nenhum planeta nem a Ter­
ra são imunes contra eles. Caindo aqui fariam estragos formidáveis.
Alguns deles, dizem renomados cientistas, poderiam nos destruir.
Se desaparecer nossa espécie homo, seguramente será substituída
por uma outra, inteligente e, esperamos, mais sábia. Será algum ramo
direto da espécie homo ou de algum ser complexo de outra linhagem.
Biólogos constataram que na árvore da vida, especialmente a partir do
surgimento dos animais, se verifica forte pressão seletiva que propicia
a criação de redes neuronais cada vez mais complexas, terminando no
cérebro humano. Esse processo se mantém. Ele será responsável pelo
princípio de inteligibilidade e de amorização que emergirá como emer­
giu outrora. Mesmo atualmente, ele leva a humanidade a evoluir na
direção de um superorganismo planetário. Tende a fazê-la mais socie­
tária, mais comunitária, mais solidária e cooperativa.
O perigo de uma hecatombe biológica é permanente. Em fun­
ção d a salvaguarda da Terra e da biosfera, estudam-se hoje tecnologias
de deflexão (desvio de rota) dos asteróides. Ou até a ocupação deles
por humanos. Criar-se-iam lá condições de vida artificial, aproveitan­
do materiais utilizáveis como os gelos e outros elementos físico-quími-

71
cos e orgânicos de que são abundantes. Esse alteraria sua trajet6ria
para não danificar os planetas solares.
Outros aventam, seriamente, a possibilidade de os seres huma­
nos começarem a terraformar (criação de condições adequadas para a
vida, semelhantes às da Terra) os planetas vizinhos, especialmente Marte,
a lua de Netuno, Tritão, e a de Saturno, Titã. Aí se desenvolveria parte
da humanidade sob condições técnicas favoráveis. Assim os ovos não
estariam todos numa mesma cesta. Caso houvesse algum cataclismo
na Terra, salvar-se-ia uma porção da humanidade, para dar continui­
dade ao projeto humano. Tal como na arca de Noé, não se salvariam
apenas humanos, mas também outros companheiros da comunidade
vital, microorganismos, plantas e animais.
O sonho alcança mais longe. Com os avanços tecnológicos
crescentes, deve-se pensar em viagens siderais. Elas adentrariam a
Via-Láctea em busca de outros sistemas estelares, possuidores de
planetas habitáveis. Há cerca de centenas de milhares de milhões
destes na nossa galáxia.
O ser humano desenvolver-se-á em tais paragens c6smicas, ge-·
rando culturas diferentes, certamente outro tipo de pessoas, todas ver­
sadas em altas tecnologias, como n6s hoje somos versados no alfabeto
ou nas tecnologias dos aparelhos domésticos. Lembrar-se-ão talvez,
como diz o cosm6logo Carl Sagan, de seus ancestrais quase míticos
que, na segunda metade do século XX, no terceiro planeta do sistema
solar, a Terra, se aventuraram pela primeira vez pelo mar-oceano dos
espaços exteriores. Sorrirão, nos admirarão e amarão.
Cresce mais e mais esta consciência: ou prolongamos a aventura
dos vôos espaciais ou corremos o risco de nos destruir por nós mesmos,
ou de sermos destruídos por algum impacto vindo de fora. Os projetos
espaciais norte-americanos, russos e europeus estariam a serviço do in­
consciente coletivo da humanidade. De forma antecipatória e prognósti­
ca, _p_ressente um eventual cataclismo, capaz de interromper a aventura
humana na Terra.
Importa ouvir o chamado do inconsciente coletivo, esse grande
e sábio ancião que fala dentro de nós, e associá-lo ao outro chamado
que vem da ciência moderna, feita com consciência. Esta nos concla­
ma a entender mais radicalmente nossa missão, que é salvar nossa

72
espécie, junto com representantes de outras espécies, proteger nosso
belo planeta contra ameaças de asteróides fatais ou de quaisquer ou­
tros perigos vindos dos espaços siderais.
A missão do ser humano alcança mais longe ainda: ao terrafor­
mar outros planetas, cabe a ele disseminar vida; como dom maior da
cosmogênese, deve ele dar vida aos outros. Transportada a outros mun­
dos, a vida fará seu curso. Resistirá às situações adversas. Adaptar-se-á
ao ambiente. Criará para si um ambiente adequado, como criou um
dia a biosfera sobre a Terra. Complexificar-se-á e gerará espécies talvez
nunca dantes havidas, todas cheias de propósito e de beleza.
Essa missão radical do ser humano - o de disseminador de vida
no Universo - nos recordará a frase daquele que se entendeu como o
Filho do Homem e que, ao seu tempo, disse: "Eu vim trazer vida e
vida em abundância". Essa missão é não só do Filho do Homem, mas
de todos os homens, seus irmãos e irmãs.
Nesta linha de reflexão, a dimensão em nós é despertada como
jamais antes. Se nos quedarmos apenas na dimensão-galinha, quer di­
zer, se ficarmos em casa, melhorando apenas nosso planeta, sem o
propósito de ultrapassá-lo, não estaremos a salvo de assaltos possíveis
que vêm dos impactos exteriores ou de nós mesmos. A condição de
sobrevivência é dar asas à águia para que alce vôo e se salve nos céus. Se
o Universo está se expandindo, nós, seres humanos, obedecemos à
mesma lógica: estamos nos expandindo também, viajando às estrelas.
Por fim, há uma derradeira missão do ser humano, que so­
mente é discernível a partir de uma perspectiva espiritual: o ser hu­
mano existe para permitir uma realização única de Deus. Com fre­
qüência temos asseverado que o ser humano revela uma abertura
para o infinito. Essa abertura se ordena a recepcionar o próprio
infinito dentro de si. É como a taça cristalina. Só realiza sua meta
quando acolhe uma sede infinita para poder se autocomunicar a Ele
e sacá-lo plenamente. Mais ainda: Deus sai de si totalmente e se
· entrega absolutamente ao diferente. Deus se fez humano para que o
humano se fizesse Deus. Quando Deus resolveu sair de si mesmo e ir
ao encontro de alguém que o acolhesse totalmente, surgiu então o
ser humano. O ser humano é o reverso de Deus. Permitir essa reali­
zação divina é a sup �ema missão do ser humano, homem e mulher.

73
Para isso ele foi pensado, eternamente amado e colocado na criação.
Importa curvarmo-nos, reverentemente, diante desta nossa rea­
lidade humana, nossa missão e nosso mistério que se articula com o
Mistério absoluto.

Notas

1 Teólogo, Escritor e Professor da UERJ

B ib l iografia

BATESON, G. Mind and nature; a necessary unity. New York, Bantam, 1988.
BERRY, T. & SWIMME, B. Tbe universe story; San Francisco, Harper, 1 992.
BOFF, L. Ecologia; grito da Terra, grito dos pobres. São Paulo, Ática, 1995 .
DE OUVE, C. Poeira vital: a vida como imperativo cósmico. São Paulo,
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MORIN, E. Le paradigme perdu; la nature humaine. Paris, Seuil, 1973.
PLESSIS-PASTERNACK, G. Do caos a i11teligência artijicial. São Paulo, UNESP,
1 992.
PRIGOGINE, 1. A nova aliança. Brasília, UnB, 1990.
SAGAN, C. Pálido ponto flZlt!. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
ZOHAR, D. O ser q11d11tico; uma visão revolucionária da natureza humana e
da consciência, baseada na nova fisica. São Paulo, Best Seller, 199 1 .

74
Literatura e complexidade 1
NELSON FIEDLER-FE RRARA2 I

A
reflexão interdisciplinar não consiste apenas em transpor concei­
tos e métodos de uma ou mais disciplinas para outra. Conceitos
de uma disciplina podem se apresentar produtivos em outra, não ape­
nas gerando modelos com características desta ou daquela disciplina,
mas também produzindo novas abordagens e visões a respeito de ve­
lhos problemas. Algumas vezes, a interdisciplinaridade como "habili­
dade para pensar 'lateralmente' a respeito de questões que não foram
antes questionadas, para aprender aquilo que não é conhecido no inte­
rior da nossa própria disciplina" (Mittelstrass, 94)3 nos convida ao uso
de termos com denotação precisa em uma disciplina, aplicando-os a
outra num sentido metafórico ou analógico. Essas duas posturas po­
dem ser produtivas, devendo-se, contudo, avaliar de maneira judiciosa
a relação_ entre os modelos e o sistema ou objeto em estudo, bem como
a pertinência das metáforas ou analogias suscitadas.
O exercício da interdisciplinaridade tem sido enriquecido nos
últimos anos com a contribuição de trabalhos onde se busca aproxi­
mar conceitos e métodos das ciências da natureza, sobretudo aqueles
do chamado "pensamento da complexidade", a problemas em hu­
manidades. Com efeito, não se pode ainda falar de uma "teoria da
complexidade"; trata-se, por enquanto, de um conjunto de pesquisas
e hipóteses parcialmente convergentes. Em particular, trabalhos re­
centes bastante estimulantes têm sido feitos relacionando modelos
para complexidade e literatura (Hayles, 9 14, e referências citadas). O
presente trabalho se situa nessa linha de reflexão ao considerar três
modelos para complexidade caos determinístico, estruturas dissipati-
-
vas e complexidade a partir do ruído , discutindo como eles se apli­
-

cam aos processos de criação literária e de leitura do texto artístico,


considerados como sistemas complexos. O macrossistema autor - tex­
to - leitor é tratado considerando-se dois subsistemas, também com-
' plexos, representados pelas relações autor - obra e leitor - obra.
De início apresentamos o conceito de complexidade e, em se­
guida, introduzem-se sucintamente os três modelos para complexida­
de que serão relacionados com o texto literário; por fim, as conclusões
são resumidas na última seção.

Modelos para complexidade

Reducionismo e complexidade

Até aproximadamente a metade deste século os objetivos cen­


trais do conhecimento científico consistiam em buscar descobrir as
leis necessárias e universais da natureza.
Partindo-se de uma conexão reducionista acreditava-se ser sempre
possível reduzir explicações das propriedades de um sistema constitu­
ído por um grande número de unidades elementares interagentes ao
conhecimento das propriedades simples dessas unidades. A física apre­
sentava-se então como modelo exemplar para todas as outras disciplinas.
A partir dos anos sessenta, ou talvez mesmo a partir da década
anterior, observou-se que sistemas idênticos podem manifestar com­
portamentos diversos. Renuncia-se à prioridade epistemológica das
categorias simplicidade, ordem e regularidade no confronto com as cate­
gorias opostas complexidade, desordem e caoticidade. Constata-se também
que é possível se ter um comportamento não previsível (caótico) a par­
tir de modelos bastante simples representados por regras precisas (siste­
mas determinísticos). Cai irreparavelmente o mito fundamental da ciên­
cia dos oitocentos: a previsibilidade da natureza. Novas idéias e con­
ceitos cristalizam-se na designação sistema complexo.
As características principais de um sistema complexo podem
ser resumidas: trata-se de um sistema que apresenta diversos níveis de
organização (e. g., sistema biológico: nível macroscópico, nível inter­
mediário [órgãos] e nível inferior [química do DNA]); um nível supe-

76
rior não pode ser inteiramente explicado separando os elementos que
o compõem e interpelando as suas propriedades na ausência das inte­
rações que unem os elementos; isto é, os diversos níveis de organiza­
ção não são redutíveis a uma estrutura única feita de componentes
elementares, ou seja, a história (dinâmica) do sistema é irredutível a fato­
res estruturais.
Q!iais seriam as condições estruturais necessárias para se identi­
ficar um sistema complexo? Há diversas "definições" representadas
por modelos de sistemas complexos: complexidade algorítmica, percola­
ção, dinâmica de populações, vidros de spin, caos determinístico, es­
truturas dissipativas, complexidade a partir do ruído etc.
Introduziremos a seguir, sucintamente, os últimos três modelos
para complexidade, os quais nos interessam em conexão com a ques­
tão do texto literário.

Caos determinístico

O comportamento caótico determinístico ocorre em sistemas


não-lineares que apresentam dependência sensível à5 condições iniciais, ou
seja, sistemas nos quais pequenas variações nas condições iniciais po­
dem ser ampliadas exponencialmente pela dinâmica do sistema (ex­
pressa por regras de evolução não-lineares), levando dois estados inici­
almente próximos a outros completamente diversos, depois de um
tempo suficientemente longo. Por sistemas não-lineares devem-se en­
tender sistemas que são descritos por regras tais que a relação entre
uma grandeza e os parâmetros que ao variarem afetam-na não é de
proporcionalidade, podendo inclusive ocorrer mudanças qualitativas
bruscas.
Na designação "caos determinístico", caos representa comporta­
mento imprevisível, enquanto determinístiro significa que existem leis
precisas ou regras, ainda que eventualmente bastante complicadas. A
novidade consiste então no fato de que um sistema pode ser tanto deter­
minístiro quanto imprevisível. Esse comportamento decorre da própria
dinâmica do sistema, sem que nessa compareçam necessariamente per­
turbações aleatórias de natureza estocástica ou ruído. Caos deve ser
compreendido como informação extremamente romplexa. em vez de au-

77
sência de ordem. Assim, sistemas que apresentam caos determinístico
são ricos em informação ao invés de pobres em ordem.
Um exemplo simples, no âmbito da física, pode ajudar a com­
preender a noção de caos determinístico. Seja um pêndulo. Seu mo­
vimento é regido pelas leis de Newton; trata-se, portanto, de um
sistema determinístico. O movimento de um pêndulo simples é ab­
solutamente regular (previsível). Fixemos agora ao primeiro pêndu­
lo um segundo pêndulo. O sistema continua a ser regido pelas leis
de Newton, contudo, agora, o movimento do segundo pêndulo é
imprevisível (caótico); com efeito, sua posição depende sensivelmen­
te da posição do primeiro pêndulo, e essa não pode ser determinada
com precisão absoluta, nem mesmo em princípio.
A principal conseqüência da dependência sensível durante um
tempo arbitrariamente longo não permite predizer a sua evolução pos­
terior. Uma outra novidade em relação ao que se conhecia antes é que
o comportamento caótico pode ocorrer também em sistemas simples;
com efeito, esse já pode ocorrer em sistemas para os quais bastam três
variáveis representacivas para descrever completamente a dinâmica as­
sociada. Como conseqüência, comportamentos complexos podem não
necessariamente requerer modelos complicados.
Em sistemas caóticos determinísticos a evolução temporal para
tempos longos é representada por uma estrutura topológica hierárquica
com características de auto-similaridade. Expliquemo-nos. No espaço
abstrato (espaço de frases) dos parâmetros necessários para representar
completamente o sistema e sua evolução, a trajetória do sistema (sua
história) para tempo longos é representada por um objeto (atrator) de
dimensão não inteira (dimensão fracta� que apresenta essa característi­
ca de auto-similaridade, isto é, de repetir-se a si mesmo à medida que
é ampliado. Tal objeto se denomina um fractal Tais atratores cha­
mam-se "atratores estranhos" quando associados a dinâmicas que apre­
sentam dependência sensível às condições iniciais.
A ocorrência de caos determinístico toma ilusória e injustifica- ·
da a prática corrente na habitual esquematização da realidade, onde
estudamos a evolução de um sistema como se fosse isolado, desprezan­
do as pequenas perturbações que o ambiente circundante produz e
considerando seus efeitos desprezíveis. Um outro aspecto novo d iz

78
respeito ao fato de que o determinismo de uma lei não implica a
previsibilidad e dos fenômenos que ela regula, uma terceira conseqü­
ência é que sistemas simples podem manifestar comportamentos in­
crivelmente complicados. Detalhes adicionais relativos ao caos deter­
minístico podem ser encontrados em (Bergé, 94)6 e (Fiedler-Ferrara,
94)7, ou, sem formalização matemática, em (Gleick, 87)8 e (Ruelle,
9 1)9; para uma revisão crítica recente veja (Ruelle)1º.

Estruturas dissipativas

Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química de 1977, teve papel


central na construção da chamada "teoria das estruturas dissipativas"
ou dos sistemas auto-organiz,ados, cuja característica principal é o fato
de os estados associados evoluírem para c.onfigurações estruturadas, seja
espacial ou temporalmente.
Consideram-se nessa teoria sistemas abertos, isto é, sistemas que
podem realizar trocas com o meio envolvente, não-lineares, os quais
encontram-se longe do equilíbrio e sob a ação de forças motoras inten­
sas. Ocorre, sob determinadas condições, o aparecimento de padrões
ordenados (organizados) numa escala macroscópica, que constituem pa­
drões de atividade c.ooperativa. A novidade consiste na natureza criativa
e aut0-0rganizadora dos processos dissipativos (sistema onde há per­
das) em sistemas abertos, em oposição à idéia de decaimento por dis­
sipação em sistemas isolados. O estado final estacionário (independen­
te do tempo) longe do equilíbrio se mantém graças às trocas que se
realizam com a parte externa ao sistema. A criação de ordem no inte­
rior do sistema se paga através de uma maior desordem no seu exteri­
or. Apesar do fato de que a configuração estacionária (estrutura auto­
organizada) que se instaura corresponde a uma mínima produção de
entropia local, a segunda lei da termodinâmica não é violada, uma vez
que a entropia total cresce.
As estruturas dissipativas são fenômenos de criação de ordem
longe do equilíbrio em sistemas não-lineares abertos. Essas estruturas
ocorrem em sistemas que necessitam um grande número de variáveis
para descrevê-los, variáveis que se apresentam acopladas, no sentido de
que a variação de uma não é independente da outra. Os ingredientes

79
básicos das estruturas dissipativas são tais sistemas imersos num meio
dissipativo na presença de ruído.
O processo de auto-organização é determinado sobretudo pelas
propriedades do próprio meio, sendo independente ou fracamente
dependente das características das fontes de não-equilíbrio, e, fre­
qüentemente, das condições iniciais. A auto-organização é o resulta­
do do desenvolvimento de instabilidades em um sistema inicialmen­
te desorganizado, com a conseqüente estabilização de estruturas coe­
rentes de caráter macroscópico. Isso ocorre devido ao balanço entre
perdas dissipativas e ganhos provindos do exterior, j á que o sistema
é aberto. A ocorrênc ia de tais estruturas em um sistema dissipativo
apresenta a particularidade de que tal sistema se comporta como um
todo: ele se estrutura como se cada sua parte fosse "informada" a
respeito do estado global; deve portanto existir um conceito de orga­
nização que dê conta das relações entre o todo e o comportamento
das partes. Uma abordagem mais completa da teoria das estruturas
d issipativas pode ser encontrada nos livros de Prigogine e Haken
(Nicolis, 77) e (Haken, 83) 11 e nas referências lá citadas; referimo-nos
também ao artigo de Luzzi e Vasconcelos (Luzzi, 9 1)12; os conceitos
envolvidos são tratados sem formalização matemática nos livros de
Prigogine e Stengers (Prigogine, 84) e (Prigogine, 86)13•

Complexidade a partir do ruído

A idéia do surgimento de auto-organização e complexidade a partir


do ruído nasceu em tomo de 1960, começando de tentativas de com­
preender o papel da informação como um conceito de explicar a orga­
nização biológica e a preservação e desenvolvimento de seres caracteri­
zados por complexidade ordenada (Palson, 9 1)14• Antes, alguns auto­
res, Schrodinger em particular, imaginaram que a grande quantidade de
informação contida nos organismos pudesse provir do meio circundante.
Heinz von Foerster e depois Henri Atlan propuseram que os organismos
teriam nos seus menu não somente informação, mas também ruído, e que
a organização poderia ser obtida a partir do ruído.
No aparecimento de complexidade a partir do ruído se atribui ao
observador um papel determinante na definição da complexidade, que

80
decorre mais da relação e ntre o sujeito e o objeto no processo de inte­
ração do que da estrutura intrínseca do objeto observado.
Trata-se de uma abordagem probabilística. que identifica a com­
plexidade com informação que falta para se ter uma explicação exau­
rível e completa da formação do sistema e seu funcionamento.
Segundo essa formulação, a capacidade de auto-organização de
um sistema resulta de desorganizações seguidas de reorganizações em
níveis de complexidades mais elevados. Nessa perspectiva, a criação de
complexidade se nutre da desordem (ruído). O aleatório passa então a
ser parte integrante da organização. A desordem está, portanto, no centro
do que se define ordem. No processo de desorganização quebraram-se
vínculos, e novas relações integram-se em uma nova organização com
uma maior diversidade e menor redundância; isso não pode ocorrer sem
trocas entre os diversos níveis.
A auto-organização pode então ser descrita como um processo
dinâmico através do qual perturbações aleatórias ou ruído atuando nos
canais de comunicação em um sistema organizado são capazes de prcxiuzir
não somente disfunção e desorganização, como também uma mudança na
organÍzdçÍiiJ do sistema até um estado cmn maior complexidade e menor redun­
dância. Para detalhes adicionais veja Atlan (Atlan, 79), (Atlan, 86)15•

Comparação entre os modelos

Nas estruturas dissipativas de Prigogine o estado final do sistema


depende fracamente ou não depende das condições iniciais. Além dis­
so, tais estruturas comparecem em sistemas com muitas variáveis. A
ênfase aqui é a intrínseca do sistema ou do objeto. .
No comportamento ca.ótico determinístico, ao contrário, a dinâ­
mica amplia exponencialmente pequenas diferenças nas condições
iniciais, e esse comportamento pode ocorrer já em sistemas bastante
simples.
No aparecimento de complrodade a partir do ruído, a ênfase é
sobre o observador e o nível de observação desempenha um papel deter­
minante. O ruído apresenta-se como ingrediente essencial. Já no ca.os
determinístico, o ruído é, a partir de um dado nível, indesejável, desca­
racterizando o comportamento, já que a imprevisibilidade pode, nesse

81
caso, ser atribuída às perturbações externas de caráter aleat6rio.
Há, portanto, nesses modelos para complexi.dade, visões e mesmo
fenomenologias diversas. Entretanto, em certas situações, esses mode­
los podem ser complementares na compreensão do comportamento com­
plexo. É o que ocorre, por exemplo, a nosso ver, no caso do texto
artístico. Discutiremos a seguir como ostrês modelos apresentados se
articulam na caracterização do texto literário como sistema complexo.

Complexidade e literatura

Primeira aproximação

O macrossistema a ser considerado é representado pelas relações


autor - texto - leitor. Para efeito de análise dividimos esse macrossiste­
ma em dois subsistemas: o processo de criação, representado pelas rela­
ções autor-texto, sem se esquecer, contudo, de que no processo de cria­
ção o autor é também leitor de sua pr6pria obra.
O macrossistema e cada um dos subsistemas são sistemas com-
1J/exos; com efeito, eles são irredutíveis a fatores estruturais. Além dis­
so, são sistemas abertos (não isolados), longe do equilíbrio, não-lineares e
em presença de ruído. Com relação ao ruído observa-se que um nível
excessivamente alto de ruído pode comprometer tanto a elaboração
do texto quanto a sua leitura, e, conseqüentemente, a existência mes­
mo do objeto. Níveis excessivamente altos de ruído podem ocorrer em
literatura, por exemplo, através de sintaxes muito afastadas da norma,
predominância de neologismos de difícil compreensão, recurso exage­
rado a colagens etc.
Decidimos por considerar o mundo, representando aqui a socie­
dade, a língua, a natureza, as representações da natureza etc.... como
não integrante do sistema, isto é, o trataremos como meio externo. As­
sim, para o modelo representado pelo caos determinístico, o mundo é
o reservatório das condições iniciais; e, para o modelo que concebe o
surgimento de complexidade a partir do ruído o mundo é reservatório
de ruído, para geração de significado.
Os três modelos apresentados constituirão visões complemen­
tares na compreensão do texto literário.

82
O processo de criação: o subsistema autor - texto

Pequenas variações na caracterização e comportamento das per­


sonagens, nos vínculos que definem a relação entre as personagens,
nos meios sociais, nos fatores condicionantes externos ao meio social
das personagens, nas escolhas lexicais e de níveis de linguagem das
personagens, nas impressões do mundo sobre o autor, na sua memó­
ria e no seu estado de espírito no processo de escritura, na situação
econômica e política circundante à produção da obra etc. podem pro­
duzir alterações importantes ao longo da elaboração do texto artístico,
eventualmente modificando significativamente o resultado final, a obra
terminada, com repercussões nos demais níveis, em particular no pro­
cesso de releitura que o autor faz a cada etapa do processo e também
nos efeitos que produz o texto numa evidente dependência em relação às
condições iniciais.
Dada a clara não-linearidade dos processos envolvidos na elabo­
ração do texto artístico, não se exclui, como resultado de pequenas
variações nas condições iniciais, a ocorrência de mudanças qualitativas
bruscas, algumas vezes de caráter catastrófico, isto é, com mudança re­
pentina de percurso na narrativa, podendo algumas vezes provocar a
interrupção do processo criativo.
Além do conceito de condições iniciais stricto sensu, como o
conjunto de condições presentes no início de elaboração de texto, é
conveniente introduzir-se o conceito de condições iniciais locais, isto é,
as escolhas feitas ao longo do processo de elaboração textual, com
eventuais fortes repercussões posteriores.
Há, contudo, na elaboração de um texto artístico, certos víncu­
los que devem ser considerados. É o caso, por exemplo, quando existe
por parte do autor um início, meio e fim da narrativa preconcebidos.
Esse fato atua como umaforça de vínculo que condicionará as escolhas
e conseqüentemente as repercussões das variações nas condições inici­
ais locais. A cada etapa do processo de criação textual, o autor se poli­
cia, consciente ou inconscientemente, descartando as escolhas que
possam desviar muito a narrativa do desejado. Essas forças de vínculo
passam então a fazer parte da dinâmica do sistema.
Podemos ir um pouco além e tentar avaliar como a dependên-

83
eia às condições iniciais pode repercutir no processo de elaboração do
texto artístico. Um primeiro aspecto, aquele que temos assimilado até
aqui, consiste na repercussão que ocorre independente da consciência
do autor: a dependência sensível às condições iniciais faz parte da
própria dinâmica ou natureza do sistema considerado e não pode ser
evitada, podendo ser, no máximo, controlada. Um segundo aspecto
(Rewald, 94)16 é o uso deliberado que o autor pode fazer da dependência
sensível às condições iniciais, seja do ponto de vistafomzal, como "carpin­
taria textual', seja do ponto de vista textual, através da sua incorporação às
personagens e ao enredo, criando situações onde a dependência sensível
produzirá efeitos na narrativa, eventualmente não previsíveis.
Contudo, apesar da dependência sensível às condições iniciais,
as versões sucessivas de um texto artístico e o próprio texto final apre­
sentam-se como estruturas auto-organiz.adas em um sistema aberto e as
versões sucessivas do texto são sistemas fora do equilíbrio, consistente­
mente com a idéia de estruturas dissipativas antes discutidas.
É interessante observar-se também que, apesar da dependência
às condições iniciais e de suas conseqüências para a narrativa, os textos
de um mesmo autor parecem-se num tipo de auto-similaridade. Visto
na perspectiva do conjunto da obra de um autor, ou parte de sua
produção, tudo se passa como se variações nas condições iniciais não
alterassem significativamente o estado auto-organizado final: o texto
ou o conjunto da obra ou parte dela se estruturam como se cada nível
de representação fosse "informado" a respeito do estado global do
sistema, característica das estruturas dissipativas, como afirmamos antes.
Reencontramos as idéias de complexidade a partir do ruído na
medida em que esse último comparece tomo parte importante do
menu no aparecimento da auto-organização como emergência de sig­
nificado no processo de escritura do texto artístico. Mais que isso, o
texto final é obtido a partir de desorganizações seguidas de reorganiza­
ções, muitas vezes em níveis de complexidade mais elevados. Além
disso, é evidente o papel central do autor no processo, aqui agente de
produção textual, mas também observador e leitor da própria produ­
ção; como conseqüência, a . interação leitor - obra, que se discutirá a
seguir, também participa no processo de criação.

84
O processo de leitura: o subsistema leitor - texto

A auto-organização e criação de complexidade a partir do ruído


fornece uma base para se compreender como a variedade orgamZada ­
a informação, o significado - pode emergir da interaçã,o com a desor­
dem. Em particular ela sugere um modelo para a compreensão do
significado em literatura (Paulson, 91)17•
Textos são tanto comunicativos quanto ambíguos; são, portan­
to, canais ruidosos, isto é, comunicativamente imperfeitos. Por exem­
plo, uma figura retórica faz a comunicação menos crível, mas aumen­
ta a variedade informacional do sistema no qual a comunicação ocorre.
Com efeito, afirma (Lotman, 77)18: "Ruído, interno ou externo ao texto,
pode levar à emergência de novos níveis de significado não previsíveis do
ponto de vista lingüístico ou das convenções do gênero, nem sujeitos ao
- julgamento ou elaboração do aµtor". Acriação de novos códigos den­
--
tro de um dado gêne ro ou de- um dado téxto é a essência. dà cómunÍ-':
cação anísti<:a e da emergência de significado no texto artístico.
No processo de passagem entre níveis de significado em um
texto o leitor vivencia a complexidade como desordem ou ruído. Essa passa­
gem implica um processo de auto-organização a partir do ruído, cuja
emergência de significado parece se dar da seguinte maneira: varieda­
des não explicáveis tomam-se ingredientes de um novo nível de expli­
cação ou compreensão, um novo contexto que pode ser mais informa­
tivo que ruidoso. Essa situação não decorre da incompetência do leitor,
mas da própria natureza da literatura. Assim, auto-organização a partir do
ruído e ordem a partir de flutuações formalizam a ligação casual entre
eventos microscópicos e conseqüências globais (Paulson 9 1)19•
Complementa tal cenário a ocorrência de criaçã,o local de ordem a
cada passo do processo, a cada nível de explicação. No processo que se
instaura entre dois passos na passagem entre níveis de significado, até
o estabelecimento de um novo nível de compreensão, e portanto de
auto-organização, a estrutura intrínseca do objeto apresenta-se predo­
minante na dinâmica do processo em confronto. com o papel do ob­
servador, pelo menos até que a complexidade do sistema seja nova­
mente vivenciada como ruído pelo leitor. Intercalam-se, dessa manei­
ra, emergência de significado a partir de ruído com fases onde se

85
constituem estruturas dissipativas, sendo a diferença entre ambas o fato
de que na primeira o observador é mais importante e na segunda a
ênfase é na estrutura intrínseca do sistema.
Claramente, o novo significado que emerge a cada passo da
leitura não pode ser completamente genérico. Apenas certas macroes­
truturas apreendidas ou consideradas no processo de leitura são com­
patíveis com os vínculos internos e externos. A cada etapa abre-se ao lei­
tor, lhe é permitida uma vizinhança de significados de maior ou me­
nor extensão. A liberdade do leitor não é total. Essa vizinhança será
tanto mais extensa quanto maior o nível de ruído.
Há, contudo, elementos de dependência sensível às condições inici­
ais no processo de leitura. Com efeito, pequenas nuanças ou estímulos
que o leitor eventualmente absorve do meio circundante ou da sua
memória podem afetar de maneira significativa a particular escolha
que esse fará no conjunto daquelas compatíveis com os vínculos im­
postos pelo texto, repercutindo-se essa escolha na emergência do signi­
ficado.
Observa-se, portanto, que o processo de leitura envolve emer­
gência de significados a partir do ruído com o aparecimento de estru­
turas auto-organizadas a cada nível de compreensão e dependência
sensível às condições iniciais. Um tal processo nunca se completa. A
cada nova leitura novas interpretações e nuanças comparecem, reve­
lando-se assim a própria essência e vocação do texto artístico: a de
gerar múltiplos significados a cada etapa da leitura e a cada releitura.

O macrossistema autor - texto - leitor

No que apresentamos até aqui dividimos o nosso problema -

compreender de quais condições estruturais nasce a complexidade do texto lite­


rário em dois subsistemas: o processo de criação e o processo de
-

leitura.
Como sistema complexo, o texto artístico não é redutível a
fatores estruturais, nem um nível superior de organização pode ser
inteiramente explicado separando-se as partes que o compõem e
interpretando as suas propriedades na ausência das interações que
unem os elementos.

86
O autor escreve para um leitor, mesmo que abstrato. Autor e
leitor estão imersos no mundo. O próprio autor faz-se leitor de si
mesmo no processo de criação. O texto nasce como resultado desse
macroprocesso, recebe do mundo e imprime no mundo suas marcas.
Apesar da dependência sensível às condições iniciais, surgem
estados auto-organizados de caráteres macroscópicos ainda mais am­
plos que o texto artístico propriamente dito: estabelecem-se padrões
estéticos, escolas literárias, correntes etc., o gosto do público é molda­
do por esses padrões não sem interferir nesses mesmos padrões através
do inevitável julgamento.
Restringimo-os aqui ao macrossistema autor - texto - leitor. Esse
macrossistema pode ser ampliado para incluir outros níveis superio­
res de organização. Cada uma das partes em que pode ser separado o
macrossistema sem descaracterizá-lo é já um sistema complexo: cada
nível de organização se repercute necessariamente no superior. Co­
nhecer bem cada subsistema é condição necessária para compreender
o sistema complexo, mas não é condição suficiente.

Conclusões

Propusemos aqui a utilização simultânea de conteúdo conceituai


de vários modelos para complexidade no estudo do texto literário como
sistema complexo. Abordamos o macrossistema autor - leitor - autor,
que foi tratado a partir de dois subsistemas, também complexos: e
processo criação (autor - texto) e o processo de leitura (leitor - texto).
Dependência sensível às condições iniciais (caos determinístico),
estruturas dissipativas e emergência de significado a partir do ruído.
Acreditamos que uma tal abordagem, baseada nos modelos para
complexidade, possa não somente revelar aspectos inerentes à própria
natureza do texto artístico, como também permitir ao autor e ao lei­
tor, a partir da revelação dessas propriedades, novas alternativas nas
relações com o texto artístico. Em particular, ao autor oferecem-st
novos caminhos na produção textual a partir da utilização deliberad .
de conceitos, como dependência sensível às condições iniciais, autc
organização e ruído como gerador de informação.
Alguns acreditam que as ciências do homem, sistemas comple

87
xos por excelência, possam ser mais bem compreendidas a partir de
modelagem matemática. Aqui propomos um outro caminho: buscar
uma compreensão de caráter qualitativo utilizando o referencial con­
ceitua! dos modelos para complexidade. Com efeito, corroboram essa
atitude algumas constatações que têm sido feitas de limitações de
modelos quantitativos em humanidades, por exemplo, pela utilização
das idéias da teoria do caos determinístico: "Fenômenos em finanças,
economia e ciências sociais apresentam evoluções temporais de grande
interesse mas de muita dificuldade para se compreender... Tem-se a
impressão que tais modelos devem incluir ruído e talvez derivem da
dinâmica determinística, isto é, alguns parâmetros da dinâmica mu­
dam com o tempo. Aqui, basicamente, não temos sido capazes de
obter modelos quantitativos úteis", (Ruelle, 94)20•
As idéias aqui expostas são reflexões ainda preliminares .que
devem sçr .devidamente testadas a fim de- mostrarem: ou não a perti� .
... ·nência - a conseqüência de sua utilização no tratament dh textq fü� ·, --� /
� o
rà ;io. �- com essa expectativa que as apresentamos.

Notas

1 Conferência apresentada no IV Encontro Internacional de Pesquisadores ·

do Manuscrito e de Edições, realizado em 1994 na Universidade de São Paulo. O


presente texto, com mínimas alterações, foi publicado antes nos anais do referido
encontro (F. Willemart (org.). Gênese e Memória: [anais] do IV encontro Internaci­
onal do Manuscrito e de Edições. São Paulo, Annablune Editora, 1995, p. 3 1-43).
2 Professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP).

B ibliografia

3MITTELSTRASS. "Unity and transdisciplinarity". Interdisciplinary Science


Reviews. 1 8 (2), 153, 1994.
4HAYLES, N. K. (ed.). Chaos and order: complex dynamics in literat11re and
scimce. Chicago, The University of Chicago Press, 1 99 1 .
' 5GOULET, A . The fractales ti d11 style. Publicado nas Actes du CoUeguc de
Cerisa-la-Salle, Paris, 1994.
6BERGE1 P. et ai. Order within chaos. Paris, HerÍnánn, 1 9 84.
7FIEDLEll-FERRARA, N. & CINTRA DO PRADO, C. P. C®s: Hma intr<Jd11,
ção.. São Paul-O, Edgard Blücher, 1994.

88
8GLEICK, ). Chaos: making a ntw scimce. New York, Viking, 1987.
9RUELLE, D. Hasard ti chaos. Paris, Editions Odile Jacob, 199 1 .
10
• "Where can one hope to profibatly apply the ideas of chaos".
Phys, Today, July 1994, 24, 1994.
11NICOLIS, G. e PRIGOGINE, I. Stif organization in non equilibrium systtms.
New York, Wiley-Interscience, 1977 & HAKEN, H. Advanctd synergttics. Berlim, Sprin­
ger-Verlag, 1983.
12 LUZZI, R. & VASCONCELOS, A. R. "Statistical mechanics of dissipati­
on and order: na overview". Cimc. Cult. 43 (6), 423, 199 1 .
1 3 PRIGOGINE, I . & STENGERS, I. Order out of chaos. New York, Bantam
Books, 1984; e La Nouvtlle alliance. Paris: Gallimard, 1986.
14 PAULSON. W. •titerature, complexity, interdisciplinarity". ln Hayles,
N. K. (ed.), Chaos and order, cit. p. 37-53, 199 1 .
1 5 ATLAN, H. Entre lt cristal et la fumét. Paris, Seuil, 1979; e A tort et à raison:

inttrcritiq11e de la scimce et d1t mythe. Paris, Seuil, 1986.


16 REWALO, R. Comunicação particular, 1994.
17 PAULSON, ibitl.
. 18 lOTMAN, J. Tbe stmcture ef the artisric tal. lrad. G. Lenhoff e R. Vroon .

Michi� ·Siavic Contcibutíons, 7. Ann Arbor, . Univmity of Michigan, Departa-


men f of�fayic languagés and Literatures, 19 97.
.

19 PAULSON, ibid. 9 1 .
20 RUELLE, ibid. 94.

89
1 Apontamentos para um diálogo complexo
WI NI FRED KNOX1 1

Em algum remoto nncão do universo cintilante que se


derrama em um sem·mímero de sistemas solares, havia uma vez
ttm astro, em que animais inteligmtes 1nvmtaram o
conhecimmto. Foi o mommto mais soberbo e mais mmtiroso da
"história ttniversal": mas também foi sommte um minttto.
Passados pottcos folegos da naturaa congelou-se o astro, e os
animais inteligmtes tiveram de morrer.
F. Nietz.che, 1873: 1&.

conhecimento científico adquiriu neste século dimensões sur­


O preendentes, principalmente a partir da década de 50, receben­
do de alguns, como Granger (1994), o epíteto de a "Idade da Ciência".
Certos pensadores argumentam que tal fato não se dá somente pelo
desenvolvimento acelerado, que por certo vem ocorrendo desde o sé­
culo passado, mas, principalmente, pelo desenvolvimento, aplicação e
maturação de idéias de origem bem anterior. Outros autores enfati­
zam o progresso científico através do binômio ciência e técnica, toman­
do as modificações na ciência e na sociedade como decorrência funda­
mental do avanço tecnológico, cuja elaboração teórica se faz através de
uma descrição evolutiva terno-científica da história da ciência.
É de fácil reconhecimento que o conhecimento científico tem
se transformado profundamente desde suas primeiras sistematizações
- as primeiras reflexões cosmo-filosóficas dos gregos nos séculos V e
N a.C. - produzindo de tempos a tempos conteúdos teóricos parciais
ou completamente novos que, na maioria das vezes, aparecem como
antítese dos anteriores2•
O caminho peculiar que o conhecimento perfaz e, principal­
mente, o modo como é constituído têm sido objeto de muitas refle­
xões por parte da filosofia de ciência e da epistemologia, disseminadas
nos mais diversos campos científicos3• Na linha desse artigo trata-se
de analisar os pontos de confluência e distância entre os pensadores
Karl Popper e Edgar Morin. Embora as discussões de Popper, princi­
palmente em sua fase inicial, pareçam não permitir tal diálogo, cami­
nha-se com a convicção de que, ao invés de as idéias de ambos os
autores excluírem-se pela oposição completa, há uma convergência
básica.
Resta, no entanto, a atenção com algumas precauções que evi­
tem erros grosseiros na transposição das idéias. Considera-se, pois,
não somente a ciência como produtora de conhecimentos, mas todas
as várias formas de produção de conhecimento humano, possibilitan­
do a ampliação dos limites impostos pelas fronteiras dos campos espe­
cializados, estanques e isolados.

1. É sabido que nenhuma nova descoberta ou nova idéia nasce


do nada, ao contrário, muitas vezes percorrem um longo caminho.
Esse desenvolvimento do conhecimento facilitou, em muitos aspec­
tos, a vida do homem e tornou maiores as chances de sua sobrevivência.
Neste sentido, Popper reitera que a ciência é feita de erros, so­
nhos e obstinação, que a origem do conhecimento. está relacionada
com a ignorântia €! que a efaboraçãÇ:, de conteúdos infomú1tivos acon­
tece na relação direta da apresentação de novos problemas. O que
significa dizer que o conhecimento "começa da tensão entre conheci­
mento e ignorância" (Popper, 1978). O ponto de partida será sempre
um problema, e a obseIVação acontecerá na medida em que aquele
problema se apresentar, ou mesmo, se ela própria revelar um proble­
ma, um desacordo com as expectativas, com as teorias. Neste sentido,
ele afirma que "a diferença entre uma ameba e Einstein é que Einstein
busca conscientemente a eliminação do erro" (Popper, 199 1).
Para Edgar Morin, a eliminação do erro pelo homem se realiza,
não na perspectiva antropocêntrica cartesiana, na qual o sujeito e ob­
jeto, no ato de conhecer, estão estanques, separados, um tornado quase
metafísico e outro coisificado.

Descartes, em vez de mergulhar o sujeito no ser individual e de ronside­


rar o inexplicável par sujeito/objeto, opera a disjunção paradigmática entre o
ego cogitans e a res extensa. O sujeito torna-se príncipe metaflsiro e o reino
cientffiro do objeto romeça. O sujeito desnaturaliza-se, o objeto roisifica-se (Mo­
rin, 1980: 170).

Percebe-se a intenção de diluir a idéia da �onsciênci� amplian--

92
do-a pela idéia da antropo-bio-logia do conhecimento. O recurso da
microscopia permite a Morin perguntar-se se não há uma dimensão
cognitiva na organização celular, por mais primitiva que pareça ser.
De forma convergente, Popper (199 1) fala do conhecimento das plan­
tas e animais apreendido através de séculos e que os ajudam a sobreviver.
O programa informacional inscrito na estrutura molecular do
ADN possui instâncias de memória, lógica e simbolismo. É de funda­
mental importância a idéia de Morin da computação, momento em
que o indivíduo comporta a identidade genérica, incluindo-a na iden­
tidade individual, mesmo que sem a consciência de fazê-lo.
Morin dirá que o computo não pensa de modo ideal, isto é isolável:

"Pensa" (c.omputa) de modo organiz:acional. O c.omputo concerne o "eu


sou, não no plano da c.onsciência ou da representação, mas no plano produ­
ção/geração/organiz:ação. Não existe certamente c.onstituição de sujeito c.onsci­
ente ao nível da {E. C.}. Mas talvez e-t:ista c.onstituição do sujeito puro e
simples no e pelo c.omputo" (Morin, 1980: 171).

O sujeito biológico, portanto, só se efetiva no egocentrismo e


na ego-auto-referência:

A definição do sujeito que se nos impõe não repousa nem na c.onsciên­


cia nem na afetividade, mas no egocentrismo e na ego-auto-referência, isto é,
na lógica da organiz:ação e de naturez;a própria do indivíduo vivo: é, portan­
to, uma definição literalmente biológica A questão é: o sujeito é rec.onhecido
...

c.omo tal e se rec.onhece c.omo tal, mas c.omo operar a transferência do c.onceito
de sujeito para a biologia, visto a dificuldade de naturaliz.á-la num ser não
humano desprovido de c.onsciência, c.omo no caso das bactérias? (Morin, op.
cit., p. 1 52).

Partindo da idéia de que qualquer conhecimento supõe a com­


putação, que é o operador-<:have do processo ininterrupto de autopro­
dução, Morin proporá uma distinção entre máquinas vivas e máqui­
nas artificiais, que parece coincidir com a distinção feita por Popper.
Para Morin, as máquinas vivas são computações vivas, têm funções
variadas que comportam uma capacidade de organização interna, pro-

93
<luzindo os meios para a sua sobrevivência e a execução das atividades
de reprodução e/ou multiplicação. O mesmo não acontece na máqui­
na artificial. Como nos mostra a cibernética, os avanços em relação à
capacidade de retroação da máquina moderna, não vão além do exte­
riomente programado, ou seja a organização artificial é exterior a ela
própria.
Para Popper,

cada vez que morre um homem, todo o Universo é destruído (podemos obser­
var isto quando nos identificamos com esse homem). Os seres humanos são
insubstituíveis, eles são sem dúvida muito diferentes das máquinas. Eles são
capaz,es degoz.ar a vida, de sofrer e enfrentar a morte conscientemente. Eles são
indivíduos, são fins em si mesmos .. (Popper, 1 99 1:2:7)
.

O ser sujeito, em Morin, implica situar-se no seu mundo para


computar esse mundo e computar-se a si mesmo; operar uma disjun­
ção ontológica, "que separa o universo em duas esferas: uma central,
da auto-afirmação, totalidade, finalidade; a outra, potencialmente ne­
gativa exterior e periférica, do incerto, do perigo do ruído; e operar a
auto-afirmação de si e a autotranscendentalização de si." O processo
da computação se constitui em um anel recorrente, já que produz e
mantém a identidade do ser (o computo) que o produz (o ser compu­
tante para si).

II. As mudanças nas concepções teóricas ocorrem, provocando


o movimento de transformação e mudança do conhecimento que, no
entanto, não é feito por simples acumulação de verdades, e muito
menos pela antiga idéia de linearidade e justaposição de conhecimentos.
Karl Popper, concordando com Hume acerca da impossibilida­
de da afirmação de que uma teoria possa ser considerada verdadeira, vem
derramar a última gota para a crise atual dos fundamentos da ciência.
Sinaliza, no entanto, uma outra possibilidade para o conhecimento cien..:
tífico. Através da experimentação com os denominados testes cruciais,
pode-se conseguir comprovar o erro de uma teoria. Assim, dizer que uma
teoria não é verdadeira é o mesmo que d izer de sua falsidade, o que
seria um procedimento possível e, portanto, verdadeiro.

94
Será, através da possibilidade de a teoria ser, de certa forma, con­
trastada em suas conseqüências, com a obseivação e o teste empírico, a
distinção que Popper proporá entre ciência e pseudociência (metafisica).
Morin partirá da idéia da crise dos fundamentos e da impos­
sibilidade de afirmações de verdades que Popper, como também Ni­
etzche, contestaram.
O próprio real entrou em crise e "a substância própria desagregou-se
nas equações da. foica quântica ': . A crise dosfunda.mentos do conhecimento
.

científico liga-se pois à crise dos funda.mentos do conhecimento filosófico, con­


vergindo uma e outra na crise ontológica do real. (Morin, 1986: 18).

O conhecimento é, assim, o produto de um conjunto de ações


que envolvem os níveis animal, cultural, social, psicológico, histórico
e espiritual. Deste modo, ele critica o conhecimento dissociado da
vida do homem e a disciplinaridade fechada. Muito mais do que pro­
por métodos de distinção entre os diversos campos, afirmará a neces­
sidade da religação dos conhecimentos, da transdisciplinaridade, da
constituição de meta-pontos de vista.
O problema lógico da indução, reformulado por Popper, reside
na validez de uma teoria, se ela é verdadeira ou falsa. As teorias são
sempre hipotéticas e conjeturais. Equivalente ao princípio de indução
está o princípio kantiano de causalidade, conhecimento válido a prio­
ri. Neste sentido, nossa inteligência impõe suas leis à natureza, e te­
mos necessidade (inata) de impor regularidades ao ambiente, baseada
em nossos impulsos e na necessidade geral de um mundo que se con­
forme com nossos desejos e expectativas. Mas nossa inteligência falha
diversas vezes ao tentar formular suas leis à natureza, pois as regulari­
dades que tentamos impor constituem psicologicamente a priori, não
havendo a menor razão para admitir que sejam válidas a priori. Po­
pper exemplificará essa idéia, considerando que um bebê pode ter
expectativas de ser amamentado por sua mãe, mas não significa que
ele venha a sê-lo.
Para Morin, é sempre o computo individual que criará, por si
mesmo,

a disjunção ontológica e a interação sujeito/objeto. O objeto nasce ao mesmo

95
tempo que o objeto que o constitui. Neste sentido, o sujeito produz o objeto
(1980: 1 68).

III. A produção de conhecimentos científicos é feita de uma


descontinuidade tanto interna, no fazer diário e cotidiano dos cien­
tistas, quanto externa, no sentido do que se pensa acerca das ativida­
des desenvolvidas.
Popper irá pensar o progresso científico através dos conteúdos
informativos, suas significações e construções ao longo da história d a
ciência, bem como a capacidade de serem transformados, liberando os
cientistas de velhas "ilusões" e oferecendo suporte para a formulação
de novas hipóteses. Para ele, esta é a característica principal do devir
científico: a superação de teorias por outras cada vez mais abrangentes
e verossimilhantes, embora progresso científico não implique a crença
de uma lei histórica do progresso.
Na medida em que uma determinada teoria resista às mais di­
versas provas, pode-se afirmar que esta teoria "comprovou sua quali­
dade" ou foi corroborada pela experiência passada. Mesmo assim, nunca
se poderá sustentar a verdade de uma teoria a partir da verdade de
enunciados singulares. Isto não significa que Popper descredencie a
procura de leis universais, mas que, quanto mais alto for o nível de
universalidade, mais difícil será a testabilidade, e assim menos se po­
derá afirmar sobre a falsidade da teoria e sua veracidade. Em resumo,
o problema da verificação é substituído pelo da falsificação.

Não exigirei que um sistema científico s�ja suscetível de ser dado como
válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, qtte sua
forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas
empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência,
um sistema científico empírico (Popper, 1 972:42).

O método empírico sugerido por Popper não pode excluir a


falseabilidade, embora concorde que isso é muito mais uma postura
metodológica a ser adotada pelo cientista. Os enunciados singulares,
bem como os sistemas teóricos do qual fazem parte, devem ter rela­
ções lógicas objetivas, ou seja, em sua base empírica devem ser i nter-

96
subjetivamente justificáveis, passíveis de serem submetidos a testes.
Isto implica considerar que, a partir das conclusões dos enunciados
básicos (anteriores), outros enunciados surgirão e terão de ser subme­
tidos a teste. Conclui-se que não podem existir enunciados definitivos
em ciência.
A refutabilidade é o requisito sugerido por Popper para demar­
car o campo do que pode ser considerado científico. A falseabilidade é
um critério aplicável ao caráter empírico de um sistema de enunciados, o
falseamento é a ação de aplicar aos enunciados singulares os testes com
intuito de falseá-los. Somente serão considerados falseadores da teoria os
enunciados singulares que apresentarem um efeito suscetível de reprodu­
ção que refute a teoria. Se os enunciados singulares forem falseadores da
teoria, todo o sistema de enunciados deve ser rejeitado4•
Em Popper, o fato de os enunciados empíricos serem vistos
como suscetíveis de revisão, ou seja, poderem ser criticados e substitu­
ídos por outros mais adequados, será o que caracteriza a capacidade
do progresso da ciência. Neste sentido, a refutabilidade científica é
uma escolha metodológica e, também, uma nova postura teórica.
O progresso científico não se constrói por meio de acumulação
de conhecimentos observáveis e também não acontece por meio de
saltos resultantes de conflitos entre opostos. O que ocorre é a substi­
tuição de teorias menos satisfatórias por outras mais satisfatórias, subs­
tituem-se as teorias em função de seu conteúdo informativo e de sua
resistência aos testes crua'ais. Há um processo natural de competição
entre as teorias que é seletivo. Aquelas que adquirirem mecanismos
que as ajudem a adaptar-se melhor à realidade sobreviverão.
Há, portanto, muito interesse no processo dinâmico por meio
do qual se adquire o conhecimento científico e enfatiza o processo
revolucionário pelo qual uma teoria mais antiga é rejeitada e substituí­
da por uma nova5• No entanto, esse processo evolutivo das teorias não
é considerado como carregado de linguagens intradutíveis entre si6•
A idéia de sistema aberto para a ciência aparece em Popper e
em Morin, tanto no sentido de uma opção para o cientista de uma
postura crítica frente a suas atividades, quanto também na adoção
da concepção de um sistema teórico aberto, ainda por se fazer, em
constantes modificações.

97
Popper concebe como dados legítimos os fatos e o espírito da
vida científica real, e sublinha o papel desempenhado, nesse processo,
pelo fracasso ocasional da teoria mais antiga ao enfrentar desafios
lançados pela lógica da experiência ou da observação. Neste sentido é
que as noções de erro, testes e falseamento vão adquirir na sua obra
um sentido especial. O cientista deve ser portador de um espírito
crítico e aberto, capaz de conjeturar, fazer hipóteses, uma ciência cujas
atividades normais sejam revolucionárias7• Por isso, o cientista deve
expor suas formulações às mais pesadas críticas e mesmo possuir uma
metodologia que priorize as teorias mais falseáveis, para submetê-las
aos testes cruciais, no sentido de mostrar que um determinado enun­
ciado é falso. Sua crença é a de que sempre será possível obter-se teori­
as melhores e, neste sentido, mais verdadeiras que as anteriores por
um determinado tempo t, até que uma outra teoria, T, apareça e expli­
que tudo aquilo que a anterior explicou, e mais o que ela não conse­
guiu explicar. O exemplo é o da teoria de Newton, TN, e a teoria de
Einstein, TE. TN explica adequadamente Tx, mas não consegue resol­
ver alguns aspectos y presentes em Tx, aspectos esses que não chegam
a comprometer a explicação que tx faz da natureza, pois no contexto
histórico ela é a melhor explicação encontrada. Mas depois de um
tempo, t, surge uma outra explicação, que consegue, mesmo passando
por inúmeras tentativas de falseamento, explicar o que TN explicava,
x, e o que não era explicado, y. Logo TE é uma teoria melhor.

N. O conhecimento científico ficou dividido nos seus campos


de especializações e a fragmentação se mostra pelo isolamento insular
com que cada ciência se postula em seu domínio. Todos esses fatos
somam-se na elaboração do quadro atual da ciência cuja crise de fun­
damentos tem sido cada vez mais exposta e evidenciada.
Almeida (1 992: 170), em estudos recentes, mostra como a frag­
mentação dos saberes está arraigada na ciência e particularmente na
antropologia. Tendo sido o relativismo a marca interpretativa de
referência para estudos da alteridade � da diversidade cultural, essa
enfase tem impedido a adoção de concepções mais universalizantes.
Para a outra (Almeida, 1992: 170), "A antropologia, de modo geral,
tem optado explicitamente pelos estudos particulares, reafirmadores

98
do relativismo que transforma cada cultura numa totalidade irredu­
tível e singular. No Brasil, a julgar pelo material analisado, a identi­
dade da ciência antropol6gica tem sido afirmada, quase que consen­
sualmente, pela preocupação com as especificidades em oposição a
nutras áreas do conhecimento que investem na busca de uma totali­
zação de caráter mais universalista".
Nessa mesma perspectiva, Morin criticará a disciplinaridade fe­
chada, a pouca troca cognitiva entre as ciências, propondo uma lógica
capaz de incluir um pensamento universalista. Pelo menos, três prin­
cípios são sugeridos: o dialógico, o recorrente e o hologramático. Uti­
lizando-se da metáfora do macroscópio (Rosnay, 1975), que propõe
uma interligação entre os diversos níveis sistêmicos, desde o microscó­
pico até o nível telescópico, pressupõe que esses princípios estejam
presentes em todos os níveis. O princípio dialógi'co é considerado um
resultado ou a própria ação em si de associar-se, podendo ser ao mes­
mo tempo uma associação complementar, concorrente ou antagonis­
ta, de instâncias necessárias para a execução do objetivo principal dos
indivíduos, a perpetuação das espécies. O princípio recorrente traz a
idéia do anel recursivo, da retroação e de processos em circuitos aber­
tos, em que os efeitos podem retroagir sobre as causas. O princípio
hologramático ilustra bem a idéia de descontinuidade e irreversibilida­
de temporal. Utilizando-se da metáfora do holograma pode-se ter a
compreensão de que os elementos constituem um sistema, que o todo
está na parte e a parte poderia ser mais ou menos apta para regenerar
o todo, como se eles não fossem somente fragmentos do todo, mas ao
mesmo tempo uns microtodos virtuais. Desta forma, Morin chamará a
atenção para a complexidade humana, que traz impressa em sua men­
te e em seus pensamentos os mitos, a religiosidade e as crenças8• O que
parece prioritário é a necessidade de se adquirir uma nova forma de
pensar que englobe todos estes conhecimentos e, principalmente, uma
nova ética que não considere como única possibilidade o caminho da
razão e da ciência ocidentais.

Notas

1 Professora da Universidade Potiguar (UnP) e pesquisadora do GrecomfUFRN.

99
2 As mudanças de concepções teóricas dentro da comunidade científica,
serão chamadas e definidas diversamente; Thomas Kunh ( 1 975) usará a idéia de
mudança de paradigma, Popper usará a idéia de falseamento, para designar o modo
como o cientista deve agir para que haja um acréscimo no conhecimento através de
novas teorias.
3 Dentre os vários pensadores contemporâneos que fazem reflexões acerca
do conhecimento científico e problemáticas específicas, como as crises, revoluções
e criatividade no conhecimento científico, estão: Karl Popper, Thomas Kunh, Paul
Feyerabend, E. Lakatos, David Bohm, Edgar Morin, Illya Prigogyne. Sendo que
alguns destes, principalmente os três últimos citados, se permitem sair dos limites
impostos pela epistemologia clássica, percebendo a necessidade de conceber o co­
nhecimento cien tífico inserido nas mais diversas produções de conhecimento hu­
mano (arte, música, religião, mitologia ...).
4 Há dois significados para a palavra refutabilidade. O primeiro é u m senti­

do lógico que indica a existência ou inexistência de meios puramente lógicos para


refutar uma teoria. Dá um sentido de consistência à teoria. O segundo significado
indica a possibilidade de teste empírico. Neste sentido uma teoria é empiricamente
irrefutável quando não é possível deduzir da teoria qualquer enunciado empírico
que a torne passível de refutação.
5 Reflexão semelhante ao pensamento formulado por Kunh em As Estrutu­
ras das Revoluções Cimt(ficas, 1 975 . Ambos os pensadores não acreditam que a �iên­
cia evolua por acumulação.
6Como é sugerido pelo anarquismo metodológico de Paul Feyerabend, 1 9 89.
Interessante salientarmos que Popper não está de acordo com as concepções con­
vencionalistas da ciência normal de Thomas Kuhn ou com o racionalismo cético
de H u me, ou ainda, com o anarquismo metodológico da incomensurabilidade
contido nas teorias científicas de Feyerabend.
7 Trata-se nesta área, a crítica de Ilya Prygogine e Isabelle Stangers, 1 994,

feita à Thomas Kuhn, quando este deveria pensar a dita ciência normal como u ma
possibilidade onde as atividades científicas quotidianas fossem mais críticas, me­
nos convencionalistas e deterministas, onde as normas não fossem incontestáveis,
mas questionáveis.
8 Do mesmo modo Lévi-Strauss já havia mostrado como o pensamento
mítico e o racional científico persistem e existem concomitantemente no homem.

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101
Em busca da com p lexidade esquecida'
JURE M I R MACHADO DA SILVA2 I

E as coisas causadas e causantes, auxiliadas e auxiliantes, mediatas e


dgar Morin gosta de citar uma passagem de Pascal: "Sendo todas

imediatas, e mantendo todas elas por meio de um vínculo natural e


insensível, que une as mais afastadas e as mais diferentes, julgo impos­
sível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o
,
todo sem conhecer particularmente as partes '3• Essa reflexão densa
serve-lhe de base para a fundamentação da epistemologia da complexi­
dade. Exposições e entrevistas mais longas levam-no quase sempre a
recorrer a essa chave de seu pensamento.
O fundamental para ele está na reforma do fazer científico.
Alain Touraine define-o como um intelectual interdisciplinar e incon­
tornável: "Talvez não seja preciso procurar uma idéia central na obra
de Edgar Morin, tanto que sua riqueza e sua sedução vêm de sua
capacidade de responder a todas as grandes interrogações do mundo
contemporâneo"4• Morin não conhece fronteiras e trabalha o conheci­
mento como aquilo que se "tece junto", de acordo com a origem lati­
na da palavra complexus. Na sua vasta trajetória dial6gica marcada pela
publicação de cerca de trinta livros, ele sempre se pautou pela busca da
contextualização, do sentido de uma totalidade hologramática, move­
diça, e da inter-relação das peças que formam o imenso puzzle das
práticas sociais. Fora disso, o conhecimento parece-lhe despido de sig­
nificação.
Pode, entretanto, um intelectual ser crítico sem anunciar o apo­
calipse? O francês Edgar Morin, nascido em 192 1, prova que sim. No
tempo de Jean-Paul Sartre, intelectual engajado, os vendedores de cer-
tezas encantavam o mundo e afirmavam-se como gênios da reflexão
devastadora. Passada a época das utopias racionalistas, que prometiam
o paraíso, mergulhadas no irracionalismo metafísico e na arrogância
de uma cientificidade insustentável, espalhou-se que não havia mais
grandes intelectuais para estudar a complexidade da vida. Magnífico
erro. Edgar Morin nada deve aos mestres de trinta anos atrás.
Morin, porém, não vende ilusões. Homem de saber enciclopé­
dico, tornou-se enfim uma referência no pensamento europeu. Traz
no coração e na mente a convicção de que "a renúncia ao melhor dos
mundos não é de forma alguma a renúncia a um mundo melhor''.5
De fato, a renúncia ao melhor. Mudar não é preciso (em tempos de
incerteza),. mas é fundamental. Homem comprometido com a justiça
social, não cessa de refletir sobre as noções de pátria, nação, universa­
lismo, identidade, ecologia, política, comunidade etc. Interessa-lhe
dissecar os mecanismos para a compreensão da intricada rede cultural
contemporânea. Nessa linha, os fenômenos da globalização e do re­
crudescimento dos nacionalismos xenófobos, elementos paradoxais
para um mesmo período histórico, encontram finalmente explicação
fora das teses redutoras.6
Inimigo feroz das simplificações, Morin combate os procedi­
mentos científicos lineares, que recorrem a princípios finalistas muti­
ladores e à lógica binária cartesiana da separação arbitrária dos com­
ponentes de um conjunto fenomenológico. "Edgar Morin propõe con­
siderar a cultura como um sistema autocomunicante - dialetizante -
, uma experiência existencial, vívida e um saber constituído"7• Tudo é
comunicação para Morin. A dialética, contudo, foi substituída pela
dialógica, em nome da articulação do simples e do complexo, da or­
dem e da desordem, do separável e do não-separável. Elogio da racio­
nalidade aberta.
A reforma do pensamento capaz de evoluir da lógica clássica à
dialógica complexa consiste na superação das especializações estanques
que distanciam as várias áreas da pesquisa e impedem a conexão essenci­
al entre campos aparentemente destinados ao isolamento. .Morin é um
transgressor sempre pronto a chocar-se com as regras acadêmicas para
tentar o salto na direção do novo. No abandono das certezas teóricas
absolutas, operação de contestação do paradigma científico moderno,

1 04
reside a sua maior luta epistemológica. Biodegradáveis, as certezas apare­
cem a cada dia. As teorias nascem e morrem. Em função disso, perde-se
o consolo da redenção; ganha-se, em contrapartida, a lucidez do relati­
vismo.
Em Mes démons, obra na qual resume o seu percurso e as idéias
obsessivas que o dominaram ao longo de uma vida de aventura inte­
lectual, Edgar Morin conta como descobriu, durante a Segunda Guerra
Mundial, o marxismo. O encantamento durou pouco. O ser da des­
confiança já estava em ação. O marxismo não podia mais seduzi-lo
por ter-se convertido, segundo a expressão tomada de empréstimo a
Karl Korsch, numa "utopia revolucionária"8• As asperezas do per­
curso underground incentivaram-no a investir na originalidade abso­
luta. Comelius Castoriadis sintetiza: "A unidade e a singularidade
do modo de pensar de Morin provêm de uma intuição profunda e
verdadeira da especificidade de cada uma das esferas do ser e ao
mesmo tempo de sua solidariedade indestrutível".
O eterno excluído, que se orgulha de não pertencer a nenhum
grupo ou escola, escolheu o caminho da solidão .. "É quase institiva­
.

mente que, diante de toda idéia, procuro o seu oposto. Vivo sem cessar
o assalto dos contrários, dos imperativos contrários". Intelectual, suge­
re, a quem através do ensaio, do texto de revista ou do artigo de jornal,
com riqueza de informação, trata das grandes questões humanas e
explora até as últimas conseqüências a articulação confiança/desconfi­
ança. Os especialistas, costuma repetir com acidez, são, com freqüên­
cia, homens de saber alheios à dialógica da complexidade que não
passam de gafanhotos - simpáticos, quando isolados; predadores, em
bando. Grande parte das dificuldades que enfrentou, antes de ser reco­
nhecido como um pensador de primeira grandeza, é explicada por sua
disposição em atacar os intelectuais: "Não respeito a lei do meio".

Viver a imprecisão

Em 1962, após um período de hospitalização em Nova Ior­


que, Morin sentiu necessidade de escapar à podridão da comunida­
de intelectual, certo de que um indivíduo não deve afundar-se na
caricatura da própria vida. Conhecedor de manobras acadêmicas,

1 05
com as quais nunca concordou, sofreu as perseguições � o repúdio
de uma corporação corroída, na época, pela mediocridade e soldada
em nome do Progresso, do Saber, da Verdade, da Ciência e de outros
termos de conhecida manipulação. Na contramão de todos os cre­
dos científicos, jogou a carta de incerteza em oposição às leis históri­
cas jamais demonstradas, recuperou o risco e o imprevisível como
vetores naturais e recusou-se a aceitar o messianismo das esquerdas
duras e desejosas de uma linearidade salvacionista.
Sempre a complexidade. Necessidade imposta pelo avanço do
pensamento tecnocrático, pela ameaça dos fanatismos religiosos e pelo
esquecimento da dimensão humana de Ser. Para Morin, adversário de
todos os totalitarismos, respaldado por sua biografia de resistente ao
nazismo, os meios de comunicação de massa e as universidades repre­
sentam muitas vezes o papel de oponentes vigorosos da compreensão
profunda dos dilemas sociais. Não se trata de um ataque gratuito ou
ideológico à produção acadêmica. Ao contrário. Morin defende a re­
forma educacional que permita à universidade ocupar lugar decisivo
na formação de homens voltados para a liberdade.
Pesquisador sem tabus temáticos, Edgar Morin debruçou-se
sobre os problemas da cultura de massa. A imagem, por exemplo, é
um dos seus assuntos prediletos. Michel Maffesoli obvserva: "Recep­
táculo dos sonhos, o cinema constitui o elo mágico por excelência,
pois sua estrutura, como analisa com pertinência E. Morin, permite ·

o jogo de sombras, do sortilégio, da passividade, coisas que, como


sabemos, são constitutivas da vida social"9• Esse espaço do irredutí­
vel, do inútil, tem o seu preço. Os intelectuais e cientistas, embriaga­
dos pelo saber acrítico acumulado, adoram denunciar o cretinismo
dos meios de comunicação de massa e dos incultos, sem j amais ad­
mitir que os espíritos simples possuem também um saber e a capaci­
dade de participar intensamente de emoções (a imersão num filme,
por exemplo) e ainda assim estabelecer a diferença entre ficção e
realidade. Os intelectuais, afirma, são alienados, através de uma ide­
ologia abstrata, típica do fetichismo moderno, que não podem su­
portar a alienação dos outros pelas telenovelas ou pelo futebol 1º.
Irônico, Morin salienta o essencial: os intelectuais atacam o con­
formismo e os estereótipos e esquecem que eles mesmos formam uma

1 06
subcultura convencional, cheia de estereótipos, conformista e precon­
ceituosa. Além disso, arrogante. Nenhuma moda lhe escapa: estrutura­
listas, marxistas, malthusianos, eliminadores da idéia de Homem e de
Sujeito, crentes de toda a sorte, recebem a sua parte. Solitário, Morin
sabe que pouco pode contra os representantes da elitização de um
saber impotente em relação à complexidade existencial, mas poderoso
enquanto mecanismo de dominação.
Maffesoli sustenta que não existem enganados e enganadores, "mas
uma atitude global"11• Morin persegue o ponto de intersecção entre as
perspectivas opostas, o núcleo indefinível da ambigüidade, a encruzilha­
da dos inconciliáveis. Caminhada de confronto, segundo as suas próprias
palavras, em duas frentes: contra a baixa cretiniz.ação gerada pela mídia e,
na outra ponta, contra a alta cretiniz.ação alimentada pelos intelectuais12• A
guerra só poderia ser devastadora. De um lado, a abstração conceitua!
falsamente elucidativa (os ismos de todos os tipos). De outro, a recusa de
teorias absurdas dando conta da morte do homem e do fim da noção de
sujeito. Morin não se dobrou jamais: "Muitas vezes estive só porque eu não
penso de acordo com as alternativas e as evidências da casta inteletual"13•
Teórico em rota de colisão com as certezas imobilizadoras, Mo­
rin conserva-se sintonizado com o desejo de mudança social. A razão
para o seu compromisso com a transformação é simples: o futuro povoa
o imaginário dos homens e cobra projeções que revelam, no mínimo,
preocupações legítimas com o bem-estar das gerações do amanhã. Sofre­
se no presente a antecipação do devir. Deve-se, contudo, evitar de matar
o aqui e o agora em função de uma religião do vir-a-ser. O futuro não
pode ser convertido em doença do presente. A humanidade experimenta
hoje a decadência de um tipo de idéia de futuro. Cabe construir uma nova
concepção de devir passível de acolher uma confluência de sonhos.
Fugir à racionalização para alcançar a racionalidade, eis a aposta
de Morin para que a humanidade continue a projetar o "mundo me­
lhor" sem cair no reducionismo do "melhor dos mundos". As misérias
do Terceiro Mundo, é compreensível, fazem com que a tentação salvaci­
onista reacenda a cada dia o mito, nem sempre confessado, da revolução
nos corações inconformados com o capitalismo. Os leitores de Morin
perceberão que para ele a construção do presente passa pela descoberta
de um novo amanhã e pela ruptura com o projeto nostálgico de recupe-

1 07
ração de um passado fracassado. Sociólogo de uma era de nebulosa,
conforme Fages, Morin descobre que a profunda crise civilizacional
exige uma sociologie du présent14•
Se a científicidade não é uma garantia de lucidez política, a
racionalidade - sistema aberto às contradições fundamentais do ho­
mem lúdico, produtivo e exposto constantemente à esquizofrenia so­
cietal - aparece como a mais elevada forma de conhecimento huma­
no. Ao contrário da racionalização, fechada e calcificada logicamente,
a racionalidade conjuga esforços argumentativos, de verificação, de
crítica e de autocrítica e, mais do que tudo, rejeita argumentos de
autoridade. O elogio da racionalidade feito por Morin nunca deixa de
salientar os limites desse portentoso instrumento que possibilita o
diálogo com o desconhecido, mas não apresenta respostas para tudo.15
Sociologia do presente, filosofia da incerteza, epistemologia da
complexidade, teoria do acaso fundador, abertura ao imponderável,
ânsia radical de elucidação, paixão pelo diálogo, cruzamento de disci­
plinas: a obra de Edgar Morin é um convite à experimentação das
dores e das delícias da "imprecisão", no sentido imortalizado pela
poesia de Fernando Pessoa, cuja paráfrase moriniana por excelência
poderia ser: compreender não é preciso. Fazer ciência também não.

A metodologia do método

A obra de Edgar Morin é uma ferramenta preciosa para a com­


preensão dos paradoxos da era da informação. Os quatro volumes de
O método16 situam com perfeição o intelectual sempre em busca do
caminho desconhecido e inovador. Como tudo o que diz respeito à
estrutura do pensamento de Morin, O método ultrapassa os limites da
metodologia para configurar uma teoria e um imaginário epistemoló­
gico. Formidável libelo contra o positivismo e contra todo tipo de
determinismo, essa apologia da compreensão vertiginosa supõe um
infindável jogo de posições e relativizações. A complexidade negocia
com a incerteza, não para exorcizá-las, o que é impossível, mas na
perspectiva do estabelecimento de pontes provisórias entre o ser-que­
busca e o desconhecido.
J. Le Moigne, exímio conhecedor da obra de Edgar Morin, toca o

1 08
aspecto decisivo: "Um pensamento que sabe que pode religar e que as liga­
ções que ele constrói podem formar esse prodígio do espírito que é o enten­
dimento humano"17• Qiando a atomização espreita, marca assustadora de
sociedades performáticas e escravizadas pela burocratização dos saberes e
dos poderes, a superação, ainda que sempre parcial, do esfacelamento inte­
lectual pressupõe a valorização do conjunto, da totalidade multidimensional.
Estratégia da desintegração para a reconstrução, a complexida­
de desmonta a totalidade totalizante, clássica e monolítica, com a pre­
ocupação teórica de estabelecer uma nova totalidade aberta, circular,
precária e em permantente intercâmbio com as suas partes. Morin está
muito longe de ser um apologista da fragmentação categórica ou das
virtudes da ausência da finalidade. Os finalismos deterministas, porém,
não o convencem na medida em que ele questiona a própria finalidade da
finalidade. Tudo o que concorre para a realização da vida não pode desvi­
ar-se da pergunta sobre a finalidade última do viver.
O grande perigo da obsessão finalista perversa está em que "essa
racionalização finalista acaba sendo simétrica à antiga causalidade ele­
mentar, pois, como ela, aprisiona a incerteza e a complexidade". Não
se deve esperar da complexidade, enquanto meio de entender os fenô­
menos, uma arma para enfim eliminar a incerteza, descobrir os verda­
deiros fins e estabelecer sem margem de erro a trama precisa dos obje­
tos. A informação, vista como a finalidade suprema deste final de
milênio, acaba por esconder ou negligenciar o sujeito da troca de sig­
nos. Informação para quê? Informação para quem? Os meios de co­
municação tomaram-se sujeitos de si mesmos. A informação-fetiche
desconsidera a humanidade dos homens. Simplificar é a palavra-chave
da mídia.
"Assim a idéia de finalidade se impõe. Mas é necessário não
somente temperar o entusiasmo piagetiano: é necessário relativizar e
relacionar a idéia e a finalidade"18• Morin não é o único a enfrentar as
distorções da científicidade moderna. O "Grupo dos 10", formado
entre outros por Jacques Robin, Henri Atlan, Jacques Attali, Henri
Laborit, Michel Serres, Joel de Rosnay e, claro, Morin, empreendeu
nos anos 60 uma cruzada contra o cartesianismo. Rosnay destaca a
importância da "separação" cartesiana na edificação do esplendor ci­
entífico atual, mas socorre-se de Morin para enfatizar que a inteligên-

1 09
eia parcelada, fruto do fracionamento dos problemas, resultou no es­
tilhaçamento da complexidade do mundo. Implodir a fortaleza das
verdades consumadas continua a ser o maior desafio dos adeptos de
uma nova visão sistêmica: "Indispensável para fundar a ciência, o modo
de pensar analítico não é mais suficiente, mas explicar a dinâmica e a
evolução dos sistemas complexos, as retroações, os equilíbrios, o au- .
mento da diversidade e a auto-organização torna-se portanto necessá­
rio a emergência de novas metodologias de organização dos conheci­
mentos face à complexidade do mundo" 19• Caos e auto-organiza­
ção entrelaçam-se. A ordem nasce da desordem. A desordem ori gi­
na-se na ordem. Ordem e desordem geram o irreconhecível, o im­
previsível. Nenhuma síntese acabad a é possível.
Tornar, portanto, as ciências da complexidade como portadoras
da salvação remete ao passado e trai a lógica desses aportes plenos de
inconformismo. A complexidade só permanece complexa na medida
em que reconhece os seus limites e rejeita a burocratização. O método é
um grito contra as tentações tecnocráticas do "metodologismo": "A
esterilidade danifica todo o trabalho que não cessa de proclamar a vonta­
de do método''Xl. Edgar Morin conhece o valor do método, o que, de
resto, não seria razoável contestar, nas difkeis veredas da pesquisa científi­
ca. No entanto, a exemplo de Paul Feyerabend, entende que "a ciência é
um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teoréti­
co é mais humanitário e mais suscetível de estimular o progresso do
que as suas alternativas representadas por ordem e lei"21 •
O mundo confunde-se com os seus mitos. A ciência, altar da
razão, mistura-se com as suas fantasias. Morin e Feyerabend foram
longos nas denúncias contra a barbárie do conhecimento tecnocráti­
co. A tarefa primordial do "cientista" não se alterou: transformar o
conhecimento em sabedoria. Urge quebrar a arrogância dos metadis- ·

cursos, fomentar a interpenetração dos campos de investigação, relati­


vizar o alcance de certas descobertas, estimular a curiosidade pura,
acionar a máquina da desconfiança, multiplicar as perguntas, sonhar
sempre com novas verdades, combater as velhas verdades injustas etc.
Morin nomeia o "grande paradigma" e aponta os seus males: a
vida, com suas paixões e sentimentos, reduzida ao cálculo, engolida
pelo império da racionalização. Imaginários fabricados pela força do

1 10
tempo e pela disseminação secular de modelos existenciais mutilado­
res. Na era da informação, a comunicação é um simulacro, um fantas­
ma, uma ausência, uma recusa, uma quase-impossibilidade: "A tecno­
ciência se forma, se ramifica, se institucionaliza nas universidades,
depois nas empresas industriais, por fim no Estado. Em dois séculos,
ela passa da perifieria ao coração da sociedade"22• Onde pode ainda
manifestar-se o sujeito da contestação, o homem da alteridade, o ser
da exclusão?
Mesmo que as brechas sejam mínimas, Morin não as despreza.
Os intelectuais, os formadores de opinião, precisam retomar o traba­
lho de discussão. Forjar idéias é fundar universos dialógicos. A dialó­
gica não existe sem pluralismo, sem desvio, sem contestação, sem con­
tra-informação, sem comunicação de sentimentos. A normalização,
expressão máxima do conformismo, paralisa os intelectuais, arranca­
lhes a originalidade, tira-lhes a autonomia, impede-os de pensar por
conta própria. Tudo é previsto, das palavras permitidas às teorias de­
fensáveis: "Assim podemos ver, nas altas esferas intelectuais universi­
tárias, exemplos soberbos de conformismo, que não são reconhecidos
senão após algumas gerações"23•
Intelectuais, contudo, não são apenas o pesquisador, o profes­
sor, o cientista e o escritor. Os jornalistas, no sentido amplo da pala­
vra, também o são. Intelectuais que há muito abdicaram do prazer e
da obrigação de repudiar o conformismo. A mídia quer distância da
complexidade. A simplificação é mais rentável. A crítica da mídia não
se volta j amais contra a própria mídia. As exceções servem de legitima­
ção, simulacro de autocrítica. Produtores e produzidos por um imagi­
nário que os engloba, os meios de comunicação, para serem examina­
dos em profundidade, devem ser submetidos a complexas radiografias
à luz do paradigma que os justifica.
Edgar Morin não deve ser entendido como o inimigo dos inte­
lectuais. Amigo das idéias, conserva a força da rebeldia. A complexida­
de implica afrontar as verdades caseiras, as certezas confortáveis e, por
vezes, até mesmo os ideais mais caros e aparentemente generosos. A
irreverência epistemológica vai além dos compromissos ideológicos e
significa a exegese de todas as ideologias. Exercício constante de dialó­
gica - colocar em relação o exame dos pressupostos de um projeto, de

li1
uma idéia, de uma posição etc. -, deslegitima as pretensões universa­
listas atemporais e fundamenta a evolução paradigmática. Edgar Mo­
rin simboliza o eterno retorno da dúvida.

Notas

1
A tradução das citações que estavam originalmente em francês foi feita
por Rachel Medeiros G ermano.
2 Professor da PUCRS.
3 MORIN, Edgar. La méthode 1. La nature de la nature. Paris, Seuil, 1 977,

p.7
4 TOURAINE, Alain . .. Edgar Morin et le chances de la liberté''. ln: Les
jardins de la connaissance. Paris, Université Euro-Á rabe Itinérante, n . 2, out.95 ,
p.29.
5 MORIN, Edgar. "La pensée socialiste en mine". ln: Le Monde. Paris,

2 1/04/9 3, p. 2. Nesse artigo extraordinário, Morin l embra que para Marx: "la
science apportait la certitude", sendo o mundo determinista; de resto "ni l'imaginaire
ni le mythe ne faisaient partie de la réalité humaine profonde". Em oposição a isso,
Edgar Morin sustenta que não se pode "opposer um futur raditux à um passé de
servitudes et de supertitions. Toutes les cultures ont leurs vertus, leurs expéritnces, leurs
sagesses, en même temps que leurs carences eu leurs ignorances".
6 Ver MORIN, Edgar. Terra-pátria. Porto Alegre, Sulina, 1 99 5 . U m a das
epígrafes do livro, colhida na obra do escritor Ernesto Sabato, já d iz muito
sobre a maneira de pensar de Morin: "Precisamos de mundiólogos" (p. 5 ) .
7
FAGES, J. B. Comprmdre Edgar Morin. Paris, Privat, 1 9 80, p. 1 5 9.
8 MORIN, Edgar. Mes démons. Paris, Stock, 1 994, p. 246.
9 CASTORIADIS, Cornelius. "Morin le cheminant". ln: Les jardins de la

connaissance, op. cit. , p. 39.


10
MORIN, Edgar. Mes démons. Op. cit., p. 83.
11
Idem, p. 96.
1 2 MAFFESOLI, M ichel. A conquista do presente. Rio de Janeiro, Rocco,

1 9 84, p. 65 .
13 MORIN, Edgar. Mes démons. Op. cit., pp. 263-264.
14 MAFFESOLI, M ichel. A conquista do presente. Op. cit., p . 1 1 0.
15 MORIN, Edgar. Mes démons, op. cit., p. 2 1 7.
16
I dem, p. 25 8.
17
FAGES, ]. B. Compendre Edgar Morin, op. cit. , p. 123.
18
Sobre esse aspecto, ver MACHADO DA SILVA, Jure m ir. "Entretien
avec Edgar Morin, penseur de la complexité". ln: Les jardins de la connaissance,
op. cit. , pp. 22-27
19
Ver MORIN, Edgar. La méthode - la nature de la nature. Paris, Seuil,
1 997, v. 1

1 12
____ . La mtthódt • la vit dt la vit. Paris, Seuil, 1 9 80, v. 2.
____ . La méthodt - la connaissanct dt la connàssainct. Paris, Seuil, 19 86,
V. 3.
____
. La méthodt lts idéts, lt11r habitat, lt11r vit, lt11rs mot11rs, ltttr

organisation. Paris, Seuil, 199 1 , v.


20 LE MOIGNE, ). ). ªUne pensée que relie . ". ln: Lts jardins dt la con­
..

naissanct, op. cit. , p. 34.


21
Idem, p. 127
22 ROSNAY, Jõel de. L 'hommt symbiotiqut - regard sttr /e troisitmt mil/lnai­

rt. Paris: Seuil, 1995, pp. 37-38


23 BARTH ES, Roland, apud JEANNWNAY, Jean-Noel. Unt histoirt des

médias - dts origines à nos jo1m. Paris: Seuil, 1996, p. 9


24 FEYERABEND, Pau l . Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves,

1 9 77, p . 1 7.
25 MORIN, Edgar. La méthode - les idéts, lettr habitat, lettr vie, leurs moeurs,
ltttr organisation. Op. cit. , p.
228.
26
Idem, p. 26.

1 13
1 Síndrom e da máquina
NORVAL BAITELLO J R. 1 I

Sintoma e sistema

[) eunindo e analisando 3.000 dentre os mais de 9.000 casos clínicos


"'1 e pronto-socorro atendidos no ano de 1985 no hospital universi­
tário Klinikum Steglitz, de Berlim, os pesquisadores R. Vetter e M.
Fleck-Vetter, sob a orientação do professor de medicina psicossomáti­
ca e especialista em moléstias renais Peter Diederichs, relatam que, de
todos os pacientes, apena 390/o apresentavam causas somáticas inequívo­
cas, ou seja, doenças ou distúrbios corporais diagnosticáveis; 190/o dos
pacientes apresentavam sintomas evidentes de distúrbios apenas psíqui­
cos; e 420/o ofereciam indícios de componentes psíquicos nas queixas que
os levaram ao atendimento de emergência de um pronto-socorro. Analisa­
das posteriormente, as diagnoses documentadas, o número de casos com
uma etiologia psicossomática comprovou-se em espantosos 46% 0/etter/
Fleck-Vetter, 1988, apud Diederichs/Blunk, s. d.:32).
As cifras percentuais acima, sublinhando-se o fato de pertence­
rem a uma situação de pronto-socorro, ou seja, emergencial, na qual o
paciente transpôs o limite de suportabilidade de seu distúrbio, tem
muito a nos dizer a respeito de nossos sistemas de conhecimento e
seus limites: estranhamos o alto percentual de pacientes acometidos
por doenças que há poucas décadas nem eram consideradas pertencen­
tes ao campo de saber da medicina. Os sistemas de conhecimento
desenvolvidos nos últimos séculos, como, por exemplo, a medicina
institucional, a exemplo de outros setores da ciência, no afã de coerên­
cia intra-sistêmica, em nome da defesa de sua própria legitimidade,
não apenas buscaram conhecer o seu objeto, mas também impuseram
a este os mesmos limites e restrições a que elas próprias estavam sub-
metidas. Assim, a medicina não apenas estudou o corpo e seu funcio­
namento, objetualmente, como também criou limites artificiais para
este corpo, restringiu-lhe os espaços de manifestação; em suma, ela
criou o corpo que melhor lhe convinha, que melhor cabia em seus
próprios limites. A pergunta que então nos cabe formular aqui não
diz respeito ao possível fracasso de um tratamento médico emergenci­
al nos 460/o dos casos de afecções psicossomáticas, mas de onde nasce
essa tendência de restringir e enclausurar o sintoma no sistema. Vale
dizer, por que estranhamos e de onde vem nosso estranhamento quan­
do um sintoma nos remete para fora de um sistema instituído, obri­
gando-nos a lançar pontes onde elas não existiam, a enxergar vínculos
onde eles nem sequer tinham sido previstos.
As anamneses feitas por Diederichs trazem não apenas os sinto­
mas, mas todo o levantamento das declarações e descrições dos sinto­
mas feitas pelos próprios pacientes, e conduzem o médico a caminhos
heterodoxos de diagnóstico, passando a buscar a forma de enunciação
de seus pacientes como caminho para uma possível história da doença
e suas complexas relações com a história - não apenas de vida, mas
também a história cultural - do paciente. Declarações de homens
com sintomas de prostatopatia apontando insistentemente para ima­
gens culturais de masculinidade ferida, ora por determinados confli­
tos circunstanciais, ora por simples processos naturais de envelheci­
mento, oferecem ao médico psicossomaticista um crescente número
de dados comprobatórios da existência de um outro corpo dialogan­
do com o corpo material do paciente, imprimindo-lhe marcas, im­
pondo-lhe ora restrições insuportáveis, ora performance e novos limi­
tes inatingíveis.
O quadro revelado pelos dados levantados por Diederichs confir­
ma a necessidade crescente dos estudos (sociais e comunicacionais) da
cultura como parceiros indispensáveis das ciências da natureza quando
estas se debruçam sobre fenômenos complexos como, por exemplo, as
noções (perfeitamente culturais e portanto históricas) de saúde e doença.
Curiosas, sobretudo, nesse quadro clínico das afecções masculi­
nas, as frases cuidadosamente colecionadas por Diederichs, do tipo:
"Doutor, o j ato da urina não tem mais força", ou então "somente
consigo urinar sentado, nunca me imaginei numa situação dessas!".

1 16
Se quisermos ser conseqüentes, não poderemos mais ignorar
como componente do diagnóstico do médico a história dos jogos e
apostas infantis e juvenis do urinar longe e do cuspir longe, dando
forma e consistência ao imaginário masculino da potência e do poder.
A própria "urina" constitui-se um texto da cultura, tão prenhe de
significados e histórias que se foram juntando ao próprio objeto, de
maneira que sua complexidade cresce permanentemente, desde suas
origens animais, passando por seu percurso mítico-religioso e ritual,
aos quais se somam os conhecimentos científicos contemporâneos.

Síndrome e síntese

O médico, tal qual os outros cientistas da natureza que lidam


com objetos complexos, viu-se obrigado a ampliar seu universo de
leitura e decodificação, a introduzir elementos antes considerados ex­
tra-sistêmicos em sua anamnese, a alargar seu alerta perceptivo e en­
xergar com isto um outro paciente, que tem um primeiro corpo-su­
porte, sobre o qual projeta e amalgama as distrofias de seu outro cor­
po, o corpo matéria, informacional, cultural, social, histórico, um corpo
semiótico, feito de sinais e símbolos, de histórias e lendas, de imagina­
ção e fantasia, de sonhos e brincadeiras, de jogos e papéis sociais, de
personagens imaginárias, de mitos e de crenças, do vivido e do deseja­
do, dos saberes e dos sabores, dos seus temores e ansiedades, enfim um
corpo feito também das suas paixões.
Não é outra a solução proposta pelo famoso neurologista russo
A. R. Luria em suas anamneses romanceadas, a ciência imitando a
arte, ampliando seus próprios horizontes, saindo do apenas real para
considerar o possível. O caso clínico clássico descrito por Luria no
livro O homem com o mundo estilhaçado, a trágica história de Zassietski
Qovem subtenente de 23 anos, que sofre a perda de parte das regiões
posteriores do hemisfério esquerdo do cérebro), é objeto de observa­
ção durante nada menos que trinta anos. Oliver Sacks, admirador e
seguidor de Luria, escreve: "Uma peculiaridade das 'biografias' de Luria:
elas abrangem um período de trinta anos -: nem mesmo Freud ou
alguém outro publicou algum caso clínico que retratasse um período
de vida tão longo; contudo, elas se tomam singulares pelo seu estilo,

1 17
pela conexão de análise exata com uma sensível introjeção (Einfühlung).
A análise rigorosa serve para apresentar uma 'síndrome', uma doença
(. .) ou uma função alterada em seu todo; mas a síndrome, decompos­
.

ta desta maneira, está incorporada em uma pessoa, em um indiví­


duo, que é colocado diante dos olhos do leitor com uma força e uma
naturalidade que lembram os escritos artísticos da literatura. E am­
bos estão entremeados com outro - sempre a síndrome se relaciona
com a pessoa e a pessoa com a síndrome, sempre a esfera pessoal se
funde com a científica. (. .) Foi Luria o primeiro inventor do gênero
.

'romance neurológico' •• (ln: Lurija, 1992: 1 1-12).


Observação ou inspiração? A ciência não pode mais prescindir
dos recursos do espírito, das chamadas humanidades, para compreen­
der fenômenos complexos da chamada "primeira natureza,, do ho­
mem (cf. Zimmer, 1982), mas também as ciências do espírito não
podem mais ignorar as implicações biológicas de fenômenos s6cio­
culturais. Gregory Bateson a denomina "ecologia do espírito/mente",
em sua obra Steps to an ecology of mind (1985). Bateson propõe ainda,
em seu posterior Mente e natura.a. (1986: 16-22), o conceito de "padrão
que liga... Luria postula uma "ciência romântica,, como saída para a
crise dos sitemas fechados, sistemas que operam segundo a lógica da
auto-suficiência.
A auto-suficiência dos sistemas pode ser vista hoje como o gran­
de mal da segunda metade de século. Auto-suficiência que gera auto­
referência. Vivemos e vemos exemplos não apenas de áreas do conhe­
cimento científico, como também de veículos de comunicação que
criam o mundo que vão noticiar, relatam apenas seus próprios even­
tos (ou entao aqueles de seus parceiros exclusivos - em todas as acep­
,
ções da palavra "parceiros ,), promovem fatos para gerar notícias, so­
mente noticiam a rigor a si próprios. Fabricam até mesmo seu entor­
no, até mesmo a realidade política que os cerca, fabricam até candida­
tos, fabricam o país que lhes convêm, dentro do padrão que lhes con­
vêm. Chegam até mesmo a fabricar o leitor/receptor. O mesmo fenô­
mento se repete em outras esferas, desde a atividade pública até os
campos da espec;,ulação teórica. Estaremos provavelmente diante d a
síndrome da máquina?

1 18
Sincronia e sincretismo

Dietmar Kamper refere-se, poeticamente, a uma tripla compo­


sição do mundo no qual vivemos, um mundo real, um mundo simbó­
lico e um mundo imaginário. No mundo real, vivemos por meio do
corpo; no mundo simbólico, vivemos por meio da linguagem, do
imaginário vivemos por meio de nossa fantasia.
Analogamente, o semioticista tcheco Ivan Bystrina, codificou uma
teoria sintética a qual denominou, a exemplo das escolas semióticas
soviéticas de Tartu e Moscou, Semiótica da Cultura. Nela propõe iden­
ticamente uma tripla concepção dos fenômenos de transmissão e con­
servação da informação pelos homens: um primeiro nível informacio­
nal ocorre na esfera do organismo. Todo organismo vivo se constitui a
partir de trocas internas de informações. Estas informação intra-0rga­
nísmica são regidas por códigos e leis próprias da vida, os quais Bystrina
denomina hipolinguais. Organismos mais complexos desenvolvem sis­
temas também mais complexos que pressupõem interação e interdepen­
dência de outros organismos. Forma-se entao sociedades. Porém socie­
dades não sobrevivem sem uma intensa e sincronizada comunicação
social regida por códigos extra-individuais. São os códigos linguais (das
diversas línguas da comunicação social, em todas as espécies que vivem
em sociedades, desde insetos até mamíferos, com suas linguagem olfati­
vas, corporais, vocais ou ainda outras). Ainda uma terceira esfera de
comunicação se desenvolvem com o homem: uma segunda realidade, a
realidade do imaginário, social, histórica, cultural. Regem-na os códigos
hiperlinguais, de acordo com Bystrina, uma clara alusão de que também
as criações do imaginário humano se codificam como linguagens. O
pensador tcheco acrescenta ainda que as raízes desta segunda realidade
se situariam em manifestações humanas como o sonho, a atividade
lúdica, as criações ousadas de indivíduos portadores de afecções psico­
patológicas e nas percepções inusitadas de estados outros de consciência
alterada.
Mais importante, porém, do que a classificação dos diferentes
sistemas de codificação, cada qual com sua sincronia própria, é o "sin­
cretismo" intersistemas proposto pelo mestre tcheco, apontando para
as múltiplas interferências e interações possíveis entre o imaginário, o

1 19
lingual e o biológico, apontando para uma visão sistêmica que não
exclui a complexidade cada vez mais crescente da vida. Assim, sonho
e imaginário, fantasia e mitologia podem perfeitamente interferir não
apenas na comunicação social mais pragmática, como também no
funcionamento dos códigos da própria saúde física, na esfera estrita­
mente biológica.
Com isso cai por terra a concepção mecânica da comunicação,
o velho modelo que opera como máquina sincronizada, em favor de
probabilidades comunicativas sincréticas, em favor de contaminações
recíprocas de entidades díspares.
Assim, cabe-nos hoje a tarefa de contrapor à sincronia das
máquinas o sincretismo que permite as discrepâncias presentes no
próprio sonho.
Assim podemos encerrar as nossas próprias indagações com as
perguntas que Dietmar Kamper formulou a respeito dos três mundos,
se não seriam meramente frutos de três sonhos: o mundo real seria o
resultado do sonho de Deus com o homem? O mundo simbólico seria
fruto do sonho do homem acerca das máquinas? E o mundo imaginá­
rio seria o sonho das máquinas acerca de Deus? Prossegue Kamper
considerando que Deus já não mais sonha, os homens também deixa­
ram de sonhar. Apenas as máquinas continuam sonhando; sonham
que são deuses e até mesmo podem criar novamente os homens.

Nota

1 Professor e pesquisador do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cul­

tura e da Mídia (Cise) da PUC/SP. Professor associado do Grecom/UFRN.

Bibliografia

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121
1 Complexus andarilh os
ALEX GALEN01 I

"Contrabandearei tlllÍo o que pmso e que sinto no


immso labirinto" Oorge Mautner e Nelson jacobina).

aston Bachelard, através da dialética da imaginação e da matéria


G nos convida a compreender os elementos universais - terra, água,
ar e fogo - e seus significados na vida dos homens. A terra, em especi­
al, aparece como elemento contraditório e da resistência, ou seja, como
a primeira percepção exterior ao ser e também como elemento prove­
dor e de repouso para a condição e vontade humanas.
Em trabalho anterior2, os sem-terra revelaram várias imagens
sobre a terra, que representam mais do que espaços de sobrevivência
cotidiana, mais do que espaço para o plantio ou atividade agropecuá­
ria. Foi possível também perceber a terra como expressão de uma an­
cestralidade presente nas tradições culturais. As imagens da terra apa­
recem como metáforas de vários outros elementos. A terra como ima­
gem da vida, da mãe, da casa, do campo para repouso, do trabalho ou
espaço de produção agrícola, e assim por diante. Imaginam também a
terra como o recipiente que contém outros símbolos de liberdade,
como a água, o ar e o fogo. Mesmo que a terra se encontre interditada
pelo poder da propriedade privada, os trabalhadores justificam suas
resistências políticas por meio de argumentos, cujas lições poderiam
ser levadas a muitos auditórios acadêmicos.
A terra se apresenta como símbolo natural, provedor da vida,
pressuposto no imaginário político. Para eles, se o sonho da conquista
da terra for interditado, s6 lhes resta a via da revolta política. É neste
sentido que a terra aparece como a imagem do "contra" e da "resistên­
cia", tomando-se espaço de conflitos e interesses distintos, na medida
em que os trabalhadores desterritorializam-se e tornam-se órfãos dos
"afagos" provedores dela, madre-terra.
Bachelard aborda essa relação propondo a dialética "imagina­
ção e vontade", ou melhor, sugere uma síntese entre a imaginação das
matérias e a imaginação das forças. Desenvolve tal problemática a
partir de uma dialética do "duro" e do "mole" que fornece e rege as
imagens da matéria terrestre: "A terra, com efeito, ao contrário dos
outros elementos, tem como primeira característica uma resistência.
Os outros elementos podem ser hostis, mas não são sempre hostis.
Para conhecê-los inteiramente, é preciso sonhá-los numa ambivalência
de brandura e de malignidade. A resistência da matéria terrestre, pelo
contrário, é imediata e constante" (Bachelard, 199 1).
Neste aspecto, a dinâmica e a energia do trabalho e o uso de
ferramentas são as primeiras das provocações às coisas. No caso dos
sem-terra, essa dinamologia poderia ser representada pelo trabalho e
sobrevivência através do cultivo da terra e por seus símbolos de resis­
tência: suas músicas, palavras de ordem, o uso da mística como anima­
ção e incentivo à luta política, e, ainda, as ocupações de terra como
estratégia principal e possibilidade indispensável para reconquistar ou
reiniciar os percursos de volta à provedora mãe-terra.
É desta maneira que a tradição d a conquista da terra descende
de milênios e pode ser mesmo considerada como um fenômeno inaugu­
ral e permanente das populações h {imanas. O vínculo com a terra
parece ser a senha a partir da qual é possível decifrar a histórica via­
gem do homem como um ser de cultura.
Um dos conflitos históricos, sempre simbolicamente relembra­
dos pelos povos, tem sido o da passagem bíblica, na qual Moisés tenta
libertar o povo hebreu dos trabalhos forçados impostos pelo faraó do
Egito em busca da Terra Prometida: a terra de Canaã prometida pelo
Deus Javé. Conforme passagem do Êxodo, no antigo testamento, quan­
do Moisés pergunta a Javé sobre sua partida e do seu povo, instaura-se
um diálogo emblemático que liga de forma indissociável as idéias de
Terra, de Povo, de Líder Messiânico e de Aliança Política.
"Senhor, por que maltratas este povo? Por que me enviastes? Desde
que me apresentei ao faraó parafalar em teu nome, o povo é maltratado, e
tu não libertaste o teu povo.
"Javé respondeu a Moisés: 'Agora você verá o que vou faur aofaraó.
É pela força, que ele só deixará partir, e até os expulsará do seu país.

1 24
"Eu sou Javé. Apareci a Abraão, a lsaa.c e a Jacó como o Deus Todo­
Poderoso, mas a eles não dei a conhecer o meu nome: Javé. Também estabeleci
minha aliança com eles, para lhes dar a terra de Can� a terra em que
residiam como imigrantes" ( Êxodo, 5,22-23. 6, 1 - 67).
Nesta passagem bíblica já está selado o sentido do conflito e
da violência presentes na conquista da terra. Ao mesmo tempo evoca
e sugere a figura do líder, imagem presentificada por Moisés como
representante para o povo hebreu. Neste aspecto, a figura do "messi­
as" ou líder tem sido um elemento importante e sempre presente na
história da luta pela terra. Mas, se a passagem bíblica sugere a figura
do líder como elemento que catalisa e gerencia politicamente a inter­
d ição e o desejo em relação à terra perdida/prometida, uma tal figu­
ra deve ser entendid a como o contraponto gerado pela violência
estrutural da relação do homem com a terra.
Para abordar a temática da luta pela terra, é essencial se fazer
menção ao caráter perverso da concentração fundiária maestrada por
parte de poucos em detrimento da população trabalhadora. Esse exér­
cito de despossuídos tem, ao longo da história, insistentemente reali­
mentado um desejo primordial e fundador: refazer os laços da troca
entre homem e natureza mediados pela imagem da mãe-terra.
Foi sem dúvida esse horizonte - a separação entre o homem e
as condições objetivas e subjetivas do trabalho - que se constituiu
para Karl Marx na hipótese central para configurar a gênese do capi­
talismo. Situado numa perspectiva não-disciplinar, articulando os
diversos domínios que juntos constituem a história cultural da hu­
manidade, Marx constrói, nas "Formações econômicas pré-capitalistas'',
o argumento definitivo que traduz o homem livre moderno. A idéia
da perd a sucessiva da terra, dos instrumentos de trabalho e da subje­
tividade deve ser entendida como a matriz paradigmática que expli­
ca a existência dos trabalhadores sem terra (Marx, 1 977). É dessa
fo rma que se inscreve na história a interdição dos elementos fu ndan­
tes que constituem os indivíduos em sociedade, razão pela qual os
diversos modos de produção objetivarão, de formas diferentes, as
regras de acesso aos meios de produção da vida natural e social.
Com tal interdição, o indivíduo livre, porque despossuído, tem
reduzidas as condições objetivas de sua realização, uma vez que perde

1 25
sua condição de proprietário, ao mesmo tempo dos meios e do pro­
duto de seu trabalho. Marx faz menção ao fato de que, neste mo­
mento, cinde-se a relação homem/terra. O trabalhador separa-se de
seu laboratório natural, o que significa a dissolução da propriedade
livre, como também da propriedade comunal. A te�ra deixa de ser
não mais um signo de valor natural, mas, ao contrário, uma merca­
doria mediada pelo valor capital/dinheiro.
Na literatura são fartas as imagens que relembram tais interdi­
ções inscritas na trajetória histórica e cultural dos homens. Evoque­
mos algumas.
No romance Os camponeses de Balzac, fixemos nosso olhar so­
bre uma imagística camponesa rebelde, rústica e utópica: "Talvez os
camponeses representem a saga imaginária que o mundo trad icional
construiu para si próprio. Banidos e dominados pela ferocidade do
mundo que se pretende detentor do progresso, conseguem por vezes
associar regularmente a vida rural do presente com o passado e a
tradição, por outras contrastar esses mesmos elementos com ritmos
contagiantes da modernidade e até refugiarem-se em utopias que
revitalizam o vivido, prefigurando um mundo mais autêntico e sa­
boroso, povoado de homens mais totalizados, . situados talvez mais
próximos à natureza" (Carvalho, 1992).
Em Vidas secas, de Graciliano Ramos, destacamos os persona­
gens de Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho e o mais novo,
a cachorra Baleia e o papagaio, e o Seu Tomás da Bulandeira (ho­
mem das letras). Tanto o romance quanto a vid a dos sem-terra com­
portam marcas do sofrimento. Quantos fabianos e sinhás vitórias
brotam-nos aos olhos ao imaginarmos os sem-terra no Rio Grande
do Norte ou em outros lugares?
Destacamos, aqui, imagens metafóricas sobre o cotidiano de
andarilhos da terra que, simbolicamente, constituem-se em operado­
res do pensamento ou em chaves para abrir as comportas de um ima­
ginário que oferece novas lentes ao focalizar o sentido da luta política
pela terra. São metáforas que têm a intenção de rejuntar e reaproxi­
mar, na realidade, a arte, a política e a vida. Tudo se passa como se as
metáforas reivindicassem um novo discurso e a tentativa de transfor­
mar o sentido de lutar pela terra, quem sabe, em uma poética da luta

1 26
política. Ou ainda, como nos lembra M. Foucault, a possibilidade de
transformar a política, o saber e o poder em uma ética da existência ou em
uma arte do viver, capaz de instaurar uma poetização do político.
É neste sentido que o livro Terra e as fotografias de Sebastião
Salgado nos convidam a viajar através das imagens que retratam a saga
e a vida dos sem-terra. Imagens "tristemente belas" mostram que o
congelamento da dor operado por Salgado nos contamina e desperta
solidariedade. Os massacrados de Eldorado dos Carajás" retratam bem as
palavras do escritor português José Saramago ao referir-se à palavra
Eldorado: "que triste destino tomam algumas palavras". ''Bebê': cha­
mado de anjnho, é velado de olhos abertos, segundo crença popular para
encontrar mais facil o caminho do céu. Ademais, Bebê sai do quadro para
representar todas as crianças vítimas das epidemias e flagelos nordesti­
nos, como se a vida imitasse a arte. Evoquemos a fotografia de uma
senhora de pele transfigurada, marcada pelas erosões de uma vida de
suplícios. Com a palavra, o próprio Sebastião Salgado: "Em 1985, em
Parambu, nos confins do sertão do Ceará, a luta pela sobrevivência se
revela das mais difíceis. E este bicho humano, endurecido, calejado,
enfrenta a vida desde o nascimento até a morte com a mesma resolu­
ção, batendo-se contra a aridez da terra, as secas prolongadas e a explo­
ração do seu trabalho, consumada dentro de uma estrutura agrária
ainda feudal" (Salgado, 1997). Por último, lembremos a beleza foto­
gráfica de um assentado na fazenda Santa Maria, em Paranacity, Para­
ná, algo que relembra a expressividade dos quadros de Van Gogh.
Sebastião Salgado retrata a imagística camponesa, a saga imaginária e
rústica da qual nos falam Balzac, Graciliano Ramos e tantos outros.
Como retratos da vida, essas imagens dizem de forma complexa os
percalços de retirantes que, como cambembes, "zanza daqui, zanza pra
acolá", como diz Chico Buarque em sua música Assentamento. É assim
que perambulam os órfãos da mãe-terra, na vida e na arte. Imagens e
metáforas expressam os suplícios causados pela interdição da mãe­
terra e mostram como os deserdados ainda são capazes de se manter
atentos às hostilidades e às durezas que lhes são impostas.
Desta maneira, ganha sentido a afirmação de Carvalho de que,
ao falar de uma possível poética da terra, estamos tratando da "necessi­
dade de reorganizar as relações entre homens e natureza, necessidade da

1 27
qual o MST pode ser um personagem transitório, um momento fugaz,
um ponto de mutação que, num certo canto do planeta Terra, pretende
reinventar um estilo societário mais simbiótico. Mas quem são estes
protagonistas, andarilhos rústicos e rebeldes? São milhares de sapiens­
demens, verdadeiras máquinas de guerra, espalhando fluxos desejantes
contra um estilo de poder sobre a terra - relação de propriedade - que
busca no controle, na ambição, no exibicionismo e na maldade estabe­
lecer uma forma tanática de ver o outro, de massificá-lo como engrena­
gem, mecanismo a ser azeitado com sofrimento, dor, agressividade e
tirania"3•
O MST, hoje, já adquiriu visto de permanência para atuar em
solo brasileiro, seja como organização política, seja como viabilidade
promissora do ponto de vista econômico para os trabalhadores sem­
terra4. Diferentemente de outras organizações políticas que parecem
desprovidas de uma mística que capitalize os anseios imaginários dos
atuais deserdados da terra, dado o esgotamento das práticas e das pala­
vras das organizações tradicionais como sindicatos e partidos, o MST
representa uma brecha nesse esgotamento, ou seja, no vazio de um
constructo representacional mais adequado às lutas políticas contem­
porâneas. É uma força imagética que, paradoxalmente, representa um
contraponto de resistência política às chamadas tendências conserva­
doras. Vale perguntar: como uma organização de trabalhadores rurais
de retórica radical, em plena era de midiatização e mundialização dos
territórios, consegue se insurgir como força imagética aos olhos do
Brasil e do mundo? Qie organização política, hoje no Brasil, conse­
guiria a façanha de sensibilizar e reunir cidadã.os do mundo como Sebasti­
ão Salgado, Chico Buarque e José Saramago? Talvez o MST se inscreva na
realidade brasileira, como uma imagem rústica ou como um símbolo
"rupestre", no sentido que Ariano Suassuna empresta ao termo.
Outro fator a destacar sobre o MST relaciona-se a sua composi­
ção social: a imagem do Movimento assemelhar-se-ia a uma espécie de
grande família política, conseguindo agregar pai, mãe, filhos e paren­
tes, fortalecendo laços simbólicos presentes no imaginário do traba­
lhador rural. A manutenção desses laços e sua relação com a terra é o
que parece permitir ao MST expressar-se como organização de caráter
coletivo que representa as várias faces da terra. Outra riqueza imagéti-

1 28
ca d iz respeito aos seus símbolos que, ao mesmo tempo, fundamen­
tam e realimentam o seu projeto de luta. A bandeira pintada, em sua
maior parte, de vermelho, representa a identidade, o elemento da for­
ça, d a luta e da coragem dos despossuídos. O hino, por sua vez, ritua­
liza o encorajamento necessário aos membros do Movimento. Essa cons­
telação simbólica presentifica os ideais de vida desses trabalhadores.
Por fim, os acontecimentos políticos mais recentes sobre a ques­
tão da terra no Brasil lançam refletores sobre cenas que têm produzi­
do ou explicitado a relevância dos argumentos apresentados. O MST
representa uma espécie de ícone político sintetizador dos anseios da
maioria dos sem-terras, uma constelação imagética destoante frente às
costumeiras práticas políticas tradicionais empobrecidas pela escassez
de conteúdos simbólicos. O MST tem sido, na política brasileira, a
imagem de um "mundo invertido" e transgressor, cuja ação, na margi­
nália, tem incomodado o silêncio dos proprietários, a arrogância da
ciência e o autoritarismo do político.

Notas

1 Professor da Universidade Potiguar (UnP)/pesquisador do Grecom (UFRN).


2 ·imagens da terra: por uma poética da luta política", Natal, 1996. Disser­
tação de Mestrado, UFRN. Departamento de Ciências Sociais.
3 Comentário feito pelo professor Edgard de Assis de Carvalho (PUC/SP)

durante a argüição da dissertação de mestrado "Imagens da terra: por uma poética da


luta política", do Mestrado em Ciências sociais da UFRN, em Natal/RN, dezembro
de 1996.
4 O movimento, hoje com treze anos de idade, organiza-se e consolida-se
em 22 estados. De quase 8 milhões de hectares destinados pelo governo à Reforma
Agrária, desde 1 986, o MST tem influência em nada menos de 4 milhões,870 mil e
1 72 hectares ou 48 mil, 70 1 ,72 quilômetros quadrados. O equivalente, em área
contínua, à Dinamarca ou a dois EI Salvador. O MST controla nada menos de 1 07
entidades destinadas à produção agroindustrial, entre associações de assentados,
cooperativas de produção e prestação de serviços e comercialização. As empresas
ligadas ao MST se dedicam à produção e envazamento de leite, beneficiamento de
erva-mate, cana-de-açúcar, arroz, milho, mandioca e a industrialização da carne.
Em alguns estados, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Pernambuco, Espí­
rito Santo e Bahia, foram criadas cooperativas para organizar a produção dos seus
membros.

1 29
B ibliografia

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. São Paulo, Martins


Fontes, 1 99 1 .
BÍ BLIA SAGRADA. Êxodo: 5, 22-23. 6, 1 4, Edição Pastoral, São Paulo,
-

Paulinas, 1993.
CARVALHO, Edgard de Assis. Imagens da tradição. ln: Ensaios sobre Antô­
nio Ctindido. São Paulo, Companhia das Letras, 1 992.
DANTAS, Alexsandro G. de A. Imagens da terra: por uma poética da luta
política. Natal, UFRN (Dissertação de Mestrado), 1 996.
MARX, Karl. As .formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo, Paz e Terra,
1977.
SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo, Companhia das Letras, 1 997.

1 30
1 Os padecime ntos dos olhos 1
DI ETMAR KAMPER2 I

"Começo logicammte pelo caos. É o mais natural. Nele


rs/011 calmo, porque eu mrsmo posso ser, antes de tudo, caos. Esta
i a mão materna. Face à alvura do plano postava-me com
freqiiência trêmulo e tímido. Só depois me dava o impulso
comdmte e me coagia à rstreiteza das reprrsmtaçõrs linearrs".
Paul Klee. Diário ( 1 898-19 18)

A
seguir, alguns pensamentos sobre uma contra-história do olhar
que produz e controla. Considerando os limites da visão, não
existe apenas a dicotomia conhecida desde Kant e Swedenborg entre
observação metódica e visão arrebatada, mas existe desde o início uma
subliminar história passional dos olhos que se passa no intervalo de
espaço e plano. Entre o "caos" e a "estreiteza das representações linea­
res" ocorre muita coisa que mereceria atenção: ilusões sofridas, coer­
ções visuais, deslumbramentos, até a terrível incapacidade de ver qual­
quer coisa. Supostamente é o lugar onde - em vista dos acentuados
aprimoramentos do olhar até a máquina visual - poderia germinar
um último orgulho humano, mesmo no caso em que a mão materna
estivesse ausente. Se os padecimentos dos olhos são inevitáveis, deveri­
am ser transformados em estratégias. Após a Guerra do Golfo uma
empresa americana fabricante de armas trouxe laconicamente ao pla­
no conceituai um dos lados da visão:first look, first kill. Chegou a hora
de falar do outro lado.
1. Os padecimentos da visão têm a ver com o crepuscular (Zwi­
elicht) do imaginário que se dissemina nesta época. Este lusco-fusco
representa um complexo; analiticamente não pode ser apreendido com
precisão; resiste a todo juízo e a toda decisão. Emerge nos processos da
visão mesma e é, não obstante, um resultado que vem de longe. As
imagens são necessárias à vida e mortais; quanto mais necessárias à
vida têm sido, tanto mais mortais irão se tornar. Isto é apenas uma
questão de tempo. Evidente que elas protegem de uma perda que ame­
aça a vida, antes mesmo que ela seja vivida. É igualmente claro que
elas - como telas de tevê, escudos de proteção (Schutzschilde) - po­
dem tornar-se uma prisão mortal quando perduram além da conta. O
que nesta época vale para o homem individual, ao qual, por nascer
prematuro, convém a mencionada ajuda protetora (Schirmhilfe), tam­
bém vale historicamente, cum grano salis, para o conjunto dos homens.
Na disseminação do crepuscular chegou-se hoje a um ponto em que
uma estratégia ensaiada, salvífica mostra o seu outro lado: coerções,
exigências, sacrifícios (Opferanspriiche). O imaginário é estimulado
historicamente até a exaustão. O estágio do espelho conduz a partir de
agora a uma morte no outdoor (Schild). Devia ser abandonado; e, com
ele, devia ser abandonada toda a podre magia de identidades espelha­
das e unidades espasmódicas.
2. De resto, pode-se ver muito pouco que ainda mereça ser vis­
to. A promessa de poder ver o nunca visto há muito tempo faz parte
da feira anual, e mesmo lá está silenciada. Dificilmente um homem
pode ater-se ainda hoje ao lema da Renascença, segundo o qual somen­
te os olhos redimem a miséria da existência (assim disse Leonardo:
"Deve-se agradecer ao olho que a alma se dê por satisfeita no cárcere
humano, pois sem o olho seria este um tormento"). No devir desta
decepção histórica as artes da visão desaparecem cada vez mais, tanto
aquelas oriundas de um desejo involuntário, caracterizadas como so­
nhos, visões e alucinações, quanto estas provenientes de uma percep­
ção visual voluntária, do olhar detetivesco à multiplamente filtrada
observação científica. Os olhos não acompanham; seja pela abundân­
cia de imagens, seja pela acelerada aparição e desaparição d as coisas. A
imaginação, na Idade Média ainda pura paixão (Passion), na moderni­
dade, inversamente, a atividade principal de um sujeito cujos olhos
iluminam, naufraga por isso no padecimento (Leiden). A órbita ocu­
lar dos companheiros de espaço (Raumgenossen) tomou-se estúpida.
Q!iase tudo passa por ela, mas ela não mais se detém ou não retém
mais nada. O mundo enquanto esfera - que a ela corresponde - des­
vincula-se da visão. Assim permanece ausente o acontecimento do qual
tudo dependeria. Isto é precário à medida que o que hoje realmente
importa tem de ser impronunciável, pode mostrar-se apenas.
3. A modernidade é, desde Leonardo da Vinci, o estágio do
espelho da humanidade. Ela ilustrou suas experiências sobre superfíci­
es e, provavelmente, em função do incremento do poder, considerou
natural uma partição extremamente artificial do mundo em realidade

1 32
e imagem. Mas, enquanto desaba este efeito de uma vontade, perde-se
uma orientação fundamental. Como imagem, com a distinção acura­
da entre significado (Bezeichneter) e significante (Bezeichnender), o
mundo dissolve-se numa catástrofe do sentido. Isto traz para os olhos,
sobre os quais se haviam depositado quase todas as esperanças, dores
de um novo tipo. Pois, quando o que é decisivo não se pode ver mais,
quando este se dá para além da relação entre visibilidade e invisibili­
dade, todo esforço apoiado na observação leva a pior. A certeza ensai­
ada do controle visual abriu espaço para o triunfo da simulação. Men­
tira e engodo, deuses dos mais antigos, dominam novamente. O prin­
cípio supremo do conhecimento metodológico na modernidade, o de
não iludir a si mesmo nem aos outros, fracassa irremediavelmente
pela privação do alicerce. A ilusão é inevitável, uma vez que o decisivo
é hoje o invisível. Mas só que este não é, como outrora, o obscuro, o
ameaçador, o perigo das trevas. O invisível é o transparente, o que há
·

séculos cresceu com a luz.


4. É então o cenário original (Urszene), aquilo que para a vi­
são importaria em máximo grau, uma miragem (Fata Morgana)?
Reflete-se nele o olhar que busca e investiga, e mais nada? Está fada­
da ao fracasso a tentativa de prevenir-se a si mesmo enquanto acon­
tecimento, que caracteriza o empreendimento de um confronto eu­
rocêntrico do olhar consigo mesmo? A tais questões deve-se respon­
der afirmativamente. De acordo com Freud, o cenário original é
ainda o motivo de toda pesquisa enquanto tal, a saber, querer desco­
brir o que havia realmente antes da geração (Zeugung) e da concep­
ção (Empfii n gnis) dos que pesquisam (Forschende). Um tal sentido
adicional para a frase "onde havia algo, devo vir-a-ser" não é de se
esperar, mas ajuda. O cenário original, o acontecimento (Ereignis)
ou o simplesmente avistado (Eraugnis), só pode ter lugar como a
silhueta do olhar que lhe é dirigido de fora. Porém um encontro
marcado com o real não se realiza. A verdade nua reza: tat vam así,
também isto és tu. O resultado é sempre o mesmo, nunca o outro.
No imaginário existe o outro, não para os outros. Aqui se pode
descobrir, no melhor dos casos, que espelhos são espelhos e não
j anelas.A frase segundo a qual a verdade é uma fêmea, tal como
Nietzsche a caracterizou em face da sua semelhante, seria apenas a

1 33
metade da verdade. A verdade completa reza: a fêmea é um espelho
do mesmo onde o desejo de saber reconhece a si mesmo com facili­
dade. Em vez do único que mereceria ser visto, é uma fantasia que
impera na reflexão e na análise.
5. O que viu Tiresias, o cego visionário antes de ficar cego?
Os antigos contavam a seguinte história: ele teria visto a deusa
Hera, esposa de Zeus e mãe dos filhos do deus, no jogo do amor,
sem poder guardar para si este avistado (Eraugnis), mas traindo seu
segredo numa aposta sobre qual dos sexos seria mais voluptuoso, se
o masculino ou o feminino, ao apostar no feminino, porque -
dissera Tiresias - ele o teria visto. Desde então os visionários (Seher)
são cegos. Isto que os cega é a fruição d ivina e insuperável d a mu­
lher, ou sej a, a circunstância de ter descoberto esse gozo. M as os
visionários não são apenas ofuscados, por esta via alcançam a visão
efetivamente real. Sob certas circunstâncias, os padecimentos têm
uma conseqüência temporal na visão de olhos fechados. A intuição
(Einsicht) [do local] por onde a visão passa através da ilusão pode
saber o lugar e o tempo do outro também para o futuro. No extre­
mo dos olhos que padecem há certeza, mas depois, sem eles, sem
olhos. Jacques Lacan respondeu à questão: o que quer a fêmea?
jouissance, fruição intensa e sem referencial, tempo preenchido, puro
presente - uma resposta que não se pode ter sem que se ofusque.
6. Existe ainda uma outra história sobre os limites da visão:
a história de Artemis e Actéon, do caçador que testemunhou por
acaso o banho da deusa e foi despedaçado por seus cães. Esta não é
a história do voyeur, que sempre sabe que pode ser descoberto, mas
a de um homem que em busca de sua presa é jogado para fo ra do
vestígio da normalidade. "Objeto de desejo no sentido corriqueiro
- escreve Lacan -, é sempre uma fantasia ( ... ) ou uma ilusão."
Actéon toca o real por engano, e, de indivíduo, metamorfoseia-se
num "divíduo". Nele, que não tem tempo para reflexões, o destino
vindouro do espelho fica nítido, a saber, estilhaçamento. A deusa
no banho, modelo para a solidariedade arcaica entre olhar e gêne­
ro (Geschlecht), destrói o medium especular que representa um ho­
mem casual. Quando os deuses se refletem na imaginação dos ho­
mens, os espelhos estilhaçam-se em milhares de partes. O que resta

1 34
é uma alternativa insuportável: ou novamente, como no estágio do
espelho, a d issociação (Disparatheit) das partes do corpo ou a ce­
gueira do espelho tornado cego, que não reflete mais nada.
7. A função da imagem refere-se ao olhar maternal, que, como
todos os outros que vêm de fora, é mau. A imagem é escudo protetor
e limite sublime de uma mãe indiferente e cruel que deu a vida para
tomá-la novamente. Neste d rama chega-se à oposição de plano e es­
paço, de imagem protetora e de um colo que não acolhe mais. A
tensão aprisiona as imagens para sempre: de um lado por ser o pri­
meiro ato humano na delimitação da origem; de outro a loucura,
que protege mais mal que bem o risco da vida, o risco da morte.
Nessa medida o simples fato de haver uma imagem, confrontada
com o observador, diz mais da visão do que daquilo que se pode ver
nas imagens. Daí que Roland Barthes possa acentuar a tal ponto a
imagem materna, que a mãe, enquanto imagem, permanece presen­
te. As sagas gregas mais antigas, que levam a cabo uma transforma­
ção do caos em representações lineares mediante um espelho fulmi­
nante (Górgona, Medusa), e o ponto de partida da literatura coincidem
no fato de que, além dos planos, da tela, do papel, está o seio materno
do nascimento, o lugar da fertilidade, espaço no espaço, corpo no cor­
po, raiz, trama, labirinto. Se este reverso do espelho, que desde sempre
foi associado ao demônio, é separado, os homens perdem-se nas ima­
gens e se tornam também em linguagem inatingíveis.
8. A passagem da experiência humana do estágio do espelho
para o labirinto da linguagem começa com a percepção dos mons­
tros. O que o sonho da razão produziu é um mundo da fantasmas. A
segunda criação como compensação (Ersatz) da primeira, que prepa­
ra para a morte, desemboca em várias composições (Gebilde) imor­
tais, incapazes de morrer. O estereótipo de tais figuras forma o fun­
do de um teatro universal da lembrança que facilmente denomina­
mos cultura. O status desta é desde o princípio obscuro. Apenas po­
deria ser explicado satisfatoriamente em uma demonologia. Pois,
assim como os monstros da primeira espécie pertencem a uma or­
dem do inferno, na qual a terra se vinga da insídia da razão, os
monstros d a segunda espécie, produtos da imaginação humana, ra­
zão sonhadora que muito se esforçou para impor-se, passam a uma

1 35
estrutura transparente, quase celestial. O homem, como imagem de
Deus, faz imagens que se assemelham a ele, meros espelhos, os quais
. no melhor dos casos remetem de volta sua fisionomia, mas geral­
mente como uma imagem distorcida e mais nada. A consciência
atual, em particular aquela cientificamente esclarecida está direta­
mente cercada por estes fantasmas. Nisso se evidencia a ruptura (Bru­
ch) do olhar controlador, um ofuscamento (Verblendug) que amarra
sub-repticiamente toda experiência e não pode mais ser percebido
sem demência.
9. O desacorrentar da imaginação no século XX torna simulta­
neamente claro o que ela - acorrentada - produziu: a base de um
mundo humano no sensus communis da visibilidade. Através da auto­
referência extática dos sinais sobre o plano imagístico (Bildflache)
não se perde apenas o domínio, mas também o plano imagístico de
que este domínio depende. Ao tornar-se mais breve a duração fu nci­
onal dos suportes da imagem, ela torna claramente perceptível o que
à la longue se consuma: a erosão dos fundamentos.
A saíd a da humanidade do estágio do espelho também ocor­
re portanto sem a intenção. É o pretenso poder sobre o imaginário,
no qual agora o desânimo salta à vista. Um niilismo da transparên­
cia não pode ser detido ou levado à razão. É verdade que os ho­
mens estão ocasionalmente na imagem, mas ainda não estão no
mundo. Constantemente não se dão por satisfeitos com os fantas­
mas. O atual acordo de moratória entre a busca decepcionad a de si
mesmo (Selbstsuche) e a explosão dos meios de comunicação será
quebrado. Nessa med ida é que idéias em favor de uma estética pós­
mídia são necessárias. Um intróito provável seria a percepção não­
visual do outro e do tempo enquanto pano de fundo (Gegenla ger)
da produção da imagem. Uma nova época de audição está anunci­
ada. A totalidade dos sentidos não pode ser captada de modo abran­
gente pela teoria, mas talvez na afirmação do fragmento.
10. O grande sonho obsessivo da razão com a imortalidade
pode hoje ser denunciado como a fonte fundamental do ódio perante
tudo aquilo que é mortal. Precisamente por isso ela necessita desper­
tar. Em face do triunfo da luz, trata-se de uma reabilitação do crepus­
cular (Zwielicht), da silhueta do clair--0bscur, de uma lógica efetivada da

1 36
desilusão. Assim obtém-se inicialmente, com a necessidade de agir,
mais uma vez, a necessidade de escolher entre visões e observações.
Porém ambas estão à disposição. É a orientação costumeira da despe­
dida do que é dado que continuamente atrai a morte para si. A trans­
gressão da prisão das imagens não reconduz a nenhuma realidade
protegida. O imaginário só pode ser abandonado na direção da lin­
guagem, e promovido através de um pensamento sabedor de sua ne­
cessidade do outro e do tempo. Tudo que hoje ainda se move conduz
a uma fronteira em que os homens saberão por que o decisivo não se
pode saber. Permanece o acontecimento que se faz ausente. Quem
come pela segunda vez da árvore do conhecimento pode renunciar
finalmente ao banquete da árvore da vida.

Notas

1 Tradução: Juán A. Bonaccini.


Revisão: Norval Baitello Júnior.
2 Professor da Universidade Livre de Berlim, Alemanha

1 37
Estrangeiras imagens
EDGARD DE ASSIS CARVALH011

A meno dos tempos modernos, parecendo mesmo tratar-se de uma


preocupação com os outros, os de fora, os diferentes, não é fenô­

pulsão pelo reconhecimento crítico de si, através do assujeitamento


valorativo do outro, que se inscreve na natureza humana.
Foi Todorov2 que, exemplarmente, fez um recuo no tempo his­
tórico, identificando dois princípios fundadores da alteridade, que
funcionariam como uma espécie de operadores lógico-simbólicos para
um diagnóstico mais preciso da estrangeiridade.
Em Homero, poeta épico do século IX a.C., poder-se-ia locali­
zar um desses princípios, denominado por Todorov de Regra de Ho­
mero. No Canto XIII, da Ilíada, é evocada a existência dos abios, a
população mais afastada dos gregos, possuidores de uma visão mais
justa dos homens e do mundo. No Canto IV da Odisséia, de modo
mais explícito, a epopéia homérica deixa transparecer uma espécie
de grau zero da sociabilidade que existiria nos confins mais inimagi­
náveis da Terra, onde a doçura seria o sentimento identitário regula­
dor da vida dos mortais e dos imortais.
Articulada a essa regra homérica existiria um outro princípio ftm­
dador, a Regra de Heródoto, para a qual determinadas sociedades, baseadas
em supostas supremacias econômico-culturais, considerar-se-iam as me­
lhores do mundo, passando, a partir desse critério valorativo, a julgar as
outras como inferiores, pérfidas, incapazes, não-racionais.
Se a idade de ouro grega propiciou o entendimento do outro,
do bárbaro, por esses dois movimentos, as idéias do longínquo, do
distante, do diferente, como puro e doce, e do uno como excelente e
superior, parecem ter atravessado toda a história da cultura, mesmo
que sua visibilidade tenha recebido impulso extraordinário com a
épica dos descobrimentos.
Difícil pensar quais as razões que concretizaram essa pulsão da
viagem, entre os séculos XII e XVI . Dentre elas, poder-se-iam apontar o
desejo de sair do fechamento ocidental, produzido pela crise da refor­
ma e pelas minorias árabes e judaicas, a curiosidade das aventuras, a
descoberta do exotismo e, finalmente, o próprio desejo de se descobrir
através do outro. Acrescente-se a isso o fato de que, apenas nos séculos
XN e XV, a esfericidade da Terra foi comprovada pelas hipóteses pto­
lomaicas, fato que, sem dúvida, atiçava as mentes que se lançariam à
descoberta do até então misterioso.
Com isso, a idéia de um mundo fechado estava sepultada e a
marcha para o oeste abria o teatro do mundo à dominação e expansão
civilizatórias. Se a cartografia medieval expandiu o imaginário do es­
paço/tempo e explicitou-o como um simulacro de todas as alteridades
concebidas, tomara-se imperioso vivê-las e narrá-las intensamente, O
Outro precisava, agora, ser descrito como movimento e ação.
Embora as causas apontadas para os descobrimentos oscilem
entre a busca das especiarias e do ouro, a obsessão colombina pode­
ria ser sintetizada na reunificação do mundo pelo cristianismo e no
aumento da glória e grandeza de Deus. Esse desejo natural de curio­
sidade precisava dessas justificativas ideológicas para estabelecer a
relação entre diferença, alteridade e exotismo. Toda epistéme do sécu­
lo XVI, misto de magia e erudição, fixará o espaço do exotismo como
essencial para a fundação de uma discursividade que conseguisse
incorporar aos espaços "civilizados" todos os restos do mundo ainda
desconhecidos, numa tentativa de assimilação compulsória, que
mantinha todos esses outros como uma reserva de valor, que não
havia ainda ascendido à racionalidade plena.
As viagens, e todas as suas metáforas e imagens, foram a base
real sobre a qual o Ocidente explicitou sua vocação exploratória sobre
outros mundos, uma espécie de suporte iniciático que, de acordo com
Mircea Éliade3, iria permitir o renascimento definitivo do outro, mes­
mo que o presentificando como exótico, primitivo, selvagem.
Essas alteridades, cifradas pelo panorama da nudez, dos praze-

1 40
res ansiosos, d as belezas lascivas, da não-mercant ilidade, acabaram
por produzir uma revolução sem precedentes no imaginário ociden­
tal, abalando o suposto reinado civilizatório e a arrogância de seus
súditos e mandatários, ainda que sua historicidade fosse entendida
como um discurso negativo, um somatório de ausências, que as colo­
cava fora da própria história.
Em virtude dessa negatividade, foi difkil ao Ocidente entendê­
las como manifestações culturais plenas. Talvez, por isso, tomou-se
obsessiva a compulsão de domá-las, escravizá-las, contaminá-las, do­
mesticá-las, sob a ideologização de que eram inferiores, estranhas, es­
trangeiras, mantendo-as no patamar de uma não-cidadania cultural,
sempre espúria e subalterna.
Michel Foucault considerou que essa epistéme do século XVI ca­
racterizou-se por uma espacialidade diferencial, na qual os outros fo­
ram progressivamente tomando-se semelhantes, ainda que mantidos
os afastamentos contidos no exotismo como um todo. "Assim, pelo
encadeamento da semelhança e do espaço e, por força dessa convivên­
cia que avizinha o semelhante e assimila os próximos, o mundo for­
mou uma cadeia com ele mesmo." 4
Mas essa similitude cultural, pela força histórica em que se des­
dobrou, foi desvelada por três movimentos que, apenas na aparência,
atuaram como contraditórios: um desejo primário de contemplação
do outro, um desejo secundário de saber os segredos maravilhosos
contidos no exotismo e um desejo explícito de dominar para civilizar
e instituir a racionalidade instrumental na fisionomia do mundo.
Esse dispositivo triádico, fundado em relações de comparação e
continuidade, de descontinuidade e ruptura, descoberta e diferença,
contigüidade e semelhança, imporá uma ordem classificatória à confi­
guração planetária de tais proporções, que, quatro séculos depois, seus
efeitos parecem ter-se universalizado como co-presenças mitificadas,
mesmo que os espaços societários da aldeia global, essa infeliz deno­
minação de Marshall McLuhan para definir a falsa homogeneidade
sígnica contemporânea, encontrem-se saturados de violências, deses­
peranças, descomedimentos, lubricidades e virtualidades.
De qualquer forma, a presença do outro se confirmou, primei­
ro como simples diferença, algo residual, negativo, resultante da sub-

141
tração de uma parte da humanidade por outra; depois como alterida­
de, que, progressivamente, passou a ser reconhecida como substancial­
mente idêntica do mesmo, em natureza e grau. Exotopia como a de­
nominação que Todorov conferiu a todo esse processo, definindo-o
como "uma afirmação da exterioridade do outro que caminha parale­
,
lamente com seu reconhecimento enquanto sujeito ,5•
Afirmação, paralelismo, subjetivação parecem soar como pala­
vras vãs, quando se têm em mãos os conteúdos da epopéia civilizatória
que se fixou, a partir do espaço epistêmico do Renascimento, na des­
sacralização do homem e na progressiva referência a seus aspectos e
destinos profanos. Se parece ser possível afirmar que os renascentistas
investiram mais na dignidade e na excelência do humano, no homem
como valor, a descoberta da alteridade, engendrada pela conquista e
colonização da América, teve um duplo papel: de um lado perpetrou
um dos maiores geno/etnocídios do planeta, e, de outro, contribuiu
para a ampliação do significado e sentido dos outros, dos estrangeiros,
entendendo-os até como mais dignos e éticos.
Essa crítica moral da civilização, que abundou nas filosofias de
Montaigne e Rousseau, embora tenha sugerido a possibilidade de um
descentramento do homem, não contribuiu para que toda a "idade
clássica,, fosse menos antiprimitivista e que o homem, no estado de
natureza, fosse definido como torpe, bruto, amoral, ágrafo, como um
ser ainda infantilizado, incapaz de objetivar e fixar seu destino na
escrita e de criar sua própria história pelo desenvolvimento d as forças
produtivas.
"A tradição da idealização do selvagem nos conduz aos estágios
iniciais da expansão imperial da Europa ocidental e, invariavelmente,
é produzida por uma situação retórica, na qual o escritor toma uma
posição ética concernente à sua própria cultura.,,6 Essas palavras de
Spurr evidenciam que o selvagem - o de Montaigne ou de Rousseau
pelo menos - não se constituía como uma presença real, ou uma
verdade histórica datada, mas antes, como um valor simbólico, um
construto, a partir do qual seria possível um reequacionamento mais
ético-político para todos os homens.
Por isso, essas imagens utópicas, idealizadas, de um homem
que, talvez, nunca tenha existido e nunca venha a existir, fizeram com

1 42
que a igualdade fosse pensada como um conceito moral. Mesmo as­
sim, esses outros chegaram a representar uma possibilidade co-natural
para o homem moderno, que só poderia ser decifrada passando-se do
conhecimento dos homens ao do homem, isto é, transcendendo-se as
desigualdades, para descobrir a igualdade de todos.
Mas os fundamentos dessa Early Anthropology perderam-se, infe­
lizmente, nas sistematizações posteriores da Antropologia explícita,
de cunho evolutivo e funcional, fixada na excessiva relativização dos
fatos culturais. Ao deixar de considerar o homem, fundamento básico
para qualquer restauração do sentido da espécie, em sua essência sim­
bólica, para admiti-lo apenas como um homem real, histórica e local­
mente fixado, a antropologia acabou projetando para as alteridades
um destino irreversível, cuja direção seria programada pelo estigma
civilizatório.
O relativismo, passou a partir daí, a representar uma expiação
da culpa colonial e a servir de âncora para o "retorno do reprimido",
uma redenção que procurava, a qualquer preço, igualar o inigualável,
desde que se mantivesse intocada a "servidão voluntária" das comuni­
dades estrangeiras e de seus costumes e padrões, de seus mitos e ritos.
Mesmo diante desse quadro supostamente progressista, a uni­
versalidade não deixou de preocupar vários pensadores - antropólo­
gos inclusive -, para os quais o outro e o mesmo constituem aspectos de
uma unidade indissolúvel, e que o homem é um só, esteja ele no mais
recôndito espaço da floresta amazônica, ou na cidade mais fantasma­
górica do mundo, seja ele um canibal que se delicia com braços e
coxas, ou um gourmant que se compraz com caças apodrecidas e quei­
jos deteriorados.
Não foi por acaso que Claude Lévi-Strauss chegou a definir a
antropologia como um empreendimento que, ao renovar e expiar a
Renascença, estenderia o humanismo a toda a humanidade. Em ou­
tras palavras, seria imperioso estabelecer uma arqueologia antropoló­
gica que desse conta de um conjunto de saberes implícitos que torna­
riam possível a inauguração de uma outra antropologia, não relativis­
ta. Estabelecendo com Rousseau, o "verdadeiro fundador das ciências
do homem", um diálogo incessante, Lévi-Strauss assumirá integral­
mente a distinção entre o estudo do homem e o dos homens, e que,

1 43
para se atingir o objetivo geral, é necessário, em primeiro lugar, obser­
var as diferenças para, depois, descobrir as propriedades.
Para falar do homem, tem-se de evitar falar dos outros a partir
de nossas categorias, pois desse modo falaríamos do homem selvagem,
mas estaríamos descrevendo o homem civil. Em síntese, o discurso da
desigualdade torna-se decisivo para o da igualdade e, de modo inverso,
a busca da igualdade é fundamental para que a gênese da desigualdade
possa vir a ser detectada.
Para Rousseau, a igualdade se apresenta como o dispositivo sel­
vagem, em estado de natureza pura: trata-se de um experimento men­
tal, abstrato, que ilustra o sentido da relação igualdade/desigualdade
como portador de um duplo sentido: é preciso transcender a desigual­
dade, para pensar e utopizar a igualdade de todos os homens. Para
isso, é preciso desidentificar-se do que os homens são, ou seja, perce­
ber as contradições das desigualdades sócio-históricas, mediante uma
atitude crítica que permita evitar pensar o que é próprio dos homens
próximos, para transcender a diferença pura.
Essa desidentificação, de caráter essencialmente anti-relativis­
ta, retomada do ideário rousseauniano, conduzirá o pensamento lé­
vi-straussiano não apenas a uma rejeição das sociedades inautênticas
da modernidade, mas à valorização de um estado intermediário, em
que as pessoas pudessem ser bem governadas, através de um estado
ético e íntegro, que lhes permitisse desenvolver suas relações sociais
sem grandes maldades ou perversidades, orientadas por um espírito
desinteressado e aberto.
Em Rousseau, portanto, encontrar-se-ia o verdadeiro princípio
da antropologia e o único fundamento da moral. "Ele (Rousseau) nos
restitui também o ardor... onde se unem seres que o amor-próprio dos
políticos e dos filósofos se empenha, por toda a parte, em tornar in­
compatíveis: o eu e o outro, minha sociedade e as outras sociedades, a
natureza e a cultura, o sensível e o racional, a humanidade e a vid a."7
Implodir essas dualidades, o que implica romper o "Grande
Paradigma do Ocidente", não vem sendo nada fácil. Ao que tudo
indica, as teorias científicas não vêm dando conta dessa missão, por
permanecerem consagradas na especialização, na fragmentação, na
racionalidade, no cartesianismo. Recompor a teoria implica enten-

1 44
dê-la como uma dialogia anticausal entre os itinerários racional/
lógico/empírico e mítico/mágico/simbólico, como anticartesianos
da linhagem de um Edgar Morin, dentre outros, vem propondo
para uma ciência nova. Ao vocabulário minado das certezas e teleo­
logias científicas, portador de um vocabulário único, essa discursi­
vid ade renovada conteria vários vocabulários oriundos de terrenos
m íticos, imaginais, históricos, inconscientes, numa espécie de bri­
colagem instaurativa capaz de recriar o outro e o mesmo.
Acredito que os "viajantes modernos", essa feliz expressão usa­
da por Todorov para definir um tipo de subjetividade que metamor­
foseia-se a si própria, para transformar-se em algo mais totalizado,
que pensa simultaneamente a diversidade e a unidade, possam des­
naturalizar o discurso duro do pensamento teórico, para reorientá­
lo para canais mais holográficos, portadores de sentidos e percep­
ções trans-históricas. Romancistas, poetas, filósofos, e uns poucos
antropólogos, em épocas diversas, foram capazes de refletir sobre as
alteridades de modo menos retórico e, assim, criar imagens que, por
estarem mais libertas das "regras do método", converteram-se em
jogos de linguagem alternativos que se mesclaram na encruzilhada
de um pensamento multidimensional.
A primeira referência a esse tipo de viajante será buscada em
Antonin Artaud (1 896-1 948). Em 1936, defrontou-se ele com os índios
tarahumara, do México, interessando-se, principalmente, pelas experi­
ências alucinógenas obtidas através do peiote. A contraposição cultural
entre França/México foi, a princípio, acompanhada pela dualidade
razão/magia, homem/natureza, aliás como não poderia deixar de ser.
Mas o interesse de Artaud voltou-se explicitamente para o mundo
indígena, ainda razoavelmente preservado em sua integridade cultu­
ral, no qual a consciência coletiva funcionaria como um guia geral
para o pensamento e para a ação, um negativo da civilização européia,
mergulhada num individualismo crescente.
Essa negação, porém, já era conhecida anteriormente, mesmo an­
tes da viagem, como se tudo já estivesse preordenado por alguma entida­
de supraterrena e que não necessitasse de nenhuma comprovação empí­
rica para atestar sua veracidade. Essa viagem interior implicaria um
conhecimento de si de tais proporções, que só um outro nível de cons-

1 45
ciência, resgatado pelo peiote, poderia auferir, no sentido de recuperar o
sonho de uma unidade que havia se rompido na fragmentação da história.
A viagem artaudiana permitirá seu reencontro com as verd ades
soberanas "mediante as quais a consciência humana... recupera a per­
cepção do Infinito, em lugar de perdê-la".8 Nesse infinito, apagam-se
as diferenças entre o eu e o outro, o louco e o são, porque ambos
representam ampliações do ego, uma forma transpessoal de consciên­
cia, formatada na e pela experiência ritual que permitirá que se veja o
outro lado das coisas. "Era como se uma força terrível houvesse conce­
dido a graça de te ver restituído ao que existe do outro lado".9
Se é possível concordar com Artaud, que o peiote representa o
homem não-nascido, inato, e que, por isso, torna possível o desvela­
mento de planos psíquicos obscuros, inconscientes, maléficos, a ex­
periência da alteridade social também teria de passar por todas as
experiências do mal, para deixar de ser um mero resíduo, um outro,
e ascender às altas luzes da vida, um topos que filtra todas as diferen­
ças das coisas e seres, onde o existente o inexistente não se discrimi­
nam nem se excluem mutuamente.
Internado por sete anos em um hospital psiquiátrico, local aliás
onde o texto foi escrito, malnutrido, envenenado por medicamentos,
abalado por sessões contínuas de eletrochoque, Artaud acabou conse­
guindo objetivar, pela escrita, a experiência mexicana, sem chegar a
acessar em sua existência real a identidade plena do eu e do outro,
obtida em sua viagem com o peiote.
"Cada aplicação do eletrochoque me submergia em um terror
que sempre durava várias horas. E não podia deixar de me desespe­
rar ao ver que uma nova aplicação viria, ... sabendo perfeitamente
que não estava em nenhuma parte - só o diabo sabia onde - como
se já estivesse morto." 1º
Mesmo sob a adversidade dessas condições, que acabaram por con­
duzi-lo à morte, o ato de escrever representou para Artaud um regresso a
si próprio, um derradeiro esforço de mostrar ao mundo a essencialidade e
a unidade do sujeito. No post-scriptum à edição dos tarahumara, encontra­
se a seguinte citação que resume toda a essência da viagem artaudiana:
"Escrevi o Rito do Peiote em estado de conversão, e com nada menos do
que cinqüenta ou duzentas hóstias no cotpo."11

1 46
As Cartas persas, de Montesquieu (1689-1 755), constituem o re­
gistro imaginário de uma estrangeiridade vivida por dois persas, Rica
e Usbek, que viajam pela França relatando suas experiências aos que
permaneceram na Pérsia. É óbvio que é Montesquieu que fala pelos
dois nas 1 60 cartas que constituem o livro.
Sem entender a racionalidade e as certezas e mazelas dos france­
ses, envolvidos nas contradições do serralha e no estilo persa de ver o
mundo, vivem experiências mescladas de surpresas, constatações, reve­
rências e críticas. Decididos a sair da pátria para buscar instrução nas
"ciências do Ocidente" (carta 8), essa peregrinação pelas terras bárba­
ras (carta 3) a princípio é cercada por grandes pesares em deixar a
pátria, os amores, até os inimigos (carta 6). "Que tristes novas me
podem vir dar às terras estranhas e longínquas que vou percorrer."12
À medida que a viagem prossegue, constata-se um movimento
de dessubjetivação, de crítica à desordem moral, à iniqüidade das ins­
tituições, à corrupção do aparelho político e dos governantes, aos des­
caminhos da atividade religiosa (carta 19). "Neste governo ... reina a
impunidade, e estão expostos a mil violências os cristãos que cultivam
a terra e os judeus que arrecadam os impostos."13
O momento paradigmático dessa experiência de estrangeiri­
dade ocorrerá em Paris, quando Usbek constata que, por ser estran­
geiro, sua observação dos outros parece tornar-se mais acurada, por­
que tudo o que lhe é apresentado é uma novidade (carta 48). "Passo
a vida a examinar, à noite escrevo o que notei, vi e ouvi durante o
d ia: tudo me interessa ... , sou como uma criança em cujos órgãos
ainda tenros se gravam os mesmos objetos."14 Esse não-pertencimen­
to indica aqui uma liberdade cujo fim último reside na conquista da
sabedoria (carta 1) que deve ser arduamente conquistada. Mas essa
conquista esbarra em costumes estranhos que, por vezes, recebem
uma interpretação apressada (carta 56). "As mulheres particularmen­
te são muito dadas ao jogo." 15 Ou ainda: "Aqui um sujeito serviçal,
por um pouco de dinheiro, oferece-te o segredo de fazer ouro." 16
À medida que a estrangeiridade dos dois persas vai tornando-se
mais familiar, o conhecimento de sua própria cultura é que começa a
ser questionado, algumas vezes até criticado, como na carta que Usbek
recebe em Paris, relatando a forma de iniciação sexual de uma de suas

1 47
filhas (carta 53). "Tendo completado tua filha sete anos, julguei que era
tempo de a meter nos aposentos interiores do serralho, ... [pois] nunca é
demasiado cedo privar uma menina das liberdades da infância."17
Como dois etnógrafos em campo, Usbek e Rica perguntam
sobre tudo, querem saber as coisas tais como são (carta 1 3 1). "Uma
das coisas que mais me excitaram a curiosidade, desde que cheguei à
Europa, foi a história e a origem das repúblicas. Sabes que a maior
parte dos asiáticos nem sequer tem idéia ... que haja na terra outro
[governo] que não seja o despótico."18
Diferentemente dos etnógrafos que, após a "vivência dos ou­
tros", sistematizam seus dados em narrativas formais, os dois persas de
Montesquieu exibem um retomo cultural a eles mesmos, através de
um relativismo complacente que desune França e Pérsia, uma espécie
de tolerância passiva, conforme observou Todorov. Mas, por outro
lado, já transformados, transmitem um desejo determinado de busca
de uma sociedade mais justa (carta 48), de uma política comum a
todas as nações, de uma igualdade para todos os homens (carta 75),
princípios esses que foram infringidos tanto pelo Oriente quanto pelo
Ocidente. Toda essa desfiguração planetária das relações sociais, que
ameaça a autenticidade do homem, se expressa, com maestria, na últi­
ma expressão epistolar (carta 160) na qual a perda amorosa de Roxana,
já irreversível, se explicita numa inteireza que a cabeça de um persa difi­
cilmente entenderia. É ela mesma que escreve a Usbek do serralho: "Enga­
nei-te sim, subornei os teus eunucos, zombei dos teus ciúmes, e o teu
horroroso serralho converti-o em mansão de delícias e prazeres" 19•
Certamente, todos os paradoxos que cercam as alteridades apare­
cem sintetizados em O estrangeiro, de Albert Camus (191 1-1960), e que
constitui o terceiro e último registro dos viajantes que ilustram esse
texto. Mersault, personagem central do romance, é um homem comum,
estrangeiro, francês, que vive em Argel. Trabalha, diverte-se, namora,
tem amigos, vive uma existência burocrática sem atrativos, ambições,
projetos. Não se emociona com a morte da mãe, que, velha, vivia reclusa
e feliz num asilo. O enterro conta apenas com a presença de um velho
amigo da mãe, do padre e de uma enfermeira, e não lhe provoca emo­
ções. No dia seguinte, com Marie, uma antiga datilógrafa do escritório,
amiga/amante, vai à praia e, em seguida, assiste a uma insólita comédia

1 48
de Femandel. Dorme com a amiga e, no dia seguinte, sozinho, vai almo­
çar num habitual restaurante dominical. A vida no escritório é rotinei­
ra, encontra Raymond, o melhor amigo, para beber e conversar sobre o
nada.
Instado pelo patrão para trabalhar no escritório de Paris, me­
lhorar de vida, simplesmente se desinteressa do assunto. "Respondi
que nunca se muda de vida: que, em todo o caso todas se equivali­
am."2D Além do mais, Paris "é uma cidade suja. Há pombos e pátios
escuros. As pessoas têm a pele branca"21•
O romance com Marie se estreita, o calor é intenso. Juntamente
com Raymond vai novamente à praia. Encontram amigos, divertem­
se. "Ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de nós, dois
árabes, de macacões azuis, vinham na nossa direção."22 Provocações,
discussões, olhares sinuosos. Está pronto o cenário para que Mersault,
inadvertidamente, mate um deles. Depois de atirar quatro vezes no
árabe, compreende que o equilíbrio do dia e o silêncio da praia havi­
am sido definitivamente rompidos. Após o assassinato, sacode o suor,
enxuga os olhos, se livra do sal. "Atirei quatro vezes ainda no corpo
inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era
como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça."23
René Girard, ao analisar o romance de Camus, considera que o
assassinato pode ser um pretexto, "mas é o único acessível, e, sobre esse
infortunado incidente, apóia-se toda a estrutura de significação erigida
por Camus"24 • Na verdade, a descrição do assassinato na narrativa do
romance clarifica o caráter involuntário do crime. Os árabes não pode­
riam ter sido os culpados? O homicídio não poderia ter sido em legíti­
ma defesa? Em qualquer um dos casos, a pena da guilhotina seria im­
pensável.
Toda a segunda parte do livro, que se concentra no julgamento,
expõe a oposição entre Mersault e a sociedade, representada pelo cará­
ter surreal do aparelho judiciário. O ritmo vertiginoso em que se de­
senvolve a primeira parte conduz ao desejo de que alguma desordem
venha a abafar a mediocridade daquela existência inerte. "Desde o
começo ... temos a sensação de que algo horrível vai acontecer e que
Mersault não pode fazer nada para proteger-se. O herói é inocente,
sem dúvida, e esta mesma inocência é que determinará sua perdição. 925

1 49
Convertido em vítima expiatória de toda a sociedade, inocente,
Mersault sabe que será condenado à morte. Receptáculo de todas as
desavenças e desmandos societários, esse "bom selvagem" da moderni­
dade irrita-se com a presença cínica do padre confessor e suas falsas
palavras de consolo e resignação. "Comecei a gritar em altos berros,
insultei-o e disse-lhe para não rezar."26
Se o inocente deve sempre ser tratado como um criminoso mar­
ginal a ser combatido e exorcizado, a visão de mundo contida em O
estrangeiro consagra essa fratura como universal e transcendente. Por
isso, a morte passa a adquirir o sentido da liberdade e da libertação.
"Tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a
reviver tudo. Ninguém tinha o direito de chorar por ela" .n
Condenado, expiado, esvaziado de esperança, Mersault expõe-se
à indiferença do mundo. Não era mais um estrangeiro, mas um homem
universal, que não precisava mais da clemência dos homens. Camus/
Mersault, mesmo/outro, unidade indissolúvel, dialogia eterna, é o que
o romance transmite em sua inteireza paradigmática. O resgate dessa
unidade prevê, porém, um ato último, definitivo e fatal, que faz reapa­
recer a estrangeiridade que existe em cada um de nós, a cada dia e a cada
hora, a cada tristeza e a cada alegria, nessa nau de insensatos que vive sob
a tirania do outro e que caracteriza as desfigurações da contemporanei­
dade.
À descrença de Julia Kristeva23, que também analisou o "caso
Mersault" como o signo máximo da "dissociação do desenraizado", um
estranho estrangeiro, incapaz de fundar um mundo novo, contraponho
a idéia de que de toda essa entropia advirá uma reorganização para a
vida, na qual todos seremos simultaneamente estrangeiros e nativos,
particulares e universais, selvagens e domesticados. Camus captou exem­
plarmente essa possibilidade quando encerrou seu "Conto filosófico"
com o ato denegatório extremo da existência do herói que o reabilitava
para a fraternidade do mundo. "Para que tudo se consumasse, para que
me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectado­
res no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio."29

1 50
Notas

1 Professor da PUC/SP e Unesp. Professor visitante do Grecom/UFRN.


2 Tzvetan Todorov. NoHS ti lts autrts. la refléxion françaist sur la diversité
humaint. Paris, Seuil, 19 89.
3 Mircea Éliade. Iniciation, ritts, sociétés secretes. Paris, Gallimard, 1959.
4 Michell Foucault. les mots tt les choses. Paris, Gallimard, 1 966, p.34.
5 T. Todorov. la conquêtt dt l'Amérique. Paris, Seuil, 1982, p. 254.
6 David Spurr. 7bt rtthoric of Europe. Colonial discourse in jounalism, trave�

writing and administration. Durham & London, Duke Un iversity Press, 1993, p. 125.
7 Claude Lévi-Strauss. Anthropologie structuralt II. Paris, Plon, 1973, p. 56.

8 Antonin Artaud. los tarahumara. Barcelona, Barrai Editores, 1972, p. 1 1 -


12.
9 Antonin Artaud, op. cit., p. 24/25 .
10 Antonin Artaud, op. cit., p. 29.
1 1 Antonin Artaud, op. cit., p.3 1 .
12 Montesquieu. Cartas persas. Trad. Mário Barreto. Belo Horizonte, Itati-
aia, 1960, p. 36.
13 Montesquieu, op. cit. , p. 58.
14 Montesquieu, op. cit. , p. 1 1 4.
15 Montesquieu, op. cit. , p. 1 17.
16 Montesquieu, op. cit. , p. 122.
17 Montesquieu, op. cit. , p. 122.
18 Montesquieu, op. cit. , p. 230.
19 Montesquieu, op. cit. , p. 277.
20 Albert Camus. O estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek, São Paulo, Record,
1 9 80, p.46.
21 Albert Camus, op. cit., p. 47.
22 Albert Camus, op. cit., p. 57.

23 Albert Camus, op. cit., p. 63.


24 René Girard. E! extrangeiro de CamHS revisto
25 René Girard, op. cit. , p. 3 1 .
26 Albert Camus, op. cit., p. 120.
27 Albert Camus, op. cit., p. 122.

28 Julia Kristeva. Étrangers à nous-mêmes. Paris, Gallimard, Folio/Essais, 1 988.

29 Albert Camus, op. cit. , p. 122.

151
1 Criar, comunicar e expandi r
JOSI MEY COSTAil

A brir a mente para que dela fluam imagens materializadas em códi­


J-'\. gos, capazes de expressar/transmitir um fragmento ínfimo e in­
suficiente de um mundo interior próprio, isolado de tudo e de todos,
a uma outra mente, também ilhada e somente apta a perceber o que a
cerca indiretamente, por meio de representações. Esse, o trabalho es­
pecífico do autor/criador que transforma os seus impulsos cerebrais
em mensagens passíveis de decodificação por quem domine o seu có­
digo. Essa, a vã tarefa de seres que fundaram a sua cultura a partir da
linguagem, da criação de um sistema de signos que se presta à comuni­
cação entre os indivíduos e se adequa à transmissão de práticas e co­
nhecimentos não-inatos entre membros de grupos sociais.
O objeto, pela palavra, pelo sinal, pelo desenho, adquiriu uma
existência mental mesmo fora de sua presença. Dessa forma, a lingua­
gem, atuando simultaneamente como organizadora das representa­
ções mentais e transmissora de idéias, informações, está imbricada
também à irrupção da magia na vida humana. O "mito do duplo"
está ligado ao aparecimento do homem imaginário.
O surgimento da linguagem imagética inaugura, então, a pro­
dução consciente do sentido dentro da cultura humana. O que, até
então e para as outras espécies, havia sido uma comunicação sem in­
tencionalidade, de ordem natural (biológica, fisiológica), passa a ser a
simbolização de processos mentais cada vez mais apurados.
Ao mesmo tempo que o homem prod uzia o sentido, pro­
duzia também o múltiplo sentido. Há um "excesso de significa­
ção" que o pensamento mítico comporta. Esse é o pensamento
inaugurado pela linguagem d a imagem. E é o pensamento que
permite, ao homem, extrapolar as suas próprias limitações men­
tais para além do que ele pode ver e explicar.
É assim que a produção e circulação do sentido aparece como
um requisito da própria existência social humana, assim como do
surgimento da cultura.
Comunicar requer não somente um emissor, um receptor e uma
mensagem; exige, também, um suporte, meio físico que transporte a
idéia e uma teoria que possibilite o reconhecimento do suporte/signo
e o seu deciframento. Comunicar requer um discurso. A linguagem
articulada - o discurso por excelência -, mais pobre em significações
que a imagética, nem por isso logrou a exata tradução do pensamento.
Mas viabilizou a argumentação. A linguagem escrita estabeleceu uma
ainda maior circunscrição do significado, conservando a mensagem
no tempo e no espaço, independente de seu emissor ou receptores. O
que, em muito, contribuiu para a fixação de valores, normas e padrões
de comportamento social e vice-versa.
A instauração da comunicação midiatizada, como hoje a co­
nhecemos, institucionalizada por meios de divulgação massiva, tor­
nou ainda mais patente essa ligação comunicação - cultura - sociedade.
Nas sociedades industriais atuais, não é possível pensar-se cultura sem
jornal, televisão, rádio, computador.
Esses mesmos meios de comunicação que se arraigam na cul­
tura contemporânea, enquanto transmissores/mediadores da infor­
mação, são, eles próprios, produtores do sentido. Detentores de
uma competência argumentativa que (re)cria a mensagem por seu
interméd io veiculada, determinam como interpretar a informação,
que juízo de valor lhe atribuir.
Morin, referindo-se à reinvasão do mito e da religião nos siste­
mas de idéias aparentemente racionais, nota que o mito - renascido
como ideomito - transferiu-se para uma noosfera estética alimentada
pelo romance popular, cinema, televisão, desporto. Almeida assinala
que o mito transformou-se em neomito, parasitando idéias de sentido
racional e imprimindo-lhes uma sobrecarga de sentido que, por vezes,
as transforma. Vê-se, por aí, que os meios de comunicação de massa
penetram profundamente no tecido social, no imaginário e nas ideali-

1 54
dades. Imprimem, profundamente, a sua marca na cultura. Atuam,
indistintamente, no pensamento mítico e no racional. Produzem o
sentido e o fazem circular entre os homens.

As mil imagens da palavra

Interpretar, como já foi dito aqui, pressupõe uma teoria que


d ará suporte ao reconhecimento do signo e decodificação da mensa­
gem. Isso significa que tanto emissor como receptor deverão estar
h abilitados a isolar um signo dentre tantos outros e a associá-lo a
um contexto informacional.
A interpretação não se dissocia da informação, tanto mais que a
própria percepção do real, enquanto representação cerebral, envolve
codificação e tradução. Umbeno Eco avisa que essa interpretação, quan­
do se trata de um texto, tem critérios públicos, mas tem objeto. Os
limites da interpretação, lembra o autor, têm raízes na própria cultura
latina, que busca limites espaciais, e em sua sintaxe. Mesmo se a nega­
ção do princípio do "Terceiro Excluído", no século II, estabeleça que
muitas coisas podem ser verdadeiras, ainda que se contradigam.
Nise da Silveira afirma que as coisas não são isso ou aquilo. São
isso e aquilo. Contudo, a pluralidade de significações não possui, forçosa­
mente, uma infinidade de significados. O pensamento mítico, embora
abrigue um excesso de significações, tem um número sempre limitado
delas.
Como manter a interpretação nesse equilíbrio que abarca várias
significações, mas estabelece limites? Pode-se, a essa altura, tomar em­
prestada a configuração do pensamento complexo, que permite um
estilo mito/lógico de ver o mundo e admite o paradigma da umduali­
dade. A interpretação, por esse caminho, teria limites, mas não seria
estreita. Se é no mundo das idealidades que se dá o nascimento do
sentido, é a ele que se deve recorrer para deslindar significantes/signi­
ficados.
A palavra, de significado mais restrito que a imagem, está longe
de ser exata. O texto está sempre inserido num contexto, que o influ­
encia e modifica. Qialquer tentativa de análise que o coloque num
continuum, numa seqüência evolutiva linear, corre o risco de falsear a

1 55
intenção do texto, no dizer de Eco, já que a do autor é praticamente
inatingível. Há que avaliar pontualmente o discurso, até porque "um
enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sen­
tido podem esgotar inteiramente" (Foucault, 1987).
Tais enunciações de modo algum querem dizer que a tendência
humana de tomar a palavra pela coisa, a idéia pelo real, seja o viés
legítimo da interpretação. Tornar a idealidade pela realidade é aluci­
nar. Evidentemente, o poder mítico da idéia sobre o real produz efei­
tos poderosos, como destruir a informação que desmente a ideologia.
Mas o antídoto é, verdadeiramente, a crítica dialógica da própria vi­
são de mundo e a crítica dessa crítica, ad infinitum, dialogicamente.
Ser capaz de criticar a própria visão de mundo é colocar, sob
perspectiva analítica, uma ordem normativa vigente. Qyando se con­
testa a validade dessa norma, ocorre "o abandono do mundo vivido e
o ingresso num tipo de argumentação sui generis. É o discurso" (Roua­
net, 1993). Discurso prático, no caso.
A ação comunicativa se dá quando o discurso se processa
numa situação de interação, em que os participantes integram uma
comunidade argumentativa, em que todos são sujeitos da argumenta­
ção, em suposta igualdade de condições. Uma tal igualdade de condi­
ções, para que seja efetiva, para que haja o discurso, deve ser entre
pares. Ou ambos os pólos devem propiciar uma mútua transcendên­
cia: é preciso colocar-se no ponto de vista do outro. O homem é habi­
litado a fundar, "em confronto dialógico com seus semelhantes, um
novo horizonte de significações" (Rouanet, 1993).
Aqui cabe a ambigüidade instituída pelo pensamento complexo. E
o homem pode construir o seu próprio sentido, a partir do sentido co­
mum, descobrindo que não há verdades absolutas - estas são mitos. Ide­
omitos.

A contextura da (re)criação
Apontamos com Almeida a existência de "idéias justas", sempre
conforme significados preestabelecidos, hegemônicos, que encarcera­
riam o pensamento, embotando a percepção. Como fugir dessas idéi­
as? Exercendo a ação comunicativa? Permitindo a florescência do pen-

1 56
sarnento mito/lógico, que liberta o significado ao mesmo tempo que
elucida o fenômeno? Abrindo mão de identidades culturais redutoras
e buscando a "desidentidade"?
Olhar as coisas com olhos de criança, abertos pelo espanto, ou
com a avidez do turista guloso, que a tudo quer abarcar com a vista,
ser o forasteiro em sua cultura, talvez seja um caminho. O "lugar
mestiço" de estranheza e descobrimento, onde "nada confere mais
sentido do que mudar de sentido", como adverte Serres.
A expressão do pensamento pode ilustrar os atalhos tortuo­
sos por onde anda a criação. Muitas vezes, é a crônica, o conto, o
romance e a poesia que melhor falam não apenas de um mundo inte­
rior, mas de urna época, um lugar, um acontecimento, um conceito.
Melhor falam porque mais comunicam, porque despertam a emoção
capaz de detonar e fundamentar a compreensão. A compreensão ver­
d adeira não se faz sem (com)paixão, comunicação de sentimentos.
Serei o "canhoto contrariado", que tem direita e esquerda plenas.
Qiando o homem criou a representação pela pintura, desco­
briu uma forma simbólica de transpor a morte. Desfraldou o imagi­
nário e se sentiu menos só. Agrupou-se em sociedades cada vez mais
complexas, e conviveu com muitos outros de sua espécie. Iludiu-se,
acreditando-se menos isolado. Sistematizou a linguagem, sofisticou
a comunicação. Estendeu uma ponte entre o seu imaginário e os dos
outros. Socializou a sua solidão.
Se o pensar pode ter um novo estilo, complexo; se a expressão
pode ser calcada no simbólico e alimentada na igualdade e transcendên­
cia da argumentação; se a interpretação pode se pautar pela unidualida­
de, qual seria o peso da construção da linguagem, da comunicação e da
cultura?
Talvez esse peso resida na amplitude do ato de criação. Recriar
essa prática cognitiva multissecular implicaria sempre ernpalrnar a ma­
téria desfeita de muitas criações anteriores e moldá-la novamente, e ou­
tra vez, e mais outra, revelando novas e antigas formas, novas e antigas
matérias, produzindo de novo resultados originais, incertos, indetermi­
nados. O mito da criação refazendo, sempre pela primeira vez, a luz e o
caos.

1 57
Bibliografia

ALMEIDA, Maria da Conceição de. Esse ancestral homem moderno. Natal,


mimeo., s/d.
_____ . ldmtidades/desidmtidades; um diálogo civilizado com a "louca
da casa". Natal, mimeo., s/d.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. O que é filosofta. Rio de Janeiro,
Editora 34, 1992.
ECO, Umberto. Interpretação e superinttrpretação. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Uni­
versitária, 1987.
MORIN, Edgar. O paradigma perdido; a natureza humana. Portugal, Euro­
pa-América, s/d.
___ . O método IV. As idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização.
Portugal, Europa-América, s/d.
Para sair do século XX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1 986.
ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo, Companhia
das Letras, 1993.
SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.
SILVEIRA, Nise da. Nise da Silveira. Vídeo-documentário, s/d.

Nota

1 Professora e pesquisadora do Grecom/UFRN

1 58
Linguage ns imaginai s e complexidade
MARCELO BOLSHAW1 1

á bem pouco tempo, as noções de ética e espiritualidade estavam


H intrinsecamente ligadas à moral e à religiosidade. Porém, esta
associação não faz mais sentido algum. Hoje, o desafio que se coloca é
procurar construir fundamentos comportamentais para a vida a par­
tir da própria vida e de buscar o autoconhecimento ético no conheci­
mento científico, principalmente no estudo transdisciplinar de siste­
mas complexos aplicados aos processos humanos.
Mas, antes de discutir as demandas éticas do homem sobre a
ética amoral da ciência, é preciso definir algumas das características
dos sistemas complexos ou não-lineares.
A auto-organização é uma delas e consiste na capacidade de
aprender com os próprios erros. Auto-organizar-se é corrigir-se frente
ao ruído e à redundância da vida. Quanto mais organizado interior­
mente um sistema for, maiores a sua criatividade e adaptação frente às
dificuldades de sua evolução.
Uma pessoa qualquer que, como se diz popularmente, possui
um "carma pesado" vive em um emaranhado cíclico de relações trági­
cas e de situações dolorosas recorrentes. Um estado de constante retor­
no às condições iniciais. A noção de carma kardecista, influenciada
pelo positivismo, é estritamente individual e se apresenta como uma
"lei de causa e efeito". Já a noção indiana original não é tão fatal e
determinista: para ela, o carma corresponde a um estado indiferencia­
do, em que a simultaneidade de fatores restritivos, dissipativamente,
estrutura o destino. Em ambas as concepções de carma, no entanto,
reinam as idéias de dívida/culpa e expiação/resgate; ainda não estão
presentes as idéias de acaso imprevisível, de auto-organização através
do ruído.
E é essa liberdade, filha da anarquia e do caos, a responsável
pela divesidade biopsíquica dos sistemas humanos, pela sua variedade
genética e pela possibilidade de singularização de cada um de seus
elementos. A esta liberdade, a este fenômeno de produção de novas
formas por combinação aleatória chamamos "criatividade". Desta for­
ma, observamos que um sistema com baixo nível de organização vive
em constante conflito relacional em que situações recorrentes se repe­
tem de forma compulsiva e involuntária. À medida que o próprio
sistema toma consciência desses padrões de repetição, há uma reorga­
nização cognitiva irreversível e cumulativa, uma mudança progressiva
em toda sua estrutura interna do sistema em questão.
Ser criativo, neste contexto, significa encontrar soluções e res­
postas novas a essa tendência compulsiva do sistema à repetição. Im­
plica, igualmente, singularizar-se, aprender com os próprios erros pelo
caminho inexplorado de nossa experiência pessoal com a totalidade.
Se observamos quais são os "erros" através dos quais um sistema
se organiza, distinguiremos dois diferentes tipos de demanda princi­
pais: as demandas de singularização (ou de diferenciação criativa) e as
demandas simbióticas de autonomia e identidade (ou de desenvolvi­
mento), envolvendo as funções de nutrição, proteção e reprodução
deste sistema. Enquanto o primeiro grupo de erros se refere à diferen­
ciação de uma singularidade no Universo, o segundo tem origem nos
processos de nutrição do sistema, que se desenvolvem de forma extre­
mamente simbiótica, seja em relação ao organismo matemo, seja ao
meio externo concebido como Natureza.
Assim, aprender a alimentar-se, defender-se e sobreviver sem
ajuda de outro organismo são funções de manutenção do sistema
que contrastam com sua verticalização interior. Se auto-organizar-se
pode ser entend ido como aprender com os próprios erros, podemos,
nos sistemas humanos, dividir esta tarefa ética em dois campos com­
plementares: aprender com os erros pessoais (e interpessoais) e com
os erros societais (coletivos).
Situar-se em um universo de perpétua transformação exige do
ser humano uma constante adaptação ao meio ambiente e a transmis-

1 60
são desta experiência entre grupos e gerações. Devido à natureza con­
tínua e descontínua do tempo, os eventos passados estão irremedia­
velmente perdidos, a menos que sejam registrados, todos eles, em
algum tipo de winchester trilhões de vezes mais potente que os com­
putadores mais avançados. Por que temos saudades de lugares onde
nunca estivemos? Por que não conseguimos sair do labirinto mental
deste jogo ininterrupto de conceitos, imagens e idéias, no qual esta­
mos continuamente envolvidos? É contra esse turbilhão que vários
segmentos filosóficos orientais, como o budismo, se insurgem, ten­
tando reter pela meditação os ruídos do pensamento.
O real, a coisa, o referente são representados por uma imagem
holográfica estruturada pela percepção com base nas experiências ante­
riores e rapidamente arquivadas na memória. Qiando, em um segundo
momento, formos transmitir informações sobre aquele objeto ou reali­
dade, a consciência reconstituirá a imagem da percepção arquivada se­
gundo seus critérios, determinadas pela linguagem particular de cada
associação.
Assim, não se trata apenas de duplicar reflexivamente a realida­
de, mas sim de transmitir experiência existencial, "fazer comum" sen­
timentos e desejos, comunicar um modo subjetivo de compreender a
informação. A transcendência do sentido - através do qual a expres­
são dos sentimentos ganha uma profundidade significativa e um cará­
ter abstrato e genérico - deve-se ao caráter dialógico e interativo da
função simbólica da linguagem.
O homem é o único sistema biológico auto-ecoorganizador por­
que sua cultura não apenas reproduz o real, também porque ela é uma
mensagem sobre a vida e suas dificuldades.
O primeiro registro cognitivo é analógico, involuntário e orga­
nizado pela experiência individual; já o segundo é motivado e codifi­
cado segundo fatores sociais. Através deles interpretamos a percepção
dos sinais digitais dentro de um quadro de referência analógico dita­
do pela experiência pessoal e transmitidos segundo normas e regras
coletivas.
Pensamos, dessa forma, que a singularização tende para a pará­
frase e para o signo (para identidade entre o referente e sua representa­
ção) e que o desenvolvimento simbiótico, para polissemia e para o

161
símbolo (para diferentes sentidos em uma única representação). E é
esta contradição da linguagem que nos possibilita interpretar o mun­
do de forma dial6gica e interativa.
Mas a linguagem se desenvolve sempre em oposição ao tempo e
à irreversibilidade dos processos biológicos, estabelecendo um mapa
cognitivo misto de correspondências involuntárias e arbitrárias atra­
vés dos quais apreendemos e retransmitimos nossa experiência exis­
tencial. A esses modelos abstratos que estruturam o conjunto de nos­
sas memórias, sejam elas culturais ou genéticas, chamamos "paradig­
mas". Este termo, proposto por Thomas Kuhn para definir o "conjun­
to de estruturas cognitivas e epistemológicas" para o universo da pes­
quisa científica, foi recentemente ampliado e popularizado por pensa­
dores contemporâneos, como Edgar Morin e David Bohm.
A linguagem, portanto, além de reflexiva e comunicativa, é tam­
bém paradigmática, funcionando como um modelo estruturante da
realidade que não apenas a contextualiza, mas que também está inscri­
to, em um sentido mais complexo e polêmico do que os do signo e do
símbolo: o sentido compreensivo, em que os valores éticos e os mitos
de diferentes culturas se confrontam diante da parte que souber reco­
nhecer seus afetos e aversões frente ao todo do qual se singulariza.
Restituir o sentido à linguagem não. é apenas revivê-la, atuali­
zando sua significação. Agora, trata-se de observar que, além do co­
nhecimento sígnico do eu, do conhecimento simbólico de si e do
conhecimento paradigmático de mim, realmente existe um conheci­
mento do conhecimento, formado por padrões recorrentes de uma
consciência universal trans-histórica e transpsicológica. Mas que essa
consciência não é constituída por formas perfeitas e acabadas mas sim
pelos incontáveis conflitos e acordos que se formam e desenvolvem
através da comunicação e troca de informações. Nesse contexto, talvez
fosse possível afirmar que o pensamento é coletivo e a consciência
individual. Assim, só podemos compreender o indivíduo como um
subsistema fractal do sistema cognitivo coletivo, como uma imagem
singular do todo. O contato permanente entre estes variados subsiste­
mas semelhantes, que com a complexidade tendem para singularida­
des diversas, mantém relações entre si, que são, ao mesmo tempo,
concorrentes e funcionais em relação ao trabalho cognitivo coletivo.

1 62
Essas relações, no entanto, não são simples "correlações de for­
ça", pois também expressam diferentes níveis de desempenho cogniti­
vo, não podendo ser reduzidas a uma estratificação da competência,
pois vivem em conflito constante. As relações de dominação também
são relações de capacidade, o que dá à ordem e à hierarquia de um
sistema complexo um caráter simultaneamente funcional e político.
A linguagem fu nciona simultaneamente: a) como um espelho
da realidade objetiva; b) como uma mensagem inconsciente - ou
uma memória coletiva de nossa subjetividade involuntária; c) como
um modelo estruturante e compreensivo das relações do Eu com o
Outro, em que o Sentido é reconstituído paradigmaticamente den­
tro do quadro de referências subjetivas em que foi originalmente
concebido. No quadro da análise compreensiva, há sempre um con­
flito intersubjetivo entre múltiplas formas de representar a realida­
de. Essas "d iferenças" podem apenas ressaltar a afinidade transcultu­
ral dos mitos e valores simbólicos através dos quais podem-se com­
preender alguns traços universais do imaginário e, assim, conhecer
melhor a nós mesmos e a nossa relação com a linguagem. Quando
falamos de "diferenças" epistemológicas e cognitivas, é preciso dei­
xar claro que entendemos a linguagem como um campo integral e
homogêno, que não comporta cortes ou marcos definitivos. Apesar
d isso, é nesta inevitável comparação entre os nossos valores e os do
discurso que se encontram os mais desconcertantes elementos sim­
bólicos comuns a diferentes paradigmas. Nesta analogia, de caráter
ético, revela-se a existência de uma última instância cognitiva mais
profunda e abrangente, formada por imagens psíquicas universal­
mente associadas a temas e idéias transculturais a que chamamos de
"arquétipos".
Os arquétipos não têm uma única função específica e são sem­
pre ambivalentes e paradoxais. Expressam contradições metarracio­
nais que se perpetuam em diversos paradigmas, em diferentes cultu­
ras. Por vezes extremamente simples (o Pai, a Mãe, o Outro-Sexo), por
outros, extremamente complexos (a Justiça, o Mal, o Sacrifício), repre­
sentam dispositivos psicológicos universais. Podemos caracterizá-los
como o que há de universal na linguagem, o seu aspecto espiritual.
Chegamos, assim, a um derradeiro nível de leitura, no qual a lingua-

163
gem vive no espírito dos seus discursos, nas experiências existenciais
que transmitem, nas diferentes respirações frente à morte.
A lenda conta que quatro grandes rabis se dedicaram a estu­
dos esotéricos e "entraram no paraíso". A estória afirma que "um
deles viu e morreu; o segundo viu e perdeu a razão; o terceiro viu e
corrompeu-se. Só o último rabi entrou e saiu em paz". Poderíamos,
parodiando a lenda, dizer que a palavra mata, o símbolo enlouque­
ce, o exemplo perverte e apenas o arquétipo realmente explica e com­
preende a linguagem, pois, ao comparar o real ao ideal, revela sem­
pre como a vida extrapola seus modelos.
Arquétipos, no entanto, nunca devem ser interpretados como
estruturas determinantes do imaginário ou como a unidade mais abs­
trata da linguagem, mas sim como uma forma polissêmica eternamen­
te inacabada, em que o homem recria e re-significa seu universo.

1 64
1 CorpoC orPensa mentoComplexu s
ÂNGELA ALMEIDA1 1
"Quando nada vem,
vem sempre o tempo
sem alto nem baixo tempo
sobre mim comigo
em mim por mim
passando suas arcadas em
mim que rôo e espero. "
Michaux

M energia da cor, como fenômeno ótico ou veículo da energia inte­


eu corpo pode ser amarelo. A cor amarela simplesmente ou a

rior do corpo, do homem que descobre sua subjetividade feroz, ocul­


tada durante séculos. A cor nesse momento é meio de conhecimento.
No início, meu corpo se incrustou nas pedras (as silhuetas de
mulher da Cabrerets 30.000 a.e) através de traços realizados com os
-

dedos sobre argila mole, formando meandros em contorno vermelho


ou amarelo. A cor ocre e vermelha procede das argilas e, como agluti­
nante, utilizo gorduras ou sangue de animais. Desenho bisões. Eles
povoam meus medos, meus sonhos e investem contra o meu corpo.
Porém, meu corpo também é natureza e contra a fúria do tempo
deixo-o sacralizado na pedra. Resisto há séculos.
Meu corpo é coberto com máscaras de teotihuacán, belamente
lavradas em mosaico, feitas para cobrir meu rosto morto, para tomar­
me apresentável na minha viagem ao paraíso.
Saio das cavernas, me alojo entre templos; me santifico. Os
mantos do tempo me vestem, a religião me orienta, sou quase Deus.
Meu rosto é impassível, a impassibilidade das criaturas eternas. Meu
corpo está coberto de vestimentas, que se justapõem uma sobre ou­
tra, sobre outra, sobre outra... Meu semblante está contido, já não
posso transparecer emoções.
Giotto me cobre de cores, me dispõe sobre um fundo de paisa­
gem agreste ou urbana convincentemente construída em profundida­
de, apesar das incongruências. Meu corpo é reduzido ao essencial,
exprimo meus sentimentos ou realizo minhas ações com um mínimo
de gestos. A construção pictórica, a organização interna das composi­
ções, revelam também a valorização do trans-humano, do que estaria
acima e além desta vida e deste mundo terreno. Na minha imagem
inexistem detalhes anatômicos. Sou etéreo, figura, puro espírito, uma
espiritualidade extremada que apenas aparece corporificada para que
possa ser vista.
A doutrina cristã despreza meu corpo pelo meu corpo, esse
"abominável vestido da alma", segundo Gregório Magno. Porém,
meu corpo/par corpo/alma tem importância como par indissolúvel
que só se separa durante o instante situado entre a morte e a ressur­
reição do último dia. Mesmo no purgatório minha alma se veste de
uma espécie de "corpo sensível" às torturas dos diabos. Meu corpo
ressuscita como o corpo de Cristo e minha salvação só pode se reali­
zar com o corpo e por meio do corpo. Tudo é ambigüidade nas
atitudes medievais em relação ao meu corpo.
Apenas um século separa Giotto e Botticelli, mas é tempo sufi­
ciente para que a nova sociedade, a nova filosofia, a nova arte tenham
surgido em pleno Renascimento. Sandro Botticelli me libera das pesa­
das vestimentas, já posso sentir meu corpo envolto em finos véus. A
primavera em Florença me despe, já posso dançar na embriaguez dos
sons, das cores, do tempo. Meu tempo aspira a harmonia universal e
de todas as potências do homem que identifica bondade com beleza.
A santidade e a beleza surgem dentro do mundo. Meu corpo é repro­
duzido em todos os pormenores anatômicos. É que a corporeidade
agora é importante: o homem e a natureza foram redignificados. Esta­
mos diante de uma espiritualidade sem ascetismo, que esplende a par­
tir do corpo, com o corpo, através do corpo maximamente valorizado.
Meu corpo rege uma paisagem botticelliana: formas flexíveis,
sinuosas, ritmos que se entrelaçam melodiosamente, lirismo, delicade­
za. Uma paisagem que aspira à harmonia universal de todas as potên­
cias do homem, que identifica bondade com beleza e a recuperação da
cultura clássica e dos seus mitos.
Viajo para outros continentes. Estou em pleno século XV,
em plena Amazônia, meu corpo é arte e ciência. Não necessito de
vestes. Em dias de festa, a cor sobre minha pele é a disponibilidade
essencialmente plástica do mundo. Sou uma pele-memória de cada

1 66
traço que fo i construído em mim. A pintura acentua a exaltação da
arte como extensão do corpo e a consciência dela como experiência
primal. O corpo, alojamento da memória é, ao mesmo tempo, o
i nstrumento e o meio d a criação.
Aqui, sou corpo e natureza. Sou mestiço. Meu corpo pode ser a
parte aderente à margem do nascimento, a parte e o todo do parentes­
co, a aldeia de todos os usuários, a mandioca que benze e alimenta.
Sou vários, "às vezes incoerente como o Universo que, no início, ex­
plodiu, diz-se, com enorme estrondo".2 Sou a própria explosão, sou
mato, sou gente. M inha estrada é bifurcada, posso tomar qualquer
caminho, vou com o vento, com os pássaros, com a música, com os
gestos, vou inteiro, corpo, terra, alma.

"Qiando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Oh Manuel, Miguilin
Vamos embora. '' 3

Qiando o tom da minha pele escurece e me transporto para a


África, o som do batuque ameniza as dores do meu corpo e chamo
meus orixás. Aqui é constante o encontro das duas dimensões da exis­
tência, mundo sobrenatural e mundo físico, onde o corpo é veículo
para as divindades, como também fonte maior da expressão. da indivi-
dualidade, expressando a marca da vida social.
Agora existe a idéia de que meu corpo é dual: existe um corpo
físico pesado e um corpo sutil, leve, meu duplo, que têm exatamente a
mesma forma, mas o último pode sair do primeiro em algumas cir­
cunstâncias e conhecer experiências que lhe são próprias. "Meu sinal
está no teu corpo" - os orixás imprimem essa imagem aos crentes.
Viajo entre continentes levando comigo meus deuses, minhas crenças,

1 67
minha cor, minha dor. Morin nos fala que os deuses têm uma existên­
cia real, e que essa existência lhes é conferida pela comunidade dos
crentes, pela fé, pelo rito. "Mas, uma vez que o deus existe, é capaz de
nos possuir e é essa relação particular que nutrimos com os deuses ou
o nosso Deus, ou as nossas idéias. Qie isso significa ainda que damos
vida às nossas idéias e, uma vez que lhe damos vida, são elas que nos
indicam o nosso comportamento, que nos mandam matar por elas ou
morrer por elas, o que significa que estes produtos são os nossos pró­
prios produtores e que a realidade imaginária e a realidade mitológica
.
são um aspecto fundamental da realidade humana."4

"Como então? Desgarrados da terra?


Como assim? Levantados do chão?
Como embaixo dos pés uma terra
Como água escorrendo da mão?

Como em sonho correr numa estrada?


Deslizando no mesmo lugar?
Como em sonho perder a passada
E no oco da Terra tombar?" 5

Chego ao século XX, as guerras detonam partes do meu corpo.


Porém, o aspecto imaginário e o aspecto mitológico sobrevivem. Meu
corpo aparece como uma outra forma vegetal, ou o vegetal se apresen­
ta como uma extensão natural do meu corpo. Nada de fronteiras dis­
tinguíveis entre esses dois domínios. A ligação com o vegetal não é
uma metáfora, mas uma identidade de substâncias.
Com o Impressionismo, chegamos à redescoberta da cor. A cor
fora da casa, imersa na luminosidade atmosférica. A cor como fenô­
meno natural; cor-luz. A cor soterrada sob séculos de pintura vem
agora dançar à superfície da tela. Gauguin pintou meu corpo à luz d a
natureza. Matisse, porém, m e jogou a cor crua, selvagem, sem os re­
quintes que de novo ameaçavam submergi-la na subjetividade. Matisse
fez da cor a expressão de uma visão virgem do mundo. A cor pura,
virgem, a cor-cor, a cor dor que Frida Kahlo pintou.
Meu corpo em Frida toma a dimensão da dor. Sou a fusão de

1 68
mito e fato, sonho e vigília, razão e fantasia: "Dirigimos nós mesmos
para nós mesmos através de milhões de seres - pedras - criaturas pássa­
ros - seres estrelas - seres micróbios - fontes de nós mesmos".6
Há agora um certo fantasma interior que preciso pintar, j á
não necessito d e nariz, olhos, cabelos, que se acham no exterior.
Procuro o duplo para pintar os eflúvios que circulam entre as pes­
soas, seus temperamentos, os espaços-tempos contemporâneos. Para
conhecer meu corpo, já se faz necessário entrar nos detalhes dos
meus subsistemas, minhas estruturas, meus funcionamentos, mi­
nhas partes sólidas, líquidas e gasosas.
Além das diversidades e diferenças, estou impregnado de recor­
rências e verdades universais. O mundo explodiu em caminhos. Sou
orixá, sou artista, cientista, exibicionista, individualista, tribalista. Sou
índio, sou negro, sou branco, me movo segundo um ethos universalis­
ta. Picasso quebrou meu corpo em cubos, retas, restos, destroços. Meu
corpo conhece a transterritorialidade cultural, o multiculturalismo e
os deslocamentos. Meu corpo está vivenciando o limite das experi­
mentações, ou o momento em que todas as formas de expressão são
permissíveis. A permissividade parece ser, de fato, a marca deste fim
de século. Meu corpo pode ser botticelliano, picassiano, rupestriano,
deleuzeano ...
A arte abstrata dilui meu corpo, sou apenas cor, ora vestida de
um mar azul quase chumbo, ora nua envolta em tintas rosas quase
vermelhas.
Meu útero, boca, estômago, sexo e coração se dilatam e se pre­
enchem de vento, vida, vinho, canções, prazeres, mas também de fome,
sede e miséria. Meu corpo está cheio de costuras com tecidos elásticos.
Abro portas, perfuro paredes, em última instância me exponho à morte.
Meu corpo permanece pelas mãos da Criação, mas desta vez reorgani­
zado na direção do indeterminado.

Notas

1 Professora e pesquisadora do Grecom/UFRN


2 Serres, Michel. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1993.
3 Holanda, Chico Buarque de. Música Assentamento, in Terra, de Sabastião

1 69
Salgado, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
4 Morin, Edgar. "Política da Civilização e Problema Mundial", conferência
apresentada na cidade do Porto, 1996.
5 Holanda, Chico Buarque de. sobre música de Milton Nascimento - músi­

ca: "Levantados do Chão". in Terra, de Sebastião Salgado. São Paulo, Companhia


das Letras, 1997.
6 Diário de Frida Kahlo. Introdução: Carlos Fuentes; comentários: Sarah

M. Lowe; tradução: Mário Pontes. Rio de Janeiro, José Olí mpio, 1995.

1 70
Da fragilidade do homem-rede
GUSTAVO DE CASTR01 1

"É o instante que não sabemos


se é longo demais ou curto
demais para o tempo.,,

Gilles Deleuze

À porta do cotidiano ...

N samento complexo não é uma proposta re-significadora também


ão há quem não diga que a proposta conceitual presente no pen­

ao tentar reordenar nossa concepção de vida cotidiana. Invertendo tal


concepção, assumindo a perspectiva de que a idéia está mal colocada,
desarrumada, digamos, podemos falar também de um cotidiano da
vida e nunca somente o contrário que a tradição colocou. Na tradição,
de Heller a Bourdieu passando por Kosik e Lefebvre, a conceituação
de cotidiano, vida cotidiana e cotidianidade tem sido empregada aos
aspectos duros e reprodutores da vida nas suas diversas formas de
organização social2. Maffesoli e Certeau, mesmo fugindo do "fecha­
mento lógico- político-econômico" com que são analisados ainda hoje
os aspectos da vida cotidiana, ainda sobrecarregam demasiadamente
tal análise com um excessivo centralismo na idéia do que é ordinário.
Contudo, somente a partir do amadurecimento de suas reflexões é
que podemos dizer que é rompida a dureza ideológica das análises
tradicionais sobre a vida cotidiana, desvelando sua faceta mais estética
e cultural.
É por isso que debater os fundamentos e princípios da vida
cotidiana acatando o instrumental complexo requer a insistência no
diálogo de paradoxos. Tal proposta tem, certamente, o mesmo alcance
que uma re-visão na articulação dos conceitos de vida cotidiana, aos
quais poderíamos, equivocadamente, considerar como definitivos, se­
jam eles extraídos da ótica de pensadores tradicionais ou contemporâ­
neos. Tal ousadia, estranhamente, é fruto da certeza da dúvida que nos
assalta sempre em tempos de recomeço. Por isso, uma proposta de
compreensão da vida cotidiana transpassada de caos não é nunca eiva­
da de arrogância, de vazio ou de desconstrução, mas sim prenhe de
humildade para com a idéia de uma solidariedade a cada dia mais neces­
sária, e de uma cotidianidade comprometida com as propostas de um
pensamento complexista: aberto, múltiplo, dialógico e não-linear.

Pensando o diferente

Wittgenstein já nos advertia sobre a possibilidade de atribuir


valor aos pensamentos, só possíveis de serem graduados, segundo ele,
mediante a coragem com que são pensados3• De certo modo, essa
coragem é que alimenta a ousadia do pensamento humano, é seu vigor
imperante e sua estratégia de renovação e sobrevivência. A coragem;oga
com o risco, com o incerto, negocia com a incerteza, realimenta-se
dela. Sem o risco não há coragem e sem coragem não há sentido em
correr riscos. Pensamento e coragem podem fundir-se em uma episte­
mologia do risco, aquela que nasce alimentada ao sabor da incerteza.
Mas onde se esconde tal ousadia senão na coragem de acatar o
contrário e o diferente, não como contrário e diferente simplesmente,
mas como necessidade, como princípio complementar?
Como um viajante, não há território fixo e seguro para o pen­
samento que não teme a mestiçagem, entendendo pensamento como
um hipercorpo de idéias em comunicação com o mundo de todas as
coisas. O pensamento que não corre riscos não enxerga as fronteiras,
nem desvenda além da montanha. Com diz Morin, "o único pensa­
mento que sobrevive é aquele que vive na temperatura de sua própria
destruição" 4•
O pensamento humano e a forma como ele se organiza não pode
ser considerado puro nem de propriedade de ninguém, muito embora
alguns creiam firmemente serem donos de rincões e lotes de filosofia
pura e de saber homogêneo. A propósito da idéia de uma "desordem
organizadora", podemos dizer que assim também podemos nos referir
ao pensamento humano, seja ele retratado como filosofia, epistemolo­
gia ou história da idéias. No conjunto de conhecimentos construídos
pelo homem e entre os conceitos estruturados por ele, podemos esten-

1 72
der pontes, singularizá-los em forma de conceitos quase isolados ou
organizá-los em suas religações, mas não podemos negar seu princípio
desordenador.

Nem o fogo, nem o silêncio, nem o exílio

Chico Science em Praeira5 diz que háfronteiras nosjardins da razão.


Faz uma alusão explícita aos muros que separam os conhecimentos e a
ciência dentro de seus próprios limites. Edgar Morin adverte sobre os
"guardas das resetvas" que atiram naqueles que invadem o território do
saber fragmentado, seja ele físico, biológico, humano ou social.
Assim, a viajem do pensamento é também a ousadia/coragem
do risco do passo a passo imediato e próximo, uma perene experimen­
tação que se organiza no ponto final dos trabalhos, das obras, das
teses, das falas, d as conferências e aulas, ficando submetidas a partir
deste ponto final à força da dinâmica imorredoura que a tudo renova.
Mas para onde conduzem as experimentações de idéias, de conceitos,
articulados pela competência do rigor e pela legitimidade metodológica?
É possível encontrar espaços de respiração teórica na fechada
selva do pensamento burocrático6• É possível vislumbrar a necessida­
de de mais ensaios e experiências e menos certezas e doutrinas na vida
intelectual. Quem pode suportar o ponto final que as doutrinas im­
põem? Mas como escapar delas? Endurecer o pensamento humano é
como endurecer o próprio espírito inventivo e criador do humano
auto-inventivo. As ortodoxias do pensamento são estruturas que enri­
jecem o "pescoço" da razão. Como "segurar" o espírito, o pensamento
e as idéias de intelectuais que se entregam ao movimento teórico de
seu tempo, como o fizeram Giordano Bruno e Theillard de Chardin e
como faz Leonardo Boff, por exemplo, senão pelo fogo, pelo exílio e
pela exigência de um silêncio obsequioso?
Idéias que propõem uma re-significação, mesmo quando sub­
metidas ao fogo, ao exílio ou ao silêncio têm uma tendência a se
propagar mesmo assim, não simplesmente pelo fato de serem dife­
rentes, subversivas ou anárquicas, mas pela potência que engendram
em sua argumentação. Nem o fogo, nem o silêncio, nem o exílio,
nem o tempo podem deter a invenção, a coragem, a ousadia intelec-

1 73
tual e seu impulso à resistência e à manutenção de sua própria liber­
dade. É por isso que a experimentação intelectual é quem dá o su­
porte para o próprio jogo categorial de temas e conceitos e para as
conclusões provisórias, dele decorrentes, e que anteriormente cha­
mamos de ponto final. Não há mal em admitir a presença da incon­
clusão no ideário da construção teórica, aind a mais quando trata­
mos de um pensamento dirigido às incertezas da vida cotidiana.

M uitas perguntas

Debater os princípios da complexidade perpassando-os diante


da temática do cotidiano não será uma proposta impossível? Terá o
cotidiano fundamentos ou esta é uma proposta eminentemente estru­
tural? Pós-estrutural, digamos? Pode o cotidiano ser compreendido
como uma "desordem organizadora", sistematizada do ponto de vista
social? É possível esse debate? Pode a complexidade ter uma "estrutura
dissipativa" também do ponto de vista da sociedade? E a vida cotidia­
na não seria apenas o espaço do vazio, do eterno retorno do mesmo?
Escrever sobre o cotidiano não será apenas versar sobre o particular, o
local, o indivíduo imerso na coletividade? O que seria uma vid a coti­
diana atravessada pelo estatuto do complexo?
As muitas questões merecem uma investigação mais cuidadosa
dos fundamentos aos quais a percepção de cotidiano esteve "amarra­
da" da tradição até os dias atuais.
Afinal de contas, qual a natureza da vida cotidiana? Só reprodu­
ção? Só mesmice, tédio e necessidades? Só rotina e alienação? Será um
todo entrelaçado por seus acontecimentos singulares e não simples­
mente algo fragmentado, isolado? Serão só fragmentos sociais e exis­
tenciais desconexos e sem sentido, ou será um presente ordinário, per­
manentemente reencantado pelo extraordinário da vida? Será um aquz�
agora anônimo e individual, ou serão acontecimentos celulares em um
movimento de duração7 a se reorganizar? Será um rodo a que chamamos
vida fragmentada (por nossa percepção míope), ou serão só fragmentos,
dispersos e sem sentido historicizados nesta mesma vida?
Uma compreensão mais profunda do conceito de vida, como
faz Edgar Morin no Método li (A vida da vida), talvez nos mostre por

1 74
que a face mais ordinária, reprodutora, rotineira e comum da vida
tenha recebido o predicativo de cotidiano. Bastaria dizermos então que
a vida cotidiana comporta essas explicações (padrão, repetição, repro­
dução, ordem) e elas são as únicas a caracterizá-la. No entanto, existem
outras dimensões que a caracterizam e sedimentam: a da criação e do
extraordinário, do inusitado e do incomum, do acidental e do aconte­
cimento. O ordinário e o extraordinário fariam parte de uma unidua­
lidade, que os comporta como elementos inseparáveis, seja do ponto
de vista existencial, seja do ponto vista histórico ou temporal, ou do
ponto de vista de uma nova estrutura da vida cotidiana.
Mesmo assim, muitas outras perguntas ainda ecoam como "fan­
tasmas" em nosso roteiro intelectual. Por que se imiscuir, hoje, de
investigar os fundamentos do banal? Terá o banal algo do qual se
possa extrair alguma filosofia? Qie interesses desperta essa dimensão
"lixo" da vida na sua imediaticidade irreversível e implacável? Talvez
por ser a "realidade por excelência", como disseram Berger e Luck­
man, admitindo o seu estatuto de "realidade predominante" ao busca­
rem os fundamentos de uma sociologia do conhecimento. Talvez por
ser uma representação "subterrânea", como disse Maffesoli, nos aler­
tando que "existe uma resistência teimosa do concreto mais próximo
frente a qualquer explicação redutora e simplificadora"8• O certo é
que a vida. e seu predicado cotidiano carregam consigo um todo dual,
irresistível a olhos mais interessados. Contém uma sabedoria do co­
mum, uma pedagogia da práxis, uma negociação permanentemente
comunicativa, uma filosofia do acaso e da necessidade, um espírito
bric.oleur, uma presença duradoura e muitos outros elementos que ten­
taremos explorar na vastidão deste território e de suas fronteiras.

O cotidiano da vida
A indeterminação dos acontecimentos e a incerteza da vida di­
ante d a imposição dos limites nos fazem admitir que o cotidiano
possui um considerável grau de desordem, tamanha é a vastidão de
incertezas que o povoam. Um estranhamento ou um espanto filosófi­
co diante do cotidiano são suficientes para garantir que, além da cega
doutrina do mesmo a desencantar o mundo, o contínuo movimento

1 75
de reencantamento deste também acontece por intermédio dele.
Muitos são os motivos que levam os pesquisadores a se deter
sobre o cotidiano, e só essa investigação já resultaria em uma outra.
"E, se damos tanta importância à vida cotidiana, não é tanto por
curiosidade pelas maneiras de molhar o pão no café com leite de
manhã, mas sim porque é a vida dos nossos amores, dos nossos me­
dos, da nossa morte, das nossas experiências. Camuflada sob a grande
história como as histórias da vida sob a História."9
O homem, na sua existência temporal e as ciências sociais,
como campo de investigação da sociedade, nunca deu suficiente­
mente importância a idéia de vida cotidiana, tida mesmo como uma
idéia vazia e amorfa. Não foi sem motivo que isto aconteceu. Como
compreender o mundo através da microrrealidade? Era preciso antes
desmascará-la, entendê-la apenas como a dimensão alienada por ex­
celência da vida, reprodutora de poder e violência, mistificadora d a
verdade, opressora, ignorante e superficial. E m face da vida cotidia­
na, tal compreensão abriu a porta para o dogma e empreendeu os
limites de uma racionalização fechada, tosca, munida somente do
gene da autodestruição, ficando a vida de cada dia como o campo do
marasmo, da dureza, do estático e do imutável. Nessa perspectiva, se
perde a importância da investigação deste campo e sobre ele recaem
somente tédio e um desejo de afastamento, esquecimento e fu ga. O
que significa sair do cotidiano se não quebrar a repetição, alimentar­
se do diferente, embaralhar a rotina e afastar-se do mesmo? Sair do
cotidiano significa entrar na vida pelo padrão da vida, reconhecen­
do que é a estrutura tetragrâmica da vida (desordem, interação, or­
dem e organização), o que estrutura por sua vez a idéia de cotidiano
em nossos dias.
O cotidiano é apresentado muitas vezes como a definitiva pri­
são humana de onde jamais se poderá sair. Heller lembra que não há
escapatórias da vida cotidiana e todo homem e toda sociedade têm,
inevitavelmente, uma vida cotidiana. Diante de tamanha dureza, como
sorrir então para o diabo? Diante do "miolo" vida cotidiana, o que
podemos encontrar de importante? Não será mais útil pensar utopias,
pensar a história, pensar o tempo e sua duração? Pensar a vida? A vida
cotidiana é uma forma de pensar tudo isso, sem dissociá-los, sendo,

1 76
simplesmente, um ponto de partida e um elo de ligação. Esse tédio,
essa chatice, essa "droga" do dia-a-dia que nos entorpece os sentidos e
nos afasta dos encantamentos não pode ter belezas sobre si e nem
mesmo o menor propósito se tivesse, que sentido teria a vida, então?
Viver e morrer? O cotidiano, campo do senso comum, recebe sobre si
os estigmas e a representação que ele mesmo provoca. Mas será a vida
cotidiana somente esse rigor ideológico, essa doutrina da alienação?
Não terá ela também um outro vigor imperante de encantamentos e
utopias? Não terá ela um "extraordinário" escondido em algum lugar
da vid a e que renova quase que instantaneamente com ternura esse
vigor? A importdncia de pensar a vida cotidiana estar em pensar pela sutura,
pela rejunção, pela tessitura, vislumbrando uma totalidade: a vida, saben­
do-a incerta e imprecisa.
A vida cria e inventa, portanto, temos de desdogmatizar a com­
preensão parcial e fragmentada da idéia de vida, já que o cotidiano
também é uma extensão da idéia de vida. Há que entendê-la na histó­
ria como seu acontecimento por excelência, seu dado mais incerto e
imediato, seu hic et nunc, que comporta também uma visão de todo.
Nenhuma outra dificuldade seria maior que acomodar a idéia de vida,
já que do ponto de vista social seu cotidiano e história não param de
se "mexer recusando um verdadeiro enquadramento, bem como uma
acomodação satisfatória" 10• Daí que um enquadramento fechado sob
o aspecto da reprodução, do marasmo e do banal merece uma revisão
profunda, ocasionada pela própria idéia de vida. A vida social é berço
dessa tensão fundamental que comporta organização, padronização e
repetição, mas também desordem, diferenciação e não-linearidade. A
vida cotidiana, nesse caso, é um dos aspectos da vida social que pode­
mos analisar mais detidamente, porque está mais próxima do indiví­
duo. Como um dosfocos do acaso, deve ser reconhecida também como
estando livre de amarras. Esse foco do acaso na vida social já foi abor­
dado por Boudon. Ele atesta que "o acaso não só existe realmente [nas
ciências sociais], como também importa reconhecer a sua existência se
se quiser compreender um grande número de fenômenos".
A vida cotidiana é, ao mesmo tempo, "a vida dos gestos, rela­
ções e atividades rotineiras de todos os dias; um mundo de alienação;
um espaço do banal, da rotina e da mediocridade". Mas também "a

1 77
possibilidade ilimitada de consumo sempre renovável; um espaço de
resistência e possibilidade transformadora, [ ...] é também vista corno
um espaço onde o acaso e o inesperado (... ) elevam os homens dessa
cotidianidade, retornando a ela de forma modificada" 1 1 • É nessa or­
dem e desordem que a vida cotidiana se estabelece, que é possível
captá-la no conjunto da vida social. Ao estabelecer-se, emerge corno a
dimensão socio-cultural mediadora por vocação da vida social, o que
implica que nossas ações cotidianas são o dado mais concreto, mais
chão da mesma vida. Ações cotidianas, consciência cotidiana, percep­
ção cotidiana quase que instantânea no mais imediato aqui-agora da
natureza humana.

Cotidiano é rede

A sociedade tem na vida cotid iana o seu espaço de med iação


mais íntimo e próximo, por isso mesmo dinâmico e reorganizador
dos fatos sociais. O cotidiano é o seio dessa dinâmica mediadora que
revela toda a complexidade do sistema social, seu ritmo e movimen­
to, seu campo de negociação e interesses, e da manifestação da prá­
xis. O exercício da comunicação é que nos dá boa parte da matéria­
prima das articulações sociais, das interações que mantemos com in­
divíduos e instituições, estas sempre rnicrorrepresentadas pelos ind i­
víduos. Esse movimento comunicativo, interativo, desordenado e
auto-organizado é, na verdade, um dos responsáveis pela dinâmica
social, urna ação referendada por linguagens, que mediam práticas e
idéias no campo social. A comunicação não deixa de ser também
purofeedback, troca mediadora na ação social cotidiana. O que pare­
cia alheio e desprezível emerge nas mediações cotidianas e revela-nos
o óbvio: que ainda somos seres rnicrocornunicativos pela ação roti­
neira do diálogo simples da "linguagem cotidiana"12• A mídia é hoje
o canal mais forte de interligação informacional do homem com sua
realidade rnacrovivida e merece destaque, porque neste caso a quan­
tidade e a variedade de informações recebidas e trabalhadas são um
elemento de hierarquização das negociações cotidianas.
No cotidiano, o além exige a mediação de um alguém e é isto
que forma os pontos nodais de interação dos homens em sociedade e

1 78
da sociedade nos homens. Os serviços, as negociações políticas, as ques­
tões econômicas e culturais, as organizações, as instituições e a buro­
cracia, tais como as questões pessoais, existenciais e psicológicas, são
inexistentes sem a ação humana e toda a sua complexidade psicosso­
cial. Do ponto de vista das relações humanas, das trocas e feedback
existentes, podemos perceber a interconexão social que somos enquan­
to pessoas habitando o mesmo planeta ou o mesmo sistema social, a
interconexão dos acontecimentos que se reorganizam, reorganizando
a vida social. Como rede, a comunicação ganha uma estrutura ainda por
se constituir. Trata-se de um reforço, via teoria da complexidade, ao enten­
dimento de uma teoria hipertextual da comunicação, elaborada por Lévy, que
prescreve em uma mesma matriz arte, tecnologia e ideologia.
Não importa pensar a complexidade sem pensar o que ela tem
a nos dizer. Os frutos de sua incerteza têm o sabor da probabilidade
da previsão. O incerto propugnado pela ciência parece ter sido disper­
sado para todos os lados, gerando inclusive uma incerteza também
existencial. Tal sentimento, por exemplo, é o que nos assalta nas pala­
vras da poetisa Claudia Marczak. Ela cria uma leitura do mundo, dos
sentimentos e da vida a partir do caos, tendo no caos o seu código
poético. No poema Caos, expressa uma síntese de sua inspiração, reve­
lando as sutilezas da vida re-lida através do caos13•

Nascemos do caos,
de um delírio de corpos se amando,
misto de paixão, suor e prazer.
Nascemos com a imensa necessidade de vida
e o incontrolável desejo de morte,
que ronda nossos passos
sombra negra
e certeza de partir.
Somos animais hipócritas vestidos de razão,
ocultando em nossas veias o sangue vermelho do instinto.
Cai a minha máscara
e sei que preciso viver a intensidade de cada desejo.
Sentir sem medo de sentir,
caminhar sem medo de errar,

1 79
errar sem medo de acertar.
Meu coração adormece sozinho
a chama daquilo que um dia poderia ter sido.
minha vida espreita o dia de poder
explodir em riso e festa
aquilo que ainda guardo para viver.

A rotina

Podemos falar do cotidiano de muitas maneiras e sob tais as­


pectos, distintos e entrelaçados que são da rotina e o instante. A rotina
é o conhecido, a reprodução contínua da semelhança, do igual de
todos os dias. Se se quebram todas as rotinas, se dilui toda a ordem
estabelecida e o próprio ato de viver.
A rotina parece nos aprisionar, nos sufocar através da imposi­
ção de seu ritmo: rotina de trabalho, de estudo, de relacionamentos
interpessoais, do dia-a-dia das convivências em que se descobrem os
pequenos detalhes da intimidade do outro. Mas a rotina guarda em si
um componente dialógico e inovador, que está sempre a refazê-la,
recriando-a no interior de suas ações. Apesar de sua forma ser uma
constante, seu conteúdo é sempre diverso e não-linear. Por mais que
seja sempre igual, é também sempre diferente. Na rotina, o mesmo (e
conhecido) é também, ao mesmo tempo, um esforço pelo diferente e
casual. Como alguém pode revoltar-se com sua rotina? Como desesta­
bilizar a auto-organização da rotina, modificando-a? A rotina guarda
em seu seio muitas patologias gestadas por ela mesma e nem sempre
possíveis de modificação.
Para muitos estudantes, o aborrecido da sala de aula é a rotina
imposta por ela. A sala de aula não é o lugar da dinâmica nem do
movimento, mas do planejamento, da disciplina, da regra, dos horári­
os, do rigor e da manutenção da ordem. A escola possui uma rotina
característica, que por vezes deixam os alunos com náuseas, propician­
do o fomento da rebeldia. Seria preciso incorporar às metpdologias os
movimentos produzidos pela rebeldia, que fariam a educação perma­
necer sempre com o espírito jovem para enfrentar o "monstro" do
todo dia.

1 80
O instante
O instante é o dado por excelência da vida humana em sua
atividade cotidiana. É a célula do acontecimento, ou o que Lefevbre
chamou de "fragmento social", a microestrutura dos acontecimentos.
Na vida cotidiana, encontram-se presentes as idéias de totalidade (vida)
e de singularidade mais corpuscular (cotidiano). O instante é esse cor­
púsculo fantasmagórico do sapiens-demens em relação com toda a natu­
reza. É também o dado mais remoto de ser apreendido em sua totali­
dade. Comporta a idéia do aqui-agora do sujeito, do aqui do meu
corpo e do agora do meu instante presente e duradouro. Poderíamos
dizer, de forma linear, que o instante é o segundo do minuto vivido,
ou o milésimo, ou o centésimo, algo fragmentado, perene e contínuo.
De forma não-linear, poderíamos considerar que é o puro movimento
do tempo presente, do eterno presente, do instável e descontínuo pre­
sente. O que poderia ser mais complicado de definir que o presente, o
aqui-agora? Esse atomismo da vida cotidiana só se concretiza, no en­
tanto, ao ser socialmente dado, quando inventamos a realidade e cons­
truímos uma história sócio-cultural pessoal e coletiva. Em termos hei­
deggerianos poderíamos dizer que o "ser-aí" só se concretiza quando é
"ser-com". "O mundo é sempre algo que eu partilho com os outros. O
mundo do ser-aí é um mundo-com (mitwelt). Ser-em é ser-com-outros14 ." A
interação, a comunicação e as relações são o que nos põe em contato
com o mundo e conosco.
O instante presume uma duração, e passado e futuro não são
outra coisa senão substância do duradouro presente. Uma forma pos­
sível de compreensão do instante está na regularidade do descontínuo
ou, em outras palavras, uma auto-organização regular da desordem.
Para compreender o instante é importante recorrer à idéia do sensível,
que envolve as pessoas e o mundo. Como o cotidiano, o instante é
pessoal, vivido apenas pelo sujeito, muito embora todos os sujeitos
possuam instantes e cotidianos do qual possam falar. O instante pre­
sente "resume" as pluralidades vividas nos instantes passados e as re­
produções apreendidas ao longo de nossa vida histórica, apesar de o
instante estar sempre em construção, em contínuo devir. É a síntese e
a estrutura psicossocial da vida cotidiana, ao mesmo tempo que seu

181
elemento estruturante. Instante e movimento associam-se, em vez de
parecerem pólos distintos. É o instante que está sempre aqui, sempre
íntimo, sempre a organizar-se sob o nosso comando, mergulhado que
estamos na pluralidade dos acontecimentos.
A profundidade íntima do instante pessoal mantém-se em rela­
ção com o acidental do acontecimento. Há uma unidade incerta e
fragmentada que podemos apreender através do aqui-agora, que é o
irrecuperável, que nunca se esvai completamente, por estar sempre
aqui. Viver o aqui-agora é muito mais que um slogan colegial, midiático
ou budista, exige um olhar serenamente vigilante, uma paciência históri­
ca, uma carpintaria da práxis, o exercício do eterno retomo, a coragem da
fita que enlaça a granada e a beleza da flor que cresce no lodo. Ele é o
cimento e o tijolo do acontecimento, cimento e tijolo do movimento da
vida cotidiana e da construção pessoal e social da história.
O instante é algo fugaz, superficial, efêmero, rápido e não con­
tabilizado, mas também o mais profundo mergulho no movimento da vida,
algo que não podemos contar, muito embora conheçamos sua fórmu­
la: o aqui-agora vivido. É da vida que o instante vai buscar sua matéria­
prima, tal como a vida busca em si mesma a sua própria razão de ser.
Mestre Eckhart, místico religioso da Idade Média, escreveu, por volta
da primeira década de 1300 para a rainha Inês, da Hungria, dizendo:
''Você pode perguntar durante mil anos à vida: por que vive? E ela
responderá sempre: vivo por que vivo, vivo por viver. A razão é que a
vida tira sua vida de seu próprio fundo e jorra de seu próprio ser. É
por isso que ela vive sem perguntar o porquê, pois que ela vive em si
mesma" 15•

Dia-a-dia planetário

Em tudo o que falamos, o germe d a utopia, da grande saúde,


como nos diz Nietzsche 16, sempre se faz presente fomentando as
idéias e as intuições. Utopia de um mundo reencantado, ecológico,
que aceita o diferente, que "conserva as variedades", que assegura
educação, saúde e vid a para todos. Tudo isso, como inscrição biopo­
lítica, deve constar na pauta das nações e civilizações em seu dia-a­
dia planetário para o próximo milênio.

1 82
Não podemos deixar de inscrever nessa parte a necessidade de
revisão e re-significação da vida cotidiana, de tudo o que há por den­
tro e por fora dela e de tudo o que ela pode representar e conter dos
homens, de vida e da história.
O homem rasga o tempo (cotid iano) que o consome. Destrói
o cotidiano, dilacera-o. Habita o kairós do tempo, um tempo espi­
ral. Pela porta da espiralidade do tempo, podemos dizer que a idéia
de Heller de cotidiano, que esboçamos no início deste ensaio, j á
não fa z sentido. O cotidiano nunca é definitivo, nem completa­
mente estruturado, várias portas conectivas abrem-se sobre ele. Não
apenas da porta da arte, dos sonhos, das imagens, mas da vid a
concreta. É daí que voam tod as as borboletas ...
Chamaremos de homem-rede o homem ecológico e em reen­
cantamento com a realidade vivida, aquele que não se deixa vencer
por ela, e que assume, na microporção de sua vida cotidiana, a co­
responsabilidade pela totalidade. Político e sensível, o homem-rede tor­
nou-se um singular agente dos direitos e desejos humanos, que se ressente
de defensores públicos. O parlamento planetário das consciências sapt'ens­
demens deseja, através dos homens-rede, paz e solidariedade, deseja reconci­
liar os homens consigo e com a natureza, que durante tanto tempo pare­
ceu estar fora de nossa humanidade, de nossa cotidianidade e de nossa
cultura. O reconhecimento do são-louco é o renascimento de um novo
tipo de homem, ao mesmo tempo, cibionta e gloca/17, exercendo uma
cidadania planetária. Muitas coisas precisam ser ouvidas novamente e
novamente repensadas dentro deste novo homem.
Há muito, os ecologistas nos avisam para a necessidade de um
pensar global e de um agir local, e os filósofos para a necessidade de
descansarmos, temporariamente, de nós mesmos, "olhando-nos de longe
e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando
sobre nós"18• O cotidiano não poderia ter sido desprezado, pois, ao
fazê-lo, desprezamos nossa própria construção histórica. O cotidiano
planetário deveria ter-nos arrebatado para a importância da vida em
todas as suas possibilidades, para os caminhos da liberdade e da vida.
Teimando em olhar apenas para o dedo e a vida dos sábios, já poderí­
amos ter encontrado nossa identidade planetária e formatado as carac­
terísticas de um registro geral.

1 83
Não se trata mais do sábio das montanhas, imerso em silêncio e
contemplação, mas o homem-rede urbe et orbe, habitante de todos os
lugares, desterritorializado, perdido que está no anonimato do cotidia­
no das cidades, no dia-a-Oia das multidões, locus em que cultiva seu
silêncio e seu saber. Homem em construção, mestiço, instruído, "engen­
drado pela ciência e pela compaixão", pela ternura e pelo vigor. Ho­
mem planetário, defensor do direito planetário e da bioética cidadã,
cultiva respeito pela existência de um todo incerto, inaca-bado, inconduso, e
é isso o que lhe estimula a investigação enquanto pesquisador planetá­
rio. Há muito que o homem-rede não vive somente dentro de si, em seu
nó de existência, ou mesmo, na Terra. Perscruta corações e mentes, siste­
mas e células, inspirado que está pela metamorfose dos canais e nós da
vida cotidiana.
Diante da matéria e de seu espírito, ele reconhece a necessidade
de humildade para caminhar nas lições cotidianas, nos limites de seu
mundo e da sua vida. Seu limite mais próximo é o instante, o aconteci­
mento que "rasga" a vida, dando-se no próprio viver. O mais duradouro
é a própria vida; vida vivida na constância do dia-a-Oia. O homem-rede
aprendeu a reencantar-se com o dia de cada dia e com os mistérios da
interdependência, tomando-se assim um inscrito na rede de convivia/ida­
de planetária. Contra o isolacionismo e como alguém que está de mãos
dadas à vida, o homem é rede psicossocial e biocomunicacional. O
homem-rede sabe que é preciso educar-se para a cidadania, a liberdade,
a justiça, com vista à própria rede. Sabe que tal educação é um processo
de construção, repetição e resistência, como o cotidiano. Diante da orto­
doxia do pensamento, oferece, gratuitamente, seu espírito bricoleur, pro­
pondo não apenas desarmes e reencontros, mas também aberturas e
ousadias.
O sábio está sempre um passo à frente do caos, muito embora
seja o caos quem lhe queima os calcanhares e aquece as juntas. "Para
atravessar o caos, ele precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se aos
movimentos do caos, precisa aprender não apenas a pôr-se a salvo
dele, como também a estar sempre um passo adiante. Precisa desenvol­
ver sua habilidade em matéria de sobressaltos e movimentos bruscos'
em viradas e guinadas súbitas, abruptas e irregulares - e não apenas
com as pernas e o corpo, mas também com a mente e a sensibilida-

1 84
de19". No caótico cotidiano o homem-rede não corre, sabe respeitar os
tempos de resposta que a vida requer, sabe que viver o cotidiano é ir
além do paradoxo da ordem e da desordem, na busca da totalidade
que se retroalimenta desse mesmo paradoxo. Onde se alimenta o ho­
mem-rede?, perguntam todos. Em que fonte bebe a água da vida e
aonde faz sua ceia diária? Diz ele: " ... na fonte do dia-a-dia". No seu
pequeno regaço que flui sem parar, jorrando gratuitamente, inspirada
que é pelo viver, pelo fluir. O homem-rede sabe que na viagem não
importa o ponto de chegada, mas os movimentos do caminho. Diz
ele: " ... deixe que o ponto de chegada (o nó) se viva quando lá se
chegar".
A metamorfose cotidiana fez do homem-rede bruxo, alquimista
e feiticeiro, mascarando-o, incógnito, no anônimo das multidões. Seu
coipo, "tatuado" pela totalidade dos instantes, dos acontecimentos, das
rotinas, das trocas e mediações, não se divide em um só instante, um só
momento, mas, estranhamente, é planetário e local e guarda a "caixa­
dos-saberes-e-invenções". É o espírito inquieto que potencializa a ener­
gia de toda a tradição da vida planetária. É esse corpo bruxo, feiticeiro,
mascarado, anônimo e vivo que se retroalimenta na metamorfose coti­
diana e que soma com todos os outros, todas as gentes, todas as tradi­
ções e histórias conhecidas e em conhecimento de seu oikós. No meio de
tudo isso, o homem-rede se encontra, mas nós o perdemos de vista para
sempre dentro da rede, e é aí, nesse desencontro acidental, que ele está
incógnito e permanentemente disposto a se reencantar, mesmo diante
do espelho, como metamorfose cotidiana, como húmus cósmico'l!J, como
vida.

Notas

1 Professor e pesquisador da Universidade Potiguar (UnP) e do Grecom/

U FRN.
2 Cf. Heller, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana. Espanha, Ediciones Penín­

sula, 1 994.
3 Wittgenstein, L. Cultura e Valor. Lisboa, Edições 70. 1996. p. 82.
4 Pessis-Pasternak, Guita. Do caos à inteligência artificial. São Paulo, Unesp.

1 993, p. 83.
5 Chico Science, que afirma: "Mas há fronteiras nos jardins da razão" na

1 85
letra da música Praeira, do álbum Da lama ao caos, 1985.
6 Entendo por pensamento burocrático a complicação ou morosidade que
abusa e inflexibiliza o pensamento humano, através das ortodoxias que o policiam
e da unidirecionalização.
7 Como movimento de duração compreendemos "uma mudança sempre

aderente a si mesma numa duração que se alonga sem fim". Cf. BERGSON, Henri.
Evolução criadora. Col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1 984, p. 1 04.
8
Maffesoli, Michel. A conquista do presente. Rio de Janeiro, Rocco, 1 9 84,
p . 1 2.
9 Morin, Edgar. Sociologia. Portugal: Publicações Europa-america, 1994. p.309.

10 Lacouture, Jean. apud Le Goff, Jaques. História Nova. São Paulo, Martins
Fontes, 1995, p. 2 1 6.
11 Carvalho, M. C; Pauto Neto, José. Cotidiano: conhecimento t crítica. São
Paulo, Cortez, 1 994.
12 Cf. Wittgenstein, L. Investigações jiloifijicas. São Paulo, Abril Cultural,
1 99 1 .
13 O encontro com a poesia de Claudia Marczak se deu ao acaso da pesqui­
sa sobre cotidiano e caos na rede mundial de computadores, Internet.
14 Heidegger, Martin. Todos nós... ninguém. U m enfoque fenomenológico do

social. São Paulo, Ed. Moraes, 1 9 8 1 . p. 35.


15 Eckhart, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petropo-
lis, Vozes, 199 1 .
1 6 Cf. Nietzs�he, F. A gaia ciência. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 222.
1 7 Rosnay, Joel. L 'homme symbiotique.
18
Cf. Nietzsche, F. A gaia ciência. São Paulo, Abril Cultural, 1 978, p. 198.
19 Berman, M. Idem.

20 Boff, Leonardo. Ecologia, grito da terra, grito dos pobres. São Paulo, Ática,
1 995.

1 86
1 Como bons timone iros
DALCY DA SILVA CRUZ'!

momento é de incertezas, de busca de novos horizontes, de per­


Oplexidade diante do desconhecido. Mas devemos estar abertos
para o novo, para o inusitado, procurando sempre um realizar reno­
vado, um pensar crítico na perspectiva de reconstruir o mundo nes­
se momento planetário que vivenciamos. Devemos buscar uma nova
ética, principalmente, porque o tempo se encontra encoberto por
forte nevoeiro. Os acontecimentos ocorrem com grande velocidade,
e o barco do tempo ignora que nas dificuldades não se deve correr
veloz. Não observa o que recomenda o velho marinheiro que, nas
tempestades, o barco deve ser levado devagar. Mal entrevemos os
caminhos por onde nos aventuramos em busca de compreensão do
tempo que se reconceitualiza. Do espaço que sofre uma reterritoria­
lização nessa era de mund ialização da economia, das relações sociais,
da cultura, da comunicação. Tateamos à procura de novos rumos,
como bons timoneiros. Mas, às vezes, nos confundimos com o turbi­
lhão de conhecimento/informações sobre o momento. Ele nos aponta
algumas questões: ao nos depararmos com o processo de globaliza­
ção/fragmentação vivido pelo planeta, somos levados a imaginar que
perdemos a noção do singular, do específico, do individual. Qie a
ruptura entre global e local se deu de maneira definitiva.
Nesse sentido, o Estado-nação vai aos poucos cedendo espaço
para uma civilização sem limites territoriais, onde a internacionaliza­
ção das relações passa a conviver com a transnacionalização acelerada,
mostrando que a formação de blocos como a União Européia, o Nafta
e o Mercosul, para lembrar alguns, está indicando que a importância
do local está na proporção do fortalecimento do global. Esses blocos
recriam lugares, espaços, relações, transações, ultrapassando fronteira
de toda ordem. Também apontam para um duplo significado: ou esse
processo é o ponto de chegada do desenvolvimento acelerado, que se
convencionou chamar de "modernidade", ou é um momento de rup­
tura para novas transformações. Sej a como for, a flexibilização das
fronteiras, sejam territoriais, sejam sociais, sejam culturais, afirma sua
indivisibilidade, ao mesmo tempo que amplia os horizontes da econo­
mia, do conhecimento, da comunicação, da cultura.
A expansão capitalista deste final de século assume uma nova
face, trazendo ao planeta profundas transformações, tanto no cam­
po da economia, da estrutura social, da produção do conhecimento,
quanto das manifestações artístico-culturais. É o resultado da i nter­
nacionalização do capital que vai mostrando o seu caráter parado­
xal, pois à medida que globaliza os territórios, a economia se frag­
menta, não só em termos especiais, como também da comunicação,
da construção de identidades, da produção e uso da cultura.
A polarização utilizada no passado de centro e periferia, para
designar nações pobres, não tem mais sentido. Hoje, o que assisti­
mos é uma nova espacialização ou reorganização espacial, provoca­
da pela desterritorialização da economia, dos serviços, da comuni­
cação e dos indivíduos. Essa reorganização do espaço criou centros
hegemônicos concentrados nesses blocos mais poderosos que os
estados nacionais, os quais, apesar de mostrarem uma aparente per­
d a de poder, ainda recriam, numa articulação dialética, o universal
e o específico, a diversidade e a unicid ade.
Resulta que, nesse mundo globalizado, a noção de tempo e es­
paço é alterada. O tempo representa a velocidade do que está ocorren­
do. Mudanças bruscas. É a característica do processo. Além disso, ele
contém a força de desorganizar, de manter em desordem, tanto o
território quanto os indivíduos. E passa-se a atribuir ao mercado a
tarefa de organizar o que está desorganizado. Também o conceito de
espaço não corresponde mais a lugar, pois este pressupõe a não-mobi­
lidade no antigo conceito. O que conta agora é o não-lugar. Do lugar
como idéia de algo fixo, imóvel, centrado, com uma identidade cons­
tante, passamos à experiência de novas espacializações no sentido de

1 88
deslocamento, de não-lugares, de indivíduos descentrados, de identi­
dades mutantes. Como os conceitos de tempo e de espaço, o de iden­
tidade e subjetividade também foram alterados. Tanto um como ou­
tro se tomaram plurais, se deslocando com muita rapidez, influindo,
tanto na produção do conhecimento quanto nas manifestações artísti­
co-culturais. O conhecimento produzido, incluindo-se as artes em ge­
ral, é conseqeência desse movimento. O sentimento do não-lugar, do
espaço que desloca e se transmuta e a velocidade do tempo cria no
indivíduo a perplexidade expressa no seu pensar e no seu fazer desar­
ticulado, fragmentado, disjunto. A desordem, a desterritorialização/
reterritorialização estão generalizadas.
A desterritorialização de outros elementos produzidos pelo
homem faz circular planetariamente essa produção e, com certeza,
vai descaracterizando cada vez mais sua nacionalidade, embora, para­
doxalmente, reforce sua identidade. Assim, a produção do saber, da
cultura, dos bens materiais não reflete, necessariamente, os proble­
mas nacionais, regionais, ou mesmo locais, mas traz a marca das
questões planetárias, sem contudo perder a cor local; é o fluxo-reflu­
xo das diversidades e da unidade.
Todavia, devemos estar atentos, pois somos especialistas em
fragmentar, em criar barreiras, em isolar. Precisamos quebrar essas
barreiras para, como o mercado, termos trânsito livre; tentar viver a
totalidade sem demarcações, para que se possa usufruir a plenitude
do saber, da alegria, da tristeza, dos sentimentos, da vida. Precisamos
estar abertos na sociedade da sobremodernidade, pois o conheci­
mento científico fez baixar a temperatura do conhecimento em ge­
ral, criando conceitos, delimitações, especialidades, fraturas, fragmen­
tação. Apesar de vivermos a globalização provocada pelo mercado e
pelos meios de comunicação, contraditoriamente a tecnocracia e a
mídia tornam a sociedade fragmentada. Nela, devemos lutar, pelo
reencontro do homem, pela consumação da sua unidade, quebrando
as barreiras que foram construídas pela nação, pela ideologia, pelas
religiões, pelos preconceitos, para que ele possa viver plenamente
essa era planetária. Buscar sua unidade, não para homogeneizar, mas
para, no reconhecimento e no respeito à sua diversidade, fazê-la de­
sabrochar das diversidades culturais. Esse reconhecimento significa

1 89
tornar concreta a identidade comum. Buscamos apoio em Morin,
que diz: "A identidade do homem, ou seja, sua unidade/diversidade
complexa, foi ocultada e traída, no próprio coração da era planetá­
ria, pelo desenvolvimento especializado/compartimentado das ciên­
cias. As características biológicas do homem foram dispersadas nos
diversos departamentos de ciências humanas, de como que a sociolo­
gia foi incapaz de ver o indivíduo, a psicologia incapaz de ver a
sociedade, a história ficou de lado ... " O homem se desfez em frag­
mentos (Morin e Kern).
Cabe a nós, portanto, juntar os cacos, refazer esses fragmentos
para fazer nascer um homem novo, íntegro, unitário. Retomar um
caminho a partir do qual a educação não mais ensine a separar, a
isolar, senão a religar os conhecimentos, os saberes, fazendo-nos con­
ceber a humanidade, não mais de forma fragmentada, mas de ma­
neira unitária, integral, plena. Nessa nova ordem planetária, apesar
de tudo, surgem e se constroem novas solidariedades, novas deman­
das nascidas nas próprias fissuras da globalização. As formas de
manifestação das vontades coletivas, das reivindicações, assumem
significados distintos, apontando as novas características do homem
sobremoderno e a fragilidade por que passam os partidos políticos,
os sindicatos e a própria Igreja. São movimentos que estão tentando
afirmar sua autonomia, sua diversidade, sua singularidade, suas dife­
renças. São movimentos plurais que estão coerentes com a pluralida­
de de lugares, de situações, de interesses que são afetados pelo global.
Vivemos, portanto, num mundo complexo e contraditório, sobre o
qual, apesar dos avanços tecnológicos, ainda conhecemos muito pou­
co. As catástrofes, fome, miséria e violência ainda nos perturbam.
O homem, ao longo da história, foi capaz de criar e recriar
coisas com grande engenhosidade e triunfo. No entanto, essas des­
cobertas, esses feitos não foram capazes, aind a, de acabar com a
violência, com as guerras, com os separatismos de toda ordem. Além
disso, o desejo de ter sempre mais, certamente o principal fator
responsável por esses estado de coisas, tem agravado a situação con­
trad itória da humanidade.
Contudo, esperamos que sej a possível surgir a concepção
de que possamos nos reorganizar de fo rma menos racional, me-

1 90
nos dolorosa, porém mais imaginativa, mais afetiva, mais saudá­
vel, menos solitária, para podermos manifestar nossa singularida­
de e, também, nossa universalid ade. Como seres humanos forma­
dos pelo biológico, pelo psíqu ico e pelo cultural, precisamos vi­
ver plenamente essas três d imensões.

Bibliografia

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Nota

1 Professora da Universidade Potiguar (UnP).

191
1 Museu imaginário, arte e complex idade
WANI FERNAND ES PEREIRA1 1

A imaginação está talvez prestes a retomar stNS direitos.


André Breton

T
ratar de um pensador instigante, cujo itinerário poético antecipa
proposições que se afinam com o ideário de um conhecimento
complexo e universalista, a respeito da arte e da cultura é docemente
perigoso. Para resguardar minha ousadia, tomo por mote as palavras
de Gaston Bachelard: "Há que se deixar o pensamento percorrer a
trilha do perigo".
Apresento Clarival por ele próprio:
Meu nome Clarival não é ligado ao de São Bernardo de Clara­
val, como bondosamente meu querido dom Marcos Barbosa descon­
fiou. Não tenho, infelizmente, a grandeza do abade criador da ordem
cistersiense, radicada à beneditina por volta de 1 1 13, falecido em 1 153,
canonizado pelo papa Alexandre III e proclamado doutor da Igreja
por Pio VIII, em reconhecimento ao seu imenso legado teológico,
político, literário, histórico e também arquitetônico. Modestamente
reconheço que estou mais próximo de Santo Amaro, de meus pais, e
também, meu. Entre o sábio doutor da Igreja e o humilde Santo Amaro,
prefiro ser Clarival, santamarense nascido na rua da Poeira 8 1, em
Salvador. Não sou autor de nada. Os verdadeiros autores estão conti­
dos nos assuntos e obras sobre as quais me debrucei, muitos já histori­
ados ou consagrados, mas numerosos outros caídos no limbo do es­
quecimento, na anonímia, perdidos no tempo, entretanto imperantes
nos espaços que perenizam. Para o meu trabalho utilizo-os por não
conter adjetivação. Os objetos se revelam em sua própria inerência. O
estatuto d a imagem constitui-se no aporte indispensável para o estudo
da arte, pois interpreta as formas do espírito criativo, contribuindo
para uma comunicação adequada. À fotografia são acrescentadas ou-
tras metodologias de documentação: pesquisa de documentos, corres­
pondências, bibliografia de numerosos historiadores e viajantes es­
trangeiros. A fotografia de época como registro da vida civil e religiosa
ganha destaque. Trata-se de uma metodologia de cunho arqueológico
que nos desvenda camadas desconhecidas, obscuras, que, aos poucos,
deixam-se emergir num discursivo triúnico que inaugura uma docu­
mentação ampliada, uma espécie de trajeto antropológico revelador
da vida e das idéias.

Exposições antológicas: museu de imagens, museu imaginário

No ano de 1 975, na cidade de Salvador, participando de um


encontro de Conselhos de Cultura, Clarival do Prado Valladares é
convocado pelo Conselho Federal de Cultura para defender uma pro­
posta acerca da integração dos museus na educação do povo. Formali­
zando com esse título um documento, aponta algumas diretrizes e
recomendações às Instituições de Cultura, como forma de viabilizar
essa integração, redimensionando o entendimento do que seja um
museu. Nessa tese reverencia a memória de seu irmão, José Valladares,
museólogo e historiador da arte, cuja monografia de especialização
realizada nos Estados Unidos, e publicada posteriormente pelo Museu
da Bahia ( 1946), tratava da mesma questão. Reconhecendo a atualida­
de das proposições do irmão, Clarival redimensiona o papel das expo­
sições temporárias que passa a nominar de "eventos".
A primeira exposição antológica a despertar impacto no epi­
sódio de uma Bienal Internacional data de 1 957. É o ano de criação
do Museu de Arte Contemporânea e Artes Populares da Bahia, diri­
gido pela arquiteta Lina Bo Bardi e responsável pela Exposição Bahia.
Fundamentada no que Clarival nomina de cultura de base, a exposi­
ção ocupou todo o pavilhão contíguo ao prédio da Bienal, instalado
no Parque Ibirapuera, área que hoj e corresponde ao Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MASP).
A exposição Memória da Independência, comemorativa do ses­
quicentenário e representativa do período 1 808/1925, determinou a
reforma do espaço arquitetônico de dois pavimentos do edifício do
Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, com enorme bene-

1 94
fício para o prédio. Reuniu impressionante acervo histórico e artísti­
co, talvez o mais eloqüente que se fez nessa duplicidade de interesses.
Xingu, Dia-Noite-Terra foi considerada pela crítica um dos eventos
mais significativos da Bienal Internacional de São Paulo, no período
outubro-dezembro de 1975. "Grandiosa pelo tema e qualidade, basea­
va-se no trabalho de 25 anos de Orlando Villas-Boas e em cinco excur­
sões da pesquisadora Maureen Bisilliat, no Parque do Xingu".
Acredita Valladares que esses exemplos de exposições antológi­
cas, embora limitados quanto aos resultados cognitivos, justificam a
nova conceituação do evento, e afirma: o evento passa a ser, através da
documentação diversificada e sistematizada, o próprio acervo temáti­
co, submetido a estudos mais aprofundados. A essas exposições são
acrescentados outros meios de visualização e informação disponíveis,
tais como publicações e recursos audiovisuais, que ampliam os signifi­
cados dos espaços museológicos. Os museus não serão mais a casa de
um determinado e limitado acervo. Passarão a ser o locus da represen­
tação e informação de muitos acervos. As exposições, por sua vez, se
constituem em instrumentos de educação e pesquisa a serem utiliza­
dos pelo público, historiadores, cientistas, artistas. Reafirmam-se, en­
quanto meios de comunicação, circulação e preservação da memória
cultural e histórica do país. A educação passa a ser empreendida "por
meio da informação universal e conscientização através do reconheci­
mento e confronto dos valores culturais da própria região" (Vallada­
res, 1 985).
Com tal proposição, Clarival antecipa uma abordagem ecológica
da cognição, tal como é assumida por Pierre Lévy ( 1993), e representada
pela metáfora do hipertexto, entendido como um "conjunto de nós
ligados por conexões, através das palavras, páginas, imagens, gráficos ou
partes de gráficos, seqüências sonoras, documentos complexos que po­
dem eles mesmos ser hipertextos". As exposições antológicas, sob a for­
ma de eventos, como são propostas por Clarival Valladares, podem ser
entendidas como verdadeira metáfora do hipertexto da cultura. Com­
postas por uma diversidade de linguagens - escrita, imagética, discursi­
va, sonora -, essas exposições ampliam a informação e a comunicação,
ao mesmo tempo que atribuem sentido ao texto, novas associações, in­
terpretações e ressonâncias. Instauram-se nelas, portanto, os fundamen-

1 95
tos primordiais da comunicação: a partilha do sentido, a r�ssignificação
do mundo e dos objetos a um museu verdadeiramento imaginário.
A idéia de um museu de imagens, sugerida por Clarival Valla­
dares, aparece como convicção durante entrevista cedida por ele aos
pesquisadores do Projeto Portinari (PUC/FINEP) e realizada no Rio
de Janeiro, em fevereiro e março de 1983.
Clarival denuncia o descaso das instituições brasileiras no que
se refere ao processo de documentação. As imagens nunca podem per­
der-se porque se constituem sempre como reservas de memória para as
atuais e futuras gerações. O marco do museu de imagens instaura-se
com a sentença do zelador do M useum of African Art, a Clarival
Valladares: "Não guardamos diapositivos. Guardamos a imagem. Não
guardar o diapositivo e sim a imagem, e a cada seis meses verificar
através de equipamento eletrônico se há necessidade de renovação".
Aqui reside a fórmula de conservação da documentação e coleção do­
ada ao Museum of African Art, por Elliot Elisofon, fotógrafo da Life
Magazine.
Será através do predomínio da imagem que Clarival configura­
rá seu museu de imagens, a partir do acervo iconográfico acumulado
em 26 anos, dedicado ao estudo da história e crítica de arte, referenda­
do por Raul Lody: "No trabalho desempenhado por Clarival merece o
de documentalista do imaginário, no caso destacando-se a cultura
material africana/afro-brasileira. Aliado ao seu olho de descobridor,
estava o olho da máquina fotográfica que ganha dimensão e leitura de
um especialíssimo fotógrafo etno-historiador da arte brasileira. Saben­
do do valor de cada fotografia no conjunto de seus textos, soube dar
fala própria à imagem, legando ao texto iconográfico um espaço de
destaque, que sempre garantiu a interação entre o autor e seu público"
(Lody, 1994).
Exercitando nesse museu de imagens sua poeisis da constante
invenção, Clarival retira do silêncio da cultura manifestações estéticas
derivadas do sentimento imagístico expressado por ex-votos, e suas
imaginárias afro e afro-brasileiras. Atribui aos seus fazedores de ima­
gens, negros e mestiços, critérios de universalidade, ingenuinidade,
imaginação criativa e historicidade.
Sempre houve, no Brasil, a partir do século XVII, forte presença

1 96
de negros e mestiços nos trabalhos de arte. A origem africana é uma
estrutura fundamental na obra de muitos artistas brasileiros, assim
como na expressividade mais ampla da criatividade popular.
São, portanto, esses fazedores de imagens os que na estatuária,
escultura e pintura católicas imprimem seu éthos, sua imaginação, seu
saber-fazer, sua provocação estética.
Percorramos alguns desses espaços imaginários. Visitaremos
apenas algumas salas selecionadas na cidade de Salvador, Bahia. Ado­
temos como critério uma cronologia. Trata-se do início da carreira
de Clarival como professor de história da arte. O ano é 1959. A
cidade, Salvador de Todos os Santos.
Os espaços, nos quais exercitará sua erudição, incluem a Escola
de Belas Artes da Bahia, Escola de Teatro da Bahia, 1 Salão Universitá­
rio do Nordeste, Instituto Histórico e Geográfico, Centro de Estudos
Afro-Orientais, Instituto de Cultura Hispânica de Madri, 1 e II Festac,
Fórum de Ciências e Cultura do Rio de Janeiro, Escola e Museu de
Belas Artes do Rio de Janeiro, dentre tantos outros.
Verdadeiro caleidoscópio de temáticas, idéias e ícones, a produ­
ção do museu valladariano aproxima-se, em toda sua dimensão, do
museu imaginário proposto por André Malraux. É na metáfora desse
museu que se fundamenta Gilbert Durand (1988), ao apontar as fun­
ções da imaginação simbólica, instância primordial da instauração de
uma antropologia e uma pedagogia do imaginário, do conhecimento
no anthropos, de suas parcelas e simultaneamente ludens e demens. O
grande mérito de André Malraux, para Durand, foi ter nitidamente
demonstrado que os meios rápidos de comunicação, a difusão maciça
das obras-primas da cultura pelos processos fotográficos, tipográficos,
cinematográficos, pelo livro, pela reprodução em cores, o disco, as
telecomunicações pela própria imprensa, permitiriam uma confronta­
ção planetária das culturas e um recenseamento total de temas, um
museu imaginário generalizado de todas as manifestações culturais.
Diante da enorme atividade predadora da sociedade cientificista e
iconoclasta, eis que essa mesma sociedade nos propõe os meios de
reequilíbrio: o poder e o dever de promover um intenso ativismo
cultural.
Esse museu imaginário generalizado, representado pelo conjun-

1 97
to de todos os departamentos de todas as culturas, poderia contribuir
para o reequilíbrio de toda espécie humana. A razão e a ciência apenas
unem os homens às coisas, mas o que une os homens entre si, no nível
humilde de felicidade e penas cotidianas da espécie humana, é essa
representação afetiva, que constitui o império das imagens. Por trás
do museu imaginário, no sentido estrito, o dos ícones e das estátuas,
seria necessário fazer um apelo à poetização do mundo e dos homens.
Nesse sentido, a antropologia do imaginário poderia se consti­
tuir não apenas numa coleção de imagens, metáforas e temas poéticos,
também como num quadro compositório das esperanças e temores da
espécie humana, a fim de que cada um nele se reconheça e se revigore,
pois o espírito só se pode conhecer em suas obras se, de algum modo,
nelas se reconheça, conforme reiterou, de modo definitivo, Jean La­
croix.

B ibliografia

DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1988.


L ÉVY, P. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro, Editora 34, 1 993.
LODY, R. Por uma históna da arte afro-brasileira. Rio de Janeiro, Série Comu-
nicado Aberto, n� 21, 1994.
MORIN, E. O paradigma perdido. Portugal, Publ. Europa-América, 1974.
VALLADARES, C. Clarival Valladares: obra seleta. Salvador, Fundação Cul­
tural do Estado da Bahia, 1983.
__. Curriatlttm vitae. Rio de Janeiro, mimeo.
VALLADARES, K. O acendedor de lampiões. Rio de Janeiro, Dissertação de
Mestrado apresentada à Fundação Getúlio Vargas/IEAE/DASE, 1985. Mimeo.

1 98
Idéias-força em ação
OTÁVIO TAVARES'!

odos nós temos idéiasforça que nos movem durante o processo da


Tnossa existência. Elas fazem parte do imaginário social e contêm
as nossas representações sobre o mundo. Dessa forma, os fatos não
ocorrem ao acaso, são decorrentes da nossa maneira de encarar o mun­
do que nos rodeia e das zdéiasforça que nos colocam uma base para a
ação. Assim, tomam-se fundamental para os seres humanos reconhecer
os grandes temas que os singularizam, para que venham a ter clareza do
quadro inspirador do seu agir. Portanto, o tipo de indivíduo que somos
decorre de todo um contexto experiencial que tem por base a maneira
como percebemos a realidade, onde localizamos as relações sociais, de­
terminadas por princípios (as idéiasforça) que nos orientam as ações.
Se assumimos que a sociedade brasileira é desigual em sua es­
trutura, que há um pequeno grupo de privilegiados, uma grande con­
centração de renda e que há necessidade de se construir uma socieda­
de mais justa, toma-se necessário termos essas idéias como algo funda­
mental para motivar nossa prática social e definirmos um projeto de
sociedade diferente do que temos.
A visão que cada indivíduo tem das coisas supõe as idéias-força
incorporadas ao seu eu, mas isso não é tudo. Torna-se essencial apro­
fundar o fazer humano no sentido de que as sínteses que cada um faz
das idéias geradoras estão carregadas de elementos singulares decor­
rentes d a ótica que os construiu e apresentam-se cheias de subjetivida­
des próprias ao humano. Nesse sentido, é importante que cada um de
nós reflita sobre seus próprios demônios, pois eles podem nos condu­
zir simultaneamente a erros e verdades. Reconhecer os erros pode nos
levar à demolição de certos demônios e à presentificação de outros.
Creio que um diálogo franco com as nossas idéias-motrizes e a identi­
ficação de como nos percebemos no contexto do cotidiano da socieda­
de possibilita o conhecimento dos nossos demônios e nos toma capa­
zes de corrigir uma série de falhas para que possamos reforçar práticas
que consideramos mais fraternizadas.
Nesse processo de vivência, que se constitui num desafio para
o ser humano, a percepção de um acontecimento pode desencadear
uma seleção de aspectos que nos pareciam antes destituídos de sentido
e, desse modo, possibilitar novas reorganizações das singularidades,
sofrimentos e dores, é potente e latente.
A base de toda essa análise encontra-se na idéia de que existe
uma parte inexplicável do ser (idéias{orça) e com a qual temos de
aprender a conviver e tirar lições. Tiramos lições dessa dial6gica in­
teracional quando, em diferentes momentos da vida, percebemos a
identificação dos nossos demônios. Em outras palavras, devemos
assumir o princípio epistemológico de que o observador de fenôme­
nos sociais deve incluir-se na observação e na concepção que expres­
sa, porque o conhecimento sobre as coisas necessita do autoconheci­
mento. É fundamental ter claro que só me conheço conhecendo os
outros e s6 conheço os outros me conhecendo. O processo de imer­
são na identificação dos nossos registros ou marcas permite ampliar
a compreensão de nossos comportamentos e verificar que, na práti­
ca, ninguém pode simultaneamente observar-se de maneira plena e
viver essa plenitude. Há sempre uma "brecha" entre o momento do
encontro consigo e a experimentação vivencial. Eis, pois, um desafio
que se coloca a todos aqueles que desejam aprender a conviver com
seus demônios e tirar lições objetivas para melhorar a sua forma de
viver, com base na compreensão das idéias/orça que os faz agir.
Os modelos construídos pelo ser humano funcionam como ten­
dências que orientam as ações e dão forma à personalidade humana. Esses
modelos são calcados nos "imprintings adturais" que recebemos da cultura
e, ao mesmo tempo, que nos definem e criam as condições para a sua
superação. É fundamental que tenhamos a aventura de viver nossos de­
mônios para que tenhamos condições de dialogar com eles de modo mais
convivia!. Vivenciar essa aventura significa abrir-se a novas experiências e

200
dialogias na perspectiva de observador/observado.
Há necessidade, por outro lado, de reconhecer que as conseqe­
ências das ações humanas escapam às intenções dos seus iniciadores.
Esse fato demonstra que há uma dinâmica interacional no processo
de intervenção social em um dado contexto, e que não se tem o con­
trole total do inesperado e dos "ruídos", o que demonstra a necessida­
de de uma "ecologia da ação" que permita entender as conseqeências
acrescidas pelas singularidades humanas na práxis societária.
Este sentido dado por Morin ao processo interacional do ho­
mem levou-o a identificar a antropologia como uma ciência geral que
compreende dimensões da economia, da psicologia, da história, da
biologia e, também, do mito e do imaginário. O aspecto biológico
ressalta-se pela condição de mortalidade do homem como qualquer
ser vivo que tem um ciclo vital. O aspecto do mito e do imaginário é
importante porque projeta a vida para além da morte, evidenciando,
assim, um lado complexo nos estudos científicos, que deverá incluir
as subjetividades do ser com seus medos, anseios, desejos, demônios e
sombras.
Tornar-se-ia, assim, possível perceber a cultura contemporânea
como aquela que interroga de forma múltipla o sapiens-demens em suas
bases sócio-históricas e mítico-imaginárias.
O raciocínio acalenta-se cada Vf2.. mais na perspectiva de que o ho­
mem é um ser cósmico. Como tal, interrogamos constantemente se o que
há de enigmático no mundo não decorre do que é mais enigmático no
próprio homem. Assim, toma-se importante definir um caminho para a
ação que pode ser iluminado pelo conhecimento científico, desde que veri­
fiquemos as diferentes concepções sobre o homem e o mundo, seus deter­
minantes históricos e sociais, mas também os determinantes subjetivos que
evidenciam a influência do imaginário social e do mito no fazer humano.
Essa concepção é uma atitude mais universalista da ciência,
na qual percebe-se a fragilidade das sínteses parcelares, oriundas de
cada área de conhecimento científico, porque, cada uma, de per si,
não d á conta d a complexidade que é a natureza humana. Uma
atitude dessa natureza implica a assunção de uma postura de edu­
cação contínua e permanente, ou, como prefere Morin, na aceita­
ção de um estado constante de reorganizações do saber, no qual o

20 1
educador seria um permanente estudante.
Para se operacionalizar esse meta-ponto de vista, teríamos de
partir da curiosidade pelos fatos, fenômenos e acontecimentos, como
também pelos problemas e idéias, através de uma atitude que rejunte
o empírico ao te6rico, o ancestral ao contemporâneo, a cultura das
humanidades à cultura científica. Esse método de trabalho anuncia
a perspectiva da dinâmica interacional e permite a identificação d as
contradições para a definição ou redefinição de quad ros de referên­
cia que expressam as nossas representações carregadas de demônios,
mitos, certezas e incertezas.
Pensamos ser de suma importância sugerir, por fim, que nossas
práticas profissionais e sociais devem estar pautadas pela recusa de
qualquer atitude sectária em relação às contribuições e vivências dos
outros atores sociais. Gostaríamos de lembrar um pensamento de
Morin, que expressa bem a dialógica tão necessária e difícil de ser
assumida na prática cotidiana: "Sentimos uma insatisfação profund a
perante toda a observação que não está e m movimento e que não se
observa a si mesma, perante todo o pensamento que não enfrenta as
suas próprias contradições, perante toda a filosofia que se reduz a
chavões e não se põe a si mesma em questão, perante todo o discurso
particular que se isola do devir mundial'', (Morin, 1995, p. 32). Para
nos livrar de uma tal insatisfação é premente que analisemos nossas
ações para identificarmos os demônios que estão presentes em nossas
idéiasfàrça. e busquemos entender a influência do imaginário nas nos­
sas práticas, para que não venhamos a ser reduzidos a meros seres
pensantes dentro de uma lógica apenas racional e sectária.

Nota

1 Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

B ibliografia

MORIN, Edgar. Meus demônios. Lisboa, Publ. Europa- América, 1995. p. 6.

202
1 Caleidoscópio de vidas e idéias
MARIA APARECIDA LOPES NOGUEIRA' 1

omo num movimento caleidoscópico, que exibe momentos de


C aproximação e afastamento, fragmentos da vida e da obra de
Ariano Suassuna e Edgar Morin se interconectam sem, no entanto,
desfocar a singularidade própria a cada um desses dois pensadores
erráticos, mestiços, inquietos. Tudo se passa como se, nesse artigo,
estivesse eu movida pelo desejo de levar às vias de fato a proposição de
Claude Levi-Strauss de que as narrativas míticas dialogam entre si.
Meu empenho aqui é circunstanciar, pelo uso das palavras, um opera­
dor cognitivo complexo/imaginai que possibilite entender os acasos,
as dispersões e as formatações neológicas que fazem dos dois autores
parceiros virtuais, verdadeiros caminhantes na rota incerta do conheci­
mento complexo.
Em "A pedra do reino", Ariano Suassuna afirma que o "escritor
é um mentiroso". Provocativo, como lhe é peculiar, chega mesmo a
dizer que "nada do que tem lá é verdade, tudo mentira! Agora, eu que
me ocupe em contar aquela mentira descomunal, ainda vá, porque
tem doido pra todo tipo de coisa! Agora, ter quem acredite e ter quem
compre, quem leia e que ainda vá estudar... " Ora, eu me incluo entre
essa gente. Também fui capturada pelas paixões e alucinações de Qua­
derna, narrador do romance, que, para Rachel de Qieiroz, é o próprio
Ariano Suassuna. Nessa captura, acabei imersa no universo seco, forte,
empoeirado e poético do sertão nordestino. E, enquanto sacudia a poeira
d a caatinga, me dei conta e fui tocada pelo livro Meus demônios, de
Edgar Morin. Ali também se misturam demônios, literatura, ciência,
mito e realidade, emoções e razão, e misturam-se de tal forma que
ambos os livros podem ser adjetivados e epopéicos. Epopéias constru­
ídas/constituídas de desaventuras, desejos, descaminhos, sonhos e lou­
curas de Ariano Suassuna e Edgar Morin.
Cada ponto de partida de aproximação desses dois universos
me leva a ressaltar a necessidade dos autores de mergulharem em suas
trajet6rias, descobrirem e soltarem seus demônios! "A pedra do reino e
Meus demônios" são, em parte, retrospectivas/autobiografias de vidas
vividas na dor e na alegria de se relacionarem como o mundo em
todas as suas dimensões: afetiva, política, intelectual, religiosa, ... "Este
livro transformou-se então num projeto de introspecção-retrospecção",
diz Morin. "Agora, ( ... ) rememoro todo quanto passei", diz Suassuna.
O conhecimento de parte da vida dos dois autores nos permite
conhecer, também, a sociedade e a hist6ria onde estão inseridos, visto
que tal conhecimento não é outra coisa senão uma representação, constru­
ção mental do vivido. Trata-se do autoconhecimento como condição neces­
sária ao conhecimento, princípio epistemológico fundamental do paradig­
ma da complexidade, aquele que inclui o observador na observação.
Da perspectiva de uma antropologia geral, do estudo do antro­
pos, ressalto a importância que tem para Morin dos registros d a lite­
ratura, da música, do cinema, da política, da experiência acadêmica,
tanto quanto dos estudos em biologia, física, dentre outros, para
compreender o itinerário de um pensador e para a construção de um
pensamento da complexidade. É a partir desse patamar mestiço que
Edgar Morin reconstrói seu itinerário d� vida intelectual. Suassuna/
Qiaderna, por sua vez, sofreu influência direta do romance popular
nordestino (através de folhetos e romanceiros e cantadores) e dos
seus mestres: professor Clemente Hará de Ravasco Anvérsio (do
Movimento Oncista) e do doutor Samuel Wan d'Ernes (advogado,
representante do T apirismo Ibérico-Armorial do Nordeste). Suassu­
na é um cronista-fidalgo, rapsodo-acadêmico e poeta-escrivão, além
de astrólogo-decifrador, um pensador complexo: "Um servo da es­
trela das minhas posições zodiacais, um pequeno instrutor poético­
sertanejo, filantr6pico e litúrgico! Minha base de escrever é traçar
gracejos que não pendam para o lado licencioso e enredos vantajosos
e her6icos, ainda que sejam imaginários!" (pág. 1 79). Uma tal escri­
tura das trajetórias intelectuais deixa de ser assim meras biografias,

204
para se tornarem fragmentos do mundo impregnado de sentido e
historiedade.
Trata-se de entender a cultura e o homem numa perspectiva
transdisciplinar, enquanto algo que não se fecha e que é simultanea­
mente uno, diverso, multifocal e auto-organizador. Assim, os pró­
prios escritos de Morin e Suassuna são trabalhos de cultura, uma vez
que relacionam temas e conhecimentos anteriormente separados, ao
mesmo tempo que destacam o caráter inacabado, mutável, lacunar e
as brechas do fenômeno cultural.
A constelação paradigmática onde os autores se inserem res­
salta entre outras coisas a incerteza, o caos. As desventuras vividas
por Morin e Suassuna descrevem universos caóticos, nos quais o
imponderável emerge como elemento fundante. Esse elemento im­
ponderável foi que transformou Suassuna/Qiaderna num herói por
acaso (por sinal, covarde e sortudo), e fez com que Morin percebesse
a política como a arte do incerto.
Outro princípio que é preciso levar em conta para entender
essas metabiografias é o da contradição. Para além do enquadramento
conceitual, confinado pela intelectualidade cindida, a contradição é
vivida, pelos dois pesquisadores, de forma íntima e intensa. Segundo
Morin, "isto gerou uma dialógica: que nenhum dos termos antagôni­
cos foi vencido ou venceu totalmente (.. ), em vez disso, enquanto se
.

combatiam começaram a dialogar, a tomar produtivos, isto é, a pro­


duzir o que penso e sou" (pág. 45). A oposição/contradição/dialogia é,
então, a própria razão de ser do autor e da sua obra, aí se encontrando
"verdades do coração" e "verdades da razão", constantes desencantos e
re-encantos. É o imaginário se apresentando como realidade viva de
sangue e paixão.
Em Suassuna, essa contradição é descrita em alguns trechos do
livro, com uma força que só as metáforas podem suscitar: "Baseados
num outro personagem do Pastoril, personagem que pertencia ao mes­
mo tempo ao Cordão Azul e ao Encarnado - chamavam-me 'A Diana
Indecisa', porque eu não me animava a aceitar totalmente nem o Co­
munismo de um nem o Integralismo do outro" (pág. 197). Em outro
trecho, vai mais fundo e diz abertamente, fora dos controles morais
da linguagem: "Tinha pica e caceta de Onça-Macho e uma carreira de

205
peitos de bicho fêmea no bucho, por que ela era a onça sagrada do
Macho-e-Fêmea (pág. 347). Ou ainda: "Modéstia à parte, não existe no
mundo religião mais completa do que a minha! ( .... ). A Igreja Cat6lica
Sertaneja é a única religião do mundo que é bastante 'judaica e cristã'
para levar ao Céu e, ao mesmo tempo, bastante 'moura' para nos
permitir, aqui logo, os maiores e melhores prazeres que podemos go­
zar nesse mundo velho do meu Deus!" (pág. 453).
O que apreendo desse universo de ser e de não-ser é que o
pensamento se submete a um jogo constante de oposições, sem con­
tudo produzir síntese. As duas faces antagônicas se complementam.
Dessa forma, apenas se pode conceber a objetividade como contra­
ponto/complemento da subjetividade, a razão como complemento
da desrazão. O homem seria, então, simultaneamente, sapiens e de­
mens. Esse é o motivo pelo qual o princípio dialógico supõe sempre
a necessidade de se pensar com e contra a contradição. A contradi­
ção desvela o conhecido no conhecido, permite a emergência de
uma dimensão oculta mais rica, ao mesmo tempo que torna claros
os limites da lógica e a complexidade do real.
Morin e Suassuna se revelam instintivamente contraditórios,
são continuamente arrastados pelos imperativos da oposição. A racio­
nalidade encontrada no Meus demônios e em A pedra do reino é tempe­
rada e complexificada pela dúvida e pela contradição. Esses dois livros
mostram ao mesmo tempo horror e maravilhas, alegrias e tristezas de
dois caminhantes que se fizeram no próprio caminhar.
Caminhantes incansáveis de uma realidade humana que é semi­
imaginária, Morin e Suassuna expressam uma antropologia comple­
xa, situada nos limiares entre os mundos biológico, físico e cósmico.
Pela ótica dessa antropologia geral e complexa, haveremos de afirmar,
como Morin, que "a humanidade é reconhecida nas suas raízes e no
seu destino terreno. A 'conquista da natureza' é doravante denunciada
e a missão do 'pastor das nucleoproteínas' torna-se a de civilizar a
Terra" (pág. 174). Eis o fim da fratura entre natureza e cultura.
Essa mesma religação da natureza - cultura é assim expressa
por Suassuna: "Foi d as trepadas das Divindades solares entre si que
nasceram a Terra e a Água, mijada por eles. Depois, daí em diante, o
mais foi mais fácil: pingos de gala de Deuses ou pingos de Deusas

206
fêmeas que caíam no barro da Terra fazem nascer ou bichos ou
plantas. Se um Deus qualquer, depois daí, nasce um homem ou uma
mulher, conforme o caso. Foi, portanto, dessas trepadas das Divin­
dades tapuias com as Onças, os Gaviões, os Bodes, as Cabras, os
Veados e outros bichos que nasceram os Tapuias castanhos, antepas­
sados diretos dos Sertanejos e indiretos de todos os outros homens"
(pág. 476). A noção clara da dialógica cultura - natureza encontra-se
em outros trechos do livro, quando ele se define por meio de ele­
mentos do mundo ricos de significado para o homem rural: "Eu,
bocado de terra parda e sertaneja amassada no sangue e no Sol" (pág.
455); "quisesse ou não quisesse, eu tinha nascido do sangue da Onça­
Pard a, da Onça cega e sarnenta do mundo. Assim, não admirava que
meu destino e meu sangue estivessem ligados ao sangue e ao destino
dela" (pág. 445). Todos os seres, então, se originam ou partilham os
mesmos elementos, é essa a idéia ressaltada pela sutura do par natu­
reza - cultura.
Afinal, há uma rede infinita de interrelações... Que mistério é
esse que nos cerca?... Há mistério em tudo!. .. Espanto é o sentimento
de Morin e Suassuna diante desse novelo indecifrável que é a vida.
"Estou cercado pelo mistério. Tenho o sentimento de caminhar nas
trevas, rodeado por galáxias de pirilampos que me escondem a obs­
curidade da noite" (Morin, 1994, 227). Na sua Demanda novelosa do
reino do sertão, Suassuna nos fala também dos mistérios do mundo:
"Ora, naquele dia em que se iniciava sua Desventura, o rapaz do
cavalo branco ainda não reconhecera aquela moça meio ausente,
absorta e sonhosa, de cabelos castanhos e olhos verde-azuis, aquele
que veio a ser o grande amor de sua vida. Como se explica, pois, que
já trouxesse a imagem dela gravada em seu escudo? Respondo, fácil:
são coisas cifradas e enigmáticas" (pág. 17). Poderia até afirmar que
o mistério/enigma é o próprio centro e o nó dos escritos de Morin e
Suassuna, na med ida em que ambos reconhecem o aspecto da não­
apreensão total do símbolo. É característica do símbolo, pois, algo
de fugidio, que não se deixa compreender, decifrar.
Uma outra questão que interconecta os livros A pedra do reino e
Meus demônios diz respeito à morte: ela aparece como temática recor­
rente que estrutura os universos moriniano e suassuniano. Morin vi-

207
veu a morte da mãe aos 10 anos de idade, o que resultou numa relação
entrincheirada com o mundo. Da mesma forma, Suassuna ainda crian­
ça teve o pai assassinado, o que marcou profundamente a sua vida. A
morte atingiu-os frontalmente. Foram irremediavelmente marcados
pela dor, confrontados com o horror e feridos pelo sofrimento da
perda irremediável. Não compreenderam a morte, apenas choraram
pelo instinto do não-mais. Sinto a cada frase ou parágrafo dos seus
escritos o "morrer de emoção". Eles foram e estão feridos de morte.
Sinto a dor no peito de cada um, suas lágrimas descendo. Os dois
foram tatuados a fogo, pela ausência e presença da morte.
Escreve Morin: "A morte atingira a minha mãe num vagão de
caminho de ferro de subúrbio, o que me esconderam, contando-me
que ela partira para uma cura em Vittel. O meu tio Jo tinha-me levado
pra casa de minha tia Corinne, e o meu pai deveria acompanhar a
minha mãe a Vittel. Não me preocupei. Detectei a morte dois dias
depois, a 28 de junho de 1 93 1, e, dois sapatos pretos, a que se sobrepu­
nham uma das calças e um casaco pretos, os quais, por sua vez, se
sobrepunha a cara do meu pai, que eu olhava de baixo, sentados na
relva da praça Martin-Nadaud, que confina com o cemitério de Pere­
Lachaisse e que era o jardim mais próximo d a casa d a minha tia, na
Rua Sorbier. Fui invadido por uma Hiroxima interior. A morte insta­
lou-se imediatamente no meu ser sob a forma de dor, horror e segre­
do. Escondi o que compreendera, o que sentia, e continuei a escondê­
lo do meu pai, da minha tia, de todos os membros da minha família"
(págs. 1 3-14).
Por sua vez, Suassuna descreve assim o crime principal de A
pedra do reino: "( ...) a morte do velho barbado e profético aconteceu em
circunstâncias cruéis e absolutamente enigmáticas, indecifráveis: foi
ele encontrado morto, assassinado a golpes de faca e trancado, sozi­
nho, dentro do aposento, único mas elevado, de uma edificação qua­
drejada e alta que servia, ao mesmo tempo, de torre para a igreja e de
mirante para a casa-forte da fazenda" (pág. 289). E segue mais adiante:
"(...) naquele lugar inacessível, meu tio, cunhado e padrinho, dom
Pedro Sebastião, foi encontrado, ainda quente e sangrando, poucos
momento depois de ter sido assassinado. Tinha levado várias caceta­
das na cabeça, estava degolado, com a garganta cortada, e terrivelmen-

208
te esfaqueado em todo o corpo, sendo que o ferimento que golfava
mais sangue era naturalmente o da garganta" (pág. 293).
Subjacente a A pedra do reino, há uma estética da crueldade.
Suassuna pinta com cores vermelho-sangue seu livro, de tal forma que
chego a pensar que o sertão não pode ser compreendido fora da mor­
te. Quanto a Meus demônios, Morin coloca o tema da morte ao longo
do livro, ressaltando sua importância para a investigação antropológi­
ca que empreendeu em todos os campos.
E aqui retorno à questão da contradição: vida e morte estão
imbricadas. Por isso, Suassuna afirma: "Nós não precisaremos nun­
ca de inventar uma imagem falsa da vida para poder amá-la. Porque,
na dureza e, sob o Sol, nós aprendemos à força a amá-la, com o que
ela tem de ardente e glorioso, mas também com o que possui de
degradado, sangrento e sujo. O que é cruel e sujo também faz parte
da vida e terá de ser enfrentado com as armas do sangue, do riso e da
luta, com a valente tenacidade do homem diante do que a vida tem
de mais desordenado - o sofrimento, a humilhação e a morte" (pág.
527). Morin, por sua vez, no livro O homem e a morte, discute a temá­
tica fundamental do homem a partir de um metapatamar do conhe­
cimento que rejunta o que se convencionou chamar de histórico,
sociológico, antropológico e biológico, sem subsumir a importância
d as crenças mitológicas e religiosas. Em sua mente a frase inquietan­
te de Heráclito: "Viver da morte, morrer da vida".
Seguindo a trilha das aproximações entre Morin e Suassuna,
sob a égide do paradigma da complexidade, ressalto agora a importân­
cia da noção de aut0-0rganização. A organização pode ser produzida a
partir de uma certa desordem, em certas condições. A vida, então,
pode ser compreendida enquanto auto-ecoorganização. Trata-se de
entender a complexidade da condição humana, a natureza unidual e
inacabada do sapiens-demens e chamar "atenção particular à 'uniduali­
dade do homem', quer dizer, à dupla natureza, biológica e cultural,
cerebral e física, que constitui a sua própria unidade" (Morin, s/d, 35).
A unidade do homem pode ser apreendida de forma contun­
dente em Meus demônios e em A pedra do reino. O hovem vivido/cons­
truído/concebido por Morin e Suassuna é um homem inteiro, total,
que soma vida acadêmica e vida cotidiana, estudo e redação, real e

209
imaginário, razão e emoção. O sertanejo de Suassuna torna-se, delibe­
radamente, cidadão do mundo, representante das incertezas e angústi­
as de todos os homens, e toma de assalto a França de Morin: "( ...) e
agindo em tudo o mais como se um acontecimento vital para mim,
para o sertão, para o Brasil, para o mundo e para Deus, não acabasse
de ter se passado ali" (pág. 107). Suassuna diz mais: "(... ) facção parti­
cular do rebanho humano, isolada aqui, em nossa serra sertaneja, mas
igual a qualquer outra de qualquer pedaço do mundo, pois todos acor­
davam aqui arremessados, neste nosso chapadão pedregoso, sem te­
rem sido consultados se queriam vir ou não" (pág. 1 14). Por fim, a
preocupação do sertanejo é "cantar a dor universal" (pág. 444).
Num esforço sintético, álibi do dispositivo mítico, diria, por
fim, que a missão de Morin e de Suassuna, como todos nós, artesões
do conhecimento complexo, é de ligar/religar, rejuntar tudo o que
está separado, reconstruindo a cultura enquanto policultura. A cultu­
ra, fruto dessa metamorfose, ajuda o espírito a universalizar-se, sem
perder a singularidade e o sentido do local/regional. Se desventuran­
do pelos caminhos do si-mesmo, os homens encontrarão o outro em
si mesmo, tanto quanto se reconhecerão no outro.
Sem a pretensão de instaurar a ortodoxia e a verdade, Meus
demônios e A pedra do reino nos revelam a magia de um amplo conheci­
mento construído sob os auspícios da dúvida e do questionamento,
nos quais literatura e ciência se misturam despudoradamente.

Nota

1 Professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Bibliografia

MORIN, Edgar. Meus demônios. Lisboa, Europa-América, s/d.


SUASSUNA, A. Romance d'A pedra do reino e o Príncipe do sangue do vai-e­
volta. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1971.
_____ . Aula magna. João Pessoa, Ed. da UFPE, 1994.

210
1 Câmara Cascudo, um intelectual complexo
VÂNIA GICC0 1 I

omo num jogo de quebra-cabeça, cujas peças estão quase todas


C acessíveis, mas sem um projeto preestabelecido a priori, o exercí­
cio de reconstrução das idéias de um autor é sempre uma empreita­
d a incerta. Assim, toda reconstrução supõe uma reorganização de
peças e fragmentos cuja bricolagem é fruto de interconexões de
múltiplas leituras. Tal multiplicidade redunda na construção de um
texto que possibilita uma visão em camadas, pois qualquer obra pode
ser desenredada e não decifrada, sendo o espaço sempre rodeado e
não penetrado (Culler, 1 988, p. 77), critérios estes que sinalizam,
aqui, a escolha feita para analisar a produção intelectual de Luís da
Câmara Cascudo. Dentre tantas outras possibilidades, projetei tra­
çar os contornos da obra cascudiana recolhendo no percurso do seu
pensamento as idéias nucleares da sua pulsão criadora.
Tais idéias estão no núcleo dos sistemas de pensamento ou
de crenças, e são elas que permitem gerar um pensamento, um
parad igma (Morin, 1 994, p. 323). Para Morin, o paradigma é como
"um princípio de distinções/ligações/oposições fundamentais en­
tre algumas noções mestras que comand am e controlam o pensa­
mento, isto é, a constituição das teorias e a produção dos discur­
sos" (Morin, 1992, p. 55), noção esta que se aproxima daquela dada
por David Bohm para quem "paradigma é mais do que uma teoria
científica particular, é um modo integral de compreender, traba­
lhar, pensar e comunicar com a mente" (Bohm, 1987, p. 76).
Na reconstrução/reorganização do pensamento e dos sistemas
de idéias, o que se deve comunicar são as estruturas de pensamento e
não apenas a informação, sendo a estrutura de pensamento a compu­
tação da mem6ria que é registrada de modo hologramático, visto que
"s6 podemos conhecer fragmentando o real e isolando um objeto do
todo de que faz parte. Mas podemos articular os nossos saberes frag­
mentários, reconhecer as relações todo/partes, complexificar o nosso
conhecimento e, assim, sem todavia poder reconstituir as totalidades
nem a totalidade, podemos combater a fragmentação,, (Morin, 1 987,
p. 2 1 5).
Assim "como cada ponto parcial e singular de um holograma
contém a informação de toda a imagem,, (Morin, 1 982, p. 1 7), cada
um dos trabalhos singulares da obra cascudiana, escritos numa lingua­
gem reveladora de sua visão de mundo, contém todos os outros. Em­
bora seja UIJ\a produção polêmica e difícil de ser delimitada, a escolha
das idéias nucleares ressaltadas através dos seus paradigmas, em lugar
de buscar uma unidade redutora, possibilita rejuntar a obra numa
visão universal, hologramática, a partir de nuances da escritura: me­
mória, hist6ria e etnografia/folclore. A etnografia/folclore perspassou
toda sua criação e destacou sua produção. Como num mosaico, a obra
cascudiana justapõe diversas temáticas nos seus textos, como se fossem
elementos de formas e cores variadas, cujos limites desenham uma
espécie de rede, um conjunto de n6s ligados por conexões.
Essa articulação de temas e interesses indica, na obra, a presença
de um pensamento ainda não disjunto e fragmentado pelos limites
disciplinares, identificado, de certa forma, com a noção de complexi­
dade do conhecimento sugerida por Morin, segundo a qual é possível
articular as várias dimensões de um problema, buscando uma explica­
ção de caráter multidimensional. No desempenho da sua atividade de
escritor, Luís da Câmara Cascudo foi motivado por dois impulsos
originários . - um acadêmico/formal, outro contaminado fortemente
pela subjetividade e pela criação. Isso me levou a pensar que, enquanto
as obras elaboradas por encomenda - obras sobre história, biografias
- indicam a geração social das suas idéias, a textura das obras feitas
por paixão, como coloca o autor - obras sobre folclore, autobiografias
-, permite acessar o itinerário das idéias e do pensamento juveniliza­
do (Morin, 1975), portanto, em pleno exercício de criação/invenção.
Trabalhando simultaneamente com obras de contornos con-

212
junturais e com obras de natureza mais livre, é possível delinear o
ciclo de pensamento e das idéias que é, potencialmente, o diálogo
entre os referentes mítico-simbólicos e lógico-racionais, posto que "o
espírito humano produz um duplo pensamento, sendo um simbóli­
co/mitológico/mágico e o outro racional/lógico/empírico" (Morin,
1 987, p. 133). O aprofundamento da leitura da obra cascudiana foi
mais adiante. Denunciou uma confortável convivência do pensamen­
to duplo em um mesmo livro. Assim, tanto há uma presença do pen­
samento mítico-simbólico nos livros mais acadêmicos/formais quan­
to um pensamento lógico-racional naqueles elaborados por paixão,
mostrando que um pensamento está sempre de certo modo alimen­
tando e retroalimentando o outro.
O desenredar da obra cascudiana permite a apreensão de uma
teia de entrecruzamentos que vão sendo capazes de fazer assimilar a sua
opinião, conhecer e partilhar o seu pensamento. Discurso apologético
que legou especialmente ao Rio Grande do Norte, neste breve século
XX, uma extensa produção intelectual, não obstante as condições sócio­
culturais da geração do recado, praticando sua interlocução com outros
intelectuais sem sair de Natal, publicando e atuando fora da província,
inclusive noutros países. Trata-se de uma produção elaborada fora da
academia universitária e dos órgãos financiadores de pesquisa, não apri­
sionada ao teórico e ao metodológico em voga, voltada para o estudo
das origens, sobrevivência e desenvolvimento da cultura tradicional do
Brasil.
Câmara Cascudo, apesar do porte da sua obra, continua pouco
discutido na própria Universidade que ajudou a criar e em que atuou
como pesquisador do Instituto de Antropologia e professor de Histó­
ria da Filosofia, Etnografia e Direito Internacional, aposentando-se
em 1966.
Seus livros raramente são adotados nas bibliografias dos cursos
regulares de graduação e pós-graduação, caso semelhante ao que ocor­
re com Jorge Amado na Universidade Federal da Bahia e Gilberto
Freire na Universidade Federal de Pernambuco, o que parece reafir­
mar as coisas que o povo diz: santo de casa não faz milagres. O acervo
das bibliotecas localizadas em Natal possui poucas obras de Luís da
Câmara Cascudo, o que não ocorre noutros estados e países. A rede

213
escolar potiguar, em todos os níveis, pouco incentiva este tipo de leitura,
nem possui um programa de divulgação junto às políticas culturais.
A pesquisa bibliográfica, documental e os depoimentos orais
foram sua grande arma de pesquisa e era admirado nos anos vinte, por
já usar para registro dos dados as fichas de pesquisa e de aula, recurso
didático que se tornou comum posteriormente. Para viabilizar as in­
formações para suas obras, fazia inquéritos diretos e cartas aos amigos,
onde o assunto principal são os livros que estava fazendo, conversa
com os editores, coleta de dados e o seu cotidiano no processo criati­
vo. A estas cartas chamava sua correspondência precatória. Seu processo
de criação exigia, sempre, o silêncio da noite. Passava o dia pesquisan­
do, recebendo visitas, fazendo pesquisa de campo, e, à noite, escrevendo.
Escrevia de uma única vez. Não fazia borrões nem remontava
textos. Criava embalando-se na rede. Qiando se levantava, estava com
o texto pronto e passava-o direto para a máquina de escrever e, em
seguida, para os editores. Não guardava consigo rascunhos nem origi­
nais. Às vezes, quando os destinatários ou mensageiros perdiam seus
escritos, fazia outros textos, se estivesse inspirado. Caso contrário, de­
sistia e denunciava a perda nas correspondências aos amigos. Cosmo­
polita, mas não considerado um cientista social do ponto de vista
institucional. Sempre permaneceu à margem da ciência por registrar a
história cultural, principalmente através do imaginário - lendas, su­
perstições, mitos, "causos" - baseando-se, sobremodo, nos depoimen­
tos orais. Exerceu suas funções de historiador sem a obsessão pelo que
se convencionou chamar de rigor crítico das fontes históricas e do
estilo científico canônico. "Eu descobri a tempo que o perigo de me
filiar a uma corrente ou a um pesquisador é aceitar também os defei­
tos dele. Não há escola melhor do que liberdade" (Cascudo, 1984).
Certamente, há muitas maneiras de ver as coisas. "Se muitos per­
manecem ainda aferrolhados na ordem racional, outros abrem largas
janelas para a ordem do imaginário, sem por isso desprezarem a razão"
(Silveira, 1992, p. 83). Mesmo assim, o imaginário sempre foi descarta­
do como não-científico, apesar de o homem não se definir exclusiva­
mente pela técnica e pela razão, mas também pelo imaginário e pela
afetividade.
Pode-se considerar que a articulação deste pensamento duplo

2 14
percorre toda a obra cascudiana. Seus ensaios exibem uma narrativa
que junta/rejunta textos originados dos itinerários racionais e imagi­
nais dando origem a uma obra híbrida, talvez mestiça, na acepção de
Michel Serres, na qual o universal, embora único, vente em todos os
sentidos. Ao lado de autores clássicos, citados muitas vezes no origi­
nal, desfilam citações bíblicas, histórias recolhidas do povo ou das
lendas, cuja cred ibilidade é indiscutível para o autor.
A escritura cascudiana caracterizada comporta diversas temáti­
cas. Assim, há um Cascudo historiador às voltas com os arquivos e a
pesquisa sistemática de fontes primárias - terra, gente, geografia, cir­
cunstâncias, acontecimentos, governos. São fontes de referência docu­
mental, de estilo narrativo/descritivo. Entre outros livros, a História
do Rio Grande do Norte faz uma abordagem excessivamente linear e
empiricista, resvalando muitas vezes na crônica ou na memorialística
e reservando pouco espaço ao esforço de explicação e compreensão
teóricas. Na História da República no Rio Grande do Norte, sem superar
inteiramente o marco empiricista, Cascudo faz um trabalho de re­
constituição histórica que, além do mais, se destaca pelo seu valor
literário.
Há também um Cascudo das tradições que aborda as lendas,
os mitos, os costumes, destacando-se os personagens dos vaqueiros e
cantadores, seu grande tema inspirador e título do seu primeiro li­
vro sobre folclore publicado em 1939. Outros estudos dão destaque
à novelística, parlendas, cantigas e brincadeiras infantis, folguedos,
bailes, visagens e assombrações, mímicas, danças, bebidas e alimen­
tos, gestos, literatura oral, locuções tradicionais do Brasil e supersti­
ções. Há um Cascudo etnógrafo que se atém aos fatores culturais,
aculturações, adequações, sincretismo religioso, catimbó, magia bran­
ca. Esse seria, para alguns, um Cascudo antropólogo, estudioso do
homem e a sociedade. Há um Cascudo biógrafo que percorre o itine­
rário dos políticos, líderes intelectuais e personagens da História,
sendo as biografias um rico documento sociológico.
Há um Cascudo memorialista que além das biografias escreve
autobiografias, genealogias e registra o cotidiano através de crônicas
publicadas em jornais. Esses artigos são, aliás, a essência dos seus li­
vros. Contêm-se uns nos outros; além do mais, trazem como marca o

215
desempenho do intelectual atuando como escritor, jornalista e profes­
sor convidado, para participar de solenidades.
Para fundamentar essa incursão múltipla no real, possuía uma
biblioteca de mais de quinze mil volumes para navegar entre seus
habitantes e no universo dos romances que lia e no seu Canto de muro,
romance que escreveu e traz os bichos como personagens, mostrando
seu conhecimento da história natural. Julgando seu próprio trabalho,
não classificou um livro como mais importante do que outro. Diz que
cada livro seu é uma informação. Naturalmente, uns são maiores, têm
um ambiente maior e uma pesquisa mais profunda, apesar de confi­
denciar que Civiláaçã,o e cultura, História da alimentaçã,o do Brasil, His­
tória dos nossos gestos e o Dicionário dofoldore brasileiro seriam os livros
que haveriam de perpetuá-lo. Sempre se denominava etnógrafo. "Faço
um trabalho etnográfico, coleto documentação. Folclorista são os per­
sonagens que perpetuam ou vivem os costumes, mantêm as tradições"
(Cascudo, 1984). Não simpatizava com a palavra folclore, pelo seu
sentido limitado aos cantos e estórias populares. Por isso preferia ser
tido como um estudioso da cultura popular. "A cultura popular é o
complexo, representa a totalidade das atividades normais do povo, do
artesanato ao mito, da alimentação ao gesto" (Ivo, 1960). Para suprir
estas fragmentações, estudava o folclore inserido nos demais fenôme­
nos da sociedade, não o reduzindo à valorização do pitoresco e à sua
manifestação local, mas sim retotalizando-o como um fragmento d a
cultura universal.

Nota

1 Professora e pesquisadora do Grecom/UFRN.

B ibliografia

BOHM, David & PEAT, David. Ciência, ordem e criatividade. Lisboa, Gradi­
va, 1987.
CASCUDO, Luís da Câmara. Canto de muro. 3. ed. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1978.

2 16
_____ . Civilização e c11ltura. 2. ed. Belo Horizonte, Itatiaia, 1 983.
_____ . Dicio11án"o dofolclore brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte, Ed. Itati­
aia / São Paulo: Ed. da USP, 19 88.
_____ . História da alimmtação no Brasil. 2.ed. Belo Horizonte, Ed.
Itatiaia / São Paulo, Ed. da USP, 1983. 2 v.
_____ . Históna da Rep1'blica 110 Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro,
Ed. do Vai, 1 965 .
_____ . Histón"a do Rio Grande do Norte. 2. ed. Rio de Janeiro, Achiamé
/ Natal, Fundação José Augusto, 1 9 84.
_____ . Históna dos nossos gestos. 2. ed . Belo Horizonte, Ed. Itatiaia /
São Paulo, Ed. da USP, 1987.
_____ . Série Luís da Câmara Cascudo. Entrevista. Natal/RN, 12 maio;
l!! nov. 1 984. Mimeo.
_____ . Vaq11eiros e cantadores. 3. ed. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia / São
Paulo, Ed. da USP, 1 9 84.
CULLER, Jonathan. As idéias de Barthes. São Paulo, Cultrix, USP, 19 88.
IVO, Ledo. Luís da Cdmara Casado; ele sabe o que sabe o povo ... Manchete,
Rio de Janeiro/RJ, 8 fev. 1960.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Lisboa, Europa-América, 1982.
_____ . Mes dimons. Paris, Stock, 1 994.
_____ . O método: 1 ,3; a natureza da natureza; o conhecimento do
conhecimento. Lisboa, Europa-América 1986/87.
_____ . O paradigma perdido; a natureza humana. 4 ed. Lisboa, Euro­
pa-América, 1 975 .
SERRES, Michel. Filosofia mestiça.; le tiers-instruit. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1993.
SILVEIRA, Nise da. O m11ndo das imagms. São Paulo, Ática, 1992.

217
1 Utopia, democracia e complex idade
MARCOS ROLI M 1 I

democracia, tal como a conhecemos ao final deste século é, sabi­


A damente, um resultado histórico bastante complexo. Conforme
veremos, a democracia é a expressão mais acabada de uma sociedade
histórica e seus pressupostos são, efetivamente, aqueles que podem
configurar qualquer perspectiva transcendente em direção a uma so­
ciedade digna. Nossas relações com o ideal democrático, todavia,
não deixam de revelar um conjunto de ambigüidades que devem
merecer um exame mais detido. Ao que tudo indica, não somos uma
sociedade que tenha pelo ideal democrático uma genuína paixão.
Mesmo no discurso e na prática da esquerda contemporânea, é pos­
sível identificar um certo mal-estar diante da democracia.
Talvez, o primeiro problema a ser abordado para situar este
"mal-estar" diga respeito às indefinições que acompanham o ideal
democrático. Em larga medida, a idéia de um "governo democráti­
co" deve, ao final do século, caracterizar todo e qualquer discurso
político-ideológico e, assim, acontece - pelo menos se tivermos em
conta as posições significativas - tanto à direita quanto à esquerda.
É também verdadeiro que a palavra "democracia" transformou-se
quase que em um título honorífico em todo o mundo. A aceitação
universal do conceito, não obstante, não elimina uma disputa real
que será travada em nome do próprio ideal democrático contra to­
dos os que, por suas ações, o contrariem. Em outras palavras: a acei­
tação universal do ideal democrático permite que se verifique um
deslocamento na disputa política contemporânea, onde ganha extra­
ordinária relevância o exame da correspondência entre o discurso e
as ações. A pretensão de validade subjacente ao discurso democráti­
co, então, só pode ser a da veracidade e, como ocorre em todas as
pretensões de validade que envolvam a veracidade do discurso, tal
intenção exige a demonstração de coerência entre palavras e com­
portamentos.
Não é pouco, entretanto, que tenhamos chegado a este resulta­
do que aponta para a universalização do ideal democrático. Insisto
neste ponto porque considero pertinente destacar o que me parece ser
uma extraordinária mudança histórica operada num curto espaço de
algumas décadas. Para todos nós, que nos interessamos pela política, é
sempre bom lembrar que o fenômeno político mais significativo deste
século foi, sem dúvida, aquele oferecido pela experiência totalitária.
Assim, chegamos ao final de um século no qual a humanidade pôde
conhecer e experimentar a negação mais ampla e dramática do ideal
democrático, o que, de uma forma ou de outra, constituiu nossas
civilizações. O fato é que o mundo parece mover-se a uma velocidade
tal que, mesmo no breve espaço de uma vida, nos apartamos da reali­
dade social que conhecemos e nossa experiência continua sendo o que
Giovanni Sartori chamou de "traumático desenraizamento histórico".
Hobsbawm, em seu último trabalho,A era dos extremos, chama a
atenção para o mesmo fenômeno assinalando que "a destruição do
passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa
experiência pessoal às das gerações passadas - é um dos fenômenos
mais característicos e lúgubres do final do século XX; que todos os
jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo".
Ao falar sobre democracia, então, quero me referir à institui­
ção democrática, entendida como um processo civilizatório que não
pode ser menosprezado e em tomo do qual temos alcançado, em
termos históricos, resultados muito importantes. De qualquer fo r­
ma, parece claro que estes resultados são absolutamente insuficientes
para assegurar à humanidade o que quer que seja, ou mesmo para
constranger os mecanismos de poder responsáveis pela concentração
de riquezas e, ato contínuo, pela disseminação da fome e da miséria
na maior parte do planeta. Mais do que isso, o fortalecimento do
ideal democrático é contemporâneo de um processo no qual a vio­
lência parece emancipar-se das tentativas de justificação político-ide-

220
ol6gica e onde uma situação real de guerra civil, tradicional como na
Bósnia-Herzegovina (Ensensberger, H. M., 1995), como em qualquer
grande cidade do Ocidente, vai se incorporando ao cotidiano de
populações inteiras. Chegamos ao final do século, então, com mais
esta contradição básica: o ideal democrático - cada vez mais aceito
- pressupõe o regramento dos conflitos e das disputas de interesse;
entretanto, o que estamos assistindo é um processo histórico que
combina, em doses cada vez mais imponderáveis, civilização e bar­
bárie; um processo de disseminação dos conflitos até a situação-limi­
te do extermínio de etnias rivais e da proposição autônoma e gratui­
ta da violência que, desta forma, nos é ofertada em seu estado "puro".
Acredito que, para decompor esta e outras contradições e para
que seja possível voltar ao exame daquele mal-estar, já referido, seja ne­
cessário descrever algumas características da sociabilidade contemporâ­
nea para, então, reinquirir o ideal democrático e, se possível, atualizá-lo.

Um mundo sem evasão possível?

A primeira característica que me parece decisiva para esboçar


um contorno dos dilemas desta época diz respeito à situação a que
fo ram confinad as as perspectivas utópicas. Sem qualquer exame de
mérito, entendo que é forçoso reconhecer que chegamos a um tem­
po onde nenhuma perspectiva utópica apresenta-se com credibilida­
de aos olhos da imensa maioria das pessoas. A sociabilidade contem­
porânea é cad a vez mais avessa ao imaginário ut6pico tradicional.
Isto não significa que devamos reconhecer qualquer sentença con­
fo rmista lançada sobre os humanos.
Em certo sentido, podemos nos colocar, de acordo com Bloch,
para quem " ser h ornem e ter uma utopia . " . se somos seres d a "í:
ra1ta", e,
,

portanto, seres desejantes, parece que somos mesmo constituídos pelas


projeções que aportamos no presente em direção ao futuro desejável.
Em cada um dos nossos gestos, buscamos a superação do posto, a
transcendência, e nada está a indicar que a humanidade tenha abdica­
do de sonhar ou que esteja em via de fazê-lo. Ocorre apenas que nossas
projeções utópicas já não podem se apresentar como o equivalente do
"sentido" da história; que todas nossas opiniões devem arcar com o

22 1
imenso desconforto de serem precisamente opiniões atravessadas pela
incerteza, pela dúvida; que não há nada de científico nas teorias polí­
ticas, e que as próprias teorias científicas extraem seu estatuto de cien­
tíficidade não no fato de serem "verdadeiras'', mas, como sustentou
Popper, do fato de permitirem que seu erro seja demonstrado.
Falar da falta de credibilid ade do imaginário utópico tradici­
onal significa constatar que a sociabilidade real já não é permeável à
projeção de qualquer perspectiva utópica que ofereça a "redenção".
Como diria Morin, chegamos, finalmente, à época em que já não há
"salvação" e onde se compreende que a idéia de "salvação" leva-nos à
perdição; que não existe "luta final" nem promessa de uma socieda­
de futura que possa redimir todos os males ou fazer esquecer a dor
dos que aqui estão. Pode-se, então, repetir com o filósofo francês que
este é o momento em que abdicamos da idéia do "melhor dos mun­
dos", mas não da idéia de "um mundo melhor".
Seja como for, estamos diante de uma modificação fundamen­
tal, sobre a qual deveríamos refletir todos e, especialmente, a esquerda
contemporânea, ainda hoje tributária da mais generosa tradição utó­
pica, a tradição comunista. Não há como desconhecer que o destino
construído em torno dos ideais comunistas contribuiu em muito para
que as perspectivas utópicas tradicionais fossem varridas da História.
Encontramo-nos, então, diante de um abismo e uma parte da esquer­
da ainda reluta em encará-lo, talvez com o justificado receio de que, ao
fazê-lo, seja o abismo que a encare. Os termos desta época "pós-utópi­
ca" comportam, evidentemente, imensos riscos.
Entre todos, talvez o mais preocupante seja o risco da apatia,
da adaptação, ou, se preferirem, do conformismo. De outra parte,
somos, agora, mais livres para pensar o futuro como resultado de
nossas ações, e, portanto, somos mais importantes para a luta contra
as injustiças que desgraçam este final de século. Nesta possibilid ade
reside uma das evasões possíveis de nossa época; uma evasão capaz
de preencher nossas vidas de sentido.

A privatização da sociabilidade

Opera-se na sociabilidade contemporânea uma outra modi-

222
ficação histórica, para a qual eu gostaria de chamar a atenção: há
em curso um fenômeno que, ao que tudo indica, deve se rad icali­
zar ainda mais, responsável pela imersão da grande maioria das
pessoas na esfera privada da existência.
A esfera pública, entendida como esta construção artificial -
porque fruto do artificio humano -, na qual cada um de nós pode ser
visto e ouvido, e dentro da qual podemos ser influenciados pela opi­
nião de outrem e influenciar outras pessoas com nossas próprias opi­
niões, parece se reduzir em escala crescente em todo o mundo.
Rigorosamente, a maioria das pessoas mantém com a esfera pú­
blica uma relação esporádica, excepcional. Esta mesma esfera passa a ser
"colonizada" por profissionais da política, "funcionários do interesse
público". Mais grave do que esta tendência, pode-se constatar, mesmo
empiricamente, que o envolvimento da cidadania com a esfera pública
dá-se, normalmente, a partir da contraposição de interesses particulares.
Isto ocorre de tal forma que penso ser possível afirmar que o debate das
questões que, por definição, dizem respeito a todos e que, portanto,
deve ser travado a partir da pretensão de alcançar o interesse público,
constitui a preocupação de uma esmagadora minoria de cidadãos.
Trata-se de uma importante característica política e cultural
que contrasta, enormemente, com a tradição de outras épocas e,
particularmente, com as experiências fundadoras da antigüidade
clássica. Mais precisamente, se tomarmos a experiência ateniense
dos séculos V e IV a.C. - que, para nós, expressa o começo -,
veremos o quanto tal fenômeno da "privatização da sociabilidade"
corresponde a uma inovação histórica.
Como se sabe, para os gregos antigos, apenas uma vida dedica­
da à Pólis poderia ser condizente com os objetivos de uma vida digna.
Levar uma vida privada significava, literalmente, privar-se do essencial
à dignidade. Não por outra razão, cabia aos escravos e às mulheres a
imersão na vida privada, concebida como esfera da necessidade e, aos
homens livres, o acesso à esfera pública, espaço, por definição, da
liberdade. Hannah Arendt demonstra a radicalidade daqueles pressu­
postos, a partir da própria pretensão à imortalidade que caracteriza o
mundo grego. A ninguém seria legítimo supor que uma vida pudesse
obter qualquer sentido em si mesma; pelo contrário, para os antigos a

223
vida só poderia ter sentido se alcançasse, em suas obras ou feitos, a
lembrança e a admiração das gerações vindouras. Tão amplamente
aceita era esta concepção, que mesmo os escravos - impedidos de
participar da Pólis - encontraram uma forma de lutar por sua memó­
ria empenhando-se em lutas concretas pelo direito a um epitáfio (!). É
também Hannah Arendt quem salienta que nada pode expressar com
tanta amplitude o contraste histórico com o mundo contemporâneo
do que os sentidos comumente associados, numa e em outra época,
com a palavra felicidade. Por certo, independentemente das variações
possíveis, os modernos dificilmente deixariam de descrever o sentido
desta expressão para si próprios sem elencar objetivos e projetos situa­
dos na esfera privada da existência: já para os antigos, a idéia de felici­
dade seria inconcebível se apartada da idéia de "felicidade pública".
Em outras palavras: para nós, tornou-se bastante natural que pas­
sássemos a conceber a idéia de felicidade sem que ela seja sequer infor­
mada pelo bem público. Assumimos, então, esta estranha idéia que nos
permite vislumbrar nossa própria felicidade imersos na infelicidade geral.
A privatização da sociabilidade, reforçada nesta última década
pela extraordinária revolução tecnológica e, particularmente, pelos avan­
ços da comunicação instantânea, traz como corolário natural uma
fragmentação jamais observada entre os humanos. A perspectiva de
ações conjuntas, então, torna-se muito mais complexa, e as possibili­
dades de dominação social bastante aterradoras. Ao mesmo tempo e
paradoxalmente, as mesmas mudanças tecnológicas que repercutem
profundamente na sociabilidade contemporânea introduzem possi­
bilidades inéditas de conteúdo emancipatório e aproximam conquista
de condições especiais para a radicalização da perspectiva democrática.

A condição democrática

A partir das duas características referidas que nos permitem


visualizar um período histórico, marcado, primeiro, pela ausência de
uma perspectiva utópica no sentido forte da expressão e, segundo,
pela construção de uma sociabilidade fragmentada e subsumida quase
que inteiramente na esfera privada da existência, parece possível com­
preender o fenômeno social do estranhamento diante da política como

224
um traço mais marcante e profundo do que, normalmente, estaríamos
dispostos a reconhecer. Quando ouvimos as pessoas do povo afirmar
que "não gostam de política", ou quando observamos a cristalização
de um conjunto de noções antipolíticas no senso comum, acredito
que estamos d iante da expressão de tendências que estão a indicar
fenômenos bem mais amplos do que a simples desinformação.
O que se precisa afirmar é que as sociedades capitalistas moder­
nas criaram mecanismos de reprodução sistêmica, desde os valores
que legitimam uma sociedade marcadamente competitiva até a funci­
onalidade das regras de mercado, que é a pr6pria instituição democrá­
tica que se encontra ameaçada. Para que se configure como tal deve ser
o resultado de um processo de afirmação da autonomia, vale dizer: da
afirmação da vontade auto-reguladora dos cidadãos que fazem suas
próprias leis e sabem que todas elas são questionáveis. Pelo contrário,
o que podemos presenciar é a afirmação de sociedades marcadamente
burocratizadas com instituições políticas rigorosamente fora de con­
trole social, o que, por seu turno, é fonte propositiva da violência.
Nestes limites, a democracia se esteriliza e, já em larga medida,
transmuda-se em um processo ritual onde as escolhas efetivas são cada
vez mais restritas e as demais absolutamente aparentes.
Para que seja possível afirmar a condição democrática é preciso,
primeiramente, perceber que a democracia é, essencialmente, um con­
junto de procedimentos - os mais variados, bem entendido - volta­
dos a garantir, idealmente, a expressão da vontade geral. Tais procedi­
mentos não se resumem, nem podem ser confundidos, com a aferição
das posições majoritárias em torno de cada questão em disputa. Antes
d isto, a condição democrática exige que o processo de formação de
opinião obedeça a um conjunto de critérios mínimos que permitam,
de fato, o conhecimento das posições; vale dizer, que insinuem, verda­
deiramente, a possibilidade de um processo argumentativo.
Satisfeitas estas exigências mínimas, a condição democrática deve
zelar pelos direitos das eventuais minorias, sob pena de sermos obriga­
dos a chamar de "democrática" - para lembrar o célebre exemplo de
Kant - uma "República dos Demônios".
Para que possamos afirmar em sociedade a transcendência; ou,
se preferirem, se quisermos renovar o ideal utópico neste final de

225
século, acredito que faremos o bastante se pensássemos o futuro a
partir de regramentos morais que nos pareçam desejáveis e que tomás­
semos estes mesmos regramentos a serem universalizados, como nos­
sos próprios valores, reguladores da práxis que nos desafia no presen­
te. Esta me parece ser inclusive a maneira de romper com determinada
tradição presente na militância comunista, que tomava sua utopia
como a flecha de ouro que Cupido lançou e que atravessou o coração
de Apolo, apaixonando-o e, também, como a flecha com ponta de
chumbo que atingiu Dafne para fazê-la recusar qualquer amor. Não
há por que reproduzirmos aqueles seres que olhavam para o futuro
com os olhos de Apolo, mas que só podiam encarar o presente como
Dafne, recusando-o.
O futuro que desej amos o faremos agora, por nossa ação con­
creta, ou não o faremos. Na tentativa de ordenar nossa ação e refe­
renciar a elaboração daqueles regramentos morais, penso que deve­
mos tomar como ponto de partida a plataforma atual dos direitos
humanos, como expressão de que há de mais concreto e subversivo
em termos de uma utopia potente.
Com relação à política contemporânea e tendo presente a ne­
cessidade já referida de subordiná-la a uma concepção ética, acredito
que devamos concebê-la, fundamentalmente, como a esfera específi­
ca onde se disputam opiniões: disputa esta que deve, finalmente,
subordinar os interesses em jogo.
Compete à política introduzir, entre as múltiplas peculiarida­
des, uma perspectiva de universalização que ultrapasse os antagonis­
mos e supere a dispersão característica da sociabilidade contemporâ­
nea. Compete à política afirmar a sociedade naquilo que ela deve ser
para além de suas fraturas. Ainda que tenhamos plena consciência de que
a política tem se prestado à articulação assimétrica de interesses sociais,
devemos pensá-la de outra forma sob pena de capitularmos a própria
lógica burocrática que a envolve. Para dar conta das limitações da política
e, ao mesmo tempo, de seu caráter fascinante, seria prudente assinalar que
toda� as nossas opções, de poder ou resistência, comportam riscos e que
dependerão, sempre, de um processo de justificação moral necessaria­
mente controverso. Há, assim, em política, um "elemento decisionista
ineliminável" (Torres, J. C. B. Identidade e representação).

226
Aliás, é precisamente esta condição que permite à política afir­
mar a liberdade dos humanos. Por conta desta razão, a democracia é
sempre preferível, ainda que com nosso desafeto frente à qualquer
ditadura. A rigor, não há mesmo como imaginar uma ditadura de
nosso predileto, visto que tal hipótese - ao contrário da primeira -
haveria de combinar nossa própria predileção com a ditadura. Cada
tipo de governo, diria Montesquieu, tem o seu princípio.
Assim, se uma monarquia funciona tomando como básica a
noção de honra, se uma República sustenta-se na noção de virtude e o
despotismo exige o temor, poderíamos acrescentar, com Hannah Aren­
d t, que o totalitarismo exige a noção de "verdade". A democracia é,
entre todos os regimes, aquele que, de uma forma mais acabada, afas­
ta-se da verdade. Suas razões serão, sempre, aquelas a que se chegou
por conta de um debate; seus motivos os que parecerem mais justos.
Esta, pelo menos, é sua aposta que funciona como uma idéia regulado­
ra. Diante da grandiosidade desta aposta, devemos renovar nossas con­
vicções democráticas, afirmando, antes de tudo, a tolerância que, tal­
vez, seja apenas a sabedoria que supera o temível amor à verdade.

Nota

1 Advogado e deputado estadual no Rio Grande do Sul.

227
1 A� da pdtica e a pcitica da �1
SERGIO GONZÁLEZ MOENA2 l

ma das características centrais deste final de século e começo de


U outro é aquela que poderíamos chamar de "o final dos grandes
projetos". Nas últimas décadas deste século, temos assistido, seja no
campo da ciência, da filosofia ou da política, ao desmoronamento
progressivo ou brutal dos projetos que buscam dar conta da realidade
em que vivem os homens. Este fenômeno é particularmente ilustrati­
vo no terreno da política, onde as grandes ideologias, por exemplo,
que dominaram a maior pane deste século, "brilham" hoje por sua
ausência.
O caso mais patético, talvez, é o do marxismo-leninismo, que
esteve presente em quase metade do planeta, constituindo desta ma­
neira uma alternativa ao capitalismo que dominava a outra metade.
Neste sentido, a derrocada da União Soviética e do bloco dos países
socialistas significou o começo do fim para uma das ideologias mais
grandiosas e generosas que imaginou o gênio humano. Vítima dos
seus próprios erros e ignorâncias fundamentais, a leitura marxista­
leninista da história da realidade se debate hoje ferida de morte, en­
quanto, de forma geral, a esquerda está em retirada, ao menos que
demonstre ser capaz de questionar-se profunda e radicalmente. Em
todo o caso, o futuro é bastante incerto para esta teoria. Mas não é o
único caso. A ideologia liberal-capitalista, em suas diversas versões,
aparentemente triunfou. Hoje domina quase toda a totalidade do pla­
neta. Na prática, todos os regimes se utilizam dela ou aparentam fazê­
lo. Poucas vezes se tem visto um triunfo mais completo de uma visão
de mundo sobre outra. Sem dúvida, ali mesmo, onde tem triunfado o
capitalismo, se encontram os germes que pouco a pouco o estão mi­
nando. Um dos graves problemas que afrontam a ideologia liberal
capitalista (e sobre o que se tem assistido pouco) é que, sendo uma
visão de mundo em "preto-e-branco", está caindo sem inimigo, sem
adversário ao qual combater e a partir do qual identificar-se. Grave
dilema para uma idéia de guerra e competência.
Por outro lado, desde sempre sabemos que o capitalismo não
apresenta soluções para o problema da fome, da miséria e da po­
breza que avançam sobre a humanidade. Sabemos que não será o
mercado quem resolverá estes graves problemas que afetam um ter­
ço dos habitantes da Terra.
A ausência dos enfrentamemtos entre socialismo e capitalis­
mo que caracterizaram nosso século tem como correspondente a
evidência das carências d a idéia de democracia como forma de go­
verno. Os ideais de "liberdade", "governo do povo" e "igu aldade"
com que a democracia emergiu ao mundo na antiga Atenas se reve­
lam cada vez mais altos e inalcançáveis. A liberdade dos homens
aparece estocada não somente pelos eternos demônios (totalitaris­
mos políticos, nacionalistas e religiosos) como também por outros
novos e melhores (as potencialidades escravizante s d as manipula­
ções genéticas fariam ruborizar Aldous Huxley); a igualdade, uma
das grandes primaveras do desenvolvimento histórico, como deno­
mina Norberto Bobbio, é cada vez mais problemática em um mun­
do onde a brecha entre os que têm e os que não têm se alarga cem
cessar; o governo do povo resulta uma ironia feroz em um mundo
cada vez mais dominado pelos tecnocratas e especialistas de todos
os tipos. O desenvolvimento da máquina tecnoburocrática é um
dos maiores perigos que enfrenta a democracia, como reitera Ed­
gar Morin.
Tudo o que anteriormente falamos tem como propósito in­
troduzir-nos ao tema da política, a qual aparece mais que nunca
questionada e denegrid a. A socied ade civil se vê mais e mais "alija­
d a" d a d imensão política. O fenômeno é particularmente relevante
na América Latina, onde os níveis de abstenção são claramente o
sintoma principal do descrédito que tem sofrido a "política" e os
profissionais desta. Penso, a este respeito, que, frente à crise que

230
enfrenta esta dimensão da atividade humana, é necessário uma re­
flexão séria e profunda sobre a origem e o sentido da política e,
desta vez, em bases mais novas e complexas.

O desafio do político

Ninguém pode fazer abstração à dimensão política, afirma Ed­


gar Morin. Com efeito, se queremos compreender nosso mundo e
nossa época, se queremos incidir e, talvez, decidir sobre nosso destino,
é impossível escapar à política. Esta afirmação se baseia no fato de que
a política tem a ver com o que há de mais complexo em nosso mundo:
os assuntos humanos. Ao relacionar-se com a complexidade social, a
política é, por sua vez, complexificada, muito complexificada. Desta
perspectiva, nos diz Morin, as fronteiras entre o político e o não­
político não aparecem claramente definidas. Com efeito, tudo aquilo
que não é político contém dimensões que são políticas: a saúde, a
moradia, a juventude etc. Mas, em contrapartida, tudo o que é políti­
co tem dimensões que não são políticas: nossas vidas, nossas mortes,
nossas alegrias, que escapam de todas as maneiras ao controle da pura
política.
Neste ponto encontramos claramente a convergência entre nos­
sas existências (coletivas ou individuais) e esta dimensão política da
qual estamos falando. A esse respeito, Edgar Morin tem uma frase
extremamente afortunada quando propõe que a política, da qual
tudo depende, dependa também de tudo o que depende dela. A po­
lítica, por exemplo, depende da sociedade, mas também é certo que
a sociedade depende da política. É nesta esfera onde se decide, em
boa parte, sobre o curso da História que se seguirão os assuntos
sociais. O destino do mundo - nos diz o autor - depende do desti­
no político, o qual depende do destino do mundo.
Desta maneira, podemos começar a entrever a complexidade
do tema que nos ocupa neste ensaio. Com efeito, a acepção clássica
da política nos dizia que ela significava tudo aquilo que tinha a ver
com a cidade. Mais ad iante, e já na época moderna, passou a ser a
"ciência do estado", e se empregava correntemente para designar a
atividade ou o conjunto de atividades que se relacionam com a Pó-

23 1
lis. Em outras palavras, e para empregar o termo de Norbert Lech­
ner, era política a forma "natural" que adotava o conflito social
acerca do desenvolvimento da sociedade e tinha seu âmbito bem
definido: o estado, o parlamento, os partidos. No que diz respeito à
América Latina, três fatores, muito diferentes entre si, convergem
para questionar profundamente a idéia que tínhamos desta dimen­
são humana.
a) Em primeiro lugar, o que Norbert Lechner assinala como o
processo de despolitização que impulsionou os regimes militares no
Cone Sul do continente e a ofensiva neoconservadora contra a políti­
ca como criação deliberada do futuro da humanidade. Há de se real­
çar que este processo de despolitização logrou impregnar ideologica­
mente o resto do continente, como o prova a visão que se tem do
Chile na atualidade, a mesma idéia que fazem de Fujimori.
b) Este mesmo autor assinala que, simultaneamente, se levou a
cabo um processo de politização da vida cotidiana, que desestrutura
por todos os lados a institucionalidade política e seus atores tradicionais.
c) O terceiro fator é o que mencionamos mais acima e diz res­
peito a esta tomada de consciência da convergência entre política e
existencia, seja esta pessoal ou coletiva.
Tudo isto configura uma nova realidade para a política, em
especial em nosso continente. Esta realidade emergente poderíamos
caracterizar da seguinte maneira: "A luta aberta sobre os limites do
político e do não-político". Para Lechner esta luta tem uma importân­
cia fundamental, porquanto dela depende o que será a sociedade futu­
ra e o que significará mais adiante "fazer política". A política, então,
tem se complexificado pela penetração em sua esfera de dimensões
que, até agora, estavam ausentes dela. Esta complexificação nos con­
duz a um problema de magnitude infinita e que vivemos dia após dia:
o que para uns são temas políticos, para outros são questões éticas; e o
que estes percebem como assuntos sociais aqueles os vivem como pro­
blema pessoal.
Na atualidade, vive-se num ambiente no qual há que se abando­
nar a idéia tradicional que se tem da política como inclinada e redutora.
Abandonar a antiga oposição entre o ético e o político, o individual e o
coletivo, o subjetivo e o objetivo, o útil e o inútil, o bem e o mal, o

232
público e o privado. Hoje nenhum destes limites aparece tão claro nem
tão definitivo para fundar sobre eles a nossa vida cotidiana. Pelo contrá­
rio, trata-se de integrar cada uma dessas dimensões em uma nova idéia
de política que as distinga, mas que, ao mesmo tempo, as articule a fim
de dotá-las outra vez de sentido e pertinência. Necessitamos formular
idéias para um pensamento que considere o curto, o médio e o largo
prazos.
A meu juízo, a seguinte anedota, já relatada em uma de minhas
publicações, reflete o atual estado de coisas em que se debate a políti­
ca. O conto é o seguinte: uma trabalhadora social do ex-Vicariato da
Solidariedade (órgão da Igreja Católica que teve uma participação fun­
damental na luta pela defesa e promoção dos direitos humanos duran­
te o regime militar) repreendia uma mulher habitante de algum dos
bairros de Santiago pela estupidez que havia cometido ao endividar-se
na compra de um aparelho de televisão em cores, já que vivia em uma
situação de extrema necessidade. A resposta da pobladora foi a seguin­
te: "Sabe, senhorita, esta são as únicas cores que vejo em minha vida".
Creio que esta anedota reflete o passo que devemos dar se qui­
sermos assumir a complexidade da política, se queremos passar da
pura política à antropolítica ou política do homem, como chama Edgar
Morin. Nela estão refletidos os problemas da política, da ética, da
autonomia, da democracia. O desafio já não implica saber "como vive
a gente" e sim entender "como vive a gente o que vive", como disse
acertadamente Francisco Jiménez.

O mal-estar de viver

Penso que uma boa caracterização de nossa época é aquela que


nos diz que vivemos um momento politicamente regressivo (a redu­
ção da política à economia), assim como também um momento men­
talmente regressivo (predomínio das idéias fragmentadas). Um exem­
plo disso nos proporcionam Edgar Morin e Sarni Na'ir, quando di­
zem que, no momento em que se fala de mundialização, os discursos
sobre este fenômeno ignoram um fato fundamental: o mundo mes­
mo. Com efeito, para eles a mundialização não é mais que a emer­
gência de um objeto novo, o mundo, e que, neste sentido, a mundi-

233
alização corresponde ao surgimento de problemas comuns e especí­
ficos para toda a humanidade. Este constitui um bom exemplo d a
fragmentação das idéias predominantes neste momento e essa é uma
das características centrais de nossa civilização.
Com efeito, esta revela "problemas de civilização" justamente onde
se esperavam realizações ou projetos para os homens. Da mesma forma
nosso modo de vida converte problemas julgados periféricos em proble­
mas centrais, problemas considerados privados ou existenciais em políticos.
Eis alguns deles:
a) O individualismo: não se trata de subestimar de nenhuma
maneira suas virtudes, mas há que se dizer que este tem como a outra
face da medalha a degradação das antigas solidariedades e a atomiza­
ção das pessoas. É o que já escrevíamos, em outro lugar, no sentido de
que aquilo que chamamos "desenvolvimento" arrasa e destrói as soci­
edades que não estão baseadas na lógica do homo economicus, e que
consiste na imposição de um tipo de racionalidade que não reconhece
outra validade que não a sua própria: o cálculo meio-fim. O capitalis­
mo desconfia do gratuito e o reprime. Desta maneira, entendemos
que estas sociedades que baseiam sua existência sobre outras lógicas
entram em profundas crises: desestruturações dos sistemas culturais,
sociais, familiares, desemprego, empobrecimento etc. Aqui parece que
o Estado assume, cada vez mais, as funções de solidariedade, mas,
quando o faz, o faz ao estilo do "monstro filantrópico" de Octavio
Paz, isto é, de maneira impessoal e fria, anônima e tardia.
Em face desta situação, existe uma tendência a se refugiar na
família, na concha familiar, mas, como assinalam numerosos estudos,
ali também há crises (a fragilidade do matrimônio e a errância dos
amores, particularmente). Assim, se acrescentam e se agravam as soli­
dões em todas as classes da sociedade, sendo pior onde há pobreza.
b) O problema da tecnificação: é a invasão cada vez mais ampla
de setores da vida cotidiana, que Morin denomina "a lógica da máqui­
na artificial". Esta introduz na sociedade a organização mecânica, es­
pecializada, cronometrada, substitui a comunicação pessoa a pessoa
pela relação anônima. A vida social - e é uma tendência que continua
crescendo - tende a se tornar uma gigantesca máquina social.
c) A monetarização ou a necessidade de sistemas crescentes de di-

234
nheiro para sobreviver, ao mesmo tempo que lhe rouba uma parte do
presente, do serviço gratuito, diminui a amizade e a fraternidade. É o que
se tem passado com a maioria das etnias indígenas quando as induzimos,
de um jeito ou de outro, a se modernizar. No que lhes concerne, nossa
modernização só tem servido para destruir as bases sobre as quais estavam
assentadas e que se articulavam em tomo de lógicas não-mercantis.
d) O problema do desenvolvimento no planeta não é mais do
que a corrida pelo crescimento, como a denomina Morin, pagando-se
o preço das degradações na qualidade de vida. Ademais, como j á se
tem dito, do sacrifício de todo aquele que não obedece à lógica do
homo economicus. O que, até o momento, temos considerado como
desenvolvimento era o que nos haviam dito que era o desenvolvimen­
to. Tratava-se da visão unilateral e atrativa proposta pelos países mais
avançados e tendentes a perpetuar o status quo imperante. No fundo,
dentro desta visão de desenvolvimento, os indivíduos e os grupos são
excluídos "de seus sistemas de representação do mundo e são obriga­
dos a adotar um sistema que os desvaloriza, que tomam frouxos os
laços que os uniam a outros homens, às coisas, aos animais, à natureza".
Assim mesmo, o desenvolvimento surgiu e favoreceu a forma­
ção de enormes maquinarias tecnoburocráticas, como chama Morin,
que, por um lado, dominam e esmagam todos os problemas singula­
res e concretos; e, por outro lado, produzem irresponsabilidade. To­
memos um problema mais específico, como o da delinqüência juve­
nil, que, paulatinamente, tem se convertido em uma dor de cabeça
para as grandes cidades. Com efeito, diariamente, podemos conhe­
cer, através da imprensa e dos conflitos, violações de toda a ordem
cometidas por gangues de jovens, fatos que contribuem de maneira
significativa para acrescentar a sensação de insegurança que isso pro­
voca nas grandes cidades latino-americanas.
As tragédias, diz Edgar Morin, em que vive a adolescência dos
bairros marginais ou periféricos não constituem um mal local ou pe­
riférico, mas a expressão local e periférica de um mal geral, mais difu­
so. Segundo o autor, o desenvolvimento urbano não somente tem
acrescentado às possibilidades individuais as liberdades e os entreteni­
mentos (culturais, desportivos etc.). Também, e correlativamente, tem
desencadeado processos de ruptura e perda das antigas solidariedades

235
e permitido a emergência de novas formas de escravidão produzidas
pelas obrigações organizacionais da vida cotidiana.
A cidade, unidade orgânica para os cidadãos, tornou-se a gran­
de urbe, meio de vida para os urbanos, mas converte-se, por meio de
um processo diabólico na aglomeração, no conjunto disforme para a
população que provoca o anonimato, a atomização, a sensação de so­
. lidão, indiferença e desamparo tão conhecida por quem vive nela.
Neste sentido, o que poderíamos chamar de "mal dos tugúrios"3
e da cidade são traduções topográficas simplificadoras dos problemas
de uma cultura que se converteu, exclusivamente, em urbana e suburbana.
Mas este problema não afeta somente os setores economica­
mente marginais das cidades; pelo contrário, podemos constatar hoje
em dia, como também nos setores socialmente altos, que começaram a
se proliferar os grupos de jovens dedicados a uma violência, tanto ou
mais gratuita, e que, aparentemente, a única razão que a fundamenta
é a violência pela violência ou a delinqüência pela delinqüência.
A conclusão que se impõe é de que ambos os casos são a expres­
são de um mal-estar do viver. O PIB, a taxa de crescimento, é incapaz
de dar conta dos processos de degradação de nossa civilização. Então,
o problema político ao qual estamos enfrentando já não pode ser mais
o problema de um desenvolvimento sustentável, mas, como vem ex­
pondo insistentemente Edgar Morin, o de uma civilização sustentável.
O anonimato, a atomização, a mercantilização, a perda de valo­
res e a degradação moral e material (corrupção), a violência, o mal­
estar progridem de maneira interdependente. A perda de responsabili­
dade (no seio da grande máquina tecnoburocrática compartimentada
e especializada) e a perda da solidariedade (pela atomização dos indi­
víduos e a obsessão pelo dinheiro) conduzem à degradação moral e,
portanto, "não há sentido moral sem sentido de responsabilidade e de
solidariedade".

Conclusão: a política da crise

Nosso século é um século de crises. Duas guerras mundiais que


provocaram milhões de mortes, o enfrentamento Oriente-Ocidente,
que pôs o mundo, em várias ocasiões, no abismo da destruição, �

236
enfrentamento Norte-Sul que pode ter conseqüências incalculáveis, a
fome que avança pelo planeta, o esgotamento das fontes energéticas,
da água, da perda das certezas e seguranças, que nos faziam avançar
rumo ao futuro, confirmam que a crise tem sido uma constante de
nossa época. Assim mesmo, a política tem sido pródiga em crises,
tanto no plano local quanto no plano global, tanto no plano particu­
lar quanto no universal.
O uso e o abuso do conceito "crise" tem feito com que este perca
uma boa parte de sua significaçào. É comum em nossos dias falar de crise
de casais, do progresso, dos valores, da civilização, adolescência, econo­
mia.
Em face desta situação, o melhor então é re-significar o termo
em questão.
Para Noberto Bobbio e Gianfranco Pasquino, a crise designa um
momento de ruptura no funcionamento de um sistema, uma mudança
- acrescentam - negativa ou positiva, uma volta surpreendente, às vezes
violenta e não esperada, ao modelo normal segundo o qual se desenvol­
vem as interações no interior do sistema em análise. Para estes autores,
posto que cada crise é um momento de ruptura imprevista no funciona­
mento normal de um sistema, necessitamos de respostas rápidas que
façam com que o sistema volte ao seu modelo precedente de funciona­
mento ou institucionalize um novo modelo. Tudo isto é certo, mas
insuficiente. Com efeito, Bobbio e Pasquino partem da idéia de que a
crise é um fenômeno temporal ou passageiro em um sistema, por exem­
plo, social. O que está implícito em suas afirmações é que os sistemas
tendem a voltar à normalidade, o que pode ser certo para os casos em
que se trate de "sistemas triviais", e aqui se encontra justamente a impor­
tância de trabalhar a partir da noção de sistemas complexos e de crise.
Com efeito, toda a estrutura teórica sugerida por nossos autores
vem abaixo desde o momento em que aceitamos a idéia capital de que
as sociedades humanas são, em essência e natureza, "sociedades crísi­
cas", que se alimentam da crise e necessitam. Neste momento, a política
tem de integrar, como uma de suas unidades ativas, a crise e o manejo
desta. Detalhemos mais esse tema. Para Morin, a crise se manifesta não
somente como uma fratura em um continuum, como fratura em um
sistema aparentemente estável. A crise se manifesta também como um

237
aumento das casualidades e, em conseqüência, das incertezas. Graças à
crise, os desvios se transformam em tendências, as complementaridades
em antagonismos, aceleram-se os processos desestruturadores e desinte­
gradores. A crise permite uma avalancha de processos descontrolados
com tendências a auto-amplificar-se ou a se chocar violentamente com
outros processos antagônicos também descontrolados. Em muitas ocasi­
ões, vivemos literalmente abaixo de um vulcão sem nos darmos conta,
bastando o efeito das causas exógenas para que se despertem causas
endógenas latenes, ignoradas até o momento, para que se desencadeie a
cnse.
Tudo isso leva a pensar que estamos em um devir no qual a
crise aparece, não apenas como um acidente de nossas sociedades,
mas como sua própria maneira de ser.
É o que acontece, segundo nosso autor, quando nos aproxima­
mos do tema do desenvolvimento. Com efeito, para se entender o que
tem acontecido em nossos países, devem-se associar as idéias de "crise"
e "desenvolvimento". A crise tem se convertido em um modo de ser
de nossas sociedades, e o desenvolvimento contém um caráter de crise
que não se pode negar. O desenvolvimento, em seu movimento trans­
formador e acelerado, acarreta destruições e desorganizações de tipos
econômicos, sociais, culturais, mentais. A esse respeito, basta recordar
o cenário que apresentava a América Latina há três ou quatro décadas
atrás, quando nossas sociedades eram, em sua maioria, sociedades ru­
rais. A razão é muito simples: o desenvolvimento não se efetua sobre
uma base civilizacional ou cultural estável. Neste sentido, é insepará­
vel da destruição e transformação desta mesma base. Agora, esse pro­
cesso de desorganização e reorganização é de caráter crísico.
Em conjunto com Morin, podemos dizer que, no que concerne
às nossas sociedades, a crise da civilização, a crise cultural, a crise dos
valores, da família, do Estado, a crise da vida urbana, da vida rural são
vários os aspectos do ser, do devir crísico, de nossas sociedades, as
quais aparecem ameaçadas pela crise, mas também vivem desta.
Por outro lado, nunca é demais insistir na ambigüidade que
contém o conceito de "progresso". Sobre este tópico se tem escrito
muito sob os mais variados pontos de vista. Limitemo-nos somente
a dizer o seguinte: é necessário complexificar a noção de progresso e

238
considerá-lo como incerto por natureza. Por isso, da mesma maneira
que o desenvolvimento produz subdesenvolvimento, o progresso pode
gerar retrocessos ou regressões.
Dissemos, anteriormente, que este mundo está em crise e que a
crise implica uma progressão das incertezas. Podemos constatar que as
incertezas têm progredido por toda parte. E mais, tudo se faz ou se
vive em um curto tempo e nem sequer alcançamos o carpe diem , tão
apreciado pelos romanos. Vivemos o dia e o vivemos mal. Vivemos
em um mundo onde, simultaneamente, estão em marcha processos de
evolução e revolução, de regressão e de crise, de unidade e divisão, de
vida e de morte, de proibição e de transgressão. Nenhum deles segue
só. Um só exemplo basta para ilustrar isso. Não é suficiente afirmar a
si próprio, é necessário delimitar - como disse Lechner - o eu e o
outro. A política está em crise porque a sociedade é crísica, e se faz
necessário incorporar de uma vez por todas a crise e sua acompanhan­
te, a incerteza, como um dos componentes essenciais do fenômeno
político. Não podemos continuar desprovindo-lhe o corpo. Neste senti­
do, a política, como um puro cálculo formal meio-fim e como ação
instrumental, tem revelado seus limites. Faz-se necessário, então, con­
ceitos, limites, utopias, como referentes para pensar a sociedade e atu­
ar sobre ela.
A política há de integrar também a dimensão mítica que esta
possui, visto que o mito organiza uma cosmovisão e dá sentido à vida
social. Só assim poderemos integrar as incertezas, integrá-las, mas não
eliminá-las. "Ama a incerteza", dizia Adam Pzeworski, "e serás demo­
crático." O pensamento complexo é um enorme esforço para saber
ver, saber pensar, saber pensar o seu pensamento, saber atuar. Este
esforço deve também trasladar-se hoje para um campo político e para
a reflexão sobre a política. Neste sentido, disse Lechner que uma das
dimensões da política é a de ser um esforço contínuo para superar a
descontinuidade (e a morte parecerá ser a maior descontinuidade).
Pela frente temos a tarefa que Edgar Morin resume esplendidamente:
"A luta simultânea contra a morte da espécie humana e pelo nasci­
mento da humanidade".

239
Notas

1 Tradução: Júlio César Gurgel.


Revisão: Edgard de Assis Carvalho.
2 Chileno, professor da Universidade La Salle e da Un iversidade Santo
Tomás, Bolívia. Membro da Rede Colombiana do Pensamento Complexo.
3 Tugúrio: habitação rústica (N. do R.).
1 O homem: gênio individual, idiota coletivo '
JOEL DE ROSNAY2 i

P dos, como agentes em interação dentro de redes de comunicação e


rodutores e consumidores, os homens interferem de vários mo­

respondem a regras simples: leis, códigos, obrigações, prêmios, adian­


tamentos, promoções... Diferentemente das sociedades dos insetos, nas
quais emerge uma forma de inteligência coletiva, os homens parecem
menos aptos a resolver os problemas complexos, em coletividade, do
que individualmente ou em pequenos grupos. Evidentemente, o mo­
delo do homem em sociedade não pode ser buscado no modelo do
termiteiro ou do formigueiro, formados de indivíduos cegos, limita­
dos e privados de liberdade. As regras da cibernética e da auto-regula­
ção não poderiam entravar o exercício do livre-arbítrio. Eles devem
ser adaptados à esfera das liberdades, da autonomia, das relações de
forças e de conflitos, até mesmo do desvio e da desrazão que caracteri­
zam o exercício consciente da responsabilidade, o comportamento e
as decisões dos homens. Mas a ação caótica de miríades de indivíduos,
compradores, vendedores, decisores, eleitores ou usuários não conduz
necessariamente à emergência de uma real inteligência coletiva. Certa­
mente a opinião pública pode fazer pressão sobre os governantes. Cer­
tamente, o crescimento, a competitividade (ou em período de confli­
tos) e a mobilização contra o invasor podem representar forças coleti­
vas capazes de fazer mudar as coisas. Mas elas conduzem geralmente a
mudanças ou a evoluções mais submissas do que desejadas.
Entretanto, as soluções aos grandes problemas parecem eviden­
tes e exigem um mínimo de reflexão. Os automóveis nas cidades polu­
em: favoreçamos os transportes coletivos elétricos, as zonas para pe-
destres e a bicicleta. Milhares de pessoas morrem de fome: mobilize­
mos nossos recursos para dividir nossa pletora alimentar. Computa-se
a cada ano dezenas de bilhões de mortes nas estradas: asseguremos um
mínimo de esforço coletivo para reduzir este massacre. Os combustí­
veis fósseis se rarificam e poluem, a energia nuclear apresenta perigos
a longo prazo: façamos um esforço prioritário em favor das combina­
ções das energias renováveis, da utilização racional da energia, da me­
lhoria dos rendimentos dos motores. Paro por aqui o enunciado das
evidências. Parece quase ingênuo enumerá-las quando sabemos que
nada se pode mudar, pelo menos dentro de um prazo razoável. Por
quê? Porque nós somos ao mesmo tempo egoístas demais, individua­
listas demais, possessivos demais, gozadores demais, inteligentes de­
mais. Nossa educação, nossa economia, nosso crescimento industrial,
nossa competitividade internacional tendem, na sua totalidade, a valori­
zar a inteligência pessoal, o consumo, a posse e a acumulação de bens.
Entretanto a formiga se comporta como um idiota individual e
um gênio coletivo, o homem-cigarra aparece como um gênio indivi­
dual e um idiota coletivo.
Está na hora de subsumir parte deste individualismo em algo
maior do que si mesmo. Logo, então, as vozes se elevam para protestar
contra a perda das liberdades individuais, sacrossantos privilégios que se
exercem em detrimento do interesse da coletividade. Qial a dosagem a
ser respeitada entre liberdade individual, respeito de regras simples e o
exercício de inteligência coletiva? Só uma simbiose instalada pode respon­
de� a esta questão. Daí a importância de pôr em prática conscientemente os
mecanismos simbionômicos que permitem evoluir nesta direção.
Aceitamos de bom grado numerosas constrições. Elegemos re­
presentantes para promulgar leis e regulamentos que limitam, de
certa forma, nossas liberdades. Mas, coletivamente, todos nos bene­
ficiamos disso. É o caso do código penal, do código dos impostos,
do código de estradas, assim como da Declaração dos Direitos Hu­
manos, dos Dez Mandamentos, da Constituição das nações, dos tra­
tados entre países, dos estatutos de uma sociedade; do regulamento
interno de uma associação ou dos artigos de um contrato. Em con­
trapartida, nos beneficiamos dos seguros, de seguridade, de pensões,
de aposentadorias, de garantias, de estabilidade de emprego, de aqui-

242
sições sociais ... As infrações são punid as com multas, privação de
direitos, prisão. A motivação necessária para seu respeito é alimenta­
da pelo receio. Em certos países, o medo de represálias pode até
conduzir à morte. A complexidade do "sistema" faz com que apare­
ça despersonalizado, monstro frio e distante, máquina que esmaga
as individualidades e as liberdades. Daí as trapaças, corrupções que
nascem de funcionamentos e práticas mal controladas.
Sem motivação, não há uma ação coletiva eficaz. Hoje em dia, o
temor, o dinheiro, o poder, o prazer, as honras são mais importantes. O
medo e o prazer são os mais antigos motores do mundo. Punição e
recompensa, os princípios, as regras de ouro do adestramento. Mas exis­
tem outras formas de motivação fundadas sobre as combinações de
meios.
Assim, para favorecer o tratamento do lixo doméstico, pode-se
pressionar, informar, recompensar ou criar vantagens fiscais. Os estu­
dos de simulação e a prática da pesquisa de campo mostram que a
coação em si não é o suficiente, e muito menos a informação e a
educação. A eficácia máxima é conseguida por uma combinação de
meios que permitem criar, ampliar e trocar informação e, por campa­
nhas de educação sobre os usos de diferentes vias de reciclagem, prê­
mios pela coleta. Este tipo de abordagem pode ser aplicado aos inúme­
ros campos, nos quais inteligência e disciplina coletivas são necessári­
as: transportes, compartilhando seu veículo com outros usuários; luta
contra o barulho ou utilização racional de energia.
Tornemos o exemplo do cruzamento rodoviário. Podem-se obri­
gar de maneira rigorosa os automobilistas a respeitar os sinais e perse­
guir os contraventores. A participação que se requer de cada um é limi­
tada: obedecer ao sinal luminoso. Mas é igualmente possível organizar
os cruzamentos em rótula. Uma forma de inteligência coletiva pode
assim contribuir para a regulação do tráfego. É preciso obviamente que
os engenheiros possam prever os ângulos de vista livre, uma sinalização
clara, regras simples. Para os automobilistas, convém observar todas as
vias de acesso, avaliar a velocidade dos automóveis suscetíveis de se enga­
jar na zona prioritária, de antecipar as reações daqueles que esperam no
"Pare", de controlar sua velocidade ao redor da rótula. O respeito às
regras simples dos vários agentes interessados conduz à emergência de

243
comportamentos de conjunto que melhoram a segurança de cada um.
Uma cooperação eficaz entre as pessoas pode nascer da falta de
uma autoridade central que os leve a cooperar. Para isto, é preciso que
elas privilegiem seu interesse pessoal dentro de um contexto de reci­
procidade, de relações simbi6ticas que, então, pode vir a se estabelecer.
Isto é o que foi demonstrado através de simulação por computador
por Robert Axelrod, especialista em teoria dos jogos. Esse tipo de coo­
peração não se pode desenvolver apenas a partir de indivíduos isola­
dos, mas somente a partir de pequenos grupos que "fundamentam sua
cooperação sobre a reciprocidade, mesmo se essas trocas apresentem
,,
uma fraca proporção em suas interações .

Democracia participativa e retroação societal

As formas de ação coletiva coordenadas e de cooperação são


evidentemente impossíveis sem troca de informação, sem informação
em tempo real. É indispensável medir os efeitos de sua ação e compa­
rá-la às dos outros. Na escala de um país, de uma comunidade, deno­
,,
minei "retroação social este circuito de troca de informação. Havia
descrito suas vantagens e riscos em O macroscópico. Mas, em 1 975, os
sistemas técnicos de comunicação de massa estavam ainda pouco de­
senvolvidos. Hoje surgem os instrumentos e os sistemas de comunica­
ção e de tratatamento que permitem a ampliação das informações,
desde a base das organizações até os níveis de decisões.
As formas atuais de retroação societal permanecem limitadas.
O voto apenas traduz de maneira rudimentar as escolhas dos eleitores,
mas os meios variados e indiretos de retroação nasceram do cresci­
mento das mídias. Diante das câmeras uma manifestação de rua ad­
quire uma força de expressão emocional de uma influência considerá­
vel. Uma espiral com efeito desmultiplicador, por vezes perverso, é
assim instaurada entre mídias, ruas, emoção, amplificação; uma espi­
ral utilizada, infelizmente, para o terrorismo internacional. As formas
de expressão popular das ruas ou dos estádios se limitam aos grandes
agrupamentos de massa (manifestações, concertos, competições espor­
tivas, reuniões religiosas, peregrinações). Os signos de coesão são, eles
também, rudimentares: vestidos, enfeites, slogans, bandeiras, ou ainda

244
o "olé" dos estádios; isqueiros acesos em concertos, correntes humanas
dos ecologistas.
Outra forma de retroação de caráter mais sutil: as sondagens de
opinião veiculadas pela imprensa. Qiase sempre eles representam um
espelho, um mecanismo de regulação que conduz a reajustamentos de
posição, a readaptações e reconversões. Sua influência indireta é consi­
derável nas democracias em que a oposição e a maioria estão empatadas
em 50% e onde as eleições se decidem por alguns por centos. O mercado
representa igualmente uma forma de retroação societal, em tempo real.
O número incalculável de decisões de compradores e de vendedores, a
publicidade, os cochichos (boca de orelha), o boicote eventual de produ­
tos que atuam como reguladores de efeitos dificilmente previsíveis, vis­
to que as ações são caóticas, simultâneas e freqüentemente irracionais.
A interatividade eletrônica nascente ampliará o papel dos anéis
de retroação societal nos anos vindouros. Antes, o telefone e o Minitel
eram largamente utilizados no quadro das emissões de rádio ou de
televisão para enviar as informações personalizadas para as emissoras.
Com a visiofonia e na França a rede Numéris, intervém uma outra
dimensão utilizada recentemente. " Visioestaçõel' em lugares públicos
permitem aos interlocutores intervir diretamente no curso das emis­
sões televisivas. As grandes redes mundiais de comunicação interpes­
soal, via computadores, oferecem novidades e possibilidades preocu­
pantes. Os pioneiros da Internet propõem o advento de uma espécie
de "parlamento eletrônico", permitindo aos cidadãos votar perma­
nentemente sobre uma série de assuntos. Ross Perrot, milionário ame­
ricano e antigo candidato à Casa Branca, prometeu dentro do seu
programa instalar uma "caixa de votação" eletrônica em todos os lares
americanos.
Este tipo de retroação societal global parece-me particularmente
perigoso e suscetível de levar a efeitos perversos terríveis. As respostas
instantâneas feitas a perguntas colocadas pelas mais altas instâncias diri­
gentes podem gerar efeitos de moda, entusiasmos passageiros e irracio­
nais, rapidamente obsoletos para as necessidades da atualidade. O curto­
circuito societal não respeita os prazos de respostas inerentes à dinâmica
particular dos sistemas sociais. Situa-se nos tempos curtos de natureza
emocional favorecido pelas mídias, mas sem capacidade real de constru-

245
ção para longo prazo, através de sua inscrição na duração. E isso porque
as instâncias intermediárias (eleitos locais, representantes, notáveis, de­
putados) são indispensáveis no processo do "acionamento" das infor­
mações: eles criam os efeitos tampões amortizando as oscilações sociais e
reduzindo as conseqüências da amplificação midiática. Toda forma de
retroação societal deve levar em conta a hierarquia dos níveis, permitin­
do aos cotpos intermediários e aos organismos representativos cumprir
seu papel de correias de transmissão. Os atritos, filtragens, prazos e
constrições do sistema social asseguram assim indiferentemente sua pro­
teção. Eles têm por efeito amenizar as amplitudes das oscilações, de
reduzir o "barulho" parasita e de revelar, sobre uma duração mais lon­
ga, as tendências de fundo sobre os quais se pode construir uma política.
A retroação societal se efetiva, portanto, progressivamente, no
quadro de "nichos" específicos: emissões televisivas, grandes sonda­
gens, jogos, concursos, redes informáticas. Mas os sistemas concebidos
por ambientes mais restritos já estão funcionando. Existem instala­
ções de voto instantâneo, destinado a empresas, que permitem afixar,
em tempo real, curvas, histogramas, matrizes, que analisam o detalhe
dos votos e das tendências, com apresentações animadas em cores so­
bre telas visíveis a todos. Algumas salas públicas são equipadas por
esses sistemas utilizáveis por um bilhão de participantes.
Uma das aplicações mais sutpreendentes da participação coleti­
va em tempo real, cinematrix técnica de retroação elaborada por Ra­
chel Caipenter nos Estados Unidos. Os participantes ficam sentados
dentro de um auditório que comporta milhares de lugares e dotado de
uma imensa tela. Todos dispõem de um refletor manual em forma de
espátula, com uma face verde e outra vermelha. Câmeras de vídeo
captam os reflexos luminosos em função da face apresentada pelas
pessoas presentes e transmitem esta informação a um computador.
No início da experiência um retângulo é desenhado sobre a tela para
o animador. Este solicita aos milhões de espectadores para que se situ­
em dentro do retângulo (apresentando a face vermelha), ou em seu
exterior (face verde). Rapidamente, o retângulo fica colorido de ver­
melho. A metade da sala deve, em seguida, jogar tênis com a outra
metade. Para isto uma raquete sobe e desce de cada lado da tela e
reenvia uma bola no outro campo, com a condição de fazer subir

246
(verde) ou descer (vermelho) a raquete com a velocidade certa, a qual
depende do número de votantes vermelhos ou verdes. Uma coordena­
ção visual torna-se, portanto, indispensável entre os jogadores de cada
campo para antecipar a direção e a velocidade da bola e posicionar
corretamente a raquete. Enfim, um cubo multicolorido roda na tela.
Exige-se que os jogadores parem sobre o lado azul. Eles devem para
isto freá-lo (face vermelha) ou acelerá-lo (face verde). Se a face azul
passa rápido demais, é preciso retornar. Isto demanda uma coordena­
ção delicada que deve ser traduzida para uma proporção correta de
votos vermelhos em relação aos verdes. Milhares de pessoas cumprem
perfeita e muito rapidamente esta tarefa delicada, sem outra coorde­
nação que não seja a visualização em tempo real, sobre a tela dos
efeitos das ações de uns ou de outros.
Escolhi este exemplo para ilustrar e lembrar um dos pontos fun­
damentais da ação em rede: milhões de agentes atuando em paralelo a
partir de regras simples podem resolver coletivamente problemas com­
·
plexos. Pode-se transpor esta forma de retroação societal para sistemas
de comunicação eletrônicos, assegurando uma divulgação instantânea
dos resultados. Com a interconexão das redes telemáticas interpessoais, as
centenas de milhões de informações individuais ascendentes terão um pa­
pel cada vez mais importante na regulação das grandes funções metabólicas
do cibionta. Enquanto as grandes manifestações públicas evidenciam que as
massas, particularmente, não oferecem prova de uma inteligência significa­
tiva, sistemas adaptados de retroação societal podem fazer emergir uma
inteligência coletiva superior à dos indivíduos isolados.
Nesta ótica da evolução simbionômica, a coordenação das ações
individuais por retroação coletiva é um dos elementos de base do com­
portamento inteligente do cibionta. Seu cérebro funciona a partir de
miríades de ações caóticas, microdecisões, reajustes, regulações nos dife­
rentes níveis de seus neurônios humanos, ampliados pelo espelho das
mídias ou detalhados por instâncias específicas. Tais interações, que têm
lugar no seio dos nós e laços de uma hiper-rede, constituem uma das
chaves da simbiose e da progressiva ascensão do homem simbiótico.
Mas, para combinar os benefkios da ação individual e da retroação
societal, uma nova classe de líderes políticos deverá emergir no curso
dos próximos anos.

247
Os novos líderes políticos

Na prática corrente da política democrática, as sondagens de


opinião contêm aspectos da retroação societal. Associadas às mídias,
introduzem novas formas de ações coletivas perturbando a conduta
racional dos sistemas complexos. Dentro de um mundo de desigual­
dades, em face das defasagens temporais das evoluções, da diversidade
dos comportamentos e das culturas, a governança deve dar respostas
que permitem às sociedades evoluírem, respeitando diversidades e li­
berdades. A forma futura da organização das sociedades humanas pode
iluminar, através de um olhar retroprospectivo, as escolhas do presente.
Diante dessas novas constrições, os dirigentes encontraram os
modos adaptados ao exercício das responsabilidades públicas. O gran­
de timoneiro (referência implícita à natureza cibernética do governo),
capaz de conduzir o país (o navio), através dos arrecifes, para atingir a
destinação mantendo firmemente a barra, está obsoleto. Ele é substi­
tuído pelo "surfista" ágil, que cavalga na crista da onda de opinião
refletida pelas sondagens e que amplia os acontecimentos midiáticos
em decisões consensuais, onda após onda. Equilibrando-se sobre ela,
nem muito pra frente (cai de bico) nem muito pra trás (perde a onda),
o político-surfista procura criar os acontecimentos que fornecem a
energia necessária a seu próprio movimento. Como dizia Henry Kis­
singer: "É necessário não apenas surfar sobre as ondas dos aconteci­
mentos, mas criar a onda sobre a qual surfaremos". O político é muitas
vezes atingido por uma crise grave. Toda sua arte, assim como a dos seus
conselheiros constituirá em absorvê-la para melhor destacar-se.
A sutileza do surfista, em equilíbrio no desequilíbrio, mobiliza­
do para uma fuga perpétua para frente, nutre-se de comportamentos
nascidos da prática da gestão da complexidade. Assim, vemos surgir
papéis, comuns ao político e ao dirigente de empresa: de mediadores,
de comunicadores, de catalisadores. Detectar os germes d as mudanças
e acompanhá-las, mais do que impô-las, aqui reside o papel da media­
ção. Compreender as grandes tendências e saber fazer a síntese, a par­
tir delas, para melhor motivar os atores, é este o papel da comunica­
ção. Acreditar nas condições estruturais e funcionais favoráveis às
mudanças para uma combinação de meios sutilmente dosados: assim

248
se apresenta a ação catalítica. Uma combinação de ação, mediação,
comunicação e catálise pode levar a importantes mudanças, no qua­
dro de objetivos claramente expressos e aceitos por uma maioria de
atores. Toda a importância da retroação societal aparece aqui. Os anéis
cibernéticos, estabelecidos nos diferentes n6s e laços das redes f nos
vários níveis de hierarquia organizacional, fornecem as informações e
os elementos da regulação. A política não pode administrar tudo,
modificar tudo, impor tudo. O governo deve acompanhar a mudança
criando as condições de desaceleração que permitam, com um dispên­
dio baixo de energia e de informação, conduzir eficazmente à evolu­
ção de um sistema social complexo. Essa evolução ocorre mais por
uma espécie de acupuntura societal do que por remédios agressivos;
por intermédio de um judô político, que utiliza as práticas das artes
marciais para desequilibrar o adversário sem desperdiçar sua energia.
Em simbiose com a expressão da multiplicidade de responsabilidades
individuais, o governo deve abandonar algumas das suas antigas prer­
rogativas (autoridade, força, hierarquia) para se concentrar sobre aque­
las que asseguram a manutenção da coesão, a motivação do conjunto
e a preparação das grandes escolhas coletivas.
A governança em rede e a coordenação inteligente das ações
internacionais podem, de agora em diante, apoiar-se sobre tais princí­
pios. O choque frontal das soberanias nacionais, das estruturas hierár­
quicas de poderes, dos modos de raciocínio cartesianos em face da
complexidade conduz hoje em dia a situações inextricáveis e a uma
incapacidade para resolver os grandes problemas que foram mencio­
nados. Levando em conta a erosão da soberania nacional, o reconheci­
mento das competências e das diversidades, a abertura às abordagens
dos outros terceiros faz parte dos novos valores da governança. Pilota­
gem e catálise são as palavras mestras da nova política. Mediadores,
catalisadores, comunicadores, surfistas representam uma nova geração
de dirigentes capazes de fornecer soluções novas para superar a crise
atual da liderança política, desde que saibam controlar sua grande
deriva mediática.

249
Os perigos da imunidade mediática

Esta nova política adaptada às pressões da evolução simbionômica


pode ser questionada e inibida pelos efeitos perversos da excessiva mediati­
zação. Os esboços de retroação societal foram implantados nos países demo­
cráticos pelo jogo das sondagens e da televisão, mas o sistema pode conduzir
a curto e médio prazos às derivas perigosas. Espelho emocional das socieda­
des, a televisão amplifica a personalidade exacerbada dos comportamentos.
O estudo de um caso virtual permite mostrar como os compor­
tamentos de milhões de pessoas podem criar, para um líder político,
um tipo particular de proteção, a imunidade midiática.
Vamos tomar o caso de um homem político freqüentemente
solicitado pelas mídias. Nas condições atuais da midioesfera, sua as­
censão em direção ao poder pode ser rápida, contanto que ele respeite
três condições. A primeira: ser um comunicador hábil; a segunda:
fazer convergir e se confirmar sobre sua pessoa várias redes de influên­
cia; a terceira: ocupar um nicho político com efeito desmultiplicador,
como transporte potencial de votos sobre os grandes partidos presen­
tes. As condições de uma auto-seleção pela amplificão dos efeitos e
"fechamento" do setor convocado são assim reunidas. Outro fator
favorável: o acúmulo e a convergência das redes de influência - uma
das condições essenciais do poder político tradicional. Este acúmulo
confere um poder reforçador. Os numerosos "nichos" assim explorados
são valorizados pelo efeito catalítico do poder, como sendo um lugar
geométrico, o ponto central de convergência. Os que vivem desses
nichos e se beneficiam de sua expansão têm todo interesse em reforçar
o poder de influência de seu catalisador central. Os mecanismos de
exclusão competitiva se co locam, progressivamente, em movimento,
como ocorre em todo sistema biológico que compete com outros.
O público constitui assim um nicho novo e importante no seio do
qual o Sefrági.o mediáliro, direto e a curto prazo, substitui o sufrágio universal.
A oposição entre as múltiplas opiniões cria uma espécie de debate permanente
que protege indiretamente a pessoa em conflito com a comunidade política,
as mídias, a justiça.. Discussão e debate públicos reforçam as defesas naturais
da pessoa atacada Pouco a pouco se instaura a imunidade midiática, forma
superior de imunidade parlamentar ou diplomática

250
Com a televisão se instauram estranhas relações entre os seres.
Acredita-se conhecer muitas pessoas, mas não somos reconhecidos por
nenhum dentre elas. Acredita-se conhecer os segredos do caráter de tal
apresentador, de tal homem político, de suas oscilações de humor, de
suas profundas opções, mas só se assimilam as aparências. Ainda mais
se o homem público sabe comunicar com emoção a respeito de temas
concretos, nos identificamos com a mensagem e com seu emissor.
Uma presença regular na televisão suscita, assim, necessariamente, re­
flexos de pertencimento e proteção que entram em jogo e se ampliam
como quando se trata de defender um parente ou um amigo próximo.
Cada um tem uma opinião pessoal sobre os atos do homem público,
colocado na berlinda. Essas opiniões entram em conflito aberto e re­
forçam a rede imunitária. Qialquer homem político hesitará antes de
decidir. Qialquer jornalista perguntará menos. Qialquer magistrado
reforçará a prudência. Assim imunizado midiaticamente, o comuni­
cador hábil pode entrar no espaço infinito, e sem constrições, da polí­
tica virtual. Sua participação em manifestações políticas atrairá as
massas, mesmo se a confusão ficar forte entre a pertinência de suas
idéias políticas julgadas pelo auditório e o aspecto acontecimental de
sua presença. Reunirá votos sobre seu nome e pesará cada vez mais no
cenário político.
A imunidade mediática tem um efeito duplamente perverso.
Ela ridiculariza a lei republicana e promove a política virtual fundada
sobre a ilusão do aparecer, mais do que sobre a consistência do ser. Em
contrapartida, ela pode também criar choques perigosos, se a opinião
se desvia bruscamente de seu antigo protegido.
Desenvolvi este exemplo para ilustrar o papel e a influência dos
múltiplos atores no seio de redes imbricadas e que recebem os mesmos
tipos de informação pelas grandes mídias. A emergência da imunida­
de midiática releva igualmente os mecanismos coletivos de amplifica­
ção. Os efeitos da auto-seleção e da exclusão competitiva que ela susci­
ta conduzem para um fenômeno de "escapamento,. (run away) bem
conhecido em cibernética. O sistema escapa ao controle de seus laços
de regulação. Os efeitos perversos vêm em seguida, pondo em risco a
estabilidade do conjunto. Um melhor conhecimento de tais mecanis­
mos pode auxiliar nossas sociedades, submissas aos efeitos da amplifi-

25 1
cação político-midiática, a evitar um real perigo para o futuro: o de
deixar escapar para o poder dos líderes oportunistas, que tiram provei­
to de todas as falhas do sistema e ridicularizam os valores, a moral e a
ética sobre os quais se constrói a democracia.

Os limites do economismo

A nova política "cibernética" ou a governança suscitam as gran­


des prioridades de condução da evolução simbionômica: prospectiva
a longo prazo, grandes objetivos mobilizadores, nova ciência econô­
mica, educação e responsabilidade de cada um mobilizam as retroa­
ções societais para favorecer a emergência da inteligência coletiva. A
prospectiva deve antecipar as conseqüências d a próxima etapa d a evo­
lução da espécie humana: a criação de uma nova forma de organiza­
ção da vida em escala planetária, parcialmente descrita pelo modelo
do cibionta. Uma transição crítica com conseqüências tão importan­
tes quanto a passagem da unicelularidade para pluricelularidade: a
transição do individual para uma hiper-rede pluripessoal.
A ciência econômica, braço secular da política tradicional, de­
verá ceder lugar a uma metaeconômica integrando economia clássi­
ca e ecologia numa estreita simbiose funcional. Igualmente chamada
de "economia ecológica" ela deverá reconhecer as propriedades ecos­
sistêmicas da economia.
A ciência econômica define e põe em prática as grandes orienta­
ções que fazem girar a máquina produtiva e asseguram teoricamente a
divisão das riquezas. Conhecem-se, daqui por diante, os limites. Num
sistema originalmente concebido separado do meio ambiente, a eco­
nomia transforma-se num circuito fechado. Ela está desconectada do
ecossistema. Mesmo os instrumentos de medida sobre os quais se fun­
dam suas tabelas de bordo não são mais adaptados. Assim o PNB
deveria levar em conta as extrações sobre o ecocapital ou os d anos
irreparáveis feitos para o ecossistema.
Uma medida equilibrada deveria conduzir a um indicador cor­
rigido. Um PNB no qual se subtrairiam os custos sociais, da proteção
do meio ambiente ou das despesas militares. Assim se liberaria um
produto nacional nítido (PNN), melhor índice de valorização da eco-

252
capital e do desenvolvimento dos recursos humanos.
A ciência econômica clássica não pode aparentemente resolver
o problema do desemprego. Um sistema econômico fundado sobre a
produção de massa, sobre contrato de trabalho, sobre o consumo e
sobre o crescimento é um sistema bloqueado. Ele só leva em conta o
valor comercial dos bens, dos serviços e das pessoas. Portanto, as ativi­
d ades que fariam funcionar corretamente o macroorganismo societal
e contribuiriam para a construção do seu futuro não fazem falta. No
quadro rígido dessas estruturas atuais, a ciência econômica clássica
não sabe transformar as atividades em empregos. Precisaria, para isto,
levar em conta as atividades não-mercantis fundadas sobre a troca de
outros valores indispensáveis à manutenção e ao desenvolvimento das
sociedades: a educação mútua, a solidariedade, a assistência social, a
partilha dos frutos do conhecimento, o voluntariado para investir no
ecocapital. Seria, também, necessário que a ciência econômica reco­
nhecesse que as necessidades espirituais, sociais, emocionais, artísticas
devem ser satisfeitas, ao mesmo tempo que as necessidades materiais.
Para substituir a ciência econômica tradicional, numerosas pro­
posições são feitas inspiradas em particular pelo método ecológico.
Assim, a "ecoeconomia" ou economia ecológica, ao se apoiar sobre
um equilíbrio dos fluxos e a pesquisa de meios, permitiria assumir e
manter o ecossistema ao lado do desenvolvimento dos recursos econô­
micos. Nos Estados Unidos se elabora uma outra abordagem caracteri­
zada por uma visão liberal levada ao extremo: a "bionômica" (biono­
mics). Trata-se de uma economia que se inspira em leis naturais da
biologia e da ecologia. A bionômica lembra o laisserfaire, mesmo que
reconheça a generalidade dos princípios da auto-organização e inter­
dependências no seio das redes de trocas: as regras da auto-organiza­
ção só se podem efetivar se nos liberamos do controle centralizado.
Alguns preconizam até a ausência de qualquer controle descendente, a
fim de permitir aos sistemas evoluírem em direção a uma complexida­
de capaz de assegurar a emergência de novas propriedades.
A economia, sendo um ecossistema criado pelo homem, os prin­
cípios simbionômicos a ela se aplicam. Mas o homem tem uma consci­
ência reflexiva, um livre-arbítrio e uma responsabilidade. Ele pode fazer
os planos, as escolhas racionais ou não, definir suas próprias condições

253
de evolução. É portanto indispensável que as pressões da auto-organiza­
ção sejam equilibradas para a pilotagem voluntária da evolução das soci­
edades. As escolhas são feitas em função dos valores. A ideologia no
sentido nobre do termo é um dos motores da ação. A governança se
funda sobre os modos de regulação ascendente e descendente. Neste
sentido ela é cibernética. A competição das idéias para uma ótima gover­
nança é essencial. Assim, se cria uma ecologia das idéias, um meio ambi­
ente cognitivo no qual concorrem e cooperam os grandes temas que
animam o mundo. A bionômica e a anarquia evoluídas do novo laisser-
faire americano negligenciam a contribuição das idéias e suas saudáveis
competições na regulação e pilotagem dos grandes sistemas societais.
Mesmo o célebre conceito de "desenvolvimento durável" pode
conter efeitos perversos. Este conceito corre o risco de isolar o desen­
volvimento econômico e proteção do meio ambiente num estéril afron­
tamento. As, proposições são mutuamente exclusivas. O crescimento
pode pagar as despesas suplementares do meio ambiente? A proteção
do meio ambiente necessita dos limites do crescimento? Atualmente a
lógica econômica parece pesar mais do que a lógica ecológica. Orienta­
mo-nos pela internalização dos custos ecológicos na economia clássica
- uma via que pode desembocar no limite, numa mercantilização dos
bens naturais. Colocar preço em tudo - um golfinho, um metro cúbi­
co de ar, uma floresta - para permitir o jogo dos mecanismos regula­
dores do mercado e taxar os consumos dos recursos naturais ou das
emissões dos dejetos poluentes pode ter efeitos perversos totalmente
incontornáveis. Se levarmos mais longe este argumento, avaliando o
preço dos "serviços da natureza" (como a despoluição do ar e da água
pela fotossíntese ou os micróbios dos solos), criamos de uma só vez
um direito de poluir as regiões do mundo onde os serviços da nature­
za são ainda cumpridos e, portanto, menos caros do que aqueles que
utilizam as tecnologias verdes dos países desenvolvidos.
Alguns desses métodos representam uma derrapagem para um
"economismo" puro e pesado firmado pela única lógica da economia
de mercado. Com que direito a economia impõe sua lógica? A ciência
econômica, como vimos, foi colocada "entre parenteses" da natureza,
por negligenciar as entradas (recursos naturais não-renováveis) e as
saídas (dejetos) da maquinaria econômica, considerados como exterio-

254
res a seu campo de ação. Os recursos, ao serem considerados abundan­
tes e ilimitados, e os dejetos sem valor mercante, os fluxos que entram
e saem deixam de ser levados em conta.
Uma outra lógica, entretanto, precedeu a lógica dos homens e de
sua economia: a co-evolução dos ecossistemas, com seus bilhões de espé­
cies animais e vegetais religados por grandes ciclos biogeoquímicos. Todo
um jogo de regulações sutis e milenares intervém no conjunto dos ato­
res da biosfera no seio de redes frágeis. Esta bioeconomia da natureza
permitiu a manutenção dos ecossistemas terrestres e suas evoluções.

Por um desenvolvimento adaptativo regulado

A lógica do "economismo" e do meredntilismo dos bens naturais


pode se opor à condução ecossistêmica do planeta pelo homem, par­
ceiros simbióticos de Gaia. Esta condução se apóia sobre mecanismos
auto-organizadores e reguladores que eu propus reunir e descrever nes­
te livro através do conceito de evolução simbionômica. É esta nova
visão que, doravante, apresenta-se como conveniente para conciliar-se
com a economia, e essa abordagem permite reunir dois domínios pro­
venientes de culturas diferentes, mas dos quais depende o futuro do
planeta e da humanidade: a ecologia e a economia.
Na ótica da macrorregulação a longo prazo, eu proponho subs­
tituir o termo "desenvolvimento durável" por "desenvolvimento adap­
tativo regulado". Esse termo, parece-me, possui o mérito de introduzir
as noções de adaptação e de auto-regulação no desenvolvimento das
sociedades humanas em relação ao conjunto da biosfera.
A auto-regulação de um desenvolvimento e de um crescimen­
to mensurados necessita, como para todo mecanismo cibernético,
captores, redes de comunicação, sistemas de amplificação e circuitos
de retroação em diferentes níveis. Cada ator, ao participar da regula­
ção global, deve ser informado das condições e dos efeitos de sua
ação local em seu nível de competência ou especialização. Ele pode
assim exercer escolhas, tomar decisões e corrigir os efeitos de manei­
ra interativa e participativa. Assim, nos países nos quais as taxas de
poluição cotidianas são publicadas pela imprensa, os cidadãos são
incitados a restringir eles mesmos o aquecimento das habitações e

255
dos escrit6rios, ou a circulação automobilística.
Certamente, as regulações pelo mercado ou a taxação deram
suas provas e seria ilus6rio privar-se delas, mas seus efeitos se mani­
festam a curto prazo sem a instauração de planos conjuntos. Por
outro lado, a eficácia dos mecanismos de auto-regulação exige uma
complementaridade dos meios postos em prática. A interdependên­
cia dos fatores desempenha um papel fundamental na manutenção
dos equilibiios dinâmicos e na pilotagem no tempo dos sistemas
complexos. Isto porque o desenvolvimento adaptativo regulado deve
apoiar-se sobre uma combinação de meios que incluem os preços, as
taxas, as regulamentações, a troca de informação, a educação para o
ecocivismo planetário e a motivação dos atores.
A auto-regulação implica, também e sobretudo, o ecocidadão.
Multiplicada por milhões, e mesmo por milhares de pessoas, a modi­
ficação das práticas individuais de consumo de energia, de bens e
serviços conduz a efeitos planetários globais. Daí decorre a importân­
cia quase orgânica de uma educação generalizada e responsável, que
assegure as bases da retroação societal. A ecocidadania deverá, assim,
combinar seus poderes com aqueles mais tradicionais como as associ­
ações de consumidores, sindicatos, lobbies ou organizações não-gover­
namentais.
Para esta transição obter sucesso, o elemento federador das ações
das regulações individuais, políticas, econômicas e industriais deverá
constituir-se por um conjunto de valores partilhados, uma ética de
meio ambiente, uma ecoética capaz de agir como "regulador" dos sis­
temas de regulação e de fixar os limites aos desvios possíveis do econo­
mismo. Como a bicética já definiu os santuários não-comercializá­
veis, devem existir tal como o corpo humano. Para evitar qualquer
desvio em direção à mercantilização total dos bens da natureza, uma
ecoética pode ajudar a evitar a confusão em curso entre o valor do
usuário I'! o valor da troca, e devolver a significação plena do termo
"valor". A noção de desenvolvimento adaptativo regulado pode per­
mitir ultrapassar para sempre o dualismo de irredutível aparência en­
tre desenvolvimento econômico e proteção do meio ambiente.
Entretanto, o desenvolvimento acelerado das sociedades indus­
trializadas submetidas aos valores da economia de mercado coloca em

256
perigo o equilíbrio do mundo. Encontramo-nos frente a frente, em
escala planetária, com um mecanismo de evolução darwiniana que
autoseleciona as nações mais favorecidas. Uma das regras simbionô­
micas fundamentais é a seleção de uma população em evolução pela
autocatálise de seu desenvolvimento e exclusão competitiva dos con­
correntes. É o que está acontecendo sob nossos olhos. A exclusão com­
petitiva está posta em prática no próprio seio das nações (exclusão
econômica, técnica, cultural), entre as cidades e suas periferias, entre
os ricos e os marginalizados. Na escala do mundo, ela se manifesta
pelo enorme fosso que não cessa de se ampliar entre favorecidos e
desfavorecidos. A autocatálise constrói uma densidade diferente do
tempo. Cada um se isola na sua bolha temporal, mesmo se somos
todos contemporâneos uns dos outros. Assim se cria um tempofractal,
que separa uns e reforça os outros na sua conquista do tempo. O risco
da exclusão competitiva dos menos favorecidos é um dos mais graves
que a humanidade conheceu no curso de sua história. Orientamo-nos
para um mundo de várias velocidades, no qual cada um crescerá (ou
vegetará) dentro da sua bolha temporal, que se torna incompatível
com as dos outros. Certamente alguns já se acomodam a isso. A diver­
sidade das culturas � dos povos reforça este sentimento. "Por que não
permitir o jogo das leis naturais da concorrência e da competição
entre os povos? E que os melhores ganhem... "
A alternativa para a exclusão competitiva são a partilha e a
solidariedade. Os valores da humanidade são comuns. A transição
para a próxima etapa de sua organização planetária necessita da co­
operação de todos na diversidade dos comportamentos e expressão
das l iberdades. É uma alternativa coletiva dentre as mais importan­
tes que a humanidade assumiu na sua marcha em direção à simbiose
planetária, econômica e ecológica.

As prioridades para o futuro

Em matéria de reflexão para os objetivos da governança e den­


tro do quadro do desenvolvimento adaptativo, eis as prioridades para
o futuro. Algumas parecem para hoje utópicas; no entanto me parece
essencial colocá-las em prática no curso do terceiro milênio.

257
Dar continuidade a transição demográfica. Ela j á está sendo leva­
da a cabo: a população mundial deveria estabilizar-se em torno de 1 1
bilhões para o ano 2 1 00. Para acompanhar esta transição seria neces­
sário diminuir a fertilidade dos países com alta natalidade para 3 a 2
filhos por família, revalorizar o estatuto da mulher, estendendo o
uso dos contraceptivos.
Reduzir e reconverter as despesas militares. Elas representam atual­
mente um montante anual de 900 bilhões de dólares e constituem um
importante consumo de recursos humanos, científicos, técnicos, eco­
nômicos, naturais, mas também de créditos que poderiam ser recon­
vertidos, progressivamente, para a educação, saúde e meio ambiente.
Um desafio para a reconfiguração dos governos após o ano 2000.
Assumir uma política energética equilibrada, que permita o meta­
bolismo do cibionta e sua simbiose com Gaia. Uma política que
respeite as responsabilidades locais na produção e na distribuição d a
energia e que combine economias, habilidades, uso racional, e ficá­
cia, utilização de recursos renováveis.
Colocar em prática uma economia simbiótica para um desenvolvi­
mento adaptativo auto-regulado. Promover novos indicadores que
substituem o PIB e que levem em conta os prejuízos causados ao
meio ambiente e aos recursos humanos. Redistribuir os recursos,
reduzir as desigualdades, reinventar o trabalho.
Controlar os efeitos ambientais globais. Reduzir as emissões de
CFC, de dióxido de carbono. Controlar a extensão dos desertos.
Regular os climas e os meios ambientes de maneira racional para
macrorregulações de grandes ciclos e funções. Respeitar a ecoética,
ética do meio ambiente, que define os limites da ação humana. Res­
tabelecer uma agricultura ecológica. Reduzir a industrialização mas­
siva da agricultura para uma modularização das produções. Reduzir
o desflorestamento. Revalorizar as paisagens.
Valoráar o papel das mulheres. Reequilibrar os valores masculi­
nos e femininos a fim de assegurar o desenvolvimento adaptativo
controlado das sociedades humanas, de suas indústrias e de suas eco­
nomias. Reequilibrar as responsabilidades dentro da sociedade. Va­
lorizar as ações familiares, educativas e os cuidados empreendidos
geralmente pelas mulheres.

258
Assegurar uma base de saúde para todos. O objetivo da Organiza­
ção Mundial de Saúde para o ano 2000 é reduzir a mortalid ade in­
fantil para 50 entre 1.000 nascimentos e assegurar a cada criança um
peso normal, além do acesso à água potável: 50 bilhões de dólares
por ano; para a água e a sanitaridade, 30 bilhões suplementares.
Assegurar uma base de educação para todos. Hoje em dia 105 mi­
lhões de crianças não têm acesso a uma escola. O mundo conta com
900 milhões de analfabetos. Estimativas da Unesco mostram que os
custos de educação mínima, para todos, no ano 2000, se elevarão a 5
bilhões de dólares por ano.
Promover as tecnologias responsabilizantes e adaptáveis. Evitar os
gigantismos das instalações controladas por um pequeno número de
responsáveis, as tecnologias pesadas que provocam um forte impacto
ambiental e as técnicas que provocam perigo a longo prazo para a
biosfera. Favorecer as tecnologias adaptáveis às necessidades sociais.
Pesquisar o compromisso entre a circulação e a circulação virtual.
Promover as redes e os modos de comunicações interpessoais, as info­
estradas, a democracia informacional. Diminuir a marcha da expan­
são dos transportes de massa. Controlar, em particular, o crescimento
do transporte aéreo, do transporte terrestre por caminhões, a constm­
ção anárquica das auto-estradas e a proliferação de vias de comunica­
ção, que agridem as paisagens e a vida das cidades.
Lançar os grandes projetos para as cidades. Eliminar progressiva­
mente os automóveis a motor térmico, promover meios de transpor­
tes não poluentes e silenciosos, reconfigurar os transportes coletivos.
Reabilitar a vida do bairro, favorecer os modos de vida associativa e
de responsabilidade local.
Equilibrar os valores da civilização e da cultura. Acionar os meca­
nismos de governança e de retroação societal. Melhorar a simbiose
entre pessoas e sociedade para uma complementaridade entre aborda­
gem descendente (hierarquia), ascendente (participativa) e transversal
(interativa). Conservar a diversidade. Fazer respeitar o direto e a justi­
ça. Assegurar o respeito e a valorização das pessoas idosas. Promover a
ecocidadania, a bicética, a infoética e a ecoética.
Tais prioridades não poderão ser postas em prática sem relações
estreitas entre governança, nova economia e indústria. É preciso re-

259
pensar, portanto, as formas de organização dos meios mais bem adap­
táveis à produção e à distribuição dos bens e serviços de amanhã.

Notas

1 Tradução de parte do Capítulo 5. Piloter: les manages de la complexité. ln

L '.bomme symbiotique reganis sur !e troisieme millénaire. Seuil, 1995, p. 183-222, por

Maria José Gadelha. Revisão: Sylvia Gradei Vicente (excerto autorizado pelo autor).
.
Revisão técnica final: Edgard de Assis Carvalho.
2 Escritor, professor e diretor do Desenvolvimento e das Relações Interna­

cionais de Cidade das Ciências e da Indústria, Paris, França.


1 A metáfora do "holograma social" 1
PABLO NAVARR02 1

A
noção de complexidade não admite uma aproximação simples.
As realidades complexas são tanto processo quanto resultado, me­
canismos generativos subjacentes e, ao mesmo tempo, produto mani­
festo dos mesmos. Neste artigo trataremos de um desses mecanismos
geradores de complexidade, o modelo de organização holográfico: uma
forma de organização em que, como se verá, as partes que compõem
uma determinada realidade contêm informações acerca da totalidade
da mesma e, por isso, são de certo modo capazes de constituir tal
realidade autonomamente, cada uma por sua conta.
A holografia é, em seu sentido originário, um procedimento de
fotografia sem lente, idealizado nos anos 40 pelo engenheiro Dennis
Gabor (Pribram, K H. e Martín Ramírez, J., 1980). Mediante tal proce­
dimento, é possível gerar imagens tridimensionais de objetos flsicos a
partir da impressão, em uma placa fotográfica, dos padrões de interfe­
rência entre dois feixes de luz coerente (monocromática e em fase): um
que ilumina diretamente a placa e outro que resulta refletido pelo obje­
to. Estes padrões de interferência plasmados na placa constituem o ho­
lograma, que codifica a informação necessária para reconstruir a ima­
gem em três dimensões dq objeto original. A reconstrução se realiza
iluminando a placa com um raio de luz idêntico ao que a imprimiu
diretamente.
Os quatro aspectos talvez mais fascinantes da técnica holográfi­
ca são, em primeiro lugar, a transformação da representação bidimen­
sional do objeto inscrita no holograma, em uma imagem tridimensio­
nal que reproduz a inteira aparência desse objeto. Em um holograma
(do grego halos, total, e gramma, inscrição ou desenho) se encontra
presente, codificada em duas dimensões, uma informação em certo
modo completa das características especiais do objeto representado.
Em segundo lugar, destaca-se o fato de que essa informação obtida no
holograma não guarda nenhuma semelhança aparente com a imagem
que a partir dela se gera. Visto com luz natural (incoerente), um holo­
grama tem o aspecto de uma placa fotográfica semivelada, em que
apenas se podem distinguir certos traços mais ou menos concêntricos.
Uma terceira e surpreendente diferença entre uma fotografia
normal e um holograma reside no modo como a informação se acha
distribuída em um e outro caso. Em uma fotografia, cada parte da
mesma representa uma parte específica do objeto que representa. Em
um holograma, pelo contrário, cada parte - cada região do mesmo -
contém informações sobre a totalidade do objeto correspondente. As­
.
sim, enquanto uma fotografia rasgada pela metade só fornece infor­
mações sobre a metade do objeto que reproduz, cada um dos fragmen­
tos de um holograma permanece contendo informação sobre todo o
objeto holografado - se bem que essa informação é menos nítida
quanto menor é o fragmento em questão. Por último, um quarto as­
pecto da holografia, relacionado com o anterior e digno de ser ressal­
tado, reside no papel constitutivo que desempenha, nesta técnica, a
relação entre as partes do holograma. Cada parte minimamente exten­
sa de um holograma possui uma informação global acerca do objeto
representado. Mas é precisamente a interação entre essas partes que
permite reconstruir visualmente esse objeto com claridade.
Considerados a partir de um ponto de vista geral, estes quatro
aspectos da holografia podem conceber-se como outros tantos princí­
pios organizadores desta realidade abstrata que chamamos "informa­
ção". Em primeiro lugar, a relação entre o holograma e a imagem
tridimensional reconstruída do objeto exemplifica um princípio de
emergência: determinada informação codificada em um certo nível de
realidade pode resultar constitutiva, em um contexto adequado, de
entidades pertencentes a um nível de realidade superior, irredutível ao
primeiro. Segundo, a codificação da informação acerca de um objeto
emergente, tal e como se materializa nesse nível de realidade subjacen­
te ao mesmo - no "plano generativo" correspondente ao holograma -

262
, não tem por que resultar isomorfa ao modo como essa informação se
encarna e manifesta no domínio emergente - o objeto visualmente
reconstruído. Cabe denominar o princípio de transducção informaci­
onal a este padrão de organização da informação.
Em terceiro lugar, o estilo holográfico de organização da in­
formação estabelece uma peculiar relação entre as partes de um todo
e essa mesma totalidade. Uma relação pela qual as partes codificam
de algum modo - ou, com maior precisão, possuem modelos gene­
rativos - a totalidade na que se incluem. Pode-se dar o nome de
princípio do todo nas partes a esta sutil relação de inclusão mútua,
dinâmica e generativa, entre a totalidade e os elementos subjacentes
que a compõe. Por último, e como já se tem apontado, as partes de
um holograma constituem a referida totalidade, como realidade
emergente, a partir desta codificação própria - desses modelos gene­
rativos nelas presentes -, mas também de maneira cooperativa, por
meio de processos de interação entre as mesmas. Tratar-se-ia de um
princípio de constituição interativa segundo o qual é justamente
através das interações das partes - que compõem o chamado "plano
generativo" - que se cria o objeto emergente codificado nessas partes.
Mais além de sua concreção tecnológica originária - como ho­
lograma fotográfico ou ótico -, a noção de holograma parece captu­
rar, mesmo de forma metafórica, um princípio de organização geral
que estaria presente em muitos e diversos domínios do real. Assim,
por exemplo, um organismo pluricelular tem um estilo de organiza­
ção em certo modo análogo ao holográfico (Morin, E., 1986): a partir
de um determinado genótipo - que cumpriria uma função equivalen­
te à da placa que contém o holograma - se gera uma realidade emer­
gente, o fenótipo desse organismo. Um fenótipo cujas características
não guardam uma relação de isomorfia, ao menos manifesta, com a
realidade subjacente que o produz, o referido genótipo.
Observe-se, ademais, que esse genótipo está presente, como
genoma, em cada uma das células - das partes constitutivas básicas
- do organismo pluricelular em questão. De modo que cada uma
d as células de um organismo pluricelular cod ifica, no genoma que
contém, a informação em princípio necessária para constituir esse
organismo inteiro. E, efetivamente, essas células constituem, produ-

263
zem e reproduzem a totalidade emergente de tal organismo de m a­
neira conjunta, através de complexos processos de i nteração bioquí­
mica - equivalentes aos "padrões de interferência" materializados
no holograma. Esta organização do organismo pluricelular como
"holograma biológico" seria o fundamento da aparição no mundo
da vida de domínios de realidade claramente emergentes, como for­
mas de condutas complexas e fenômenos mentais.
Contemplada de um ponto de vista extremamente geral, é pos­
sível associar a idéia de holograma com a noção matemática de "auto­
similaridade" (Gleick, J., 1987). Um objeto é auto-similar quando exi­
be a mesma ou parecida estrutura em qualquer uma de suas escalas de
descrição. Esta peculiaridade é característica dos chamados "objetos
fractais", como o conjunto de Mandelbrot (Mandelbrot, B., 1 975).
Assim, a noção de "auto-similaridade" pode entender-se como uma
versão matemática das idéias de "auto-reflexividade" e "auto-referên­
cia" (Bartlett, S. e Suber, P., 1987). Conforme se tem sugerido, um
holograma, óptico ou biológico, é, de certo modo, um objeto auto­
similar, essencialmente redundante, em uma, pelo menos em um, de
seus níveis de descrição. Daí que pode concebê-lo, também, como um
objeto auto-reflexivo e auto-referente: pois esse nível auto-similar, de
um modo ou de outro, "se refere a si mesmo", se auto-reflete, ao mes­
mo tempo que "representa" o objeto que gera como totalidade emer­
gente.
Convém ressaltar, brevemente, que a idéia de holograma tem
sido aplicada também em outros âmbitos científicos - por exemplo,
para modelizar a dinâmica dos processos neurais no cérebro (Pribram,
K. H. e Martín Ramírez, J., 1980). Por outro lado, a idéia de objeto
fractal está sendo utilizada em áreas de conhecimento muito diversas,
incluída a cosmologia, nas quais certas teorias o usam como elemento
conceituai básico para descobrir a estrutura do Universo em seu con­
junto (Linde, A., 1994; Martínez, V. J. � outros, 1995).
No campo das ciências sociais, a noção de holograma tem sido
utilizada como metáfora ilustrativa de fenômenos sociais por Jesús
Ibánez e Edgar Morin e, posteriormente, pelo autor deste artigo. O
conceito de holograma é, como já se tem visto, complexo, e seu uso
metafórico admite múltiplas facetas. Assim, Ibáfiez utiliza a distinção

264
entre luz coerente e luz incoerente para expressar as diferenças existen­
tes entre as imagens da realidade social geradas, respectivamente, pelos
métodos de investigação "distributivos" - basicamente, a pesquisa es­
tatística - e "estruturais" - como o grupo de discussão.
Em ambas modalidades de amostragem (estatística e estrutural)
há uma diferença comparável à que existe entre um fotograma (obti­
do por reflexão de uma iluminação incoerente, como a luz solar na
qual as radiações não se encontram em fase) e um holograma (obtido
por reflexão de uma iluminação coerente, como a do laser, em que
todas as radiações estão em fase); cada parte do fotograma contém
informações sobre uma parte do objeto (se se parte pela metade, per­
manece toda a informação da metade correspondente do objeto); cada
parte do holograma contém informação sobre todo o objeto (se se
parte pela metade, permanece uma informação sobre todo o objeto).
Na pesquisa estatística cada unidade de informação é independente
das demais (por isso é necessário uni-las depois com o cimento lógico
d as análises estatísticas) - como a luz incoerente -; no "grupo de
d iscussão", em contrapartida, obteremos um discurso que está estrutu­
rado - como a luz coerente (Ibáfiez, J., 1 979, pp. 264-265).
Tudo parece indicar, com efeito, que, em determinados contex­
tos, os atores sociais humanos mostram uma capacidade congênita
para pôr suas percepções sociais "em fase", para captar a "longitude de
onda" da situação de interação que enfrentam e, assim, para "entrar
em ressonância" uns com outros. Mas se tal coisa é possível é porque
cada um desses atores dispõe de um acervo de padrões de ressonância
interativa que lhe permite eleger a longitude de onda adequada a cada
situação e, deste modo, comunicar-se e desdobrar sua ação social em
uma complexa rede de expectativas recíprocas. A atualização da referi­
da capacidade para "entrar em sintonia" ou "em fase", através da evo­
cação dos acervos mais ou menos similares de "padrões de ressonância
interativa" que possuem os participantes no "grupo de discussão",
seria, segundo parece dar a entender Ibáfiez, o objetivo desta técnica
de investigação social. A importação por Ibánez da metáfora holográ­
fica ao terreno da teoria sociológica tem sugerido desenvolvimentos
ulteriores (Navarro, P., 1 994), que pretendem ampliar e precisar seu
potencial explicativo neste campo.

265
Nesse contexto, é possível assumir como hipótese de trabalho a
afirmação geral de que as realidades sociais próprias de nossa espécie
se estruturam segundo um estilo de organização semelhante ao holo­
gráfico. E isso por várias razões. Em primeiro lugar, as sociedades
humanas se constituem basicamente em dois níveis de realidade: um
nível subjacente, generativo, "genotípico"; e um nível emergente, "fe­
notípico'', produzido a partir do anterior. Os elementos constitutivos
do primeiro nível são os sujeitos individuais como realidades de cons­
ciência. O segundo nível - o "fenotípico" - não é outro senão o
aspecto macro-objetivo das realidades sociais humanas - a faticidade
mesma do social. Encontramo-nos aqui com uma versão indubitavel­
mente sui generis do "princípio de emergência" já comentado.
Em segundo lugar, o tipo de informação que determina a es­
trutura das sociedades humanas em seu "plano generativo" - consti­
tuído pelas consciências individuais - não guarda necessariamente
uma relação de isomorfia com a classe de informação que estrutura
o domínio emergente dessas sociedades - seu aspecto macroobjeti­
vo. Mais que isso, não apenas não se verifica uma isomorfia manifes­
ta entre ambos níveis de realidade, como também um e outro per­
tencem, prima facie, a domínios ontológicos distintos - subjetivo o
primeiro, "objetivo" o segundo. O "princípio de transducção infor­
macional", ao que se fez referência anteriormente, também é neste
caso um princípio de transducção ontológica.
Além disso, as realidades sociais humanas se caracterizam por
estar compostas por unidades - os sujeitos individuais - que estão de
posse de modelos dinâmicos, generativos e, em certo modo, comple­
tos, dessas mesmas realidades. Cada membro de uma sociedade dispõe
de um modelo próprio, idiossincrático - e que se produz e reproduz
a si mesmo constantemente -, dessa sociedade em que habita. Uma
sociedade que não é, no "plano generativo", senão o conjunto desses
modelos. Se trata do "princípio do todo nas partes" característico,
como se viu, do modo de organização holográfico. Por último, as
sociedades humanas se organizam segundo um "princípio de consti­
tuição interativa". Aquele que as constitui no "plano generativo" é
justamente a interação entre suas partes componentes - os sujeitos
individuais. E esta interação é também o que, em última instância,

266
determina os aspectos típicos dessas sociedades no plano "macroobje­
tivo" emergente. Este plano "macroobjetivo" se limita a transduzir em
um âmbito de realidade próprio, diferenciado - daí seu caráter emer­
gente -, a dinâmica do domínio interativo que o subentende.
Sem dúvida, e apesar de tudo o que foi dito, todavia não se tem
feito uma referência adequada à propriedade mais peculiar e significa­
tiva do "holograma social". É uma dupla propriedade, que diferencia
radicalmente as sociedades humanas de outras realidades organizadas
também de forma holográfica, e que converte o holograma social em
um objeto muito mais complexo que seus análogos ópticos, neurais
ou biológicos. Se trata, por um lado, do que se chamará a inserção do
"plano emergente" sobre o "plano generativo" e, por outro, do caráter
ultra-holográfico de ambos. Nas realidades sociais humanas, o "plano
generativo" - as consciências dos sujeitos individuais - não se limita
a determinar de maneira subjacente o "plano emergente" - os aspec­
tos "macroobjetivos" do social.
Esse "plano generativo'' inclui em si mesmo representações
explícitas da emergência que ele mesmo gera - do próprio domínio
"macroobjetivo". É como se, nas sociedades humanas, o fenótipo -
que em certo modo inclui o genótipo que o constitui - estivesse, por
sua vez, explicitamente incluído nesse genótipo. Para dizê-lo em ter­
mos talvez mais familiares: nas realidades sociais humanas, o domí­
nio macrossocial não é simplesmente produto do âmbito microsso­
cial, e isso porque penetra explicitamente nele. E o faz através das
representações idiossincráticas e mais ou menos elaboradas que as
consciências dos sujeitos individuais engendram espontaneamente
acerca desse domínio. Esta nidificação mútua do genótipo e do fe­
nótipo social ou, se preferir, esta reflexividade entre os níveis macro
e micro atua como uma poderosíssima fonte de complexidade e está
na origem do impressionante potencial de troca das sociedades hu­
manas - sobretudo das modernas (Lamo de Espinosa, E., 1 990).
Além disso, a referida inserção reflexiva dos níveis generativo
e emergente, micro e macro, tem, como já se apontou, um caráter
"ultra-holográfico" . . Q!ier dizer, pode nidificar-se indefinidamente,
em sucessivos níveis recursivos, em quaisquer dos pontos - das cons­
ciências - do holograma social. Esta propriedade se instrumenta por

267
meio das capacidades auto e heterorreflexivas da consciência huma­
na: eu posso imaginar o modo como alter concebe a realidade social,
tanto em nível micro - em relação com uma situação concreta de
interação - quanto macro. Mas posso representar-me assim mesmo
o modo como alter imagina as concepções correspondentes de um
segundo alter, e também o modo como alter imagina que este segun­
do alter imagina, a sua vez, as de um terceiro, etc.
Esta capacidade, especificamente humana e potencialmente in­
finita, de representação recursivamente transconsciente não apenas nm­
ciona em sentido transitivo, como também de maneira propriamente
reflexiva: eu posso imaginar a forma como alter concebe minhas pr6-
prias concepções acerca da realidade social - acerca de qualquer outra
realidade. Trata-se de uma capacidade que se pode denominar, com
certa propriedade, "ultra-holográfica": em cada parte - no seio de
cada consciência individual - não s6 é possível representar o todo,
mas também uma pluralidade de partes, cada uma das quais pode, por
sua vez, e em sucessivos níveis recursivos, representar esse todo.
Esta faculdade ultra-holográfica da consciência humana está na
origem da complexidade característica do modo de ação, do aglucia­
mento pr6prio de nossa espécie. Representa, por isso mesmo, o meca­
nismo hiper-reflexivo que subtende a constituição das realidades soci­
ais humanas e que explica tanto a exuberância estrutural das mesmas
quanto seu fabuloso potencial de troca - em definitiva, sua riqueza
morfogenética (Navarro, P., 1996). A noção de "holograma social"
corre o risco de ser radicalmente mal entendida se a relação à que
alude entre as partes e o todo é interpretada de maneira trivial e, em
certo modo, invertida: como uma relação de c6pia ou mímesis.
A idéia de holograma social propõe aproximadamente o con­
trário do que certa tradição, talvez dominante, do pensamento soci­
ológico pretende assumir. A saber, que "a sociedade" é, na essência,
uma realidade que subsiste acima dos indivíduos, na forma de uma
"consciência coletiva" - sistema de normas, cultura, ideologia etc. E
que os sujeitos sociais assumiriam a condição de agentes sociais e se
definiriam como tais, meramente a partir d a "interiorização" e "re­
produção" dessa realidade externa e superior a eles. Deste ponto de
vista holográfico, as "partes" não mimetizam o todo social, mas cons-

268
tituem-no, do mesmo modo que o genótipo de um organismo não é
uma "c6pia" de seu fenótipo, mas seu "original", as consciências dos
sujeitos individuais não são imitações em miniatura do que, ao final
de contas, é seu produto emergente - a "ordem social"-, mas causa
do mesmo. Em realidade, e devido à reflexão característica dos ní­
veis macro e micro, não há um todo social, mas tantas versões do
mesmo como sujeitos individuais que o postulam.
O holograma social que tende a se constituir como o meca­
nismo hiper-reflexivo da consciência humana é, sem dúvid a, si­
multaneamente necessário e impossível. É necessário porque não
podemos deixar de construí-lo imagi nariamente no curso de nossa
ação social - como não podemos atuar sem assumir o postulado
de nossa liberd ade. Necessitamos crer que podemos entender os
outros para atuar socialmente com sentido, e a execução dessa crença
coincide com a constituição reflexiva de nosso próprio holograma
social individual. Mas essa crença pode ser irremediavelmente des­
frald ada, e sua execução revelar-se, tarde ou cedo, impossível: a
intenção de reproduzir reflexivamente as consciências alheias fra­
cassa sempre, de um ou outro modo, e o holograma imaginário
deve ser mais uma vez reconstruído, como um castelo de naipes
permanentemente refeitos e destinados sempre a ser novamente
derrubados.
Como surge o alud ido aspecto "macroobjetivo" do social, a
partir d esse mecanismo de socialidade reflexivamente holográfi­
co que é próprio do ser humano? Neste aspecto, o paradoxo é
notável: pois tal aspecto "macroobj etivo" não surge desse meca­
nismo, mas precisamente d as limitações intrínsecas do mesmo. O
fator que causa a emergência dos aspectos reificados d a vida soci­
al - cada vez mais potentes e abarcadores nas sociedades moder­
nas - não é a reprodução d a intencionalidade dos agentes sociais
na consciência de cada um desses agentes, mas os processos de
dissipação dessa i ntencionalidade no processo mesmo d a intera­
ção entre tais agentes. Pois essa dissipação intencional é um fenô­
meno criativo que, em lugar de conduzir a um incremento global
da desordem da sociedade, origina a aparição de novas estruturas
não submetid as diretamente ao controle reflexivo das consciênci-

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as dos agentes que i nduzem com sua ação a emergência d essas
estruturas. Com efeito, estas estruturas são - por sua própria fo r­
ma de se constituírem não a partir d a intenção dos agentes soci­
ais, mas das conseqüências inopinad as e por vezes indesejadas
dessa intenção -, autênticas estruturas dissipativas intencionais
capazes de controlar a ação dos indivíduos através d a própria
opacid ade que lhes dá origem (Navarro, P., 1 996).

Notas

1 Tradução: Júlio César Gurgel.


Revisão: Edgard de Assis Carvalho.
2 Professor de Sociologia da Universidad de Oviedo, Espanha.

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realidade em

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