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Ensaios de
Complexidade
GUSTAVO DE CASTRO
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA
organizadores
0
Editora Sulina
PORTO ALEGRE, 1 997
© de Gustavo de Castro (org.), 1997.
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Porto Alegre, RS
Abertura, 11
Apresen taçã.o, 13
EDGAR MORIN
Complexidade e ética da solidariedade, 15
FREI BETTO
Indeterminação e complementaridade, 47
LEONARDO BOFF
Identidade e complexidade, 61
NELSON FIEDLER-FERRARA
Literatura e complexidade, 75
WI NI FRED KNOX
Apontamentos para um diálogo complexo, 91
ALEX GALENO
Complexus andarilhos, 123
DIETMAR KAMPER
Os padecimentos dos olhos, 131
JOSIMEY COSTA
Criar, comunica.r e expandir, 153
MARCELO BOLSHAW
Linguagens imaginais e complexidade, 159
ÂNGELA ALMEIDA
Corpo CorPensamentoComplexus, 165
GUSTAVO DE CASTRO
... Da fragilidade do homem-rede, 171
OTÁVIO TAVARES
ldéiasforça em ação, '199
MARCOS ROLI M
Utopia, democracia e complexidade, 219
JOEL DE ROSNAY
O homem: gênio individual idiota coletivo, 241
PABLO NAVARRO
A metáfora do holograma social 261
Abertura
EDGAR MORIN l
12
1 Apresentação
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA 1
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
14
1 Complexidade e ética da solidariedade
EDGAR MORI N' 1
16
eles são. Hoje sabemos que ele pr6prio se enganou em muitos aspectos
importantes.
O trabalho que realizei chamado de "O Método" objetiva en
frentar esse desafio cognitivo, elaborar e encontrar operadores - ins
trumentos do conhecimento, que efetivamente permitam abordar a
complexidade. Esses instrumentos não foram inventados, mas, em al
guns aspectos, foram desenvolvidos e sobretudo reagrupados por mim.
O primeiro deles é a noção de sistema. Um sistema é o conjun
to de partes diferentes, unidas e organizadas. Assim, por exemplo, a
sociologia define a sociedade como um sistema; e, evidentemente, ela
é constituída de indivíduos e grupos sociais extremamente diferentes.
Mas não podemos conhecer a sociedade a partir de indivíduos e gru
pos tomados isoladamente. É preciso juntar as partes ao todo, e o todo
às partes.
E por que o todo? Porque a sociedade é um conjunto de panes,
que produz qualidades e propriedades como a linguagem, a cultura, as
regras, as leis. Ela mesma retroage sobre os indivíduos e lhes permite
ser perfeitamente humanos. Pois, sem a linguagem e a cultura, sería
mos macacos de nível inferior.
Essa idéia � muito importante: um todo organizado produz
qualidades e propriedades que não existem nas partes tomadas isola
damente. Sabemos, por exemplo, que uma bactéria é constituída uni
camente de elementos químicos que encontramos na natu�eza. A vida
é constituída de moléculas, mas a organização vivente tem qualidades
que não podemos encontrar nas moléculas tomadas isoladamente. A
qualidade é de poder se mover, conhecer e se regenerar.
Portanto é necessário ter um pensamento que possa conceber o
sistema e a organização, pois tudo o que conhecemos é constituído da
organização de elementos diferentes - os átomos, as moléculas, os
astros, os seres vivos, os ecossistemas, a biosfera, a sociedade e a huma
nidade. Este, um operador de primeiro nível.
A segunda idéia é de circularidade, em inglês looping, formulada
por Nobert Wiener, que diz respeito ao caráter retroativo do sistema.
Tomemos como exemplo o sistema de aquecimento central, onde o
apartamento que é aquecido tem um termostato. Q.iando a tempera
tura que desejamos é alcançada, o termostato pára o aquecimento; se a
temperatura não é suficiente, o termostato desencadeia o sistema fa-
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zendo-o reaquecer. Este exemplo muito simples tem conseqüências
importantes: ao contrário da idéia linear de que toda causa tem um
efeito, ele sugere uma causalidade circular, onde o próprio efeito volta
à causa. Graças a este sistema obtém-se a autonomia térmica do aparta
mento que se quer aquecer. Há uma ruptura com o determinismo
banal, porque o determinismo banal diria que quando está frio fora
deveria estar fazendo frio dentro.
A terceira idéia, mais uma vez, uma idéia de circularidade, de
looping, mas um looping autoprodutivo. Por exemplo, nós somos o
produto de um ciclo de reprodução, que produz gerações após gera
ções. Mas, para continua.rmos este ciclo, é necessário que nós, que
somos produtos, nos transformemos em produtores. Portanto, neste
sistema, o produto é ele próprio produtor. O efeito é ao mesmo tem
po uma causa.
Retomando o exemplo da sociedade, sabemos que toda socieda
de é produzida pela interação entre os indivíduos, e, se não há mais
indivíduos, não haverá mais sociedade; poder haver monumentos, par
lamentos, mas não sociedade. Os indivíduos produzem a sociedade,
mas, como dizíamos, a própria sociedade, ela mesma com sua cultura
e linguagem, retroage sobre os indivíduos. Somos produtos e produto
res ao mesmo tempo.
Vemos aqui a diferença entre o pensamento clássico, que tem
uma casualidade linear, e uma casualidade complexa, que permite re
juntar fenômenos que, senão, permaneceriam isolados em nosso
espírito.
Outro operador é aquele que chamo de "hologramático". Por
que hologramático? Qiando temos a imagem de um holograma, a
diferença entre esta e uma imagem de fotografia é que, na fotografia,
cada ponto corresponde a um ponto do objeto fotografado. Enquanto
no holograma, um ponto contém praticamente toda informação do
objeto. Por exemplo, se temos uma locomotiva num holograma e a
cortamos ao meio, nós não ficamos com duas metades de uma loco
motiva, mas com duas locomotivas inteiras.
A mesma coisa acontece com o organismo vivo e a organização
social. Nós somos constituídos de 80 a 100 bilhões de células. No
entanto, cada célula contém a totalidade de nosso patrimônio genéti
co. Alguns já estão pensando que é possível construir clones a partir de
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uma célula da pele. E cada um entre nós poderia reproduzir-se em
centenas de milhares de exemplares.
Esta idéia não só quer dizer que a parte está dentro do todo,
mas que o todo está no interior da partes. Nós mesmos somos indi
víduos que estamos dentro da sociedade, mas a sociedade como um
todo está presente em nós desde o nosso nascimento. Nós recebemos
as proibições, as normas, a linguagem e, finalmente, a presença da
sociedade entre nós. Há um outro operador, ao qual chamo de "dialó
gico", que significa que, para compreendermos alguns fenômenos com
plexos, é necessário que juntemos duas noções que a princípio são
antagônicas, e que são, ao mesmo tempo, complementares.
Por exemplo, a fórmula de um grande filósofo da antiguidade
Heráclito, "viver de morte e morrer de vida". Trata-se de uma fórmula
paradoxal, pois se há duas idéias que são totalmente antagônicas são a
morte e a vida. Um grande cientista do século XIX, que se chamava
Bichat, definia a vida como um conjunto de forças que resiste à morte.
No entanto, hoje em dia, com o progresso do conhecimento
biológico, ficamos sabendo que estas forças resistem à morte utilizan
do a morte. Como? Sem parar, nosso organismo tem moléculas que se
degradam, e nossas células as substituem por moléculas novas; nossas
próprias células morrem e novas células vêm no lugar destas. Dito de
outra maneira, nossa vida, através da morte das nossas células e das
nossas moléculas, continua. Este processo esclarece a fórmula de Herá
clito "viver de morte"; da mesma forma as sociedades vivem da morte
dos seus indivíduos, pois a cultura é transmitida às novas gerações, e
assim se regenera.
Mas por que morrer de vida? Porque a grande diferença entre
nós, nosso organismo, e as máquinas artificiais é que elas são construídas
de materiais extremamente resistentes e sólidos, que começam a ser
usados pouco a pouco, a partir do momento em que são postos em
funcionamento. Mas nós não nos usamos como máquina, as moléculas
e as células usadas se reproduzem e são trocadas.
Por outro lado, a cada respiração, inspiramos oxigênio, que é
uma forma de desintoxicação e que vai circular em nosso sangue,
limpando-o em cada batida cardíaca. Viver é um processo de rejuve
nescimento permanente. Nos rejuvenescemos a cada batida do cora
ção, de 60 a 80 por minuto. Multiplicando por 60 temos o tempo de
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rejuvenescimento por hora, e assim, multiplicado por meses e pelos
anos, compreendemos que morremos de tanto nos rejuvenescer. Nós
morremos porque rejuvenescemos demais. Deste modo entendemos o
sentido do princípio dialógico: a vida integra, ela própria, a morte;
ainda que finalmente ela sucumba.
Qiando observamos o que os ecologistas chamam de "ciclo
nutritivo da natureza", que permite aos seres humanos, aos animais e
aos vegetais viverem e se alimentarem, vemos que é um ciclo de vida
que também é um ciclo de morte. Pois temos animais herbívoros que
comem as plantas, que serão comidos por pequenos carnívoros, que
serão comidos por grandes carnívoros, e, quando os grandes carnívo
ros morrerem, haverá insetos, vermes, que vão se alimentar. E os sais
minerais, que são frutos dessa decomposição, serão aproveitados pelas
raízes das plantas. Vemos o ciclo de morte e o ciclo de vida. Isso induz
evidentemente ao princípio dialógico.
Outro princípio muito importante, indispensável nas ciências
humanas e sociais, permite rejuntar aquele que conhece ao seu conhe
cimento, ou seja, integrar o observador à sua observação, e o conhece
dor ao seu conhecimento. Por exemplo, o sociólogo, ele é a parte de
um todo social, e o todo está dentro dele. Evidentemente ele não pode
ter um ponto de vista objetivo, que lhe permita dominar, como de um
trono, o conjunto da sociedade. Ele tem de fazer um trabalho de auto
análise, de auto-exame, para tentar se situar e saber que não é proprie
tário de um verdadeiro conhecimento já de início, mas que esse co
nhecimento é relativo.
O mesmo acontece com os antropólogos. No início do século,
os antropólogos ocidentais pensavam que eram proprietários da razão
e do conhecimento objetivo. Lévy-Bruhl, grande antropólogo francês
do início do século, caracterizava as sociedades, que chamava de pri
mitivas, de sociedades compostas de indivíduos de mentalidades má
gicas e místicas. Ele não se perguntava como esses indivíduos eram
capazes de construir instrumentos e estratégias de caça extremamente
racionais e eficazes. Diante de novas condições históricas, a Europa
ocidental deixou de ser o centro do mundo e se transformou numa
pequena região marginalizada, houve uma mudança no ponto de vis
ta dos antropólogos, que descobriram que havia riquezas de conheci
mento nas populações arcaicas, que havia conhecimento de plantas e
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remédios. Eles não só tinham um conhecimento da natureza, que
nossa farmacêutica não conhecia, mas praticavam também arte de vida
e sabedoria que nós não tínhamos.
É preciso notar que toda cultura, que poderia ser considerada
por nós arcaica e primitiva, contém, nela própria, uma mistura de
sabedoria, de verdades profundas, de conhecimentos, e de erros e su
perstições. Mas nossa sociedade também tem os mesmos elementos de
conhecimento, de verdade, de erros e superstições. Freqüentemente o
que chamamos de razão é algo profundamente irracional.
A introdução do conhecedor no conhecimento é indispensável
nas ciências humanas. É também indispensável para a nossa reflexão
sobre a ciência da natureza saber quem somos nós na história da vida?
Nós não somos a finalização lógica da evolução biológica. Essa evolu
ção aconteceu em todas as direções, foi animal e vegetal, e, depois de
toda uma seqüência de linhagem, desembocou na humanidade. Nós
somos um elemento na história da vida, da mesma forma que nós
consideramos hoje o cosmos, estamos num pequeno planeta, satélite
de um sol de periferia que, por sua vez, faz parte de uma galáxia
periférica - a da Via Láctea. É impossível considerar a humanidade o
centro do mundo, é impossível pensar que o objetivo da humanidade
seja conquistar a natureza. Se integrarmos nosso conhecimento, pode
remos situar-nos com a nossa consciência, uma consciência Ínais váli
da do que se não fizéssemos esses exames.
Eu lhes apresentei alguns instrumentos, e todos eles têm a pro
priedade de reunir o que está separado, sendo que os dois mais impor
tantes são as idéias de circularidade e de dialógica. Qiando temos
esses instrumentos, que aprendemos sozinhos, não basta uma aula ou
conferência, a questão é de estrutura de pensamento, e, quando esta
estrutura é fixada muito cedo na escola, ela se endurece e se torna
diflcil de mudar. Trata-se de um princípio que chamamos de "para
d igma". Os paradigmas são estruturas de pensamento que de modo
inconsciente comandam nosso discurso.
A história do mundo e do pensamento ocidentais foi comanda
da por um paradigma de disjunção, de separação. Separou-se o espíri
to da matéria, a filosofia da ciência; separou-se o conhecimento parti
cular que vem da literatura e da música, do conhecimento que vem da
pesquisa científica. Separaram-se as disciplinas, as ciências, as técnicas.
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Separou-se o sujeito do conhecimento do objeto do conhecimento.
Assim, vivemos num mundo em que é cada vez mais difícil
estabelecer ligações, quando se trataria de enraizar outra estrutura de
pensamento. Para isso é preciso, evidentemente, uma ruptura do
ensino, que permita juntar ao mesmo tempo que separa. O conheci
mento complexo conduz ao modo de pensar complexo, e esse modo
de pensar complexo, ele próprio, tem prolongamentos éticos e exis
tenciais, e talvez até políticos.
Por exemplo, uma sociedade extremamente complexa, uma
sociedade em que indivíduos e grupos têm muita autonomia e que,
evidentemente, há desordens e liberdades, no limite ela se destrói,
pois os indivíduos e grupos não mais têm relações entre si. Pode-se
manter a coesão da sociedade através de medidas autoritárias, mas a
única maneira de salvaguardar a liberdade, é que haja o sentimento
vivido de comunidade e solidariedade, no interior de cada membro,
e é isso que dá uma realidade de existência a uma sociedade comple
xa. Portanto, a solidariedade é constituinte desta sociedade. O pen
samento que une o modo de conhecimento se prolonga para o plano
da ética, da solidariedade e da política. Há uma ética d a complexida
de que é uma ética de compreensão.
Essa ética se explicita quando compreendemos que cada ser hu
mano é, ao mesmo tempo, múltiplo em sua unidade, que ele não é o
mesmo quando está apaixonado ou enraivecido, que ele mesmo pode
viver situações que o fazem pegar outro caminho, em vez do que deve
ria. Chegamos à compreensão de que, da mesma maneira que vemos
nossos próximos, as pessoas com as quais vivemos, em vez de reagir de
modo mecânico cada vez que entramos em conflitos, achando que são
elas que estão erradas, lembrando apenas das coisas desagradáveis que
nos dizem, esquecemos as coisas desagradáveis que nós lhes dizemos.
Qiando fazemos isso não percebemos que há uma circularida
de numa briga e num conflito. Na maioria das vezes não é um que
está certo ou errado, mas é a circularidade na incompreensão que os
leva ao conflito e à incompreensão.
Portanto há uma ética da compreensão e, por outro lado, uma
ética da aposta em relação à incerteza. Sabemos que Kant formulou
uma moral, um princípio de universalidade que diz que "nós deve
mos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles fizessem a nós
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mesmos e tratar com eqüidade todo outro, independente de sua raça e
de sua religião».
No entanto essa ética kantiana só leva em conta a intenção e
não a materialidade da ação. O pensamento complexo nos diz que há
uma ecologia da ação. A partir do momento em que lançamos uma
ação no mundo, essa vai deixar de obedecer às nossas intenções, vai
entrar num jogo de ações e interações do meio social no qual acontece,
e seguir direções muitas vezes contrárias daquela que era nossa inten
ção. Logo nunca estamos certos se nossas boas intenções vão gerar
boas ações.
É por isso que a resposta a essa incerteza se encontra ao mesmo
tempo na aposta e na estratégia. Na aposta, pois não temos absoluta
mente certeza de conseguir os resultados que queremos; na estratégia,
que permite corrigir nossa ação, se vemos que ela deriva e vai para
outro caminho.
Q!iantas pessoas estavam persuadidas de agir para o bem da
humanidade, sem se dar conta de que, na verdade, trabalhavam para
sua escravidão. Aqueles que puderam se dar conta disto tiveram, de
certo modo, de abandonar esta ação, para melhor obedecer àquilo que
era a sua intenção primeira. Eles foram chamados de "traidores e rene
gados". É por isso que a ética se toma difícil e complexa, senão nós
corremos o risco de errarmos demais.
Existe uma ética da tolerância fundada em três princípios. O
·
primeiro foi enunciado por Voltaire, que dizia a um adversário de
idéias: "suas idéias me são odiosas, mas morrerei pelo direito que você
tem de exprimi-las,.; dessa maneira ele enunciava o princípio da livre
expressão, que é um dos direitos humanos. O segundo princípio de
tolerância está na instituição democrática, porque a democracia é o
sistema que permite e encoraja o conflito de idéias, à condição que
isso não assuma a forma de afrontamento físico e violento, mas que
seja um conflito de idéias e de argumentação com a sanção de eleições
periódicas. A democracia exige o respeito às minorias, inclusive às
minorias desviantes. O problema difícil que se coloca é que se têm de
suportar algumas minorias que querem destruir a democracia. Esse é
um dos problemas da democracia, mas que se deve respeitar.
O terceiro princípio de tolerância foi enunciado por Pascal,
filósofo francês do século XVII, de uma forma quase que idêntica a
23
Niels Bohr, físico dinamarquês do século XX. Pascal dizia que "o con
trário da verdade não é um erro, mas uma verdade contrária" e Niels
Bohr, que "o contrário de uma verdade profunda não é um erro, mas
uma outra verdade profunda". Qiando estamos a par disso, embora
tenhamos nossa opinião, permanecemos tolerantes.
Muitos dizem que o pensamento complexo desencoraja a ação,
que o reconhecimento da incerteza é desencorajador, muitos pensam
que para agir é preciso odiar o inimigo, ou seja, que é necessário um
pensamento maniqueísta: achar que o inimigo é uma encarnação do
mal absoluto e que nós somos a encarnação do bem absoluto. M as
sabemos que na realidade as coisas não são tão claras. Na nossa época
entendemos que o inimigo está dentro de nós mesmos.
De fato, quando imaginamos a aventura humana, imaginamos
que nossos antepassados habitavam um meio extremamente inóspito
e incerto, que tinham de caçar, quando imaginamos que as sociedades
em conflito e guerra nunca tinham certeza da vitória; quando pensa
mos que estamos numa aventura descon:hecida. Eu acredito que, se
tivermos força suficiente, força de participação, de solidariedade e de
comunidade, corrigiremos a própria ação, mas sem medo de se lançar
nela.
Partindo de um método do conhecimento cheguei em um pen
samento e, de certo modo, em uma filosofia. Filosofia que não signi
fica somente o conhecimento isolado da ética e da ação, mas que se
prolonga nos diferentes campos da existência.
24
1 Comp lexidade, do casulo à borboleta
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA1 1
M
anda quem pode, obedece quem tem juízo. Esse aforismo, cujo
sentido é marcadamente autoritário, pode ser metamorfoseado nos
limites de um pensamento mais libertário. Assim transformo, mutilo e
ressignifico o aforismo acima, enunciando-o na seguinte expressão: "Soli
cita quem tem sabedoria, empresta adesão quem é curioso e atrevido". Sou
naturalmente cúmplice de atitudes pouco disciplinares, pois sei o quanto
é desafiante e gratificante dialogar com outras áreas do conhecimento.
Tenho aprendido muito com filósofos, educadores, cientistas da cogni
ção, psicanalistas. Nos momentos de debate, tento manter em suspensão
meus pontos de vista e minhas referências teóricas, para escutar o que os
colegas têm a dizer.
Nunca saio do mesmo jeito desses encontros. Às vezes, me sinto
acrescida de idéias novas, de pontos de vista que amplificam ou ques
tionam minhas lentes de olhar o mundo. Por vezes, descubro trocas
promissoras, onde imaginava haver uma dificuldade enorme de cone
xão. Ou, ainda, percebo que contribuí de alguma forma para o diálo
go - seja porque desconstruí e desnudei os argumentos nos quais me
aporto, seja porque expus idéias e noções ainda em gestação. Uma
coisa é certa: atitudes não circunscritas à disciplinaridade fechada es
tão como que acondicionadas em um navio sem âncoras - mas não
flutuamos à deriva totalmente. Ao perigo de flutuação sem rumo,
respondemos, coletivamente, com as singularidades dos saberes acu
mulados que nos fazem submergir e emergir num caldo transindivi
dual e transdisciplinar. Temos, entretanto, de ressaltar os perigos e
desperdícios que acercam esses rendez-vous. �anto aos desperdícios, se e
quando eles ocorrem, só tenho a lamentar. Dos perigos, tenho pouco
a dizer, uma vez que deles não procuro fugir. Na vida, como nas
idéias, só é possível dar um passo à frente, se o fazemos perigosamen
te. Não há meio-termo: o perigo prefigura quase sempre "reservas de
complexidade", prontas a emergir e recolocar o sistema em metapata
mares de reorganização. Daí que, para alcançar metapatamares de com
preensão do mundo, o especialista terá de se deslocar do seu mundo
confortável e abrir-se às múltiplas armadilhas da narrativa científica,
que, de resto, comporta nossas próprias armadilhas. Sobre essa pre
missa é que desnudo os sentimentos de incerteza, de risco e de curio
sidade, que me motivam a expor, a partir de uma certa ótica, a idéia de
complexidade. É o que faço a seguir.
Parto de quatro momentos, quatrofragmentos que, mesmo interco
nectados, guardam uma certa singularidade temático-discursiva. Começo
por apresentar um perfil da crise paradigmática que estamos atravessando,
chamando a atenção para o fato de que se trata mais de uma crise do
pensamento do que, propriamente, da falência das intetpretações científi
cas, das teorias. Em seguida, exponho a idéia de complexidade a partir da
ótica de Edgar Morin por três motivos. Em primeiro lugar, por entender
que as proposições/provocações de um "contrabandista dos saberes" (como
ele próprio se denomina) representam uma referência singular na convo
cação de parte da comunidade científica mundial para uma nova reorga
nização do conhecimento. Pautadas na transdisciplinaridade, as proposi
ções morinianas religam os conhecimentos sobre a matéria, a vida, o ho
mem e a sociedade. Em segundo lugar, porque, desde 1985, venho me
alimentando das idéias instigantes desse pensador, o que, se não me faz
sentir completamente familiarizada com sua obra, me instiga a falar dela.
Em terceiro lugar, falo da complexidade em Edgar Morin porque já não
falo em nome próprio, mas em nome do Grecom -, Grupo de Estudos da
Complexidade - base de pesquisa que tem como referência maior nosso
assessor internacional. O terceiro fragmento é movido pelo desejo de apro
ximação entre as idéias que tenho trabalhado e aquelas postas em discus
são pela física Cristina Dai Pian, em disciplinas que ministramos juntas
no âmbito do doutorado em Educação da UFRN. Por fim, um último
fragmento que exibe algumas sugestões para um novo entendimento do
papel do educador no mundo contemporâneo.
26
Fragmento 1 - Crise e incerteza
27
tal apelo fundamenta-se no desejo de superação da disciplinaridade
fechada, da especialização impotente, mas acima de tudo, penso, na
urgente necessidade de refletir sobre a arrogante supremacia da cultu
ra científica sobre os saberes da tradição secular do homem. "A Decla
ração de Veneza", de 1986, e a "Carta de Caracas", de 1992, são, nesse
sentido, documentos emblemáticos, porque, ao mesmo tempo que pre
figuram a insatisfação de pensadores pouco paradigmáticos diante da
parcialidade das interpretações científicas sobre o mundo, lançam tam
bém as bases para uma prática científica ancorada numa ética/estética de
solidariedade universal entre o cientista e o mundo. É nesse sentido que
as provocativas palavras de Michel Foucault, de que "há mais idéias na
terra do que os intelectuais imaginam", facilitam a abertura do pensa
mento para abraçar questões novas, por vezes desconcertantes. Nada
de mal, por exemplo, em hipotesiar com David Bohm sobre a idéia
audaciosa de que, mesmo que o conhecimento se processe no cérebro,
ele se dá principalmente e, em primeiro plano, pela pele, pelo corpo.
A partir de caminhos metodológicos certamente diferenciados,
mas complementarf's, Claude Lévi-Strauss e Edgar Morin vêm demons
trando a relação forte, por vezes indissociável, entre os estados de ser
ou estratégias do pensamento humano, chamando a atenção para o
intercâmbio instável operado pela rigidez/fechamento e autonomia/
abertura das representações sobre o mundo. Desse modo, a estratégia
do bricoleur, não prisioneira das experiências já solidificadas, asseme
lha-se aos "desvios" operados pelo pensamento na contramão d as "ob
sessões cognitivas'', impressas na rigidez paradigmática.
A lista de pensadores que se puseram a afirmar direta ou indire
tamente a crise paradigmática de nosso século, mas também a existên
cia de um núcleo insubmisso e revolucionário do pensamento huma
no, pode ser certamente ampliada. Aos nomes já citados, poderíamos
acrescentar outros como os de Werner Heisenberg, com o princípio
da incerteza, e, mais proximamente, Ilya Prigogine, Renée Weber, Daniel
Dennett, Francisco Varela, Edgard Carvalho, para citar apenas alguns
dos pensadores insatisfeitos com as certezas disciplinares endogamica
mente aferidas.
Mas é preciso cautela. Se é impossível desconhecer a efervescên
cia e não apostar na possibilidade de avanço que o atual debate sobre
a crise paradigmática apresenta, é, por outro lado, um delírio sentir-se
28
vanguardista ao pôr-se essa discussão, e mais ainda, uma insensatez
advogar uma nacionalidade para ela. Malgrado os enunciados equivo
cados que defendem nacionalidades distintas para a ciência, o pata
mar do debate que começa a se consolidar nesse final de século é,
necessariamente, transnacional, planetário.
Pôr-se, portanto, a serviço de um projeto de reconstrução da
ciência supõe hoje, entre outras coisas: diferenciar entre universalis
mo e generalismo; abdicar do papel de árbitro da verdade; criar espa
ços para a dialogia entre saberes múltiplos, deslocando o debate so
bre a ciência para a reflexão sobre o conhecimento; demolir os mu
ros das idéias-pátrias; conviver com a incerteza própria aos momen
tos de criação; trabalhar para o afrouxamento das infra-estruturas
tácitas dos conceitos unívocos, fixando horizontes mais ampliados
em busca da complexidade.
Tal projeto, uma utopia talvez, requer seriedade, perseverança e,
permitam-me a construção, um sujeito euforicamente sereno. Requer tam
bém, esse projeto, a vigilância contra a roupagem nova dos discursos
velhos; a atenção necessária para não transformá-lo em trem do mo
dismo para onde afluirão passageiros que temem, oportunisticamen
te, o antigo; requer, por fim, o exercício firme da desconstrução dos
particularismos vulgares que dificultam uma "ecologia do conheci
mento" humanizante e fundamentalmente "selvagem" (Carvalho, 1992).
Como um exercício auto-reflexivo, devo dizer, ao final desse
primeiro fragmento que, a rigor, o conteúdo já exposto desnuda, ele
próprio, o lugar do qual falo, a mundovisão da qual parto. Feito isso,
passo agora para o segundo fragmento.
29
vida passa a ser entendida a partir de tudo aquilo que nos seres vivos
é comunicação, conhecimento, inteligência. Em suma, a teoria da in
formação e a cibernética (anos 50) vão fornecer uma nova perspectiva
teórica, aplicável simultaneamente às máquinas artificiais, aos orga
nismos biológicos, aos fenômenos psicológicos e sociológicos.
A idéia de complexidade tem, pois, uma origem dispersa. Mas,
se não é rigoroso atribuir uma paternidade única à origem do vocábu
lo nem às suas primeiras zonas de interferência, é imperativo creditar
a Edgar Morin o papel do grande artesão do pensamento complexo e
da idéia de complexidade. Caminhando transversalmente entre os do
mínios da biologia, da física, da teoria da informação, da filosofia, das
ciências da cognição, entre outros domínios, esse pensador errático
tem-se posto a prefigurar as possibilidades de um conhecimento ver
dadeiramente transdisciplinar.
De que metier Morin faz uso para isso? Se é possível identificar
as ferramentas morinianas, estas são a migração conceitua! e a cons
trução de metáforas. Migração conceitua! de um domínio para outro,
o que garante a ressignificação e ampliação de conceitos e noções,
originariamente disciplinares; construção de metáforas e analogias,
que permitem religar homem e mundo, sujeito e objeto, natureza e
cultura, mito e logos, objetividade e subjetividade, ciência, arte e filoso
fia, vida e idéias. A partir desse metier, melhor dizendo, dessas ferra
mentas, Morin tem, sobretudo a partir dos anos 50, formulado incan
savelmente os argumentos, as premissas e os fundamentos de uma
"ciência nova", fundamentos, premissas e argumentos esses que de
vem alimentar, segundo suas palavras, "uma reforma do pensamen
to". Em sua extensa produção - obras metodológicas, temáticas, de
conjuntura, autobiográficas -, uma mesma obsessão: rejuntar, religar,
bricolar, fazer dialogar as áreas e disciplinas fragmentadas pela ciência
e pelo pensamento simplificador/disjuntor.
Mas o que é mesmo complexidade para Edgar Morin?
Poderia dizer numa palavra, como às vezes o faz Morin: comple
xidade é tecer junto, religar, rejuntar. Mas isso é pouco, eu sei e devo
apressar-me para expor, mesmo correndo o risco de simplificação, a
natureza da complexidade e seus três princípios fundamentais.
A primeira coisa a ser dita é que a complexidade está no mun
do, em todas as coisas (materiais ou não). A vida cotidiana é impreg-
30
nada de complexidade. Referindo-se a um romance de Proust, Morin
afirma que "não é simplesmente a sociedade que é complexa, mas
cada átomo do mundo humano". Portanto, a complexidade, antes de
ser uma teoria, um paradigma, um modelo para pensar a matéria, a
vida e o homem, é mais propriamente um atributo de toda a matéria.
Para Morin, ela não se reduz a um modelo científico ou mental ad hoc,
sem sintonia com o mundo. Só é possível pensar complexo porque o
próprio pensamento se move segundo características comuns a toda a
matéria. É obviamente a noção de sistema aberto que está em pauta. A
complexidade é o estado de ser de todos os sistemas abertos, quer
dizer, auto-eco-organizados e organizadores.
Assim, o homem, a sociedade, o meio ambiente, os sistemas de
idéias interagem entre si, por meios de trocas, porque são sistemas
abertos. As informações são, pois, os códigos da dinâmica de comple
xificação de qualquer sistema, sendo que as trocas se dão simultanea
mente, intra e inter-sistemas. Daí que cada sistema - da célula ao
mundo das idéias -, ao receber novas informações, promove uma
reorganização do padrão anterior, que permite a expressão das singu
laridades e desvios, resguardadas as características universais, porque
comuns a todos objetos e fenômenos do mundo. Na acepção morini
ana de complexidade está contida a noção de auto-organização pelo
ruído, ou "ordem pelo ruído'', metamorfose do princípio do "acaso
organizador" proposto por Henri Atlan para o estudo dos seres vivos.
Mas não é só na biologia, na teoria da informação e na ciberné
tica que nosso "contrabandista dos saberes" vai buscar os fios para
tecer o exercício do pensamento complexo. Também da física retira
princípios e leis que funcionam como operadores de interconexão entre
as ciências da vida, do mundo físico e do homem. A dialógica ordem
desordem-reorganização qualifica o movimento de complexificação
dos sistemas. Por isso, a noção de entropia agrega-se a outras tantas
para exemplificar que tanto a desordem como o ruído e o acaso estão
no interior e no exterior de qualquer fenômeno, o que lhes possibilita
permanentes reorganizações, ou seja, novas ordens que se desordenam
e reordenam sem cessar. Esse argumento, facilmente aceito em se tra
tando de fenômenos físicos, climáticos ou ecológicos, encontra terre
no de ressonância extremamente fértil no âmbito dos fenômenos soci
ais e dos sistemas de idéias. Não se trata de uma transposição de mo-
31
delos, mas de operadores cognitivos que facilitam a compreensão d a com
plexidade do mundo.
A fecundidade de uma tal construção intelectual está no fato de
religar, no domínio do pensamento, o que já se encontra direta ou
indiretamente interconectado no mundo das materialidades e das to
pologias imaginárias. Longe das transposições mecânicas de conceitos,
oriundas da biologia, da física ou da teoria da informação, trata-se
mais propriamente de exercitar o pensamento metafórico no que ele
tem de mais incitador: aproximar, relacionar, fazer dialogar e buscar
pontos de aproximação entre as complexas singularidades da matéria.
É nesse sentido que o primeiro e o segundo princípios da termodinâ
mica formulados por Carnot e Clausius, que tratam da concentração
e dispersão da energia e calor, permitem a Morin construir a metáfora
do "calor cultural", para dizer da metamorfose, complexificação e cri
ação (vida e morte) nos sistemas sócio-históricos. Segundo ele, só há
transformação criadora a partir da efervescência cultural, clima de
ebulição permitido pela troca intensa, em outras palavras, por um
"caldo de cultura".
A aproximação com o momento de ebulição da água da chalei
ra é aqui evidente. Assim como somente a partir de um certo ponto se
dá mudança de estado da matéria, assim também a mudança de ponto
de vista ou a transformação social/individual é favorecida enorme
mente pela efervescência das idéias e pela troca intensa entre as experi
mentações cognitivas, sociais e históricas. Mas há que se considerar,
também, os desperdícios, a dispersão e os resíduos que ficam, por
vezes, de fora do sistema ou do acontecimento recém-organizado. Tais
fragmentos, longe de permanecer átomos isolados, vão habitar outros
sistemas, outros eventos, outros acontecimentos, seja de forma perifé
rica, marginal ou nuclear. Pensemos, por exemplo, em interpretações
tidas como irrelevantes num determinado momento e que só muito
depois são aceitas e postas em apreciação. O mesmo se diga dos valo
res e inovações cuja excentricidade de origem é reformatada em pa
drões culturais aceitos a posteriori. Os exemplos podem ser multiplica
dos, mas não cabe aqui descer a detalhes. O mais importante é frisar
que há sempre uma parte que morre ou é dispensada para fazer viver
outras partes. Essa metamorfose contínua, aberta e incerta circunstan
cia as noções do todo e da vida. Daí por que Morin se apóia na célebre
32
frase de Heráclito "Viver de morte, morrer de vida". Tal paradoxo,
que "não é fútil", permite compreender por que "não somente as
moléculas de nossas células se degradam, mas nossas células, elas mes
mas, morrem". Portanto "viver é sem cessar, morrer e rejuvenescer".
Bem-vistas as coisas, esse metapatamar de reorganização do co
nhecimento, maestrado por um "bricoleur sem registro de patente",
como se autodenomina Morin, afere uma verdadeira garimpagem de
noções e conceitos advindos de vários campos disciplinares. Poder-se
ia afirmar com convicção que, se um tal sistema de idéias é reconheci
do por vários especialistas como uma "transposição" de cada uma de
suas áreas, é porque as contém a todas e, portanto, é, tout court, trans
disciplinar, complexo, aberto. A esse respeito, é fundamental reaver a
relação entre universalidade e singularidades. A dialógica do uno e do
múltiplo, que caracteriza a complexidade, afasta-se definitivamente
do generalismo estéril das leis gerais, tanto quanto do relativismo pu
eril que insulariza o singular.
Cabe, ainda, explicitar sumariamente os três princípios reitores
que comandam a noção de complexidade em Edgar Morin. O primei
ro princípio, a dialógica, diz respeito às trocas, simbioses e retroações
entre as entidades físico-químico-psíquicas que comandam a organiza
ção viva, em especial, o homem e a sociedade. O princípio dialógico
não opõe ordem e desordem, natureza e cultura, mas entende tais
fenômenos como simultaneamente concorrentes, antagônicos e comple
mentares, o que permite manter a dualidade no seio na unidade. O
segundo princípio Recursividade OrgamZa.cional nega a cadeia line
- -
33
Como artifício de retotalização narrativa, transcrevo três metá
foras que, para Morin, exibem a contento a idéia de complexidade.
A Tapeça.ria
O Copo de Vinho
34
A Árvore
"Era uma vez um grão de onde cresceu uma áivore, que foi
abatida por um lenhador e cortada numa serração. Um marceneiro
trabalhou-a e entregou-a a um vendedor de móveis. O móvel foi deco
rar um apartamento e, mais tarde, deitaram-no fora. Foi apanhado
por outras pessoas que o venderam numa feira. O móvel estava lá no
adeleiro, foi comprado barato e, finalmente, houve quem o partisse
para fazer lenha. O móvel transformou-se em chama, fumo e cinzas.
Eu quero ter o direito de refletir sobre esta história, sobre o grão que
se transforma em áivore que se toma móvel e acaba fogo, sem ser
lenhador, marceneiro, vendedor, que não vêem senão um segmento ·
da história. É esta história que me interessa e me fascina" (Morin,
1 984, p. 1 34).
35
ingrediente na trajetória da cultura humana ou, por fim, a um para
digma cuja hegemonia precisaria ser instaurada, diz mais de um esti
lo/estado de ser, próprio ao mundo e ao homem. Dado, pois, que a
complexidade é um atributo de toda a matéria, e que ela está impres
sa como possibilid ade nas estruturas cognitivas do sistema humano
(cultural, simbólico e comunicacional) devemos concluir que tal atri
buto - a complexidade - não tem morada privilegiada, uma vez que
contamina simultaneamente todos os objetos, todo produto de ex
perimentação sócio-histórica, bem como a objetivação do pensamento
humano pelas vias das representações mentais.
Como um diamante que lapida, reconstrói e reformata a im
ponderável aventura da cultura e do conhecimento, a complexidade
religa, permanentemente, o homem às coisas, a natureza à cultura, o
sujeito ao objeto, o processo de aprendizagem às experiências solitári
as, imaginárias e afetivas. Essa característica, a de estar potencialmente
presente em todos os sistemas e, por isso, se constituir numa argamas
sa que une, mas não dissolve, produtos por vezes fortemente heterócli
tos, permite entender a idéia de complexidade acalentada pela expres
são "tecer junto" cunhada por Morin. É o sentido do "tecer junto" que
permite relacionar estreitamente os campos nacionais - cultura, cog
nição e complexidade -, que nos seivem aqui de guias importantes.
Em suma, mais que um jogo de palavras que, justapostas, pro
duzem uma frase de efeito retórico, os três vocábulos intercambiam
entre si campos tensionais - simultaneamente antagônicos, contradi
tórios e complementares. Daí por que a metáfora da rede, do "tecer
,,
junto , nos alerta para a sutileza intelectual de não reduzir um termo
a outro nem dissecá-los isoladamente. É no campo tensional das no-
ções de cultura, cognição e complexidade, melhor dizendo, na identi
ficação dos "nós" dessa rede, que poderemos abrir novas janelas para
nos aproximarmos de panoramas e fragmentos que prefiguram a ex
perimentação humana em relação à sua prÓpria humanidade e ao
mundo, em suas várias dimensões - educacionais, políticas, imaginá
rias, telemáticas ou outras.
O segundo alerta decorre do primeiro. Trata-se de desvencilhar
se do equívoco histórico da compartimentalização disciplinar d a cul
tura científica. De modo geral, dada a retaliação do mundo maestrado
36
pelas ciências, não causaria espanto, nem incômodo, afirmar que "da
,,
cultura, tratam os antrop6logos ; "da cognição, os cientistas cogniti
,,
vistas ; e assim por diante. E da complexidade, quem trata? Os episte
m6logos? Os biólogos? Os físicos? Q.iem? É bem verdade que o uso da
palavra entra para o glossário acadêmico a partir dos anos 50, quando
se fala mais propriamente da complexidade da ciência, classificando
esta última de modo diferente em relação aos séculos XIX e XX. Hoje
os estudos da complexidade se ampliam por territórios disciplinares e
temáticos os mais variados (a biologia, a teoria dos sistemas, a infor
mática, a antropologia, a física e a análise literária), fomentando um
importante espaço transdisciplinar que rejunta fragmentos, enfraque
ce os limites das áreas do saber, intercambia conceitos e noções e,
sobretudo, busca os elos de intercessão entre a physis, a vida e o ho
mem. Cabe perguntar: a que disciplina caberia, pois, o estudo da com
plexidade? Haveria um especialista para tal? Seria ele um complexis
ta4?
Essa mesma linha de argumentação pode-se estender aos estu
dos da cognição e, mutatis mutandi, aos da cultura. Vamos por partes.
Comecemos pelas ciências cognitivas. Ou deveríamos chamar ciência
da cognição5 ?
Conforme Howard Gardner (1995), os estudos da cognição nas
cem oficialmente por volta de 1956, com o psicólogo George A. Mil
ler, durante um simpósio sobre teoria da informação que ocorreu no
M.I.T., de 10 a 12 de setembro daquele ano. Gardner, no livroA Nova
Ciência da Mente, não poupa espaço para expor sua arqueologia rica de
fragmentos que antecedem e propiciam o aparecimento dessa "nova
ciência,,. Ora, mesmo me eximindo aqui de grifar os pertencimentos
disciplinares ou escolas do pensamento (psicologia, filosofia, lingüísti
ca, neurociências, ou behaviorismo, construtivismo etc.), é plausível
afirmar que o empenho intelectual para tratar do fenômeno da cogni
ção humana tem origem incerta e dispersa. E, mais que isso, se incrus
ta em cavernas nem sempre acessíveis nos mapas de localização da
cultura científica. Assim, se é possível elencar nomes de diversas linha
gens teóricas e disciplinares, como Popper, Wittgenstein, Dennett,
Putnam, Fedor, Piaget, Holton, Lévi-Strauss e tantos outros, que, nas
palavras de Gardner, trataram da origem, estrutura e dinâmica dos
37
processos mentais, é porque essa temática requer necessariamente um
tratamento transdisciplinar.
Daí, pois, a dificuldade, diria mesmo a impossibilidade, de re
duzir a cognição a um objeto de uma especialidade qualquer - sej a aos
quadrantes da tecnociência, da teoria das máquinas artificiais, da epis
temologia, da psicologia, ou outros quaisquer recortes burocráticos
disciplinares do conhecimento. É pertinente assinalar que "só pode
mos conhecer fragmentando o real e isolando um objeto do todo de
que faz parte. Mas podemos articular os nossos saberes fragmentários,
reconhecer as relações parte/todo, complexificar o nosso conhecimen
to ... " (Morin, 1987, p. 2 15) sem, entretanto, aspirar à pretensão à tota
lidade.
Daí que, mesmo reconhecendo as competências disciplinares
no tocante aos estudos da cognição, há que se assegurar o espaço de
interconexão entre esses saberes como a única forma de não reduzir a
cognição a alguma de suas faces - genética, psíquica, social. É nesse
movimento de religação das áreas disciplinares que se terá de executar
um pensamento transversal, transdisciplinar, que possa operar a supera
ção da noção de totalidade em favor de um pensamento mais totaliza
dor, ampliado. A proposição de Joel de Rosnay sintetiza muito bem o
espírito dessa empreitada. Segundo o autor, para além do olhar micros
cópico e telescópico, teremos de exercitar uma tomada de plano macroscó
pica que religue parte e todo, singular e universal, micro e macro (Ros
nay, 1995).
Tratemos, agora, de cultura. Da mesma forma como submeti as
noções de complexidade e cognição ao termômetro argumentativo
que sinaliza para o enfraquecimento do tratamento disciplinar e redu
tor por parte de uma área especializada do conhecimento, devo trans
formar uma afirmação feita anteriormente numa pergunta. Da cultu
ra trata a antropologia? Os antropólogos? É pertinente circunscrevê-la
ao domínio da ciência antropológica? A resposta a essa pergunta só é
possível com a ajuda de uma outra. De que concepção de cultura
estamos a falar? Se entendemos cultura como "o capital cognitivo cole
tivo dos conhecimentos adquiridos, das aptidões aprendidas, d as ex
periências vividas, da memória histórica e das crenças míticas de qual
quer sociedade" (Morin, 1992, p. 17), depreende-se, de pronto, que
38
também essa noção não pode ser reduzida a nenhum dos enquadra
mentos disciplinares que lhes reduza ou simplifique o campo de inter
cessão entre os fatores físico-genéticos, simbólicos, cognitivo-estrutu-
rais e imaginários. \
De nossa perspectiva, ancorada nas proposições levistraussiana
e morinianas, sobretudo, a cultura não pode ser entendida em oposi
ção à natureza. A cultura, como produto de emergências de complexi
dades oriundas da natureza, não se distingue dessa última senão pela
singularidade, sempre eventual, de uma comunicação hipercomplexa
e aberta, consciente ou inconsciente. Ou seja, a cultura é sobretudo
marcada pela manutenção/metamorfose dos registros da memória
primordial e histórica de todos os homens e de cada um deles. Daí
por que é possível argumentar em favor de uma transversalidade que
une natureza e cultura. Mais qUe isso, é importante assinalar que a
dialógica entre esses dois termos pulveriza-se em mestiçagens e diagra
mas mais ou menos clonados, mais ou menos mitéticos; mais forte ou
mais fracamente contaminados pela criatividade e pelo afloramento
das transformações, diga-se afloramentos e criatividades marcados pela
transgressão que reformata o design padrão anterior.
-
39
em 1 988 e que diz respeito ao exercício cognitivo que acondiciona,
num mesmo conjunto mental/representacional/imagético, objetos
materiais e crenças. Assim, um mesmo conjunto de representações
mentais poderia conter a idéia de um conceito, a imagem de um
objeto físico e a representação de uma crença - um duende, por
exemplo. Segundo W. Becktel, Dennett propõe que esse mundo no
cional não seja submetido ao mundo factal.
A indicação de que a dinâmica dos estados cognitivos de uma
pessoa não deva ser submetida ao mundo factual (uma vez que, con
tendo sua representação, contém igualmente experiências não verossí
meis), alarga o campo de entendimento da cognição humana, liberan
do-o das narrativas insularizadas nos domínios da genética, d as psico
logias ou outros locus disciplinares. Mais que isso, penso que a propo
sição de que as crenças e desejos alimentam a "instância" do design
pode ser aproximada da idéia moriniana de "recursividade", cujos
termos de referência prefiguram a instância relacional homem - mun
do - estruturas imaginárias. Por conseqüência, podemos estabelecer
uma meta-ponto de vista a partir do qual, nas palavras de Becktel,
"todas as crenças seriam verdadeiras e todos os desejos seriam razoá
veis" (Becktel, 1988).
Ora, que rede argumentativa é essa senão um tratamento tan
gencial ao estudo da cultura? Há sem dúvida uma aproximação visível
entre a conjectura que trata dos estados mentais contaminados por
fragmentos da instância imaginária e a concepção de cultura como
"capital cognitivo coletivo", que contempla, igualmente, as experiên
cias vividas, a memória histórica (que não suprime, mais inclui, os
mapas/deszgn genéticos) e as ciências míticas.
Esse movimento de desconstrução, do que foi historicamente
firmado como verdadeiras cartas de habilitação por áreas temáticas do
conhecimento, tem aqui o objetivo de enfraquecer as resistências dis
ciplinares que se instalam nos tênues limites entre as ciências. Não
decorre, daí, nenhuma palavra de ordem de "fim às disciplinas", mas
decorre, sim, o alerta de que a disciplinaridade fechada reduz e simpli
fica a complexidade inerente a qualquer temática. De maneira análoga
e por conseqüência, o especialista que não se abre à troca com outras
áreas do saber é um míope diante de algumas das múltiplas dimensões
40
nas quais transita sua problemática de estudo - para não falar de
objeto. Postulemos, pois, uma axiomática da incerteza diante da pre
missa já explicitada, segundo a qual, da cultura, devem tratar, exclusi
vamente e por autorização, os antropólogos. Uma tal provocação, lon
ge de propor a morte da antropologia, convoca os estudiosos da cultu
ra para a tarefa inadiável da reconstrução de uma antropologia geral,
capaz de deter-se sobre o fragmento, mas somente na condição de o
retotalizar/inserir no todo do qual faz parte e de abrir-se à escuta do
campo de ressonância do todo, que delimita as singularidades.
Mantidas as originalidades argumentativas e o manuseio de
referências distintas, podemos afirmar que essas idéias têm sido su
geridas por pensadores como Ilya Prigogine, Fritjof Capra, David
Bohm e, em particular, Edgar Morin. Rediscutindo, como hipóte
ses, postulados tidos como indiscutíveis; imprimindo importância a
fatos concebidos como aleatórios pela ciência; refutando a ortodo
xia e o maniqueísmo; pondo à luz a rigidez dos paradigmas; e, por
fim, apelando para o diálogo e a criatividade do pensamento, esses
autores têm aventurado um novo ofício científico, sincronizados na
proposição de uma nova paradigmatologia. Há que se investir, se
gundo eles, na disposição para ampliar os limites do conhecimento
e permitir uma reorganização mais democrática dos redutos discur
sivos do poder disciplinar. Uma tal tarefa, longe de configurar mais
uma especialidade, pertence igualmente aos epistemólogos, físicos,
educadores, sociólogos, antropólogos e intelectuais da tradição.
41
do conhecimento acumulado e do poder instituído pelo lugar discur
sivo do qual fala, ao educador caberia também a instauração de um
terceiro pólo: o do prazer do conhecimento.
O incitamento à criatividade, a atividade de interditar a orto
doxia e a certeza podem vir a prefigurar um novo perfil do educador,
em sintonia com as demandas culturais do próximo milênio. Esse
novo educador talvez tenha de incluir, na sua agenda, duas tarefas
que, mesmo distintas, são complementares. Uma diz respeito à recons
trução de seu próprio perfil enquanto profissional da educação: a morte
do sujeito narcisicamente investido do poder é o mínimo que se espe
ra para reformatar-se os espaços discursivos do diálogo professor -
aluno. Essa tarefa amplia-se numa outra, sem dúvida investida de maior
envergadura e desafio. Trata-se de exercitar uma verdadeira aeróbica dos
neurônios no sentido de descobrir e desconstruir os imprintings paradig
máticos que impedem novas e ampliadas "sinapses cognitivas" de alu
nos cada vez mais ávidos em expor suas subjetividades, seus mapas
cognitivos autobiográficos e de compreender o conteúdo das discipli
nas científicas pela via da partilha e da co-produção.
Certamente, a tarefa inadiável para reintroduzir o prazer na
praxis docente supõe a reconstrução de um conhecimento mais aber
to, onde as noções de "polifonia" e "ambivalência" possam emitir
novas mensagens a um espírito - cérebro em permanente "inacaba
mento" . Para isso, ter-se-á de exercitar um esforço fu ndamental para
acessar o "poliprograma cerebral" atualmente adormecido pela hege
monia da ratio cartesiana. Em outras palavras, ter-se-ão de questio
nar as imposições radicais das mundovisões estreitas sugeridas pelos
códigos científico-culturais.
É preciso, pois, ampliar as escolhas cognitivas impostas pela
cultura. É necessário que a escola se coloque como um estoque de
múltiplas escolhas que induzam uma perspectiva intertextual do pen
samento/conhecimento/sujeito. É com esse objetivo que tomo aqui,
de empréstimo, duas idéias originadas em campos ainda pouco disci
plinarizados da ciência: a noção de auto-organização formulada por
Henri Atlan (1 992), e o argumento defendido por Pierre Lévy ( 1993),
,
de que o sistema cognitivo humano tem por base uma diversidade de
operações simultâneas. Vamos por partes.
42
Henri Atlan sugere que a complexidade dos sistemas vivos su
põe a auto-organização pelo ruído6• É a partir da decodificação do
ruído que se desestrutura a fixação do padrão cognitivo e se ampliam
os modelos de referência internos ao sistema. É por isso que os proces
sos de aprendizagem "não dirigidos" são responsáveis, em grande par
te, pelo aparecimento de novos padrões de leitura do mundo. O nú
cleo das idéias de Atlan a esse respeito comporta duas noções/proces
sos fundamentais: o delírio e o transbordamento.
O delírio passa a ser entendido como uma projeção do imagi
nário sobre o real e o elemento que exibe a condição de "ambigüida
de" do imaginário. Sublinha o autor que qualquer hipótese científica
realmente nova é, na sua origem, "da ordem do delírio". O passo
seguinte é, supondo sempre a auto-ecoorganização do pensamento, a
exposição dessa projeção ao real. É o feedback, ou seja, o resultado da
digestão e adequação do delírio ao mundo real, que evitará sua poten
cial metamorfose patológica. A ausência desse feedback, a partir do
fechamento do sistema cognitivo, pela via da "memorização excessi
va" (fixação de um molde inalterável) ou da "precisão demasiada"
(fixação numa projeção particular), encerra o delírio no reduto de sua
negatividade.
Daí por que os processos/mecanismos de transbordamento
do pensamento, pelos excessos de imagens e leituras complexas, po
dem vir a se constituir em importantes "anticorpos" frente à violên
cia cognitiva que impõe padrões redutores e economizadores do po
licentrismo cerebral e da polifonia imaginária. As noções de aceita
ção do ruído e do "delírio organizador" parecem se impor, hoje,
como idéias sobre as quais é preciso pensar. A esse respeito, é preciso
não deixar passar despercebido um certo desacordo, senão pelo me
nos um descompasso entre a necessidade do feedback para Atlan e a
idéia de Dennett, de que não é necessário submeter a "instância no
cional" ao mundo factual. Na ausência de uma análise mais matiza
da sobre a questão, prefiro tomar os dois argumentos como comple
mentares, apesar de seus fragmentos antagônicos. No momento, é
preferível manter em "incubação" tal reflexão, a apressadamente,
identificar seus pontos de oposição e de afastamento.
Da parte de Pierre Lévy, para o qual "pensar é um devir coletivo
43
no qual se misturam homens e coisas", interessa reter a simultaneidade
das operações cognitivas. Sendo a cultura um dispositivo que limita, pela
seletividade7, a escolha de métodos de leitura do mundo, ela comporta,
em si, a possibilidade de fechamento e redução do pensamento humano,
o que se constitui numa virtual violência cognitiva, pensamos nós. Isto é,
a cultura reduz a polifonia do pensamento. Mas não é só. Numa síntese
arrojada, Pierre Lévy mostra como a história do pensamento no homem
foi traduzida como sendo a sucessão do que ele chamou "os três pólos do
espírito" - oralidade, escrita, informática.
Manter-se em sintonia com o mundo atual é, para Pierre Lévy,
pôr-se a tarefa inadiável de promover a dialógica entre essas distintas
"tecnologias do pensamento". Essa parece ser uma das estratégias fe
cundas na prática do ensino. Tal proposição sugere que não se deva
excluir nenhum desses três pólos, mais ao contrário, é necessário bri
colá-los num grande hipertexto da cultura, onde o mito e o logos, os
desejos e as interdições, as narrativas e os diagramas, as subjetividades
e as objetividades teçam, conjuntamente, os "nós" de um homem menos
fraturado. "A sucessão da oralidade, da escrita e da informática como
modos fundamentais da gestão social do conhecimento não se dá por
simples substituição, mas antes por complexificação e deslocamento
dos centros de gravidade" (Lévy, 1993).
Em suma, a desconstrução da educação como adestramento e a
reconstrução do perfil do educador supõem a aceitação da morte e d a
metamorfose d o sujeito cindido e fechado. Nas palavras de Henri
Atlan, "na verdade, foi o homem, enquanto sistema fechado, que desa
pareceu; sistemas cibernéticos abertos, auto-organizados, são candida
tos a sua sucessão" (Atlan, 1992).
Notas
44
(individuais/coletivos) que alimentam o produto já mestiçado, emprestando-lhe
fermento de criatividade e reformatação mestiça.
4 Isso se poderia perguntar também do intelectual que se convencionou
chamar de '"ecologista". Ele não seria na verdade um artesão da tecitura complexa
que expõe e protege o intercâmbio e a simbiose entre os diversos sistemas vivos e
não vivos? Nesse sentido seria adequado tomá-lo como um especialista?
5 A problematização a respeito das ciências cognitivas ou a ciência da cog
nição é posta por Edgar Morin logo nas primeiras páginas de O Método III (especi
almente na página 21 da edição portuguesa).
6 Para o caso do processo de aprendizagem, entenda-se ruído como o que é
Bibliografia
45
I ndeterminação e comp lementaridade
FREI BETT0 1 I
48
lógica foi aplicada, em vão, para tentar descartar as teorias de Copérnico e
de Galileu.
49
ção do mundo subatômico. Esta é uma limitação absoluta.
No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e dialógica.
Dual, e não dualista, no sentido platânico, mas sim, como ressaltava
Niels Bohr, numa interação de complementaridade. Foi também em
1927 que o físico dinamarquês Niels Bohr formulou o princípio da
complementaridade. No interior do átomo, a matéria apresenta-se
com aparente dualidade, ora se comportando como partículas, que
possuem trajetórias bem definidas, ora se comportando como onda,
interagindo sobre si mesma.
De fato, no mundo quântico onda e partícula não são exclu
dentes, embora o sejam à luz de nossa linguagem, que ainda não con
segue se desprender dos parâmetros da física clássica. Ao estabelecer o
princípio da complementaridade, Bohr articulou duas concepções que,
à luz da física clássica, são contraditórias.
Bohr demonstrou que a noção de complementaridade pode ser
aplicada a outras áreas do conhecimento, como a psicologia, que reve
la a complementaridade entre razão e emoção; a linguagem (comple
mentaridade entre o uso prático de uma palavra e sua definição eti
mológica); ética (complementaridade entre justiça e compaixão) etc.
Em suma, há mais conexões do que exclusões entre fenômenos que o
racionalismo cartesiano pretende distintos e contraditórios.
Se um elétron se apresenta ora como onda, ora como partícula,
energia e matéria, Yin e Yang, isso significa que cessa o reino da obje
tividade: há uma interelação entre observador e observado. Desmorona
se, assim, o dogma da imaculada neutralidade científica. A natureza res-
ponde às questões que levantamos. A consciência do observador influi na
definição e, até mesmo, na existência do objeto observado. · Entre os dois
reina um único e mesmo sistema. Olho o olho que me olha.
Em 1926, numa conversa com Heisenberg, Einstein dizia-lhe: "Ob
servar significa que construímos alguma conexão entre um fenômeno e a
nossa concepção do fenômeno". Assim, a flsica quântica afirma que não é
possível separar cartesianamente, de um lado, a natureza e, de outro, a infor
mação que se tem sobre ela. Em última instância, predomina a interação
entre o observado e o observador. É dessa interação sujeito - objeto que trata
o princípio da indeterminação. E, sobre ele, ergue-se a visão holística do
Universo: há uma íntima e indestrutível conexão entre tudo o que existe -
50
das estrelas ao soxvete saboreado por uma criança, dos neurônios de nosso
cérebro aos neutrinos no interior do Sol.
51
Na esfera do infinitamente pequeno, a ciência é obrigada a in
gressar no imprevisível e obscuro reino das probabilidades. O princí
pio da indeterminação revoluciona nossa percepção da natureza e da
história. E nos faz tomar consciência de que, na natureza, a incerteza
quântica não se faz presente apenas nas partículas subatômicas. Bi
lhões de anos após a predominância quântica no alvorecer do Univer
so, um estranho e inteligente fenômeno despontaria dotado de impre
visibilidade inerente a seu livre-arbítrio: os seres humanos.
52
reintrodução da subjetividade na esfera da ciência mexe com bloque
ios emocionais arvorados em profundas raízes históricas. Em nome
da fé - uma experiência subjetiva - inúmeros cientistas, taxados de
hereges ou bruxos, foram condenados à fogueira da Inquisição. Em
pleno Renascimento, Giordano Bruno morreu queimado e Galileu
viu-se obrigado a retratar-se. Com o Iluminismo, no século XVIII, os
cientistas assumiram a hegemonia do saber e o controle das universi
dades, identificando criatividade e liberdade com objetividade, e rele
gando à subjetividade tudo que parecesse irracionalidade e intolerância.
Na prática, ainda estamos longe do resgate da unidade. No Oci
dente, as universidades continuam fechadas a métodos de conheci
mento e vivência simbólica, como a intuição, a premonição, a astrolo
gia, o tarô, o I Ching e, no caso da América Latina, às religiões e aos
ritos e mitos de origem indígena e africana. Tais "superstições" são
ignoradas pelos currículos acadêmicos, embora haja professores e alu
nos que freqüentam terreiros e mães-de-santo, e consultam as cartas do
Zodíaco e os búzios. Por sua vez, nas escolas de formação religiosa ou
neológica ainda não há espaço para a atualização científica, nem se
olha o céu pelas lentes de astronomia ou a intimidade da matéria
pelas equações quânticas. A pluridisciplinaridade, rumo à epistemolo
gia holística, permanece como desafio e meta.
Porém, há razões para otimismo quando se constata a abertura
cada vez maior da cartesiana medicina ocidental à acupuntura e o
interesse de renomados cientistas pela sabedoria contida nas culturas
da Í ndia e da China. Na política fala-se cada vez mais em ética e, nas
religiões, recupera-se a dimensão mística. A ecologia re-humaniza a
relação entre os seres humanos e a natureza e as comunicações redu
zem o mundo a uma aldeia global. Resta enfrentar o grande desafio de
fazer com que o capital - na forma de dinheiro, de tecnologia e de
saber - esteja a serviço da felicidade humana, rompendo as barreiras
das d iscriminações raciais, sociais, étnicas e religiosas. Então, reencon
traremos as veredas que conduzem ao jardim do Éden.
Nota
53
1 Ciência e comp lexidade
HERMANO MACHADO F. LIMA1 l
Q
uando Sir Isaac Newton, em seu Princípio da Matemática, esta
beleceu uma lei física sólida' para todo I! qualquer universo pos
sível e não só para o mundo conhecido, tomou possível uma nova e
revolucionária visão da ciência. O impacto causado pela lei da gravita
ção universal foi, sem sombra de dúvida, um dos mais veementes e
contundentes feitos científicos da história da ciência, quer do ponto de
vista da metodologia, quer de uma lógica da ciência. Como conseqüên
cia metodológica, deslocou as teorias científicas do experimentalismo
galileano fazendo com que as leis científicas passassem a ser aceitas em
função do alcance explicativo e preditivo, independentemente da possi
bilidade de serem efetivamente experimentadas. Se estamos falando de
qualquer mundo possível, estamos nos referindo a um campo ulterior a
um reconhecimento factual de sua existência, mas no mais legítimo e
puro campo da possibilidade.
Desde já, é necessário que nos acautelemos para que as teorias
científicas não se tomem meras especulações gratuitas. Surge a segun
da conseqüência da lei da gravitação universal. Se do ponto de vista
metodológico ela abre possibilidades à simples especulação, do ponto
de vista lógico aumenta seu vigor. É necessário uma .enorme coerência
entre os seus conceitos. A lógica interna à própria teoria é que garante
sua aceitabilidade. Imaginar uma lei da gravitação universal é dar con
ta de todas as conseqüências de tal postulação. No caso específico de
Newton implicava a aceitação simultânea de uma série de outros con
ceitos e das resultantes de sua aplicação, ou seja, a ela estavam imbrica
dos: a postulação de um universo infinito, aceleração constante, movi-
menta retilíneo, puro vácuo etc.
Portanto, mesmo caracterizando-se como uma lei estritamente
teórica, em que sua possibilidade de experimentação é extremamente
limitada (para não dizer impossível), é através de um rigor lógico
conceitual que fica garantida sua aceitação. Além do mais, para imagi
nar sua lei física da gravitação universal era imperioso a Newton uma
outra suposição básica não explícita à sua teoria e que poderíamos
designar de pressuposto metafísico que era o princípio da ordem da
natureza. Somente em uma natureza absoluta e rigorosamente orde
nada é possível imaginar um corpo em aceleração constante ou em
movimento retilíneo. Qualquer perturbação por mínima que fosse
alteraria a aceleração ou desviaria a trajetória.
Este fato extremamente importante não só revolucionou a ciên
cia na física como também espalhou um rastro de influência nos mais
variados campos do saber. Nem a filosofia escapa incólume. Na estei
r-a de Newton, Kant também tentou e propôs estabelecer como tarefa
da filosofia a determinação de uma metafísica com leis tão precisas e
tão abrangentes como a lei da gravitação universal.
O célebre prefácio à 2.! edição da Crítica da Rraão Pura não só
infunde esta tese como também a justifica de maneira entusiástica.
Todos sabemos que, apesar do esforço e da importância da filosofia de
Kant, sua pretensão saldou fracassada. De fato, esses princípios meta
físicos de aceitação indubitável nunca foram efetivamente estabeleci
dos. No entanto esta busca, a partir de Kant, foi arduamente persegui
da. Em finais do século passado e início do atual, um grande esforço
foi desenvolvido e um sem-número de filósofos engajou-se numa tare
fa semelhante à de Kant. Se não é possível estabelecer uma ciência da
metafísica ou uma metafísica científica capaz de dar suporte a toda
filosofia, é desejável e necessário estabelecer uma linha demarcatória
entre o conhecimento científico e não-científico. Nisso consistiria a
tarefa da filosofia. Dos analistas ingleses, passando pelo círculo de
Viena e o falsificacionismo de Karl Popper, muitos formularam e ela
boraram as tentativas. Para não nos alongarmos excessivamente nessas
discussões, tomaremos apenas os exemplos dos esforços de Popper e
seu critério de falseabilidade e Carnap e o verificacionismo.
Para Popper, o que distingue uma teoria científica de uma não-
científica é a possibilidade, que a teoria científica tem, de ser falsificá
vel. Toda teoria científica deverá possuir pelo menos um de seus enun
ciados que, se testado e não sendo os resultados condizentes e coeren
tes com as predições possíveis desse enunciado, a teoria está definitiva
e irreversivelmente falsificada. Este experimento capaz de falsificar a
teoria é chamado de "experimento crucial,,. Porém, se o enunciado
testado resistir aos testes, isto é, se as predições condizerem com os
resultados do experimento, a teoria estará confirmada e, portanto,
poderá ser aceita como científica. Resumidamente, seria esta a propos
ta de Popper. Qyanto ao verificacionismo de Carnap, o que pretende
este filósofo da ciência é que a linha demarcatória entre a teoria cien
tífica e a nã0<ientífica reside na possibilidade inerente à primeira de
ter seus postulados submetidos a experimentos empíricos que confir
mem suas predições.
Todo enunciado científico implica um certo número ou um
certo tipo de predição, submetidos a verificações, através de testes
empíricos; os mesmos devem se coadunar com as predições preestabe
lecidas. Esta preocupação em estabelecer uma linha demarcatória en
tre o que é e o que não é ciência advém da convicção de que há uma
ordem na natureza e que o objetivo principal da ciência é desvendar
essa ordem. E, correlatamente, só é científico aquele tipo de conheci
mento que é capaz de descobrir e explicar de forma universal, repetida
e constante, o ordenamento natural do Universo. Todo outro tipo de
conhecimento incapaz de sustentar predições acerca da ordem da na
tureza é tido como nã0<ientífico.
O que importa destacar é que para esses pensadores há uma
rigorosa e incessante ordem na natureza. Como se a natureza cami
nhasse irremediavelmente para um ponto determinado de mais or
dem. Qyalquer distúrbio, qualquer ruído, qualquer alteração é imedi
atamente atacado de forma que a ordem seja restabelecida.
É exatamente contra essa visão que se insurge Edgar Morin:
entender o Universo, a natureza, os seres vivos, o homem como ente
ordenado que busca infindavelmente mais ordem. É este olhar linear,
até certo ponto estático, que preocupa Morin. Em seu livro Ciência
com Consciência, ele nos chama a atenção para três possibilidades de
- olharmos o céu estrelado:
57
IA) à primeira vista, impressiona-nos pela sua desordem; é um
amontoado de estrelas dispersas ao acaso;
2.!) num segundo momento percebemos que não é bem assim:
aparece uma ordem cósmica, imperturbável; cada estrela em seu lugar,
cada planeta realizando seu ciclo impecável;
3.!) por fim, nos d amos conta de que vemos um Universo em
expansão, em dispersão, estrelas nascem, explodem, morrem; este
terceiro olhar exige-nos que concebamos, conj untamente, a ordem
e a desordem.
Se o céu estrelado nos sugere estes três tipos de olhar, a vida
também nos remete a situação idêntica: no primeiro olhar a fixidez
das espécies reproduzindo-se impecavelmente, através dos séculos; no
segundo as espécies evoluem, há revoluções; por fim, vemos que, para
lelamente à evolução, irrompe o acaso, mutações ao acaso, acidentes,
perturbações geoclimáticas, hecatombes. Este terceiro olhar nos leva a
pensar conjuntamente a ordem e a desordem (evolução e involução).
A história humana também padece os mesmos tipos de olhares.
"Temos, pois, tanto na história como na vida que conceber as errânci
as, os desvios, os desperdícios, as perdas, os aniquilamentos, e não
apenas as riquezas, não só de vida, mas também de saber, de saber
fazer, de talentos, de sabedoria" (CC, p. 72).
Há que, simultaneamente, pensar a ordem e suas perturbações,
indícios de desordem. Um Universo estritamente ordenado impossi
bilitaria o surgimento do novo, cercearia qualquer possibilidade de
criação. "Um mundo absolutamente determinado, assim como um
mundo absolutamente aleatório, são pobres e mutilados: o primeiro é
incapaz de evoluir e o segundo é incapaz de nascer" (CC, p. 76).
Entre a estática do mundo organizado e a esterilidade da desor
ganização absoluta é necessário pensar o mundo, os seres vivos e o
homem de maneira mais complexa. Como proceder? Acrescentando
outros elementos a esta polaridade: a ordem e a desordem não subsis
tem sozinhas - interagem entre si. A desordem está sempre presente,
como elemento perturbador, na ordem. Por sua vez, a ordem pressu
põe um certo grau de desorganização. Portanto, uma visão mais com
plexa de ordem implica uma interação com � desordem, e qualquer
desordem supõe um grau de organização. Esses quatro elementos: or-
58
dem, desordem, interação e organização possibilitam uma compreen
são mais complexa das várias realidades do Universo.
Desde já cabe a ressalva de que, para Morin, complexidade não
é sinônimo de complicação. A noção de complicação estaria mais pró
xima da quantidade. Um número excessivamente grande de informa
ções não significa necessariamente uma melhor visão de um certo
fenômeno, sobretudo se não temos condições de averiguar o porquê
daquelas informações, seu significado e significância para o problema
que se quer explicar. Citando um exemplo do próprio Morin, seria
como alguém que fosse capaz de determinar os outputs de um certo
processador de dados pelos inputs por ele fornecidos, sem se dar conta
da maneira como esses dados foram trabalhados dentro do processador.
Muitos cientistas podem dispor e trabalhar com massas bastan
te numerosas e diversificadas de dados, e nem por isso teriam uma
visão complexa dos fenômenos que estudam.
Como define o próprio Morin: "A complexidade não é uma
noção quantitativa, é uma noção lógica, é a confrontação do uno e do
múltiplo, é a autonomia que é, ao mesmo tempo, dependente sem
deixar de ser autonomia; é, de certo modo, a necessidade de sastadizar
os nossos instrumentos conceituais e renunciar a um princípio unifi
cador mestre e supremo" (PEC, p. 13 1).
Desta definição de complexidade podemos extrair várias conse
qüências. Uma delas diz respeito ao estudo do homem. Para além das
dicotomias advindas do platonismo socrático (corpo/alma, bem/mal,
sujeito/objeto etc.), Morin define o homem como um ser auto-eco
organizador, isso em decorrência da hipercomplexidade do cérebro
humano. É esta hipercomplexidade do cérebro que permite ao ho
mem não só processar informações - isso os outros seres vivos, sobre
tudo os mamíferos, também o fazem - permite a esse ser cogitar.
Assim, não há apenas uma animalidade do conhecimento (computa
ção), mas uma humanidade (cogitação). Uma capacidade não se sobre
põe a outra, constituem um todo indissolúvel. Essa indissociabilidade
é conseqüência da própria constituição biológica do cérebro. Toman
do emprestado os conceitos e expressões de MacLean, Morin define o
cérebro como sendo triúnico. Haveria de fato três cérebros interagen
tes: o cérebro reptílico (responsável por funções como o cio, agressão),
59
o cérebro mamífero (responsável pela afetividade) e o neoc6rtex cere
bral (inteligência lógica e conceitual). Nenhum desses cérebros pre
pondera sobre os demais, ao contrário, interagem continuamente a
cada situação.
Retornando às nossas colocações iniciais, há ainda uma outra
conseqüência desta postura assumida por Morin e que eu gostaria de
chamar a atenção. Trata-se de sua postura quanto à organização da
ciência e à prática dos cientistas. No afã de demarcar a ciência do que
não é ciência, o cientista ou o filósofo vê-se tentado também a separar
uma ciência da outra. Na busca compulsiva pela demarcação dos vári
os campos do saber e a ânsia de apartar o objeto de uma ciência do
objeto da outra, os cientistas não se dão conta de que, muitas vezes, o
problemático está exatamente no campo nebuloso de intercessão entre
uma ciência e outra. Com isso, muitos problemas são deixados de
lado ou simplesmente não conseguem emergir. E, quando isso aconte
ce, as tentativas de solução são quase sempre soluções parciais, simpló
rias. Recorrendo, mais uma vez, ao texto Ciência com consciência, Morin
nos incita - estudiosos, pensadores e cientistas - a uma nova postura.
É preciso instaurar um novo paradigma, é preciso promover uma nova
transdisciplinaridade. A nova transdisciplinaridade terá de romper com
os padrões atuais de causalidade linear (causa & efeito) à objetividade
simples.
"Precisamos, pois, para prçimover uma nova transdisciplinari
dade, de um paradigma que, decerto, permite distinguir, separar, opor
e, portanto, disjuntar relativamente estes domínios científicos, mas
que possa fazê-los comunicarem sem operar a redução. (... ) É preciso
um paradigma de complexidade que, ao mesmo tempo, disjunte e
associe, que conceba os níveis de emergência da realidade sem reduzi
los a unidades elementares e às leis gerais" (CC, p. 2 1 9).
Bibliografia
60
Identidad e e complexidade
LEONARDO BOFF 1 l
62
faz uma síntese singular, única, irrepetível de tudo o que capta, sente,
entende e ama. Com os materiais acumulados em seu inconsciente
coletivo e com aqueles recolhidos em seu consciente faz uma leitura e
uma apreciação que só ele e ninguém mais pode fazer. Por isso, cada
pessoa humana representa um absoluto concreto. Ele é a ponta da
pirâmide para onde convergem todas as linhas ascendentes da evolu
ção. Cada um está no topo. Em razão disso se entende a dignidade
humana. Entende-se também a afirmação dos filósofos que ensinam:
o ser humano singular é um fim em si mesmo e não pode ser meio
para nada.
Tal afirmação não deve levar a pessoa à arrogância, imaginan
do-se o centro do Universo. A ponta da pirâmide não está isolada.
Está unida a toda a pirâmide, com a intricada teia de solidariedades
e interdependências.
Assim como na nossa carteira de identidade estão inscritos os
nomes de nosso pai, de nossa mãe e de nosso lugar de origem, assim
também aqui, na nossa complexa carteira de identidade humana, apa
recem os nossos quatro enraizamentos: o cósmico, o terrena!, o cultu
ral e o pessoal. Somos efetivamente um microcosmos. Não precisamos
ter vergonha de nossas múltiplas raízes. Ao contrário, temos razões de
orgulho de nossa mestiçagem universal. Precisamos humildemente aco
lher nosso bilionário processo de fazimento, saudar a imensa riqueza
cósmica que em nós deságua e que ganha um perfil pessoalíssimo em
cada indivíduo. Ele surge como um Amazonas de interrogações, um
mar de desejos e um oceano de utopias.
Hoje, graças à civilização tecnológica, aprofundamos ainda mais
o nosso enraizamento, seja na dimensão micro seja na dimensão ma
cro. Estamos deixando a Terra e nos lançando para os espaços celestes.
Sim, algo nosso, como a nave espacial Voyager 2, já virou corpo
interestelar, pois, como ultrapassou os confins do sistema solar liberta
da das forças gravitacionais de nosso sistema, viajará, se nada acontecer,
por mais de 1 bilhão de anos ao redor do centro da Via Láctea. Carrega
dentro de si um disco fonográfico de ouro contendo nele e no seu
invólucro dourado saudações em 59 línguas humanas; uma em língua
de baleia; um ensaio sonoro de doze minutos, que inclui um beijo, um
choro de bebê e o registro eletrencefalográfico das emoções de uma
63
jovem apaixonada; 1 16 imagens codificadas sobre nossa ciência, sobre
nossa civilização e sobre o ser humano; e noventa minutos dos maiores
sucessos musicais da Terra, desde músicas primitivas, passando por Bach
e Stravinski, até os blues modernos. Algo nosso se perenizou no Universo.
Se um dia a nave for abordada por seres inteligentes de outros
mundos, estes poderão saber da história dos humanos deste minúscu
lo planeta Terra do sistema solar. Talvez a Terra e a humanidade pos
sam já ter desaparecido. Ou, pela evolução, nossa espécie possa j á ter se
transformado em outra. Permaneceu, entretanto, a Voyager como um
sacramento da Terra. Sem qualquer intencionalidade agressiva, ela
mesma significa uma mensagem de comunhão, uma busca respeitosa
de relação com outros eventuais companheiros de aventura cósmica.
64
com todos os seres e os viventes do planeta. Entre o humanos e os chim
panzés há, por exemplo, 99,6% de genes ativos em comum. A versão
humana do cromossomo o difere da do macaco reso por um único ami
noácido. Das versões do cachorro, da rã, do bicho-da-seda e do trigo por
1 1, 18, 43 e 53 aminoácidos. Poderia haver um parentesco maior entre as
espécies que esta? Os primatas superiores não são nossos ancestrais. São
nossos primos irmãos junto com os demais seres vivos.
Mas estes quatro décimos de diferença e esse único aminoácido
fazem toda a diferença. Precisamos nos deter nela, pois aí emerge o
humano da humanidade. Em que reside?
65
do homem/mulher, cuja essência é a liberdade. Ele seria o portador
exclusivo da dimensão de espírito. Com certeza o espírito na pessoa é
liberdade. Mas o espírito humano não pode ser compreendido desco
nectado do processo cosmogênico, do espírito na natureza, na Histó
ria e no Cosmos. Ele não pode ficar ilhado como uma realidade à
parte sem relação com o processo global que se apresenta como um
sistema aberto e marcado pela indeterminação e pela criação contínua.
Há a concepção contemporânea de espírito, elaborada a partir
da nova cosmologia. Essa é a que assumiremos e que coloca o espírito
dentro do imenso processo da evolução ascendente. Aí dentro, o espí
rito foi se constituindo e ganhando crescente emergência e autocons
ciência até implodir no espírito humano. O espírito possui uma an
cestralidade como aquela do Universo. Daí ser importante arrancar
mos, primeiramente, do espírito em sua dimensão cósmica. A partir
daí veremos uma realização singular no espírito humano. Qie é então
o espírito?
Na perspectiva cosmogênica, entendemos por espírito a capaci
dade d as energias primordiais e da própria matéria de interagirem
entre si, de se auto-organizarem, de se constituírem em sistemas aber
tos, de se comunicarem e de formarem a teia complexíssima de inter
retro-relações que sustentam o Universo. O espírito é fundamental
mente relação, interação e auto-organização. Desde o primeiro mo
mento da explosão primordial, criaram-se relações e interações, gerin
do unidades ainda rudimentares que se foram organizando de forma
sempre mais complexa. Emergia então o espírito.
O Universo é cheio de espírito porque é reativo, panrelacional,
auto-organizativo e complexo. Neste sentido não há seres inertes à
diferença de outros chamados "seres vivos". Todos participam, em seu
grau, do espírito � da vida. A diferença entre o espírito de uma rocha
e o espírito humano não é de princípio, mas de grau. O princípio de
relação, de interação e de auto-organização complexa se realiza em
ambos, apenas de forma diferente.
O espírito humano é este mesmo dinamismo tornado consci
ente. Sente-se inserido no todo e vinculado a um corpo animado e
vivificado. Por meio desse corpo entra em contato com todos os de
m�is corpos e energias do Universo. No nível reflexo, espírito signifi-
66
ca comunicação, irradiação, entusiasmo. Significa também criação e
autotranscendência para além dele mesmo, gerindo comunidade com
o mais distante e o mais diferente até com absoluta Alteridade, Deus.
O homem/mulher/espírito é o que de mais aberto e de mais universal
existe. É um nó de relações e re-ligações para todos os lados e dimen
sões. A vida consciente, livre, criadora, amorizadora caracteriza vid �
humana. É o espírito. É a águia na pujança de sua natureza de águia.
É o símbolo em sua verdadeira acepção de ligar e re-ligar.
Se o espírito é vida e relação, seu oposto não é matéria, mas
morte e ausência de relação. Pertence ao espírito também sua capaci
dade de encapsulamento, de recusa à comunicação com o outro, sua
vontade de dominação. A águia pode virar galinha. É o império do
diabólico como energia de desestruturação e morte.
67
ritualidade. Esta espiritualidade não vem enquadrada num marco reli
gioso. Ela pertence à caminhada de cada um, rumo à escuta e à con
quista de seu pr6prio coração. Obviamente, para uma pessoa religiosa,
dialogar com sua realidade profunda, escutar apelos que afloram de
seu centro, significa ouvir Deus e escutar a sua Palavra.
68
Por seu espírito e por sua autoconsciência, o ser humano se
mostra sempre concriador. Ele inteivém no seu projeto. Ele se faz
responsável pelo sentido de sua liberdade e de sua criatividade. Emerge
então como um ser ético. Ele pode agir com a natureza ou contra ela.
Pode desentranhar virtualidades presentes em cada coisa e em cada ecos
sistema. C.Onhecendo as leis da natureza, ele pode usar esse conhecimento
para prolongar a vida, reduzir e até anular a entropia dos processos evolu
tivos. O futuro da Terra dependeria assim do ser humano.
As tradições dos povos falam do ser humano como jardineiro.
Cultiva a Terra com cuidado e senso de estética. É um verdadeiro
culto que gera cultura. Ele é chamado a completar a criação deixada
incompleta. A acrescentar-lhe dimensões que possivelmente sem ele
j amais viriam à luz. Tal vocação não deve seivir de pretexto para o
antropocentrismo e a ideologia da dominação do mundo. Sua inter
venção no mundo deve se fazer sem sacrificar a comunidade plane
tária e cósmica da qual participa. Ele é vocacionado para ser o sím
bolos e não o d ia-bólos da criação.
Ele tem ainda a missão de médico da Terra. Historicamente se
mostrou demente. Ameaçou, desestruturou e matou. A máquina que
mata pode também salvar. Somos chamados a revitalizar, a animar e a
reintegrar o que foi durante séculos agredido, ferido e desestruturado.
Não podemos, numa atitude obscurantista, dar as costas à ciência e à
técnica e deixar a Terra com suas chagas e enfermidades. Se a ferimos
outrora e continuamos a magoá-la, devemos hoje saná-la e dar-lhe
condições de saúde integral. As soluções terapêuticas devem se inspi
rar em muitas fontes e tradições curativas, ensaiadas pelos povos dos
mais originários aos mais contemporâneos. Nesse afã não devemos
desprezar o concurso de nossa civilização técnico-científica, apesar de
ter sido ela a principal causadora de seus traumatismos.
Por fim, nossa civilização tecnológica, tão simbólica quanto di
abólica, suscita uma pergunta radical: qual é seu significado mais trans
cendente? A que ela, finalmente, se ordena? À dominação da Terra? A
fazermo-nos apenas mais ricos materialmente, ao preço de ficarmos
mais pobres espiritualmente, porque mais alienados de nossas raízes
cósmicas? Ao responder a estas indagações, surge outro aspecto da
missão humano: a de salvar a Terra e a própria espécie homo.
69
Importa reconhecer os inestimáveis méritos da civilização tecnoló
gica. Foi ela que nos permitiu sair da Terra. Avançar para dentro do
espaço exterior. Chegar à Lua e, mediante sondas, satélites e robôs, estudar
quase todos os planetas e luas do sistema solar. Esta civilização tecnológica
propiciou a realização de uma das aspirações mais ancestrais da humani
dade: poder voar como os pássaros; poder viajar até onde pudéssemos ir.
Até onde podemos ir? Até o sem fronteiras. Para além do Sol,
das estrelas, das galáxias e do inteiro Universo. Até o infinito. Pois até
lá chega nosso sonho e nosso desejo. E não voamos porque temos aviões
e foguetes espaciais. Voamos porque ansiamos voar. É por causa desta sede
irreprimível que criamos o avião e os foguetes. É a águia em nós que nos
convoca sempre mais para cima e sempre mais para o alto.
A aventura espacial, iniciada nos anos sessenta, revela a dimen
são cósmica do projeto humano. Ela nos fornece uma compreensãc
mais concreta do radical desejo humano de sempre transcender, de
violar todas as barreiras e de só se satisfazer com o infinito.
O céu profundo, acima de nossa cabeças, é o maior símbolo
desta transcendência. Por isso os seres humanos querem chegar lá.
Bem o expressou o astronauta russo Yuri Romanenko ao retornar à
Terra, depois de ter ficado dois anos no espaço: "O cosmos é um
ímã. Depois de ter estado lá em cima, você só pensa em voltar para
lá". Q!ieremos voltar para o céu porque somos mais do que filho e
filhas da Terra. Somos, na verdade, seres celestiais e cósmicos. Do
cosmos viemos e para o cosmos queremos consciente e inconsciente
mente voltar. Sempre fomos errantes. A partir do neolítico, ficamos,
por breve tempo, sedentários em moradias, cidades e estados. Agora
retomamos nossa errância rumo às estrelas, nossa verdadeira mora
da. Os materiais que nos constituem não foram formados no seio
das grandes estrelas vermelhas?
Mas não é a nossa origem estelar que explica a exploração do
espaço acima de nossas cabeças. É por uma razão bem mais prática:
sentimos a urgência de sobreviver como espécie.
Primeiramente, o desenvolvimento exponencial do projeto téc
nico-científico deu origem ao princípio de autodestruição. Pela pri
meira vez na História nossa espécie pode se dizimar a si mesma. É
natural que as pessoas não queiram aceitar esse eventual veredito de
70
morte. Os que podem, querem fugir para o espaço, bem longe da casa
em chamas.
Em segundo lugar, as ciências da Terra nos forneceram dados
bastante precisos dos impactos que o planeta sofreu durante o tempo
de sua formação. Algumas vezes quase todo seu capital biológico foi
destruído, como, por exemplo, no período cretáceo-terciário, 67 mi
lhões de anos atrás. Desaparecem, então, num lapso curto de tempo,
os dinossauros. Curiosamente, constatou-se que todas as vezes que
ocorreram dizimações em massa na biosfera seguiu-se uma plurifera
ção fantástica de novas formas de vida. É uma espécie de vendetta do
sistema-vida.
Sabemos hoje que existem próximos à Terra cerca de 300 mil
asteróides com mais de 100 metros de diâmetro e mais de 2.000 com
um quilômetro ou mais. Na nuvem de Oort, nos confins do sistema
solar (entre 20 e 100 mil unidades astronômicas), existem mais de 1
trilhão de meteoros, asteróides e cometas, alguns muito grandes. De
vez em quando saem de lá, por razões gravitacionais ainda não esclare
cidas, e colidem com os planetas solares. Nenhum planeta nem a Ter
ra são imunes contra eles. Caindo aqui fariam estragos formidáveis.
Alguns deles, dizem renomados cientistas, poderiam nos destruir.
Se desaparecer nossa espécie homo, seguramente será substituída
por uma outra, inteligente e, esperamos, mais sábia. Será algum ramo
direto da espécie homo ou de algum ser complexo de outra linhagem.
Biólogos constataram que na árvore da vida, especialmente a partir do
surgimento dos animais, se verifica forte pressão seletiva que propicia
a criação de redes neuronais cada vez mais complexas, terminando no
cérebro humano. Esse processo se mantém. Ele será responsável pelo
princípio de inteligibilidade e de amorização que emergirá como emer
giu outrora. Mesmo atualmente, ele leva a humanidade a evoluir na
direção de um superorganismo planetário. Tende a fazê-la mais socie
tária, mais comunitária, mais solidária e cooperativa.
O perigo de uma hecatombe biológica é permanente. Em fun
ção d a salvaguarda da Terra e da biosfera, estudam-se hoje tecnologias
de deflexão (desvio de rota) dos asteróides. Ou até a ocupação deles
por humanos. Criar-se-iam lá condições de vida artificial, aproveitan
do materiais utilizáveis como os gelos e outros elementos físico-quími-
71
cos e orgânicos de que são abundantes. Esse alteraria sua trajet6ria
para não danificar os planetas solares.
Outros aventam, seriamente, a possibilidade de os seres huma
nos começarem a terraformar (criação de condições adequadas para a
vida, semelhantes às da Terra) os planetas vizinhos, especialmente Marte,
a lua de Netuno, Tritão, e a de Saturno, Titã. Aí se desenvolveria parte
da humanidade sob condições técnicas favoráveis. Assim os ovos não
estariam todos numa mesma cesta. Caso houvesse algum cataclismo
na Terra, salvar-se-ia uma porção da humanidade, para dar continui
dade ao projeto humano. Tal como na arca de Noé, não se salvariam
apenas humanos, mas também outros companheiros da comunidade
vital, microorganismos, plantas e animais.
O sonho alcança mais longe. Com os avanços tecnológicos
crescentes, deve-se pensar em viagens siderais. Elas adentrariam a
Via-Láctea em busca de outros sistemas estelares, possuidores de
planetas habitáveis. Há cerca de centenas de milhares de milhões
destes na nossa galáxia.
O ser humano desenvolver-se-á em tais paragens c6smicas, ge-·
rando culturas diferentes, certamente outro tipo de pessoas, todas ver
sadas em altas tecnologias, como n6s hoje somos versados no alfabeto
ou nas tecnologias dos aparelhos domésticos. Lembrar-se-ão talvez,
como diz o cosm6logo Carl Sagan, de seus ancestrais quase míticos
que, na segunda metade do século XX, no terceiro planeta do sistema
solar, a Terra, se aventuraram pela primeira vez pelo mar-oceano dos
espaços exteriores. Sorrirão, nos admirarão e amarão.
Cresce mais e mais esta consciência: ou prolongamos a aventura
dos vôos espaciais ou corremos o risco de nos destruir por nós mesmos,
ou de sermos destruídos por algum impacto vindo de fora. Os projetos
espaciais norte-americanos, russos e europeus estariam a serviço do in
consciente coletivo da humanidade. De forma antecipatória e prognósti
ca, _p_ressente um eventual cataclismo, capaz de interromper a aventura
humana na Terra.
Importa ouvir o chamado do inconsciente coletivo, esse grande
e sábio ancião que fala dentro de nós, e associá-lo ao outro chamado
que vem da ciência moderna, feita com consciência. Esta nos concla
ma a entender mais radicalmente nossa missão, que é salvar nossa
72
espécie, junto com representantes de outras espécies, proteger nosso
belo planeta contra ameaças de asteróides fatais ou de quaisquer ou
tros perigos vindos dos espaços siderais.
A missão do ser humano alcança mais longe ainda: ao terrafor
mar outros planetas, cabe a ele disseminar vida; como dom maior da
cosmogênese, deve ele dar vida aos outros. Transportada a outros mun
dos, a vida fará seu curso. Resistirá às situações adversas. Adaptar-se-á
ao ambiente. Criará para si um ambiente adequado, como criou um
dia a biosfera sobre a Terra. Complexificar-se-á e gerará espécies talvez
nunca dantes havidas, todas cheias de propósito e de beleza.
Essa missão radical do ser humano - o de disseminador de vida
no Universo - nos recordará a frase daquele que se entendeu como o
Filho do Homem e que, ao seu tempo, disse: "Eu vim trazer vida e
vida em abundância". Essa missão é não só do Filho do Homem, mas
de todos os homens, seus irmãos e irmãs.
Nesta linha de reflexão, a dimensão em nós é despertada como
jamais antes. Se nos quedarmos apenas na dimensão-galinha, quer di
zer, se ficarmos em casa, melhorando apenas nosso planeta, sem o
propósito de ultrapassá-lo, não estaremos a salvo de assaltos possíveis
que vêm dos impactos exteriores ou de nós mesmos. A condição de
sobrevivência é dar asas à águia para que alce vôo e se salve nos céus. Se
o Universo está se expandindo, nós, seres humanos, obedecemos à
mesma lógica: estamos nos expandindo também, viajando às estrelas.
Por fim, há uma derradeira missão do ser humano, que so
mente é discernível a partir de uma perspectiva espiritual: o ser hu
mano existe para permitir uma realização única de Deus. Com fre
qüência temos asseverado que o ser humano revela uma abertura
para o infinito. Essa abertura se ordena a recepcionar o próprio
infinito dentro de si. É como a taça cristalina. Só realiza sua meta
quando acolhe uma sede infinita para poder se autocomunicar a Ele
e sacá-lo plenamente. Mais ainda: Deus sai de si totalmente e se
· entrega absolutamente ao diferente. Deus se fez humano para que o
humano se fizesse Deus. Quando Deus resolveu sair de si mesmo e ir
ao encontro de alguém que o acolhesse totalmente, surgiu então o
ser humano. O ser humano é o reverso de Deus. Permitir essa reali
zação divina é a sup �ema missão do ser humano, homem e mulher.
73
Para isso ele foi pensado, eternamente amado e colocado na criação.
Importa curvarmo-nos, reverentemente, diante desta nossa rea
lidade humana, nossa missão e nosso mistério que se articula com o
Mistério absoluto.
Notas
B ib l iografia
BATESON, G. Mind and nature; a necessary unity. New York, Bantam, 1988.
BERRY, T. & SWIMME, B. Tbe universe story; San Francisco, Harper, 1 992.
BOFF, L. Ecologia; grito da Terra, grito dos pobres. São Paulo, Ática, 1995 .
DE OUVE, C. Poeira vital: a vida como imperativo cósmico. São Paulo,
Campus, 1997.
MORIN, E. Le paradigme perdu; la nature humaine. Paris, Seuil, 1973.
PLESSIS-PASTERNACK, G. Do caos a i11teligência artijicial. São Paulo, UNESP,
1 992.
PRIGOGINE, 1. A nova aliança. Brasília, UnB, 1990.
SAGAN, C. Pálido ponto flZlt!. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
ZOHAR, D. O ser q11d11tico; uma visão revolucionária da natureza humana e
da consciência, baseada na nova fisica. São Paulo, Best Seller, 199 1 .
74
Literatura e complexidade 1
NELSON FIEDLER-FE RRARA2 I
A
reflexão interdisciplinar não consiste apenas em transpor concei
tos e métodos de uma ou mais disciplinas para outra. Conceitos
de uma disciplina podem se apresentar produtivos em outra, não ape
nas gerando modelos com características desta ou daquela disciplina,
mas também produzindo novas abordagens e visões a respeito de ve
lhos problemas. Algumas vezes, a interdisciplinaridade como "habili
dade para pensar 'lateralmente' a respeito de questões que não foram
antes questionadas, para aprender aquilo que não é conhecido no inte
rior da nossa própria disciplina" (Mittelstrass, 94)3 nos convida ao uso
de termos com denotação precisa em uma disciplina, aplicando-os a
outra num sentido metafórico ou analógico. Essas duas posturas po
dem ser produtivas, devendo-se, contudo, avaliar de maneira judiciosa
a relação_ entre os modelos e o sistema ou objeto em estudo, bem como
a pertinência das metáforas ou analogias suscitadas.
O exercício da interdisciplinaridade tem sido enriquecido nos
últimos anos com a contribuição de trabalhos onde se busca aproxi
mar conceitos e métodos das ciências da natureza, sobretudo aqueles
do chamado "pensamento da complexidade", a problemas em hu
manidades. Com efeito, não se pode ainda falar de uma "teoria da
complexidade"; trata-se, por enquanto, de um conjunto de pesquisas
e hipóteses parcialmente convergentes. Em particular, trabalhos re
centes bastante estimulantes têm sido feitos relacionando modelos
para complexidade e literatura (Hayles, 9 14, e referências citadas). O
presente trabalho se situa nessa linha de reflexão ao considerar três
modelos para complexidade caos determinístico, estruturas dissipati-
-
vas e complexidade a partir do ruído , discutindo como eles se apli
-
Reducionismo e complexidade
76
rior não pode ser inteiramente explicado separando os elementos que
o compõem e interpelando as suas propriedades na ausência das inte
rações que unem os elementos; isto é, os diversos níveis de organiza
ção não são redutíveis a uma estrutura única feita de componentes
elementares, ou seja, a história (dinâmica) do sistema é irredutível a fato
res estruturais.
Q!iais seriam as condições estruturais necessárias para se identi
ficar um sistema complexo? Há diversas "definições" representadas
por modelos de sistemas complexos: complexidade algorítmica, percola
ção, dinâmica de populações, vidros de spin, caos determinístico, es
truturas dissipativas, complexidade a partir do ruído etc.
Introduziremos a seguir, sucintamente, os últimos três modelos
para complexidade, os quais nos interessam em conexão com a ques
tão do texto literário.
Caos determinístico
77
sência de ordem. Assim, sistemas que apresentam caos determinístico
são ricos em informação ao invés de pobres em ordem.
Um exemplo simples, no âmbito da física, pode ajudar a com
preender a noção de caos determinístico. Seja um pêndulo. Seu mo
vimento é regido pelas leis de Newton; trata-se, portanto, de um
sistema determinístico. O movimento de um pêndulo simples é ab
solutamente regular (previsível). Fixemos agora ao primeiro pêndu
lo um segundo pêndulo. O sistema continua a ser regido pelas leis
de Newton, contudo, agora, o movimento do segundo pêndulo é
imprevisível (caótico); com efeito, sua posição depende sensivelmen
te da posição do primeiro pêndulo, e essa não pode ser determinada
com precisão absoluta, nem mesmo em princípio.
A principal conseqüência da dependência sensível durante um
tempo arbitrariamente longo não permite predizer a sua evolução pos
terior. Uma outra novidade em relação ao que se conhecia antes é que
o comportamento caótico pode ocorrer também em sistemas simples;
com efeito, esse já pode ocorrer em sistemas para os quais bastam três
variáveis representacivas para descrever completamente a dinâmica as
sociada. Como conseqüência, comportamentos complexos podem não
necessariamente requerer modelos complicados.
Em sistemas caóticos determinísticos a evolução temporal para
tempos longos é representada por uma estrutura topológica hierárquica
com características de auto-similaridade. Expliquemo-nos. No espaço
abstrato (espaço de frases) dos parâmetros necessários para representar
completamente o sistema e sua evolução, a trajetória do sistema (sua
história) para tempo longos é representada por um objeto (atrator) de
dimensão não inteira (dimensão fracta� que apresenta essa característi
ca de auto-similaridade, isto é, de repetir-se a si mesmo à medida que
é ampliado. Tal objeto se denomina um fractal Tais atratores cha
mam-se "atratores estranhos" quando associados a dinâmicas que apre
sentam dependência sensível às condições iniciais.
A ocorrência de caos determinístico toma ilusória e injustifica- ·
da a prática corrente na habitual esquematização da realidade, onde
estudamos a evolução de um sistema como se fosse isolado, desprezan
do as pequenas perturbações que o ambiente circundante produz e
considerando seus efeitos desprezíveis. Um outro aspecto novo d iz
78
respeito ao fato de que o determinismo de uma lei não implica a
previsibilidad e dos fenômenos que ela regula, uma terceira conseqü
ência é que sistemas simples podem manifestar comportamentos in
crivelmente complicados. Detalhes adicionais relativos ao caos deter
minístico podem ser encontrados em (Bergé, 94)6 e (Fiedler-Ferrara,
94)7, ou, sem formalização matemática, em (Gleick, 87)8 e (Ruelle,
9 1)9; para uma revisão crítica recente veja (Ruelle)1º.
Estruturas dissipativas
79
básicos das estruturas dissipativas são tais sistemas imersos num meio
dissipativo na presença de ruído.
O processo de auto-organização é determinado sobretudo pelas
propriedades do próprio meio, sendo independente ou fracamente
dependente das características das fontes de não-equilíbrio, e, fre
qüentemente, das condições iniciais. A auto-organização é o resulta
do do desenvolvimento de instabilidades em um sistema inicialmen
te desorganizado, com a conseqüente estabilização de estruturas coe
rentes de caráter macroscópico. Isso ocorre devido ao balanço entre
perdas dissipativas e ganhos provindos do exterior, j á que o sistema
é aberto. A ocorrênc ia de tais estruturas em um sistema dissipativo
apresenta a particularidade de que tal sistema se comporta como um
todo: ele se estrutura como se cada sua parte fosse "informada" a
respeito do estado global; deve portanto existir um conceito de orga
nização que dê conta das relações entre o todo e o comportamento
das partes. Uma abordagem mais completa da teoria das estruturas
d issipativas pode ser encontrada nos livros de Prigogine e Haken
(Nicolis, 77) e (Haken, 83) 11 e nas referências lá citadas; referimo-nos
também ao artigo de Luzzi e Vasconcelos (Luzzi, 9 1)12; os conceitos
envolvidos são tratados sem formalização matemática nos livros de
Prigogine e Stengers (Prigogine, 84) e (Prigogine, 86)13•
80
decorre mais da relação e ntre o sujeito e o objeto no processo de inte
ração do que da estrutura intrínseca do objeto observado.
Trata-se de uma abordagem probabilística. que identifica a com
plexidade com informação que falta para se ter uma explicação exau
rível e completa da formação do sistema e seu funcionamento.
Segundo essa formulação, a capacidade de auto-organização de
um sistema resulta de desorganizações seguidas de reorganizações em
níveis de complexidades mais elevados. Nessa perspectiva, a criação de
complexidade se nutre da desordem (ruído). O aleatório passa então a
ser parte integrante da organização. A desordem está, portanto, no centro
do que se define ordem. No processo de desorganização quebraram-se
vínculos, e novas relações integram-se em uma nova organização com
uma maior diversidade e menor redundância; isso não pode ocorrer sem
trocas entre os diversos níveis.
A auto-organização pode então ser descrita como um processo
dinâmico através do qual perturbações aleatórias ou ruído atuando nos
canais de comunicação em um sistema organizado são capazes de prcxiuzir
não somente disfunção e desorganização, como também uma mudança na
organÍzdçÍiiJ do sistema até um estado cmn maior complexidade e menor redun
dância. Para detalhes adicionais veja Atlan (Atlan, 79), (Atlan, 86)15•
81
caso, ser atribuída às perturbações externas de caráter aleat6rio.
Há, portanto, nesses modelos para complexi.dade, visões e mesmo
fenomenologias diversas. Entretanto, em certas situações, esses mode
los podem ser complementares na compreensão do comportamento com
plexo. É o que ocorre, por exemplo, a nosso ver, no caso do texto
artístico. Discutiremos a seguir como ostrês modelos apresentados se
articulam na caracterização do texto literário como sistema complexo.
Complexidade e literatura
Primeira aproximação
82
O processo de criação: o subsistema autor - texto
83
eia às condições iniciais pode repercutir no processo de elaboração do
texto artístico. Um primeiro aspecto, aquele que temos assimilado até
aqui, consiste na repercussão que ocorre independente da consciência
do autor: a dependência sensível às condições iniciais faz parte da
própria dinâmica ou natureza do sistema considerado e não pode ser
evitada, podendo ser, no máximo, controlada. Um segundo aspecto
(Rewald, 94)16 é o uso deliberado que o autor pode fazer da dependência
sensível às condições iniciais, seja do ponto de vistafomzal, como "carpin
taria textual', seja do ponto de vista textual, através da sua incorporação às
personagens e ao enredo, criando situações onde a dependência sensível
produzirá efeitos na narrativa, eventualmente não previsíveis.
Contudo, apesar da dependência sensível às condições iniciais,
as versões sucessivas de um texto artístico e o próprio texto final apre
sentam-se como estruturas auto-organiz.adas em um sistema aberto e as
versões sucessivas do texto são sistemas fora do equilíbrio, consistente
mente com a idéia de estruturas dissipativas antes discutidas.
É interessante observar-se também que, apesar da dependência
às condições iniciais e de suas conseqüências para a narrativa, os textos
de um mesmo autor parecem-se num tipo de auto-similaridade. Visto
na perspectiva do conjunto da obra de um autor, ou parte de sua
produção, tudo se passa como se variações nas condições iniciais não
alterassem significativamente o estado auto-organizado final: o texto
ou o conjunto da obra ou parte dela se estruturam como se cada nível
de representação fosse "informado" a respeito do estado global do
sistema, característica das estruturas dissipativas, como afirmamos antes.
Reencontramos as idéias de complexidade a partir do ruído na
medida em que esse último comparece tomo parte importante do
menu no aparecimento da auto-organização como emergência de sig
nificado no processo de escritura do texto artístico. Mais que isso, o
texto final é obtido a partir de desorganizações seguidas de reorganiza
ções, muitas vezes em níveis de complexidade mais elevados. Além
disso, é evidente o papel central do autor no processo, aqui agente de
produção textual, mas também observador e leitor da própria produ
ção; como conseqüência, a . interação leitor - obra, que se discutirá a
seguir, também participa no processo de criação.
84
O processo de leitura: o subsistema leitor - texto
85
constituem estruturas dissipativas, sendo a diferença entre ambas o fato
de que na primeira o observador é mais importante e na segunda a
ênfase é na estrutura intrínseca do sistema.
Claramente, o novo significado que emerge a cada passo da
leitura não pode ser completamente genérico. Apenas certas macroes
truturas apreendidas ou consideradas no processo de leitura são com
patíveis com os vínculos internos e externos. A cada etapa abre-se ao lei
tor, lhe é permitida uma vizinhança de significados de maior ou me
nor extensão. A liberdade do leitor não é total. Essa vizinhança será
tanto mais extensa quanto maior o nível de ruído.
Há, contudo, elementos de dependência sensível às condições inici
ais no processo de leitura. Com efeito, pequenas nuanças ou estímulos
que o leitor eventualmente absorve do meio circundante ou da sua
memória podem afetar de maneira significativa a particular escolha
que esse fará no conjunto daquelas compatíveis com os vínculos im
postos pelo texto, repercutindo-se essa escolha na emergência do signi
ficado.
Observa-se, portanto, que o processo de leitura envolve emer
gência de significados a partir do ruído com o aparecimento de estru
turas auto-organizadas a cada nível de compreensão e dependência
sensível às condições iniciais. Um tal processo nunca se completa. A
cada nova leitura novas interpretações e nuanças comparecem, reve
lando-se assim a própria essência e vocação do texto artístico: a de
gerar múltiplos significados a cada etapa da leitura e a cada releitura.
leitura.
Como sistema complexo, o texto artístico não é redutível a
fatores estruturais, nem um nível superior de organização pode ser
inteiramente explicado separando-se as partes que o compõem e
interpretando as suas propriedades na ausência das interações que
unem os elementos.
86
O autor escreve para um leitor, mesmo que abstrato. Autor e
leitor estão imersos no mundo. O próprio autor faz-se leitor de si
mesmo no processo de criação. O texto nasce como resultado desse
macroprocesso, recebe do mundo e imprime no mundo suas marcas.
Apesar da dependência sensível às condições iniciais, surgem
estados auto-organizados de caráteres macroscópicos ainda mais am
plos que o texto artístico propriamente dito: estabelecem-se padrões
estéticos, escolas literárias, correntes etc., o gosto do público é molda
do por esses padrões não sem interferir nesses mesmos padrões através
do inevitável julgamento.
Restringimo-os aqui ao macrossistema autor - texto - leitor. Esse
macrossistema pode ser ampliado para incluir outros níveis superio
res de organização. Cada uma das partes em que pode ser separado o
macrossistema sem descaracterizá-lo é já um sistema complexo: cada
nível de organização se repercute necessariamente no superior. Co
nhecer bem cada subsistema é condição necessária para compreender
o sistema complexo, mas não é condição suficiente.
Conclusões
87
xos por excelência, possam ser mais bem compreendidas a partir de
modelagem matemática. Aqui propomos um outro caminho: buscar
uma compreensão de caráter qualitativo utilizando o referencial con
ceitua! dos modelos para complexidade. Com efeito, corroboram essa
atitude algumas constatações que têm sido feitas de limitações de
modelos quantitativos em humanidades, por exemplo, pela utilização
das idéias da teoria do caos determinístico: "Fenômenos em finanças,
economia e ciências sociais apresentam evoluções temporais de grande
interesse mas de muita dificuldade para se compreender... Tem-se a
impressão que tais modelos devem incluir ruído e talvez derivem da
dinâmica determinística, isto é, alguns parâmetros da dinâmica mu
dam com o tempo. Aqui, basicamente, não temos sido capazes de
obter modelos quantitativos úteis", (Ruelle, 94)20•
As idéias aqui expostas são reflexões ainda preliminares .que
devem sçr .devidamente testadas a fim de- mostrarem: ou não a perti� .
... ·nência - a conseqüência de sua utilização no tratament dh textq fü� ·, --� /
� o
rà ;io. �- com essa expectativa que as apresentamos.
Notas
B ibliografia
88
8GLEICK, ). Chaos: making a ntw scimce. New York, Viking, 1987.
9RUELLE, D. Hasard ti chaos. Paris, Editions Odile Jacob, 199 1 .
10
• "Where can one hope to profibatly apply the ideas of chaos".
Phys, Today, July 1994, 24, 1994.
11NICOLIS, G. e PRIGOGINE, I. Stif organization in non equilibrium systtms.
New York, Wiley-Interscience, 1977 & HAKEN, H. Advanctd synergttics. Berlim, Sprin
ger-Verlag, 1983.
12 LUZZI, R. & VASCONCELOS, A. R. "Statistical mechanics of dissipati
on and order: na overview". Cimc. Cult. 43 (6), 423, 199 1 .
1 3 PRIGOGINE, I . & STENGERS, I. Order out of chaos. New York, Bantam
Books, 1984; e La Nouvtlle alliance. Paris: Gallimard, 1986.
14 PAULSON. W. •titerature, complexity, interdisciplinarity". ln Hayles,
N. K. (ed.), Chaos and order, cit. p. 37-53, 199 1 .
1 5 ATLAN, H. Entre lt cristal et la fumét. Paris, Seuil, 1979; e A tort et à raison:
19 PAULSON, ibid. 9 1 .
20 RUELLE, ibid. 94.
89
1 Apontamentos para um diálogo complexo
WI NI FRED KNOX1 1
92
do-a pela idéia da antropo-bio-logia do conhecimento. O recurso da
microscopia permite a Morin perguntar-se se não há uma dimensão
cognitiva na organização celular, por mais primitiva que pareça ser.
De forma convergente, Popper (199 1) fala do conhecimento das plan
tas e animais apreendido através de séculos e que os ajudam a sobreviver.
O programa informacional inscrito na estrutura molecular do
ADN possui instâncias de memória, lógica e simbolismo. É de funda
mental importância a idéia de Morin da computação, momento em
que o indivíduo comporta a identidade genérica, incluindo-a na iden
tidade individual, mesmo que sem a consciência de fazê-lo.
Morin dirá que o computo não pensa de modo ideal, isto é isolável:
c.omo tal e se rec.onhece c.omo tal, mas c.omo operar a transferência do c.onceito
de sujeito para a biologia, visto a dificuldade de naturaliz.á-la num ser não
humano desprovido de c.onsciência, c.omo no caso das bactérias? (Morin, op.
cit., p. 1 52).
93
<luzindo os meios para a sua sobrevivência e a execução das atividades
de reprodução e/ou multiplicação. O mesmo não acontece na máqui
na artificial. Como nos mostra a cibernética, os avanços em relação à
capacidade de retroação da máquina moderna, não vão além do exte
riomente programado, ou seja a organização artificial é exterior a ela
própria.
Para Popper,
cada vez que morre um homem, todo o Universo é destruído (podemos obser
var isto quando nos identificamos com esse homem). Os seres humanos são
insubstituíveis, eles são sem dúvida muito diferentes das máquinas. Eles são
capaz,es degoz.ar a vida, de sofrer e enfrentar a morte conscientemente. Eles são
indivíduos, são fins em si mesmos .. (Popper, 1 99 1:2:7)
.
94
Será, através da possibilidade de a teoria ser, de certa forma, con
trastada em suas conseqüências, com a obseivação e o teste empírico, a
distinção que Popper proporá entre ciência e pseudociência (metafisica).
Morin partirá da idéia da crise dos fundamentos e da impos
sibilidade de afirmações de verdades que Popper, como também Ni
etzche, contestaram.
O próprio real entrou em crise e "a substância própria desagregou-se
nas equações da. foica quântica ': . A crise dosfunda.mentos do conhecimento
.
95
tempo que o objeto que o constitui. Neste sentido, o sujeito produz o objeto
(1980: 1 68).
Não exigirei que um sistema científico s�ja suscetível de ser dado como
válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, qtte sua
forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas
empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência,
um sistema científico empírico (Popper, 1 972:42).
96
subjetivamente justificáveis, passíveis de serem submetidos a testes.
Isto implica considerar que, a partir das conclusões dos enunciados
básicos (anteriores), outros enunciados surgirão e terão de ser subme
tidos a teste. Conclui-se que não podem existir enunciados definitivos
em ciência.
A refutabilidade é o requisito sugerido por Popper para demar
car o campo do que pode ser considerado científico. A falseabilidade é
um critério aplicável ao caráter empírico de um sistema de enunciados, o
falseamento é a ação de aplicar aos enunciados singulares os testes com
intuito de falseá-los. Somente serão considerados falseadores da teoria os
enunciados singulares que apresentarem um efeito suscetível de reprodu
ção que refute a teoria. Se os enunciados singulares forem falseadores da
teoria, todo o sistema de enunciados deve ser rejeitado4•
Em Popper, o fato de os enunciados empíricos serem vistos
como suscetíveis de revisão, ou seja, poderem ser criticados e substitu
ídos por outros mais adequados, será o que caracteriza a capacidade
do progresso da ciência. Neste sentido, a refutabilidade científica é
uma escolha metodológica e, também, uma nova postura teórica.
O progresso científico não se constrói por meio de acumulação
de conhecimentos observáveis e também não acontece por meio de
saltos resultantes de conflitos entre opostos. O que ocorre é a substi
tuição de teorias menos satisfatórias por outras mais satisfatórias, subs
tituem-se as teorias em função de seu conteúdo informativo e de sua
resistência aos testes crua'ais. Há um processo natural de competição
entre as teorias que é seletivo. Aquelas que adquirirem mecanismos
que as ajudem a adaptar-se melhor à realidade sobreviverão.
Há, portanto, muito interesse no processo dinâmico por meio
do qual se adquire o conhecimento científico e enfatiza o processo
revolucionário pelo qual uma teoria mais antiga é rejeitada e substituí
da por uma nova5• No entanto, esse processo evolutivo das teorias não
é considerado como carregado de linguagens intradutíveis entre si6•
A idéia de sistema aberto para a ciência aparece em Popper e
em Morin, tanto no sentido de uma opção para o cientista de uma
postura crítica frente a suas atividades, quanto também na adoção
da concepção de um sistema teórico aberto, ainda por se fazer, em
constantes modificações.
97
Popper concebe como dados legítimos os fatos e o espírito da
vida científica real, e sublinha o papel desempenhado, nesse processo,
pelo fracasso ocasional da teoria mais antiga ao enfrentar desafios
lançados pela lógica da experiência ou da observação. Neste sentido é
que as noções de erro, testes e falseamento vão adquirir na sua obra
um sentido especial. O cientista deve ser portador de um espírito
crítico e aberto, capaz de conjeturar, fazer hipóteses, uma ciência cujas
atividades normais sejam revolucionárias7• Por isso, o cientista deve
expor suas formulações às mais pesadas críticas e mesmo possuir uma
metodologia que priorize as teorias mais falseáveis, para submetê-las
aos testes cruciais, no sentido de mostrar que um determinado enun
ciado é falso. Sua crença é a de que sempre será possível obter-se teori
as melhores e, neste sentido, mais verdadeiras que as anteriores por
um determinado tempo t, até que uma outra teoria, T, apareça e expli
que tudo aquilo que a anterior explicou, e mais o que ela não conse
guiu explicar. O exemplo é o da teoria de Newton, TN, e a teoria de
Einstein, TE. TN explica adequadamente Tx, mas não consegue resol
ver alguns aspectos y presentes em Tx, aspectos esses que não chegam
a comprometer a explicação que tx faz da natureza, pois no contexto
histórico ela é a melhor explicação encontrada. Mas depois de um
tempo, t, surge uma outra explicação, que consegue, mesmo passando
por inúmeras tentativas de falseamento, explicar o que TN explicava,
x, e o que não era explicado, y. Logo TE é uma teoria melhor.
98
do relativismo que transforma cada cultura numa totalidade irredu
tível e singular. No Brasil, a julgar pelo material analisado, a identi
dade da ciência antropol6gica tem sido afirmada, quase que consen
sualmente, pela preocupação com as especificidades em oposição a
nutras áreas do conhecimento que investem na busca de uma totali
zação de caráter mais universalista".
Nessa mesma perspectiva, Morin criticará a disciplinaridade fe
chada, a pouca troca cognitiva entre as ciências, propondo uma lógica
capaz de incluir um pensamento universalista. Pelo menos, três prin
cípios são sugeridos: o dialógico, o recorrente e o hologramático. Uti
lizando-se da metáfora do macroscópio (Rosnay, 1975), que propõe
uma interligação entre os diversos níveis sistêmicos, desde o microscó
pico até o nível telescópico, pressupõe que esses princípios estejam
presentes em todos os níveis. O princípio dialógi'co é considerado um
resultado ou a própria ação em si de associar-se, podendo ser ao mes
mo tempo uma associação complementar, concorrente ou antagonis
ta, de instâncias necessárias para a execução do objetivo principal dos
indivíduos, a perpetuação das espécies. O princípio recorrente traz a
idéia do anel recursivo, da retroação e de processos em circuitos aber
tos, em que os efeitos podem retroagir sobre as causas. O princípio
hologramático ilustra bem a idéia de descontinuidade e irreversibilida
de temporal. Utilizando-se da metáfora do holograma pode-se ter a
compreensão de que os elementos constituem um sistema, que o todo
está na parte e a parte poderia ser mais ou menos apta para regenerar
o todo, como se eles não fossem somente fragmentos do todo, mas ao
mesmo tempo uns microtodos virtuais. Desta forma, Morin chamará a
atenção para a complexidade humana, que traz impressa em sua men
te e em seus pensamentos os mitos, a religiosidade e as crenças8• O que
parece prioritário é a necessidade de se adquirir uma nova forma de
pensar que englobe todos estes conhecimentos e, principalmente, uma
nova ética que não considere como única possibilidade o caminho da
razão e da ciência ocidentais.
Notas
99
2 As mudanças de concepções teóricas dentro da comunidade científica,
serão chamadas e definidas diversamente; Thomas Kunh ( 1 975) usará a idéia de
mudança de paradigma, Popper usará a idéia de falseamento, para designar o modo
como o cientista deve agir para que haja um acréscimo no conhecimento através de
novas teorias.
3 Dentre os vários pensadores contemporâneos que fazem reflexões acerca
do conhecimento científico e problemáticas específicas, como as crises, revoluções
e criatividade no conhecimento científico, estão: Karl Popper, Thomas Kunh, Paul
Feyerabend, E. Lakatos, David Bohm, Edgar Morin, Illya Prigogyne. Sendo que
alguns destes, principalmente os três últimos citados, se permitem sair dos limites
impostos pela epistemologia clássica, percebendo a necessidade de conceber o co
nhecimento cien tífico inserido nas mais diversas produções de conhecimento hu
mano (arte, música, religião, mitologia ...).
4 Há dois significados para a palavra refutabilidade. O primeiro é u m senti
feita à Thomas Kuhn, quando este deveria pensar a dita ciência normal como u ma
possibilidade onde as atividades científicas quotidianas fossem mais críticas, me
nos convencionalistas e deterministas, onde as normas não fossem incontestáveis,
mas questionáveis.
8 Do mesmo modo Lévi-Strauss já havia mostrado como o pensamento
mítico e o racional científico persistem e existem concomitantemente no homem.
B ibliografia
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101
Em busca da com p lexidade esquecida'
JURE M I R MACHADO DA SILVA2 I
1 04
reside a sua maior luta epistemológica. Biodegradáveis, as certezas apare
cem a cada dia. As teorias nascem e morrem. Em função disso, perde-se
o consolo da redenção; ganha-se, em contrapartida, a lucidez do relati
vismo.
Em Mes démons, obra na qual resume o seu percurso e as idéias
obsessivas que o dominaram ao longo de uma vida de aventura inte
lectual, Edgar Morin conta como descobriu, durante a Segunda Guerra
Mundial, o marxismo. O encantamento durou pouco. O ser da des
confiança já estava em ação. O marxismo não podia mais seduzi-lo
por ter-se convertido, segundo a expressão tomada de empréstimo a
Karl Korsch, numa "utopia revolucionária"8• As asperezas do per
curso underground incentivaram-no a investir na originalidade abso
luta. Comelius Castoriadis sintetiza: "A unidade e a singularidade
do modo de pensar de Morin provêm de uma intuição profunda e
verdadeira da especificidade de cada uma das esferas do ser e ao
mesmo tempo de sua solidariedade indestrutível".
O eterno excluído, que se orgulha de não pertencer a nenhum
grupo ou escola, escolheu o caminho da solidão .. "É quase institiva
.
mente que, diante de toda idéia, procuro o seu oposto. Vivo sem cessar
o assalto dos contrários, dos imperativos contrários". Intelectual, suge
re, a quem através do ensaio, do texto de revista ou do artigo de jornal,
com riqueza de informação, trata das grandes questões humanas e
explora até as últimas conseqüências a articulação confiança/desconfi
ança. Os especialistas, costuma repetir com acidez, são, com freqüên
cia, homens de saber alheios à dialógica da complexidade que não
passam de gafanhotos - simpáticos, quando isolados; predadores, em
bando. Grande parte das dificuldades que enfrentou, antes de ser reco
nhecido como um pensador de primeira grandeza, é explicada por sua
disposição em atacar os intelectuais: "Não respeito a lei do meio".
Viver a imprecisão
1 05
com as quais nunca concordou, sofreu as perseguições � o repúdio
de uma corporação corroída, na época, pela mediocridade e soldada
em nome do Progresso, do Saber, da Verdade, da Ciência e de outros
termos de conhecida manipulação. Na contramão de todos os cre
dos científicos, jogou a carta de incerteza em oposição às leis históri
cas jamais demonstradas, recuperou o risco e o imprevisível como
vetores naturais e recusou-se a aceitar o messianismo das esquerdas
duras e desejosas de uma linearidade salvacionista.
Sempre a complexidade. Necessidade imposta pelo avanço do
pensamento tecnocrático, pela ameaça dos fanatismos religiosos e pelo
esquecimento da dimensão humana de Ser. Para Morin, adversário de
todos os totalitarismos, respaldado por sua biografia de resistente ao
nazismo, os meios de comunicação de massa e as universidades repre
sentam muitas vezes o papel de oponentes vigorosos da compreensão
profunda dos dilemas sociais. Não se trata de um ataque gratuito ou
ideológico à produção acadêmica. Ao contrário. Morin defende a re
forma educacional que permita à universidade ocupar lugar decisivo
na formação de homens voltados para a liberdade.
Pesquisador sem tabus temáticos, Edgar Morin debruçou-se
sobre os problemas da cultura de massa. A imagem, por exemplo, é
um dos seus assuntos prediletos. Michel Maffesoli obvserva: "Recep
táculo dos sonhos, o cinema constitui o elo mágico por excelência,
pois sua estrutura, como analisa com pertinência E. Morin, permite ·
1 06
subcultura convencional, cheia de estereótipos, conformista e precon
ceituosa. Além disso, arrogante. Nenhuma moda lhe escapa: estrutura
listas, marxistas, malthusianos, eliminadores da idéia de Homem e de
Sujeito, crentes de toda a sorte, recebem a sua parte. Solitário, Morin
sabe que pouco pode contra os representantes da elitização de um
saber impotente em relação à complexidade existencial, mas poderoso
enquanto mecanismo de dominação.
Maffesoli sustenta que não existem enganados e enganadores, "mas
uma atitude global"11• Morin persegue o ponto de intersecção entre as
perspectivas opostas, o núcleo indefinível da ambigüidade, a encruzilha
da dos inconciliáveis. Caminhada de confronto, segundo as suas próprias
palavras, em duas frentes: contra a baixa cretiniz.ação gerada pela mídia e,
na outra ponta, contra a alta cretiniz.ação alimentada pelos intelectuais12• A
guerra só poderia ser devastadora. De um lado, a abstração conceitua!
falsamente elucidativa (os ismos de todos os tipos). De outro, a recusa de
teorias absurdas dando conta da morte do homem e do fim da noção de
sujeito. Morin não se dobrou jamais: "Muitas vezes estive só porque eu não
penso de acordo com as alternativas e as evidências da casta inteletual"13•
Teórico em rota de colisão com as certezas imobilizadoras, Mo
rin conserva-se sintonizado com o desejo de mudança social. A razão
para o seu compromisso com a transformação é simples: o futuro povoa
o imaginário dos homens e cobra projeções que revelam, no mínimo,
preocupações legítimas com o bem-estar das gerações do amanhã. Sofre
se no presente a antecipação do devir. Deve-se, contudo, evitar de matar
o aqui e o agora em função de uma religião do vir-a-ser. O futuro não
pode ser convertido em doença do presente. A humanidade experimenta
hoje a decadência de um tipo de idéia de futuro. Cabe construir uma nova
concepção de devir passível de acolher uma confluência de sonhos.
Fugir à racionalização para alcançar a racionalidade, eis a aposta
de Morin para que a humanidade continue a projetar o "mundo me
lhor" sem cair no reducionismo do "melhor dos mundos". As misérias
do Terceiro Mundo, é compreensível, fazem com que a tentação salvaci
onista reacenda a cada dia o mito, nem sempre confessado, da revolução
nos corações inconformados com o capitalismo. Os leitores de Morin
perceberão que para ele a construção do presente passa pela descoberta
de um novo amanhã e pela ruptura com o projeto nostálgico de recupe-
1 07
ração de um passado fracassado. Sociólogo de uma era de nebulosa,
conforme Fages, Morin descobre que a profunda crise civilizacional
exige uma sociologie du présent14•
Se a científicidade não é uma garantia de lucidez política, a
racionalidade - sistema aberto às contradições fundamentais do ho
mem lúdico, produtivo e exposto constantemente à esquizofrenia so
cietal - aparece como a mais elevada forma de conhecimento huma
no. Ao contrário da racionalização, fechada e calcificada logicamente,
a racionalidade conjuga esforços argumentativos, de verificação, de
crítica e de autocrítica e, mais do que tudo, rejeita argumentos de
autoridade. O elogio da racionalidade feito por Morin nunca deixa de
salientar os limites desse portentoso instrumento que possibilita o
diálogo com o desconhecido, mas não apresenta respostas para tudo.15
Sociologia do presente, filosofia da incerteza, epistemologia da
complexidade, teoria do acaso fundador, abertura ao imponderável,
ânsia radical de elucidação, paixão pelo diálogo, cruzamento de disci
plinas: a obra de Edgar Morin é um convite à experimentação das
dores e das delícias da "imprecisão", no sentido imortalizado pela
poesia de Fernando Pessoa, cuja paráfrase moriniana por excelência
poderia ser: compreender não é preciso. Fazer ciência também não.
A metodologia do método
1 08
aspecto decisivo: "Um pensamento que sabe que pode religar e que as liga
ções que ele constrói podem formar esse prodígio do espírito que é o enten
dimento humano"17• Qiando a atomização espreita, marca assustadora de
sociedades performáticas e escravizadas pela burocratização dos saberes e
dos poderes, a superação, ainda que sempre parcial, do esfacelamento inte
lectual pressupõe a valorização do conjunto, da totalidade multidimensional.
Estratégia da desintegração para a reconstrução, a complexida
de desmonta a totalidade totalizante, clássica e monolítica, com a pre
ocupação teórica de estabelecer uma nova totalidade aberta, circular,
precária e em permantente intercâmbio com as suas partes. Morin está
muito longe de ser um apologista da fragmentação categórica ou das
virtudes da ausência da finalidade. Os finalismos deterministas, porém,
não o convencem na medida em que ele questiona a própria finalidade da
finalidade. Tudo o que concorre para a realização da vida não pode desvi
ar-se da pergunta sobre a finalidade última do viver.
O grande perigo da obsessão finalista perversa está em que "essa
racionalização finalista acaba sendo simétrica à antiga causalidade ele
mentar, pois, como ela, aprisiona a incerteza e a complexidade". Não
se deve esperar da complexidade, enquanto meio de entender os fenô
menos, uma arma para enfim eliminar a incerteza, descobrir os verda
deiros fins e estabelecer sem margem de erro a trama precisa dos obje
tos. A informação, vista como a finalidade suprema deste final de
milênio, acaba por esconder ou negligenciar o sujeito da troca de sig
nos. Informação para quê? Informação para quem? Os meios de co
municação tomaram-se sujeitos de si mesmos. A informação-fetiche
desconsidera a humanidade dos homens. Simplificar é a palavra-chave
da mídia.
"Assim a idéia de finalidade se impõe. Mas é necessário não
somente temperar o entusiasmo piagetiano: é necessário relativizar e
relacionar a idéia e a finalidade"18• Morin não é o único a enfrentar as
distorções da científicidade moderna. O "Grupo dos 10", formado
entre outros por Jacques Robin, Henri Atlan, Jacques Attali, Henri
Laborit, Michel Serres, Joel de Rosnay e, claro, Morin, empreendeu
nos anos 60 uma cruzada contra o cartesianismo. Rosnay destaca a
importância da "separação" cartesiana na edificação do esplendor ci
entífico atual, mas socorre-se de Morin para enfatizar que a inteligên-
1 09
eia parcelada, fruto do fracionamento dos problemas, resultou no es
tilhaçamento da complexidade do mundo. Implodir a fortaleza das
verdades consumadas continua a ser o maior desafio dos adeptos de
uma nova visão sistêmica: "Indispensável para fundar a ciência, o modo
de pensar analítico não é mais suficiente, mas explicar a dinâmica e a
evolução dos sistemas complexos, as retroações, os equilíbrios, o au- .
mento da diversidade e a auto-organização torna-se portanto necessá
rio a emergência de novas metodologias de organização dos conheci
mentos face à complexidade do mundo" 19• Caos e auto-organiza
ção entrelaçam-se. A ordem nasce da desordem. A desordem ori gi
na-se na ordem. Ordem e desordem geram o irreconhecível, o im
previsível. Nenhuma síntese acabad a é possível.
Tornar, portanto, as ciências da complexidade como portadoras
da salvação remete ao passado e trai a lógica desses aportes plenos de
inconformismo. A complexidade só permanece complexa na medida
em que reconhece os seus limites e rejeita a burocratização. O método é
um grito contra as tentações tecnocráticas do "metodologismo": "A
esterilidade danifica todo o trabalho que não cessa de proclamar a vonta
de do método''Xl. Edgar Morin conhece o valor do método, o que, de
resto, não seria razoável contestar, nas difkeis veredas da pesquisa científi
ca. No entanto, a exemplo de Paul Feyerabend, entende que "a ciência é
um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teoréti
co é mais humanitário e mais suscetível de estimular o progresso do
que as suas alternativas representadas por ordem e lei"21 •
O mundo confunde-se com os seus mitos. A ciência, altar da
razão, mistura-se com as suas fantasias. Morin e Feyerabend foram
longos nas denúncias contra a barbárie do conhecimento tecnocráti
co. A tarefa primordial do "cientista" não se alterou: transformar o
conhecimento em sabedoria. Urge quebrar a arrogância dos metadis- ·
1 10
tempo e pela disseminação secular de modelos existenciais mutilado
res. Na era da informação, a comunicação é um simulacro, um fantas
ma, uma ausência, uma recusa, uma quase-impossibilidade: "A tecno
ciência se forma, se ramifica, se institucionaliza nas universidades,
depois nas empresas industriais, por fim no Estado. Em dois séculos,
ela passa da perifieria ao coração da sociedade"22• Onde pode ainda
manifestar-se o sujeito da contestação, o homem da alteridade, o ser
da exclusão?
Mesmo que as brechas sejam mínimas, Morin não as despreza.
Os intelectuais, os formadores de opinião, precisam retomar o traba
lho de discussão. Forjar idéias é fundar universos dialógicos. A dialó
gica não existe sem pluralismo, sem desvio, sem contestação, sem con
tra-informação, sem comunicação de sentimentos. A normalização,
expressão máxima do conformismo, paralisa os intelectuais, arranca
lhes a originalidade, tira-lhes a autonomia, impede-os de pensar por
conta própria. Tudo é previsto, das palavras permitidas às teorias de
fensáveis: "Assim podemos ver, nas altas esferas intelectuais universi
tárias, exemplos soberbos de conformismo, que não são reconhecidos
senão após algumas gerações"23•
Intelectuais, contudo, não são apenas o pesquisador, o profes
sor, o cientista e o escritor. Os jornalistas, no sentido amplo da pala
vra, também o são. Intelectuais que há muito abdicaram do prazer e
da obrigação de repudiar o conformismo. A mídia quer distância da
complexidade. A simplificação é mais rentável. A crítica da mídia não
se volta j amais contra a própria mídia. As exceções servem de legitima
ção, simulacro de autocrítica. Produtores e produzidos por um imagi
nário que os engloba, os meios de comunicação, para serem examina
dos em profundidade, devem ser submetidos a complexas radiografias
à luz do paradigma que os justifica.
Edgar Morin não deve ser entendido como o inimigo dos inte
lectuais. Amigo das idéias, conserva a força da rebeldia. A complexida
de implica afrontar as verdades caseiras, as certezas confortáveis e, por
vezes, até mesmo os ideais mais caros e aparentemente generosos. A
irreverência epistemológica vai além dos compromissos ideológicos e
significa a exegese de todas as ideologias. Exercício constante de dialó
gica - colocar em relação o exame dos pressupostos de um projeto, de
li1
uma idéia, de uma posição etc. -, deslegitima as pretensões universa
listas atemporais e fundamenta a evolução paradigmática. Edgar Mo
rin simboliza o eterno retorno da dúvida.
Notas
1
A tradução das citações que estavam originalmente em francês foi feita
por Rachel Medeiros G ermano.
2 Professor da PUCRS.
3 MORIN, Edgar. La méthode 1. La nature de la nature. Paris, Seuil, 1 977,
p.7
4 TOURAINE, Alain . .. Edgar Morin et le chances de la liberté''. ln: Les
jardins de la connaissance. Paris, Université Euro-Á rabe Itinérante, n . 2, out.95 ,
p.29.
5 MORIN, Edgar. "La pensée socialiste en mine". ln: Le Monde. Paris,
2 1/04/9 3, p. 2. Nesse artigo extraordinário, Morin l embra que para Marx: "la
science apportait la certitude", sendo o mundo determinista; de resto "ni l'imaginaire
ni le mythe ne faisaient partie de la réalité humaine profonde". Em oposição a isso,
Edgar Morin sustenta que não se pode "opposer um futur raditux à um passé de
servitudes et de supertitions. Toutes les cultures ont leurs vertus, leurs expéritnces, leurs
sagesses, en même temps que leurs carences eu leurs ignorances".
6 Ver MORIN, Edgar. Terra-pátria. Porto Alegre, Sulina, 1 99 5 . U m a das
epígrafes do livro, colhida na obra do escritor Ernesto Sabato, já d iz muito
sobre a maneira de pensar de Morin: "Precisamos de mundiólogos" (p. 5 ) .
7
FAGES, J. B. Comprmdre Edgar Morin. Paris, Privat, 1 9 80, p. 1 5 9.
8 MORIN, Edgar. Mes démons. Paris, Stock, 1 994, p. 246.
9 CASTORIADIS, Cornelius. "Morin le cheminant". ln: Les jardins de la
1 9 84, p. 65 .
13 MORIN, Edgar. Mes démons. Op. cit., pp. 263-264.
14 MAFFESOLI, M ichel. A conquista do presente. Op. cit., p . 1 1 0.
15 MORIN, Edgar. Mes démons, op. cit., p. 2 1 7.
16
I dem, p. 25 8.
17
FAGES, ]. B. Compendre Edgar Morin, op. cit. , p. 123.
18
Sobre esse aspecto, ver MACHADO DA SILVA, Jure m ir. "Entretien
avec Edgar Morin, penseur de la complexité". ln: Les jardins de la connaissance,
op. cit. , pp. 22-27
19
Ver MORIN, Edgar. La méthode - la nature de la nature. Paris, Seuil,
1 997, v. 1
1 12
____ . La mtthódt • la vit dt la vit. Paris, Seuil, 1 9 80, v. 2.
____ . La méthodt - la connaissanct dt la connàssainct. Paris, Seuil, 19 86,
V. 3.
____
. La méthodt lts idéts, lt11r habitat, lt11r vit, lt11rs mot11rs, ltttr
•
1 9 77, p . 1 7.
25 MORIN, Edgar. La méthode - les idéts, lettr habitat, lettr vie, leurs moeurs,
ltttr organisation. Op. cit. , p.
228.
26
Idem, p. 26.
1 13
1 Síndrom e da máquina
NORVAL BAITELLO J R. 1 I
Sintoma e sistema
1 16
Se quisermos ser conseqüentes, não poderemos mais ignorar
como componente do diagnóstico do médico a história dos jogos e
apostas infantis e juvenis do urinar longe e do cuspir longe, dando
forma e consistência ao imaginário masculino da potência e do poder.
A própria "urina" constitui-se um texto da cultura, tão prenhe de
significados e histórias que se foram juntando ao próprio objeto, de
maneira que sua complexidade cresce permanentemente, desde suas
origens animais, passando por seu percurso mítico-religioso e ritual,
aos quais se somam os conhecimentos científicos contemporâneos.
Síndrome e síntese
1 17
pela conexão de análise exata com uma sensível introjeção (Einfühlung).
A análise rigorosa serve para apresentar uma 'síndrome', uma doença
(. .) ou uma função alterada em seu todo; mas a síndrome, decompos
.
1 18
Sincronia e sincretismo
1 19
lingual e o biológico, apontando para uma visão sistêmica que não
exclui a complexidade cada vez mais crescente da vida. Assim, sonho
e imaginário, fantasia e mitologia podem perfeitamente interferir não
apenas na comunicação social mais pragmática, como também no
funcionamento dos códigos da própria saúde física, na esfera estrita
mente biológica.
Com isso cai por terra a concepção mecânica da comunicação,
o velho modelo que opera como máquina sincronizada, em favor de
probabilidades comunicativas sincréticas, em favor de contaminações
recíprocas de entidades díspares.
Assim, cabe-nos hoje a tarefa de contrapor à sincronia das
máquinas o sincretismo que permite as discrepâncias presentes no
próprio sonho.
Assim podemos encerrar as nossas próprias indagações com as
perguntas que Dietmar Kamper formulou a respeito dos três mundos,
se não seriam meramente frutos de três sonhos: o mundo real seria o
resultado do sonho de Deus com o homem? O mundo simbólico seria
fruto do sonho do homem acerca das máquinas? E o mundo imaginá
rio seria o sonho das máquinas acerca de Deus? Prossegue Kamper
considerando que Deus já não mais sonha, os homens também deixa
ram de sonhar. Apenas as máquinas continuam sonhando; sonham
que são deuses e até mesmo podem criar novamente os homens.
Nota
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121
1 Complexus andarilh os
ALEX GALEN01 I
1 24
"Eu sou Javé. Apareci a Abraão, a lsaa.c e a Jacó como o Deus Todo
Poderoso, mas a eles não dei a conhecer o meu nome: Javé. Também estabeleci
minha aliança com eles, para lhes dar a terra de Can� a terra em que
residiam como imigrantes" ( Êxodo, 5,22-23. 6, 1 - 67).
Nesta passagem bíblica já está selado o sentido do conflito e
da violência presentes na conquista da terra. Ao mesmo tempo evoca
e sugere a figura do líder, imagem presentificada por Moisés como
representante para o povo hebreu. Neste aspecto, a figura do "messi
as" ou líder tem sido um elemento importante e sempre presente na
história da luta pela terra. Mas, se a passagem bíblica sugere a figura
do líder como elemento que catalisa e gerencia politicamente a inter
d ição e o desejo em relação à terra perdida/prometida, uma tal figu
ra deve ser entendid a como o contraponto gerado pela violência
estrutural da relação do homem com a terra.
Para abordar a temática da luta pela terra, é essencial se fazer
menção ao caráter perverso da concentração fundiária maestrada por
parte de poucos em detrimento da população trabalhadora. Esse exér
cito de despossuídos tem, ao longo da história, insistentemente reali
mentado um desejo primordial e fundador: refazer os laços da troca
entre homem e natureza mediados pela imagem da mãe-terra.
Foi sem dúvida esse horizonte - a separação entre o homem e
as condições objetivas e subjetivas do trabalho - que se constituiu
para Karl Marx na hipótese central para configurar a gênese do capi
talismo. Situado numa perspectiva não-disciplinar, articulando os
diversos domínios que juntos constituem a história cultural da hu
manidade, Marx constrói, nas "Formações econômicas pré-capitalistas'',
o argumento definitivo que traduz o homem livre moderno. A idéia
da perd a sucessiva da terra, dos instrumentos de trabalho e da subje
tividade deve ser entendida como a matriz paradigmática que expli
ca a existência dos trabalhadores sem terra (Marx, 1 977). É dessa
fo rma que se inscreve na história a interdição dos elementos fu ndan
tes que constituem os indivíduos em sociedade, razão pela qual os
diversos modos de produção objetivarão, de formas diferentes, as
regras de acesso aos meios de produção da vida natural e social.
Com tal interdição, o indivíduo livre, porque despossuído, tem
reduzidas as condições objetivas de sua realização, uma vez que perde
1 25
sua condição de proprietário, ao mesmo tempo dos meios e do pro
duto de seu trabalho. Marx faz menção ao fato de que, neste mo
mento, cinde-se a relação homem/terra. O trabalhador separa-se de
seu laboratório natural, o que significa a dissolução da propriedade
livre, como também da propriedade comunal. A te�ra deixa de ser
não mais um signo de valor natural, mas, ao contrário, uma merca
doria mediada pelo valor capital/dinheiro.
Na literatura são fartas as imagens que relembram tais interdi
ções inscritas na trajetória histórica e cultural dos homens. Evoque
mos algumas.
No romance Os camponeses de Balzac, fixemos nosso olhar so
bre uma imagística camponesa rebelde, rústica e utópica: "Talvez os
camponeses representem a saga imaginária que o mundo trad icional
construiu para si próprio. Banidos e dominados pela ferocidade do
mundo que se pretende detentor do progresso, conseguem por vezes
associar regularmente a vida rural do presente com o passado e a
tradição, por outras contrastar esses mesmos elementos com ritmos
contagiantes da modernidade e até refugiarem-se em utopias que
revitalizam o vivido, prefigurando um mundo mais autêntico e sa
boroso, povoado de homens mais totalizados, . situados talvez mais
próximos à natureza" (Carvalho, 1992).
Em Vidas secas, de Graciliano Ramos, destacamos os persona
gens de Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho e o mais novo,
a cachorra Baleia e o papagaio, e o Seu Tomás da Bulandeira (ho
mem das letras). Tanto o romance quanto a vid a dos sem-terra com
portam marcas do sofrimento. Quantos fabianos e sinhás vitórias
brotam-nos aos olhos ao imaginarmos os sem-terra no Rio Grande
do Norte ou em outros lugares?
Destacamos, aqui, imagens metafóricas sobre o cotidiano de
andarilhos da terra que, simbolicamente, constituem-se em operado
res do pensamento ou em chaves para abrir as comportas de um ima
ginário que oferece novas lentes ao focalizar o sentido da luta política
pela terra. São metáforas que têm a intenção de rejuntar e reaproxi
mar, na realidade, a arte, a política e a vida. Tudo se passa como se as
metáforas reivindicassem um novo discurso e a tentativa de transfor
mar o sentido de lutar pela terra, quem sabe, em uma poética da luta
1 26
política. Ou ainda, como nos lembra M. Foucault, a possibilidade de
transformar a política, o saber e o poder em uma ética da existência ou em
uma arte do viver, capaz de instaurar uma poetização do político.
É neste sentido que o livro Terra e as fotografias de Sebastião
Salgado nos convidam a viajar através das imagens que retratam a saga
e a vida dos sem-terra. Imagens "tristemente belas" mostram que o
congelamento da dor operado por Salgado nos contamina e desperta
solidariedade. Os massacrados de Eldorado dos Carajás" retratam bem as
palavras do escritor português José Saramago ao referir-se à palavra
Eldorado: "que triste destino tomam algumas palavras". ''Bebê': cha
mado de anjnho, é velado de olhos abertos, segundo crença popular para
encontrar mais facil o caminho do céu. Ademais, Bebê sai do quadro para
representar todas as crianças vítimas das epidemias e flagelos nordesti
nos, como se a vida imitasse a arte. Evoquemos a fotografia de uma
senhora de pele transfigurada, marcada pelas erosões de uma vida de
suplícios. Com a palavra, o próprio Sebastião Salgado: "Em 1985, em
Parambu, nos confins do sertão do Ceará, a luta pela sobrevivência se
revela das mais difíceis. E este bicho humano, endurecido, calejado,
enfrenta a vida desde o nascimento até a morte com a mesma resolu
ção, batendo-se contra a aridez da terra, as secas prolongadas e a explo
ração do seu trabalho, consumada dentro de uma estrutura agrária
ainda feudal" (Salgado, 1997). Por último, lembremos a beleza foto
gráfica de um assentado na fazenda Santa Maria, em Paranacity, Para
ná, algo que relembra a expressividade dos quadros de Van Gogh.
Sebastião Salgado retrata a imagística camponesa, a saga imaginária e
rústica da qual nos falam Balzac, Graciliano Ramos e tantos outros.
Como retratos da vida, essas imagens dizem de forma complexa os
percalços de retirantes que, como cambembes, "zanza daqui, zanza pra
acolá", como diz Chico Buarque em sua música Assentamento. É assim
que perambulam os órfãos da mãe-terra, na vida e na arte. Imagens e
metáforas expressam os suplícios causados pela interdição da mãe
terra e mostram como os deserdados ainda são capazes de se manter
atentos às hostilidades e às durezas que lhes são impostas.
Desta maneira, ganha sentido a afirmação de Carvalho de que,
ao falar de uma possível poética da terra, estamos tratando da "necessi
dade de reorganizar as relações entre homens e natureza, necessidade da
1 27
qual o MST pode ser um personagem transitório, um momento fugaz,
um ponto de mutação que, num certo canto do planeta Terra, pretende
reinventar um estilo societário mais simbiótico. Mas quem são estes
protagonistas, andarilhos rústicos e rebeldes? São milhares de sapiens
demens, verdadeiras máquinas de guerra, espalhando fluxos desejantes
contra um estilo de poder sobre a terra - relação de propriedade - que
busca no controle, na ambição, no exibicionismo e na maldade estabe
lecer uma forma tanática de ver o outro, de massificá-lo como engrena
gem, mecanismo a ser azeitado com sofrimento, dor, agressividade e
tirania"3•
O MST, hoje, já adquiriu visto de permanência para atuar em
solo brasileiro, seja como organização política, seja como viabilidade
promissora do ponto de vista econômico para os trabalhadores sem
terra4. Diferentemente de outras organizações políticas que parecem
desprovidas de uma mística que capitalize os anseios imaginários dos
atuais deserdados da terra, dado o esgotamento das práticas e das pala
vras das organizações tradicionais como sindicatos e partidos, o MST
representa uma brecha nesse esgotamento, ou seja, no vazio de um
constructo representacional mais adequado às lutas políticas contem
porâneas. É uma força imagética que, paradoxalmente, representa um
contraponto de resistência política às chamadas tendências conserva
doras. Vale perguntar: como uma organização de trabalhadores rurais
de retórica radical, em plena era de midiatização e mundialização dos
territórios, consegue se insurgir como força imagética aos olhos do
Brasil e do mundo? Qie organização política, hoje no Brasil, conse
guiria a façanha de sensibilizar e reunir cidadã.os do mundo como Sebasti
ão Salgado, Chico Buarque e José Saramago? Talvez o MST se inscreva na
realidade brasileira, como uma imagem rústica ou como um símbolo
"rupestre", no sentido que Ariano Suassuna empresta ao termo.
Outro fator a destacar sobre o MST relaciona-se a sua composi
ção social: a imagem do Movimento assemelhar-se-ia a uma espécie de
grande família política, conseguindo agregar pai, mãe, filhos e paren
tes, fortalecendo laços simbólicos presentes no imaginário do traba
lhador rural. A manutenção desses laços e sua relação com a terra é o
que parece permitir ao MST expressar-se como organização de caráter
coletivo que representa as várias faces da terra. Outra riqueza imagéti-
1 28
ca d iz respeito aos seus símbolos que, ao mesmo tempo, fundamen
tam e realimentam o seu projeto de luta. A bandeira pintada, em sua
maior parte, de vermelho, representa a identidade, o elemento da for
ça, d a luta e da coragem dos despossuídos. O hino, por sua vez, ritua
liza o encorajamento necessário aos membros do Movimento. Essa cons
telação simbólica presentifica os ideais de vida desses trabalhadores.
Por fim, os acontecimentos políticos mais recentes sobre a ques
tão da terra no Brasil lançam refletores sobre cenas que têm produzi
do ou explicitado a relevância dos argumentos apresentados. O MST
representa uma espécie de ícone político sintetizador dos anseios da
maioria dos sem-terras, uma constelação imagética destoante frente às
costumeiras práticas políticas tradicionais empobrecidas pela escassez
de conteúdos simbólicos. O MST tem sido, na política brasileira, a
imagem de um "mundo invertido" e transgressor, cuja ação, na margi
nália, tem incomodado o silêncio dos proprietários, a arrogância da
ciência e o autoritarismo do político.
Notas
1 29
B ibliografia
Paulinas, 1993.
CARVALHO, Edgard de Assis. Imagens da tradição. ln: Ensaios sobre Antô
nio Ctindido. São Paulo, Companhia das Letras, 1 992.
DANTAS, Alexsandro G. de A. Imagens da terra: por uma poética da luta
política. Natal, UFRN (Dissertação de Mestrado), 1 996.
MARX, Karl. As .formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo, Paz e Terra,
1977.
SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo, Companhia das Letras, 1 997.
1 30
1 Os padecime ntos dos olhos 1
DI ETMAR KAMPER2 I
A
seguir, alguns pensamentos sobre uma contra-história do olhar
que produz e controla. Considerando os limites da visão, não
existe apenas a dicotomia conhecida desde Kant e Swedenborg entre
observação metódica e visão arrebatada, mas existe desde o início uma
subliminar história passional dos olhos que se passa no intervalo de
espaço e plano. Entre o "caos" e a "estreiteza das representações linea
res" ocorre muita coisa que mereceria atenção: ilusões sofridas, coer
ções visuais, deslumbramentos, até a terrível incapacidade de ver qual
quer coisa. Supostamente é o lugar onde - em vista dos acentuados
aprimoramentos do olhar até a máquina visual - poderia germinar
um último orgulho humano, mesmo no caso em que a mão materna
estivesse ausente. Se os padecimentos dos olhos são inevitáveis, deveri
am ser transformados em estratégias. Após a Guerra do Golfo uma
empresa americana fabricante de armas trouxe laconicamente ao pla
no conceituai um dos lados da visão:first look, first kill. Chegou a hora
de falar do outro lado.
1. Os padecimentos da visão têm a ver com o crepuscular (Zwi
elicht) do imaginário que se dissemina nesta época. Este lusco-fusco
representa um complexo; analiticamente não pode ser apreendido com
precisão; resiste a todo juízo e a toda decisão. Emerge nos processos da
visão mesma e é, não obstante, um resultado que vem de longe. As
imagens são necessárias à vida e mortais; quanto mais necessárias à
vida têm sido, tanto mais mortais irão se tornar. Isto é apenas uma
questão de tempo. Evidente que elas protegem de uma perda que ame
aça a vida, antes mesmo que ela seja vivida. É igualmente claro que
elas - como telas de tevê, escudos de proteção (Schutzschilde) - po
dem tornar-se uma prisão mortal quando perduram além da conta. O
que nesta época vale para o homem individual, ao qual, por nascer
prematuro, convém a mencionada ajuda protetora (Schirmhilfe), tam
bém vale historicamente, cum grano salis, para o conjunto dos homens.
Na disseminação do crepuscular chegou-se hoje a um ponto em que
uma estratégia ensaiada, salvífica mostra o seu outro lado: coerções,
exigências, sacrifícios (Opferanspriiche). O imaginário é estimulado
historicamente até a exaustão. O estágio do espelho conduz a partir de
agora a uma morte no outdoor (Schild). Devia ser abandonado; e, com
ele, devia ser abandonada toda a podre magia de identidades espelha
das e unidades espasmódicas.
2. De resto, pode-se ver muito pouco que ainda mereça ser vis
to. A promessa de poder ver o nunca visto há muito tempo faz parte
da feira anual, e mesmo lá está silenciada. Dificilmente um homem
pode ater-se ainda hoje ao lema da Renascença, segundo o qual somen
te os olhos redimem a miséria da existência (assim disse Leonardo:
"Deve-se agradecer ao olho que a alma se dê por satisfeita no cárcere
humano, pois sem o olho seria este um tormento"). No devir desta
decepção histórica as artes da visão desaparecem cada vez mais, tanto
aquelas oriundas de um desejo involuntário, caracterizadas como so
nhos, visões e alucinações, quanto estas provenientes de uma percep
ção visual voluntária, do olhar detetivesco à multiplamente filtrada
observação científica. Os olhos não acompanham; seja pela abundân
cia de imagens, seja pela acelerada aparição e desaparição d as coisas. A
imaginação, na Idade Média ainda pura paixão (Passion), na moderni
dade, inversamente, a atividade principal de um sujeito cujos olhos
iluminam, naufraga por isso no padecimento (Leiden). A órbita ocu
lar dos companheiros de espaço (Raumgenossen) tomou-se estúpida.
Q!iase tudo passa por ela, mas ela não mais se detém ou não retém
mais nada. O mundo enquanto esfera - que a ela corresponde - des
vincula-se da visão. Assim permanece ausente o acontecimento do qual
tudo dependeria. Isto é precário à medida que o que hoje realmente
importa tem de ser impronunciável, pode mostrar-se apenas.
3. A modernidade é, desde Leonardo da Vinci, o estágio do
espelho da humanidade. Ela ilustrou suas experiências sobre superfíci
es e, provavelmente, em função do incremento do poder, considerou
natural uma partição extremamente artificial do mundo em realidade
1 32
e imagem. Mas, enquanto desaba este efeito de uma vontade, perde-se
uma orientação fundamental. Como imagem, com a distinção acura
da entre significado (Bezeichneter) e significante (Bezeichnender), o
mundo dissolve-se numa catástrofe do sentido. Isto traz para os olhos,
sobre os quais se haviam depositado quase todas as esperanças, dores
de um novo tipo. Pois, quando o que é decisivo não se pode ver mais,
quando este se dá para além da relação entre visibilidade e invisibili
dade, todo esforço apoiado na observação leva a pior. A certeza ensai
ada do controle visual abriu espaço para o triunfo da simulação. Men
tira e engodo, deuses dos mais antigos, dominam novamente. O prin
cípio supremo do conhecimento metodológico na modernidade, o de
não iludir a si mesmo nem aos outros, fracassa irremediavelmente
pela privação do alicerce. A ilusão é inevitável, uma vez que o decisivo
é hoje o invisível. Mas só que este não é, como outrora, o obscuro, o
ameaçador, o perigo das trevas. O invisível é o transparente, o que há
·
1 33
metade da verdade. A verdade completa reza: a fêmea é um espelho
do mesmo onde o desejo de saber reconhece a si mesmo com facili
dade. Em vez do único que mereceria ser visto, é uma fantasia que
impera na reflexão e na análise.
5. O que viu Tiresias, o cego visionário antes de ficar cego?
Os antigos contavam a seguinte história: ele teria visto a deusa
Hera, esposa de Zeus e mãe dos filhos do deus, no jogo do amor,
sem poder guardar para si este avistado (Eraugnis), mas traindo seu
segredo numa aposta sobre qual dos sexos seria mais voluptuoso, se
o masculino ou o feminino, ao apostar no feminino, porque -
dissera Tiresias - ele o teria visto. Desde então os visionários (Seher)
são cegos. Isto que os cega é a fruição d ivina e insuperável d a mu
lher, ou sej a, a circunstância de ter descoberto esse gozo. M as os
visionários não são apenas ofuscados, por esta via alcançam a visão
efetivamente real. Sob certas circunstâncias, os padecimentos têm
uma conseqüência temporal na visão de olhos fechados. A intuição
(Einsicht) [do local] por onde a visão passa através da ilusão pode
saber o lugar e o tempo do outro também para o futuro. No extre
mo dos olhos que padecem há certeza, mas depois, sem eles, sem
olhos. Jacques Lacan respondeu à questão: o que quer a fêmea?
jouissance, fruição intensa e sem referencial, tempo preenchido, puro
presente - uma resposta que não se pode ter sem que se ofusque.
6. Existe ainda uma outra história sobre os limites da visão:
a história de Artemis e Actéon, do caçador que testemunhou por
acaso o banho da deusa e foi despedaçado por seus cães. Esta não é
a história do voyeur, que sempre sabe que pode ser descoberto, mas
a de um homem que em busca de sua presa é jogado para fo ra do
vestígio da normalidade. "Objeto de desejo no sentido corriqueiro
- escreve Lacan -, é sempre uma fantasia ( ... ) ou uma ilusão."
Actéon toca o real por engano, e, de indivíduo, metamorfoseia-se
num "divíduo". Nele, que não tem tempo para reflexões, o destino
vindouro do espelho fica nítido, a saber, estilhaçamento. A deusa
no banho, modelo para a solidariedade arcaica entre olhar e gêne
ro (Geschlecht), destrói o medium especular que representa um ho
mem casual. Quando os deuses se refletem na imaginação dos ho
mens, os espelhos estilhaçam-se em milhares de partes. O que resta
1 34
é uma alternativa insuportável: ou novamente, como no estágio do
espelho, a d issociação (Disparatheit) das partes do corpo ou a ce
gueira do espelho tornado cego, que não reflete mais nada.
7. A função da imagem refere-se ao olhar maternal, que, como
todos os outros que vêm de fora, é mau. A imagem é escudo protetor
e limite sublime de uma mãe indiferente e cruel que deu a vida para
tomá-la novamente. Neste d rama chega-se à oposição de plano e es
paço, de imagem protetora e de um colo que não acolhe mais. A
tensão aprisiona as imagens para sempre: de um lado por ser o pri
meiro ato humano na delimitação da origem; de outro a loucura,
que protege mais mal que bem o risco da vida, o risco da morte.
Nessa medida o simples fato de haver uma imagem, confrontada
com o observador, diz mais da visão do que daquilo que se pode ver
nas imagens. Daí que Roland Barthes possa acentuar a tal ponto a
imagem materna, que a mãe, enquanto imagem, permanece presen
te. As sagas gregas mais antigas, que levam a cabo uma transforma
ção do caos em representações lineares mediante um espelho fulmi
nante (Górgona, Medusa), e o ponto de partida da literatura coincidem
no fato de que, além dos planos, da tela, do papel, está o seio materno
do nascimento, o lugar da fertilidade, espaço no espaço, corpo no cor
po, raiz, trama, labirinto. Se este reverso do espelho, que desde sempre
foi associado ao demônio, é separado, os homens perdem-se nas ima
gens e se tornam também em linguagem inatingíveis.
8. A passagem da experiência humana do estágio do espelho
para o labirinto da linguagem começa com a percepção dos mons
tros. O que o sonho da razão produziu é um mundo da fantasmas. A
segunda criação como compensação (Ersatz) da primeira, que prepa
ra para a morte, desemboca em várias composições (Gebilde) imor
tais, incapazes de morrer. O estereótipo de tais figuras forma o fun
do de um teatro universal da lembrança que facilmente denomina
mos cultura. O status desta é desde o princípio obscuro. Apenas po
deria ser explicado satisfatoriamente em uma demonologia. Pois,
assim como os monstros da primeira espécie pertencem a uma or
dem do inferno, na qual a terra se vinga da insídia da razão, os
monstros d a segunda espécie, produtos da imaginação humana, ra
zão sonhadora que muito se esforçou para impor-se, passam a uma
1 35
estrutura transparente, quase celestial. O homem, como imagem de
Deus, faz imagens que se assemelham a ele, meros espelhos, os quais
. no melhor dos casos remetem de volta sua fisionomia, mas geral
mente como uma imagem distorcida e mais nada. A consciência
atual, em particular aquela cientificamente esclarecida está direta
mente cercada por estes fantasmas. Nisso se evidencia a ruptura (Bru
ch) do olhar controlador, um ofuscamento (Verblendug) que amarra
sub-repticiamente toda experiência e não pode mais ser percebido
sem demência.
9. O desacorrentar da imaginação no século XX torna simulta
neamente claro o que ela - acorrentada - produziu: a base de um
mundo humano no sensus communis da visibilidade. Através da auto
referência extática dos sinais sobre o plano imagístico (Bildflache)
não se perde apenas o domínio, mas também o plano imagístico de
que este domínio depende. Ao tornar-se mais breve a duração fu nci
onal dos suportes da imagem, ela torna claramente perceptível o que
à la longue se consuma: a erosão dos fundamentos.
A saíd a da humanidade do estágio do espelho também ocor
re portanto sem a intenção. É o pretenso poder sobre o imaginário,
no qual agora o desânimo salta à vista. Um niilismo da transparên
cia não pode ser detido ou levado à razão. É verdade que os ho
mens estão ocasionalmente na imagem, mas ainda não estão no
mundo. Constantemente não se dão por satisfeitos com os fantas
mas. O atual acordo de moratória entre a busca decepcionad a de si
mesmo (Selbstsuche) e a explosão dos meios de comunicação será
quebrado. Nessa med ida é que idéias em favor de uma estética pós
mídia são necessárias. Um intróito provável seria a percepção não
visual do outro e do tempo enquanto pano de fundo (Gegenla ger)
da produção da imagem. Uma nova época de audição está anunci
ada. A totalidade dos sentidos não pode ser captada de modo abran
gente pela teoria, mas talvez na afirmação do fragmento.
10. O grande sonho obsessivo da razão com a imortalidade
pode hoje ser denunciado como a fonte fundamental do ódio perante
tudo aquilo que é mortal. Precisamente por isso ela necessita desper
tar. Em face do triunfo da luz, trata-se de uma reabilitação do crepus
cular (Zwielicht), da silhueta do clair--0bscur, de uma lógica efetivada da
1 36
desilusão. Assim obtém-se inicialmente, com a necessidade de agir,
mais uma vez, a necessidade de escolher entre visões e observações.
Porém ambas estão à disposição. É a orientação costumeira da despe
dida do que é dado que continuamente atrai a morte para si. A trans
gressão da prisão das imagens não reconduz a nenhuma realidade
protegida. O imaginário só pode ser abandonado na direção da lin
guagem, e promovido através de um pensamento sabedor de sua ne
cessidade do outro e do tempo. Tudo que hoje ainda se move conduz
a uma fronteira em que os homens saberão por que o decisivo não se
pode saber. Permanece o acontecimento que se faz ausente. Quem
come pela segunda vez da árvore do conhecimento pode renunciar
finalmente ao banquete da árvore da vida.
Notas
1 37
Estrangeiras imagens
EDGARD DE ASSIS CARVALH011
1 40
res ansiosos, d as belezas lascivas, da não-mercant ilidade, acabaram
por produzir uma revolução sem precedentes no imaginário ociden
tal, abalando o suposto reinado civilizatório e a arrogância de seus
súditos e mandatários, ainda que sua historicidade fosse entendida
como um discurso negativo, um somatório de ausências, que as colo
cava fora da própria história.
Em virtude dessa negatividade, foi difkil ao Ocidente entendê
las como manifestações culturais plenas. Talvez, por isso, tomou-se
obsessiva a compulsão de domá-las, escravizá-las, contaminá-las, do
mesticá-las, sob a ideologização de que eram inferiores, estranhas, es
trangeiras, mantendo-as no patamar de uma não-cidadania cultural,
sempre espúria e subalterna.
Michel Foucault considerou que essa epistéme do século XVI ca
racterizou-se por uma espacialidade diferencial, na qual os outros fo
ram progressivamente tomando-se semelhantes, ainda que mantidos
os afastamentos contidos no exotismo como um todo. "Assim, pelo
encadeamento da semelhança e do espaço e, por força dessa convivên
cia que avizinha o semelhante e assimila os próximos, o mundo for
mou uma cadeia com ele mesmo." 4
Mas essa similitude cultural, pela força histórica em que se des
dobrou, foi desvelada por três movimentos que, apenas na aparência,
atuaram como contraditórios: um desejo primário de contemplação
do outro, um desejo secundário de saber os segredos maravilhosos
contidos no exotismo e um desejo explícito de dominar para civilizar
e instituir a racionalidade instrumental na fisionomia do mundo.
Esse dispositivo triádico, fundado em relações de comparação e
continuidade, de descontinuidade e ruptura, descoberta e diferença,
contigüidade e semelhança, imporá uma ordem classificatória à confi
guração planetária de tais proporções, que, quatro séculos depois, seus
efeitos parecem ter-se universalizado como co-presenças mitificadas,
mesmo que os espaços societários da aldeia global, essa infeliz deno
minação de Marshall McLuhan para definir a falsa homogeneidade
sígnica contemporânea, encontrem-se saturados de violências, deses
peranças, descomedimentos, lubricidades e virtualidades.
De qualquer forma, a presença do outro se confirmou, primei
ro como simples diferença, algo residual, negativo, resultante da sub-
141
tração de uma parte da humanidade por outra; depois como alterida
de, que, progressivamente, passou a ser reconhecida como substancial
mente idêntica do mesmo, em natureza e grau. Exotopia como a de
nominação que Todorov conferiu a todo esse processo, definindo-o
como "uma afirmação da exterioridade do outro que caminha parale
,
lamente com seu reconhecimento enquanto sujeito ,5•
Afirmação, paralelismo, subjetivação parecem soar como pala
vras vãs, quando se têm em mãos os conteúdos da epopéia civilizatória
que se fixou, a partir do espaço epistêmico do Renascimento, na des
sacralização do homem e na progressiva referência a seus aspectos e
destinos profanos. Se parece ser possível afirmar que os renascentistas
investiram mais na dignidade e na excelência do humano, no homem
como valor, a descoberta da alteridade, engendrada pela conquista e
colonização da América, teve um duplo papel: de um lado perpetrou
um dos maiores geno/etnocídios do planeta, e, de outro, contribuiu
para a ampliação do significado e sentido dos outros, dos estrangeiros,
entendendo-os até como mais dignos e éticos.
Essa crítica moral da civilização, que abundou nas filosofias de
Montaigne e Rousseau, embora tenha sugerido a possibilidade de um
descentramento do homem, não contribuiu para que toda a "idade
clássica,, fosse menos antiprimitivista e que o homem, no estado de
natureza, fosse definido como torpe, bruto, amoral, ágrafo, como um
ser ainda infantilizado, incapaz de objetivar e fixar seu destino na
escrita e de criar sua própria história pelo desenvolvimento d as forças
produtivas.
"A tradição da idealização do selvagem nos conduz aos estágios
iniciais da expansão imperial da Europa ocidental e, invariavelmente,
é produzida por uma situação retórica, na qual o escritor toma uma
posição ética concernente à sua própria cultura.,,6 Essas palavras de
Spurr evidenciam que o selvagem - o de Montaigne ou de Rousseau
pelo menos - não se constituía como uma presença real, ou uma
verdade histórica datada, mas antes, como um valor simbólico, um
construto, a partir do qual seria possível um reequacionamento mais
ético-político para todos os homens.
Por isso, essas imagens utópicas, idealizadas, de um homem
que, talvez, nunca tenha existido e nunca venha a existir, fizeram com
1 42
que a igualdade fosse pensada como um conceito moral. Mesmo as
sim, esses outros chegaram a representar uma possibilidade co-natural
para o homem moderno, que só poderia ser decifrada passando-se do
conhecimento dos homens ao do homem, isto é, transcendendo-se as
desigualdades, para descobrir a igualdade de todos.
Mas os fundamentos dessa Early Anthropology perderam-se, infe
lizmente, nas sistematizações posteriores da Antropologia explícita,
de cunho evolutivo e funcional, fixada na excessiva relativização dos
fatos culturais. Ao deixar de considerar o homem, fundamento básico
para qualquer restauração do sentido da espécie, em sua essência sim
bólica, para admiti-lo apenas como um homem real, histórica e local
mente fixado, a antropologia acabou projetando para as alteridades
um destino irreversível, cuja direção seria programada pelo estigma
civilizatório.
O relativismo, passou a partir daí, a representar uma expiação
da culpa colonial e a servir de âncora para o "retorno do reprimido",
uma redenção que procurava, a qualquer preço, igualar o inigualável,
desde que se mantivesse intocada a "servidão voluntária" das comuni
dades estrangeiras e de seus costumes e padrões, de seus mitos e ritos.
Mesmo diante desse quadro supostamente progressista, a uni
versalidade não deixou de preocupar vários pensadores - antropólo
gos inclusive -, para os quais o outro e o mesmo constituem aspectos de
uma unidade indissolúvel, e que o homem é um só, esteja ele no mais
recôndito espaço da floresta amazônica, ou na cidade mais fantasma
górica do mundo, seja ele um canibal que se delicia com braços e
coxas, ou um gourmant que se compraz com caças apodrecidas e quei
jos deteriorados.
Não foi por acaso que Claude Lévi-Strauss chegou a definir a
antropologia como um empreendimento que, ao renovar e expiar a
Renascença, estenderia o humanismo a toda a humanidade. Em ou
tras palavras, seria imperioso estabelecer uma arqueologia antropoló
gica que desse conta de um conjunto de saberes implícitos que torna
riam possível a inauguração de uma outra antropologia, não relativis
ta. Estabelecendo com Rousseau, o "verdadeiro fundador das ciências
do homem", um diálogo incessante, Lévi-Strauss assumirá integral
mente a distinção entre o estudo do homem e o dos homens, e que,
1 43
para se atingir o objetivo geral, é necessário, em primeiro lugar, obser
var as diferenças para, depois, descobrir as propriedades.
Para falar do homem, tem-se de evitar falar dos outros a partir
de nossas categorias, pois desse modo falaríamos do homem selvagem,
mas estaríamos descrevendo o homem civil. Em síntese, o discurso da
desigualdade torna-se decisivo para o da igualdade e, de modo inverso,
a busca da igualdade é fundamental para que a gênese da desigualdade
possa vir a ser detectada.
Para Rousseau, a igualdade se apresenta como o dispositivo sel
vagem, em estado de natureza pura: trata-se de um experimento men
tal, abstrato, que ilustra o sentido da relação igualdade/desigualdade
como portador de um duplo sentido: é preciso transcender a desigual
dade, para pensar e utopizar a igualdade de todos os homens. Para
isso, é preciso desidentificar-se do que os homens são, ou seja, perce
ber as contradições das desigualdades sócio-históricas, mediante uma
atitude crítica que permita evitar pensar o que é próprio dos homens
próximos, para transcender a diferença pura.
Essa desidentificação, de caráter essencialmente anti-relativis
ta, retomada do ideário rousseauniano, conduzirá o pensamento lé
vi-straussiano não apenas a uma rejeição das sociedades inautênticas
da modernidade, mas à valorização de um estado intermediário, em
que as pessoas pudessem ser bem governadas, através de um estado
ético e íntegro, que lhes permitisse desenvolver suas relações sociais
sem grandes maldades ou perversidades, orientadas por um espírito
desinteressado e aberto.
Em Rousseau, portanto, encontrar-se-ia o verdadeiro princípio
da antropologia e o único fundamento da moral. "Ele (Rousseau) nos
restitui também o ardor... onde se unem seres que o amor-próprio dos
políticos e dos filósofos se empenha, por toda a parte, em tornar in
compatíveis: o eu e o outro, minha sociedade e as outras sociedades, a
natureza e a cultura, o sensível e o racional, a humanidade e a vid a."7
Implodir essas dualidades, o que implica romper o "Grande
Paradigma do Ocidente", não vem sendo nada fácil. Ao que tudo
indica, as teorias científicas não vêm dando conta dessa missão, por
permanecerem consagradas na especialização, na fragmentação, na
racionalidade, no cartesianismo. Recompor a teoria implica enten-
1 44
dê-la como uma dialogia anticausal entre os itinerários racional/
lógico/empírico e mítico/mágico/simbólico, como anticartesianos
da linhagem de um Edgar Morin, dentre outros, vem propondo
para uma ciência nova. Ao vocabulário minado das certezas e teleo
logias científicas, portador de um vocabulário único, essa discursi
vid ade renovada conteria vários vocabulários oriundos de terrenos
m íticos, imaginais, históricos, inconscientes, numa espécie de bri
colagem instaurativa capaz de recriar o outro e o mesmo.
Acredito que os "viajantes modernos", essa feliz expressão usa
da por Todorov para definir um tipo de subjetividade que metamor
foseia-se a si própria, para transformar-se em algo mais totalizado,
que pensa simultaneamente a diversidade e a unidade, possam des
naturalizar o discurso duro do pensamento teórico, para reorientá
lo para canais mais holográficos, portadores de sentidos e percep
ções trans-históricas. Romancistas, poetas, filósofos, e uns poucos
antropólogos, em épocas diversas, foram capazes de refletir sobre as
alteridades de modo menos retórico e, assim, criar imagens que, por
estarem mais libertas das "regras do método", converteram-se em
jogos de linguagem alternativos que se mesclaram na encruzilhada
de um pensamento multidimensional.
A primeira referência a esse tipo de viajante será buscada em
Antonin Artaud (1 896-1 948). Em 1936, defrontou-se ele com os índios
tarahumara, do México, interessando-se, principalmente, pelas experi
ências alucinógenas obtidas através do peiote. A contraposição cultural
entre França/México foi, a princípio, acompanhada pela dualidade
razão/magia, homem/natureza, aliás como não poderia deixar de ser.
Mas o interesse de Artaud voltou-se explicitamente para o mundo
indígena, ainda razoavelmente preservado em sua integridade cultu
ral, no qual a consciência coletiva funcionaria como um guia geral
para o pensamento e para a ação, um negativo da civilização européia,
mergulhada num individualismo crescente.
Essa negação, porém, já era conhecida anteriormente, mesmo an
tes da viagem, como se tudo já estivesse preordenado por alguma entida
de supraterrena e que não necessitasse de nenhuma comprovação empí
rica para atestar sua veracidade. Essa viagem interior implicaria um
conhecimento de si de tais proporções, que só um outro nível de cons-
1 45
ciência, resgatado pelo peiote, poderia auferir, no sentido de recuperar o
sonho de uma unidade que havia se rompido na fragmentação da história.
A viagem artaudiana permitirá seu reencontro com as verd ades
soberanas "mediante as quais a consciência humana... recupera a per
cepção do Infinito, em lugar de perdê-la".8 Nesse infinito, apagam-se
as diferenças entre o eu e o outro, o louco e o são, porque ambos
representam ampliações do ego, uma forma transpessoal de consciên
cia, formatada na e pela experiência ritual que permitirá que se veja o
outro lado das coisas. "Era como se uma força terrível houvesse conce
dido a graça de te ver restituído ao que existe do outro lado".9
Se é possível concordar com Artaud, que o peiote representa o
homem não-nascido, inato, e que, por isso, torna possível o desvela
mento de planos psíquicos obscuros, inconscientes, maléficos, a ex
periência da alteridade social também teria de passar por todas as
experiências do mal, para deixar de ser um mero resíduo, um outro,
e ascender às altas luzes da vida, um topos que filtra todas as diferen
ças das coisas e seres, onde o existente o inexistente não se discrimi
nam nem se excluem mutuamente.
Internado por sete anos em um hospital psiquiátrico, local aliás
onde o texto foi escrito, malnutrido, envenenado por medicamentos,
abalado por sessões contínuas de eletrochoque, Artaud acabou conse
guindo objetivar, pela escrita, a experiência mexicana, sem chegar a
acessar em sua existência real a identidade plena do eu e do outro,
obtida em sua viagem com o peiote.
"Cada aplicação do eletrochoque me submergia em um terror
que sempre durava várias horas. E não podia deixar de me desespe
rar ao ver que uma nova aplicação viria, ... sabendo perfeitamente
que não estava em nenhuma parte - só o diabo sabia onde - como
se já estivesse morto." 1º
Mesmo sob a adversidade dessas condições, que acabaram por con
duzi-lo à morte, o ato de escrever representou para Artaud um regresso a
si próprio, um derradeiro esforço de mostrar ao mundo a essencialidade e
a unidade do sujeito. No post-scriptum à edição dos tarahumara, encontra
se a seguinte citação que resume toda a essência da viagem artaudiana:
"Escrevi o Rito do Peiote em estado de conversão, e com nada menos do
que cinqüenta ou duzentas hóstias no cotpo."11
1 46
As Cartas persas, de Montesquieu (1689-1 755), constituem o re
gistro imaginário de uma estrangeiridade vivida por dois persas, Rica
e Usbek, que viajam pela França relatando suas experiências aos que
permaneceram na Pérsia. É óbvio que é Montesquieu que fala pelos
dois nas 1 60 cartas que constituem o livro.
Sem entender a racionalidade e as certezas e mazelas dos france
ses, envolvidos nas contradições do serralha e no estilo persa de ver o
mundo, vivem experiências mescladas de surpresas, constatações, reve
rências e críticas. Decididos a sair da pátria para buscar instrução nas
"ciências do Ocidente" (carta 8), essa peregrinação pelas terras bárba
ras (carta 3) a princípio é cercada por grandes pesares em deixar a
pátria, os amores, até os inimigos (carta 6). "Que tristes novas me
podem vir dar às terras estranhas e longínquas que vou percorrer."12
À medida que a viagem prossegue, constata-se um movimento
de dessubjetivação, de crítica à desordem moral, à iniqüidade das ins
tituições, à corrupção do aparelho político e dos governantes, aos des
caminhos da atividade religiosa (carta 19). "Neste governo ... reina a
impunidade, e estão expostos a mil violências os cristãos que cultivam
a terra e os judeus que arrecadam os impostos."13
O momento paradigmático dessa experiência de estrangeiri
dade ocorrerá em Paris, quando Usbek constata que, por ser estran
geiro, sua observação dos outros parece tornar-se mais acurada, por
que tudo o que lhe é apresentado é uma novidade (carta 48). "Passo
a vida a examinar, à noite escrevo o que notei, vi e ouvi durante o
d ia: tudo me interessa ... , sou como uma criança em cujos órgãos
ainda tenros se gravam os mesmos objetos."14 Esse não-pertencimen
to indica aqui uma liberdade cujo fim último reside na conquista da
sabedoria (carta 1) que deve ser arduamente conquistada. Mas essa
conquista esbarra em costumes estranhos que, por vezes, recebem
uma interpretação apressada (carta 56). "As mulheres particularmen
te são muito dadas ao jogo." 15 Ou ainda: "Aqui um sujeito serviçal,
por um pouco de dinheiro, oferece-te o segredo de fazer ouro." 16
À medida que a estrangeiridade dos dois persas vai tornando-se
mais familiar, o conhecimento de sua própria cultura é que começa a
ser questionado, algumas vezes até criticado, como na carta que Usbek
recebe em Paris, relatando a forma de iniciação sexual de uma de suas
1 47
filhas (carta 53). "Tendo completado tua filha sete anos, julguei que era
tempo de a meter nos aposentos interiores do serralho, ... [pois] nunca é
demasiado cedo privar uma menina das liberdades da infância."17
Como dois etnógrafos em campo, Usbek e Rica perguntam
sobre tudo, querem saber as coisas tais como são (carta 1 3 1). "Uma
das coisas que mais me excitaram a curiosidade, desde que cheguei à
Europa, foi a história e a origem das repúblicas. Sabes que a maior
parte dos asiáticos nem sequer tem idéia ... que haja na terra outro
[governo] que não seja o despótico."18
Diferentemente dos etnógrafos que, após a "vivência dos ou
tros", sistematizam seus dados em narrativas formais, os dois persas de
Montesquieu exibem um retomo cultural a eles mesmos, através de
um relativismo complacente que desune França e Pérsia, uma espécie
de tolerância passiva, conforme observou Todorov. Mas, por outro
lado, já transformados, transmitem um desejo determinado de busca
de uma sociedade mais justa (carta 48), de uma política comum a
todas as nações, de uma igualdade para todos os homens (carta 75),
princípios esses que foram infringidos tanto pelo Oriente quanto pelo
Ocidente. Toda essa desfiguração planetária das relações sociais, que
ameaça a autenticidade do homem, se expressa, com maestria, na últi
ma expressão epistolar (carta 160) na qual a perda amorosa de Roxana,
já irreversível, se explicita numa inteireza que a cabeça de um persa difi
cilmente entenderia. É ela mesma que escreve a Usbek do serralho: "Enga
nei-te sim, subornei os teus eunucos, zombei dos teus ciúmes, e o teu
horroroso serralho converti-o em mansão de delícias e prazeres" 19•
Certamente, todos os paradoxos que cercam as alteridades apare
cem sintetizados em O estrangeiro, de Albert Camus (191 1-1960), e que
constitui o terceiro e último registro dos viajantes que ilustram esse
texto. Mersault, personagem central do romance, é um homem comum,
estrangeiro, francês, que vive em Argel. Trabalha, diverte-se, namora,
tem amigos, vive uma existência burocrática sem atrativos, ambições,
projetos. Não se emociona com a morte da mãe, que, velha, vivia reclusa
e feliz num asilo. O enterro conta apenas com a presença de um velho
amigo da mãe, do padre e de uma enfermeira, e não lhe provoca emo
ções. No dia seguinte, com Marie, uma antiga datilógrafa do escritório,
amiga/amante, vai à praia e, em seguida, assiste a uma insólita comédia
1 48
de Femandel. Dorme com a amiga e, no dia seguinte, sozinho, vai almo
çar num habitual restaurante dominical. A vida no escritório é rotinei
ra, encontra Raymond, o melhor amigo, para beber e conversar sobre o
nada.
Instado pelo patrão para trabalhar no escritório de Paris, me
lhorar de vida, simplesmente se desinteressa do assunto. "Respondi
que nunca se muda de vida: que, em todo o caso todas se equivali
am."2D Além do mais, Paris "é uma cidade suja. Há pombos e pátios
escuros. As pessoas têm a pele branca"21•
O romance com Marie se estreita, o calor é intenso. Juntamente
com Raymond vai novamente à praia. Encontram amigos, divertem
se. "Ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de nós, dois
árabes, de macacões azuis, vinham na nossa direção."22 Provocações,
discussões, olhares sinuosos. Está pronto o cenário para que Mersault,
inadvertidamente, mate um deles. Depois de atirar quatro vezes no
árabe, compreende que o equilíbrio do dia e o silêncio da praia havi
am sido definitivamente rompidos. Após o assassinato, sacode o suor,
enxuga os olhos, se livra do sal. "Atirei quatro vezes ainda no corpo
inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era
como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça."23
René Girard, ao analisar o romance de Camus, considera que o
assassinato pode ser um pretexto, "mas é o único acessível, e, sobre esse
infortunado incidente, apóia-se toda a estrutura de significação erigida
por Camus"24 • Na verdade, a descrição do assassinato na narrativa do
romance clarifica o caráter involuntário do crime. Os árabes não pode
riam ter sido os culpados? O homicídio não poderia ter sido em legíti
ma defesa? Em qualquer um dos casos, a pena da guilhotina seria im
pensável.
Toda a segunda parte do livro, que se concentra no julgamento,
expõe a oposição entre Mersault e a sociedade, representada pelo cará
ter surreal do aparelho judiciário. O ritmo vertiginoso em que se de
senvolve a primeira parte conduz ao desejo de que alguma desordem
venha a abafar a mediocridade daquela existência inerte. "Desde o
começo ... temos a sensação de que algo horrível vai acontecer e que
Mersault não pode fazer nada para proteger-se. O herói é inocente,
sem dúvida, e esta mesma inocência é que determinará sua perdição. 925
1 49
Convertido em vítima expiatória de toda a sociedade, inocente,
Mersault sabe que será condenado à morte. Receptáculo de todas as
desavenças e desmandos societários, esse "bom selvagem" da moderni
dade irrita-se com a presença cínica do padre confessor e suas falsas
palavras de consolo e resignação. "Comecei a gritar em altos berros,
insultei-o e disse-lhe para não rezar."26
Se o inocente deve sempre ser tratado como um criminoso mar
ginal a ser combatido e exorcizado, a visão de mundo contida em O
estrangeiro consagra essa fratura como universal e transcendente. Por
isso, a morte passa a adquirir o sentido da liberdade e da libertação.
"Tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a
reviver tudo. Ninguém tinha o direito de chorar por ela" .n
Condenado, expiado, esvaziado de esperança, Mersault expõe-se
à indiferença do mundo. Não era mais um estrangeiro, mas um homem
universal, que não precisava mais da clemência dos homens. Camus/
Mersault, mesmo/outro, unidade indissolúvel, dialogia eterna, é o que
o romance transmite em sua inteireza paradigmática. O resgate dessa
unidade prevê, porém, um ato último, definitivo e fatal, que faz reapa
recer a estrangeiridade que existe em cada um de nós, a cada dia e a cada
hora, a cada tristeza e a cada alegria, nessa nau de insensatos que vive sob
a tirania do outro e que caracteriza as desfigurações da contemporanei
dade.
À descrença de Julia Kristeva23, que também analisou o "caso
Mersault" como o signo máximo da "dissociação do desenraizado", um
estranho estrangeiro, incapaz de fundar um mundo novo, contraponho
a idéia de que de toda essa entropia advirá uma reorganização para a
vida, na qual todos seremos simultaneamente estrangeiros e nativos,
particulares e universais, selvagens e domesticados. Camus captou exem
plarmente essa possibilidade quando encerrou seu "Conto filosófico"
com o ato denegatório extremo da existência do herói que o reabilitava
para a fraternidade do mundo. "Para que tudo se consumasse, para que
me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectado
res no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio."29
1 50
Notas
writing and administration. Durham & London, Duke Un iversity Press, 1993, p. 125.
7 Claude Lévi-Strauss. Anthropologie structuralt II. Paris, Plon, 1973, p. 56.
151
1 Criar, comunicar e expandi r
JOSI MEY COSTAil
1 54
dades. Imprimem, profundamente, a sua marca na cultura. Atuam,
indistintamente, no pensamento mítico e no racional. Produzem o
sentido e o fazem circular entre os homens.
1 55
intenção do texto, no dizer de Eco, já que a do autor é praticamente
inatingível. Há que avaliar pontualmente o discurso, até porque "um
enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sen
tido podem esgotar inteiramente" (Foucault, 1987).
Tais enunciações de modo algum querem dizer que a tendência
humana de tomar a palavra pela coisa, a idéia pelo real, seja o viés
legítimo da interpretação. Tornar a idealidade pela realidade é aluci
nar. Evidentemente, o poder mítico da idéia sobre o real produz efei
tos poderosos, como destruir a informação que desmente a ideologia.
Mas o antídoto é, verdadeiramente, a crítica dialógica da própria vi
são de mundo e a crítica dessa crítica, ad infinitum, dialogicamente.
Ser capaz de criticar a própria visão de mundo é colocar, sob
perspectiva analítica, uma ordem normativa vigente. Qyando se con
testa a validade dessa norma, ocorre "o abandono do mundo vivido e
o ingresso num tipo de argumentação sui generis. É o discurso" (Roua
net, 1993). Discurso prático, no caso.
A ação comunicativa se dá quando o discurso se processa
numa situação de interação, em que os participantes integram uma
comunidade argumentativa, em que todos são sujeitos da argumenta
ção, em suposta igualdade de condições. Uma tal igualdade de condi
ções, para que seja efetiva, para que haja o discurso, deve ser entre
pares. Ou ambos os pólos devem propiciar uma mútua transcendên
cia: é preciso colocar-se no ponto de vista do outro. O homem é habi
litado a fundar, "em confronto dialógico com seus semelhantes, um
novo horizonte de significações" (Rouanet, 1993).
Aqui cabe a ambigüidade instituída pelo pensamento complexo. E
o homem pode construir o seu próprio sentido, a partir do sentido co
mum, descobrindo que não há verdades absolutas - estas são mitos. Ide
omitos.
A contextura da (re)criação
Apontamos com Almeida a existência de "idéias justas", sempre
conforme significados preestabelecidos, hegemônicos, que encarcera
riam o pensamento, embotando a percepção. Como fugir dessas idéi
as? Exercendo a ação comunicativa? Permitindo a florescência do pen-
1 56
sarnento mito/lógico, que liberta o significado ao mesmo tempo que
elucida o fenômeno? Abrindo mão de identidades culturais redutoras
e buscando a "desidentidade"?
Olhar as coisas com olhos de criança, abertos pelo espanto, ou
com a avidez do turista guloso, que a tudo quer abarcar com a vista,
ser o forasteiro em sua cultura, talvez seja um caminho. O "lugar
mestiço" de estranheza e descobrimento, onde "nada confere mais
sentido do que mudar de sentido", como adverte Serres.
A expressão do pensamento pode ilustrar os atalhos tortuo
sos por onde anda a criação. Muitas vezes, é a crônica, o conto, o
romance e a poesia que melhor falam não apenas de um mundo inte
rior, mas de urna época, um lugar, um acontecimento, um conceito.
Melhor falam porque mais comunicam, porque despertam a emoção
capaz de detonar e fundamentar a compreensão. A compreensão ver
d adeira não se faz sem (com)paixão, comunicação de sentimentos.
Serei o "canhoto contrariado", que tem direita e esquerda plenas.
Qiando o homem criou a representação pela pintura, desco
briu uma forma simbólica de transpor a morte. Desfraldou o imagi
nário e se sentiu menos só. Agrupou-se em sociedades cada vez mais
complexas, e conviveu com muitos outros de sua espécie. Iludiu-se,
acreditando-se menos isolado. Sistematizou a linguagem, sofisticou
a comunicação. Estendeu uma ponte entre o seu imaginário e os dos
outros. Socializou a sua solidão.
Se o pensar pode ter um novo estilo, complexo; se a expressão
pode ser calcada no simbólico e alimentada na igualdade e transcendên
cia da argumentação; se a interpretação pode se pautar pela unidualida
de, qual seria o peso da construção da linguagem, da comunicação e da
cultura?
Talvez esse peso resida na amplitude do ato de criação. Recriar
essa prática cognitiva multissecular implicaria sempre ernpalrnar a ma
téria desfeita de muitas criações anteriores e moldá-la novamente, e ou
tra vez, e mais outra, revelando novas e antigas formas, novas e antigas
matérias, produzindo de novo resultados originais, incertos, indetermi
nados. O mito da criação refazendo, sempre pela primeira vez, a luz e o
caos.
1 57
Bibliografia
Nota
1 58
Linguage ns imaginai s e complexidade
MARCELO BOLSHAW1 1
1 60
são desta experiência entre grupos e gerações. Devido à natureza con
tínua e descontínua do tempo, os eventos passados estão irremedia
velmente perdidos, a menos que sejam registrados, todos eles, em
algum tipo de winchester trilhões de vezes mais potente que os com
putadores mais avançados. Por que temos saudades de lugares onde
nunca estivemos? Por que não conseguimos sair do labirinto mental
deste jogo ininterrupto de conceitos, imagens e idéias, no qual esta
mos continuamente envolvidos? É contra esse turbilhão que vários
segmentos filosóficos orientais, como o budismo, se insurgem, ten
tando reter pela meditação os ruídos do pensamento.
O real, a coisa, o referente são representados por uma imagem
holográfica estruturada pela percepção com base nas experiências ante
riores e rapidamente arquivadas na memória. Qiando, em um segundo
momento, formos transmitir informações sobre aquele objeto ou reali
dade, a consciência reconstituirá a imagem da percepção arquivada se
gundo seus critérios, determinadas pela linguagem particular de cada
associação.
Assim, não se trata apenas de duplicar reflexivamente a realida
de, mas sim de transmitir experiência existencial, "fazer comum" sen
timentos e desejos, comunicar um modo subjetivo de compreender a
informação. A transcendência do sentido - através do qual a expres
são dos sentimentos ganha uma profundidade significativa e um cará
ter abstrato e genérico - deve-se ao caráter dialógico e interativo da
função simbólica da linguagem.
O homem é o único sistema biológico auto-ecoorganizador por
que sua cultura não apenas reproduz o real, também porque ela é uma
mensagem sobre a vida e suas dificuldades.
O primeiro registro cognitivo é analógico, involuntário e orga
nizado pela experiência individual; já o segundo é motivado e codifi
cado segundo fatores sociais. Através deles interpretamos a percepção
dos sinais digitais dentro de um quadro de referência analógico dita
do pela experiência pessoal e transmitidos segundo normas e regras
coletivas.
Pensamos, dessa forma, que a singularização tende para a pará
frase e para o signo (para identidade entre o referente e sua representa
ção) e que o desenvolvimento simbiótico, para polissemia e para o
161
símbolo (para diferentes sentidos em uma única representação). E é
esta contradição da linguagem que nos possibilita interpretar o mun
do de forma dial6gica e interativa.
Mas a linguagem se desenvolve sempre em oposição ao tempo e
à irreversibilidade dos processos biológicos, estabelecendo um mapa
cognitivo misto de correspondências involuntárias e arbitrárias atra
vés dos quais apreendemos e retransmitimos nossa experiência exis
tencial. A esses modelos abstratos que estruturam o conjunto de nos
sas memórias, sejam elas culturais ou genéticas, chamamos "paradig
mas". Este termo, proposto por Thomas Kuhn para definir o "conjun
to de estruturas cognitivas e epistemológicas" para o universo da pes
quisa científica, foi recentemente ampliado e popularizado por pensa
dores contemporâneos, como Edgar Morin e David Bohm.
A linguagem, portanto, além de reflexiva e comunicativa, é tam
bém paradigmática, funcionando como um modelo estruturante da
realidade que não apenas a contextualiza, mas que também está inscri
to, em um sentido mais complexo e polêmico do que os do signo e do
símbolo: o sentido compreensivo, em que os valores éticos e os mitos
de diferentes culturas se confrontam diante da parte que souber reco
nhecer seus afetos e aversões frente ao todo do qual se singulariza.
Restituir o sentido à linguagem não. é apenas revivê-la, atuali
zando sua significação. Agora, trata-se de observar que, além do co
nhecimento sígnico do eu, do conhecimento simbólico de si e do
conhecimento paradigmático de mim, realmente existe um conheci
mento do conhecimento, formado por padrões recorrentes de uma
consciência universal trans-histórica e transpsicológica. Mas que essa
consciência não é constituída por formas perfeitas e acabadas mas sim
pelos incontáveis conflitos e acordos que se formam e desenvolvem
através da comunicação e troca de informações. Nesse contexto, talvez
fosse possível afirmar que o pensamento é coletivo e a consciência
individual. Assim, só podemos compreender o indivíduo como um
subsistema fractal do sistema cognitivo coletivo, como uma imagem
singular do todo. O contato permanente entre estes variados subsiste
mas semelhantes, que com a complexidade tendem para singularida
des diversas, mantém relações entre si, que são, ao mesmo tempo,
concorrentes e funcionais em relação ao trabalho cognitivo coletivo.
1 62
Essas relações, no entanto, não são simples "correlações de for
ça", pois também expressam diferentes níveis de desempenho cogniti
vo, não podendo ser reduzidas a uma estratificação da competência,
pois vivem em conflito constante. As relações de dominação também
são relações de capacidade, o que dá à ordem e à hierarquia de um
sistema complexo um caráter simultaneamente funcional e político.
A linguagem fu nciona simultaneamente: a) como um espelho
da realidade objetiva; b) como uma mensagem inconsciente - ou
uma memória coletiva de nossa subjetividade involuntária; c) como
um modelo estruturante e compreensivo das relações do Eu com o
Outro, em que o Sentido é reconstituído paradigmaticamente den
tro do quadro de referências subjetivas em que foi originalmente
concebido. No quadro da análise compreensiva, há sempre um con
flito intersubjetivo entre múltiplas formas de representar a realida
de. Essas "d iferenças" podem apenas ressaltar a afinidade transcultu
ral dos mitos e valores simbólicos através dos quais podem-se com
preender alguns traços universais do imaginário e, assim, conhecer
melhor a nós mesmos e a nossa relação com a linguagem. Quando
falamos de "diferenças" epistemológicas e cognitivas, é preciso dei
xar claro que entendemos a linguagem como um campo integral e
homogêno, que não comporta cortes ou marcos definitivos. Apesar
d isso, é nesta inevitável comparação entre os nossos valores e os do
discurso que se encontram os mais desconcertantes elementos sim
bólicos comuns a diferentes paradigmas. Nesta analogia, de caráter
ético, revela-se a existência de uma última instância cognitiva mais
profunda e abrangente, formada por imagens psíquicas universal
mente associadas a temas e idéias transculturais a que chamamos de
"arquétipos".
Os arquétipos não têm uma única função específica e são sem
pre ambivalentes e paradoxais. Expressam contradições metarracio
nais que se perpetuam em diversos paradigmas, em diferentes cultu
ras. Por vezes extremamente simples (o Pai, a Mãe, o Outro-Sexo), por
outros, extremamente complexos (a Justiça, o Mal, o Sacrifício), repre
sentam dispositivos psicológicos universais. Podemos caracterizá-los
como o que há de universal na linguagem, o seu aspecto espiritual.
Chegamos, assim, a um derradeiro nível de leitura, no qual a lingua-
163
gem vive no espírito dos seus discursos, nas experiências existenciais
que transmitem, nas diferentes respirações frente à morte.
A lenda conta que quatro grandes rabis se dedicaram a estu
dos esotéricos e "entraram no paraíso". A estória afirma que "um
deles viu e morreu; o segundo viu e perdeu a razão; o terceiro viu e
corrompeu-se. Só o último rabi entrou e saiu em paz". Poderíamos,
parodiando a lenda, dizer que a palavra mata, o símbolo enlouque
ce, o exemplo perverte e apenas o arquétipo realmente explica e com
preende a linguagem, pois, ao comparar o real ao ideal, revela sem
pre como a vida extrapola seus modelos.
Arquétipos, no entanto, nunca devem ser interpretados como
estruturas determinantes do imaginário ou como a unidade mais abs
trata da linguagem, mas sim como uma forma polissêmica eternamen
te inacabada, em que o homem recria e re-significa seu universo.
1 64
1 CorpoC orPensa mentoComplexu s
ÂNGELA ALMEIDA1 1
"Quando nada vem,
vem sempre o tempo
sem alto nem baixo tempo
sobre mim comigo
em mim por mim
passando suas arcadas em
mim que rôo e espero. "
Michaux
1 66
traço que fo i construído em mim. A pintura acentua a exaltação da
arte como extensão do corpo e a consciência dela como experiência
primal. O corpo, alojamento da memória é, ao mesmo tempo, o
i nstrumento e o meio d a criação.
Aqui, sou corpo e natureza. Sou mestiço. Meu corpo pode ser a
parte aderente à margem do nascimento, a parte e o todo do parentes
co, a aldeia de todos os usuários, a mandioca que benze e alimenta.
Sou vários, "às vezes incoerente como o Universo que, no início, ex
plodiu, diz-se, com enorme estrondo".2 Sou a própria explosão, sou
mato, sou gente. M inha estrada é bifurcada, posso tomar qualquer
caminho, vou com o vento, com os pássaros, com a música, com os
gestos, vou inteiro, corpo, terra, alma.
"Qiando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Oh Manuel, Miguilin
Vamos embora. '' 3
1 67
minha cor, minha dor. Morin nos fala que os deuses têm uma existên
cia real, e que essa existência lhes é conferida pela comunidade dos
crentes, pela fé, pelo rito. "Mas, uma vez que o deus existe, é capaz de
nos possuir e é essa relação particular que nutrimos com os deuses ou
o nosso Deus, ou as nossas idéias. Qie isso significa ainda que damos
vida às nossas idéias e, uma vez que lhe damos vida, são elas que nos
indicam o nosso comportamento, que nos mandam matar por elas ou
morrer por elas, o que significa que estes produtos são os nossos pró
prios produtores e que a realidade imaginária e a realidade mitológica
.
são um aspecto fundamental da realidade humana."4
1 68
mito e fato, sonho e vigília, razão e fantasia: "Dirigimos nós mesmos
para nós mesmos através de milhões de seres - pedras - criaturas pássa
ros - seres estrelas - seres micróbios - fontes de nós mesmos".6
Há agora um certo fantasma interior que preciso pintar, j á
não necessito d e nariz, olhos, cabelos, que se acham no exterior.
Procuro o duplo para pintar os eflúvios que circulam entre as pes
soas, seus temperamentos, os espaços-tempos contemporâneos. Para
conhecer meu corpo, já se faz necessário entrar nos detalhes dos
meus subsistemas, minhas estruturas, meus funcionamentos, mi
nhas partes sólidas, líquidas e gasosas.
Além das diversidades e diferenças, estou impregnado de recor
rências e verdades universais. O mundo explodiu em caminhos. Sou
orixá, sou artista, cientista, exibicionista, individualista, tribalista. Sou
índio, sou negro, sou branco, me movo segundo um ethos universalis
ta. Picasso quebrou meu corpo em cubos, retas, restos, destroços. Meu
corpo conhece a transterritorialidade cultural, o multiculturalismo e
os deslocamentos. Meu corpo está vivenciando o limite das experi
mentações, ou o momento em que todas as formas de expressão são
permissíveis. A permissividade parece ser, de fato, a marca deste fim
de século. Meu corpo pode ser botticelliano, picassiano, rupestriano,
deleuzeano ...
A arte abstrata dilui meu corpo, sou apenas cor, ora vestida de
um mar azul quase chumbo, ora nua envolta em tintas rosas quase
vermelhas.
Meu útero, boca, estômago, sexo e coração se dilatam e se pre
enchem de vento, vida, vinho, canções, prazeres, mas também de fome,
sede e miséria. Meu corpo está cheio de costuras com tecidos elásticos.
Abro portas, perfuro paredes, em última instância me exponho à morte.
Meu corpo permanece pelas mãos da Criação, mas desta vez reorgani
zado na direção do indeterminado.
Notas
1 69
Salgado, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
4 Morin, Edgar. "Política da Civilização e Problema Mundial", conferência
apresentada na cidade do Porto, 1996.
5 Holanda, Chico Buarque de. sobre música de Milton Nascimento - músi
M. Lowe; tradução: Mário Pontes. Rio de Janeiro, José Olí mpio, 1995.
1 70
Da fragilidade do homem-rede
GUSTAVO DE CASTR01 1
Gilles Deleuze
Pensando o diferente
1 72
der pontes, singularizá-los em forma de conceitos quase isolados ou
organizá-los em suas religações, mas não podemos negar seu princípio
desordenador.
1 73
tual e seu impulso à resistência e à manutenção de sua própria liber
dade. É por isso que a experimentação intelectual é quem dá o su
porte para o próprio jogo categorial de temas e conceitos e para as
conclusões provisórias, dele decorrentes, e que anteriormente cha
mamos de ponto final. Não há mal em admitir a presença da incon
clusão no ideário da construção teórica, aind a mais quando trata
mos de um pensamento dirigido às incertezas da vida cotidiana.
M uitas perguntas
1 74
que a face mais ordinária, reprodutora, rotineira e comum da vida
tenha recebido o predicativo de cotidiano. Bastaria dizermos então que
a vida cotidiana comporta essas explicações (padrão, repetição, repro
dução, ordem) e elas são as únicas a caracterizá-la. No entanto, existem
outras dimensões que a caracterizam e sedimentam: a da criação e do
extraordinário, do inusitado e do incomum, do acidental e do aconte
cimento. O ordinário e o extraordinário fariam parte de uma unidua
lidade, que os comporta como elementos inseparáveis, seja do ponto
de vista existencial, seja do ponto vista histórico ou temporal, ou do
ponto de vista de uma nova estrutura da vida cotidiana.
Mesmo assim, muitas outras perguntas ainda ecoam como "fan
tasmas" em nosso roteiro intelectual. Por que se imiscuir, hoje, de
investigar os fundamentos do banal? Terá o banal algo do qual se
possa extrair alguma filosofia? Qie interesses desperta essa dimensão
"lixo" da vida na sua imediaticidade irreversível e implacável? Talvez
por ser a "realidade por excelência", como disseram Berger e Luck
man, admitindo o seu estatuto de "realidade predominante" ao busca
rem os fundamentos de uma sociologia do conhecimento. Talvez por
ser uma representação "subterrânea", como disse Maffesoli, nos aler
tando que "existe uma resistência teimosa do concreto mais próximo
frente a qualquer explicação redutora e simplificadora"8• O certo é
que a vida. e seu predicado cotidiano carregam consigo um todo dual,
irresistível a olhos mais interessados. Contém uma sabedoria do co
mum, uma pedagogia da práxis, uma negociação permanentemente
comunicativa, uma filosofia do acaso e da necessidade, um espírito
bric.oleur, uma presença duradoura e muitos outros elementos que ten
taremos explorar na vastidão deste território e de suas fronteiras.
O cotidiano da vida
A indeterminação dos acontecimentos e a incerteza da vida di
ante d a imposição dos limites nos fazem admitir que o cotidiano
possui um considerável grau de desordem, tamanha é a vastidão de
incertezas que o povoam. Um estranhamento ou um espanto filosófi
co diante do cotidiano são suficientes para garantir que, além da cega
doutrina do mesmo a desencantar o mundo, o contínuo movimento
1 75
de reencantamento deste também acontece por intermédio dele.
Muitos são os motivos que levam os pesquisadores a se deter
sobre o cotidiano, e só essa investigação já resultaria em uma outra.
"E, se damos tanta importância à vida cotidiana, não é tanto por
curiosidade pelas maneiras de molhar o pão no café com leite de
manhã, mas sim porque é a vida dos nossos amores, dos nossos me
dos, da nossa morte, das nossas experiências. Camuflada sob a grande
história como as histórias da vida sob a História."9
O homem, na sua existência temporal e as ciências sociais,
como campo de investigação da sociedade, nunca deu suficiente
mente importância a idéia de vida cotidiana, tida mesmo como uma
idéia vazia e amorfa. Não foi sem motivo que isto aconteceu. Como
compreender o mundo através da microrrealidade? Era preciso antes
desmascará-la, entendê-la apenas como a dimensão alienada por ex
celência da vida, reprodutora de poder e violência, mistificadora d a
verdade, opressora, ignorante e superficial. E m face da vida cotidia
na, tal compreensão abriu a porta para o dogma e empreendeu os
limites de uma racionalização fechada, tosca, munida somente do
gene da autodestruição, ficando a vida de cada dia como o campo do
marasmo, da dureza, do estático e do imutável. Nessa perspectiva, se
perde a importância da investigação deste campo e sobre ele recaem
somente tédio e um desejo de afastamento, esquecimento e fu ga. O
que significa sair do cotidiano se não quebrar a repetição, alimentar
se do diferente, embaralhar a rotina e afastar-se do mesmo? Sair do
cotidiano significa entrar na vida pelo padrão da vida, reconhecen
do que é a estrutura tetragrâmica da vida (desordem, interação, or
dem e organização), o que estrutura por sua vez a idéia de cotidiano
em nossos dias.
O cotidiano é apresentado muitas vezes como a definitiva pri
são humana de onde jamais se poderá sair. Heller lembra que não há
escapatórias da vida cotidiana e todo homem e toda sociedade têm,
inevitavelmente, uma vida cotidiana. Diante de tamanha dureza, como
sorrir então para o diabo? Diante do "miolo" vida cotidiana, o que
podemos encontrar de importante? Não será mais útil pensar utopias,
pensar a história, pensar o tempo e sua duração? Pensar a vida? A vida
cotidiana é uma forma de pensar tudo isso, sem dissociá-los, sendo,
1 76
simplesmente, um ponto de partida e um elo de ligação. Esse tédio,
essa chatice, essa "droga" do dia-a-dia que nos entorpece os sentidos e
nos afasta dos encantamentos não pode ter belezas sobre si e nem
mesmo o menor propósito se tivesse, que sentido teria a vida, então?
Viver e morrer? O cotidiano, campo do senso comum, recebe sobre si
os estigmas e a representação que ele mesmo provoca. Mas será a vida
cotidiana somente esse rigor ideológico, essa doutrina da alienação?
Não terá ela também um outro vigor imperante de encantamentos e
utopias? Não terá ela um "extraordinário" escondido em algum lugar
da vid a e que renova quase que instantaneamente com ternura esse
vigor? A importdncia de pensar a vida cotidiana estar em pensar pela sutura,
pela rejunção, pela tessitura, vislumbrando uma totalidade: a vida, saben
do-a incerta e imprecisa.
A vida cria e inventa, portanto, temos de desdogmatizar a com
preensão parcial e fragmentada da idéia de vida, já que o cotidiano
também é uma extensão da idéia de vida. Há que entendê-la na histó
ria como seu acontecimento por excelência, seu dado mais incerto e
imediato, seu hic et nunc, que comporta também uma visão de todo.
Nenhuma outra dificuldade seria maior que acomodar a idéia de vida,
já que do ponto de vista social seu cotidiano e história não param de
se "mexer recusando um verdadeiro enquadramento, bem como uma
acomodação satisfatória" 10• Daí que um enquadramento fechado sob
o aspecto da reprodução, do marasmo e do banal merece uma revisão
profunda, ocasionada pela própria idéia de vida. A vida social é berço
dessa tensão fundamental que comporta organização, padronização e
repetição, mas também desordem, diferenciação e não-linearidade. A
vida cotidiana, nesse caso, é um dos aspectos da vida social que pode
mos analisar mais detidamente, porque está mais próxima do indiví
duo. Como um dosfocos do acaso, deve ser reconhecida também como
estando livre de amarras. Esse foco do acaso na vida social já foi abor
dado por Boudon. Ele atesta que "o acaso não só existe realmente [nas
ciências sociais], como também importa reconhecer a sua existência se
se quiser compreender um grande número de fenômenos".
A vida cotidiana é, ao mesmo tempo, "a vida dos gestos, rela
ções e atividades rotineiras de todos os dias; um mundo de alienação;
um espaço do banal, da rotina e da mediocridade". Mas também "a
1 77
possibilidade ilimitada de consumo sempre renovável; um espaço de
resistência e possibilidade transformadora, [ ...] é também vista corno
um espaço onde o acaso e o inesperado (... ) elevam os homens dessa
cotidianidade, retornando a ela de forma modificada" 1 1 • É nessa or
dem e desordem que a vida cotidiana se estabelece, que é possível
captá-la no conjunto da vida social. Ao estabelecer-se, emerge corno a
dimensão socio-cultural mediadora por vocação da vida social, o que
implica que nossas ações cotidianas são o dado mais concreto, mais
chão da mesma vida. Ações cotidianas, consciência cotidiana, percep
ção cotidiana quase que instantânea no mais imediato aqui-agora da
natureza humana.
Cotidiano é rede
1 78
da sociedade nos homens. Os serviços, as negociações políticas, as ques
tões econômicas e culturais, as organizações, as instituições e a buro
cracia, tais como as questões pessoais, existenciais e psicológicas, são
inexistentes sem a ação humana e toda a sua complexidade psicosso
cial. Do ponto de vista das relações humanas, das trocas e feedback
existentes, podemos perceber a interconexão social que somos enquan
to pessoas habitando o mesmo planeta ou o mesmo sistema social, a
interconexão dos acontecimentos que se reorganizam, reorganizando
a vida social. Como rede, a comunicação ganha uma estrutura ainda por
se constituir. Trata-se de um reforço, via teoria da complexidade, ao enten
dimento de uma teoria hipertextual da comunicação, elaborada por Lévy, que
prescreve em uma mesma matriz arte, tecnologia e ideologia.
Não importa pensar a complexidade sem pensar o que ela tem
a nos dizer. Os frutos de sua incerteza têm o sabor da probabilidade
da previsão. O incerto propugnado pela ciência parece ter sido disper
sado para todos os lados, gerando inclusive uma incerteza também
existencial. Tal sentimento, por exemplo, é o que nos assalta nas pala
vras da poetisa Claudia Marczak. Ela cria uma leitura do mundo, dos
sentimentos e da vida a partir do caos, tendo no caos o seu código
poético. No poema Caos, expressa uma síntese de sua inspiração, reve
lando as sutilezas da vida re-lida através do caos13•
Nascemos do caos,
de um delírio de corpos se amando,
misto de paixão, suor e prazer.
Nascemos com a imensa necessidade de vida
e o incontrolável desejo de morte,
que ronda nossos passos
sombra negra
e certeza de partir.
Somos animais hipócritas vestidos de razão,
ocultando em nossas veias o sangue vermelho do instinto.
Cai a minha máscara
e sei que preciso viver a intensidade de cada desejo.
Sentir sem medo de sentir,
caminhar sem medo de errar,
1 79
errar sem medo de acertar.
Meu coração adormece sozinho
a chama daquilo que um dia poderia ter sido.
minha vida espreita o dia de poder
explodir em riso e festa
aquilo que ainda guardo para viver.
A rotina
1 80
O instante
O instante é o dado por excelência da vida humana em sua
atividade cotidiana. É a célula do acontecimento, ou o que Lefevbre
chamou de "fragmento social", a microestrutura dos acontecimentos.
Na vida cotidiana, encontram-se presentes as idéias de totalidade (vida)
e de singularidade mais corpuscular (cotidiano). O instante é esse cor
púsculo fantasmagórico do sapiens-demens em relação com toda a natu
reza. É também o dado mais remoto de ser apreendido em sua totali
dade. Comporta a idéia do aqui-agora do sujeito, do aqui do meu
corpo e do agora do meu instante presente e duradouro. Poderíamos
dizer, de forma linear, que o instante é o segundo do minuto vivido,
ou o milésimo, ou o centésimo, algo fragmentado, perene e contínuo.
De forma não-linear, poderíamos considerar que é o puro movimento
do tempo presente, do eterno presente, do instável e descontínuo pre
sente. O que poderia ser mais complicado de definir que o presente, o
aqui-agora? Esse atomismo da vida cotidiana só se concretiza, no en
tanto, ao ser socialmente dado, quando inventamos a realidade e cons
truímos uma história sócio-cultural pessoal e coletiva. Em termos hei
deggerianos poderíamos dizer que o "ser-aí" só se concretiza quando é
"ser-com". "O mundo é sempre algo que eu partilho com os outros. O
mundo do ser-aí é um mundo-com (mitwelt). Ser-em é ser-com-outros14 ." A
interação, a comunicação e as relações são o que nos põe em contato
com o mundo e conosco.
O instante presume uma duração, e passado e futuro não são
outra coisa senão substância do duradouro presente. Uma forma pos
sível de compreensão do instante está na regularidade do descontínuo
ou, em outras palavras, uma auto-organização regular da desordem.
Para compreender o instante é importante recorrer à idéia do sensível,
que envolve as pessoas e o mundo. Como o cotidiano, o instante é
pessoal, vivido apenas pelo sujeito, muito embora todos os sujeitos
possuam instantes e cotidianos do qual possam falar. O instante pre
sente "resume" as pluralidades vividas nos instantes passados e as re
produções apreendidas ao longo de nossa vida histórica, apesar de o
instante estar sempre em construção, em contínuo devir. É a síntese e
a estrutura psicossocial da vida cotidiana, ao mesmo tempo que seu
181
elemento estruturante. Instante e movimento associam-se, em vez de
parecerem pólos distintos. É o instante que está sempre aqui, sempre
íntimo, sempre a organizar-se sob o nosso comando, mergulhado que
estamos na pluralidade dos acontecimentos.
A profundidade íntima do instante pessoal mantém-se em rela
ção com o acidental do acontecimento. Há uma unidade incerta e
fragmentada que podemos apreender através do aqui-agora, que é o
irrecuperável, que nunca se esvai completamente, por estar sempre
aqui. Viver o aqui-agora é muito mais que um slogan colegial, midiático
ou budista, exige um olhar serenamente vigilante, uma paciência históri
ca, uma carpintaria da práxis, o exercício do eterno retomo, a coragem da
fita que enlaça a granada e a beleza da flor que cresce no lodo. Ele é o
cimento e o tijolo do acontecimento, cimento e tijolo do movimento da
vida cotidiana e da construção pessoal e social da história.
O instante é algo fugaz, superficial, efêmero, rápido e não con
tabilizado, mas também o mais profundo mergulho no movimento da vida,
algo que não podemos contar, muito embora conheçamos sua fórmu
la: o aqui-agora vivido. É da vida que o instante vai buscar sua matéria
prima, tal como a vida busca em si mesma a sua própria razão de ser.
Mestre Eckhart, místico religioso da Idade Média, escreveu, por volta
da primeira década de 1300 para a rainha Inês, da Hungria, dizendo:
''Você pode perguntar durante mil anos à vida: por que vive? E ela
responderá sempre: vivo por que vivo, vivo por viver. A razão é que a
vida tira sua vida de seu próprio fundo e jorra de seu próprio ser. É
por isso que ela vive sem perguntar o porquê, pois que ela vive em si
mesma" 15•
Dia-a-dia planetário
1 82
Não podemos deixar de inscrever nessa parte a necessidade de
revisão e re-significação da vida cotidiana, de tudo o que há por den
tro e por fora dela e de tudo o que ela pode representar e conter dos
homens, de vida e da história.
O homem rasga o tempo (cotid iano) que o consome. Destrói
o cotidiano, dilacera-o. Habita o kairós do tempo, um tempo espi
ral. Pela porta da espiralidade do tempo, podemos dizer que a idéia
de Heller de cotidiano, que esboçamos no início deste ensaio, j á
não fa z sentido. O cotidiano nunca é definitivo, nem completa
mente estruturado, várias portas conectivas abrem-se sobre ele. Não
apenas da porta da arte, dos sonhos, das imagens, mas da vid a
concreta. É daí que voam tod as as borboletas ...
Chamaremos de homem-rede o homem ecológico e em reen
cantamento com a realidade vivida, aquele que não se deixa vencer
por ela, e que assume, na microporção de sua vida cotidiana, a co
responsabilidade pela totalidade. Político e sensível, o homem-rede tor
nou-se um singular agente dos direitos e desejos humanos, que se ressente
de defensores públicos. O parlamento planetário das consciências sapt'ens
demens deseja, através dos homens-rede, paz e solidariedade, deseja reconci
liar os homens consigo e com a natureza, que durante tanto tempo pare
ceu estar fora de nossa humanidade, de nossa cotidianidade e de nossa
cultura. O reconhecimento do são-louco é o renascimento de um novo
tipo de homem, ao mesmo tempo, cibionta e gloca/17, exercendo uma
cidadania planetária. Muitas coisas precisam ser ouvidas novamente e
novamente repensadas dentro deste novo homem.
Há muito, os ecologistas nos avisam para a necessidade de um
pensar global e de um agir local, e os filósofos para a necessidade de
descansarmos, temporariamente, de nós mesmos, "olhando-nos de longe
e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando
sobre nós"18• O cotidiano não poderia ter sido desprezado, pois, ao
fazê-lo, desprezamos nossa própria construção histórica. O cotidiano
planetário deveria ter-nos arrebatado para a importância da vida em
todas as suas possibilidades, para os caminhos da liberdade e da vida.
Teimando em olhar apenas para o dedo e a vida dos sábios, já poderí
amos ter encontrado nossa identidade planetária e formatado as carac
terísticas de um registro geral.
1 83
Não se trata mais do sábio das montanhas, imerso em silêncio e
contemplação, mas o homem-rede urbe et orbe, habitante de todos os
lugares, desterritorializado, perdido que está no anonimato do cotidia
no das cidades, no dia-a-Oia das multidões, locus em que cultiva seu
silêncio e seu saber. Homem em construção, mestiço, instruído, "engen
drado pela ciência e pela compaixão", pela ternura e pelo vigor. Ho
mem planetário, defensor do direito planetário e da bioética cidadã,
cultiva respeito pela existência de um todo incerto, inaca-bado, inconduso, e
é isso o que lhe estimula a investigação enquanto pesquisador planetá
rio. Há muito que o homem-rede não vive somente dentro de si, em seu
nó de existência, ou mesmo, na Terra. Perscruta corações e mentes, siste
mas e células, inspirado que está pela metamorfose dos canais e nós da
vida cotidiana.
Diante da matéria e de seu espírito, ele reconhece a necessidade
de humildade para caminhar nas lições cotidianas, nos limites de seu
mundo e da sua vida. Seu limite mais próximo é o instante, o aconteci
mento que "rasga" a vida, dando-se no próprio viver. O mais duradouro
é a própria vida; vida vivida na constância do dia-a-Oia. O homem-rede
aprendeu a reencantar-se com o dia de cada dia e com os mistérios da
interdependência, tomando-se assim um inscrito na rede de convivia/ida
de planetária. Contra o isolacionismo e como alguém que está de mãos
dadas à vida, o homem é rede psicossocial e biocomunicacional. O
homem-rede sabe que é preciso educar-se para a cidadania, a liberdade,
a justiça, com vista à própria rede. Sabe que tal educação é um processo
de construção, repetição e resistência, como o cotidiano. Diante da orto
doxia do pensamento, oferece, gratuitamente, seu espírito bricoleur, pro
pondo não apenas desarmes e reencontros, mas também aberturas e
ousadias.
O sábio está sempre um passo à frente do caos, muito embora
seja o caos quem lhe queima os calcanhares e aquece as juntas. "Para
atravessar o caos, ele precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se aos
movimentos do caos, precisa aprender não apenas a pôr-se a salvo
dele, como também a estar sempre um passo adiante. Precisa desenvol
ver sua habilidade em matéria de sobressaltos e movimentos bruscos'
em viradas e guinadas súbitas, abruptas e irregulares - e não apenas
com as pernas e o corpo, mas também com a mente e a sensibilida-
1 84
de19". No caótico cotidiano o homem-rede não corre, sabe respeitar os
tempos de resposta que a vida requer, sabe que viver o cotidiano é ir
além do paradoxo da ordem e da desordem, na busca da totalidade
que se retroalimenta desse mesmo paradoxo. Onde se alimenta o ho
mem-rede?, perguntam todos. Em que fonte bebe a água da vida e
aonde faz sua ceia diária? Diz ele: " ... na fonte do dia-a-dia". No seu
pequeno regaço que flui sem parar, jorrando gratuitamente, inspirada
que é pelo viver, pelo fluir. O homem-rede sabe que na viagem não
importa o ponto de chegada, mas os movimentos do caminho. Diz
ele: " ... deixe que o ponto de chegada (o nó) se viva quando lá se
chegar".
A metamorfose cotidiana fez do homem-rede bruxo, alquimista
e feiticeiro, mascarando-o, incógnito, no anônimo das multidões. Seu
coipo, "tatuado" pela totalidade dos instantes, dos acontecimentos, das
rotinas, das trocas e mediações, não se divide em um só instante, um só
momento, mas, estranhamente, é planetário e local e guarda a "caixa
dos-saberes-e-invenções". É o espírito inquieto que potencializa a ener
gia de toda a tradição da vida planetária. É esse corpo bruxo, feiticeiro,
mascarado, anônimo e vivo que se retroalimenta na metamorfose coti
diana e que soma com todos os outros, todas as gentes, todas as tradi
ções e histórias conhecidas e em conhecimento de seu oikós. No meio de
tudo isso, o homem-rede se encontra, mas nós o perdemos de vista para
sempre dentro da rede, e é aí, nesse desencontro acidental, que ele está
incógnito e permanentemente disposto a se reencantar, mesmo diante
do espelho, como metamorfose cotidiana, como húmus cósmico'l!J, como
vida.
Notas
U FRN.
2 Cf. Heller, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana. Espanha, Ediciones Penín
sula, 1 994.
3 Wittgenstein, L. Cultura e Valor. Lisboa, Edições 70. 1996. p. 82.
4 Pessis-Pasternak, Guita. Do caos à inteligência artificial. São Paulo, Unesp.
1 993, p. 83.
5 Chico Science, que afirma: "Mas há fronteiras nos jardins da razão" na
1 85
letra da música Praeira, do álbum Da lama ao caos, 1985.
6 Entendo por pensamento burocrático a complicação ou morosidade que
abusa e inflexibiliza o pensamento humano, através das ortodoxias que o policiam
e da unidirecionalização.
7 Como movimento de duração compreendemos "uma mudança sempre
aderente a si mesma numa duração que se alonga sem fim". Cf. BERGSON, Henri.
Evolução criadora. Col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1 984, p. 1 04.
8
Maffesoli, Michel. A conquista do presente. Rio de Janeiro, Rocco, 1 9 84,
p . 1 2.
9 Morin, Edgar. Sociologia. Portugal: Publicações Europa-america, 1994. p.309.
10 Lacouture, Jean. apud Le Goff, Jaques. História Nova. São Paulo, Martins
Fontes, 1995, p. 2 1 6.
11 Carvalho, M. C; Pauto Neto, José. Cotidiano: conhecimento t crítica. São
Paulo, Cortez, 1 994.
12 Cf. Wittgenstein, L. Investigações jiloifijicas. São Paulo, Abril Cultural,
1 99 1 .
13 O encontro com a poesia de Claudia Marczak se deu ao acaso da pesqui
sa sobre cotidiano e caos na rede mundial de computadores, Internet.
14 Heidegger, Martin. Todos nós... ninguém. U m enfoque fenomenológico do
20 Boff, Leonardo. Ecologia, grito da terra, grito dos pobres. São Paulo, Ática,
1 995.
1 86
1 Como bons timone iros
DALCY DA SILVA CRUZ'!
1 88
deslocamento, de não-lugares, de indivíduos descentrados, de identi
dades mutantes. Como os conceitos de tempo e de espaço, o de iden
tidade e subjetividade também foram alterados. Tanto um como ou
tro se tomaram plurais, se deslocando com muita rapidez, influindo,
tanto na produção do conhecimento quanto nas manifestações artísti
co-culturais. O conhecimento produzido, incluindo-se as artes em ge
ral, é conseqeência desse movimento. O sentimento do não-lugar, do
espaço que desloca e se transmuta e a velocidade do tempo cria no
indivíduo a perplexidade expressa no seu pensar e no seu fazer desar
ticulado, fragmentado, disjunto. A desordem, a desterritorialização/
reterritorialização estão generalizadas.
A desterritorialização de outros elementos produzidos pelo
homem faz circular planetariamente essa produção e, com certeza,
vai descaracterizando cada vez mais sua nacionalidade, embora, para
doxalmente, reforce sua identidade. Assim, a produção do saber, da
cultura, dos bens materiais não reflete, necessariamente, os proble
mas nacionais, regionais, ou mesmo locais, mas traz a marca das
questões planetárias, sem contudo perder a cor local; é o fluxo-reflu
xo das diversidades e da unidade.
Todavia, devemos estar atentos, pois somos especialistas em
fragmentar, em criar barreiras, em isolar. Precisamos quebrar essas
barreiras para, como o mercado, termos trânsito livre; tentar viver a
totalidade sem demarcações, para que se possa usufruir a plenitude
do saber, da alegria, da tristeza, dos sentimentos, da vida. Precisamos
estar abertos na sociedade da sobremodernidade, pois o conheci
mento científico fez baixar a temperatura do conhecimento em ge
ral, criando conceitos, delimitações, especialidades, fraturas, fragmen
tação. Apesar de vivermos a globalização provocada pelo mercado e
pelos meios de comunicação, contraditoriamente a tecnocracia e a
mídia tornam a sociedade fragmentada. Nela, devemos lutar, pelo
reencontro do homem, pela consumação da sua unidade, quebrando
as barreiras que foram construídas pela nação, pela ideologia, pelas
religiões, pelos preconceitos, para que ele possa viver plenamente
essa era planetária. Buscar sua unidade, não para homogeneizar, mas
para, no reconhecimento e no respeito à sua diversidade, fazê-la de
sabrochar das diversidades culturais. Esse reconhecimento significa
1 89
tornar concreta a identidade comum. Buscamos apoio em Morin,
que diz: "A identidade do homem, ou seja, sua unidade/diversidade
complexa, foi ocultada e traída, no próprio coração da era planetá
ria, pelo desenvolvimento especializado/compartimentado das ciên
cias. As características biológicas do homem foram dispersadas nos
diversos departamentos de ciências humanas, de como que a sociolo
gia foi incapaz de ver o indivíduo, a psicologia incapaz de ver a
sociedade, a história ficou de lado ... " O homem se desfez em frag
mentos (Morin e Kern).
Cabe a nós, portanto, juntar os cacos, refazer esses fragmentos
para fazer nascer um homem novo, íntegro, unitário. Retomar um
caminho a partir do qual a educação não mais ensine a separar, a
isolar, senão a religar os conhecimentos, os saberes, fazendo-nos con
ceber a humanidade, não mais de forma fragmentada, mas de ma
neira unitária, integral, plena. Nessa nova ordem planetária, apesar
de tudo, surgem e se constroem novas solidariedades, novas deman
das nascidas nas próprias fissuras da globalização. As formas de
manifestação das vontades coletivas, das reivindicações, assumem
significados distintos, apontando as novas características do homem
sobremoderno e a fragilidade por que passam os partidos políticos,
os sindicatos e a própria Igreja. São movimentos que estão tentando
afirmar sua autonomia, sua diversidade, sua singularidade, suas dife
renças. São movimentos plurais que estão coerentes com a pluralida
de de lugares, de situações, de interesses que são afetados pelo global.
Vivemos, portanto, num mundo complexo e contraditório, sobre o
qual, apesar dos avanços tecnológicos, ainda conhecemos muito pou
co. As catástrofes, fome, miséria e violência ainda nos perturbam.
O homem, ao longo da história, foi capaz de criar e recriar
coisas com grande engenhosidade e triunfo. No entanto, essas des
cobertas, esses feitos não foram capazes, aind a, de acabar com a
violência, com as guerras, com os separatismos de toda ordem. Além
disso, o desejo de ter sempre mais, certamente o principal fator
responsável por esses estado de coisas, tem agravado a situação con
trad itória da humanidade.
Contudo, esperamos que sej a possível surgir a concepção
de que possamos nos reorganizar de fo rma menos racional, me-
1 90
nos dolorosa, porém mais imaginativa, mais afetiva, mais saudá
vel, menos solitária, para podermos manifestar nossa singularida
de e, também, nossa universalid ade. Como seres humanos forma
dos pelo biológico, pelo psíqu ico e pelo cultural, precisamos vi
ver plenamente essas três d imensões.
Bibliografia
Nota
191
1 Museu imaginário, arte e complex idade
WANI FERNAND ES PEREIRA1 1
T
ratar de um pensador instigante, cujo itinerário poético antecipa
proposições que se afinam com o ideário de um conhecimento
complexo e universalista, a respeito da arte e da cultura é docemente
perigoso. Para resguardar minha ousadia, tomo por mote as palavras
de Gaston Bachelard: "Há que se deixar o pensamento percorrer a
trilha do perigo".
Apresento Clarival por ele próprio:
Meu nome Clarival não é ligado ao de São Bernardo de Clara
val, como bondosamente meu querido dom Marcos Barbosa descon
fiou. Não tenho, infelizmente, a grandeza do abade criador da ordem
cistersiense, radicada à beneditina por volta de 1 1 13, falecido em 1 153,
canonizado pelo papa Alexandre III e proclamado doutor da Igreja
por Pio VIII, em reconhecimento ao seu imenso legado teológico,
político, literário, histórico e também arquitetônico. Modestamente
reconheço que estou mais próximo de Santo Amaro, de meus pais, e
também, meu. Entre o sábio doutor da Igreja e o humilde Santo Amaro,
prefiro ser Clarival, santamarense nascido na rua da Poeira 8 1, em
Salvador. Não sou autor de nada. Os verdadeiros autores estão conti
dos nos assuntos e obras sobre as quais me debrucei, muitos já histori
ados ou consagrados, mas numerosos outros caídos no limbo do es
quecimento, na anonímia, perdidos no tempo, entretanto imperantes
nos espaços que perenizam. Para o meu trabalho utilizo-os por não
conter adjetivação. Os objetos se revelam em sua própria inerência. O
estatuto d a imagem constitui-se no aporte indispensável para o estudo
da arte, pois interpreta as formas do espírito criativo, contribuindo
para uma comunicação adequada. À fotografia são acrescentadas ou-
tras metodologias de documentação: pesquisa de documentos, corres
pondências, bibliografia de numerosos historiadores e viajantes es
trangeiros. A fotografia de época como registro da vida civil e religiosa
ganha destaque. Trata-se de uma metodologia de cunho arqueológico
que nos desvenda camadas desconhecidas, obscuras, que, aos poucos,
deixam-se emergir num discursivo triúnico que inaugura uma docu
mentação ampliada, uma espécie de trajeto antropológico revelador
da vida e das idéias.
1 94
fício para o prédio. Reuniu impressionante acervo histórico e artísti
co, talvez o mais eloqüente que se fez nessa duplicidade de interesses.
Xingu, Dia-Noite-Terra foi considerada pela crítica um dos eventos
mais significativos da Bienal Internacional de São Paulo, no período
outubro-dezembro de 1975. "Grandiosa pelo tema e qualidade, basea
va-se no trabalho de 25 anos de Orlando Villas-Boas e em cinco excur
sões da pesquisadora Maureen Bisilliat, no Parque do Xingu".
Acredita Valladares que esses exemplos de exposições antológi
cas, embora limitados quanto aos resultados cognitivos, justificam a
nova conceituação do evento, e afirma: o evento passa a ser, através da
documentação diversificada e sistematizada, o próprio acervo temáti
co, submetido a estudos mais aprofundados. A essas exposições são
acrescentados outros meios de visualização e informação disponíveis,
tais como publicações e recursos audiovisuais, que ampliam os signifi
cados dos espaços museológicos. Os museus não serão mais a casa de
um determinado e limitado acervo. Passarão a ser o locus da represen
tação e informação de muitos acervos. As exposições, por sua vez, se
constituem em instrumentos de educação e pesquisa a serem utiliza
dos pelo público, historiadores, cientistas, artistas. Reafirmam-se, en
quanto meios de comunicação, circulação e preservação da memória
cultural e histórica do país. A educação passa a ser empreendida "por
meio da informação universal e conscientização através do reconheci
mento e confronto dos valores culturais da própria região" (Vallada
res, 1 985).
Com tal proposição, Clarival antecipa uma abordagem ecológica
da cognição, tal como é assumida por Pierre Lévy ( 1993), e representada
pela metáfora do hipertexto, entendido como um "conjunto de nós
ligados por conexões, através das palavras, páginas, imagens, gráficos ou
partes de gráficos, seqüências sonoras, documentos complexos que po
dem eles mesmos ser hipertextos". As exposições antológicas, sob a for
ma de eventos, como são propostas por Clarival Valladares, podem ser
entendidas como verdadeira metáfora do hipertexto da cultura. Com
postas por uma diversidade de linguagens - escrita, imagética, discursi
va, sonora -, essas exposições ampliam a informação e a comunicação,
ao mesmo tempo que atribuem sentido ao texto, novas associações, in
terpretações e ressonâncias. Instauram-se nelas, portanto, os fundamen-
1 95
tos primordiais da comunicação: a partilha do sentido, a r�ssignificação
do mundo e dos objetos a um museu verdadeiramento imaginário.
A idéia de um museu de imagens, sugerida por Clarival Valla
dares, aparece como convicção durante entrevista cedida por ele aos
pesquisadores do Projeto Portinari (PUC/FINEP) e realizada no Rio
de Janeiro, em fevereiro e março de 1983.
Clarival denuncia o descaso das instituições brasileiras no que
se refere ao processo de documentação. As imagens nunca podem per
der-se porque se constituem sempre como reservas de memória para as
atuais e futuras gerações. O marco do museu de imagens instaura-se
com a sentença do zelador do M useum of African Art, a Clarival
Valladares: "Não guardamos diapositivos. Guardamos a imagem. Não
guardar o diapositivo e sim a imagem, e a cada seis meses verificar
através de equipamento eletrônico se há necessidade de renovação".
Aqui reside a fórmula de conservação da documentação e coleção do
ada ao Museum of African Art, por Elliot Elisofon, fotógrafo da Life
Magazine.
Será através do predomínio da imagem que Clarival configura
rá seu museu de imagens, a partir do acervo iconográfico acumulado
em 26 anos, dedicado ao estudo da história e crítica de arte, referenda
do por Raul Lody: "No trabalho desempenhado por Clarival merece o
de documentalista do imaginário, no caso destacando-se a cultura
material africana/afro-brasileira. Aliado ao seu olho de descobridor,
estava o olho da máquina fotográfica que ganha dimensão e leitura de
um especialíssimo fotógrafo etno-historiador da arte brasileira. Saben
do do valor de cada fotografia no conjunto de seus textos, soube dar
fala própria à imagem, legando ao texto iconográfico um espaço de
destaque, que sempre garantiu a interação entre o autor e seu público"
(Lody, 1994).
Exercitando nesse museu de imagens sua poeisis da constante
invenção, Clarival retira do silêncio da cultura manifestações estéticas
derivadas do sentimento imagístico expressado por ex-votos, e suas
imaginárias afro e afro-brasileiras. Atribui aos seus fazedores de ima
gens, negros e mestiços, critérios de universalidade, ingenuinidade,
imaginação criativa e historicidade.
Sempre houve, no Brasil, a partir do século XVII, forte presença
1 96
de negros e mestiços nos trabalhos de arte. A origem africana é uma
estrutura fundamental na obra de muitos artistas brasileiros, assim
como na expressividade mais ampla da criatividade popular.
São, portanto, esses fazedores de imagens os que na estatuária,
escultura e pintura católicas imprimem seu éthos, sua imaginação, seu
saber-fazer, sua provocação estética.
Percorramos alguns desses espaços imaginários. Visitaremos
apenas algumas salas selecionadas na cidade de Salvador, Bahia. Ado
temos como critério uma cronologia. Trata-se do início da carreira
de Clarival como professor de história da arte. O ano é 1959. A
cidade, Salvador de Todos os Santos.
Os espaços, nos quais exercitará sua erudição, incluem a Escola
de Belas Artes da Bahia, Escola de Teatro da Bahia, 1 Salão Universitá
rio do Nordeste, Instituto Histórico e Geográfico, Centro de Estudos
Afro-Orientais, Instituto de Cultura Hispânica de Madri, 1 e II Festac,
Fórum de Ciências e Cultura do Rio de Janeiro, Escola e Museu de
Belas Artes do Rio de Janeiro, dentre tantos outros.
Verdadeiro caleidoscópio de temáticas, idéias e ícones, a produ
ção do museu valladariano aproxima-se, em toda sua dimensão, do
museu imaginário proposto por André Malraux. É na metáfora desse
museu que se fundamenta Gilbert Durand (1988), ao apontar as fun
ções da imaginação simbólica, instância primordial da instauração de
uma antropologia e uma pedagogia do imaginário, do conhecimento
no anthropos, de suas parcelas e simultaneamente ludens e demens. O
grande mérito de André Malraux, para Durand, foi ter nitidamente
demonstrado que os meios rápidos de comunicação, a difusão maciça
das obras-primas da cultura pelos processos fotográficos, tipográficos,
cinematográficos, pelo livro, pela reprodução em cores, o disco, as
telecomunicações pela própria imprensa, permitiriam uma confronta
ção planetária das culturas e um recenseamento total de temas, um
museu imaginário generalizado de todas as manifestações culturais.
Diante da enorme atividade predadora da sociedade cientificista e
iconoclasta, eis que essa mesma sociedade nos propõe os meios de
reequilíbrio: o poder e o dever de promover um intenso ativismo
cultural.
Esse museu imaginário generalizado, representado pelo conjun-
1 97
to de todos os departamentos de todas as culturas, poderia contribuir
para o reequilíbrio de toda espécie humana. A razão e a ciência apenas
unem os homens às coisas, mas o que une os homens entre si, no nível
humilde de felicidade e penas cotidianas da espécie humana, é essa
representação afetiva, que constitui o império das imagens. Por trás
do museu imaginário, no sentido estrito, o dos ícones e das estátuas,
seria necessário fazer um apelo à poetização do mundo e dos homens.
Nesse sentido, a antropologia do imaginário poderia se consti
tuir não apenas numa coleção de imagens, metáforas e temas poéticos,
também como num quadro compositório das esperanças e temores da
espécie humana, a fim de que cada um nele se reconheça e se revigore,
pois o espírito só se pode conhecer em suas obras se, de algum modo,
nelas se reconheça, conforme reiterou, de modo definitivo, Jean La
croix.
B ibliografia
1 98
Idéias-força em ação
OTÁVIO TAVARES'!
200
dialogias na perspectiva de observador/observado.
Há necessidade, por outro lado, de reconhecer que as conseqe
ências das ações humanas escapam às intenções dos seus iniciadores.
Esse fato demonstra que há uma dinâmica interacional no processo
de intervenção social em um dado contexto, e que não se tem o con
trole total do inesperado e dos "ruídos", o que demonstra a necessida
de de uma "ecologia da ação" que permita entender as conseqeências
acrescidas pelas singularidades humanas na práxis societária.
Este sentido dado por Morin ao processo interacional do ho
mem levou-o a identificar a antropologia como uma ciência geral que
compreende dimensões da economia, da psicologia, da história, da
biologia e, também, do mito e do imaginário. O aspecto biológico
ressalta-se pela condição de mortalidade do homem como qualquer
ser vivo que tem um ciclo vital. O aspecto do mito e do imaginário é
importante porque projeta a vida para além da morte, evidenciando,
assim, um lado complexo nos estudos científicos, que deverá incluir
as subjetividades do ser com seus medos, anseios, desejos, demônios e
sombras.
Tornar-se-ia, assim, possível perceber a cultura contemporânea
como aquela que interroga de forma múltipla o sapiens-demens em suas
bases sócio-históricas e mítico-imaginárias.
O raciocínio acalenta-se cada Vf2.. mais na perspectiva de que o ho
mem é um ser cósmico. Como tal, interrogamos constantemente se o que
há de enigmático no mundo não decorre do que é mais enigmático no
próprio homem. Assim, toma-se importante definir um caminho para a
ação que pode ser iluminado pelo conhecimento científico, desde que veri
fiquemos as diferentes concepções sobre o homem e o mundo, seus deter
minantes históricos e sociais, mas também os determinantes subjetivos que
evidenciam a influência do imaginário social e do mito no fazer humano.
Essa concepção é uma atitude mais universalista da ciência,
na qual percebe-se a fragilidade das sínteses parcelares, oriundas de
cada área de conhecimento científico, porque, cada uma, de per si,
não d á conta d a complexidade que é a natureza humana. Uma
atitude dessa natureza implica a assunção de uma postura de edu
cação contínua e permanente, ou, como prefere Morin, na aceita
ção de um estado constante de reorganizações do saber, no qual o
20 1
educador seria um permanente estudante.
Para se operacionalizar esse meta-ponto de vista, teríamos de
partir da curiosidade pelos fatos, fenômenos e acontecimentos, como
também pelos problemas e idéias, através de uma atitude que rejunte
o empírico ao te6rico, o ancestral ao contemporâneo, a cultura das
humanidades à cultura científica. Esse método de trabalho anuncia
a perspectiva da dinâmica interacional e permite a identificação d as
contradições para a definição ou redefinição de quad ros de referên
cia que expressam as nossas representações carregadas de demônios,
mitos, certezas e incertezas.
Pensamos ser de suma importância sugerir, por fim, que nossas
práticas profissionais e sociais devem estar pautadas pela recusa de
qualquer atitude sectária em relação às contribuições e vivências dos
outros atores sociais. Gostaríamos de lembrar um pensamento de
Morin, que expressa bem a dialógica tão necessária e difícil de ser
assumida na prática cotidiana: "Sentimos uma insatisfação profund a
perante toda a observação que não está e m movimento e que não se
observa a si mesma, perante todo o pensamento que não enfrenta as
suas próprias contradições, perante toda a filosofia que se reduz a
chavões e não se põe a si mesma em questão, perante todo o discurso
particular que se isola do devir mundial'', (Morin, 1995, p. 32). Para
nos livrar de uma tal insatisfação é premente que analisemos nossas
ações para identificarmos os demônios que estão presentes em nossas
idéiasfàrça. e busquemos entender a influência do imaginário nas nos
sas práticas, para que não venhamos a ser reduzidos a meros seres
pensantes dentro de uma lógica apenas racional e sectária.
Nota
B ibliografia
202
1 Caleidoscópio de vidas e idéias
MARIA APARECIDA LOPES NOGUEIRA' 1
204
para se tornarem fragmentos do mundo impregnado de sentido e
historiedade.
Trata-se de entender a cultura e o homem numa perspectiva
transdisciplinar, enquanto algo que não se fecha e que é simultanea
mente uno, diverso, multifocal e auto-organizador. Assim, os pró
prios escritos de Morin e Suassuna são trabalhos de cultura, uma vez
que relacionam temas e conhecimentos anteriormente separados, ao
mesmo tempo que destacam o caráter inacabado, mutável, lacunar e
as brechas do fenômeno cultural.
A constelação paradigmática onde os autores se inserem res
salta entre outras coisas a incerteza, o caos. As desventuras vividas
por Morin e Suassuna descrevem universos caóticos, nos quais o
imponderável emerge como elemento fundante. Esse elemento im
ponderável foi que transformou Suassuna/Qiaderna num herói por
acaso (por sinal, covarde e sortudo), e fez com que Morin percebesse
a política como a arte do incerto.
Outro princípio que é preciso levar em conta para entender
essas metabiografias é o da contradição. Para além do enquadramento
conceitual, confinado pela intelectualidade cindida, a contradição é
vivida, pelos dois pesquisadores, de forma íntima e intensa. Segundo
Morin, "isto gerou uma dialógica: que nenhum dos termos antagôni
cos foi vencido ou venceu totalmente (.. ), em vez disso, enquanto se
.
205
peitos de bicho fêmea no bucho, por que ela era a onça sagrada do
Macho-e-Fêmea (pág. 347). Ou ainda: "Modéstia à parte, não existe no
mundo religião mais completa do que a minha! ( .... ). A Igreja Cat6lica
Sertaneja é a única religião do mundo que é bastante 'judaica e cristã'
para levar ao Céu e, ao mesmo tempo, bastante 'moura' para nos
permitir, aqui logo, os maiores e melhores prazeres que podemos go
zar nesse mundo velho do meu Deus!" (pág. 453).
O que apreendo desse universo de ser e de não-ser é que o
pensamento se submete a um jogo constante de oposições, sem con
tudo produzir síntese. As duas faces antagônicas se complementam.
Dessa forma, apenas se pode conceber a objetividade como contra
ponto/complemento da subjetividade, a razão como complemento
da desrazão. O homem seria, então, simultaneamente, sapiens e de
mens. Esse é o motivo pelo qual o princípio dialógico supõe sempre
a necessidade de se pensar com e contra a contradição. A contradi
ção desvela o conhecido no conhecido, permite a emergência de
uma dimensão oculta mais rica, ao mesmo tempo que torna claros
os limites da lógica e a complexidade do real.
Morin e Suassuna se revelam instintivamente contraditórios,
são continuamente arrastados pelos imperativos da oposição. A racio
nalidade encontrada no Meus demônios e em A pedra do reino é tempe
rada e complexificada pela dúvida e pela contradição. Esses dois livros
mostram ao mesmo tempo horror e maravilhas, alegrias e tristezas de
dois caminhantes que se fizeram no próprio caminhar.
Caminhantes incansáveis de uma realidade humana que é semi
imaginária, Morin e Suassuna expressam uma antropologia comple
xa, situada nos limiares entre os mundos biológico, físico e cósmico.
Pela ótica dessa antropologia geral e complexa, haveremos de afirmar,
como Morin, que "a humanidade é reconhecida nas suas raízes e no
seu destino terreno. A 'conquista da natureza' é doravante denunciada
e a missão do 'pastor das nucleoproteínas' torna-se a de civilizar a
Terra" (pág. 174). Eis o fim da fratura entre natureza e cultura.
Essa mesma religação da natureza - cultura é assim expressa
por Suassuna: "Foi d as trepadas das Divindades solares entre si que
nasceram a Terra e a Água, mijada por eles. Depois, daí em diante, o
mais foi mais fácil: pingos de gala de Deuses ou pingos de Deusas
206
fêmeas que caíam no barro da Terra fazem nascer ou bichos ou
plantas. Se um Deus qualquer, depois daí, nasce um homem ou uma
mulher, conforme o caso. Foi, portanto, dessas trepadas das Divin
dades tapuias com as Onças, os Gaviões, os Bodes, as Cabras, os
Veados e outros bichos que nasceram os Tapuias castanhos, antepas
sados diretos dos Sertanejos e indiretos de todos os outros homens"
(pág. 476). A noção clara da dialógica cultura - natureza encontra-se
em outros trechos do livro, quando ele se define por meio de ele
mentos do mundo ricos de significado para o homem rural: "Eu,
bocado de terra parda e sertaneja amassada no sangue e no Sol" (pág.
455); "quisesse ou não quisesse, eu tinha nascido do sangue da Onça
Pard a, da Onça cega e sarnenta do mundo. Assim, não admirava que
meu destino e meu sangue estivessem ligados ao sangue e ao destino
dela" (pág. 445). Todos os seres, então, se originam ou partilham os
mesmos elementos, é essa a idéia ressaltada pela sutura do par natu
reza - cultura.
Afinal, há uma rede infinita de interrelações... Que mistério é
esse que nos cerca?... Há mistério em tudo!. .. Espanto é o sentimento
de Morin e Suassuna diante desse novelo indecifrável que é a vida.
"Estou cercado pelo mistério. Tenho o sentimento de caminhar nas
trevas, rodeado por galáxias de pirilampos que me escondem a obs
curidade da noite" (Morin, 1994, 227). Na sua Demanda novelosa do
reino do sertão, Suassuna nos fala também dos mistérios do mundo:
"Ora, naquele dia em que se iniciava sua Desventura, o rapaz do
cavalo branco ainda não reconhecera aquela moça meio ausente,
absorta e sonhosa, de cabelos castanhos e olhos verde-azuis, aquele
que veio a ser o grande amor de sua vida. Como se explica, pois, que
já trouxesse a imagem dela gravada em seu escudo? Respondo, fácil:
são coisas cifradas e enigmáticas" (pág. 17). Poderia até afirmar que
o mistério/enigma é o próprio centro e o nó dos escritos de Morin e
Suassuna, na med ida em que ambos reconhecem o aspecto da não
apreensão total do símbolo. É característica do símbolo, pois, algo
de fugidio, que não se deixa compreender, decifrar.
Uma outra questão que interconecta os livros A pedra do reino e
Meus demônios diz respeito à morte: ela aparece como temática recor
rente que estrutura os universos moriniano e suassuniano. Morin vi-
207
veu a morte da mãe aos 10 anos de idade, o que resultou numa relação
entrincheirada com o mundo. Da mesma forma, Suassuna ainda crian
ça teve o pai assassinado, o que marcou profundamente a sua vida. A
morte atingiu-os frontalmente. Foram irremediavelmente marcados
pela dor, confrontados com o horror e feridos pelo sofrimento da
perda irremediável. Não compreenderam a morte, apenas choraram
pelo instinto do não-mais. Sinto a cada frase ou parágrafo dos seus
escritos o "morrer de emoção". Eles foram e estão feridos de morte.
Sinto a dor no peito de cada um, suas lágrimas descendo. Os dois
foram tatuados a fogo, pela ausência e presença da morte.
Escreve Morin: "A morte atingira a minha mãe num vagão de
caminho de ferro de subúrbio, o que me esconderam, contando-me
que ela partira para uma cura em Vittel. O meu tio Jo tinha-me levado
pra casa de minha tia Corinne, e o meu pai deveria acompanhar a
minha mãe a Vittel. Não me preocupei. Detectei a morte dois dias
depois, a 28 de junho de 1 93 1, e, dois sapatos pretos, a que se sobrepu
nham uma das calças e um casaco pretos, os quais, por sua vez, se
sobrepunha a cara do meu pai, que eu olhava de baixo, sentados na
relva da praça Martin-Nadaud, que confina com o cemitério de Pere
Lachaisse e que era o jardim mais próximo d a casa d a minha tia, na
Rua Sorbier. Fui invadido por uma Hiroxima interior. A morte insta
lou-se imediatamente no meu ser sob a forma de dor, horror e segre
do. Escondi o que compreendera, o que sentia, e continuei a escondê
lo do meu pai, da minha tia, de todos os membros da minha família"
(págs. 1 3-14).
Por sua vez, Suassuna descreve assim o crime principal de A
pedra do reino: "( ...) a morte do velho barbado e profético aconteceu em
circunstâncias cruéis e absolutamente enigmáticas, indecifráveis: foi
ele encontrado morto, assassinado a golpes de faca e trancado, sozi
nho, dentro do aposento, único mas elevado, de uma edificação qua
drejada e alta que servia, ao mesmo tempo, de torre para a igreja e de
mirante para a casa-forte da fazenda" (pág. 289). E segue mais adiante:
"(...) naquele lugar inacessível, meu tio, cunhado e padrinho, dom
Pedro Sebastião, foi encontrado, ainda quente e sangrando, poucos
momento depois de ter sido assassinado. Tinha levado várias caceta
das na cabeça, estava degolado, com a garganta cortada, e terrivelmen-
208
te esfaqueado em todo o corpo, sendo que o ferimento que golfava
mais sangue era naturalmente o da garganta" (pág. 293).
Subjacente a A pedra do reino, há uma estética da crueldade.
Suassuna pinta com cores vermelho-sangue seu livro, de tal forma que
chego a pensar que o sertão não pode ser compreendido fora da mor
te. Quanto a Meus demônios, Morin coloca o tema da morte ao longo
do livro, ressaltando sua importância para a investigação antropológi
ca que empreendeu em todos os campos.
E aqui retorno à questão da contradição: vida e morte estão
imbricadas. Por isso, Suassuna afirma: "Nós não precisaremos nun
ca de inventar uma imagem falsa da vida para poder amá-la. Porque,
na dureza e, sob o Sol, nós aprendemos à força a amá-la, com o que
ela tem de ardente e glorioso, mas também com o que possui de
degradado, sangrento e sujo. O que é cruel e sujo também faz parte
da vida e terá de ser enfrentado com as armas do sangue, do riso e da
luta, com a valente tenacidade do homem diante do que a vida tem
de mais desordenado - o sofrimento, a humilhação e a morte" (pág.
527). Morin, por sua vez, no livro O homem e a morte, discute a temá
tica fundamental do homem a partir de um metapatamar do conhe
cimento que rejunta o que se convencionou chamar de histórico,
sociológico, antropológico e biológico, sem subsumir a importância
d as crenças mitológicas e religiosas. Em sua mente a frase inquietan
te de Heráclito: "Viver da morte, morrer da vida".
Seguindo a trilha das aproximações entre Morin e Suassuna,
sob a égide do paradigma da complexidade, ressalto agora a importân
cia da noção de aut0-0rganização. A organização pode ser produzida a
partir de uma certa desordem, em certas condições. A vida, então,
pode ser compreendida enquanto auto-ecoorganização. Trata-se de
entender a complexidade da condição humana, a natureza unidual e
inacabada do sapiens-demens e chamar "atenção particular à 'uniduali
dade do homem', quer dizer, à dupla natureza, biológica e cultural,
cerebral e física, que constitui a sua própria unidade" (Morin, s/d, 35).
A unidade do homem pode ser apreendida de forma contun
dente em Meus demônios e em A pedra do reino. O hovem vivido/cons
truído/concebido por Morin e Suassuna é um homem inteiro, total,
que soma vida acadêmica e vida cotidiana, estudo e redação, real e
209
imaginário, razão e emoção. O sertanejo de Suassuna torna-se, delibe
radamente, cidadão do mundo, representante das incertezas e angústi
as de todos os homens, e toma de assalto a França de Morin: "( ...) e
agindo em tudo o mais como se um acontecimento vital para mim,
para o sertão, para o Brasil, para o mundo e para Deus, não acabasse
de ter se passado ali" (pág. 107). Suassuna diz mais: "(... ) facção parti
cular do rebanho humano, isolada aqui, em nossa serra sertaneja, mas
igual a qualquer outra de qualquer pedaço do mundo, pois todos acor
davam aqui arremessados, neste nosso chapadão pedregoso, sem te
rem sido consultados se queriam vir ou não" (pág. 1 14). Por fim, a
preocupação do sertanejo é "cantar a dor universal" (pág. 444).
Num esforço sintético, álibi do dispositivo mítico, diria, por
fim, que a missão de Morin e de Suassuna, como todos nós, artesões
do conhecimento complexo, é de ligar/religar, rejuntar tudo o que
está separado, reconstruindo a cultura enquanto policultura. A cultu
ra, fruto dessa metamorfose, ajuda o espírito a universalizar-se, sem
perder a singularidade e o sentido do local/regional. Se desventuran
do pelos caminhos do si-mesmo, os homens encontrarão o outro em
si mesmo, tanto quanto se reconhecerão no outro.
Sem a pretensão de instaurar a ortodoxia e a verdade, Meus
demônios e A pedra do reino nos revelam a magia de um amplo conheci
mento construído sob os auspícios da dúvida e do questionamento,
nos quais literatura e ciência se misturam despudoradamente.
Nota
Bibliografia
210
1 Câmara Cascudo, um intelectual complexo
VÂNIA GICC0 1 I
212
junturais e com obras de natureza mais livre, é possível delinear o
ciclo de pensamento e das idéias que é, potencialmente, o diálogo
entre os referentes mítico-simbólicos e lógico-racionais, posto que "o
espírito humano produz um duplo pensamento, sendo um simbóli
co/mitológico/mágico e o outro racional/lógico/empírico" (Morin,
1 987, p. 133). O aprofundamento da leitura da obra cascudiana foi
mais adiante. Denunciou uma confortável convivência do pensamen
to duplo em um mesmo livro. Assim, tanto há uma presença do pen
samento mítico-simbólico nos livros mais acadêmicos/formais quan
to um pensamento lógico-racional naqueles elaborados por paixão,
mostrando que um pensamento está sempre de certo modo alimen
tando e retroalimentando o outro.
O desenredar da obra cascudiana permite a apreensão de uma
teia de entrecruzamentos que vão sendo capazes de fazer assimilar a sua
opinião, conhecer e partilhar o seu pensamento. Discurso apologético
que legou especialmente ao Rio Grande do Norte, neste breve século
XX, uma extensa produção intelectual, não obstante as condições sócio
culturais da geração do recado, praticando sua interlocução com outros
intelectuais sem sair de Natal, publicando e atuando fora da província,
inclusive noutros países. Trata-se de uma produção elaborada fora da
academia universitária e dos órgãos financiadores de pesquisa, não apri
sionada ao teórico e ao metodológico em voga, voltada para o estudo
das origens, sobrevivência e desenvolvimento da cultura tradicional do
Brasil.
Câmara Cascudo, apesar do porte da sua obra, continua pouco
discutido na própria Universidade que ajudou a criar e em que atuou
como pesquisador do Instituto de Antropologia e professor de Histó
ria da Filosofia, Etnografia e Direito Internacional, aposentando-se
em 1966.
Seus livros raramente são adotados nas bibliografias dos cursos
regulares de graduação e pós-graduação, caso semelhante ao que ocor
re com Jorge Amado na Universidade Federal da Bahia e Gilberto
Freire na Universidade Federal de Pernambuco, o que parece reafir
mar as coisas que o povo diz: santo de casa não faz milagres. O acervo
das bibliotecas localizadas em Natal possui poucas obras de Luís da
Câmara Cascudo, o que não ocorre noutros estados e países. A rede
213
escolar potiguar, em todos os níveis, pouco incentiva este tipo de leitura,
nem possui um programa de divulgação junto às políticas culturais.
A pesquisa bibliográfica, documental e os depoimentos orais
foram sua grande arma de pesquisa e era admirado nos anos vinte, por
já usar para registro dos dados as fichas de pesquisa e de aula, recurso
didático que se tornou comum posteriormente. Para viabilizar as in
formações para suas obras, fazia inquéritos diretos e cartas aos amigos,
onde o assunto principal são os livros que estava fazendo, conversa
com os editores, coleta de dados e o seu cotidiano no processo criati
vo. A estas cartas chamava sua correspondência precatória. Seu processo
de criação exigia, sempre, o silêncio da noite. Passava o dia pesquisan
do, recebendo visitas, fazendo pesquisa de campo, e, à noite, escrevendo.
Escrevia de uma única vez. Não fazia borrões nem remontava
textos. Criava embalando-se na rede. Qiando se levantava, estava com
o texto pronto e passava-o direto para a máquina de escrever e, em
seguida, para os editores. Não guardava consigo rascunhos nem origi
nais. Às vezes, quando os destinatários ou mensageiros perdiam seus
escritos, fazia outros textos, se estivesse inspirado. Caso contrário, de
sistia e denunciava a perda nas correspondências aos amigos. Cosmo
polita, mas não considerado um cientista social do ponto de vista
institucional. Sempre permaneceu à margem da ciência por registrar a
história cultural, principalmente através do imaginário - lendas, su
perstições, mitos, "causos" - baseando-se, sobremodo, nos depoimen
tos orais. Exerceu suas funções de historiador sem a obsessão pelo que
se convencionou chamar de rigor crítico das fontes históricas e do
estilo científico canônico. "Eu descobri a tempo que o perigo de me
filiar a uma corrente ou a um pesquisador é aceitar também os defei
tos dele. Não há escola melhor do que liberdade" (Cascudo, 1984).
Certamente, há muitas maneiras de ver as coisas. "Se muitos per
manecem ainda aferrolhados na ordem racional, outros abrem largas
janelas para a ordem do imaginário, sem por isso desprezarem a razão"
(Silveira, 1992, p. 83). Mesmo assim, o imaginário sempre foi descarta
do como não-científico, apesar de o homem não se definir exclusiva
mente pela técnica e pela razão, mas também pelo imaginário e pela
afetividade.
Pode-se considerar que a articulação deste pensamento duplo
2 14
percorre toda a obra cascudiana. Seus ensaios exibem uma narrativa
que junta/rejunta textos originados dos itinerários racionais e imagi
nais dando origem a uma obra híbrida, talvez mestiça, na acepção de
Michel Serres, na qual o universal, embora único, vente em todos os
sentidos. Ao lado de autores clássicos, citados muitas vezes no origi
nal, desfilam citações bíblicas, histórias recolhidas do povo ou das
lendas, cuja cred ibilidade é indiscutível para o autor.
A escritura cascudiana caracterizada comporta diversas temáti
cas. Assim, há um Cascudo historiador às voltas com os arquivos e a
pesquisa sistemática de fontes primárias - terra, gente, geografia, cir
cunstâncias, acontecimentos, governos. São fontes de referência docu
mental, de estilo narrativo/descritivo. Entre outros livros, a História
do Rio Grande do Norte faz uma abordagem excessivamente linear e
empiricista, resvalando muitas vezes na crônica ou na memorialística
e reservando pouco espaço ao esforço de explicação e compreensão
teóricas. Na História da República no Rio Grande do Norte, sem superar
inteiramente o marco empiricista, Cascudo faz um trabalho de re
constituição histórica que, além do mais, se destaca pelo seu valor
literário.
Há também um Cascudo das tradições que aborda as lendas,
os mitos, os costumes, destacando-se os personagens dos vaqueiros e
cantadores, seu grande tema inspirador e título do seu primeiro li
vro sobre folclore publicado em 1939. Outros estudos dão destaque
à novelística, parlendas, cantigas e brincadeiras infantis, folguedos,
bailes, visagens e assombrações, mímicas, danças, bebidas e alimen
tos, gestos, literatura oral, locuções tradicionais do Brasil e supersti
ções. Há um Cascudo etnógrafo que se atém aos fatores culturais,
aculturações, adequações, sincretismo religioso, catimbó, magia bran
ca. Esse seria, para alguns, um Cascudo antropólogo, estudioso do
homem e a sociedade. Há um Cascudo biógrafo que percorre o itine
rário dos políticos, líderes intelectuais e personagens da História,
sendo as biografias um rico documento sociológico.
Há um Cascudo memorialista que além das biografias escreve
autobiografias, genealogias e registra o cotidiano através de crônicas
publicadas em jornais. Esses artigos são, aliás, a essência dos seus li
vros. Contêm-se uns nos outros; além do mais, trazem como marca o
215
desempenho do intelectual atuando como escritor, jornalista e profes
sor convidado, para participar de solenidades.
Para fundamentar essa incursão múltipla no real, possuía uma
biblioteca de mais de quinze mil volumes para navegar entre seus
habitantes e no universo dos romances que lia e no seu Canto de muro,
romance que escreveu e traz os bichos como personagens, mostrando
seu conhecimento da história natural. Julgando seu próprio trabalho,
não classificou um livro como mais importante do que outro. Diz que
cada livro seu é uma informação. Naturalmente, uns são maiores, têm
um ambiente maior e uma pesquisa mais profunda, apesar de confi
denciar que Civiláaçã,o e cultura, História da alimentaçã,o do Brasil, His
tória dos nossos gestos e o Dicionário dofoldore brasileiro seriam os livros
que haveriam de perpetuá-lo. Sempre se denominava etnógrafo. "Faço
um trabalho etnográfico, coleto documentação. Folclorista são os per
sonagens que perpetuam ou vivem os costumes, mantêm as tradições"
(Cascudo, 1984). Não simpatizava com a palavra folclore, pelo seu
sentido limitado aos cantos e estórias populares. Por isso preferia ser
tido como um estudioso da cultura popular. "A cultura popular é o
complexo, representa a totalidade das atividades normais do povo, do
artesanato ao mito, da alimentação ao gesto" (Ivo, 1960). Para suprir
estas fragmentações, estudava o folclore inserido nos demais fenôme
nos da sociedade, não o reduzindo à valorização do pitoresco e à sua
manifestação local, mas sim retotalizando-o como um fragmento d a
cultura universal.
Nota
B ibliografia
BOHM, David & PEAT, David. Ciência, ordem e criatividade. Lisboa, Gradi
va, 1987.
CASCUDO, Luís da Câmara. Canto de muro. 3. ed. Rio de Janeiro, José
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2 16
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Itatiaia / São Paulo, Ed. da USP, 1983. 2 v.
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Ed. do Vai, 1 965 .
_____ . Histón"a do Rio Grande do Norte. 2. ed. Rio de Janeiro, Achiamé
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Paulo, Ed. da USP, 1 9 84.
CULLER, Jonathan. As idéias de Barthes. São Paulo, Cultrix, USP, 19 88.
IVO, Ledo. Luís da Cdmara Casado; ele sabe o que sabe o povo ... Manchete,
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Fronteira, 1993.
SILVEIRA, Nise da. O m11ndo das imagms. São Paulo, Ática, 1992.
217
1 Utopia, democracia e complex idade
MARCOS ROLI M 1 I
220
ol6gica e onde uma situação real de guerra civil, tradicional como na
Bósnia-Herzegovina (Ensensberger, H. M., 1995), como em qualquer
grande cidade do Ocidente, vai se incorporando ao cotidiano de
populações inteiras. Chegamos ao final do século, então, com mais
esta contradição básica: o ideal democrático - cada vez mais aceito
- pressupõe o regramento dos conflitos e das disputas de interesse;
entretanto, o que estamos assistindo é um processo histórico que
combina, em doses cada vez mais imponderáveis, civilização e bar
bárie; um processo de disseminação dos conflitos até a situação-limi
te do extermínio de etnias rivais e da proposição autônoma e gratui
ta da violência que, desta forma, nos é ofertada em seu estado "puro".
Acredito que, para decompor esta e outras contradições e para
que seja possível voltar ao exame daquele mal-estar, já referido, seja ne
cessário descrever algumas características da sociabilidade contemporâ
nea para, então, reinquirir o ideal democrático e, se possível, atualizá-lo.
22 1
imenso desconforto de serem precisamente opiniões atravessadas pela
incerteza, pela dúvida; que não há nada de científico nas teorias polí
ticas, e que as próprias teorias científicas extraem seu estatuto de cien
tíficidade não no fato de serem "verdadeiras'', mas, como sustentou
Popper, do fato de permitirem que seu erro seja demonstrado.
Falar da falta de credibilid ade do imaginário utópico tradici
onal significa constatar que a sociabilidade real já não é permeável à
projeção de qualquer perspectiva utópica que ofereça a "redenção".
Como diria Morin, chegamos, finalmente, à época em que já não há
"salvação" e onde se compreende que a idéia de "salvação" leva-nos à
perdição; que não existe "luta final" nem promessa de uma socieda
de futura que possa redimir todos os males ou fazer esquecer a dor
dos que aqui estão. Pode-se, então, repetir com o filósofo francês que
este é o momento em que abdicamos da idéia do "melhor dos mun
dos", mas não da idéia de "um mundo melhor".
Seja como for, estamos diante de uma modificação fundamen
tal, sobre a qual deveríamos refletir todos e, especialmente, a esquerda
contemporânea, ainda hoje tributária da mais generosa tradição utó
pica, a tradição comunista. Não há como desconhecer que o destino
construído em torno dos ideais comunistas contribuiu em muito para
que as perspectivas utópicas tradicionais fossem varridas da História.
Encontramo-nos, então, diante de um abismo e uma parte da esquer
da ainda reluta em encará-lo, talvez com o justificado receio de que, ao
fazê-lo, seja o abismo que a encare. Os termos desta época "pós-utópi
ca" comportam, evidentemente, imensos riscos.
Entre todos, talvez o mais preocupante seja o risco da apatia,
da adaptação, ou, se preferirem, do conformismo. De outra parte,
somos, agora, mais livres para pensar o futuro como resultado de
nossas ações, e, portanto, somos mais importantes para a luta contra
as injustiças que desgraçam este final de século. Nesta possibilid ade
reside uma das evasões possíveis de nossa época; uma evasão capaz
de preencher nossas vidas de sentido.
A privatização da sociabilidade
222
ficação histórica, para a qual eu gostaria de chamar a atenção: há
em curso um fenômeno que, ao que tudo indica, deve se rad icali
zar ainda mais, responsável pela imersão da grande maioria das
pessoas na esfera privada da existência.
A esfera pública, entendida como esta construção artificial -
porque fruto do artificio humano -, na qual cada um de nós pode ser
visto e ouvido, e dentro da qual podemos ser influenciados pela opi
nião de outrem e influenciar outras pessoas com nossas próprias opi
niões, parece se reduzir em escala crescente em todo o mundo.
Rigorosamente, a maioria das pessoas mantém com a esfera pú
blica uma relação esporádica, excepcional. Esta mesma esfera passa a ser
"colonizada" por profissionais da política, "funcionários do interesse
público". Mais grave do que esta tendência, pode-se constatar, mesmo
empiricamente, que o envolvimento da cidadania com a esfera pública
dá-se, normalmente, a partir da contraposição de interesses particulares.
Isto ocorre de tal forma que penso ser possível afirmar que o debate das
questões que, por definição, dizem respeito a todos e que, portanto,
deve ser travado a partir da pretensão de alcançar o interesse público,
constitui a preocupação de uma esmagadora minoria de cidadãos.
Trata-se de uma importante característica política e cultural
que contrasta, enormemente, com a tradição de outras épocas e,
particularmente, com as experiências fundadoras da antigüidade
clássica. Mais precisamente, se tomarmos a experiência ateniense
dos séculos V e IV a.C. - que, para nós, expressa o começo -,
veremos o quanto tal fenômeno da "privatização da sociabilidade"
corresponde a uma inovação histórica.
Como se sabe, para os gregos antigos, apenas uma vida dedica
da à Pólis poderia ser condizente com os objetivos de uma vida digna.
Levar uma vida privada significava, literalmente, privar-se do essencial
à dignidade. Não por outra razão, cabia aos escravos e às mulheres a
imersão na vida privada, concebida como esfera da necessidade e, aos
homens livres, o acesso à esfera pública, espaço, por definição, da
liberdade. Hannah Arendt demonstra a radicalidade daqueles pressu
postos, a partir da própria pretensão à imortalidade que caracteriza o
mundo grego. A ninguém seria legítimo supor que uma vida pudesse
obter qualquer sentido em si mesma; pelo contrário, para os antigos a
223
vida só poderia ter sentido se alcançasse, em suas obras ou feitos, a
lembrança e a admiração das gerações vindouras. Tão amplamente
aceita era esta concepção, que mesmo os escravos - impedidos de
participar da Pólis - encontraram uma forma de lutar por sua memó
ria empenhando-se em lutas concretas pelo direito a um epitáfio (!). É
também Hannah Arendt quem salienta que nada pode expressar com
tanta amplitude o contraste histórico com o mundo contemporâneo
do que os sentidos comumente associados, numa e em outra época,
com a palavra felicidade. Por certo, independentemente das variações
possíveis, os modernos dificilmente deixariam de descrever o sentido
desta expressão para si próprios sem elencar objetivos e projetos situa
dos na esfera privada da existência: já para os antigos, a idéia de felici
dade seria inconcebível se apartada da idéia de "felicidade pública".
Em outras palavras: para nós, tornou-se bastante natural que pas
sássemos a conceber a idéia de felicidade sem que ela seja sequer infor
mada pelo bem público. Assumimos, então, esta estranha idéia que nos
permite vislumbrar nossa própria felicidade imersos na infelicidade geral.
A privatização da sociabilidade, reforçada nesta última década
pela extraordinária revolução tecnológica e, particularmente, pelos avan
ços da comunicação instantânea, traz como corolário natural uma
fragmentação jamais observada entre os humanos. A perspectiva de
ações conjuntas, então, torna-se muito mais complexa, e as possibili
dades de dominação social bastante aterradoras. Ao mesmo tempo e
paradoxalmente, as mesmas mudanças tecnológicas que repercutem
profundamente na sociabilidade contemporânea introduzem possi
bilidades inéditas de conteúdo emancipatório e aproximam conquista
de condições especiais para a radicalização da perspectiva democrática.
A condição democrática
224
um traço mais marcante e profundo do que, normalmente, estaríamos
dispostos a reconhecer. Quando ouvimos as pessoas do povo afirmar
que "não gostam de política", ou quando observamos a cristalização
de um conjunto de noções antipolíticas no senso comum, acredito
que estamos d iante da expressão de tendências que estão a indicar
fenômenos bem mais amplos do que a simples desinformação.
O que se precisa afirmar é que as sociedades capitalistas moder
nas criaram mecanismos de reprodução sistêmica, desde os valores
que legitimam uma sociedade marcadamente competitiva até a funci
onalidade das regras de mercado, que é a pr6pria instituição democrá
tica que se encontra ameaçada. Para que se configure como tal deve ser
o resultado de um processo de afirmação da autonomia, vale dizer: da
afirmação da vontade auto-reguladora dos cidadãos que fazem suas
próprias leis e sabem que todas elas são questionáveis. Pelo contrário,
o que podemos presenciar é a afirmação de sociedades marcadamente
burocratizadas com instituições políticas rigorosamente fora de con
trole social, o que, por seu turno, é fonte propositiva da violência.
Nestes limites, a democracia se esteriliza e, já em larga medida,
transmuda-se em um processo ritual onde as escolhas efetivas são cada
vez mais restritas e as demais absolutamente aparentes.
Para que seja possível afirmar a condição democrática é preciso,
primeiramente, perceber que a democracia é, essencialmente, um con
junto de procedimentos - os mais variados, bem entendido - volta
dos a garantir, idealmente, a expressão da vontade geral. Tais procedi
mentos não se resumem, nem podem ser confundidos, com a aferição
das posições majoritárias em torno de cada questão em disputa. Antes
d isto, a condição democrática exige que o processo de formação de
opinião obedeça a um conjunto de critérios mínimos que permitam,
de fato, o conhecimento das posições; vale dizer, que insinuem, verda
deiramente, a possibilidade de um processo argumentativo.
Satisfeitas estas exigências mínimas, a condição democrática deve
zelar pelos direitos das eventuais minorias, sob pena de sermos obriga
dos a chamar de "democrática" - para lembrar o célebre exemplo de
Kant - uma "República dos Demônios".
Para que possamos afirmar em sociedade a transcendência; ou,
se preferirem, se quisermos renovar o ideal utópico neste final de
225
século, acredito que faremos o bastante se pensássemos o futuro a
partir de regramentos morais que nos pareçam desejáveis e que tomás
semos estes mesmos regramentos a serem universalizados, como nos
sos próprios valores, reguladores da práxis que nos desafia no presen
te. Esta me parece ser inclusive a maneira de romper com determinada
tradição presente na militância comunista, que tomava sua utopia
como a flecha de ouro que Cupido lançou e que atravessou o coração
de Apolo, apaixonando-o e, também, como a flecha com ponta de
chumbo que atingiu Dafne para fazê-la recusar qualquer amor. Não
há por que reproduzirmos aqueles seres que olhavam para o futuro
com os olhos de Apolo, mas que só podiam encarar o presente como
Dafne, recusando-o.
O futuro que desej amos o faremos agora, por nossa ação con
creta, ou não o faremos. Na tentativa de ordenar nossa ação e refe
renciar a elaboração daqueles regramentos morais, penso que deve
mos tomar como ponto de partida a plataforma atual dos direitos
humanos, como expressão de que há de mais concreto e subversivo
em termos de uma utopia potente.
Com relação à política contemporânea e tendo presente a ne
cessidade já referida de subordiná-la a uma concepção ética, acredito
que devamos concebê-la, fundamentalmente, como a esfera específi
ca onde se disputam opiniões: disputa esta que deve, finalmente,
subordinar os interesses em jogo.
Compete à política introduzir, entre as múltiplas peculiarida
des, uma perspectiva de universalização que ultrapasse os antagonis
mos e supere a dispersão característica da sociabilidade contemporâ
nea. Compete à política afirmar a sociedade naquilo que ela deve ser
para além de suas fraturas. Ainda que tenhamos plena consciência de que
a política tem se prestado à articulação assimétrica de interesses sociais,
devemos pensá-la de outra forma sob pena de capitularmos a própria
lógica burocrática que a envolve. Para dar conta das limitações da política
e, ao mesmo tempo, de seu caráter fascinante, seria prudente assinalar que
toda� as nossas opções, de poder ou resistência, comportam riscos e que
dependerão, sempre, de um processo de justificação moral necessaria
mente controverso. Há, assim, em política, um "elemento decisionista
ineliminável" (Torres, J. C. B. Identidade e representação).
226
Aliás, é precisamente esta condição que permite à política afir
mar a liberdade dos humanos. Por conta desta razão, a democracia é
sempre preferível, ainda que com nosso desafeto frente à qualquer
ditadura. A rigor, não há mesmo como imaginar uma ditadura de
nosso predileto, visto que tal hipótese - ao contrário da primeira -
haveria de combinar nossa própria predileção com a ditadura. Cada
tipo de governo, diria Montesquieu, tem o seu princípio.
Assim, se uma monarquia funciona tomando como básica a
noção de honra, se uma República sustenta-se na noção de virtude e o
despotismo exige o temor, poderíamos acrescentar, com Hannah Aren
d t, que o totalitarismo exige a noção de "verdade". A democracia é,
entre todos os regimes, aquele que, de uma forma mais acabada, afas
ta-se da verdade. Suas razões serão, sempre, aquelas a que se chegou
por conta de um debate; seus motivos os que parecerem mais justos.
Esta, pelo menos, é sua aposta que funciona como uma idéia regulado
ra. Diante da grandiosidade desta aposta, devemos renovar nossas con
vicções democráticas, afirmando, antes de tudo, a tolerância que, tal
vez, seja apenas a sabedoria que supera o temível amor à verdade.
Nota
227
1 A� da pdtica e a pcitica da �1
SERGIO GONZÁLEZ MOENA2 l
230
enfrenta esta dimensão da atividade humana, é necessário uma re
flexão séria e profunda sobre a origem e o sentido da política e,
desta vez, em bases mais novas e complexas.
O desafio do político
23 1
lis. Em outras palavras, e para empregar o termo de Norbert Lech
ner, era política a forma "natural" que adotava o conflito social
acerca do desenvolvimento da sociedade e tinha seu âmbito bem
definido: o estado, o parlamento, os partidos. No que diz respeito à
América Latina, três fatores, muito diferentes entre si, convergem
para questionar profundamente a idéia que tínhamos desta dimen
são humana.
a) Em primeiro lugar, o que Norbert Lechner assinala como o
processo de despolitização que impulsionou os regimes militares no
Cone Sul do continente e a ofensiva neoconservadora contra a políti
ca como criação deliberada do futuro da humanidade. Há de se real
çar que este processo de despolitização logrou impregnar ideologica
mente o resto do continente, como o prova a visão que se tem do
Chile na atualidade, a mesma idéia que fazem de Fujimori.
b) Este mesmo autor assinala que, simultaneamente, se levou a
cabo um processo de politização da vida cotidiana, que desestrutura
por todos os lados a institucionalidade política e seus atores tradicionais.
c) O terceiro fator é o que mencionamos mais acima e diz res
peito a esta tomada de consciência da convergência entre política e
existencia, seja esta pessoal ou coletiva.
Tudo isto configura uma nova realidade para a política, em
especial em nosso continente. Esta realidade emergente poderíamos
caracterizar da seguinte maneira: "A luta aberta sobre os limites do
político e do não-político". Para Lechner esta luta tem uma importân
cia fundamental, porquanto dela depende o que será a sociedade futu
ra e o que significará mais adiante "fazer política". A política, então,
tem se complexificado pela penetração em sua esfera de dimensões
que, até agora, estavam ausentes dela. Esta complexificação nos con
duz a um problema de magnitude infinita e que vivemos dia após dia:
o que para uns são temas políticos, para outros são questões éticas; e o
que estes percebem como assuntos sociais aqueles os vivem como pro
blema pessoal.
Na atualidade, vive-se num ambiente no qual há que se abando
nar a idéia tradicional que se tem da política como inclinada e redutora.
Abandonar a antiga oposição entre o ético e o político, o individual e o
coletivo, o subjetivo e o objetivo, o útil e o inútil, o bem e o mal, o
232
público e o privado. Hoje nenhum destes limites aparece tão claro nem
tão definitivo para fundar sobre eles a nossa vida cotidiana. Pelo contrá
rio, trata-se de integrar cada uma dessas dimensões em uma nova idéia
de política que as distinga, mas que, ao mesmo tempo, as articule a fim
de dotá-las outra vez de sentido e pertinência. Necessitamos formular
idéias para um pensamento que considere o curto, o médio e o largo
prazos.
A meu juízo, a seguinte anedota, já relatada em uma de minhas
publicações, reflete o atual estado de coisas em que se debate a políti
ca. O conto é o seguinte: uma trabalhadora social do ex-Vicariato da
Solidariedade (órgão da Igreja Católica que teve uma participação fun
damental na luta pela defesa e promoção dos direitos humanos duran
te o regime militar) repreendia uma mulher habitante de algum dos
bairros de Santiago pela estupidez que havia cometido ao endividar-se
na compra de um aparelho de televisão em cores, já que vivia em uma
situação de extrema necessidade. A resposta da pobladora foi a seguin
te: "Sabe, senhorita, esta são as únicas cores que vejo em minha vida".
Creio que esta anedota reflete o passo que devemos dar se qui
sermos assumir a complexidade da política, se queremos passar da
pura política à antropolítica ou política do homem, como chama Edgar
Morin. Nela estão refletidos os problemas da política, da ética, da
autonomia, da democracia. O desafio já não implica saber "como vive
a gente" e sim entender "como vive a gente o que vive", como disse
acertadamente Francisco Jiménez.
O mal-estar de viver
233
alização corresponde ao surgimento de problemas comuns e especí
ficos para toda a humanidade. Este constitui um bom exemplo d a
fragmentação das idéias predominantes neste momento e essa é uma
das características centrais de nossa civilização.
Com efeito, esta revela "problemas de civilização" justamente onde
se esperavam realizações ou projetos para os homens. Da mesma forma
nosso modo de vida converte problemas julgados periféricos em proble
mas centrais, problemas considerados privados ou existenciais em políticos.
Eis alguns deles:
a) O individualismo: não se trata de subestimar de nenhuma
maneira suas virtudes, mas há que se dizer que este tem como a outra
face da medalha a degradação das antigas solidariedades e a atomiza
ção das pessoas. É o que já escrevíamos, em outro lugar, no sentido de
que aquilo que chamamos "desenvolvimento" arrasa e destrói as soci
edades que não estão baseadas na lógica do homo economicus, e que
consiste na imposição de um tipo de racionalidade que não reconhece
outra validade que não a sua própria: o cálculo meio-fim. O capitalis
mo desconfia do gratuito e o reprime. Desta maneira, entendemos
que estas sociedades que baseiam sua existência sobre outras lógicas
entram em profundas crises: desestruturações dos sistemas culturais,
sociais, familiares, desemprego, empobrecimento etc. Aqui parece que
o Estado assume, cada vez mais, as funções de solidariedade, mas,
quando o faz, o faz ao estilo do "monstro filantrópico" de Octavio
Paz, isto é, de maneira impessoal e fria, anônima e tardia.
Em face desta situação, existe uma tendência a se refugiar na
família, na concha familiar, mas, como assinalam numerosos estudos,
ali também há crises (a fragilidade do matrimônio e a errância dos
amores, particularmente). Assim, se acrescentam e se agravam as soli
dões em todas as classes da sociedade, sendo pior onde há pobreza.
b) O problema da tecnificação: é a invasão cada vez mais ampla
de setores da vida cotidiana, que Morin denomina "a lógica da máqui
na artificial". Esta introduz na sociedade a organização mecânica, es
pecializada, cronometrada, substitui a comunicação pessoa a pessoa
pela relação anônima. A vida social - e é uma tendência que continua
crescendo - tende a se tornar uma gigantesca máquina social.
c) A monetarização ou a necessidade de sistemas crescentes de di-
234
nheiro para sobreviver, ao mesmo tempo que lhe rouba uma parte do
presente, do serviço gratuito, diminui a amizade e a fraternidade. É o que
se tem passado com a maioria das etnias indígenas quando as induzimos,
de um jeito ou de outro, a se modernizar. No que lhes concerne, nossa
modernização só tem servido para destruir as bases sobre as quais estavam
assentadas e que se articulavam em tomo de lógicas não-mercantis.
d) O problema do desenvolvimento no planeta não é mais do
que a corrida pelo crescimento, como a denomina Morin, pagando-se
o preço das degradações na qualidade de vida. Ademais, como j á se
tem dito, do sacrifício de todo aquele que não obedece à lógica do
homo economicus. O que, até o momento, temos considerado como
desenvolvimento era o que nos haviam dito que era o desenvolvimen
to. Tratava-se da visão unilateral e atrativa proposta pelos países mais
avançados e tendentes a perpetuar o status quo imperante. No fundo,
dentro desta visão de desenvolvimento, os indivíduos e os grupos são
excluídos "de seus sistemas de representação do mundo e são obriga
dos a adotar um sistema que os desvaloriza, que tomam frouxos os
laços que os uniam a outros homens, às coisas, aos animais, à natureza".
Assim mesmo, o desenvolvimento surgiu e favoreceu a forma
ção de enormes maquinarias tecnoburocráticas, como chama Morin,
que, por um lado, dominam e esmagam todos os problemas singula
res e concretos; e, por outro lado, produzem irresponsabilidade. To
memos um problema mais específico, como o da delinqüência juve
nil, que, paulatinamente, tem se convertido em uma dor de cabeça
para as grandes cidades. Com efeito, diariamente, podemos conhe
cer, através da imprensa e dos conflitos, violações de toda a ordem
cometidas por gangues de jovens, fatos que contribuem de maneira
significativa para acrescentar a sensação de insegurança que isso pro
voca nas grandes cidades latino-americanas.
As tragédias, diz Edgar Morin, em que vive a adolescência dos
bairros marginais ou periféricos não constituem um mal local ou pe
riférico, mas a expressão local e periférica de um mal geral, mais difu
so. Segundo o autor, o desenvolvimento urbano não somente tem
acrescentado às possibilidades individuais as liberdades e os entreteni
mentos (culturais, desportivos etc.). Também, e correlativamente, tem
desencadeado processos de ruptura e perda das antigas solidariedades
235
e permitido a emergência de novas formas de escravidão produzidas
pelas obrigações organizacionais da vida cotidiana.
A cidade, unidade orgânica para os cidadãos, tornou-se a gran
de urbe, meio de vida para os urbanos, mas converte-se, por meio de
um processo diabólico na aglomeração, no conjunto disforme para a
população que provoca o anonimato, a atomização, a sensação de so
. lidão, indiferença e desamparo tão conhecida por quem vive nela.
Neste sentido, o que poderíamos chamar de "mal dos tugúrios"3
e da cidade são traduções topográficas simplificadoras dos problemas
de uma cultura que se converteu, exclusivamente, em urbana e suburbana.
Mas este problema não afeta somente os setores economica
mente marginais das cidades; pelo contrário, podemos constatar hoje
em dia, como também nos setores socialmente altos, que começaram a
se proliferar os grupos de jovens dedicados a uma violência, tanto ou
mais gratuita, e que, aparentemente, a única razão que a fundamenta
é a violência pela violência ou a delinqüência pela delinqüência.
A conclusão que se impõe é de que ambos os casos são a expres
são de um mal-estar do viver. O PIB, a taxa de crescimento, é incapaz
de dar conta dos processos de degradação de nossa civilização. Então,
o problema político ao qual estamos enfrentando já não pode ser mais
o problema de um desenvolvimento sustentável, mas, como vem ex
pondo insistentemente Edgar Morin, o de uma civilização sustentável.
O anonimato, a atomização, a mercantilização, a perda de valo
res e a degradação moral e material (corrupção), a violência, o mal
estar progridem de maneira interdependente. A perda de responsabili
dade (no seio da grande máquina tecnoburocrática compartimentada
e especializada) e a perda da solidariedade (pela atomização dos indi
víduos e a obsessão pelo dinheiro) conduzem à degradação moral e,
portanto, "não há sentido moral sem sentido de responsabilidade e de
solidariedade".
236
enfrentamento Norte-Sul que pode ter conseqüências incalculáveis, a
fome que avança pelo planeta, o esgotamento das fontes energéticas,
da água, da perda das certezas e seguranças, que nos faziam avançar
rumo ao futuro, confirmam que a crise tem sido uma constante de
nossa época. Assim mesmo, a política tem sido pródiga em crises,
tanto no plano local quanto no plano global, tanto no plano particu
lar quanto no universal.
O uso e o abuso do conceito "crise" tem feito com que este perca
uma boa parte de sua significaçào. É comum em nossos dias falar de crise
de casais, do progresso, dos valores, da civilização, adolescência, econo
mia.
Em face desta situação, o melhor então é re-significar o termo
em questão.
Para Noberto Bobbio e Gianfranco Pasquino, a crise designa um
momento de ruptura no funcionamento de um sistema, uma mudança
- acrescentam - negativa ou positiva, uma volta surpreendente, às vezes
violenta e não esperada, ao modelo normal segundo o qual se desenvol
vem as interações no interior do sistema em análise. Para estes autores,
posto que cada crise é um momento de ruptura imprevista no funciona
mento normal de um sistema, necessitamos de respostas rápidas que
façam com que o sistema volte ao seu modelo precedente de funciona
mento ou institucionalize um novo modelo. Tudo isto é certo, mas
insuficiente. Com efeito, Bobbio e Pasquino partem da idéia de que a
crise é um fenômeno temporal ou passageiro em um sistema, por exem
plo, social. O que está implícito em suas afirmações é que os sistemas
tendem a voltar à normalidade, o que pode ser certo para os casos em
que se trate de "sistemas triviais", e aqui se encontra justamente a impor
tância de trabalhar a partir da noção de sistemas complexos e de crise.
Com efeito, toda a estrutura teórica sugerida por nossos autores
vem abaixo desde o momento em que aceitamos a idéia capital de que
as sociedades humanas são, em essência e natureza, "sociedades crísi
cas", que se alimentam da crise e necessitam. Neste momento, a política
tem de integrar, como uma de suas unidades ativas, a crise e o manejo
desta. Detalhemos mais esse tema. Para Morin, a crise se manifesta não
somente como uma fratura em um continuum, como fratura em um
sistema aparentemente estável. A crise se manifesta também como um
237
aumento das casualidades e, em conseqüência, das incertezas. Graças à
crise, os desvios se transformam em tendências, as complementaridades
em antagonismos, aceleram-se os processos desestruturadores e desinte
gradores. A crise permite uma avalancha de processos descontrolados
com tendências a auto-amplificar-se ou a se chocar violentamente com
outros processos antagônicos também descontrolados. Em muitas ocasi
ões, vivemos literalmente abaixo de um vulcão sem nos darmos conta,
bastando o efeito das causas exógenas para que se despertem causas
endógenas latenes, ignoradas até o momento, para que se desencadeie a
cnse.
Tudo isso leva a pensar que estamos em um devir no qual a
crise aparece, não apenas como um acidente de nossas sociedades,
mas como sua própria maneira de ser.
É o que acontece, segundo nosso autor, quando nos aproxima
mos do tema do desenvolvimento. Com efeito, para se entender o que
tem acontecido em nossos países, devem-se associar as idéias de "crise"
e "desenvolvimento". A crise tem se convertido em um modo de ser
de nossas sociedades, e o desenvolvimento contém um caráter de crise
que não se pode negar. O desenvolvimento, em seu movimento trans
formador e acelerado, acarreta destruições e desorganizações de tipos
econômicos, sociais, culturais, mentais. A esse respeito, basta recordar
o cenário que apresentava a América Latina há três ou quatro décadas
atrás, quando nossas sociedades eram, em sua maioria, sociedades ru
rais. A razão é muito simples: o desenvolvimento não se efetua sobre
uma base civilizacional ou cultural estável. Neste sentido, é insepará
vel da destruição e transformação desta mesma base. Agora, esse pro
cesso de desorganização e reorganização é de caráter crísico.
Em conjunto com Morin, podemos dizer que, no que concerne
às nossas sociedades, a crise da civilização, a crise cultural, a crise dos
valores, da família, do Estado, a crise da vida urbana, da vida rural são
vários os aspectos do ser, do devir crísico, de nossas sociedades, as
quais aparecem ameaçadas pela crise, mas também vivem desta.
Por outro lado, nunca é demais insistir na ambigüidade que
contém o conceito de "progresso". Sobre este tópico se tem escrito
muito sob os mais variados pontos de vista. Limitemo-nos somente
a dizer o seguinte: é necessário complexificar a noção de progresso e
238
considerá-lo como incerto por natureza. Por isso, da mesma maneira
que o desenvolvimento produz subdesenvolvimento, o progresso pode
gerar retrocessos ou regressões.
Dissemos, anteriormente, que este mundo está em crise e que a
crise implica uma progressão das incertezas. Podemos constatar que as
incertezas têm progredido por toda parte. E mais, tudo se faz ou se
vive em um curto tempo e nem sequer alcançamos o carpe diem , tão
apreciado pelos romanos. Vivemos o dia e o vivemos mal. Vivemos
em um mundo onde, simultaneamente, estão em marcha processos de
evolução e revolução, de regressão e de crise, de unidade e divisão, de
vida e de morte, de proibição e de transgressão. Nenhum deles segue
só. Um só exemplo basta para ilustrar isso. Não é suficiente afirmar a
si próprio, é necessário delimitar - como disse Lechner - o eu e o
outro. A política está em crise porque a sociedade é crísica, e se faz
necessário incorporar de uma vez por todas a crise e sua acompanhan
te, a incerteza, como um dos componentes essenciais do fenômeno
político. Não podemos continuar desprovindo-lhe o corpo. Neste senti
do, a política, como um puro cálculo formal meio-fim e como ação
instrumental, tem revelado seus limites. Faz-se necessário, então, con
ceitos, limites, utopias, como referentes para pensar a sociedade e atu
ar sobre ela.
A política há de integrar também a dimensão mítica que esta
possui, visto que o mito organiza uma cosmovisão e dá sentido à vida
social. Só assim poderemos integrar as incertezas, integrá-las, mas não
eliminá-las. "Ama a incerteza", dizia Adam Pzeworski, "e serás demo
crático." O pensamento complexo é um enorme esforço para saber
ver, saber pensar, saber pensar o seu pensamento, saber atuar. Este
esforço deve também trasladar-se hoje para um campo político e para
a reflexão sobre a política. Neste sentido, disse Lechner que uma das
dimensões da política é a de ser um esforço contínuo para superar a
descontinuidade (e a morte parecerá ser a maior descontinuidade).
Pela frente temos a tarefa que Edgar Morin resume esplendidamente:
"A luta simultânea contra a morte da espécie humana e pelo nasci
mento da humanidade".
239
Notas
242
sições sociais ... As infrações são punid as com multas, privação de
direitos, prisão. A motivação necessária para seu respeito é alimenta
da pelo receio. Em certos países, o medo de represálias pode até
conduzir à morte. A complexidade do "sistema" faz com que apare
ça despersonalizado, monstro frio e distante, máquina que esmaga
as individualidades e as liberdades. Daí as trapaças, corrupções que
nascem de funcionamentos e práticas mal controladas.
Sem motivação, não há uma ação coletiva eficaz. Hoje em dia, o
temor, o dinheiro, o poder, o prazer, as honras são mais importantes. O
medo e o prazer são os mais antigos motores do mundo. Punição e
recompensa, os princípios, as regras de ouro do adestramento. Mas exis
tem outras formas de motivação fundadas sobre as combinações de
meios.
Assim, para favorecer o tratamento do lixo doméstico, pode-se
pressionar, informar, recompensar ou criar vantagens fiscais. Os estu
dos de simulação e a prática da pesquisa de campo mostram que a
coação em si não é o suficiente, e muito menos a informação e a
educação. A eficácia máxima é conseguida por uma combinação de
meios que permitem criar, ampliar e trocar informação e, por campa
nhas de educação sobre os usos de diferentes vias de reciclagem, prê
mios pela coleta. Este tipo de abordagem pode ser aplicado aos inúme
ros campos, nos quais inteligência e disciplina coletivas são necessári
as: transportes, compartilhando seu veículo com outros usuários; luta
contra o barulho ou utilização racional de energia.
Tornemos o exemplo do cruzamento rodoviário. Podem-se obri
gar de maneira rigorosa os automobilistas a respeitar os sinais e perse
guir os contraventores. A participação que se requer de cada um é limi
tada: obedecer ao sinal luminoso. Mas é igualmente possível organizar
os cruzamentos em rótula. Uma forma de inteligência coletiva pode
assim contribuir para a regulação do tráfego. É preciso obviamente que
os engenheiros possam prever os ângulos de vista livre, uma sinalização
clara, regras simples. Para os automobilistas, convém observar todas as
vias de acesso, avaliar a velocidade dos automóveis suscetíveis de se enga
jar na zona prioritária, de antecipar as reações daqueles que esperam no
"Pare", de controlar sua velocidade ao redor da rótula. O respeito às
regras simples dos vários agentes interessados conduz à emergência de
243
comportamentos de conjunto que melhoram a segurança de cada um.
Uma cooperação eficaz entre as pessoas pode nascer da falta de
uma autoridade central que os leve a cooperar. Para isto, é preciso que
elas privilegiem seu interesse pessoal dentro de um contexto de reci
procidade, de relações simbi6ticas que, então, pode vir a se estabelecer.
Isto é o que foi demonstrado através de simulação por computador
por Robert Axelrod, especialista em teoria dos jogos. Esse tipo de coo
peração não se pode desenvolver apenas a partir de indivíduos isola
dos, mas somente a partir de pequenos grupos que "fundamentam sua
cooperação sobre a reciprocidade, mesmo se essas trocas apresentem
,,
uma fraca proporção em suas interações .
244
o "olé" dos estádios; isqueiros acesos em concertos, correntes humanas
dos ecologistas.
Outra forma de retroação de caráter mais sutil: as sondagens de
opinião veiculadas pela imprensa. Qiase sempre eles representam um
espelho, um mecanismo de regulação que conduz a reajustamentos de
posição, a readaptações e reconversões. Sua influência indireta é consi
derável nas democracias em que a oposição e a maioria estão empatadas
em 50% e onde as eleições se decidem por alguns por centos. O mercado
representa igualmente uma forma de retroação societal, em tempo real.
O número incalculável de decisões de compradores e de vendedores, a
publicidade, os cochichos (boca de orelha), o boicote eventual de produ
tos que atuam como reguladores de efeitos dificilmente previsíveis, vis
to que as ações são caóticas, simultâneas e freqüentemente irracionais.
A interatividade eletrônica nascente ampliará o papel dos anéis
de retroação societal nos anos vindouros. Antes, o telefone e o Minitel
eram largamente utilizados no quadro das emissões de rádio ou de
televisão para enviar as informações personalizadas para as emissoras.
Com a visiofonia e na França a rede Numéris, intervém uma outra
dimensão utilizada recentemente. " Visioestaçõel' em lugares públicos
permitem aos interlocutores intervir diretamente no curso das emis
sões televisivas. As grandes redes mundiais de comunicação interpes
soal, via computadores, oferecem novidades e possibilidades preocu
pantes. Os pioneiros da Internet propõem o advento de uma espécie
de "parlamento eletrônico", permitindo aos cidadãos votar perma
nentemente sobre uma série de assuntos. Ross Perrot, milionário ame
ricano e antigo candidato à Casa Branca, prometeu dentro do seu
programa instalar uma "caixa de votação" eletrônica em todos os lares
americanos.
Este tipo de retroação societal global parece-me particularmente
perigoso e suscetível de levar a efeitos perversos terríveis. As respostas
instantâneas feitas a perguntas colocadas pelas mais altas instâncias diri
gentes podem gerar efeitos de moda, entusiasmos passageiros e irracio
nais, rapidamente obsoletos para as necessidades da atualidade. O curto
circuito societal não respeita os prazos de respostas inerentes à dinâmica
particular dos sistemas sociais. Situa-se nos tempos curtos de natureza
emocional favorecido pelas mídias, mas sem capacidade real de constru-
245
ção para longo prazo, através de sua inscrição na duração. E isso porque
as instâncias intermediárias (eleitos locais, representantes, notáveis, de
putados) são indispensáveis no processo do "acionamento" das infor
mações: eles criam os efeitos tampões amortizando as oscilações sociais e
reduzindo as conseqüências da amplificação midiática. Toda forma de
retroação societal deve levar em conta a hierarquia dos níveis, permitin
do aos cotpos intermediários e aos organismos representativos cumprir
seu papel de correias de transmissão. Os atritos, filtragens, prazos e
constrições do sistema social asseguram assim indiferentemente sua pro
teção. Eles têm por efeito amenizar as amplitudes das oscilações, de
reduzir o "barulho" parasita e de revelar, sobre uma duração mais lon
ga, as tendências de fundo sobre os quais se pode construir uma política.
A retroação societal se efetiva, portanto, progressivamente, no
quadro de "nichos" específicos: emissões televisivas, grandes sonda
gens, jogos, concursos, redes informáticas. Mas os sistemas concebidos
por ambientes mais restritos já estão funcionando. Existem instala
ções de voto instantâneo, destinado a empresas, que permitem afixar,
em tempo real, curvas, histogramas, matrizes, que analisam o detalhe
dos votos e das tendências, com apresentações animadas em cores so
bre telas visíveis a todos. Algumas salas públicas são equipadas por
esses sistemas utilizáveis por um bilhão de participantes.
Uma das aplicações mais sutpreendentes da participação coleti
va em tempo real, cinematrix técnica de retroação elaborada por Ra
chel Caipenter nos Estados Unidos. Os participantes ficam sentados
dentro de um auditório que comporta milhares de lugares e dotado de
uma imensa tela. Todos dispõem de um refletor manual em forma de
espátula, com uma face verde e outra vermelha. Câmeras de vídeo
captam os reflexos luminosos em função da face apresentada pelas
pessoas presentes e transmitem esta informação a um computador.
No início da experiência um retângulo é desenhado sobre a tela para
o animador. Este solicita aos milhões de espectadores para que se situ
em dentro do retângulo (apresentando a face vermelha), ou em seu
exterior (face verde). Rapidamente, o retângulo fica colorido de ver
melho. A metade da sala deve, em seguida, jogar tênis com a outra
metade. Para isto uma raquete sobe e desce de cada lado da tela e
reenvia uma bola no outro campo, com a condição de fazer subir
246
(verde) ou descer (vermelho) a raquete com a velocidade certa, a qual
depende do número de votantes vermelhos ou verdes. Uma coordena
ção visual torna-se, portanto, indispensável entre os jogadores de cada
campo para antecipar a direção e a velocidade da bola e posicionar
corretamente a raquete. Enfim, um cubo multicolorido roda na tela.
Exige-se que os jogadores parem sobre o lado azul. Eles devem para
isto freá-lo (face vermelha) ou acelerá-lo (face verde). Se a face azul
passa rápido demais, é preciso retornar. Isto demanda uma coordena
ção delicada que deve ser traduzida para uma proporção correta de
votos vermelhos em relação aos verdes. Milhares de pessoas cumprem
perfeita e muito rapidamente esta tarefa delicada, sem outra coorde
nação que não seja a visualização em tempo real, sobre a tela dos
efeitos das ações de uns ou de outros.
Escolhi este exemplo para ilustrar e lembrar um dos pontos fun
damentais da ação em rede: milhões de agentes atuando em paralelo a
partir de regras simples podem resolver coletivamente problemas com
·
plexos. Pode-se transpor esta forma de retroação societal para sistemas
de comunicação eletrônicos, assegurando uma divulgação instantânea
dos resultados. Com a interconexão das redes telemáticas interpessoais, as
centenas de milhões de informações individuais ascendentes terão um pa
pel cada vez mais importante na regulação das grandes funções metabólicas
do cibionta. Enquanto as grandes manifestações públicas evidenciam que as
massas, particularmente, não oferecem prova de uma inteligência significa
tiva, sistemas adaptados de retroação societal podem fazer emergir uma
inteligência coletiva superior à dos indivíduos isolados.
Nesta ótica da evolução simbionômica, a coordenação das ações
individuais por retroação coletiva é um dos elementos de base do com
portamento inteligente do cibionta. Seu cérebro funciona a partir de
miríades de ações caóticas, microdecisões, reajustes, regulações nos dife
rentes níveis de seus neurônios humanos, ampliados pelo espelho das
mídias ou detalhados por instâncias específicas. Tais interações, que têm
lugar no seio dos nós e laços de uma hiper-rede, constituem uma das
chaves da simbiose e da progressiva ascensão do homem simbiótico.
Mas, para combinar os benefkios da ação individual e da retroação
societal, uma nova classe de líderes políticos deverá emergir no curso
dos próximos anos.
247
Os novos líderes políticos
248
se apresenta a ação catalítica. Uma combinação de ação, mediação,
comunicação e catálise pode levar a importantes mudanças, no qua
dro de objetivos claramente expressos e aceitos por uma maioria de
atores. Toda a importância da retroação societal aparece aqui. Os anéis
cibernéticos, estabelecidos nos diferentes n6s e laços das redes f nos
vários níveis de hierarquia organizacional, fornecem as informações e
os elementos da regulação. A política não pode administrar tudo,
modificar tudo, impor tudo. O governo deve acompanhar a mudança
criando as condições de desaceleração que permitam, com um dispên
dio baixo de energia e de informação, conduzir eficazmente à evolu
ção de um sistema social complexo. Essa evolução ocorre mais por
uma espécie de acupuntura societal do que por remédios agressivos;
por intermédio de um judô político, que utiliza as práticas das artes
marciais para desequilibrar o adversário sem desperdiçar sua energia.
Em simbiose com a expressão da multiplicidade de responsabilidades
individuais, o governo deve abandonar algumas das suas antigas prer
rogativas (autoridade, força, hierarquia) para se concentrar sobre aque
las que asseguram a manutenção da coesão, a motivação do conjunto
e a preparação das grandes escolhas coletivas.
A governança em rede e a coordenação inteligente das ações
internacionais podem, de agora em diante, apoiar-se sobre tais princí
pios. O choque frontal das soberanias nacionais, das estruturas hierár
quicas de poderes, dos modos de raciocínio cartesianos em face da
complexidade conduz hoje em dia a situações inextricáveis e a uma
incapacidade para resolver os grandes problemas que foram mencio
nados. Levando em conta a erosão da soberania nacional, o reconheci
mento das competências e das diversidades, a abertura às abordagens
dos outros terceiros faz parte dos novos valores da governança. Pilota
gem e catálise são as palavras mestras da nova política. Mediadores,
catalisadores, comunicadores, surfistas representam uma nova geração
de dirigentes capazes de fornecer soluções novas para superar a crise
atual da liderança política, desde que saibam controlar sua grande
deriva mediática.
249
Os perigos da imunidade mediática
250
Com a televisão se instauram estranhas relações entre os seres.
Acredita-se conhecer muitas pessoas, mas não somos reconhecidos por
nenhum dentre elas. Acredita-se conhecer os segredos do caráter de tal
apresentador, de tal homem político, de suas oscilações de humor, de
suas profundas opções, mas só se assimilam as aparências. Ainda mais
se o homem público sabe comunicar com emoção a respeito de temas
concretos, nos identificamos com a mensagem e com seu emissor.
Uma presença regular na televisão suscita, assim, necessariamente, re
flexos de pertencimento e proteção que entram em jogo e se ampliam
como quando se trata de defender um parente ou um amigo próximo.
Cada um tem uma opinião pessoal sobre os atos do homem público,
colocado na berlinda. Essas opiniões entram em conflito aberto e re
forçam a rede imunitária. Qialquer homem político hesitará antes de
decidir. Qialquer jornalista perguntará menos. Qialquer magistrado
reforçará a prudência. Assim imunizado midiaticamente, o comuni
cador hábil pode entrar no espaço infinito, e sem constrições, da polí
tica virtual. Sua participação em manifestações políticas atrairá as
massas, mesmo se a confusão ficar forte entre a pertinência de suas
idéias políticas julgadas pelo auditório e o aspecto acontecimental de
sua presença. Reunirá votos sobre seu nome e pesará cada vez mais no
cenário político.
A imunidade mediática tem um efeito duplamente perverso.
Ela ridiculariza a lei republicana e promove a política virtual fundada
sobre a ilusão do aparecer, mais do que sobre a consistência do ser. Em
contrapartida, ela pode também criar choques perigosos, se a opinião
se desvia bruscamente de seu antigo protegido.
Desenvolvi este exemplo para ilustrar o papel e a influência dos
múltiplos atores no seio de redes imbricadas e que recebem os mesmos
tipos de informação pelas grandes mídias. A emergência da imunida
de midiática releva igualmente os mecanismos coletivos de amplifica
ção. Os efeitos da auto-seleção e da exclusão competitiva que ela susci
ta conduzem para um fenômeno de "escapamento,. (run away) bem
conhecido em cibernética. O sistema escapa ao controle de seus laços
de regulação. Os efeitos perversos vêm em seguida, pondo em risco a
estabilidade do conjunto. Um melhor conhecimento de tais mecanis
mos pode auxiliar nossas sociedades, submissas aos efeitos da amplifi-
25 1
cação político-midiática, a evitar um real perigo para o futuro: o de
deixar escapar para o poder dos líderes oportunistas, que tiram provei
to de todas as falhas do sistema e ridicularizam os valores, a moral e a
ética sobre os quais se constrói a democracia.
Os limites do economismo
252
capital e do desenvolvimento dos recursos humanos.
A ciência econômica clássica não pode aparentemente resolver
o problema do desemprego. Um sistema econômico fundado sobre a
produção de massa, sobre contrato de trabalho, sobre o consumo e
sobre o crescimento é um sistema bloqueado. Ele só leva em conta o
valor comercial dos bens, dos serviços e das pessoas. Portanto, as ativi
d ades que fariam funcionar corretamente o macroorganismo societal
e contribuiriam para a construção do seu futuro não fazem falta. No
quadro rígido dessas estruturas atuais, a ciência econômica clássica
não sabe transformar as atividades em empregos. Precisaria, para isto,
levar em conta as atividades não-mercantis fundadas sobre a troca de
outros valores indispensáveis à manutenção e ao desenvolvimento das
sociedades: a educação mútua, a solidariedade, a assistência social, a
partilha dos frutos do conhecimento, o voluntariado para investir no
ecocapital. Seria, também, necessário que a ciência econômica reco
nhecesse que as necessidades espirituais, sociais, emocionais, artísticas
devem ser satisfeitas, ao mesmo tempo que as necessidades materiais.
Para substituir a ciência econômica tradicional, numerosas pro
posições são feitas inspiradas em particular pelo método ecológico.
Assim, a "ecoeconomia" ou economia ecológica, ao se apoiar sobre
um equilíbrio dos fluxos e a pesquisa de meios, permitiria assumir e
manter o ecossistema ao lado do desenvolvimento dos recursos econô
micos. Nos Estados Unidos se elabora uma outra abordagem caracteri
zada por uma visão liberal levada ao extremo: a "bionômica" (biono
mics). Trata-se de uma economia que se inspira em leis naturais da
biologia e da ecologia. A bionômica lembra o laisserfaire, mesmo que
reconheça a generalidade dos princípios da auto-organização e inter
dependências no seio das redes de trocas: as regras da auto-organiza
ção só se podem efetivar se nos liberamos do controle centralizado.
Alguns preconizam até a ausência de qualquer controle descendente, a
fim de permitir aos sistemas evoluírem em direção a uma complexida
de capaz de assegurar a emergência de novas propriedades.
A economia, sendo um ecossistema criado pelo homem, os prin
cípios simbionômicos a ela se aplicam. Mas o homem tem uma consci
ência reflexiva, um livre-arbítrio e uma responsabilidade. Ele pode fazer
os planos, as escolhas racionais ou não, definir suas próprias condições
253
de evolução. É portanto indispensável que as pressões da auto-organiza
ção sejam equilibradas para a pilotagem voluntária da evolução das soci
edades. As escolhas são feitas em função dos valores. A ideologia no
sentido nobre do termo é um dos motores da ação. A governança se
funda sobre os modos de regulação ascendente e descendente. Neste
sentido ela é cibernética. A competição das idéias para uma ótima gover
nança é essencial. Assim, se cria uma ecologia das idéias, um meio ambi
ente cognitivo no qual concorrem e cooperam os grandes temas que
animam o mundo. A bionômica e a anarquia evoluídas do novo laisser-
faire americano negligenciam a contribuição das idéias e suas saudáveis
competições na regulação e pilotagem dos grandes sistemas societais.
Mesmo o célebre conceito de "desenvolvimento durável" pode
conter efeitos perversos. Este conceito corre o risco de isolar o desen
volvimento econômico e proteção do meio ambiente num estéril afron
tamento. As, proposições são mutuamente exclusivas. O crescimento
pode pagar as despesas suplementares do meio ambiente? A proteção
do meio ambiente necessita dos limites do crescimento? Atualmente a
lógica econômica parece pesar mais do que a lógica ecológica. Orienta
mo-nos pela internalização dos custos ecológicos na economia clássica
- uma via que pode desembocar no limite, numa mercantilização dos
bens naturais. Colocar preço em tudo - um golfinho, um metro cúbi
co de ar, uma floresta - para permitir o jogo dos mecanismos regula
dores do mercado e taxar os consumos dos recursos naturais ou das
emissões dos dejetos poluentes pode ter efeitos perversos totalmente
incontornáveis. Se levarmos mais longe este argumento, avaliando o
preço dos "serviços da natureza" (como a despoluição do ar e da água
pela fotossíntese ou os micróbios dos solos), criamos de uma só vez
um direito de poluir as regiões do mundo onde os serviços da nature
za são ainda cumpridos e, portanto, menos caros do que aqueles que
utilizam as tecnologias verdes dos países desenvolvidos.
Alguns desses métodos representam uma derrapagem para um
"economismo" puro e pesado firmado pela única lógica da economia
de mercado. Com que direito a economia impõe sua lógica? A ciência
econômica, como vimos, foi colocada "entre parenteses" da natureza,
por negligenciar as entradas (recursos naturais não-renováveis) e as
saídas (dejetos) da maquinaria econômica, considerados como exterio-
254
res a seu campo de ação. Os recursos, ao serem considerados abundan
tes e ilimitados, e os dejetos sem valor mercante, os fluxos que entram
e saem deixam de ser levados em conta.
Uma outra lógica, entretanto, precedeu a lógica dos homens e de
sua economia: a co-evolução dos ecossistemas, com seus bilhões de espé
cies animais e vegetais religados por grandes ciclos biogeoquímicos. Todo
um jogo de regulações sutis e milenares intervém no conjunto dos ato
res da biosfera no seio de redes frágeis. Esta bioeconomia da natureza
permitiu a manutenção dos ecossistemas terrestres e suas evoluções.
255
dos escrit6rios, ou a circulação automobilística.
Certamente, as regulações pelo mercado ou a taxação deram
suas provas e seria ilus6rio privar-se delas, mas seus efeitos se mani
festam a curto prazo sem a instauração de planos conjuntos. Por
outro lado, a eficácia dos mecanismos de auto-regulação exige uma
complementaridade dos meios postos em prática. A interdependên
cia dos fatores desempenha um papel fundamental na manutenção
dos equilibiios dinâmicos e na pilotagem no tempo dos sistemas
complexos. Isto porque o desenvolvimento adaptativo regulado deve
apoiar-se sobre uma combinação de meios que incluem os preços, as
taxas, as regulamentações, a troca de informação, a educação para o
ecocivismo planetário e a motivação dos atores.
A auto-regulação implica, também e sobretudo, o ecocidadão.
Multiplicada por milhões, e mesmo por milhares de pessoas, a modi
ficação das práticas individuais de consumo de energia, de bens e
serviços conduz a efeitos planetários globais. Daí decorre a importân
cia quase orgânica de uma educação generalizada e responsável, que
assegure as bases da retroação societal. A ecocidadania deverá, assim,
combinar seus poderes com aqueles mais tradicionais como as associ
ações de consumidores, sindicatos, lobbies ou organizações não-gover
namentais.
Para esta transição obter sucesso, o elemento federador das ações
das regulações individuais, políticas, econômicas e industriais deverá
constituir-se por um conjunto de valores partilhados, uma ética de
meio ambiente, uma ecoética capaz de agir como "regulador" dos sis
temas de regulação e de fixar os limites aos desvios possíveis do econo
mismo. Como a bicética já definiu os santuários não-comercializá
veis, devem existir tal como o corpo humano. Para evitar qualquer
desvio em direção à mercantilização total dos bens da natureza, uma
ecoética pode ajudar a evitar a confusão em curso entre o valor do
usuário I'! o valor da troca, e devolver a significação plena do termo
"valor". A noção de desenvolvimento adaptativo regulado pode per
mitir ultrapassar para sempre o dualismo de irredutível aparência en
tre desenvolvimento econômico e proteção do meio ambiente.
Entretanto, o desenvolvimento acelerado das sociedades indus
trializadas submetidas aos valores da economia de mercado coloca em
256
perigo o equilíbrio do mundo. Encontramo-nos frente a frente, em
escala planetária, com um mecanismo de evolução darwiniana que
autoseleciona as nações mais favorecidas. Uma das regras simbionô
micas fundamentais é a seleção de uma população em evolução pela
autocatálise de seu desenvolvimento e exclusão competitiva dos con
correntes. É o que está acontecendo sob nossos olhos. A exclusão com
petitiva está posta em prática no próprio seio das nações (exclusão
econômica, técnica, cultural), entre as cidades e suas periferias, entre
os ricos e os marginalizados. Na escala do mundo, ela se manifesta
pelo enorme fosso que não cessa de se ampliar entre favorecidos e
desfavorecidos. A autocatálise constrói uma densidade diferente do
tempo. Cada um se isola na sua bolha temporal, mesmo se somos
todos contemporâneos uns dos outros. Assim se cria um tempofractal,
que separa uns e reforça os outros na sua conquista do tempo. O risco
da exclusão competitiva dos menos favorecidos é um dos mais graves
que a humanidade conheceu no curso de sua história. Orientamo-nos
para um mundo de várias velocidades, no qual cada um crescerá (ou
vegetará) dentro da sua bolha temporal, que se torna incompatível
com as dos outros. Certamente alguns já se acomodam a isso. A diver
sidade das culturas � dos povos reforça este sentimento. "Por que não
permitir o jogo das leis naturais da concorrência e da competição
entre os povos? E que os melhores ganhem... "
A alternativa para a exclusão competitiva são a partilha e a
solidariedade. Os valores da humanidade são comuns. A transição
para a próxima etapa de sua organização planetária necessita da co
operação de todos na diversidade dos comportamentos e expressão
das l iberdades. É uma alternativa coletiva dentre as mais importan
tes que a humanidade assumiu na sua marcha em direção à simbiose
planetária, econômica e ecológica.
257
Dar continuidade a transição demográfica. Ela j á está sendo leva
da a cabo: a população mundial deveria estabilizar-se em torno de 1 1
bilhões para o ano 2 1 00. Para acompanhar esta transição seria neces
sário diminuir a fertilidade dos países com alta natalidade para 3 a 2
filhos por família, revalorizar o estatuto da mulher, estendendo o
uso dos contraceptivos.
Reduzir e reconverter as despesas militares. Elas representam atual
mente um montante anual de 900 bilhões de dólares e constituem um
importante consumo de recursos humanos, científicos, técnicos, eco
nômicos, naturais, mas também de créditos que poderiam ser recon
vertidos, progressivamente, para a educação, saúde e meio ambiente.
Um desafio para a reconfiguração dos governos após o ano 2000.
Assumir uma política energética equilibrada, que permita o meta
bolismo do cibionta e sua simbiose com Gaia. Uma política que
respeite as responsabilidades locais na produção e na distribuição d a
energia e que combine economias, habilidades, uso racional, e ficá
cia, utilização de recursos renováveis.
Colocar em prática uma economia simbiótica para um desenvolvi
mento adaptativo auto-regulado. Promover novos indicadores que
substituem o PIB e que levem em conta os prejuízos causados ao
meio ambiente e aos recursos humanos. Redistribuir os recursos,
reduzir as desigualdades, reinventar o trabalho.
Controlar os efeitos ambientais globais. Reduzir as emissões de
CFC, de dióxido de carbono. Controlar a extensão dos desertos.
Regular os climas e os meios ambientes de maneira racional para
macrorregulações de grandes ciclos e funções. Respeitar a ecoética,
ética do meio ambiente, que define os limites da ação humana. Res
tabelecer uma agricultura ecológica. Reduzir a industrialização mas
siva da agricultura para uma modularização das produções. Reduzir
o desflorestamento. Revalorizar as paisagens.
Valoráar o papel das mulheres. Reequilibrar os valores masculi
nos e femininos a fim de assegurar o desenvolvimento adaptativo
controlado das sociedades humanas, de suas indústrias e de suas eco
nomias. Reequilibrar as responsabilidades dentro da sociedade. Va
lorizar as ações familiares, educativas e os cuidados empreendidos
geralmente pelas mulheres.
258
Assegurar uma base de saúde para todos. O objetivo da Organiza
ção Mundial de Saúde para o ano 2000 é reduzir a mortalid ade in
fantil para 50 entre 1.000 nascimentos e assegurar a cada criança um
peso normal, além do acesso à água potável: 50 bilhões de dólares
por ano; para a água e a sanitaridade, 30 bilhões suplementares.
Assegurar uma base de educação para todos. Hoje em dia 105 mi
lhões de crianças não têm acesso a uma escola. O mundo conta com
900 milhões de analfabetos. Estimativas da Unesco mostram que os
custos de educação mínima, para todos, no ano 2000, se elevarão a 5
bilhões de dólares por ano.
Promover as tecnologias responsabilizantes e adaptáveis. Evitar os
gigantismos das instalações controladas por um pequeno número de
responsáveis, as tecnologias pesadas que provocam um forte impacto
ambiental e as técnicas que provocam perigo a longo prazo para a
biosfera. Favorecer as tecnologias adaptáveis às necessidades sociais.
Pesquisar o compromisso entre a circulação e a circulação virtual.
Promover as redes e os modos de comunicações interpessoais, as info
estradas, a democracia informacional. Diminuir a marcha da expan
são dos transportes de massa. Controlar, em particular, o crescimento
do transporte aéreo, do transporte terrestre por caminhões, a constm
ção anárquica das auto-estradas e a proliferação de vias de comunica
ção, que agridem as paisagens e a vida das cidades.
Lançar os grandes projetos para as cidades. Eliminar progressiva
mente os automóveis a motor térmico, promover meios de transpor
tes não poluentes e silenciosos, reconfigurar os transportes coletivos.
Reabilitar a vida do bairro, favorecer os modos de vida associativa e
de responsabilidade local.
Equilibrar os valores da civilização e da cultura. Acionar os meca
nismos de governança e de retroação societal. Melhorar a simbiose
entre pessoas e sociedade para uma complementaridade entre aborda
gem descendente (hierarquia), ascendente (participativa) e transversal
(interativa). Conservar a diversidade. Fazer respeitar o direto e a justi
ça. Assegurar o respeito e a valorização das pessoas idosas. Promover a
ecocidadania, a bicética, a infoética e a ecoética.
Tais prioridades não poderão ser postas em prática sem relações
estreitas entre governança, nova economia e indústria. É preciso re-
259
pensar, portanto, as formas de organização dos meios mais bem adap
táveis à produção e à distribuição dos bens e serviços de amanhã.
Notas
L '.bomme symbiotique reganis sur !e troisieme millénaire. Seuil, 1995, p. 183-222, por
•
Maria José Gadelha. Revisão: Sylvia Gradei Vicente (excerto autorizado pelo autor).
.
Revisão técnica final: Edgard de Assis Carvalho.
2 Escritor, professor e diretor do Desenvolvimento e das Relações Interna
A
noção de complexidade não admite uma aproximação simples.
As realidades complexas são tanto processo quanto resultado, me
canismos generativos subjacentes e, ao mesmo tempo, produto mani
festo dos mesmos. Neste artigo trataremos de um desses mecanismos
geradores de complexidade, o modelo de organização holográfico: uma
forma de organização em que, como se verá, as partes que compõem
uma determinada realidade contêm informações acerca da totalidade
da mesma e, por isso, são de certo modo capazes de constituir tal
realidade autonomamente, cada uma por sua conta.
A holografia é, em seu sentido originário, um procedimento de
fotografia sem lente, idealizado nos anos 40 pelo engenheiro Dennis
Gabor (Pribram, K H. e Martín Ramírez, J., 1980). Mediante tal proce
dimento, é possível gerar imagens tridimensionais de objetos flsicos a
partir da impressão, em uma placa fotográfica, dos padrões de interfe
rência entre dois feixes de luz coerente (monocromática e em fase): um
que ilumina diretamente a placa e outro que resulta refletido pelo obje
to. Estes padrões de interferência plasmados na placa constituem o ho
lograma, que codifica a informação necessária para reconstruir a ima
gem em três dimensões dq objeto original. A reconstrução se realiza
iluminando a placa com um raio de luz idêntico ao que a imprimiu
diretamente.
Os quatro aspectos talvez mais fascinantes da técnica holográfi
ca são, em primeiro lugar, a transformação da representação bidimen
sional do objeto inscrita no holograma, em uma imagem tridimensio
nal que reproduz a inteira aparência desse objeto. Em um holograma
(do grego halos, total, e gramma, inscrição ou desenho) se encontra
presente, codificada em duas dimensões, uma informação em certo
modo completa das características especiais do objeto representado.
Em segundo lugar, destaca-se o fato de que essa informação obtida no
holograma não guarda nenhuma semelhança aparente com a imagem
que a partir dela se gera. Visto com luz natural (incoerente), um holo
grama tem o aspecto de uma placa fotográfica semivelada, em que
apenas se podem distinguir certos traços mais ou menos concêntricos.
Uma terceira e surpreendente diferença entre uma fotografia
normal e um holograma reside no modo como a informação se acha
distribuída em um e outro caso. Em uma fotografia, cada parte da
mesma representa uma parte específica do objeto que representa. Em
um holograma, pelo contrário, cada parte - cada região do mesmo -
contém informações sobre a totalidade do objeto correspondente. As
.
sim, enquanto uma fotografia rasgada pela metade só fornece infor
mações sobre a metade do objeto que reproduz, cada um dos fragmen
tos de um holograma permanece contendo informação sobre todo o
objeto holografado - se bem que essa informação é menos nítida
quanto menor é o fragmento em questão. Por último, um quarto as
pecto da holografia, relacionado com o anterior e digno de ser ressal
tado, reside no papel constitutivo que desempenha, nesta técnica, a
relação entre as partes do holograma. Cada parte minimamente exten
sa de um holograma possui uma informação global acerca do objeto
representado. Mas é precisamente a interação entre essas partes que
permite reconstruir visualmente esse objeto com claridade.
Considerados a partir de um ponto de vista geral, estes quatro
aspectos da holografia podem conceber-se como outros tantos princí
pios organizadores desta realidade abstrata que chamamos "informa
ção". Em primeiro lugar, a relação entre o holograma e a imagem
tridimensional reconstruída do objeto exemplifica um princípio de
emergência: determinada informação codificada em um certo nível de
realidade pode resultar constitutiva, em um contexto adequado, de
entidades pertencentes a um nível de realidade superior, irredutível ao
primeiro. Segundo, a codificação da informação acerca de um objeto
emergente, tal e como se materializa nesse nível de realidade subjacen
te ao mesmo - no "plano generativo" correspondente ao holograma -
262
, não tem por que resultar isomorfa ao modo como essa informação se
encarna e manifesta no domínio emergente - o objeto visualmente
reconstruído. Cabe denominar o princípio de transducção informaci
onal a este padrão de organização da informação.
Em terceiro lugar, o estilo holográfico de organização da in
formação estabelece uma peculiar relação entre as partes de um todo
e essa mesma totalidade. Uma relação pela qual as partes codificam
de algum modo - ou, com maior precisão, possuem modelos gene
rativos - a totalidade na que se incluem. Pode-se dar o nome de
princípio do todo nas partes a esta sutil relação de inclusão mútua,
dinâmica e generativa, entre a totalidade e os elementos subjacentes
que a compõe. Por último, e como já se tem apontado, as partes de
um holograma constituem a referida totalidade, como realidade
emergente, a partir desta codificação própria - desses modelos gene
rativos nelas presentes -, mas também de maneira cooperativa, por
meio de processos de interação entre as mesmas. Tratar-se-ia de um
princípio de constituição interativa segundo o qual é justamente
através das interações das partes - que compõem o chamado "plano
generativo" - que se cria o objeto emergente codificado nessas partes.
Mais além de sua concreção tecnológica originária - como ho
lograma fotográfico ou ótico -, a noção de holograma parece captu
rar, mesmo de forma metafórica, um princípio de organização geral
que estaria presente em muitos e diversos domínios do real. Assim,
por exemplo, um organismo pluricelular tem um estilo de organiza
ção em certo modo análogo ao holográfico (Morin, E., 1986): a partir
de um determinado genótipo - que cumpriria uma função equivalen
te à da placa que contém o holograma - se gera uma realidade emer
gente, o fenótipo desse organismo. Um fenótipo cujas características
não guardam uma relação de isomorfia, ao menos manifesta, com a
realidade subjacente que o produz, o referido genótipo.
Observe-se, ademais, que esse genótipo está presente, como
genoma, em cada uma das células - das partes constitutivas básicas
- do organismo pluricelular em questão. De modo que cada uma
d as células de um organismo pluricelular cod ifica, no genoma que
contém, a informação em princípio necessária para constituir esse
organismo inteiro. E, efetivamente, essas células constituem, produ-
263
zem e reproduzem a totalidade emergente de tal organismo de m a
neira conjunta, através de complexos processos de i nteração bioquí
mica - equivalentes aos "padrões de interferência" materializados
no holograma. Esta organização do organismo pluricelular como
"holograma biológico" seria o fundamento da aparição no mundo
da vida de domínios de realidade claramente emergentes, como for
mas de condutas complexas e fenômenos mentais.
Contemplada de um ponto de vista extremamente geral, é pos
sível associar a idéia de holograma com a noção matemática de "auto
similaridade" (Gleick, J., 1987). Um objeto é auto-similar quando exi
be a mesma ou parecida estrutura em qualquer uma de suas escalas de
descrição. Esta peculiaridade é característica dos chamados "objetos
fractais", como o conjunto de Mandelbrot (Mandelbrot, B., 1 975).
Assim, a noção de "auto-similaridade" pode entender-se como uma
versão matemática das idéias de "auto-reflexividade" e "auto-referên
cia" (Bartlett, S. e Suber, P., 1987). Conforme se tem sugerido, um
holograma, óptico ou biológico, é, de certo modo, um objeto auto
similar, essencialmente redundante, em uma, pelo menos em um, de
seus níveis de descrição. Daí que pode concebê-lo, também, como um
objeto auto-reflexivo e auto-referente: pois esse nível auto-similar, de
um modo ou de outro, "se refere a si mesmo", se auto-reflete, ao mes
mo tempo que "representa" o objeto que gera como totalidade emer
gente.
Convém ressaltar, brevemente, que a idéia de holograma tem
sido aplicada também em outros âmbitos científicos - por exemplo,
para modelizar a dinâmica dos processos neurais no cérebro (Pribram,
K. H. e Martín Ramírez, J., 1980). Por outro lado, a idéia de objeto
fractal está sendo utilizada em áreas de conhecimento muito diversas,
incluída a cosmologia, nas quais certas teorias o usam como elemento
conceituai básico para descobrir a estrutura do Universo em seu con
junto (Linde, A., 1994; Martínez, V. J. � outros, 1995).
No campo das ciências sociais, a noção de holograma tem sido
utilizada como metáfora ilustrativa de fenômenos sociais por Jesús
Ibánez e Edgar Morin e, posteriormente, pelo autor deste artigo. O
conceito de holograma é, como já se tem visto, complexo, e seu uso
metafórico admite múltiplas facetas. Assim, Ibáfiez utiliza a distinção
264
entre luz coerente e luz incoerente para expressar as diferenças existen
tes entre as imagens da realidade social geradas, respectivamente, pelos
métodos de investigação "distributivos" - basicamente, a pesquisa es
tatística - e "estruturais" - como o grupo de discussão.
Em ambas modalidades de amostragem (estatística e estrutural)
há uma diferença comparável à que existe entre um fotograma (obti
do por reflexão de uma iluminação incoerente, como a luz solar na
qual as radiações não se encontram em fase) e um holograma (obtido
por reflexão de uma iluminação coerente, como a do laser, em que
todas as radiações estão em fase); cada parte do fotograma contém
informações sobre uma parte do objeto (se se parte pela metade, per
manece toda a informação da metade correspondente do objeto); cada
parte do holograma contém informação sobre todo o objeto (se se
parte pela metade, permanece uma informação sobre todo o objeto).
Na pesquisa estatística cada unidade de informação é independente
das demais (por isso é necessário uni-las depois com o cimento lógico
d as análises estatísticas) - como a luz incoerente -; no "grupo de
d iscussão", em contrapartida, obteremos um discurso que está estrutu
rado - como a luz coerente (Ibáfiez, J., 1 979, pp. 264-265).
Tudo parece indicar, com efeito, que, em determinados contex
tos, os atores sociais humanos mostram uma capacidade congênita
para pôr suas percepções sociais "em fase", para captar a "longitude de
onda" da situação de interação que enfrentam e, assim, para "entrar
em ressonância" uns com outros. Mas se tal coisa é possível é porque
cada um desses atores dispõe de um acervo de padrões de ressonância
interativa que lhe permite eleger a longitude de onda adequada a cada
situação e, deste modo, comunicar-se e desdobrar sua ação social em
uma complexa rede de expectativas recíprocas. A atualização da referi
da capacidade para "entrar em sintonia" ou "em fase", através da evo
cação dos acervos mais ou menos similares de "padrões de ressonância
interativa" que possuem os participantes no "grupo de discussão",
seria, segundo parece dar a entender Ibáfiez, o objetivo desta técnica
de investigação social. A importação por Ibánez da metáfora holográ
fica ao terreno da teoria sociológica tem sugerido desenvolvimentos
ulteriores (Navarro, P., 1 994), que pretendem ampliar e precisar seu
potencial explicativo neste campo.
265
Nesse contexto, é possível assumir como hipótese de trabalho a
afirmação geral de que as realidades sociais próprias de nossa espécie
se estruturam segundo um estilo de organização semelhante ao holo
gráfico. E isso por várias razões. Em primeiro lugar, as sociedades
humanas se constituem basicamente em dois níveis de realidade: um
nível subjacente, generativo, "genotípico"; e um nível emergente, "fe
notípico'', produzido a partir do anterior. Os elementos constitutivos
do primeiro nível são os sujeitos individuais como realidades de cons
ciência. O segundo nível - o "fenotípico" - não é outro senão o
aspecto macro-objetivo das realidades sociais humanas - a faticidade
mesma do social. Encontramo-nos aqui com uma versão indubitavel
mente sui generis do "princípio de emergência" já comentado.
Em segundo lugar, o tipo de informação que determina a es
trutura das sociedades humanas em seu "plano generativo" - consti
tuído pelas consciências individuais - não guarda necessariamente
uma relação de isomorfia com a classe de informação que estrutura
o domínio emergente dessas sociedades - seu aspecto macroobjeti
vo. Mais que isso, não apenas não se verifica uma isomorfia manifes
ta entre ambos níveis de realidade, como também um e outro per
tencem, prima facie, a domínios ontológicos distintos - subjetivo o
primeiro, "objetivo" o segundo. O "princípio de transducção infor
macional", ao que se fez referência anteriormente, também é neste
caso um princípio de transducção ontológica.
Além disso, as realidades sociais humanas se caracterizam por
estar compostas por unidades - os sujeitos individuais - que estão de
posse de modelos dinâmicos, generativos e, em certo modo, comple
tos, dessas mesmas realidades. Cada membro de uma sociedade dispõe
de um modelo próprio, idiossincrático - e que se produz e reproduz
a si mesmo constantemente -, dessa sociedade em que habita. Uma
sociedade que não é, no "plano generativo", senão o conjunto desses
modelos. Se trata do "princípio do todo nas partes" característico,
como se viu, do modo de organização holográfico. Por último, as
sociedades humanas se organizam segundo um "princípio de consti
tuição interativa". Aquele que as constitui no "plano generativo" é
justamente a interação entre suas partes componentes - os sujeitos
individuais. E esta interação é também o que, em última instância,
266
determina os aspectos típicos dessas sociedades no plano "macroobje
tivo" emergente. Este plano "macroobjetivo" se limita a transduzir em
um âmbito de realidade próprio, diferenciado - daí seu caráter emer
gente -, a dinâmica do domínio interativo que o subentende.
Sem dúvida, e apesar de tudo o que foi dito, todavia não se tem
feito uma referência adequada à propriedade mais peculiar e significa
tiva do "holograma social". É uma dupla propriedade, que diferencia
radicalmente as sociedades humanas de outras realidades organizadas
também de forma holográfica, e que converte o holograma social em
um objeto muito mais complexo que seus análogos ópticos, neurais
ou biológicos. Se trata, por um lado, do que se chamará a inserção do
"plano emergente" sobre o "plano generativo" e, por outro, do caráter
ultra-holográfico de ambos. Nas realidades sociais humanas, o "plano
generativo" - as consciências dos sujeitos individuais - não se limita
a determinar de maneira subjacente o "plano emergente" - os aspec
tos "macroobjetivos" do social.
Esse "plano generativo'' inclui em si mesmo representações
explícitas da emergência que ele mesmo gera - do próprio domínio
"macroobjetivo". É como se, nas sociedades humanas, o fenótipo -
que em certo modo inclui o genótipo que o constitui - estivesse, por
sua vez, explicitamente incluído nesse genótipo. Para dizê-lo em ter
mos talvez mais familiares: nas realidades sociais humanas, o domí
nio macrossocial não é simplesmente produto do âmbito microsso
cial, e isso porque penetra explicitamente nele. E o faz através das
representações idiossincráticas e mais ou menos elaboradas que as
consciências dos sujeitos individuais engendram espontaneamente
acerca desse domínio. Esta nidificação mútua do genótipo e do fe
nótipo social ou, se preferir, esta reflexividade entre os níveis macro
e micro atua como uma poderosíssima fonte de complexidade e está
na origem do impressionante potencial de troca das sociedades hu
manas - sobretudo das modernas (Lamo de Espinosa, E., 1 990).
Além disso, a referida inserção reflexiva dos níveis generativo
e emergente, micro e macro, tem, como já se apontou, um caráter
"ultra-holográfico" . . Q!ier dizer, pode nidificar-se indefinidamente,
em sucessivos níveis recursivos, em quaisquer dos pontos - das cons
ciências - do holograma social. Esta propriedade se instrumenta por
267
meio das capacidades auto e heterorreflexivas da consciência huma
na: eu posso imaginar o modo como alter concebe a realidade social,
tanto em nível micro - em relação com uma situação concreta de
interação - quanto macro. Mas posso representar-me assim mesmo
o modo como alter imagina as concepções correspondentes de um
segundo alter, e também o modo como alter imagina que este segun
do alter imagina, a sua vez, as de um terceiro, etc.
Esta capacidade, especificamente humana e potencialmente in
finita, de representação recursivamente transconsciente não apenas nm
ciona em sentido transitivo, como também de maneira propriamente
reflexiva: eu posso imaginar a forma como alter concebe minhas pr6-
prias concepções acerca da realidade social - acerca de qualquer outra
realidade. Trata-se de uma capacidade que se pode denominar, com
certa propriedade, "ultra-holográfica": em cada parte - no seio de
cada consciência individual - não s6 é possível representar o todo,
mas também uma pluralidade de partes, cada uma das quais pode, por
sua vez, e em sucessivos níveis recursivos, representar esse todo.
Esta faculdade ultra-holográfica da consciência humana está na
origem da complexidade característica do modo de ação, do aglucia
mento pr6prio de nossa espécie. Representa, por isso mesmo, o meca
nismo hiper-reflexivo que subtende a constituição das realidades soci
ais humanas e que explica tanto a exuberância estrutural das mesmas
quanto seu fabuloso potencial de troca - em definitiva, sua riqueza
morfogenética (Navarro, P., 1996). A noção de "holograma social"
corre o risco de ser radicalmente mal entendida se a relação à que
alude entre as partes e o todo é interpretada de maneira trivial e, em
certo modo, invertida: como uma relação de c6pia ou mímesis.
A idéia de holograma social propõe aproximadamente o con
trário do que certa tradição, talvez dominante, do pensamento soci
ológico pretende assumir. A saber, que "a sociedade" é, na essência,
uma realidade que subsiste acima dos indivíduos, na forma de uma
"consciência coletiva" - sistema de normas, cultura, ideologia etc. E
que os sujeitos sociais assumiriam a condição de agentes sociais e se
definiriam como tais, meramente a partir d a "interiorização" e "re
produção" dessa realidade externa e superior a eles. Deste ponto de
vista holográfico, as "partes" não mimetizam o todo social, mas cons-
268
tituem-no, do mesmo modo que o genótipo de um organismo não é
uma "c6pia" de seu fenótipo, mas seu "original", as consciências dos
sujeitos individuais não são imitações em miniatura do que, ao final
de contas, é seu produto emergente - a "ordem social"-, mas causa
do mesmo. Em realidade, e devido à reflexão característica dos ní
veis macro e micro, não há um todo social, mas tantas versões do
mesmo como sujeitos individuais que o postulam.
O holograma social que tende a se constituir como o meca
nismo hiper-reflexivo da consciência humana é, sem dúvid a, si
multaneamente necessário e impossível. É necessário porque não
podemos deixar de construí-lo imagi nariamente no curso de nossa
ação social - como não podemos atuar sem assumir o postulado
de nossa liberd ade. Necessitamos crer que podemos entender os
outros para atuar socialmente com sentido, e a execução dessa crença
coincide com a constituição reflexiva de nosso próprio holograma
social individual. Mas essa crença pode ser irremediavelmente des
frald ada, e sua execução revelar-se, tarde ou cedo, impossível: a
intenção de reproduzir reflexivamente as consciências alheias fra
cassa sempre, de um ou outro modo, e o holograma imaginário
deve ser mais uma vez reconstruído, como um castelo de naipes
permanentemente refeitos e destinados sempre a ser novamente
derrubados.
Como surge o alud ido aspecto "macroobjetivo" do social, a
partir d esse mecanismo de socialidade reflexivamente holográfi
co que é próprio do ser humano? Neste aspecto, o paradoxo é
notável: pois tal aspecto "macroobj etivo" não surge desse meca
nismo, mas precisamente d as limitações intrínsecas do mesmo. O
fator que causa a emergência dos aspectos reificados d a vida soci
al - cada vez mais potentes e abarcadores nas sociedades moder
nas - não é a reprodução d a intencionalidade dos agentes sociais
na consciência de cada um desses agentes, mas os processos de
dissipação dessa i ntencionalidade no processo mesmo d a intera
ção entre tais agentes. Pois essa dissipação intencional é um fenô
meno criativo que, em lugar de conduzir a um incremento global
da desordem da sociedade, origina a aparição de novas estruturas
não submetid as diretamente ao controle reflexivo das consciênci-
269
as dos agentes que i nduzem com sua ação a emergência d essas
estruturas. Com efeito, estas estruturas são - por sua própria fo r
ma de se constituírem não a partir d a intenção dos agentes soci
ais, mas das conseqüências inopinad as e por vezes indesejadas
dessa intenção -, autênticas estruturas dissipativas intencionais
capazes de controlar a ação dos indivíduos através d a própria
opacid ade que lhes dá origem (Navarro, P., 1 996).
Notas
Bibliografia
2 70
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PRIBRAM, K. H . e MARTÍN RAMÍREZ, J. Cerebro, mmte e holograma. Ma
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U niversidade Federal do Rio Grande do Norte
EDUFRN - Ed itora da UFRN
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-... _