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ENSAIO
Todos os comportamentos,
atos de comunicação
e informações sobre animais
apresentados neste romance
foram reportados por cientistas.
.
Prólogo
II
III
IV
VI
VII
Talvez tenha sido por mera cortesia, mas o facto é que o inspetor
Caparro decidiu não pôr as algemas em Maria Flor. Limitou-se a dar-
lhe ordem de prisão e a acompanhá-la pelos corredores desertos do
Oceanário de Lisboa sem sequer requerer que o agente da PSP fosse
com eles. Ela caminhava de cabeça baixa, em silêncio, as lágrimas a
deslizarem-lhe pelas faces rosadas; era incrivelmente duro viver uma
situação daquelas. Tomás abraçou-a e tentou reconfortá-la.
“Tem calma”, murmurou numa voz tranquilizadora. “Isto é tudo
um equívoco que de certeza se desfará logo que se perceba o que
realmente aconteceu. Vou falar com um advogado, o melhor que
houver por aí, e em breve estarás em casa. Não te preocupes com
nada, irá acabar tudo bem. Quem não deve, não teme.”
Tudo aquilo era verdade, claro, mas o facto é que ela estava nesse
momento detida e iria ser trancada numa cela. Tomás não tinha
dúvida de que a experiência seria traumatizante, não apenas pela
suprema humilhação de a mulher se ver sob suspeita num caso de
homicídio como pelo facto de ela ser na sua essência um pássaro livre.
Ninguém com as suas características sobrevivia incólume à privação
da liberdade; havia certos seres que não tinham nascido para serem
fechados numa gaiola.
Já perto da saída passaram por três portas a indicarem o WC com a
tradicional sinalética para mulheres, homens e pessoas de mobilidade
reduzida. Ela parou diante da porta das senhoras e encarou o
investigador da Judiciária.
“Tenho de ir ao quarto-de-banho.”
“Agora?”
“Estou aflita. Deve ser do enervamento, não sei. Tenho de ir ao
quarto de banho.”
O inspetor Caparro suspirou, enchendo-se de paciência. Não lhe
pareceu adequado estar lá dentro a vigiá-la, mas mesmo assim o
protocolo da polícia criminal requeria medidas especiais de vigilância
sobre os suspeitos detidos. Abriu a porta e entrou no WC das
senhoras, começando a inspecionar o espaço para se assegurar de que
não havia ali nenhuma janela nem qualquer outro acesso ao exterior
por onde ela se pudesse escapulir.
Agindo com uma rapidez que a todos apanhou de surpresa, Maria
Flor apalpou a fechadura, sentiu a chave no interior, tirou-a e fechou a
porta, rodando a chave e trancando-o lá dentro.
“Ei!”, gritou o polícia, a voz abafada pela porta. “O que está a
fazer? Deixe-me sair!”
Ela puxou o marido pelo braço.
“Vamos!”
A ação deixou Tomás paralisado. Ver a mulher fazer algo assim era a
última coisa que esperaria.
“Estás louca?”
“Abra a porta!”, gritava o polícia do interior do WC. “Ouviu? Abra
a porta!”
“Vamos!”, insistiu Maria Flor, voltando a puxá-lo pelo braço. “Não
temos muito tempo.”
Tomás não se moveu.
“Não podes fazer isto! Apenas vais piorar as coisas e dar a
impressão de que és culpada!”
“Qual a alternativa?”
“Vais com ele para a Judiciária e esclareces tudo. Lá diz o povo, a
mentira lava-se com a verdade.”
“Não percebes que me armaram uma cilada?”
A palavra deixou-o estupefacto.
“Uma cilada?!”
“E das grandes!”, confirmou Maria Flor. “Não tenho nada a ver
com os papéis que apareceram na minha carteira, não faço ideia de
como foram lá parar. Alguém anda a tentar tramar-me. Se me querem
incriminar desta forma, é evidente que me vão incriminar de outras
também. A minha única hipótese é provar a minha inocência antes
que seja tarde demais. Se for para a cadeia, como poderei fazer essa
prova? Tenho de fugir, percebes?”
Aquele raciocínio roçava a paranoia e estava longe de convencer o
marido.
“Ouve, querida, a fuga é a pior solução”, insistiu, esforçando-se por
lhe transmitir serenidade. “É melhor termos calma, não nos
precipitarmos. Decerto que as coisas se tornarão mais claras, pois
quem nada fez nada tem a temer.”
Fechado no quarto de banho das senhoras e sem o telemóvel
operacional, o inspetor Caparro não parava de gritar, batendo na
porta enquanto repetia as ordens com uma voz exasperada.
“Abram!”
Como não havia ninguém nas redondezas e o acesso ao Oceanário
fora bloqueado pela própria polícia enquanto decorriam as
investigações, o casal não se preocupou com a possibilidade de algo
acontecer de imediato que comprometesse a sua situação.
“És mesmo ingénuo. Achas que em caso de necessidade quem me
tramou com esses papéis na minha carteira não me irá tramar de
novo?”
“Bem...”
Ela puxou-o com força.
“Confia em mim. Ajuda-me a provar a minha inocência.”
“Mas... isso é uma loucura. Achas que consegues fugir à polícia?”
Os olhos dela chisparam.
“Acho que se fosse o Noé, ele ajudar-me-ia sem hesitar! Sem hesitar,
ouviste?”
O despropósito da referência ao etólogo chocou o marido.
“O Noé? O que tem ele a ver com...”
As batidas na porta tornaram-se estrondos; o investigador da
Judiciária desistira de tentar convencê-los. Projetava o corpo contra a
porta e procurava arrombá-la. A todo o momento a estrutura iria
ceder perante os sucessivos impactos. O tempo esgotava-se.
“Se não me ajudas nem acreditas em mim, farei tudo sozinha”,
avisou Maria Flor, olhando-o com a expressão de quem se sentia
dececionada. “Aqui é que não fico e não deixarei que me apanhem
sem dar luta. Pensei que tinha casado com um homem que me
protegeria, mas afinal...”
Largou o marido e começou a afastar-se em passo apressado em
direção à saída do edifício. Vendo-a partir, Tomás percebeu que não
podia deixá-la sozinha numa situação daquelas. Nas horas boas e nas
horas más, não era esse o compromisso de um casamento? A hora má
tinha chegado e, apesar da péssima decisão que ela tomava e das
dúvidas crescentes em relação ao tipo de relação que a mulher
mantinha com o falecido chefe, abandoná-la naquelas circunstâncias
estava absolutamente fora de questão.
“Espera!”
Correu atrás dela. Permanecia convencido de que fugir era a decisão
errada, mas teria de confiar em Maria Flor e ajudá-la no que pudesse.
Alcançou-a à saída do edifício e ao lado dela passou por vários
agentes da PSP que mantinham a segurança do local.
Atravessaram em passo lesto o passeio que rodeava a marina junto
ao Oceanário, temendo que a todo o momento o inspetor Caparro
aparecesse atrás deles aos gritos e pusesse toda a polícia no seu
encalço. Desceram para o parque de estacionamento subterrâneo e
encaminharam-se para o lugar onde Tomás havia guardado o carro.
Sem dizer uma palavra, pois o tempo urgia e o alarme iria soar a todo
o instante, enfiaram-se no automóvel e arrancaram.
Uma vez no exterior, Tomás tomou a direção da Segunda Circular.
“Conta-me a verdade”, pediu-lhe, resignando-se já à sua situação de
fugitivo e ciente de que não havia muito tempo para se inteirar dos
factos e agir para a ilibar. “Não fazes mesmo ideia do significado da
mensagem do Noé?”
“Claro que faço”, admitiu ela. “O Noé disse-me que tinha na sua
posse um dossiê explosivo, algo que iria deixar muita gente
importante em grandes dificuldades e pôr em causa um negócio que
envolve imenso dinheiro.”
“Que negócio? Que gente?”
“Isso não me revelou. Pareceu-me muito perturbado, coitado.”
O historiador fez um esforço de memória, reconstituindo a
mensagem encontrada no cadáver do etólogo belga.
“A verdade esconde-se atrás da queda do homem”, recordou.
“Como sabes que esta frase diz respeito a esse dossiê?”
“Porque pelos vistos esse dossiê conta a verdade toda”, foi a
resposta. “De resto, a que outra coisa se poderia estar ele a referir?”
“Verdade sobre o quê?”
“Isso é o que teremos de descobrir”, devolveu Maria Flor. “O
inspetor Caparro tinha razão quando disse que se o Noé me
endereçou esta mensagem era porque eu a compreenderia.
Compreendo-a, sim, mas só como uma referência à verdade que o tal
dossiê revela.”
“Porque não explicaste isso ao inspetor?”
Ela inclinou a cabeça, assumindo a expressão de quem não se achava
parva.
“Com base no que o Noé me contou, não tenho dúvidas de que o
material que ele encontrou põe em causa algo muito importante.
Achas que eu iria confiar essa informação a um estranho assim do pé
para a mão? Estamos possivelmente a falar de gente da pesada,
Tomás. Decerto com acesso ao poder político. Talvez com acesso ao
poder judicial. Pessoal que controla os políticos e, através destes, os
polícias. Estão em jogo muitos interesses. Não podemos confiar em
ninguém.”
Tomás nada disse por uns momentos, concentrando-se
ostensivamente na condução do automóvel mas na verdade a avaliar a
situação. Tinham escapado ao investigador da Judiciária, é certo,
embora não tivesse dúvidas de que nesse momento o alerta já fora
dado e depressa teriam a polícia no encalço. Era uma questão de
tempo até serem apanhados. A fuga só faria sentido se tivesse um
propósito.
“Qual é o teu plano?”
Ela abanou a cabeça.
“Não faço a menor ideia. O que sugeres?”
A pergunta dela deixou-o sombrio. O facto de a mulher não ter
qualquer plano não era boa notícia. Fugir por fugir apenas os
conduziria à catástrofe. Tinham de usar bem o pouco tempo que lhes
restava de liberdade.
Só via uma opção.
“Esse dossiê... onde o devemos procurar?”
“Na casa do Noé, é claro.”
Tendo enfim um destino, Tomás carregou no acelerador. Precisavam
de chegar o mais depressa possível ao Jardim dos Animais com Alma.
.
VIII
“Hellooo!”
A saudação, vinda algures do interior da casa, deixou Maria Flor
intrigada. Noé Vandenbosch correu uma cortina púrpura no canto da
sala, desvendando uma enorme porta de ferro. Abriu-a e, cruzando
uma antecâmara escura, decerto de origens medievais, entraram num
espaço excentricamente decorado, com símbolos bizarros e quadros
reproduzindo cenas com animais no meio de estantes repletas de livros
de lombada antiga.
“O que é isto?”
“É o meu... uh... escritório.”
A decoração era estranha para um escritório, mas a atenção de
Maria Flor depressa se desviou para o enorme pássaro que se
empoleirava numa vara junto à janela, sobre uma estranha esfera
metálica. A ave era cinzenta, com a ponta da cauda encarnada, e
maior do que alguma vez imaginara que um papagaio pudesse ser.
“Apesar do nome brasileiro, o Carioca é um papagaio-africano”,
revelou o etólogo. “São os papagaios mais inteligentes e que mais bem
falam.”
Nesse instante a chimpanzé veio atrás deles e, grunhindo, esboçou
um gesto na direção de Carioca.
PÁSSARO SUJO.
O papagaio virou-se para Guida.
“Dou-te um pontapé no cu, filho da puta!”
Ao ouvir a frase em bom português, Maria Flor abriu a boca,
escandalizada, e Noé, corando, pegou na chimpanzé e devolveu-a
apressadamente à sala. Quando voltou ao escritório tinha um
semblante embaraçado.
“As minhas desculpas, tive uns homens das obras a fazer umas
reparações cá em casa e... enfim, ensinaram-lhe algumas coisas”,
balbuciou. “Não devia ter animais neste espaço, mas fui forçado a
meter o Carioca aqui porque a Guida implica com ele. Chega a
arrancar-lhe penas, e não quero que aconteça nenhuma desgraça. Aqui
no escritório está seguro.”
Refazendo-se do choque, a nova colaboradora da GreenNaturae
abeirou-se do poleiro onde a ave se encontrava.
“Que lindo! Um papagaio!”, disse. Inclinou-se para ele. “Olá! Olá!”
O papagaio respondeu.
“Hellooo!”
Ela riu-se e voltou-se para Noé.
“Que engraçado, tem a sua voz. Sem tirar nem pôr.”
“É natural. Excetuando aquela pequena parte em português dos
homens das obras, aprendeu inglês comigo. Até sabe o nome do
Dorian.”
Maria Flor admirou o pássaro. Mais do que o tamanho, era a sua
simples presença que se revelava dominante.
“É ótimo ter aqui um papagaio”, constatou ela. “No fim de contas,
e mesmo não sabendo o que dizem, eles falam, não é verdade?”
Noé esteve prestes a responder, mas deteve-se. Tudo a seu tempo,
considerou. A nova colaboradora só poderia compreender as
experiências que ali decorriam se entendesse a real natureza dos
animais.
“Sabe, chère Fleur, uma das grandes ilusões dos seres humanos é a de
que são os únicos seres vivos capazes de comunicar”, acabou por
dizer. “Isso é um perfeito absurdo, como deve calcular. Todos os
animais comunicam, e fazem-no emitindo sons, gestos, expressões,
cheiros...”
“Creio que, quando se diz que os seres humanos são os únicos seres
vivos capazes de comunicar, o que realmente se quer dizer é que são os
únicos capazes de se expressarem através de linguagem, de
conversarem, de...”
“Mas os gestos são linguagem, chère Fleur! Não vê a Guida? Ela
comunica por gestos. E não é a primeira chimpanzé a fazê-lo. Um
casal americano, os Hayes, adotou na década de 1940 uma
chimpanzé, a Viki, e tentou ensiná-la a falar. A Viki ainda aprendeu a
dizer quatro palavras, mamã, papá, copo e cima, mas não mais do que
isso. A experiência com a Viki levou muitos cientistas a afirmar que
estava feita a prova de que só os seres humanos têm uma capacidade
inata para a linguagem.”
“Justamente o que eu lhe dizia.”
“Não é verdade, chère Fleur. A comunicação verbal é apenas uma de
várias formas de comunicação, e não a mais adequada para os
chimpanzés. Por causa de limitações impostas pela sua língua
relativamente fina e pela posição alta da laringe, os chimpanzés têm
muita dificuldade em pronunciar vogais. Acontece que Jane Goodall
observou na Tanzânia que os chimpanzés são mestres da comunicação
por gestos e expressões faciais. Pesquisadores no Uganda elaboraram
mesmo um primeiro dicionário de chimpanzês, tendo identificado
sessenta e seis gestos que os chimpanzés usam para comunicar entre
eles, formulando assim frases gestuais como vem cá, dá-me um
abraço, dá-me isso, vai-te embora, vamos fazer sexo e vamos brincar.
Isso levou um outro casal, os Gardner, a mudar de tática. Percebendo
que os investigadores estavam a cometer um erro elementar ao reduzir
toda a comunicação à linguagem verbal, os Gardner adotaram na
década de 1960 uma outra chimpanzé, a Washoe de que lhe falei há
pouco, e começaram a ensinar-lhe ASL, a língua gestual americana.”
“Como a Guida.”
“Washoe foi o primeiro chimpanzé capaz de comunicar com seres
humanos por gestos. Durante nove meses esteve a aprender palavras
isoladas, como escuta e cão, por exemplo, e ao décimo mês começou
espontaneamente a combinar palavras. Ao ouvir um cão a ladrar,
pôs-se a dizer por gestos aos Gardner: escuta cão. Ou seja, formava
frases, capacidade que se pensava ser exclusiva dos seres humanos. A
experiência foi um sucesso e em breve começou a ensinar-se língua
gestual a outros chimpanzés, sempre com bons resultados. Os
behavioristas alegaram que os chimpanzés não usavam a língua
gestual espontaneamente e que se limitavam a papaguear gestos dos
seres humanos. Essa hipótese foi testada, tendo-se instalado câmaras
nos locais onde estavam os chimpanzés que comunicavam por língua
gestual e filmado o que eles faziam quando não se encontravam na
presença de seres humanos. Quando se revelaram esses filmes, sabe o
que mostravam?”
“Comunicavam entre si também por língua gestual.”
“Os chimpanzés usavam língua gestual humana para partilhar
cobertores, fazer jogos, tomar o pequeno-almoço, comentar a comida,
comentar fotografias e prepararem-se para dormir. Até a meio de
conflitos familiares, quando se punham a gritar, recorriam à língua
gestual humana. Esta forma de comunicação tornou-se parte das suas
vidas emocionais e intelectuais, e mesmo quando estavam sozinhos e
falavam consigo mesmos usavam língua gestual humana. A própria
Washoe ensinou língua gestual humana a outros chimpanzés,
incluindo o filho Loulis, de tal modo que Loulis se recusava a usá-la
para comunicar com os homens, reservando-a apenas para comunicar
com outros chimpanzés.”
“Devia achar que a língua gestual era a linguagem específica dos
chimpanzés...”
“Outros achavam que era a linguagem dos gorilas”, adiantou Noé.
“Isso aconteceu com um bonobo chamado Kanzi. Sem que os seus
tratadores humanos se apercebessem, este chimpanzé-pigmeu
aprendeu língua gestual a ver vídeos da gorila Koko. Tendo depois
conhecido uma criança autista que comunicava por língua gestual,
Kanzi ficou de tal modo surpreendido que lhe perguntou em língua
gestual se ela era um gorila.”
Riram-se os dois.
“Só se conseguiu ensinar aos chimpanzés língua gestual?”
“Acha pouco, chère Fleur?”, questionou Noé. “A língua gestual foi o
método mais bem-sucedido, apesar de a língua gestual dos símios se
ter mostrado sempre mais rudimentar e limitada do que a humana,
pois não tem tempos verbais nem eles complexificam as mensagens.
Washoe e os restantes chimpanzés mostraram que não só os animais
comunicam entre si como são capazes de comunicar com outras
espécies de diversas maneiras.”
“Ora, grande novidade!”, devolveu Maria Flor, não muito
impressionada com esta conclusão. “Qualquer dono de um animal
doméstico, por exemplo, sabe muito bem que eles são perfeitamente
capazes de comunicar com outras espécies. Quando o cão faz
movimentos a pedir brincadeira, ou uiva de angústia quando vê o
dono sair de casa, ou dá pulos e abana a cauda quando o vê regressar,
ou durante a refeição lhe toca com a pata a pedir comida, que eu saiba
isso são formas de comunicação entre espécies.”
“Tem toda a razão. O problema é que muitos cientistas permanecem
desconfiados quanto ao que esses comportamentos realmente querem
dizer e vão argumentando que se trata de simples reações a reflexos
condicionados.”
“Que disparate!”, riu-se ela. “A questão não é determinar se os
animais comunicam, pois é evidente que comunicam, mas se...”
As palavras de Maria Flor foram interrompidas por um movimento
súbito de Carioca, que se pôs aos saltinhos no poleiro, a atenção presa
nela. Ao ver este comportamento, Noé soltou uma enorme
gargalhada.
“M’enfin! Ele gosta de si!”, exclamou, divertido. “Não vê? Ah, que
máximo!”
A portuguesa analisou os movimentos do papagaio, que apesar dos
saltinhos não a largava com o olhar.
“É, parece ter simpatizado comigo...”
“Simpatizar?”, riu-se o etólogo. “Oh la la! O Carioca quer fazer
amor consigo!”
Maria Flor enrubesceu.
“Perdão?”
“Estes saltinhos são a dança da sedução. Muitos pássaros, incluindo
os papagaios, executam-na quando encontram uma fêmea que lhes
interessa. Ou seja, o Carioca está a cortejá-la.”
O olhar incrédulo da nova colaboradora da GreenNaturae fixou-se
no papagaio, que continuava aos saltos no poleiro. Seria possível uma
coisa daquelas? Um papagaio a cortejá-la?
“Está a brincar...”
Nesse momento, Carioca interrompeu a dança da sedução e voltou a
revirar a cabeça na direção dela.
“Wanna go shoulder”, disse em inglês. “Quero ir para o ombro.”
A frase foi inesperada. Maria Flor julgou ter ouvido mal, mas não
teve tempo para refletir sobre o que o papagaio acabara de dizer
porque este saltou do poleiro e esvoaçou para o ombro dela. Uma vez
empoleirado nela, recomeçou a dança da sedução.
Noé riu-se de novo, sempre divertido com a cena.
“Mon Dieu! É mesmo paixão!”
Tudo aquilo era novidade para a portuguesa, que não sabia como
reagir nem o que pensar. Um papagaio estava romanticamente
interessado nela? Que disparate vinha a ser aquele?
A dança terminou e Carioca inclinou-se para Maria Flor, quase
colando o bico à orelha dela.
“I love you”, disse-lhe. “Amo-te.”
Com uma gargalhada sonora, Noé devolveu a ave ao poleiro.
“Mince, alors! Hoje estás o máximo, Carioca...”
O papagaio abanou as asas.
“Wanna nut”, disse, como se mudasse de tema. “Quero uma noz.”
O etólogo deitou a mão ao bolso e esboçou um súbito esgar
contrariado.
“Ah, merde! Esqueci-me das nozes!” Encolheu os ombros e encarou
o pássaro. “Não tenho nozes, Carioca”, informou-o, voltando a falar
em inglês. “Queres uvas?”
“Quero uma noz.”
“Não há nozes. Que tal uma banana?”
“Quero uma noz.”
Noé suspirou, frustrado.
“Este gajo é um chato”, resmungou ao dar meia-volta para sair do
espaço onde se encontravam e regressar à sala. Soltou um “ah!”
distante e pouco depois regressou com uma noz, que estendeu à ave.
“Toma lá, ó comilão.”
O papagaio engoliu a noz rapidamente. Voltou a encarar o etólogo.
“Quero uma noz.”
“Outra?” Bufou. “Não, acabaram-se as nozes. Que tal uma
banana?”
“Quero água.”
Enchendo-se de paciência, o cientista belga voltou à cozinha para ir
buscar um copo com água. Carioca bebeu dois golos e no final, com o
bico, pegou no copo de plástico, arrancou-o da mão do dono e
atirou-o ao chão com um certo desprezo.
“Isso são maneiras?”, protestou Noé, apanhando o copo. “Estou
tramado contigo...”
Toda a cena foi vivida e observada por Maria Flor com enorme
perplexidade. Por momentos nada foi capaz de dizer, pois era tudo
novo e desconcertante, mas por fim assimilou a cena.
“Desculpe, o que se está a passar aqui?”, quis saber. “Ele consegue
pedir nozes e água e também para ir para o ombro das pessoas?”
“Não sabia que os papagaios falam?”
“Isso toda a gente sabe. A diferença é que não têm noção do que
dizem.”
“Ai não? Então como explica o que acabou de ver?”
A portuguesa passou a mão pelo cabelo encaracolado, desconcertada
com a pergunta e com o facto de que a evidência lhe mostrara o
contrário do que aprendera.
“Bem... sempre ouvi dizer que os papagaios se limitam a imitar sons.
É aliás por isso que se usa a expressão papaguear, não é? Uma pessoa
que papagueia algo é uma pessoa que imita uma coisa sem ter a noção
do que está realmente a dizer.”
“Eu sei o que se diz e se pensa acerca dos papagaios, mas como está
a constatar não é bem assim. Os papagaios não se limitam a imitar
sons, chère Fleur. Eles sabem perfeitamente o que estão a dizer.”
“Está a brincar...”
A evidência era a evidência, sabia Noé, como sabia que havia
evidências tão incríveis e que contrariavam crenças de tal modo
enraizadas que as pessoas evitavam compreendê-las ou sequer aceitá-
las. Aquele era um desses casos. Cabia-lhe a ele destruir assim um dos
maiores mitos sobre os animais em geral e os papagaios em particular.
“Não o viu ainda há minutos a cortejá-la com a dança da sedução?
Isso mostra que não é parvo nenhum. Dá a impressão de que quando
lhe diz que quer ir para o seu ombro é porque sabe o que está a dizer.
E, sobretudo, indicia que tem a noção do que é a beleza e a
consciência de que a Fleur é uma mulher muito bela.”
A portuguesa pestanejou e enrubesceu. Acabara de ouvir o primeiro
piropo de Noé. E, pela maneira como o belga a olhava, pressentiu que
não seria o último.
.
IX
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
Tudo aquilo foi demais para Maria Flor. Não só Guida havia
atacado os polícias que os perseguiam, como para se defenderem os
agentes tinham aberto fogo contra a chimpanzé. O que mais receava
estava a acontecer. Só ela podia pôr fim àquela situação. Desistindo de
lutar, começou a dirigir-se para o sítio onde o animal desaparecera
momentos antes.
“Não disparem!”, implorou, caminhando de braços no ar e
tropeçando por entre a vegetação. “É apenas uma chimpanzé! Eu... eu
rendo-me!”
Em condições normais Tomás insistiria para que continuassem a
fugir, mas aquelas eram circunstâncias excecionais. A chimpanzé
atacara a polícia, provavelmente com grande violência, e com toda a
probabilidade, considerando os disparos ocorridos instantes antes, os
agentes já a tinham abatido.
“Não disparem!”
De repente ouviu-se um barulho de galhos a quebrar, os arbustos
remexeram-se com fragor e o vulto escuro da chimpanzé emergiu de
toda aquela verdura, correndo na direção deles e fazendo sinais
veementes em língua gestual.
CORRAM CORRAM.
Assustada com os tiros, Guida saltou para os braços de Maria Flor e
esta ficou um momento sem saber o que fazer. Deveria retomar a
fuga? A ideia perpassou-lhe por instantes pela mente, mas logo que a
considerou percebeu que não era exequível. Não só se sentia exausta
como estava fora de questão correr pela floresta com a chimpanzé ao
colo. Não tinha de resto a menor possibilidade de sucesso. Ainda por
cima, e sobretudo, o animal havia atacado a polícia e decerto não fora
meiga. Os chimpanzés podiam ser muito ferozes. Isso dava aos
polícias ampla motivação e cobertura legal para atirarem a matar.
“Parem!”, gritou um dos perseguidores, ainda invisível por entre a
vegetação. “Rendam-se ou disparamos!”
Lançando um olhar de súplica para o marido, Maria Flor não sabia
o que fazer.
“E agora?”
“Temos de fugir!”
“Mas... não vês que é impossível?”
Não havia dúvida de que a mulher não dispunha já das menores
condições para prosseguir a fuga. Tomás tinha de se render à evidência
e agir em conformidade.
“Não podemos ser os dois apanhados, pois ninguém nos irá ajudar”,
disse ele. Olhou para o pinhal. “Vou... vou tentar escapar eu.”
“E a Guida?”
“Entrega-te com ela.”
“A Guida não aceitará, Tomás. Quando vir os polícias prenderem-
me, atacá-los-á e eles matá-la-ão. Não viste o que acabou de
acontecer? Ficaram com medo dela e, se a virem pela frente a
ameaçá-los, não lhe vão dar hipóteses.”
A mulher tinha razão, sabia o historiador. Não podia deixar a
chimpanzé ali.
“Rendam-se!”
Tomás estendeu as mãos na direção do animal, mas Guida
permaneceu abraçada à sua protetora.
“Vai com ele, Guida”, disse-lhe Maria Flor numa voz tranquila,
tentando acalmá-la e adormecer-lhe a desconfiança e o medo. “Eu vou
ter com os meus amigos. São meus amigos. Tu vais com o Tomás.”
A chimpanzé gesticulou de volta, comunicando a resposta em língua
gestual.
NÃO.
Não iria ser fácil convencer o animal. Estava demasiado assustado e
o medo poderia torná-lo agressivo.
“O Tomás quer ser teu amigo, Guida”, indicou Maria Flor,
mudando de tática. “Já me contou. Não queres ser amiga dele? Ele
pode abraçar-te muito. Não gostavas disso?”
Na linguagem da chimpanzé, amigo significava parceiro sexual e
abraço, no contexto de uma frase que envolvia um parceiro sexual,
queria dizer sexo. Guida lançou um olhar subitamente interessado na
direção de Tomás.
Interrogando-se sobre o que mais lhe haveria de acontecer na vida, o
historiador engoliu em seco e assentiu.
“Anda, Guida”, disse-lhe, agarrando-a. “Quero ser teu... uh...
amigo. Vamos... vamos abraçar-nos.”
Desta feita a chimpanzé largou Maria Flor e deixou-se levar para o
colo dele. Logo que o abraçou, esfregou o ventre nele, tornando claras
as suas intenções.
ABRAÇA-ME.
“Oh-oh. Agora não, Guida.”
ABRAÇA-ME.
“Depois, depois.”
Dois polícias fardados e um homem à paisana que ambos reconhe-
ceram, o inspetor Caparro da Judiciária, assomaram de repente da
folhagem com pistolas apontadas para eles.
“Não se mexam”, ordenaram. “Quietos ou disparamos!”
Os fugitivos trocaram um olhar de despedida e, voltando-se para os
polícias, Maria Flor ergueu os braços.
“Rendo-me.”
Logo que ela anunciou que se entregava, Tomás virou-se e desatou a
correr pelo pinhal com Guida ao colo.
Soou um tiro e sentiu a bala zumbir-lhe por cima da cabeça.
“Quieto!”
“Rendo-me!”, insistiu lá atrás Maria Flor, a interpor-se entre os
polícias e o marido para atrapalhar a perseguição. “Eu é que estou sob
suspeita. Eu, não ele. Não disparem, eu rendo-me! Não veem?
Rendo-me!”
O disparo fez explodir a adrenalina e foi como se Tomás tivesse
acabado de tomar uma injeção de doping, pois ganhou forças que não
sabia ter e, cheio de vigor súbito, acelerou no seu ziguezague pela
floresta, contornando pinheiros, mergulhando em arbustos, saltando
sobre rochas e pisando charcos.
Soou um novo tiro.
O fugitivo não se importou. Sentia-se pleno de força e tinha a
certeza de que os seus perseguidores não seriam capazes de
acompanhar o seu ritmo de corrida. O disparo era aliás prova disso.
Os polícias tentavam intimidá-lo, queriam convencê-lo a desistir, mas
ele não desistia; não estava na sua natureza. Foi correndo e saltando e
correndo, metendo por aqui e esgueirando-se por ali, até que por fim,
já em pleno parque natural de Sintra, percebeu que os homens que lhe
davam caça lhe haviam perdido o rasto e, abrandando, foi à procura
de um sítio onde se pudesse esconder. Cumprira o seu objetivo
imediato.
A seguir teria de cuidar de Guida. E sobretudo lidar com o “abraço”
mais íntimo que ela lhe iria exigir.
.
XXII
XXIII
XXIV
XXV
XXVI
XXVII
XXVIII
XXIX
XXX
XXXI
Por mais força que fizesse e por mais que tentasse, Tomás não
conseguia libertar-se das cordas que lhe atavam as mãos atrás das
costas. Não era fácil soltar-se, ainda por cima porque tinha de se
concentrar na conversa para manter o seu captor distraído.
“Os chimpanzés fazem ciência?”
Zwiebel mostrava um semblante imperturbável.
“O fabrico de ferramentas é ciência, meu caro”, disse o suíço. “Mas
faço notar que a ciência dos chimpanzés não se limita a isso. Eles
desenvolveram cultura médica e farmacêutica, uma vez que usam
plantas medicinais para se tratarem. Tribos humanas como os Mende
aprenderam com os chimpanzés que tipos de plantas devem utilizar
para tratar certas maleitas, e foram até confrontadas com plantas com
propriedades terapêuticas com as quais não estavam familiarizadas
mas que os chimpanzés conheciam bem. A medicina dos chimpanzés
revelou-se de tal modo eficaz que até as grandes empresas
farmacêuticas ocidentais estão agora a usar essas plantas para
produzir antibióticos e agentes antivirais.”
Sempre a contorcer as mãos atrás das costas para tentar criar uma
folga nas cordas, o historiador soltou uma risada incrédula.
“Caramba, andamos a ser tratados com medicina chimpanzé!”,
exclamou. “Quem diria, hem?”
“Não são só os chimpanzés, meu caro”, acrescentou Zwiebel. “Os
babuínos da Etiópia mais propensos a sofrer de esquistossomose
comem um fruto, chamado balanites, que reduz o impacto desse
parasita. Os babuínos que não sofrem da doença não comem
balanites. Também os camelos do Quénia recorrem a uma planta
medicinal que mata ténias, enquanto os tigres de Bengala e os chacais
consomem frutos tóxicos que eliminam parasitas no interior do corpo.
Rinocerontes e ursos fazem o mesmo, aliás. Tal como os elefantes.”
“Uau!”
“Depois há a questão da linguagem. Os chimpanzés comunicam
sobretudo por gestos, como já deve ter reparado, mas descobriu-se
que os gestos variam de comunidade para comunidade. Por exemplo,
a ordem para parar. Num lado da floresta, é uma mão erguida com a
palma voltada para a pessoa a quem a comunicação é dirigida, como
um polícia sinaleiro. Noutro lado é um gesto em colher e noutro ainda
é um abanar da mão. É como se fossem línguas diferentes, está a
perceber? Na Tanzânia, comunidades de chimpanzés separadas por
apenas oitenta quilómetros têm gestos diferentes para pedir para
coçar. Ou veja o caso do convite para o sexo. Os chimpanzés de
Mahale convidam as fêmeas com cio pondo uma folha diante da boca
e deixando-a cair, mas numa comunidade vizinha esse convite é feito
abanando um ramo. Línguas diferentes, meu caro. Tal como os seres
humanos, os chimpanzés aprendem a linguagem no seio da sua
comunidade e cada comunidade tem a sua própria linguagem. Um
gesto que significa uma coisa numa comunidade não tem qualquer
significado noutra, tal como uma palavra em alemão nada significa
entre os portugueses. Tudo isso é cultura.”
O olhar do historiador desviou-se para Guida, que continuava
entretida com a sua National Geographic.
“Não admira que ela se tenha adaptado tão bem aos objetos
culturais humanos...”
“O que estamos a descobrir com os animais é que a cultura resulta
de um comportamento conformista, em que os elementos de um grupo
se imitam mutuamente para mais bem se integrarem e serem aceites.
Usam por isso como referência elementos da sua comunidade, figuras
que servem como modelos a copiar.”
“Bem, se for a ver isso é exatamente o que acontece connosco”,
argumentou Tomás. “Os nossos filhos imitam o penteado de um
determinado cantor de sucesso, ou as calças de uma atriz ou os ténis
que fazem mais frisson lá na escola. Nós bebemos o sumo que um
determinado desportista famoso nos aconselhou num anúncio
televisivo ou usamos um relógio que vimos no pulso do James Bond
num filme de ação enquanto dava um soco no bandido.”
“Os animais fazem o mesmo, meu caro. Imitam a Imo a lavar a
batata-doce porque ela é a macaca adolescente mais gira de Koshima e
partem as nozes com uma pedra porque a mamã, que sabe sempre
tudo, faz isso com muita pinta. Num jardim zoológico foi avistado um
chimpanzé macho alfa a fazer uma prova de força com o pelo todo
eriçado e a terminá-la com uma pancada numa porta metálica. Dez
minutos depois, viu-se um chimpanzé adolescente a ostentar-se no
mesmo local com o pelo todo eriçado e a concluir essa exibição com
uma pancada na mesma porta. O adolescente estava a imitar o seu
herói, da mesma maneira que nós imitamos o ar cool de James Bond.
Isso, meu caro, é cultura.”
“É a mesma coisa com os outros animais?”
“Veja o caso das baleias. Elas usam a produção de bolhas como
técnica de caça para juntar os peixes e assim comê-los. Acontece que
em 1980 foi observada uma baleia que introduziu uma técnica nova.
Para além da produção de bolhas, essa baleia golpeava a superfície da
água com a sua cauda para assustar os peixes e comprimi-los ainda
mais. Ao fim de algum tempo, as baleias que mais andavam com essa
baleia começaram a fazer o mesmo, e em breve já todas as baleias da
região usavam essa nova técnica de caça. A moda pegou e tornou-se
cultural entre aquela comunidade de baleias.”
“Imagino que se encontre a mesma coisa nos pássaros”, disse o
historiador. “Se eles são tão inteligentes como os primatas, como se
diz, forçosamente terão de manifestar comportamentos culturais.”
“Olhe para os instrumentos fabricados pelos corvos da Nova
Caledónia, por exemplo. Descobriu-se que os estilos variam de lugar
para lugar. Em algumas partes da ilha eles produzem instrumentos
estreitos, e noutras mais largos, segundo tradições culturais enraizadas
há várias gerações. Até os sotaques dos animais revelam cultura.
Descobriu-se que os pardais da savana pipilam hoje de maneira
diferente da que os seus antepassados pipilavam há trinta anos. Mais
se descobriu que, ao escutar um congénere a chilrear, um pássaro
consegue perceber de que região ele é. Os dialetos e os sotaques fazem
parte do património cultural das comunidades de pássaros. O mesmo
acontece noutros animais. As vocalizações dos chimpanzés, por
exemplo, variam em função de dialetos regionais. Ao comer uma
maçã, um chimpanzé de um grupo grunhe de uma maneira e um
chimpanzé de outro grupo de outra. Há até o caso interessante de um
chimpanzé de um jardim zoológico holandês que foi para um zoo
escocês. De início, o holandês tinha uma vocalização diferente da dos
escoceses quando comia maçãs, mas depressa a mudou para se
harmonizar com os locais.”
Tomás sorriu.
“Aprendeu a grunhir em escocês...”
“Todos os animais são especiais, meu caro”, sublinhou o ecologista.
“Olhe para os cachalotes, por exemplo. Os cientistas que os estudam
descobriram que os sons que eles emitem variam em função dos clãs a
que pertencem. Ou seja, os cachalotes também têm dialetos.”
“Noto que há um elemento presente em todos esses casos de difusão
da cultura”, observou o português. “A imitação. Um animal vê outro
a comportar-se de determinada maneira e imita-o. Mas o animal
copiado não tem necessariamente intenção de passar cultura ao outro.
Não há um ensino intencional, digamos assim. É simples imitação.”
Zwiebel sorriu.
“Durante muito tempo pensou-se que o ensino era um exclusivo dos
seres humanos. Entre os chimpanzés, os jovens aprendem com os mais
velhos a pescar térmitas, a partir nozes e a recolher mel das colmeias.
Acontece que esse ensino sempre se mostrou passivo. Os mais velhos
limitam-se a deixar os jovens observá-los.”
“Então o ensino ativo é um exclusivo dos seres humanos.”
O diretor da GreenNaturae ergueu a mão para o travar.
“Era o que se pensava. O primeiro grande rombo nessa bonita teoria
ocorreu quando se começaram a estudar as formigas.”
“As formigas?”, estranhou Tomás. “Mas as formigas são insetos...”
“As formigas parecem-nos todas iguais, razão pela qual os cientistas
as marcaram com tintas de diversas cores para conseguirem segui-las,
sabendo onde estava cada indivíduo marcado. Depois destruíram os
buracos onde viviam, para as obrigar a procurar um novo sítio para
viver e seguirem o que cada uma fazia. Viram algumas formigas a
identificar locais adequados, o que mostra que elas são capazes de
avaliar propriedades, e depois viram como comunicavam às outras
que naquele sítio havia um bom terreno para construir novas casas.
Foi assim que se cruzaram com uma branca que conhecia um bom
terreno e que levava atrás uma vermelha mais nova, a qual não tinha
ido ainda ao local. A branca foi ensinar-lhe o caminho.”
“Mas as formigas não se orientam devido a uma marca química que
cada uma vai deixando pelo caminho?”
“É verdade, mas também pela escolha de determinados pontos de
orientação. Por exemplo, aprendem que junto de determinada folha é
preciso virar à esquerda. Acontece que os cientistas tinham visto antes
a branca a ir e vir ao novo local muito depressa, mas agora que ela
guiava a vermelha, que não conhecia o caminho, passou a caminhar
muito mais devagar, pois a vermelha ia parando aqui e ali e virando a
cabeça de um lado para o outro, para memorizar os pontos de
orientação. Sempre que a aprendiz vermelha decorava um troço,
tocava com as antenas na professora branca e esta avançava mais um
pouco. Quando a aprendiz vermelha parava para memorizar um novo
troço, a professora branca parava também. Chegava a parar quase
trinta segundos, à espera de que a aprendiz vermelha memorizasse o
novo troço, e só retomava o caminho quando a aprendiz vermelha lhe
tocava nas patas, como se dissesse que já tinha aprendido aquela
parte.”
O historiador fez um ar de incredulidade.
“As formigas fazem isso?”
“Os cientistas filmaram-nas a fazer isso, meu caro. Foi a primeira
vez que se viu um animal não humano a ensinar ativamente outro no
seu meio ambiente natural.”
“E logo um inseto!”, exclamou Tomás, pasmado. “Como é possível
que um inseto seja capaz de exercer ensino ativo, o que obviamente
requer algum nível de consciência, mas um chimpanzé não? Não é
estranho?”
“Eu nunca afirmei que os chimpanzés não eram capazes de ensinar
ativamente”, corrigiu o ecologista. “Eles não tinham sido vistos a
fazê-lo, o que é diferente. Mas os cientistas que educaram chimpanzés
em suas casas já os viram a ensinar outros chimpanzés. Por exemplo,
Washoe, a primeira chimpanzé a saber comunicar por língua gestual,
foi observada a ensinar língua gestual ao seu filho adotivo Loulis.
Sempre que alguém trazia comida, ela fazia para o filho o gesto
comida e depois moldava-lhe a mão para imitar esse gesto que
significava comida e indicava a boca. Fê-lo várias vezes até ele
compreender. Noutra circunstância Washoe foi observada a pôr uma
cadeira à frente de Loulis e a fazer com as mãos o gesto de sentar
cadeira cinco vezes consecutivas. Loulis tornou-se assim o primeiro
animal não humano a aprender língua gestual de outro animal não
humano, e isso aconteceu como resultado de ensino ativo.”
“Bem, se os chimpanzés são capazes de ensino ativo num habitat
humano, forçosamente também o serão no seu habitat natural...”
“Com certeza. Um primatólogo que estudava uma comunidade de
chimpanzés na floresta Tai, na Costa do Marfim, observou certa vez
uma jovem fêmea a tentar partir uma noz com uma pedra, mas sem
sucesso. De repente apareceu a mãe e tirou-lhe a pedra da mão. A
seguir rodou a pedra na mão com um movimento superlento, para que
a filha visse como se fazia, e partiu algumas nozes. Por fim, devolveu a
pedra à jovem e foi-se embora. A jovem chimpanzé pegou então
corretamente na pedra, tal como a mãe acabara de lhe ensinar, e
conseguiu enfim partir nozes. Portanto, sim, tal como as formigas e os
seres humanos, também os chimpanzés conseguem ensinar
ativamente.”
“E os outros animais?”
“Desde a descoberta de que as formigas ensinavam no seu meio
ambiente natural, foram encontrados mais casos. Percebeu-se que os
golfinhos fêmeas, por exemplo, ensinam os filhos a apanhar peixe.
Elas capturam um peixe e libertam-no junto dos filhos para que eles o
apanhem. Quando o peixe escapa, as mães apanham-no novamente e
atiram-no mais uma vez para junto dos filhos para que eles retomem o
exercício. Ou veja o caso das orcas, que costumam matar elefantes-
marinhos. Como essa caça é perigosa, pois os elefantes-marinhos são
enormes e elas arriscam-se a ficar encalhadas nas praias, as orcas
levam os filhos para uma praia sem elefantes-marinhos e ensinam-lhes
as técnicas de caça. Começam por atirá-los para a areia para que
aprendam a regressar à água. Depois levam-nos a assistir a uma caça
aos elefantes-marinhos. O terceiro passo é levá-los para uma caçada,
mas sempre a protegê-los e a ajudá-los a regressar à água quando um
elefante-marinho os atira para a praia. Tudo isto é feito com um custo
para as orcas adultas, pois enquanto ensinam caçam menos elefantes-
marinhos. Também as chitas e os gatos domésticos ensinam as crias a
caçar, trazendo-lhes presas vivas e deixando que os filhos as matem, e
as lontras-de-rio levam as crias para a água e ensinam-nas a mergulhar
e a nadar, enquanto os suricatos mais velhos ensinam os jovens a
apanhar presas em segurança. Começam por presenteá-los com presas
mortas, depois feridas e por fim intactas. Se as presas forem
escorpiões, primeiro levam-lhes escorpiões mortos e depois vivos,
embora estes últimos com o veneno previamente neutralizado.”
“As aves não?”
“Claro que as aves também são professoras. Os pássaros tagarelas
ensinam as crias qual o pipilar que significa que vem aí comida,
enquanto os falcões treinam os filhos a apanhar presas no ar. Fazem
um aviso prévio aos filhos e depois largam uma presa morta sobre o
ninho, para que as crias a apanhem em voo. Entre os papagaios, há
um exemplo famoso. Como sabe, a primeira vez que se demonstrou
que os papagaios entendiam o que diziam foi com um papagaio
chamado Alex. Acontece que a cientista que trabalhou com Alex
arranjou um segundo papagaio, chamado Griffin, para também testar
as suas capacidades cognitivas. Quando a cientista fazia uma pergunta
e Griffin dava a resposta errada, Alex gritava: está errado! E sempre
que Griffin falava de uma maneira confusa, por exemplo
pronunciando mal uma palavra, Alex berrava-lhe: fala melhor!”
Tomás forçou uma gargalhada.
“Está bem, os animais são capazes de ensinar”, aceitou. “Mas você
tem de reconhecer que existem formas mais elevadas de cultura que
são exclusivas dos seres humanos.”
“Como por exemplo?”
“Olhe, a arte. Nós somos capazes de produzir arte, mas os animais
não. Alguma vez viu um quadro pintado por um animal?”
O olhar do seu interlocutor voltou-se para a chimpanzé, que por
essa altura já largara a National Geographic e fora buscar as suas
bonecas, que espalhara pelo chão e com quem conversava por língua
gestual.
“Guida, vai buscar as tuas pinturas.”
A chimpanzé desapareceu por instantes e voltou à sala com três
molduras e um vestido preso por baixo dos braços. Sentou-se no chão,
diante dos dois homens, e exibiu-lhes os quadros enquanto
comunicava sinais em língua gestual.
OLHEM POR FAVOR.
Os olhos de Tomás cravaram-se nas telas que as molduras
enquadravam. Uma mostrava linhas negras e manchas azuis
pintalgadas de vermelho, outra uma espécie de explosão de negro com
estilhaços encarnados, e a terceira uma mancha verde com um núcleo
negro. Muito importante, todos os quadros pareciam obedecer a uma
certa lógica; não eram uma simples soma de borrões.
O historiador soergueu uma sobrancelha, desconfiado.
“Foi a Guida que fez isto?”
A reação suscitou um sorriso ao diretor da GreenNaturae.
“O Noé contou-me que quando adquiriu a Guida já ela era capaz de
desenhar, de usar lápis e de pintar com os dedos. Ele limitou-se a dar-
lhe mais instrumentos, como pincéis e melhores tintas, e a Guida
pintou... o que está a ver.”
Tomás permaneceu especado a olhar para as telas.
“Caramba!”
“Foi uma grande surpresa. A verdade é que os chimpanzés
conseguem pintar quadros de incrível harmonia estética. Em 1981
organizou-se até a primeira exposição de arte chimpanzé, com
pinturas feitas pelos primeiros chimpanzés que falavam em língua
gestual, como Washoe, Tatu, Dar e Moja. Cada chimpanzé tem o seu
próprio estilo artístico, mas em geral eles produzem obras que os
críticos classificam como arte de expressionismo abstrato, embora um
deles, a Moja, tenha sido o primeiro animal não humano a fazer
pintura representacional. Ao que parece, Moja gostava de pintar
pássaros. Elemento interessante, os próprios chimpanzés escolheram
os títulos de cada um dos seus quadros. Washoe designou uma das
suas pinturas ‘Vermelho quente vibrante’. Algumas dessas pinturas
revelaram-se tão boas, como as de um chimpanzé chamado Ally, que
uma aluna de História da Arte as levou a um crítico para uma
avaliação formal. Não lhe explicou que se tratavam de quadros de um
chimpanzé, claro. Limitou-se a dizer-lhe que eram trabalhos de um
amigo. O crítico de arte ficou extasiado com o que viu e, muito
excitado, afirmou: eu sabia que o Pollock ia voltar!”
Riram-se os dois.
“Tenho de admitir que estes trabalhos são realmente bonitos”,
reconheceu Tomás. Virou-se para a autora. “Parabéns, Guida! Está
excelente.”
A chimpanzé parecia inchar de orgulho.
ABRAÇA-ME.
O historiador corou.
“Uh... depois.”
A recusa não desencorajou Guida. Pousou os quadros e vestiu o
vestido que trouxera do quadro. A seguir começou a mirar-se ao
espelho.
“Olhe para ela”, disse Zwiebel. “Adora vestir-se e ver como ficou.
Está sempre a fazer isto. Usa vestidos, camisas, sapatos... sei lá. O Noé
queixava-se das razias que ela às vezes lhe fazia ao guarda-fato. Este
tipo de comportamento é observado em muitos chimpanzés educados
por seres humanos, sobretudo fêmeas como Washoe, Tatu, Moja e
Lucy. Os cientistas que acompanhavam Washoe constataram que ela
gostava sobretudo de vestidos vermelhos. Já Tatu era obcecada pela
estética do negro. Punha bâton negro, andava com uma carteira negra
e calçava sapatos negros, além de que preferia tinta negra para pintar.
Até a palavra que na língua gestual ela usava para fixe era negro.
Moja, por seu turno, usava um cachecol na cabeça e um cinto à
cintura. Penteava-se, maquilhava-se e depois admirava-se longamente
ao espelho. Parece que passava horas e horas nisso. A Guida faz a
mesma coisa.”
“Esses podem simplesmente ser comportamentos a imitar os
humanos que os educaram.”
“Não se deixe iludir, meu caro. Os animais têm noções de estética e
são capazes de apreciar a beleza e de gerar produtos artísticos. Tal
como Noé com a Guida, os cientistas que educaram a chimpanzé Lucy
constataram que ela já era capaz de desenhar quando foi para casa
deles e rabiscava muitos círculos, coisa que os chimpanzés em geral
não pintam. Outros fazem coisas semelhantes e não foram educados
por seres humanos. Os etólogos que acompanham os chimpanzés nas
florestas registam comportamentos que parecem envolver sentido
estético. Por exemplo, numa reserva no Zimbabwe uma chimpanzé
começou a colocar erva sobre a orelha, aparentemente por motivos
decorativos. Os outros chimpanzés viram-na e puseram-se a fazer a
mesma coisa, iniciando assim uma moda. Por outro lado, foram vistos
na Tanzânia dois chimpanzés que subiram para o topo de uma colina,
sentaram-se e deram as mãos enquanto aparentemente contemplavam
o pôr-do-sol. Um outro cientista observou outro chimpanzé passar
quinze minutos a, pareceu-lhe, admirar o crepúsculo.”
Por esta altura já Guida tinha um bâton vermelho-vivo entre os
dedos e pintava os lábios, sempre a apreciar-se ao espelho.
“Portanto, estamos a falar em pinturas, em maquilhagem, em
vestidos e sapatos bonitos, em contemplação de paisagens ao pôr-do-
sol...”
“Os chimpanzés são também capazes de recombinar símbolos e
realinhar as palavras para produzir sentidos novos, característica que
antes se pensava ser um exclusivo dos seres humanos”, acrescentou o
ecologista. “Muito importante, fazem-no de formas criativas. Lucy,
quando confrontada com limões, chamou-lhes fruta de cheiro. Isto,
meu caro, é uma forma rudimentar de poesia metafórica.”
“E os outros primatas?”
“A mesmíssima coisa. No jardim zoológico de Osnabrück, por
exemplo, foi vista uma fêmea orangotango a pegar em folhas de
alface, a metê-las na cabeça e depois a mirar-se ao espelho, ajeitando
as folhas para ficar melhor na imagem. Essa fêmea não tinha sido
educada por seres humanos. Uma outra orangotango fêmea foi vista a
usar um colar de missangas que ela própria fizera sem que ninguém a
ensinasse.”
Tomás hesitou em formular a pergunta clássica, pois a resposta
derrotava-o sempre. Mas decidiu fazê-la, pois permitia prolongar a
conversa enquanto prosseguia camufladamente os seus esforços para
se libertar.
“São só os primatas que têm sentido estético e produzem objetos
artísticos?”
“Como deve imaginar, encontra-se sentido estético em várias
espécies diferentes”, indicou Zwiebel. “O papagaio Alex, o primeiro
que se demonstrou capaz de entender o que dizia, balouçava a cabeça
ao ritmo da música disco, o que prova ter sentido musical. Já os
concertos em violoncelo de Haydn punham-no num estado de transe.
Fechava os olhos e balouçava gentilmente o corpo. Aliás, basta ir à
Internet ver imagens de animais a reagir à música. A catatua Snowball
tornou-se famosa por dançar ao ritmo das músicas dos Queen ou de
Michael Jackson, enquanto o papagaio Loro cantava Pavarotti e o
papagaio Menino entoava A Flauta Mágica de Mozart. Há igualmente
um vídeo a mostrar um cão chamado Buddy Mercury a tocar piano e
a uivar como se cantasse, à maneira de Elton John ou Stevie Wonder.
Há mesmo quem tenha visto uma tartaruga que só se movimentava
quando a música tocava. Também os golfinhos são capazes de
coreografias complexas e muito criativas. Uma treinadora conseguiu
explicar a dois golfinhos que só receberiam comida se fizessem algo
novo. A partir daí, os dois punham-se às voltas debaixo de água,
como se estivessem a combinar um novo número, e depois emergiam e
faziam algo completamente inesperado e nunca visto, como se fossem
dançarinos profissionais.”
“Pois, mas há uma coisa que nenhum animal é capaz de fazer”, disse
Tomás. “O sentido estético nos seres humanos é tão forte que uma
mulher em França, outra no Congo e outra na China são compelidas a
decorar as suas casas e a pôr flores à janela, por exemplo. Nenhum
animal é capaz disso.”
“Está totalmente enganado”, afirmou Zwiebel de forma perentória.
“As aves têm considerações estéticas na construção dos seus ninhos,
embora o façam por motivos integrados na função reprodutora.
Durante muito tempo pensou-se que esse trabalho era inato, quase
instintivo, mas hoje sabe-se que é cultural. Elas aprendem e
desenvolvem as técnicas e o gosto. Os pássaros-tecelões, por exemplo,
são assim chamados justamente pela sua capacidade de tecer ninhos
muito complexos, o mesmo acontecendo com os chapins-rabilongos,
capazes de erguerem construções com seis mil peças separadas.”
“Não vejo que haja aí particular arte.”
“Não subestime a dimensão artística da arquitetura, meu caro. De
qualquer modo, só pode dizer isso porque decerto não conhece as
habilidades dos pássaros morus. Quando as fêmeas regressam ao
ninho, os machos oferecem-lhes flores para decorar o espaço onde
vivem ou para elas usarem como colares.”
“Os pássaros enfeitam-se?”
“Isso não é nada comparado com o comportamento dos pássaros
pavilhões, que vivem na Austrália e na Nova Guiné. Estas aves
constroem pavilhões incríveis, decorando-os com flores e outros
objetos escolhidos especificamente pela sua cor, tamanho e formato,
com preferência pelo azul, como é o caso das penas azuis da cauda de
um papagaio, das flores de lavanda, de fragmentos de cobalto, dos
frutos azuis das árvores quandong, dos delfínios azuis... eu sei lá.
Sempre que uma flor murcha ou um fruto se estraga, substitui-os
prontamente. Estas decorações são dispostas de maneira a
sobressaírem num tapete de galhos amarelos que eles estendem
harmoniosamente à entrada dos pavilhões. Muito significativo, os
pássaros pavilhões colocam os objetos maiores mais longe da entrada
e os mais pequenos mais perto, de forma a criar junto de quem entra
no pavilhão a ideia de que todos os objetos são pequenos e assim
gerar a ilusão de que o pássaro pavilhão e os seus objetos coloridos
são enormes.”
“Espere aí”, interveio Tomás. “Isso implica o domínio da
perspetiva...”
O diretor da GreenNaturae sorriu.
“Assim é, de facto. Os pássaros pavilhões conhecem a perspetiva.”
O historiador estava atónito.
“Mas... mas a perspetiva apareceu na pintura apenas no século
xiv!”, exclamou. “E apareceu nessa altura de forma rudimentar, com
Giotto. Só no século xv acabaria por ser popularizada, graças aos
quadros de Filippo Brunelleschi. Como é possível que uma ave domine
conceitos estéticos que só no final da Idade Média entraram na arte
humana?”
Zwiebel mirou-o com uma expressão vagamente trocista, como se a
pergunta que o seu prisioneiro acabara de formular contivesse nela
própria a resposta.
“Ainda acha que só os seres humanos são capazes de ter sentido
estético e de criar arte?”
“As provas são as que são”, aceitou Tomás, sempre discretamente a
contorcer as mãos num esforço para se libertar. “Mas ainda não
respondeu à pergunta que lhe fiz originalmente. Como encaram os
animais a morte? Será que percebem que não voltarão a ver o
professor Noé Vandenbosch? E, já agora, sentem amor por ele?”
A chimpanzé voltara a brincar com as suas bonecas e o diretor da
GreenNaturae desviou por momentos o olhar para ela antes de
respirar fundo e responder por fim.
“Claro que os animais sabem o que é o amor.”
Foi nesse instante que a corda que amarrava as mãos de Tomás
cedeu.
.
XXXII
XXXIII
XXXIV
XXXV
XXXVI
XXXVII
O inferno.
Será que os animais têm a noção do inferno e do Além? Essa era a
questão que nesse momento alimentava a conversa entre Dorian
Zwiebel e Tomás Noronha, um à espera de que a Judiciária chegasse,
o outro de que a corda que lhe amarrava as mãos se soltasse. A corda
soltou-se primeiro do que a Judiciária chegou. Sendo certo que a todo
o momento a polícia iria irromper pela casa e levar o historiador para
os calabouços.
Sem suspeitar de que o prisioneiro já soltara as mãos, o
ambientalista suíço mantinha-se embrenhado no tema que tanto o
apaixonava.
“A importância das cerimónias fúnebres é que elas são o gérmen do
pensamento religioso e metafísico”, considerou Zwiebel. “É por isso
interessante que já tenham sido avistados chimpanzés a lavar os
cadáveres dos seus mortos.”
Tratava-se de uma prática humana, como o historiador bem sabia.
Na maior parte das culturas humanas, os mortos são lavados antes de
serem enterrados para que cheguem limpos ao “outro lado”. Mas
agora que libertara as mãos, Tomás já só seguia a conversa para
ganhar mais uns momentos enquanto preparava o ataque.
“E funerais?”
“Mais uma vez são os elefantes que mostram comportamentos mais
próximos dos nossos”, respondeu o diretor da GreenNaturae sem
suspeitar de nada. “Por várias vezes observaram-se paquidermes a
cobrir os mortos com terra e vegetação, uma forma primitiva de
enterro. Há registo de um caso em que caçadores humanos abateram
um elefante macho enorme e viram depois os companheiros dele
aproximarem-se do corpo. Horas mais tarde os caçadores voltaram
para descobrir que não só o cadáver estava coberto por terra e folhas
como tinha a cabeça debaixo de lama.”
“Um enterro, portanto...”
“Não são só os elefantes, meu caro. O biólogo Marc Bekoff, ligado
a Jane Goodall, observou uma raposa a atirar terra e pedaços de
madeira para cima do cadáver da sua companheira, num aparente
esforço para a enterrar. Isto significa que, embora raros ou pelo menos
difíceis de observar no habitat natural, formas embrionárias de
enterro realmente existem entre os animais.”
Tomás queria lançar o ataque o mais depressa possível, para se
antecipar à chegada da polícia. O problema eram os pés. Permaneciam
amarrados. Como se poderia atirar contra o seu captor naquelas
condições?
“A minha mulher explicou-me que as capacidades cognitivas das
aves estão ao nível das dos primatas”, disse, sempre a alimentar a
conversa. “Ora até agora o senhor só me contou histórias de
chimpanzés, elefantes, lémures, raposas, golfinhos, orcas e baleias. Ou
seja, tudo mamíferos. E os pássaros? São capazes de realizar
funerais?”
“O presidente de uma associação de proteção de animais, a Whidbey
Audubon Society, viu uma vez um corvo morto no chão e uma dúzia
de outros corvos aos saltinhos à volta dele. Um dos corvos saiu do
grupo e voltou momentos mais tarde com um pedaço de erva seca.
Largou-o sobre o cadáver do companheiro e voltou a partir. Um a um,
os restantes corvos foram saindo e regressando com ervas ou galhos
secos, que também lançaram sobre o corpo até o cobrirem por
completo. Toda a cerimónia durou quatro ou cinco minutos.”
“Não é bem um funeral...”
“Acha que não? Se reconhecemos que os pássaros comunicam de
maneira diferente dos seres humanos, mas estamos dispostos a aceitar
que de facto comunicam, porque não aceitar que eles realizam
cerimónias fúnebres diferentes das humanas, embora tão legítimas
quanto as nossas? Um ser humano não enterraria um morto com
galhos e ervas secas, é certo, mas porque não há-de uma outra espécie
usar um método diferente para enterrar os seus? Um funeral só é
funeral se for igualzinho ao dos seres humanos? E não são os funerais
dos seres humanos, eles próprios, diferentes uns dos outros? Lá
porque os vikings queimavam os seus num barco, um procedimento
semelhante à cremação dos hindus numa pira perto da água, não é
isso uma cerimónia fúnebre tão legítima quanto o enterro dos judeus,
dos cristãos ou dos muçulmanos, ou as cremações dos ateus?”
Tomás esboçou um esgar de concessão.
“Com certeza, com certeza...”
“São inúmeras as histórias de corvos que homenageiam os seus
mortos, como o caso de centenas de corvos que se juntaram nas
árvores de um campo de golfe após um dos seus ser morto por uma
bola, ou de nuvens de corvos a voar sobre um transformador de
energia onde dois companheiros morreram eletrocutados”,
acrescentou Zwiebel. “De tal modo essas aves são reativas à morte
que uma equipa de investigadores da Universidade da Califórnia fez
uma experiência: colocaram um corvo morto numa zona residencial
que os corvos frequentavam em busca de alimentos e gravaram o que
aconteceu a seguir. O primeiro corvo que detetou o corpo pôs-se a
fazer vocalizações de alarme. Logo outros corvos pararam de procurar
comida e concentraram-se no local. O ajuntamento tornou-se cada vez
maior e mais barulhento. Mantiveram-se ali durante algum tempo e
por fim abandonaram o local. Nos dois dias seguintes, os corvos
evitaram procurar comida naquela zona.”
Enquanto o diretor da GreenNaturae falava, o prisioneiro estudava
a melhor forma de desatar a corda que lhe prendia os pés. Chegou à
conclusão de que não havia maneira de o fazer discretamente. Teria de
arriscar um ataque com os pés atados.
“O que nos remete para aquele que talvez seja o único campo do
comportamento realmente exclusivo do Homo sapiens”, observou,
sempre a prolongar a conversa. “A religião.”
“A dificuldade em entender o que vai na cabeça de um animal
impede-nos de perceber se eles acreditam ou não no Além, se têm ou
não pensamentos religiosos, se creem ou não em entidades divinas por
detrás das coisas”, disse Zwiebel. “De qualquer modo, existem
algumas observações que podem ser interpretadas como dizendo
respeito a comportamentos místicos por parte dos animais. A
primeira, como sempre, foi feita por Jane Goodall com os seus
chimpanzés da Tanzânia. Ela viu um chimpanzé macho comportar-se
de maneira bizarra junto de umas quedas de água. À medida que o
animal se aproximava e que o barulho das cascatas se tornava maior,
os seus pelos foram ficando eretos. Uma vez junto às cataratas, pôs-se
de pé e começou a dançar durante dez ou quinze minutos. Goodall
chamou-lhe ‘dança das cataratas’ e especulou que poderia tratar-se de
uma forma embrionária de animismo.”
O historiador ia atacar nesse momento, mas travou o ímpeto.
Devido à sua profissão, as revelações do seu captor interessaram-no.
“As religiões animistas foram as primeiras religiões humanas”,
lembrou. “Os homens primitivos viam as tempestades e achavam que
eram deuses em fúria, viam o vento e julgavam que se tratava de um
deus a soprar, viam a chuva e pensavam que era enviada por outro
deus. De tal modo era assim que até faziam danças a pedir chuva para
as colheitas ou a implorar que a chuva parasse. Acreditavam que
poderiam influenciar o comportamento da natureza, e isso é de facto
uma forma rudimentar de religião. É bastante possível que essa ‘dança
das cataratas’ seja um princípio de animismo, até porque se o Homem
tem uma natureza religiosa, em algum ponto da evolução a adquiriu,
mas seriam precisas mais observações desse género. Se a senhora
Goodall os tivesse visto a dançar à chuva, por exemplo, isso seria sem
dúvida mais convincente. Os índios americanos fazem-no, não é
verdade?”
Um sorriso discreto desenhou-se no rosto de Zwiebel.
“A questão é que, depois das observações de Jane Goodall, os
chimpanzés foram de facto vistos a dançar à chuva. Em jardins
zoológicos, designadamente. Durante uma chuvada mais forte no zoo
de Arnhem, o etólogo Frans de Waal viu dois chimpanzés machos
saírem do abrigo e porem-se a dançar à chuva. De Waal chamou-lhe
justamente ‘dança da chuva’.”
A informação era surpreendente.
“Ah, bom...”
“Mesmo as contemplações que chimpanzés e babuínos foram vistos
a fazer do pôr-do-sol têm muito que se lhe diga. Os etólogos atribuem
esse comportamento a um princípio estético, pois os crepúsculos
africanos são maravilhosos e a sua contemplação mostra que os
animais têm capacidade de apreciar o belo, mas é possível que este
comportamento reflita também um sentimento místico embrionário.
Contemplar o crepúsculo é contemplar o belo, e contemplar o belo é
contemplar o inefável. Quando mostram capacidade de se maravilhar
com algo que os ultrapassa, os animais estão a revelar uma faceta
transcendente e esse é o ponto de partida para o pensamento místico.”
“Tudo verdadeiro”, disse Tomás. “Provável, até. Mas, não posso
deixar de o dizer, tudo especulativo.”
Chegara a hora de lançar o ataque.
“Sem dúvida”, concordou o diretor da GreenNaturae. “O facto, no
entanto, de os animais terem não só a noção de morte como serem
capazes de respeitar o luto e até fazer velórios e formas rudimentares
de funeral não pode deixar de nos remeter para um princípio de
pensamento religioso, como o senhor aliás já notou. Acontece que os
mistérios da relação entre os animais, a morte e o misticismo não
terminam aqui. Uma etóloga chamada Denise Herzing estava a
estudar os golfinhos e aproximou-se de um grupo que já conhecia. Os
golfinhos reconheceram-na e saudaram-na, mas evitaram aproximar-se
do seu barco de pesquisa oceanográfica, o que ela achou estranho.
Denise convidou-os insistentemente, mas eles, ao contrário do
habitual, mantiveram-se à distância. A certa altura alguém descobriu
que um dos membros da tripulação, que se tinha ido deitar num
beliche, estava morto. Foi dada imediatamente ordem de regresso. Só
que os golfinhos, em vez de se porem aos saltos diante da proa, como
era seu hábito, colocaram-se ao lado do navio oceanográfico como se
o escoltassem. Sabe o que aconteceu dias depois, quando o barco
regressou para uma nova missão de pesquisa?”
Três...
“Não.”
“Os mesmos golfinhos comportaram-se de forma absolutamente
natural.”
Dois...
“O que está a insinuar?”, quis saber o prisioneiro enquanto concluía
mentalmente a contagem decrescente. “Que os golfinhos tinham
alterado o seu comportamento habitual porque pressentiam que havia
um cadáver a bordo?”
Um...
“Talvez. Denise estudou aquele grupo de golfinhos durante vinte e
cinco anos, e disse que eles só tiveram aquele procedimento bizarro no
dia em que um homem tinha morrido a bordo. Isso indic...”
Agora!
Apanhando o seu adversário de surpresa, Tomás lançou-se sobre ele
e esmurrou-o diretamente no nariz, ciente de que aquele era o seu
ponto fraco.
“Aaaagh!”
O suíço já havia sido atingido ali meia hora antes pela nuca do
historiador, pelo que o novo golpe revelou-se decisivo. Caiu
desamparado no chão, as mãos agarradas à cara a tentar proteger o
nariz ensanguentado, absolutamente vulnerável. Apesar de ter os pés
ainda atados, Tomás pulou sobre ele e imobilizou-o contra o solo com
uma prisão de braço, exatamente como fizera meia hora antes.
A dor no nariz era tão aguda que Zwiebel ainda gritava e parecia
indiferente ao que o português lhe fazia. Tendo o adversário
neutralizado, Tomás usou o braço esquerdo para desfazer os nós das
cordas que lhe atavam os pés, indiferente aos guinchos e saltos de
Guida sobre o sofá e aos gemidos doridos do diretor da
GreenNaturae.
Quando por fim se libertou das cordas, meteu a mão no bolso das
calças do suíço e retirou o smartphone. Esperou alguns segundos para
ele se acalmar e quando isso aconteceu agitou-lhe o telemóvel diante
da cara.
“Vai imediatamente ligar ao inspetor Caparro e informá-lo de que se
encontra comigo no Badoca Park, ouviu?”
“Mas... mas isso é a hora e meia daqui!”
Tomás forçou a prisão de braço, arrancando um novo gemido de
Zwiebel.
“Se não quer que lhe parta também o braço, faça-o!”
Sem alternativa, o nariz a pingar sangue e sentindo-se tão
aterrorizado que acreditava que o português cumpriria a ameaça sem
pestanejar, o diretor da GreenNaturae premiu as teclas com dedos
trémulos e fez a chamada. Do outro lado da linha, o inspetor Caparro
protestou quando foi informado de que teria de ir para outro lado,
“então agora que estamos a chegar a Sintra é que me diz uma coisa
dessas?”, “desculpe lá, senhor inspetor, esqueci-me há pouco de dar
essa informação”, justificou-se Zwiebel, “ganda porra!, o Badoca Park
é a meio da costa alentejana, c’um caneco!”, e desligou furiosamente.
A polícia fora travada. Tomás ganhara mais algum tempo. Sempre a
prender o braço do homem à sua mercê, olhou pensativamente para
Zwiebel. De cara enterrada no tapete e o nariz ensanguentado à custa
da cabeçada e do murro que levara, o suíço encontrava-se num mísero
estado. O que fazer com ele? Não o podia manter indefinidamente
preso. Não só uma tal coisa não seria prática, como constituiria crime
de sequestro. Além do mais, se Zwiebel o atacara era porque estava
convencido do seu envolvimento na morte de Noé, algo normal
considerando que era de facto procurado pela polícia. Por outro lado,
se o libertasse ele avisaria de imediato a polícia e em poucos minutos
Tomás teria o inspetor Caparro à perna. Ponderados os prós e os
contras, tomou uma decisão.
O português soltou-lhe o braço.
“Levante-se.”
Sempre a manter o diretor da GreenNaturae debaixo de olho, não
fosse ele atacá-lo à traição como fizera meia hora antes, levou-o ao
quarto de banho e ajudou-o a lavar a cara. Localizou uma caixa de
primeiros socorros num armário e fez-lhe um penso no nariz. Depois
acompanhou-o até à porta de casa, o telemóvel do suíço já
apreendido.
“Está livre.”
Zwiebel não precisou que lhe dissesse aquilo uma segunda vez. Saiu
de imediato da mansão e quase correu em direção ao portão do
Jardim dos Animais com Alma. A propriedade encontrava-se num
lugar ermo da serra e Tomás calculou que o suíço levaria entre quinze
a trinta minutos a localizar alguém que lhe emprestasse um telefone
para ligar à Judiciária. O inspetor Caparro estaria ali daí a uma hora.
Ou talvez menos.
Tinha tempo, mas não muito. Logo que fechou a porta, Tomás
cravou os olhos na cortina que tapava o acesso às masmorras da
mansão. Se havia sítio onde o dossiê poderia estar era naquele lugar.
Chegara a hora de deslindar aquele caso.
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Epílogo
Nota final