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OBRAS DO AUTOR

ENSAIO

Comunicação, Difusão Cultural, 1992; Gradiva, 2015


Crónicas de Guerra I — Da Crimeia a Dachau, Gradiva, 2001
Crónicas de Guerra II — De Saigão a Bagdade, Gradiva, 2002
A Verdade da Guerra, Gradiva, 2002; Círculo de Leitores, 2003
Conversas de Escritores — Diálogos com os Grandes Autores da
Literatura Contemporânea, Gradiva/RTP, 2010
A Última Entrevista de José Saramago, Usina de Letras, Rio de
Janeiro, 2010; Gradiva, 2011
Novas Conversas de Escritores — Diálogos com os Grandes Autores
da Literatura Contemporânea II, Gradiva/RTP, 2012
FICÇÃO

A Ilha das Trevas, Temas & Debates, 2002; Gradiva, 2007


A Filha do Capitão, Gradiva, 2004
O Codex 632, Gradiva, 2005
A Fórmula de Deus, Gradiva, 2006
O Sétimo Selo, Gradiva, 2007
A Vida Num Sopro, Gradiva, 2008
Fúria Divina, Gradiva, 2009 (Prémio Clube Literário do Porto 2009)
O Anjo Branco, Gradiva, 2010
O Último Segredo, Gradiva, 2011
A Mão do Diabo, Gradiva, 2012 (Prémio Portal da Literatura Melhor
Romance do Ano de 2012)
O Homem de Constantinopla, Gradiva, 2013
Um Milionário em Lisboa, Gradiva, 2013
A Chave de Salomão, Gradiva, 2014
As Flores de Lótus, Gradiva, 2015
O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016
Vaticanum, Gradiva, 2016
O Reino do Meio, Gradiva, 2017
Sinal de Vida, Gradiva, 2017
A Amante do Governador, Gradiva, 2018 (Prémio Livro do Ano
Bertrand 2018 Ficção Lusófona)
Imortal, Gradiva, 2019 (Prémio Livro do Ano Bertrand 2019 Ficção
Lusófona)
O Mágico de Auschwitz, Gradiva, 2020
O Manuscrito de Birkenau, Gradiva, 2020
O Jardim dos Animais com Alma, Gradiva, 2021
.

Às minhas três meninas.


.

Todos os comportamentos,
atos de comunicação
e informações sobre animais
apresentados neste romance
foram reportados por cientistas.
.

Deus torna­-se Deus

quando todas as criaturas dizem “Deus”.


Meister Eckhart
.

Prólogo

Os olhos líquidos de Ana eram tão azuis que se diriam o planeta em


tamanho minúsculo. A menina esperava na primeira fila, os dedos da
mão esquerda enrolados nos caracóis castanho­-claros, os da direita a
segurarem o bilhete com a força de quem temia que o vento o levasse.
Uma algazarra imensa cercava­-a; eram os colegas de turma a tagarelar
com excitação. Tinham acordado de madrugada em Leiria e vindo a
Lisboa para aquela visita tão aguardada, todos muito animados, mas
Ana permanecia alheia ao bruaá, a atenção sempre presa nas portas
fechadas diante dela, a mente a revolutear num turbilhão de
sentimentos. Temia as portas, querendo que se abrissem e que nunca
se abrissem, aterrorizada e fascinada com o que se encontrava para lá
delas.
“Pronto, meninos, tenham calma”, disse a professora Arlete,
apontando para o relógio. “Faltam dois minutos para as dez horas,
isto já vai abrir.”
As palavras da professora destinavam­-se a serenar a turma, mas
tiveram o efeito contrário. A iminência da abertura das portas fez
disparar a expetativa das crianças e, embora parecesse difícil, a
verdade é que a vozearia ganhou ainda mais força. A excitação era
generalizada e até Ana, que fazia um esforço para dominar aquele
misto de medo e curiosidade, não se conteve e pôs­-se a saltitar.
“Os tubarões? Ó setora, os tubarões?”
“Calma, calma...”
“Eles comem­-nos, setora? Comem­-nos?”
“Meninos, vamos lá a ter calma!”
“É verdade que há polvos gigantes? Setora, os polvos agarram­-nos e
esmagam­-nos?”
As solicitações multiplicavam­-se, todos gritavam ou atiravam
perguntas ou riam­-se, ninguém parava quieto e a professora começou
a sentir­-se exasperada.
“Oiçam, ou vocês se acalmam ou...”
A algazarra tornou­-se de repente infernal, como se a pouca corda
que os continha se tivesse soltado, e a professora Arlete, percebendo
que algo se passava atrás dela, virou­-se e viu a porta abrir­-se e dois
funcionários plantarem­-se lado a lado para verificar os bilhetes. Foi o
que bastou para os alunos desatarem a correr e quase infestarem o
edifício como uma praga invasora.
Tal como os colegas, a pequena Ana já tinha visto na tele­visão e na
Internet imagens da grande estrutura icónica da zona oriental da
capital, mas nada a preparara para o que encontrou. O Oceanário de
Lisboa era um dos maiores e mais modernos aquários do mundo e a
sua grandiosidade tornou­-se intimidante logo que, mergulhando pelo
corredor, desembocou num grande átrio com uma janela gigante.
O tanque central.
Era como se tivesse entrado numa cidade cravada no fundo do
oceano, rodeada pelo mar e todos os estranhos animais nele contidos.
Viam­-se para lá do grande vidro peixes de todas as cores e feitios, uns
isolados e outros em cardumes, desde gigantes como os atuns a
minúsculos como os peixes­-palhaço e a bizarros como os peixes­-lua,
também mantas­-diabo e tartarugas, polvos com os seus tentáculos
ondulantes, algas a dançarem no fundo por entre anémonas amarelas
e corais multicoloridos. O mais impressionante naquele mundo azul e
estranhamente silencioso eram porém as figuras esguias e ameaçadoras
que ziguezagueavam na vasta massa de água, predadores à caça de
presas, verdadeiros assassinos das profundezas.
“Tubarões!”, gritaram os colegas quase em uníssono ao serem
confrontados com a visão em tamanho gigante e a três dimensões.
“Ena! Olhem os tubarões!”
Eram justamente os tubarões os animais do mar que mais
assustavam Ana. Ao vê­-los alguns palmos diante dela, apenas
separados por um vidro que lhe pareceu frágil demais, a menina foi
tomada pelo pânico e desatou a correr. Quis dar meia­-volta e sair pela
porta por onde entrara, mas a corrente de colegas de turma que ainda
ingressavam no Oceanário forçou­-a a fletir para as laterais. Meteu por
uma porta e correu pelos corredores, internando­-se no edifício, as
grandes janelas do tanque central sempre ao seu lado cheias de
tubarões como se estes a perseguissem. Ana redobrou a velocidade;
tudo o que queria era sair dali, partir o mais depressa que pudesse,
fugir daquele lugar de pesadelo e escapar aos temíveis monstros dos
oceanos que ameaçavam investir contra o grande vidro e engoli­-la
como ela os vira engolir tanta gente nos filmes que lhe assombravam o
sono.
Desembocou num tanque contíguo, evidentemente separado do
tanque central, e percebeu que se escapulira enfim e que podia parar
de correr. O sítio onde se refugiara estava isolado do tanque central;
não havia o perigo de os tubarões ali chegarem. Encostou­-se à
balaustrada, ofegante, os olhos fixos no chão e os pulmões arfantes
enquanto recuperava do susto e da correria. Malvados tubarões, que
tanto a tinham assustado! Daquela já ela se livrara. Respirou fundo,
mais aliviada, e levantou a cabeça, recuperando a compostura. Estava
sozinha. Ouvia a gritaria dos colegas de turma, mas eram vozes
distantes, perdidas algures lá atrás. Esforçou­-se por regularizar a
respiração e, por fim tranquila, olhou em redor.
A paisagem surpreendeu­-a. O ar era anormalmente frio, sinal de que
os aparelhos de ar condicionado bombavam ali com toda a força, e o
tanque onde se encontrava mostrava uma paisagem branca formada
por estruturas a simularem neve. Olhou para a tabuleta à entrada do
tanque e viu escrito Oceano Glacial Ártico. O Pólo Norte, deduziu.
Ainda na véspera, durante a aula na escola, a professora Arlete falara
sobre aquilo que iriam encontrar durante a visita e mencionara as
zonas glaciares. A professora dissera­-lhes que havia pinguins num dos
tanques frios do Oceanário e na altura a ideia entusiasmara­-a.
Pinguins? Tão queridos, os pinguins! Nas fotos pareciam crianças de
smoking; só lhes faltava o laço. E agora ali estava ela. Onde se
encontravam aqueles bichinhos tão simpáticos? Esqueceu o medo que
a sufocara ape­nas momentos antes e espreitou em todas as direções, à
procura dos pinguins. Por onde andariam? Nada lobrigou sobre as
estruturas brancas que cercavam o tanque.
Inclinou­-se sobre a balaustrada e espreitou a água escura por baixo
dela. Estariam lá em baixo? Por instantes o tanque parecia deserto,
mas um movimento à direita chamou­-lhe a atenção. Viu um vulto
branco e negro rolar pela superfície da água e desaparecer no fundo,
uma temível barbatana pontiaguda no dorso. Assustou­-se. Um
tubarão?! Quase deu a volta para fugir, mas conteve­-se. A professora
tinha­-lhe dito que só havia tubarões no tanque central. Além do mais,
aquele era o tanque do Pólo Norte e, se bem se lembrava das aulas e
dos filmes, os tubarões só existiam em águas quentes. Acalmou­-se e
voltou a espreitar pela balaustrada, tentando perceber que bicho seria
aquele. Tudo estava calmo lá em baixo, as águas a agitarem­-se com
suavidade, azuis, azuis...
Uma mancha vermelha.
Descortinou uma mancha vermelha na água. Ali, num canto, junto
às estruturas brancas. O olhar intrigado de Ana fixou­-se nesse ponto.
Seria tinta? Que estranho, tinta na água. Inclinou­-se ainda mais sobre
a balaustrada, tentando ver melhor. O vermelho misturava­-se com o
azul naquele canto. Desceu da balaustrada e correu para o ponto mais
próximo do canto onde o azul se avermelhava, e voltou a empoleirar­-
se para ver. Destrinçou algo dentro de água. Seria o monstro branco e
preto que vislumbrara momentos antes? Não lhe parecia. O vulto
estava imóvel. Espreitou de um novo ângulo e constatou que tinha
pelos. Quando entendeu do que se tratava sentiu um baque no peito.
“Aaaaaah!”
Desatou a gritar. Saltou da balaustrada e saiu do tanque do Oceano
Glacial Ártico o mais depressa que pôde, correndo em direção ao
tanque central, os tubarões já não lhe metiam medo, tudo o que
queria era juntar­-se aos outros, fugir dali, buscar ajuda, esconder­-se,
procurar proteção.
“Socorro!”
Um adulto intercetou­-a.
“Ana?”
Era a professora Arlete.
“Aaaaaah!”
A professora agarrou­-a.
“O que aconteceu?”
Aterrorizada, Ana apontou para trás.
“Ali! Ali!”
Vendo que a professora não percebia o que se passava e não fugia,
desprendeu­-se dela e desapareceu no corredor, aos berros, aterrorizada
e em pânico.
A professora Arlete ficou atónita a olhar para a aluna. Ainda deu
dois passos para ir atrás dela, mas estacou. O que teria a criança visto
que a tinha posto naquele estado? Inquieta, deu meia­-volta e avançou
pelo corredor até desembocar no varandim do tanque do Oceano
Glacial Ártico. Tudo estava calmo. Estudou as águas e pareceram­-lhe
normais.
Quando se ia retirar, apercebeu­-se de uma mancha vermelha ao
canto. Aproximou­-se do ponto mais próximo e espreitou. Viu um
vulto flutuar por entre o vermelhão e levou um segundo a perceber o
que era.
O cadáver de um homem.
.

A rapidez com que Maria Flor saltou para fora do chuveiro e se


enrolou na toalha, o vapor da água quente a erguer­-se dela como
fumo, não deixou de surpreender Tomás. Era raro os horários de
ambos coincidirem. A mulher levantava­-se habitualmente muito cedo
e ele tarde, pois ficava durante a noite a preparar relatórios sobre
peças que interessavam ao Museu Gulbenkian, pelo que poucas vezes
se cruzavam no banho da manhã.
“Já?”, admirou­-se o marido. “Não foi nem há vinte segundos que
entraste no duche...”
“Tem de ser tudo muito rápido”, disse ela, já a secar­-se. “Há que
poupar.”
“Poupar gás?”
Maria Flor atirou­-lhe um olhar de leve censura.
“A água, ora essa!”
“Mas, querida, apenas vinte segundos no duche? Não achas que é
um exagero?”
A mulher começou a vestir­-se.
“Não sabes em que estado se encontra o planeta?”, per­guntou em
tom retórico. “As temperaturas aumentam, as calotes polares
derretem­-se, o nível do mar sobe, as florestas desa­parecem, a
humanidade está a consumir toda a água potável e os recursos
naturais esgotam­-se. Estamos a caminhar para o abismo e... e...
precisamos de fazer algo. Devias fazer o mesmo que eu.”
Era tudo verdade, sabia Tomás, mas isso não o impediu de deixar
escapar uma expressão trocista; aquela dos banhos rápidos tornara­-se
pelos vistos a última extravagância ecológica da mulher.
“Resolvemos os problemas do planeta com um duche de vinte
segundos?”
“Tudo ajuda, Tomás!”, insistiu ela. “As pessoas passam cinco a dez
minutos por dia no banho. Sabes quantos litros de água isso significa
por mês? Mil duzentos e cinquenta litros! Cada ser humano gasta mil
duzentos e cinquenta litros de água por mês só a tomar banho! Agora
põe oito mil milhões de pessoas a tomarem banho todos os dias e vê
quanto dá! Não pode ser! Temos de tomar banhos rápidos para
poupar água!”
Maria Flor tinha razão, claro, mas era desconcertante vê­-la tomar
banhos de apenas vinte segundos e lavar os dentes só com uma mão­-
cheia de água e tudo o mais que a mulher impunha a si mesma e a ele
em nome do planeta.
“Despacha­-te”, disse Tomás ao abandonar o quarto de banho.
“Temos lugar marcado no restaurante daqui a vinte minutos.”
Foi buscar a chave do carro e atravessou a casa em direção à porta
da rua. As lâmpadas incandescentes tinham sido todas substituídas
por fluorescentes, uma medida recente de Maria Flor para “poupar na
pegada ecológica”, ao mesmo tempo que os sacos de plástico haviam
desaparecido de toda a casa, cedendo o lugar aos sacos de papel
reciclado. Além disso, todas as noites ela obrigava­-o a fazer a
separação do lixo e a deitá­-lo depois nos contentores certos do
ecoponto, verde para vidros, amarelo para plásticos e metais, azul
para papéis. Tinha a impressão de viver sob uma verdadeira ditadura
ecológica. Suspirou. Não se podia dizer que passar quinze minutos a
separar o lixo entre três sacos diferentes fosse uma tarefa prazenteira,
mas o que era isso perante a perspetiva de salvar o planeta — e
sobretudo de se poupar aos ralhetes da mulher?
Ao fim de cinco minutos à espera dentro do carro, viu­-a cruzar a
porta da rua e encaminhar­-se para ele. Maria Flor não vinha com ar
satisfeito e Tomás sabia porquê.
“Porque não vamos de bicicleta?”, questionou ela ao abeirar­-se da
viatura. “Passo a vida a lembrar­-te de que temos de limitar o consumo
de combustíveis fósseis ao mínimo e este teu carro liberta dióxido de
carbono para a atmosfera. As bicicletas, pelo contrário, são amigas do
ambiente.”
O marido fez um gesto em direção ao céu.
“Vai chover, querida...”
As nuvens apresentavam­-se de facto carregadas, o que signi­ficava
que arriscariam uma molha caso fossem de bicicleta. Resignando­-se,
Maria Flor entrou mesmo no carro e acomodou­-se no lugar do
passageiro.
“Tem a santa paciência mas tens de arranjar um carro elétrico”,
insistiu ela enquanto punha o cinto de segurança. “Desculpa lá estar a
falar­-te sempre nisto, sei que sou uma grande chata com estas coisas,
mas é para o bem de todos.”
Tomás não respondeu de imediato. Meteu a primeira e o carro
arrancou, metendo­-se a caminho. Maria Flor nunca fora fanática nos
assuntos relacionados com o ambiente, mas desde que as vagas de
calor, os períodos de seca e as tempestades se tornaram mais fortes
que começara a preocupar­-se seriamente e a massacrá­-lo com o
problema. Semanas antes tinha­-se mesmo tornado voluntária de uma
organização ecologista internacional, a GreenNaturae, e desde então
passava parte do dia envolvida nas respetivas atividades ou a estudar
relatórios sobre o ambiente e a natureza.
“Tens andado muito ocupada...”
“O Noé pediu­-me para o ajudar”, respondeu ela, adocicando a voz.
“Teve mais uma crise por causa dos animais, coitado, e foi preciso
dar­-lhe uma mãozinha. Lamento ter­-te deixado sozinho. Tens sentido
muito a minha falta?”
Tomás atirou­-lhe um sorriso de cachorro abandonado.
“O Noé é que de certeza não tem”, retorquiu num queixume.
“Andas o dia todo com ele...”
A mulher lançou­-lhe um olhar torto.
“Ele ao menos não se ri das minhas preocupações com o meio
ambiente”, devolveu. “Pelo contrário, também se preocupa. Quem me
dera que fosses como o Noé.”
“O que estás a sugerir? Que queres fazer uma troca?”
Com um suspiro, Maria Flor deixou o olhar perder­-se pela janela.
“Partilhamos os mesmos interesses.”
“Não me digas que isso o torna aos teus olhos mais interessante do
que eu...”
De olhar fixo no exterior, ela não respondeu. Aquele silêncio deixou
o marido mais inquieto do que deixava transparecer. Noé era um dos
responsáveis da GreenNaturae. Desde que se inscrevera na
organização ambientalista, Maria Flor trabalhava muito com ele.
Envolvera­-se nos seus projetos com animais e Tomás sentia que desde
então algo mudara na mulher. Já não era a mesma. Seria apenas por
causa das exigências do trabalho?
Percebia que o projeto no qual ela se envolvera com a GreenNaturae
atravessava uma fase conturbada, mas a mulher não lhe contava nada.
Todo o segredo em torno das atividades da organização ecologista
perturbava­-o. Sabia que tudo relacionado com o projeto era muito
sigiloso. Maria Flor tivera até de assinar um acordo de
confidencialidade para poder trabalhar na Green­Naturae, pelo que a
essência do trabalho em que estava envolvida nunca fora muito clara
para Tomás. Gostaria de saber mais, mas não a podia forçar a
revelar­-lhe nada. A verdade, no entanto, é que as atividades da
organização ambientalista estavam a consumir muito tempo e energia
à mulher.
E não era só isso. A proximidade entre ela e o tal Noé desas-­
sossegava­-o e interrogava­-se amiúde sobre a verdadeira natureza da
relação entre os dois. Desde que aderira à organização ecologista que
a sentia diferente. Mais distante, mais perdida nos seus pensa­mentos,
mais indiferente a ele. Aqueles silêncios dela prolongavam­-se com
frequência e isso afligia­-o.
Espreitou­-a de esguelha, como se quisesse adivinhar o que lhe ia na
alma. Seria possível que...?
Afastou a suspeita. Não podia ser, ela não lhe faria isso. Ou... ou
faria? Voltou a espreitá­-la, tentando ler­-lhe os pensamentos. A mulher
mantinha o rosto fechado, como uma jogadora de póquer. Em que
estaria a pensar? Em nada? No trabalho? Ou... ou em Noé? Ainda se
sentiu tentado a perguntar­-lho diretamente, mas conteve­-se. Assuntos
como aquele requeriam tato e inteligência e tinham de ser tratados
com pinças. Havia que ser paciente.
Chegaram ao destino. O restaurante encontrava­-se cheio, no fim de
contas era um dos mais procurados de Lisboa, e não tivesse sido a
reserva nem sequer conseguiriam almoçar antes das três da tarde.
Depois de os conduzir aos seus lugares e de ir tratar de outros clientes
enquanto os fregueses recém­-chegados inspecio­navam o menu, o
empregado, um homenzinho redondo e bonacheirão chamado Lopes,
regressou e plantou­-se junto à mesa, o bloco de notas aberto, a caneta
pronta a registar os pedidos.
De olhos ainda pregados na ementa, Maria Flor bufou, con­trariada.
“Não se pode dizer que haja por aqui muitas opções, hem?”,
queixou­-se. “Um único prato vegetariano.” Respirou fundo,
resignando­-se. “Enfim, o que posso fazer? Traga­-o, que remédio.”
Depois de tomar nota do pedido, o empregado desviou a atenção
para Tomás.
“E o senhor professor?”
“Ó Lopes, para mim era... era... olhe, hesito entre o bife frito com
batatas e ovo e o leitão à Bairrada. A pele do leitão está estaladiça?”
“Crocante como batata frita, posso assegurar­-lhe.”
“Ah, excelente!”, soltou o freguês, fechando a ementa. “Traga­-me lá
o leitãozinho, se faz favor...”
Logo que o empregado se afastou, Maria Flor não se conteve e
cravou os olhos agastados no marido.
“Quando é que deixas de comer carne?”, censurou­-o. “Não gostas
dos animais?”
“Adoro­-os”, foi a resposta pronta. “A começar pelo leitão que aí
vem.” Passou a língua gulosa pelos lábios. “Miam­-miam. Gosto tanto
de animais...”
Ela revirou os olhos.
“Oh, lá estás tu com as tuas graçolas parvas. Nunca levas a sério
nada do que te digo.”
Tomás pôs o guardanapo no regaço e afinou a voz, ganhando
embalo para tocar na questão que havia algum tempo lhe andava
atravessada na garganta. Não queria questioná­-la diretamente sobre
Noé, não lhe pareceu que fosse avisado, mas havia uma outra maneira
de tocar no assunto.
“Não leves a mal, mas desde que aderiste a essa organização
ambientalista que te tornaste um bocado... enfim, como direi?, um
pouco... exagerada com estas questões da bicharada.”
Ao ouvir estas palavras, ela quase se escandalizou.
“Exagerada, Tomás?!”, protestou. “Já viste o que a humanidade
anda a fazer às outras espécies?”
Aquelas eram águas perigosas, sabia o marido, ciente da
sensibilidade do tema. Teria de proceder com a maior cautela.
“Pois, é verdade”, recuou, conciliador. Hesitou. “Mas... enfim,
animais são animais, não é? Não estamos propriamente a falar de
pessoas. Temos de ter o sentido das coisas.”
Ela alçou uma sobrancelha, desconfiada.
“O que queres dizer com isso?”
“Os animais não são como nós, querida. São... animais. Descartes
até lhes chamava animais­-máquinas. No fundo são uma espécie de
robôs complexos que emitem respostas automáticas a estímulos
externos. Há cientistas que defendem que todo o comportamento
obedece a dinâmicas de estímulo­-resposta. Os animais não passam de
máquinas que buscam gratificações e fogem do sofrimento.”
“Acreditas mesmo nisso?”
“É o que diz a ciência, Florzinha”, retorquiu Tomás, o eterno
académico. “As coisas são o que são, não o que gostaríamos que
fossem. O trabalho científico deve obedecer ao princípio da
parcimónia. No caso do trabalho com os animais, isso significa que
para explicar o comportamento deles não é preciso recorrer a
estruturas psicológicas de ordem superior, como o raciocínio e a
vontade, quando existem sistemas explicativos mais simples, como os
reflexos. Ao pôr cães a salivar sempre que ouviam o sino do almoço,
Pavlov mostrou que os animais se comportam segundo esse esquema
de estímulo­-resposta. Se uma borboleta voa em direção à luz, isso não
acontece porque ela é curiosa mas porque obedece a um mecanismo
pré­-programado, na verdade uma simples reação de ordem química.
Nós é que temos tendência a antropomorfizar, a projetar
características humanas nos animais. Se até nos automóveis o
fazemos, dizendo que o meu carro é preguiçoso nas subidas ou
teimoso por se recusar a funcionar quando ligo a ignição, porque não
iremos fazer o mesmo em relação à bicharada? Mas os animais, como
os automóveis, não são gente. Convém nunca o esquecer.”
“Como podes dizer isso?”, repreendeu­-o ela. “Os animais não são
máquinas, Tomás. Presumo que consideres Darwin um cientista. Pois
ele acreditava que os bichos têm curiosidade, raciocinam, mostram
atitudes equivalentes às humanas...”
“Darwin estava a antropomorfizar”, ripostou o marido, tentando
mostrar­-lhe que sobre o assunto sabia uma ou duas coisas e que o dito
Noé não era o suprassumo da barbatana. “Quando dizemos que as
formigas têm uma rainha, estamos na verdade a atribuir às formigas
características da sociedade humana que elas evidentemente não têm.
Ou olha para o caso do gourami­-beijador. Ao verem esses peixes
tocar­-se com a boca para pôr fim a conflitos, as pessoas disseram logo
que eles se beijavam. Isso é antropomorfismo.”
“Quando terminamos uma zanga não damos nós também beijos de
reconciliação?”
Ele sorriu.
“Beijos e... mais qualquer coisinha.”
“Não somos só nós ou os gourami­-beijadores”, adiantou ela. “Olha
o que se passa com os chimpanzés. Quando busca afeto, um
chimpanzé cola a sua boca à boca de outro. Isso também são beijos.”
Tomás esboçou uma careta de estranheza.
“Os chimpanzés beijam­-se?”
“Claro que se beijam. Não vou negar que o antropomorfismo existe,
é realmente fácil atribuirmos características humanas a certos atos dos
animais que não são o que parecem. Por exemplo, quando um
chimpanzé arregaça os lábios e mostra todos os dentes dizemos que
está a sorrir, pois esse esgar assemelha­-se aos nossos sorrisos, mas na
verdade trata­-se de um esgar de terror. Contudo, não te esqueças de
que existe também antroponegação, isto é, a negação de que certos
comportamentos significam o mesmo para os animais e para os seres
humanos. Por que razão um cientista pode dizer que um corvo tem
um parceiro preferido, mas não pode dizer que tem um amigo? Só os
seres humanos é que têm o direito a ter amigos? Isso é ridículo. Como
é ridículo que um cientista tenha de dizer que houve uma interação
pós­-conflito envolvendo contacto boca a boca em vez de dizer que os
chimpanzés rivais se reconciliaram com um beijo. Até a forma como
certos cientistas encaram os comportamentos animais é de um
absurdo atroz. Por exemplo, quando um gato toca numa chaleira a
escaldar, um cientista diz que o gato deu um salto e miou. Quando um
ser humano toca na mesma chaleira e dá um salto e um grito, o
mesmo cientista diz que ele se magoou. Isto é para rir.”
“Estás a falar do behaviorismo”, disse ele, identificando a corrente
que durante tanto tempo dominara o pensamento científico sobre os
animais. “A ideia dos behavioristas é que, não estando nós na pele de
um animal, não temos maneira de experienciar os seus estados
subjetivos. Como não o podemos fazer, mais vale nem tentar. Só
podemos descrever os comportamentos dos animais, não avaliá­-los.”
“Mas isso é válido para tudo, Tomás. Como sei eu o que tu sentes se
não estou na tua pele? Como sabes tu o que eu sinto se não estás na
minha pele? Na verdade nunca seremos capazes de saber com absoluta
certeza o que os outros sentem. Apenas inferimos os sentimentos dos
outros pelas suas reações. Exatamente como fazemos com os animais.
E não me venham dizer que a ciência não usa a dedução como
método, porque usa e sempre usou. Quando no século xv os
portugueses se lançaram ao mar para explorar o planeta e fazer os
Descobrimentos, já sabiam que a Terra era redonda, apesar de só na
década de 1960 ter aparecido uma fotografia a mostrar que a Terra é
mesmo redonda. Como sabiam os portugueses isso? Por dedução. Se o
método da dedução é bom para a física ou a geografia, porque não
há­-de ser bom para a etologia? Porque não pode um cientista
reconhecer que, se um gato tocar numa chaleira a escaldar e der um
salto e miar, isso acontece porque lhe doeu? Qual é o problema em
admitir que os animais têm dores ou se reconciliam após uma zanga,
exatamente como os seres humanos? Negá­-lo é negar a evidência. E,
no entanto, é justamente isso o que esses behavioristas fazem.
Reconhecem que a Terra é redonda sem nunca a terem visto, mas não
são capazes de reconhecer que os animais têm dores apesar de, pelas
suas reações, evidentemente as terem.”
Era verdade, e Tomás sabia­-o.
“Em bom rigor essas ideias chegaram a ser aplicadas a seres
humanos”, lembrou ele. “Durante muito tempo, os médicos achavam
que os bebés não tinham dores e que o choro não passava de uma
mera reação instintiva, um pouco ao estilo do processo de estímulo­-
resposta. Foi à custa dessas ideias que foi possível que até 1986 a
maior parte dos hospitais efetuasse cirurgias em bebés sem anestesia,
apesar de eles berrarem desalmadamente enquanto lhes faziam
incisões com facas.”
“Que horror!”
“Parece que muitas dessas crianças, agora adultos e velhos, ainda
hoje sofrem de stress pós­-traumático por causa dessas brincadeiras.
Em bom rigor, tenho de reconhecer que o mesmo raciocínio existe
para os animais. Aliás, os cientistas do século xv pregavam cães pelas
patas a tábuas para os abrir e diziam que o uivo que eles emitiam
nessas circunstâncias não passava de uma resposta mecânica.”
O empregado apareceu nesse momento com os pratos e quando os
pousou na mesa soou o telemóvel de Maria Flor. Ela olhou para o
visor e constatou que se tratava de uma chamada de número anónimo.
Premiu o botão verde de atendimento.
“Está, sim?” Uma voz falou do outro lado da linha. “Sim, sou eu.
Quem fala?” Ao fim de alguns instantes a escutar a voz, empalideceu.
“O quê?!” Ficou transtornada, como se ouvisse e não acreditasse, os
olhos muito arregalados. “O que... o que aconteceu?” Ficou mais um
instante calada, a escutar o que lhe diziam. “Está bem... eu já aí vou.”
Desligou e ficou um longo momento imóvel, como se estivesse em
choque. Uma lágrima brotou­-lhe de repente do olho esquerdo e
ziguezagueou­-lhe pela face. Nesse instante deitou as mãos à cara,
tapando­-a, e dobrou­-se sobre ela mesma, começando a chorar
convulsivamente.
“O que aconteceu?”, perguntou­-lhe Tomás, alarmado. “Porque estás
assim?”
A mulher chorava de cara tapada com as mãos, dir­-se­-ia em choque,
e os olhares de todos no restaurante voltaram­-se para a mesa. Tomás
não sabia o que fazer, nem sequer percebia o que acontecera. Decerto
algo de muito grave.
“Florzinha, o que foi?”, perguntou abeirando­-se dela e pondo­-lhe o
braço sobre os ombros para a confortar. “O que se passa? Foi o teu
pai? O que aconteceu?”
Ela não parava de chorar; tinha evidentemente acabado de sofrer um
desgosto. Ao fim de alguns segundos fez um esforço para se dominar
e, contendo­-se, secou o rosto com as costas das mãos. Por fim encarou
o marido, as lágrimas ainda a brilharem­-lhe nos olhos.
“O Noé... o Noé morreu.”
.

II

Passando a mão pela testa, Noé Vandenbosch limpou o suor e sorriu


enquanto olhava para a cauda negra com manchas brancas por detrás
do rochedo. As muralhas coloridas do Palácio da Pena, no alto da
serra de Sintra, pareciam vigiar a propriedade que se estendia entre a
floresta e o mar, mas havia já algum tempo que o etólogo belga não
contemplava a maravilhosa paisagem que o rodeava; os múltiplos
afazeres da quinta não o permitiam. Isso não impedia que continuasse
a ser capaz de apreciar as diferentes idiossincrasias dos diversos
animais sob a sua responsabilidade, como era o caso daquela vaca.
“Já viu a Alice?”, atirou para a mulher ao seu lado. “Pôs­-se a jogar
às escondidas.”
“Bem... parece­-me que está simplesmente a pastar por detrás daquela
rocha.”
“É de propósito”, insistiu ele, massajando o queixo. “Quando me
vê, a marota põe­-se atrás das árvores ou das pedras ou da casa ou do
que quer que seja. Mais nenhuma vaca me faz isso. Anda a jogar às
escondidas. Quer ver?”
Antes que a sua acompanhante respondesse, Noé encaminhou­-se
para a rocha. De estatura mediana e cabelo loiro, o belga era muito
ágil e movia­-se com rapidez. Quando ele estava já próximo, contudo,
a vaca desatou a correr e foi anichar­-se atrás de uma nogueira.
“Meu Deus!”, exclamou a portuguesa. “Está mesmo a esconder­-se!”
Riram­-se os dois, divertidos com o comportamento da vaca.
Avançaram para a nogueira e, em resposta, Alice correu para trás de
uns arbustos; não havia dúvida de que jogava às escondidas. Cansado
de brincar, pois brincar com aquela vaca significava andar atrás dela
de esconderijo em esconderijo toda a manhã, Noé deixou­-se alcançar
pela nova recruta da GreenNaturae.
“Acho que já decorei o seu nome. É Maria Fleur, não é verdade?”
“Flor”, corrigiu ela. “Maria Flor.”
O belga fez um gesto exasperado.
“Ah, mince!, o sotaque dos portugueses é dificílimo”, queixou­-se.
“Além do mais, nunca tive jeito para línguas.” Olhou­-a com uma
expressão subitamente inquisitiva. “Diga­-me, chère Fleur, porque quis
vir trabalhar para cá?”
“Ia a passar à frente da quinta, vi a tabuleta a dizer Jardim dos
Animais com Alma, achei graça ao nome e... e aqui estou eu.”
A resposta não era a que Noé queria.
“Vá lá, agora a sério. Quando o Zwiebel me falou de si, admito que
torci o nariz. Bem vê, não tem especialização em etologia nem sequer
um curso de biologia. Como deve calcular, este trabalho apresenta
requisitos muito específicos. A razão pela qual a recrutei, vou
confessá­-lo, tem a ver com o facto de conhecer a língua gestual.
Aprendeu­-a por causa de um lar de idosos que tem em Coimbra, não é
verdade?”
“Sim, alguns utentes são surdos­-mudos e o meu marido, que tem um
talento enorme para línguas, ensinou­-me a língua gestual para poder
comunicar com eles.”
“As minhas dúvidas em relação a si relacionam­-se, como lhe
expliquei, com a sua falta de competências na área da etologia. Até
que ponto está familiarizada com o trabalho relacionado com
animais?”
Maria Flor sabia que aquele era de facto o seu ponto fraco para
aquelas funções.
“Quando era miúda sempre desejei ter um cão, mas os meus pais
não queriam. Diziam que dava muito trabalho, que era uma prisão,
que isto e que aquilo. De modo que de facto nunca lidei com animais,
para grande pena minha. Foi por isso que me inscrevi na
GreenNaturae. Ouvi falar nesta sua quinta, na bicharada que para
aqui havia, nos rumores incríveis que correm lá fora sobre o que aqui
se faz, achei de facto o nome da quinta curioso e... inscrevi­-me.”
“Ou seja, não sabe nada sobre animais.”
“Mas vou aprender”, apressou­-se ela a acrescentar, receando que a
sua ignorância e a sua inexperiência ainda a pudessem desqualificar.
“Diga­-me o que é preciso fazer e farei. Contaram­-me que vocês estão
a levar a cabo experiências muito impor­tantes e quero ajudar.”
Hesitou, temendo ferir suscetibilidades, mas ciente de que não podia
deixar de marcar uma posição pois existiam linhas que não estava
disposta a cruzar. “Espero é que... enfim, que essas experiências não
sejam... como dizer?, não sejam cruéis. Sabe, não suporto ver
sofrimento e...”
“Não sou um behaviorista, chère Fleur. Sou um etólogo.”
Maria Flor devolveu­-lhe uma expressão desconfiada.
“Isso significa o quê?”
Ouviram nesse momento uns guinchos insistentes provenientes da
antiga casa senhorial que dominava a quinta e o belga esboçou uma
careta; a sua presença era requerida por outro dos seus “utentes”. Fez
um gesto na direção da vaca escondida por detrás do arbusto.
“Alice, tenho de me ir embora!”, gritou para o animal. “Anda daí!
Despacha­-te!”
Para espanto da portuguesa, a vaca saiu de trás do arbusto e foi ter
com uma outra vaca que pastava nas redondezas antes de se
encaminhar para eles. Maria Flor olhava incrédula para a cena.
“Deixou de brincar às escondidas.”
“Ela foi só despedir­-se da Gertrudes”, explicou Noé, começando a
caminhar sem esperar por Alice. “São bichos mais espertos do que
parecem, as vacas, embora cada uma seja diferente da outra. Aliás,
isso é válido para todos os animais. Achamos que os bichos são iguais
e não são. Dizemos que os cães são assim e os gatos assado, e de certo
modo é verdade, mas quando os conhecemos individualmente vamos
descobrindo que afinal são diferentes uns dos outros. Há vacas
inteligentes, como a Alice, e outras pachorrentas, como a Gertrudes.
Há tímidas, há atre­vidas, há nervosas... há de tudo. O mesmo se passa
com os cães e os gatos e os periquitos, como qualquer dono de
animais domésticos sabe, mas também com a restante bicharada.
Todos diferentes uns dos outros. Os golfinhos, os elefantes, os lobos...
até animais que não nos passa pela cabeça que possam ter
personalidade individual, como as tartarugas, as rãs, as abelhas, os
grilos e as moscas da fruta. Olhe que as abelhas, os grilos e as moscas
da fruta são insetos e dispõem de cérebros minúsculos. No entanto,
quando os conhecemos individualmente vamos percebendo que cada
um tem a sua própria maneira de ser. Isto é uma regra da natureza.
Num certo sentido os animais são todos iguais, noutro são todos
únicos.”
“Que interessante”, observou a portuguesa. “Com os seres humanos
é a mesma coisa, não é verdade?”
“Exceto com os portugueses”, gracejou Noé. “Descobri que todos
comem bacalhau.”
Ela riu­-se.
“Mas comêmo­-lo de mil maneiras diferentes.”
“A diversidade é uma regra na natureza, chère Fleur. Não há dois
seres vivos exatamente iguais.” Calou­-se por um momento. “Você
dizia há pouco que se opõe à crueldade para com os animais e
perguntava­-me o significado de eu ser um etólogo, não um
behaviorista”, lembrou Noé, retomando o fio à conversa entretanto
interrompida pelos guinchos que vinham do casarão que dominava a
propriedade. “Um etólogo é um cientista especializado no estudo do
comportamento dos animais. Procuramos entender o comportamento
deles nos seus contextos naturais, nos habitats em que vivem. As
experiências em laboratório contêm sempre um grau de artificialidade
e uma perda de informação que prejudica o conhecimento.” Fez um
gesto a indicar o espaço em redor. “Ao conceber o Jardim dos Animais
com Alma, creio de algum modo ter já dado resposta aos seus receios,
não lhe parece?”
No momento em que Maria Flor ia insistir, um vulto maciço e
arfante pôs­-se bruscamente ao lado deles. A portuguesa deu um salto.
“Ai, que susto!”
Era Alice que os tinha alcançado enfim. Noé virou­-se para a vaca e,
ternurento, afagou­-lhe a cabeça.
“Não tenha medo, aqui a minha Alice não faz mal a ninguém”, disse
com uma voz suave, como se falasse mais para a vaca do que para a
nova recruta da GreenNaturae. “N’est­-ce pas, Alice?” Voltou­-se para
a portuguesa. “Sabe, chère Fleur, quando come­çamos a conhecer
individualmente cada animal não podemos deixar de nos surpreender
com a profundidade e a vastidão do fenómeno da personalidade. Aqui
a Alice não é nenhuma exceção. Uma vez tive lá na Bélgica um projeto
com falcões e descobri que cada um caça à sua maneira. Não há dois
falcões iguais. Noutra ocasião estive no Canadá, onde trabalhei com
dois ursos, e deparei com personalidades específicas. Um era medroso,
o outro destemido. Colegas meus falam do mesmo fenómeno onde
quer que seja. Os ratos são individualmente diferentes uns dos outros,
e o mesmo se passa com lémures, pássaros, ovelhas... eu sei lá. Quanto
mais complexos os bichos são, mais as diferenças se notam. Durante
um projeto com a Stazione Zoologica, em Nápoles, pusemos dois
caranguejos dentro de duas jarras de vidro. Atirámos a primeira jarra
para perto de um polvo para ver o que ele fazia. O polvo agarrou na
jarra, estudou­-a, desenroscou a tampa e... pimba!, comeu o
caranguejo.”
“Suponho que seja isso o que um polvo faz normalmente nessas
circunstâncias...”
“Foi o que pensei. Mas não é assim. Quando demos a outra jarra ao
segundo polvo, sabe o que ele fez? Fugiu a sete tentáculos! Ficou tão
amedrontado que se foi esconder atrás de uma rocha no tanque. Não
saiu de lá enquanto não retirámos dali a jarra.”
“Que medricas!”
“São todos diferentes, chère Fleur. Pensei que o primeiro polvo nos
tinha mostrado o que é normal os polvos fazerem nestas
circunstâncias, mas eis que o segundo fez algo completamente
diferente. Não há dois polvos iguais. Dependendo dos casos, as
diferenças podem resultar de personalidades diferentes ou de
experiências passadas diferentes, mas que as diferenças existem é
inquestionável. Como disse um prestigiado colega meu, a perceção de
uniformidade resulta da pobreza da observação. Quanto mais
observações fazemos, mais diferenças encontramos.”
Pararam diante da casa principal e foram imediatamente rodeados
por galinhas. Embora evitassem Maria Flor, várias puseram­-se a
debicar em redor de Noé sem o menor receio dele.
“Oh, que giro! Elas reconhecem­-no.”
Uma das galinhas ergueu a cabeça e, fitando o belga, soltou um som
que soava a bâp­-bâp­-bâp­-baaah e logo a seguir outro que parecia ser
bâd âp.
“Oh, é a Elvira”, reconheceu­-a ele com um sorriso enternecido. “É
simpatiquíssima e está a cumprimentar­-me. Bâp­-bâp­-bâp­-baaah é o
meu nome em galinhês, veja lá. Sei isso porque elas só usam este som
comigo.” Baixou­-se para lhe oferecer uns grãos de milho que tirou do
bolso. “Bâd âp, Elvira”, imitou­-a, devolvendo o cumprimento. A
seguir olhou em redor. “Scri­-âp­-âp­-âp!”
A galinha Elvira olhou em redor, aparentemente alarmada,
comportamento que não escapou à visitante.
“Oh! Assustou­-se.”
Noé voltou a pôr­-se de pé, encarando a sua interlocutora.
“Scri­-âp­-âp­-âp é galinhês para perigo”, explicou. “Elas têm uma
espécie de língua, o que pensa? Aqui em Portugal costuma dizer­-se que
uma pessoa estúpida tem cabeça de galinha, mas isso é muito injusto
para elas. As galinhas são bem mais espertas do que julgamos. Sabia
que são capazes de resolver problemas cogni­tivos fora do alcance de
cães, gatos e crianças de quatro anos? Um estudo da universidade de
Bristol mostrou que elas passam informações de geração para geração,
usam raciocínio dedutivo e são capazes de planificar coisas e mesmo
de construir elementos básicos de engenharia estrutural. Além disso,
parecem ter empatia. Os estudos sobre a cognição das galinhas dão­-
nos a impressão de que elas conseguem compreender o estado
emocional dos outros e até partilhar esse estado.”
A portuguesa contemplou as galinhas com uma expressão de
incredulidade.
“A sério? Tem piada, quando era miúda às vezes ia ao galinheiro no
quintal da casa dos meus avós e confesso que não me pareciam
particularmente inteligentes...”
“É porque não se aproximou delas da maneira certa”, explicou o
etólogo. “Sabe, quando nos conhecem pela primeira vez, as galinhas
ficam desconfiadas e assim podem permanecer uma vida inteira. Mas
se nos aproximarmos devagar e ficarmos quietos, e se não falarmos
durante algum tempo, começam a habituar­-se à nossa presença. Se
formos persistentes, a certa altura adotam­-nos mesmo como membros
honorários da sua espécie. Foi o que aconteceu comigo. Estando elas à
vontade e sendo nós capazes de as observar bem, começamos a
maravilhar­-nos com as coisas de que são capazes. Uma vez eu...”
“Ali!”, exclamou de repente Maria Flor, alarmada, apontando para
o solar. “Está ali um... um...”
O olhar de Noé subiu para a janela da casa, de onde um chimpanzé
vestido com roupas de menina os observava dando saltos excitados
com uma garrafa de gin na mão, a gesticular e a soltar guinchos
sucessivos, os mesmos guinchos que momentos antes o tinham
chamado quando brincavam às escondidas com Alice.
“É só a Guida.”
Coisa bizarra, a chimpanzé meteu o gargalo da garrafa à boca e
engoliu o gin.
.

III

Fitas amarelas de plástico selavam o acesso à plataforma do Oceano


Glacial Ártico, em pleno coração do Oceanário de Lisboa. Um polícia
intercetou os dois recém­-chegados, impedindo­-os de se aproximarem
do setor vedado, o que forçou Tomás Noronha a identificar­-se.
Decerto atraído pelas vozes, um homem despenteado e de barba rala,
vestido com uma gabardina suja e incongruente como se tentasse
personificar o clichê cinematográfico de um detetive desleixado,
espreitou da porta selada e fez sinal ao guarda.
“Está tudo bem, deixe­-os entrar.”
O historiador e a mulher agacharam­-se para passar por baixo das
fitas. No varandim de visita ao tanque do Ártico estava um homem
que Maria Flor conhecia bem. Tratava­-se de Dorian Zwiebel, o diretor
da GreenNaturae. Com ele encontravam­-se outros dois homens que
ela nunca vira. Ao reconhecê­-la, Zwiebel veio ter com Maria Flor e
abraçou­-a com força.
“Ah, ma pauvre!”, exclamou. “Que tragédia!”
“Senhor Zwiebel, o que... o que aconteceu?”
Os dois mostravam­-se comovidos.
“Ainda não estou em mim”, balbuciou o responsável da
GreenNaturae. Desprendeu­-se dela e baixou a cabeça, emocionado.
“Não... não consigo falar. Isto foi um golpe demasiado rude.”
O detetive da gabardina, até ali à conversa com um indivíduo
engravatado, veio ter com eles.
“O senhor está dispensado”, disse para Zwiebel. “Peço­-lhe que se
retire para que possamos prosseguir as averiguações.”
O responsável da organização ambientalista despediu­-se de Maria
Flor e de Tomás e afastou­-se, cabisbaixo. Os recém­-chegados
encararam o detetive da gabardina, que se comportava como se fosse
o dono do Oceanário.
“O senhor é...”
O desconhecido mostrou­-lhes um crachá a identificá­-lo como agente
da Polícia Judiciária.
“Inspetor Manuel Caparro”, apresentou­-se, oferecendo cartões de
visita a ambos. “Obrigado por terem vindo.” Fitou Maria Flor.
“Lamento tê­-la convocado, minha senhora, mas o diretor da
GreenNaturae disse­-me que a senhora trabalhava com a vítima e foi
por isso que lhe telefonei.”
O olhar ansioso dela desviou­-se para o tanque e o espaço em redor.
Um homem inspecionava a estrutura branca que simulava a neve,
metendo objetos em sacos de plástico, enquanto lá em baixo um
mergulhador vasculhava as águas.
“Onde está ele?”
“O corpo já foi retirado”, disse o inspetor. Fez um gesto na direção
de um dos cantos do tanque. “Foi encontrado esta manhã ali ao
fundo, dentro da água, por miúdos de uma escola.”
Maria Flor tinha os olhos vermelhos e fazia um esforço para não
chorar outra vez.
“O que... o que aconteceu?”
“Isso queremos nós apurar, minha senhora. Compreendo que esteja
chocada, é natural nestas circunstâncias. Se precisar posso mandar vir
um copo de água ou oferecer­-lhe um chá. Estas coisas são sempre
difíceis. Mas, embora as circunstâncias sejam penosas, a verdade é que
preciso de a questionar, minha senhora.”
Ela mordeu o lábio inferior, nervosa.
“Questionar­-me? Porquê?”
“Fique descansada, é um simples procedimento de rotina. O doutor
Tiago Louro, da patologia forense, já fez um primeiro exame ao corpo
para determinar a hora do óbito e andamos a inspe­cionar todo este
espaço à procura de indícios. Enquanto os técnicos trabalham, estou a
entrevistar testemunhas. Comecei com as crianças e a professora que
descobriram o cadáver, agora passei para o pessoal que aqui trabalha
e as pessoas relacionadas com a vítima. Já falei com o diretor da
GreenNaturae e neste momento estou a terminar a conversa com o
diretor do Oceanário. A seguir falarei consigo, se não vir
inconveniente.”
“Estou ao seu dispor, senhor inspetor.”
O investigador da Judiciária voltou ao homem engravatado,
evidentemente o diretor do Oceanário, com quem conversava quando
Tomás e Maria Flor chegaram.
“Desculpe, doutor Telles de Menezes, dizia o senhor que antes de
ocupar este cargo era o responsável do Parque de Elefantes Kae...
Kae...”
“Kaeng Krachan”, completou o da gravata. “Lidava com elefantes
tailandeses.”
“Ah, a Tailândia! Belo país, hem?”
“Sem dúvida.”
“E as tailandesas?” Piscou o olho com cumplicidade masculina. “Ui,
as tailandesas! Aquilo é que são umas massagens, hem? Maravilha!”
“Uh... pois.”
Percebendo que o seu interlocutor não se sentia à vontade para
aprofundar os temas femininos, o polícia recuperou a postura
profissional.
“Ó doutor Telles de Menezes, como é que o senhor passa de
elefantes na Tailândia para um parque marinho em Lisboa? Não são
coisas diferentes? Uns são bichos terrestres, os outros do mar.”
“Sou um biólogo multidisciplinar, senhor inspetor. Não se esqueça
de que todos os animais fazem parte da alma do mundo.”
O inspetor Caparro tomou nota.
“Sem dúvida, sem dúvida.” Terminou a anotação e fechou o bloco,
mas hesitou, como se algo lhe tivesse acabado de ocorrer. “O
bicharoco que aqui andava...” Fez um gesto a indicar o tanque. “É... é
perigoso?”
“A orca, senhor inspetor? Depende do que se entende por animal
perigoso. Proteu, o deus do mar, concebeu inúmeras criaturas
fascinantes, pois o grande oceano é um livro repleto de mara­vilhas.
Algumas delas são perigosas, não há que o negar. Convém que o
senhor inspetor tenha a noção de que em inglês as orcas são
designadas killing whales. Baleias­-assassinas.”
O polícia emitiu um assobio impressionado e tomou nota.
“Hmm... baleias­-assassinas, hem?”, murmurou. “Estou a ver, estou a
ver...” Espreitou as águas e deu instintivamente um passo para longe
da balaustrada, quase com receio de que uma das temíveis orcas de
repente saltasse de bocarra escancarada e o devorasse com uma única
dentada. “Já tinha ocorrido aqui no Oceanário algum incidente com
esta baleia­-assassina em particular?”
“Ela só chegou ontem, senhor inspetor. Comprei­-a a preço de saldo
a um parque marinho da Florida. Descarregámo­-la no tanque e
deixámo­-la lá. A ideia era montar hoje um perímetro de segurança em
torno do tanque. No fim de contas, sempre é uma baleia­-assassina,
não é verdade? Há que ter certos cuidados.”
Mais anotações.
“Algum incidente?”
“Nada.”
O inspetor Caparro parou de escrever e olhou­-o de lado, a
sobrancelha semierguida.
“Nada?” Indicou o tanque com um movimento da cabeça. “Então e
as feridas que estão no dorso da orca? Falei com subordinados seus
que me disseram que quando o animal chegou, vinha impecável.”
“Só pode ter sido do confronto esta noite com a vítima.”
“Mas um dos seus funcionários disse­-me que o viu a si ontem à
tarde a dar umas pauladas no bicharoco.”
O diretor do Oceanário corou.
“Às vezes temos de forçar os animais a fazer isto ou aquilo, é
evidente. Eles não podem agir como lhes apetece, era o que mais
faltava. Não se esqueça de que a baleia­-assassina vai dar uns
espetáculos e é preciso treiná­-la e domesticá­-la. Isso não se faz apenas
com comida e beijinhos, não é verdade? Um animal só pode ser
treinado com um cocktail de estímulos positivos e negativos. Fazes
bem e és premiado, fazes mal e és punido. Não há infelizmente outra
maneira, sobretudo quando estamos a falar de feras selvagens e
perigosas.”
O inspetor Caparro terminou os seus apontamentos e, agradecendo,
despediu­-se do diretor do Oceanário e mandou­-o ir à sua vida.
Terminado aquele interrogatório, o investigador da Judiciária
encaminhou­-se para Maria Flor, que à distância assistira à conversa
junto de Tomás.
“Só umas perguntinhas para si, minha senhora”, disse o polícia,
mudando de página no bloco de notas e preparando­-se para
recomeçar a escrever. “Conhecia bem a vítima?”
Maria Flor estava visivelmente perturbada e levou um longo
segundo a responder.
“Trabalho.... uh... trabalhava com o Noé na quinta que ele gere...
enfim, que ele geria em Sintra.”
“Só a senhora?”
“Há outros trabalhadores, claro. Também o diretor da
GreenNaturae, o senhor Dorian Zwiebel, costuma aparecer com
frequência para ajudar no que for preciso. O senhor Zwiebel era da
Greenpeace e deixou­-a para se juntar ao Noé e vir com ele para
Portugal fundar a GreenNaturae. O senhor Zwiebel ficou encarregado
das questões de organização, enquanto o Noé se centrou sobretudo no
projeto científico com animais.”
O investigador da Judiciária não parava de tomar notas, como se
tudo o que ela dizia fosse crucial para a investigação.
“Quando foi a última vez que viu o professor Noé Vandenbosch?”
“Ontem.”
“Estava tudo bem com ele?”
“Claro que não. A quinta tem tido imensos problemas e ele andava
numa luta imensa para tentar resolvê­-los. Não tem sido nada fácil,
posso assegurar­-lhe.”
“Que tipo de problemas?”
“Financeiros.”
Ao ouvir isto, o inspetor estreitou as pálpebras.
“Problemas com o guito, hem? Acha que lhe afetavam o estado de
espírito?”
“Que eu saiba os problemas financeiros afetam o estado de espírito
de qualquer pessoa, senhor inspetor. Ainda por cima o homenzinho do
banco era horrível, sempre a dizer­-lhe que tinha ido longe demais e
que precisava era de mudar de projeto e não sei mais o quê. Um
pavor! Além de que era parvo. Sem mais nem menos punha­-se a falar
no Astrum, no Astrum... Um palerma.”
“Hmm... problemas financeiros.” Inclinou­-se para ela. “Seriam eles
suficientemente graves para levar o professor Vandenbosch ao
desespero?”
Surpreendida com o que estava implícito na pergunta, Maria Flor
pestanejou.
“O que está a sugerir?”
“A vítima sentia­-se de cabeça perdida com problemas financeiros e
há muito boa gente que nessas circunstâncias comete verdadeiras
loucuras, não é verdade?”, disse o homem da Judiciária, tateando o
terreno. “Ui! A senhora não imagina as coisas que já vi na minha
profissão.”
“Não pode ser, senhor inspetor”, devolveu ela, rejeitando
liminarmente a hipótese. “Foi um acidente. O Noé entrou aqui e caiu
no tanque, tão simples quanto isso.”
“Caiu, como? Veio cá a meio da noite, a uma hora em que o
Oceanário já tinha encerrado as portas, empoleirou­-se na balaustrada
e, zumba!, caiu sem querer? Acha que foi isso o que aconteceu?”
“Bem...”
“Em primeiro lugar, o que veio o professor Noé Vandenbosch fazer a
um sítio destes a meio da noite, com tudo fechado? Veio pescar? Dar
uma passeata? Ver as miúdas? É evidente que o animava um qualquer
propósito, minha senhora. E que propósito seria esse, considerando
que se sentia desesperado com problemas financeiros?”
Maria Flor permanecia incrédula.
“Recuso­-me a aceitar o que o senhor inspetor está a sugerir.”
“Não sugiro nem deixo de sugerir o que quer que seja”, retorquiu o
inspetor Caparro com um encolher de ombros. “Limito­-me a recolher
as provas, a analisar os indícios e a usar o bom senso. A vítima estava
desesperada, o que nos dá o motivo. O modo de atuação é também
fácil de perceber, pois resulta do seu perfil profissional. Como estava
familiarizado com os animais e os seus perigos, ainda para mais
porque, ao que sei, um dos seus primeiros projetos nesta área tinha
envolvido justamente o estudo das orcas, o seu amigo sabia que o
Oceanário acabara de adquirir uma baleia­-assassina e tinha perfeita
noção do que lhe aconteceria se mergulhasse nestas águas. A meio da
noite infiltrou­-se aqui, atirou­-se ao tanque deste perigoso predador
dos mares e... e aconteceu o que tinha de acontecer.”
Ela abanou a cabeça com convicção, sempre a rejeitar um tal
cenário.
“Não pode ser”, disse enfaticamente. “O Noé não faria uma coisa
dessas! Não faria!”
“Porque não?”
“Porque... porque... ele não é desse género. É... era um lutador, não
escolheria o caminho mais fácil.”
“Pôr fim à vida, minha senhora, não é necessariamente o caminho
mais fácil”, retorquiu o inspetor Caparro. Fez um gesto a indicar o
tanque onde se encontrava a orca. “Vir aqui e lançar­-se a uma fera
daquelas... isso requer coragem. Procurar a morte vai contra todos os
nossos instintos, como deve calcular.”
“Mas ele não faria isso. Não por causa de uma coisa tão fútil como
o dinheiro. Não o Noé. Era um homem feito, bem­-parecido, tinha o
mundo na mão, o futuro pela frente... por que razão iria matar­-se? Por
causa de uns tostões?”
“Oh, minha senhora, no meu trabalho já vi tanta coisa! Quando
estão com problemas de dinheiro, as pessoas têm comportamentos que
ninguém imagina. Fazem coisas que os familiares juram que não
seriam capazes de fazer. E, no entanto, fazem­-nas.”
Era verdade que a natureza humana revelava uma complexidade que
a tornava realmente imprevisível, o que Maria Flor não ignorava. As
palavras do polícia deixaram­-na, por isso, hesitante.
“Será possível?”, interrogou­-se, falando mais para si do que para o
investigador da Judiciária, enquanto contemplava com seriedade a
hipótese que ele sugeria. “O Noé terá mesmo...?”
Foi a vez de ser o inspetor Caparro a abanar a cabeça e esboçar um
sorriso malicioso, como se se divertisse por baralhar as coisas.
“Ou talvez não.”
Ela olhou­-o, confusa.
“Perdão?”
O polícia baixou­-se para pegar numa pasta e do interior retirou um
plástico, evidentemente para proteção de provas. Dentro do plástico
encontrava­-se um envelope.
“Isto foi encontrado no corpo da vítima. Ora veja.”
Tirou o envelope do interior do plástico e abriu­-o, extraindo um
cartão com um logotipo do Jardim dos Animais com Alma. O cartão
tinha uma linha rabiscada a caneta de tinta preta com a caligrafia que
ela reconheceu como sendo de Noé.
La vérité se cache derrière la chute de l’homme.

Maria Flor e Tomás releram várias vezes a frase em francês,


tentando extrair­-lhe um sentido inteligível.
“A verdade esconde­-se atrás da queda do homem?”, inter­rogou­-se o
historiador, até ali em silêncio. “O que raio quer esta charada dizer?”
Sem responder de imediato, o inspetor Caparro devolveu o cartão ao
interior do envelope e fechou­-o. A seguir virou o sobrescrito e
mostrou o lado onde habitualmente se registava o remetente e o
destinatário. Redigido com a mesma letra e a mesma tinta,
encontrava­-se o endereço do remetente, o Jardim dos Animais com
Alma, e uma anotação com umas iniciais e uma morada.
MFN
Praceta Velha do Zambujal, 9 — 3º Frente
Lisboa

O casal observou estarrecido esta anotação e entreolhou­-se,


digerindo as vastas implicações do que acabara de ler. Tratava­-se da
morada da sua própria casa.
Sem se aperceber daquela troca de olhares comprometidos, o
investigador da Judiciária guardou o envelope no plástico destinado à
recolha de provas e devolveu­-o à pasta. A seguir voltou a encarar
Maria Flor e Tomás, desta feita com uma expressão quase
provocatória.
“E se eu disser que foi homicídio?”
.

IV

A imagem da chimpanzé vestida com roupas de menina, agarrada a


uma garrafa de gin e a gesticular freneticamente com a outra mão, aos
saltos e aos guinchos da janela do velho solar que dominava o Jardim
dos Animais com Alma, deixou Maria Flor embasbacada. Que lugar
era aquele onde as vacas brincavam às escondidas, as galinhas vinham
cumprimentar as pessoas e os macacos se vestiam como gente e davam
pulos atrás das janelas enquanto engoliam bebidas espirituosas?
Noé Vandenbosch encarou a sua nova recruta com um sorriso
vagamente jocoso.
“Já vi que está espantada, chère Fleur.”
“Deve estar a brincar. O senhor tem aqui animais cujas capacidades
cognitivas foram evidentemente melhoradas por manipulação
genética, e não quer que...”
“Em primeiro lugar, não me chame senhor”, corrigiu­-a o etólogo
belga. “Sou o Noé. Tenho este nome porque os meus pais adoravam
animais e quiseram incutir­-me o mesmo gosto. Em segundo lugar, é
importante que saiba que nenhum dos animais que se encontram aqui
no Jardim dos Animais com Alma foi melhorado com recurso a
manipulação genética ou a qualquer outro método científico. Nenhum
deles. Tudo o que vê aqui resulta de comportamento natural.”
Esta já ela não engolia.
“Natural?”, questionou Maria Flor. “Uma vaca que joga às
escondidas, uma galinha que o vem cumprimentar e um macaco
vestido e a beber de uma garrafa de gin? Está a fazer pouco de mim?
Claro que nada disto é natural. Só os seres humanos são capazes de
comportamentos destes, como toda a gente sabe...”
A observação deixou Noé por momentos silencioso. Fitava o
chimpanzé que lhe fazia sinais insistentes da janela, mas claramente
tinha a mente noutro sítio.
“Sabe, chère Fleur, durante muito e muito tempo a ciência moderna
pensou que o Homem era especial”, acabou por dizer. “Ao contrário
dos outros animais, descritos como irracionais, os seres humanos eram
vistos como racionais. Uma das grandes diferenças entre nós e eles
estava na tecnologia. Enquanto os animais só vivem com o que a
natureza lhes oferece, os humanos são capazes de pegar em produtos
da natureza e manipulá­-los, transformando­-os de tal maneira que
criam coisas novas. Os instrumentos. Produzir instrumentos não é um
feito intelectual de somenos importância, posso assegurar­-lhe.”
“Com toda a certeza”, concordou ela. “É sem dúvida isso que nos
torna especiais.”
“O fabrico e uso de instrumentos envolve a compreensão dos
fenómenos de causa e efeito, algo de que só os seres humanos são
capazes”, prosseguiu o etólogo. “Não é por acaso que os primeiros
homens que fabricavam instrumentos foram apelidados de Homo
habilis, o homem habilidoso, e que Benjamin Franklin chamou à
espécie humana Homo faber, o homem que fabrica instrumentos. O
que distingue os seres humanos dos restantes animais, o que faz com
que o Homem seja um animal racional e os outros não passem de
animais irracionais, é a capacidade humana de conceber e manipular
instrumentos, um exclusivo da nossa espécie. É isso que nos coloca
num patamar diferente na hierarquia da Criação.”
“É evidente.”
“Sempre foi evidente para os cientistas e para os filósofos. Acontece
que em 1960 uma antropóloga que estudava chimpanzés na Tanzânia,
a britânica Jane Goodall, revelou que os primatas que ela estava a
observar no parque natural de Gombe prepa­ravam galhos, tirando­-
lhes as folhas e transformando­-os em paus para inserir na terra e
extrair térmitas dos seus ninhos subter­râneos. Além disso mastigavam
folhas e depois cuspiam­-nas, usando essas folhas semi­-mastigadas
como esponjas para retirar água das cavidades inacessíveis
diretamente pelas bocas. Ou seja, os chimpanzés tanzanianos
fabricavam e usavam instrumentos. A informação da senhora Goodall
deixou a comunidade científica em estado de choque, como deve
compreender. O abalo foi tão profundo que um antropólogo disse que
a descoberta feita na Tanzânia significava que, se os seres humanos
são os únicos que fabricam instrumentos, era preciso redefinir o que
são instrumentos, ou o que é um ser humano, ou então aceitar que os
chimpanzés afinal são seres humanos.”
Maria Flor ficou desconcertada.
“Bem... isso é surpreendente. Mas uma andorinha não faz a
primavera, não é verdade?”
“Absolutamente”, concordou ele. “Uma observação só é considerada
científica se for verificada ou reproduzida por outros cientistas.
Acontece que as observações de Jane Goodall foram de facto
confirmadas a seguir por outros investigadores, e com mais detalhes.
Descobriu­-se que os chimpanzés da Guiné e da Costa do Marfim, por
exemplo, faziam mesmo coisas que os da Tanzânia não faziam, como
usar martelos de madeira e pedras para abrir nozes. O uso das pedras
permite até concluir que os chimpanzés chegaram à Idade da Pedra, o
mesmo nível em que os seres humanos se encontravam há entre quatro
e dez mil anos. Existem aliás suspeitas de que alguns vestígios
arqueológicos que atribuímos aos homens primitivos pertenceriam na
verdade a chimpanzés.”
“Está a falar a sério?”
“Diversos chimpanzés foram vistos a fabricar instrumentos com dias
de avanço, o que indicia planificação pormenorizada, enquanto outros
recorrem a dois instrumentos para executar uma operação. Por
exemplo, perfuram o chão com um pau aguçado e, quando aí
descobrem térmitas ou formigas, usam outros paus para as recolher e
comer. Alguns chegam a recorrer a três instrumentos numa operação e
no Gabão foram observados chimpanzés a transportar cinco peças
diferentes de instrumentos, designadamente uma peça para martelar,
uma para perfurar, uma para alargar o furo, uma para recolher
alimentos e uma que parece uma cotonete para embeber o mel.
Chegou­-se depois à ines­perada conclusão de que cada comunidade de
chimpanzés usa entre quinze a vinte e cinco instrumentos diferentes.
Descobriram­-se até chimpanzés da savana a caçar pequenos macacos
com lanças. Lanças, chère Fleur! Os chimpanzés usam lanças! A
descoberta do fabrico e uso destas armas pelos chimpanzés constituiu
um grande choque, como deve imaginar, pois pensava­-se que as lanças
eram um exclusivo absoluto dos seres humanos, dada a sua
sofisticação. Convém lembrar que ainda há uns séculos nós próprios
usávamos lanças.”
À medida que escutava Noé, Maria Flor ia observando a chimpanzé
na janela vestida com roupas humanas e de garrafa de gin na mão e
descobria­-se a encará­-la com novos olhos.
“Caramba”, murmurou, impressionada. “Não são os chimpanzés
que partilham connosco uma parte do ADN?”
“Noventa e oito vírgula quatro por cento, para ser preciso. Os
chimpanzés são mais próximos de nós do que dos gorilas ou dos
orangotangos, e tão próximos como os bonobos, também conhecidos
por chimpanzés­-pigmeu. O elefante­-africano e o elefante­-asiático, por
exemplo, são geneticamente mais distantes um do outro que o homem
em relação ao chimpanzé. Os chimpanzés são tão próximos de nós
que há cientistas que defendem que os seres humanos não passam de
uma terceira variante de chimpanzés.”
“Lá está. É decerto por isso que os chimpanzés são capazes de usar
instrumentos...”
O belga fez uma expressão sabida, como se tivesse mais coisas
guardadas na manga.
“O problema é que não são só os chimpanzés, chère Fleur”, disse
com um sorriso levemente malicioso. “Depois das espantosas
revelações de Jane Goodall e de outros investigadores que observavam
chimpanzés, uma outra cientista britânica, Vicki Fishlock, revelou ter
visto gorilas testar a profundeza das águas de um pântano com paus e
fazer pontes sobre locais pantanosos, usando para isso troncos. Ou
seja, os gorilas constroem obras rudimentares de engenharia! Logo a
seguir surgiram notícias de que um gorila em cativeiro inventou
espontaneamente uma técnica de martelo e bigorna para partir nozes.”
“Os gorilas, tal como os chimpanzés, são próximos de nós...”
“E os macacos­-capuchinho, também são? É que eles foram
surpreendidos na América do Sul a transportar pedras pesadas para as
usar como bigornas e a escolher pedras específicas para as utilizar
como martelos, e assim partirem nozes. Ou seja, estes pequenos
macacos também chegaram à Idade da Pedra. O mesmo acontece com
os macacos de cauda comprida da Tailândia, que usam enormes
calhaus para partir ostras e recorrem a pequenos seixos para desalojar
peixes das rochas. Foram ainda observados orangotangos a usar
pedaços de madeira como palitos para limpar os dentes e as unhas, e a
utilizar folhas como guardanapos ou como leques para se refrescarem
ou até como chapéus. Testes com orangotangos permitiram vê­-los a
meter água num tubo com comida a flutuar para fazerem subir o nível
da água e assim chegarem à comida, teste em que mais de metade das
crianças humanas com oito anos de idade falham. Há o caso de um
orangotango do Jardin des Plantes, em Paris, capaz de atar nós com as
cordas, e...”
A portuguesa coçou a nuca.
“Pronto, já percebi”, rendeu­-se. “Não são só os homens que são
especiais. Nem apenas os chimpanzés e os gorilas. São os primatas em
geral.”
Noé sacudiu a cabeça.
“Não, não está a perceber, chère Fleur. Há muitas espécies diferentes
a fabricar e a usar instrumentos.”
“Seres humanos, chimpanzés, gorilas, orangotangos, macacos­-
capuchinho, macacos de cauda comprida da Tailândia... que eu saiba
são todos primatas, não?”
Ele cruzou os braços, como se a desafiasse.
“E as gralhas, diria que são primatas?”
“Gralhas?”
“Foram avistadas gralhas e gaios a atirarem pedras para a água de
modo a fazerem subir o nível da água e assim alcançarem comida que
flutuava, um pouco como os orango­tangos. Pica­-paus e corvos foram
surpreendidos a usar espinhos para explorar os buracos das árvores, à
procura de insetos, enquanto as gaivotas foram avistadas a pegar em
amêijoas, vieiras e búzios e, de um ponto elevado, atirarem­-nos contra
superfícies duras para os partirem. Abutres foram observados a
quebrar ovos com pedras e garças a usar insetos na superfície da água
como isco para atrair peixes. Um artigo científico mostrou o vídeo de
uma catatua chamada Figaro a fabricar e a modificar instrumentos a
partir de bambu para puxar alimentos para a sua gaiola.”
Maria Flor ouvia­-o com incredulidade.
“As aves também fabricam e usam instrumentos?!”
“É extraordinário, não é?”, confirmou Noé. “As aves mais
inteligentes de todas são os corvos. A sofisticação do uso de ins-­
trumentos por parte destes animais é absolutamente estonteante.
Imagine que foram vistos corvos a atirar nozes para estradas
movimentadas, à espera que os carros, ao passar sobre elas, as
partissem. A coisa é tão refinada que no Japão os corvos foram
observados a fazer isto especificamente junto a passagens de peões.
Está a perceber a ideia dos marotos? Quando o sinal do semáforo fica
vermelho, descem à rua, põem a noz à frente dos automóveis e voltam
para a árvore. A luz muda para verde e esperam que os carros passem
sobre as nozes. Quando o semáforo regressa ao vermelho, os corvos
descem de novo à rua e, com toda a tranquilidade diante dos
automóveis parados, apanham as nozes partidas e levam­-nas para
comer. Se elas não se partiram, reposicionam­-nas nas zonas onde
viram as rodas passar mais vezes e regressam às árvores à espera de
que na vez seguinte os carros as partam mesmo.”
“Uau!”, exclamou a nova recruta do Jardim dos Animais com Alma,
siderada com o que ouvia. “Os corvos fazem isso?”
“Nem eu me lembraria de uma coisa dessas, chère Fleur. O engenho
desses bicharocos é inaudito. Descobriu­-se que os mais inteligentes de
todos são os corvos da Nova Caledónia, uma ilha situada entre a
Austrália e as Fiji. Um investigador da Univer­sidade de Oxford
desafiou uma corvo fêmea da Nova Caledónia chamada Betty a chegar
a um pedaço de comida colocado dentro de um balde situado ao
fundo de um tubo. Note que os chim­panzés não conseguem resolver
esse problema. Sabe o que fez a boa da Betty? Pegou num arame e
espontaneamente dobrou­-o para fazer um gancho, e depois utilizou o
gancho para levantar o balde e recolher a comida.”
“Não acredito.”
“Os corvos da Nova Caledónia são a única espécie, para além dos
seres humanos, que fabrica e usa ganchos. Nem os chim­panzés e os
gorilas são capazes de um feito desses. Melhor ainda, os corvos
fabricam até dois tipos de ganchos. Nos sucessivos testes a que foi
submetida, a Betty inventou sempre um novo instrumento para
resolver cada problema específico que lhe era apresentado. Mas estas
aves fazem mais do que isso. A BBC filmou um corvo da Nova
Caledónia chamado 007 a resolver um puzzle tecnológico em oito
etapas, cada uma envolvendo câmaras especiais e caixas de
instrumentos com paus e pedras, para chegar a um pedaço de comida.
O 007 já tinha visto isoladamente cada uma das partes do puzzle, é
verdade, mas nunca em conjunto e jamais naquela configuração. Pois
o vídeo mostra­-o a chegar ao local, a avaliar o dispositivo e, à
primeira, a executar com sucesso cada uma das etapas na sequência
adequada até alcançar a comida. Sabe quanto tempo levou ele a fazer
isto tudo?”
“Para aí uma hora...”
“Dois minutos e meio”, foi a resposta seca. “Veja o vídeo na
Internet, é de ficarmos de cara à banda. O importante é que este
puzzle em oito etapas requer o uso de meta­-instrumentos, ou seja, a
compreensão de que um instrumento pode ser usado para chegar a um
outro instrumento. Isto significa que os corvos têm uma compreensão
abstrata do que é um instrumento, o que não constitui um feito
menor. Os pássaros são capazes de improvisação inventiva, de
inovação, de fabricar instrumentos com grande precisão, produzindo­-
os com as características específicas para cada tarefa, e são ainda
capazes de os modificar para resolver problemas novos e para os usar
em sequência.”
O olhar de Maria Flor desviou­-se para o céu, contemplando um
bando de andorinhas que acabara de largar de uma árvore da quinta.
“As aves, hem?”
“Não são só as aves e os primatas. Descobriu­-se que as lontras vão
buscar pedras ao fundo dos rios e usam­-nas para bater em conchas e
assim as partir. Ou seja, também as lontras chegaram à Idade da
Pedra. Já os esquilos usam areia para afastar as serpentes, enquanto os
elefantes recorrem a seis tipos diferentes de instrumentos, seis!,
incluindo um para se coçarem. Os elefantes­-africanos transportam
caixas a alguma distância para as posi­cionar no sítio certo de modo a
alcançar galhos altos e chegam a utilizar troncos para desativar
vedações elétricas. Já os elefantes­-asiáticos fabricam mata­-moscas a
partir de galhos, e alguns, quando os equiparam com sinos ao pescoço
para mais facilmente os localizarem, tiveram a brilhante ideia de pôr
erva dentro do sino para os emudecer e assim não serem incomodados
pelo chocalhar constante. Já os golfinhos metem esponjas no focinho
para explorar o fundo do mar sem se magoarem, um pouco como nós
pomos luvas nas mãos para podermos mexer em coisas sem nos
aleijarmos.”
“Pois, está bem. Aves e mamíferos usam instrumentos.”
Noé mal conteve um sorriso malicioso; as surpresas não tinham
ainda chegado ao fim.
“Não se esqueça dos peixes.”
“Os peixes?”
“Sim, os peixes. Algumas espécies de peixes labridae usam pedras e
corais como bigornas para abrir conchas e ouriços­-do­-mar. Ou seja,
há peixes que chegaram à Idade da Pedra. Certos peixes ciclídeos e
peixes­-gato colam os seus ovos a folhas e a pequenas pedras para as
levar em caso de ameaça ao seu ninho, enquanto os peixes­-arqueiros
usam a água como projétil para apanhar insetos. Há ainda o caso
curioso de polvos avistados na Indonésia a pegar em cascas de coco e
a levá­-las para o mar. Uma vez dentro de água, enroscam­-se nas cascas
como se fossem carapaças de proteção, e defendem­-se assim dos
predadores.”
A expressão dela era apreciativa.
“Os peixes usam instrumentos, hem? Quem diria...”
“Só que os polvos não são peixes, chère Fleur. São moluscos.”
“Meu Deus! Até os moluscos!”
“Já foram detetadas pelo menos trinta espécies marinhas que usam
instrumentos, incluindo caracóis e crustáceos. E, claro, há os
insetos...”
Maria Flor arregalou os olhos; a lista dos animais que usavam
instrumentos parecia não ter limites.
“Também os insetos?!”
“Durante muito tempo os insetos eram vistos como autómatos,
servindo mesmo de modelo ou de referência para a robótica, a
cibernética e a biónica, mas hoje está a descobrir­-se que eles não são
tão autómatos assim. Várias espécies de formigas, quando encontram
alimentos liquidificados, como é o caso da fruta apodrecida ou do
mel, vão buscar grãos de areia, folhas e pedaços de madeira para
recolher a parte líquida do fruto ou o mel, e levar o alimento para a
sua colónia. Outras formigas atacam as rivais atirando grãos de areia
para as entradas das colónias delas. Outras ainda bloqueiam com
terra a entrada de colmeias para forçar as abelhas a pousarem aí para
desobstruir o acesso, e é então que as atacam. Certas vespas usam
pedrinhas e terra para bloquear presas nos seus buracos, e quando é
preciso as vespas fêmea utilizam uma pedra como martelo para tornar
mais compacta a barreira de bloqueio. Há até insetos que usam os
cadáveres das térmitas como camuflagem para atacar outras térmitas.
Matam uma térmita, esvaziam­-lhe o corpo, põem a carcaça à frente da
cabeça para enganar as restantes térmitas e quando uma destas se
aproxima largam a carcaça e atacam­-na. Ou seja, utilizam os corpos
das térmitas como instrumento de camuflagem. Isto já para não falar
na espantosa complexidade das construções subter­râneas dos insetos,
com armazéns de comida, câmaras de ventilação, zonas de captação
de calor... eu sei lá. Você conseguiria conceber uma rede subterrânea
tão completa?”
“Eu? Claro que não. Não sou engenheira.”
“Mas os insetos conseguem! Constroem verdadeiras maravilhas da
engenharia, estruturas que muitos seres humanos não são capazes de
projetar, a não ser que percebam de arquitetura ou engenharia. A
estrutura das colónias de térmitas é tão avançada que inspirou os
arquitetos na conceção de sistemas de climati­zação dos edifícios que
permitem poupar entre cinquenta a noventa por cento de energia. Já
as abelhas constroem os alvéolos das colmeias num formato
hexagonal equilateral, o que se descobriu constituir uma configuração
otimal do ponto de vista da relação entre a efi­cácia e a economia.”
Maria Flor estava verdadeiramente espantada.
“Quem diria, os insetos! Como é que, com cabecinhas tão pequenas,
são capazes de usar instrumentos e de conceber estruturas complexas
de engenharia?”
“O curioso é que se descobriu que o uso de instrumentos por parte
dos animais já era conhecido há muito tempo. Um missionário na
Libéria anunciou em 1844 ter visto chimpanzés a partir nozes com
pedras, exatamente como os seres humanos, e o próprio Darwin
escreveu em 1871 ter observado um orangotango a usar um pau como
alavanca.”
“Se isso já tinha sido descoberto no século xix, como se explica que
ainda soe a novidade?”
“Por causa do behaviorismo. Todas estas descobertas foram
convenientemente esquecidas quando o behaviorismo se instalou na
ciência, impondo a absurda visão dos animais como máquinas que se
limitavam a agir em função de estímulos externos segundo
mecanismos de estímulo­-resposta. Como estas observações
contrariavam essa visão e sugeriam que os animais raciocinavam, em
vez de se alterar a visão e pô­-la em conformidade com as observações,
optou­-se simplesmente por ignorar as observações. O interessante é
que estas descobertas explicam um dos maiores mistérios da
arqueologia. Foram descobertos no Quénia numerosos utensílios em
pedra lascada e pensou­-se que tinham sido fabricados pelos homens
primitivos. O problema é que, quando foram datados, percebeu­-se que
tinham 3,3 milhões de anos, o que significava que eram anteriores ao
aparecimento do Homem. Como era isso possível? A resposta é agora
evidente: ao contrário do que pensamos, não foram os seres humanos
os primeiros a inventar instrumentos. Foram outros animais. Talvez
australopitecos, talvez chimpanzés, talvez qualquer outra coisa. Não
fosse Jane Goodall, chère Fleur, e ainda hoje a ciência permaneceria
cega a toda essa realidade.”
A chimpanzé que se encontrava no solar senhorial continuava a
acenar da janela e a fazer­-lhes sinais insistentes, já evidentemente
exasperada com a demora. Ainda rodeado pelas galinhas e pela vaca
Alice, Noé fez­-lhe um aceno de volta, como se lhe pedisse que tivesse
calma.
“Acho que ela exige a sua presença”, constatou Maria Flor. “Como
disse que a chimpanzé se chama?”
“Quando a adotei no Congo e a levei para a Bélgica, chamei­-lhe
Marguerite, pois na altura andava a ler um livro de Marguerite Duras.
Ao trazê­-la para Portugal passei a usar o diminutivo português para
Margarida.”
“Guida.”
O etólogo belga fez um sinal à sua nova colaboradora.
“Venha daí.”
Após uma breve hesitação, pois nunca estivera ao pé de um
chimpanzé, Maria Flor venceu a relutância.
“Bem... vou onde me disser para ir. O Noé é que manda, não é
verdade?”
“O seu trabalho vai começar agora e tudo o que doravante vir não
pode ser contado a ninguém”, lembrou­-lhe. “Nem mesmo à sua
família. Foi para isso que, ao entrar neste projeto, assinou o contrato
de confidencialidade. As minhas experiências são absolutamente
secretas e isto é para ser levado muito a sério. Compreendeu?”
“Mas porquê tanto mistério, se não é indiscrição?”
“O Jardim dos Animais com Alma está a levar a cabo pesquisa
avançada na área da etologia. Ninguém pode saber de nada, pois não
quero atrair atenções indesejadas. Uso por vezes métodos pouco
convencionais e até... enfim, ilegais.”
O uso desta última palavra sobressaltou Maria Flor.
“Ilegais?”
“Por lei já não é permitido ter chimpanzés em casa”, esclareceu.
“Acho que isso é um erro, pois só num contexto de vivência diária
com eles, como se fossem da nossa família, poderemos compreender
as suas reais potencialidades cognitivas e até que ponto, banhados
pela nossa cultura humana, conseguem adotar comportamentos
humanos. Houve experiências destas no século xx que tiveram
resultados muito promissores, razão pela qual considero importante
retomá­-las. Mas como esta metodologia é... uh, pouco ortodoxa...
convém sermos discretos. Posso contar consigo?”
A nova recruta assentiu.
“Esteja descansado.”
Ele fitou­-a com intensidade, como se se quisesse assegurar da
sinceridade com que Maria Flor assumira o compromisso. O tom
convicto dela tranquilizou­-o e o rosto do cientista descontraiu enfim.
Voltou­-se para a casa e fitou a chimpanzé que não parava de acenar e
guinchar da janela.
“Prepare­-se para conversar com ela.”
.

No momento em que o inspetor Caparro pronunciou a pala­vra


“homicídio”, Tomás e Maria Flor empalideceram. Ela sentia­-se
demasiado chocada com o que se estava a passar, e também com o que
acabara de ouvir, para conseguir dizer o que quer que fosse, pelo que
foi o marido quem neste ponto assumiu as despesas da conversa.
“Mataram­-no?”, questionou o historiador com uma expressão de
perplexidade na cara. “O que o leva a dizer uma coisa dessas, senhor
inspetor?”
O investigador da Judiciária manteve o rosto fechado, como se
escondesse o jogo mas tentasse perceber que cartas guardava o
baralho dos seus interlocutores.
“Numa investigação criminal temos sempre de manter todas as
hipóteses em aberto”, explicou. “Neste caso, só vejo três
possibilidades. Ou a vítima caiu no tanque acidentalmente, ou se
atirou à água para se matar, ou alguém a atirou. É preciso agora
analisar as diversas provas e testemunhos para ir eliminando as
hipóteses erradas até chegar à correta. É o que estou a fazer.”
A resposta não convenceu o casal.
“É evidente que numa investigação há que explorar todas as
hipóteses”, reconheceu Tomás. “No entanto, pela forma como falou,
em especial depois de nos mostrar essa mensagem encontrada no
cadáver, fico com a impressão de que o senhor inspetor tem indícios
mais concretos de que poderemos estar perante um homicídio.”
“O indício que temos é a própria mensagem”, indicou o polícia de
investigação criminal. “Repare que a vítima escreveu: a verdade
encontra­-se atrás da queda do homem. A que queda se estaria ele a
À
referir? À sua própria, como é evidente. Ele está a dizer que há uma
verdade por detrás da sua queda no tanque da baleia­-assassina.”
“Com certeza que há uma verdade”, concordou o historiador. “Isso
não quer dizer que tenha havido homicídio. Para ser sincero, senhor
inspetor, a mensagem que acabou de nos mostrar é até mais
indiciadora de suicídio. Se o professor Vandenbosch tivesse sido
assassinado, o normal seria que escrevesse na mensagem o nome de
quem o atirara para o tanque. Isto se tivesse tempo para tal, claro, o
que duvido. Uma vez lá em baixo com a orca, não me parece que
tivesse tempo nem cabeça para andar a redigir mensagem crípticas.”
“Mas ele deixou um nome escrito na mensagem, caro professor
Noronha...”
“Deixou?”
O inspetor Caparro indicou a pasta onde acabara de guardar o
envelope encontrado no cadáver.
“O tal MFN que a vítima registou no lugar do sobrescrito reservado
ao destinatário”, lembrou. “Este MFN são iniciais de um nome. Se a
vítima tinha este nome escrito numa mensagem guardada no bolso no
momento da sua morte, pode ter a certeza de que temos um suspeito
entre mãos. Não digo que seja o homicida, mas também não digo que
não seja, isso terá de ser averiguado. Mas é um suspeito. Vamos agora
deitar­-lhe a unha e pode ter a certeza de que o poremos a cantar que
nem um canário.”
“E... e como tencionam chegar a esse suspeito?”
“Pela morada, claro está. Não viu que no envelope a vítima deixou
escrito o endereço do tal MFN? Pus há pouco um dos meus homens
em cima do assunto e provavelmente já tem a informação, só que a
porcaria do meu telemóvel pifou. Estou agora à espera que ele apareça
para me dar a identidade da pessoa em causa.”
Tomás e Maria Flor trocaram um olhar alarmado. O que deveriam
fazer? Era melhor abrir de imediato o jogo ou seria mais prudente
tentar perceber o que se passava e só depois atuar? Havia que tomar
uma decisão, sendo que cada um dos caminhos conduziria a
determinadas consequências, umas imediatas, outras a prazo. Procras-­
tinar, porém, não estava na natureza de Tomás, que gostava de ver
tudo claro e evitava na medida do possível situações ambíguas.
Trocou um olhar com Maria Flor, procurando o seu consentimento.
Ela hesitou, receando as consequências imediatas do passo que sabia
ser pelo marido defendido, mas decidiu confiar no julgamento dele.
Fez um leve movimento afirmativo com a cabeça, dando assim a sua
concordância.
O historiador encarou o polícia.
“É a nossa casa.”
O inspetor Caparro não percebeu o que ele acabara de dizer.
“A sua casa? O que tem ela?”
O historiador fez um gesto na direção da pasta onde o investigador
da Judiciária guardara a mensagem deixada por Noé.
“O endereço no envelope encontrado no cadáver da vítima é o
nosso”, disse de uma forma mais explícita. “A mensagem do professor
Vandenbosch está endereçada à minha mulher.”
O polícia piscou os olhos, surpreendido.
“A morada é a vossa?”, perguntou, mais para si mesmo do que para
os seus interlocutores. Hesitou, reavaliando a situação. “E as iniciais?
Quem é o MFN?”
“Maria Flor Noronha, suponho”, respondeu Tomás. “A minha
mulher.”
Com uma expressão atónita no rosto, pois a evolução era
absolutamente inesperada, o inspetor Caparro encarou­-a com novos
olhos. Desconfortável, Maria Flor forçou um sorriso.
“Isto quer dizer que sou suspeita?”
O investigador refez­-se da surpresa e tirou depressa as consequências
do que acabara de lhe ser revelado.
“Bem... quer dizer que há pelo menos algumas questões a que terá
de responder”, disse. “A começar pela mais evidente: o que queria a
vítima dizer quando escreveu que o mistério se esconde por detrás da
sua queda?”
“Não faço a mínima ideia, senhor inspetor. Estou tão intrigada
quanto o senhor. Talvez mais ainda.”
“Então por que motivo ele lhe endereçou a mensagem?”
“Também não sei.”
O inspetor Caparro estreitou as pálpebras.
“Que tipo de relação tinha a senhora com a vítima?”
Maria Flor corou.
“Era... era o meu patrão.”
“Só patrão?”
A pergunta deixou Maria Flor desconfortável, pormenor que não
escapou à atenção do polícia e, sobretudo, do marido.
“Sim, claro. O que está a insinuar?”
O homem da Judiciária manteve os olhos cravados nela, como se a
tentasse dissecar.
“Sabe, minha senhora, na minha profissão tenho de avaliar as
pessoas. É sempre difícil determinar o que elas pensam, pois a
capacidade de dissimulação do ser humano é quase ilimitada, mas o
meu instinto diz­-me que a senhora não me está a contar tudo.”
“Ora essa, senhor inspetor. O que lhe posso contar se não
compreendo sequer o que se passa?”
O inspetor Caparro respirou fundo, claramente a ficar impaciente.
“Um homem morre em circunstâncias bizarras depois de cair num
tanque de uma baleia­-assassina e deixa uma mensagem estranha
endereçada a uma pessoa que se diz mera colaboradora com uma
referência críptica à sua própria queda no tanque e... e está a tentar
fazer­-me crer que ele não passava de seu patrão e que não faz a menor
ideia do que se trata? Acha que sou idiota ao ponto de engolir
tamanha tontaria?”
“Não tenho culpa de nada disto, senhor inspetor”, disse Maria Flor.
“Não sei de nada nem compreendo a mensagem que o Noé deixou
nem por que razão a endereçou a mim.”
“Acha mesmo que a vítima lhe iria escrever uma mensagem se
soubesse que a senhora não a compreenderia? Se lhe endereçou aquela
mensagem, minha senhora, é evidente que acreditava que seria
entendida por si.”
Este raciocínio era lógico e deixou­-a sem saber o que dizer a não ser
repetir o que já dissera.
“Eu... eu não sei de nada, senhor inspetor.”
O inspetor Caparro estendeu­-lhe a mão.
“Dê­-me o seu telemóvel.”
Maria Flor foi à carteira e tirou o smartphone, que entregou ao
polícia. O homem da Judiciária foi à memória do aparelho e
consultou a lista de telefonemas da véspera.
“Está aqui uma chamada da vítima.”
“Claro que está. Ainda há pouco lhe disse que a última vez que vi o
Noé foi ontem.”
O polícia apontou­-lhe para a carteira.
“Deixe­-me agora inspecionar a malinha, se faz favor.”
No momento em que o disse, Tomás achou que o homem da
Judiciária estava a ir longe demais.
“Desculpe, mas o senhor inspetor não pode andar a mexer nos
telefones e nas carteiras das pessoas assim sem mais nem menos”,
disse. “Isto não é assim.”
O inspetor Caparro olhou­-o com uma expressão profissional.
“Estou apenas a tentar resolver isto de uma forma amigável”,
retorquiu com secura. “Se preferir, posso formalizar as coisas, obter
um mandato do juiz e deter a sua esposa por suspeita de envolvimento
na morte do professor Noé Vandenbosch. Embora nessa situação
tenha direito a um advogado, a senhora ficará sob custódia nos
calabouços da Judiciária. Mas se a senhora não tem nada a temer nem
a esconder, colaborará comigo nesta fase informal e, uma vez tudo
esclarecido, decerto não terei neces­sidade de passar à fase formal, que
lhe asseguro será consideravelmente mais desagradável. Como
preferem?”
Num gesto quase reflexo, pois a última coisa que queria era ver a
situação evoluir para pior, Maria Flor entregou­-lhe a carteira.
“Olhe à vontade, senhor inspetor. Procure o que quiser. Verá que
nada tenho a ver com o que aconteceu.”
O investigador criminal pegou na carteira e pôs­-se a retirar o que se
encontrava no interior. Começou por extrair uma chave e depois um
estojo de maquilhagem.
“Terei ainda de ir a sua casa”, avisou. Da carteira saiu nessa altura o
cartão do cidadão e a carta de condução de Maria Flor. “Preciso que
me faça uma descrição exaustiva de tudo o que aconteceu na sua vida
na última semana, em particular os seus contactos com a vítima.” A
seguir saíram da carteira duas folhas de papel dobradas em quatro.
“Sobretudo, vai ter de me reconstituir a conversa de ontem com a
vítima e contar ao pormenor o que sucedeu quando se encontrou com
ela.” Começou a desdobrar a primeira folha. “Depois vou precisar
que... que...”
Calou­-se e ficou imobilizado a olhar para a folha que acabara de
desdobrar, e o mesmo fizeram Maria Flor e Tomás. Tratava­-se de uma
cópia de uma notícia do The Miami Herald na Internet a informar que
uma orca chamada Minnie tinha assassinado uma tratadora num
parque temático em Orlando, na Florida.
“O que é isso?”, perguntou ela, chocada. “Onde encontrou esse
papel?”
Ao ler a notícia, o rosto do inspetor Caparro gelou e o mesmo
aconteceu com a sua voz.
“Na sua carteira.”
“Mas... mas eu nunca vi isso!”
Sem nada dizer, o polícia desdobrou a segunda folha. Tratava­-se de
um folheto do Oceanário de Lisboa a publicitar espetáculos em breve
da orca Minnie. O inspetor Caparro voltou o panfleto para ela e
assumiu uma expressão sarcástica.
“Também nunca viu isto?”
Maria Flor estava boquiaberta e olhava para as duas folhas com
estupefação, tentando entender o que se passava. Igualmente atónito,
Tomás não sabia o que dizer.
“Juro que não sei o que isso é”, disse ela com uma certa dose de
exasperação. “Nunca tinha visto nada disso e não faço a mínima ideia
de como veio aqui parar! O senhor tem de acreditar, é a mais pura das
verdades!”
Não havia, porém, convicção na voz ou estupefação no rosto que
fossem capazes de suprimir a evidência. O facto era que Maria Flor, a
colaboradora mais próxima da vítima e a pessoa cujo nome era
mencionado por sigla numa mensagem encontrada no cadáver, tinha
na sua posse duas folhas altamente comprometedoras, pois ligavam­-na
à orca que matara o seu patrão.
“Maria Flor Noronha”, disse o inspetor Caparro com a voz
implacável que os polícias sempre adotam nestas situações. “Faça o
favor de me acompanhar à Judiciária para responder a perguntas
relacionadas com a morte do professor Noé Vandenbosch.”
Estava detida.
.

VI

Antes de galgar os dois degraus de acesso à porta de entrada do


velho casarão onde ele próprio vivia, Noé Vandenbosch estacou como
se tivesse acabado de lhe ocorrer algo. Voltou­-se para Maria Flor e
estudou­-lhe o rosto; não era difícil perceber o nervosismo dela.
“Já alguma vez esteve com um chimpanzé?”
“Eu? Claro que não.”
O etólogo belga quase se esbofeteou a si mesmo. Como era possível
que tivesse negligenciado um pormenor daqueles?
“Oiça, quando a Guida a cumprimentar, não mostre qualquer
relutância. Ela é muito transparente e coerente nas suas emoções, mas
quem não a conhece pode ler­-lhe mal as intenções. Embora vê­-la
aproximar a boca possa realmente ser intimidatório, deve
descontrair­-se e deixá­-la beijá­-la sem oferecer a menor resis­tência. Os
chimpanzés são muito sensíveis à linguagem corporal. Se hesitar uma
fração de segundo que seja, a Guida irá interpretar essa hesitação
como relutância da sua parte em ser amiga dela, e nesse caso está tudo
estragado. O afeto pode transformar­-se em fúria por se achar
rejeitada. Nunca se esqueça de que, apesar de serem mais pequenos do
que nós, os chimpanzés têm cinco vezes mais força do que os seres
humanos.”
“Cinco vezes mais?”, alarmou­-se a portuguesa. “Meu Deus! E se ela
dá cabo de mim?”
“Não se preocupe. Os chimpanzés têm noção de que somos mais
fracos e são por isso comedidos na maneira como lidam connosco. De
qualquer modo, evite dizer­-lhe que não ou exa­gerar no exercício de
autoridade e entrar em duelo de vontades. Independentemente de por
vezes ser necessário estabelecer limites, pois em certos aspetos os
chimpanzés assemelham­-se a crianças e precisam que se lhes
imponham regras, estes são animais políticos e com eles tudo é
negociável e negociado. Se quiser uma coisa e a Guida recusar,
negoceie. Ofereça­-lhe algo que ela deseja em troca do que você quiser,
entendeu?”
Maria Flor estava pálida com a perspetiva de lidar com um animal
selvagem.
“Uh... sim.”
Uma vez as instruções dadas, Noé meteu a mão ao bolso e extraiu a
chave de casa. Depois de a rodar na fechadura, a porta abriu­-se e um
primata baixo e peludo, vestido como uma rapariga, saltou do interior
e abraçou o belga, colando­-lhe a boca enorme à boca dele.
“Hello, sweetie!”, saudou­-a o etólogo em inglês. “Portaste­-te bem na
minha ausência?”
Ao colo dele, a chimpanzé fez com as mãos sinais que Maria Flor
reconheceu como sendo de língua gestual.
VEM BEBER.
“You naughty girl!”, devolveu Noé, falando sempre em inglês. “Que
marota! Tu é que andaste a beber. Eu bem te vi pela janela agarrada à
garrafa de gin. Voltaste a assaltar o bar, sua patifa?”
Ela fez novos gestos.
DESCULPA ABRAÇO.
O belga abraçou­-a de novo, mostrando­-lhe que estava perdoada pelo
pecado. As palavras de Guida eram curtas e de gramática elementar,
além de que os sinais não eram bem desenhados pelas mãos. Maria
Flor considerou que isso não se devia necessariamente a limitações
cognitivas da chimpanzé, mas à morfologia das suas mãos e sobretudo
às características intrínsecas da língua gestual. Tal como os fonemas
das línguas faladas, os elementos básicos da língua gestual, formados
por configurações, posições e movimentos de mãos, não têm sentido
em si mesmos mas apenas quando combinados, o que os torna
infinitamente flexíveis. Por outro lado, tal como acontece com o
hebraico ou outras línguas faladas, a gramática da língua gestual não
prevê ligações entre sujeito e predicado, razão pela qual as frases
parecem telegramas; em vez de dizer “peço desculpa, dá­-me um
abraço”, alguém que fale em língua gestual dirá, como Guida acabara
de dizer, “desculpa abraço”.
Ao cabo de alguns instantes, Noé libertou­-se daquele abraço de
boas­-vindas.
“Alright, alright.” Pousou­-a no chão e indicou Maria Flor. “Esta é a
Flower.” Reforçou o nome da sua acompanhante com um toque no
nariz, o sinal da língua gestual americana para flor. “Veio ajudar­-te.”
Maria Flor sorriu com a maior naturalidade de que foi capaz.
“Hi, Guida.”
O animal fitou­-a e nada disse nem fez; não tinha pelos vistos ainda
decidido se gostava ou não dela. Os três entraram em casa e
depararam com tudo espalhado pelo chão, incluindo almo­fadas, livros
e bonecas.
“Naughty girl! Não te tens portado nada bem.”
A chimpanzé respondeu com os gestos; exprimia­-se na ASL, a língua
gestual americana.
EU NÃO POSSO LIMPAR.
O etólogo riu­-se.
“Não podes ou não queres?” Estendeu­-lhe a mão, como se esperasse
que ela lhe entregasse algo. “Dá cá a chave.”
Guida pestanejou e pareceu momentaneamente embaraçada. Abriu a
boca e exibiu a língua com uma chave por cima.
“Ah, malandra!”, soltou Noé, guardando a chave. “Como é que a
gamaste desta vez, sua patifória? Não me digas que espreitaste pela
fechadura e viste­-me esconder a chave sobressalente na mesinha de
cabeceira. Ai ai, estou tramado contigo...”
A cena era seguida com atenção por Maria Flor.
“Ela sabe usar chaves?”
“Oh, se sabe! Uma vez, ao regressar a casa pouco depois de ter
saído, dei com ela a sair do quarto à sorrelfa. Ao ser apanhada em
flagrante ficou à rasca, exatamente como agora, e tirou
envergonhadamente a chave da boca e entregou­-ma. A malandra
tinha­-me surripiado uma chave e usava­-a para se escapulir do quarto
quando eu saía. Agora voltou a repetir o número. Já me viu esta
artista?”
“Bem... usar uma chave não é para qualquer um. Isso prova que é de
facto hábil na manipulação de instrumentos.”
“Isto é normal num chimpanzé”, disse Noé. “O primeiro chimpanzé
a ser educado totalmente como um ser humano, uma fêmea chamada
Lucy, aprendeu a usar uma chave de parafusos da primeira vez que viu
um ser humano utilizá­-la, veja só. Uma vez desmontou a porta da
cozinha após desaparafusar as aduelas. Revelou­-se tão hábil com a
chave de parafusos que tiveram de lha esconder.”
A atenção da portuguesa afastou­-se nesse momento do anfitrião,
pois Guida acabara de a cheirar e fitava­-a nos olhos. Fê­-lo
longamente, como um polícia a examinar um suspeito, o que deixou
Maria Flor perturbada. O que estaria a pensar dela?, interrogou­-se.
Os olhos escuros da chimpanzé desceram para o corpo da visitante,
inspecionando­-a demoradamente, e detiveram­-se num penso rápido
que ela tinha no cotovelo por se ter magoado na véspera quando
cozinhava. Após uma breve análise, Guida passou a mão suavemente
sobre o penso, o rosto contraiu­-se numa expressão preocupada e fez
um sinal de língua gestual.
DÓI DÓI.
De repente, a chimpanzé saltou­-lhe para o colo e aproximou a
bocarra enorme da cara dela. Seguindo as recomendações prévias do
seu chefe de projeto, Maria Flor dominou a vontade de recuar e fez
um esforço para não mostrar medo, proeza nada pequena para quem
via uma fileira aguçada de dentes prestes a abocanhá­-la, e manteve­-se
quieta quando aquela boca enorme lhe caiu em cima da boca e do
nariz.
“Oh la la, que beijo!”, exclamou Noé, claramente satisfeito. “A
Guida gosta de si, já vi que não haverá problemas. Agora convinha
que falasse com ela.”
“Falar com ela? Em língua gestual?”
“Ela só fala em língua gestual americana, mas eu falo­-lhe em inglês”,
foi a resposta do belga. “É a língua que escolhi por razões de
protocolo científico internacional. A Guida entende perfeitamente o
inglês. Quer ver?” Voltou­-se para a chimpanzé. “Where’s Guida’s
nose?”
Ela apontou para o nariz.
“As orelhas?”
O animal peludo tocou na orelha esquerda.
“A boca?”
Abriu a boca, exibindo os dentes de novo.
Uma vez a demonstração feita, Noé fez à visitante sinal de que
deveria começar a comunicar com a chimpanzé. Convencida, Maria
Flor encarou o animal.
“Hi, Guida. Sou a Flower.” Tal como o belga quando a apresentara,
reforçou o nome com o sinal da língua gestual para flor, de modo a
consolidar a associação entre as flores e o seu nome. “Queres brincar
comigo?”
Guida desatou a arfar, evidentemente entusiasmada com a pers-­
petiva, e fez­-lhe um sinal gestual de resposta.
VEM CÓCEGAS POR FAVOR.
O pedido surpreendeu a portuguesa.
“Cócegas?”
EI TU TU TU TU CÓCEGAS GUIDA
A visitante trocou um olhar inquisitivo com Noé.
“Faça­-lhe”, encorajou­-a ele. “É a brincadeira de que ela mais gosta.
Ajudar­-vos­-á a estabelecer laços.”
O animal ia insistindo no mesmo pedido com mais mensagens
gestuais.
TU POR FAVOR CÓCEGAS GUIDA.
“Faço­-lhe cócegas onde?”
“Nos mesmos sítios onde os seres humanos têm cócegas. Nas axilas,
na zona lombar, na barriga...”
O etólogo lá devia saber o que dizia. Maria Flor aproximou­-se da
chimpanzé, que de imediato se deitou no chão, e debruçou­-se sobre o
corpo peludo dela, procurando os pontos vulneráveis. Quando Guida
sentiu a ponta dos dedos remexerem­-se por baixo dos braços, soltou
um chiado baixo e arfado.
“Uh­-uh­-uh­-uh...”
Dir­-se­-ia a gargalhada de uma criança. Procurava proteger as partes
sujeitas às cócegas, tentando afastar as mãos de Maria Flor, mas logo
que esta parava fazia sinal de que queria mais. Foi porém aquele
chiado persistente quando se contorcia de cócegas que deixou a
visitante desconcertada. A portuguesa lançou um olhar interrogativo
para Noé, que lhe respondeu com um gesto tranquilizador.
“É ela a rir­-se.”
A revelação deixou Maria Flor atónita. Fitou o etólogo com uma
expressão incrédula, como se o que ele lhe tivesse acabado de dizer
não fizesse nenhum sentido.
“Perdão?”
“A Guida está a rir­-se.”
A colaboradora pestanejou.
“Os animais riem­-se?”
“Claro que se riem, ma chère Fleur. Não a ouve?”
A chimpanzé deu nesse momento um salto e fez um gesto com a
mão.
DÁ BANANA GUIDA.
Noé foi à cozinha buscar uma banana.
“Com os chimpanzés é tudo negociado”, lembrou. “Não se esqueça
de que são animais políticos.”
“Os animais são políticos? E eu que pensava que os políticos é que
eram uns animais...”
Riram­-se os dois.
“A vida social dos chimpanzés está cheia de jogos de poder, chère
Fleur. Conspirações, alianças, golpadas... eu sei lá. Alguns animais até
tomam decisões democráticas. Quando os búfalos­-africanos têm de
decidir para onde se deverão dirigir em seguida, vão a votos. As
fêmeas levantam­-se na direção do seu destino de preferência e depois
voltam a deitar­-se. Concluiu­-se que isso é uma espécie de voto.
Quando o consenso é grande, seguem todos nessa direção. Mas se as
opiniões se dividem, separam­-se em grupos e cada um vai na sua
direção preferida. Os veados exibem comportamentos semelhantes.
Portanto, ver uma chimpanzé a negociar compromissos, exatamente
como um político, não tem nada de excecional.”
Descascando a banana, Guida voltou ao sofá e pôs­-se a comê­-la
enquanto folheava um exemplar da National Geographic.
“Então é isto o que faz aqui na quinta?”, perguntou Maria Flor.
“Educa uma chimpanzé? Mas em que consiste afinal o seu projeto
científico?”
O etólogo sorriu no momento em que revelou o objetivo do Jardim
dos Animais com Alma.
“Conversar com os animais.”
.

VII

Talvez tenha sido por mera cortesia, mas o facto é que o ins­petor
Caparro decidiu não pôr as algemas em Maria Flor. Limitou­-se a dar­-
lhe ordem de prisão e a acompanhá­-la pelos corredores desertos do
Oceanário de Lisboa sem sequer requerer que o agente da PSP fosse
com eles. Ela caminhava de cabeça baixa, em silêncio, as lágrimas a
deslizarem­-lhe pelas faces rosadas; era incrivelmente duro viver uma
situação daquelas. Tomás abraçou­-a e tentou reconfortá­-la.
“Tem calma”, murmurou numa voz tranquilizadora. “Isto é tudo
um equívoco que de certeza se desfará logo que se perceba o que
realmente aconteceu. Vou falar com um advogado, o melhor que
houver por aí, e em breve estarás em casa. Não te preocupes com
nada, irá acabar tudo bem. Quem não deve, não teme.”
Tudo aquilo era verdade, claro, mas o facto é que ela estava nesse
momento detida e iria ser trancada numa cela. Tomás não tinha
dúvida de que a experiência seria traumatizante, não apenas pela
suprema humilhação de a mulher se ver sob suspeita num caso de
homicídio como pelo facto de ela ser na sua essência um pássaro livre.
Ninguém com as suas características sobrevivia incólume à privação
da liberdade; havia certos seres que não tinham nascido para serem
fechados numa gaiola.
Já perto da saída passaram por três portas a indicarem o WC com a
tradicional sinalética para mulheres, homens e pessoas de mobilidade
reduzida. Ela parou diante da porta das senhoras e encarou o
investigador da Judiciária.
“Tenho de ir ao quarto­-de­-banho.”
“Agora?”
“Estou aflita. Deve ser do enervamento, não sei. Tenho de ir ao
quarto de banho.”
O inspetor Caparro suspirou, enchendo­-se de paciência. Não lhe
pareceu adequado estar lá dentro a vigiá­-la, mas mesmo assim o
protocolo da polícia criminal requeria medidas especiais de vigilância
sobre os suspeitos detidos. Abriu a porta e entrou no WC das
senhoras, começando a inspecionar o espaço para se assegurar de que
não havia ali nenhuma janela nem qualquer outro acesso ao exterior
por onde ela se pudesse escapulir.
Agindo com uma rapidez que a todos apanhou de surpresa, Maria
Flor apalpou a fechadura, sentiu a chave no interior, tirou­-a e fechou a
porta, rodando a chave e trancando­-o lá dentro.
“Ei!”, gritou o polícia, a voz abafada pela porta. “O que está a
fazer? Deixe­-me sair!”
Ela puxou o marido pelo braço.
“Vamos!”
A ação deixou Tomás paralisado. Ver a mulher fazer algo assim era a
última coisa que esperaria.
“Estás louca?”
“Abra a porta!”, gritava o polícia do interior do WC. “Ouviu? Abra
a porta!”
“Vamos!”, insistiu Maria Flor, voltando a puxá­-lo pelo braço. “Não
temos muito tempo.”
Tomás não se moveu.
“Não podes fazer isto! Apenas vais piorar as coisas e dar a
impressão de que és culpada!”
“Qual a alternativa?”
“Vais com ele para a Judiciária e esclareces tudo. Lá diz o povo, a
mentira lava­-se com a verdade.”
“Não percebes que me armaram uma cilada?”
A palavra deixou­-o estupefacto.
“Uma cilada?!”
“E das grandes!”, confirmou Maria Flor. “Não tenho nada a ver
com os papéis que apareceram na minha carteira, não faço ideia de
como foram lá parar. Alguém anda a tentar tramar­-me. Se me querem
incriminar desta forma, é evidente que me vão incriminar de outras
também. A minha única hipótese é provar a minha inocência antes
que seja tarde demais. Se for para a cadeia, como poderei fazer essa
prova? Tenho de fugir, percebes?”
Aquele raciocínio roçava a paranoia e estava longe de convencer o
marido.
“Ouve, querida, a fuga é a pior solução”, insistiu, esforçando­-se por
lhe transmitir serenidade. “É melhor termos calma, não nos
precipitarmos. Decerto que as coisas se tornarão mais claras, pois
quem nada fez nada tem a temer.”
Fechado no quarto de banho das senhoras e sem o telemóvel
operacional, o inspetor Caparro não parava de gritar, batendo na
porta enquanto repetia as ordens com uma voz exasperada.
“Abram!”
Como não havia ninguém nas redondezas e o acesso ao Oceanário
fora bloqueado pela própria polícia enquanto decorriam as
investigações, o casal não se preocupou com a possibilidade de algo
acontecer de imediato que comprometesse a sua situação.
“És mesmo ingénuo. Achas que em caso de necessidade quem me
tramou com esses papéis na minha carteira não me irá tramar de
novo?”
“Bem...”
Ela puxou­-o com força.
“Confia em mim. Ajuda­-me a provar a minha inocência.”
“Mas... isso é uma loucura. Achas que consegues fugir à polícia?”
Os olhos dela chisparam.
“Acho que se fosse o Noé, ele ajudar­-me­-ia sem hesitar! Sem hesitar,
ouviste?”
O despropósito da referência ao etólogo chocou o marido.
“O Noé? O que tem ele a ver com...”
As batidas na porta tornaram­-se estrondos; o investigador da
Judiciária desistira de tentar convencê­-los. Projetava o corpo contra a
porta e procurava arrombá­-la. A todo o momento a estrutura iria
ceder perante os sucessivos impactos. O tempo esgotava­-se.
“Se não me ajudas nem acreditas em mim, farei tudo sozinha”,
avisou Maria Flor, olhando­-o com a expressão de quem se sentia
dececionada. “Aqui é que não fico e não deixarei que me apanhem
sem dar luta. Pensei que tinha casado com um homem que me
protegeria, mas afinal...”
Largou o marido e começou a afastar­-se em passo apressado em
direção à saída do edifício. Vendo­-a partir, Tomás percebeu que não
podia deixá­-la sozinha numa situação daquelas. Nas horas boas e nas
horas más, não era esse o compromisso de um casamento? A hora má
tinha chegado e, apesar da péssima decisão que ela tomava e das
dúvidas crescentes em relação ao tipo de relação que a mulher
mantinha com o falecido chefe, abandoná­-la naquelas circunstâncias
estava absolutamente fora de questão.
“Espera!”
Correu atrás dela. Permanecia convencido de que fugir era a decisão
errada, mas teria de confiar em Maria Flor e ajudá­-la no que pudesse.
Alcançou­-a à saída do edifício e ao lado dela passou por vários
agentes da PSP que mantinham a segurança do local.
Atravessaram em passo lesto o passeio que rodeava a marina junto
ao Oceanário, temendo que a todo o momento o inspetor Caparro
aparecesse atrás deles aos gritos e pusesse toda a polícia no seu
encalço. Desceram para o parque de estacionamento subterrâneo e
encaminharam­-se para o lugar onde Tomás havia guardado o carro.
Sem dizer uma palavra, pois o tempo urgia e o alarme iria soar a todo
o instante, enfiaram­-se no automóvel e arrancaram.
Uma vez no exterior, Tomás tomou a direção da Segunda Circular.
“Conta­-me a verdade”, pediu­-lhe, resignando­-se já à sua situação de
fugitivo e ciente de que não havia muito tempo para se inteirar dos
factos e agir para a ilibar. “Não fazes mesmo ideia do significado da
mensagem do Noé?”
“Claro que faço”, admitiu ela. “O Noé disse-me que tinha na sua
posse um dossiê explosivo, algo que iria deixar muita gente
importante em grandes dificuldades e pôr em causa um negócio que
envolve imenso dinheiro.”
“Que negócio? Que gente?”
“Isso não me revelou. Pareceu­-me muito perturbado, coitado.”
O historiador fez um esforço de memória, reconstituindo a
mensagem encontrada no cadáver do etólogo belga.
“A verdade esconde­-se atrás da queda do homem”, recordou.
“Como sabes que esta frase diz respeito a esse dossiê?”
“Porque pelos vistos esse dossiê conta a verdade toda”, foi a
resposta. “De resto, a que outra coisa se poderia estar ele a referir?”
“Verdade sobre o quê?”
“Isso é o que teremos de descobrir”, devolveu Maria Flor. “O
inspetor Caparro tinha razão quando disse que se o Noé me
endereçou esta mensagem era porque eu a compreenderia.
Compreendo­-a, sim, mas só como uma referência à verdade que o tal
dossiê revela.”
“Porque não explicaste isso ao inspetor?”
Ela inclinou a cabeça, assumindo a expressão de quem não se achava
parva.
“Com base no que o Noé me contou, não tenho dúvidas de que o
material que ele encontrou põe em causa algo muito importante.
Achas que eu iria confiar essa informação a um estranho assim do pé
para a mão? Estamos possivelmente a falar de gente da pesada,
Tomás. Decerto com acesso ao poder político. Talvez com acesso ao
poder judicial. Pessoal que controla os políticos e, através destes, os
polícias. Estão em jogo muitos interesses. Não podemos confiar em
ninguém.”
Tomás nada disse por uns momentos, concentrando­-se
ostensivamente na condução do automóvel mas na verdade a avaliar a
situação. Tinham escapado ao investigador da Judi­ciária, é certo,
embora não tivesse dúvidas de que nesse momento o alerta já fora
dado e depressa teriam a polícia no encalço. Era uma questão de
tempo até serem apanhados. A fuga só faria sentido se tivesse um
propósito.
“Qual é o teu plano?”
Ela abanou a cabeça.
“Não faço a menor ideia. O que sugeres?”
A pergunta dela deixou­-o sombrio. O facto de a mulher não ter
qualquer plano não era boa notícia. Fugir por fugir apenas os
conduziria à catástrofe. Tinham de usar bem o pouco tempo que lhes
restava de liberdade.
Só via uma opção.
“Esse dossiê... onde o devemos procurar?”
“Na casa do Noé, é claro.”
Tendo enfim um destino, Tomás carregou no acelerador. Precisavam
de chegar o mais depressa possível ao Jardim dos Animais com Alma.
.

VIII

“Hellooo!”
A saudação, vinda algures do interior da casa, deixou Maria Flor
intrigada. Noé Vandenbosch correu uma cortina púrpura no canto da
sala, desvendando uma enorme porta de ferro. Abriu­-a e, cruzando
uma antecâmara escura, decerto de origens medievais, entraram num
espaço excentricamente decorado, com símbolos bizarros e quadros
reproduzindo cenas com animais no meio de estantes repletas de livros
de lombada antiga.
“O que é isto?”
“É o meu... uh... escritório.”
A decoração era estranha para um escritório, mas a atenção de
Maria Flor depressa se desviou para o enorme pássaro que se
empoleirava numa vara junto à janela, sobre uma estranha esfera
metálica. A ave era cinzenta, com a ponta da cauda encarnada, e
maior do que alguma vez imaginara que um papagaio pudesse ser.
“Apesar do nome brasileiro, o Carioca é um papagaio­-africano”,
revelou o etólogo. “São os papagaios mais inteligentes e que mais bem
falam.”
Nesse instante a chimpanzé veio atrás deles e, grunhindo, esboçou
um gesto na direção de Carioca.
PÁSSARO SUJO.
O papagaio virou­-se para Guida.
“Dou­-te um pontapé no cu, filho da puta!”
Ao ouvir a frase em bom português, Maria Flor abriu a boca,
escandalizada, e Noé, corando, pegou na chimpanzé e devolveu­-a
apressadamente à sala. Quando voltou ao escritório tinha um
semblante embaraçado.
“As minhas desculpas, tive uns homens das obras a fazer umas
reparações cá em casa e... enfim, ensinaram­-lhe algumas coisas”,
balbuciou. “Não devia ter animais neste espaço, mas fui forçado a
meter o Carioca aqui porque a Guida implica com ele. Chega a
arrancar­-lhe penas, e não quero que aconteça nenhuma desgraça. Aqui
no escritório está seguro.”
Refazendo­-se do choque, a nova colaboradora da GreenNaturae
abeirou­-se do poleiro onde a ave se encontrava.
“Que lindo! Um papagaio!”, disse. Inclinou­-se para ele. “Olá! Olá!”
O papagaio respondeu.
“Hellooo!”
Ela riu­-se e voltou­-se para Noé.
“Que engraçado, tem a sua voz. Sem tirar nem pôr.”
“É natural. Excetuando aquela pequena parte em português dos
homens das obras, aprendeu inglês comigo. Até sabe o nome do
Dorian.”
Maria Flor admirou o pássaro. Mais do que o tamanho, era a sua
simples presença que se revelava dominante.
“É ótimo ter aqui um papagaio”, constatou ela. “No fim de contas,
e mesmo não sabendo o que dizem, eles falam, não é verdade?”
Noé esteve prestes a responder, mas deteve­-se. Tudo a seu tempo,
considerou. A nova colaboradora só poderia compreender as
experiências que ali decorriam se entendesse a real natureza dos
animais.
“Sabe, chère Fleur, uma das grandes ilusões dos seres humanos é a de
que são os únicos seres vivos capazes de comunicar”, acabou por
dizer. “Isso é um perfeito absurdo, como deve calcular. Todos os
animais comunicam, e fazem­-no emitindo sons, gestos, expressões,
cheiros...”
“Creio que, quando se diz que os seres humanos são os únicos seres
vivos capazes de comunicar, o que realmente se quer dizer é que são os
únicos capazes de se expressarem através de linguagem, de
conversarem, de...”
“Mas os gestos são linguagem, chère Fleur! Não vê a Guida? Ela
comunica por gestos. E não é a primeira chimpanzé a fazê­-lo. Um
casal americano, os Hayes, adotou na década de 1940 uma
chimpanzé, a Viki, e tentou ensiná­-la a falar. A Viki ainda aprendeu a
dizer quatro palavras, mamã, papá, copo e cima, mas não mais do que
isso. A experiência com a Viki levou muitos cientistas a afirmar que
estava feita a prova de que só os seres humanos têm uma capacidade
inata para a linguagem.”
“Justamente o que eu lhe dizia.”
“Não é verdade, chère Fleur. A comunicação verbal é apenas uma de
várias formas de comunicação, e não a mais adequada para os
chimpanzés. Por causa de limitações impostas pela sua língua
relativamente fina e pela posição alta da laringe, os chimpanzés têm
muita dificuldade em pronunciar vogais. Acontece que Jane Goodall
observou na Tanzânia que os chimpanzés são mestres da comunicação
por gestos e expressões faciais. Pesquisadores no Uganda elaboraram
mesmo um primeiro dicionário de chimpanzês, tendo identificado
sessenta e seis gestos que os chimpanzés usam para comunicar entre
eles, formulando assim frases gestuais como vem cá, dá­-me um
abraço, dá­-me isso, vai­-te embora, vamos fazer sexo e vamos brincar.
Isso levou um outro casal, os Gardner, a mudar de tática. Percebendo
que os investigadores estavam a cometer um erro elementar ao reduzir
toda a comunicação à linguagem verbal, os Gardner adotaram na
década de 1960 uma outra chimpanzé, a Washoe de que lhe falei há
pouco, e começaram a ensinar­-lhe ASL, a língua gestual americana.”
“Como a Guida.”
“Washoe foi o primeiro chimpanzé capaz de comunicar com seres
humanos por gestos. Durante nove meses esteve a aprender palavras
isoladas, como escuta e cão, por exemplo, e ao décimo mês começou
espontaneamente a combinar palavras. Ao ouvir um cão a ladrar,
pôs­-se a dizer por gestos aos Gardner: escuta cão. Ou seja, formava
frases, capacidade que se pensava ser exclusiva dos seres humanos. A
experiência foi um sucesso e em breve começou a ensinar­-se língua
gestual a outros chimpanzés, sempre com bons resultados. Os
behavioristas alegaram que os chimpanzés não usavam a língua
gestual espontaneamente e que se limitavam a papaguear gestos dos
seres humanos. Essa hipótese foi testada, tendo­-se instalado câmaras
nos locais onde estavam os chimpanzés que comunicavam por língua
gestual e filmado o que eles faziam quando não se encontravam na
presença de seres humanos. Quando se revelaram esses filmes, sabe o
que mostravam?”
“Comunicavam entre si também por língua gestual.”
“Os chimpanzés usavam língua gestual humana para partilhar
cobertores, fazer jogos, tomar o pequeno­-almoço, comentar a comida,
comentar fotografias e prepararem­-se para dormir. Até a meio de
conflitos familiares, quando se punham a gritar, recorriam à língua
gestual humana. Esta forma de comunicação tornou­-se parte das suas
vidas emocionais e intelectuais, e mesmo quando estavam sozinhos e
falavam consigo mesmos usavam língua gestual humana. A própria
Washoe ensinou língua gestual humana a outros chimpanzés,
incluindo o filho Loulis, de tal modo que Loulis se recusava a usá­-la
para comunicar com os homens, reservando­-a apenas para comunicar
com outros chimpanzés.”
“Devia achar que a língua gestual era a linguagem específica dos
chimpanzés...”
“Outros achavam que era a linguagem dos gorilas”, adiantou Noé.
“Isso aconteceu com um bonobo chamado Kanzi. Sem que os seus
tratadores humanos se apercebessem, este chimpanzé­-pigmeu
aprendeu língua gestual a ver vídeos da gorila Koko. Tendo depois
conhecido uma criança autista que comunicava por língua gestual,
Kanzi ficou de tal modo surpreendido que lhe perguntou em língua
gestual se ela era um gorila.”
Riram­-se os dois.
“Só se conseguiu ensinar aos chimpanzés língua gestual?”
“Acha pouco, chère Fleur?”, questionou Noé. “A língua gestual foi o
método mais bem­-sucedido, apesar de a língua ges­tual dos símios se
ter mostrado sempre mais rudimentar e limitada do que a humana,
pois não tem tempos verbais nem eles com­ple­xificam as mensagens.
Washoe e os restantes chimpanzés mos­traram que não só os animais
comunicam entre si como são capazes de comunicar com outras
espécies de diversas maneiras.”
“Ora, grande novidade!”, devolveu Maria Flor, não muito
impressionada com esta conclusão. “Qualquer dono de um animal
doméstico, por exemplo, sabe muito bem que eles são perfeitamente
capazes de comunicar com outras espécies. Quando o cão faz
movimentos a pedir brincadeira, ou uiva de angústia quando vê o
dono sair de casa, ou dá pulos e abana a cauda quando o vê regressar,
ou durante a refeição lhe toca com a pata a pedir comida, que eu saiba
isso são formas de comunicação entre espécies.”
“Tem toda a razão. O problema é que muitos cientistas permanecem
desconfiados quanto ao que esses comportamentos realmente querem
dizer e vão argumentando que se trata de simples reações a reflexos
condicionados.”
“Que disparate!”, riu­-se ela. “A questão não é determinar se os
animais comunicam, pois é evidente que comunicam, mas se...”
As palavras de Maria Flor foram interrompidas por um movimento
súbito de Carioca, que se pôs aos saltinhos no poleiro, a atenção presa
nela. Ao ver este comportamento, Noé soltou uma enorme
gargalhada.
“M’enfin! Ele gosta de si!”, exclamou, divertido. “Não vê? Ah, que
máximo!”
A portuguesa analisou os movimentos do papagaio, que apesar dos
saltinhos não a largava com o olhar.
“É, parece ter simpatizado comigo...”
“Simpatizar?”, riu­-se o etólogo. “Oh la la! O Carioca quer fazer
amor consigo!”
Maria Flor enrubesceu.
“Perdão?”
“Estes saltinhos são a dança da sedução. Muitos pássaros, incluindo
os papagaios, executam­-na quando encontram uma fêmea que lhes
interessa. Ou seja, o Carioca está a cortejá­-la.”
O olhar incrédulo da nova colaboradora da GreenNaturae fixou­-se
no papagaio, que continuava aos saltos no poleiro. Seria possível uma
coisa daquelas? Um papagaio a cortejá­-la?
“Está a brincar...”
Nesse momento, Carioca interrompeu a dança da sedução e voltou a
revirar a cabeça na direção dela.
“Wanna go shoulder”, disse em inglês. “Quero ir para o ombro.”
A frase foi inesperada. Maria Flor julgou ter ouvido mal, mas não
teve tempo para refletir sobre o que o papagaio acabara de dizer
porque este saltou do poleiro e esvoaçou para o ombro dela. Uma vez
empoleirado nela, recomeçou a dança da sedução.
Noé riu­-se de novo, sempre divertido com a cena.
“Mon Dieu! É mesmo paixão!”
Tudo aquilo era novidade para a portuguesa, que não sabia como
reagir nem o que pensar. Um papagaio estava romanti­camente
interessado nela? Que disparate vinha a ser aquele?
A dança terminou e Carioca inclinou­-se para Maria Flor, quase
colando o bico à orelha dela.
“I love you”, disse­-lhe. “Amo­-te.”
Com uma gargalhada sonora, Noé devolveu a ave ao poleiro.
“Mince, alors! Hoje estás o máximo, Carioca...”
O papagaio abanou as asas.
“Wanna nut”, disse, como se mudasse de tema. “Quero uma noz.”
O etólogo deitou a mão ao bolso e esboçou um súbito esgar
contrariado.
“Ah, merde! Esqueci­-me das nozes!” Encolheu os ombros e encarou
o pássaro. “Não tenho nozes, Carioca”, informou­-o, voltando a falar
em inglês. “Queres uvas?”
“Quero uma noz.”
“Não há nozes. Que tal uma banana?”
“Quero uma noz.”
Noé suspirou, frustrado.
“Este gajo é um chato”, resmungou ao dar meia­-volta para sair do
espaço onde se encontravam e regressar à sala. Soltou um “ah!”
distante e pouco depois regressou com uma noz, que estendeu à ave.
“Toma lá, ó comilão.”
O papagaio engoliu a noz rapidamente. Voltou a encarar o etólogo.
“Quero uma noz.”
“Outra?” Bufou. “Não, acabaram­-se as nozes. Que tal uma
banana?”
“Quero água.”
Enchendo­-se de paciência, o cientista belga voltou à cozinha para ir
buscar um copo com água. Carioca bebeu dois golos e no final, com o
bico, pegou no copo de plástico, arrancou­-o da mão do dono e
atirou­-o ao chão com um certo desprezo.
“Isso são maneiras?”, protestou Noé, apanhando o copo. “Estou
tramado contigo...”
Toda a cena foi vivida e observada por Maria Flor com enorme
perplexidade. Por momentos nada foi capaz de dizer, pois era tudo
novo e desconcertante, mas por fim assimilou a cena.
“Desculpe, o que se está a passar aqui?”, quis saber. “Ele consegue
pedir nozes e água e também para ir para o ombro das pessoas?”
“Não sabia que os papagaios falam?”
“Isso toda a gente sabe. A diferença é que não têm noção do que
dizem.”
“Ai não? Então como explica o que acabou de ver?”
A portuguesa passou a mão pelo cabelo encaracolado, desconcertada
com a pergunta e com o facto de que a evidência lhe mostrara o
contrário do que aprendera.
“Bem... sempre ouvi dizer que os papagaios se limitam a imitar sons.
É aliás por isso que se usa a expressão papaguear, não é? Uma pessoa
que papagueia algo é uma pessoa que imita uma coisa sem ter a noção
do que está realmente a dizer.”
“Eu sei o que se diz e se pensa acerca dos papagaios, mas como está
a constatar não é bem assim. Os papagaios não se limitam a imitar
sons, chère Fleur. Eles sabem perfeitamente o que estão a dizer.”
“Está a brincar...”
A evidência era a evidência, sabia Noé, como sabia que havia
evidências tão incríveis e que contrariavam crenças de tal modo
enraizadas que as pessoas evitavam compreendê­-las ou sequer aceitá­-
las. Aquele era um desses casos. Cabia­-lhe a ele destruir assim um dos
maiores mitos sobre os animais em geral e os papagaios em particular.
“Não o viu ainda há minutos a cortejá­-la com a dança da sedução?
Isso mostra que não é parvo nenhum. Dá a impressão de que quando
lhe diz que quer ir para o seu ombro é porque sabe o que está a dizer.
E, sobretudo, indicia que tem a noção do que é a beleza e a
consciência de que a Fleur é uma mulher muito bela.”
A portuguesa pestanejou e enrubesceu. Acabara de ouvir o primeiro
piropo de Noé. E, pela maneira como o belga a olhava, pressentiu que
não seria o último.
.

IX

Ao entrar na antiga casa senhorial do Jardim dos Animais com


Alma, Tomás apercebeu­-se de um vulto em corrida que se lançou
sobre Maria Flor; era Guida que a vinha cumprimentar. Depois de
abraçar a colaboradora do seu pai adotivo, a chimpanzé desatou a
gesticular.
QUERO COMER.
“Tens fome? Oh, pobrezinha! Ninguém veio aqui dar­-te o almoço,
pois não?”
Tomás já ouvira Maria Flor falar sobre a chimpanzé do ­Jardim dos
Animais com Alma, mas para além de lhe dizer que o animal
comunicava por língua gestual americana, o que não era proeza de
somenos, pouco mais lhe contara sobre o projeto a que se dedicava na
GreenNaturae.
“Ela já sabe que o Noé...?”
“Acho que não”, devolveu a mulher, ciente de que Guida não
entendia português. “Deve ter acordado e descoberto que a casa
estava vazia. Somos provavelmente as primeiras pessoas a entrar aqui
desde que o Noé saiu.”
Tomás apercebeu­-se de que o olhar da chimpanzé se havia fixado
nele e, intimidado, calou­-se. O animal fez­-lhe um sinal de
comunicação em língua gestual.
VEM ABRAÇO.
Antes que Maria Flor lhe apresentasse o marido, Guida saltou para
o colo dele e espetou­-lhe os lábios grossos sobre a boca. Tomás
cambaleou, mais surpreendido do que assustado ao receber um
chocho daqueles de uma chimpanzé, ainda para mais húmido e
voluptuoso, e mais espantado ficou quando a sentiu roçar­-lhe o ventre
num inequívoco movimento sexual.
“Guida!”, admoestou­-a Maria Flor. “Tem juízo!”
“O que... o que se passa?”, perguntou ele logo que o animal lhe
largou a boca. “O que é isto?”
A mulher apontou para o sofá.
“Já para ali!”, ordenou à chimpanzé com voz de comando. “Ai ai! Se
não te portares bem, não te dou nada de comer, ouviste? Passas fome!
Vá, juizinho!”
Com um grunhido desalentado, e com o olhar a demorar­-se por
alguns momentos mais em Tomás, Guida desprendeu­-se dele, saltou
para o chão e, cabisbaixa, caminhou com pés e mãos para o sofá. Deu
um pulo para o seu assento, acomodou­-se e inclinou­-se para a
mesinha de apoio, retirando uma revista da prateleira inferior.
“Ela... ela tentou fazer aquilo que penso que tentou fazer?”,
perguntou o historiador, ainda atarantado. “Ela quis mesmo...?”
Deixou a frase pairar no ar, pois o que perguntava parecia­-lhe
indizível.
“Quis, pois”, confirmou Maria Flor. Ter­-se­-ia rido se não fossem as
circunstâncias. “Estás com sorte de ela não ser um chimpanzé­-pigmeu,
um bonobo. Esses beijam com a língua e tudo.”
“Mas porque quis ela...”
“Tens de perceber que a Guida está com o cio. Não lhe vês os
genitais inchados?” O marido constatou que o animal tinha o que
parecia uma enorme bola cor­-de­-rosa entre as pernas. “Quando isso
acontece, porta­-se assim com quase todos os homens que lhe
aparecem pela frente.”
“Chimpanzés, queres tu dizer.”
“Homens, Tomás. Ela atira­-se desavergonhadamente aos homens.
Tem uns que prefere, claro, e eu diria que ela parece ter gostado de ti,
mas a verdade é que, quando a Guida está com o cio, tudo o que vem
à rede é peixe...”
Aquilo era inesperado.
“Mas então... e os machos da sua espécie?”
“A Guida acha­-se um ser humano. Para todos os efeitos, mesmo que
soubesse que é um chimpanzé seria perfeitamente natural que se
sentisse atraída por homens.”
“Desculpa, mas não é bem assim. Estamos a falar de espécies que,
embora aparentadas, são diferentes.”
“A atração de chimpanzés por seres humanos acontece com maior
frequência do que se imagina, o que pensas tu? Parece que eles se
excitam a ver filmes pornográficos humanos.”
“Hmm... vou ter de ter cuidado com esta ninfomaníaca, está visto”,
observou ele. “Mas isso não explica que os chimpanzés continuem a
querer cruzar­-se com os seres humanos. Que eu saiba espécies
diferentes não se podem reproduzir.”
“A reprodução não tem nada a ver com esta conversa. Não há
agricultores que fazem sexo com vacas, com ovelhas e até com
galinhas? Se os homens se podem sentir sexualmente atraídos pelos
animais, porque não haverão os animais de se sentir atraídos por seres
humanos? Olha o Carioca, por exemplo. Desde que me conheceu que
anda a ver se lhe dou uma aberta.”
“Carioca?”, escandalizou­-se ele. “Também anda um brasileiro atrás
de ti?”
“Já vais ver”, prometeu Maria Flor, dirigindo­-se à cozinha enquanto
reprimia um sorriso. “Agora tenho de tratar da Guida.”
“Desculpa lá, mas não há tempo para tratar de ninguém”, cortou o
marido. “Precisamos de encontrar o dossiê do Noé antes que...”
“Não vês que a Guida está esganada de fome? Se não lhe dou de
comer, faz­-nos um escarcéu desgraçado e não conseguiremos procurar
nada. São apenas cinco minutinhos...”
Enquanto Maria Flor preparava um almoço rápido, Tomás observou
Guida. Estava sentada no sofá, muito entretida a folhear a revista que
tirara da prateleira. Tamanha concentração na leitura despertou a
curiosidade do historiador. Que publicação era capaz de a absorver
daquele modo? Baixou­-se para espreitar a capa e estremeceu, chocado.
A capa exibia um modelo masculino. Muito importante, o homem
estava nu.
“A Playgirl? A Guida está a ler a Playgirl?”
“Ela gosta de ver homens nus quando está com o cio”, explicou
Maria Flor, que nessa altura já descascava uma maçã. “Dá­-lhe pica.”
“Mas... mas...”
Nesse momento, a chimpanzé pousou a revista sobre o sofá,
deixando­-a aberta e voltada para cima, e passou o dedo pelo pénis do
modelo da imagem central, primeiro suavemente, depois com tanta
força que rasgou a página. Com a imagem inutilizada, voltou­-se para
Tomás e fez sinais em língua gestual.
ESTE AMIGO GUIDA.
“Já viste isto?”, perguntou ele, estarrecido. “A tipa está a fantasiar­-se
com o... o...”
“É normal.”
Tomás revirou os olhos; o que mais lhe faltaria ver?
“Guida!”, chamou a mulher. “Paparoca!”
A chimpanzé correu com pernas e braços para a mesa, onde a
aguardavam vegetais cozidos e arroz branco, para além de uma
banana e uma maçã, ambas descascadas. Guida pegou no copo e, com
um “uh­-uh”, acenou com ele para a sua amiga humana. Maria Flor
agarrou numa garrafa de vinho branco francês.
“O que estás a fazer?”
A mulher abriu a garrafa, servindo a chimpanzé.
“Ela gosta de Chablis às refeições.”
Bebericando o vinho que lhe foi servido e soltando grunhidos de
prazer, Guida pegou nos talheres e usou­-os para meter os alimentos à
boca. Tomás tudo observava com pasmo.
“Se eu não visse não acreditava...”
“Tal como as crianças humanas, os chimpanzés podem
perfeitamente ser educados desde muito cedo a comportarem­-se em
obediência a convenções sociais”, observou Maria Flor. “Os
tratadores do Zoo de Londres, por exemplo, ensinaram os chimpanzés
a vestirem­-se e a tomar chá com bule e chávenas, seguindo a etiqueta
normal de uma cerimónia de chá na Inglaterra vitoriana. Todos os
dias havia uma cerimónia dessas na jaula dos chimpanzés, mas parece
que a cena deixava os visitantes desconfortáveis. A cerimónia do chá
mostrava os chimpanzés demasiado humanos e isso não era apreciado
pelas pessoas, que acreditavam que a espécie humana tem um estatuto
especial na Criação. Percebendo o problema, os tratadores
reeducaram os chimpanzés para fazerem uma cerimónia do chá
disparatada, por exemplo bebendo diretamente do bule ou
entornando o chá ou usando­-o para lavarem os sovacos. Sei lá o que
fizeram. O facto é que os visitantes se riam com estes disparates todos
e a jaula dos chimpanzés tornou­-se um sucesso. Pelos vistos as pessoas
ficaram confortadas porque o comportamento absurdo dos primatas
lhes provava que o ser humano continuava a ocupar um lugar
privilegiado no universo. Uma balela.”
Vendo Guida a comer o almoço com prato e talheres e a beber
Chablis do copo, o próprio Tomás não deixou de sentir um certo
desconforto. Se um animal se comportava daquela maneira,
respeitando convenções sociais que ele julgava serem um exclusivo dos
seres humanos, o que lhe dizia aquilo sobre os animais? E o que lhe
dizia sobre os próprios seres humanos?
Um claque seco soou de repente algures na casa. Sobressaltando­-se,
Tomás virou de imediato a cara na direção do som.
“O que é isto?”
O olhar de Maria Flor fixou­-se numa cortina púrpura que cobria um
canto da sala virado para as traseiras.
“Hmm... foi nas masmorras.”
“Masmorras?”, estranhou o marido. “Que masmorras?”
Uma inquietante sensação de perigo apossou­-se de Tomás. Havia ali
algo que não batia certo. Não que ele fosse uma pessoa especialmente
intuitiva, mas porque a experiência o ensinara a estar alerta aos
pormenores. Não sabia porquê, mas sentia no ar uma impressão de
ameaça. Talvez fosse do som seco que acabara de ouvir. Ou talvez
estivesse simplesmente a imaginar coisas.
Extraindo do bolso uma enorme chave de ferro enferrujado, como se
tivesse vindo diretamente de um castelo medieval, Maria Flor
encaminhou­-se para a cortina púrpura.
“Esta mansão é do século xv”, revelou ela. “Existe aqui uma espécie
de cave que em tempos antigos deve ter servido de masmorras. Foi lá
que o Noé montou o escritório.”
Correu a cortina com um movimento brusco, desvendando uma
porta de madeira escura enquadrada numa estrutura de ferros de
indisfarçável estilo medieval. Inseriu a chave de ferro na fechadura e
rodou­-a ruidosamente, destrancando a porta.
A primeira coisa que Tomás fez ao entrar nas “masmorras” foi olhar
em redor à procura de sinais do perigo que intuía. Nada viu de
suspeito. Estava decerto a exagerar. Os seus olhos foram então
atraídos para o papagaio empoleirado junto à janela que nesse
instante atirou a Maria Flor um longo assobio.
“Fuiii­-fuiiiiu!”
Tratava­-se do wolf whistle, o assobio de engate, o tradi­cional som
que os homens mais descarados lançavam às mulheres bonitas. Com a
diferença de que desta vez não era um homem a assediar Maria Flor,
mas um pássaro. Um pássaro.
“Olha­-me este atrevidote!”
A mulher não conteve uma risadinha, evidentemente lisonjeada, e
aproximou­-se de Carioca para lhe fazer festinhas na cabeça.
“O Carioca gosta da sua Florzinha, não é verdade?”, mur­murou. “O
Carioca também é lindo, não é? Liiindo!” Afagou­-lhe o bico. “Bilú,
bilú, bilú!”
O papagaio pôs­-se aos saltinhos no poleiro, ensaiando a sua habitual
dança da sedução, e nem um olhar lançou a Tomás, como se o
ignorasse propositadamente; dir­-se­-ia que o encarava como um rival.
“Wanna nut?”, perguntou de repente a Maria Flor. “Queres uma
noz?”
“Não, Carioca.”
“Wanna corn?”, quis saber a seguir. “Queres milho?”
“Não, obrigada. Não quero milho.”
O papagaio virou a cabeça de lado, como se estivesse intrigado.
“Bem... então o que queres tu?”
A mulher soltou uma gargalhada; aquelas saídas de Carioca eram ao
mesmo tempo desconcertantes e cómicas.
“Quero o que quiseres”, disse. “O que queres tu?”
O papagaio sacudiu­-se todo, abanando a penugem.
“Banerry.”
“O quê?”
“Baneeeerry!”
Maria Flor abriu a boca, reconhecendo o som.
“Ah, banerry! Queres banerry!”
“Baneeeerry!”
Plantado no meio do compartimento a ouvir a conversa, Tomás
esboçou uma expressão de perplexidade. Aquela palavra não fazia
parte do seu léxico de inglês nem de português.
“Banerry? O que é isso?”
“É maçã”, explicou Maria Flor, voltando­-se de novo para o
papagaio. “It’s apple, Carioca. Ora repete lá: maçã.”
“Banerry.”
“Maçã!”
“Banerry.”
Ela inclinou­-se para a ave, como se quisesse que a escutasse bem.
“Ma­-çããã.”
Pronunciou a palavra muito devagar, para que Carioca a captasse
sílaba a sílaba. O papagaio manteve­-se calado por uns dois segundos e
depois também ele se inclinou para a frente.
“Ba­-ner­-ryyy .”
Pronunciara igualmente a palavra muito devagar, como se dessa feita
fosse ele a tentar convencê­-la de que aquela é que era a forma correta.
“Diz maçã!”
“Nuh. Não.”
“Diz!”
“Nu­-uh. Nããão.”
Ainda no meio do compartimento a assistir àquele insólito duelo de
palavras, Tomás continuava sem nada entender. Maria Flor virou­-se
para ele e respirou fundo.
“O Carioca é um teimoso”, explicou. “Há uns tempos apre­sentei­-lhe
uma maçã, ele provou­-a e disse banerry. Expliquei­-lhe que se chamava
maçã, mas ele repetiu banerry. Desde então que ando a tentar
convencê­-lo a dizer maçã e o gajo mantém­-se na porcaria do banerry.”
Fechou as mãos em punhos, que agitou no ar. “Grrr! Que nervos! É
um casmurro como nunca vi! Pior do que tu!”
“Banerry? Mas porque diz ele banerry?”
“Em linguagem técnica chama­-se a isto elisão lexical”, explicou a
mulher. “Trata­-se da junção de duas palavras diferentes para formar
uma palavra nova. Quando provou a maçã, pelos vistos o Carioca
achou que ela tinha um sabor que misturava banana e cereja, cherry
em inglês. Contraiu assim as duas palavras, banana e cherry, o que
deu... banerry.”
Tomás coçou a nuca, confuso.
“Os animais inventam palavras novas?!”
Maria Flor revirou os olhos.
“Oh, nem imaginas!” Fez com o polegar um sinal a indicar a porta
para a sala, situada atrás, onde se encontrava Guida. “Os chimpanzés,
por exemplo, passam a vida a inventar palavras novas. Olha o caso de
Washoe, o primeiro chimpanzé a comunicar por língua gestual
humana. Apesar de existir um gesto específico para frigorífico,
literalmente caixa fria em língua gestual, Washoe sempre recusou essa
expressão e inventou o termo abertura para comida e bebidas.
Também a palavra retrete, que em língua gestual se designa
literalmente cadeira estranha, foi recusada por Washoe, que inventou a
expressão porcaria boa, aparentemente porque defecar lhe dava
prazer. Outras palavras aparentemente inventadas por Washoe foram
fruta bebida para se referir à melancia e fruta cheirosa para o limão.”
Aquilo era inesperado. Tinha sido então esta a vida de Maria Flor
nas últimas semanas? A mulher passava pelos vistos os dias ali no
Jardim dos Animais com Alma a conversar com a bicharada, mas por
causa do contrato de confidencialidade nunca lhe contara o que fazia.
A presença de Carioca tinha dominado toda a atenção de Tomás
desde que entrara naquela cave, mas ao voltar a passar os olhos pelo
compartimento, estranhou a decoração.
“Que nome dás tu a isto?”, perguntou, contemplando os símbolos
espalhados pelo espaço. “Masmorras?”
“Em tempos antigos devia ser aqui que se detinha alguém”, cogitou
ela. “Mas agora era o escritório do Noé.”
A sensação de perigo não largara ainda Tomás. Sempre inquieto,
passou de novo os olhos pelo espaço. Perscrutou o grande quadro
pregado na parede e os diferentes móveis que ali se encontravam em
busca de qualquer indício que explicasse aquela impressão tão
persistente. Tudo parecia normal. Mas a sensação não o largava. O
que lhe estava a escapar?
Pousou os olhos na mesa em cruz que se encontrava plantada no
centro da cave. Apercebeu­-se nesse instante de que havia um papelão
erguido por baixo da mesa numa posição bizarra, impossível mesmo,
como se se equilibrasse no ar.
“Que estranho...”
Intrigado, abeirou­-se da mesa e baixou­-se para examinar o papelão.
De repente o papelão desapareceu e no seu lugar viu o vulto de um
homem emergir de baixo da mesa e projetar­-se contra ele, agarrando­-o
pelo pescoço com uma mão e com uma adaga na outra.
“Morre!”
.

“Está a falar a sério?”


Fingindo que não percebera o piropo que acabara de receber do
belga, Maria Flor preferiu concentrar­-se na afirmação de que os
papagaios sabiam perfeitamente o que estavam a dizer. Ciente de que
lhe cabia fazer a prova do que afirmara, e também de que tinha de
proceder com cautela pois estava a lidar com uma mulher casada, Noé
Vandenbosch voltou a encarar a ave.
“Aquela noz que estavas a pedir, Carioca, ainda a queres?”
Ao ouvir a palavra mágica, noz, a resposta do papagaio foi imediata.
“Quero uma noz.”
O belga retirou de outro bolso uma banana, que evidentemente
tinha ido buscar à cozinha momentos antes, descascou­-a e estendeu­-a
ao pássaro. Carioca trincou a ponta do fruto e atirou­-a ao chão, como
se a cuspisse.
“Quero uma noz.”
Com a demonstração feita, o olhar do responsável do Jardim dos
Animais com Alma regressou à sua nova colaboradora.
“Viu? Propus­-lhe uma noz, ele aceitou, mas em vez disso dei­-lhe uma
banana. O que fez ele? Cuspiu a banana e voltou a pedir o alimento
que eu lhe tinha oferecido. O Carioca percebe muito bem o que é uma
noz e o que é uma banana, e exige que eu cumpra a promessa que
lhe...”
“Quero uma noz.”
Desta feita, Noé deu­-lhe mesmo uma noz.
“Se não lhe faço a vontade, este chato nunca mais se cala”, indicou
num aparte. “Se uma criança tivesse pedido uma noz e rejeitado as
propostas alternativas, como bananas, e acabasse por só comer
quando lhe oferecesse a noz que ela pedira, a Fleur acha que a criança
sabia o que estava a dizer?”
“Bem... claro.”
“Então porque tem dúvidas quando vê um papagaio fazer
exatamente a mesma coisa? Nós somos cientistas e o nosso trabalho é
acreditar nos resultados das experiências, mesmo quando estes
contradizem a teoria. Sempre que a realidade contradiz uma teoria
científica, a realidade é que tem razão. Se verificamos que um
papagaio diz coisas com sentido no seu contexto adequado, então
temos de concluir que ele sabe o que está a dizer.”
O olhar de Maria Flor perdeu­-se em Carioca, fascinada com a sua
capacidade de compreender o que dizia. Todo um mundo novo se
abria diante dela.
“Como é possível que uma coisa destas nos tenha escapado durante
tanto tempo?”
“Escapou­-nos porque nunca soubemos falar com os papagaios”, foi
a resposta de Noé. “Como os behavioristas lidam com os animais
segundo o esquema estímulo­-resposta, trabalham com eles em
condições absurdas. Por exemplo, pensam que tem de se fechar os
animais numa caixa para que desse modo os estímulos apropriados
sejam controlados apertadamente e as respostas medidas com
exatidão.”
“Assim apresentado até soa a coisa rigorosamente científica.”
“Pois a mim soa­-me a coisa rigorosamente burra. Imagine que fecha
uma criança numa caixa. Acha que ela vai desenvolver as suas
capacidades cognitivas, incluindo as de comunicação? Pois é
exatamente isso o que eles fazem com os papagaios. Utilizando este
método, o que constataram os behavioristas? Que os papagaios não
sabem o que significam os sons que imitam. Portanto, são burros.”
Maria Flor soergueu o sobrolho.
“Nessa história os burros são os cientistas que se julgam espertos...”
Riram­-se os dois.
“A linguagem é essencialmente um fenómeno social, chère Fleur”,
estabeleceu Noé. “O rei Jaime IV da Escócia mandou isolar um bebé e
proibiu que se falasse com ele. A criança era alimentada e aquecida, as
suas necessidades físicas satisfeitas, mas ninguém podia falar com ela.
Acreditava o rei que, privada da linguagem dos homens, a criança
começaria espontaneamente a falar hebraico, a língua da Bíblia e de
Adão e Eva, pois por ser divina seria essa a língua natural. Sabe o que
aconteceu? Não só a criança nunca falou nenhuma língua, limitando­-
se a emitir sons guturais, como acabou por morrer por falta de afeto.
Seria isso a prova de que havia uma deficiência na cabeça da criança?
Não. A deficiência estava era no método. Pois é justamente isso o que
durante tanto tempo os behavioristas andam a fazer aos animais.
Isolam­-nos em laboratórios, cortam todos os laços deles com o seu
mundo natural, e depois chegam à conclusão de que os desgraçados
não conseguem comunicar e que são uns idiotas abrutalhados. Foi por
isso que os testes com os papagaios, e com a generalidade dos animais,
deram sempre os resultados que deram. A coisa só mudou quando os
etólogos os começaram a estudar no seu ambiente social.”
A portuguesa fez um gesto largo a indicar o escritório onde se
encontravam com a ave.
“Mas, Noé, faço­-lhe notar que esta casa está longe de ser o habitat
natural de um papagaio...”
“Tem toda a razão, chère Fleur.” Indicou o escritório. “Mas a
verdade é que podemos criar aqui uma situação social que permita a
estes animais desenvolverem as suas capacidades de comunicação, pois
a aprendizagem de uma língua é essencialmente um ato social. Os
animais que vivem em sociedade são forçados a comunicar uns com os
outros, pelo que alguma forma de comunicação terão de ter. O nosso
trabalho é detetar e compreender essa comunicação. Olhe para o
Carioca. Ele aprendeu cerca de uma centena de palavras em inglês e é
capaz de as formular num contexto correto. Diz olá quando quer
cumprimentar e adeus quando pretende despedir­-se. Diz não quando
não quer uma coisa e sabe pedir corretamente tudo o que pretende.
Chega a abanar a cabeça afirmativamente ou negativamente nos
pontos adequados de uma conversa, coisa que também já foi
observada nos papagaios no seu habitat natural.”
“Os papagaios são extraordinários...”
“Não são só os papagaios, chère Fleur”, corrigiu­-a Noé. “Os
pássaros em geral mostram capacidades surpreendentes de
comunicação verbal, muito superiores à dos primatas, à exceção do
Homem. Os papagaios, as catatuas, as cotovias, os beija­-flores, os
periquitos e outras aves são capazes de ouvir um som e imitá­-lo,
exatamente como os seres humanos. As cotovias imitam vinte sons
num minuto e o seu reportório atinge as duzentas canções. Consegue­-
se perceber onde uma cotovia vive pelos sons que imita, pois chega a
reproduzir sirenes de ambulâncias, de camiões a passar e de telefones
a tocar. Alguns pássaros, como os chapins, conseguem entoar árias de
quarenta notas, enquanto as carriças vão ao ponto de entoar trinta e
seis notas num único segundo, o que é demasiado rápido para os
nossos ouvidos captarem e o nosso cérebro apreender. As cotovias são
campeãs no rigor da imitação de chilreios de outras aves, começando
por vezes às cinco da manhã e prosseguindo o dia inteiro como se
fossem um aviário repleto de espécies diferentes. Certos mimídeos
conseguem imitar dez vezes mais chilreios do que as cotovias,
enquanto os estorninhos­-europeus e os rouxinóis revelam também
extraordinárias capacidades imitativas. Os pássaros­-lira chegam a
ladrar como cães. Já se ouviu um tentilhão a cantar o God Save the
King, e uma cotovia na Alemanha revelou­-se tão boa a dar ordens que
os cães lhe obedeciam quando os mandava parar, quando lhes dizia
para se apressarem ou quando lhes ordenava para irem ter com ela.”
Maria Flor riu­-se, imaginando a cena.
“Cães que obedecem a cotovias? Essa é nova!”
“A verdade é que quase metade das aves no planeta imitam sons e
compõem chilreios complexos. Descobriu­-se aliás que a imitação é um
pré­-requisito crucial para a linguagem verbal. Isso acontece porque
esses pássaros dispõem de determinados genes e têm uma parte do
cérebro especializada na aprendizagem de sons, tal como acontece
connosco. Certas aves individuais apresentam até defeitos de fala
como os seres humanos.”
“Que tipo de defeitos?”
“Gaguejam, por exemplo. As semelhanças entre nós e os pássaros
são tão grandes que se está a usar o estudo da vocalização das aves
para se compreender a natureza neurológica da nossa própria
aprendizagem da fala. Ao que parece, aprendemos a falar da mesma
maneira que uma ave aprende a chilrear. A análise ao genoma das aves
identificou mais de cinquenta genes que se ligam e desligam nos seres
humanos e nos pássaros que chilreiam e que estão associados à
imitação de sons, à fala e ao canto. Os restantes primatas, tal como os
pássaros que não cantam, entre eles as pombas e as codornizes, não
têm esses genes.”
“Portanto, nós e as aves cantantes partilhamos um qualquer
antepassado que adorava vocalizar.”
“Na verdade, não. O mais recente antepassado comum dos seres
humanos e das aves foi um réptil que viveu há uns trezentos milhões
de anos. Ou seja, divergimos evolutivamente dos pássaros há imenso
tempo, até porque eles são descendentes dos dinossauros e nós não,
pelo que as capacidades verbais de ambos resultam antes de um
fenómeno chamado evolução convergente. Quer isto dizer que
chegámos a resultados muito semelhantes por caminhos evolutivos
diferentes. É isso que torna particularmente estranhas as semelhanças
vocais entre nós e as aves. Quando são crianças, os seres humanos têm
capacidade para aprender qualquer das seis mil línguas humanas e
falar duas ou três dessas línguas sem o menor sotaque. Na altura em
que chegamos à idade adulta, contudo, aquilo que se designa por
genes da aprendizagem por algum motivo é desligado e perdemos essa
capacidade, ficando­-nos apenas pelas línguas que aprendemos na
infância. A aprendizagem de novas línguas torna­-se então muito difícil
e em geral fica incompleta, o que se nota na forma imperfeita de falar
que se traduz em sotaques incorretos. Parece que com certos pássaros,
como os tentilhões, se passa a mesma coisa, enquanto nas cotovias,
nos canários e nas catatuas a capacidade de aprendizagem vocal se
prolonga pela idade adulta.”
Ao lado deles, Carioca pôs­-se a balbuciar sons, o que desconcentrou
Maria Flor.
“Que chato!”, protestou, atirando um olhar agastado para o
papagaio. “O que está ele a fazer?”
“A treinar palavras. Tal como os bebés balbuciam sozinhos os sons
de palavras que escutam durante o dia, muitos pás­saros jovens,
incluindo os papagaios, fazem o mesmo em relação aos sons que os
adultos lhes ensinam. É uma forma de treinarem.”
“O que quer dizer que o chilrear dos pássaros é aprendido...”
“Vê como está a chegar lá? Para a maior parte de nós, o chil­reio das
aves não passa de um som agradável, quase musical, que nada
significa. Mas usando programas de computador, os ornitólogos
desco­briram que os pássaros emitem estes sons para comunicar uns
com os outros. Ou seja, estão de certo modo a conversar. Isso é mais
visível com os papagaios que no cativeiro aprendem as línguas
humanas, pois aí podemos observá­-los a usar palavras humanas no
seu contexto correto. De resto, muitas aves falantes emitem na selva o
que os ornitólogos designam por chamadas de assinatura.”
“Chamadas de assinatura? O que é isso?”
“É a expressão técnica para, em termos comuns, dizer que eles dão
nomes uns aos outros.”
Toda esta informação era de tal modo nova, inesperada e
surpreendente que Maria Flor ficou um longo momento na dúvida
sobre se entendera bem o que lhe acabara de ser dito.
“Os pássaros têm nomes?!”
.

XI

Os dedos do desconhecido aferrolharam­-se como garras no pescoço


de Tomás, impedindo­-o de respirar, mas o historiador tinha­-se
apercebido do reflexo da lâmina e sabia que, mesmo asfixiando, a sua
prioridade era garantir que não seria esfaqueado. Manteve por isso o
olho na adaga que o seu adversário empunhava e, quando a viu cair
sobre si, levantou o braço esquerdo e bloqueou­-a. O intruso voltou a
erguer a adaga e abateu­-a mais uma vez sobre Tomás, desta feita com
força redobrada e soltando um grito gutural.
“Raaaaah!”
Antecipando­-se, o historiador bloqueou de novo o ataque com o
braço e, para se assegurar de que não haveria uma terceira tentativa
de o esfaquear, conseguiu agarrar o pulso do agressor e prendeu­-o no
ar. Ficaram assim os dois durante alguns momentos, o desconhecido a
apertar­-lhe o pescoço, Tomás a agarrar­-lhe o pulso da mão que
empunhava a adaga, a dança de morte de uma luta que parecia ter
entrado num impasse. O problema é que o historiador não conseguia
respirar e, ao fim de alguns segundos, começou a fraquejar. Sem
oxigénio, perdia o discernimento e sobretudo a força, o que significava
que a todo o momento o atacante conseguiria libertar o braço.
Quando isso acontecesse, seria o fim.
“Procul hinc!”, rosnou roucamente o desconhecido. “Procul ite
profani!”
Tentou identificar quem o atacava, mas o agressor tinha a cara
tapada. Não era uma máscara qualquer. Pareceu­-lhe primeiro que se
tratava de um gorro a cobrir toda a cabeça, com dois buracos para os
olhos, mas acabou por perceber que não se tratava de um gorro; era
uma meia enfiada na cabeça. Que carnaval vinha a ser aquele?,
interrogou­-se, surpreendido. O que estava um homem ali a fazer
naqueles preparos e porque o atacava de forma tão feroz?
Ao fim de alguns instantes, porém, nada disso interessava realmente.
Não naquele momento e naquelas circunstâncias. A visão de Tomás
começou a encher­-se de luzes a piscar. Percebeu que eram os efeitos da
falta de oxigénio. Os pulmões arfavam e o cérebro deixava de ser
irrigado. Enfraquecia rapidamente. Sentia­-se bem perto do limite e
depressa compreendeu que não aguentava mais, a todo o momento
iria ceder, o fim aproximava­-se.
“Calm down!”, gritava Carioca no seu poleiro, agitado e alarmado
com o que estava a acontecer. “Calma!”
Já à beira de perder os sentidos, o entendimento a falhar­-lhe como se
estivesse envolto numa névoa densa, Tomás sentiu um movimento
brusco ao lado.
“Larga­-o!”, gritou alguém. “Larga­-o!”
Ouviu duas batidas surdas e de repente, como se um sopro de vida o
revigorasse subitamente, respirou de novo; o agressor largara­-lhe o
pescoço e usava a mão agora livre para fazer algo que Tomás de
imediato não percebeu o que era nem por momentos lhe interessou
perceber. Tudo o que realmente importava era que conseguia enfim
respirar, o ar enchia­-o e a circulação era reativada.
Recuperando o discernimento, compreendeu que o desconhecido
usava a mão livre para empurrar algo à sua direita. Ouviu uma nova
batida surda e mais um grito.
“Larga­-o!”
Entendeu por fim o que se passava. Era Maria Flor que viera em seu
socorro e atacava o intruso, batendo­-lhe com um qualquer objeto que
provocava aquelas batidas surdas. O atacante tentava afastá­-la com a
mão que libertara do pescoço de Tomás, e fora isso que o salvara.
Abrira­-se uma janela de oportunidade.
As forças podiam ainda faltar­-lhe, mas ver o homem com a mão livre
a tentar socar Maria Flor foi o que verdadeiramente o mobilizou.
Agarrando com as duas mãos o braço do agressor, Tomás dobrou­-o
com violência.
O desconhecido urrou de dor.
“Aghhh!”
Todo o corpo do historiador se encontrava dorido, os pulmões a
queimarem­-lhe, a mente ainda nublada, mas concentrou­-se no esforço
que estava a fazer e dobrou ainda mais o braço do desconhecido,
dobrou­-o tanto que a adaga acabou por se soltar e rolar pelo chão
com um tilintar metálico. Parecia impossível, ainda instantes antes se
havia dado como perdido, mas tinha conseguido!
Tentou erguer­-se. Quando julgava que estava à beira de vencer a
partida, contudo, o agressor contra­-atacou com violência. Assestou
um pontapé violento na cara de Tomás e derrubou­-o de novo.
“Procul hinc, procul ite profani!”
Deitado no chão e atordoado, o historiador viu Maria Flor atirar­-se
sobre o desconhecido. Os dois agarraram­-se com violência, mas o
atacante era mais forte e, esbofeteando­-a, atirou­-a contra o poleiro
onde se encontrava Carioca. O papagaio deu um salto e, esvoaçando
pela cave, pôs­-se de novo aos gritos.
“Calma! Calma!”
Tomás e Maria Flor estavam ambos deitados no chão, totalmente à
mercê do agressor. Este pôs­-se de pé num salto e varreu o chão com os
olhos até localizar o objeto que procurava.
A adaga. Pegou nela, mas nessa altura já Tomás se tinha posto em pé
e arrancado o poleiro de Carioca, manobrando­-o pelo ar como se
fosse uma lança. Colocando­-se à frente de Maria Flor para a proteger,
o historiador apontou o poleiro para o agressor; não era grande arma,
mas servia para o manter à distância.
O desconhecido hesitou, como se reavaliasse a situação e as suas
prioridades. Tomou uma decisão. De adaga sempre voltada para o
casal, mas agora defensivamente, recuou até à porta. Girando de
repente sobre os calcanhares, correu para fora da cave e meteu pela
sala em direção à saída.
O historiador lançou­-se no seu encalço.
“Não, Tomás!”, gritou a mulher. “Deixa­-o ir!”
Isso estava fora de questão para o marido. Acreditando que a
captura do intruso era essencial para solucionar o mistério que os
trouxera àquele velho solar, atravessou a sala em corrida. A
chimpanzé estava aos pulos sobre o sofá, a guinchar, excitada com
aquela súbita agitação, e Tomás percebeu que ela poderia ser uma
aliada.
“Apanha­-o, Guida!”, ordenou. “Apanha­-o!”
Mas a chimpanzé nada fez para além de dar saltos e guinchar. Ao
chegar à porta de casa, viu o desconhecido montar uma moto e tentar
ligá­-la. Correu para ele, mas a adaga que o agressor lhe apontou
travou­-o. Realmente, como poderia capturar um homem armado com
uma lâmina daquelas?
O desconhecido ligou enfim a moto e, acelerando com fúria,
arrancou dali com um rugido irado e uma densa nuvem de poeira,
correndo até ao portão da propriedade e desaparecendo para além
dele, o ronco da moto a afastar­-se até se tornar um zumbido distante e
depois fundir­-se no silêncio pitoresco da floresta de Sintra.
O que raio acabara de acontecer?, questionou­-se Tomás, atarantado,
os olhos fixos no portão e na nuvem de poeira que a moto do fugitivo
deixara atrás dela. Quem era aquele homem? O que viera ali fazer?
Porque os atacara?
Deu meia volta e reentrou na mansão a refletir sobre o sucedido.
Logo que o viu na sala, Guida desatou a fazer sinais em língua gestual.
FRUTA QUE CHORA.
“Não estou a chorar, Guida”, resmungou o historiador, de mau
humor. “A não ser por não me teres ajudado a apanhar o homem
mau.”
Regressou ao espaço ao qual Maria Flor chamava masmorras e
deparou com ela a arrumar o caos que ali se instalara. O poleiro
estava de regresso ao seu lugar, e Carioca sobre ele. Ao senti­-lo entrar,
a mulher sobressaltou­-se.
“Que susto!”, exclamou. “És tu.”
Tinha uma equimose na maçã esquerda do rosto, efeito do recontro
violento com o desconhecido.
“Magoaste­-te?”
“Tu é que te magoaste”, constatou ela. “Olha como tens o lábio.”
Tomás apalpou o lábio com a ponta dos dedos e, para além de o
sentir inchado, constatou que tinha sangue. Foram os dois ao quarto
de banho inspecionar­-se ao espelho e lavar­-se.
“Devíamos avisar a polícia.”
“Achas que sim?”, questionou Maria Flor. “Vinham cá e o que
fariam quando me vissem?”
Não era de facto uma grande ideia. Voltaram para a cave.
“Não fazes ideia de quem era este tipo, presumo.”
“Como queres que saiba?”, devolveu ela. “Um ladrãozeco qualquer,
com certeza.”
O marido massajou o queixo enquanto examinava o espaço em
redor, absorto nos seus pensamentos.
“Este gajo veio à procura do mesmo que nós”, sentenciou, falando
baixo e devagar. “O tal dossiê. E, tão certo como dois e dois serem
quatro, encontra­-se aqui escondido.”
“Aqui, onde?”
“Nas masmorras, claro.”
A mulher soergueu uma sobrancelha, surpreendida com tanta
certeza.
“Como sabes isso?”
Tomás contemplou os símbolos que decoravam o compartimento
como se os visse realmente pela primeira vez, interrogando­-se sobre
como fora possível que não tivesse reparado em tudo aquilo logo que
ali entrara.
“Isto é um santuário esotérico.”
.

XII

Empoleirado diante da janela, Carioca continuava a ruminar sons


em voz baixa; dir­-se­-ia ensimesmado, como se num solilóquio fizesse
experiências para testar sons e ver se os conseguia pronunciar de
forma correta. Já habituados àquele arrulhar incessante, Maria Flor e
Noé Vandenbosch ignoravam­-no, embrenhados na sua conversa sobre
as capacidades de comunicação das diversas espécies animais.
“Não é possível”, recusou­-se a aceitar a portuguesa. “Só o Homem é
que dá nomes a si mesmo e aos outros. Os animais não fazem uma
coisa dessas, como é evidente.”
“A ciência descobriu que o fazem”, contraditou o etólogo. “É
verdade que os cientistas evitam pôr as coisas dessa maneira, pois
sentem­-se desconfortáveis em mostrar que os animais têm
comportamentos iguais aos do Homem, dado que isso põe mais uma
vez em causa o sacrossanto lugar especial dos seres humanos.
Influenciados pela obsessão behaviorista em não antropomorfizar,
muitos biólogos preferem jogar com as palavras e dizer que as aves
adotam e emitem ‘assinaturas’. Mas isso não passa de uma forma
sofisticada de dizer que muitos pássaros dão nomes uns aos outros.
Sabe­-se hoje que todas as mais de trezentas espécies de papagaios, por
exemplo, o fazem.”
O olhar de admiração de Maria Flor deteve­-se por momentos em
Carioca.
“Quem diria!”
“Um dos primeiros a identificar essa situação foi um pioneiro da
etologia, o austríaco Konrad Lorenz, que viria a ser laureado com o
Prémio Nobel. Lorenz criou um corvo a quem chamou Roah e que
mais tarde libertou, mas os dois ficaram amigos. Sempre que via
Lorenz aparecer na rua, Roah descia do céu e, voando à frente do seu
amigo humano, abanava a cauda, tentando assim fazer com que
Lorenz o seguisse. O mais interessante é que, sempre que isso
acontecia, o corvo se dirigia a Lorenz emitindo o som roah com
entoação humana em vez do tradicional krak­-krak­-krak que usava
com os restantes corvos. O som roah era usado pelo corvo
especificamente para Lorenz, como se presumisse que o nome que o
ser humano lhe chamava também funcionasse como chamada no
sentido inverso. Ou seja, fica­-se com a impressão de que o corvo
achava que Lorenz se chamava Roah.”
“Isso é... é espantoso.”
“Não é caso único no reino animal nem um exclusivo dos pássaros.
Os primatólogos que estudaram na Costa do Marfim os macacos­-de­-
Campbell, por exemplo, conseguiram traduzir alguns dos sons da sua
linguagem. Ao que parece, eles usam hok para águias, krak para
leopardos e bum para problemas de menor importância, como galhos
a caírem ou predadores tão longínquos que não podem ainda ser
considerados uma ameaça. Estamos portanto a falar de palavras.
Noutros primatas e em galinhas foi descoberto o uso de sons do
mesmo género.”
“Como aquela galinha de há pouco?”
“A Elvira? Sim, o bâd âp que ela cacarejou quando me viu
corresponde de facto a uma saudação, como se dissesse olá. Antes de
dormirem na capoeira, a Elvira e as suas amigas também dizem umas
às outras dó­-dó­-dó, que parece significar boa noite. As galinhas usam
mais de vinte sons diferentes, e quando digo sons estou na verdade a
referir­-me a palavras, pois dão a impressão de ser sons emitidos
intencionalmente com significados precisos. Perante um som de aviso
para falcões ou corvos, elas baixam­-se e põem­-se a olhar para cima,
mas se o alerta é para um predador terrestre, elas metem­-se em bicos
de pés e esticam o pescoço a perscrutar o horizonte para ver onde se
encontra a ameaça. Isto sugere que a ideia de que a linguagem é um
exclusivo da humanidade pura e simplesmente está errada.”
Maria Flor hesitou.
“Bem... não necessariamente”, contestou. “Uma coisa é dizer uma
ou outra palavra isoladamente, como fazem esses macacos e galinhas,
outra completamente diferente é usar gramática e pronunciar frases
com sintaxe. É a gramática e a sintaxe que fazem com que as palavras
se associem de formas diferentes para criar novos sentidos, permitindo
que se perceba que expressões como mulher de calças e calças de
mulher são coisas diferentes. O uso de gramática e de sintaxe só está
ao alcance dos seres humanos, como é evidente.”
Colocado perante o problema, Noé reagiu de pronto. Foi à sua
secretária e abriu uma gaveta, de onde tirou dois objetos em madeira,
uma régua triangular e a moldura vazia de um quadro. Abeirou­-se do
papagaio e mostrou­-lhe o esquadro.
“Carioca, o que é isto?”
A ave inclinou a cabeça para a régua triangular, tentando identificá­-
la.
“Madeira três cantos.”
O cientista recolheu a régua triangular e mostrou a moldura ao
pássaro falante.
“E isto?”
“Madeira quatro cantos.”
Voltando­-se para a sua nova colaboradora com uma expressão
triunfante, Noé acenou com o esquadro e a moldura como se exibisse
troféus.
“O Carioca acabou de pronunciar duas frases com recurso a
gramática. Ele sabe o que é um objeto de madeira e sabe o que é um
triângulo, a que designa três cantos. Sabe também o que é um
quadrado, a que designa quatro cantos. Utilizando regras da
gramática, acabou de associar estas palavras e formular corretamente
duas frases diferentes, uma a identificar um triângulo e outra a
identificar um quadrado.”
“Os papagaios são diferentes”, argumentou Maria Flor. “Trata­-se de
uma espécie capaz de falar.”
“O uso da gramática é comum a outras espécies, chère Fleur. Por
exemplo, embora usem hok para designar águias, krak para leopardos
e bum para ameaças menos importantes, os macacos­-de­-Campbell
combinam estes mesmos sons para formar novas mensagens, às quais
acrescentam um sufixo composto pelo som u. Por exemplo, quando
um deles quer que outro se junte a ele, diz bum bum. Mas se disser
bum bum krak­-u krak­-u krak­-u, está aparentemente a avisar cuidado,
está a cair uma árvore. Se disser hok­-u, está pelos vistos a alertar para
uma confusão numa árvore e se disser krak­-u está a avisar para um
predador ainda invisível. Krak­-bum significa um leopardo tão
longínquo que não é ainda uma ameaça, mas se gritar simplesmente
krak isso quer dizer que o leopardo está por perto e que a ameaça é
iminente. Estes macacos trocam sons para cá e para lá, combinando e
recombinando as sequências de palavras em função de uma gramática,
para criar sentidos novos. Os primatólogos interpretam este
procedimento como sendo uma espécie de conversa. O mesmo uso da
sintaxe foi aliás verificado nos chimpanzés Washoe e Ally com a língua
gestual. Ally não só aprendeu e aplicou as regras da gramática como
nunca cometeu um único erro gramatical.”
“Ora ora, não pode ser. Se todos cometemos às vezes um erro
gramatical, um chimpanzé decerto também os cometerá...”
“Não no caso de Ally, chère Fleur. Ally conseguia perfeitamente
perceber a diferença entre escova de dentes sobre o cobertor e cobertor
sobre a escova de dentes e estabelecia sempre o sujeito, predicado e
complemento direto segundo a ordem adequada. Os testes gramaticais
com Ally foram aliás dos primeiros a sugerir que a linguagem não é
um exclusivo dos seres humanos. Os ornitólogos detetaram até
procedimentos gramaticais nos periquitos, por exemplo, sendo que
estes pássaros combinam sons de uma forma ainda mais complexa do
que os macacos­-de­-Campbell e usam sons para se referirem a si
mesmos e aos outros.”
“Os tais nomes...”
“Também outras aves dão nomes a si mesmas e às outras, incluindo
o corvo amigo de Lorenz”, adiantou Noé. “No caso dos papagaios,
dá­-se até a circunstância de os nomes lhes serem atri­buídos à nascença
pelos pais, como acontece connosco. Já os corvos emitem dezenas de
vocalizações, e conseguiu­-se identi­ficar o que parecem ser palavras em
corvês, como humano, cão e gato. Usam até palavras diferentes para
descrever diferentes tipos de gato. Numa situação, os etólogos viram
corvos serem confron­tados com larvas de insetos num buraco.
Imediatamente apare­ceram outros corvos e eles puseram­-se todos em
diálogo uns com os outros, presumivelmente a discutir a melhor forma
de tirar as larvas dali. Igualmente, os chapins­-americanos, conhecidos
na América por chickadee, emitem sequências de assobios e de
gargarejos em obediência a uma sintaxe de tal modo complexa que os
ornitólogos consideram tratar­-se de uma das linguagens mais
sofisticadas existentes no reino animal. Isto apesar de os chapins­-
americanos terem um cérebro do tamanho de uma ervilha, note bem.”
“Quem fala em sintaxe fala em gramática”, observou Maria Flor.
“Como se pode ter a certeza de uma coisa dessas?”
“Pela análise da estrutura dos sons e da sua utilização em con­texto,
mas também por protocolos de confirmação. Os ­ornitólogos pegaram
numa frase dos chapins­-americanos e mudaram a posição de cada
som. Imagine esta frase: tenho de passar ali pelo meu quarto. Se
pegarmos em cada uma destas palavras e as posicionarmos
aleatoriamente, pode ficar: passar de quarto pelo tenho meu ali. Esta
segunda frase não faz nenhum sentido porque não tem sintaxe, não é
verdade? No fundo foi isso o que os ornitólogos fizeram. Alteraram a
posição de cada som nas frases dos chapins­-americanos e depois
reproduziram as duas frases num altifalante. Quando ouviram a frase
sem sintaxe, os chapins ignoraram­-na, mas quando foi reproduzida a
frase com sintaxe os chapins reagiram. Ou seja, parece­-me claro que
as mensagens deles só transmitem significado se forem estruturadas
em obediência a uma determinada gramática.”
“Ah, estou a entender...”
“A sintaxe que os chapins­-americanos usam é tão versátil que lhes
permite gerar um número infinito de expressões, exatamente como as
línguas humanas. Uns sons indicam a localização de outros pássaros,
outros a presença de um determinado alimento. Há sequências de sons
que servem para avisar para a presença de predadores, dando
informações específicas sobre o tipo de predador e a magnitude da
ameaça, o tamanho das asas, a velocidade a que estão a voar e até o
método de ataque, veja lá. Quando emitem o som sit, por exemplo,
estão a avisar para uma qualquer ameaça lateral, enquanto si­-si­-si
alerta para a presença de um falcão e chicadi­-di­-di assinala a presença
de um predador estacionário, como uma coruja pousada num galho
ou um réptil parado no solo.”
“Meu Deus, qualquer dia ainda vai aparecer nas livrarias um
dicionário chapim­-humano!”
“Pode crer que já faltou mais para isso acontecer. A gramática dos
chapins estabelece que o número de di indica o tamanho de um
predador e a magnitude de uma ameaça. Como os preda­dores mais
pequenos são mais ágeis, e por isso mais perigosos, se o alerta usar
muitos di, do estilo di­-di­-di­-di, isso significa que a ameaça é muito
grave. Uma coruja pequena e rápida merece quatro di, uma grande e
trapalhona fica­-se pelos dois di. Os predadores mais perigosos de
todos são identificados com quinze di seguidos. Quinze! As
vocalizações dos chapins­-americanos são tão completas e específicas
que animais de outras espécies as usam para compreenderem as
informações e agirem em conformidade.”
“Ou seja, na floresta americana todas as espécies entendem
chapimês.”
“O interessante é que se descobriu que existe uma relação entre a
capacidade de vocalização e a inteligência”, acrescentou o belga. “Um
estudo revelou que os tentilhões capazes de vocalizações mais
complexas são mais rápidos a resolver problemas cogni­tivos do que os
tentilhões que chilreiam de forma mais simples. Outros estudos
mostram que a vocalização cria mais neurónios no cérebro.”
Maria Flor balançou afirmativamente a cabeça.
“Faz sentido”, reconheceu. “A vocalização é um fenómeno social e
as relações sociais requerem maior inteligência.” Fitou Carioca com
uma expressão pensativa. “Mas há uma coisa que os pássaros não têm
e que nós temos. Os sotaques regionais. Os dialetos são uma
especificidade humana que nos distingue claramente de...”
“Isso pensa você!”, atalhou Noé. “Olhe para os pássaros cardeais.
Respondem muito melhor ao chilrear de cardeais da sua região do que
de cardeais cujos habitats estejam a mais de dois mil quilómetros de
distância, o que significa que notam diferenças no sotaque. Já os
chapins do sul da Alemanha usam um dialeto tão diferente dos
chapins do Afeganistão que os chapins alemães não reconhecem o
chilrear dos seus irmãos afegãos. Até dentro de uma região específica
se encontram sotaques distintos. Os chapins de Martha Vineyard, uma
ilha do Massachusetts, cantam de uma maneira diferente dos seus
irmãos do resto do Massachusetts. Também os papagaios têm dialetos.
Descobriu­-se até que os que vivem perto de outras comunidades são
bilingues, pois conseguem vocalizar no seu dialeto e no dialeto dos
outros. Entre os pardais da Califórnia, por exemplo, os diversos
dialetos chegam a estar separados por apenas alguns metros. Para
enfrentar esse problema certos pardais são forçados a chilrear em dois
dialetos, como se os pássaros fossem bilingues. Foi mesmo descoberto
que os dialetos deles evoluem com o tempo. Os pardais da savana, por
exemplo, chilreiam hoje de maneira diferente dos seus antepassados de
há trinta anos, ao mesmo tempo que se detetaram evoluções ao longo
de vinte anos na forma de chilrear de certos cardeais, com as
inovações vocais a serem adotadas por toda a população de uma
região.”
A portuguesa balançou afirmativamente a cabeça.
“A natureza é maravilhosa”, disse. “Deu aos primatas e às aves o
dom da comunicação...”
“Outras espécies têm o que parecem ser formas de linguagem, chère
Fleur”, corrigiu­-a Noé. “Várias espécies de morcegos emitem
chamadas de assinatura complexas, com informações sobre quem são,
a que comunidade pertencem e convidando outros morcegos a
aproximar­-se, usando sílabas e canções estruturadas como frases das
línguas humanas. Há até morcegos que falam à bebé com as crias,
exatamente como os seres humanos com os filhos.
O morceguês revelou­-se tão intrincado que se acredita tratar­-se dos
mamíferos com a mais complexa forma de comunicação oral depois
dos humanos. Ou olhe para o caso dos elefantes. Saúdam os amigos e
a família de maneira efusiva, emitindo sons específicos, acariciando­-se
com as trombas, abanando as orelhas, encostando os corpos uns aos
outros.”
Maria Flor escutava­-o com atenção, mas neste ponto esboçou uma
careta cética.
“Isso não é bem linguagem...”
“Já lhe disse que há várias formas de comunicação para além da
verbal. Milhões de espécies comunicam de maneiras diferentes, cada
uma apropriada à sua neurologia e fisionomia. Uns por sons, outros
por gestos, outros por cheiros, outros por químicos... eu sei lá. Os cães
e os lobos, por exemplo, comunicam com a cauda a abanar, com
lambidelas, levantando ou baixando as orelhas, assumindo posturas
de brincadeira ou de submissão e um sem­-número de outros gestos.
Mesmo entre os seres humanos, setenta e cinco por cento da
linguagem é corporal ou resulta da entoação, não sendo estritamente
verbal. Eu diria mesmo que entre os homens a comunicação corporal é
mais sincera do que a verbal. Ora se nem nos seres humanos a
comunicação se limita aos sons, por que diabo o exigiríamos nos
outros animais?”
“Lá isso...”
“Sempre que dois elefantes se encontram, começam por emitir sons
de contacto e tocam com as trombas na boca um do outro, a forma de
os elefantes se beijarem. Ou seja, dizem olá e beijam­-se ou abraçam­-se,
exatamente como nós. Os cientistas do Elephant Listening Project
descobriram que a comuni­cação dos elefantes inclui os nomes dos
elefantes que eles conhecem, palavras que significam ser humano ou
abelhas e até palavras a indicar os graus de parentesco dos elefantes
que conhecem.”
“A sério? Eles dizem: olha o primo Dumbo?”
“Até são capazes de imitar vozes humanas!”, exclamou. “O
elefante­-asiático Batyr viveu a vida inteira num zoo do Cazaquistão
sem conhecer qualquer outro elemento da sua espécie. Um dia
começou a falar cazaque. Acumulou um vocabulário com mais de
vinte frases, incluindo Batyr é bom, sim, não, bebida e até palavrões.
À noite ouviam­-no emitir sons na sua jaula, não apenas a imitar
palavras humanas, mas também vocalizações de cães e ratos. Um
outro elefante­-asiático, Kosik, vivia num zoo da Coreia e dizia em
coreano coisas como olá, sentado, deitado, não e bom. Os coreanos
que escutam as gravações de Kosik conseguem perceber o que ele diz.”
“Mas... isso é mesmo possível?”
“Falam com a tromba. Os cientistas acreditam que foi a solidão que
levou Kosik a imitar as palavras humanas, numa tentativa de
estabelecer uma ligação com as pessoas. Depois arranjaram­-lhe uma
elefante fêmea. Agora comunica com ela em elefantês, mas continua a
usar o coreano para falar com as pessoas.”
Maria Flor emitiu um assobio impressionado.
“Os elefantes são incríveis, hem?”
“Mesmo os animais de companhia comunicam imenso, como
qualquer pessoa sabe. Embora a sua especialidade seja a leitura das
expressões corporais, os cães entendem várias palavras e frases
humanas. Há até o caso de uma border collie chamada Chaser que
decorou os nomes de mais de mil brinquedos e sabia as categorias a
que pertenciam, como por exemplo a categoria das bolas ou das
bonecas. Também compreendia a gramática. Percebia que a ordem
leva a girafa para o leopardo era diferente de leva o leopardo para a
girafa. Facto extraordinário, Chaser decorou os nomes de todos os mil
brinquedos, mas o seu dono, um professor de psicologia que lhe
ensinava uma a duas palavras novas por dia e que concebeu múltiplas
experiências para testar as capacidades cognitivas dela, não foi capaz
da mesma proeza e teve de os anotar numa folha. Além disso, a cadela
conseguia fazer deduções. Uma vez o dono testou­-a pedindo­-lhe um
brinquedo cujo nome nunca lhe ensinara. Chaser pôs­-se a vasculhar os
brinquedos e, ao descobrir um brinquedo que nunca ali tinha visto,
deduziu que era por isso que não lhe conhecia o nome e trouxe­-o ao
dono. Tratava­-se do brinquedo correto. Outros border collie
mostraram capacidades semelhantes, incluindo entender símbolos e o
que eles significam.”
“Ah, os cães...”
“Há também o caso interessantíssimo de esquilos americanos
chamados cães­-da­-pradaria”, indicou Noé. “Estes esquilos emitem
sons curtos que duram um décimo de segundo e que parecem o
chilreio de um pássaro, sem qualquer significado. Um grupo de
etólogos, todavia, teve duas ideias. Uma foi gravar esses sons e ouvi­-
los a uma velocidade muito lenta. As gravações das palavras dos seres
humanos, por exemplo, quando aceleradas a velocidades oito a dez
vezes superiores ao normal também soam ao chilrear de pássaros,
enquanto se forem escutadas dezasseis vezes mais devagar do que o
normal soam a canções de baleia. A outra ideia foi fazer análise
estatística para procurar diferenças nos sons dos esquilos americanos
em função dos contextos. Por exemplo, quais as diferenças e
semelhanças entre os sons sempre que aparecia um coiote ou um cão
ou um ser humano, e o que acontecia se o ser humano vestia uma
camisa amarela ou vermelha ou azul? Aquilo que pareciam sons
insignificantes revelou­-se uma linguagem inesperadamente complexa.
Da mesma maneira que um submarino de guerra pode condensar
muita informação num único sinal de rádio, os etólogos descobriram
que os esquilos comprimem frases inteiras em sons curtos que, à
primeira vista, parecem inócuos. Passando esses sons muito devagar,
conseguiu­-se dividi­-los em vinte parcelas diferentes, cada uma com
cinco milionésimos de segundo de duração e com estruturas de
informação acústica muito precisa. Ou seja, percebeu­-se que os
esquilos americanos processam a informação muito depressa e a
comprimem no momento de emissão.”
“Que tipo de coisas dizem eles?”
“Frases com informação relevante para a sua vida. Por exem­plo,
descobriu­-se que têm uma palavra diferente para cada animal que
veem. Uma significa coiote, outra cão, outra falcão e outra ser
humano. Há também palavras para as cores, outras para os formatos
dos animais, outras para os tamanhos, outras para os movimentos.
Cada frase dispõe todos esses sons de uma maneira específica, com
sujeito, predicado e complemento direto, incluindo substantivos,
adjetivos, verbos e advérbios.”
“Gramática?”
“Em esquilos, imagine! Parecem dizer coisas do tipo: atenção, coiote
pequeno e castanho aproxima­-se a correr com velocidade. Ou então:
homem vermelho e gordo caminha devagar a espalhar sementes. A
informação contida em cada uma destas frases desencadeia reações
diversas em toda a comunidade. Os esquilos americanos não se
mostram muito preocupados com a informação de homens gordos de
camisa vermelha que se aproximam devagar a espalhar sementes, mas
a notícia de que há coiotes pequenos e castanhos a aproximar­-se
velozmente leva­-os a abrigarem­-se imediatamente. Descobriu­-se
mesmo que os esquilos são capazes de descrever coisas que nunca
viram antes. Por exemplo, os etólogos exibiam uma silhueta de coiote
e imediatamente as frases dos esquilos incluíam palavras com
referências a coiotes mas que não eram exatamente iguais àquelas que
eles emitiam quando viam coiotes. O aparecimento de uma silhueta
oval já suscitava frases com outros sons. Como evidentemente os
esquilos não tinham tido tempo para inventar uma palavra para as
coisas novas que estavam a aparecer, os etólogos concluíram que eles
usam o seu vocabulário, rearranjando as palavras para descrever essas
novidades, exatamente como nós fazemos quando vemos uma coisa
para a qual não temos ainda um nome.”
“É extraordinário!”
“A vida é toda ela extraordinária, chère Fleur. A realidade envolve
uma panóplia de sons, luzes, cores e cheiros percecionada por milhões
de espécies, cada uma à sua maneira. O mundo de um morcego é
formado por sons, enquanto o de uma formiga envolve uma
multiplicidade de odores e o de uma abelha enche­-se de cores
ultravioleta. Os cães veem pior do que os homens à luz do dia e há
cores que não captam, mas têm um olfato entre dez mil a cem mil
vezes superior ao nosso, pelo que o seu mundo está inundado de uma
multiplicidade de odores que nos passam completamente ao lado.
Cada espécie adota um tipo de comunicação que lhe é específico e que
escapa às outras espécies, da mesma maneira que os tipos de
comunicação das outras espécies lhes escapam. Os seres humanos, por
exemplo, são excelentes na comunicação verbal e bons na visual, mas
todo o universo da comunicação por odores, químicos, toques e
sabores nos escapa. Outros animais são sensíveis a toda essa parte que
ignoramos. Quando as formigas operárias encontram comida, vão
largando pacotes de cheiros no caminho de regresso à colónia. Se a
comida é abundante, deixam os pacotes muito juntos uns aos outros,
mas se é escassa os pacotes são afastados. Isso é comunicação. Além
disso, cada pacote é composto por químicos diferentes cuja disposição
contém uma gramática que indica a direção da comida.
“Está a dizer que os químicos são a linguagem das formigas?”
“Há quem o diga. Ou veja o caso das abelhas, que usam padrões de
voo para darem informações às outras abelhas sobre onde existem
flores com pólen e que tipo de flores se trata. Se dançam em círculo,
estão a informar as restantes de que as flores se encontram num raio
de cem metros, mas se estiverem a maior distância mudam para uma
dança em oito. Quanto mais a abelha abana a cauda, mais próxima é
a localização das flores. O ritmo e a duração da dança fornecem ainda
elementos semânticos sobre a abundância do néctar. Quanto mais
néctar, mais acelerado o ritmo. Quanto mais distante, mais longa a
dança. Há igualmente uma dança para iniciar as buscas, outra para
que as restantes abelhas ajudem a recolher o néctar das flores e outra
ainda para terminar as buscas. Existem até danças para identificar
uma nova localização para a colónia. As abelhas também emitem
certos sons a indicar a distância e posição das flores, e pelo menos
vinte compostos químicos diferentes a dar instruções defensivas, como
se cada químico fosse uma palavra. Todas essas danças, sons e
químicos constituem linguagens e podem variar de comunidade para
comunidade, como se fossem dialetos ou mesmo línguas diferentes.
Enquanto uma língua humana contém umas quarenta mil palavras de
uso corrente, os etólogos descobriram que a comunicação das abelhas
atinge as cem mil palavras.”
“Mas, Noé, as formigas e as abelhas são insetos”, fez notar Maria
Flor com uma expressão de incredulidade. “Os insetos também têm
comunicação?”
“Então e os répteis, chère Fleur? Os etólogos constataram que os
lagartos comunicam através da postura corporal e do movimento das
patas, da cabeça, da cauda ou da garganta. Se um lagarto se posiciona
de uma certa maneira, isso quer dizer uma coisa. Se faz dois
movimentos com a cabeça isso quer dizer outra, e quatro movimentos
quer dizer outra ainda. Os movimentos seguem sequências muito
rigorosas e com intervalos de tempo específicos, o que sugere a
existência de uma gramática. Os etólogos fizeram as contas e
concluíram que os diversos movimentos e posturas permitem quase
sete mil combinações, mas os répteis só fazem menos de duzentas
dessas combinações. Isso confirma que as posturas e os movimentos
não são aleatórios. Trata­-se de uma espécie de linguagem.”
“Incrível.”
“Nós temos estado a falar dos animais em terra e no ar, mas os do
mar também comunicam imenso. Olhe para os golfinhos. Os
tratadores dizem­-lhes em língua gestual toca no frisbee com a cauda e
depois salta sobre ele, e eles entendem tudo e obe­decem. Os golfinhos
compreendem palavras humanas e a sintaxe das frases em língua
gestual. Sabemos também que emitem assobios com significados
específicos. Foram identificados pelo menos quinze assobios diferentes,
incluindo um para ralhar às crias. Usando técnicas digitais, os
cientistas conseguiram até identificar nesses assobios um som que se
demonstrou querer dizer sargaço. Outros silvos constituem chamadas
de assinatura entre eles. Ou seja, dão­-se nomes uns aos outros, nomes
que recordam durante toda a vida. Respondem quando ouvem o seu
nome e não reagem quando se trata do nome de outro golfinho.
Assobiam os nomes dos amigos quando estão separados e sempre que
encontram outros grupos cada um assobia o seu nome, como se se
apresentasse. Os cientistas fizeram uma experiência em que mostraram
a golfinhos no cativeiro gravações de assobios de golfinhos que eles
tinham conhecido vinte anos antes e os golfinhos no cativeiro
reagiram com grande excitação, reconhecendo os velhos amigos. Foi a
primeira vez que se provou cientificamente que espécies não humanas
tinham memórias sociais que duravam mais de duas décadas, algo que
se descobriu depois acontecer também nos primatas, nos elefantes e
noutras espécies.”
“Ah, os golfinhos sempre foram muito espertos!”, sorriu ela com
uma expressão nostálgica. “Quando era miúda, adorava ver na
televisão a série Flipper. Era o máximo!”
“As orcas, que estudei quando fiz a minha tese de doutoramento,
emitem assobios complexos e sons por pulsares, sempre em situações
sociais, o que sugere que estão a comunicar umas com as outras.
Infelizmente não consegui descodificar esses sons, mas confirmei que
elas são capazes de imitar os assobios dos golfinhos e entrar assim em
diálogo com eles. Já as baleias emitem uma espécie de canções que
variam de comunidade para comunidade e que vão mudando com o
tempo. Um pormenor muito interessante, descobriu­-se que quase
quarenta por cento das canções das baleias terminam com o mesmo
som, como se fosse uma rima, o que levou os etólogos a especular se
não se trataria de poesia.”
Maria Flor abriu a boca, atónita.
“As baleias?! Poetisas?!”
“É especulativo, mas o facto é que as canções delas apresentam
rimas”, observou Noé. “Aliás, as baleias fazem parte do grupo de
animais que consegue imitar as palavras humanas. Uma baleia­-branca
chamada Noc costumava fazer imitações tão boas que o seu tratador
pensava que eram mesmo pessoas. As criaturas do mar estão cheias de
surpresas, chère Fleur. Descobriu­-se que os peixes emitem uma série de
sons, desde guinchos a gorjeios, passando por gemidos, ladrares e
murmúrios, para transmitirem informação uns aos outros. O
problema é que esses sons são emitidos em frequências tão baixas que
não os ouvimos, o que criou a convicção de que os peixes eram
silenciosos. Não são. Quando ligaram hidrofones debaixo de água, os
biólogos foram surpreendidos por uma barulheira, parecia que
estavam num aviário. Os recifes crepitam com os estalidos elétricos
dos camarões, com os estouros dos caranguejos, com os...”
“Os camarões e os caranguejos são mariscos, Noé. Os mariscos
também emitem sons?”
“Foi o que se descobriu, embora não se tenha ainda percebido o que
significam. Já nas lulas foi encontrada uma forma muito original de
comunicação. Alguns tipos de lulas têm a pele coberta de células
pigmentadas, chamadas cromatóforos, que lhes permitem mudar de
cor em apenas alguns segundos. Essas lulas transformaram essa
capacidade numa espécie de linguagem. Por exemplo, quando uma
lula macho se aproxima de uma fêmea mostra­-lhe um determinado
padrão de cores, na verdade uma risca branca, que na prática
significa: queres ser minha namorada? Ela pode responder com um
padrão de zebra acompanhado por um escure­cimento de todo o
corpo, que significa não, ou com outra cor, que significa sim. Agora
imagine que a meio do namorico aparece um rival. Nessas situações, a
lula macho mantém a cor do namorico na parte do seu corpo virada
para a fêmea, mas a parte virada para o rival muda para uma outra
cor que significa: vai­-te embora, cabrão! Está a perceber? É como se
piscasse um olho à rapariga enquanto ao mesmo tempo mostra o dedo
do meio ao rival. Elas conversam por cores, um pouco como os
semáforos, e fazem combinações entre cores e posturas para formar
substantivos, verbos, adjetivos e advérbios com uma complexidade
estrutural equivalente às linguagens dos pássaros e dos primatas. Faço
notar que as lulas não são mamíferos como as baleias ou os golfinhos,
mas simples moluscos.”
“Uau!”, exclamou Maria Flor. “Se calhar todos os animais
comunicam e nós é que não percebíamos.”
Noé assentiu.
“A comunicação não constitui uma exceção reservada aos seres
humanos, é antes algo muito comum na natureza. Nós gabamo­-nos da
nossa Internet, mas afinal o planeta inteiro está há milhões de anos em
rede, com todas as espécies a conversarem constantemente e das mais
diversas formas. O mundo dos seres vivos, chère Fleur, é um concerto
imenso. Longe de serem tenores que comunicam sós na Terra, os seres
humanos não passam afinal de apenas mais um vocalista no grande
coro da vida. O mundo é um jardim e todos nós, os seres vivos, as
suas flores.”
Aquelas palavras encantaram Maria Flor. Não era apenas a melodia
que encerravam, mas o que elas revelavam sobre o homem que se
encontrava diante dela. O belga não era simplesmente atraente; era
sobretudo um homem profundo, com uma grande humanidade e de
uma rara sensibilidade. Isso não a podia deixar indiferente. Sem se dar
conta disso, começou impercetivelmente a encará­-lo de uma nova
maneira.
“Ah, Noé! Não o sabia com alma de poeta...”
O homem da GreenNaturae fitou­-a com os seus olhos de um azul
tão límpido quanto as palavras que lhe fluíam dos lábios.
“Não pense que isto é uma simples metáfora”, retorquiu. “As nossas
pesquisas sugerem que é possível haver animais que sabem quem são e
que refletem sobre o mundo que os rodeia. Vivemos, chère Fleur, num
jardim repleto de animais com alma.”
.

XIII

Quando entrara pela primeira vez naquele estranho compartimento


da casa de Noé Vandenbosch, Tomás tinha tido a impressão de que
pusera o pé numa gigantesca gaiola, tal o cheiro a aves e sobretudo o
impacto que o invulgar comportamento de Carioca exercera sobre ele.
O confronto com o intruso que ali se escondera, contudo, mudou a
sua perspetiva sobre o espaço onde Noé montara o seu escritório. O
desconhecido viera ali à procura de algo. Só podia tratar­-se do que
eles próprios procuravam. O dossiê de que o etólogo belga falara e
que descrevera como sendo explosivo. Se o assaltante concentrara as
suas buscas no escritório, isso significava que era provavelmente ali
que o documento se encontrava.
“Porque dizes que isto é um santuário esotérico?”
A pergunta de Maria Flor levou­-o a devolver a sua atenção aos
quadros pregados nas paredes.
“O Noé alguma vez te falou nesta decoração?”
Ela conhecia já suficientemente o marido e os seus interesses por
criptogramas, símbolos e história antiga para perceber que as
representações que adornavam as paredes do escritório tinham muito
que se lhe dissesse.
“Uma vez interroguei­-o sobre o assunto, pois achei a decoração
realmente insólita, mas nada me disse de concreto”, respondeu a
mulher. “Limitou­-se a explicar que eram uns objetos de estimação que
trouxera da Bélgica e não deu mais pormenores. Não insisti, pois
pareceu­-me que se sentia pouco à vontade com o assunto. Mas percebi
que por vezes ia fazendo comentários com o Carioca sobre estas
imagens, como se elas tivessem um sentido qualquer.” Inclinou a
cabeça para o marido. “O que viste nelas?”
“Tudo”, respondeu Tomás. “Cada uma contém um significado
específico.”
“De que género?”
O historiador arqueou as sobrancelhas.
“São mensagens crípticas.”
Os dois ficaram a contemplar as imagens por um longo momento,
ela a tentar entendê­-las, ele a interpretá­-las em silêncio. A primeira
parede estava coberta por uma estante repleta de livros antigos. A
estante tinha um formato triangular sustentado por esculturas em
madeira de três animais, um boi e uma águia de cada lado, com um
leão ao meio. Tomás aproximou­-se da estante e tirou um livro ao
acaso. Tratava­-se de uma edição antiga da Philosophia Mystica, de
Paracelso. Extraiu um segundo livro. Le Kybalion — Étude sur la
philosophie hermétique, a obra anónima sobre os ensinamentos
secretos de Hermes Trismegisto.
“Curioso...”
Devolveu os dois livros às prateleiras e voltou­-se para os dois
quadros na segunda parede. Eram fac­-símiles de uma primeira página
de textos de aspeto medieval, uma intitulada Confessio e outra Fama.
Já na terceira parede havia uma lareira, e por cima a reprodução de
um enorme tríptico mostrando cenas bizarras com animais e seres
humanos num vasto espaço verde. No centro do escritório estava a
mesa em mogno com a forma de cruz, sobre a qual se encontravam
duas pastas, um computador e um jarro com uma rosa fresca.
Vendo o olhar intrigado do marido, Maria Flor percebeu que todas
aquelas imagens não estavam ali por acaso. Apontou para as três
estátuas na base da estante dos livros.
“O que significam estes animais?”
Tomás pousou a mão sobre as asas do leão esculpido em madeira.
“Os símbolos de três dos quatro querubins”, identificou­-os. “São
citados em passagens fundamentais da Bíblia, designadamente em
Isaías, Jeremias, Ezequiel e Apocalipse.”
“Então isto é religioso.”
“É esotérico, pois falta o quarto querubim da Bíblia, o anjo”,
corrigiu o historiador. “Estes três querubins, e só eles, encontram­-se
referidos numa obra mística muito importante, as Chymische
Hochzeit Christiani Rosencreutz anno 1459, também conhecida como
Núpcias Quymicas. Numa passagem muito importante deste livro
alquimista e esotérico, o personagem principal, um homem chamado
Christian Rosenkreuz, desce aos subterrâneos de um castelo e entra
numa câmara onde se encontra o mausoléu de Vénus. O altar
triangular da câmara é sustentado por três estátuas.” Apontou para as
três figuras de madeira que enquadravam a estante triangular dos
livros. “A estátua de um leão alado, de um boi e de uma águia, os três
querubins da Bíblia. As estátuas aqui colocadas, embora relativas a
três dos quatro querubins da Bíblia, são na verdade uma referência
implícita a essa cena das Núpcias Quymicas.”
“E então?”
Em vez de responder, o marido colou o indicador às asas do leão.
“O leão alado é uma alusão a mais uma cena das Núpcias
Quymicas. Tudo aqui são, como vês, referências a obras místicas e
alquimistas. Não é por acaso.”
Maria Flor via as imagens e ouvia as explicações, mas em bom rigor
nada entendia.
“Leões alados, querubins, reproduções de capas medievais,
núpcias... que raio de trapalhada vem a ser esta?”
Tomás encarou­-a.
“Quer dizer, minha querida, que o teu falecido chefe pertencia a uma
ordem secreta.”
Ela estreitou as pálpebras.
“O Noé era maçon?”
“Estou a falar de uma ordem secreta esotérica.”
A forma sibilina como o marido falara deixava entender algo de bem
mais misterioso do que a maçonaria.
“Uma coisa ao estilo dos... sei lá, dos Illuminati?”
A resposta não foi imediata. Tomás deu um passo para trás e voltou
a contemplar as estátuas esculpidas na estante da biblioteca, como se
tentasse abarcá­-las de uma só vez e captar­-lhes o sentido global. A sua
atenção voltou­-se a seguir para a página intitulada Fama, enquadrada
e pregada na segunda parede.
“Em 1614 apareceu em Kassel, uma povoação onde hoje é a
Alemanha, um opúsculo anónimo que incluía um texto miste­rioso
chamado Fama Fraternitatis, dess Löblichen Ordens des
Rosenkreutzes. Tratava­-se de uma narrativa que andava havia alguns
anos a circular sobre a vida de um místico, o tal Christian Rosenkreuz
cuja descida aos subterrâneos de um castelo é narrada nas Núpcias
Quymicas. Segundo a Fama Fraternitatis, Rosenkreuz era oriundo de
uma família nobre empobrecida alemã e partira para a Terra Santa em
peregrinação. A viagem levou­-o a Damasco, ao Iémen, ao Egito e a
Marrocos, onde contactou com grandes vultos intelectuais do seu
tempo e teve acesso a imensos segredos, acabando por regressar à
Europa pela Península Ibérica. Durante a sua viagem conheceu em Fez
seguidores de magia naturalis, sábios que tentavam decifrar o Liber
M, também conhecido como o Livro das Maravilhas da Natureza, a
obra que descreve a natureza como um grande livro de maravilhas.
Uma vez de volta à Alemanha, Rosenkreuz fundou uma ordem
esotérica secreta para proteger esses segredos, que deixou registados
por escrito, e concebeu um código criptográfico mágico. Quando
morreu, foi enterrado num local oculto rodeado de textos que
revelavam os grandes mistérios na posse desta ordem esotérica,
incluindo obras do célebre místico Paracelso. A Fama Fraternitatis
expôs uma doutrina muita crítica do Papa, embora também crítica do
islão, da filosofia de Aristóteles e dos sofistas, da ciência de Galeno e
de todos os cientistas pretensiosos que se comportavam com
arrogância, como se tudo soubessem quando na verdade tudo
desconheciam.”
Esta última referência soou familiar a Maria Flor.
“Cientistas pretensiosos... como os behavioristas?”
A pergunta suscitou um leve sorriso ao marido.
“Já vi que começas a perceber a relação de tudo isto com o
pensamento mais profundo de Noé”, observou. “Mas há mais pontos
pertinentes para o trabalho dele. A Fama Fraternitatis faz o elogio da
cabala e do pensamento esotérico de Paracelso e fala no tempo em que
os homens vão enfim penetrar nos segredos da natureza e
compreender o seu lugar no microcosmo. Muito importante, esta obra
celebra o que considera ser a harmonia entre o Homem, o cosmos e a
Terra, e revela a fusão entre todos os seres e todas as coisas, uma
correspondência absoluta entre o macrocosmo e o microcosmo, uma
organização perfeita que se exprime no símbolo da realização plena da
vida.” Com um gesto dramático, apontou para a estranha bola
metálica sobre a qual assentava a vara que sustentava o poleiro de
Carioca. “Esse símbolo é a esfera.”
O olhar de ambos pousou na bola metálica por baixo do papagaio.
“A esfera representa o mundo?”
“Mais do que o mundo, querida. O universo inteiro. A Fama
Fraternitatis assenta no princípio de que existe uma matemática divina
que permite desvendar os segredos do universo. Não é por acaso que a
Fama Fraternitatis coloca entre as obras existentes na biblioteca
secreta da ordem criada por Rosenkreuz as Rotae Mundi, o sistema
das rodas do mundo derivado da matemática divina que traduz a vida
e os ciclos da existência, numa rotação permanente que encaminha
Deus para os homens e os homens para Deus, exatamente como as
rodas descritas pelo profeta Ezequiel. A Fama Fraternitatis estabelece
que o conhecimento da Criação e a leitura informada do Livro das
Maravilhas da Natureza constituem formas de apreender a divindade.”
Maria Flor refletiu sobre o que acabava de ouvir, ligando estas
revelações ao trabalho do seu falecido chefe.
“Isso quer dizer que Noé acreditava que, compreendendo a
natureza, o Homem se pode tornar Deus.”
“Não é só o Homem que se pode tornar divino”, precisou Tomás.
“São todos os seres vivos. O Livro das Maravilhas da Natureza citado
pelo Fama Fraternitatis não diz respeito apenas à espécie humana, mas
a todas as espécies. Esta obra esotérica parte do princípio de que o
Homem não está separado do resto da vida, antes forma uma unidade
com ela. A linha que separa os seres humanos dos animais e das
plantas não passa de uma convenção. De tal modo é assim que a Fama
Fraternitatis apelida a natureza como o Grande Livro das Maravilhas
e coloca a Criação ao mesmo nível da santíssima trindade,
estabelecendo como desígnio dos iluminados o desvendar do mundo
escondido, o acesso ao Liber M, a descoberta de criaturas novas.”
“De facto, reconheço em todas essas ideias coisas que ao longo do
tempo fui ouvindo a Noé...”
Tomás apontou para a segunda moldura com a página medieval,
aquela que se intitulava Confessio.
“Vamos encontrar ideias semelhantes no segundo texto fundador da
ordem esotérica secreta de Rosenkreuz, o Confessio Frater­nitatis. Esta
obra mística estabelece que chegou o momento de a espécie humana
decifrar e falar a linguagem divina, e de revelar todos os mistérios
escondidos. O Confessio estabelece que a língua divina é o idioma
primordial, a língua que todos os animais falam e que permitiu a
Enoque conversar com os anjos. Segundo este texto místico, a ordem
esotérica de Christian Rosenkreuz conhece os segredos dessa língua
das línguas e através dela pode aceder ao discurso divino de toda a
Criação. Contudo, o Confessio avisa que esses mistérios divinos só são
acessíveis aos iniciados, àqueles que estão familiarizados com o
segredo, no fundo aos que compreendem que toda a vida, embora
diversa, constitui de facto uma unidade que emerge dos códigos
arcanos inscritos no Liber M, o Livro das Maravilhas da Natureza.”
Fez­-se um silêncio momentâneo, apenas quebrado pelo ruminar
baixo de Carioca, mas era Maria Flor quem digeria o que acabara de
ser dito e que tirava destas revelações todas as consequências.
“A ordem secreta esotérica que apregoa essas ideias... como se
chama ela?”
“O nome está escrito neste santuário.”
Ela olhou em redor, confusa, em busca de qualquer indicação. Via os
quadros, claro, mas nada havia escrito a não ser os títulos dos livros e
das páginas medievais pregadas na parede, uma da Fama e a outra da
Confessio.
“A ordem chama­-se Fama Confessio?”
Tomás fez um gesto largo.
“O nome esconde­-se nos símbolos à vista de toda a gente”, indicou.
“Mas só os iniciados o conseguem ler.” Apontou para a secretária. “A
forma em cruz desta mesa e a flor nela pousada não estão aqui por
acaso. São mensagens.” Pegou no vaso. “Que flor é esta? É uma rosa.”
Assentou a palma da mão na secretária. “Qual o formato da mesa
onde a rosa se encontra? Uma cruz. Uma rosa e uma cruz. Os
símbolos da ordem esotérica secreta fundada por Christian
Rosenkreuz. Os rosacruz.”
A revelação fez a mulher abrir e fechar a boca, por momentos sem
nada conseguir dizer, como se se sentisse estúpida por não ter
percebido o que afinal se afigurava evidente.
“O... o Noé era um rosacruz?”
O historiador passeou a mão esquerda pelos símbolos nas paredes e
na secretária, como se exibisse a evidência.
“O que achas tu?”, perguntou em tom retórico. “Se ele tem o
santuário preenchido por símbolos rosacruz, se a sua biblioteca está
repleta de antigos textos esotéricos ligados aos rosacruz e se partilhava
as ideias rosacruz de harmonia com a natureza, de celebração da
Criação e de descoberta do mundo escondido, neste caso o mundo dos
animais, ao mesmo tempo que tentava dialogar com eles numa
linguagem universal interespécies para assim aceder aos mistérios da
vida, que outra coisa poderia o Noé ser?”
Maria Flor estava abismada.
“Meu Deus!”, exclamou, deitando literalmente as mãos à cabeça.
“O Noé era um rosacruz! O Noé pertencia a uma ordem esotérica
secreta! E eu... e eu no meio de tudo isto! Que horror! Como é
possível uma coisa destas?”
“Calma, querida”, disse o marido. “Ele pertencia à ordem secreta
dos rosacruz, não a uma qualquer seita demoníaca dedicada a
Satanás. O compromisso do Noé era desvendar os segredos da vida, e
que missão mais nobre poderia ele abraçar?”
Maria Flor não parecia convencida.
“Mesmo assim, Tomás!”, questionou­-o, claramente ansiosa. “Era
uma ordem secreta! Já viste no que me vim meter?”
“E então?”, questionou o historiador, desvalorizando a preo­cupação
dela. “Os rosacruz são os precursores da época das Luzes, da ideia de
Galileu de que a natureza está escrita em linguagem matemática, de
que o Homem deve abrir os olhos às maravilhas do universo e usar a
ciência para desvendar os seus segredos. Não te esqueças de que, na
simbologia alquímica, a cruz representa a luz. Suspeita­-se aliás que
alguns dos maiores génios da humanidade estão ligados aos rosacruz.
Dante, por exemplo. A peregrinação pelo Inferno, Purgatório e
Paraíso na Divina Comédia é uma referência descarada à descida de
Christian Rosenkreuz aos subterrâneos do castelo descrita nas
Núpcias Quymicas. Também Giordano Bruno foi influenciado pelas
ideias dos rosacruz, em particular a crença de que existe algures um
Liber M, um Livro das Maravilhas da Natureza onde todos os
mistérios da vida se encontram explicados. O símbolo heráldico de
Lutero era uma rosa e uma cruz, o que deixa supor ligações ao
movimento rosacruz. Descartes pronunciou­-se sobre os rosacruz, e o
mesmo fizeram Newton e Leibniz; Espinosa invocou­-os, já para não
falar em Jung, em Anatole France, em W. B. Yeats, em Claude
Debussy, em Erik Satie, em Jean Cocteau, em Pablo Picasso e em Jorge
Luis Borges. Suspeita­-se mesmo que Francis Bacon está por detrás de
alguns dos textos desta ordem esotérica e sabe­-se que Goethe, o maior
escritor da língua alemã, escreveu um longo poema, intitulado
Mistérios, inspirado nas Núpcias Quymicas. Também certas
referências que se encontram na sua obra prima, Fausto, são alusões à
obra mística de Rosenkreuz. Não me parece, pois, que o teu Noé
esteja assim em tão má companhia.”
Era verdade, constatou Maria Flor. Descontraiu, como um balão a
desinchar. O facto de o etólogo ter uma vida oculta deixava­-a
desconfortável, é certo, pois preferia que tudo fosse feito às claras e à
luz do dia, sem segredos nem intenções ocultas, mas tendo em conta
que as ideias dos rosacruz eram encaradas como uma gnose secreta
que permitia aceder aos mistérios da vida para a tornar mais
harmoniosa, talvez não se devesse deixar perturbar em demasia. Que
mal havia em tentar desvendar tais mistérios? Não era afinal isso o
que a ciência pretendia todos os dias fazer? Se Noé ia buscar ao
esoterismo dos rosacruz a inspiração que o guiava nos seus trabalhos
com os animais, qual o problema? No fim de contas, a natureza é um
enigma e a ciência a chave para o decifrar.
O olhar dela desviou­-se então para a reprodução do tríptico pregada
sobre a lareira. Tinham falado de toda a estranha decoração daquele
espaço, exceto da pintura bizarra. Vendo­-a, porém, e à luz de tudo o
que acabara de ouvir, não tinha dúvidas de que desempenhava um
papel naquele mistério.
“E isto?”, quis saber. “Que quadro é este?”
“Bosch.”
A resposta foi dada prontamente, como se Tomás já estivesse à
espera daquela pergunta. A mulher reagiu com uma expressão de
incredulidade.
“O Noé pintou isto?”
“Eu disse Bosch, não Vandenbosch”, corrigiu o marido.
“Hieronymus Bosch.” Deu um passo na direção do tríptico.
“Acredita­-se que também este grande pintor estava ligado à origem
dos rosacruz. O quadro, aliás, é um indício disso.”
“Como se chama esta pintura?”
A atenção de ambos estava centrada na obra, com Maria Flor a
notar pela primeira vez tudo o que nela era bizarro. O mundo ali
reproduzido, repleto de gente e de animais, parecia­-lhe familiar e ao
mesmo tempo perturbador. O marido sabia porquê, e sabia que ela o
perceberia no momento em que lhe conhecesse o nome.
“O Jardim das Delícias Terrestres.”
Não era só a cena reproduzida no tríptico que parecia familiar. Era
também o nome.
“Jardim?”, admirou­-se Maria Flor. “Achas que foi neste quadro que
o Noé se inspirou para batizar esta propriedade como Jardim dos
Animais com Alma?”
A resposta era de tal modo óbvia que o marido nem a deu. A sua
atenção estava já focada noutro ponto crucial de toda aquela história.
“O desconhecido que aqui surpreendemos está envolvido nisto
tudo.”
“Envolvido em quê exatamente?”
O historiador fez um gesto largo com a mão, exibindo todo o espaço
em que se encontravam e a sua estranha decoração, incluindo o
quadro de Bosch, os livros e as estátuas na base da estante dos livros.
“A morte de Noé está ligada ao mistério dos rosacruz.”
.

XIV

Uma voz soou nesse momento, oriunda do escritório.


“Wanna go!”, pediu. “Quero ir!”
“O que é, Carioca?”, perguntou Noé. “Onde queres ir?”
“Quero ir!”
“Queres ir onde? Dar o teu passeio?”
“Yeah.”
O etólogo foi buscar o papagaio ao poleiro e deixou­-o saltar para o
ombro. Ao dirigir­-se para a porta de saída, fez um sinal à sua nova
colaboradora para que os acompanhasse.
“O Carioca gosta do seu passeiozinho diário”, explicou. “Venha
connosco.”
A primeira coisa com que se depararam quando saíram da mansão
com Carioca empoleirado no ombro dele foi o enorme vulto castanho
de Gertrudes. A vaca estava plantada diante da porta de casa como se
tivesse ali vindo de propósito e fixava Noé com um olhar muito
determinado; claramente era a ele que buscava.
“Muuuuuuu!”
O mugido dela foi forte e assertivo.
“Então, Gertrudes? O que se passa?”
“Muuuuuuu!”
Percebendo que a vaca queria alguma coisa, o etólogo afagou­-lhe a
cabeça, murmurando palavras suaves para a acalmar. A seguir
baixou­-se e apalpou­-lhe o úbere; estava cheio.
“Hmm... ainda tens o leite todo”, constatou. “Sentes­-te
desconfortável, é isso? Dói­-te?”
“Muuuuuuu!”
Noé franziu o sobrolho, ponderando a situação. Alguma coisa se
estava a passar.
“Anda daí”, disse­-lhe. “Onde está o Palito? Hã? Onde está ele?
Mostra­-mo, anda.”
A vaca permaneceu parada a olhar para o etólogo, claramente sem
ter compreendido a ordem. Noé empurrou­-a, mostrando­-lhe que
queria que ela caminhasse. A vaca deu então meia volta e começou a
andar, os dois seres humanos atrás dela.
“O que se passa?”, quis saber Maria Flor. “O que aconteceu?”
“Há um problema com a cria da Gertrudes.”
“Como sabe isso?”
“Não ouviu o mugido dela?”
A nova colaboradora da GreenNaturae esboçou uma expressão de
incompreensão.
“E...?”
“As vacas têm diferentes tipos de mugidos, chère Fleur. Há mugidos
de fome, de medo, de fúria, de desespero... eu sei lá. O mugido que ela
fez só é emitido quando as vacas têm um problema qualquer. E, de
facto, ao apalpar­-lhe o úbere percebi que está ainda cheio.”
“O leite deixa­-a desconfortável?”
“O problema não é esse”, respondeu Noé. “A Gertrudes foi mãe há
pouco tempo e todos os dias alimenta o Palito, que é o vitelo dela. Se
o úbere está cheio é porque o Palito não esteve a mamar. Como isso
não é normal, significa que se passa alguma coisa com ele. É
provavelmente por isso que ela me veio chamar. Precisa que a ajude
com a cria.”
Seguiram Gertrudes até junto da pocilga, onde os porcos se
refastelavam na lama. Ao lado da pocilga depararam com Alice, a
amiga de Gertrudes com quem tinham jogado às escondidas nessa
manhã, e entre a erva deitava­-se um vitelo. Gertrudes abeirou­-se do
vitelo, evidentemente a cria, e voltou a encarar Noé.
“Muuuuuu!”
Confirmava­-se assim que o problema era de facto Palito. O etólogo
ajoelhou­-se diante do animal e examinou­-lhe os olhos. Depois
apalpou­-lhe o estômago, sentindo­-lhe a dureza.
“Está com gases...”
Levantou­-se e foi buscar um tubo de borracha que se encontrava
pendurado na cerca da pocilga. Regressou para junto do vitelo, abriu­-
lhe a boca e inseriu­-lhe o tubo pela garganta até ao estômago.
Massajou­-lhe então a barriga e o ar retido libertou­-se com os seus
sons característicos. Aliviado e refeito, o vitelo pôs­-se de pé e foi ter
com a mãe. Gertrudes encostou a cabeça à da cria, como se a
saudasse, e a seguir foi ter com Noé e lambeu­-lhe a mão direita.
“Oh, que giro”, enterneceu­-se Maria Flor ao ver a cena. “Está a
agradecer...”
O mesmo fez Alice, que pelos vistos permanecera ali para dar apoio
à amiga. A vaca com a qual Noé costumava brincar encostou mesmo
a cabeça à testa dele e passou­-lhe a língua pela cara. O belga
abraçou­-a e murmurou­-lhe palavras doces em francês e Alice
ronronou com suavidade; dir­-se­-iam namorados a turtu­rinar coisas de
amor.
“Merci, mon bijou”, sussurrou ele enquanto lhe afagava a cara.
“Dorme bem. Vemo­-nos amanhã.”
Despediram­-se das vacas e encaminharam­-se para a zona da
propriedade onde se estendia um pinhal. Passaram ao lado da pocilga
e viram uma funcionária a despejar baldes para o interior. A comida
acabara nesse momento de chegar e os suínos convergiam para ela
numa enorme balbúrdia, chafurdando entre os alimentos e disputando
cada pedaço. Apenas um porco ficou parado; recusava­-se pelos vistos
a meter­-se naquela con­fusão. Em vez disso, ajeitava um manto de
palha e folhas secas em redor dele.
Noé indicou o suíno que se deixara ficar, um animal muito volumoso
com uma cauda curvada a abanar.
“Esta é a Miss Piggy. É o único porco que conheço que tem maneiras
à mesa. Está a ver? Não foi enfiar o focinho na comida, como os
outros. Não, esta é uma senhora. Só quando a coisa acalmar é que,
com toda a tranquilidade e sem se meter em confusões, irá buscar a
sua parte.”
“Que curioso. Porque será?”
“Foi educada por mim”, explicou o etólogo. “Adotei­-a logo que
nasceu e ensinei­-a a comportar­-se.” Baixou a voz. “Acho que a Miss
Piggy é um bocado como a Guida, pensa que é um ser humano. Olhe
para ela a abanar a cauda. Tal como os cães, os porcos abanam a
cauda quando estão contentes.” Pararam para observar Miss Piggy.
“Sabe quem é a maior amiga dela aqui no Jardim dos Animais com
Alma? Uma ovelha chamada Dora. Às vezes a Dora vem cá chamar
pela Miss Piggy e tenho de a deixar sair da pocilga. Passam os dias
juntas, até dá gosto vê­-las.”
A porca continuava a ajeitar a palha e as folhas secas.
“O que está ela a fazer?”
“Os porcos são brincalhões e mostram empatia pelos outros. No
caso das fêmeas são muito maternais e tratam muito bem dos filhos.
Conhecem­-se porcas que tiveram mais de uma centena de crias e que,
quando se tornam avós, ajudam os filhos a tratar dos netos. Acontece
que a Miss Piggy está grávida e começou a preparar o ninho. Em
breve será mãe.”
“Ah, que giro!”
“São animais imensamente meigos”, observou Noé sem tirar os
olhos de Miss Piggy. “Graças ao grande desenvolvimento do cortex
pré­-frontal, a zona do cérebro ligada à planificação, à expressão da
personalidade, à tomada de decisões e ao comportamento social, os
porcos são também muito espertos. Há uns tempos soube de uma
americana que tinha uma porca como animal de companhia. Um dia a
senhora sofreu um ataque cardíaco e caiu no chão da sua roulotte aos
gritos. A porca ficou muito aflita por vê­-la naquele estado e saiu a
correr para a rua, coisa que nunca antes tinha feito. De cada vez que
um carro se aproximava, ia para o meio da estrada e punha­-se à frente
dele para ver se parava. Eles não paravam e a porca ia e vinha entre o
quarto, para verificar o estado da dona, e a rua, para tentar fazer
parar um carro. Finalmente houve um automobilista que parou e saiu
do carro. Viu a porca correr para a roulotte e ficou intrigado, pelo que
foi atrás dela. Foi assim que a senhora se salvou.”
“Meu Deus!”, exclamou Maria Flor. “Isso parece uma história de
encantar.”
“São meigos e inteligentes, já lhe disse.”
Nesse instante os porcos acalmaram na pocilga e só então Miss
Piggy foi buscar a sua parte da comida. Fê­-lo da forma ordeira que
Noé tinha descrito. Não havia dúvidas, sabia comportar­-se à mesa.
O olhar da nova colaboradora do Jardim dos Animais com Alma
desviou­-se para os restantes porcos.
“E os outros, quem são?”
Noé apontou para o maior deles, refastelado a refrescar­-se na lama.
“Aquele é o Napoleão. Ensinei­-o a jogar jogos de computador.
Controla os joysticks com o focinho e tem uma taxa de sucesso de
oitenta por cento a atingir os alvos no ecrã. Um ás.” Ergueu o braço e
acenou para um leitão branco que estava do outro lado da pocilga.
“Bolinha! Anda cá, Bolinha!”
“Os porcos jogam computador?”
O leitão branco atravessou a pocilga em direção a eles. Meteu a
cabeça pela cerca e encostou­-se à perna do belga como se lhe pedisse
mimo. Noé baixou­-se e acariciou­-o por detrás das orelhas.
“Então, Bolinha? Estás bom, meu maroto?” Levantou a cabeça para
Maria Flor. “Os porcos gostam da estar com seres humanos. Olhe só
aqui para o Bolinha. Superafetuoso. Sabe que eles aprendem os seus
nomes quando têm apenas três semanas de idade? Respondem quando
os chamamos, como viu.”
Perturbado com a proximidade do leitão, Carioca remexeu­-se no
ombro do dono.
“Wanna go.”
O belga riu­-se com o pedido do papagaio para se irem embora dali;
estar ao pé de porcos e vacas ou outros animais que achasse estranhos
ou ameaçadores não era decididamente o forte de Carioca. Noé fez
um sinal a Maria Flor e afastaram­-se da pocilga, encaminhando­-se
para os espaços abertos da propriedade.
“Se bem a compreendi, chère Fleur, na sua opinião há
comportamentos que são exclusivos da humanidade...”
“Apenas graças a avanços civilizacionais”, apressou­-se ela a
esclarecer, ciente de que o seu interlocutor era adepto da ideia de
continuidade entre a espécie humana e os restantes animais. “A
civilização introduziu certos conceitos que não se encontram
naturalmente nos seres humanos, como sabe. A noção de justiça, por
exemplo. A selva não é justa, é cruel. A seleção natural implica que
quem se impõe é mais forte e que os mais fracos desaparecem. Assim é
a dura lei da vida. Graças à convivência em sociedade, todavia, a
espécie humana conseguiu um importante avanço, o estabelecimento
do conceito de justiça, do altruísmo e da proteção dos mais fracos.
Com a justiça e o sentido de dever moral que conduziram ao
aparecimento da entreajuda e do socorro aos mais frágeis, as pessoas
conceberam princípios que superam a lei do mais forte. É nesse
avanço que se funda toda a civilização humana e, consequentemente,
se estabelece a separação entre o Homem e os outros animais.”
Foi só depois de dar alguns passos pensativos que Noé se
pronunciou sobre o que ela acabara de dizer.
“Sabe, chère Fleur, a GreenNaturae contratou hoje pessoas que
vieram para aqui auferir uma fortuna, enquanto você, sendo
voluntária, não tem qualquer ordenado e apenas ganha um subsídio
de alimentação. Isso incomoda­-a, porventura?”
O despropósito da pergunta surpreendeu Maria Flor. Esperava que o
seu novo chefe comentasse o que ela acabara de dizer, confirmando ou
rebatendo­-a com argumentos científicos e afinal falava­-lhe de coisas
mundanas como salários e tentava até induzi­-la à inveja. Não teria ele
noção das coisas?
“Bem... acho normal que pessoas mais qualificadas ou mais
talentosas do que eu ganhem um salário e eu não. Não estou aqui pelo
dinheiro.”
“Pois, mas estas novas contratações fazem exatamente o mesmo que
você vai fazer. O mesmíssimo trabalho, compreendeu? Têm até menos
qualificações e menos talento. Trabalham pior do que você. Só que
ganham um belíssimo salário e você... népias.”
A nova colaboradora do Jardim dos Animais com Alma ficou um
momento em silêncio.
“Desculpe, mas não acho bem”, acabou por admitir com uma voz
subitamente tensa. “Se fazemos o mesmo trabalho, as condições
devem ser as mesmas. Parece­-me da mais elementar justiça e creio
que...”
“Pois, mas eles vão mesmo ganhar uma boa maquia e você irá
trabalhar de graça”, insistiu ele, como se o assunto não tivesse sequer
discussão. “Isto apesar de eles desempenharem as mesmas funções e
serem piores do que você.”
Maria Flor não percebia por que motivo lhe contava ele aquilo, era
até evidente que a tentava provocar, mas o facto é que o assunto
começava a mexer­-lhe com os nervos.
“Oiça, Noé, o trabalho aqui parece­-me interessante”, disse. “Porém,
não sei se, nessas condições, estou disposta a per­manecer.”
O esboço de um sorriso desenhou­-se por instantes nos lábios do
belga.
“Colegas meus fizeram uma experiência curiosa”, contou ele, como
se de novo mudasse de tema. “Meteram dois macacos­-capuchinhos
numa jaula, separados por uma malha. Deixaram cair uma pedra
junto a um deles e pediram­-lhe a pedra de volta. O macaco­-
capuchinho devolveu­-a e, como prémio, ofereceram­-lhe um pedaço de
pepino. Fizeram a seguir o mesmo com o outro. A experiência foi
repetida mais de vinte vezes, sempre com o mesmo resultado. Os
macacos devolviam a pedra e comiam o pepino, absolutamente
satisfeitos. A certa altura, o segundo macaco começou a ser premiado
com uvas, de que os capuchinhos gostam muito mais, enquanto o
primeiro continuou a receber pepinos pelo mesmo trabalho. De início
o primeiro permaneceu satisfeito. Até que reparou que o outro estava
a ser pago com uvas. Foi o fim da macacada. Pôs­-se aos guinchos,
protestou, atirou a pedra contra os cientistas, lançou o pepino para
fora da jaula... foi uma birra épica, só visto!”
A portuguesa corou.
“Está a insinuar que eu raciocino como um macaco­-capu­chinho?”
“Estou a insinuar que o conceito de justiça não é um exclusivo da
espécie humana”, explicou o etólogo. “O pepino é um alimento
perfeitamente satisfatório e é melhor comer um pepino do que não
comer nada. Então por que razão o macaco o deitou fora? Porque
preferiu passar fome a comer o pepino? Qualquer economista lhe dirá
que a decisão do macaco é irracional, como dirá que é irracional a
decisão que a Fleur tomou de se despedir da GreenNaturae se de facto
alguém com as suas funções ganhar um salário e você apenas o
subsídio de alimentação. No fim de contas, é melhor ganhar o
subsídio de alimentação do que não ganhar nada, não é verdade?”
Maria Flor ficou sem saber o que dizer.
“Mais algum animal mostrou preocupação com as questões da
justiça relativa?”
“A reação dos capuchinhos não constitui uma exceção. Cientistas
austríacos fizeram uma experiência semelhante com cães. Pediram­-lhes
que lhes dessem a pata. Eles fizeram­-no várias vezes sem receber
qualquer recompensa. Depois um dos cientistas começou a
recompensar um dos cães com um pedaço de pão, mas não fez o
mesmo ao segundo. Ao ver isso, o que fez o segundo cão? Pura e
simplesmente deixou de dar a pata. Experiências semelhantes com
lobos deram o mesmo resultado.”
“E as aves?”
Como resposta, apontou para Carioca.
“Os papagaios também reagem mal ao tratamento desigual. A
psicóloga Irene Pepperberg, que trabalhou com Alex e Griffin,
constatou que se na hora das refeições a comida e as proporções entre
os papagaios e os próprios seres humanos não fossem iguais, os seus
dois papagaios protestavam aos berros. Num caso em que a refeição
era constituída por feijão­-verde, puseram­-se até a gritar
alternadamente pelo alimento. Um dizia feijão, o outro dizia verde, e
ficaram assim uma infinidade de tempo. Os protestos só não existiam
quando a distribuição dos alimentos era equitativa.”
O olhar de Maria Flor demorou­-se em Carioca.
“Os pássaros também têm sentido de justiça, hem?”
“Experiências com corvos mostraram que igualmente estes reagem
mal quando as recompensas são diferentes para as mesmas tarefas”,
acrescentou o etólogo. “Até a Guida faz a mesma coisa. Se à noite
preparo uma bebida qualquer para mim e não lhe dou nada, é uma
chatice. Ela pega no meu copo e põe­-se a beber. Se ao jantar sirvo
Chablis, ela primeiro beberica do meu copo para se assegurar de que a
bebida é a mesma e que não está a ser discriminada. Também as vacas
são assim! Olhe para a Alice e a Gertrudes. A Alice adora­-me, mas um
dia cometi o erro de fazer festinhas à Gertrudes e, porque estava
preocupado com outra coisa, ignorei a Alice. A coitada ficou pior do
que uma barata, até me virou as costas e tudo. Sentiu­-se discriminada
nos afetos e achou que isso era injusto. Tive uma trabalheira
desgraçada para a reconquistar, nem lhe conto.”
“Muito bem, já percebi que muitos animais não aceitam ser
prejudicados quando há tratamentos diferenciados”, concedeu a
portuguesa. “O que está aqui em questão, no entanto, é eu ser lesada
em relação aos outros. Mas o que acontece se eu estiver a ser
beneficiada?”
Noé olhou­-a de lado, como se lhe dissesse que esperava que fosse
absolutamente honesta na resposta.
“A Fleur costuma protestar muito sempre que é beneficiada em
relação a outras pessoas?”
Ela riu­-se.
“Confesso que não”, admitiu. “Mas já aconteceu.”
“Tal como sucede com os seres humanos, os animais reagem mal
quando são negativamente discriminados mas não se incomodam em
demasia quando são beneficiados.”
“Ah!”, exclamou a portuguesa. “Ora aí está uma diferença! É que
nós, os seres humanos, muitas vezes importamo­-nos. Se eu estiver a
comer um grande arroz de marisco e vir uma pessoa ao meu lado a
morrer de fome, pode ter a certeza de que paro de comer e lhe dou o
meu arroz. Aí está uma coisa que um animal não faz, não é verdade?”
“Quem lhe disse isso?”
A resposta atrapalhou­-a.
“Bem... foi o que o Noé acabou de afirmar.”
“Eu disse que os animais não se incomodam muito, tal como sucede
connosco, mas não disse que nunca se incomodam. Na verdade há
situações em que os animais ficam perturbados quando são
beneficiados em detrimento de outros. Uma experiência feita em
laboratório com bonobos envolveu a recompensa de um deles, uma
fêmea chamada Panbanisha, com enormes quantidades de leite e de
uvas enquanto os restantes bonobos ficaram sem nada. Panbanisha
começou por aceitar, mas ao fim de algum tempo apercebeu­-se de que
era a única a comer e sentiu­-se constrangida por estar a ser
privilegiada. A partir daí passou a recusar esses alimentos. Perante a
insistência dos cientistas para que os aceitasse, Panbanisha apontou
para os seus amigos e familiares, dando a entender que se devia dar­-
lhes também o leite e as uvas. Só quando os cientistas o fizeram é que
a bonobo voltou a aceitar a sua recompensa.”
Maria Flor olhava­-o com incredulidade.
“Um animal fez isso?”
“O sentido de justiça, chère Fleur, não é um exclusivo da espécie
humana”, sublinhou Noé. “É comum os primatas interrom­perem
disputas entre outros primatas por causa de comida sem que fiquem
com nada para eles. Fazem­-no simplesmente para repor a justiça,
como se fossem juízes. O etólogo Frans de Waal observou mesmo uma
primata fêmea, ainda por cima apenas adolescente, a interromper um
conflito entre dois primatas juvenis por causa de um galho cheio de
folhas. A fêmea adolescente retirou­-lhes o galho, partiu­-o em dois e a
seguir deu uma metade a cada um.”
A portuguesa encarou­-o com incredulidade.
“Os animais praticam justiça salomónica?!”
Aproximavam­-se do ponto mais elevado do Jardim dos Animais com
Alma, um promontório com rochedos gigantes. As árvores
murmuravam com a brisa que trazia o aroma picante do mar e os
pássaros pipilavam e gorjeavam alegremente nos galhos, mas Maria
Flor apenas ouvia a voz pausada de Noé Vandenbosch.
“Eles fazem mais do que isso, chère Fleur”, disse o belga. “Todos
achamos que a justiça é um conceito exclusivamente humano e resulta
dos avanços civilizacionais e mais não sei quê. Afinal, ao estudar os
animais descobrimos neles comportamentos que indiciam a existência
de ajuda desinteressada. Até os macacos­-capuchinhos têm atitudes
dessas. Uma experiência mostrou que se entregarmos a um
capuchinho dois objetos de cores diferentes, um que só lhe dá uma
recompensa a ele e outro que dá uma recompensa também a um
segundo capuchinho, ele tenderá a escolher a cor que permite que o
outro seja também recompensado.”
“Pois, mas quando um animal ajuda outro isso tem sempre em vista
um qualquer objetivo egoísta, mesmo que não seja de recompensa
imediata”, fez notar a portuguesa. “Ajudamos agora para ser
ajudados depois.”
“A que preço? Colegas meus viram uma vez um lobo pequeno e
adoentado, chamado Triangle, atacar três lobos poderosos que se
aprestavam para matar a sua irmã. O pequeno e deficiente Triangle
interveio duas vezes e conseguiu a proeza de escapar com vida. O mais
importante é que ele se arriscou seriamente a morrer, o que quer dizer
que tinha mais hipóteses de ser penalizado do que premiado um dia
no futuro, e mesmo assim mostrou um comportamento altruísta.
Outros etólogos que assistiram a um ataque lançado por mais de
trinta orcas contra nove baleias ao largo da Califórnia viram uma
baleia lançar­-se em socorro de outra que estava prestes a ser comida,
colocando­-se num perigo tão grande que os meus colegas acham que
ela também morreu. Ou seja, essa baleia deu a vida para tentar salvar
outra. O que ganhou ela com isso?”
“Essas situações envolvem num caso dois lobos irmãos e no outro
um grupo de baleias que provavelmente eram aparentadas”, contrapôs
Maria Flor. “Aí entra em campo o chamado gene egoísta. Ao defender
a irmã, esse lobo estava a defender os seus próprios genes, e o mesmo
fazia decerto a baleia que foi em socorro da outra.”
“Ah, já cá só faltava essa do gene egoísta!”, exclamou Noé com um
certo agastamento. “É verdade que grande parte da ajuda que os
animais prestam uns aos outros tem em vista a possibilidade de
retribuição. Eu ajudo­-te agora, tu ajudas­-me depois. O altruísmo
recíproco, faço notar, também existe entre os seres humanos.”
A nova colaboradora da GreenNaturae fez com as mãos um gesto a
indicar que se limitara a expor uma evidência, mesmo que esta lhe
desagradasse.
“Portanto, todo o altruísmo é interesseiro.”
“Não é bem assim”, objetou o etólogo. “Deixe­-me recordar­-lhe,
chère Fleur, que a primata adolescente que partiu o galho em dois e
deu uma metade a cada um dos rivais não ficou com nada para ela.
Ou veja a história que me foi contada por um colega sobre duas orcas
que foram capturadas numa rede e ficaram três semanas sem comer
nada. Depois de verificar o estado a que elas tinham chegado, uma
outra orca, chamada Haida, foi buscar arenque e deu­-lhes de comer
através da rede, chegando ao ponto de lhes meter o peixe na boca.
Percebe o que aconteceu? Estamos a falar de uma orca que ajudou
duas perfeitas estranhas.”
“O interessante seria testar o altruísmo em experiências de
laboratório...”
“Isso já foi feito. Os meus colegas etólogos deram a oportunidade a
um bonobo de, puxando uma corda, abrir uma porta que permitiria a
outros bonobos aceder a fruta. Pormenor importante, o bonobo perto
da corda não teria acesso a essa comida e os outros bonobos não
pertenciam à família do primeiro. Iria ele puxar ou não a corda?
Quando a experiência foi feita, o bonobo puxou­-a mesmo. Ou seja,
apesar de não ganhar nada com isso, ajudou os outros. Experiências
semelhantes foram levadas a cabo com macacos­-rhesus e até com
ratos. Foi ensinado a um rato que, se pressionasse um botão, teria
comida. A certa altura, o rato percebeu que, quando carregava no
botão e a comida aparecia, o rato situado na caixa vizinha levava
choques elétricos e sofria. O que fez o rato? Deixou de carregar no
botão, assim se privando de comida, só para que o outro rato não
apanhasse os choques. Se isto não é altruísmo, não sei o que é
altruísmo.”
“Quem sabe se esses animais todos não tinham a expetativa de um
dos outros um dia lhes devolverem o favor noutras circunstâncias?”
“É uma hipótese”, admitiu Noé. “Não há dúvida, de resto, de que o
sentimento de justiça existe sobretudo nas espécies que vivem em
grupo. É como se a justiça fosse uma forma de estabelecer equilíbrios
dentro de uma sociedade. Isso não impede, no entanto, que existam
comportamentos genuinamente altruístas entre os animais. Por
exemplo, no jardim zoológico de Tycross, no Reino Unido, um
estorninho embateu num vidro da jaula dos bonobos e caiu
atarantado. A bonobo Kuni foi apanhá­-lo e pô­-lo direito, mas o
estorninho, aturdido, não voou. O que fez Kuni? Subiu para cima de
uma árvore, abriu com cuidado as asas do pássaro e lançou­-o ao ar.
Contudo, o estorninho não estava ainda em condições e voltou a cair
no chão. A bonobo desceu rapidamente da árvore e pôs­-se a guardar o
estorninho, que chamara a atenção de outro bonobo, e não saiu do
lado dele enquanto o pássaro não recuperou do choque e levantou
voo. Kuni não ganhou nada com isso, de certeza que não estava à
espera que um dia o estorninho lhe devolvesse o favor, mas isso não a
impediu de ajudar o pássaro. Ou veja o caso de uma criança de três
anos que trepou a grelha de proteção da fossa dos gorilas, no jardim
zoológico de Chicago, e caiu de uma altura de seis metros até ficar
estatelada e inconsciente lá em baixo. Foi o pânico total, como deve
calcular, sobretudo quando viram uma gorila aproximar­-se da criança.
A gorila pegou nela e foi depositá­-la à porta da fossa, onde os
tratadores a recuperaram. Não há aqui genes egoístas nem ganhos
para a bonobo, nem para a gorila nem coisa que o valha, apenas um
princípio moral de ajudar outros seres vivos em dificuldades.”
Tentando manter o ceticismo científico, Maria Flor esforçou­-se por
não parecer impressionada.
“Está bem, mas um comportamento genuinamente altruísta seria um
animal ajudar outro prejudicando­-se a si próprio ou aos seus genes”,
defendeu. “Ora isso não existe, pois que eu saiba não há Madres
Teresas de Calcutá entre a bicharada...”
“Por acaso até há”, disse o etólogo. “Quando uma abelha dá uma
ferroada em alguém, ela própria morre. Isso não a impede de picar
quem quer que ameace a colmeia. Ou seja, as abelhas dão a sua vida
pelos outros. Não é isso altruísmo?”
“Bem... não vou dizer que não.”
“Um pássaro ou um macaco ou um esquilo que lança um grito a
alertar para a aproximação de uma águia que se apresta a atacar o
grupo está a colocar­-se em perigo de vida, pois ao soar o alarme
chama as atenções do predador sobre si, mas isso não o impede de o
fazer. Não é isso também altruísmo?”
A portuguesa considerou estes exemplos, procurando manter sempre
em aberto explicações alternativas para os comportamentos que lhe
eram descritos.
“As abelhas, os pássaros, os macacos e os esquilos podem correr
riscos, mas fazem­-no porque estão também a proteger os seus genes.
Não se esqueça de que nos grupos que eles protegem há indivíduos
das suas famílias...”
“Quais genes, chère Fleur?”, exasperou­-se Noé. “Há tantos
exemplos de animais que se põem em perigo para salvar outros com
os quais não têm qualquer relação de parentesco. Veja o caso de
Washoe, a primeira chimpanzé a saber falar por língua gestual. Em
certa ocasião ela ouviu gritos de uma chimpanzé que se estava a
afogar e, apesar de os chimpanzés terem medo da água e de Washoe
mal conhecer a chimpanzé em dificuldades, pois só a tinha visto pela
primeira vez nesse mesmo dia, passou por duas vedações elétricas e foi
a correr salvá­-la. Mal a conhecia e, apesar de não saber nadar, meteu­-
se na água e socorreu a outra, pondo­-se a si própria em perigo. Onde
vê você aqui esse famoso gene egoísta?”
“A chimpanzé fez mesmo isso?”
“Fez ela, fazem os chimpanzés e fazem outros animais, chère Fleur.
Uma experiência num laboratório colocou um rato perante uma
escolha. Havia uma porta que dava para um compartimento onde
estavam guardadas bolachas de chocolate, que os ratos adoram. A
outra porta dava para outro compartimento onde se encontrava um
segundo rato, muito apertado e evidentemente aflito e ansioso por sair
dali. Qual a porta que o rato iria abrir? A dos chocolates, que poderia
comer à vontade, ou a do rato aflito? Quando a experiência foi feita, o
rato preferiu libertar o colega em dificuldades. Como se isso não
bastasse, foi tão altruísta que partilhou depois as bolachas de
chocolate com o rato que acabara de libertar!”
“De certeza que esse segundo rato não era da família?”
“Não”, foi a resposta pronta. “Não houve cá genes egoístas
nenhuns. O facto é que os ratos, como os chimpanzés, os golfinhos, os
elefantes, as baleias e tantos outros animais em situações diferentes,
ajudam pelo simples ato de ajudar, mesmo com prejuízo para si em
certas circunstâncias. Mais ainda, os animais valorizam o altruísmo
quando o veem. Há uma experiência muito curiosa a esse respeito.
Pôs­-se um cão a ver três atores, um disfarçado de pedinte e os outros
dois de transeuntes. Um dos ‘transeuntes’ ajudou o ‘pedinte’, mas o
outro ignorou­-o. A seguir retiraram o ‘pedinte’ da cena e deixaram o
cão interagir com os ‘transeuntes’. Ambos ofereceram um biscoito ao
cão. O animal aceitou a oferta do ‘generoso’, mas recusou o ‘egoísta’.
Ou seja, dá a impressão de que o cão fez um juízo moral sobre o
comportamento dos dois homens. O altruísmo, queira­-se ou não, faz
parte da natureza e encontra­-se em particular nos animais sociais e
nos seus hábitos de cooperação, não sendo pois um exclusivo da
espécie humana.”
Tudo aquilo soou a Maria Flor muito diferente de tudo o que tinha
lido sobre os animais, tão frequentemente descritos na literatura
científica e nos documentários televisivos como envolvidos numa luta
sem quartel pela sobrevivência, uma luta em que cada um cuidava de
si e a regra era matar ou ser morto. Seria mesmo possível que o
altruísmo genuíno não fosse uma imposição moral humana que
resultava da civilização, mas um comportamento inscrito nas próprias
leis da natureza? Seria verdade que a natureza não se reduzia afinal a
uma selva cruel? O que lhe revelava isso sobre a vida e o universo?
“Há uma versão do altruísmo que os animais de certeza não têm”,
alvitrou. “A proteção dos mais frágeis, sobretudo os que constituem
um fardo para o grupo. Estou a falar de indivíduos que se sabe serem
um fardo até morrerem, devido à velhice ou a doenças ou a
deficiências. A proteção de indivíduos nessas circunstâncias é, que eu
saiba, uma característica exclusiva dos seres humanos e resulta
sobretudo dos avanços civilizacionais.”
“No Centro de Primatas de Yerkes havia uma chimpanzé idosa,
chamada Peony, que sofria de artrite e tinha dificuldade em andar e
em subir às árvores”, contou o etólogo. “Sempre que era preciso
escalar alguma coisa, uma chimpanzé mais nova punha­-se atrás dela e,
com as mãos, ajudava­-a a subir.”
“A ajudante era da família?”
“Não tinha nenhuma relação de parentesco com Peony, posso
assegurar­-lhe. Noutras circunstâncias, quando Peony queria água,
outras fêmeas iam a correr até um lago, enchiam as bocas de água e
depois voltavam para Peony, despejando a água na boca dela. Ou seja,
estamos perante um exemplo no reino animal de animais mais novos
que ajudam os mais frágeis, neste caso os idosos, sem qualquer
vantagem aparente para eles.”
Maria Flor fixou o olhar no seu interlocutor.
“Presumo que me vai agora dizer que esse comportamento não é
exclusivo dos chimpanzés...”
O belga soltou uma gargalhada.
“Ah, chère Fleur! Já me conhece! De facto, assim é. Etólogos viram
uma vez um elefante ir buscar comida e metê­-la na boca de outro
elefante que tinha a tromba ferida. Há também muitas histórias dessas
envolvendo golfinhos, orcas e baleias. As baleias costumam mesmo
interpor­-se entre os barcos que as caçam e uma companheira que foi
atingida. Esse comportamento de ajuda a alguém que está fragilizado
é tão previsível que os caçadores de baleias até o usam em seu bene-­
fício. Cientes de que as baleias auxiliam as companheiras feridas, os
caçadores de baleias sabem que basta atingir uma para que as
restantes apareçam todas para a ajudar. Aproveitam então e matam­-
nas uma a uma.”
“Que horror!”
“No que diz respeito a ética, chère Fleur, acredite que nós, os seres
humanos, conseguimos ser piores do que muitos animais.”
“Não tenho dúvidas”, murmurou a portuguesa. “Mas... alguma vez
se viu os animais protegerem um deficiente, por exemplo?”
“Com certeza. Até Charles Darwin contou a história de um pelicano
cego que era mantido vivo pelos outros pelicanos, e de corvos e
galinhas com o mesmo comportamento diante de cegos da sua espécie.
Um outro colega meu revelou ter encontrado na Tailândia uma
elefante fêmea que era cega e que tinha uma amiga, com a qual não
partilhava qualquer laço familiar, que a ajudava. A amiga até emitia
sons para orientar a elefante cega. Graças à ajuda dessa amiga, a cega
conseguia levar uma vida relativamente normal.”
Estas histórias causaram uma profunda impressão em Maria Flor,
pois revelavam­-lhe uma faceta desconhecida da vida. Pensava, pois
isso sempre lhe fora dito, que a proteção dos mais fracos era um
exclusivo da civilização humana. E, no entanto, ali estavam provas
sucessivas de que se tratava de um fenómeno relativamente comum
entre outras espécies animais. O universo não era afinal um lugar
exclusivamente cruel e impiedoso, embora o pudesse ser amiúde, mas
um sítio onde a moralidade também desempenhava um papel.
Tinham chegado ao ponto mais elevado da propriedade, o
promontório rochoso de onde se podia ver o mar de um lado e do
outro a serra de Sintra com o Palácio da Pena no topo. Noé voltou­-se
para contemplar a casa e os espaços reservados aos animais, como os
currais, o galinheiro e a pocilga. Quando ia tecer mais considerações
sobre a natureza altruísta dos animais, todavia, apercebeu­-se de um
inopinado movimento lá ao fundo.
“O que é aquilo?”
“O quê?”
O etólogo apontou para o setor da mansão e dos espaços dos
animais, de onde tinham vindo.
“Ali!”, disse. “Está a passar­-se alguma coisa...”
Carioca remexeu­-se no ombro dele, inquieto.
“Wanna go back”, anunciou o papagaio. “Quero ir embora.”
Maria Flor fixou os olhos no sítio que Noé indicava e constatou que
de facto havia ali muito movimento. Viam­-se dois pontos longínquos
com luzes a piscar, dir­-se­-iam ambulâncias ou car­ros da polícia, e os
animais pareciam estar a ser movimentados para uma fila de
estruturas cujos contornos era difícil determinar àquela distância.
“Parecem...” Hesitou. “Serão camiões?”
Ao ouvir esta última palavra, o belga deitou a mão à boca, alarmado
e chocado.
“Mon Dieu!”, exclamou num grito. “Ele... ele atreveu­-se!”
Ato contínuo, Noé desatou a correr pelo promontório abaixo, com o
papagaio aos saltos no ombro a gritar “calma, calma!”. Estupefacta
com a súbita transfiguração do chefe, Maria Flor ficou sem saber o
que fazer.
“Noé!”, chamou. “Onde vai?”
O etólogo galopava já em direção à casa, correndo com agilidade e
contornando ou saltando sobre os obstáculos que lhe iam aparecendo
pelo caminho.
“Estão a roubar­-me os animais!”
Só então a nova colaboradora do Jardim dos Animais com Alma se
apercebeu de que algo profundamente errado estava nesse momento a
acontecer na propriedade.
.

XV

Se perceber que Noé Vandenbosch pertencera a uma ordem esotérica


secreta não fora fácil, parecia a Maria Flor o cúmulo surpreender nas
masmorras da mansão um outro membro dessa ordem e, ainda por
cima, ser por ele atacada com uma adaga. Em que mundo infernal se
viera ela meter?
“A morte do Noé está relacionada com o mistério dos rosacruz? O
que te leva a dizer isso?”
“Não ouviste o que o assaltante gritou quando nos atacou?”
A mulher fez um esforço de memória.
“Uma coisa qualquer em latim...”
Tomás aquiesceu.
“Procul hinc, procul ite profani!”, recitou, recordando as exatas
palavras do agressor. “‘Fora daqui, fora daqui profanos!’ Ou seja, ao
entrarmos no escritório estávamos a profanar o santuário. E que
santuário era esse? O santuário dos rosacruz, claro. Que o intruso
tenha usado esta expressão em latim não é, de resto, nenhum acaso.
Ela encontra­-se reproduzida nas Núpcias Quymicas. Quando
Christian Rosenkreuz chegou ao castelo onde iriam decorrer as bodas,
passou por um portão. Por cima havia uma inscrição que dizia...
procul hinc, procul ite profani!”
“O assaltante estava a citar uma frase mística?”
Fez­-se um silêncio momentâneo para ela absorver este dado. A
atenção de ambos era no entanto atraída para o tríptico de
Hieronymus Bosch como se estivessem diante de um poderoso
magneto. A cena apresentada em O Jardim das Delícias Terrestres,
cuja reprodução se encontrava pregada sobre a lareira do santuário
secreto do casarão, revelava­-se realmente bizarra, de um surreal
inesperado para a época em que a pintura fora feita; dir­-se­-ia um
Salvador Dalí avant la lettre.
“Suspeito que toda esta estranha história está ligada a este quadro”,
murmurou Tomás, mergulhado nos seus pensamentos. “É uma das
obras mais misteriosas da história da arte.”
“Misteriosa, em que sentido?”
“Suspeita­-se que Bosch também estava associado aos rosacruz, até
porque viveu no tempo de Christian Rosenkreuz, e as ideias dos
rosacruz influenciaram o seu trabalho artístico. Tem­-se como seguro
que ele pertenceu a uma ordem iniciática, a Confraria da Nossa
Senhora de Bois­-de­-Duc, mas o facto de a sua casa se chamar
Rosenkranz e de ter pintado a Virgem Maria numa torre rodeada de
rosas, o símbolo dos rosacruz, não é decerto inocente.”
A mulher apontou para o tríptico.
“Onde se encontram aqui reproduzidos os símbolos dos rosacruz?”
“Mais do que de símbolos, O Jardim das Delícias Terrestres está
impregnado das ideias dos rosacruz”, foi a resposta. “Ao longo do
tempo, os académicos e intelectuais que estudaram este quadro
concluíram que ele integra uma espécie de código secreto só acessível
aos iniciados. André Breton, por exemplo, classificou­-o como arte
mágica, dizendo que Bosch apresentava uma perspetiva gnóstica que
dificultava o acesso ao verdadeiro conteúdo do quadro. Outros
críticos de arte sublinharam a ­natureza profundamente esotérica desta
pintura.”
O casal ficou um longo momento a contemplar a imagem
reproduzida sobre a lareira do santuário privado de Noé, como se
tentasse desvendar os segredos que durante tantos séculos haviam
intrigado historiadores, críticos de arte, peritos em simbologia e
místicos. A parte esquerda do tríptico era constituída por uma cena de
jardim onde se viam muitos animais, incluindo um elefante e uma
girafa, mas sobretudo aves e até seres míticos como os unicórnios. Por
baixo estava uma figura, presumivelmente a de Jesus, entre um
homem e uma mulher nus; evidentemente Adão e Eva.
O painel do meio, o mais vasto, mostrava o jardim apinhado de
homens e animais, uns reais e outros imaginários, por entre plantas,
flores e lagos, uma cena confusa e caótica onde se mul­tiplicavam
objetos extravagantes e formas bizarras, e até situações de moral
duvidosa, como um casal dentro de uma bolha com o homem a
pousar a mão sobre o ventre da mulher e esta a segurar a coxa direita
dele, as bocas de ambos perigosamente próximas. Por toda a parte se
viam cenas igualmente insólitas.
Por fim, a parte direita do tríptico apresentava uma cena noturna
cheia de gente e animais estranhos, com instrumentos musicais
transformados em objetos de tortura e uma faca a emergir de orelhas
humanas gigantes. Ao fundo, quase na linha do horizonte, ardia uma
cidade.
Maria Flor sacudiu a cabeça.
“Que diabo de charada!”
“Imagina o que as pessoas no século xv, habituadas à tradicional
arte sacra feita de Nossas Senhoras e de crucificações e outras cenas da
vida de Cristo ou do Antigo Testamento, ficaram a pensar quando se
depararam com uma coisa destas”, sugeriu o marido. “Um dos
primeiros registos escritos a comentar esta obra é de um italiano, que
no seu diário descreveu estes painéis com representações bizarras nas
quais os mares, os céus, as florestas, as paisagens e muitas outras
coisas estavam reproduzidas, como criaturas que saíam a rastejar de
uma estrutura, outras que emergiam de lagos, homens brancos e
negros apareciam em diversas situações e envolvidos em diferentes
ações, pássaros e animais de todos os tipos pintados de forma muito
natural, umas coisas agradáveis e outras fantásticas. Apesar do esforço
em reproduzir o que vira, esse cronista italiano reconheceu que
ninguém seria capaz de descrever o quadro a quem não o visse com os
seus próprios olhos, tão complexo, estranho e diferente este se lhe
afigurava.”
“Em suma, as pessoas daquela época não sabiam o que pensar.”
“Nunca tinha sido vista uma obra de arte assim”, sublinhou Tomás.
“Um outro contemporâneo, colocado perante o tríptico, descreveu
Bosch como um fazedor de demónios. Quem o podia censurar? O
Jardim das Delícias Terrestres começava por apresentar uma cena
cristã, o paraíso de Adão e Eva, mas depois toda a sua mensagem
escapava à mensagem da Bíblia e revelava todo um mundo novo.”
“Exatamente como a mensagem dos rosacruz...”
“O Jardim das Delícias Terrestres é um labirinto que contém uma
mensagem alquimista sobre a Criação e todos os seus seres. Trata­-se
de uma obra cheia de fechaduras secretas que só se podem destrancar
com chaves herméticas, pistas esotéricas apenas acessíveis aos
iniciados, aqueles que tiveram acesso ao Liber M, o Livro das
Maravilhas da Natureza. O verdadeiro conteúdo deste tríptico
permanece oculto e ainda hoje se tenta descodificá­-lo para aceder à
gnose esotérica nela encerrado. Estamos perante uma pintura mágica
que mistura seres humanos e animais, mostrando o lado animal dos
humanos e o lado humano dos animais, e desse modo a mensagem
deste extraordinário quadro é a de que toda a vida terrestre, com toda
a sua riqueza e variedade, não passa de facetas díspares de uma
mesma unidade. Somos todos diferentes mas todos partilhamos a
mesma essência vital. É isso afinal o que a vida é. Um jardim onde a
Natureza exprime as suas delícias, um mundo povoado de animais
com alma.”
À luz da sua experiência no projeto de Noé Vandenbosch, tudo
aquilo soava familiar a Maria Flor.
“Era assim mesmo que Noé encarava os seres vivos”, constatou ela.
“Para ele não havia separação entre os homens e os animais, apenas
um continuum. A divisão entre as espécies não passa de uma ilusão.
Nós somos animais e os animais são humanos. Se nós dizemos maçã,
eles respondem banerry, se nós dizemos bom dia, eles devolvem­-nos
bâd âp, se nós dizemos cuidado com a coruja gorda, eles chilreiam
chicadi­-di­-di. Palavras distintas para coisas semelhantes. Se as formas
são diferentes, a essência é a mesma.”
“É interessante este projeto científico de comunicar com os animais”,
observou Tomás. “Wittgenstein disse certa vez que se pudéssemos
conversar com um leão não seríamos capazes de entender o que ele
nos diria.”
A mulher abanou a cabeça.
“Wittgenstein estava errado. O que descobri nesta minha experiência
com o Noé é que quando ensinamos as nossas línguas aos animais ou
descodificamos as suas formas de comunicação e começamos a
entendê­-los, constatamos que têm preo­cupações semelhantes às
nossas. Os animais falam sobre comida, querem saber da família e dos
amigos, pedem e dão conforto emocional, gostam de brincar,
interessam­-se sobre o estado do tempo, preocupam­-se com tudo o que
lhes mete medo...”
O olhar do historiador regressou ao tríptico, especificamente ao
pormenor da representação de um estranho animal, meio pato, meio
peixe, que boiava num lago ao mesmo tempo que lia um livro, um
corpo de besta num cérebro inteligente.
“Poder comunicar com os animais é fascinante”, considerou. “Mas
às vezes confundimos os meios com os fins. Interrogo­-me se isso não
se terá de certa forma passado com Noé. Por muito fascinante que
possa parecer, a verdade é que a comunicação é um simples meio.
Contudo, ele pelos vistos transformou­-a num fim em si mesma.”
“De modo nenhum.”
“Claro que sim, querida. Repara que o projeto científico levado a
cabo aqui no Jardim dos Animais com Alma se destinava a descobrir
maneiras de comunicar com os animais. Ora comu­nicar não passa de
um instrumento.”
“Mas, Tomás, comunicar não era de facto o verdadeiro projeto do
Noé”, argumentou Maria Flor. “É certo que ele sempre foi assim
apresentado, por razões de marketing mas também para que não
atraísse atenções indesejadas. Todavia, Noé sempre encarou a
comunicação como ela é. Simplesmente um instrumento.”
“Então qual o verdadeiro objetivo de tudo isto? O que esti­veram
vocês realmente a tentar descobrir?”
“Que os animais podem ser mais inteligentes do que o Homem.”
A hipótese deixou Tomás com uma expressão de absoluta
incredulidade no rosto, encarando a mulher como se o que ela tinha
acabado de dizer não fizesse o menor sentido.
“Desculpa, isso não tem pés nem cabeça!”
“Ora essa. Porque não?”
A resposta era tão óbvia que o marido nem sabia por onde começar.
“Porque... porque nós é que dominamos o planeta”, exclamou,
admirado por ter de explicar o evidente. “Apesar de sermos frágeis e
fisicamente pouco resi­lientes, instalámo­-nos em todos os continentes,
mergulhámos nas profundezas dos oceanos, dividimos o átomo,
chegámos à Lua, todos os animais têm medo de nós, não paramos de
crescer e de nos expandir, os avanços científicos permitem­-nos até
mani­pular os nossos genes e desenvolver a inteligência artificial... sei
lá, há tanta coisa que mostra o nosso domínio. Basta olhar à volta.
Menos de dois por cento de diferença de ADN separam os seres
humanos da espécie que nos é geneticamente mais próxima, os
chimpanzés, e no entanto somamos vários milhares de milhões de
indivíduos e eles estão à beira da extinção. Porque pensas que isso está
a acontecer?” Tocou com o indicador nas têmporas. “Porque a espécie
humana é a mais inteligente do planeta.”
“Isso é verdade, mas não é toda a verdade”, disse ela. “Andamos há
muito tempo à procura de vida inteligente no espaço sem perceber que
a temos em abundância cá na Terra. Basta olhar para os animais que
nos rodeiam. Vezes sucessivas a inteligência apareceu no nosso planeta
e nós, na nossa arrogância e na nossa cegueira, nem reparámos.”
“Que eu saiba as formigas não inventaram automóveis nem os
gafanhotos desenvolveram vacinas...”
“Há muitos tipos de inteligência, como decerto tens cons­ciência”,
retorquiu a mulher. “Eu posso saber quanto é quatro vezes cinco e
arrasar os pombos no cálculo aritmético, por exemplo, mas qualquer
pombo me dá dez a zero em capacidade de orientação. Para eu ir à
Rua do Salitre em Lisboa é um castigo, dou voltas e voltas e baralho­-
me toda, perco­-me e viro para a rua errada e sei lá mais o quê. Mas
um pombo... ah, um pombo sai daqui e vai direitinho à Rue des
Canettes em Paris sem cometer um único erro nem dar sequer uma
espreitadela ao Google Maps.” Também ela bateu com o indicador nas
têmporas. “Têm tudo aqui na cabeça. Os pombos são infinitamente
mais inteli­gentes do que nós na orientação espacial.”
“Estás a falar de coisas diferentes.”
“Estou a falar de diferentes tipos de inteligência, Tomás. Temos a
tendência de medir a inteligência dos animais segundo os nossos
próprios padrões, mas isso é que é o verdadeiro antro­pomorfismo pois
os nossos padrões não são universais, antes especificamente adequados
ao critério de inteligência que nos é mais favorável. Da mesma
maneira que comunicamos muito melhor do que uma formiga usando
informação verbal, a formiga comunica muito melhor do que nós
usando informação química. A própria Jane Goodall avisou que só se
pode medir a inteligência de um animal analisando a sua capacidade
de resolver problemas no seu habitat natural.”
“É verdade que há diversos tipos de inteligência e que somos
culpados de antropomorfismo quando fazemos medições da
capacidade cognitiva dos animais usando os critérios em que somos
mais fortes”, concedeu Tomás. “Mas o facto permanece que são os
seres humanos quem domina a vida na Terra e quem está a moldar o
próprio meio ambiente do planeta. Isso significa que as nossas
capacidades cognitivas se adaptam melhor aos desafios gerais neste
meio ambiente. Ou seja, a nossa inteligência é melhor neste planeta do
que a inteligência dos restantes animais.”
Era difícil contrariar este argumento.
“Nada disso impede que os animais sejam mais competentes do que
nós nos seus tipos específicos de inteligência”, insistiu Maria Flor.
“Eles apresentam mesmo alguns resultados muito surpreendentes até
quando medidos segundo os padrões do nosso tipo de inteligência.”
O marido fez um gesto cético com a mão.
“Que exagero. Os animais são capazes de fazer cálculos aritméticos,
por exemplo?”
“São.”
Ele encolheu os ombros, desconsiderando em absoluto aquela
resposta.
“Oh, vamos lá a ser sérios...”
“Um cientista japonês mostrou em 1985 que um chimpanzé
chamado Ai conhecia os algarismos de um a seis”, disse a mulher.
“Convém esclarecer que Ai tinha apenas cinco anos de idade.
Acontece que as crianças humanas em geral só aprendem os números
aos seis ou sete anos, o que significa que Ai dominava os números
antes da generalidade dos seres humanos com a mesma idade. Outros
trabalhos feitos com uma chimpanzé chamada Sheba, de seis anos,
mostraram que ela era até capaz de fazer contas, designadamente
somas, coisa que as crianças dessa idade têm dificuldade em fazer.
Sheba aprendeu algarismos árabes e usava­-os para descrever o número
de objetos que lhe eram apresentados. Tornou­-se também o primeiro
animal não humano a mostrar que compreendia o conceito de
cardinalidade.”
“Pois, não há dúvida de que os chimpanzés são diferentes...”
Esta observação era clássica, mas logo que a proferiu, e vendo a
expressão que se acendeu no rosto de Maria Flor, o historiador
percebeu que a seguir iria ouvir uma resposta também clássica.
“Não são só os chimpanzés”, devolveu ela com um esgar jocoso.
“Também os ratos têm noção dos números. Testes com um rato
mostraram que ele escolhia um túnel em busca de uma recompensa em
função da posição ordinal do túnel.”
O historiador apontou para Carioca, que permanecia no poleiro.
“E as aves? Se os etólogos dizem que elas têm uma inteli­gência
comparável à dos primatas, também deveriam ser capazes de
compreender os números, não?”
“E compreendem. Os primeiros a descobrir as capacidades
aritméticas dos papagaios­-cinzentos africanos foram cientistas alemães
nos anos 1950, embora os testes mais pormenorizados tenham sido
efetuados décadas mais tarde com dois desses papagaios, Alex e
Griffin, durante o estudo das suas capacidades cogni­tivas. A instrutora
tentava ensinar os números a Griffin quando foi surpreendida com a
descoberta de que Alex sabia contar. Ao clicar duas vezes num botão e
perguntar a Griffin quantas vezes tinha tocado, e perante o silêncio
deste, a instrutora ouviu inesperadamente Alex responder duas. A
seguir clicou quatro vezes e Alex disse quatro. Depois clicou seis e
Alex respondeu seis. Descobriu assim que o papagaio sabia contar e
que, para cúmulo, o fazia em inglês.”
Tomás voltou a esboçar um sinal na direção de Carioca.
“Ele também consegue contar?”
Em resposta, Maria Flor foi buscar um tabuleiro e juntou no interior
cubos plásticos de várias cores com algarismos dese­nhados nas faces.
Quatro deles eram verdes. A seguir aproximou­-se do papagaio com o
tabuleiro e exibiu­-lhe o conteúdo.
“Carioca, what number green?”, perguntou­-lhe. “Quantos destes
objetos são verdes?”
“Quatro.”
“Boa, Carioca!”
“Wanna nut”, disse. “Quero uma noz.”
Depois de o recompensar com a prometida noz, não fosse ele mais
tarde recusar­-se a colaborar em qualquer outro pedido, Maria Flor
voltou­-se para o marido com uma expressão triunfante. Mas as
revelações sobre as capacidades matemáticas dos papagaios não
tinham ainda terminado. Ciente de que iria voltar a surpreender
Tomás, Maria Flor rearranjou o tabuleiro e virou­-o de novo para o
pássaro.
“Carioca, what colour five?”, perguntou. “De que cor são cinco
destes objetos?”
Tomás Noronha olhou para o tabuleiro e estranhou a pergunta, pois
encontravam­-se aí três cubos verdes, dois amarelos, um azul e três
encarnados. Mas não havia cinco cubos de uma única cor.
O papagaio inspecionou os cubos.
“None”, acabou por responder. “Nenhum.”
Maria Flor encarou o marido com uma nova expressão de vitória.
“Nenhum significa zero”, fez notar. “Tens noção do que isto quer
dizer, não tens?”
Sendo historiador, Tomás não podia deixar de estar consciente do
significado do que acabara de observar. Sabia que o zero era das
últimas invenções da aritmética humana. Tinha aparecido pela
primeira vez na Mesopotâmia há cinco mil anos, mas só entrara na
Europa ocidental no século xii.
“Um papagaio tem uma noção rudimentar de um conceito
matemático que só é conhecido na Europa a partir da Idade Média?”,
questionou. “Isso é extraordinário!”
A mulher sorriu.
“É para que vejas, senhor sabe­-tudo”, disse ela. “A demonstração de
que os papagaios têm uma noção elementar do zero foi pela primeira
vez feita com o papagaio Alex, mas realizámos a experiência com o
Carioca e obtivemos o mesmo resultado. Outros papagaios,
designadamente os da Nova Zelândia, mostraram até capacidades de
cálculo probabilístico.”
Tomás esfregou o queixo.
“Hmm... não há dúvida de que o cálculo de probabilidades é uma
operação matemática.”
“Os animais fazem coisas que nunca imaginaríamos ser possível um
animal fazer. Por exemplo, sabes como os pombos se orientam? Para
além de outros mecanismos, usam sobretudo o sol como compasso.
Para esse efeito, conhecem a sua rota no arco celeste nas diferentes
horas do dia e sabem que o sol se movimenta cerca de quinze graus
por hora. Até as orcas estudam o movimento celeste da nossa estrela.”
“As orcas?”, estranhou. “As baleias­-assassinas que mataram o
Noé?”
“Tratadores de um parque marinho no Canadá descobriram que
todas as manhãs, uma hora antes do amanhecer, as orcas iam molhar
um lado específico do tanque onde se encontravam confinadas. Os
tratadores repararam depois que, ao nascer do sol, o primeiro ponto
que a luz solar tocava era justamente esse sítio que as orcas haviam
molhado previamente. Notaram ainda que, à medida que os dias
passavam e que mudava o ponto da piscina onde a primeira luz
tocava, as orcas iam alterando o sítio que marcavam previamente com
água de modo a acompanhar a evolução do posicionamento dos
primeiros raios solares de cada dia. Quer isto dizer que elas seguem a
evolução do sol no firmamento e que conhecem ao milímetro os
efeitos da rotação da Terra em torno do sol.”
“Porque fazem as orcas isso?”
“Não se sabe, mas fazem­-no. Já agora, convém lembrar que
igualmente as abelhas usam o sol como compasso.”
“E como procedem os animais quando chega a noite?”
A resposta, sabia Maria Flor, iria deixar o marido estupefacto. Não
era caso para menos, considerando quão insólita ela era. Fez uma
curta pausa e apontou para cima.
“Observam as constelações.”
“O quê?!”
Como era previsível, esta revelação deixou Tomás atónito. Para
alguém que durante toda a vida se interessara pela observação do céu
noturno, tratava­-se mesmo da novidade mais surpreendente de todas.
“É o caso dos pombos”, confirmou ela. “Fixam em particular a
Estrela Polar e a rotação das constelações à volta dela, e a partir daí
determinam a direção que devem tomar no seu voo. Compreendes o
que isto significa? Os pombos usam a rotação das estrelas no céu
noturno para se orientarem! Imagina! E não penses que são apenas os
pombos. Suspeita­-se de que outras aves também o façam para se
orientarem nos seus movimentos migratórios noturnos.”
Enquanto historiador, Tomás sempre se debruçara sobre a forma
como desde a pré­-história os seres humanos mais primitivos
estudavam o céu noturno e as suas estrelas. Descobrir que esse
comportamento, que ele achava tão exclusivamente humano, era
partilhado por alguns animais parecia­-lhe espantoso.
“As aves observam as estrelas?”, questionou­-se, quase como se
falasse para si próprio. “Que extraordinário!” Encarou a mulher.
“Como memorizam elas a posição das constelações?”
“Pensas que só os seres humanos têm boa memória?”, questionou
Maria Flor. “Existe um tipo de corvo, chamado quebra­-nozes de
Clark, que durante o verão é capaz de juntar mais de trinta mil
sementes de pinheiro e de as esconder em cinco mil sítios diferentes.
Cinco mil, vê lá tu! Nove meses mais tarde, apesar das mudanças na
paisagem provocadas pelos nevões do inverno e apesar de as sementes
de pinheiro serem minúsculas, estes corvos são capazes de loca­lizar
cada um desses cinco mil esconderijos com uma precisão de
milímetros.” Apontou para o marido. “Diz­-me, achas­-te capaz de
memorizar cinco mil esconderijos na natureza e encontrá­-los nove
meses depois?”
Tomás riu­-se.
“Eu? Às vezes nem me consigo lembrar de onde guardei a por­caria
da carteira...”
“Outros pássaros, como os gaios da Califórnia, não só se lembram
de onde esconderam a comida como sabem que comida esconderam e
quando foi ela escondida. Escondem sementes e nozes, mas também
fruta, insetos e minhocas, alimentos que se degradam a ritmos
diferentes. Pois estas aves guardam toda esta comida e vão primeiro
buscar a que se estraga mais depressa, deixando as nozes e as sementes
para mais tarde. É como se mantivessem um inventário exato de tudo
o que guardaram, com registo de bens, de datas e de locais. Dir­-se­-iam
contabilistas.”
“Bem... em proezas de memória há sempre o caso dos elefantes, não
é? Parece que se lembram de tudo, mesmo que passem décadas e
décadas, em particular de familiares e amigos que já morreram.
Recordam­-se até de seres humanos que conheceram muito tempo
antes.”
“Acontece com muitos mamíferos”, sublinhou ela. “Quando se
reproduzem, a golfinhos e orcas, gravações de familiares ou amigos
que não veem há muitos anos, eles também reagem como se os
reconhecessem. Com os primatas é a mesma coisa, e parece que as
ovelhas têm capacidades semelhantes às dos primatas. E, já agora,
igualmente as aves. Há aliás uma experiência muito interessante com
corvos. Um grupo de cientistas americanos meteu máscaras na cara e
pôs­-se a capturar corvos de uma forma agressiva. Pois a partir daí, os
outros corvos passaram a atacar todas as pessoas que viam na rua
com aquelas máscaras, embora não incomodassem os restantes
transeuntes. Isto é, os corvos distinguiam perfeitamente rostos e
sabiam muito bem quem era o ‘mau’ e o ‘bom’. Anos mais tarde, os
cientistas voltaram a meter as mesmas máscaras e os corvos voltaram
a atacá­-los. Eles lembravam­-se.”
“Talvez os corvos destrinçassem os ‘maus’ no meio da multidão por
os ‘maus’ usarem máscaras, o que os distinguia das restantes pessoas.”
“Essa possibilidade foi prevista, e por isso a experiência original
envolveu também cientistas que usavam máscaras neutrais, isto é,
máscaras que não incomodaram os pássaros. Os corvos ignoraram os
cientistas que usavam essas máscaras. Curiosamente, uma das
máscaras neutrais era a de um político. Parece que a máscara do
político atraiu mais reações negativas das pessoas que cir­culavam na
rua do que dos corvos.”
Riram­-se os dois; nada unia mais as pessoas do que dizer mal dos
governantes.
“Há pouco disseste que os animais podiam ser mais inteligentes do
que os seres humanos”, lembrou Tomás. “Era a proezas como a dos
quebra­-nozes de Clark que te referias?”
“Como bem sabes a inteligência é um conceito algo difuso que
usamos para descrever capacidades cognitivas variadas, algumas
muito diferentes das outras”, confirmou ela. “Quando dizemos que os
seres humanos são mais inteligentes do que os outros animais convém
nunca esquecer que estamos a falar apenas de certas capacidades.
Porém, sabemos que a espécie humana não é superior aos restantes
animais em todas as capacidades cognitivas. Em algumas valências,
certos animais são superiores. Já te falei nos pombos e em muitas aves
migratórias que se orientam bem melhor do que nós, e nos quebra­-
nozes de Clark que são capazes de memorizar ao milímetro cerca de
cinco mil esconde­rijos. Mas há outros casos, como os chimpanzés.”
“Não me vais dizer que os chimpanzés são mais espertos do que nós,
espero bem...”
“Em certas coisas são”, disse Maria Flor com convicção. “Põe um
chimpanzé e um ser humano a competir em contas de aritmé­tica e nós
ganhamos. Mas vai para o meio da selva do Congo e veremos quem se
safa melhor, se tu ou a Guida.”
“Estamos a falar de capacidades cognitivas.”
“Para sobreviver na selva são precisas certas capacidades cogni­tivas,
como não ignoras. Aí os chimpanzés são génios e nós uns burros. Mas
mesmo nos testes cognitivos tradicionais, levados a cabo em
laboratórios e em condições controladas, os chim­panzés podem
ganhar­-nos. Na universidade de Kyoto, por exemplo, colocou­-se um
chimpanzé chamado Ayumu diante de um compu­tador com ecrã
touchscreen. Depois de treinar o Ayumu a trabalhar com esse ecrã,
fizeram­-se testes de memória. Um deles envolvia o aparecimento no
ecrã de séries de números de um a nove em ordem aleatória e que ele
tinha de reproduzir nessa ordem. No momento em que Ayumu
começava a teclar, os algarismos desapareciam do ecrã, sendo
substituídos por quadrados vazios.”
“Portanto, o chimpanzé tinha de memorizar os algarismos e
reproduzi­-los na ordem em que tinham aparecido”, disse Tomás para
se certificar de que entendera. “É um grande desafio para um animal
não humano, é verdade, mas, para ser sincero, não me parece nada de
especial para um ser humano.”
“O problema começou quando o tempo de exposição dos algarismos
no ecrã começou a diminuir. Enquanto nessas novas condições os seres
humanos passaram a falhar no teste, pois não conseguiam reter a
informação, Ayumu manteve a mesmíssima taxa de sucesso. Os
cientistas japoneses chegaram a reduzir o tempo de exposição a uns
meros duzentos milissegundos, o equivalente a um quinto de segundo.
Pois enquanto os seres humanos falhavam redondamente, incapazes
de reconstituir a sequência, o chimpanzé reproduzia os algarismos de
um a nove na sequência correta em oitenta por cento das vezes.
Oitenta por cento! Nenhum humano conseguia um feito desses. Os
cientistas chegaram a distrair o Ayumu, fazendo barulho no
laboratório a meio do teste. Ele desviava os olhos do ecrã para ver o
que acontecera e, por incrível que pareça, dez segundos depois
regressava ao exercício e retomava­-o onde o interrompera,
completando corretamente a sequência. Isto quer dizer que o
chimpanzé revelou muito maior capacidade cogni­tiva do que os seres
humanos neste teste específico.”
O historiador permaneceu momentaneamente calado. Os
chimpanzés batiam os seres humanos num teste cognitivo? Como era
uma coisa dessas possível?
“Bem... era só um simples teste de memória e...”
“Tomás, não vale a pena tentar desvalorizar”, cortou ela. “Passamos
a vida a vangloriar­-nos da superioridade cognitiva dos seres humanos
sobre os restantes animais, e desatamos a desdenhar dos testes quando
somos batidos por eles? Que um chimpanzé seja capaz de nos derrotar
num teste de memorização da ordem sequencial de nove algarismos
não me parece coisa menor, pois este é um teste cognitivo, como não é
coisa menor que os corvos sejam capazes de se lembrar de cinco mil
esconderijos diferentes e nós não. Em certas valências cognitivas eles
são mais inteligentes do que nós.”
“Está bem, admito que isso possa pôr em questão a nossa
superioridade intelectual em todos os domínios”, concedeu ele. “Mas
não exageremos. Que eu saiba, dois exemplos não fazem uma regra.”
A resposta quase a enfureceu.
“Não são apenas dois exemplos, Tomás! Há mais!”
“Oh, vá lá...”
“Não acreditas? Conheces a história dos chimponautas?”
Sempre orgulhoso das suas credenciais de historiador, Tomás não
perdeu a oportunidade de exibir os seus conhecimentos.
“Os chimpanzés usados no início do projeto espacial americano?”,
questionou. “Se bem me lembro, a Força Aérea americana treinou uns
sessenta e tal chimpanzés num painel de voo simulado e depois lançou
um deles, creio que se chamava Ham, numa cápsula Mercury. A
cápsula saiu da atmosfera e chegou ao espaço. Quando voltou, o Ham
estava vivo. Provou­-se assim que um primata podia ir ao espaço e
voltar, o que abriu o caminho às missões tripuladas por seres
humanos. Só depois da missão do Ham é que os russos lançaram Yuri
Gagarine para o espaço, e semanas depois a NASA fez o mesmo com
Alan Shepard.”
“Sabes como foram esses chimponautas treinados?”
Tomás hesitou; sabia muito sobre muita coisa que acontecera na
história e fazia questão de o mostrar sempre que necessário, mas não
podia saber tudo.
“Bem... uh...”
O olhar de Maria Flor cintilou de satisfação; finalmente podia bater
o marido num conhecimento histórico.
“Os chimponautas foram treinados por estímulos condi­cionados, o
sistema behaviorista de ensinar através de prémios e punições”,
esclareceu ela. “Se o chimpanzé fazia bem, recebia uma banana. Se
fazia mal, apanhava um choque elétrico nos pés.”
“Pois, isso cheira a técnica behaviorista.”
“Num dos exercícios, um dos chimponautas derrotou um
congressista ao executar sete mil movimentos com apenas vinte erros.”
“Sete mil?”, admirou­-se Tomás. “Ena! Esse deve ter comido muita
banana... ou então foi o político que não levou os choques que
merecia.”
“Para testar o foguetão Atlas, o mesmo que levou Neil Armstrong à
Lua, foi lançado para o espaço um segundo chimponauta chamado
Enos”, retomou Maria Flor. “Na segunda órbita dessa missão, as
coisas correram mal. Um jato de gás da cápsula disparou, gastando
combustível e atirando a nave para uma navegação tormentosa. Para
agravar as coisas, o sistema de prémios e punições também avariou e
começou a dar ao Enos choques por respostas corretas. Ou seja, o
genial sistema de estímulo­-resposta concebido pelos behavioristas
desatou a punir o desgraçado por ações corretas.”
“Não conhecia essa história”, reconheceu Tomás. “Isso deve ter
acabado mal.”
“Na NASA foi um pânico, como deves calcular, pois os behavioristas
presumiram que a partir desse momento o chimponauta começaria a
dar respostas incorretas para parar com os choques e poder comer as
bananas. A nave estava perdida. Só que o Enos, em vez de fazer isso,
sobrepôs­-se ao sistema avariado da NASA e começou a executar as
manobras de voo que sabia serem corretas, apesar de levar um choque
por cada decisão acertada que tomava. Conseguiu assim salvar a
missão, usando a sua inteligência de primata para derrotar a
superinteligência dos computadores criados pelos seres humanos.”
O marido olhou­-a com espanto.
“Estás a brincar!”
“O mais extraordinário é que, após a missão, os cientistas da NASA
foram estudar o que correu mal no cockpit e nos testes que
reproduziram o voo tiveram imensa dificuldade em igualar a
performance do chimpanzé. Isto apesar de não estarem a levar
choques nem serem premiados com bananas!”
Tomás soltou uma gargalhada.
“Não há­-de ser impunemente que partilhamos com os chimpanzés
mais de noventa e oito por cento do ADN, hem?”
Um assobio distante interrompeu nesse momento a conversa.
Ficaram momentaneamente paralisados, tentando compreender o som
e a sua direção. Tratava­-se, depressa perceberam, de uma sirene. O
som vinha em crescendo.
Alarmados, correram ambos para a janela e espreitaram para o
exterior. Lá ao fundo, a atravessar o portão do Jardim dos Animais
com Alma em grande velocidade, e no meio do espalhafato de uma
nuvem de poeira, viram dois automóveis, um cinzento anónimo e
outro branco com traços azuis na traseira e luzes igualmente azuis a
piscarem no tejadilho.
A polícia encontrara­-os.
.

XVI

No momento em que Noé Vandenbosch estava prestes a alcançar os


currais, Carioca no ombro aos solavancos a protestar durante toda a
correria, os camiões tinham já partido. A coluna cruzava o portão e
saía do Jardim dos Animais com Alma, largando atrás dela uma
enorme nuvem de poeira. Dois carros brancos com uma lista verde
transversal, a sigla GNR estampada nas portas em letras garrafais,
seguiam no seu encalço com as luzes de emer­gência desligadas. A
missão que ali os levara estava concluída.
O etólogo terminou ofegante a sua correria e teve de se apoiar a uma
cerca para recuperar a respiração. Tinha chegado tarde demais.
“Pa... parem!”, tentou gritar, mas saiu­-lhe apenas um miado pois as
forças faltavam­-lhe. Era de qualquer modo inútil, uma vez que a
coluna desaparecia para além do portão. “Ah, merde!”, praguejou em
desespero. “Merde, merde, merde!”
Com Noé ofegante a recuperar forças, o silêncio voltou à
propriedade.
“Wanna go back”, pediu Carioca, claramente nervoso. “Quero
voltar para casa.”
O papagaio calou­-se quando se escutaram passos em aproximação;
era Maria Flor que também chegava. Uma segunda pessoa apareceu a
seguir.
“Allora, Noé, cosa vade a fare adesso?”
O belga ergueu a cabeça para encarar o homem que acabara de lhe
perguntar em italiano o que iria fazer a seguir, e viu um indivíduo de
fato de linho e gravata amarelo­-torrado, cabelos grisalhos nas
têmporas e um ar distinto.
“Gianpaolo, os meus animais?”
“Gianpaolo, não. Signor Ambrosini, para ti.”
“Os meus animais?”, rosnou Noé, ignorando a chamada de atenção.
“Para onde os levaste?”
O italiano retirou um envelope do bolso interior do casaco de linho
e entregou­-lho.
“São os documentos legais”, informou­-o. “Tens aí tudo o que
precisas de saber.” Encolheu os ombros. “Me dispiace, Noé, mas foste
longe demais e não tive alternativa.”
Com uma fúria que o sufocava, o dono do Jardim dos Animais com
Alma amarfanhou o envelope e quase o atirou contra o homem diante
dele, mas conteve­-se; os documentos que o sobrescrito continha eram
demasiado importantes. Em vez os destruir, pegou no seu interlocutor
pelos colarinhos e puxou­-o para si, abanando­-o de um lado para o
outro.
“Devolve­-me os animais, sua besta!”, rugiu, ameaçador. “Ouviste?
Quero os meus animais de volta!”
“Deixa­-me, Noé! Deixa­-me ou... ou vai ser pior.”
O belga soltou­-o e Ambrosini compôs os colarinhos e ajeitou a
gravata, centrando o nó.
“Sabes bem o que tens de fazer”, disse. “Se fores esperto, fá­-lo­-ás.
Caso contrário...”
“Os animais?”, questionou Noé, verdadeiramente exasperado.
“Onde estão eles? Quero­-os de volta, ouviste? Chama os camiões e
manda­-os regressar! Ouviste? Manda­-os de volta! Eu quero os meus
animais!”
“Muda de projeto, Noé.”
“Exijo que me devolvas os animais!”
Ignorando as exigências desesperadas do etólogo, o italiano deu
meia­-volta. Ao afastar­-se, e já de costas, ergueu a mão esquerda e
lançou um gesto de despedida.
“Arrivederci, stronzo.”
Ambrosini encaminhou­-se para um Mercedes negro reluzente que se
encontrava à porta da casa, enquanto Carioca, sentindo que o seu
dono estava à beira de uma explosão de fúria, se multiplicou em
apelos à calma.
“Calm down!”, gritou. “Calma, calma!”
Mas Noé ignorou o papagaio.
“Não te atrevas a tocar num só pelo deles, salaud!”, vociferou a
tremer de indignação, o punho cerrado a ameaçar o homem
engravatado que entrava no automóvel. “Se o fizeres, nem sabes o que
te acontece! Dou... dou cabo de ti!”
O italiano nem respondeu. Exibindo uma indiferença absoluta,
como se já estivesse com a mente em algum outro lado, ligou o carro e
arrancou. O Mercedes cruzou devagar o portão e desapa­receu na
estrada até se ouvir apenas o motor distante a afastar­-se, e segundos
mais tarde nem isso sequer. O silêncio voltou ao Jardim dos Animais
com Alma, apenas interrompido pelos sons harmoniosos da natureza,
a maresia que soprava de oeste, o chocalhar dos galhos nas árvores, os
pipilares alegres dos pássaros.
Vergado por uma imensa derrota, o etólogo baixou­-se, acocorou­-se e
cobriu a cabeça com os braços, fazendo um esforço para se acalmar.
Sentindo­-lhe o desespero, Carioca esfregou o bico no cabelo do seu
dono, como se o tentasse reconfortar.
“Noé?”
A voz de Maria Flor soou suave.
“Deixe­-me!”
Por momentos ela nada disse. Noé precisava de espaço. A
portuguesa baixou­-se ao lado dele e deitou­-lhe o braço sobre o ombro,
procurando serená­-lo. Talvez porque o gesto era universal, ou então
porque ele a desejava, o facto é que funcionou. A respiração do belga,
que até ali era pesada, foi­-se aquietando gradualmente até recuperar
uma aparente normalidade.
Sentindo­-o mais restabelecido, Maria Flor fez uma nova tentativa.
“Noé?”, chamou, as palavras sopradas com a leveza de folhas. “O
que aconteceu?”
O dono do Jardim dos Animais com Alma desfez a postura dos
braços que lhe cobriam a cabeça e encarou­-a enfim, mas por alguns
instantes manteve­-se mudo; parecia perdido nos seus pensamentos.
“O banco”, acabou por dizer. “Tenho um problema com o banco e...
e...”
“É uma dívida, Noé? Tudo isto é por causa de uma dívida?”
O olhar triste carregou o rosto subitamente cansado; dir­-se­-ia que
Noé Vandenbosch deitara a toalha ao chão.
“Levaram­-me os meus meninos...”
Talvez porque isso lhe apelava a um qualquer instinto maternal, não
havia nada que Maria Flor achasse mais sedutor do que um homem
forte numa situação frágil. E não havia nesse momento no mundo
homem forte mais fragilizado do que Noé. Foi por isso que ela se
chegou ao belga e, abrindo­-se a ele, o envolveu com os seus braços
acolhedores e o puxou para o seu corpo quente e palpitante, num
gesto de compaixão que em bom rigor sinalizava algo mais do que
isso.
.

XVII

A primeira reação de Tomás à chegada da polícia ao Jardim dos


Animais com Alma foi olhar em redor, todos os sentidos de repente
em alerta máximo à procura de escapatórias no interior do solar. O
problema é que não estava familiarizado com aquele espaço e por isso
não lhe conhecia os segredos.
“Para onde podemos ir?”
Maria Flor devolveu­-lhe uma expressão opaca.
“Não há sítio para nos escondermos.”
Estava fora de questão baixar os braços e deixar­-se apanhar daquela
maneira. Reagindo quase instintivamente, Tomás meteu pela cortina
púrpura e regressou ao santuário de Noé. Fixou o olhar na estrutura
envidraçada atrás de Carioca, que já lhe tinha chamado a atenção
quando entrara naquele compartimento pela primeira vez, e percebeu
que se tratava na verdade de uma porta de correr. Ou seja, podia ser
aberta e dar­-lhe­-ia acesso imediato ao jardim traseiro da mansão.
“O quintal dá para onde?”
“Para um pinhal que faz fronteira com o parque natural de Sintra.”
Era a única hipótese, percebeu. Sem perder tempo, Tomás agarrou o
puxador da estrutura envidraçada e correu­-a até ficar com via livre
para o quintal.
“Vamos!”
A mulher ficou parada no meio do santuário, sem reação.
“Vamos onde?”
“Temos de fugir daqui”, disse ele, a urgência na voz. “A polícia vem
aí.”
Ela permanecia indecisa.
“Mas vamos para onde?”
“Depois vemos isso”, disse Tomás, já no quintal. “Depressa, vamos
embora!”
Maria Flor, porém, não estava convencida.
“De que serve fugirmos? Escondemo­-nos onde? Faz algum sentido
andarmos por aí em correrias, sem ter para onde ir e sempre com
medo que nos apanhem?”
Sentindo o desânimo esvaziar­-lhe a vontade de lutar, Tomás
escrutinou­-a com o olhar. A determinação que horas antes a levara a
fugir do Oceanário e a trancar um inspetor da Judiciária num quarto
de banho, proeza que muito dizia sobre ela, dera lugar a um desalento
imenso.
“Agora é tarde demais para dúvidas”, lembrou­-lhe numa voz tensa.
“A partir do momento em que fugiste, foi como se confessasses. A
nossa única hipótese é encontrarmos o tal dossiê do Noé. Percebeste?
Sem o dossiê, estamos tramados. Portanto, não há cá recuos. Ou
encontramos a prova que te inocenta, ou nos prendem e está tudo
perdido.” Fez com a mão um gesto perentório. “Vem!”
O marido tinha razão, compreendeu Maria Flor. Se era para se
entregar, deveria tê­-lo feito no Oceanário quando recebeu ordem de
prisão. Agora era tarde demais. A fuga comprometera­-a irrever-­
sivelmente. Só lhe restava levar a busca até ao fim e fazer os possíveis
por descobrir a prova da sua inocência.
Impelida à ação, rodou sobre os calcanhares.
“Já venho!”
Sem mais, Maria Flor correu para o interior da casa e sumiu­-se para
lá da porta que dava para a sala.
“Onde vais?”, admirou­-se Tomás, exasperado com o
comportamento dela numa hora daquelas. “Anda! Não há tempo a
perder! A polícia está aí! Temos de sair daqui o mais depressa
possível!”
A mulher permaneceu ainda mais alguns segundos desaparecida
algures no interior da casa. Ouviu­-se um rebuliço na sala, Carioca
agitou­-se no seu poleiro no santuário e guinchou repetidamente
“calma, calma!”, e Maria Flor reapareceu logo a seguir na porta que
dava acesso ao quintal; trazia ao colo uma amiga peluda.
“Vamos!”
O marido ficou a olhar para a chimpanzé que ela transportava ao
colo, estupefacto.
“O que estás a fazer?”
“A Guida tem de vir!”
Com o animal ao colo, Maria Flor corria já pelo quintal em direção
ao pinhal. Sem tempo a perder, Tomás fechou a porta de vidro, para
que a polícia não percebesse imediatamente que se tinham escapulido
por ali, e lançou­-se no encalço dela.
“Que disparate é este?”, protestou quando alcançou a mulher. “O
animal só vai atrapalhar! Não faz sentido nenhum trazê­-lo connosco!
Larga­-o!”
“Não conheces os chimpanzés”, devolveu­-lhe Maria Flor, sempre a
correr. “Tal como os seres humanos, têm um forte sentido de
propriedade.”
“E então?”
“Já imaginaste o que faria a Guida quando visse a polícia invadir a
casa? Já imaginaste?”
“O que interessa isso?”
“Atirar­-se­-ia logo aos agentes, Tomás!”
“Tanto melhor”, observou ele. “Isso atrasá­-los­-ia e dar­-nos­-ia
maiores hipóteses de escaparmos. Larga­-a!”
“Achas?”, questionou a mulher, atirando­-lhe um olhar de censura
enquanto corria com a chimpanzé ao colo. “Quando os polícias
derrubassem a porta e entrassem, ou ela os matava à pancada ou eles,
para se salvarem, a matavam a tiro. Se a largar agora, a Guida vai
atirar­-se a eles e a coisa irá acabar mal para todos. Se a matarem é
uma catástrofe, se ela matar alguém é outra catástrofe. Está fora de
questão libertá­-la.”
O marido percebeu. Maria Flor estava pelos vistos preocupada, e
com razão, com o forte sentido de propriedade dos chimpanzés. Estes
primatas não permitiam que ninguém fora do círculo familiar
invadisse o seu espaço. Quem o fizesse sem permissão corria sérios
riscos. A não compreensão dessa característica dos chimpanzés estava
na origem de muitos ataques violentos a seres humanos, incluindo
tratadores, e era evidentemente isso o que a mulher receava.
Uma voz de comando soou algures atrás, embora ainda à distância.
“Alto!”
Mergulhando no pinhal e correndo ainda mais e mais, como se as
pernas tivessem subitamente redobrado de força, os fugitivos não se
deram nem ao trabalho de olhar para trás para ver quem os mandara
parar. Não era preciso, pois tornava­-se evidente que a mansão já tinha
sido ocupada e que haviam sido avistados.
“Alto!”
No meio de toda aquela confusão, ainda ouviram os berros surreais
de Carioca para os agentes que haviam invadido a casa e saíam agora
pelo quintal para lhes dar caça.
“Dou­-te um pontapé no cu, filho da puta!”
.

XVIII

O abraço de Maria Flor a Noé Vandenbosch não passou, à vista


desarmada de quem olhasse de fora, de um simples ato solidário para
com uma pessoa numa situação de angústia. Ambos sabiam no
entanto que o gesto aparente de simples compaixão entreabrira as
portas a algo mais que estava destinado a acontecer entre eles. Mas
não nesse instante, não naquelas circunstâncias; o momento não era o
adequado. Havia outras prioridades.
A primeira coisa que Noé fez quando se recompôs foi dar uma volta
pelo Jardim dos Animais com Alma para fazer um ponto da situação.
O etólogo estava de tal modo perturbado com a apreensão dos
animais da propriedade, e transmitia tanta insegurança, que Carioca
se sentiu amedrontado e atirou um olhar a Maria Flor.
“Wanna go shoulder”, disse­-lhe. “Quero ir para o teu ombro.”
O papagaio saltou para o ombro dela e foi assim que fizeram a
inspeção. Começaram por se dirigir aos currais, que encon­traram
desertos. Os empregados da propriedade mostravam­-se tão
desorientados quanto Noé.
“Tina”, chamou ele, dirigindo­-se à responsável pelo pessoal.
“Escapou alguma vaca ou ovelha?”
“Infelizmente não, professor. Levaram tudo.”
“Até a Alice?”
“A Alice, a Gertrudes, a Matilde, o Palito... levaram todas as vacas,
os vitelos e as ovelhas que estavam nos currais. Apareceram com a
polícia e apresentaram um mandado judicial que eu própria li.
Assinado por um juiz.” Esboçou um gesto resignado. “Não havia nada
que pudéssemos fazer, professor. Nada.”
A situação era clara. Percebendo que os currais estavam desertos,
Noé encaminhou­-se para o setor vizinho, onde se encontrava o
galinheiro e a pocilga.
“Os outros animais?”
“Vi os homens transportarem­-nos para os camiões mas não sei se
levaram todos, pois na altura estava nos currais”, respondeu Tina.
“Talvez algum tenha escapado, não sei.”
A possibilidade reacendeu as esperanças do grupo, mas logo que
chegaram ao galinheiro encontraram­-no vazio. Das galinhas e do galo
apenas restavam penas espalhadas pelo chão e o cheiro característico a
galinheiro.
“Não andava nenhuma galinha a cirandar por aí?”
Era frequente no Jardim dos Animais com Alma deixarem­-se as
vacas, as ovelhas, as galinhas e os porcos deambularem pela
propriedade, mas tal não acontecia sempre e os homens tinham vindo
à hora da distribuição das rações, em que era habitual os animais
estarem confinados aos seus espaços. Apesar disso procuraram em
redor, em busca de sinais de alguma galinha que se tivesse escapulido.
Nada viram.
“Talvez os porcos...”, alvitrou Tina. “A Miss Piggy por vezes afasta­-
se dos outros.”
Quem sabia se as boas maneiras de Miss Piggy não a teriam
salvado? Não é que Noé tivesse esperança, mas quis acreditar nessa
possibilidade.
“Miss Piggy?”, chamou. “Miss Piggy?”
Apenas o silêncio respondeu. Tal como nos currais e no galinheiro,
também na pocilga nada encontrou. Os restos da ração distribuída
meia hora antes ainda se encontravam espalhados pela lama,
enquanto o canto onde Miss Piggy habitualmente se refugiava para
comer, colado à vedação, estava imaculado.
“Les salauds”, vociferou Noé entredentes, amaldiçoando os homens
que lhe tinham levado os animais. “Fils de... de...”
Ficaram parados a contemplar a pocilga deserta. Noé, Maria Flor,
Tina e o resto dos trabalhadores da propriedade, todos em silêncio;
era como se vissem e não acreditassem que uma coisa daquelas
pudesse ter acontecido. Vários tinham lágrimas nos olhos. A sua vida
profissional do último ano ou dos últimos meses ou semanas,
dependendo de quando tinham embarcado no projeto, encontrava­-se
nesse momento reduzida a um grande nada. Haviam investido muito
naquele sonho, um envolvimento emocional de quem acreditava no
que fazia e na importância do seu trabalho. Chegar a um ponto assim
constituía um rude golpe.
Foi o papagaio quem interrompeu o mutismo prolongado.
“Wanna go back”, disse. “Quero ir para casa.”
“Já vai, Carioca.”
“Wanna go back. Wanna go back.”
O pedido do pássaro lembrou a Tina um pormenor muito relevante
da operação que acabara de ocorrer.
“Eles também foram à casa...”
A informação deixou Noé estarrecido; as implicações eram vastas. O
olhar aterrorizado do belga desviou­-se para Carioca, que permanecia
no ombro de Maria Flor. Ao menos o papagaio encontrava­-se entre
eles. Mas, e o que acontecera a...
“Guida?!”, quase gritou. “A Guida?”
Olhou interrogativamente para Tina, dirigindo­-lhe a pergunta, e ela
baixou os olhos. Tomando consciência de que o pior havia mesmo
acontecido, de que também a chimpanzé fora levada, o belga correu
esbaforido para o velho casarão senhorial onde vivia. A porta de
entrada estava escancarada.
“Eles tinham a chave”, informou­-o Tina. “Foi o próprio senhor
italiano do Mercedes que aqui veio.”
Noé entrou em casa e, verdadeiramente desesperado, disparou os
olhos em todas as direções.
“Guida!”, chamou. “Guida!”
Percorreram o solar de uma ponta à outra. Foram até ao quintal e
mesmo ao pinhal, sempre a chamar por ela, mas da chimpanzé nem
sinal. Ao fim de meia hora as buscas terminaram e tiveram de se
render à evidência. Também Guida havia sido levada.
.

XIX

A consciência de que a polícia já os havia localizado e vinha nesse


momento no encalço deles deu novas forças a Tomás e Maria Flor. Os
fugitivos ziguezagueavam entre os pinheiros na tentativa de despistar
os perseguidores e fundirem­-se com a vegetação luxuriante até
desaparecerem no parque natural de Sintra, ele sempre à frente a
desbravar caminho, ela no encalço agarrada a Guida. A chimpanzé
emitia guinchos e gesticulava freneticamente, mas Maria Flor,
concentrada no terreno que pisava para contornar obstáculos e evitar
armadilhas, não tinha tempo para ver ou interpretar os sinais gestuais
que o animal lhe fazia com insistência.
“Alto!”, gritou uma voz lá atrás. “Parem imediatamente, senão
disparamos!”
Nenhum dos dois acreditou que a polícia abrisse mesmo fogo contra
eles; aquela prática era proibida em Portugal, onde um agente só
podia disparar se houvesse uma ameaça à vida. O aviso não passava
de bluff. Mas a presença da polícia no Jardim dos Animais com Alma,
mais a facilidade com que os agentes haviam percebido que eles se
tinham escapado pelas traseiras da casa, perturbou Tomás.
“Como é que sabem?”
A mulher arfava ao lado dele.
“Sabem o quê?”
“Que estávamos aqui”, disse. “E que fugimos pelas traseiras. Como
sabem?”
“Sei lá”, devolveu ela, demasiado ocupada em evitar e contornar os
obstáculos para ter cabeça para considerar o assunto. “São a polícia,
têm os seus métodos. O que interessa isso?”
A questão, no entanto, era importante e, enquanto corria pelo
pinhal, o marido não a largou. Sim, eram polícias. Mas não super­-
homens. Como era possível que soubessem onde eles estavam? Dir­-se­-
ia que ele e a mulher tinham colada à roupa um qualquer emissor
que... que...
Compreendeu.
“Olha lá”, interpelou­-a Tomás, sempre em corrida. “O teu
telemóvel? Deitaste­-o fora?”
“A que propósito?”
“Onde está o teu telemóvel?”
Maria Flor fez um gesto a indicar a mala que trazia a tiracolo.
“Na carteira, claro. Porquê?”
“Deita­-a fora!”
Ela esboçou uma expressão de pasmo; o pedido não fazia sentido
nenhum, pelo que julgou tê­-lo compreendido mal.
“Deito­-a... o quê?”
“A mala! Deita a mala fora! Já!”
“Estás maluco?”
“É o telemóvel!”, disse Tomás. “Emite um sinal de geolocalização. É
assim que a polícia sabe onde estamos. Tens de te desfazer dele
imediatamente! Ou o jogas fora, ou jogas toda a mala fora. Como não
o consegues tirar da carteira enquanto corres, mais vale atirá­-la fora.”
“Mas... mas... é uma carteira de marca!”
“Adquirida na feira de Carcavelos”, lembrou ele. “Isso não interessa
nada, até a podias ter comprado na Faubourg Saint­-Honoré. Deita­-a
fora, senão eles apanham­-nos.”
A mulher percebeu que não tinha alternativa e, embora a custo,
atirou a mala para um arbusto.
“Alto!”, gritou alguém lá atrás. “Parem imediatamente!”
Os agentes estavam no seu encalço. O problema é que o vigor
momentâneo que os animou ao sentirem a polícia atrás deles depressa
se esgotou. Os perseguidores ganhavam terreno.
“Depressa!”, atirou Tomás na direção da mulher. “Tens de ser mais
rápida, senão apanham­-nos.”
“Não... não consigo”, respondeu ela por entre golfadas de ar. “Não
posso... não aguento mais.”
A resposta sincopada de Maria Flor não augurava nada de bom, não
só pelo que dissera mas sobretudo pela forma como o dissera. Estava
exausta.
“Larga a chimpanzé”, pediu­-lhe ele. “Só faz peso e cansa­-te ainda
mais. Assim não dá.”
“Não posso... largá­-la.” Pausa para respirar. “Ela... tem de... vir
connosco.”
Não havia dúvidas; a resistência de Maria Flor aproximava­-se do
seu limite.
“Larga­-a!”
“Não... posso.”
As coisas não podiam continuar como estavam. Urgia aliviar o peso
que a mulher carregava. Tomás voltou­-se para ela e estendeu­-lhe os
braços.
“Dá­-ma!”
Aquela seria a solução óbvia, mas Maria Flor não tinha a certeza de
que a chimpanzé cooperasse.
“Vai para ele, Guida”, instruiu­-a, indicando o marido enquanto
arfava por ar. “Vai... para ele.”
A chimpanzé hesitou, na incerteza sobre o que fazer. Ir para o colo
de Tomás não lhe desagradava, pois era evidente a atração sexual que
tinha por ele, mas sentia a tensão daquele momento e preferia estar
com quem conhecia melhor, neste caso Maria Flor.
Gesticulou sinais de língua gestual.
ABRAÇA­-ME.
“Não aguento mais, Guida!”, disse ela, absolutamente esgotada.
“Vai... com ele!”
Uma voz gritou atrás deles, já relativamente perto.
“Alto!”
O berro do polícia enervou a chimpanzé. Abriu os braços, dando
assim indicação de que aceitava ir para o colo de Tomás, mas no
momento em que Maria Flor a libertou para a entregar ao marido,
Guida saltou para o chão e, como uma sombra negra, correu a quatro
patas na direção dos perseguidores.
“Guida!”, chamou Maria Flor, à beira do pânico. “Guidaaa!”
A chimpanzé desapareceu na verdura. Ouviu­-se um refolhar de
galhos atrás deles e de novo a voz dos polícias.
“O que é isto?”
“Cuidado, Guilherme, está aqui um...”
Seguiu­-se um grito, o som de um animal a rosnar em fúria e barulho
de uma grande confusão.
“Ai!”
“Um go... um gorila!”, gritou alguém. “Há um gorila em cima do
Arnaldo!”
“Aiaiaiai!”
“Agh...”
Imobilizados por baixo da copa de uma árvore, ofegantes e
consternados, Tomás e Maria Flor trocaram um olhar impotente.
“Guida! Já para aqui!”
A confusão prosseguia na verdura, com gritos, urros, grunhidos e
sons surdos de pancadas. Pelo ar voavam galhos partidos e pedaços de
terra.
“A mim!”, gritou alguém, aflito. “Está um orangotango a... a...”
“Aiii!”
Mais pancadas surdas.
“Mata­-o!”, ordenou outra voz. “Mata­-o, porra!”
“Agh...”
O desvario era completo e contaminava Tomás e Maria Flor, ambos
desorientados com a situação.
“Guidaaa!”, chamou Maria Flor. “Vem cá!”
Os sons, grunhidos e gritos por entre os arbustos mostravam que as
coisas não estavam a correr bem aos polícias.
“Tira­-o, caraças! Tira... agh!”
“Dispara! Dispara, senão o gajo dá cabo de nós!”
Soaram dois tiros.
Fez­-se um silêncio súbito no pinhal e os pássaros esvoaçaram. Os
fugitivos voltaram a entreolhar­-se, pálidos, e Maria Flor deitou as
mãos à cara, horrorizada.
“Meu Deus! Mataram­-na!”
.

XX

A depressão em que Noé Vandenbosch caiu fê­-lo reagir com


absoluta indiferença à campainha que acabara de soar na entrada do
casarão. Vendo­-o tão abatido, Maria Flor percebeu que teria de ser ela
a comportar­-se como anfitriã. Deixou Carioca pendurado no poleiro,
na cave oculta que o belga dissera ser o seu escritório, e foi à porta ver
quem era.
Deparou com um homem ruivo plantado sob o alpendre da entrada
com o chapéu entre as mãos. Tratava­-se de Dorian Zwiebel, o diretor
da GreenNaturae.
“Vim logo que soube”, disse Zwiebel, a consternação no rosto. “O
Noé está aí?”
“Ainda bem que veio”, acolheu­-o a portuguesa, fazendo­-lhe sinal
para que entrasse. “Está feito num caco, coitado. Penso que seria
melhor dar­-lhe um calmante.”
O diretor da GreenNaturae encaminhou­-se para a sala. Deparou
com Noé enterrado na sua poltrona, um copo de whisky na mão e o
olhar apático dos deprimidos. Ao ver o visitante, contudo, o olhar
ganhou vida e pôs­-se de pé num salto.
“Dorian!”, exclamou, abraçando Zwiebel como se fosse ele o
messias. “Já viste o que... o que o Ambrosini fez?”
O recém­-chegado apertou­-o com energia, como se lhe quisesse dar
força.
“Acabei de ser informado, Noé. É uma catástrofe.” Afastou­-o e
olhou­-o nos olhos. “Como estás tu, meu amigo?”
“Ah, Dorian!”, exclamou Noé. “Tens de ajudar!”
“Tudo, meu amigo. Do que precisas?”
“Do que haveria de ser?”
A sugestão foi recebida por Zwiebel com um suspiro profundo.
“Esse empréstimo é a nossa perdição”, observou o diretor da
GreenNaturae. “É preciso aprender a gerir melhor o dinheiro, meu
amigo. Não se pode gastar o que não se tem.”
“Ora essa!”, quase protestou o belga. “Todos sabíamos desde o
início que o Jardim dos Animais com Alma era um projeto caro,
Dorian. Não se faz uma coisa destas sem uma boa maquia. Temos de
comprar os animais, temos de ter pessoal que trate deles, temos de ter
condições para os acolher bem, temos de os alimentar... enfim, nada
disto é barato. É por isso que o Ambrosini era uma peça crucial. Não
te esqueças de que antes de nos atirarmos a isto ele garantiu que o
banco dava cobertura e que não haveria problemas. Ele garantiu!
Lembras­-te de o Ambrosini falar num esquema em que o banco dele e
umas fundações iam ganhar à custa das poupanças nos impostos
possibilitadas pela lei do mecenato e mais não sei quê, e que podíamos
avançar à vontade? E agora... e agora fez­-nos isto?”
“A situação mudou, meu amigo. Antes a economia estava em
velocidade de cruzeiro e agora sofreu uns solavancos que afe­taram o
banco. O Ambrosini pôs­-se a cortar nas despesas e o nosso projeto é
uma vítima da crise.”
“Qual crise, qual carapuça! Há uns tempos o tipo veio­-me com a
conversa de que o projeto não ia a lado nenhum e que tínhamos de
mudar para outra coisa. Prometeu financiar outro projeto. Isso mostra
que o banco tem dinheiro.”
O amigo considerou este argumento.
“Talvez tenhas razão, talvez não”, respondeu. “Nada disso agora
interessa. A questão é saber o que podemos fazer para dar a volta à
situação.”
“Precisamos de dinheiro.”
“Isso é fácil de dizer”, retorquiu o diretor da GreenNaturae. “Como
sabes, não andamos propriamente a nadar em recursos financeiros.
No entanto, a ti nada recuso. Tenho a dizer­-te que, quando há pouco
soube do sucedido, liguei ao Ambrosini a pedir­-lhe explicações. O
imbecil tinha acabado de sair daqui e ia todo refastelado no seu
Mercedes. Disse­-me que já lhe devíamos uma montanha de dinheiro e
que o banco ia vender a propriedade e os animais para reaver o valor
que emprestara. Embora estejamos muito endividados, garanti­-lhe que
pagava tudo e pedi­-lhe para devolver os animais e...”
Noé caiu­-lhe nos braços e voltou a abraçá­-lo, reconhecido e aliviado.
“Sabia que podia contar contigo!”
“O problema é o valor, meu amigo”, apressou­-se Zwiebel a
esclarecer, preocupado em não receber agradecimentos por coisas que
não fizera. “Quando o Ambrosini me informou que teríamos de pagar
de uma assentada um milhão ao banco, ia caindo de cu. A
GreenNaturae não tem um milhão disponível para safar isto, Noé.
Nem pensar! É muito dinheiro. Nós não passamos de uma associação
ambientalista. Temos muitos compromissos finan­ceiros, existem
imensos gastos, salários a pagar, dívidas a honrar.”
Um esgar de deceção perpassou pelo rosto do etólogo. Acreditara
por momentos que o problema havia sido miraculosamente resolvido.
Não era assim tão simples.
“Oh!”
O diretor da GreenNaturae retirou do bolso um envelope.
“Não temos infelizmente um milhão disponível”, esclareceu. “Mas
ao menos dispomos de seiscentos mil. É esse o valor do fundo de
maneio da GreenNaturae. Perguntei ao Ambrosini se os seiscentos mil
chegavam. Ele disse que daria para salvar o Jardim dos Animais com
Alma.”
“Com... com os animais?”
“Só a propriedade, receio bem”, respondeu Zwiebel, ciente de que o
que tinha para oferecer não chegava para tudo. “Os animais são mais
quatrocentos mil.”
“Então prefiro que uses esses seiscentos mil para salvar os animais.”
“Não digas disparates, Noé. Se não tiveres a propriedade, onde
metes os animais? No hotel para cães de Cascais? Precisas do Jardim
dos Animais com Alma, meu amigo. Isso eu consigo garantir­-te com o
fundo de maneio da GreenNaturae. Quanto aos animais, terás de
arranjar outra maneira de os reaver. Infelizmente não posso fazer
mais. Lamento. Mas salvar a propriedade já é uma grande ajuda,
penso eu.”
O esforço do diretor da GreenNaturae foi recompensado com um
sorriso forçado de Noé.
“Sem dúvida”, acabou por reconhecer o responsável do Jardim dos
Animais com Alma, tentando não parecer ingrato. “Muito obrigado
pelo que estás a fazer. Agradeço­-te do fundo do coração. Usares todas
as poupanças da GreenNaturae para salvar o Jardim dos Animais com
Alma é de uma generosidade incrível, até porque tens muitos outros
compromissos financeiros, e sei que gastar as reservas financeiras
constitui um risco enorme.”
Zwiebel baixou os olhos.
“Faço o que posso...”
O olhar de Noé desviou­-se para a janela e assumiu uma
nebulosidade melancólica.
“É muito o que fazes e estou­-te agradecido, acredita.” Respirou
fundo, exalando toda a insatisfação que lhe atormentava a alma.
“Porém, de que me serve o Jardim dos Animais com Alma sem
animais? São eles a essência do projeto. A Guida, a Miss Piggy, a
Alice, a Gertrudes, a Elvira... o que é a nossa propriedade sem elas?
Um invólucro vazio, um mero pedaço de terra.”
Fez­-se um prolongado silêncio na sala, pesado e desconfor­tável. A
Zwiebel faltavam­-lhe as palavras, e o mesmo acontecia com Maria
Flor, plantada à entrada da sala sem saber o que fazer. Noé, por seu
turno, havia­-se afundado de novo no sofá e a expressão sombria no
rosto revelava o imenso abismo em que mergulhara; era evidente que
para ele a propriedade de nada valia sem os animais que a habitavam.
A portuguesa remexeu­-se.
“Não haverá maneira nenhuma de os salvar?”, questionou. “Nem
pedindo um novo empréstimo?”
Noé nem se deu ao trabalho de responder, tarefa que deixou
entregue a Zwiebel.
“O banco do Ambrosini foi o único que apostou no Jardim dos
Animais com Alma”, retorquiu o suíço. “Se os outros bancos já não
queriam investir neste projeto, muito menos o farão quando souberem
da nossa dívida.”
“Não haverá outros financiadores?”
O diretor da GreenNaturae encolheu os ombros.
“Quem?”
Pois, aí estava o problema. Quem estaria disposto a enterrar
dinheiro num projeto que, com toda a probabilidade, jamais daria
lucro? Pior, que só traria prejuízo! O Jardim dos Animais com Alma
nunca fora concebido para dar dinheiro, mas simplesmente para fazer
avançar o conhecimento humano sobre os animais e as suas
capacidades cognitivas, vencendo velhos dogmas e preconceitos.
Perdido o mecenas, o projeto estava condenado. Compreendia­-o Noé,
compreendia­-o Zwiebel e, confrontada com a realidade financeira que
obrigava ao encerramento do projeto, começava Maria Flor também a
compreendê­-lo.
Desalentada, baixou a cabeça.
“Pois, estou a ver...”
O silêncio regressou à sala. Tudo estava perdido. Valendo­-se de uma
ação judicial requerida pelo seu banco por dívidas não saldadas,
Ambrosini obtivera um mandado judicial, entrara no Jardim dos
Animais com Alma e levara os animais. Só não ficara com Carioca
porque na altura o papagaio se encontrava com Noé e Maria Flor
durante o passeio que fizeram até ao promontório da propriedade. A
própria quinta seria arrestada, não fosse a intervenção da
GreenNaturae e dos seiscentos mil do seu fundo de maneio. Mas a
essência do projeto fora desmantelada.
Ciente de que nada mais podia fazer, Zwiebel voltou a abraçar Noé
e dirigiu­-se para a porta de saída.
“Cuide dele”, lançou a Maria Flor em voz baixa. “Vigie­-o. Não o
deixe fazer nenhuma tolice, ouviu?”
Por fim afastou­-se. Entrou no seu carro, a viatura deu meia­-volta e
desapareceu para além do portão do Jardim dos Animais com Alma.
Plantada à porta da casa, a portuguesa ficou a observar a atividade em
curso. Tina e os restantes funcionários ocupavam­-se nessa altura da
limpeza das instalações já desertas, mas em breve ficariam sem nada
para fazer. Mais tarde ou mais cedo teriam de ser despedidos. A
propriedade ficaria vazia, silenciosa e parada. Abandonada. Noé tinha
razão. Sem a bicharada, a quinta não passava de um pedaço de terra.
A sua alma esfumara­-se com os animais que partiram.
Maria Flor fechou a porta e reentrou na sala, pensativa.
“Não temos nenhuma maneira legal de resolver isto, pois não?”,
perguntou como se falasse para si própria. “Se assim é, porque não
recorremos a outras formas?”
O olhar do etólogo voltou­-se distraidamente para ela.
“Quais?”
A nova colaboradora ficou alguns segundos sem nada dizer, como se
ela própria considerasse o que acabara de afirmar e estudasse todas as
potencialidades da ideia que, como uma súbita inspiração, lhe aflorara
ao espírito. A expressão meditativa ganhou de repente firmeza, as
interrogações hesitantes transformaram­-se em afirmações convictas.
Maria Flor fixou a atenção em Noé, um brilho vagamente perverso a
cintilar­-lhe nos olhos.
“Vamos fazer um assalto.”
.

XXI

Tudo aquilo foi demais para Maria Flor. Não só Guida havia
atacado os polícias que os perseguiam, como para se defenderem os
agentes tinham aberto fogo contra a chimpanzé. O que mais receava
estava a acontecer. Só ela podia pôr fim àquela situação. Desistindo de
lutar, começou a dirigir­-se para o sítio onde o animal desaparecera
momentos antes.
“Não disparem!”, implorou, caminhando de braços no ar e
tropeçando por entre a vegetação. “É apenas uma chimpanzé! Eu... eu
rendo­-me!”
Em condições normais Tomás insistiria para que continuassem a
fugir, mas aquelas eram circunstâncias excecionais. A chimpanzé
atacara a polícia, provavelmente com grande violência, e com toda a
probabilidade, considerando os disparos ocorridos instantes antes, os
agentes já a tinham abatido.
“Não disparem!”
De repente ouviu­-se um barulho de galhos a quebrar, os arbustos
remexeram­-se com fragor e o vulto escuro da chimpanzé emergiu de
toda aquela verdura, correndo na direção deles e fazendo sinais
veementes em língua gestual.
CORRAM CORRAM.
Assustada com os tiros, Guida saltou para os braços de Maria Flor e
esta ficou um momento sem saber o que fazer. Deveria retomar a
fuga? A ideia perpassou­-lhe por instantes pela mente, mas logo que a
considerou percebeu que não era exequível. Não só se sentia exausta
como estava fora de questão correr pela floresta com a chimpanzé ao
colo. Não tinha de resto a menor possibilidade de sucesso. Ainda por
cima, e sobretudo, o animal havia atacado a polícia e decerto não fora
meiga. Os chimpanzés podiam ser muito ferozes. Isso dava aos
polícias ampla motivação e cobertura legal para atirarem a matar.
“Parem!”, gritou um dos perseguidores, ainda invisível por entre a
vegetação. “Rendam­-se ou disparamos!”
Lançando um olhar de súplica para o marido, Maria Flor não sabia
o que fazer.
“E agora?”
“Temos de fugir!”
“Mas... não vês que é impossível?”
Não havia dúvida de que a mulher não dispunha já das menores
condições para prosseguir a fuga. Tomás tinha de se render à evidência
e agir em conformidade.
“Não podemos ser os dois apanhados, pois ninguém nos irá ajudar”,
disse ele. Olhou para o pinhal. “Vou... vou tentar escapar eu.”
“E a Guida?”
“Entrega­-te com ela.”
“A Guida não aceitará, Tomás. Quando vir os polícias prenderem­-
me, atacá­-los­-á e eles matá­-la­-ão. Não viste o que acabou de
acontecer? Ficaram com medo dela e, se a virem pela frente a
ameaçá­-los, não lhe vão dar hipóteses.”
A mulher tinha razão, sabia o historiador. Não podia deixar a
chimpanzé ali.
“Rendam­-se!”
Tomás estendeu as mãos na direção do animal, mas Guida
permaneceu abraçada à sua protetora.
“Vai com ele, Guida”, disse­-lhe Maria Flor numa voz tranquila,
tentando acalmá­-la e adormecer­-lhe a desconfiança e o medo. “Eu vou
ter com os meus amigos. São meus amigos. Tu vais com o Tomás.”
A chimpanzé gesticulou de volta, comunicando a resposta em língua
gestual.
NÃO.
Não iria ser fácil convencer o animal. Estava demasiado assustado e
o medo poderia torná­-lo agressivo.
“O Tomás quer ser teu amigo, Guida”, indicou Maria Flor,
mudando de tática. “Já me contou. Não queres ser amiga dele? Ele
pode abraçar­-te muito. Não gostavas disso?”
Na linguagem da chimpanzé, amigo significava parceiro sexual e
abraço, no contexto de uma frase que envolvia um parceiro sexual,
queria dizer sexo. Guida lançou um olhar subitamente interessado na
direção de Tomás.
Interrogando­-se sobre o que mais lhe haveria de acontecer na vida, o
historiador engoliu em seco e assentiu.
“Anda, Guida”, disse­-lhe, agarrando­-a. “Quero ser teu... uh...
amigo. Vamos... vamos abraçar­-nos.”
Desta feita a chimpanzé largou Maria Flor e deixou­-se levar para o
colo dele. Logo que o abraçou, esfregou o ventre nele, tornando claras
as suas intenções.
ABRAÇA­-ME.
“Oh­-oh. Agora não, Guida.”
ABRAÇA­-ME.
“Depois, depois.”
Dois polícias fardados e um homem à paisana que ambos reconhe-­
ceram, o inspetor Caparro da Judiciária, assomaram de repente da
folhagem com pistolas apontadas para eles.
“Não se mexam”, ordenaram. “Quietos ou disparamos!”
Os fugitivos trocaram um olhar de despedida e, voltando­-se para os
polícias, Maria Flor ergueu os braços.
“Rendo­-me.”
Logo que ela anunciou que se entregava, Tomás virou­-se e desatou a
correr pelo pinhal com Guida ao colo.
Soou um tiro e sentiu a bala zumbir­-lhe por cima da cabeça.
“Quieto!”
“Rendo­-me!”, insistiu lá atrás Maria Flor, a interpor­-se entre os
polícias e o marido para atrapalhar a perseguição. “Eu é que estou sob
suspeita. Eu, não ele. Não disparem, eu rendo­-me! Não veem?
Rendo­-me!”
O disparo fez explodir a adrenalina e foi como se Tomás tivesse
acabado de tomar uma injeção de doping, pois ganhou forças que não
sabia ter e, cheio de vigor súbito, acelerou no seu ziguezague pela
floresta, contornando pinheiros, mergulhando em arbustos, saltando
sobre rochas e pisando charcos.
Soou um novo tiro.
O fugitivo não se importou. Sentia­-se pleno de força e tinha a
certeza de que os seus perseguidores não seriam capazes de
acompanhar o seu ritmo de corrida. O disparo era aliás prova disso.
Os polícias tentavam intimidá­-lo, queriam convencê­-lo a desistir, mas
ele não desistia; não estava na sua natureza. Foi correndo e saltando e
correndo, metendo por aqui e esgueirando­-se por ali, até que por fim,
já em pleno parque natural de Sintra, percebeu que os homens que lhe
davam caça lhe haviam perdido o rasto e, abrandando, foi à procura
de um sítio onde se pudesse esconder. Cumprira o seu objetivo
imediato.
A seguir teria de cuidar de Guida. E sobretudo lidar com o “abraço”
mais íntimo que ela lhe iria exigir.
.

XXII

Havia já três horas que Noé Vandenbosch se encontrava sentado no


banco público a ler o Expresso. Em boa verdade não sabia ler
português e nem sequer estava de facto a ler. Fingia ler. Um buraco no
meio das folhas do jornal denunciava a verdadeira utilidade do
periódico. Aquela edição do Expresso servia apenas para lhe esconder
o rosto e disfarçar as suas intenções. Chegara aliás a considerar a
possibilidade de usar o Correio da Manhã ou o Público, mas optou
pelo Expresso devido à sua dimensão. O buraco permitia­-lhe vigiar a
entrada do banco sem ser notado.
“A hora do expediente terminou há muito tempo”, indicou Maria
Flor, sentada ao lado dele. “Mais tarde ou mais cedo, o tipo terá de
sair. Com certeza não dorme lá dentro.”
O belga consultou o relógio.
“Zut! Já lá vão quatro horas!”
“Pois, passou um bom bocado. O palerma já devia ter saído, é
verdade, mas pode...”
“Ali vem ele!”
Calaram­-se os dois. Sentados no banco fixo no passeio do lado
oposto da rua, ficaram a espreitar pelo buraco aberto no meio das
páginas do jornal. Ambrosini acabara de franquear uma porta lateral
do banco e saíra para a rua. Deixaram­-no afastar­-se e desapa­recer ao
fundo da rua. Esperaram um pouco, para se assegurarem de que não
voltaria. Por fim, foi a vez de ser Maria Flor a consultar o relógio.
“Acho que pode ir.”
Sem dizer uma palavra, Noé entregou­-lhe o jornal e levantou­-se.
Depois de olhar para os dois lados, atravessou a rua e encaminhou­-se
para o edifício.
As portas envidraçadas do banco abriram­-se automaticamente.
Entrou e dirigiu­-se diretamente à receção. A senhora do outro lado do
balcão reconheceu­-o das anteriores visitas ao banco, sempre
acompanhado pelo diretor.
“Professor Vandenbosch!”, cumprimentou­-o. “Bons olhos o vejam.
Vem falar com o doutor Ambrosini?”
“Tenho uma reunião marcada com ele”, respondeu o belga com ar
casual, ciente de que ela não tinha visto o diretor do banco sair
momentos antes pois ele abandonara o edifício pela porta lateral que
habitualmente usava. “Já estou atrasado.”
A rececionista digitou um número no telefone.
“Está? Doutora Fátima? O doutor Ambrosini está?” Fez uma pausa
para escutar a resposta. “Ah, muito bem. Obrigada.” Desligou o
telefone e, sempre solícita, encarou Noé. “O doutor Ambrosini saiu há
instantes.”
O etólogo fez um ar despreocupado.
“Sim, ele tinha­-me dito que havia uma reunião qualquer e que
poderia atrasar­-se, mas pediu­-me que fosse entrando.”
A rececionista ficou atrapalhada.
“É que... enfim, a doutora Fátima disse que o doutor Ambrosini saiu
e... bem vê...”
Noé soergueu o sobrolho.
“Não está a insinuar que estou a mentir, pois não?”
A pergunta embaraçou a senhora por detrás do balcão.
“Ah, não!”, exclamou com um sorriso nervoso. “Claro que não!
Deus me livre, senhor professor!”
Sem hesitar, como se fosse a coisa mais natural do mundo, o belga
dirigiu­-se à passagem controlada pelo guarda dos serviços de
segurança do banco.
“Ótimo”, retorquiu. “Já agora, como vai o seu cãozinho?”
Numa das últimas vezes que o etólogo ali estivera, a rececionista,
sabendo da profissão dele, pedira­-lhe conselhos sobre como lidar com
o seu muito nervoso caniche.
“Ótimo, ótimo”, disse ela, assarapantada. “Ainda anda um bocado
ansioso, coitadinho, mas fiz como o senhor professor disse e melhorou
imenso.”
“Excelente, excelente.”
A rececionista hesitou um curto instante, como se ponderasse como
lhe recusar a entrada sem o ofender, mas não sabia o que dizer pois
sempre fora tão simpático e prestável quando lhe pedira ajuda por
causa do cachorro. Além do mais, era visita habitual do banco e subia
muitas vezes com Ambrosini, ambos sempre em amena cavaqueira,
pelo que quase se tornara alguém da casa. Acabou por lhe estender
um cartão.
“Para entrar vai precisar disto, senhor professor.”
O visitante pegou no cartão, agradeceu e passou­-o pelo portal de
segurança. Dirigiu­-se aos elevadores e entrou num deles. Premiu o
botão para o sétimo andar e subiu. Lisboa não era propriamente uma
cidade de arranha­-céus, com certeza para não ofuscar as suas sete
colinas e o castelo que coroava a maior delas, o que fazia do prédio do
banco, apesar de ter apenas sete andares, um edifício alto.
Um tlim assinalou a chegada ao último piso. Saiu do elevador e
invadiu o átrio do gabinete do diretor da sucursal do banco em
Portugal. Já ali tinha ido muitas vezes nos últimos tempos, dados os
seus múltiplos contactos com Ambrosini, pelo que conhecia o espaço
como a palma das suas mãos. Em vez de se dirigir à porta assinalada
com a placa “Diretor”, onde sabia que se encontrava a secretária e o
gabinete de Ambrosini, encaminhou­-se para a porta do outro lado,
assinalada como “WC”. Entrou pela porta dos “Cavalheiros”,
meteu­-se na cabina de uma das retretes e trancou­-a. Fechou o tampo
da retrete e subiu para cima dele. Agora só lhe restava aguardar.
Ao fim de uma hora, ouviu vozes; uma feminina e outra masculina.
Sabia muito bem quem eram e o que iria acontecer a seguir, pois das
várias vezes que visitara Ambrosini no seu gabinete já tinha observado
aquele ritual. A porta do quarto de banho abriu­-se bruscamente e as
duas vozes ganharam súbita definição.
“...nhã, Ruca.”
“Espere um pouco, doutora Fátima”, disse o homem que acabara de
entrar no WC. “Estou a terminar a inspeção e já desço consigo.”
Noé ouviu os passos do homem dos serviços de segurança no
interior do quarto de banho. O som das passadas aproximou­-se da
porta da sua cabina e, após um breve silêncio, viu a maçaneta rodar.
Como a porta estava trancada, o homem não a conseguiu abrir. O
belga aguardou para saber o que faria ele. Ouviu uma respiração
pesada e um som raspado de roupas a roçarem o chão, evidentemente
do segurança a baixar­-se para espreitar por baixo da porta. Como
estava empoleirado sobre a retrete, sabia que o homem não o
conseguiria ver do chão. Mas, e se ele desconfiasse e trepasse para
olhar por cima? Entre o topo da cabina e o teto havia um espaço
aberto e era perfeitamente possível espreitar por ali. Se isso
acontecesse, seria descoberto.
Ouviu o segurança levantar­-se e, sustendo a respiração, aguardou
pelo que se passaria a seguir. Empoleirar­-se­-ia? O breve silêncio
pareceu­-lhe uma eternidade e sentiu uma gota de suor descer­-lhe pela
testa. Não podia ser detetado. Ouviu por fim passos a afastarem­-se e a
porta do quarto de banho abriu­-se.
“Tem carro, doutora Fátima?”, atirou o segurança ao sair. “Dá­-me
boleia?”
“Com certeza. Descemos para a garagem e...”
A porta fechou­-se, amordaçando as vozes, de novo reduzidas a um
som abafado. Noé respirou fundo. Conseguira. Aguardou que as
vozes desaparecessem por completo e ainda esperou mais algum
tempo no silêncio absoluto para se certificar de que o sétimo andar se
encontrava de facto deserto. Sabia que a secretária de Ambrosini
costumava sair pela garagem, pelo que não havia perigo de se cruzar
com a rececionista e suscitar perguntas sobre o visitante que acabara
de subir. Se não houvesse novidades nos momentos seguintes, Noé
sabia que teria as mãos livres.
Ao fim de quinze minutos, desceu do tampo da retrete e destrancou a
porta da cabina. Movimentando­-se pé ante pé, percorreu o quarto de
banho e abriu a porta devagar. Espreitou para o exterior e confirmou
que não estava ali ninguém. Podia avançar. Depois de se certificar de
que o elevador se encontrava no piso -1, o da garagem, pois a última
coisa que queria era que as portas se abrissem subitamente e fosse
apanhado em flagrante, atravessou o átrio e dirigiu­-se às duas portas
metálicas que davam para o gabinete do diretor.
O acesso era feito através de um código que tinha de ser digitado
num teclado cravado na parede. Noé sabia que havia planos para
instalar ali um sistema biométrico de reconhecimento de impressões
digitais, mas não desconhecia também a aversão de Ambrosini a esse
sistema devido à sua fobia a germes, vírus e outros microrganismos
que habitavam na ponta dos dedos de todos os que acediam às
instalações. Muito importante, à custa de tantas vezes ter ali ido com
o diretor do banco e de sempre o ter visto digitar o código, conhecia a
palavra­-chave que dava acesso ao gabinete.
Abeirou­-se do teclado e premiu as seis letras.
A­-S­-T­-R­-U­-M .
As portas metálicas abriram­-se de par em par. Acessível a Noé estava
agora o gabinete de Ambrosini. Tratava­-se de uma sim­ples sala no
topo do edifício, mas a ele parecia­-lhe mais o covil do lobo.
.

XXIII

Deitado entre dois arbustos, num ponto elevado do parque natural


de Sintra com vista privilegiada sobre o perímetro do Jardim dos
Animais com Alma, Tomás observava à distância o que aí se passava.
Lobrigou três figuras tão longínquas que se diriam formiguinhas a
movimentar­-se, mas sabia muito bem de quem se tratava. Uma era
Maria Flor. Ia ladeada por dois agentes que a encaminhavam para um
automóvel da polícia.
Observou­-os a abrirem a porta traseira, um deles a pôr a mão sobre
a cabeça dela e a empurrá­-la para o interior como uma vulgar
criminosa. Havia uma nuvem sobre o seu casamento, a mulher
mostrava­-se amiúde irritada com ele por pequenos nadas e a forma
como ela se relacionara com Noé Vandenbosch deixava­-o
desconfortável, mas não aceitava vê­-la ser humilhada daquela
maneira. Rangeu os dentes com um sentimento de raiva e impotência.
Sentiu a chimpanzé esfregar­-se nele.
“Agora não, Guida.”
O animal insistiu, roçando e roçando o ventre como se o quisesse
encorajar e excitar. Vendo que aquele procedimento não estava a
funcionar, a chimpanzé mudou de tática. Pôs­-se ao lado dele e fez­-lhe
sinais em língua gestual.
ABRAÇA­-ME DEPRESSA.
“Depois, Guida. Depois.”
Novos sinais, sempre frenéticos.
BEIJO POR FAVOR.
Tomás revirou os olhos. Tinha uma chimpanzé com cio a pedir­-lhe
insistentemente que fizesse sexo com ela. O que mais faltaria
acontecer­-lhe na vida?
“Agora não, Guida.” Precisava de algo credível que travasse os
crescentes ímpetos lúbricos do animal. “Temos... olha, temos de
ajudar o Carioca. Está sozinho, coitado.”
Ao ouvir o nome do papagaio com o qual vivia, a chimpanzé emitiu
um guincho e fez mais sinais de língua gestual, estes esboçados quase
em fúria.
PÁSSARO SUJO.
Pois, bem que Maria Flor o tinha avisado. A chimpanzé não gostava
do papagaio. Ciumeira, provavelmente. Habitavam na mesma casa e
competiam pelas atenções de Noé, que pelos vistos devia ter mel para
atrair tanta gente.
Teria de encontrar outro pretexto para lhe desviar a atenção. Algo
que interessasse Guida.
“Tens fome?”
A pergunta animou­-a.
BANANA BANANA.
Não havia como falar em comida para se despertar interesse; era
assim com todos os animais, incluindo os seres humanos. Quantas
pessoas não conhecia ele que ao almoço já fantasiavam sobre o jantar?
“Então espera um bocadinho”, sugeriu­-lhe ele. “Daqui a pouco
dou­-te bananas.”
Ela fez mais gestos enfáticos.
DOCES.
“Também queres doces, hem? Está bem, eu dou­-tos. Mas tens de
esperar um bocado, ouviste?”
A chimpanzé pareceu acalmar e Tomás voltou a fixar os olhos no
que se passava lá em baixo. O carro da polícia com Maria Flor
cruzava já o portão do Jardim dos Animais com Alma e desaparecia
na estrada, deixando uma nuvem de poeira a pairar atrás.
O outro automóvel, o cinzento, permanecia estacionado diante da
mansão. O inspetor Caparro estava decerto no interior do edi­fício
com os seus homens a revistar tudo. O que esperariam eles encontrar?,
interrogou­-se Tomás. Possivelmente não procuravam nada específico;
apenas pistas que os ajudassem nas investigações.
Sentiu a mão de Guida puxá­-lo pelo ombro para de novo lhe chamar
a atenção.
DOCES BANANA.
“Já vai, já vai...”
Ao fim de vinte minutos de absoluta tranquilidade, houve de novo
movimento. Tomás viu dois homens à paisana abandonarem por fim a
casa, um deles o inspetor Caparro, e encaminharem­-se para o carro
cinzento. A Judiciária pelos vistos terminara as buscas e deixava o
local. Os dois agentes meteram­-se no automóvel e instantes mais tarde
também essa viatura desapareceu para além do portão.
Aguardou mais um bocado, para se certificar de que não havia mais
movimento lá em baixo e de que o Jardim dos Animais com Alma,
agora que os dois carros da polícia tinham partido, se encontrava
realmente deserto. Como tudo permaneceu quieto, concluiu que
estavam reunidas as condições para arriscar uma visitinha. Com toda
a probabilidade não havia nenhum mandado em nome dele. Por isso o
deixavam em paz. Por enquanto. Ou talvez fosse uma cilada.
Levantou­-se, pegou em Guida ao colo e, devagar e cheio de cautelas,
um olho no caminho e outro no que se passava lá ao fundo, começou
a descer pelo parque natural de Sintra em direção à propriedade. Ou
encontrava agora o que procurava, ou não via como tirar a mulher da
embrulhada em que estava metida.
.

XXIV

Com pezinhos de lã, Noé Vandenbosch entrou para a ante­câmara do


gabinete; era ali que trabalhava a secretária de Ambrosini, a tal
Fátima Silva que saíra um quarto de hora antes com o segurança.
Ainda cheirava a café e a biscoitos no cubículo. As portas metálicas
fecharam­-se atrás dele, conforme o procedimento de segurança.
Avançou e dirigiu­-se para a porta seguinte. Abriu­-a e penetrou na
divisão mais importante do edifício, o gabinete do diretor da sucursal
do banco em Portugal.
Já ali estivera com frequência para reuniões com Ambrosini, pelo
que o espaço lhe era familiar, mas tratava­-se da primeira vez que
entrava sozinho. O escritório estava deserto. Agora, sem gente e sem
as lâmpadas acesas, parecia diferente. Não se atreveu a acender a
iluminação, pois podia ser notado da rua. De qualquer modo, a luz da
tarde que jorrava através dos vidros e enchia o gabinete era suficiente.
A janela dava para o Parque Eduardo VII, e a vista, como sempre,
revelava­-se deslumbrante, com a Avenida da Liberdade a descer ao
fundo com os seus renques de árvores.
A decoração do escritório apresentava­-se requintada. As paredes
estavam forradas a mogno trabalhado e uma delas era preenchida do
chão ao teto por uma enorme estante cheia de pastas. Atrás da
secretária de Ambrosini encontrava­-se um quadro com a pintura de
um pelicano com o peito ensanguentado e as crias em redor, cercados
de água e com um pássaro a voar no céu.
“Ignis naturae renovator integra”, murmurou Noé com um fervor
quase religioso, pois aquela imagem dizia­-lhe muito. “As chamas da
natureza que tudo renovam.”
A imagem aludia a um símbolo ligado à crucificação de Jesus, sob o
lema Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum. Ou Jesus o Nazareno, Rei dos
Judeus. Na tradição das comunidades cristãs dos primórdios e dos
cátaros, esta imagem exprimia a ressurreição do Senhor. Os elementos
simbólicos mais importantes do quadro eram o sangue, a água e a ave,
que representava o espírito, o que na nomenclatura simbólica dos
antigos alquimistas correspondia ao mercúrio, ao enxofre e ao sal. O
mercúrio do sangue era a força da regeneração, o enxofre da água
correspondia à força do amor e o sal do espírito dizia respeito à
purificação. Ignis naturae reno­vator integra. As chamas da natureza
que tudo renovam. Alquimia pura. Como ficar indiferente ao
significado profundo daquela mensagem? Tantas vezes vira aquele
quadro ali e interrogava­-se nesse momento como podia um imbecil
como Ambrosini tê­-lo no seu gabinete. Não o merecia, não estava à
altura dele.
Suspirou. Tinha de ser prático. Em conformidade, as suas atenções
voltaram­-se para o computador instalado sobre a secretária do
banqueiro. Encontrava­-se desligado e Noé não tinha ilusões quanto às
possibilidades de a ele aceder; eram basicamente nulas. O ideal seria
entrar no sistema informático e verificar as pastas de arquivo digital
do diretor do banco, claro, mas sabia que não podia contar com isso e
nem sequer tentou.
O seu alvo era outro. Ambrosini não passava de um homem da
velha guarda, como o comprovava o quadro alquímico do pelicano e
as pastas guardadas nas estantes. Até se admirava que o diretor do
banco tivesse aceitado que lhe instalassem ao lado da porta o teclado
que dava acesso ao seu gabinete. Por ele teria provavelmente optado
pelo sistema de uma chave medieval que esconderia debaixo do tapete
de entrada, mas decerto que alguém o havia chamado à razão e
impusera um sistema de segurança um pouco mais moderno.
Um homem como Ambrosini não confiava os seus segredos mais
importantes a um computador. De modo nenhum. Não se podia dizer
que o diretor do banco não tivesse a sua razão, pois nenhum sistema
informático era inviolável e bastava um hacker competente com tempo
e engenho para penetrar nele e aceder a todos os seus segredos. Havia
coisas que os bancos ou as empresas não podiam guardar nos
computadores, ou guardando­-as tinham de deixar cópias algures para
o caso de aparecer um vírus ou um hacker que tudo apagasse ou
copiasse. A questão era saber onde estava essa informação
armazenada.
A imagem do pelicano com o peito ensanguentado para alimentar as
suas crias, contudo, voltou a atrair o olhar de Noé. Ignis naturae
renovator integra. As chamas da natureza que tudo renovam. Aquela
mensagem alquímica perturbava­-o, consi­derando em particular a sua
sensibilidade para as coisas da natureza. Abeirou­-se do quadro e
estudou­-o. Pensando bem, não fora por acaso que Ambrosini o havia
colocado ali. Passou a ponta dos dedos pela parte exterior da
moldura, em busca de alguma saliência, mas nada encontrou. Talvez
estivesse a imaginar coisas.
Apesar disso, fez uma última tentativa. Apalpou os painéis por baixo
do quadro e constatou que, embora embutidos na madeira, se
escondiam ali duas pequenas portas. Abriu­-as e elas revelaram um
pequeno cofre. Em vez de números, os botões continham letras,
exatamente como o teclado que dava acesso ao gabinete de
Ambrosini. Tentou a palavra de código que usara para entrar nele.
A­-S­-T­-R­-U­-M .
Não funcionou.
Naturalmente que o diretor do banco havia escolhido outro código.
Mas qual? Tentou várias opções, incluindo o nome de Ambrosini, mas
nenhum deu resultado. Não iria conseguir abrir o cofre. De qualquer
modo, consolou­-se, decerto que o diretor do banco não guardara ali o
que ele verdadeiramente procurava.
Esteve prestes a desistir e, fechando as portas do painel que ocultava
o cofre, chegou a afastar­-se, mas deteve­-se ao con­templar o quadro
pregado à parede. Ignis naturae renovator integra. As chamas da
natureza que tudo renovam. E se a pintura do pelicano que alimentava
as crias com o sangue do seu peito contivesse a chave do segredo do
cofre? Esta possibilidade animou­-o. Porque não? Contemplou a
pintura e pôs­-se a cogitar as mensagens que ela continha. Decerto
Ambrosini usara uma delas como código de acesso. A principal, a
óbvia, era a central. Ignis naturae renovator integra.
“E... e porque não?”
Voltou a abrir o painel e ensaiou as possibilidades oferecidas pela
mensagem alquímica do quadro do pelicano. Tentou IGNITIS, tentou
NATURAE, tentou RENOVATOR e tentou INTEGRA. Nenhuma
funcionou. A seguir testou unificar a frase.
IGNITISNATURAERENOVATORINTEGRA.
Mais uma vez, não resultou. Contemplou de novo o quadro,
considerando se haveria algo que lhe escapara. A mensagem principal
estava sem dúvida no Ignis naturae renovator integra. Se não fosse ela
a chave, que sentido teria pôr ali aquele quadro? Apenas para
decoração? Do que conhecia de Ambrosini, isso era improvável.
Estando por cima do cofre, o quadro não se encontrava ali por acaso.
Tinha uma função. Era ele que guardava a chave do segredo. Mas se
não era ignis naturae renovator integra, como demonstravam os
fracassos das suas sucessivas tentativas, qual o seu segredo?
Recuou um passo e, contemplando a pintura do pelicano,
reconsiderou. No segredo de um cofre não era fácil inserir como
código uma frase completa como ignis naturae renovator integra.
Dadas até as semelhanças entre a mensagem alquímica escondida e a
mensagem cristã explícita, o mais simples seria usar uma... uma...
“Nom d’un chien!”, exclamou, como se um clarão de repente o
iluminasse. “Querem lá ver que ele usou a sigla?”
Como era possível que não tivesse visto aquilo mais cedo? Voltou a
ajoelhar­-se diante do cofre e, com dedos trémulos, digitou a sigla
alquímica de Ignis naturae renovator integra. A mesma sigla de Iesus
Nazarenus Rex Iudaeorum.
I­-N­-R­-I.
O cofre abriu­-se, desvendando o seu segredo.
.

XXV

Encostado à parede exterior das traseiras da mansão, Tomás


respirou fundo antes de esticar o pescoço e espreitar pelo canto da
janela. Os reflexos do vidro dificultavam a observação do interior, mas
à primeira vista tudo lhe pareceu tranquilo. Ganhando confiança,
colou a cara ao vidro e com as mãos a bloquear a luz criou uma
sombra. Agora sim, conseguia ver o interior do velho casarão
senhorial. Tudo parecia normal, não se via vivalma.
Sempre com mil cautelas e a segurar Guida ao colo, avançou cosido
às paredes exteriores até à grande porta de vidro que dava acesso ao
santuário de Noé. Voltou a espreitar pelo canto do vidro e de novo
nada viu de suspeito. O interior parecia quieto, não havia ninguém.
“Helloooo!”, saudou Carioca ao vê­-lo encostado ao vidro. “Come
here!”
A saudação efusiva assustou Tomás. Se algum polícia ainda estivesse
dentro da casa, o pássaro havia­-o denunciado.
“Chiu!”, disse, aflito. “Cala­-te!”
“Come here!”, insistiu o papagaio, evidentemente sem compreender
a complexidade da situação. “Vem cá!”
O historiador afastou­-se rapidamente e esteve tentado a fugir dali e
refugiar­-se de novo no arvoredo do parque natural de Sintra, mas
conteve o ataque de pânico. Em vez de fugir, retirou­-se para um ponto
do quintal de onde conseguia vigiar simultaneamente o espaço em
redor e o interior da mansão. Uma vez aí, ficou atento a qualquer
movimento ou som que denunciasse a presença da polícia.
Irritada com Carioca, Guida não perdeu a oportunidade para
gesticular em língua gestual.
Á
PÁSSARO SUJO.
“Quieta!”
Permaneceram mais alguns instantes em silêncio. Depressa se tornou
claro que não havia nenhuns movimentos nem sons suspeitos. Pelos
vistos estavam mesmo sozinhos. A polícia partira de facto e não
deixara ninguém emboscado.
Bufando de alívio, mas ainda não totalmente tranquilizado, Tomás
voltou para junto da porta envidraçada onde se encontrava o
papagaio e tentou fazê­-la correr. Sem sucesso. Estava trancada. Por ali
não dava. Recuou uns passos e contemplou o exterior da casa.
Identificou várias janelas e dirigiu­-se a uma, tentando abri­-la. Também
se encontrava trancada. Tentou sucessivamente todas as janelas do
rés­-do­-chão, sempre sem conseguir. Como é evidente, a porta principal
estava igualmente fechada.
Desencorajado, o historiador deitou as mãos à cintura. Encarando o
edifício, pôs­-se a considerar formas de lá entrar que não fosse pelas
portas ou janelas do rés­-do­-chão. Havia as janelas do primeiro andar,
mas não tinha maneira de trepar até elas. Mesmo que o fizesse,
pareceu­-lhe pouco provável que encontrasse alguma destrancada. A
verdade é que não via como entrar no solar.
“Estou tramado...”
Libertando­-se dos braços de Tomás, Guida saltou para o chão e
pôs­-se à frente dele a gesticular.
CHAVE.
“Ah sim, a chave daria cá um jeitaço...”
Em resposta, a chimpanzé abriu a boca e, como uma ilusionista no
momento mágico de um número de palco, exibiu a língua. Por cima
estava uma chave.
“Co’a breca!”, exclamou Tomás. “Tu andas... andas por aí com a
chave escondida?” Retirou a chave da boca dela. “Ah, grande
marota!”
Depois de se certificar mais uma vez de que não havia ninguém nas
redondezas, o historiador inseriu a chave na fechadura e rodou­-a. A
porta destrancou­-se e abriu­-se. Era mesmo a chave principal da casa.
Entraram depressa e fecharam a porta.
Enfim descontraindo, Tomás contemplou o interior da resi­dência de
Noé. Ou encontrava ali o que procurava ou Maria Flor, e ele próprio,
estariam em maus lençóis. Não havia tempo a perder. Vasculhou a sala
com o olhar. Estava desarrumada, cortesia da irrequieta Guida, a qual
de resto já se agarrava a uma garrafa de gin e despejava dois dedos
num copo, completando com água tónica. Parecia incrível que um
chimpanzé soubesse preparar um gin tónico.
“Come here!”, soou uma voz familiar oriunda da divisão mais
discreta do solar. “Vem cá!”
Carioca chamava­-o. Tomás esteve para o ignorar, mas recon­siderou.
Se Noé tivesse escondido na casa o dossiê mistério, não o teria decerto
feito na sala; o risco de Guida dar com esses documentos, sobretudo
por desarrumar tudo como nela era costume, afigurava­-se demasiado
elevado. Em bom rigor, parecia a Tomás evidente que o etólogo belga
tivesse ocultado o documento num sítio totalmente fora do alcance da
irrequieta chimpanzé. Ora a única divisão da mansão onde ela não
podia entrar era justamente o santuário. Ou seja, o local onde estava o
papagaio.
Sem perder tempo, o historiador encaminhou­-se para lá.
“Olá, Carioca!”, cumprimentou­-o jovialmente quando entrou.
“Estavas com saudades minhas, confessa lá...”
“Wanna nut”, devolveu a ave. “Quero uma noz.”
Tomás olhou em redor, reavaliando o espaço com a sua estranha
decoração.
“Com fomeca, hem?”, disse distraidamente. “Tem paciência e deixa
o tio Tomás ver tudo com muita atenção, está bem? Depois dou­-te a
tua noz.”
No mesmo instante apareceu Guida no santuário com o seu gin
tónico. Pousou o copo sobre a secretária e pôs­-se a gesticular para
Tomás, lembrando­-o das promessas que lhe fizera quando estavam
escondidos no parque natural de Sintra.
BANANA.
“Já vai, já vai...”
DOCES.
“Está bem.”
ABRAÇA­-ME.
“Uh... bem... isso ainda não.”
BEIJO.
O historiador coçou a cabeça.
“Pois, estou a perceber.”
Ou seja, tinha urgentemente de a distrair com a comida antes que ela
o assediasse ainda mais. Deu por isso um salto à cozinha e foi buscar
nozes, bananas e rebuçados, que distribuiu pelos dois animais. O
papagaio e a chimpanzé puseram­-se imediatamente a comer e
deixaram de lhe infernizar a vida.
Resolvido o problema, Tomás voltou de novo a sua atenção para o
santuário e sobretudo para as gavetas na secretária e as pastas nos
armários. No momento em que ia começar a busca pelo dossiê de
Noé, ouviu um som metálico; eram chaves que rodavam numa
fechadura. Alarmado, voltou­-se para ver o que se passava. Nesse
preciso instante, a porta da entrada abriu­-se e um homem entrou.
Fora apanhado.
.

XXVI

De respiração momentaneamente suspensa, Noé Vandenbosch fitou


o cofre escancarado diante dele. Que segredos havia Ambrosini ali
escondido? O mais provável era que se tratassem de assuntos do
banco que liderava, mas o facto de o cofre se encontrar por baixo da
pintura alquímica do pelicano abria outras possibilidades.
Venceu as hesitações e um pouco a medo meteu a mão no interior do
cofre, a expetativa a secar­-lhe a garganta, e apalpou o interior. Sentiu
com a ponta dos dedos uma superfície de papel rugoso espesso e
percebeu que se tratava de uma cartolina. O cofre guardava papéis.
Pegou na cartolina e retirou­-a do interior, trazendo­-a para a luz do
dia.
Deparou com uma espécie de pasta. No interior havia um chumaço
de papéis unidos por clips. Documentos.
A capa não tinha nada escrito, mas era ilustrada por um símbolo.

O olhar de Noé demorou­-se no símbolo. Conhecia­-o bem, mas não


percebia o que fazia ele no cofre do diretor do banco. O que tinha o
Monas Hieroglyphica a ver com finanças e atividades de usura?
Intrigado, abriu a pasta e consultou os documentos que ela
guardava. De início não compreendeu o texto, pois a documentação
financeira não era definitivamente o seu forte, mas a pouco e pouco, à
medida que folheava as páginas e se inteirava do seu conteúdo, tomou
consciência do que tinha efetivamente em mãos.
“Bordel de bordel!”, murmurou, estarrecido. “Será possível uma
coisa destas?”
Lia e não acreditava no que lia. Não podia ser, uma coisa assim não
era possível, devia haver um qualquer equívoco; aquilo não podia
significar o que parecia significar. Releu duas vezes os documentos
para se certificar de que não estava enganado e que diziam o que ele
realmente pensava que diziam. As releituras tudo confirmaram e
gradualmente começou a aceitar o que inicialmente recusara entender.
Levantou os olhos, pasmado.
“Merde...”
As implicações eram tremendas. Se aquilo era assim, isso signi­ficava
que ele e tanta gente em todo o mundo estavam a ser totalmente
enganados e que... que...
Nem se atreveu a formular a conclusão que se impunha. Haveria
tempo para isso, mas esse não era o momento. A sua prioridade
naquele instante era decidir o que fazer com o documento que estava
nas suas mãos. Deveria guardar aquilo no cofre e fingir que nada tinha
visto? Logo que considerou essa ideia, Noé abanou a cabeça. Não
tinha esse direito. Pelo contrário, o seu dever era justamente o de não
o voltar a esconder. Uma coisa daquelas não podia permanecer longe
do conhecimento público. Precisava de ser revelada. Tinha de o ser.
Consternado, as mãos a tremer, guardou a pasta no saco que
trouxera a tiracolo e fechou a portinhola do cofre e as pequenas
portas embutidas na madeira que o ocultavam. Pôs­-se de pé e pensou
em sair dali a correr, pois o que pusera no saco era demasiado
explosivo e perturbador. Conteve­-se. Por mais extraor­dinários que
aqueles documentos fossem, não fora por eles que ali entrara. A sua
prioridade era outra e não podia sair sem aquilo que procurava.
A atenção de Noé voltou­-se para a estante onde se guardavam as
pastas. Aqueles dossiês não haviam sido ali colocados para efeitos de
decoração, como parecia evidente. Além do mais, tinha visto
Ambrosini por diversas vezes ir àquelas estantes buscar uma ou outra
pasta para consultar documentos de trabalho. Passou os olhos pelas
lombadas e inspecionou os títulos a letra manuscrita.
Numa prateleira encontrou referências a relatórios e contas, a
correspondência, a livros de atas e demais informações de natureza
burocrática. Um soporífero. A segunda prateleira estava preenchida
por pastas relacionadas com várias entidades do setor financeiro com
quem o banco tinha relações, como o Banco de Portugal, o BCE, a
Banque Nationale Suisse, o Bank of England, outros bancos
comerciais, o ministério das Finanças, os regula­dores do mercado
financeiro de vários países e demais instituições do género. Outro
soporífero. Seria possível que Ambrosini tivesse guardado ali todas as
estopadas ligadas à atividade bancária?
Passou para a terceira prateleira e, logo que consultou os primeiros
títulos, os olhos iluminaram­-se­-lhe.
“Ah!”
Naquela prateleira da grande estante que preenchia a parede
encontravam­-se as pastas com “Imparidades em Resolução”.
Estudou­-as uma a uma com redobrada atenção. Cada dossiê era
registado com um título manuscrito que identificava a entidade
devedora contra quem o banco avançara com uma ação legal por
incumprimento do serviço de dívida. Viu uma pasta atrás de outra até,
já perto do final da prateleira, se imobilizar no título de uma delas.
O Jardim dos Animais com Alma.
Ali estava o dossiê do banco sobre o empréstimo que viabilizara, e
agora inviabilizara, o projeto científico na floresta de Sintra. Tirou a
pasta da estante e, com dedos impacientes, abriu­-a e folheou o
conteúdo. Os primeiros documentos eram o contrato assinado pelo
banco com ele próprio, Noé, e com a GreenNaturae para financiar o
Jardim dos Animais com Alma.
“Hmm... e que mais?”
Seguiam­-se listas com os pagamentos mensais e a cadência dos
empréstimos suplementares previstos no contrato inicial, mais a
sucessiva correspondência trocada com várias entidades sobre diversos
aspetos do investimento. Algumas cartas eram suas e a sequência
constituía um histórico sobre a evolução da dívida, os documentos
iniciais, as garantias, de repente as cartas a exigir pagamento
imediato, o processo legal por incumprimento e, por fim, a conclusão
abrupta com o mandado judicial. Por que diabo Ambrosini se tornara
subitamente tão impaciente e não lhe dera espaço, como estava
previamente combinado? Não sabia ele desde o início que o projeto
não era lucrativo? Porque precipitara tudo de um momento para o
outro? O comportamento do banco só se explicava com o que acabara
de ler no documento guardado com o símbolo do Monas
Hieroglyphica.
“Quelle couillonnerie!”, sussurrou entredentes, enervado com o
comportamento do banco. “Que sacanice!”
A pasta do Jardim dos Animais com Alma incluía também
correspondência com outras entidades, sobretudo a GreenNaturae, a
propósito de diversas questões relacionadas com o projeto. Noé
folheou apressadamente essas páginas, pois as trocas de informação
financeira entre Ambrosini e Zwiebel não lhe interessavam, mas
deteve­-se quando chegou à correspondência com outras instituições.
Havia ofícios trocados com advogados e tribunais, mas o que
verdadeiramente lhe chamou a atenção foram as comunicações com
um laboratório de investigação e com várias empresas. Começou a ler
esses textos e o seu ritmo cardíaco disparou à medida que via os
contratos assinados e ia percebendo o sentido daquelas trocas de
cartas.
“Mon Dieu!”
Pálido, desorientado, desesperado, percebeu nesse instante que os
seus meninos, os animais que com tanto amor e dedicação criara e
cuja alma tanto perscrutara, corriam perigo. Um terrível perigo.
.

XXVII

Antes que Tomás tivesse tempo de reagir, o homem que acabara de


entrar na casa saltou para cima dele, derrubando­-o. Os dois rolaram
pelo chão, o intruso a abraçar o historiador como se o acorrentasse,
este a tentar libertar­-se a todo o custo. Tomás sacudiu o corpo com
violência, contorcendo­-se e abanando­-se, mas o abraço manteve­-se
firme; dir­-se­-ia que o atacante o prendia com cordas de aço.
Aos saltos sobre o sofá, a chimpanzé guinchava e multiplicava­-se em
sinais de língua gestual.
MAGOA MAGOA MAGOA.
Tomás estava seguro e bem seguro pelos braços e pernas do intruso,
que se colara às costas dele e o manietava de modo a impedir­-lhe os
movimentos; não via como poderia sair daquele aperto.
“Guida!”, chamou em desespero de causa. “Ajuda­-me! Bate no
homem mau!”
Sempre aos saltos e aos guinchos excitados sobre o sofá, ela mudou
os sinais.
DESCULPA ABRAÇO ABRAÇO DEPRESSA ABRAÇO.
A chimpanzé comunicava e saltava e guinchava. Mas nada fazia.
“Ajuda­-me!”
ABRAÇO DEPRESSA DEPRESSA.
Abraço? O que queria o animal dizer? Pretendia que ele se
reconciliasse com o agressor? De Guida não viria qualquer auxílio,
acabou por perceber. Teria de se desenvencilhar sozinho.
Tirando partido da sua posição dominante, o atacante forçou nesse
instante Tomás a virar­-se de barriga para baixo, de modo a ficar por
cima das costas dele. O adversário já não o controlava apenas com os
braços e as pernas, mas também com o peso do corpo. Isso permitiu­-
lhe libertar um dos braços para fazer algo que o historiador por
momentos não descortinou.
Uma corda passou pelo peito de Tomás e foi aí que ele entendeu.
Estava a ser amarrado. A corda passou uma segunda vez, desta feita
tolhendo­-lhe os braços. Em breve ficaria totalmente à mercê do
desconhecido. Tinha de agir e só dispunha de alguns instantes. Voltou
a contorcer­-se com toda a força e quase se conseguiu libertar, mas o
agressor abraçou­-o de novo para o prender, com a vantagem adicional
de se encontrar por cima. Apesar dos esforços sucessivos, tornou­-se
claro a Tomás que não iria lá.
Foi nesse momento que ouviu a respiração ofegante do
desconhecido. Alguns centímetros atrás da cabeça. Abrira­-se uma
oportunidade inesperada. Projetando a cabeça violentamente para
trás, Tomás atingiu o atacante com a nuca.
“Agh!”
Apanhara­-o em cheio na cara.
Os efeitos foram imediatos. O aperto afrouxou. O historiador rodou
sobre si mesmo e, agitando cotovelos e pernas e sacudindo­-se com
violência, soltou­-se enfim. O agressor ainda tentou retomar o controlo
da situação, mas estava claramente desorientado e fê­-lo
atabalhoadamente. Tomás esquivou­-se ao débil contra­-ataque e,
lançando­-se sobre ele, derrubou­-o e fez­-lhe uma prisão de braço que o
imobilizou de cara sobre o tapete, com o nariz ensanguentado pela
cabeçada que acabara de receber.
Só então o historiador olhou para o atacante e o reconheceu pelo seu
cabelo ruivo.
“Herr Zwiebel?”
Com o braço contorcido por trás das costas, o diretor da
GreenNaturae gemeu de dor.
“Lar... largue­-me!”
Mas o português não o largou.
“Porque me atacou?”
O suíço deixou de se debater e, embora com a cara premida contra o
tapete, olhou de lado para o homem que nesse instante o controlava.
“Assassino!”, vociferou. “Assassino!”
A fúria que sentiu no agressor surpreendeu Tomás.
“Porque diz isso?”
“Você não é o marido da... da...”
“Da Maria Flor, sim. Porque me atacou?”
Embora manietado no chão, Zwiebel cerrou os dentes, sempre
furioso.
“Porque acha?”
“Oiça, eu não tenho nada a ver com a morte do seu amigo.”
“Ai não? Então porque está a polícia à sua procura?”
Tratava­-se de uma boa pergunta. A resposta não era fácil de dar,
uma vez que as circunstâncias eram as que eram.
“A única coisa que fiz foi ajudar a minha mulher a escapar à polícia.
Mais nada. Procuram­-me, não por cumplicidade na morte do
professor Vandenbosch, mas por cumplicidade na fuga dela.”
“A sua mulher matou o Noé!”
“Que disparate!”
“Não é disparate. A polícia deteve­-a por suspeita do homicídio do
Noé.”
“Suspeita não é culpa. A polícia descobriu na carteira dela material
que supostamente mostra que a Maria Flor sabia que a orca que
matou Noé já tinha no passado matado outras pessoas e que esse
animal era a última atração do Oceanário. A Judiciária achou esse
material incriminatório, mas a verdade é que nada prova. O problema
é que ela cometeu o disparate de entrar em pânico e fugir e... tudo se
complicou.”
O diretor da GreenNaturae considerou esta resposta.
“Como sei que está a falar verdade?”, perguntou. “Como sei que
não foi o senhor quem matou o Noé?”
“Claro que não fui eu. Porque haveria de o matar?”
“Por ciúmes, ora essa.”
Ao ouvir esta resposta, Tomás susteve a respiração; havia sido
atingido onde nesse momento menos esperava.
“O que quer dizer com isso?”, questionou entre dentes. “O que está
o senhor a insinuar?”
Fez­-se um silêncio súbito, apenas marcado pelas respirações
ofegantes, enquanto o suíço considerava o que responder.
“Oiça, eu não tenho nada a ver com a vida das pessoas”, esquivou­-
se Zwiebel. “O facto é que você é procurado pela polícia, o que
significa que é suspeito do homicídio do meu amigo Noé. Se o matou,
por algum motivo foi.”
“Já lhe disse que não matei ninguém”, insistiu Tomás. “Sou apenas
suspeito de ajudar a minha mulher a fugir, mais nada. Se tem dúvidas,
porque não pergunta à polícia?”
“Já perguntei. Disseram­-me que a investigação está sob segredo de
justiça e que não podem dizer nada.”
O historiador bufou, agastado. Já só faltava esta do segredo de
justiça para atrapalhar as coisas.
“Ou seja, atacou­-me sem ter a certeza de que sou mesmo responsável
pela morte do professor Vandenbosch...”
“A polícia está à sua procura, não é verdade? Parece­-me
perfeitamente razoável presumir que isso acontece porque é procurado
por estar envolvido na morte do Noé.”
“Não tenho nada a ver com o que aconteceu ao professor
Vandenbosch”, repetiu Tomás. “Nem o conhecia.” Inclinou­-se para o
homem cujo braço torcia e colou­-lhe a boca à orelha. “E você? O que
veio aqui fazer?”
“Vim tratar dos animais.”
A resposta não satisfez o historiador.
“Que animais, se os levaram a todos?”
“O Carioca e a Guida”, balbuciou Zwiebel com um esgar dorido.
“Com o Noé morto e a Maria Flor detida, ficaram abandonados e
achei que devia vir cá para lhes dar de comer. Não fazia a menor ideia
de que você estava aqui.”
Fazia sentido, percebeu o historiador. Se o diretor da Green­Naturae
viera ao Jardim dos Animais com Alma, decerto não seria para o vir
deter. Se fosse para isso, quem teria aparecido seria a polícia. Além do
mais, a GreenNaturae era a organização ecologista a que Noé estava
ligado e que dava apoio a todo o projeto. Não havia afinal sido a
GreenNaturae a avançar com dinheiro para resgatar a propriedade
quando o banco ali entrara para tudo apreender?
Tomás inclinou­-se sobre o ouvido do homem que com pulso de ferro
mantinha preso no chão.
“Oiça, se eu o libertar vai portar­-se bem?”
“Que remédio”, respondeu o suíço com um esgar de dor. “Na
verdade não sou polícia. A Judiciária que investigue a morte do Noé.
É esse o seu trabalho. O meu são os animais e o meio ambiente. Tudo
o resto está para lá das minhas competências.”
O português não sabia se devia acreditar, mas que alternativas tinha?
Iria manter o diretor da GreenNaturae no chão o dia todo? Fechá­-lo­-
ia numa das divisões da casa? Nada disso era viável, percebeu. Teria
de soltá­-lo. Largou o braço de Zwiebel e saiu de cima dele, deixando­-
o levantar­-se.
“Se calhar foi bom ter aparecido”, disse Tomás, tentando reparar os
danos e estabelecer pontes. “O papagaio e a chimpanzé conseguem
por vezes ser insuportáveis. Talvez me possa ajudar a lidar com eles.”
A esfregar o braço dorido e a limpar o sangue do nariz, Zwiebel
ergueu­-se. Guida aproximou­-se dele aos pulos a fazer sinais efusivos
em língua gestual.
CÓCEGAS DEPRESSA.
Não admirava que a chimpanzé não tivesse ajudado Tomás. Sendo
Zwiebel uma visita habitual de casa, era evidente que ela o conhecia
bem. O suíço, de resto, estava evidentemente familiarizado com os
hábitos de Guida, pelo que, já recomposto, correspondeu.
“Queres cócegas, hem? Anda cá, malandra!”
Agarrou nela, atirou­-a ao chão, abriu­-lhe os braços e enterrou­-lhe os
dedos nos sovacos. Guida desatou a arfar nas risadas características
dos chimpanzés, contorcendo­-se de um lado para o outro e fazendo
gestos sucessivos.
NÃO NÃO NÃO NÃO.
O diretor da GreenNaturae parou.
“Não queres?”
Novos gestos.
MAIS MAIS.
Zwiebel lançou mais um ataque de cócegas e a chimpanzé voltou a
contorcer­-se, sempre com as suas gargalhadas arfadas. Ao fim de
alguns segundos, a chimpanzé rolou para fora do alcance dele e pôs­-se
de pé, fazendo mais sinais gestuais.
VAMOS JOGAR À APANHA.
“Não, à apanha não”, recusou­-se o visitante. “Queres dar cabo de
mim?” Fez­-lhe com uma mão sinal para se aproximar e meteu a outra
ao bolso, extraindo uma moeda. “Anda cá.” Percebendo o que vinha
aí, e a guinchar de excitação, Guida obedeceu. Ele fez um gesto
elaborado e a moeda desapareceu­-lhe da mão. “Onde está?”
A chimpanzé pôs­-se a examinar­-lhe a mão, intrigada e fascinada,
mas por mais voltas que lhe desse à mão não encontrou a moeda.
Encarou o visitante e abanou rapidamente o indicador de um lado
para o outro, o gesto para O QUE É, e depois apontou com o mesmo
indicador para a mão dele, o gesto para ISSO.
O QUE É ISSO?
“Estará nas tuas orelhas?”
Guida pôs­-se a examinar as suas orelhas com os dedos, mas nada
encontrou.
NÃO.
Zwiebel esticou a mão para a orelha esquerda dela como se fosse
buscar alguma coisa e, retirando­-a, revelou a moeda entre os dedos.
“Não?”
Espantada, a chimpanzé pôs­-se a dar guinchos e pulos; estava
claramente deliciada com o truque.
Os dois homens riram­-se da reação dela. O ambiente desanuviara.
Fazendo de anfitrião, e sempre a esforçar­-se por normalizar as relações
com o visitante, Tomás foi ao bar e serviu um whisky a Zwiebel.
“Quando andava na faculdade tinha o sonho de ser ilusionista e
cheguei a ganhar uns tostões à custa de espetáculos amadores que
fazia em festas de aniversário”, contou o diretor da Green­Naturae,
cruzando a perna no sofá e bebericando o seu puro malte. “Quando
cá venho, tenho sempre na manga um qualquer truque para a Guida.
Ela adora magia e fica sempre boquiaberta com as coisas que faço.”
“A surpresa dela perante esse truque é interessante, não sei se
reparou”, observou o historiador, sentando­-se no sofá igualmente com
o seu whisky. “Para a Guida é surpreendente que apareça uma moeda
do nada. Isso prova que os chimpanzés têm noção de causalidade.”
Guida pôs­-se nesse momento aos guinchos, exigindo que lhe
prestassem atenção. Constatando que ela não se iria calar, Tomás
virou as costas ao suíço e inclinou­-se sobre a mesa de canto, de modo
a retirar uma revista para dar à chimpanzé e assim a distrair. Não viu
por isso Zwiebel atrás dele erguer o copo de whisky e bater-lhe com
ele na cabeça com toda a força.
Ao impacto, Tomás perdeu os sentidos.
.

XXVIII

A rapariga da receção do banco olhou para ele e franziu o sobrolho,


intrigada. Noé Vandenbosch saíra transpirado do elevador, caminhava
apressadamente com a pasta na mão e vinha com uma expressão tensa
no rosto. Ao passar pela rececionista, contudo, forçou um sorriso e fez
ar de que estava tudo normal.
“Afinal o doutor Ambrosini não está cá”, disse, entregando­-lhe o
cartão de acesso. “Fartei­-me de esperar.”
“Pois, bem que estranhei”, devolveu a rececionista. “Já lhe tentou
ligar?”
A última coisa de que precisava nesse momento era que o diretor do
banco fosse alertado para a sua presença nas instalações. Depois de
tudo o que acontecera nesse dia, saber que ele ali se encontrava faria
soar os alarmes.
“Já lhe telefonei e vou agora ter com ele”, mentiu, levantando a mão
para atirar à rececionista um aceno trapalhão. “Não se preocupe. Até
à próxima.”
Saiu à rua como um touro esbaforido. Sentiu a testa molhada de
suor e secou­-a com as costas da mão. Olhou para o banco público, do
outro lado do passeio, e viu Maria Flor fitá­-lo, com o jornal
esburacado nas mãos. Bufou de alívio e teve vontade de correr até ela
e beijá­-la, mas conteve­-se. Atravessou a rua em passo rápido e, sem
parar, fez­-lhe sinal de que o acompanhasse.
“Isto é um desastre!”, exclamou. “Uma catástrofe! Uma tragédia!”
A portuguesa quase teve de correr para acompanhar a passada
apressada do etólogo belga.
“O que foi?”, perguntou, preocupada com o semblante de desespero
que via nele. “O que aconteceu?”
“Aconteceu que... que...” Ergueu a pasta, sempre a caminhar em
passo rápido. “Olhe, está tudo aqui. Isto é... não tem nome. Uma
verdadeira desgraça!”
“Mas o quê? O que é uma desgraça?”
Transtornado, Noé parou abruptamente a meio do passeio e rodou
sobre os calcanhares, encarando­-a com uma expressão a roçar o
pânico, as mãos a segurarem com força a pasta.
“Tudo!”, exclamou quase num berro. “Descobri coisas ter­ríveis!
Terríveis!”
“Mas o quê?”
Ele olhou para Maria Flor, depois para a pasta, a seguir em redor até
voltar à sua interlocutora; parecia totalmente deso­rientado.
“Encontrei este dossiê horrível! Você... você nem imagina as coisas
que se passam. Vou ter de pensar sobre o que farei com isto. Eu... não
sei. Não sei mesmo o que faça. Tenho de pensar com calma.”
O olhar da portuguesa tombou sobre a pasta que ele segurava de
maneira tão hirta que se diria temer que o seu conteúdo fosse
radioativo.
“Que dossiê é esse? Do que está a falar?”
“É... é uma coisa explosiva”, balbuciou. “Mas não é apenas o
dossiê. Descobri o que eles fizeram aos meus meninos, os meus
queridos meninos que me roubaram. Ah, é horrível!”
Curvando o corpo numa postura de derrota, virou­-se e recomeçou a
caminhar, desta feita sem o vigor com que saíra da sede do banco, mas
com um desânimo que quase o fazia arrastar­-se pelas ruas.
“O que lhes aconteceu?”
Levou ainda alguns segundos a responder, e quando o fez foi num fio
de voz quase inaudível.
“Venderam­-nos”, sussurrou. “Ah, les salauds! Venderam­-nos como
se fossem mercadoria sem alma, meros objetos para se dispor como
bem se entender, como se fossem escravos...”
“Venderam­-nos? Venderam a Guida?”
Ele assentiu com um movimento triste da cabeça.
“A Guida, a Alice, a Gertrudes, a Miss Piggy, o Bolinha, o Napoleão,
a Elvira, a Dora... todos. Todos vendidos. Mera mercadoria.”
“Venderam­-nos a quem?”
“Oh, a quem haveria de ser?”
Noé falou como se a resposta fosse evidente, mas não o era para a
sua interlocutora. Maria Flor não se atreveu, no entanto, a pedir­-lhe
que concretizasse as suas palavras, dado o estado em que se
encontrava, mas, talvez por não sentir por aqueles animais a afinidade
que ele naturalmente sentia, também não se deixou abater.
Cerrou os dentes com resolução.
“Venderam­-nos, hem?”, questionou em tom de desafio. “Pois então
vamos lá e compramo­-los nós.”
A sugestão não entusiasmou o belga.
“Com que dinheiro?”
“Eu empresto­-lhe, se quiser.”
“Empresta­-me quatrocentos mil euros?”
Ela quase se engasgou ao ouvir a quantia.
“Quatr... quatrocentos mil?!”
De olhos derrotados postos no chão, Noé abanou a cabeça com
desespero.
“Ah, mes petits! O que será de vós, minhas queridas e meus
queridos? O que não devem estar a passar neste momento...”
Caminharam num silêncio pesado, os olhos colados ao chão,
perdidos naquele momento de desorientação e tristeza. Ao cabo de
duzentos metros, Maria Flor imobilizou­-se a meio do passeio e voltou
a encará­-lo, o brilho de uma ideia a iluminar­-lhe o rosto.
“Oiça lá, Noé. Como entrou no gabinete do diretor do banco?”
Ele devolveu­-lhe uma careta de incompreensão.
“Não percebo a pergunta.”
“Fez um assalto, não foi?”
O etólogo não entendia onde queria ela chegar com aquelas
perguntas, até porque evidentemente já conhecia a resposta.
“Bem... sim, claro. Não havia outra maneira.”
“Então porque não fazemos agora a mesma coisa?”
Noé manteve uma expressão vazia.
“A mesma coisa?”, questionou. “Quer voltar ao gabinete do
Ambrosini?”
“Não é voltar ao gabinete dele”, corrigiu­-o a portuguesa. “É fazer
um novo assalto. Se não tem dinheiro para recuperar os seus meninos,
há outras maneiras.” Piscou­-lhe o olho. “Maneiras... ilegais, se é que
me faço entender.”
O etólogo lançou­-lhe um olhar hesitante, como se julgasse
compreender a sugestão mas não tivesse a certeza.
“O que está a propor?”, perguntou. “Que... que vá onde eles foram
vendidos e os roube?”
A portuguesa sorriu.
“Ladrão que rouba ladrão...”
Com um movimento resoluto do corpo, Noé recomeçou a caminhar;
parecia evidente que uma tal proposta estava absolutamente fora de
questão. A experiência que acabara de ter, ao penetrar
clandestinamente no gabinete de Ambrosini, fora suficientemente
tensa e enervante para que não tivesse vontade de a repetir. Uma
loucura daquelas cometia­-se apenas uma vez na vida.
Ao vê­-lo tão firme na rejeição daquela ideia, Maria Flor
arrependeu­-se de a ter sugerido. O que não iria ele pensar dela? Não
se atreveu a insistir. Na verdade, começou até a achar que exagerara.
Realmente, no seu voluntarismo tinha ido longe demais. Havia linhas
que não se cruzavam, e roubar, mesmo que animais com alma, era
uma delas.
Ao fim de uma centena de metros, porém, Noé abrandou o passo, a
mente mergulhada no problema e nas opções diante dele para o
resolver, até que se imobilizou por completo e encarou Maria Flor
com a expressão resoluta de quem tomara uma decisão.
“E porque não?”
.

XXIX

A primeira coisa que Tomás sentiu ao recuperar a consciência foi


uma enorme dor de cabeça. Quem diabo lhe tinha dado uma
martelada daquelas na nuca? Abriu os olhos e viu tudo desfocado.
Apercebeu­-se de alguém ao lado dele agarrado a um aparelho.
“... fique descansado”, dizia o homem ao seu lado. “Quando cá
chegar, é só metê­-lo no carro celular e... já está.”
A imagem focou­-se e percebeu que era Dorian Zwiebel quem falava
ao telemóvel. Tentou mexer­-se e não conseguiu. Estava no sofá, com
os pés atados e as mãos amarradas atrás das costas. Tentou libertar­-se,
mas evidentemente não conseguiu.
“Olhe, ele acordou agora mesmo”, observou o diretor da
GreenNaturae para o seu interlocutor ao telemóvel. “Deve estar
ansioso por revê­-lo, hem? Até já, inspetor.”
Desligou e, muito satisfeito consigo mesmo, guardou o apa­relho no
bolso. Tomás fitou­-o com ressentimento.
“Presumo que estivesse à conversa com o inspetor Caparro, da
Judiciária.”
“Os seus poderes de dedução são realmente extraordinários”,
ironizou o suíço. “O inspetor gosta tanto de si que já vem a caminho.”
O português esboçou um esgar; a dor de cabeça não o largava.
“Porque fez isso?”
“O meu amigo Noé morreu e a polícia acha que o senhor e a sua
mulher têm alguma coisa a ver com o sucedido. O facto de andarem
fugidos mostra que não têm a consciência tranquila. O meu dever,
enquanto cidadão e sobretudo enquanto amigo da vítima, é ajudar a
polícia a tirar o caso a limpo. Tão simples quanto isso.”
Estabeleceu­-se um súbito silêncio entre eles. Os factos não o
favoreciam, sabia o historiador. No lugar do suíço talvez tivesse feito
o mesmo. Olhou para a chimpanzé e constatou que estava entretida a
ler a revista que lhe fora buscar no momento em que Zwiebel o
deixou knock­-out. Isso deu­-lhe uma ideia. Para a concretizar, contudo,
precisava de estabelecer uma conversa e manter o suíço distraído. Ora
palheta era coisa que não lhe faltava.
“Quando planeia contar à Guida e ao Carioca que o professor Noé
Vandenbosch morreu?”
O suíço abanou a cabeça.
“Não sei se o farei.”
“Porque não?”, perguntou o português. “Acha que eles não
percebem o que é a morte?”
“Claro que percebem.”
“Se lhes contar que o professor Vandenbosch morreu, terão noção
de que não o voltarão a ver? Como, se nem sequer têm cultura?”
O diretor da GreenNaturae não respondeu de imediato. Ainda
considerou nem se dignar a responder. Espreitou o relógio, impaciente.
O inspetor Caparro ainda estava em Lisboa e levaria uma boa meia
hora a chegar a Sintra. Suspirou. Meia hora à espera. Olhou de novo
para Tomás. Porque não queimar o tempo à conversa?
“É evidente que os animais têm cultura, meu caro.”
Ver a chimpanzé sentada no sofá a folhear um exemplar da National
Geographic era uma visão suficientemente poderosa para mostrar que
a afirmação de Zwiebel não era disparatada.
“A cultura é um dos elementos que distingue o Homo sapiens do
resto dos animais”, fez notar o historiador. “Nós produzimos cultura,
os animais não. Assim sendo, quando diz que os animais têm cultura,
não estará a ir longe demais?”
Zwiebel apontou para Guida.
“Olhe para ela”, disse. “Os atos culturais são também produto de
imitação. Muito do que fazemos, por exemplo, resulta de coisas que
vimos os adultos fazerem quando eramos crianças. Uma das formas de
aprender é por imitação. O que está a Guida a fazer? A ler uma
revista. Como aprendeu ela isso? A ver o Noé fazê­-lo. E como
aprendeu a fazer gin tónico? A ver o Noé. Mas, vendo bem, é assim
que os seres humanos aderem aos atos culturais. As crianças humanas
aprendem a fazer coisas pela simples imitação dos adultos.”
“A revista que a Guida está a ler é um produto da cultura, sem
dúvida, mas um produto da cultura humana”, fez notar Tomás,
empenhado em manter o seu interlocutor distraído para levar a cabo o
seu plano. “Isso não quer dizer que tenham cultura própria.”
“Então o que é cultura?”
O historiador fingiu considerar a questão.
“Cultura é a produção consciente de produtos e comporta­mentos
que englobam coisas como a linguagem, a religião, a arte, as leis, os
costumes... enfim, tudo o que resulta do conhecimento.”
“Os animais fabricam instru­mentos”, observou Zwiebel com um
leve sorriso. “Com base na sua definição, isso é cultura.”
Realmente, como negar que os instrumentos eram produtos
culturais?
“Bem... a questão é determinar se o fabrico de instrumentos por
parte dos animais resulta de comportamentos instintivos, e nesse caso
tal comportamento não é cultural mas biológico, ou se resulta de
ações aprendidas e que variam de região para região.”
O diretor da GreenNaturae bebericou um trago do seu whisky.
“A questão da cultura nos animais foi pela primeira vez colocada em
1952 por um primatólogo japonês. Disse ele que para sabermos se os
animais têm ou não comportamentos culturais, a questão fundamental
é determinar se um indivíduo de uma espécie aprende hábitos de outro
indivíduo e se esses hábitos produzem diversidade comportamental
entre diversos grupos de uma mesma espécie. Como deve calcular, os
behavioristas ocidentais ficaram estupefactos com esta ideia, pois
existe realmente a convicção generalizada no Ocidente de que os
comportamentos culturais são um exclusivo dos seres humanos. Os
animais apenas manifestam comportamentos instintivos, estilo
estímulo­-resposta.”
“Quer­-me cá parecer que vai dizer que essa convicção de que os
animais não podem ter cultura está errada...”
“Com certeza que está”, assentiu Zwiebel. “A primeira descoberta
foi feita no Japão. Ao observar os macacos da ilha de Koshima, a filha
de um professor primário surpreendeu em 1953 uma macaca
adolescente chamada Imo a lavar uma batata­-doce com água antes de
a comer. A informação espalhou­-se como fogo entre a comunidade
científica japonesa, que iniciou um estudo sobre o assunto. Foram
enviados investigadores a Koshima e estes puseram­-se a observar Imo
e todos os outros elementos da sua comunidade. Constataram assim
que o hábito de Imo começou a ser imitado por outros macacos
adolescentes, a seguir pelas respetivas mães e por fim por todos os
macacos da ilha. É importante sublinhar que lavar batatas­-doces não
era um comportamento instintivo desses macacos. Só o ganharam
porque uns começaram gradualmente a imitar outros, até o
comportamento se generalizar entre toda a comunidade. Isso, meu
caro, é um comportamento cultural.”
Tomás mordeu o lábio inferior.
“Hmm... um pouco como os nossos miúdos. Uns começam a usar
calças rotas, outros imitam­-nos na escola e de repente estão todos os
miúdos a usar calças rotas.”
“Isso é cultura. Estamos a falar de comportamentos que não são
instintivos, mas aprendidos. O estudo na ilha de Koshima mostrou
que havia macacos que adquiriam hábitos de outros macacos. Esta
descoberta no Japão foi confirmada por outra descoberta feita na
década seguinte na Tanzânia por uma antropóloga britânica que
observava os chimpanzés do Parque Nacional de Gombe.”
“Está a referir­-se a Jane Goodall?”
“Ah, conhece? Pois, a senhora Goodall constatou que os chimpanzés
metiam paus em colónias de térmitas e depois retiravam­-nos cheios de
insetos e comiam­-nos.”
“Sim, sei que ela demonstrou assim que os chimpanzés usam
instrumentos”, disse o historiador. “E então?”
“Acontece que, pouco depois, outros cientistas viram chimpanzés no
outro lado do continente africano, designadamente na Guiné e na
Costa do Marfim, a abrir nozes com pedras, exatamente como os
instrumentos dos nossos antepassados hominídeos. O problema é que
os chimpanzés que a senhora Goodall observou na Tanzânia não usam
pedras, apesar de as terem em abundância, como é evidente.
Compreende as implicações desta constatação?”
Digerindo a informação, Tomás assentiu com um movimento lento
da cabeça.
“Têm culturas diferentes...”
“É isso mesmo. Os chimpanzés da África ocidental e os da África
oriental pertencem à mesma espécie, pois partilham o mesmo ADN,
mas o facto é que usam instrumentos diferentes. Isso prova que tal
prática não é instintiva, é cultural. Um dia alguém no grupo dos
chimpanzés da África ocidental aprendeu a usar um determinado tipo
de pedra para partir as nozes e os outros, observando­-o, começaram a
emulá­-lo. Nasceu assim uma tradição local que se espalhou pelas
comunidades de chimpanzés da região, um pouco como a lavagem das
batatas­-doces em Koshima. Sabemos hoje que os jovens observam os
adultos e tentam imitá­-los durante anos até conseguirem fazer a
mesma coisa. Já os chimpanzés da África oriental, geograficamente
muito distantes, desenvolveram tradições culturais diferentes. Mais
ainda, os instrumentos de cada comunidade de chimpanzés são cons-­
truídos com estilos diferentes uns dos outros, mesmo tratando­-se de
comunidades vizinhas.”
“Da maneira como põe as coisas, dá a impressão de que era como se
fossem marcas diferentes”, observou Tomás. “Uns com pedras­-
martelo tipo Grundig e outros tipo Philips.”
“Isso mesmo”, confirmou Zwiebel. “Há a este propósito uma
experiência muito reveladora realizada por cientistas japoneses na
Guiné. Uma jovem fêmea de uma comunidade de chimpanzés que
partia nozes kola com uma pedra foi viver para outra comunidade
onde essa prática era desconhecida, pois aí não existiam nozes kola. O
que fizeram os cientistas? Atiraram umas nozes kola para junto deste
grupo e esperaram para ver o que acontecia. Todos os chimpanzés as
ignoraram ou tentaram parti­-las com os dentes, sem sucesso. A jovem
fêmea recém­-chegada, no entanto, pegou numa pedra e pôs­-se a partir
as nozes e a comer o conteúdo. Um grupo de outros jovens
aproximou­-se e começou a observá­-la. Depois os mirones tentaram
imitá­-la, mas não dominavam a técnica e as nozes não se partiram.
Uma semana mais tarde, todavia, dois jovens conseguiram mesmo
quebrar as nozes usando a técnica da recém­-chegada.”
“Pois, deve ser mais ou menos assim que o conhecimento se
propaga”, disse o historiador. “Até porque já li que entre os
chimpanzés são as fêmeas que se transferem de uma comu­nidade para
a outra e portanto são elas que transmitem as novidades.”
“Esse processo de propagação de conhecimento é exten­sível a toda a
ciência desenvolvida pelos chimpanzés, como é evidente.”
Surpreendido por uma das palavras que acabara de escutar, o
português corrigiu­-o de imediato.
“Cultura, quer dizer...”
“Não, eu disse bem: ciência.”
Não tinha sido um equívoco.
“Ciência?”
Depois de engolir de uma só vez todo o resto de whisky que lhe
restava no copo, Zwiebel pousou­-o sobre a mesa de apoio ao sofá e
encarou Tomás com um suave brilho provocatório nos olhos.
“Não sabia que os chimpanzés fazem ciência?”
Ao ouvir a pergunta, o historiador contraiu o rosto numa careta. O
suíço presumiu que se tratava de espanto pela revelação. O que ele
não sabia, é que Tomás alimentava toda aquela conversa para o
distrair porque começara momentos antes um esforço discreto para se
libertar das cordas que lhe prendiam as mãos atrás das costas.
.

XXX

De cartão em riste apontado para o técnico que viera abrir a porta, o


homem e a mulher, ambos de bata branca, entraram no edifício com a
segurança de quem dispunha de toda a autoridade conferida pelo
Estado português e pela entidade reguladora europeia.
“Professor Philippe Bobinet”, apresentou­-se o recém­-chegado num
inglês com forte sotaque francês. “Sou fiscal da EMA, a European
Medicines Agency.” Voltou­-se para o lado e indicou a sua
acompanhante. “Esta é a doutora Galhardo, que representa as
autoridades portuguesas.”
Ato contínuo, também ela mostrou o cartão. Maria Flor e Noé
haviam na véspera forjado os documentos num computador,
decorando­-os com os logótipos adequados extraídos da Internet, ele o
da EMA, ela o do IGAS.
“Adelaide Galhardo, Inspeção­-Geral das Atividades em Saúde”,
identificou­-se Maria Flor. “Estou aqui ao abrigo do despacho número
dez mil setecentos e quinze bê.”
O técnico olhou para um cartão, olhou para o outro, conferiu as
fotografias e os nomes, mais os logótipos das instituições “emissoras”
dos cartões. Tudo parecia regular.
“O que desejam?”
“Viemos realizar uma inspeção de surpresa às vossas ins­talações”,
anunciou Noé num tom pleno de autoridade. “Pre­­ten­demos verificar
se o vosso laboratório funciona em con­formidade com as exigências
legais portuguesas e europeias.”
“Mas... ninguém me avisou de nada.”
“Como eu disse, é uma inspeção de surpresa. Não sei se sabe, mas as
É
inspeções de surpresa são feitas de surpresa. É uma mania que nós
temos quando decidimos fazer inspeções de surpresa, sabe?
Aparecemos de surpresa.”
O técnico do laboratório de pesquisa médica fechou o rosto,
sentindo­-se ridicularizado.
“Pois, mas ninguém me avisou de nada e...”
“Quer que a sua empresa seja encerrada por impedir uma inspeção
de surpresa das autoridades sanitárias?”, cortou o visitante, um tom
ameaçador na voz. “Com a saúde pública não se brinca, meu caro
senhor. Não sabe que é crime impedir as autoridades portuguesas de
inspeção em saúde e a autoridade europeia de regulação dos
medicamentos de verificarem as condições sani­tárias de um
laboratório de pesquisa médica?”
Intimidado com este tom ameaçador, o técnico recuou um passo e
assumiu uma postura defensiva.
“É que... enfim, ainda é muito cedo e o doutor Rui Martins só chega
pelas dez horas, e...”
“Isso não nos interessa para nada”, ripostou Noé, invadindo as
instalações com a autoridade firme de um inspetor. “Viemos cá muito
cedo justamente porque está pouca gente e teremos assim a
tranquilidade de que necessitamos para fazer o nosso trabalho.”
Olhou em redor. “Vamos começar... deixa cá ver...” Arregalou os
olhos, como se lhe tivesse acabado de ocorrer uma ideia. “Olhe,
porque não com os animais? Onde se encontram eles?”
“Na... na cave.”
“Leve­-nos lá.”
“Tenho primeiro de telefonar ao doutor Rui Martins para...”
“Telefonará ao doutor Rui Martins ou a quem muito bem entender
depois de nos levar ao sítio que solicitei”, atalhou Noé. “Queremos
ver a zona onde são feitos os testes aos animais e não aceitamos
manobras dilatórias para que ganhem tempo e escondam certas
práticas ilegais.”
Esta última expressão empertigou o técnico.
“Desculpe, mas nada do que aqui funciona é ilegal”, afirmou, o
orgulho profissional ferido. “O nosso laboratório é uma instituição
homologada e muito prestigiada no meio científico.”
“Folgo em saber isso”, devolveu Noé, sempre no seu papel de
inspetor da EMA. “Se é como diz, nada tem a esconder. Leve­-nos
imediatamente à zona onde mantém os animais para que iniciemos a
inspeção sanitária.”
O técnico do laboratório de pesquisa médica decidiu que o melhor
seria não complicar as coisas; os inspetores vinham decididos,
mostravam­-se agressivos e apresentavam­-se devidamente
credenciados. Quem era ele para impedir que fizessem o seu trabalho?
Se houvesse problemas, a chefia que se entendesse com eles.
“Venham comigo.”
Meteram por uma porta e desceram umas escadas até encontrarem
uma porta de ferro a bloquear o acesso à cave. Uma tabuleta pregada
na porta assinalava a vermelho Zona de Segurança. Os dois visitantes
consultaram o texto escrito por baixo; continha instruções sobre como
deveriam proceder no interior e os cuidados a ter. Lendo aquilo, dir­-
se­-ia que estavam prestes a entrar numa zona de contaminação
radioativa, química ou biológica.
“Diz aqui que os animais são perigosos”, constatou Noé. “Por causa
do que lhes inocularam?”
“Sim, mas também devido ao comportamento deles”, respondeu o
técnico. “Alguns são muito agressivos e já houve incidentes bem
desagradáveis. No mês passado um colega meu foi mordido e teve de
ir ao hospital.”
“Porque acha o senhor que os animais se comportam dessa
maneira?”
“Porque são selvagens, ora essa. O senhor nem imagina. Têm
comportamentos muito violentos e há que ter cuidado com eles.
Arrancam­-nos uma mão, se puderem.”
O “inspetor” nada disse, mas o seu semblante carregado deixou o
técnico na dúvida sobre o que lhe ia na cabeça. O técnico voltou­-se
para a porta e teclou um código no teclado da fechadura; apenas
quatro algarismos.
A porta de ferro abriu­-se e os três entraram na ala dos animais. A
primeira coisa que ouviram foram guinchos e a seguir sentiram um
cheiro forte a urina e fezes. A primeira porta à esquerda dava para
uma divisão com macacos. Um urrava por detrás das grades com os
olhos fixos nos visitantes, ameaçador. Outro estava agarrado às grades
e, desvairado e a babar saliva, fazia força como se as quisesse
arrancar.
“Estão a ver?”, perguntou o técnico, como se expusesse a prova do
que havia dito momentos antes. “São perigosíssimos.”
“Se os senhores meterem uma criança numa jaula destas e a
deixarem a apodrecer dentro dela durante meses e meses, anos até, o
que acha que lhe irá acontecer?”, questionou Noé com ironia.
“Tornar­-se­-á dócil? Aprenderá a cantar como Pavarotti e a pintar
como Renoir? Põe um guardanapo ao pescoço antes de comer e pede
perdão se arrotar? Acha que se tornará poeta?”
As sucessivas perguntas e o sarcasmo que as impregnava
embaraçaram o técnico.
“Bem... uh... quer dizer...”
“Trate os animais como bestas e criará bestas”, disse o etólogo.
“Respeite­-os e lide com eles com humanidade e verá que o respeitam.
São o que nós fazemos deles. Exatamente como acontece com as
crianças.” Apontou para as fezes e a urina que se amontoavam por
baixo das jaulas. “Vocês limpam isto quantas vezes por dia?”
Embaraçado com os comentários do inspetor e receando que a
resposta à pergunta pudesse comprometer o laboratório na
fiscalização em curso, o técnico deixou­-os passar para a frente e deu
meia­-volta para sair dali.
“Sobre esses assuntos terão de falar com o doutor Rui Martins”,
retorquiu defensivamente. “Limitei­-me a trazer­-vos cá, como pediram.
Vou agora telefonar ao doutor Rui Martins para o informar da
inspeção e já volto.”
Sem dar tempo de levantarem objeções, o homem escapuliu­-se. Em
bom rigor, isso convinha aos dois visitantes. Embora a partir desse
instante estivessem numa corrida contra o relógio, preci­savam de ter
as mãos livres para fazer o que ali os levara.
Logo que o técnico desapareceu, meteram pelo corredor.
“Depressa”, disse Noé. “Não temos muito tempo antes que aquele
idiota volte com ordens do chefe e dos advogados.”
A primeira porta à direita deu para um compartimento pequeno,
quase apenas uma despensa, onde se apinhavam do chão ao teto
várias jaulas apertadas. Em cada jaula havia um macaco. Alguns
andavam em círculos, sinal de stress severo. Um dava sucessivas
cabeçadas nas grades e outros estavam sentados com ar mortiço,
claramente doentes, poças de vómitos e fezes ao lado. Numa outra
jaula um animal jazia imóvel, evidentemente morto.
“Meu Deus!”, sussurrou Maria Flor, chocada. “Olhe o que lhes
fizeram!”
Noé nada disse; era evidente que estava familiarizado com aquele
tipo de instalação.
Ouviram guinchos de chimpanzés e correram para a sala de onde
eles vinham. O compartimento era maior do que o anterior e estava
coberto pelo que pareciam ser frigoríficos de aço inoxidável tapados
com vidros plexiglas, por baixo umas barras para deixar cair as fezes e
a urina. Para além dos guinchos, ouviam­-se pancadas surdas e o
rumor indiferente de ventoinhas para a circulação de ar. Um
chimpanzé habitava cada “frigorífico” sem nenhum objeto; nem um
brinquedo ou sequer uma manta. Perscrutaram os rostos dos animais
um a um, sempre à procura.
“Não está aqui...”
Por baixo de cada vidro havia uma inscrição. Leram a primeira.
Espécime 920
Infetado a 23 de março
SARS­-CoV­-2 Manaus
Sem se conter, Maria Flor agarrou o manípulo deste “frigorífico” e
rodou­-o. A porta de plexiglas abriu­-se, mas o chimpanzé no interior
não reagiu. Estava aninhado a um canto, balouçando o corpo para a
frente e para trás, e movia os lábios como se falasse para si mesmo.
Noé reconheceu o comportamento.
“Ficou demente...”
A portuguesa estendeu os braços para o interior do “frigo­rífico”.
“Vamos tirá­-lo.”
“Nem pensar!”, travou­-a o etólogo, puxando­-a para trás. “Não vê
que está infetado? Não podemos fazer nada por ele. Aliás, nem por ele
nem por nenhum dos outros. Por mais que isto nos perturbe, não nos
deixemos distrair. Concentremo­-nos no que aqui nos trouxe.”
Fecharam a porta. Antes de saírem passaram os olhos pelo conteúdo
dos restantes “frigoríficos”, todos com marcações em baixo a indicar
números, datas e vírus e bactérias; via­-se sobretudo VIH, cólera,
hepatite B e várias variantes de Covid­-19. Nuns depararam com
chimpanzés também encolhidos em posição fetal, a balouçarem­-se
para a frente e para trás, os olhos opacos, as expressões vazias.
Noutro viram um chimpanzé imóvel, encostado à parede, quatro
parafusos metálicos na cabeça; era evidente que tinha sido objeto de
pesquisa especial.
“O quem lhe fizeram?”
“Implantes cerebrais”, disse Noé. “Usam­-nos para fazer descargas
elétricas destinadas a puni­-lo quando não executa uma qualquer ação
pretendida.”
No “frigorífico” ao lado aperceberam­-se de dois chimpanzés bebés,
apertados um contra o outro num espaço do tamanho de uma grande
caixa de sapatos. Pela data marcada na porta percebia­-se que estavam
ali fechados havia três meses. Tinham as mãos estendidas para os
visitantes, as palmas coladas ao vidro, como se suplicassem que os
salvassem.
“Coitados!”, gemeu a portuguesa. “Querem contacto e afeto.”
Num outro “frigorífico” viram um chimpanzé, também pequeno, a
olhá­-los com uma expressão de súplica. Pelas marcações estava ali
havia quatro meses e tinha sido inoculado com VIH. Maria Flor não
resistiu e abriu a porta. O chimpanzé estendeu­-lhe as mãos e ela
entrelaçou­-se nos dedos dele. Beijou­-o na testa. Soltando um guincho
infantil, o pequeno chimpanzé abraçou­-se a ela. Ficaram assim alguns
segundos, até que Noé fez um sinal para o relógio.
“Temos de ir embora.”
Com relutância, Maria Flor devolveu o chimpanzé bebé ao
“frigorífico” e, uma vez fechado lá dentro, viu­-o abraçar­-se a si
próprio com os seus pequenos braços e guinchar sem controlo.
“Meu Deus!”, exclamou, as lágrimas nos olhos. “Olhe o estado em
que eles estão!”
Abandonaram o compartimento e voltaram para o corredor.
Estavam com pressa, mas Noé sentia­-se já com dificuldade em conter
a revolta que lhe fervia no estômago. Fez um gesto a indicar os
sucessivos compartimentos que se abriam nas laterais.
“Chamam a isto ciência”, rosnou entredentes. “Fecham animais
sociais em caixas minúsculas e deixam­-nos sozinhos. Veja como
sofrem.” Abanou a cabeça em gesto de reprovação. “Nada mudou na
ciência, hem? Nos anos 1950 faziam­-se experiências em que se
deixavam macacos totalmente sós nas jaulas e ao fim de algum tempo
eles desenvolviam sintomas agudos de depressão e esquizofrenia.
Balouçavam­-se, batiam com as cabeças nas paredes... eu sei lá.”
Voltou a apontar para os compartimentos onde os animais
guinchavam. “Nada aprendemos. Sabe o que lhe digo? Os animais
não são estes desgraçados. Somos nós. Os que fazem isto e os que
deixam fazer. Todos nós.”
De todos os compartimentos vinha uma cacofonia de sons de
pancadas, guinchos de aflição ou fúria e murmúrios indiferentes de
ventoinhas. Concentraram­-se apenas naqueles onde eram guardados
chimpanzés, verificando cada jaula e cada “frigorífico”, estudando
cada rosto, lendo cada inscrição.
Entraram numa das últimas divisões, formada apenas por jaulas
onde se encontravam animais de espécies diferentes; tratava­-se
claramente do compartimento reservado aos recém­-chegados, aqueles
que esperavam ainda que os inoculassem com um qualquer vírus ou
bactéria. Nesse instante, guinchos de chimpanzé tornaram­-se
frenéticos numa das caixas com barras de aço. O olhar deles desviou­-
se necessariamente para aí, pois o barulho era imenso.
“Meu Deus!”
Era Guida.
.

XXXI

Por mais força que fizesse e por mais que tentasse, Tomás não
conseguia libertar­-se das cordas que lhe atavam as mãos atrás das
costas. Não era fácil soltar­-se, ainda por cima porque tinha de se
concentrar na conversa para manter o seu captor distraído.
“Os chimpanzés fazem ciência?”
Zwiebel mostrava um semblante imperturbável.
“O fabrico de ferramentas é ciência, meu caro”, disse o suíço. “Mas
faço notar que a ciência dos chimpanzés não se limita a isso. Eles
desenvolveram cultura médica e farmacêutica, uma vez que usam
plantas medicinais para se tratarem. Tribos humanas como os Mende
aprenderam com os chimpanzés que tipos de plantas devem utilizar
para tratar certas maleitas, e foram até confrontadas com plantas com
propriedades terapêuticas com as quais não estavam familiarizadas
mas que os chimpanzés conheciam bem. A medicina dos chimpanzés
revelou­-se de tal modo eficaz que até as grandes empresas
farmacêuticas ocidentais estão agora a usar essas plantas para
produzir antibióticos e agentes antivirais.”
Sempre a contorcer as mãos atrás das costas para tentar criar uma
folga nas cordas, o historiador soltou uma risada incrédula.
“Caramba, andamos a ser tratados com medicina chimpanzé!”,
exclamou. “Quem diria, hem?”
“Não são só os chimpanzés, meu caro”, acrescentou Zwiebel. “Os
babuínos da Etiópia mais propensos a sofrer de esquistos­somose
comem um fruto, chamado balanites, que reduz o impacto desse
parasita. Os babuínos que não sofrem da doença não comem
balanites. Também os camelos do Quénia recorrem a uma planta
medicinal que mata ténias, enquanto os tigres de Bengala e os chacais
consomem frutos tóxicos que eliminam parasitas no interior do corpo.
Rinocerontes e ursos fazem o mesmo, aliás. Tal como os elefantes.”
“Uau!”
“Depois há a questão da linguagem. Os chimpanzés comunicam
sobretudo por gestos, como já deve ter reparado, mas descobriu­-se
que os gestos variam de comunidade para comu­nidade. Por exemplo,
a ordem para parar. Num lado da floresta, é uma mão erguida com a
palma voltada para a pessoa a quem a comunicação é dirigida, como
um polícia sinaleiro. Noutro lado é um gesto em colher e noutro ainda
é um abanar da mão. É como se fossem línguas diferentes, está a
perceber? Na Tanzânia, comuni­dades de chimpanzés separadas por
apenas oitenta quilómetros têm gestos diferentes para pedir para
coçar. Ou veja o caso do convite para o sexo. Os chimpanzés de
Mahale convidam as fêmeas com cio pondo uma folha diante da boca
e deixando­-a cair, mas numa comunidade vizinha esse convite é feito
abanando um ramo. Línguas diferentes, meu caro. Tal como os seres
humanos, os chimpanzés aprendem a linguagem no seio da sua
comunidade e cada comunidade tem a sua própria linguagem. Um
gesto que signi­fica uma coisa numa comunidade não tem qualquer
signi­ficado noutra, tal como uma palavra em alemão nada significa
entre os portugueses. Tudo isso é cultura.”
O olhar do historiador desviou­-se para Guida, que continuava
entretida com a sua National Geographic.
“Não admira que ela se tenha adaptado tão bem aos objetos
culturais humanos...”
“O que estamos a descobrir com os animais é que a cultura resulta
de um comportamento conformista, em que os elementos de um grupo
se imitam mutuamente para mais bem se integrarem e serem aceites.
Usam por isso como referência elementos da sua comunidade, figuras
que servem como modelos a copiar.”
“Bem, se for a ver isso é exatamente o que acontece connosco”,
argumentou Tomás. “Os nossos filhos imitam o penteado de um
determinado cantor de sucesso, ou as calças de uma atriz ou os ténis
que fazem mais frisson lá na escola. Nós bebemos o sumo que um
determinado desportista famoso nos aconselhou num anúncio
televisivo ou usamos um relógio que vimos no pulso do James Bond
num filme de ação enquanto dava um soco no bandido.”
“Os animais fazem o mesmo, meu caro. Imitam a Imo a lavar a
batata­-doce porque ela é a macaca adolescente mais gira de Koshima e
partem as nozes com uma pedra porque a mamã, que sabe sempre
tudo, faz isso com muita pinta. Num jardim zoológico foi avistado um
chimpanzé macho alfa a fazer uma prova de força com o pelo todo
eriçado e a terminá­-la com uma pancada numa porta metálica. Dez
minutos depois, viu­-se um chimpanzé adolescente a ostentar­-se no
mesmo local com o pelo todo eriçado e a concluir essa exibição com
uma pancada na mesma porta. O adolescente estava a imitar o seu
herói, da mesma maneira que nós imitamos o ar cool de James Bond.
Isso, meu caro, é cultura.”
“É a mesma coisa com os outros animais?”
“Veja o caso das baleias. Elas usam a produção de bolhas como
técnica de caça para juntar os peixes e assim comê­-los. Acontece que
em 1980 foi observada uma baleia que introduziu uma técnica nova.
Para além da produção de bolhas, essa baleia golpeava a superfície da
água com a sua cauda para assustar os peixes e comprimi­-los ainda
mais. Ao fim de algum tempo, as baleias que mais andavam com essa
baleia começaram a fazer o mesmo, e em breve já todas as baleias da
região usavam essa nova técnica de caça. A moda pegou e tornou­-se
cultural entre aquela comunidade de baleias.”
“Imagino que se encontre a mesma coisa nos pássaros”, disse o
historiador. “Se eles são tão inteligentes como os primatas, como se
diz, forçosamente terão de manifestar comportamentos culturais.”
“Olhe para os instrumentos fabricados pelos corvos da Nova
Caledónia, por exemplo. Descobriu­-se que os estilos variam de lugar
para lugar. Em algumas partes da ilha eles produzem instrumentos
estreitos, e noutras mais largos, segundo tradições culturais enraizadas
há várias gerações. Até os sotaques dos animais revelam cultura.
Descobriu­-se que os pardais da savana pipilam hoje de maneira
diferente da que os seus antepassados pipilavam há trinta anos. Mais
se descobriu que, ao escutar um congénere a chilrear, um pássaro
consegue perceber de que região ele é. Os dialetos e os sotaques fazem
parte do património cultural das comunidades de pássaros. O mesmo
acontece noutros animais. As vocalizações dos chimpanzés, por
exemplo, variam em função de dialetos regionais. Ao comer uma
maçã, um chimpanzé de um grupo grunhe de uma maneira e um
chimpanzé de outro grupo de outra. Há até o caso interessante de um
chimpanzé de um jardim zoológico holandês que foi para um zoo
escocês. De início, o holandês tinha uma vocalização diferente da dos
escoceses quando comia maçãs, mas depressa a mudou para se
harmonizar com os locais.”
Tomás sorriu.
“Aprendeu a grunhir em escocês...”
“Todos os animais são especiais, meu caro”, sublinhou o ecologista.
“Olhe para os cachalotes, por exemplo. Os cientistas que os estudam
descobriram que os sons que eles emitem variam em função dos clãs a
que pertencem. Ou seja, os cachalotes também têm dialetos.”
“Noto que há um elemento presente em todos esses casos de difusão
da cultura”, observou o português. “A imitação. Um animal vê outro
a comportar­-se de determinada maneira e imita­-o. Mas o animal
copiado não tem necessariamente intenção de passar cultura ao outro.
Não há um ensino intencional, digamos assim. É simples imitação.”
Zwiebel sorriu.
“Durante muito tempo pensou­-se que o ensino era um exclusivo dos
seres humanos. Entre os chimpanzés, os jovens aprendem com os mais
velhos a pescar térmitas, a partir nozes e a recolher mel das colmeias.
Acontece que esse ensino sempre se mostrou passivo. Os mais velhos
limitam­-se a deixar os jovens observá­-los.”
“Então o ensino ativo é um exclusivo dos seres humanos.”
O diretor da GreenNaturae ergueu a mão para o travar.
“Era o que se pensava. O primeiro grande rombo nessa bonita teoria
ocorreu quando se começaram a estudar as formigas.”
“As formigas?”, estranhou Tomás. “Mas as formigas são insetos...”
“As formigas parecem­-nos todas iguais, razão pela qual os cientistas
as marcaram com tintas de diversas cores para conseguirem segui­-las,
sabendo onde estava cada indivíduo marcado. Depois destruíram os
buracos onde viviam, para as obrigar a procurar um novo sítio para
viver e seguirem o que cada uma fazia. Viram algumas formigas a
identificar locais adequados, o que mostra que elas são capazes de
avaliar propriedades, e depois viram como comunicavam às outras
que naquele sítio havia um bom terreno para construir novas casas.
Foi assim que se cruzaram com uma branca que conhecia um bom
terreno e que levava atrás uma vermelha mais nova, a qual não tinha
ido ainda ao local. A branca foi ensinar­-lhe o caminho.”
“Mas as formigas não se orientam devido a uma marca química que
cada uma vai deixando pelo caminho?”
“É verdade, mas também pela escolha de determinados pontos de
orientação. Por exemplo, aprendem que junto de determinada folha é
preciso virar à esquerda. Acontece que os cientistas tinham visto antes
a branca a ir e vir ao novo local muito depressa, mas agora que ela
guiava a vermelha, que não conhecia o caminho, passou a caminhar
muito mais devagar, pois a vermelha ia parando aqui e ali e virando a
cabeça de um lado para o outro, para memorizar os pontos de
orientação. Sempre que a aprendiz vermelha decorava um troço,
tocava com as antenas na professora branca e esta avançava mais um
pouco. Quando a aprendiz vermelha parava para memorizar um novo
troço, a professora branca parava também. Chegava a parar quase
trinta segundos, à espera de que a aprendiz vermelha memorizasse o
novo troço, e só retomava o caminho quando a aprendiz vermelha lhe
tocava nas patas, como se dissesse que já tinha aprendido aquela
parte.”
O historiador fez um ar de incredulidade.
“As formigas fazem isso?”
“Os cientistas filmaram­-nas a fazer isso, meu caro. Foi a pri­meira
vez que se viu um animal não humano a ensinar ativamente outro no
seu meio ambiente natural.”
“E logo um inseto!”, exclamou Tomás, pasmado. “Como é possível
que um inseto seja capaz de exercer ensino ativo, o que obviamente
requer algum nível de consciência, mas um chimpanzé não? Não é
estranho?”
“Eu nunca afirmei que os chimpanzés não eram capazes de ensinar
ativamente”, corrigiu o ecologista. “Eles não tinham sido vistos a
fazê­-lo, o que é diferente. Mas os cientistas que educaram chimpanzés
em suas casas já os viram a ensinar outros chimpanzés. Por exemplo,
Washoe, a primeira chimpanzé a saber comunicar por língua gestual,
foi observada a ensinar língua gestual ao seu filho adotivo Loulis.
Sempre que alguém trazia comida, ela fazia para o filho o gesto
comida e depois moldava­-lhe a mão para imitar esse gesto que
significava comida e indicava a boca. Fê­-lo várias vezes até ele
compreender. Noutra circunstância Washoe foi observada a pôr uma
cadeira à frente de Loulis e a fazer com as mãos o gesto de sentar
cadeira cinco vezes consecutivas. Loulis tornou­-se assim o primeiro
animal não humano a aprender língua gestual de outro animal não
humano, e isso aconteceu como resultado de ensino ativo.”
“Bem, se os chimpanzés são capazes de ensino ativo num habitat
humano, forçosamente também o serão no seu habitat natural...”
“Com certeza. Um primatólogo que estudava uma comunidade de
chimpanzés na floresta Tai, na Costa do Marfim, observou certa vez
uma jovem fêmea a tentar partir uma noz com uma pedra, mas sem
sucesso. De repente apareceu a mãe e tirou­-lhe a pedra da mão. A
seguir rodou a pedra na mão com um movimento superlento, para que
a filha visse como se fazia, e partiu algumas nozes. Por fim, devolveu a
pedra à jovem e foi­-se embora. A jovem chimpanzé pegou então
corretamente na pedra, tal como a mãe acabara de lhe ensinar, e
conseguiu enfim partir nozes. Portanto, sim, tal como as formigas e os
seres humanos, também os chimpanzés conseguem ensinar
ativamente.”
“E os outros animais?”
“Desde a descoberta de que as formigas ensinavam no seu meio
ambiente natural, foram encontrados mais casos. Percebeu­-se que os
golfinhos fêmeas, por exemplo, ensinam os filhos a apanhar peixe.
Elas capturam um peixe e libertam­-no junto dos filhos para que eles o
apanhem. Quando o peixe escapa, as mães apanham­-no novamente e
atiram­-no mais uma vez para junto dos filhos para que eles retomem o
exercício. Ou veja o caso das orcas, que costumam matar elefantes­-
marinhos. Como essa caça é perigosa, pois os elefantes­-marinhos são
enormes e elas arriscam­-se a ficar encalhadas nas praias, as orcas
levam os filhos para uma praia sem elefantes­-marinhos e ensinam­-lhes
as técnicas de caça. Começam por atirá­-los para a areia para que
aprendam a regressar à água. Depois levam­-nos a assistir a uma caça
aos elefantes­-marinhos. O terceiro passo é levá­-los para uma caçada,
mas sempre a protegê­-los e a ajudá­-los a regressar à água quando um
elefante­-marinho os atira para a praia. Tudo isto é feito com um custo
para as orcas adultas, pois enquanto ensinam caçam menos elefantes­-
marinhos. Também as chitas e os gatos domésticos ensinam as crias a
caçar, trazendo­-lhes presas vivas e deixando que os filhos as matem, e
as lontras­-de­-rio levam as crias para a água e ensinam­-nas a mergulhar
e a nadar, enquanto os suricatos mais velhos ensinam os jovens a
apanhar presas em segurança. Começam por presenteá­-los com presas
mortas, depois feridas e por fim intactas. Se as presas forem
escorpiões, primeiro levam­-lhes escorpiões mortos e depois vivos,
embora estes últimos com o veneno previamente neutralizado.”
“As aves não?”
“Claro que as aves também são professoras. Os pássaros tagarelas
ensinam as crias qual o pipilar que significa que vem aí comida,
enquanto os falcões treinam os filhos a apanhar presas no ar. Fazem
um aviso prévio aos filhos e depois largam uma presa morta sobre o
ninho, para que as crias a apanhem em voo. Entre os papagaios, há
um exemplo famoso. Como sabe, a primeira vez que se demonstrou
que os papagaios entendiam o que diziam foi com um papagaio
chamado Alex. Acontece que a cientista que trabalhou com Alex
arranjou um segundo papagaio, chamado Griffin, para também testar
as suas capacidades cognitivas. Quando a cientista fazia uma pergunta
e Griffin dava a resposta errada, Alex gritava: está errado! E sempre
que Griffin falava de uma maneira confusa, por exemplo
pronunciando mal uma palavra, Alex berrava­-lhe: fala melhor!”
Tomás forçou uma gargalhada.
“Está bem, os animais são capazes de ensinar”, aceitou. “Mas você
tem de reconhecer que existem formas mais elevadas de cultura que
são exclusivas dos seres humanos.”
“Como por exemplo?”
“Olhe, a arte. Nós somos capazes de produzir arte, mas os animais
não. Alguma vez viu um quadro pintado por um animal?”
O olhar do seu interlocutor voltou­-se para a chimpanzé, que por
essa altura já largara a National Geographic e fora buscar as suas
bonecas, que espalhara pelo chão e com quem conversava por língua
gestual.
“Guida, vai buscar as tuas pinturas.”
A chimpanzé desapareceu por instantes e voltou à sala com três
molduras e um vestido preso por baixo dos braços. Sentou­-se no chão,
diante dos dois homens, e exibiu­-lhes os quadros enquanto
comunicava sinais em língua gestual.
OLHEM POR FAVOR.
Os olhos de Tomás cravaram­-se nas telas que as molduras
enquadravam. Uma mostrava linhas negras e manchas azuis
pintalgadas de vermelho, outra uma espécie de explosão de negro com
estilhaços encarnados, e a terceira uma mancha verde com um núcleo
negro. Muito importante, todos os quadros pareciam obedecer a uma
certa lógica; não eram uma simples soma de borrões.
O historiador soergueu uma sobrancelha, desconfiado.
“Foi a Guida que fez isto?”
A reação suscitou um sorriso ao diretor da GreenNaturae.
“O Noé contou­-me que quando adquiriu a Guida já ela era capaz de
desenhar, de usar lápis e de pintar com os dedos. Ele limitou­-se a dar­-
lhe mais instrumentos, como pincéis e melhores tintas, e a Guida
pintou... o que está a ver.”
Tomás permaneceu especado a olhar para as telas.
“Caramba!”
“Foi uma grande surpresa. A verdade é que os chimpanzés
conseguem pintar quadros de incrível harmonia estética. Em 1981
organizou­-se até a primeira exposição de arte chimpanzé, com
pinturas feitas pelos primeiros chimpanzés que falavam em língua
gestual, como Washoe, Tatu, Dar e Moja. Cada chimpanzé tem o seu
próprio estilo artístico, mas em geral eles produzem obras que os
críticos classificam como arte de expressionismo abstrato, embora um
deles, a Moja, tenha sido o primeiro animal não humano a fazer
pintura representacional. Ao que parece, Moja gostava de pintar
pássaros. Elemento interessante, os próprios chimpanzés escolheram
os títulos de cada um dos seus quadros. Washoe designou uma das
suas pinturas ‘Vermelho quente vibrante’. Algumas dessas pinturas
revelaram­-se tão boas, como as de um chimpanzé chamado Ally, que
uma aluna de História da Arte as levou a um crítico para uma
avaliação formal. Não lhe explicou que se tratavam de quadros de um
chimpanzé, claro. Limitou­-se a dizer­-lhe que eram trabalhos de um
amigo. O crítico de arte ficou extasiado com o que viu e, muito
excitado, afirmou: eu sabia que o Pollock ia voltar!”
Riram­-se os dois.
“Tenho de admitir que estes trabalhos são realmente bonitos”,
reconheceu Tomás. Virou­-se para a autora. “Parabéns, Guida! Está
excelente.”
A chimpanzé parecia inchar de orgulho.
ABRAÇA­-ME.
O historiador corou.
“Uh... depois.”
A recusa não desencorajou Guida. Pousou os quadros e vestiu o
vestido que trouxera do quadro. A seguir começou a mirar­-se ao
espelho.
“Olhe para ela”, disse Zwiebel. “Adora vestir­-se e ver como ficou.
Está sempre a fazer isto. Usa vestidos, camisas, sapatos... sei lá. O Noé
queixava­-se das razias que ela às vezes lhe fazia ao guarda­-fato. Este
tipo de comportamento é observado em muitos chimpanzés educados
por seres humanos, sobretudo fêmeas como Washoe, Tatu, Moja e
Lucy. Os cientistas que acompanhavam Washoe constataram que ela
gostava sobretudo de vestidos vermelhos. Já Tatu era obcecada pela
estética do negro. Punha bâton negro, andava com uma carteira negra
e calçava sapatos negros, além de que preferia tinta negra para pintar.
Até a palavra que na língua gestual ela usava para fixe era negro.
Moja, por seu turno, usava um cachecol na cabeça e um cinto à
cintura. Penteava­-se, maquilhava­-se e depois admirava­-se longamente
ao espelho. Parece que passava horas e horas nisso. A Guida faz a
mesma coisa.”
“Esses podem simplesmente ser comportamentos a imitar os
humanos que os educaram.”
“Não se deixe iludir, meu caro. Os animais têm noções de estética e
são capazes de apreciar a beleza e de gerar produtos artísticos. Tal
como Noé com a Guida, os cientistas que educaram a chimpanzé Lucy
constataram que ela já era capaz de desenhar quando foi para casa
deles e rabiscava muitos círculos, coisa que os chimpanzés em geral
não pintam. Outros fazem coisas semelhantes e não foram educados
por seres humanos. Os etólogos que acompanham os chimpanzés nas
florestas registam compor­tamentos que parecem envolver sentido
estético. Por exemplo, numa reserva no Zimbabwe uma chimpanzé
começou a colocar erva sobre a orelha, aparentemente por motivos
decorativos. Os outros chimpanzés viram­-na e puseram­-se a fazer a
mesma coisa, iniciando assim uma moda. Por outro lado, foram vistos
na Tanzânia dois chimpanzés que subiram para o topo de uma colina,
sentaram­-se e deram as mãos enquanto aparentemente contemplavam
o pôr­-do­-sol. Um outro cientista observou outro chimpanzé passar
quinze minutos a, pareceu­-lhe, admirar o crepúsculo.”
Por esta altura já Guida tinha um bâton vermelho­-vivo entre os
dedos e pintava os lábios, sempre a apreciar­-se ao espelho.
“Portanto, estamos a falar em pinturas, em maquilhagem, em
vestidos e sapatos bonitos, em contemplação de paisagens ao pôr­-do­-
sol...”
“Os chimpanzés são também capazes de recombinar símbolos e
realinhar as palavras para produzir sentidos novos, característica que
antes se pensava ser um exclusivo dos seres humanos”, acrescentou o
ecologista. “Muito importante, fazem­-no de formas criativas. Lucy,
quando confrontada com limões, chamou­-lhes fruta de cheiro. Isto,
meu caro, é uma forma rudimentar de poesia metafórica.”
“E os outros primatas?”
“A mesmíssima coisa. No jardim zoológico de Osnabrück, por
exemplo, foi vista uma fêmea orangotango a pegar em folhas de
alface, a metê­-las na cabeça e depois a mirar­-se ao espelho, ajeitando
as folhas para ficar melhor na imagem. Essa fêmea não tinha sido
educada por seres humanos. Uma outra orangotango fêmea foi vista a
usar um colar de missangas que ela própria fizera sem que ninguém a
ensinasse.”
Tomás hesitou em formular a pergunta clássica, pois a resposta
derrotava­-o sempre. Mas decidiu fazê­-la, pois permitia prolongar a
conversa enquanto prosseguia camufladamente os seus esforços para
se libertar.
“São só os primatas que têm sentido estético e produzem objetos
artísticos?”
“Como deve imaginar, encontra­-se sentido estético em várias
espécies diferentes”, indicou Zwiebel. “O papagaio Alex, o primeiro
que se demonstrou capaz de entender o que dizia, balouçava a cabeça
ao ritmo da música disco, o que prova ter sentido musical. Já os
concertos em violoncelo de Haydn punham­-no num estado de transe.
Fechava os olhos e balouçava gentilmente o corpo. Aliás, basta ir à
Internet ver imagens de animais a reagir à música. A catatua Snowball
tornou­-se famosa por dançar ao ritmo das músicas dos Queen ou de
Michael Jackson, enquanto o papagaio Loro cantava Pavarotti e o
papagaio Menino entoava A Flauta Mágica de Mozart. Há igualmente
um vídeo a mostrar um cão chamado Buddy Mercury a tocar piano e
a uivar como se cantasse, à maneira de Elton John ou Stevie Wonder.
Há mesmo quem tenha visto uma tartaruga que só se movimentava
quando a música tocava. Também os golfinhos são capazes de
coreografias complexas e muito criativas. Uma treinadora conseguiu
explicar a dois golfinhos que só receberiam comida se fizessem algo
novo. A partir daí, os dois punham­-se às voltas debaixo de água,
como se estivessem a combinar um novo número, e depois emergiam e
faziam algo completamente inesperado e nunca visto, como se fossem
dançarinos profissionais.”
“Pois, mas há uma coisa que nenhum animal é capaz de fazer”, disse
Tomás. “O sentido estético nos seres humanos é tão forte que uma
mulher em França, outra no Congo e outra na China são compelidas a
decorar as suas casas e a pôr flores à janela, por exemplo. Nenhum
animal é capaz disso.”
“Está totalmente enganado”, afirmou Zwiebel de forma perentória.
“As aves têm considerações estéticas na construção dos seus ninhos,
embora o façam por motivos integrados na função reprodutora.
Durante muito tempo pensou­-se que esse trabalho era inato, quase
instintivo, mas hoje sabe­-se que é cultural. Elas aprendem e
desenvolvem as técnicas e o gosto. Os pássaros­-tecelões, por exemplo,
são assim chamados justamente pela sua capacidade de tecer ninhos
muito complexos, o mesmo acon­tecendo com os chapins­-rabilongos,
capazes de erguerem construções com seis mil peças separadas.”
“Não vejo que haja aí particular arte.”
“Não subestime a dimensão artística da arquitetura, meu caro. De
qualquer modo, só pode dizer isso porque decerto não conhece as
habilidades dos pássaros morus. Quando as fêmeas regressam ao
ninho, os machos oferecem­-lhes flores para decorar o espaço onde
vivem ou para elas usarem como colares.”
“Os pássaros enfeitam­-se?”
“Isso não é nada comparado com o comportamento dos pássaros
pavilhões, que vivem na Austrália e na Nova Guiné. Estas aves
constroem pavilhões incríveis, decorando­-os com flores e outros
objetos escolhidos especificamente pela sua cor, tamanho e formato,
com preferência pelo azul, como é o caso das penas azuis da cauda de
um papagaio, das flores de lavanda, de fragmentos de cobalto, dos
frutos azuis das árvores quandong, dos delfínios azuis... eu sei lá.
Sempre que uma flor murcha ou um fruto se estraga, substitui­-os
prontamente. Estas decorações são dispostas de maneira a
sobressaírem num tapete de galhos amarelos que eles estendem
harmoniosamente à entrada dos pavilhões. Muito significativo, os
pássaros pavilhões colocam os objetos maiores mais longe da entrada
e os mais pequenos mais perto, de forma a criar junto de quem entra
no pavilhão a ideia de que todos os objetos são pequenos e assim
gerar a ilusão de que o pássaro pavilhão e os seus objetos coloridos
são enormes.”
“Espere aí”, interveio Tomás. “Isso implica o domínio da
perspetiva...”
O diretor da GreenNaturae sorriu.
“Assim é, de facto. Os pássaros pavilhões conhecem a perspetiva.”
O historiador estava atónito.
“Mas... mas a perspetiva apareceu na pintura apenas no século
xiv!”, exclamou. “E apareceu nessa altura de forma rudimentar, com
Giotto. Só no século xv acabaria por ser popularizada, graças aos
quadros de Filippo Brunelleschi. Como é possível que uma ave domine
conceitos estéticos que só no final da Idade Média entraram na arte
humana?”
Zwiebel mirou­-o com uma expressão vagamente trocista, como se a
pergunta que o seu prisioneiro acabara de formular contivesse nela
própria a resposta.
“Ainda acha que só os seres humanos são capazes de ter sentido
estético e de criar arte?”
“As provas são as que são”, aceitou Tomás, sempre discretamente a
contorcer as mãos num esforço para se libertar. “Mas ainda não
respondeu à pergunta que lhe fiz originalmente. Como encaram os
animais a morte? Será que percebem que não voltarão a ver o
professor Noé Vandenbosch? E, já agora, sentem amor por ele?”
A chimpanzé voltara a brincar com as suas bonecas e o diretor da
GreenNaturae desviou por momentos o olhar para ela antes de
respirar fundo e responder por fim.
“Claro que os animais sabem o que é o amor.”
Foi nesse instante que a corda que amarrava as mãos de Tomás
cedeu.
.

XXXII

A guinchar e aos saltos, excitada por reconhecer os visitantes e


ansiosa por sair da caixa onde se encontrava encerrada, Guida largou
as barras de ferro e multiplicou­-se em sinais de língua gestual.
TIREM­-ME DAQUI TIREM­-ME DAQUI.
Noé ajoelhou­-se diante da jaula e debruçou­-se sobre a fechadura que
a trancava.
“Já vai. Tem calma.”
DEPRESSA DEPRESSA.
Depois de constatar que a jaula estava fechada a cadeado, e não
tendo ali a chave, o etólogo virou­-se para a sua acom­panhante.
“O alicate?”
TIREM­-ME DAQUI DEPRESSA POR FAVOR.
Maria Flor estendeu­-lhe o instrumento. Noé prendeu­-o ao cadeado e
partiu­-o com um claque metálico. Ato contínuo, a porta da jaula
soltou­-se e escancarou­-se. A chimpanzé saltou para o colo do belga,
abraçando­-o com força.
“Pronto, pronto...”
ABRAÇA­-ME ABRAÇA­-ME.
Guida guinchava de alegria, apertando e beijando Noé e dando
saltos ao colo dele; estava eufórica.
Uma voz soou atrás deles.
“O que se passa aqui?”
Sobressaltados, viraram­-se e viram o técnico que ali os trouxera
especado a olhar para eles com uma expressão de incredulidade.
“O que estão a fazer?”, questionou o homem, mais assertivo. “Não
podem tirar os animais das jaulas!”
Recuperando o sangue frio, o etólogo pôs­-se de pé e encarou o
técnico, com Guida ao colo.
“O tratamento ministrado a este animal é inaceitável!”, disse com
firmeza, a indignação a incendiar­-lhe as palavras. “Absolutamente
inaceitável! Não têm vergonha?”
Os olhos do técnico saltitaram entre o rosto de Noé e a chimpanzé,
que permanecia agarrada ao seu protetor; era visível que a cena o
deixara confuso.
“Desculpe, mas... não percebo”, titubeou. “Isto é a sala de
acolhimento. O que há aqui de inaceitável?”
“Não vê o estado deste animal?”, questionou o belga. “Devia ter
sido mantido em quarentena!” Ergueu a mão com o dedo em riste. “É
um escândalo! Os senhores estão a pôr em causa a saúde pública! Já
se desencadearam pandemias por menos, como bem sabemos! Em
Bruxelas saber­-se­-á disto!”
O técnico arregalou os olhos, sem entender a causa de declarações
tão contundentes.
“Mas... mas...”
Sempre a segurar Guida, Noé passou pelo técnico com passo
resoluto e começou a percorrer o corredor, com Maria Flor no
encalço.
“Isto não irá ficar assim, ouviu?”, exclamou, a indignação sempre a
incendiar­-lhe a voz. “Vai haver consequências! Ai vai, vai! E não serão
poucas!”
Recuperando da surpresa, o homem do laboratório correu atrás dos
visitantes que se haviam apresentado como inspetores.
“Esperem! Onde vão?”
Os dois visitantes nem pararam.
“Este espécime tem de ser analisado”, disse o belga. “Revela
sintomas de uma doença contagiosa muito perigosa. Vamos transferi­-
lo imediatamente para quarentena.”
O técnico ultrapassou­-os e barrou­-lhes o corredor, impedindo­-os de
prosseguir.
“Não podem sair daqui com o animal!”
“Deixe­-nos passar”, insistiu Noé. “Afaste­-se! Não vê que está em
causa a saúde pública?”
“Precisamente por isso”, disse o profissional do laboratório com
súbita firmeza. “Os animais inoculados não podem sair do laboratório
sem medidas especiais.”
“Este chimpanzé não foi ainda inoculado”, interveio Maria Flor,
vendo as coisas mal paradas. “Não vê que ele tem uma doença
contagiosa diferente? Precisa de ser submetido a testes no laboratório
da Inspeção­-Geral das Atividades em Saúde. Temos lá os reagentes e o
equipamento necessário para as análises adequadas e para o isolar em
quarentena.”
“Também temos tudo isso aqui.”
“Estou a falar de reagentes específicos e de equipamento específico.”
O homem não cedeu.
“Nenhum animal sai daqui sem a papelada toda em ordem e sem
que a sua saída obedeça ao protocolo devido”, insistiu. “Isto não é o
da Joana, ouviram? Há regras e temos de as respeitar.”
Tornava­-se evidente que o técnico não iria ceder, fossem quais
fossem as ameaças, pois pelos vistos conhecia bem o protocolo de
segurança sanitária e sabia­-se defendido por ele. Estavam num
impasse e os dois visitantes tinham noção de que o tempo corria
contra eles. Em breve iniciar­-se­-ia o horário laboral e apareceriam
mais profissionais do laboratório e decerto o próprio diretor, o que
tornaria totalmente impossível a conclusão da operação. Precisavam
de agir — e depressa.
Só havia uma maneira.
“Saia da frente!”, ordenou Noé, avançando contra o homem que lhe
cortava o caminho. “Este animal tem de ser retirado daqui o mais
depressa possível porque...”
“Não!”
Os corpos dos dois homens embateram e não havia dúvidas de que o
técnico, um jovem possante claramente em forma, era mais forte do
que um intelectual como Noé. Este, todavia, contava com uma arma
secreta. E estava ao seu colo.
Vendo o homem embater em Noé, e achando que o seu protetor se
encontrava em perigo, Guida reagiu de imediato. Saltou para cima do
adversário e, com um gesto brutal, agarrou­-lhe os cabelos pela nuca e
arrancou­-lhe uma mão­-cheia de uma assentada. Apanhado de surpresa
pela brusquidão e violência do ataque, o técnico berrou de dor e
tombou no chão, agarrado à cabeça.
O caminho ficou assim livre.
“Vamos!”
O etólogo pegou na chimpanzé, tirando­-a de cima da sua vítima, e
com ela ao colo e Maria Flor atrás correu pelo cor­redor em direção à
saída. Cruzaram a porta de ferro, a portuguesa fechou­-a atrás deles
para trancar o técnico na cave, e subiram as escadas a toda a
velocidade.
Desembocaram na receção, onde vários profissionais do laboratório
entravam para iniciar mais um dia de trabalho. Vendo duas pessoas de
bata branca com um chimpanzé ao colo, esta­caram e ficaram a olhar,
estupefactas com a cena.
“Deixem passar!”, disse Maria Flor, mostrando a quem o quisesse
ver o seu “cartão”. “Inspeção­-Geral das Atividades em Saúde. Este
espécime tem de ser retirado imediatamente por razões de segurança
sanitária. Abram alas!”
Surpreendidos e sem conhecerem os factos, presumindo mesmo que
os “inspetores” da IGAS sabiam o que faziam e se o faziam era
porque havia razões que a isso compeliam, os empregados do
laboratório obedeceram e deixaram­-nos passar.
Os dois entraram no automóvel, Maria Flor ao volante e Noé ao
lado com a chimpanzé ao colo, e arrancaram a toda a velocidade. Iam
tensos e só descontraíram quando abandonaram o perímetro do
laboratório e meteram pela estrada que conduzia a Sintra.
A portuguesa ia concentrada na condução quando sentiu uma mão
pousar­-lhe no braço. Olhou para o lado e constatou que era Noé que
a tocava. Um gesto de reconhecimento pelos riscos que ela acabara de
correr. Ou talvez algo mais.
.

XXXIII

“O amor é o sal das emoções dos animais...”


As palavras de Dorian Zwiebel ficaram a pairar no ar, tão grandes
eram as suas implicações. Para Tomás, contudo, o importante não era
o que o seu captor dizia, mas o facto de a corda que lhe amarrava as
mãos atrás das costas ter cedido. Ganhara folga. Continuava atado, é
certo, mas com jeito conseguiria libertar­-se totalmente. Com jeito.
Com tempo. E com paleio.
“Como podemos ter a certeza de que é mesmo amor o que os ani-­
mais sentem, e não um mero comportamento de sobrevivência e
reprodução?”, questionou o historiador, sempre a alimentar a
conversa para manter o suíço distraído. “O amor é um conceito que
os seres humanos usam para exprimir ligações afetivas relacionadas
com duas situações ligadas à reprodução. Uma diz respeito ao
parceiro de atividade sexual e a outra ao produto da atividade sexual,
as crias. Dizemos assim que temos amor pelo parceiro do sexo, a
mulher ou o marido, e pelo resultado da atividade sexual, os filhos.
Seja qual for a maneira como encaramos as coisas, o amor é
indubitavelmente uma emoção ligada à procriação.”
Zwiebel ponderou esta forma de definir o amor e as suas
ramificações sobre o que sabia acerca dos animais.
“O amor é uma das emoções mais fortes e os animais são seres
emocionais”, estabeleceu. “Qualquer dono de um cão ou de um gato
o sabe. O cão abana a cauda quando está contente e arreganha os
dentes quando se sente furioso. Como os mamíferos em geral estão
evolutivamente mais próximos de nós, muitas das reações emocionais
deles são semelhantes às nossas, o que nos cria a ilusão de que eles são
os únicos animais com emoções, mas o fenómeno é muito mais vasto.
Até Freud observou que as células nervosas dos lagostins são iguais às
dos seres humanos! Encontram­-se emoções nos cães, nos cavalos, nos
elefantes e nos golfinhos, é verdade, mas também nos pássaros, nos
peixes... até em insetos e em moluscos! A questão não é saber se os
animais têm emoções, mas perceber como é possível que a ciência se
comporte como se eles não as tivessem. Como se explica que os
cientistas, supostamente tão inteligentes, neguem o óbvio? E, no
entanto, ainda há gente respeitável na ciência que acha que quando se
separa uma cobaia das suas crias e a cobaia grita e as crias também,
isso não é emoção, é apenas uma reação reflexa, tipo tosse.”
“Sim, mas... como se prova que um animal sente amor?”
“Pela simples observação. O cão não lambe o dono para lhe mostrar
o seu afeto e não se mostra triste quando o dono o ignora? Calcula­-se
que vinte por cento dos cães sofrem imenso quando os donos saem de
casa, exatamente como as crianças quando veem os pais saírem ou
uma pessoa apaixonada quando vê o parceiro ir­-se embora. Há uma
hormona, a oxitocina, que está presente sempre que uma pessoa se
sente apaixonada. Pois descobriu­-se que os corpos dos cães e dos
donos emitem oxitocina quando se encontram juntos. O que me
parece natural. Sem amor não haveria maneira de explicar a forte
ligação que se estabelece entre um cão e o seu dono.”
“Pois, todos sabemos como é a relação dos cães com os seres
humanos. Mas... e os outros animais?”
“A mesma coisa. Os elefantes mostram enorme atenção na forma
como acompanham e protegem as crias, com mães, tias e avós
empenhadas na segurança e bem­-estar geral. Uma cobaia que não sabe
da cria vem a correr quando a ouve chamar. As crias de chimpanzé
ficam emocionalmente arrasadas quando são sepa­radas das mães.
Tudo isso é amor, meu caro.”
Contorcendo as mãos para libertar um dedo, Tomás disfarçou com
um movimento da cabeça a indicar Guida.
“E no caso dos chimpanzés educados por seres humanos?”
“Não há diferença. Uma psicoterapeuta americana chamada Vera
Gatch adotou uma chimpanzé fêmea, a quem chamou Maybelle, e
durante anos não a largou uma única vez. Ao quarto ano teve de ir a
uma conferência noutra cidade e deixou Maybelle em casa. A
chimpanzé entrou em depressão, ficou doente e quando Vera regressou
já Maybelle tinha morrido.”
“Caramba!”
“Há muitas histórias do mesmo género. Um cientista americano que
educou uma chimpanzé como se fosse sua filha, a Lucy, revelou que
ela exibia uma panóplia variada de emoções muito humanas, como
afeto, ira, alegria, ciúme, ternura, cobiça, ganância, inveja, ansiedade,
crueldade, preocupação, sentido de proteção, consideração pelos
outros e, sim, amor. Igualmente importante, Lucy tinha noção dos
sentimentos das pessoas. Sempre que os dois elementos do casal
discutiam, por exemplo, tentava separá­-los e distraí­-los. Quando a
mãe humana se mostrava triste ia confortá­-la, acariciando­-a,
abraçando­-a e beijando­-a. Se alguém estava doente, mostrava­-se
igualmente ternurenta, fazia­-lhe festas com as mãos e trazia comida.
Uma vez o cientista que assumira o papel de pai sentiu­-se indisposto e
vomitou para a retrete. Lucy foi confortá­-lo e, imagine, bateu na
retrete como se a castigasse.”
O olhar do historiador desviou­-se para a chimpanzé, que ao lado
deles brincava ainda com as suas bonecas.
“A Guida faz o mesmo?”
“O Noé contava episódios semelhantes. Na verdade, este
comportamento nem deveria ser surpreendente. Há esquilos que
escolhem um elemento do sexo oposto e procriam unicamente com
ele. O mesmo acontece entre as aves. Aliás, encontra­-se até mais
comportamento monogâmico nos pássaros do que nos mamíferos.
Muitos corvos formam casais que duram a vida inteira... embora
alguns machos possam catrapiscar outras fêmeas se a sua amada não
estiver a olhar.”
Tomás sorriu; não tanto pelo que ouvira mas por ter conseguido
libertar um segundo dedo.
“Isso soa muito humano...”
“Não vê também os casais de periquitos que passam todo o tempo a
juntar os bicos como se se beijas­sem e a arrulharem entre eles como se
partilhassem palavras meigas? Em que é isso diferente do amor
humano?”
“Que eu saiba os periquitos não declamam poemas à sua amada...”
“Mas cantam­-lhes sonetos”, foi a resposta pronta. “Sabemos hoje
que uma importante parte dos chilreios dos pássaros são na verdade
melodias de sedução. Umas aves seduzem as fêmeas pelos chilreios,
outras pela dança, outras pela magnificência dos pavilhões que
constroem e decoram. Esses cantos, essas danças, essas decorações de
sedução são os equivalentes, nos pássaros, às nossas canções de amor,
aos nossos poemas, aos nossos convites para jantar, aos nossos
cuidados para nos apresentarmos mais atraentes, aos nossos atos de
sedução. De certa forma o amor é o mecanismo que a natureza
concebeu para convencer muitos animais, incluindo os seres humanos,
a terem comportamentos arriscados, como a defesa daqueles que
amam, ou penalizadores, como privarem­-se de comida para alimentar
aqueles que amam. Sem amor, todos os animais se limitariam a fazer
cál­culos frios e racionais sobre o que lhes era pessoalmente vantajoso
e evitariam todo e qualquer comportamento de risco em prol de
outrem. Mas não é isso o que acontece, pois não?”
Tomás considerou a questão.
“Bem, a verdade é que os cães sentem amor pelos donos.”
“As histórias a esse respeito são infindáveis. O papagaio Alex
sentia­-se atraído pelos homens altos e loiros que visitavam o
laboratório da sua dona, enquanto o papagaio Tiko, de Joanna
Burger, tentava seduzir Joanna e tinha ciúmes do marido dela,
atacando­-o quando ele se aproximava da mulher. Já as chimpanzés
Washoe e Lucy atiravam­-se descaradamente aos rapazes bonitos que
lhes surgiam pela frente. Mas talvez a história mais surpreendente seja
a da relação amorosa entre o golfinho Peter e a sua treinadora,
Margaret Lovatt. Margaret fazia experiências cogni­tivas com Peter e a
certa altura começou a notar que o golfinho tinha ereções ao pé dela.
De início, quando isso acontecia, dava ordens para colocar Peter
noutro tanque com uma golfinho fêmea, para que ele desse vazão às
suas necessidades sexuais. O problema é que a transferência para o
outro tanque dava imenso trabalho e consumia muito tempo, pelo que
ela começou a satisfazê­-lo com a mão.”
“O quê?”
“A sério. O Peter tinha uma ereção e a boa da Margaret fazia­-lhe um
servicinho à maneira. O problema é que isso se soube e causou uma
grande escandaleira. O financiamento do projeto foi suspenso e
Margaret afastada. Peter ficou deprimido por ter deixado de ver a sua
amada humana e semanas mais tarde cometeu suicídio.”
“Oh.”
“Os animais sentem amor, o que pensa você?”
Depois de soltar um suspiro, Tomás desviou o olhar para a
chimpanzé.
“O que me está a dizer é que a Guida tem amor pelo Noé.”
“As histórias dos cientistas que educaram chimpanzés e das emoções
que observaram neles provam que estes primatas sentem amor pelos
seres humanos que fazem parte da sua família, pelo que não é difícil
de acreditar que Guida sinta amor pelo Noé e que vá reagir muito mal
quando souber da morte dele. Estou aliás a pensar em nunca lhe
contar a verdade. Vou dizer­-lhe que o Noé está de viagem ou outra
coisa qualquer, pois temo a reação dela.”
“É capaz de ser melhor”, concordou. “Se já houve chimpanzés que
morreram de desgosto só porque os pais humanos adotivos se
ausentaram por uns dias, imagine como não poderá reagir ela.” Voltou
a encarar o seu captor. “Como são os chimpanzés entre eles? Mostram
sinais de amor?”
“A primeira vez que o fenómeno foi notado aconteceu, creio eu, na
década de 1870 no jardim zoológico de Filadélfia. Não sei se sabe,
mas os chimpanzés são promíscuos e fazem sexo com vários parceiros
diferentes. O registo do zoo de Filadélfia, contudo, menciona a
existência de um casal inseparável. Um dia ela morreu e o
companheiro, após a tentar reanimar, começou a gritar. Os
responsáveis do zoo escreveram que nunca tinham ouvido gritos
semelhantes de um animal, uma espécie de ah­-ah­-ah­-ah­-ah que soava
a choro convulsivo acompanhado de gemidos de desespero. Chorou
assim o dia inteiro e no dia seguinte permaneceu quieto a gemer.”
“Parece aceitável presumir que se ele parecia amá­-la é porque a
amava de facto”, concluiu Tomás. “E na selva? Há casos desses?”
“É importante que perceba que as observações no habitat natural,
sendo mais difíceis de fazer, estão igualmente repletas de episódios do
mesmo género. Jane Goodall, por exemplo, conheceu um chimpanzé
na selva da Tanzânia que, apesar de já ser autossuficiente, era tão
ligado à mãe que entrou em depressão e morreu pouco depois de ela
falecer. Certa vez foi vista uma chimpanzé fêmea a transportar pela
selva o cadáver do seu bebé durante vinte e sete dias. Há ainda muitas
observações de chimpanzés que caem das árvores enquanto
transportam os seus bebés e que, em vez de caírem de barriga,
esmagando assim as suas crias mas talvez sobrevivendo elas próprias,
procuram cair de costas. Elas morrem, mas as crias sobrevivem.”
O historiador emitiu um assobio baixo.
“Sacrificam­-se pelos filhos”, murmurou, impressionado. “Isso é o
maior ato de amor...”
“O que nos traz a uma outra história de chimpanzés educados por
seres humanos”, acrescentou Zwiebel prontamente. “Uma das
tratadoras de Washoe, a primeira chimpanzé que aprendeu a
comunicar por língua gestual, estava grávida. Washoe costumava
apalpar­-lhe o ventre e fazer­-lhe perguntas sobre o bebé que aí vinha.
Acontece que a tratadora sofreu um aborto e durante alguns dias não
apareceu. Os chimpanzés não apreciam ser ignorados pelas pessoas de
quem gostam, pelo que, quando a tratadora regressou ao trabalho,
Washoe explicou­-lhe que estava aborrecida por ela não ter aparecido.
A tratadora decidiu contar­-lhe a verdade e disse­-lhe que não aparecera
porque o seu bebé tinha morrido. Ao ouvir isto, a chimpanzé baixou a
cabeça e fitou o chão. A seguir voltou a encarar a tratadora e fez o
sinal CHORAR, tocando­-lhe por baixo dos olhos, onde as lágrimas
caem. É preciso notar que, quando os chimpanzés choram, não vertem
lágrimas. No final, Washoe pediu à tratadora para se abraçarem.
Ambas percebiam o que era o amor e a dor profunda e irreparável de
se perder alguém que se ama.”
Tomás permaneceu um longo instante em silêncio, aparentemente a
assimilar o que esta história lhe dizia sobre os chimpanzés e o amor,
na verdade ocupado com a libertação do terceiro dedo.
“E os restantes animais? Que tipo de observações foram feitas?”
“As diferenças não são muitas, embora naturalmente variem de
espécie para espécie. Golfinhos fêmeas foram observadas a manter o
cadáver das crias à tona de água durante dias. Também uma orca foi
avistada em 2010 a empurrar durante seis horas o cadáver da cria
junto à ilha de San Juan. A mesma coisa com as baleias. Quando uma
baleia­-jubarte moribunda deu à praia em Long Island, o faroleiro
revelou que ouviu outra baleia chamar durante toda a noite com sons
de angústia. Já o etólogo Frans de Waal tinha um casal de gralhas cuja
fêmea um dia desapareceu. A gralha macho chamou por ela durante
dias e dias, ao mesmo tempo que inspecionava o céu. Ao fim de algum
tempo deixou de chamar e de perscrutar o céu e morreu. Se isto não é
amor, meu caro, o que é amor?”
O olhar do historiador desviou­-se para a cortina que ocultava o
acesso ao santuário, onde se encontrava o papagaio da casa.
“O Carioca?”, quis saber. “Acha que ele sente amor pelo Noé?”
“Claro que sente.”
Quarto dedo libertado.
“Como pode provar uma coisa dessas?”, questionou Tomás, sempre
preocupado em manter a conversa a fluir. “Que indícios existem de
que os papagaios são capazes de amar?”
“Os papagaios são das aves mais inteligentes e já lhe mostrei que as
aves sentem amor”, foi a resposta de Zwiebel. “Suspeita­-se de que até
os peixes sentem amor, pois foi detetada oxitocina nos corpos deles.”
“Os peixes?!”
“Extraordinário, não é? Mas vou­-lhe só contar uma pequena
história que considero elucidativa a propósito dos papagaios. A
cientista que provou que estes pássaros compreendem o que dizem
chama­-se Irene Pepperberg. Ela obteve a prova com um papagaio­-
cinzento africano chamado Alex. Um dia, no final da jornada de
trabalho, Irene despediu­-se de Alex no momento de desligar as luzes e
ir­-se embora. Antes que isso acontecesse, o papagaio disse­-lhe: fica
bem, amo­-te. Ela respondeu que o amava também e Alex perguntou­-
lhe: vens amanhã? Irene assegurou­-lhe que sim, desligou a luz e saiu.
No dia seguinte Alex foi encontrado morto, aparentemente de ataque
cardíaco. Reparou quais foram as suas últimas palavras? Foi dizer a
um ser humano, neste caso uma mulher, que a amava. Depois disto,
como se pode duvidar que os animais amam?”
Tomás respirou fundo. Tinha enfim libertado a mão esquerda.
.

XXXIV

Ao meter pelas estradas sinuosas da serra de Sintra, o automóvel


abrandou. Ao volante, Maria Flor havia aliviado a pressão no
acelerador; não só não queria ser apanhada pela polícia como receava
despistar­-se. As curvas nos caminhos da serra eram apertadas e as
bermas estreitas, o que aumentava os riscos e a forçava à prudência.
Por essa hora já o laboratório havia decerto lançado o alerta e as
autoridades não teriam dificuldade em perceber que tinha sido o
anterior dono da chimpanzé, ou seja Noé, quem a fora resgatar.
Espreitou para o lado e constatou que o etólogo se encontrava mais
calmo. Mantinha Guida no colo e ambos trocavam mimos; dir­-se­-iam
pai e filha. Mas a tensão desaparecera e ele parecia descontraído. Noé
voltara mesmo a tocar­-lhe mais uma vez no braço de uma forma
ambígua. De uma maneira ou de outra, Maria Flor precisava de
resolver aquele assunto com ele e sobretudo com ela própria; era uma
mulher casada, mas sentia­-se atraída por aquele homem. Por outro
lado, estavam a meio de uma crise grave que requeria atenção urgente.
Tinham acabado de cometer um crime e ela arriscava­-se a ter de
enfrentar a justiça por aquele ato, mesmo sendo verdade que se fizera
algo ilegal fora para corrigir uma evidente injustiça. E atrás dessa
injustiça havia injustiças ainda maiores.
Estava na altura de procurar respostas.
“O que se passa naquele laboratório?”, quis a portuguesa saber.
“Queriam inocular a Guida com um vírus?”
Noé suspirou.
“É uma prática comum, chère Fleur.”
“Comum, como? A Guida é um chimpanzé. Os chimpanzés são
primatas, logo inteligentes e conscientes. Além do mais, são os animais
geneticamente mais próximos dos seres humanos. É quase como se
fossem nossos primos. Agora fazemos experiências médicas em
primos? Como podem andar a infetar chimpanzés com doenças?”
“Há muito tempo que isso se passa”, disse ele. “Desde que na
década de 1960 os biólogos moleculares perceberam que os
chimpanzés são a espécie mais próxima de nós, começaram a inoculá­-
los com todas as doenças possíveis e imaginárias. A ideia é que o
corpo deles, sendo geneticamente tão parecido com o nosso, reagirá
aos bacilos como os nossos. Começaram então a ser usados milhares
de chimpanzés em experiências científicas. Milhares. E não estamos a
falar de coisas inócuas. Experiências da década de 1970, por exemplo,
envolviam martelar pregos de aço nos crânios deles. Sem anestesia.”
“Meu Deus!”, exclamou Maria Flor, horrorizada. “Como é possível
uma coisa dessas?”
“Isso não passa da ponta do icebergue, chère Fleur. Injetam de tudo
a estes desgraçados, desde tricloroetileno, um solvente industrial, até
ao benzeno, um perigoso carcinogénico, ou a produtos inseticidas.
Soube mesmo de uma experiência em que usaram uma barra de aço
para partir os dentes todos de chimpanzés para que estudantes de
odontologia exercitassem neles a reconstrução dentária.”
Chocada, a portuguesa largou por momentos o volante e deitou as
mãos à cara.
“Que horror!”
“Há também o caso dos chimponautas, os chimpanzés usados pelos
americanos no seu programa espacial. O primeiro chimponauta a ir
para o espaço foi um chimpanzé chamado Ham. Foi a sua missão que
permitiu as missões tripuladas de Gagarine e Shepard. Sabe o que lhe
fizeram depois do seu feito? Meteram­-no a viver sozinho numa jaula
durante quase dezoito anos. Belo prémio, hem?”
Maria Flor revirou os olhos.
“Coitados...”
“Não são só os chimpanzés. Cozem as pálpebras dos gatos e
injetam­-lhes peróxido de rábano nos cérebros, removem os olhos de
crias de hamster e depois devolvem­-nas às mães, dão drogas a furões
para os pôr a vomitar de cinco em cinco minutos, inserem balões nos
cérebros de ratos e depois rebentam­-nos, regam cães com combustível
e a seguir ateiam­-lhes fogo... a lista de experiências é infinita. Os
cientistas torturam e matam anualmente cerca de duzentos e cinquenta
milhões de animais em todo o mundo. Isso dá mil animais a cada
trinta segundos. Três quartos das experiências são feitas sem anestesia
e a maior parte destes cientistas não tem formação médica nem
veterinária.”
“Meu Deus! Essa gente não tem sentimentos?”
Do banco ao lado, o belga esboçou um gesto vago com uma mão.
“Não imagina quão úteis são o behaviorismo e o cartesianismo
nessas situações”, observou. “Se os animais são encarados como
autómatos que se limitam a responder a estímulos, então não têm
sentimentos nem emoções nem consciência. Uns meros robôs
biológicos. São parecidos com os seres humanos quando convém aos
cientistas que o sejam, designadamente na fisiologia, mas são
parecidos com máquinas no que aos cientistas convém que o sejam,
nomeadamente nos sentimentos. Não passam de tubos de ensaio úteis
ao Homo sapiens. Essa visão legitima que se lhes faça tudo.”
“Mas quem convive com os animais não pode deixar de perceber
que isso não é assim”, argumentou ela. “Basta passar um bocado de
tempo com cães ou vacas ou papagaios, já para não falar nos
chimpanzés e nos outros primatas, para lhes captar os traços
humanos. Os olhares, os gestos, as emoções... Como podem os
cientistas ignorar todo esse lado emocional e consciente dos animais?”
“Isso é antropomorfismo.”
“Oh, vá lá!”, protestou ela. “Fale a sério.”
“Estou a falar a sério, chère Fleur. Sempre que os cientistas são
confrontados com a humanidade dos animais e com as suas
semelhanças connosco, quando constatam que eles são emocionais e
têm sentimentos semelhantes aos nossos, entra imediatamente em ação
um reflexo condicionado pseudocientífico, inculcado pelo
behaviorismo e pelo cartesianismo, que os faz automaticamente
pensar que estão a cometer o pecado da antropomorfização, que estão
a imaginar que os animais têm traços humanos que na realidade não
têm, pois não passam de autómatos biológicos, e é essa racionalização
que os impede de ver o que está diante dos olhos de toda a gente. Os
animais são conscientes e têm sentimentos. Sentem alegria e tristeza,
euforia e fúria, amor e ódio... exatamente como nós. Mas os meus
colegas foram condicionados para não ver isso. E quando veem,
fingem que não veem.”
“Mas essa gente não tem cães em casa?”
“Tem, pois. Até brincam com eles e adoram­-nos. Mas a partir do
momento em que vestem as batas brancas e põem os pés nos
laboratórios, tudo muda. Entram num mundo do faz­-de­-conta e
adotam o mito de que estão a lidar com máquinas. Martelam sem
anestesia pregos de aço no crânio de chimpanzés porque acreditam, ou
convém­-lhes acreditar, que os gritos lancinantes que eles lançam não
passam de reações reflexas, um pouco como os travões dos
automóveis que guincham quando são premidos. Para essa gente a
biologia não passa de pura mecânica. Uma vez tendo­-se
convenientemente convencido a si mesmos de que os chimpanzés e os
restantes animais não sofrem mais do que um rádio quando lhe
mudam uma válvula, é mais fácil aos cientistas prosseguirem com
estas práticas. Acreditam nisso porque lhes convém acreditar.”
Por momentos Maria Flor nada disse. Manobrava o volante para a
esquerda e para a direita, fazendo e desfazendo curvas por entre a
verdura da serra, mas tinha a mente em ebulição. O que vira no
laboratório fora um choque. Sabia que se faziam experiências com
cobaias, claro. Todavia, vendo bem, na verdade nunca tinha querido
saber em concreto que experiências eram essas. Longe da vista, longe
do coração. Mas... experiências em macacos? Incluindo em
chimpanzés? Em cães e em gatos?
“Espero que ao menos essas experiências valham a pena”,
murmurou. “Quantos medicamentos desenvolveram assim? Quantas
doenças conseguiram desse modo solucionar?”
Guida parecia ter adormecido ao colo de Noé, talvez por causa do
balanço suave do carro.
“Posso dar­-lhe o exemplo da SIDA”, propôs o etólogo. “O NIH, o
centro de investigação médica pertencente ao Departamento de Saúde
dos Estados Unidos, iniciou em 1986 um ambicioso programa de
procriação de chimpanzés para efeitos de experiências científicas.
Puseram chimpanzés adultos a procriar como coelhos. Depois
pegavam nessas crias, retiravam­-nas às mães, o que provocava cenas
lancinantes como deve imaginar, e infetavam­-nas com o VIH. Mais
tarde matavam­-nas para as analisar.”
O etólogo calou­-se, como se tivesse concluído a sua narrativa. Maria
Flor lançou­-lhe um novo olhar.
“E depois?”
“Depois, nada. As crias chimpanzés eram mortas e incine­radas.”
“Sim, mas... que avanços geraram essas pesquisas?”
Noé encolheu os ombros.
“Nenhuns.”
“Como assim, nenhuns?”
O belga espreitou Guida, que dormia profundamente ao seu colo,
antes de responder.
“Em três anos de experiências em que se inocularam cem
chimpanzés com o VIH, por exemplo, nem um único manifestou
sintomas de SIDA. O vírus VIH pura e simplesmente não se replicava
neles da mesma maneira que nos seres humanos. Como é evidente, o
sistema imunitário dos chimpanzés é diferente do nosso. Ou seja, as
experiências não serviram para nada. Mesmo que um medicamento
funcionasse com os chimpanzés, teria ainda de ser testado em seres
humanos, pois as respostas dos organismos das duas espécies, apesar
da sua proximidade genética, são distintas.”
“Ou seja, fez­-se tudo isso... para nada.”
Noé esboçou um gesto de impotência.
“Jane Goodall foi a primeira a quebrar o pacto de silêncio entre os
cientistas e a denunciar toda a situação. Depois de ela o fazer, Carl
Sagan perguntou quão inteligente tinha um chimpanzé de ser para que
matá­-lo fosse considerado assassínio. Mas tudo isso para quê? Acha
que os chimpanzés são especiais? Todos os animais são especiais, chère
Fleur. Um cão ou uma cobaia não sofrem nem mais nem menos do
que um chimpanzé ou um ser humano. Depois da intervenção de Jane
Goodall, passou a ter­-se mais cuidado com os chimpanzés. Mas quem
cuida dos outros animais? Por que razão hão­-de os chimpanzés ter
tratamento preferencial sobre a restante fauna? Só porque são
geneticamente mais próximos de nós? O que nos dá o direito de
dispor dos animais como bem nos apetece?”
“Bem, as investigações com os chimpanzés envolvendo a SIDA
podem não ter funcionado, mas outras funcionaram.”
“Quais?”
A pergunta atrapalhou Maria Flor.
“Sei lá... imagino que algumas tenham funcionado, não?”
“Nenhuma experiência com animais pode ser extrapolada para seres
humanos, conforme estabelecido por inúmeros estudos científicos e
declarado em decisões judiciais”, afirmou o etólogo. “Quando
descobriu a penicilina em 1928, Alexander Fleming testou­-a primeiro
em coelhos, e não funcionou. Meteu­-a na gaveta. Um dia apareceu­-lhe
um ser humano à beira da morte e, esgotadas todas as alternativas, em
desespero de causa aplicou­-lhe a penicilina. Foi o sucesso que
sabemos. Também o omeprazol foi pela primeira vez usado em
animais e fracassou, tendo sido esquecido. Só anos mais tarde, quando
se experimentou o omeprazol num ser humano é que este
medicamento se revelou muito eficiente a resolver problemas
gastrointestinais. Ou veja o caso da isoniazida, que provoca cancro
nos animais mas nos seres humanos cura a tuberculose. A furosemida
danifica o fígado de muitos animais, mas não afeta o fígado humano e
é eficaz a tratar doenças cardíacas. A aspirina é tóxica em macacos,
cães e ratos, mas tira a dor de cabeça e ajuda o coração dos seres
humanos. A estreptomicida provoca más­-formações nas cobaias, mas
nos seres humanos este antibiótico é...”
“Pronto, já entendi!”, cortou a portuguesa diante da evidência de
que a lista era interminável. “Nem todos os medicamentos têm o
mesmo efeito nos animais e nos seres humanos.”
“É mais do que isso, chère Fleur”, corrigiu Noé. “Se aplicar um
medicamento a vários animais diferentes, os resultados serão sempre
diferentes, embora possam coincidir aleatoriamente em certos casos.
Um mesmo medicamento pode provocar cancro num cão, curar a
pneumonia de um gato, gerar uma doença cardíaca num rato e curar a
pneumonia num ser humano, por exemplo. O que as farmacêuticas
fazem é usar os resultados bem­-sucedidos em certos animais, neste
caso o gato, para legitimar o uso desse medicamento nos seres
humanos. Mas o sucesso simultâneo do medicamento no gato e no ser
humano é uma simples coincidência, não resulta de o organismo do
gato ser igual ao do ser humano. Se um medicamento apresenta
resultados diferentes mesmo entre os seres humanos, devido a subtis
diferenças genéticas de pessoa para pessoa, agora imagine entre
espécies diferentes...”
“E não acontece o contrário? Um medicamento pode ser eficiente
num animal e danoso para o ser humano?”
“Acontece a toda a hora. O Vioxx deu resultados superseguros em
muitos animais, mas gerou paragens cardíacas que provocaram a
morte de milhares e milhares de seres humanos. A fenfluramina
apresentou resultados excelentes nos testes com animais, mas revelou­-
se perigosa para os seres humanos. O...”
“Chega, Noé.”
“É preciso que perceba que mais de noventa por cento das drogas
que se mostram seguras nos testes com vários animais revelam­-se
perigosas quando aplicadas em seres humanos. Os grandes avanços na
medicina não se devem a testes com animais, mas com pessoas. Na
verdade, os testes com animais muitas vezes só atrapalham. Veja o
caso do tabaco. Durante muito tempo os médicos apontaram os
cigarros como tremendamente prejudiciais para a saúde, mas as
tabaqueiras conseguiram adiar decisões sanitárias urgentes à custa de
testes com animais que não desenvolveram cancro após inalarem à
força o fumo dos cigarros. Por causa desses testes com animais, as
tabaqueiras puderam alegar que não estava feita a prova de que o
tabaco provocava cancro, e as medidas que se impunham levaram
décadas a ser tomadas, o que provocou a morte desnecessária de
milhões e milhões de pessoas. As experiências com animais são inúteis
e por vezes até contraproducentes.”
“Então porque as fazem?”
“Porque fornecem cobertura legal. Se um medicamento que passou
em testes a animais provocar a morte de um ser humano, as
farmacêuticas defendem­-se alegando que funcionou nos testes com
animais. Se um medicamento que provocou a morte de animais
também provocar a morte de seres humanos, defendem­-se alegando
que os animais têm corpos diferentes e que os testes com eles não
podem ser usados para prever o que acontecerá com seres humanos.
Está a perceber? O único propósito destas experiências cruéis com
animais é fornecer proteção legal às farmacêuticas.”
“Mas não é perigoso experimentar novos medicamentos em seres
humanos sem primeiro os testar nos animais?”
“Experimentar novos medicamentos é sempre perigoso, não há a
menor dúvida, mas de que serve fazê­-lo primeiro com os animais se os
resultados desses testes não têm fiabilidade científica? A maneira mais
eficaz de desenvolver um medicamento sempre foi aplicá­-lo primeiro a
seres humanos muito doentes, para quem só os medicamentos
experimentais oferecem alguma esperança. Foi assim que Fleming
descobriu a eficácia da penicilina. Mas hoje já se percebeu que o
método mais seguro e eficaz para apurar a toxicidade de um
medicamento é uma combinação de testes em células humanas, que
podem ser cultivadas em laboratório, e modelos de computador. Este
método oferece taxas de sucesso de oitenta por cento, o que é
extraordinário.”
A conversa foi subitamente interrompida por uma guinada à direita
do automóvel. A viatura passou por um portão ferrugento e entrou
numa propriedade de aparência desleixada. Havia ervas por toda a
parte e sebes por aparar. No meio encontrava­-se um casarão
degradado, as madeiras que emolduravam as janelas rachadas e a tinta
cor­-de­-rosa desbotada, mas as trepadeiras que cobriam parte da
fachada ajudavam a preservar­-lhe o charme.
O carro imobilizou­-se diante do alpendre que abrigava a porta de
entrada.
“Chegámos.”
O motor foi desligado e fez­-se um silêncio retemperador. Noé colou
a cara ao vidro e perscrutou a casa.
“Onde estamos?”
“Este casarão pertence a uma senhora internada no meu lar”,
explicou Maria Flor. “A filha emprestou­-me a chave. Após o nosso
número de hoje no laboratório, é muito provável que a polícia dê um
saltinho ao Jardim dos Animais com Alma para o questionar, pelo que
me pareceu aconselhável manter a Guida aqui escondida.”
“A ideia não é má, mas ela não pode ficar sozinha...”
“Ficará o Noé com ela e eu ajudá­-lo­-ei sempre que tiver de se
ausentar para ir tratar do Carioca”, devolveu a portuguesa. “Quando
conseguirmos amealhar o suficiente para indemnizar o laboratório que
comprou a Guida, tudo ficará mais calmo e ela poderá voltar ao
Jardim dos Animais com Alma.”
Com a chimpanzé já desperta e atenta ao espaço novo onde se
encontravam, o etólogo apeou­-se. Deu a volta à viatura e, qual
cavalheiro, abriu a porta do condutor. Quando Maria Flor saiu,
ficaram os dois frente a frente, os rostos a menos de um palmo de
distância, os corações num súbito rebuliço. Após uma curta pausa
expectante, e constatando que ela não se afastava, Noé ganhou
confiança e atrevimento. Inclinou­-se para a frente e beijou­-a nos
lábios.
.

XXXV

Teriam os animais a noção do que era a morte? A insistência de


Tomás na forma como eles encaravam o fim da vida não era inocente.
Embora se tratasse de um problema filosófico funda­mental, o que
realmente o preocupava era manter a conversa a fluir enquanto sub­-
repticiamente se livrava das cordas que lhe atavam as mãos atrás das
costas. Já conseguira soltar a mão esquerda. Libertar a direita
tornara­-se a partir desse instante uma questão de segundos.
“Nunca ouviu falar de cães que durante anos visitam diariamente a
campa dos seus falecidos donos?”, perguntou Dorian Zwiebel, sem
nada desconfiar. “Ou de cães que vão todos os dias à estação de
comboio onde costumavam ir buscar os donos que entretanto
morreram?”
A pergunta remeteu o historiador para as suas próprias memórias de
infância.
“Sim, claro. Quando era miúdo lembro­-me de o nosso vizinho ter
morrido. O cão passava todo o tempo triste e volta e meia ia lamber
os objetos que pertenciam ao dono. Mas isso são observações
pontuais e podemos estar a antropomorfizar as reações dos cães, a
projetar neles os nossos preconceitos. O que descobriu a ciência sobre
a forma como os animais lidam com a morte?”
“Olhe, um primatólogo estava a seguir um grupo de chimpanzés na
selva quando ouviu vários machos gritar”, contou o ecologista. “O
primatólogo aproximou­-se e deparou com o corpo de um deles, um
macho que caíra de uma árvore e pelos vistos partira o pescoço. Os
outros chimpanzés pararam para olhar para o cadáver e depois
começaram a fazer imenso barulho, abraçando­-se, tocando no
companheiro caído por terra, dando palmadas nas costas uns dos
outros. Quando acalmaram, ficaram longamente a observar o morto.
Um deles inclinou­-se sobre o corpo e gemeu. Outros tocaram
timidamente nele. Uma fêmea adolescente permaneceu diante do
cadáver mais de uma hora, em silêncio e sem se mexer, como se fizesse
uma vigília. Ao fim de três horas, um dos machos mais velhos
abandonou o local. Os outros seguiram­-no um por um, olhando por
cima do ombro para o corpo que deixavam para trás. Agora diga­-me,
meu caro: acha que estes chimpanzés não tinham percebido que o seu
companheiro havia morrido?”
“A resposta é evidente”, reconheceu Tomás. “Mas uma única
observação nada prova. Podemos estar a interpretar incorretamente
um incidente.”
O diretor da GreenNaturae sorriu sem humor.
“O que mais não faltam são histórias destas”, disse. “Resultam de
observações na floresta, em santuários de reabilitação de primatas ou
em jardins zoológicos. Os chimpanzés tocam nos mortos, testam­-nos
para ver se se levantam, acariciam­-nos quando percebem que isso não
acontecerá, gemem ou ficam em silêncio, por vezes chegam mesmo a
lavar os cadáveres. Procure no YouTube vídeos mostrando a reação de
chimpanzés à morte de um dos seus e ficará esclarecido. Há mesmo
uma fotografia premiada pela National Geographic que mostra
funcionários de um centro de reabilitação nos Camarões a passarem
com o cadáver de uma chimpanzé diante dos restantes. As expressões
consternadas dos outros chimpanzés, alguns deles abraçados enquanto
viam o corpo da amiga ser retirado, são esclarecedoras.
Significativamente, a fotografia chama­-se Funeral de um Chimpanzé.”
“Isso está em conformidade com o que me contou há pouco quando
falou do amor”, observou Tomás. “Os chimpanzés reagem com
tristeza à morte de quem amam.”
“Quando lhe falei em Washoe, expliquei­-lhe que ela percebia o
conceito de chorar a morte de alguém que se ama apesar de os
chimpanzés não verterem lágrimas. É importante que saiba que ela
conhecia a palavra MORTE em língua gestual e que, quando perdeu a
sua filha e lhe foi comunicado que ela morrera, Washoe curvou o
corpo e recolheu­-se num canto, distante de todos, uma expressão
vazia no rosto. Depois disso esteve bastante tempo sem comer.
Também o etólogo Frans de Waal observou certa vez uma chimpanzé
que perdeu vários filhos e que mergulhou numa depressão profunda,
soltando gemidos lancinantes e recusando­-se a comer. Acontece que
De Waal viu­-a a esfregar os olhos com os punhos fechados,
exatamente como os bebés fazem quando choram.”
“Talvez sejam as lágrimas do choro humano numa fase
embrionária”, cogitou o historiador. “Entre os seres humanos existe
toda uma cultura relacionada com a morte. A começar pelo luto.
Alguma vez foram vistos animais a fazer luto?”
“O chimpanzé do zoo de Filadélfia de que lhe falei há pouco, o da
década de 1870, depois de passar um dia inteiro a chorar a morte da
companheira, passou o dia seguinte quieto, a gemer. Suponho que isso
se enquadre na definição de luto.”
Tomás considerou a questão.
“Luto implica uma alteração do quadro comportamental de um
animal após a morte de outro do qual gostava. Essa alte­ração deve ser
num sentido negativo, claro. Depressão, melan­colia, letargia...”
“Isso é o que mais há, meu caro.”, foi a resposta pronta de Zwiebel.
“O gorila Michael, que aprendeu também língua gestual, foi certa vez
interrogado sobre a sua mãe e, na resposta, descreveu a forma como
ela foi morta à frente dele por caçadores. As respostas mais fortes à
morte, contudo, nem são dos chimpanzés e dos gorilas, mas dos
elefantes. Um dia, um cientista decidiu testar a reação dos elefantes à
memória de um elefante que tinha morrido. Ele possuía a gravação
dos sons de um elefante falecido e pôs­-se a difundi­-lo a partir de um
megafone escondido no matagal. No momento em que os sons do
elefante morto começaram a soar, os elementos da sua família
pareceram ter enlouquecido. Puseram­-se a procurá­-lo em toda a parte
e durante dias continuaram a chamá­-lo, na esperança de que
aparecesse. A reação foi de tal modo poderosa que esse cientista jurou
nunca mais repetir a experiência.”
“Não é por acaso que se fala em memória de elefante. Mas a minha
questão relaciona­-se com o luto...”
“O exemplo que lhe dei mostra uma alteração no sentido negativo
como reação à morte de um ente querido vários anos depois dessa
morte”, esclareceu o ecologista. “As reações imediatas à morte, que
poderemos designar estritamente por luto, são abundantes. Um colega
meu contou­-me há uns anos ter observado numa reserva natural no
Quénia a morte de uma elefante matriarca chamada Eleanor. Ela
andava já com dificuldade e um dia caiu no chão. Uma outra
matriarca, Grace, veio a correr e conseguiu levantá­-la, mas Eleanor
voltou a tombar. Grace começou a mostrar sinais de grande aflição,
tentando sem sucesso reerguer Eleanor. Nessa noite, no entanto,
Eleanor morreu. Na manhã seguinte o meu amigo viu um elefante a
embalar o corpo de Eleanor com o pé. Ao terceiro dia, a família de
Eleanor per­maneceu junto do cadáver, o mesmo acontecendo com
outra família e com a maior amiga da falecida, uma elefante chamada
Maya, e com a matriarca Grace.”
“Um velório?”
“Cada um conclui o que entender, mas é claro que todos sabiam que
Eleanor tinha morrido e estavam a despedir­-se dela. Ao quinto dia,
Maya ainda passou hora e meia junto do corpo, e ao sétimo dia a
família regressou ao local e passou meia hora em volta do cadáver.”
“Não há dúvida de que essa reação se enquadra totalmente na
definição de luto.”
“Muitos etólogos consideram que a reação dos elefantes à morte é
talvez o comportamento mais perturbador destes animais. Mergulham
num silêncio absoluto, um silêncio feito de respeito, de tristeza e de
profunda dignidade, e apenas se ouve o som do ar a passar­-lhes pelas
trombas. Esse respeito não existe apenas nos dias que se seguem à
morte do ente querido. Prolonga­-se no tempo e adquire por vezes
contornos muito estranhos. Uma colega minha contou­-me que uma
vez foi ao mato recolher o osso do queixo de uma matriarca que tinha
morrido semanas antes, para efeitos de pesquisa. Depois deixou o osso
junto de uma dezena de outros ossos de elefante que havia também
recolhido para o seu estudo. Acontece que, dias mais tarde, a família
da matriarca passou acidentalmente por ali e reparou nos ossos. Os
familiares encaminharam­-se diretamente para o osso da matriarca e
ficaram junto dele, tocando nele e velando­-o.”
“Só o osso da matriarca?”
“Só esse osso. Ignoraram os restantes.”
Contorcendo discretamente a mão direita para se libertar da corda
que ainda lhe tolhia os movimentos, Tomás soergueu a sobrancelha.
“Como sabiam eles que era o osso dela?”
“Ninguém percebe, mas sabiam. Após passarem algum tempo com o
osso do queixo da matriarca, os elefantes afastaram­-se. Exceto um. O
filho da matriarca falecida. Permaneceu por muito tempo a acariciar
com a tromba o queixo da mãe. Estaria a pensar nela, a lembrar­-se de
episódios da vida dela, a imaginar­-lhe o rosto e a voz? Não temos
maneira de saber. Apenas sabemos que os elefantes sabem o que é a
morte. Durante dias após a morte de uma cria a mãe caminha mais
devagar, durante dias eles protegem os mortos para impedir que os
leões e as hienas os comam, durante dias carregam nas presas os
cadáveres dos filhos, durante dias ficam em silêncio. Como se explica
isto sem que se reconheça que têm consciência da morte e pensam
conscientemente nos que morreram? Em geral só se interessam pelos
mortos da sua espécie, mas há exceções. Na África do Sul foi avistado
um elefante que, ao descobrir o cadáver de um rinoceronte de quem
era amigo e que fora abatido por caçadores por causa do seu corno, se
pôs a bramir de desgosto. Os elefantes respeitam o luto, fazem até um
velório, e durante anos e anos lembram­-se dos que partiram. Estarei a
antropomorfizar? De certeza. Mas com os elefantes isso é inevitável,
pois comportam­-se exatamente como nós perante a morte.”
“Chimpanzés, elefantes... e os outros?”
“Já lhe contei que os golfinhos, as orcas e as baleias esforçam­-se por
conservar os cadáveres dos entes queridos o mais tempo possível”,
lembrou Zwiebel. “Isso são formas de luto. No habitat natural as
observações são difíceis, mas em cativeiro as coisas tornam­-se óbvias.
Quando um golfinho chamado Spock morreu num parque aquático, a
sua companheira mergulhou numa letargia profunda. Permaneceu
durante dias no fundo da piscina, apenas emergindo para respirar. Os
outros golfinhos desciam amiúde para o pé dela, talvez para se
certificarem de que estava bem. Esse comportamento prolongou­-se por
uma semana. Na sua definição de luto, penso que este comportamento
se aplica na íntegra.”
“Sem dúvida.”
Tomás já quase só falava para alimentar a conversa.
“Cientistas que acompanhavam alcateias no parque natural de
Yellowstone registaram o comportamento de uma loba após a morte
do seu companheiro”, prosseguiu o suíço. “Ela abandonou os filhos
em pleno inverno, incluindo crias de nove meses, saiu até do seu
território e desapareceu algures para oeste. Só voltou uma semana
depois. O que aconteceu? Só pode ter sido luto. São aliás comuns as
histórias de lobos que durante dias e dias uivam após a morte dos
companheiros. Ou olhe para o caso da cientista que estudou os
lémures de Madagáscar e que deparou com uma situação gerada por
um mangusto que matou um lémure. Quando o mangusto abandonou
o local, a família do lémure voltou e começou a vocalizar uma
chamada usada quando alguém se perdia, só que num tom mais
baixo, menos urgente, mais pesado. Tinham perdido alguém na
família, sim, mas pelos vistos sabiam que não voltaria. Todos os
elementos, incluindo os filhos, emitiram essa vocalização enquanto, do
topo das árvores, o observavam caído lá em baixo. Durante cinco dias
os lémures voltaram para perto do cadáver catorze vezes. O que é isso
se não luto?”
O historiador permaneceu um longo momento em silêncio,
aparentemente a refletir sobre tudo o que escutara, na verdade a
livrar­-se dos restos da corda que lhe tolhia os movimentos da mão
direita.
“Consciência da morte, sim. Luto, sim. Mas... e cerimónias
fúnebres? Eu sei que existe essa fotografia premiada da National
Geographic, mas em bom rigor não se trata de uma verdadeira
cerimónia fúnebre.” Voltou a encarar o seu inter­locutor. “Alguma vez
se viram animais envolvidos em rituais cul­turais com alguma
semelhança com o que nós consideramos uma cerimónia fúnebre?”
Ao formular a pergunta, sentiu a corda deslizar­-lhe entre os dedos e
a mão direita soltar­-se. Enfim, tinha as duas mãos livres. Chegara a
hora de atacar.
.

XXXVI

O beijo foi súbito.


Maria Flor não participou ativamente, mas também não resistiu. À
primeira vista dir­-se­-ia que fora simplesmente apanhada de surpresa,
embora essa não fosse decerto uma descrição ajustada ao seu
comportamento. Quando saíra do automóvel e ficara com a cara a
menos de um palmo do rosto de Noé e aí se deixara estar, não podia
ignorar que tornara inevitável o que aconteceu. Não era ingénua a
esse ponto.
A reação dela, deixando­-o beijá­-la mas não participando no beijo,
desconcertou o belga. Os lábios descolaram­-se e, recuando um passo,
Noé fitou­-a nos olhos num esforço para a ler. A expressão de Maria
Flor, porém, mantinha­-se impenetrável.
“Desculpe”, balbuciou ele, atrapalhado e embaraçado, pensando
que talvez tivesse interpretado mal a disponibilidade dela. “Não sei o
que me deu e... enfim...”
A portuguesa susteve­-lhe o olhar.
“Não peça desculpa”, disse. “Aconteceu o que tinha de acontecer,
suponho eu.”
A resposta era inesperada e, por não ser de protesto nem de
escândalo, deu­-lhe alento. Tanto, de resto, que se inclinou de novo
para a beijar outra vez. Só que, desta feita, Maria Flor pôs­-lhe os
dedos diante da boca e travou­-o.
“Sou uma mulher casada, Noé.”
Ele engoliu em seco, sentindo­-se vagamente embaraçado e sobretudo
confuso. O que se estava a passar? Ela queria ou não queria? O que
diabo lhe ia na cabeça?
“E, no entanto, aqui estamos nós...”
Maria Flor deu um passo para trás, agora sim a evitá­-lo.
“Isto... isto é um erro. Desculpe, mas não pode ser. Conhecemo­-nos
há apenas algumas semanas e não me...”
“Espere!”, travou­-a o etólogo, sentindo o risco de ela lhe escapar.
“Algo se está a passar entre nós. Se isto aconteceu não foi com certeza
por acaso.”
“Sou uma mulher casada.”
“E seguramente infeliz no seu casamento”, acrescentou ele de
pronto, intuindo que bastava um empurrão para a trazer
definitivamente para o seu lado. “Se assim não fosse, nem sequer
olharia para mim.”
A resposta fez a portuguesa hesitar. Seria ela infeliz no seu
casamento? Nunca pensara a fundo na questão, talvez porque jamais
o quisera fazer realmente. Sabia que gostava do marido. Admirava
Tomás, a sua coragem, a sua inteligência, o seu lado ousado e
destemido, o seu jeito protetor e, sim, a sua faceta de criança grande.
Mas havia algo que manifestamente lhe faltava. O marido não
prestava atenção às preocupações dela. Mostrava­-se indiferente à sua
sensibilidade, aos interesses que ela tinha nas coisas da natureza, ao
lado subtil da vida. Nele tudo era razão, e Maria Flor precisava que
fosse também emoção.
Ora todo esse lado mais emocional encontrava ela em Noé. O belga
podia não ser um aventureiro intrépido, mas era suficientemente bravo
para entrar à socapa num banco ou lançar um golpe audaz num
laboratório de testes em animais. Talvez isto não fosse grande proeza
quando comparado com os atos incrivelmente ousados de Tomás, mas
não era nada mau para o comum dos mortais. Além do mais, Noé
mostrava­-se igualmente inteligente e sobretudo sensível, além de
revelar uma fragilidade que apelava à faceta maternal dela. No
interesse pelas coisas da natureza apresentava­-se mesmo como a sua
alma gémea. O que mais poderia desejar?
E, no entanto...
Baixou a cabeça.
“Oiça, Noé, eu... eu preciso de tempo.”
“Claro”, concedeu ele. “Claro.” Estava todavia perfeitamente ciente
de que aquela era a resposta que as mulheres davam quando se
inclinavam para o não. “O facto, no entanto, é que sinto algo muito
forte por si e sei que esse sentimento é recíproco. Não o combata.
Deixe­-se ir. Conviva comigo, conheça­-me melhor e a seu tempo
decidirá se sim ou se não. Não se precipite na decisão. Aguarde,
conheça, viva. Temos tempo. A Fleur só pode decidir bem se me
conhecer bem. Já conhece o seu marido. Agora conheça­-me a mim. O
que tem a perder? O que tiver de acontecer acontecerá. A decisão mais
correta impor­-se­-á naturalmente.”
Maria Flor vacilou. Talvez ele tivesse razão, considerou. Para quê
precipitar uma decisão nesse momento? Porque não deixar­-se conduzir
pela corrente até onde esta a levasse? Sentia­-se atraída por Noé, sem
dúvida, mas também não tinha dúvidas de que gostava de Tomás.
Como decidir nesse instante? Disporia realmente dos dados
necessários para escolher bem? Não seria melhor dar tempo ao tempo
e deixar que as coisas se resolvessem por si mesmas?
“Seja”, anuiu, embora talvez com maior convicção do que aquela
que sentia de facto. “Mas peço­-lhe que me respeite.” Ergueu um dedo,
como se o avisasse. “Respeitar­-me significa respeitar o meu marido e o
meu casamento. Dê­-me tempo para digerir o que sinto e perceber o
que quero.”
“Fique descansada.”
As coisas estavam esclarecidas. Ou pelo menos adiadas. Havia agora
que passar às questões práticas, pois estavam a meio de uma crise e
tinham decisões prementes a tomar e planificações a fazer.
Ela indicou a mansão à frente deles.
“A Guida fica a viver aqui até que as coisas acalmem”, explicou.
“Um de nós permanecerá com ela. Um de nós, ouviu? Não os dois ao
mesmo tempo. O Noé instalar­-se­-á aqui com ela e eu apenas o virei
substituir sempre que precisar de se ausentar.”
O belga forçou um sorriso.
“Toda esta situação irá durar pouco tempo”, prometeu. “Vou falar
com um advogado para interpor uma ação legal contra o banco e o
laboratório, e impedir que me roubem outra vez a Guida, o que me
permitirá levá­-la o mais depressa possível de regresso ao Jardim dos
Animais com Alma. Mas amanhã ela terá mesmo de ficar aqui fechada
consigo.”
“O que irá acontecer amanhã? Vai ter com o advogado?”
Pegando em Guida ao colo, Noé encaminhou­-se para a entrada do
casarão.
“Vou à procura dos meus outros meninos”, indicou. “Tenho de os
libertar a todos.”
“Libertar como? Como fizemos hoje com a Guida? Entrar
clandestinamente no sítio onde eles estão e...”
“Não será bem assim. Já tenho um encontro marcado com uma
pessoa de confiança que trabalha para a empresa à qual os meus
restantes meninos foram vendidos. Ele deve­-me um favor e vai
ajudar­-me a resgatá­-los.”
“É melhor eu ir consigo.”
“Nem pensar!”
“Ora essa! Porque não?”
O voluntarismo de Maria Flor pareceu ao etólogo enternecedor.
Deixou­-a abrir a porta e entraram os três na velha mansão. Nuvens de
pó caíram do topo da porta e um bafio húmido envolveu­-os com o seu
hálito frio; havia decerto algum tempo que o interior do casarão não
recebia ar fresco. Noé pousou Guida no chão e só depois de a
chimpanzé se deitar a correr pelos seus corredores sombrios é que
voltou a encarar a portuguesa.
“Porque vou visitar o inferno.”
.

XXXVII

O inferno.
Será que os animais têm a noção do inferno e do Além? Essa era a
questão que nesse momento alimentava a conversa entre Dorian
Zwiebel e Tomás Noronha, um à espera de que a Judiciária chegasse,
o outro de que a corda que lhe amarrava as mãos se soltasse. A corda
soltou­-se primeiro do que a Judiciária chegou. Sendo certo que a todo
o momento a polícia iria irromper pela casa e levar o historiador para
os calabouços.
Sem suspeitar de que o prisioneiro já soltara as mãos, o
ambientalista suíço mantinha­-se embrenhado no tema que tanto o
apaixonava.
“A importância das cerimónias fúnebres é que elas são o gérmen do
pensamento religioso e metafísico”, considerou Zwiebel. “É por isso
interessante que já tenham sido avistados chimpanzés a lavar os
cadáveres dos seus mortos.”
Tratava­-se de uma prática humana, como o historiador bem sabia.
Na maior parte das culturas humanas, os mortos são lavados antes de
serem enterrados para que cheguem limpos ao “outro lado”. Mas
agora que libertara as mãos, Tomás já só seguia a conversa para
ganhar mais uns momentos enquanto preparava o ataque.
“E funerais?”
“Mais uma vez são os elefantes que mostram comportamentos mais
próximos dos nossos”, respondeu o diretor da Green­Naturae sem
suspeitar de nada. “Por várias vezes observaram­-se paquidermes a
cobrir os mortos com terra e vegetação, uma forma primitiva de
enterro. Há registo de um caso em que caçadores humanos abateram
um elefante macho enorme e viram depois os companheiros dele
aproximarem­-se do corpo. Horas mais tarde os caçadores voltaram
para descobrir que não só o cadáver estava coberto por terra e folhas
como tinha a cabeça debaixo de lama.”
“Um enterro, portanto...”
“Não são só os elefantes, meu caro. O biólogo Marc Bekoff, ligado
a Jane Goodall, observou uma raposa a atirar terra e pedaços de
madeira para cima do cadáver da sua companheira, num aparente
esforço para a enterrar. Isto significa que, embora raros ou pelo menos
difíceis de observar no habitat natural, formas embrionárias de
enterro realmente existem entre os animais.”
Tomás queria lançar o ataque o mais depressa possível, para se
antecipar à chegada da polícia. O problema eram os pés. Permaneciam
amarrados. Como se poderia atirar contra o seu captor naquelas
condições?
“A minha mulher explicou­-me que as capacidades cognitivas das
aves estão ao nível das dos primatas”, disse, sempre a alimentar a
conversa. “Ora até agora o senhor só me contou histórias de
chimpanzés, elefantes, lémures, raposas, golfinhos, orcas e baleias. Ou
seja, tudo mamíferos. E os pássaros? São capazes de realizar
funerais?”
“O presidente de uma associação de proteção de animais, a Whidbey
Audubon Society, viu uma vez um corvo morto no chão e uma dúzia
de outros corvos aos saltinhos à volta dele. Um dos corvos saiu do
grupo e voltou momentos mais tarde com um pedaço de erva seca.
Largou­-o sobre o cadáver do companheiro e voltou a partir. Um a um,
os restantes corvos foram saindo e regressando com ervas ou galhos
secos, que também lançaram sobre o corpo até o cobrirem por
completo. Toda a cerimónia durou quatro ou cinco minutos.”
“Não é bem um funeral...”
“Acha que não? Se reconhecemos que os pássaros comunicam de
maneira diferente dos seres humanos, mas estamos dispostos a aceitar
que de facto comunicam, porque não aceitar que eles realizam
cerimónias fúnebres diferentes das humanas, embora tão legítimas
quanto as nossas? Um ser humano não enterraria um morto com
galhos e ervas secas, é certo, mas porque não há­-de uma outra espécie
usar um método diferente para enterrar os seus? Um funeral só é
funeral se for igualzinho ao dos seres humanos? E não são os funerais
dos seres humanos, eles próprios, diferentes uns dos outros? Lá
porque os vikings queimavam os seus num barco, um procedimento
semelhante à cremação dos hindus numa pira perto da água, não é
isso uma cerimónia fúnebre tão legítima quanto o enterro dos judeus,
dos cristãos ou dos muçulmanos, ou as cremações dos ateus?”
Tomás esboçou um esgar de concessão.
“Com certeza, com certeza...”
“São inúmeras as histórias de corvos que homenageiam os seus
mortos, como o caso de centenas de corvos que se juntaram nas
árvores de um campo de golfe após um dos seus ser morto por uma
bola, ou de nuvens de corvos a voar sobre um transfor­mador de
energia onde dois companheiros morreram eletro­cutados”,
acrescentou Zwiebel. “De tal modo essas aves são reativas à morte
que uma equipa de investigadores da Universidade da Califórnia fez
uma experiência: colocaram um corvo morto numa zona residencial
que os corvos frequentavam em busca de alimentos e gravaram o que
aconteceu a seguir. O primeiro corvo que detetou o corpo pôs­-se a
fazer vocalizações de alarme. Logo outros corvos pararam de procurar
comida e concentraram­-se no local. O ajuntamento tornou­-se cada vez
maior e mais barulhento. Mantiveram­-se ali durante algum tempo e
por fim abandonaram o local. Nos dois dias seguintes, os corvos
evitaram procurar comida naquela zona.”
Enquanto o diretor da GreenNaturae falava, o prisioneiro estudava
a melhor forma de desatar a corda que lhe prendia os pés. Chegou à
conclusão de que não havia maneira de o fazer discretamente. Teria de
arriscar um ataque com os pés atados.
“O que nos remete para aquele que talvez seja o único campo do
comportamento realmente exclusivo do Homo sapiens”, observou,
sempre a prolongar a conversa. “A religião.”
“A dificuldade em entender o que vai na cabeça de um animal
impede­-nos de perceber se eles acreditam ou não no Além, se têm ou
não pensamentos religiosos, se creem ou não em enti­dades divinas por
detrás das coisas”, disse Zwiebel. “De qualquer modo, existem
algumas observações que podem ser interpretadas como dizendo
respeito a comportamentos místicos por parte dos animais. A
primeira, como sempre, foi feita por Jane Goodall com os seus
chimpanzés da Tanzânia. Ela viu um chimpanzé macho comportar­-se
de maneira bizarra junto de umas quedas de água. À medida que o
animal se aproximava e que o barulho das cascatas se tornava maior,
os seus pelos foram ficando eretos. Uma vez junto às cataratas, pôs­-se
de pé e começou a dançar durante dez ou quinze minutos. Goodall
chamou­-lhe ‘dança das cataratas’ e especulou que poderia tratar­-se de
uma forma embrionária de animismo.”
O historiador ia atacar nesse momento, mas travou o ímpeto.
Devido à sua profissão, as revelações do seu captor interes­saram­-no.
“As religiões animistas foram as primeiras religiões humanas”,
lembrou. “Os homens primitivos viam as tempestades e achavam que
eram deuses em fúria, viam o vento e julgavam que se tratava de um
deus a soprar, viam a chuva e pensavam que era enviada por outro
deus. De tal modo era assim que até faziam danças a pedir chuva para
as colheitas ou a implorar que a chuva parasse. Acreditavam que
poderiam influenciar o comportamento da natureza, e isso é de facto
uma forma rudimentar de religião. É bastante possível que essa ‘dança
das cataratas’ seja um princípio de animismo, até porque se o Homem
tem uma natureza religiosa, em algum ponto da evolução a adquiriu,
mas seriam precisas mais observações desse género. Se a senhora
Goodall os tivesse visto a dançar à chuva, por exemplo, isso seria sem
dúvida mais convincente. Os índios americanos fazem­-no, não é
verdade?”
Um sorriso discreto desenhou­-se no rosto de Zwiebel.
“A questão é que, depois das observações de Jane Goodall, os
chimpanzés foram de facto vistos a dançar à chuva. Em jardins
zoológicos, designadamente. Durante uma chuvada mais forte no zoo
de Arnhem, o etólogo Frans de Waal viu dois chimpanzés machos
saírem do abrigo e porem­-se a dançar à chuva. De Waal chamou­-lhe
justamente ‘dança da chuva’.”
A informação era surpreendente.
“Ah, bom...”
“Mesmo as contemplações que chimpanzés e babuínos foram vistos
a fazer do pôr­-do­-sol têm muito que se lhe diga. Os etólogos atribuem
esse comportamento a um princípio estético, pois os crepúsculos
africanos são maravilhosos e a sua contemplação mostra que os
animais têm capacidade de apreciar o belo, mas é possível que este
comportamento reflita também um sentimento místico embrionário.
Contemplar o crepúsculo é contemplar o belo, e contemplar o belo é
contemplar o inefável. Quando mostram capacidade de se maravilhar
com algo que os ultrapassa, os animais estão a revelar uma faceta
transcendente e esse é o ponto de partida para o pensamento místico.”
“Tudo verdadeiro”, disse Tomás. “Provável, até. Mas, não posso
deixar de o dizer, tudo especulativo.”
Chegara a hora de lançar o ataque.
“Sem dúvida”, concordou o diretor da GreenNaturae. “O facto, no
entanto, de os animais terem não só a noção de morte como serem
capazes de respeitar o luto e até fazer velórios e formas rudimentares
de funeral não pode deixar de nos remeter para um princípio de
pensamento religioso, como o senhor aliás já notou. Acontece que os
mistérios da relação entre os animais, a morte e o misticismo não
terminam aqui. Uma etóloga chamada Denise Herzing estava a
estudar os golfinhos e aproximou­-se de um grupo que já conhecia. Os
golfinhos reconheceram­-na e saudaram­-na, mas evitaram aproximar­-se
do seu barco de pesquisa oceanográfica, o que ela achou estranho.
Denise convidou­-os insistentemente, mas eles, ao contrário do
habitual, mantiveram­-se à distância. A certa altura alguém descobriu
que um dos membros da tripulação, que se tinha ido deitar num
beliche, estava morto. Foi dada imediatamente ordem de regresso. Só
que os golfinhos, em vez de se porem aos saltos diante da proa, como
era seu hábito, colocaram­-se ao lado do navio oceanográfico como se
o escoltassem. Sabe o que aconteceu dias depois, quando o barco
regressou para uma nova missão de pesquisa?”
Três...
“Não.”
“Os mesmos golfinhos comportaram­-se de forma absolutamente
natural.”
Dois...
“O que está a insinuar?”, quis saber o prisioneiro enquanto concluía
mentalmente a contagem decrescente. “Que os golfinhos tinham
alterado o seu comportamento habitual porque pres­sentiam que havia
um cadáver a bordo?”
Um...
“Talvez. Denise estudou aquele grupo de golfinhos durante vinte e
cinco anos, e disse que eles só tiveram aquele procedimento bizarro no
dia em que um homem tinha morrido a bordo. Isso indic...”
Agora!
Apanhando o seu adversário de surpresa, Tomás lançou­-se sobre ele
e esmurrou­-o diretamente no nariz, ciente de que aquele era o seu
ponto fraco.
“Aaaagh!”
O suíço já havia sido atingido ali meia hora antes pela nuca do
historiador, pelo que o novo golpe revelou­-se decisivo. Caiu
desamparado no chão, as mãos agarradas à cara a tentar proteger o
nariz ensanguentado, absolutamente vulnerável. Apesar de ter os pés
ainda atados, Tomás pulou sobre ele e imobilizou­-o contra o solo com
uma prisão de braço, exatamente como fizera meia hora antes.
A dor no nariz era tão aguda que Zwiebel ainda gritava e parecia
indiferente ao que o português lhe fazia. Tendo o adversário
neutralizado, Tomás usou o braço esquerdo para desfazer os nós das
cordas que lhe atavam os pés, indiferente aos guinchos e saltos de
Guida sobre o sofá e aos gemidos doridos do diretor da
GreenNaturae.
Quando por fim se libertou das cordas, meteu a mão no bolso das
calças do suíço e retirou o smartphone. Esperou alguns segundos para
ele se acalmar e quando isso aconteceu agitou­-lhe o telemóvel diante
da cara.
“Vai imediatamente ligar ao inspetor Caparro e informá­-lo de que se
encontra comigo no Badoca Park, ouviu?”
“Mas... mas isso é a hora e meia daqui!”
Tomás forçou a prisão de braço, arrancando um novo gemido de
Zwiebel.
“Se não quer que lhe parta também o braço, faça­-o!”
Sem alternativa, o nariz a pingar sangue e sentindo­-se tão
aterrorizado que acreditava que o português cumpriria a ameaça sem
pestanejar, o diretor da GreenNaturae premiu as teclas com dedos
trémulos e fez a chamada. Do outro lado da linha, o inspetor Caparro
protestou quando foi informado de que teria de ir para outro lado,
“então agora que estamos a chegar a Sintra é que me diz uma coisa
dessas?”, “desculpe lá, senhor inspetor, esqueci­-me há pouco de dar
essa informação”, justificou­-se Zwiebel, “ganda porra!, o Badoca Park
é a meio da costa alentejana, c’um caneco!”, e desligou furiosamente.
A polícia fora travada. Tomás ganhara mais algum tempo. Sempre a
prender o braço do homem à sua mercê, olhou pensativamente para
Zwiebel. De cara enterrada no tapete e o nariz ensanguentado à custa
da cabeçada e do murro que levara, o suíço encontrava­-se num mísero
estado. O que fazer com ele? Não o podia manter indefinidamente
preso. Não só uma tal coisa não seria prática, como constituiria crime
de sequestro. Além do mais, se Zwiebel o atacara era porque estava
convencido do seu envolvimento na morte de Noé, algo normal
considerando que era de facto procurado pela polícia. Por outro lado,
se o libertasse ele avisaria de imediato a polícia e em poucos minutos
Tomás teria o inspetor Caparro à perna. Ponderados os prós e os
contras, tomou uma decisão.
O português soltou­-lhe o braço.
“Levante­-se.”
Sempre a manter o diretor da GreenNaturae debaixo de olho, não
fosse ele atacá­-lo à traição como fizera meia hora antes, levou­-o ao
quarto de banho e ajudou­-o a lavar a cara. Localizou uma caixa de
primeiros socorros num armário e fez­-lhe um penso no nariz. Depois
acompanhou­-o até à porta de casa, o telemóvel do suíço já
apreendido.
“Está livre.”
Zwiebel não precisou que lhe dissesse aquilo uma segunda vez. Saiu
de imediato da mansão e quase correu em direção ao portão do
Jardim dos Animais com Alma. A propriedade encontrava­-se num
lugar ermo da serra e Tomás calculou que o suíço levaria entre quinze
a trinta minutos a localizar alguém que lhe emprestasse um telefone
para ligar à Judiciária. O inspetor Caparro estaria ali daí a uma hora.
Ou talvez menos.
Tinha tempo, mas não muito. Logo que fechou a porta, Tomás
cravou os olhos na cortina que tapava o acesso às masmorras da
mansão. Se havia sítio onde o dossiê poderia estar era naquele lugar.
Chegara a hora de deslindar aquele caso.
.

XXXVIII

A primeira coisa que chocou Noé Vandenbosch quando chegou à


Linda Rosa e imobilizou o automóvel no parque de esta­cionamento
foi quão anónimas e inocentes as instalações se apresen­tavam a quem
as via de fora. Dir­-se­-ia que se tratava de um simples armazém, sem
janelas, com umas portas gigantes fechadas e grandes ventoinhas no
telhado. Aliás, o próprio nome lhe pareceu um achado. Linda Rosa.
Pura, inocente e virginal. Quem teria sido o génio de marketing que a
batizara assim?
Enchendo­-se de coragem, abriu a porta da viatura e apeou­-se. Um
cheiro acre e desagradável pairava no ar. O etólogo sabia do que se
tratava, claro. O cheiro do dinheiro. Era fácil enganar os olhos, como
se provava pelo aspeto anódino das instalações, mas não o nariz.
Esforçou­-se por ignorar o fedor que a brisa lhe trazia e encaminhou­-se
para o edifício. Parou para deixar passar um camião com um reboque
branco e longo, um veículo frigorífico que saía das instalações, e
entrou pela porta cuja tabuleta assinalava “receção”.
Dirigiu­-se ao balcão onde se encontrava a rececionista, uma rapariga
de bata amarela e branca. Por trás dela, na parede, encontravam­-se
duas placas a certificar a segurança e a higiene daquele local de
trabalho.
“Bom dia”, cumprimentou. “O engenheiro Ricardo Peralta está?”
A rececionista pegou no telefone e estabeleceu o contacto. Depois de
trocar umas palavras, desligou e encarou o visitante.
“O senhor engenheiro já aí vem. Faça o favor de se sentar.”
O etólogo belga acomodou­-se num sofá de couro creme e olhou em
redor. A decoração era refinada, com chão em mármore alpenina e as
paredes cobertas a madeira de carvalho trabalhada, um ecrã de
plasma encrustado a mostrar em loop um vídeo promocional da Linda
Rosa, com imagens de vastas pradarias com vacas a pastar e uma
valsa de Strauss como fundo musical; era espantoso como a receção
tinha um ar moderno, quase como se fosse uma instituição bancária
ou uma imobiliária de luxo ou mesmo uma clínica supermoderna.
Uma fila de pequenos gabinetes preenchia uma das paredes, com
homens engravatados no interior a trabalhar em computadores. Tudo
muito sofisticado e asseado. Reparou que havia revistas na mesinha de
apoio ao sofá. Tentando controlar o nervoso miudinho, pegou numa
delas e folheou­-a com interesse superficial. O seu domínio da língua
portuguesa era limitado, pelo que se concentrou nas fotografias.
“Professor Vandenbosch?”
Ergueu os olhos e viu o engenheiro Peralta, do departamento técnico
da Linda Rosa, diante dele. Trazia um walkie­-talkie ao cinto.
Levantou­-se de imediato e apertou­-lhe a mão.
“Como está, engenheiro?”, saudou­-o. “Muito obrigado por me
receber tão em cima da hora.”
“O que é isso, professor Vandenbosch? A si nada lhe posso recusar,
como sabe.”
O belga sabia. Havia ajudado o engenheiro português meses antes,
quando este precisara, para a filha, de um tratamento inovador
desenvolvido num centro de pesquisa avançada em Liège. Chegara a
hora de lhe cobrar o favor.
“Estou numa situação muito delicada, como lhe expliquei ao
telefone. O banco a quem devia um empréstimo entrou­-me pelas
instalações dentro e levou­-me os animais. Tive ontem acesso à
documentação do banco e percebi que os meus meninos foram
vendidos à Linda Rosa. Queria saber se era possível... enfim, resgatá­-
los.”
Engolindo em seco e pestanejando sucessivamente, o engenheiro
Peralta parecia nervoso.
“Depois de o professor me ligar, fui inquirir sobre o assunto e...”
Baixou a cabeça, embaraçado. “Enfim, isto parece complicado. Não
estou muito otimista, para ser sincero.”
Não era uma boa notícia.
“Porquê? O que aconteceu?”, alarmou­-se Noé, quase em pânico.
“Eles já...?”
O engenheiro Peralta abriu os braços num gesto de ignorância.
“Não sei”, admitiu. “Andei a ver a documentação para saber se os
animais aqui estavam e confirmei que de facto já deram entrada nas
nossas instalações. O problema é que, como vinham em excelente
condição, foram imediatamente dados como aptos pelo veterinário e
encaminhados segundo os trâmites normais. Fui ver o lote em causa e
constatei que uma parte já foi processada ontem à tarde. O resto está
a sê­-lo esta manhã.”
“Oh, não!”
“Tenhamos esperança”, apressou­-se o engenheiro Peralta a
acrescentar. “Sugiro que me acompanhe. O professor acha­-se capaz de
reconhecer alguns dos animais?”
“Conheço­-os a todos como se fossem meus filhos.”
O engenheiro Peralta puxou­-o pelo braço.
“Excelente”, disse. “Venha daí.”
Depois de falar com a rececionista e de esta entregar a Noé uma
credencial, o anfitrião conduziu­-o para o interior do edifício. Meteram
por um corredor e dirigiram­-se a uma porta de aço. O etólogo sabia
que aquela porta marcava uma fronteira e que, cruzando­-a, entraria
não apenas num novo mundo, mas numa outra dimensão. Era a porta
por onde passavam apenas os eleitos, os poucos com acesso ao
segredo. Cruzá­-la constituía uma espécie de rito de iniciação. Como se
voltasse a aderir aos rosacruz. Só que esta era uma confraria diferente.
“Sabe que é a primeira vez que visito um sítio destes?”, perguntou
Noé, quase como se pedisse ao anfitrião que fosse gentil com ele.
“Estou um bocado nervoso...”
“Compreendo, professor. Mas se queremos resolver isto não temos
alternativa se não vir aqui, não é?”
Assim era, de facto. Calando­-se, Noé fixou o olhar nas costas do
anfitrião. Sempre a seguir em frente para mostrar o caminho, o
engenheiro Peralta abriu a porta de aço e passou para o outro lado. O
belga abrandou no último momento, respirou fundo e, fechando por
momentos os olhos como se se atirasse de um precipício, deu um
passo em frente.
Cruzou a passagem.
O técnico da Linda Rosa trancou a porta atrás deles e, sem dizer
uma palavra, conduziu­-o pelo corredor até ao corpo principal do
edifício. O corredor curvou para a direita e desem­bocou num
varandim que dava para um salão gigantesco. Noé imobilizou­-se no
varandim e contemplou o espaço diante dele.
“Mince!”
O fedor esbofeteou­-o com brutalidade; era aqui mais forte do que no
exterior. Não se podia dizer que o espaço fosse diferente do que
esperara. Homens e mulheres de bata branca, botas altas de borracha
e luvas quase até aos cotovelos estavam lá em baixo perfilados numa
espécie de linha de montagem a fazer movimentos com caixas e
plásticos e facas e serras. Emergindo de uma pequena porta, surgiam
pedaços de carne dentro de caixas que rolavam ao longo de uma
espécie de tapete metálico. Os trabalhadores pegavam numa parcela
aqui e num fragmento acolá e faziam um corte ou seccionavam uma
parte e embalavam a carne com um plástico celofane, despachando­-a
para um contentor que dava para uma porta gigante. A porta estava
aberta e outros funcionários de bata branca metiam as embalagens em
caixas e depositavam­-nas na carga de um camião frigorífico
semelhante àquele que Noé vira ao chegar às instalações da Linda
Rosa.
Ali estava pois o destino que o banco de Ambrosini dera aos seus
meninos do Jardim dos Animais com Alma. No ar pairava o cheiro do
dinheiro. A empresa chamava­-se Linda Rosa, é certo, mas não passava
de um simples e ordinário matadouro. O sítio onde o dinheiro
cheirava a morte.
.

XXXIX

Ao reentrar no santuário que Noé Vandenbosch ocultara para além


da cortina púrpura, Tomás Noronha fixou a atenção no grande
tríptico pregado à parede. O historiador sabia o suficiente sobre
história da arte para reconhecer a importância daquela obra de
Hieronymus Bosch e perceber o estranho paralelismo entre ela e o
caso que tentava deslindar.
O etólogo assassinado era flamengo e chamava­-se Vandenbosch, ou
do bosque. Quando chegara a Portugal tinha adquirido uma
propriedade à qual chamara Jardim dos Animais com Alma. Ora ali,
no santuário que erguera na cave da sua mansão de Sintra,
encontrava­-se em grande relevo a obra­-prima do grande pintor
flamengo Bosch, ou bosque. Além disso, o quadro intitulava­-se O
Jardim das Delícias Terrestres. Jardim, bosque, delícias terrestres,
animais com alma. Coincidências? Nem pensar. Tudo estava ligado.
Aquela pintura de Hieronymus Bosch escondia sem dúvida a chave do
mistério da morte de Noé Vandenbosch.
Contornou a secretária em forma de cruz para se abeirar da
reprodução do quadro, mas tropeçou num objeto. Olhou para baixo e
percebeu que se tratava de um livro antigo. Baixou­-se e pegou nele.
Paradisus anime intelligentis, de Meister Eckhart. O Paraíso da Alma
Inteligente. O que diabo estava ali a fazer a obra do grande místico da
Turíngia? Provavelmente tinha caído da estante dos livros esotéricos
durante a luta com o assaltante que o atacara havia uma hora naquele
mesmo local.
Antes de o devolver à prateleira, contudo, folheou as páginas
amarelecidas pelo tempo. Enquanto passava os olhos pelas linhas
impressas a tinta gasta, pôs­-se a esquissar os traços comuns a toda
aquela estranha história. Sendo um dos precursores do misticismo dos
rosacruz, Meister Eckhart acreditava que as criaturas emergiam de
uma unidade e que através da alma todas elas parti­lhavam a centelha
divina. Ou seja, todos os seres vivos continham uma essência sagrada.
O Paradisus anime intelligentis partia da ideia da existência entre as
criaturas de uma espécie de paraíso do divino.
Ora qual era o tema que Hieronymus Bosch, ele próprio associado
ao movimento dos rosacruz, escolhera para O Jardim das Delícias
Terrestres? O paraíso do Homem com os animais. Aliás, e pensando
bem, Bosch nascera em 1459, justamente o ano referenciado na
Chymische Hochzeit Christiani Rosencreutz anno 1459, ou as
Núpcias Quymicas, o famoso livro fundador do movimento rosacruz.
Estranha coincidência. O Jardim dos Animais com Alma era na
verdade o hino em pedra de Noé Vandenbosch à santidade da vida
animal e à sua união com o humano e o divino, da mesma forma que
O Jardim das Delícias Terrestres era o hino em tela de Hieronymus
Bosch à santidade da vida animal e à sua união com o humano e o
divino. Aí estavam as verdadeiras Núpcias Quymicas da vida, aí se
encontrava o paraíso das almas de Meister Eckhart, escrevia­-se aí o
Liber M dos rosacruz, o esotérico Livro das Maravilhas da Natureza
que estabelecia a unidade da espécie humana com todas as criaturas
vivas.
Até ali em silêncio, Carioca remexeu­-se no seu poleiro diante da
porta de vidro.
“Wanna nut”, disse. “Quero uma noz.”
“Já vai.”
“Pay attention”, insistiu o papagaio. “Presta atenção. Vem cá. Quero
uma noz.”
Percebendo que o pássaro não se ia calar enquanto não lhe fizesse a
vontade, Tomás foi à cozinha e voltou com uma noz. Entregou­-a a
Carioca e este pôs­-se de imediato a comê­-la.
“Lindo menino. Agora deixa­-me trabalhar, ouviste?”
O historiador regressou para junto da reprodução de O Jardim das
Delícias Terrestres, acreditando que estava no grande quadro a chave
que o conduziria à resolução do mistério da morte de Noé. A primeira
parte do tríptico tinha um significado claro, pois mostrava o paraíso
perdido de Adão e Eva. O sentido das outras duas partes, todavia,
afigurava­-se mais misterioso. A segunda parte da pintura de Bosch
apresentava um grande jardim repleto de seres humanos e animais,
uns comuns e outros mitológicos, no meio de cenas bizarras e
fantásticas. Já a terceira parte constituía uma imagem noturna de
homens e animais em sofrimento, com caveiras de animais, facas,
instrumentos de tortura e homens diante de uma cidade em chamas.
Não tinha a menor dúvida de que a segunda e terceira partes do
tríptico encerravam um sentido oculto. Estava perante uma obra sobre
a alquimia, uma espécie de Núpcias Quymicas em pintura, com
alegorias e figuras herméticas inseridas como códigos que
simultaneamente permitiam ocultar e aceder a um segredo místico.
Que segredo seria esse? O historiador só via uma possibilidade. A
mensagem de O Jardim das Delícias Terrestres tinha de ser a mesma
do Paradisus anime intelligentis, a mesma das Núpcias Quymicas, a
mesma do Liber M, o Livro das Maravilhas da Natureza, a mesma do
Jardim dos Animais com Alma. A mensagem dos rosacruz. A união do
Homem com a natureza, da espécie humana com todos os animais, da
vida com a divindade. A diver­sidade escondia a unidade, as partes
formavam o todo.
Tudo era um.
Um.
Muito importante, o quadro contava uma história secreta que ao
longo dos séculos os críticos de arte e os filósofos tentaram em vão
descodificar. No que todos concordavam era que se tratava de uma
narrativa com uma mensagem mística. A primeira parte, a do Jardim
do Éden, mostrava a harmonia dos seres humanos com os restantes
animais e a sua integração em toda a natureza. Isso era claro. A
segunda apresentava o jardim manchado pelo pecado do Homem
perante a natureza e a forma como subjugara as restantes espécies. A
terceira constituía a visão apocalíptica do colapso da humanidade pela
corrupção da natureza, o efeito catastrófico da ação do Homem sobre
o mundo natural. Mas se essa era a mensagem secreta de Hieronymus
Bosch, onde se escondia o enigma de Noé Vandenbosch?
“Vamos lá, Noé”, murmurou Tomás, sempre a perscrutar o tríptico
em busca de pistas. “Onde escondeste tu o dossiê? Onde está a
resposta ao mistério da tua morte? Vá, conta lá...”
A solução tinha de estar na segunda ou na terceira parte do tríptico,
acreditava. Se era aí que se ocultava a mensagem alquímica que o
pintor ali inscrevera, logicamente seria aí que o etólogo escondera o
seu segredo.
Carioca remexeu­-se de novo no poleiro.
“Banerry!”
Preocupado em manter­-se concentrado no problema, Tomás fez um
gesto na direção do papagaio a indicar­-lhe que esperasse.
“Já vai...”
“Banerry!”
“Espera.”
“Baneeerryyy!”
O historiador bufou, irritado. Tornava­-se claro que Carioca não se
iria calar tão cedo. Se queria recuperar a tranquilidade e voltar a
concentrar­-se, tinha de o satisfazer. Lembrou­-se que Maria Flor lhe
tinha explicado que o papagaio por vezes inventava palavras novas,
como era o caso de banerry, para exprimir o nome de um fruto que no
seu paladar sabia a uma mistura de banana com cherry, ou cereja.
Banana mais cherry dava banerry. A palavra que Carioca inventara
para dizer maçã.
“Queres maçã, hem?”, resignou­-se Tomás, saindo em direção da
cozinha. “Que chato!”
“Come here!”, chamou Carioca. “Vem cá!”
“Tem calma, já te dou a banerry.”
O historiador reapareceu no santuário com uma maçã na mão e
entregou­-a ao papagaio. Carioca olhou para o fruto e, irritado,
sacudiu as asas e encarou Tomás.
“Pay attention!”, insistiu. “Presta atenção! Banerry!”
Tomás voltou a estender­-lhe a maçã.
“Está aqui. Isto é a tua banerry.”
Como se fosse acometido de um ataque de irascibilidade, Carioca
abocanhou a maçã com o bico e atirou­-a ao chão, num claro gesto de
rejeição.
“Ba­-ner­-ry! ”, soletrou, como se lhe quisesse martelar a palavra.
“Presta atenção. Ba­-ner­-ry! ”
Aquele comportamento intrigou Tomás. Porque recusara Carioca a
maçã que ele próprio tinha pedido? Porque soletrava a palavra
daquela maneira?
“Isto é a banerry, Carioca. Queres ou não queres?”
O pássaro inclinou­-se para a frente.
“Presta atenção! Banerry!”
Algo ali não batia certo, pressentiu o historiador. O papagaio pedia
uma maçã, ele entregara­-a e o animal recusava­-a, continuando a pedi­-
la. Será que afinal não sabia o que dizia? Como lidaria Noé com
aquelas situações? Será que...?
Imobilizou­-se. Ocorreu­-lhe de repente uma frase de Maria Flor. A
mulher contara­-lhe que Noé, que nunca lhe falara sobre o seu
envolvimento com os rosacruz, costumava ser muito conversador
quando estava com o papagaio. Queriam lá ver que...?
Fixou os olhos arregalados em Carioca, a incrível hipótese a encher­-
lhe a mente. Seria possível que o belga tivesse feito daquele pássaro o
fiel depositário do seu segredo?
.

XL

A divisão do enorme edifício era clara pela forma como se


apresentava, mas o engenheiro Ricardo Peralta deu­-lhe nomes
quando, ao conduzir Noé Vandenbosch pelos sucessivos cor­redores,
cruzaram a transição entre os dois setores principais e entraram na
zona onde tudo começava, o coração propriamente dito do
matadouro.
“Abandonámos a zona limpa e entrámos na zona suja”, anunciou o
elemento do departamento técnico da Linda Rosa. “Aqui até os
quartos de banho e as cantinas são separados. Os funcionários da
zona limpa não podem usar os lavabos e o refeitório da zona suja e
vice­-versa. Para que não haja contaminações.”
Que tinham acabado de entrar na zona aptamente designada suja
era evidente pelo aspeto geral daquele setor. Saíram da ala de
aparência assética, com as suas embalagens transparentes cheias de
pedaços de carne uniformes e anónimos, e de trabalhadores com
batas, botas e luvas, e passaram para uma ala onde se via sangue e
pedaços de gordura no chão e nas paredes, e sobretudo corpos inteiros
decapitados, pendurados em ganchos a rolar numa espécie de
monocarril metálico preso ao teto e que percorria toda esta parte do
matadouro como uma longa enguia, o sangue a pingar das
extremidades. Os trabalhadores que operavam aqui estavam mais
espaçados uns dos outros e não usavam fardas; vestiam­-se com roupas
normais.
“É aqui onde os matam?”
“Chamamos­-lhe a zona de colheita”, corrigiu o engenheiro Peralta.
“Soa melhor.”
Toda a zona suja estava no entanto segmentada por barreiras altas
que dificultavam que se percebesse o que se passava para além delas,
tornando impossível uma visão de conjunto e, sobretudo, que se visse
a tal zona de colheita. Noé estremeceu com a expressão. Zona de
colheita. Até a linguagem disfarçava o que ali realmente se passava.
“Onde é que se faz a... a...”
Não foi capaz de terminar a pergunta, mas o seu guia entendeu­-a.
“A colheita?” Apontou para uma das alas protegidas pelas barreiras
altas, na extremidade do grande edifício e junto a uma grande porta
aberta para o exterior. “Ali.”
Engolindo em seco, Noé perscrutou o local indicado. Era então ali o
altar das execuções? Com um certo alívio, nada conseguiu vislumbrar;
havia demasiadas barreiras, como se cada secção estivesse escondida.
Tinha a sensação nítida de que o sítio que o engenheiro Peralta
apontara, todavia, exalava uma aura mística, que o repelia e atraía ao
mesmo tempo. Era ali o ground zero, o epicentro da morte, o fosso do
extermínio cavado pelos seres humanos contra as restantes espécies.
“Temos... temos mesmo de ir lá?”
“Só se não quiser”, respondeu o engenheiro. “Mas devo avisá­-lo de
que é o único sítio onde poderemos intercetar as vacas vivas antes que
sejam abatidas.”
Noé bufou, resignando­-se.
“Vamos.”
“Espero que reconheça os seus animais e que possamos intervir a
tempo.”
Abandonaram o varandim e percorreram um corredor metálico que
serpenteava a três metros de altura sobre as diversas secções da zona
suja do matadouro; tratava­-se do corredor usado pelos supervisores
para inspecionarem a cadeia de trabalho. O ambiente em todo este
setor do matadouro revelava­-se definitivamente diferente do da zona
limpa. O ar era mais quente e húmido, quase vaporoso, e havia poças
de sangue e de outros líquidos misturados pelo chão, juntamente com
pedaços de carne e gordura. O cheiro a morte mostrava­-se ainda mais
forte, um fedor feito de sangue e excrementos, urina e ácidos
estomacais vomitados pelos animais.
A relação entre os homens que ali operavam parecia mais informal
do que na zona limpa. Os funcionários deste setor, talvez por estarem
mais distantes uns dos outros, cantarolavam, assobiavam ou gritavam
e gesticulavam entre si, sempre a comunicar quando não estavam a
retalhar pedaços de carne das vacas penduradas por uma das patas no
monocarril. Reinava ali uma certa informalidade.
Não era com facilidade que Noé olhava para a atividade lá em
baixo. Tudo aquilo lhe fazia imensa impressão, dada a sua profunda
ligação aos animais. Uma das coisas que mais o perturbou, no
entanto, foi perceber que, para além de um local de morte, o
matadouro constituía também uma fábrica de despersonalização.
Sabia que os animais da mesma espécie eram todos diferentes uns dos
outros; uns mais fortes, outros mais magros, outros mais inteligentes,
outros mais baixos, outros mais largos. Como os seres humanos, aliás.
A variedade individual dentro da uniformidade de cada espécie era
imensa.
Contudo, com os corpos a serem retalhados por fases ao longo de
toda aquela cadeia de trabalho, cada parte seccionada e embrulhada
tornava­-se exatamente igual à anterior. O matadouro despersonalizava
e uniformizava os animais, tornando anónima e impessoal a origem de
cada parte. Quando aqueles pedaços chegavam à mesa do consumidor
já ninguém via a vaca ou o porco; apenas a alcatra e as costeletas. Na
perceção de quem comia, cada fatia tanto podia vir de um animal
como de uma árvore; a forma final nada tinha a ver com o ser vivo
original. O processo de anonimização e despersonalização dos animais
começava ali.
Cruzaram­-se com dois supervisores já perto da zona da matança.
Por esta altura, o etólogo recusava­-se a olhar para baixo, com receio
do que pudesse ver. Ouviu uns mugidos distantes, por entre claques
mecânicos, cliques metálicos, sopros de máquinas e vozes de homens,
mas manteve os olhos sempre presos às costas do engenheiro Peralta,
como se essas fossem a sua rede de segurança.
O corredor metálico chegou ao fim. O seu guia imobilizou­-se junto
da balaustrada de um varandim de observação e, virando­-se para ele,
apontou para baixo.
“É aqui.”
Respirou fundo para ganhar coragem e só então se voltou na direção
indicada. Viu uma espécie de portão aberto para o exterior, de onde
jorrava a luz da manhã. Gado entrava em fila, sobretudo vacas,
descendo a mugir por uma rampa e encaminhando­-se por um corredor
serpenteado para o que parecia ser um alçapão. Alguns homens
conduziam­-nas, tocando­-lhes com uma espécie de cassetetes que lhes
enfiavam pelo ânus e as faziam saltar e urrar de dor, impulsionando­-as
para a frente.
“O que é aquilo?”
“Tasers”, explicou o seu guia. “Dão­-lhes choques elétricos e assim
forçam­-nas a avançar.”
Noé ainda quis protestar, não via qual a utilidade de atormentar
criaturas que se encontravam a minutos da morte, ainda para mais
sendo óbvio que elas cheiravam o sangue e estavam assustadas, mas
ficou a observar a confusão que ali se estabelecera como se tivesse
ficado hipnotizado. Muitas vacas e vitelos escorregavam na rampa e
iam embatendo uns nos outros, afunilando­-se no corredor
serpenteado, alguns encavalitando­-se sobre os seguintes, as coxas
cobertas de fezes, um ou outro a vomitar de medo ou de dor.
“Onde... onde as estão a... a...”
“A colheita não se processa num ponto específico”, esclareceu o
engenheiro Peralta, compreendendo a pergunta. “Prolonga­-se em
diversas secções ao longo de um espaço de quinze metros. Isto porque
estamos perante um processo que decorre por fases, entende?”
Uma expressão de incompreensão formou­-se no rosto de Noé.
Sempre pensara que a morte ocorria num ponto exato.
“Os animais morrem por fases? Não percebo...”
O dedo indicador do elemento do departamento técnico do
matadouro voltou­-se para o espaço situado a seguir ao alçapão.
“A zona de colheita começa ali, está a ver? Os animais enfiam­-se por
aquele alçapão, entram numa caixa e uma estrutura apanha­-os por
baixo e ergue­-os. Está a ver ali?”
Viu de facto uma vaca branca e negra ser erguida no ar por uma
estrutura metálica em forma de U que a levantava pela barriga graças
a um sistema hidráulico. Isso acontecia no interior de uma espécie de
caixa metálica situada a seguir ao alçapão. A vaca tinha as patas
suspensas e mugia, virando a cabeça de um lado para o outro sem
perceber o que se passava nem onde estava, os olhos amedrontados. A
estrutura metálica em U transportava­-a para um homem situado na
ponta da caixa metálica com um objeto na mão.
“E então?”
O engenheiro não respondeu, deixando que os acontecimentos
falassem por si. A caixa metálica pareceu fechar­-se sobre a vaca como
uma espécie de colete­-de­-forças, permitindo apenas um pequeno
espaço de onde emergia a cabeça dela. O animal continuava a olhar
para todos os lados, ainda sem nada entender, mas já mal podia mexer
o pescoço e fazia­-o quase apenas com os olhos. O homem inclinou­-se
com o objeto metálico na mão, dir­-se­-ia um cilindro com uma pega, e
colou­-o à testa da vaca, ligeiramente acima do espaço entre os olhos.
Ouviu­-se um pffft­-pffft mudo.
Ato contínuo, o bovino estremeceu violentamente e matéria cinzenta
começou a jorrar do buraco aberto na testa.
Noé deitou a mão à boca.
“Mon Dieu!”
Algum sangue muito escuro saiu juntamente com a matéria cinzenta
e a vaca esticou o pescoço, tremendo descontroladamente, como se
estivesse a sofrer um ataque epilético. O olhar tornou­-se vidrado e a
língua descaiu­-lhe para o canto da boca.
“Embora possa parecer, não levou nenhum tiro”, esclareceu o
engenheiro Peralta. “Aquele cilindro é uma aldrava, uma espécie de
pistola hidráulica que, por pressão de ar, solta uma barra de doze
centímetros. A barra penetra na testa e... e acontece isto.”
A estrutura metálica em U ergueu o corpo inerte e largou­-o sobre
uma outra estrutura, esta em plástico verde, também suspensa, que
levou a vaca para o ponto seguinte, onde a aguardava o segundo
trabalhador da cadeia.
“Mataram­-na.”
“Uh... não necessariamente”, corrigiu o seu guia. “Digamos que está
em coma. Ou seja, inconsciente.”
O segundo funcionário cravou um gancho metálico na perna traseira
esquerda do animal. O gancho encontrava­-se suspenso por cabos
ligados ao monocarril. A roda do monocarril começou a rolar e o
gancho puxou a vaca pela perna, suspendendo­-a verticalmente de
cabeça para baixo. Nesse instante o animal começou a espernear
violentamente e exalou pela boca um líquido de vómito esverdeado,
que caiu no solo já sujo de sangue e massa cinzenta.
Noé abriu a boca, horrorizado.
“Ela.. ela está viva!”
.

XLI

Se Noé Vandenbosch tinha por hábito conversar no santuário com o


seu papagaio sobre temas que não abordava com outras pessoas, seria
possível que o animal soubesse onde o etólogo guardara ou escondera
o documento explosivo que poderia ilibar Maria Flor? A possibilidade
afigurava­-se extraordinária, mas Tomás percebia que, mais do que
plausível, era até provável.
“Carioca, presta tu atenção”, disse­-lhe. “O Noé... o Noé falou­-te
num dossiê?”
O papagaio ficou quieto, como se não fosse nada com ele, e Tomás
sentiu­-se estúpido. O assunto era demasiado complexo para a mente
de um pássaro, mesmo um tão inteligente como Carioca. Era natural
que Noé lhe tivesse dito qualquer coisa, pois se costumava conversar
com a ave parecia inevitável que lhe falasse sobre os temas que o
preocupavam. Uma coisa, no entanto, era Carioca ouvir tais
confidências e outra completamente diferente era o papagaio ser capaz
de compreender o seu real significado ou até o momento em que as
deveria reproduzir. Uma coisa dessas estava evidentemente para lá das
suas capacidades cognitivas.
O pássaro voltou a inclinar­-se para a frente.
“Banerry! Presta atenção! Banerry!”
Assim não ia lá, concluiu Tomás com desânimo. Tratava­-se de uma
conversa de tolos e ele era o tolo maior por se pôr a conversar com
um animal. Aquilo eram as fábulas de La Fontaine ou quê?
“Ba­-ner­-ry! ”
Por outro lado, a insistência naquela palavra e o facto de Carioca ter
rejeitado a maçã que lhe trouxera era realmente intrigante. E se, por
simples exercício, levasse a sério que o papagaio por alguma razão
tivesse decidido que aquele era o momento para lhe revelar o segredo
de Noé e estivesse de facto a tentar comunicá­-lo? O que tinha banerry
de tão importante?
Seguindo esta hipótese, Tomás tentou reconstituir as circunstâncias
em que Carioca começara a falar em banerry. Se bem se lembrava, na
altura encontrava­-se diante do tríptico a analisar a mensagem secreta
que Hieronymus Bosch ocultara no seu O Jardim das Delícias
Terrestres e a interrogar­-se sobre o local onde Noé havia ocultado o
tal dossiê explosivo de que falara a Maria Flor.
Mais uma vez, Carioca inclinou­-se para a frente.
“Presta atenção! Banerry!”
Desta feita foi o movimento do papagaio no poleiro que chamou a
atenção do historiador. Porque se inclinava ele daquela maneira?
Porquê naquele sentido? E... e em que sentido exa­tamente? Analisou a
direção da inclinação do corpo de Carioca sempre que falava sobre
banerry e constatou que parecia apontar para a parede lateral.
A do tríptico.
Olhou para o quadro místico de Bosch. O que tinha O Jardim das
Delícias Terrestres a ver com banerry? Logo que formulou a pergunta,
lembrou­-se de um pormenor que, ao fim de várias horas e tantos
acontecimentos, já se havia desvanecido da sua memória. Quando ao
princípio da tarde fora ao Oceanário com Maria Flor, o inspetor da
Judiciária revelara­-lhes que havia sido encontrada uma mensagem nas
roupas da vítima. Se bem se lembrava, essa mensagem dizia... dizia...
Cerrou as pálpebras e viajou mentalmente para o momento no
Oceanário em que o inspetor Caparro lhes mostrara o cartão
encontrado no corpo de Noé. O cartão continha uma frase obscura
em francês, qualquer coisa sobre a verdade que se encontra na... não,
não era que se “encontra” nem “na”, era que se “esconde” e “atrás”.
Como era mesmo a frase? Voltou a fazer um esforço de concentração,
os olhos fechados e a mente concentrada no instante em que vira a
mensagem.
De repente ela formou­-se­-lhe no espírito, luminosa e cristalina.
La vérité se cache derrière la chute de l’homme.
Sim, fora essa a mensagem encontrada no cartão que Noé guardara
na sua roupa. A verdade esconde­-se atrás da queda do homem. Que
verdade? Qual queda? Que homem? Na altura a interpretação
parecera mais ou menos óbvia. A verdade era a da morte de Noé. O
homem era Noé. E a queda era uma referência à sua queda no tanque
da baleia­-assassina. Só que, vendo bem, nada daquilo fazia sentido.
Então Noé caíra no tanque do Oceanário e, depois de morto pela
orca, iria pegar numa caneta e escrever a mensagem e guardá­-la num
envelope que punha num bolso?
A mensagem não podia, pois, constituir uma referência às
circunstâncias da morte de Noé. Mas se não era isso, era o quê? A que
estaria a vítima a referir­-se quando dizia que a verdade se escondia
atrás da queda do homem? Qual homem? Que verdade? Só podia ser
a contida no tal dossiê. E essa verdade escondia­-se atrás da...
A resposta impôs­-se­-lhe subitamente na mente como uma explosão
de luz.
“Ba... banerry!”, exclamou, batendo com a palma da mão na testa.
“Banerry!”
“Presta atenção!”, interveio de imediato Carioca, como se estivesse a
praticar um dueto. “Banerry!”
Subitamente excitado, Tomás quase beijou o papagaio.
“É isso, Carioca! Banerry!”
Tinha desvendado o enigma.
.

XLII

A imagem da vaca pendurada no gancho do monocarril do


matadouro a espernear deixou Noé Vandenbosch literalmente à beira
de um ataque de nervos.
“Mon Dieu! Ela está viva!”
“Não necessariamente”, tentou o engenheiro Ricardo Peralta
tranquilizá­-lo. “É uma reação reflexa.”
“Como assim, reflexa?”
“Oiça, se amputar a cauda de uma lagartixa, a cauda pode pôr­-se a
pular, não é verdade? E, no entanto, a cauda não está viva. A mesma
coisa se passa aqui.”
“Mas a vaca mexe­-se!”
“É um reflexo!”, insistiu o técnico da Linda Rosa. Hesitou. “Ou
pelo menos é o que nós, os da indústria, alegamos quando nos
questionam sobre este fenómeno de os animais continuarem a mexer­-
se quando estão pendurados nos ganchos. Olhe para os olhos vidrados
e para a língua de fora dela. Vê? Isso é a prova de que o animal não
está consciente. Ou já morreu ou perdeu a consciência.”
Noé não ficou convencido, mas tomou uma nota mental para
verificar o assunto mais tarde. Por essa altura já a vaca estava a ser
levada pelo monocarril, sempre a espernear no ar, enquanto um outro
animal era apertado na caixa metálica e o executor, colando­-lhe a
aldrava à testa, repetia tudo. O etólogo começara entretanto a prestar
atenção àqueles pffft­-pffft sucessivos. Percebeu que os sons emitidos
pela aldrava ocorriam em intervalos regulares e, contando pelo
relógio, constatou que aconteciam de doze em doze segundos.
“Matam um animal a cada doze segundos?”
“Já contabilizou, hem?”, anuiu o engenheiro Peralta. “Sim, de doze
em doze segundos. São trezentos por hora, dez mil por semana, meio
milhão por ano. O ritmo tem de ser este, porque senão o custo das
operações dispara.”
Um massacre, pois. Os olhos de Noé acompanhavam a vaca que fora
neutralizada e que estava nesse momento pendurada pelo gancho, a
espernear, um fio de sangue a sair­-lhe da testa e a jorrar para o chão.
O monocarril perfez um ângulo de noventa graus e levou o animal
para junto de dois homens com facas. O primeiro executou­-lhe uma
incisão vertical no pescoço e recuou, para não ser atingido pelas patas
esperneantes e pelos novos esguichos de sangue, e o segundo penetrou
com a faca nessa incisão para atingir algo no interior.
“Cortou­-lhe a carótida e a jugular”, esclareceu o técnico do
matadouro. “Tecnicamente é isto que as mata. É por isso que eu disse
há pouco que a colheita é um processo. Não ocorre necessariamente
num único sítio, mas ao longo dos quinze metros entre a caixa
metálica com a aldrava e os cortes no pescoço. Embora...”
Deixou a frase no ar, enquanto o monocarril levava a vaca por uma
curva e contracurva em S até a encaminhar para duas barras paralelas
de metal. Sem tirar os olhos dela, Noé convidou o seu guia a concluir
a frase.
“Embora?”
A vaca tocou nas barras paralelas e estremeceu violentamente,
deitando ainda mais sangue pelos buracos na testa e no pescoço. Foi
de imediato movimentada para a secção seguinte, onde três homens
com facas a retalharam mais completamente, numa coreografia
sinistra. O primeiro cortou­-lhe a cauda, o segundo decepou­-lhe a
perna traseira direita e o terceiro retalhou­-lhe o ânus. O sangue
jorrava agora profusamente, em golfadas sucessivas, caindo sobre uma
espécie de trincheira metálica que o canalizava para um tanque,
evidentemente para ser aproveitado comercialmente; pelos vistos ali
não havia desperdício.
“... embora ela possa ainda estar viva quando lhe são cortadas a
carótida e a jugular”, admitiu o engenheiro Peralta, completando
enfim a frase que ficara em suspenso. “É por isso que estão ali aquelas
barras. Viu? Elas são eletrificadas. Quando passou pelas barras, a vaca
levou uma descarga de alta voltagem que lhe estimulou o coração e a
fez despejar mais depressa o sangue que tinha no corpo. Agora sim,
depois de lhe amputarem toda a parte traseira, e uma vez esvaziada de
sangue, supostamente ela já pode ser dada como morta.”
O olhar de Noé continuou a acompanhar a vaca que vira morrer. O
animal avançava pelo monocarril pendurado pelo gancho, os
movimentos das pernas já meramente ocasionais. O passo a seguir foi
dado por outro funcionário que lhe cortou o nariz e o seguinte uma
orelha, prontamente atirados para banheiras onde se acumulavam
centenas e centenas de outros narizes e outras orelhas amputadas. O
corpo chegou então a um setor onde lhe abriram a barriga e lhe
retiraram a pele, expondo a carne branca do interior. Um homem
premiu um manípulo e braços hidráulicos puxaram o resto da pele,
expondo todo o interior do animal como se lhe tivessem despido a
roupa e revelado o verdadeiro corpo. A sua aparência tornou­-se
grotesca. Era agora uma massa de carne com a forma de uma vaca, é
certo, mas, sem pele, apresentava­-se toda branca com olhos
protuberantes.
Começava assim o processo de despersonalização. A cabeça foi
decepada e colocada num gancho de uma linha autónoma, onde um
homem lhe cortou os lábios e os atirou para um tanque cheio de
lábios, e o mesmo fizeram outros com as bochechas e a língua,
penduradas em ganchos em fila, e com toda a carne que lhe podiam
extrair da cabeça. Uma outra linha separada, por onde prosseguia o
corpo decapitado, retirava­-lhe já os intestinos, o estômago e todos os
órgãos. A vaca que entrara aterrorizada na caixa metálica
transformava­-se pouco a pouco em fatias cada vez mais pequenas de
carne homogeneizada que em breve, entrando na zona limpa, seriam
empacotadas e metidas nos camiões­-frigoríficos para distribuição por
talhos e supermercados.
Toda aquela máquina era sustentada por assassinos que fingiam não
ser assassinos, considerou Noé enquanto percorria os olhos pela longa
linha de produção e analisava tudo o que se passava no interior do
edifício. Na ficção ali instituída, a odiosa função de matar estava
reservada aos homens que trabalhavam na zona da “colheita”. Isto é,
ao trabalhador da aldrava e aos dois que cortavam a carótida e a
jugular dos animais. Eram esses os que haviam sido investidos da
função de feiticeiros da morte, eram eles os senhores do extermínio,
era sobre eles que recaía exclusivamente a responsabilidade moral pela
matança.
Nesta ficção conveniente, os restantes trabalhadores limitavam­-se a
fazer parte da cadeia de fragmentação e empacotamento do
“produto”, meras peças de um mecanismo que lhes era alheio. Através
da segmentação da experiência, neutralizava­-se a bruta­lidade e
remetia­-se a responsabilidade pela matança sobre os ombros de
apenas três homens. Havia ali uma centena de pessoas a retalhar
animais em mil pedaços, mas enquanto aqueles três existissem, os
restantes poderiam alegar que nada matavam, que não tinham
responsabilidade, que nem sequer viam a morte. Ficção útil. Tão útil
quanto a ficção de que as pessoas que comiam os produtos daquela
matança também eram inocentes, também elas não tinham...
“Cuidado!”
A reflexão do etólogo foi interrompida pelos gritos que soaram lá
em baixo. Os olhares dos dois observadores no varandim voltaram­-se
de imediato nessa direção. Viram o homem da aldrava a gesticular
para os das facas e uma vaca pendurada no gancho a espernear
violentamente e a mover a cabeça de um lado para o outro, apesar de
estar pendurada na vertical com a cabeça para baixo, a mugir.
Noé ficou confuso; aquilo era diferente do que observara ainda
momentos antes.
“O que está a acontecer?”
A resposta levou um longo momento a ser dada, até porque a ação
se desenrolava muito depressa e ninguém tirava os olhos dali. Os
homens das facas fizeram as suas incisões no pescoço do animal
esperneante, mas a vaca continuava a contorcer­-se e a revirar a
cabeça, desesperada e ainda a mugir, até apanhar o choque elétrico
nas barras paralelas. Pareceu ficar atordoada, mas ainda movia as
pernas. Os três homens seguintes retalharam­-lhe o rabo, a perna
traseira direita e o ânus. O animal remexia­-se ainda. Ao chegar à
secção seguinte, o homem que lhe tirava a pele fez­-lhe um corte na
cabeça e ela mugiu de dor. Apercebendo­-se de que afinal o bovino
estava vivo, espetou­-lhe uma faca na nuca e este imobilizou­-se. A
seguir as máquinas arrancaram­-lhe a pele, expondo­-lhe o interior
branco.
“Já está”, disse o engenheiro Peralta. “Viu? Cortou­-lhe a medula
espinhal.”
“Mas... o que se passou?”
O técnico do matadouro encolheu os ombros.
“Acontece.”
O etólogo mostrava­-se incrédulo.
“Mas... mas... ela estava consciente!”, exclamou, a indignação a
trepar­-lhe pela voz à medida que ia caindo em si quanto ao significado
do que acabara de observar. “Não viu? A vaca estava consciente!”
O engenheiro Peralta esboçou uma expressão embaraçada.
“Pois, às vezes acontece”, repetiu. “A aldrava não a neutralizou
completamente e os tipos da carótida e da jugular, como a viram
chegar bem viva e consciente, tiveram medo de serem atingidos e
executaram mal os cortes. De modo que... que sucedeu isto.”
“Mas a vaca sobreviveu ao choque elétrico das barras paralelas.
Você disse que ela aí já pode ser dada como morta.”
“Eu disse ‘supostamente ela já pode ser dada como morta’.
Supostamente.”
“Retalharam­-na viva!”, protestou Noé. “Não viu? Depois de a
desgraçada passar pela aldrava, pelas facas que lhe iriam cortar a
jugular e a carótida e pelas barras elétricas, ainda estava viva!
Cortaram­-lhe o ânus e amputaram­-lhe a perna com ela consciente!”
“Foi pior do que isso”, confessou o engenheiro Peralta em voz
baixa. “Viu no final espetarem­-lhe aquela faca para lhe cortarem a
medula espinhal? Isso apenas a paralisa do pescoço para baixo.
Percebe? O problema é que a vaca permanece consciente e con­tinua a
sentir dores do pescoço para cima.”
“O quê?!”
O técnico do matadouro esboçou um gesto vago no ar, como se não
soubesse o que dizer.
“É... é chato!”
O etólogo nem queria acreditar.
“Chato?”, quase gritou. “Chato?!”
O engenheiro Peralta mostrava­-se atrapalhado.
“Quando uma coisa destas sucede, o protocolo requer que o
monocarril seja imediatamente desligado e um funcionário venha com
uma pistola e dê um tiro na cabeça do animal”, explicou, tentando
acalmar o visitante. “Assim ele não sofre.”
“Mas ninguém desligou a porra do monocarril!”, rugiu o belga, o
rosto rubro de irritação. “Porquê?”
O homem da Linda Rosa fez uma careta dorida; sabia que não lhe
iria ser fácil explicar de forma aceitável os procedimentos adotados
naquelas situações.
“O monocarril só é desligado nas alturas em que está alguém da
inspeção sanitária presente”, admitiu. “Quando não se encontra aqui
nenhum inspetor, o que em bom rigor é a norma, deixa­-se andar
porque, seja qual for a maneira como vai morrer, a verdade é que a
vaca vai morrer. De uma forma ou de outra, o destino dela está
traçado. Ou os tipos da incisão no pescoço a matam, ou então morre
quando lhe retalham a cauda, o ânus e a perna traseira direita.”
“Mas se o protocolo manda parar a máquina para dar um tiro no
animal, porque não o fazem?”, questionou o etólogo. “Porque o
deixam morrer desta forma tão cruel?”
O engenheiro da Linda Rosa remexeu­-se, desconfortável.
“O senhor professor tem a noção do custo que envolve desligar o
monocarril e parar toda a máquina de produção? Temos uma quota
de animais a matar por hora, professor. Ora uma paragem do
monocarril compromete irreversivelmente essa quota. Agora imagine
fazer isto dez, vinte ou trinta vezes ao dia. Não dá. É por isso que o
pessoal deixa andar, está a entender?”
Pelo seu semblante, era evidente que Noé não estava a entender coisa
nenhuma.
“A gestão sabe disto?”
“A gestão encoraja isto”, retorquiu o engenheiro Peralta. “A pressão
vem deles, professor.”
“Está a brincar...”
“Porque acha que a aldrava não neutralizou aquele animal? Para
funcionar bem, é preciso que a aldrava seja regularmente submetida a
manutenção e o mesmo para o tubo de ar comprimido que lhe fornece
energia. O problema é que a manutenção custa dinheiro e... enfim, fica
mais barato deixar andar. Por outro lado, isto por vezes é até
deliberado, pois o...”
O belga arregalou os olhos, incrédulo.
“Deliberado?!”
“Eu sei que é chocante, mas faz sentido de um ponto de vista da
produção. Repare, se a vaca morrer imediatamente, o coração dela
deixa de bombar e o sangue sairá mais lentamente, o que atrapalha o
trabalho na linha de processamento. Então diminui­-se
propositadamente a eficácia da aldrava para a deixar inconsciente mas
não morta, de modo a que o coração expulse o sangue quando ela
começar a ser retalhada. O problema é que nem todas as vacas são
iguais. Um disparo da aldrava que chega para deixar uma vaca em
coma não é suficiente para tirar a consciência da vaca seguinte. É
assim que isto acontece, mas poucos se importam. No fim de contas,
de uma maneira ou de outra os animais acabam sempre por morrer,
não é verdade?”
“Os inspetores sanitários sabem disto?”
“Claro que sabem.”
“E o que fazem eles?”
“Dão uma lição de moral ao pessoal, nós dizemos que sim e eles
deixam andar. Oiça, desde que não se faça nada à frente dos
inspetores, tudo corre bem.”
O belga teve vontade de pegar no seu interlocutor pelos colarinhos,
abaná­-lo todo e atirá­-lo lá para baixo, mas conteve­-se, não apenas por
saber que não podia fazer uma coisa dessas mas porque tinha
consciência de que não era ele o responsável por aquilo. Isso, porém,
não desculpava o que vira.
“Como podem fazer coisas destas aos animais?”
“É o controlo de custos”, explicou o engenheiro Peralta. “Para que a
carne chegue barata ao mercado, pois os consumidores exigem carne
barata e estão­-se nas tintas em saber como se chega a esses preços, é
preciso acelerar a produção e cortar nas despesas. Daí que não se faça
a manutenção adequada e estejam sempre a acontecer coisas assim.”
“Sempre a acontecer?”, espantou­-se Noé. “O que quer dizer com
isso? Isto não é excecional?”
O técnico da Linda Rosa quase se riu.
“O que o senhor acabou de ver é a regra, professor. Houve uma vez
em que numa tarde vi arrancarem a pele consecutivamente a uma
centena de vacas, bois e vitelos que, todos eles, ainda estavam vivos e
conscientes. Todos, percebeu? Os desgraçados berravam que nem uns
desalmados enquanto se viam ser esquartejados vivos e com as peles
arrancadas a frio, mas... the show must go on. Isto está sempre a
acontecer nos matadouros, professor. Todos os dias. Aqui, na
América, em França... em toda a parte é assim. O pessoal é que não
sabe.”
A transpiração escorria pelo rosto pálido de Noé, que pestanejava
abundantemente enquanto tentava absorver toda a informação que
lhe era comunicada.
“Mas... mas... ninguém faz nada?”
“Claro que não.”
“Nem o Estado?”
Desta feita o engenheiro Peralta não conteve mesmo a gargalhada
que quase soltara momentos antes.
“O Estado, professor?”, questionou. “Não me faça rir. Está­-se toda
a gente nas tintas para o que acontece aqui, professor. Toda a gente.
Os deputados fazem umas leis muito bonitas, lá isso fazem. Os
políticos dizem coisas lindíssimas, quem os ouvir até os acha uns
anjinhos, só lhes faltam as asinhas e as auréolas. Mas... fazer?”
Abanou a cabeça. “Ninguém faz nada. O importante é que a carne
chegue ao consumidor, que também é eleitor, em abundância e muito
barata. A gestão não quer saber disto porque está preocupada com os
lucros. O Estado não quer saber disto porque está preocupado com os
votos. E o consumidor não quer saber disto porque... olhe, porque
quer comer carne, quer comê­-la barata e não quer que o chateiem.”
“Não é bem assim.”
O técnico do matadouro apontou para uma vaca a ser esquartejada
num gancho.
“Acha que não?”, questionou com sarcasmo. “Sabe porque estão os
animais aqui a sofrer desta maneira e a serem esquartejados e
escalpelizados enquanto ainda se encontram conscientes? Porque
ninguém quer saber. Essa é que é a verdade. As pessoas podem até
assinar umas petições, dizer que gostam muito de animais,
coitadinhos, e até enternecerem­-se com o político que com palavras
delicodoces se diz profundamente humano e compassivo para com os
que sofrem e mais não sei quê, mas... fazer alguma coisa? Toda a gente
sabe que existem matadouros, professor. Toda a gente sabe isso. Mas
alguém vem aqui ver o que realmente se passa dentro destes edifícios?
Ninguém vem cá. E porquê? Porque na realidade não querem saber.
Não querem saber. Aliás, preferem não saber. Querem é a comida no
prato, e a baixo preço. As leis e todo o discurso de que gostam dos
animais e que é preciso protegê­-los e não se pode abandoná­-los é só
para alguns animais fofinhos, uma minoria privilegiada. No fundo não
passa tudo de conversa para apaziguarem as consciências. Fingem­-se
uns bonzinhos. E, se calhar, até acreditam nisso. Convém­-lhes
acreditar. Mas quando uma pessoa diz que adora animais e a seguir dá
um pedaço de carne ao seu cão, pois adora­-o tanto que o alimenta
com o melhor que há, o que está ela realmente a fazer? A dar­-lhe
carne. De onde pensa que vem essa carne? Dos matadouros. Como se
matam os animais nos matadouros?” Apontou para a linha de
produção lá em baixo. “Da maneira que está a ver.”
“Sim, mas as pessoas não sabem o que aqui se passa. Na verdade,
nem sonham.”
“Não sabem?! Não sonham?! Ó professor, os matadouros existem e
todos sabem que existem, mas ninguém os vê. Estão escondidos à vista
de todos. Se as pessoas não sabem o que se passa nestes sítios e até
nem sequer os veem é simplesmente porque não querem. Não querem
ver. Não querem saber. Querem é comer bem e barato e sem que a
consciência lhes pese. É por isso que dizem gostar tanto de animais.
Gostam, mas deixam que os matem desta forma e comem­-nos sem
jamais se fartarem. O problema não é as pessoas não saberem. O
problema é que elas não querem saber, o que é bem diferente. Fazem
questão de fechar os olhos.”
A atenção de Noé deambulava pela rampa que continuamente
despejava gado e pelos animais que a plataforma metálica elevava
para conduzir ao homem da aldrava. Reparou que a vaca que nesse
instante era transportada para o abate era negra e coberta por
manchas brancas. Ao reconhecê­-la, o seu coração deu um salto.
“Alice!”
A vaca com a qual todos os dias brincava às escondidas no Jardim
dos Animais com Alma estava prestes a enfrentar a morte.
.

XLIII

A solução era banerry.


Sem perder tempo, Tomás Noronha correu para o tríptico e centrou
toda a sua atenção na primeira tela da grande pintura, a do Jardim do
Éden. Ali estava, na parte de baixo da imagem, a figura de Jesus a unir
Adão e Eva. Procurou junto a um dos três a serpente da tentação,
conforme relatado no mito bíblico. Não a encontrou à primeira.
Analisou a pintura com maior cuidado. Viu gatos, pássaros, aves,
elefantes, macacos, coelhos, girafas, centopeias e... e... sim, ali estava a
serpente, discreta, à direita, enrolada no tronco de uma palmeira.
A maçã? Onde estava a maçã do pecado? Procurou­-a e procurou­-a e
procurou­-a até por fim chegar à conclusão de que não havia maçã em
lugar nenhum. Como era aquilo possível? Hieronymus Bosch inserira
no primeiro painel do tríptico todos os ingredientes do mito bíblico do
Jardim de Éden e... e esquecera­-se da maçã?! Aquilo não era um
acidente, percebeu. Não podia ser. Se a maçã estava ausente de O
Jardim das Delícias Terrestres só podia ser porque o pintor assim o
decidira. Era de propósito.
Como parecia evidente, Noé notara­-o. Mais, falara nisso a Carioca.
Tal explicava por que razão o papagaio insistia tanto na sua banerry.
Ele não queria nenhuma maçã. Carioca percebera que a referência à
maçã era importante, pois sem dúvida Noé lho tinha dito, e era por
isso que fizera toda aquela cena. Carioca queria comunicar­-lhe que
olhasse para a maçã porque essa era a vontade do etólogo. A maçã em
causa só podia ser a que estava ausente da cena bíblica do tríptico. Se
Noé fizera o papagaio memorizar a importância da maçã
forçosamente seria porque o fruto do pecado bíblico constituía um
elemento importante. O que estaria o belga a tentar comunicar? Que a
ausência da maçã tinha relevância na mensagem mística da pintura de
Hieronymus Bosch? Isso era certo. Mas... e se houvesse algo mais?
Era aqui que se encaixava a derradeira mensagem de Noé. La vérité
se cache derrière la chute de l’homme. A verdade esconde­-se atrás da
queda do homem. Na narrativa bíblica, o que era a queda do
Homem? Nem mais nem menos, o momento em que Adão e Eva
comiam a maçã que a serpente lhes oferecia em tentação. A maçã que,
no vocabulário do papagaio, se exprimia pela palavra banerry. Ou
seja, o etólogo ocultara o seu segredo na cena da maçã. Só que na
pintura não havia nenhuma maçã.
O historiador quase colou o nariz ao quadro e analisou com mais
atenção o primeiro painel, o do Jardim de Éden. Fixou as três figuras
centrais, Adão e Eva mediados por Jesus, um lugar óbvio onde a maçã
poderia estar. Nada notou de anormal. O que queria Noé comunicar
exatamente? Desviou em seguida a atenção para a serpente
enrodilhada no tronco da palmeira, à direita. Este era o outro ponto
óbvio onde a maçã deveria estar, caso o pintor tivesse decidido incluí­-
la na cena. Também nada notou. Percorreu o tronco da palmeira com
o olhar e, entre a folhagem, reparou numa ligeira saliência. Alguém
havia dado ali um toque e deformara levemente a reprodução do
tríptico.
Quase instintivamente, passou o dedo pela saliência para alisar a
tela, mas a superfície do quadro resistiu e não se alterou. Isso
surpreendeu­-o. Passou novamente o dedo, desta feita exercendo maior
pressão. A tela continuou a resistir. Dir­-se­-ia que havia ali um objeto
incrustado na tela. Intrigado, tateou a saliência e percebeu que, de
facto, escondia­-se naquele sítio alguma coisa. Nesse instante, voltou a
lembrar­-se da mensagem encontrada no cadáver de Noé. A verdade
esconde­-se atrás da queda do homem. A palavra­-chave aqui era, nesse
momento, “atrás”. A verdade esconde­-se atrás da queda do Homem.
Ora se fora a tentação da serpente que conduzira à queda do
Homem...
“Será que...”
Subitamente excitado, agarrou em todo o quadro e desprendeu­-o da
parede. Pousou­-o no chão e virou­-o. Por detrás do ponto onde se
encontrava pintada a palmeira em cujo tronco a serpente se
enrodilhara, viu colado um objeto. Arrancou­-o com os dedos.
Tratava­-se de uma pen de computador.
Carioca remexeu­-se no poleiro.
“Banerry!”
Fora então assim que Noé inculcara a mensagem na mente do
papagaio. Convencera­-o de que a pen era a maçã.
“Sim, Carioca. É esta a maçã do Noé.”
Era­-o de facto. Estava por detrás da queda do Homem. Mas
guardaria ela a verdade?
A ferver de curiosidade, Tomás sentou­-se à secretária e ligou o
computador do etólogo. A seguir inseriu a pen e clicou nos ícones
relevantes. Uma ampulheta digital apareceu no ecrã enquanto o
computador extraía a informação ali arquivada. Expectante, Tomás
Noronha preparou­-se para aceder ao conteúdo da pen. Se ela iria
revelar o famoso dossiê, e se Noé lhe chamara maçã, o que lhe dizia
isso acerca do seu conteúdo? Que estava perante a maçã do pecado. A
maçã que precipitara a queda do Homem. A maçã que expulsara a
humanidade do paraíso. Poderia haver algo mais explosivo do que
isso?
A primeira imagem da pen formou­-se no ecrã e mostrou um desenho
que, como historiador e criptanalista, de imediato reconheceu. O
Monas Hieroglyphica.

O que diabo significava tudo aquilo?


.

XLIV

Ao constatar que Noé Vandenbosch identificara como sua a vaca


que se aprestava para ser abatida no matadouro, o engenheiro Peralta
agarrou no walkie­-talkie que trazia ao cinto, pô­-lo à frente da boca e
carregou no botão de chamada.
“Mayday na colheita!”, disse, um tom de urgência na voz. “Mayday
na colheita!”
A caixa metálica fechava­-se sobre Alice e ela era transportada para o
homem com a aldrava na mão.
“Parem!”, gritou o etólogo do varandim, tentando sobrepor a sua
voz à da maquinaria em progressão na zona suja do matadouro.
“Parem imediatamente!”
O walkie­-talkie do engenheiro Peralta estralejou.
“O que se passa na colheita?”
“Daqui Peralta. Mayday na colheita! Desliguem já a máquina de
produção!”
O funcionário da aldrava inclinou­-se sobre Alice e pousou­-lhe a
ponta do cilindro letal sobre a testa, preparando­-se para acionar o
mecanismo que lhe abriria um buraco na cabeça.
“Parem!”, voltou a berrar Noé, desesperado e já a roçar o pânico.
“Por favor, parem!”
Nesse momento ouviu­-se um claque ruidoso e toda a produção se
imobilizou, incluindo o monocarril. Um silêncio súbito abateu­-se
sobre o matadouro.
Os trabalhadores lá em baixo não percebiam o que se passava. O
homem da aldrava olhou para trás, tentando entender o que levara à
paragem da maquinaria, e o mesmo faziam os seus colegas ao longo
de toda a linha de produção. No varandim, Noé e o seu guia
suspiraram de alívio. Haviam travado a tempo o abate da vaca do
Jardim dos Animais com Alma.
“O que aconteceu?”, perguntou uma voz no piso térreo. “Quem
mandou parar a produção?”
O engenheiro Peralta ergueu a mão.
“Fui eu.”
“Porquê?”, perguntou o homem, a cabeça voltada para cima. “O
que aconteceu?”
“Há... há um problema com essa vaca”, justificou­-se. “Pode ter sido
adquirida irregularmente.”
O homem que o questionava, um técnico com a bata amarela dos
supervisores, foi ao computador consultar o manifesto.
Ao cabo de dois minutos voltou­-se com uma expressão inquisitiva
para os que estavam no varandim.
“Parece tudo normal...”
“A empresa que nos vendeu a vaca pode tê­-la adquirido de forma
irregular”, justificou­-se o engenheiro Peralta. “O processo poderá ir a
tribunal e parece­-me que pouparemos problemas à Linda Rosa se
suspendermos a colheita do animal até os factos estarem devidamente
apurados.”
O supervisor voltou a estudar o manifesto que se encontrava no ecrã
do computador.
“Não vejo nenhuma anomalia”, acabou por concluir. Colou o
walkie­-talkie à boca. “Falso alarme. Recomecem a produção.”
“Espere!”, interveio o engenheiro Peralta, acionando também o
walkie­-talkie para travar a ordem. “Ponham essa vaca de lado e
vamos verificar as coisas com toda a calma. Pode haver problemas
legais e convém sermos prudentes.”
“Não sei se há ou não há problemas legais com esta vaca”, retorquiu
o supervisor. “O manifesto está normal e temos é de nos guiar por ele.
Se houver problemas, quem nos entregou o manifesto assumirá as suas
responsabilidades. O nosso trabalho não é lidar com questões legais, é
tratar da produção.”
“E se houver problemas legais?”
“Não é um problema nosso.”
“Mas a empresa poderá ter de pagar uma indemnização se se vier a
demonstrar que a...”
O supervisor pareceu perder a paciência.
“Engenheiro Peralta!”, berrou. “O senhor mandou parar a produção
e não apresentou razões pertinentes para o fazer! A sua decisão tem
custos, como com certeza não ignora. Quem os vai pagar?”
“Mas...”
“Chega!”, cortou o supervisor. “Dirija­-se à gerência e resolva a
questão com ela. A produção não pode parar sempre que há uma
qualquer dúvida legal que nem sequer é registada no manifesto e que,
na verdade, nem é assunto da sua responsabilidade, pois o senhor
engenheiro, que eu saiba, pertence ao departamento técnico. O
manifesto está normal e nós guiamo­-nos pelo manifesto.” Voltou a
juntar a boca ao walkie­-talkie. “Recomecem a produção!”
Ouviu­-se um zumbido geral e o monocarril recomeçou a circular, o
mesmo acontecendo com todas as partes da cadeia de produção. Os
funcionários voltaram ao trabalho e, na zona da “colheita”, o homem
da aldrava testou no ar o mecanismo da máquina cilíndrica que tinha
na mão para se certificar de que funcionava normalmente.
Dando um salto no varandim, Noé pôs­-se a gritar.
“Parem! Parem tudo!”
A vaca ouviu os gritos e reconheceu a voz. Alice virou os olhos para
o varandim e, identificando o seu dono e amigo, pôs­-se a mugir
ruidosamente, como se lhe pedisse socorro.
“Parem!”
Também o supervisor atirou um olhar para Noé, mas de surpresa.
Decidiu ignorá­-lo. O engenheiro Peralta, por seu turno, parecia
impotente e desorientado, sem saber o que fazer.
“Professor...”
O homem da aldrava inclinou­-se de novo para Alice, que mugia sem
cessar na direção do seu amigo humano num tom de evidente súplica.
Vendo­-a implorar, e percebendo que a vaca com a qual ainda dias
antes brincara às escondidas estava na iminência de ser abatida, o
etólogo gritou na direção do homem da aldrava.
“Pare imediatamente! Pare ou... ou eu processo­-o, ouviu? Eu
processo­-o!”
O funcionário não dava sinais de o escutar sequer. Colou de novo o
cilindro à testa de Alice e preparou­-se para acionar o mecanismo. A
vaca mugia e mugia, sempre a fixar Noé com o olhar desesperado.
“Paaaare!”
O pffft­-pffft letal rasgou o ar como o sopro de uma serpente.
Do buraco entre os olhos de Alice jorrou sangue. Apesar disso, a
vaca não tombou. Desatou aos encontrões dentro da caixa metálica
onde estava presa, viva e claramente consciente, tentando a todo o
custo escapar daquela armadilha.
“Nãaaao!”
O funcionário voltou a assentar­-lhe a aldrava na testa, mas o animal
remexia a cabeça com violência, evidentemente porque não gostara do
que acontecera da primeira vez que o instrumento fizera contacto com
ela, e depressa se tornou claro que a operação não seria executada. O
homem carregou então numa manivela e a estrutura metálica que
sustentava Alice largou­-a sobre a estrutura plástica. A vaca caiu de
cabeça, embateu com a boca no chão de cimento e partiu os dentes
frontais.
“Parem com isso!”, gritou Noé, a voz rouca e já em lágrimas.
“Parem! Por favor, parem! Não lhe façam mal!”
O funcionário seguinte prendeu o gancho à perna traseira esquerda
do enorme animal e o monocarril ergueu­-o no ar de cabeça para
baixo, arrastando­-o para os homens das facas.
“Alice!”
Ela esperneava selvaticamente, tentando libertar­-se e a mugir sem
cessar, revirando a cabeça à procura de Noé. Os homens das facas,
temendo serem atingidos, fizeram­-lhe uma incisão pouco profunda no
pescoço e deixaram­-na seguir; os que vinham a seguir que resolvessem
o problema.
“Vocês não podem fazer isso!”, gritou Noé, exasperado. “Não veem
que ela está viva? Não veem?”
Perturbado com os protestos permanentes que vinham do varandim,
o supervisor reagiu por fim.
“Quem é esse gajo? Tirem­-me o tipo daqui!”
Alice passou nesse momento pelas barras paralelas e sofreu o choque
elétrico. Ficou momentaneamente atordoada, mas depressa se
recompôs e recomeçou a mugir, sacudindo o corpo e tentando
libertar­-se daquela posição.
Pressionado pelo supervisor, o engenheiro Peralta puxou por Noé,
convidando­-o a sair.
“Peço desculpa, professor”, disse, visivelmente atrapalhado. “Temos
de ir embora.”
“Não vou embora coisa nenhuma!”, resistiu o etólogo, os olhos
fixos no que acontecia a Alice. “Soltem­-na!”
Os homens da secção seguinte na linha de produção, situados numa
plataforma alta e sem verem a cabeça do animal, apercebendo­-se da
comoção no varandim mas sem a noção de que a vaca estava
consciente, cortaram­-lhe sucessivamente a cauda, deceparam­-lhe a
perna traseira direita e retalharam­-lhe o ânus. Alice mugia,
enlouquecida pela dor e em choque.
“O que lhe estão a fazer!?”
O engenheiro Peralta começou a puxar o belga, tentando com mais
convicção tirá­-lo dali.
“Professor, venha comigo.”
“Bestas!”, berrava Noé, resistindo e totalmente descontrolado.
“Vocês são umas bestas!”
O homem da secção em que se arrancava a pele espetou a faca na
nuca da vaca, cortando­-lhe a espinal medula. Alice deixou então de se
debater, mas continuou a pestanejar e a mexer os olhos, e foi assim
que Noé viu arrancarem­-lhe a pele e exporem­-lhe o interior branco.
Alice estava a ser esquartejada e escalpelizada com vida e consciente
de tudo o que lhe sucedia.
Tombando de joelhos no varandim, incapaz de suportar todo aquele
horror, o etólogo cobriu a cabeça e chorou convul­sivamente.
.

XLV

Quando terminou de ver o conteúdo da pen que descobrira por


detrás da tela de O Jardim das Delícias Terrestres, Tomás Noronha
recostou­-se na cadeira e respirou fundo. Como era possível uma coisa
daquelas? Se o que acabara de ver no computador era o dossiê
perdido, e era­-o de certeza, não lhe parecia difícil de entender por que
razão Noé Vandenbosch o considerara tão explosivo.
A sua busca terminara. Havia encontrado o documento que poderia
inocentar Maria Flor. Era certo que não lhe permitiria resolver na
totalidade o mistério da morte de Noé Vandenbosch, pois havia ainda
pontos importantes por esclarecer, mas o que ali estava pareceu­-lhe
suficiente para atirar as suspeitas noutras direções. O dossiê mostrava
as razões que haviam conduzido à morte do etólogo, mas
evidentemente não revelava como o homicídio fora executado nem
quem precisamente o levara a cabo. Paciência. Isso seria um trabalho
para a polícia.
Os seus pensamentos foram interrompidos por um barulho na porta
do santuário. Levantou­-se e foi ver o que era. Depa­rou com Guida
com ar entediado, atrás dela a sala desarrumada e as bonecas
espalhadas pelo chão. Logo que lhe abriu a porta, a chimpanzé fez­-lhe
sinais em língua gestual.
SAIR.
Pelos vistos tinha­-se fartado de brincar sozinha.
“Queres sair à rua, é?”
SIM SIM.
O historiador tinha pressa em imprimir a informação que a pen
continha, mas isso levaria tempo pois a impressora instalada no
santuário não era das mais rápidas. Além disso, precisava de deixar
comida aos animais da casa e satisfazer­-lhes as necessidades. Guida
pelos vistos queria dar um passeio. Resgatar Maria Flor dos
calabouços da Judiciária estava evidentemente em primeiro lugar,
mas... e porque não? O que lhe custaria gastar dez minutos nisso antes
de deixar tudo pronto na casa e sair para inocentar a mulher?
“Anda daí”, decidiu­-se. “Vamos lá à rua.”
A chimpanzé pôs­-se aos pulos, excitada. Ainda ao computador,
Tomás premiu o ícone de impressão e a impressora começou a
imprimir o dossiê que estava na pen. Enquanto a impressão decorria,
podia perfeitamente passear com Guida. Pegou nela ao colo na sala e
abriu a porta da rua. Ainda deu alguns passos no exterior, mas
percebeu que a tarde ia adiantada e já fazia frio, pelo que parou.
“Eh pá, não pode ser”, concluiu, dando meia­-volta. “Está um briol
do camano.”
A perspetiva de voltarem para trás não agradou a Guida, que fez
novos sinais em língua gestual.
DÁ­-ME ROUPA.
Os procedimentos para aquilo que à primeira vista seria um simples
passeio complicavam­-se. Tinha de voltar para dentro, procurar a
roupa, vesti­-la e voltar a sair. Iria perder um tempão naquilo! Ergueu a
cabeça para o céu num gesto de enfado e foi nesse instante que
reparou que sobre a porta de entrada da casa havia um pequeno vidro
redondo.
Intrigado, aproximou­-se e analisou o vidro. Era na verdade uma
lente. O que estava uma lente ali a fazer? Pegou numa cadeira de
jardim encostada à parede e depositou­-a sob a porta. Escalou a
cadeira e estudou a lente de perto. Tratava­-se, percebeu, de uma
câmara de segurança discretamente instalada por baixo das telhas. O
que significava aquilo? Noé tinha um sistema de videovigilância em
casa?
Em bom rigor, fazia sentido. Que melhor maneira haveria de
controlar todos os animais na propriedade e na sua própria residência
do que um sistema de videovigilância? Reentrou na casa com a ideia
de ir procurar agasalhos para Guida, mas ia a cogitar com os seus
botões e já na sala voltou a imobilizar­-se. Se Noé filmava o espaço que
se encontrava diante da casa, o mais natural era que gravasse também
essas imagens. Ora seria interessante ver as gravações para perceber o
que tinha acontecido na altura em que... em que...
Dando um salto, largou Guida no chão e, ignorando os sinais
insistentes que ela fazia a pedir­-lhe para sair, correu de novo para a
porta de entrada. Que estúpido! Como diabo não pensara ele naquilo
horas antes? Examinou a câmara oculta sobre a porta da rua e
percebeu que havia um fio branco estreito a sair dela e a entrar num
buraco que o conduzia ao interior da casa. Reentrou e procurou o
ponto de entrada do fio. Encontrou­-o no local previsto e seguiu­-o até
um ecrã instalado na parede. Um computador.
Não tinha reparado nele antes, pois situava-se num canto discreto da
sala. Devia ser dali que a câmara de videovigilância era controlada.
Estariam nesse computador gravadas as imagens?
Guida voltou para o pé dele.
SAIR DEPRESSA.
“Agora não. Vai brincar.”
SAIR.
Desta feita a resposta foi mais perentória.
“Não!”
Vendo­-o tão concentrado, a chimpanzé acabou por desistir e
sentou­-se no chão, ficando a observá­-lo às voltas com o compu­tador
do sistema de segurança.
Depois de ligar o aparelho, Tomás examinou as pastas que
apareceram no ecrã. Detetou ícones a referenciar quatro câmaras.
Havia uma câmara nos currais, outra na pocilga e outra no galinheiro,
para além daquela que descobrira sobre a porta da casa. As três
primeiras não lhe pareceram relevantes, pois destinavam­-se
ostensivamente a dar ao etólogo a possibilidade de inspecionar o que
se passava com os animais sem ter de ir a toda a hora ao local para os
ver. Já a quarta era a que lhe interessava. Premiu no ícone da câmara
da porta de entrada e logo uma lista de datas se formou no ecrã.
Deu um salto efusivo.
“Cá está!”
Uma descoberta realmente para festejar. Tratava­-se da lista dos dias
referentes às filmagens que se mantinham gravadas na memória do
computador. Aquilo significava que afinal sempre havia gravações das
imagens captadas por aquela câmara. Só existiam registos dos últimos
sete dias, sinal de que ao oitavo o sistema apagava automaticamente
as imagens, mas como o que lhe interessava era apenas a véspera não
havia problema.
Moveu a seta controlada pelo rato para a linha das gravações do dia
anterior e premiu. Após uma pausa, as imagens formaram­-se no ecrã e
mostraram o espaço vazio diante de casa. Ia finalmente saber o que
acontecera ali antes de Noé morrer...
.

XLVI

Foi com dificuldade que o engenheiro Ricardo Peralta arrastou Noé


Vandenbosch para fora do matadouro. Deu­-lhe água a beber na
receção, mas as informações sobre o incidente ocorrido meia hora
antes na zona de colheita já haviam chegado à adminis­tração da Linda
Rosa e o ambiente não se mostrava o mais propício à continuidade do
belga nas instalações. Logo que Noé readquiriu controlo de si mesmo,
o guia encaminhou­-o para o seu automóvel.
“O professor acha­-se em condições de conduzir?”, perguntou o
engenheiro Peralta, preocupado com o estado em que via o etólogo.
“Ou prefere que o leve a algum lado?”
Atormentado, Noé segurou­-o pelos ombros.
“Os meus porcos?”, perguntou, a voz trémula. “As minhas galinhas?
As minhas ovelhas? Ainda tenho de recuperar a...”
“Esqueça­-os.”
“... Miss Piggy, a Elvira, o...”
“Professor, esqueça­-os!”, cortou o português, agora com a voz muito
firme. “Esqueça­-os!”
Como se despertasse de um transe, o etólogo encarou o seu
interlocutor com estranheza, como se o que ele lhe pedia fosse um
total absurdo.
“Está louco? Estamos a falar dos meus meninos! Os meus meninos!
Como os posso esquecer? Não posso! São como meus filhos! Eu
eduquei­-os! Eu...”
“Professor, oiça­-me bem”, disse o engenheiro Peralta devagar e com
firmeza. “Ninguém vai parar a linha de produção por causa das suas
galinhas e dos seus porcos. Ninguém. Tentei fazê­-lo, como viu, mas
não resultou. Bem ou mal, o banco vendeu os animais à empresa que
gere a Linda Rosa, e a Linda Rosa está a fazer o que é normal fazer­-se
neste negócio. É terrível, eu sei. Eram os seus animais, eu sei. Foram­-
lhe retirados à força, eu sei. Mas a Linda Rosa não tem culpa disso.
Assinou um contrato legal, pagou o valor que foi acordado e tem
direito a dar aos animais o destino que a lei lhe permite. Não há nada
que possamos fazer para impedir essa realidade e temos de aceitar as
coisas como elas são.”
Noé mantinha no rosto uma expressão de choque.
“Mas viu o que fizeram à Alice? Viu?”
“É horrível, não nego. Mas não podemos mudar nada, professor. As
coisas são o que são.”
O belga secou a transpiração que lhe molhava a testa e fez um
esforço para se acalmar.
“Como é com os porcos?”, quis saber, quase a medo. “E com as
galinhas? O que vai acontecer à Miss Piggy, à Elvira, a todos os meus
meninos? Eles... eles vão sofrer como a... a Alice?”
O engenheiro Peralta ficou muito hirto a olhar para o seu
interlocutor, como se por momentos ponderasse o que deveria
responder.
“Eles... uh...” Abanou a cabeça e a sua voz ganhou súbita convicção.
“Não, não é como as vacas. Com os porcos e as galinhas é tudo
normal, fique descansado.”
Noé fitou­-o com intensidade, como se visse para além dos olhos e
lhe perscrutasse a alma.
“Diga­-me o que se passa com eles.”
“É tudo normal, não se preocupe.”
Com os nervos em franja, o belga agarrou o engenheiro Peralta pelos
colarinhos e, transtornado, puxou­-o violentamente para si,
mostrando­-lhe que não se deixaria enganar.
“Diga­-me a verdade! A verdade!”
O homem do departamento técnico da Linda Rosa ficou por
momentos sem saber o que dizer. Se dissesse a verdade, o etólogo não
a suportaria. Se não dissesse, não acreditaria nele. O que fazer?
Considerou as suas prioridades. O mais importante, concluiu, era
estar à altura da confiança do homem que no passado o ajudara num
momento difícil. Deveria esconder­-lhe a verdade? Teria o direito de o
trair?
Baixou a cabeça, em rendição.
“O... o que quer que lhe conte?”
“Tudo”, disse Noé enfaticamente. “Conte­-me o que se passa no
matadouro.” Apontou com o polegar para as instalações da Linda
Rosa. “Isto que eu vi ali dentro com a Alice e as outras vacas... isto é
normal?”
O engenheiro Peralta assentiu com um movimento fraco da cabeça.
“Infelizmente, cenas destas são por aqui comuns. A maior parte das
vacas chega morta às barras elétricas, mas por diversos motivos
muitas estão ainda vivas. Isso sucede sobretudo com os vitelos, que se
amontoam uns em cima dos outros e, porque são pequenos e as caixas
metálicas enormes, acabam por ser tratados em grupo. O operador da
aldrava neutraliza os que estão por cima mas muitas vezes deixa
passar os que se encontram em baixo. Acontece por isso com
frequência os animais serem esquarte­jados e escalpelizados quando
ainda estão conscientes. Percebe o que lhe estou a dizer? Cortam­-lhes
as pernas e arrancam­-lhes a pele com os bichos a verem e sentirem
tudo. A produção deveria parar sempre que alguém nota que eles se
encontram vivos, é isso que está na lei, mas na realidade raramente se
faz. Todo esse processo dura uns dez minutos, e durante esse tempo
muitos encontram­-se conscientes e numa agonia atroz. É isso o que
fazem às vacas, aos bois e aos vitelos.”
Em bom rigor, já isto Noé havia compreendido. O que lhe faltava
era tudo o resto.
“E os porcos?”
“O sistema de abate de porcos é diferente”, disse o homem da Linda
Rosa. “Para começar, eles são muito espertos. Quando descem a
rampa e sentem o cheiro a sangue, percebem logo tudo e começam a
evitar seguir em frente. Ficam muito assustados e já vi vários
literalmente a tremer de medo. É por isso preciso usar os tasers a torto
e a direito para os forçar a avançar. Os porcos são encurralados numa
caixa, mas para os abater não é usada uma aldrava mecânica de ar
comprimido, como acontece com o gado, mas um instrumento
elétrico. Coloca­-se o instrumento com elétrodos sobre a cabeça ou as
costas do porco e liberta-se uma descarga elétrica. A descarga dura
três segundos e põe­-no inconsciente.”
“Portanto, os porcos não sofrem como as vacas.”
O engenheiro Peralta mostrou­-se momentaneamente atra­palhado.
“Bem...”
A atrapalhação, percebeu o etólogo, não era um bom sinal.
“O que se passa com os porcos?”
O técnico do matadouro suspirou, resignando­-se ao embaraço de
explicar o que realmente acontecia quando se matam os suínos.
“O problema é que a descarga do instrumento elétrico pode, por
diversas razões, ter de ser repetida ou ser incorretamente aplicada.
Quando tal acontece, os vasos capilares das costas do porco rebentam,
o que confere à carne um aspeto danificado. Isso reduz o seu valor de
mercado. Ninguém gosta de comer carne com manchas escuras, como
é evidente. A solução óbvia seria abrandar o ritmo do abate, de modo
a não se executar apressadamente as operações e poder aplicar­-se a
descarga elétrica de forma correta, mas um abrandamento na
produção tem implicações nos custos. Menos porcos abatidos significa
menos carne produzida, não é verdade? Isso subiria os preços, coisa
que os consumidores não admitem. Então como proceder para
impedir a redução do ritmo de abate dos porcos? Simples. Reduz­-se a
voltagem do instrumento elétrico. Assim os vasos capilares não
rebentam e a carne fica intacta, o que a valoriza junto dos
consumidores. Problema resolvido.”
Noé alçou o sobrolho, desconfiado.
“Reduzir a voltagem quer dizer o quê, na prática?”, questionou.
“Que o porco não perde a consciência?”
“Infelizmente, mantém­-se consciente. Como a voltagem é diminuída,
eles apanham o choque mas permanecem acordados. Já os vi levarem
com duas ou três descargas elétricas consecutivas, uma dúzia até, e
saírem dali aos saltos e a olhar para todo o lado. Pior, saem da caixa
metálica em fúria e a partir desse momento é uma confusão. Sempre
que isso acontece, o funcionário seguinte tem um tubo de chumbo na
mão e bate­-lhes na cabeça até per­derem a consciência. Quando ficam
imóveis, atam­-nos ao gancho e içam­-nos no monocarril. O problema é
que muitas vezes os porcos recuperam aí a consciência e, guinchando
que nem uns desalmados, tentam morder em quem quer que se
aproxime deles. Então os funcionários seguintes, que têm o dever de
lhes espetar as facas e matá­-los, não o conseguem fazer
adequadamente, pois têm medo de ser mordidos, pelo que muitas
vezes os desgraçados prosseguem na linha de montagem ainda vivos e
conscientes.”
“Os supervisores sabem disso?”
“Toda a gente sabe. As chefias limitam­-se a desvalorizar e a alegar
que os movimentos dos porcos não passam de reações reflexas. A
desculpa habitual. Mas, professor, as reações reflexas não explicam os
guinchos e os grunhidos nem as tentativas de morder nem que virem a
cabeça de um lado para outro, nem que pestanejem e olhem para nós.
Isso não são reações reflexas.”
“O que acontece a seguir?”
O engenheiro Peralta bufou.
“Depois de supostamente serem mortos, os porcos são atirados para
um tanque de água a escaldar que lhes retira os pelos. A água nesse
tanque está a uma temperatura de cento e quarenta graus. Mais do
que isso seria tão quente que a carne se desprenderia dos ossos. O
problema, como é bom de ver, é que muitas vezes os coitados chegam
à água a escaldar sem que os funcionários que até aí lidaram com eles
tenham feito adequadamente o seu trabalho.”
Fez­-se um curto silêncio entre os dois homens enquanto Noé
imaginava a cena e tirava as consequências do que lhe era descrito.
Estreitou as pálpebras e inclinou­-se para o seu interlocutor.
“Deixe­-me ver se entendi”, murmurou, tentando reordenar o
essencial da informação. “O senhor está a dizer­-me que os porcos são
cozidos vivos?”
O engenheiro Peralta engoliu em seco.
“Acontece.”
“E... e nessa altura ainda estão conscientes?”
O técnico do matadouro voltou a assentir.
“Acontece.”
Novo silêncio.
“Mon Dieu!”
O olhar de Noé fixou­-se na fachada exterior das instalações da
Linda Rosa. Os porcos eram animais extraordinariamente inteligentes
e muitos revelavam­-se meigos, como ele sabia pelas suas experiências
no Jardim dos Animais com Alma. Lembrava­-se perfeitamente de ver
alguns deles encostarem­-se a si para receber uma carícia. Respondiam
quando eram chamados pelo nome, tinham brinquedos e ajudavam
outros porcos em dificuldades, dando assim mostras de altruísmo. O
que lhes faziam os seres humanos? Coziam­-nos vivos. Era esse o
destino dos seus meninos, incluindo Miss Piggy, a porca que era tão
esperta que até tinha maneiras à mesa.
Afinando a garganta, o engenheiro Peralta rompeu o silêncio pesado
que por momentos se instalara entre eles.
“Quanto às galinhas, logo que entram no matadouro são colocadas
numa espécie de tapetes rolantes e enviadas para um banho de água
eletrificada que supostamente as deixa inconscientes”, acrescentou o
técnico da Linda Rosa. “O problema é que este banho não funciona
na prática como está previsto na teoria. A voltagem é
propositadamente mantida baixa, pois a voltagem alta provoca­-lhes
ataques cardíacos e leva­-as a partir ossos, o que as desvaloriza no
mercado. Os consumidores preferem comer perna de frango com a
perna intacta, como compreenderá. Como consequência, muitas aves
saem do banho ainda conscientes ou então recuperam rapidamente a
consciência. Ora a água eletrificada com toda a probabilidade
paralisa­-as, mas não as torna insensíveis à dor. É frequente nos
matadouros vê­-las ainda com os olhos a mexer e até a tentarem abrir
os bicos, como se quisessem gritar. É assim que chegam à máquina
automática que as degola. Muitas vezes morrem ao passar por essa
máquina, mas às vezes a lâmina falha e elas prosseguem vivas. A
seguir às máquinas estão os funcionários com a missão de degolar as
que escaparam à decapitação automática, mas mesmo estes deixam
passar galinhas vivas pois têm de processar milhares de animais por
dia e naturalmente não conseguem ver tudo. É assim que elas caem
num tanque de água a escaldar, para que percam as penas. Tal como
os porcos, essas acabam cozidas vivas.”
“Quantas galinhas chegam conscientes a esse tanque?”
“Muitas.”
Noé inclinou­-se para o seu interlocutor e fixou­-o nos olhos, dando­-
lhe indicação de que não iria largar a pergunta.
“Quantas?”
“É difícil dar um número exato, como deve calcular”, disse o
engenheiro Peralta. “Mas há estimativas. Não conheço as estatís­ticas
na Europa, até porque cada caso é diferente, mas na América cálculos
efetuados pelas entidades estatais apontam para quatro milhões de
galinhas que todos os anos são cozidas vivas nos matadouros do país.”
O etólogo quase se engasgou.
“Quatr... quatro milhões?!”
Momentaneamente fechado, o rosto do técnico da Linda Rosa
abriu­-se no fantasma de um sorriso.
“Tal como as vacas e os porcos, muitas galinhas morrem em grande
sofrimento. A diferença é que elas se vingam.”
Noé abanou a cabeça, sem entender.
“Como assim, vingam­-se?”
“Depois de as atirarem ao tanque com água a escaldar e de lhes
deceparem os pés, uma outra máquina automática faz­-lhes uma
incisão vertical no peito e remove­-lhes os intestinos, o estômago e
outros órgãos. Nesse processo, sucede com frequência a máquina
rasgar­-lhes os intestinos e espalhar o conteúdo pelo resto do corpo.”
“Quando diz conteúdo dos intestinos, está a referir­-se a fezes...”
“Caviar é que não é, de certeza”, ironizou o homem do matadouro.
“Estamos a falar de merda, de pus, de vírus e bactérias de toda a
espécie, de tumores cancerígenos, de doenças de pele, de todas as
maleitas possíveis e imaginárias. Toda essa imundice entranha­-se então
por todas as cavidades do corpo do animal. Claro que existe um
inspetor sanitário com a função de verificar se cada galinha e cada
frango sai das máquinas sem estar conta­minado pela porcaria, mas...
sejamos sérios. Estamos a falar de umas vinte mil galinhas por dia,
não é? Vinte mil. Por dia. O professor acha que algum inspetor tem
tempo ou paciência para fiscalizar corretamente nem que seja um
décimo dessa quantidade de galinhas e frangos?”
A resposta era óbvia.
“Pois...”
“A seguir, as galinhas e os frangos são refrigerados. Nuns sítios são
usados sistemas de refrigeração de ar, mas noutros recorre­-se a água.
Nestes casos, as aves são atiradas para um enorme tanque de água
fria. Estamos a falar de milhares e milhares de aves ao mesmo tempo
na mesma água. As galinhas contaminadas com a merda, o pus e as
bactérias misturam­-se com as outras galinhas e a contaminação
torna­-se assim geral. Uma porcaria pegada. Sabe como é essa água
conhecida no jargão dos matadouros? Sopa fecal. Essa sopa é
parcialmente absorvida pela carne das galinhas, pois elas vieram de
água a escaldar e todos os poros se abriram, pelo que a água entra
neles e passa a fazer parte do peso bruto da carne. Está a perceber
onde quero eu chegar?”
Noé devolveu­-lhe uma expressão opaca.
“Uh... não.”
“Oiça, professor, quando vamos ao supermercado e queremos
comprar um frango, por exemplo, existe um papelinho colado com o
código de barras que dá também informações em letras pequeninas
sobre o conteúdo nutricional do produto, não é verdade? É xis
quantidade de ácidos gordos saturados, xis quantidade de lípidos, xis
quantidades de conservantes e por aí fora. Nos casos em que o frango
foi refrigerado pelo sistema da água, quando está lá registado que oito
por cento do frango é constituído por água, percebe de que água se
trata?”
Agora sim, o etólogo arregalou os olhos e compreendeu onde aquela
conversa os estava a conduzir.
“Não me diga que é a... a...”
“A sopa fecal.”
Noé ficou embasbacado.
“Está a insinuar que, quando me estou a deliciar com um saboroso
frango no churrasco, isso significa que na verdade posso estar a comer
merda?”
O engenheiro Peralta sorriu.
“É essa a vingança das galinhas e dos frangos.”
Ao ouvir isto, Noé lembrou­-se de todas as vezes que uma perna de
frango quase o tinha levado ao êxtase e teve de reprimir uma enorme
vontade de vomitar.
“Agh.”
“Matamos em todo o mundo milhões e milhões de galinhas por
dia”, disse o técnico da Linda Rosa. “Elas vingam­-se atirando merda e
pus e bactérias e tumores e vírus e sei lá mais o quê para os nossos
estômagos.”
“Caramba!”
O olhar pesado do engenheiro Peralta desviou­-se para o enorme e
anónimo edifício do matadouro, como se as imagens do que ali via
todos os dias o perseguissem.
“Sabe o que é mais grave?”, questionou. “Quando trincamos um
bife, uma bifana ou um peito de frango, tem consciência de como
morreu o animal que temos no prato?”
“Morreu no matadouro.”
O homem da Linda Rosa abriu a porta do automóvel, convidando
Noé a sentar­-se no lugar do condutor e a partir, mas antes de se
afastar deu ele próprio a resposta.
“Morreu a sofrer.”
.

XLVII

Não se podia dizer que as imagens gravadas no computador de


videovigilância do Jardim dos Animais com Alma tivessem a
capacidade de inspirar um emocionante filme de ação. Tomás
começou por ver algumas vacas a pastar diante da casa, lentas e
pesadas, enquanto noutros momentos teve de reprimir um bocejo
enquanto observava galinhas a debicar nas ervas. Deparou a certa
altura com Tina e um trabalhador a circularem para lá e para cá,
primeiro a transportarem sacos de feno e depois a acompanharem
porcos. Sorriu quando viu um leitão, mais brincalhão, a enroscar­-se
por entre as pernas de Tina e quase fazê­-la tropeçar.
O momento mais alto, no entanto, surgiu quando Maria Flor
apareceu no ecrã. Surpreendeu­-a a passar por baixo do ângulo da
câmara, evidentemente a entrar na casa, e pouco depois a sair com
Guida ao colo, decerto para o passeio higiénico do dia. Viu­-a pousar a
chimpanzé no chão e leu os sinais em língua gestual que o animal
prontamente fez à mulher.
VAMOS BRINCAR ÀS ESCONDIDAS.
De imediato Guida desatou a correr, rolando a quatro com pernas e
braços, e Maria Flor foi atrás dela, desaparecendo ambas da imagem.
A mulher voltou uma hora depois com a chimpanzé ao colo e
reentraram em casa; o passeio do dia tinha pelos vistos terminado.
Logo a seguir apareceu Noé à conversa com Tina. Os dois
despediram­-se e o belga entrou na mansão.
“Hmm...”
Maria Flor e o belga sozinhos em casa. A imagem perturbou­-o.
Estando ela a trabalhar no Jardim dos Animais com Alma, uma coisa
dessas era evidentemente normal. Mesmo assim não havia modo de
não se sentir desconfortável, sobretudo à luz da maneira como a vira
falar de Noé. Provavelmente nada se passara entre eles. Ou talvez
alguma coisa tivesse acontecido. Sabê­-lo­-ia alguma vez? Duvidou. Se
calhar nem isso interessava realmente. Tinha a noção de que algo não
funcionava no seu casamento e suspeitava de que no fundo a culpa era
sua. Deveria prestar mais atenção aos interesses e às preocupações da
mulher, mostrar maior sensibilidade para com as questões que a
tocavam e trabalhar toda a parte emocional da relação. Seria assim, e
só assim, que a reconquistaria. O seu casamento atravessava uma
crise, mas sabia que as crises encerravam oportunidades. Podiam
conduzir à destruição, mas também à renovação. Tudo dependia deles
próprios.
Meia hora depois, Maria Flor saía com a carteira a tiracolo.
Concluíra o dia de trabalho e ia­-se embora. Tentou adivinhar­-lhe o
estado de espírito pela linguagem corporal. Ia feliz ou triste? A forma
como caminhava, porém, nada revelava.
Suspirou.
Voltou a concentrar­-se na tarefa imediata que tinha em mãos. Apesar
dos momentos de atividade esporádica, na maior parte do tempo nada
acontecia na gravação e o ecrã do computador limitava­-se a exibir o
espaço diante da casa. Deserto, quieto e poeirento. Depois de Maria
Flor partir, as imagens mostraram outras pessoas a passar também em
direção ao portão da propriedade, com ar de que tinha igualmente
concluído a jornada de trabalho. Primeiro Tina, a seguir vários
trabalhadores, até por fim nada mais acontecer e um imenso vazio se
instalar no ecrã.
Ver aquela gravação era de uma monotonia suprema. Sentado diante
do computador, Tomás começou a sentir os olhos pesados, pois o dia
tinha sido longo e conturbado. O corpo pedia descanso. O
visionamento não era contudo passivo, uma vez que os momentos
parados na gravação eram muitos e não se podia dar ao luxo de os
visionar em tempo real, pelo que sempre que nada sucedia nas
imagens carregava no ícone do forward e apressava o visionamento.
A noite caíra nas imagens e começara a chover, formando­-se
gradualmente um pequeno charco lamacento diante da casa. A luz
exterior acendeu­-se sobre a porta de entrada, amarela e fraca; dir­-se­-ia
uma vela cuja chama se refletia, trémula ao ritmo dos pingos, na
superfície do charco. Tornava­-se claro que, para além de Noé e dos
animais, mais ninguém se encontrava nessa altura no Jardim dos
Animais com Alma. Alguma coisa teria forçosamente de suceder, sabia
Tomás, pois haveria um momento em que o etólogo sairia para o seu
encontro com a morte e uma coisa dessas não sucedia sem causas.
As esperanças de que pudesse observar um qualquer acontecimento
relevante antes de Noé sair de casa, todavia, começaram gradualmente
a desvanecer­-se. Estava tudo tão normal que se tornava uma
pasmaceira. No momento em que se pôs a duvidar, contudo, procurou
manter presente que alguma coisa levara o belga a sair de casa numa
noite chuvosa como aquela, algo o levara a dirigir­-se ao Oceanário,
alguém o encaminhara para o seu rendez­-vous fatal com a baleia­-
assassina. Talvez tivesse sido um telefonema, quem sabe uma
mensagem no smartphone, se calhar um mero e­-mail...
O olhar de Tomás desviou­-se para a cortina púrpura que dava para
o santuário, onde se encontrava o computador pessoal de Noé. Se as
imagens do sistema de videovigilância nada revelassem de pertinente,
como se começava a tornar claro, teria de procurar noutro sítio. Uma
vez que não tinha consigo o smartphone do etólogo, de certeza nessa
altura nas mãos da polícia, o computador dele pareceu­-lhe o objeto
óbvio a inspecionar. Teria de aceder à caixa de correio eletrónico, mas
para isso precisava da password de acesso e ele não era propriamente
um ás na informática. Havia sempre a possibilidade de o computador
pessoal ter memorizado a palavra­-passe do seu utilizador habitual,
claro. Se assim fosse, seria encaminhado diretamente para o registo
dos e­-mails de Noé. Outra opção era verificar o historial dos links no
computador dele, pois talvez encontrasse aí alguma pista útil.
Desistindo do visionamento das imagens registadas no sistema de
videovigilância, Tomás pegou no rato e movimentou a seta para o
ícone que permitia desligar o computador. Nesse instante, porém,
apercebeu­-se de um vulto que inesperadamente apareceu nas imagens.
Suspendeu o movimento e inclinou­-se para o ecrã, tentando identificar
a pessoa que na gravação premia a campainha da casa.
O recém­-chegado vestia uma gabardina unissexo e trazia um
guarda­-chuva às riscas, o que lhe ocultava a cara a partir do ângulo
alto onde se encontrava a câmara de videovigilância. Até o género da
pessoa era impossível de descortinar. Além do mais, a fraca resolução
da lente e a sombra da noite dificultavam a visibilidade. A luz amarela
sobre a porta de entrada não passava praticamente de um candeeiro
de presença; iluminava muito pouco, limitando­-se a projetar um vago
clarão que só deixava adivinhar os contornos do corpo do
desconhecido.
Tomás bufou de frustração. Maldita chuva que atrapalhara a
captação da imagem! Logo naquele instante! Justamente quando se ia
desenrolar o momento que, presumiu devido ao adiantado da hora,
iria servir de catalisador para a ação que conduziria Noé Vandenbosch
até à morte! Teve vontade de se levantar e praguejar e escaqueirar o
computador, mas refreou­-se. Permaneceu sentado a observar as
imagens. Tinha de ser paciente, pois precisava de manter a
concentração e procurar um qualquer pormenor que denunciasse a
identidade do visitante. Tornava­-se imperativo perceber quem era a
pessoa que acabara de tocar à campainha. Algo lhe dizia que a figura
no ecrã era quem assassinara Noé.
.

XLVIII

O toque da campainha arrancou Noé Vandenbosch dos seus


pensamentos numa altura em que, sentado no santuário que perante
os leigos designava como escritório, contemplava as estranhas cenas
reproduzidas em O Jardim das Delícias Terrestres. Passara os últimos
dias deprimido por causa da sua experiência no matadouro. Não
contara a ninguém nada do que ali vira, nem mesmo a Maria Flor, de
quem se despedira pouco antes. Fechara­-se sobre si mesmo,
procurando no seu interior as forças que o corpo já lhe negava.
Não havia dúvida, Hieronymus Bosch tinha razão na sua mensagem
mística inspirada nos rosacruz. A queda do Homem estava na sua
relação com a natureza. Perdida no seu deslumbramento arrogante, a
espécie humana esquecera as suas origens animais e, acreditando que
ascendera a uma condição semidivina, submetera as restantes espécies
à sua vontade e fazia delas o que bem lhe convinha. Julgava­-se Deus.
Estava aí o pecado original do Homem, era essa a verdadeira maçã na
origem da sua queda. Tornara o paraíso num inferno.
Antes de ir à porta ver quem era, olhou para o papagaio e apontou
para o quadro.
“Banerry, Carioca”, disse, levantando­-se. “Banerry.” Todos os
momentos eram bons para lhe inculcar a mensagem que conduziria ao
paradeiro da pen que ali ocultara. “Banerry. Ouviste?”
“Banerry!”
Com o som da campainha ainda a tilintar­-lhe nos ouvidos, o etólogo
encaminhou­-se para a entrada da casa e abriu a porta. Ao reconhecer
o visitante plantado à chuva diante da entrada, o seu semblante
endureceu.
“O que queres?”
Formulou a pergunta de uma forma abertamente hostil cujo real
significado não podia evidentemente escapar à pessoa que lhe viera
bater à porta.
“Já sabes de tudo, não é?”
“Vai­-te embora.”
A figura à chuva nem se moveu.
“O que fizeste foi um crime”, rosnou o visitante num tom prenhe de
ameaça. “Posso apresentar queixa à polícia.”
“Crime?”
“Sim, crime. Ires lá ao banco, entrares no gabinete como um vulgar
larápio e abrires o cofre para esvaziares o conteúdo é crime. Chama­-se
a isso roubo.”
Se não estivesse tão deprimido com os acontecimentos dos últimos
dias, Noé ter­-se­-ia rido.
“Se achas que cometi um crime, vai à polícia e apresenta queixa”,
desafiou. “Vá, apresenta. Sempre quero ver isso.”
O recém­-chegado suspirou.
“Ouve, temos de ser razoáveis. Não há razão para extremarmos
posições. Tudo isto se pode resolver a bem. Basta seres um pouco
flexível e...”
O homem da casa apontou para o portão da propriedade, algures na
escuridão.
“Vai­-te embora.”
Pela postura do visitante, no entanto, era evidente que não fazia
tenções de sair dali. Não sem ter obtido a resposta que procurava.
“O que planeias fazer com o dossiê que levaste?”
A pergunta mostrava as verdadeiras intenções da visita. Pro­curava
informação. Ou, com mais rigor, uma garantia. De silêncio.
“O que achas?”
A réplica de Noé foi dada em tom de desafio, como quem diz
“espera aí e já vais ver o que te vai acontecer”, o que deixou o seu
interlocutor intranquilo.
“Não vais fazer nenhum disparate, pois não?”
O etólogo inclinou a cabeça para o lado e assumiu uma expressão
provocatória.
“O que achas?”
Tornava­-se claro que iria fazer um “disparate”. O tom do visitante
tornou­-se imediatamente mais duro.
“Seria um erro grave.”
“Erro é o que tu fizeste e andas a fazer, cabrão de merda”, exaltou­-se
Noé, apontando o dedo acusador ao visitante. “Pensas que se pode vir
aqui e levar os animais e fazer o que lhes fizeram e... e... e que vou
deixar isto assim? Não vou, ouviste? Não vou!”
O vulto parado diante da porta escorria água da chuva que tombava
sem dar tréguas.
“Fiz o que tinha de fazer.”
“Mas... porquê?! Como é possível que... que...”
“Não vivemos num mundo da fantasia, Noé!”, explodiu o visitante.
“O mundo não é como nós queremos, mas como é! Às vezes
precisamos de fazer cedências. Em certos momentos é preciso dar um
passo atrás antes de se dar dois em frente. Não és capaz de perceber
isso? É assim tão difícil entender?”
“O que é difícil entender é por que razão me vieram chatear”,
devolveu o belga. “Por que razão se criou todo este problema com o
pagamento do empréstimo e me levaram os animais todos,
contrariando tudo o que havíamos combinado quando lançámos o
projeto.”
Fez­-se um súbito silêncio entre os dois, como se ambos medissem
forças. Apenas se ouviam as bátegas a bater nas telhas, no guarda­-
chuva e nos pequenos charcos que se formavam diante da casa.
“Ainda não percebeste?”
A pergunta do visitante foi formulada num sussurro.
“Com certeza que não percebi”, devolveu Noé. “Mas gostaria que
me explicasses.”
“O Jardim dos Animais com Alma não pode continuar a funcionar.”
“Ora essa. Porquê?”
O vulto manteve­-se quieto, a observar o etólogo como se o avaliasse.
“Não te faças de parvo”, acabou por murmurar. “Com os dados que
agora tens, designadamente aqueles que roubaste do cofre do banco,
decerto que já ligaste todos os pontos.”
Como se nada mais houvesse para dizer, Noé começou a empurrar a
porta.
“Vai­-te embora.”
O visitante meteu o pé na entrada, impedindo que a porta se
fechasse diante dele.
“Espera!”
“Vai­-te embora, já te disse.”
O vulto meteu a mão no interior da gabardina e extraiu um envelope
que estendeu na direção do anfitrião.
“Isto é para ti.”
Noé ficou a olhar para o sobrescrito, mas não tocou nele nem deu
indicação de que fizesse tenções de tocar.
“Pensas que me subornas?”
“Não é dinheiro”, esclareceu o visitante. “É informação. Chama­-lhe
um gesto de boa vontade da minha parte. Talvez te amoleça o coração
e te faça pensar. Talvez te dê a flexibilidade e o bom senso que te
faltam. Eu ajudo­-te, tu ajudas­-me. As coisas não correram bem com o
projeto do Jardim dos Animais com Alma. Paciência. Não é o fim do
mundo. Há muita outra coisa a fazer em prol dos animais, Noé. O
que está neste envelope pode dar­-te ideias.”
Estas palavras deixaram o etólogo curioso. Baixou os olhos para o
sobrescrito que lhe era estendido, tentado a aceitá­-lo.
“O que é isso?”
“Informação envolvendo um animal que te diz muito”, repetiu o
visitante. “Abre.”
Vencendo uma última hesitação, Noé agarrou no envelope e rasgou­-
o pela borda. Do interior retirou um folheto e leu­-o.
“O Oceanário de Lisboa comprou uma orca e vai organizar uns
espetáculos com ela”, constatou. Encarou a figura diante dele. “E
então? O que tenho eu a ver com isto?”
“É uma orca, Noé.”
Disse­-o como se essa informação fosse suficiente em si.
“Sim, já percebi que é uma orca”, afirmou Noé. “A minha tese de
doutoramento foi sobre as orcas. Passei anos a estudá­-las e ainda hoje
me interesso por elas. Mas... e então? Queres que vá assistir ao
espetáculo? O que te interessa isso?”
“Esta foi comprada em saldos. O Oceanário sabe muito bem que
não a poderá vender mais tarde, pelo que será abatida depois de
exibida ao público.”
“Porquê?”
O visitante inclinou a cabeça, como se a resposta fosse evidente e
nem precisasse de ser dada.
“O que leva um parque aquático a desfazer­-se de uma baleia­-
assassina ao preço da uva mijona, Noé? O que achas tu?”
O etólogo entendeu.
“Quando a planeiam abater?”
“Logo que termine a série de espetáculos que o Oceanário tem
prevista para ela”, foi a resposta. “A orca chegou hoje e foi despejada
no tanque do Ártico. No interior do tanque, contudo, existe um
alçapão que um mergulhador pode abrir e pelo qual a orca pode ser
despejada no Tejo. Sei que é um rio, mas o mar fica perto e ela nadará
com rapidez. Acontece que a partir de amanhã será montado um
dispositivo de segurança em torno desse tanque...”
A informação deixou Noé mergulhado nos seus pensamentos.
“Isso significa que a única altura em que é possível atuar será esta
noite...”
Assaltado por uma pressa súbita, o visitante consultou o relógio.
“Já se faz tarde”, constatou, fazendo meia­-volta para se ir embora.
“Pensa bem em tudo o que te disse, Noé. Pensa bem. Se és inteligente,
devolverás o material que roubaste do cofre do banco e, em troca,
terás apoio para novos projetos. Mas se mantiveres a tua casmurrice,
a coisa acabará mal.”
“Vai para o diabo!”
O visitante afastava­-se já pelo caminho enlameado em direção ao
portão da propriedade, mergulhando na chuva densa e na noite escura
que os cercava, mas o etólogo ainda o viu de costas a encostar o
indicador a uma têmpora numa derradeira mensagem.
“Juizinho.”
.

XLIX

Logo que acabou de ver a gravação do que a câmara de


videovigilância registara na noite em que Noé Vandenbosch morreu,
Tomás Noronha percebeu que tinha assistido a uma conversa crucial.
Que pena o som da gravação ser tão mau. Isso, e ainda a escuridão e o
guarda­-chuva, mais a fraca definição da lente da câmara,
impossibilitavam a identificação do misterioso visitante. Não tinha a
menor dúvida de que se tratava da figura­-chave do drama que se
consumara nessa noite.
Se o registo das imagens no computador não continha toda a
informação, todavia, alguma coisa deixara ver além do diálogo entre
os dois interlocutores. Movimentando o rato, Tomás carregou num
ícone no ecrã e fez a imagem recuar até um ponto que lhe pareceu ter
significado. Não teve de recuar muito, pois esse momento situava­-se
na parte final da conversa ocorrida à porta de entrada da casa.
Localizou esse instante e parou a imagem. Carregou em play e a
gravação recomeçou a correr ao ritmo normal.
A imagem mostrava o desconhecido a entregar um envelope a Noé.
O belga pareceu hesitar mas, após mais uma troca de palavras, acabou
por pegar no sobrescrito e abri­-lo, consultando o seu conteúdo. Tomás
parou a gravação neste ponto e, carregando noutros ícones no ecrã,
ampliou a imagem. Tratava­-se de um panfleto azul. Apesar de a
imagem estar granulada devido à ampliação e à má resolução, o
panfleto mostrava na capa o que parecia ser uma espécie de tubarão
negro e branco por baixo de um título cujas letras se viam mal. Mas
viam­-se.
“A maravilha dos.. dos quê? Ah, dos mares. A maravilha dos mares,
a or... a orca acrob... uh? Acrob... acrobata”, acabou por conseguir
ler. Endireitou­-se. “Não há dúvida.” Cerrou os dentes. “Foi este tipo.”
Era aquela a personagem que mandara Noé para a morte.
Os olhos de Tomás voltaram a fixar­-se no vulto misterioso que na
véspera viera de noite bater à porta de Noé. Se aquela era a pessoa
que iniciara o processo que iria conduzir o etólogo para o tanque onde
se encontrava a orca, tornava­-se imperativo determinar a sua
identidade. Mas como o fazer, com imagens tão pobres e indefinidas?
Como, se a gravação não o elucidava?
Em frustração, aproximou a cara do ecrã.
“Quem és tu?”, questionou. “Quem és tu?”
Das imagens não vinham respostas. Só a sequência final da cena.
Noé a trocar mais umas palavras com o desconhecido e este por fim a
afastar­-se até o belga fechar a porta com estrondo e a gravação voltar
a mostrar apenas a sombra escura da noite, a lâmpada amarelada e o
charco enlameado salpicado em permanência pelas gotas da chuva.
Irritado, Tomás voltou­-se para a chimpanzé, que permanecia sentada
atrás dele a observá­-lo. Guida desatou a fazer gestos em língua
gestual.
FRUTA QUE CHORA.
“Ah, não. Agora não.”
Só faltava aparecer Guida a pedinchar por comida. Por que diabo os
animais passavam a vida a pedir comida?
Ela insistiu.
FRUTA QUE CHORA.
O historiador suspirou, resignando­-se; fosse ou não o momento
oportuno, a verdade é que ela não se calaria enquanto não lhe desse
de comer.
“Já choras por fruta?”, perguntou com um gesto agastado. “Uma
banana, é? Queres banana?”
NÃO.
“Então?”
FRUTA QUE CHORA.
“Sim, mas por qual fruta é que choras? Por nozes? Queres nozes?”
NÃO.
“Então que fruta queres? Não me digas que és como o Carioca e
apetece­-te banerry...”
Disse­-o por gracejo, mas a chimpanzé não deu sinais de o entender.
Em vez disso, o olhar de Guida desviou­-se para o ecrã e ela repetiu os
sinais de língua gestual.
FRUTA QUE CHORA.
Tomás ia questioná­-la de novo sobre que fruta era essa pela qual
chorava quando se deteve, a última palavra que ele próprio entoara
ainda a ecoar­-lhe na mente. Banerry? Seria possível que fosse essa a
resposta correta? Atento aos movimentos que ela fizera quando
gesticulara, o historiador apontou para o ecrã do computador do
sistema de videovigilância.
“Quem... quem é ele?”
Os gestos de Guida vieram mecânicos de tão repetidos.
FRUTA QUE CHORA.
Um brilho de súbita compreensão chispou nos olhos verdes de
Tomás. Fruta que chora. A chimpanzé não lhe estava a pedir comida.
Estava a dar­-lhe a resposta. Estava a identificar a figura misteriosa na
gravação. Estava a oferecer­-lhe de bandeja o assassino de Noé.
Fruta que chora.
Nesse instante ouviu lá fora o chiar de carros a travar e logo a seguir
o som abafado de portas a bater e vozes a darem ordens. A polícia
tinha chegado para o prender.
.

Nem sequer bateram à porta. Com tanto medo de que o suspeito


escapasse de novo, os polícias à paisana derrubaram a porta sem
cerimónias e entraram de rompante na casa, de pistolas apontadas.
“Judiciária!”, anunciaram aos berros. “Mãos ao ar! Não se mexa!”
Tomás esperava­-os de pé na sala, com Guida ao colo a guinchar
furiosamente; se a largasse, sabia que ela se atiraria em fúria aos
recém­-chegados e seria o caos completo. Os agentes da Judiciária
estacaram, nervosos, ao verem a chimpanzé de dentes arreganhados e
a urrar de cólera perante a invasão do seu território.
“Não largue o gorila!”, gritou um polícia. “Não o largue, senão
disparamos!”
Alguns deles tinham participado na operação anterior, quando
perseguiram Tomás e Maria Flor na floresta de Sintra e Guida dera
uma tareia a dois colegas entretanto levados para o hospital. Ninguém
tinha vontade de repetir a experiência. Todos apontavam as pistolas
ao animal, amedrontados, mas sabiam que não podiam disparar pois
havia o risco de atingirem o historiador.
“Calma, Guida”, sussurrou Tomás junto à orelha da chimpanzé num
tom tranquilo. “Calma...”
Tornava­-se claro para os polícias que Guida investiria contra eles se
não fosse o suspeito segurá­-la. Se ele a soltasse, perceberam também,
seria tão rápida que quando quisessem abrir fogo já ela estaria em
cima deles a espancá­-los; nessa altura já não poderiam disparar, pois
arriscavam­-se a atingirem­-se uns aos outros. Todos recuaram dois
passos, as pistolas sempre fixas no alvo, os nervos em franja.
Encontravam­-se num impasse. Os polícias armados com pistolas,
Tomás equipado com uma bazuca peluda.
O rosto familiar do inspetor Caparro assomou nesse instante à
porta. Também ele se imobilizou ao perceber a delicadeza da situação
tática.
“Professor Noronha”, chamou. “Tenha bom senso. Entregue­-se e
não levante mais problemas.”
Tomás manteve um semblante sereno, como se estivesse em pleno
controlo da situação.
“Entrego­-me, mas com uma condição.”
O investigador da Judiciária abanou a cabeça.
“Receio bem que o senhor não esteja em posição de estabelecer
condições.”
“Prefere que largue agora o animal?”
Os olhos de todos os polícias fixaram­-se nos dentes arrega­nhados de
Guida e no seu esgar ameaçador.
“Oiça, professor Noronha”, voltou o inspetor Caparro a intervir.
“Seja razoável. A sua mulher é suspeita de homicídio. Além disso,
sequestrou um agente da Judiciária e andou fugida às autoridades.
Embora quanto ao homicídio tais suspeitas não o incluam a si, temos
algumas perguntas a fazer­-lhe a esse respeito. E também sobre o seu
papel ativo de cumplicidade nas outras ações ilegais da senhora sua
esposa. Como deve calcular, sequestrar um agente da autoridade
constitui um delito grave.”
Como se não tivesse escutado uma única palavra que acabara de ser
dita, Tomás manteve os olhos fixos nele.
“Prefere que largue agora o animal?”
O homem da Judiciária engoliu em seco. Sabia que o suspeito era
incrivelmente destemido e resiliente. Percebendo que a coisa se podia
complicar sem necessidade, acabou por respirar fundo em sinal de
concessão.
“Qual é a sua condição?”
“Entrego­-me sem criar qualquer problema, mas antes de me levar
para a Judiciária quero uma reunião no local do crime.”
“Uma reunião no Oceanário?”, estranhou o inspetor Caparro. “A
que propósito?”
“Para deslindar as circunstâncias da morte do professor Noé
Vandenbosch. Os suspeitos terão de estar presentes.”
“Quer a sua esposa na reunião?”
“Eu disse os suspeitos, senhor inspetor. Que estejam todos presentes,
se fizer o favor.”
O pedido deixou o inspetor Caparro desconcertado.
“Todos? Mas, professor, a sua mulher é a única suspeita...”
“Só se a Judiciária andar a dormir”, foi a resposta seca de Tomás.
“Quero que estejam presentes todos os suspeitos de envolvimento na
morte do professor Noé Vandenbosch. Estou a falar de três pessoas,
como decerto a sua investigação permitiu apurar. Uma é o diretor da
GreenNaturae, Herr Dorian Zwiebel. A outra é o diretor do banco,
signor Gianpaolo Ambrosini. E, claro, a terceira, como com toda a
certeza já percebeu, é o próprio diretor do Oceanário, o doutor Telles
de Menezes. Traga­-os aos três. Nessa reunião irei revelar quem é o
autor do crime, como o executou e porque o fez.”
“Mas... mas...”
“Ou prefere que largue agora o animal?”
Os agentes da Judiciária entreolharam­-se. Ninguém queria ver o
chimpanzé à solta entre eles. Não depois do que acontecera aos dois
camaradas que nesse momento estavam no hospital.
O inspetor Caparro fez um gesto conciliatório.
“Vamos fazer como pede.”
O impasse ficou desbloqueado. Depois de Tomás fechar Guida no
seu quarto, os agentes acompanharam­-no até um dos carros da
Judiciária estacionados diante da mansão. O historiador encontrava­-se
detido.
.

LI

À espera de Tomás Noronha à entrada do Oceanário estava um


grande aparato policial. Logo que saiu do automóvel da Judiciária,
ladeado por dois agentes, o historiador viu­-se rodeado por um grupo
de outros polícias à paisana. Os homens da Judiciária, encorpados e
com cara de caso, escoltaram­-no ao longo da marina deserta até ao
parque aquático de Lisboa; dir­-se­-ia um governante no meio de um
enxame de guarda­-costas. Suspeitou que só não fora algemado devido
ao seu prestígio.
Uma vez no interior do Oceanário foi conduzido ao espaço onde se
encontrava o tanque central. Embora o conhecesse de várias visitas,
incluindo a desse mesmo dia, sentiu a respiração suspender­-se perante
o espantoso espetáculo do vidro gigante que separava os visitantes dos
habitantes do reino marinho. Era desconcertante ver a dois palmos de
distância todo aquele estranho e silencioso mundo de peixes, de raias,
de enguias e sobretudo de tubarões, como se tivesse submergido num
Nautilus de vidro e, qual capitão Nemo, visse o fundo do mar
estender­-se diante dele com todas as suas criaturas tão diferentes e
maravilhosas.
“Professor Noronha”, saudou uma voz. “É bom vê­-lo sem o
orangotango ao colo.”
O inspetor Caparro, que viera à frente noutro automóvel, esperava­-o
de braços cruzados à entrada do átrio onde se encontrava o grande
vidro do tanque central.
“Era uma chimpanzé, inspetor...”
Atrás do investigador da Judiciária encontravam­-se os três homens
que Tomás havia indicado como suspeitos e que tinham sido
convocados de urgência para o local do crime. Gianpaolo Ambrosini e
Telles de Menezes olhavam­-no com reserva, até porque não o
conheciam, mas Dorian Zwiebel veio de imediato ter com ele.
“Professor Noronha, que história vem a ser esta?”, questionou­-o o
diretor da GreenNaturae com uma expressão de incredulidade. “A
polícia comunicou­-me que o senhor alimenta suspeitas em relação a
mim. Como é possível uma coisa dessas? Acha mesmo que seria capaz
de fazer o que quer que fosse ao Noé? Deve haver um qualquer mal­-
entendido que estou na disposição de clarificar.”
“Tenha calma, Herr Zwiebel”, tranquilizou­-o Tomás. “Já vou
esclarecer tudo.”
Os outros dois suspeitos perderam a reserva e acercaram­-se
igualmente dele, mas com semblantes indignados.
“Como se atreve o senhor a lançar insinuações tão vis contra a
minha pessoa?”, interpelou­-o o diretor do Oceanário. “Quem pensa o
cavalheiro que é? Isto não vai ficar por aqui! Ai não vai, não! Não se
questiona a minha honorabilidade de maneira tão ligeira, ouviu? Sou
uma pessoa de bem! De bem!”
“Porca miseria!”, protestou o diretor do banco com grandes
movimentos dramáticos dos braços. “Acusar­-me a me. A me! Ah, che
cazzo! Per la madonna, estas insinuazioni são intollerabile! O signor
professor vai ter notícias do meu avoccato!”
Cercado de protestos, Tomás ergueu as mãos como se pedisse
silêncio.
“Tenham um pouco de paciência, meus senhores”, disse­-lhes num
tom sereno. “Há dados novos que nos vão permitir deslindar todo este
caso. Se queremos chegar à verdade, a vossa presença é fundamental.”
O ambiente serenou um pouco, pois nenhum inocente se poderia
opor ao apuramento da verdade num caso daqueles, e os três homens,
todos diferentes mas todos eles com cargos de responsabilidade,
perceberam que teriam mesmo de aguardar. Acomodaram­-se numas
cadeiras ali instaladas pelos funcionários do parque marinho.
O inspetor Caparro, no entanto, manteve­-se em pé, certamente para
sublinhar o seu estatuto de autoridade.
“O dia vai longo, já é tarde e estamos todos fatigados, professor
Noronha”, avisou o homem da Judiciária, claramente impaciente.
“Seria bom que fizesse o obséquio de nos esclarecer sobre o que se
passa e convinha que tal explicação fosse satisfatória.”
Não havia dúvidas na mente de Tomás de que dele se esperava um
esclarecimento cabal de todos os acontecimentos, não só os da véspera
que culminaram com a morte do etólogo belga como de tudo o que
envolvia aquele estranho caso. Pousou por isso no chão a pasta que
trouxera consigo e encarou os homens diante dele.
“A primeira coisa que temos de perceber é que o professor Noé
Vandenbosch foi de facto assassinado”, estabeleceu logo à cabeça.
“Quem o matou foi a baleia­-assassina acabada de adquirir pelo
Oceanário. Penso que sobre este ponto não existem quaisquer
dúvidas.”
Os homens sentados remexeram­-se nas suas cadeiras.
“Então o que estamos aqui a fazer?”, questionou Telles de Menezes.
“Porque lançou a intolerável suspeita de que um de nós está por
detrás desta morte horrenda?”
Tomás fitou fixamente o diretor do Oceanário.
“Quando alguém é abatido a tiro, doutor Telles de Menezes, quem
verdadeiramente o mata?”, questionou. “A bala que penetra na carne
ou a pessoa que prime o gatilho da pistola? A orca foi a bala. Mas
alguém premiu o gatilho. Esse alguém encontra­-se aqui na nossa
presença.”
Os três suspeitos entreolharam­-se como se se questionassem sobre
quem entre eles estava por detrás do crime. O próprio inspetor
Caparro não se inibiu de perscrutar o rosto de cada um, tentando
surpreender uma qualquer expressão ou sinal que denunciasse
culpabilidade. Nada descortinou de suspeito.
“Quem premiu o gatilho?”, perguntou o investigador da Judiciária,
encarando de novo Tomás. “Desembuche, professor Noronha! Vá
direto ao assunto!”
Uma coisa dessas não era possível, sabia o historiador. Não podia
dizer quem era o responsável pela morte de Noé sem primeiro expor o
motivo e as circunstâncias do homicídio. Deixou os olhares
expectantes pousarem nele e o silêncio instalar­-se enfim.
“O professor Vandenbosch estava na posse de um dossiê muito
sensível”, começou por revelar. “Um dossiê com informação cujas
implicações são vastas e profundas.” Voltou­-se para o polícia.
“Presumo, senhor inspetor, que está familiarizado com o problema do
aquecimento global.”
A interpelação surpreendeu o inspetor Caparro.
“Uh... sim, claro.”
“Descreva­-me esse problema, por favor.”
O investigador da Judiciária fez uma careta característica de quem
nada estava a compreender.
“Desculpe, mas o que tem isto a ver com o homicídio do professor
Vandenbosch?”
“Faça­-me a vontade, peço­-lhe”, insistiu o historiador. “Não se
arrependerá. Diga­-me o que sabe sobre o aquecimento global. Daqui a
pouco irá entender o sentido desta minha solicitação.”
O polícia respirou fundo, enchendo­-se de paciência. Tornava­-se claro
que estava disposto a dar alguma latitude a Tomás, pois precisava de
fechar aquele caso, mas não seria muito tolerante.
“Bem... sobre esse assunto sei o que toda a gente sabe, suponho eu.
A ação do Homem está a lançar para a atmosfera uma série de gases
poluentes que fazem aumentar as temperaturas. Como há mais calor,
os desertos avançam enquanto nas zonas frias o gelo derrete, o que
eleva o nível do mar e começa a engolir área de terra. Parece que há
até ilhas ameaçadas já de ficarem submersas. Mais calor traz
tempestades mais violentas e também a extinção em massa de muitas
espécies. Se isto continuar assim, o planeta ficará uma fornalha e a
própria vida na Terra estará ameaçada.” Fez uma pausa. “Pelo menos
é isto o que vi na televisão.”
“Em termos gerais, essa é a situação”, concordou o historiador.
“Nos últimos cem anos, a temperatura média do planeta subiu um
grau e meio Celsius, sendo que os anos mais quentes foram os
últimos.”
O inspetor Caparro não pareceu muito impressionado com esta
informação.
“Um grau e meio em cem anos? Enfim... não tem ar de ser coisa
assustadora.”
“Não tem ar, mas é. A diferença entre a última era glaciar e a
temperatura atual, por exemplo, foi de apenas cinco graus Celsius. E
no Plioceno, quando o clima era três graus mais quente do que agora,
o gelo derreteu e as águas dos oceanos subiram vinte e cinco metros.”
O polícia arregalou os olhos; uma subida de vinte e cinco metros
dava para o mar engolir capitais europeias como Lisboa, Roma,
Londres, Bruxelas, Copenhaga e milhentas outras cidades próximas
do mar.
“Tanto?”
“Vinte e cinco metros”, repetiu Tomás. “O problema é que os atuais
cálculos apontam para uma subida da temperatura este século entre
dois e seis graus Celsius. Portanto, o cenário diante de nós é
possivelmente pior do que no Plioceno. Os modelos mostram que uma
simples subida de dois graus irá transformar várias regiões do planeta
em desertos ainda neste século, incluindo o sul da Europa, e que as
principais cidades da zona equatorial se tornarão inabitáveis. A
desertificação poderá mesmo atingir metade da Terra. Há estudos que
mostram que até 2050 entre um terço e metade das espécies existentes
serão exterminadas. Agora imagine a catástrofe que seria uma subida
que atingisse os seis graus Celsius. As estimativas do Painel
Intergovernamental da ONU para as Alterações Climáticas, devo
avisar, apontam para a possibilidade de a subida atingir mesmo os
oito graus no final do século. Seria o apocalipse, pois o limite
biológico da habitabilidade situa­-se nos trinta e cinco graus Celsius.”
“Mas... tudo isso por causa de toda a porcaria que atiramos para a
atmosfera?”
“Por causa do dióxido de carbono”, especificou o historiador. “Não
lhe sentimos o cheiro nem nos incomoda, mas é um gás de efeito de
estufa. O calor do Sol chega ao nosso planeta e o dióxido de carbono
retém­-no na atmosfera, impedindo­-o de sair e provocando assim o
aquecimento. Os estudos paleoclimáticos mostram que metade das
alterações climáticas ocorridas no passado se devem ao dióxido de
carbono. Quando havia muito dióxido de carbono, a temperatura
tendia a subir, e quando esse gás descia a temperatura tendia a baixar.
Acontece que a emissão de dióxido de carbono está a acelerar. Mais de
metade do gás lançado para a atmosfera devido à queima dos
combustíveis fósseis foi emitida nas últimas três décadas.” Apalpou os
próprios bolsos, sem encontrar o que procurava. “Tem aí uma caneta
e um papel?”
O inspetor Caparro estendeu­-lhe o seu bloco de notas, com um lápis
anexo.
“Aqui está.”
Pegando no lápis, Tomás rabiscou três letras na primeira página do
bloco.
ppm
“Ppm”, leu. “As iniciais de partes por milhão. Trata­-se da relação
entre as moléculas de um gás e o número total de moléculas de ar
seco. Há quinhentos anos, o dióxido de carbono estava presente na
atmosfera numa proporção de 270 ppm. Acontece que, por ação do
Homem, começaram desde então a ser libertadas cada vez mais
partículas de dióxido de carbono, até cruzarmos as 400 ppm em 2016,
na altura em que o Acordo de Paris estabeleceu limites... que ninguém
respeitou.”
“E então?”
“Calcula­-se que o ponto crítico sejam as 550 ppm. A partir desse
valor, a atmosfera entra numa dinâmica imparável. A temperatura irá
disparar e já nada travará a catástrofe.”
O investigador da Judiciária não se mostrava convencido.
“Se estamos nas 400 ppm e o valor crítico são as 550 ppm, temos
ainda muita margem...”
“Não é bem assim”, observou o historiador. “Em primeiro lugar,
estamos já bem acima das 400 ppm. Para que tenha uma ideia, na
altura da grande pandemia da Covid­-19, apenas cinco anos depois do
Acordo de Paris, já o valor ia nas 417 ppm. Ora há cientistas que
consideram que o ponto crítico se situa entre as 400 e as 450 ppm, o
que, a ser verdade, nos coloca neste momento a cruzar o ponto de não
retorno. O consenso, no entanto, aponta para as 550 ppm. Mas, em
segundo lugar, temos de manter presente que o efeito é cumulativo.
Ou seja, se por acaso conseguíssemos parar hoje a emissão de dióxido
de carbono, e não conseguimos, a sua concentração atmosférica iria
ainda persistir durante mil anos, pois é esse o tempo que o mar e as
plantas levam a reabsorvê­-lo. O problema é que, apesar da retórica
bonita de todos os políticos, nada está verdadeiramente a ser feito e a
produção de dióxido de carbono prossegue imparável. Ao ritmo atual,
os cálculos permitem prever que a concentração deste gás na
atmosfera irá atingir no final deste século as 1100 ppm.”
“O quê?!”
Tomás desfocou os olhos, como se deixasse de ver o investigador da
Judiciária diante dele e contemplasse como será a Terra daqui a
algumas décadas.
“A situação já está descontrolada.”
.

LII

Foi preciso um longo instante para que o inspetor Caparro


conseguisse assimilar a enormidade do que acabara de escutar. Os três
suspeitos sentados no átrio do tanque central do Oceanário
permaneciam em silêncio a acompanhar as palavras de Tomás
Noronha, mas, talvez por não ter as qualificações acadé­micas dos
restantes homens que ali se encontravam, era o polícia que se
mostrava menos consciente do significado daquelas revelações.
“Oiça, professor Noronha”, acabou por dizer o investigador da
Judiciária. “Tudo isso é realmente perturbador, não há dúvida.”
Hesitou. “Todavia, o que tem essa conversa a ver com a morte do
professor Vandenbosch?”
O historiador fez­-lhe um gesto com as mãos, como quem dizia que lá
chegaria.
“O dióxido de carbono é um gás com efeito de estufa, pois permite
que o calor emitido pelo Sol entre na atmosfera do planeta, mas
impede­-o de sair”, repetiu. “Não é, porém, o único gás que produz
esse efeito. O metano é outro gás com efeito de estufa e o mesmo
acontece com o óxido nitroso.” Apontou para o seu interlocutor.
“Agora a pergunta mais importante de todas, senhor inspetor. Qual é
o principal responsável pela produção destes gases com efeito de
estufa?”
“Bem... o Homem, claro.”
“Sim, mas quais são especificamente as atividades do Homem que
geram estes gases?”
O inspetor Caparro fez uma careta a estranhar a pergunta, tão óbvia
era a resposta.
“Enfim... a queima dos combustíveis fósseis”, indicou. “Toda a gente
sabe isso. O consumo de gasolina e de gasóleo nos automóveis, o uso
do gás natural, a queima de lenha para nos aquecermos, o recurso a
carvão para produzir eletricidade...”
“É isso o que todos dizem”, confirmou Tomás. “As pessoas estão a
começar a aperceber­-se do problema e muita gente, incluindo a minha
mulher, tornou­-se fanática nas medidas ecológicas para poupar os
recursos naturais. Tomam banhos muito curtos, separam o lixo e
fazem reciclagem constante, substituem as lâmpadas incandescentes
pelas fluorescentes, evitam deslocar­-se em automóveis movidos a
gasolina ou a gasóleo e preferem a bicicleta ou os carros elétricos,
recusam­-se a voar de avião... enfim, todas essas medidas de defesa do
ambiente. Havia de ver a minha mulher. Impôs lá em casa um regime
espartano que só visto. Tudo em prol do planeta.”
“Uma cidadã conscienciosa”, aprovou o polícia. “Fosse toda a gente
assim e decerto o mundo estaria muito melhor.”
O historiador fitou­-o com uma expressão perscrutadora, como se
quisesse medir a sua reação ao que tinha para lhe dizer.
“O problema é que o professor Noé Vandenbosch teve acesso a um
dossiê que conta uma história diferente”, anunciou de forma pausada.
“É essa história e esse dossiê que estão por detrás da sua morte e é por
isso que estamos aqui a falar sobre as alterações climáticas.”
A revelação interessou ao investigador da Judiciária e aos três
suspeitos, como se pôde constatar pela reação do grupo. Com um
movimento que parecia sincronizado, todos se inclinaram quase
impercetivelmente para a frente de modo a não perderem uma palavra
do que iria ser dito.
“Que história é essa?”, questionou o inspetor Caparro. “De que
dossiê está o senhor a falar?”
Acocorando­-se, Tomás abriu a pasta que tinha pousado no chão.
Retirou um documento do interior. A primeira página continha um
desenho para o qual convergiu o olhar de todos.
O historiador brincou com aquela primeira página, como se quisesse
que todos vissem bem o estranho desenho nela impresso, mas não o
explicou. Em vez disso, e depois de se assegurar de que o grupo tinha
dado uma boa olhada à figura, folheou o dossiê até localizar o trecho
que buscava.
“O senhor inspetor tem ideia do que se passa numa propriedade de
criação de animais para consumo?”
“Com certeza”, empertigou­-se o investigador da Judiciária, quase
como se a pergunta o ofendesse. “Fique o professor sabendo que,
quando era miúdo, cresci lá no Alentejo entre vacas, galinhas e
porcos. Levava as vacas a pastar e dava de comer à bicharada toda. A
minha família produzia porco preto, mas os animais eram como se
fossem da família.”
Tomás fitou o seu interlocutor com intensidade.
“Tenho uma informação para lhe dar, inspetor”, disse com secura.
“Esse tipo de produção praticamente já só existe nas suas memórias
de infância ou nos anúncios de televisão. Esqueça as grandes pradarias
com gado a pastar feliz e esqueça os galinheiros alegres e as pocilgas
pachorrentas da nossa meninice, que ainda se podem encontrar nos
quintais das pequenas terriolas. A pecuária industrial, onde se produz
a esmagadora maioria dos animais que comemos, não funciona
assim.”
“Então funciona como?”
“Funciona em espaços enormes, com unidades fechadas onde o que
interessa é baixar custos, garantir a eficácia de toda a operação e
aumentar os lucros”, indicou, exibindo o documento que segurava. “É
sobre isso que este dossiê fala em pormenor. Os produtores estão hoje
em dia sob uma tremenda pressão para produzir muita carne a preços
baixos e muitos ovos e laticínios também baratos, e isso leva­-os a
seguir práticas muito cruéis para os animais.”
“Práticas cruéis nos laticínios?”, duvidou o polícia. “Só ordenham as
vacas, professor...”
“Acha que é só isso? Para sua informação, as vacas leiteiras são
confinadas a um espaço apertado e acorrentadas pelo pescoço, ou
então fechadas em currais sobrepovoados cobertos de excrementos e
urina. São inseminadas artificialmente e passam nove meses grávidas.
Quando dão à luz, só amamentam a cria durante dois dias, e apenas
porque nesse período produzem colostro, um líquido com um sabor
distintivo e que não pode ser vendido como leite. Logo que ao fim de
quarenta e oito horas passam a produzir leite, tiram­-lhes a cria, um
evento psicologicamente muito traumático para ambas. As vacas ficam
dois dias desesperadas, à procura do vitelo por toda a parte e a mugir
sem cessar. Depois passam o resto do tempo infelizes, a ser
ordenhadas por máquinas. Quando deixam de produzir leite,
inseminam­-nas outra vez. Este processo de permanente inseminação e
lactação desgasta­-lhes de tal maneira os corpos que lhes causa
anomalias nas patas e inflamação da glândula mamária, até infeção
massiva do úbere. O tempo de vida natural de uma vaca é de vinte
anos, mas ao fim de apenas quatro as vacas leiteiras ficam de tal modo
gastas que deixam de produzir tanto leite, pelo que são despachadas
para o matadouro e abatidas. Beberam­-lhes o leite e depois comem­-
lhes a carne.”
“Pois...”
“Quanto ao vitelo, tem dois destinos possíveis. Se for macho, e
consequentemente incapaz de produzir leite, não tem utilidade. Nesse
caso é vendido a produtores de carne com apenas dois dias de vida.
São verdadeiros bebés. Quem os vê a ser entregues não pode deixar de
sentir pena. Chegam nervosos e amedrontados, a olhar para todos os
lados em desespero à procura da mãe e ainda com os cordões
umbilicais pendurados e até com dificuldades em andar. São atirados
para espaços tão apertados que nem se conseguem virar para o lado.
Para além de se tornarem neuróticos, rapidamente ficam anémicos
pois é­-lhes dada uma alimentação sem ferro para que a carne se torne
pálida, uma vez que é isso que os consumidores apreciam. Ao fim de
dezoito semanas, os novos donos mandam­-nos para o matadouro. Ou
seja, a indústria criou o conceito de carne de vitela para dar destino
aos machos recém­-nascidos, pois não produzem leite. Sem indústria
láctea não haveria carne de vitela. Para convencer os consumidores a
consumirem essa carne inútil à produção de leite, venderam­-lhes a
ideia de que se trata de carne tenrinha. O que as pessoas esquecem, no
entanto, é que estão a comer crianças.”
O inspetor Caparro esboçou uma careta de desagrado.
“Oh, professor! O senhor tem cá o raio de uma maneira de pôr as
coisas...”
“Se, por outro lado, a vitela for fêmea será igualmente separada da
mãe, para que não lhe consuma o leite, e terá a mesma vida que a mãe
teve”, acrescentou Tomás. “Já o gado destinado ao consumo de carne
tem uma vida algo diferente. Os vitelos vivem com as mães e podem
pastar no exterior durante seis meses, o que os torna os animais da
pecuária com melhor qualidade de vida. Ao fim desse período, no
entanto, são separados, um acontecimento sempre traumático para
ambas as partes. As mães viverão assim ao longo de dez gestações, ao
fim das quais serão abatidas, mas os filhos têm um destino pior.
Cortam­-lhes os cornos e castram os machos, sempre sem anestesia.
Sabe o que é ser castrado sem anestesia? Depois metem­-nos em
estábulos sobrelotados, o solo pejado de excrementos e urina. O fedor
é horrível e é sentido a quilómetros de distância. É aí que os
engordam. Injetam­-lhes hormonas de crescimento geneticamente
manipuladas e alimentam­-nos com quantidades industriais de milho
carregado de drogas e de suplementos. Engordam assim a uma média
de quarenta quilos por mês. Ao fim de alguns meses, são enviados
para o matadouro.”
O investigador da Judiciária encolheu os ombros.
“É o preço para nos podermos alimentar.”
“Isto é cruel, senhor inspetor”, foi a resposta pronta. “Mas o pior é
o que se passa com os porcos. Vão todos para abate, à exceção de
algumas fêmeas destinadas à procriação. Essas desgraçadas passam a
vida inteira confinadas a um espaço fechado e em caixas muito
apertadas, pois os custos baixam quando elas permanecem imóveis. A
caixa é tão estreita que apenas podem dar um ou dois passos e nem
sequer conseguem virar­-se para trás nem deitar­-se de lado. Aos oito
meses de idade são inseminadas pela primeira vez, processo que se
repete de seis em seis meses. As porcas são muito maternais e
costumam construir ninhos para alimentar as crias, mas ali nada disso
é possível. A amamentação dura menos de três semanas, ao fim das
quais as crias lhes são retiradas, o que é traumático para as duas
partes, e a fêmea é inseminada de novo. Uma vida inteira nisto.”
“Bah! Os porcos são animais imundos...”
“Está enganado. Ao contrário da sua reputação, os porcos são
limpos. Chafurdam na lama apenas para se refrescarem, mas odeiam
as fezes e a porcaria em geral. Em situação natural escolhem um
espaço afastado para fazerem as suas necessidades. Nas pecuárias, no
entanto, o chão é em cimento com ripas para onde caem as fezes e a
urina, pelo que vivem com excrementos a passarem­-lhes por baixo e a
exalarem uma série de gases tóxicos, incluindo amónia. Por causa
disso, quase todos os suínos desenvolvem doenças respiratórias
crónicas e setenta por cento sofre de pneumonia. Fechadas num
espaço claustrofóbico e imundo, incapazes de se mexerem durante
todo o tempo de vida e separadas das crias, as fêmeas acabam por
desenvolver comportamentos psicológicos aberrantes. Ou seja,
enlouquecem.” Apontou para o seu interlocutor. “Imagine o que era
fecharem­-no a si num elevador com mais oito pessoas e deixarem­-no
aí uma vida inteira a pisar a merda que todos faziam e a inalar um ar
irrespirável. Nascia e comia, dormia e cagava num elevador, um
espaço tão apertado que nem dava para se deitar. Imagine isso e fica já
a saber que é isso o que fazem aos porcos.”
“Pois, mas que eu saiba não sou porco.”
“Os porcos são inteligentes, afetuosos e têm consciência, inspetor.
Os produtores de suínos fecham­-nos em caixas e eles passam aí toda a
vida. Claro, num ambiente desses sofrem imenso, estão
constantemente com medo, entram em depressão e adotam
comportamentos neuróticos, tornando­-se agressivos e atacando­-se uns
aos outros, como lhe aconteceria a si se o fechassem num elevador
com essas condições durante toda a sua vida. Eles até se auto­-
mutilam, coitados. Para impedir que canibalizem as caudas uns dos
outros, pois o ambiente nesses espaços fechados e sobrepovoados é
realmente brutal, quando são ainda leitões decepam­-lhes
preventivamente as caudas com alicates.”
“Com anestesia, suponho...”
“Sem anestesia”, corrigiu o historiador. “Usam alicates para lhes
cortar as caudas e os dentes. Depois há o problema do cheiro e do
sabor da carne de porco macho, que os consumidores não apreciam.
Para eliminar esse odor e esse sabor, só há uma maneira: castrá­-los. Os
produtores pegam por isso nos leitões, penduram­-nos vivos pelas
pernas traseiras e com uma faca fazem duas incisões paralelas entre as
pernas. Os porcos berram que nem uns desalmados enquanto lhes
fazem isso. Depois inserem­-lhes os dedos nas incisões e arrancam­-lhes
os testículos.”
“Sem anestesia?!”
“Eles gritam que nem doidos”, confirmou Tomás. “Nascem com um
quilo, mas após seis meses de engorda atingem os cento e vinte quilos
e são enviados para o matadouro, onde enfrentam uma morte brutal.”
Voltou a consultar o dossiê. “Depois há as galinhas, que pelos vistos
são animais muito mais inteligentes do que as pessoas pensam. A
pecuária desenvolveu dois tipos diferentes de galinhas: as poedeiras,
que servem para produzir ovos, e as que só consumimos pela carne.
As poedeiras, manipuladas geneticamente para produzir dez vezes
mais ovos do que as suas antepassadas, são colocadas em gaiolas
apertadas, em geral com outras cinco galinhas, e transformadas em
máquinas de produzir ovos. Todos sabemos como os ciclos solares são
importantes para os galináceos, o que constatamos nas aldeias quando
ouvimos os galos cantar logo pela alvorada. Pois as gaiolas têm
lâmpadas suspensas que se acendem e apagam em momentos
específicos para criar a impressão de dia e de noite, de modo a
manipular os ciclos de produção. Estas galinhas produzem
continuamente ovos até que o útero lhes caia. Quando isso acontece,
sofrem imenso e levam dois dias a morrer. Há quem defenda que um
ovo contém ainda mais sofrimento que uma fatia de carne. O tempo
natural de vida das galinhas é oito a dez anos, mas as poedeiras só
duram dois. A carne é tão pegajosa e de tão má qualidade que só serve
para comida de animais domésticos ou para os piores produtos
processados, como sopas e empadas. As poedeiras morrem sem nunca
terem visto a luz do dia.”
A informação impressionou o inspetor Caparro, decerto devido à
sua experiência infantil com as galinhas da capoeira da casa dos pais.
“Nem uma vez?”
“O seu único sol foram as lâmpadas suspensas nas gaiolas”,
respondeu Tomás. “As galinhas de carne, por seu turno, não têm
melhor destino. Devido à manipulação genética, ao confinamento num
espaço apertado e a uma alimentação carregada de estimulantes de
crescimento, como as sulfamidas, engordam imenso com pouca
comida e em pouco tempo. Os produtores metem milhões destas
galinhas em milhares de gaiolas fechadas, com paredes e tetos sem
aberturas nem janelas, arejadas por um sistema de ventilação e
alimentadas por um sistema automático, e esperam que elas
engordem. Para que comam mais, deixam as luzes acesas durante
vinte e quatro horas por dia ao longo de uma semana, e no resto do
tempo apenas as apagam por quatro horas, o suficiente para que
consigam dormir um mínimo sem morrerem. Para que tenha uma
ideia de como as engordam, imagine crianças que aumentam cento e
quarenta quilos a comer granola em quartos fechados, imundos e
sobrepovoados. Ao segundo mês, matam­-nas.”
“Ao segundo mês de quê?”
“De vida, senhor inspetor. Matam as galinhas por volta das sete
semanas de vida. Nenhum animal da pecuária morre tão cedo. Por
essa altura, já as desgraçadas engordaram tanto que mal conseguem
caminhar e começam a morrer de ataque cardíaco e de outras
doenças, razão pela qual as mandam apressadamente para os
matadouros. Sofrem de cegueira, anemia, infeções nos ossos,
hemorragias internas, doenças respiratórias... eu sei lá. A vida delas
nas caixas é um sofrimento constante. Com o stress, atacam­-se umas
às outras e é por isso que, logo que nascem, se usa uma lâmina elétrica
para preventivamente lhes cortar o bico. Sem anestesia, claro. A
indústria alega que cortar bicos é como cortar unhas, não dói nada.
Uma mentira. Os bicos das galinhas contêm mais nervos do que a
ponta dos nossos dedos, pelo que na verdade se trata de uma operação
extremamente dolorosa para elas. Tão dolorosa que durante dias
comem menos e algumas até morrem de fome e de sede, pois comer é­-
lhes demasiado doloroso durante várias semanas.”
“Chiça!”
“Um horror constante. Todos os anos há cinquenta mil milhões de
galinhas a viver nessas condições deploráveis, em cima das suas
próprias fezes e num caldo de bactérias e vírus, os peitos cobertos de
bolhas e os olhos queimados por amónia. Mais de noventa por cento
acabam infetadas com E. coli, o que sugere contaminação fecal, mais
de setenta por cento com Campylobacter, um outro agente patogénico,
e oito por cento com salmonela. Não se esqueça de que os virologistas
descobriram que todas as gripes humanas estão de algum modo
relacionadas com pássaros, pois todos os vírus das pandemias
humanas retiram das aves alguns genes dos vírus da gripe. Mas o
verdadeiro causador das epidemias não são as aves. É a indústria
pecuária. É aí que os animais são confinados aos milhares e aos
milhões, apertados uns contra os outros no meio de fezes e urina e
caldos de bactérias e vírus, o que faz desses locais verdadeiras
incubadoras de epidemias. Os cientistas identificaram a pecuária como
estando na origem de seis dos oito segmentos genéticos dos mais
temidos vírus que hoje circulam no mundo. Sabemos que as epidemias
virais mais agressivas, como a gripe das aves e a peste suína, têm
fortes ligações à indústria que nos mete a carne no prato. Isso quer
dizer que comemos todos os dias carne contaminada com esses
perigosos agentes patogénicos.”
O rosto do inspetor Caparro contraiu­-se num esgar enojado, decerto
a imaginar a última vez que se tinha deliciado com um frango no
churrasco.
“Mas... nas pecuárias não tratam os animais?”
“Nunca ouviu falar nas bactérias super­-resistentes aos antibióticos?
Sabe como aparecem?”
O polícia não percebeu a mudança súbita de tema, mas presumiu
que o seu interlocutor teria algum motivo para o fazer.
“Nos hospitais, claro. Ainda há um mês investiguei uma morte no
Hospital de Santa Maria e tive de estudar o assunto. As pessoas estão
sempre a tomar antibióticos e o abuso desses medicamentos faz com
que as bactérias desenvolvam resistência através de mutações
genéticas. Devido ao uso excessivo e desadequado de antibióticos, há
cada vez mais bactérias que lhes resistem. Li noutro dia que muitos
cientistas consideram que essa é já uma das maiores ameaças à saúde
pública. A Organização Mundial de Saúde avisou mesmo que estamos
a chegar à era pós­-antibióticos e que temos de nos preparar para o
momento em que não haverá cura para as infeções tradicionais.”
“É verdade”, confirmou Tomás. “Devido à perda de eficácia dos
antibióticos, em breve deixará de haver tratamento eficaz para a febre
tifoide, a tuberculose, a pneumonia, a meningite, o tétano, a difteria, a
sífilis e a gonorreia, e estas doenças recomeçarão a matar em grande
escala.” Folheou as páginas do documento que tinha nas mãos.
“Exceto que o dossiê a que o professor Vandenbosch teve acesso
mostra que essa história está mal contada. Parece que o consumo de
antibióticos pelas pessoas, sendo problemático, não é afinal o
principal problema.”
O inspetor Caparro empertigou­-se.
“Desculpe, mas tive recentemente um caso relacionado com
bactérias super­-resistentes e sei do que falo.”
“O inspetor já percebeu como os animais são mantidos na indústria
pecuária, não é verdade? As condições são tão miseráveis que os
desgraçados andam cheios de doenças e a maioria morrerá
rapidamente se não for tratada. Sabe por acaso como os mantêm
vivos?”
“Bem, têm veterinários e...”
“Quais veterinários! Aplicam­-lhes doses massivas de antibióticos, é o
que é. Sai mais barato atirar­-lhes antibióticos para a comida e para a
água do que contratar veterinários. Por exemplo, nos Estados Unidos
é vendida menos de tonelada e meia de antibió­ticos por ano à
população humana. Para compensar, sabe quantos antibióticos são
usados nas pecuárias? Mais de onze toneladas por ano.”
O polícia arregalou os olhos, estarrecido.
“Gastam­-se oito vezes mais antibióticos em animais do que nos seres
humanos?!”
“É por isso que estão a aparecer tantas bactérias super­-resistentes,
inspetor. Vendem­-nos a conversa de que estamos a consumir
demasiados antibióticos e que temos de ter cuidado e mais não sei
quê, mas ninguém tem coragem de nos dizer que afinal a maior parte
dos antibióticos produzidos no mundo é usada nos animais das
pecuárias. Além da Organização Mundial de Saúde, o Centro para o
Controlo e Prevenção de Doenças, o organismo americano que lida
com epidemias e pande­mias, emitiu alertas para este problema. As
primeiras grandes crises ocorreram na década de 1960 com a
salmonela. Os produtores andavam a dar às galinhas doses baixas de
antibióticos para prevenir doenças e acelerar o crescimento delas. Ora
os antibióticos não podem ser dados preventivamente nem para
incentivar o crescimento de animais e muito menos em doses baixas,
mas apenas como tratamento quando se está doente. Mas como os
produtores não têm formação médica e o que querem é impedir que os
animais fiquem doentes, para que as pecuárias não sofram prejuízos, e
estimular o crescimento rápido, para que produzam aos preços baixos
requeridos pelos consumidores, estão­-se nas tintas. Então o que
aconteceu? A bactéria da salmonela começou a sofrer mutações que
lhe permitiram afinar a resistência aos medicamentos. Nasceu assim a
primeira bactéria super­-resistente. Depois vieram outras, pois os
procedimentos da pecuária mantiveram­-se. Por exemplo, quando se
começaram a usar fluoroquinolonas nas galinhas, a percen­tagem de
bactérias resistentes a esse antibiótico subiu de zero para dezoito por
cento em meia dúzia de anos. O problema é que estas bactérias super­-
resistentes, como estavam a infetar animais para consumo,
encontram­-se nos alimentos e começaram a transferir­-se para as
pessoas. Está a perceber?”
“Isso é feito onde?”
“Por toda a parte, inspetor. Das Américas à Ásia, passando por
África. Agricultores sem qualquer formação ministram vastas
quantidades de antibióticos aos animais, sem critério nem o menor
controlo. Na União Europeia essa prática foi ilegalizada, mas muitos
produtores europeus estão­-se nas tintas para a proibição. Na verdade
contornam a lei através do uso de antibióticos em doses baixas, o que
aliás só agrava o problema. A Agência Europeia do Medicamento já
disse que a indústria pecuária apresenta condições favoráveis para a
seleção, difusão e persistência das bactérias super­-resistentes, o que
constitui uma maneira tímida de pôr as coisas. Para perceber a
dimensão do problema, veja o caso daquela que muitos consideram a
pior bactéria super­-resistente existente neste momento, a temível
MRSA. Esta bactéria antes só aparecia nos hospitais. Porém, foi
encontrada em porcos uma variante, a MRSA ST398, que se espalhou
por outros animais e já começou a infetar pessoas. Mais de trinta por
cento da carne de peru inspecionada nos Países Baixos, por exemplo,
encontrava­-se contaminada com a MRSA ST398, o mesmo
acontecendo em dez por cento da carne de galinha, porco e vaca. A
Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar acredita que esta
bactéria super­-resistente está espalhada por todas as populações de
animais para abate. Isto quer dizer que quando uma pessoa come um
bife ou uma perna de frango, com toda a probabilidade está a ingerir
bactérias super­-resistentes.”
O inspetor Caparro esboçou um esgar horrorizado.
“Agh!”
Folheando mais páginas do dossiê, Tomás identificou uma outra
parte.
“Mas o pior ainda vem aí.”
.

LIII

Os homens no átrio do tanque central entreolharam­-se, como se se


questionassem. O mais intrigado, contudo, era o próprio inspetor
Caparro, para quem tudo aquilo constituía novidade absoluta.
“O que pode ser pior do que tudo que já nos contou?”
O historiador suspirou.
“O problema da água”, indicou com uma expressão pesada. “Como
sabe, 97,5 por cento da água existente na Terra é salgada, o que
obviamente significa que apenas 2,5 por cento é doce. Acontece que de
toda a água doce existente, apenas 0,4 por cento está à superfície em
forma líquida, nos rios e lagos, ou em forma gasosa, nas nuvens. Já
69,5 por cento da água doce encontra­-se retida na neve, no gelo e nos
glaciares.”
Calou­-se, à espera de que o seu interlocutor fizesse as contas. O
homem da Judiciária não demorou a perceber que os números não
batiam certo.
“Faltam trinta por cento de água doce nessa conta...”
“Estão nos aquíferos”, esclareceu Tomás prontamente. “Trinta por
cento da água doce do nosso planeta encontra­-se por baixo da terra.
Como sabe, a humanidade está a crescer muito depressa e a população
mundial atinge números verdadeiramente alarmantes. Somos neste
momento oito mil milhões de pessoas e em breve seremos muitos
mais. A água dos rios e dos lagos, equivalente a apenas 2,5 por cento
de toda a água doce existente, não chega para tanta gente. Para
resolver o problema, começámos a extrair a água dos aquíferos. O
problema é que essa água não se renova ao ritmo a que a extraímos,
percebe? Muitos aquíferos estão a ser esvaziados a ritmos duzentas e
cinquenta vezes superiores à sua capacidade de recuperarem. Duzentas
e cinquenta vezes! Aquíferos que levaram milhares de anos a ser
formados andam a ser esvaziados a grande velocidade. Como estamos
a tirar cada vez mais água dos aquíferos e cada vez mais depressa, um
dia deixaremos de ter água por baixo da terra para extrairmos. O
ritmo de extração não é sustentável. Vivemos neste momento de água
emprestada, mas chegará o dia em que teremos de pagar esse
empréstimo. Isso acontecerá quando a água dos aquíferos se esgotar.
O que faremos no momento em que não houver mais água?”
O inspetor Caparro continuava a fazer contas de cabeça.
“Espere aí”, deteve­-o. “Que eu saiba, os rios e os lagos contêm
imensa água. Ainda que sejamos uns oito ou nove mil milhões de
pessoas, só a água doce existente na Terra, mesmo sendo apenas 2,5
por cento de toda a água, é suficiente para dar de beber a toda a gente.
Se os aquíferos têm muito mais água líquida do que a que se encontra
à superfície, a quantidade de água doce disponível é imensa. Chega
para toda a gente beber.”
A conversa atingira o ponto que Tomás queria que atingisse.
“Claro que chega para todas as pessoas beberem”, reconheceu. “Isso
é inquestionável. O problema é que não chega para os animais de que
as pessoas se alimentam.”
O polícia fez uma careta incrédula.
“As vacas, os porcos e as galinhas bebem assim tanta água?”
“Não é só a água que eles bebem, inspetor. É também a água
necessária para irrigar os campos que geram a comida que os
alimenta. Cerca de setenta por cento da água doce consumida em todo
o planeta não se destina diretamente às pessoas, mas à agricultura, em
particular a pecuária. Ouviu bem? Não é água para cultivar batatas
nem cenouras nem alfaces para nós comermos. É para cultivar
alimentos para os animais da indústria pecuária comerem. Nós somos
uns oito mil milhões de pessoas, mas todos os anos matamos setenta
mil milhões de animais terrestres para comer. Ora os animais criados
pela indústria pecuária bebem, no seu conjunto, entre cem a duzentos
mil milhões de litros de água por dia. É uma enormidade que chega
aos biliões de litros por ano. A seguir há o problema de produzir a
comida para esses animais comerem. Acontece que os alimentos que
eles consomem requerem quantidades astronómicas de água. A
produção de soja, de milho, de sorgo e de alfafa, usados para
alimentar os animais da indústria pecuária, implica regadio intenso. É
aí que o consumo de água dispara para níveis astronómicos. Essa água
não é consumida diretamente pela humanidade, mas indiretamente
através dos animais que comemos e da comida que alimenta os
animais que comemos.”
“Mesmo assim, os aquíferos dispõem de imensa água...”
O historiador extraiu mais documentos da pasta.
“O dossiê a que o professor Vandenbosch teve acesso analisou o
caso de um dos maiores aquíferos do mundo”, disse, consultando as
folhas. “Trata­-se de Ogallala, nos Estados Unidos. Este aquífero enche
à velocidade de um centímetro por ano, o que não seria mau se não se
desse o caso de extrairmos de lá entre um a três metros de água por
ano, a esmagadora maioria para a pecuária. Percebeu? Vou repetir:
retiramos um a três metros de água por ano, e no mesmo período o
aquífero só recupera um centímetro. Não é sustentável. A situação de
Ogallala tornou­-se tão má que, em desespero, se está a considerar
retirar a água do lago Michigan para abastecer a indústria animal, o
que teria como consequência secar o lago em algumas décadas. Os
grandes aquíferos da China e de outros países estão numa situação
idêntica, tendo já sido extraídos dos aquíferos vinte biliões de
toneladas de água que não foi substituída. Muitos deles vão esgotar­-se
ainda no nosso tempo de vida. Como se esta catástrofe não bastasse,
toda a água retirada aos aquíferos vai acabar no mar. Calcula­-se que o
efeito de uma coisa dessas no nível de água dos oceanos é cinco vezes
pior do que se derreter todo o gelo da Antártida e da Gronelândia. Se
toda a água dos aquíferos for retirada, o nível do mar subirá dez
metros ou mais.”
O inspetor Caparro arregalou os olhos.
“C’um caneco!”
“E tudo isto para quê? Para produzir carne!” Folheou mais umas
páginas do documento até chegar ao capítulo seguinte. “O dossiê
contém umas contas elucidativas sobre as taxas de consumo de água
pela agricultura. Os autores calcularam toda a água usada para as
colheitas, tanto de vegetais para alimentar as pessoas como para
alimentar os animais, e toda a água usada pelos próprios animais. As
conclusões são assustadoras. São precisos trezentos litros de água para
produzir apenas um quilo de feijões, de ervilhas, de grão ou de
lentilhas, por exemplo.”
“Tanta água por um simples quilo de ervilhas?”
“Acha muito? Então espere para ver o que acontece quando
chegamos à carne. Um quilo de bife, por exemplo, sabe quanta água
requer? Os autores do dossiê até fizeram um desenho para ilustrar essa
situação”, disse. “Calcularam quanta água é neces­sária para produzir
um bife de um quilo. Este é o resultado.”
Virou uma folha na direção do seu interlocutor.

1 QUILO = 13 000 LITROS


O polícia nem queria acreditar no que via.
“Treze mil litros de água pela porcaria de um bife?!”
“Eu próprio mal queria acreditar quando vi estes números”, admitiu
Tomás. “Aliás, pus­-me até a fazer contas. Desde que se lhe meteu na
cabeça que tinha de salvar o planeta, a minha mulher passou a tomar
banhos super­-rápidos. Tudo para poupar água e ajudar na pegada
ecológica, diz ela. Quando descobri este relatório e o li, fiz contas à
água que a minha mulher gasta nesses banhos rápidos e percebi que
ela precisaria de tomar banho todos os dias durante dez meses para
despender tanta água quanto a que se consome para produzir um
único bife.”
O inspetor Caparro ainda se mostrava chocado com a quan­tidade de
água usada para se produzir uma simples fatia de carne de vaca.
“É do camano!”, murmurou. “Treze mil litros de água pela porra de
um bife! Bem pode a sua mulher poupar na água do banho, hem?”
“Alguns cálculos apontam até para quase quarenta mil litros por um
quilo de bife, pois depende do método usado para criar gado, mas os
autores do dossiê usaram um cálculo menos pes­simista”, esclareceu
Tomás. “O documento a que o professor Vandenbosch deitou a mão
contém uma outra conta interessante. Todas as campanhas de redução
de consumo de água se dirigem ao consumo de água doméstica. Mas
estamos a falar de quanta água exatamente? Se formos poupadinhos
em casa, quanto poupamos em média com água da torneira, das
máquinas de lavar, do chuveiro e da retrete? E como se compara essa
poupança com a água usada para produzir um bife? O resultado é...
este.”
Mostrou ao investigador da Judiciária uma nova folha com um
gráfico de barras.

13 000 LITROS 140 LITROS


Quando parecia que já nada poderia surpreender o inspetor
Caparro, eis que surgia sempre algo novo.
“Um bife de um quilo precisa de treze mil litros de água para ser
produzido, enquanto a poupança de água em toda a sua casa é de
cento e quarenta litros por dia, em média?”, quase se riu. “Isso é... é
ridículo! A sua mulher anda a sacrificar­-se para poupar migalhas.”
Tomás mordeu o lábio inferior.
“Quando souber isso, acho que lhe vai dar um chelique”,
murmurou. Voltou a consultar o documento que tinha nas mãos.
“Vejamos agora o consumo de água médio dos animais da pecuária
comparado com o consumo médio por pessoa. Cada pessoa consome
em média um litro e meio de água por dia. Já o consumo médio diário
de água por cada animal da pecuária é de... cento e cinquenta litros.”
Novo gráfico de barras.

1,5 LITROS 150 LITROS


“Caraças!”, exclamou o homem da Judiciária. “Os bichos bebem
que se fartam, hem?”
“O problema principal é a irrigação dos campos que produzem
comida para os animais da pecuária”, explicou o historiador. “A
questão agora é esta: se comer carne, por quanto consumo de água é
cada ser humano responsável? Com base nos dados relacionados com
a água necessária para os produtos obtidos dos diversos animais da
pecuária, designadamente carne de vaca, de porco, de galinha, mais os
lacticínios e os ovos, e considerando que cada pessoa nos países
industrializados consome uns noventa quilos de carne por ano, os
autores do dossiê calcularam a água que cada ser humano comedor de
carne realmente gasta nos países industrializados em cada ano. Dá...
isto.”
Mais um desenho.

1 PESSOA = 1,5 MILHÕES DE LITROS/ANO


O gráfico deixou o polícia chocado.
“Cada ser humano que come carne gasta todos os anos um milhão e
meio de litros de água?”
Depois de fazer um gesto de assentimento, Tomás indicou com o
polegar o enorme vidro do tanque central. Os peixes e os tubarões
continuavam a deambular sinuosamente por ali, como espectadores
silenciosos daquela conversa que a toda a vida na Terra dizia respeito.
“O que nos remete para o problema do que se passa nos oceanos”,
disse. “Os animais da indústria pecuária produzem milhares de
milhões de excrementos por ano, cerca de cento e trinta vezes mais do
que os seres humanos, e mais tóxicos ainda. O estrume de porco, por
exemplo, é considerado dez vezes mais poluente do que os esgotos
humanos não tratados. Para além disso, a produção destes animais
para consumo requer quantidades enormes de pesticidas, herbicidas,
fungicidas e fertilizantes químicos, para além de esteroides, hormonas
de crescimento, antibióticos e aditivos alimentares, com produção
massiva de bactérias, vírus e todo o tipo de microrganismos tóxicos,
incluindo a pfiesteria piscicida, também conhecida por bactéria do
inferno. Para onde pensa o senhor inspetor que vai toda essa imundice
poluente?”
Atrapalhado, o homem da Judiciária coçou a nuca.
“Bem, para... sei lá, para... hmm...”
“Para o mar, senhor inspetor”, disse Tomás. “Acaba tudo no mar.
Consegue imaginar o efeito que têm sucessivas descargas destas?
Sabemos que já existem mais de quatrocentas zonas mortas nos
oceanos, pois foram empestadas por estes resíduos da agricultura
animal. Quatrocentas zonas mortas. Não há peixes aí. Estamos a falar
de quase cento e cinquenta mil quilómetros quadrados de oceano sem
vida, sendo que o número de zonas mortas nos oceanos está a duplicar
a cada dez anos. A este problema, há a acrescentar a pesca massiva.”
“Pois, mas os oceanos são imensos, professor Noronha. Cobrem três
quartos do planeta.”
“São imensos, mas não são infinitos”, foi a resposta pronta.
“Sobretudo numa altura em que a pesca se tornou industrial. Não
estamos a falar num tipo que vai ali ao Guincho com a sua cana e
atira uma linha para o mar. Há neste momento mais de quatro
milhões de barcos de pesca a sulcar os mares, grande parte deles a
usar tecnologia extremamente sofisticada, muita da qual foi
desenvolvida como tecnologia de guerra. Os capitães desses barcos
estão sentados em salas repletas de ecrãs que mostram informação
recolhida por radares, sonares, sistemas de nave­gação eletrónica,
localizadores guiados por GPS, computadores e imagens de satélite.
Armados de toda essa tecnologia bélica, as frotas pesqueiras
identificam a posição dos cardumes e vão lá apanhá­-los. Se por
milagre os peixes escaparem à primeira investida, a tecnologia
localiza­-os de novo e os barcos apanham­-nos à segunda. Não interessa
quão hábeis os peixes se mostram a evadir os predadores humanos.
São sempre apanhados. Usam­-se até FAD, dispositivos que atraem
peixes, e são espalhadas milhões de redes por todo o oceano para
capturar mais e mais animais marinhos. Os arrastões reviram todo o
solo marinho em busca de moluscos, crustáceos e pequenos peixes
escondidos, enquanto os outros barcos recolhem o resto com as suas
enormes redes. Um único navio de pesca é hoje capaz de apanhar
cinquenta toneladas de animais marinhos em apenas alguns minutos.
Percebe a enormidade que isto é? Cinquenta toneladas em minutos.”
“Mesmo assim ainda sobra muito peixe...”
“Acha que sim? Olhe, por cada dez tubarões ou outros grandes
peixes que existiam há cem anos, apenas resta um nos nossos oceanos.
Um. O bacalhau foi de tal modo dizimado que em 1992 já só existia
um por cento da sua população original. Da população original de
atum já só restam quatro por cento, e taxas semelhantes podem ser
encontradas no linguado, no peixe­-espada e no marlim. Até a espécie
animal mais abundante do planeta, o krill, foi devastada em quase
oitenta por cento. Algumas das zonas do mundo mais ricas em peixes,
como por exemplo a Terra Nova, transformaram­-se hoje em desertos.
Já não há aí peixes. Aliás, a devastação das populações marinhas é
generalizada nos oceanos.”
“Sim, mas esse problema pode ser resolvido se a pesca for conduzida
de forma sustentável.”
O inspetor Caparro devia ser um amante de peixe, percebeu Tomás.
Tal como a generalidade dos portugueses, a sua dieta provavelmente
assentava em produtos do mar. Só isso explicava tamanha resistência
aos factos.
“A palavra pesca e a palavra sustentável não se conjugam a não ser
na ficção, senhor inspetor. Não existe pesca sustentável no nosso
planeta. O que existe é uma guerra de extermínio lançada pela espécie
humana contra toda a vida marinha. Entende? Uma guerra de
extermínio. O dossiê a que o professor Vandenbosch teve acesso fala
em detalhe deste problema. As populações de animais marinhos foram
dizimadas e não há nem uma única que esteja a caminho da
recuperação. Quando em 1992 se declarou uma moratória à pesca do
bacalhau, pois esta espécie tinha sido quase extinta, acha que se
conseguiu recuperar a população? Não. Os cientistas admitem agora
que o bacalhau não voltará à Terra Nova, enquanto no Mar do Norte
a espécie foi também dada como quase extinta.”
“Ai ai ai, que lá se vai o meu bacalhauzinho...”
“Igualmente os peixes hoki foram quase extintos devido à pesca
massiva e, apesar de ter sido declarada uma moratória à sua captura,
também esta espécie não restabeleceu a sua população. Mais grave
ainda, a guerra de extermínio é indiscriminada e está a dizimar a
generalidade das espécies dos oceanos. Todos os anos retiramos vinte e
oito mil milhões de animais dos mares, e isto são apenas os dados
oficiais. Os animais apanhados por acidente não são incluídos neste
valor, apesar de por cada quilo de peixe se capturarem por acidente
cinco quilos de outros animais marinhos e por cada quilo de mariscos
se recolherem acidentalmente vinte quilos de outros animais marinhos.
Calcula­-se que todos os anos sejam capturados por acidente mais de
meio milhão de baleias, golfinhos e focas, para já não falar em
milhares de outras espécies. Todos os anos morrem entre quarenta e
cinquenta milhões de tubarões, apanhados acidentalmente pelas redes
de pesca. É uma mortandade inacreditável e absolutamente
insustentável, pois a taxa de reprodução é muito inferior à taxa de
captura. Os estudos apontam para que, a manter­-se este ritmo, os
oceanos deixem de ter vida ainda este século.”
“Este século? Quando exatamente?”
“Fala­-se em 2050.”
O homem da Judiciária coçou a nuca, refletindo sobre o que acabara
de ouvir.
“Ó diacho!”, murmurou, contrariado. “E eu que gosto tanto de
peixe...”
A confissão não constituía propriamente uma surpresa.
“Se gosta de peixe, deixe de o comer. Se este ritmo de pesca não
mudar radicalmente, caminhamos para um mundo em que os oceanos
serão desertos.”
O inspetor Caparro, no entanto, não estava ainda convencido.
“Então e a aquacultura, professor Noronha?”, questionou. “Não há
aí tantos viveiros onde se criam mariscos e peixes? Isso é a solução!
Em vez de comermos o peixe do mar, comemos o dos viveiros.”
“Não é assim tão simples, receio bem. Uma importante percentagem
dos peixes e mariscos que consumimos já vem da aquacultura. Três
em cada quatro salmões que comemos e dois em cada quatro
caranguejos e lagostas que chegam aos nossos pratos, por exemplo,
são produzidos em viveiros. Grande parte das carpas, das enguias, dos
peixes­-gato e dos camarões também vem da pecuária marinha.”
“Está a ver? A aquacultura é o caminho...”
“Há dois problemas com essa solução”, indicou Tomás. “O primeiro
é que produzir estes animais em viveiros gera muita poluição, desde
químicos e antibióticos que lhes são ministrados em grandes
quantidades até aos caldos de fezes, piolhos, bactérias, vírus e toxinas
que se formam nos viveiros e acabam inevitavelmente no mar.
Noventa por cento dos peixes de aquacultura vêm da Ásia, onde se
está a alimentar os peixes e os mariscos de viveiros com bolos feitos de
estrume. Estes animais vivem fechados em tanques onde se apertam
uns contra os outros. Um único tanque chega a ter cinquenta mil
salmões, enquanto a taxa de ocupação de um tanque com trutas
corresponde a vinte e sete trutas no espaço equivalente a uma
banheira. Isto provoca grande sofrimento, pois além de não terem
espaço para se mexerem, o que gera stress e desespero, criam­-se
facilmente focos de doenças. Os peixes de viveiro sofrem
frequentemente de cegueira, apresentam feridas na pele, estão
infestados de parasitas, têm deformidades corporais... eu sei lá.”
“Não digo que a vida nos viveiros seja um paraíso, mas ao menos
podemos comer peixe e marisco sem os pescar nos mares, não é? É a
grande vantagem desta solução.”
“Não resolve nada, inspetor. O segundo problema da aquacultura é
justamente o facto de que grande parte dos alimentos dados aos
animais produzidos em viveiro é oriunda do próprio oceano. Na
verdade, mais de metade da vida marinha capturada pelas frotas de
pesca não vem para nós. Vai para alimentar os animais produzidos em
viveiros. Dados da própria indústria revelam que são precisas entre
três e cinco toneladas de pequenos peixes, evidentemente provenientes
do mar, para alimentar uma única tonelada de atum ou salmão
produzido em viveiros. Ou seja, os viveiros estão também a contribuir
para esgotar a vida nos oceanos. Em vez de parar a pesca no mar, a
aquacultura está a encorajá­-la.”
Não era o que o polícia queria ouvir, como se constatava pelo seu
semblante.
“Mas o peixe é importante para uma dieta saudável, professor”,
quase se queixou. “O meu médico passa a vida falar no ómega­-3 e nas
suas qualidades. É bom para o coração, é bom para os olhos, é bom
para o cérebro, é bom para a pele, combate as inflamações, ajuda a
prevenir certos tipos de cancro, ajuda o sistema imunitário, combate
os fatores que conduzem ao Alzheimer, melhora os ossos... eu sei lá.
Olhe, a mim o ómega­-3 tem feito verdadeiras maravilhas às
hemorroidas...”
Tomás fez cara de quem preferia não ter ouvido esta última parte.
“Poupe­-me, inspetor”, pediu. “Para sua informação, os peixes não
produzem ómega­-3 nenhum. O ómega­-3 está em microalgas e em
plantas marinhas que os peixes comem. Isso significa que não
precisamos de comer peixes para obter ómega­-3. Basta irmos
diretamente à fonte e comermos nós essas plantas marinhas e essas
microalgas. De resto, também se encontra ómega­-3 nos produtos
terrestres, e em grande quantidade. Oito gramas de bacalhau contêm
duzentos miligramas de ómega­-3, mas uma simples colher de sementes
de chia inclui dois mil miligramas de ómega­-3. As nozes e o cânhamo
também são excelentes fontes de ómega­-3.”
O investigador da Judiciária fez um ar infeliz.
“Oh, não!”, gemeu. “Lá se vai o meu peixinho...”
Baixando os olhos para o dossiê, Tomás folheou­-o à procura da
parte final. Quando a localizou, voltou a fitar o inspetor Caparro.
“E ainda não sabe o pior.”
.

LIV

O dossiê nas mãos de Tomás Noronha parecia ter poderes


magnéticos pois atraía o olhar de todos os presentes no átrio do
tanque principal do Oceanário, ainda para mais à luz do que ele
acabara de dizer. Ninguém tinha dúvidas de que o documento
continha um manancial de informação surpreendente, mas o que não
se tornara ainda claro era a sua ligação à morte de Noé Vandenbosch.
O inspetor Caparro esboçou uma expressão interrogativa.
“Ainda há pior do que tudo o que nos contou?”
“Cada habitante de um país industrializado consome em média
noventa quilos de carne por ano”, lembrou o historiador no tom
neutro de quem se limitava a expor os factos. “Acontece que a União
Europeia soma por volta dos 400 milhões de habitantes e os Estados
Unidos mais de 330 milhões, o que dá um total de 730 milhões de
pessoas. Isto significa sessenta e cinco milhões de toneladas de carne
por ano só para alimentar esta gente toda. São milhares de milhões de
animais. É muita carne. E não estou a contabilizar a carne consumida
por todo o resto do mundo, incluindo países como a China e a Índia,
cada um com mais de mil milhões de pessoas e onde o consumo de
carne está a crescer a grande velocidade. Só os chineses comem um
quarto da carne produzida no planeta. Que quantidade de terra acha
que é necessária para produzir gado e todos os animais necessários
para alimentar todas estas populações?”
O investigador da Judiciária coçou a cabeça, esmagado pela
dimensão do problema.
“Bem... uh... imagino que sejam necessárias grandes pas­tagens.”
“Mas onde estão elas? A Europa está coberta de cidades, tal a
densidade populacional, e os Estados Unidos, embora disponham de
enormes propriedades de criação de gado, sobretudo no sul do país,
não têm terra suficiente para alimentar todos os animais que fornecem
carne a tanta gente.”
“Há a Argentina.”
“Que não é um país tão grande como isso”, fez notar Tomás. “Além
do mais, a maior parte dos terrenos agrícolas da Argentina, ao
contrário do que se pensa, não é dedicada ao gado mas à produção de
comida para o gado. Só a produção de soja para alimentar animais
ocupa 65 por cento dos terrenos agrícolas da Argentina, e isto é soja
para exportação. Além do mais apenas a Argentina não chega, pois é
necessária imensa terra. Para que tenha uma ideia, em quarenta anos a
quantidade de terra usada em todo o mundo para a agricultura
cresceu o equivalente a dez vezes o tamanho da França. Se
juntássemos toda a terra usada para gerar alimentos destinados aos
animais da pecuária, teríamos um terreno que cobre toda a União
Europeia. E todos os anos é precisa mais e mais terra, porque a
criação de animais está a aumentar a um ritmo anual de cinco por
cento no gado e ainda mais depressa nos porcos e galinhas.
Poderíamos pensar que sobra ainda muita terra, mas não é assim. A
terra para a agricultura não é uma terra qualquer, porque senão ia­-se
cultivar para o deserto do Saara. A terra tem de ser fértil e dispor de
muita água. Esse tipo de terra ainda disponível só existe em extensões
inferiores à que já está cultivada. E onde se encontra a que resta?”
Deixou a pergunta no ar, à espera de resposta, mas o inspetor
Caparro devolveu­-lhe uma expressão de ignorância.
“Sei lá.”
“Nas florestas tropicais e equatoriais”, respondeu o histo­riador.
“Haverá terra mais fértil do que a Amazónia, por exemplo? A floresta
amazónica existe há mais de cinquenta milhões de anos e contém pelo
menos dez por cento da biodiversidade da Terra, incluindo vinte por
cento das espécies de peixes e de pássaros existentes no mundo. Além
disso, produz vinte por cento do oxigénio do planeta e ajuda a regular
a temperatura global. Porém, a floresta amazónica está a ser devastada
a um ritmo acelerado. Já perdeu vinte por cento do seu tamanho
original, sem contar com cortes seletivos que são mais difíceis de
medir, o que levou a um aumento da temperatura em um grau Celsius
ou mais e a um número crescente de secas. Tudo isso para quê?”
“Para procurarem combustíveis fósseis, como petróleo e carvão.”
Tomás abanou a cabeça, mostrando que a resposta estava errada.
“Para abrirem espaço para pastagens, inspetor. Sobretudo para a
produção de soja, usada para alimentar os animais. Mais de noventa
por cento dos terrenos conquistados à floresta amazónica desde 1970
são usados para o gado. Ouviu bem? Mais de noventa por cento!”
O polícia alçou o sobrolho.
“Pois é, agora que menciona isso tenho ideia de ter lido alguma
coisa sobre o assunto”, disse. “Ah, os brasileiros têm de ter mais
cuidado com a floresta!”
“A culpa não é dos brasileiros, inspetor. É nossa! É dos
consumidores de carne! A Europa, os Estados Unidos e a China não
têm terrenos de pastagem e de produção de alimentos suficientes para
os animais que as suas populações consomem. Então o que fazem?
Encorajam a destruição das florestas tropicais e equatoriais para que
se produzam alimentos para os animais de cuja carne precisam, e
depois culpam os brasileiros. Conveniente, hem? Calcula­-se que sejam
abertos em todo o mundo um espaço equivalente a sete campos de
futebol por minuto para a produção de animais. A taxa de destruição
de floresta primária duplicou no Vietname e na Nigéria, por exemplo,
mas a maior catástrofe decorre na Amazónia, devido à sua
importância. A terra conquistada à floresta amazónica serve
essencialmente a indústria da carne, mas essa carne não é para
alimentar os brasileiros. É para nos alimentar a nós! Nós, os europeus,
os americanos e os chineses. Não se esqueça de que o Brasil é o maior
exportador mundial de carne. Os políticos europeus e americanos
choram lágrimas pungentes pela destruição da floresta amazónica,
abraçam meninas suecas, fazem declarações bonitas e apelos
vibrantes, chegam a criticar o governo brasileiro e a culpá­-lo por tudo
o que está a acontecer na Amazónia, mas são os seus próprios países,
as suas políticas e os seus habitantes que estão por detrás da pressão
para destruir a floresta amazónica que elimina o habitat de muitas
espécies e agrava o efeito de estufa. Uma hipocrisia sem limites. Tudo
isto porquê? Porque a nós, aos consumidores, nos apetece comer
carne. Então não vale a pena atirar as culpas para os outros. Somos
nós os verdadeiros responsáveis.”
Esta última afirmação quase ofendeu o homem da Judiciária.
“Espere aí, eu não tenho culpa nenhuma”, sublinhou. “Além disso,
mesmo que a produção de carne tenha um efeitozinho qualquer no
aquecimento global, não estamos propriamente a falar de um
problema gigantesco, não é? É preciso ter noção das proporções.”
Ao ouvir isto, Tomás abriu uma adenda do dossiê e mostrou­-a ao
seu interlocutor. Na capa encontrava­-se impresso o logótipo das
Nações Unidas e outro logótipo redondo com uma espiga de trigo no
meio por entre as letras FAO, a expressão latina Fiat Panis por baixo.
“Chegámos ao ponto crucial da conversa”, anunciou. “Este é um
relatório da FAO, a Organização para a Alimentação e Agricultura,
um organismo das Nações Unidas dedicado a erradicar a fome e a
subnutrição no mundo. Os autores deste documento estudaram em
pormenor a produção agrícola para o setor animal, a chamada
pecuária. Sabe o que descobriram?”
“Não, mas suspeito que me vai contar...”
O historiador apontou para uma linha do documento da FAO.
“A pecuária gera mais gases de efeito de estufa do que todo o setor
mundial dos transportes.”
Calou­-se, à espera da reação do inspetor Caparro. Este parecia não
ter assimilado o que acabara de ser revelado.
“Como disse?”
“A produção de carne, ovos e leite tem maior responsabilidade no
aquecimento global do que todos os gases emitidos por todos os
automóveis, camiões, aviões, barcos e comboios em todo o planeta.
Percebeu?”
Apanhado em contrapé, o polícia pestanejou, claramente com
dificuldade em absorver o que lhe era dito.
“Uh... não.”
“Eu vou dizer devagar”, insistiu Tomás, enchendo­-se de paciência.
“A agricultura é mais perigosa para o planeta do que todos os
combustíveis fósseis queimados por todos os transportes.”
O inspetor Caparro sacudiu a cabeça, como se o que tivesse acabado
de escutar não fizesse o menor sentido.
“Desculpe, não pode ser.”
O historiador procurou uma outra adenda no dossiê.
“Leia o que diz a FAO, o organismo das Nações Unidas para a
alimentação e agricultura”, sugeriu­-lhe. “Outras pesquisas, levadas a
cabo pelo IPPC, o Painel Intergovernamental da ONU para as
Alterações Climáticas, que aliás ganhou o prémio Nobel da Paz pelo
seu trabalho, atribuem também à indústria da produção animal um
papel central no problema do aquecimento global.” Mostrou uma
terceira adenda ao seu interlocutor. “O problema é que essas
estimativas foram revistas por técnicos ligados ao grupo do Banco
Mundial, os quais, num estudo para a World Watch, concluíram que
os cálculos da FAO estão afinal errados.”
O polícia quase bufou de alívio.
“Ah, estava a ver...”
“A reavaliação da World Watch concluiu que a produção animal não
é responsável por dezoito por cento dos gases com efeito de estufa,
pois o estudo da FAO não tem em conta uma série de fatores
escondidos. Se se considerarem todos os fatores, a indústria pecuária
produz na verdade cinquenta e um por cento dos gases que provocam
o aquecimento global. Ouviu bem? Cinquenta e um por cento! Ou
seja, a agricultura industrial contribui com mais de metade dos gases
com efeito de estufa. Percebeu agora o que verdadeiramente contém
este dossiê?”
O inspetor Caparro abriu a boca, estupefacto.
“Não é possível!”
“O que lhe estou a tentar explicar, inspetor, é que a produção de
animais é uma das grandes responsáveis, se não mesmo a principal
responsável, pelas alterações climáticas. Foi isto que os diversos
estudos científicos que se debruçaram sobre o problema descobriram.
Só a desflorestação é responsável por um terço de toda a emissão
humana de dióxido de carbono. Como a desflorestação existe
essencialmente por causa da pecuária, como já lhe demonstrei, isso
significa que um terço da emissão humana de dióxido de carbono se
deve diretamente à pecuária. O problema é que o dióxido de carbono
não é o único gás com efeito de estufa, como também já lhe disse. Há
outros gases ainda piores e de que ninguém fala. Um deles é o metano.
Acontece que o gado emite mais de quinhentos mil milhões de litros
de metano por dia. Isto é, as vacas e os bois são o principal emissor de
metano no nosso planeta. Não é coisa pequena, considerando que o
metano é entre vinte a oitenta vezes pior do que o dióxido de carbono
na criação do efeito de estufa. Além do mais, a indústria pecuária é
responsável por sessenta e cinco por cento das emissões globais de
óxido nitroso, um gás quase trezentas vezes pior do que o dióxido de
carbono no efeito de estufa.”
Tudo aquilo era inesperado e o homem da Judiciária mantinha uma
expressão de incredulidade.
“Tem a certeza do que está a dizer?”
“As contas foram feitas e refeitas por muitos e diferentes cientistas”,
afirmou Tomás. “A agricultura é a principal responsável pela
catástrofe ambiental que o planeta está a enfrentar.”
O inspetor Caparro pegou no dossiê e consultou­-o. Verificou a
adenda com o relatório da FAO, depois a adenda com as pesquisas do
IPPC e por fim o estudo da World Watch. Estava tudo lá escrito, preto
no branco. Não havia dúvidas.
Encarou Tomás.
“Mas... mas... se assim é, por que razão ninguém fala nisso?”,
questionou. “Por que razão só se mencionam os combustíveis fósseis?
Como é este silêncio possível?”
O historiador recolheu o dossiê e fechou­-o, o essencial do seu
conteúdo já revelado.
“Chegamos ao homicídio do professor Vandenbosch.”
.

LV

Os três suspeitos sentados no átrio do tanque central remexeram­-se


com desconforto, trocando olhares como se se interrogassem sobre o
que aí vinha, ao mesmo tempo que o inspetor Caparro, antes
impaciente e até enfadado por se ver forçado a ouvir um amador
armado em detetive, dava mostras de uma mudança de atitude.
Tornara­-se muito atento e interessado; claramente queria saber onde
as revelações de Tomás Noronha os conduziriam.
“O homicídio do professor Vandenbosch”, repetiu o investigador da
Judiciária de forma pausada. “Qual é então a relação entre o crime e
esse dossiê?”
O olhar do historiador desviou­-se momentaneamente para os
suspeitos como se tentasse perscrutar a culpa no rosto de um deles.
Nem Dorian Zwiebel, nem Gianpaolo Ambrosini, nem Telles de
Menezes, todavia, deixaram escapar qualquer indício que os traísse.
“O professor Vandenbosch acreditava profundamente na ideia de
Charles Darwin de que a diferença entre os seres humanos e os
restantes animais não é de categoria, mas de grau”, disse Tomás. “Ou
seja, não há nada de fundamentalmente diferente que distinga os seres
humanos dos restantes seres vivos. Somos inteligentes, mas eles
também são inteligentes, embora em graus diversos. Temos emoções,
mas eles têm­-nas igualmente, ainda que em graus distintos. Amamos,
odiamos, fazemos operações de cálculo, posicionamo­-nos
politicamente, apreciamos a beleza, temos sentido de humor,
observamos as estrelas, pensamos sobre as coisas, mas os animais
fazem­-no igualmente. A ideia de que somos diferentes não passa de
uma arrogância vaidosa, a miopia de um animal que ganhou
ascendente sobre os restantes e que se convenceu a si mesmo de que
era superior. Somos diferentes, sem dúvida, mas somo­-lo da mesma
maneira que um leão é diferente de uma lagartixa e que uma águia é
diferente de uma formiga. Os nossos traços fundamentais, contudo,
não desceram do céu por obra e graça do Espírito Santo, são antes
produto da evolução natural e consequentemente podem ser
encontrados noutras formas de vida. Nalguns casos esses traços
apresentam­-se mais evoluídos, noutros encontram­-se ainda
rudimentares, noutros desenvolveram­-se de maneiras distintas ou
expressam­-se de forma diferente. O facto de um golfinho não ter
expressões faciais como os primatas não quer dizer que não sinta
emoções, da mesma maneira que o facto de um peixe não gritar não
quer dizer que não sinta dor quando o anzol de uma cana de pesca lhe
fura a boca. Tudo o que os seres humanos são pode ser encontrado,
mesmo que apenas de uma maneira embrionária, noutras formas de
vida.”
“Sim, sim”, impacientou­-se o polícia. “E então?”
“Acontece que, quando vivia na Bélgica, o professor Vanden­bosch
conheceu um suíço que representava a Greenpeace em Zurique.”
Voltou­-se para um dos três suspeitos. “Não é verdade, Herr Zwiebel?”
Ao ver­-se interpelado justamente numa altura em que a conversa
entrava na questão do homicídio, o diretor da GreenNaturae
sobressaltou­-se.
“Uh... sim, sim”, confirmou, nervoso. “Conheci­-o durante uma
conferência no Hotel Métropole, em Bruxelas.”
“Como é que se associaram?”
“Bem, eu na altura andava com ideias de criar uma organização
ecologista que desenvolvesse trabalho científico e não se limitasse a ser
um movimento ativista de protesto, como a Greenpeace se estava a
tornar. Ao almoço fui calhar na mesa do Noé e pusemo­-nos à
conversa. Percebi então que ele tinha uma ideia revolucionária. O Noé
queria trabalhar com animais e provar que aquela famosa frase de
Darwin que você acabou de citar, a de que a diferença entre os seres
humanos e os restantes animais não é de categoria mas de grau, era
verdadeira. Achava, no entanto, que certos aspetos da lei e das
práticas tradicionais da etologia, como por exemplo a interdição de
ter os animais em casa como se fossem da família, dificultavam que se
investigasse o assunto a fundo, pelo que eram necessários métodos
menos convencionais. Fiquei a matutar no assunto e dias depois
liguei­-lhe e propus­-lhe que nos associássemos e criássemos uma nova
organização ambientalista com um perfil que viabilizasse o projeto
dele.”
“Essa organização é hoje a GreenNaturae e o projeto é o Jardim dos
Animais com Alma”, disse Tomás. “O problema é que esse projeto do
professor Vandenbosch requeria uma boa maquia, não é verdade?”
O olhar do historiador desviou­-se para Gianpaolo Ambrosini como
se lhe endereçasse a pergunta. Vendo­-se interpelado, o banqueiro
italiano engoliu em seco.
“In effeti”, assentiu Ambrosini. “Eu conhecia o signor Zwiebel
devido aos negócios do meu banco em Zurique. Como também me
interesso pelas coisas da natureza, acabámos por nos aproximar.
Quando ele veio ter comigo para explicar o projeto da GreenNaturae
e perguntar se eu o podia financiar, o meu banco tinha acabado de
abrir uma sucursal em Lisboa e de me nomear para a chefiar. Portugal
começara nessa altura a dar vantagens fiscais aos investidores
estrangeiros e achei que seria interessante usar isso para lançar neste
país o projeto que me estava a ser proposto. De modo que concordei
em financiar a GreenNaturae e a sua pesquisa científica mais
importante, na condição de que tudo fosse feito em Portugal. Com o
nosso financiamento, o professor Vandenbosch comprou uma
propriedade na floresta de Sintra e foi assim que nasceu o Jardim dos
Animais com Alma. Só que o projeto revelou­-se um sorvedouro de
dinheiro, o professor Vandenbosch deixou de ter capacidade para
pagar e... e vi­-me na contingência de meter uma ação em tribunal para
reaver o dinheiro. Os sonhos são muito bonitos, mas têm de se
sustentar na realidade, vero?”
Não era uma pergunta para responder. O olhar de Tomás desviou­-se
de Ambrosini para Telles de Menezes. O diretor do Oceanário
endireitou­-se, sentindo que chegara a vez de ser ele o suspeito
questionado, mas, pelo menos no imediato, não foi isso que
aconteceu.
“Para além de um reputado etólogo, o professor Vandenbosch tinha
crenças místicas”, disse o historiador. “Acreditava que o real é uno,
que a diversidade não passa de diferentes manifestações de uma
unidade global, que tudo está ligado a tudo, que a matéria viva é uma
forma deliberada de organização da matéria inerte, que a existência é
sagrada e tem um propósito, que a vida se exprime com o toque do
divino. É por isso que o Homem desem­penha um desígnio superior,
mas tal desígnio estende­-se a todas as formas de vida, desde os
microrganismos mais pequenos às maiores baleias que sulcam os
oceanos. O universo é Deus e toda a vida as Suas células.”
“É normal que pensasse assim”, observou o inspetor Caparro. “No
final de contas, era um apaixonado pela vida animal e é natural que a
sacralizasse.”
“Nem todos os etólogos têm crenças místicas, inspetor”, contrapôs
Tomás. “Mas o professor Vandenbosch tinha. Não foi por acaso que
encontrei em casa dele uma biblioteca com obras esotéricas, incluindo
um velho exemplar do Paradisus anime intelligentis, de Meister
Eckhart, um místico germânico do século xiii associado a tradições
antigas semelhantes às dos mestres ocultos da Grande Irmandade da
Luz, uma organização espiritual de sábios que ascenderam à
imortalidade mas que mantêm uma ligação à realidade terrestre, ou
dos Trinta e Seis Justos, os santos tzadikim da cabala mencionados no
Talmud como sendo aqueles que vão salvar o mundo. Eckhart
acreditava que toda a vida contém a centelha do divino, a crença
mística na origem do movimento rosacruz ao qual o professor
Vandenbosch estava ligado.”
O investigador da Judiciária franziu o sobrolho.
“Está a insinuar que a vítima pertencia a uma sociedade esotérica
secreta?”
“Basta entrar na cave que ele transformou em escritório para o
perceber, inspetor”, foi a resposta pronta. “Os símbolos estão por
toda a parte, é só olhar e ver. As três estátuas com o boi, o leão e a
águia mencionados nas Núpcias Quymicas, os fac­-símiles
emoldurados com as primeiras páginas do Confessio Fraternitatis e da
Fama Fraternitatis, a secretária em forma de cruz com uma rosa
pousada em cima e, particularmente interessante, a reprodução de O
Jardim das Delícias Terrestres, o tríptico de Hieronymus Bosch
inspirado nas ideias místicas de Meister Eckhart e dos rosacruz. Está
lá tudo.”
O inspetor Caparro empalideceu de embaraço; tinha ido a esse
compartimento e toda aquela realidade lhe passara ao lado. Nem
sequer deitara uma olhadela à decoração. Como podia uma coisa
daquelas ter­-lhe escapado?
“Pois, está bem”, disse, tentando passar adiante da vergonha de
constatar que um amador lhe estava a levar a palma na investigação.
“E então?”
A atenção do historiador regressou ao diretor do Oceanário, desta
feita para o interpelar.
“O doutor Telles de Menezes também tem um certo interesse pela
área do misticismo, não é verdade?”
“Eu?!”
“Não, o Papa”, ironizou Tomás. “Sim, o senhor. Quando aderiu aos
rosacruz?”
O diretor do Oceanário corou.
“O que... o que o leva a afirmar que pertenço aos rosacruz?”
“Vai­-me desculpar, mas de momento quem faz as perguntas sou eu.
Conte­-me lá como era a sua relação com o professor Vandenbosch
dentro da fraternidade dos rosacruz. Participavam ambos em
cerimónias iniciáticas? Eram missas?”
“Como se atreve?”, empertigou­-se Telles de Menezes. “Não tenho de
lhe dar satisfações.”
O olhar de Tomás desviou­-se para o inspetor Caparro e este,
percebendo que o historiador havia tocado num ponto sensível e de
possível relevância para a investigação, encarou o diretor do
Oceanário com uma expressão gélida.
“Se o senhor doutor não quiser responder, tirarei as minhas
conclusões e agirei em conformidade. Aconselho­-o, por isso, a
cooperar na descoberta da verdade. Se nada tem a esconder, decerto
que esclarecerá o professor Noronha.”
Sentindo­-se encurralado e intuindo que atrairia suspeitas se optasse
pelo silêncio, Telles de Menezes resignou­-se.
“O professor Vandenbosch veio uma vez aqui visitar o Oceanário.”
O investigador da Judiciária quase se escandalizou.
“O doutor conhecia pessoalmente a vítima?!”, espantou­-se o
inspetor Caparro. “Porque não me disse isso quando aqui vim hoje e o
inquiri sobre o crime?”
“Lamento, mas o senhor inspetor nunca me perguntou se eu
conhecia pessoalmente o professor Vandenbosch”, justificou­-se o
diretor do parque marinho de Lisboa. “Sendo agora questionado
sobre o assunto, estou a responder. Como dizia, o professor
Vandenbosch veio uma vez visitar o Oceanário e, tratando­-se de um
dos maiores etólogos do mundo, recebi­-o no meu gabinete.
Percebemos que partilhávamos também um interesse pelo misticismo e
pela filosofia dos rosacruz. De modo que... enfim, fundámos a secção
de Lisboa do movimento. Tão simples quanto isso.”
“As cerimónias iniciáticas”, lembrou Tomás. “Como eram elas?”
“Nada de especial. Como sabe, os rosacruz são um movimento que
contribuiu para o Renascimento. As nossas cerimónias não envolvem
por isso rituais complicados. Não passam na verdade de conversas
sobre a vida, o mundo, a natureza, o sentido da existência... enfim,
uma coisa mais intelectual. Não há liturgias à maneira dos maçons ou
das igrejas, se é o que quer saber.” Esboçou uma expressão inquisitiva.
“Desculpe a insistência, mas como diabo percebeu que eu pertencia
aos rosacruz?”
Tomás ainda considerou não responder à pergunta, pois inicialmente
não lhe pareceu relevante, mas acabou por rever a sua posição ao
perceber que poderia haver interesse em soltar naquele momento um
pedaço de informação até aí desconhecido dos suspeitos.
“Em boa verdade, só estabeleci essa ligação há pouco mais de uma
hora”, disse. “Ao inspecionar a gravação do sistema de videovigilância
da casa do professor Vandenbosch, apercebi­-me de que ele foi visitado
ontem à noite por uma pessoa. O assassino. No esforço para o
identificar, lembrei­-me de que hoje, quando aqui vim com a minha
mulher prestar declarações no âmbito do inquérito, ouvi o inspetor
Caparro terminar o interrogatório que lhe estava a fazer a si. Nessa
altura, se bem se lembra, o senhor mencionou a alma do mundo. Ora
esse era um conceito de Paracelso, um dos místicos que mais
influenciou os rosacruz. Paracelso dizia que a alma do mundo se
exprimia no universo.”
A referência à existência de um vídeo que mostrava o assassino a
visitar a vítima não passou despercebida a nenhum dos homens no
átrio, pois tratava­-se de uma importantíssima novidade. Contudo,
ninguém quis dar parte de fraco. Nem o inspetor Caparro aludiu ao
assunto, para não se humilhar mais diante da constatação de que o
amador o voltara a superar, nem nenhum dos três suspeitos o fez, com
receio de agravar as suspeitas que sobre cada um recaíam.
“Já vi que é observador”, constatou Telles de Menezes. “O facto de
fazer obliquamente uma citação de Paracelso, contudo, não permite
que se conclua que sou um rosacruz. Paracelso influenciou os
rosacruz, certo, mas que eu saiba não era um rosacruz.”
“Pois, mas na mesma resposta, quando estava hoje a ser interrogado
pelo inspetor Caparro, o senhor disse que o grande oceano é um livro
repleto de maravilhas. Essa expressão também me chamou a atenção,
pois os rosacruz defendiam que a alma do mundo estava inscrita no
Liber M, o Livro das Maravilhas da Natureza. Isso ligou­-o aos
rosacruz, tal como o ligou aos rosacruz a referência que nessa mesma
conversa o senhor fez a Proteu, o deus do mar de que Homero falava
na Odisseia e que também é mencionado por Hermes Trismegisto,
outro grande místico. Acontece que o autor anónimo da Fama
Fraternitatis considera que o livro mais revelador da biblioteca
filosófica dos rosacruz se intitula... Proteu.” Abriu os braços, a
evidência apresentada. “Só um rosacruz usaria esse tipo de referências
gnósticas.”
Telles de Menezes estreitou os lábios, impressionado.
“Touché”, concedeu. “Quando hoje prestava declarações ao senhor
inspetor, confesso que nunca imaginei que estivesse presente alguém
que pudesse captar as minhas alusões esotéricas.”
Sentindo­-se atingido, o homem da Judiciária enrubesceu.
“O que está a insinuar?”, indignou­-se. “Não me acha capaz de... de
entender essas palermices?”
“Não se ofenda, senhor inspetor”, corrigiu de imediato o diretor do
Oceanário, preocupado em não antagonizar o polícia num momento
tão delicado como aquele. “Não estava de modo nenhum a sugerir tal
coisa, asseguro­-lhe. Só que se tratam de referências herméticas cujo
entendimento, como deve compreender, só está ao alcance dos
iniciados.”
A irritação do polícia e as justificações de Telles de Menezes seriam
divertidas se o caso não fosse sério e não estivesse em causa o
homicídio de um homem. Tomás deixou­-os terminar a conversa, um a
pedir contas e o outro a explicar­-se. Quando por fim se calaram, o
historiador encarou de novo o suspeito.
“Como deve compreender, depois de identificar a pessoa que foi
ontem à noite a casa da vítima e depois de descobrir as ligações
ocultas que o senhor tem aos rosacruz e ao professor Vandenbosch,
percebi uma coisa essencial. O senhor é um rosacruz, não é verdade?”
Já não havia modo de Telles de Menezes o negar.
“E então?”
Todos os olhares estavam fixos em Tomás, à espera de que concluísse
o seu raciocínio. O historiador fez uma pausa, evidentemente para
efeito dramático, antes de endurecer o semblante enquanto encarava o
homem que ele próprio havia designado como suspeito.
“O problema é que o assassino era um rosacruz.”
.

LVI

O rosto de Telles de Menezes enrubesceu ao ponto de parecer que ia


explodir; dir­-se­-ia um pimentão inchado.
“O que... o que está a insinuar?!”
“O assassino é um rosacruz e, veja só a enormíssima coincidência, o
senhor é um rosacruz. O que se pode concluir disso?”
“Como se atreve?”
A indignação do diretor do Oceanário não impressionou Tomás
Noronha.
“Não se arme em santinho”, devolveu o historiador com rispidez.
“Quando hoje foi interrogado pelo inspetor Caparro, o senhor não
revelou que conhecia pessoalmente a vítima. Agora viemos a descobrir
que não só conhecia o professor Vandenbosch como até convivia com
ele numa sociedade esotérica secreta. Considerando a sua ocultação
destes factos, o que quer que pensemos?”
Retirando as algemas do bolso, o investigador da Judiciária
abeirou­-se do diretor do Oceanário.
“Quem diria que tinha sido o senhor o assassino, hem? Bem me
enganou com o seu ar sonsinho.”
Aterrorizado, Telles de Menezes lançou olhares suplicantes na
direção do historiador e dos outros dois suspeitos.
“Mas... mas...”
“Não há mas nem meio mas”, atalhou o polícia, pegando­-lhe nos
pulsos para encaixar as algemas. “O senhor está...”
“Espere!”
A intervenção de Tomás travou o inspetor Caparro.
“O que foi?”
“Não o detenha.”
O pedido surpreendeu o polícia.
“Mas o senhor disse que foi o doutor Telles de Menezes quem matou
o professor Vandenbosch...”
“Não disse tal coisa.”
“Ah, bom”, recuou o homem da Judiciária. “Então não é ele o
assassino?”
“Também não disse tal coisa.”
Todas estas respostas deixaram o inspetor Caparro atrapalhado e
sem saber o que fazer.
“Afinal como é?”, questionou, tentando pôr ordem nas coisas. “O
doutor Telles de Menezes matou ou não matou o professor
Vandenbosch?”
Voltando a palma da mão para o polícia, como se estivesse em pleno
controlo da situação e lhe pedisse que tivesse paciência, Tomás virou­-
se para os outros dois suspeitos.
“O que complica tudo isto é que o professor Vandenbosch e o
doutor Telles de Menezes não eram os únicos membros da secção
portuguesa dos rosacruz”, declarou. Fixou um dos suspeitos. “Não é
verdade, signor Ambrosini?”
O rosto do banqueiro perdeu cor logo que a pergunta foi formulada.
“Eu... eu... o que o leva a dizer isso?”
“Aqui quem faz as perguntas sou eu”, lembrou Tomás, atirando um
olhar de relance para o homem da Judiciária de modo a recordar ao
seu interlocutor a fonte da sua autoridade. “Conte­-me lá. Quando é
que o senhor se juntou à sociedade secreta?”
Os ombros de Ambrosini descaíram em derrota; aquele era um
assunto que manifestamente preferiria não abordar, mas tal já não era
possível.
“Não me juntei à sociedade, fui um dos fundadores”, acabou por
revelar. “Deve haver algo na nossa alma de italianos que nos atrai
para as coisas secretas, não sei. A verdade é que eu pertencia à loggia
de Turim da fraternidade dos rosacruz. Quando vim para Portugal e
me apercebi de que Noé e Telles de Menezes partilhavam o meu
interesse pelo esoterismo, tive a ideia de lhes propor que
constituíssemos uma loggia esotérica em Lisboa.”
“Foi então assim que a coisa começou...”
“Perdoe a minha curiosidade”, disse Ambrosini, intrigado. “Nós
nunca nos conhecemos pessoalmente. Como diabo percebeu o senhor
que eu também era um rosacruz?”
Se tinha dado ao diretor do Oceanário a resposta a esta pergunta,
porque não fazê­-lo também ao banqueiro?
“Astrum.”
“Ah...”
Ambrosini percebeu instantaneamente, mas não o inspetor Caparro.
“Desculpe, professor Noronha”, interveio o polícia. “O que têm os
astros a ver com isto?”
“Quando vim aqui ter consigo no âmbito do inquérito à morte do
professor Vandenbosch, se bem se lembra assisti ao interrogatório que
o senhor fez à minha mulher”, recordou­-lhe Tomás. “A certa altura o
senhor questionou­-a sobre os problemas financeiros que o professor
Vandenbosch tinha. Tem memória disso?”
“Perfeitamente. E então?”
“Foi nesse momento que ela mencionou um homenzinho do banco,
evidentemente o senhor Ambrosini, dizendo que ele era horrível. Logo
a seguir ela afirmou que o banqueiro andava sempre a falar em
Astrum. Até repetiu a palavra. Recorda­-se?”
“Uh... mais ou menos. Qual a relevância disso?”
“Astrum é um conceito de Paracelso que diz respeito à natureza
divina de cada coisa existente no mundo natural”, explicou Tomás.
“O caráter divino da natureza é invisível, mas está lá. Isto introduziu
uma nova maneira de encarar o mundo, pondo fim ao dualismo que
separava Deus do mundo e criando o conceito de unidade. Se tudo é
Deus, e fazendo nós parte de tudo, nós também somos Deus, a
natureza também é Deus, os animais também são Deus. Não é
verdade que Deus esteja em tudo. A verdade é que Deus é tudo.
Incluindo nós. Incluindo os animais. Tudo é Deus. A diversidade
esconde essa unidade sagrada. Paracelso designou a essência divina da
natureza por Astrum. Acontece que, na tradição esotérica dos
rosacruz, Astrum é a alma do mundo que se manifesta no universo
que nos cerca, e o segredo da sua essência está inscrito no Liber M, o
Livro das Maravilhas da Natureza. Como deve estar recordado, o que
denunciou a identidade rosacruz do doutor Telles de Menezes foi ter­-
lhe falado na alma do mundo e no Livro das Maravilhas da Natureza,
dois conceitos rosacruz. Da mesma maneira, o que denunciou a
identidade rosacruz do signor Ambrosini foi o facto de a minha
mulher ter dito que Ambrosini passava a vida a falar em Astrum, o
conceito de Paracelso que exprime o conceito rosacruz de alma do
mundo.”
O banqueiro balançou a cabeça afirmativamente, quase em
penitência.
“É verdade que passo a vida a falar em Astrum”, confirmou. “Sou
obcecado por esse conceito, pois acredito que o universo e toda a vida
tem uma essência divina.”
O inspetor Caparro rangeu os dentes, irritado. Pelos vistos, não fora
só no santuário de Noé Vandenbosch que estivera desatento. Durante
o interrogatório que fizera nesse mesmo dia a Telles de Menezes e a
Maria Flor Noronha haviam­-lhe também escapado uma série de
outras pistas. Nada interessado em esfregar sal na ferida do seu
embaraço, fez com a mão sinal a Tomás.
“Adiante, adiante...”
O historiador recuperou a primeira página do dossiê que localizara
no compartimento secreto de Noé e voltou­-a para o grupo, exibindo
de novo o desenho nela impresso.

“O que me confirmou a ligação do signor Ambrosini aos rosacruz


foi este desenho no dossiê que o professor Vandenbosch encontrou no
seu cofre”, disse. “O Monas Hieroglyphica.”
Os três suspeitos permaneceram especados a olhar para o símbolo
esotérico, como se tivessem ficado sem palavras. O inspetor Caparro,
por seu turno, esboçou uma careta de incompreensão.
“A mona do hieróglifo?”
“O Monas Hieroglyphica é um diagrama mágico concebido no
século xvi pelo místico inglês John Dee”, explicou Tomás. “Inspirado
numa ideia de Hermes Trismegisto, o diagrama junta vinte e quatro
teoremas para demonstrar a unidade do universo como expressão do
divino. Representa a unidade mas dela podem­-se derivar todos os
números e todas as letras. O Monas Hieroglyphica contém todos os
números mas não está contido em nenhum, gera todos os números
mas não é gerado por nenhum. Ou seja, o universo parece muitas
coisas diferentes e afinal é uma unidade única. Não há separação entre
o Homem e a natureza. Tudo é um.”
O investigador da Judiciária bufou.
“Que raio de charada”, resmungou. “Qual a relevância disso?”
Tomás voltou­-se para o banqueiro.
“A presença do Monas Hieroglyphica na primeira página do dossiê
não é um acaso”, disse. “Quem são os verdadeiros autores deste
documento? Como foi ele parar ao seu cofre?”
Os ombros de Ambrosini descaíram ligeiramente.
“Já vi que não lhe escapa nada”, murmurou entredentes. “Está bem,
eu conto­-lhe. Como sabe, as alterações climáticas e a ação do Homem
no meio ambiente são hoje em dia uma preocupação generalizada.
Sendo uma sociedade esotérica centrada na natureza e na sua
unicidade com o ser humano, a irmandade dos rosacruz em Itália
encarregou­-me de encomendar um estudo aprofundado sobre as
causas do problema. O dossiê que tem nas suas mãos resulta desse
estudo. No entanto, quando o dossiê me foi entregue por especialistas
contratados em segredo e me apercebi do seu conteúdo, decidi...
enfim, arquivá­-lo. Quis o destino que o Noé, quando se infiltrou no
meu gabinete à procura do paradeiro dos animais que retirei da sua
propriedade, lhe tivesse posto as mãos em cima.”
“Por que razão escondeu o senhor este dossiê?”
O corpo do italiano tornou­-se tenso.
“Eu não o escondi”, disse, empertigado. “Estava simplesmente
guardado no meu cofre.”
Sem nada mais dizer sobre o assunto, o historiador voltou­-se para o
terceiro suspeito.
“Falemos agora do senhor, Herr Zwiebel”, disse, como se mudasse
de tema. “Quando foi que se juntou à secção portuguesa dos
rosacruz?”
O diretor da GreenNaturae pestanejou e ficou um longo momento
hirto, antes de baixar a cabeça em admissão.
“De facto, também sou um dos fundadores”, reconheceu Zwiebel
sem sequer dar luta. “Bem vê, estando todos nós interessados na
questão da natureza e dos animais, era natural que nos associássemos.
Confesso que não sou uma pessoa mística, ao contrário dos meus três
irmãos da loggia de Lisboa, mas tendo a filosofia rosacruz uma
poderosa visão unitária da natureza que inclui a sacralização da vida
animal, o meu envolvimento na fundação da loggia tornou­-se
inevitável.”
“Portanto, a secção de Lisboa da fraternidade rosacruz era formada
por vocês os quatro...”
“Exato”, confirmou o diretor da GreenNaturae. “Mas... como diabo
percebeu isso? Eu sei que falei longamente consigo quando ao final
desta tarde nos encontrámos na casa do Noé, mas confesso que não
me lembro de ter dado qualquer pista esotérica, até porque, como
disse, nem sou uma pessoa mística.”
“Simples dedução, Herr Zwiebel”, admitiu o historiador. “Se o
professor Noé Vandenbosch e o signor Gianpaolo Ambrosini eram
ambos rosacruz, e se o senhor trabalhava de perto com os dois, com
toda a probabilidade pertenceria à mesma sociedade secreta. Como o
doutor Telles de Menezes fazia evidentemente parte da fraternidade
rosacruz, pois denunciou­-se nas declarações ao inspetor Caparro, não
foi difícil deduzir que o senhor, que aos três estava ligado, também era
membro da secção portuguesa dessa fraternidade.”
Toda aquela conversa estava a enervar o investigador da Judiciária,
já agastado pela forma como aquele amador o batia na sua própria
investigação.
“Oiça, professor Noronha, isso não interessa para nada”,
impacientou­-se. “O que quero saber é quem é o assassino e como
cometeu ele o homicídio e porquê. O resto são conversas de chacha.”
“Está enganado, inspetor”, corrigiu­-o Tomás. “Isto interessa e
interessa muito.” Fez um ar subitamente pensativo, como se algo lhe
tivesse acabado de ocorrer. Virou­-se para Ambrosini. “Fui agora
assaltado por uma dúvida repentina, não sei se me pode esclarecer.”
“Diga.”
“Quando hoje o ouvi falar, no final do seu depoimento ao inspetor
Caparro, tenho ideia de que mencionou que, antes de dirigir o
Oceanário de Lisboa, o senhor trabalhou num outro parque de
animais, não foi?” Fez um esforço de memória. “Tinha um nome
esquisito. Chamava­-se... uh... Parque Ka... Ka­-qualquer­-coisa.”
Telles de Menezes estreitou as pálpebras, tentando ler a intenção do
seu interlocutor. Seria aquela pergunta inocente?
“Kaeng Krachan.”
“Isso, Parque Kaeng Krachan!”, exclamou Tomás, como se o diretor
do Oceanário tivesse acabado de pronunciar um nome que lhe estava
mesmo debaixo da língua. “O senhor trabalhava na Tailândia, era?”
“O Parque Natural Kaeng Krachan situa­-se de facto na Tailândia.”
O historiador franziu o sobrolho.
“Sei muito bem que o Parque Natural Kaeng Krachan se situa na
Tailândia”, devolveu com inesperada secura. “Mas não foi isso que
lhe perguntei, pois não? O que lhe perguntei foi se o senhor
trabalhava na Tailândia. Trabalhava?”
A forma como Tomás não se deixara enganar pela habilidade da
resposta deixou o diretor do Oceanário perceber que aquelas
perguntas eram dissimuladas e que o historiador conhecia muito bem
a resposta correta. Não valia por isso a pena tentar ludibriá­-lo.
“Não.”
“Claro que não”, confirmou Tomás, abrindo enfim o jogo. “Kaeng
Krachan é o nome de um parque natural na Tailândia, coisa que o
senhor insinuou ao inspetor Caparro quando prestou hoje
declarações. Acontece que existe um jardim zoológico europeu que
inclui uma secção de elefantes tailandeses. Como se chama essa secção
nesse zoo? Kaeng Krachan. Era aí que o senhor verdadeiramente
trabalhava, não era?”
“Sim.”
“Agora diga lá, em que cidade está situado esse jardim zoológico?”
Atravancado, Telles de Menezes baixou a cabeça e respondeu numa
voz sumida.
“Zurique.”
“Zurique?”, questionou Tomás de uma forma teatral, fingindo­-se
admirado. “Qual Zurique? Não me diga que se está a referir àquela
Zurique onde Herr Zwiebel trabalhava quando era membro da
Greenpeace! Não me diga que se trata da mesma Zurique onde o
signor Ambrosini conheceu Herr Zwiebel! É a essa Zurique que se
refere?”
Fez­-se um silêncio repentino no átrio do tanque central.
“Desculpe, não estou a perceber”, interveio o inspetor Caparro,
confuso com mais aquela novidade. “Está a insinuar que... que os três
já se conheciam?”
O historiador voltou­-se para o polícia.
“Claro que se conheciam. O facto de os três terem estado ao mesmo
tempo em Zurique é já em si revelador, mas o que prova que se
conheciam foi o facto de o doutor Telles de Menezes ter evitado
esclarecer no interrogatório de hoje que o parque Kaeng Krachan a
que se referia não era o da Tailândia mas o de Zurique. Pior, ao falar
em elefantes tailandeses induziu­-o ativamente em erro. Qual o
problema em revelar que se estava a referir a uma secção do zoo de
Zurique? Só podia ser porque não queria que em momento algum se
fizesse a associação dele à GreenNaturae, fundada pela vítima.”
Incrédulo, o investigador da Judiciária questionou diretamente o
diretor do Oceanário.
“O senhor está ligado à GreenNaturae?”
Se houvesse ali um buraco, Telles de Menezes ter­-se­-ia enfiado nele.
“Peço desculpa, senhor inspetor, por não lhe ter contado tudo, mas
não quis que me metessem nesta desagradável his­tória da morte de
Noé. Bem vê, há a questão da minha reputação, do importante lugar
que ocupo e...”
“Quero saber a verdade!”, rugiu o inspetor Caparro. “Qual é
exatamente o seu envolvimento com a GreenNaturae?”
“Sou fundador, senhor inspetor”, admitiu em voz baixa. “Conhecia
os senhores Zwiebel e Ambrosini, pois temos todos uma paixão pelos
animais, e recebia­-os nas visitas que faziam ao zoo de Zurique, onde
eu trabalhava na secção dos elefantes tailandeses chamada Kaeng
Krachan. Um dia eles anunciaram­-me que iam abrir uma organização
ambientalista em Lisboa e que precisavam da ajuda de um português.
Eu era o único que eles conheciam. O problema é que o meu trabalho
era em Zurique. Acontece que o senhor Ambrosini, graças aos seus
contactos na banca, mexeu uns cordelinhos no partido do Governo
em Portugal e, por artes mágicas, abriu­-se de repente uma vaga para
mim na direção do Oceanário. Foi assim que vim para este cargo.
Fundámos a GreenNaturae. O meu contributo revelou­-se aliás muito
importante, pois, usando os fornecedores do Oceanário, fui eu que
arranjei uma série de espécimes para o Jardim dos Animais com Alma,
o principal projeto da GreenNaturae.”
“Que o doutor Telles de Menezes também está ligado à
GreenNaturae é evidente pelo nome que os fundadores escolheram
para a organização ambientalista”, observou Tomás. “Green para a
cor dos ecologistas, Naturae para o Librum Naturae, como também
era conhecido o Liber M, o Livro das Maravilhas da Natureza. Se
estavam associados na organização mística, teriam de o estar também
na ambientalista. Os quatro não eram uns ecologistas quaisquer, eram
ecologistas rosacruz. Ou seja, ecologistas com uma visão mística da
natureza.”
Aquela avalancha de revelações deixou o encarregado do inquérito
criminal desanimado. Como era possível que tanta coisa lhe tivesse
passado ao lado?, questionou­-se pela enésima vez. Naquela história
toda gente estava pelos vistos relacionada com toda a gente e ele nada
tinha percebido. Se os seus colegas da Judiciária soubessem daquilo,
seria alvo da chacota geral. Fechou os olhos e massajou o couro
cabeludo com a ponta dos dedos, tentando pôr as ideias em ordem.
“Bem... com tudo isto, em que ficamos?”
Ciente de que o inspetor Caparro estava completamente
ultrapassado pelos acontecimentos e que só ele próprio seria capaz de
desfiar aquele novelo e conduzir a investigação até ao fim, Tomás
respondeu.
“A situação é muito simples”, disse. “Estamos perante quatro
homens que tinham três coisas em comum. A primeira era um enorme
interesse pelas questões da natureza e dos animais. A segunda é que,
por causa disso, os quatro fundaram a GreenNaturae. E a terceira é
que todos pertenciam à mesma sociedade secreta, os rosacruz, cuja
filosofia assenta na divinização da natureza e dos animais, o tal
Astrum de Paracelso cujo segredo está supostamente inscrito no Liber
M dos rosacruz, o famoso Livro das Maravilhas da Natureza.”
“Seja”, concedeu o polícia. “Os quatro têm essas três coisas em
comum. E então?”
O historiador atirou um olhar para o investigador da Judiciária.
Como era possível que um burro daqueles andasse a investigar
homicídios se não percebia aquilo que a ele parecia óbvio?
“Destes quatro homens, um é uma vítima”, afirmou, erguendo o
indicador. Apontou para os suspeitos sentados no átrio do tanque
principal. “O que temos agora a fazer é perceber qual dos três que
sobram é que foi ontem à noite a casa da vítima e a convenceu a vir
aqui ao Oceanário. Ou seja, qual dos três é o assassino.”
O inspetor Caparro bufou de frustração.
“Qual deles é? Desembuche, homem!”
Voltando a abrir o dossiê que encontrara no santuário de Noé
Vandenbosch, Tomás folheou­-o até localizar o trecho que procurava.
Leu em silêncio algumas linhas, para se certificar do seu conteúdo, e
no final encarou o polícia.
“A resposta está aqui.”
.

LVII

Se alguém no átrio do tanque central alguma vez alimentara dúvidas


quanto à capacidade de Tomás Noronha em deslindar aquele mistério,
por esta altura elas já se haviam dissipado por completo. A reforçar a
sua credibilidade estava o dossiê que folheava e que provara constituir
um prodigioso manancial de informação. Se as suas páginas
continham a resposta às perguntas sobre o que acontecera a Noé
Vandenbosch, como o historiador acabara de afirmar, era como se o
crime já estivesse solucionado.
“O quadro geral parece­-me claro”, recapitulou Tomás. “Quatro
homens, unidos pela sua paixão pela natureza e pelos animais,
associaram­-se de duas formas diferentes. Uma foi na fundação de uma
secção da irmandade secreta dos rosacruz, o movimento esotérico que
sacraliza a vida e a natureza. A outra foi na fundação de uma
organização ecologista, a GreenNaturae, com Herr Zwiebel na
liderança e o professor Vandenbosch a encarregar­-se do seu principal
projeto, o Jardim dos Animais com Alma. O signor Ambrosini deu
cobertura financeira e o doutor Telles de Menezes, aproveitando as
suas funções de diretor do Oceanário, utilizou os fornecedores desta
instituição para adquirir grande parte dos espécimes necessários para
os testes cognitivos realizados no Jardim dos Animais com Alma.”
“Tudo isso já eu entendi”, disse o inspetor Caparro, esforçando­-se
por acompanhar o fio da história. “Mas o que aconteceu para que um
deles decidisse matar o professor Vandenbosch?”
A pergunta foi dirigida ao historiador.
“Como já vimos, o dossiê dos rosacruz mostra que a indústria
pecuária é a principal responsável pela emissão de gases com efeito de
estufa”, lembrou. “A produção de animais para a alimentação liberta
quantidades astronómicas de dióxido de carbono, metano e óxido
nitroso, na verdade quantidades superiores às emitidas conjuntamente
por todos os automóveis, barcos, comboios e aviões existentes no
planeta. Ou seja, a agricultura é a maior causadora das alterações
climáticas na Terra. No entanto, e como o próprio senhor já observou,
poucos são os que falam nisto. As atenções do público e dos políticos
permanecem centradas nos combustíveis fósseis e há um estranho
silêncio em torno do problema da indústria animal.”
“É verdade”, constatou o homem da Judiciária, quase aliviado por
naquela investigação ter conseguido ser certeiro numa pergunta.
“Como se explica isso?”
A atenção do historiador regressou ao documento que man­tinha nas
mãos, e em particular ao trecho que havia já loca­lizado.
“Os autores deste dossiê também se interrogaram sobre essa questão
e puseram­-se a investigar. Contactaram uma série de organizações
ambientalistas e começaram por lhes fazer perguntas gerais sobre o
que causava as alterações climáticas. Os ecologistas desataram a
perorar sobre o dióxido de carbono emitido pelos automóveis, pelos
aviões, pelas centrais a carvão... enfim, toda essa conversa a respeito
do petróleo, do gás e do carvão. Note­-se que tudo o que disseram é
verdadeiro. Os combustíveis fósseis emitem de facto gases com efeito
de estufa que provocam alterações climáticas. Mas como em toda
aquela conversa ninguém mencionava sequer o problema da indústria
pecuária, os autores do dossiê acabaram por lhes fazer diretamente a- ­
pergunta.”
“E... e como reagiram os ecologistas?”
Tomás lançou um novo olhar para as linhas do documento, como se
se quisesse certificar de que o que havia lido antes ainda se encontrava
lá escrito.
“Embaraço. Total embaraço.”
“Como assim, embaraço? O que disseram eles?”
“Uma perita do Natural Resources Defense Council, uma
importante organização ambientalista americana, afirmou que se
tratavam apenas de uns peidos de vaca que libertavam metano,
enquanto o diretor­-adjunto do Sierra Club, outra importantíssima
organização ambientalista dos Estados Unidos, desvalorizou
totalmente o contributo da agricultura para as alterações climáticas.
Já a Greenpeace, informada previamente sobre o assunto pelo qual
estava a ser contactada, nunca chegou a aceitar conversar com os
autores do dossiê.”
Tudo aquilo era surpreendente.
“Mas... como se explica isso?”
O historiador encarou fixamente o inspetor Caparro.
“Imagino que o senhor seja polícia de investigação criminal há já
alguns anos”, observou. “Quando ocorre um homicídio planeado
entre os homens, quais são em geral as causas?”
“Oh, essa é simples. Mulheres.”
Disse­-o com ar de grande entendido e Tomás quase suspirou de
exasperação. Que raio de polícia era aquele que lhe havia caído na
rifa?
“Com exceção da minha, o senhor vê alguma mulher metida nesta
história?”
“Uh... não.”
“Então se tirarmos as mulheres da equação, qual é a causa
dominante de homicídios planificados entre homens?”
O investigador da Judiciária coçou o couro cabeludo.
“Bem... só estou a ver o dinheiro.”
Ao historiador só faltou olhar para cima e agradecer aos Céus por o
agente encarregado daquele inquérito criminal acertar enfim em
alguma coisa.
“Claro que é o dinheiro, inspetor!”, exclamou. “Que outra coisa
poderia ser?”
“Está a dizer que as organizações ecologistas são pagas para estarem
caladas?
“Estou a dizer que há muito dinheiro em jogo”, precisou Tomás,
ciente de que tinha de ser cuidadoso com as palavras. “O senhor
imagina o volume de dinheiro envolvido na indústria pecuária
mundial? A produção de gado, a produção de suínos, a produção de
aves, a produção de leite e derivados, a produção de ovos, a pesca
industrial... são milhares de milhões de animais e uma indústria
colossal. O senhor tem noção do que está verdadeiramente em
questão?”
“Uma batelada de massa, isso é certo.”
O historiador mostrou­-lhe uma folha do dossiê com uma lista
repleta de nomes.
“Esta é a relação de todas as organizações ambientalistas que, direta
ou indiretamente, recebem dinheiro da indústria pecuária. Ora veja lá
se falta alguma.”
O polícia espreitou a lista.
“C’os diabos! Estão cá todas!”
Tomás folheou o documento e procurou um outro trecho situado no
final.
“O inspetor lembra­-se decerto daquilo que lhe revelei sobre os
gravíssimos danos ambientais provocados pela indústria de produção
animal, não é verdade? Recorda­-se sem dúvida da guerra de
extermínio decretada direta ou indiretamente pelo Homem contra
todas as espécies de vida existentes no nosso planeta, tanto em terra
como no mar.”
“Claro.”
“Mas também não se esquece dos grandes discursos dos governantes
em defesa do meio ambiente, a prometerem medidas rigorosíssimas
para enfrentar o problema e a assinarem gran­diosos tratados de
proteção da natureza, todos a chorarem lágrimas piedosas pelas
alterações climáticas e a introduzirem o tema da ecologia nos
programas eleitorais e governamentais logo que os partidos verdes
começaram a ter mais votos. Lembra­-se disso tudo, correto?”
“Sim, homem, sim!”, enervou­-se o polícia, a sua proverbial
impaciência a manifestar­-se de novo. “Onde quer chegar com isso?”
Tomás apontou para as linhas finais do documento que tinha nas
mãos, repletas de números e cifrões.
“Quero chegar ao dinheiro”, disse. “Olhe para o caso da pesca. A
vida marinha está a ser devastada pelas frotas pesqueiras a um ritmo
tal que se pesca muito mais depressa do que os peixes se reproduzem.
Poderíamos presumir que isto é feito por ser muito lucrativo. Nada
mais falso. A verdade, e isso não é contado a ninguém, é que mais de
metade da pesca em alto mar dá prejuízo.”
“Prejuízo?”, estranhou o inspetor Caparro. “Então por que razão
continuam a pescar?”
“Boa pergunta.” Apontou para uma linha do documento. “A
resposta está aqui e tem um nome. Chama­-se subsídios. Governos de
todo o mundo estão a subsidiar em massa as suas frotas para que
pesquem sempre mais e mais. Na verdade, 54 por cento da indústria
pesqueira em águas internacionais não seria lucrativa se não fosse os
enormes subsídios que recebe. O maior subsidiador do mundo das
frotas pesqueiras é o Japão, seguido de Espanha e depois da China, da
Coreia do Sul e dos Estados Unidos. A União Europeia chega até a
subsidiar frotas que violam as quotas de pesca que a própria União
Europeia estabelece, veja lá! Ou seja, os políticos têm a boca cheia de
palavras bonitas sobre a defesa do ambiente e assinam lindíssimos
acordos internacionais para proteger o planeta, mas é tudo conversa
para ganharem votos porque à sorrelfa subsidiam a devastação dos
mares. O esquema dos subsídios à pesca é tão generoso que Bruxelas
chegou a classificar formalmente os caracóis como sendo peixe só para
que os produtores franceses de caracóis ganhassem uns
subsidiozinhos...”
“C’um caneco!”
“O cúmulo são as promessas solenes de combater o aquecimento
global”, acrescentou Tomás. “Os governos culpam exclusivamente o
carvão, o gás e o petróleo e andam a convencer­-nos a mudar para
carros elétricos e a poupar água quando tomamos banho e lavamos os
dentes, e a mudar para lâmpadas fluores­centes e mais não sei quê.
Acontece que há estudos que indicam que a produção de animais para
consumo é responsável pela emissão de mais de metade dos gases com
efeito de estufa que provocam o aquecimento global. Ou seja, a
indústria de produção animal tem um maior impacto nas alterações
climáticas do que os combustíveis fósseis. Perante esta realidade, o que
fazem os governos? Subsidiam a produção animal.”
O investigador da Judiciária pestanejou.
“Está a brincar...”
“Vá ver os orçamentos dos diversos países e ficará esclarecido. Só a
União Europeia, por exemplo, dá diretamente aos produtores de carne
uns trinta mil milhões de euros por ano. Não é dinheiro para a saúde
dos europeus, não é dinheiro para a ciência, não é dinheiro para a
segurança social. São subsídios diretos para aumentar a emissão de
gases com efeito de estufa! Compreende o absurdo disto? Vinte por
cento do orçamento total da União, entidade que se diz muito
preocupada com as alterações climá­ticas, é gasto na indústria pecuária
que comprovadamente provoca o aquecimento do planeta.”
O inspetor Caparro abanou a cabeça.
“Só esquemas, só esquemas...”
“Nos Estados Unidos é a mesma palhaçada. A agricultura americana
é financiada por um emaranhado complexo de subsídios que só um
entendido compreende. Para que tenha uma ideia, dou­-lhe um
exemplo. Graças aos esquemas de subsídios, os produtores do Central
Valley gastam vinte por cento da água de toda a Califórnia mas só
pagam dois por cento do que cada consumidor californiano paga.
Percebe? Os poluidores são subsidiados para poluir! Por um lado os
governos recomendam que se consumam menos alimentos com
colesterol e gordura saturada, por outro os mesmos governos
subsidiam a produção de carne, ovos e laticínios, os alimentos que
mais colesterol e gordura saturada contêm. Um contrassenso absoluto.
No total, os subsídios para a produção industrializada de animais
ascendem na América a quase quarenta mil milhões de dólares por
ano. Sem esses subsídios, grande parte destas produções responsáveis
pela emissão de gases com efeito de estufa dariam prejuízo e,
consequentemente, teriam de fechar. Se fechassem, acabaria o
principal incentivo para a destruição das florestas e da poluição dos
ecossistemas e diminuiria a emissão dos gases que provocam o
aquecimento global. Graças aos subsídios, no entanto, essas atividades
não só não são combatidas como são incremen­tadas. Ou seja, os
governos não se limitam a tolerar as atividades que geram alterações
climáticas. Os governos encorajam­-nas!”
Fechando o documento que tinha nas mãos, Tomás deu por
concluída a apresentação do essencial do conteúdo do dossiê que
encontrara no santuário de Noé. O responsável pelo inquérito
criminal olhou­-o com uma expressão vazia, como se esperasse mais.
“Tudo isso é extraordinário”, declarou por fim o inspetor Caparro.
“Mas, diga­-me, o que tem isso a ver com o homicídio do professor
Vandenbosch?”
Não se podia dizer que a pergunta surpreendesse Tomás. O seu
interlocutor estava já na posse de todos os dados necessários para a
compreensão do que acontecera a Noé. As suas capacidades de
dedução e de relacionamento dos factos, contudo, deixavam muito a
desejar para um profissional com as suas responsabilidades.
“Ainda não percebeu, inspetor?”, questionou o historiador. “As
descobertas feitas no Jardim dos Animais com Alma começaram a
perturbar interesses poderosos.”
“Que interesses?”
Sozinho o polícia não ia lá, percebeu Tomás. Seria realmente
necessário explicar­-lhe tudo em pormenor.
“Que interesses haveriam de ser?”, questionou em tom retórico.
“Que descobertas estava o professor Vandenbosch a fazer no Jardim
dos Animais com Alma?”
“Sei lá.”
Como era possível que aquele idiota encartado estivesse a investigar
a morte do etólogo belga e nem sequer se tivesse dado ao trabalho de
conhecer as pesquisas científicas que a vítima estava a levar a cabo na
sua propriedade em Sintra?
“O Jardim dos Animais com Alma era um projeto destinado a
pesquisar as capacidades cognitivas dos animais”, lembrou. “A sua
inteligência, as suas capacidades de comunicação, as suas emoções...
tudo. O professor Vandenbosch acreditava que todas as competências
humanas são oriundas da evolução e estava a fazer um conjunto de
descobertas que mostravam que tudo o que nós fazemos, mesmo as
coisas mais complexas como o cálculo matemático e a capacidade
artística, pode ser encontrado nos animais. Não somos uma exceção
no reino animal, fazemos parte da regra. A consequência desta
descoberta é que os animais também têm as competências que nós
temos. Têm consciência, têm capacidade de amar, sentem­-se tristes,
sentem dor, sentem raiva, têm sentido de justiça, apreciam a beleza...
na verdade têm tudo o que nós temos, só que em graus distintos.”
“E então?”
Mais um esforço de Tomás para não revirar os olhos.
“A indústria pecuária, inspetor, anda a produzir e a matar milhares
de milhões de animais da forma mais cruel que se possa imaginar sob
o argumento behaviorista e cartesiano de que os animais não passam
de autómatos. Mais, argumentam até que eles nem sequer sofrem.
Quando um porco guincha ao espetarem­-lhe uma faca no matadouro
ou um peixe dá saltos ao sentir um gancho atravessar­-lhe a boca, isso
não passa de uma simples reação mecânica. Mas as descobertas do
professor Vandenbosch estão a mostrar o contrário. Eles pensam, eles
sentem, eles sofrem, eles amam, eles desesperam, eles enlouquecem. O
que acha que a poderosa indústria pecuária, com o apoio camuflado
de governos que pregam uma coisa em público e fazem o seu contrário
em privado, pensa destas descobertas?”
Foi como se esta pergunta tivesse acendido nos olhos do inspetor
Caparro uma luz de compreensão.
“Ah!”
Já era hora!, teve Tomás vontade de lhe dizer na cara. Mas por
muito forte que fosse a tentação, a diplomacia e o bom senso
prevaleceram. Virou­-se para o banqueiro.
“Conte lá, signor Ambrosini”, interpelou­-o. “Que pressões sofreu o
senhor para pôr fim ao projeto do Jardim dos Animais com Alma?”
O italiano estremeceu de indignação.
“Che cazzo! O que está a insinuar?”
“Vá lá, não se faça de desentendido. O senhor abraçou com
entusiasmo o projeto científico da GreenNaturae e aceitou financiá­-lo.
Convenceu mesmo os seus parceiros a virem para Portugal, de modo a
beneficiar das vantagens fiscais aqui existentes. À custa do seu
financiamento, o professor Vandenbosch comprou uma propriedade
em Sintra e o doutor Telles de Menezes ajudou a arranjar os animais.
O Jardim dos Animais com Alma iniciou atividade, o professor
Vandenbosch começou a fazer descobertas extraordinárias no âmbito
da cognição animal, estava tudo a correr às mil maravilhas quando, de
repente, assim sem mais nem menos, tudo mudou. O senhor cortou
bruscamente o finan­ciamento, acusou o pobre do professor
Vandenbosch de faltar aos pagamentos, meteu o caso em tribunal e
levou­-lhe os animais, pondo assim um fim efetivo ao projeto. O que
diabo se passou que o levasse a proceder desse modo tão inesperado?”
“O projeto era caríssimo e ele não pagou o que devia ao banco.”
“Ora ora, signor Ambrosini. O custo do projeto já o senhor
conhecia desde o início. Julga que não sei que, por causa do apoio ao
Jardim dos Animais com Alma, o seu banco ganhava uma boa maquia
em poupanças fiscais à luz da lei do mecenato e dos benefícios fiscais
para investimento estrangeiro? Além do mais, a minha mulher ouviu­-o
dizer ao professor Vandenbosch que ele tinha ido longe demais e que
precisava de mudar de projeto. Essas palavras, escutadas pela minha
mulher e reproduzidas quando foi hoje interrogada pelo inspetor
Caparro, mostram que os pagamentos não eram o verdadeiro
problema e que o senhor estaria disposto a financiar qualquer outro
projeto. Financiava tudo. Tudo, exceto aquele projeto específico.
Tudo, exceto a pesquisas sobre a cognição animal. Porquê? O que
tinha o professor Vandenbosch descoberto que fosse assim tão
incómodo? E incómodo para quem?”
O banqueiro remexeu­-se no seu lugar, desconfortável e sem saber
exatamente o que responder. A sua hesitação traiu­-o, como depressa
se apercebeu.
“Va bene, reconheço que sofri pressões por causa deste maldito
projeto”, acabou por conceder. “Bem vê, o meu banco tem
importantes clientes na área da pecuária e da indústria farmacêutica
e... enfim, ficou claro que as pesquisas no Jardim dos Animais com
Alma tinham o potencial de criar complicações muito sérias. Como se
continuariam a testar medicamentos em animais se se chegasse à
conclusão de que eles têm sentimentos, exatamente como nós? Até que
ponto o público iria continuar a comer vacas, porcos e galinhas se se
descobrisse que esses animais são inteligentes, carinhosos e
emocionais, e que toda a carne que nós comemos vem de animais que
sofreram imenso durante a sua curta vida e ao serem mortos? As
descobertas do Noé tinham o potencial de pôr em causa todo esse
imenso negócio, como é evidente. Quando perceberam o que as
experiências do Noé estavam a revelar sobre os animais, os clientes
mais importantes do meu banco encostaram­-me à parede. Ou acabava
com essas pesquisas ou perdia metade da clientela. Mais, ameaçaram
financiar uma campanha contra o meu banco. Conduzir­-nos­-iam à
ruína. Perante isso, o que podia eu fazer? Tive de falar com o Noé,
como é evidente.”
“Como correu essa conversa?”
“Expliquei­-lhe a situação e disse­-lhe que estava na hora de se dedicar
a outra coisa. Há imenso para fazer nesta área, não é verdade? Só que,
mamma mia!, ele era um stronzo, um cocciuto, um... um casmurro.
Não queria ouvir. Disse que não e não e não. Não queria saber dos
protestos nem das ameaças, estava­-se nas tintas. Ele era um cientista e
se as suas pesquisas ajudassem a dar cabo do negócio da criação e
matança dos animais, tanto melhor.”
“E o senhor?”
“Eu? Fiz o que tinha de fazer, claro”, admitiu. “Tirei­-lhe o tapete de
baixo dos pés. Mandei executar a dívida e fiquei­-lhe com os animais,
que despachei logo para o laboratório e para o matadouro. Mamma
mia! Sei que foi uma coisa horrível, claro. Ainda esta noite tive um
pesadelo por causa disso. Mas... compreenda a minha posição. Não
tinha alternativa. O negócio do banco não podia ir abaixo só por
causa do projeto do Noé. Tive de atuar.”
O olhar de Tomás regressou, expectante, ao inspetor Caparro.
“Percebeu, inspetor?”
Pegando nas algemas, o investigador da Judiciária encaminhou­-se
para o banqueiro.
“É então este o facínora que limpou o sebo ao...”
O historiador agarrou­-o pelo braço, travando­-o.
“Não, inspetor!”
O inspetor Caparro olhou para Tomás, desconcertado.
“Também não é ele?”
“Não disse que é nem que não é”, foi a resposta de Tomás.
“Limitei­-me a perguntar­-lhe a si se percebeu agora o que acon­teceu
para que se matasse o professor Vandenbosch.”
O polícia parecia claramente desorientado com toda a história.
“Uh... não.”
Aquele inspetor era definitivamente um caso perdido, confirmou o
historiador. Respirou fundo e encarou os três suspeitos, todos numa
posição visivelmente incómoda perante os sucessivos factos que se
alinhavam contra eles.
“Vou então revelar­-lhe o resto.”
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LVIII

A tensão aproximava­-se do seu apogeu no átrio do tanque central do


Oceanário. O olhar indeciso do responsável pelo inquérito da
Judiciária pousou sucessivamente em cada um dos três suspeitos.
Dorian Zwiebel, o diretor da GreenNaturae. Telles de Menezes, o
diretor do Oceanário. Gianpaolo Ambrosini, o diretor do banco. A
acreditar nas palavras do historiador, um deles havia assassinado o
professor Noé Vandenbosch. Mas qual? Todos lhe pareciam inocentes,
todos podiam ser culpados, só um o era realmente.
Preparando­-se para desferir a estocada final, Tomás abeirou­-se dos
três e encarou­-os.
“Tudo está agora muito claro”, começou por dizer. “O Jardim dos
Animais com Alma era um projeto inconveniente para a indústria
farmacêutica e sobretudo para a indústria pecuária, pois punha em
questão toda a visão dos animais como meros robôs biológicos. Se o
professor Vandenbosch provasse com as suas experiências no Jardim
dos Animais com Alma que os animais não são afinal os autómatos
insensíveis que até aqui os carte­sianos e os behavioristas descreviam,
mas seres inteligentes e com sentimentos, exatamente como nós, como
poderiam os consumidores continuar a comê­-los?”
“Ou seja, era imperativo acabar com esta pesquisa”, observou o
investigador da Judiciária. “Essa parte compreendi.”
Tomás teve vontade de bater palmas ao polícia, mas conteve­-se.
“Este problema entra na GreenNaturae pela mão do diretor do
banco que financiava o projeto, pois foi sobre ele que a indústria
pecuária exerceu pressão direta. O signor Ambrosini, como ele
próprio nos revelou, foi falar com o professor Vandenbosch, que lhe
deu uma nega.” Encarou diretamente o banqueiro. “A questão agora é
esta, signor Ambrosini. Tendo levado uma tampa do responsável pelo
projeto, o que fez o senhor antes de acionar os mecanismos judiciais?
Decidiu agir sem dar cavaco a ninguém? Ou... ou foi falar com mais
alguém? E com quem, se não é indiscrição?”
O olhar de Tomás desviou­-se de imediato para Dorian Zwiebel e
Telles de Menezes, insinuando claramente o envolvimento dos
restantes fundadores da GreenNaturae. Desconfortável, Ambrosini
espreitou de relance os outros dois suspeitos, quase como se lhes
pedisse desculpa pelo que se via forçado a revelar.
“Sim, é verdade”, reconheceu o banqueiro a contragosto, ciente de
que ninguém acreditaria se dissesse que não contactara os restantes
parceiros da organização para tentar resolver o problema. “Fui falar
com os meus colegas, claro. Expliquei­-lhes o que se estava a passar.
Ou o projeto acabava ou acabava o banco, pois não conseguiríamos
sobreviver a um levantamento em massa de todo o dinheiro que as
grandes empresas pecuárias e farmacêuticas nos haviam confiado em
depósito. E se sobrevivêssemos à perda desses clientes, não
sobreviveríamos à campanha que montariam contra o banco.”
“Para ser sincero, não gostei de ouvir o que o Ambrosini me
contou”, apressou­-se Zwiebel a esclarecer. “Opus­-me logo! Disse­-lhe
que nem pensasse em obstruir a investigação científica! Impensável!”
“Eu também!”, secundou Telles de Menezes. “Uma interfe­rência
dessas é totalmente contra os meus princípios!”
Os dois homens multiplicaram­-se em declarações de distanciamento
em relação ao banqueiro, quase como se este tivesse peste, e
Ambrosini encolheu­-se no seu lugar; era ele naquele momento o
patinho feio da conversa.
Quando os diretores da GreenNaturae e do Oceanário por fim se
calaram, Tomás voltou a intervir.
“Todos protestaram, sem dúvida, mas... sejamos sinceros. Quando
chegou a hora da verdade, o facto é que ninguém mexeu um dedinho
que fosse para salvar o Jardim dos Animais com Alma.”
“É falso!”, contestou Zwiebel. “Eu arranjei dinheiro para salvar a
propriedade! Decidi aplicar nisso o fundo de maneio da
GreenNaturae. O Noé até me agradeceu!” Apontou para Tomás. “Isso
aconteceu à frente da sua mulher. Ela é testemunha. Pergunte­-lhe e
verá.”
“Não se faça de desentendido, Herr Zwiebel”, retorquiu o
historiador. “O que fazia do Jardim dos Animais com Alma um
projeto científico não era a propriedade em si, como é evidente, mas
os animais que lá estavam. E para os salvar o senhor não arranjou
nem um tostão.”
“Não tinha o dinheiro necessário, pois estamos a falar de valores
muito elevados.”
“Não tinha era vontade de salvar o projeto!”, cortou Tomás, a voz
de repente chispante. “Fez jogo duplo nessa conversa! Dava umas
palmadinhas nas costas do professor Vandenbosch e prometia­-lhe
dinheiro para salvar a propriedade, mas quanto aos animais... ’tá
quieto!”
“Ora essa!”, protestou o suíço. “Porque haveria eu de querer o fim
do projeto?”
“Porque a falência do banco ou a sua saída do negócio signi­ficaria
que a GreenNaturae deixaria de ter financiador. Sem financiador não
haveria dinheiro e sem dinheiro a GreenNaturae teria de fechar
portas. A verdade é que a indústria pecuária era, por intermédio do
banco, a verdadeira dona da GreenNaturae. Não se esqueça de que foi
com os financiamentos à socapa que a indústria pecuária comprou o
silêncio de muitas organizações ecologistas sobre o importantíssimo
papel da produção animal na emissão de gases que provocam o
aquecimento do planeta, como o dossiê que vos mostrei demonstra. A
GreenNaturae não constitui nenhuma exceção. Se a indústria pecuária
silenciou os outros ecologistas, porque não iria silenciar o projeto do
professor Vandenbosch? O Jardim dos Animais com Alma nunca teve
verdadeiramente qualquer hipótese. A partir do momento em que
começou a demonstrar que a diferença dos animais em relação aos
seres humanos não é de categoria mas apenas de grau, o projeto
tornou­-se demasiado incómodo, perigoso até, e ficou com o destino
traçado.”
“Não me deixo comprar!”
“O senhor já estava comprado, Herr Zwiebel.” Apontou para o
banqueiro. “Como comprado estava o signor Ambrosini.” Apontou a
seguir para o diretor do Oceanário. “E também o doutor Telles de
Menezes. Todos comprados!”
O responsável do Oceanário de Lisboa fez um ar escan­dalizado.
“Eu?!”
“Não se faça de santinho que não tem jeito para isso”, atirou Tomás
para Telles de Menezes. “O senhor é um manhoso que anda aqui a
tentar passar por entre os pingos da chuva, mas está com azar.
Encontra­-se tão metido nesta história como qualquer um dos seus
comparsas!”
“Não lhe admito isso, ouviu? Não lhe admito isso!”
A reunião parecia prestes a degenerar numa confusão.
“Silêncio! Silêncio!”, interveio o inspetor Caparro, pondo ordem nos
procedimentos. Ainda se trocaram algumas palavras a quente, pois os
ânimos estavam exaltados e não era possível esfriá­-los de um
momento para o outro, mas o ambiente acabou por serenar e, quando
isso aconteceu, o polícia encarou Tomás. “O professor Noronha está a
afirmar que os três suspeitos se encontram todos metidos nisto? Os
três?”
“Claro que estão todos metidos”, foi a resposta pronta. “Para um
deles estava em causa a sobrevivência do seu banco, para os outros
dois o que se encontrava em questão era a sobrevivência da
GreenNaturae e dos belos salários que nela auferiam.”
O diretor do Oceanário pôs­-se de pé num salto.
“Protesto!”, clamou, tremendo de indignação. “Essas insinuações
são intoleráveis! Não vou permanecer aqui nem mais um segundo a
aturar esta...”
“Sente­-se!”, rugiu o inspetor Caparro, apontando veementemente
para a cadeira de onde ele se levantara. “Eu é que decido quando é
que isto acaba e como!” Logo que Telles de Menezes se voltou
obedientemente a sentar, o polícia virou­-se mais uma vez para o
historiador. “Professor Noronha, prossiga.”
“O signor Ambrosini manobrou os acontecimentos para pôr fim ao
Jardim dos Animais com Alma, contando para isso com a passividade
cúmplice de Herr Zwiebel e do doutor Telles de Menezes. Os animais
foram vendidos para um laboratório e para um matadouro, e o
projeto do professor Vandenbosch conheceu assim o seu epílogo. Fim
da história.”
O homem da Judiciária alçou uma sobrancelha.
“Fim da...? Então e o homicídio?”
“Nunca fez parte do plano”, esclareceu o historiador. “A ideia foi
sempre acabar com o projeto. Nada mais.”
“Pois, mas o professor Vandenbosch está agora na morgue...”
“Porque aconteceu um imprevisto.” Voltou­-se para o diretor do
banco. “Não é verdade, signor Ambrosini?”
O italiano corou.
“Não sei do que o senhor está a falar.”
Os lábios de Tomás curvaram­-se num leve sorriso sem humor.
“Então não sabe?”, questionou. “Sabe, sabe. O imprevisto foi a
reação do professor Vandenbosch. Em vez de ficar a chorar e a
lamentar­-se, como julgavam que ele iria fazer, o tipo decidiu reagir.
Com essa é que ninguém contava, hem? O homem era mais teso do
que pensavam.”
Constatando o embaraço do suspeito, o inspetor Caparro sentiu­-se
curioso.
“O que fez o professor Vandenbosch?”
A resposta de Tomás veio seca, quase como se o estivesse a informar
do valor em que o índice Dow Jones fechara na véspera.
“Assaltou o banco do signor Ambrosini.”
O polícia arregalou os olhos.
“O quê?!”
O historiador encarou o inspetor Caparro.
“Sempre me intrigou que o signor Ambrosini nunca tivesse
apresentado queixa à polícia”, observou. “Então alguém entra no
banco, penetra furtivamente no gabinete dele, ainda por cima abre o
cofre e retira documentos secretos do interior... e o s­ ignor Ambrosini
não se queixou à polícia?!”
O diretor do banco piscou os olhos com um tique nervoso.
“O Noé era um amigo”, alegou. “Não o podia denunciar, como
deve compreender.”
“Se o senhor faz aos seus amigos o que fez ao professor
Vandenbosch, signor Ambrosini, nem quero imaginar o que fará aos
seus inimigos”, ironizou Tomás. “Vá lá, não faça de mim parvo. Se
não apresentou queixa à polícia é porque não podia apresentar. E
porque não? Porque o professor Vandenbosch tirara do cofre algo que
o comprometia gravemente a si, à GreenNaturae e a toda a indústria
pecuária.” Ergueu no ar a resma de folhas que tinha nas mãos como se
exibisse uma prova em tribunal. “O dossiê dos rosacruz.”
O banqueiro permaneceu hirto e em silêncio, sem saber como
responder; dir­-se­-ia uma criança apanhada em flagrante com a mão
mergulhada na caixa dos chocolates.
Acabou por ser o inspetor Caparro a tomar a palavra.
“Esse documento é embaraçoso, sem dúvida”, disse o polícia.
“Mas... em que compromete ele o senhor Ambrosini?”
“O dossiê põe gravemente em causa a indústria pecuária. Se os
industriais já estavam aborrecidos com as pesquisas cognitivas levadas
a cabo no Jardim dos Animais com Alma, imagine como não reagiram
eles quando viram este documento a sistematizar todas as pesquisas
que mostravam as responsabilidades da sua indústria no aquecimento
global?”
“Mas qual era o problema? O dossiê não se encontrava guardado no
cofre do banco?”
A burrice do inspetor Caparro estava a deixar Tomás à beira de um
ataque de nervos.
“Estava no cofre e não sairia lá porque o signor Ambrosini não se
podia dar ao luxo de pôr em perigo o negócio dos seus clientes”, disse,
expondo o óbvio. “O imprevisto foi que o professor Vandenbosch lhe
deitou a mão. Estamos a falar de um homem que não cedia a pressões
nem fazia compromissos na defesa do meio ambiente e da vida
animal. Na posse de uma coisa tão escandalosa como esta, um
documento que, para além de provar o enfeudamento da
GreenNaturae à indústria pecuária, mostrava o papel da indústria de
produção de carne, ovos e leite na poluição do planeta, na destruição
das florestas, no esvaziamento dos aquí­feros, no envenenamento dos
mares e dos solos e no aquecimento global, todos perceberam que era
uma questão de tempo até que o professor Vandenbosch pusesse o
dossiê cá fora para o público ver. Tornou­-se imperativo impedir uma
coisa dessas.”
“Alto lá e para o baile!”, interrompeu­-o o inspetor Caparro. “Está a
dizer que o professor Vandenbosch morreu por causa desse... desse
documento?”
Uma pergunta destas feita num momento tão tenso como aquele
quase fez Tomás rir.
“Ó inspetor, o senhor é um génio!”, exclamou ele, já incapaz de
resistir ao sarcasmo. “Um génio!”
Intuindo que o historiador troçava dele, o polícia esboçou com a
mão um gesto imperial, como um sinaleiro a mandar os
automobilistas prosseguirem.
“Adiante, adiante.”
Tomás voltou a encarar os três suspeitos, todos eles já com ar muito
comprometido.
“As circunstâncias mudaram”, disse. “Havia agora que silenciar o
caso. Nenhum dos três comparsas nem os seus patrocinadores da
indústria pecuária tinham a menor dúvida de que o professor
Vandenbosch iria publicar o dossiê. Portanto, silenciar o caso
significava silenciar o professor Vandenbosch. Ou seja, matá­-lo.
Faltava saber quem o faria, quando e como.”
Calou­-se por um longo momento, a fitar cada um deles. Esperava
que pelo menos um se descaísse, mas todos permaneceram em silêncio,
os olhos baixos, os lábios apertados.
“Então?”, interveio o inspetor Caparro, sempre impaciente. “Quem
matou afinal o professor Vandenbosch?”
Plantado no átrio diante dos três suspeitos, Tomás cruzou os braços.
A hora da revelação tinha chegado. Atirou ao investigador da
Judiciária um olhar encharcado de malícia, como se o provocasse.
“Não é tão evidente?”
LIX

Nas mãos de Tomás Noronha, o dossiê que Noé Vandenbosch


subtraíra ao banco parecia transformado numa verdadeira arma. De
tal modo era assim que os três suspeitos mal conseguiam tirar os olhos
dele, quase como se receassem que o historiador o usasse como objeto
de arremesso para os atingir fisicamente.
“Todos sabiam que o tema da tese de doutoramento do professor
Vandenbosch eram as orcas, conhecidas em inglês por killer whales,
baleias­-assassinas”, lembrou Tomás. “Foi esse o ponto de partida para
a armadilha que lhe foi montada. O comando das operações passou a
ser assumido por um dos comparsas.” Apontou para um dos
suspeitos. “O doutor Telles de Menezes.”
O diretor do Oceanário virou a cara enfadada para o lado, fixando
os olhos nos animais que deambulavam para lá do grande vidro do
tanque central.
“Recuso­-me a ouvir estas atoardas difamatórias.”
“A armadilha tinha de envolver uma orca porque todos sabiam que
o professor Vandenbosch não resistiria a vir socorrer alguma delas que
pudesse estar em perigo. A sua tese de doutoramento havia­-o ligado
profundamente a esses animais. Na qualidade de diretor do
Oceanário, o doutor Telles de Menezes contactou os fornecedores
habituais da instituição e pediu­-lhes que comprassem com urgência
uma determinada orca, pois precisava de uma nova atração para o
parque marinho de Lisboa.”
Neste ponto, o responsável pelo Oceanário não resistiu a ­intervir.
“Sim, está bem, é verdade que mandei comprar uma orca”, admitiu
Telles de Menezes. “Mas... e então? Para sua informação, as orcas têm
uma simpatia especial pelos seres humanos. Percebeu? O nome inglês
que o senhor mencionou, baleias­-assassinas, deve­-se unicamente à
forma feroz como elas atacam as baleias, os leões marinhos e as focas.
Não os homens. Nunca uma orca em liberdade matou um único ser
humano. Sabia disso? Chamamos­-lhes baleias­-assassinas, mas
sublinho que, no mar, nunca as orcas selvagens mataram uma pessoa
que fosse. Bem pelo contrário. São supersimpáticas connosco, tão
simpáticas quanto os golfinhos. Aliás, se se tivesse dado ao trabalho
de ler a tese de doutoramento do professor Vandenbosch teria
percebido que ela incide justamente sobre a forma benévola como as
orcas encaram os seres humanos.”
“Benévola?”
“Sim, benévola. Devo informá­-lo de que as orcas têm a área do
cérebro adjacente ao sistema límbico, a que processa as emoções,
ainda mais desenvolvida do que os seres humanos. É por isso que
muitos etólogos acreditam que estes animais são mais sociáveis e têm
uma vida emocional mais rica do que a nossa. Por exemplo, quando
estava à procura de orcas no estreito de Juan de Fuca, sem GPS e
apenas a orientar­-se por bússola, o professor Vanden­bosch viu a sua
lancha envolvida por um manto de nevoeiro tão denso que ele deixou
de destrinçar o que quer que fosse. Tendo de sair dali, o professor
Vandenbosch fiou­-se na bússola e avançou numa determinada direção
a uma velocidade de quinze nós. Ao fim de cinco minutos, orcas
provenientes de todos os lados concentraram­-se em frente à proa
como se quisessem formar um obstáculo diante da embarcação para
impedir que ela continuasse a avançar na direção que havia tomado.
Vendo a barreira de orcas, o professor Vandenbosch imobilizou a
lancha. As orcas puseram­-se então a navegar noutra direção, sempre
perto da proa, como se o convidassem a segui­-las, e ele foi atrás delas.
Cobriram assim quinze milhas náuticas, até que o nevoeiro se
levantou e o professor Vandenbosch viu a ilha de San Juan à frente
dele. As orcas tinham­-no guiado por águas traiçoeiras e contornado as
ameaças para o encaminhar para porto seguro. Ou seja, elas
perceberam que o professor Vandenbosch não conseguia ver nada e
estava em perigo, pelo que o ajudaram a salvar­-se.”
“Isso aconteceu mesmo?”
É
“É uma de muitas histórias relatadas na tese de doutoramento do
professor Vandenbosch, a maior parte envolvendo socorro prestado
por orcas a pessoas em dificuldades. Quando os etólogos lhes dão
nomes individuais e depois as chamam, aquela que foi chamada
reconhece o seu nome e vai individualmente ter com o etólogo.
Entende o que isto significa? Elas são inteligentes e gostam de nós.
Alguns episódios referidos na tese revelam até o interesse das orcas
por música. Durante um ataque ferocíssimo de orcas a leões­-marinhos
numa praia da Argentina, por exemplo, no meio de toda aquela
selvajaria houve um guarda florestal que entrou na água a tocar
harmónica. As orcas pararam imediatamente a matança dos leões­-
marinhos e puseram­-se à volta do guarda a escutar. Outras histórias
abordam o seu sentido de humor. Um cientista na Antártida, por
exemplo, atirou uma pequena bola de neve contra uma orca. Sabe o
que fez ela? Lançou um pequeno pedaço de gelo contra o cientista.
Pôs­-se a brincar com ele, como se jogassem à bola. Noutros casos
cooperam ativamente com seres humanos. A tese de doutoramento do
professor Vandenbosch relata um caso ocorrido na Austrália. As orcas
arrebanharam no mar alto um grupo de baleias enormes e
empurraram­-nas para a baía de Twofold. A seguir foram ter com os
baleeiros que se encontravam na zona e conduziram­-nos até às baleias.
Quando os baleeiros lançaram arpões contra as baleias, as orcas
abocanharam as cordas dos arpões e puxaram­-nas para travar a fuga
das baleias feridas. Compreende o que elas fizeram? Planearam uma
operação, procuraram ativamente os seres humanos e colaboraram
com eles.”
“Ganharam alguma coisa com isso?”
“Uma vez as baleias mortas, os baleeiros dividiram a comida com as
orcas”, foi a resposta de Telles de Menezes. “O comportamento das
orcas selvagens para com os seres humanos é um grande mistério da
natureza. Elas são absolutamente implacáveis com as baleias, os
leões­-marinhos e as focas, o que lhes valeu o nome de baleias­-
assassinas, mas em relação aos seres humanos declararam
unilateralmente paz. Nem sequer há relato de alguma vez terem virado
um simples kayak. Nada de nada. Nós matamo­-las, destruímos os seus
habitats, poluímos as águas e devastamos as espécies de que elas se
alimentam, condenando­-as desse modo à fome, mas mesmo assim as
orcas não mostram ressentimento nem medo de nós, não ensinam as
suas crias a evitarem­-nos e até nos ajudam e brincam connosco. Que
haja um predador tão perigoso que se aproxima dos seres humanos
sempre que os vê e que nunca magoou no mar sequer uma única
pessoa é algo que nos deve fazer pensar.”
“Pois, tudo bem”, disse Tomás. “Mas onde quer chegar com essa
conversa?”
“O senhor veio para aqui dizer que eu montei uma armadilha ao
professor Vandenbosch e que comprei à pressa uma baleia­-assassina
para que o matasse e não sei mais o quê, mas essa teoria rocambolesca
não tem ponta por onde se lhe pegue porque as orcas, ao contrário do
que o seu nome inglês killing whale sugere, gostam dos seres humanos
e no mar nunca fizeram mal a qualquer pessoa. Nem uma única vez.
Se eu estava mesmo a montar uma armadilha ao professor
Vandenbosch, porque iria usar uma orca?”
As palavras do diretor do Oceanário impuseram um súbito silêncio
no átrio do tanque central. Inseguro, o inspetor Caparro atirou um
olhar irritado na direção de Tomás.
“O professor Noronha tem a mania que é um espertalhão, mas
receio que estes factos tenham acabado de desmontar por completo a
sua mal urdida teoria”, rosnou com sarcasmo. “Afinal não é tão
sabichão como se julga. Devia remeter­-se ao seu trabalho e deixar a
polícia fazer o seu sem ter de andar a lidar com Poirots de pacotilha.”
O historiador olhou­-o de lado, quase como se ele não passasse de
uma mosca incómoda. A seguir encarou Telles de Menezes e indicou
com o polegar o corredor que conduzia ao tanque do Oceano Glacial
Ártico, onde Noé havia morrido.
“Quando hoje vim aqui com a minha mulher colaborar no
inquérito, se bem se lembra, apanhei a parte final do seu depoimento
ao inspetor Caparro”, recordou. “Na altura, se a memória não me
falha, informou o inspetor de que tinha adquirido a orca a preço de
saldo...”
“Sim. E então?”
“Por que diabo a orca lhe foi vendida a preço de saldo?”
Ao ouvir a pergunta, o diretor do Oceanário engoliu em seco.
“Uh... sei lá. Os vendedores deviam ter orcas a mais, suponho. O
que interessa isso?”
“A orca em causa, se bem recordo o que o senhor disse ao inspetor
Caparro, foi comprada a um parque marinho da Florida, não é
verdade?”
Uma gota de transpiração deslizou do couro cabeludo de Telles de
Menezes.
“Sim.”
Tomás consultou uma anotação.
“O Orlando Ocean Park, creio eu.”
“Sim.”
“A orca em causa chama­-se Minnie.”
“Sim.”
As respostas do diretor do Oceanário eram agora curtas e secas,
dadas quase a medo e ao jeito de quem não se queria comprometer,
como se aquele fosse um terreno minado e tivesse receio de assentar o
pé no sítio errado.
O historiador virou­-se para o responsável pelo inquérito da
Judiciária.
“Lembra­-se, inspetor, de ter descoberto hoje na carteira da minha
mulher o recorte de um jornal americano que dava conta da morte do
tratador de um parque oceânico de Orlando, vítima de uma orca
chamada Minnie?”
Os olhos do inspetor Caparro acenderam­-se.
“Então não lembro?”
Tomás voltou­-se de novo para o diretor do Oceanário.
“O senhor é um habilidoso com as palavras, doutor Telles de
Menezes. Parece um político manhoso. Disse que nunca uma orca
matou ou sequer magoou um único ser humano no mar, o que é
absolutamente verdade. Tudo o que acabou de afirmar sobre a forma
especial como as orcas encaram a espécie humana é rigorosamente
assim, pois, ao contrário do que presumiu, eu tive o cuidado de ler a
tese de doutoramento do professor Vandenbosch. O que o senhor se
esqueceu de dizer foi que, quando se encontram em cativeiro e são
maltratadas, as orcas tornam­-se violentas e matam de facto pessoas.
Elas são simpáticas, mas não são parvas. Quando as aprisionamos e as
maltratamos, elas respondem. Foi o que fez a Minnie. Capturada e
enviada para um parque na Florida, viu­-se maltratada e reagiu,
matando um tratador. Foi por isso que o parque da Florida a vendeu
ao Oceanário de Lisboa a preço de saldo. Se não a vendesse teria de a
abater, pois ela matara uma pessoa. Foi aliás por isso que o senhor a
quis especificamente. O baixo preço foi apenas o álibi que legitimou a
compra daquela orca em particular. O senhor já tinha lido a notícia do
jornal americano e sabia muito bem que a Minnie tinha sido
suficientemente maltratada por seres humanos para estar disposta a
matá­-los. Foi por isso, e só por isso, que a mandou comprar.”
O rosto de Telles de Menezes voltou a fechar­-se num semblante
carregado.
“Recuso­-me a ouvir estes... estes dislates.”
“Mas as suas declarações de hoje ao inspetor Caparro con­tinham
mais matéria reveladora.” Voltou­-se para o homem da Judiciária.
“Recorde­-me, inspetor, o que lhe disseram os funcionários do
Oceanário quando o senhor os interrogou esta manhã.”
Foi a vez de ser o polícia a retirar o bloco de notas do bolso e a
consultá­-lo.
“Pois... deixe cá ver...”, murmurou o inspetor Caparro enquanto
folheava as anotações. “Ao inspecionar o animal, constatei que ele
tinha feridas no dorso. Fiquei admirado e questionei os tratadores que
operavam naquele tanque.” Voltava ainda as páginas do bloco. “E
eles... e eles... ah!, está aqui. Os homens mostraram­-se surpreendidos e
garantiram que, quando o bicharoco tinha chegado, estava tudo
normal. Um deles disse mesmo ‘impecável’. Vê a anotação? ‘A orca
estava impecável’.” Virou para a página seguinte. “Este outro contou­-
me, no entanto, que viu o doutor Telles de Menezes dar­-lhe uma sova
à tarde. Usou o termo... olhe, aqui está. Usou o termo ‘pauladas’.”
O diretor do Oceanário encolheu­-se no seu lugar, acabrunhado.
“Sobra alguma dúvida sobre o que realmente se passou?”,
questionou Tomás. “O doutor Telles de Menezes comprou uma orca
que já matara uma pessoa e, sabendo perfeitamente que as orcas se
tornam perigosas quando são maltratadas, espancou­-a horas antes de
o professor Vandenbosch aqui vir. Porque o fez? Para que ela atacasse
o professor Vandenbosch quando este mergulhasse no tanque, como é
evidente. As orcas selvagens não são perigosas. Mas as orcas
maltratadas são­-no, e muito.”
O inspetor Caparro voltou a pegar nas algemas, mas antes de
avançar na direção do diretor do Oceanário lançou um olhar
inquisitivo para o historiador, como se se quisesse certificar de que
desta vez não se estava a precipitar nas suas conclusões.
“O assassino foi então o doutor Telles de Menezes, não foi? Já o
posso engavetar, não posso?”
“O problema é que a notícia do jornal americano, a informar que a
orca Minnie matara um tratador num parque em Orlando, apareceu
inexplicavelmente na carteira da minha mulher, tornando­-a assim
suspeita do crime”, acrescentou o historiador, ignorando o polícia.
“Como é que essa notícia veio parar à carteira dela? Andei horas a
matutar nisso, até que Herr Zwiebel apareceu ao final desta tarde na
casa do professor Vandenbosch.” Voltou­-se para o suíço. “Lembra­-se
de ter lá ido?”
O diretor da GreenNaturae sobressaltou­-se ao ser interpelado.
“Como poderia esquecer?”, confirmou, ainda dorido por causa dos
confrontos violentos que na ocasião tivera com Tomás. “Fui verificar
se a chimpanzé e o papagaio estavam bem.”
“Recorda­-se do que fez quando viu a Guida?”
“Cócegas. Ela adora cócegas, a marota. Sempre que me vê, pede
cócegas e eu dou­-lhas. É um regabofe pegado em todas as ocasiões que
nos encontramos.”
“E logo a seguir às cócegas, o que fez?”
“Uh... isso já não me lembro.”
“Mas lembro­-me eu”, disse Tomás num tom cortante. “O senhor fez
o velho truque da moeda. Meteu a mão aparen­temente vazia na orelha
dela e fingiu que tinha tirado uma moeda do seu interior. A seguir
contou­-me que, nos seus tempos de estudante, chegara a fazer
espetáculos amadores de ilusionismo em festas de ­aniversário.”
Foi a vez de ser Zwiebel a encolher­-se no seu lugar.
“Não estou a entender”, interveio o inspetor Caparro. “O que tem
isso a ver com o caso?”
“Se o inspetor bem se recorda, quando eu e a minha mulher aqui
chegámos para colaborar no inquérito, o senhor estava a terminar o
interrogatório ao doutor Telles de Menezes e a Herr Zwiebel. Quando
viu a minha mulher, Herr Zwiebel veio dar­-lhe um abraço emocional.
O que ninguém lhe conhecia eram as suas artes de ilusionista. Foi
quando deu o abraço à minha mulher que, usando essas artes, plantou
na carteira dela um folheto a publicitar o espetáculo da orca no
Oceanário e a notícia do jornal americano, numa tentativa de baralhar
as pistas e de lançar a investigação na direção errada. O que
conseguiu. Ao descobrir esse panfleto e essa notícia na carteira da
minha mulher, o senhor deu­-lhe imediatamente ordem de prisão.”
Um rubor embaraçado coloriu as faces do polícia; deixara­-se
manobrar por Zwiebel, o ilusionista amador, e pelos vistos detivera
uma pessoa inocente.
“Uh... adiante, adiante.”
“Com a orca­-assassina no tanque do Oceano Glacial Ártico e
devidamente maltratada, a meio da tarde de ontem já a armadilha
estava montada. Faltava convencer o professor Vandenbosch a vir cá e
a aproximar­-se da orca. Como o fazer? Era preciso ir a casa dele e
lançar­-lhe um isco. O que foi feito. Ao cair da noite, um dos suspeitos
dirigiu­-se ao Jardim dos Animais com Alma e interpelou o professor
Vandenbosch. Este não ficou muito contente por vê­-lo lá, pois já
estava na posse do dossiê que retirara do cofre do signor Ambrosini e
sabia muito bem que o encerramento do seu projeto científico era obra
de todos os seus parceiros da GreenNaturae e da fraternidade dos
rosacruz, pelo que o mandou embora. Antes de partir, contudo, o
visitante informou­-o de que o Oceanário de Lisboa havia adquirido
uma orca e que, depois de dar alguns espetáculos, esta seria abatida.
Mais o informou de que havia uma maneira de a retirar, através de um
alçapão no fundo do tanque, e que só nesse dia a orca não estaria a
ser vigiada. Era este o isco. Os conspi­radores conheciam muito bem o
amor que o professor Vandenbosch sentia pelas orcas e acreditavam
que ele não resistiria à tentação de ir nessa noite ao Oceanário salvá­-
la.”
O inspetor Caparro estava siderado com a forma como aquele
amador deslindara o caso em algumas horas.
“Como diabo sabe o senhor tudo isso?”
“Por cima da porta de entrada da casa do professor Vandenbosch
está discretamente instalada uma pequena câmara de videovigilância.
Ela captou tudo.”
Os três suspeitos entreolharam­-se, à beira do pânico; claramente
nenhum deles estava a par da existência daquela câmara. O próprio
investigador da Judiciária esboçou uma expressão dorida, embaraçado
por lhe ter escapado uma coisa daquelas.
“O senhor viu essas imagens?”
“Claro.”
“Qual a identidade do visitante?”
“Infelizmente estava a chover e ele apareceu de guarda­-chuva, o que
impediu que lhe observasse o rosto. Por outro lado, a gravação do
som é de péssima qualidade e não permite distinguir a voz.”
“Não há instante algum em que seja possível ver­-lhe a cara?”
“Não.”
“Mas isso é crucial, professor Noronha”, protestou o inspetor
Caparro, quase como se a culpa fosse do seu interlocutor. “Conhecer a
identidade da pessoa que convenceu o professor Vandenbosch a vir ter
com a orca é decisivo do ponto de vista legal. Sem sabermos isso, o
que temos? Uns homens que gostariam de fazer a folha ao professor
Vandenbosch, sim, mas sem que possamos provar que o fizeram
realmente.”
“E a compra da orca?”, questionou Tomás. “E as pauladas que o
doutor Telles de Menezes deu no animal, para o atiçar?”
“Conseguimos provar que foi comprado um animal que já matou
uma pessoa e que foi dada uma coça ao bicharoco, sem dúvida, mas
em bom rigor isso não prova que tenham usado a orca para assassinar
o professor Vandenbosch.” Apontou para os suspeitos. “Mas se
provarmos que um deles usou um engodo para atrair a vítima ao
tanque, aí já temos um caso legalmente sustentável, percebeu? Para
tal, contudo, é crucial identificarmos esse visitante. Como não há
maneira de o fazer... não há caso.”
Um murmúrio aliviado percorreu os três homens sentados no átrio
do tanque central. Tinham visto a coisa malparada, na verdade já
perdida, mas haviam sido salvos no último instante. Um deles sorriu e
outro piscou o olho aos companheiros. Estavam safos.
LX

Quando o inspetor Caparro se preparava para mandar os três


suspeitos embora por falta de provas que os incriminassem, Tomás
levantou a mão para o travar e com um gesto indicou a todos que se
mantivessem nos seus lugares. A sua intervenção não estava ainda
concluída.
“Eu disse apenas que o vídeo não captou o rosto da pessoa que
visitou o professor Vandenbosch e o atraiu à armadilha, e que a
gravação da conversa não permite reconhecer vozes”, lembrou.
“Nunca disse que não há maneira de a identificar.”
Os sorrisos que afloravam às caras dos conspiradores desva-­
neceram­-se de imediato, ao mesmo tempo que a esperança regressou
ao semblante do polícia. O caso não estava afinal ainda perdido.
“Há maneira de identificar o visitante?”
“Quando ele bateu à porta da casa e o professor Vandenbosch abriu,
havia uma testemunha presente.”
O homem da Judiciária quase deu um salto.
“Quem?”
“A Guida.”
O inspetor Caparro esboçou uma expressão de quem estava
confundido.
“A empregada?”
“A chimpanzé.”
O responsável pelo inquérito criminal abriu e fechou a boca sem
emitir nenhum som, enquanto processava na mente a informação que
acabara de lhe ser dada.
“A macaca?”, questionou por fim. “Está a dizer que a gorila viu o
visitante?”
“A Guida é uma chimpanzé.”
Perplexo, o polícia olhou para os suspeitos, como se lhe estivesse a
escapar alguma coisa, até voltar a encarar Tomás.
“E uma formiga?”, perguntou com ironia. “Não terá havido
também uma formiguinha que o tenha visto? E, já agora, uma mosca?
E porque não uma barata? Foi só a macacona?”
“A chimpanzé de quem o senhor está a fazer troça é um ani­mal
consciente, capaz de inventar e manusear instrumentos, com
raciocínio dedutivo e aptidões elementares de aritmética, sentido de
justiça e de humor, sentimentos de gratidão e de culpa, noção da
morte e de beleza e até com capacidades superiores aos seres humanos
em certas competências cognitivas. Estou absolutamente convencido
de que, explicando tudo muito bem, e com o apoio de primatólogos
competentes, sou capaz de convencer um juiz a aceitar o testemunho
da Guida.”
O inspetor Caparro soltou uma gargalhada.
“Ah, sim! Estou mesmo a ver o juiz voltar­-se para a macaca e
perguntar: ó senhora macaca, conte lá quem visitou o professor
Vandenbosch no dia tal às tantas horas?”
“A Guida não responde a uma pergunta formulada dessa maneira,
da mesma maneira que um francês que se sentasse num tribunal
português não seria capaz de responder a uma pergunta que lhe fosse
formulada em português. Mas ponha alguém a fazer a pergunta de
uma maneira que a Guida entenda, como eu fiz e qualquer pessoa
capaz de comunicar com ela fará, e verá que ela responde.”
“Responde em que língua? Em macaquês?”
“A Guida comunica por língua gestual humana, inspetor”, disse
Tomás, ignorando o tom jocoso. “Fá­-lo usando as regras corretas da
sintaxe. Aliás, é tão ágil no uso da língua gestual que tem até a
capacidade de utilizar o vocabulário que conhece para conceber
palavras novas, veja lá. Com recurso a um tradutor de língua gestual,
exatamente como se recorreria a um tradutor de francês num tribunal
português, ela pode perfeitamente prestar testemunho.”
O homem da Judiciária esfregou o queixo, considerando a questão.
Tudo aquilo lhe parecia pouco regular. Um animal a prestar
testemunho? Onde já se vira uma coisa daquelas? Por outro lado, se
fosse verdadeiro, e em bom rigor ao longo de todo aquele caso nunca
vira Tomás dizer algo que não fosse verdadeiro, talvez se conseguisse
um avanço decisivo no inquérito que permitisse encerrar o caso.
Poderia valer­-lhe uma promoção.
“Duvido que a lei considere válido o testemunho de um
orangotango”, considerou. “Mas pode ser que o bicharoco nos dê
pistas úteis que, devidamente exploradas, nos conduzam a provas
sólidas.” Hesitou, ainda a ponderar os prós e os contras. Por fim, o
seu rosto ganhou firmeza e o polícia encarou Tomás com a decisão
tomada. “Muito bem, professor Noronha. Conte lá. O que lhe disse a
macaca?”
“Quando localizei a gravação das imagens captadas pela câmara de
videovigilância e cheguei ao ponto em que se vê alguém bater à porta
e o professor Vandenbosch a abri­-la e a falar com essa pessoa,
constatei que o guarda­-chuva impedia que se identificasse o visitante.
Andei com as imagens para a frente e para trás, à procura de algum
movimento no guarda­-chuva que me permitisse ver o rosto, nem que
em apenas um frame, mas isso nunca aconteceu. Frustrado, pus­-me a
interrogar a imagem em voz alta, perguntando sucessivamente: quem
és tu? Fi­-lo sem esperar que a imagem respondesse, claro. Foi apenas
um ato de frustração, de exasperação, de desespero até. Acontece que
a Guida estava ao meu lado e, ao ouvir­-me fazer repetidamente a
pergunta, deu a resposta.”
“Deu a resposta como?”
“Disse­-me o nome do visitante. Não se esqueça de que ela estava
presente quando o desconhecido apareceu, portanto é perfeitamente
capaz de o identificar. Ao ver comigo a imagem no ecrã e ao ouvir­-me
desesperado a perguntar em voz alta quem era esse visitante, disse­-me
o nome dele.”
O polícia inclinou­-se para Tomás, expectante.
“E... e que nome era esse?”
O português esboçou os sinais que vira Guida fazer em língua
gestual e traduziu­-os.
“Fruta que Chora.”
“O nome, homem. Dê­-me o nome desse visitante.”
“Fruta que Chora, já lhe disse”, repetiu Tomás. “O homem do
guarda­-chuva chama­-se Fruta que Chora.”
O rosto do inspetor Caparro contraiu­-se numa expressão de
perplexidade.
“Fruta que Chora? Que raio de nome é esse? Não me diga que é um
índio, tipo Touro Sentado ou Nuvem de Chuva ou...”
O historiador abanou a cabeça.
“Como lhe expliquei, a Guida é capaz de criar palavras novas com
base em palavras que já conhece”, recordou. “Por exemplo, vendo
uma retrete, começou a chamar­-lhe porcaria boa. Esse fenómeno
designa­-se por elisão lexical e durante muito tempo pensou­-se ser um
exclusivo da espécie humana. Descobriu­-se agora que alguns animais
também fazem isso. Os chimpanzés, os gorilas e as aves, para citar os
casos já confirmados cientificamente, foram observados a fazer elisão
lexical. O papagaio do professor Vandenbosch, por exemplo, inventou
a palavra banerry, uma mistura de banana e cherry, para se referir às
maçãs.”
“Está a dizer que essa expressão da macaca, fruta que chora, é
também uma ilusão lexical?”
“Elisão lexical”, corrigiu Tomás. “Sim. É isso.”
“Essa expressão em macaquês, fruta que chora, traduzida em língua
de gente significa o quê?”
“Pense um pouco, inspetor. Qual é o alimento que o faz chorar?”
“A mim? O cozido à portuguesa. Gosto tanto de cozido que até era
capaz de chorar por ele, camano.”
O historiador abanou a cabeça; não sabia se o polícia o fazia
deliberadamente, mas aquelas respostas a despropósito exasperavam­-
no.
“Esqueça o cozido”, disse. Considerou uma outra maneira de
colocar a questão. “Existe algum alimento que, descascando­-o, faça
alguém chorar?”
O inspetor Caparro fez um ar pensativo.
“Só conheço a cebola.”
Tomás sorriu.
“Ora aí está. Cebola.”
O homem da Judiciária devolveu­-lhe uma expressão vazia.
“Cebola o quê?”
“É esse o nome da pessoa que convenceu o professor Vandenbosch a
ir ontem à noite ao Oceanário para supostamente salvar a orca, mas
na verdade para morrer. Cebola.”
“O suspeito chama­-se Cebola?”
“Correto.”
“Desculpe, mas cebola não é fruta.”
“Vá explicar isso à Guida. Ela chama fruta que chora à cebola, o que
quer que lhe faça?”
O homem da Judiciária desviou os olhos para os suspeitos. Os três
mantinham­-se hirtos, olhando fixamente para um ponto indefinido,
com ar comprometido.
“Mas... desculpe lá, nenhum deles se chama Cebola.”
Tomás estendeu­-lhe a mão.
“Tem consigo o seu smartphone?”, perguntou. “Dê­-mo aí, por
favor.”
Vencendo as renitências, o inspetor Caparro entregou o tele­móvel ao
seu interlocutor. Viu Tomás ir ao Google Translate e digitar a palavra
cebola num conversor para alemão. Quando obteve o resultado, o
historiador voltou o smartphone para o polícia para que este visse o
resultado.
Cebola = Zwiebel
Ato contínuo, o responsável pelo inquérito criminal olhou para o
diretor da GreenNaturae.
“Foi... foi você?”
Premindo os lábios de forma ostensiva, Dorian Zwiebel sinalizou
assim que dele não arrancariam nem mais uma palavra. O mesmo, de
resto, fizeram os outros dois suspeitos. Tornava­-se claro que não iria
ser fácil arrancar­-lhes a confissão.
“Quando eu e a minha mulher fomos hoje à mansão do professor
Vandenbosch procurar o dossiê cujo conteúdo acabei de vos revelar,
fomos atacados por um homem disfarçado que se escondera no
escritório. Depois de o assaltante ter fugido, a Guida disse­-me pela
primeira vez fruta que chora. Na altura não entendi essa mensagem,
mas compreendo agora que ela estava a identificá­-lo.” Apontou para
Zwiebel. “Era você. Foi lá para ver se encontrava o dossiê e foi
surpreendido por nós. Fugiu e avisou a polícia, que já devia estar no
nosso encalço devido à geolocalização do smartphone da minha
mulher. Pensando que ambos tínhamos sido detidos e que o caminho
se encontrava enfim livre, voltou à casa para terminar o trabalhinho.
O problema é que afinal a polícia não me tinha detido e deu outra vez
de caras comigo. Atacou­-me e chamou a polícia, mas a coisa correu­-
lhe mal. Foi graças a isso, e apenas a isso, que não conseguiu suprimir
este dossiê tão inconveniente.”
Sem perder mais tempo, o inspetor Caparro algemou os três
suspeitos, a começar pelo ambientalista suíço.
“É bom que contes tudo, malandrão.”
Mas Zwiebel manteve o silêncio.
Para o historiador, no entanto, nada disso era já relevante. A sua
missão de apuramento da verdade estava concluída. O resto era
trabalho para a polícia.
“O signor Ambrosini exigiu a eliminação do professor Vanden­bosch,
o doutor Telles de Menezes montou a armadilha com a orca, o Herr
Zwiebel atraiu a vítima ao local onde viria a morrer e a orca matou­-
a”, sumarizou, voltando­-se para o homem da Judiciária. “O caso está
encerrado.”
Girando sobre os calcanhares, Tomás Noronha virou­-se e atravessou
o átrio do tanque central em passo decidido em direção ao corredor
que conduzia à saída do Oceanário. Ao chegar à porta, deteve­-se e
olhou para trás, atirando um último olhar ao inspetor Caparro.
“Agradecia que libertasse a minha mulher ainda esta noite.”
Só então desapareceu pelo corredor.
.

Epílogo

Do quarto de banho vinha o som ininterrupto do chuveiro e a voz


límpida de mulher a entoar “volta no vento, meu amor”, era a letra de
uma velha canção dos Madredeus, “volta no vento, por favor”.
Sentado no sofá da sala, Tomás Noronha espreitou o relógio pela
terceira vez nos últimos cinco minutos e bufou; aquilo já começava a
ser demais. Ainda tentou controlar a impaciência, mas deu consigo a
virar­-se para o quarto de banho.
“Ó Florzinha!”, berrou. “Não achas que estás a exagerar?”
Uma voz gritou de volta, como se tentasse sobrepor­-se ao fragor de
uma cascata.
“O quê?”
“O banho. Quando sais do banho?”
“Hã?”
Não valia a pena insistir, percebeu ele. Enquanto o chuveiro estivesse
ligado, o barulho da água a cair no duche impossibi­litaria qualquer
conversa. Resignou­-se. Quando o banho ter­minasse, terminaria. Não
era assim aliás a sua vida com a mulher? Fosse qual fosse a hora a que
combinassem sair, ela demorava­-se sempre e nunca conseguiam
cumprir horários. A situação parecia um clichê, mas era a sua
realidade do dia a dia com Maria Flor. Cerrou os dentes e esforçou­-se
por controlar o seu proverbial desassossego. Tem calma, Tomás,
pensou para si mesmo. Tens de a reconquistar e isso faz­-se com
paciência.
O som do chuveiro cessou de repente e ouviu­-a ainda a cantarolar
Haja o Que Houver enquanto se enroscava na toalha. “Eu sei quem és
para mim, haja o que houver espero por ti.” Tomás levantou­-se e foi
espreitar ao quarto de banho. Uma nuvem de vapor escapava­-se do
compartimento, e a mulher, enrolada numa toalha branca, limpava o
espelho embaciado para se contemplar no reflexo.
“Olha lá, Florzinha, tens noção de que passaste dez minutos no
chuveiro?”
“Qual é o problema? Queria ver­-te se tivesses estado nem que fosse
um minuto na cela horrível onde me meteram. Se bem te conheço,
passarias uma hora enfiado no duche.”
“Pois, mas... e a poupança da água? Ainda ontem tomavas banho
em apenas vinte segundos. Agora são dez minutos. Não achas que
passaste de um extremo para o outro?”
Ela encolheu os ombros.
“Quero lá saber!”, devolveu. “Desde que me deste a ler o dossiê dos
rosacruz que me estou nas tintas. Andei eu a fazer mil sacrifícios para
poupar água e energia e sei lá mais o quê, e afinal a produção de um
simples quilo de bife requer o consumo de treze mil litros de água?
Devem estar a gozar comigo... Querem poupar na água e na emissão
de gases que provocam o aquecimento do planeta? Olha, comam
menos carne!”
“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, argumentou o marido. “O
facto de a pecuária industrial gastar mais água e emitir mais gases com
efeito de estufa não exonera as responsabilidades dos combustíveis
fósseis nem o nosso dever de sermos comedidos. Banhos de vinte
segundos são um exagero de frugalidade, mas dez minutos...
francamente, é o exagero contrário.”
“Tivesses estado tu no xelindró e queria­-te ver a dar ralhetes sobre
banhos de dez minutos...”
Não deixava de ser verdade, reconheceu Tomás. Haviam posto a
mulher numa cela só com um balde para as necessidades. Não se
tratava apenas de ter estado fechada num cubículo imundo; era
sobretudo a humilhação. Uma experiência daquelas justificava bem
que despendesse dez minutos num chuveiro a purificar­-se de tudo
aquilo por que passara. Considerando o que ela tinha vivido, o
mínimo que podia fazer era realmente dar­-lhe espaço para as suas
pequenas transgressões.
Regressou à sala e voltou a acomodar­-se no sofá. Se bem conhecia
Maria Flor, teria ainda de aguardar uns bons quinze minutos. Secar­-se,
pentear­-se, aplicar cremes, pôr perfumes, escolher a roupa, isto dá
com aquilo mas não dá com aqueloutro, procurar os sapatos
adequados, vestir­-se, se calhar este cinto não, é melhor aquele laço...
Hmm, meia hora até estar pronta. No mínimo.
Pegou no dossiê dos rosacruz, que na noite anterior deixara
abandonado sobre a mesinha, cruzou a perna, ajeitou o documento
sobre o regaço e, tentando descontrair, folheou­-o. Havia apresentado
o essencial ao inspetor Caparro, mas tanto ficara por dizer. Tanto. Por
exemplo, a informação sobre a qual os seus olhos pousaram logo que
abriu as folhas ao acaso. De toda a biomassa de vertebrados existentes
em terra, informava uma linha do dossiê, apenas três por cento era
composta por animais selvagens. Três por cento! Tudo o resto eram
animais criados para abate ou para servir os seres humanos no
trabalho ou como companhia. Como era possível uma coisa daquelas?
De um total de cem por cento de vertebrados selvagens em terra,
alguns milhares de anos de ação humana haviam reduzido aquele
grupo a uns negligenciáveis três por cento? Mais do que um
extermínio, aquilo era um longo adeus. Elefantes, rinocerontes,
chimpanzés, gorilas, orangotangos, girafas, leões, pumas, lobos...
tantas e tantas maravilhas da natureza destinadas ao grande baú das
memórias perdidas.
O que estava a humanidade a fazer aos animais? A pergunta deixou
Tomás desconfortável. A resposta encontrava­-se no dossiê dos
rosacruz e impunha­-se pela mera avaliação dos factos. Muitos seres
humanos afeiçoavam­-se aos seus cães e aos seus gatos, achavam­-nos
inteligentes e emocionais e seriam incapazes de os servir ao almoço,
mas que sentido tinha isso se tratavam os outros animais como coisas?
Por que razão era repugnante comer um cão e aceitável, desejável até,
devorar um porco ou uma vaca? Porque eram uns filhos e outros
enteados? Só por acharem uns bonitos e outros feios? Isso era critério?
Milhares de milhões de vacas e porcos viviam fechados uma vida
inteira em jaulas tão apertadas que nem se conseguiam virar, enquanto
biliões de galinhas se apinhavam em caixas sem jamais verem o sol
durante todo o seu curto tempo de vida, apenas capazes de se
movimentarem num espaço do tamanho de uma folha A4. Depois de
uma curta existência infernal, muitos destes animais acabavam
esquartejados ou cozidos vivos nos matadouros, e deles a esmagadora
maioria dos seres humanos só via bifes despersonalizados ou pernas
de frango umas iguais às outras, como se estas partes nada tivessem a
ver com aquelas vidas de desespero e tantas mortes de pesadelo. Sim,
o que estava a humanidade a fazer aos animais?
Houvera um tempo em que os homens viviam com as restantes
criaturas, em que a natureza lhes era familiar, em que se assumiam
como parte integrante de todo o mundo natural. Ele próprio, quando
era pequeno, não acordava ao cantar do galo da capoeira junto à casa
dos pais em Castelo Branco? Não tinha brincado com as galinhas ou
passeado pelos campos a acompanhar as ovelhas? Quantas pessoas
faziam isso hoje em dia? Quantas? Com a crescente concentração dos
seres humanos nos grandes centros urbanos, a ligação com os animais
e com a natureza perdera­-se por completo. O Homem fechara­-se
numa redoma de cimento. Era como se o cordão umbilical que ligava
a humanidade ao mundo natural se tivesse cortado. O que são os
jardins zoológicos afinal senão a prova de que os animais deixaram de
fazer parte do dia a dia dos seres humanos, de que eles desapareceram
da experiência quotidiana, de que se tornaram raridades para serem
admiradas como quem aprecia quadros raros num museu?
Antes as pessoas sabiam que comiam animais porque os viam ser
degolados à frente delas. Viam, compreendiam e respeitavam o que
isso significava. Com o tempo esse conhecimento tornou­-se uma
abstração para a maior parte da humanidade. As pessoas veem um
bife e sabem que vem de uma vaca, mas sabem­-no apenas como uma
simples informação abstrata que consta dos livros, pois nunca viram
sequer uma vaca ser morta. Nem querem ver. Sabem, mas não querem
saber. Sabem que os matadouros existem, mas não sabem o que se
passa lá dentro. Não sabem porque os matadouros foram concebidos
para não serem vistos, é certo, mas também porque as próprias
pessoas fazem questão de não os ver nem saber o que se passa lá
dentro. Mesmo que as paredes dos matadouros fossem de vidro e tudo
se pudesse ver, desviariam o olhar. Não querem saber. São capazes de
protestar veementemente contra uma subida do preço do café, mas
ficam em silêncio absoluto perante a matança de milhares de milhões
de animais todos os anos nas condições mais cruéis. Não sabem,
sabendo. Os matadouros estão por toda a parte e no entanto
permanecem invi­síveis. Os matadouros encontram­-se à vista de todos,
mas todos se esforçam por não os ver. Invisíveis apesar de estarem à
vista.
A sua formação de historiador fazia­-lhe perceber que a relação da
humanidade com os animais estava na base da relação da humanidade
com ela mesma. Ao subjugar os animais e submetê­-los às suas
necessidades e vontade, os seres humanos haviam criado um modelo
para submeter outros seres vivos às suas necessidades e vontade. A
desumanização dos animais abrira caminho à desumanização de
outros homens, a escravização dos animais abrira caminho à
escravização de outros homens, o extermínio dos animais abrira
caminho ao extermínio de outros homens. Se posso fazer isto aos
animais, porque não o poderei fazer aos outros homens? Tal como
para subjugar, escravizar e exterminar outros homens fora necessário
desumanizá­-los, para subjugar, escravizar e exterminar os animais era
necessário desumanizá­-los. Isso fazia­-se todos os dias. Hoje.
O que era afinal Auschwitz senão uma aplicação aos seres humanos
do modelo dos matadouros? Para os animais, a sociedade humana é
um imenso nazismo, os humanos os SS e a forma como os tratamos
um Holocausto multiplicado por um trilião. Como certa vez observara
o filósofo judeu alemão Theodor Adorno, Auschwitz começa sempre
que alguém olha para um matadouro e pensa: são apenas animais. Há
quem considere que Auschwitz aconteceu porque alguém decidiu que
os judeus eram animais, mas Tomás sabia agora que o problema não
era esse, que a verdadeira causa de Auschwitz era que os homens não
só deixaram de se ver como animais que são, como haviam negado
aos restantes animais o direito de humanidade, e que os nacional­-
socialistas se tinham limitado a estender a uma parte da humanidade o
precedente aberto por toda a humanidade em relação aos restantes
animais.
O que suscitava em Tomás a maior das perplexidades era a forma
como pessoas que se diziam repugnadas pela ideologia nacional­-
socialista, pessoas que apregoavam o humanismo e que todos os dias
enchiam a boca de palavras sublimes sobre os direitos humanos, no
que dizia respeito aos seus atos praticavam o nazismo todos os dias.
Faziam­-no pelo simples facto de comerem carne. Como era possível
condenar­-se o nacional­-socialismo por torturar e matar seres vivos
considerados inferiores ao mesmo tempo que se achava normal e
aceitável torturar e matar outros seres vivos considerados inferiores?
Não, os nazis não são apenas os que fizeram Auschwitz. Nazis somos
todos.
O primeiro passo em todo este processo fora dado com a
desumanização da vida não humana. Os restantes animais dei­xaram
de ser parceiros da criação, como sugerido por Hieronymus Bosch no
seu O Jardim das Delícias Terrestres, e tornaram­-se meros objetos,
simples adereços num cenário, um pouco como as nuvens e as pedras
que apenas existem numa pintura para a compor. O Homem começou
a acreditar que era especial, o centro do universo, e tudo o resto só
existe para o servir. Até se criou uma ideologia, o humanismo, que
colocou o Homem como o alfa e o ómega da existência, a medida das
coisas, o valor supremo cujo bem­-estar a tudo se sobrepõe.
Para que isso fosse possível, no entanto, foi imprescindível
estabelecer­-se um corte fundamental, a cisão entre o Homem e os
restantes animais. O primeiro foi sacralizado e os outros
desumanizados. Nasceu assim a grande divisão. De um lado o super­-
homem inteligente, do outro as bestas irracionais. De um lado a razão
ponderada, do outro o instinto mecânico. De um lado a sensibilidade,
do outro a bestialidade. E, por fim, a derradeira linha de separação, a
que punha de um lado a alma pensante e do outro o objeto oco. Os
restantes animais tornaram­-se máquinas insensíveis, robôs que
reagiam por resposta automática a estímulos, mecanismos sem
sentimentos. Tornaram­-se coisas. Vazios. Nada.
Essa visão era útil para legitimar a forma como a humanidade estava
a tratar os restantes animais, mas era agora posta em causa pelas
descobertas dos etólogos, a começar em Charles Darwin, a passar por
Jane Goodall e a acabar em Noé Vandenbosch. Se os animais eram tão
sensíveis e conscientes quanto os calhaus, podia­-se fazer deles o que se
entendesse. Um animal que não passa de uma coisa sofre tanto quanto
um calhau. Mas se afinal eles são inteligentes, se têm emoções e
sentimentos, se amam e odeiam, se são alimentados pela esperança e
capazes de encarar o mundo com humor, se protegem os fracos e se se
entreajudam, se se sacrificam por outros e se conseguem até
aperceber­-se da beleza e entender a morte, se eles são como nós, enfim,
embora em graus diferentes consoante as espécies e as naturais
diferenças entre indivíduos, está colocado um enorme dilema ético à
humanidade. Como continuar a tratá­-los como objetos mecânicos ao
nosso dispor se afinal são sujeitos pensantes e conscientes? Será
aceitável continuarmos a ser nazis e a lidar com eles como se o mundo
fosse um imenso Auschwitz?
A humanidade declarara uma guerra de extermínio às outras
espécies, seja através da matança industrializada direta da pecuária
industrial, seja através da caça e pesca massivas, seja através da
destruição dos seus habitats naturais para abrir espaço a mais campos
agrícolas e a mais urbanizações. O dossiê dos rosacruz que Tomás
nesse momento manuseava dava o exemplo das abelhas. A
intensificação da agricultura destruíra os habitats das abelhas e
envolvera o uso intensivo de inseticidas como os neonicotinóides, dois
fatores que conduziram ao extermínio de espécies inteiras destes
insetos coletivamente inteligentes. Como consequência, as abelhas
estão a desaparecer do planeta e com elas a polinização, essencial para
a natureza e para a própria agricultura, uma vez que noventa por
cento das colheitas, segundo cálculos das Nações Unidas, dependem
da polinização. As abelhas são apenas um de milhentos exemplos
semelhantes de espécies em extinção devido sobretudo à pecuária. Os
animais que não foram exterminados, acabaram por...
“Que tal estou?”
A pergunta arrancou Tomás dos seus pensamentos. Atarantado,
virou a cabeça e viu a mulher parada à entrada da sala.
“Hã?”
“Estou bonita?”
Maria Flor aparecera com um vestido justo que lhe acentuava as
formas do corpo, sinuoso como uma viola, e girou sobre ela mesma
para que o marido a apreciasse melhor.
“Vestes­-te bem”, elogiou Tomás com um sorriso malicioso. “Mas
despes­-te melhor.”
Ela revirou os olhos.
“Oh, lá estás tu!”, protestou. “Que parvo! Só pensas nisso! Vocês,
os homens, são todos iguais...”
“A sério, Florzinha. As mulheres estão sempre preocupadas com a
maneira como se vestem e nunca perceberam que, para os homens, o
importante é a maneira como se despem.”
Empertigando­-se, Maria Flor encaminhou­-se para a porta do
apartamento.
“Desculpa lá, mas essas graçolas de menino traquina não têm piada
nenhuma”, atirou. “Anda, vamos almoçar.”
Saíram os dois do edifício e Tomás foi buscar o automóvel. Tal como
sempre acontecia, a mulher hesitou quando ele lhe abriu a porta da
viatura. Mantinha a ideia de que o marido tinha de abandonar os
meios de transporte que consumiam combustíveis fósseis, mas, desta
vez, e ao contrário do habitual, nada disse. Com toda a probabilidade,
a descoberta de que a pecuária industrial era mais perigosa do que a
queima dos combustíveis fósseis pelos meios de transporte matizara a
sua objeção ao uso do carro.
Logo que Maria Flor se acomodou no seu lugar, o marido ligou a
ignição.
“Onde queres ir?”
“Pode ser ao sítio do costume.”
O carro arrancou, metendo pelo emaranhado das ruas de Lisboa. O
trânsito estava infernal e tornou­-se claro que não chegariam ao
destino com a rapidez que gostariam. Guiar o automóvel depressa se
transformou num processo automático, como quase sempre acontece
quando se está a guiar, e a mente de Tomás recomeçou a deambular
pelo tema que o ocupara nas últimas vinte e quatro horas, ainda por
cima porque sabia que se tratava de um assunto que interessava à
mulher.
“Sabes o que mais me surpreendeu nesta história toda?”, perguntou
enquanto guiava. “Foi descobrir que o Noé foi morto pelo animal que
mais admirava. Por incrível que pareça, a orca sente­-se atraída pelos
seres humanos e são inúmeros os relatos de situações em que elas
ajudaram as pessoas. Como é possível que existam animais selvagens,
tão perseguidos e prejudicados pelos seres humanos, e que ainda assim
nos encarem com simpatia?”
“É mais frequente do que pensas, Tomás. Olha o caso dos golfinhos.
As histórias sobre eles davam para encher livros inteiros. Noutro dia li
que quatro neozelandeses estavam a nadar no mar quando foram
cercados por golfinhos. Um dos nadadores, chamado Rob Howes,
tentou furar o cerco, mas os dois maiores golfinhos bloquearam­-no e
empurraram­-no para o interior. Os nadadores começaram a recear
aquele comportamento até que viram um enorme tubarão branco
aproximar­-se deles. Foi então que perceberam que os golfinhos haviam
visto o perigo que os ameaçava e tinham vindo protegê­-los. Os quatro
sobreviveram para contar a história. Ou vê o caso de Elián González,
um menino de seis anos que foi metido num barco para fugir de Cuba
para os Estados Unidos. A certa altura o barco afundou­-se e alguém
depositou o miúdo num destroço flutuante. Mas não era fácil uma
criança daquela idade manter­-se num destroço tão frágil. Sempre que
Elián deslizava para a água, um golfinho aparecia por baixo e
empurrava­-o para o destroço, salvando­-lhe assim a vida. Podia passar
o dia a contar­-te histórias de golfinhos, mas prefiro talvez deixar­-te
com uma informação útil. Calcula­-se que só no Oceano Índico
morram por ano oitenta mil cetáceos, a maior parte golfinhos,
apanhados acidentalmente nas redes de pesca. A esses oitenta mil do
Índico há que acrescentar os milhares e milhares em todos os outros
oceanos e ainda os vinte mil golfinhos que fazem parte da quota anual
de caça no Japão. Sabes como no Japão e nas ilhas Faroé matam
agora os golfinhos? Empalam­-nos com hastes de aço, que lhes metem
pelo orifício retal, para lhes esmagar a coluna enquanto eles guincham
de horror e se debatem de dor.”
“Fazem isso aos golfinhos?”
“Só para veres quem são os verdadeiros animais nesta história”,
disse ela. “Ou olha para os elefantes. Estes animais inteligentís­simos
estão a ser exterminados pela destruição dos seus habitats ou pela
caça furtiva por causa do marfim, um produto que em bom rigor não
serve para coisa nenhuma. Em 1979 havia 1,3 milhões de elefantes em
África, número que baixou para meio milhão três décadas mais tarde.
Quando veem os homens, os paquidermes fogem a sete pés. Mas nem
sempre. Os investigadores notaram que muitos elefantes conseguem
perfeitamente distinguir os seres humanos que os querem matar dos
que são inofensivos. Por exemplo, um pastor africano foi
acidentalmente atingido por uma matriarca elefante e partiu a perna.
Constatando o que tinha feito e que ele não conseguia andar, a
matriarca usou a tromba e as patas da frente para o transportar
delicadamente para a sombra de uma árvore. Como se isso não
bastasse, velou­-o durante a noite inteira, por vezes acariciando­-o com
a tromba, apesar de ter a família à espera dela. Quando os amigos do
pastor apareceram e viram a elefante ao lado dele, acharam que o
homem estava em perigo e quiseram matá­-la, mas o pastor gritou que
não disparassem e foi assim que acabaram por recolhê­-lo.”
“Não sabia que os elefantes sentiam simpatia pelos seres
humanos...”
O interesse que o marido revelava por um assunto que era tão caro a
Maria Flor não podia deixar de a impressionar. Queriam lá ver que ele
afinal estava a desenvolver uma sensibilidade especial em relação aos
animais? Talvez a este respeito Tomás não fosse o caso perdido que
até aí pensava.
“Considerando o que lhes fazemos e a memória que eles têm, é
incrível. Não há uma única família de elefantes que não tenha tido
uma experiência violenta e negativa com seres humanos, e muitos
vivem traumatizados com isso e odeiam­-nos. Jamais esquecem o mal
que lhes infligimos, mas também não esquecem as raras coisas boas
que os homens lhes fazem. Quando morreu Lawrence Anthony, um
tipo conhecido por proteger os elefantes, duas dezenas de elefantes
convergiram para casa dele e ficaram ali durante dois dias, sendo que
havia mais de um ano que nunca lá tinham aparecido. Nada se pode
provar, claro, mas pareceu a todos evidente que estavam a prestar
homenagem ao seu amigo humano.”
“Incrível.”
“Por vezes formam­-se entre os seres humanos e os animais alianças
improváveis. No deserto do Calaari, por exemplo, os bosquímanos
recusavam­-se a atacar os leões e os leões recusavam­-se a atacar os
bosquímanos. Não havia notícia de homens a matar leões e de leões a
matar homens. Isso mudou, claro, quando os europeus chegaram e se
puseram aos tiros aos leões. Ou repara no caso das aves. Quando se
descobriu que os corvos da Nova Caledónia eram as aves mais
inteligentes do mundo, capazes de feitos cognitivos superiores aos dos
chimpanzés, começaram a fazer­-se experiências com eles. Uma das
primeiras envolveu um corvo chamado 007. Um dos cientistas que
trabalhava com os corvos reve­lou que lhe bastava apontar para o 007
e o espertalhão vinha logo ter com ele. Por vezes punha­-se mesmo à
entrada, à espera de que o chamassem para os exercícios cognitivos.
Até moluscos já foram observados com este tipo de comportamento
em relação aos seres humanos.”
Tomás arregalou os olhos, incrédulo.
“Moluscos?!”
“Espantoso, não é? Na costa leste da Austrália foi descoberta
acidentalmente uma espécie de cidade de polvos, designada por
Octopolis. A descoberta foi feita por um mergulhador chamado
Matthew Lawrence. Ele registou as coordenadas desse lugar por GPS e
começou a visitá­-lo com regularidade. Os polvos não ficaram
intimidados com a presença do mergulhador e alguns aproximaram­-
se, brincando com ele e com a sua câmara subaquática. Ao fim de
múltiplas visitas, um pequeno polvo que se habituara a Matthew, e
que pelos vistos percebera o interesse dele pela sua espécie, estendeu­-
lhe um dos seus tentáculos e agarrou­-lhe a mão, puxando­-o
suavemente ao longo do fundo marinho. Matthew disse que era como
se uma criança de oito pernas o estivesse a levar para algum sítio. A
viagem durou dez minutos, ao cabo dos quais o polvo lhe mostrou o
covil onde vivia.”
“Um polvo fez isso a um ser humano?”
“Os animais criam laços incríveis connosco, Tomás. São conhecidas
imensas histórias de cães que adoram os donos, que brincam com eles,
que uivam quando os veem partir. Esses casos são tantos que até se
tornaram banais, mas o que é notável é encontrar os mesmos
comportamentos em animais retirados da selva. Uma professora de
biologia comportamental chamada Joanna Burger tinha um papagaio
brasileiro que passou muito tempo com a sogra de Joanna no último
ano de vida da senhora. Quando a sogra já agonizava, o papagaio
tornou­-se tão protetor que tentava impedir que alguém tocasse nela.
Joanna contou que nos últimos dias o papagaio nem sequer queria
comer, para não a deixar sozinha. Na noite em que a velha senhora
morreu, o papagaio pôs­-se aos berros, coisa que nunca fazia, e nos
meses seguintes passou horas e horas no quarto que ela tinha ocupado
em vida.”
Não era fácil ouvir aquelas histórias quando se sabia a que ponto os
seres humanos haviam escravizado, torturado e exterminado os
restantes animais em nome do seu próprio bem­-estar. Não havia
dúvidas, tudo na vida tem um preço. A vida de alguns mil milhões de
seres humanos assenta sobre a miséria de biliões de outros animais.
Rodando o volante, Tomás virou à esquerda e deu com o
restaurante. Estacionou o automóvel e desligou o motor.
“Sabes o que te digo, Florzinha?”, perguntou­-lhe antes de saírem da
viatura. “O nosso planeta está a morrer de cancro e o tumor é a
humanidade.”
O restaurante estava cheio, como era habitual, o que complicava a
coisa porque dessa vez não haviam feito reserva. Contudo, o
empregado redondinho que os costumava atender, o senhor Lopes, lá
lhes desenrascou dois lugares à janela.
“Ó professor, então o senhor abandonou ontem o almoço a meio?”,
perguntou o empregado. “Valha­-me Deus! O leitãozinho até uivou de
tristeza, coitadinho.”
“Pois é, Lopes. Tivemos um assunto urgente e... lá teve de ser. Mas
agora vamos compensar, pode ter a certeza.” Varreu com o olhar as
mesas em redor. “O que tem hoje para o almoço?”
O homem inclinou­-se para eles, como se fosse partilhar um grande
segredo.
“Os bifinhos com cogumelos e molho de natas acompanhados por
batatinhas fritas às rodelas e esparregado estão uma maravilha”, disse.
“Mas o lombinho de porco assado com ameixas e batata­-doce... ui! É
divinal! Di­-vi­-nal!”
Maria Flor nem hesitou.
“Para mim, já sabe. É o prato vegetariano.”
“A senhora não perdoa, hem?” O senhor Lopes tomou nota. “Muito
bem.” A seguir pousou um menu diante de Tomás. “Deixo­-lhe aqui a
ementa e depois dar­-me­-á notícias. Mas olhe que o lombinho é mesmo
de chorar por mais...”
O homem virou as costas e foi atender outros clientes, deixando o
casal entregue ao menu. Tomás consultou a lista e viu os bifinhos com
cogumelos e natas acompanhados por batatas fritas às rodelas e
esparregado e o lombo de porco assado com ameixas e batata­-doce,
por entre outros pratos descritos no cardápio de maneira assaz
suculenta.
“Então?”, quis saber Maria Flor. “O que vais comer?”
O marido respondeu com uma careta.
“Bem, temos aqui muita carne, não é verdade? Por um lado, há a
questão de que, ao comermos carne, não só estamos a contribuir para
a emissão de mais gases com efeito de estufa que aquecem o planeta
como somos cúmplices de todo o sofrimento que os seres humanos
impõem a biliões e biliões de animais.” Hesitou. “Mas, por outro
lado, temos de comer, não é verdade? Se não podemos comer carne,
comemos o quê?”
“Vegetais.”
“Ora ora! Alfaces não puxam carroça.”
“Quem te disse isso?”
“Bem... toda a gente sabe. Comer carne pode não ser bonito, mas é
uma coisa natural e necessária.”
“Natural? Necessária?”, quase se escandalizou Maria Flor. “A
violação é uma coisa natural, Tomás. O homicídio é também uma
coisa natural. Até a escravatura é uma coisa natural. Mas não é por a
violação, o homicídio e a escravatura serem naturais que os aceitamos,
pois não? Além do mais, e como já decerto percebeste, comer carne
envolve escravizar, violar e matar. Tudo isso é sem dúvida natural,
mas... será aceitável? E quanto ao neces­sário, onde está escrito que é
necessário comer carne?”
“Precisamos de proteínas para viver...”
“Claro que precisamos”, confirmou ela. “Mas o que tem a ver a
carne com as proteínas?”
A resposta foi tão desconcertante que deixou Tomás atra­palhado.
“Quer dizer... as proteínas estão na carne.”
“Nos vegetais também.”
Não era falso, como ele bem sabia.
“Pois, está bem, mas nem todos os vegetais têm proteínas em
quantidades adequadas.”
“É uma questão de escolheres os vegetais certos”, disse Maria Flor.
“A verdade é que a proteína pode ser encontrada em toda a parte. Nas
nozes, nas verduras, nas sementes, nos feijões, no grão... até na fruta.
O tofu concentra muitíssimo mais proteína do que o leite, por
exemplo, e os brócolos e os espinafres têm tanta proteína quanto os
ovos. Onde pensas que os animais vão buscar a proteína? Aos
vegetais. Para quê comermos animais por causa da proteína se
podemos evitar o intermediário e ir diretamente à fonte? A proteína
vegetal, que produz novas proteínas mais devagar do que a proteína
animal, é até considerada a proteína mais saudável. Sabemos hoje que
o excesso de proteína animal provoca alguns tipos de cancro e
também doenças nos rins e osteoporose. A proteína vegetal não tem
esses inconvenientes. Com recurso a um nutricionista, podes
perfeitamente desenvolver uma dieta equilibrada e sem encorajar a
crueldade contra os animais nem a destruição de florestas e dos
oceanos, nem o excessivo consumo de água doce nem o aquecimento
global. Além disso, é uma dieta mais benéfica para a saúde. O
consumo de carne e laticínios provoca colesterol, hipertensão,
diabetes, obesidade, doenças cardíacas e cancros, para além de artrite
e muitas outras doenças, incluindo vírus perigosos como o da
Covid­-19 e outros. Já os peixes, para além de começarem a escassear,
estão cheios de toxinas: chumbo, mercúrio, arsénico, crómio, cádmio
e outras toxinas que provocam cancro, para além de substâncias
radioativas como o estrôncio­-90 e todas as bactérias, vírus, pesticidas
e inseticidas que lançamos em quantidades industriais para o mar.
Evitando a carne, o leite animal e o peixe, poupas­-te a isso tudo.
Estudos científicos mostram que uma dieta baseada em vegetais, sendo
equilibrada e bem feita, reduz os riscos de doenças nas artérias
coronárias, hipertensão, obesidade, diabetes e certos tipos de cancro.”
“Sim, mas há ingredientes que só podem ser encontrados na carne
ou no leite”, insistiu ele. “O cálcio, por exemplo. O leite está cheio de
cálcio. Se não tivermos cálcio, partimos os ossos.”
“Achas que as vacas e as ovelhas criam o cálcio a partir do nada? O
cálcio vem dos vegetais verdes, Tomás. Elas comem a erva e assimilam
o cálcio que lá se encontra, transferindo­-o depois para o leite.
Exatamente como acontece com as proteínas da carne, podemos evitar
o intermediário, o leite, e ir buscar o cálcio à fonte, os vegetais verdes.
Aliás, há até maior concentração de cálcio nas couves, na alface­-
romana, no tofu e nas nabiças do que no leite. Além disso, se o leite
contém cálcio, a carne contém um tipo de proteína problemática para
os ossos. Há estudos que revelaram que setenta por cento das fraturas
nos ossos são causados pelo consumo de proteína animal.”
Ninguém ignorava os problemas de uma dieta baseada na carne, e
Tomás muito menos. Mas não estava convencido.
“Desculpa, há pelo menos duas coisas que só podem ser encontradas
na carne”, disse. “O ferro e a vitamina B12.”
“Para tua informação, o ferro também pode ser encontrado nos
vegetais. O feijão preto, o grão, as lentilhas, a quinoa, o tofu, a
cevada, os frutos secos como as avelãs, o caju, as amêndoas... todos
têm ferro. É verdade que em menos quantidade do que nos animais, o
que implica que temos de comer mais, mas está lá.”
“E a B12?”
Ela fez uma pausa, como se ponderasse o que responder.
“Pois, a B12 é de facto um problema”, acabou Maria Flor por
reconhecer. “Os vegetais não têm B12. De qualquer modo, é uma
vitamina que só tem mais importância para as grávidas e as
crianças...”
“Mas tem”, disse Tomás, pressionando neste ponto. “Como se faz
nesses casos?”
“Só tomando suplementos com B12.”
“Se tomamos suplementos não estamos a comer comida natural,
Florzinha. Além do mais, tanto quanto sei a maior parte das pessoas
que optam por dietas vegetarianas acabam por desistir passado um
ano. Só uma minoria persiste.”
A mulher esboçou uma expressão resignada.
“Ouve, não há soluções perfeitas. Mas algumas coisas temos como
certas. Em primeiro lugar, o ser humano não é carnívoro, é omnívoro.
Quer isso dizer que o nosso metabolismo está concebido para comer
carne e peixe, mas também para comer vegetais. Comer carne e peixe
não é pois uma obrigação, é uma simples opção. Comemos carne e
peixe porque escolhemos comer carne e peixe. Comemos carne e peixe
porque aderimos a uma ideologia que glorifica os comedores de carne
e peixe, uma ideologia invisível que nos foi inculcada e cuja prática
assenta no recurso massivo à violência. Aliás, nem é normal que um
ser humano coma mais carne ainda do que os leões, os quais, esses
sim, são mesmo carnívoros. Como omnívoros que somos, podemos
perfeitamente escolher comer vegetais. Sabemos que comer carne e
peixe tem consequências graves. Por um lado, encoraja a crueldade
para com os animais. Por outro, encoraja a indústria que mais gases
com efeito de estufa emite, que mais floresta destrói, que mais
poluição lança para os mares, que mais espécies extermina, que mais
água doce consome, que mais bactérias resistentes aos antibióticos
desenvolve. Por fim, a carne e o peixe são os alimentos que mais
doenças provocam no corpo humano. Se não queres cortar
completamente com a carne e com o peixe, por causa do ferro e da
B12, porque não reduzes simplesmente o consumo? Em vez de
comeres todos os dias ou dia sim, dia não, por exemplo, podes só
comer carne e peixe uma vez a cada duas semanas.”
A ideia não era disparatada de todo, considerou Tomás. Mas não
tinha ainda a certeza se seria boa.
Esboçou uma careta, quase de dor, perante a perspetiva de perder
aqueles suculentos bifinhos com cogumelos e natas.
“O problema é que a carne é tãaao saborosa...”
“Esse é um problema em vias de resolução”, ripostou ela como se a
questão fosse irrelevante. “Já está a ser produzida carne sintética com
base em células desenvolvidas em laboratório. O mesmo acontece com
o leite e os ovos. E começou­-se também a produzir carne a partir de
vegetais, manipulando­-se moléculas que geram o sabor a carne.”
A ideia escandalizou o marido.
“Carne sintética!? Isso deve fazer muito mal.”
“Pelo contrário, a produção in vitro permite manipular os nutrientes
de modo a eliminar toda a parte tóxica e manter a parte saudável.”
“Mas... mas é comida artificial.”
“E o leite?”, questionou Maria Flor. “Achas que já vem da vaca
pasteurizado? A pasteurização é um processo artificial, querido. Não é
por isso que deixamos de beber leite, pois não? E os animais que
comes, achas que existiam naturalmente no mundo? Não existiam. Na
sua maior parte resultam de cruzamentos feitos pelo homem para
aumentar a sua massa de carne. Ou olha para o caso dos vegetais. As
couves, por exemplo. No seu estado natural elas eram intragáveis.
Foram manipulações feitas pelos agricultores que permitiram criar as
couves que comemos todos os dias. Portanto, comida artificial é o que
mais há por aí, meu lindo. A carne sintética é mais saudável e tem até
a vantagem de não matar um único animal e de devolver campos
agrícolas à natureza. Achas isso assim tão mau?”
Por momentos Tomás ficou sem saber o que dizer, pausa
prontamente aproveitada pelo empregado do restaurante. O senhor
Lopes abeirou­-se da mesa com o seu ar rechonchudo e encarou­-os na
habitual postura solícita, a caneta e o bloco de notas em prontidão.
“Então, o senhor professor já escolheu?”, quis saber. “Vão ser os
bifinhos ou o lombinho de porco? Ou prefere um bacalhauzinho à Zé
do Pipo?”
Com toda aquela conversa com a mulher, Tomás apercebeu­-se de
que não havia ainda estudado a ementa. O lombo de porco com
ameixa parecia mesmo delicioso, pois já vira o prato nas mesas em
redor, mas os bifinhos com cogumelos e natas tinham muito que se
lhes dissesse. Sentia­-se inclinado para estes últimos.
Hesitou.
Olhou para o empregado, depois para Maria Flor e a seguir de novo
para o empregado. Percebeu que estava com dificuldade em decidir­-se.
Espreitou o menu, varrendo de uma assentada a lista de pratos, e
depois voltou a encarar a mulher. Vinda do nada, ali estava a
oportunidade para mudar as coisas no seu casamento. Era agora que
provaria a Maria Flor que mudara, era agora que partilharia com ela
as suas preocupações e interesses, era agora que lhe mostraria que
podia contar com ele.
Agora.
Virou­-se para o senhor Lopes, a decisão enfim tomada.
“Uma... uma saladinha, por favor.”
.

Nota final

O meu relacionamento com os animais nunca foi tranquilo.


Contou­-me a minha mãe que, em pequeno, fui mordido por um cão
(depois de alegadamente lhe ter dado uns valentes pontapés). Não sei
se terá sido por isso, mas a verdade é que passei uma vida inteira a
desconfiar da bicharada. Não consigo ler os animais, não sei
interpretar as suas posturas, não percebo se um cão ladra porque me
quer morder ou simplesmente porque acordou indisposto. Estes e
outros animais sempre foram para mim enigmas cuja chave nunca
encontrei.
Escrever este livro foi, por isso, uma revelação. Ao estudar as
descobertas feitas por etólogos e outros cientistas sobre a inteligência,
as emoções, a capacidade de comunicação e a consciência dos animais,
não pude deixar de me sentir surpreendido e, sim, maravilhado. Claro
que todos nos encantamos com os documentários sobre a vida
selvagem e com os comportamentos que neles os animais revelam, mas
sempre tive a noção de que as aparências enganam, que o que parece
uma coisa pode na realidade significar outra completamente diferente.
Os etólogos, aliás, falam abundantemente nisso. O esgar de medo de
um chimpanzé, por exemplo, é semelhante a uma gargalhada dos
humanos. A mesma expressão significa coisas diferentes, por vezes até
opostas, razão pela qual quando vemos num filme um chimpanzé
aparentemente a rir­-se, ele está na verdade aterrorizado.
O desafio neste romance era tecer uma história em torno da
consciência, da inteligência e das emoções dos animais, uma intriga
em que os próprios animais fossem ao mesmo tempo tema e
protagonistas, mas de uma forma diferente do que é normalmente
feito quando os animais desempenham um papel na ficção. Não
pretendia pô­-los a comportarem­-se de maneiras que eles não se
comportam e muito menos escrever uma fábula. Queria simplesmente
penetrar no âmago das suas capacidades cognitivas, segundo o estado
atual dos conhecimentos científicos, e expô­-las numa narrativa de
ficção. Escolhi como género literário para o fazer o romance policial,
embora me pareça evidente que este livro não possa ser descrito
estritamente como um policial.
Como sempre acontece na minha obra de ficção, toda a informação
do romance que não faz parte da intriga propriamente dita é verídica.
Muito importante, todos os comportamentos dos animais que vemos
retratados nesta história, mesmo os que se nos afiguram mais incríveis
e que pensamos serem de certeza confabulados, resultam de
observações feitas efetivamente por cientistas e, por isso, podem ser
dados como fidedignos.
Assim, é verdade que uma série de chimpanzés e bonobos, e até
alguns gorilas, aprenderam a comunicar por língua gestual humana,
especificamente na sua versão americana, a ASL. Há vários estudos
científicos em torno de tudo o que esses primatas disseram, embora a
metodologia permaneça polémica. Isso significa que todos os atos de
comunicação de Guida, incluindo construções gramaticais com elisão
lexical como fruta que chora, foram observados em chimpanzés reais a
quem foi ensinada língua gestual, sobretudo os chimpanzés Washoe e
Lucy, mas outros também. Da mesma maneira, todos os
comportamentos e atos de comunicação de Carioca, incluindo
construções gramaticais com elisão lexical como banerry e até
expressões emitidas em contexto apropriado como dou­-te um pontapé
no cu, filho da puta! e outras, foram observados em papagaios reais,
sobretudo Alex, um papagaio­-cinzento africano amplamente estudado
por Irene Pepperberg, mas também Griffith e outros. Vídeos de Alex e
Griffith podem ser vistos na Internet. Nenhum ato comportamental ou
de comunicação que observamos nos animais presentes neste romance
resulta da minha imaginação. Isso é válido para a chimpanzé Guida e
para o papagaio Carioca, mas também para as vacas Alice e
Gertrudes, a galinha Elvira e os porcos Miss Piggy, Bolinha e
Napoleão, entre outros. Os comportamentos dos animais desta ficção
são baseados em comportamentos reais de ­animais que de facto
existiram.
O problema é que o reconhecimento das capacidades cogni­tivas dos
animais e a sua semelhança e continuidade com as nossas próprias
capacidades põe em causa o estatuto especial que a religião, as
ideologias e até a ciência ao longo do tempo atribuíram à espécie
humana. Como pode o ser humano ser especial se afinal tudo o que
ele é e faz os restantes animais também são e fazem, embora em graus
ou de maneiras diferentes? Nenhum episódio ilustra melhor essa
situação do que uma série de espetáculos organizados a partir de 1926
pelo jardim zoológico de Londres. Os respon­sáveis do zoo resolveram
vestir os chimpanzés e ensiná­-los a tomar chá com biscoitos para que
se exibissem em cerimónias abertas ao público. As tea parties, no
entanto, criaram desconforto em muitos visitantes, pois o
comportamento dos chimpanzés assemelhava­-se perturbadoramente
ao das pessoas. Para resolver o problema, o zoo procedeu a algumas
alterações, ensinando os animais a fazer um sem­-número de tropelias
divertidas, como partir chávenas e molharem­-se uns aos outros. Com
os chimpanzés assim desumanizados, as tea parties tornaram­-se enfim
um sucesso, ao ponto de só terem deixado de ser realizadas em 1972.
A experiência das tea parties dos chimpanzés ilustra bem a
inquietação suscitada pela constatação de que as capacidades
cognitivas dos animais se assemelham tanto às nossas, mas também o
nosso esforço por esconder toda essa realidade. É que a questão da
inteligência, emoções e consciência dos animais e as suas inegáveis
relações com a nossa própria cognição tem ligação direta a outros dois
temas bem menos encantadores mas igualmente importantes, ambos
abordados nesta obra. Por um lado, a forma como tratamos os
animais, tanto os selvagens como os que fornecem carne, ovos e leite
para os nossos estômagos, e por outro o problema do aquecimento
global e do papel que a pecuária desempenha na emissão de gases com
efeito de estufa, na desflorestação do planeta, no consumo
insustentável de água doce e na poluição em geral.
Chega a ser chocante constatar como estas duas realidades são
ignoradas no discurso público. Há alguém que possa, com verdade,
dizer que não sabia que os matadouros existem e que os animais são
aí mortos todos os dias a uma escala industrial? E, no entanto, o que
sabemos nós sobre o que realmente se passa dentro dos matadouros?
Como são de facto os animais mortos? Será verdade que as mortes
deles são rápidas e limpas e que eles não sofrem? Ou é isso dito para
silenciar as nossas consciências? Porque queremos tanto acreditar
nessas garantias? O que fazemos nós para apurar a verdade?
Queremos mesmo saber a verdade? Como se compatibiliza o nosso
amor pelos cães e pelos gatos com o nosso gosto por um belo bife ou
por um leitãozinho à Bairrada? O que tem um cão que um porco não
tenha? Porque merece um dormir aconchegado aos nossos pés e o
outro que lhe cortem os testículos sem anestesia para que não exale
um cheiro desagra­dável quando nos chega ao prato? Como se
compati­biliza a nossa retórica contra Auschwitz com o nosso silêncio
perante o holocausto que decorre todos os dias em múltiplas fábricas
de morte situadas nas redondezas dos sítios onde vivemos? Irão as
gerações futuras julgar o nosso comportamento de hoje para com os
animais da mesma maneira que nós julgamos hoje os nacional­-
socialistas pelo seu comportamento de ontem para com os judeus e
outros povos “animalescos”?
Não menos desconcertante é o silêncio em torno do importantíssimo
papel que a produção industrializada de animais para consumo
desempenha no aquecimento global. Quantos ecologistas não vemos
nós perorar sobre os nefastos efeitos dos meios de transporte,
designadamente pela queima de combustíveis fósseis, na emissão de
gases com efeito de estufa? E quantos políticos falam sobre o
problema da pecuária industrial, que contribui mais para o
aquecimento global do que todos os transportes de todo o planeta
juntos? Por que razão os governos encorajam a mudança para os
carros elétricos, assim se apresentando muito preocupados com a
ecologia para captar os votos do eleitorado verde, mas continuam a
subsidiar massivamente a produção animal, desse modo financiando e
encorajando o crescimento da atividade humana que mais contribui
para a desflorestação do planeta, o consumo de água doce, a poluição,
o fim da biodiversidade e a emissão de gases com efeito de estufa? Vou
repetir isto, para que se leia bem: os nossos governos estão a subsidiar
massivamente a atividade humana que mais contribui para o
aquecimento global, a destruição das florestas, o sofrimento dos
animais e o extermínio da vida selvagem. Fazem­-no com o dinheiro
dos nossos impostos.
Dir­-nos­-ão os governantes que não há alternativa, a indústria de
produção animal é um mal necessário, mais vale olharmos para o lado
e mantermo­-nos na nossa ignorância voluntária. Que ninguém se
deixe iludir. Além de a pecuária contribuir mais do que todos os
transportes do mundo para o aquecimento global, é infinitamente
mais fácil e eficaz parar com a produção animal do que com o modelo
que envolve a queima de combustíveis fósseis. O fim deste requer um
período longo de transição, pois as implicações de uma paragem
abrupta do atual modelo energético seriam demasiado profundas para
que uma tal ação pudesse ser seriamente contemplada no imediato.
Com a pecuária industrial é diferente. Bastaria que as pessoas de um
dia para o outro deixassem de comer carne e passassem a seguir uma
dieta à base de vegetais. Mais nada. É verdade que todos os setores
ligados à pecuária entrariam em colapso, mas esse seria um preço
baixo a pagar quando comparado com os benefícios globais.
Em primeiro lugar, parar de comer carne seria mais eficaz na
travagem do aquecimento global. Os combustíveis fósseis emitem
dióxido de carbono, cujo meio­-tempo de vida é de um século, mas os
animais são os grandes emissores mundiais de metano, cujo meio­-
tempo de vida é de apenas oito anos. Quer isto dizer que se
parássemos hoje a queima de combustíveis fósseis, o que não é
possível, o planeta levaria dois séculos a recuperar. Mas se parássemos
hoje o consumo de carne, o que depende apenas da vontade de cada
um, o planeta recuperaria numa década e meia. Ou seja, parar de
comer carne é muito mais eficaz do que interromper a queima de
combustíveis fósseis. Em segundo lugar, seria também mais fácil. O
custo alimentar de passar de um dia para o outro a comer apenas
vegetais é zero, pois hoje em dia já existe a produção instalada para
tal, como veremos a seguir. Em terceiro lugar, seria saudável. Não
podemos esquecer que os seres humanos são omnívoros, o que quer
dizer que podemos perfeitamente viver de vegetais e estes até são mais
salutares, embora tal opção requeira sempre o acompanhamento de
nutricionistas para que não se cometam erros elementares. Uma boa
dieta só se consegue informadamente e com equilíbrio.
Poder­-se­-ia contrapor que parar de comer carne nada resolveria, pois
fazer agricultura para gado ou para pessoas é sempre fazer
agricultura. Obrigaria na mesma a desflorestar e a poluir. Não é assim.
Sabemos hoje que gastamos mais quilos de vegetais para alimentar os
animais de abate do que aqueles que obtemos com a carne desses
animais. Nas galinhas esse rácio é de dois quilos de vegetais por cada
quilo de carne, enquanto nos porcos é de cinco quilos de vegetais por
cada quilo de carne e nos bovinos é de oito quilos de vegetais por cada
quilo de carne. Para quê gastar tantos vegetais por cada quilo de
carne? Não seria mais racional comermos nós diretamente esses
vegetais?
De toda a terra existente no nosso planeta, calcula­-se que 45 por
cento seja usada para criar animais para abate ou para cultivar a
comida que os alimenta, enquanto apenas cinco por cento se destina à
plantação de alimentos para consumo direto pelos seres humanos.
Facto espantoso, estes cinco por cento produzem oitenta por cento das
calorias consumidas pelos seres humanos. Quer isto dizer que, se
pegássemos numa pequeníssima fração dos 45 por cento de terra
dedicada aos animais para abate e a transformássemos em terra para
produção de alimentos para os seres humanos, isso chegaria para nos
alimentarmos. O resto, na verdade a grande parte, seria devolvido à
natureza.
Só a atual produção mundial de grão, por exemplo, seria suficiente
para alimentar o dobro da atual população mundial. Apenas
produzimos tanto grão porque precisamos dele para alimentar os
milhares de milhões de animais que comemos. Um terço da produção
mundial de cereais destina­-se aos animais de consumo e o mesmo
acontece com noventa por cento da produção mundial de soja. Se em
vez de comermos esses animais comêssemos o que eles comem,
poderíamos perfeitamente restituir à vida selvagem as vastas
quantidades de terra que desflorestámos e continuamos a desflorestar
para servir a pecuária. Com uma vantagem adicional: passaríamos a
comer comida saudável.
Para os amantes da carne há outras alternativas que começam a
aparecer. Por exemplo, os bifes vegetais com sabor a carne. São feitos
de plantas produzidas de forma sustentável e sujeitas a manipulação
molecular para copiar o sabor a carne. Começaram assim a ser
produzidos hambúrgueres, carne de porco e almôndegas a partir
exclusivamente de vegetais. Outro caminho, para aqueles que não
dispensam a carne verdadeira, é a carne sintética. Usando células de
uma galinha, de uma vaca ou de qualquer outro animal numa placa de
Petri, é possível desenvolver in vitro carne em laboratório sem que tal
envolva a pecuária, o uso de antibióticos e fungicidas e a matança de
animais. Igualmente importante, é possível manipular essa carne de
modo a retirar­-lhe as toxinas e torná­-la cem por cento saudável. Isso
pode ser feito em grandes centros de produção, mas também na
cozinha de qualquer restaurante devidamente equipado. Os preços
para produzir essa carne são ainda elevados, mas a produção em
massa irá tornar tais produtos acessíveis. Há ainda desafios técnicos
para resolver, como é evidente, mas o facto de Singapura se ter
tornado em 2020 o primeiro estado do mundo a aprovar carne
sintética para venda aos consumidores mostra que estamos perante
um caminho sem retorno. “É um game over para a indústria da
carne”, avisou o diretor­-geral da Impossible Foods, Patrick Brown,
prevendo o fim da pecuária mundial até 2035. “Eles é que ainda não
perceberam.”
Em suma, travar o aquecimento global depende unicamente de nós.
Basta que deixemos de comer a carne produzida pela indústria
pecuária. De nada serve organizarmos manifestações contra o
aquecimento global e em tom reivindicativo exigirmos aos outros
mudanças nas políticas quando o principal motor das mudanças
climáticas são os nossos próprios comportamentos alimentares. Exigir
que os governos mudem não passa de uma forma de transferir para
outros uma responsabilidade que é na verdade nossa. Nós somos os
responsáveis, nós é que temos de mudar. Nós. Queremos parar a
emissão de gases com efeito de estufa? Não são precisos fanatismos
nem militâncias exacerbadas nem confrontos tensos nem bodes
expiatórios que possamos culpabilizar para aliviarmos as nossas
consciências sem nada realmente resolvermos. Basta começarmos a
comer exclusivamente vegetais ou então carne sintética. Nada de carne
da pecuária. Com o fim da procura acaba a oferta, tão simples quanto
isso. Os agentes da mudança somos nós.
O problema, além disso, não diz apenas respeito ao aquecimento
global, como bem se entende neste romance. É também ético. Por toda
a parte os seres humanos comportam­-se como tiranos. Onde chegam,
submetem ou destroem. Escravizamos os animais ou chacinamo­-los
em massa diretamente na caça e indiretamente pela destruição dos
seus habitats e dos seus recursos alimentares. Como disse o
historiador israelita Yuval Noah Harari, a pecuária é “o pior crime da
história”. O pior. E não se passa algures na Idade Média ou em
campos de concentração da URSS, da Alemanha nazi ou do
Cambodja. Está a acon­tecer agora.
Veja­-se o que se passa nos matadouros. Um vídeo gravado num
matadouro americano chegou ao The Washington Post com imagens
que mostravam bovinos a serem retalhados vivos na linha de
processamento. O vídeo era acompanhado por declarações assinadas
por vinte trabalhadores a assegurar que as imagens mostravam
acontecimentos rotineiros. “Já vi milhares e milhares de vacas
prosseguirem na linha com vida”, escreveu um deles, sublinhando que
“as vacas podem continuar vivas durante sete minutos ao longo do
processo de matança”. Outros trabalhadores de matadouros fizeram
revelações semelhantes quando questionados por investigadores.
“Naquela tarde quase todas as vacas que avançaram pela linha —
pelo menos uma centena — estavam vivas”, disse um deles à
investigadora Gail Eisnitz, enquanto outro indicou que “muitas vezes
o meu colega que lhes arranca a pele desco­bre que o animal ainda está
consciente quando lhe decepa uma parte da cabeça e o vê espernear
selvaticamente”. A matança dos porcos segue padrões semelhantes.
“Quando chegam a mim, a maior parte deles ainda está consciente,
esperneando e tentando morder­-nos”, revelou o trabalhador de um
ponto da linha onde os animais supostamente chegavam já cadáveres,
enquanto outro garantiu que “na altura em que são atirados ao
tanque com água a escaldar eles estão ainda totalmente conscientes e a
guinchar. Acontece a toda a hora.”
Contratada pela McDonalds para verificar o modo de produção de
carne, uma professora de ciência animal, Temple Grandin, estudou
durante trinta anos os matadouros da América e revelou que
encontrou atos deliberados de crueldade em mais de trinta por cento
das instalações que inspecionou em visitas previamente anunciadas. Se
as coisas eram assim em visitas anunciadas, imagine­-se como não será
quando não há inspetores por perto. “Sempre que os inspetores vêm
verificar as coisas, a zona de matança é uma maravilha”, revelou um
trabalhador, “mas logo que se vão embora regressamos ao normal.” O
que é o normal num sítio onde a matança se torna rotina e tanta
morte torna os trabalhadores insensíveis ao sofrimento? Atente­-se
neste relato feito por um deles. “Uma vez peguei na minha faca — que
é bem afiada — e decepei a ponta do nariz de um porco como se fosse
um pedaço de carne picada”, revelou ele. “O porco enlouqueceu por
alguns segundos e depois sentou­-se com cara de estúpido. Peguei
numa mão­-cheia de sal e esfreguei­-lho no nariz. O tipo passou­-se dos
carretos, enfiando o focinho por toda a parte. Eu ainda tinha algum
sal na minha mão — usava uma luva de borracha — e meti­-o pelo cu
dele. O coitado já não sabia se devia cagar ou cegar.”
Histórias destas são legião nos matadouros e poderiam encher
páginas e páginas. E não se pense que este é um problema exclusivo da
América. Tudo isto acontece no resto do mundo, incluindo na Europa.
O Reino Unido e a União Europeia aprovaram legislação para impedir
a crueldade contra os animais, mas multiplicam­-se os casos em que o
texto legal não passa de letra morta. A organização Meat the Victims
filmou cenas horríveis em instalações certifi­cadas pelas autoridades
britânicas como tendo “padrões elevados” e a L214 fez o mesmo em
França. Independentemente da retórica usada para tranquilizar os
consumidores, avisou esta organização francesa, “a realidade é no
entanto outra” e nos matadouros “o medo e o sofrimento são
inevitáveis (...) mesmo nas melhores condições técnicas”, pois “as
infrações são uma constante”.
O problema alastra­-se por toda a Europa, com o Eurogroup for
Animals a registar que “na altura da matança os animais não ficam
sempre inconscientes”, situação que levou outra organização, a PETA,
a concluir que nos matadouros “a matança é sempre cruel”. Os
maiores problemas têm a ver com a contratação a salários baixos de
pessoal para trabalhar nos matadouros, com a falta de formação desse
pessoal, com a existência de funcionários brutali­zados que recorrem a
violência gratuita, com o recurso a equipamento deficiente, com o uso
de métodos de matança ineficazes e com a necessidade de efetuar uma
execução de cinco em cinco segundos, o que conduz a matanças
apressadas e mal feitas.
A desconformidade entre a bela legislação europeia e a realidade no
terreno estende­-se de resto a todos os domínios da exploração dos
animais pelos seres humanos. Por exemplo, em 2005 a Comissão
Europeia aprovou leis para regular o transporte de animais que o
Parlamento Europeu descreveu como “um exemplo para o resto do
mundo”. Pois em 2018 o dito “exemplo” foi fiscalizado pelos
próprios eurodeputados e descobriu­-se que afinal “os velhos
problemas” haviam regressado. A situação de desrespeito pela lei é tal
que catorze organizações europeias se juntaram para exigir o uso de
câmaras de videovigilância nas zonas de matança dos matadouros.
Em comentário ao grande extermínio em curso, desabafou Jane
Goodall: “Deus nos perdoe.” Perdoar­-nos­-á mesmo? Como podemos
nós continuar a ignorar esta realidade? Como podemos fingir que não
sabemos? O que estamos nós a fazer aos animais? Como podemos
tratá­-los desta maneira se eles são inteligentes, revelam consciência e
têm sentimentos? As criaturas do nosso planeta pensam, sentem e
compreendem. Merecem melhor da nossa parte e não podemos
continuar a comportar­-nos assim.
É importante que percebamos que a base moral da nossa atual
relação com os animais assenta na ideia de René Descartes de que os
animais não passam de autómatos, pois segundo ele não têm
consciência e nada sentem. Nem sequer dor. Para provar o que dizia, o
filósofo francês pegou no cão da mulher, pregou­-o pelas patas a uma
tábua e dissecou­-o vivo. Com o bisturi a abrir­-lhe o corpo, o cão pôs­-
se a uivar horrivelmente. Seria a prova de que afinal sentia dor? De
modo nenhum, foi a resposta de Descartes. Os mecanismos de um
relógio também emitem ruído quando são desmantelados, mas
ninguém acredita realmente que um relógio sente dor, pois não? Então
por que razão um cão, que na realidade não passa de uma máquina
automática como os relógios, a iria sentir?
A visão dos animais como máquinas insensíveis revelou­-se
instrumental para justificar um conjunto de comportamentos que
envolveram a sua escravização, tortura, matança e, sim, extermínio.
Um processo que avança a pleno vapor hoje em dia. Valha a verdade
que se diga que a culpa não é exclusivamente de Descartes, pois a
tradição cartesiana tem antecedentes antigos e prestigiados. A Bíblia,
por exemplo, estabeleceu que Deus fez os seres humanos à Sua
imagem, não à imagem dos animais, e disse­-lhes: “encham a terra e
dominem­-na; dominem sobre os peixes do mar e as aves do céu; sobre
os animais domésticos e selvagens e sobre todos os bichos que andem
sobre a terra” (Génesis, 1,28).
Esta ideia percorreu o seu caminho, em particular nas tradições
grega e romana. Embora reconhecendo que os animais partilham com
os seres humanos a maior parte das capacidades psicológicas,
incluindo as sensações e o desejo, Aristóteles escreveu que os “animais
existem para benefício dos homens”, posição secundada em Roma por
Cícero, para quem “os homens podem usar as bestas para os seus
propósitos sem que haja injustiça.” Em bom rigor, no entanto, o
filósofo romano pareceu ter começado a alimentar dúvidas quando viu
no Coliseu de Roma um “espetáculo” em que dezoito elefantes foram
mortos. Relatos da época indicam que os paquidermes, em vez de
lutarem, durante a matança ergueram as trombas para o céu e
emitiram um longo lamento, o que fez Cícero, que assistiu a tudo das
bancadas, escrever a um amigo a admitir a “sensação de que estes
enormes animais têm algo de comum com a humanidade”.
Esta posição teve natural continuidade na tradição cristã, muito
enraizada nos pensamentos grego e romano e expressa crítica e
artisticamente em O Jardim das Delícias Terrestres, o famoso tríptico
místico onde Hieronymus Bosch, contrariando a tendência do
Renascimento italiano em proclamar a beleza e a nobreza dos homens,
exprimiu antes a perversidade humana na sua relação com a natureza.
Bosch tinha muito por onde criticar. Santo Agostinho, por exemplo,
estabeleceu que os animais são “coisas vivas irracionais” cuja “vida e
morte está subordinada ao nosso uso”. Também Tomás de Aquino foi
claro ao enunciar que a vida dos animais “é preservada não para eles,
mas para o Homem”. Estavam assim criados os fundamentos para o
estabelecimento do humanismo, a ideologia que emergiu com o
Renascimento e que sacralizou a espécie humana. “O Homem”,
escreveu Francis Bacon, “pode ser encarado como o centro do
mundo”. Essa visão viabilizou a conceção dos animais como
autómatos, tal como expressa por Descartes, o que se revelou útil para
legitimar a escravização e matança dos animais. Se os animais eram
tão conscientes quanto um relógio, qual o problema em fazer deles o
que bem se entendesse?
A ciência abraçou essa ideologia com entusiasmo. Uma vez que o
Homem era a medida de todas as coisas e os animais meros objetos,
estes podiam perfeitamente ser utilizados para benefício e prazer
daquele. É certo que Charles Darwin já havia demonstrado que “tanto
os homens como os animais expressam o mesmo estado de espírito
pelos mesmos movimentos”, pois ambos partilham “os mesmos
sentidos, intuições e sensações — paixões, afetos e emoções similares,
mesmo as mais complexas; maravilham­-se e sentem curiosidade;
possuem as mesmas faculdades de imitação, atenção, memória,
imaginação e razão, embora em graus diferentes”, o que o levou a
lançar avisos contra a visão cartesiana dos “animais que
transformámos em nossos escravos.”
As dúvidas de Darwin sobre o uso instrumental dos animais pelos
seres humanos têm aliás origens tão remotas quanto a perspetiva
contrária. A mesma Bíblia que estabelece a subordinação dos animais
aos seres humanos contém um versículo a sentenciar que “quem mata
um boi é como aquele que mata um homem” (Isaías, 66,3), enquanto
o judaísmo prevê leis a interditar que se cause sofrimento aos animais,
a tsa’ar ba’alei chayim. Apesar dos textos de Santo Agostinho e de
Tomás de Aquino, os próprios cristãos desenvolveram uma corrente
de pensamento protetora dos animais, cristalizada nos ensinamentos
de São Francisco de Assis e de Santo António, entre outros. Os
próprios contemporâneos de Descartes contestaram a conceção
mecânica que o grande filósofo tinha dos animais. “Responde­-me,
mecanicista”, ques­tionou Voltaire com indignação, “a natureza inseriu
nos animais os dispositivos dos sentimentos para que eles nada
sintam?”
A visão cartesiana, porém, prevaleceu no seio da ciência. Isso
aconteceu sobretudo por influência de uma corrente que se tornou
dominante no pensamento científico, o behaviorismo. “Todas as
espécies, à exceção do homem, se comportam sem saber que o fazem”,
estabeleceu o principal teórico do behaviorismo, B. F. Skinner. Em
bom rigor, o que os behavioristas disseram foi que não é possível saber
o que se passa na cabeça de um animal. Um animal pode parecer que
pensa e sente dor, mas será que pensa e sente­-a mesmo? O que são os
seus pensamentos? O que é a dor para ele? Não sabemos. E mesmo
que o soubéssemos, coloca­-se a questão da “inutilidade das causas
interiores”, para usar a formulação de B. F. Skinner. A diferença desta
posição em relação à de Descartes é que o filósofo francês afirmou
perentoriamente que os animais não sentiam dor, enquanto os
behavioristas se limitaram a dizer que não é possível saber o que eles
pensam ou sentem, e que tudo isso é e será sempre desconhecido e,
portanto, irrelevante; e mesmo que fosse possível saber, tal
conhecimento seria inútil.
Desta posição de princípio dos behavioristas, assente num certo
solipsismo, até a adesão à tese cartesiana de que os animais não
pensam nem sentem foi um mero passo. Os cientistas, embora dizendo
que não era possível determinar o que os animais pensavam e sentiam,
passaram a agir como se isso significasse que os animais de facto nada
pensavam nem nada sentiam. Cientistas perfeitamente racionais que
consideravam evidente que a vida na Terra resultava da evolução das
espécies metamorfoseavam­-se por completo quando confrontados com
a questão do estatuto da espécie humana, considerando­-o
implicitamente especial e à parte do dos restantes animais, como se as
características do Homem tivessem descido do céu por graça divina e
não fossem, também elas, produtos da evolução que os próprios
cientistas consideravam evidente. Mais ainda, os cientistas que em
casa tinham cães e gatos cujas emoções e inteligência os seduziam
eram os mesmos que, uma vez chegados ao local de trabalho,
sustentavam que os animais eram irracionais e que não tinham
emoções nem cons­ciência, desmentindo no trabalho o que eles
próprios viam em casa, como se tivessem convenientemente
desenvolvido uma espécie de esquizofrenia racional.
Ou seja, em termos práticos os cientistas passaram a comportar­-se
nos laboratórios e na literatura especializada como se os animais
fossem realmente autómatos. Qualquer cientista que encontrasse nos
animais traços semelhantes aos dos seres humanos passou a ser
acusado de antropomorfismo e ridicularizado, o que teve como efeito
que a investigação sobre a cognição animal foi inibida e a descoberta
de comportamentos semelhantes aos nossos silenciada. Quando dois
animais que não eram da mesma família passavam muito tempo
juntos e se entreajudavam, por exemplo, não se podia dizer que se
tinham tornado “amigos”, mas apenas que haviam estabelecido uma
“ligação”. A censura criou mecanismos de autocensura e os cientistas,
impondo­-se a si mesmos o uso deste colete­-de­-força metodológico e,
sim, ideológico, deixaram de ver o que a evidência lhes mostrava. E se
viam, calavam.
É certo que ao longo do tempo continuaram a existir cientistas que
consideravam um erro a maneira como o behaviorismo estava a ser
interpretado, em particular os primatólogos japo­neses e o austríaco
Konrad Lorenz, mas foi preciso aparecer uma cientista de outra área,
desconhecedora dos tabus impostos pelo pensamento dominante na
psicologia e na etologia, para que as barreiras fossem definitivamente
quebradas. Essa cientista foi Jane Goodall, uma antropóloga britânica
que se dedicou a estudar os chimpanzés do Parque Nacional de
Gombe, na Tanzânia. Desconhecendo que o consenso científico do seu
tempo estabelecia que os chimpanzés não passavam de autómatos
biológicos, Goodall pôs­-se a falar nas suas “personalidades” e na sua
“infância”, atribuindo­-lhes “motivações” e até “humores”, e chegou
ao ponto de lhes dar nomes, um pecado mortal nos evangelhos
behavioristas.
Quando a cientista britânica tentou pela primeira vez publicar as
suas descobertas na Nature, o editor da revista substituiu os pronomes
pessoais ele e ela, que Goodall atribuíra aos chimpanzés, por it, o
pronome inglês usado para os objetos inanimados, mas a antropóloga
britânica fez finca­-pé e insistiu em manter o texto original. Os animais
não eram objetos inertes, sublinhou. No momento em que por fim
publicou os seus artigos, Goodall foi sujeita a uma avalancha de
críticas por parte dos seus colegas, que a acusaram de
antropomorfismo, e durante muito tempo a sua presença foi recusada
nas conferências científicas. Talvez porque se tratava de uma perfeita
outsider, não sobrevalorizou os esforços de a ridicularizar e
prosseguiu com o seu trabalho. Surgiram então outras investigações,
levadas a cabo por cientistas encorajados pelo exemplo de Goodall,
que confirmaram as descobertas feitas em Gombe e revelaram até mais
detalhes comportamentais comuns entre animais selvagens e seres
humanos.
A barreira foi assim derrubada. Num crescendo constante, foram
surgindo mais e mais descobertas que punham em causa a ideia
humanista de que o ser humano é especial e a medida de todas as
coisas. Pensava­-se que o Homem era o único capaz de fabricar
instrumentos, e afinal havia outros animais que os fabricavam.
Pensava­-se que o Homem era o único a ter linguagem, e afinal havia
outros animais que a tinham. Pensava­-se que o Homem era o único
capaz de pensamento causal, e afinal havia outros animais capazes do
mesmo. Pensava­-se que o Homem era o único com sentido de humor,
e afinal havia outros animais que revelavam sinais dele. Pensava­-se
isto e pensava­-se aquilo, para se descobrir invariavelmente que
existiam outros animais que conseguiam fazer a mesma coisa, na
maior parte das vezes de uma forma embrionária, noutras de uma
maneira até mais desen­volvida. O ser humano não é especial, o ser
humano não é o centro do mundo, o humanismo é afinal uma
ideologia como qualquer outra.
As revelações sobre as capacidades cognitivas dos animais
aceleraram sobretudo à entrada do século xxi, ao ponto de a imagem
deles que a ciência está agora a construir se ter tornado quase
antagónica daquela que prevalecia no século xx. O problema
transferiu­-se do antropomorfismo para o antropocentrismo. A atitude
anticientífica deixou de ser o ato de atribuir qualidades humanas aos
animais e passou a ser a recusa obstinada em reconhecê­-las, insistindo
na ideia de que a espécie humana é especial apesar da evidência em
contrário. É verdade que de certo modo as pessoas são especiais. Mas
as diversas espécies animais também o são. Cada uma é diferente,
cada uma com as suas especificidades e individualidade, mas também
cada uma com ligações às outras. Todas fazem parte de um todo, o da
grande família da vida na Terra.
É esta nova visão que põe seriamente em causa o paradigma que até
agora legitimava a forma como tratamos os animais. Se estamos a
descobrir que o Homem não é o único animal especial nem o centro
da criação, e que os seus talentos não apareceram por magia mas são
simples prolongamentos de talentos que encontramos noutros
animais, e que portanto todos os animais são especiais, como se
justifica moral e eticamente que os escravizemos, que os torturemos,
que os matemos e que os exterminemos, diretamente através da
pecuária e da pesca e indiretamente pela destruição contínua dos seus
habitats terrestres e marinhos? Como se justifica que os executemos
numa cadeia industrial de produção digna do Holocausto e como se
justifica que aceitemos tal coisa e a achemos natural e até banal?
Como se explica que, sabendo tudo isso, continuemos a achar normal
que se coma carne todos os dias? Como se compreende que
critiquemos os nazis pelas suas práticas genocidas e que todos os dias
sejamos cúmplices ativos da prática de genocídio para com os
animais?
A este fenómeno os psicólogos chamam dissonância cognitiva. Ou
seja, temos uma crença profunda sobre algo, neste caso que é errado
escravizar, torturar e matar alguém sensível, inteligente e consciente, e
ao mesmo tempo acreditamos profundamente noutra ideia, a de que
comer animais abatidos de forma industrial e cruel nada tem de
errado. Como compatibilizar as duas ideias contraditórias? Só há uma
maneira: estabelecer que não há contradição pois os animais não são
sensíveis, não são inteligentes nem são conscientes. O problema é que
a ciência está a demonstrar que o são.
Como resolver esta dissonância cognitiva? Vamos continuar a agir
como se não existisse contradição nenhuma entre as nossas crenças, os
factos que estão a ser descobertos e os nossos atos? Ou vamos atuar
em conformidade? Esse é o desafio que temos perante nós. “Quão
esperto tem de ser um chimpanzé”, perguntou Carl Sagan, “até que
matá­-lo passe a constituir homicídio?”
A forma como tratamos os animais define o que somos. Temos
obrigações para com eles, não porque eles tenham direitos, mas
justamente porque não os têm, porque se encontram impotentes
perante nós, porque estão à nossa mercê e o dever dos fortes é
respeitar e proteger os indefesos. Os animais não são autó­matos, são
seres que experienciam o mundo e o percecionam à sua maneira, são
diferentes mas são parecidos connosco. Não existem para nós, existem
connosco. Os animais somos nós. Todos somos o mesmo, todos somos
animais, todos temos humanidade. Todos fazemos parte deste imenso
jardim de animais com alma.
Para que este romance fosse escrito, como sempre acontece na minha
obra ficcional, consultei uma vasta bibliografia especializada. Assim,
sobre a cognição dos animais, as obras consultadas foram The
Descent of Man, and Selection in Relation to Sex e The Expression of
the Emotions in Man and Animals, de Charles Darwin; About
Behaviorism, de B. F. Skinner; In the Shadow of Man, de Jane
Goodall; Next of Kin — My Conversations With Chimpanzees, de
Roger Fouts com Stephen Tukel Mills; Lucy: Growing Up Human —
A Chimpanzee Daughter in a Psychotherapist’s Family, de Maurice
Temerlin; Alex & Me — How a Scientist and a Parrot Uncovered a
Hidden World of Animal Intelligence and Formed a Deep Bond in the
Process e The Alex Stu­dies — Cogni­tive and Communicative Abilities
of Grey Parrots, de Irene Pepperberg; How to Speak Chicken, de
Melissa Caughey; Animal Wise — How We Know Animals Think and
Feel, de Virginia Morell; The Genius of Birds, de Jennifer Ackerman;
The Secret Life of Cows, de Rosamund Young; Are We Smart Enough
to Know How Smart Animals Are?, The Bonobo and the Atheist — In
Search of Humanism Among the Primates, The Ape and The Sushi
Master — Cultural Reflections of a Prima­tologist, Good Natured —
The Origins of Right and Wrong in Humans and Other Animals e
Mama’s Last Hug — Animal Emotions and What They Teach Us
About Ourselves, de Frans de Waal; Beyond Words — What Animals
Think and Feel, de Carl Safina; Chasing Doctor Dolittle — Learning
the Language of Animals, de Con Slobodchikoff; Animal Languages
— The Secret Conversations of the Living World, de Eva Meijer;
Other Minds — The Octopus and the Evolution of Intelligent Life, de
Peter Godfrey­-Smith; In Defense of Dogs, de John Bradshaw; The
Genius of Dogs — Discovering the Unique Intelligence of Man’s Best
Friend, de Brian Hare e Vanessa Woods; The Inner Life of Animals —
Surprising Observations of a Hidden World, de Peter Wohlleben; Wild
Health — Lessons in Natural Wellness from the Animal Kingdom, de
Cindy Engel; Why Look at Animals?, de John Berger; The Other Side
of Silence — Sign Language and the Deaf Community in America, de
Arden Neisser; L’intelligence de l’animal, de Jacques Vauclair;
L’intelligence animale — Cervelle d’oiseaux et mémoire d’éléphants,
de Emmanuelle Pouydebat; À quoi pensent les animaux?, de Claude
Baudoin; e Les Langages secrets de la nature, de Jean­-Marie Pelt com
Franck Steffan. Sem esquecer “Bêtes”, o texto de Voltaire que
consultei no sétimo tomo das suas Oeuvres complètes na edição de
1817 da Imprimerie de Fain; e ainda A Natureza dos Deuses, de
Cícero.
Também os artigos “What Is the Origin of Zero? How Did We
Indicate Nothingness Before Zero?”, Robert Kaplan, Scientific
American, 16 de janeiro de 2007; “Boom! Hok! A Monkey Language
Is Deciphered”, Nicholas Wade, The New York Times, 7 de dezembro
de 2009; “Avian Maternal Response to Chick Distress”, J. L. Edgar, J.
C. Lowe, E. S. Paul e C. J. Nicol, The Royal Society Publishing, 9 de
março de 2011; “Michael, a Gorilla Who Knew Sign Language,
Described His Mother Being Shot as He Watched”, Waylon Lewis,
Elephant Journal, 12 de agosto de 2011; “Chickens ‘Cleverer Than
Toddlers’”, Radhika Sanghani, The Telegraph, 19 de junho de 2013;
“Sweet­-Potato Washing Revisited: 50th Anniversary of the Primates
Article”, de Tetsuro Matsuzawa, Springer, 14 de setembro de 2015;
“When Babies Felt No Pain”, de Linda Rodriguez McRobbie, The
Boston Globe, 29 de julho de 2017; “Os Papagaios Também
Conseguem Compreender Probabilidades”, Teresa Sofia Serafim,
Público, 9 de março de 2020; “Cuttlefish Have the Ability to Exert
Self­-Control, Study Finds”, Natalie Grover, The Guardian, 3 de março
de 2021; e “Baby Talk: Bat Pups Babble Like Human Infants”, Annie
Melchor, The Scientist, 20 de agosto de 2021.
Sobre a indústria da produção de carne e a indústria farmacêutica,
incluindo os seus devastadores efeitos ambientais e práticas cruéis, os
livros que constituíram as minhas principais fontes foram Food
Choice and Sustainability — Why Buying Local, Eating Less Meat,
and Taking Baby Steps Won’t Work, de Richard Oppenlander;
Cowspiracy — The Sustainability Secret, de Kip Andersen e Keegan
Kuhn; Meat Market — Animals, Ethics, and Money, de Erik Marcus;
Eating Animals — Should We Stop?, de Jonathan Safran Foer; Why
We Love Dogs, Eat Pigs and Wear Cows — An Introduction to
Carnism, de Melanie Joy; Farma­geddon — The True Cost of Cheap
Meat, de Philip Lymbery e Isabel Oakeshott; Meatonomics — How
the Rigged Economics of Meat and Dairy Make You Consume Too
Much And How to Eat Better, Live Longer, and Spend Smarter, de
David Robinson Simon; Slaughterhouse — The Shocking Story of
Greed, Neglect, and Inhumane Treatment Inside the US Meat
Industry, de Gail Eisnitz; Every Twelve Seconds — Industrialized
Slaughter and the Politics of Sight, de Timothy Pachirat; Eternal
Treblinka — Our Treatment of Animals and the Holocaust, de
Charles Patterson; Mercy for Animals — One Man’s Quest to Inspire
Compassion and Improve the Lives of Farm Animals, de Nathan
Runkle e Gene Stone; Animal Experiments — Facts Every Animal
Lover Should Know, de Vernon Coleman; Sacred Cows and Golden
Geese — The Human Cost of Experiments on Animals, de C. Ray
Greek e Jean Swingle Greek; e Defending Animal Rights, de Tom
Regan.
Ainda vários estudos e relatórios, designadamente “Livestock and
Climate Change — What If the Key Actors in Climate Change Are...
Cows, Pigs, and Chickens?”, de Robert Goodland e Jeff Anhang,
WorldWatch, novembro/dezembro de 2009; “Transmission of Highly
Virulent Community­-associated MRSA ST93 and Livestock­-associated
MRSA ST398 Between Humans and Pigs in Australia”, de S.
Sahibzada, S. Abraham, G. W. Coombs, S. Pang, M. Hernández­-Jover,
D. Jordan e J. Heller, Nature, 13 de julho de 2017; “The Economics of
Fishing the High Seas”, Enric Sala, Juan Mayorga, Christopher
Costello, David Kroodsma, Maria Palomares, Daniel Pauly, U. Rashid,
Science Advances, Número 6, Volume 4, 6 de junho de 2018;
“Antimicrobial Resistance in Livestock and Poor Quality Veterinary
Medicines”, Katie Clifford, Darash Desai, Clarissa Prazeres da Costa,
Hannelore Meyer, Katharina Klohe, Andrea Winkler, Tanvir Rahman,
Taohidul Islam e Muhammad Zaman, Bulletin of the World Health
Organization, Número 9, Volume 96, setembro de 2018; e “Feeding
the Problem — The Dangerous Intensification of Animal Farming in
Europe”, Greenpeace, fevereiro de 2019.
Por fim, os artigos “In France, Snails Are Now Fish”, Anna Zamejc,
Radio Free Europe, 18 de fevereiro de 2010; “Robert Webster: ‘We
Ignore Bird Flu at Our Peril’”, Mark Honigsbaum, The Guardian, 17
de setembro de 2011; “New Japanese Method For Killing Dolphins is
Inhumane”, Rob Gilhooly, New Scientist, 12 de abril de 2013; “CDC
Threat Report: Yes, Agricultural Antibiotics Play a Role in Drug
Resistance”, Maryn McKenna, Wired, 17 de setembro de 2013;
“100,000 Elephants Killed by Poachers in Just Three Years, Landmark
Analysis Finds”, Brad Scriber, National Geographic, 18 de agosto de
2014; “Temple Grandin, Killing Them Softly at Slaughterhouses for
30 Years”, Ryan Bell, National Geographic, 19 de agosto de 2015;
“High Seas Fishing Isn’t Just Destructive — It’s Unprofitable”, Sarah
Gibbens, National Geographic, 8 de junho de 2018; “Australians Join
Battle To Stop Brutal Dolphin Slaughter in Japan”, Jake Sturmer,
ABC, 13 de fevereiro de 2019; “EU Ignoring Climate Crisis With
Livestock Farm Subsidies, Campaigners Warn”, Tom Levitt, The
Guardian, 22 de maio de 2019; “Artificial Meat Factory — The
Science of Your Synthetic Supper”, Tom Ireland, 23 de maio de 2019,
Science Focus; “1.6 Million Farmers Receive Almost 85 Percent of the
EU’s Agricultural Subsidies”, Alissa Verwoerd e Tess Marteijn,
European Data Journalism Network, 24 de maio de 2019;
“‘Something Is Wrong’: Why the Live Animal Trade Is Booming in
Europe”, Bibi van der Zee, The Guardian, 24 de janeiro de 2020;
“The Myth of Cultured Meat: A Review”, Sghaier Chriki e Jean­-
François Hocquette, frontiersin.org, 7 de fevereiro de 2020; “When
Will the Amazon Hit a Tipping Point?”, Ignacio Amigo, Nature, 25 de
fevereiro de 2020; “More Than 80% of Indian Ocean Dolphins May
Have Been Killed By Commercial Fishing”, Graham Readfearn,
National Observer, 5 de março de 2020; “Singapore First in the
World to Approve Lab­-Grown Meat for Sale”, Audrey Tan, The
Straits Times, 3 de dezembro de 2020; e “Fundador da Impossible
Foods: ‘É Um Game Over Para a Indústria da Carne, Eles É Que
Ainda Não Perceberam’”, Mariana Bandeira, Jornal Económico, 4 de
dezembro de 2020.
Sobre as alterações climáticas, baseei­-me nas informações constantes
em Global Warming — A Beginner’s Guide to Our Changing Climate,
de Fred Pearce; The Uninhabitable Earth — A Story of the Future, de
David Wallace­-Wells; Field Notes From a Catastrophe — Man,
Nature, and Climate Change, de Elizabeth Kolbert; e Six Degrees —
Our Future on a Hotter Planet, de Mark Lynas.
Sobre Hieronymus Bosch e o seu célebre tríptico, O Jardim das
Delícias Terrestres, consultei os livros Hieronymus Bosch — Garden
of Earthly Delights, de Hans Belting; Bosch par le détail, de Till­-
Holger Borchert; Bosch — Mystère et fantasmagories, de Françoise
Bayle; e A World History of Art, de Hugh Honour e John Fleming.
Por fim, a informação sobre os rosacruz e todo o misticismo que os
envolve foi obtida dos livros Les Rose­-croix, de Roland Edighoffer;
The Invisible History of the Rosicrucians — The World’s Most
Mysterious Secret Society, de Tobias Churton; The Rosicrucians —
The History, Mythology, and Rituals of an Esoteric Order, de
Christopher McIntosh; John Dee’s Occultism — Magical Exaltation
Through Powerful Signs, de Gyorgy Szonyi; Meister Eckhart —
Master of Mystics, de Richard Woods; Paracelsus — Essential
Readings, de Nicholas Goodrick­-Clarke; The Secret History of the
World, de Jonathan Black; O Livro Ilustrado dos Mistérios, de Francis
X. King; e Secret Societies, de Nick Harding.
Um agradecimento é devido a todos os que me ajudaram na
produção deste livro, a começar por Tânia Minhós, professora de
etologia na Universidade Nova de Lisboa. Obrigado a Emily Stott, da
Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals, e a Sascha
Camilli, da PETA — People for the Ethical Treatment of Animals.
Obrigado também às minhas múltiplas editoras, a começar pela
Gradiva em Portugal e a acabar em cada uma que, nos diversos países,
publica e promove a minha obra. Obrigado, por fim, a todos e cada
um dos meus leitores espalhados pelos quatro cantos do planeta.
Sempre acima de todos, a Florbela.
.

No seu comportamento para com as criaturas,


todos os homens são nazis.
A presunção de que o Homem pode lidar

com as outras espécies como bem lhe apetecer

exemplifica as teorias racistas mais extremas,


o princípio de que a força tem sempre razão.
Isaac Bashevis Singer

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