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OBRAS DO AUTOR
ENSAIO
Comunicação, Difusão Cultural, 1992; Gradiva, 2015
Crónicas de Guerra I — Da Crimeia a Dachau, Gradiva, 2001
Crónicas de Guerra II — De Saigão a Bagdade, Gradiva, 2002
A Verdade da Guerra, Gradiva, 2002; Círculo de Leitores, 2003
Conversas de Escritores — Diálogos com os Grandes Autores da Literatura
Contemporânea, Gradiva/RTP, 2010
A Última Entrevista de José Saramago, Usina de Letras, Rio de Janeiro, 2010;
Gradiva, 2011
Novas Conversas de Escritores — Diálogos com os Grandes Autores da
Literatura Contemporânea II, Gradiva/RTP, 2012
FICÇÃO
A Ilha das Trevas, Temas & Debates, 2002; Gradiva, 2007
A Filha do Capitão, Gradiva, 2004
O Codex 632, Gradiva, 2005
A Fórmula de Deus, Gradiva, 2006
O Sétimo Selo, Gradiva, 2007
A Vida Num Sopro, Gradiva, 2008
Fúria Divina, Gradiva, 2009 (Prémio Clube Literário do Porto 2009)
O Anjo Branco, Gradiva, 2010
O Último Segredo, Gradiva, 2011
A Mão do Diabo, Gradiva, 2012 (Prémio Portal da Literatura Melhor Romance do
Ano de 2012)
O Homem de Constantinopla, Gradiva, 2013
Um Milionário em Lisboa, Gradiva, 2013
A Chave de Salomão, Gradiva, 2014
As Flores de Lótus, Gradiva, 2015
O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016
Vaticanum, Gradiva, 2016
O Reino do Meio, Gradiva, 2017
Sinal de Vida, Gradiva, 2017
A Amante do Governador, Gradiva, 2018 (Prémio Livro do Ano Bertrand 2018
Ficção Lusófona)
Imortal, Gradiva, 2019 (Prémio Livro do Ano Bertrand 2019 Ficção Lusófona)
O Mágico de Auschwitz, Gradiva, 2020
.
A Werner Reich,
o meu amigo de Auschwitz
.
FERNANDO PESSOA.
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Prólogo
PARTE UM
II
III
IV
VI
VII
VIII
IX
XI
XII
XIII
PARTE DOIS
II
III
IV
VI
VII
VIII
IX
CARO LEO,
CHEGÁMOS BEM. ENCONTREI AQUI A TIA SARA E OS
SEUS AMIGOS, SOBRETUDO O RAEV. O TIO ODKOLEK
TRABALHA IMENSO. ESTAMOS FELIZES.
SAUDADES DO
JAN FREUND
XI
XII
XIII
PARTE TRÊS
Ah! Ah!
Morte! Morte!
Desejarás a morte
ALEISTER CROWLEY, The Book of the Law
.
II
III
IV
“Appell!”
O grito acordou Levin. O ilusionista estava deitado sob
a manta, encolhido, e abriu os olhos, estremunhado e
desorientado, por momentos sem entender onde se
encontrava ou o que se passava.
“Appell!”, insistiu a voz. “Appell! Schnell! Appell! Los, los!”
Ouviu ruídos surdos e gemidos. Despertando totalmente,
viu dois homens aproximarem-se, um SS e o Blockälteste, e
era este que gritava e ao mesmo tempo distribuía
bastonadas à esquerda e à direita pelas camaratas,
atingindo sobretudo os dos estrados de cima. Os deportados
saltavam atabalhoadamente para o corredor, alguns ainda
bêbedos de sono, e convergiam aos tropeções para a porta
de saída.
Lembrou-se de tudo. Haviam chegado na véspera e, após
o banho e os registos, e sem que lhes dessem de comer
nem soubessem o que acontecera às famílias, tinham-no
levado, a ele e aos homens do seu transporte de
Theresienstadt, para um campo protegido por vedações e
coberto de barracas de tijolo e madeira. Os SS entregaram-
nos a um homem com a estrela amarela de David ao peito
que lhes fora apresentado como sendo o Blockälteste, o
responsável pelo barracão. Um dos recém-chegados, o
antigo guarda da polícia judaica Václav, reconhecera-o como
Bondy, um dos judeus de Theresienstadt deportados no
transporte anterior.
O Blockälteste conduzira-os para o bloco doze. Depararam-
se no barracão com camaratas miseráveis, cada beliche
com três estrados, um inferior, um no meio e um por cima,
e cada estrado com espaço para três pessoas. Estavam
extenuados e, depois de lhes serem distribuídas apenas
mantas leves, foram-se deitando onde encontraram
beliches vazios. A ele coubera-lhe um lugar apertado a meio
do estrado inferior de um beliche, rodeado por cinco
deportados, todos encaixados e comprimidos uns contra os
outros, três virados para um lado e três para outro, o que
fazia com que tivesse dos dois lados da sua cabeça os pés
de outros deportados que o ensanduichavam. Parecera-lhe
incrível que um estrado concebido para três pessoas
estivesse ocupado por seis, o que perfazia a incrível
soma de dezoito pessoas por beliche, dezoito!, mas não
podia fazer nada.
Dormira mal. Sentia-se mortalmente preocupado com
Gerda e Peter. Essa ralação era extensível a todos homens
que com ele tinham vindo para o barracão, uma vez que
ninguém fazia a menor ideia do que sucedera às mulheres e
às crianças e questionar os SS revelara-se um erro para os
poucos que o cometeram, pago com bastonadas e nenhuma
resposta. Esse não fora o único problema da noite. Alguém
do beliche de cima estava com diarreia e alguns
excrementos haviam pingado; não o tinham atingido, mas o
cheiro ácido era repugnante e o parceiro ao lado ficara com
a manta borrada. Além disso mal se conseguira mexer, uma
vez que o beliche era apertado; o movimento de um afetava
todos os outros. Por outro lado, havia a fome e a sede. Todos
tinham dor de estômago por falta de alimentos.
“Appell!”, repetiu o Blockälteste Bondy sempre aos gritos,
progredindo pelo barracão à bastonada contra os que ainda
estavam deitados. “Schnell! Schnell!”
Os que se alojavam nos estrados inferiores, como Levin,
saltaram depressa para o corredor e escaparam às
bastonadas, mas os do meio e sobretudo os do alto não se
apeavam com a mesma facilidade e eram sobretudo eles os
castigados pelo responsável do barracão.
VI
VII
VIII
IX
XI
XII
XIII
XIV
XV
“Senhor Levin?”
O ilusionista girou sobre os calcanhares e viu o
responsável da škola do campo.
“Olá, Fredy.”
“Obrigado por ter vindo, senhor Levin”, disse Alfred Hirsch.
“Sei que daqui a pouco é o Appell, mas este é o único
momento do dia em que podemos conversar à vontade.”
“É por causa do meu filho?”, quis saber Levin. “Algum
problema com ele?”
“De modo nenhum. O Peter está a adaptar-se muito bem,
não há nada de errado. Sei até que o senhor e a sua mulher
lhe estão a dar parte das vossas rações e da comida que os
vossos amigos vos enviam de Theresienstadt. Queria pedir-
lhe que não o fizessem.”
“Ora essa. Porque não?”
“Porque as crianças já recebem rações suplementares na
škola. Os alemães concordaram dar-lhes refeições
melhoradas. Os miúdos comem uma sopa mais nutritiva,
que por vezes inclui carne. Recebem pães maiores, açúcar e
mesmo doce. Chegam a dar-lhes leite. Portanto não se
preocupem com o vosso filho. Consumam toda a vossa
comida. Vocês precisam muito mais do que ele.”
“Mas como conseguiu convencer os alemães a dar-lhes
rações reforçadas?”
“Tenho quinhentas crianças à minha responsabilidade no
bloco trinta e um e convido os alemães a visitarem-nos.
Volta e meia vão à škola só para verem os miúdos e muitos
afeiçoaram-se a eles. Ainda ontem tivemos a visita do
Lagerführer Schwarzhuber e do doutor Mengele.”
Fez-se um silêncio súbito entre eles. Se estava tudo bem
com Peter, interrogou-se Levin, para quê aquela conversa?
Aguardou que Hirsch o esclarecesse. O responsável da škola
apontou para os deportados que passavam na
Hauptstrasse.
“Sabe para onde vai esta gente?”
“Daqui não se consegue ver”, respondeu Levin. “Mas
parece que se dirigem para os edifícios das chaminés.”
“Tem consciência do que lhes vai acontecer?”
“Diz-se que sairão pelas chaminés.” Hesitou. “É mesmo
assim?”
Hirsch ficou um longo momento a fitá-lo, como se o
dissecasse.
“O que lhe parece?”
“Sabe, eu nasci e vivi na Alemanha e sei que todas as
cidades alemãs têm crematórios”, observou o mágico.
“Aquilo são crematórios. Não há nada de anormal em
encontrá-los aqui. O campo é grande, a comida péssima, as
doenças proliferam e o nível de mortalidade é alto. Os
alemães preferem cremar os mortos e isso explica a
atividade dos crematórios.”
O seu interlocutor indicou a multidão que percorria
a Hauptstrasse.
“E estas pessoas?”
Levin suspirou.
“Bem, parecem caminhar em direção aos crematórios e
daqui não as vemos sair”, constatou. “Mas... o que está
a insinuar com isso? Que as matam? Uma coisa é
perseguirem e prenderem judeus, outra completamente
diferente é matarem-nos desta forma tão... tão...” Não
encontrou a palavra certa. “Não pode ser.”
O recém-chegado respirou fundo, exalando uma baforada
de vapor.
“Os boatos são verdadeiros, receio bem.”
Levin ficou paralisado. Sabia que Hirsch não era uma
pessoa qualquer. Sendo um judeu alemão que dominava a
língua e a cultura germânicas, conseguia impressionar os
SS. Só isso explicava que os tivesse convencido a deixarem
um barracão do campo ser usado como škola, algo que o
ilusionista já percebera ser um caso singular em Birkenau.
Um homem como Hirsch estava especialmente bem
informado. Se dizia uma coisa, de certeza não espalhava um
boato.
“Tem a certeza?”
“Tenho a certeza que é possível ter nestas circunstâncias”,
foi a resposta. “Estes comboios chegam e, ao que me
contaram, logo na plataforma fazem uma Selektion. Uma
minoria é considerada em condições de trabalhar e vai para
a direita. A maioria, que inclui obrigatoriamente os velhos,
as crianças e as mulheres que não querem abandonar os
filhos, é enviada para a esquerda e metida em camiões ou
enviada a pé.” Indicou a coluna de pessoas que passava
pela Hauptstrasse. “Estas são as da esquerda. Mandam-nas
por este caminho e... e saem pelas chaminés.”
Levin sentia-se chocado. Até então encarara os rumores
sobre a matança de gente como meros boatos e, apesar de
se sentir inquieto com o que via e ouvia, nunca se deixara
apoquentar demasiado. Mas se uma pessoa como Alfred
Hirsch dizia uma coisa daquelas...
“Nada disso aconteceu connosco”, lembrou. “Chegámos à
estação e depois de nos darem banho trouxeram-nos para
aqui. Que eu saiba não houve nenhuma Selektion nem
mandaram ninguém para os edifícios das chaminés. Se
estão a enviar para a morte os judeus que chegam nos
comboios, porque não nos fizeram o mesmo?”
O seu interlocutor encolheu os ombros.
“Não sei.”
“Então como pode garantir que o boato é verdadeiro?”
O olhar de Hirsch voltou a fixar-se no seu interlocutor.
“O senhor está disposto a guardar segredo do que lhe
disser?”
“Claro.”
“Não contará nem à sua mulher?”
A exigência desconcertou Levin, habituado a discutir tudo
com Gerda. Percebeu no entanto que estava perante uma
condição. Mais do que isso, uma exigência.
“Pode ficar descansado.”
Preocupado em assegurar-se de que não os ouviriam,
Hirsch arrastou-o para mais longe das latrinas. O que tinha
para lhe dizer não podia ser conhecido por mais ninguém.
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