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O

ENSAIO
Comunicação, Difusão Cultural, 1992; Gradiva, 2015.
Crónicas de Guerra I – Da Crimeia a Dachau, Gradiva, 2001.
Crónicas de Guerra II – De Saigão a Bagdade, Gradiva, 2002.
A Verdade da Guerra, Gradiva, 2002.
Conversas de Escritores – Diálogos com os Grandes Autores
da Literatura Contemporânea, Gradiva/RTP, 2010.
A Última Entrevista de José Saramago, Usina de Letras, Rio de Janeiro, 2010, Gradiva, 2011.
Novas Conversas de Escritores – Diálogos com os Grandes Autores
da Literatura Contemporânea II, Gradiva/RTP, 2012.

FICÇÃO
A Ilha das Trevas, Temas & Debates, 2002; Gradiva, 2007.
A Filha do Capitão, Gradiva, 2004.
O Codex 632, Gradiva, 2005.
A Fórmula de Deus, Gradiva, 2006.
O Sétimo Selo, Gradiva, 2007.
A Vida Num Sopro, Gradiva, 2008.
Fúria Divina, Gradiva, 2009.
O Anjo Branco, Gradiva, 2010.
O Último Segredo, Gradiva, 2011.
A Mão do Diabo, Gradiva, 2012.
O Homem de Constantinopla, Gradiva, 2013.
Um Milionário em Lisboa, Gradiva, 2013.
A Chave de Salomão, Gradiva, 2014.
As Flores de Lótus, Gradiva, 2015.
O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016.
Vaticanum, Gradiva, 2016.
O Reino do Meio, Gradiva, 2017.
Sinal de Vida, Gradiva, 2017.
A Amante do Governador, Gradiva, 2018.
Imortal, Gradiva, 2019.
O Mágico de Auschwitz, Gradiva, 2020.
O Manuscrito de Birkenau, Gradiva, 2020.
O Jardim dos Animais com Alma, Gradiva, 2021.
A Mulher do Dragão Vermelho, Planeta, 2022.
Às minhas quatro meninas.
Será um conquistador quem tenha aprendido a arte da dissimulação.

S T
Este romance é uma obra de cção
inspirada em factos verídicos.
Prólogo

Se o calor era intenso, a humidade tornava-o sufocante. Depois de abanar


o leque em busca de alívio, a europeia dos olhos de chocolate e cabelos
escuros encaracolados estendeu a mão com languidez e pegou no copo. O
khus tinha um aspeto realmente fresco, verde com pedras de gelo a boiarem
como blocos de cristal, mas eram as sementes de subza que lhe conferiam
um travo original. Bebericou um trago e, fechando os olhos, emitiu um
suave gemido de prazer.
“Hmm…”
Não havia dúvida de que o khus era um bálsamo refrescante num dia tão
quente. Sentiu-se momentaneamente revigorada, mas bastou levantar os
olhos para o enorme edifício ao fundo da rua para sentir uma ponta de
desânimo. Não por causa do edifício em si. O Templo Dourado de Amritsar
era uma das maravilhas da Índia, se não mesmo do mundo, e palpitava de
vida graças aos homens de kurtah e choghah coloridos que o percorriam, as
barbas espessas e a cabeça coberta por dastar, os turbantes da cor dos
choghah. Quão afortunado era o mundo que tantas joias diferentes juntava
no mesmo pote.
Não, de nitivamente não era o Templo Dourado nem os éis sikhs que o
percorriam, as silhuetas fugidias re etidas no espelho do lago que abraçava
o santuário áureo, que a intimidavam. Era o calor. Que sufoco aquele dia em
Amritsar! Procurando no copo verde a frescura que o ardor escaldante do ar
lhe roubava, a europeia bebericou mais um trago de khus. Provavelmente
teria ainda de pedir um outro copo para ganhar coragem e enfrentar o calor
abrasador do Punjab durante a programada visita ao grande templo sikh.
“Mais um copo, memsahib?”
A europeia sorriu para o empregado que a interpelara na esplanada do
café Sri Harmandir; dir-se-ia que o homem lhe lera os pensamentos.
“Com duas pedras de gelo, por favor.”
O empregado, de barbas densas, dastar na cabeça, kurtah e choghah a
cobrir-lhe o corpo como qualquer outro sikh de Amritsar, esboçou uma
curta vénia e afastou-se para dar sequência ao pedido. De novo sozinha na
sua mesa na esplanada, a europeia esvaziou o copo e encarou mais uma vez
o complexo do Templo Dourado, ao fundo da rua. Impossível evitar aquela
visão celestial. Os habitantes locais chamavam-lhe Harmandir Sahib, a
Morada do Senhor, um santuário do século consecutivamente destruído
pelos mogóis e pelos invasores afegãos, até que uma reconstrução do século
cobrira a estrutura central com as folhas de ouro que lhe valiam o nome.
Ouviu um burburinho atrás dela e voltou-se. Uma mulher de vestido azul-
escuro e a cabeça coberta por um lenço negro percorria as mesas da
esplanada com ar de a ição.
“Help me!”, gritou ela num inglês imperfeito. “Ajudem-me! Por favor,
ajudem-me!”
Se havia coisa que a europeia dos olhos de chocolate se habituara a ver nos
poucos dias em que estava na Índia era a miséria endémica, com mendigos
espalhados por toda a parte. Mas a mulher que deambulava assustada pela
esplanada não era manifestamente uma vagabunda; em bom rigor, nem
indiana parecia ser. E o que chamou a atenção da europeia, e na verdade lhe
tocou fundo, foi o pânico que lhe surpreendeu nos olhos escuros.
No seu ziguezaguear desesperado pela esplanada do café Sri Harmandir, a
mulher do lenço negro passou pela mesa da europeia.
“Ninguém me ajuda?”, implorava ela, os olhos arregalados numa expressão
de pavor. “Por favor, por favor!”
Numa reação quase instintiva, a europeia dos olhos de chocolate agarrou-
a pelo braço.
“O que aconteceu?”, perguntou-lhe numa voz amigável e serena, para a
tranquilizar. “Precisa que a leve a algum lugar?”
A recém-chegada apontou para trás.
“São eles! São eles!”
Os olhares de todos os clientes do café voltaram-se na direção indicada.
Dois homens de aspeto indiano emergiram da multidão e invadiram o café,
os olhares sombrios a dardejarem em todas as direções como predadores em
busca da presa.
Um deles localizou a fugitiva.
“Vahaan hai vo!”, gritou. “Ela está ali!”
A mulher do lenço negro soltou um grito de terror e correu, mas foi tão
desastrada que embateu numa cadeira e derrubou uma mesa da esplanada.
A europeia dos olhos de chocolate levantou-se, alarmada, e muitos clientes
também; a proteção à fuga de uma mulher indefesa era para muitos
instintiva. Alguns cortaram o caminho aos perseguidores.
“Aap kaun hain?”, perguntou um. “Quem são vocês?”
“Use akela chhod do!”, disse outro freguês da esplanada. “Deixem-na em
paz!”
Os perseguidores empurraram brutalmente os clientes e avançaram em
direção à fugitiva, que se erguera entretanto, embora visivelmente
desnorteada. Vendo os clientes a serem maltratados, quatro empregados
intervieram para enfrentar os agressores.
“Saiam daqui!”
“Fora, se não chamamos a polícia!”
Depois de trocarem um breve olhar entre eles, os dois agressores
lançaram-se com violência sobre os empregados, distribuindo murros e
pontapés em todas as direções. Ergueu-se um bruaá naquele pandemónio
súbito, com cadeiras a voar, mais as mesas e os objetos nelas pousados.
Lendo a determinação no rosto dos perseguidores, a europeia dos olhos de
chocolate decidiu agir. Num impulso, pegou na fugitiva pelo braço e puxou-
a.
“Venha comigo!”
A europeia arrastou a mulher do lenço negro para o interior do café Sri
Harmandir. Já ali tinha ido dez minutos antes visitar o quarto de banho e
percebera que havia uma passagem pela cozinha que conduzia a uma porta
traseira. Meteram por aí e, exatamente como se recordava, deu com a porta
traseira e franqueou-a.
Três detonações atrás delas assustaram-nas. Seriam tiros? Não podia ser. A
verdade é que, onde instantes antes se instalara um clamor, fez-se um
silêncio súbito seguido de um grito de terror. Isso não augurava nada de
bom. A europeia olhou de relance para trás e não descortinou ninguém no
seu encalço, mas não teve dúvidas de que a qualquer momento os
perseguidores reapareceriam. Em que diabo de confusão ela se metera?
As fugitivas en aram por uma ruela nas traseiras do café e, deparando-se
com uma passagem estreita a abrir à esquerda, esgueiraram-se por aí; a sua
melhor hipótese de despistarem os agressores era ziguezaguearem por um
labirinto que baralhasse quem por ali se aventurasse. Foram dar a um pátio
rodeado por um muro. Saltaram o muro e depararam-se com três portas que
davam para propriedades. Cruzaram uma delas e entraram num quintal
povoado de galinhas e patos.
Viram uma casinha de madeira ao fundo do quintal e en aram-se nela;
era um local onde se guardavam sacos, enxadas, pás e outros instrumentos
agrícolas e de limpeza. Encontraram um monte de feno ao canto, na
escuridão, e sentaram-se sobre ele, ofegantes. A europeia quase teve um
ataque de riso, por causa dos nervos e da incongruência de toda aquela
situação, mas ao olhar para a mulher do lenço negro percebeu que ela estava
de tal modo apavorada que a vontade de rir se esfumou.
Indicou o exterior com o polegar.
“Quem são aqueles?”
A mulher do lenço negro mantinha os olhos assustados presos à porta da
casinha, evidentemente aterrorizada com a possibilidade de a qualquer
momento ser descoberta.
“São… são homens muito perigosos.”
A fugitiva não parecia faladora, como se temesse a própria sombra, e a
europeia pôs-se com conjeturas. Com toda a probabilidade tratava-se de um
caso de casamentos forçados; era comum na Índia os casamentos
combinados entre famílias e havia muitas indianas que sofriam imenso. Se
bem que aquela mulher não parecesse indiana. Os seus traços levemente
mongóis indiciavam uma mistura com origem, talvez, nos Himalaias. Não
era na cidade de Dharamshala, nos Himalaias indianos, que vivia o dalai-
lama? A desconhecida tinha um certo aspeto tibetano, pelo que lhe pareceu
bem possível que tivesse vindo da região de Himachal Pradesh.
“Chamo-me Maria Flor e sou portuguesa”, apresentou-se a europeia dos
olhos de chocolate. “E você?”
A fugitiva tirou pela primeira vez os olhos da porta e pestanejou, como se
hesitasse.
“Eu… eu… o que interessa isso?”
“Era bom que conhecêssemos o nome uma da outra, não acha? A nal de
contas, estamos juntas nisto…”
“Quanto menos souber sobre mim, melhor para si.”
A resposta deixou Maria Flor desconcertada.
“Ora essa! Que mal tem conhecermo-nos um pouco?”
A atenção da fugitiva regressou à porta.
“Eles vão descobrir-nos.”
“Não vão nada.”
“Vão, vão. Têm meios próprios.”
“Ora essa. Quais?”
A mulher do lenço negro apontou para o teto da casinha.
“Olhos no céu.”
“Como assim?”
A fugitiva espreitou a mala que Maria Flor enroscara no braço.
“Tem… tem telemóvel?”
“Sim, claro.”
“Peça ajuda! Por favor, peça ajuda depressa! Temos pouco tempo! Eles
estão a usar satélites. Com as câmaras no céu, a qualquer instante vão
descobrir onde estamos.”
Satélites? Câmaras? A portuguesa percebeu que o assunto era mais sério
do que um simples caso de casamento forçado. Sem perder tempo, abriu a
mala e tirou o smartphone. Ainda pensou em googlar o número da polícia
de Amritsar, mas constatou que tinha os dedos a tremer, estava mais nervosa
do que se apercebera, e tomou consciência de que levaria uma in nidade a
localizar o número. Mais valia ir por um atalho. Digitou o código
internacional, 00, o código de Portugal, 351, e depois o número que
conhecia de cor.
Ouviu dois toques de chamada e um clique, a que se seguiu uma voz
feminina cantarolante.
“O número que chamou não está disponível. Por favor, tente mais tarde.”
“Porra!”
Apeteceu-lhe atirar o telemóvel contra a parede. Por que razão o marido
nunca estava disponível quando mais dele precisava? Premiu o ícone das
mensagens e, apesar dos nervos, teclou letra a letra.

Estou a ser perseguida. Dois homens num café perto do Templo


Dourado. Tiros. Liga à polícia.

Premiu o ícone Send e enviou a mensagem. Será que ele a iria ver nesse
instante? O facto de a gravação indicar que o número não estava disponível
indiciava que o marido levaria ainda algum tempo até consultar o telemóvel.
E tempo era coisa de que não dispunha, a crer no que a mulher do lenço
negro acabara de lhe dizer.
“Então?”, quis saber a desconhecida, a ansiedade a trepar-lhe pela voz.
“Não liga à polícia?”
O melhor seria não contar com o marido, concluiu Maria Flor.
Estabeleceu ligação ao Google e fez uma busca com as palavras police e
Amritsar. Apareceram-lhe vários números. Deveria ter começado logo por
ali em vez de perder tempo a tentar falar com Tomás. Premiu um dos
números que o Google lhe disponibilizou e ouviu um toque de chamada,
logo seguido de uma voz masculina a dizer algo de impercetível, decerto em
punjabi.
“Do you speak English?”, perguntou ela. “Fala inglês?”
“Yes, madam”, foi a resposta a rmativa imediata. “Em que a posso ajudar?”
“Estou a ser perseguida”, disse. “São dois homens.”
“O que zeram eles, madam?”
“Entraram num café e puseram-se a bater em toda a gente. Ouvi tiros.
Estão atrás de uma mulher e… e de mim.”
“Onde se encontra neste momento, madam?”
Maria Flor olhou em redor. Como poderia responder de uma forma que
os ajudasse a localizá-la?
“Estou num… numa casinha de madeira, num quintal.”
“Em que rua, madam?”
“Uh… não sei. Isto é perto do Templo Dourado. O café está perto do
Templo Dourado e escondi-me num quintal nas traseiras do café.”
“Qual é o nome do café, madam?”
“O nome? Sei lá, o nome é… é Sri… Sri qualquer-coisa.”
“O café Sri Harmandir?”
“Sei lá.” Hesitou. “Talvez, sim. É capaz de ser isso. Oiça, estamos numa…”
Uma mão tapou de imediato a boca de Maria Flor; era a mulher do lenço
negro a calá-la. A portuguesa olhou para ela, surpreendida, e viu-a de
indicador colado aos lábios, a pedir silêncio, e a apontar amedrontadamente
para a porta.
“Sim, madam?”, continuou a voz ao telefone, já quase um zumbido. “Está
onde?”
A atenção de Maria Flor já não se centrava no telemóvel, mas no que se
passava no exterior. Ouviu vozes masculinas e percebeu que podiam de
facto estar na iminência de serem descobertas.
“Depressa!”, soprou num sussurro para o telemóvel. “Eles estão lá fora!
Venham já!”
Desligou, para que o zumbido da voz ao telefone não atraísse a atenção de
ninguém, e apressadamente escavou no monte de feno para abrir espaço no
interior. A fugitiva que a acompanhava imitou-a. Após alguns segundos de
escavação frenética, o buraco no feno alargou-se o su ciente para nele se
en arem as duas. As vozes no exterior tornaram-se mais altas, sinal de que
se aproximavam, e as duas fugitivas puxaram feno para cima dos corpos de
modo a carem totalmente tapadas.
Já na escuridão, ouviram a porta da casinha abrir-se e vozes de homens
encherem o interior. A europeia não podia ter a certeza de que se tratavam
dos perseguidores, claro, mas a probabilidade de serem eles parecia-lhe
elevada. Ficaram ambas muito quietas, até de respirações suspensas, mas os
corações ribombavam-lhes com tal violência que temiam que as batidas as
denunciassem. Para se acalmar, Maria Flor tentou reconfortar-se com o
pensamento de que, naquela situação, nem tudo jogava contra elas. O monte
de feno encontrava-se num canto sombrio da casinha, consequentemente de
difícil visibilidade, e elas estavam en adas no meio da palha. Não seria fácil
serem descobertas.
Ouviu as vozes aproximarem-se e tentou perceber em que língua falavam.
Não era punjabi e muito menos inglês. Parecia hindi. Continuava sem se
atrever a respirar. Os homens trocaram umas palavras e, quando lhe pareceu
que não as viam e se aprestavam a dar meia-volta e irem-se embora, sentiu a
palha ser remexida com vigor, até que mãos lhes tocaram com rmeza.
“Ve yahaan hain!”, exclamou um deles. “Estão aqui!”
A mulher do lenço negro pôs-se nesse momento a gritar e tentou fugir,
absolutamente apavorada, mas um dos homens saltou para cima dela e
imobilizou-a. Procurando manter a calma, até porque não tinha feito nada
de mal a não ser correr para fora da esplanada e esconder-se num quintal,
Maria Flor levantou-se e encarou os agressores com o dedo apontado para a
porta entreaberta da casinha de madeira.
“Out!”, ordenou com voz de comando. “Saiam!”
O homem que estava por cima da mulher do lenço negro já a imobilizara
por completo, e ela chorava em voz baixa, claramente de esperança perdida,
mas o segundo perseguidor mantinha-se diante da saída, evidentemente
para bloquear o caminho de fuga. Maria Flor hesitou. Deveria interceder
pela companheira e tentar tirá-la daquela situação ou seria melhor salvar-se
a si própria? A determinação que aqueles homens mostraram na
perseguição à mulher do lenço negro tornava claro que não tinha qualquer
hipótese de os convencer a libertá-la. O mais avisado seria desenvencilhar-se
daquele aperto e mais tarde ajudar a polícia a localizar a desconhecida.
Os dois agressores trocaram palavras entre si, como se se interrogassem
sobre o que fazer com a europeia, até que um deles, o que parecia che ar o
par e imobilizara a mulher do lenço negro, deu uma ordem ao outro e este
avançou para Maria Flor e fez-lhe uma prisão de braço, derrubando-a e
encostando-lhe a cara ao chão.
“Larguem-me!”, protestou a portuguesa, contorcendo-se para tentar
libertar-se. “Deixem-me em paz! Deixem-me, senão… senão chamo
a polícia!”
Sentiu uma picada no ombro e, com horror, percebeu que o agressor tinha
acabado de lhe dar uma injeção.
“O que… o que está a fazer?”, indignou-se. “Vocês não podem fazer isso,
ouviram? Não podem! Isto é muito grave! Eu vou… eu vou…”
De repente foi como se alguém tivesse desligado um interruptor e Maria
Flor perdeu a consciência.
I

As águas verde-esmeralda do rio Tekes gorgolhavam de peixes, tão


grandes que só podiam tratar-se de trutas. O avô materno de Madina, o
venerável Qeyser, ensinara-a a pescá-los, mas a menina não tinha ali a rede
com ela. Limitou-se por isso a olhar demoradamente para os peixes, a
impotência a defraudar-lhe o desejo, nos braços a colorida boneca de trapos
que o avô lhe zera a partir de tecidos importados do Cazaquistão. Que
pena ter vindo brincar sozinha ao rio. Se o avô Qeyser ali estivesse nesse
momento com ela, de certeza que teria trazido a rede e seria uma risada
pegada. Pescariam um daqueles peixes e o jantar seria truta cozida com
yutaza, o pão a vapor dos uigures. Tudo regado a kvas, a bebida uigure feita
a partir de mel. Mas, suspiro!, não estando o avô ali…
Apertou a boneca de trapos contra si. Para além de brincar com o avô, não
havia coisa de que mais gostasse do que aquela boneca. Chamava-lhe
Aynurita e ngia que era a sua lha. Levava-a a dar passeios, dava-lhe de
comer, brincava com ela, embalava-a, metia-a no banho e dormia agarrada a
ela. Como não o fazer, se era ela a sua lha? Um dia, quando fosse grande,
teria uma lha verdadeira e chamar-lhe-ia Aynur. Levá-la-ia em passeios,
brincaria com ela, dar-lhe-ia de comer, embalá-la-ia e dormiria agarrada a
ela. Como fazia com Aynurita.
Estava na hora de a sua “ lha” dormir a sesta. Madina baixou-se, pousou a
boneca de trapos no chão e abriu um espaço entre os seixos, procurando a
areia fofa onde a deitar. Ao afastar os seixos, deparou-se com um par de
botas à sua frente. Ergueu o olhar até tar um homem plantado diante dela
como uma torre. Nunca o vira antes.
O desconhecido sorriu-lhe.
“Ni hao.”
Madina cou um longo momento paralisada, sem saber se deveria ter
medo ou não, se fugir ou se car. Nunca vira aquele homem nem entendera
o que ele lhe acabara de dizer. Mais estranho ainda, jamais se cruzara com
aquele tipo de homem. Desde que nascera que estava habituada a viver entre
gente como ela, de tez morena, a pele quase com a coloração da azeitona. Os
homens da aldeia tinham barba e usavam doppas, uma espécie de turbante
quadrado que punham na cabeça, além de que vestiam um casaco chapan,
como o avô Qeyser e tantos outros.
Aquele desconhecido, no entanto, parecia diferente. A sua tez era mais
clara e os olhos mais rasgados do que o normal. Além disso, falava uma
língua estranha e incompreensível. Os pais tinham-lhe dito para nunca se
aproximar de estranhos, pelo que recuou alguns passos, apreensiva, embora
sem jamais retirar os olhos do homem.
“Madina!”
Olhou e, com alívio, viu a mãe. Correu para ela e, sem largar Aynurita,
tentou fundir-se no seu corpo, procurando o abrigo que os braços maternos
sempre lhe davam. A mãe trocou com o desconhecido umas palavras numa
língua que a menina não conhecia e depois puxou-a para se afastarem do
rio.
“Quem era?”
“Um chinês”, respondeu-lhe a mãe. “Não te fez nada, pois não?”
“Falou comigo.”
“O que te disse?”
A pequena encolheu os ombros.
“Sei lá. Não percebi nada.”
A mãe aligeirou o passo; dir-se-ia que estava com pressa de ganhar
distância em relação ao rio e, sobretudo, de se afastar do homem que cara
para trás. Passaram por rebanhos de ovelhas, que os pastores da aldeia
vigiavam de cajados na mão, e pelos pomares de citrinos por onde
deambulavam camelos ociosos. Havia séculos que os uigures praticavam
uma agricultura de irrigação em pequena escala nos oásis dos desertos da
Ásia Central, como acontecia naquela aldeia ao lado do rio Tekes, o que
contribuiu para tornar possível a velha Rota da Seda. Nem mesmo a invasão
da dinastia Qing no século pusera m àquelas práticas ancestrais.
Entraram na aldeia. Das casas e dos yurts em redor ouviam-se mulheres a
cantarolar ou a ralhar com alguém, enquanto crianças brincavam nos
quintais entre elas ou com os animais domésticos. Cenas da vida doméstica
de um pequeno povoado uigure encravado entre o Tekes e as montanhas
Tian Shan.
Ao vê-las passar, os aldeãos lançaram-lhes as habituais saudações na sua
língua e cultura.
“As salaam alekum!”, cumprimentaram-nas, usando a velha tradição
muçulmana de origem árabe. “Que a paz esteja convosco!”
Rapidamente chegaram a casa, uma pequena estrutura em adobe. Os
quatro irmãos e irmãs tinham ido para a escola, uma vez que eram mais
velhos e já estavam com idade para isso, pelo que se encontravam sozinhas.
Ao entrar para a cozinha, a mãe apontou para a capoeira.
“Vai tratar dos animais. Se houver ovos, trá-los.”
Se havia quem gostava de deambular entre as galinhas era Madina, que
nem hesitou e correu para a capoeira. Não havia ovos, decerto porque já
todos tinham sido recolhidos pela manhã. Para compensar, percebeu que
faltava comida nas tigelas onde as galinhas habitualmente debicavam. Foi
buscar milho à casinha ao lado da cozinha.
“… estava lá um chinês, vê lá tu.”
“No rio?”
Reconheceu as vozes da mãe e do pai, vindas da cozinha; falavam
evidentemente sobre o desconhecido que tinha encontrado pouco antes nas
margens do Tekes.
“Sim, no rio. O que achas que eles estão cá a fazer?”
“Só pode ser a bingtuan”, respondeu o pai. “Anda para aí a construir
edifícios para receber trabalhadores.”
“Trabalhadores?”
“Sim, parece que vem mais gente da China. Fala-se em comboios
apinhados de chineses, todos a virem para aqui. Querem explorar a nossa
indústria do algodão. E o petróleo, claro. Não vês o que está a acontecer em
Karamay? Desde que descobriram o petróleo que aquilo anda numa roda-
viva.”
Karamay era uma palavra uigure que queria dizer óleo negro. Tornara-se
por isso uma cidade do Turquestão Oriental e o seu nome andava em
surdina na boca de toda a gente na aldeia. Era verdade que se falava com
frequência em instalações construídas não muito longe dali. Embora a
pequena nunca as tivesse visto, chegara a observar camiões verdes a
circularem à distância pela estrada, uns atrás dos outros. Sempre que isso
acontecia, os adultos mandavam apressadamente os mais pequenos
recolherem a casa. Por isso nunca vira de perto nenhum dos estranhos que
estavam a chegar à região em números cada vez maiores. O homem com que
se deparara no rio fora o primeiro.
“Mas até aqui eles só andavam lá pelo Norte”, observou a mãe. “É lá que
está o petróleo. Por que raio vêm agora para esta zona? O que andarão a
congeminar?”
“Sei lá.”
A mãe parecia nervosa, enrodilhando os dedos na ponta do lenço que lhe
cobria a cabeça. Os líderes comunistas soviéticos e chineses haviam
determinado em 1949 que a China ocuparia o Sharqi Turkistan, ou
Turquestão Oriental, e nos anos seguintes milhões de antigos soldados han
foram enviados para o Norte para trabalharem como agricultores em
colónias militares. Esses colonos chineses, integrados numa instituição
paramilitar chamada Corporação de Produção e Construção de Xinjiang,
mais conhecida por bingtuan, foram encorajados por incentivos económicos
e persuasão ideológica, formando comunidades quase completamente
segregadas dos uigures. Não era caso para menos. A bingtuan assumiu o
controlo de grandes porções de terra e dos cursos de água estratégicos da
região, conferindo-lhe um imenso poder sobre as populações e
desencadeando o ressentimento geral. A bingtuan tinha poderes paralelos
aos do governo regional, o que a tornava um Estado dentro do Estado, e ia a
passo e passo expulsando os uigures das suas terras ancestrais.
A segregação entre as duas partes tornou-se tão completa que uigures e
han praticamente não tinham contactos entre eles, apesar de viverem na
mesma região. Os chineses caram essencialmente no Norte e os uigures
concentraram-se sobretudo no Sul. A inexistência de estradas, para além das
montanhas e dos desertos, di cultava as comunicações, o que apesar de
tudo impediu que as relações se deteriorassem mais.
Daí que a aproximação de um han à aldeia, evidentemente um paramilitar
da bingtuan, tivesse deixado os pais nervosos.
“E agora?”, questionou-se a mãe de Madina, uma ponta de ansiedade a
tremelicar-lhe na voz. “Vêm todos agora para a nossa terra?”
Um estalido com a língua sinalizou a postura conformada do pai.
“O que podemos nós fazer?”
Com o milho nas mãos, Madina voltou para a capoeira e encheu as tigelas.
A sua mente, porém, já não estava nas galinhas. O tom perturbado da
conversa dos pais deixou-a inquieta. A chegada daqueles homens ao rio
Tekes não augurava nada de bom.
II

Ao sair da reunião com o responsável do Museu Gulbenkian, Tomás


Noronha guardou os documentos de trabalho na pasta e dirigiu-se para a
escadaria central do edifício. A peritagem que lhe fora pedida
para autenti car o pergaminho encontrado no Sul do Líbano ocupara a sua
atenção nos dois meses precedentes. Felizmente conseguira demonstrar que
não se tratava de um apócrifo do Novo Testamento, como os antiquários de
Beirute asseguravam, mas de um manuscrito sem qualquer relação com a
vida de Cristo, assim poupando à fundação um enorme embaraço, já para
não dizer despesa injusti cável, caso tivesse avançado para a aquisição.
“Então a sua mulher?”, quis saber o diretor do museu em jeito
de despedida. “Aquilo é que foi uma odisseia, hem? Já está recuperada dos
trabalhos em que se viu metida?”
Tratava-se de uma referência às peripécias em torno de O Jardim dos
Animais com Alma.
“Já se meteu noutra, veja lá”, sorriu Tomás. “Agora deixou a causa dos
animais e anda às voltas com uma nova cruzada.”
O diretor devolveu uma gargalhada incrédula.
“Mais uma?! C’um caneco! Essa sua mulher é a madre Teresa de Calcutá!”
“A quem o diz…”
“Ela agora quer salvar o quê?”
“A humanidade. Ficou tão revoltada com a guerra na Ucrânia que aderiu à
Amnistia Internacional. Pretende reorganizar a secção portuguesa para a
tornar mais ativa e denunciar injustiças por toda a parte e sei lá mais o quê.
De modo que viajou esta semana até à Índia para participar numa
conferência internacional de ONG dedicadas à defesa dos direitos
humanos.”
“Chiça! Essa sua mulher devia ir para os cruzados, hem? Cuidado com
ela!”
Fazendo um aceno breve, Tomás despediu-se e encaminhou-se para a
garagem. Com Maria Flor ausente, lá teria de passar por um restaurante da
Avenida de Berna e encomendar um takeaway para o jantar. O que comeria
nessa noite? Um sushi? Fez uma careta. Talvez fosse melhor dar um salto a
um restaurante vegetariano e encomendar uma bela feijoada de seitan…
Quando se acomodou ao volante do automóvel, tirou o telemóvel do
bolso, ligou-o e introduziu o código. O aparelho tilintou com as mensagens
que haviam chegado durante todo o tempo em que estivera em reunião com
o diretor do Museu Gulbenkian; eram tantas que talvez fosse melhor só as
ver quando chegasse a casa.
Mesmo assim deu uma vista de olhos pelos remetentes e percebeu que
tinha uma chamada não atendida de Maria Flor. Estranhou, pois desde que
chegara à Índia a mulher não costumava ligar-lhe àquela hora. Suspirou.
Depois devolveria a chamada. Antes de meter a chave na ignição, espreitou
as restantes mensagens. Constatou que outra delas era igualmente de Maria
Flor. Pelos vistos, a mulher precisava mesmo de falar com ele.
Premiu na mensagem e abriu-a.

Estou a ser perseguida. Dois homens num café perto do Templo


Dourado. Tiros. Liga à polícia.

Ficou um longo momento especado a olhar para a mensagem. Releu-a


várias vezes, para se certi car de que entendera bem. A mulher estava a ser
perseguida por dois homens? Com tiros e um pedido para chamar a polícia?
O que vinha a ser aquilo?
Sem saber o que pensar, carregou no ícone de chamada e aguardou pela
conexão ao telemóvel da mulher. Ouviu um toque e a seguir uma voz
monocórdica em hindi e em inglês.
“ is number cannot be reached. Please, call later.”
A gravação automática indicava que o número não estava disponível.
Tentou uma segunda vez, com o mesmo resultado. O que fazer? Releu a
mensagem, para se assegurar de que não se equivocara. De facto, da
primeira vez tinha lido bem. A mulher dizia-se perseguida por dois homens,
falava em tiros e pedia a intervenção da polícia. Tudo muito claro. Como se
isso não bastasse, tinha o telemóvel desligado. O que poderia concluir de
tudo aquilo?
Subitamente nervoso, googlou o número de telefone da embaixada
portuguesa em Nova Deli e carregou no ícone de chamada do número que
lhe apareceu no ecrã. O telefone chamou três vezes antes de uma voz
feminina atender.
“Embaixada de Portugal em Nova Deli, bom dia.”
“Bom dia, minha senhora. Precisava de falar urgentemente com o senhor
embaixador.”
“O senhor embaixador não está.”
“Será que me pode dar o número dele? O meu nome é Tomás Noronha,
sou consultor do Museu Gulbenkian.”
“Desculpe, mas não posso dar o telefone do senhor embaixador à primeira
pessoa que liga para aqui, como deve compreender.”
“Trata-se de um assunto urgente, minha senhora. Não haverá aí ninguém
com quem possa falar?”
“Só se for com o primeiro-secretário, o doutor Henrique Mathias. Um
momento, por favor.”
Seguiram-se quatro minutos de espera, com uma música enervante a tocar
ininterruptamente ao auscultador. Por m, um homem atendeu.
“Embaixada de Portugal em Nova Deli, bom dia.”
“Bom dia. Posso falar com o doutor Henrique Mathias?”
“O senhor doutor é na extensão 1202.”
“Será que me pode passar?”
“Terá de ligar outra vez para o geral e pedir a extensão 1202.”
“Oiça, estou a ligar de Portugal e é uma situação urgente. A telefonista
passou-me para esse número para falar com o doutor Mathias. Por favor,
precisava mesmo que me transferisse a chamada para ele.”
O homem do outro lado soltou um estalido irritado com a língua antes de
assentir.
“Um momento.”
Mais cinco minutos de música. A primeira voz, a feminina, voltou à linha.
“Embaixada de Portugal em Nova Deli, bom dia.”
Desta feita foi Tomás a soltar um estalido com a língua.
“Minha senhora, liguei há pouco para falar com o senhor embaixador e a
senhora passou-me para o doutor Henrique Mathias. Só que, ao m de não
sei quantos minutos, quem atendeu foi outra pessoa que me disse que o
doutor Mathias não era naquela extensão e que com algum enfado me fez a
ligação para a extensão certa. Acontece que, em vez de atender o doutor
Mathias, atendeu-me a senhora outra vez.”
“Desculpe, não percebi.”
O historiador contou mentalmente até três para não se enervar; era
preciso paciência para lidar com amanuenses, e paciência era coisa que nele
não abundava.
“É para dizer que o doutor Mathias não atendeu.”
“Não me diga.”
“Sim, minha senhora.”
“Querem lá ver que foi passear a cadela?”
Tomás revirou os olhos.
“Então passe-me a outra pessoa, por favor.”
“Se calhar era melhor o senhor entrar no site do ministério e preencher
o formulário P-03. O despacho do senhor ministro revogou a Portaria 17/2018
e requer agora que se preencha primeiro o P-03 para se poder solicitar ao…”
“Minha senhora, isto é muito urgente. Será que me pode ajudar? Por favor,
arranje-me alguém com quem possa falar. É sobre uma possível emergência
envolvendo uma cidadã portuguesa.”
A voz do outro lado da linha reconsiderou.
“Bem… não é muito regulamentar, mas…”
“Por favor, por favor.”
“Só se for a doutora Inês Sampayo. É a adida cultural da embaixada. Pode
ser?”
“Sim, claro. Obrigado, obrigado.”
Mais dois minutos de música ao telefone.
“Está lá?”
“Bom dia. Posso falar com a doutora Inês Sampayo?”
“Daqui é da cozinha. Para a doutora Inês tem de ligar lá para cima.”
Agarrado ao telemóvel dentro do automóvel, Tomás bufou de
enervamento; aquilo parecia uma das habituais odisseias que vivia sempre
que precisava de resolver um assunto em certos serviços em Portugal.
Normalmente era Maria Flor que lidava com tais pesadelos, pois ele não
tinha a menor paciência para os labirintos da irritante burocracia
portuguesa, mas evidentemente não podia nesse momento recorrer
à mulher e teria de se desembaraçar sozinho.
“Pode fazer-me a ligação à doutora Inês Sampayo, por favor?”
“Eu? Mas estou aqui sozinho a descascar batatas…”
Assim não ia lá, percebeu Tomás. Andava às voltas e não saía do mesmo
sítio; se bem conhecia aquela gente, iria passar a manhã naquilo. Teria de
mudar de método.
“Oiça, meu caro senhor, isto é muito urgente! Ligue-me imediatamente à
doutora Inês Sampayo! Aqui é do… uh… do Departamento de Recursos
Humanos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Estamos a preencher as
listas de dispensa de pessoal nas representações diplomáticas e começámos a
identi car os funcionários menos e cientes. Já agora, qual é o seu nome?”
“Eu… uh… vou passá-lo à doutora Inês.”
Desta feita, a música ao telefone apenas durou dez segundos antes de
aparecer em linha uma nova voz feminina.
“Daqui Inês Sampayo”, identi cou-se a nova interlocutora em tom
melodioso, quase sedutor. “Conversei na semana passada com o doutor Telles,
pessoa que muito considero, e na ocasião ele não me falou em nenhuma
dispensa de pessoal. Repare que aqui na embaixada em Nova Deli estamos
muito apertadinhos de gente, não se pode mandar ninguém embora senão
camos depenadinhos de recursos. Já pensaram em mexer mas é na nossa
representação em Bruxelas? Aí sim, é que há muita gente! Ui se há!”
“Doutora Inês Sampayo, chamo-me Tomás Noronha e sou consultor da
Gulbenkian em Lisboa. A minha mulher, que é cidadã portuguesa, enviou-
me há pouco uma mensagem preocupante de Amritsar. Precisava que a
embaixada contactasse a polícia de Amritsar para se certi car de que está
tudo bem. É uma questão urgente.”
Fez-se uma curta pausa ao telefone.
“Não é dos Recursos Humanos?”
“Não, doutora Sampayo. É um assunto urgente. Acha que é possível
contactar a polícia de Amritsar?”
“O senhor não está a ligar do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em
Lisboa?”
“Estou a ligar de Lisboa, doutora, mas sou um consultor da Gulbenkian.
Pode contactar a polícia de Amritsar, por favor?”
A voz da adida cultural esfriou.
“Para esse assunto, meu caro senhor, é melhor falar com o senhor
embaixador.”
“Ele não está, doutora.”
“Ah, pois. Olhe, então fale com o primeiro-secretário.”
“Parece que foi passear a cadela, doutora.”
“Ligue de novo daqui a pouco. O passeio da Lola não dura mais de uma
hora.”
“Isto é urgente, doutora. Está em causa uma cidadã portuguesa que
mandou um pedido de socorro de Amritsar. Pode contactar a polícia local,
por favor?”
A voz do outro lado da linha bufou de impaciência.
“Ai que maçada. Isso não pode esperar?”
Aquilo era exasperante.
“Não, minha senhora! É urgente!”
“Oiça, agora não posso andar a tratar destas coisas. Vem aí a nossa grande
escritora, a Nélia Adamastor, e como compreende tem de ser tratada com toda
a dignidade. Bem vê, ela apoiou o partido nas últimas eleições e desde então
ganhou não sei quantos prémios. O senhor ministro ligou-me ontem e tenho
agora de ir buscá-la ao aeroporto para a levar para o melhor hotel da cidade, o
Taj Mahal, cinco estrelas, onde durante um banquete de gala ricamente
servido ela irá discorrer sobre a sua profunda preocupação com os mais frágeis
e carenciados. Não tenho por isso tempo para andar a alimentar romances
novelescos de turistas histéricas que vêm para a Índia em busca de emoções
fortes. Passe bem.”
“Mas… mas…”
Calou-se porque um som contínuo intrometeu-se na chamada; pelos
vistos, a doutora Sampayo desligara para ir tratar da grande diva. Tomás
cou um longo instante a olhar para o telemóvel, siderado. O que tinha
acabado de acontecer? Que país de loucos era aquele?
Deu um murro no volante e soltou um “irrrrra!” prolongado para libertar
toda a frustração que o sufocava, mas depressa dominou os nervos. Não
podia contar com os burocratas para lhe resolverem o problema e não seria
aos murros no volante que chegaria lá. Teria de manter a cabeça fria e agir
com calma.
Voltou a digitar o número de Maria Flor, pois podia ser que ela já tivesse o
telemóvel disponível e tudo não passasse de um equívoco, aliás o cenário
mais provável, mas a gravação da companhia indiana de telecomunicações
voltou a informá-lo de que aquele número “cannot be reached”. Esqueceu a
irritação e voltou a sentir-se nervoso. O que diabo teria sucedido com a
mulher? O mais natural é que estivesse de facto diante de um mal-
entendido, mas a mensagem dela com o pedido de socorro era clara e não
podia descansar enquanto não se certi casse de que estava tudo bem.
Teclou no Google do smartphone as palavras police e Amritsar e
apareceram-lhe vários números no ecrã. Carregou no ícone do primeiro e,
depois de dois toques de chamada, alguém atendeu numa língua
incompreensível.
“Do you speak English?”
“Yes, sir”, foi a resposta. “Sim, senhor. Em que o posso ajudar?”
“Chamo-me Tomás Noronha e estou a ligar de Portugal. A minha mulher
encontra-se em Amritsar e mandou-me uma mensagem a pedir socorro e a
dizer que estava a ser perseguida por dois homens. Mencionou que foram
disparados tiros.”
“Onde foi isso exatamente, senhor?”
“Ela mencionou um café perto do Templo Dourado…”
“Um momento, senhor.” Fez-se um compasso de espera enquanto a pessoa
do outro lado da linha digitava no teclado de um computador. Ao m de
alguns segundos voltou à linha. “Está, senhor?”
“Sim, estou aqui.”
“Fui consultar o sistema e temos de facto uma chamada feita há uma hora
aqui para a esquadra por parte de uma estrangeira a dizer-se perseguida na
zona do Templo Dourado. Houve realmente um incidente e enviámos homens
para o local. O senhor tem alguma relação com a pessoa em causa?”
O coração de Tomás deu um salto. A nal, sempre tinha acontecido
qualquer coisa.
“Sou o marido. Ela está bem?”
“É melhor o senhor passar aqui pela esquadra.”
“Estou a falar de Portugal. Ela está bem?”
“Receio que não possa dar informações pelo telefone, senhor. Será que pode
passar aqui pela esquadra?”
“Estou em Portugal, na Europa. Pode informar-me o que se passa, por
favor? Sou o marido e preciso de saber o que se passa com a minha mulher.
Ela está bem?”
A voz do outro lado da linha pôs-se a falar com alguém, presumivelmente
um superior hierárquico a quem pedia instruções sobre o que fazer numa
situação daquelas. Alguns instantes volvidos, o indiano voltou a dirigir-se-
lhe em inglês.
“Se o senhor se encontra na Europa, pode comunicar connosco por e-mail.
Mas eu aconselhá-lo-ia a contactar a sua embaixada ou, melhor ainda, a vir
até cá se lhe for possível e falar connosco. Temos perguntas para lhe fazer.”
O nervosismo de Tomás transformava-se já em pânico.
“Onde está a minha mulher?”, gritou ao telemóvel, já incapaz de se conter.
“O que se passa com ela?”
O indiano voltou a falar com alguém ao lado dele na sua língua, que
o historiador presumiu fosse hindi ou punjabi, até voltar de novo ao inglês.
“Foi raptada, senhor.”
III

A escola de Madina situava-se na vila vizinha. Como a distância era apesar


de tudo grande, desde que começara a ir às aulas acordava todos os dias
pelas cinco da manhã, despedia-se de Aynurita com um beijo, comia um pão
e ia a pé com os quatro irmãos e irmãs até lá. Fazia muito frio pela manhã, o
que era visualmente con rmado pelos longínquos picos nevados das
montanhas Tian Shan. A terra árida em redor da estrada era batida por um
vento gelado que esculpia as dunas, um sopro tão cortante que tornava o
percurso ainda mais duro.
A caminhada durava uns bons cinquenta minutos, que os cinco faziam
por entre galhofas e brincadeiras destinadas a aquecer os corpos, distrair as
mentes e aligeirar a rudeza do percurso. Como era a mais nova, Madina
caminhava de mão dada com Gulzira, a mais velha, enquanto os três rapazes
corriam atrás uns dos outros numa permanente competição entre eles.
“Eles são todos assim”, explicou-lhe Gulzira. “Andam sempre a ver quem é
o melhor, quem é o mais forte, quem é o mais rápido.”
“Patetões.”
Foi na escola da vila vizinha que Madina começou a ter contacto frequente
com chineses. A maior parte dos alunos eram uigures, mas chegavam cada
vez mais chineses à região. O que, aliás, se re etia não apenas no per l dos
novos alunos, mas também dos novos professores. Ainda havia professores
uigures, claro, embora os professores chineses fossem em maior número. E
estes eram mais exigentes do que os uigures.
Quando as aulas eram dadas pelos professores chineses, o chinês era a
única língua de aprendizagem. Os restantes alunos não tiveram, por isso,
outro remédio que não fosse aprendê-la. De início, Madina nada entendia.
Os chineses falavam alto, insuportavelmente alto até, e o que diziam soava-
lhe incompreensível. Não levou, no entanto, muito tempo a começar a
perceber algumas coisas. Até que, por m, com a naturalidade de que só as
crianças são capazes, constatou que já dominava a língua.
A língua chinesa pareceu-lhe curiosa. A sua gramática era sem dúvida
mais simples do que a uigure ou a cazaque. O problema situava-se nas
tonalidades, que criavam uma constante ambiguidade no que era dito ou
entendido. Para começar, não havia alfabeto, o que signi cava que as
palavras não eram formadas por letras, mas pela combinação de palavras
mais pequenas. Por exemplo, a palavra tamanho combinava o caractere de
grande com o caractere de pequeno. Portanto, tamanho dizia-se
grandepequeno. Já comprimento se dizia curtocomprido. E assim
sucessivamente. Cómico.
O problema era que a língua chinesa tinha poucas consoantes e estava
inundada de vogais. Ora, como as consoantes não abundavam,
a consequência é que as palavras chinesas pareciam todas iguais. Ma wa
huong chong cheong chang… e assim por diante. Muito bizarro. Bastava
atentar à primeira destas palavras, ma. Ma queria dizer mãe. Mas também
queria dizer entorpecido. E cavalo. E repreensão. Tudo dependia da entoação.
Ou seja, se Madina quisesse dizer que o cavalo da mãe estava entorpecido e
fora repreendido, diria algo que soava mais ou menos a ma ma ma ma,
embora com variações na entoação tão subtis que se tornavam quase
impercetíveis a quem não as conhecesse.
Daí que os chineses falassem tão alto, acabou a pequena por perceber. Só
falando alto as diferenças de tonalidade se tornavam compreensíveis. Claro
que, mesmo assim, tudo aquilo tornava a língua chinesa propícia a
equívocos. Mas também a trocadilhos. E a códigos secretos. A chave,
quando as tonalidades lhe escapavam, era captar o sentido através do
contexto e da história de cada palavra ou expressão. O que, para quem vinha
de outra cultura e língua, era extraordinariamente difícil.
Naquele dia, uma referência da professora Daiyu a uma terra chamada
qualquer-coisa-iang, ilustrada num grande mapa como sendo a região onde
viviam, deixou-a intrigada. Aquilo contradizia tudo o que ouvira da boca
dos anciãos lá da aldeia, em particular do avô Qeyser. Como Madina era
naturalmente curiosa e extrovertida, além de que o seu chinês se tornara
su cientemente satisfatório para lhe dar con ança nas intervenções na aula,
levantou de imediato a mão.
“Senhora professora”, interpelou-a no seu chinês ainda algo titubeante.
“Onde é isso, não-sei-quê-iang?”
A professora Daiyu riu-se perante a dúvida; realmente, só uma criança
poderia fazer uma pergunta daquelas.
“Xinjiang? É esta região. Nós vivemos em Xinjiang.”
“Mas, senhora professora, eu achava que isto era o Turquestão Oriental…”
“Qual Turquestão Oriental, qual carapuça!”, irritou-se a professora. “Isso é
conversa separatista! Não voltes a dizer isso, ouviste?” Percebendo que tinha
sido áspera de mais, suavizou a voz e esboçou um sorriso. “Nós vivemos em
Xinjiang. Xinjiang. Em chinês, xinjiang quer dizer nova fronteira. É bonito,
não é? Todos em paz e harmonia, como tão bem nos ensina o Partido.”
“E quem chegou primeiro aqui, senhora professora? Os chineses ou nós,
os uigures?”
“Somos todos chineses”, repreendeu-a a professora Daiyu. “Tu também és
chinesa.”
“Eu?”
“Sim, tu.” Fez um gesto que abarcava toda a classe. “Todos somos chineses.
A China é a nossa mãe e junta mais de cinquenta grupos diferentes. Nós, a
que vocês chamam chineses, na verdade somos han. O maior grupo de
todos.” Pôs-se a apontar para os alunos chineses na sala. “Eu, a Ah Lam, o
Shin, a Fen, o Wong… somos han. Agora, é verdade que, aqui em Xinjiang,
há chineses que pertencem a outros grupos. Por exemplo, tu, o Ali, o Erkin,
a Gulbahar e o Mujahit são uigures. Já ali a Sayragul, a Ramina e a Aylin são
cazaques, enquanto o Azamat é quirguiz. Mas todos somos chineses,
percebes? Todos. A China é a nossa pátria.”
Nada daquilo batia certo com o que Madina ouvia na aldeia. Tanto os pais
como o avô Qeyser e todos os que os rodeavam, incluindo os anciãos,
tornavam claro nas conversas que uma coisa eram os uigures e outra os
chineses. Não só sicamente os dois povos eram diferentes como falavam
línguas diferentes. Madina conversava em uigure na aldeia e na escola com
os colegas e professores uigures e com os colegas cazaques, cuja língua se
assemelhava muito ao uigure.
Já com os chineses, que a professora insistia em chamar han, tudo era
diferente. Separados dos restantes pela língua, e por um invisível mas
palpável superior estatuto social, a maior parte dos alunos han brincavam
entre eles e evitavam misturar-se com os uigures, os cazaques ou os
quirguizes da turma de Madina, ou ainda com os huis, os tajiques, os daur e
os usbeques de outras turmas. É certo que alguns han eram simpáticos e até
se esforçavam por se aproximar deles, mas a língua constituía de facto uma
barreira que tudo di cultava.
Quanto aos restantes han, chamavam fengjian aos que não eram han, em
particular os uigures e os cazaques. Fengjian era uma forma pejorativa de se
dirigirem aos uigures e aos cazaques como sendo atrasados e estúpidos,
burros mesmo, o que contribuía para cavar um fosso entre as duas partes.
Ninguém gostava de ser tratado como inferior, pelo que não havia nada que
os alunos que não eram han mais queriam evitar do que serem chamados
fengjian. Tudo menos isso. A expressão tornou-se de tal modo insultuosa
que Madina chegou até a ter vergonha de ser uigure.
O que verdadeiramente a deixou intrigada, no entanto, foram as
a rmações da professora Daiyu. No caminho de regresso a casa ainda
interrogou Gulzira sobre o que era isso de não viverem no Turquestão
Oriental, mas em Xinjiang, e de os uigures serem chineses. Eram os uigures
mesmo chineses? Se o eram, porque falavam uma língua diferente da
chinesa? Se eram todos o mesmo povo, por que razão ela não brincava com
a Fen e a Ah Lam, mas com a Gulbahar, que era uigure, e com a Sayragul,
que era cazaque? Metralhada com esta sequência de perguntas, a irmã mais
velha não conseguiu dar-lhe respostas satisfatórias. E Madina precisava
delas.
A nal era uigure ou era chinesa?
IV

As tas da vedação da polícia mantinham parte da esplanada ainda


inacessível aos clientes; um agente de uniforme creme e turbante branco,
evidentemente um polícia sikh, garantia que ninguém cruzava a linha. No
chão estavam delineadas a giz as silhuetas de dois corpos, ambos com
manchas vermelho-escuras de sangue seco na zona da cabeça. O local do
crime atraía a curiosidade de centenas de mirones, sobretudo habitantes da
cidade, mas também um ou outro turista.
O homem dos olhos verdes abeirou-se do polícia sikh e mostrou-lhe um
documento.
“Chamo-me Tomás Noronha e sou marido de uma das vítimas. Vim agora
da esquadra e disseram-me que poderia visitar a esplanada onde ocorreu
o… en m, o incidente.”
O polícia sikh indicou as mesas livres.
“Pode sentar-se nestas mesas, sahib. O que não pode fazer é cruzar as tas
de delimitação. É zona restrita de investigação.”
O recém-chegado apontou para as silhuetas desenhadas no chão a giz.
“Foi aqui que os dois empregados do café morreram?”
“Sobre esses assuntos, sahib, deve dirigir-se aos agentes encarregados da
investigação.”
Tomás sentia-se cansado. Passara a noite inteira a voar da Europa para a
Índia, aterrara de madrugada em Bombaim e apanhara um voo doméstico
para Amritsar. Do aeroporto da capital do Punjab fora direto à esquadra da
polícia, onde preenchera os formulários da ordem e respondera às inúmeras
perguntas dos investigadores. Acabara nesse momento de chegar ao café Sri
Harmandir, onde a mulher tinha sido vista pela última vez quando do
incidente na véspera, e não se sentia a transbordar de paciência.
Apesar da fadiga, a adrenalina mantinha-o sempre em movimento; sabia
que a fatura viria mais tarde, quando en m parasse, mas por ora teria de
aproveitar toda a energia para absorver a maior quantidade de informação
possível de modo a perceber o que acontecera e, sobretudo, a recolher dados
que lhe permitissem localizar Maria Flor. Ao chegar ali, no entanto, sentiu-
se desesperar de impotência; como iria ele resolver um caso daqueles num
país tão gigantesco, uma terra estranha onde nem sequer conhecia
ninguém? Tornava-se claro que a tarefa se encontrava muito para além das
suas capacidades.
De smartphone na mão, fotografou a esplanada, em particular a zona
vedada pelas tas da polícia. Registou em imagem as silhuetas garatujadas a
giz e cada uma das mesas vazias; em qual delas teria estado Maria Flor
sentada quando tudo aquilo sucedera? Tentou imaginar a cena com base nas
escassas informações que lhe haviam dado na esquadra. Uma mulher
desconhecida a chegar, aos gritos e em pânico, dois homens atrás dela, o
tumulto que se seguiu, Maria Flor a ajudar a fugitiva a escapulir-se, metendo
pelo interior do café em direção a…
“Are you a newsman?”, perguntou alguém. “O senhor é jornalista?”
Voltou-se e viu um chinês em mangas de camisa, a gravata escura solta na
gola, com um bloco de notas na mão. Tomás simpatizava com os chineses;
achava-os trabalhadores, corteses e respeitadores. Por regra nunca violavam
a lei dos países onde viviam. Mas também por regra não faziam perguntas
indiscretas.
“O que tem o senhor a ver com isso?”
“É que o vejo a fotografar a esplanada…”
“Que eu saiba ainda não é crime tirar fotogra as num lugar público, pois
não?”
“O cenário de um crime não é nenhuma atração turística, mister.
Morreram aqui pessoas.”
Tomás parou de fotografar a esplanada e tou o chinês; falava um inglês
corretíssimo, embora anasalado, mas o que verdadeiramente
o impressionara fora o respeito que ele mostrara pelos mortos. Sentiu que
lhe devia uma explicação.
“Não sou jornalista. O que se passa é que a minha mulher foi uma das
vítimas, receio bem.”
O chinês pestanejou.
“Mas os dois mortos eram homens, mister…”
“A minha mulher desapareceu.”
A informação pareceu chocar o chinês.
“A sua mulher era a fugitiva?”
“A minha mulher era a cliente do café que ajudou a fugitiva. Ainda me
mandou uma mensagem a pedir socorro, mas depois nunca mais deu
notícias. Estou imensamente preocupado, como deve calcular.”
Subitamente muito interessado, o chinês aprontou a caneta para tomar
notas no bloco.
“Como se chama o senhor?”
A pergunta suscitou a descon ança de Tomás. Porque quereria o seu
interlocutor saber quem ele era?
“Lamento, este é um assunto privado.”
O chinês tirou um documento do bolso e mostrou-lho. Tratava-se de um
cartão com a fotogra a dele num canto, a águia americana no outro e o
nome e número por baixo, mais códigos digitais de segurança.
“Chamo-me Charlie Chang e sou adido de imprensa da embaixada dos
Estados Unidos em Nova Deli.”
“Ah, bom”, admirou-se Tomás. A nal o homem não era chinês mas
americano, o que explicava o seu inglês correto e anasalado. “Se é adido de
imprensa em Nova Deli, o que está o senhor aqui a fazer em Amritsar?”
Chang indicou com um gesto as linhas que a polícia indiana traçara a giz
no chão.
“Vim dar uma olhadela ao local do crime.”
“Isso vejo eu. Mas porquê? O que há aqui que possa interessar
à embaixada dos Estados Unidos ao ponto de enviar de Nova Deli o seu
adido de imprensa? Que eu saiba, isto não tem nada a ver com relações da
embaixada com a imprensa…”
O americano esboçou um sorriso forçado e guardou a caneta no bolso.
“Essa é uma decisão que cabe ao meu embaixador”, disse. “A polícia
explicou-lhe qual o plano para localizar a sua mulher?”
A pergunta ia direita a uma das questões que mais estavam a incomodar
Tomás desde que meia hora antes saíra da esquadra de Amritsar.
“Dizem que estão a fazer o seu melhor.”
“Ou seja, nada.”
O português baixou a cabeça, desanimado.
“Pois.”
“A Índia é um país enorme, mister Noronha. Tem mais ou menos a mesma
população da China. Acha que a morte de dois empregados de café e o
desaparecimento de uma memsahib portuguesa e de uma outra
desconhecida vão levar a polícia indiana a envidar os melhores esforços para
deslindar o caso e salvar as duas senhoras em questão?” Abanou a cabeça.
“Não me parece.”
“Então o que posso fazer?”, questionou Tomás com impotência, falando
tanto para o seu interlocutor como para si próprio. “Acha que contrate um
detetive privado?”
Pegando no seu smartphone, Chang dedilhou com destreza o ecrã em
busca de algo.
“Nós estamos em cima do caso, mister Noronha.”
“Nós?”
“A embaixada dos Estados Unidos”, esclareceu. “Temos meios… digamos,
excecionais. Um dos nossos homens localizou o esconderijo para onde os
raptores levaram a sua mulher e a outra fugitiva.”
Tomás arregalou os olhos, surpreendido.
“Está a falar a sério?”
Os dedos do americano imobilizaram-se numa página do smartphone, que
exibiu ao seu interlocutor.
“Encontraram isto no esconderijo, por baixo de um colchão. Por acaso
reconhece?”
Os olhos espantados de Tomás xaram-se na fotogra a estampada no ecrã
do smartphone. Mostrava uma folha amarrotada com um símbolo e
números em cima. Em baixo estava um poema redigido a tinta negra. Tudo
em letra redonda feminina.

47
𝔓
12,3 12,4
Todos esses rapazes rebeldes
Ambulam desengonçados
Em jogos ocos
A onda da hidra amaina
Rolando mexilhões aos pés
Ah, linda areia!

“É… é a letra da minha mulher!”


Os lábios de Chang desenharam um leve sorriso vitorioso.
“Como deve calcular, já o tínhamos deduzido, mas é bom termos
a con rmação”, disse. “Esta imagem, mister Noronha, é a prova de que ela se
encontra viva.”
Um turbilhão de sentimentos assomou ao português ao tar aquela
fotogra a no ecrã do smartphone. Por um lado, o alívio por saber que a
mulher estava efetivamente com vida; por outro, a angústia de ver
con rmado que fora feita prisioneira e que estava a ser levada sabia-se lá
para onde e com que intuitos.
“Meu Deus, Maria Flor!…”
O homem da embaixada americana manteve o ecrã do telemóvel voltado
para ele, na esperança de que a fotogra a lhe dissesse alguma coisa mais ou
contivesse alguma pista adicional.
“A questão é saber por que razão, considerando as circunstâncias penosas
que está a viver, decidiu a sua mulher escrever um símbolo bizarro, uns
algarismos e um poema e esconder a mensagem por baixo do colchão do
esconderijo onde a forçaram a passar a noite? E porquê este poema em
particular? Estes versos são famosos no seu país?”
“Não. Foi ela que os escreveu.”
“Então porque o fez?”
Tratava-se realmente de uma boa pergunta. Tomás pegou no smartphone
do seu interlocutor e estudou a imagem com atenção, em busca de algum
detalhe pertinente. O símbolo era interessante, e o mesmo se poderia dizer
dos algarismos. Percebeu que, à custa de conviver com ele, Maria Flor
tornara-se so sticada na elaboração de cifras e códigos. Não encontrando
imediatamente o sentido daquele símbolo e daqueles números, pois o que
eles pareciam sugerir não fazia sentido, concentrou-se a seguir no poema.
Que charada! O que queria ela dizer com aquilo? O texto tinha aspeto de
pertencer a uma daquelas correntes da poesia contemporânea, abordando
temas com palavras aparentemente desencontradas e sem qualquer rima, à
maneira de…
Hesitou.
Um pormenor da re exão que acabara de fazer em silêncio chamou-lhe a
atenção. Um poema ao estilo contemporâneo, com estrofes sem rima? E
se… e se…
Releu os versos sem se concentrar nas ideias e nem sequer nas palavras,
mas em algo bem mais elementar, e de repente, como se tivesse sido
assaltado por uma epifania, o rosto abriu-se-lhe num sorriso e, cintilando
uma amância no verde dos olhos, encarou o seu interlocutor com uma
expressão triunfal.
Descobrira.
V

Os chineses han começaram a instalar-se na aldeia. Primeiro foi o senhor


Hong, que abriu uma mercearia na rua central, e depois o senhor Wang, que
se pôs a vender bicicletas ao lado da mercearia do senhor Hong. Em vez de
irem viver para os yurts, os recém-chegados construíram casas de adobe. A
maior parte dos uigures manteve a distância, descon ada. Quem eram
aqueles forasteiros? Porque vieram para a aldeia? Tinham boas ou más
intenções?
O facto é que o senhor Hong se revelou muito simpático e conversador.
Além disso, oferecia bom dinheiro pelo leite, pelo queijo e pela carne
produzidos pelos aldeãos. Igualmente importante, a sua mercearia expunha
produtos novos, de que os habitantes da aldeia nunca tinham ouvido falar,
mas que se revelaram extremamente úteis na vida quotidiana. Outros desses
produtos só se viam nos bazares das grandes cidades que apenas visitavam
em dias de festa ou romaria, como Kashgar, Kuga ou Aksu, e que agora
cavam disponíveis na própria aldeia.
Madina, por exemplo, cou seduzida pelo Weiwei, uma marca de leite de
soja em pó que se transformava num creme adocicado e que passou a
alegrar os seus pequenos-almoços. Entre as novidades que mais sucesso
tiveram junto dela estavam também as revistas com histórias desenhadas.
Aquelas aventuras mostravam os valentes chineses a enfrentarem os “maus”,
uns homens louros, com grandes barrigas e narizes enormes, que
apontavam armas a mulheres e crianças e aterrorizavam toda a gente. Os
“maus” vinham da América e da Europa, mas felizmente que os chineses,
guiados pelo Partido, os enfrentavam e derrotavam.
Já na escola, os professores tinham explicado que a invasão japonesa da
China na Segunda Guerra Mundial era resultado da estratégia europeia e
americana de pôr os dois países asiáticos um contra o outro para impedir
que qualquer um deles ameaçasse o domínio maligno do Ocidente.
Felizmente que o Partido pusera m a esse estado de coisas quando da
libertação em 1949. Daí também o sucesso daquelas histórias desenhadas.
Os nais dessas aventuras mostravam-se emocionantes e muito satisfatórios.
O bem vencia sempre, no nal o Partido fazia valer a justiça e os bandidos
ocidentais eram punidos.
“Que sorte o Partido estar aqui para nos proteger…”
E o que dizer das bicicletas do senhor Wang? Uma maravilha. Eram
comuns nas grandes cidades, como todos sabiam, mas não ali na aldeia. As
bicicletas revelaram-se um verdadeiro sucesso, tendo facilitado imenso a
vida a quem tinha de cobrir depressa a distância até aos vilarejos mais
próximos. Além disso, a sua manutenção não exigia os mil cuidados
necessários com os camelos, o tradicional meio de transporte dos uigures,
pois os animais tinham necessidades que os engenhos dispensavam.
Quanto a Madina, cou encantada com umas bonecas de plástico que
apareceram na loja do senhor Wang. Nunca tinha visto coisa tão perfeita;
pareciam mesmo bebés de verdade. Ainda pensou em pedir à mãe que lhe
comprasse uma, mas depois lembrou-se da sua Aynurita, coitadinha, achou
que ela caria triste por ser tão facilmente descartada e, abraçando-a com
ternura, não foi capaz de fazer o pedido. A sua boneca de trapos seria
sempre a sua lha, e só uma lha verdadeira a poderia um dia substituir.
Na aldeia corria tudo bem com o senhor Hong e o senhor Wang.
O problema foi quando apareceram mais chineses han nas redondezas,
alguns fardados de militares, e começaram a requisitar terras de pastagem
dos uigures. A bingtuan não parava de se expandir e de se aproximar; pelos
vistos começava até a cercar a aldeia. Não foi preciso esperar muito para as
consequências se fazerem sentir. Num dia os pastores uigures podiam levar
as cabras para um monte sobranceiro ao rio Tekes, no dia seguinte já havia
sido erguida uma vedação e um chinês han armado proibia-os de para ali
irem com os animais. O que diabo estava a acontecer?
No dia desse incidente, na verdade o último de uma sequência crescente,
foi convocada para a noite uma reunião geral da aldeia. Quando a hora
chegou, muita gente juntou-se no yurt do avô Qeyser, uma gigantesca tenda
redonda onde o ancião fazia questão de continuar a viver por respeito aos
costumes antigos, para discutir o assunto. A própria Madina, que adorava
brincar nesse monte, acompanhou os pais.
“Que maluqueira vem a ser esta?”, questionou o pastor a quem primeiro
tinha sido vedado o acesso ao monte. “Durante toda a sua vida, o meu pai
levou os animais a pastar naquele monte. O meu avô fazia o mesmo. Eu
agora não posso levá-los lá? A nal, quem manda na nossa terra? Nós ou os
chineses?”
As perguntas do pastor, que continham nelas mesmas a própria resposta,
foram acolhidas com um coro geral de aprovação. Quem de bom senso
podia discordar dele? Não viviam os uigures durante tantas gerações
naquela terra? Quem eram os chineses para virem ali pôr e dispor do que
pertencia aos uigures?
“Há mais do que isso!”, interveio um outro uigure. “O Hong compra-me o
leite a um yuan o litro e eu soube que o vende a um comerciante de Kashgar
a cinco yuans o litro.”
“Cinco?!”
“Isso mesmo. Cinco. Foi o próprio comprador que me disse.”
O burburinho indignado dentro do yurt cresceu depressa e tornou-se tão
grande que degenerou numa algazarra. A verdade é que quase toda a gente
vendia produtos ao Hong, pelo que a questão dizia respeito a todos.
“E o queijo?”, quis saber outro, evidentemente um produtor de queijo. “A
quanto vende ele o queijo?”
“E a carne?”
O primeiro abanou a cabeça, embora mantendo uma expressão
de despeito.
“A quanto vende ele o queijo e a carne não sei”, reconheceu. “Mas que anda
a meter muito dinheiro ao bolso, não tenho dúvidas. O tipo ganha uma
fortuna à custa do nosso trabalho.”
A algazarra prosseguiu e ameaçava mesmo transformar-se num tumulto.
Havia quem dissesse que era preciso “dar uma lição a esse camelo!” e alguns
falavam em espancá-lo ou expulsá-lo da aldeia. “De nós não se vai ele rir!”,
vociferou alguém. O alarido prosseguiu neste tom durante alguns minutos e
só acalmou quando o avô Qeyser, que até ali se limitara a ouvir enquanto
afagava as suas longas barbas brancas, se levantou e fez um gesto a pedir
silêncio. O ancião era um homem versado no Alcorão e talvez a gura mais
respeitada na aldeia, pelo que a sua intervenção, mesmo que ainda apenas
por gestos, levou todos a calarem-se.
O avô Qeyser varreu os presentes com um olhar demorado antes de falar;
a sua enorme barba branca, mais o seu estatuto de imã e guardião da
memória da comunidade, conferiam-lhe enorme autoridade.
“Meus lhos, nós não passamos de gente humilde de cuja ingenuidade os
forasteiros por vezes abusam”, disse, as palavras pausadas e o tom tranquilo.
“A maior parte de vós não se lembra, mas eu era pequeno quando os
chineses chegaram ao Turquestão Oriental. Fizeram um acordo com os
russos e entraram na nossa terra. De início correu tudo bem. Só que, a certa
altura, proibiram que tivéssemos fotogra as da santa Kaaba, que Abraão
construiu e de onde o profeta, que a paz esteja com ele, retirou as imagens
dos idólatras. No lugar da santa Kaaba tínhamos de pôr uma fotogra a de
Mao e rezar a ele como se fosse um deus. Muitos protestaram e recusaram-
se. Sabem o que zeram os chineses? Vieram aí, levaram-nos… e nunca
mais os vimos. Soubemos depois que tinham aberto uma prisão gigantesca
em Koria, no deserto de Taklamakan, e fecharam lá milhares e milhares de
pessoas. Chamaram a essa prisão laogai e morreu aí muita, muita gente.
Dois tios meus desapareceram assim, tal como muitos outros aqui da
aldeia.”
Todos já tinham ouvido falar no grande campo de “reeducação pelo
trabalho” do deserto de Taklamakan, lá no Sul, perto de Kashgar.
Taklamakan queria dizer, em uigure, “os que entram já não voltam”, e esse
laogai aberto pelo Partido no deserto zera jus ao nome do deserto.
As palavras do avô Qeyser foram por isso escutadas em silêncio e com muita
atenção; o que ele dizia era quase lei na aldeia. Apenas um dos mais jovens
se atreveu a contra-argumentar, e mesmo assim depois de fazer uma vénia
respeitosa e adotando um tom de voz submisso.
“Estamos cientes de tudo isso, venerável imã, mas essas coisas
aconteceram há já muito tempo…”
O olhar do avô Qeyser pousou nele.
“O tempo só é antigo para os novos que nele não viveram”, disse. “Mas se
há coisa que eu aprendi é que, embora o mundo esteja sempre em mudança,
há acontecimentos que se repetem, girando como a roda de uma carroça.
Muitos anos depois de ter aberto o grande laogai de Taklamakan, os
chineses voltaram a enlouquecer. Grupos do Partido vieram aí e puseram-se
a bater, a prender e a matar os professores, os que tinham educação, os que
possuíam alguma propriedade, como se fosse pecado ser educado e ter as
suas coisas. Tens um pedaço de terra para cultivar hortaliças? Morre, cão,
que és um rico! Sabes falar línguas? Toma, cão, que és um burguês!” Abanou
a cabeça. “Morreram milhões assim. Milhões. Quando isso começou a
acontecer, sabem o que z? Peguei em todos os meus livros, e na altura tinha
muitos, empilhei-os ali fora, deitei-lhes gasolina e ateei-lhes lume. Foi assim
que me safei. Apenas se salvou o santo Alcorão, que escondi num buraco.”
Percorreu com os olhos todos os que se concentravam no yurt. “Por isso vos
digo, meus lhos. Temos de ter cuidado com esta gente. Querem punir o
senhor Hong? Se o zerem, preparem-se para a vingança dos chineses.
Dizem eles que todos somos chineses, mas quando são testados eles
mostram que só eles são verdadeiramente chineses. Os outros, que somos
nós, estão destinados ao deserto de Taklamakan.”
Todos conheciam histórias de família que remontavam a esses tempos,
pelo que sabiam que tudo o que o avô Qeyser acabara de dizer era
verdadeiro. Os mais velhos lembravam-se bem dos tempos caóticos da
Revolução Cultural, quando os jovens denunciavam professores e pais e
turbas de guardas vermelhos patrulhavam as ruas, destruíam escolas,
espancavam pessoas por usarem “roupas burguesas” e saqueavam lojas
culpadas do crime de “capitalismo”.
O jovem que interpelara o avô Qeyser, porém, não se conformava.
“O venerável imã acha mesmo que devemos deixar os chineses fazerem o
que querem na nossa terra?”
“Punir o Hong não é a solução. Não veem que há já soldados chineses nas
redondezas? Se lhe zerem alguma coisa, o Hong irá queixar-se aos
soldados, eles virão cá e seremos todos punidos. É isso o que querem?”
Todos sabiam que havia de facto militares chineses nos arredores da
aldeia. O problema agudizara-se, de resto, logo que foram descobertas novas
fontes de petróleo na região. Mais e mais gente ia chegando da China,
ameaçando transformar os uigures, os cazaques e os outros povos da região,
quase todos muçulmanos, em estranhos na sua própria terra.
“Então o que fazemos?”
O avô Qeyser apontou para cima.
“Temos de entregar o nosso destino a Deus”, sentenciou. “Ele proteger-
nos-á. Rezemos cinco vezes ao dia, ofereçamos às sextas-feiras o zakat aos
pobres, façamos jejum no Ramadão e no nal celebremos o Festival da Rosa.
Celebremos também o Festival do Corban, como manda Deus, e o Festival
das Uvas, como dita a tradição. Não matemos, não roubemos, não façamos
aos outros o que não queremos que nos façam a nós. Quem violar a Lei será
punido. Talvez os prevaricadores não sejam castigados agora, pois de
momento quem manda são os chineses, mas no dia do Juízo Final, quando
Deus determinar quem irá para o Seu jardim, esta gente que nos está agora a
fazer mal terá de se sujeitar à justiça divina.”
Não havendo possibilidade de enfrentar os chineses, como todos tinham
consciência, talvez o melhor fosse mesmo con ar na justiça de Deus e deixar
para o dia do Juízo a punição dos injustos. A verdade é que a versão do islão
seguida pelos uigures fundira-se já com outras tradições da região e
desencorajava o recurso à violência. O isolamento a que os muçulmanos do
Turquestão Oriental estavam votados, em particular os uigures, os cazaques
e os tajiques, ditava de resto que haviam perdido o contacto com as diversas
correntes do islão, deixando-os perdidos na orientação religiosa.
Para tentarem encontrar-se, procuravam aconselhamento nos seus imãs,
como o avô Qeyser, fazendo-lhes muitas perguntas sobre o Alcorão e as
regras divinas. Mas mesmo os imãs, tão isolados quanto as restantes pessoas,
não tinham acesso a toda a informação. Para contornar as di culdades, o
avô Qeyser dizia vezes sem conta que o essencial da lei de Deus resumia-se a
não fazer aos outros o que não queríamos que zessem a nós. Quem
respeitasse esse preceito, argumentava o imã da aldeia, respeitava o espírito
da lei de Deus.
Ninguém ignorava que o avô Qeyser era a voz da razão, mas a injustiça
não deixava de os ferir.
“Deixamos o senhor Hong continuar a aproveitar-se de nós desta forma
tão desonrável? E deixamos que os chineses nos impeçam de levar as cabras
para onde quisermos?”
O imã respirou fundo.
“Se não nos deixam levar as cabras a pastar a um sítio, levêmo-las então a
outro”, respondeu. “Quanto ao senhor Hong, é uma questão de cobrarmos
mais pelo que lhe vendemos. Assim todos enriqueceremos.”
Todos se entreolharam dentro do yurt. Não era má ideia.
VI

A expressão que iluminava o rosto de Tomás Noronha mostrou a Charlie


Chang que zera bem em dar-lhe a ver a fotogra a com o símbolo, os
algarismos e os versos rabiscados no papel. Não só o português con rmara
que se tratava da letra da mulher, o que provava que ela estava viva, como
pelos vistos detetara algo mais naquela imagem.
“O que descobriu?”
O português recuou um passo e encarou o interlocutor com um olhar
perscrutador, como se o dissecasse. Havia ali qualquer coisa que
de nitivamente não batia certo.
“Desculpe, mas porque está a embaixada americana tão interessada neste
caso?”
Em bom rigor, esta era a segunda vez que fazia a mesma pergunta.
O americano não respondera da primeira vez, optando na altura por o
distrair com a questão da fotogra a no smartphone, estratagema que não
escapara à atenção de Tomás.
“As razões do nosso interesse são nossas e não lhe dizem respeito, mister
Noronha.”
“Aí é que se engana”, retorquiu o português com rmeza. “É a minha
mulher que está em causa e tenho de saber tudo o que há a saber sobre este
caso e ajudá-la em tudo o que a puder ajudar. Portanto, esclareça-me, por
favor: por que razão a embaixada americana se mostra tão interessada neste
caso?”
Chang apontou para o ecrã do smartphone, onde permanecia a imagem do
papel com o símbolo, os algarismos e o poema.
“O que encontrou o senhor aqui?”
“Encontrei o que a minha mulher queria que eu encontrasse”, foi
a resposta, dada com secura para mostrar que não o deixaria furtar-se de
novo à questão. “Mas o senhor continua a não querer responder à minha
pergunta.”
“Nem o senhor está a querer responder à minha…”
“Esclareça-me sobre os motivos do interesse da embaixada americana e eu
esclarecê-lo-ei sobre o que descobri nesta charada. Simples troca de
informação.”
O americano abanou a cabeça.
“Isto não funciona assim.”
“Terá de funcionar.”
Chang tou-o com intensidade.
“Oiça, nós somos a única hipótese que o senhor tem de voltar a ver a sua
mulher viva”, disse entredentes, quase como se o ameaçasse. “Portanto, se
fosse a si colaborava que nem um cordeirinho. O senhor não está em
posição de impor condições, mas apenas de suplicar que nós imponhamos
as nossas para ajudar a deslindar este caso.”
Andavam em círculos, percebeu Tomás. O americano claramente não
queria abrir o jogo e a ele também não convinha abrir o seu sem primeiro
perceber o que se estava a passar. Por parvo é que não o comeriam.
“O senhor é o adido de imprensa da embaixada americana em Nova
Deli?”
A pergunta deixou o americano de pé atrás; onde quereria o seu
interlocutor chegar?
“Foi o que eu lhe disse. Se tem dúvidas, mostro-lhe outra vez o meu cartão
de identi cação.”
O historiador fez um gesto vago com a mão, indicando que dispensava o
documento.
“Tenho a certeza de que o cartão que me mostrou é genuíno e que o
senhor é mesmo o adido de imprensa da embaixada americana em Nova
Deli…”
“Ah, bom.”
“… tal como tenho a certeza de que essa função não passa de uma fachada
e que as suas verdadeiras atribuições não são de adido de imprensa da
embaixada americana em Nova Deli, como pretende fazer crer, mas de
operacional de uma certa agenciazinha americana.”
“O que está a insinuar?”
“Estou a insinuar aquele tipo de agência que só tem três letras, não sei se
está a ver qual é…”
Chang soltou uma gargalhada.
“Ora ora, mister Noronha! O senhor tem uma imaginação fértil! Anda a
ver demasiados lmes.”
Em jeito de resposta, Tomás tirou do bolso o seu smartphone e dedilhou
no ecrã a lista de contactos.
“Acha que sim?”
“Não tenho dúvidas.”
A busca no smartphone foi rápida. Localizou o número que procurava e
carregou nele, iniciando a chamada. Ouviram-se dois toques e logo uma voz
de homem atendeu.
“Tom Noronha, long time no see, man!”, rugiu em jeito de saudação. “Há
quanto tempo não nos vemos!”
“Olá, Kurt”, saudou-o Tomás. “Estou neste momento na Índia com o adido
de imprensa da vossa embaixada em Nova Deli. Tem por acaso aí à mão
maneira de veri car a identidade dele?”
“Sure thing”, con rmou o homem do outro lado da linha. “Por acaso estou
dentro do sistema e… e já lhe digo.” Ouviu-se o som de dedos a teclarem.
“Aqui está. O adido de imprensa da nossa embaixada em Nova Deli chama-
se… Charles Hu Chang.”
“Ele é da Agência?”
“Sabe bem que essa informação é con dencial, man. Nos termos da lei
americana, estaria a cometer um crime se revelasse uma coisa dessas. Não
quer que eu vá para a cadeia, pois não?”
“O vosso Charles Chang encontra-se aqui ao meu lado. Posso meter
a chamada em alta-voz?”
“Okay.”
O português premiu o ícone do altifalante no smartphone e voltou-se para
o adido de imprensa, que permanecia a seu lado.
“Senhor Chang, estamos em linha com Kurt Weilmann, um dos
responsáveis da DARPA, a agência americana de pesquisa avançada
de ciência e tecnologia. Foi a DARPA que concebeu o foguetão que colocou
o homem na Lua, que inventou o GPS, que inventou o rato de computador,
que inventou o e-mail, que inventou a…”
“Sei muito bem o que a DARPA é, mister Noronha”, cortou Chang com
acidez. “Entre um terço e metade das grandes inovações na tecnologia dos
computadores resulta de nanciamento da DARPA. E então? Onde quer o
senhor chegar com este exercício?”
“Se sabe o que a DARPA é, então também sabe que a DARPA trabalha
com a CIA. O que quer dizer que o meu amigo Kurt Weilmann opera
igualmente com a Agência.”
“Vá lá, man”, protestou Kurt ao telemóvel. “Não pode andar a falar nisso.”
“Deixe-se de tretas. Estou em Amritsar, raptaram a minha mulher
e preciso de…”
“Raptaram a sua mulher?!”
“Sim. Ontem, aqui em Amritsar. A CIA meteu de imediato cá um tipo,
este Charles Chang que se nge adido de imprensa. Isso está a fazer-me
confusão, pois que eu saiba a minha mulher não é ninguém, e sobretudo não
é peixe para interessar à Agência. Por isso, preciso de respostas e não quero
saber dos vossos protocolos de con dencialidade para nada. O que quero é
descobrir onde a minha mulher se encontra e resgatá-la. Eu sei uma coisa
que pelos vistos vocês precisam de saber e vocês sabem uma coisa que eu
preciso de saber. Isso implica um acordo entre nós. Alinham ou não?”
Tomás explicou a Kurt tudo o que se passava e o impasse a que tinha
chegado com Chang. O amigo em Washington pediu uns minutos para
conferenciar com alguém, presumivelmente com um seu contacto da
Agência em Langley, e depressa voltou ao telefone.
“Diga-me, Tom, a mensagem contida nessa charada é o quê exatamente?”
“Isso queriam saber vocês. Temos ou não acordo?”
“Primeiro precisamos de perceber que tipo de informação contém
a mensagem.”
“Ainda não percebi o que o símbolo e os algarismos são. Terei de estudar
melhor isto. Mas o poema é o nome de um local.”
“Que local?”
“Presumo que seja o local onde os homens que as sequestraram as querem
esconder. Ou se calhar é o sítio para onde os tipos vão, sei lá. É o nome de
um local.”
“Já temos as fronteiras da Índia com os países vizinhos sob forte vigilância.
Paquistão, China, Nepal. Tudo com os satélites e os drones, mais os algoritmos
avançados de reconhecimento facial, de voz, de postura e sei lá mais o quê.
Quando eles passarem por uma dessas fronteiras, há uma boa hipótese de lhes
deitarmos a mão. Portanto, Tom, você não tem realmente nada de valor que
nos possa oferecer.”
“Tem a certeza, Kurt, de que eles vão mesmo passar por uma dessas
fronteiras?”
“Não vão?”
“Segundo a minha mulher, não.”
Fez-se uma curta pausa, como se o homem que se encontrava em
Washington avaliasse o que acabara de lhe ser sugerido.
“Vão sair por outro sítio?”
“Vocês querem ou não saber o nome do local que ela encriptou no
poema?”
“Não queremos saber apenas o nome do local, man. Queremos também
perceber o símbolo e os algarismos.”
“Se me der tempo, tenho a certeza de que lá chegarei”, retorquiu Tomás.
“Temos acordo ou não?”
O som da chamada foi nesse instante cortado, evidentemente para Kurt
Weilmann de novo discutir o assunto com os seus contactos da CIA. Desta
feita bastaram alguns segundos para ele voltar à linha.
“Okay, man, o que quer de nós em troca de nos dar o nome desse local e de
descodi car o símbolo e os algarismos?”
“Quero saber por que razão a CIA está interessada neste caso.”
“Muito bem, tenho indicação de que será dada autorização ao operacional
aí no terreno para contar a história. Contente?”
A cedência tão rápida mostrou a Tomás que a agência americana de
espionagem tinha um elevado interesse no assunto, o que lhe pareceu
realmente surpreendente. Mas isso signi cava também que talvez
conseguisse uma segunda coisa, desde que a impusesse enquanto tinha algo
de que os americanos desesperadamente precisavam.
“Há uma outra condição.”
“Diga.”
“Quero fazer parte da operação para resgatar a minha mulher.”
Fez-se um breve silêncio na linha.
“Isso é impossível.”
“Vai ter de o tornar possível.”
“Isso é impossível.”
Tomás respirou fundo, como se a paciência estivesse a chegar ao limite.
“Escute, Kurt. A minha mulher foi raptada e não percebo porquê. Tanto
quanto sei, ela não é nada para a Agência. O que me garante que os seus
amiguinhos da CIA não a eliminam se isso for da vossa conveniência? Fazer
desaparecer testemunhas incómodas é prática rotineira na vida da Agência,
imagino. Ora uma coisa dessas não é aceitável para mim, como deve
calcular. A única maneira que tenho de me assegurar, na medida do
possível, de que nada lhe acontece é eu próprio fazer parte da operação.
Compreende? Portanto, resolvam isto como quiserem, mas eu tenho de
integrar a operação.”
“É impossível você ser metido neste assunto, man.”
“Sem me meterem na operação, não vos dou a solução do enigma. É tão
simples quanto isso. Ora cheira-me que a Agência atribuiu enorme
prioridade a este caso e que esta é a única verdadeira pista que tem. Além do
mais, você sabe perfeitamente que sou uma pessoa em quem podem con ar.
Já colaborei com a CIA e com a DARPA no passado, sempre com sucesso.
Portanto, alinham ou não?”
“Se não nos der essa informação, não conseguiremos chegar à sua mulher e
perderá a única hipótese de a salvar. Está disposto a correr esse risco?”
“Não con o em agências de espionagem, e muito menos na CIA. Ou vocês
alinham, e temos acordo, ou não alinham, e então nada feito.”
A ligação voltou a ser interrompida, presumivelmente para Weilmann
consultar mais uma vez a hierarquia em Langley. Ao m de alguns minutos,
regressou à linha.
“Okay, man. Temos acordo.”
“Vocês contam-me o que verdadeiramente se passa e deixam-me fazer
parte da operação de resgate?”
“Desde que nos dê a informação de que precisamos.”
O olhar de Tomás voltou-se para Charlie Chang. Chegara a hora de saber
o que realmente estava por detrás de toda a loucura que se desencadeara
desde que recebera a terrível mensagem de Maria Flor.
“Ouviu o que ele disse?”
“Não recebo ordens dadas pelo telefone por um tipo que não conheço”, foi
a resposta seca do agente da CIA. “Vou aguardar por instruções da minha
hierarquia, se não se importa. No entretanto, mister Noronha, o senhor bem
que podia começar por fazer um gesto. Veja se consegue descodi car o
signi cado do símbolo e dos algarismos.”
O pedido não era descabido, sabia Tomás. Já tinha decifrado o poema,
mas não o símbolo e os algarismos no topo da charada. Para que pudesse
cumprir a sua parte do acordo, teria primeiro de ter a certeza de que
entendia toda a mensagem.
“Mostre-me outra vez o que a minha mulher escreveu.”
Chang exibiu-lhe de novo o ecrã do seu telemóvel com a fotogra a do
papel deixado por Maria Flor.

47
𝔓
12,3 12,4
Todos esses rapazes rebeldes
Ambulam desengonçados
Em jogos ocos
A onda da hidra amaina
Rolando mexilhões aos pés
Ah, linda areia!

Sendo historiador, o símbolo e os algarismos no topo eram-lhe familiares.


Contudo, começara por descartar a interpretação óbvia, pois não lhe
pareceu que essa interpretação zesse sentido no contexto em que se
encontravam, mas logo reconsiderou essa decisão. Se a mulher escrevera
aquela mensagem, tinha com certeza sido para que ele a conseguisse
decifrar. Assim sendo, e independentemente do contexto, Maria Flor teria
escolhido algo que lhe fosse familiar.
O olhar de Tomás voltou a acender-se antes de tar o seu interlocutor com
a solução do mistério na ponta da língua.
“É uma mensagem do apocalipse.”
VII

A ideia de venderem mais caros ao senhor Hong os bens produzidos pelos


aldeãos acabou por não resultar. O merceeiro han torceu o nariz quando foi
confrontado com as exigências, queixou-se do custo de vida e de como as
coisas estavam difíceis, e apenas aceitou um ligeiro aumento do que pagava
pelo leite, pelo queijo e pela carne. Quando os aldeãos recusaram, Hong foi
visitar as aldeias uigures vizinhas e obteve os mesmos produtos ao preço que
os queria. Sem alternativas nem conhecimentos das artes do comércio, os
produtores locais tiveram de ceder.
Mas não foi só isso o que correu mal. Os militares han instalados nas
redondezas começaram a requisitar mais e mais terras, limitando ainda mais
os terrenos para as pastagens e o acesso à água. Quando os aldeãos
protestaram, os soldados riram-se e ignoraram-nos. O avô Qeyser ainda
che ou uma delegação dos anciãos que se deslocou ao acampamento militar
para reivindicar os direitos ancestrais dos uigures, mas a única coisa que a
embaixada conseguiu foi desencadear a fúria do o cial chinês que che ava o
destacamento.
“Como se atrevem, seus ignorantes das cavernas?”, vociferou o capitão, tão
fora de si que até as veias do pescoço se dilataram. “Aqui o único que tem
direitos é o Partido, ouviram? O progresso da China não será travado por
um bando de fengjian! Ayah, que gente mais ignorante e retrógrada! Xô!
Fora daqui!”
O fracasso da missão tornou clara a impotência dos habitantes da aldeia.
Perdiam terras, perdiam direitos, perdiam voz na sua vida. Os comerciantes
han, protegidos pelos militares e pelas artes do seu negócio, não tinham
qualquer di culdade em manobrar os ingénuos pastores uigures. Como
consequência, os han da aldeia foram enriquecendo e os uigures caram
para trás.
Algumas coisas, no entanto, ganharam. Certo dia, o senhor Hong falou-
lhes numa coisa nova a que chamou televisão. Tratava-se de uma caixa
mágica que lhes permitia ver histórias e conhecer o mundo. Já todos tinham
ouvido falar nessas engenhocas e alguns viram-nas mesmo quando
visitaram as grandes cidades, como Kashgar ou Ürümqi, mas a reputação do
senhor Hong não andava nos píncaros e todos descon aram. Seria mais um
truque?
Confrontado com o ceticismo geral, o comerciante han colocou na sua
loja um desses aparelhos. Ficaram maravilhados. Madina sentia-se mesmo
hipnotizada com tal maravilha. Que magia era aquela que permitia que
pessoas minúsculas conseguissem mexer-se dentro de caixas tão pequenas?
Pressionados pelas crianças, e no fundo eles próprios já seduzidos, os
adultos quotizaram-se para comprar um televisor e um gerador que o
alimentasse.
A televisão instalada num yurt comunitário revelou-lhes todo um novo
mundo. Viam música, lmes, séries, concursos, desporto. E notícias. Tudo
em chinês, como é evidente. Os chineses apresentavam-se como donos de
uma cultura superior, e vendo o que a televisão mostrava como poderiam,
no íntimo, discordar? O complexo de inferioridade, até aí latente, tornou-se
mais profundo. Realmente, a caixinha das imagens mostrava que os chineses
faziam coisas fantásticas.
À família de Madina não escaparam sobretudo as notícias. Aí se falava
constantemente na maravilha que era o comunismo e o seu grande
intérprete, o Partido. O Partido dava a vida, oferecia proteção, gerava a
prosperidade. Tudo o que o Partido fazia era fantástico, milagroso, único. O
Partido era o pai e a mãe, era o irmão mais velho, era quem velava pelo
bem-estar e pela segurança. O Partido era Deus. Bem podia o avô Qeyser
avisar que não era bem assim, que ao longo da sua vida já percebera que
uma coisa era o que os chineses diziam sobre o Partido e outra bem
diferente o que ele era realmente. Não passaram os uigures, os cazaques, os
tajiques, os huis, os quirguizes e tantos outros por tantas di culdades à custa
do Partido ao longo de tantos anos?
Perante a evidência exposta na televisão, no entanto, estabeleceu-se um
consenso sussurrado entre os pais de Madina, e provavelmente entre outras
famílias da aldeia, de que o avô Qeyser era um homem sábio, sem a menor
dúvida, mas que talvez estivesse já um pouco desfasado da realidade.
Coitado, a idade tinha daquelas coisas, não é verdade? Havia que o respeitar,
isso era inquestionável, mas o facto é que o mundo mudara e o grande
patriarca cara evidentemente preso a certas conceções ultrapassadas. Em
suma, era preciso abraçar os novos tempos. Isso implicava romper com
algumas tradições.
A ideia foi levantada pela primeira vez pela mãe durante o jantar.
“E se puséssemos um dos nossos lhos a estudar na escola de uma grande
cidade?”
O pai parou de mastigar o laghman que metera à boca e encarou-a.
“Porquê?”
“Não vês como os chineses mandam em nós?”, questionou ela. “Chegam à
nossa terra, apropriam-se das nossas pastagens, abrem lojas para nos
impingirem os produtos deles, compram os nossos produtos por uma
pechincha e vendem-nos a outros com um lucro doido à nossa custa.
Na verdade, põem e dispõem de nós quase como se fôssemos gado.
Comportam-se como uns verdadeiros senhores e nós os seus servos.
Estamos impotentes perante eles. São muitos e, sobretudo, têm a força. Ora
se eles dizem que a nal todos somos chineses, incluindo nós, os uigures,
mais os cazaques e toda a gente, então porque não tirar partido disso?”
“Tirar partido disso é mandar os nossos lhos para a cidade?”
Os olhos de ambos passearam pelos cinco lhos, que assistiam calados à
conversa em que se discutia e decidia o seu destino.
“Todos, não digo”, corrigiu a mãe. “Mas um. Nós aqui na aldeia estamos
indefesos, como sabes. Precisamos que um dos nossos lhos entre na cultura
chinesa e ganhe conhecimentos que lhe permitam defender-nos em caso de
necessidade. Não podemos continuar totalmente à mercê dos chineses.”
Não só o que ela dizia era verdadeiro como o pai de Madina andava havia
já algum tempo a matutar nesse mesmo assunto. A família precisava de ter
alguém dentro da sociedade chinesa que a protegesse.
“Pois, está bem”, concordou ele. “Mas enviamo-lo para onde exatamente?”
Ela já tinha pensado no assunto.
“O teu primo não poderá ajudar?”
O pai considerou a possibilidade. Pedir ajuda ao primo Erbakyt, que fora
anos antes viver para a capital do Turquestão Oriental, não era má ideia.
Voltou a observar os lhos.
“Qual deles?”
A mulher tocou na mão da mais velha.
“A Gulzira não”, vetou. “Está uma senhorinha e preciso dela para me
ajudar na lida da casa.”
O olhar do marido desviou-se para os três rapazes.
“Eles também não. Os homens são necessários para ajudar na lavoura e
proteger a aldeia.”
As atenções voltaram-se para Madina, que tudo ouvia agarrada à sua
boneca de trapos; era ela a mais pequena e a única que restava do grupo. E,
havia que o reconhecer, também a mais esperta de todos, e portanto com
maiores hipóteses de sucesso. Nas culturas uigure e cazaque, os rapazes
eram mais valorizados do que as raparigas. Dizia um velho ditado uigure
que “a menina é criada para os outros”. Isso fazia de Madina a escolha
inevitável. Sim, seria criada para os outros. Só que esses “outros” seriam,
pelos vistos, os chineses.
VIII

Os olhos dos dois homens estavam colados ao símbolo e aos algarismos


que Maria Flor havia rabiscado no topo da sua charada. O símbolo era
realmente estranho, mas o seu segredo acabara de ser quebrado por Tomás
Noronha.

47
𝔓
12,3 12,4

“Este símbolo é um siglum”, explicou o historiador, apontando para o 𝔓.


“Trata-se de uma abreviatura usada pelos escribas da Antiguidade. “Os sigla,
plural de siglum, eram usados para identi car o escriba que copiava ou
redigia o texto ou então para identi car um determinado manuscrito. Ora o
número quarenta e sete a seguir ao símbolo sugere justamente que estamos
perante um manuscrito.”
A explicação pareceu deixar Charlie Chang muito interessado, se não
mesmo excitado.
“Um manuscrito, diz você?”
“Estamos a falar do 𝔓47, conhecido pelos historiadores como Papiro 47.
Trata-se de um dos mais antigos manuscritos do Novo Testamento, redigido
com o tipo de texto de origem alexandrina e um conteúdo muito próximo
do Codex Sinaiticus. O Papiro 47 foi paleogra camente datado do século .
Apenas duzentos anos após a morte de Jesus.”
O interesse do agente da CIA transformou-se em incredulidade.
“What the fuck!”, exclamou. “O que está a referência a um velho
manuscrito bíblico aqui a fazer?”
Tomás assentiu.
“Boa pergunta”, disse. “Eu próprio já me interroguei sobre isso. Por que
razão a minha mulher rabiscou aqui o siglum do Papiro 47? O que tentava
ela comunicar-me?”
“O senhor mencionou há pouco que se trata de uma mensagem
do apocalipse…”
“É a única explicação. Não lhe parece óbvio?”
Sempre com os olhos xos no siglum, o americano esboçou uma careta de
embaraço.
“Uh… não.”
O historiador sorriu. O que a ele parecia evidente, a um leigo tratava-se de
algo impenetrável. Decerto fora essa a razão pela qual Maria Flor optara por
aquele tipo de charada.
“O Papiro 47 tem várias características que o tornam peculiar”, esclareceu
o historiador. “A caligra a é informal, sem a elevada qualidade de outros
manuscritos, o que sugere tratar-se de um exemplar para utilização pessoal
ou então para o uso de um pequeno grupo de pessoas com pouco dinheiro.
É constituído por dez folhas de papiro, as quais estiveram originalmente
cosidas com outras folhas de modo a formar um codex. O escriba foi
cuidadoso na escrita, mas evidentemente faltavam-lhe as técnicas
adequadas, ou talvez a disciplina, para fazer um trabalho de elevado nível.”
“Isso é relevante para decifrar a mensagem que a sua mulher queria fazer
passar?”
“Não me parece.”
“Então vamos ao que interessa”, exasperou-se Chang. “O que tem esse
manuscrito de signi cativo que a tenha levado a referir-se a ele?”
“Isso não consigo dizer”, foi a resposta de Tomás. “Conheço o Papiro 47,
claro, mas faltam-me dados para poder interpretar o que sei no contexto do
rapto da minha mulher. Não se esqueça de que o senhor ainda nada me
disse de concreto sobre os motivos do rapto. Sem esse tipo de informação,
limito-me a expor-lhe os meus conhecimentos sobre este manuscrito e o
senhor avaliará da pertinência do que lhe estou a explicar.” Inclinou-se para
o seu interlocutor, quase em desa o. “A não ser que queira apressar isto e
contar-me agora tudo o que sabe…”
“Já lhe disse que só o posso fazer com autorização formal da minha
hierarquia. Portanto, vá-me contando o que sabe sobre o documento e eu
tirarei as minhas conclusões.”
O historiador concentrou-se nos seus conhecimentos sobre o manuscrito,
resultantes sobretudo da sua aventura de O Último Segredo sobre os
mistérios da Bíblia.
“O Papiro 47 contém uma mensagem mística. Isto porque as dez folhas do
manuscrito reproduzem o segundo terço do texto original grego do
Apokalypsis.”
“Apoca… quê?”
“Apokalypsis, o nome grego do último livro do Novo Testamento, também
conhecido por Apocalipse, o Livro da Revelação.”
Estupefacto, Chang apontou para o símbolo.
“Desculpe, pretende dizer-me que a sua mulher estava a referir-se à
profecia bíblica do m do mundo?”
“O Apocalipse apresenta de facto a profecia do m dos tempos. Alude
também à Besta, o Anticristo, cujo número é o 666. É realmente possível que
a mensagem dela tenha ligação com essas profecias. Ou então está a falar de
uma qualquer ameaça existencial, não sei. Isto faz algum sentido para si?”
Respirando fundo, o agente da CIA balançou vigorosamente a cabeça.
“Se faz!”
Não era tranquilizador ouvir aquilo. Em que raio de história se havia
Maria Flor metido?
“O interessante é que as dez folhas existentes do Papiro 47 não envolvem
todo o Apocalipse”, indicou Tomás, procurando concentrar-se no enigma.
“O manuscrito que sobreviveu apenas inclui o segundo terço do Livro da
Revelação. Mais concretamente a parte entre os versículos 9:10 e 17:2.”
Esta última referência foi imediatamente compreendida por Chang.
“Então isso quer dizer que… que os números por debaixo do símbolo que
a sua mulher desenhou são referências a versículos do Apocalipse!”
O olhar de ambos voltou-se de novo para a charada que Maria Flor
deixara como pista, em particular o símbolo e os algarismos que o
rodeavam.

47
𝔓
12,3 12,4

“Correto”, con rmou o historiador, pegando no seu próprio smartphone


para googlar o Livro da Revelação. “Ela pelos vistos queria que lêssemos os
versículos 12:3 e 12:4.”
O motor de busca identi cou o texto do Apocalipse e Tomás procurou os
versículos em causa. Encontrou-os em alguns segundos. Pigarreou,
limpando a garganta.
“ ‘Depois foi visto no céu outro sinal. Era um grande dragão de fogo
vermelho com sete cabeças e dez chifres e uma coroa em cada cabeça’ ”,
disse, lendo em voz alta o versículo 12:3. Passou ao versículo seguinte. “
‘Com a cauda varreu uma terça parte das estrelas do céu e atirou-as para a
Terra. Colocou-se diante da mulher que ia dar à luz, para lhe devorar o lho
logo que nascesse.’ ”
“Holy shit!”, praguejou o americano. “Ela sabe mesmo do que está a falar!”
“Porquê? O que lhe revelam estes versículos?”
O homem da CIA pegou no telemóvel do português e releu ambos os
versículos do Apocalipse, como se quisesse con rmar tudo. Pela expressão
do seu rosto, o conteúdo do texto era muito signi cativo. Levantou os olhos
e tou Tomás.
“Uma terrível ameaça.”
IX

Plantado diante do quadro preto com um pedaço de giz na mão,


o professor Li parecia irradiar uma áurea enquanto expunha a matéria; havia
nele uma paixão que se tornava contagiante. Madina seguia-o com atenção,
os olhos muito abertos, hipnotizada pelo talento com que ele explicava as
coisas; na sua boca, as palavras emergiam transparentes e uíam como uma
corrente de água fresca. Que contraste com os restantes professores!
O liceu que a rapariga frequentava em Ürümqi era, na verdade, muito
exigente. Os professores mantinham as distâncias em relação aos alunos e
raramente sorriam; davam constantemente ordens e reprimendas. Para além
dos testes frequentes, todos os dias entregavam múltiplos trabalhos de casa
que mantinham Madina ocupada noite dentro. O ambiente entre os
estudantes mostrava-se muito competitivo, o que signi cava que não havia
lugar a camaradagem; era cada um por si, uns a tentarem superar os outros,
todos a lutarem por ser os melhores.
Tendo abandonado a sua aldeia junto ao rio Tekes depois da primária,
Madina fora viver com o primo do pai, Erbakyt, e a sua família, na capital de
Xinjiang, o nome chinês do Turquestão Oriental. A mulher de Erbakyt,
Dilnaz, acolhera-a de braços abertos, até porque vira em Madina uma
companhia e sobretudo alguém que a poderia ajudar a tratar do lho recém-
nascido. A jovem cou deliciada, claro. Gostava tanto de crianças que até
trouxera da aldeia a sua boneca de trapos, mas guardara-a no armário
porque tinha a partir dali uma criança de verdade para tratar. Além disso, já
não era propriamente uma menininha.
A vida em Ürümqi revelou-se bem diferente da vida da aldeia. A cidade
espraiava-se por uma planície rodeada de montanhas de picos nevados.
Havia prédios por toda a parte, os passeios abarrotavam de gente e os
engarrafamentos eram constantes; o fumo libertado pelos milhares e
milhares de tubos de escape era tão denso que o ar se tornava por vezes
irrespirável. Na verdade, o smog traduzia-se numa nuvem cinzenta que
pairava em permanência sobre a cidade, como uma sombra ameaçadora,
conferindo à urbe uma tonalidade cinza que contrastava com as cores
límpidas a que se habituara na infância. Muito importante, em Ürümqi os
han constituíam quase metade da população, o que dava a Madina a
estranha impressão de ter emigrado para outro país.
Havia já alguns anos que ali vivia, voltando à aldeia apenas por curtos
períodos durante as férias. O trabalho na escola não permitia mais. Os testes
e exames eram permanentes e os deveres de casa também, o que não a
atrapalhava. Como não era originalmente de Ürümqi e havia por isso
poucas coisas que a distraíssem, conseguia concentrar-se no essencial. Os
estudos. Isso signi cava que o liceu ocupava a quase totalidade da sua vida.
Os resultados a matemática revelaram-se sofríveis, era verdade, mas saía-se
bem melhor a física e química. Tinha ainda excelentes notas a chinês e
começara a aprender inglês, disciplina em que se tornara mesmo a melhor
da classe.
Diante do pequeno apartamento onde vivia com a família do primo do pai
havia um enorme cartaz a mostrar o rosto sorridente do Lingxiu, o Chefe,
com a foice e o martelo do Partido ao canto e uma frase em ideias garrafais:
“O povo está contente.” A caminho do liceu cruzava-se com outro cartaz,
igualmente com o rosto bonacheirão do Lingxiu e a foice e o martelo ao
canto, mas este com outra frase: “A China é forte graças ao Partido.” O Chefe
e o Partido estavam em toda a parte e por toda a parte se lhes cantavam loas
como quem prestava culto. Nas ruas, na televisão, nos jornais, nos
estabelecimentos públicos. Na escola. Em todas as salas lá se via pregada na
parede, por detrás dos professores, a cara do Lingxiu, o emblema do Partido
e as palavras de ordem do costume. Omnipresentes. A crer nessas palavras
de ordem, sem o Chefe e o Partido a vida humana nem sequer seria possível.
Talvez nem mesmo houvesse ar para respirar na Terra.
A exposição durante anos a tanta devoção ao Lingxiu e ao Partido teve o
seu efeito em Madina. O que estaria por detrás de toda aquela omnipresença
e omnipotência? Seria mesmo o Partido uma espécie de Deus e o Chefe o
Seu profeta? Quais as Suas leis? As aulas de doutrinação faziam parte do
currículo, como era natural, e o quadro que as ministrava, o professor Li, era
talvez o docente mais simpático da escola. Com o seu cabelo liso
desalinhado e sorriso fácil, ele era mesmo o único dos professores que
mostrava descontração junto dos alunos e não os tratava como se fossem
insetos.
Fosse por isso ou pelas sedutoras palavras de ordem escritas ao lado do
rosto paternal do Lingxiu em todos os cartazes do Partido espalhados pela
cidade e nas reportagens na televisão e jornais, o facto é que a jovem uigure
começou a interessar-se pela matéria dada nas aulas daquele professor tão
afável. O interesse evoluiu para fascínio e, a certa altura, ouvi-lo falar já não
lhe chegava. Precisava de se aproximar, de o rondar, se possível de o
conhecer.
Após muito planear e tanto hesitar, nesse dia lá ganhou coragem e, no nal
da aula, dirigiu-se a ele.
“O senhor professor dá-nos excelentes resumos sobre a matéria, mas, se
não vir inconveniente, gostaria de ler os textos originais”, disse, dominando
a tremura na voz e esforçando-se por se mostrar con ante. “Sabe onde os
poderei encontrar?”
Ocupado a guardar as suas anotações na pasta, o docente nem olhou para
ela.
“Os textos originais de quê?”
“De Marx e de Engels. De Mao também.”
O professor Li levantou os olhos para ela e fez um gesto com a mão, como
se a resposta fosse óbvia.
“Em qualquer livraria”, disse, como quem expunha a evidência. “Ou aqui
na biblioteca da escola. As obras dos grandes teóricos do socialismo
cientí co estão em toda a parte.”
Madina corou. Que as obras dos profetas do Partido estavam disponíveis
por toda a parte já ela sabia havia muito tempo; era impossível uma coisa
dessas escapar a quem vivesse em Ürümqi. A pergunta servira apenas de
pretexto para o interpelar, mas isso não lhe podia confessar, como era
evidente.
“Sim, claro, senhor professor. Mas… en m, gostaria de saber quais as suas
recomendações para as leituras.”
Ele esboçou uma careta cética.
“Ayah! Os teóricos são muito difíceis de ler”, disse. “Ainda és demasiado
nova. Não seria melhor cingires-te aos resumos? Mais tarde, quando fores
mais velha, poderás então ler os textos originais.”
Sentindo-se vexada pelo paternalismo da resposta, Madina endireitou o
corpo, como já vira as atrizes fazerem na televisão, de modo a por
momentos tornar os seios mais protuberantes.
“Não sou assim tão miúda, senhor professor”, corrigiu-o. “Tenho dezassete
anos e acho que está na hora de ler os grandes vultos, se o senhor professor
não vir inconveniente.”
A determinação que viu nela, e também uma certa rebeldia, impressionou
o docente. A catraia tinha personalidade. Estaria ali um futuro quadro do
Partido? Além do mais, a maneira como ela meneara o corpo despertara-o
para a realidade de que, de facto, a miúda não era tão miúda assim, mas uma
rapariga com formas feitas. E, em bom rigor, nada feia.
“Está bem”, assentiu. “Começa pelo Manifesto Comunista e depois vai para
A Ideologia Alemã, ambos de Marx e Engels. Deixa o Capital para o m, é
mais difícil.”
A palavra daquele professor era lei para Madina. Atirou-se assim às obras
de Marx e Engels com determinação, seguindo a ordem que ele indicara.
Leu tudo e, de facto, não foram leituras fáceis. É certo que o Manifesto
Comunista era um texto curto e simples, mas à medida que foi avançando
pelas outras obras tudo se complicou. Páginas inteiras deram-lhe um fastio
imenso. Mas outras houve que lhe despertaram a atenção. Marx apresentava
a sua teoria como “ciência” e Engels escrevia que “os comunistas sabem
muito bem que as conspirações não são apenas inúteis, são prejudiciais”,
sublinhando que “as revoluções não são feitas intencional e arbitrariamente,
mas em toda a parte e sempre são a consequência necessária de condições
independentes da vontade”, sendo que os acontecimentos revolucionários
eram absolutamente “inevitáveis” devido à contradição inerente ao
capitalismo. Mas, atenção, “a grande indústria tem de ser altamente
desenvolvida para criar esta contradição.”
Com tantas leituras lá percebeu que os fundadores do marxismo achavam
que a história se reduzia a leis, como acontecia na matemática e na física, e
que tudo estava por isso determinado. Não valia a pena conspirar-se a favor
ou contra a revolução comunista porque esta era inevitável, automática
mesmo, iria acontecer independentemente da vontade dos homens. Daí que
as conspirações fossem “inúteis”. A revolução era tão automática quanto a
soma de dois mais dois dar fatalmente quatro ou a soma de um átomo de
oxigénio com dois de hidrogénio dar obrigatoriamente água. Tudo estava
determinado por leis naturais, incluindo a vitória nal do comunismo. Isso
aconteceria porque as leis da história obrigavam a que o capitalismo gerasse
sempre maior miséria, o que automaticamente levaria os operários das
fábricas a revoltarem-se e a desencadearem a revolução. Pormenor
importante, só era uma verdadeira revolução socialista aquela que decorria
num país de grande indústria, isto é, de capitalismo avançado. Todas as
revoluções que não ocorressem no contexto do capitalismo avançado,
mesmo que se reivindicassem socialistas, não eram verdadeiras revoluções
socialistas, mas reacionárias. À cabeça das verdadeiras revoluções socialistas
estariam os operários das fábricas, que se designavam proletários, e que se
imporiam à burguesia e aos camponeses, ambos reacionários, assim
estabelecendo o paraíso socialista na Terra.
Em suma, e descontada toda a palha, o marxismo constituía uma ciência
que decifrava as leis deterministas da história, da mesma maneira que a
matemática era a ciência que decifrava as leis deterministas dos números e a
física a ciência que decifrava as leis deterministas da energia e da matéria.
Madina decorou frases inteiras de Marx e Engels e foi capaz de as citar nos
múltiplos testes a que se submeteu. Expôs também com grande autoridade a
gloriosa história do Partido e dos Seus profetas na China, começando pelo
primeiro Lingxiu, Mao Tsé-tung, e terminando no atual Chefe. Todos eles
decifradores cientí cos e infalíveis das leis da história rumo à felicidade
universal no paraíso da sociedade sem classes.
O professor Li estava espantado.
“Wah! Nunca vi uma aluna assim!”, exclamou depois de um exame oral,
quando estavam a sós no gabinete dele. “Raramente alguém tão jovem é
capaz de tão depressa apreender os conceitos centrais do socialismo
cientí co.”
Madina sentia-se impante de felicidade; conseguira produzir impacto nele.
“Confesso que não foi fácil”, reconheceu, toda ela sorrisos. “Houve até
certas partes que, admito, nem compreendi muito bem.”
“É natural, pois a teoria é complexa. Diz-me o que não entendeste e eu
ajudar-te-ei.”
Sempre que falava com o professor, Madina corava, mas nunca tanto como
nesse momento. A verdade, a secreta verdade, é que desenvolvera um fraco
por ele. Ou quem sabe se não se tratava já de uma paixoneta. Se calhar até
algo mais do que isso. Se não fosse assim, como se explicaria que já andasse
a fantasiar em um dia ter um lho dele? Desde tenra idade que Madina
sonhava em ter lhos, o apego à sua boneca de trapos Aynurita era bem o
sintoma disso, e essa fantasia ia a cada dia tornando-se cada vez mais real.
Sim, o professor Li, tão sábio e apaixonado, daria decerto um excelente pai.
Precisava, por isso, de lhe atrair a atenção. Talvez se lhe mostrasse a argúcia
do seu raciocínio o conseguisse impressionar ainda mais.
“Marx e Engels dizem que a revolução é inevitável e que as conspirações
são inúteis e até prejudiciais, não é? Então, por que razão Mao conspirou
para provocar a revolução na China? Se ela era inevitável, bastaria car de
braços cruzados e esperar que ela ocorresse.”
A justeza da observação impressionou realmente o professor.
“Ayah! Bem visto!”, exclamou. “Mas se tivesses lido Lenine perceberias que
ele trouxe a resposta a esse problema. O proletariado foi anestesiado pela
burguesia, que subornou o operariado com concessões sociais, pelo que era
preciso uma vanguarda que despertasse o proletariado da sua letargia e o
conduzisse à revolução.”
“Portanto, Lenine não passou de um revisionista da teoria de Marx e
Engels…”
O professor Li foi apanhado de surpresa por esta conclusão; a palavra
“revisionista” era insultuosa no contexto do leninismo e absoluto tabu
quando aplicada a Lenine ou a Mao. Apenas aos hereges estava reservada a
sua utilização.
“Bem… uh… digamos que Lenine e Mao apuraram melhor as descobertas
geniais de Marx e Engels.”
Concentrada na matéria e empenhada em impressionar o professor, a
rapariga mal lhe notou o embaraço.
“Depois há a questão de Marx e Engels terem dito que as únicas
verdadeiras revoluções socialistas são as que ocorrem em países de
capitalismo avançado e que as revoluções em países atrasados são revoluções
reacionárias, mesmo que se proclamem socialistas”, acrescentou ela com o
entusiasmo de quem estava embrenhada na matéria. “O problema é que a
revolução bolchevique ocorreu num país atrasado, a Rússia. Como é possível
uma revolução do proletariado num país sem proletários? Ora, segundo
Marx e Engels, isto signi ca que a revolução russa não foi uma verdadeira
revolução socialista, mas reacionária.”
Estas palavras constituíam um verdadeiro sacrilégio, embora resultassem
efetivamente do raciocínio plasmado na doutrina marxista. Alarmado, o
professor Li levantou-se num salto e abriu a porta do gabinete, espreitando
para o corredor. Não estava lá ninguém. Aliviado, regressou ao seu lugar.
“Estás maluca?”, repreendeu-a. “Não podes dizer essas coisas! A tua sorte é
não estar ninguém no gabinete ou a passar pelo corredor. Caso contrário,
teria de te denunciar.”
“Denunciar-me?”, surpreendeu-se Madina. “De quê?”
“De… de reacionarismo. De revisionismo. De contrarrevolução.”
“Mas, senhor professor, tudo o que eu disse foi o que Marx e Engels
efetivamente escreveram. Eu li. Por exemplo, os países mais desenvolvidos
são a América e a Inglaterra, não é verdade? Segundo Marx e Engels, teria de
haver aí inevitavelmente uma revolução do proletariado. O problema é que
não houve. Como se explica isso?”
“Pois… en m, digamos que… que, como te disse, a burguesia subornou o
proletariado.”
“Sendo o marxismo uma teoria cientí ca, não deveriam Marx e Engels ter
previsto isso?”
“Quer dizer… uh… é… é complicado. Passa à frente.”
Ela folheou as suas anotações.
“Há também outras coisas que eles escreveram que me chamaram a
atenção”, indicou. “Numa carta datada de 1846, Marx elogiou a escravatura
de negros no Brasil, Suriname e Estados Unidos, dizendo que esses casos
representavam ‘o lado bom da escravatura’. Esta ideia foi retomada por
Engels no livro Anti-Dühring, onde a rmou ser ‘muito fácil lançarem-se
invetivas contra a escravatura e coisas semelhantes em termos gerais e
expressar uma indignação moralista contra tais infâmias’, mas ‘a introdução
da escravatura debaixo das condições prevalecentes naquele tempo foi um
grande passo em frente’. ” Levantou a cabeça e tou o seu interlocutor. “O
marxismo defende a escravatura?”
O professor Li pestanejou; nada escapava àquela aluna.
“Bem, o que se passa é que a história decorre por etapas e a escravatura foi
uma etapa necessária. Foi… foi isso o que eles quiseram dizer.”
“Mas a escravatura tem mesmo um ‘lado bom’, como a rmou Marx?”
“Uh… terei de ver isso com mais atenção. E que mais?”
Ela voltou às suas anotações.
“Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx escreveu: ‘a proibição geral do
trabalho infantil é reacionária’. Quer isto dizer que o marxismo acha que não
se deve combater o trabalho infantil?”
O docente engoliu em seco.
“Pois… uh… o que se passa é que é importante não interferir na ação da
burguesia para que ela prossiga os seus desígnios terroristas de modo a levar
o proletariado a revoltar-se, percebes?”
Ela fez uma careta.
“Confesso que não percebi muito bem. Se não devemos interferir na ação
terrorista da burguesia, por que razão perseguimos os burgueses e os
exterminamos?”
“Terei… terei também de ver isso. Mais alguma coisa?”
“Oh, há imensas frases que me chamaram a atenção nestes textos. Por
exemplo, Marx escreveu que a produtividade dos trabalhadores depende de
vários fatores, incluindo a raça. Quer isto dizer que, para o marxismo, há
raças mais produtivas do que outras?”
“Marx escreveu isso?”
“No Capital.”
O professor coçou a cabeça, atrapalhado.
“O marxismo não é racista.”
“Dizer que há umas raças mais produtivas do que outras, como escreveu
Marx, não é racista?”
“Quer dizer… en m, terei de ver isso. Mais?”
Madina percorreu a sua lista com os olhos.
“Encontrei imensas coisas estranhas nas minhas leituras, mas houve aqui
uma a rmação de Engels que me parece pertinente para a China. Ele
escreveu que ‘os camponeses politicamente ou são indiferentes ou são
reacionários’. Acontece que a revolução chinesa foi levada a cabo por
camponeses, não é verdade? Deveremos então concluir que os nossos
revolucionários eram a nal reacion…”
O professor pôs de imediato a mão na boca dela, silenciando-a
bruscamente antes que pronunciasse a heresia.
“Cala-te!”, cortou. “Por favor, cala-te! Se não queres ter problemas, não
digas nem mais uma palavra!”
Ficaram um longo instante em silêncio, ele assustado com as embaraçosas
dissonâncias que a aluna descobrira entre os textos canónicos e a realidade,
ela sem saber o que verdadeiramente pensar ou dizer. Só depois de o
professor lhe retirar a mão da boca é que Madina voltou a falar, desta feita
em voz baixa, quase num sussurro.
“O Partido tem medo do que Marx e Engels realmente escreveram, senhor
professor?”
O professor Li ajeitou o colarinho, desconfortável; nunca esperou que a
conversa tivesse evoluído naquela direção.
“O Partido nada teme”, disse numa voz algo trémula. “Por favor, nunca O
contradigas. Nunca. Tudo o que o Partido diz é verdadeiro, mesmo que
possa parecer contraditório. Mesmo que seja de facto contraditório. O
verdadeiro comunista expulsa imediatamente da sua mente ideias nas quais
acreditou durante anos, disse uma vez o bolchevique Gyorgy Pyatakov. O
verdadeiro comunista está disposto a acreditar que o negro é branco e que o
branco é negro se o Partido o exigir. O verdadeiro comunista tem de
abandonar a sua personalidade até que não reste nela nem uma partícula
que não se funda com o Partido, que não Lhe pertença. Percebeste?”
“Mas… mas…”
“Se o Partido disser branco, tu dizes branco. Se no momento a seguir
disser preto, tu dizes preto. Percebeste bem? Tudo o que o Partido disser é
verdadeiro. As coisas só são verdadeiras enquanto o Partido disser que são
verdadeiras, e tornam-se falsas logo que o Partido disser que são falsas. Se
compreenderes isso, compreendeste tudo.”
Malina pestanejou.
“O senhor professor está a falar a sério?”
O docente tou-a com intensidade, como se considerasse o que fazer dela.
Por m respirou fundo.
“Se aprenderes essa lição, irás longe”, disse num tom mais agradável, quase
conciliatório. “Também terás de aprender que o Partido não é só socialismo.
É também patriotismo.” Levantou-se. “Mas isso, minha linda, é outro
assunto.” Encaminhou-se para a porta do gabinete e abriu-a. “Agora vai. Vai
e… tento na língua.”
Percebendo que a reunião terminara, Madina pegou nas suas coisas e
abandonou o gabinete. Ia desconcertada, sem saber o que pensar. A nal, o
que era a verdade? Era a realidade, era o que estava escrito nos livros dos
profetas Marx e Engels ou era o que o Partido dizia? A crer no professor, era
o que o Partido dizia. Se queria ser alguém na vida, teria de seguir
cegamente o Partido, dissesse Ele o que dissesse. O que signi cava que a
verdade não era realmente importante. O importante era a utilidade. Mais
valia uma mentira útil para o Partido do que uma verdade que O
contradissesse. Se a mentira fosse vantajosa tornava-se verdade e se a
verdade fosse inconveniente tornava-se mentira.
Olhou de relance para trás, com medo de que alguém tivesse captado o
pensamento herético que acabara de lhe assomar à mente. Apercebeu-se de
que o professor Li a observava da porta. Não a seguia com o olhar
penetrante de um polícia ou com a descon ança de um pastor perante uma
ovelha tresmalhada. Olhava-a, pareceu-lhe, como um homem olha para
uma mulher.
X

Não foi de imediato que Charlie Chang começou a falar. Acompanhara a


conversa do telemóvel em alta-voz entre Tomás Noronha e Kurt Weilmann
em que o homem da DARPA dera luz verde para que o português tivesse
acesso a informação con dencial, mas uma coisa daquelas não constituía
uma autorização aceitável para partilhar aquele tipo de informações com
uma pessoa que não pertencia à Agência, ainda para mais um estrangeiro.
Minutos depois, todavia, chegou-lhe a indicação formal de Langley de que
poderia de facto dar ao seu interlocutor pormenores da operação em curso,
embora dentro dos parâmetros de “need to know”, o protocolo da CIA que
de nia que só poderia ser partilhada informação estritamente útil para
a missão em causa.
“Se calhar é melhor darmos um passeio, pois aqui parados na esplanada
fazemo-nos notados”, sugeriu Chang. “Que tal visitarmos o Templo
Dourado armados em turistas?”
Abandonaram o café Sri Harmandir e aproximaram-se da enorme
estrutura branca que rodeava o belo edifício coberto a folhas de ouro no
meio do lago. O Templo Dourado de Amritsar, o local mais sagrado dos
sikhs.
“Já lhe decifrei o símbolo da charada da minha mulher”, lembrou Tomás
enquanto caminhavam. “Perante os versículos do Apocalipse que ela
mencionou de forma codi cada, o senhor con rmou que toda esta história
envolve uma grande ameaça e que a Maria Flor se meteu num caso muito
grave. O que se passa exatamente?”
O homem da CIA não respondeu de imediato. Entraram no complexo
pela torre do relógio e depararam-se com o vasto lago geométrico que
rodeava o santo dos santos, o coração do Templo Dourado. As águas
cristalinas re etiam o brilho áureo como se fossem um espelho. Sendo
historiador, Tomás sabia que fora justamente esse local que dera o nome à
cidade, pois o lago chamava-se Amritsar; em punjabi, amrit signi cava
néctar e sar era a forma abreviada de dizer sarovar, lago. Amritsar, o lago do
néctar. Ou, para ser mais exato e completo, o lago sagrado do néctar imortal.
“No centro desta história não está a sua mulher”, começou Chang por
esclarecer quando meteram pelos longos corredores do parikrama,
o circuito da estrutura que cercava o lago. “Nem os homens que a raptaram.
Para a Agência, a pessoa realmente importante é a fugitiva.”
“Aquela que é descrita pelas testemunhas como a mulher do lenço negro?”
“Exato.”
“Quem é ela?”
“Não sabemos.”
A resposta fez Tomás franzir o sobrolho.
“O que quer dizer com isso, não sabem? Se não sabem, porque diz que ela
é importante e estão tão interessados nela?”
O agente da CIA passou os dedos pelos seus cabelos negros e nos; não
havia melhor maneira que não fosse contar a história desde o princípio.
“Tudo começou anteontem, quando recebemos na embaixada em Nova
Deli um telefonema de uma mulher que dizia estar na posse de informações
ultrassecretas. Mostrava-se muito a ita e, sendo eu o principal operacional
da Agência na cidade, puseram-me de imediato a falar com ela. A mulher
disse-me que estava a ser perseguida e que precisava urgentemente de asilo.
Sugeri-lhe que se dirigisse às autoridades indianas, mas ela insistiu que teria
de ser asilo na América. Em troca, entregar-nos-ia um documento
con dencial da mais elevada importância. Um protocolo top secret das
cúpulas do Partido Comunista Chinês.”
“O que o levou a acreditar nela?”
“Quem lhe disse que acreditei? Uma mulher que ninguém sabe quem é
liga para a embaixada a pedir asilo em troca de uns documentos chineses
com os maiores segredos do Partido? Ah, não! Como é óbvio, pareceu-me
um truque mal-amanhado para conseguir um bilhete gratuito para o
American way of life. A tipa queria evidentemente viver o sonho americano
às custas da Agência e de uma qualquer história rocambolesca que inventara
às três pancadas num vão de escada.”
“O que o fez mudar de ideias?”
“A primeira coisa que me despertou a atenção foi a resposta que ela deu
quando lhe perguntei o nome.”
“O que tinha o nome dela de especial?”
“Não mo deu.”
Tomás devolveu-lhe um olhar admirado.
“Ai não? Então porque é que isso lhe despertou a atenção?”
“Foi precisamente o facto de ela se ter recusado a dar-mo”, indicou Chang.
“As pessoas que usam estas artimanhas para entrar na América dizem logo o
seu nome, pois é algo natural. Mas ela não mo deu. Isso pareceu-me
anormal. Se queria tanto entrar na América, porque não me dava o nome
dela?”
“Na sua opinião, por que razão ela se recusou a dizer como se chamava?”
“Não é evidente?”, questionou o operacional da CIA. “Não me deu o nome
porque se sentia realmente em grande perigo. Pronunciar o seu nome
poderia chamar a atenção dos algoritmos de espionagem que inspecionam
os canais de comunicação, o que permitiria identi car de imediato o local
onde ela se encontrava e capturá-la.”
“Ena! Isso implica já uma certa so sticação na compreensão dos
modernos processos de espionagem.”
“Já com a atenção desperta por este detalhe, perguntei-lhe que
documentos ultrassecretos eram esses que ela tinha para nos dar.
Respondeu-me que se tratava do protocolo mais importante do Partido
Comunista Chinês. Perguntei-lhe o que continha ele. Nunca esquecerei a
resposta que deu. Disse-me: nongcun baowei chengshi, wai yuan nei fang e
tao guang yang hui.”
Ao ouvir a sucessão de expressões em chinês mandarim, Tomás devolveu
um semblante opaco.
“O que diabo quer isso dizer?”
“Que ela estava por dentro do maior segredo do Partido Comunista
Chinês. A sua grande estratégia.”
“Sim, mas… o que signi cam essas expressões exatamente?”
Chang abanou a cabeça.
“Não interessa”, disse. “O importante é que são raras as pessoas no mundo
que as conhecem. Raríssimas. Nós, na Agência, conhecemo-las porque é
nosso dever conhecê-las. São expressões que fazem parte da grande
estratégia do Partido Comunista Chinês. Ora, se a fugitiva as conhece é
porque ela teve realmente acesso ao santo dos santos da religião comunista
chinesa. Isto signi ca que ela vem do coração do Partido. Conhece o mais
secreto dos seus segredos. E trouxe-o para o partilhar connosco.”
“Daí que vocês tenham cado interessados…”
O americano riu-se.
“Interessados? Isto foi uma bomba em Washington, o que pensa você? Se
tivermos acesso à grande estratégia do Partido Comunista Chinês, o seu
maior segredo, já imaginou o que isso signi ca no contexto geoestratégico
atual? É o golpe dos golpes.”
“Quem vos garante que ela não está a mentir?”, alvitrou Tomás. “Quem vos
garante que ela não é uma agente de contrainformação enviada pelos
chineses para plantar informação falsa?”
Chang lançou-lhe um olhar sabido.
“Julga que estávamos à espera de si para considerar essa hipótese?”,
questionou em tom jocoso. “Só há uma maneira de descobrirmos, não é
verdade? Temos de deitar as mãos ao dito protocolo e ver o que ele contém.
Tão simples quanto isso.”
Caminhando sem rumo certo, Tomás cou momentaneamente absorto, os
olhos colados à estrutura dourada que ocupava o centro do lago do néctar,
os seus pensamentos a deambularem por tudo o que acabara de escutar.
“Para já, a coisa está a correr mal.”
“Muito mal”, admitiu o americano. “Quando me convenci de que ela
poderia ser uma fonte genuína da mais elevada importância, assegurei-lhe
que lhe concederíamos asilo caso o dossiê que ela tinha para nos dar fosse
mesmo verdadeiro. Perguntei-lhe então onde nos poderíamos encontrar. Ela
sugeriu o santuário de Baba Deep Singh.”
“Onde é isso?”
Chang apontou para uma estrutura na margem oposta do lago sagrado do
néctar imortal.
“Ali.”
“Então ela vinha aqui ter ontem consigo na altura em que foi capturada
pelos homens que a perseguiam…”
“Eu estava à espera dela junto ao santuário de Baba Deep Singh quando
ouvi os tiros na esplanada do café. Ao chegar lá, nada vi, a não ser os
cadáveres dos dois empregados. Fiz um rápido inquérito e percebi que a
mulher em fuga só podia ser ela. A perseguição que lhe estavam a fazer
con rmou-me que se trata de alguém genuíno, caso contrário não se dariam
ao trabalho de a perseguir até à Índia e de a raptar, não é verdade?”
“O problema é que a minha mulher foi apanhada no meio dessa
confusão…”
Caminharam mais uns passos em silêncio, Tomás a interrogar-se sobre
como desatar o nó que lhe levara Maria Flor, Chang a aguardar que o seu
interlocutor contasse o que tinha para lhe contar.
“Já lhe disse o que aconteceu e por que razão estamos interessados neste
caso”, indicou o operacional da CIA. “Agora é a sua vez de cumprir a sua
parte do acordo. O que revela o poema que a sua mulher nos deixou como
pista?”
O historiador parou e encarou-o. Chegara a hora de explicar o que
descobrira escondido no poema que Maria Flor deixara como pista. Mas,
antes disso, havia ainda uma coisa a esclarecer.
“Você cou um pouco agitado quando há pouco li em voz alta os dois
versículos do Apocalipse”, lembrou Tomás. “O que há neles assim de tão
perturbador?”
“Muita coisa”, indicou Chang. “Várias palavras desses versículos
chamaram-me a atenção. As referências a um sinal, ao dragão, ao vermelho,
às estrelas, à mulher, ao lho que o dragão quer devorar… tudo isso me soou
familiar.”
“Porquê?”
O americano voltou a passar os dedos pelo seu cabelo negro e liso,
considerando a melhor maneira de responder.
“O facto de a sua mulher escolher versículos do Apocalipse, que aborda o
m dos tempos e a Besta, mostra que ela está a conversar com a mulher do
lenço negro e se apercebeu da gravidade do documento que a sua parceira
de infortúnio nos quer entregar”, disse. “Mas esses versículos contêm
também palavras relacionadas com este caso. As estrelas mencionadas
nesses versículos, por exemplo, são uma referência óbvia à bandeira do
Partido Comunista Chinês. Já o resto remete-me para a conversa que tive ao
telefone com a mulher do lenço negro. Na altura disse-lhe que percebia por
que razão ela não me dava o seu nome e perguntei-lhe se queria de nir um
nome de código. Ela respondeu que sim. Sabe que nome escolheu?”
“Não faço ideia.”
O homem da CIA fez uma pausa dramática e manteve os olhos cravados
no seu interlocutor, como se quisesse captar-lhe a reação.
“Dragão Vermelho.”
XI

Depois da aula, o professor Li chamou Madina de novo ao gabinete. Ela


seguiu-o, já não com nervosismo, mas com uma estranha excitação. O facto
de na última vez que estiveram no gabinete ela ter feito perguntas que,
percebia agora, eram inconvenientes, e o facto de ele não a ter denunciado,
como era sua obrigação enquanto quadro do Partido, criara uma certa
cumplicidade entre ambos. Tinham trocado um olhar conivente quando se
viram pela primeira vez desde a conversa sobre a doutrina marxista e ela
percebeu que, de facto, não lhe era totalmente indiferente. O professor
notara-a. Mas para onde as coisas iriam evoluir e o que estava ele disposto a
fazer, não sabia.
Ficou muito quieta quando a porta do gabinete se fechou e expectante
sobre o que faria ele agora que se encontravam de novo a sós. O professor Li
parecia também algo constrangido e fez-lhe um gesto desajeitado a indicar-
lhe a cadeira diante da secretária.
“Senta-te, por favor.”
Ela obedeceu.
“Não me vai repreender?”, perguntou Madina com uma inocência
provocadora. “Da última vez eu disse certas coisas que percebo agora terem
sido inconvenientes. Quero pedir desculpas sinceras por isso, senhor
professor. Asseguro-lhe que não voltará a acontecer.”
O professor Li ajeitou-se no seu lugar.
“Espero bem que sim”, disse. Pegou numa pasta sobre a sua mesa
e folheou-a. “Estive a ver o teu dossiê. És uigure.”
“Sim, senhor professor.”
Ele levantou os olhos e tou-a com atenção, como se sinalizasse que
a resposta à pergunta seguinte era muito importante.
“Isso quer dizer que és muçulmana?”
Madina já tinha lido o su ciente nos livros de Marx, Engels e Mao, e lido e
escutado coisas su cientes nos jornais, na rádio e na televisão, para saber
qual a resposta que se esperava dela.
“Não. A religião é o ópio do povo.”
O professor assentiu; tratava-se da resposta-padrão. Porém, ela teria de ir
mais longe do que aquilo para que as coisas pudessem evoluir na direção
que ele desejava.
“Mas a tua família é muçulmana…”
Isso Madina não podia negar.
“Os uigures em geral são muçulmanos, senhor professor. Mas, devido à
ação benevolente do Partido, estão isolados do islão moderno. Para nós, o
islão é, mais do que uma religião, uma cultura. As cinco orações por dia, o
zakat dado aos pobres, o jejum, os Festivais do Corban e da Rosa, tudo isso
são tradições ancestrais. Cumprimo-las por respeito aos mais velhos, apenas
isso. Quanto ao resto… a religião é o ópio do povo. Talvez os mais velhos
ainda acreditem nessas superstições, não digo que não. Mas nós, os mais
novos, sabemos que a verdadeira proteção, o verdadeiro saber, a verdadeira
virtude, está no Partido.”
O professor Li manteve-se um longo momento calado, a olhá-la como se a
avaliasse, ponderando o que fazer e, fazendo-o, se o deveria mesmo fazer.
“Sabes qual é a reputação das mulheres uigures?”
Madina sabia, claro. Os olhares que os colegas han tantas vezes lhe
lançavam durante as aulas, nos corredores do liceu e sobretudo na cantina
provavam-no, aliás. Por isso, corou e baixou os olhos.
“Não.”
Ele hesitou, na dúvida sobre se a aluna não sabia mesmo ou se se tratava
de simples modéstia.
“São as mulheres mais bonitas da China”, acabou por dizer. “É isso o que
todos dizem. Confesso que, desde que cheguei aqui a Xinjiang, pude
constatar que se trata de uma reputação merecida. Aliás, basta olhar para
ti…”
Pronunciou estas últimas palavras já num murmúrio, quase como se
tivesse medo de ser escutado. A rapariga manteve os olhos colados ao chão,
ngindo que nem o tinha ouvido e, em bom rigor, sem saber o que fazer ou
dizer. Sonhara por palavras como aquelas vindas da boca dele, e ali estavam
elas, enunciadas naquele murmúrio suave.
E agora? Manteve-se em silêncio, paralisada, os olhos sempre baixos, à
espera do que ele decidisse dizer. Ou fazer. A arder de desejo e a tremer de
medo, querendo que ele dissesse o que ela nos últimos tempos sonhara que
dissesse, mas ao mesmo tempo receando que o dissesse. E que ele zesse o
que durante tantas noites desejara que ele zesse, mas também temendo que
se atrevesse a tal.
O professor Li acabou por romper o silêncio.
“Não há dúvida de que o Partido precisa de pessoas novas, de mentes
frescas, de caras bonitas”, disse com a rmeza de quem acabara de tomar
uma decisão. “Se não vires inconveniente, e se me deres o teu
consentimento, estou disposto a patrocinar a tua inscrição no Partido.”
Estas últimas palavras quase levaram Madina a dar um salto na cadeira.
Levantou os olhos e tou-o, incrédula e radiante. Será que ouvira bem? O
professor acabara mesmo de propor patrocinar a sua entrada no Partido?
Seria mesmo verdade?
“Isso… isso é incrível!”, exclamou a jovem. “Um sonho! Uma maravilha!”
Estreitou os olhos, como se uma dúvida tivesse acabado de a assaltar. “Está a
falar mesmo a sério? Não está a brincar com a sua pobre aluna?”
O professor Li soltou uma gargalhada; a reação dela, para além de ser
engraçada, mostrava-lhe que a avaliara bem.
“Quem sabe se um dia não chegarás, tu mesma, a Lingxiu!”, brincou.
“Quem sabe!”
Ela devolveu-lhe o riso.
“Oh, senhor professor, lá está o senhor a gozar comigo”, ronronou. “Por
favor, tenha dó e não faça pouco de uma rapariga pobre e ingénua da
província.”
Disse-o num tom provocador de tão falsamente inocente. Após um
silêncio embaraçoso que de repente se estabeleceu entre eles, um silêncio
evidentemente nascido de ambos terem en m conseguido ler com clareza os
desejos e intenções do outro, o sorriso do professor desfez-se. Fitou-a com
profundidade, com propósito, e esse olhar carregado de desejo também a ela
lhe desfez o sorriso. Era como se quisessem perscrutar a alma do outro, por
detrás dos olhos e de tudo o que eles escondiam e ao mesmo tempo
revelavam.
Devagar, com movimentos pausados e gestos suaves, o professor Li
levantou-se do seu lugar e, contornando a secretária, abeirou-se dela.
Madina seguiu-o com atenção, sem sequer se atrever a pestanejar para não
perder um instante que fosse, querendo e temendo o desejo ardente que via
nele. Permitiu que ele lhe tocasse na mão, que a segurasse e, com um puxão
delicado, a convidasse a levantar-se para o encarar de perto. Já de pé, cara
diante de cara, olhos nos olhos, e com a mesma mansidão com que acedera
à aproximação dele, a rapariga entreabriu os lábios gomosos e deixou que ele
a beijasse.
XII

Para escalpelizar o poema de Maria Flor, Tomás Noronha precisava


evidentemente de o ter à vista. Assim sendo, estendeu a mão para Charlie
Chang.
“Mostre-me outra vez a fotogra a do papel com o poema.”
O americano voltou a localizar a imagem em questão no seu smartphone e
exibiu-a ao seu interlocutor. Tomás xou os olhos nos versos rabiscados pela
mulher.

Todos esses rapazes rebeldes


Ambulam desengonçados
Em jogos ocos

A onda da hidra amaina


Rolando mexilhões aos pés
Ah, linda areia!

Esboçou um sorriso triste.


“É esperta, a minha Flor”, constatou. “Montou o enigma desta maneira
porque sabia que eu seria o único capaz de o decifrar. Era a forma de se
assegurar de que qualquer investigação ao seu desaparecimento teria
forçosamente de me envolver a mim.”
“E então? Que mensagem escondeu ela aí?”
O português pegou no telemóvel e analisou o teclado digital que se
formara no ecrã.
“Tem alguma maneira de acentuar letras isoladamente?”
O homem da CIA indicou um botão do teclado.
“Carregue aqui sobre a letra que quiser sublinhar e forma-se logo um
traço por baixo da letra.”
Seguindo as instruções, Tomás manobrou o botão sobre o poema
e premiu várias letras sucessivamente. Quando terminou, voltou o ecrã na
direção do seu interlocutor.

Todos esses rapazes rebeldes


Ambulam desengonçados
Em jogos ocos

A onda da hidra amaina


Rolando mexilhões aos pés
Ah, linda areia!

O americano cou um longo momento a mirar o ecrã.


“Desculpe, não entendo.”
“E, no entanto, é tão maravilhosamente simples”, disse o historiador. “Ela
inseriu a mensagem na primeira letra de cada palavra do poema. O que
signi ca que o poema é um criptograma.”
Percebendo en m, Chang pegou no smartphone e reproduziu em
sequência as letras sublinhadas.

TERRADEJOAODHARMAPALA

Quando terminou, estudou a linha sem verdadeiramente compreender o


que ali estava escrito.
“O que é isto?”
“Uma mensagem em português”, explicou Tomás. “Temos de separar as
letras para formar palavras e tornar assim a mensagem compreensível. Ora
veja.”
Foi a vez de o historiador pegar no telemóvel e introduzir espaços nos
sítios certos, de maneira a formar palavras e estas constituírem uma frase
com sentido.

TERRA DE JOAO DHARMAPALA

Mesmo assim o americano fez uma careta de incompreensão.


“Não percebo…”
“Land of João Dharmapala”, traduziu Tomás para inglês. “Ela deve ter
escutado a conversa dos seus captores e percebeu por onde as planeavam
retirar da Índia. Será pela terra de João Dharmapala.”
“What the fuck!”, praguejou Chang. “João é um nome português, não é?
Não me diga que os motherfuckers a vão levar por Goa…”
“Não.”
“Então será por onde?”
De olhos xos no ecrã do smartphone, o historiador balançou
a rmativamente a cabeça enquanto admirava a subtileza de Maria Flor
e sobretudo o sangue-frio que mostrara ao improvisar uma solução tão
engenhosa no meio de uma situação difícil.
“Não só o poema contém um criptograma em português, língua que
naturalmente os homens que as sequestraram não entendem, como o
próprio criptograma contém um código”, explicou. “E repare que não é um
código qualquer. Trata-se de um código ao qual pouquíssimas pessoas neste
planeta podem aceder, percebe? Estamos a falar de historiadores muito
especializados em certos temas. Historiadores… como eu. Ou seja, ela
codi cou o criptograma de maneira a que, na prática, só especi camente eu
conseguisse descodi car a mensagem depois de ela ser decifrada. Um
código dentro de um criptograma. Brilhante, não?”
“Não estou a perceber nada.”
Tomás digitou uma palavra-chave no Google do telemóvel para iniciar
uma última busca.
“João Dharmapala era o rei de Kotte. Portanto, é por lá que elas e os
raptores vão passar.”
“Por Kotte?”
“Sim.”
O americano sacudiu a cabeça quase com frustração.
“E onde porra é Kotte?”
“Kotte era o mais importante reino da ilha onde João Dharmapala vivia.
Quando era rei de Kotte, em 1556, Dharmapala converteu-se ao
cristianismo e abriu assim caminho à ocupação da sua ilha pelos
portugueses.”
“O que tem uma história do século a ver com tudo isto?”
“O importante não é a história de João Dharmapala, é a identi cação da
ilha onde ele vivia. O que a minha mulher estava a fazer era a indicar-nos a
ilha por onde os captores as vão retirar da Índia.”
“Ah, entendi! E… que ilha é essa?”
Tendo o smartphone concluído numa fração de segundo a busca que fora
pedida segundos antes, Tomás con rmou a informação exposta no ecrã e
virou-o para o seu interlocutor.
“Na altura, os portugueses chamaram-lhe Ceilão. Hoje conhecemo-la por
outro nome.”
Chang olhou para o mapa que enchia o ecrã do seu smartphone
e reconheceu a ilha em forma de lágrima que se encontrava por baixo
da Índia.
“Sri Lanka?”
Fechou o telemóvel e devolveu-o ao seu dono. Os raptores de Maria Flor e
de Dragão Vermelho iam levá-las para o Sri Lanka.
XIII

Apesar das linhas chinesas modernas que dominavam a arquitetura de


Ürümqi, com a baixa pejada de enormes arranha-céus e de vastos centros
comerciais, o Grande Bazar era na aparência um recanto uigure da cidade, o
sítio onde se misturavam as gentes mais diversas. Mães passavam em
scooters com os lhos agarrados às costas, os vendedores ambulantes
anunciavam delícias fritas, pães nangbing ou brinquedos de plástico,
mulheres muçulmanas de véu cruzavam-se com raparigas han em chipao de
seda e com jovens uigures e cazaques em calças de ganga, enquanto os
homens mais velhos passeavam-se de doppas na cabeça com ar de patriarcas
a exibir as enormes barbas brancas.
Pondo m à leitura do Pequeno Livro Vermelho, de Mao Tsé-tung, Madina
bebeu o último trago do seu café de Yunnan e espreitou com impaciência o
relógio xado na parede do café. Faltava meia hora. Ah, tanto tempo!
Desejou que o ponteiro dos minutos acelerasse e que a meia hora se
esgotasse em dois minutos, mas o maldito ponteiro parecia irritantemente
lento.
A impaciência dela era compreensível. Tinha passado o m de semana
sem ver o namorado e ansiava ardentemente pelo reencontro. O professor Li
não fora de manhã ao liceu, pois às segundas-feiras não dava aulas, mas iria
ministrar a sua habitual ação de doutrinação na secção de propaganda do
Partido em Ürümqi. Era esse o habitual ponto de encontro de ambos às
segundas-feiras.
Madina inscrevera-se nas leiras do Partido dois meses antes graças ao
patrocínio do namorado. Para progredir, no entanto, precisava de completar
muitas etapas de longo e fastidioso trabalho, e tudo começava com o
aprofundamento das ideias do Partido. Daí a leitura do Pequeno Livro
Vermelho.
Voltou a espreitar o relógio, incapaz de conter a impaciência. Só tinha
passado um minuto.
Suspirou.
“Porque suspiras, camarada?”
A pergunta foi feita pela rapariga sentada ao lado dela, uma han chamada
Mei que também acabara de se inscrever no Partido. Mei era habitualmente
muito esforçada e compenetrada no estudo da matéria ideológica, o que a
tornava enervante, e também algo bisbilhoteira, o que a tornava realmente
irritante. Que azar ter dado de caras com esta metediça quando se sentara
naquele café do Grande Bazar!
“Nada, nada.”
Não estava a ser sincera, como era evidente. Havia já dois meses que se
encontrava às escondidas com o namorado no gabinete dele no liceu.
Descobrira as delícias do namoro, desde os beijos às carícias e às palavras
doces sussurradas em mil juras de amor, mas nunca o deixara ir tão longe
quanto ele evidentemente gostaria; no m de contas, viera de uma pequena
aldeia da província e, sendo uigure, tinha uma educação muçulmana, com
todas as consequências que daí advinham. Homem que lhe quisesse tocar
como os homens desejavam tocar nas mulheres teria primeiro de ser seu
marido.
Ora tal possibilidade nunca ele suscitara. É certo que namoravam havia
ainda pouco tempo, uns meses apenas, e que um compromisso desses, para
além de requerer o consentimento dos pais dela, como mandava a tradição e
os bons costumes, exigia uma certa maturação. Se o problema para Li é que
ela não o deixava fazer tudo o que gostaria de fazer, o problema para Madina
é que ele não a assumia em público da maneira que ela desejava. Os gestos
de amor limitavam-se ao que se passava no recato íntimo por detrás da
porta trancada do gabinete. Uma vez à vista do mundo, fosse no corredor,
na sala de aulas ou na rua, era quase como se não se conhecessem.
“Tens de compreender, minha papoila, que sou professor e tu és minha
aluna”, explicara-lhe Li quando a namorada por m o confrontara
abertamente com o seu desagrado. “Se o nosso amor for revelado, poderei
perder o emprego. Um professor não pode andar com uma aluna.”
“Isso eu até compreendo”, aceitara ela. “Mas, aos domingos, bem que
podíamos sair juntos…”
“E se um aluno meu ou um outro professor por acaso nos vir? Bem sei que
Ürümqi é uma cidade grande, mas há sempre essa possibilidade, não é?
Todos os dias saio à rua e volta e meia deparo-me com uma cara conhecida.
Se saíssemos juntos, seria inevitável que mais tarde ou mais cedo nos
cruzássemos com pessoas que conhecemos do liceu. O que faríamos?”
Abanara a cabeça. “Não pode ser. O risco é demasiado grande. Temos de ser
fortes e esperar pelo momento certo.”
Com alguma relutância, ela foi aceitando a situação. Teria mesmo de ser
paciente, disse a si mesma. Havia primeiro que acabar o liceu, o que aliás já
não faltava muito, e só então cariam livres para se assumirem e, claro, para
ele lhe pedir em casamento, os pais consentirem e ambos terem lhos e
serem felizes para sempre, vivendo para o Partido e protegidos por Ele.
Concentrou-se por isso nas duas missões que tinha em mãos. A primeira era
terminar o liceu. A segunda era progredir no Partido, onde era importante
que fosse o mais longe possível para alcançar um estatuto digno de Li.
Espreitou mais uma vez o relógio do café. Faltavam ainda vinte e cinco
minutos. Uma verdadeira eternidade. Sentia-se irrequieta, de tão ansiosa
por ver o namorado. Não podia esperar mais. Arrumou o Pequeno Livro
Vermelho na carteira, largou sobre a mesa umas moedas para pagar o café e
pôs-se de pé. No momento em que se encaminhava para a saída, contudo,
quase embateu em Mei, que se plantara ostensivamente à frente dela.
“O que foi?”
A camarada do Partido manteve-se no seu lugar.
“Tenho uma coisa a revelar-te sobre ele.”
“Ele, quem?”
“O professor Li, quem haveria de ser?”
A a rmação abalou Madina. Será que aquela intrometida tinha mesmo
percebido que…? Apesar do susto, todavia, não perdeu a compostura.
“Estás parva ou quê?”
“Tenho uma coisa a revelar-te sobre ele, já te disse.”
Aquela camarada do Partido enervava Madina. Não só Mei se mostrava
uma fanática ideológica, papagueando a propósito e a despropósito
sucessivas citações de Marx, Engels e Mao, como sobretudo parecia atenta a
tudo o que acontecia à sua volta, como se vigiasse os seus camaradas
militantes. Controladora como era, não seria até de admirar que a presença
dela no café não fosse obra do acaso. Provavelmente aquela idiota ainda
acabaria um dia como chefe da temida Comissão Central para a Inspeção
Disciplinar, a polícia interna do Partido.
“Sai da frente”, exigiu a uigure. “Estou com pressa.”
Mas a camarada nem se mexeu.
“Tenho andado a observar-te com muita atenção”, disse no tom de quem
fazia um aviso. “Já topei o teu segredo.”
“Qual segredo?”, perguntou, fazendo-se despercebida. “Que parvoíce vem
a ser esta? Sai mas é da frente e deixa-me passar, que tenho mais que fazer!”
Mei inclinou-se para ela e, de cara quase colada, rosnou num sussurro
ameaçador.
“Andas metida com ele.”
A a rmação foi proferida com tal convicção, quase como se a bisbilhoteira
tivesse simplesmente enunciado um facto estabelecido e inquestionável, que
Madina não conseguiu ocultar um relampejo de pânico antes de fechar de
novo o rosto.
“Que disparate!”
O desmentido soou a falso, pois aquele breve esgar assustado denunciara-
a. Segura agora de que interpretara tudo corretamente, Mei tou-a com
intensidade.
“Mas há uma coisa sobre ele que claramente tu não sabes”, disse. “E
precisas de saber.”
Agarrada ainda à cção de que nada se passava entre ela e Li, pois isso era
essencial para o proteger, Madina ainda quis empurrá-la e abrir caminho,
mostrando-lhe assim que nada daquilo lhe dizia respeito, mas estava
demasiado interessada em saber tudo o que havia a saber sobre o namorado
para ser capaz de permanecer indiferente às palavras que acabara de escutar.
“O quê?”, perguntou, simulando um tom de desa o não muito
convincente. “O que achas tu que sabes que eu não sei?”
Talvez por maldade, talvez por simplesmente se orgulhar de saber tudo o
que havia a saber, os lábios de Mei curvaram-se num leve sorriso no
momento em que fez a revelação.
“Ele é casado.”
XIV

Depois de passarem por um pórtico da guarda fronteiriça do Sri Lanka,


situado na zona VIP do aeroporto de Colombo, Tomás Noronha e Charlie
Chang viram os dois cingaleses que lhes tinham facilitado as operações
aduaneiras, evidentemente contratados pela CIA, pegarem-lhes nas
bagagens e conduzi-los pelo labirinto de corredores do edifício até
desembocarem num parque de estacionamento a céu aberto. Os facilitadores
cingaleses meteram as malas na bagageira de um enorme jipe cinzento-
escuro e abriram as portas traseiras para os convidar a instalarem-se nos
bancos traseiros.
O céu estava carregado de cinzento e fazia em Colombo um calor húmido
verdadeiramente as xiante, pelo que foi com alívio que os recém-chegados
sentiram a frescura seca do ar condicionado envolvê-los quando se
instalaram no interior do jipe. Os dois cingaleses sentaram-se à frente e, sem
perder tempo, o todo-o-terreno arrancou.
“Sou o Chathura Fonseka”, apresentou-se o condutor. Indicou o cingalês
ao lado dele. “Este é o Diyon de Silva.”
Aqueles apelidos eram explicados pela história dos Descobrimentos
portugueses, como bem sabia Tomás, mas não aprofundou o assunto porque
nesse momento tinha a mente ocupada por outras preocupações. A sua
prioridade absoluta era localizar a mulher.
“Há alguma informação nova sobre o grupo que procuramos?”
“Só sabemos o que nos disseram, senhor”, respondeu Fonseka, mirando-o
de relance pelo espelho retrovisor. “O grupo deve sair da Índia pela rota do
Sri Lanka. Mais nada.”
Ou seja, apenas sabiam o que o próprio Tomás extraíra do poema cifrado
de Maria Flor. Não era encorajador. Munidos unicamente daquela
informação, como poderiam encontrar a mulher? Procurá-la num país com
mais de vinte milhões de habitantes era procurar uma agulha num palheiro.
Lançou um olhar preocupado para Chang, de modo a exprimir-lhe a sua
inquietação, mas constatou que o homem da CIA estava estranhamente
descontraído. O que saberia o americano que ele não soubesse?
Decidiu não dar parte de fraco e manteve-se calado, acompanhando o
percurso do jipe. Não foi preciso esperar muito para perceber que não iam
no sentido de Colombo; sempre pensara que a capital do Sri Lanka era o seu
destino, pois tratava-se do local mais provável de passagem dos fugitivos,
mas a nal seguiam algures na direção contrária à cidade. O que raio se
estava ali a passar?
“Para onde vamos?”
Foi Chang quem lhe respondeu.
“Para sul.”
A informação era surpreendente.
“Para sul?! A que propósito?”
“É lá que está Hambantota.”
O operacional da CIA disse-o como se o nome explicasse tudo. Mas a
verdade é que Tomás não estava a entender nada.
“Desculpe, há aqui alguma coisa que eu não saiba?”
A pergunta cou algum tempo no ar. Chang permaneceu um longo
minuto a observar a paisagem verdejante que des lava ao longo da berma da
estrada, mas pelos seus olhos pensativos percebia-se que considerava a
melhor maneira de responder.
“Lembra-se de eu lhe ter dito que só quando Dragão Vermelho enunciou
os conceitos-chave do Partido Comunista Chinês é que acreditei que os
documentos que ela trazia podiam mesmo ser o protocolo com a estratégia
secreta de Pequim?”
“Está a referir-se àquelas expressões em chinês?”
O americano anuiu com um movimento da cabeça.
“Nongcun baowei chengshi.”
“O que quer isso dizer?”
“ ‘Usar o campo para cercar a cidade’ ”, traduziu. “Foi o primeiro conceito
enumerado por Dragão Vermelho que me mostrou que ela podia mesmo ser
quem dizia que era. O princípio do ‘nongcun baowei chengshi’ foi enunciado
pela primeira vez por Mao Tsé-tung quando, após ter sido expulso das
cidades chinesas, o Partido Comunista Chinês se instalou no campo, onde
acabou por ter maior aceitação por parte dos camponeses reprimidos pelo
sistema feudal no país. A partir daí, a estratégia dos comunistas chineses
passou a ser a da conquista do campo para gradualmente cercar as cidades.
Ou seja, a ideia era começar pelos locais mais frágeis e, uma vez estes
tomados, usá-los para minar os espaços mais fortes até que estes,
gradualmente enfraquecidos pelo cerco prolongado, também lhes caíssem
nas mãos. Como vieram de facto a cair. O princípio do ‘nongcun baowei
chengshi’, ou ‘usar o campo para cercar a cidade’, tornou-se assim um dos
pilares da estratégia de conquista do Partido Comunista Chinês.”
“Estou familiarizado com a história da ascensão do Partido Comunista
Chinês”, esclareceu o historiador. “Mas qual a relação disso com a nossa
conversa?”
Chang manteve os olhos presos à paisagem no exterior.
“Já ouviu falar na Nova Rota da Seda?”
Outra mudança de direção; o operacional da CIA parecia gostar de falar
por elipses.
“Claro que sim”, anuiu Tomás, ainda à espera de ver onde o seu
interlocutor o queria levar. “É o grande projeto da China para gerar
desenvolvimento em todo o mundo. Os chineses estão a ajudar os países
mais pobres, emprestando-lhes dinheiro e construindo as infraestruturas de
que esses países tanto necessitam. Estradas, portos, aeroportos, pontes,
linhas de caminho de ferro, barragens, centrais elétricas, redes de energia…
eu sei lá. É um modelo de cooperação mutuamente bené ca que envolve
mais de sessenta países. Até o meu país, Portugal, assinou um acordo com a
China para integrar o porto de Sines na Nova Rota da Seda. Um projeto
altamente meritório, como decerto concordará.”
O americano não conteve uma gargalhada seca.
“Meritório, diz você?”
“Sim, claro. Não sei se sabe, mas o próprio secretário-geral da ONU
descreveu a Nova Rota da Seda como um pilar da cooperação internacional
e do multilateralismo.”
Pela primeira vez, Chang desviou os olhos do exterior e tou o seu
interlocutor.
“Estive a ler documentação sobre si e o facto de o senhor ser historiador
chamou-me a atenção. Eu também gosto muito de história. Sabe qual é o
episódio da história do Ocidente que considero mais semelhante com a
estratégia delineada pelo Partido Comunista Chinês para a Nova Rota da
Seda?”
“O Plano Marshall, sem dúvida.”
O operacional da CIA estreitou as pálpebras para enfatizar o que tinha a
dizer.
“O cavalo de Troia.”
XV

Como se tudo vissem e tudo soubessem sobre o que se passava na sala da


secção de propaganda do Partido em Ürümqi, os olhos do Chefe no retrato
pregado na parede pareciam tar Madina com severidade, como se a
avisassem de que Ele e o Partido sabiam de tudo sobre os seus delitos
amorosos com Li e que a hora da punição chegaria. Sabia o Lingxiu, sabia o
Partido e, pelos vistos, sabiam também os camaradas sentados na sala. Ou
pelo menos um desses camaradas, aquela Mei com quem meia hora antes
tivera o azar de se cruzar no café do Grande Bazar.
A rapariga uigure estava nervosa e não resistiu a roer as unhas. Seria
verdade aquilo que a coscuvilheira da Mei lhe acabara de dizer no café? Li,
casado? Abanou a cabeça. Não podia ser. Tratava-se decerto de intriguice
miserável. O seu Li nunca lhe faria uma coisa daquelas. Aquela imbecil
encartada estava apenas a tentar criar problemas entre ambos, se calhar
porque ela própria tinha os seus desígnios de fêmea para com Li. Ah, mas a
serigaita não tinha a menor hipótese! Nem pensar! Não eram as uigures as
mulheres mais bonitas da China?
A porta da sala abriu-se e Li entrou a segurar uma pasta. Depois de a abrir
e extrair do interior dois livros, que pousou sobre a secretária, saudou o
grupo de jovens militantes do Partido, lançando a Madina um olhar fugidio
como se a cumprimentasse discretamente. A seguir voltou-se para o quadro
negro e pegou no giz.
Rabiscou quatro caracteres.

战国时代
“Zhànguó Shídài”, disse. “O Período dos Estados em Guerra.” Encarou o
grupo. “Camaradas, algum de vós sabe que período foi este?”
Todos sabiam, claro, pelo que a resposta veio em coro.
“O período em que a China se formou.”
“O Período dos Estados em Guerra começou há dois mil e quinhentos
anos e durou cinco séculos, culminando com a uni cação dos sete Estados
na dinastia Chin, o que levou os estrangeiros a chamar-nos China, a terra
dos Chin”, disse Li, lembrando uma lição que vinha do liceu. “Este foi um
período marcado por guerras, conspirações, intrigas, alianças, traições,
duplicidade e truques entre os vários senhores da guerra. Com todos esses
con itos, o que procuravam eles fazer?”
A pergunta deixou os jovens militantes silenciosos; tinham estudado o
marxismo-leninismo-maoísmo a fundo, mas da história da China apenas
sabiam o que haviam aprendido no liceu e em programas de televisão.
Aquela questão já requeria conhecimentos mais aprofundados. Apenas Mei,
a bisbilhoteira zelote, levantou a mão.
“Tornarem-se o ba.”
Ba era a expressão chinesa para o rei dos reis, a autoridade hegemónica, o
pico da pirâmide hierárquica, aquele que se sobrepunha a todos os outros e
em todos mandava.
“Todas as lutas, alianças, conspirações e traições do Período dos Estados
em Guerra resultavam dos esforços de cada um dos senhores da guerra para
se tornar o ba”, con rmou Li, exibindo os dois livros que trouxera para a
sala. “Os ensinamentos dessas guerras encontram-se em A Arte da Guerra,
de Sun Tzu, mas sobretudo nos Estratagemas dos Estados em Guerra, uma
coleção de fábulas que vocês decerto já viram nas livrarias e que relatam os
episódios ocorridos naquele tempo. Por exemplo, a história dos reinos Chu e
Zhou. O episódio mais importante é o dos caldeirões. Conhecem-no?”
Os jovens militantes do Partido caram em silêncio. Como era evidente,
todos conheciam os Estratagemas dos Estados em Guerra; tratava-se de um
clássico da literatura chinesa. Contudo, nunca nenhum tinha realmente lido
a obra.
“Naquele tempo, o ba era o guardião dos caldeirões”, contou Li.
“Se perdesse o mandato dos céus, então os caldeirões passariam para o novo
ba. O ba na altura era o rei de Zhou, pelo que era ele o guardião dos
caldeirões. O seu vizinho, o rei de Chu, foi visitá-lo para lhe prestar
juramento de submissão e lealdade. A certa altura, contudo, incapaz de
conter a curiosidade, perguntou-lhe qual o peso dos caldeirões que estavam
no seu palácio real. Ao ouvir esta pergunta, o ba percebeu imediatamente
que o rei de Chu a nal não era um aliado leal, mas um rival dúplice que,
ngindo-se aliado submisso, ambicionava na verdade substituí-lo no lugar
de ba. Isto porque a pergunta sobre o peso dos caldeirões era evidentemente
para o rival perceber como os levaria para o seu palácio quando ele próprio
se tornasse ba.”
A história teve ressonância imediata na sala.
“Ah!”, exclamou um aluno. “É por isso que se diz que ‘nunca se deve
perguntar o peso dos caldeirões’?”
Tratava-se de um famoso ditado chinês.
“Sim, esse ditado tem origem na história de Chu e Zhou relatada nos
Estratagemas dos Estados em Guerra”, con rmou Li. “Durante esse período,
os reis em ascensão derrubaram vários ba. Em cada caso em que isso
aconteceu, no entanto, a estratégia vencedora envolveu sempre táticas de
indução de complacência ao ba, com os rivais a esconderem as suas
verdadeiras intenções. Quer isto dizer que o pior erro que um rei em
ascensão pode cometer é alertar cedo demais o ba para as suas ambições,
provocando um confronto com o ba quando este ainda é mais poderoso do
que ele. Só na fase nal da ascensão do pretendente, quando o ba em
exercício estiver demasiado fraco para resistir e for abandonado pelos seus
aliados, é que se atinge o shi e pode esse pretendente revelar os seus
verdadeiros objetivos.”
Todos estavam naturalmente familiarizados com o conceito tauista do shi,
muito referido por Sun Tzu na sua A Arte da Guerra. Os tauistas
acreditavam que o universo se encontrava em constante mudança,
reinventando-se a todo o momento conforme simbolizado pelo yin e yang.
A ocasião em que a polaridade se alterava entre o yin e o yang era o shi. Nas
lutas pelo poder, incluindo as guerras, o shi era o instante em que as
dinâmicas se invertiam e o forte se tornava fraco e o fraco forte. O grande
talento de um rei ou de um general era justamente perceber qual o
momento em que isso sucedia. Ou seja, um bom chefe tinha de intuir o shi
para tirar o máximo partido do instante de inversão das dinâmicas.
Outro aluno levantou a mão.
“Mas, camarada instrutor, e se for criado um sistema sem ba? Não seria
isso mais adequado em termos de socialismo cientí co?”
Li abanou a cabeça.
“Disparate”, retorquiu. “A ordem natural das coisas é da tong. Ou seja,
dominação unipolar. Isto porque o mundo real não é igualitário, mas
hierárquico. No topo há um ba, em baixo dele estão os reis, depois
os príncipes, em baixo a corte, a seguir a burocracia do Estado, depois os
comerciantes e, por m, a plebe. Os sistemas sem ba são sempre transições,
períodos provisórios em que um ba está de saída e outro de entrada.”
O jovem militante cou desconcertado.
“Mas…”
Calou-se a tempo. A ideia chinesa de que tinha de haver uma hierarquia
contradizia frontalmente a ideia socialista de que todos eram iguais. Mas,
mesmo havendo uma contradição, o jovem militante sabia também, como
sabiam todos na sala e todos na China, e se não sabiam depressa cariam a
saber, que tudo o que o Partido dizia ser verdadeiro era verdadeiro. Se o
Partido estabelecera que não havia contradição entre o da tong e o
socialismo, então era porque não havia contradição. Na sua magni cência, o
Partido tudo sabia. O militante tinha plena consciência de que a
apresentação de qualquer objeção às ideias do Partido poderia ser
interpretada como um ato contrarrevolucionário e valer-lhe uma punição,
pelo que se calou.
“Ias a dizer…?”
“Nada, nada, camarada instrutor.”
Li voltou a encarar o grupo de jovens militantes.
“Como se derrota uma aliança mais poderosa do que a nossa?”,
questionou num tom retórico. “Essa questão é abordada nas histórias dos
Estratagemas dos Estados em Guerra. Por exemplo, o rei de Chin teve de
enfrentar a aliança vertical, que era mais forte do que ele. Para se tornar ba,
o rei de Chin pregou aos quatro ventos que não tinha a menor ambição de
substituir a aliança. Mas começou a subornar os membros da aliança vertical
com ofertas que apelavam aos seus interesses de curto prazo, levando-os a
negligenciarem o longo prazo. A aliança vertical foi assim enfraquecendo-se
gradualmente enquanto o rei de Chin se ia fortalecendo às escondidas. Até
que chegou o momento em que o rei de Chin cou tão forte e a aliança
dominante tão fraca que a atacou e se tornou en m o ba. A tática do rei de
Chin pode aliás ser vista no jogo de wei qi. Vocês por acaso alguma vez
jogaram wei qi?”
A resposta veio em coro.
“Sim, camarada instrutor.”
O wei qi era um dos mais conhecidos jogos chineses de tabuleiro.
“Talvez vocês não saibam, mas o wei qi remonta ao Período dos Estados
em Guerra, e em particular à história de como o rei de Chin derrotou a
aliança vertical. Ganha quem conseguir cercar o seu opositor. Para isso, é
preciso respeitar dois princípios. O primeiro é enganar o adversário,
tornando-o complacente e fazendo-o esbanjar a sua energia de formas que
nos ajudem a cercá-lo. O segundo é ocultar as nossas reais intenções e
direções, levando-o a abrir posições que nos permitam cercá-lo sub-
repticiamente. Quando está a perder, o nosso adversário nem percebe que
está a perder. Essa é a suprema arte. O que nos remete para a mais famosa
batalha do Período dos Estados em Guerra. Sabem qual foi?”
Todos sabiam, pois tratava-se de matéria elementar da história da China,
pelo que, mais uma vez, a resposta veio em coro.
“A batalha de Chibi.”
“Duas forças lutaram pelo controlo da China”, disse Li. “O ba era o reino
do Norte, mas o seu poder era desa ado pelo reino do Sul. As duas partes
envolveram-se numa série de manobras dúplices para trapacearem a outra,
cada uma dessas manobras transformada num provérbio chinês. Por
exemplo, foi aqui que se estabeleceu que se deve sempre enganar o inimigo
dizendo-lhe o que ele já receia. O chefe do Norte, usando uma carta falsa,
conseguiu convencer o ba de que os seus dois melhores o ciais eram
traidores, o que levou o ba a executá-los. O Sul conseguiu assim dividir e
enfraquecer o Norte e levar o ba a fazer, ele próprio, o que o Sul mais
desejava que fosse feito, isto é, eliminar os dois o ciais mais perigosos do
inimigo. Quando chegou ao momento culminante, a batalha de Chibi, o Sul
aplicou o princípio de parecer fraco quando era forte. O Sul derrotou o ba
graças à sua paciência, esperando sempre pelo shi para atuar, tendo no
momento certo avançado para uma sucessão de manobras de dissimulação,
de divisão do inimigo e de levar o próprio inimigo a fazer ele mesmo as
coisas que eram convenientes ao Sul que fossem feitas.”
Mei, a bisbilhoteira zelote, não conteve um guincho de aprovação.
“Ayah! Que esperto o reino do Sul foi!”
O instrutor de doutrinação voltou-se para o quadro e rabiscou uma
sucessão de seis pontos.
“Com o que se passou no Período dos Estados em Guerra aprendemos seis
princípios”, enumerou, listando-os um a um com o giz. “Primeiro, quando
enfrentamos o ba temos de lhe adormecer a descon ança e torná-lo
complacente. Segundo, precisamos de manipular os conselheiros do ba,
assim o cercando sem que ele o perceba. Terceiro, temos de roubar os
conhecimentos e as tecnologias que dão vantagem ao ba. Quarto,
precisamos de ter presente que o maior poderio militar não é um fator
crítico numa guerra longa se os outros fatores nos forem favoráveis. Quinto,
embora enganemos e cerquemos o ba, nunca podemos deixar-nos enganar
nem cercar pelo ba. Por m, temos de ser pacientes e esperar pelo shi, o
momento certo para arrancar para a vitória.” Guardou o giz e encarou o
grupo. “Alguma dúvida?”
Os alunos chineses eram habitualmente muito disciplinados e silenciosos,
mas aquela aula fora de tal modo inesperada e diferente do que estavam à
espera que a matéria não pôde deixar de suscitar interrogações.
“Peço desculpa, camarada instrutor, mas há uma coisa que não entendi
muito bem”, disse um aluno, a hesitação a trepar-lhe pela voz devido à
impertinência que estava a cometer ao questionar o conteúdo da lição.
“Pensei que íamos aprofundar os conhecimentos relacionados com o
socialismo cientí co…”
Li não pareceu incomodado por ser questionado; era mesmo como se
esperasse a pergunta.
“O passado da China dá-nos lições para a luta, no presente e no futuro,
que conduzirão à vitória nal do socialismo cientí co”, respondeu. “Como
sabem, o camarada Deng Xiaoping decidiu que o Partido deveria abrir-se ao
capitalismo para poder gerar riqueza. Isso está em conformidade total com a
teoria marxista, pois Marx e Engels escreveram por várias vezes que o
verdadeiro socialismo só emerge num contexto de capitalismo avançado.
Mas o que o Partido procura também é convencer o mundo de que a China
deixou de ser comunista, de que o Partido só é comunista de nome. Essa
estratégia destina-se a adormecer a descon ança em relação ao Partido. De
tal modo é assim que os nossos governantes e diplomatas receberam do
Partido ordens para evitar referências marxistas e procurar durante os
contactos internacionais apenas usar expressões consensuais.”
Mei, sempre entusiasta, ergueu a mão.
“Mas, camarada professor, todos sabemos que o Partido Comunista
Chinês continua a ser comunista…”
“Que ninguém o duvide”, con rmou Li. “Para o exterior, damos a imagem
de capitalismo. Para o interior, no entanto, mantemos a nossa essência
comunista. O Partido está simplesmente a adaptar o marxismo aos novos
tempos e à realidade da China. O nobre ideal do comunismo e o ideal
comum do socialismo com características chinesas permanecem o pilar
moral e a alma política dos comunistas chineses e constituem o fundamento
ideológico da coesão e da unidade do Partido. Se o Partido Comunista da
União Soviética caiu, por exemplo, foi justamente porque negligenciou os
fundamentos ideológicos do regime. Esse é um erro que nunca poderemos
cometer. Que ninguém duvide da superioridade do socialismo sobre o
capitalismo nem esqueça as lições dos camaradas Marx, Engels, Mao, Lenine
e Estaline. Para além de obedecer à doutrina marxista, a nossa viragem para
o capitalismo constitui uma tática temporária para enganar os nossos
inimigos. Devemos manter sempre presente que a China é um Estado
socialista de ditadura democrática popular, dirigido pela classe operária e
fundado na aliança entre operários e camponeses no quadro da luta
revolucionária. A história do Partido, tal como a história das classes, é uma
luta constante. Para ter sucesso na luta, temos de adotar a estratégia que
conduz à vitória nal. Essa estratégia, como nos demonstrou o grande
timoneiro Mao, está inscrita nos triunfos do Período dos Estados em
Guerra. O que me leva a fazer-vos esta pergunta: quem no mundo é hoje em
dia o ba?”
Embora dirigida a todos, a questão foi feita a olhar para o aluno que
acabara de o interpelar, pelo que foi este que se viu na obrigação de
responder.
“O inimigo capitalista, o Ocidente.”
“Se queremos derrotar o ba, temos de ser astutos como o rei de Chin
perante a aliança vertical e o rei do Sul perante o rei do Norte. Temos de
tornar o ba complacente, temos de o cercar sem que ele perceba que está a
ser cercado, temos de lhe roubar as ideias e as tecnologias que lhe dão a sua
força, temos de ngir que abandonámos o socialismo e abraçámos o
capitalismo, temos de parecer fracos mesmo quando já somos fortes e temos
de ser pacientes e aguardar pelo shi, o momento certo para lhe desferirmos
de surpresa o golpe fatal. É essa a grande lição do Período dos Estados em
Guerra. Xiao li cang dao, ou seja, esconder a faca por detrás de um sorriso. É
preciso ganhar a con ança do inimigo para o tranquilizar enquanto nos
preparamos para lhe desferir o golpe fatal. Nunca se esqueçam das palavras
sábias de Sun Tzu: todos os con itos são baseados na dissimulação. Assim
sendo, quando prontos para atacar, devemos parecer incapazes de o fazer;
quando ativos, parecer inativos; quando próximos, levar o inimigo a
acreditar que estamos longe; quando longe, a acreditar que estamos perto.”
“O camarada instrutor está a dizer que precisamos de ser dissimulados
com o Ocidente capitalista?”
A pergunta do aluno era de tal modo certeira que Li não conseguiu
ocultar um sorriso autocongratulatório pela forma tão e caz como
conduzira a ação de doutrinação naquela secção do Partido Comunista
Chinês. Pegou nos livros que tinha pousado sobre a secretária e devolveu-os
à pasta, como se sinalizasse assim que a sessão tinha chegado ao m.
“Temos de fazer guerra ao ba sem que o ba perceba sequer que há uma
guerra.”
XVI

A comparação do programa chinês das Novas Rotas da Seda, que ajudava


os países subdesenvolvidos a construírem as infraestruturas de que tanto
necessitavam, ao mito do cavalo de Troia chocou Tomás Noronha.
“Que disparate!”
O homem da CIA que o acompanhava no banco traseiro do jipe em
direção ao Sul do Sri Lanka, porém, manteve a comparação.
“As ajudas do Ocidente ao Terceiro Mundo estão cheias de condições”,
lembrou Charlie Chang. “Querem dinheiro da ajuda ocidental? Pois bem, há
regras para evitar a corrupção, há regras para salvaguardar o meio ambiente,
há regras para garantir a sustentabilidade dos empréstimos, há regras para
atender aos interesses das populações locais… há regras para tudo. Um
pesadelo para os governantes desses países, que gostariam que o dinheiro
lhes fosse entregue depressa e sem condições. Ora é justamente isso o que
faz a Nova Rota da Seda. O Partido Comunista Chinês chega a um país
pobre com uma mala cheia de dinheiro e empresta a esse país, que é como
quem diz, empresta aos seus governantes. Estamos a falar de valores
descomunais a juros baixos. Qual é o governante de um país pobre que
resiste a um maná desses? É dinheiro fácil, não há muitas condições nem
regras complicadas, não há controlo… en m, ao ver um tal tesouro à mão
de semear, agarram-no logo, como é bom de ver. É como se lhes tivesse
saído o grande prémio da lotaria. Uma parte acaba certamente numas
continhas na Suíça.”
“Talvez os chineses devessem ter um pouco mais de cuidado, não
contesto”, admitiu o português. “Mas continua a ser uma iniciativa muito
meritória. A Nova Rota da Seda ajuda os países que nada têm e promove o
seu desenvolvimento.”
O homem da CIA esboçou um sorriso sem humor.
“Acha?”, questionou. “Sabe, meu caro, uma coisa é o embrulho do
presente, outra é o presente em si. O embrulho é a propaganda, são as
palavras bonitas, os chavões grandiosos: ‘auxílio ao desenvolvimento dos
países pobres’, ‘cooperação mutuamente bené ca’, ‘uma humanidade de
destino comum’, ‘coexistência harmoniosa’, ‘uma ponte para a paz’. Que
lindo! Que bom! Que maravilhoso!” Cerrou os dentes e o rosto ensombrou-
se-lhe. “Tudo conversa para enganar papalvos! E os papalvos, claro, deixam-
se trapacear que nem uns campónios.”
O português soergueu um sobrolho, intuindo o que aí vinha.
“Os chineses não dão a ajuda que prometem?”
“Oh, se dão!”, ironizou Chang. “Começam por encher os bolsos dos
governantes dos países pobres, claro. É a maneira de amaciarem o caminho.
A seguir assinam contratos estranhamente opacos que vão parar quase
sempre a empresas chinesas. Sem concurso. Depois constroem projetos
grandiosos, verdadeiramente megalómanos, projetos que causam enorme
poluição, custam verdadeiras fortunas e deixam os países ‘ajudados’ na
penúria e com dívidas monstruosas. A linha de caminho de ferro que liga
Mombaça a Nairobi, o maior projeto no Quénia desde a independência, está
envolta em escândalos, não é economicamente viável, arruinou um parque
natural e deixou o país com uma dívida tal que já não tem meios para pagar
à China. Outra linha férrea megalómana, entre Adis Abeba e o Djibuti,
revelou não ser viável e transformou o Djibuti no país subdesenvolvido com
a maior dívida externa em relação ao PIB. O Paquistão está tão a ito com a
escalada galopante da sua dívida para com a China que já entregou um
porto seu ao Partido Comunista Chinês, enquanto vinte por cento do
orçamento das Maldivas está já ao serviço da dívida a Pequim. Por todo o
mundo subdesenvolvido, a situação é a mesma, do Bangladesh à Tanzânia.
Uma exceção interessante é o Nepal, cuja população, que conhece bem o
Partido Comunista Chinês, pois este governa o país vizinho, protestou para
impedir a ‘cooperação mutuamente bené ca’ da Nova Rota da Seda. Mesmo
assim, o Nepal acabou por cair na esparrela e car endividado a Pequim. Os
estudos mostram que há vinte e três países em situação economicamente
difícil e altamente endividados ao Partido, graças a estes maravilhosos e
‘inclusivos’ projetos de ‘coexistência harmoniosa’ da Nova Rota da Seda.”
“Caramba!”, exclamou Tomás. “Esses países não denunciam a sua
situação?”
“Estão todos caladinhos. O único que se insurgiu foi a Malásia, que
acusou a China de neocolonialismo.”
“Mas estão caladinhos porquê?”
“Porque têm medo de irritar o Partido Comunista Chinês, ora essa! Se
levantarem a grimpa, as suas dívidas descomunais serão subitamente
executadas e eles cam na lama. Portanto, calam-se. E obedecem ao novo
dono, claro. Ou seja, tornaram-se países vassalos. É esse precisamente o
primeiro verdadeiro objetivo da Nova Rota da Seda: criar países vassalos.
Tratam-se de países que caram de tal modo endividados ao Partido
Comunista Chinês que fazem tudo o que este lhes manda fazer. Mesmo que
não gostem, mesmo que seja contra os seus próprios interesses, mesmo que
isso arruíne ainda mais as suas pobres populações. É por isso que a Nova
Rota da Seda não é nenhum Plano Marshall. É um cavalo de Troia. O
embrulho é bonito, o conteúdo devastador.”
“Disse que a criação de países vassalos é o primeiro objetivo da Nova Rota
da Seda. Há um segundo?”
“ ‘Nongcun baowei chengshi’ ”, respondeu. “ ‘Usar o campo para cercar a
cidade.’ ”
Tomás remexeu-se no seu assento, desconfortável; não estava a gostar do
rumo da conversa.
“O que entende por ‘campo’ e por ‘cidade’?”
“O campo são os países pobres”, explicou Chang. “A cidade são os países
ricos. Primeiro, o Partido Comunista Chinês transforma os países
subdesenvolvidos em países vassalos. Depois usa esses países vassalos para
montar o cerco aos países desenvolvidos. ‘Nongcun baowei chengshi.’ Esta é a
estratégia.”
“Oh! Está a exagerar…”
“Quem me dera. Repare no que se passa nas Nações Unidas, por exemplo.
Sempre que o Partido enfrenta na ONU um voto que o põe em causa,
arregimenta os países vassalos, monta com eles um cerco aos países
desenvolvidos e… pimba, derrota o voto. As Nações Unidas têm quinze
agências especializadas. Sabe quantas são che adas por nós, os americanos,
os principais nanciadores da ONU? Uma. Pelos britânicos? Uma. Pelos
franceses? Uma. Pelos chineses?”
Fez uma pausa, à espera que o seu interlocutor respondesse.
“Duas?”
“Quatro. E quando não che am uma agência da ONU, pois daria
demasiado nas vistas che á-las a todas, os tipos do Partido Comunista
Chinês arregimentam os votos dos países vassalos e põem um país vassalo
da sua escolha a che á-la. Ou seja, nós é que nanciamos a ONU mas eles é
que a controlam.”
Tomás esboçou um esgar cético.
“É esse o segundo objetivo da Nova Rota da Seda? Controlar as Nações
Unidas?”
“Controlar a ONU não passa de um mero exemplo entre inúmeros que lhe
poderia dar durante horas e horas de conversa”, fez notar Chang. “O
verdadeiro objetivo do Partido Comunista Chinês é cercar gradualmente os
países mais ricos. ‘Nongcun baowei chengshi.’ Depois de África, da Ásia e da
América Latina, a Nova Rota da Seda chegou à Europa. E chegou por onde?
Consegue imaginar?”
A pergunta não era retórica, percebeu Tomás. Considerou a questão. Pela
maneira provocatória como a formulara, o americano deveria estar a referir-
se a um país que lhe era próximo. Ou, mais provavelmente, o seu.
“Portugal?”
“Entrou pelos países mais pobres da União Europeia”, con rmou Chang.
“Qual é o ‘campo’ da União Europeia? São os países do Sul e do Leste da
Europa. Como resultado, mais de metade dos países-membros da União
Europeia já aderiu à Nova Rota da Seda, essa maravilhosa ‘ponte para a paz’
que tantos países subdesenvolvidos arruinou e subjugou. Recorrendo a
empresas nominalmente privadas, o Partido Comunista Chinês comprou
empresas e infraestruturas na Grécia, em Portugal, em Espanha, em Malta,
na Hungria, na Bulgária, na República Checa, na Polónia… um verdadeiro
cerco do ‘campo’ à ‘cidade’. O Partido já controla o porto do Pireu na Grécia,
os portos de Bilbau e Valência em Espanha e tem na mira o porto de Sines
em Portugal… este a pedido do próprio primeiro-ministro português, por
incrível que pareça. Além disso, meteu já um pé na ‘cidade’. O Partido
Comunista Chinês entrou em três portos dos Países Baixos, incluindo o de
Roterdão, o maior da Europa, e conseguiu que a Itália aderisse à Nova Rota
da Seda, tornando-se assim o primeiro país do G7 a prestar vassalagem ao
Partido.”
O português encolheu os ombros.
“Está bem, os chineses estão a entrar na Europa”, concedeu. “E então? Não
têm direito?”
“O Partido Comunista Chinês tem todo o direito de colonizar quem
quiser, claro, mas os diversos países também têm o direito, e se calhar o
dever, de não se deixarem colonizar. A Nova Rota da Seda não é um projeto
inocente, como a propaganda faz crer com palavras maravilhosas destinadas
a mascarar a verdadeira natureza do projeto, mas um instrumento de
neocolonialismo. Um verdadeiro cavalo de Troia concebido para se in ltrar
e subjugar países. Aliás, um alto responsável em Pequim descaiu-se uma vez
num discurso e a rmou, alto e bom som, que a Nova Rota da Seda não
passa de um veículo para o Partido Comunista Chinês adquirir domínio
sobre os outros países. Quem não perceber isto, não entende nada do que se
está a passar. Como pensa que o Partido Comunista Chinês entrou nos
países que agora lhe prestam vassalagem? Entrou pé ante pé. De mansinho.
Com sorrisos, palmadinhas nas costas e palavras delicodoces. E agora…
agora manda neles e todos lhe obedecem.”
“Pois, mas isso não vai acontecer na Europa.”
“Acha que não? Então como explica que a Marinha grega já faça exercícios
militares no Mediterrâneo com a Marinha de Guerra do Partido Comunista
Chinês? Como explica que a Grécia e a Hungria tenham impedido a União
Europeia de assumir uma posição mais dura quando o Partido Comunista
Chinês construiu ilhas arti ciais no mar das Filipinas, violando assim
grosseiramente a integridade territorial desse país, o qual aliás se calou bem
caladinho porque já está todo endividado a Pequim? Como explica que a
Hungria tenha impedido a União Europeia de assinar uma carta a condenar
a tortura de advogados na China e que a Grécia tenha impedido a União
Europeia de emitir uma declaração a criticar as violações dos direitos
humanos na China? Isto mostra que a vassalagem já está em marcha e que
na Europa o campo começou a cercar a cidade.”
“São só a Grécia e a Hungria…”
“É o começo, mas infelizmente esses dois países não são os únicos. Olhe
para a Espanha, por exemplo. Em 2019, o Teatro Real de Espanha
programou espetáculos do grupo de dança Shen Yun, ligado ao movimento
de meditação Falun Gong, que o Partido Comunista Chinês persegue por
motivos exclusivamente religiosos, o que constitui uma violação dos direitos
humanos e uma absoluta ilegalidade no Ocidente. O Teatro Real de Espanha
vendeu novecentos bilhetes para o espetáculo, o que signi ca que havia
público interessado em ver essa apresentação, mas eis que de repente
cancelou o evento. O que aconteceu? ‘Di culdades técnicas’, alegaram os
responsáveis. O problema é que o embaixador chinês em Madrid foi
apanhado a gabar-se de que tinha sido ele a dar ordens ao teatro para
cancelar os espetáculos! Percebe o que aconteceu? O Teatro Real de Espanha
já obedece às ordens do Partido Comunista Chinês! E porquê? Poderemos
especular, claro. O facto é que o Teatro Real de Espanha está integrado na
Liga dos Teatros da Nova Rota da Seda, que presumivelmente lhe dará
dinheiro a ganhar.”
Tomás olhava incrédulo para o seu interlocutor.
“Isso aconteceu mesmo?”
“Acha que estou a inventar? Pois que a saber que o Teatro Real de
Espanha não foi o primeiro a prestar vassalagem ao Partido Comunista
Chinês. Os espetáculos do Shen Yun já tinham sido cancelados na Grécia e o
próprio Real Teatro da Dinamarca recusou esse grupo de dança após sofrer
pressões do Partido Comunista Chinês, via embaixada chinesa. Os agentes
da cultura europeia recusam a censura exercida pelos seus Estados e fazem
grandes discursos sobre a liberdade artística e mais não sei quê, mas eis que
esses bravos defensores da liberdade, que rasgam a camisa em prol dos
direitos humanos e andam com a boca tão cheia de valores humanistas,
aceitam a censura exercida no seu próprio país por um Estado ditatorial
estrangeiro! O que é isso se não vassalagem pura e dura? E olhe que lhe
estou apenas a expor a ponta do icebergue. Quando a Noruega entregou o
Prémio Nobel da Paz a um dissidente chinês, por exemplo, o Partido
Comunista Chinês mostrou os dentes e exigiu um pedido de desculpas. Sabe
o que fez a Noruega? Prometeu não voltar a apoiar ações que ponham em
causa os interesses da China! Ou seja, a Noruega pôs-se de joelhos! Estamos
a falar de um país que desa ou Hitler ao atribuir o Nobel da Paz de 1936 a
Carl von Ossietzky, que estava preso num campo de concentração nazi. Isto
quer dizer que a Noruega tem mais medo do Partido Comunista Chinês do
que do próprio Partido Nacional-Socialista alemão! O que nos diz isto sobre
a vassalagem europeia?”
O português abanou a cabeça, incrédulo e boquiaberto.
“Até a Noruega se submeteu?”
“O cavalo de Troia já foi trazido para bem dentro das muralhas da
Europa”, sublinhou Chang. “Se quiser posso também contar-lhe o que se está
a passar nas universidades europeias, que aceitam censurar textos cientí cos
por pressão do Partido Comunista Chinês e que até permanecem passivas
perante ações de bullying contra alunos e professores que de alguma forma
ponham em causa o Partido Comunista Chinês. A prestigiada Cambridge
University Press, por exemplo, aceitou censurar artigos críticos do Partido
Comunista Chinês, excluindo-os de um pacote de textos cientí cos
destinados a…”
“Chegámos.”
Apanhados de surpresa, os dois homens no banco traseiro do jipe
interromperam bruscamente a conversa e voltaram-se para o motorista que
acabara de lhes dar a notícia.
“Perdão?”
A viatura imobilizou-se na berma da estrada, um ponto alto com uma
magní ca vista sobre as águas azul-claras do Índico. Depois de puxar o
travão de mão, Chathura Fonseka apontou para uma enorme estrutura
portuária construída na linha de costa do Sul do Sri Lanka.
“Hambantota.”
Só Tomás não percebia o que estavam ali a fazer.
XVII

Ao contrário do que se passava no liceu, Li não dispunha de um gabinete


na secção de propaganda do Partido em Ürümqi. Isso signi cava que não
havia ali um lugar onde Madina pudesse falar discretamente com ele e
desmontar a infame mentira que Mei lhe contara. Li, casado? Que ridículo!
Mas, claro, tinha de se certi car.
“Camarada instrutor!”, chamou-o ainda no corredor. “Será que lhe posso
dar uma palavrinha?”
Reconhecendo-lhe a voz, Li parou e olhou para ela com alguma
apreensão; tinham combinado nunca falar um com o outro fora do gabinete
dele no liceu, pelo que aquela interpelação violava frontalmente esse
entendimento.
“Diga, camarada?”
“Precisava… precisava de falar consigo, camarada instrutor”, disse
Madina. “É sobre a matéria da aula.”
Havia muita gente em redor, pois haviam terminado em simultâneo várias
sessões de doutrinação que decorriam no edifício e os jovens militantes
enchiam nessa altura os corredores como um rio. Se havia lugar e momento
em que não existiam condições para falarem com um mínimo de
privacidade eram aqueles.
“Não pode esperar?”
“É urgente, camarada instrutor”, insistiu ela. “Vou ter um teste e precisava
de esclarecer alguns pontos sobre a estratégia do Partido para lidar com o
Ocidente capitalista e derrubá-lo da posição de ba. Não haverá por aí um
lugar onde possamos falar com tranquilidade? É mesmo urgente, camarada
instrutor.”
A insistência tornou claro a Li que se tratava de um assunto pessoal
inadiável, até porque aquilo do teste não passava de uma evidente patranha
para despistar ouvidos indiscretos. Olhou em redor, à procura de algum sítio
onde pudessem conversar.
“Bem, tenho de ir agora a uma reunião do Partido, ao fundo da rua”, disse.
“Pode acompanhar-me até lá e expor as suas dúvidas ao longo do caminho.
Mas terá de ser breve, como compreenderá.”
“Agradeço a sua generosidade, camarada instrutor.”
Saíram do edifício sem falarem um com o outro, na verdade quase como
se fossem estranhos, ele ligeiramente adiantado a indicar o caminho mas
também a ngir que caminhava sozinho. Quando se afastaram o su ciente
do edifício da secção de propaganda, e já a meio caminho da sede do
partido em Ürümqi, Li abrandou o passo para se deixar apanhar por ela.
“Tive imensas saudades tuas, minha papoila”, sussurrou quase sem mexer
os lábios. “Estava a ver que o m de semana nunca mais passava…”
“Também eu, também eu.”
“Mas não é prudente estarmos juntos”, lembrou Li. “Que coisa tão urgente
é essa que não podia esperar por amanhã? Aconteceu alguma coisa?”
Madina engoliu em seco. Desde que Mei lhe tinha dito aqueles disparates
todos sobre o namorado que pensara na melhor forma de abordar o assunto;
chegara até a decorar frases inteiras que, recorrendo a palavras escolhidas
com o maior tato, o confrontariam com a questão. Fá-lo-ia no tom de quem
expunha o absurdo da mentira da intriguista, como se reproduzisse o último
disparate que tinha ouvido num corredor. Só que a urgência que colocara na
conversa, apercebia-se, traía essa estratégia. Se não acreditava nas aleivosias
de Mei, por que razão pedira para falar urgentemente com ele, violando
assim uma das mais elementares regras de segurança do seu
relacionamento?
Talvez o melhor fosse dizer as coisas diretamente, sem ngimentos nem
subterfúgios.
“Uma camarada contou-me que és casado”, atirou de chofre com uma
frontalidade que até a ela própria surpreendeu. “Isso não é verdade, pois
não?”
Cravou os olhos nele, para lhe analisar a reação. O rosto de Li manteve-se
impassível, quase como se ela lhe tivesse perguntado se iria chover no dia
seguinte.
“Quem te disse isso?”
“A Mei, aquela intriguista que também frequenta as tuas ações de
doutrinação na secção de propaganda. Claro que não acreditei, pois é um
absurdo total e…”
“É verdade.”
Ela sentiu um baque no coração e parou no meio do passeio, chocada e
incrédula.
“É verdade!?”
O namorado respirou fundo.
“Tentei tantas vezes contar-te, tantas, tantas, mas… não tive coragem”,
murmurou. “Fui adiando, sempre a dizer a mim próprio que amanhã é que
seria, que amanhã te diria tudo, mas quando chegava a hora… não era
capaz. Não era. Era como se…”
Ele falou e falou, mas Madina já nem o escutava. O namorado era casado?
O seu Li? Como era possível uma coisa daquelas? Que burra que fora!
Burra, burra, burra! Ele levava-a para o gabinete, beijava-a, acariciava-a,
dizia-lhe coisas doces… e tinha mulher em casa. Se calhar lhos também.
“Como pudeste fazer-me uma coisa destas?”, cortou ela, elevando a voz.
“Como é possível que me tenhas enganado desta maneira?”
A irritação dela alarmou-o. Não podiam dar nas vistas, muito menos em
plena rua. Mas ele tinha igualmente consciência de que não podia esperar
que Madina encaixasse uma notícia daquelas sem se indignar, sem fazer
uma cena. Olhou em volta. Precisava de uma solução rápida. Viu uma ruela
abrir-se à esquerda e meteu por ela; não era o ideal, mas ao menos estariam
ali mais abrigados dos olhares indiscretos.
“Tudo o que te disse foi sincero”, assegurou-lhe ele. “Tudo. Mas o facto é
que sou casado e isso não é uma coisa que se resolva do pé para a mão.
Passei muitas noites sem dormir, acredita que passei, a pensar como dar a
volta a isto. Como tu ainda és jovem e não podemos assumir nada, pareceu-
me que teria de dar tempo ao tempo. A solução para esta trapalhada irá
surgir, tenho a certeza.”
“Tens lhos?”
“Não. Claro que não.”
“Então se gostas mesmo de mim, o que te impede de a largares?”
Ele mordeu o lábio inferior.
“Não é assim tão simples.”
“Claro que é. Ou gostas dela, e nesse caso cas com ela, ou gostas de mim,
e nesse caso cas comigo. Não podes é ter as duas ao mesmo tempo. Se nem
entre nós, os uigures, existem já haréns, porque haverás tu de ter o teu
harém privado?”
Li abanou a cabeça.
“Não, minha papoila, não é assim tão simples”, repetiu. “Não quando
estamos a falar de uma pessoa como a minha mulher.”
“Ora essa! Porquê?”
O namorado engoliu em seco.
“Porque… porque ela é a única lha do adjunto do secretário-geral do
Partido em Ürümqi.”
A revelação quase fez Madina recuar. Agora sim, compreendia a situação.
O namorado estava ligado por casamento às cúpulas do Partido, o que aliás
explicava a sua ascensão meteórica. Não lhe seria fácil desatar um nó
daqueles. Muito menos para fugir com uma uigure, por mais bonita que ela
fosse. Uma coisa dessas fecharia a Li todas as portas.
Respirou fundo, derrotada.
“Já percebi.”
Virou costas e começou a afastar-se, todos os sonhos e ilusões desfeitos
num punhado de minutos. O amor podia muito, mas a verdade, a profunda
verdade, é que não era nada diante do imenso poder do Partido.
“Espera!”
Madina continuou a andar, levantando a mão numa vaga despedida.
“Deixa-me.”
Ouviu passos rápidos atrás dela; era evidentemente o namorado que corria
para a alcançar. Sentiu as mãos de Li agarrarem-lhe nos ombros e virarem-
na para a forçarem a encará-lo. Viu-o de olhos molhados, uma lágrima a
deslizar-lhe pela face quando solenemente lhe fez a promessa.
“Vou divorciar-me dela.”
XVIII

Depois de fazer discretamente alguns telefonemas em cingalês, Diyon de


Silva deu a Chathura Fonseka instruções e o jipe pôs-se em marcha,
descendo a colina em direção ao porto de Hambantota. Sentado com
Charlie Chang no banco traseiro, Tomás Noronha sentia-se intrigado e
seguiu toda a manobra em silêncio. Orientando-se por GPS, o motorista
virou antes da entrada principal do porto e conduziu o todo-o-terreno por
um caminho de terra batida ao longo do perímetro exterior das instalações
portuárias até chegarem a um portão ferrugento, evidentemente uma
passagem de serviço menos usada.
Um cingalês estava plantado por detrás do portão, como se os aguardasse.
O jipe imobilizou-se e De Silva saiu, encaminhando-se para o homem no
portão.
Tomás não conteve a curiosidade.
“Quem é aquele?”
“Kosala Pereira”, respondeu Fonseka. “O delegado sindical dos
trabalhadores portuários.”
Os tripulantes do jipe viram De Silva conversar durante alguns minutos
com o tal Pereira. Os dois pareceram entender-se e dirigiram-se juntos para
a viatura. Chang desceu o vidro para ouvir o que tinham a dizer. Ao ver o
rosto chinês do operacional da CIA, o delegado sindical hesitou e atirou um
olhar inquieto aos seus dois compatriotas.
“É dos nossos”, tentou tranquilizá-lo De Silva. “Podes con ar.”
Apesar da garantia, Pereira parecia pouco à vontade ao pé de Chang.
“Eles aumentaram na noite passada a segurança do porto e, sem darem
explicações, vedaram aos trabalhadores cingaleses o acesso ao pontão
quatro”, relatou. “Trata-se de um comportamento estranho e indicia que
alguma coisa de pouco habitual vai acontecer.”
“Existe algum sítio onde nos possamos esconder?”, quis saber Chang.
“Precisamos de um local próximo desse pontão.”
O delegado sindical pestanejou, nervoso, e limpou o suor da testa com as
costas da mão.
“Vai ser complicado…”
O homem da CIA meteu a mão ao bolso e extraiu um maço de dólares,
que estendeu ao seu interlocutor.
“Mas não impossível, estou certo.”
Os olhos de Pereira desceram para o dinheiro. Depois de lançar um olhar
fugaz a De Silva, como se lhe perguntasse se podia mesmo aceitar aquela
“prenda”, num gesto rápido pegou nas notas e guardou-as no bolso das
calças.
“Venham comigo.”
Regressando ao portão ferrugento, o delegado sindical abriu-o e deixou o
jipe passar. Havia um pequeno armazém mesmo ao pé. Subiu o portão do
armazém e fez a Fonseka sinal de que estacionasse ali o todo-o-terreno. Uma
vez no interior, os tripulantes apearam-se e De Silva abriu a bagageira. Em
vez de tirar as malas dos viajantes, porém, extraiu três enormes sacos pretos
que pousou no chão. Chang ajoelhou-se diante deles e correu um fecho-
éclair para veri car o conteúdo. Tomás inclinou-se e, alarmado, viu
espingardas automáticas.
“O que vão vocês fazer?”
Chang olhou para ele.
“O que vamos nós fazer, quer você perguntar”, corrigiu-o. “Não se esqueça
de que foi você que exigiu fazer parte desta operação. Não se vai pôr ao
fresco agora que as coisas começam a car sérias, pois não?”
“Não, claro que não. Mas… en m, gostaria que me explicassem o que se
passa.”
“O plano é resgatar Dragão Vermelho… e a sua mulher. Lembra-se?”
O operacional da CIA voltou a correr o fecho-éclair, desta feita para o
fechar, e fez sinal aos seus homens de que estava tudo bem. Os dois
cingaleses pegaram nos sacos e deram uma ordem ao delegado sindical, que
parecia assustado perante as armas, mas obedeceu. Pereira pegou num
chapéu muito largo e entregou-o a Tomás.
“Ponha-o na cabeça de modo a tapar o mais possível a cara”, ordenou.
Apontou para o português e para os dois cingaleses da CIA. “Vocês são
agora trabalhadores do porto. Carreguem os sacos como se se tratasse de
mercadoria.” Voltou-se para Chang. “O senhor é um capataz chinês.
Comporte-se como tal.”
Depois de Tomás, De Silva e Fonseka desalinharem as roupas,
desabotoando as camisas e arregaçando as mangas para perderem o aprumo
e carem com um certo ar de trabalhadores portuários a meio do labor.
Cada um deles pegou no seu saco preto e Pereira conduziu-os à porta de
saída, levando-os para o exterior.
Caminharam assim ao longo da plataforma do porto de Hambantota, o
delegado sindical à frente com o “capataz” chinês, os três “trabalhadores”
atrás a carregarem os sacos. Tomás esforçava-se por tapar com o seu saco a
parte do rosto que o chapéu não ocultava, de modo a assegurar-se de que
quem o visse pensasse que era tão cingalês quanto os outros.
Mais à frente viram chineses à paisana a vigiar o pontão quatro, o tal que
havia sido subitamente isolado.
Chang cou preocupado.
“É melhor evitarmos os tipos…”
Não era preciso dizê-lo. Pereira etiu ligeiramente para a direita
e encaminhou o grupo para um hangar em frente, assim se afastando dos
homens plantados no pontão.
Uma vez no interior do hangar, um enorme espaço apinhado de
contentores com caracteres chineses, o delegado sindical conduziu o grupo
da CIA para uma escada metálica pregada à parede lateral. Chegados ao
primeiro piso, levou-os para um compartimento na dianteira do edifício,
com uma pequena janela retangular aberta para o exterior.
“Este é o gabinete do responsável do hangar”, explicou Pereira. “Podem
car descansados, eu mesmo me encarregarei de assegurar que ele não virá
cá ao longo de todo o dia.” Desviou os olhos para os sacos pretos que Tomás
e os cingaleses da CIA pousaram entretanto no chão. “Quanto ao que vocês
vão fazer aqui… não quero saber. Não sei quem vocês são, nunca vos vi, não
tenho a menor ideia do que se passa.”
Sem dizer mais nada, abandonou o compartimento em passo lesto. Uma
vez sós, Chang e os dois cingaleses abriram os sacos e retiraram as armas
automáticas. Fonseka e De Silva caram com duas AK-47 Kalashnikov
enquanto Chang armou a objetiva da sua espingarda de tiro de precisão,
uma Barrett M82 com tripé e silenciador na ponta do cano, e veri cou as
munições. Quando se deu por satisfeito, voltou-se para Tomás.
“Quer uma arma?”
“Se vai haver baile, convinha dar-me sapatos para dançar, não lhe parece?”
O operacional da CIA meteu a mão no saco de onde retirara a sua
espingarda.
“Sabe disparar?”
“Ouvi dizer que basta carregar no gatilho…”
Chang retirou do saco uma pistola preta, que entregou ao português;
tratava-se de uma Beretta M92FS. Depois de a analisar com cuidado
e perceber o seu funcionamento, Tomás juntou-se aos três homens da CIA
que estavam à janela a avaliar o exterior.
O pontão quatro situava-se mesmo à frente deles, com os funcionários
chineses que o isolavam à conversa, aparentemente despreocupados. Depois
de perscrutarem todo o espaço em redor e de analisarem a situação tática,
projetando os vários cenários que poderiam ocorrer naquele local e
planeando soluções, Chang deu ordens a De Silva para se pôr à porta do
gabinete e vigiar a retaguarda. Não queria surpresas desse lado. Os restantes
sentaram-se à janela, os olhos postos no pontão quatro, e aguardaram pela
evolução dos acontecimentos enquanto acariciavam as armas em silêncio.
Alguma coisa ia acontecer. Faltava saber o quê e quando.
XIX

As promessas de Li eram sucessivas, ainda que incumpridas e


prontamente intercaladas por consecutivas declarações de arrependimento e
múltiplas auto agelações verbais em tom de comiseração. Esse dia, no
gabinete dele no liceu após a última aula do ano letivo, não constituiu
exceção.
“Não consegui, não consegui”, murmurou, de cabeça baixa, claramente
desesperado. Fitou-a com intensidade. “Sabes, o momento não foi oportuno.
O pai dela tinha ligado a convidar-nos para um jantar com membros do
Partido no restaurante Astana e isso complicou as coisas. Não podia dizer-
lhe: desculpe, não posso ir ao jantar porque preciso agora de comunicar à
sua lha que me vou divorciar dela. Não dava muito jeito, não é?”
Madina cou um longo momento a olhar para ele. Era talvez a sétima ou
oitava vez que ouvia uma desculpa daquelas. Ou era por causa de uma
reunião imprevista, ou de uma viagem em cima da hora, ou de uma visita
inesperada, ou de uma conferência especial… havia sempre um bom motivo
para adiar o momento da rotura com a mulher. Talvez ele estivesse a falar
verdade, talvez estivesse a tergiversar, com toda a probabilidade era
simplesmente conversa. Em bom rigor, nada disso interessava. O facto é que
não fora ainda dessa vez que acontecera e suspeitava já que nunca
aconteceria. Estava a sentir-se cansada de tudo aquilo.
Levantou-se.
“Pronto, já percebi.”
“Mas vai ser este m de semana”, garantiu ele. “No domingo, sem falta,
falarei com ela. Juro. Podes ter a certeza, minha papoila. Não passa deste
domingo, ouviste? Vou falar com ela e… e…”
A cada fracasso sucediam-se juras de que na vez seguinte é que seria, na
vez seguinte faria mesmo a tão prometida rotura e tudo en m se resolveria.
Mas se até ali nunca cumprira uma única promessa, porque acreditaria ela
que da próxima vez iria cumprir?
Abriu a porta do gabinete e saiu para o corredor.
“Adeus, Li.”
“Espera!”, chamou-a ele, correndo até à porta para a chamar. “Desta vez
vou mesmo falar com ela. A coisa não passa de domingo, prometo. Ouviste?
Desta feita é que é. Espera, por favor. Vou mesmo falar com ela e pôr tudo
em pratos limpos.”
Mas Madina ignorou-o e seguiu o seu caminho. Ia magoada e ao mesmo
tempo estranhamente aliviada. Precisava de respirar. Precisava de sair dali.
Precisava de algo novo na sua vida. Isso signi cava mudar. Mudar a cabeça,
mudar o corpo, mudar de vida. Uma nova pessoa. Um novo sítio. Um novo
começo.
Saiu do liceu e apanhou o primeiro autocarro que apareceu na paragem.
Entrou, sentou-se à janela e deixou-se levar ao acaso, cando a observar os
passeios, as casas, as lojas e os prédios de Ürümqi, os olhos presos à
paisagem que des lava lá fora, a cabeça num turbilhão, xa na mesma ideia.
Um novo começo, um novo começo, um novo começo. Que melhor
momento haveria para o fazer do que aquele, o dia em que rompera com Li,
o dia em que terminara o liceu?
Apercebeu-se de que passava pelo mercado Erdaoqiao e, dando um salto
no seu lugar, abriu caminho pelo interior do autocarro até à porta e
desaguou no passeio. Entrou no mercado e cirandou pelo espaço, à procura
de ideias. Nada viu de melhor que um cabeleireiro. Entrou e pediu um corte
igual ao da fotogra a de uma modelo com um penteado moderno, à
ocidental.
Duas horas depois, saiu do cabeleireiro sentindo-se nova. Era incrível
como uma simples mudança de penteado podia fazer com que uma pessoa
se achasse diferente. Seria aquilo o tal novo começo que lhe enchia a cabeça
desde que abandonara o gabinete de Li? Se nada mais podia mudar se não
aquilo, pelo menos alguma coisa mudara. Mudara o penteado, mas era como
se algo nela tivesse mudado também. Talvez não passasse de uma mera
impressão, mas sentia que mudara.
Ao passar por uma loja de eletrónica, a sua atenção foi atraída por um
pequeno objeto exibido na montra cheio de teclas com números e letras. Um
telemóvel. Lembrava-se de ter visto o primeiro daqueles aparelhos quando
ainda vivia na sua aldeia, antes de chegar a Ürümqi. Vira-o na mão do chefe
da brigada de trabalho da aldeia, que não só o usava para falar e ouvir como
também para enviar e receber mensagens. Na altura seguira o chefe da
brigada de trabalho de um lado para o outro enquanto ele procurava captar
sinal, fascinada por alguém ser capaz de falar para uma máquina e de haver
uma voz que respondia no interior da mesma máquina. Pouco tempo
depois, o senhor Hong da mercearia também apareceu com um telemóvel e
mais uns meses e já havia aldeãos uigures com o mesmo aparelho. Esses
felizardos começaram até a cobrar por emprestar o telemóvel aos outros; dez
fen por minuto, cinquenta fen por cinco minutos.
Entrou na loja. Se muitos dos seus colegas do liceu já tinham telemóvel,
porque não teria ela o seu? Em apenas dez minutos escolheu um aparelho, o
comerciante ensinou-a a usá-lo e a carregá-lo e ela pagou. Ao sair à rua,
reparou que muita gente, incluindo os membros das etnias minoritárias que
eram a maioria na região, tinha já o seu telemóvel. Tratava-se da prova de
que realmente o progresso estava a chegar a Ürümqi e a mudar a vida do seu
povo, os uigures.
O que não imaginava é que os telemóveis seriam a perdição de todos.
XX

Ao m de uma hora ali sentado a observar os homens que selavam o


acesso ao pontão quatro do porto de Hambantota, Tomás Noronha começou
a sentir-se enfadado. O cúmulo era que ainda ninguém lhe havia explicado
nada do que se estava a passar. As coisas não podiam continuar assim.
Voltou-se para Chang.
“Como sabe que elas vão ser trazidas para aqui?”
O americano despertou dos seus pensamentos.
“Não ouviu o delegado sindical? Os chineses apertaram de repente as
regras de segurança do porto e selaram o acesso ao pont…”
“Este porto”, cortou o português, especi cando a sua dúvida. “Como sabe
que elas vão ser trazidas para este porto?”
“Ora! Simples dedução.”
Tomás cou especado a olhar para o operacional da CIA, sem
compreender o raciocínio.
“Desculpe, mas dedução a partir de quê exatamente?”
“O senhor não disse que eles iam retirá-las da Índia através do Sri Lanka?
Então só as podem trazer para aqui, como é evidente.”
Talvez fosse evidente para Chang, mas não o era para o historiador, a
quem continuava a escapar a lógica do raciocínio.
“Ora essa!”, exclamou. “O mais provável seria tirá-las por Colombo, não
lhe parece? Também o podiam fazer pela região tâmil, lá no Norte. Por
Trincomalee, por exemplo. Ou por qualquer outro lugar do Sri Lanka.
Porquê aqui? O que tem isto de especial?”
Chang olhou para ele com espanto; pelo semblante tornava-se claro que só
nesse instante tomou consciência de que o seu acompanhante estava
totalmente às escuras quanto ao raciocínio que ali os conduzira.
“Não me diga que nunca ouviu falar em Hambantota…”
“Não tive esse prazer.”
O americano ajeitou-se na cadeira; o tédio da espera contemplativa
acabara.
“Há uns anos, o Partido Comunista Chinês chegou a Colombo e, no
âmbito da Nova Rota da Seda, depositou um cheque de 1,3 mil milhões de
dólares nos cofres do governo do Sri Lanka para que fosse cumprido um
velho projeto do país, a construção de um porto na zona de águas profundas
de Hambantota. Que maravilha! Que generosidade! Que ato tão altruísta e
solidário!”
À luz do que já tinha ouvido sobre a verdadeira natureza da Nova Rota da
Seda, não era difícil a Tomás deduzir o que acontecera a seguir.
“O problema foi quando a fatura foi apresentada.”
“Ora está a ver como já entendeu como a Nova Rota da Seda funciona?”,
sorriu Chang, a voz carregada de ironia. “Convém esclarecer que se
descobriu mais tarde que o primeiro-ministro do Sri Lanka recebeu
enormes quantidades de dinheiro para a sua campanha eleitoral, valores
oriundos, em última instância, do Partido Comunista Chinês.”
“Ah, pois.”
“Depois de o governo do Sri Lanka dar luz verde ao projeto, a obra foi por
artes mágicas parar a uma empresa do Partido. A construção avançou.
Quando por m chegou o momento de começar a pagar a dívida
monstruosa que havia contraído tão irresponsável e dolosamente, o Sri
Lanka percebeu que pura e simplesmente não dispunha de um valor tão
elevado nos cofres públicos. O país tinha tombado na emboscada da dívida.
O serviço anual da dívida do Sri Lanka tornara-se tão grande que equivalia a
quase todo o dinheiro coletado anualmente pelo Estado. Caindo em si, o
governo do Sri Lanka tentou desesperadamente renegociar os termos da
dívida, mas os tipos do Partido Comunista Chinês, que até ali tinham sido
tão simpáticos e prestáveis, era tudo facilidades e o dinheiro jorrava como
água milagrosa, de repente cerraram o rosto e não cederam. O empréstimo
‘maravilhoso’ era para pagar nas condições que estavam acordadas.” Ergueu
um dedo, como se zesse uma ressalva. “Mas, atenção, os tipos do Partido
eram a nal mesmo bondosos e solidários porque, do alto da sua enorme
generosidade, propuseram ao Sri Lanka uma alternativa magnânima: a
cedência à China do porto e do território circundante.”
Tomás abriu e fechou a boca, como um peixe, sem acreditar no que
acabara de ouvir.
“Está a brincar…”
“Foi tudo um truque, meu caro. O Partido Comunista Chinês tinha
montado uma armadilha para se apossar do porto e de um pedaço de
território no Sri Lanka, pequeno mas estratégico. Encostado à parede e sem
alternativas, o governo de Colombo acabou por capitular e cedeu à China o
porto de Hambantota e as terras circundantes por noventa e nove anos.”
O historiador indicou a plataforma e os pontões para lá da janela.
“Quer dizer que… que isto tudo é agora da China?”
“Tudinho”, foi a resposta pronta. “Escusado será dizer que o Sri Lanka se
tornou mais um país vassalo do Partido Comunista Chinês. A população
cou em estado de choque, como deve calcular. Os monges budistas
juntaram-se aos trabalhadores portuários e saíram às ruas em protesto,
dizendo que estavam a ser colonizados pelo Partido Comunista Chinês.
Seguiram-se manifestações, sucederam-se confrontos, houve mortos,
feridos, pessoas presas… o diabo a quatro.”
“Foi por isso que o Pereira nos ajudou”, acrescentou Fonseka, que seguia a
conversa com muito interesse. “O Sindicato dos Trabalhadores Portuários
cou revoltadíssimo. E a população também. Essa é aliás uma das razões
pelas quais eu e o De Silva estamos igualmente aqui a ajudar-vos.”
“Os protestos de nada valeram, no entanto. Feitas as contas, no nal o
Partido Comunista Chinês cou mesmo com o porto e os terrenos
circundantes. E isto numa zona estratégica por onde se calcula virá a passar
quase trinta por cento do futuro comércio marítimo da Índia. Ou seja, ao
tomar o porto de Hambantota, o Partido meteu a mão no pescoço da
economia indiana. Além de que o Sri Lanka acabou mesmo por declarar
bancarrota. Tudo graças à Nova Rota da Seda, esse projeto que o secretário-
geral da ONU, ele mesmo, descreveu como sendo ‘um pilar da cooperação
internacional e do multiculturalismo’ .”
“Caramba!”
“Esta estratégia do Partido Comunista Chinês é global”, acrescentou
Chang. “O Partido investiu uma fortuna num porto na Malásia perto do
estreito de Malaca, um projeto que o Banco Mundial considerou
completamente redundante em função da existência na região de outros
portos semelhantes que ainda se encontram abaixo das suas capacidades. O
mesmo se passa com o igualmente de citário porto de Gwadar, que o
Paquistão acabou por entregar ao Partido Comunista Chinês durante
quarenta anos para se livrar do serviço da dívida, e o mesmo deverá vir a
acontecer com o porto de Bagamoyo, que a Tanzânia, também apanhada
pela emboscada da dívida montada pela Nova Rota da Seda, deverá entregar
ao Partido. O Partido Comunista Chinês negociou ainda o aluguer de
instalações navais no Camboja e assinou com as Ilhas Salomão um acordo
de segurança que abre o caminho à instalação no arquipélago de uma base
militar e naval.”
O rosto de Tomás contraiu-se num esgar de incompreensão.
“Mas para que quer a China esses portos todos? Os cargueiros chineses
não podem usar os portos normais?”
“Essa é que é a questão!”, exclamou Chang. “O Partido Comunista Chinês
não precisa de portos seus para escoar os seus produtos. Além do mais,
todos estes portos dão e darão prejuízo. Logo, esta não pode ser uma mera
estratégia comercial. Se não é uma estratégia comercial, então é o quê?”
“É militar.”
“Claro! Embora estes portos possam ser usados por navios mercantes, e
são-no, o seu verdadeiro objetivo é um dia receberem unidades que, dada a
sua natureza secreta, precisam de facto de portos exclusivos. Estou a falar da
Marinha de Guerra do Partido Comunista Chinês. É de novo o princípio de
‘usar o campo para cercar a cidade’. Eles usaram a fragilidade do Sri Lanka,
isto é, o seu desejo de construir um porto de águas profundas em
Hambantota, e cercaram a cidade, ou seja, usaram a dívida contraída pelo
Sri Lanka para se apossarem do porto e de território do Sri Lanka. Tudo isto
obedece a uma estratégia política e militar, ainda que disfarçada por uma
retórica de paz, amor e fraternidade. A Nova Rota da Seda não é uma ação
internacional de solidariedade, embora seja sob essa capa que se apresenta
para enganar os tolos e incautos, mas um projeto bem diferente. E sinistro.”
Um súbito burburinho no exterior atraiu a atenção de todos. Um jipe
passou em velocidade pela plataforma, ouviam-se ordens a ser dadas e os
homens que isolavam o pontão quatro agitaram-se. Alguma coisa ia
acontecer a qualquer momento e Tomás, agarrando a sua Beretta, sentiu o
coração bater-lhe no peito com ferocidade.
A espera tinha terminado.
XXI

A Universidade de Xinjiang era a maior instituição académica de Ürümqi


e Madina tirou aí engenharia. Não que a matéria a encantasse, mas tratava-
se do curso da moda numa região onde a construção avançava a todo o
vapor e a terra guardava muitos minérios preciosos. Escolheu por isso a
engenharia petrolífera como especialidade do curso, o que lhe assegurava
empregabilidade naquela região assente em lagos de petróleo. Abandonou o
apartamento dos familiares, onde vivia desde que chegara da província, e
instalou-se no Campus Sul da universidade.
Durante todo o tempo que durou o curso manteve um contacto
relativamente super cial com Li, exclusivamente no quadro da atividade do
Partido. O antigo namorado zera várias tentativas de reatar a relação, mas
tal estava absolutamente fora de questão enquanto ele fosse casado. As
sucessivas rejeições não impediram que Li assumisse perante a ex-namorada
uma postura protetora que não lhe desagradava inteiramente.
Na universidade, Madina dava-se sobretudo com estudantes uigures e
cazaques. A sua maior amiga era uma rapariga uigure chamada Reyhan,
com quem estudava amiúde. Reyhan adorava literatura e lia uma grande
variedade de autores, o que alimentava conversas apaixonantes entre ambas.
“Havias de gostar deste conto”, disse-lhe uma vez Reyhan, estendendo-lhe
uma revista. “Ora lê.”
Tratava-se da revista literária de Kashgar e o conto intitulava-se “Yawa
Kepter”, ou “Pombo Selvagem”, de um tal Nurmemet Yasin. A história,
narrada na primeira pessoa do singular, era simples e estranhamente
poderosa. Um jovem pombo, príncipe dos pombos, havia um dia sido
capturado pelos humanos. Colocado perante a perspetiva de passar o resto
da vida enclausurado numa gaiola, o príncipe pombo escolhera a morte e
suicidara-se.
“Que história tão… tão…”
“Forte?”
“Triste. Isto é deprimente.”
“É uma história sobre a liberdade”, observou Reyhan. “Já reparaste como
os pássaros são tão livres?”
Madina nunca reparara. Não pensou mais nisso, no entanto, pois havia
tanta coisa a acontecer na universidade. Por vezes, as duas juntavam-se a
outros grupos de estudantes e passavam tardes inteiras nos cafés
cibernéticos de Ürümqi. Foi aí que Madina tomou conhecimento da
existência de uma coisa chamada “redes sociais”. Em salas repletas de jovens
estudantes e no meio de densas nuvens de tabaco, a rapariga desenvolveu a
sua presença online na plataforma QQ, uma imitação chinesa do Facebook e
do MySpace, a que acedia num monitor alinhado com dezenas de outros
desktops. Todos os colegas colocavam aí as suas fotogra as e comentários, e
ela e Reyhan não foram exceções. Os uigures apreciavam sobretudo os jogos
de computadores e os chatrooms, e nessa plataforma também tinham acesso
a informação que habitualmente não lhes estava disponível, podendo assim
ver o que realmente se passava no mundo exterior.
Tudo aquilo era excitante e imensamente comentado entre os estudantes.
Era como se tivessem deixado de estar encerrados na China e se tivessem
tornado cidadãos do mundo. Mereceu especial aprovação entre os jovens
internautas do grupo um vídeo do presidente Clinton a dizer que a Internet
representava o triunfo da liberdade no mundo e que as tentativas chinesas
de a controlar, através do Projeto Escudo Dourado lançado em 2003 na
China, eram tão inúteis “como tentar pregar gelatina à parede”. Riram-se
imenso naquele café cibernético em Ürümqi. Gelatina na parede! Bem
tirada! Com essa é que o Lingxiu não contava!
A nova realidade trazida pela Internet tornou-se especialmente notada na
altura de um grande terramoto em Sichuan que matou cerca de setenta mil
pessoas, incluindo milhares de crianças soterradas por baixo de escolas mal
construídas. As redes sociais chinesas encheram-se então de críticas duras
ao Partido, com os internautas a denunciarem a corrupção generalizada que
grassava entre as autoridades em tudo o que dizia respeito a obras públicas,
pois tornava-se claro que muitas escolas e outros edifícios públicos haviam
sido construídos com materiais de terceira categoria. Quem se abotoara com
o dinheiro? Os mandachuvas do Partido, claro. Em resposta, a televisão
encheu-se de imediato de reportagens a louvar o heroísmo dos bombeiros e
das autoridades que se sacri caram pelo Partido para salvar pessoas, e os
pais das crianças foram silenciados. Tentou transformar-se a tragédia e a
corrupção no Partido num dia de celebração da unidade nacional e de glória
ao Partido, sempre tão bondoso e preocupado com a população, uma
evidente tentativa de fazer o spin, isto é, aldrabar a população. “Sintam a
bondade do Partido, sigam o Partido, garantam a estabilidade.” A palavra de
ordem encontrava-se estampada por toda a parte. Mas o dano estava feito.
“Quero ver como o nosso amado Lingxiu vai descalçar esta bota”,
comentou com sarcasmo uma colega uigure. “O poder da Internet assenta
no anonimato das mensagens, no seu carácter viral e na impunidade. O
querido Chefe deve andar em brasa…”
Essa colega foi no dia seguinte convidada a “ir tomar chá à esquadra”,
eufemismo para dizer que estava detida para interrogatório, o que serviu de
aviso a Madina. Sendo militante do Partido, percebeu que não podia andar
envolvida com quem fazia comentários críticos ao Lingxiu em público.
Começou por isso a afastar-se daquele grupo, e sobretudo desse tipo de
fóruns na Internet. Se fosse apanhada a frequentá-los, sabia, poderia ser
expulsa do Partido, ser convidada a “ir tomar chá à esquadra” e até sofrer
consequências ainda mais gravosas. Como no entanto o anonimato dos
internautas estava assegurado, ela e a sua amiga Reyhan sobreviveram
incólumes ao episódio. Pelos vistos, a Internet era mesmo segura e garantia a
impunidade dos seus frequentadores críticos para com o regime. Ao menos
isso.
Fosse pelo seu mérito intrínseco ou pela in uência da asa protetora de Li,
sempre discretamente presente, a verdade é que, ao concluir o curso de
engenharia, Madina foi convocada para uma reunião com uma responsável
do secretariado do Partido. À sua espera estava uma proposta tentadora.
“Precisamos de um quadro para a célula do Partido numa empresa
petrolífera que faz extração aqui perto”, anunciou ela. “Vamos indicar o teu
nome.”
A bem dizer, não se tratava exatamente de uma proposta, embora fosse
assim apresentada para efeitos de cortesia, mas de uma ordem. Qual o
militante que declinaria uma indicação do Partido para servir a pátria, fosse
onde fosse e a fazer o que quer que fosse?
Viu-se assim colocada na célula do Partido de uma petrolífera
nominalmente privada, mas que o Partido controlava, como de resto
controlava todas as empresas privadas do país, e enviada para Karamay.
Tratava-se da cidade a oeste de Ürümqi que devia o seu nome à palavra óleo
negro em uigure, uma óbvia referência ao produto que jorrava do seu
subsolo em grandes quantidades e que fazia a riqueza de Xinjiang. Como
não queria ir sozinha para a nova cidade, moveu in uências nos órgãos
locais do Partido e conseguiu que uma escola de Karamay contratasse
Reyhan, a sua amiga da faculdade cujo marido era da região.
Karamay revelou-se bem diferente de Ürümqi. Fora erguida numa zona
árida, na verdade um deserto. Os edifícios eram de construção recente e
moderna, e não havia aí a riqueza cultural que se podia encontrar na capital
ou em Kashgar, a grande cidade do Sul que Madina visitara em criança. A
jovem engenheira instalou-se num pequeno apartamento da periferia que a
atraiu sobretudo pelo bom gosto dos acabamentos, em geral um problema
na China. As paredes estavam pintadas de um azul-claro que nela tinha um
efeito sedativo, como se estivesse no céu. A única coisa que trouxera consigo
de Ürümqi fora Aynurita, que guardou no armário. Por alguma estranha
razão continuava afeiçoada à velha boneca de trapos que o avô Qeyser lhe
zera na infância com tecidos tradicionais cazaques. Talvez porque a ligava
ao passado da sua aldeia à beira do rio Tekes, sem dúvida porque a projetava
para o futuro do lho que um dia iria ter.
Comprou uma scooter para as suas deslocações; era uma motorizada
barata e prática. Como chegou à cidade em pleno inverno, enfrentando nas
ruas e avenidas um vento glacial dolorosamente cortante com temperaturas
a tocarem os trinta graus negativos, a jovem passou os primeiros tempos
fechada em interiores. Ou recolhia-se em casa ou passava o dia a veri car
documentos na sede da petrolífera ou a inspecionar a disciplina partidária
na re naria. Com aquele tempo, na rua é que não podia andar.
O salário não era mau. Quando chegou à altura do Ano Novo Chinês,
contudo, Madina apercebeu-se de que os hong bao, os envelopes vermelhos
que tradicionalmente eram distribuídos com dinheiro para os funcionários,
eram mais generosos para os três han do que para os dois uigures da célula
do Partido. O episódio perturbou-a, até porque coincidia com múltiplos
incidentes do género com que havia sido confrontada ao longo da sua vida e
que até ali sempre desvalorizara, encarando-os até como naturais em virtude
das experiências que vivera na sua aldeia natal.
O problema é que, agora que entrara no mercado de trabalho, os pequenos
incidentes discriminatórios começaram a ser cada vez mais irritantes.
Muitas ofertas de emprego nos jornais tornavam claro que os empregadores
apenas estavam interessados em contratar han. Começou também a ouvir os
funcionários uigures e cazaques da petrolífera queixarem-se de não
conseguirem promoções, sendo ultrapassados por colegas han menos
quali cados.
Ao m de um ano nas suas funções, e apesar de se esforçar mais do que
qualquer outro na sua célula, a verdade é que também Madina se viu
ultrapassada por um colega han que nem sequer o curso de engenharia
tirara. A descoberta seguinte foi que os colegas han da sua categoria tinham
sido colocados em apartamentos no centro da cidade. Por que raio a
atiraram a ela para a periferia? Seria por ser uigure? E, já agora, porque
haviam feito o mesmo a todos os funcionários uigures e cazaques?
A insatisfação das minorias étnicas, que durante anos permanecera
latente, tornou-se notória. Tratava-se evidentemente do resultado do acesso
dos uigures e dos cazaques à informação que estava disponibilizada na
Internet e que lhes permitia compreender melhor as ideias liberais em vigor
no Ocidente e comparar com a sua realidade. A questão da discriminação
começou a ser de tal modo obsessiva que passou a contaminar todas as
conversas, sobretudo depois de se descobrir que, dos 840 empregos na
função pública abertos pelo Corpo de Construção e Produção em Xinjiang,
apenas 38 foram ocupados por pessoas das minorias étnicas. As restantes
802 vagas foram para os han. Além disso, na parte nal de muitos anúncios
publicados nos jornais a pedir pessoas para trabalhar aparecia mesmo a
frase “os uigures não precisam de se candidatar”. Ou seja, os han não os
queriam contratar. Os uigures eram tratados na sua própria terra como
cidadãos de segunda classe.
Nos almoços, jantares e outros eventos sociais quase não se falava de outra
coisa. O ambiente aqueceu sobretudo durante um jantar em que Madina
participou com ex-colegas da faculdade que também tinham ido trabalhar
para Karamay. Nessa ocasião, a discussão tornou-se particularmente
in amada depois de um deles se ter queixado de que os chineses não
respeitavam nada, uma vez que haviam destruído várias casas tradicionais
uigures num bairro de Ürümqi para erguer uns prédios pavorosos.
“Os chineses vieram para aqui e caram com tudo o que é lucrativo”,
rosnou o marido de Reyhan, cuja família tivera de abandonar as suas
propriedades ancestrais para dar lugar a um empreendimento urbano.
“Apropriam-se das nossas terras e as nossas gentes estão a ser expulsas das
suas casas para que se construam prédios para os chineses, a quem são
entregues os apartamentos sem que paguem um tostão. As nossas casas
tradicionais estão a ser demolidas em massa, e com elas desaparece a nossa
cultura. Uma tristeza. Como se isso não bastasse, os melhores empregos vão
para os chineses, os melhores negócios vão para os chineses… é tudo para
os chineses. Aos uigures, aos cazaques e aos quirguizes, que são as
verdadeiras gentes desta terra, só restam os piores trabalhos e as piores
terras. Pelos vistos, só somos bons para a construção civil, para a recolha do
lixo e para tudo o que os chineses não querem fazer. O que é bom é para
eles, o que é merda ca para nós.”
“É pior do que isso!”, interveio Reyhan. “Eles estão a dar subsídios para os
chineses virem para aqui! E a nós não dão um tostão sequer! Com tudo
pago e ainda subsídio no bolso, quem é o chinês que recusa? São milhares e
milhares a chegar todos os dias, é só ir à estação vê-los. Não sabem desta lei
que agora saiu, a determinar que oitenta por cento das contratações nas
escolas têm de ser de han? É um escândalo! Para cada vinte lugares de
professores, dezasseis vão para chineses! Dezasseis! Nós só camos com
quatro! Tenho um colega que é escritor, o Baimurat, que já não pode dar
aulas e teve de ir trabalhar como empregado de mesa num café. Um escritor,
vejam só! Acham isto normal?”
“Não são só os professores”, queixou-se uma outra mulher, esta cazaque,
que viera de uma aldeia da ponta ocidental de Xinjiang diretamente para
Karamay. “O meu lho está a ter imensos problemas na escola porque as
aulas são todas em chinês. Ora, se o miúdo não fala chinês, como querem
que aprenda a matéria? Coitadinho, vai para a escola carregado de livros
com caracteres que não compreende e obrigam-no a fazer trabalhos de casa
numa língua que não fala nem escreve.”
“Isso é assim com muitos miúdos”, con rmou Reyhan, familiarizada com
o problema devido ao seu trabalho como professora numa escola local.
“Com a maior parte dos meus alunos é a mesma coisa. Olha, tenho dias em
que os miúdos choram de desespero durante quase toda a aula porque não
entendem nada, vê lá. É uma coisa horrorosa, não tem explicação.”
“E não podes fazer nada?”
“Fazer o quê? Tenho de obedecer às ordens do Partido. Se não obedecer,
põem-me na rua e metem uma chinesa no meu lugar. Em que vai isso ajudar
os miúdos?”
Um murmúrio de comiseração percorreu a mesa.
“É por essas e por outras que em Barin, perto de Kashgar, houve noutro
dia uma revolta”, fez notar outro engenheiro uigure. “O pessoal não fez mais
nada: pegou em espingardas, mais nas foices e nos ancinhos, e… pumba, cá
vai disto! Partiram tudo!”
“Ora ora, não lhes serviu de grande coisa”, devolveu uma mulher uigure
que até ali seguira a conversa em silêncio. “Uma prima minha que é da
região contou-me que os chineses responderam e entraram lá, mataram
pessoas, prenderam outras, fecharam escolas, queimaram livros religiosos…
en m, uma desgraça.”
“Pois, mas não podemos ter medo!”, exclamou o marido de Reyhan, que
suscitara toda aquela discussão à mesa. “Estamos na nossa terra, na nossa
própria terra! Então estes chineses comportam-se como se fôssemos nós os
estrangeiros e… e não fazemos nada? Calamo-nos e engolimos? É isso? Mas
a nal somos homens ou quê?”
O descontentamento andava no ar e a região ameaçava tornar-se um barril
de pólvora. O tom das conversas entre os elementos das minorias era dia a
dia cada vez mais aceso e Madina cou sem saber o que fazer. Por um lado,
estava a ser diretamente afetada por tudo aquilo e, como uigure, sentia-se
indignada. Por outro, não podia esquecer-se de que era militante do Partido
e estava fora de questão envolver-se naquele tipo de discussões. Pôr em
causa o Partido e as Suas sábias políticas constituía um ato muito grave.
O problema é que o barril de pólvora ia explodir.
XXII

As ordens continuavam a cruzar-se em voz alta diante do pontão quatro e


os homens que vedavam o seu acesso abandonaram os grupinhos e
alinharam-se, quase como se formassem um cordão de segurança. Dois
trabalhadores cingaleses que iam a passar pela plataforma foram
escorraçados aos berros e um chinês, que pela postura devia estar a
comandar a operação, falava com grande excitação a um telemóvel.
Tomás Noronha abeirou-se de Charlie Chang.
“Consegue entender o que ele diz?”
O americano abanou a cabeça.
“Está demasiado longe.”
Percebendo por todos aqueles indícios que a qualquer momento os
acontecimentos se precipitariam, De Silva abandonou a vigilância das
traseiras do gabinete e juntou-se aos companheiros. Os três homens da CIA
destrancaram as armas e o português fez o mesmo com a sua Beretta,
embora tivesse dúvidas de que, àquela distância, fosse capaz de atingir quem
quer que fosse.
“Estão a ouvir isto?”
A pergunta de Fonseka fê-los aguçar os ouvidos. De início, nada
registaram de anormal, mas volvidos alguns instantes Tomás conseguiu de
facto sentir uma reverberação surda e ritmada sacudir o ar.
“Parecem… sei lá, batidas.”
Era isso. Dir-se-iam batidas surdas, como se fosse o ar a deslocar-se num
rápido batuque distante. O som era inaudível, mas a reverberação crescia
gradualmente e em determinado momento já não sentiam apenas as batidas
surdas mas ouviam um zumbido longínquo, como um enxame. O ruído
depressa cresceu a rolar a um ritmo muito rápido, assumindo as
características de um som parecido com…
“Um helicóptero!”, exclamou Tomás. “Vem aí um helicóptero!”
Passados alguns segundos, a natureza do som tornou-se inequívoca; de
facto, só o rotor de um helicóptero soava assim. Perscrutaram o céu
e vislumbraram um ponto lá em cima, mas o ponto ia crescendo à medida
que descia até se tornar um aparelho, o ruído sempre a aumentar, até que
baixou tanto que desencadeou um pequeno vendaval no pontão e na
plataforma, fazendo esvoaçar em fúria o cabelo dos homens alinhados em
baixo. Por m, o helicóptero aterrou no meio do pontão quatro por entre
uma barulheira infernal e aquele chinfrim prolongou-se sem m à vista.
Depressa se tornou claro que o piloto não iria desligar o motor.
Sempre escondidos no compartimento diante do pontão, os intrusos tudo
seguiam com atenção. O aparelho era surpreendentemente grande e trazia a
bandeira vermelha estrelada da República Popular da China sobre a carlinga
azul-pálida.
“Motherfucker!”, praguejou Chang, hipnotizado com aquela visão. “Isto é a
porra de um Harbin Z20J!”
“O que é isso?”
“Um aparelho da Marinha de Guerra do Partido Comunista Chinês”,
explicou. “A versão Z20J do Harbin é especializada na guerra
antissubmarina. Se este helicóptero está aqui, meus amigos, isso signi ca
que há um porta-aviões ou um porta-helicópteros do Partido Comunista
Chinês nas redondezas.”
A informação deixou Tomás na incerteza.
“Quais as implicações para nós?”
“É o que vamos ver.”
Um militar com farda da Marinha saltou do aparelho e, correndo curvado
por causa das hélices que rodavam ameaçadoramente por cima dele e com a
mão na cabeça para que o boné não voasse, encaminhou-se para o chinês do
telemóvel que parecia comandar a operação no pontão. Os dois homens
conferenciaram por alguns momentos em voz alta, tentando fazer-se
entender no meio de toda aquela barulheira, até que o do telemóvel se
voltou para trás e pôs-se a esbracejar com movimentos largos para alguém
que não estava visível, mas que decerto observava a cena à distância.
Momentos depois, os intrusos escondidos no hangar viram um jipe de
vidros fumados aparecer da direita e imobilizar-se diante do pontão quatro.
A uma ordem do sujeito do telemóvel, os homens que faziam a segurança ao
pontão formaram de imediato um círculo cerrado em volta do jipe, como se
tentassem proteger os tripulantes da viatura do olhar indiscreto de eventuais
mirones.
“São elas”, murmurou Chang. “O tipo do telemóvel é meu. Logo que eu o
deite abaixo, limpem os outros.”
O operacional da CIA apontou a sua Barrett M82 para o chinês do
telemóvel e ajustou o foco da objetiva; os alvos não se encontravam longe,
pelo que cada um dos seus tiros iria contar. De Silva e Fonseka voltaram os
canos das Kalashnikov para os seus alvos designados, e no meio disto tudo
Tomás cou sem saber o que fazer com a sua pistola; ao pé das bisarmas em
volta dele, a pequena Beretta parecia-lhe uma sga.
A porta do jipe abriu-se e, observando tudo da janela do hangar, os
intrusos suspenderam a respiração, na expectativa. Um homem saiu do
interior do veículo; parecia cingalês ou indiano e estava vestido à paisana. O
recém-chegado voltou-se para trás e puxou algo ou alguém. No instante
seguinte emergiu do todo-o-terreno uma mulher de lenço negro a cobrir a
cabeça.
De olho colado à objetiva da sua espingarda de precisão, Chang deixou
um murmúrio deslizar-lhe dos lábios.
“Dragão Vermelho…”
Nunca a tinha visto antes, mas o lenço negro conferia com a descrição que
as testemunhas haviam feito dela em Amritsar. Tratava-se provavelmente da
mulher com quem dias antes falara ao telefone e que alegadamente estava na
posse do protocolo secreto do Partido Comunista Chinês. Mas o
operacional da CIA não podia ter a certeza absoluta, justamente porque
ninguém conhecia o rosto dela. A con rmação teria de vir do português.
“Diga-me quando vir a sua mulher.”
Tomás sentia-se tão nervoso que mal conseguia permanecer quieto. No
pontão, o homem do telemóvel trocou umas palavras com a mulher que
acabara de sair do jipe, a qual atraía manifestamente a atenção de toda a
gente que ali estava, e ao m de alguns segundos pegou-a pelo braço e
forçou-a a acompanhá-lo. Nesse mesmo instante emergiu uma segunda
cabeça do interior do jipe; era também uma mulher, mas esta era europeia e
tinha os cabelos escuros encaracolados. O coração do historiador deu um
pulo.
“É ela!”
Acabara de avistar Maria Flor.
XXIII

Depois de ter concluído a inspeção de rotina à re naria petroquímica de


Ürümqi, Madina tentava pôr a sua scooter em marcha quando foi
interpelada por um engenheiro uigure que trabalhava no setor da
informática. O homem tinha um forte sotaque moghal a que ela achava uma
certa graça, pelo que esperou por ele.
“As salaam alekum!”, cumprimentou-a o engenheiro Husein da forma
tradicional uigure. “Já sabe das notícias?”
“Quais notícias?”
“De Guangdong”, disse ele. “Parece que os chineses lincharam dois
uigures.”
“Perdão?”
“É o que consta. Acusaram os nossos conterrâneos de terem violado umas
chinesas e a turba chinesa atacou-os aos magotes. Houve confrontos entre
chineses e uigures e mataram os nossos. Uma vergonha!”
“Ah, coitados! Eram de onde?”
“De Kuytun. Trabalhavam numa fábrica de brinquedos em Guangdong ao
abrigo de um programa do Partido de transferência de mão de obra. Ou
seja, estavam lá a ganhar a vida, coitados. Aqui, como todos sabemos, não
nos dão nada. É tudo para os chineses.”
Kuytun não era muito longe de Karamay.
“E agora?”
“Agora? Agora as autoridades têm de investigar tudo, é o que é. Tudinho.
Os responsáveis pelos linchamentos têm de ser punidos. Mas como os
chineses se protegem uns aos outros, tenho cá as minhas dúvidas de que
esses cabrões façam alguma coisa…”
As notícias de Guangdong criaram um ambiente efervescente entre os
uigures. Nas televisões, as notícias não abundavam, mas havia informação
disponível na Internet. A autarquia da cidade onde o linchamento ocorrera
informou que nunca houve nenhuma violação, tinha sido tudo um boato
espalhado por um blogue anónimo. Ou seja, os dois uigures foram
assassinados por causa de um mero boato! Pela QQ circulavam mensagens e
sobretudo fotogra as granuladas e vídeos sobre o linchamento dos uigures
em Guangdong e as agressões a muitos outros, o mesmo acontecendo na
Renren, uma app que funcionava como uma imitação chinesa do Facebook.
Muitos uigures, incluindo Madina, encheram os cibercafés para ver e
comentar as imagens. Além disso, os uigures que trabalhavam em
Guangdong estavam a comunicar com as suas famílias em Xinjiang e a
contar-lhes o que acontecera. Toda essa informação espalhava-se como fogo
em palha seca entre a comunidade uigure.
A indignação era geral. Todos, mas sobretudo os jovens, estavam
revoltados com as constantes discriminações às mãos dos han e humilhados
por serem tratados como inferiores e burros. Surgiram propostas de se
fazerem petições em Ürümqi e até em Pequim, e havia mesmo quem falasse
em saírem às ruas em protesto. Alguma coisa tinha de ser feita, pois não se
podia tratar os uigures daquela maneira. Exigia-se das autoridades que
zessem uma investigação independente ao sucedido e punissem os
culpados. Os uigures, dizia-se à boca cheia, já estavam fartos de serem
maltratados. Se eles próprios não zessem valer os seus direitos, quem o
faria?
O telemóvel de Madina não parava de tocar; todos os uigures lhe
perguntavam se o Partido já decidira fazer alguma coisa e quando atuaria.
Ela ia improvisando respostas, dizendo que o assunto levava tempo a ser
tratado, que havia canais apropriados, que as regras tinham de ser
cumpridas… en m, desculpou-se como pôde. Tinha a sensação de que, só
por se ter conseguido liar no Partido, os seus conterrâneos uigures a
tratavam quase como se ela fosse o próprio Lingxiu.
Quando nessa noite o telemóvel tocou pela quarta vez consecutiva desde
que começara a fazer o jantar, revirou os olhos. Oh, não! Lá vinha mais um
questioná-la sobre quando o Partido faria justiça… Ainda pensou em não
atender, mas não foi capaz; compreendia demasiado bem o sentimento de
injustiça que se apossara de todos para conseguir ignorar aquele toque
insistente.
Pegou no aparelho e carregou no botão verde.
“Está lá?”
“Madina, és tu?”
Reconheceu a voz de Dilnaz, a mulher do primo do pai, Erbakyt, em cujo
apartamento vivera durante os anos em que zera o liceu em Ürümqi.
“Olá, Dilnaz!”, cumprimentou-a, algo admirada com a chamada. Falava
por vezes com o casal que a acolhera, mas sempre ao m de semana e nunca
à noite. “Como vão vocês?”
Ouviu um soluço do outro lado da linha.
“Estou tão ralada…”
“Então? O que se passa?”
“Já sabes dos tumultos?”
“Quais tumultos?”
“Aqui em Ürümqi”, disse Dilnaz. “A comunidade quis exigir justiça pelo
linchamento em Guangdong e os estudantes saíram à rua a pedir que os
culpados fossem presos. Levaram bandeiras da China para mostrar que não
estavam contra os han especi camente, apenas queriam justiça.
Concentraram-se diante dos principais edifícios do Partido e também junto ao
Grande Bazar. Só que a certa altura a coisa correu mal. A polícia de choque
apareceu armada até aos dentes e os nossos estavam tão furiosos que perderam
a cabeça e desataram a partir vidros, a saquear lojas, a incendiar autocarros…
eu sei lá. Tudo aos gritos de ‘Abaixo a China!’ e ‘Abaixo o Partido
Comunista!’. Parece que atacaram todos os chineses que viram pela frente. Há
tumultos por toda a cidade. Consta que… que mataram muita gente.”
Tudo aquilo era novidade para Madina.
“Como assim, consta que mataram? Quem matou quem?”
“Os nossos mataram chineses. Fala-se em mais de uma centena de mortos.
Há corpos espalhados na Rua Norte Dawan. Isto para já não falar nos feridos.”
“E vocês? Estão bem?”
Fez-se um curto silêncio no outro lado da linha.
“O Erbakyt foi lá.”
Disse-o quase num sussurro, como quem confessava um terrível segredo
de família.
“À manifestação!?”
“Sim.”
“Ele enlouqueceu?”
“O que querias que eu zesse? Que o fechasse no quarto e o impedisse de
sair?”
Dilnaz tinha razão. Ao longo do tempo em que permanecera no
apartamento deles, Madina aprendera a conhecer o primo do pai e sabia
que, quando se lhe metia uma coisa na cabeça, não descansava enquanto
não a zesse.
“Ao menos ele está bem?”
Uma nova pausa.
“Ainda não voltou.”
Como se um dique emocional tivesse rebentado, Dilnaz desatou a chorar.
Foi nesse momento que Madina percebeu o propósito do telefonema. A
mulher que anos antes a acolhera em Ürümqi estava em pânico. Precisava de
a tranquilizar.
“Tem calma, Dilnaz.”
“Estou tão ralada…”, soluçou a voz do outro lado da linha, trémula e a
fungar. “E se lhe aconteceu alguma coisa? E se… e se…”
“Não aconteceu nada, ca descansada. O Erbakyt não é parvo e não se
meteria na confusão.”
“Ah, mas se o visses… Ele anda tão revoltado! Nunca te contámos nada,
mas lá no emprego despediram-no para meterem um chinês no lugar dele.”
“Oh.”
“Foi, foi. Quando protestou chamaram-lhe fengjian. Fengjian, vê lá tu!
Ficou tão furioso, nem imaginas. Mas o que podia fazer? Nada. Arranjou um
emprego como empregado de mesa, pois precisamos do dinheiro, mas nunca se
conformou. De modo que, quando os estudantes convocaram a manifestação,
foi logo a correr para a universidade. Tenho medo que… que… que tenha feito
algum disparate.”
“Não fez nada, descansa. Tens de pôr um freio à tua imaginação.”
“Então porque é que ele ainda não regressou a casa?”
Era uma boa questão.
“Deve estar a ajudar alguém ou pode ter tido alguma di culdade. Mas vais
ver que a qualquer momento irá aparecer.”
“Ai, não sei, não. Achas que… que podes ligar a alguém do Partido para ver
se sabes alguma coisa?”
Decididamente, todos na comunidade, incluindo na sua própria família,
deviam achar que Madina era o Lingxiu. Ou pelo menos um Seu
conselheiro.
“Isso não é boa ideia, Dilnaz”, respondeu. “Não posso dizer a ninguém do
Partido que o primo do meu pai foi a uma manifestação não autorizada pelo
Partido, como deves calcular. Convinha, aliás, que ninguém soubesse sequer
que ele esteve na manifestação.”
“Tens razão, tens razão.”
“Tem calma, Dilnaz. Vamos aguardar mais um bocadinho. Vais ver que
daqui a pouco ele irá aparecer e que se encontra bem. Mas é fundamental
que se mantenha quieto e não diga a ninguém que esteve na manifestação,
ouviste? Bico calado sobre isso. Ele que que em casa uns dias e permaneça
o mais invisível possível. Diz-lhe que fui eu que disse. Daqui a uns tempos,
quando as coisas estiverem mais calmas, então poderá voltar a sair. Mas não
para já. E silêncio absoluto quanto a ter estado na manifestação, ouviste?
Isso é essencial.”
A conversa prosseguiu durante mais alguns minutos, com Madina sempre
a tentar acalmar a mulher do primo Erbakyt. Só quando a sentiu mais
serena é que por m desligou, embora com a promessa de que a sua
interlocutora lhe telefonaria logo que surgissem novidades. Já com o
telemóvel mudo, Madina cou um longo momento a olhar para o aparelho,
mergulhada nos seus pensamentos. E se Erbakyt tivesse mesmo sido
apanhado?
XXIV

Ao ouvir a con rmação de que a mulher de Tomás Noronha era a pessoa


que acabara de sair do jipe que chegara ao cais de Hambantota, o que
signi cava que Dragão Vermelho era a outra mulher, Chang expirou
tranquilamente e premiu o gatilho. Com um pequeno coice, a Barrett M82
soltou um “ploc” seco, evidentemente o tiro abafado pelo silenciador. O
homem do telemóvel tombou de imediato, provocando a surpresa do grupo
de chineses que se aglomerara em torno do jipe e que tentava perceber o que
sucedera, se o seu chefe tropeçara ou se se sentira indisposto.
Ato contínuo, Fonseka e De Silva abriram fogo cerrado com as suas
Kalashnikov. Um ladrar infernal encheu o compartimento, as cápsulas
metálicas das balas a tilintarem em catadupa pelo chão de cimento. Vários
homens tombaram à entrada do pontão quatro, mas os restantes
espalharam-se de imediato e, procurando a proteção do jipe, puseram-se a
devolver os tiros.
O militar que saíra do helicóptero agarrou a mulher do lenço negro e,
usando-a como escudo, colou-se a ela e puxou-a na direção do aparelho. Um
outro homem pegou em Maria Flor e forçou-a também a encaminhar-se
para o helicóptero. Ambas pareciam muito assustadas e sem compreender o
que se estava a passar, pelo que nem sequer resistiam.
“Abata-os!”, gritou Tomás, alarmado por ver a sua mulher nas mãos dos
captores. “Depressa!”
A mira da Barrett M82 estava xa no militar que agarrara a mulher do
lenço negro e a levava para o Harbin Z20J estacionado no pontão, mas
Chang não se atreveu a carregar de novo no gatilho com medo de acertar na
vítima. Precisavam dela viva e a sua morte só teria utilidade para o Partido
Comunista Chinês. Não podia correr o risco.
“Estou à espera de uma aberta.”
Tomás percebeu que o operacional da CIA tinha a arma de precisão
apontada para o militar que usava a mulher do lenço negro como escudo,
mas o que lhe interessava nesse momento era salvar Maria Flor. E o homem
que a puxava para o helicóptero estava muito mais exposto do que o
primeiro.
“Abata o outro”, disse. “Aproveite.”
Não era no entanto Maria Flor a personalidade que interessava à CIA. A
prioridade era Dragão Vermelho. Chang manteve por isso a mira no militar
que a arrastava, sempre em busca de uma aberta que lhe permitisse dar o
tiro limpo que o abateria. Desesperado, Tomás percebeu que a sua mulher
era quase considerada irrelevante e que, se as coisas dessem para o torto, o
americano a deixaria para trás. Tudo dependia, pois, dele mesmo.
As Kalashnikov de Fonseka e De Silva disparavam fogo nutrido, obrigando
os homens do pontão quatro a manterem-se abrigados atrás do jipe e de
outros pontos de abrigo na plataforma, mas as balas das AK-47 acabaram
por se esgotar e os dois cingaleses tiveram de mudar de carregadores.
Aproveitando a breve pausa que se instalou no tiroteio, os chineses lá em
baixo saíram dos seus abrigos e desataram a correr em direção ao hangar.
Percebendo o perigo, e desejoso de se aproximar da mulher, Tomás tomou
uma decisão.
“Vou lá para baixo.”
Antes que alguém o travasse, saiu do compartimento e desceu
apressadamente as escadas metálicas para, por m, de pistola na mão, ele
mesmo enfrentar os homens que haviam raptado Maria Flor.
XXV

O primo Erbakyt regressou a casa na noite dos tumultos em Ürümqi.


Embora tenha participado na manifestação a exigir justiça pelo linchamento
dos uigures em Guangdong, não se envolveu nos confrontos que se
seguiram e se estenderam por toda a cidade. Em vez disso, metera-se por
um labirinto de ruas de modo a evitar a polícia, razão pela qual nessa noite
demorou a regressar a casa.
Os tumultos duraram dois dias e o problema foi o que aconteceu logo a
seguir. A mensagem de um internauta na Renren, a app da moda, deu nota
da chegada a Ürümqi de um enorme comboio militar carregado de
soldados. Madina estava a consultar a Internet quando foi alertada para a
situação por uma mensagem que circulou durante alguns minutos no QQ,
prontamente apagada pela censura do Partido ou pela própria empresa que
geria a plataforma, a Tencent.
A seguir alguém apareceu com a informação de que a populaça chinesa
estava a atacar uigures com facas de cozinha, paus aguçados e pedras da
calçada perante o olhar passivo da polícia. À noite uma outra mensagem
falava em rajadas de metralhadora nos bairros onde os uigures eram
maioritários. Telefonemas entre uigures mencionaram montanhas de corpos
e poças de sangue pelos passeios e ruas de Ürümqi. Uma outra informação
indicava que as autoridades haviam avisado previamente a população han
para car em casa, de modo a que as pessoas apanhadas no espaço público
fossem apenas uigures, cazaques, quirguizes ou de outras minorias da
região, embora isso pudesse não passar de boato.
Madina cou mortalmente preocupada. Ainda pensou em ligar a Erbakyt
e a Dilnaz, pois havia a possibilidade de terem sido apanhados nas
operações das autoridades, mas reconsiderou. As comunicações com e entre
uigures em Ürümqi deveriam estar sob vigilância apertada e um telefonema
daqueles não só a colocaria em causa como também comprometeria o
próprio Erbakyt. Além do mais, não tinha sido ela que recomendara a
Dilnaz que durante algum tempo não saíssem de casa? Quase se sentiu feliz
pelo conselho que em tão boa hora lhe dera. Não ligou a ninguém.
Na noite seguinte, chegou a Karamay a informação de que Ürümqi tinha
mergulhado na escuridão. Primeiro Madina pensou que se tratara de uma
simples falha de energia e que as luzes voltariam logo que a rede fosse
restabelecida, mas um vizinho informou-a de que a polícia chinesa estava a
entrar em casa de pessoas que, segundo as imagens das câmaras de vídeo ou
relatos de testemunhas, tinham participado nos protestos. Os suspeitos eram
levados para lugar desconhecido, presumivelmente uma esquadra, um
quartel ou uma prisão. Claramente a polícia usava o apagão para forçar a
esvaziar as ruas e obrigar as pessoas a recolherem a suas casas.
Ansiosa, Madina foi à Internet com a ideia de procurar informação nos
sites estrangeiros ou nas redes sociais ocidentais, em particular o Facebook e
o Twitter, mas por algum motivo a Internet não estava disponível. Telefonou
à sua amiga Reyhan e ela disse-lhe que também não tinha Internet.
Contactou outros colegas e a resposta foi a mesma. Pelos vistos a Internet
fora cortada em Xinjiang.
Virou-se para a televisão na esperança de encontrar alguma informação. A
programação era a normal: concursos, novelas, séries e lmes antijaponeses
e antiocidentais. Como sempre, as autoridades apelavam ao patriotismo dos
chineses contra o inimigo, o capitalismo ocidental. Fez zapping entre os
canais da região e procurou os noticiários. Num deles cruzou-se com a
notícia de que terroristas uigures haviam levado a cabo atentados em
Ürümqi, provocando a morte de muitos inocentes, mas que a polícia estava
a desmantelar as redes criminosas com a sua habitual e cácia. Seguiram-se
reportagens sobre a região a falar da abundância de petróleo em Xinjiang e a
enaltecer o progresso que o Partido levara à região, arrancando as minorias
étnicas da pobreza e da ignorância obscurantista. Esta mensagem também
não era um acaso; subliminarmente, o Partido chamava fengjian aos uigures.
Não se tratava de um bom sinal. Uma importante parte do noticiário
abordava ainda a crise do subprime desencadeada no Ocidente pelo colapso
do banco Lehman Brothers, com comentários profusos dos jornalistas
e comentadores chineses sobre “o estertor do capitalismo” e o iminente
“triunfo nal do socialismo”.
Na manhã seguinte, ao sair à rua, Madina constatou que a própria cidade
onde vivia, Karamay, parecia em estado de sítio. Viam-se polícias han por
toda a parte e os agentes faziam patrulhas em grupo. Uns estavam de
uniforme, outros à paisana; não havia nenhum uigure ou cazaque em
Xinjiang que não estivesse já treinado para os reconhecer. Os polícias
pareciam controlar sobretudo os cruzamentos e não tiravam os olhos de
qualquer pessoa que pelos seus traços parecesse pertencer a uma das várias
minorias da região.
“Wénjiàn?”, pediu alguém ao lado dela em chinês. “Documentos?”
Sobressaltou-se ao ver um polícia han à paisana a apenas um metro de
distância. Acabou por perceber que o agente não falara com ela, mas com
um homem de barba. Outros polícias interpelavam mais uigures ao longo
do passeio. Os alvos eram todos homens de barba ou mulheres de lenço na
cabeça. Os agentes, notou a seguir, não se limitavam a ver os documentos.
Inspecionavam também os telemóveis de cada pessoa que interpelavam. Em
dois casos viu-os mesmo a revistá-los e numa situação chegaram a mandar
um homem baixar as calças e car de cuecas em pleno passeio, para se
certi carem de que não escondia nada nas pernas.
Aquilo não era normal. Era hábito a polícia chinesa telefonar ou aparecer
a convidar alguém a “ir tomar chá à esquadra”, a eterna fórmula eufemística
de exprimir uma detenção para interrogatório. Ela própria já tinha visto isso
acontecer a dois colegas uigures na universidade em Ürümqi. Mas isto era
diferente. Ou talvez fosse a mesma coisa, embora numa escala in nitamente
maior. Desta feita, o “chá” era tomado na rua, à vista de todos.
Apressou-se para o trabalho e passou diante de uma escola. Os altifalantes
gritavam que “Xinjiang é uma parte inseparável da China” e “graças à ajuda
do Partido, Xinjiang transformou-se numa região orescente”. Ao chegar ao
emprego, viu os seus colegas uigures e cazaques alinhados no átrio. Não
havia nenhum han entre eles.
“Mete-te nas las!”, ordenou-lhe Leong, o chefe da célula do Partido na
empresa, a urgência na voz. “Depressa!”
O que se estaria a passar? Obedeceu, sem saber o que esperar. De repente,
viu a bandeira vermelha chinesa começar a ser hasteada e ao mesmo tempo
soaram os acordes de uma melodia que Madina bem conhecia; era uma
música comunista a glori car o Partido. Tal como os colegas que pertenciam
às minorias, todos eles nas las, também cantou.

“A minha mãe deu-me o corpo,


mas o Partido ilumina-me o coração…”

No nal, Leong encarou os trabalhadores uigures e cazaques ali alinhados


e ergueu o punho.
“O Partido Comunista dá-nos nova vida e prosperidade!”
Tratava-se de uma palavra de ordem, que o grupo repetiu em coro.
Satisfeito, Leong passou para a palavra de ordem seguinte.
“Se não houvesse Partido Comunista, não haveria nova China!”
Todos repetiram a palavra de ordem. O chefe da célula do Partido na
petrolífera fez uma curta pausa e tou com intensidade os funcionários
uigures e cazaques, atento à reação deles à pergunta que tinha para lhes
fazer.
“Deus existe?”
O grupo cou momentaneamente silencioso, apanhado de surpresa pela
pergunta, mas depressa se recompôs e a resposta veio num coro não muito
a nado.
“Não!”
“A quem deveis obediência?”
Esta não era surpreendente, pelo que a resposta foi imediata.
“Ao Chefe!”
Leong não pareceu car muito satisfeito. A hesitação que se sucedera à sua
pergunta sobre a existência de Deus mostrara-lhe que tinha ainda muito
trabalho pela frente.
“A partir de agora teremos todos os dias uma cerimónia do hastear da
bandeira à chegada ao trabalho”, anunciou. “Haverá também uma cerimónia
semanal no vosso bairro, com presença obrigatória para os membros das
minorias, mas isso ser-vos-á oportunamente comunicado pela vossa
comissão do bairro. Esta cerimónia está concluída por hoje. Viva o Partido!”
O ambiente na petrolífera era carregado e nesse dia em particular o tempo
demorou a passar. Os acontecimentos em Ürümqi e a situação de quase
estado de sítio em Karamay estavam a deixar toda a gente muito nervosa. As
conversas na empresa entre han e elementos das minorias eram breves e
limitavam-se ao estritamente necessário, denunciando um clima de tensão
crescente. Ninguém falava sobre os confrontos e a vigilância apertada a que
estavam submetidos todos os que pertenciam às minorias, mas cada olhar
traía ansiedade. A única referência à crise que Madina ouviu foi feita por
uma colega cazaque que, tendo ido buscar um chá, lhe con denciou que o
policiamento aumentara imenso, não só em Karamay, mas em toda a
província de Xinjiang.
Depois do almoço, o telemóvel tocou e Madina reconheceu o número; era
Dilnaz a telefonar de Ürümqi. Estaria doida? Todas as chamadas de uigures
de e para a capital deveriam estar sob vigilância intensa, o que
desaconselhava fortemente as conversas. Aquela chamada constituía por isso
uma imprudência da parte da mulher de Erbakyt. Que bicho lhe mordera
para correr um risco daqueles?
Os toques prolongaram-se, tentando-a. Ainda hesitou e considerou a
possibilidade de atender, mas o bom senso ditou-lhe que não. Nem pensar.
Por m, o telemóvel silenciou-se. Dilnaz não era parva e perceberia por que
motivo ela não atendera. Instantes depois, o seu aparelho deu sinal de que
tinha recebido um SMS. Foi veri car o número do remetente. Era Dilnaz.
Abriu a mensagem.

Estás bem?
Por aqui tudo entra nos eixos. Felizmente o Par do combate
o terrorismo com rmeza, embora de forma justa. Dou graças à Sua
ação benevolente.
Tens do no cias do primo? Contaram-me que foi internado no hospital
com um problema cardíaco. Se o vires, endereça-lhe votos de melhoras.
O meu lho também tem andado adoentado e ando a ver se encontro
um médico para ele, mas com os atentados terroristas está di cil
contratar um.
Beijos, Dilnaz

Permaneceu um longo momento a interpretar a mensagem. Claramente


Dilnaz tinha consciência de que as comunicações em Ürümqi estavam sob
vigilância do Partido, o que explicava os elogios que Lhe fazia. O mais
importante, no entanto, era a referência ao “primo”. O “primo” em causa só
podia evidentemente ser o seu marido, Erbakyt. A informação de que tinha
sido “internado” constituía sem dúvida uma referência encapotada à sua
detenção. Erbakyt fora detido, decerto por ter participado na manifestação.
E a referência ao lho “adoentado” para o qual não conseguia encontrar
médico era com certeza um pedido de ajuda nanceira, pois com o marido
na prisão ser-lhe-ia decerto impossível aguentar-se sozinha.
Redigiu a mensagem de resposta.

Olá, Dilnaz
Por aqui todos bem. O Par do, glorioso e correto, vela pela segurança
de todos nós e da nossa pátria bem-amada, o que me deixa
in nitamente agradecida.
Não tenho do no cias do primo. Faço votos ardentes de que recupere
depressa da doença.
Arranja o melhor médico que encontrares para o menino. Vou mandar-
te dinheiro pelo correio.
Beijos, Madina

“Pode dar-me uma ajuda, por favor?”


Ao ouvir a voz, Madina estremeceu. Ergueu os olhos assustados
e reconheceu o homem que a interpelara; tratava-se de Husein, o
engenheiro uigure que falava com sotaque moghal. Na empresa era ele
o encarregado da manutenção das tecnologias informáticas. Husein
abeirara-se dela com um papel na mão. Pela sua postura, queria mostrar-lho.
“O que se passa?”
“Estou preocupado com estes números da re naria”, indicou ele,
apontando para uma linha. “Veja lá se batem certo.”
“Porquê? O que têm eles?”
Inclinaram-se os dois para analisar a folha.
“Precisa de ter muito cuidado”, sussurrou o engenheiro da área
informática, como se estivesse a fazer uma observação sobre um dos
números estampados no papel. “Não fale de política com ninguém. Nem em
casa. Nem quando está sozinha.”
Embora surpreendida, Madina manteve a mesma expressão, ngindo que
estudava os números. Apontou para um deles, como se o quisesse interrogar
sobre ele.
“Porquê? O que se passa?”
“Estão a instalar dispositivos de espionagem em toda a parte”, revelou o
engenheiro, ainda a sussurrar como se falasse sobre os números em causa.
“Até dentro dos televisores e de outros eletrodomésticos. Todas as pessoas
que não são chinesas estão a ser vigiadas.”
“Eu também?”
“Toda a gente. Tenha cuidado.”
Quase desfaleceu de medo. A vigilância era uma constante no país; nunca
se sabia quem informava quem, quem lia as mensagens de quem, qual a
capacidade de o Partido penetrar e violar a privacidade de qualquer um.
Teve por isso vontade de fugir e esconder-se num sítio onde o Partido não a
pudesse encontrar. Pura ilusão. Uma coisa dessas só seria possível se se
refugiasse no deserto ou nas montanhas. Ou talvez nem mesmo aí.
Controlando os nervos, manteve a compostura e devolveu o papel
a Husein.
“Os números estão bem, não se preocupe.”
Regressou ao seu lugar e, após sentar-se, começou a roer as unhas, os
olhos perdidos no in nito para lá da janela do escritório. O primo Erbakyt
fora detido e tinha de ter cuidado com o que dizia, e até mesmo com o que
pensava. O que diabo se estava a passar?
XXVI

Ao chegar ao rés do chão do hangar, Tomás Noronha vislumbrou na porta


da rua o per l de um homem recortado diante da luz que jorrava do
exterior. Sem hesitar, apontou a Beretta para ele. Disparou dois tiros em
sucessão rápida. Uma das balas pareceu atingir o alvo, pois o homem soltou
um grito de dor e recuou a cambalear.
De pistola agarrada pelas duas mãos e sempre voltada para a porta da rua,
pronta a disparar se e quando aparecesse mais gente, Tomás avançou pé ante
pé, em passo agora cauteloso. Ao contrário do que esperava, contudo, não se
deparou com mais ninguém; provavelmente o tiro certeiro, apesar de ter
apenas ferido o alvo, havia intimidado os restantes.
Já colado à porta da rua, observou o militar no pontão a meter a mulher
do lenço negro no interior do helicóptero, cujo motor nunca fora desligado;
claramente Chang não tivera uma aberta para o abater. O problema é que a
janela de oportunidade se fechava depressa. Viu o outro homem igualmente
a forçar Maria Flor a entrar no Harbin Z20J, mais uma vez sem que o
operacional da CIA o abatesse.
Rangendo os dentes, Tomás mal continha a frustração.
“Oh, não!”
De repente, os rotores do Harbin Z20J rugiram mais forte e o helicóptero
começou a elevar-se lentamente do pontão quatro, gerando de novo um
verdadeiro vendaval em redor. Num ato desesperado, o português encostou-
se à porta do hangar e apontou a Beretta para o lugar do piloto do aparelho,
mas logo reprimiu o impulso de carregar no gatilho; se abrisse fogo e
atingisse o piloto, o helicóptero despenhar-se-ia e Maria Flor caria ferida.
Ou pior. Isso não podia permitir. Impotente para travar a marcha dos
acontecimentos, sentiu-se desorientado. Não podia disparar e não podia não
disparar. O que fazer?
O Harbin Z20J ganhou altura, rodopiou e, depois de perfazer uma curva
sobre o hangar, voltou-se para o mar e, acelerando, mergulhou sobre o
in nito azul rumo ao horizonte e ao que estava para lá dele. E Tomás ali
parado, paralisado e impotente, incapaz de inverter o rumo dos
acontecimentos, a ver o helicóptero lá no alto a afastar-se, já distante e bem
fora do seu alcance. Tivera a sua oportunidade e perdera-a.
Falhara.
O impacto repentino e brutal de dois projéteis na parede junto à porta do
hangar obrigaram-no a regressar à realidade do tiroteio. A mulher fora
levada e já nada mais lhe restava para fazer ali. Recuou e encaminhou-se
para as escadas metálicas com a ideia de se juntar aos companheiros, mas
nesse instante viu-os descerem em corrida os degraus e juntarem-se a ele.
“Shit!”, praguejou Chang. “Temos de sair daqui!”
Não era hora para fazerem balanços, mas para escaparem ao que se
poderia transformar numa ratoeira. Os dois cingaleses do grupo pareciam
conhecer o espaço, decerto por o terem estudado antes da missão, e
indicaram-lhes que deviam embrenhar-se no hangar. Seguiram Fonseka e
De Silva. Ao chegarem ao fundo do hangar, Tomás percebeu que havia uma
porta traseira no canto e dirigiram-se para ela.
Espreitaram para o exterior e constataram que o caminho estava livre; os
seus adversários, ainda sob o efeito da surpresa, deviam permanecer
abrigados na plataforma. Isso dava algum tempo aos fugitivos. Ninguém
duvidava, no entanto, de que a qualquer momento a retirada poderia ser-
lhes cortada. Saíram e correram por um caminho na retaguarda, protegidos
por uma sucessão de armazéns e hangares que os separavam da plataforma
onde estavam os homens do pontão quatro.
Em pouco tempo chegaram ao pequeno armazém onde haviam guardado
o jipe. Entraram no todo-o-terreno e, ainda a fecharem as portas, Fonseka
premiu o pedal e a viatura rugiu e saltou para o exterior, apontando para o
portão enferrujado do perímetro como uma besta em fúria. Não havia
tempo para o abrirem, pelo que o jipe carregou sobre o portão e derrubou-o,
acelerando por um trilho que os afastava em linha reta do porto de
Hambantota.
Tomás sentia-se devastado.
“Perdi-a!”, desabafou de cabeça baixa, as mãos a taparem-lhe a cara em
desespero. “E agora? O que vai ser dela?”
Sentado ao lado dele, Chang respondeu com um murmúrio distraído.
“Hmm-hmm…”
O português ouviu-o a teclar e olhou para ele; o operacional da CIA
digitava rapidamente no teclado do seu smartphone.
“O que está a fazer?”, quis saber, irritado com a indiferença do americano
em relação à tragédia pessoal que acabara de sofrer. “Acha que este é o
momento para andar a trocar mensagens ao telemóvel?”
Após mais uns instantes em silêncio para concluir a mensagem e enviá-la,
Chang levantou en m a cabeça e encarou-o.
“Isto ainda não acabou.”
A observação enervou Tomás ainda mais.
“O que quer dizer com isso, não acabou?”, questionou com agressividade.
“Não viu o que aconteceu? Eles levaram-na num helicóptero militar! A
minha mulher já está totalmente fora do nosso alcance! Eu sei que você se
está a cagar completamente para ela, apenas se interessa pela outra, mas
isto… isto…”
Não conseguiu concluir a frase e voltou a baixar a cabeça, tapando de
novo a cara com as mãos. Desta feita, porém, sentiu a mão de Chang
pousar-lhe no ombro.
“Isto ainda não acabou, estou a dizer-lhe.”
Perdido na sua a ição, o português não queria alimentar aquela conversa;
não era tão evidente que estava tudo perdido?
“Cale-se!”
“A sério”, insistiu o operacional da CIA. “Não reparou no helicóptero? É
um Harbin Z20J, um aparelho da Marinha de Guerra do Partido Comunista
Chinês.”
Tomás mantinha-se cabisbaixo e de cara tapada, mas Chang falara como
se soubesse algo.
“E então?”
“Trata-se de um aparelho que opera num porta-aviões ou num porta-
helicópteros. Estamos a falar de veículos enormes. Tão grandes que… en m,
podem facilmente ser seguidos por satélites.”
Ao ouvir isto, o português ergueu a cabeça e olhou para ele, quase com
medo de ter esperança.
“Acha… acha que é possível?”
“Para quem pensa você que acabei de enviar esta mensagem? Remeti a
Langley todos os detalhes sobre o helicóptero que as leva. Na posse desta
informação, a CIA, a NSA e os nossos satélites não terão a menor
di culdade em localizar o aparelho e acompanhá-lo visualmente ou por
assinatura térmica até ao porta-aviões ou ao porta-helicópteros que o
acolherá. Depois é só uma questão de seguir o percurso desse transporte,
intercetar-lhe as comunicações e perceber quais as suas ordens e para onde
se dirige. Quando tivermos essa informação, talvez surja uma nova
oportunidade. Se isso acontecer, interviremos.”
“Interviremos, como? Da mesma maneira que interviemos agora?”
Chang virou-se para trás e tou as águas quentes do Índico, a costa sul do
Sri Lanka e o complexo portuário de Hambantota cada vez mais distantes, a
esconderem-se por detrás da espessa nuvem de poeira que o jipe ia largando
no seu encalço. Era um facto que a operação de Hambantota falhara, mas o
homem da CIA acreditava que na oportunidade seguinte, se ela viesse a
existir, estariam mais bem preparados.
“Isto ainda não acabou.”
XXVII

Os desaparecimentos depois dos tumultos de Ürümqi envolveram


milhares de uigures. Milhares. Nas conversas sussurradas com os seus
colegas em Karamay, Madina foi confrontada com sucessivas notícias sobre
a detenção de muita gente; o irmão desta, o tio daquele, o cunhado da outra.
Todos levados pela polícia chinesa para parte incerta, presumivelmente para
as prisões. A rapariga constatou que a maioria dos desaparecidos tinha
estado envolvida nos protestos em Ürümqi, como era o caso do primo
Erbakyt, pelo que não era difícil perceber a causa de todas aquelas
detenções.
Dilnaz voltou a ligar-lhe desesperada, pedindo-lhe por palavras
codi cadas que a ajudasse a encontrar o marido. Madina cou num dilema.
Queria ajudar, claro, mas não sabia o que poderia exatamente fazer. Não
havia ninguém na célula do Partido na petrolífera em quem con asse, e o
mesmo se poderia dizer dos camaradas que conhecia na sede do Partido em
Karamay. Como ajudar Dilnaz a obter informações sobre o paradeiro de
Erbakyt?
Em desespero de causa, pegou no telemóvel e ligou a Li, com quem não
falava desde que saíra de Ürümqi.
“Então, minha papoila?”, perguntou o antigo namorado num tom
ternurento. “Que tal a vida em Karamay?”
“Como sabes que estou agora a viver em Karamay?”
“Não me digas que achavas que eu te iria esquecer…”
Tornava-se dolorosamente claro que Li ainda alimentava esperanças em
relação a ela. Talvez noutra vida, ou noutro país, a relação entre ambos fosse
possível, mas não naquele sítio e muito menos naquelas circunstâncias.
“Lamento estar a incomodar-te”, desculpou-se a rapariga. “Não tenho
a quem recorrer e queria pedir-te um favor.”
Madina começou a explicar o que se passava com o primo Erbakyt.
Porém, após ouvir as primeiras palavras, e percebendo o sentido do
telefonema, o antigo namorado interrompeu-a de forma cordial, embora
rme.
“Sobre esse assunto, lamento mas não te posso ajudar”, disse da forma
mais suave que lhe foi possível. “O Partido tem de combater o terrorismo e,
ao fazê-lo, está a proteger-nos a todos nós. Se esse teu familiar for inocente
ou se a culpa dele não for grave, decerto que o Partido, que é justo e correto,
o libertará. Temos de con ar no Partido.”
E desligou.
Li falara por convicção ou dissera o que dissera por recear estar a ser
escutado? Impossível sabê-lo.
O facto é que, passado um ano, muitas pessoas foram libertadas. Erbakyt
saiu do cativeiro ao segundo ano. Madina soube-o por uma mensagem de
Dilnaz pelo WeChat. A Internet tinha regressado entretanto, embora já
expurgada das redes consideradas subversivas, como o Facebook e o Twitter,
entre outras. O país adotara um novo sistema de segurança digital que
censurava a Internet, a Grande Muralha de Fogo, a qual parecia capaz de
ltrar tudo o que os internautas viam e de vigiar tudo o que diziam e
consultavam.
Foi por essa altura que os internautas uigures, incluindo Madina e Dilnaz,
passaram a usar a WeChat, essa app chinesa que acabara de aparecer no
mercado e que se tornara instantaneamente omnipresente graças à sua
multifuncionalidade, pois permitia ao mesmo tempo chamar um táxi,
identi car um potencial parceiro romântico, contratar uma empregada,
marcar uma consulta no médico, gerir investimentos e por aí fora. Além de
tudo isso, a WeChat tinha uma enorme vantagem sobre todas as outras apps
existentes no mercado: dispunha de um sistema de gravação de voz que
facilitava as comunicações. Esse sistema era importante, uma vez que os
uigures gostavam de comunicar entre eles em uigure. Para isso precisavam
de usar o seu alfabeto, mas quase todos os teclados se encontravam no
alfabeto chinês. Como no entanto a WeChat permitia gravação de voz, os
uigures depressa contornaram o velho problema do teclado e habituaram-se
a mandar uns aos outros mensagens gravadas de viva voz. O que tinha a
vantagem adicional de assim contornarem a censura da Grande Muralha de
Fogo, pois pelos vistos os censores chineses não entendiam uigure.
Foi numa dessas mensagens orais trocadas no WeChat que Dilnaz
explicou a Madina as cicatrizes do encarceramento de Erbakyt.
“Quase não fala, coitadinho”, queixou-se ela na gravação de voz. “Remete-
se a longos períodos de silêncio, mergulhado num qualquer mundo paralelo
só dele, sem dúvida aquele onde durante estes dois anos o fecharam. Fica a
olhar longamente para o nosso lho, mas não diz nada. A única coisa que
consegui arrancar dele é que foi submetido a uma lavagem ao cérebro. Mas
quando lhe perguntei o que lhe zeram exatamente, fez uma expressão
ausente. Fechou-se em copas.” Suspirou. “Mas ao menos regressou a casa,
não é verdade? Sempre é melhor do que nada…”
Como é evidente, esta mensagem foi imediatamente apagada para não
deixar rasto.
Ao contrário de Erbakyt, contudo, muitos uigures detidos pela polícia
depois dos tumultos de Ürümqi nunca regressaram às suas famílias. A
televisão chinesa noticiou certo dia que tinham sido executados “terroristas”
de Xinjiang. Todos perceberam a mensagem.
Preocupada com Erbakyt e a mulher, Madina decidiu ir a Ürümqi para os
ver; devia-lhes favores e não podia deixá-los abandonados naquela hora
difícil. Ao chegar na manhã seguinte à estação de comboios de Karamay, foi
confrontada com uma enorme la à entrada. Um polícia han indicou-lhe
que se pusesse nela se queria entrar na estação e comprar um bilhete.
Madina obedeceu. Ao m de alguns instantes, constatou que toda a gente na
la pertencia às minorias da região. Já os han passavam incólumes ao lado
da la e entravam diretamente na estação.
“O que é isto?”, questionou ela, dirigindo-se ao polícia. “Eles passam e nós
não?”
“Cale-se.”
“Mas…”
Um homem ao lado dela, um cazaque vestido de fato e gravata, tocou-lhe
no braço.
“Se fosse a si não diria mais nada, menina. Os tempos não estão para
protestos.”
“Mas isto é discriminação.”
O cazaque, um homem evidentemente educado e bem na vida, coisa rara
num elemento das minorias em Xinjiang, esboçou uma expressão de
resignação.
“A nossa vida é sermos discriminados por eles.”
A la progredia lentamente, à sombra de dois enormes cartazes com o
rosto benigno do Chefe e a foice e o martelo ao canto. Sem nada para fazer a
não ser esperar, Madina cou a contemplar as imagens. Um dos cartazes
continha a frase “O povo está contente” e o outro garantia que “A China é
forte graças ao Partido”. Desde pequena que via por toda a parte cartazes
daqueles a mostrar o rosto benigno do Lingxiu e palavras de ordem do
mesmo teor infantilizado, mas pareceu-lhe que com o tempo aquele tipo de
propaganda se espalhara ainda mais. O Chefe era omnipresente, uma
espécie de Deus que os vigiava a todo o momento em toda a parte.
Enfadada, pôs-se a observar os seus conterrâneos uigures que também
aguardavam na la. Reparou que vários consultavam sites turcos nos seus
telemóveis. Alguns acompanhavam as notícias sobre os protestos pró-
democracia no Parque Gezi, em Istambul, enquanto outros veri cavam
recomendações sobre o que era comida genuinamente halal e a forma mais
adequada de um muçulmano se vestir. Aqueles comportamentos revelavam
uma busca por modos de vida alternativos, uma evidente frustração com a
forma como a comunidade era tratada em Xinjiang. Sabia que o sonho da
maior parte dos cazaques era emigrarem para o Cazaquistão, enquanto os
uigures tinham os olhos postos na Turquia. Na China é que já não podia ser.
A própria Madina se ia interrogando em segredo se não seria melhor
partir para Istambul. Sentia-se dividida. Por um lado, o condicionamento
imposto pela doutrinação fazia-a acreditar no Partido, mas por outro a
realidade em torno dela deixava-a crescentemente desconfortável. Era como
se tivesse ocorrido uma cisão da sua personalidade; acreditava no Partido e
não acreditava. Por via das dúvidas, e por decisão da parte da mente que se
inquietava com o que se passava, meses antes pedira um passaporte e ele
chegara na semana anterior. Quem sabe se um dia partiria para um lugar
melhor.
Levou uma hora a chegar ao controlo de segurança. A operar o checkpoint
estavam vários homens fardados com uma tarjeta a dizer “assistente de
polícia” cosida às mangas; eram os bao’an, uns dos milhares de seguranças
privados contratados pela polícia. Pelos vistos eram eles que se encontravam
encarregados de operar aqueles postos de controlo. Cada pessoa foi
revistada com cuidado, mostrando tudo o que tinha nas malas e na roupa, e
depois passava pelo controlo de metais.
O mesmo aconteceu quando chegou a vez de Madina. A seguir à revista,
um bao’an abeirou-se dela com um papel e uma caneta na mão.
“Onde deseja ir?”
“A Ürümqi.”
“Os seus documentos?”
A rapariga mostrou-lhos.
“Está tudo aqui.”
O bao’an veri cou ao pormenor os dados do seu cartão de identidade de
residente e comparou a fotogra a aí xada com o rosto dela. Conferia. A
seguir inspecionou o documento passado pela senhora Ting, a chefe da
comissão do bairro onde Madina vivia, a autorizá-la a deslocar-se para fora
da cidade. Uma vez tudo con rmado, devolveu-lhe os documentos e, de
questionário na mão, passou às perguntas.
“Qual o propósito da sua deslocação a Ürümqi?”
“Vou visitar a família.”
“E além da família?”
“Só vou estar com a família. Mais ninguém.”
“Nomes, morada e contactos da família?”
Deu os nomes de Erbakyt e Dilnaz, mais o respetivo endereço e números
de telemóveis. O bao’an tudo anotou. A seguir formulou mais perguntas, a
que ela respondeu. Quando se deu por satisfeito, o agente de segurança que
operava o checkpoint fez-lhe sinal para seguir em frente.
“Pode passar.”
Sempre atrás do cazaque bem vestido com quem conversara ao longo de
todo o tempo em que estivera na la, Madina meteu-se numa nova la, esta
para os bilhetes. Adquiriu o seu ingresso para Ürümqi e foi para a
plataforma esperar pelo comboio. Quando a composição apareceu, subiu
para a carruagem que lhe estava consignada e acomodou-se no lugar
previamente marcado. O cazaque bem vestido cou sentado diante dela.
“Peço desculpa, mas não pude deixar de escutar uma parte do seu
interrogatório”, confessou Madina quando já ambos estavam instalados nos
seus lugares. “Do que percebi, o senhor é um dos diretores da Corporação
Nacional do Petróleo. Nada mau para um cazaque.”
“Tenho bons contactos no Partido.”
Isso já ela tinha percebido. Na China, não só ninguém subia na vida sem
bons contactos no Partido como todos os que prosperavam estavam n’Ele
liados, mesmo que em segredo.
“Deve ganhar bem…”
O cazaque sorriu.
“Não me queixo.”
“Mas, pelo que me foi dado a entender, o senhor vai instalar-se no Hotel
Yilite.”
“Correto.”
O olhar dela percorreu-lhe o fato; era de bom tecido e excelente corte,
provavelmente oriundo do Ocidente, o que signi cava que devia ter custado
uma boa nota.
“Desculpe a indiscrição, pois estou a meter o nariz em matéria que não me
diz respeito, mas… porquê um hotel de quatro estrelas? No m de contas, o
senhor parece ter dinheiro para ir para um de cinco estrelas. Há vários
desses em Ürümqi. Porquê o Hotel Yilite?”
O sorriso do cazaque tornou-se forçado.
“Já vi que a menina não está habituada a frequentar hotéis em Xinjiang”,
observou. “Caso contrário saberia que a maior parte dos hotéis de cinco
estrelas estão reservados a chineses han ou a estrangeiros. Nós, os das
minorias, sejamos uigures ou cazaques, não podemos lá pernoitar mesmo
que tenhamos os bolsos a abarrotar de dinheiro. Uma vez entrei num desses
hotéis e pus-me a falar inglês. O rececionista achou que eu era estrangeiro e
disse-me que havia vaga. Pediu-me o passaporte e eu mostrei-lhe o meu
bilhete de identidade chinês. Ao constatar que o documento me listava
como pertencendo a uma etnia minoritária da China, o rececionista disse
imediatamente que a nal não havia vagas. Sabe porquê? Não pertencemos à
raç… uh… à etnia superior.”
O comboio deu nesse momento um solavanco e começou a movimentar-
se. Engolindo em seco, Madina desviou o olhar para a janela e aí cou a
mirar longamente a paisagem que se estendia para fora de Karamay, um
deserto pontuado por estruturas yardang como se fossem estátuas de pedra e
areia num terreno tão árido e seco quanto a vida das minorias étnicas que
viviam em Xinjiang. Os uigures, tal como os cazaques, não passavam de
cidadãos de segunda classe na sua própria terra.
XXVIII

A multidão de Budas era a primeira coisa que saltava à vista a qualquer


pessoa que entrava no templo de Gangaramaya, o mesmo se podendo dizer
da variedade dessas estátuas; havia por toda a parte Budas de pedra, de ouro,
de mar m e até de plástico, para além de stupas e de enormes dentes de
elefante. Mas, por mais que se esforçasse por se interessar por aquilo, Tomás
Noronha não conseguia; tinha a mente ocupada pelas suas preocupações.
Decidira visitar o complexo budista de Colombo numa tentativa de
desanuviar a cabeça e combater a depressão em que caíra desde o fracasso
da operação de Hambantota. Não se podia dizer que estivesse a ser bem-
sucedido.
Quando se dirigia para o santuário onde era exibida uma madeixa de
cabelo atribuída a Buda, o smartphone tilintou a anunciar-lhe a receção de
uma mensagem. Consultou o aparelho e viu que se tratava de um recado de
Charlie Chang.

Langley localizou-as. Par mos imediatamente. Estou a chegar


ao Gangaramaya. Despache-se.

O português quase saltou de alegria; a CIA dera com o rasto de Maria Flor.
Chang a nal tinha razão quando dissera que nada estava perdido.
Rodou nos calcanhares e, esquecendo a madeixa de cabelo de Buda,
encaminhou-se em passo lesto para a saída. O que era aquilo de partirem
imediatamente? Partirem para onde? Sabia que não valia a pena estar a
interrogar-se naquele momento; em breve teria respostas. Enquanto
atravessava apressadamente o complexo, voltou a espreitar a mensagem, pois
as primeiras duas palavras eram verdadeiramente mágicas. Langley
localizou-as. Reparou nesse momento num detalhe que o deixou
perturbado. Gangaramaya. O nome do templo onde se encontrava.
Matutava ainda no assunto quando desaguou na rua e viu o jipe
estacionado à sua espera, Fonseka ao volante e Chang com a porta traseira
aberta à sua espera. Saltou para o interior e disparou na direção do
americano.
“Como sabia que eu estava no Gangaramaya?”
Chang sorriu.
“Nunca lhe disseram que sou da CIA?”, questionou Chang em tom irónico.
“O meu trabalho é saber tudo. Devia agradecer-me por isso.”
Fecharam a porta e o jipe partiu.
“Vocês andam a espiar-me?”
O americano não respondeu; em vez disso, pegou num pequeno saco
preto que Tomás de imediato reconheceu.
“É o seu computador?”
“Ah, também foram ao meu quarto buscar as minhas coisas sem a minha
autorização…”
“Já lhe disse que temos de partir imediatamente. Con rme-me apenas que
este é o seu computador.”
“Sim, é. E então?”
“Já vai ver.”
O operacional da CIA abriu o saco preto e retirou o computador portátil
do interior. Depois de o inspecionar super cialmente, pegou num pequeno
instrumento metálico e, sem mais, esventrou o laptop.
“Ei!”, alarmou-se o português. “Está a estragar-me o computador! Isso
custou-me uma nota!”
Chang ignorou o protesto e, usando uma lupa, inspecionou o mecanismo
no interior do laptop. Parecia saber o que procurava porque a inspeção
estava centrada na motherboard, a estrutura que junta todos os componentes
do computador, desde o CPU ao hard drive, e os põe a comunicar uns com
os outros. A certa altura xou os olhos num ponto especí co da
motherboard.
“Ah-ha!”, exclamou. “Aqui está o motherfucker!”
Tomás espreitou, tentando perceber o que se passava.
“O mother… quê?”
O americano virou a motherboard para o historiador e, manobrando a
lupa, apontou para o ponto que identi cara.
“Está a ver este microchip aqui?”
Tomás via-o; tinha o tamanho de um grão de arroz.
“O que tem isso?”
“Foi instalado pelo Partido Comunista Chinês.”
“Perdão?”
“Para o espiar.”
A informação alarmou o português.
“O quê?! Eles entraram no meu quarto, pegaram no meu computador e…”
“Eles não entraram no seu quarto nem pegaram no seu computador”,
corrigiu Chang. “Eles fabricaram o computador assim. Percebe? Não sei se
sabe, mas uma grande parte dos computadores que se vendem no mundo,
mesmo os americanos, são produzidos na China. O que se passa é que o
Partido Comunista Chinês instalou neles em segredo este microchip. O
microchip serve para permitir que um hacker que saiba da existência deste
mecanismo, portanto um hacker do Partido Comunista Chinês, abra
secretamente uma backdoor para os sistemas de computador nos quais estas
motherboards estão instaladas e veja tudo o que você está a fazer e até opere
o computador à sua revelia. Ou seja, você está tranquilamente a trabalhar no
computador e o Partido Comunista Chinês, quando quiser, usa o microchip
secreto para entrar no seu sistema, espiá-lo, roubá-lo ou até sabotar as suas
atividades.”
“Caramba!”, exclamou o português, atónito. “Eles podem fazer isso no
meu computador especi camente?”
“No seu ou no de qualquer pessoa. Quem quer que possua um
computador fabricado na China está em risco. Todos os computadores
usados pela CIA ou pela NSA ou por qualquer agência americana passam
por um controlo de segurança que os abre previamente para os inspecionar
e retirar este dispositivo de espionagem instalado na fábrica por ordens do
Partido Comunista Chinês. Mas… e as empresas? E os cidadãos
particulares? Esses estão totalmente indefesos. E ignoram que o estão.”
“Por que razão não me avisou antes de que os computadores fabricados na
China podem ter dispositivos de espionagem?”
O homem da CIA meteu um alicate com umas pontas muito nas na
motherboard do computador e, com um movimento rápido mas preciso,
arrancou o microchip espião.
“Já está”, disse, mirando o minúsculo chip preso na ponta do alicate. “O
computador cou limpo.”
Tomás pegou no microchip e analisou-o.
“Incrível, isto.” Voltou-se para o americano e repetiu a pergunta. “Porque
não me avisou antes?”
“Antes, o Partido Comunista Chinês não sabia que você andava atrás de
Dragão Vermelho”, respondeu Chang enquanto arrumava os instrumentos
que usara para abrir o laptop e neutralizar o chip espião. “Mas depois da
operação de ontem em Hambantota já sabe. O seu portátil tinha de ser
limpo. De qualquer modo, não o pode usar ainda.” Estendeu-lhe a mão com
a palma aberta para cima. “Passe-me o seu telemóvel.”
O português obedeceu sem hesitações e entregou-lhe o smartphone.
“O meu telemóvel também está a ser espiado pelos chineses?”
Desta feita, em vez de abrir o aparelho, o homem da CIA guardou-o no
saco, fazendo o mesmo com o computador portátil.
“Depois de Hambantota, não tenha dúvidas”, respondeu. “O Partido
Comunista Chinês desenvolveu um poderosíssimo instrumento de hacking a
que chamámos Ariabody. Serve para entrar remotamente num computador
e copiar, apagar ou criar pastas sem que o proprietário disso se aperceba, ao
mesmo tempo que analisa todas as buscas online feitas pelo smartphone. No
m, apaga os rastos de que esteve a vasculhar o aparelho. A coisa chegou a
um ponto tal que os governantes europeus já se reúnem em cimeiras da
União Europeia sem telemóveis, para não serem escutados pelos russos ou
pelo Partido Comunista Chinês. É por isso que o seu smartphone e o seu
laptop terão agora de ser vistoriados e limpos pelos nossos técnicos de
cibersegurança antes de você poder voltar a usá-los. Isto é absolutamente
imprescindível para garantir a segurança da nossa operação.”
Tomás cou a olhar para o saco onde o americano guardara os seus
aparelhos; sem o computador portátil, e sobretudo sem o telemóvel, sentia-
se nu. Mas achou que estava a perder tempo porque nesse momento as
questões da cibersegurança não eram o mais importante para si. O que
realmente lhe importava era Maria Flor.
“Disse-me na sua mensagem que a minha mulher foi localizada…”
“Foi a informação que Langley me enviou há pouco”, con rmou Chang.
“Com base nos dados que mandei para a Agência, os satélites identi caram
o Harbin Z20J que ontem saiu de Hambantota e acompanharam o voo até
um porta-helicópteros do Partido Comunista Chinês ao largo da costa sul
do Sri Lanka. Os nossos satélites estão agora a seguir o porta-helicópteros e
os nossos sistemas intercetaram e analisaram as mensagens trocadas entre o
porta-helicópteros e as autoridades do Partido Comunista Chinês. Parece
que há novidades.”
“Quais?”
“Isso não me disseram. A Agência convocou-nos para decidir o próximo
passo. Washington considera absolutamente imperativo deitarmos a mão ao
dossiê de Dragão Vermelho. Custe o que custar.”
A atenção de Tomás regressou ao saco onde o americano guardara o seu
telemóvel e o seu computador portátil.
“Quando me poderá devolver o smartphone e o laptop?”
“Quando tiverem sido inspecionados e limpos pelo nosso pessoal da
cibersegurança, já lhe disse.”
“Vocês estão armados em santinhos, mas quem me garante que a própria
CIA não me vai instalar os seus mecanismos de espionagem? No m de
contas, os chineses não fazem nada que vocês não façam, não é verdade?”
A pergunta ia levar resposta de Chang, mas nesse momento o jipe
imobilizou-se numa plataforma. Mantendo o motor ligado, Fonseka puxou
o travão de mão.
“Chegámos!”
O anúncio levou o português a espreitar para o edifício ao lado do qual o
todo-o-terreno tinha parado. Tratava-se do Aeroporto Internacional de
Bandaranaike, o principal aeroporto do Sri Lanka.
“Vamos viajar?”
Chang saltou para o exterior e foi ajudar Fonseka a retirar as bagagens.
“Eu tinha dito que partíamos imediatamente, não tinha?”
Tomás foi também buscar a sua mala e despediu-se do cingalês antes de
seguir com o operacional da CIA para o terminal.
O aeroporto estava cheio de turistas. Uma vez lá dentro, os dois homens
passaram pelo painel gigante das Departures, assinalando todos os voos que
iam descolar e as respetivas companhias aéreas, horas e destinos.
“Qual é o nosso?”
“Nenhum desses”, respondeu o operacional da CIA sem parar. “Temos um
avião militar estacionado na pista à nossa espera.”
Devia ter percebido que não usariam voos comerciais. No m de contas,
não iriam fazer uma viagem normal. Aquela era uma missão da agência
americana de espionagem e corriam contra o tempo. O recurso a um avião
próprio poupar-lhes-ia horas preciosas.
“Qual é o nosso destino?”
Chang arrastou-o para a zona VIP, onde presumivelmente um
despachante contratado pela CIA trataria das formalidades e em poucos
minutos colocá-los-ia no avião.
“A base aérea de Kadena.”
Como qualquer historiador, Tomás estava muito à vontade em geogra a.
Aquele não era, porém, um nome habitual nos mapas, pelo que a
identi cação do destino não foi imediata. A exemplo do que tantas vezes lhe
sucedera ao longo da vida, foram os seus conhecimentos de história que o
ajudaram. Lembrou-se dos estudos académicos que levara a cabo sobre a
passagem dos exploradores portugueses pelas ilhas Ryukyu e a arte nanban e
foi assim que localizou Kadena.
Okinawa. Japão.
XXIX

Sentada no Luonaer Café, a dois passos do recentemente estreado Parque


do Século, Madina observava estupefacta a sua amiga Reyhan. A professora
uigure estava visivelmente nervosa e engolira dois chás seguidos numa
tentativa falhada de se acalmar.
“Tenho de desabafar”, murmurou Reyhan depois de se certi car de que
ninguém as estava a ouvir. “Tenho mesmo de desabafar!” Inclinou-se para a
frente, como se fosse partilhar um segredo. “Sabes que agora proibiram que
se falasse uigure ou cazaque na escola? Só chinês.”
Não parecia a Madina uma grande novidade.
“Já me tinhas contado”, lembrou-lhe ela. “As aulas são quase todas em
chinês.”
“Não são só as aulas. Agora é tudo. Tudo. As aulas, as conversas nos
corredores e no recreio… tudo. Não se pode pronunciar uma única palavra
em uigure ou em cazaque ou em qualquer língua das minorias no perímetro
da escola. Só chinês. Até na rua. Os professores, os alunos… só podem falar
chinês. Mais nada.”
“Mas vocês não têm miúdos uigures e cazaques de seis anos que só
entendem as suas línguas?”
“Claro que temos. Mas no perímetro da escola os coitados só podem falar
chinês.”
“Como assim, só podem falar chinês? Eles nem sequer entendem
chinês…”
“Pois é, mas só podem falar chinês.”
A resposta deixou Madina sem saber o que pensar.
“Ouve, isso é impossível. Se não entendem chinês, as crianças só podem
evidentemente falar entre elas em uigure ou cazaque.”
“Não podem.”
“Ora ora. Como fazem para as impedir?”
A amiga professora voltou a olhar para os lados, de modo a assegurar-se
mais uma vez de que ninguém a escutava.
“Amordaçam-nas.”
Madina pestanejou.
“Perdão?”
“É como te estou a dizer”, insistiu Reyhan num sussurro tenso. “Se uma
criança uigure disser nem que seja uma palavra em uigure, uma palavrinha
só, temos de lhe pôr uma ta adesiva na boca.”
“O quê?”
“São as ordens. O professor que não cumprir é castigado e pode ser
despedido. Temos de lhes pôr uma ta adesiva na boca e os miúdos cam
assim o dia todo. Estás a ver a cena? As crianças han andam todas pimponas
na escola, enquanto as uigures, as cazaques, as huis, as quirguizes e todas as
outras andam com adesivos na boca o tempo todo. É esta a minha vida
agora. Quanto mais novas são as crianças, menos chinês sabem e,
consequentemente, com mais adesivos andam. Choram com adesivos na
boca! É… é de partir o coração.”
Madina estava boquiaberta.
“Não pode ser.”
Uma lágrima deslizou pelo rosto da professora.
“É horrível! Horrível!”
“Os pais aceitam isso?”
“Tiramos-lhes os adesivos antes de as irem buscar”, explicou. “Alguns pais
já nos vieram pedir explicações, pois como é evidente os miúdos queixam-se
em casa, mas as ordens do Partido são para desmentir tudo.”
“E os pais acreditam nos desmentidos?”
“Achas? A maior parte dos cazaques e dos quirguizes estão a retirar as
crianças da escola e a ir para o Cazaquistão e para o Quirguistão. Já para os
uigures é mais difícil, como deves calcular, porque não existe nenhuma
pátria uigure para onde possamos ir.”
Tudo aquilo parecia a Madina um pesadelo.
“Mas porque estão eles a fazer-nos isto? É que não é só nas escolas. É em
toda a parte e em tudo. Discriminam-nos ostensivamente, impedem-nos de
falarmos a nossa língua, destroem as nossas casas tradicionais e os
elementos da nossa cultura, estão cada vez a vigiar-nos mais… assim não se
consegue viver.”
“E piorou com aqueles atentados em Pequim e em Kunming.”
Tratava-se de uma referência a recentes ataques suicidas envolvendo
veículos e explosivos, algo de muito diferente das revoltas cíclicas dos
uigures. Nos protestos de 2009 em Ürümqi, por exemplo, os estudantes
estavam desarmados e até empunhavam bandeiras chinesas, o que não
impediu a polícia de abrir fogo. Já em Pequim e em Kunming, cinco anos
depois, os atentados tinham claramente sido planeados e envolviam táticas
jihadistas, incluindo esfaqueamentos indiscriminados.
“Mesmo que haja para aí uns malucos, isso não signi ca que todos os
uigures, cazaques e quirguizes sejam malucos”, argumentou Madina.
“Estamos há décadas a ser discriminados e maltratados na nossa própria
terra. Se nos tratassem como cidadãos de pleno direito e não como fengjian,
as coisas não teriam chegado a este ponto. Mas quem gosta de ser
maltratado e humilhado, ainda para mais na sua terra? Claro que é
inevitável que as pessoas reajam sempre que…”
O telemóvel tocou nesse instante, interrompendo a conversa. Madina
veri cou o número. Não o conhecia. Intrigada, pediu desculpa à amiga e
carregou no botão verde para atender. Do outro lado da linha alguém se
identi cou como sendo da Administração de Entradas e Saídas do
Ministério da Segurança Pública, a autoridade emissora de passaportes na
China.
“Temos aqui a informação de que pediu recentemente um passaporte e que
este lhe foi entregue”, disse a voz ao telefone num chinês tão correto que só
poderia ser um han. “Con rma?”
“Sim, é verdade. Algum problema?”
“Precisamos que volte cá para o entregar.”
“Entregar o meu passaporte?”
“Sim.”
“Mas… porquê?”
“Toda a gente com passaporte tem de o entregar, são as ordens. Mas não se
preocupe, não é nada de grave. Estamos apenas a modernizar os documentos
para tornar a vida de todos mais fácil. Precisamos de introduzir no novo
sistema todos os dados do passaporte e isso só é possível com ele aqui.”
“Mas o meu passaporte é novo…”
“O sistema só agora mudou, não podemos fazer nada. Mas que tranquila,
isto é uma coisa rápida. Devolver-lhe-emos o passaporte em dois ou três dias.”
Madina respirou fundo; se havia coisa que aprendera ao longo da sua vida
é que nada podia derrotar a burocracia do Partido.
“Bem, está bem. Passo aí para a semana.”
“Convinha que fosse hoje.”
“Hoje?”
“Sim, hoje. O processo está agora a começar e na próxima semana teremos
milhares e milhares de passaportes para processar, o que signi ca que
levaremos mais tempo a devolver o seu. Talvez meses. Mas se vier já hoje
despachar-lhe-emos a coisa em dois ou três dias, pois há ainda poucos
processos.”
Novo suspiro de Madina. A última coisa que lhe apetecia naquele
momento era tratar de assuntos burocráticos, e se havia entidade que
adorava burocracia era o Partido. Além do mais, as coisas que Reyhan lhe
estava a contar eram demasiado graves para que interrompesse a conversa
de um momento para o outro. Mas o que podia fazer? Se tinha
a oportunidade de resolver aquilo em dois ou três dias, isso era bem melhor
do que esperar meses pela devolução do passaporte.
“Está bem, já aí vou.”
Contrariada, explicou a situação à amiga, pediu-lhe mil desculpas
e levantou-se. Meteu-se na sua scooter e foi rapidamente ao apartamento
buscar o passaporte. Depois voltou para a scooter e seguiu para o edifício da
Administração de Entradas e Saídas do Ministério da Segurança Pública em
Karamay.
Deparou-se com um razoável número de pessoas concentradas no
organismo emissor de passaportes, evidentemente todas convocadas para
entregar o respetivo documento para efeitos de modernização tecnológica.
Havia han e gente de todas as etnias minoritárias, o que a tranquilizou.
Tratava-se de uma convocatória geral, sem dúvida uma ordem de âmbito
nacional. Meteu-se na la e aguardou.
Quando chegou a sua vez, abeirou-se do guiché e entregou o seu
passaporte. A funcionária registou os dados dela no computador e guardou
o passaporte numa caixa onde se amontoavam já centenas de passaportes.
Deu-lhe um recibo e olhou para a pessoa atrás de Madina.
“O seguinte.”
A rapariga ia afastar-se, mas travou o movimento e voltou a encarar
a funcionária.
“Quando me entregam o passaporte?”
“Daqui a uma ou duas semanas.”
“Mas há bocado disseram-me ao telefone que levava apenas dois ou três
dias…”
“Ou isso. O seguinte.”
A resposta deixou Madina preocupada. Num momento diziam que
o processo levava apenas uns dias, meia hora depois já lhe falavam em
semanas. O que vinha a ser aquilo? Olhou com atenção para todas as
pessoas que haviam a uído ao local e só nesse momento se apercebeu de
que todos os uigures e cazaques deixavam os passaportes nos guichés para
efeitos de modernização, conforme lhes fora explicado, mas os han saíam
com os passaportes na mão. Os mesmos passaportes com que tinham
entrado.
O que signi cava aquilo? Só os passaportes das minorias precisavam de
ser modernizados?
XXX

Apesar de se tratar de um jato da Força Aérea americana, o C-21A


dispunha de todas as comodidades de um pequeno avião para executivos.
Tinha oito lugares para passageiros, um bar e até ecrãs de televisão nas
costas dos assentos. Tanto conforto não admirava, uma vez que aquele
aparelho era a nal a versão militar do Learjet 35A, assumidamente um jato
para milionários. Descontraídos a comer os amendoins e a beber o whisky
que o copiloto do 733.º Air Mobility Squadron da USAF, no seu papel de
comissário de bordo, lhes oferecera, Tomás Noronha e Charlie Chang
depressa tiraram partido de serem os únicos passageiros do voo e, cientes de
que poderiam em breve enfrentar momentos difíceis, esforçaram-se por
descontrair antes de chegarem a Okinawa.
O operacional da CIA selecionou no televisor o último James Bond, mas
Tomás sentia-se demasiado irrequieto para ser capaz de permanecer duas
horas parado a olhar embasbacado para um ecrã. Não conseguia deixar de
pensar no que a mulher estaria nesse momento a passar e de considerar a
possibilidade, aliás muito provável, de nunca mais a voltar a ver.
Olhou de relance para o companheiro de viagem. Para sua surpresa,
reparou que ele não parecia excessivamente entusiasmado com a nova
aventura cinematográ ca do agente de Sua Majestade; surpreendeu-o
mesmo a bocejar.
“Posso fazer-lhe uma pergunta delicada?”
Ao ver-se interpelado, Chang desviou a cara para o português.
“Hmm?”
“Você é americano, correto?”
Com base nesta pergunta, e em perguntas semelhantes que escutara ao
longo da vida, o seu interlocutor percebeu logo o sentido da interpelação.
“Quer saber por que motivo, sendo eu etnicamente chinês, estou a agir
contra a China, assim traindo a minha pátria de origem…”
Tomás corou; não era bem desse modo que pensara colocar as coisas.
“Quer dizer… uh… o que eu gostaria de saber era se… en m, se não sente
um certo con ito por estar envolvido neste trabalho que, de facto, coloca em
questão a China. Mesmo que tenha nascido na América, as suas origens
estão na China, não é verdade?”
O operacional da CIA tou-o com uma expressão desconcertantemente
serena.
“Adoro a China.”
“Pois, mas… ei-lo aqui a operar contra os chineses. Está envolvido numa
operação que põe em causa a China, quer roubar os mais importantes
segredos da China e vi-o em Hambantota a matar um chinês com a sua
espingarda…”
“Adoro a China”, repetiu Chang com intensidade, de modo a não deixar
dúvidas quanto aos seus sentimentos. “Não nasci na América, mas em
Xangai, e aprendi a falar chinês antes de falar inglês. O meu prato favorito é
pato à Pequim, sempre que posso bebo cerveja Tsingtao, o tipo de música de
que mais gosto é baisha xiyue e vibro com os lmes do Bruce Lee.” Arqueou
as sobrancelhas, provocador. “Alguma vez despiu um chipao a uma mulher?”
“Nunca tive esse prazer.”
Fez uma expressão sonhadora, como se recordasse um episódio especí co
da sua vida.
“Oh! É uma experiência única…”
Tomás sentiu uma certa curiosidade em conhecer os pormenores dessa
“experiência única”, mas não era isso o que estava em questão nesse
momento.
“Se assim é, por que razão aceita envolver-se em operações contra
a China?”
“Mas, meu caro, eu nunca levantei um dedo contra a China”, assegurou o
americano. “Nem uma única vez na vida. Pelo contrário, sempre a defendi.”
O português cou desconcertado, pois tudo o que vira nas últimas
quarenta e oito horas contrariava esta a rmação.
“Bem… quer dizer…”
Chang respirou fundo, como se se resignasse a falar sobre algo de que não
queria manifestamente falar.
“A minha família é originária de Anhui, uma província perto de Xangai.
Os meus pais e os meus avós viviam numa aldeia no sopé das montanhas
Huangshan. Um dia, ainda antes de eu nascer, os comunistas iniciaram as
coletivizações forçadas, dizendo que a economia iria dar um salto em frente
e que haveria abundância para todos. A comida que produzíamos passou a
ser nacionalizada e levada para que outros a comessem, sobretudo os do
Partido. Os alimentos começaram então a faltar na aldeia e os comunistas
apareceram com esquadrões armados, acusando os aldeãos de esconderem a
produção e torturando-os para que revelassem onde estavam esses
esconderijos. Um tio-avô meu foi agelado com um ferro incandescente. O
problema é que não havia alimentos, pois os comunistas já tinham
requisitado toda a produção da aldeia numa das anteriores visitas. Como
acharam que o meu tio-avô estava a mentir, depois de o torturarem
enterraram-no vivo na esperança de aterrorizarem a família e porem toda a
gente a confessar tudo.”
“Isso aconteceu com a sua família?”
“Aconteceu com a minha família, aconteceu com toda a gente no campo.
Do que me contaram os meus familiares mais velhos, as coletivizações
foram uma calamidade por todo o país.”
“Se os meus conhecimentos de história estão corretos, isso aconteceu
durante a campanha do Grande Salto em Frente, entre 1957 e 1961”, indicou
Tomás. “Coletivizações, esquadrões de requisição, detenção em massa de
agricultores e tortura, enterros de pessoas vivas, fome.”
“Muita fome”, con rmou Chang. “Quando já não havia nada para comer,
as pessoas passaram a alimentar-se de ervas fervidas, de cascas de árvores,
de folhas de álamo… de qualquer coisa que encontrassem. Mas não chegava
para todos. Milhões e milhões morreram à fome. Na aldeia dos meus pais
morreram cinquenta por cento dos habitantes, incluindo a mãe do meu pai e
um irmão da minha mãe. Cinquenta por cento da população da aldeia, veja
lá! O meu pai viu a mãe dele transformada num esqueleto com pele. Falava
por sussurros e nos últimos dias nem para isso tinha força.”
Tomás já tinha lido sobre a grande fome provocada pelo Partido
Comunista Chinês, mas era a primeira vez que sobre o acontecimento
escutava um testemunho, mesmo que indireto.
“Não consigo imaginar uma coisa dessas…”
“Chegou um momento em que os sobreviventes da aldeia dos meus pais se
aperceberam de que iriam morrer todos. Ninguém conseguiria sobreviver. A
menos que se zesse uma escolha difícil. Muito difícil mesmo. Os que ainda
se conseguiam mexer juntaram-se e chegaram a um acordo. Iriam comer as
crianças mais pequenas.”
Ao escutar isto, o historiador sentiu um baque. Sabia do canibalismo
ocorrido durante a grande fome desencadeada pelo Partido Comunista
Chinês, de resto semelhante ao canibalismo das grandes fomes provocadas
pelo Partido Comunista Soviético no tempo de Lenine e depois de Estaline,
mas desconhecia que na China aquele ato de desespero havia sido decidido
em conversas entre aldeãos.
“Eles reuniram-se para acordar que se comessem crianças?”
Com um movimento a rmativo da cabeça, Chang retomou a história.
“O meu avô entregou a lha, que era mais nova que o meu pai, aos nossos
vizinhos. Em troca, os nossos vizinhos entregaram à minha família a sua
bebé. Parece que o momento de troca de crianças foi lancinante. A carne da
bebé que a minha família comeu durou cinco dias e a carne da minha tia
alimentou os nossos vizinhos durante uma semana.”
Tomás estava embasbacado. Permaneceu um longo momento a tar o
rosto do seu interlocutor, tentando descortinar-lhe as emoções, mas o
americano manteve-se de olhos baixos.
“E o seu pai? Também… também comeu a bebé?”
“Que remédio.”
Meteu a mão sobre a boca.
“Meu Deus!”
“Comeu a bebé… mas não sabia que era a bebé. Na verdade, não sabia de
nada. Um dia os pais dele meteram-lhe carne no prato e… e comeram. Tão
simples quanto isso. Quanto à irmã do meu pai, os meus avós disseram
apenas que ela tinha ido a Xangai buscar comida. Só muitos anos mais tarde
o meu pai descobriu a verdadeira história.”
“Como reagiu você quando soube?”
“Como acha que reagi? Um dia, depois de uma sessão de propaganda na
escola a glori car a Grande Marcha e os feitos grandiosos de Mao, apareci
em casa a dizer que me queria liar no Partido. O meu pai cou estarrecido
e foi então que me contou tudo e me obrigou a jurar segredo. O Partido
prenderia quem quer que falasse no que acontecera durante o Grande Salto
em Frente.”
“Já não se liou…”
“Abandonei logo a ideia. Mas nunca mais se falou no que acontecera à
nossa família durante a grande fome. Passou a ser um segredo. Um tema
tabu lá em casa.”
“E como foi você parar à América?”
“Quando era adolescente nutria uma verdadeira obsessão pela
matemática”, contou Chang numa voz mais solta, graças à mudança de tema.
“A minha família tinha conseguido amealhar uma boa maquia graças a um
negócio em que se meteu quando Deng Xiaoping introduziu o regime de
‘um país, dois sistemas’ e mandou-me estudar para Stanford, na Califórnia.
Não sei se conhece o tipo de alunos que frequenta essa universidade…”
“Nerds da informática.”
O americano riu-se.
“Acho que se lhes pode chamar isso”, aceitou. “Eu próprio era um nerd.
Tirei um curso de programação para computadores e fui trabalhar numa
empresa em Silicon Valley. Integrei-me tão bem que até adotei um nome
inglês, Charles, prática aliás normal em chineses que emigram. Acontece
que o Partido Comunista Chinês tem como política pôr os chineses que
vivem no estrangeiro a trabalhar secretamente para o Partido. Chamam a
isso frente unida. Apelam ao sentido patriótico das pessoas, dizendo que é
tudo para ajudar a desenvolver a China. Alguns desses chineses aderem de
livre vontade, animados pelo nacionalismo. A maior parte, no entanto, não o
quer fazer, pois não só essas pessoas consideram que isso seria desleal para
as empresas e o país onde trabalham e vivem como percebem muito bem
que o trabalho secreto que o Partido lhes exige não é exatamente em prol da
China, mas em prol do Partido. Ora, os chineses em geral não têm ilusões
quanto ao que o Partido realmente é.”
“A que tipo de trabalho secreto se está a referir?”
“Tudo o que o Partido entender. Espionagem industrial, espionagem
política, ações de propaganda, ações de intimidação, ações de…”
“Ações de intimidação?”
“Sim, claro. Por exemplo, se uns tibetanos forem a uma universidade falar
sobre a repressão no Tibete, os estudantes chineses dessa universidade que
pertençam à frente unida, e até de outras universidades das redondezas,
recebem ordens do Partido para protestarem junto das autoridades ou para
comparecerem e intimidarem os tibetanos… en m, para fazerem tudo o que
leve ao cancelamento do evento. Ou se uma universidade organizar uma
conferência sobre direitos humanos na China, outro exemplo, nanciadores
chineses dessa universidade recebem instruções do Partido para
contactarem o reitor e ameaçarem suspender os nanciamentos caso o
evento vá para a frente, pois ‘ofende as sensibilidades do povo chinês’. Tudo
isso é trabalho executado pela frente unida mediante ordens do Partido.”
“Isso é mesmo feito?”
“Constantemente. Sabendo isso, há muitos chineses que se recusam a
participar na frente unida. Então o Partido contacta a família dos relutantes
na China e faz-lhe ameaças. A família ca borrada de medo e, em pânico,
contacta imediatamente os relutantes. Encostados à parede, estes lá acabam
por fazer o que não queriam fazer.”
Tomás apontou para o seu interlocutor.
“Não me diga que o contactaram a si…”
“Estava eu tranquilamente a trabalhar em Silicon Valley e um tipo do
consulado da China em Los Angeles apareceu-me ao almoço e, sempre com
bons modos e invocando o meu amor à pátria, pediu-me para integrar a
frente unida local e passar-lhe uns documentos con denciais da minha
empresa sobre circuitos integrados. Respondi-lhe que não faria uma coisa
dessas, até por causa do que acontecera à minha família durante a grande
fome. Ele insistiu e insistiu. Vendo, no entanto, que eu não cedia, mudou de
repente o tom de voz e aconselhou-me a pensar na minha família.”
“O tipo disse-lhe mesmo isso?”
“É um procedimento-padrão para os recalcitrantes. Fiquei nervoso, claro,
mas não era capaz de trair a con ança que a minha empresa depositara em
mim nem ultrapassar o ressentimento por causa das histórias do passado.
Disse-lhe que não o faria. Dois dias depois, o meu pai telefonou-me, muito
a ito, a perguntar se eu queria causar a perdição da família. Quando
estávamos a falar ao telefone, uma voz apareceu em linha e disse: ‘Pense na
sua família.’ Foi então que a chamada caiu.”
“E o que fez você?”
“Fiz o que toda a gente faz nestas circunstâncias: disse que obedecia e que
não incomodassem mais a minha família, por favor. Fui à noite à empresa
para copiar os documentos à socapa, mas na hora da verdade não o consegui
fazer. Não consegui. Os tipos do Partido Comunista Chinês caram
furiosos, acusaram-me de traição à pátria e mais não sei quê. Na semana
seguinte ligou-me a minha mãe a chorar e em pânico, a dizer que o meu pai
tinha sido preso, ninguém sabia onde ele estava, falava-se que tinha roubado
o Partido… en m, um caos. A única maneira de o salvar, percebi, era
entregar-lhes os tais documentos sobre os circuitos integrados da minha
empresa. Quando reuni coragem e me preparava para ir à empresa outra vez
para os fotocopiar às escondidas, uma prima minha que vive em São
Francisco ligou-me a dizer que parecia que o meu pai tinha sofrido um
ataque cardíaco na prisão e que teria morrido.”
“Oh.”
“Sabe o que z no dia seguinte? Contactei a CIA e candidatei-me para
trabalhar lá.”
Fez-se um silêncio pesado entre ambos, apenas rompido pelo murmúrio
contínuo dos dois motores do avião.
“Foi por isso que decidiu combater a China?”
Chang abanou a cabeça com veemência.
“Eu não estou a combater a China”, insistiu. “Nunca o faria. O que estou a
combater é o Partido Comunista Chinês, o que é bem diferente. Se reparou
bem em todas as minhas palavras desde que nos conhecemos em Amritsar,
sempre de ni o inimigo como sendo o Partido Comunista Chinês. Nunca a
China. A China é eterna. A China é sábia e harmoniosa. A China jamais
faria mal a uma pessoa boa e inofensiva como o meu pai nem adotaria
políticas que levassem famílias a trocar crianças para comer. Mas nunca o
país enfrentou um inimigo tão grande, uma ameaça tão profunda, um
perigo tão mortal quanto o representado pelo seu maior e mais cruel
inimigo.”
“O Partido Comunista Chinês.”
O americano assentiu.
“Há pessoas que acham que exagero”, disse. “Mas basta pôr a minha
história pessoal de lado e pensar na história do país para perceber que não
se trata de nenhum exagero. Sendo historiador, sabe certamente o que a
China passou sob a ocupação japonesa, não sabe? Leu decerto relatos sobre
a litania de repressão, de matanças e de dor provocada pelos japoneses.
Nanquim, por exemplo, foi especialmente sacri cada.”
Tratava-se de uma referência ao massacre de Nanquim em 1937, quando o
Exército Imperial nipónico entrara na cidade e se envolvera numa orgia de
execuções e violações em massa.
“A história desse massacre é sobejamente conhecida.”
“E agora diga-me, senhor historiador: quantos chineses matou o Partido
Comunista Chinês?”
Foi só quando o operacional da CIA fez esta pergunta que Tomás
percebeu onde queria ele chegar.
“Pois, está bem.”
“Responda à pergunta, por favor.”
“Depende dos cálculos dos historiadores”, indicou o português.
“As estimativas variam entre os trinta e cinco e os sessenta e cinco milhões
de chineses mortos pelo Partido Comunista Chinês.”
Chang esboçou um sorriso sem humor.
“Entre os trinta e cinco e os sessenta e cinco milhões de mortos”, repetiu
muito devagar, quase como soletrasse cada palavra. “Nunca ninguém matou
tanto na história da humanidade quanto o Partido Comunista Chinês.
Ninguém. Nem Genghis Khan, nem Lenine, nem Hitler, nem Estaline, nem
Pol Pot. Ninguém. O Partido passa o tempo todo a falar mal dos
estrangeiros, a culpá-los de todos os males e a fomentar na população o
nacionalismo mais primário, mas ninguém em toda a história assassinou
mais gente do que o próprio Partido Comunista Chinês. E não foram
estrangeiros quem o Partido assassinou. Foram pessoas do seu próprio país.
Foram chineses. O número de chineses assassinados pelos comunistas é oito
a dez vezes superior ao número de chineses assassinados pelos japoneses.
Oito a dez vezes superior! Consegue imaginar pior genocida de seres
humanos, e especi camente de chineses, que o Partido Comunista Chinês?”
Assim postas as coisas, era difícil contra-argumentar.
“Pois, está bem, mas este Partido Comunista Chinês não é o mesmo
Partido Comunista Chinês que existia no tempo de Mao Tsé-tung, como
bem sabe.”
“Quem lhe disse isso?”
A pergunta atrapalhou Tomás.
“Bem… é uma evidência. Basta olhar para o modelo de desenvolvimento
do país. No tempo de Mao, a China tinha um sistema comunista radical que
manteve a população na miséria durante décadas. Agora não há
verdadeiramente comunismo na China. Embora o Partido continue a
chamar-se Partido Comunista Chinês, esse é apenas um nome, uma
designação oca para efeitos de… sei lá de quê… de manter-se no poder,
certamente. A China tornou-se, na verdade, um país capitalista que entrou
na senda de um desenvolvimento extraordinário, ao ponto de se transformar
na maior economia do mundo. Tudo graças a um capitalismo
verdadeiramente selvagem, há que o dizer.”
Chang manteve o olhar xo nele, quase em desa o.
“Capitalismo, chama-lhe você?”
“Não é evidente?”
O homem da CIA apagou o televisor diante dele, pondo de nitivamente
m ao barulho incómodo do lme de James Bond, e dedicou ao
companheiro de viagem toda a sua atenção.
“Já falámos na primeira máxima invocada por Dragão Vermelho e que
está na base da estratégia do Partido Comunista Chinês. ‘Nongcun baowei
chengshi.’ Ou ‘usar o campo para cercar a cidade’, o princípio estratégico por
detrás do projeto neocolonialista da Nova Rota da Seda e do cerco ao
Ocidente. Lembra-se disso?”
“Como poderia esquecer?”
“Pois a segunda máxima estratégica do Partido referida por Dragão
Vermelho é ‘wai yuan nei fang’. Ou ‘redondo por fora, quadrado por dentro’.
Este foi outro princípio enunciado há muito tempo por Mao e que se tornou
igualmente uma doutrina no Partido Comunista Chinês. Sabe o que ‘wai
yuan nei fang’ quer realmente dizer?”
“Ilumine-me.”
Chang inclinou-se para a frente e aproximou-se do rosto do seu
interlocutor, como se com ele quisesse partilhar um segredo.
“Dissimulação.”
XXXI

Havia já um mês que Madina contactava a Administração de Entradas e


Saídas do Ministério da Segurança Pública de Karamay em busca de notícias
sobre o seu passaporte, o tal que lhe seria devolvido “em dois ou três dias”. À
terceira tentativa, os funcionários começaram a dar-lhe respostas tortas e
percebeu que tão cedo não veria o seu documento de viagem. Que jogo
estaria aquela gente a jogar?
Ficou por isso surpreendida quando pela manhã, numa altura em que
comia o seu adorado Weiwei do pequeno-almoço, recebeu um telefonema
das autoridades de saúde a convocá-la para um exame médico.
“Trata-se de uma campanha sanitária que o Partido lançou agora em
Xinjiang”, disse-lhe a pessoa do outro lado da linha num tom jovial. “Não
ouviu ainda falar da Saúde para Todos?”
De facto, Madina já tinha ouvido nos últimos dias na televisão referências
à campanha, mas não prestara grande atenção. O facto de lhe telefonarem
diretamente deixou-a descon ada.
“Isso é para quê?”
“Para garantir que todas as doenças são despistadas a tempo e assegurar
assim uma melhor qualidade de vida à população. O Partido vela pela saúde
de todos os chineses, independentemente da etnia. A campanha Saúde para
Todos destina-se a obter diagnósticos prematuros que permitam atacar as
doenças antes mesmo de elas aparecerem. É uma coisa inovadora.”
A experiência com o passaporte e sobretudo a sucessão de mentiras
propagandísticas que ao longo da vida vira o Partido dizer sem o menor
pudor nem vergonha soaram-lhe como alertas. Além do mais, tudo aquilo
lhe cheirava a uma multiplicidade de exames médicos e se havia coisa que
ela detestava era submeter-se a esse tipo de exames.
“Eu… eu sou muito saudável. Mais vale convocarem primeiro os idosos,
pois são sobretudo esses que estão em risco, e depois… en m, lá mais para a
frente, quando já toda a gente tiver feito esse exame, então chamem-me.”
“Temos de seguir a ordem da nossa lista”, insistiu a funcionária que
a contactara. “Será que pode comparecer ainda hoje na Comissão da Che a
do Trabalho de Registo de Nomes Reais e da Gestão e Serviços da População
de Xinjiang, de preferência daqui a uma hora?”
“Na comissão… quê?”
“Comissão da Che a do Trabalho de Registo de Nomes Reais e da Gestão e
Serviços da População de Xinjiang.”
Madina nunca tinha ouvido falar em tal comissão, mas duas palavras no
nome atraíram a sua atenção: “gestão” e “população”. Quando associadas, as
duas palavras implicavam em geral um qualquer tipo de supervisão policial.
“Uh… não se preocupem, eu estou bem.”
Fez-se um curto silêncio na linha, como se a sua interlocutora processasse
a recusa.
“Diz aqui na sua cha que a camarada é militante do Partido…”
“Correto.”
“Os militantes do Partido devem dar o exemplo revolucionário, sob pena de
incorrerem em comportamento reacionário”, avisou a pessoa no outro lado da
linha. “Faça o favor, camarada, de comparecer daqui a uma hora na Comissão
da Che a do Trabalho de Registo de Nomes Reais e da Gestão e Serviços da
População de Xinjiang. Vou enviar-lhe a morada por mensagem.”
Desligou.
Madina pousou o telemóvel, ouviu o sinal a anunciar a chegada da
mensagem e cou a ponderar a chamada que acabara de receber. O que
andava aquela gente a congeminar? Ainda considerou ligar a Leong, o chefe
da célula do Partido na petrolífera, para lhe perguntar que campanha e
exame eram aqueles, mas percebeu que inquirir sobre uma ordem em
última instância emanada do Partido soaria mal. Pior, levantaria suspeitas
de que tinha algo a esconder. De que era “duas caras”, como se dizia no
Partido. Contemplou a seguir a possibilidade de telefonar a Li, mas a
experiência do último telefonema com o antigo namorado deixara-a
desconfortável. Além do mais, se se tratava de uma convocatória do Partido,
como podia ela, uma simples militante, questioná-la? Gostasse ou não
gostasse, percebeu, não tinha alternativa.
Depois de terminar o Weiwei matinal, veri cou no smartphone o endereço
da dita comissão e foi ao quarto buscar os documentos de saúde, incluindo o
boletim de vacinas. Vestiu um casaco e saiu à rua. Após caminhar apenas
vinte metros deparou-se com um checkpoint diante do qual se aglomeravam
muitos transeuntes. Aquilo era novo. É certo que nas estradas eram
habituais os postos de controlo, pois na China as pessoas só se podiam
deslocar com um documento emitido pela comissão do bairro, mas
checkpoints em pleno centro da cidade constituíam uma novidade.
Apercebeu-se de que algumas pessoas passavam ao largo do checkpoint,
evitando assim serem controladas, pelo que as imitou e tentou contornar o
posto. Porém, foi prontamente travada por um bao’an, como eram
conhecidos os agentes de segurança que operavam os controlos.
“Meta-se na la.”
Madina apontou para os transeuntes que tinham contornado o checkpoint.
“Mas estas pessoas estão a passar…”
“Na la!”
O tom não lhe deu alternativa. Contrariada, recuou para a la e aguardou
a sua vez. Reparou então que no checkpoint se encontravam apenas pessoas
das minorias étnicas. Quem passava ao largo do posto de controlo sem ser
incomodado eram os han, aceites implicitamente como superiores. Ou seja,
as autoridades comunistas distinguiam as pessoas em função da raça. Não
que fosse uma novidade, durante toda a vida sempre vira aquilo na China.
Mas antes era mais discreto, embora talvez não fosse subtil.
Salvaguardavam-se as aparências. Agora os chineses faziam-no despudorada
e ostensivamente, sem recorrer aos habituais subterfúgios retóricos do
Partido de que eram “um só povo” ao mesmo tempo que discriminavam os
que não eram han, traídos pela sua aparência racial.
Como aguardava pela sua vez na la e não tinha nada para fazer, distraiu-
se a passear com os olhos pela rua. Percebeu então que havia técnicos em
fatos-macaco, com logótipos da agência governamental Grupo Zhongdian
Haikang, montados em escadas diante dos prédios e dos postes de
iluminação a fazer qualquer coisa que não destrinçou de imediato. Aguçou o
olhar e constatou que estavam a instalar câmaras de videovigilância e a fazer
ligações de bras óticas. O que raio era aquilo?, interrogou-se. Umas
câmaras de vídeo eram colocadas diante das portas de entrada dos edifícios,
outras nos postes. Viu também técnicos a fazerem o mesmo lá ao fundo,
dentro de um parque infantil, e outros na fachada de uma escola.
Quando chegou a sua vez, os bao’an veri caram os seus documentos. O
cartão de militante e o uniforme azul de membro do Partido que vestia
nesse momento facilitaram as coisas e os bao’an deixaram-na passar mais
depressa, mas não pôde deixar de sentir pena dos seus conterrâneos; a
maioria não tinha esse cartão nem esse uniforme, o que signi cava que não
bene ciaria de quaisquer facilidades. Até alcançar o endereço que recebera
por mensagem teve de passar por mais dois checkpoints do género, todos
dedicados exclusivamente a uigures, cazaques, huis, quirguizes e restantes
minorias; o cartão e o uniforme do Partido não a livraram do controlo,
apenas aceleravam os procedimentos.
Ao chegar ao seu destino constatou que se tratava de uma esquadra. Ficou
nervosa. Abeirou-se do polícia de plantão e consultou no telemóvel o nome
do organismo incluído na mensagem com a morada.
“Desculpe, senhor guarda, mas sabe se a Comissão da Che a do Trabalho
de Registo de Nomes Reais e da Gestão e Serviços da População de Xinjiang
é aqui?”
O guarda indicou com o polegar o interior da esquadra.
“Siga as tabuletas que indicam a campanha Saúde para Todos.”
O nome da campanha tranquilizou-a ligeiramente. Seguiu as indicações e
desembocou no que parecia ser um centro de testagem ligado à referida
campanha sanitária. Estavam centenas de pessoas concentradas naquele
canto da esquadra, todas em la para serem atendidas em pequenos
gabinetes. Dir-se-ia um centro de vacinação. Não se sentia confortável
naquele lugar, ainda por cima estando a polícia envolvida no que deveria ser
uma ação na área sanitária. Considerou a questão. O que tinha a polícia a
ver com a campanha Saúde para Todos?
Quando chegou a sua vez, um polícia han aproximou-se com uma seringa
na mão.
“O que é isso?”
“É para recolher o seu sangue”, esclareceu o agente. “Vamos testá-la à sida
e colher o seu ADN. A análise genética dar-nos-á importantes pistas sobre a
sua saúde, em particular as doenças a que está geneticamente mais atreita. A
ideia é melhorar os serviços de saúde à população, detetar precocemente as
doenças e estabelecer um registo sanitário digital de todos os utentes.”
“Mas… não deveria ser um enfermeiro a fazer isto?”
“Estenda o braço.”
A ordem foi seca e mostrou que não haveria mais explicações. De olhos
postos na seringa, Madina fez uma careta. Se havia coisa que detestava era
tirar sangue.
“Sou mesmo obrigada?”
O agente han levantou o sobrolho.
“Tem algum problema de pensamento?”
A expressão “problema de pensamento” era um eufemismo para “oposição
política”.
“Não, claro que não.”
Sem alternativa, Madina estendeu o braço e o polícia fez-lhe a colheita de
sangue. Depois de tomar nota da identidade da dadora num autocolante,
colou-o ao tubo. A seguir mandou-a abrir a boca e passou uma espécie de
cotonete pela língua dela, obtendo assim uma amostra de saliva. Satisfeito,
fez-lhe um gesto a indicar-lhe que já se podia ir embora.
“Quando terei os resultados?”
“Depois”, foi a resposta. O agente han apontou para uma porta à esquerda.
“Dirija-se agora ali.”
“Para quê?”
“Para completar o exame, claro”, respondeu ele. Desviou o olhar para o
utente seguinte. “O próximo.”
Enervada, Madina meteu-se pela porta indicada. O seu desejo era voltar
para casa ou ir para o emprego e esquecer tudo aquilo, mas uma coisa dessas
estava fora de questão. Se o Partido dava uma ordem, todos tinham de
obedecer. Mais a mais se essa ordem incluía uma deslocação à esquadra…
Chegou a um guiché onde havia uma nova la, decerto das pessoas que já
tinham tirado sangue e saliva, e aguardou pela sua vez. Ao cabo de meia
hora, encostou-se ao guiché e apresentou-se. O polícia de serviço veri cou
os seus documentos e inseriu os dados no sistema. Quando terminou,
mandou-a para outra la.
“Isto tudo é para quê?”
“Vamos emitir bilhetes de identidade com tecnologia de terceira geração”,
explicou o polícia. “Precisamos de dados especí cos de cada pessoa. É para a
vossa própria segurança.”
“Mas de que mais dados precisam vocês? Têm o meu nome, a minha data
de nascimento, a minha morada…”
“O Programa de Registo Populacional destina-se a permitir decisões
cientí cas que promovem o alívio da pobreza, a melhor gestão das
populações e a estabilidade social. Por favor, coopere. É para o bem de
todos, a começar pelo seu.”
Num momento diziam que era para a sua segurança, no momento
seguinte alegavam que era para “o alívio da pobreza”. Ainda pensou em
mostrar-lhe a estranha contradição, mas percebeu que apenas iria atrair as
atenções da polícia sobre ela.
Resignada, meteu-se na la indicada, situada diante de um cubículo. A
espera durou mais vinte minutos, ao m dos quais foi colocada perante uma
máquina com uma espécie de óculo. O polícia que operava a máquina nem
olhou para ela.
“Espreite pelo óculo.”
Obedeceu e assentou o olho esquerdo no óculo. Ao m de alguns
instantes, e sem explicar o que acabara de suceder, passou-a para um
terceiro polícia. Este colocou um microfone à frente da boca de Madina e
um texto diante dos olhos.
“Leia.”
“Para quê?”
“Estamos a usar a tecnologia mais avançada e precisamos de gravar a sua
voz. Leia.”
Depois de consultar o texto em silêncio, reconhecendo nele um discurso
do Chefe, Madina começou a lê-lo em voz alta.
“ ‘Desde o dia da Sua fundação, o Partido fez da felicidade dos chineses e
do rejuvenescimento da nação chinesa a Sua aspiração e missão. Toda a luta,
sacrifício e criação com os quais o Partido uniu e liderou o povo chinês nos
últimos cem anos estão ligados à questão do rejuvenescimento da nação
chinesa. O Partido…’ ”
A leitura durou longos minutos e só foi interrompida na passagem do
discurso do Lingxiu a dizer “o marxismo é a ideologia fundamental que nos
guia e sobre a qual o Nosso Partido e o país estão fundados”.
“Excelente”, aprovou o polícia, sinalizando que a gravação terminara.
“Agora as impressões digitais e as fotogra as.”
Madina foi enviada para um quarto agente, que lhe recolheu as impressões
dos dez dedos, e a seguir para um quinto polícia. Este mandou-a entrar num
outro cubículo, um espaço apertado e escuro no meio do qual estava um
pequeno banco. Sentou-se nele e encarou uma lente apontada ao seu rosto.
“Sorria.” Fotografou. “Agora faça uma cara triste.” Fotografou. “Zangada.”
Fotografou. “Séria.” Fotografou. “De per l para a esquerda.” Fotografou.
“Para a direita.” Fotografou. “Agora ponha-se a andar de um lado para o
outro.”
“A andar?”
“Sim, a andar. Vamos lá, não tenho o dia todo.”
Ela obedeceu e andou para a frente e para trás, parou, virou-se, dobrou-se,
sempre a obedecer às indicações. O agente já não parecia estar a fotografar,
mas a lmar.
“Já está”, anunciou o polícia, apontando para a porta. “Pode ir-se embora.”
Algo atarantada, sem perceber o que estava realmente a acontecer, a
rapariga abandonou a esquadra e dirigiu-se para o emprego, pois perdera
muito tempo com tudo aquilo e já se fazia tarde. Passou ainda por três
checkpoints instalados nos passeios, coisa nunca vista, e isso atrasou-a ainda
mais.
Ao entrar em passo apressado no edifício da petrolífera, reparou que havia
uma câmara de videovigilância sobre a entrada e várias no átrio. Aquilo era
novo. Dentro do elevador também tinha sido colocada uma câmara e todo o
andar estava igualmente coberto de câmaras. Incluindo a secretária onde se
sentava para trabalhar.
Um mau pressentimento apossou-se dela.
XXXII

Pelo semblante cético de Tomás Noronha, tornava-se claro que a


a rmação de Charlie Chang de que uma das máximas do Partido
Comunista Chinês era a dissimulação jamais seria aceite sem estar
devidamente fundamentada. Ao perceber isso, o americano considerou
como expor a questão de uma maneira que fosse entendida pelo
interlocutor. Compreendeu que seria mais bem-sucedido se apelasse ao seu
treino pro ssional de historiador.
“Segundo li nos livros de história, antigamente na Europa as pessoas
achavam que Deus estava no centro de tudo”, disse o operacional da CIA.
“Isso era mesmo assim?”
A súbita digressão do americano por terrenos que aparentemente nada
tinham a ver com a conversa não apanhou Tomás propriamente
desprevenido, pois já percebera que uma das técnicas retóricas de Chang
envolvia desvios que lhe permitiam mais tarde chegar ao destino que tinha
originalmente em mente.
“Com certeza que sim”, con rmou o português. “Deus tudo via e tudo
sabia, Deus estava em tudo e era a fonte de todas as coisas. Era a Ele que as
pessoas buscavam proteção e era d’Ele que temiam punição. Tudo na Terra
Lhe pertencia, incluindo as próprias pessoas. Todos Lhe deviam devoção,
delidade e culto e quem O maldissesse seria punido. Na verdade, Deus era
tudo e o ser humano um mero vassalo obrigado a adorá-Lo.”
Chang esboçou um sorriso sem humor.
“Meu caro, acabou de descrever, sem tirar nem pôr, o Partido Comunista
Chinês”, observou o americano. “O Partido tudo vê e tudo sabe, o Partido
está em tudo e é a fonte de todas as coisas. É a Ele que as pessoas buscam
proteção e é d’Ele que temem punição. Tudo na China Lhe pertence,
incluindo as próprias pessoas. Todos Lhe devem devoção, delidade e culto
e quem O maldisser será punido. Na verdade, o Partido é tudo e o ser
humano um mero vassalo obrigado a adorá-Lo.”
O historiador sorriu.
“O que está a dizer é que a ideologia é a religião da China e o seu Deus é o
Partido. Na verdade, esse fenómeno está muito estudado pela ciência
política e é por isso que se diz que certas ideologias, como o comunismo e o
nacionalismo, não passam de religiões camu adas. Em vez de se fazer o
culto de Deus, faz-se o culto do Partido, do Estado, da classe ou da nação. O
Partido, o Estado, a classe ou a nação substituem Deus e são assim
divinizados. Mas onde quer chegar exatamente com essa questão?”
“Já lá vou”, prometeu Chang. “O que é importante reter é que, enquanto
em qualquer país normal quem governa é o governo, na China é o Partido.
O Partido está acima de todos, incluindo do próprio governo e do Estado. O
Partido é Deus. Ele manda em tudo e está em tudo. As pessoas encontram-
se todas ao serviço do Partido. O Exército de Libertação Popular, por
exemplo, não é um exército nacional, mas um exército do Partido. Mao
disse: governo, militares, sociedade e escolas, norte, sul, leste e oeste, em
tudo o Partido manda.”
Tomás reagiu com uma careta cética.
“En m, não manda mesmo em tudo, não é?”, argumentou. “Que eu saiba
há iniciativa privada na China. Logo, as empresas privadas não são do
Partido…”
“Aí é que você está redondamente enganado!”, exclamou o operacional da
CIA. “As empresas na China são obrigadas a ter no seu interior células do
Partido. Isto inclui as companhias estrangeiras. As empresas chinesas só são
criadas por ordem ou com autorização do Partido e as empresas estrangeiras
só entram no país com permissão do Partido e nas condições impostas pelo
Partido. Todas as decisões importantes de uma empresa requerem consulta
ao Partido e o Partido pode dissolver qualquer empresa a qualquer
momento sem que essa empresa tenha instrumentos legais a que possa
recorrer para se defender.”
“Não é bem assim”, insistiu o historiador. “Como sabe, há empresas
chinesas cotadas na bolsa de Nova Iorque, por exemplo. Ora, se os
investidores americanos estão a comprar as ações dessas empresas, então as
empresas estão a sair do Estado chinês e a ir para o setor privado da
América. Consequentemente, são mesmo privadas.”
Chang soltou uma gargalhada sonora.
“Essa é a esparrela do ano!”, exclamou. “Imagino que se esteja a referir à
Alibaba, a Amazon chinesa e uma das maiores empresas do mundo. É
verdade que a Alibaba está cotada na bolsa de Nova Iorque. O que ninguém
no entanto explicou aos investidores privados é que, quando compram ações
da Alibaba, na verdade não estão a comprar ações da Alibaba da China, mas
apenas ações de uma estranha holding nas Ilhas Caimão que nada possui na
China a não ser um simples contrato de partilha dos lucros da verdadeira
Alibaba através de uma entidade de interesses variáveis cuja legalidade na
China é discutível. Está a perceber o truque? As pessoas estão a comprar um
produto que o Partido Comunista Chinês possivelmente proíbe que seja
comprado. Portanto, quando os principais acionistas da Alibaba cotada em
Nova Iorque quiserem mandar na Alibaba, como é normal acontecer sempre
que alguém adquire a maioria das ações de uma empresa, vão acabar por
descobrir que não conseguirão nem dar ordens ao porteiro! O esquema é
tão manhoso que até a bolsa de Hong Kong, que conhece de ginjeira os
truques do Partido, recusou aceitar as ações da Alibaba, invocando dúvidas
quanto à estrutura que de ne quem são os proprietários da empresa e
quanto à sua governança. Se os acionistas não são a nal os donos da
Alibaba, quem é então o verdadeiro dono? Só vejo uma entidade: o Partido
Comunista Chinês.”
“As empresas chinesas cotadas em bolsa estão ligadas ao Partido?”
“De uma maneira ou de outra. O fundamental é entender que quem
manda na China é sempre o Partido. Quem não obedecer ao Partido
é punido sem apelo nem agravo. Os próprios advogados têm de prestar
juramento de lealdade ao Partido. Isto signi ca que, se você contratar um
advogado para processar o Partido, a lealdade do advogado está primeiro
para com o Partido… e isto apesar de você estar a pagar-lhe! A coisa chega
ao ponto de a lei obrigar as empresas chinesas a colaborarem com os
serviços de espionagem sempre que essa colaboração for ordenada pelo
Partido.”
Tomás pestanejou, surpreendido com esta a rmação.
“O Partido Comunista Chinês pode mesmo mandar uma empresa
privada…”
“Supostamente privada.”
“… espiar quem o Partido manda espiar?”
“Não só o Partido pode mandar espiar, como dá constantemente ordens
para o fazerem. O Partido…”
“Espere aí, espere aí”, travou-o o português, ainda perturbado com a
referência às obrigações legais de espionagem. “Imagine que uma empresa
chinesa, por exemplo a Huawei, tem autorização para operar em Portugal. A
Huawei chega lá e, imaginemos, instala o 6G. Se o Partido ordenar à Huawei
que use as suas tecnologias e serviços em Portugal para espiar o primeiro-
ministro português e enviar essa informação para Pequim, a Huawei é
obrigada a obedecer?”
“É o que diz a lei aprovada pelo Partido Comunista Chinês. E há indícios,
aliás, de que coisas dessas já aconteceram. Por exemplo, a comunicação
social checa noticiou que os empregados da Huawei em Praga forneceram à
embaixada chinesa informações sobre os clientes da Huawei.”
Tomás estava siderado.
“O quê?”
“A lei do Partido obriga todas as empresas chinesas a espiar quem o
Partido quiser. Repito que isto é o que manda a lei.” Pegou no seu
smartphone e fez uma busca rápida. “Ora veja aqui o artigo catorze da Lei de
Informação Nacional, de 28 de junho de 2017.”
Mostrou-lhe o smartphone, onde o ecrã exibia o referido artigo.

Artigo 14: As instituições nacionais que trabalham na obtenção


de informação secreta, quando levam a cabo trabalho de obtenção
de informação secreta em conformidade com as leis, podem requerer
que as instituições, organizações e cidadãos relevantes forneçam o apoio,
assistência e cooperação necessários.

Tomás teve de ler duas vezes para se certi car de que não se equivocava
quanto ao real conteúdo da lei.
“Esta lei chinesa é mesmo aplicada às empresas chinesas nos países onde
estas operam, violando as leis desses países?”
“Oiça o que lhe digo: com base nesta lei, as empresas chinesas são
obrigadas a espiar em Portugal, em Espanha, em França, na Bélgica, na
Turquia, no Canadá, no Brasil… onde quer que seja. Independentemente de
se apresentarem como empresas privadas, as empresas chinesas são na sua
essência empresas e agentes do Partido e devem obediência ao Partido, seja
qual for o seu estatuto, estejam essas empresas em que país estiverem.
Ninguém está acima do Partido, todos estão às ordens do Partido, todos
obedecem ao Partido. Em suma, todos são o Partido. Já que falámos no
exemplo da Alibaba, olhe o que aconteceu ao seu fundador, o
multimilionário Jack Ma, o homem mais rico da China… e, já agora,
membro do Partido Comunista Chinês. Um dia o coitado do Ma, julgando
que tinha adquirido um certo estatuto, atreveu-se a dizer que os bancos
estatais chineses tinham mentalidade de merceeiros. Uma crítica levezinha,
parece-me a mim, mas foi o su ciente para o Partido o fazer desaparecer do
espaço público. Acabou-se o Jack Ma! Quem manda é o Partido e nem a
mais leve crítica é tolerada.”
“Caramba, isso até parece a intolerância religiosa da Idade Média…”
“O Partido é Deus e a sua ideologia a única religião permitida na China”,
insistiu Chang. “E que ideologia é essa?”
Tomás considerou a questão.
“Capitalismo de Estado?”
A hipótese foi negada com um convicto abanão de cabeça.
“A resposta a essa questão está no princípio estratégico de ‘wai yuan nei
fang’ de que lhe falei há instantes. ‘Redondo por fora, quadrado por dentro.’
O redondo é o que está por fora, o envelope exível, a aparência exterior.
Que aparência é essa? É o capitalismo. O quadrado é o que se encontra por
dentro, o conteúdo in exível, a essência interior. Que essência é essa? É o
comunismo. Não há na China empresas privadas, apenas empresas que se
ngem privadas. Não há na China capitalismo, apenas um sistema que se
nge capitalista. O exterior é o capitalismo, o interior é o comunismo. O
envelope são as empresas privadas, o conteúdo é o Partido. A aparência é
Jack Ma, a essência é o Partido. Dá-se a ideia de uma coisa, mas a verdade é
outra. Tudo um jogo de espelhos cuja principal função é ludibriar o
Ocidente, adormecer-lhe a descon ança e atrair os seus investimentos e
conhecimentos. ‘Redondo por fora, quadrado por dentro’ quer na realidade
dizer capitalista por fora, comunista por dentro. O Partido resolveu ngir
que é capitalista, mas isso não passa de aparência. O Partido foi, é e será
sempre comunista. O Partido convenceu o mundo de que é uma coisa, mas
na verdade é outra. Está claro?”
“Cristalino.”
O americano manteve os olhos xos no seu interlocutor, como se se
quisesse assegurar de que ele havia realmente entendido o que lhe tinha sido
dito. Duvidou.
“À luz do que lhe expliquei, diga-me, por favor, o que acha que signi ca
realmente o princípio estratégico de ‘wai yuan nei fang’?”
A resposta era agora óbvia.
“Dissimulação.”
Constatando que a mensagem tinha mesmo passado, Chang voltou a ligar
o televisor diante dele e retomou o último lme de James Bond no ponto
onde o suspendera.
Sem nada para fazer, Tomás engoliu o que lhe restava do whisky, recostou-
se no assento e, ciente de que angustiar-se com o destino de Maria Flor nada
ajudaria, fez um esforço para descontrair. O importante era que nada estava
perdido e era nesse pensamento que tinha de se refugiar para aplacar a sua
imensa angústia e se manter positivo. Antes de fechar os olhos para tentar
dormir, consultou o relógio. Faltavam duas horas para chegarem a Okinawa.
XXXIII

O ginásio da escola apresentava-se repleto de cadeiras, muitas das quais já


ocupadas. Madina tinha sido convocada pelo chefe da célula do Partido na
petrolífera para uma “reunião secreta” na Escola Média Número 9, situada
numa zona dos subúrbios chamada Jinlongzhen. Reconheceu à chegada
muitos outros quadros do Partido, todos pertencentes a minorias étnicas.
Questionou um deles, um cazaque, sobre o propósito da reunião, mas o
homem devolveu-lhe um gesto de ignorância.
“Não faço a menor ideia.”
Os militantes aglomeravam-se à entrada do ginásio, onde tinham de
passar por um homem da segurança. Será que também haviam instalado um
checkpoint à entrada do ginásio? A ideia parecia ridícula, sem dúvida, mas,
depois de tudo o que vira nos últimos tempos, Madina já não se admirava
com nada. Ao chegar a sua vez, o segurança estendeu-lhe a mão como se
esperasse que ela lhe entregasse alguma coisa.
“O seu telemóvel, camarada.”
O pedido perturbou-a.
“Porquê? O que se passa?”
“A reunião é secreta”, lembrou-lhe ele. “Não pode haver no ginásio
quaisquer dispositivos de gravação de som ou imagem. Dê-me o seu
telemóvel.”
A rapariga estranhou a explicação. Porque haveria ela de querer gravar o
que quer que fosse? Mas obedeceu.
Cruzou a porta e foi encaminhada para um lugar ainda vago na quinta la.
Diante das cadeiras, que somavam talvez as duas centenas, havia um estrado
onde se encontravam sentados vários homens e mulheres han, uns com
fardas militares e outros que ela reconheceu como sendo altos quadros do
Partido em Karamay, estes no uniforme azul comunista com as insígnias da
foice e martelo ao peito.
Enquanto aguardava que a reunião começasse, tirou da carteira um
documento interno do Partido que Leong lhe entregara para leitura
obrigatória. O documento intitulava-se “Comunicado sobre o Atual Estado
da Esfera Ideológica”. Madina percorreu o texto com atenção. Nele, o Partido
alertava para as ameaças que constituíam a democracia constitucional, os
conceitos de liberdade e direitos humanos, o neoliberalismo e a liberdade de
imprensa e de expressão. Tratavam-se de “tentativas de abalar a base
ideológica e teórica do Partido” para “substituir os valores socialistas pelos
valores ocidentais”. O documento avisava que as “exigências de reforma
política, respeito pelos direitos humanos e libertação de ‘criminosos
políticos’ ” constituíam um “desa o à nossa ideologia”. O verdadeiro objetivo
do comunismo, explicava o Partido naquele documento, era a “uni cação do
pensamento”. Madina re etiu sobre o que acabara de ler. Democracia
constitucional? Liberdade de imprensa e de expressão? Defesa dos direitos
humanos? Neoliberalismo? Libertação de criminosos políticos?
Os doutrinadores do Partido já lhe tinham falado nas ideias do sistema
político em vigor no Ocidente, descrevendo-as como “malignas”, mas nunca
as entendera em profundidade. Teria de investigar discretamente, decidiu.
Quando ao m de meia hora todos se acomodaram nos seus lugares, um
alto quadro do Partido, na verdade um homem de con ança do chefe do
Partido em Karamay, levantou-se e encaminhou-se para um palanque com
um microfone. A segurar uma resma grossa de folhas nas mãos, começou a
falar.
“Camaradas, um grave perigo paira sobre o nosso país e a nossa região”,
foram as suas primeiras palavras. “Trata-se de um vírus. Mas não é um vírus
qualquer. É o vírus do terrorismo, o vírus do separatismo, o vírus do
extremismo. Esse vírus ameaça a estabilidade, a harmonia e a prosperidade
de Xinjiang. Esse vírus ameaça a China. Esse vírus ameaça até o Partido. O
nosso trabalho, camaradas, é erradicá-lo. Temos de exterminar o vírus. Para
o fazer, há que eliminar todos os pensamentos malignos que contaminam as
mentes das populações indígenas.”
O alto quadro do Partido falou durante uns bons dez minutos, sempre
neste tom, consultando as folhas aqui e ali. A certa altura Madina já nem
sequer o ouvia. Não sabia se devia ter medo ou sentir-se indignada. Mais
uma vez, a conversa dos han era apontar as “populações indígenas” como
um problema. Sempre as “populações indígenas”. Uma forma airosa de
dizerem fengjian, decerto a expressão pejorativa na mente dos responsáveis
do Partido. E toda aquela conversa era para quê exatamente? Como se
propunham eles extirpar o tal “vírus”?
A resposta surgiu momentos depois, quando o orador mencionou de
repente o estabelecimento de “campos de reeducação”. As pessoas sentadas
no auditório, todas elas uigures, cazaques e quirguizes liadas no Partido,
estremeceram e entreolharam-se, chocadas e até assustadas com a expressão.
Um burburinho atemorizado percorreu o grupo. Todos já tinham ouvido
falar nos temíveis campos de concentração, designados eufemisticamente
“reeducação pelo trabalho”, ou laodong gaizao, expressão abreviada para
laogai, onde durante décadas foram encarceradas pelo Partido dezenas e
dezenas de milhões de pessoas por toda a China. A maior parte ouvira os
anciãos descreverem esses campos com temor. Havia mesmo quem, tendo
consultado sites estrangeiros quando a Internet internacional estava ainda
acessível, mencionasse cálculos que variavam entre quinze milhões e vinte
milhões de mortos. Não era o número de pessoas que tinham sido presas
nos laogai, note-se, mas o número de pessoas que aí haviam sido mortas às
mãos do Partido. Quinze a vinte milhões de mortos. E estavam agora a falar
em reabrir esses “campos de reeducação”?
O homem de con ança do chefe do Partido em Karamay terminou a sua
intervenção e perguntou ao auditório se havia dúvidas. Todos se voltaram a
entreolhar; não tinham outra coisa na mente que não fossem dúvidas.
Muitas até. Mas atrever-se-iam a formulá-las? Um dos militantes uigures
mais prestigiados, e por isso com maior margem de manobra, levantou a
mão.
“Desculpe, camarada, a sua exposição foi muito importante e não há
dúvida de que é preciso defender o Partido dos vírus ideológicos que só
servem o grande capital estrangeiro e os inimigos do Partido e da China.
Mas confesso que a parte referente aos campos de reeducação não cou…
como direi?, não cou assim muito clara para mim. O que quer o camarada
dizer exatamente com isso, campos de reeducação?”
O alto quadro sorriu.
“Não têm de se preocupar, isto não é para vocês”, esclareceu num tom
carregado de bonomia. “Tratam-se apenas de medidas simples para ajudar
os indígenas com menos educação e esclarecimento. Vamos ministrar-lhes
formação e ensinar-lhes novas competências pro ssionais. Isso permitir-
lhes-á adquirir quali cações superiores, algo muito útil para quem quer
singrar na vida. Irão aprender imenso e os novos conhecimentos ajudá-los-
ão a sair da pobreza e atingir novos patamares pro ssionais.”
“Não estamos então a falar em… sei lá, em detenções…”
Uma gargalhada sonora encheu o ginásio.
“Detenções? Ayah!, que palavra tão dramática, camarada! Claro que não!
Todos serão voluntários. Os campos de reeducação são, na verdade, escolas
de formação pro ssional. Uma coisa inofensiva, não tem problema nenhum.
Não vale a pena fazer disto um bicho de sete cabeças nem alarmar ninguém.
Insisto que são escolas de formação. Nada que deva preocupar quem quer
que seja.”
O alto quadro do Partido enunciou mais uma série de frases para
tranquilizar o auditório, zeram-se algumas perguntas inócuas que
mereceram respostas igualmente irrelevantes, e o responsável por aquela
reunião deu a sessão por terminada. As suas últimas palavras, no entanto,
foram uma ordem de silêncio.
“Tudo o que escutaram esta noite é estritamente con dencial”, avisou.
“Nem uma palavra lá fora sobre o que falámos aqui. Entendido?”
Um “sim” em coro, como se fossem crianças numa sala de aula, foi a
resposta. O orador ergueu o punho fechado com as habituais palavras de
ordem de encerramento dos discursos e das reuniões do Partido.
“Viva o Partido, grande, glorioso e correto!”
Mais uma vez todos no ginásio responderam em coro, como sempre
haviam feito e sempre fariam enquanto os seus corpos e as suas almas a Ele
pertencessem.
“Viva!”
“Viva a China, grande, gloriosa e correta!”
“Viva!”
Saíram da escola em silêncio, todos a pensarem no mesmo e ninguém com
coragem de o dizer em voz alta. Apenas olhares fugidios denunciavam o
desconforto que de todos se apossara, pois havia sentimentos que os olhos
não eram capazes de esconder.
Depois de recuperar o telemóvel que cara depositado à entrada do
ginásio, Madina inspecionou o aparelho para ver se havia novidades. Tinha
cinco chamadas perdidas. Todas da mãe. Quando se sentou na sua scooter, e
antes de ligar o motor, devolveu a chamada.
“Está, mãe?”, disse quando atenderam do outro lado. “Ligou?”
A mãe falou-lhe numa voz chorosa.
“É o vovô, querida. Levaram-no.”
“O avô Qeyser?”
“Sim, claro. Quem havia de ser?”
“Quem o levou?”
“Foram… en m, foram ao yurt dele, inspecionaram-lhe o telemóvel,
disseram que ele tinha consultado no telemóvel uma coisa qualquer no
estrangeiro e… e levaram-no. Foi esta tarde.”
Apesar de não ser versada nas subtilezas dos meandros do poder, a mãe
falava por subentendidos, evidentemente por receio de a chamada estar a ser
escutada. Tornava-se no entanto claro que havia sido o Partido, diretamente
ou através da polícia, que detivera o avô Qeyser. Madina sabia que teria de
ser extremamente cuidadosa na maneira como falava.
“O Partido é sempre correto”, fez questão de sublinhar, quase como um
preâmbulo obrigatório. “O que lhe descobriram no telemóvel?”
“Sei lá. Umas lições sobre o Ramadão, acho eu. O que interessa isso? Agora é
crime estudar o jejum no Ramadão?”
Havia coisas que não dava para explicar à mãe, pois no pequeno mundo
da aldeia ao lado do rio Tekes era tudo diferente.
“É importante sublinhar que todas as ações do Partido se destinam a
proteger a pátria e o socialismo”, enfatizou. “Sabe onde está o avô?”
“Não faço ideia. Levaram-no. E não foi a primeira vez que o incomodaram.”
“Como assim, não foi a primeira vez?”
“Há já algum tempo que os tipos do Partido têm vindo cá à aldeia dar
ordens a toda a gente. Dizem que temos de comer porco, que temos de beber
cerveja, que não se pode fazer jejum, que não se pode ir à mesquita, que não se
pode falar com os nossos familiares que estão no estrangeiro e mais não sei
quê. O Arzu, coitado, está proibido de falar com a lha só porque ela vive no
Cazaquistão. Os do Partido metem-se em tudo, incluindo nas coisas da nossa
cultura e da nossa tradição. Pelos vistos, só as tradições deles é que são boas. À
tua irmã pararam-na noutro dia na rua e disseram-lhe que não podia usar
uma saia tão comprida. Sabes como ela é, adora as suas saias uigures. Pois
sabes o que os do Partido zeram? Pegaram numa tesoura e cortaram-lhe a
saia no meio da rua!”
A revelação chocou tanto Madina que por momentos esqueceu
a prudência.
“Oh!”
“Achas isto normal?”, questionou a mãe, de tal modo indignada que
também ela parecia ter perdido todas as cautelas. “Com o teu avô foi ainda
pior. Disseram-lhe que tinha de cortar a barba. Ora se há coisa de que ele
sempre teve orgulho foi na sua bela barba branca, não é? O vovô respondeu-
lhes que não cortava barba nenhuma, tinha setenta e cinco anos e usava a
barba como muito bem entendia e que só cá faltava o Partido também decidir
se ele podia ou não usar barba. Os do Partido não zeram mais nada:
acorrentaram-no a uma cadeira e cortaram-lhe a barba à força, vê lá tu. A um
homem de setenta e cinco anos! Isto é de gente boa da cabeça? E agora… agora
mandaram cá a polícia, vasculharam-lhe o telemóvel e prenderam-no!”
Apesar de sentir o sangue em ebulição, Madina esforçou-se por manter a
cabeça fria.
“Oiça, mãe, tem de con ar no Partido”, recomendou para efeitos de registo
de interceção, mas também para tentar fazer ver à mãe que não podia ser tão
desbragada no que dizia. “Por vezes não sabemos por que razão Ele faz
certas coisas, os Seus caminhos nem sempre são claros a pessoas simples
como nós, pois somos limitados no entendimento, mas há sempre uma
razão para o que o Partido faz. O Partido é sábio e correto no Seu esforço de
puri cação e uni cação das mentes. Teria, no entanto, sido útil se na altura
em que tudo isso aconteceu me tivessem contado tudo.”
“Não te queríamos incomodar, lha”, foi a resposta. “Mas isto está cada vez
pior. Disseram-me que as aldeias em redor de Aksu foram todas esvaziadas.”
“Esvaziadas?”
“Sim, esvaziadas. Levaram toda a gente, sabe-se lá para onde. E agora…
agora levaram o vovô! Ai, estamos tão ralados, lha… Será que podias tentar
saber onde ele está e… e salvá-lo? És do Partido, tens as tuas ligações, conheces
os maiorais e talvez lhes possas explicar que é tudo um mal-entendido, que o
vovô não faz mal a uma mosca e que até gosta muito do Lingxiu, diz sempre
que na televisão o Chefe parece muito simpático, todo sorridente e mais não
sei quê.”
“O Lingxiu é um Ser superior, sábio e bondoso. Tudo o que Ele faz ou
manda fazer é sempre no superior interesse da nação e do socialismo. Disso
ninguém pode duvidar. De qualquer modo, vou tentar saber o que se passa.”
Depois de trocarem mais algumas palavras em tom consideravelmente
mais cauteloso, embora todas em torno do desaparecimento do avô Qeyser e
de outros desaparecimentos na aldeia, desligaram. Madina guardou o
telemóvel e olhou em volta. Muitos participantes na reunião trocavam
meias-palavras em voz baixa entre eles, enquanto outros se metiam nos
carros e partiam em silêncio, os rostos fechados. Sentiu uma tontura,
decerto pela vertigem do acelerar dos acontecimentos e de toda a loucura
que eles encerravam.
Fechou os olhos, tentando manter-se calma; procurava ainda assimilar a
terrível notícia que tinha acabado de receber. A polícia levara o avô Qeyser.
E o Partido ia reativar os campos de concentração. Onde iria tudo aquilo
parar?
XXXIV

Vista de cima, Okinawa parecia um paraíso e essa foi a primeira surpresa


para Tomás Noronha. Ao sobrevoarem a ilha japonesa na aproximação à
pista da base militar de Kadena, o historiador admirou a longa linha da
costa, com belas enseadas e uma água azul-turquesa a lamber as praias de
areia branca com languidez; viam-se barcos de recreio e yachts nas pequenas
baías rodeadas de vegetação luxuriante, enquanto as ondas se abatiam com
doçura sobre as praias e os sur stas ziguezagueavam por entre a espuma.
Sempre imaginara a maior das ilhas do arquipélago de Ryukyu como um
inferno, sem dúvida herança das terríveis imagens a preto e branco da
Segunda Guerra Mundial e dos relatos que lera sobre a sangrenta batalha
que ali se travara quando do desembarque americano, mas o que descobria
era a nal um éden tropical.
Ao saírem do aparelho e descerem os três degraus até à pista, o português
e o seu companheiro de viagem, Charlie Chang, foram acolhidos por um
calor abrasador. Havia vários aviões militares estacionados diante de um
hangar, desde um enorme Boeing E-3 Sentry, um AWAC com um radar
montado sobre a carlinga, até um futurista Lockheed SR-71 negro, dir-se-ia
um jato saído de um lme de cção cientí ca, passando por uma série de
caças McDonnell Douglas F-15 Eagle alinhados uns ao lado dos outros. A
bandeira americana utuava num poste, acompanhada das bandeiras das
diversas unidades da USAF ali estacionadas, e em redor viam-se quatro
baterias de mísseis a defender a base.
“São os Patriot”, esclareceu Chang ao ver o olhar de Tomás deter-se nessas
baterias. “Os famosos mísseis antimísseis.”
Um jipe apareceu no local e parou diante da porta do avião. Um militar
muito aprumado, o nome “Tenente P. Collins” ao peito por cima do nome
da sua unidade, o 390.º Intelligence Squadron, saltou da viatura e fez-lhes
continência.
“Bem-vindos à base aérea de Kadena”, cumprimentou-os. “Precisam de
ajuda com as malas?”
Os dois recém-chegados puseram a bagagem na parte traseira do jipe e
acomodaram-se no interior da viatura. O militar levou-os para o edifício
principal da base aérea, o Terminal de Passageiros de Kadena, onde trataram
das formalidades aduaneiras relativas à chegada ao Japão.
“Nem aqui escapamos à porra da burocracia”, resmungou Chang. “Estou
com uma fome de lobo…”
O an trião espreitou o relógio.
“Temos uma reunião daqui a uma hora com o nosso comandante, que está
encarregado dos aspetos militares da Operação Dragão Vermelho, e com um
civil que chegou há pouco de Washington especi camente para dar apoio à
missão.”
“Quem é esse?”
“Não o conheço. Para todos os efeitos, antes da reunião há ainda tempo
para passarmos pelo Jack’s Place para um snack.”
Uma vez as formalidades despachadas, o tenente Collins voltou a metê-los
no jipe. Qual guia turístico, foi-lhes exibindo pelo caminho as principais
atrações da base aérea, como o Clube dos O ciais, o Centro Comunitário
Schilling, o clube de golfe Banyan Tree, a Escola Primária Bob Hope e o
Liceu Ryukyu, instalações construídas para benefício dos militares que ali
viviam e respetivas famílias. Estacionou por m diante de um edifício que se
anunciava como sendo o Jack’s Place; tratava-se do restaurante da base
aérea.
Como americano que se tornara, Chang pediu e devorou dois
hambúrgueres regados a refrigerante, enquanto Tomás, como português que
se prezava, encomendou um peixe grelhado com batatas cozidas e salada. O
peixe veio frito e acompanhado de chips, enquanto a salada nem sequer
tinha azeite, tudo coisas que o zeram torcer o nariz, mas, conforme
observou com resignação, “sempre é melhor do que comer minhocas”, uma
referência pouco subtil aos hambúrgueres de Chang. Fez, no entanto, uma
nota mental para pedir sushi ou sopa ramen na vez seguinte; no m de
contas, estavam no Japão, e que melhor sítio havia no mundo para
experienciar a comida japonesa?
Quarenta minutos depois voltaram ao jipe, os estômagos já saciados, e o
tenente Collins levou-os para um edifício militar guardado por sentinelas.
“A reunião vai ser aqui no NAVCOMM.”
Tomás sabia que se tratavam das iniciais do Naval Communications
Detachment Okinawa, a unidade encarregada de fornecer apoio de
comunicações à Sétima Esquadra americana e às suas unidades de suporte.
A NAVCOMM era constituída por quatro work centres, como o
TSCCOMM, que garantia as telecomunicações às esquadrilhas e ao
destacamento de marines; o CMS, encarregado da segurança de
comunicações e de equipamento de criptogra a; o NRTP, que apoiava a
esquadra e os submarinos; e o SURTASS, responsável pelas funções de
comando e controlo dos navios que operavam no Índico e no Pací co
Ocidental. Em suma, era aquele o centro nevrálgico de Kadena, a base
americana mais próxima da China.
Estavam na linha da frente.
XXXV

O trabalho da célula do Partido na petrolífera de repente acelerou. Os


militantes que faziam parte dessa célula eram cinco, três han e dois uigures,
um dos quais Madina. Todos eram responsáveis pelo cumprimento dos
objetivos estabelecidos pelo Partido para a empresa.
“Temos de passar a empresa a pente no”, ordenou o chefe da célula, um
han chamado Leong. “Quero saber que funcionários têm mais de dois
lhos.”
Por lei aprovada em 1980, o máximo que cada casal podia ter eram
justamente dois lhos. Obedecendo à ordem, os membros da célula pegaram
nos dossiês de cada funcionário e vasculharam-nos de uma ponta à outra.
Veri caram ainda os registos das maternidades e dos múltiplos infantários
da cidade para con rmar as infrações detetadas. Madina certi cou seis casos
de violação da lei e entregou os nomes dos respetivos infratores a Leong.
“O que fazemos agora?”
O chefe devolveu-lhe um sorriso velhaco.
“Nós, nada. A polícia, tudo. Estes contrarrevolucionários separatistas vão
ser convidados a tomar chá.”
A rapariga soergueu o sobrolho. Contrarrevolucionários separatistas? Por
terem tido três lhos? Que história vinha a ser aquela? Estava, no entanto,
absolutamente fora de questão questionar as diretivas do Partido, pelo que
manteve a disciplina revolucionária. O que não impediu que sentisse a
obrigação de recordar um facto ao chefe.
“Lembre-se, camarada, que estes funcionários já foram punidos na altura
em que violaram a lei.”
“Isso não foi nada comparado com o que lhes vai acontecer agora…”
Disse-o de uma forma que fazia antever o pior. Ao vê-lo saborear por
antecipação as pesadas punições que, pelos vistos, aguardavam aqueles seis
desgraçados que trabalhavam na petrolífera, Madina tremeu e ao mesmo
tempo quase suspirou de alívio por ter resistido à tentação de levar o
problema do avô Qeyser ao chefe. Esteve mesmo à beira de o fazer, mas foi
Husein, o engenheiro da área informática na empresa, quem na altura lhe
desaconselhara a iniciativa com a maior das veemências.
Segundo Husein lhe dera a entender, no decurso da sua atividade havia-se
cruzado com certos e-mails de responsáveis do Partido a questionar
qualquer militante que tivesse familiares sob suspeita. “Em vez de salvar o
seu avô, vai é tramar-se você”, avisara-a Husein numa conversa sussurrada.
O que ele aprendera ao ler em segredo os tais e-mails levara-o até a deslocar-
se urgentemente ao registo civil para mudar de nome. “Já não me chamo
Husein, mas Wu”, revelou. “Assim ninguém duvidará da minha lealdade ao
Partido.” Desde que o Partido proibira uma série de nomes uigures, como
Seypidin, Nesrulla, Mujahit, Fatima, Hediche e tantos outros, Madina notara
que muita gente mudara de nome. O engenheiro Husein era apenas a última
situação do género com que se cruzara.
Logo que o dossiê dos casais com mais de dois lhos cou arrumado, com
os casos apurados de atividade contrarrevolucionária devidamente
instruídos e remetidos à polícia para aplicação das punições necessárias, o
chefe da célula do Partido na petrolífera chamou os seus subordinados para
lhes con ar uma nova missão.
“Temos de inspecionar a casa de cada funcionário”, anunciou Leong.
“Iremos em grupos de dois à residência de cada um. Anotem tudo o que
virem lá dentro, ouviram? Tudinho. Mesmo as coisas aparentemente mais
inócuas. Quero as casas deles passadas a pente no.”
“A inspeção envolve também as casas dos diretores dos diferentes
departamentos?”
“Só os diretores indígenas, ainda que estes sejam poucos”, esclareceu o
chefe da célula. “Mesmo as buscas em casa dos funcionários e dos
estagiários só envolvem indígenas, claro. Não toquem nos restantes.”
Madina corou. Os responsáveis do Partido já nem sequer se davam ao
trabalho de disfarçar o racismo. As buscas envolviam toda a gente exceto os
“restantes”, uma referência óbvia à raça superior, os han.
“O que acontecerá aos indígenas prevaricadores, camarada?”
“A nossa função é anotar tudo o que for encontrado nas casas de cada um
deles, e em particular qualquer coisa suspeita que detetem, e entregar as
listas à polícia.”
“O que entende por ‘coisa suspeita’, camarada?”
“É isto.”
O chefe entregou-lhes uma folha que enumerava produtos proibidos, mas
recomendou-lhes insistentemente que deveriam assinalar tudo nas suas
listas, incluindo os objetos regulamentares. Com as ordens clari cadas, os
subordinados muniram-se das moradas de cada funcionário uigure, cazaque
ou de qualquer outra minoria e Leong nomeou as equipas de inspeção.
Madina foi emparelhada com Hu, um han da célula, enquanto os outros dois
subordinados foram emparelhados na segunda equipa de inspeção, também
um han e um uigure. Ou seja, percebeu ela, os dois militantes uigures da
célula eram acompanhados cada um por um militante han. Os scalizadores
uigures eram scalizados pelos han. Ah, como era matreiro o Partido!
A primeira inspeção domiciliária efetuada por Madina mostrou de
imediato quão difícil iria ser a tarefa. O funcionário em causa, um uigure
com mulher e dois lhos, não foi avisado previamente da visita, conforme
requerido pelo protocolo das inspeções, e tinha a casa repleta de produtos
proibidos. Logo no átrio depararam-se com um belo tapete vermelho com
motivos geométricos dourados. Hu, o militante han que acompanhava
Madina, apontou de imediato para o tapete como quem apontava para um
perigoso capitalista que ameaçava conspurcar a pureza ideológica da nação.
“O que é isto?!”
“É um tapete Shirvan Kazak, camarada”, explicou o an trião, sem perceber
o problema. “Ofereceu-mo uma sobrinha minha que foi viver para a
Turquia. É… é bonito, não é?”
“É proibido!”
O funcionário cuja casa era vistoriada pelo Partido abriu a boca de
estupefação.
“Um tapete, camarada?”
Hu voltou-se para Madina.
“Tome nota da presença deste instrumento da contrarrevolução
separatista e terrorista contra o Partido e a pátria.”
Envergonhada, a rapariga obedeceu e listou aquele ameaçador tapete na
folha que lhe tinha sido entregue para registar todas as infrações
encontradas em cada lar inspecionado, enquanto Hu fotografava com o seu
telemóvel o objeto proibido. A cada passo foram tropeçando em novas
infrações. O funcionário tinha na sala uma faca yengisar com o punho
envolvido em motivos ornamentais, um objeto tradicional da cultura uigure
que foi imediatamente assinalado na coluna dos bens
contrarrevolucionários. O mesmo aconteceu com os brincos decorativos de
cobre e tecido que os uigures usavam como adornos. Tudo o que era cultural
ou religioso para os uigures era considerado pelo Partido um objeto
proibido. Os títulos dos livros encontrados nas prateleiras foram todos
anotados, mesmo os mais inofensivos, e Hu soltou um grito de indignação
quando numa gaveta se deparou com um exemplar do Alcorão.
“Ponha na lista!”
Todos os tapetes que se encontravam no chão ou nas paredes foram
analisados ao pormenor, levantando-se até as bordas para veri car os
registos de fabrico através da marca Made in. Foi assim que identi caram
outro tapete turco e um terceiro produzido no Cazaquistão. Ambos foram
listados. Na verdade, tudo o que tinha origem estrangeira era classi cado
como perigoso e registado na lista.
No nal, Hu apontou ameaçadoramente para o funcionário inspecionado,
que tremia abraçado à mulher e aos lhos.
“Em breve será chamado para ir tomar chá à esquadra, ouviu?”
Madina veio de tal modo horrorizada dessa primeira inspeção que no dia
seguinte faltou ao trabalho, alegando que se sentia adoentada. Ficou em casa
a ponderar o que poderia fazer para evitar aquelas situações. Nada, acabou
por concluir. Se o Partido percebesse que a erradicação da cultura uigure era
algo que lhe desagradava, cairia em desgraça e acabaria inevitavelmente
convocada pelas autoridades para também ela “ir tomar chá à esquadra”.
Estava Madina às voltas com os dilemas que a faziam sentir-se
encurralada quando alguém bateu à porta. Foi abrir e deparou-se com a
senhora Ting, a chefe da comissão do bairro. Tal como todas as pessoas que
desempenhavam essa bem remunerada função na China, a senhora Ting era
uma militante escolhida pelo Partido para vigiar cada membro do seu
bairro, informar o Partido de qualquer comportamento suspeito e exercer
“intervenção psicológica”. Entre os seus poderes, para além da emissão de
autorizações de deslocação, estava o direito de entrar nas casas das pessoas
em busca de “irregularidades” contrarrevolucionárias. Todas as noites a
chefe da comissão do bairro era obrigada a bater à porta de cada residente à
sua responsabilidade para saber das suas atividades diárias e perguntar se
havia notado algo anormal nas atividades dos outros residentes. Depois de
cada visita passava um código QR num aparelho junto à porta do
apartamento em causa a indicar que o respetivo residente tinha sido
inspecionado. Isto se estivesse tudo bem, claro.
Acontece que dessa vez não estava tudo bem.
“Os vizinhos apresentaram uma informação sobre si.”
Madina estremeceu, imediatamente em alerta. A apresentação de uma
informação à chefe da comissão do bairro nunca era uma boa notícia.
“O quê? Que z eu?”
“Os vizinhos dizem que não saiu às oito da manhã para passear, como é
seu hábito. Tem alguma justi cação para a sua alteração de
comportamento?”
Na comissão do bairro cada residente tinha a obrigação de informar
a chefe da comissão sobre as atividades dos outros residentes. Se um não
desse uma informação sobre um vizinho, mas outro residente desse, aquele
que não dera a informação seria considerado suspeito e arriscava-se a sofrer
penalizações, a começar pela declaração de que se tratava de um indivíduo
pouco ável. Além disso, a infração cometida por um residente implicaria a
punição coletiva de todos os residentes. Como ninguém sabia se os outros
iam ou não denunciar o vizinho ou se alguém estava a cometer uma
infração pela qual todos seriam punidos, pelo sim pelo não todos jogavam
pelo seguro e faziam a denúncia. Assim não corriam qualquer risco.
Tratava-se de uma forma que o Partido arranjara para literalmente
transformar cada cidadão num espião. Sendo todos informadores do
Partido, todos se vigiavam e todos eram objeto de vigilância.
“Hoje estou meio adoentada.”
“O que tem?”
Tratando-se da chefe da comissão do bairro, era impensável não
responder. Uma recusa seria considerada uma tentativa de ocultar uma
atividade contrarrevolucionária e um desa o ao Partido, com consequências
imprevisíveis.
“Acordei com… com febre.”
“Pode fazer prova disso?”
“Quer dizer, já tomei um antipirético e neste momento a minha
temperatura é normal.”
“Foi ao médico?”
“Não. Sabe, não me pareceu grave. Foi só uma febrezita, nada de mais.”
“A comissão do bairro precisa de uma declaração do médico a con rmar a
sua febre.”
“Mas… se a febre já passou, qual o médico que me irá agora dar essa
declaração?”
A senhora Ting cou a olhar para ela com uma expressão descon ada,
como quem achava que estava a ser enganada.Temia ser castigada pelo
Partido por negligenciar os seus deveres de chefe da comissão do bairro.
Esse risco não podia a senhora Ting correr, considerando o salário, os
privilégios do seu cargo e a sua posição no Partido.
“Irei reportar esta situação”, avisou com secura. “Tenha um bom dia.”
A chefe da comissão do bairro foi-se embora com cara de caso e sem
passar o código QR pelo aparelho à porta do apartamento, o que signi cava
que considerava irregular o comportamento daquela moradora.
Sentindo-se muito nervosa, Madina foi à cozinha ferver água para fazer
um chá de camomila. Precisava de algo que a acalmasse. O que iria agora a
comissão do bairro fazer? Se a queixa da chefe da comissão fosse levada a
sério, a situação poderia descontrolar-se. Quase teve vontade de bater em si
mesma. Por que raio havia faltado ao trabalho? Se estava incomodada com o
que acontecera durante a inspeção da véspera, que se desincomodasse. O
que havia o seu incómodo resolvido? Nada. Apenas lhe trouxera novos
problemas, como se constatava. A vigilância era imensa e o Partido queria
claramente controlar tudo. Em boa verdade, sempre assim fora, a
descon ança e o desejo de controlo estavam na natureza do Partido. Porém,
começava já a não aguentar toda aquela pressão.
Sentou-se no sofá a beber o chá. Fechou os olhos e respirou fundo.
Gradualmente, começou a sentir-se mais calma. Quando recuperara
a serenidade, voltaram a bater à porta. Foi ver quem era. De novo, a senhora
Ting.
“Estive a discutir com o Partido o problema de a senhora não arranjar um
documento que prove a sua alegada febre”, anunciou a chefe da comissão do
bairro, falando como se aquela fosse uma questão muito grave. “Chegámos à
conclusão de que terá de instalar de imediato uma câmara de vigilância na
sua sala de estar.”
“Perdão?”
“A sua alteração de rotinas, aliada à sua incapacidade de fornecer prova
que sustente as explicações que deu, foi considerada suspeita. Temos de nos
assegurar de que nada de anormal se passa no nosso prédio. Não se
apoquente, é para o seu próprio bem.”
“Mas… mas… é mesmo preciso pôr uma câmara dentro do meu
apartamento!?”
“Câmara e microfone.”
“Microfone também?”
A senhora Ting estendeu-lhe um papel.
“Está aqui a descrição técnica do material necessário e a lista das lojas
onde o pode adquirir”, indicou. “Vá lá imediatamente comprar. Daqui a duas
horas virá cá um técnico da polícia fazer a instalação e estabelecer as
ligações vídeo e áudio à esquadra. Aconselho-a a despachar-se. Vai haver
problemas se a essa hora não tiver o equipamento consigo.”
Duas horas não era de facto muito tempo. Madina saiu apressadamente de
casa e dirigiu-se na sua scooter à loja de eletrónica mais próxima. Quando
chegou e pediu a câmara e o microfone com as especi cações técnicas
mencionadas na lista, o empregado abanou a cabeça.
“Está esgotado.”
“Esgotado?”
“Sim. Por ordens do Partido, esse equipamento anda a ser instalado em
muitas casas, pelo que esgotámos o stock. Estamos à espera que chegue
mais.”
O Partido sempre quisera saber o que se passava na intimidade da casa das
pessoas e, com as novas tecnologias, encontrara nalmente a maneira de o
fazer.
Na segunda loja de eletrónica que visitou, a resposta foi igual, quase
palavra a palavra. A procura disparara e o equipamento estava esgotado.
Madina consultou o relógio. Já só faltava uma hora para que a polícia lhe
aparecesse em casa e precisava a todo o custo de nessa altura ter o material
disponível. Tinha mesmo de encontrar o equipamento e não podia
continuar a bater com o nariz na porta.
“Conhece alguma loja que ainda tenha estas câmaras e microfones?”
Felizmente o empregado conhecia. Deu-lhe uma morada no outro lado da
cidade. Montada na sua scooter, Madina acelerou naquela direção. Levou
vinte minutos a ser atendida na loja, pois havia muitos clientes a itos à
procura do mesmo equipamento, mas lá conseguiu comprá-lo e voltou
apressadamente para casa. O relógio indicava-lhe que estava em cima da
hora.
Ao chegar ao apartamento deu com a senhora Ting e um técnico
a baterem-lhe à porta.
“Ah, está aí!”, disse a chefe da comissão do bairro ao vê-la. “Começávamos
a achar que tinha fugido…”
Com as mãos a tremer, Madina abriu a porta e entregou o material ao
técnico da polícia. O homem estudou o apartamento e decidiu que o melhor
sítio para colocar a câmara e o microfone era no teto a meio da sala de estar,
pois dali conseguia cobrir o maior espaço de visão possível. O técnico xou
o equipamento nesse local e colocou uma espécie de caixa transparente à
volta dele.
A dona do apartamento cou intrigada com essa caixa.
“Para que é isso?”
“É para impedir que os residentes desliguem a câmara”, respondeu o
técnico, descendo da escada para veri car a imagem num monitor. “Hmm…
parece-me bem.”
Madina olhou para o monitor. Mostrava a imagem registada pela câmara.
A lente era pelos vistos uma grande angular, pois além da sala de estar
apanhava também a mesa de jantar, o átrio, o corredor e até parte da
cozinha. A única coisa que cava fora do seu alcance de visão era o quarto e
o quarto de banho. A seguir, o homem testou o som e constatou que todos
os ruídos na zona coberta pela câmara eram igualmente captados pelo
microfone.
“Tem piada”, observou a senhora Ting, olhando em redor. “Nunca tinha
reparado que o seu apartamento estava pintado de azul…”
“Foi uma das coisas que me encantou nele”, disse a dona da casa,
esforçando-se por conter a irritação que toda aquela situação lhe estava a
causar. “Parece que estamos no céu, não é? É tão pací co…”
A senhora Ting continuou a observar o interior do apartamento. Os seus
olhos xaram-se na estante com os livros. Havia três prateleiras carregadas
de livros.
“A senhora não é professora, pois não?”
“Eu? Claro que não.”
“Então porque tem tantos livros em casa? Há alguma explicação para
isso?”
A dona do apartamento engoliu em seco.
“Peço desculpa, é que… en m, gosto de ler.”
“Portanto, constato que não tem uma explicação funcional para a posse
destes livros todos. Como sabe, terei de reportar esta situação.”
Quando a senhora Ting e o técnico se foram embora, Madina sentou-se
no sofá e cou a olhar longamente para a câmara. Que o Partido gostava de
saber tudo sobre todos e descon ava de tudo e de todos não era novidade
nenhuma. O que a deixava abismada era a forma como o Partido, que
sempre fora uma burocracia mastodôntica, com tanta agilidade se mostrava
capaz de tirar pleno partido das novas tecnologias. Competentes para o mal,
incompetentes para o bem.
Voltaram a bater à porta.
“Oh, não!”, murmurou ela, irritada. “Outra vez aquela… aquela…”
Conteve-se a tempo. Não se podia esquecer de que, quando se encontrava
sozinha em casa, já não estava de facto sozinha. Tinha a polícia, e sobretudo
o Partido, ali com ela; em silêncio, é certo, mas a ver e a ouvir tudo o que ela
fazia e dizia. Falar mal da chefe da comissão do bairro, que o Partido
escolhera, não era avisado.
Levantou-se e abriu a porta com um sorriso, tentando parecer jovial
perante a senhora Ting.
“Senhora Ti… ah, és tu!”
Quem desta feita estava do outro lado era Reyhan.
“Então, o que tens?”, perguntou a sua amiga dos tempos da faculdade.
“Liguei para o teu emprego e disseram-me que estavas doente. Liguei para o
teu telemóvel e não atendeste.”
Madina convidou-a a entrar e instalaram-se no sofá, rodeadas por
almofadas.
“Oh, nem imaginas o meu dia. Saí de casa a correr e esqueci-me
do smartphone. O pior é que tive de aturar a chata da…” Lembrou-se da
câmara. “Da… da… en m, a chata da febrezita arreliadora que tive. Mas já
estou melhor.”
Teve vontade de se esbofetear a si mesma. Como podia ela esquecer-se tão
depressa da existência da câmara? Precisava de ter sempre presente que a
vigilância sobre ela era doravante constante e envolvia a intimidade da sua
casa. Esquecer isso era um luxo a que jamais se poderia dar.
“Pobrezinha. Queres que te vá comprar alguma coisa à farmácia?”
Precisava de avisar a amiga de que estavam a ser observadas antes que ela
dissesse algo de inconveniente e se metesse em apuros.
“Estou bem, obrigada. Felizmente que o Partido vela por mim.” Apontou
para a câmara no teto. “A chefe da comissão do meu bairro ainda há pouco
veio cá e mandou instalar esta câmara de videovigilância aqui na sala. Tem
microfone e tudo. Uma maravilha. Assim, se me acontecer algo, o Partido
verá e ouvirá tudo e virá imediatamente socorrer-me.”
Reyhan cou especada a olhar para a câmara e levou alguns segundos a
recuperar da surpresa.
“Que… que sorte!”, disse, sorrindo com a boca mas assustada com os
olhos. “Tenho duas colegas da escola que também foram bafejadas por
este… uh… serviço do Partido. És realmente muito afortunada.”
“O Partido vela por nós.”
Fez-se um silêncio entre elas. Com a câmara e o microfone a captarem
tudo, sobre o que poderiam falar?
“Tens lido alguma coisa de interessante?”
“Sim, sim. Tenho andado a reler uma edição antiga do… do…”
Calou-se a tempo. O avô Qeyser havia-lhe oferecido em criança o
Tazkirah, uma coleção de histórias míticas uigures cujo título poderia ser
traduzido para O Livro da Memória. O problema é que não tinha a certeza
de que a leitura daquela obra clássica da literatura uigure estivesse
autorizada. O Partido tinha organizado várias queimas de livros “ilegais” e
talvez o Tazkirah estivesse na lista das obras proibidas.
“Do quê?”
“Do… do… do Capital, de Karl Marx”, corrigiu-se Madina a tempo. “E
tu?”
“Ena, andas com leituras pesadas”, constatou a amiga com uma risada
descontraída. “Pois eu há algum tempo que não leio nada. O último livro
que li foi o… o…”
Madina lançou-lhe um olhar assustado e Reyhan emudeceu bruscamente,
de repente também consciente de que tudo o que dizia na privacidade do
apartamento, na verdade, já não era em privado.
“Qual foi o livro?”
“O… o Manifesto Comunista.”
“Ah! Grande obra!”
“Sem dúvida, sem dúvida. Uma pessoa não consegue parar de ler. É
impressionante o talento de Marx e Engels. Adoro.”
Nova pausa, esta mais prolongada. Madina queria contar tudo o que vira e
acontecera nos últimos tempos, como era normal entre amigas e sobretudo
nas circunstâncias em que estavam a viver, mas percebeu que não o podia
fazer. Intuía também que Reyhan precisava de desabafar, decerto pelas
circunstâncias da vida dela, desde assuntos íntimos a coisas que se
passariam na sua escola, e ao que parece havia cada vez mais bizarrias a
acontecer nas escolas, mas também não havia modo de falarem sobre isso.
Mas se não podiam falar sobre nada do que realmente lhes interessava,
falariam sobre quê?
“Já viste como tem estado o tempo?”
“Ah, pois. Horrível.”
Madina não conseguiu evitar um olhar de relance para a câmara
e o microfone instalados no teto.
“Felizmente que o Partido zela por nós. O Partido… e o Chefe.”
A amiga anuiu com vigor.
“Ah, sim. O Lingxiu é um verdadeiro pai para todos nós. Preocupa-se
imenso connosco.”
“É incansável.”
“Pois é, pois é. Que sorte o nosso amado país contar com um homem
como Ele.”
Não era possível, aperceberam-se ambas, terem uma conversa normal com
o Partido a ver e escutar tudo em permanência. A partir desse instante,
teriam de ter cuidado com o que diziam dentro de casa e a única maneira de
estarem seguras era evitarem qualquer tema em que pudesse haver um
desvio em relação ao pensamento autorizado pelo Partido, mesmo que esse
desvio fosse mínimo. Não podiam falar de livros, não podiam falar da sua
vida, não podiam falar sobre o estado do mundo… não podiam na verdade
falar sobre nada de interessante, pois tudo era passível de “crimes de
pensamento”. É certo que estavam habituadas a vigiarem-se a elas próprias e
a terem cuidado com as palavras, quem vivia sob a tutela do Partido sabia
que a vigilância era algo tão normal quanto o ar que respiravam, mas nunca
imaginaram que o nível de vigilância do que diziam na privacidade do lar
pudesse chegar àquele ponto.
Alguém voltou a bater à porta. Madina mordeu o lábio inferior para
conter a irritação.
“Agh! É ela outra vez.”
“Ela, quem?”
Levantou-se e abriu a porta. Tratava-se mais uma vez, como havia
calculado, da chefe da comissão do bairro.
“Senhora Ting! Que bom vê-la de novo!”
“Acabei de sair agora de uma nova reunião da comissão do bairro
convocada por mim com caráter de urgência”, anunciou a senhora Ting
como se a dita comissão do bairro fosse o próprio Comité Central do
Partido. “Estamos muito preocupados com a cor do seu apartamento.”
Madina arregalou os olhos.
“A cor?”
“Sim. Reparei há pouco que o seu apartamento é azul e quei
imensamente preocupada. Levei o assunto à comissão para ser discutido e
deliberado sem demora.”
“Mas… o que tem a cor do meu apartamento de especial?”
“É azul.”
“E então? Qual o…”
Calou-se. Ocorreu-lhe nesse momento que alguém uma vez lhe dissera
existir um qualquer movimento independentista uigure que escolhera o azul
como cor da sua bandeira.
“A comissão do bairro considerou a cor do seu apartamento intolerável.
Não pode estar pintado de azul.”
“Uh… então qual a cor que a comissão do bairro considera aceitável?”
A senhora Ting baixou-se e levantou um enorme invólucro redondo, que
lhe entregou. Uma lata de tinta.
“Vermelho, claro.”
A primeira reação de Madina, re exa, foi de horror. O apartamento todo
pintado de vermelho?! Felizmente que estava de costas para a câmara de
videovigilância, pelo que o seu fugaz esgar de repulsa passou despercebido a
quem estivesse na polícia a seguir o que se passava na sua casa. Corrigiu de
imediato o semblante.
“Ah, vermelho, a cor do Partido! Há tanto tempo que desejava ter o
apartamento pintado de vermelho, a senhora nem imagina. Agradeço-lhe
imenso a sua atenção e generosidade. Assim, sempre que estiver em minha
casa, de cada vez que olhar para as paredes estarei a lembrar-me da
esplendorosa cor do Partido e da Sua ação benigna em prol de todos nós.
Muito obrigada.”
Mas a senhora Ting não dava ares de tencionar sair do apartamento. Os
seus olhos vasculhavam tudo como se procurasse indícios de mais
transgressões.
“Já houve alguma inspeção ao seu apartamento em busca de artefactos
separatistas e extremistas?”
“Inspeção ao…?”, admirou-se Madina. “Oh, senhora Ting, eu sou do
Partido. Lá na petrolífera sou eu e os camaradas da minha célula que
fazemos esse tipo de inspeções…”
Decidindo-se, a chefe da comissão do bairro pôs-se a vasculhar o
apartamento.
“Pois sim, mas até os inspetores devem ser inspecionados.”
Os inspetores uigures, subentendeu Madina. Nos han ninguém
evidentemente tocava.
“Ora essa, senhora Ting. Esteja à vontade.”
Não era preciso dizê-lo, pois nessa altura já a intrusa en ara pelo corredor
como se fosse ela a dona da casa e desaparecera no quarto de Madina. A
an triã trocou com Reyhan um olhar de impotência; até no seu próprio
apartamento quem mandava era o Partido. Ouviu a senhora Ting remexer-
lhe nas gavetas e no armário antes de reaparecer no corredor com uma
expressão triunfal.
“Cá está!”
Trazia nas mãos um objeto. Madina focou os olhos nele e logo o
reconheceu. Aynurita.
“A minha boneca de trapos!”
“Um artefacto separatista.”
“Separatista? Mas… é uma boneca que eu tenho desde a infância, senhora
Ting. Foi o meu avô que a fez e que ma deu quando eu era pequena…”
Esboçando um esgar de desdém, a chefe da comissão do bairro mostrou
os tecidos de que a boneca era feita.
“Olhe para isto! Estes tecidos não são chineses. Vieram evidentemente do
Cazaquistão. São uma resistência à nossa verdadeira cultura.”
“A boneca está feita à maneira da cultura uigure.”
“O que é isso de cultura uigure? Que eu saiba não há cultura uigure… a
não ser que se esteja a referir à cultura separatista. Preciso de lhe lembrar
que estamos na China e que todos somos chineses? Se usa tecidos para as
suas bonecas, use os tecidos chineses. E se gosta de bonecas, use as bonecas
chinesas. Onde já se viu bonecas da dita cultura uigure? O que é isso de
cultura uigure? Você é ou não é chinesa?”
“Mas… mas…”
“É ou não é chinesa?”
Pressionada, e ciente de que a acusação de separatismo era de uma grande
gravidade, Madina baixou a cabeça em sinal de submissão.
“Claro que sou.”
“Este artefacto separatista está apreendido.”
A senhora Ting meteu a boneca de trapos no saco e abalou nalmente
dali. Madina cou um longo momento parada a olhar para a porta que se
fechara, lutando contra as lágrimas que teimavam em abeirar-se-lhe dos
olhos. A chefe da comissão do bairro levara-lhe a sua Aynurita! Como era
possível que lhe zessem uma coisa daquelas? Que mal tinha uma boneca de
trapos? Como lhe podiam roubar aquele pedaço tão precioso da sua
infância? Desde pequena que sonhava em ter lhos e havia muito tempo
decidira que Aynurita seria a sua lha até ao dia em que tivesse lhos a sério.
E… e levaram-na?
Com a câmara e o microfone instalados na sala, porém, nada podia dizer.
Nem sequer chorar. Estava constantemente a ser vigiada e qualquer
comportamento que os polícias ou os algoritmos considerassem suspeito
poderia atirá-la para parte incerta. Pestanejou para secar as lágrimas e
virou-se para Reyhan com um sorriso forçado, como se o que se tivesse
acabado de passar lhe fosse indiferente.
Com a ajuda da amiga, pegou no balde de tinta e deitou imediatamente
mãos à obra, pondo-se a pintar o apartamento de vermelho berrante. Ambas
sempre a elogiarem o Partido e o Chefe em voz alta e em tom entusiástico,
claro.
XXXVI

Charlie Chang e Tomás Noronha foram conduzidos ao centro de


operações da base aérea de Kadena. O local era enorme e estava pejado de
monitores; viam-se várias dezenas de ecrãs que mostravam imagens obtidas
em direto por satélites e por drones, para além de mapas e comunicações
para os centros de comando de diversas unidades. Havia vários homens e
mulheres fardados na sala, a maior parte a operar dados ou a analisar as
imagens.
De uma zona de sombra emergiu um vulto à civil que o português
reconheceu prontamente; tratava-se de Kurt Weilmann, o responsável da
DARPA a quem ligara para con rmar a identidade de Chang.
“Howdy, man”, saudou-o Weilmann. “Surpreendido por me ver aqui,
hem?”
“Surpreendido é a palavra certa”, admitiu Tomás. “O que está cá a fazer?”
“Vim de Washington para dar apoio técnico a esta operação”, indicou. “Só
nos falta o coronel Poulson para podermos conversar. Ele está neste
momento numa reunião e já vem aí.”
Weilmann cumprimentou Chang e o tenente Collins e os recém-chegados
trocaram por momentos observações mundanas, comentando as viagens
que tinham acabado de fazer e tecendo comentários super ciais sobre a
beleza da ilha. Claramente a conversa de substância só deveria ocorrer
quando o tal coronel Poulson viesse ter com eles.
Impressionado com o centro de operações, o historiador apontou para a
panóplia de ecrãs que enchiam as paredes.
“Isto é notável”, observou. “Vocês estão pelos vistos em direto com toda a
parte a todo o momento.”
“O que está aqui, man, é apenas a ponta do icebergue”, indicou Weilmann.
“Temos milhares e milhares de imagens a chegar a todo o instante de todo o
planeta, vinte e quatro horas por dia.” Apontou para uns ecrãs à esquerda.
“Está a ver aquelas imagens? São transmitidas em direto pelos nossos
satélites espiões e mostram Tongchang-ri em tempo real.”
“Isso não é um dos sítios de onde a Coreia do Norte costuma lançar os
seus mísseis balísticos?”
“Gee, man! Já vi que está bem informado”, constatou o dirigente da
DARPA. “Sim, é uma das bases norte-coreanas de mísseis balísticos.
Estamos a escalpelizar todo o território norte-coreano em permanência,
pois têm bases desse tipo de mísseis em Tongchang-ri, em Sino-ri, em
Yongjo-ri, em Sangnam-ni e numa série de outros lugares, já para não falar
nas instalações nucleares em Taechon, em Yongbyon, em Sunchon e por aí
fora. Dispomos ainda de câmaras em permanência a cobrir toda a China,
toda a Rússia, toda a Bielorrússia, toda a Cuba, toda a Venezuela, todo o
Irão, todo o Iraque, toda a Síria, todo o Afeganistão… en m, todas as
ditaduras e autocracias de onde podem surgir ameaças ao mundo livre. Tem
de ser tudo escrutinado a cada momento para que qualquer anomalia seja
prontamente detetada e tenhamos tempo de reação.”
“Caramba! Vocês conseguem escalpelizar esses dados todos?”
“Que remédio.”
“Milhares e milhares de câmaras, vinte e quatro horas por dia, sete dias
por semana, doze meses por ano? Mas para ver todas as imagens em
permanência precisam com certeza de uma quantidade descomunal de
gente…”
Weilmann trocou um olhar cúmplice com Chang e o tenente Collins antes
de responder.
“Recorda-se de uma vez termos falado sobre a Internet total?”
Tratava-se de uma referência a uma conversa que ambos tinham tido
quando se conheceram na aventura do Imortal.
“Se bem me lembro, Internet total era a sua expressão para a chamada
Internet das Coisas, a ideia de que todas as máquinas estão ligadas umas às
outras, passando informação de um lado para o outro e agindo no mundo
real. Ao chegar a casa, o sensor deteta a minha entrada e liga logo o
aquecimento à temperatura que eu gosto e põe no sistema interno a minha
música favorita. Vou ao quarto de banho e o espelho analisa-me e faz a
leitura das minhas pupilas, concluindo por exemplo que tenho falta de
vitamina C, o que automaticamente leva a que o meu batedor na cozinha
comece a fazer um sumo de laranja. Tudo está ligado a tudo, passando
informação sobre mim para todo o lado e agindo sobre o mundo real para
meu benefício.”
O homem da DARPA fez um gesto largo, a indicar os monitores que
enchiam a sala de controlo.
“O que estamos aqui a fazer é a mesma coisa, man, só que numa dimensão
militar”, explicou. “Cada um destes monitores está constantemente a ser
observado. Porém, não são pessoas que analisam as imagens em
permanência. São algoritmos. Os computadores nunca se cansam, nunca se
distraem, não fazem pausas para comer ou ir ao quarto de banho, não têm
dores de cabeça nem adormecem no seu turno, não vão de m de semana
ou de férias, não pedem aumentos de salários, não fazem greve. Esses
algoritmos estão programados para detetar anomalias e alertar-nos para
elas, e fazem-no com suprema e cácia durante vinte e quatro horas por dia.
Por exemplo, não está aqui ninguém a observar constantemente as imagens
que nos chegam em direto via satélite da base de mísseis norte-coreana de
Yongjo-ri. Mas se de repente for lançado um míssil em Yongjo-ri, um
algoritmo que vigia em permanência as imagens dessa base de mísseis
balísticos lança imediatamente um alerta e quem aqui está irá ver o que se
passa. Se con rmar o fundamento do alerta, alertará de imediato a
hierarquia.”
“Portanto, vocês montaram aqui uma espécie de Internet total militar para
observar o mundo.”
“Pois, só que isto não é para observar apenas. É também para atuar. Veja o
caso da Uber. Imagine, man, que quero fazer uma viagem aqui da base aérea
de Kadena para a cidade de Naha, por exemplo. Vou à minha app pedir um
Uber e alguém recebe algures essa informação. Só que esse alguém não é
uma pessoa, é um algoritmo. O algoritmo recebe o pedido, interpreta-o e
identi ca imediatamente o Uber mais próximo de mim, estabelecendo
automaticamente o itinerário e o preço. Um qualquer motorista ligado à
Uber nas redondezas recebe as instruções do algoritmo e vem aqui a Kadena
para me levar a Naha. Ou seja, quem está no início e no destino do processo
são seres humanos, eu e o motorista da Uber, mas tudo o que se passa no
meio não é feito por seres humanos, mas por um algoritmo de computador.
É uma máquina que dá ordens ao motorista da Uber. É o algoritmo que
decide quem é o condutor mais bem posicionado para responder ao meu
pedido e que manda esse condutor vir buscar-me e levar-me ao meu destino.
O mais extraordinário é que o condutor obedece à máquina e trata-a como
se fosse o seu patrão.”
Tomás considerou o exemplo que acabava de lhe ser dado e o respetivo
contexto.
“Desculpe, está a insinuar que vocês estão a pôr máquinas a tomar
decisões militares?”
A pergunta arrancou um sorriso condescendente de Weilmann.
“Bom, não ponhamos as coisas assim…”
A resposta constituía uma forma enviesada de con rmação.
“Vocês estão mesmo a entregar às máquinas o poder de decisão sobre
como, quando e contra o quê disparar?”
Os três americanos trocaram olhares entre eles.
“A decisão é de um ser humano, man”, apressou-se a esclarecer o
responsável da DARPA. “O sistema que estamos a desenvolver mantém
sempre um ser humano no processo de decisão. Regressemos ao nosso
exemplo e imaginemos que a Coreia do Norte lança um míssil que pode
chegar aqui em poucos minutos. O nosso algoritmo deteta esse lançamento,
calcula pelo trajeto e por comunicações intercetadas aos norte-coreanos que
o alvo é a nossa base militar aqui em Okinawa e lança um alerta. O tenente
Collins está distraído a ler uma revista aqui no centro de operações e ouve o
alerta. Ao inteirar-se da situação, dá uma instrução ao computador para
abater o míssil. O algoritmo do nosso computador identi ca
automaticamente quais são os nossos navios que se encontram na
vizinhança com possibilidade de intervir, identi ca qual desses navios é o
que está em melhor posição, qual a sua arma mais adequada para esta
interceção e… dispara-a contra o míssil balístico. O míssil norte-coreano é
intercetado e a ameaça neutralizada.”
“Se é o computador que decide como se faz a interceção e escolhe qual a
arma que dispara, isso é pôr uma máquina a tomar decisões de guerra…”
Weilmann apontou para a porta de saída.
“Não viu lá fora as baterias de mísseis antimísseis Patriot que protegem a
nossa base aérea? Os Patriot tornaram-se famosos quando foram colocados
em Israel em 1991 para proteger o país dos mísseis Scud iraquianos durante
a Guerra do Golfo. Acontece que os Patriot são regulados por algoritmos.
Quem toma a decisão de os ligar somos nós, mas quem toma a decisão de
como intercetar os mísseis Scud que nos atacam é o algoritmo dos Patriot. O
que estamos a fazer é a mesma coisa, só que numa escala mais vasta. Os
seres humanos tomam a primeira decisão, a de ligar os Patriot para
intercetar os mísseis norte-coreanos, os algoritmos dos Patriot tomam a
decisão de quando e como executar essa interceção, escolhendo o momento,
os meios e a forma.”
O historiador não parecia convencido.
“A escala, como disse, é diferente…”
“Admito, man. Porém, o facto é que as armas autónomas já existem há
muito tempo, como se prova pelo exemplo dos Patriot, e que a primeira
decisão, a de as ligar, é sempre tomada por um ser humano. Os Estados
Unidos operam este tipo de armas ao abrigo da Diretiva 3000.09, que
estabelece explicitamente que os sistemas de armas autónomas e
semiautónomas têm de ser concebidos para permitir que os comandantes e
os operadores exerçam níveis adequados de supervisão humana sobre o uso
da força. Ou seja, tem sempre de haver um ser humano a tomar a decisão de
autorizar o sistema de armas a disparar, seja uma simples bateria de mísseis
Patriot, seja a Internet militar total que estamos a desenvolver.”
Tomás considerou esta resposta e ia problematizar a questão quando os
olhares dos três americanos se voltaram para a entrada da sala de operações,
de onde vinha um o cial em passo rápido, o rosto grave e um papel na mão.
“Gentlemen, localizámo-la!”
Dragão Vermelho tinha sido encontrada. E, com ela, Maria Flor.
XXXVII

As inspeções que fazia todos os dias a casa dos uigures e cazaques da


empresa estavam a deixar Madina deprimida. Teve uma ideia. Embora não
pudesse alertar todos os uigures, cazaques e membros das restantes minorias
que trabalhavam na empresa sobre as inspeções domiciliárias iminentes,
havia uma coisa que podia fazer: avisar o único funcionário da empresa em
quem con ava e pedir-lhe para passar discretamente a palavra aos colegas.
Seguindo esse plano, no nal do dia de trabalho abeirou-se do engenheiro
Husein, aliás, Wu.
“Não quer ir lanchar ao Parque Chaoyang?”
O engenheiro estranhou o convite.
“Lanchar?”
“Sim, sim. Tenho uns petiscos que andei a cozinhar e gostaria imenso de
saber a sua opinião antes de os oferecer para a próxima festa organizada pelo
Partido.”
Ele percebeu que se tratava de um mero pretexto para falarem e anuiu.
Ciente de que havia câmaras de videovigilância por toda a parte, incluindo
no parque, Madina trouxera de casa uma merenda concebida para
credibilizar o convite e foi com esse cesto no braço que vinte minutos depois
saiu da empresa com Wu.
O caminho até ao parque não foi fácil, pois tiveram de passar por uma
série de checkpoints; havia agora em Karamay um posto de controlo policial
de trezentos em trezentos metros em todas as ruas. Uma verdadeira loucura.
Nesses checkpoints, como sempre obrigatórios apenas para os membros das
minorias, Madina detetou nesse dia duas novidades. A primeira é que tudo
parecia processar-se muito mais rápido do que anteriormente. A segunda é
que por várias vezes enquanto aguardava a sua vez de ser inspecionada viu
alarmes soarem dentro do checkpoint e homens e mulheres uigures e
cazaques serem imediatamente levados pelos agentes de segurança que
habitualmente operavam esses checkpoints, os bao’an, ou mesmo pela polícia,
para “ir tomar chá à esquadra”.
Olhou discretamente para Wu.
“Isto está bonito…”
Disse-o num sussurro, mas ele assustou-se e olhou em redor, para se
assegurar de que ninguém a escutara.
“Por favor, cale-se.”
Quando chegou a vez deles no primeiro posto de controlo, zeram-lhes
um scan às íris e pediram-lhes o bilhete de identidade de residente. Ambos
entregaram os documentos e estes foram introduzidos numa máquina para
scan. A seguir, os bao’an pediram-lhes os telemóveis e zeram-lhes outro
scan, este com recurso a uma app especial.
“Podem avançar”, acabou por dizer o bao’an que os scalizou, depois de
veri car os resultados do processamento dos dados. “Estão limpos.”
Este procedimento repetiu-se nos checkpoints seguintes até por m
conseguirem chegar ao Parque Chaoyang. Instalaram-se ambos num banco
de jardim, junto a um relvado acabado de regar. Madina tirou do saco de
merendas as delícias uigures que trouxera, sobretudo pichene e bakkali, e
ngiu que preparava o lanche.
“Pedi para falar consigo porque se estão a passar coisas muito
preocupantes”, disse ela, estendendo-lhe um bakkali. “O Partido começou
agora a fazer inspeções à casa de todos os funcionários da empresa que
sejam das minorias. O que signi ca que mais tarde ou mais cedo iremos
bater à sua porta. Achei importante preveni-lo. Tenha cuidado com o que
guarda na sua casa. Se forem encontrados objetos proibidos, serão
imediatamente listados para apreensão e você e qualquer outro colega
apanhado terão de ser denunciados à polícia. Aconselho, pois, a desfazer-se
imediatamente de tudo o que possa ser…”
“Espere aí, espere aí”, cortou o engenheiro, esfregando a mão sobre os
lábios aparentemente para os massajar, mas na verdade para tapar a boca.
“Esta conversa é sobre assuntos… uh… delicados?”
A pergunta deixou Madina inquieta; teria cometido um erro ao con ar
nele?
“Porque pergunta?”
“Desligue o seu telemóvel.”
“Perdão?”
“Desligue o seu telemóvel imediatamente e sente-se sobre ele! Faça o que
lhe digo!”
Embora sem compreender, o tom dele indicava tal urgência que obedeceu
prontamente.
“Já está. O que se passa?”
“Agora olhe discretamente para os postes à nossa volta. O que vê?”
Fingindo que apreciava os encantos do parque, ela levantou os olhos e
xou-os nos objetos no topo dos postes que o seu interlocutor
evidentemente queria que observasse.
“Há câmaras em todos eles”, constatou Madina, trincando um pichene para
disfarçar. “Mas estamos a lanchar, não estamos? Qual o mal que isto tem?”
“Do que percebi, deseja falar comigo sobre assuntos de natureza
delicada…”
“Sim, mas porquê todas estas cautelas? Que eu saiba, as câmaras não nos
ouvem.”
“Acha que não?”
A forma como ele formulou a pergunta, em tom quase de a rmação,
assustou-a. Embora disfarçadamente, olhou melhor para as câmaras,
procurando sinais de microfones. Não os vislumbrou. Por via das dúvidas,
pôs discretamente a mão sobre a boca e baixou a voz para um sussurro
quase inaudível.
“Há microfones nestas câmaras?”
“Consegue falar sem mexer os lábios?”
“Sim, claro.”
“Então façamos isso e falemos baixinho”, propôs Wu, ele próprio a falar
num murmúrio e quase sem mexer a boca. “Diga-me, por favor: por acaso
foi chamada para fazer exames médicos no quadro da campanha Saúde para
Todos?”
“Fui.”
“Foi também convocada para lhe tirarem as impressões digitais,
registarem-lhe a íris, gravarem-lhe a voz, tirarem-lhe fotogra as e lmarem-
na a andar de um lado para o outro?”
“Sim.”
“Fizeram isso a todas as pessoas das minorias em Xinjiang”, indicou ele.
“Desde 2014 que uma empresa ligada ao Partido e associada ao programa de
pesquisa de armas nucleares chinesas, o Grupo de Tecnologia Eletrónica da
China, está a constituir uma base de dados colossal com o registo e os
contactos de todos os habitantes das minorias existentes em Xinjiang,
sobretudo nós, os uigures. Nessa base de dados concentra-se toda a
informação sobre cada habitante da região, incluindo as respetivas contas
bancárias, as contas nas redes sociais, o cadastro, o registo de viagens, o
registo de saúde, o registo de todos os movimentos de cada pessoa segundo
o que está assinalado pelo GPS do telemóvel de cada um, o registo dos…”
“Eles estão a scalizar-nos os telemóveis?”
“Estão a scalizar tudo”, sussurrou o engenheiro, sempre sem mexer os
lábios. “Às pessoas que não têm telemóvel até oferecem aparelhos baratos da
Huawei, dizendo-lhes que nunca os podem desligar. O GPS dos telemóveis
diz-lhes em permanência e em tempo real onde cada cidadão se encontra a
cada momento. Por acaso deixou o seu telemóvel recentemente na posse de
alguém do Partido?”
“Uh… sim. Numa reunião recente.”
“Pode ter a certeza de que lhe inseriram no aparelho um spyware, um chip
de espionagem. Isso signi ca que tudo o que disser e visionar no telemóvel é
vigiado pelo Partido em tempo real. Mesmo que desligue o aparelho, eles
conseguem ativar remotamente a câmara e o microfone. Foi por isso que lhe
pedi para se sentar sobre o seu smartphone. Além do mais, estão a instalar à
socapa nos telemóveis uma série de apps. Há a app Jingwang Weishi, que
inspeciona todas as fotogra as e vídeos que temos no smartphone e envia
essa informação para um server desconhecido, presumivelmente da polícia.
Há também a app Fengcai, que dá ao Partido acesso às fotogra as e às
gravações, informação de localização, registo de chamadas, mensagens,
calendários, contactos… tudo. Aliás, podem fazer a vigilância mesmo sem
inserir qualquer spyware novo, pois muitos telemóveis produzidos na China
já têm spyware secretamente instalado nas fábricas por ordens do Partido, o
que quer dizer que eles já estão a vigiar todas as pessoas que usam esses
aparelhos. Os telemóveis tornaram-se verdadeiros espiões do Partido.”
A rapariga remexeu-se no seu lugar, quase instintivamente a tentar tapar
melhor o microfone do aparelho com as nádegas.
“O… o programa Saúde para Todos era para obter dados pessoais para
esse banco de dados de vigilância?”
“Já vi que percebeu”, con rmou Wu. “A saliva para recolher o ADN e a
colheita de sangue serviram para um processo de estabelecimento de per s
com recurso a dois marcadores, o STR e o SNP. Cada pessoa tem o seu
próprio STR, pelo que a identi cação de um STR permite a identi cação de
uma pessoa. Já os marcadores SNP são usados para de nir estruturas faciais
e a cor da pele, por exemplo, o que permite fazer per s de grupos
populacionais. Ou seja, a identi cação dos SNP permite categorizar raças e
diferenciar os han dos outros povos.”
Madina estremeceu.
“O Partido está a categorizar raças?”
“O que acha você?”, questionou o engenheiro em tom retórico.
“É importante que perceba que os dados genéticos individuais e raciais
obtidos a partir das colheitas da saliva e do sangue, mais as impressões
digitais, as gravações de voz, a captação da íris, as fotogra as que nos
tiraram em alta de nição a sorrir, zangados, tristes, sérios e de per l, as
lmagens que nos zeram a andar de um lado para o outro, as informações
constantes em cada um dos milhentos questionários que somos
constantemente forçados a preencher, as listas que a polícia está a receber
com a relação de todos os objetos que as pessoas têm nas suas casas, os
dados da nossa navegação pela Internet, os sites que visitamos, as mensagens
e telefonemas que enviamos e fazemos, as mensagens e telefonemas que
recebemos, a geolocalização do telemóvel que guardamos no bolso ou na
carteira, os relatórios das comissões do bairro… tudo vai para o banco de
dados do Partido. Tudo.”
“Meu De… uh… nossa!”
“O banco de dados do Partido chama-se formalmente Plataforma de
Operações Conjuntas Integradas e é aí que se concentra toda a informação
sobre cada cidadão. Os próprios automóveis elétricos fabricados na China
enviam de trinta em trinta segundos pacotes de informação com destino ao
Partido, incluindo a localização, velocidade e direção do veículo. Isto quer
dizer que, a partir de agora, o Partido conhece cada um de nós ao pormenor,
desde os nossos genes aos nossos hábitos alimentares, os nossos rostos, a
forma como caminhamos, consultas online, leituras, compras e pessoas com
quem nos damos e falamos, mais as nossas deslocações e, na verdade, tudo o
que dizemos e fazemos em qualquer sítio. O Partido sabe tudo sobre nós.
Tudo.”
Madina estava pasmada; se não fosse o engenheiro informático
da petrolífera a dizê-lo, e se o que ele dizia não condissesse com tudo o que
estava a experienciar, não acreditaria.
“Mas somos milhões e milhões de pessoas”, lembrou ela. “Mesmo que
estejam a coligir todos os nossos dados a todo o instante, não há a menor
possibilidade de nos estarem a ver a todos ao mesmo tempo, não é? Quer
dizer, isso requereria imensa gente, quase um vigilante por cada pessoa, pois
trata-se de informação praticamente in nita. Os telemóveis, o online, as
câmaras de vigilância nas ruas, as contas, as compras… é tanta e tanta coisa.
Não é possível proceder a uma vigilância com tal dimensão. Absolutamente
impossível.”
“Teria razão, não se desse o caso de nenhum de nós estar necessariamente
a ser espiado apenas por vigilantes humanos”, esclareceu Wu. “Quem nos
está a vigiar não são só pessoas. São sobretudo algoritmos.”
A rapariga arregalou os olhos.
“Algoritmos?”
“Algoritmos.”
Tudo aquilo pareceu a Madina tão extraordinário que teve uma sensação
de irrealidade.
“Desculpe, está a dizer que… que são os próprios computadores que nos
espiam?”
“Espiam-nos vinte e quatro horas por dia, integrando simultaneamente
toda a informação, e interpretam tudo o que dizemos ou fazemos à
velocidade da luz”, con rmou o engenheiro. “As câmaras da Hikvision que
neste momento nos estão a vigiar não têm microfones, mas as imagens vão
para algoritmos da Megvii e da SenseTime que tudo correlacionam e
interpretam. O Partido revelou que o sistema tem capacidade de cobrir os
rostos de todos os habitantes da China em apenas um segundo. Diz-se que
alguns dos algoritmos são mesmo capazes de extrair informação a partir do
movimento dos lábios. Se dissermos alguma coisa de anormal, emitem
noti cações e alertam a polícia. Daí o meu pedido para falar sem mexer
a boca.”
Ela espreitou de fugida as câmaras instaladas nos postes.
“Que horror!”
“As plataformas de reconhecimento facial usadas pelo Partido foram
desenvolvidas pela Megvii, e são capazes de apoiar redes de vigilância com
até cem mil câmaras. O Partido usa também um algoritmo desenvolvido
pela SenseTime que, sob determinadas condições, é capaz de identi car uma
pessoa com mais rigor do que a mente humana, veja lá. Os algoritmos que
estão a ser usados pelo Partido reconhecem as pessoas captadas pelas
câmaras pelo formato dos seus rostos, mas também pela forma como
caminham, caso os rostos não estejam visíveis, e foi precisamente por causa
disso que nos lmaram a andar de um lado para o outro. Para além da
identidade de cada pessoa, identi cam a idade, o género e a raça. A Megvii
parece ter desenvolvido mesmo o chamado ‘alarme uigure’, um sistema
automático de alerta que deteta uigures com base nos fenótipos raciais dos
nossos rostos quando passamos diante de uma câmara.”
“Mas, estando nós a conversar em uigure, os algoritmos entendem?”
O engenheiro balançou a rmativamente a cabeça.
“Uma empresa chamada iFlyTek terá desenvolvido aqui em Xinjiang uma
tecnologia de reconhecimento da fala que é capaz de traduzir para chinês
conversas que decorram em uigure. A China é o país mais avançado do
mundo nas tecnologias de reconhecimento facial e da fala, necessárias para
este sistema de vigilância total que o Partido implementou. Acontece que,
como estamos a falar de processamento em computadores, os algoritmos
passam a pente no toda a informação sobre milhões e milhões de pessoas
numa simples fração de segundo. Quando há pouco nos checkpoints você se
submeteu à identi cação através da íris e do bilhete de identidade, e ao
mesmo tempo eles inspecionaram o seu telemóvel, o que acha que estava a
acontecer?”
“Estavam a recolher os meus dados, claro.”
“Só que esses seus dados foram inseridos no sistema e a Plataforma de
Operações Conjuntas Integradas absorveu-os a todos. Usando os
algoritmos, comparou–os com os dados que já tinha sobre si. A partir daí,
tirou automaticamente conclusões, percebe? Com base nos parâmetros que
o Partido introduziu, o sistema determina instantaneamente se o
comportamento de um cidadão é normal ou desviante. Mais do que isso,
com base nos dados que recebe sobre cada pessoa e na informação que já
tem sobre ela, o sistema processa tudo e é capaz de determinar até o seu
pensamento.”
Madina arregalou ainda mais os olhos, absolutamente pasmada.
“O meu pensamento?!”
“É o que o Partido está a tentar fazer”, assentiu Wu. “Aceder ao
pensamento das pessoas. Sobretudo o pensamento político, claro. Repare, o
computador consegue processar toda a informação que lhe chega sobre uma
pessoa e consegue até ler as emoções no rosto dela. O sistema analisa o seu
ADN, as suas viagens, os seus amigos, o seu comportamento online, os
objetos que tem em casa, as suas leituras, o que vê na televisão, na verdade
analisa tudo e depois chega a uma conclusão. Os cidadãos considerados
normais são autorizados a prosseguir a sua vida, embora sempre sob
vigilância contínua, e os considerados desviantes são imediatamente
apanhados.”
“O que é considerado normal ou desviante?”
“Oh, você sabe. Se só consultar sites aprovados pelo Partido ou se puser
likes nas mensagens a elogiar o Partido, por exemplo, é considerada normal.
Se por acaso recorrer a um VPN para espreitar à socapa um site estrangeiro
ou se não puser nenhum like quando se cruzar com uma mensagem a
elogiar o Partido, é considerada desviante.”
“Hmm… tenho de pôr mais gostos nas mensagens que o chefe da minha
célula mete nas redes…”
O engenheiro da secção informática da petrolífera indicou com o polegar
a rua que tinham percorrido e onde haviam sido submetidos a inspeção em
sucessivos postos de controlo.
“Não viu aquelas pessoas detidas nos checkpoints por onde há pouco
passámos?”
“Sim.”
“O que acha que elas zeram para serem convidadas a ‘ir tomar chá à
esquadra’?”
A rapariga encolheu os ombros.
“Sei lá.”
“Não puseram um like numa mensagem do WeChat a louvar o Partido e a
Sua obra bondosa?”
“Alguma coisa mais grave do que isso, imagino. Ninguém é detido por
uma coisa dessas.”
Ele manteve os olhos xos nela, como se lhe sugerisse que a resposta que
acabara de dar estava errada.
“De certeza?”
Madina hesitou. O controlo fazia parte da natureza mais profunda do
Partido. As pessoas não se podiam movimentar como queriam, não podiam
dizer o que queriam e tinham sempre de partir do princípio de que toda a
gente era informadora do Partido, sobretudo os vizinhos, mas também os
amigos e até os familiares; mesmo os lhos e os pais. Todos conheciam
histórias de lhos que denunciaram pais e pais que denunciaram lhos. Era
assim a vida sob o Partido, e aceitava tudo com a naturalidade de quem não
conhecia nada diferente. Também era verdade que desde que o temível
governador do Tibete, Chen Quanguo, fora nomeado governador de
Xinjiang que todos intuíram que as coisas iriam piorar. Mas… àquele ponto?
“Não pôr um like numa mensagem a elogiar o Partido… dá prisão?”
“Se é um comportamento desviante, dá. E não pôr um like numa tal
mensagem é de facto considerado pelo Partido comportamento desviante,
pois o normal é toda a gente aprovar os elogios ao Partido.”
Ela esboçou um esgar preocupado.
“Raios! Tenho mesmo negligenciado isso nas mensagens do meu chefe…”
O engenheiro voltou a indicar com o polegar a rua por onde tinham
vindo.
“Aqueles homens e mulheres uigures e cazaques que nós vimos serem
detidos nos checkpoints limitaram-se a fornecer os seus dados ao bao’an que
os solicitou”, sublinhou. “Os bao’an inseriram esses dados no computador.
Uma vez na posse dessa informação, o sistema, que é como quem diz o
Partido, determinou que as pessoas espiadas tinham comportamentos
desviantes e mandou detê-las.”
“E… e se essa gente for mesmo perigosa?”
Wu lançou-lhe um ar irritado.
“Aquelas pessoas? Perigosas? Oiça, estes algoritmos estão a fazer
correlações que nós, seres humanos, não conseguimos ver nem temos
qualquer prova de que existam mesmo. A verdade é que não sabemos como
os algoritmos chegam às suas conclusões. Muitas parecem até aleatórias. O
que permite considerar que uma velhinha que à sexta-feira dá esmola a um
pobre é uma terrorista ou que uma pessoa que se esqueceu de pôr um like
numa mensagem a glori car o Partido é um terrorista? A correlação é
absurda. No entanto, está a ser efetivamente feita pelos algoritmos. Pior, a
polícia está de facto a convidar pessoas a ‘ir tomar chá à esquadra’ por causa
de coisas como essas. É isso o que se está a passar neste momento neste país,
entende? O Partido começou até a exportar este sistema para outros países
através do projeto da Nova Rota da Seda. Está a perceber a ideia? Eles
andam a espalhar estas tecnologias de espionagem da população por todo o
planeta.”
Era tudo tão incrível que Madina não conseguia digerir o que lhe era
revelado.
“Está a dizer que aquelas pessoas… que aquelas pessoas que nós vimos
serem levadas não foram presas por um crime que cometeram, mas por um
crime que o Partido acha que um dia poderão vir a cometer?”
Um veículo pesado de caixa fechada apareceu nesse momento na rua e
estacionou não muito longe deles, atraindo a atenção de Wu. Sem responder
à pergunta, o engenheiro cou a olhar demoradamente para o pesado, como
se o estivesse a avaliar. De repente levantou-se, sinalizando que precisavam
de ir embora.
“Eles têm agora uns camiões equipados com microfones altamente
sensíveis”, murmurou num tom tenso. “Apontam os microfones para as casas
e, apesar das paredes, conseguem ouvir o que as pessoas dizem lá dentro.
Não sei se este é um desses camiões e se está a apontar os microfones para
nós, mas precisamos de ter cuidado. De qualquer forma, estamos aqui à
conversa há já bastante tempo e nunca se sabe se, mesmo não percebendo o
que dizemos, o algoritmo irá lançar um alerta contra nós por
comportamento desviante.”
Tornava-se claro que tinham mesmo de se separar, pois, conforme Madina
acabara de compreender, corriam o risco de o Partido descon ar que aquele
“lanche” era contrarrevolucionário, extremista, terrorista e separatista.
“Isto está bonito…”
O engenheiro Wu encarou-a uma última vez e suspirou com desânimo.
“Estamos a ser presos pelo crime de podermos cometer um crime.”
Ajeitou o casaco e abalou dali.
XXXVIII

A uma sugestão do tenente Collins, o grupo recolheu-se a um canto mais


discreto do centro de operações. Podiam conversar aí mais à vontade,
embora mantendo à vista todos os monitores com a sua panóplia de
imagens. Uma vez a missão de an trião cumprida, Collins retirou-se,
deixando Weilmann a apresentar o comandante da base aérea de Kadena aos
dois recém-chegados, Chang e Tomás.
“Este é o coronel Poulson, responsável militar pela Operação Dragão
Vermelho”, disse o homem da DARPA. “O professor Tomás Noronha tem-
nos ajudado nesta missão e, por isso, está autorizado a aceder a toda a
informação pertinente.”
O coronel Poulson era um homem alto e seco, com o cabelo curto grisalho
e um olhar azul glacial, duro e intimidante. Depois de cumprimentar o
português e Chang, mostrou-lhes o papel que trazia na mão; tratava-se de
uma fotogra a por satélite com a imagem tirada de órbita de uma
embarcação com uma plataforma no convés.
“Como sabem, gentlemen, o porta-helicópteros onde os chineses levam
Dragão Vermelho foi identi cado e seguido”, disse o o cial. “Acabámos de
determinar que Dragão Vermelho está a ser levada para as ilhas arti ciais
chinesas nas Spratly. Intercetámos e decifrámos as comunicações
encriptadas chinesas e determinámos que Dragão Vermelho chegará daqui a
uma hora a Cuarteron Reef.”
O nome não foi de imediato reconhecido por Tomás.
“Onde é isso?”
“As Spratly são um arquipélago ao largo das Filipinas onde há uma
imensidão de recifes, baixios, atóis e ilhotas”, explicou Chang. “Depois de
andar anos a dizer que jamais as ocuparia, pois era pela paz e pela harmonia
da humanidade, o Partido Comunista Chinês instalou-se de surpresa nesses
recifes e atóis e construiu aí uma série de ilhas arti ciais. O Partido jurou ao
mundo que jamais as militarizaria, pois era todo pela concórdia e amor, mas
já meteu um verdadeiro arsenal em algumas das ilhas. Estamos a falar de
mais de mil hectares de terra conquistada ao mar no meio do oceano, onde
o Partido Comunista Chinês ergueu múltiplas bases militares armadas com
sistemas de mísseis e ainda radares, pistas para aviões de carga, hangares
para dezenas de aviões de combate, instalações para a Marinha de Guerra e
depósitos de combustível destinados a apoiar operações militares ofensivas,
designadamente com capacidade de chegar ao Japão, à Austrália, a Taiwan
ou onde quer que seja na região, e mesmo projetando poder militar até ao
oceano Índico, o que signi ca que a ameaça se estende à Índia.”
“Estamos a falar daquelas ilhas arti ciais cuja construção as Filipinas
contestaram?”
“As Filipinas e a comunidade internacional”, precisou o operacional da
CIA. “As Filipinas queixaram-se ao Tribunal Internacional de Haia e o
tribunal con rmou que a ação do Partido Comunista Chinês foi levada a
cabo violando as leis internacionais. O Partido acenou com a dívida lipina
e as Filipinas, percebendo que a Nova Rota da Seda as tinha transformado
num país vassalo, lá se calaram.”
O coronel Poulson apontou para a embarcação captada na fotogra a de
satélite.
“O porta-helicópteros chinês tem uma missão de patrulha nas Spratly que
não pode interromper, uma vez que enviámos um cruzador para aquela
zona, razão pela qual o porta-helicópteros chinês está impedido de levar
Dragão Vermelho de imediato para a China. É por isso que a vão depositar
em Cuarteron Reef.”
Todas estas novidades deixaram Tomás mergulhado em mil cálculos, os
olhos perdidos no in nito como sempre acontecia quando contemplava
soluções para problemas complicados. Desde o fracasso da operação de
Hambantota que alimentava a ilusão de que Maria Flor não estava
de nitivamente perdida e que ainda seria possível salvá-la. Nesse instante,
todavia, tendo ouvido a explicação de Chang sobre as Spratly e as
informações do coronel Poulson, e sobretudo levando em conta a postura
decidida deste, percebeu que se reabria uma oportunidade, ténue mas real.
“E… e agora?”
O comandante da base aérea nem hesitou na resposta.
“Acabei de ter uma videoconferência com o Alto-Comando Militar e com
o secretário da Defesa”, revelou. “A presença de Dragão Vermelho numa
embarcação da Marinha de Guerra chinesa impossibilita uma missão de
resgate, como é evidente. Porém, ao ser detida numa ilha arti cial que o
Tribunal Internacional de Haia considerou não pertencer à China, Dragão
Vermelho não está formalmente na China nem numa embarcação com
bandeira chinesa. Isso abre a janela de oportunidade de que precisamos.”
Weilmann fez uma careta de incompreensão.
“Janela para quê?”
O coronel Poulson encarou-o com uma expressão altiva, o seu olhar azul
gelado xo nele como se a resposta fosse tão óbvia que dispensava a
pergunta.
“Para lançar a operação de resgate, claro.”
XXXIX

Com um gesto discreto, Madina espreitou o relógio na parede; faltava


pouco para se poder ir embora. A sua secretária, situada na zona reservada à
célula do Partido na empresa, cava ao pé do gabinete de Leong. O chefe da
célula tinha a porta aberta e nessa tarde multiplicara-se em telefonemas para
o estrangeiro. Nas últimas duas semanas tinham sido umas chamadas atrás
das outras, todas para fora do país, todas seguindo instruções do Partido. A
rapariga detestava ouvir aquelas conversas, eram sempre iguais e
deprimentes, mas com a porta aberta e Leong a falar em voz alta não tinha
alternativa.
Ouviu-o digitar mais um número e quase revirou os olhos de repugnância,
mas conteve-se e conseguiu manter o semblante impassível; no m de
contas, as câmaras de videovigilância viradas para ela estavam ligadas e os
algoritmos atentos às suas reações.
“Está, madame Kashgari?”, disse Leong ao telefone. “Estou a ligar da
companhia de petróleo, em Karamay. Departamento de recursos humanos.
A senhora partiu para o estrangeiro, correto?” Calou-se para ouvir a
resposta do outro lado. “Sim, sim. Escute, madame Kashgari, segundo
consta nos nossos registos, a senhora saiu da empresa há dez anos. Acontece
que apurámos agora que a nal tem direito a uma pensão.” Silêncio. “Sim,
sim. Uma pensão.” Calou-se. “Pois, justamente. Estou a ligar-lhe para vir cá
assinar uns papéis para começar então a receber a sua pensão. Olhe que
ainda é uma boa maquia…” Calou-se de novo, sempre para ouvir a resposta
do outro lado da linha. “Não, tem de vir cá. Precisa de assinar uns
documentos, percebe? Eu sei que está em Montreal, mas… a assinatura tem
de ser presencial. Tem de ser aqui.” Silêncio. “Quer mandar um
representante com poderes legais para assinar por si? Uh… receio que…
receio que isso não seja possível, madame Kashgari. Tem mesmo de ser a
senhora.” Silêncio. “Não, não. Tem de ser a senhora em pessoa.” Novo
silêncio. “São as regras, minha senhora.” Outro silêncio. “Tem toda a razão,
não faz sentido nenhum, mas… o que quer que lhe diga? São as regras.”
Silêncio. “Sim, sim. Tem mesmo de vir cá pessoalmente. Peço desculpa.”
Novo silêncio. “Tem toda a razão, é uma estupidez dar meia volta ao mundo
só para vir assinar uns papéis, compreendo perfeitamente, mas… o que
quer? São as regras.” Ainda mais um silêncio. “Fique descansada, madame
Kashgari. Já tenho tudo preparado para si. É só chegar cá e assinar o
documento. Um instantinho. Dez minutos depois já pode voltar para o
aeroporto e apanhar o avião de regresso. Nesse mesmo dia começaremos a
mandar o dinheiro da pensão para a sua conta bancária aí em Montreal.”
Outro silêncio. “Muito bem, madame Kashgari. Excelente. Cá a espero
então, madame Kashgari. E… mais uma vez peço desculpa. As regras são as
regras, o que quer que faça? Mas ao menos fazemos tudo como deve ser, não
é verdade?” Era já todo sorrisos. “Obrigado, madame Kashgari. Muito
obrigado. Faça boa viagem. Vemo-nos na próxima semana. Boa viagem!
Obrigado, obrigado.”
Quando desligou, ergueu o punho fechado em sinal de vitória.
“Consegui!”
Um dos subordinados han da célula do Partido, Hu, que como toda a
gente também escutara a conversa, soltou uma gargalhada.
“Ayah! Quem é essa, camarada chefe?”
“Uma tansa que foi há uns anos para o Canadá com a família”, respondeu
Leong. “O computador identi cou uma fotogra a da lha dela a participar
em Paris numa reunião do Congresso Mundial Uigure. Convenci agora a
mãe a vir cá e… esta família fengjian de duas caras já vai ver como elas
doem! Ai vai vai!”
“É assim mesmo, camarada chefe!”, exclamou Hu aprovadoramente.
Voltou-se para Madina. “Espetáculo, hem?”
A rapariga exibiu-lhe um sorriso luminoso.
“Os duas caras têm de ser postos na ordem!”, disse ela com aparente fervor
revolucionário. “Não pode haver contemplações, estejam esses traidores
onde estiverem! Quem afronta o Partido e fere as sensibilidades do povo
chinês tem de pagar!”
“Sem dúvida! Tem de pagar!”
A conversa prosseguiu durante alguns momentos, sempre a incidir sobre a
necessidade de “desmascarar os duas caras”, ou seja, os membros das
minorias étnicas que se ngiam patriotas e comunistas mas que em segredo
traíam o Partido e desejavam o separatismo.
Por m, tudo voltou ao normal. Sempre a vigiar o relógio, o olhar de
Madina ia-se desviando ocasionalmente para os cartazes que a empresa
xara nas paredes. Mostravam soldados e polícias han em postura heroica a
prender “terroristas”, todos eles com sionomias uigures e apresentados
como uma espécie de homens das cavernas. Afastou os olhos dessas imagens
irritantes e começou a arrumar as coisas. Por essa altura, Leong estava já de
regresso aos seus habituais telefonemas para o estrangeiro.
“Está, senhor Hoshur? Sabemos das suas atividades contra o Partido aí em
Bogotá. É só para lhe lembrar que tem cá família, ouviu? Tem cá família.
Ontem o seu pai já foi chamado para ir tomar chá à polícia e… é provável
que por lá que uns bons meses. Vou mandar-lhe uma fotogra a dele
acorrentado atrás das grades para que mate saudades.” Fez uma pausa para
escutar o que dizia o seu interlocutor do outro lado da linha. “Ah, agora já
está a itinho, hem? Pois é, pois é. Pensasse nisso quando foi aos jornais
dizer mentiras sobre a China. Da próxima vez lembre-se da sua família antes
de abrir a boca, ouviu?” Nova pausa. “Essas juras de amor ao Partido soam a
falso, considerando que disse o que disse nos jornais. Mas, olhe, poderia
ajudar o seu pai se, em vez de andar por aí a ofender os sentimentos do povo
chinês, nos arranjasse aqueles documentos secretos da empresa francesa
para a qual o senhor trabalha…”
O som da conversa foi bruscamente abafado. Estranhando a mudança,
Madina levantou a cabeça e constatou que Hu acabara de fechar a porta. Ao
afastar-se, o camarada da célula do Partido lançou-lhe um olhar
descon ado. Madina percebeu. Hu fechara a porta porque não queria que
ela escutasse a conversa. E não queria porque não a achava verdadeiramente
de con ança. Não por algo que ela tivesse dito ou feito, mas por ser quem
era. Por ser uigure. Como se ser uigure ou membro de uma qualquer
minoria étnica fosse um estigma. Um cidadão de segunda classe. Uma raça
inferior. A mancha da vergonha, a nódoa de pertencer a uma minoria,
estava sempre presente por detrás da retórica propagandística da China
“unida” onde todas as etnias viviam “em harmonia”.
O telemóvel tocou. Constatou pelo visor que se tratava da senhora Ting.
“Onde estás?”
“No trabalho.”
“Manda uma fotogra a.”
Havia algum tempo que a chefe da comissão do bairro lhe telefonava
constantemente a perguntar onde estava e a exigir-lhe que lhe enviasse uma
fotogra a para provar que se encontrava onde dizia que se encontrava. Para
que era aquilo preciso se já era controlada pelas câmaras de videovigilância e
pelo GPS do telemóvel? Suspirou. Sabendo que não tinha alternativa, tirou
uma sel e sentada à sua secretária e remeteu-a por WeChat à senhora Ting.
Depois de terminar a arrumação da secretária, a rapariga despediu-se dos
camaradas da célula com um aceno e um sorriso forçado e encaminhou-se
para o elevador. Naquele país as pessoas eram premiadas se mentissem e
punidas se dissessem a verdade, pensou em referência à conversa telefónica
com madame Kashgari. Sempre fora assim, era um facto, mas ultimamente
tornara-se demais. Estava farta de tudo aquilo e tinha vontade de chorar,
mas uma coisa dessas era absolutamente impensável. As câmaras da
Hikvision registavam o seu rosto, os algoritmos da Megvii estudavam essas
imagens, a comissão do bairro vigiava-a a toda a hora, o Partido agiria com
mão pesada se fosse lançado contra ela algum alerta de comportamento
desviante.
Meteu-se na scooter e saiu do parking da petrolífera. Sentia-se muito
sozinha. O Partido tinha cortado todas as comunicações com o exterior por
WeChat, Internet e telefone, e as próprias apps estavam proibidas. Teve por
isso de as apagar do smartphone. Bem lhe custou eliminar as imagens que
tinha guardadas no telemóvel com cenas da sua infância na aldeia com o avô
Qeyser, os pais e os irmãos, e ainda registos de um passeio que a família
zera a Kashgar quando ela era ainda criança. Mas não havia alternativa. O
Partido obrigara todos os elementos das minorias étnicas a ir a uma
esquadra para que os polícias veri cassem os conteúdos dos seus
computadores e telemóveis, razão pela qual tivera de eliminar tudo da
memória dos aparelhos. A última imagem que fez desaparecer mostrava-a
com os pais e o avô no bazar de Kashgar, todos a rirem-se enquanto
olhavam para a câmara. Tempos felizes cuja memória o Partido lhe
roubava…
Como sempre acontecia, ao abandonar o edifício da petrolífera esforçou-
se por limpar a cabeça e esquecer tudo o que a deprimia e assustava. Os
uigures não podiam verbalizar de forma especí ca o que se estava a passar.
Não podiam dizer “a perseguição contra nós” ou “esta prisão a céu aberto
que é Xinjiang” ou qualquer outra coisa que exprimisse o que lhes estava a
suceder, pelo que optaram por chamar a tudo aquilo “a Situação”. Ora, ela já
estava farta da dita Situação. Tinha de se focar no positivo. E, nesse
momento, o positivo é que nessa noite iria receber em casa Reyhan e o
marido. Tratando-se da sua melhor amiga em Karamay, aquele seria sem
dúvida o ponto alto do dia. E tinha ainda de ultimar o jantar.
Havia já uma semana que esperava por essa noite. Em circunstâncias
normais, iriam todos jantar a um qualquer restaurante da cidade. Mas havia
já tantos checkpoints e a polícia mostrava-se tão intimidante que a pressão
psicológica se tornara insuportável. Por toda a parte, fosse no banco, no
supermercado, na clínica ou na bomba de gasolina, havia sempre duas las,
uma lenta para as etnias minoritárias, outra rápida para a raça superior, os
han. Uma humilhação. E ai do uigure que protestasse e não mostrasse boa
cara perante a discriminação racial! As pessoas tornaram-se defensivas,
começaram a isolar-se em casa, a não falar com ninguém e a não con ar em
ninguém. Se sair à rua se tornara um pesadelo, para quê sair à rua?
Daí que Madina tivesse convidado Reyhan e o marido para jantarem em
sua casa. O problema é que o Partido proibira todos os encontros que não
fossem previamente solicitados, razão pela qual tivera, duas semanas antes,
de submeter um pedido prévio à polícia para autorizar que o casal amigo
fosse nessa noite jantar a sua casa. A autorização só fora concedida na
véspera, pois o Partido teve de fazer uma análise rigorosa ao cadastro digital
dos comensais de modo a assegurar-se de que nenhum deles tinha
comportamentos desviantes que o pusesse na categoria de pré-criminoso.
E, ninguém o disse mas estava naturalmente implícito, tudo o que fosse dito
no jantar seria monitorizado graças à câmara de videovigilância e ao
microfone instalados no teto do apartamento ou pelos telemóveis de cada
um.
“O jantar está autorizado, mas com uma condição”, avisara-a o agente que
lhe entregara o papel com a luz verde para a refeição. “Tudo estará
terminado pelas nove e meia da noite e os seus visitantes terão de recolher
imediatamente a casa.”
Foi mandada parar num dos múltiplos checkpoints entre o emprego e a sua
casa. Enquanto o agente de segurança, um bao’an, inseria os seus dados no
computador, Madina passou distraidamente os olhos pelos passeios e pelas
fachadas dos edifícios do centro de Karamay. Estava quase tudo deserto e
encerrado. O único movimento era o dos agentes da polícia, que andavam
em grupos fortemente armados, enquanto as câmaras de videovigilância
plantadas em todos os postes de iluminação faziam o papel de sentinelas
silenciosas.
Já ninguém se atrevia a parar na rua para conversar com um amigo.
Tinham também acabado os encontros casuais nos cafés e as almoçaradas e
jantaradas nos restaurantes; quando os havia, só estavam autorizadas um
máximo de três pessoas à mesa. Mesmo nos casamentos era preciso
submeter previamente à polícia a lista dos convidados, que as autoridades
tinham o poder de vetar, o mesmo acontecendo com almoços e jantares na
casa dos “indígenas”.
O bao’an devolveu-lhe os documentos.
“Pode seguir.”
Arrancou, ainda a pensar no jantar. Até chegar a casa teria de passar por
mais uns seis ou sete controlos. Uma estucha. O que valia é que havia
deixado quase tudo já preparado de manhã, antes de sair do apartamento.
As samsas já estavam aliás prontas e o naan também, enquanto o esparguete
sangza se encontrava a postos para fritar e os kawaplar já marinados e
en ados nos espetos para grelhar sobre o carvão. Precisava era de umas
cervejas.
Parou à porta de um minimercado. Diante da porta estava uma mulher
cazaque a inserir o bilhete de identidade numa caixa eletrónica, algo
imprescindível para qualquer elemento das minorias aceder ao
estabelecimento. Soou um apito curto e o visor da caixa mostrou uma
palavra.

Não confiável

“Oh, não!”, gemeu a mulher. “O que z eu agora?”


Alertados pelo som, dois bao’an uigures apareceram de imediato à porta
do minimercado e veri caram o bilhete de identidade dela. Voltaram a
metê-lo na caixa eletrónica e consultaram os resultados que apareceram no
visor. Ao ver a decisão do algoritmo, seguraram-na pelos braços.
“Receio que tenha de ir tomar chá à esquadra, minha senhora.”
Curvada numa postura de derrota, a cazaque “não con ável” lá seguiu
para o seu destino, ensanduichada pelos dois bao’an e a choramingar em voz
baixa. Madina cou a olhar para ela, com pena. O que teria a desgraçada
feito de mal? Usara um lenço na cabeça? Tivera três lhos? Não pusera um
like numa mensagem a elogiar o Partido? Qual seria o terrível pré-crime que
cometera?
Tentou expulsar o incidente do espírito; não se podia deixar perturbar.
Pegou no bilhete de identidade e fez um movimento para o inserir
igualmente na caixa eletrónica, mas travou o gesto a meio. Talvez fosse
melhor repensar o que ali viera fazer. Já ouvira falar num uigure que
desaparecera porque tinha deixado de beber álcool, sinal seguro, segundo o
algoritmo do Partido, de que seria um terrorista. Mas também já lhe haviam
contado o caso de um estudante tajique que fora dado como “não con ável”
porque tinha comprado uma grade de seis cervejas, prova inequívoca, de
acordo com o mesmo algoritmo, de que se tornara um alcoólico. O que
fazer? Iria ou não comprar as cervejas para o jantar? Talvez fosse mais
avisado prescindir delas.
Em vez de entrar no minimercado, regressou à scooter e encaminhou-se
para casa. Logo que chegou ao apartamento, pôs o óleo ao lume e ateou fogo
no carvão. Como o óleo levava tempo a ferver e o carvão a car
incandescente, aproveitou para ir ao quarto despir o seu uniforme azul do
Partido e escolher uma roupa mais apresentável. A seguir voltou para a
cozinha e fritou o sangza e grelhou os kawaplar, ao mesmo tempo que
aproveitava as pequenas pausas para pôr a mesa e dar um jeito à sala.
Às oito da noite, hora a que tinham combinado jantar, estava tudo a
postos. Sentou-se no sofá à espera de Reyhan e do marido; era bom que
aparecessem depressa, não só porque teriam de sair impreterivelmente às
nove e meia como a comida já estava pronta e, se demorassem, arrefeceria.
Se fossem comidos frios, os kawaplar e o sangza não teriam graça nenhuma.
Mas não havia meio de os convidados aparecerem. Primeiro sentiu-se
impaciente, depois irritada e, por m, preocupada.
Vinte minutos. Um atraso de vinte minutos não era normal. E a comida
estava já de nitivamente fria. Pegou no telemóvel e ligou para a amiga.
Ninguém atendeu. A seguir procurou o número do marido dela e ligou
também. Nada.
Que estranho…
Ouviu barulho no átrio do elevador e deu um salto. Eram eles! Correu
para a porta e abriu-a. Deparou-se com três polícias a saírem de um
apartamento vizinho a agarrarem um morador uigure com as mãos
algemadas atrás das costas e um capuz a cobrir-lhe a cabeça. Uma outra
vizinha, a sua bem conhecida senhora Ting, também estava à porta do seu
apartamento a assistir à cena.
“Bem feito!”, disse a chefe da comissão do bairro. “O lugar dos fengjian é
na choldra!”
Um polícia lançou um olhar perscrutante para Madina, como se se
interrogasse se aquela uigure também seria pré-criminosa, pelo que ela se
viu no dever de apoiar a detenção.
“Mais um duas caras desmascarado!”, vociferou a rapariga em voz alta
para que todos a ouvissem, levantando o punho fechado para mostrar a sua
determinação revolucionária. “Quem afronta o Partido tem de pagar!”
A senhora Ting lançou-lhe um olhar descon ado.
“Porque estás ainda aqui?”, questionou com modos agressivos. “Quando é
que te levam?”
Os polícias meteram-se com o detido no interior do elevador e Madina
voltou depressa para dentro do apartamento, o coração aos pulos. Ficou um
longo minuto encostada à parede, ofegante, a tentar recompor-se. A
detenção do vizinho uigure e o tom acusatório da senhora Ting para com ela
tornavam dolorosamente claro que, apesar de pertencer ao Partido e de
verdadeiramente nunca ter feito nada que O pusesse em causa, isso não a
colocava ao abrigo da suspeita de pré-crime. Conhecia, aliás, dois elementos
do Partido que já tinham desaparecido, uma cazaque e um uigure, e os lhos
entregues a um orfanato do Partido para receberem uma “verdadeira”
educação chinesa, a educação da raça superior, os han. Ouvira já dizer que
esses orfanatos estavam cheios de crianças uigures e cazaques, todas elas
proibidas de falar outra língua que não fosse o chinês ou de ter
comportamentos culturais que não fossem os da cultura han.
A verdade é que todos os “indígenas” estavam sob vigilância. Todos.
Mesmo os mais assimilados, como ela. Mesmo os do Partido. Esforçara-se
imenso por se adaptar à cultura han e, sobretudo, por seguir à risca as
instruções do Partido. Dizia sempre o que queriam que ela dissesse e fazia
sempre o que queriam que ela zesse, mostrando em todas as circunstâncias
a cara que queriam que ela mostrasse. Era preciso gritar vivas ao Partido?
Ela gritava. Era preciso dizer que o preto era branco e que o branco era
preto? Ela dizia. Aprendera com Li, quando se liara, que a palavra do
Partido era sagrada e que a única verdade era a verdade do Partido. Tudo era
o Partido, nada mais existia para além do Partido.
Porém, de alguma maneira isso parecia não chegar. A sua condição de
uigure mantinha-a permanentemente numa espécie de zona cinzenta de
descon ança. Como se ser uigure fosse uma nódoa indelével. Podia tapá-la,
mas nunca se apagava. Mesmo usando na rua e no trabalho a máscara de
pessoa “de con ança”, todos sabiam que por detrás dessa máscara estava a
sua identidade de uigure. A etnia colocava-a em permanência numa
categoria de suspeição racial. Por mais que o colonizado se portasse como o
colonizador e falasse como o colonizador e com os valores do colonizador, o
colonizado permanecia sempre colonizado, uma pessoa que era
provisoriamente considerada “de con ança” mas que encerrava sempre o
potencial de ser desviante, uma “indígena”, uma fengjian. Uma pré-
criminosa. Viam-lhe uma cara, mas sabiam que podia ser duas caras.
Tentara imitar os han em busca da proteção que ser han implicava, mas
tinha noção de que a qualquer momento essa proteção lhe poderia ser
retirada. Porque, no m de contas, não era han. Era fengjian.
E Reyhan que não havia meio de aparecer…
Voltou a inquietar-se pela amiga. O que lhe teria acontecido? Se calhar
atrasara-se por causa dos malditos checkpoints. Os mesmos checkpoints aos
quais só os que estavam manchados pela marca maldita de fengjian eram
forçados a submeter-se. Sentou-se no sofá e ligou de novo para o número de
Reyhan, mas a amiga mais uma vez não atendeu. Voltou a tentar o marido
dela e igualmente não foi atendida. Pôs-se a considerar alternativas e
lembrou-se de que possuía também o número da mãe de Reyhan. Procurou
esse número na lista de contactos do seu telemóvel e, encontrando-o, ligou
para ele.
Uma voz atendeu do outro lado.
“Está lá?”
“Boa noite, minha senhora. É a mãe da Reyhan?”
“Sou.”
“Ah, olá. Sou a Madina, a amiga da sua lha. Não sei se se lembra de mim,
estive há uns tempos em sua casa…”
“Sim.”
“Desculpe estar a incomodá-la a esta hora, eu sei que já é tarde, mas tinha
convidado a Reyhan para jantar esta noite em minha casa. Só que ela não
apareceu e nem sequer atende as minhas chamadas…”
“A… a Reyhan não está.”
A voz do outro lado da linha foi traída por uma tremura e Madina
percebeu que a mãe da amiga chorava em silêncio.
“Passa-se… passa-se alguma coisa?”
Ela fungou.
“Nada, nada.”
“Sabe se a Reyhan está em casa dela?”
“Não sei nada.”
“Haverá maneira de a contactar? Terá por acaso o número de um vizinho,
de um…”
“Por favor, não me volte a telefonar”, interrompeu-a a mãe da amiga. “Bem
vê, a Situação é a que é…”
Estava tudo dito.
“Compreendo, minha senhora. Boa noite.”
Desligou o telemóvel e cou dez minutos sentada no sofá, imóvel, os olhos
perdidos no horizonte urbano de Karamay para lá da janela da sala de jantar.
Reyhan e o marido tinham sido levados. Devagar, como se as preocupações
lhe pesassem no corpo como chumbo, levantou-se e foi para a mesa.
Comeu sozinha os kawaplar e o sangza. Estavam já frios, mas não se
importou. A Situação pairava sobre ela como um espectro. Não alimentava
quaisquer ilusões. Qualquer um podia ser acusado pelo algoritmo e
desaparecer na noite. Incluindo ela. Todos os uigures e restantes minorias
étnicas encontravam-se sob vigilância e as decisões do algoritmo eram
inapeláveis.
Pelo sim e pelo não, levantou-se num impulso e foi ao quarto preparar
uma malinha. Foi rápida. Meteu lá uma muda de roupa, duas peças de roupa
interior e ainda toilette básica, designadamente pasta e escova de dentes,
uma escova para o cabelo e um sabonete. Se “eles” viessem, estaria pronta.
Pousou a mala junto à porta do apartamento e regressou ao sofá da sala de
estar. Pôs-se de novo a contemplar pela janela a estrutura urbana de
Karamay. Uma prisão. Toda a Xinjiang tinha sido transformada numa
prisão. Nem mais nem menos. Vivia numa prisão a céu aberto. Estava livre e
encontrava-se presa, estava cá fora e era como se estivesse lá dentro.
De repente, sem aviso, a porta do apartamento escancarou-se com
estrondo, quase como se tivesse explodido, e três polícias armados até aos
dentes entraram-lhe de rompante casa adentro, as armas apontadas em
prontidão; dir-se-ia uma unidade de elite a penetrar num antro de
perigosíssimos gangsters. A sua hora chegara.
XL

O coronel Poulson anunciou os planos para a operação de resgate de


Dragão Vermelho, e consequentemente de Maria Flor, com uma ligeireza tal
que deixou o homem da DARPA perplexo.
“Está a falar a sério?”, admirou-se Kurt Weilmann. “Mas, coronel, mesmo
que Dragão Vermelho não esteja na China nem no porta-helicópteros
chinês, estará prisioneira numa ilha arti cial chinesa. Isso coloca-a fora do
nosso alcance.”
“Negativo”, ripostou o o cial, muito seguro de si mesmo. “É verdade que a
China a rma que as ilhas arti ciais são suas, mas, mister Weilmann,
sublinho de novo que essa reivindicação não foi reconhecida pelo Tribunal
Internacional de Haia. Como as Filipinas pelos vistos recuaram, isto
signi ca que, nos termos do direito internacional, aquelas são águas
internacionais, consequentemente abertas a todos. Se os chineses se
encontram ilegalmente nessas ilhas e se ainda por cima retêm lá duas
prisioneiras sem um adequado processo legal, sendo que uma delas é cidadã
de um país da NATO, é perfeitamente possível considerar que estamos
perante um ato de pirataria, o que permite intervir para repor a legalidade.”
Weilmann não estava convencido.
“Washington deu luz verde a uma operação dessas, coronel? É que
estamos a falar de uma ação que nos vai pôr em confronto com as forças
militares chinesas…”
“Estamos todos conscientes disso, mister Weilmann”, con rmou o coronel
Poulson. “Acontece que Washington considera que o dossiê na posse de
Dragão Vermelho é de suprema importância, pois aparentemente expõe a
grande estratégia secreta do Partido Comunista Chinês. Uma coisa dessas
pode inverter todo o jogo geoestratégico. Temos por isso de fazer os
possíveis e impossíveis para deitarmos a mão a esse documento.”
“E como pretendem fazer isso?”
“Vamos enviar uma unidade de marines para Cuarteron Reef e…”
“Vocês estão doidos?”, cortou o cientista da DARPA, incrédulo por uma tal
possibilidade estar sequer a ser contemplada. “Fuzileiros americanos a
desembarcarem numa ilha construída pela China e defendida por uma
guarnição chinesa armada até aos dentes? Washington concordou mesmo
com isso?”
“Está com medo que desencadeemos uma guerra, mister Weilmann? Se
lançarmos uma operação cirúrgica e muito limitada, os chineses vão
protestar, claro, mas não farão nada.”
“É demasiado arriscado”, insistiu Weilmann. “Dragão Vermelho não está
nas mãos de uns bandalhos quaisquer. Ela encontra-se prisioneira das forças
armadas chinesas. É impensável que a América desencadeie uma operação
contra militares chineses. Impensável. Insisto, por isso, na pergunta: esta
operação está mesmo autorizada?”
A acompanhar o confronto verbal entre os dois, Tomás susteve a
respiração. Sim, como esperar que a América lançasse uma operação militar
em território reivindicado e defendido pela China, mesmo que as tais ilhas
arti ciais não fossem reconhecidas internacionalmente como sendo
chinesas? Uma coisa dessas era de uma tal sensibilidade e potenciadora de
um incidente internacional tão grave que di cilmente os americanos se
atreveriam a levá-la a cabo.
E, no entanto…
“A ideia foi de Washington.”
A a rmação era tão extraordinária que o homem da DARPA cou alguns
instantes sem saber o que dizer.
“O presidente está a par?”
“A ordem veio da Casa Branca. Depois de ouvir o secretário da Defesa, o
conselheiro para a Segurança Nacional e o Alto-Comando Militar, o
presidente deu luz verde.”
Weilmann estava embasbacado.
“Isto é uma loucura”, disse, mais para si do que para qualquer dos
presentes. “Uma perfeita loucura. Será que percebem que, depois de ser
atacada, a China não irá car de braços cruzados e retaliará? Estamos a
brincar com o fogo.”
O coronel Poulson abanou a cabeça.
“Negativo”, devolveu no seu tom seco. “De um ponto de vista formal, a
operação não será lançada pela América.”
“Então será lançada por quem?”
“Pelos zelyonye chelovechki.”
“Quem?”
“Os homenzinhos verdes.”
“Desculpe, não estou a perceber…”
O o cial manteve um tom monocórdico e desapaixonado, quase como se
não passasse de um computador a debitar informação.
“É verdade que seria complicado lançarmos uma operação militar nas
ilhas arti ciais chinesas”, reconheceu. “Mas, mister Weilmann, as novas
doutrinas militares admitem operações híbridas para situações como esta.
Por exemplo, na fase inicial da ocupação da Crimeia e da sublevação do
Donbass, que em 2014 deu início à guerra na Ucrânia, a Rússia não
interveio formalmente. O que Moscovo fez foi justamente enviar soldados
seus sem as insígnias do exército russo, chamando-lhes ‘voluntários’. Esses
‘voluntários’ caram conhecidos entre os ucranianos por zelyonye
chelovechki, ou ‘homenzinhos verdes’. Está a ver a ideia? De um ponto de
vista formal, não foi o exército russo que pela primeira vez entrou na
Ucrânia, foram meros voluntários. É isto uma operação híbrida e é isso o
que Washington pretende que lancemos agora.”
As palavras do coronel Poulson animaram Tomás.
“Se formos a ver bem, foi também isso o que a China acabou de fazer”,
notou o português. “Não foram soldados chineses que entraram na Índia e
raptaram a minha mulher e aquela a quem vocês chamam Dragão
Vermelho. Foram… ‘voluntários’. Porque não pagar-lhes na mesma moeda?”
Se uma operação naqueles moldes tinha a aprovação de Washington,
percebeu Weilmann, então não valia a pena continuar a questioná-la. O que
estava em jogo nesse instante já não era se a operação seria realizada, mas
como a levar a cabo.
“Quem são os homenzinhos verdes que estão a pensar meter nesta
operação?”
“Os Navy Seals, a quem serão retiradas as insígnias”, respondeu o
comandante da base aérea de Kadena. “O Pentágono está neste momento a
convocar as forças especiais da Marinha para a base naval de Little Creek.
Será tomada uma precaução adicional: apenas incluiremos na operação os
operacionais que, embora tendo a nacionalidade americana, nasceram fora
do país, como, por exemplo, os oriundos do México e de outros países. Se
algum for capturado, isso dar-nos-á uma linha de defesa. Logo que esses
elementos dos Navy Seals sejam selecionados, serão enviados para aqui.
Iremos fazer-lhes o brie ng e determinar com eles os detalhes operacionais.
A seguir partirão para a missão.”
“Quanto tempo levarão esses Navy Seals a chegar cá?”
“Dois dias. Três no máximo.”
Tudo aquilo se encontrava bem para lá de qualquer esperança que até ali
Tomás pudesse alimentar com a menor dose de realismo. E, no entanto, era
o que se aprestava a acontecer. Os americanos estavam pelos vistos mesmo
dispostos a enfrentar militarmente os chineses para libertar Dragão
Vermelho. E, com ela, Maria Flor. Apeteceu-lhe abraçar o coronel Poulson e
o próprio presidente dos Estados Unidos. Mas o alívio que sentia por
perceber que a mulher não estava perdida não lhe tirava a lucidez. O que
Washington autorizara era realmente uma operação de alto risco. O dossiê
que Dragão Vermelho trazia teria de ser mesmo um documento de
prioridade absoluta para que a Casa Branca estivesse disposta a correr um
risco daqueles.
“Já percebi que os documentos de Dragão Vermelho são importantes,
mas… assim tanto?”
O coronel Poulson tou-o com o seu ar frio.
“Só com eles, mister Noronha, poderemos pôr m ao maior segredo
militar do Ocidente.”
“Segredo? Qual segredo?”
Antes de responder, o comandante da base aérea de Kadena olhou em
redor. Quem o visse diria que se queria certi car de que ninguém o
escutava, mas tratava-se evidentemente da reação re exa de quem estava
habituado a ter cuidados especiais sempre que abordava certos assuntos de
especial con dencialidade.
“Se entrar em guerra com o Ocidente, a China ganhará.”
XLI

Os três polícias que entraram de surpresa no apartamento seguravam as


pistolas com as duas mãos e tinham os canos apontados para Madina; assim
vistos de perto, dir-se-iam canhões. Ela sentiu o coração ribombar no peito.
Seria aquilo real? Parecia um lme. Ou um sonho. É real, é real, é real,
repetiu a si mesma como se se beliscasse para ter a certeza de que não
delirava. Eles estão aqui, eles estão mesmo aqui.
A hora dela tinha chegado.
“No chão! De barriga para baixo!”
A rapariga obedeceu de imediato à ordem gritada por um dos polícias.
Mal se estendeu sobre a carpete da sala, sentiu o peso dos agentes assentar
imediatamente sobre ela, os joelhos a pressionarem as costas e mãos
poderosas a puxarem-lhe os braços para trás como se os quisessem arrancar.
Ouviu um tilintar metálico e um objeto frio encaixou-se nos seus pulsos
com um clique; tinha acabado de ser algemada.
“De pé!”
Não teve tempo de fazer nada porque as mesmas mãos fortes elevaram-na
pelo ar, como se não passasse de uma marioneta, e puseram-na de pé. Olhou
em redor, muito alerta, e apenas viu um polícia à frente dela; os outros dois
estavam atrás e haviam decerto sido eles que a tinham algemado e a
seguravam nesse momento. O polícia que estava diante de Madina havia já
guardado a pistola na cintura e parecia segurar nas mãos um pano negro.
Deu um passo em frente para se abeirar dela, aproximou o pano e encaixou-
o na sua cabeça.
Ficou tudo escuro.
“Vamos!”
As mesmas mãos fortes puxaram-na, arrastando-a pelo apartamento às
escuras e aos tropeções em direção à porta. O som dos passos, até aí abafado
pela carpete, tornou-se quase metálico, ecoando sobre uma superfície de
pedra; percebeu que se encontrava no átrio do seu andar e ouviu o zumbido
do elevador a subir. Ainda pensou em pedir-lhes para trazerem o saco que
ela tinha previamente preparado para aquela eventualidade, mas percebeu
que não o fariam e nada disse.
“Excelente trabalho!”, atirou uma voz feminina que reconheceu. “Levem-
nos a todos!”
Era a senhora Ting, a chefe da comissão do bairro, que se instalara à porta
do seu apartamento para assistir a este novo espetáculo da detenção de um
terrorista uigure. Teria sido ela que a denunciara? Mas denunciara-a de quê
exatamente? De ter tido o apartamento pintado de azul? Ou se calhar a
denúncia viera de outro vizinho. Ou então de um colega da célula do
Partido; talvez Leong, se calhar Hu.
Ou do algoritmo.
As mãos empurraram-na para um cubículo. Ouviu o zumbido
característico da porta elétrica a fechar-se e o solavanco no momento em
que se iniciava a descida; estava no elevador. Depois do solavanco que
sinalizava a imobilização do elevador e o zumbido da porta a abrir, as mãos
puxaram-na com força pelo espaço que sabia ser o átrio do prédio e por m
sentiu o ar fresco do exterior. As mesmas mãos empurraram-lhe a cabeça
para baixo e forçaram-na a entrar num espaço apertado e a sentar-se no que
evidentemente era um automóvel, encaixada entre dois homens; com toda a
certeza, haviam-na colocado no banco traseiro.
O carro arrancou.
“Para onde… para onde me vão levar?”
“Cala-te!”
Madina sentia-se aterrorizada. Nos últimos tempos tinham-se
multiplicado informações passadas de boca em boca de que estavam
a desaparecer pessoas por toda a parte. Husein, agora Wu, havia-lhe mesmo
sussurrado que conhecia no seu prédio uma família inteira de uigures que
tinha sido levada pela polícia; apenas o bebé recém-nascido cara para trás,
entregue prontamente a um infantário do Partido para ser educado como
um chinês “exemplar”.
Agora chegara a vez dela.
Para onde a levariam? Comprimida entre os dois polícias e com um capuz
na cabeça, sentia-se totalmente à mercê dos seus captores. Não tinha
ninguém a quem apelar, não existia lei que a protegesse, não havia nada. Se
o Partido quisesse, e decerto já o teria querido e feito em muitos casos, levá-
la-iam para o deserto fora de Karamay, tirá-la-iam do automóvel, forçá-la-
iam a ajoelhar-se na areia e dar-lhe-iam um tiro na nuca, deixando-a ali para
os abutres. Quem os impediria? Quem saberia? Quem se importaria?
A incerteza horrorizava-a. Será que fazer desaparecer uma pessoa era
matá-la no deserto? Começou a chorar em silêncio, as lágrimas a molharem-
lhe as faces, o ranho a escorrer-lhe pelo nariz, um nó a apertar-lhe a
garganta. Quis instintivamente tirar o capuz para se assoar, mas as mãos
algemadas atrás das costas prendiam-lhe o movimento.
Depois de chorar sentiu-se um pouco melhor; era como se tivesse
descarregado os medos que a acossavam. Ou parte deles. A sua mente
regressou aos problemas do momento. O que teria feito para que a fossem
buscar? Para onde a levariam? Alguma vez seria libertada? Talvez nunca.
O pensamento, e o facto de se sentir totalmente indefesa, fê-la chorar de
novo.
A viagem durou talvez duas horas. A certa altura sentiu o carro
imobilizar-se, um vidro descer, alguém dizer alguma coisa que o capuz não
lhe permitiu entender, o carro avançar mais alguns metros e imobilizar-se de
novo. Ouviu as portas abrirem-se e as mãos fortes puxaram-na para o
exterior.
“Mexe-te.”
Sempre às escuras e aos encontrões, puxada e virada para aqui e para ali
como se não passasse de uma boneca, foi arrastada para o interior de um
edifício e levada escadas acima, tropeçando em degraus que nem sequer
sabia que existiam ou quantos seriam. Depois de caminhar pelo que lhe
pareceu ser um corredor húmido, ouviu uma porta abrir-se. Empurraram-
na nessa direção e as mãos forçaram-na para baixo. Pensou que ia cair no
chão, mas uma superfície amparou a queda e percebeu que a tinham
sentado numa cadeira. Sentiu alguém pegar-lhe nas mãos presas atrás das
costas, ouviu um clique metálico e as algemas soltaram-se.
Foi então que lhe retiraram o capuz. A luz cegou-a por momentos, pois
cara demasiado tempo às escuras. Massajou os pulsos, doridos pelas
algemas, enquanto se tentava acostumar à claridade. Ao m de alguns
segundos destrinçou um vulto diante dela e percebeu que era um homem,
pelos traços um uigure. O desconhecido estava sentado a uma secretária e
tava-a com atenção. O cubículo era pequeno, iluminado por uma lâmpada
amarelada e com as paredes rachadas e manchadas de humidade. Nos dois
cantos, lá em cima, encontravam-se duas câmaras de vídeo. O que
signi cava que a estavam a vigiar. E, sendo o homem à sua frente um uigure,
se calhar a ele também.
“Lamento a forma como a trouxemos para aqui”, desculpou-se o polícia
uigure num tom afável. “Tenho apenas umas perguntas para lhe fazer. Se for
sincera e disser a verdade, toda a verdade, soltá-la-emos de imediato e ainda
esta noite dormirá em sua casa. Posso contar com a sua sinceridade?”
Madina sentia-se de tal modo assustada que nem lhe passava pela cabeça
dizer outra coisa que não fosse a verdade. Além do mais, se nada tinha feito,
o que havia a esconder? As palavras do homem deram-lhe um enorme
alívio. Abrira-se a porta por onde poderia sair daquele momento terrível. No
m de contas, pensou, o Partido era bom e protegia-os a todos. Tinha de
con ar n’Ele.
“Sim, sim!”, respondeu de pronto, ansiosa por agradar ao seu interlocutor.
“Direi a verdade, pode ter a certeza. Isto… isto é tudo um equívoco. Verá
que não z nada.”
“Sei que pertence ao Partido, mas enquanto isto não se esclarecer não lhe
vou chamar camarada”, indicou ele. “Espero que compreenda.”
“Compreendo, claro.”
A coisa imediata que ela mais queria nesse momento era agradar-lhe.
Qualquer coisa que ele dissesse, responderia que sim, mil vezes sim.
Compreenderia tudo para que ele a compreendesse também. O homem não
parecia má pessoa.
O inquisidor consultou uma folha sobre a secretária.
“Creio saber que é originária de uma aldeia nas margens do rio Tekes.
Zona bonita, não é verdade?”
“Muito bonita. Passei lá a minha infância.”
O olhar do homem voltou à folha.
“Diz aqui que uma das pessoas que a educaram foi o imã da aldeia, o
senhor Qeyser…”
Ela enrubesceu.
“É… é o meu avô.”
“O qual está implicado em atividades contrarrevolucionárias, como
terrorismo, separatismo e extremismo.”
Madina engoliu em seco.
“É o meu avô”, repetiu. “Está a ver, eu era uma criança e… en m,
compreende, era educada por quem estava à minha volta, não tinha
escolha.”
“Portanto, foi educada com ideias contrarrevolucionárias.”
O tom era sempre afável, mas o rumo da conversa adquiria contornos
perigosos. Como responder a esta última a rmação?
“O meu avô apenas ensinava as coisas normais da nossa cultura
e tradição”, disse, hesitante. “Não fazer aos outros o que não queremos que
nos façam a nós, respeitar os mais velhos, não matar animais à frente de
outros animais, ajudar os pobres…”
“Mas tem conhecimento de que o imã Qeyser foi implicado em atividades
contrarrevolucionárias…”
“Sim… uh… quer dizer, fui informada de que… de que ele foi convidado
a tomar chá.”
“E a senhora informou o Partido?”
“Eu?”
“Sim. Informou o Partido de que o seu avô estava envolvido em atividades
contrarrevolucionárias?”
Sentiu-se encurralada.
“Quer dizer… ele… uh, bem, se formos rigorosos temos de reconhecer
que não está provado que ele estivesse envolvido nessas… nessas atividades.
É só uma suspeita, não é verdade?”
Ele inclinou-se para a frente e estreitou as pálpebras, endurecendo o olhar.
“Está a insinuar que o Partido se enganou quando constatou que o seu avô
estava envolvido em atividades contrarrevolucionárias?”
Madina começou a ter a a itiva sensação de que se enterrava a cada
resposta que dava.
“Uh… não, claro que não. O… o Partido é correto.”
“Então porque disse que não está provado que o seu avô se envolveu em
atividades contrarrevolucionárias?”
“Quer dizer, eu pensava que… que isso não estava ainda provado…”
“Portanto, suspeitou do Partido.”
Estava já a sentir-se perdida naquele interrogatório. Como conciliar o
dogma de que o Partido estava sempre certo e que tudo o que dizia era a
verdade com a certeza que tinha em relação à inocência do avô? Percebeu
que tal era impossível. Ou o Partido estava certo e o avô era culpado ou o
avô era inocente e o Partido tinha errado. Não podia era querer que o
Partido estivesse certo e o avô inocente.
Tinha de optar. Nesse preciso momento.
A decisão foi ditada pela certeza de que, como em tempos zera notar Wu,
a escolha diante dela não era entre libertar o avô Qeyser e manter-se ela em
liberdade, mas entre tramar o avô Qeyser e ela se tramar também ou tramar
o avô Qeyser e ao menos ela salvar-se.
“Não, o Partido é correto.”
“Portanto, o seu avô esteve mesmo envolvido em atividades
contrarrevolucionárias.”
A resposta veio numa voz sumida, quase inaudível.
“Sim.”
“Mais alto.”
“Sim.”
O homem que a interrogava fez uma anotação no papel que tinha diante
dele. Madina quase sentiu vontade de vomitar; acabara de denunciar o avô
Qeyser por um crime que ele não tinha cometido.
“Se o seu avô esteve envolvido em atividades contrarrevolucionárias,
porque não informou o Partido?”
“Uh… eu não sabia dessas atividades.”
“Não sabia que ele ensinava a só se comer comida halal e a pagar o zakat?”
A pergunta voltou a encostá-la à parede, uma vez que apenas alguns
minutos antes ela própria tinha a rmado que o avô ensinara a não matar
animais à frente de outros animais, a prática da matança halal, e a ajudar os
pobres, a prática do pagamento do zakat.
“Quer dizer, não tinha consciência de que se tratavam de práticas
contrarrevolucionárias.”
“Ai não? Não sabia que a religião é o ópio do povo?”
“Uh… sim, claro, mas isso só soube mais tarde, quando o Partido me deu
os ensinamentos corretos.”
“No momento em que percebeu que a religião é o ópio do povo, porque
não alertou imediatamente o Partido para essa prática contrarrevolucionária
do seu avô?”
“Eu… eu…”
“E quando ele por m foi acusado de práticas contrarrevolucionárias, algo
que aconteceu sem o seu contributo, apesar de a isso estar obrigada pelos
seus deveres para com o Partido, por que motivo não informou a sua célula
do Partido? Porque ocultou tais factos?”
Perdida. Madina sentia-se já totalmente perdida. Como responder? Como
conciliar o inconciliável? Poderia dizer que nunca lhe passara pela cabeça
denunciar alguém da família, claro, mas isso seria equivalente a confessar
que para ela a família estava à frente do Partido, uma heresia que a
condenaria sem remissão. Não era possível seguir esse caminho.
“Pois… quer dizer, não tive consciência do… do meu erro. Bem vê, já há
muito tempo que não estava com ele e… e isso passou-me completamente
ao lado.”
O inquisidor virou o papel para o lado e passou para uma segunda folha.
Consultou-a por momentos antes de a encarar de novo.
“Como foi a sua passagem por Ürümqi?”, perguntou. “Gostou de ter vivido
na cidade?”
Oh-oh.
“Uh… sim. É… é maravilhosa.”
“Fez lá o liceu e a universidade, não fez?”
“Sim.”
“Deve ter sido duro ao início, pois deixou os seus pais e os seus irmãos na
aldeia e foi viver sozinha para a grande metrópole…”
“Pois.”
“Só que não esteve exatamente sozinha, pois não?”
À luz da forma como o interrogatório havia sido conduzido no que dizia
respeito ao avô Qeyser, não era difícil perceber onde estas perguntas a
levariam.
“Estive… estive em casa de um primo do meu pai.”
O homem veri cou um pormenor no papel.
“O primo Erbakyt, não é?”
“Sim.”
O inquisidor tou-a com súbita intensidade, conferindo veneno adicional
à sua pergunta seguinte.
“O mesmo Erbakyt que participou nos atos terroristas de 2009 em
Ürümqi, onde foram mortas centenas de pessoas?”
Lá iam eles outra vez.
“Ele… creio que ele foi participar numa manifestação pací ca a pedir
igualdade de tratamento para os uigures. Os manifestantes até levaram
bandeiras da China.”
“E depois mataram centenas de pessoas.”
“Parece que a meio da manifestação houve problemas com a polícia e as
pessoas caram tão furiosas que…”
O homem que a questionava interrompeu-a com um súbito rugido de
fúria.
“Está a dizer que a culpa foi do Partido?!”
Madina encolheu-se na cadeira, assustada. Explicar as circunstâncias que
envolveram os tumultos de Ürümqi, percebeu, não era uma boa estratégia.
“Não, não!”, apressou-se a dizer, tentando desfazer a impressão que dera.
“O que esses terroristas zeram foi grave! Muito grave! O… o Partido atuou
de forma correta e justa!”
“Reconhece então que os manifestantes eram terroristas.”
A rapariga tremia na cadeira, aterrorizada.
“Claro, claro.”
“O que signi ca que o primo Erbakyt, que esteve nessa manifestação, é
terrorista.”
“Uh…”
Vendo a hesitação, o rosto do inquisidor voltou a endurecer.
“O Erbakyt é terrorista?”
“Sim, claro.”
“De tal modo é terrorista que ele e a mulher, uma tal Dilnaz, estão neste
momento a frequentar aulas especiais.”
Madina encarou-o inquisitivamente. O que quereria ele dizer com isso,
“aulas especiais”?
“Eles estão em Ürümqi?”
O homem tou-a com uma expressão difícil de interpretar.
“O lho foi colocado num orfanato do Partido.”
Ela soltou um soluço, ao perceber o que acontecera realmente a Erbakyt e
Dilnaz.
“Oh, não.”
O inquisidor voltou a olhar para a folha diante dele, sem dúvida a parte do
processo relativa a Erbakyt e respetiva família.
“Portanto, se bem entendi, passou a sua infância sob a in uência do imã
Qeyser, um terrorista, e a sua adolescência sob a in uência do primo
Erbakyt, outro terrorista.”
A rapariga fez um esforço para manter a compostura.
“Quando ocorreram os tumultos em Ürümqi, eu já estava a viver em
Karamay.”
“Mas na adolescência foi educada na casa deste terrorista.”
“Bem… sim.”
Espreitou de novo a folha, como se veri casse um detalhe.
“E já depois de o primo Erbakyt ser preso por ter participado nos atos
terroristas de Ürümqi houve telefonemas entre si e a mulher dele.”
“Quer dizer… sim, ela estava assustada.”
“O que mostra que os contactos prosseguiram entre si e esta família de
terroristas.”
Ela ia contra-argumentar, mas para dizer o quê exatamente? Baixou a
cabeça, em rendição.
“Sim.”
O homem manteve por um longo momento o olhar xo nela, como se a
estivesse a ler. Por m, pegou nos papéis que tinha sobre a secretária e
arrumou-os numa gaveta.
“Vai precisar de algum tempo para re etir nos seus erros.”
Fez sinal a alguém que estava atrás de Madina e ela sentiu imediatamente
mãos pegarem-na pelos braços e forçarem-na a levantar-se. De um
momento para o outro viu-se empurrada pelo mesmo corredor por onde
viera, mas antes de chegar às escadas en aram-na por uma porta à esquerda
e viu-se numa espécie de balneário.
“Dispa-se.”
A medo retirou as roupas e descalçou-se, até car de cuecas e soutien.
Tinha a pele eriçada e tremia de frio, os braços cruzados diante do peito
para o tapar e se aquecer.
“Tire tudo.”
Hesitou, pois os dois homens permaneciam diante dela. O mínimo que
podiam fazer, achava, era virarem as costas para lhe darem alguma
privacidade.
“Tu… tudo?”
“Tudo!”, vociferou um dos polícias, impaciente. “Imediatamente!”
O grito assustou Madina. Nem se atreveu a voltar a hesitar. Com
movimentos rápidos, embora sempre trémula, despiu as peças interiores e
cou nua diante deles, um braço a tapar os seios, a outra mão a esconder a
púbis.
O polícia que gritara estendeu-lhe um tecido cor de laranja. A rapariga
pegou nele e constatou que se tratava de uma espécie de pijama;
evidentemente uma farda de prisioneiro. Logo que vestiu a farda laranja, os
polícias arrastaram-na dali.
Voltou ao corredor, levaram-na escadas abaixo, desceram dois pisos e
chegaram a uma espécie de cave. Empurraram-na aí por um novo corredor,
este muito escuro e húmido, mas mesmo assim conseguiu ver que estavam a
passar por uma sequência em crescendo de portas metálicas numeradas.
101.
102.
103.
Uma prisão, percebeu.
Quando chegaram ao 107, os polícias travaram-na e um deles abriu a
porta. Empurraram-na para o interior e a porta fechou-se atrás dela. Olhou
em volta e constatou que a tinham encerrado numa cela húmida cheia de
gente e um horrível cheiro a esgotos.
XLII

O coronel Poulson estendeu o grande mapa sobre a mesa e os quatro


inclinaram-se para o estudar. Tratava-se de uma planta cartográ ca militar a
mostrar o mar do Sul da China ao pormenor; até simples rochedos eram
assinalados. O dedo do o cial pousou em Okinawa, a meio do arquipélago
japonês de Ryukyu, uma sequência de ilhas em linha que parecia apontar
para Taiwan. As Ryukyu encontravam-se equidistantes em relação às
Filipinas, que a sul incluíam a área das ilhas Spratly onde se encontravam as
ilhas arti ciais chinesas, e a norte a península da Coreia e a China. Embora
se chamasse mar do Sul da China e tocasse a costa chinesa, as suas águas
banhavam também as costas das Filipinas, das Coreias, de Taiwan, do
Brunei e do Vietname.
“A base aérea de Kadena está aqui em Okinawa”, assinalou num ponto a
oriente. “É a base americana mais próxima da China. Isto signi ca que
ninguém está tão bem posicionado como nós para compreender a ameaça.”
Embora Weilmann e Tomás olhassem para o mapa, era claro que não
percebiam onde queria o militar chegar.
“Está bem, e então?”, questionou o responsável da DARPA. “Explique-nos,
por favor, por que razão diz que se houver guerra a China derrotará o
Ocidente.”
O olhar do coronel desviou-se para Chang, o único que parecia
compreender o que estava verdadeiramente em questão.
“Creio saber que Dragão Vermelho, quando o contactou, mister Chang,
mencionou os três princípios estratégicos da China, e que foi isso que fez a
CIA concluir que o protocolo que ela dizia trazer era genuíno. Con rma?”
O operacional da CIA assentiu.
“ ‘Nongcun baowei chengshi’, ‘wai yuan nei fang’ e ‘tao guang yang hui’. O
primeiro, ‘nongcun baowei chengshi’, quer dizer ‘usar o campo para cercar a
cidade’. O segundo, ‘wai yuan nei fang’, signi ca ‘redondo por fora, quadrado
por dentro’. São duas máximas de Mao que o Partido Comunista Chinês
ainda hoje aplica na sua estratégia.”
O coronel Poulson estreitou as pálpebras.
“Mas o que nesta conversa verdadeiramente nos interessa é o terceiro
princípio.”
“ ‘Tao guang yang hui’ ”, enunciou Chang. “Esse princípio não foi
proclamado por Mao, mas vem do tempo do Período dos Estados em
Guerra e foi recuperado pelo sucessor de Mao, Deng Xiaoping. Quando
Deng decidiu que o Partido Comunista Chinês deveria usar o capitalismo
para criar riqueza e desenvolver o país, ele avisou que o Partido teria de
seguir sempre o princípio de ‘tao guang yang hui’. Ou seja, ‘esconder
capacidades e ganhar tempo’. ”
“Esconder capacidades e ganhar tempo”, repetiu o comandante da base
aérea de Kadena muito devagar, para enfatizar a importância da ideia.
“Estão a perceber o que os chineses andam a fazer? A ngir-se cordeiros
enquanto pela calada se comportam como lobos. E como andam eles a a ar
as garras, mister Chang?”
“O Partido Comunista Chinês está a armar-se até aos dentes”, a rmou o
homem da CIA. “Fá-lo ocultando que o faz. O orçamento chinês para a
Defesa é pelo menos o dobro do que o Partido anuncia o cialmente e a
aquisição de sistemas de armas é feita muitas vezes às escondidas. Por
exemplo, quando o Partido Comunista Chinês quis adquirir o seu primeiro
porta-aviões, toda a operação foi executada furtivamente para que as
campainhas de alarme não soassem no Ocidente. Para isso, o Partido usou
um intermediário que abriu uma empresa-fantasma em Macau, a Agência
Turística e Diversões Chong Lot. Esse intermediário anunciou que iria
comprar um porta-aviões à Ucrânia para operar como um casino utuante
em Macau. Uma coisa folclórica, portanto. Com base nessa história da
carochinha, inventada para manter o Ocidente a dormir, o intermediário
comprou de facto o porta-aviões ucraniano Varyag e enviou-o para Dalian,
na China, onde foi desmontado e estudado ao pormenor para servir de
modelo à construção dos futuros porta-aviões chineses. Tudo feito em
segredo, claro, sempre em obediência ao sacrossanto princípio de ‘esconder
capacidades e ganhar tempo’ .”
“O resultado disso, gentlemen, é que a China está neste momento
a construir e lançar vários porta-aviões para obter supremacia aérea no mar
e projetar o poder militar chinês por todo o globo”, explicou o coronel
Poulson. “Ao mesmo tempo, foram desenvolvidos em segredo meios de
guerra anfíbia, antissubmarina e antiaérea, com destroyers das classes
Luzhou, Luyang e Renhai, até chegarmos a um ponto em que a China
passou a ter mais navios de guerra que os Estados Unidos.”
Isto era novidade para Tomás.
“Está a falar a sério?”
“Por acaso acha-me com cara de brincalhão, mister Noronha? A Marinha
de Guerra chinesa já é maior do que a americana. Isto é um facto. E não se
caram pela Marinha. Começaram a construir mísseis hipersónicos que o
Ocidente não tinha, com capacidade para destruir todos os nossos porta-
aviões e bases aéreas, incluindo esta base onde nos encontramos agora, sem
que nos consigamos defender. Não existem sistemas antimísseis que nos
protejam dos hipersónicos. Se os chineses lançarem um desses mísseis
contra nós, apenas saberemos para onde foi apontado quando minutos
depois ocorrer a explosão aqui no Japão ou na América ou na Europa ou na
Austrália. Isso é muito grave. Os mísseis hipersónicos chineses são mesmo
capazes de destruir satélites em órbita, coisa que eles aliás já zeram. Além
disso, a China multiplicou-se em projetos para bases militares, portos e
aeroportos em vários pontos do globo, como as Maldivas, o Tajiquistão, o
Camboja, o Djibuti, o Paquistão, o Sri Lanka…”
Ao ouvir o nome deste último país, o português estreitou as pálpebras.
“Sri Lanka? Está a referir-se ao porto de Hambantota?”
“Que outro poderia ser, mister Noronha?”, con rmou o comandante da
base de Kadena. “A Nova Rota da Seda é um cavalo de Troia chinês para
criar países vassalos, é verdade, mas também para construir estruturas de
aparência civil cujo verdadeiro m é militar. É o caso do porto de
Hambantota. Ainda que formalmente um porto civil, daqui a uns tempos
vamos ver a Marinha de Guerra chinesa usá-lo como base de operações. Tal
como os casinos de Macau serviram de camu agem para esconder o
verdadeiro objetivo da compra do primeiro porta-aviões chinês, a função
civil dos portos construídos pelos chineses serve de camu agem para
esconder o verdadeiro objetivo militar dos projetos. O mesmo se passa com
as ilhas arti ciais das Spratly e um sem-número de outros projetos chineses.
Isto tudo enquanto iam dizendo ao mundo que jamais fariam operações
militares fora da China sem um mandato da ONU e mais outras juras de
escuteiros. Tudo fumaça, como é evidente. O lobo ngia-se cordeiro. A
grande verdade é que a China passou este tempo todo a ‘esconder
capacidades e ganhar tempo’, isto é, a fazer cara de paci sta enquanto às
escondidas se armava para a guerra.”
O peso destas palavras assentou com gravidade no grupo. Em bom rigor,
nada daquilo era novo para Chang.
“Pois, certo, a China está a armar-se”, aceitou Tomás. “Mas é mesmo o
su ciente para derrotar o Ocidente?”
“O que acha, mister Noronha?”
“Bem, o Ocidente é o Ocidente, não é verdade? Inclui a América, a maior
superpotência militar do planeta.”
Em vez de responder diretamente, o coronel Poulson indicou o mapa que
estendera sobre a mesa.
“Não sei se sabe, mister Noronha, mas nós, os militares, temos por hábito
fazer exercícios a simular guerras”, disse. “Chamamos-lhes jogos de guerra.
Esses exercícios são organizados pelo Pentágono com regularidade,
baseando-se nas nossas capacidades militares e nas capacidades militares
que conhecemos dos nossos adversários, de modo a testarmos as nossas
forças. Ganhamos sempre contra a generalidade dos adversários, claro.
Quando, no entanto, o adversário é a China, as coisas mudam de gura.”
Calou-se, como se não pudesse dizer mais nada. Mas, tendo chegado
àquele ponto, Tomás queria naturalmente conhecer a conclusão.
“Os chineses conseguem ganhar?”
O o cial baixou a voz, quase como se tivesse medo de ser escutado por
ouvidos indiscretos.
“Sempre.”
XLIII

A primeira coisa que Madina sentiu ao acordar foi uma dor nas
articulações. Abriu os olhos, estremunhada, e logo se lembrou de tudo. Duas
semanas antes, um guarda tinha entrado na cela e, sem pronunciar uma
palavra sequer, acorrentara-a aos ferros do beliche. Perguntara-lhe porquê, o
que zera ela para que a acorrentassem daquela maneira, mas o homem não
lhe respondera. Saíra sem lhe dar nenhuma explicação, como os guardas
sempre faziam desde que fora detida. E ali estava ela, duas semanas volvidas,
ainda acorrentada ao beliche.
A posição era extraordinariamente incómoda, pois forçava-a a
permanecer sentada no chão duro e sujo da cela, as costas contra a estrutura
metálica do beliche, as articulações a darem sinal de si. Duas semanas
acorrentada.
Duas semanas.
Essa não passava, porém, de uma simples fração do tempo em que se
encontrava naquela cela. Havia sido ali encerrada seis meses antes, mais
coisa menos coisa. A bem dizer, perdera a noção do tempo, pois os dias
repetiam-se, uns iguais aos outros, vazios e estúpidos e dolorosos. O que
estava ela a fazer na prisão? Porque a fecharam ali? Por ter tido contacto
com o avô Qeyser quando era criança? Por ter vivido em casa do primo
Erbakyt quando zera o liceu? Que culpa tinha ela que o avô fosse o imã da
aldeia e que o primo tivesse participado na manifestação a exigir o m da
discriminação dos uigures?
Chorara dias a o. Ela e as suas companheiras de cela que chegaram pela
mesma altura, mais outras que foram chegando entretanto. Mas ao m de
dois meses as lágrimas começaram a secar; o tempo funcionava como uma
anestesia. As únicas que choravam na cela eram as que tinham entrado
pouco tempo antes. As outras, as “veteranas”, haviam-se cansado de ter pena
delas mesmas e passaram a aceitar o seu destino com resignação. Se chorar
de nada lhes adiantava e dali não as tirava, de que lhes servia chorar?
“Queres que te massaje o braço?”
Olhou para o lado e viu Alim; era uma espécie de matriarca da cela. O
espaço estava apinhado de prisioneiras, a maioria uigures, mas também duas
cazaques e uma tajique; en m, as habituais “indígenas”. Todas tinham sido
detidas pelo crime de pré-crime. Alim, por exemplo, fora enclausurada
porque havia instalado o WhatsApp no telemóvel de modo a poder falar
gratuitamente com o lho que emigrara para a Turquia. O lho tinha-lhe
dado uma neta e ela queria ver a bebé todos os dias, algo que a mágica
função vídeo do WhatsApp lhe permitia. Meia hora depois de instalar a app
e de ver a neta pela primeira vez, decidira ir ao bazar comprar tecido para
lhe fazer um babygro, mas ao passar pelo primeiro checkpoint o crime fora
detetado pelo scan que o bao’an de serviço zera ao aparelho. Depois de se
con rmar que uma app proibida tinha sido mesmo descarregada no
telemóvel dela, fora entregue à polícia… e ali estava ela fechada havia já oito
meses.
“Sim, dona Alim”, assentiu Madina, agradecida pela disponibilidade da
companheira de cela em lhe massajar o braço. “Já nem o sinto, está tão
dormente…”
A amiga acariciou-lhe o braço, que se encontrava em ferida devido
à constante fricção das correntes, e a seguir massajou-o com cuidado,
evitando as equimoses e procurando reativar-lhe a circulação. Os seus gestos
eram suaves e até ternurentos, o que sensibilizava Madina. A rapariga
imaginava que Alim era assim tão protetora porque se calhar fantasiava que
tratar do seu braço acorrentado era como acariciar a neta que apenas vira
pelo WhatsApp no dia em que fora presa.
As restantes nove reclusas permaneciam sentadas nos seus beliches,
preparando-se para enfrentar mais uma jornada cheia de nada; dir-se-iam
mortas-vivas. Outra delas estava igualmente acorrentada ao seu beliche,
também sem saber porquê, enquanto duas que tinham chegado
recentemente à cela choravam em silêncio nos seus cantos. Uma das que
choravam havia sido detida por ter participado num casamento onde
ninguém bebera álcool no copo-d’água, o que segundo o Partido
con gurava crime de pré-crime, enquanto a outra era uma quarentona que
trabalhava numa tenda no bazar de Qoqek e fora detida por ter emprestado
dinheiro a uma amiga sem autorização prévia do governo, ou seja, do
Partido. Ao ver estas duas que ainda choravam, Madina via-se a si mesma
quando ali a fecharam. Chorara como elas choravam e sabia que daí a cinco
ou seis semanas as duas já estariam como ela, a dor embotada pela
inutilidade das lágrimas.
Os zumbidos na cela eram de tal modo constantes que já se haviam
tornado parte do ambiente; na maior parte do tempo, nem sequer se
notavam. Madina apenas reparou neles porque acabara de acordar. Ergueu
os olhos e xou a atenção na respetiva origem; duas câmaras de
videovigilância xas à parte superior da única parede onde não havia
beliches. As câmaras de vídeo giravam periodicamente, daí os zumbidos, de
modo a acompanharem toda a atividade das reclusas na cela.
Ao m de cinco minutos, Alim terminou a massagem.
“Precisas do balde?”
“Sim, por favor.”
O balde estava pousado ao canto da cela e dele exalava o fedor
característico das necessidades humanas. Todas as reclusas já o tinham
usado ao acordar. A exceção eram as duas que se encontravam acorrentadas
e que, por isso mesmo, não haviam conseguido ir ao local evacuar as
excrescências.
Alim trouxe o balde para junto de Madina e esta inspecionou o interior;
nele utuava uma mistura viscosa de urina e fezes. Nos primeiros dias
sentira vontade de vomitar só de olhar à distância para o balde; fora-lhe
imensamente difícil aliviar-se diante de toda a gente, e sobretudo das
câmaras de videovigilância e dos homens que algures tudo viam através
delas. Além do mais, como suportar aquele cheiro nauseabundo? Porém, e
para surpresa sua, depressa se habituara; era desconcertante como as pessoas
eram capazes de se adaptarem a tudo, mesmo às piores das imundices.
Com a mão livre, puxou as calças da farda laranja de prisioneira para
baixo e, fazendo pontaria ao balde, urinou para ele. Quando terminou,
puxou as calças para cima. Sempre com os seus cuidados maternais, Alim
pegou no balde e levou-o para a outra reclusa que se encontrava acorrentada
ao beliche.
O altifalante instalado na cela estralejou, sinal seguro de que ia entrar em
ação.
“Atenção!”, disse a habitual voz em chinês pelo altifalante. “Chamada.
Número um?”
A prisioneira em causa deu um salto e pôs-se em pé diante do seu beliche,
como um militar em sentido.
“Presente.”
Era a mais antiga na cela.
“Número dois?”
Tratava-se de Alim, que igualmente se pôs em pé, hirta e em pose marcial,
como o Partido gostava.
“Presente.”
“Número três?”
Ao chegar ao número oito, Madina levantou a mão; uma vez que estava
acorrentada, não se podia pôr de pé.
“Presente.”
Quando a chamada terminou, ouviu-se um clique; era o altifalante a
desligar-se. As reclusas voltaram a deitar-se nos beliches ou a sentarem-se
no chão, as expressões entediadas ou tristes, esperando pelo que o Partido
lhes reservava.
Dez minutos depois, o altifalante voltou a estralejar.
“Número dois! Interrogatório!”
Alim pôs-se de pé e aproximou-se da porta da cela. Ouviu-se o claquear
do mecanismo de segurança e a porta abriu-se. Dois guardas algemaram-lhe
as mãos atrás das costas e levaram-na.
“Boa sorte, dona Alim!”, atirou Madina. “Corra tudo bem!”
Outras reclusas lançaram-lhe igualmente encorajamentos antes de a porta
ser de novo trancada. Os interrogatórios quebravam a monotonia do dia,
mas eram temidos por todas. Volta e meia, a voz no altifalante convocava
uma prisioneira e ela era levada para responder a uma bateria de perguntas,
habitualmente as mesmas que já tinham sido formuladas nos interrogatórios
anteriores. Na maior parte das vezes, a reclusa voltava à cela, mas
ocasionalmente isso não acontecia. Quando as companheiras não
regressavam, nunca se sabia o destino que lhes fora dado. Teriam sido
libertadas? Ou acabaram executadas?
Desde que ali fora fechada, Madina já tinha sido chamada sete vezes; de
início pelo mesmo polícia uigure que a interrogara da primeira vez, mas
depois, talvez porque o uigure fora afastado, por polícias han. Nuns casos
apenas por um polícia, noutros por dois. As perguntas andavam sempre em
torno do avô Qeyser e do primo Erbakyt. Num dos interrogatórios haviam-
lhe batido por três vezes, primeiro umas bofetadas e depois umas
bastonadas. Ficara tão assustada que se chegara a esconder por baixo da
cadeira. Tremera imenso, o que parecera divertir os polícias e lhe valera
mais bofetadas só para que eles se rissem mais. Como era possível que a
tratassem assim, a ela que durante tantos anos se esforçara por agradar ao
Partido que nem sequer tivera tempo de arranjar um noivo e casar e ter os
seus tão desejados lhos, como qualquer boa uigure?
A porta da cela abriu-se pouco depois e dois guardas entraram com uma
panela e um cesto de pão, como sempre, e ainda um saco, o que não era
nada habitual. Todas as prisioneiras, mesmo as acorrentadas, pegaram nas
suas tigelas e estenderam-nas aos homens. Estes despejaram uma colher de
sopa em cada tigela e deram um pedaço de pão a cada uma. Madina
espreitou a sopa; àquilo é que ainda não se conseguira habituar
completamente. A sopa não passava de um líquido acinzentado que já tivera
de engolir milhares de vezes desde que ali chegara. Aquela gente não sabia
fazer mais nada? O pão, por seu turno, estava seco e duro de tão velho.
Olhou desanimada para aquela mistela. Conseguiria comer a mesma
porcaria pela enésima vez?
“Hoje é o dia do congresso do Partido”, lembrou um dos guardas depois de
distribuir a comida. “Decorem a cela para estar tudo pronto quando o
Lingxiu discursar.”
Os guardas nunca falavam quando entravam na cela para trazer as
refeições ou levar o balde das necessidades. Entravam em silêncio e em
silêncio saíam. Se ocasionalmente diziam alguma coisa era para fazer uma
repreensão ou proferir uma ameaça. Mas esse dia era especial, cortesia do
congresso do Partido, pelo que os guardas não só quebraram o mutismo
como abriram o saco que tinham trazido com eles e extraíram do interior
leiras e leiras de bandeirinhas vermelhas da China, que distribuíram pelas
reclusas antes de saírem.
A excitação entre as prisioneiras não podia ser maior. Puseram-se todas a
colocar as leiras de bandeirinhas pelas paredes, decorando a cela como se
aquele fosse um dia de festa religiosa e a prisão uma extensão dos seus
próprios lares. Ou do congresso do Partido.
“Consta que o Chefe cou indignado quando soube o que nos estavam a
fazer aqui em Xinjiang”, comentou uma enquanto pendurava as
bandeirinhas. “Dizem que teve uma fúria que partiu tudo lá no Palácio do
Povo.”
“Quem disse isso?”
“É o que consta.”
“Não tenham dúvidas, agora que está a par do que aqui se passa, o Lingxiu
vai mandar prender as ovelhas tresmalhadas do Partido e libertar-nos a
todas. O governador Chen Quanguo vai de certeza preso. Só vos digo,
meninas: a hora da justiça está a chegar.”
“Só pode, só pode…”
“Ai, eu sempre disse que o Chefe é boa pessoa”, insistiu a primeira. “Uma
joia de homem! Não veem como ele tem um sorriso tão agradável? E o ar
bonacheirão?”
“Parece o Winnie the Pooh!”
Riram-se todas; na verdade, essa era a alcunha do Lingxiu na China.
Winnie the Pooh.
“Ele é tão simpático e bondoso… Não me admirava nada que engavetasse
os culpados mesmo durante o congresso. Ali, à frente de toda a gente! Isso é
que era!”
No momento em que acabaram de colocar as bandeirinhas, dos
altifalantes irromperam vozes infantis em coro; tratava-se de outra rotina na
cela, a reprodução de gravações de canções do Partido Comunista Chinês.
As reclusas puseram-se imediatamente em sentido a acompanhar a canção
em coro, como era obrigatório.

O Oriente é vermelho, o Sol eleva-se.


Da China emerge Mao Tsé-tung.
Ele luta pela felicidade do povo.
Hurra! Ele é o salvador do povo!

O presidente Mao ama o povo.


Ele é o nosso guia
Na construção da nova China.
Hurra! Avante!

O Partido Comunista é como o Sol,


Onde Ele brilha, tudo se ilumina.
Onde o Partido Comunista está,
Hurra! As pessoas são livres!

O Oriente é vermelho, o Sol…

Enquanto cantava, Madina quase desfalecia de desalento. Todos os dias


eram horas e horas daquelas canções, sem pausas nem descanso; um
massacre interminável. Naquele momento soava a Dongfang Hong, ou
O Oriente É Vermelho, uma velha canção do Partido. A ideia parecia ser a de
lhes martelarem na cabeça as canções comunistas para ver se interiorizavam
que o único Deus era o Partido, que o Seu profeta era o Chefe e que o Céu
era a China. O que valia é que aquela rotina, que todos os dias se repetia
desde que seis meses antes ali chegara, seria nesse dia quebrada pela
transmissão do discurso do Lingxiu no congresso do Partido.
Quando a série de canções terminou, a porta da cela voltou a abrir-se e
Alim reentrou no cubículo. Vinha com o rosto enrubescido e as bochechas
ligeiramente inchadas. Todas perceberam que havia sido esbofeteada, mas
ngiram que era tudo normal e até saudaram o regresso com palmas;
ninguém ignorava que as câmaras da cela transmitiam tudo e que as suas
reações eram escalpelizadas em busca de sinais de pensamentos
contrarrevolucionários. Dizia-se que, também ali, a análise dos rostos era
feita por algoritmos e que estes é que decidiriam o destino de cada uma. Foi
por isso com um grande sorriso, como se de uma verdadeira festa se
tratasse, que a rodearam e lhe perguntaram como tinha decorrido o
interrogatório.
“Oh, tudo normal”, disse Alim com um encolher de ombros. “Não
aconteceu nada de especial. O Partido é exigente para o nosso próprio bem.”
A cara inchada mostrava que o interrogatório fora realmente exigente.
Todas pretenderam que a companheira tinha vindo de um acontecimento
alegre, talvez um baile organizado pelo Partido para o próprio bem dela, e
em breve cada uma voltou para o seu canto na cela. Foi então que Alim se
anichou junto de Madina e, a pretexto de lhe voltar a massajar os pulsos
doridos, relatou-lhe em sussurros o que acontecera.
“Perguntaram-me mais uma vez o que estava o meu lho a fazer na
Turquia, quais os meus verdadeiros intuitos por ter descarregado o
WhatsApp no telemóvel, quantas pessoas eu conhecia que haviam
descarregado o WhatsApp, quem eram essas pessoas… en m, o costume.
A novidade é que me disseram para telefonar ao meu lho e pedir-lhe que
viesse cá ver-me, que eu estava muito doente e precisava urgentemente da
ajuda dele.”
“Porque lhe pediram isso, dona Alim?”
“Para o prenderem, ora essa. O meu pobre menino é suspeito de mil
patifarias só pelo crime de ter ido viver para a Turquia. Parece que toda a
gente que foi para o estrangeiro é considerada culpada. Mas só se fosse
doida é que dizia ao meu lho para vir para cá, não é? Não sou parva. De
maneira que… en m, como deves calcular, não reagiram nada bem à minha
recusa.”
Uma hora depois, e sem aviso, o televisor acendeu-se e começou a passar
imagens em direto do Grande Átrio do Povo, em Pequim, onde decorria o
congresso do Partido. Um frémito excitado percorreu o grupo de
prisioneiras. O congresso do Partido era o evento político mais importante
da vida do país e o discurso do Chefe constituía sempre o momento mais
signi cativo. Muitas na cela acreditavam que Ele iria desfazer todos os
equívocos relacionados com a Situação. Estava quase a chegar a hora em que
o Lingxiu, informado en m das graves injustiças cometidas em Xinjiang,
agiria e todas seriam libertadas. Ah, como era grande e bondoso o Partido!
Aquela cela miserável estava sobrelotada e suja, tresandava a fezes, tinha
um balde imundo ao canto, era servida por uma única torneira de água fria,
havia câmaras a seguir as reclusas em permanência e a alimentação
mostrava-se absolutamente intragável. Mas, apesar de tudo isso, dispunha
daquele luxo. O televisor. Não que o aparelho pregado à parede estivesse ali
para entreter alguém, note-se. O televisor acendia-se todos os dias
exclusivamente para que as reclusas vissem discursos gravados do Chefe e
bebessem as Suas sábias palavras. Ouviam o Lingxiu a falar em Pequim
sobre “o sonho da China”, a discursar em Sichuan sobre “o rejuvenescimento
da China”, a discorrer em Xangai sobre “o socialismo com características
chinesas”.
Madina já conhecia aqueles discursos, e não apenas porque eles passavam
sem cessar no televisor da cela depois das canções comunistas; ouvira-os
com frequência ao longo dos anos nas sessões de esclarecimento do Partido
e sabia que tinha de os acompanhar porque por vezes a hierarquia a
questionava sobre as palavras do Chefe e precisava de se manter atualizada
sobre a verdade do momento. Nenhum militante do Partido se podia dar ao
luxo de desconhecer o que o Lingxiu dizia, pois o Seu verbo constituía a lei,
nal e absoluta. Mesmo que a lei, apesar de nal, fosse mudando com o
tempo.
“Ei-Lo! Ei-Lo!”
O Chefe apareceu na imagem e o pequeno ecrã mostrou os mais de dois
mil congressistas a aplaudi-Lo ritmadamente de pé, uma música triunfal a
tornar o momento grandioso. Vinha janota, com um fato escuro e gravata
magenta, um cartão vermelho na lapela com o Seu nome, o sorriso
contagiante e o ar bonacheirão, a percorrer o palco diante de gigantescas
cortinas vermelhas. Winnie the Pooh. Poderia uma pessoa assim tão
simpática fazer mal a uma mosca? Não havia dúvida, a hora da libertação
estava próxima. O Partido era o Sol e a Lua, a vida e o universo, era tudo o
que havia e tudo girava à volta d’Ele. O Seu intérprete maior era o Lingxiu, o
Chefe, o timoneiro do Partido e Pai protetor da nação. O profeta inspirado
pela providência do divino materialismo histórico.
Sua Santidade instalou-se no púlpito e, diante do súbito silêncio que se
impôs no Grande Átrio do Povo para que se ouvisse a palavra da salvação,
iniciou o Seu discurso.
“Camaradas, em nome do Comité Central do Partido Comunista da China,
apresento agora o relatório ao congresso nacional”, começou por dizer. “O
congresso nacional do Partido Comunista da China é uma reunião de grande
importância que decorre numa etapa decisiva da construção de uma sociedade
em todos os aspetos moderadamente próspera e no momento crítico em que o
socialismo…”
Madina começou a sentir os olhos pesarem-lhe. Enquanto falava, o Chefe
elogiava os “amigos da China” no estrangeiro e os chineses por estarem
“abertos a coisas novas”, defendia “uma ordem internacional mais
democrática, diversa e aberta”, enaltecia a “democracia com características
chinesas” e a construção de “cidades inteligentes”, ao mesmo tempo que
alertava para a necessidade de o Partido atuar contra os “inimigos do povo”,
“prevenir comportamentos antissociais” e opor-se à “disseminação de
rumores” e de “ideias estrangeiras”. Além disso, acusava muitos estrangeiros
de “ferirem os sentimentos do povo chinês”, o que gerara “manifestações
espontâneas” dos chineses em defesa da pátria, e apregoou que se devia
sempre seguir “o caminho correto”. As frases-chavão sucediam-se umas às
outras.
Tempos houve em que Madina bebera palavras daquelas como se fossem
mel, sobretudo quando elas saíam da boca de Li, o professor de doutrinação
por quem se apaixonara no liceu. Agora já mal as suportava. A duplicidade
da linguagem do Partido era algo que até lhe revirava o estômago, sobretudo
à luz da sua experiência desde que fora detida. Tivera tempo amplo para
re etir sobre a realidade sob o Partido. Enquanto ouvia o discurso,
procurava manter um semblante interessado, como se estivesse
entusiasmada, pois sabia que as câmaras instaladas na cela tudo registavam e
os algoritmos não paravam de interpretar as imagens. Porém, tudo aquilo a
enjoava já.
Sabia que quando o Lingxiu dizia que os chineses “estão abertos a coisas
novas”, isso signi cava na realidade que os chineses não tinham alternativa
se não aceitar o que o Partido lhes impunha, e quando dizia que era preciso
“prevenir comportamentos antissociais”, tal signi cava reprimir qualquer
dissensão ou oposição. Os “inimigos do povo” eram os críticos chineses do
Partido, incluindo os chineses que se atreviam a defender o respeito pelos
direitos humanos, enquanto a expressão “amigos da China” não passava de
um eufemismo dedicado aos cientistas, políticos, empresários e intelectuais
ocidentais que, convidados para palestras, visitas, cursos ou investimentos
na China como se esses convites fossem subornos, defendiam o Partido e
desvalorizavam ou mesmo negavam os Seus abusos; eram, em suma, os
idiotas úteis de serviço. Já a acusação de os estrangeiros “ferirem os
sentimentos do povo chinês” queria dizer que esses estrangeiros tinham
posto em causa o Partido, como se criticar as políticas do Partido fosse
criticar a China e a China se reduzisse ao Partido.
Tudo o que o Partido apelidava de “espontâneo”, como, por exemplo,
“manifestações espontâneas” e “patriotismo espontâneo”, signi cava que se
tratava de algo organizado pelo Partido, enquanto a designação “cidades
inteligentes” não passava de um eufemismo para as cidades onde os
cidadãos estavam submetidos a total vigilância eletrónica. As “cidades
inteligentes” eram cidades onde se vigiavam cidadãos inteligentes para
manter a sociedade estupidi cada. Quando o Chefe defendia uma ordem
internacional “mais democrática, diversa e aberta”, isso era outro eufemismo,
este para a ideia de que as autocracias, cleptocracias, ditaduras e tiranias
eram tão válidas quanto a democracia liberal, se não mesmo melhores; era
isso a “diversidade”. Sempre que o Lingxiu acusava alguém de “disseminação
de rumores” ou de “espalhar falsa informação”, isso signi cava que essa
pessoa tinha cometido o crime de dizer a verdade. A eliminação de “ideias
estrangeiras” ou de “ideias ocidentais”, por seu turno, queria dizer repressão
da democracia liberal e da liberdade de pensamento e de expressão, e a
expressão “o caminho correto” nada tinha a ver com comportamento moral,
mas com o imperativo de se fazer o que o Partido mandava. Se o Partido
mandasse matar crianças, por exemplo, automaticamente era esse “o
caminho correto”.
Com exceção de “socialismo com características chinesas”, que queria
dizer um socialismo que não cometia os erros que levaram à queda da
União Soviética e que tencionava perpetuar-se com mão de ferro, a tantas
vezes repetida expressão “com características chinesas” signi cava
justamente a negação da palavra anterior. Por exemplo, “democracia com
características chinesas” queria dizer que não havia democracia;
“privacidade com características chinesas” que não havia privacidade;
“direitos humanos com características chinesas” que não havia respeito pelos
direitos humanos; “império da lei com características chinesas” que não
havia lei a que uma pessoa pudesse recorrer para se proteger das decisões
arbitrárias do Partido; “Internet com características chinesas” que tinha de
se impor uma forte censura na Internet; e “globalização com características
chinesas” que era imperativo roubar propriedade intelectual estrangeira e
proteger o mercado chinês de produtos estrangeiros ao mesmo tempo que se
exigia respeito pela propriedade intelectual chinesa e acesso livre dos
produtos chineses aos mercados estrangeiros. Tudo uma hipocrisia sem
limites, um universo de retórica falsa, o reino onde as frases queriam dizer o
contrário do que diziam. O mundo do Partido era o mundo da mentira, da
duplicidade, da dissimulação. As palavras não existiam para exprimir a
verdade, mas para a esconder.
O discurso durou umas longas três horas e meia e nele o Chefe prometeu
“uma nova opção para os outros países”, que consistia na “perspetiva chinesa
para resolver os problemas que afetam a humanidade”. Ou seja, o que Ele
propunha era que o regime de todos os países assentasse no modelo
ditatorial do Partido. O Lingxiu acabou por m de falar e as reclusas
irromperam em aplausos, cada uma mais fervorosa do que a outra e Madina
a mais fervorosa de todas. Na verdade, estavam todas dececionadas, pois
a nal o Chefe não mencionara as injustiças em curso em Xinjiang nem
mandara prender Chen Quanguo, o temível governador han que esmagara
os tibetanos e que agora esmagava os uigures, mas ninguém podia mostrar
nem que fosse um vislumbre do desencanto que realmente sentia.
O televisor desligou-se e as palmas só pararam quando dos altifalantes da
cela irrompeu mais uma canção comunista que todas tiveram de cantar em
coro e com alegria radiosa.

Sem o Partido Comunista


Não haveria nova China.

O Partido Comunista
Trabalha para a nação.

O Partido Comunista
Com um coração
Salvou a China.

A canção terminou com uma ordem ladrada do altifalante.


“Número oito! Interrogatório!”
Madina estremeceu; o número oito era ela. Ato contínuo, a porta da cela
abriu-se e dois guardas entraram, retiraram-lhe as correntes e algemaram-
na. Doíam-lhe os pulsos, devido às feridas abertas pelo constante roçar das
correntes. Acontecesse o que acontecesse no interrogatório e depois dele, ao
menos livrara-se das malditas correntes. Nem que fosse por apenas uma
hora.
Os guardas levaram-na pelo corredor e o espírito de Madina revoluteava
num vendaval tumultuoso de emoções e medos. Por um lado tinha pavor do
interrogatório, das agressões e de ser executada, uma hipótese sempre
presente, mas por outro sentia-se quase feliz por poder caminhar; era a sua
primeira oportunidade em duas semanas de desentorpecer as pernas.
Ao entrar no gabinete do interrogador, deparou-se com um polícia han
que nunca vira antes e que nem sequer se dignou a olhar para ela; tinha aliás
ar de poucos amigos. A constatação deixou-a ainda mais nervosa e foi já
sem sentir as pernas que se sentou na cadeira e lhe retiraram as algemas. O
que signi cava aquela mudança? Teriam mandado um carniceiro han para
acabar com ela? As hipóteses multiplicavam-se-lhe na imaginação ao ritmo
acelerado das batidas do coração.
Após um longo minuto a examinar uma pasta, o polícia han ergueu os
olhos e encarou-a.
“Gostou do discurso?”
A pergunta apanhou-a de surpresa por ser inesperada e esteve quase a
perguntar a que discurso se referia ele quando compreendeu que se tratava
evidentemente do discurso que o Chefe acabara de proferir no congresso do
Partido.
“Uh… muito.”
A resposta foi dada num o amedrontado de voz.
“A parte sobre a necessidade de combater os comportamentos antissociais
foi muito importante, não achou?”
“Sem dúvida. O Lingxiu tem imensa sabedoria. É um grande homem.”
“Então porque mostrou enfado quando Ele falou nos comportamentos
antissociais?”
Ela reagiu com um esgar horrorizado.
“Eu? Mostrei enfado?”
Com toda a probabilidade, o inquisidor estivera a observá-la durante
o discurso do Chefe para avaliar as suas reações às palavras d’Ele. Ou então
fora o algoritmo que lhe estudara as expressões durante o discurso e
concluíra que ela escutara o Lingxiu com enfado. Fosse como fosse, alguém,
o inquisidor ou o algoritmo, pelos vistos conseguira ler-lhe os pensamentos.
Temeu o pior, mas o polícia não insistiu. Ela estranhou; dir-se-ia que a
observação havia sido feita simplesmente para lhe mostrar que o Partido lhe
conseguia ler a mente. Em vez de a atacar pelo crime de não ter reagido
como deveria às sábias palavras do Chefe, o homem extraiu uma fotogra a
da pasta que consultara momentos antes e pousou-a sobre a mesa.
“Lembra-se disto?”
Madina constatou que era uma imagem dela sentada num banco de
jardim a lanchar com Husein, agora Wu. Tratava-se do dia da conversa que
tivera com o engenheiro da petrolífera no Parque Chaoyang, em Karamay.
Havia sido apenas um ano antes, mas parecia que tinha decorrido quase
uma década.
“Sim.”
“Por que razão o Wu tapou a boca?”
Na imagem via-se de facto o engenheiro uigure com a mão sobre os lábios.
“Devia estar a limpar um pedaço de comida…”
Sem aviso, o inquisidor desferiu uma palmada furiosa na mesa que a fez
dar um salto de susto.
“Não brinque comigo!”, rugiu. “A gravação das imagens mostra que este
contrarrevolucionário escondeu a boca durante toda a conversa que teve
consigo!”
“Não… não me lembro.”
O homem cruzou os braços e lançou-lhe um longo esgar de desdém.
“Não se lembra, hem? Pois o Wu lembra-se. Muito bem até. Desde que o
fomos buscar a casa, a ele e à mulher, que todos os dias se lembra dessa
conversa.”
Ou seja, percebeu ela com horror, o engenheiro também tinha sido preso.
Haveria alguém que tivesse escapado, ou que conseguisse escapar, às malhas
do Partido?
“Espero… espero que esse duas caras confesse os seus crimes, o
malandro.”
Mostrar-se sempre do lado do Partido e dar sempre como verdadeira a
verdade do momento, por mais falsa que essa verdade fosse, era a grande
lição que aprendera com Li e que a orientara nas suas atividades no Partido
ao longo dos anos. Esforçava-se por nunca esquecer tal ensinamento. Estar
com o Partido era chamar preto ao branco se o Partido assim o ordenasse,
pois só o Partido conhecia a verdade e a verdade só era o que o Partido dizia
que era.
O polícia retirou um papel de uma gaveta.
“Confessará, decerto”, retorquiu, estendendo-lhe o papel. “Assine.”
Madina olhou para o documento.
“O que é isto?”
“É a sua con ssão. Logo que a assine, darei ordem para que a libertem.”
A mulher pegou na folha e leu-a; tinha o logótipo da entidade que geria o
sistema prisional e o texto dizia que ela admitia ter sido submetida em
criança e adolescente às ideias terroristas, separatistas e extremistas do avô
Qeyser e do primo Erbakyt e que durante anos nutrira essas ideias em
segredo.
“Eu não posso assinar isto.”
“Se não assinar, não a poderei libertar”, respondeu o polícia. “Bem vê,
ninguém pode ser considerado reabilitado se não admitir os seus erros, não
é verdade?”
Quais erros?, apeteceu-lhe gritar. Que palermice é esta? Controlou-se. O
que o seu carcereiro dizia estava em linha com o procedimento-padrão do
Partido. Tratava-se da chamada autocrítica. Como ela fora presa e o Partido
era infalível, pois esse era o dogma sobre o qual tudo se fundava, isso
signi cava que fora presa por um motivo fundamentado. O Partido nunca
errava. Ora, se havia razões fundamentadas para a prender, ela precisava de
fazer a autocrítica para que o Partido a pudesse considerar reabilitada e a
libertasse. Daí aquele texto. Mas também podia tratar-se de uma armadilha.
Ao assinar a con ssão, estaria a autoincriminar-se e isso poderia ser usado
contra ela. Tudo dependia da verdadeira intenção por detrás daquele
documento. Seria para justi car a detenção e a considerar curada dos
pecados ou seria para a incriminar de nitivamente? Deveria assinar ou não
deveria assinar?
O que fazer?
Madina olhou para o polícia, tentando ler-lhe as intenções.
“Se eu assinar, liberta-me mesmo?”
“Imediatamente.”
Uma tentação. Se assinasse, poderia mesmo ser libertada. Ou não. Não
podia esquecer que o Partido partilhava as artes da dissimulação que
vinham desde os tempos do Período dos Estados em Guerra. Se não
assinasse, a alternativa era car fechada naquela prisão por tempo
indeterminado. Tinha de escolher entre a incerteza de poder ou não ser
libertada e a certeza de permanecer presa. Ou arriscava e tinha uma
hipótese, embora corresse o risco de a autoincriminação a arrastar ainda
mais para o fundo; ou não arriscava e caria na prisão. A verdade é que já ali
se encontrava havia seis meses. Respirou fundo, como quem se aprestava a
dar um salto para o abismo. Estava na hora de arriscar.
Pegou na caneta e assinou.
Depois de guardar a con ssão num dossiê, o inquisidor pegou noutro
documento que já tinha preparado e assinou-o por seu turno, entregando-o
a um guarda que se encontrava atrás de Madina.
“Está aqui a guia.”
Ela sentiu os guardas segurarem-na e levantarem-na; o interrogatório
pelos vistos havia terminado tão depressa quanto começara. Seria possível
que o pesadelo já tivesse acabado?
XLIV

A a rmação por parte do comandante da base aérea de Kadena de que a


China ganhava aos Estados Unidos todos os jogos de guerra ensaiados no
Pentágono deixou Tomás Noronha chocado.
“O senhor está a brincar…”
O coronel Poulson manteve o olhar xo no seu interlocutor.
“Em todos os jogos de guerra realizados na última década com a China
como adversário, mister Noronha, nós perdemos sempre”, repetiu, para não
deixar dúvidas. “Entende o que lhe estou a dizer? A China ganhou todos.
Todos.”
O português mostrava-se incrédulo.
“Não pode ser.”
“O grande público não sabe isso, nem mesmo a maior parte dos
congressistas americanos o sabe. Mas no Pentágono isto não é segredo
nenhum. A América perdeu todos os jogos de guerra da última década
quando a China foi colocada como adversário. Isto quer dizer que, se algum
dia houver guerra, o Ocidente será derrotado pela China. Ponto nal.”
“Caramba!”, exclamou Tomás. “Como foi possível ter-se chegado a uma
situação destas?”
“Graças à dissimulação”, respondeu o coronel Poulson. “Não se esqueça do
princípio que os orientou durante décadas: ‘esconder capacidades e ganhar
tempo’. Recomendou Sun Tzu na sua A Arte da Guerra: ‘ nja fraqueza’. Pois
foi justamente isso o que eles zeram este tempo todo.”
“A dissimulação não pode explicar tudo”, retorquiu o historiador. “É
também preciso ter capacidade para produzir armas so sticadas. Isso
implica engenho.”
“Engenho a roubar, quer o mister Noronha dizer”, cortou o o cial com
acidez. “O Exército Popular da China tem em Xangai a Unidade 61398, cuja
função é justamente roubar os segredos militares do Ocidente. Os projetos
para as mais so sticadas armas da América foram roubados por hackers da
Unidade 61398, incluindo os desenhos do caça F/A-18, do avião de combate
V-22 Osprey, do helicóptero Blackhawk ou do ultrasso sticado caça F-35, na
altura o mais caro sistema de armas jamais fabricado. Isto para já não falar
dos desenhos de sistemas de mísseis e de navios de guerra, ou do Boeing C-
17, ou de tecnologia do F-22, ou de armas eletromagnéticas. Nada
inventaram, tudo foi roubado pelos hackers chineses. Roubaram ainda mais
de vinte milhões de registos com informação sobre militares americanos,
incluindo informações de saúde, de abuso de drogas ou de álcool, de
di culdades nanceiras, de relações extramatrimoniais, tudo coisas perfeitas
para serem usadas como meios de chantagem.”
Tomás cruzou os braços.
“Ó coronel, não me diga que a América também não espia a China…”
“Claro que espiamos para obter informação sobre o que se passa na
China”, reconheceu o militar. “O que não fazemos é roubo industrial
massivo, como eles fazem, tratando os setores militar e civil como se fossem
a mesma coisa. Os chineses tanto roubam os planos do F-35, algo que é
militar e, portanto, de certo modo dentro das regras do jogo, como roubam
a tecnologia de 5G da empresa sueca Ericsson, competidora da Huawei.”
“O que tem a Huawei a ver com isto?”
“Nada… e tudo. Cito-a apenas por ser a maior companhia de
telecomunicações do mundo. Repare que as suspeitas de ligações da Huawei
aos serviços de espionagem chineses são antigas. Há quem diga que o
fundador da Huawei, Ren Zhengfei, esteve ligado ao Exército de Libertação
Popular e que os militares do Partido são os patronos políticos da empresa.
O Departamento de Justiça americano acusou a Huawei de ter roubado
tecnologia da T-Mobile e até de ter instituído um programa para premiar
empregados que roubassem informação con dencial dos competidores. A
Huawei nega qualquer ligação ao poder político e nega que tenha
incorporado backdoors digitais para permitir acesso do Partido aos seus
smartphones e a equipamento seu de telecomunicações. Para dissuadir
denúncias, processa quem diga o contrário. Mas os factos são os factos.”
“E quais são os factos?”
“Para além dos processos que já mencionei? Olhe, a Huawei está por
exemplo ligada ao escândalo da sede da Organização da União Africana.
Esse edifício da OUA em Adis Abeba foi construído e equipado pela China,
com a Huawei a ser um dos principais fornecedores da tecnologia de
informação e comunicação aí instalada. Tudo apresentado como uma
prenda generosa e desinteressada da China em prol da amizade eterna com
o povo africano. Muito lindo, sim senhor. O problema é que, ao m de
alguns anos, o jornal Le Monde noticiou que se descobriu que os servidores
no edifício, essa bela prenda a favor da amizade e concórdia entre os povos,
durante a madrugada despejavam informação para servidores em Xangai.
Descobriu-se a seguir que todo o edifício estava infestado de microfones.”
“Caramba!”
“Agora imagine o que se passa com os palácios presidenciais, parlamentos
e infraestruturas de telecomunicações que a China anda a construir por
todos os países africanos em nome da amizade entre os povos…”, observou o
coronel Poulson. “Há até quem ache que a Huawei está para o Partido
Comunista Chinês como os Krupp estavam para o Partido Nacional-
Socialista alemão. Quem fala no roubo da informação con dencial da OUA
ou da pesquisa da Ericsson no 5G ou da tecnologia da T-Mobile, fala no
roubo dos motores da Airbus, de informação da Siemens e de milhentas
outras tecnologias do Ocidente, sobretudo propriedade intelectual. Não
estamos, pois, a lidar apenas com o furto de tecnologia militar ou de
segredos de Estado. A China está ativamente envolvida em espionagem
industrial em larga escala, penetrando nas empresas ocidentais e roubando-
lhes toda a informação tecnológica, cientí ca, comercial e militar. É a maior
transferência de riqueza da história.”
“Para o Partido Comunista Chinês, não há separação entre militar e civil”,
interveio Chang, que sobre o assunto tinha larga experiência e
conhecimentos. “O Partido considera que o civil é militar. Tudo é militar.
Para lá da sua retórica a preconizar a paz e amizade entre os povos, conversa
que só engana os que os comunistas chamam de ‘idiotas úteis’, o Partido
Comunista Chinês é uma máquina bélica, pura e simples. Toda a
informação roubada ao Ocidente, seja ela militar ou civil, de negócios ou de
pesquisa, destina-se a alimentar o aparelho militar do Partido e os seus
projetos de domínio e controlo da sociedade. As próprias empresas privadas
chinesas não passam de instrumentos ao serviço da máquina de poder do
Partido.”
Tomás esboçou um esgar cético.
“Oh! Está a exagerar…”
“De tal modo tudo isto é verdade que, quando a lha do fundador da
Huawei foi detida no Canadá por suspeita de violar as sanções contra o Irão,
o Partido Comunista Chinês retaliou imediatamente e deteve treze cidadãos
canadianos que se encontravam na China”, foi a resposta do homem da CIA.
“Se a Huawei é uma empresa privada que nada tem a ver com o Partido, por
que razão o Partido reagiu assim? Se a Huawei é uma empresa privada que
nada tem a ver com o Partido, por que razão o Partido ameaçou países que
se recusam a trabalhar com a Huawei?”
“De facto.”
“Para além da lei que obriga as empresas da China a espiarem a favor do
Partido, o Ministério da Segurança do Estado criou milhares de empresas-
fachada, alegadamente privadas, mas com a função de roubarem elementos
especí cos de propriedade intelectual do Ocidente. Não é de resto por acaso
que quase todas as investigações do FBI sobre roubo de informação
economicamente relevante na América conduzem invariavelmente ao
Partido Comunista Chinês. Foram descobertos em computadores por todo
o mundo vírus capazes de ativar os microfones e as câmaras desses
computadores e de extrair documentos à sorrelfa. A investigação a esses
vírus determinou que a sua origem é, surpresa, uma agência de espionagem
do Partido Comunista Chinês. Calcula-se que entre trinta mil e cinquenta
mil organizações em todo o mundo foram in ltradas para extrair
informação destinada ao Partido. As próprias parcerias das universidades
chinesas com as ocidentais não passam de formas camu adas de o Partido
aceder a investigação cientí ca ocidental. O Partido conseguiu meter
cientistas militares a desenvolver pesquisa com cientistas ocidentais sem que
estes percebessem que estavam a colaborar com militares.”
“Está a brincar…”
“Infelizmente é verdade. Vou dar-lhe um exemplo. Muitos cientistas do
Partido chegam às universidades ocidentais a dizer que vêm do Instituto de
Tecnologia e Ciência da Informação de Zhengzhou. No espírito aberto da
cooperação cientí ca, os cientistas ocidentais começam projetos comuns
com os cientistas do Partido. O problema é que o tal instituto não existe.
Nem sequer tem telefone nem morada. Na verdade, trata-se de uma fachada
de uma universidade militar. Histórias destas são legião. Cientistas das
universidades australianas, outro exemplo, descobriram que os ‘cientistas’
com os quais estavam a colaborar eram, na verdade, fabricantes de armas do
Partido. A ingenuidade dos académicos ocidentais chega a ser chocante…
embora muitas vezes não se trate realmente de ingenuidade, mas de
interesse nanceiro, se é que me estou a explicar bem.”
Tomás sorriu.
“Não se compreende uma coisa quando não convém compreendê-la.”
“Já vi que percebeu. Agora estenda isso às empresas ocidentais que,
hipnotizadas pela miragem de acederem ao gigantesco mercado chinês,
partilham tecnologia avançada com empresas-fachada do Partido,
tecnologia civil de uso dual, ou seja, passível de ser usada pela área militar.
Aliás, as empresas que queiram entrar no mercado da China são obrigadas a
arranjar um parceiro chinês, portanto do Partido, e têm de transferir para
eles a sua tecnologia secreta, o que viola frontalmente as regras da
Organização Mundial do Comércio, mas que as empresas ocidentais
aceitam.”
“Sempre na esperança de entrarem no imenso mercado chinês, o qual
teima em permanecer quase fechado…”
“A ganância é tramada. O problema é quando essas tecnologias secretas
que as empresas ocidentais são forçadas a partilhar têm uso militar ou
utilidade para a repressão política. Olhe o caso da Motorola, que trabalhou
com o Partido no desenvolvimento dos satélites de comunicações Iridium,
partilhando tecnologia de uso civil que depois o Partido adaptou para
conceber mísseis com múltiplas ogivas nucleares. Olhe o caso da Yahoo!,
que denunciou ao Partido um jornalista chinês que vazou documentos do
Partido sobre como cobrir informativamente o aniversário do massacre de
Tiananmen, tendo esse jornalista sido condenado a dez anos de prisão por
causa da denúncia da Yahoo!. Ou olhe o caso da Google, tão paci sta no
Ocidente que se recusou a colaborar com o Pentágono no desenvolvimento
de tecnologias de defesa da democracia liberal do Ocidente, mas semanas
depois dessa recusa descobriu-se que a nal trabalhava com o Partido para
desenvolver secretamente um motor de busca que censura conteúdos na
Internet, designadamente aqueles que abordam temas ‘perigosos’ como…
democracia, direitos humanos e protestos pací cos.”
“A Google trabalhou com a China para desenvolver um motor de busca
que censura temas como a democracia e os direitos humanos?!”
“Esse motor de busca chama-se Dragon y e o seu desenvolvimento só foi
interrompido pela Google após o escândalo ser conhecido”, precisou Chang.
“Curiosamente, a Google recusou-se a garantir que, no futuro, não
trabalharia com o Partido noutros projetos que envolvessem censura contra
os cidadãos chineses.”
Tomás abanou a cabeça, atónito.
“Está tudo louco!”
“O importante é que entenda que o Partido Comunista Chinês se tornou
um verdadeiro cancro corruptor, com metástases por toda a parte, sempre a
explorar como um abutre as características da nossa sociedade aberta e a
subvertê-la sempre que possível. Dos veículos autónomos à indústria do aço,
dos sistemas de navegação por satélite a componentes químicos críticos, da
tecnologia solar à energia nuclear, dos drones submarinos aos projetos de
ogivas nucleares, grande parte é roubado ou então é obtido explorando a
miragem do acesso das empresas ocidentais ao mercado chinês. Em última
instância, estas metástases são destinadas a servir o projeto de poder do
Partido e a sua máquina bélica, reforçando massivamente o arsenal nuclear e
convencional à custa de tecnologia roubada ao Ocidente. O Partido
Comunista Chinês não está apenas a tentar recuperar o atraso económico da
China, o que seria compreensível. O Partido está a preparar-se para
a guerra.”
“Oh, vá lá…”
“Duvida?”, questionou Chang. “Se há coisa que nós compreendemos com
a invasão russa da Ucrânia é que as ditaduras e as autocracias estão-se a
marimbar para o bem-estar dos seus povos, de cujos votos verdadeiramente
não dependem e cujas opiniões manipulam à custa de censura, propaganda
e contrainformação massivas. Quando a economia de uma ditadura ou de
uma autocracia se desenvolve, o objetivo nal da riqueza gerada não é
melhorar a vida dos respetivos povos, mas alavancar os projetos de poder e
expansão territorial. Vimos isso acontecer com a Rússia e pode ter a certeza
de que é o que está na mente do Partido que governa a China em regime
ditatorial.”
Neste ponto da conversa, o comandante da base aérea de Kadena interveio
e apontou para o ponto no mapa onde se encontravam as ilhas Spratly.
“É por isso que, se o dossiê na posse de Dragão Vermelho é assim tão
importante, temos de ir à porra destas ilhas buscá-lo. Custe o que custar. Eu
sei isto, Washington sabe isto e…”
Foram interrompidos por um homem que acabara de entrar na sala de
operações e que se dirigia em passo rápido para eles. Tratava-se do tenente
Collins. O o cial parou diante do comandante da base aérea e fez
continência antes de lhe estender um papel.
“Meu coronel, a NSA acabou de nos enviar uma interceção feita à Marinha
chinesa”, informou. “Tem urgência máxima.”
O coronel Poulson pegou no papel da Agência de Segurança Nacional
americana e leu-o de uma assentada. Quando acabou, endireitou-se e
rangeu os dentes, os olhos azul-claros perdidos no in nito.
“Gentlemen, a janela de oportunidade acabou de se fechar.”
A a rmação deixou todos a olharem para ele.
“O que quer isso dizer, coronel?”
Com um gesto de desânimo, o comandante da base aérea de Kadena
indicou o papel que segurava entre os dedos e que acabara de lhe ser
entregue.
“A missão, receio bem, terá de ser cancelada.”
XLV

O primeiro sinal de que estavam a terminar a viagem foi o repentino


abrandar do carro. Madina via tudo negro, pois fora-lhe de novo colocado o
capuz na cabeça, pelo que as duas horas de viagem desde que havia sido
libertada da prisão foram passadas na escuridão total. O automóvel
imobilizou-se e ouviu a janela do condutor baixar.
“Trazemos uma estudante.”
Quem falara fora o motorista e a “estudante” pelos vistos era ela. Sentia-se
aterrorizada. Era evidente que a tinham tirado da prisão, a longa viagem de
carro provava-o, mas nada daquilo parecia ser o procedimento normal de
uma libertação. Começou a sentir-se apavorada. De cabeça en ada no
capuz, chorara em silêncio dentro da viatura durante a viagem. Por esta
altura já concluíra que a con ssão não havia passado de uma armadilha e
receava que a qualquer instante parassem no deserto e lhe dessem um tiro
na cabeça.
Mas eis que a nal estavam a entrar num sítio qualquer. Gostaria de
acreditar que a haviam de facto libertado, não se desse o pormenor de lhe
terem chamado “estudante”. Estudante? De quê exatamente? O Partido
estava cheio de manhas e eufemismos, como bem sabia, e aquela curta
paragem para falar com o que parecia ser um guarda deixou-a
profundamente descon ada.
O automóvel arrancou e avançou devagar até se imobilizar de novo alguns
segundos mais tarde. Ouviu as portas abrirem-se e ar fresco bafejar o
interior do automóvel. Logo a seguir, braços puxaram-na para fora e
conduziram-na para o interior de um edifício. Escutou uma porta fechar-se
atrás dela, seguindo-se claques sucessivos de uma tranca múltipla. Madina
tremia descontroladamente e sentia as pernas moles como esparguete
cozido, tão amedrontada se encontrava. O que se estava a passar? Para onde
a tinham trazido?
“Esta é a estudante”, disse o guarda que a acompanhava desde a prisão.
“Pode assinar aqui?”
Ouviu o som de rabiscos a serem traçados num papel, o papel a ser
dobrado e passos a afastarem-se. Uma outra mão puxou-a e levou-a para o
que lhe pareceu ser um compartimento. Retiraram-lhe o capuz e pestanejou
consecutivamente, ofuscada pela claridade súbita. Quando ao m de alguns
segundos se habituou à luz, percebeu que estava numa espécie de
enfermaria. Numa parede viu um relógio digital. Indicava 23:47. Um guarda
com uniforme azul retirou-lhe as algemas e um enfermeiro aproximou-se
dela com uma seringa.
“Estique o braço.”
Ela obedeceu e o enfermeiro puxou-lhe a manga da farda laranja para trás,
destapando-lhe o braço esquerdo, e retirou-lhe sangue. A seguir foi pesada e
fotografada de frente e de per l. Depois sentaram-na numa cadeira e, com
uma máquina elétrica, cortaram-lhe o cabelo à escovinha; felizmente não
havia espelho, caso contrário sabia que choraria. O guarda introduziu uma
série de dados num computador. Quando acabou, encarou-a.
“O seu número é o cinquenta e nove”, disse-lhe. “Decore-o. Qual é o seu
número?”
“O… o cinquenta e nove.”
Satisfeito, o guarda retirou um embrulho de uma espécie de cacifo e
entregou-lho.
“Vista isto.”
A prisioneira abriu o saco e constatou que se tratava de uma farda azul-
clara, formada por camisa e calças. Sabia que estava fora de questão solicitar
privacidade, pelo que tirou de imediato a farda cor de laranja que trouxera
da prisão e substituiu-a pela nova. Por m, o guarda meteu-lhe algemas nos
pulsos e correntes nos tornozelos. Madina olhou para as mãos e os pés e,
com horror, sentiu que tinha de algum modo regressado aos tempos que o
avô Qeyser lhe havia contado, quando os guardas vermelhos de Mao Tsé-
tung escravizaram milhões. O Partido havia-a acorrentado como uma serva
dos tempos feudais.
Com os procedimentos concluídos, o guarda levou-a para um átrio e
depois para uma porta guardada por duas sentinelas armadas. As correntes
prendiam-lhe os pés e Madina caminhava em passos muito curtos; mal
conseguia acompanhar a passada larga do guarda. Ao passar pelas sentinelas
percebeu que se tratavam de militares. Se era “estudante”, o que estavam
militares ali a fazer?
Cruzaram a porta e entraram num longo corredor com uma sequência de
portas metálicas à esquerda e à direita, todas numeradas; eram
evidentemente celas. O corredor não tinha uma única janela e era iluminado
por longas lâmpadas uorescentes. Pormenor importante, havia no teto
câmaras de videovigilância de dois em dois metros. Mais do que um
exagero, achou aquilo assustador. Para que queriam eles câmaras de dois em
dois metros? A densidade de câmaras era tal que não havia um centímetro
que não estivesse coberto.
Ao fundo do corredor cruzaram outra porta igualmente guardada por dois
soldados e deram para umas escadarias. Escalaram os degraus até ao terceiro
andar e en aram por uma nova porta, também esta vigiada por duas
sentinelas fortemente armadas, desembocando num novo corredor igual ao
primeiro. Tudo era de construção assética e recente, como um imenso
hospital acabado de construir e transformado em edifício de alta segurança.
Onde estou eu?, questionou-se com angústia. O que é isto? Porque me querem
aqui?
O guarda do uniforme azul parou diante da quinta porta metálica à
esquerda, com o número 310, colocou uma máscara na cara e digitou umas
teclas numeradas. Os claques metálicos do mecanismo da tranca soaram em
sequência, viu os ferros do ferrolho destrancarem e a porta abriu-se. Um
imenso fedor a fezes e urina esbofeteou-a. O edifício para onde a tinham
levado era muito maior e bem mais moderno do que a prisão onde a haviam
fechado durante seis meses, mas o cheiro da cela era exatamente o mesmo.
O guarda do uniforme azul, que evidentemente colocara a máscara para se
proteger do cheiro pestilento, soltou da entrada um grito.
“Baotou!”
A cela estava apinhada de homens de farda azul-clara, todos eles de
algemas nos pulsos e correntes nos tornozelos, todos eles magros, carecas e
com equimoses por todo o corpo e cara, feridas, olhos pisados e inchaços
nos rostos, todos eles com sionomia de uigures ou cazaques. Madina viu-os
ajoelharem-se e baixarem as cabeças calvas em sinal de submissão; reparou
nesse momento que muitos tinham a parte traseira das fardas de
prisioneiros sujas, evidentemente de fezes secas.
O guarda pegou na recém-chegada pelo braço e empurrou-a para o
interior da cela, fazendo-a tropeçar em dois homens ajoelhados. Tratava-se
de um pequeno compartimento de cimento, dezassete metros quadrados, e,
contando com ela, havia ali vinte prisioneiros. Portanto, menos de um metro
quadrado por cada prisioneiro. Impossível não andarem aos encontrões ou
tropeçarem uns nos outros, para mais com as correntes a atrapalharem os
pés.
“É aqui que irás dormir”, disse da porta o guarda do uniforme azul.
“Quanto ao resto, bico calado.”
“Mas… mas… não posso car numa cela com homens!”
Ao ouvir isto, o guarda riu-se.
“Se voltares a falar, levas. Bico calado!”
Fechou a porta e trancou-a; a sucessão de claques mostrou que se tratava
de um ferrolho triplo. Ato contínuo, os prisioneiros abandonaram a posição
de baotou e sentaram-se sobre o chão de cimento, sempre calados. Foi só
quando viu os rostos de perto é que Madina percebeu que não eram
homens, mas mulheres. Mulheres. As cabeças calvas e a magreza assexuada
haviam-na induzido em erro.
Duas companheiras de cela posicionavam-se frente ao grupo, como se
vigiassem as restantes; eram as controladoras. A recém-chegada reconheceu
aquela prática das rotinas do Partido; as autoridades haviam pelos vistos
nomeado duas prisioneiras para vigiar o grupo e com toda a probabilidade
essas nomeações eram rotativas. Se as controladoras fossem negligentes na
sua tarefa, e se essa negligência fosse registada pelas câmaras de
videovigilância, seriam severamente punidas. O resultado, que era aliás o
verdadeiro propósito do exercício, é que todas na cela se vigiavam a todas.
Madina estava imensamente assustada. O ar era irrespirável. Sentiu-se
as xiar. Quanto tempo vou aguentar aqui?, questionou-se, à beira de desatar
aos gritos. Um dia? Uma semana? Teve de fazer um esforço para dominar
um ataque de pânico. Fechou os olhos. Tem calma, Madina. Respira fundo.
Apesar do fedor pestilento, inspirou devagar, pausadamente, tentando
controlar-se. Tem calma.
Quando regularizou a respiração e se sentiu mais serenada, abriu os olhos
e analisou as suas companheiras de infortúnio. Havia mulheres de todas as
idades e condições, desde raparigas de quinze anos até idosas. O silêncio
delas, além de persistente, era perturbador. Mas o que achou mais
assustador foram os olhares mortiços. Se as da prisão lhe pareceram
zombies, estas davam a impressão de terem as almas já apagadas; dir-se-iam
meras máquinas. Respiravam ainda, mas não falavam e tinham os olhares
vazios. Que loucura é esta?, interrogou-se Madina, sentindo que vivia um
estranho pesadelo. Que sítio é este? O que nos estão a fazer? Quanto tempo
aguentarei?
“Senta-te!”
A ordem foi dada por uma das duas controladoras em chinês, apesar de
evidentemente serem ambas uigures. Apercebeu-se então de que era a única
reclusa em pé. Apesar de quase não haver espaço disponível, meteu-se entre
duas delas e acocorou-se sobre o piso frio.
Estudou a cela. Para além de ser muito pequena e de estar densamente
ocupada, não tinha janelas e era iluminada pelos mesmos tubos
uorescentes que iluminavam os corredores. Havia um balde num canto
e era dali que com maior intensidade vinha o fedor; tratava-se
evidentemente do balde das necessidades. Olhou para cima e surpreendeu
uma câmara de videovigilância no canto do teto sobre o balde. No outro
canto havia outra, no terceiro outra e no quarto outra. A meio do teto estava
também uma câmara. No total, eram cinco. Cinco. Ficou a mirá-las,
pasmada. Cinco câmaras para cobrir uma cela de apenas dezassete metros
quadrados. Nem uma formiga seria capaz de passar despercebida.
Olhou em redor e não vislumbrou nenhuma cama. Para além do mais, o
espaço era de tal modo exíguo para tanta gente que lhe pareceu impossível
conseguirem deitar-se todas no chão. Onde iriam dormir? Estudou de novo
as câmaras de videovigilância e apercebeu-se de que ao lado de uma delas
havia um altifalante. Além disso, as câmaras dispunham do que pareciam ser
pequenos microfones acoplados. Ou seja, além de as verem, os carcereiros
do Partido também as ouviam. Como acontecia no seu apartamento.
Sentia-se desorientada. Tudo aquilo lhe parecia irreal. Precisava de saber o
que se passava, quais as rotinas da cela, quem eram as suas companheiras.
Como meter conversa?
“Olá, sou a Madina”, apresentou-se em uigure à rapariga que se encontrava
à sua esquerda. “Como se…”
“Silêncio!”
A ordem foi gritada em chinês pela mesma controladora que momentos
antes a mandara sentar-se. Calou-se, sem compreender a ordem. O que
signi cava aquilo? Nem sequer podiam falar? Que disparate vinha a ser
aquele?
“Desculpe”, disse, dirigindo-se à controladora. “Não…”
“Silêncio!”
“… podemos falar?”
“Silêncio!”
Calou-se, desconcertada. O que se estava ali a passar? Estariam os
carcereiros realmente à espera que elas cassem a noite inteira fechadas na
cela, algemadas nas mãos e acorrentadas nos pés, sem espaço para se
deitarem e sem dizerem uma única palavra? Achariam que elas não eram
seres humanos? Quereriam mesmo que…
Ouviu os ruídos metálicos da porta a destrancar-se e a abrir-se. Uma voz
gritou do corredor.
“Baotou!”
Como acontecera momentos antes, todas se ajoelharam e baixaram a
cabeça. Imitou-as atabalhoada e tardiamente, o que ainda lhe permitiu ver
um homem de uniforme azul entrar na cela com uma máscara na cara e a
segurar um bastão com picos de borracha. Já ajoelhada e de cabeça baixa,
ouviu os passos aproximarem-se dela e sentiu um violento impacto nas
costas.
“Silêncio!”, rugiu. “Da próxima será pior!”
O homem batera-lhe com o bastão. Ela percebeu que era a punição por ter
falado e que tinha de se manter quieta. Suportou a dor. Ouviu os passos
afastarem-se e a porta fechar-se e trancar-se de novo. Logo a seguir, escutou
o tilintar das correntes e o movimento dos corpos das prisioneiras a
abandonarem a posição de baotou. Ela própria tentou sentar-se, mas a dor
nas costas travou-a e gemeu baixinho. Teve de se mover muito devagar para
se conseguir sentar. As costas latejavam-lhe e o medo secava-lhe a boca. O
que vinha a ser aquilo? Não só não podia falar como era espancada se
falasse?
Que sítio é este?
Passado um pouco, duas prisioneiras levantaram-se e, sempre em passos
curtos por causa das correntes nos tornozelos, foram para o lugar das duas
controladoras, que também se ergueram e se foram sentar no meio do
grupo; tratava-se da substituição das controladoras, o que con rmava que
tinha sempre de haver duas reclusas de plantão a vigiar as restantes. As
mulheres da cela começaram então a estender-se sobre o cimento, todas
voltadas para o lado direito, encostadas umas às outras e ajeitando as mãos e
os pés da melhor maneira para se acomodarem com as algemas e as
correntes.
Tratava-se pelos vistos da hora de dormir. Madina ainda aguardou que as
luzes no teto se apagassem e que lhes entregassem cobertores para se
taparem, pois esse seria o sinal óbvio de que tinham de dormir, mas os tubos
uorescentes mantiveram-se acesos sempre com a mesma intensidade e não
apareceram quaisquer cobertores. Rendendo-se à evidência, não teve outro
remédio que não fosse imitar as suas companheiras de cela e tentar dormir.
Estendeu-se ao longo do cimento e encaixou-se entre duas companheiras;
percebeu que aquela posição, a única que permitia que todas se deitassem
no chão, tinha também a vantagem de possibilitar que se aquecessem
mutuamente. Os corpos faziam as vezes de cobertores.
Adormecer com aquela luz sempre ligada revelou-se muito difícil, para
mais considerando o desconforto do chão duro, o cheiro podre a
excrementos e sobretudo a estranheza de tudo o que a rodeava. Tinha vindo
de uma prisão e, embora se tratasse de um sítio terrível, compreendia a
noção de prisão, as suas condições e os seus limites. Mas o sítio onde se
encontrava não parecia uma prisão. Tratava-se de algo inteiramente
diferente. Era como um mundo paralelo, um lugar extraído de um qualquer
livro de cção delirante.
Que sítio é este?
Levou muito tempo a conseguir adormecer. As luzes, o piso de cimento e
o medo, sobretudo o medo, pareceram mais fortes do que o cansaço. Por
m, a fadiga acabou por vencer e ela deixou-se resvalar para o sono
enquanto se interrogava sobre o que o dia seguinte lhe reservaria.
Nada de bom, decerto.
XLVI

Tomás Noronha sentiu um baque no peito, a esperança a fazer-se de novo


desesperança. O comandante da base aérea de Kadena acabara de anunciar o
cancelamento da missão que permitiria salvar Maria Flor. À tremenda
desilusão pelo fracasso da operação em Hambantota seguira-se momentos
antes o alento louco por saber que os Navy Seals iriam em socorro da sua
mulher. E agora, assim sem mais nem menos, tudo se desmoronava.
“O que… o que aconteceu?”
O coronel Poulson devolveu ao tenente Collins o papel com o conteúdo da
interceção feita pela Agência de Segurança Nacional.
“A NSA intercetou uma ordem dada por Pequim à unidade chinesa
estacionada em Cuarteron Reef, nas Spratly”, disse. “Dragão Vermelho será
transferida amanhã para a China e entregue ao Ministério da Segurança do
Estado. Isto signi ca que não há tempo para os Navy Seals serem
selecionados, chegarem cá, receberem o brie ng e lançarem a operação de
resgate.” Tocando com a ponta dos dedos na testa, fez um gesto rápido de
despedida. “Gentlemen, esta missão está cancelada. Tenham um bom dia.”
Sem perder tempo, pois era evidentemente um homem prático e avesso a
estados de alma inúteis, o comandante da base meteu o boné na cabeça e, na
sua passada larga e postura pro ssional, dirigiu-se à porta de saída para
abandonar o centro de operações da base. Para Maria Flor estava tudo
perdido, percebeu Tomás.
A menos que…
“Espere!”
A intervenção do português, carregada de urgência, fez o coronel Poulson
parar. Girando nos calcanhares, o o cial encarou-o.
“Falou comigo, mister Noronha?”
Engolindo em seco, a ideia ainda a formar-se na mente, Tomás tinha plena
consciência de que as suas palavras seguintes decidiriam o futuro da mulher.
Não podia falhar.
Levantou a mão.
“Eu vou.”
O comandante da base esboçou um esgar de incompreensão.
“Vai onde?”
“Vou na operação de resgate. Uma das vítimas é a minha mulher e é
minha responsabilidade ajudar a salvá-la. Além disso, não sou americano,
pelo que me enquadro perfeitamente no per l de ‘voluntário’ de nido pelos
seus superiores hierárquicos em Washington. A minha participação numa
operação dessas não criaria nenhum problema entre a China e a América.”
“O senhor, armado em pequeno homem verde, a avançar sozinho contra
os chineses numa ilha arti cial ao largo das Filipinas? Mister Noronha, acaso
está a brincar comigo?”
Tomás corou, receando estar a fazer uma gura ridícula.
“Bem, é evidente que não poderia ser só eu”, admitiu. “Nem tenho
preparação para isso. Teríamos de arranjar mais voluntários com esse per l,
claro.”
“E onde estão eles, pode dizer-me?”
Novo silêncio.
“Eu.”
Os olhares surpreendidos de todos xaram-se no homem que acabara de
falar.
“Mister Chang?”, admirou-se o coronel Poulson. “Desculpe, mas o senhor
é americano…”
Como que em resposta, o homem da CIA meteu a mão ao bolso interior
do casaco e extraiu um caderninho azul-escuro com a águia dourada no
meio da capa dura, por baixo estampado United States of America.
“É uma questão de queimar o meu passaporte.”
“Queimar o seu…?”
“Nasci na China, coronel, e faço questão de salvar o meu país de origem
do seu maior inimigo, o Partido Comunista Chinês”, declarou Chang com
rmeza. “Nada é mais importante na cultura chinesa que o respeito e a
devoção pela família. Nunca esquecerei o que o Partido fez ao meu pai.
Tudo indica que o dossiê na posse de Dragão Vermelho é crucial para aceder
ao santo dos santos do verdadeiro pensamento do Partido Comunista
Chinês e assim inverter o atual rumo dos acontecimentos e dar um grande
passo para derrotar o Partido e salvar a China. Se para poder integrar a
missão é imprescindível que não seja cidadão americano, então estou
disposto a renegar a minha nacionalidade americana. É o meu sacrifício em
honra da minha família e em prol da China.”
A determinação que todos viam no operacional da CIA mostrou que nem
valia a pena tentar dissuadi-lo. Mas mostrou também que nem tudo estava
perdido. Chang não era um amador como Tomás, mas um operacional
quali cado.
O coronel Poulson fez uma careta carregada de ceticismo.
“Lamento, mas isto não vai lá com apenas dois homens, sendo que só um
é pro ssional. Teríamos de arranjar mais e depressa. Muitos mais. O
problema é que não estou a ver quem…”
Foi nesse instante que Kurt Weilmann, até aí o mais reticente de todos
quanto àquela operação, os surpreendeu.
“Eu sei de um marine.”
O comandante manteve a expressão cética.
“Apenas mais um elemento para esta missão continua a ser pouco, mister
Weilmann.”
Se havia pessoa que sabia que uma operação daquelas com apenas três
operacionais estava destinada ao fracasso era o homem da DARPA. Mas o
inesperado sorriso que esboçou nesse instante revelou uma con ança que a
todos intrigou.
“É o Super-Homem…”
XLVII

O apito agudo e prolongado de uma campainha despertou Madina.


Estremunhada, abriu os olhos embaciados e a primeira coisa que viu quando
a imagem se focou foram mulheres calvas e esqueléticas em volta dela a
acordarem e a levantarem-se. Levou um momento a lembrar-se onde estava
e como ali chegara. Encontrava-se algemada e acorrentada numa cela
pestilenta e sobrelotada de um complexo gigantesco, para onde fora
transferida na noite anterior depois de lhe terem prometido a liberdade.
Tentou erguer-se, mas uma forte dor nas costas, as algemas nos pulsos e as
correntes nos tornozelos retiveram-lhe os movimentos. Lembrou-se então
da pancada que o guarda lhe dera na véspera com o bastão. Foi essa dor,
aliada às mazelas de uma noite mal dormida sobre o chão de cimento, que a
impediu de se levantar de pronto.
As mulheres da cela levaram poucos minutos a concluírem os seus
preparativos. Como haviam dormido com as fardas azul-claras de
prisioneiras, não perdiam tempo a despirem-se e vestirem-se. O único
procedimento era, na verdade, fazerem as suas necessidades e lavarem a cara
na torneira de água fria ao pé do balde. Formou-se por isso uma la para o
balde, onde a maior parte urinou e algumas defecaram, sempre perante o
olhar abstraído das restantes e as cinco câmaras de videovigilância instaladas
na cela.
Ninguém falava. Nem uma palavra. Depois de na véspera ter sido
admoestada à bastonada, Madina aprendera a lição e também não abria
a boca. Pareceu-lhe que, para não voltar a cometer erros, seria mais
prudente não tomar iniciativas e imitar tudo o que via, pelo que permaneceu
atenta ao comportamento das companheiras de cela; faria o que elas faziam
e não faria o que não faziam.
Quando estava a três pessoas da sua vez de chegar ao balde, ouviu uma
das controladoras quebrar o mutismo geral.
“Está cheio.”
Um murmúrio de desânimo percorreu a la e as mulheres que ainda não
se tinham aliviado regressaram aos seus lugares, um esgar de desconforto
nos rostos. Madina cou especada a olhar para o balde, que já transbordava
de urina e fezes.
“Mas… mas…”
Calou-se, lembrando-se de que a quebra do silêncio era punida à
bastonada. O problema é que tinha a bexiga a apertar e precisava de se
aliviar, como era normal pelas manhãs. Porém, pelos vistos bastava o balde
car cheio até às bordas para as reclusas deixarem de se poderem aliviar
nele. A ser assim, no entanto, como fariam? Não urinavam nem defecavam?
Olhou em redor, procurando respostas no rosto das companheiras de cela.
Ninguém respondeu aos seus olhares inquisitivos, apesar de ser evidente
que todas as que não tinham urinado nem evacuado se encontravam em
di culdades. Umas chegavam a contorcer-se para reter a urina ou as fezes,
ao mesmo tempo que soltavam gases que evidentemente já não conseguiam
reter. Que disparate é este?, interrogou-se, desconcertada. Agora já é proibido
uma pessoa aliviar-se pela manhã? Aquilo explicava por que razão tantas das
suas companheiras tinham as fardas de prisioneiras sujas de fezes secas. Tal
como as restantes companheiras, voltou a sentar-se e esforçou-se por se
alhear da pressão no ventre e pensar noutras coisas, mas os seus olhos
desviavam-se constantemente para o balde. Quando o esvaziariam para que
o pudesse usar?
Ouviu o mecanismo da tranca soltar os seus habituais claques e a porta da
cela abriu-se. As prisioneiras alinharam-se de imediato. Imitando-as,
Madina meteu-se na la. Saíram umas atrás das outras, os movimentos das
pernas sempre limitados pelas correntes nos pés, até formarem duas
gigantescas las no corredor; era um mar de cabeças calvas e rostos com
cortes e inchaços. Todas as portas no corredor estavam abertas e de todas
saíam prisioneiros em fardas das mais variadas cores, mulheres das portas
da esquerda e homens das da direita, uns de azul-claro, outros de azul-
escuro, outros ainda de vermelho; dir-se-ia um exército multicolorido de
zombies silenciosos controlado por guardas impessoais em uniformes azuis e
máscaras na cara.
Pelos vistos, a abertura das portas fora automática e processava-se todos
os dias à mesma hora, uns dez minutos depois do apito do despertar. Como
se aquele edifício gigante fosse gerido por um computador e os prisioneiros
não passassem de robôs. Não havia janelas em parte alguma, apenas as
eternas lâmpadas em tubos uorescentes, pelo que não era possível
determinar se era dia ou noite e muito menos que horas seriam. Calculou
que fosse manhã cedo em função do tempo que passara desde que na
véspera tinha visto o relógio na parede do gabinete onde fora examinada.
Avistou mulheres da limpeza a esgueirarem-se pelas duas las; eram
uigures e distinguiam-se das prisioneiras pelos uniformes de trabalho e
vassouras e pelo facto de terem cabelo. Madina viu-as entrarem nas celas e
saírem com os baldes cheios de excrementos e percebeu que esse era o
momento do dia em que os baldes eram limpos. Os prisioneiros iam uindo
de todas as celas e formavam dois imensos rios, uma la à esquerda só com
mulheres e outra à direita só com homens, até haver tanta gente no corredor
que as las se imobilizaram.
Pôs-se a fazer contas de cabeça. Só naquele corredor existiam vinte celas,
dez de cada lado. Se cada uma contivesse vinte prisioneiros, como acontecia
na sua cela, isso queria dizer que no corredor se encontravam quatrocentos
reclusos. Ora, se existissem no edifício cinco corredores daqueles, e
considerando tudo o que vira à chegada isso parecia-lhe perfeitamente
possível, então haveria ali dois mil prisioneiros. Uma enormidade.
Sempre atenta a tudo, Madina viu as mulheres da limpeza regressarem
com os baldes já vazios e colocarem-nos nos seus lugares habituais nas celas.
Constatou que alguns prisioneiros, decerto os que pela manhã tinham
cado com as necessidades por fazer, entravam na cela mais próxima em
passos rápidos e curtos, pois tinham sempre os movimentos presos pelas
correntes, e aliviavam-se no balde já vazio. Imitou-os.
Uma vez de bexiga e intestinos en m esvaziados, voltou à sua la e, já
mais tranquila, esperou que algo acontecesse. Quase todas as prisioneiras na
la mantinham a cabeça baixa, o que impressionou Madina. Não tinham
elas vontade de se verem, de trocarem um sorriso, pelo menos um simples
olhar que lhes lembrasse a sua humanidade?
Um guarda de uniforme azul que aparecera de repente no corredor
surpreendeu-a a olhar para as outras e apontou-lhe o dedo acusador.
“Baixa a cabeça!”, berrou o guarda. “Não sabes que é proibido olhar para as
outras?”
Madina não sabia e baixou de imediato a cabeça antes que levasse uma
bastonada. A ordem explicava o ar ausente de todas. Os guardas começaram
então a entregar-lhes copos, de onde se puseram a beber. Madina espreitou
para o seu e viu um caldo gorduroso e morno, como uma sopa aguada; era
pelos vistos o pequeno-almoço, que sorveu em alguns golos sôfregos. A
certa altura, já depois de os copos terem sido descartados, as duas las
gigantes recomeçaram a movimentar-se. O longo exército de prisioneiros
uiu então para as escadas, mulheres à esquerda e homens à direita, os
passos muito curtos por causa das correntes, as grilhetas sempre a tilintarem
nos pés. Subiram assim sucessivos lances até chegarem a um piso onde de
um átrio se abriam vários corredores, como os múltiplos raios de uma
estrela. Uns reclusos foram por uns corredores e outros por outros, sempre a
seguirem as instruções dos guardas de uniforme azul.
A la da cela de Madina juntou-se a outras duas las, ambas formadas por
homens e ambas também de azul-claro, e o grupo, agora somando cerca de
sessenta reclusos, foi conduzido para uma grande sala. O espaço era
ocupado por seis las de bancos de plástico, como se fosse um infantário.
Dois guardas armados plantaram-se ao lado do quadro e os prisioneiros
alinharam-se nas las, cada uma com dez bancos de plástico, e aguardaram
em sentido.
Madina cou na última la. Enquanto esperava pela evolução dos
acontecimentos, examinou o espaço. Havia múltiplas câmaras de
videovigilância xas no teto; quatro na parede da frente, duas no meio e
quatro na parede de trás. Um total de dez. Não devia haver divisão naquele
complexo que não estivesse coberta por uma profusão de câmaras. A sua
atenção focou-se a seguir nos prisioneiros masculinos. Havia desde
adolescentes a anciãos. De cabelo rapado e uniformes iguais, à primeira vista
todos pareciam semelhantes. Porém, analisando-lhes as mãos, umas
calejadas e grosseiras e outras nas e tratadas como se de pianistas fossem,
deduziu que muitos eram gente rude do campo, mas também havia pessoas
das cidades, incluindo estudantes e académicos. Via-se de tudo.
Entre os prisioneiros apercebeu-se de um rosto estranhamente familiar.
Fez um esforço para o identi car, com a calvície não era fácil reconhecer
ninguém, mas o coração deu um pulo quando por m compreendeu de
quem se tratava. Ablajan Awut Ayup, a famosa estrela pop, também
conhecido como o Justin Bieber uigure. Também ele ali? Tantas vezes o
ouvira na televisão e na rádio. Ficou chocada. Se prendiam uma gura tão
famosa como Ablajan Awut Ayup, o que não fariam com pessoas anónimas
como ela? Estudou os outros rostos masculinos com atenção redobrada e
acabou por reconhecer igualmente Erkin Ömer, o presidente da
Universidade de Kashgar. A única coisa que aqueles homens e mulheres
tinham em comum, para além das equimoses e inchaços nas caras, é que
todos pareciam uigures, embora houvesse decerto gente de outras minorias.
Todos com os rostos fechados, os olhos baixos, a alma apagada. Mortos-
vivos.
Apenas um parecia ainda atento às coisas, decerto por também ter ali
chegado recentemente. Tratava-se de um rapaz situado na la diante dela.
Teria cerca de vinte e cinco anos, os olhos rasgados e um queixo quadrado, à
ocidental. Atraente. Trocaram várias vezes um olhar fugidio. Das duas
primeiras vezes poderia ter sido coincidência. À terceira, Madina percebeu
que ele a procurava intencionalmente. Um pretendente, pois.
Uma porta lateral abriu-se de repente e uma chinesa han entrou na sala e
plantou-se diante do quadro. No chão, entre ela e os prisioneiros, estava
traçada uma linha vermelha, claramente a fronteira que separava os dois
mundos.
Os prisioneiros falaram em coro, como um exército de robôs.
“Estamos prontos!”
A chinesa percorreu o grupo com o olhar.
“Comecem a chamada.”
Os reclusos foram soltando gritos à vez.
“Número um, presente!”
“Número dois, presente!”
“Número três…”
A sequência foi rápida e terminou em Madina, que compreendeu
o número que lhe haviam atribuído; o cinquenta e nove não era a nal o seu
número na cela, mas naquela sala.
Quando a chamada cou concluída, a chinesa fez um sinal e os
prisioneiros sentaram-se nos bancos de plástico. Os guardas entregaram a
cada recluso um bloco de notas e uma caneta. Notava-se que vários
prisioneiros se sentavam desconfortáveis nos bancos, muitos por terem
apanhado bastonadas e estarem doridos, outros por di culdades
relacionadas com a idade, mas fosse por que fosse os guardas intervinham
quando a postura não era a regulamentar.
“Põe-te direito!”, ordenou um guarda a um idoso que visivelmente tinha
di culdade em manter o tronco ereto. “Da próxima vez que te apanhar
curvado, já sabes!”
“Cabeça levantada!”, gritou outro para uma mulher. “Todos a encararem a
professora!”
A chinesa era então uma professora. Todos os prisioneiros se esforçavam
por manter os olhos xos nela e apresentar a postura ereta, como se
estivessem sentados em sentido.
“Hoje vamos falar dos valores culturais chineses!”, anunciou a professora
em chinês. “O que de ne a identidade de um país são os seus valores
culturais. Os valores tradicionais dos chineses são diferentes dos valores
obscurantistas dos povos supersticiosos e atrasados. Em vez de costumes
retrógrados e reacionários, um verdadeiro chinês comporta-se em
obediência a uma categoria especí ca de valores superiores. Que valores são
esses? São a benevolência, a seriedade, a sabedoria, a lealdade, a piedade
lial e a harmonia. Sobretudo a piedade lial e a harmonia. A piedade lial
remete na família para o respeito pelos pais e no país para o respeito pelo
Partido. O Partido é o pai dos pais e a mãe das mães. Já a harmonia remete
para a obediência e a estabilidade. Quem determina a obediência e a
estabilidade no país é o Partido, pelo que…”
Os prisioneiros tomavam notas e Madina imitou-os, embora estivesse
perfeitamente familiarizada com os valores tradicionais dos chineses han e
do Partido, considerados pelos vistos os valores perfeitos que era obrigatório
serem imitados pelas raças inferiores, as das minorias. Reparou que o
recluso à frente dela estava com di culdades em registar toda aquela
informação; tratava-se de outro idoso. Com toda a probabilidade, percebeu,
o desgraçado não entendia chinês. Ainda pensou em ajudá-lo, mas não
havia maneira de o fazer porque, não o podia esquecer, estava proibida de
falar. Olhou em redor e tomou consciência de que muitos outros
prisioneiros, todos eles claramente oriundos das zonas rurais, mostravam
di culdades semelhantes. Se não entendiam chinês, como poderiam
aprender a “matéria”?
“Tu!”, vociferou de repente um guarda. “Voltaste a curvar o corpo! Estás a
fazer de propósito e a resistir ao Partido!”
Madina constatou que se tratava de novo do idoso que tinha di culdade
em manter o tronco ereto e que já fora avisado. O guarda pegou nele e, com
movimentos bruscos, arrastou-o pela sala e levou-o para o corredor. Todos
os outros prisioneiros continuaram a tomar notas, como se nada se estivesse
a passar, e apenas a recém-chegada e o seu “pretendente”, o rapaz da la à
sua frente com quem por vezes trocava olhares ariscos, seguiram o que
acontecia com expressões incrédulas e chocadas.
“Tu! Estás a olhar para onde?”
A rapariga percebeu que o segundo guarda apontava para ela e de
imediato retomou as anotações. Pelos vistos ninguém se podia distrair em
nenhum momento, acontecesse o que acontecesse na sala. A única coisa
realmente importante era compreender os valores tradicionais chineses e o
papel do Partido como o pai da nação.
A aula durou duas horas. A certa altura o tema era já o dos enormes
progressos que o Partido tinha levado às populações primitivas de Xinjiang.
“Quando o Partido cá chegou, havia telefones em Xinjiang?”
Os prisioneiros tinham de responder em coro.
“Não!”
“Havia eletricidade?”
“Não!”
“Havia televisão?”
“Não!”
“O que não tinham vocês?”
Todos respondiam sempre em coro numa voz robotizada.
“Não tínhamos comida! Não tínhamos telefone! Não tínhamos
eletricidade! Não tínhamos televisão! Agradecemos ao Partido!”
“Vejam o que o Partido fez por vós!”, declarou a professora. “Deu-vos
casas, deu-vos escolas, deu-vos estradas, deu-vos hospitais, deu-vos comida,
deu-vos telefones, deu-vos eletricidade, deu-vos televisão! Antes vocês não
tinham nada! Viviam em tendas, andavam em camelos, as vossas roupas
eram trapos! O Partido deu-vos tudo! A China deu-vos tudo! O grande
povo chinês, sob a liderança correta do Partido, colocou-vos no caminho do
que é moderno! Viva o grande, glorioso e correto Partido Comunista da
China!”
“Viva!”
“Viva o Chefe!”
“Viva!”
No nal, a professora anunciou que era chegado o momento de os
prisioneiros, a quem ela eufemisticamente chamava “estudantes”, relerem as
suas anotações e absorverem a matéria. Os reclusos caram meia hora a
rever tudo o que haviam escrito, ou a ngir que o faziam no caso daqueles
que não entendiam chinês e que por isso nada tinham escrito, e o silêncio
prolongou-se na sala.
Ao cabo de trinta minutos, a professora voltou a falar.
“A leitura terminou”, disse. Apontou para o quinto aluno da primeira la.
“Número cinco, que símbolo é usado nos convites de um casamento
chinês?”
“O símbolo da Dupla Felicidade.”
“Muito bem!”, exclamou a professora. “Vais ganhar pontos.” Voltou-se para
a “turma”, como se quisesse lembrar a importância da aprendizagem. “Viram
como o número cinco esteve atento? Quem aprender tudo, mais cedo irá
para casa.” Voltou-se para uma prisioneira na terceira la, uma idosa que
evidentemente não falava chinês. “Número trinta e três, qual o sentido do
ditado ‘jiahe wanshi xing’?”
A idosa percebeu que estava a ser interpelada, mas não entendeu
a pergunta, pois evidentemente não falava chinês e desconhecia que se
tratava do ditado “uma família pací ca prosperará”, e mostrou-se a ita.
“Eu… uh… por favor, pode… pode falar comigo em uigure?”,
choramingou na sua língua nativa, visivelmente desesperada. “Por favor, por
favor…”
A professora fez com a língua um estalido desdenhoso.
“Ayah! Assim não vais lá!”, repreendeu-a sempre em chinês. “Já vi que irás
andar muito tempo por cá…”
Se o que ali se passava era um suplício para todos, Madina percebeu que
era pior para os mais velhos. Pensou no avô Qeyser, que tinha sido levado
dois anos antes e que não voltara a aparecer. Estaria ele num
estabelecimento daqueles, tão perdido e desenraizado como aqueles idosos
ali estavam?
O interrogatório prosseguiu naqueles moldes, sempre com êxito junto dos
prisioneiros mais novos e que falavam chinês, incluindo o seu “pretendente”
da la em frente, e sempre a fracassar com os mais velhos e que apenas
sabiam uigure ou cazaque. Ao m de mais uma hora e meia de perguntas e
respostas, os guardas distribuíram pelos reclusos uma série de cartões com
frases escritas a caneta. O de Madina dizia “Vida longa ao Lingxiu!”.
Depois de cada prisioneiro perceber o que estava escrito no seu cartão, no
que os mais velhos contaram com a ajuda da professora, foi-lhes ordenado
que o dissessem em voz alta. O primeiro foi, como habitualmente, o número
um. O homem levantou-se e ergueu o cartão no ar, gritando a frase aí
escrita.
“Viva o Partido!”
“Cinco vezes.”
“Viva o Partido! Viva o Partido! Viva o Partido! Viva o Partido! Viva o
Partido!”
A professora voltou-se para o segundo aluno.
“Número dois.”
“Tenho orgulho em ser chinês!”
“Três vezes.”
“Tenho orgulho em ser chinês! Tenho orgulho em ser chinês! Tenho
orgulho em ser chinês!”
“Número três.”
“Vivo porque o Partido me deu esta vida!”
“Duas vezes.”
“Vivo porque o Partido me…”
Ficaram uma hora naquilo. A professora indicava o aluno, este levantava-
se, erguia o seu cartão e berrava o respetivo conteúdo as vezes que fossem
requeridas. Um gritou três vezes “Sem o Partido não há nova China”, outro
dez vezes “Viva o Chefe!”, outro cinco vezes “Não há Deus que não seja o
Chefe!”, e assim por diante. Ao seu “pretendente” coube gritar cinco vezes a
frase “O Partido é a força mais poderosa do mundo!”. Como o cartão de
Madina era dedicado a Sua Santidade, o Chefe, foi-lhe ordenado que gritasse
dez vezes “Vida longa ao Lingxiu!”.
Por m, todos se juntaram numa a rmação coletiva em coro.
“Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês!
Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou
chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou chinês! Sou
chinês! Sou chinês!”
Vinte vezes.
Pela hora do almoço, a professora retirou-se e os guardas conduziram os
prisioneiros até à cantina, onde lhes foi entregue um copo de sopa aguada e
um mantou, uma espécie de pão branco ao vapor, e depois de regresso às
celas. Marchavam sempre em duas las, as mulheres à esquerda e os homens
à direita separados por uma longa linha vermelha que ninguém podia
cruzar, em passos curtos por causa das correntes nos pés, centenas e
centenas de grilhetas a tilintarem e ecoarem ao longo do corredor como
sinetas numa procissão de condenados da Inquisição.
Chegaram à cela onde Madina e as suas companheiras se acotovelavam. O
cheiro a fezes no interior do pequeno compartimento era menos forte do
que quando de lá tinham saído, decerto porque as senhoras da limpeza
haviam passado pela cela nessa manhã para dar uma varridela e esvaziar o
balde. Contudo, o fedor ainda permanecia presente e era evidente que com o
passar das horas, e sobretudo das evacuações das prisioneiras no balde, em
breve regressaria em todo o seu esplendor.
Sentaram-se no piso de cimento da cela e sugaram a sopa pelas bordas dos
copos sem pronunciarem uma palavra. O barulho das bocas a aspirarem o
líquido, porém, ofereceu a Madina uma oportunidade. Fingindo que sorvia
a sopa, e com o copo a tapar-lhe os lábios, sussurrou para a companheira à
esquerda, uma rapariga da idade dela.
“Chamo-me Madina. E tu?”
A rapariga arqueou as sobrancelhas, momentaneamente surpreendida por
ser interpelada, mas, igualmente ngindo que sorvia a sopa, respondeu
noutro murmúrio.
“Maysem.”
“Porque te prenderam?”
“Porque estou a estudar na Turquia. Vim cá passar férias para ver a família
e… apanharam-me.”
“Prenderam-te por estudares na Turquia?”
“Aconteceu a muita gente. E tu?”
“Prenderam-me porque foi educada pelo meu avô, que era o imã da aldeia,
e porque um primo participou numa manifestação.”
As duas continuaram a sorver devagar as respetivas sopas, sempre
a sussurrarem.
“A que está à tua direita foi trazida para aqui porque, ao usar o telemóvel,
carregou sem querer num site estrangeiro”, cochichou. “A que está à minha
frente foi por ter solicitado um passaporte. A que está à tua frente foi porque
usou um lenço na cabeça. A que está à minha esquerda foi porque se
esqueceu de participar numa cerimónia do hastear da bandeira. A que está
atrás de ti foi porque usou uma VPN para aceder a sites estrangeiros. A que
está atrás de mim foi porque usou a porta da frente da sua casa mais vezes
do que a porta traseira. A que está…”
“Silêncio!”
A ordem foi dada por uma das duas controladoras nesse momento de
serviço. Pelo seu olhar incerto era notório que essa controladora não
conseguira determinar quem especi camente estava a quebrar o silêncio,
embora fosse evidente que tinha ouvido o bichanar suave da conversa. As
duas prisioneiras calaram-se de imediato. Sabiam que haviam disfarçado
bem e que di cilmente as câmaras de videovigilância tinham conseguido
captar os sussurros e identi cado as autoras, mas não convinha correr riscos
desnecessários.
Duas horas depois voltaram para a sala de “aula”. Madina reparou que o
idoso que de manhã havia sido retirado à força por violar por duas vezes a
postura regulamentar não voltara. O que lhe teria acontecido? Não havia
maneira de saber. Já o seu “pretendente” continuava no mesmo sítio da la
em frente.
A professora escreveu no quadro os títulos de uma série de canções e
Madina percebeu que a “lição” da tarde era musical. Começaram com o hino
da China, que cantaram a plenos pulmões, como grandes patriotas.
Seguiram-se sucessivas canções comunistas e nacionalistas chinesas, a
primeira das quais foi Chineses.
As mesmas lágrimas,
A mesma dor.
Os nossos sofrimentos
Permanecem nos nossos corações.

O mesmo sangue,
A mesma raça.
O sonho que partilhamos
Será realizado.

De mãos dadas,
Tu e eu,
A cabeça levantada,
Marchamos avante.

Que o mundo saiba


Que somos chineses.

Os prisioneiros mais velhos e decerto oriundos das zonas rurais, como


sempre, mostravam grande di culdade em entoar as frases em chinês, mas
desta feita a professora mostrou-se paciente e repetiu algumas estrofes para
que eles conseguissem decorá-las.
No nal de uma sequência quase interminável de canções aprovadas pelo
Partido, a professora chinesa apagou os títulos que tinha escrito no quadro e
deu por terminada aquela parte da sessão.
“Agora é hora de re etirem nos vossos erros”, anunciou. “Se vocês aqui se
encontram é porque zeram alguma coisa de errado, como é evidente, caso
contrário o Partido não vos colocaria aqui. Pensem no que zeram. Pensem
bem. Quanto mais depressa reconhecerem o que zeram mal, mais depressa
se corrigirão e mais depressa sairão daqui. Entenderam?” Apontou para uma
rapariga da cela de Madina, também ela na última la. “Número cinquenta e
três, qual foi o teu erro?”
A jovem, ainda com corpo de adolescente, pôs-se imediatamente de pé,
como um soldado interpelado por um o cial.
“Telefonei ao meu irmão que vive na Turquia!”, respondeu ela em voz alta.
“Nunca mais farei uma coisa tão horrível! Foi um erro! Felizmente que o
Partido me mostrou esse erro e me indicou o caminho correto!” Ergueu o
punho no ar. “Viva o Partido, correto e justo!”
Todos os prisioneiros ergueram os punhos no ar e ecoaram a plenos
pulmões a palavra de ordem gritada pela rapariga.
“Viva o Partido, correto e justo!”
A professora fez um gesto de aprovação.
“É assim mesmo”, disse. “Têm de entender o que zeram mal, reconhecê-
lo e expressá-lo da maneira correta.” Apontou para um homem dos seus
quarenta anos na segunda la. “Número doze, qual foi o teu erro?”
O homem, que tinha um olho pisado e uma ferida no queixo, levantou-se
prontamente.
“Na minha anterior vida não comia carne de porco”, respondeu com
energia. “Tratava-se de um comportamento errado e estou a corrigi-lo. O
Partido mostrou-me o erro e apontou-me o caminho correto. O Partido é
sábio e justo.” Ergueu o punho no ar. “Viva o Partido!”
A resposta veio em coro.
“Viva o Partido!”
Zeloso, o homem do olho pisado voltou à carga.
“Viva o Chefe!”
“Viva o Chefe!”
A professora manteve a expressão aprovadora.
“Muito bem, muito bem”, aquiesceu. “É fundamental que todos se
puri quem das ideias traiçoeiras e incorretas. Por isso, chegou a hora de
meditarem no que zeram de errado, reconhecerem esses erros,
verbalizarem-nos, corrigirem-nos e começarem en m a trilhar o caminho
correto. Portanto, meditem agora para que possam esta noite escrever um
texto com a vossa autocrítica revolucionária, um passo imprescindível para a
regeneração e libertação.”
A professora calou-se e os prisioneiros caram mudos, uma expressão
pensativa nos rostos. Era o período da meditação, marcado por um longo
silêncio contemplativo. Sentada na última la, Madina cou também a
re etir, não nos erros que cometera aos olhos do Partido, mas nos erros que
cometera para ser apanhada pelo Partido. Onde errara ela? Tentara sempre
fazer tudo certo, manter-se a par dos discursos do Lingxiu, obedecer às
ordens e esconder qualquer sentimento de desacordo com as ações do
Partido. Acreditava, por exemplo, que nunca deixara transparecer a irritação
que sentia por ter de estar sempre a ngir que acreditava nas mentiras mais
óbvias que o Partido enunciava como se fossem verdades reveladas. Gritara
sempre os vivas adequados ao Partido e ao Chefe, aplaudira o que o Partido
entendia que tinha de ser aplaudido e aprovara e desaprovara o que o
Partido dissera que tinha de ser aprovado e desaprovado. Então onde errara?
Ao que lhe diziam, errara na infância e na adolescência. Mas como
poderia ela ter evitado ser educada pelo avô Qeyser se na altura era ainda
uma criança? Como se poderia esperar que ela não fosse para casa do primo
Erbakyt quando foi viver para Ürümqi? Se não vivesse com ele, Dilnaz e o
lho, viveria onde? Na rua? Portanto, quando a professora dizia que ela
tinha de identi car os seus erros, reconhecê-los, verbalizá-los e corrigir-se,
isso queria dizer o quê exatamente? Como podia ela identi car e corrigir
erros que não tinha cometido conscientemente, pois nada do que se passara,
a infância com o avô Qeyser e a adolescência em casa do primo Erbakyt, era
realmente da responsabilidade dela?
O silêncio contemplativo foi quebrado pela professora ao m de duas
horas.
“Terminou a meditação, mas não terminou o vosso trabalho”, anunciou.
“Ides agora recolher-vos aos vossos aposentos e deveis aceitar interiormente
os vossos crimes. A seguir, ireis escrever a con ssão completa nos vossos
blocos de notas.”
A professora retirou-se e os guardas conduziram os prisioneiros para o
corredor, sempre a caminharem com as correntes nos pés em duas las,
mulheres à esquerda e homens à direita, até à cantina, onde recolheram mais
uma sopa e um mantou. Um homem e duas mulheres foram espancados
pelos guardas com os habituais bastões com picos de borracha e arrastados
para fora dali, mas Madina não percebeu qual a infração que haviam
cometido; talvez tivessem pisado a linha vermelha, se calhar quebraram o
silêncio, quem sabe se tinham dito algo em uigure. Uma vez com a comida
nas mãos, os prisioneiros seguiram pelas escadas e pelo corredor de regresso
às suas celas, onde foram trancados.
Depois de comerem o “jantar”, Madina viu as companheiras acocorarem-
se sobre o piso frio de cimento, sempre apertadas porque eram muitas e o
espaço exíguo. Voltadas para as paredes, puseram-se a murmurar os seus
erros. Uma idosa diante dela, por exemplo, repetia sucessivamente o seu
crime em voz baixa e tom fervoroso.
“Sou criminosa porque fui à mesquita. Sou criminosa porque fui à
mesquita. Sou criminosa porque fui à mesquita. Sou criminosa porque fui
à…”
Já Maysem, a sua companheira da esquerda, ia repetindo o seu crime num
murmúrio semelhante.
“Sou criminosa porque estudei na Turquia. Sou criminosa porque estudei
na Turquia. Sou criminosa porque estudei na Turquia. Sou criminosa
porque…”
Todas murmuravam os seus crimes, pelo que não teve alternativa que não
fosse fazer o mesmo.
“Sou criminosa porque fui educada por um imã com ideias incorretas. Sou
criminosa porque fui educada por um imã com ideias incorretas. Sou
criminosa porque fui educada por um imã com ideias incorretas. Sou
criminosa…”
O exercício prolongou-se por duas horas. Duas horas com murmúrios
cruzados de mulheres a dizerem vezes sem conta que eram criminosas
porque tinham telefonado ao lho que vivia no Cazaquistão, que eram
criminosas porque possuíam WhatsApp no telemóvel, que eram criminosas
por terem comido alimentos halal, que eram criminosas por terem rezado,
que eram criminosas por terem um passaporte, que eram criminosas por
terem transferido dinheiro para uma irmã na Turquia, que eram criminosas
por terem visitado um tio no Egito, que eram criminosas por terem feito
jejum no Ramadão, que eram criminosas por não terem bebido álcool, que
eram criminosas por terem recebido quatro chamadas do estrangeiro num
mês… a lista de crimes era in ndável e variada. A crer naquela amostra de
vinte mulheres, a vida normal em Xinjiang havia pelos vistos sido
totalmente criminalizada. Só faltava alguém ser culpado do crime de
respirar sem autorização do Partido. Àquele ritmo, decerto lá chegariam…
Os murmúrios foram interrompidos por uma ordem de uma das
prisioneiras que nesse momento desempenhavam a função de
controladoras.
“Con ssões!”
As mulheres pegaram nos blocos de notas e começaram a escrever.
Madina viu a idosa à frente dela com uma expressão de desespero, o facto de
não falar e muito menos escrever em chinês impedia-a de cumprir esse
passo no processo de reabilitação. Não havia, porém, modo de a ajudar sem
violar as regras e ser punida. Não valia por isso a pena gastar energia com
uma situação que não podia resolver. Era melhor dedicar-se ao seu
problema.
Baixou os olhos e xou-os na folha em branco com uma expressão
carregada de incerteza. O que iria ali escrever? Em busca de inspiração,
espreitou sub-repticiamente o bloco onde Maysem redigia a sua con ssão.

Sou criminosa porque, influenciada por pessoas de índole


separatista, escolhi um país reacionário, a Turquia, para estudar. A
Turquia é um país atrasado e sujo, contaminado por ideias
terroristas e extremistas, além de…

Percebendo assim o que se esperava de uma con ssão, Madina começou


então a redigir a sua.

Cometi um crime terrível, de que muito me envergonho. Na minha


infância fui educada por um imã. É certo que na altura era pequena
e não tinha modo de evitar uma educação tão reacionária, extremista
e separatista, mas quando cresci e o Partido me mostrou o caminho
correto deveria ter de imediato denunciado esse imã terrorista e
separatista, de modo a evitar que outras crianças inocentes fossem
desviadas para…

Um grito horrível interrompeu a redação. Estremecendo, Madina olhou


em redor para perceber quem gritara assim. Ouviu um novo grito e
compreendeu que vinha de algures fora da cela. Era o grito de um homem,
mas dir-se-ia de um animal selvagem, um grito feito de dor e desespero,
saído da carne e do sangue, rouco e louco, um grito que fazia tremer as
paredes e arrepiar quem o ouvia. Lançou um olhar assustado na direção de
Maysem, como se lhe perguntasse o que era aquilo e se deveria car
preocupada, mas a companheira ignorou-a e, como se nada de anormal se
passasse, continuou a escrever, debruçada sobre o seu bloco de notas e
concentrada na con ssão que nele registava.
Ou a ngir que nada notara.
“Cadeira tigre.”
Disse-o num sussurro, sem mexer os lábios, como se estivesse
embrenhada no texto que redigia e nada mais fosse relevante. A
generalidade das restantes reclusas fazia como ela, todas a escreverem as
suas con ssões, e apenas um punhado, certamente as que tinham chegado
havia menos tempo e não estavam ainda familiarizadas com tudo o que ali
se passava, pareciam perturbadas por aqueles gritos de pavor e dor e pânico.
Nos seus tempos no Partido, Madina já tinha ouvido falar na “cadeira
tigre” e sabia que tinha a ver com a punição de contrarrevolucionários, mas
era um tema que nunca quisera aprofundar. Agora, porém, não havia como
o evitar. Alguém estava a ser torturado numa cela das redondezas e pelos
vistos o acontecimento era ali tão rotineiro que já ninguém o parecia achar
extraordinário. Dir-se-ia que era aceite como normal, uma simples
circunstância, uma inevitabilidade da existência. A vida das pessoas não
valia ali mais do que a de uma formiga.
Ciente de que as controladoras as vigiavam, e, pior do que elas, as cinco
câmaras de videovigilância no teto tudo transmitiam aos carcereiros,
Madina esforçou-se por regressar à sua con ssão. Teve grande di culdade
em recuperar a concentração, pois os berros prosseguiram ao longo de dez
minutos, sempre desesperados e selvagens, mas, à medida que os minutos se
escoavam, foram-se tornando cada vez mais roucos e perdendo intensidade,
até se reduzirem a um guincho e en m deixarem completamente de se fazer
ouvir. Mesmo assim, ela não conseguiu retomar o texto.
Os blocos de notas foram sendo fechados em redor dela. A maior parte
das prisioneiras levantou-se e foi urinar ou defecar no balde. O recipiente já
estava quase cheio e Madina também se aliviou antes que fosse tarde demais.
Deu-se então a substituição das controladoras. As restantes companheiras
de cela começaram a estender-se no piso de cimento, todas viradas para a
direita, encaixando-se umas nas outras e preparando-se para dormir. Ela
imitou-as.
Sentia-se vulnerável e assustada. O dia tinha sido longo e estranho. Fechou
os olhos e, apesar do desconforto do chão duro e frio, da ausência de
cobertores, das algemas e correntes e da luz que não se apagava e iluminava
as suas pálpebras fechadas, tentou dormir. Pensou que não conseguiria, mas
ao m de alguns minutos resvalou para o sono. O seu último pensamento
foi o de que a sua vida não valia realmente mais do que a de uma formiga.
XLVIII

Quando a ligação por vídeo foi estabelecida no ecrã do gabinete do


coronel Poulson, os quatro homens na base aérea de Kadena viram na
imagem um homem de cabeça rapada deitado numa cama de hospital com
um babete ao pescoço. Na mesinha de cabeceira estava um computador. O
homem apresentava-se absolutamente imóvel, à exceção dos movimentos da
cabeça, e uma enfermeira à beira da cama dava-lhe de comer com uma
colher.
Weilmann acenou para a câmara.
“Hector, tudo bem?”
O homem deitado na cama de hospital parou de comer e tou por seu
turno a câmara.
“Señor Weilmann, como está? Há já algum tempo que não o vejo. Pensei que
se tinha esquecido de mim.”
“Como poderia eu esquecer-me de ti, Hector? Estou em Okinawa, no
Japão, e tenho aqui uns amigos que te querem conhecer.” O responsável da
DARPA voltou-se para os homens que se encontravam ao seu lado. “Meus
senhores, apresento-vos Hector González, um marine nascido em Espanha e
naturalizado americano. O Hector teve um acidente com um Humvee no
Afeganistão e cou paralisado do pescoço para baixo. Está internado no
Walter Reed. É ele o terceiro elemento desta missão. O Super-Homem.”
O semblante de estupefação nos rostos do coronel Poulson, de Chang e de
Tomás era absoluto. Os três olhavam embasbacados para o homem cuja
imagem enchia o ecrã, a enfermeira a dar-lhe de comer à boca, e caram um
longo momento sem saber o que dizer. Era aquele o Super-Homem? No
espanto total que os tolhia, viraram-se num movimento quase sincronizado
para o cientista da DARPA e encararam-no como se este tivesse perdido
a sanidade.
“Mister Weilmann”, sussurrou o coronel Poulson num tom ríspido. “Posso
dar-lhe uma palavra em privado?”
Weilmann voltou-se para o ecrã.
“Hector, vou cortar o microfone por alguns momentos, pois precisamos de
conferenciar aqui entre nós, mas já voltamos a ti, está bem?”
“Cá estarei, señor Weilmann.”
Embora mantendo ligada a imagem para o Hospital Walter Reed,
o responsável da DARPA desligou o microfone e, já com a comunicação
áudio interrompida, enfrentou os seus três interlocutores com um sorriso
desconcertante de tão provocador.
“Está louco, mister Weilmann?”, repreendeu-o o comandante da base de
Kadena. “Estamos nós aqui a lidar com uma crise gravíssima e o senhor faz-
nos perder tempo com graçolas de gosto duvidoso? Será que não tem um
mínimo de bom senso?”
Weilmann manteve-se imperturbável.
“Qual é exatamente o problema, coronel?”
A cara do coronel Poulson enrubesceu, quase como se tivesse engolido de
uma assentada um copo inteiro de bourbon; era notório que fazia um
esforço para não explodir.
“Qual o prob…?! O senhor está a fazer pouco de nós?”
“Asseguro-lhe que não tenho a menor intenção disso, coronel. Atrevo-me
mesmo a dizer que o Hector González é o homem perfeito para este tipo de
missão.”
Os três interlocutores entreolharam-se com expressões de perplexidade,
sem nada perceber. O comandante da base apontou para o ecrã onde
permanecia o homem deitado na cama, o corpo totalmente imóvel, a ser
alimentado pela enfermeira.
“Perfeito? Este… este paralítico?”
“Garanto-lhe, coronel, que o Hector González, apesar de ser tetraplégico,
está talhado para uma missão como a que estamos a considerar”, insistiu
Weilmann. “Compreendo que esta minha a rmação possa surpreendê-lo a
si e a todos neste gabinete, considerando o estado em que o Hector se
encontra, mas ele é o homem certo.”
“Goddamit! Acha que sou idiota?”
“Se me der um minuto, senhor coronel, talvez consiga demonstrar-lhe o
fundamento do que acabei de dizer.”
“Eu não vou mandar um paralítico enfrentar o exército chinês, mister
Weilmann! Que eu saiba, ainda não endoideci por completo! Desculpe, mas
esta palhaçada acaba aqui!”
O responsável da DARPA ergueu o indicador.
“Um minuto”, insistiu. “Dê-me apenas um minuto, por favor.”
“Nem se eu lhe der um milhão de minutos o senhor será capaz de pôr
aquele paralítico a dar um passo que seja, quanto mais a integrar uma
missão complexa como a que estamos a contemplar…”
Weilmann manteve o indicador esticado.
“Um minuto e perceberá.”
O coronel Poulson era claramente um homem muito controlado,
característica que aliás o tornava o comandante certo para uma base aérea
tão próxima da China como a de Kadena, e foi esse traço que acabou por se
impor.
Consultou o relógio.
“Muito bem, mister Weilmann. Um minuto.”
XLIX

Foi só devido à chegada em força do frio que Madina percebeu que a


estação tinha mudado e que o inverno se instalara. Isso signi cava que já se
encontrava enclausurada havia três meses naquele campo de “reeducação”.
Com o tempo fora compreendendo que o edifício onde fora encerrada não
estava isolado, mas inserido num complexo mais vasto. Um laogai. O nome
pelo qual eram conhecidos os campos de concentração na China.
Exatamente como aqueles de que o avô Qeyser tantas vezes lhe falara como
sendo os campos de terror onde o Partido zera desaparecer milhões de
pessoas e escravizara outros milhões.
A história repetia-se. Tal como os dias, aliás. A constatação de que já
tinham decorrido três meses desde que para ali fora trazida de certo modo
surpreendeu-a, uma vez que os dias eram todos de tal modo repetitivos que
se pareciam fundir num único, uma eterna rotina, como se o próprio tempo
tivesse congelado e ela condenada a reviver o mesmo dia até à eternidade.
Tudo era sempre igual. As prisioneiras dormiam encaixadas umas nas
outras no chão frio e duro do espaço minúsculo e pestilento que era a cela,
acordavam ao som de um apito estridente, o balde estava cheio, não podiam
falar na cela nem em parte alguma sem que para isso fossem explicitamente
autorizadas, passavam o dia esfaimadas e a tiritar de frio, sentiam-se sempre
cansadas e sujas, eram constantemente vigiadas pelas câmaras, iam
acorrentadas e algemadas para uma sala receber aulas de doutrinação,
cantavam canções comunistas e nacionalistas, gritavam até à exaustão as
mesmas palavras de ordem, sonhavam sobre comida e banhos, deixaram de
pensar na família e no mundo exterior, aprendiam os costumes e valores dos
“verdadeiros” chineses, arrependiam-se mil vezes por dia dos seus erros
extremistas, separatistas e terroristas e agradeciam ao Partido e ao Chefe
terem sido colocadas no “caminho correto”, diziam amar o socialismo e a
nação, comiam miseravelmente, aguentavam as bastonadas dos guardas,
meditavam nos seus erros, redigiam con ssões atrás de con ssões, ouviam
os gritos daqueles que eram levados para a “cadeira tigre”, deitavam-se
encaixadas umas nas outras no chão frio e duro do espaço minúsculo e
pestilento que era a cela, acordavam ao som de um apito estridente…
A única coisa que mantinha Madina interessada eram as breves trocas de
olhares com o rapaz da la da frente na sala de “aula”. Uma vez chegara a
car momentaneamente ao lado dele no corredor e ouviu-o sussurrar um
nome. “Osman.” Presumiu que se tratava do nome dele e, ao afastarem-se
um do outro, sussurrou-lhe o seu. “Madina.” Surpreendeu-lhe um brilho nos
olhos, mas nele o olhar tornara-se com o tempo mais baço, de resto o que
lhe acontecia também a ela. O cativeiro vergava-os.
Havia naturalmente algumas variações naquela vida no campo de
concentração que, por se repetirem em ciclos mais largos, também
se tornaram rotineiras. Às sextas-feiras, por exemplo, era-lhes oferecida
carne de porco às refeições. Uma das companheiras de cela que chegaram
depois de Madina, uma sexagenária que seguia com maior rigor as tradições
religiosas e culturais dos uigures, quando pela primeira vez foi confrontada
com a carne de porco devolveu a refeição ao funcionário da cantina.
“Hoje não tenho fome.”
O funcionário desviou o olhar para um guarda, que se aproximou de
imediato.
“O que se passa?”
“Esta estudante não quer comer.”
O guarda encarou-a com uma expressão carregada, como quem lhe fazia
um aviso.
“Tem de comer.”
A idosa encolheu-se, mas manteve a sua posição.
“Não… não tenho fome.”
O guarda pegou num pedaço de porco e, encostando-se à uigure, espetou-
o à frente da cara.
“Coma!”
Agoniada, a idosa empurrou-o para o afastar.
“Não.”
Sem dizer mais uma palavra que fosse, o guarda pegou nela e arrastou-a à
força até desaparecerem ambos ao fundo do corredor. Ninguém disse nada,
pois estava em vigor a ordem de silêncio.
Nessa noite, no entanto, a porta da cela abriu-se de repente e soou a
ordem habitual nessas circunstâncias.
“Baotou!”
Prostraram-se na tradicional posição de submissão e ouviram os guardas
entrarem na cela e abrirem espaço entre elas.
“Atenção, estudantes!”, rugiu um dos guardas. “Esta fengjian empurrou um
guarda. Se alguém a ajudar sofrerá o mesmo destino dela.”
Os guardas retiraram-se e todas levantaram nalmente a cabeça.
Depararam-se no meio da cela com a idosa sentada numa cadeira de ferro,
os braços e as pernas acorrentados, o tronco amarrado às costas da cadeira e
uma estrutura de borracha a obrigá-la a permanecer ereta. A idosa tremia
descontroladamente e tinha um ar muito assustado. Ninguém lhe tocou nem
ninguém lhe podia valer.
Madina e as companheiras de cela adormeceram com a idosa ali sentada
naquelas condições. Ouviram-na gemer a noite toda e de manhã
encontraram-na no mesmo estado, só que urinada e defecada. Saíram da
cela para as “aulas” da manhã, quando voltaram para o almoço ela ainda
estava no mesmo sítio, saíram para as “aulas” e no regresso à noite
encontraram-na ainda da mesma maneira. Foram dois dias assim. Ao nal
do terceiro, ela perdeu a consciência e os guardas apareceram e levaram-na.
Nunca mais a voltaram a ver. Madina ouviu alguém sussurrar dias mais
tarde que a idosa tinha morrido na enfermaria. Nesse dia, obrigaram-nas a
entoar canções a glori car o Partido Comunista Chinês.
Noutra ocasião reconheceu um prisioneiro no corredor. Tratava-se de
Nurmemet Yasin, o escritor que escrevera “Yawa Kepter”, ou “Pombo
Selvagem”, o conto que a sua amiga Rayhan lhe dera a ler nos tempos da
faculdade sobre o príncipe pombo que escolhera morrer para não ter de
viver engaiolado. Também haviam prendido Nurmemet? De facto, não havia
ninguém em quem não tocassem. Segredando nessa noite com Maysem,
descobriu que Nurmemet havia sido condenado a dez anos justamente por
ter escrito “Pombo Selvagem”. Dez anos na gaiola por se atrever a escrever
contra a gaiola!
Outra variação que assumia um ciclo rotineiro eram os banhos semanais,
sempre com água fria e as reclusas apenas autorizadas a permanecerem
debaixo do chuveiro durante um minuto. No teto, as inevitáveis câmaras de
videovigilância tudo monitorizavam. Todas as prisioneiras acabadas de
chegar mostravam uma grande inibição em desnudarem-se diante das
câmaras, até porque ninguém tinha dúvidas de que os guardas se
amontoavam diante dos monitores para apreciarem o “espetáculo”, e Madina
não foi exceção, mas com o tempo, e sobretudo com o confronto com
di culdades muito superiores naquele campo de concentração, deixavam de
se importar. Não só os guardas as consideravam gado como elas próprias
começavam a ver-se dessa forma.
Os gritos noturnos dos reclusos enviados para a “cadeira tigre” eram uma
rotina que certa noite conheceu uma variação. A mais velha das prisioneiras
da cela 310 era uma septuagenária tão magra que parecia ser apenas feita de
ossos, a pele enrugada e o cabelo todo branco. Devido à idade, não falava
chinês, o que lhe di cultava imenso a aprendizagem nas “aulas”. Em
conversas sussurradas com Maysem, Madina soube que a septuagenária
havia sido enviada para o laogai por, no dia em que os agentes tinham ido a
sua casa deter os três lhos, ter insultado o Partido ao dizer que “os
comunistas não têm justiça, apenas polícia”. Ao que parecia, mãe e lhos
estavam ali no mesmo campo de concentração, embora Madina nunca os
tivesse visto.
Nessa noite, quando os habituais gritos dos torturados começaram,
a septuagenária deu um salto.
“Os meus lhos!”
A violação da ordem de mutismo geral deixou perplexas as duas vigilantes
de serviço.
“Silêncio!”
“São os meus lhos a gritar!”, exclamou a septuagenária, desatando num
pranto. “Os meus meninos! Estão a fazer mal aos meus meninos!”
As companheiras de cela caram atordoadas ao perceberem o que se
passava e as vigilantes nem se atreveram a pedir-lhe de novo que se calasse.
Como o poderiam fazer numa situação daquelas?
“Estão a fazer-lhes mal!”, chorava a septuagenária numa impotência
desesperada, a cara molhada de lágrimas e o ranho a sair-lhe do nariz. “Não
ouvem? Não ouvem?”
Uma voz masculina irrompeu dos altifalantes da cela.
“Silêncio, senão serão todas castigadas!”
A septuagenária voltou-se para as câmaras e estendeu os braços trementes
como quem falava para o Céu, como quem se dirigia a Deus omnipresente,
omnisciente e omnipotente, pois era isso o que o Partido era para os que se
Lhe submetiam.
“Mandem-nos parar!”, implorou ela numa voz rouca, o rosto transtornado,
a respiração pesada. “Por favor, mandem-nos parar! Estão… estão a fazer-
lhes mal! Por favor! Por favor!”
“Silêncio!”
A mulher arfava cada vez mais até que, de repente, soltou um grito dos
infernos, encolheu-se sobre o peito e tombou fulminada no chão. Fez-se
silêncio na cela, apenas quebrado pelos berros de dor dos homens
torturados na “cadeira tigre”. Passados dez minutos, a porta da cela abriu-se,
ouviu-se o “baotou!” do costume, todas se ajoelharam, os guardas
mascarados entraram e levaram a septuagenária como quem carregava um
saco de batatas. Nunca mais voltou a ser vista. Nessa noite, por ter havido
quebra do silêncio, todas as reclusas da cela 310 tiveram de permanecer
perfeitamente imóveis durante uma hora.
A variante das rotinas no campo de concentração incluía uma sessão
todos os meses com uma “professora da vida”, conceito inspirado no
“conselheiro de classe” que existia no sistema de educação chinês para ajudar
os alunos de determinada turma, e que naquele caso era uma tutora do
Partido encarregada de encaminhar cada prisioneira para o “caminho
correto”.
Madina encontrou como “professora da vida” a senhora Gui-ying, uma
chinesa han que se afastava um pouco do per l tradicional das militantes
fanáticas. Havia algo de maternal nela, embora talvez fosse apenas uma
ilusão gerada pela sua maneira ligeiramente afetuosa de falar. A senhora
Gui-ying era responsável pelo acompanhamento das reclusas de cinco celas
femininas naquele campo de concentração, incluindo a cela 310, e fora assim
que Madina acabara a reunir-se semanalmente com ela.
Nas primeiras sessões, a senhora Gui-ying concentrou-se sobretudo na
técnica de guiar a prisioneira a identi car o “caminho incorreto”.
“Porque estás aqui na escola?”
Talvez fosse pela forma mais compreensiva que a tutora adotava a falar, em
contraste com a frieza brutal de todos os outros carcereiros, mas o facto é
que, com ela, Madina parecia baixar as defesas e dava respostas que não
eram maquinais.
“Em bom rigor, não sei. Não z nada de grave.”
A “professora da vida” abanou a cabeça.
“Se o Partido para aqui te enviou é porque alguma coisa zeste”, disse
numa voz suave. “Ou estás a insinuar que o Partido atua de forma leviana e
comete injustiças?”
“Não, claro que não.”
“Então porque estás aqui na escola? Que crimes cometeste?”
“Eu… não z nada, asseguro-lhe. Estou inocente.”
“Ora ora. Alguma coisa zeste para que te mandassem para aqui. Tens de
ir ao fundo do teu coração e interrogar-te a ti própria sobre os teus erros.
Porque te pusemos aqui no campo em vez de pôr outras pessoas? O que
zeste?”
“É um engano. Um horrível engano. Eu sou militante do Partido desde os
tempos do liceu. Li tudo o que havia a ler, desde Marx e Engels até Mao e o
atual Lingxiu, e z tudo o que me mandaram fazer. Sempre fui devota ao
Partido, assisti a todos os congressos, cumpri os meus deveres, z o que me
pediram e mesmo o que não me pediram. Esforcei-me imenso. Aliás,
dediquei-me tanto ao Partido que nem namorado tenho, veja lá. E não foi
por falta de pretendentes, pode crer. É por isso incompreensível que me
tenham mandado para aqui. Incompreensível. Trata-se certamente de um
equívoco. Um pavoroso equívoco.”
Essas primeiras sessões terminavam sempre com a senhora Gui-ying a
aconselhar-lhe que re etisse “profundamente” no que tinha feito e pensasse
bem nos seus “erros”. Enquanto não os identi casse, não seria capaz de os
“corrigir”. Após várias conversas que pareciam andar à roda, Madina
percebeu que teria de rever a maneira como encarava a sua tutora naquelas
sessões mensais. A forma compreensiva que a senhora Gui-ying adotava
quando falava com ela talvez não resultasse do facto de ser uma pessoa
realmente compreensiva, como até ali lhe parecera, mas de um simples
truque manipulativo. Enquanto os guardas do campo de concentração
faziam de polícias maus, a “professora da vida” apresentava-se como a
polícia boa. Pura técnica de interrogatório.
Assim sendo, negar ter feito algo de mal não a conduziria a lado nenhum.
O Partido queria que ela admitisse ter cometido erros, primeiro para
legitimar a detenção e depois porque, pelos vistos, acreditava que só
admitindo os seus “erros” os prisioneiros poderiam ser conduzidos ao
“caminho correto”. A partir daí, e guiando-se pela con ssão que tinha de
redigir todas as noites, começou a falar sobre os “erros” da sua educação
com o avô Qeyser e com o primo Erbakyt e no “erro” que fora não os ter na
altura denunciado ao Partido. Mas a “professora da vida” abanou a cabeça
com ceticismo.
“Não me parece que estejas a ser totalmente sincera na tua con ssão”,
disse-lhe. “Só com sinceridade te poderás redimir.”
“Mas estou a ser sincera.”
A senhora Gui-ying voltou a abanar a cabeça, o olhar a derramar
compaixão.
“Não me parece. Terás de ir mais ao fundo de ti, terás de abrir o teu
coração e expor tudo o que está lá escondido. É importante que mostres
progresso. Sem progresso, nunca sairás daqui.”
Por outras palavras, teria de ir mais longe. Teria de revelar mais e mais.
Era isso o “progresso”. O que lhe colocava um dilema. Por um lado, precisava
de revelar mais pecados, caso contrário haveria ausência de “progresso” e
nunca sairia dali. Mas, por outro, sabia que tudo o que viesse a dizer de novo
tornar-se-ia mais um problema, pois torná-la-ia culpada de mais crimes e
acentuaria a impressão de que ela era a nal uma grande criminosa.
Para ser capaz de preservar a sanidade perante os sucessivos dilemas e as
terríveis condições no campo de concentração, Madina fazia na vida
quotidiana o que todos os prisioneiros faziam: fechara-se em si mesma.
Obedecia maquinalmente às ordens, gritava vivas ao que tinha de gritar e
amaldiçoava o que tinha de amaldiçoar, comia quando lhe diziam para
comer e dormia quando lhe diziam para dormir. Repetia à exaustão que
amava o Partido e o Chefe e o socialismo e a China e denunciava os que
tinha de denunciar, desde o avô Qeyser e o primo Erbakyt aos reacionários e
capitalistas estrangeiros que queriam humilhar a pátria amada, o Ocidente
no topo da lista com os seus perigosos vírus ideológicos. O corpo tornara-se
um robô e a mente encolhera-se num recanto sombrio, como se do corpo se
tivesse separado e a ele se juntasse apenas nas sessões com a senhora Gui-
ying. Ou talvez nem aí. Não é que não pensasse, mas evitava a todo o custo
pensar.
Tal como quando chegara achara que as outras eram zombies sem o brilho
da vida a iluminar-lhes o olhar, ela própria se tornara um zombie sem que
nos seus olhos a vida cintilasse.
L

Sabendo que dispunha de apenas um minuto para convencer o coronel


Poulson, Kurt Weilmann voltou-se para o ecrã e carregou no botão do
microfone, restabelecendo assim a comunicação áudio com o homem que se
encontrava paralisado numa cama do Walter Reed National Military
Medical Center, em Bethesda, Washington, DC. Todos no gabinete sabiam
que o Walter Reed era um dos mais prestigiados hospitais militares dos
Estados Unidos. Tomás conhecia su cientemente o seu amigo da DARPA
para acreditar que, se ele dizia que aquele tetraplégico no ecrã era o homem
certo para a missão destinada a resgatar Dragão Vermelho e Maria Flor,
então isso só podia ser verdade. Mas como podia um tetraplégico ser o
Super-Homem?
“Hector, sou eu de novo”, disse o cientista americano, falando para o
monitor. “Precisava que zesses uma coisa para mim, por favor.”
“O que for preciso, señor Weilmann.”
“Será que podes ligar o computador que tens ao teu lado e mandares-me
um e-mail, por favor?”
“Um e-mail a dizer o quê, señor Weilmann?”
“O que te apetecer, Hector.”
O homem deitado na cama de hospital virou a cabeça para o computador.
Ato contínuo, este ligou-se sozinho. Uma página de gmail formou-se no
ecrã, logo a seguir a imagem foi preenchida por uma página em branco de
uma mensagem de e-mail, apareceram letras na página como se alguém
estivesse a datilografá-las num teclado invisível, formou-se o endereço de e-
mail de Kurt Weilmann e a mensagem de repente desapareceu, substituída
pela informação de que tinha sido enviada.
“Já está, señor Weilmann.”
O cientista da DARPA consultou a sua página de e-mails no smartphone e
detetou no Inbox uma mensagem acabada de chegar de Hector. Abriu-a e
voltou o ecrã para os seus companheiros como se exibisse uma prova.
“Ora vejam.”

Quem são os idiotas que estão consigo, señor Weilmann?

O coronel Poulson tou a mensagem com estupefação, o mesmo


acontecendo com Tomás e Chang.
“What the fuck!”, praguejou o o cial. “Como raio fez ele isto?”
O sorriso voltou ao rosto de Weilmann, ciente de que tinha a partida
ganha.
“O Projeto Brain-Interface é um dos principais projetos de pesquisa e
desenvolvimento em biotecnologia que a DARPA está a levar a cabo neste
momento”, explicou o cientista. “Como sabem, os computadores têm uma
memória extraordinária e uma velocidade colossal de processamento de
informação. Para fazer de interface com os computadores, a esmagadora
maioria das pessoas usa o rato. Pode-se também usar uma forma mais
primitiva, o teclado, ou uma forma mais avançada, a voz.”
“Como a Siri?”
“Exato. Acontece que a melhor interface de todas não é o teclado nem o
rato nem sequer a voz do utilizador, mas o computador que temos dentro do
crânio.” Bateu com a ponta do dedo na cabeça. “O cérebro. Os nossos
neurónios comunicam uns com os outros emitindo sinais elétricos que
formam as chamadas ondas cerebrais. O que nos levou a nós, na DARPA, a
colocar uma hipótese: será possível alguém no exterior captar essas ondas
cerebrais?”
A pergunta fez Tomás perceber o verdadeiro alcance do projeto.
“Desculpe, está a sugerir que a DARPA descobriu uma maneira de
intercetar pensamentos?”
Weilmann voltou a sorrir.
“Você já me leu o pensamento, man!”, exclamou, muito satisfeito com a
sua piadola. “Sim, as ondas cerebrais exprimem as ideias, ordens e vontades
de cada pessoa. Quem as intercetar, interceta pensamentos. Não é, porém,
por isso que nos interessámos pelas ondas cerebrais. A ideia do Projeto
Brain-Interface é antes desenvolver formas de usar essas ondas cerebrais
para lidar com o stress de guerra e, ao mesmo tempo, facilitar a
aprendizagem. Temos um programa chamado Targeted Neuroplasticity
Training que envolve a aprendizagem através do fortalecimento das
conexões entre neurónios e do estímulo do sistema nervoso periférico. O
programa permite, por exemplo, tratar o stress pós-traumático e, por outro
lado, acelerar a aprendizagem de línguas, a análise de informação e as
competências em criptogra a, entre outras coisas. A ideia é obter
performances acima do normal. Mas o mais interessante é que o Projeto
Brain-Interface permite também fazer com que os soldados que sofreram
ferimentos e caram paraplégicos ou tetraplégicos sejam capazes de
manipular objetos distantes com recurso simplesmente ao pensamento,
assim contornando as suas limitações físicas.”
O olhar do historiador desviou-se para o espanhol que pelo ecrã os
encarava da cama do hospital em Bethesda, do outro lado do planeta.
“Foi isso o que ele fez?”, perguntou Tomás. “Ligou o computador, escreveu
um e-mail e mandou-o para si usando apenas o pensamento?”
O cientista da DARPA abeirou-se do ecrã e apontou para um ponto
especí co na cabeça de Hector.
“Plantámos-lhe um chip de computador no cérebro”, explicou Weilmann.
“Foi produzido pela Universidade Emory e tem o tamanho de um grão de
arroz, embora a Universidade Duke use agora elétrodos com a espessura de
um cabelo humano. O chip capta e isola todos os sinais elétricos emitidos
pelo Hector sempre que ele pensa em mexer os seus braços e pernas, apesar
de os seus membros estarem paralisados.” Dirigiu-se diretamente ao
espanhol. “Conta-lhes, Hector, o que aconteceu depois da operação a que te
sujeitaste para que te implantássemos o chip.”
O homem na imagem sorriu.
“Comecei a ligar o computador, a navegar na Internet e até a jogar jogos de
computador só por imaginar que faço isso. Tornei-me mesmo um campeão do
Call of Duty, veja lá!”
“Wow! Parabéns!”
“Consigo também ligar a televisão e mudar de canais só por pensar em fazer
isso. Quer uma demonstração?”
“Essa não é necessária, Hector”, respondeu Weilmann. “Para compensar,
tens aí o braço robótico?”
Percebendo a intenção subjacente à pergunta, o espanhol fez um sinal à
enfermeira e esta levantou-se, desaparecendo momentaneamente da
imagem para reaparecer instantes volvidos com um braço metálico que
pousou sobre a cama, a palma da mão voltada para cima.
“Agora vou usar o meu pensamento para mexer os dedos do braço robótico.”
De imediato, os dedos metálicos do braço começaram a agitar-se.
Primeiro formaram um V de vitória, depois um círculo com o polegar e o
indicador, e a seguir fecharam-se num punho cerrado, como se o braço
robótico se preparasse para dar um murro. Por m, o dedo do meio ergueu-
se do punho, fazendo um sinal inconveniente.
Vendo o rosto do coronel Poulson enrubescer perante o insulto, Tomás
pôs a mão sobre a boca para abafar uma gargalhada.
“Pronto, pronto, Hector”, interveio Weilmann, algo embaraçado.
“Já percebemos que não gostas de fazer números de urso amestrado. Diz-
nos só uma coisa, man. Como é que te adaptaste à situação de usar os teus
pensamentos para dar ordens a objetos tecnológicos que se encontram fora
do teu corpo?”
“De início confesso que foi um pouco estranho, señor Weilmann. Levei
algum tempo a conseguir fazer isto. Pôr objetos distantes a mexerem-se só à
custa do pensamento é bizarro, como deve calcular. Mas com o tempo fui-me
habituando e agora é como se isto fosse tudo natural. Já faz parte de mim. Um
pouco como conduzir um automóvel, não sei se está a ver. Quando começamos
a conduzir, o volante, os pedais, as mudanças, é tudo muito estranho e até um
pouco confuso. Mas quando ganhamos destreza na condução é como se os
pedais, o volante e as mudanças zessem parte de nós, fossem simples
extensões do nosso corpo. Começamos a manipulá-los automaticamente
enquanto pensamos noutras coisas, com as máquinas a tornarem-se extensões
naturais e inconscientes do nosso corpo. Com isto é a mesma coisa.”
Neste ponto, o coronel Poulson interveio.
“Okay, mister Weilmann, já prendeu a minha atenção”, disse. “O mister
González é capaz de mexer coisas só com o pensamento. O que, no entanto,
ainda não entendi é como poderão estas habilidades de circo ser úteis para a
operação que temos em mente.”
O cientista da DARPA tou o comandante da base aérea de Kadena com
intensidade, preparando-se para apresentar a última peça do puzzle que
tudo tornaria compreensível.
“O coronel já ouviu falar no Colossus?”
LI

Como sempre, nesse dia os guardas conduziram todos os prisioneiros para


a respetiva sala de “aula”. Os reclusos da “classe” de Madina entraram no
espaço habitual das suas “lições”, agrilhoados nos pulsos e tornozelos, e
plantaram-se em sentido diante dos bancos de plástico que lhes estavam
reservados, à espera da professora. Cinco minutos depois, a porta lateral
abriu-se e os “estudantes” enfrentaram a primeira novidade do dia.
A professora mudara.
Já não era a chinesa han que os educava desde o início, oito meses antes,
mas uma nova professora. E que professora! Tratava-se, nada mais nada
menos, de uma uigure! Ou talvez fosse cazaque, era difícil à primeira vista
perceber. Ou se calhar mesmo tajique, usbeque ou quirguiz. Han é que ela
de certeza não era.
A nova professora entrou de olhos baixos, como se estivesse intimidada ou
simplesmente compenetrada, e pousou as suas anotações sobre a mesa
diante do quadro. Por m levantou a cara e encarou a “turma” pela primeira
vez. Ao ver os “estudantes” que lhe eram con ados, arregalou os olhos numa
expressão de horror e cou pálida. Pelos vistos, o estado de degradação e
humilhação em que os prisioneiros se encontravam, todos acorrentados nas
suas imundas fardas azul-claras, todos esqueléticos e todos robotizados, era
uma visão para a qual ela evidentemente não estava preparada. Aquela
reação desconcertou-os. A professora não sabia a quem ia dar as aulas?
Engolindo em seco, a nova professora recompôs-se do choque e fechou o
rosto, como todos faziam quando escondiam os seus sentimentos e
pensamentos.
“As salaam alekum.”
Foi a vez de os prisioneiros carem boquiabertos, estarrecidos com a
saudação na língua uigure. A professora estaria louca? Não saberia ela que
era absolutamente proibido falar uma língua das minorias étnicas, e muito
menos o uigure, e que apenas o chinês era permitido?
Ao ver a reação dos “estudantes”, a nova professora percebeu que tinha
cometido um lapso e hesitou, perturbada. Compreendendo que ela precisava
de tempo para se refazer do erro, os alunos entoaram em coro a fórmula
habitual do início das “aulas”.
“Estamos prontos!”
O primeiro prisioneiro da primeira la iniciou de imediato a chamada.
“Número um, presente!”
A seguir foi o segundo recluso.
“Número dois, presente!”
Quando todos concluíram a chamada, a nova professora já parecia ter-se
refeito do choque inicial.
“Chamo-me Qelbinur, sou professora de chinês na escola primária e
doravante serei eu a dar-vos aulas”, apresentou-se. O olhar dela desviou-se
para os prisioneiros mais velhos. “Ao que parece, alguns de vós têm
di culdades no chinês, não é verdade? Então vamos lá aprender a falar e a
escrever.”
Voltou-se para o quadro e, com o giz, começou a escrever palavras em
chinês e a explicar como elas se pronunciavam, o que queriam dizer e qual a
sequência correta dos traços para se desenhar um caractere. Falou
frequentemente em uigure ou em cazaque, de modo a explicar as coisas aos
reclusos que não entendiam chinês, mas isso só acontecia quando um
guarda a autorizava a falar uma das línguas “indígenas”. Contudo, não só a
nova professora não voltou a encarar os prisioneiros como se manteve
sempre de costas voltadas para eles; dir-se-ia que nem sequer os queria ver.
Por vezes, a voz embargava-se-lhe e chegava mesmo a falhar-lhe, mas logo se
recompunha e prosseguia. Num desses momentos, Madina viu os ombros
dela tremerem e, pelo tremor característico da voz, percebeu que chorava.
Foi uma aula desconcertante, absolutamente diferente de tudo o que
tinham visto até ali no campo de “reeducação”, pelo que o olhar dos
prisioneiros se mostrou diferente quando saíram para o corredor na pausa
para o almoço. Pelos vistos, o Partido tinha nalmente percebido que não
era a falar unicamente chinês e a punir violentamente os prisioneiros de
idade que não entendiam a língua da raça superior que se conseguiria
“reeducar” esses prisioneiros e ensinar-lhes o “caminho correto”. Mas o mais
importante, a única coisa que na verdade realmente interessava, é que pela
primeira vez alguém no campo de “reeducação” os olhara como seres
humanos.
Uma voz juvenil soou na la para a cantina, atrás de Madina.
“Achas que a partir de agora eles nos vão tratar melhor?”
Madina quase paralisou de terror.
“Cala-te!”, sussurrou. “Não se pode falar!”
A prisioneira que a interpelara era uma adolescente chamada Tursunay;
tratava-se de uma rapariga de dezoito anos muito bonita. Chegara ao campo
na semana anterior e fora colocada na cela 310; não estava por isso ainda
inteiramente familiarizada com todas as regras, proibições e rotinas em
vigor. Madina pensou que ninguém a ouvira, mas um guarda plantado na
esquina olhou xamente para Tursunay e apontou-lhe o bastão com picos de
borracha.
“Se voltares a falar, levas!”
Tursunay não voltou a falar.
No corredor estavam as prisioneiras à esquerda e os prisioneiros à direita,
como sempre acontecia. Pelo canto do olho, Madina foi espreitando os
rostos na la dos homens e, como volta e meia sucedia naquele local,
localizou Osman, o seu “pretendente”. Trocaram o fantasma de um sorriso.
Parecia incrível como mesmo num sítio daqueles, com os prisioneiros
cercados de guardas e de câmaras de videovigilância, ainda eram possíveis
os gestos que faziam deles seres humanos.
Depressa as las começaram a movimentar-se e o momento daquele
encontro, fugaz mas já rotineiro, cou para trás. Depois de as reclusas
passarem pela cantina e recolherem o almoço, nesse dia os guardas
alteraram o procedimento habitual. Em vez de as levarem para a cela, como
sempre acontecia quando saíam da cantina, dessa feita encaminharam-nas
para as escadas e conduziram-nas pelos sucessivos lanços até chegarem ao
rés do chão.
As prisioneiras foram levadas para a área clínica. Em bom rigor, a ida
àquele local não constituía em si algo de anormal, pois uma vez por mês os
reclusos eram para ali encaminhados para uma recolha de sangue que
Madina sabia ser destinada a alimentar a base de dados do sistema de
vigilância. O que ela começou por achar estranho foi que, nesse dia, apenas
as mulheres da cela foram conduzidas para a clínica. Então e os prisioneiros
masculinos?
A sua experiência no Partido ensinara-lhe que aquele tipo de anomalias se
produzia sempre devido a uma razão qualquer, raramente positiva e por isso
sempre dissimulada. O que estaria aquela gente a cozinhar dessa vez? Várias
chinesas han com fardas brancas de enfermeiras cirandavam pela clínica,
atarefadas, quando as prisioneiras da cela 310 chegaram ao local. Seria a
colheita mensal de sangue? Madina tinha a ideia de que essa colheita
ocorrera apenas duas semanas antes, mas admitiu estar enganada, uma vez
que a noção de tempo se perdia na rotina de tantos dias iguais.
Uma enfermeira aproximou-se delas com uma seringa na mão e um
sorriso nos lábios.
“Quem quer ser a primeira?”
Era coisa única no campo ser-lhes dada uma opção, e de forma simpática.
Em geral apenas recebiam ordens ladradas em tom seco e agressivo.
Pressentindo naquelas palavras uma certa abertura, Madina sentiu-se
encorajada a falar e apontou para a seringa.
“Peço desculpa, mas… o que é isso?”
“É a vacina. Quem quer ser a primeira?”
As prisioneiras entreolharam-se.
“Vacina para quê?”
A enfermeira manteve o ar jovial.
“Olhem para vocês, já viram como estão magras? Acham que têm o vosso
sistema imunitário a funcionar na perfeição? Não sei o que andam a comer
por aqui, mas posso assegurar-vos de que se não forem vacinadas vão
desenvolver em breve sérios problemas de saúde. Muito sérios mesmo.
Portanto, vamos lá à piquinha.”
“Não leve a mal, mas é uma vacina para quê?”
“Para fortalecer o sistema imunitário, claro. Vocês estão debilitadas, não
veem? Têm de ser vacinadas.” Bateu palmas, a apressá-las. “Vamos lá, quem
quer ser a primeira?”
Uma a uma, todas as mulheres submeteram-se à injeção. Quando
acabaram, a enfermeira-chefe informou-as de que doravante tinham de
tomar todos os meses um comprimido e distribuiu os primeiros por cada
uma. Madina cou a olhar para o seu.
“Isto é para quê?”
“Complexo vitamínico”, indicou a enfermeira-chefe. “Robustece as vossas
defesas.”
“Mas eu pensava que a vacina já nos robustecia…”
“São métodos complementares. Uma não impede a outra. Pelo contrário,
reforçam-se mutuamente.”
Madina fez uma careta, nada convencida.
“Peço desculpa, mas acho que vou dispensar o comprimido. A vacina
chega perfeitamente para…”
A enfermeira-chefe fechou o rosto.
“O comprimido é obrigatório. Tome-o.”
“Mas não preciso dele.”
“Tome-o!”
Percebeu que se tratava de uma ordem e que recusá-la teria
consequências, pelo que obedeceu. Tal como as restantes companheiras de
cela, meteu o comprimido na boca e engoliu-o com um trago de água. A
enfermeira obrigou-a a abrir a boca e inseriu a mão enluvada para
inspecionar o interior, certi cando-se assim de que Madina engolira mesmo
o comprimido. O procedimento foi repetido com as outras reclusas. Uma
vez todas as prisioneiras da cela 310 medicadas, os guardas levaram-nas de
regresso à sala de “aula”.
Esperava-os uma nova surpresa. Embora, em bom rigor, essa surpresa não
devesse ser surpreendente. A nova professora, a que se apresentara nessa
manhã como se chamando Qelbinur e que chorara durante a “aula”, já lá não
estava para ministrar as “lições” da tarde. No seu lugar encontrava-se uma
outra professora, também uigure, mas de rosto fechado a esconder os seus
pensamentos.
Não era difícil perceber o que acontecera. A anterior fora decerto punida,
não só por ter cumprimentado a “turma” em uigure como por não ter
conseguido esconder inteiramente os seus sentimentos. Havia, pois, sido
desmascarada como uma “duas caras”, alguém que se ngia leal ao Partido,
mas que na realidade o traía. Decerto não a voltariam a ver. Ou então vê-la-
iam como “estudante”. Já esta nova professora devia ter sido previamente
prevenida sobre o que iria encontrar na sala, pois durante toda a tarde
manteve uma expressão impassível, embora, tal como a sua antecessora
caída em desgraça, evitasse o mais possível olhar para os seus “alunos”.
Nessa noite, após passarem pela cantina para recolher a sopa e o mantou
do jantar, regressaram de novo à cela. Depois de comerem, numa altura em
que recomeçaram os habituais gritos das vítimas da “cadeira tigre”, as
prisioneiras da cela 310 voltaram-se para as paredes e puseram-se a fazer a
autocrítica dos seus erros, como constava da rotina obrigatória no campo de
concentração.
“Sou criminosa porque fui educada por um imã com ideias incorretas”,
murmurou Madina maquinalmente, como fazia todas as noites nos últimos
oito meses. “Sou criminosa porque fui educada por um imã com ideias
incorretas. Sou criminosa porque…”
A tranca da porta da cela rodou nesse momento e dois guardas com
máscaras apareceram à entrada e deram a ordem habitual nessas
circunstâncias.
“Baotou!”
As prisioneiras ajoelharam-se de imediato e baixaram as cabeças nuas, o
procedimento obrigatório.
“Todas de pé.”
Era a primeira vez que os guardas as mandavam porem-se de pé quando
recebiam ordem de baotou, mas obedeceram sem hesitar e caram em
sentido, sempre apertadas, os olhos xos num ponto in nito, pois não se
atreviam a olhar os seus carcereiros nos olhos. Os dois guardas estudaram-
nas uma a uma, como se procurassem alguém especi camente.
Um deles apontou de repente para uma das prisioneiras que se
encontravam a meio do grupo.
“Tu! Vem cá!”
Pela direção do indicador percebia-se que o guarda apontava para
Tursunay, a adolescente muito bonita que fora admoestada por ter quebrado
no corredor a ordem de silêncio. Ao ver-se interpelada, a jovem prisioneira
hesitou, o rosto a contrair-se num esgar de surpresa e apreensão; ainda não
sabia muito sobre a vida num laogai, mas sabia que nunca era bom sinal um
prisioneiro ser chamado inesperadamente. O truque da sobrevivência nos
campos, dizia-se em cochichos, era passar despercebido, algo que Madina já
tivera o cuidado de lhe explicar.
“Ayah!”, impacientou-se o guarda. “Vens ou tenho de te ir aí buscar à
bastonada?”
Com os nervos em franja, tremendo por todos os lados, a rapariga não se
atreveu a desobedecer. Com as correntes e algemas a chocalharem, passou
devagar por entre as companheiras de cela e apresentou-se diante dos
guardas. Os dois homens examinaram-na da cabeça aos pés, como se
inspecionassem gado.
“Wah!”, exclamou o segundo guarda, movimentando a rmativamente a
cabeça num gesto de aprovação. “Tinhas razão, Wang. É um belo pedaço,
sim senhor!”
“Eu disse-te! Eu disse-te!”
Os dois pegaram em Tursunay e arrastaram-na para o corredor. A porta
da cela fechou-se e o mecanismo da tranca voltou a aferrolhá-las lá dentro.
De novo a sós, as prisioneiras entreolharam-se, assustadas. Pelo campo de
“reeducação” circulavam muitas histórias sobre raptos pelos guardas de
reclusas jovens e bonitas, dizia-se que a beleza era uma maldição nos laogai,
mas uma coisa era escutar histórias daquelas da boca de outros, outra era
ver aquilo acontecer na sua cela a uma delas.
O ambiente, sempre pesado, tornou-se mais pesado ainda. As conversas
eram proibidas, mas na verdade o que havia a dizer sobre uma coisa assim?
As reclusas voltaram a sentar-se diante das paredes e retomaram o ritual da
autocrítica.
“Sou criminosa porque fui educada por um imã com ideias incorretas. Sou
criminosa porque fui educada por um imã com ideias incorretas. Sou…”
Repetiam a autocrítica de forma automática, como uma ladainha, o olhar
vazio, a mente em Tursunay. O que estaria ela a passar nesse momento? Será
que o seu destino seria mais tarde ou mais cedo o de outras ali na cela? A
angústia era maior entre as mais jovens, como Maysem e Madina, mas
mesmo as mais velhas não estavam totalmente descansadas. Quem podia
garantir a segurança de uma uigure ou de uma cazaque num sítio daqueles,
para mais considerando a reputação que as uigures gozavam de serem as
mais bonitas mulheres da China? A que lei poderiam recorrer se era a
própria lei, isto é, o Partido, quem em última instância lhes fazia aquilo?
Um gemido ao seu lado interrompeu as re exões de Madina enquanto
entoava mecanicamente a sua autocrítica. Olhou nessa direção e viu
Maysem agarrada ao ventre, muito pálida e a contorcer-se de dores.
“Aghhh…”
O seu primeiro instinto foi ver o que ela tinha e o segundo, resultado do
condicionamento a que estava sujeita havia oito meses, foi o de car quieta e
calada, pois essa era a ordem em vigor no campo.
“Aiaiaiai!”
A hesitação durou apenas um curto instante. A companheira estava
dobrada sobre si mesma, com o rosto contraído num esgar de dor
insuportável, os gemidos já transformados em gritos cada vez mais altos,
pelo que não era opção deixá-la naquele estado.
“Silêncio!”
A ordem foi dada em chinês por uma das controladoras e ignorada por
Madina, que se baixou para perceber o que estava a acontecer
à companheira de infortúnio.
“Maysem, o que se passa?”
“Aaaai! Aaaaai!”
Outras companheiras debruçaram-se também sobre Maysem, gerando um
burburinho na cela.
“Silêncio!”
As reclusas que rodeavam Maysem ignoraram a nova ordem
da controladora e continuavam a tentar perceber o que estava a acontecer.
“Maysem, o que tens?”
“É… é a barriga. Dói… dói muito. Aiiii!”
“Silêncio, já disse!”
Madina constatou que havia sangue entre as pernas da companheira e,
alarmada, voltou-se para as controladoras.
“Ela está ferida.”
As controladoras pareceram car indecisas. Era normal haver pessoas
doentes na cela e as autoridades tendiam a ignorá-las, deixando-as sofrer até
que cruzassem um certo limite, mas aquele caso envolvia pelos vistos
ferimentos e, sobretudo, estava a gerar grande perturbação na cela, não
parecendo viável calar a reclusa.
“Aaaaaai! Aaaaaiiiii!”
O mecanismo da tranca na porta rodou e dois guardas entraram na cela
de máscaras na cara.
“Baotou!”
As prisioneiras não tiveram outro remédio que não fosse ajoelharem-se e
baixarem a cabeça.
Os guardas foram ter com Maysem e, con rmando o seu estado, pegaram
nela e levaram-na para fora da cela. A porta fechou-se e a cela voltou a car
trancada. As reclusas levantaram-se, trocando entre elas olhares carregados
de perguntas que não podiam ser verbalizadas. O que se passaria com a
companheira?
Todas as prisioneiras retomaram a autocrítica, voltadas para as paredes a
murmurar repetidamente os seus erros. A boca de Madina falava, mas a sua
mente permanecia nas duas raparigas que nessa noite haviam abandonado a
cela em circunstâncias diferentes, Tursunay levada pela sua beleza, Maysem
por se ter sentido mal. Voltaria a vê-las?
Espreitou pelo canto do olho algumas das companheiras; todas tinham o
mesmo olhar vazio e repetiam maquinal mas convictamente a mesma frase,
como uma roda em movimento perpétuo, completando o círculo para voltar
ao ponto de partida. Apesar de entoarem a autocrítica de uma forma
mecânica, estranhamente todas elas pareciam acreditar mesmo no que
diziam, tal a convicção que punham na sua ladainha. Seria isso sincero ou
estariam a ngir tanto quanto ela própria ngia? Impossível de dizer. Talvez
ela mesma soasse sincera quando as outras a ouviam, o que signi cava que
todas se enganavam umas às outras. Ou talvez à custa de tanto repetirem o
mesmo já acreditassem no que papagueavam e ela fosse a exceção. Quem
sabia?
Quando o período alocado à autocrítica se esgotou, todas se agarraram
aos blocos de notas e redigiram pela enésima vez as suas con ssões. Madina
não sabia se devia escrever sempre a mesma coisa ou coisas diferentes,
chegara a trocar às escondidas impressões sobre o assunto com Maysem, a
única com quem se atrevia a falar em sussurros, mas não chegaram a
nenhuma conclusão. Optou por fazer sempre a mesma con ssão, embora
procurando o mais possível usar palavras diferentes, mas a criatividade
tinha limites e havia já algum tempo que desistira de inventar novas formas
de contar a mesma coisa.
Ao m de tantos meses, o exercício não deixava de a surpreender.
Esperaria o Partido que de tanto repetir a mesma ideia por escrito ela
começaria mesmo a acreditar que havia sido um crime terrível não ter
denunciado o avô Qeyser por lhe ter ensinado coisas elementares da sua
cultura, como dar esmola aos pobres às sextas-feiras, jejuar durante o
Ramadão ou não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam a nós?
Claro que o avô Qeyser, sendo o imã da aldeia, lhe ensinara tudo isso por
razões religiosas, mas só quem não conhecia os uigures, ou mesmo a
natureza humana em geral, seria incapaz de compreender que as coisas
religiosas eram elas mesmas culturais e que tanta gente, incluindo ela
própria, as respeitava não por serem da sua religião, mas por serem da sua
cultura e tradição, por serem o que fazia dela o que era. Se os chineses
podiam fazer o culto da sua cultura, porque não podiam os uigures fazer o
mesmo em relação à sua? Não ensinava o mingchao chinês a honrar os mais
velhos? Se assim era, porque não podia ela honrar o seu avô e todos os que
da sua família sempre cultivaram a cultura do seu povo?
Quando a con ssão escrita terminou, todas se deitaram no chão de
cimento e adormeceram com as luzes uorescentes acesas, como sempre
acontecera desde que ali tinham sido enclausuradas. Ao m de oito meses,
Madina habituara-se nalmente às luzes perpetuamente acesas na cela e já
era capaz de adormecer depressa. Sonhou que o avô Qeyser estava preso
numa gaiola e ela tentava chegar a ele, mas quanto mais se aproximava mais
a gaiola se afastava e ela chorava e corria para ele e do interior da gaiola ele
gritava-lhe bao…
“… tou!”
A ordem irrompeu-lhe pelo sonho. Acordou. Ouviu o tilintar das
correntes e sentiu movimento à volta dela. Abriu os olhos e, estremunhada,
constatou que as suas companheiras se estavam a pôr de joelhos. Apercebeu-
se de relance de uma gura feminina a cambalear da porta e de um guarda
junto à entrada. Baotou, pensou, de repente alarmada e com medo de ser
punida pela demora em reagir. Pôs-se imediatamente de joelhos e de cabeça
para baixo, mas logo ouviu a porta fechar-se e trancar-se e compreendeu que
os guardas tinham saído.
Ergueu a cabeça e viu Tursunay vacilar diante dela e, como se os joelhos
dessem de si, cair no chão, os braços inertes, o olhar ausente, até car
estendida no piso de cimento, completamente imóvel; dir-se-ia morta, não
fosse o facto evidente de que continuava a respirar.
LII

Pela expressão que o coronel Poulson zera, era claro que jamais tinha
ouvido falar em Colossus. Em bom rigor, Kurt Weilmann não esperava que
o comandante da base aérea de Kadena estivesse familiarizado com o
projeto, pois as suas funções e responsabilidades eram outras e a existência
de Colossus constituía ainda um segredo.
“Como o senhor não ignora, coronel, em breve questões de
microssegundos vão fazer a diferença entre a vida e a morte durante uma
guerra”, disse o cientista. “É por isso que a DARPA está a investir na pesquisa
e desenvolvimento de novos sistemas de armas. Esses novos sistemas
envolvem alta tecnologia e requerem interfaces cada vez mais rápidas. Ora,
não existe interface biológica mais veloz do que o cérebro, como sabe.
Descobrimos que o ser humano processa imagens mais depressa através do
subconsciente do que quando está consciente delas.”
“Sim, e então?”
O cientista da DARPA considerou a melhor forma de explicar a questão ao
o cial da Força Aérea. O ideal, percebeu, seria usar referências que lhe
fossem familiares.
“A unidade de combate que o senhor coronel tem aqui em Kadena é a 18th
Wing da USAF, não é?”
“A rmativo”, con rmou o coronel Poulson. “Temos sobretudo as 44.ª e
67.ª Esquadrilhas de Combate, ambas equipadas com caças-bombardeiros F-
15C/D Eagle. Porque pergunta?”
“Imagine que um dos seus pilotos vai a patrulhar o mar do Sul da China e
aparece-lhe pela frente um míssil hipersónico chinês tão rápido que só uma
manobra imediata que implica submeter-se no cockpit a forças de 15G
permite a evasão. Acha que o piloto é capaz de executar essa manobra?”
O G era uma referência à força da gravidade, como o coronel Poulson bem
sabia. Se 1G é a gravidade normal, 2G é a duplicação da força da gravidade.
Uma pessoa que pesasse setenta quilos, com 2G passaria a pesar cento e
quarenta. Consequentemente, 15G signi cava a força da gravidade
multiplicada por quinze; ou seja, o peso do piloto multiplicado por quinze.
Mais de uma tonelada. Uma brutalidade.
“Está a falar de 15G?”
“Sim.”
O o cial abanou a cabeça.
“Negativo”, disse. “O máximo que o ser humano aguenta é 9G… mas
apenas por alguns segundos e desde que esteja com um fato especial de
compressão. A 15G, o piloto perderia de imediato a consciência, como é
evidente. Talvez casse com órgãos esmagados.”
“Agora imagine que o piloto é o Hector”, propôs Weilmann. “Ele está
deitado na sua cama no Walter Reed, mas com o pensamento é capaz de
tripular um F-15 Eagle por controlo remoto. Se o F-15 precisasse de fazer
uma manobra imediata que implicasse forças de 15G no cockpit para escapar
ao míssil hipersónico chinês, acha que ele perderia os sentidos?”
“Com o piloto, não no cockpit, mas no hospital a controlar remotamente o
caça com o pensamento?”
“Exato.”
O olhar do coronel Poulson desviou-se de novo para a imagem
do tetraplégico espanhol deitado na cama em Bethesda.
“É evidente que, se não estiver no cockpit, é irrelevante para o piloto
a força G a que o aparelho será submetido… desde que o aparelho aguente,
claro.”
“A capacidade de controlar uma máquina por pensamento, além de
permitir reações mais rápidas às ameaças, abre possibilidades militares
in nitas”, sublinhou o cientista da DARPA. “Um piloto que controle um caça
por controlo mental remoto, portanto sem estar no caça, pode fazer o que
quiser que nunca estará em perigo nem sofrerá qualquer consequência pelo
comportamento do aparelho. Pode efetuar as manobras mais violentas, pode
submeter o aparelho a forças de 20G ou 30G, o caça pode até ser destruído
que isso não afetará o piloto.”
Como homem da aviação militar, o comandante da base aérea não podia
aprovar uma tal coisa.
“Pois, mas estar a controlar um avião remotamente não é próprio de um
verdadeiro piloto de caça…”
Weilmann apontou para Hector, sempre no ecrã.
“É o futuro, coronel”, a rmou. “Goste ou não goste, é o que vem aí. Não só
o piloto pode controlar remotamente o avião por pensamento como as
imagens captadas pelas câmaras do avião podem ser enviadas diretamente
para o cérebro do piloto, o que lhe permite percecionar tudo o que o
aparelho perceciona, incluindo as informações captadas por câmaras
térmicas, de infravermelhos ou de qualquer outro tipo. Mais, se todos os
pilotos da esquadrilha tiverem o mesmo chip implantado no cérebro,
poderão comunicar todos uns com os outros por pensamento, escapando
assim à interceção áudio pelo inimigo.”
“Bem… imagino que uma possibilidade dessas não se aplique apenas a
pilotos.”
“Aplica-se a todos os militares de qualquer ramo, como é evidente.
Soldados em patrulha que tenham estes chips implantados na cabeça, por
exemplo, podem comunicar uns com os outros por pensamento. Imagine a
utilidade que uma coisa dessas tem numa emboscada. Um soldado observa
um blindado inimigo escondido por debaixo da folhagem e não precisa de
explicar nada ao camarada que tem uma arma antitanque. Basta-lhe passar a
informação por pensamento e o camarada da arma antitanque percebe logo
onde está o tanque e vai lá destruí-lo. Com implantes destes, os soldados
podem até aceder mentalmente a computadores, o que lhes permitirá
consultar mapas e imagens por satélite, obter instantaneamente qualquer
tipo de informação e controlar um vasto espectro de sistemas de armas.
Tudo à distância de um simples pensamento. Nós, na DARPA, acreditamos
que daqui a duas décadas todos os combatentes terão chips implantados no
cérebro e poderão comunicar uns com os outros recorrendo a este tipo de
telepatia tecnológica.”
“Acha mesmo, mister Weilmann, que todos os soldados do futuro
aceitarão fazer operações no cérebro para que lhes implantem chips na
massa cinzenta?”
A pergunta era pertinente.
“É de facto mais fácil convencer tetraplégicos a fazer estas operações do
que soldados que estejam saudáveis, como é evidente”, admitiu o cientista da
DARPA. “Isso acontece porque o implante de chips no cérebro é uma
solução invasiva e desagradável, mesmo quando os chips têm apenas a
espessura de um cabelo humano. É por isso que estamos a trabalhar cada
vez mais em soluções não invasivas. O Laboratório de Física Aplicada da
Universidade John Hopkins mostrou que um equipamento a xado à cabeça
humana pode perfeitamente captar os sinais neurais emitidos pelo cérebro, o
que permite fazer com que o soldado controle máquinas através do
pensamento sem recorrer a esse tipo de cirurgias intrusivas que, como é
natural, geram resistência por parte de soldados saudáveis. De resto, a
Neurable, uma start-up americana, desenvolveu um capacete com elétrodos
secos que, colados à cabeça, permitem detetar a atividade cerebral. Seja qual
for a solução adotada, o importante é perceber que soldados que combatam
com capacidade de comunicação telepática de origem biotecnológica vão
tornar-se quase imbatíveis.”
Era difícil desmentir esta a rmação, percebeu o coronel Poulson. Para
todos os efeitos, não era isso o essencial naquele momento. Havia que
redirecionar a conversa para o tema mais premente.
“Pois, está bem”, disse. “Mas qual é exatamente a sua ideia? Deixar o seu
mister González controlar um F-15 por pensamento e pô-lo a bombardear
Cuarteron Reef?”
O responsável da DARPA abanou a cabeça.
“A minha ideia é pô-lo a controlar o Colossus.”
Era já a segunda vez que Weilmann se referia àquela expressão,
evidentemente um nome de código.
“Ilumine-me, mister Weilmann. Quando fala de Colossus, está a falar de
quê?”
O cientista voltou-se de novo para o ecrã, interpelando mais uma vez o
espanhol que se encontrava no outro lado do planeta.
“Hector, tens treinado com o Colossus?”
“Todos os dias, señor Weilmann. Quer que o chame aqui ao meu quarto?”
“Se zeres o favor.”
O tetraplégico fechou o rosto, evidentemente a concentrar-se nas ordens
cerebrais, e volvidos alguns instantes um gigante metálico apareceu na
imagem. Tratava-se de um robô cor de prata com mais de dois metros de
altura, largo e compacto.
O coronel Poulson, juntamente com Tomás e Chang, permaneceu
especado a olhar para o ecrã, embasbacado com o que via. A estrutura em
aço que enchia a imagem parecia extraída diretamente de um lme de cção
cientí ca.
“Fuck!”, praguejou o comandante da base aérea. “É isto o Colossus?”
“Ele mesmo.”
O o cial coçou a cabeça, equacionando o que o ecrã mostrava e tudo o
que acabara de aprender sobre as pesquisas mais avançadas da DARPA em
matéria de biotecnologia.
“Em quanto tempo o consegue meter cá?”
“Aqui em Okinawa?” Weilmann abanou a cabeça. “Esqueça. Tratar da
papelada, tirá-lo do Walter Reed, transferi-lo para uma qualquer base aérea
nos Estados Unidos e enviá-lo aqui para Kadena… seriam precisos pelo
menos dois dias. Provavelmente mais.”
“Se assim é, este Colossus não nos serve para nada.”
O cientista da DARPA estreitou as pálpebras e baixou a voz, como quem
partilhava um segredo.
“Há outro Colossus disponível.”
“Outro?”
“O Japão é o país mais avançado do mundo na área da robótica. A Agência
Japonesa de Aquisição, Tecnologia e Logística tem uma destas máquinas nos
seus laboratórios.”
“E é possível o mister González estar em Bethesda e controlá-la aqui no
mar do Sul da China?”
“Claro que sim. A Universidade Duke, por exemplo, fez experiências de
transmissão tecnológica de pensamento envolvendo duas cobaias muito
distantes uma da outra, ambas com implantes na cabeça. Uma encontrava-se
nos Estados Unidos, a outra no Brasil. Constatou-se que os dois animais
comunicavam perfeitamente por pensamento entre eles, apesar da enorme
distância que os separava. Repare que este tipo de comunicação, por
envolver sinais elétricos, é feito à velocidade da luz.”
Faltava uma última informação.
“E… e o robô japonês encontra-se disponível?”
Weilmann sorriu, triunfal.
“Consigo pô-lo aqui em Kadena numa questão de horas.”
Como se o sol tivesse de repente inundado o gabinete, o olhar de todos
iluminou-se.
“A sério?”
O cientista da DARPA cruzou os braços e olhou para o coronel Poulson de
soslaio, com um semblante quase insolente, como se considerasse
demonstrado tudo o que previamente a rmara.
“Então?”, quis saber. “Vai ou não contactar Washington para obter
autorização para uma operação nestes moldes?”
Depois de lançar um olhar para Tomás e Chang, como se procurasse
con rmar com eles se mantinham de pé a sua intenção de avançarem para a
missão de resgate nas ilhas Spratly, con rmação que obteve com um aceno
de cabeça de ambos, o comandante da base aérea de Kadena encarou
Weilmann com uma expressão resoluta.
“Nem que eu tenha de ir à Casa Branca e espancar o presidente, mister
Weilmann.”
Sem perder tempo, o coronel Poulson pegou no telefone e fez a chamada
para o Pentágono. Ao ver o seu semblante determinado, ninguém naquele
gabinete teve a menor dúvida de que a autorização seria concedida.
A operação iria mesmo avançar.
LIII

A violenta indisposição de Maysem tinha sido o primeiro sinal.


A companheira regressara dois dias depois à cela 310, já recomposta. Após
uma troca de sussurros com ela, Madina percebera que a companheira de
cela tivera um problema não especi cado no ventre e que uma enfermeira
lhe resolvera o problema através de um qualquer procedimento na vagina.
Muito importante, e esse fora o segundo sinal, Maysem cara dispensada de
tomar o comprimido que todos os meses as restantes prisioneiras eram
obrigadas a engolir.
Esse incidente ocorrido meses antes, acompanhado pelo facto de que as
mulheres na cela 310 deixaram de repente de menstruar e que nas “aulas”
começaram a ser forçados a entoar palavras de ordem como “se tivermos
muitas crianças somos extremistas religiosos”, dera a Madina indicações
sobre a verdadeira natureza daquelas injeções e daqueles comprimidos. Não
se tratavam de vacinas para reforçar o sistema imunitário ou de complexos
vitamínicos para compensar as de ciências da alimentação, como o Partido
ordenara que fosse dito às prisioneiras. Pura dissimulação. O Partido estava-
se na verdade a marimbar para o sistema imunológico e as de ciências da
alimentação dos uigures fechados nos laogai, como Madina e todos os
prisioneiros naquele campo sabiam muito bem. Abanou a cabeça. Não. Não
se tratavam de vacinas nem de complexos vitamínicos. Tratavam-se de
contracetivos.
Mas, re etindo melhor no caso, mesmo isso não parecia explicar
completamente o que ali se passava. Se o Partido lhes dava contracetivos era
porque receava que elas engravidassem. Mas engravidariam como, se não
dispunham ali da menor oportunidade para tal? Ela própria trocava olhares
com Osman, mas olhares era mesmo tudo o que conseguia trocar com ele, e
sempre de fugida. A forma como o campo de concentração funcionava não
permitia que ninguém engravidasse. Seria possível que o Partido ignorasse
que ali as prisioneiras não se misturavam com os prisioneiros, a não ser nas
“aulas” e em encontros fugazes nos corredores? Seria crível que o Partido
não soubesse que os reclusos do laogai estavam a ser vigiados vinte e quatro
horas por dia através de milhares e milhares de câmaras de videovigilância
omnipresentes por toda a parte? Em que momento poderiam as reclusas
engravidar? Só se fosse quando eram violadas, como acontecia com a
desgraçada da Tursunay, que volta e meia era levada pelos guardas e se
tornara um zombie mais zombie do que os outros zombies que enchiam o
campo de concentração, e como sucedia com muitas outras uigures cuja
beleza mulher alguma invejava naquele campo. Tirando esses casos, quem
podia engravidar no laogai?
Não, concluiu Madina para os seus botões. Aquela injeção que todas
haviam levado e aquele comprimido que todas eram obrigadas a tomar
mensalmente não podiam mesmo ser simples contracetivos. Tinham de ser
algo mais do que isso. A verdade impôs-se-lhe de repente como uma
evidência. Claro! Que burra fora! Como não percebera logo? Estúpida,
estúpida, estúpida! O comprimido não era um contracetivo. Claro que não!
Era um veneno. Um veneno! A sua função não era impedir que num
determinado mês as prisioneiras concebessem, mas envenenar. Envenenar.
Ou, mais concretamente, esterilizar.
Só no momento em que chegou a esta conclusão é que Madina se deu
conta da enormidade do que estava a suceder e do verdadeiro objetivo dos
laogai que o Partido abrira em Xinjiang. Aqueles campos de concentração
não tinham sido criados pelo Partido para impedir o extremismo, o
terrorismo e o separatismo, como pretendia a propaganda o cial, pois não
fazia nenhum sentido acreditar que quase todos os uigures estavam à beira
de se tornarem radicais islâmicos que a todo o momento iriam desencadear
atentados por toda a parte. Não. Isso era o álibi. A verdadeira função dos
novos laogai, compreendeu com estupefação, mas sobretudo com horror, era
erradicar os uigures como comunidade. Uma coisa dessas fazia-se apagando
a sua cultura. E, sobretudo, impedindo a sua procriação. Ou seja, o que
estava dissimuladamente a decorrer naqueles campos de concentração era
na realidade uma subtil e invisível erradicação biológica por via da
esterilização de um povo. E o que era a nal a esterilização forçada se não
uma forma de extermínio físico?
Suspendeu a respiração quando lhe veio à mente essa terrível palavra
subjacente a todos os campos de concentração.
Extermínio.
Como pudera não ter logo visto isso? A verdade era tão enorme, tão
terrível e tão indizível que ninguém a conseguira ainda contemplar na sua
real amplitude. E, no entanto, ela a gurava-se-lhe nesse momento tão
evidente.
O Partido começara com a cultura. Não se podia falar uigure, não se
podiam usar as roupas tradicionais uigures, não se podiam respeitar as
tradições religiosas e culturais uigures, não podia haver casas tradicionais
uigures nem monumentos uigures, não se podiam respeitar os hábitos halal
da culinária uigure, não se podiam dar nomes uigures às crianças e os
adultos que tinham esses nomes fariam melhor em mudá-los para nomes
han, não se podiam consultar sites uigures ou que dessem informações sobre
o que estava a ser feito aos uigures. Em suma, tudo o que tivesse algo a ver
com a cultura uigure era proibido. Daí a “reeducação”, eufemismo para
extermínio cultural.
Por baixo dessa pátina de perseguição cultural, todavia, escondia-se uma
perseguição mais profunda, tremendamente perigosa, in nitamente
aterradora. As esterilizações forçadas. E dissimuladas. Toma lá uma
injeçãozinha para reforçar o teu sistema imunitário enfraquecido pelas
condições impróprias deste laogai onde te encerrámos sem que tivesses feito
realmente nada, engole agora este comprimidinho para compensar as
de ciências alimentares que neste campo de concentração
propositadamente te impomos… e de repente elas deixaram de menstruar.
Contracetivos? Não. Veneno.
A partir desse instante, Madina deixou de engolir o comprimido que
todos os meses lhe davam. Estava naquele campo de concentração havia
mais de um ano, tinham-se passado vários meses desde que os comprimidos
começaram a ser distribuídos mensalmente às prisioneiras, e a partir do
momento em que chegara à conclusão de que ela e as suas companheiras de
infortúnio estavam a ser esterilizadas deixara de engolir os comprimidos.
Todos os meses era levada com as outras prisioneiras para a clínica, a
enfermeira entregava-lhe o comprimido, ela metia-o na boca e engolia um
trago de água, inseria com a língua o comprimido no buraco oculto de um
dente estragado, a enfermeira vistoriava-lhe a boca e nada detetava de
anormal, Madina dava meia-volta e, de uma maneira sub-reptícia e à
primeira oportunidade, retirava o comprimido e deixava-o cair algures onde
não pudesse ser encontrado, frequentemente o ralo de um lavatório.
Ver as restantes companheiras de cela a engolir o comprimido todos os
meses, no entanto, tornou-se um tormento. Um problema de consciência.
Observava-as a olharem para o comprimido e a acreditarem que realmente
ele lhes compensava as de ciências vitamínicas, e depois surpreendia-as
com dores, o sangue a escorrer entre as pernas, as tosses cavernosas, sempre
adoentadas devido à falta de vitaminas e sem compreenderem como era isso
possível se o Partido, tão generoso e correto, tão bom e tão preocupado com
a saúde do “povo”, lhes oferecia mensalmente o reforço vitamínico. Nesses
momentos, o estômago apertava-se-lhe. Teria o direito de permanecer
calada e não as avisar para o que lhes estava realmente a ser feito?
Resistiu à tentação durante muito tempo, pois sabia que a única maneira
de se proteger num sistema em que o Partido premiava a delação era
manter-se calada, mas a a ição pelos tormentos que via em redor acabou
por levar a melhor. Aproveitando uma ocasião propícia, uma sessão de
autocrítica na cela em que todas se autorrecriminavam pelos seus “crimes”,
encostou-se a uma das companheiras mais afetadas pelos efeitos secundários
e, em vez da fórmula habitual “sou criminosa porque fui educada por um
imã com ideias incorretas”, murmurou uma nova ladainha que a vizinha não
podia deixar de escutar.
“O comprimido mensal é uma droga tóxica destinada a esterilizar as
mulheres. O comprimido mensal é uma droga tóxica destinada a esterilizar
as mulheres. O comprimido mensal é uma droga tóxica destinada a
esterilizar…”
Percebeu que a companheira entendera a mensagem porque ela se
engasgou quando Madina pronunciou a frase pela terceira vez. Repetiu dias
mais tarde o exercício com outra prisioneira, esta uma jovem cujo maior
sonho, segundo a ouvira sussurrar durante um ataque de choro, era um dia
ter lhos. A jovem cou tão chocada que chegou por momentos a suspender
a ladainha da sua autocrítica, o que quase provocou o pânico em Madina,
mas a rapariga, percebendo que não podia dar nas vistas, logo retomou a sua
fórmula, “sou criminosa porque recebi um telefonema da minha irmã que
vive no Cazaquistão”, e o incidente aparentemente acabou por passar
despercebido.
A reação da jovem, todavia, serviu para reforçar as cautelas de Madina.
Não podia continuar a correr aqueles riscos. Deixou, por isso, de avisar as
companheiras. De qualquer modo, consolou-se, a mensagem havia sido
passada. As duas que tinha avisado que passassem, por seu turno, a
mensagem às restantes.
Duas semanas depois, a meio de uma “aula” para analisar o último
discurso do Chefe sobre o “caminho correto” que teria de ser seguido por
cada chinês, dois guardas armados entraram de rompante na sala, dirigiram-
se a Madina e arrancaram-na do banco de plástico onde habitualmente
assistia às “lições”, arrastando-a para o corredor. A situação foi tão
inesperada e repentina que a prisioneira cou por momentos sem saber o
que pensar. Mas já tinha visto incidentes daqueles tantas vezes que depressa
entrou em pânico.
“Não!”, gritou, contorcendo-se. “Nãããão!”
Os guardas puseram-lhe um adesivo na boca e levaram-na pelos
corredores e pelas escadas, ignorando os seus gemidos guturais e os
movimentos desesperados que fazia para se libertar. Madina sabia
perfeitamente que nenhum protesto nem nenhuma tentativa de se libertar
iria resultar; tratava-se simplesmente de uma reação de pânico. Tantas vezes
havia visto o estado dos prisioneiros que eram subitamente levados pelos
guardas que tinha a total noção de que, acontecesse o que acontecesse, o que
lhe reservavam não podia ser coisa boa.
Deu consigo num quarto do tamanho da sua cela, talvez ligeiramente
maior. O quarto era escuro. Encostada a uma parede havia uma mesa com
uma série de instrumentos diferentes, desde facas e martelos a diversos tipos
de alicates, passando por tasers, serras e soqueiras metálicas. Ou seja, um
verdadeiro arsenal de instrumentos de tortura dignos das hordas de Genghis
Khan.
Madina contorcia-se desesperadamente, os olhos arregalados num esgar
de horror enquanto da boca amordaçada lhe saíam grunhidos de a ição.
“Hmmmpf… Hmmm!”
Quanto mais coisas via naquele quarto escuro, mais medo sentia. Numa
parede encontravam-se armas de estilo medieval, como espadas, lanças e
todo o tipo de objetos metálicos, uns aguçados e outros a ados, e do teto
caíam correntes com argolas, como as que se viam nos lmes de terror,
presumivelmente para pendurar pessoas. Diante dela alinhavam-se
diferentes tipos de cadeiras, todas com estruturas metálicas destinadas
a prender pernas, braços e pescoço; uma estava cheia de instrumentos
elétricos, outra tinha buracos nas costas e no assento, uma terceira
apresentava picos no assento que tornaria excessivamente doloroso o seu
uso. Nunca tinha visto coisas assim, mas soube instintivamente o que eram.
As cadeiras tigre.
Um homem vestido com farda negra, a cara tapada por uma máscara
igualmente negra, mandou os guardas sentá-la na cadeira com os buracos
nas costas e no assento. Depois de lhe prenderem as pernas e os braços ao
assento, o homem de negro aproximou-se dela e atou-lhe o pescoço às
costas da cadeira. A prisioneira descobriu que não se conseguia mexer.
Mesmo virar a cabeça di cultava-lhe a respiração. Com um gesto brusco, o
homem da farda negra arrancou-lhe o adesivo que a amordaçava.
Madina mostrava-se em pânico e desatou a implorar.
“Por favor, por favor, por favor…”
“Cala-te!”
Ela tremia descontroladamente e emudeceu de imediato; sentia-se tão
assustada que estava na disposição de fazer tudo o que ele lhe mandasse,
mesmo as coisas mais absurdas. Tudo menos os mil suplícios que aquelas
cadeiras e lâminas sugeriam.
“Sabes porque estás aqui, não sabes?”
Com o pescoço atado às costas da cadeira, Madina olhou para ele sempre
com uma expressão de pânico, ainda mais alarmada por não saber qual a
resposta certa à pergunta.
“Eu… arrependo-me imenso de… de ter sido educada por um imã”,
titubeou. “Juro que…”
O torcionário, pois era isso o que o homem de negro realmente era, calou-
a com uma bofetada ruidosa a que ela não se pôde esquivar por ter o
pescoço atado.
“Andas a espalhar rumores!”, vociferou ele. “Confessa!”
Rumores?, admirou-se a rapariga, a cara a arder e os olhos a encherem-se
de lágrimas por causa da bofetada. Que rumores?
“Não… não sei do que está a falar.”
Nova bofetada.
“Confessa!”
Madina sabia que tinha de dar uma resposta satisfatória e que se não o
zesse tudo aquilo iria acabar mal. Mas de que rumores estava ele a falar?
Reviu na mente as raras conversas que tivera nos últimos tempos com as
suas companheiras de cela e de imediato percebeu que o torcionário se
deveria estar a referir à informação que passara a duas delas sobre a relação
entre os comprimidos mensais e os problemas menstruais que todas estavam
a ter. Só podia ser isso.
Baixou a cabeça, como uma penitente.
“Sim, é verdade.”
“Ah-ha!”, exclamou o homem de negro num tom triunfal. “O que disseste
exatamente?”
“Que… que os comprimidos impedem a fertilidade.”
Aguardou uma nova bofetada, mas ela não veio; era sinal de que dera a
resposta certa.
“Quem te contou isso?”
A pergunta con rmava implicitamente a dedução. O torcionário não se
indignava por ser mentira que o comprimido esterilizasse as mulheres. O
que ele queria era determinar como e onde obtivera ela essa informação. O
que o Partido verdadeiramente temia não era a mentira, mas a verdade.
“Deduzi.”
Mais uma bofetada.
“Confessa!”
“É verdade, juro. Vi os efeitos que o comprimido tinha na menstruação de
todas nós e deduzi que…”
Outra bofetada.
“Fala a verdade!”
“Mas… mas… estou a falar a verdade!”
Depois de a tar com intensidade, como se a estivesse a ler, o torcionário
foi à mesa buscar um objeto e voltou para diante dela. Madina viu-o com
um pequeno alicate na mão e começou de novo a tremer
descontroladamente.
“Quem te contou isso?”
“Deduzi! Juro que foi isso o que aconteceu. Quando percebi que…”
Não teve tempo de terminar a explicação porque ele agarrou-lhe na mão
esquerda presa na cadeira, en ou o alicate na unha do dedo mindinho e
arrancou-a com um gesto brusco. Madina viu estrelas de dor e soltou um
grito rouco, como aqueles que ela própria ouvira tantas vezes da cela.
“Fala a verdade!”
“Por favor, por favor, por favor, por favor…”
“A verdade!”
“Por favor, por favor, por favor, por…”
En ou o alicate na unha do dedo seguinte e, com um movimento
semelhante, arrancou-a também.
Novo grito gutural. A dor era indescritível.
“A verdade!”
Madina percebeu nesse instante que, se não lhe dissesse o que ele queria
ouvir, ser-lhe-iam arrancadas todas as unhas daquela mão, depois as unhas
da outra e por m todas as unhas dos pés. E, se isso não funcionasse, usaria
um alicate maior para lhe cortar os dedos um a um. Os das mãos e depois os
dos pés.
Não aguentaria uma coisa dessas. De modo nenhum. Precisava de lhe dar
algo. Não a verdade, pois evidentemente aquele homem não acreditava que
fosse possível Madina ter deduzido por ela própria que os comprimidos
serviam para esterilizar as uigures, mas uma mentira em que ele pudesse
acreditar.
“Eu… eu vou dizer tudo.”
Mas ia dizer o quê exatamente? Que mentira podia ela contar na qual ele
acreditasse?
“Fala.”
Alguma coisa tinha de responder. E depressa.
“Ouvi… ouvi alguém falar nisso.”
“Quem?”
Aí estava o problema. Quem?
“Uh… um… um guarda.”
“Um guarda?”
“Sim, um… um guarda.”
O torcionário nem hesitou. Meteu o alicate na terceira unha e arrancou-a
brutalmente. A dor era tão grande que Madina deixou momentaneamente
de ver, a não ser luzinhas de dor; era como se alguém lhe tivesse espetado
um prego na ponta do dedo.
“Diz a verdade!”
Ela tinha de dizer alguma coisa de credível, caso contrário estava perdida.
“Foi… foi uma companheira da minha cela.”
“Quem?”
A mesma pergunta terrível. O homem de negro não queria respostas
evasivas nem denúncias gerais. Queria coisas concretas. Nomes. Para
escapar, percebeu Madina, teria de dar nomes. Não havia alternativa. Se
desejava sobreviver, tinha de tramar alguém. Essa era a lei do Partido em
circunstâncias daquelas.
“Uma… uma companheira da minha cela que se sentiu mal após termos
recebido a vacina”, balbuciou. “Foi ela que me contou. Não sei o nome. Ela
sentiu-se mal, saiu-lhe sangue entre as pernas e foi levada para a clínica.
Fizeram-lhe lá um procedimento qualquer e ela percebeu que tinha tudo a
ver com a vacina e… e os comprimidos. Contou-me tudo quando voltou à
cela.”
“Quem é ela?”
Se queria sair dali sem que lhe arrancassem as unhas e os dedos e pior
ainda, teria de dar uma resposta satisfatória e su cientemente especí ca. E
depressa.
“Como disse, não sei o nome. Mas é fácil apurar quem ela é. Veja em que
data as prision… uh… as estudantes da cela 310 foram vacinadas e… e…
en m, foi a rapariga que nessa noite se sentiu mal e foi levada para a clínica.”
Aquela foi a melhor forma que encontrou de ser especí ca sem nomear
explicitamente Maysem. A sua esperança era a de que não existissem
registos de quando elas tinham sido “vacinadas”, o que di cultaria a
identi cação da vítima.
O homem de negro manteve os olhos presos nela de uma forma que
Madina não conseguia ler. Teria ele acreditado ou não?
“O que achas desses comprimidos?”
A pergunta foi inesperada e ela pressentia que continha um teste. Ou se
calhar uma ratoeira. Qual a resposta correta? Concentrou-se. Tinha de
pensar como um quadro do Partido, considerou. Tinha de usar toda a sua
experiência de militante, recorrer a tudo o que aprendera no Partido, para
ser capaz de entender a pergunta e consequentemente lidar com ela. Só
assim poderia escapar.
“A luta pelo planeamento familiar é o caminho correto”, disse,
papagueando a doutrina do Partido. “Gerar lhos de uma forma
descontrolada é um ato contrarrevolucionário. Apoio o Partido com todas as
minhas forças na campanha Zero Nascimentos Ilegais. É absolutamente
fundamental aplicar as medidas de controlo de natalidade com efeitos de
longo prazo.”
O torcionário soergueu o sobrolho.
“Se apoias a campanha Zero Nascimentos Ilegais, por que razão espalhaste
o rumor?”
Madina engoliu em seco. Tinha sido apanhada em contradição.
“Foi… foi um erro. Sou culpada de pensamento burguês.”
“Mas apoias a campanha?”
“Com todas as minhas forças. Cometi um erro, mas já me corrigi. O
caminho do Partido é o correto.”
“Portanto, apoias incondicionalmente as medidas de controlo de
natalidade com efeitos de longo prazo…”
“Incondicionalmente.”
O homem de negro aproximou a cara da cara dela, como se quisesse ouvir
bem a resposta à pergunta seguinte.
“Ao ponto de te submeteres a essas medidas?”
Uma faísca de pânico lampejou no olhar de Madina. Onde queria ele
chegar com aquela pergunta? Logo que se questionou, soube a resposta. A
armadilha fora estendida. E ela caíra nela. Com horror, percebeu que não
havia modo de evitar a resposta que tinha forçosamente de dar.
“S… sim.”
Respondeu baixinho, quase apenas num sopro, mas o torcionário ouviu-a
bem. Mandou que a desprendessem da cadeira e, ignorando o sangue que
pingava das pontas dos dedos dela, arrastou-a para a clínica.
LIV

Com um pestanejar nervoso, Tomás Noronha espreitou a luz acesa no teto


diante da porta; ainda estava vermelha. Era talvez a vigésima vez que no
último minuto olhara para ali, tão nervoso e amedrontado se sentia.
Perscrutou o exterior pela janela circular do avião, tentando distinguir
formas, mas não era possível; fazia ainda escuro e a noite era opaca.
Respirou fundo, tentando controlar as batidas cardíacas. Sentia as pernas
fracas e o estômago doía-lhe. Tremia literalmente de medo.
Uma voz soou atrás de si.
“Equipa Ómega, cinco minutos.”
Era um elemento da USAF a anunciar-lhe o tempo que faltava para o
salto. Engoliu em seco. Já tinha passado por muito ao longo da sua
existência, zera muitas coisas loucas e correra perigo de vida em inúmeras
ocasiões, mas talvez nunca tivesse sentido tanto medo como naquele
momento.
À sua frente estava Charlie Chang. O homem da CIA virou a cabeça para
trás, tando-o por um instante, e sorriu. O sorriso transmitiu-lhe con ança.
Se Chang estava tão calmo, por que razão haveria ele de se enervar? O facto
de se tratar do seu primeiro salto era a explicação, claro. Lançar-se para o
abismo, e sobretudo um abismo escuro como aquela treva que via lá fora,
desa ava a sanidade.
“Quatro minutos.”
Tomás voltou a espreitar a luz vermelha e a respirar fundo. Precisava
mesmo de dominar os nervos. Atirar-se de uma grande altitude no meio
da noite talvez fosse das coisas mais assustadoras que uma pessoa poderia
fazer, mas se queria controlar o medo tinha de racionalizar e relativizar a
experiência que se aprestava a viver. Saltar de paraquedas era aterrador, sem
dúvida, mas não havia alternativa.
Concentrou-se na missão, e sobretudo na razão que o tinha levado àquele
lugar e àquele momento. Maria Flor. Estava ali porque tinha de a salvar. Não
era uma opção, mas um imperativo. Por mais louco que fosse atirar-se do
céu na noite escura, não havia alternativa. Encontrava-se ali pela sua mulher,
fá-lo-ia por ela. Estava decidido.
A convicção acalmou-lhe os nervos. Nada melhor do que concentrar-se
no essencial para dominar o medo. Saltar para o vazio ia contra todos os
instintos de sobrevivência do ser humano, mas fá-lo-ia por Maria Flor e isso
tornava tudo claro e simples na sua mente.
“Três minutos.”
A dor no estômago voltou. Três minutos para saltar. E se o paraquedas não
abrisse? Coisas dessas estavam sempre a acontecer, não era verdade? E se lhe
sucedesse a ele? Mesmo admitindo que o paraquedas abriria, como se
orientaria na escuridão por cima do mar do Sul da China? Conseguiria
mesmo pousar no local que tinham planeado? Mil coisas podiam correr
mal. Sentia uma vontade quase irreprimível de desistir, mas manteve-se no
seu lugar. O coração a bater descontroladamente, as pernas fracas, o corpo
sempre a tremer. Não haveria recuos. Acontecesse o que acontecesse,
saltaria. Depois se veria.
Chang voltou-se de novo para ele.
“Não se esqueça”, recomendou quase aos berros, para sobrepor a voz ao
rumor intenso dos motores do avião. “Salte logo a seguir a mim e imite os
meus movimentos. Plane na minha direção e abra o paraquedas quando eu
abrir o meu. Fique descansado, o exosqueleto vai ajudar e tudo irá correr
bem. Vemo-nos lá em baixo!”
O operacional da CIA fez o gesto de OK, o punho fechado com o polegar
para cima.
“Dois minutos.”
Outro homem da USAF abriu a porta e um ar gelado esbofeteou-os,
gerando uma ventania no interior do aparelho e envolvendo-os com um
barulho ensurdecedor. Chang ajeitou os óculos de visão noturna e Tomás fez
o mesmo. A seguir veri caram se os capacetes estavam bem presos à cabeça.
A luz no teto continuava vermelha. Olhando para o exterior, agora pela
porta aberta e já não pela janelinha redonda em forma de escotilha, o
português viu a luz do dia rasgar o horizonte e o negro do céu tornar-se
azul-petróleo. Quase suspirou de alívio; o Sol estava prestes a nascer e não
seria totalmente às escuras que fariam a descida.
“Um minuto.”
Um minuto, um minuto, um minuto. A ideia martelou-lhe a mente,
assustando-o e pressionando-o a desistir. Abanou a cabeça, como se
sacudisse a tentação. Não podia desistir, tinha de resistir. Ajeitou a gola que
lhe protegia o pescoço e apalpou a farda que lhe envolvia o corpo; com os
seus mecanismos hidráulicos, o exosqueleto militar da DARPA, que já tinha
usado anos antes na aventura do Imortal, duplicava-lhe a força dos braços e
das pernas e conferia-lhe alguma sensação de segurança. Isso confortou-o e
ajudou-o a acalmar-se. Fixou os olhos na lâmpada do teto, como se aquela
luz vermelha o hipnotizasse.
Verde.
Ato contínuo, os dois homens da USAF que estavam a dar apoio junto à
porta bateram nos ombros de Chang e de Tomás, sinalizando que era o
momento.
“Agora!”
Chang cruzou os braços à frente do corpo, inclinou a cabeça para trás e
atirou-se para o abismo negro. Horrorizado, Tomás ainda hesitou uma
fração de segundo antes de, no que lhe pareceu ser um ato de completa
insanidade, imitar o procedimento que lhe tinham explicado previamente.
Cruzou igualmente os braços diante do corpo, inclinou a cabeça para trás e,
dando um passo em frente, pisou o ar que não tinha chão, como se este de
repente lhe tivesse faltado, e despenhou-se naquele profundo e negro vazio.
LV

Uma vez nas instalações médicas do campo de concentração, o homem


fardado de negro falou com uma enfermeira han. Depois de receber as
instruções, a enfermeira deu a Madina um papel para assinar. A prisioneira
pegou nele com os seus dedos ensanguentados, leu-o e percebeu que se
tratava de uma autorização para um procedimento cirúrgico para efeitos de
planeamento familiar. Ainda pensou em recusar-se a assinar, mas o homem
que a torturara permanecia na clínica e olhava-a com atenção. Percebeu que
não tinha escapatória possível. Com a mão a tremer, pegou na caneta e
assinou a autorização.
Constatando que a farda azul-clara da prisioneira estava imunda, pois as
fardas dos reclusos só eram lavadas uma vez por mês, a enfermeira mandou-
a despir-se e tomar banho. A água no chuveiro da clínica era quente, em
contraste com a água do balneário onde uma vez por semana os reclusos
tomavam banho durante alguns segundos. Madina demorou-se por baixo do
chuveiro; não só queria aproveitar a água quente como se esforçava por
adiar ao máximo o momento em que seria submetida à cirurgia.
Mas tudo tinha limites e a enfermeira acabou por intervir e mandá-la sair
do banho, secar-se e deitar-se numa maca. Meteu-lhe uma máscara de
plástico sobre o nariz e a cara. A prisioneira sentiu o ligeiro sopro de um gás
e, instantes depois, foi como se alguém lhe tivesse desligado o botão da
consciência.
Pareceu que foi no segundo seguinte, mas haviam-se decerto passado
horas. Abriu os olhos devagar e sentiu uma dor na barriga. Gemeu baixinho,
lembrando-se do que acontecera. Ergueu a cabeça e constatou que se
encontrava num quarto mal iluminado e que ligaduras lhe apertavam o
ventre. Caiu em si. Tinha sido esterilizada. Chorou baixinho, fazendo o luto
por si e pelos lhos que nunca teria. O Partido havia-lhe matado as crianças
antes mesmo de as poder conceber. Tratava-se de algo terrível para uma
mulher uigure, em cuja cultura não havia nada mais importante do que
constituir família, e pior ainda para ela, que passara uma vida inteira a
fantasiar os lhos que um dia teria.
Sentiu-se prostrada, vazia, sem vontade para fazer o que quer que fosse,
sem motivação para continuar a lutar. Desde pequena que sonhava em ter
lhos, um sonho sempre adiado para servir o Partido. Pois o Partido acabara
de lhe roubar o sonho. Depois do que lhe tinha sido feito, para quê
prosseguir? Para quê?
Mas Madina tinha a natureza de uma guerreira e as guerreiras vão sempre
buscar forças quando parece que elas já não existem. Desistir seria dar a
vitória a quem lhe tinha violentado o futuro, e isso ela não consentiria. Fez
um esforço para se recompor. Evitando a todo o custo pensar no que
acabara de lhe acontecer, pois sabia que se o zesse se desmoronaria,
obrigou-se a combater a tristeza profunda em que caíra. Tinha de se distrair.
Para ocupar a mente, pôs-se a estudar o sítio onde se encontrava. Pareceu-
lhe tratar-se de um qualquer anexo de apoio à sala de cirurgia;
provavelmente o local onde punham temporariamente os pacientes depois
de uma intervenção. Havia várias macas em redor dela com pessoas
deitadas. Estavam inertes e Madina concluiu que não tinham ainda
despertado das suas cirurgias. Olhou com atenção para o prisioneiro que se
encontrava mais próximo e, surpreendida, constatou que se tratava de
Osman; o jovem uigure com quem trocava olhares furtivos nos corredores e
nas salas de “aula”. O seu “pretendente”. Que coincidência extraordinária
terem sido ambos operados no mesmo dia! Seria aquilo um “sinal”?
Ele fora a nal operado a quê? Examinou-o com maior atenção, em busca
de pistas. Constatou que o jovem tinha o peito desnudado e o que parecia
ser uma mancha escura do lado esquerdo. Intrigada, estudou melhor essa
mancha escura. Parecia… um buraco?! Abanou a cabeça, incrédula. Não
podia ser! Mas, vendo bem, era mesmo disso que se tratava. De um buraco.
Alarmada, observou a máquina ao lado dele e constatou que tinha escrita no
painel lateral a palavra “Transp” em caracteres latinos, com um monitor e
uma tampa em vidro no topo. Dentro dessa tampa envidraçada pulsava um
grande pedaço de carne. Pestanejou, mal acreditando no que os seus olhos
viam.
Um coração.
Assustada, girou a cabeça pelo anexo para ver quantas macas havia ali.
Mais três. Todas com jovens uigures deitados, todos eles inertes, todos eles
com buracos no peito desnudado. Ao lado de cada um estava uma máquina
com a palavra “Transp” impressa no painel lateral, corações a pulsarem
dentro das tampas de vidro no topo. O que se estava ali a passar? Madina
sabia que a China era o líder mundial na colheita de órgãos para transplante
e já tinha ouvido uma pessoa de con ança dizer que uma das principais
fontes desses órgãos eram os prisioneiros. Seria possível que…?
Ouviu vozes aproximarem-se e fechou os olhos, ngindo-se ainda
anestesiada.
“Olha lá”, disse uma das vozes ao entrar no anexo. “Não é melhor tirar
aquela fengjian? Daqui a um bocado a tipa acorda e…”
Alguém se riu em resposta.
“Ayah! Dá-lhe o fanico, é o mais certo!”
Momentos depois, sentiu a sua maca movimentar-se e percebeu que estava
a ser retirada do anexo. Quando a maca se imobilizou e as vozes se
afastaram, entreabriu dissimuladamente um olho e constatou que a tinham
levado para a enfermaria da clínica. Uma lágrima deslizou-lhe do canto do
olho esquerdo, triste e quente. Na verdade, nunca conhecera Osman;
limitara-se a trocar olhares com ele e apenas uma vez se falaram, para
sussurrarem os nomes um do outro. Mas era como se se tivesse tornado um
amigo. E estava agora morto. Mataram-no para fazerem dinheiro com o
coração dele.
Virou discretamente os olhos em redor, tentando perceber o espaço onde
se encontrava. Não sabia quanto tempo aí permaneceria, mas não tinha
dúvidas de que em breve estaria de regresso à cela 310. E nunca mais
trocaria olhares com Osman. Nem jamais poderia ter lhos.
LVI

Muitas palavras poderiam descrever o que foi o salto e a descida, primeiro


em queda livre, usando o vento para travar, para virar ou para acelerar,
depois com o paraquedas. Se tentasse expressar o que sentia, Tomás
Noronha formularia hipérboles atrás de hipérboles. Caía mas parecia que
não caía, voava embora sem verdadeiramente voar. Tudo tão rápido e ao
mesmo tempo tão lento, tudo tão louco, tão selvagem e tão livre, tão vivo e
tão inebriante. O que mais o surpreendeu, porém, não foi isso. Foi ter
deixado o medo no avião. A partir do momento em que caiu do aparelho, e
cair foi a primeira impressão que teve antes de se sentir a voar, o medo cou
para trás. Deixou de existir. Apenas sentiu que vivia.
Se aquelas sensações eram novas para o português, evidentemente não o
eram para Chang. Em vez de fruir da experiência, que para Tomás se
revelara extasiante, o operacional da CIA manteve-se atento à orientação
por GPS e conduziu a descida em função das necessidades táticas da
operação. O avião tinha-se posicionado a oeste das Spratly antes de largar os
dois passageiros, de modo a que estes descessem e alcançassem o seu
objetivo pelo ângulo da escuridão, o que os tornava praticamente invisíveis
às guarnições chinesas àquela hora madrugadora. Identi cando Cuarteron
Reef graças ao GPS e aos óculos de visão noturna, Charlie Chang foi
manobrando o corpo de modo a que se dirigissem para um ponto o mais
próximo possível da ilha arti cial, embora sem descer sobre ela. Tomás só
teve de lhe imitar os movimentos.
O impacto do português na água não foi tão violento quanto temia, o que
provavelmente se devia à relativa proteção conferida pelos exosqueletos da
DARPA que ambos traziam vestidos. A água revelou-se morna e agradável,
o que não era surpreendente considerando que se encontravam no mar do
Sul da China junto às Filipinas. Submerso pela força da queda, Tomás
bracejou para cima e emergiu à superfície. Recorrendo à força duplicada que
o exosqueleto lhe concedia, puxou o tecido molhado do paraquedas até o
conseguir juntar e embrulhar. A uns vinte metros de distância viu Chang
fazer a mesma coisa. Os paraquedas tinham de ser recolhidos para que, com
a alvorada, não fossem avistados pelas sentinelas chinesas.
Sempre bene ciando da força extra conferida pelos respetivos
exosqueletos, os dois nadaram calmamente em direção à ilha, privilegiando
o silêncio à velocidade. Para que a missão tivesse sucesso era imperativo que
só avançassem no momento certo e que, quando isso acontecesse,
apanhassem a guarnição completamente de surpresa. Portanto, não podiam
ser detetados. Daí que tivessem o máximo cuidado em aproximarem-se pelo
lado escuro da madrugada, em não deixarem vestígios visíveis da sua
presença e em se abeirarem lenta mas silenciosamente de Cuarteron Reef.
Após vinte minutos a nadarem com suavidade, chegaram à ilha pela parte
sul. Havia um banco de areia dourada junto às muralhas, decerto a estrutura
natural sobre a qual assentava toda aquela construção, e deslizaram por ele
até se encostarem à parte erguida por mão humana. A estrutura arti cial da
ilha tinha um formato retangular. O ponto mais evidente para posicionar
eventuais sentinelas eram os cantos do retângulo, razão pela qual
escolheram um espaço previamente identi cado por satélite onde poderiam
permanecer equidistantes em relação aos dois cantos mais próximos, assim
diminuindo as possibilidades de deteção.
Ficaram um minuto encostados à parte mais oculta da estrutura,
a descansar. Só quando recuperou o fôlego é que Tomás foi capaz de retirar a
pistola-metralhadora do saco impermeável que trouxera às costas e quebrar
o silêncio num murmúrio.
“Quando chega o Colossus?”
As comunicações com o exterior estavam em modo de silêncio, para não
correrem qualquer risco de interceção, mas o relógio no pulso de Chang ia
atualizando a informação recebida do centro de operações de Kadena, com
os dados de geolocalização do terceiro elemento da equipa. Bastou consultá-
lo.
“Trinta e dois minutos.”
A demora era compreensível. Devido ao peso e à sua composição
metálica, Colossus não pôde ser lançado de paraquedas. A opção foi colocá-
lo num HU-16B Albatross, um hidroavião da USAF, e fazê-lo amarar a
algumas milhas náuticas das Spratly. A manobra era essencial para que o
monstro de aço não fosse detetado pelos chineses. O hidroavião militar
descolaria logo a seguir, pois a sua presença prolongada atrairia
inevitavelmente atenções indesejáveis, e Colossus teria de fazer por baixo de
água o resto da viagem até Cuarteron Reef.
Agora que se imobilizara, Tomás tinha tempo para pensar. E pensar,
naquelas circunstâncias, era preocupar-se. A operação era uma verdadeira
loucura, pois tanta coisa podia correr mal.
“Acha mesmo que vamos conseguir?”
O operacional da CIA levou alguns segundos a responder.
“Não sei”, admitiu. “Confesso que me sentiria mais con ante se tivesse os
Navy Seals aqui connosco…”
Não era uma resposta muito animadora.
“Eu estou aqui pela minha mulher”, sussurrou o português, focando-se na
razão que justi cava os imensos riscos que aceitara correr. “E você, está a
colocar a sua vida em perigo em nome de quê? Da CIA?”
“Da China, já lhe disse.”
Tomás tou o seu companheiro.
“Deve odiar mesmo o regime chinês para se meter numa aventura destas,
hem?”
“Depois do que zeram à minha família, nem imagina.”
Falavam em voz baixa, mas mesmo assim o historiador esticou o pescoço
e espreitou os dois cantos mais próximos do retângulo arti cial de
Cuarteron Reef. A luz do sol-nascente já iluminava o dia, permitindo
analisar melhor o perímetro da estrutura. Se havia sentinelas naquelas
esquinas, não as lobrigava. Manifestamente os chineses não esperavam
visitas.
A constatação deixou-o mais tranquilo.
“Tenho-o ouvido falar da ameaça da China, ou do Partido Comunista
Chinês, como preferir. Ouvi também com atenção o que ontem disse o
coronel Poulson. É evidente que a China, ou o Partido, está a tentar crescer
para se colocar em condições de desa ar o domínio do Ocidente. Sendo
ocidental, isso inquieta-me, claro. Mas os ocidentais são também liberais e,
por isso, sou perfeitamente capaz de compreender a China e as suas
ambições. Por que razão há de ser sempre o Ocidente a dominar? Porque
não há de a China poder dominar também? Se o Ocidente domina e isso
não é nenhuma catástrofe para o mundo, a China dominar também não será
nenhum desastre. Haverá mudanças, claro, mas passaremos apenas de uma
pax ocidental para uma pax chinesa. Que mal há nisso? Se uns podem
dominar, porque não hão de outros ter o mesmo direito?”
Chang soergueu o sobrolho.
“Acha que é indiferente ser Roosevelt ou Hitler a mandarem no mundo?”
A comparação apanhou Tomás desprevenido.
“Que eu saiba, o Partido Comunista Chinês não é o Partido Nacional-
Socialista alemão.”
“Não tenha ilusões só porque a letra parece diferente”, devolveu o homem
da CIA. “A música de ambos é igual. Os nazis mataram quantas pessoas?”
“Oh, não vamos outra vez por aí.”
“Peço-lhe que seja indulgente para comigo, já que também aceitei correr
tantos riscos”, pediu. “Quantas pessoas os nazis mataram?”
Percebendo que devia a Chang o lançamento daquela operação, o
historiador condescendeu. Considerou a questão que lhe era colocada.
“Os cálculos variam, mas estamos a falar de qualquer coisa à volta dos
dezassete milhões de mortos.”
“Dezassete milhões de vítimas do nazismo, hem? Pois só o Partido
Comunista Chinês matou entre trinta e cinco e sessenta e cinco milhões de
pessoas, como já vimos. E os comunistas soviéticos, quantos mataram?”
“Mais de vinte milhões”, respondeu Tomás. “As estimativas dos
historiadores apontam para um total de quase cem milhões de pessoas
mortas pelos diversos regimes comunistas do século . Mas não se esqueça
de que os nazis só governaram um país durante doze anos, enquanto os
comunistas governaram muitos países durante décadas e décadas. Estamos a
comparar coisas diferentes.”
O olhar de Chang tornou-se penetrante.
“Estaremos? Deixe-me chamar-lhe a atenção para um conjunto de factos.
Logo que instituiu o comunismo na Rússia, Lenine impôs a ditadura e criou
uma polícia política, a Cheka, tendo perseguido, prendido ou executado
todos os opositores. Lenine proibiu as greves e os sindicatos livres, tendo
executado milhares de grevistas cujo crime foi fazerem paralisações em
protesto por falta de comida. O mesmo Lenine criou um vasto complexo de
campos concentracionários, os gulag, e ao longo do tempo o regime que ele
concebeu manteve aí presas milhões de pessoas a trabalhar à força sem
serem remuneradas. Ou seja, os comunistas reinstituíram a escravatura no
século . Reiteraram ainda o velho princípio obscurantista de que as
pessoas eram culpadas, não pelo que tinham feito, mas pelo que eram, o que
os levou a perseguir, aprisionar ou matar milhões de burgueses e
agricultores apenas culpados por serem burgueses e agricultores.
Perseguiram pessoas por razões da sua etnia, como ucranianos, cossacos,
polacos, tártaros, judeus, coreanos, ciganos, karatchais, curdos, kabardes,
balcares, khémides… a lista é interminável. Levaram a cabo matanças em
massa, incluindo ordens de execução de crianças a partir dos doze anos,
e instituíram um Estado policial que tudo reprimia e controlava.”
“Os nazis zeram o mesmo.”
Um brilho acendeu o olhar do homem da CIA, como se o seu interlocutor
tivesse inadvertidamente chegado onde ele queria que chegasse por si
próprio.
“Precisamente!”, exclamou. “Na essência, os comunistas zeram tudo o
que os nazis também zeram, com a agravante de o terem feito antes dos
nazis. Antes. Toda a gente fala em Estaline, mas esquece que tudo o que
Estaline fez, à exceção de matar outros comunistas, já Lenine o tinha feito
antes. Polícia política, censura, ditadura, liquidação de opositores,
perseguição por razões de etnia, culpa das pessoas pelo que eram e não pelo
que faziam, perseguição a sindicatos e grevistas, campos de concentração
pejados de inocentes, escravatura, execuções em massa… tudo isso começou
a ser feito por Lenine, não por Estaline. Este foi apenas o seguidor daquele.
Estou a dizer alguma mentira?”
Sendo historiador, Tomás nada podia desmentir.
“Os factos são os factos.”
“Admito que a retórica dos comunistas é diferente da dos nazis, mas há de
concordar comigo que uma ideologia se revela pelos seus atos, não pelas
suas palavras. Ora, o que os comunistas zeram na Rússia também zeram
noutros países, como bem sabe. Incluindo na minha China, como eu e a
minha família infelizmente bem conhecemos por experiência própria.
Polícia política, ditadura, censura, perseguição a sindicatos livres,
perseguição de opositores, proibição de greves, execuções em massa,
perseguição a pessoas por razões de etnia, o conceito de culpa coletiva e de
culpa por se ser de uma certa maneira e não por ter feito algo, campos de
concentração, escravatura… tudo isso o Partido fez na China e, atenção, de
certo modo continua a fazer.”
Tomás manteve-se calado enquanto o seu interlocutor falava, pois sabia
que tudo o que Chang dizia era matéria factual atestada por múltiplos
testemunhos e documentos. Só quando o silêncio se impôs é que voltou a
falar.
“É isso o que o preocupa?”
Chang aproximou a cabeça, como se zesse questão de não falhar a
resposta à sua pergunta.
“Não o preocupa a si?”
A pergunta foi formulada de forma tão penetrante que deixou o
historiador na defensiva.
“Sim, claro.”
“Então se está também preocupado, como pode considerar indiferente que
o mundo esteja em pax ocidental ou em pax do Partido? O Ocidente tem
imensos defeitos e é responsável por muitas coisas más, ninguém o ignora
ou esconde, mas o Ocidente e o Partido não são coisas iguais nem podem
ser equiparados.”
“Bem, há de concordar que a China de hoje é, apesar de tudo, bem
diferente do que era no tempo de Mao.”
A reação a esta observação veio com um profundo suspiro de impaciência.
“Desculpe, mas o senhor não aprendeu nada com a sua experiência dos
últimos dias?”, questionou o operacional da CIA num tom de censura. “Não
viu o Partido enviar agentes para raptar pessoas no estrangeiro? Não me
ouviu falar nesse cavalo de Troia neocolonialista que é a Nova Rota da Seda,
nem nos princípios que orientam o pensamento estratégico do Partido,
designadamente ‘usar o campo para cercar as cidades’, ‘redondo por fora,
quadrado por dentro’ e ‘esconder capacidades e ganhar tempo’? Não sabe
que o Partido instalou um sistema de vigilância por toda a China que
envergonharia o próprio Big Brother de Orwell? Que usa algoritmos para
conhecer as ideias políticas dos seus cidadãos? Que impede as pessoas de
trabalhar ou de apanhar um avião só porque criticaram o Partido? Que os
médicos que pela primeira vez revelaram a existência da COVID-19 foram
presos pelo crime de terem dito a verdade? Que manda pessoas para campos
de concentração pelo crime de terem WhatsApp no telemóvel ou por
receberem telefonemas do estrangeiro? Acha mesmo que o Partido é, na sua
essência, diferente do que era? Não é tão evidente que as mudanças são
super ciais, daí o ‘redondo por fora’, e que a sua natureza profunda se
mantém a mesma, daí o ‘quadrado por dentro’?”
“O mundo mudou, Chang…”
“E a tática do Partido acompanhou as mudanças do mundo, é verdade.
Mas não se iluda: a essência permanece a mesma. O Partido que matou
entre trinta e cinco e sessenta e cinco milhões de chineses é o mesmo. Não é
outro. É este Partido. Este. E os seus objetivos permanecem na sua essência
os mesmos. Estamos num confronto entre o Partido e os valores liberais
inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, como a liberdade
de expressão, de assembleia, de religião ou de crenças, a liberdade de não se
ser perseguido pelas ideias, o direito à privacidade e à igualdade perante a
lei, a independência dos tribunais, a delimitação de poderes, o equilíbrio de
poderes, tudo coisas que o Partido nega, por atos e até por palavras. O
Partido chegou a emitir um documento, o chamado Documento 9, onde
entre outras coisas condenou explicitamente a democracia constitucional e
os conceitos de sociedade civil, direitos humanos e liberdade de expressão.”
A natureza ditatorial e antiliberal do regime chinês era algo que Tomás
evidentemente conhecia. Não era a própria Constituição da República
Popular da China que estabelecia, logo num dos seus primeiros artigos, que
a China era uma “ditadura democrática”?
“Não há dúvidas de que o regime da China é ditatorial, tem campos de
concentração, provocou milhões e milhões de mortos e instituiu um Estado
de vigilância orwelliana para controlar a sua população”, reconheceu. “Mas,
admitindo como óbvio que o Partido Comunista Chinês é uma ameaça à
população do seu país, até que ponto é que se pode extrapolar a ameaça para
todo o planeta? Não acha que está a contribuir para que se propague o mito
xenófobo do perigo amarelo?”
“Isso do perigo amarelo é uma velha tática do Partido para intimidar os
críticos ocidentais e silenciá-los, uma tática que só funciona com quem está
desinformado sobre o que verdadeiramente se passa na China”, retorquiu
Chang. “Sabia que o Partido concebeu telemóveis de cinquenta euros para
poderem ser vendidos a países pobres em África e que, para facilitar a vida
aos respetivos utilizadores, desenvolveu um so ware especial que permite
tirar melhores sel es a pessoas com a pele escura? O que acha dessa ideia?”
Em bom rigor, a ideia parecia a Tomás muito meritória, mas não o disse,
pois já percebera que deveria haver ali um qualquer senão.
“Bem… uh… teria que conhecer melhor essa iniciativa.”
“Já vi que se tornou prudente quando vê o Partido com tanta
generosidade, e faz muito bem”, disse o operacional da CIA. “Os telemóveis
baratos para africanos não são nenhuma oferta generosa do Partido, tal
como não o é a ideia de desenvolver uma tecnologia para facilitar as sel es
dos africanos. O que se passa é que o Partido está a exportar a tecnologia de
vigilância orwelliana para Estados ditatoriais ou autocráticos em todo o
planeta. Mais de sessenta países compraram a tecnologia de vigilância do
Partido, incluindo a Rússia, a Venezuela, o Usbequistão, a Arábia Saudita, o
Laos, a Birmânia, o Zimbabué… tudo países com regimes repressivos, como
sabe. Os telemóveis baratos e as sel es mais fáceis destinam-se a garantir que
as próprias populações desses países, levadas ao engano por tanta
generosidade, colaborem ativamente na produção de imagens e de dados
que permitem aos respetivos regimes controlá-las melhor e assim impedir a
dissensão.”
“Está a insinuar que a China exporta controlo social para ditaduras de
todo o mundo?”
“Não estou a insinuar, estou a a rmar! Em Estados autoritários, os
telemóveis baratos e as sel es de melhor qualidade viabilizam mais meios de
vigilância e melhor identi cação de pessoas. Ou seja, mais e melhor Estado
orwelliano. O Partido chama-lhe ‘comunidade de destino comum’,
eufemismo para uma ordem internacional assente no modelo autoritário. O
Partido está até a vender um conceito chamado ‘soluções cidade segura’, uma
etiqueta bonita para sistemas de controlo político e social. As ‘soluções
cidade segura’ envolvem tecnologia de vigilância e alerta, sendo que mais de
setenta por cento dos países que a adquirem têm regimes que oprimem os
seus cidadãos. Por exemplo, a infraestrutura de ‘cidade segura’ de Lusaca foi
fornecida pela Huawei, cujos funcionários foram acusados de ajudar o
governo zambiano a vigiar os seus opositores políticos. Na Etiópia, o
controlo das telecomunicações com recurso a tecnologia do Partido é tão
grande que os funcionários das ONG acreditam terem de se autocensurar
nas conversas privadas para evitar serem detidos. Não tenha dúvidas,
o Partido não está apenas a exportar tecnologia, mas também a sua
ideologia de repressão da dissensão e de vigilância e controlo político das
populações. E note que o caso da sede da OUA, onde se descobriu que os
dados dos computadores eram enviados pela calada da noite para servidores
em Xangai, mostra-nos que os dados recolhidos pelas ditaduras terceiro-
mundistas que adquirem estas tecnologias de vigilância e controlo podem
acabar nas mãos do maior de todos os controladores, o próprio Partido,
alastrando assim a sua presença autoritária a todo o planeta.”
Tomás abanou a cabeça, recusando-se a acreditar.
“Isso é uma grande teoria da conspiração…”
“Desminta, por favor, um único dos factos que apresentei”, desa ou-o
Chang. “Desminta que o Partido instituiu o maior sistema do mundo de
censura, vigilância e controlo de populações, com violação massiva da
privacidade e dos direitos das pessoas. Desminta que o Partido emitiu
documentos a proibir a liberdade de expressão, a democracia constitucional
e os direitos humanos. Desminta que as pessoas estão a ser punidas por
criticarem o Partido ou que são presas por denunciarem problemas graves,
incluindo que existia um vírus novo a matar gente em Wuhan. Desminta
que o Partido ainda tem campos de concentração na China onde encerrou
entre um e três milhões de pessoas por razões étnicas. Desminta que a
tecnologia de censura e vigilância do Partido está a ser exportada para
regimes autocráticos em todo o mundo. Desminta, por favor, estes e tantos
outros factos de que lhe tenho falado desde que nos conhecemos, sendo que
apenas estou a apresentar a ponta do icebergue. Se, no entanto, não
conseguir desmentir nada disto, então não seja cobarde e tire as conclusões
que se impõem.”
As palavras de Chang eram duras, mas o historiador não via realmente
forma de desmentir os factos que ele apresentava. De resto, conhecia já
muitos deles, e os que não conhecia encaixavam em tudo o que sabia sobre o
regime da China.
“Não posso negar que os seus argumentos são poderosos.”
“São poderosos porque são verdadeiros. Não se esqueça de que tudo o que
um regime faz dentro das suas fronteiras fá-lo-á fora delas se tiver poder e
oportunidade para isso. A agência Reuters revelou que a companhia chinesa
Grupo BGI estava a vender testes pré-natais por todo o mundo e a usá-los
para recolher uma vasta quantidade de informação genética de milhões de
mulheres para usar na pesquisa de traços populacionais. O Grupo BGI tem
trabalhado com hospitais militares do Partido em projetos genéticos e
análise de fetos para melhorar a ‘qualidade da população’, justamente o
projeto eugénico dos nazis. Acontece que estas tecnologias têm até a
capacidade potencial de gerar soldados geneticamente melhorados.”
“O quê?”, alarmou-se Tomás. “Os chineses podem realizar o sonho nazi de
criar os Übermenschen?”
“O envolvimento dos militares do Partido no trabalho do Grupo BGI abre
essa possibilidade”, con rmou o americano. “Oiça, o maior perigo que
corremos é não querermos ver o que a evidência nos mostra: o Partido está
a instalar um sistema orwelliano pelo planeta e tem projetos expansionistas.
Se há coisa que a guerra na Ucrânia nos ensinou é que os regimes
autocráticos e ditatoriais não usam a riqueza em benefício dos seus
cidadãos, mas para alimentar as ambições imperiais dos seus líderes.
Durante anos, a evidência mostrava-nos o que Vladimir Putin realmente
era, mas recusámo-nos a ver essa evidência. Fomos desvalorizando, fomos
contemporizando, fomos arranjando desculpas. Fomos cegos porque não
quisemos ver a verdade. Não nos convinha. Foi preciso que a Rússia
invadisse a Ucrânia para que víssemos o que durante tanto tempo estava já
diante dos nossos olhos. Ou não foi assim?”
“Tem razão, tem razão.”
“Com o Partido é o mesmo. É certo que o Partido é mais subtil
e dissimulado, mas os factos estão aí para todos os vermos. Basta-nos somar
dois mais dois, tirar as conclusões e agir em conformidade. Se isso não for
feito, corremos todos um grande perigo. Da mesma maneira que tivemos de
enfrentar a Rússia na Ucrânia para impedir males maiores, teremos de
enfrentar o Partido em algum lugar antes que a situação que fora
de controlo. Se nada zermos, as autocracias e ditaduras vão cimentar a
convicção de que as democracias liberais são fracas, aburguesadas e
incapazes de se defenderem, estão divididas e encontram-se em decadência
acelerada. É essa convicção que torna as ditaduras sempre mais atrevidas e
quanto mais tarde forem travadas pior será, como se viu no caso da Ucrânia.
Hong Kong caiu como a Crimeia caiu, ambas abandonadas à sua sorte, mas
chegou a hora de enfrentar o Partido como enfrentámos a Rússia na Ucrânia
e…”
O relógio no pulso de Chang começou a vibrar, sinal de que estava
a chegar uma mensagem prioritária. O homem da CIA consultou o aparelho
e de imediato ergueu os olhos para o mar, perscrutando-o com súbita
atenção.
“Colossus chegou.”
Foi nesse instante que viram o gigante metálico emergir das águas.
LVII

A “professora da vida”, como era conhecida a tutora encarregada de


monitorizar os “progressos” dos prisioneiros, recebeu Madina com um
sorriso encorajador.
“Sabes há quanto tempo já aqui estás na escola?”
Plantada diante da secretária da senhora Gui-ying, Madina mantinha o
corpo muito hirto, em sentido, na postura militarista de disciplina
revolucionária tão do agrado do Partido.
“Infelizmente não tenho contabilizado o tempo”, respondeu. “É uma
felicidade imensa encontrar-me aqui a corrigir os meus erros e, graças à
sábia orientação do Partido, retomar o caminho correto.”
A “professora da vida” espreitou o dossiê aberto diante dela.
“Fará vinte meses na próxima semana”, indicou. “Ou seja, estás nesta
escola há quase dois anos.”
“Ah, o tempo voa tão depressa quando se está a aprender…”
Num recanto escondido da sua consciência, Madina sentia-se estarrecida.
Estava havia quase dois anos naquele campo de concentração? Como era
possível? Juntando esses vinte meses no laogai ao meio ano que passara na
prisão, eram quase dois anos e meio naquilo! E tudo porquê? Porque fora
educada pelo avô Qeyser e porque vivera em casa do primo Erbakyt!
“Ao longo destes vinte meses, meditaste bem sobre os motivos que
levaram o Partido a mandar-te para aqui?”
“Havia graves falhas na minha educação revolucionária”, respondeu
Madina com convicção fervorosa. “Apesar do meu empenho e dedicação à
causa do Partido, essas falhas na minha educação impediam-me de
progredir no caminho correto. A prova é que não alertei o Partido para a
ação separatista, extremista e terrorista do imã da minha aldeia, assim
negligenciando gravemente os meus deveres patrióticos. Estava demasiado
centrada na minha individualidade. Felizmente que o Partido se apercebeu
de tudo isso e agiu prontamente, enviando-me aqui para a escola para me
puri car das ideias incorretas.”
“Lamentas os teus erros?”
“Lamento profundamente. Cometi erros graves e estou eternamente
agradecida ao Partido por me ter ajudado a aperceber-me disso e a corrigir-
me. O Partido deu-me tudo. É o meu pai e a minha mãe num só. O Partido é
o Sol, é a Lua, é a montanha. O Partido é o meu céu e apenas a Ele seguirei.”
“Achas que já estás pronta para sair?”
A pergunta era um teste, sabia Madina.
“Talvez precise ainda de mais outros vinte meses”, disse sem hesitar. “No
mínimo. O importante é a puri cação ideológica, a educação revolucionária,
o amor à pátria e ao Partido, a obediência ao Chefe e a uni cação das
mentes. Onde melhor posso aprofundar o caminho correto se não aqui, sob
a orientação rme e justa do Partido? A minha vontade é aprender, aprender
sempre mais, e não existe melhor sítio para aprender do que na escola.”
A resposta pareceu deixar a senhora Gui-ying impressionada. Quando se
perguntava a um “estudante” se achava que já estava pronto para sair, a
resposta era invariavelmente a rmativa. Aquela era a primeira situação em
que a tutora se deparava com uma “estudante” que desejava ardentemente
prosseguir os seus “estudos”. Baixou os olhos para a pasta aberta diante dela
e folheou os documentos.
“Sabes, estive a reler as tuas con ssões e os relatórios mensais sobre ti”,
disse. “Torna-se claro que no início sentias relutância em aqui estar. Nem
sequer compreendias por que razão o Partido te enviara para reeducação.
Mas devo admitir que, olhando para os teus textos e para os relatórios, nota-
se uma evolução positiva. Deixaste de negar que havia motivos
fundamentados para estares aqui e passaste a reconhecer a justeza da
decisão. Isso foi o passo mais importante. E agora… e agora pretendes
prosseguir os teus estudos neste centro.”
“Seria a minha maior alegria.”
A “professora da vida” passou distraidamente os dedos pelos seus cabelos
lisos enquanto ponderava o caso. Voltou a tá-la.
“Como posso ter a certeza de que não me estás a tentar ludibriar?”
Madina arregalou os olhos; dir-se-ia chocada com a sugestão.
“Ludibriar?”
“Sim, ludibriar. O que por aqui mais existem são estudantes que dizem o
que acham que nós queremos ouvir para se tentarem safar. Como sei que
não estás a fazer a mesma coisa?”
A expressão da estudante era de choque, como se nunca tivesse sido tão
ofendida na vida.
“Eu… eu denunciei o primo do meu pai!”, disse, enrubescendo.
“Eu denunciei o meu próprio avô! Quem é capaz de fazer uma coisa dessas
se não por amor ao Partido?”
“Ora ora”, desvalorizou a senhora Gui-ying. “Denunciaste depois de seres
apanhada em erro. Tantos há por aí que fazem coisas dessas, e ainda piores,
por amor à pele…”
“E dão o seu corpo ao Partido?”
A referência não foi entendida pela tutora.
“O corpo?”
Madina pôs a mão sobre o ventre.
“Sim, o corpo!”, exclamou com vigor. “O Partido acredita no princípio de
Zero Nascimentos Ilegais, e o que z eu? Apesar de não ter lhos, submeti-
me voluntariamente a uma esterilização só para dar o exemplo de delidade
ao Partido. Se duvida e acha que a esterilização foi forçada, leia o documento
assinado por mim a dar o consentimento para a operação. Leia! Quantas
pessoas zeram o mesmo? Hã? Quantos militantes deram o seu próprio
corpo ao Partido? Houve alguém que tenha dado maior prova de amor ao
Partido do que esta?”
O argumento produziu o seu efeito junto da senhora Gui-ying. De facto,
havia muitos casos de militantes esterilizadas depois de terem um ou dois
lhos. Mas esterilizações sem lhos eram situações raras. Também havia
muitos casos de esterilizações de mulheres que não tinham lhos, mas
tratavam-se em geral de esterilizações forçadas, feitas sem o consentimento
delas. Ora, a “estudante” diante dela não só zera a esterilização sem que
tivesse tido lhos como ainda por cima consentira por escrito.
Isso constituía prova.
Depois de uma última hesitação, que procurou vencer folheando
novamente os documentos inseridos na pasta, a “professora da vida” tomou
uma decisão. Fixou a sua interlocutora nos olhos, atenta à reação dela às
suas palavras seguintes de modo a certi car-se de que não estava a ser
enganada.
“Muito bem, vou então assinar o teu certi cado de aproveitamento do
curso.”
Madina não percebeu.
“O meu certi cado de aproveitamento? Isso signi ca o quê exatamente?”
“Signi ca que vais sair da escola.”
Depois de uma curta pausa, como se tentasse assimilar o que acabara de
ouvir, a “estudante” revirou os olhos e esboçou uma expressão de profunda
contrariedade.
“Oh, não!”
“Porquê? Não queres?”
Madina fez uma careta de indecisão.
“Quer dizer… sim, por um lado, sim. Quero, claro. Quem não quer sair?
Mas por outro… bem vê, estou a adorar a aprendizagem. Os métodos são
duros, é verdade, mas só se aprende com disciplina, não é? E a matéria… ah,
a matéria é apaixonante. Apaixonante. Considero fundamental formar a
minha pessoa como uma verdadeira chinesa e assim trilhar o caminho
correto. Isso só é possível se for guiada pela mão rme e protetora do
Partido.”
En m convencida, a senhora Gui-ying fechou a pasta diante dela com um
gesto determinado.
“Nada te impede de o fazeres”, disse. “Vais sair da tua cela e deste edifício,
mas irás permanecer no centro de formação e educação vocacional para
dares o teu contributo ao Partido e à pátria. Desse modo poderás prosseguir
a tua educação.”
O anúncio deixou Madina confusa.
“Vou permanecer no centro de formação e educação vocacional? Qual
centro?”
“Este, onde estamos.”
“Ah.”
Era então assim que chamavam ao campo de concentração, percebeu
Madina. A palavra laogai, campo de reeducação, saíra pelos vistos de moda.
Agora os campos eram designados “centros de formação e educação
vocacional”. Soava mais inofensivo, sem dúvida. A tática dos eufemismos,
tão ao gosto do Partido, era realmente e caz na manipulação da perceção.
Palavras bonitas para legitimar realidades feias.
“O Partido precisa de ti para dares o exemplo.Vais car no centro para
completar a tua formação.”
A “estudante” fechou o rosto e endireitou o corpo, como um soldado em
parada.
“Agradeço ao Partido!”
A tutora levantou-se e pegou nuns documentos. Meteu-os debaixo do
braço e dirigiu-se à porta do gabinete para sair.
“Vem comigo.”
Acompanhadas por um guarda, as duas mulheres percorreram os
corredores do edifício onde Madina passara os últimos vinte meses e, de
repente, e sem que a prisioneira percebesse como, cruzaram uma porta e
uma luz intensa quase a cegou.
Tinham saído para o exterior. A uigure pestanejou e estacou, ofuscada por
aquela luz. O sol. Tratava-se da primeira vez em quase dois anos que via a
luz do dia e não apenas a dos tubos uorescentes que iluminavam todas as
divisões do edifício, incluindo a cela 310. Levou alguns segundos a habituar-
se, o que aliás só foi possível porque pôs a palma da mão na testa, como uma
pala, de modo a proteger os olhos. Perscrutou o céu e viu um bando de
pássaros a sobrevoar o campo de concentração. Como gostaria de ser como
eles, levantar voo e ir para onde lhe desse na real gana!
“Então?”
O protesto fê-la perceber que os dois chineses han estavam à sua espera.
Recomeçou a andar.
“Peço desculpa.”
As duas mulheres e o guarda atravessaram um pátio em direção a uma
gigantesca estrutura em aço que mais se assemelhava a um hangar; parecia
de construção recente e estava situada centenas de metros adiante, embora
ainda dentro do perímetro do laogai. Madina lançou um olhar inquisitivo na
direção da senhora Gui-ying, que em resposta lhe devolveu um sorriso
orgulhoso.
“É a fábrica.”
A “estudante” estranhou a resposta. Fábrica? O que queria a tutora dizer
com isso? Havia fábricas no campo de concentração?
A primeira coisa que notou ao aproximar-se da entrada foi o som
mecânico de máquinas a laborarem. Logo que passou pela porta deparou-se
com seis las enormes de máquinas de costura em ação e uma legião de
uigures a formigar em torno delas; a maior parte eram mulheres, mas havia
também muitos homens. As las de máquinas eram de tal modo grandes
que cou especada a olhar para elas.
Passado o choque inicial, contou as máquinas de costura; eram cinquenta
numa única la. Como havia seis las de dimensão semelhante, isso
signi cava trezentas máquinas de costura e centenas e centenas de pessoas a
laborar nelas.
“São… são ‘estudantes’?”
A tutora tinha a expressão de orgulho sempre estampada no rosto.
“Todos eles”, assentiu. “Como passaram nos testes de língua chinesa e de
pensamento ideológico, e como estão puri cados dos males do extremismo,
do terrorismo e do separatismo e se encontram no caminho correto, foram
autorizados a passar a esta nova fase da sua reintegração. O Partido deu
subsídios para que se instalassem fábricas junto dos nossos centros de
formação e educação vocacional de modo a aproveitar os graduados como
mão de obra.”
“É para aqui que vou agora?”
“Claro. Não gostas?”
Madina olhou com ar aparentemente entusiasmado para o exército de
máquinas de costura e de “graduados” do campo de concentração.
“Isso nem se pergunta!”, exclamou. “Estou mortinha por começar a
trabalhar!”
“Excelente, excelente.”
“E… e quanto vou ganhar?”
A senhora Gui-ying alçou um sobrolho, como se a pergunta fosse
impertinente.
“Isto faz parte da tua reabilitação”, ripostou num tom subitamente severo,
erguendo o dedo no ar como quem dava uma lição de moral. “É um serviço
que o Partido presta para ajudar os estudantes que completaram os seus
estudos a regressarem à vida em sociedade. Caso contrário, teriam de
prosseguir esses estudos no centro de formação e educação vocacional,
como o zeram até aqui.”
“Com certeza, com certeza”, anuiu Madina com fervor militante, tentando
recuperar do seu passo em falso. Para desviar a conversa, contemplou o
labor em curso na fábrica. “Ah, nem imagina como estou tão grata ao
Partido por me guiar para o caminho correto e permitir que contribua com
a força do meu trabalho para o engrandecimento da nossa grande pátria
chinesa…”
Portanto, recapitulou ela enquanto sorria impante de entusiasmo e
felicidade, se não aceitasse trabalhar ali teria de regressar à sua cela no
“centro de formação e educação vocacional”, o eufemismo usado pelo
Partido para os campos de concentração. Ou seja, tratava-se de trabalho
forçado. E não iria auferir nenhum salário porque esse trabalho faria parte
da sua “reabilitação”. Isto é, o que estava ali a decorrer era trabalho não
remunerado. Ora, o que era o trabalho forçado não remunerado se
não outra forma de dizer escravatura? Escravatura. Portanto, eis que o
Partido praticava escravatura, embora com o cuidado natural de não lhe dar
esse nome, claro. O avô Qeyser já lhe tinha contado histórias sobre
a existência de escravos nos laogai dos tempos da sua juventude, e ali estava
ela, a neta, prestes a ser transformada em escrava em pleno século .
“As nossas fábricas aproveitam a indústria de algodão de Xinjiang e a mão
de obra dos nossos graduados para produzir roupas para as grandes marcas”,
disse a tutora. “Os produtos aqui fabricados estão a abastecer as melhores
lojas de todo o mundo! Ayah! Que orgulho, hem?”
“Sem dúvida!”, exaltou Madina. “Uma maravilha!”
Os consumidores do Ocidente é que deviam esfregar as mãos de contentes
por comprarem produtos fabricados por escravos, pensou ela. Como a mão
de obra naquelas fábricas não era remunerada, os preços desses produtos
made in China seriam inevitavelmente irrisórios.
“Vamos”, ordenou a senhora Gui-ying, pegando-lhe pelo braço. “Temos de
efetivar a tua transferência para a fábrica.”
A tutora do campo de concentração apresentou-a a uma chinesa han que
desempenhava as funções de “professora da vida” da fábrica. Ou seja, era ela
a encarregada nomeada pelo Partido para gerir os escravos que ali
laboravam. Madina assinou uma declaração a a rmar-se “voluntária” para
aquele trabalho e a senhora Gui-ying assinou a guia de transferência do
edifício central para a fábrica. Concluído o processo, abalou dali com o
guarda.
A tutora da fábrica deixou a “estudante graduada” com uma outra
“graduada” uigure, esta de meia-idade. Tratava-se de uma escrava que lhe
ensinou a coser uma peça de roupa. Madina nunca tinha mexido em
máquinas de costura, pois não as havia na sua aldeia junto ao rio Tekes e
quando fora viver para as grandes cidades, como Ürümqi e Karamay,
desembaraçara-se sempre com agulha, dedal e linha, pelo que a sua
aprendizagem foi mais difícil do que à primeira vista poderia supor. Manejar
as máquinas não era a nal tão simples como parecia, sobretudo porque as
agulhas automáticas faziam movimentos muito rápidos, dir-se-iam
verdadeiras metralhadoras.
Madina cou sobretudo apreensiva devido a um acidente que a meio da
sua formação ocorreu na máquina vizinha, quando um outro “estudante
graduado” uigure, neste caso um homem igualmente desajeitado no manejo
daquelas máquinas, quase perdeu o dedo por o ter colocado no lado errado
da agulha mecânica.
“Chiça!”, murmurou ao ver a mão ensanguentada desse escravo. “Isto é
mais perigoso do que parece…”
Quando essa primeira jornada de trabalho acabou, já noite cerrada, os
“graduados” foram encaminhados para a cantina, onde o jantar, embora
pobre, se revelou melhor do que aquele a que Madina estava habituada nos
últimos vinte meses. No nal da refeição, as “professoras da vida” da fábrica
encaminharam os escravos para um salão onde, sob a batuta de uma espécie
de animadora, todos cantaram em coro uma sucessão de canções
comunistas, incluindo as inevitáveis O Oriente É Vermelho e Sem o Partido
Comunista Não Haveria Nova China.
No nal foi exibida em tamanho gigante na parede a imagem do Chefe, a
gura sorridente e carregada de bonomia que as olhava com uma expressão
paternalista, e os “graduados” de imediato lhe endereçaram os seus mais
profundos agradecimentos.
“Xiexie Lingxiu dada!”, entoaram os escravos em revoadas entusiásticas.
“Obrigado, tio Chefe!”
Nessa noite, a senhora Gui-ying dera-se ao trabalho de comparecer no
salão da fábrica para se certi car de que a ex-pupila se estava a integrar
adequadamente na nova fase da sua reabilitação. Ficou sem dúvida agradada
com o que viu, se não mesmo enternecida, pois entre todos os uigures que
ali se concentravam, cada um deles puri cado pelo Partido das ideias
malé cas do extremismo, do separatismo e do terrorismo, nenhum se
mostrava mais fervoroso no reconhecimento da sua dívida para com o
Chefe do que Madina.
Ah, não havia dúvida!, constatou a senhora Gui-ying com satisfação. A
“estudante” reencontrara mesmo o caminho correto. A sua reabilitação tinha
sido um sucesso! A prova, para quem tivesse dúvidas, é que até lágrimas lhe
brotavam dos olhos, tão reconhecida estava ao Lingxiu por tê-la resgatado
da perdição.
LVIII

A visão de Colossus a ascender das águas do mar do Sul da China e a


escalar a estrutura arti cial de Cuarteron Reef inspirava respeito. Ver aquele
gigante de aço avançar destemidamente para a ilha arti cial chinesa era algo
que não podia deixar de produzir um forte impacto em Tomás Noronha. A
Equipa Ómega era constituída por apenas três elementos, mas não havia
dúvida de que um deles, aquele monstro metálico, valia por dez. Ou mais.
Ouviram-se nesse instante os primeiros gritos à distância e o português
destrinçou ordens dadas em mandarim. A guarnição da ilha, pelos vistos,
detetara a presença do intruso e despertava da sua letargia matinal,
preparando-se para o enfrentar. Ouviram-se tiros, primeiro um e outro
isoladamente, depois o tiroteio tornou-se cada vez mais cerrado até as
rajadas se sucederem quase ininterruptamente.
Uma voz estralejou nos auscultadores dos capacetes de Tomás e de Chang.
“Equipa Ómega, stand by.”
Era a voz de Hector, que de Bethesda comandava remotamente Colossus,
a quebrar o silêncio das comunicações; por razões políticas, para manter
formalmente os Estados Unidos fora da operação, cara acertado que
apenas ele comunicaria com os homens no terreno, o que acabara de fazer,
pois, uma vez a presença dos intrusos detetada na ilha, o silêncio das
comunicações deixara de ser um imperativo.
Sem perder tempo, Chang armou a sua GAU-5A ASDW, a pequena
pistola-metralhadora regulamentar para os tripulantes da USAF, e escalou o
muro da estrutura.
“Prepare-se.”
Tomás imitou o operacional da CIA e, também armado com o mesmo tipo
de pistola-metralhadora, subiu o muro e espreitou para o interior da ilha.
Colossus avançava em campo aberto pela direita, atraindo fogo cerrado de
vários sítios e sempre a devolver disparos com duas metralhadoras pesadas
M2A2, ambas em cada mão e cada uma municiada por longas correntes de
munições.
Havia um edifício no meio da ilha e duas torres plantadas em pontos
diferentes. O tiroteio era intenso e as sucessivas labaredas que cuspiam das
janelas do edifício e das torres, evidentemente libertadas pelos canos das
armas, denunciavam as posições dos elementos da guarnição chinesa.
Quando Colossus chegou ao outro lado da ilha, movimento tático
previamente concebido no planeamento da operação, a voz de Hector voltou
a soar nos auscultadores.
“Equipa Ómega, go!”
Sem hesitar, Chang saltou para a estrutura arti cial e desatou a correr para
o lado esquerdo, a velocidade duplicada pela estrutura hidráulica do
exosqueleto da DARPA.
“Vamos!”
LIX

A manifesta falta de jeito de Madina em manejar as máquinas de costura


levou as “professoras da vida” da fábrica instalada no campo de
concentração a transferi-la para o setor do empacotamento. Havia já seis
meses que a rapariga se encontrava na chamada “nova fase da reintegração”
para o “regresso à vida em sociedade”, como o Partido gostava de chamar ao
envio para o trabalho forçado e não remunerado nas fábricas dos
prisioneiros considerados ideologicamente reabilitados nos campos de
concentração.
Era verdade que a vida na fábrica, apesar de o respetivo edifício se
encontrar no interior do perímetro do campo, era muito melhor do que
aquela que ela levara na cela 310 durante quase dois anos. Nas novas
instalações, que constituíam uma espécie de limbo entre a não vida nas celas
e a vida no mundo exterior, dormia num dormitório e não numa cela;
estendia-se numa esteira e não sobre o chão de cimento; aquecia-se com um
cobertor e não encaixada nos corpos das companheiras de infortúnio; o
dormitório estava cheio de outras escravas, mas não cheirava a excrementos;
não havia balde, embora a retrete fosse imunda; não andava com correntes
nos tornozelos nem algemas nos pulsos, mas não podia abandonar o espaço;
não era obrigada ao silêncio permanente, mas não podia fazer barulho.
Além disso, não tinha de se sujeitar à constante luz arti cial das lâmpadas
uorescentes, comia melhor e não estava permanentemente sujeita a
punições. Um luxo, pois.
É certo que as câmaras de videovigilância eram igualmente omnipresentes
na fábrica e nos dormitórios, até as havia sobre as retretes e os chuveiros, e
existiam guardas armados por toda a parte. Além disso, a violência
continuava a ser uma possibilidade muito real. Mas não era esse a nal o
risco que corria qualquer pessoa na sua vida quotidiana em Xinjiang?
Não havia dúvidas, a vida na fábrica era in nitamente melhor do que lá
“dentro”, na cela e nas salas de “aula” do campo de concentração. Mas estava
longe de ser a ideal. O trabalho era monótono e estupidi cante, e o facto de
se tratar de trabalho forçado e não remunerado humilhava-a. No m de
contas, quem gostava de ser escravo? O Partido havia encontrado uma nova
maneira de faturar à custa dos uigures, sob o pretexto de que o trabalho
educava e libertava, mas a ela a escravatura nada parecia ter a ver com
educação nem libertação.
O trabalho de Madina na secção de empacotamento da fábrica era
simples. Traziam-lhe caixas com roupas acabadas de confecionar numa das
trezentas máquinas de costura da fábrica e ela e um grupo de outros
escravos tinham de as dobrar, inserir num plástico, arrumar numa caixa,
selá-la e empilhá-la sobre outras caixas. Uma vez isso feito, os escravos da
secção seguinte encarregar-se-iam de levar essas caixas para o armazém e
depois metê-las nos camiões para serem enviadas para Ürümqi e daí para as
grandes cidades portuárias, como Xangai e outras, com destino para todo o
mundo. Todos na fábrica sabiam que o produto do seu trabalho escravo
seria vendido em todo o tipo de lojas do Ocidente, desde as de bens
superbaratos, do género “tudo a um euro”, até a hipermercados, lojas
normais, boutiques e estabelecimentos de luxo.
Quando já ia no sexto mês a trabalhar ali, um chinês han com uniforme
do Partido abeirou-se dela.
“Olha lá, disseram-me que foste militante do Partido e que falas inglês…”
Madina pôs-se em sentido.
“Con rmo.”
“O teu inglês é bom?”
“Tive boas notas no liceu de Ürümqi.”
O homem pareceu satisfeito.
“Vamos ter aí a visita de uns estrangeiros”, revelou. “São pessoas que virão
cá para vos ver trabalhar. Se eles quiserem falar com alguém que entenda
inglês, encaminhá-los-ei para ti.”
A situação surpreendeu-a. Queriam que ela, uma escrava, falasse com
estrangeiros?
“Uh… com certeza.”
“Quando falares com eles, tens de dizer: ‘Eu estava desempregada. Vim
para aqui voluntariamente para obter formação pro ssional. O Partido
preocupa-se connosco.’ ”
Ah, percebeu ela.
“Sim.”
“Ora repete lá.”
Concentrou-se para se lembrar da frase que lhe fora ditada.
“Eu estava desempregada. Vim voluntariamente para trabalhar.
O Partido…”
“Vim para aqui voluntariamente para obter formação pro ssional”,
corrigiu ele. “Repete.”
“Eu estava desempregada. Vim para aqui voluntariamente para obter
formação pro ssional. O Partido preocupa-se connosco.”
“Outra vez.”
“Eu estava desempregada. Vim para aqui voluntariamente para obter
formação pro ssional. O Partido preocupa-se connosco.”
O homem do Partido mandou-a repetir por mais cinco vezes, de modo a
assegurar-se de que ela memorizara mesmo a frase. Para garantir que nada
falharia, entregou-lhe um bloco de notas e uma caneta e ordenou-lhe que
escrevesse aí a frase que lhe havia ditado e a fosse ensaiando ao longo do dia.
“Quando eles vierem, e se falarem contigo, é isso o que lhes dizes e só isso”,
sublinhou à despedida. “Ouviste? Não pode haver falhas.”
Logo que o homem se foi embora, Madina cou a contemplar a frase que
registara no papel, mas também a caneta e o bloco de notas. Ainda lhe
passou pela mente a fantasia de expor toda a verdade aos estrangeiros, mas
sabia que isso seria uma loucura e representaria o seu m. Não o podia fazer
de modo algum. Mas…
Hesitou, brincando com a ideia. E porque não passar-lhes
dissimuladamente uma qualquer mensagem? Talvez um papel… Abanou a
cabeça. Não, seria logo apanhada. Nem pensar. Mas a ideia não a largava,
como se um demónio a tentasse. E se, em vez de entregar aos estrangeiros
um papel, lhes oferecesse uma embalagem de roupa e escondesse a
mensagem lá dentro? Voltou a abanar a cabeça. Também não resultaria. Não
só precisaria de autorização prévia para oferecer a embalagem, que
provavelmente até lhe seria concedida, como se os estrangeiros lessem a
mensagem e armassem um escândalo não seria difícil ao Partido perceber
que fora ela a autora da mensagem, o que a sujeitaria a punições de formas
que nem quis contemplar. Descartou igualmente essa possibilidade.
Não tinha muitas opções, percebeu. Desanimada, cou a contemplar as
caixas já seladas e empilhadas que os escravos da secção seguinte em breve
iriam recolher para enviar para o armazém, para distribuição pelos portos
chineses e daí para todo o mundo. Ah, se ao menos pudesse meter a
mensagem naquelas caixas e… e…
A ideia atingiu-a como um relâmpago.
Era isso! Era mesmo isso o que tinha de fazer! Sentiu-se muito excitada,
até porque quanto mais pensava no plano mais ele lhe parecia viável.
Refreou o entusiasmo para melhor considerar os pormenores, refreou-se
tanto que chegou a pensar que se calhar seria mais inteligente não fazer
nada, era uma estupidez correr riscos desnecessários, mas logo pensou que
isso seria a vitória de quem tanto mal tinha feito a ela e a tantos outros dos
seus. Ganhou coragem e determinação. Decidiu avançar.
Com o plano detalhado já na sua cabeça, foi ter com o responsável da sua
secção.
“Preciso que me dispense durante uma hora”, pediu-lhe. “É por causa dos
estrangeiros que aí vêm.”
“Ayah!”, exclamou o homem, um chinês han. “Queres é car a coçar a
barriga! Há metas de produção que têm de ser respeitadas e não admito
parasitismo na minha secção!”
“Compreendo perfeitamente, camarada. O problema, como sabe, é que o
Partido pediu-me para responder em inglês às perguntas que os estrangeiros
que aí vêm me possam colocar. Ora isto é coisa de muita responsabilidade,
como deve calcular. Não posso cometer nenhuma falha. A melhor forma de
garantir que tudo correrá na perfeição é escrever o texto num inglês perfeito
e depois memorizá-lo corretamente. Para isso preciso que me conceda pelo
menos uma hora. Ou assumirá a responsabilidade se na hora da verdade eu
não conseguir dar aos estrangeiros a resposta que o Partido quer que eu dê?”
Contrariado, o responsável lá lhe concedeu a autorização. Madina sentou-
se então a um canto da secção de empacotamento, um dos raros lugares que
não eram cobertos pelas câmaras de videovigilância, e pôs-se a redigir o
texto no bloco de notas. Só que a redação que nascia em inglês da ponta da
caneta não era aquela que tinha de papaguear aos estrangeiros que iriam
visitar a fábrica onde era escrava, mas uma outra que germinava da sua
mente.

Senhor: Se por acaso comprou este produto, por favor reenvie esta
mensagem a uma organização mundial de direitos humanos. Há
milhares de pessoas aqui perseguidas pelo governo do Partido
Comunista Chinês que lhe agradecerão e pensarão eternamente em
si.

Apercebeu-se de que o responsável da sua secção a mirava com


descon ança e receou que viesse ter com ela e lhe pedisse para ler o texto;
decerto que o homem não percebia inglês, mas quem sabe o que faria com a
mensagem e se a mostraria a alguém? Decidiu terminá-la. Quando ele virou
a cara para outro lado, arrancou a folha do bloco de notas, dobrou-a e
guardou-a no bolso da farda azul-clara. A seguir levantou-se e regressou ao
trabalho.
Num momento em que teve a certeza de que ninguém a estava a observar,
e pondo-se de costas para a câmara de videovigilância que se encontrava
apontada para ela, inseriu sub-repticiamente a mensagem dentro de uma
peça de roupa que estava a dobrar, meteu essa peça na embalagem, colocou
a embalagem numa caixa e, quando a caixa cou cheia, ela própria foi selá-la
e empilhá-la com as restantes. Manteve-a debaixo de olho até ver um
escravo da secção de distribuição vir buscar uma série de caixas, incluindo
aquela onde inserira a mensagem, e levá-las para o armazém.
Passou a tarde toda com dúvidas, questionando-se se teria procedido bem.
Que diferença faria aquela mensagem? Com toda a probabilidade,
nenhuma. Bem pelo contrário, a bravata ainda lhe poderia sair cara. Quem
lhe garantia que, numa ação de scalização, a embalagem não seria aberta, a
mensagem encontrada e a sua autora identi cada? No m de contas, não
havia muitos escravos naquela fábrica que falassem inglês. Que estúpida em
ter sido tão impulsiva!
“Here she is.”
A frase em inglês soou-lhe nas costas. Girou nos calcanhares e viu o
quadro do Partido que a interpelara nessa manhã, acompanhado por um
grupo de ocidentais com canetas e blocos de notas nas mãos. Pelo aspeto
deles, tratavam-se de jornalistas. Um deles sorriu-lhe de modo amigável.
“Do you speak English?”
“Yes”, respondeu, apanhada de surpresa. “Sim. Falo inglês.”
“Há quanto tempo está aqui?”
“Há… há uns meses.”
“Como arranjou este trabalho?”
Ela fez um esforço de memória, tentando recordar-se da frase que lhe fora
ditada.
“Uh… eu estava desempregada. Vim para aqui voluntariamente para obter
formação pro ssional. O Partido preocupa-se connosco.”
“E gosta deste emprego?”
“Eu estava desempregada. Vim para aqui voluntariamente para obter
formação pro ssional. O Partido preocupa-se connosco.”
O jornalista escrevinhava no seu bloco de notas e os outros em redor
faziam o mesmo.
“Mas gosta do seu trabalho?”
“Eu estava desempregada. Vim para aqui voluntariamente para obter
formação pro ssional. O Partido preocupa-se connosco.”
Os jornalistas pararam de escrever e olharam xamente para ela. O que
lhe zera as perguntas pareceu momentaneamente embaraçado, mas logo
sorriu para a tranquilizar.
“Muito obrigado.”
Madina olhou com ansiedade para o homem do Partido que lhe ditara a
resposta e que guiava o grupo. Para sua surpresa, ele mostrava-se agradado;
parecia até muito satisfeito com a performance dela.
“Como podem ver, é uma fábrica perfeitamente normal”, disse o homem,
sempre em inglês. “Não tem nada a ver com as mentiras que o Ocidente
anda para aí a propalar. Estamos aqui a dar formação pro ssional a gente
que vivia no desemprego e na pobreza, pessoas que estavam imersas em
ideias obscurantistas e que não tinham qualquer perspetiva de vida. Mas
graças aos centros de formação e educação vocacional que abrimos aqui em
Xinjiang estamos a arrancar esta gente das garras da ignorância, da
superstição e da miséria e a dar-lhe a possibilidade de uma vida melhor. Este
é um programa para combater a pobreza que…”
O grupo afastou-se para prosseguir a visita pela fábrica e Madina
regressou ao empacotamento. Tantas interrupções haviam perturbado o seu
ritmo de trabalho. Precisava de se apressar para recuperar o atraso e cumprir
a sua meta de produção, sob pena de ser acusada de parasitismo ou
sabotagem e castigada.
LX

Ao ouvir a ordem para avançar contra a guarnição chinesa da ilha de


Cuarteron Reef, Tomás Noronha correu de imediato no encalço de Charlie
Chang. A operação tinha sido concebida com base numa tática simples.
Uma vez que todas as atenções dos defensores da ilha estariam
previsivelmente voltadas para Colossus, que avançaria pela direita e atrairia
todo o fogo e atenções sobre ele, o que efetivamente estava a suceder, abrir-
se-ia uma brecha pela esquerda que os dois outros elementos da equipa
podiam aproveitar. O que ambos faziam efetivamente.
Os dois homens anqueavam assim a guarnição chinesa numa
movimentação rápida que bene ciava da ajuda suplementar dos
exosqueletos que os equipavam. Na verdade, como Colossus se encontrava
já do outro lado de Cuarteron Reef e os defensores da ilha disparavam
continuamente sobre ele, Chang e Tomás viram a oportunidade de os
apanhar pelas costas, na verdade o verdadeiro objetivo tático da
movimentação do gigante metálico.
Sem pronunciarem uma palavra que fosse, ambos correram curvados para
o edifício no meio da ilha, as GAU-5A ASDW sempre prontas a disparar, até
chegarem à porta. Chang tentou abri-la, mas estava trancada. Sem perder
tempo, o operacional da CIA retirou do saco que trazia às costas duas barras
que pareciam sabões, a palavra “Semtex” inscrita nas faces, e colou-as junto
às fechaduras com um dispositivo de detonação enterrado nelas.
Recuou para a esquina do abrigo, fazendo sinal a Tomás de que se
abrigasse também.
“Atenção!”
Logo que o português se protegeu, o homem da CIA premiu o botão do
detonador e a porta rebentou com uma explosão seca. De pistola-
metralhadora em punho, Chang mergulhou na nuvem de fumo com Tomás
atrás e penetrou no edifício.
A situação no interior era confusa. Aperceberam-se por entre as sombras
de um vulto à direita, que o operacional da CIA prontamente metralhou. A
explosão na porta e os tiros dentro do edifício alertaram outros ocupantes e
logo apareceram mais dois homens da guarnição chinesa. Chang abateu um
deles com três tiros certeiros, mas, graças ao exosqueleto e à velocidade e
força suplementar que este lhe dava, o português conseguiu antecipar-se e
caiu sobre o segundo soldado, derrubando-o e imobilizando-o no chão.
Atrás dele, Chang deu uma ordem.
“Liquide-o!”
Isso estava absolutamente fora de questão para Tomás.
“Nem pensar”, disse. “Não se mata assim sem mais nem menos. Além do
mais, temos de o interrogar para saber onde estão as prisioneiras.”
A ideia do homem da CIA era primeiro limpar as defesas de Cuarteron
Reef e só depois interrogar os sobreviventes, mas não viu inconveniente em
antecipar esse passo. Havia até algumas vantagens. Ajoelhou-se por isso
diante do soldado que o português imobilizara e apontou-lhe o cano da
pistola-metralhadora à testa.
“Nĭ xiăng huó ma?”, perguntou-lhe num tom que não admitia discussão.
“Queres viver?”
O homem, os olhos esbugalhados numa expressão de absoluto terror,
assentiu com um movimento convicto da cabeça.
“Shì de”, respondeu. “Sim.”
“Nü˘ qiú zài nălĭ?”, quis saber. “Onde estão as prisioneiras?”
A informação foi dada sem qualquer hesitação.
“Zài tă nèi”, indicou o prisioneiro, apontando para o exterior. “Na torre.”
O problema é que havia duas torres na ilha.
“Nă yīgè?”, perguntou Chang. “Qual delas?”
“Zài dà”, disse. “Na maior.”
Ou seja, elas estavam na torre que cava mais próxima do cais de
atracagem dos navios.
Apesar de não falar mandarim, Tomás percebeu pelo semblante de Chang
e pelos gestos do prisioneiro que já tinham a informação de que precisavam.
Mantendo-se em cima do soldado da guarnição chinesa, procurou com a
mão algo que o pudesse prender, como uma corda, mas nada achou.
“Tem aí umas algemas?”, perguntou. “Precisamos de o manter aqui pres…”
Um estampido calou-o.
“Venha.”
O português olhou para baixo e constatou que o prisioneiro que
imobilizara no chão tinha um buraco na testa. Chang havia-o morto.
“Você está doido?”, indignou-se, pondo-se em pé num salto para
confrontar o homem da CIA. “Matou-o assim, como um cão, sem mais
nem…”
Chang voltou-se em direção ao interior do edifício e disparou uma rajada,
para manter os restantes elementos da guarnição em respeito, e fez um sinal
em direção à porta de saída.
“Venha!”
“Ouviu o que lhe disse?”, protestou Tomás, correndo no encalço do
companheiro. “O que acabou de fazer foi uma execução, ouviu? Uma
execução!”
O operacional da CIA rodou nos calcanhares e enfrentou-o.
“Isto não é uma brincadeira nem nenhum lme em que os galãs fazem
grandes gestos nobres”, rosnou. “Se não tem estômago para uma operação
destas, não tivesse vindo. A nossa missão não é poupar carcereiros do
Partido, é salvar as suas vítimas. Pare com a tanga e cumpra o seu dever. Ou,
pelo menos, não atrapalhe. Não estamos em Hollywood.” Virou-se de novo
para a porta. “Venha!”
Aquele não era o momento de discutir, percebeu Tomás. Se queriam ter
sucesso, teriam de se manter coesos e em consonância um com o outro.
Mais tarde, se se safassem daquela, haveria tempo para voltarem ao assunto.
Chang largou uma nova rajada para o interior do edifício, sempre para
manter a guarnição em respeito. Saíram a seguir para o exterior e olharam
para a grande torre sobre o cais. Era ali que, segundo o prisioneiro que
haviam interrogado, estava Dragão Vermelho. E Maria Flor. Chang ativou a
comunicação no seu capacete.
“Hector, estás a ouvir?”
Colossus encontrava-se nessa altura aos tiros com a guarnição no outro
lado de Cuarteron Reef.
“Estou ocupado.”
“Dragão Vermelho encontra-se na torre grande”, informou o operacional
da CIA. “Precisamos que distraias os ocupantes. Podes vir?”
Ouviu-se um estralejar na comunicação antes da resposta.
“A caminho.”
Preparando-se para o que aí vinha, os dois homens ajoelharam-se com as
pistolas-metralhadoras apontadas e preparadas para disparar, e aguardaram
que Colossus aparecesse.
LXI

O dia de trabalho ainda mal começara e já Madina estava farta de dobrar


roupa, metê-la em embrulhos e depois em caixas na secção
de empacotamento. A função era incrivelmente monótona e repetitiva e
havia algum tempo que andava a considerar a possibilidade de pedir uma
nova oportunidade nas máquinas de costura. O mais provável é que não lha
concedessem, mas nada perdia em tentar.
Estava ela a empilhar as caixas para depois serem levadas pelos escravos
da distribuição quando sentiu alguém aproximar-se. Virou-se e viu ao lado
dela a senhora Gui-ying com uma pasta na mão. Pôs-se imediatamente em
sentido.
“Sabes há quanto tempo estás aqui na fábrica?”
“Há oito meses… acho.”
A sua antiga tutora abriu a pasta que trazia com ela e consultou
o conteúdo.
“Dez.”
Dez meses?, admirou-se Madina. Fez as contas. Seis meses na prisão, vinte
meses na cela 310 do campo de concentração, dez meses na fábrica. Ao todo
eram trinta e seis meses. Ou seja, três anos. Tudo por ter cometido o crime
de ser educada na infância pelo avô Qeyser e de ter vivido na adolescência
em casa do primo Erbakyt.
Três anos detida por causa disso.
“Ah, passou num instante!”, disse ela com o fervor revolucionário que a
caracterizava sempre que falava com alguém do Partido. “Trabalhar em prol
do Chefe, do Partido e da nação é a minha maior ambição enquanto
chinesa.”
A senhora Gui-ying assentou a pasta que trazia consigo sobre uma caixa já
empilhada, como se fosse uma mesa, e abriu-a.
“O teu trabalho diligente e a forma zelosa como respondeste aos
jornalistas estrangeiros que há uns tempos cá vieram provaram que a ação
de educação e formação que o Partido te ministrou foi um êxito”, disse. “Por
conseguinte, foste considerada reabilitada. Assina aqui.”
A antiga tutora retirou da pasta um documento e entregou-lho,
juntamente com uma caneta.
“O que é isto?”
“Uma declaração de con dencialidade”, explicou. “Assina-a e poderás ir-te
embora.”
Madina pegou no documento e leu-o. O texto indicava que se voluntariara
para um curso de educação cívica e outro de formação pro ssional num
centro de formação e educação vocacional. Tratava-se de uma forma de o
Partido se defender para o caso de ser acusado de perseguições raciais ou
étnicas. O documento atestava que se limitara a frequentar de livre vontade
um simples curso. Além do mais, a declaração tinha efeitos legais, pois
estabelecia que ela, abaixo assinado, assumia o compromisso de nunca
revelar a ninguém o conteúdo das aulas e a respetiva metodologia
pedagógica, sob pena de incorrer em crime punível nos termos da lei.
Nas entrelinhas de todos aqueles eufemismos, a ameaça era clara. Se
revelasse a alguém o que lhe acontecera no campo de concentração,
desapareceria de vez.
Tirou a tampa da caneta e assinou.
“Aqui está”, disse, devolvendo a declaração assinada. “O Partido acima de
tudo.”
“Ding hao!”, concordou a senhora Gui-ying enquanto metia o documento
de volta na pasta. “Excelente! É muito importante que cumpras a palavra e
não contes a ninguém o que aqui se passou. Nem à tua família, ouviste?”
“Pode car descansada.”
A ex-tutora retirou da pasta um segundo documento e assinou-o antes de
o entregar a Madina.
“Este é o teu diploma de curso”, a rmou. “Deves apresentá-lo para te
autorizarem a sair do centro e em qualquer outra circunstância da tua vida.
Por exemplo, no emprego e na comissão do teu bairro de residência para
comprovares a tua reabilitação. Lembra-te, no entanto, de que não poderás
abandonar o teu bairro a não ser para ir trabalhar. Além disso, ao longo do
tempo serás monitorizada pela responsável da comissão do teu bairro para
que não haja recaídas.” Apontou para o edifício principal, onde a sua
interlocutora estivera fechada durante vinte meses. “Daqui a pouco deverá
chegar ali um autocarro oriundo de Karamay com novos estudantes para
frequentarem os cursos de formação e educação vocacional. O autocarro
regressará de imediato a Karamay. Poderás ir nele.” Ergueu o punho fechado
no ar. “Viva o Partido!”
A “estudante reabilitada” ergueu também o punho no ar.
“Viva o Partido!”
Tudo aconteceu muito rápido. Como não tinha bagagem para levar e
estava ansiosa por sair dali antes que o Partido mudasse de ideias, despediu-
se de imediato dos escravos com os quais trabalhou enquanto ali esteve e,
sem perder tempo, dirigiu-se diretamente ao ponto onde os transportes
costumavam parar para descarregar os prisioneiros destinados ao campo de
concentração.
Vinte minutos depois, apareceram no laogai dois autocarros que se
imobilizaram no local previsto. As portas abriram-se e agentes de segurança
privada contratados pelo Partido, os bao’an, desceram dos veículos a puxar
homens e mulheres algemados e com capuzes negros en ados na cabeça.
Madina sentiu um choque ao ver a cena; era como se revivesse tudo outra
vez.
Uma das vítimas, uma mulher curvada, mostrava enormes di culdades
em caminhar e berrava de a ição, os sons abafados pelo capuz. A sua
agitação era tal que um dos bao’an lhe arrancou o capuz e o adesivo sobre a
boca para perceber o que ela tinha. A cabeça en m descoberta revelou uma
octogenária, a pele enrugada e os cabelos brancos como a neve, a cara
molhada de lágrimas.
“Tenho uma ferida na perna e dói tanto”, lamuriou-se ela. “Chamem a
minha neta, por favor chamem a minha…”
O bao’an voltou a meter-lhe o adesivo na boca e o capuz na cabeça e,
ignorando as queixas, arrastou-a para o interior do edifício, onde os
“estudantes” seriam formalmente entregues aos guardas do campo de
concentração. No espaço de apenas um minuto, os autocarros caram vazios
e o passeio deserto.
Fazendo um esforço para dominar os fantasmas que a cena despertara
nela, Madina identi cou o autocarro que ia para Karamay, presumivelmente
para ir buscar uma nova leva de vítimas. Mostrou ao motorista o “diploma
de curso” que lhe permitia abandonar o campo e regressar à cidade e entrou.
Acomodou-se no último banco, como se se quisesse tornar invisível.
Volvidos dez minutos, uma vez concluídas as formalidades da transferência
dos prisioneiros para a responsabilidade dos guardas do campo de
concentração, os bao’an regressaram ao autocarro e a viatura arrancou.
Duas horas depois, Madina foi largada diante da representação do Partido
no seu bairro em Karamay. As ruas estavam desertas, à exceção dos
checkpoints, ainda mais omnipresentes do que antes. Havia câmaras de
videovigilância em todos os postes de iluminação e em todas as fachadas e
as zonas residenciais estavam cercadas por muros que antes não existiam.
Como não avistou táxis em parte alguma, e mesmo que os visse não os
poderia pagar, seguiu a pé para casa, passando pelos sucessivos postos de
controlo de que os chineses han estavam dispensados. Já perto de casa,
estacou numa passagem com sinal vermelho para peões e à frente dela
passou um autocarro. Alguns chineses han penduraram-se à janela e,
identi cando-a como uma uigure, apontaram para ela.
“Olha, uma fengjian!”
“Porque estás ainda aqui?”
Ignorou-os e prosseguiu caminho. Ao chegar ao seu prédio, constatou que
também o edifício estava cercado por um muro novo. Abeirou-se do portão
e apercebeu-se de que, para poder entrar, tinha de submeter o bilhete de
identidade a um scan eletrónico, como acontecia nos checkpoints. Numa
fração de segundo, o computador considerou-a “de con ança” e o portão
abriu-se. Pelos vistos, a informação da sua reabilitação já estava no sistema.
Entrou no prédio, apanhou o elevador e abriu a porta do seu apartamento.
Encontrou tudo como havia deixado, embora com pó por toda a parte.
Com a bexiga a apertar, dirigiu-se ao quarto de banho e a primeira coisa que
fez depois de se aliviar foi olhar-se ao espelho. Vacilou com o choque. Não
via a sua imagem desde que fora detida. Estava magríssima, os malares
salientes e largas olheiras em redor dos olhos. O cabelo apresentava-se numa
lástima, fraco e desalinhado, e a pele estava pálida e tinha erupções cor-de-
rosa. A falta de sol e a dieta miserável com sopa aguada e mantou haviam
produzido os seus efeitos.
Pisou a balança e não cou admirada por constatar que pesava quarenta
quilos, comparados com os cinquenta que tinha antes de ir para o laogai. O
campo de concentração reduzira-a a um esqueleto, dolorosamente aparente
pelas costelas protuberantes e a imagem cadavérica que o espelho
cruelmente lhe devolvia.
O regresso à vida normal foi estranho. A encarregada da comissão do
bairro desfez-se em sorrisos quando nessa mesma tarde se apresentou à
porta do apartamento dela para registar o seu nome e submeter-se à sua
tutela.
“Até que en m que conseguimos tirá-la de lá!”, a rmou a senhora Ting.
“Nem imagina o que intercedemos por si.”
Uma hipocrisia sem m.
Quando no dia seguinte se apresentou no emprego, o chefe da célula do
Partido, o inefável Leong, quase a abraçou.
“Tanto insisti na tua inocência que lá te deixaram sair, hem?”
Ou seja, a acreditar naquela gente, a libertação fora resultado da sua
oportuna intervenção. Madina teve vontade de responder torto, mas se havia
lição que tinha aprendido quando sob a orientação de Li se liara no Partido
em Ürümqi era a de que, naquele país moldado no forno do Período dos
Estados em Guerra, a verdadeira arma de combate era a dissimulação. Se
lhes dissesse o que realmente pensava deles poderiam inventar qualquer
mentira, por exemplo que a tinham visto a usar um lenço na cabeça ou a
recusar-se a beber álcool, e ela seria enviada de volta ao campo de
concentração sem apelo nem agravo. Por isso sorriu e agradeceu “com toda
a sinceridade”, o ar profundamente comovido, os “extraordinários esforços”
que haviam desenvolvido por ela.
Foi também em nome da dissimulação que não fez de imediato o que mais
desejava: ligar à família. Sentia grande ansiedade em saber como estavam os
pais e os irmãos, o avô Qeyser, o primo Erbakyt e o resto dos familiares.
Além de que lhes queria dar a conhecer que fora libertada e que já estava
tudo bem com ela. Mas conteve-se. O Partido não a puniria por contactar a
família, presumia, mas sabia que estava a ser vigiada e achou que seria
prudente ngir que considerava o Partido acima de tudo, incluindo dos seus
próprios familiares. Isso ajudaria a adormecer a descon ança.
Apesar da aparência de que tudo voltara ao normal, na verdade tudo
mudara. Madina sonhava com frequência que estava fechada na cela e que
não conseguia sair, ou que os guardas entravam na sala de “aula” com os
seus bastões para a punir por ter abraçado o avô Qeyser, ou que os
enfermeiros se aproximavam dela com bisturis para lhe levar o coração ou
destruir o útero. Os episódios variavam a cada noite, mas o tema era sempre
o mesmo, o da sua impotência perante o Partido e os seus verdugos. Já
quando estava acordada pensava constantemente na família, mas também
naqueles que tinham cado para trás, no campo de concentração, sobretudo
Maysem e Tursunay. Questionava-se sobre o que estariam a fazer nesse
momento, se as suas condições haviam melhorado, se alguma vez voltariam
ao mundo dos vivos.
Enquanto chefe da comissão do bairro, a senhora Ting assumiu por inteiro
a responsabilidade de a acompanhar no processo de reabilitação. Madina
tinha de comparecer todas as segundas-feiras ao hastear da bandeira no
bairro, cerimónia que terminava invariavelmente com o hino nacional
cantado com toda a genica. Elogiava o Partido em todas as oportunidades,
sublinhando o quão “grata” estava por lhe ter mostrado os seus “erros” e
guiado para o “caminho correto”. Em boa verdade, em qualquer conversa em
que se envolvia multiplicavam-se os elogios ao Partido por parte de toda a
gente, mas sobretudo dos uigures e dos cazaques, e em especial quando
havia chineses han presentes. Todos pareciam venerar o Partido.
A conta de Madina na rede social chinesa WeChat foi reativada. Recebeu
logo pedidos de amizade da senhora Ting, de Leong e até da sua antiga
tutora no campo de concentração, a senhora Gui-ying. Não tinha dúvidas de
que a conta era vigiada por esses “amigos”, pelos algoritmos e por mais quem
o Partido decidisse, pelo que aproveitava a menor ocasião para elogiar o
Chefe e dar graças ao Partido. Reagia a qualquer comentário feito pela
senhora Ting, por Leong ou pela senhora Gui-ying com uma catrefada de
“gostos” e apressava-se a colocar na sua própria conta os posts das duas
ilustres senhoras e do chefe da célula do Partido na empresa, assim lhes
mostrando o quão admirava as suas sábias palavras.
Além disso, passou a visitar com frequência os sites o ciais do Partido e a
aceder com frequência à aplicação “Estuda a Grande Nação”, a app do
Partido que continha os discursos do Chefe, os clássicos marxistas e as
canções revolucionárias. Fazia-o sobretudo à noite, pois sabia que o tempo
de leitura de cada ensaio e de visionamento de cada vídeo dessa app era
contabilizado pelo seu smartphone e dava direito a pontos adicionais no
Sistema de Crédito Social, um sistema de pontos em que os cidadãos eram
premiados ou punidos por boas ou más ações. Quem ajudava uma velhinha
a atravessar a rua ganhava alguns pontos, quem desrespeitava um sinal
vermelho perdia alguns pontos, quem elogiava o Partido ganhava muitos
pontos e quem criticava o Partido arriscava-se a um convite para “ir tomar
chá à esquadra”… além de que perdia imensos pontos. Tudo, como
anunciara o Partido, em prol da “harmoniosa sociedade socialista”. Acontece
que o bónus atribuído pela consulta dos conteúdos da app era
automaticamente duplicado quando o consumo era feito depois do horário
laboral, razão pela qual o fazia a essa hora.
Tinha consciência de que a ostentação de tanta beatice no culto ao Partido
acabaria por ser testada. Faltava saber como, quando e por quem. A resposta
depressa foi dada duas semanas depois, quando o chefe da célula do Partido
na petrolífera se abeirou dela com cara de quem queria partilhar um
segredo.
“Sabes quem morreu?”, perguntou-lhe Leong. “O Nurmemet Yasin.”
Tratava-se do famoso escritor uigure, extremamente popular entre as
gerações mais novas, que Madina vira no campo de concentração por ter
escrito “Pombo Selvagem”, a história do príncipe pombo que preferira a
morte à escravidão. Ao ouvir o nome de Nurmemet na boca de Leong,
Madina percebeu imediatamente que se tratava de um teste e fechou o rosto.
“Quem?”, questionou com aparente indiferença. “Aquele ‘duas caras’ de
Kashgar? Morreu onde?”
“Na cadeia, claro.”
“Bem feito!”
Na verdade, sentia-se morti cada com a notícia. Nurmemet era um
grande talento e, se realmente morrera no cativeiro pelo crime de contar a
história de um pombo que se matara para não viver toda a vida numa gaiola,
tratava-se de uma enorme perda.
“Não foi o primeiro a morrer atrás das grades”, acrescentou Leong, sempre
a testar a reação dela. “Também Nurmuhammat Tohti bateu a bota
enquanto estava a ser reeducado. Já o Tashpolat Tiyip e o Halmurat Ghopur
foram executados.”
Nurmuhammat Tohti era outro grande escritor uigure, enquanto
Tashpolat Tiyip e Halmurat Ghopur eram importantes académicos uigures.
Ao ouvir estas notícias, Madina esforçou-se por nem pestanejar.
“Excelente!”
“Nunca se sabe o que pode acontecer aos outros. A Dawut, o Ayup, o
Heyit…”
Rahile Dawut era uma célebre antropóloga uigure, Ablajan Awut Ayup a
estrela pop famosa que Madina também vira no campo de concentração e
Abdurehim Heyit um grande músico especializado nos instrumentos
tradicionais uigures, sobretudo o doutar. Todos estes nomes constituíam
apenas a ponta do icebergue da campanha de detenções em massa
decretadas pelo Partido contra académicos, intelectuais e artistas uigures,
parte do esforço de genocídio cultural do povo uigure que estava nesse
momento a ser levado a cabo em grande escala pelos comunistas chineses.
Até o grande Ilham Tohti havia sido encarcerado. E a toda essa campanha de
repressão tinha ela de ngir aprovação, apesar de estar ciente de que o
desaparecimento de cada um desses nomes contribuía para a morte cultural
do seu povo.
“Que os matem também!”
Ao ouvir estas palavras, e sobretudo a forma convicta como ela as
pronunciara, Leong deu meia-volta e regressou para o seu gabinete.
A subordinada fengjian passara no teste. Talvez a sua reeducação ao longo
de três anos tivesse mesmo funcionado.
Ao m de um mês a comportar-se como uma militante totalmente devota
ao Partido, Madina achou que já estavam criadas as condições para ligar aos
pais sem pôr minimamente em dúvida a sinceridade da sua reabilitação. No
nal de um dia de trabalho, chegou a casa, sentou-se no sofá e, com dedos
trémulos, digitou o número do telemóvel do pai. O telefonema foi atendido
ao terceiro toque.
“Está lá?”
Reconheceu a voz da mãe.
“Mãe? Sou eu. A Madina!”
“Ma… Madina?”
“Sim, mãe. Sou eu.”
O som de resposta foi o de choro. A mãe desatara num pranto ao perceber
que era mesmo ela.
“Mãe, mãe”, chamou, a ita. “Está tudo bem. Não se apoquente comigo.
Estou ótima, ouviu? Ótima. Pode car descansada, está tudo a correr pelo
melhor.”
A voz do outro lado recompôs-se, embora se mantivesse trémula.
“Ah, minha lha, minha lha. Estou tão contente, tão contente por te ouvir!
Nem imaginas a alegria que me dás! Nem imaginas! Graças a De… uh…
ainda bem que estás aí e que estás ótima. Ainda bem! Que alegria! Oh, como
estou contente! Andava tão ralada…”
“Está tudo bem, que descansada. Regressei a minha casa, voltei para o
meu emprego, as coisas estão normais, tudo corre pelo melhor. Não se
preocupe comigo.”
“Que bom, que bom…”
“E o pai? E os manos? Estão todos bem?”
Fez-se um curto silêncio na linha.
“Os teus irmãos… uh… os teus irmãos voltaram para a escola e… e o teu
pai também. Estou muito grata ao Partido por nos ajudar na educação de
todos. Amo a minha família e amo o Partido.”
Ao ouvir isto, Madina arregalou os olhos de horror. O pai e os irmãos
tinham também sido enviados para os campos de concentração. Teve de
engolir em seco e fazer um esforço sobre-humano para não desatar a chorar.
Quis perguntar o que acontecera, porque haviam sido levados e quando,
quais as circunstâncias, se haviam dado notícia… tanta coisa. Mas não
podia. Com toda a certeza a chamada estava a ser monitorizada. Não podia.
Não podia.
“Eu… eu também adoro a minha família e o Partido”, conseguiu dizer.
“Sabe quando… quando voltam da escola?”
“Quando aprenderem a matéria, minha lha. O que nos vale é que o
Partido cuida muito bem deles. Estão em boas mãos. Con emos no Partido e
con emos no Chefe, esse santo homem.”
A rapariga mordeu o lábio inferior. O pai estava preso, os irmãos estavam
presos. A mãe encontrava-se sozinha.
“Mãe, eu vou visitá-la.”
“Nem penses, minha lha. Nem penses. Está tudo bem por aqui, não te
preocupes comigo. Cuida é de ti, ouviste? Cuida de ti.”
Ir à aldeia onde a mãe vivia era impossível, sabia Madina. Não só havia
controlos de estrada por toda a parte como precisava de uma autorização
especial para se deslocar. Tendo ela estado num campo de concentração, e
apesar de a reabilitação ter sido formalizada, ninguém lhe concederia essa
autorização.
“Posso ajudá-la de alguma maneira, mãe? Dinheiro, comida…”
“Está tudo bem, minha querida lhinha. Podes acreditar. O Partido cuida
de nós. Tem é cuidado contigo, está bem? És muito preciosa para mim… para
nós.”
As lágrimas corriam pelo rosto de Madina e apenas se conseguia controlar
dando respostas telegrá cas.
“Sim, mãe.”
“Mas queria pedir-te um favor, se não for pedir muito. Só um favor. Eu sei
que é uma coisa difícil, muito difícil mesmo, mas preciso mesmo que sejas forte
e a faças. Prometes fazê-la?”
“Claro, mãe. O que é?”
“Por aqui está tudo bem, ouviste? Tudo corre pelo melhor, não te preocupes
connosco, cá nos arranjamos. Mas… en m, é melhor não voltares a ligar para
cá. Entendes? Não voltes a ligar. Pode afetar a educação de todos nós e… e é
melhor assim. Tem cuidado contigo. Protege-te, minha lha, minha linda lha
que tanto orgulho nos dás. Amo-te a ti, amo a minha família e… e amo o
Partido. Cuida de ti, minha querida. Cuida de ti, por favor. Nunca nos
esqueças.”
A chamada terminou e Madina foi para o quarto de banho chorar durante
uma hora.
LXII

O monstro metálico irrompeu diante da porta da torre como um furacão


em fúria, a despejar rajadas atrás de rajadas sobre as janelas do edifício.
Tomás Noronha cou preocupado com a condição em que Colossus se
encontrava. O gigante de aço parecia bastante dani cado, pois fora atingido
múltiplas vezes pelo fogo defensivo da guarnição chinesa. O português
interrogou-se sobre quanto mais tempo aquela máquina de guerra
permaneceria operacional. Das janelas da torre, o fogo dos soldados
chineses continuava a incidir sobre Colossus, fazendo saltar mais pequenos
pedaços das suas peças.
Charlie Chang levantou-se e fez um sinal.
“Vamos!”
O operacional da CIA desatou a correr para a torre e Tomás, apesar de se
questionar quanto à sensatez daquele movimento tático, foi atrás. Para que
raio se iriam meter naquele caos?, perguntou a si mesmo. Em vez de se
dirigir diretamente para a porta, onde o combate decorria com especial fúria
e intensidade, Chang fez, no entanto, um movimento largo a anquear a
porta e contornou a torre até chegar ao outro lado. O português percebeu
en m a ideia. Colossus continuava a funcionar como uma espécie de para-
raios, atraindo sobre si todo o fogo inimigo, o que mais uma vez os libertava
para os movimentos furtivos de penetração pela retaguarda dos alvos.
Encostaram-se à torre e Chang apontou para uma janela situada três
metros acima.
“Temos de saltar para ali.”
Tomás mirou a janela com incredulidade.
“Já viu a altura?”
O homem da CIA apontou para o mecanismo hidráulico integrado no
equipamento da DARPA que ambos vestiam.
“É para isso que o exosqueleto serve.”
O português quase deu uma palmada na testa. Ah, pois, o exosqueleto!
Como se pudera esquecer? O equipamento da DARPA duplicava-lhe a
capacidade de salto e, nessas condições, três metros não era realmente uma
altura inalcançável.
“Quem salta primeiro?”
Chang recuou uns passos e apontou a pistola-metralhadora para a janela,
sempre pronto a abrir fogo.
“Você”, indicou. “Eu cubro-o.”
A solução não era inteiramente do agrado de Tomás, que naturalmente
preferia que fosse o seu companheiro, devidamente treinado para situações
daquele tipo, o primeiro a atirar-se para aquele vespeiro, mas nem
questionou a ordem. Recuou também ele uns passos, ganhou balanço,
correu e saltou para a janela.
Teve por instantes a sensação de que voava, pois a capacidade de impulsão
do exosqueleto da DARPA era realmente extraordinária, mas depois do
impulso inicial era um voo sem controlo e quase falhou o alvo. Embateu na
parede ao lado da janela, mas no último instante conseguiu agarrar uma
portinhola entreaberta da janela e segurar-se. Ouviu vozes no interior e
preparou a pistola-metralhadora com o braço esquerdo antes de se içar com
o direito, bene ciando sempre da força suplementar do exosqueleto.
Espreitou o interior. Viu dois soldados chineses na janela em frente a
despejar tiros de metralhadora para baixo, evidentemente a alvejarem
Colossus. Ainda hesitou um instante, pois abrir fogo sobre seres humanos
era algo que instintivamente o repugnava, mas naquelas circunstâncias não
tinha alternativa. Ergueu a pistola-metralhadora e largou uma rajada sobre
os dois soldados; ambos caíram lá para baixo.
Com o caminho momentaneamente livre, Tomás içou-se para o interior
da torre e avançou, a arma sempre apontada, para garantir a segurança do
espaço onde acabara de entrar. Havia umas escadas em espiral ao longo das
paredes da torre e ouvia tiros e gritos em mandarim no interior do edifício,
mas pelos vistos no seu piso não se encontrava mais ninguém.
“Tudo limpo?”
A pergunta foi feita atrás dele por Chang, que acabara de se lhe juntar.
“Neste piso, sim”, respondeu. “Mas há vozes lá em baixo e alguns tiros
disparados lá em cima.”
O operacional da CIA dirigiu-se para as escadas em espiral, com Tomás
atrás, e ambos subiram cautelosamente os degraus, as pistolas-
metralhadoras sempre apontadas e prontas a disparar. Chegaram ao piso
superior e viram outros dois elementos da guarnição a disparar para baixo.
Com dois tiros certeiros, Chang abateu-os.
Fez-se um silêncio súbito na parte superior da torre, apesar do tiroteio que
se prolongava no exterior. Os dois intrusos invadiram o piso para fazer a
limpeza, prontos a abrir fogo contra qualquer soldado chinês que ainda ali
estivesse, e avistaram dois vultos encolhidos a uma esquina. Com o dedo
nervoso no gatilho, o homem da CIA preparou-se para varrer aquela
esquina de balas, mas Tomás travou-o.
“Espere!”, gritou. “Não dispare!”
Olharam melhor para os vultos na esquina do piso e constataram que se
tratavam de duas mulheres, ambas encolhidas como ouriços, os braços a
protegerem a cabeça. Uma delas usava um lenço negro na cabeça, a outra
tinha a cabeça descoberta.
“São elas?”
Assim encolhidas era difícil dizer à primeira vista, mas o português
acabou por reconhecer os cabelos castanhos encaracolados da que estava de
cabeça descoberta.
Era Maria Flor.
LXIII

Numa segunda-feira após a habitual cerimónia do hastear da bandeira e


do entoar do hino nacional, a senhora Ting abeirou-se de Madina na
companhia de um chinês han de óculos redondos. Tratava-se de um homem
na casa dos trinta anos, ligeiramente balofo e com a cara pintalgada de
borbulhas, mas de ar sorridente.
“Apresento-te o senhor Wang”, disse. “Após cuidadosa deliberação, achei
que seria um ótimo familiar para ti.”
Madina cumprimentou o desconhecido, mas lançou um olhar intrigado
para a chefe da comissão do bairro.
“Desculpe, não percebi. O que quer dizer com isso de que o senhor é um
familiar meu?”
A senhora Ting reagiu como se a pergunta fosse de resposta tão óbvia que
nem fazia sentido ter sido formulada.
“Quero dizer um quadro do Partido que passará algum tempo a viver
contigo em tua casa, claro”, respondeu com uma gargalhada. “Que outra
coisa poderia ser?”
A rapariga cou embasbacada. Que lata aquela mulher tinha em impingir-
lhe um admirador daquela maneira tão despudorada! Quem pensava a
senhora Ting que ela era?
Forçou um sorriso.
“Sabe, neste momento não estou interessada em… en m, em conhecer
novas pessoas. Bem vê, ainda ando a ambientar-me às coisas e… e com
tempo encontrarei alguém, como é evidente. Mas, de qualquer modo,
agradeço a sua gentileza e preocupação comigo.” Voltou-se para o homem.
“Tenho muito gosto em conhecê-lo, senhor… senhor…”
“Wang.”
“Senhor Wang. Mas… uh… este não é o momento certo, receio bem.”
A senhora Ting e o senhor Wang trocaram um olhar confuso, como se não
esperassem aquela resposta.
“Deixa-me ver se entendi”, disse a chefe da comissão do bairro, tando-a
como se a sua interlocutora tivesse dito algo absurdo. “Estás a recusar aderir
à campanha Tornar-se Família?”
Madina hesitou, percebendo que havia ali alguma coisa a escapar-lhe.
“Campanha? Qual campanha?”
Após um curto silêncio embaraçoso, a senhora Ting arregalou os olhos,
como se tivesse visto a luz, e soltou uma gargalhada ruidosa.
“Pois é, não conheces a campanha Tornar-se Família!”, riu-se. “Claro!
Estavas na escola quando a campanha foi lançada…”
Também Wang se riu.
“Não deve saber de nada!”
“A campanha Tornar-se Família é uma iniciativa extraordinária do
Partido”, explicou a chefe da comissão do bairro. “Trata-se de um programa
de ajuda e parceria entre militantes do Partido e indígenas para promover a
comunicação, a interação e a compreensão mútuas. A ideia é estabelecer a
unidade étnica. O programa prevê que um quadro do Partido viva uma
semana por mês com indígenas, para lhes mostrar as vivências corretas em
sociedade. A pessoa que escolhi para ti foi justamente o senhor Wang. Há a
opção de ires viver uma semana por mês em casa dele ou de ele ir para tua
casa, mas o senhor Wang escolheu a segunda opção. Assim, não terás de sair
de casa. Não é magní co?”
Uma fagulha de pânico perpassou pelo rosto de Madina. O Partido tinha
lançado uma campanha para pôr um chinês a viver em casa dela? Que
loucura vinha a ser aquela?
“Desculpe, receio não estar a entender bem. O senhor Wang vai a minha
casa fazer o quê exatamente?”
“Vai conviver contigo, claro. Irá mostrar-te o modo correto de vida na
China e ensinar-te-á as coisas chinesas que os indígenas aqui em Xinjiang
não conhecem bem. Isto consolidará a união do povo. Trata-se de um
projeto inovador que fortalecerá o patriotismo de todos os povos que estão
no nosso país.”
A rapariga teve de fazer um esforço para ocultar o horror que a proposta
lhe causava.
“Isso é… é obrigatório?”
“Obrigatório?”, devolveu a senhora Ting, mais uma vez desconcertada
com a sua interlocutora. “Bem… claro que não. É facultativo. Mas… bem
vês, é uma campanha do Partido. Não estás a insinuar que te recusas a aderir
a uma campanha do Partido, pois não?”
O aviso era claro. Tratava-se de uma campanha “facultativa com
características chinesas”. Isto é, era obrigatória. Se recusasse, isso signi cava
pôr em causa o Partido. Uma coisa dessas era impensável. Seria considerado
uma afronta e arriscar-se-ia a ser reenviada para o campo de concentração e
de lá não voltar a sair.
“Não, claro que não”, apressou-se a esclarecer. “Acho… acho essa
campanha uma ideia magní ca. É só que… bem vê, fui apanhada de
surpresa. Só isso.”
“Portanto, estás de acordo…”
“Claro, claro.”
A senhora Ting sorriu e o senhor Wang mostrava-se impante de alegria.
Os olhos dele brilhavam de expectativa e parecia ansioso por iniciar o
programa o quanto antes.
“Ding hao!”, exclamou ele. “Excelente! Quando poderei ir para sua casa?”
Madina teve de fazer um esforço titânico para rasgar um sorriso na cara e
não gritar de terror.
“Uh… podemos… podemos ver isso mais tarde?”
“O programa tem de começar agora”, interveio a senhora Ting. “Daqui a
dias. Estás muito atrasada e já houve no Partido quem zesse perguntas por
não teres ainda aderido à campanha.”
A uigure engoliu em seco.
“Então… então pode ser daqui a… a duas semanas?”
Os seus dois interlocutores voltaram a sorrir, embora Wang com menor
entusiasmo; era evidente pelo semblante dele que gostaria de começar o
quanto antes, se não mesmo naquele dia.
“Daqui a duas semanas será.”
Madina saiu desorientada da cerimónia do hastear da bandeira. E agora?
Como iria lidar com aquele engulho? A primeira coisa que tinha de fazer,
percebeu, era entender o que realmente se estava a passar. O problema é que
não sabia com quem falar. A sua melhor amiga era Reyhan, mas a antiga
colega da faculdade e o marido tinham sido levados para os campos de
concentração e ainda não havia notícias deles.
Andou dois dias a pensar com quem poderia falar sobre o assunto. O
Partido tinha instituído um sistema de vigilância tão apertado que, para
além de toda a parte tecnológica, incluía métodos tradicionais como o
encorajamento às pessoas de se vigiarem e denunciarem mutuamente.
Quem detetasse uma falha de alguém e a delatasse somaria pontos por
permanecer “vigilante contra as ameaças” e quem detetasse uma falha e não
a denunciasse arriscava-se a ser punido por “colaboracionismo com
traidores e contrarrevolucionários”, o que, como era inevitável, conduziria os
infratores a um campo de concentração. Este sistema era muito e caz, pois
fazia de cada pessoa um informador em potência e inibia qualquer
comportamento que pudesse ser sancionável. Ninguém sabia quem era
informador e todos partiam do princípio de que todos eram informadores.
Todos vigiavam e todos se vigiavam. A consequência era um estado de
vigilância total e silêncio geral.
O problema do homem que iria para sua casa, no entanto, pareceu-lhe de
tal modo importante que teria mesmo de correr o risco. Sem a sua amiga
Reyhan por perto, precisava de recorrer a outra pessoa que a esclarecesse
quanto ao que se passava. Mas quem? Teria de ser uma mulher, como era
evidente. Como dizia um velho ditado uigure, “a mulher é o sol da mulher”.
Isto é, só as mulheres eram verdadeiramente solidárias com as mulheres.
Depois de considerar várias hipóteses, a escolha acabou por recair em
Arzu, uma jovem secretária uigure com quem por vezes almoçava na
cantina da petrolífera. Tratava-se de uma rapariga introvertida e muito
calada, o que lhe deu alguma con ança. Tímida como era, provavelmente
não diria nada a ninguém. Além do mais, decidiu que seria cuidadosa na
forma como abordaria o assunto de modo a ter margem para negar qualquer
eventual acusação de pensamento contrarrevolucionário.
Nesse dia esteve atenta às movimentações da jovem secretária na empresa.
Quando Arzu saiu do escritório para o almoço, Madina foi pela outra porta
e teve um encontro “casual” com ela no elevador. Seguiram juntas para a
cantina e sentaram-se à mesma mesa. A meio da refeição, e falando sem
mexer os lábios como sempre zera no campo de concentração, introduziu o
tema com a naturalidade de quem discorria sobre o estado do tempo.
“A chefe da minha comissão do bairro veio-me falar numa campanha
chamada Tornar-se Família. Apresentou-me até um homem para vir a
minha casa uma semana por mês. Já ouviste alguma coisa sobre esta
campanha?”
A sua interlocutora empalideceu.
“Não quero falar nisso.”
A resposta foi de tal modo perentória que apanhou Madina em contrapé.
“Porquê?”, quis saber, inquieta. “Há algum problema?”
Num gesto instintivo, Arzu olhou em redor para se certi car de que
ninguém a ouvia. Ciente de que havia câmaras de videovigilância a cobrir
toda a cantina, pôs disfarçadamente os dedos na boca como se estivesse a
coçar os lábios.
“A minha irmã mais velha teve de receber um homem desses e… foi uma
desgraça.”
“O que aconteceu?”
“Sabes que temos de partilhar tudo com o chinês que nos metem em casa,
não é?”
“Sim…”
Ela voltou a veri car que ninguém a escutava.
“Tudo signi ca tudo”, sussurrou. “Tudo.”
Madina sentiu o ar faltar-lhe.
“Estás a falar a sério?”
“A minha irmã recusou aceitá-lo na sua cama e o maldito denunciou-a por
recusar cumprir os seus deveres e continuar com ideias extremistas e
obscurantistas. Foi levada para… tu sabes.”
“Para os campos?”
Claramente perturbada, Arzu levantou-se com um movimento brusco.
“Não quero falar nisso.”
Abalou dali em passo apressado. Mas Madina tinha ouvido o su ciente
para perceber o que a campanha Tornar-se Família realmente implicava.
Ficou muito perturbada. Chegou mesmo a sentir-se mal e nessa tarde teve
de ir para casa mais cedo, alegando que estava adoentada. E estava-o, de
facto. Da alma. Mas por mais que desse voltas e procurasse uma saída para
aquela situação, nada encontrou que a livrasse de mais aquele suplício. Teve
de se resignar.
Foi por isso com grande nervosismo que, quando a hora chegou, num m
de tarde de sábado, Madina abriu a porta do apartamento e teve de deixar o
senhor Wang entrar com a sua bagagem. Sabia já que teria de fazer tudo
para lhe agradar, sob pena de ele a poder acusar de se manter agarrada a
“hábitos extremistas” e ela ser enviada de regresso ao campo. Gostasse ou
não, tinha já a noção de que a campanha Tornar-se Família signi cava que
as mulheres uigures eram colocadas inteiramente nas mãos dos homens
han.
“Que apartamento tão bonito”, elogiou Wang com uma expressão
aprovadora. “Este vermelho nas paredes mostra devoção ao Partido. Parece-
me muito bem.”
“O Partido está acima de tudo. Estou-Lhe eternamente agradecida.”
Fez-se entre ambos um silêncio embaraçoso. O chinês indicou a enorme
mala que trazia consigo.
“Onde posso pôr as minhas coisas?”
Madina engoliu em seco.
“Uh… só tenho um quarto, de modo que… en m, pensei que talvez…
talvez o senhor pudesse dormir na sala, tenho ali um…”
“Na sala!?”
A admiração de Wang roçava o escandalizado, quase como se tivesse sido
sujeito a uma afronta inadmissível.
“Não, realmente é melhor pôr as coisas no meu… no quarto”, apressou-se
a uigure a corrigir. “Eu virei para a sala.”
Também estas palavras não foram bem acolhidas pelo visitante.
“Contaram-me que o hábito de as pessoas dormirem em quartos
separados é um costume de certos indígenas extremistas”, disse, cheio de
insinuações. “Não sei se sabe, mas a campanha Tornar-se Família foi
concebida justamente para os indígenas adotarem verdadeiros hábitos
chineses. Ora, um verdadeiro chinês não dorme na sala, como deve calcular.
Eu sou um verdadeiro chinês e presumo que a senhora também o seja. Ou
não é?”
Madina não tinha alternativas.
“Tem… tem razão, claro. Irei… iremos dormir no quarto.”
A decisão que a an triã tinha tomado em “liberdade com características
chinesas” pareceu agradar ao visitante. Wang foi pousar a mala ao quarto e
arrumar as suas coisas enquanto a uigure cou na cozinha a tratar do jantar.
Quando concluiu a arrumação das roupas, o chinês han foi ter com ela.
“Então, o que é a paparoca?”
“Estou a preparar uma das especialidades da minha família. Quando era
pequena, a minha mãe ensinou-me a fazer shurpa. Achei que era uma boa
ideia recebê-lo com este prato tradicional.”
Wang espreitou o tacho e viu as costeletas de carneiro mergulhadas num
caldo com batatas, cenouras e cebolas. Esboçou uma careta de desagrado.
“Ayah, isto é comida de gente das cavernas!”, protestou. “Não tem um
prato tipicamente chinês?”
O protesto surpreendeu Madina.
“Bem… uh…”
“Oiça, a campanha Tornar-se Família signi ca que os indígenas
abandonam certos hábitos retrógrados, extremistas e separatistas
e adquirem hábitos verdadeiramente chineses”, explicou ele. “Está a
entender? Isto signi ca que as pessoas na China falam chinês, vestem-se
como chinesas, comem comida chinesa, têm hábitos chineses… tornam-se
verdadeiras chinesas. Portanto, não podemos comer nada disto, como é
evidente.”
A an triã olhou para o tacho, desconsolada. Pelos vistos, os pratos típicos
uigures não eram su cientemente chineses para o seu visitante e para o
Partido. A campanha Tornar-se Família, compreendeu, não se destinava a
que as pessoas na China partilhassem as várias culturas existentes no país,
mas a adotarem na íntegra a cultura considerada superior, a han. Ser chinês
era ser han. Tudo o resto não passava de separatismo e extremismo. Essa era
a verdadeira mensagem da campanha.
“Posso… posso fazer um chao min de vegetais, se quiser.”
Wang estreitou as pálpebras, como quem dizia que ela estava perto do que
tinha de ser feito, mas ainda não chegara lá.
“Faça chao min de porco.”
A ordem chocou Madina pelo que ela subentendia. No campo de
concentração, a carne de porco era o prato obrigatório às sextas-feiras, mas
ela nunca imaginou que fosse forçada a consumir porco na sua própria casa.
“Uh… não tenho aqui carne de porco.”
“Então vá pedir à vizinhança”, ordenou o chinês han. “E amanhã, quando
for ao mercado, trate de comprar mais carne de porco. Vamos comer muito
porco nesta casa, entendeu?”
“Sim.”
A an triã saiu para pedir à sua vizinha, a senhora Ting da comissão do
bairro, que lhe emprestasse umas costeletas de porco. Ao cruzar a porta do
apartamento ainda ouviu Wang mandar-lhe trazer também umas cervejas.
Teve de refazer o jantar, deitando fora a sua adorada shurpa, e cozinhou o
chao min de porco.
Ao m de uma hora, instalaram-se à mesa e ela encheu os respetivos
pratos. Wang meteu à boca uma primeira dose.
“Hmm… não está mau, mas vou pedir à minha mãe a receita dela para da
próxima fazeres ainda melhor”, disse enquanto mastigava. “E as cervejas?”
Madina serviu-as também. Logo que beberam um trago, o chinês han
retirou o seu smartphone do bolso e tirou uma sel e com ambos de copo de
cerveja na mão e o chao min de porco sobre a mesa. A seguir foi ao WeChat
e inseriu a imagem numa mensagem, que enviou.
“É para o Partido”, explicou. “Temos de ir tirando fotogra as para provar
que estamos a fazer tudo à chinesa.”
O jantar decorreu quase em silêncio, com Wang a fazer um comentário ou
uma pergunta ocasional e Madina a falar quando era estritamente
necessário. Sabia que tinha de agradar ao visitante, mas queria também
sinalizar o seu desconforto e marcar alguma distância para que ele
percebesse que havia linhas que não deveriam ser cruzadas. Encontrar o
equilíbrio entre as duas posições não era fácil, se não mesmo impossível, e a
dado momento esforçou-se por parecer simpática para compensar os
instantes de maior distanciamento.
O chinês han comia muito e repetiu por duas vezes, o que explicava o seu
aspeto rechonchudo. Terminou o jantar com um arroto sonoro e,
consultando o relógio, mandou-a sentar-se no sofá para verem televisão.
“Vai agora dar um lme espetacular”, disse. “Ayah! Já o vi três vezes
e nunca me canso! É o maior êxito da história do cinema chinês!”
“A sério? Então deve ser mesmo bom…”
“Bom? É ótimo!”
Wang usou o telecomando para selecionar o principal canal da região.
Estava nessa altura a começar o lme Zhàn Láng, ou Lobo Guerreiro.
Contrariada, Madina constatou que se tratava de um lme de guerra.
Detestava aqueles lmes, não percebia qual o interesse de ver toda a gente
aos tiros e aos murros, mas mostrou um semblante de entusiasmo. O lme
contava a história de um soldado do Partido que combatia mercenários
europeus que se tinham atrevido a pôr em causa a China, os malandros.
“Mesmo a mil quilómetros de distância, quem afrontar a China irá pagar
caro!”, ameaçou o herói do lme numa cena em pose gloriosa. Ela revirou os
olhos de enfado.
Quando duas horas depois apareceram os créditos nais, teve de reprimir
um suspiro de alívio. Finalmente tinha acabado aquele suplício!
“Vem agora outro lme muito bom”, exclamou ele, mudando de canal.
“Vamos ver!”
A an triã levantou-se de imediato.
“Adorava, mas tenho de ir levantar a mesa e…”
“Depois”, ordenou Wang. “Agora vê o lme. É espetacular!”
Madina não teve outro remédio senão voltar a sentar-se. O título Hónghăi
Xíngdòng, ou Operação Mar Vermelho, encheu o pequeno ecrã. Wang
aproveitou para tirar mais uma sel e no seu smartphone, mostrando-os
ambos a verem a Operação Mar Vermelho, e mandou a imagem para o
Partido.
“Esta sel e vai valer-nos mais uns pontinhos por patriotismo.”
Para desânimo de Madina, percebeu que se tratava de outro lme de
guerra. A ação deste decorria no mar Vermelho, como era previsível em
virtude do título, mas nesse instante foi como se se tivesse desligado; não
registou mais nada. A sua mente estava antes focada no sacrifício que era
estar ali a aturar “o gordo” e, mais importante, no problema que seria
quando chegasse a hora de dormirem.
A única cena que lhe despertou a atenção foi a nal. Justamente por
marcar o m do suplício. Mostrava o exército do Partido a ordenar
à Marinha americana que abandonasse o mar do Sul da China. Os créditos
nais passaram sobre a imagem dos destemidos caças chineses a descolarem
de um porta-aviões chinês e a dirigirem-se agressivamente aos malé cos
navios americanos, os mísseis armados nas asas em prontidão para
arrasarem o grande perigo que viera do Ocidente com intuitos hostis para
com a benigna pátria chinesa.
“Grande ta, hem?”, regozijou-se Wang no nal. “Com a China ninguém
se mete!”
“Eles que tentem.”
O chinês han levantou-se e espreguiçou-se.
“Bem… chegou a hora de nos deitarmos.”
Madina já tinha delineado um plano para lidar com aquele momento tão
delicado. Levantou-se e dirigiu-se à mesa das refeições.
“Vá… vá andando”, disse, já a pegar nos pratos sujos. “Vou arrumar e lavar
tudo isto para que amanhã esteja…”
“Faça isso amanhã.”
“Não, tenho de fazer agora porque…”
“Amanhã!”
Percebeu que não tinha alternativa. Contrariada, devolveu os pratos sujos
à mesa e, o coração a bater descontroladamente, seguiu-o em direção ao
quarto. Toda aquela noite estava a ser uma tortura, mas sabia que o pior
ainda vinha aí.
Uma vez no quarto, Wang despiu-se, exibindo a sua barriga volumosa, e
deitou-se na cama apenas de cuecas, olhando expectante para ela. O
chumaço nas cuecas era enorme. Horrorizada, Madina pegou no seu pijama
e recolheu ao quarto de banho. Lavou-se muito devagar e foi também muito
devagar que despiu a roupa e vestiu o pijama, sempre na esperança de que,
tudo prolongado, ele acabasse por adormecer.
Um rugido oriundo do quarto desfez-lhe a ilusão.
“Ayah! Isso é para hoje ou para amanhã?”
Não dava para tergiversar mais. A medo, pé ante pé, saiu do quarto de
banho e voltou para o quarto. Viu-o a observá-la xamente da cama, como
se a despisse com os olhos. Lutou contra a vontade quase irresistível de dar
meia-volta e fugir, mas sabia que isso seria condená-la à perdição.
Resignando-se, desligou a luz e deslizou para a cama, embrulhando-se no
cobertor como se este fosse a sua carapaça de proteção. Outra ilusão.
Sentiu-o colar-se a ela, as mãos a arrancarem o cobertor até a deixarem
exposta e depois puxarem-na para car de barriga para cima e arrancarem-
lhe as calças do pijama. Um enorme peso assentou sobre ela e forçou-a a
abrir as pernas, tomando-a a seguir de assalto, ofegante e transpirado, aos
urros e gemidos.
No nal, Wang ligou a luz.
“Sorri.”
Atordoada e enojada, sentindo-se conspurcada e violentada da maneira
mais doentia, Madina obedeceu, pois não podia fazer outra coisa se não
obedecer, e virou a cara maquinalmente para ele. Wang tinha o smartphone
na ponta do braço esticado, a lente voltada para ambos, e logo que ela o
encarou tirou uma sel e. A seguir entrou no WeChat e enviou a fotogra a.
Para o Partido, claro.
LXIV

“Florzinha!”
Ao ouvir o seu nome e reconhecer a voz que o pronunciava, Maria Flor
ergueu a cabeça e tou Tomás Noronha, incrédula. Os dois abraçaram-se e
ela, talvez pela primeira vez desde que fora sequestrada, começou a chorar.
“Agora não há tempo para isso”, cortou Charlie Chang. “Temos de sair
imediatamente daq…”
Os estampidos ensurdecedores de tiros disparados a curta distância
reverberaram pelo piso. Tomás largou bruscamente a mulher e, alerta,
rodopiou sobre si mesmo de modo a apontar a pistola-metralhadora para a
porta. Viu um corpo deitado no chão e a arma do operacional da CIA a
fumegar. Chang tinha razão; não era aquele o momento para celebrar
reencontros. O português voltou-se de novo para Maria Flor e constatou que
ela e a mulher ao lado dela estavam ambas algemadas a uma barra de ferro.
“Who are you?”, perguntou ele em inglês, para se certi car da identidade
da desconhecida. “Quem é você?”
A mulher estava tão assustada que por momentos não pareceu
compreender.
“Nĭ shì hóng lóng ma?”, questionou o homem da CIA em mandarim. “Você
é Dragão Vermelho?”
Com uma expressão de imenso alívio, pois só ao ouvir dirigirem-se-lhe
como “Dragão Vermelho” percebeu que estava mesmo a ser resgatada, ela
assentiu com um movimento enfático da cabeça.
“Shì de… uh… yes.”
Os dois homens olharam para as algemas e perceberam que precisariam
das chaves para as libertar. Chang correu para os corpos dos homens que
abatera, revistando-os em busca das chaves, mas Tomás compreendeu que o
método não era o mais expedito. Apontou a sua pistola-metralhadora à
corrente que unia a algema de Maria Flor à barra de ferro e disparou. O tiro
assustou-os a todos, pois fora desferido bem perto, mas a verdade é que a
mulher conseguiu soltar a mão. Sem hesitar, o português repetiu o
procedimento com Dragão Vermelho. Apontou, disparou e o braço da
mulher do lenço negro soltou-se também.
Quando as duas mulheres caram livres, Tomás ajudou-as a levantarem-se
e puxou-as para a porta; era imperativo que saíssem dali o mais depressa
possível. Dragão Vermelho, no entanto, resistiu e começou a falar em
mandarim para Chang de forma muito agitada enquanto apontava
freneticamente para uma salinha anexa.
“O dossiê!”, exclamou o homem da CIA. “Ela diz que o dossiê está no
gabinete do comandante!”
Sem perder tempo, o historiador deixou-as com Chang e correu para o
gabinete. Percorreu as gavetas da escrivaninha, abrindo-as uma a uma, mas
uma delas manteve-se xa; estava fechada à chave. Deveria ser ali que o
dossiê fora guardado. Já habituado a resolver tudo a tiro, pois era a forma
mais rápida de despachar as coisas, apontou o cano da pistola-metralhadora
para a fechadura e disparou. A gaveta soltou-se e libertou o seu segredo:
uma pen com as faces rabiscadas com um caractere chinês.
Tomás pegou na pen e veio à porta, exibindo-a entre os dedos.
“É isto?”
Dragão Vermelho assentiu com vigor.
Percebendo que estava na posse do famoso dossiê com a estratégia secreta
do Partido Comunista Chinês, o português guardou a pen no bolso do
casaco e fez sinal a Chang, indicando que estava pronto. O operacional da
CIA encaminhou-se para as escadas em espiral, a arma sempre em
prontidão, as mulheres e Tomás atrás dele.
Nesse instante, o tiroteio no exterior foi subitamente interrompido. Os
dois homens entreolharam-se. O que teria acontecido? A guarnição
conseguira nalmente destruir Colossus? O silêncio deixou-os muito
alarmados. Sabiam que o monstro metálico não aguentaria muito mais
tempo debaixo de fogo permanente, mas tinham alimentado a esperança de
que permanecesse operacional o tempo su ciente para lhes permitir
completar a missão. Será que iriam falhar tão perto do nal, quando já
estavam na posse do dossiê e das duas reféns?
A intercomunicação nos capacetes regressou à vida.
“Equipa Ómega, mayday, mayday!”, gritou Hector, nervoso. “Perdi o
controlo de Colossus!”
“Colossus foi abatido?”
“Negativo.”
“Então o que aconteceu?”
“Passou para o outro lado.”
Chang e Tomás zeram um esgar de perplexidade, sem entender o que
lhes era dito.
“Clari que. O que quer dizer com isso, passou para o outro lado?”
“Já não controlo Colossus!”, anunciou Hector, visivelmente nervoso. “O
inimigo fez hacking à minha ligação remota. O sistema foi pirateado e o
inimigo tomou conta de Colossus. Ele passou-se para o outro lado!
Entenderam? Colossus passou-se para o outro lado!”
O novo olhar que os dois homens na torre trocaram ao compreender o
verdadeiro sentido da mensagem já não foi de incerteza, mas de terror puro.
“Os chineses!”, exclamou Tomás. “Eles controlam Colossus!”
Ouviram nesse instante passos pesados nas escadas, claramente de algo
volumoso a escalar os degraus, e perceberam que se tratava de Colossus.
Não vinha já para os ajudar, mas para os matar.
LXV

O smartphone começou a tocar quando Madina estava sentada à sua


secretária a terminar um relatório para Leong. Pegou no aparelho e viu no
visor o nome da pessoa que lhe telefonava.
Wang.
Revirou os olhos. No dia seguinte começava uma nova semana Tornar-se
Família e teria de o receber outra vez no apartamento. Durante sete dias.
Seria a quarta vez que isso aconteceria, pois o programa decorria uma
semana por mês e havia já quatro meses que andava naquilo. Não sabia se
aguentaria. Nas cerimónias do hastear da bandeira às segundas-feiras, o
Partido havia até introduzido uma nova canção que todos os uigures eram
forçados a cantar. “Amamos os nossos familiares, acolhemos os nossos
familiares, não fazemos perguntas aos nossos familiares”, rezavam as
estrofes. Tudo aquilo dava-lhe vontade de vomitar. Ainda fantasiou por isso
sobre a possibilidade de não atender a chamada, mas tinha consciência de
que tal só agravaria as coisas.
Respirou fundo e carregou no botão verde.
“Onde estás?”
O idiota nem sequer se dava ao trabalho de a cumprimentar.
“No emprego.”
“Amanhã não vou para o teu apartamento”, anunciou Wang. “Virás tu ao
meu.”
“Perdão?”
“Estou farto de passar a semana no teu apartamento. Não é prático para
mim, tenho sempre de andar a fazer e a desfazer malas, às vezes há coisas de
que preciso e descubro que as deixei em minha casa e tenho de ir lá buscá-
las… é uma trapalhada, não estou para isso. Portanto, agora tens tu de vir
para o meu apartamento. Esta noite prepara a tua bagagem e aparece cá
amanhã.”
“Mas…”
“Toma nota do endereço”, disse sem lhe dar tempo para ripostar. “Rua
Baoshi, número doze, terceiro andar, porta quatro. Escreveste?”
“Terceiro andar, porta… quantos?”
“Porta quatro. Tomaste nota?”
“Sim.”
Sem mais, desligou.
Madina suspirou. Se a sua vida já era um inferno, não tinha palavras para
descrever o que a sua existência se tornara desde que lhe fora imposto o
programa Tornar-se Família para “promover a comunicação, a interação e a
compreensão mútuas”, como o Partido gostava de propagandear na sua
habitual linguagem carregada de eufemismos. A semana em que Wang se
instalava no apartamento era de verdadeiro terror, pois tinha de se submeter
a tudo o que ele exigia. As três semanas seguintes à semana com Wang eram
passadas a lidar com o trauma do que acontecera nessa semana e a preparar-
se psicologicamente para a semana em que voltaria a ter de o aguentar.
Nessas semanas, Madina passava o sábado e o domingo literalmente a
servir Wang. Em todas as vertentes. Já nos dias úteis, em que tinha de ir para
o emprego, o seu “familiar” han exigia que ela fosse a casa preparar-lhe o
almoço, o que a obrigava a sair a correr do emprego para cumprir os seus
“deveres” e regressar a seguir. Nem tinha tempo para ela própria comer. À
noite, para além do jantar, era o que ela já sabia. E agora, como se tudo isso
não bastasse, tinha de ir viver uma semana para casa dele. O que mais
haveria de lhe acontecer?
Compareceu na casa de Wang a meio da tarde, pois sabia que ele queria
que lhe zesse o jantar. Tocou à campainha e aguardou. Ouviu passos leves a
aproximarem-se e a porta abriu-se. Uma chinesa han ligeiramente mais
velha do que ela, e algo arredondada, encarou-a com uma expressão
inquisitiva.
“É aqui a casa do senhor Wang?”
A mulher rechonchuda apreciou-a dos pés à cabeça, descon ada.
“És tu a uigure dele?”
“Uh… estou no programa Tornar-se Família do senhor Wang, sim. Ele
está?”
A mulher olhou para trás.
“Wang!”, chamou. “Wang! Está aqui a tua fengjian!”
O “familiar” han apareceu à porta.
“Entra, entra”, disse. “Estava a ver que não chegavas…”
“Peço desculpa, atrasei-me.”
Madina entrou no apartamento. Havia uma criança a ver televisão na sala
e um idoso a dormir no sofá com uma manta a cobrir-lhe as pernas. Wang
indicou-lhe a chinesa que tinha vindo à porta.
“Esta é a Ai, a minha mulher”, disse. Apontou para a sala. “Ali estão o meu
lho e o meu sogro.”
Madina olhou para a mulher com um misto de espanto e alívio. A nal
Wang era casado!
“Muito prazer, minha senhora. Peço imensa desculpa por vir importuná-la
no seu lar, mas… bem vê, são ordens e eu…”
“Ayah!”, cortou Ai. “Sempre é melhor eu ter o Wang aqui do que uma
semana inteira no teu apartamento, não é? Além do mais, sempre me dás
uma mãozinha na lida da casa.”
Wang levou Madina para a cozinha e indicou-lhe um pequeno anexo com
uma esteira estendida no chão.
“Pousa aí a tua mala, é aqui que irás dormir”, informou-a. “Depois vai
preparar o jantar. É chop suey de porco e os ingredientes estão no frigorí co.
Jantamos às sete.”
Depois de arrumar as suas coisas, Madina foi para a cozinha preparar o
jantar. Serviu-o à hora prevista e ouviu à mesa as habituais reclamações de
Wang sobre a falta de jeito dela para cozinhar e como “o chop suey da minha
mãe” era muito melhor do que “esta porcaria”. Também a mulher de Wang se
juntou às críticas, dizendo que teria de lhe ensinar “muitas coisas” sobre
“como cozinhar condignamente”. Mesmo assim, tiraram a habitual sel e à
mesa, prova de que o programa Tornar-se Família estava a ser um sucesso
retumbante, e enviaram-na para o Partido.
Ao levantar-se da mesa para ir ver televisão, Wang atirou-lhe um olhar
interrogativo.
“Olha lá, percebes alguma coisa de aritmética?”
“Tirei o curso de engenharia em Ürümqi…”
“Ah, pois é! Então ajuda o miúdo nos trabalhos de casa e depois tratas do
resto.”
Madina obedeceu. Levou o lho de Wang para o quarto dele e ajudou-o
nas contas de multiplicar e dividir e depois numa redação para a disciplina
de chinês. Quando terminaram, hora e meia mais tarde, foi levantar a mesa
e lavar os pratos. No nal sentia-se cansada e foi à sala desejar boa noite aos
an triões.
“Já?”, admirou-se Wang. “Então e o meu sogro?”
A uigure olhou para o idoso estendido no sofá.
“É preciso alguma coisa?”
“Ele tem de se ir deitar, não vês? Anda, vai dar-lhe banho e mete-o na
cama.”
O descanso teria de aguardar, percebeu Madina. Enchendo-se de
paciência, foi ajudar o sogro de Wang a levantar-se e levou-o para o quarto
de banho. Ele usava fraldas, pelo que as tirou. Tinha fezes. Meteu o idoso na
banheira e lavou-o, deitando as fezes para a retrete. Pôs-lhe umas novas
fraldas, vestiu-lhe o pijama e ajudou-o a deitar-se.
Com a tarefa concluída, passou extenuada pela sala a caminho do anexo
na cozinha.
“Até amanhã.”
Nem lhe responderam. Mas não fazia mal. Ao menos não tinha de dormir
com Wang. Só por isso valia a pena passar a semana de Tornar-se Família na
casa dele. Vestiu o pijama, deitou-se na esteira, enroscou-se no cobertor e
em alguns segundos adormeceu. Sonhou que estava na cela 310, a porta
destrancava-se com os seus sons mecânicos, ouvia-se o guarda a gritar
“baotou!” e a sua amiga Maysem punha-se de joelhos, a cabeça para baixo, e
dizia “psst!”, “psst!”…
“Psst!”
Acordou, estremunhada.
“Hã?”
Viu um vulto arredondado na sombra a abeirar-se dela. Como estava
embriagada de sono, levou um longo segundo a perceber que se tratava de
Wang. O seu “familiar” estava nu. Viu-o acocorar-se na esteira, arrancar-lhe
o cobertor e tirar-lhe as calças do pijama. O dono da casa forçou-a a abrir as
pernas, encaixou-se nela e, a arfar, fez o que tinha vindo ali fazer.
Embora tal parecesse impossível, a situação dela piorou ainda mais desde
que passara a viver no apartamento de Wang durante as semanas de Tornar-
se Família. Madina tornou-se então uma espécie de todo-o-serviço na casa.
Era a primeira a levantar-se para ir ao mercado fazer as compras, regressar
ao apartamento para preparar o pequeno-almoço e tratar do idoso. A seguir
saía a correr para o emprego, regressava a correr à hora do almoço para fazer
a refeição para a família de Wang e voltava a correr para o emprego. Ao nal
da tarde saía a correr para ir fazer o jantar e por m, enquanto Wang e a
mulher viam televisão, tinha de ajudar o lho deles a fazer os trabalhos de
casa e depois ia tratar do idoso. Acabava a jornada a arrumar e limpar tudo.
Cada um destes passos era sempre documentado pela inevitável sel e
enviada a seguir ao Partido.
A hora de dormir adquiriu uma rotina própria. Wang ia deitar-se no
quarto com a mulher, mas a qualquer hora a meio da noite dava-se à
liberdade de a visitar e esperava que ela o servisse de todas as formas que
entendesse, fosse qual fosse o seu estado de exaustão. Momentos houve em
que a uigure se encontrava de tal modo cansada que não conseguia
corresponder. Nessas ocasiões, o seu corpo era simplesmente usado como se
fosse uma boneca inerte. No m, e depois de nova sel e para remeter ao
Partido, Wang regressava ao seu quarto e deixava-a como um farrapo
abandonado.
Com o tempo, Madina foi tomando consciência de que nada do que lhe
estava a acontecer era diferente do que ela vira ser feito a Tursunay na cela
310 do campo de concentração. Era demais para ela. Precisava urgentemente
de desabafar com alguém.
A única pessoa com quem tinha estabelecido alguma cumplicidade desde
que fora libertada era Arzu. Havia já algum tempo que almoçava com
regularidade com a secretária uigure da petrolífera, ambas mais unidas pelo
medo do mundo que as rodeava do que pelo que tinham em comum. A
campanha Tornar-se Família era um tema que nunca mais havia sido
abordado entre elas, embora estivesse sempre implicitamente presente em
todas as suas conversas.
Chegou o dia em que Madina não conseguiu manter o silêncio. A meio de
um almoço com Arzu, e falando sempre em voz baixa e sem mexer os lábios
para não ser “lida” pelos algoritmos que inspecionavam as imagens das
câmaras de videovigilância, relatou-lhe o terror em que vivia. A
companheira de trabalho reagiu com renitência, manifestamente aquele era
um tema que a deixava muito desconfortável, mas mesmo assim Madina
contou tudo e sentiu a exposição do seu pesadelo como uma catarse.
Vencendo a relutância em abordar aquele assunto, Arzu lá se abriu.
“O que estás a viver é o que está toda a gente a viver”, explicou-lhe
a secretária. “A minha prima, a minha tia cujo marido foi levado para os
campos, duas vizinhas minhas…”
“Meteram um chinês han em casa da tua tia casada?”
Ambas sussurravam, mas neste ponto Arzu conseguiu baixar ainda mais a
voz.
“Ela era casada e o tipo forçou-a a dormir com ele, vê lá tu! O marido da
minha tia tinha sido enviado sabe-se lá para onde e o Partido meteu-lhe um
chinês qualquer em casa. O que podia a minha tia fazer? Se o recusasse, o
sujeito denunciava-a e ela também desapareceria. Portanto, teve de se
submeter. Já viste isto? Estão muitas mulheres casadas neste estado, é um
horror. Agora imagina a vergonha que é para uma mulher da nossa cultura
ter de ir para a cama com um desconhecido enquanto o marido está preso.
Eu até suspeito que muitos maridos das uigures mais bonitas são enviados
de propósito para os campos só para que os han possam entrar na casa deles
e aproveitarem-se das mulheres ao abrigo desta maldita campanha…”
“Não pode ser.”
“É uma suspeita cá minha. Para todos os efeitos, quando a minha tia viu as
fotogra as dela na Internet…”
“Fotogra as?”
“Não sabes? A minha tia cou horrorizada ao ver aquilo tudo exposto e…
e suicidou-se.”
“O quê?”
Levantando-se bruscamente da mesa, Arzu pegou no tabuleiro com o
prato já vazio para o depositar no local próprio na cantina e pôs um m
abrupto à conversa.
“Não quero falar nisso.”
Quando a semana em casa de Wang terminou e Madina regressou ao seu
apartamento, a primeira coisa que fez foi ligar o computador e fazer uma
busca sobre o tema. Sabia que estava a ser scalizada pelos algoritmos e
provavelmente também por uma qualquer secção do Partido encarregada
daquele tipo de vigilância, mas tinha um bom álibi. Estando ela a participar
na campanha Tornar-se Família, nada mais natural do que procurar outros
casos que mostrassem o magní co sucesso do programa destinado a
“promover a comunicação, a interação e a compreensão mútuas”.
Ao digitar as palavras-chave em chinês, apareceu-lhe uma sucessão de
imagens a mostrar mulheres uigures com homens han. Muitas dessas
fotogra as eram sel es tiradas com ambos juntos ao almoço ou ao jantar
com a mesa repleta de pratos chineses ou na sala de estar a ver um canal
chinês de televisão ou na rua a assistirem a um espetáculo de dança do
dragão do Sul ou qualquer outra atividade típica da cultura chinesa han.
Tudo sel es que Wang já tinha tirado com ela para serem remetidas ao
Partido.
A certa altura, no entanto, surgiram no monitor fotogra as tiradas noutro
tipo de circunstâncias.
“Oh, não!”
Ficou boquiaberta. Tratavam-se das sel es que os homens han tiravam na
cama após fazerem sexo com as suas “familiares” uigures. Madina nem
queria acreditar no que via. As imagens mostravam o homem sorridente e a
mulher uigure deitada ao lado, embaraçada ou atordoada, a proteger com o
lençol o corpo desnudado e violentado. O Partido não tinha pelos vistos o
menor pudor em disponibilizar na Internet, para todos verem, as fotogra as
mais íntimas de mulheres que, para efeitos práticos, haviam sido violadas
com a cumplicidade do próprio Partido. E tudo para quê? Para o Partido
poder exibir a dimensão e vastidão do seu domínio sobre os uigures. Tudo
para o Partido os humilhar.
A ita e ansiosa, Madina percorreu apressadamente todas estas imagens,
passando uma atrás da outra, atrás da outra, atrás da outra, aterrorizada com
a possibilidade de ela própria aparecer numa delas. Não era Wang que todas
as noites, depois de se aproveitar do seu corpo, tirava uma sel e e a enviava
para o Partido? Não se descobriu em nenhuma das fotogra as colocadas na
rede, mas não tinha dúvidas de que mais tarde ou mais cedo isso
aconteceria. O que faria então? Seria capaz de viver com a vergonha?
Prosseguiu as buscas e a certa altura a natureza das imagens mudou. Já
não eram sel es da campanha Tornar-se Família, como até ali, mas
fotogra as de casamentos. Homens han com mulheres uigures. Eles
sorridentes, elas tristes. Uma imagem atrás da outra, atrás da outra. Todas a
mostrarem o mesmo. Eles sorridentes, elas tristes. A terrível realidade
começou a impor-se-lhe. As mulheres uigures estavam a ser forçadas a casar
com homens han.
Quanto mais fotogra as desses casamentos via, mais se convencia. As
imagens não explicavam o que estava por detrás daqueles casamentos, claro,
mas parecia-lhe evidente que as mulheres haviam cedido à mais pura das
chantagens. Com toda a probabilidade, as uigures teriam sido avisadas de
que se recusassem seriam enviadas para os campos de concentração por
crime de separatismo. Eles sorridentes, elas tristes. Não só o Partido tinha
arranjado maneira de institucionalizar a violação das uigures como, ao
forçar os casamentos com homens han, pelos vistos se esforçava por impor
um m cultural e até biológico à etnia uigure.
Estaria o seu povo destinado à extinção?
Mal pregou olho nessa noite. Quantas coisas terríveis não se estariam a
passar com tanta gente? O pai fora levado para os campos, os seus irmãos
também, igualmente o avô Qeyser, o primo Erbakyt e a sua mulher Dilnaz, a
sua amiga Reyhan e o marido. O que lhe estava a suceder nesse momento
com Wang era a nal também o que acontecia a tantas outras mulheres da
sua terra. Estaria a mãe livre de lhe imporem um desconhecido em casa? E a
sua irmã Gulzira? E as mulheres dos seus irmãos que o Partido enviara para
um campo de concentração? Quantas uigures eram forçadas pelo Partido a
irem para a cama com estranhos e a verem as imagens desses momentos de
vergonha expostas na Internet? Como era possível terem chegado àquele
ponto?
Chegou ao emprego na manhã seguinte com óculos escuros para que não
lhe vissem as olheiras. Pousou a carteira sobre a sua secretária, mas, no
momento em que se ia a sentar para iniciar a jornada de trabalho, viu Leong
abeirar-se dela.
“Está aí um mandachuva do Partido para falar contigo”, disse-lhe o
responsável pela célula do Partido na petrolífera. “No meu gabinete.”
Madina atirou um olhar preocupado na direção do gabinete. A porta
estava fechada.
“O que me querem agora?”
“Não deve ser coisa boa. O tipo apareceu com uma cara de caso que só
visto. Olha lá, zeste algum disparate?”
Ela reviu mentalmente tudo o que havia feito nos últimos tempos que o
Partido pudesse reprovar. A lista era imensa. Será que as câmaras de
vigilância tinham registado imagens suas nos piores momentos das semanas
com Wang e os algoritmos leram a sua repulsa por tudo o que se estava a
passar? Ou talvez tivessem conseguido captar o su ciente da conversa que
tivera com Arzu para perceberem que ambas desaprovavam a campanha
Tornar-se Família. Ou se calhar as suas buscas pela Internet tivessem levado
os algoritmos a concluir que ela estava escandalizada com todas aquelas
imagens a expor as mulheres uigures. Ou então… Por mais que se esforçasse
por pensar o melhor possível do Partido e obedecer rigorosamente às Suas
ordens, pois só assim estava protegida de qualquer pensamento que a traísse
e que os algoritmos captassem, a verdade é que se passava tanta coisa que ela
não conseguia refrear pensamentos e sentimentos negativos para com o
Partido, assim se arriscando a ser exposta pelos algoritmos.
Encheu-se de coragem e encaminhou-se para o gabinete. Paciência! O que
tivesse de acontecer, aconteceria. Havia uma certa bravata na forma como
por momentos se entregou ao destino, mas quando chegou à porta já tremia
e foi com o estômago apertado e a doer que deu dois toques a pedir licença.
Uma voz respondeu de pronto.
“Entre.”
Abriu a porta e estacou, em choque, especada a olhar para o homem que
estava à sua espera. Era Li, o professor do liceu que se tinha tornado seu
amante e que a levara para o Partido. Pelo semblante duro dele, tornava-se
claro que tinha algo de muito importante para lhe dizer. Algo de
tremendamente grave.
LXVI

Por um longo instante, enquanto ouviam os passos pesados de Colossus a


escalarem lentamente as escadas da torre, Tomás Noronha e Charlie Chang
permaneceram paralisados. Para se poderem mover com agilidade tinham
vindo armados apenas com pistolas-metralhadoras, uma vez que toda a
operação assentava no conceito do gigante metálico como arma de
arremesso e para-balas; Colossus atrairia as atenções e o fogo da guarnição
chinesa, enquanto o historiador e o operacional da CIA resgatavam
discretamente as vítimas.
Agora que o inimigo assumira por hacking o controlo da máquina de aço,
todo esse plano se desmoronava. Como se poderiam defender com armas
ligeiras diante de um oponente tão esmagador, ainda por cima apoiado pelos
sobreviventes da guarnição?
Foi Tomás o primeiro a reagir.
“Temos de sair daqui!”
Talvez por já o ter usado anos antes, o português, que sabia que aquele era
o único trunfo de que ainda dispunham, tinha plena noção das
potencialidades do exosqueleto da DARPA. Sem perder tempo, e
constatando que no piso onde se encontravam não havia a menor hipótese
de fuga, pegou em Maria Flor e, com ela ao colo e Chang no encalço a
carregar Dragão Vermelho, galgou rapidamente as escadas até ao piso mais
alto da torre, esperando deparar-se aí com uma qualquer solução.
O que encontrou, porém, deixou-o desalentado.
“Oh, não!”
O piso superior estava deserto. Não tinha quaisquer divisões, o que dava a
impressão de dispor de mais espaço livre, e as paredes eram rasgadas por
uma única janela. Ou seja, estavam encurralados.
Os passos lentos de Colossus a subir as escadas no encalço deles
reverberavam incessantemente pela torre, cada passo a soar como uma
contagem decrescente para o recontro nal. Tomás e Chang olharam em
volta, já desorientados, sempre em busca de uma via de fuga. Nada
encontraram. Aquele beco não tinha saída.
Em desespero, o português abeirou-se da janela e espreitou para lá dela.
Estavam a uns dez metros de altura. Ao duplicar-lhes a força das pernas, o
exosqueleto ajudá-los-ia a aguentar o impacto de um grande salto, mas
aquele equipamento da DARPA tinha limites e dez metros pareciam estar
para lá desse limite, ainda por cima porque teriam de saltar com o peso
extra das mulheres.
O som dos passos de Colossus crescia.
“Hector, ele vai apanhar-nos!”, gritou Chang pelo intercomunicador do
capacete. “Alguma ideia?”
O espanhol do outro lado da linha, que se mantivera em silêncio durante
todo o último minuto, respondeu.
“Estive agora a estudar isto e há uma solução”, revelou. “Mas é muito
arriscada.”
Era melhor uma solução arriscada do que nenhuma solução, como bem
sabia o grupo encurralado na torre.
“Diz.”
O som dos passos de Colossus nas escadas mostrava que o monstro de aço
estava à beira de lhes aparecer à frente.
“A única hipótese é piratear os piratas”, informou o marine que perdera o
controlo da máquina. “Temos de reverter o hacking.”
“Então revertam!”
“Só vocês podem fazer isso.”
Não era uma boa notícia.
“O que temos de fazer?”
O monstro metálico encontrava-se nesse momento já nos últimos degraus.
“O programa de Colossus tem uma backdoor que nos permite fazer o
hacking. Para podermos aceder a essa backdoor, no entanto, é preciso desligar
o Colossus. Já não o conseguimos fazer daqui porque perdemos o controlo dele.
Mas há uma maneira de o fazer manualmente. Ele tem um botão na nuca. É
preciso…”
Colossus apareceu en m.
“Oh, não!”
“… desligá-lo e voltar a ligá-lo.”
A aparição do gigante metálico deixou-os a todos petri cados e de
respiração suspensa. Colossus estava quase irreconhecível. Encontrava-se
muito dani cado e já nem sequer possuía um braço, evidentemente
destruído no intenso tiroteio com a guarnição chinesa. Porém, permanecia
funcional.
Com os seus assustadores movimentos maquinais, o gigante metálico
rodou a cabeça para eles, identi cando-os. A seguir voltou o corpo,
carregado de correntes de munições, e enquadrou-se com os seus alvos. Por
m, sempre com os mesmos gestos maquinais, levantou o seu único braço e
apontou para os quatro a metralhadora pesada M2A2 que lhe restava, o cano
ainda fumegante.
E abriu fogo.
LXVII

O olhar duro de Li suavizou-se logo que fechou a porta e cou a sós no


gabinete com Madina. Puxou uma cadeira e sentou-se diante dela,
examinando-a com atenção e evidente preocupação, como se se quisesse
certi car do estado em que ela se encontrava.
“Estás magra, minha papoila.”
A observação surpreendeu a uigure. Não tanto por implicitamente revelar
os sentimentos dele para com ela, pois havia coisas entre duas pessoas que
nunca desapareciam por completo, mas por ser feita com tamanho à
vontade no próprio gabinete do chefe da célula do Partido na empresa.
Porque corria ele aquele tipo de riscos? Estaria louco?
“O Partido cuida de mim.”
“Tenho seguido à distância tudo o que te tem acontecido. O campo para
onde te mandaram, o que te zeram na cadeira tigre, a operação em que te
esterilizaram à força, o trabalho forçado sem pagamento de salário, a
campanha Tornar-se Família…”
Madina corou. Se ele lhe falava na campanha Tornar-se Família, decerto
estava a par de Wang e de toda a vergonha que a manchava.
“O Partido zela por nós e ajudou-me a corrigir os meus erros e a encontrar
o caminho correto”, retorquiu num tom mecânico. “A minha gratidão para
com o Partido e o Lingxiu é eterna.”
Li olhou-a como se estivesse na dúvida sobre como interpretar o que ela
acabara de dizer. Estaria Madina a falar a sério e acreditava realmente nas
parvoíces que lhe haviam martelado na mente, o que provaria que a lavagem
ao cérebro era de facto um método e caz, ou estaria meramente a papaguear
o que pensava que ele, ou o Partido, queria ouvir?
Apontou para o teto.
“Não sei se já reparaste, mas não há câmaras de videovigilância neste
gabinete”, indicou. “Podes falar perfeitamente à vontade. Ninguém nos está a
escutar.”
Os olhos de Madina desviaram-se para o teto, primeiro a medo, depois
ostensivamente. Girou a cabeça em todas as direções, inspecionando os
cantos, e constatou que, com efeito, não havia câmaras em parte alguma. A
sua atenção desceu então para a secretária e deteve-se no smartphone que ele
tinha ali pousado.
“O que é importante é que a China é forte graças ao Partido.”
Ele percebeu a mensagem. O Partido tinha a capacidade de ativar
remotamente o microfone e a câmara do telemóvel, mesmo estando
o aparelho desligado. Pegou por isso no smartphone e colocou-o em cima da
cadeira, sentando-se sobre ele para tapar a câmara e abafar o microfone.
“Presumo que assim ques mais descansada”, disse. “Ouve, não temos
muito tempo para falar, porque se podem levantar suspeitas, pelo que terei
de ser breve. Quero apenas dizer-te que, apesar de não ter podido intervir,
acompanhei à distância o que te aconteceu e lamento imenso tudo isto.
Espero que estejas bem.”
Ela fez um ar infeliz.
“Mais ou menos.”
Nada que Li não soubesse. Mas ouvi-lo da boca dela, e sobretudo vendo-
lhe a desesperança estampada na cara, era diferente. Estudou-lhe as mãos e
viu-lhe as pontas deformadas dos três dedos cujas unhas haviam sido
arrancadas quando a interrogaram na cadeira tigre do campo de
concentração. Inclinou-se para Madina e tou-a com intensidade, de modo
a sublinhar a importância do que tinha vindo ali dizer-lhe.
“Tens de fugir.”
A a rmação fê-la erguer as sobrancelhas.
“O que queres dizer com isso?”
“Tens de sair da China.”
“Mas… mas… vou para onde? Como?”
Ele tirou um envelope do bolso do casaco e estendeu-lho.
“Tens aqui o contacto de um cazaque que faz contrabando na fronteira”,
explicou. “Ele deve-me um grande favor, pois uma vez safei-o de uma
situação complicada, e já lhe falei de ti. O tipo vai ajudar-te. Ele tem uma
forma de atravessar a fronteira. Segue as instruções que pus aí no papel e
fala com ele. A fuga é caríssima, mas não terás de lhe pagar nada. A única
coisa que precisas de fazer é contactá-lo. Fá-lo logo que estejas pronta. Mas
não podes esperar muito tempo. Decide depressa. Aguarda um mês, para
que ninguém relacione o teu desaparecimento com este encontro comigo, e
parte. Ouviste? Parte.”
Madina cou a olhar para o envelope que ele lhe oferecia. Não pegou nele.
“Não percebo”, disse, indecisa. “Falo com o contrabandista e… ele tira-me
daqui? Assim, sem mais nem menos? Como me desloco dentro de Xinjiang?
Como sabes, preciso de uma autorização especial para sair de Karamay. Não
se pode ir de um lado para o outro quando nos apetece, não é verdade?”
Li insistiu com o envelope.
“Aqui dentro tens tudo o que precisas. O contacto do cazaque e um
documento para apresentares na comissão do bairro, a dizer que foste
convocada para uma reunião do Partido em Kashgar. A comissão passar-te-
á a autorização de deslocação.”
“Mas, quando se aperceberem do meu desaparecimento, eles irão
questionar a comissão do bairro, a comissão alegará que me deu a
autorização por causa desse documento, eles constatarão que o papel está
assinado por ti e… e…”
O antigo amante esboçou um sorriso malicioso.
“Consegui pôr o Bo a assinar a declaração”, esclareceu. “Não sei se sabes,
mas o Bo é o meu maior rival dentro do Partido. Quando forem veri car a
assinatura, cheira-me que o idiota terá uns contratempos desagradáveis.”
Pelos vistos, Li tinha aquele ângulo já pensado. Porém, havia ainda outras
questões a esclarecer.
“Se o ponto de encontro é em Kashgar, isso quer dizer que a fuga não é
pelo Cazaquistão”, raciocinou ela. “Então é por onde? Pelo Quirguistão? Pelo
Tajiquistão? Pelo Paquistão?”
“Paquistão.”
“Mas como farei quando chegar ao outro lado da fronteira? Não tenho
passaporte, não conheço ninguém no Paquistão, não possuo dinheiro
nenhum, não sei de nenhum sítio para onde possa ir, não disponho de
meios para me orientar…”
“Usando a assinatura do Bo, requisitei o teu passaporte. Tem-lo dentro do
envelope.”
“Ah, bom. E… e o resto? Não quero ser complicada, mas, como deves
calcular, ninguém consegue fugir sem dinheiro. Uma boa maquia, na
verdade. E eu não a tenho.”
Ele tirou um objeto do bolso e mostrou-lho; tratava-se de uma peça de
joalharia em rubi.
“Subtraí isto de uma gaveta da minha mulher”, disse. “Podes não acreditar,
mas vale mais de dez mil dólares. Nem te conto os favores que ela andou a
fazer para que lho oferecessem. O que interessa é que, quando estiveres do
outro lado, o podes vender. De qualquer modo, o envelope tem algum
dinheiro paquistanês para as despesas correntes.”
Após muito hesitar, Madina pegou no envelope e na joia em rubi
esculpido. Concentrou a sua atenção nesta; era um amuleto com o formato
de um réptil mítico, a longa cauda enrodilhada. Para além do rubi em que se
desenhava o corpo do animal, os olhos eram constituídos por dois
diamantes. Uma verdadeira peça de alta joalharia.
“Isto custa mais de dez mil dólares?”
“Quando o venderes, terás todo o dinheiro de que precisas para resolver
muitas coisas.”
Ela guardou a joia no bolso.
“Pois bem, a questão do dinheiro está resolvida”, assentiu. “Mas o
Paquistão é um problema sério. A Nova Rota da Seda tornou o país um
verdadeiro vassalo do Partido, como sabes. Quando o Partido descobrir que
fugi para lá, irá dar ordens aos Seus lacaios do governo paquistanês para me
prenderem e deportarem.”
O olhar de Li desviou-se para o envelope.
“Não tenho tempo para te explicar, mas estão aí dentro todas as instruções
para contornares essa situação. Encontrarás também uma coisa que terás de
ver com atenção. Muita atenção, mesmo. É o teu seguro de vida.”
“Estás a falar do quê?”
“Estou a falar de um documento ultrassecreto que terás de entregar a uma
certa entidade muito poderosa, em troca da ajuda dessa entidade. O
documento será o teu seguro de vida, percebes? Ele expõe coisas muito
importantes.”
“Que coisas?”
Consultou o relógio e, preocupado com a hora, levantou-se.
“Como te disse, não tenho tempo para explicar tudo”, a rmou, sinalizando
que o tempo se tinha esgotado. “Lê as instruções que estão no envelope e
perceberás. Segue-as à letra, ouviste? Memoriza-as e depois queima tudo.”
Conduziu-a à porta e caram um momento parados, a olharem um para o
outro. Tratava-se, percebeu Madina, da despedida. Talvez Li não se tivesse
portado bem na altura em que se envolvera com ela e não lhe falara no seu
casamento quando o devia ter feito, mas isso eram águas passadas. As
circunstâncias impediram que as coisas evoluíssem na direção que Madina,
e provavelmente o próprio Li, mais desejaria, mas quem era ela para o
julgar? No m de contas, o antigo amante aparecera quando mais era
necessário e estava a correr riscos por ela. Grandes riscos. Isso não podia
ignorar.
Abraçaram-se com força.
“Obrigada, Li. Tu és a verdadeira China.”
Ele beijou-a devagar nos lábios, não com lascívia mas com ternura, como
se esse beijo encerrasse a promessa do futuro que nunca poderiam ter.
“Adeus, minha papoila.”
Apartaram-se. Fechando o rosto de modo a readquirir rmeza
revolucionária, ele abriu a porta e Madina saiu do gabinete em passo ligeiro
e deferente.
“Obrigada, camarada”, disse ela em tom submisso. “Estou muito
reconhecida ao Partido.”
Com toda a gente a olhar para eles, Li apontou-lhe o dedo acusador.
“Não quero mais problemas, ouviu?”, admoestou-a. “O Partido protege-
nos, mas temos de ser merecedores d’Ele.”
Virou as costas e fechou a porta com estrondo.
LXVIII

Tomás Noronha lançou-se para a direita com Maria Flor e Charlie Chang
para a esquerda com Dragão Vermelho. Foi só graças à agilidade e rapidez
conferida pelos exosqueletos da DARPA que os quatro conseguiram escapar
aos primeiros tiros disparados por Colossus, uma rajada prolongada que
cravou las de buracos na parede interior da torre. Claramente quem quer
que tivesse pirateado o comando de Colossus e o estava agora a manobrar
desconhecia as potencialidades dos exosqueletos. Só isso explicava que
ainda estivessem vivos.
“Temos de saltar!”, gritou Chang, dirigindo-se para a janela enquanto
disparava a pistola-metralhadora contra Colossus. “Já!”
Percebendo o que o operacional da CIA pretendia fazer, o gigante de aço
antecipou-se e travou-o com uma nova rajada que o atingiu em cheio e o
atirou contra a parede.
“Chang!”, chamou Tomás, horrorizado. “Chang!”
O corpo do companheiro imóvel no chão e as manchas de sangue a
sujarem a parede e a encherem o piso não deixavam dúvidas quanto aos
efeitos devastadores do ataque. O exosqueleto fornecia alguma proteção
contra projéteis, mas as balas da metralhadora pesada M2A2 eram
demasiado grandes e haviam-lhe perfurado o corpo.
“O que aconteceu?”, chamou Hector pelo intercomunicador do capacete.
“Equipa Ómega, o que aconteceu?”
Tudo estava a suceder tão depressa que não havia tempo, nem disposição,
para informar quem quer que fosse sobre a evolução dos acontecimentos.
“Equipa Ómega?”
Ao ser abatido, Chang deixara cair Dragão Vermelho e esta, deitada no
chão, parecia ilesa, embora algo atordoada. Logo que percebeu o que
sucedera, a mulher do lenço negro gatinhou para junto do corpo de Chang.
Parou logo que constatou que ele estava morto. Bateu nesse instante
acidentalmente com o joelho na pistola-metralhadora deitada no piso.
Surpreendida, pegou na arma.
Foi então assomada por um acesso de raiva, desespero e loucura. Apontou
a pistola-metralhadora para Colossus e disparou. Uma nova rajada do
monstro metálico deixou-a quieta numa posição contorcida, como uma
boneca partida.
“Meu Deus!”, gritou Maria Flor. “Matou-a!”
Dois mortos em poucos segundos.
“Os dados biométricos não registam a pulsação de Chang”, indicou Hector
pelo intercomunicador. “Equipa Ómega, o que se passa? Señor Noroña!
Informe, por favor!”
Ignorando as intervenções do marine, Tomás concentrou-se no gravíssimo
problema que tinha em mãos. Não havia tempo a perder. Aproveitando o
facto de Colossus estar ainda com o corpo virado para Chang e Dragão
Vermelho, deu a volta pelo outro lado, contornando o gigante, e chegou às
escadas. No momento em que ia descer, deparou-se com vários soldados a
escalar os degraus. Num gesto instintivo, apontou a pistola-metralhadora
para eles e disparou, acertando no da frente e forçando os restantes a
recuarem num tropel e a emboscarem-se no piso inferior.
Por ali não poderia ir.
“Señor Noroña, o que se passa?”
Recuou um passo e viu Colossus voltar-se para eles. Estavam perdidos.
Mesmo que escapassem ao próximo ataque, para onde poderiam ir? Ainda
que de alguma forma conseguissem sair da torre, teriam a seguir de
enfrentar o que restava da guarnição. E supondo que conseguissem escapar
aos soldados chineses, como abandonariam a ilha? No plano original, o
monstro metálico era o meio de fuga, mas o hacking do programa de
Colossus tudo mudara.
Não havia dúvida, estavam perdidos.
“Señor Noroña?”
A máquina virou a metralhadora na direção deles. Até podiam estar
realmente perdidos, mas era próprio da natureza humana manter
a esperança e fugir ao perigo, pelo que Tomás reagiu instintivamente.
No momento em que o gigante metálico abriu fogo, deu um salto
impulsionado pelo exosqueleto e chegou à janela. A sua ideia era lançar-se
por ela, custasse o que custasse, e escapar assim à armadilha em que a torre
se havia transformado.
Puxou a estrutura de vidro e voltou-se para a mulher para a preparar para
o grande salto.
“Pronta?”
Foi só nesse instante que percebeu que ela estava inerte, os olhos vidrados
e com sangue no corpo. Tinha sido atingida. Ao vê-la assim, sentiu um
violento baque no peito.
“Señor Noroña, por favor informe!”
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
“Florzinha?”
A realidade abateu-se sobre ele com uma violência inaudita. Tinha-a
perdido.
LXIX

O véu amarelado da poeira cobria o Sol, tornando-o uma bola vermelha.


Com um assobio penetrante, o vento levantava as areias do deserto e fazia-as
girar em remoinhos até vergastarem a estrada e o autocarro como mil
chicotes em fúria. As janelas tilintavam com os impactos de pequenos
calhaus projetados pela tormenta seca e Madina, receando que os vidros se
partissem, afastou-se dois palmos. Já tinha ouvido muitas vezes falar nos
impressionantes furacões negros do deserto de Taklamakan, tão temidos
pelas caravanas desde os tempos da Rota da Seda, e presumiu que se tratava
de uma dessas tempestades.
O autocarro acelerou, tentando escapar à ira do furacão negro, mas
Madina não descolava os olhos das dunas do deserto. Já ali tinha estado uma
vez na sua infância, visitando o Taklamakan com os pais e os irmãos num
dia tranquilo por alturas de uma festa tradicional, e sabia que se
multiplicavam por ali os mazars, pequenos santuários erguidos em memória
de um qualquer santo ou herói pré-islâmico venerado pela população
uigure. Por mais que procurasse, todavia, desta feita não conseguia lobrigar
nenhum. Só a ocasional caveira nua de um camelo ou umas ossadas brancas
de raposa. Não era difícil perceber porquê. O Partido mandara destruir
todos os locais de devoção, pois só a “verdadeira” cultura chinesa era
autorizada. Os restantes povos da China não passavam de bárbaros
inferiores.
A viagem prolongava-se já por o que parecia ser uma verdadeira
eternidade. Uma distância que em circunstâncias normais levaria duas horas
e meia a ser percorrida, prolongava-se por nove horas por causa dos
sucessivos postos de controlo. Por m, uma tabuleta anunciou
a aproximação a Kashgar. O deserto de Taklamakan era rodeado pelas
Altishahr, palavra uigure que signi cava seis cidades, em referência às seis
povoações oásis que cercavam aquele vasto mar de dunas. Uma dessas
cidades era justamente Kashgar, a grande capital do Sul, situada na ponta
ocidental do deserto.
À entrada da cidade estava um checkpoint diante do qual o autocarro se
imobilizou. Os viajantes uigures, cazaques e quirguizes tiveram de sair para
que os bao’an veri cassem os bilhetes de identidade e os smartphones e se os
algoritmos do computador central os assinalavam como pessoas suspeitas,
enquanto os han permaneceram no veículo sem que ninguém os
importunasse. Em todos os postos de controlo era assim. Também as
bagagens dos viajantes das minorias foram inspecionadas uma a uma, mas
ninguém tocou nas malas dos han.
Depois da veri cação de segurança, os passageiros das minorias
regressaram ao autocarro e este entrou en m em Kashgar. Madina
lembrava-se de uma urbe buliçosa, repleta de gente em vestes típicas dos
uigures, com tendas e camelos e bazares a espraiarem-se em todas as
direções, uma espécie de oásis mágico onde soavam autas e as multidões se
moviam animadamente por ruas estreitas ou se juntavam em silêncio numa
praceta do bazar para escutar um contador de histórias que recitava em
verso narrativas fantásticas de civilizações esquecidas, reis lendários, heróis
míticos, caravanas perdidas, espíritos errantes que assombravam o deserto.
Kashgar, a mais uigure das cidades uigures, encarnava a alma do que
signi cava ser uigure. Fora isso o que a maravilhara quando em pequena a
visitara.
A Kashgar que reencontrou estava irreconhecível. As ruas apresentavam-
se quase vazias, havia checkpoints de duzentos em duzentos metros, os bao’an
e os polícias han juntavam-se em grupos fortemente armados para
inspecionar os raros uigures que se aventuravam a sair de casa, e as próprias
casas estavam cercadas por vedações como se fossem prisões. Todos os
postes e fachadas de edifícios ostentavam câmaras de videovigilância que
tudo captavam. O eufemisticamente designado Programa de Reti cação de
Mesquitas tivera como resultado a demolição ou a mutilação de muitos
edifícios religiosos. Aqui, onde antes havia uma mesquita, estavam agora
latrinas públicas; ali, onde outrora se erguera um santuário, podia ver-se
nesse momento um supermercado. A mesma cidade, mas totalmente
diferente.
Após uma noite inteira a viajar desde Karamay, o autocarro imobilizou-se
junto à Cidade Velha e descarregou os passageiros. Madina apeou-se e
afastou-se de imediato. Como não queria dar nenhum sinal de que planeava
fugir, não trouxera bagagem; apenas um saco. Enquanto caminhava tirou o
telemóvel da carteira e digitou o número que Li lhe deixara no envelope com
o contacto do contrabandista e as instruções sobre como proceder e o que
dizer.
Uma voz masculina atendeu do outro lado.
“Alô?”
“Bom dia. Posso encomendar uma pizza Primavera?”
“Uh… a entrega só será possível daqui a duas horas, minha senhora. Qual o
local?”
“Por baixo da estátua do nosso herói eterno, o grande timoneiro Mao Tsé-
tung.”
“Com certeza, minha senhora.”
O homem desligou.
Para passar o tempo, Madina foi dar uma volta pela Cidade Velha. A sua
ideia era recordar a Kashgar da sua infância, a Kashgar que os séculos
haviam moldado e que durante dois mil anos se destacara, altiva, como um
dos principais pontos de passagem da lendária Rota da Seda. Porém, essa
cidade já não existia.
O enorme edifício amarelo da Mesquita de Id Kah, que remontava ao
século , estava rodeado de câmaras de vigilância e de polícias, quase como
se estes a tivessem sitiado. Ninguém pelos vistos se atrevia a lá entrar. Mas o
mais chocante eram as ruas. Do labirinto da velha Kashgar já quase nada
restava. Muitas casas tradicionais uigures haviam sido demolidas e imensas
ruelas alargadas e transformadas em ruas e até avenidas. Madina lembrava-
se de ter lido que as autoridades tinham alterado aquela zona porque os
velhos edifícios e as ruas estreitas representavam um risco em caso de
terramoto, mas ela, tal como a generalidade dos uigures, sabia que isso não
passava da habitual linguagem eufemística do Partido. O que realmente
preocupava as autoridades não eram os terramotos, mas a possibilidade de
os uigures se revoltarem e usarem as velhas ruelas para desa arem o Partido
e depois escaparem à Sua mão justiceira.
Quando a hora chegou, Madina plantou-se à sombra da gigantesca estátua
de Mao na Praça do Povo e aguardou. Como em toda a parte da cidade, e
em bom rigor por toda a Xinjiang, as câmaras de videovigilância eram
omnipresentes. A rapariga manteve-se tranquila. Decerto que os algoritmos
a haviam já identi cado, e era até possível que a tivessem sinalizado à polícia
como sendo uma “estudante” reabilitada, mas o documento a convocá-la
para uma reunião do Partido em Kashgar e a autorização de deslocação que
a senhora Ting lhe passara em nome da comissão do bairro também tinham
sido inseridos no sistema. Isso silenciaria os alertas.
Dez minutos depois, um homem de óculos escuros, com um boné
enterrado na cabeça e de farda de uma popular marca de pizzas vestida,
abeirou-se dela a segurar uma caixa de cartão como se fosse uma bandeja.
“Foi a senhora que encomendou uma Margarita?”
Tratava-se da senha.
“Desculpe, o que encomendei foi antes uma pizza Primavera.”
A contrassenha.
“Ah, peço desculpa! Enganei-me! Venha comigo, vou trocar-lhe esta
Margarita por uma Primavera.”
Atravessaram a praça e, coxeando, o homem encaminhou-se para uma
carrinha com o logótipo da marca de pizzas. Pela maneira como falara,
Madina percebeu que era um cazaque; tratava-se decerto do contrabandista
que no mês anterior Li pusera de sobreaviso para a ajudar. O cazaque
sentou-se ao volante e Madina acomodou-se no lugar ao lado. A carrinha
arrancou e enveredou pelas ruas de Kashgar.
“Chamo-me Uali”, identi cou-se o homem sem mexer os lábios, como
todos faziam para que os algoritmos que inspecionavam as imagens das
câmaras de videovigilância não conseguissem perceber o que diziam. “Sou
eu quem a vai levar. Na bolsa da porta ao seu lado está um estojo com uma
autorização de deslocação ao campo-base do Dapsang para efeitos de
alpinismo. Junte-o aos seus documentos.”
Dapsang era o nome que a população local dava ao K2, a segunda maior
montanha do mundo. A parte sul do K2 situava-se no Paquistão, a parte
norte em Xinjiang, na China. Madina pegou na referida autorização e
guardou-a no envelope onde estavam os seus restantes documentos.
A carrinha virou de repente para uma garagem e entrou. Abandonaram a
viatura e, já a caminhar normalmente, Uali conduziu-a a um compartimento
ao lado da garagem.
“Tem aí roupa para alpinismo”, indicou-lhe. “Esteja pronta para sair daqui
a meia hora.”
O cazaque deixou-a no compartimento e foi à sua vida. Madina constatou
que estava numa espécie de balneário e que tinha várias opções de roupa
desportiva ocidental própria para a neve. Escolheu as peças de que mais
gostava e que lhe serviam, despiu o uniforme azul do Partido e vestiu a
roupa desportiva, completa com botas de montanhista. Mirou-se ao espelho;
dir-se-ia uma fanática das escaladas em alta montanha, como tantos turistas
ocidentais.
Meia hora depois, Uali reapareceu. Vinha tão diferente que ela quase nem
o reconheceu. Tinha agora ar de guia de montanha, pois trocara a farda de
distribuidor de pizzas por roupas tradicionais de montanhismo.
Transformara-se numa espécie de xerpa à moda de Xinjiang.
“Vamos.”
Madina seguiu-o. Ver o cazaque a caminhar normalmente estava no
entanto a intrigá-la.
“Desculpe, mas há pouco, quando atravessávamos a Praça do Povo para a
sua carrinha, o senhor coxeava e agora…”
Ele sorriu.
“É por causa das câmaras”, esclareceu. “Mesmo não vendo a cara de uma
pessoa, os computadores dos chineses identi cam os transeuntes pela forma
como caminham. Aprendi uma maneira de coxear que os engana.”
Uali conduziu-a de regresso à garagem. No local estavam quatro jipes,
todos com logótipos a mostrar uma montanha branca sobre o nome
Karakoram Adventure, e uma quinzena de pessoas à conversa. Ao abeirar-se
delas, Madina percebeu que havia três uigures com ar de guias de montanha.
Os restantes eram turistas estrangeiros.
“All on board!”, ordenou Uali em inglês. “Todos a bordo! A grande
aventura vai começar!”
Um burburinho de excitação percorreu o grupo de estrangeiros. “Wow!
Let’s do it!”, exultou alguém com entusiasmo, enquanto outro dizia “Ça va
bouger, quoi!” e uma terceira pessoa exclamava: “Ahora está en marcha!”
As portas abriram-se, todos se instalaram nos jipes, as portas fecharam-se
e a caravana arrancou.
Saíram da garagem e, em la indiana, mergulharam nas ruas de Kashgar.
Madina ia na terceira viatura, conduzida por Uali. No banco de trás vinham
três turistas em conversa animada.
O cazaque virou-se para ela.
“Fala inglês, não é verdade?”
“Sim.”
“Será útil para o seu disfarce.”
Madina indicou os três turistas no banco traseiro.
“Que língua é esta?”
“Castelhano. Dois são espanhóis e um é chileno. Fazem uma algazarra que
só visto.”
“E os que vêm nos outros carros?”
“São franceses, canadianos e brasileiros. Há também um turco, um
búlgaro e um húngaro.”
Tiveram de parar à saída de Kashgar, pois um checkpoint bloqueava a
estrada. Madina cou nervosa. A viagem que zera durante a noite de
Karamay até Kashgar fora inteiramente regular, graças aos documentos que
Li e a senhora Ting lhe haviam entregado, pelo que nada tivera a recear. Já
não tinha tanta certeza quanto à autorização de deslocação ao campo-base
do K2 que Uali lhe dera meia hora antes. O documento seria mesmo
genuíno?
Os bao’an que operavam o posto de controlo começaram a veri car
os documentos dos motoristas e passageiros dos jipes da frente e tudo
parecia decorrer normalmente. Quando chegaram à terceira viatura, Uali
passou-lhes para as mãos todos os documentos dos ocupantes. Os agentes
de segurança veri caram cada um no sistema.
Depois de fazerem os habituais scan, os bao’an pareceram de repente car
com dúvidas e abeiraram-se de Madina.
“Os seus documentos estão todos em ordem, exceto a autorização para ir
ao Qogir Feng.”
Qogir Feng era o nome chinês para o K2.
“Essa autorização foi passada esta manhã”, interveio Uali, indo em socorro
dela. “Provavelmente ainda não entrou no sistema.”
“A senhora tem de ter todos os documentos em ordem.”
“Mas ela é a tradutora”, argumentou o cazaque. “Bem vê, nós não
passamos de simples motoristas. A nossa tradutora habitual adoeceu
e tivemos de arranjar esta senhora em cima da hora, o que atrasou a emissão
da autorização de deslocação. Sem ela, a caravana não pode prosseguir
porque ninguém conseguirá falar com os turistas.”
“Azar o vosso.”
Uali não se deu por vencido.
“Oiça, estes estrangeiros são considerados zhongguó pangyao, amigos da
China, porque fazem a propaganda do Partido nos seus países. Vejam quem
assinou os documentos deles e perceberão que estamos a falar de pessoas
muito importantes. O Partido não iria gostar nada de saber que vocês
impediram esta viagem só porque a autorização da tradutora contratada à
última hora ainda não entrou no sistema. Não me admiraria nada que, se
isso acontecer, haja umas despromoções e até despedimentos…”
Os bao’an veri caram as assinaturas nos documentos de deslocação dos
turistas e constataram que o seu autor era o próprio chefe do Partido em
Kashgar. Ninguém queria problemas com uma personalidade tão
importante. Sem mais delongas, abriram passagem e a caravana arrancou.
A linha do horizonte parecia uma serra que se perdia de vista, um
ziguezague de linhas distantes a rasgarem o céu. Muitos picos nevados
contrastavam com o céu azul límpido, enquanto outros se ocultavam nas
nuvens que os abraçavam. A sucessão de montanhas era impressionante,
mas uma delas destacava-se das restantes pela sua volumetria, um colosso
que tornava anões os outros gigantes.
O cazaque percebeu a curiosidade da sua passageira.
“É o Dapsang.”
A viagem durou algumas horas e envolveu passagens por sucessivos
checkpoints. Os problemas repetiam-se a cada um deles e resolviam-se
sempre da mesma maneira. Os jipes chegaram assim ao sopé da cordilheira
do Karakoram, integrada no complexo de cordilheiras que incluía o Hindu
Kush e os Himalaias, e começaram a subir aos ziguezagues por estradas
sinuosas em direção ao K2.
Quando ultrapassaram o último controlo de estrada, Uali simulou uma
avaria e os seus três passageiros tiveram de passar para um dos outros jipes.
O resto da caravana com os turistas arrancou para o campo-base do K2.
En m a sós com Madina, o cazaque esperou que as restantes viaturas
desaparecessem na estrada para arrancar também, só que por um trilho
apenas conhecido por ele. Tratava-se de um caminho estreito de seixos
redondos que a certo ponto se transformou num ribeiro. A água gelada
descia por aí com um gorgulhar fresco; era a neve que acabara de se derreter
nas alturas.
O jipe progredia devagar, aos solavancos. Ao m de meia hora, abandonou
o ribeiro e meteu por outro trilho de seixos até ir dar ao que parecia ser uma
gruta.
“É uma mina abandonada.”
Depois de guardar o jipe no interior da gruta, assim o colocando ao abrigo
de olhares indiscretos, Uali indicou a Madina que o seguisse. Embrenharam-
se ambos pela gruta, guiados pela lanterna que o cazaque levava na mão, e
desembocaram numa complicada sequência de passagens exteriores e
túneis. Caminhavam evidentemente por um velho caminho de
contrabandistas.
Prosseguiram assim durante três horas. Fazia um frio agreste,
intensi cado pelo vento cortante que descia das montanhas. A certa altura,
quando o Sol se deitava já por detrás da cordilheira e o céu começava a
escurecer, o caminho tornou-se descendente. A tarde aproximava-se do m.
Caminharam ainda durante meia hora, sempre a descer por um trilho
minúsculo. A determinada altura, já bem perto do crepúsculo, chegaram
a uma pequena clareira com vista panorâmica. Uali parou e apontou para
um local lá em baixo.
Madina espreitou e viu a bandeira do Paquistão. Beliscou-se, para se
assegurar de que não sonhava. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e
sentou-se sobre uma pedra, a contemplar a bandeira. Chorou
convulsivamente. Conseguira o impossível. Saíra do imenso campo de
concentração que Xinjiang se tornara.
LXX

Apanhado pelas balas da metralhadora de Colossus, o corpo de Maria Flor


jazia inerte no chão. Na mente de Tomás Noronha, uma única ideia.
Perdera-a. Assim, sem mais nem menos. Agarrou a mulher com força e
contraiu-a contra o peito como se com ela se quisesse fundir uma derradeira
vez, entregue à sua miséria e ao seu desespero. Sim, perdera-a. Nada mais
ocupava a sua mente que essa terrível constatação.
Sentiu Colossus aproximar-se e cou indiferente ao que lhe pudesse
acontecer. Que o matasse também. Que lhe importava isso se tudo estava
perdido? Sim, era verdade que isso signi caria que eles ganhariam, que o
crime compensava, que a mulher morrera em vão… Colossus apontava a
metralhadora pesada para ele. No momento em que o monstro metálico ia
disparar, no entanto, uma fúria imensa invadiu-lhe a alma. Não, Maria Flor
não morreria em vão! Charlie Chang e Dragão Vermelho não morreriam em
vão! Ele próprio não morreria em vão! Eles não podiam ganhar! Não, não!
Isso nunca!
Sem que nada o zesse supor, uma raiva louca a revolutear-lhe o espírito e
cego pelas lágrimas que lhe encharcavam os olhos, largou a mulher e atirou-
se em cólera contra o gigante de aço. Empoleirando-se sobre os ombros dele,
agarrou-lhe a cabeça e puxou-a com toda a força, tentando arrancá-la a
qualquer custo, como um maníaco descontrolado. Apanhado em contrapé
por este movimento súbito, rápido e inesperado do adversário, quem quer
que controlasse Colossus cou momentaneamente sem saber o que fazer.
Essa hesitação foi quanto bastou para Tomás cair em si e perceber que se
abrira uma inopinada janela de oportunidade. Para a aproveitar, tinha de
manter a cabeça fria. Não era um momento para ser desperdiçado num
ataque inútil de fúria.
“Hector, estou montado sobre Colossus”, informou com uma voz
subitamente fria. “Onde é o botão?”
“Na nuca”, foi a resposta imediata do espanhol. “Desligue-o no botão da
nuca!”
Nesse momento, quem controlava o monstro metálico reagiu en m e
contorceu o braço, agarrando Tomás para o arrancar do dorso de Colossus.
Sentindo as garras de aço fecharem-se nele e puxá-lo, o português esticou-se
e com a ponta do indicador premiu o botão que encontrou na nuca do
gigante.
Colossus imobilizou-se.
“Já está.”
“Desligou-o?”
Tomás examinou a máquina com atenção. Encontrava-se de facto
imobilizada.
“Sim. O que faço agora?”
“Ligue-o outra vez!”
A ordem fez o português hesitar. Ligar Colossus de novo? Que ordem
vinha a ser aquela? A ideia parecia-lhe louca. Absolutamente disparatada. Se
o monstro acabara de matar Maria Flor, Chang e Dragão Vermelho, e se
desligá-lo fora quase apenas um golpe do acaso, que sentido fazia reiniciá-
lo?
“Tem a certeza?”
“Sim. Ligue-o já!”
Uma perfeita loucura. Tudo nele dizia para não o fazer. Mas dominou o
impulso. Se Hector dizia para ligar Colossus, teria de con ar no marine. A
ordem parecia-lhe um total absurdo, e provavelmente ele próprio pagaria
com a vida por con ar contra tudo o que o bom senso ditava, mas se não
con asse em Hector como poderia sair dali? Inspirando fundo, como quem
se preparava para se lançar num abismo, Tomás obedeceu.
“Seja o que Deus quiser.”
Voltou a premir o botão e fechou os olhos, esperando o pior. Ouviu um
ruído elétrico e sentiu Colossus a ativar-se. Aguardou que o gigante de aço o
arrancasse do dorso e o esmagasse contra a parede ou zesse algo pior. Em
vez disso, constatou que as garras da máquina o libertaram.
“Você… você é o único sobrevivente?”
O tom chocado das palavras de Hector mostrava que o espanhol tinha
reassumido o controlo de Colossus e já conseguia observar o que as
microcâmaras na cabeça da máquina registavam e transmitiam para
Bethesda.
Com a alma pesada, Tomás desceu do monstro metálico e ajoelhou-se
sobre o corpo de Maria Flor, tombado diante da janela. Pegou nela com
in nito cuidado e levantou-a, disposto a carregá-la até onde tivesse de a
carregar. Com ela ao colo, encarou o monstro de aço.
“Vamos.”
Colossus apontou para os cadáveres de Chang e de Dragão Vermelho.
“E eles?”, perguntou Hector. “Hombre, não os podemos deixar aqui.”
Não é que Tomás não quisesse saber deles, mas a perda de Maria Flor
deixara-o entorpecido. Sacudiu a cabeça, tentando libertar-se da sua letargia
emocional. Sim, claro, Chang e Dragão Vermelho teriam também de ser
levados. Não havia dúvidas sobre isso. O problema era que Colossus havia
perdido um braço e o outro era necessário para usar a metralhadora pesada.
“Vá à frente a abrir caminho e eu levo-os atrás.”
Tirando partido da força extra que lhe era conferida pelo exosqueleto da
DARPA, o português pegou nos corpos de Chang e Dragão Vermelho com o
braço esquerdo enquanto segurava o de Maria Flor com o direito.
Constatando que estavam a postos para a surtida, Colossus encaminhou-se
para as escadas, a metralhadora pesada em punho, e começou a descê-las.
Os elementos da guarnição emboscados no piso inferior receberam-no a
tiro, mas o gigante metálico varreu-os com a sua M2A2. Tomás seguia no
encalço com os três corpos nos braços, protegendo-se por detrás do enorme
volume de aço formado por Colossus.
O interior da torre cou limpo. Diante da porta para o exterior, o monstro
de metal metralhou as posições onde identi cou guardas inimigos. Quando
estes se abrigaram, Colossus largou a metralhadora e voltou-se para trás,
pegando em dois cadáveres, os de Chang e de Dragão Vermelho.
“É a hora do tudo ou nada”, disse Hector. “Vamos!”
O gigante de aço desatou a correr. Sempre a segurar Maria Flor com
o braço direito, Tomás correu atrás dele, o braço esquerdo a premir o gatilho
da pistola-metralhadora e a largar ocasionais rajadas em direção aos
sobreviventes da guarnição, mantendo-os assim em respeito.
Chegaram ao limite da ilha arti cial e lançaram-se à água, Colossus a
fazer-se valer do sistema de propulsão nos pés e Tomás a bene ciar do
mecanismo hidráulico do exosqueleto da DARPA para acelerarem para
longe de Cuarteron Reef. Algumas balas impactaram na água em redor, mas
àquela distância seria difícil aos atiradores chineses atingi-los.
Um vulto metálico escuro emergiu majestosamente das águas à frente dos
fugitivos. Tomás começou por se assustar, pensando que um submersível
chinês lhes cortava a retirada, mas a con ança com que Colossus se dirigiu
para a enorme embarcação mostrou-lhe que se tratava de um submarino da
Marinha de Guerra americana que os esperava para os acolher e levar para
porto seguro.
LXXI

Depois de ter avistado na rua os mesmos dois homens no espaço de


apenas uma hora, Madina cou descon ada. Talvez se tivesse tratado apenas
de uma coincidência, mas uma vida inteira a viver sob a vigilância do
Partido havia-a tornado especialmente atenta a determinados pormenores.
Considerando que o Partido tinha transformado o Paquistão num país
vassalo, graças à dívida colossal contraída pelos paquistaneses para com
Pequim devido à Nova Rota da Seda e que colocara o país à beira da
bancarrota, precisava de ter o maior dos cuidados. Com todos os meios de
vigilância ao seu dispor, decerto que por essa altura já o Partido havia
percebido que ela escapara para o Paquistão e com toda a probabilidade
ordenara às autoridades locais que a capturassem e a devolvessem, pelo que
toda a cautela não seria de mais. Não podia esquecer as inúmeras histórias
de uigures deportados para a China pelas autoridades paquistanesas em
obediência às ordens do Partido.
Felizmente, Li havia previsto tudo ao pormenor. Seguindo à risca as
instruções que o antigo amante lhe tinha deixado no envelope que lhe
entregara, Madina embrenhou-se nas ruas de Lahore e executou uma série
de manobras destinadas a despistar os homens, caso se tratassem mesmo de
agentes paquistaneses. Meteu-se num táxi, abandonou-o de repente diante
de uma rua estreita e cheia de transeuntes, embrenhou-se nessa multidão,
meteu por um café e saiu pelas traseiras, apanhou outro táxi e repetiu a
manobra mais duas vezes até dar consigo num bazar apinhado de gente.
Teve en m a certeza de que ninguém a seguia.
Entrou numa loja cuja vitrina estava repleta de trajes femininos
paquistaneses. Escolheu um vestido azul-escuro que lhe pareceu
su cientemente discreto para a ajudar a passar despercebida, mas ao
deparar-se com os lenços retraiu-se instintivamente. Perigo! Perigo!, gritou
uma voz na sua mente. Isto é perigoso! Sacudiu a cabeça, tentando livrar-se
dessa voz. Não podia continuar a vigiar cada pensamento, percebeu. Não
podia continuar a proibir-se de pensar livremente. Já não estava na China.
Se usasse um lenço na cabeça, ninguém ali a censuraria. Na verdade, seria
até encarada como normal. Já não estava na China. Tinha de se libertar dos
condicionamentos que o Partido lhe inculcara à custa de tantas proibições e
ameaças. Podia ser dona de si mesma. Se não o zesse, se não o conseguisse
fazer, então o Partido tinha ganho. Havia-a escravizado mesmo estando ela
fora da China. Essa vitória não Lha podia dar. Tinha de quebrar os grilhões
da escravidão. Tinha de ser en m livre.
Vencendo a relutância e o condicionamento que a tolhia, meteu-se atrás
de uma cortina, retirou a roupa desportiva ocidental de alpinista e pôs o
vestido azul-escuro que escolhera. No nal, pegou num lenço negro e cobriu
a cabeça para tapar o cabelo, como faziam as paquistanesas. Olhou-se por
m ao espelho. A metamorfose pareceu-lhe perfeita. Era como se fosse outra
pessoa. Não tinha dúvidas de que os agentes paquistaneses acabariam por
voltar a localizá-la, mas com aquele disfarce ganhara pelo menos algum
tempo. Talvez zesse a diferença.
Passou à fase seguinte do plano. Comprou numa bancada do bazar um
telemóvel barato, daqueles descartáveis, e sentou-se num banco por baixo de
uma gueira. Con rmou que a pen que Li lhe tinha entregado dentro do
envelope estava segura e digitou o número que o antigo amante lhe havia
dado.
Ao segundo toque, atendeu uma voz feminina em inglês.
“Embaixada dos Estados Unidos, bom dia.”
“Bom dia, minha senhora. Eu sei que isto soa um bocado louco, mas
venho da China e tenho informações ultrassecretas para partilhar com os
Estados Unidos. Por favor, ponha-me em contacto com alguém de
responsabilidade o mais depressa possível.”
“Uh… um momento, por favor.”
A chamada cou suspensa por uns dois minutos, alimentada pelo que
parecia ser uma música de hotel, até que outra pessoa, desta feita um
homem, apareceu em linha.
“Bom dia. Em que a posso ajudar?”
“Caro senhor, acabei de chegar da China e estou na posse de informações
ultrassecretas que são certamente do interesse dos Estados Unidos. Suspeito
que estou a ser perseguida e preciso urgentemente de asilo.”
“Se está a ser perseguida, minha senhora, sugiro que se dirija às autoridades
indianas…”
“Encontro-me neste momento no Paquistão”, esclareceu ela. “Sei que estou
a ligar para a embaixada dos Estados Unidos na Índia, mas contacto-vos por
uma questão adicional de segurança pois não con o na vossa embaixada em
Islamabad, decerto submetida a forte vigilância. De qualquer modo, a
fronteira indiana é aqui ao lado. Considerando no entanto a extrema
sensibilidade do documento que trago comigo, tenho a certeza de que a
Índia não me poderá proteger. Gostaria de solicitar asilo aos Estados
Unidos. Em troca, tenho a oferecer este documento top secret pertencente às
cúpulas do Partido Comunista Chinês.”
Fez-se um breve silêncio na linha.
“Desculpe, como se chama a senhora?”
“Lamento, não posso dar o meu nome.”
Novo silêncio.
“Hmm… que documento top secret é esse?”
“É o protocolo mais importante do Partido Comunista Chinês.”
“Sim, mas o que contém ele?”
“A grande estratégia secreta do Partido”, foi a resposta. “Não sei se o
senhor está familiarizado com o assunto, mas tenho a certeza de que este
telefonema está a ser gravado e seguramente que alguém do vosso lado
saberá entender estas expressões: ‘nongcun baowei chengshi’, ‘wai yuan nei
fang’ e ‘tao guang yang hui’ .”
Fez-se mais um silêncio, este prolongado.
“Okay”, assentiu o homem do outro lado da linha. “Oiça, se esse protocolo
for mesmo verdadeiro, conceder-lhe-emos asilo, que descansada. Diga-me
onde e quando nos poderemos encontrar.”
“Estou neste momento em Lahore, mas tenho maneira de atravessar a
fronteira e me pôr depressa em Amritsar. Sugiro um encontro esta noite no
santuário de Baba Deep Singh.”
“No Templo Dourado?”
“Sim.”
“Oiça, encontro-me neste momento em Nova Deli. Ser-me-á difícil chegar a
Amritsar esta noite. Pode ser amanhã de manhã?”
“Onze da manhã então.”
“Amanhã, onze da manhã, no santuário de Baba Deep Singh em Amritsar.
Got it.”
“Até amanhã.”
“Espere”, travou-a o americano. “Compreendo perfeitamente por que razão
não me pode dar o seu nome pelo telefone. Pode ao menos escolher um nome
de código que a identi que?”
Madina olhou para a peça de alta joalharia que Li lhe tinha oferecido e
que, se queria chegar depressa a Amritsar, teria de vender logo que aquele
telefonema terminasse. A peça era um amuleto em rubi, a joia vermelha, e
tinha o formato de um dragão.
“Dragão Vermelho.”
Depois de desligar, Madina ajeitou o lenço negro sobre a cabeça e fez-se ao
caminho, rumo ao seu encontro com o destino.
Epílogo

Nos dedos já quase não havia unhas para serem roídas. O corredor do
hospital de Okinawa tinha o cheiro assético típico dos hospitais e Tomás
Noronha estava ali sentado havia cinco horas à espera de novidades. Na
mente reconstituía repetidamente o momento fatídico da missão, aquele em
que Maria Flor fora baleada por Colossus. Se ao menos tivesse agido mais
cedo para desligar o monstro metálico. Se ao menos tivesse sido um pouco
mais lesto nos seus movimentos para escapar aos disparos. Se ao menos
tivesse saltado da janela com ela nos braços. Se ao menos…
A palavra “se” era talvez a mais terrível das palavras aparentemente
inócuas das línguas humanas. Quantos acidentes estúpidos, quantas mortes
inúteis, quantas tragédias não teriam sido evitadas “se”, no instante em que
ocorreram, alguém tivesse tomado uma decisão ligeiramente diferente? Se
não tivesse feito aquela curva, se tivesse saído de casa três segundos mais
cedo ou cinco segundos mais tarde, se não tivesse ido visitar a prima.
Se.
A verdade é que o “se” só existia na mente das pessoas. A realidade não
tinha “ses”. No mundo real, as coisas simplesmente aconteciam. Sem
alternativas. Talvez tudo conspirasse para que elas sucedessem daquela
maneira, daquela e não de outra, e as opções se reduzissem a uma ilusão. O
“se” não passava do fantasma de uma decisão que não fora tomada, a
sombra angustiante de uma potencialidade que nunca se realizara, a tragédia
da opção que não fora seguida e cujos efeitos se tornavam penosamente
evidentes quando tudo se desmoronava. O mundo não conhecia “ses”. Mas,
na hora do desastre, a mente dos sobreviventes estava cheia deles.
O mundo sem “ses” era o mundo dos factos. O facto é que Maria Flor fora
atingida. O facto é que a havia conseguido transportar, a ela, a Charlie
Chang e à mulher do lenço negro, para o submarino. O facto é que Maria
Flor estava nesse momento a ser operada no hospital de Okinawa. O facto é
que o médico japonês o avisara de que a situação era muito delicada e que
deveria preparar-se para o pior. O facto é que ele se encontrava havia cinco
horas sentado naquele banco do corredor do hospital a roer as unhas
enquanto esperava para saber se ela sobreviveria ou não. Esses eram os
factos. Os “ses” não passavam de mundos que não existiam.
Sentiu alguém sentar-se ao lado; era o coronel Poulson.
“Então?”, perguntou o comandante da base aérea de Kadena. “Há
novidades?”
Tomás abanou a cabeça, sombrio.
“Não.”
O coronel pôs-lhe a mão no ombro para o confortar.
“Tenha con ança”, disse. “Os médicos japoneses são muito meticulosos, já
os vi fazerem verdadeiros milagres. E o doutor Hamato é um craque. Ela vai
safar-se.”
“Como o Charlie Chang?”
A referência ao operacional da CIA igualmente baleado na operação foi
feita com irritação, quase como uma censura.
“A perda do nosso homem foi dura. Mas desde o início que sabíamos, e ele
também sabia, que havia uma elevada probabilidade de ninguém voltar
vivo.”
O português arrependeu-se do seu remoque, na verdade nascido da
angústia em que vivia por causa da operação da mulher. O americano tinha
razão. Ninguém embarcara naquela missão sem conhecer os riscos, a
começar por Chang e por ele próprio. Todos sabiam que havia uma vertente
suicida na operação de assalto a Cuarteron Reef. Se avançaram, zeram-no
de olhos abertos, conscientes do que estava em jogo e de todos os perigos
envolvidos. Tomás zera-o pela sua Maria Flor, Chang pela sua China.
“Desculpe, estou muito nervoso.”
“Eu sei.”
Ficaram ambos um longo momento em silêncio. O coronel Poulson tinha
aparecido para o confortar, mas o que poderia verdadeiramente dizer
naquelas circunstâncias? Que Maria Flor se iria safar? Como sabia ele isso?
Talvez fosse de facto melhor nada dizer. Ficar ali sentado, a fazer companhia
ao homem cuja mulher lutava pela vida na mesa de operações, era talvez a
única coisa que poderia fazer.
Ouviram uma porta abrir ao fundo do corredor e um homem de bata
encaminhou-se para eles. Reconheceram o cirurgião japonês que estava a
operar Maria Flor. Tomás pôs-se imediatamente de pé e olhou com
ansiedade para o médico, tentando ler-lhe a notícia no rosto.
“Noronha-san?”
“Sim?”
O médico chegou ao pé dele e fez uma vénia. Quando se endireitou,
esboçou um sorriso.
“A operação correu bem.”
Ao ouvir a notícia, o português deu um salto que misturava alívio e
alegria.
“Obrigado, doutor! Obrigado!”
Estava tão feliz que se sentia capaz de o abraçar e beijar.
“Foi uma intervenção muito delicada, pois as balas provocaram danos
internos e algumas hemorragias perigosas, mas felizmente nenhum órgão
vital foi atingido e conseguimos resolver as complicações. Agora a natureza
fará o resto. Ela é jovem e forte e, em princípio, não sofrerá danos
permanentes.”
Tomás soprava de alívio.
“Excelente! Excelente! E… e quando a poderei ver, doutor?”
“A sua mulher foi agora para o recobro. Penso que irá acordar daqui
a quarenta minutos, uma hora no máximo. Quando isso acontecer, a
enfermeira virá chamá-lo e o senhor poderá estar um pouco com ela.”
Ainda apertava a mão do médico com força.
“Obrigado. Muito obrigado.”
“Não tem nada que agradecer, Noronha-san. Sabe, a minha família é
originária de Nagasáqui, cidade que foi construída pelos portugueses. Foram
os portugueses que nos abriram as portas do Ocidente e os japoneses nunca
esquecem a história. Foi por isso um imenso prazer ter podido salvar uma
porutogaru-jin.”
Despediram-se com uma vénia. Tomás sentia-se esfuziante e regressou aos
pulos para junto do comandante da base aérea.
“Eu não lhe tinha dito?”, sorriu o coronel Poulson. “Os médicos japoneses
fazem verdadeiros milagres.”
Se pudesse, também abraçaria e beijaria o o cial americano.
“Tinha razão, tinha razão.”
O coronel consultou o relógio.
“Oiça, ainda vai levar algum tempo até que possa ver a sua mulher. Não
quer ir comer qualquer coisa?”
“Daqui não saio enquanto não a vir”, foi a resposta rme. “Agradeço a sua
ajuda, coronel, mas sei que é um homem muito ocupado. Vá à sua vida e eu
carei aqui tranquilo, não se preocupe comigo.”
“Nem pensar. Fico a fazer-lhe companhia até que o chamem.”
“Não o quero prender, coronel…”
“Está decidido.”
Sentaram-se ambos no mesmo banco comprido do corredor e Tomás
voltou a respirar fundo. Um terrível peso tinha-lhe saído do corpo e tudo lhe
parecia agora alegre e colorido. Até o cheiro assético do hospital se tornara
perfume. Além de que o que sobrava das unhas cara nalmente a salvo dos
seus dentes.
Uma vez aliviado da enorme preocupação em relação à mulher, no
entanto, a sua mente libertou-se para tudo o resto. No m de contas, a
missão de resgate a Cuarteron Reef não fora organizada simplesmente para
salvar Maria Flor. Havia mais do que isso em jogo. Muito mais.
“A minha mulher escapou, mas perdemos o nosso Charlie”, observou,
refreando a sua própria alegria. “Feitas as contas, coronel, acha que valeu a
pena?”
“Está a referir-se ao dossiê que Dragão Vermelho nos trouxe?”
“Sim.”
O comandante da base abanou a cabeça.
“Lamento, não lhe posso dar pormenores sobre o seu conteúdo. Top
secret.”
O português encarou-o com a expressão de quem não aceitava aquela
resposta.
“Ó coronel, não me venha com tangas. Se o Ocidente está agora na posse
desse documento, também a mim o deve. Eu próprio arrisquei a minha pele
em toda esta história… e o senhor nem sequer se digna a explicar-me o que
ele revela?”
O coronel Poulson coçou o couro cabeludo, avaliando a questão. Era
verdade que o dossiê era con dencial. Mas o seu interlocutor não deixava de
ter razão. O mundo estava em dívida para com ele. O que Tomás zera
valia-lhe alguns direitos.
“Okay, vamos fazer assim: não lhe posso mostrar o conteúdo do
documento, é material que Washington considerou con dencial e não tenho
maneira de contornar essa decisão. Mas, de facto, você acabou por se revelar
uma peça-chave nesta operação, isso é inegável. Quem pode garantir que
não deu uma olhadela à socapa ao dossiê e cou com uma ideia sobre o seu
conteúdo?”
Disse-o com ar sonso, como se convidasse Tomás a alinhar na charada.
“Sim, quem pode garantir isso?”
“Portanto, o que lhe vou dizer não fui eu quem lho disse, entendeu? Nem
o pode reproduzir a ninguém.”
“Fique descansado.”
O americano considerou por momentos a melhor forma de explicar o
conteúdo do dossiê.
“Não é ainda clara a forma como Dragão Vermelho chegou à posse deste
conjunto de documentos. Segundo o que pudemos perceber, ela pertencia a
uma minoria étnica na China, uma uigure de Xinjiang, e estava liada no
Partido Comunista Chinês, embora não passasse de uma militante sem
qualquer relevância. O que nos suscita perplexidade sobre como chegou ela
à posse de um dossiê tão importante. Estamos ainda a investigar o assunto,
mas acreditamos que estes documentos são genuínos, vieram do interior do
Partido Comunista Chinês e representam de facto a grande estratégia
secreta da China. Supomos que uma gura bem posicionada no Partido,
preocupada com o rumo do país, lhos entregou para que ela os zesse
chegar a nós. A nossa teoria é que Dragão Vermelho foi escolhida porque,
sendo provavelmente uma uigure, estaria altamente motivada para trair
o Partido. Não sei se sabe, mas os comunistas recriaram na China os campos
de concentração e encerraram aí até três milhões de uigures, o que não faz
deles grandes amigos do Partido.”
“Sim, as organizações de defesa dos direitos humanos têm denunciado
insistentemente o alargamento dos laogai às perseguições étnicas em
Xinjiang. O dossiê que Dragão Vermelho nos trouxe expõe esses campos de
concentração?”
“O documento não aborda os laogai. O seu âmbito é outro.” Cruzou a
perna. “Até que ponto está o senhor familiarizado com os jogos de poder
que há milhares de anos conduziram à constituição da China como país?”
“Está a referir-se ao Período dos Estados em Guerra?”
O coronel Poulson riu-se.
“Ah, pois! O senhor é historiador…”, lembrou-se. “Conhece então o tema
principal dessas lutas…”
“Se bem me recordo, as narrativas sobre o Período dos Estados em Guerra
encontram-se numa coleção de textos compilados na dinastia Han. O tema
principal das múltiplas alianças, traições, segredos e todos os jogos de poder
aí descritos era a forma como cada Estado agia para se tornar o ba, ou seja, o
Estado mais forte. O ba era a potência hegemónica, aquela que tinha mais
poder do que os outros Estados.”
“No mundo de hoje, qual é na sua opinião o ba?”
“O Ocidente, claro. A vitória do Ocidente sobre a União Soviética
na Guerra Fria signi cou a vitória da democracia sobre a ditadura, da
liberdade sobre a autoridade, do individualismo sobre o coletivismo,
da economia de mercado sobre a economia plani cada, da prosperidade
sobre o subdesenvolvimento, do primado da lei sobre o primado da força,
do liberalismo sobre o comunismo. A ordem que hoje domina o mundo é a
ordem liberal e os valores que dominam as instituições internacionais são
valores liberais. Isso só acontece porque o ba é o Ocidente, o berço e o farol
da democracia liberal. O conceito do respeito pelos direitos humanos, por
exemplo, é um conceito liberal, e o mesmo acontece com conceitos
concomitantes como a liberdade de expressão, a liberdade de opinião, a
liberdade de imprensa, a liberdade de assembleia, a liberdade de religião, a
independência do poder judicial, a delimitação de poderes entre várias
instituições, a scalização de poderes, o sistema de checks and balances…
en m, tudo o que é central nas democracias liberais.”
“E qual era a principal estratégia usada no Período dos Estados em Guerra
e defendida por Sun Tzu em A Arte da Guerra?”
“A dissimulação, claro.”
“Tenho a dizer-lhe que acabou de descrever o tema central do dossiê que
Dragão Vermelho nos trouxe.”
Tomás tou-o, intrigado, a tentar perceber o alcance da observação.
“O que quer dizer com isso?”
“A primeira coisa que tem de perceber é que o Partido Comunista Chinês
tem uma grande estratégia secreta desde que em 1949 subiu ao poder na
China”, revelou o comandante da base aérea de Kadena. “O documento que
Dragão Vermelho nos trouxe apresenta essa grande estratégia. Trata-se de
um conjunto de textos que circulam dentro do Partido Comunista Chinês e
que nunca foram traduzidos para outras línguas. Essa estratégia envolve a
dissimulação em grande escala, a começar pelos próprios textos. Uma coisa
é o que o Partido diz em público, outra é o que o Partido realmente pensa. O
dossiê revela-nos o que o Partido realmente pensa. O que nos conduz ao seu
verdadeiro objetivo.”
“Que é…”
“Já lá vamos, já lá vamos”, travou-o o coronel Poulson. “Sendo historiador,
explique-me primeiro por que razão o nome da China em chinês se diz
zhungguo.”
“Zhungguo quer dizer Reino do Meio e nasce do conceito de que a China é
o centro do mundo, o grande ba, a superpotência à qual todos prestam
vassalagem e todos se submetem”, respondeu Tomás. “Isso foi verdade na
Ásia durante milhares de anos. Até que os portugueses, e depois os
holandeses e os britânicos, chegaram às costas da China. Os chineses
chamaram-lhes bárbaros, mas a verdade é que esses bárbaros se impuseram
e até instalaram colónias no território chinês. Primeiro Macau, depois Hong
Kong, Xangai, Tsingtao… quem mandava nas costas da China eram os
ocidentais, senhores e mestres do mundo. A China descobriu que o ba era
a nal o Ocidente. Foi um grande choque, dando início àquilo a que os
chineses chamam o século da grande humilhação. Foi isso o que conduziu à
proclamação da república por Sun Yat-sen, o fundador do Partido
Nacionalista, o Kuomintang, cujo projeto era justamente pôr m à grande
humilhação e avançar para o que designou ‘rejuvenescimento da China’.
Quando o Partido Comunista Chinês derrotou o Kuomintang em 1949, os
comunistas chineses adotaram esse projeto nacionalista.”
“A grande estratégia secreta delineada no dossiê que Dragão Vermelho nos
trouxe começa justamente em 1949”, revelou o americano. “Quando o
Partido subiu ao poder, a sua ideia era também pôr m à grande
humilhação. Isso requeria desa ar o ba. Para tal, a China precisava de se
desenvolver, pois uma das grandes lições do Período dos Estados em Guerra
era que a primeira condição para desa ar o ba era o desenvolvimento da
economia, que conduzia ao desenvolvimento da tecnologia, que conduzia ao
desenvolvimento militar. O desenvolvimento da economia tornou-se assim
o primeiro passo da grande estratégia delineada no que designamos
Protocolo Dragão Vermelho. O modelo óbvio era a União Soviética, a quem
os comunistas chineses se aliaram por a nidade ideológica. O problema é
que o comunismo é um sistema de distribuição de riqueza, não da sua
produção. Sem riqueza disponível, só havia miséria para distribuir. Depois
de uma sucessão de grandes desastres económicos, incluindo fomes com
dezenas de milhões de mortos, o Partido Comunista Chinês percebeu que
com o modelo soviético não ia a lado nenhum e voltou-se para o modelo
ocidental. O problema era saber se o ba iria colaborar.”
“Se bem me recordo, o Ocidente aceitou ajudar a China com base em três
pressupostos”, lembrou o historiador. “O primeiro era que assim cavava um
fosso estratégico entre as duas ditaduras comunistas, a soviética e a chinesa.
O segundo era que ganhava um mercado gigantesco para os seus produtos.
O terceiro era que a adesão da China à economia capitalista e a consequente
prosperidade iriam inevitavelmente conduzir o país à democracia liberal, ao
respeito pelos direitos humanos, à limitação de poderes, ao respeito pelos
direitos individuais… en m, aos valores liberais associados à produção
sustentada de riqueza. A ideia era que uma revolução na economia
desencadearia uma revolução na sociedade e depois no sistema político. Em
suma, o capitalismo levaria inevitavelmente à democracia liberal. No fundo,
o que na Ásia já tinha acontecido no Japão, em Taiwan e na Coreia do Sul,
cujos regimes ditatoriais evoluíram para democracias liberais graças à
prosperidade gerada pelo capitalismo.”
“Isso mesmo”, con rmou o coronel Poulson. “Só que os dirigentes do
Partido Comunista Chinês tinham outras ideias. Democracia signi ca
alternância do poder, e se há coisa que os comunistas não aceitam de modo
algum é um sistema político que preveja a possibilidade de eles saírem do
poder. A China precisava da ajuda ocidental, sim, mas nem pensar em
democracia. E aqui está a questão: como convencer o Ocidente a ajudá-lo se
o Partido continuava a querer manter na China uma ditadura comunista? A
resposta estava nas narrativas do Período dos Estados em Guerra, e em
particular na da luta entre dois reis, Fuchai e Goujian. É capaz de não
conhecer essa história…”
Duvidar que Tomás conhecesse um facto da história era beliscar o seu
orgulho de historiador.
“Fuchai era o ba, Goujian o rival”, disparou o português de pronto, cioso
da sua reputação pro ssional. “O rival atacou o ba quando ainda não estava
preparado para tal e acabou derrotado. Para que o seu reino não fosse
devastado pelo ba, o derrotado apresentou-se com grande humildade na
corte do ba e aceitou ser seu criado. Limpava as mesas e chegou a provar as
fezes do ba para determinar a origem de uma doença que a igia o ba. Este
cou tão impressionado com a lealdade do novo servo que lhe concedeu
perdão. O antigo rival regressou então ao seu reino, onde passou a dormir
todas as noites numa cama de palha e a lamber diariamente a vesícula de um
animal morto para nunca esquecer a humilhação por que passara. Ao
mesmo tempo, jurou delidade ao ba, dizendo que apenas desejava a paz e a
harmonia e que doravante o ba nada tinha a recear dele. Mas em segredo foi
aumentando as suas forças e sabotando as forças do ba, subornando os seus
conselheiros, entretendo-o com mulheres e álcool, esvaziando os seus
celeiros e encorajando-o a endividar-se. Quando uma década mais tarde
constatou que tinha en m cado mais forte do que o ba, atacou-o à traição e
derrotou-o, tornando-se assim ele próprio o ba.”
“Portanto, usou a dissimulação.”
“A dissimulação é a grande estratégia usada no Período dos Estados em
Guerra e ensinada por Sun Tzu em A Arte da Guerra. Por causa disso,
nenhuma doutrina militar no mundo enfatiza mais o uso da dissimulação
do que a doutrina militar chinesa.”
“O episódio do ba Fuchai e do rival Goujian está a ser copiado pelo
Partido Comunista Chinês”, revelou o o cial americano. “Para recuperar do
século da humilhação e enfrentar o ba, o Partido precisava primeiro de
dissimular as suas verdadeiras intenções, de modo a adormecer
descon anças e ganhar tempo para se fortalecer. É aliás isso o que prevê um
provérbio que remonta ao Período dos Estados em Guerra: ‘tao guang yang
hui’ .”
“ ‘Esconder capacidades e ganhar tempo.’ ”
“Ah, conhece?”
“O Charlie Chang explicou-me esse princípio do Partido.”
“A origem do provérbio está nesse episódio do Período dos Estados em
Guerra. Em obediência a ele, os dirigentes comunistas chineses apareceram
perante o Ocidente numa postura muito humilde, dizendo que a sua nação
era muito atrasada, coitadinha, e que precisava da ajuda sábia dos ocidentais
para sair da pobreza e crescer paci camente. Os comunistas chineses não
desejavam de modo algum a guerra e a expansão, nem desa ar quem quer
que fosse, apenas a paz entre os povos e a harmonia na Terra.”
Tomás sorriu.
“Uns verdadeiros cristãos…”
“Oh, nem imagina. Era tudo ores e amor. E nós, ocidentais, acreditando
que a prosperidade traria democracia e respeito pelos direitos humanos à
China, e estando de olho no gigantesco mercado chinês, embarcámos na
conversa. Em 1978, a Diretiva Presidencial 43 criou uma multiplicidade de
programas de transferência de conhecimentos cientí cos e tecnológicos dos
Estados Unidos para a China em domínios muito diversos, desde a energia à
agricultura, passando pelo espaço, a educação, o comércio, a saúde pública e
as geociências. Foi também atribuído à China o estatuto de nação mais
favorecida no comércio com a América.”
“Espere aí, está a dizer-me que o desenvolvimento da China não resulta
apenas do roubo massivo de conhecimentos e tecnologias ocidentais, mas
que o próprio Ocidente colaborou ativamente nessa transferência de
conhecimentos e tecnologias?”
“Claro! Três anos depois, em 1981, a Diretiva de Segurança Nacional 11
autorizou a transferência de tecnologia de mísseis so sticados para
transformar o exército do Partido Comunista Chinês numa potência
mundial. Em bom rigor deve-se dizer que o presidente Reagan assinou essa
diretiva contrariado e acrescentou uma cláusula a estabelecer que toda a
assistência à China dependia de o país abandonar o sistema ditatorial e ir
fazendo reformas democráticas liberais. Foram a seguir fornecidos fundos e
dada formação a uma miríade de institutos do Partido Comunista Chinês
nas áreas da biotecnologia, robótica inteligente, engenharia genética,
tecnologia espacial, automação, supercomputação e uma série de outras
tecnologias de ponta. Tudo oferecido de mão beijada. Foram também
vendidos à China seis sistemas avançados de armamento para fortalecer o
Exército, a Força Aérea e a Marinha e concedida ajuda para expandir o
corpo de fuzileiros do Partido. Até se aceitou que uma delegação militar
chinesa visitasse a DARPA, veja lá.”
O historiador olhava com incredulidade para o seu interlocutor.
“Mas… e a tal cláusula imposta pelo presidente Reagan a condicionar a
transferência de tudo isso à democratização da China?”
“Foi ignorada.”
“Ignorada?”
O coronel Poulson suspirou.
“Oiça, o sucesso da grande estratégia explanada no Protocolo Dragão
Vermelho depende em larga medida da boa vontade, da ingenuidade e da
ganância dos países ocidentais. Acreditámos porque queríamos acreditar.
Essa é que é a verdade. A China não tinha nem tem nenhuma intenção de se
tornar uma potência pací ca e cooperante, mas precisava e precisa que se
acredite nisso. Para conseguir esse passe de prestidigitação, alimentou a
nossa credulidade através de uma cortina de fumo baseada no provérbio
‘wai ru nei fa’, ou ‘exteriormente benevolente e interiormente implacável’ .”
“Ou seja, dissimulação.”
“Sempre a dissimulação. Repare que a cortina de fumo não se dirigiu
apenas aos líderes ocidentais, mas a todos os setores da vida no Ocidente,
desde o cultural ao económico e ao cientí co, e envolveu uma
multiplicidade de estímulos positivos e negativos. No campo dos estímulos
positivos, o Partido passou a convidar académicos, intelectuais e
empresários ocidentais para verem o quão pací ca era a China e quão
nobres e sinceras as suas intenções. Distribuiu dinheiro e benesses por todo
o lado, convenceu as universidades ocidentais a abrirem dentro das suas
portas Institutos Confúcio, o lósofo da harmonia, e nanciou projetos
conjuntos com cientistas ocidentais, entre muitas outras coisas. Todas essas
pessoas e instituições tornaram-se naturalmente grandes defensoras do
Partido e, como se fosse uma medalha de honra, receberam a designação de
zhungguo panguiao, ou ‘amigos da China’. Uma expressão aparentemente
honorí ca para designar aqueles que Lenine descreveu cruamente como ‘os
idiotas úteis’. Isto é, fazem a propaganda da China, não percebendo que se
trata de pura propaganda e que a realidade nada tem a ver com a aparência
que lhes impingem.”
“Pois, mas isso são as elites ocidentais que se deixam comprar. E o público
em geral?”
“Também há campanhas para aldrabar o cidadão comum do Ocidente,
claro. Para esse efeito, o Partido desatou a nanciar o setor da produção
cultural ou a abrir-lhe as portas do imenso mercado chinês na condição de
que apresentasse como verdadeira uma imagem ctícia sobre as suas
intenções benévolas, de modo a ludibriar assim o grande público.”
“Sim, mas o que fez a China em concreto? Dê-me exemplos.”
“Hollywood, se quiser”, indicou o comandante da base aérea. “O mercado
chinês já ultrapassou o americano como principal fonte de receitas de
Hollywood. Isto quer dizer que os estúdios americanos passaram a ter
imenso cuidado em não produzir lmes que irritem o Partido Comunista
Chinês, dando efetivamente ao Partido o poder de vetar guiões ou impor
alterações. O que se está a passar é que, antes de fazerem um lme, os
estúdios de Hollywood submetem os respetivos guiões à comissão
comunista chinesa de censura prévia. Os censores do Partido leem os guiões
e, se não gostarem de algo, chamam a atenção dos estúdios e estes alteram o
guião no sentido desejado. Por exemplo, o lme Doctor Strange tinha uma
personagem tibetana. A censura chinesa opôs-se, pois pelos vistos na
ideologia nacional-socialista chinesa nunca existiram tibetanos. O que
zeram os estúdios? Alteraram a personagem, tornando-a celta.”
Tomás levantou a mão, como se pedisse ao seu interlocutor para parar.
“Espere aí, deixe-me só ver se percebo. Então os grandes artistas
de Hollywood fazem lindas declarações sobre a liberdade, opõem-se
e denunciam abusos no Ocidente contra as minorias, multiplicam-se em
proclamações arrebatadas de adesão ao movimento #MeToo, abraçam
entusiasticamente campanhas contra a discriminação, o assédio e a violação
de direitos humanos em geral… e submetem-se acriticamente à censura
comunista chinesa? Os arautos da liberdade indignar-se-iam se o governo
americano alguma vez tentasse interferir na produção artística, e muito
bem, mas aceitam obedecer às ordens do Partido Comunista Chinês?”
“Está a acontecer todos os dias em Hollywood. Produtores e argumentistas
já elaboram guiões segundo as linhas do Partido, fazendo autocensura para
não sofrerem o vexame de serem vetados pela censura comunista. Isto está a
atingir os próprios atores. Sabe por que razão já não se fazem lmes com
Richard Gere? Porque ele, apesar de ser um excelente ator e muito popular
no Ocidente, é amigo do dalai-lama e apoia a causa tibetana. A China não
gostou e… acabou-se o Richard Gere. Nunca mais ninguém o viu numa
grande produção de Hollywood.”
“Hollywood deu aos comunistas chineses o poder de cancelar Richard
Gere?”
“É para que veja como as coisas estão”, con rmou o coronel Poulson.
“Também Harrison Ford, Sharon Stone e Selena Gomez tiveram problemas
por terem participado em lmes que desagradaram ao Partido Comunista
Chinês. Acredita-se igualmente que o realizador de Sete Anos no Tibete,
Jean-Jacques Annaud, foi colocado na lista negra e só de lá saiu quando
publicou uma carta a pedir desculpas por esse lme.”
“Ridículo!”
“Ah, não tenha dúvidas de que o ridículo assentou arraiais em Hollywood.
E de que maneira. Em Missão Impossível III, por exemplo, há uma cena em
que Tom Cruise corre pelas ruas de Xangai e veem-se roupas a secar num
estendal de um apartamento. A censura comunista mandou retirar o
estendal, alegando que dava má imagem da China… e os produtores
obedeceram. Noutra ta do mesmo ator, Top Gun: Maverick, o trailer
mostrava uma bandeira de Taiwan e outra do Japão cosidas ao casaco do
Tom Cruise, mas no lme as bandeiras desapareceram misteriosamente para
reaparecerem depois de o ato censório ter sido denunciado. Em Skyfall, da
série James Bond, por ordens do Partido foram retiradas cenas em que um
guarda chinês era morto e em que se falava nas práticas de tortura na polícia
chinesa. Os censores chineses ordenaram alterações ao lme Bohemian
Rhapsody, sobre a banda musical Queen, e ainda a Alien: Covenant, a Star
Trek Beyond, a…”
“Pronto, pronto”, atalhou o historiador. “Já percebi.”
“Oiça, se eu continuar a contar histórias deste género, não me calarei
nunca mais. São umas atrás das outras. A coisa chegou a um ponto tal que,
quando o realizador Quentin Tarantino recusou fazer uma alteração
ordenada pelos censores comunistas chineses ao seu lme Once Upon a
Time in Hollywood, isso até foi notícia. Está a perceber o que isto signi ca?”
“A obediência à censura tornou-se regra, a recusa uma exceção.”
“O Partido Comunista Chinês chama a esta estratégia ‘usar um barco
emprestado para ir para o oceano’. Ou seja, usar os instrumentos culturais de
outros países para fazer passar de forma subliminar a mensagem do Partido.
As pessoas começam a construir uma imagem fantasiada e benigna da
China, e sobretudo do seu regime, sem terem noção de que os lmes que
estão a ver são submetidos à censura prévia do Partido Comunista Chinês.
Isto acontece nos lmes, mas também na literatura, no jornalismo… em
todos os aspetos da produção cultural. E é insidioso. Por acaso viu
Gravidade?”
“Aquele lme passado no espaço com o George Clooney e a Sandra
Bullock?”
“Esse mesmo. Se bem se lembra, a história do lme é esta: dois astronautas
americanos estão em órbita numa missão de rotina, de repente a malandra
da Rússia lança um míssil e destrói um satélite russo desativado, a explosão
espalha estilhaços por toda a órbita, alguns desses estilhaços atingem a nave
espacial americana, a nave é destruída e… e quem salva tudo, quem é?”
“Uma navette da estação espacial chinesa, que na altura se encontrava
disponível.”
“Ah, grande China!”, exclamou o coronel Poulson, a voz encharcada de
ironia. “A Rússia lançou o caos, sacana, mas foi uma navette da China que
salvou a coitada da Sandra Bullock! Esta narrativa mostra quão benévola e
amante da harmonia a China é. Só tem um problema: contraria totalmente
os factos. No mundo real, a Rússia nunca destruiu nenhum satélite com um
míssil. Zero. Mas a China já o fez. E fê-lo espalhando perigosos estilhaços
pela órbita terrestre, e depois de ter jurado mil vezes, com o ar mais sério,
que não tinha nenhum programa antissatélites. Além do mais, a estação
espacial chinesa foi construída intencionalmente de modo a que não fosse
possível qualquer interface com a tecnologia ocidental. Ou seja, o Partido
impossibilitou de propósito qualquer possível cooperação espacial com o
Ocidente. Está a perceber a questão? O lme, que o público vê, mostra-nos
uma China benigna e amante da paz, a China que coopera e salva os
astronautas americanos. A realidade, que só é conhecida pelos especialistas,
é a de uma China que destrói satélites com mísseis, assim espalhando
perigosamente estilhaços pela órbita, e que deliberadamente impossibilita
qualquer cooperação internacional.”
O exemplo revoltou Tomás. Tinha visto o lme e até gostara dele, mas
descobria agora que havia sido completamente ludibriado.
“Não há ninguém que denuncie isso?”
“Haver, há. Só que entra aqui em ação a segunda parte do provérbio ‘wai
ru nei fa’, ‘exteriormente benevolente e interiormente implacável’. Se alguém
começar a questionar detalhes que não batem certo, como, por exemplo, por
que razão nos Institutos Confúcio não se pode falar nos direitos humanos
ou, outro exemplo, por que razão os cientistas chineses que trabalham em
conjunto com cientistas ocidentais em projetos civis e pací cos estão na
verdade ligados ao complexo militar chinês e esses projetos conjuntos são
a nal canalizados para a indústria militar chinesa, então vêm os estímulos
negativos. Cortam-se nanciamentos, param os convites, expulsa-se quem
seja culpado de ‘ofender os sentimentos do povo chinês’ .”
“Vá lá, dê-me exemplos.”
“Oh, há imensos. Olhe, a Universidade de Sydney recebia dinheiro da
China para ter um Instituto Confúcio, onde se explicam aos estudantes
ocidentais que a China tem valores ‘pací cos’ e ‘sinceros’ e apenas quer
erguer ‘pontes que reforçam a amizade entre os povos’. Acontece que o dalai-
lama visitou Sydney e o Instituto para a Democracia e os Direitos Humanos
convidou-o a ir fazer uma palestra à universidade. De repente, a
universidade cancelou tudo. Porquê? Tinha medo de ‘ofender os
sentimentos do povo chinês’, isto é, tinha medo de perder os nanciamentos
do Partido. Que se lixassem a democracia e os direitos humanos e os valores
‘pací cos’ e ‘sinceros’ destinados a erguer ‘pontes que reforçam a amizade
entre os povos’! A universidade chegou a alegar que o cancelamento servia
‘os melhores interesses dos investigadores’. Você, que é académico, acha que
a censura serve mesmo os interesses da pesquisa cientí ca?”
“Claro que não”, devolveu o historiador. “A censura é inimiga do
conhecimento e da ciência. Todos sabem isso.”
“O problema é que histórias destas, meu caro, são legião por todo o
mundo”, indicou o o cial americano. “Todos os académicos ocidentais que
visitam a China e trabalham em projetos de pesquisa com académicos
chineses sabem, por exemplo, que há assuntos em que não podem tocar. O
uso da expressão ‘independência de Taiwan’ está interditado. Só é autorizada
a expressão ‘inter-relações no Estreito’. A chegada do Partido Comunista
Chinês ao poder em 1949 tem obrigatoriamente de ser designada por
‘libertação’. Perante isto, o que fazem os académicos ocidentais zhungguo
panguiao? Dizem-se independentes, mas acatam obedientemente estas
imposições e enchem os seus estudos supostamente cientí cos de
referências às ‘inter-relações no Estreito’ e à ‘libertação de 1949’. Claro que
esses académicos sabem que isso é linguagem eufemística, mas o público
que lê estes estudos e con a no trabalho cientí co ocidental desconhece
estes mecanismos censórios e ca com a impressão de que a independência
de Taiwan não é uma questão importante e que a chegada do Partido
Comunista Chinês ao poder em 1949 foi de facto uma libertação para
o povo chinês.”
“Isso faz lembrar a Rússia quando invadiu a Ucrânia e proibiu
internamente que se chamasse guerra à guerra”, notou Tomás. “Só se podia
dizer que se tratava de uma ‘operação militar especial’ destinada à
‘manutenção da paz’. Conseguiram chamar paz à guerra. O que é
extraordinário é ver que a China consegue impor esse tipo de censura, não
apenas aos seus meios de comunicação e à sua população, como fez a Rússia,
mas ao próprio Ocidente, proeza de que os russos não foram capazes. Na
sua opinião, foi isso o que aconteceu no lme Gravidade?”
“Não tenho dúvidas. Repare que Hollywood também está sujeita
ao mesmo cocktail de estímulos positivos, o nanciamento de lmes e a
abertura do gigantesco mercado chinês para a respetiva exibição em massa,
e de estímulos negativos, o corte desses nanciamentos e a interdição da
exibição dos lmes na China, com a consequente perda de um mercado de
mais de mil milhões de pessoas. Entre ganhar uma fortuna e não a ganhar, o
que escolhe Hollywood? E quando falo em Hollywood, falo em todas as
formas de comunicação artística ou informativa, incluindo o jornalismo e a
literatura. Ao público ocidental é assim apresentada uma imagem cor-de-
rosa do Partido Comunista Chinês, exatamente o objetivo de todo este
exercício. Quando por acaso alguém ganha coragem e se atreve a criticar
este estado de coisas, para além das sanções habituais logo aparecem os
zhungguo panguiao a acusar os críticos de serem motivados por racismo e de
agitarem o espantalho xenófobo do ‘perigo amarelo’ e mais não sei quê,
assim intimidando e silenciando qualquer pensamento crítico ou a simples
apresentação dos factos que revelam a duplicidade do Partido Comunista
Chinês.”
“Espere aí”, interveio o português. “Quando o Ocidente percebeu que os
Institutos Confúcio não aceitam que se fale em direitos humanos e que os
cientistas chineses envolvidos em projetos civis pací cos ocidentais eram
a nal cientistas militares que planeavam usar esses projetos para ns
militares, não soaram os alarmes? No m de contas, isso expunha as
verdadeiras intenções do Partido Comunista Chinês…”
“Pois é, mas aqui o Partido vale-se do primeiro dos trinta e seis
estratagemas da antiga China, que diz ‘man tian guo hai’, ou ‘atravessa o mar
perante o céu’. É o equivalente chinês ao provérbio ocidental ‘escondido à
vista de todos’. Não há nada mais bem escondido do que as coisas que estão
mais aparentes. Para ocultar o que se encontra à vista de qualquer pessoa, o
Partido Comunista Chinês apostou na credulidade do Ocidente, que queria
acreditar que o capitalismo traria obrigatoriamente a democracia à China, e
na ganância do Ocidente, que pretendia continuar a ter acesso ao mercado e
ao nanciamento chinês. Os académicos e os intelectuais, por seu turno,
queriam continuar a receber os convites, as viagens, os subsídios, as
regalias… tudo. É muito difícil fazer uma pessoa ou instituição acreditar
numa coisa quando os interesses dessa pessoa ou instituição dependem de
não acreditar nessa coisa. Portanto, os zhungguo panguiao esforçam-se por
ignorar ou desvalorizar a evidente natureza ditatorial, tirânica e violenta do
Partido, assim perpetuando a cortina de fumo que permite esconder a
realidade apesar de ela estar à vista de todos. Chegam ao ponto de achar que
a instituição de centenas de campos de concentração em Xinjiang com até
três milhões de prisioneiros não é algo que seja revelador da verdadeira
natureza do regime comunista chinês.”
“Está bem, os ‘amigos da China’ não acreditam que o Partido é uma
ameaça porque não lhes convém acreditar. Isso eu entendo. Mas nem toda a
gente no Ocidente está subornada pelo Partido Comunista Chinês,
presumo…”
“Você não está a compreender o quão diabolicamente e ciente é esta
estratégia. Repare, sempre que no Ocidente aparece uma crítica ao Partido
Comunista Chinês ou se faz uma tentativa de enfrentar a realidade sobre o
que o Partido realmente é, os zhungguo panguiao logo intervêm, calando as
críticas e pressionando o poder político. Chegam até a dizer que o Partido
Comunista não é comunista! Com tudo isto, tornámo-nos cegos à realidade,
apesar de ela estar à vista de todos. Passámos a acreditar no que queremos
que seja verdade, isto é, que a China deseja o desenvolvimento pací co e
harmonioso, e não acreditamos no que não queremos que seja verdade,
apesar de estar à frente dos nossos olhos. Isto é, acreditamos que a
interdição em falar nos direitos humanos e que o uso militar pela China de
cooperação cientí ca destinada a ns civis, por exemplo, não são sintomas
de um problema profundo, estrutural e grave.”
“Pois, mas quem governa os países do Ocidente tem decerto acesso a
melhor informação e percebe o que realmente se passa.”
“Infelizmente, não. Nunca me esqueço que uma vez conversei com o
conselheiro militar de um presidente americano e partilhei com ele as
minhas dúvidas em relação ao Partido Comunista Chinês. Ele disse-me: não
te preocupes, a China não tem intentos agressivos. Admirado, perguntei-lhe:
como sabes isso? E ele respondeu: porque é o que eles dizem.”
Tomás arregalou os olhos.
“Uau.”
“É para que veja o nível de autoilusão a que o Ocidente chegou”, disse o
coronel Poulson. “A estratégia de dissimulação do Partido Comunista
Chinês, inspirada nas narrativas do Período dos Estados em Guerra, e em
particular na história do ba Fuchai e do seu rival Goujian, está a funcionar
às mil maravilhas. Muito importantes nesta estratégia, insisto, são os
zhungguo panguiao. Vou dar-lhe um exemplo de algo que se passou ao mais
alto nível. O presidente Clinton apercebeu-se de que o Partido Comunista
Chinês dissimulava as suas verdadeiras intenções e que os seus intentos
eram perigosos. Recuperando a velha cláusula do presidente Reagan,
Clinton estabeleceu que a América só concederia benefícios comerciais à
China se o Partido avançasse para eleições democráticas e começasse a
respeitar os direitos humanos. Sabe o que fez o Partido Comunista Chinês?
Pegou nos zhungguo panguiao e pô-los a pressionar o presidente.
Empresários, políticos, intelectuais… foi uma roda-viva infernal na Casa
Branca, todos a avisarem Clinton e a escreverem nos jornais sobre o desastre
que essa medida seria, que a América não se devia preocupar em demasia
porque o Partido não era uma ameaça, que gradualmente a China evoluiria
para a democracia e o respeito pelos direitos humanos, que a medida tinha
um intuito racista e xenófobo… e por aí fora. Até a Boeing pressionou.
Cercado por todos os lados, o presidente Clinton recuou e as sanções foram
retiradas. Riram-se muito lá em Pequim. Esse episódio é hoje conhecido no
Partido Comunista Chinês como o ‘golpe Clinton’ .”
“Pois, estou a ver”, murmurou Tomás. “É então esse o conteúdo do
Protocolo Dragão Vermelho.”
“O cerco ao Ocidente através de manobras de dissimulação é apenas a
primeira parte dos documentos que Dragão Vermelho nos trouxe”,
esclareceu o comandante da base aérea de Kadena. “O pior vem a seguir.”
“Pior?”
O coronel Poulson esboçou um sorriso sem humor.
“Espere para ver”, aconselhou. “A grande estratégia secreta do Partido
Comunista Chinês, inspirada nas estratégias do Período dos Estados em
Guerra, desenvolve-se por fases. A primeira fase foi aceder a conhecimentos
cientí cos e tecnológicos que lhe permitissem ganhar poder, mas que não
desencadeassem a descon ança do ba, algo ensinado nos manuais daquele
Período. A primeira tentativa foi feita com a União Soviética e fracassou. O
Partido voltou-se então para o Ocidente, pois percebeu que era aqui que
estava a melhor ciência e tecnologia, além de que o Ocidente era o
verdadeiro ba. Graças à ajuda ocidental e, quando ela não havia, graças ao
roubo massivo de conhecimentos cientí cos e tecnológicos do Ocidente, o
Partido foi modernizando a China e fortalecendo as suas forças. Os Estados
Unidos notaram em 2002 que os gastos militares da China eram duas vezes
superiores ao orçamentado. Sabe o que isso signi ca?”
“Que a China se está a armar às escondidas.”
“Sempre o mesmo jogo da dissimulação. A par disso, o Partido Comunista
Chinês usou ao longo de todo o tempo uma linguagem dúplice, exatamente
como ensinado no Período dos Estados em Guerra, apresentando
internamente o Ocidente como o mal dos males e dizendo externamente
que queria ser amigo do Ocidente. A versão do Partido sobre a Segunda
Guerra Mundial, por exemplo, apresenta a invasão japonesa da China como
fazendo parte de uma estratégia ocidental para pôr os dois países asiáticos
um contra o outro, assim eternizando a guerra entre ambos e impedindo
que um deles emergisse e ameaçasse o ba, exatamente como no Período dos
Estados em Guerra. Uma evidente falsi cação da história, claro, mas para o
regime chinês o que interessa é o efeito propagandístico de demonização do
Ocidente, não a verdade em si. O Partido esperava que a contradição dos
seus discursos internos e externos não fosse notada no Ocidente, até porque
os textos antiocidentais não são traduzidos. Foi bem-sucedido.”
“Não vejo porquê”, objetou Tomás. “No m de contas, há muitos
ocidentais que sabem ler chinês.”
“É verdade”, admitiu o coronel Poulson. “Para lidar com esse problema, o
Partido Comunista Chinês contou com a cumplicidade e a in uência dos
zhungguo panguiao, todos eles de uma ingenuidade interesseira, e também
com o nosso desejo de acreditar que o Partido tinha realmente mudado e
que apenas continuava comunista no nome. Desvalorizámos assim a
demonização interna que o Partido fazia do Ocidente, achando que não
passava de retórica oca. Ou seja, não só o Partido nos enganava como nós
mesmos nos estávamos a enganar a nós próprios. À medida que ia
ganhando força, graças à transferência massiva da ciência e da tecnologia
ocidentais, o Partido Comunista Chinês foi implementando a segunda fase
do plano inspirado nas estratégias do Período dos Estados em Guerra: negar
ao ba a sua capacidade de exercer formas de controlo e construir as suas
próprias formas de controlo sobre os outros, mas fazê-lo sempre de forma
dissimulada, ngindo que o Partido não era uma ameaça para ninguém e
que apenas queria ajudar todos. Era fundamental que o ba permanecesse
adormecido quanto às verdadeiras intenções do Partido.”
Não era difícil deduzir a que ações da China se referia o o cial americano
como fazendo parte da segunda fase da grande estratégia do Partido
Comunista Chinês.
“Está a referir-se à Nova Rota da Seda?”
“Esse é o elemento mais importante da segunda fase, conforme
estabelecido pelo próprio Partido no dossiê que Dragão Vermelho nos
trouxe”, con rmou o coronel Poulson. “Fingir que ajudava países
necessitados e endividá-los até ao tutano, endividá-los até os tornar países
vassalos que ajudariam o Partido Comunista Chinês a enfrentar o ba
quando a hora chegasse. Ao mesmo tempo, construir uma poderosa força
militar, mas mais uma vez fazendo-o sem despertar as atenções, sem
assustar o ba e sem o fazer compreender as verdadeiras intenções do
Partido.”
“Foi por isso que o primeiro porta-aviões chinês foi comprado à Ucrânia
com recurso ao subterfúgio mirabolante de que se destinava a ser um casino
em Macau.”
“Ah, conhece essa história?”
“O Chang contou-ma.”
“Sim, a forma dissimulada como o Partido adquiriu o seu primeiro porta-
aviões enquadra-se nas táticas de dissimulação que vêm do Período dos
Estados em Guerra. Tudo sempre feito às escondidas, em obediência ao
velho princípio do ‘tao guang yang hui’, ou ‘esconder capacidades e ganhar
tempo’. Até que chegou o momento de abrir o jogo.”
“Esse momento já chegou?”
O coronel Poulson fez um sinal a rmativo.
“A terceira fase começou em 2008. Lembra-se do que aconteceu nesse
ano?”
Já se havia passado muito tempo, mas 2008 permanecia indelével na
memória de Tomás Noronha apenas por um acontecimento. O problema é
que esse evento, que ele soubesse, não tinha relação óbvia com a China.
“Confesso que só me lembro da queda do Lehman Brothers e da grande
crise mundial que se seguiu.”
A referência pareceu ser aceite pelo americano.
“Quando o Ocidente se impôs à China, um comandante militar da
dinastia Qing, o general Li Hongzhang, disse que o mundo estava a
atravessar ‘grandes mudanças que não se viam em três mil anos’. O que ele
queria dizer é que durante três milénios a China foi o centro do mundo, a
nação hegemónica do planeta, o ba, mas que nesse momento o planeta
assistia à transferência do estatuto de ba para outra potência, o Ocidente. A
China deixara de ser o ba. Foi essa a essência da grande humilhação.”
“O que tem isso a ver com 2008?”
“O colapso de Wall Street e a crise económica então desencadeada
convenceram o Partido Comunista Chinês de que se tratava da con rmação
do declínio do Ocidente. O ba estava nalmente em queda. O Partido achou
que chegara a hora de avançar para a terceira fase, uma espécie de xeque-
mate. Meses depois do início da crise no Ocidente, o Chefe do Partido
anunciou publicamente ‘medidas mais ofensivas’. E cumpriu. A China
adotou em 2009 um programa para construir uma frota de porta-aviões,
navios de guerra e capacidades anfíbias. Foi lançado um programa de
modernização geral dos sistemas de armas e o país desenvolveu o maior e
mais diversi cado arsenal de mísseis balísticos baseados em terra e os
primeiros mísseis hipersónicos do mundo. Começaram também a ser
construídas bases navais chinesas em todo o planeta, de Hambantota a
Gwadar, do Djibuti a Bagamoyo, de Omã às Seychelles, da Birmânia ao
Camboja. Sabe o que, em termos geoestratégicos, uma aposta militar destas
signi ca, não sabe?”
Sendo historiador, Tomás não podia deixar de saber.
“Só desenvolve uma marinha de guerra poderosa, estabelece bases navais
por toda a parte e moderniza massivamente os seus sistemas de armas quem
tem planos agressivos de projeção de força militar a nível global.”
“As máscaras caíram. A China começou a assumir publicamente a sua
postura de aspirante a ba, e fê-lo no momento em que considerou que seria
tarde demais para o ba decadente, o Ocidente, conseguir reagir. Os chineses
organizaram abertamente frentes contra o Ocidente nos órgãos
internacionais, como a ONU, usando para isso os países endividados pela
Nova Rota da Seda. Além disso, ocuparam os atóis das ilhas Spratly, onde
você esteve, reclamando como sendo exclusivamente chinês um mar que
banha o Vietname, as Coreias e as Filipinas e que até aí estava aberto à
navegação internacional. A crise das dívidas soberanas na Europa, a crise
dos refugiados e imigrantes na Europa, o Brexit, a incapacidade de o
Ocidente reagir à anexação da Crimeia pela Rússia e a eleição do presidente
Trump na América, com a consequente desvalorização da NATO e divisão
entre a América e a Europa, e mesmo as divisões dentro da América entre
trumpistas e antitrumpistas e dentro da União Europeia entre blocos do
Norte, do Sul e do Leste, para além do caos no Ocidente por causa da
pandemia da COVID-19, a retirada catastró ca e inglória por parte dos
exércitos ocidentais que estavam no Iraque e no Afeganistão e as
vulnerabilidades das democracias liberais ocidentais às campanhas de
desinformação orquestradas pelas autocracias russa e chinesa serviram para
con rmar a perceção formada em 2008: o Ocidente era fraco e aburguesado,
encontrava-se dividido, empobrecido e em decadência acelerada. O ba
entrara em queda livre.”
“E a nível de relações?”, quis saber Tomás. “A China mudou alguma
coisa?”
“Imediatamente. Logo em 2009, numa conferência sobre mudanças
climáticas em Copenhaga, os representantes da China mostraram-se muito
agressivos e mal-educados para com os representantes ocidentais. Nunca
um comportamento assim tinha sido visto nos governantes chineses, até aí
sempre muito humildes e pregadores da paz e da harmonia. O Chefe do
Partido declarou que ‘a Ásia é para os asiáticos’, uma frase reminiscente do
Japão imperial e que se fosse proferida por um líder europeu, nos termos de
que ‘a Europa é para os europeus’, seria considerada fascista. Além disso, os
chineses puseram-se a ameaçar explicitamente países do Ocidente, tendo
mesmo ido ao estrangeiro raptar cidadãos ocidentais que cometiam o crime
de criticar as violações dos direitos humanos na China.”
“Portanto, o rapto da minha mulher não foi caso único.”
“Começaram por raptar um cidadão sueco e chegaram a maltratá-lo à
frente de diplomatas suecos, veja lá. Quando a Suécia protestou, o
embaixador chinês em Estocolmo avisou o governo sueco de que ‘para os
amigos temos o melhor vinho, mas para os nossos inimigos reservamos
caçadeiras’ .”
O historiador abriu a boca de estupefação.
“Eles disseram isso à Suécia?”
“Puseram-se a fazer ameaças a torto e a direito. Mataram vinte soldados
indianos, começaram a exibir as suas novas armas e ameaçaram com
punições económicas a Austrália, a República Checa e uma série de outros
países. O Chefe do Partido Comunista Chinês anunciou que a era de
‘esconder capacidades e ganhar tempo’ chegara ao m. O Partido começou a
assumir os seus objetivos. O Chefe declarou que vinham aí ‘grandes
mudanças que não se viam em um século’, parafraseando assim a velha frase
do general Li Hongzhang de que, com o domínio do Ocidente, tinham
ocorrido ‘grandes mudanças que não se viam em três mil anos’. O século a
que o Chefe se referia era, evidentemente, o único século em que, na
perspetiva chinesa, a China não tinha sido o ba.”
As implicações desta a rmação foram imediatamente entendidas por
Tomás.
“Portanto, a China planeia ser o ba.”
O coronel Poulson fez com a cabeça um movimento a rmativo enfático.
“É isso mesmo”, con rmou. “A China planeia ser o ba. Mais, acredita que o
trajeto para chegar a ba é agora irreversível. Daí que tenha posto m à fase
do ‘esconder capacidades e ganhar tempo’ e assumido uma importante parte
das suas verdadeiras intenções. Toda a grande estratégia secreta do Partido
Comunista Chinês nunca foi trabalhar para o desenvolvimento pací co da
China, como propagandisticamente repetiu ao longo do tempo para
adormecer descon anças e ganhar tempo, mas derrotar o Ocidente e tornar-
se o ba. A China quer ser o ba. Era esse o objetivo último de todos os jogos
de poder que marcaram o Período dos Estados em Guerra e é esse o objetivo
último do Partido Comunista Chinês.”
Tudo o que estava em jogo desde o rapto de Maria Flor em Amritsar
tornava-se en m claro.
“É isso o que está escrito no Protocolo Dragão Vermelho?”
“O Protocolo Dragão Vermelho é um dossiê com uma série de
documentos altamente con denciais escritos em chinês a detalhar toda a
grande estratégia secreta do Partido Comunista Chinês para se tornar o ba.
Primeiro, recuperar do atraso cientí co, tecnológico e económico em
relação ao ba atual, o Ocidente. Depois, sabotar dissimuladamente o ba atual
ao mesmo tempo que o Partido se nge pací co e inofensivo. Por m,
quando for tarde demais para o Ocidente poder reagir, deixar cair a máscara
e assumir um novo objetivo dissimulado, o de um mundo multipolar, mas
na verdade bipolar, pois terá apenas dois ba, o Ocidente e a China. Porém, o
conceito de um mundo bipolar contradiz a natureza hierárquica da visão
chinesa de poder e contradiz também a estratégia mais profunda do Período
dos Estados em Guerra, até porque a China enquanto país não se formou
com dois ou vários ba a mandar, mas só quando os Chin se assumiram
como o único ba. Não se esqueça de que um velho manual chinês centrado
nos estratagemas do Período dos Estados em Guerra tem esta citação
atribuída a Confúcio: ‘não pode haver dois sóis no céu’. Ou seja, no mundo
só há lugar para um ba. Um único. A China. Em breve será ela o centro de
tudo, a potência hegemónica, o dono do mundo. O ba.”
Tomás pôs a mão na boca.
“Meu Deus!”, exclamou. “Vamos ter uma superpotência que pratica a
ditadura, a vigilância e a repressão a mandar no mundo? Isto é uma
catástrofe! Não se esqueça de que na China não há liberdade de expressão,
não há liberdade de imprensa, não há liberdade de reunião, não há justiça
independente, não há delimitação de poderes, não há poderes e
contrapoderes, não há o império da lei, não há respeito pelos direitos
humanos, não há respeito por liberdades e garantias… na verdade, não há
nada do que estamos habituados no nosso regime liberal. O regime chinês
ainda tem campos de concentração com milhões de pessoas lá fechadas!
Chegou ao ponto de recuperar o trabalho escravo! E um país assim quer
impor o seu modelo ao planeta inteiro?”
“Está a dizer-me isso a mim?”, questionou o o cial americano. “É esse o
problema. Temos sempre de partir do princípio de que o Partido Comunista
Chinês se comportará em todo o mundo como se comporta no seu próprio
país. Ou pior ainda. Queremos a mandar no mundo um regime que não tem
problemas em policiar a população, em instituir um sistema
concentracionário gigantesco e em estabelecer o trabalho escravo? Se esse
regime trata a sua própria população dessa maneira, o que não fará às outras
populações?”
O historiador começava a sentir-se deprimido.
“A China já se considera o ba?”
“Ainda não. Apesar de tudo, o Ocidente, no seu conjunto, continua a ter
uma economia superior à chinesa e uma força militar que impõe respeito. A
China considerava que o Ocidente era decrépito e estava decadente, mas a
invasão russa da Ucrânia, em 2022, mostrou-lhe algo que ela não sabia sobre
o Ocidente: a sua capacidade de se unir e enfrentar os avanços agressivos e
violentos dos regimes autocráticos ou ditatoriais. O Partido Comunista
Chinês seguiu a guerra na Ucrânia com muita preocupação e percebeu que
o Ocidente seria um osso bem mais duro de roer do que previra. O objetivo
é agora a China ultrapassar o Ocidente e tornar-se o ba precisamente um
século depois de o Partido ter subido ao poder. Ou seja, em 2049.
Consumar-se-á a seguir a essa data a neutralização da Europa.”
“Neutralização da Europa?”, estranhou o historiador. “O que quer isso
dizer?”
“Não é muito claro”, admitiu o coronel Poulson. “Mas é o que está escrito
no último documento do Protocolo Dragão Vermelho. Quando o século
estiver a meio, ocorrerá a neutralização da Europa. Interprete esta frase
como entender.”
Nesse instante, uma enfermeira japonesa abeirou-se de Tomás e,
interrompendo a conversa, fez-lhe uma vénia.
“Peço desculpa por incomodar, honorável Noronha-san, mas a sua
senhora acordou há poucos minutos. Por ordens do doutor Hamato-san,
venho convidá-lo a visitá-la.”
O anúncio signi cava o m brusco da conversa sobre o conteúdo do
Protocolo Dragão Vermelho. O português despediu-se apressadamente do
comandante da base aérea de Kadena e, ansioso, seguiu a enfermeira em
direção à zona do recobro.
“Como está ela?”
“Muito fraca, Noronha-san. Embora bem-sucedida, a operação foi
delicada e debilitante. O senhor só poderá permanecer um máximo de dez
minutos com ela, receio bem. São ordens do doutor Hamato-san. É muito
importante que a sua senhora descanse, pois o repouso é agora o melhor
remédio.”
Subiram umas escadas e percorreram outro corredor no andar de cima.
Por m, meteram por uma porta e entraram num espaço com uma série de
pequenos compartimentos onde se encontravam deitados pacientes ligados
a máquinas. No quarto compartimento, Tomás deparou-se com Maria Flor
estendida sobre uma cama, a cabeça enterrada numa grande almofada, o
tronco engessado, um tubo de soro ligado ao braço e ao lado uma máquina a
registar os sinais vitais.
“Olá, minha Florzinha.”
A voz dele fê-la virar a cabeça.
“És tu?”
“O teu príncipe encantado”, gracejou o marido, beijando-a na testa.
“Como te sentes, meu anjo?”
“Dói-me o peito”, queixou-se ela. “O que aconteceu?”
“Não te lembras?”
“Não.”
Tomás sabia que havia feridos traumáticos que não tinham memória dos
eventos em que haviam perdido a consciência.
“Fomos resgatar-te a uma base chinesa junto às Filipinas e foste baleada.
Mas conseguimos retirar-te num submarino e o doutor Hamato, o cirurgião
que te operou, salvou-te.” Sorriu para a encorajar. “Disse que vais car como
nova.”
Maria Flor não devolveu o sorriso.
“A Madina?”
“Quem?”
“A Madina. Aquela que tinha sido raptada comigo. Onde está ela?”
“Ah, sim. A mulher do lenço negro. A CIA chamava-lhe Dragão
Vermelho.”
Ela alçou uma sobrancelha.
“Chamava-lhe?”
“Receio que ela… en m, não conseguiu.”
A mulher arregalou os olhos, alarmada.
“Não conseguiu o quê?”
“Foi também baleada. Não sobreviveu.”
Apesar de Maria Flor permanecer muito quieta na cama, as lágrimas
começaram a brotar-lhe do canto dos olhos e a escorrer pela parte lateral da
cara até se fundirem no algodão alvo da almofada.
“Merda de vida.”
Tornava-se evidente a Tomás que entre as duas mulheres se estabelecera
um forte laço emocional, sem dúvida devido às circunstâncias do cativeiro,
mas talvez também porque houvera uma simpatia natural entre elas.
“Lamento muito. Fizemos o que pudemos, mas…”
“A pen?”
Tratava-se da pen que continha o Protocolo Dragão Vermelho.
“Recuperámo-la. O conteúdo está a ser estudado.”
A mulher suspirou.
“Valha-nos isso”, murmurou. “A Madina estava muito assustada com o que
lhe iriam fazer quando voltasse à China, mas também desesperada por
falhar na missão de levar a pen para o mundo exterior. Dizia que era muito
importante que as pessoas no Ocidente tivessem conhecimento do seu
conteúdo. Felizmente que isso se salvou. Pelo menos não foi tudo em vão.”
“Ela falou-te no que está dentro da pen?”
“Um bocadinho. Disse que as pessoas no Ocidente não tinham ainda
noção do que o Partido Comunista Chinês realmente é e que, quando
acordassem para a realidade, poderia já ser tarde demais.”
“Suponho que ela tenha razão.”
“Houve uma altura em que lhe tentei explicar que o Ocidente também não
é nenhum paraíso, que há igualmente muita coisa mal entre nós, que
estamos cheios de políticos aldrabões, que também há pobreza, que há
desigualdades… en m, tudo o que sabemos.”
“E ela?”
Maria Flor cou um momento calada, como se revivesse a conversa que
tivera com Madina quando ambas estavam fechadas numa cave a discutir os
males do mundo.
“Riu-se.”
“Perdão?”
“Riu-se”, repetiu a mulher. “Mas foi um riso feito de revolta, porque
a seguir perguntou se também tínhamos câmaras de videovigilância em
todas as ruas e espaços públicos, se também tínhamos essas câmaras a
espiar-nos dentro das nossas próprias casas, se os nossos governos também
usavam algoritmos para analisar os nossos rostos e saber o que pensávamos
politicamente, se nos puniam quando não gostavam do nosso pensamento,
se os nossos governos também decidiam tudo por nós, se também tínhamos
comissões do bairro que queriam saber por que razão não demos o habitual
passeio das oito da manhã ou a mandar-nos pintar a casa com as cores do
Partido ou a repreender-nos por termos livros em casa, se também não nos
podíamos deslocar para onde quiséssemos sem uma autorização da
comissão do bairro, se também a nossa polícia inspecionava os nossos
telemóveis, se também o nosso governo inspecionava os sites que
visitávamos e as mensagens que enviávamos e recebíamos e se as apagava
quando não gostava delas e a seguir nos perseguia, se também tínhamos
campos de concentração, se também nos fechavam nesses campos porque
tínhamos WhatsApp no telemóvel ou porque não pusemos um like numa
mensagem a cantar loas ao Partido ou porque recebemos um telefonema do
estrangeiro, se também nos torturava em cadeiras tigre, se também forçava
as nossas mulheres a esterilizarem-se e a fazerem abortos contra a sua
vontade, se também nos forçava a trabalhar como escravos em fábricas, se
também forçava as nossas mulheres a viverem com um tipo do Partido e a
recebê-lo na cama e ter as fotogra as expostas na Internet… en m, se nos
sujeitávamos a tudo o que o Partido Comunista os sujeita na China.”
“E tu?”
“O que querias que respondesse? Não sabia o que lhe dizer. Ela observou
então que as nossas queixas eram ridículas, que tínhamos liberdade, que
podíamos falar mal do governo, que podíamos derrubar o governo e eleger
outro, que podíamos até processar o Estado nos tribunais e ganhar, que
também nos podíamos queixar à imprensa e as notícias pressionariam o
governo, que fazíamos o que queríamos, que não vivíamos com medo, que
as pessoas podiam pensar o que lhes apetecesse e dizer o que lhes
aprouvesse e tomar as suas próprias decisões sem recear o governo, que a
nossa liberdade alimenta a nossa criatividade e dá-nos a ciência, a inovação,
o desenvolvimento e a prosperidade e que devíamos era estar muito
agradecidos por tudo o que temos em vez de nos portarmos como crianças
mimadas que nunca estão satisfeitas com nada. Disse que o maior sonho
dela era viver numa sociedade liberal como aquela de que nós nos estamos
sempre a queixar e da qual andamos sempre a falar mal. Depois começou a
chorar.”
Fez-se um silêncio desajeitado entre ambos, até porque as lágrimas
voltaram a deslizar pelo rosto de Maria Flor. Tomás passou-lhe a mão pelo
cabelo para a confortar. Sentiu nesse momento uma presença atrás e virou-
se. Era a enfermeira japonesa.
“Peço mil perdões, honorável Noronha-san”, disse ela, fazendo uma vénia.
“Receio bem que os dez minutos concedidos pelo doutor Hamato-san já se
tenham esgotado. A sua senhora precisa de descansar.”
Não podia car mais tempo, percebeu o historiador. Inclinou-se sobre a
mulher e colou-lhe os lábios ao ouvido direito.
“Tenho de ir, minha Florzinha”, sussurrou com in nita ternura. “Amanhã
voltarei cá.”
Beijou-a na testa. Esboçou um sorriso, para lhe dar alento, antes de dar
meia-volta e se encaminhar para a porta.
“Não voltes.”
O pedido de Maria Flor apanhou-o de surpresa.
“Perdão?”
“Não voltes amanhã”, repetiu ela. “Não voltes mais.”
Aquelas palavras deixaram-no chocado. Ficou plantado à porta, a boca
aberta, os olhos arregalados, mirando-a com incredulidade e estupefação.
Ela não podia ter dito aquilo que ele pensava que tinha ouvido.
“O que disseste?”
De cabeça pousada sobre a almofada, Maria Flor virou ligeiramente a cara
e pousou nele os seus olhos castanhos.
“Há quanto tempo não contemplas um pássaro?”
O marido pestanejou, confuso.
“Um pássaro?”
“Quando estávamos no cativeiro, a Madina contou-me que a sua história
favorita se chamava ‘Pombo Selvagem’, um conto sobre um pombo que
preferiu morrer a viver o resto da vida engaiolado. Ela viu no campo de
concentração o autor, um escritor uigure, preso por ter escrito essa história.
A Madina disse-me que desde que leu o conto que tem uma imensa
admiração pelos pássaros e pela liberdade de que eles gozam. Levantam voo
e vão e vêm para onde querem, ao sabor do vento e dos seus caprichos. São
livres. Tão livres quanto ela era prisioneira. Eles a voarem e ela acorrentada,
eles senhores do seu destino e ela escrava do seu. Ficava por isso horas a
contemplá-los e a sonhar que era livre como eles. Só quando se projetava na
liberdade deles é que conseguia passar os muros e libertar-se também. Por
isso te pergunto, Tomás: há quanto tempo não contemplas um pássaro?”
Ele coçou o couro cabeludo, sem saber o que pensar ou dizer.
“Bem… uh… confesso que… que nunca me ocorreu car a contemplar
um… um pássaro.”
“O maior sonho da Madina era ser mãe”, prosseguiu ela, como se a
resposta dele não lhe interessasse verdadeiramente. “Adiou esse sonho
durante muitos anos, tão embrenhada andava no Partido para agradar aos
chefes. Mas o sonho estava sempre presente. O lho que aí viria seria o seu
pássaro. Podia viver num país transformado numa prisão gigantesca, mas
com o lho voaria e com ele seria en m livre. Livre. Até que um dia a
levaram para a sala de operações de um campo de concentração e
esterilizaram-na à força. O sonho morreu.”
A revelação chocou Tomás.
“Fizeram-lhe isso?”
Maria Flor tou-o com intensidade.
“Por que razão nunca me perguntaste se eu queria ter lhos?”
Todo o rumo ziguezagueante da conversa estava a deixar Tomás
crescentemente desconfortável. E sobretudo esta última pergunta era-lhe
muito incómoda, à luz de tudo o que acontecera muito tempo antes, numa
outra vida, por altura da aventura de O Codex 632.
“Sabes bem porquê…”
A voz tremeu-lhe ao responder.
“Sei o que aconteceu no teu passado, claro, mas o futuro não se faz a
remoer o passado. Se casei contigo não foi para car no teu passado, mas
para construir o nosso futuro. Por que razão nunca me perguntaste se eu
queria ter lhos?”
Percebendo que não podia fugir à questão, mas que esta lhe era demasiado
dolorosa, eternamente dolorosa, e que não seria capaz de a abordar naquele
momento, Tomás respirou fundo.
“Nunca se proporcionou”, desculpou-se. “Tenho uma vida muito
atarefada, como já reparaste. Ando sempre de um lado para o outro, numa
correria interminável, e, para falar com franqueza, nunca parei para pensar
nisso.”
A mulher fez um movimento com a cabeça.
“Esse não é o verdadeiro problema, e tu sabe-lo. Essa é a desculpa que
arranjaste para escapares do problema, o que é diferente. Andas a fugir do
teu passado, a fugir de ti mesmo, e foi por isso que nunca paraste. Na
verdade, desde que te conheço que vives numa verdadeira montanha-russa.
Metes-te nas maiores alhadas, e arrastas-me nelas contigo, para evitar
enfrentar a questão que realmente te aterroriza. É por isso que nunca
paraste. É por isso que não consegues sentar-te e contemplar um pássaro. É
por isso que nem sequer és capaz de me perguntar se quero ter lhos.”
“Queres ter lhos?”
Maria Flor abanou a cabeça.
“É tarde demais para me fazeres essa pergunta, não achas? Só a fazes
porque levantei a questão. E sabes porque nunca me perguntaste? Porque
não queres ter lhos.”
“Isso não é verdade.”
“É verdade, e sabes bem que é verdade. Nestes últimos dias apercebi-me
de que tu e a Madina são o negativo um do outro. Ela era prisioneira e
sonhava com um lho para ser livre. Tu és livre e não queres um lho
porque te tornará prisioneiro. Não um prisioneiro físico, entenda-se, mas
um prisioneiro emocional. Tens medo de ter um lho porque tens medo de
car emocionalmente dependente dele, tens medo de não lhe controlares o
destino, tens medo de o perder e de te perderes com ele. Foi por isso que
nunca paraste. É por isso que nunca vais parar. Estás sempre a fugir. À luz
do teu passado, posso compreender isso, claro, mas… a questão é esta,
Tomás: para que quero eu um marido que foge da responsabilidade de ter
lhos?”
“Mas eu não fujo dessa responsabilidade.”
“Então porque nunca me perguntaste se eu queria tê-los?”
“Porque… porque…”
Perante a hesitação dele, a mulher suspirou e esboçou uma expressão
cansada.
“Cheguei ao m da linha, Tomás”, disse com súbita lassidão, como se lhe
custasse já falar. “Ao ouvir no cativeiro a história da Madina, meditei muito
sobre a minha vida. Jurei a mim mesma que, se por acaso escapasse, muita
coisa teria de mudar. És uma pessoa extraordinária, fazes coisas incríveis,
tens uma cultura fora do comum, és inteligentíssimo e tenho de te agradecer
por estar hoje aqui viva. Isso nunca esquecerei. És, além do mais, um
homem de uma coragem física inacreditável. Contaram-me que saltaste de
paraquedas para me vir salvar. Isso é verdade?”
“Sim.”
“Não é coisa pouca. O problema, Tomás, é que essa coragem não se
estende ao teu lado sentimental. Nos sentimentos não passas de um cobarde.
Foges do passado, foges de mim, foges de ti mesmo. Sofreste um trauma e
recusas-te a enfrentá-lo porque tens medo de lidar com ele. Daí essas
correrias, essas aventuras, essa fuga constante. Por muito grata que te esteja
por me teres salvo, e estou, acho que chegou a hora de fazermos uma pausa.
Por isso não voltes cá.”
“Como assim, não volto cá? Como me podes pedir uma coisa dessas?”
Ela tirou os olhos do marido e endireitou a cabeça na almofada, tando o
in nito.
“Preciso de tempo. Tempo para mim, tempo para as minhas coisas, tempo
para pensar.”
“Com certeza. Terás todo o tempo que quiseres, claro.”
“Isto signi ca que, quando sair daqui e regressar a Portugal, não irei para
tua casa.”
“O quê?!”
“Tenho de me afastar. Quero car sozinha e pensar.”
“Mas… mas…”
Maria Flor fechou as pálpebras.
“Estou cansada, Tomás. Vai-te.”
A enfermeira fez-lhe sinal para que se fosse embora; era evidente que a
paciente precisava mesmo de repousar. Tomás olhou para Maria Flor e viu-a
a virar-se na cama de modo a car de costas voltadas para ele. Percebeu
nesse instante que a conversa entre eles estava acabada. Assim. Sem mais
nem menos. Ou talvez como resultado de um processo lento e impercetível.
Conhecendo-a como conhecia, sabia que, uma vez a decisão tomada, ela era
irreversível.
Com relutância, mas ao mesmo tempo com resignação, Tomás Noronha
deixou o compartimento na sala do recobro e, caminhando ao abandono,
perdeu-se pelo corredor do hospital, triste e cabisbaixo. Deambulou sem
rumo nem destino, às cegas, embrenhado no labirinto da sua imensa
derrota.
A certa altura deu consigo, sem saber como nem porquê, sentado na ponta
de um banco público diante de um lago de nenúfares. Sentia-se atordoado.
Chegara horas antes àquele hospital com um medo horrível de perder Maria
Flor. Perdera-a, de facto, só que de uma maneira diferente daquela que
temera. Como era possível que não tivesse antevisto um desfecho daqueles?
Onde havia errado? Recapitulou na mente todos os episódios
signi cativos da sua relação com a mulher, os altos e os baixos, os grandes
momentos e os detalhes aparentemente insigni cantes. Revendo tudo à luz
do que acabara de acontecer, percebia agora que, ao longo do tempo, os
sinais sempre estiveram lá. Sempre. Ele é que andara demasiado distraído
para reparar neles. Porque estava constantemente a correr de um lado para o
outro, numa azáfama, como se a própria existência do mundo dependesse
dele. Sem nunca parar. Sem nada contemplar.
Ouviu um barulho surdo, uma espécie de farfalhar esvoaçado, e virou a
cara. Um pássaro acabara de pousar no banco público onde ele se
encontrava, só que na outra ponta. O pássaro fazia movimentos rápidos com
a cabeça na sua direção, tando-o como se o estudasse, como se se sentisse
curioso com aquele homem. Dir-se-ia que queria saber o que fazia ele ali
sentado e porque parecia tão desorientado. Talvez o quisesse conhecer. Ou
mesmo ajudar.
Tomás devolveu-lhe o olhar e também o tou longamente, apreciando-lhe
o porte altivo e os olhos argutos. Aprendera, havia não muito tempo, que os
pássaros eram inteligentes. Na verdade, inteligentíssimos. Mas agora re etia,
não na inteligência deles, mas na sua liberdade. Aquela que, enquanto
homem que vivia no Ocidente, ele próprio dava como adquirida, mas que
a nal continuava a ser uma miragem para tantos outros seres humanos.
Falava-se por vezes em democracia ocidental, mas ele sabia que tal coisa
não existia, não passava de conversa de autocratas para perpetuar o seu
domínio sobre povos inteiros. Não havia democracia ocidental. Havia
democracia. Ponto. Dizia-se que a liberdade era um tesouro, mas na verdade
ela era mais do que um tesouro porque não tinha preço. Talvez o enunciado
desta ideia, a liberdade não tem preço, se tivesse transformado num lugar-
comum, até uma frase pirosa, mas que ele soubesse nada impedia que uma
frase ou uma ideia pirosa fosse verdadeira.
As pessoas no Ocidente haviam sido tão mimadas pela liberdade e pela
democracia e davam-nas de tal modo como garantidas que até se davam ao
luxo de achar pirosa a sua exaltação. Mas era quando a ameaça se tornava
real que a arrogância se esfumava e o piroso se revelava tão
perturbadoramente importante. Como acontecera quando a Rússia revelara
a sua verdadeira face e o Ocidente, sempre dividido e mimado, de repente se
unira para a enfrentar. Como se calhar um dia teria de acontecer em relação
ao Partido, o verdadeiro dragão vermelho que em segredo se armava até aos
dentes com o projeto de um dia enclausurar a humanidade numa imensa
gaiola.
Manteve o olhar preso no pássaro, fascinado e ao mesmo tempo
impressionado. O pássaro estava livre e o autor do conto uigure fora preso
por se atrever a clamar por liberdade. Pássaros livres e seres humanos
engaiolados. Nada de piroso nisso. Apenas aterrador. Estremeceu.
Apercebeu-se nesse instante de que, pela primeira vez na vida, parara. E
para fazer o quê? Para contemplar. Parara para contemplar um pássaro.
E não era um pássaro qualquer. Era um pombo.
Um pombo selvagem.
Nota nal

Se havia coisa que fascinava Nathan Ruser eram as imagens por satélite e
os mapas. Este analista do Centro Cibernético Internacional do Instituto de
Política Estratégica da Austrália decidiu um dia virar as suas atenções para a
China. Nathan tinha o talento de extrair informações a partir de imagens de
alta de nição, cruzando-as com outros dados já existentes no domínio
público, e resolveu aplicar esse talento na análise do território chinês.
Ao estudar as imagens por satélite da região de Xinjiang, notou o que lhe
pareceu ser um frenesim de obras públicas em lugares bizarros. Intrigado,
estudou com cuidado essas imagens e constatou que elas registavam
estruturas com perímetros enormes delimitados por muros altos, pontuados
por torres de vigilância e cobertos com redes de arame farpado. Não era
uma ou outra estrutura deste género que ocasionalmente aparecia nas
fotogra as tiradas do espaço, mas muitas. Centenas, na verdade.
Admirado com o que via, o analista australiano chamou os colegas e, em
conjunto, analisaram ao detalhe vinte e oito dessas construções.
Vasculharam a seguir a Internet em busca de informações sobre aqueles
locais especí cos e constataram que as estruturas pareciam estar ligadas a
concursos públicos lançados para empreitadas de grande envergadura e a
um apressado recrutamento de gente para o corpo da polícia e para
empresas de segurança. É certo que os censores chineses atuavam depressa e
eliminavam essas informações logo que os australianos as detetavam, mas os
censores não eram su cientemente lestos a apagar os traços e muita coisa
acabou por car registada.
Um dos concursos públicos mencionava explicitamente que a obra em
questão era uma instalação de “transformação através da educação”. A
equipa do Instituto de Política Estratégica da Austrália não ignorava que os
comunistas tinham o hábito de designar eufemisticamente os campos de
concentração como campos de reeducação, pelo que a expressão
“transformação através da educação” fez soar os alarmes. O Partido
Comunista Chinês estava a construir em Xinjiang mais laogai, os campos de
concentração que vinham do tempo de Mao Tsé-tung e onde milhões e
milhões de pessoas tinham sido escravizadas e/ou haviam morrido desde
que o Partido Comunista Chinês subira ao poder.
A descoberta destas instalações através de imagens por satélite,
con rmada por pesquisas semelhantes e feitas paralelamente pelo
antropólogo alemão Adrian Zenz e por um estudante chinês no Canadá,
Shawn Zhang, parecia ter uma ligação com o crescente número de queixas
de uigures que viviam fora da China e que diziam não conseguirem entrar
em contacto com os seus familiares em Xinjiang desde 2017. Dir-se-ia que
havia uma epidemia de desaparecimentos na região. Mas foi preciso que no
ano seguinte aparecesse uma mulher no Cazaquistão para que tudo se
con rmasse.
A professora cazaque Sayragul Sauytbay pertencia ao Partido Comunista
Chinês quando, em 2018, surgiu em Zharkent, uma pequena cidade do
Cazaquistão junto à fronteira com a China, a dizer que tinha fugido de
Xinjiang após ter sido internada num campo de concentração para
doutrinar os “indígenas” ali aprisionados, a maior parte uigures, mas
também muitos cazaques. A fugitiva descreveu um campo orwelliano, de
vigilância total, em que os prisioneiros detidos pelas razões mais absurdas
eram tratados como gado e sujeitos a intensas sessões de lavagem ao cérebro
típicas dos laogai. Apesar de não ser uma reclusa, ela própria foi torturada e
submetida a medicação para esterilização, além de ter testemunhado
violações em grupo de prisioneiras, de ter encontrado indícios de trá co de
órgãos de prisioneiros e de, embora casada, ter sido forçada a viver com um
chinês han no quadro da campanha Tornar-se Família.
As autoridades do Cazaquistão mandaram agentes capturar Sayragul e
quiseram deportá-la discretamente para a China. Isto apesar de cidadãos
cazaques estarem também encerrados nesses campos de concentração pelo
simples crime de serem cazaques e terem cultura cazaque. O Cazaquistão é
um país altamente endividado a Pequim devido ao programa
neocolonialista da Nova Rota da Seda, também conhecido por BRI, e o
comportamento das autoridades cazaques é bem ilustrativo do nível a que
chegou a sua vassalagem em relação ao Partido Comunista Chinês.
O que salvou Sayragul foi uma organização cazaque de defesa dos direitos
humanos, a Atajurt, que lhe arranjou apressadamente um advogado e com
grande coragem tornou o caso público, alertando organizações ocidentais de
defesa dos direitos humanos e organizando manifestações em desa o ao seu
governo. A Atajurt conseguiu assim que ela fosse levada a tribunal antes da
deportação. Sentar-se no banco dos réus pode ser um pesadelo para
qualquer pessoa, mas naquelas circunstâncias constituiu uma tremenda
vitória para Sayragul. “No início de 2018 trabalhei no que é designado na
China por campo político”, começou ela por dizer perante um tribunal
apinhado de gente, explicando que o campo, “na verdade, é uma prisão
localizada nas montanhas”. A fugitiva sublinhou que “o facto de eu estar a
falar sobre este campo numa sessão aberta do tribunal signi ca que já estou
a revelar segredos de Estado”, crime punível na China com a pena de morte.
O julgamento foi acompanhado pela imprensa internacional e por
organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, tendo
fornecido o primeiro testemunho de um sobrevivente dos novos laogai de
Xinjiang. No nal do julgamento, e perante a enorme atenção internacional
que o caso estava a atrair, o tribunal não teve coragem de ordenar a sua
deportação para a China, onde certamente a esperava a execução por
divulgação de segredos de Estado. A sala irrompeu em aplausos quando a
decisão de a deixar sair em liberdade foi lida. À saída, uma enorme multidão
entoou o nome dela. Mesmo assim, a primeira sobrevivente dos modernos
campos de concentração chineses a trazer o seu testemunho ao mundo teve
medo de car no Cazaquistão e conseguiu asilo na Suécia, onde hoje vive.
Os acontecimentos precipitaram-se depois de Sayragul Sauytbay
con rmar o que as imagens por satélite e os desaparecimentos em Xinjiang
sugeriam. Surgiram novos testemunhos de vítimas que, de uma maneira ou
de outra, conseguiam escapar da armadilha e se dispuseram a depor apesar
das ameaças, muitas vezes concretizadas, que pesavam sobre os seus
familiares que tinham cado em Xinjiang. Os novos testemunhos revelaram
também que muitas vítimas saíam dos campos de concentração para serem
diretamente colocadas em fábricas, umas dentro dos próprios complexos
concentracionais e outras no exterior, onde eram sujeitas a trabalho forçado
muitas vezes não remunerado.
Citando o veredito dos julgamentos de Nuremberga sobre os campos de
concentração nazis, o Human Rights Watch considerou que o estatuto dos
prisioneiros dos atuais campos de concentração comunistas chineses que
foram forçados a trabalhar nessas fábricas, sem para isso receberem salário
ou apenas auferirem uma retribuição simbólica, encaixa na de nição de
escravatura. Também o Relator Especial da ONU para as Formas
Contemporâneas de Escravatura, Tomoya Obokata, emitiu um relatório a
concluir que a política laboral chinesa em Xinjiang pode ser considerada
“escravatura como um crime contra a humanidade.”
Muito importante, fontes anónimas dentro da China zeram chegar ao
Ocidente dezenas de documentos con denciais do Partido Comunista
Chinês a certi car tudo o que estava a ser revelado. A fonte original seria
alguém no interior do Partido que terá passado os documentos a uma
mulher uigure, exatamente como acontece neste romance. Esses
documentos estabelecem que o objetivo dos campos de concentração é
“lavar cérebros” e “limpar corações” de pessoas “infetadas por pensamentos
pouco saudáveis”, devendo-se para tal deixar os prisioneiros completamente
isolados do mundo exterior e submetidos a “uma cobertura total por
videovigilância dos dormitórios e salas de aula sem que haja pontos cegos”.
Os documentos incluíam ordens para recrutar informadores que espiassem
os prisioneiros.
Outros documentos divulgados pouco depois pelo e New York Times
incluem declarações feitas em segredo a quadros do Partido pelo Lingxiu, Xi
Jinping, no sentido de que não se mostrasse “absolutamente nenhuma
misericórdia” na aplicação de “instrumentos de ditadura”. O Chefe
sublinhou que “as armas da ditadura democrática popular têm de ser usadas
sem hesitação” e recordou que “nós, comunistas, combateremos
naturalmente uma guerra do povo”. Os documentos sublinham
explicitamente a necessidade de se “manter o segredo” sobre os novos laogai,
exatamente como os nacionais-socialistas alemães haviam feito com os lager
e os comunistas soviéticos com os gulag.
Um “Regulamento de Des-Extremismo cação”, emitido pelo Partido
Comunista Chinês em 2017, ilegalizou dezenas de situações banais da vida
quotidiana, incluindo “rejeitar ou recusar rádio e televisão”, “recusar ver
lmes normais ou programas de televisão”, ser “um homem novo ou de
meia-idade com uma grande barba”, “parar repentinamente de beber e
fumar e não interagir com outros que bebam e fumem”, “resistir a normais
atividades culturais e desportivas como futebol e competições de música” e
“resistir a propaganda do governo”.
Calcula-se que pelos campos de concentração chineses em Xinjiang
tenham passado entre um e três milhões de prisioneiros, isto numa
população de onze milhões de uigures, e que haja centenas desses laogai
espalhados pela região. Estamos a falar de entre dez e trinta por cento da
população da província fechada em campos de concentração. É a maior
operação de detenção em massa de uma minoria étnica desde o Holocausto.
Na melhor tradição dos regimes totalitários, o Partido Comunista Chinês
começou por negar em absoluto tudo o que se denunciava. Quando
constatou que os desmentidos não se sustentavam perante a vastidão das
provas e a multiplicação dos testemunhos de sobreviventes, Pequim mudou
de tática. Embora reconhecendo que a nal existiam mesmo uns centros de
“educação” em Xinjiang, o que signi ca uma admissão de que até ali só tinha
dito mentiras, o Partido assegurou que os “estudantes” são todos
“voluntários” e negou que lhes sejam ministrados quaisquer maus-tratos.
Mesmo tratando-se de um recuo, esta versão contradizia os factos já
apurados, pelo que as críticas do Ocidente se intensi caram. Pressionado, o
Partido anunciou em 2019 que tinha dado ordem para fechar esses centros
de “educação”, embora haja indícios de que isso não aconteceu realmente e
que apenas foram desenvolvidos novos subterfúgios. Para forçar a validade
das suas sucessivas versões, e como notou a Amnistia Internacional e o
con rmaram muitas testemunhas, “o governo da China ameaça, detém,
tortura e faz desaparecer quem quer que fale em público sobre a situação
dos direitos humanos em Xinjiang”.
Perante a continuação da repressão em Xinjiang, 43 países ocidentais
assinaram em 2021 uma declaração conjunta nas Nações Unidas a acusar a
China de práticas de tortura, desaparecimentos e esterilizações forçadas
contra os uigures. A Turquia, pasme-se, foi o único país muçulmano que
subscreveu esta declaração. Os países com ditaduras ou vassalizados pela
Nova Rota da Seda vieram em socorro da China e, coordenados por Cuba,
apoiaram as políticas de Pequim contra as minorias muçulmanas. Entre os
62 países que alinharam pela China estavam sobretudo regimes africanos,
mas também nações muçulmanas ricas, como a Arábia Saudita e o Irão.
As contas assustam. Eram mais os países contra do que a favor do respeito
pelos direitos humanos em Xinjiang. O presidente do Paquistão, esse grande
arauto da defesa do islão, conseguiu mesmo a proeza de, na mesma
entrevista em que acusou de “islamofobia” o Ocidente que saiu em defesa
dos uigures, se recusar a condenar o Partido Comunista Chinês por meter
em campos de concentração milhares de pessoas pelo crime de serem
muçulmanas e de forçarem as mulheres muçulmanas a esterilizações e
abortos em massa e ainda de as obrigarem a viver em casa com homens
estranhos a quem o Partido deu na prática poderes para fazerem a essas
mulheres o que bem lhes aprouvesse.
Este é um romance e por isso é uma obra ccional. Contudo, as situações
que apresenta são, infelizmente, baseadas em factos reais. Todas as
personagens foram criadas por mim, mas aquelas cuja história decorre em
Xinjiang, de Madina a Maysem, passando por Gulbahar, Qeyser e Erbakyt,
são inspiradas em pessoas reais, cuja vida reconstituí com base em
testemunhos sobre as situações que essas ou outras vítimas realmente
viveram. A vida de Madina mistura assim episódios diferentes das vidas de
pessoas reais, desde Sayragul Sauytbay a Gulbahar Haitiwaji, passando por
Maysem, Qeyser, Erbakyt e tantos outros.
Fui buscar o nome de Madina à irmã mais nova de Gulbahar, uma
sobrevivente uigure de Xinjiang que vive agora em França. A verdadeira
Madina foi enviada para os campos de concentração aparentemente porque
cometeu o crime de ser irmã de Gulbahar, a qual, aliás, já tinha sido enviada
para esses campos por ter cometido o crime de ser mãe de Gulhumar, a qual,
por seu turno, o Partido muito gostaria de enviar para os mesmos campos
por ter cometido o crime de comparecer numa reunião da secção francesa
do Congresso Mundial Uigure em Paris. Como notou a Amnistia
Internacional, muitas das pessoas detidas eram-no por “crimes de
associação” a alguém suspeito, em geral um familiar ou um amigo, não por
elas próprias terem feito algo em concreto.
A professora Qelbinur, que neste romance cumprimenta os prisioneiros
numa sala de aula do campo com um “as salaam alekum” proibido e que
chora enquanto dá a aula, é baseada numa pessoa que existe, também ela
chamada Qelbinur. Osman, o “pretendente” de Madina, é baseado em
Osman, um comerciante uigure que se destacava nos campos de
concentração de Xinjiang pelo seu espírito positivo e que acabou por morrer
aí. Já os verdadeiros Qeyser, Erbakyt e Maysem foram levados para os laogai
pelos motivos mais absurdos. Maysem pelo crime de estudar na Turquia,
Qeyser pelo crime de ter consultado sites estrangeiros, Erbakyt pelo crime
de ter descarregado as apps do Facebook, Instagram e WhatsApp no seu
telemóvel.
Roubei o nome da personagem Tursunay, a rapariga da cela 310 que no
romance é violada, a Tursunay Ziawudun, uma das prisioneiras
referenciadas pelo Human Rights Watch como tendo sido objeto de
violações coletivas nos laogai de Xinjiang em três ocasiões distintas, sempre
por parte de guardas mascarados. As violações envolvem sobretudo
mulheres, mas também homens, embora o único homem que tenha
admitido ter sido vítima de tal prática nos campos do Partido tenha sido o
escritor Abduweli Ayup. Os relatos de violações sexuais em massa nos
campos de concentração chineses são múltiplos, registados por ONG de
defesa dos direitos humanos como a Amnistia Internacional e o Human
Rights Watch e con rmados por testemunhas como Sayragul Sauytbay e
outros, embora se acredite que não passem da ponta do icebergue de uma
tragédia de proporções bem mais vastas dada a vergonha associada a
situações desse género, ainda para mais nessas culturas, e que inibe a
denúncia.
Várias personagens da elite uigure passaram por este romance com os
nomes verdadeiros. O cantor pop Ablajan Awut Ayup, conhecido como o
Justin Bieber uigure, foi realmente fechado num campo de concentração. O
mesmo aconteceu com o presidente da Universidade de Kashgar, Erkin
Ömer. São apenas dois dos muitos intelectuais uigures detidos para serem
“reeducados” pelo Partido Comunista Chinês. Quanto a Nurmemet Yasin, o
autor do conto “Pombo Selvagem”, foi condenado a dez anos de prisão por se
ter atrevido a escrever uma metáfora sobre a liberdade. Yasin foi fechado na
prisão de Shayar, considerada uma casa dos horrores, e correm rumores de
que morreu no cativeiro. A Amnistia Internacional e o PEN America
exigiram um inquérito. Até hoje o Partido Comunista Chinês não
con rmou formalmente a morte do autor de “Pombo Selvagem”. As
referências que lhe faço no romance são uma homenagem a ele e à liberdade
sobre a qual escreveu e pela qual deu a vida atrás das grades.
A história da idosa que morreu após ter passado três dias amarrada a uma
cadeira pelo crime de ter empurrado um guarda foi relatada por uma
testemunha à Amnistia Internacional. A única diferença é que o caso real se
passou com um homem. A história da septuagenária detida por ter dito que
na China não havia lei, apenas polícia, e que teve um ataque cardíaco
quando no campo de concentração ouviu os gritos dos três lhos a serem
torturados, também é verdadeira. A conversa telefónica de Leong com
madame Kashgari é baseada na conversa que Gulbahar Haitiwaji
efetivamente teve com um “contabilista” da sua antiga empresa em Karamay
para que ela voltasse a Xinjiang, um estratagema para a atrair a Xinjiang e a
enviar para um campo de concentração. A diferença é que o romance
imagina essa conversa vista da perspetiva do “contabilista”, o chefe da célula
do Partido na empresa.
A mensagem que Madina enviou numa embalagem da fábrica onde
trabalhava como escrava é inspirada numa mensagem que uma
consumidora americana realmente encontrou ao abrir a embalagem de um
produto irresistivelmente barato que havia comprado numa loja do Oregon
e que tinha sido produzido numa fábrica da China. A mensagem original,
incluindo os erros em inglês, é esta: Sir: If you occassionally buy this product,
please kindly resend this letter to the World Human Right Organization.
ousands people here who are under the persicuton of the Chinese
Communist Party Government will thank and remember you forever. A
história desta mensagem terrível e de todo o sistema esclavagista
implementado pelo Partido Comunista Chinês é contada por Amelia Pang
no seu livro Made in China. É útil para nos lembrarmos de que, sempre que
compramos certos produtos incrivelmente baratos fabricados na China,
esses produtos só são baratos porque a mão de obra foi forçada a trabalhar e
não foi remunerada – isto é, estamos a comprar um produto feito por
escravos e, assim, a nanciar a escravatura.
As palavras de ordem apresentadas neste romance são todas verdadeiras,
tal como são verdadeiros os conteúdos das “aulas” ministradas nos campos
de concentração para efeitos de “puri cação das mentes”, a expressão formal
usada pelo Partido Comunista Chinês para descrever o processo de lavagem
ao cérebro. Os conteúdos das “con ssões” apresentadas neste romance
correspondem a conteúdos reportados pelos sobreviventes dos campos e as
conversas com os interrogadores e as “professoras da vida”, as tutoras que
fazem de polícias bons do sistema concentracionário comunista chinês, são
também baseadas em conversas realmente ocorridas. Reconstituí um campo
de concentração com base nos testemunhos dos sobreviventes, embora pelos
relatos se perceba que existem instalações muito díspares, desde escolas
adaptadas até enormes complexos construídos de raiz. Documentos secretos
da polícia de Xinjiang divulgados em 2022 pelo Consórcio de Jornalistas
Internacionais con rmam os relatos dos sobreviventes, incluindo
pormenores brutais.
As esterilizações forçadas foram pela primeira vez reveladas por Adrian
Zenz, que teve acesso a documentos o ciais chineses a estabelecer “objetivos
de performance” de esterilizações em massa e de introdução forçada de
dispositivos intrauterinos em mulheres uigures para efeitos de “e cácia a
longo prazo”. Essas esterilizações forçadas foram depois con rmadas por
sobreviventes dos campos e re etiram-se em números. As próprias
estatísticas chinesas assinalaram uma quebra de quase metade dos
nascimentos em Xinjiang em 2019. Considerando que uma parte
signi cativa da população da província é chinesa han, que não só não foi
afetada por esta campanha de esterilizações forçadas como até foi
encorajada a ter mais lhos, pode-se imaginar facilmente a dimensão do
problema na população uigure. De resto, o Instituto de Política Estratégica
da Austrália emitiu um relatório onde constatou que o colapso da natalidade
entre os uigures é superior em mais do dobro ao declínio da população
cambojana no pico do genocídio perpetrado pelos Khmers Vermelhos – um
movimento genocida comunista apoiado, aliás, pela China.
Reminiscentes das práticas eugénicas dos nazis, as esterilizações forçadas
em mulheres uigures, aliadas aos abortos forçados, con guram de facto um
genocídio biológico. Assim, a secção d do artigo II da Convenção das
Nações Unidas sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio
estabelece claramente que “genocídio signi ca […] impor medidas
destinadas a impedir nascimentos num grupo” de nível como “nacional,
étnico, racial ou religioso”. É o caso das esterilizações e dos abortos forçados
nas mulheres uigures. De resto, os Estados Unidos declararam em 2021 que
o processo em curso em Xinjiang constitui realmente um genocídio. O
mesmo proclamou o Parlamento do Canadá. A União Europeia ainda não se
atreveu a descrever a situação em Xinjiang como um genocídio, pois as
Novas Rotas da Seda conseguiram já vassalizar alguns países europeus, mas
o Parlamento Europeu aprovou em 2022 uma resolução a considerar o que
está a ser feito pelo Partido Comunista Chinês aos uigures “crimes contra a
humanidade e um grave risco de genocídio”.
Para além de formas subtis de genocídio biológico, estão igualmente em
curso processos de genocídio cultural. Os uigures foram na prática
proibidos de possuir artefactos culturais uigures e o ensino da língua uigure
foi também na prática interditado. Ciente de que estudos americanos
mostravam que uma língua que não podia ser usada nas escolas acabava por
desaparecer em três gerações, o poeta Abduweli Ayup tentou combater a
interdição e abriu um infantário onde se falava em uigure e um centro de
ensino da língua uigure. Ayup foi preso por esse ato. Logo no primeiro dia,
mandaram-no despir-se e pôr-se de gatas, tendo sido violado coletivamente
por uma vintena de guardas chineses han. Este poeta foi acusado de
separatismo, crime punido na China com a pena de morte. Tudo por se ter
atrevido a tentar manter a língua uigure viva.
É importante sublinhar que as práticas de supremacismo han do Partido
Comunista Chinês e as consequentes perseguições aos uigures, e apesar da
retórica da união, harmonia e fraternidade entre as etnias para salvaguardar
as aparências, assumiram um claro per l racial. As autoridades comunistas
chinesas chegaram mesmo ao extremo de recolher o ADN da população
muçulmana para detetar marcadores SNP, ou single nucleotide
polymorphisms, de modo a estabelecerem traços como a estrutura facial e a
cor da pele da minoria étnica uigure. Ou seja, e para sermos claros, o
Partido determinou “cienti camente” as características raciais dessa minoria
étnica. O estabelecimento do marcador racial uigure permitiu ao Partido
desenvolver um algoritmo destinado a identi car racialmente qualquer
uigure captado pelas câmaras de vigilância.
O advogado uigure Nury Turkel, especializado na defesa dos direitos
humanos, não teve dúvidas em a rmar que as detenções decretadas pelo
Partido Comunista Chinês em Xinjiang são “baseadas na raça, etnicidade e
religião de cada indivíduo, o mesmo critério usado pela Alemanha nazi para
deter judeus e ciganos”, sublinhando que os uigures não perguntam uns aos
outros por que motivo foram presos porque “todos sabem que é
simplesmente devido à sua etnia”. Esta conclusão é sustentada numa
in nidade de indícios e comportamentos reportados pelos sobreviventes, de
que este romance apresenta apenas uma ín ma amostra. A sobrevivente
Sayragul Sauytbay fez questão de sublinhar que os dirigentes do Partido
consideram os chineses han “uma raça muito superior e mais valiosa, que é
precisamente o que o PCC e o seu secretário-geral, Xi Jinping, andam a
pregar com tão ardente nacionalismo”.
Tudo isto foi con rmado por um relatório que o Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos emitiu em 2022, e cuja divulgação
a China tentou por todos os meios e a todo custo impedir. Depois de
entrevistar em pormenor quarenta testemunhas, veri car os factos e
questionar Pequim, o Alto Comissariado determinou que “graves violações
dos direitos humanos foram cometidas em XUAR”, a designação
administrativa de Xinjiang, envolvendo “coerção e discriminação de
natureza étnica e religiosa” contra os uigures e outras minorias por “razões
inócuas” como “ter muitas crianças, ser uma ‘pessoa incerta’, ter nascido em
determinados anos, ser um ex-condenado, usar véu ou barba, ter pedido um
passaporte e não ter saído do país” e ainda “ter ligações com o estrangeiro,
tentar cancelar a cidadania chinesa, possuir registo num país vizinho ou ter
feito download do WhatsApp”. Os relatores da ONU constataram até que
houve pessoas presas pelos crimes de “constarem de uma lista ou por uma
quota precisar de ser preenchida”.
Sobre o que as vítimas passavam nos campos de concentração de Xinjiang,
o Alto Comissariado enumerou “tortura e outras formas de tratamento ou
punição cruel, desumana e degradante”, incluindo violência na “cadeira
tigre”, “fome constante”, “vigilância constante”, “violência sexual” com
“violações a terem lugar fora dos dormitórios”, “proibição de falar a sua
própria língua”, “doutrinação política” coerciva e a permanente prática de
“autocrítica”. Uma vítima citada pelos relatores da ONU revelou: “Não me
disseram porque estava eu lá nem por quanto tempo iria car. Mandaram-
me confessar um crime, mas eu não sabia o que devia confessar”. Entre as
violações dos direitos humanos praticadas pelas autoridades chinesas, o Alto
Comissariado designou a “privação arbitrária e em larga escala da liberdade”
das vítimas, as “restrições arbitrárias e discriminatórias dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais” das pessoas pertencentes a
minorias étnicas e as “violações dos direitos reprodutivos através da
imposição coerciva e discriminatória de planeamento familiar e de políticas
de controlo da natalidade”, incluindo “mulheres que disseram terem sido
forçadas a abortar ou forçadas a inserir DIU” e medicação coerciva “sem
consentimento informado”.
O relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos
condenou ainda a campanha Tornar-se Família, que envolve um milhão de
quadros do Partido Comunista Chinês instalados durante uma semana por
mês nas casas dos elementos das minorias étnicas contra a vontade destes,
chamando a atenção para “as implicações óbvias e signi cativas para a
privacidade da vida familiar” e para o inerente “assédio sexual”. O
documento condenou igualmente o trabalho “de natureza ou efeito
discriminatório e envolvendo elementos de coerção” e o facto de as
detenções estarem “frequentemente envolvidas em segredo”, o que “constitui
uma forma de tratamento cruel e desumano para a família mais próxima”.
Outras condenações por violação dos direitos humanos envolveram as
“intimidações e represálias contra as vítimas e os seus familiares”, o “regresso
forçado de uigures à China” e os “desaparecimentos forçados”. Estas práticas
foram dadas pelo organismo da ONU como demonstradas.
Já agora, e embora o Alto Comissariado não o tenha mencionado, há
também indícios e testemunhos de que prisioneiros estão a ser mortos para
alimentar o trá co de órgãos, negócio em que a China é o líder mundial.
Pequim anunciou que pôs m a essa prática em 2015, mas as organizações
de defesa dos direitos humanos e grupos perseguidos pelas autoridades,
incluindo membros do Falun Gong, disseram que a extração de órgãos de
prisioneiros vivos para efeitos de trá co continua. Sayragul deu conta da
suspeita da mesma prática em prisioneiros uigures jovens, embora nada
tenha testemunhado diretamente. No entanto, a Universidade Nacional da
Austrália fez um estudo publicado em 2022 no American Journal of
Transplantation a revelar ter de facto detetado provas de extração de órgãos
em prisioneiros vivos na China. Pequim negou.
Tudo o que está descrito neste romance sobre o Estado policial que
o Partido Comunista Chinês impôs em toda a China, não apenas em
Xinjiang, é baseado em factos reais. O Documento 9 mencionado no
romance, formalmente designado “Comunicado sobre o Atual Estado na
Esfera Ideológica”, existe mesmo. Trata-se de um documento interno do
Partido Comunista Chinês a alertar contra a “democracia constitucional
ocidental” e os seus perigosos “conceitos de classes capitalista”,
designadamente “a separação de poderes, o sistema multipartidário, as
eleições gerais, o sistema judiciário independente” e “liberdade ocidental,
democracia e direitos humanos”, e ainda “liberdade de imprensa”, “libertação
de ‘prisioneiros políticos’” e “a ideia de sociedade civil”. O documento
considera estes valores como sendo uma “tentativa de minar a atual
liderança e o socialismo com características chinesas”. O importante no
comunismo, sustenta o Partido, é a imprensa ter “uni cação do
pensamento” com o Partido. Vale a pena repetir a expressão, para que nela
meditemos com a devida profundidade. “Uni cação do pensamento.”
Quanto ao tema da vigilância omnipresente e do Sistema de Crédito
Social, já o tinha abordado no meu romance Imortal, uma das anteriores
aventuras de Tomás Noronha, mas pareceu-me que a situação tem uma tal
gravidade que requeria uma nova abordagem, esta muito especí ca. A forma
como o Partido Comunista Chinês espalhou centenas de milhões de
câmaras de videovigilância pelo país e desenvolveu algoritmos para
identi car cada pessoa é verdadeira, tal como é verdadeiro que esses
algoritmos são capazes de reconhecer uma pessoa de cara tapada pela
maneira como caminha e que esses algoritmos alegadamente conseguem até
perceber as ideias políticas de uma pessoa só com base em pormenores
comportamentais.
Os sucessivos episódios da história de Madina são baseados em
acontecimentos realmente ocorridos. O detalhe de lhe terem instalado uma
câmara de videovigilância e um microfone na sala de estar foi reportado
pela sobrevivente Maysem, o mesmo acontecendo com o pormenor da
obrigação de pintar de vermelho o apartamento azul. As comissões do
bairro existem na China e fazem parte do Estado policial ali implementado,
sendo que o Partido Comunista Chinês deu efetivamente a essas comissões
os poderes que este romance lhes atribui.
Todas as tecnologias de vigilância em massa implementadas na China em
geral e em Xinjiang em particular foram desenvolvidas e aplicadas pelas
mais prestigiadas tecnológicas chinesas, todas elas suspeitas de serem
extensões do Partido Comunista Chinês. Entre as acusadas estão a
Hikvision, a iFlyTek, a SenseTime, a Megvii, a Dahua e a Huawei. Todas
estas empresas tornaram-se alvos dos Estados Unidos pelo papel que
desempenharam no sistema concentracionário em Xinjiang. Um diplomata
americano que se tornou vice-presidente da Huawei em Washington disse
ter visto um slide interno da Huawei que dizia: “para o auditório doméstico,
a Huawei é uma empresa chinesa que apoia o Partido Comunista da China;
para o auditório internacional, a Huawei é uma empresa independente que
segue as práticas empresariais internacionalmente aceites”. No que diz
respeito à dissimulação, está tudo dito.
Também algumas empresas tecnológicas ocidentais contribuíram,
conscientes ou não dos verdadeiros objetivos do projeto, para o sistema
chinês de vigilância orwelliana, como a Nvidia e a Intel, que construíram os
poderosos computadores de vigilância usados no Centro de Computação de
Ürümqi, ou a Qualcomm, que forneceu os semicondutores à Megvii, ou a
In nova, que colaborou com a chinesa SenseTime para fornecer as
tecnologias de vigilância usadas em Xinjiang, ou a Promega, que vendeu
equipamento avançado para, em Xinjiang, se criarem registos a partir de
pequenos traços de ADN.
A informação relativa às marcas globais que bene ciam direta ou
indiretamente do trabalho forçado uigure foi obtida em várias fontes. A
principal foi o Instituto de Política Estratégica da Austrália, que emitiu em
2020 um relatório a identi car 27 fábricas em nove províncias chinesas onde
uigures eram forçados a trabalhar. Essas fábricas encontravam-se nas
cadeias de abastecimento de pelo menos 82 marcas, incluindo a Nike, a
Samsung, a Huawei, a Sony, a Apple, a BMW, a Volkswagen, a Lacoste e a
Nokia. Depois de o relatório sair, várias destas marcas negaram ter contratos
diretos ou indiretos com fabricantes de Xinjiang, como é o caso da Adidas e
da Puma, e outras deram ordens para pôr m às relações com essas fábricas
e anunciaram medidas para impedir que situações dessas se repetissem. O
problema é garantir que os fornecedores chineses, mesmo não sendo de
Xinjiang, não usem algodão oriundo de Xinjiang. Pesquisadores da
Agroisolab e da Universidade Hochschule Niederrhein zeram uma análise
isotópica aos tecidos da Adidas e da Puma, e ainda de outras marcas de
roupas, e de facto encontraram traços de algodão de Xinjiang.
Confrontadas, as marcas insistiram que não usam algodão de Xinjiang.
Convém, por outro lado, chamar a atenção para o facto de que os campos
de concentração de Xinjiang constituem apenas uma fração de todo o
sistema concentracionário comunista chinês. Os primeiros laogai abriram
na década de 1930, inspirados nos gulag soviéticos, e transformaram-se
numa enorme rede de campos de concentração que se espalhou por toda a
China. Aqueles que o Partido Comunista Chinês designou como seus
inimigos, sobretudo opositores políticos e proprietários de terras, foram aí
fechados e obrigados a trabalhar sem remuneração para produzir bens para
as forças militares do Partido. Ou seja, foram feitos escravos. Em 1952, já
existiam no país seiscentas quintas laogai e duzentas minas laogai. Cinco
anos depois, Mao Tsé-tung reforçou o contingente de vítimas do sistema
concentracionário com milhares de intelectuais. Um alto quadro do Partido
Comunista Chinês, Liu Shaoqi, revelou em 1951 que havia milhões de
reclusos encerrados nos laogai da China.
Os reclusos eram, em geral, pessoas arrebanhadas nas sucessivas purgas,
designadas por campanhas. Houve a campanha dos três anti, a campanha
dos cinco anti, a campanha da reforma do pensamento, a campanha das
cinco ores, a campanha das cem ores, a campanha para a eliminação dos
contrarrevolucionários escondidos, a campanha antidireitista, etc. Uma
delas, a das coletivizações para dar o Grande Salto em Frente, degenerou
numa fome de proporções bíblicas, fonte de imenso sofrimento e até de
múltiplos atos de canibalismo. O episódio, narrado neste romance, das
famílias que trocavam crianças para comer é verdadeiro e foi detalhado por
Wei Jingsheng. Essa fome foi também historiada a partir de testemunhos e
de documentos por um dos seus sobreviventes, Yang Jishen, cujos cálculos
apontam para um total de 36 milhões de pessoas mortas por falta de
comida. Em termos absolutos, foi a maior fome da história da humanidade.
As sucessivas campanhas do Partido contra inimigos ou supostos inimigos
foram abastecendo constantemente os laogai de escravos, todos eles forçados
a incontáveis sessões de autocrítica, admissão de culpa e arrependimento e
obrigados a delatar outros prisioneiros. A taxa de mortalidade nos campos
de concentração comunistas chineses variava entre os cinco e os cinquenta
por cento ao ano, havendo episódios de comandantes que enterraram vivos
mais de mil reclusos. Um prisioneiro ocidental, Jean Pasqualini, revelou que
três quartos dos elementos da sua brigada de trabalho morreram ou estavam
a morrer em agosto de 1960. Os cálculos apontam para vinte milhões de
mortos nos laogai.
Após a morte de Mao, mais campos de concentração foram abertos para
internar o que o Partido Comunista Chinês designava como “inimigos do
povo”, uma expressão su cientemente vaga para incluir quem o Partido
entendesse. Muito importante, os investigadores observaram a integração do
sistema concentracionário chinês no aparelho produtivo do país e notaram
que os períodos de maior crescimento económico da China parecem estar
ligados ao aumento do trabalho escravo nos laogai. Só entre 1958 e 1980, a
produção industrial nestes campos aumentou sete vezes de valor, graças ao
labor dos escravos. Em 2013, o antigo gestor de um laogai gabou-se mesmo
de que o seu campo de concentração, o campo de Masanjia, gerava quase
quinze milhões de euros por ano.
A detenção de pessoas por toda a China por motivos absurdos parece
indiciar que as detenções têm como verdadeiro propósito preencher quotas
de pessoal para a produção, de resto uma prática já existente nos gulag
soviéticos. A Fundação de Pesquisa dos Laogai, criada nos Estados Unidos
em 1992 pelo sobrevivente Harry Wu, identi cou um total de 1400 campos
de concentração a operar na China, muitos deles disfarçados com nomes
inócuos como “centro de desintoxicação de drogas” e “centro de detenção
pré-julgamento”. Encontravam-se aí sete categorias de reclusos e escravos:
prisioneiros políticos, crentes em religiões proibidas, minorias étnicas,
pessoas que faziam petições, migrantes, delinquentes juvenis e criminosos
adultos. Em 2013, o Partido Comunista Chinês anunciou que iria pôr m
aos laogai, promessa que não só não cumpriu como inverteu, aumentando
de novo o complexo de campos de concentração no país. Em suma, e apesar
de a sua tragédia ocupar um lugar central neste romance, os uigures estão
longe de serem as únicas vítimas do sistema concentracionário do Partido –
e do respetivo Estado de vigilância total.
Com tudo isto, será o regime do Partido Comunista Chinês um
verdadeiro regime socialista? A dúvida é pertinente e importante, razão pela
qual lhe vamos dedicar alguma atenção, apesar de isso nos obrigar a abordar
determinadas questões doutrinárias que poderão soar bizantinas. Ninguém
duvidará, presumo, que o Partido abraçou o capitalismo. Abraçou-o de tal
maneira, aliás, que muitos pensadores, políticos e empresários do Ocidente,
partindo do princípio de que o capitalismo é rejeitado pelo socialismo, até
acreditam que o Partido Comunista Chinês só é comunista de nome. Tal
conclusão é perfeitamente compreensível tendo em conta o capitalismo
selvagem que se pratica no país. Porém, não resiste a uma análise mais na.
Em primeiro lugar, Marx e Engels estabeleceram por várias vezes que o
verdadeiro socialismo só emerge no quadro do capitalismo avançado. O
próprio Lenine o a rmou meses antes de desencadear a revolução do
proletariado na Rússia, um país feudal que não tinha capitalismo nem
proletariado, assim violando frontalmente uma das premissas centrais da
doutrina marxista. Ora, também a China não tinha uma economia de
capitalismo avançado quando o Partido subiu ao poder. Pelo contrário, era
igualmente um país feudal – e assim na sua essência permaneceu até Deng
Xiaoping abrir a porta ao capitalismo.
Portanto, o facto de o Partido Comunista Chinês abraçar o capitalismo
não impede que continue a ser um partido comunista. De resto, e depois da
catástrofe social e económica que foi a aplicação do comunismo puro e duro
na Rússia, o próprio Lenine recuou em 1921 para a Nova Política
Económica e abriu a economia russa à iniciativa privada, ao investimento
estrangeiro e ao que os comunistas designam “o grande capital”. O Vozhd, a
expressão russa para o Chefe, defendeu então “o capitalista” que iria
“conduzir o seu negócio segundo linhas capitalistas, em busca do lucro”, e
chegou ao ponto de anunciar a necessidade de “pagar uma remuneração
muito alta pelos serviços dos melhores especialistas burgueses” de modo a
“atrair” tais especialistas com “salários extremamente elevados”. Apesar de
abraçarem abertamente políticas capitalistas, como vemos, Lenine e o seu
Partido Bolchevique nunca deixaram de ser considerados comunistas. Por
que razão o critério deveria ser diferente com o Partido Comunista Chinês?
Em segundo lugar, coloca-se a questão de determinar o que é efetivamente
o socialismo. Os bolcheviques reivindicaram-se os verdadeiros socialistas e
acusaram os socialistas liberais de não serem realmente socialistas, enquanto
os socialistas liberais se reivindicaram eles próprios os verdadeiros
socialistas e acusaram os bolcheviques de não serem realmente socialistas.
No meio dessa troca de reivindicações e acusações apareceram os fascistas a
acusar os bolcheviques e os socialistas liberais de não serem verdadeiros
socialistas e a reivindicar para o fascismo “o único socialismo possível” e o
“socialismo viável”, algo que os bolcheviques e os socialistas liberais, por seu
turno, negaram em absoluto. E, já agora, também os anarquistas
reivindicaram para si o estatuto de socialismo genuíno, acusando os
restantes movimentos de, com a sua defesa do Estado “opressor”, não serem
verdadeiramente socialistas. Isto já para não falar nas trocas de acusações
entre estalinistas, trotskistas, kruschevianos, titistas, maoístas,
enverhoxhanos, kimilsunguistas, polpotistas e uma miríade de outros
movimentos, tendências e regimes que se reclamavam e reclamam os
“verdadeiros” socialistas.
Não estamos, pois, em condições de determinar qual é o verdadeiro
socialismo, pois cada “crente” e cada “corrente” se proclama o socialismo
genuíno e acusa os rivais de serem falsos socialistas ou de nem sequer serem
socialistas. A única coisa que podemos fazer é constatar que todas estas
correntes, de facto, se reivindicaram do “verdadeiro” socialismo.
Ora, também o Partido Comunista Chinês se apresenta hoje como o
“verdadeiro” intérprete do socialismo e nunca nenhum dos seus dirigentes
alguma vez renegou a natureza comunista do Partido e do seu regime. Pelo
contrário, os líderes do Partido sempre o rea rmaram. Várias frases
colocadas na boca de personagens deste romance são na verdade cópias ipsis
verbis de declarações de Xi Jinping, o Lingxiu que ordenou a construção dos
campos de concentração para aí encerrar as minorias étnicas de Xinjiang,
sobretudo os uigures.
Assim, o Chefe defendeu sucessivas vezes a “revolução socialista”, disse
que o Partido “estabeleceu o socialismo como o nosso sistema básico” e está
em “processo de construção socialista”. Sustentou que “apenas o socialismo
pode salvar a China”, embora o país esteja ainda na “etapa primária do
socialismo” e seja necessária uma “modernização socialista”. Xi Jinping
sublinhou que “temos de permanecer profundamente conscientes da
necessidade de manter a integridade política” e “temos de con ar no
caminho, teoria, sistema e cultura do socialismo com características
chinesas”, até porque “o marxismo funciona”. Depois de sublinhar que “o
marxismo é a ideologia fundamental que nos guia e sobre a qual o nosso
Partido e o país se fundam”, apelou aos quadros do Partido para
acreditarem, mais do que nunca, nos “valores socialistas fundamentais”,
enfatizando a “superioridade do socialismo sobre o capitalismo”. Para além
de estar sempre a invocar os pensamentos de Marx, Engels, Mao, Lenine e
Estaline, Xi Jinping exigiu “pureza ideológica”, preconizou a “luta
revolucionária” e disse que “o ideal nobre do comunismo e o ideal comum
do socialismo com características chinesas são o pilar moral e a alma
política dos comunistas chineses e constituem o fundamento ideológico da
coesão e da unidade do Partido”.
O Partido Comunista Chinês emitiu mesmo recomendações especí cas
contra “a democracia constitucional ocidental”, contestando até os “valores
universais dos direitos do homem” intrínsecos aos regimes liberais, tendo o
Lingxiu avisado que “o desaparecimento do capitalismo e a vitória nal do
socialismo vão requerer um longo processo histórico antes de chegar ao seu
termo”. Como é bom de ver, o líder desse processo histórico é, na opinião do
Partido, o próprio Partido.
Portanto, perante a dúvida de determinar se o Partido Comunista Chinês
é ou não um partido comunista, a resposta só pode ser inequivocamente
a rmativa. O Partido continua a ser comunista e a apontar o comunismo
como o seu objetivo último. “Vamos usar o marxismo para observar,
compreender e tomar as rédeas das tendências dos tempos e continuaremos
a desenvolver o marxismo na China contemporânea do século ”,
assegurou o Chefe.
Ora, como a China abraçou também o nacionalismo, ao ponto de Mao
Tsé-tung o ter eleito como o primeiro dos três Princípios do Povo, isso
signi ca que estamos perante um Partido que preconiza a junção de duas
ideias, o nacionalismo e o comunismo, sob a tutela de um regime ditatorial.
Em suma, a China é governada por uma ditadura de socialismo nacionalista.
“Amem a pátria, cultivem e pratiquem conscientemente os valores socialistas
fundamentais”, preconizou Xi Jinping, numa declaração em que colocou na
mesma frase o ideal nacionalista, “amem a pátria”, e o ideal socialista,
“valores socialistas fundamentais”. A exaltação nacional-comunista do
Partido Comunista Chinês tornou-se aliás tão extremada que um hospital
da Universidade de Pequim iniciou até uma campanha de recolha para o seu
banco de esperma pondo como requisito que os dadores fossem pessoas que
“amem a pátria socialista e abracem a liderança do Partido Comunista”. Ou
seja, os genes ideais para procriação, na visão nacional-comunista chinesa,
são os nacionalistas e socialistas. Os nacionais-socialistas alemães não
diriam melhor.
Quanto ao projeto do Partido Comunista Chinês de transformar a China
na única potência hegemónica do mundo, impondo ao resto do planeta a
sua visão totalitária e censória da sociedade, o que este romance apresenta
são as descobertas que estão a ser feitas sobre a grande estratégia secreta do
Partido. É certo que o Protocolo Dragão Vermelho não existe enquanto
documento único e muito menos com esse nome. No entanto, o conteúdo
do dossiê ccional apresentado nesta obra corresponde ao que consta
efetivamente em múltiplos documentos do Partido Comunista Chinês, uns
públicos e outros secretos, sendo que nenhum deles foi traduzido para
qualquer língua ocidental e que apenas podem ser encontrados em chinês.
Os documentos secretos são aliás os mais importantes, pois aí as verdadeiras
ideias do Partido são apresentadas naturalmente sem ltros nem
subterfúgios retóricos.
Houve, no entanto, uma falha nas cautelas de Pequim. Trata-se do caso de
uma das obras-chave chinesas a expor a estratégia do Partido Comunista
Chinês para derrotar o Ocidente, um livro assinado por dois coronéis no
ativo das forças militares do Partido, o Exército de Libertação Popular. Por
motivos que não são claros, foi autorizada a tradução dessa obra para inglês
com o título Unrestricted Warfare. O problema é que o livro foi lido pelos
analistas ocidentais e provocou grande alarme, uma vez que expunha um
verdadeiro plano de agressão ao Ocidente. Ao aperceber-se do erro que fora
a tradução da obra, o Partido reagiu e imediatamente retirou do mercado
todos os exemplares do livro, alegando que o seu conteúdo não representava
o pensamento o cial. Isto apesar de Unrestricted Warfare ter sido publicado
pela editora do Exército de Libertação Popular e de os dois autores terem
sido promovidos após a publicação da obra. Para além disso, os académicos
e empresários ocidentais “amigos da China”, os famosos zhungguo panguiao,
apareceram de imediato a a rmar em coro que a obra não re etia o
pensamento do Partido. O erro, no entanto, não pôde ser corrigido por
inteiro, uma vez que o livro já havia sido lido e as devidas conclusões tiradas
pelos serviços de informações ocidentais, os quais, aliás, possuem de outras
fontes mais dados sobre os verdadeiros desígnios expansionistas do Partido
Comunista Chinês.
Uma última informação constante do Protocolo Dragão Vermelho
ccional, a de que o plano do Partido inclui a neutralização da Europa logo
que se passe o meio do século , foi revelada pela denunciante Sayragul
Sauytbay. Em bom rigor, a referência que ela fez foi: “2035-2055: Após a
realização do sonho da China ocorrerá a ocupação da Europa.” Esta ex-
militante do Partido Comunista Chinês e fugitiva de Xinjiang revelou ter
lido essa informação em textos carimbados como “documentos
con denciais de Pequim”. Devo dizer que considero a expressão “ocupação”
tão extraordinária que é difícil de acreditar, pelo que no romance a suavizei
para “neutralização”, embora não seja impossível que o Partido acredite
mesmo na possibilidade de ocupar a Europa daqui a algumas décadas.
A crença de que as democracias liberais estão em decadência, partilhada
desde Lenine a Putin, de Mussolini a Xi Jinping, é típica das ditaduras e
autocracias e tem-se revelado persistentemente errónea, como aliás a Rússia
descobriu à sua custa quando invadiu a Ucrânia e viu o Ocidente unir-se em
reação, mas continua a ser partilhada por esses regimes. Tal crença, aliada às
constantes fragilidades da construção europeia e ao seu massivo
desinvestimento na defesa, credibiliza a hipótese de o Partido Comunista
Chinês acreditar que poderá algures no futuro controlar ou mesmo ocupar a
Europa.
Em apoio dessa possibilidade existem vários fatores. O momento indicado
por Sayragul para a consumação dessa ocupação, que segundo ela está
planeado para após a concretização do chamado “sonho da China” a meio
do século , encontra-se em linha com a crença expressa pelo próprio
Partido Comunista Chinês de que se tornará a superpotência hegemónica
do planeta a meio do século – projeto conhecido justamente como “sonho
da China”. É certo que os dirigentes do Partido são sempre muito cautelosos
quando falam em público, pelas razões de dissimulação abundantemente
explicadas neste romance, mas este dado trazido para o exterior pela
dissidente do Partido é consonante com a a rmação feita em 2017 pelo
Lingxiu, Xi Jinping, de que vinham aí “grandes mudanças que não se viam
em um século”, frase que pelas suas ressonâncias históricas foi interpretada
como o anúncio de que, ao m de um século, se iria concretizar o “sonho da
China” e o país regressaria ao estatuto de ba, a potência hegemónica do
planeta. A contagem do século em causa começaria em 1949, o ano em que
o Partido Comunista Chinês subiu ao poder, pelo que os cem anos se
completam em 2049.
Ora, o próprio Xi Jinping declarou repetidamente em 2017 que “até
meados do século o Exército de Libertação Popular será um exército de
classe mundial”. Além disso, o e Wall Street Journal noticiou em primeira
página que o Lingxiu estabeleceu explicitamente 2049 como sendo o ano em
que se realizará o qiang zhongguo meng, ou o “sonho da China forte”. De
resto, há cálculos que apontam para a possibilidade de nessa altura a
economia chinesa ser três vezes maior do que a americana, com todas as
consequências que daí advirão a todos os níveis, incluindo o militar, o
geoeconómico e o geopolítico. Xi Jinping anunciou abertamente que o
zhongguo fang’an, ou a “solução da China”, constitui “uma nova opção para
os outros países”, designadamente a “perspetiva chinesa para resolver os
problemas que afetam a humanidade”, uma forma eufemística de dizer que o
modelo ditatorial chinês se destina a exportação e ir-se-á tornar dominante
“para resolver os problemas que afetam a humanidade”. O sinólogo
americano Rush Doshi foi claro a este propósito: “o objetivo nal de Pequim
é substituir a ordem global liderada pelos Estados Unidos de maneira a
tornar-se a potência dominante do mundo até 2049”.
A possibilidade de o Partido Comunista Chinês alimentar planos de
expansão mundial poderá parecer hoje extravagante e altamente fantasiosa,
mas de facto não é tão absurda nem improvável quanto à primeira vista
possa parecer. Em primeiro lugar, um tal projeto está em consonância com a
natureza expansionista do comunismo. Convém nunca esquecer que, de
Marx a Estaline, passando por Lenine e outros líderes comunistas de muitos
países, o projeto de uma “revolução mundial” nunca foi escondido. O
Comintern foi, aliás, criado em 1919 por Moscovo justamente com esse
objetivo explícito.
Por outro lado, é uma realidade que o expansionismo se mostra também
uma tendência dos países poderosos. A China está a multiplicar fortemente
as suas despesas militares e construiu e militarizou ilhas arti ciais no mar
do Sul da China, coisa que tinha assegurado que nunca iria fazer, além de
que estabeleceu bases navais em vários países para projetar a sua força
militar à escala global. “Um país forte tem de ter umas forças armadas
fortes”, declarou Xi Jinping. Além disso, a retórica diplomática do Partido
para com os outros países tornou-se muito agressiva. O ministro dos
Negócios Estrangeiros chinês, Yang Jiechi, avisou ameaçadoramente numa
reunião da ASEAN: “a China é um país grande e os outros países são
pequenos – e isso é um facto”. E o embaixador chinês na Suécia, Gui
Congyou, agastado por este país escandinavo ter tido a desfaçatez de dar um
prémio a um cidadão sueco raptado pela China, avisou o governo de
Estocolmo: “para os amigos temos o melhor vinho, mas para os nossos
inimigos temos caçadeiras”. Em suma, à medida que vai ganhando músculo,
o Partido Comunista Chinês está cada vez mais também a mostrar os
dentes.
Por m, e conforme notou Hannah Arendt nos seus estudos sobre o
totalitarismo, o expansionismo constitui uma parte intrínseca da natureza
dos regimes totalitários. O Partido Comunista Chinês, com a sua vigilância
paranoica orwelliana que o levou até a desenvolver algoritmos para “ler” o
pensamento político dos seus cidadãos, criou sem dúvida um regime
totalitário – mais invasivo ainda do que os regimes nacional-socialista da
Alemanha e comunistas da União Soviética e da RDA, dado o seu amplo
recurso às modernas tecnologias avançadas de vigilância e controlo para se
imiscuir nas esferas mais privadas dos cidadãos.
Ora, as ideologias totalitárias tendem a apresentar a realidade como
consonante com a sua visão ideológica. Quando há contradição entre a
ideologia e a realidade, estes regimes consideram que não é a ideologia que
tem de se ajustar à realidade – é a realidade que tem de se ajustar à
ideologia. Mas como não é realmente possível mudar a realidade, pois ela é
mais forte do que a ideologia, o que se tenta mudar é a sua perceção. Tal
compele os regimes totalitários a eliminarem o conhecimento dos aspetos da
realidade que contradigam a ideologia. Ou seja, mente-se, censura-se e
inventa-se para que a realidade pareça o que não é. A falsidade torna-se
imprescindível para que estes regimes se eternizem no poder, pois, como tão
bem notou George Orwell, quem controla o passado controla o presente e
quem controla o presente controla o futuro.
Este tipo de comportamento é visível nas coisas mais simples. Por
exemplo, uma vez que o socialismo soviético era apresentado pelo respetivo
regime como o mais perfeito de todos, as escolas da União Soviética
ensinaram durante algum tempo aos alunos que Moscovo era o único sítio
do mundo onde existia metro. O conhecimento da existência de redes de
metro nos países capitalistas foi censurado, pois contradizia a ideologia.
Naturalmente, quando se trata de coisas mais graves, como o envolvimento
do regime em grandes mortandades, este mecanismo censório torna-se
absolutamente indispensável. Assim, e uma vez que o comunismo chinês se
reivindica o melhor de todos os sistemas, o Partido determinou que na
passagem da década de 1950 para a de 1960 nunca houve nenhuma grande
fome na China e que em 1989 jamais ocorreu qualquer massacre em
Tiananmen. O conhecimento de tais acontecimentos foi censurado e
eliminado da memória coletiva, transformando a China no que alguns
sinólogos apelidam a República Popular da Amnésia. Apagam-se os factos
incómodos para alinhar a perceção da realidade com a ideologia.
O problema é que a tentativa de tornar a perceção da realidade consonante
com a ideologia totalitária, para que funcione no tempo, impulsiona
forçosamente essa ideologia para a expansão total. “O verdadeiro perigo
reside no facto de que o mundo arti cial, virado ao contrário, dos regimes
totalitários não é capaz de sobreviver a longo prazo se o resto do mundo
exterior não adotar um sistema análogo”, observou Arendt, para quem só a
conquista do mundo exterior permitirá que “o conjunto da realidade se
torne um todo coerente”. Ou seja, a única maneira de o Partido Comunista
Chinês garantir que o mundo exterior não contradiz a realidade ideológica
do Partido, “contaminando” a população com o “vírus” do conhecimento da
grande fome e do massacre de Tiananmen, o que contraditaria frontalmente
a ideologia do Partido e assim a minaria, é impor o seu modelo a todo o
planeta.
Por conseguinte, tal necessidade compele-o ao expansionismo, uma vez
que um regime totalitário nunca se satisfaz com um mundo que não esteja
conforme a sua visão e cuja narrativa não pode controlar. Para efeitos de
manutenção no poder, é crucial que o regime totalitário impeça narrativas
contraditórias fora de portas de modo a que não haja contágios para dentro
do país, e isso só se faz através da expansão. Conquistar o mundo para
impor a ideologia totalitária está, pois, na natureza do totalitarismo, caso
contrário o totalitarismo não seria total, apenas parcial, estando sempre
sujeito à ameaça de ver a sua mentira desmentida. Para que seja realmente
total, a ideologia totalitária tem de se estender à totalidade do mundo. Ou
seja, a expansão encontra-se inscrita na própria natureza do regime
totalitário. Como concluiu Arendt, “é com esse m, designadamente
assegurar a coerência de uma ordem mentirosa do mundo, e não por amor
ao poder ou por qualquer outro pecado humanamente compreensível, que o
totalitarismo tem necessidade de uma dominação total e de um regime que
se estenda a todo o planeta”.
Para quem tenha dúvidas sobre os desígnios expansionistas do Partido
Comunista Chinês e as intenções agressivas para com as democracias
liberais do Ocidente, basta observar com atenção todos os atos – os atos, não
as palavras propagandísticas para consumo externo – do Partido Comunista
Chinês ao longo dos anos. Em todas as situações, e enquanto apelava em
público à harmonia, à paz e à estabilidade, o Partido posicionou-se sempre
contra qualquer posição das democracias ocidentais. Uma coisa dessas não
devia, na verdade, surpreender ninguém. Como observou Sayragul
Sauytbay, que sofreu na pele o poder repressor da ditadura totalitária
comunista na China, o que está em funcionamento no país é um verdadeiro
“sistema fascista”.
Atente-se, por exemplo, na duplicidade do Partido Comunista Chinês na
questão da invasão russa da Ucrânia em 2022, para não ter de recuar muito.
Perante o mundo, Pequim apresentou-se como uma pomba. “Sempre
defendemos a manutenção da paz e opusemo-nos à guerra”, declarou o seu
ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, membro de um partido que
matou dezenas de milhões de pessoas. Todavia, a China não só se recusou a
condenar a invasão russa, assim aprovando implicitamente a guerra
desencadeada pela Rússia na Ucrânia, como deu ajuda efetiva à Rússia e
chegou ao ponto de só responsabilizar o Ocidente pela invasão russa e de
insinuar que os massacres perpetrados pelas forças russas na Ucrânia
constituíam invenções do Ocidente.
Muito signi cativo, nas redes sociais os censores do Partido apagavam
sistematicamente os textos dos internautas chineses a favor da Ucrânia e do
Ocidente e multiplicavam os textos a favor da Rússia, incluindo os que
apelavam aos russos para que usassem as suas armas nucleares. Alguém
pensa seriamente que esta atuação dos censores do Partido Comunista
Chinês era feita ao arrepio das diretivas do Partido? A dissimulação do
Partido Comunista Chinês atingiu proporções tais que um grupo de
dissidentes anónimos chineses criou uma plataforma chamada e Great
Translation Movement, destinada a traduzir para inglês, espanhol, coreano,
japonês e outras línguas as mensagens radicais pró-russas e antiocidentais
que o Partido geria nas redes sociais chinesas, para que o Ocidente
compreendesse o que se está realmente a passar na mente dos dirigentes do
Partido.
É importante entender que um regime ditatorial e altamente censório
como o do Partido Comunista Chinês, cuja ação assenta na dissimulação e
para quem as palavras não servem para revelar a verdade, mas para a
esconder ou manipular, não exprime os seus verdadeiros posicionamentos
pelo que diz, mas pelo que permite, encoraja ou proíbe que se diga. Ao
sistematicamente validar os comentários antiocidentais e censurar os pró-
ocidentais, o Partido está de facto a estabelecer a sua verdadeira posição.
Uma referência ainda às tecnologias militares invocadas na intriga deste
romance. Os exosqueletos como o que foi usado por Tomás Noronha
existem realmente. De resto, esta tecnologia militar já tinha aparecido no
meu anterior romance Imortal. Quanto a Colossus, a sua existência é a
consequência militar lógica do desenvolvimento de interfaces entre a mente
humana e a tecnologia robótica. O Laboratório de Física Aplicada da
Universidade Johns Hopkins, por exemplo, demonstrou que através de
implantes cerebrais é possível uma máquina captar sinais neurais com
instruções dadas por seres humanos. Graças a essa tecnologia, estão a ser
desenvolvidos braços metálicos que obedecem às ordens cerebrais de
amputados. Já se conseguiu mesmo gerar sensações dessa forma. Esta
ligação cérebro humano-máquina tem imensas implicações militares, como
é bom de ver. Uma demonstração da DARPA envolveu um piloto a controlar
simultaneamente três drones graças a um simples implante cerebral. No
futuro será possível um militar pilotar à distância um caça não tripulado
durante uma operação, até porque uma tetraplégica com este tipo de
implantes foi já capaz de pilotar um F-35 num simulador graças unicamente
ao poder do pensamento. Este é, no fundo, o princípio operacional por
detrás do conceito de Colossus.
A última palavra vai para os cidadãos da China. Durante a minha
juventude vivi alguns anos em Macau e aprendi aí a apreciar os chineses, um
povo trabalhador e com imensas qualidades. A sua cortesia, pragmatismo,
cultura, sentido de equilíbrio, ética e loso a são dignos de profunda
admiração e respeito. Testemunhei imensas vezes as enormes qualidades
deste povo para ser capaz de as ignorar. Este não é, por isso, um romance
sobre a China e os chineses, mas sobre o Partido Comunista Chinês e a sua
visão de ditadura de socialismo nacionalista – ou seja, de fascismo – que
tanto sofrimento produz dentro das suas fronteiras e que começou a tentar
exportar para o resto do mundo. Para se proteger, o Partido Comunista
Chinês usa amiúde o expediente de pretender que qualquer crítica a si
constitui uma crítica à China e aos chineses. O truque é velho. O Partido
não é a China, o Partido nem sequer foi eleito pelos chineses. Aliás, se
houvessem eleições livres na China, provavelmente seria derrubado.
A existência de uma ditadura que reprime os mais elementares direitos
humanos e ignora a vontade popular apesar de dela se proclamar
representante, que impede a justiça independente e o equilíbrio e separação
de poderes, que proíbe a liberdade de expressão e de associação, que oprime
as pessoas pelo que pensam ou pelo que são social ou etnicamente, que
pratica o princípio da culpa por associação, que instaurou uma sociedade
orwelliana de vigilância e delação com violação da esfera íntima dos
cidadãos e com um vasto sistema concentracionário onde existem milhões
de internados e um historial de milhões e milhões de mortos, é algo que
simplesmente, e em consciência, não podemos deixar passar em claro, sob
pena de, por omissão, nos tornarmos corresponsáveis e cúmplices
silenciosos.
Expor e denunciar as violações dos direitos humanos por parte do Partido
Comunista Chinês não é criticar a China. É defendê-la. Os chineses não são
algozes. São vítimas.

Como acontece na generalidade dos meus romances, esta obra baseia-se


numa vasta pesquisa. Para a parte relacionada com a situação em Xinjiang,
as obras consultadas e onde fui buscar toda a informação e episódios que
permitiram reconstituir o Estado policial e totalitário que o Partido
Comunista Chinês implementou no seu país, e em particular na região
uigure, foram e Chief Witness – Escape from China’s Modern-Day
Concentration Camps, de Sayragul Sauytbay e Alexandra Cavelius; How I
Survived a Chinese ‘Re-Education’ Camp – A Uyghur Woman’s Story, de
Gulbahar Haitiwaji e Rozenn Morgat; No Escape – e True Story of China’s
Genocide of the Uyghurs, de Nury Turkel; In the Camps – Life in China’s
High-Tech Penal Colony, de Darren Byler; e War on the Uyghurs – China’s
Campaign against Xinjiang’s Muslims, de Sean Roberts; e Perfect Police
State – An Undercover Odyssey into China’s Terrifying Surveillance Dystopia
of the Future, de Geo rey Cain; Comment la Chine enterre l’intelligentsia
ouighoure, de Dilnur Reyhan; Made in China – A Prisoner, an SOS Letter,
and the Hidden Cost of America’s Cheap Goods, de Amelia Pang; China
Unbound – A New World Disorder, de Joanna Chiu; e We Have Been
Harmonized – Life in China’s Surveillance State, de Kai Strittmatter.
Os relatórios das organizações de defesa dos direitos humanos foram
igualmente importantes para a obtenção de informação sobre o que se passa
em Xinjiang. Usei os dados contidos em “China: Minority Region Collects
DNA from Millions”, do Human Rights Watch, de 2017; “ ‘Break eir
Lineage, Break eir Roots’: Chinese Government Crimes Against
Humanity Targeting Uyghurs and Other Turkic Muslims”, também do
Human Rights Watch, de 2021; e “ ‘Like We Were Enemies in a War’: China’s
Mass Internment, Torture and Persecution of Muslims in Xinjiang”, da
Amnistia Internacional, igualmente de 2021. O relatório mais importante de
todos é, no entanto, o “OHCHR Assessment of Human Rights Concerns in
the Xinjiang Uyghur Autonomous Region, People’s Republic of China”,
emitido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos
Humanos a 31 de agosto de 2022.
Destaque ainda para os Arquivos da Polícia de Xinjiang, documentos
con denciais publicados pelo Consórcio de Jornalistas Internacionais e cujo
teor pode ser consultado em “Xinjiang Police Files: Inside a Chinese
Internment Camp” e em “ e Faces from China’s Uyghur Detention Camps”,
de John Sudworth, BBC, 24 de maio de 2022. Para a compreensão da
dimensão genocida do que está a ser feito aos uigures, foi fundamental a
convenção das Nações Unidas intitulada “Convention on the Prevention and
Punishment of the Crime of Genocide”, aplicável a todos os Estados-
membros da ONU e em vigor desde 12 de janeiro de 1951. Sobre o trabalho
forçado uigure em fábricas fora de Xinjiang, a fonte foi o relatório “Uyghurs
For Sale – ‘Re-education’, Forced Labour and Surveillance Beyond Xinjiang”,
elaborado por Vicky Xiuzhong Xu com Danielle Cave, James Leibold, Kelsey
Munro e Nathan Ruser para o Instituto de Política Estratégica da Austrália
em 2020.
No que diz respeito à história dos campos de concentração chineses em
geral, e das grandes matanças ocorridas no país desde que o Partido
Comunista Chinês subiu ao poder, as obras consultadas foram Laogai – Le
goulag chinois, de Harry Wu, aliás um sobrevivente desses campos; Stèles –
La grande famine en Chine 1958-1961, de Yang Jisheng, um sobrevivente
dessa fome; e Le Livre noir du communisme, de uma equipa de historiadores
formada por Stéphane Courtois, Nicolas Werth, Jean-Louis Panné, Andrzej
Paczkowski, Karel Bartosek e Jean-Louis Margolin.
Sobre a estratégia do Partido Comunista Chinês para ascender a uma
posição económica, política e militar dominante no mundo, exportar o seu
modelo ditatorial de Estado policial e derrotar o modelo e os valores liberais
do Ocidente, as leituras foram Unrestricted Warfare, de Qiao Liang e Wang
Xiangsui; e Long Game – China’s Grand Strategy to Displace American
Order, de Rush Doshi; e Hundred-Year Marathon – China’s Secret Strategy
to Replace America as the Global Superpower, de Michael Pillsbury; Hidden
Hand – How the Chinese Communist Party Is Reshaping the World, de Clive
Hamilton e Mareike Ohlberg; Every Breath You Take – China’s New Tyranny,
de Ian Williams; Stealth War – How China Took Over While America’s Elite
Slept, de Robert Spalding; Deceiving the Sky – Inside Communist China’s
Drive for Global Supremacy, de Bill Gertz; e World According to China, de
Elizabeth Economy; e China Nightmare – e Grand Ambitions of
a Decaying State, de Dan Blumenthal; China’s Vision of Victory, de Jonathan
Ward; e Core Values of Chinese Civilization, de Lai Chen; Shaping
Education Reform in China – Overviews, Policies and Implications, de Jian Li
e Eryong Xue; e Rouge vif – L’idéal communiste chinois, de Alice Ekman.
Igualmente importante para perceber a forma como o Partido tenta
manipular as perceções ocidentais é o relatório “Made in Hollywood,
Censored by Beijing”, publicado em 2022 pelo PEN America, uma
instituição dedicada à defesa da liberdade de expressão. Não esquecer
também o grande clássico do Período dos Estados em Guerra, A Arte da
Guerra, de Sun Tzu; e Les 36 stratagèmes – Manuel secret de l’art de la guerre,
texto anónimo do mesmo período e que se encontrava em circulação na sua
versão atual entre o m da dinastia Ming e o início da dinastia Ching.
No que diz respeito às novas tecnologias militares, as minhas fontes foram
Genius Weapons – Arti cial Intelligence, Autonomous Weaponry, and the
Future of Warfare, de Louis del Monte; Future War – Preparing for the New
Global Battle eld, de Robert Lati ; Wired for War – e Robotics Revolution
and Con ict in the 21st Century, de P. W. Singer; I Warbot – e Dawn of
Arti cially Intelligent Con ict, de Kenneth Payne; e e Kill Chain –
Defending America in the Future of High-Tech Warfare, de Christian Brose.
As fontes usadas para expor os aspetos da ideologia marxista relevantes
para a teoria e prática do Partido Comunista Chinês foram O Manifesto
Comunista, A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica e A Ideologia
Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels; O Capital, Uma Contribuição para a
Crítica da Economia Política, Manuscritos Económicos e Filosó cos de 1844,
A Pobreza da Filoso a e Crítica ao Programa de Gotha, de Karl Marx; Os
Princípios do Comunismo, Socialismo: Utópico e Cientí co, A Condição da
Classe Trabalhadora em Inglaterra, Anti-Dühring – A Revolução em Ciência
do Senhor Eugen Dühring e A Guerra Camponesa na Alemanha, de Friedrich
Engels.
Também o artigo “Discurso no Funeral de Karl Marx”, de Friedrich
Engels, e a correspondência “Carta de Marx a Pavel Vasilyevitch Annenkov”,
datada de 28 de dezembro de 1846, de Karl Marx. Ainda Cartas de Longe e
os artigos “O Soviete de Moscovo e os Representantes das Comissões de
Fábrica e Sindicatos”, de 3 de outubro de 1918; “O Imposto de Géneros”, de
21 de abril de 1921; e “O Quarto Aniversário da Revolução de Outubro”, de
18 de outubro de 1921, de Vladimir Lenine. Já para conhecer o pensamento
dos dirigentes do Partido Comunista Chinês recorri aos seus textos,
designadamente Mao Zedong on Dialectical Materialism – Writings on
Philosophy, 1937, de Mao Tsé-tung; e “Full Text: China’s New Party Chief Xi
Jinping’s Speech”, de 15 de novembro de 2012; “Uphold and Develop
Socialism with Chinese Characteristics”, de 5 de janeiro de 2013; e “Full Text
of Xi Jinping’s Speech on the CCP’s 100th Anniversary”, de 1 de julho de
2021, de Xi Jinping. Ainda o “Communiqué on the Current State of the
Ideological Sphere”, Gabinete Geral do Comité Central do Partido
Comunista da China, de 22 de abril de 2013, www.china le.com. Igualmente
relevante para a compreensão deste tipo de regime foi La nature du
totalitarisme, de Hannah Arendt.
Quanto aos artigos consultados, e por ordem cronológica, de salientar
“Patriotic Education Distorts China World View”, de Jamil Anderlini,
Financial Times, 23 de dezembro de 2012; “Australia University Accused of
Bowing to China by Barring Dalai Lama”, de Rob Taylor, Reuters, 18 de abril
de 2013; “Beware: Alibaba IPO Is not Really Selling Alibaba”, de Michael
Kitchen, marketwatch.com, 7 de maio de 2014; “Xinjiang Stories”, de Nile
Green, Los Angeles Review of Books, 3 de dezembro de 2014; “Sri Lanka’s
Hambantota Port and the World’s Emptiest Airport Go to the Chinese”, de
Wade Shepard, Forbes, 28 de outubro de 2016; “Violent Protests against
Chinese ‘Colony’ in Sri Lanka Rage On”, de Wade Shepard, Forbes, 8 de
janeiro de 2017; “ ‘Race Traitors’: Pro-Beijing Papers Accuse Democracy
Figures of Inviting US to Interfere in Hong Kong”, de Ellie Ng, Hong Kong
Free Press, 4 de maio de 2017; “Nobody Knows Anything about China”, de
James Palmer, Foreign Policy, 21 de março de 2018; “China Is Forcing People
to Download An App at Tells em to Delete ‘Dangerous’ Photos”, de
Megha Rajagopalan, BuzzFeedNews, 9 de abril de 2018; “Chinese Sperm
Bank Seeks Donor at ‘Love the Socialist Motherland and Embrace the
Leadership of the Communist Party’ ”, de Chiara Giordano, e
Independent, 14 de abril de 2018; “10 Years Ago in Sichuan, a Quake Killed
69,000. Should China Be ankful?”, de Ti any May, e New York Times,
10 de maio de 2018; “Sauytbay Trial Ends in Kazakhstan with Surprising
Release”, de Catherine Putz, e Diplomat, 1 de agosto de 2018; “Portugal
Fará Parte da Nova ‘Rota da Seda’ Chinesa com o Porto de Sines”, de
Francisco Sena Santos, sbs.com, 6 de dezembro de 2018; “How China Is
Taking Control of Hollywood – e Intersection of the Free Market and
Chinese Censorship in Hollywood, and What It Means for Our Culture”, de
Tim Doescher, e Heritage Foundation, 14 de dezembro de 2018; “China’s
Women’s Movement Has not only Survived an Intense Crackdown, It’s
Grown”, de Leta Hong Fincher, e Guardian, 7 de março de 2019; “China’s
Xi Appeals to Youth Patriotism on Centenary of Students Protests”, de Ben
Blanchard, Reuters, 30 de abril de 2019; “Con rmed: Google Terminated
Project Dragon y, Its Censored Chinese Search Engine”, de Jeb Su, Forbes,
19 de julho de 2019; “China Said It Closed Muslim Detention Camps –
ere’s Reason to Doubt at”, de Chris Buckley e Steven Lee Myers, e
New York Times, 9 de agosto de 2019; “ ‘Absolutely no Mercy’: Leaked Files
Expose how China Organized Mass Detentions of Muslims”, de Austin
Ramzy e Chris Buckley, e New York Times, 16 de novembro de 2019;
“China Tries to Put Sweden on Ice”, de Jojje Olsson, e Diplomat, 30 de
dezembro de 2019; “Hollywood Censors Films to Appease China, Report
Suggests”, BBC, 6 de agosto de 2020; “What Is Going On with China, Cotton
and All of ese Clothing Brands?”, de Vanessa Friedman e Elizabeth Paton,
e New York Times, 2 de abril de 2021; “China’s Gene Giant Harvests Data
from Millions of Women”, de Kirsty Needham e Clare Baldwin, Reuters, 7 de
julho de 2021; “China’s BRI Faces Major Resistance in Nepal”, de Mayank
Kumar, e Sunday Guardian, 2 de outubro de 2021; “Respect Uyghur
Rights, 43 Countries Urge China at United Nations”, e South China
Morning Post, 22 de outubro de 2021; “Explainer: What Are China’s
‘Arti cial Islands’ and Why Are ere Concerns about em”, de Serena
Seyfort, 9news.com, 26 de novembro de 2021; “Discussão entre 27 Estados-
Membros da União Europeia sobre Ucrânia Arranca sem Telemóveis para
Con dencialidade”, Agência Lusa, Observador, 17 de fevereiro de 2022;
“Hollywood Relies on China to Stay A oat – What Does at Mean for
Movies?”, de Terry Gross, npr.org, 21 de fevereiro de 2022; “China on the
Right Side of History over Ukraine War, Foreign Minister Says”, de William
Mallard, Reuters, 20 de março de 2022; “What a Chinese Military Base in
Solomon Islands Will Mean for Australia”, de Richard Wood, 9news.com, 1
de abril de 2022; “ e Great Translation Movement Shines a Spotlight on
China’s Propaganda”, de Chauncey Jung, e Diplomat, 5 de abril de 2022;
“China’s Organ Harvesting Trade Unveiled by Study Which Claims Living
Prisoners Used for Transplants”, de Charlotte Bateman, news.sky.com, 5 de
abril de 2022; “China Anuncia Acordo com Ilhas Salomão com Construção
de Base Militar”, Agência Lusa, 19 de abril de 2022; “Xinjiang Cotton Found
in Adidas, Puma and Hugo Boss Tops, Researchers Say”, de Philip
Oltermann, e Guardian, 5 de maio de 2022; “CIA Director Says China
‘Unsettled’ by Ukraine War”, de James Politi, Financial Times, 7 de maio de
2022; “Pakistan Facing Bankruptcy as the Economy Crumbles”, de F. M.
Shakil, Asia Times, 16 de maio de 2022; “Top Gun: Maverick Sparks Joy in
Taiwan a er Its Flag Features on Tom Cruise Jacket”, de Sian Cain, e
Guardian, 1 de junho de 2022; “Genocide Risk in Xinjiang, European
Parliament Demands China Sanctions: Report”, ndtv.com, 10 de junho de
2022; “Sri Lanka Is ‘Bankrupt’, Prime Minister Says”, de Iqbal Athas, Chris
Liakos, Rhea Mogul e Daniela Gonzalez-Roman, CNN, 6 de julho de 2022; e
“UN Says Forced Labor Takes Place in Xinjiang, Tibet”, de Ali Walker,
Politico, 18 de agosto de 2022.
Um agradecimento a Alexandra Cavelius, a escritora que ajudou Sayragul
Sauytbay a escrever o seu testemunho sobre os campos de concentração de
Xinjiang e com quem troquei mensagens a propósito de alguns aspetos das
revelações da denunciante cazaque, em particular a abilidade do
documento con dencial do Partido Comunista Chinês a prever a ocupação
da Europa depois de meados do século . Obrigado também a todos os
meus editores pelo esforço de divulgação da minha obra em todo o mundo.
E, sobretudo, obrigado a si, amigo leitor, sem o qual este livro não existiria.
A última palavra, agora e sempre, vai para a Florbela.
Este homem era mesmo esperto.
Como podia um inglês ter escrito há setenta anos
um livro que previa tudo aquilo por que passei?
“Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força.”
Estas palavras são tão inteligentes.
George Orwell viu o futuro.
Ele viu o nosso mundo.

M
sobrevivente dos campos de Xinjiang
P L P
Calçada Ribeiro Santos, n.º 37 – 2.º
1200-789 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitos


de acordo com a legislação em vigor

© 2022, José Rodrigues dos Santos


© 2022, Planeta de Livros Portugal

Design da capa: Rafael Brum

Imagens da capa: iStock

Edição em epub: Outubro de 2022

Conversão para epub: Segundo Capítulo

ISBN: 978-989-777-644-1 (epub)

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