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ENSAIO
Comunicação, Difusão Cultural, 1992; Gradiva, 2015.
Crónicas de Guerra I – Da Crimeia a Dachau, Gradiva, 2001.
Crónicas de Guerra II – De Saigão a Bagdade, Gradiva, 2002.
A Verdade da Guerra, Gradiva, 2002.
Conversas de Escritores – Diálogos com os Grandes Autores
da Literatura Contemporânea, Gradiva/RTP, 2010.
A Última Entrevista de José Saramago, Usina de Letras, Rio de Janeiro, 2010, Gradiva, 2011.
Novas Conversas de Escritores – Diálogos com os Grandes Autores
da Literatura Contemporânea II, Gradiva/RTP, 2012.
FICÇÃO
A Ilha das Trevas, Temas & Debates, 2002; Gradiva, 2007.
A Filha do Capitão, Gradiva, 2004.
O Codex 632, Gradiva, 2005.
A Fórmula de Deus, Gradiva, 2006.
O Sétimo Selo, Gradiva, 2007.
A Vida Num Sopro, Gradiva, 2008.
Fúria Divina, Gradiva, 2009.
O Anjo Branco, Gradiva, 2010.
O Último Segredo, Gradiva, 2011.
A Mão do Diabo, Gradiva, 2012.
O Homem de Constantinopla, Gradiva, 2013.
Um Milionário em Lisboa, Gradiva, 2013.
A Chave de Salomão, Gradiva, 2014.
As Flores de Lótus, Gradiva, 2015.
O Pavilhão Púrpura, Gradiva, 2016.
Vaticanum, Gradiva, 2016.
O Reino do Meio, Gradiva, 2017.
Sinal de Vida, Gradiva, 2017.
A Amante do Governador, Gradiva, 2018.
Imortal, Gradiva, 2019.
O Mágico de Auschwitz, Gradiva, 2020.
O Manuscrito de Birkenau, Gradiva, 2020.
O Jardim dos Animais com Alma, Gradiva, 2021.
A Mulher do Dragão Vermelho, Planeta, 2022.
Às minhas quatro meninas.
Será um conquistador quem tenha aprendido a arte da dissimulação.
S T
Este romance é uma obra de cção
inspirada em factos verídicos.
Prólogo
Premiu o ícone Send e enviou a mensagem. Será que ele a iria ver nesse
instante? O facto de a gravação indicar que o número não estava disponível
indiciava que o marido levaria ainda algum tempo até consultar o telemóvel.
E tempo era coisa de que não dispunha, a crer no que a mulher do lenço
negro acabara de lhe dizer.
“Então?”, quis saber a desconhecida, a ansiedade a trepar-lhe pela voz.
“Não liga à polícia?”
O melhor seria não contar com o marido, concluiu Maria Flor.
Estabeleceu ligação ao Google e fez uma busca com as palavras police e
Amritsar. Apareceram-lhe vários números. Deveria ter começado logo por
ali em vez de perder tempo a tentar falar com Tomás. Premiu um dos
números que o Google lhe disponibilizou e ouviu um toque de chamada,
logo seguido de uma voz masculina a dizer algo de impercetível, decerto em
punjabi.
“Do you speak English?”, perguntou ela. “Fala inglês?”
“Yes, madam”, foi a resposta a rmativa imediata. “Em que a posso ajudar?”
“Estou a ser perseguida”, disse. “São dois homens.”
“O que zeram eles, madam?”
“Entraram num café e puseram-se a bater em toda a gente. Ouvi tiros.
Estão atrás de uma mulher e… e de mim.”
“Onde se encontra neste momento, madam?”
Maria Flor olhou em redor. Como poderia responder de uma forma que
os ajudasse a localizá-la?
“Estou num… numa casinha de madeira, num quintal.”
“Em que rua, madam?”
“Uh… não sei. Isto é perto do Templo Dourado. O café está perto do
Templo Dourado e escondi-me num quintal nas traseiras do café.”
“Qual é o nome do café, madam?”
“O nome? Sei lá, o nome é… é Sri… Sri qualquer-coisa.”
“O café Sri Harmandir?”
“Sei lá.” Hesitou. “Talvez, sim. É capaz de ser isso. Oiça, estamos numa…”
Uma mão tapou de imediato a boca de Maria Flor; era a mulher do lenço
negro a calá-la. A portuguesa olhou para ela, surpreendida, e viu-a de
indicador colado aos lábios, a pedir silêncio, e a apontar amedrontadamente
para a porta.
“Sim, madam?”, continuou a voz ao telefone, já quase um zumbido. “Está
onde?”
A atenção de Maria Flor já não se centrava no telemóvel, mas no que se
passava no exterior. Ouviu vozes masculinas e percebeu que podiam de
facto estar na iminência de serem descobertas.
“Depressa!”, soprou num sussurro para o telemóvel. “Eles estão lá fora!
Venham já!”
Desligou, para que o zumbido da voz ao telefone não atraísse a atenção de
ninguém, e apressadamente escavou no monte de feno para abrir espaço no
interior. A fugitiva que a acompanhava imitou-a. Após alguns segundos de
escavação frenética, o buraco no feno alargou-se o su ciente para nele se
en arem as duas. As vozes no exterior tornaram-se mais altas, sinal de que
se aproximavam, e as duas fugitivas puxaram feno para cima dos corpos de
modo a carem totalmente tapadas.
Já na escuridão, ouviram a porta da casinha abrir-se e vozes de homens
encherem o interior. A europeia não podia ter a certeza de que se tratavam
dos perseguidores, claro, mas a probabilidade de serem eles parecia-lhe
elevada. Ficaram ambas muito quietas, até de respirações suspensas, mas os
corações ribombavam-lhes com tal violência que temiam que as batidas as
denunciassem. Para se acalmar, Maria Flor tentou reconfortar-se com o
pensamento de que, naquela situação, nem tudo jogava contra elas. O monte
de feno encontrava-se num canto sombrio da casinha, consequentemente de
difícil visibilidade, e elas estavam en adas no meio da palha. Não seria fácil
serem descobertas.
Ouviu as vozes aproximarem-se e tentou perceber em que língua falavam.
Não era punjabi e muito menos inglês. Parecia hindi. Continuava sem se
atrever a respirar. Os homens trocaram umas palavras e, quando lhe pareceu
que não as viam e se aprestavam a dar meia-volta e irem-se embora, sentiu a
palha ser remexida com vigor, até que mãos lhes tocaram com rmeza.
“Ve yahaan hain!”, exclamou um deles. “Estão aqui!”
A mulher do lenço negro pôs-se nesse momento a gritar e tentou fugir,
absolutamente apavorada, mas um dos homens saltou para cima dela e
imobilizou-a. Procurando manter a calma, até porque não tinha feito nada
de mal a não ser correr para fora da esplanada e esconder-se num quintal,
Maria Flor levantou-se e encarou os agressores com o dedo apontado para a
porta entreaberta da casinha de madeira.
“Out!”, ordenou com voz de comando. “Saiam!”
O homem que estava por cima da mulher do lenço negro já a imobilizara
por completo, e ela chorava em voz baixa, claramente de esperança perdida,
mas o segundo perseguidor mantinha-se diante da saída, evidentemente
para bloquear o caminho de fuga. Maria Flor hesitou. Deveria interceder
pela companheira e tentar tirá-la daquela situação ou seria melhor salvar-se
a si própria? A determinação que aqueles homens mostraram na
perseguição à mulher do lenço negro tornava claro que não tinha qualquer
hipótese de os convencer a libertá-la. O mais avisado seria desenvencilhar-se
daquele aperto e mais tarde ajudar a polícia a localizar a desconhecida.
Os dois agressores trocaram palavras entre si, como se se interrogassem
sobre o que fazer com a europeia, até que um deles, o que parecia che ar o
par e imobilizara a mulher do lenço negro, deu uma ordem ao outro e este
avançou para Maria Flor e fez-lhe uma prisão de braço, derrubando-a e
encostando-lhe a cara ao chão.
“Larguem-me!”, protestou a portuguesa, contorcendo-se para tentar
libertar-se. “Deixem-me em paz! Deixem-me, senão… senão chamo
a polícia!”
Sentiu uma picada no ombro e, com horror, percebeu que o agressor tinha
acabado de lhe dar uma injeção.
“O que… o que está a fazer?”, indignou-se. “Vocês não podem fazer isso,
ouviram? Não podem! Isto é muito grave! Eu vou… eu vou…”
De repente foi como se alguém tivesse desligado um interruptor e Maria
Flor perdeu a consciência.
I
47
𝔓
12,3 12,4
Todos esses rapazes rebeldes
Ambulam desengonçados
Em jogos ocos
A onda da hidra amaina
Rolando mexilhões aos pés
Ah, linda areia!
47
𝔓
12,3 12,4
Todos esses rapazes rebeldes
Ambulam desengonçados
Em jogos ocos
A onda da hidra amaina
Rolando mexilhões aos pés
Ah, linda areia!
47
𝔓
12,3 12,4
47
𝔓
12,3 12,4
TERRADEJOAODHARMAPALA
战国时代
“Zhànguó Shídài”, disse. “O Período dos Estados em Guerra.” Encarou o
grupo. “Camaradas, algum de vós sabe que período foi este?”
Todos sabiam, claro, pelo que a resposta veio em coro.
“O período em que a China se formou.”
“O Período dos Estados em Guerra começou há dois mil e quinhentos
anos e durou cinco séculos, culminando com a uni cação dos sete Estados
na dinastia Chin, o que levou os estrangeiros a chamar-nos China, a terra
dos Chin”, disse Li, lembrando uma lição que vinha do liceu. “Este foi um
período marcado por guerras, conspirações, intrigas, alianças, traições,
duplicidade e truques entre os vários senhores da guerra. Com todos esses
con itos, o que procuravam eles fazer?”
A pergunta deixou os jovens militantes silenciosos; tinham estudado o
marxismo-leninismo-maoísmo a fundo, mas da história da China apenas
sabiam o que haviam aprendido no liceu e em programas de televisão.
Aquela questão já requeria conhecimentos mais aprofundados. Apenas Mei,
a bisbilhoteira zelote, levantou a mão.
“Tornarem-se o ba.”
Ba era a expressão chinesa para o rei dos reis, a autoridade hegemónica, o
pico da pirâmide hierárquica, aquele que se sobrepunha a todos os outros e
em todos mandava.
“Todas as lutas, alianças, conspirações e traições do Período dos Estados
em Guerra resultavam dos esforços de cada um dos senhores da guerra para
se tornar o ba”, con rmou Li, exibindo os dois livros que trouxera para a
sala. “Os ensinamentos dessas guerras encontram-se em A Arte da Guerra,
de Sun Tzu, mas sobretudo nos Estratagemas dos Estados em Guerra, uma
coleção de fábulas que vocês decerto já viram nas livrarias e que relatam os
episódios ocorridos naquele tempo. Por exemplo, a história dos reinos Chu e
Zhou. O episódio mais importante é o dos caldeirões. Conhecem-no?”
Os jovens militantes do Partido caram em silêncio. Como era evidente,
todos conheciam os Estratagemas dos Estados em Guerra; tratava-se de um
clássico da literatura chinesa. Contudo, nunca nenhum tinha realmente lido
a obra.
“Naquele tempo, o ba era o guardião dos caldeirões”, contou Li.
“Se perdesse o mandato dos céus, então os caldeirões passariam para o novo
ba. O ba na altura era o rei de Zhou, pelo que era ele o guardião dos
caldeirões. O seu vizinho, o rei de Chu, foi visitá-lo para lhe prestar
juramento de submissão e lealdade. A certa altura, contudo, incapaz de
conter a curiosidade, perguntou-lhe qual o peso dos caldeirões que estavam
no seu palácio real. Ao ouvir esta pergunta, o ba percebeu imediatamente
que o rei de Chu a nal não era um aliado leal, mas um rival dúplice que,
ngindo-se aliado submisso, ambicionava na verdade substituí-lo no lugar
de ba. Isto porque a pergunta sobre o peso dos caldeirões era evidentemente
para o rival perceber como os levaria para o seu palácio quando ele próprio
se tornasse ba.”
A história teve ressonância imediata na sala.
“Ah!”, exclamou um aluno. “É por isso que se diz que ‘nunca se deve
perguntar o peso dos caldeirões’?”
Tratava-se de um famoso ditado chinês.
“Sim, esse ditado tem origem na história de Chu e Zhou relatada nos
Estratagemas dos Estados em Guerra”, con rmou Li. “Durante esse período,
os reis em ascensão derrubaram vários ba. Em cada caso em que isso
aconteceu, no entanto, a estratégia vencedora envolveu sempre táticas de
indução de complacência ao ba, com os rivais a esconderem as suas
verdadeiras intenções. Quer isto dizer que o pior erro que um rei em
ascensão pode cometer é alertar cedo demais o ba para as suas ambições,
provocando um confronto com o ba quando este ainda é mais poderoso do
que ele. Só na fase nal da ascensão do pretendente, quando o ba em
exercício estiver demasiado fraco para resistir e for abandonado pelos seus
aliados, é que se atinge o shi e pode esse pretendente revelar os seus
verdadeiros objetivos.”
Todos estavam naturalmente familiarizados com o conceito tauista do shi,
muito referido por Sun Tzu na sua A Arte da Guerra. Os tauistas
acreditavam que o universo se encontrava em constante mudança,
reinventando-se a todo o momento conforme simbolizado pelo yin e yang.
A ocasião em que a polaridade se alterava entre o yin e o yang era o shi. Nas
lutas pelo poder, incluindo as guerras, o shi era o instante em que as
dinâmicas se invertiam e o forte se tornava fraco e o fraco forte. O grande
talento de um rei ou de um general era justamente perceber qual o
momento em que isso sucedia. Ou seja, um bom chefe tinha de intuir o shi
para tirar o máximo partido do instante de inversão das dinâmicas.
Outro aluno levantou a mão.
“Mas, camarada instrutor, e se for criado um sistema sem ba? Não seria
isso mais adequado em termos de socialismo cientí co?”
Li abanou a cabeça.
“Disparate”, retorquiu. “A ordem natural das coisas é da tong. Ou seja,
dominação unipolar. Isto porque o mundo real não é igualitário, mas
hierárquico. No topo há um ba, em baixo dele estão os reis, depois
os príncipes, em baixo a corte, a seguir a burocracia do Estado, depois os
comerciantes e, por m, a plebe. Os sistemas sem ba são sempre transições,
períodos provisórios em que um ba está de saída e outro de entrada.”
O jovem militante cou desconcertado.
“Mas…”
Calou-se a tempo. A ideia chinesa de que tinha de haver uma hierarquia
contradizia frontalmente a ideia socialista de que todos eram iguais. Mas,
mesmo havendo uma contradição, o jovem militante sabia também, como
sabiam todos na sala e todos na China, e se não sabiam depressa cariam a
saber, que tudo o que o Partido dizia ser verdadeiro era verdadeiro. Se o
Partido estabelecera que não havia contradição entre o da tong e o
socialismo, então era porque não havia contradição. Na sua magni cência, o
Partido tudo sabia. O militante tinha plena consciência de que a
apresentação de qualquer objeção às ideias do Partido poderia ser
interpretada como um ato contrarrevolucionário e valer-lhe uma punição,
pelo que se calou.
“Ias a dizer…?”
“Nada, nada, camarada instrutor.”
Li voltou a encarar o grupo de jovens militantes.
“Como se derrota uma aliança mais poderosa do que a nossa?”,
questionou num tom retórico. “Essa questão é abordada nas histórias dos
Estratagemas dos Estados em Guerra. Por exemplo, o rei de Chin teve de
enfrentar a aliança vertical, que era mais forte do que ele. Para se tornar ba,
o rei de Chin pregou aos quatro ventos que não tinha a menor ambição de
substituir a aliança. Mas começou a subornar os membros da aliança vertical
com ofertas que apelavam aos seus interesses de curto prazo, levando-os a
negligenciarem o longo prazo. A aliança vertical foi assim enfraquecendo-se
gradualmente enquanto o rei de Chin se ia fortalecendo às escondidas. Até
que chegou o momento em que o rei de Chin cou tão forte e a aliança
dominante tão fraca que a atacou e se tornou en m o ba. A tática do rei de
Chin pode aliás ser vista no jogo de wei qi. Vocês por acaso alguma vez
jogaram wei qi?”
A resposta veio em coro.
“Sim, camarada instrutor.”
O wei qi era um dos mais conhecidos jogos chineses de tabuleiro.
“Talvez vocês não saibam, mas o wei qi remonta ao Período dos Estados
em Guerra, e em particular à história de como o rei de Chin derrotou a
aliança vertical. Ganha quem conseguir cercar o seu opositor. Para isso, é
preciso respeitar dois princípios. O primeiro é enganar o adversário,
tornando-o complacente e fazendo-o esbanjar a sua energia de formas que
nos ajudem a cercá-lo. O segundo é ocultar as nossas reais intenções e
direções, levando-o a abrir posições que nos permitam cercá-lo sub-
repticiamente. Quando está a perder, o nosso adversário nem percebe que
está a perder. Essa é a suprema arte. O que nos remete para a mais famosa
batalha do Período dos Estados em Guerra. Sabem qual foi?”
Todos sabiam, pois tratava-se de matéria elementar da história da China,
pelo que, mais uma vez, a resposta veio em coro.
“A batalha de Chibi.”
“Duas forças lutaram pelo controlo da China”, disse Li. “O ba era o reino
do Norte, mas o seu poder era desa ado pelo reino do Sul. As duas partes
envolveram-se numa série de manobras dúplices para trapacearem a outra,
cada uma dessas manobras transformada num provérbio chinês. Por
exemplo, foi aqui que se estabeleceu que se deve sempre enganar o inimigo
dizendo-lhe o que ele já receia. O chefe do Norte, usando uma carta falsa,
conseguiu convencer o ba de que os seus dois melhores o ciais eram
traidores, o que levou o ba a executá-los. O Sul conseguiu assim dividir e
enfraquecer o Norte e levar o ba a fazer, ele próprio, o que o Sul mais
desejava que fosse feito, isto é, eliminar os dois o ciais mais perigosos do
inimigo. Quando chegou ao momento culminante, a batalha de Chibi, o Sul
aplicou o princípio de parecer fraco quando era forte. O Sul derrotou o ba
graças à sua paciência, esperando sempre pelo shi para atuar, tendo no
momento certo avançado para uma sucessão de manobras de dissimulação,
de divisão do inimigo e de levar o próprio inimigo a fazer ele mesmo as
coisas que eram convenientes ao Sul que fossem feitas.”
Mei, a bisbilhoteira zelote, não conteve um guincho de aprovação.
“Ayah! Que esperto o reino do Sul foi!”
O instrutor de doutrinação voltou-se para o quadro e rabiscou uma
sucessão de seis pontos.
“Com o que se passou no Período dos Estados em Guerra aprendemos seis
princípios”, enumerou, listando-os um a um com o giz. “Primeiro, quando
enfrentamos o ba temos de lhe adormecer a descon ança e torná-lo
complacente. Segundo, precisamos de manipular os conselheiros do ba,
assim o cercando sem que ele o perceba. Terceiro, temos de roubar os
conhecimentos e as tecnologias que dão vantagem ao ba. Quarto,
precisamos de ter presente que o maior poderio militar não é um fator
crítico numa guerra longa se os outros fatores nos forem favoráveis. Quinto,
embora enganemos e cerquemos o ba, nunca podemos deixar-nos enganar
nem cercar pelo ba. Por m, temos de ser pacientes e esperar pelo shi, o
momento certo para arrancar para a vitória.” Guardou o giz e encarou o
grupo. “Alguma dúvida?”
Os alunos chineses eram habitualmente muito disciplinados e silenciosos,
mas aquela aula fora de tal modo inesperada e diferente do que estavam à
espera que a matéria não pôde deixar de suscitar interrogações.
“Peço desculpa, camarada instrutor, mas há uma coisa que não entendi
muito bem”, disse um aluno, a hesitação a trepar-lhe pela voz devido à
impertinência que estava a cometer ao questionar o conteúdo da lição.
“Pensei que íamos aprofundar os conhecimentos relacionados com o
socialismo cientí co…”
Li não pareceu incomodado por ser questionado; era mesmo como se
esperasse a pergunta.
“O passado da China dá-nos lições para a luta, no presente e no futuro,
que conduzirão à vitória nal do socialismo cientí co”, respondeu. “Como
sabem, o camarada Deng Xiaoping decidiu que o Partido deveria abrir-se ao
capitalismo para poder gerar riqueza. Isso está em conformidade total com a
teoria marxista, pois Marx e Engels escreveram por várias vezes que o
verdadeiro socialismo só emerge num contexto de capitalismo avançado.
Mas o que o Partido procura também é convencer o mundo de que a China
deixou de ser comunista, de que o Partido só é comunista de nome. Essa
estratégia destina-se a adormecer a descon ança em relação ao Partido. De
tal modo é assim que os nossos governantes e diplomatas receberam do
Partido ordens para evitar referências marxistas e procurar durante os
contactos internacionais apenas usar expressões consensuais.”
Mei, sempre entusiasta, ergueu a mão.
“Mas, camarada professor, todos sabemos que o Partido Comunista
Chinês continua a ser comunista…”
“Que ninguém o duvide”, con rmou Li. “Para o exterior, damos a imagem
de capitalismo. Para o interior, no entanto, mantemos a nossa essência
comunista. O Partido está simplesmente a adaptar o marxismo aos novos
tempos e à realidade da China. O nobre ideal do comunismo e o ideal
comum do socialismo com características chinesas permanecem o pilar
moral e a alma política dos comunistas chineses e constituem o fundamento
ideológico da coesão e da unidade do Partido. Se o Partido Comunista da
União Soviética caiu, por exemplo, foi justamente porque negligenciou os
fundamentos ideológicos do regime. Esse é um erro que nunca poderemos
cometer. Que ninguém duvide da superioridade do socialismo sobre o
capitalismo nem esqueça as lições dos camaradas Marx, Engels, Mao, Lenine
e Estaline. Para além de obedecer à doutrina marxista, a nossa viragem para
o capitalismo constitui uma tática temporária para enganar os nossos
inimigos. Devemos manter sempre presente que a China é um Estado
socialista de ditadura democrática popular, dirigido pela classe operária e
fundado na aliança entre operários e camponeses no quadro da luta
revolucionária. A história do Partido, tal como a história das classes, é uma
luta constante. Para ter sucesso na luta, temos de adotar a estratégia que
conduz à vitória nal. Essa estratégia, como nos demonstrou o grande
timoneiro Mao, está inscrita nos triunfos do Período dos Estados em
Guerra. O que me leva a fazer-vos esta pergunta: quem no mundo é hoje em
dia o ba?”
Embora dirigida a todos, a questão foi feita a olhar para o aluno que
acabara de o interpelar, pelo que foi este que se viu na obrigação de
responder.
“O inimigo capitalista, o Ocidente.”
“Se queremos derrotar o ba, temos de ser astutos como o rei de Chin
perante a aliança vertical e o rei do Sul perante o rei do Norte. Temos de
tornar o ba complacente, temos de o cercar sem que ele perceba que está a
ser cercado, temos de lhe roubar as ideias e as tecnologias que lhe dão a sua
força, temos de ngir que abandonámos o socialismo e abraçámos o
capitalismo, temos de parecer fracos mesmo quando já somos fortes e temos
de ser pacientes e aguardar pelo shi, o momento certo para lhe desferirmos
de surpresa o golpe fatal. É essa a grande lição do Período dos Estados em
Guerra. Xiao li cang dao, ou seja, esconder a faca por detrás de um sorriso. É
preciso ganhar a con ança do inimigo para o tranquilizar enquanto nos
preparamos para lhe desferir o golpe fatal. Nunca se esqueçam das palavras
sábias de Sun Tzu: todos os con itos são baseados na dissimulação. Assim
sendo, quando prontos para atacar, devemos parecer incapazes de o fazer;
quando ativos, parecer inativos; quando próximos, levar o inimigo a
acreditar que estamos longe; quando longe, a acreditar que estamos perto.”
“O camarada instrutor está a dizer que precisamos de ser dissimulados
com o Ocidente capitalista?”
A pergunta do aluno era de tal modo certeira que Li não conseguiu
ocultar um sorriso autocongratulatório pela forma tão e caz como
conduzira a ação de doutrinação naquela secção do Partido Comunista
Chinês. Pegou nos livros que tinha pousado sobre a secretária e devolveu-os
à pasta, como se sinalizasse assim que a sessão tinha chegado ao m.
“Temos de fazer guerra ao ba sem que o ba perceba sequer que há uma
guerra.”
XVI
Estás bem?
Por aqui tudo entra nos eixos. Felizmente o Par do combate
o terrorismo com rmeza, embora de forma justa. Dou graças à Sua
ação benevolente.
Tens do no cias do primo? Contaram-me que foi internado no hospital
com um problema cardíaco. Se o vires, endereça-lhe votos de melhoras.
O meu lho também tem andado adoentado e ando a ver se encontro
um médico para ele, mas com os atentados terroristas está di cil
contratar um.
Beijos, Dilnaz
Olá, Dilnaz
Por aqui todos bem. O Par do, glorioso e correto, vela pela segurança
de todos nós e da nossa pátria bem-amada, o que me deixa
in nitamente agradecida.
Não tenho do no cias do primo. Faço votos ardentes de que recupere
depressa da doença.
Arranja o melhor médico que encontrares para o menino. Vou mandar-
te dinheiro pelo correio.
Beijos, Madina
O português quase saltou de alegria; a CIA dera com o rasto de Maria Flor.
Chang a nal tinha razão quando dissera que nada estava perdido.
Rodou nos calcanhares e, esquecendo a madeixa de cabelo de Buda,
encaminhou-se em passo lesto para a saída. O que era aquilo de partirem
imediatamente? Partirem para onde? Sabia que não valia a pena estar a
interrogar-se naquele momento; em breve teria respostas. Enquanto
atravessava apressadamente o complexo, voltou a espreitar a mensagem, pois
as primeiras duas palavras eram verdadeiramente mágicas. Langley
localizou-as. Reparou nesse momento num detalhe que o deixou
perturbado. Gangaramaya. O nome do templo onde se encontrava.
Matutava ainda no assunto quando desaguou na rua e viu o jipe
estacionado à sua espera, Fonseka ao volante e Chang com a porta traseira
aberta à sua espera. Saltou para o interior e disparou na direção do
americano.
“Como sabia que eu estava no Gangaramaya?”
Chang sorriu.
“Nunca lhe disseram que sou da CIA?”, questionou Chang em tom irónico.
“O meu trabalho é saber tudo. Devia agradecer-me por isso.”
Fecharam a porta e o jipe partiu.
“Vocês andam a espiar-me?”
O americano não respondeu; em vez disso, pegou num pequeno saco
preto que Tomás de imediato reconheceu.
“É o seu computador?”
“Ah, também foram ao meu quarto buscar as minhas coisas sem a minha
autorização…”
“Já lhe disse que temos de partir imediatamente. Con rme-me apenas que
este é o seu computador.”
“Sim, é. E então?”
“Já vai ver.”
O operacional da CIA abriu o saco preto e retirou o computador portátil
do interior. Depois de o inspecionar super cialmente, pegou num pequeno
instrumento metálico e, sem mais, esventrou o laptop.
“Ei!”, alarmou-se o português. “Está a estragar-me o computador! Isso
custou-me uma nota!”
Chang ignorou o protesto e, usando uma lupa, inspecionou o mecanismo
no interior do laptop. Parecia saber o que procurava porque a inspeção
estava centrada na motherboard, a estrutura que junta todos os componentes
do computador, desde o CPU ao hard drive, e os põe a comunicar uns com
os outros. A certa altura xou os olhos num ponto especí co da
motherboard.
“Ah-ha!”, exclamou. “Aqui está o motherfucker!”
Tomás espreitou, tentando perceber o que se passava.
“O mother… quê?”
O americano virou a motherboard para o historiador e, manobrando a
lupa, apontou para o ponto que identi cara.
“Está a ver este microchip aqui?”
Tomás via-o; tinha o tamanho de um grão de arroz.
“O que tem isso?”
“Foi instalado pelo Partido Comunista Chinês.”
“Perdão?”
“Para o espiar.”
A informação alarmou o português.
“O quê?! Eles entraram no meu quarto, pegaram no meu computador e…”
“Eles não entraram no seu quarto nem pegaram no seu computador”,
corrigiu Chang. “Eles fabricaram o computador assim. Percebe? Não sei se
sabe, mas uma grande parte dos computadores que se vendem no mundo,
mesmo os americanos, são produzidos na China. O que se passa é que o
Partido Comunista Chinês instalou neles em segredo este microchip. O
microchip serve para permitir que um hacker que saiba da existência deste
mecanismo, portanto um hacker do Partido Comunista Chinês, abra
secretamente uma backdoor para os sistemas de computador nos quais estas
motherboards estão instaladas e veja tudo o que você está a fazer e até opere
o computador à sua revelia. Ou seja, você está tranquilamente a trabalhar no
computador e o Partido Comunista Chinês, quando quiser, usa o microchip
secreto para entrar no seu sistema, espiá-lo, roubá-lo ou até sabotar as suas
atividades.”
“Caramba!”, exclamou o português, atónito. “Eles podem fazer isso no
meu computador especi camente?”
“No seu ou no de qualquer pessoa. Quem quer que possua um
computador fabricado na China está em risco. Todos os computadores
usados pela CIA ou pela NSA ou por qualquer agência americana passam
por um controlo de segurança que os abre previamente para os inspecionar
e retirar este dispositivo de espionagem instalado na fábrica por ordens do
Partido Comunista Chinês. Mas… e as empresas? E os cidadãos
particulares? Esses estão totalmente indefesos. E ignoram que o estão.”
“Por que razão não me avisou antes de que os computadores fabricados na
China podem ter dispositivos de espionagem?”
O homem da CIA meteu um alicate com umas pontas muito nas na
motherboard do computador e, com um movimento rápido mas preciso,
arrancou o microchip espião.
“Já está”, disse, mirando o minúsculo chip preso na ponta do alicate. “O
computador cou limpo.”
Tomás pegou no microchip e analisou-o.
“Incrível, isto.” Voltou-se para o americano e repetiu a pergunta. “Porque
não me avisou antes?”
“Antes, o Partido Comunista Chinês não sabia que você andava atrás de
Dragão Vermelho”, respondeu Chang enquanto arrumava os instrumentos
que usara para abrir o laptop e neutralizar o chip espião. “Mas depois da
operação de ontem em Hambantota já sabe. O seu portátil tinha de ser
limpo. De qualquer modo, não o pode usar ainda.” Estendeu-lhe a mão com
a palma aberta para cima. “Passe-me o seu telemóvel.”
O português obedeceu sem hesitações e entregou-lhe o smartphone.
“O meu telemóvel também está a ser espiado pelos chineses?”
Desta feita, em vez de abrir o aparelho, o homem da CIA guardou-o no
saco, fazendo o mesmo com o computador portátil.
“Depois de Hambantota, não tenha dúvidas”, respondeu. “O Partido
Comunista Chinês desenvolveu um poderosíssimo instrumento de hacking a
que chamámos Ariabody. Serve para entrar remotamente num computador
e copiar, apagar ou criar pastas sem que o proprietário disso se aperceba, ao
mesmo tempo que analisa todas as buscas online feitas pelo smartphone. No
m, apaga os rastos de que esteve a vasculhar o aparelho. A coisa chegou a
um ponto tal que os governantes europeus já se reúnem em cimeiras da
União Europeia sem telemóveis, para não serem escutados pelos russos ou
pelo Partido Comunista Chinês. É por isso que o seu smartphone e o seu
laptop terão agora de ser vistoriados e limpos pelos nossos técnicos de
cibersegurança antes de você poder voltar a usá-los. Isto é absolutamente
imprescindível para garantir a segurança da nossa operação.”
Tomás cou a olhar para o saco onde o americano guardara os seus
aparelhos; sem o computador portátil, e sobretudo sem o telemóvel, sentia-
se nu. Mas achou que estava a perder tempo porque nesse momento as
questões da cibersegurança não eram o mais importante para si. O que
realmente lhe importava era Maria Flor.
“Disse-me na sua mensagem que a minha mulher foi localizada…”
“Foi a informação que Langley me enviou há pouco”, con rmou Chang.
“Com base nos dados que mandei para a Agência, os satélites identi caram
o Harbin Z20J que ontem saiu de Hambantota e acompanharam o voo até
um porta-helicópteros do Partido Comunista Chinês ao largo da costa sul
do Sri Lanka. Os nossos satélites estão agora a seguir o porta-helicópteros e
os nossos sistemas intercetaram e analisaram as mensagens trocadas entre o
porta-helicópteros e as autoridades do Partido Comunista Chinês. Parece
que há novidades.”
“Quais?”
“Isso não me disseram. A Agência convocou-nos para decidir o próximo
passo. Washington considera absolutamente imperativo deitarmos a mão ao
dossiê de Dragão Vermelho. Custe o que custar.”
A atenção de Tomás regressou ao saco onde o americano guardara o seu
telemóvel e o seu computador portátil.
“Quando me poderá devolver o smartphone e o laptop?”
“Quando tiverem sido inspecionados e limpos pelo nosso pessoal da
cibersegurança, já lhe disse.”
“Vocês estão armados em santinhos, mas quem me garante que a própria
CIA não me vai instalar os seus mecanismos de espionagem? No m de
contas, os chineses não fazem nada que vocês não façam, não é verdade?”
A pergunta ia levar resposta de Chang, mas nesse momento o jipe
imobilizou-se numa plataforma. Mantendo o motor ligado, Fonseka puxou
o travão de mão.
“Chegámos!”
O anúncio levou o português a espreitar para o edifício ao lado do qual o
todo-o-terreno tinha parado. Tratava-se do Aeroporto Internacional de
Bandaranaike, o principal aeroporto do Sri Lanka.
“Vamos viajar?”
Chang saltou para o exterior e foi ajudar Fonseka a retirar as bagagens.
“Eu tinha dito que partíamos imediatamente, não tinha?”
Tomás foi também buscar a sua mala e despediu-se do cingalês antes de
seguir com o operacional da CIA para o terminal.
O aeroporto estava cheio de turistas. Uma vez lá dentro, os dois homens
passaram pelo painel gigante das Departures, assinalando todos os voos que
iam descolar e as respetivas companhias aéreas, horas e destinos.
“Qual é o nosso?”
“Nenhum desses”, respondeu o operacional da CIA sem parar. “Temos um
avião militar estacionado na pista à nossa espera.”
Devia ter percebido que não usariam voos comerciais. No m de contas,
não iriam fazer uma viagem normal. Aquela era uma missão da agência
americana de espionagem e corriam contra o tempo. O recurso a um avião
próprio poupar-lhes-ia horas preciosas.
“Qual é o nosso destino?”
Chang arrastou-o para a zona VIP, onde presumivelmente um
despachante contratado pela CIA trataria das formalidades e em poucos
minutos colocá-los-ia no avião.
“A base aérea de Kadena.”
Como qualquer historiador, Tomás estava muito à vontade em geogra a.
Aquele não era, porém, um nome habitual nos mapas, pelo que a
identi cação do destino não foi imediata. A exemplo do que tantas vezes lhe
sucedera ao longo da vida, foram os seus conhecimentos de história que o
ajudaram. Lembrou-se dos estudos académicos que levara a cabo sobre a
passagem dos exploradores portugueses pelas ilhas Ryukyu e a arte nanban e
foi assim que localizou Kadena.
Okinawa. Japão.
XXIX
Tomás teve de ler duas vezes para se certi car de que não se equivocava
quanto ao real conteúdo da lei.
“Esta lei chinesa é mesmo aplicada às empresas chinesas nos países onde
estas operam, violando as leis desses países?”
“Oiça o que lhe digo: com base nesta lei, as empresas chinesas são
obrigadas a espiar em Portugal, em Espanha, em França, na Bélgica, na
Turquia, no Canadá, no Brasil… onde quer que seja. Independentemente de
se apresentarem como empresas privadas, as empresas chinesas são na sua
essência empresas e agentes do Partido e devem obediência ao Partido, seja
qual for o seu estatuto, estejam essas empresas em que país estiverem.
Ninguém está acima do Partido, todos estão às ordens do Partido, todos
obedecem ao Partido. Em suma, todos são o Partido. Já que falámos no
exemplo da Alibaba, olhe o que aconteceu ao seu fundador, o
multimilionário Jack Ma, o homem mais rico da China… e, já agora,
membro do Partido Comunista Chinês. Um dia o coitado do Ma, julgando
que tinha adquirido um certo estatuto, atreveu-se a dizer que os bancos
estatais chineses tinham mentalidade de merceeiros. Uma crítica levezinha,
parece-me a mim, mas foi o su ciente para o Partido o fazer desaparecer do
espaço público. Acabou-se o Jack Ma! Quem manda é o Partido e nem a
mais leve crítica é tolerada.”
“Caramba, isso até parece a intolerância religiosa da Idade Média…”
“O Partido é Deus e a sua ideologia a única religião permitida na China”,
insistiu Chang. “E que ideologia é essa?”
Tomás considerou a questão.
“Capitalismo de Estado?”
A hipótese foi negada com um convicto abanão de cabeça.
“A resposta a essa questão está no princípio estratégico de ‘wai yuan nei
fang’ de que lhe falei há instantes. ‘Redondo por fora, quadrado por dentro.’
O redondo é o que está por fora, o envelope exível, a aparência exterior.
Que aparência é essa? É o capitalismo. O quadrado é o que se encontra por
dentro, o conteúdo in exível, a essência interior. Que essência é essa? É o
comunismo. Não há na China empresas privadas, apenas empresas que se
ngem privadas. Não há na China capitalismo, apenas um sistema que se
nge capitalista. O exterior é o capitalismo, o interior é o comunismo. O
envelope são as empresas privadas, o conteúdo é o Partido. A aparência é
Jack Ma, a essência é o Partido. Dá-se a ideia de uma coisa, mas a verdade é
outra. Tudo um jogo de espelhos cuja principal função é ludibriar o
Ocidente, adormecer-lhe a descon ança e atrair os seus investimentos e
conhecimentos. ‘Redondo por fora, quadrado por dentro’ quer na realidade
dizer capitalista por fora, comunista por dentro. O Partido resolveu ngir
que é capitalista, mas isso não passa de aparência. O Partido foi, é e será
sempre comunista. O Partido convenceu o mundo de que é uma coisa, mas
na verdade é outra. Está claro?”
“Cristalino.”
O americano manteve os olhos xos no seu interlocutor, como se se
quisesse assegurar de que ele havia realmente entendido o que lhe tinha sido
dito. Duvidou.
“À luz do que lhe expliquei, diga-me, por favor, o que acha que signi ca
realmente o princípio estratégico de ‘wai yuan nei fang’?”
A resposta era agora óbvia.
“Dissimulação.”
Constatando que a mensagem tinha mesmo passado, Chang voltou a ligar
o televisor diante dele e retomou o último lme de James Bond no ponto
onde o suspendera.
Sem nada para fazer, Tomás engoliu o que lhe restava do whisky, recostou-
se no assento e, ciente de que angustiar-se com o destino de Maria Flor nada
ajudaria, fez um esforço para descontrair. O importante era que nada estava
perdido e era nesse pensamento que tinha de se refugiar para aplacar a sua
imensa angústia e se manter positivo. Antes de fechar os olhos para tentar
dormir, consultou o relógio. Faltavam duas horas para chegarem a Okinawa.
XXXIII
Não confiável
A primeira coisa que Madina sentiu ao acordar foi uma dor nas
articulações. Abriu os olhos, estremunhada, e logo se lembrou de tudo. Duas
semanas antes, um guarda tinha entrado na cela e, sem pronunciar uma
palavra sequer, acorrentara-a aos ferros do beliche. Perguntara-lhe porquê, o
que zera ela para que a acorrentassem daquela maneira, mas o homem não
lhe respondera. Saíra sem lhe dar nenhuma explicação, como os guardas
sempre faziam desde que fora detida. E ali estava ela, duas semanas volvidas,
ainda acorrentada ao beliche.
A posição era extraordinariamente incómoda, pois forçava-a a
permanecer sentada no chão duro e sujo da cela, as costas contra a estrutura
metálica do beliche, as articulações a darem sinal de si. Duas semanas
acorrentada.
Duas semanas.
Essa não passava, porém, de uma simples fração do tempo em que se
encontrava naquela cela. Havia sido ali encerrada seis meses antes, mais
coisa menos coisa. A bem dizer, perdera a noção do tempo, pois os dias
repetiam-se, uns iguais aos outros, vazios e estúpidos e dolorosos. O que
estava ela a fazer na prisão? Porque a fecharam ali? Por ter tido contacto
com o avô Qeyser quando era criança? Por ter vivido em casa do primo
Erbakyt quando zera o liceu? Que culpa tinha ela que o avô fosse o imã da
aldeia e que o primo tivesse participado na manifestação a exigir o m da
discriminação dos uigures?
Chorara dias a o. Ela e as suas companheiras de cela que chegaram pela
mesma altura, mais outras que foram chegando entretanto. Mas ao m de
dois meses as lágrimas começaram a secar; o tempo funcionava como uma
anestesia. As únicas que choravam na cela eram as que tinham entrado
pouco tempo antes. As outras, as “veteranas”, haviam-se cansado de ter pena
delas mesmas e passaram a aceitar o seu destino com resignação. Se chorar
de nada lhes adiantava e dali não as tirava, de que lhes servia chorar?
“Queres que te massaje o braço?”
Olhou para o lado e viu Alim; era uma espécie de matriarca da cela. O
espaço estava apinhado de prisioneiras, a maioria uigures, mas também duas
cazaques e uma tajique; en m, as habituais “indígenas”. Todas tinham sido
detidas pelo crime de pré-crime. Alim, por exemplo, fora enclausurada
porque havia instalado o WhatsApp no telemóvel de modo a poder falar
gratuitamente com o lho que emigrara para a Turquia. O lho tinha-lhe
dado uma neta e ela queria ver a bebé todos os dias, algo que a mágica
função vídeo do WhatsApp lhe permitia. Meia hora depois de instalar a app
e de ver a neta pela primeira vez, decidira ir ao bazar comprar tecido para
lhe fazer um babygro, mas ao passar pelo primeiro checkpoint o crime fora
detetado pelo scan que o bao’an de serviço zera ao aparelho. Depois de se
con rmar que uma app proibida tinha sido mesmo descarregada no
telemóvel dela, fora entregue à polícia… e ali estava ela fechada havia já oito
meses.
“Sim, dona Alim”, assentiu Madina, agradecida pela disponibilidade da
companheira de cela em lhe massajar o braço. “Já nem o sinto, está tão
dormente…”
A amiga acariciou-lhe o braço, que se encontrava em ferida devido
à constante fricção das correntes, e a seguir massajou-o com cuidado,
evitando as equimoses e procurando reativar-lhe a circulação. Os seus gestos
eram suaves e até ternurentos, o que sensibilizava Madina. A rapariga
imaginava que Alim era assim tão protetora porque se calhar fantasiava que
tratar do seu braço acorrentado era como acariciar a neta que apenas vira
pelo WhatsApp no dia em que fora presa.
As restantes nove reclusas permaneciam sentadas nos seus beliches,
preparando-se para enfrentar mais uma jornada cheia de nada; dir-se-iam
mortas-vivas. Outra delas estava igualmente acorrentada ao seu beliche,
também sem saber porquê, enquanto duas que tinham chegado
recentemente à cela choravam em silêncio nos seus cantos. Uma das que
choravam havia sido detida por ter participado num casamento onde
ninguém bebera álcool no copo-d’água, o que segundo o Partido
con gurava crime de pré-crime, enquanto a outra era uma quarentona que
trabalhava numa tenda no bazar de Qoqek e fora detida por ter emprestado
dinheiro a uma amiga sem autorização prévia do governo, ou seja, do
Partido. Ao ver estas duas que ainda choravam, Madina via-se a si mesma
quando ali a fecharam. Chorara como elas choravam e sabia que daí a cinco
ou seis semanas as duas já estariam como ela, a dor embotada pela
inutilidade das lágrimas.
Os zumbidos na cela eram de tal modo constantes que já se haviam
tornado parte do ambiente; na maior parte do tempo, nem sequer se
notavam. Madina apenas reparou neles porque acabara de acordar. Ergueu
os olhos e xou a atenção na respetiva origem; duas câmaras de
videovigilância xas à parte superior da única parede onde não havia
beliches. As câmaras de vídeo giravam periodicamente, daí os zumbidos, de
modo a acompanharem toda a atividade das reclusas na cela.
Ao m de cinco minutos, Alim terminou a massagem.
“Precisas do balde?”
“Sim, por favor.”
O balde estava pousado ao canto da cela e dele exalava o fedor
característico das necessidades humanas. Todas as reclusas já o tinham
usado ao acordar. A exceção eram as duas que se encontravam acorrentadas
e que, por isso mesmo, não haviam conseguido ir ao local evacuar as
excrescências.
Alim trouxe o balde para junto de Madina e esta inspecionou o interior;
nele utuava uma mistura viscosa de urina e fezes. Nos primeiros dias
sentira vontade de vomitar só de olhar à distância para o balde; fora-lhe
imensamente difícil aliviar-se diante de toda a gente, e sobretudo das
câmaras de videovigilância e dos homens que algures tudo viam através
delas. Além do mais, como suportar aquele cheiro nauseabundo? Porém, e
para surpresa sua, depressa se habituara; era desconcertante como as pessoas
eram capazes de se adaptarem a tudo, mesmo às piores das imundices.
Com a mão livre, puxou as calças da farda laranja de prisioneira para
baixo e, fazendo pontaria ao balde, urinou para ele. Quando terminou,
puxou as calças para cima. Sempre com os seus cuidados maternais, Alim
pegou no balde e levou-o para a outra reclusa que se encontrava acorrentada
ao beliche.
O altifalante instalado na cela estralejou, sinal seguro de que ia entrar em
ação.
“Atenção!”, disse a habitual voz em chinês pelo altifalante. “Chamada.
Número um?”
A prisioneira em causa deu um salto e pôs-se em pé diante do seu beliche,
como um militar em sentido.
“Presente.”
Era a mais antiga na cela.
“Número dois?”
Tratava-se de Alim, que igualmente se pôs em pé, hirta e em pose marcial,
como o Partido gostava.
“Presente.”
“Número três?”
Ao chegar ao número oito, Madina levantou a mão; uma vez que estava
acorrentada, não se podia pôr de pé.
“Presente.”
Quando a chamada terminou, ouviu-se um clique; era o altifalante a
desligar-se. As reclusas voltaram a deitar-se nos beliches ou a sentarem-se
no chão, as expressões entediadas ou tristes, esperando pelo que o Partido
lhes reservava.
Dez minutos depois, o altifalante voltou a estralejar.
“Número dois! Interrogatório!”
Alim pôs-se de pé e aproximou-se da porta da cela. Ouviu-se o claquear
do mecanismo de segurança e a porta abriu-se. Dois guardas algemaram-lhe
as mãos atrás das costas e levaram-na.
“Boa sorte, dona Alim!”, atirou Madina. “Corra tudo bem!”
Outras reclusas lançaram-lhe igualmente encorajamentos antes de a porta
ser de novo trancada. Os interrogatórios quebravam a monotonia do dia,
mas eram temidos por todas. Volta e meia, a voz no altifalante convocava
uma prisioneira e ela era levada para responder a uma bateria de perguntas,
habitualmente as mesmas que já tinham sido formuladas nos interrogatórios
anteriores. Na maior parte das vezes, a reclusa voltava à cela, mas
ocasionalmente isso não acontecia. Quando as companheiras não
regressavam, nunca se sabia o destino que lhes fora dado. Teriam sido
libertadas? Ou acabaram executadas?
Desde que ali fora fechada, Madina já tinha sido chamada sete vezes; de
início pelo mesmo polícia uigure que a interrogara da primeira vez, mas
depois, talvez porque o uigure fora afastado, por polícias han. Nuns casos
apenas por um polícia, noutros por dois. As perguntas andavam sempre em
torno do avô Qeyser e do primo Erbakyt. Num dos interrogatórios haviam-
lhe batido por três vezes, primeiro umas bofetadas e depois umas
bastonadas. Ficara tão assustada que se chegara a esconder por baixo da
cadeira. Tremera imenso, o que parecera divertir os polícias e lhe valera
mais bofetadas só para que eles se rissem mais. Como era possível que a
tratassem assim, a ela que durante tantos anos se esforçara por agradar ao
Partido que nem sequer tivera tempo de arranjar um noivo e casar e ter os
seus tão desejados lhos, como qualquer boa uigure?
A porta da cela abriu-se pouco depois e dois guardas entraram com uma
panela e um cesto de pão, como sempre, e ainda um saco, o que não era
nada habitual. Todas as prisioneiras, mesmo as acorrentadas, pegaram nas
suas tigelas e estenderam-nas aos homens. Estes despejaram uma colher de
sopa em cada tigela e deram um pedaço de pão a cada uma. Madina
espreitou a sopa; àquilo é que ainda não se conseguira habituar
completamente. A sopa não passava de um líquido acinzentado que já tivera
de engolir milhares de vezes desde que ali chegara. Aquela gente não sabia
fazer mais nada? O pão, por seu turno, estava seco e duro de tão velho.
Olhou desanimada para aquela mistela. Conseguiria comer a mesma
porcaria pela enésima vez?
“Hoje é o dia do congresso do Partido”, lembrou um dos guardas depois de
distribuir a comida. “Decorem a cela para estar tudo pronto quando o
Lingxiu discursar.”
Os guardas nunca falavam quando entravam na cela para trazer as
refeições ou levar o balde das necessidades. Entravam em silêncio e em
silêncio saíam. Se ocasionalmente diziam alguma coisa era para fazer uma
repreensão ou proferir uma ameaça. Mas esse dia era especial, cortesia do
congresso do Partido, pelo que os guardas não só quebraram o mutismo
como abriram o saco que tinham trazido com eles e extraíram do interior
leiras e leiras de bandeirinhas vermelhas da China, que distribuíram pelas
reclusas antes de saírem.
A excitação entre as prisioneiras não podia ser maior. Puseram-se todas a
colocar as leiras de bandeirinhas pelas paredes, decorando a cela como se
aquele fosse um dia de festa religiosa e a prisão uma extensão dos seus
próprios lares. Ou do congresso do Partido.
“Consta que o Chefe cou indignado quando soube o que nos estavam a
fazer aqui em Xinjiang”, comentou uma enquanto pendurava as
bandeirinhas. “Dizem que teve uma fúria que partiu tudo lá no Palácio do
Povo.”
“Quem disse isso?”
“É o que consta.”
“Não tenham dúvidas, agora que está a par do que aqui se passa, o Lingxiu
vai mandar prender as ovelhas tresmalhadas do Partido e libertar-nos a
todas. O governador Chen Quanguo vai de certeza preso. Só vos digo,
meninas: a hora da justiça está a chegar.”
“Só pode, só pode…”
“Ai, eu sempre disse que o Chefe é boa pessoa”, insistiu a primeira. “Uma
joia de homem! Não veem como ele tem um sorriso tão agradável? E o ar
bonacheirão?”
“Parece o Winnie the Pooh!”
Riram-se todas; na verdade, essa era a alcunha do Lingxiu na China.
Winnie the Pooh.
“Ele é tão simpático e bondoso… Não me admirava nada que engavetasse
os culpados mesmo durante o congresso. Ali, à frente de toda a gente! Isso é
que era!”
No momento em que acabaram de colocar as bandeirinhas, dos
altifalantes irromperam vozes infantis em coro; tratava-se de outra rotina na
cela, a reprodução de gravações de canções do Partido Comunista Chinês.
As reclusas puseram-se imediatamente em sentido a acompanhar a canção
em coro, como era obrigatório.
O Partido Comunista
Trabalha para a nação.
O Partido Comunista
Com um coração
Salvou a China.
O mesmo sangue,
A mesma raça.
O sonho que partilhamos
Será realizado.
De mãos dadas,
Tu e eu,
A cabeça levantada,
Marchamos avante.
Pela expressão que o coronel Poulson zera, era claro que jamais tinha
ouvido falar em Colossus. Em bom rigor, Kurt Weilmann não esperava que
o comandante da base aérea de Kadena estivesse familiarizado com o
projeto, pois as suas funções e responsabilidades eram outras e a existência
de Colossus constituía ainda um segredo.
“Como o senhor não ignora, coronel, em breve questões de
microssegundos vão fazer a diferença entre a vida e a morte durante uma
guerra”, disse o cientista. “É por isso que a DARPA está a investir na pesquisa
e desenvolvimento de novos sistemas de armas. Esses novos sistemas
envolvem alta tecnologia e requerem interfaces cada vez mais rápidas. Ora,
não existe interface biológica mais veloz do que o cérebro, como sabe.
Descobrimos que o ser humano processa imagens mais depressa através do
subconsciente do que quando está consciente delas.”
“Sim, e então?”
O cientista da DARPA considerou a melhor forma de explicar a questão ao
o cial da Força Aérea. O ideal, percebeu, seria usar referências que lhe
fossem familiares.
“A unidade de combate que o senhor coronel tem aqui em Kadena é a 18th
Wing da USAF, não é?”
“A rmativo”, con rmou o coronel Poulson. “Temos sobretudo as 44.ª e
67.ª Esquadrilhas de Combate, ambas equipadas com caças-bombardeiros F-
15C/D Eagle. Porque pergunta?”
“Imagine que um dos seus pilotos vai a patrulhar o mar do Sul da China e
aparece-lhe pela frente um míssil hipersónico chinês tão rápido que só uma
manobra imediata que implica submeter-se no cockpit a forças de 15G
permite a evasão. Acha que o piloto é capaz de executar essa manobra?”
O G era uma referência à força da gravidade, como o coronel Poulson bem
sabia. Se 1G é a gravidade normal, 2G é a duplicação da força da gravidade.
Uma pessoa que pesasse setenta quilos, com 2G passaria a pesar cento e
quarenta. Consequentemente, 15G signi cava a força da gravidade
multiplicada por quinze; ou seja, o peso do piloto multiplicado por quinze.
Mais de uma tonelada. Uma brutalidade.
“Está a falar de 15G?”
“Sim.”
O o cial abanou a cabeça.
“Negativo”, disse. “O máximo que o ser humano aguenta é 9G… mas
apenas por alguns segundos e desde que esteja com um fato especial de
compressão. A 15G, o piloto perderia de imediato a consciência, como é
evidente. Talvez casse com órgãos esmagados.”
“Agora imagine que o piloto é o Hector”, propôs Weilmann. “Ele está
deitado na sua cama no Walter Reed, mas com o pensamento é capaz de
tripular um F-15 Eagle por controlo remoto. Se o F-15 precisasse de fazer
uma manobra imediata que implicasse forças de 15G no cockpit para escapar
ao míssil hipersónico chinês, acha que ele perderia os sentidos?”
“Com o piloto, não no cockpit, mas no hospital a controlar remotamente o
caça com o pensamento?”
“Exato.”
O olhar do coronel Poulson desviou-se de novo para a imagem
do tetraplégico espanhol deitado na cama em Bethesda.
“É evidente que, se não estiver no cockpit, é irrelevante para o piloto
a força G a que o aparelho será submetido… desde que o aparelho aguente,
claro.”
“A capacidade de controlar uma máquina por pensamento, além de
permitir reações mais rápidas às ameaças, abre possibilidades militares
in nitas”, sublinhou o cientista da DARPA. “Um piloto que controle um caça
por controlo mental remoto, portanto sem estar no caça, pode fazer o que
quiser que nunca estará em perigo nem sofrerá qualquer consequência pelo
comportamento do aparelho. Pode efetuar as manobras mais violentas, pode
submeter o aparelho a forças de 20G ou 30G, o caça pode até ser destruído
que isso não afetará o piloto.”
Como homem da aviação militar, o comandante da base aérea não podia
aprovar uma tal coisa.
“Pois, mas estar a controlar um avião remotamente não é próprio de um
verdadeiro piloto de caça…”
Weilmann apontou para Hector, sempre no ecrã.
“É o futuro, coronel”, a rmou. “Goste ou não goste, é o que vem aí. Não só
o piloto pode controlar remotamente o avião por pensamento como as
imagens captadas pelas câmaras do avião podem ser enviadas diretamente
para o cérebro do piloto, o que lhe permite percecionar tudo o que o
aparelho perceciona, incluindo as informações captadas por câmaras
térmicas, de infravermelhos ou de qualquer outro tipo. Mais, se todos os
pilotos da esquadrilha tiverem o mesmo chip implantado no cérebro,
poderão comunicar todos uns com os outros por pensamento, escapando
assim à interceção áudio pelo inimigo.”
“Bem… imagino que uma possibilidade dessas não se aplique apenas a
pilotos.”
“Aplica-se a todos os militares de qualquer ramo, como é evidente.
Soldados em patrulha que tenham estes chips implantados na cabeça, por
exemplo, podem comunicar uns com os outros por pensamento. Imagine a
utilidade que uma coisa dessas tem numa emboscada. Um soldado observa
um blindado inimigo escondido por debaixo da folhagem e não precisa de
explicar nada ao camarada que tem uma arma antitanque. Basta-lhe passar a
informação por pensamento e o camarada da arma antitanque percebe logo
onde está o tanque e vai lá destruí-lo. Com implantes destes, os soldados
podem até aceder mentalmente a computadores, o que lhes permitirá
consultar mapas e imagens por satélite, obter instantaneamente qualquer
tipo de informação e controlar um vasto espectro de sistemas de armas.
Tudo à distância de um simples pensamento. Nós, na DARPA, acreditamos
que daqui a duas décadas todos os combatentes terão chips implantados no
cérebro e poderão comunicar uns com os outros recorrendo a este tipo de
telepatia tecnológica.”
“Acha mesmo, mister Weilmann, que todos os soldados do futuro
aceitarão fazer operações no cérebro para que lhes implantem chips na
massa cinzenta?”
A pergunta era pertinente.
“É de facto mais fácil convencer tetraplégicos a fazer estas operações do
que soldados que estejam saudáveis, como é evidente”, admitiu o cientista da
DARPA. “Isso acontece porque o implante de chips no cérebro é uma
solução invasiva e desagradável, mesmo quando os chips têm apenas a
espessura de um cabelo humano. É por isso que estamos a trabalhar cada
vez mais em soluções não invasivas. O Laboratório de Física Aplicada da
Universidade John Hopkins mostrou que um equipamento a xado à cabeça
humana pode perfeitamente captar os sinais neurais emitidos pelo cérebro, o
que permite fazer com que o soldado controle máquinas através do
pensamento sem recorrer a esse tipo de cirurgias intrusivas que, como é
natural, geram resistência por parte de soldados saudáveis. De resto, a
Neurable, uma start-up americana, desenvolveu um capacete com elétrodos
secos que, colados à cabeça, permitem detetar a atividade cerebral. Seja qual
for a solução adotada, o importante é perceber que soldados que combatam
com capacidade de comunicação telepática de origem biotecnológica vão
tornar-se quase imbatíveis.”
Era difícil desmentir esta a rmação, percebeu o coronel Poulson. Para
todos os efeitos, não era isso o essencial naquele momento. Havia que
redirecionar a conversa para o tema mais premente.
“Pois, está bem”, disse. “Mas qual é exatamente a sua ideia? Deixar o seu
mister González controlar um F-15 por pensamento e pô-lo a bombardear
Cuarteron Reef?”
O responsável da DARPA abanou a cabeça.
“A minha ideia é pô-lo a controlar o Colossus.”
Era já a segunda vez que Weilmann se referia àquela expressão,
evidentemente um nome de código.
“Ilumine-me, mister Weilmann. Quando fala de Colossus, está a falar de
quê?”
O cientista voltou-se de novo para o ecrã, interpelando mais uma vez o
espanhol que se encontrava no outro lado do planeta.
“Hector, tens treinado com o Colossus?”
“Todos os dias, señor Weilmann. Quer que o chame aqui ao meu quarto?”
“Se zeres o favor.”
O tetraplégico fechou o rosto, evidentemente a concentrar-se nas ordens
cerebrais, e volvidos alguns instantes um gigante metálico apareceu na
imagem. Tratava-se de um robô cor de prata com mais de dois metros de
altura, largo e compacto.
O coronel Poulson, juntamente com Tomás e Chang, permaneceu
especado a olhar para o ecrã, embasbacado com o que via. A estrutura em
aço que enchia a imagem parecia extraída diretamente de um lme de cção
cientí ca.
“Fuck!”, praguejou o comandante da base aérea. “É isto o Colossus?”
“Ele mesmo.”
O o cial coçou a cabeça, equacionando o que o ecrã mostrava e tudo o
que acabara de aprender sobre as pesquisas mais avançadas da DARPA em
matéria de biotecnologia.
“Em quanto tempo o consegue meter cá?”
“Aqui em Okinawa?” Weilmann abanou a cabeça. “Esqueça. Tratar da
papelada, tirá-lo do Walter Reed, transferi-lo para uma qualquer base aérea
nos Estados Unidos e enviá-lo aqui para Kadena… seriam precisos pelo
menos dois dias. Provavelmente mais.”
“Se assim é, este Colossus não nos serve para nada.”
O cientista da DARPA estreitou as pálpebras e baixou a voz, como quem
partilhava um segredo.
“Há outro Colossus disponível.”
“Outro?”
“O Japão é o país mais avançado do mundo na área da robótica. A Agência
Japonesa de Aquisição, Tecnologia e Logística tem uma destas máquinas nos
seus laboratórios.”
“E é possível o mister González estar em Bethesda e controlá-la aqui no
mar do Sul da China?”
“Claro que sim. A Universidade Duke, por exemplo, fez experiências de
transmissão tecnológica de pensamento envolvendo duas cobaias muito
distantes uma da outra, ambas com implantes na cabeça. Uma encontrava-se
nos Estados Unidos, a outra no Brasil. Constatou-se que os dois animais
comunicavam perfeitamente por pensamento entre eles, apesar da enorme
distância que os separava. Repare que este tipo de comunicação, por
envolver sinais elétricos, é feito à velocidade da luz.”
Faltava uma última informação.
“E… e o robô japonês encontra-se disponível?”
Weilmann sorriu, triunfal.
“Consigo pô-lo aqui em Kadena numa questão de horas.”
Como se o sol tivesse de repente inundado o gabinete, o olhar de todos
iluminou-se.
“A sério?”
O cientista da DARPA cruzou os braços e olhou para o coronel Poulson de
soslaio, com um semblante quase insolente, como se considerasse
demonstrado tudo o que previamente a rmara.
“Então?”, quis saber. “Vai ou não contactar Washington para obter
autorização para uma operação nestes moldes?”
Depois de lançar um olhar para Tomás e Chang, como se procurasse
con rmar com eles se mantinham de pé a sua intenção de avançarem para a
missão de resgate nas ilhas Spratly, con rmação que obteve com um aceno
de cabeça de ambos, o comandante da base aérea de Kadena encarou
Weilmann com uma expressão resoluta.
“Nem que eu tenha de ir à Casa Branca e espancar o presidente, mister
Weilmann.”
Sem perder tempo, o coronel Poulson pegou no telefone e fez a chamada
para o Pentágono. Ao ver o seu semblante determinado, ninguém naquele
gabinete teve a menor dúvida de que a autorização seria concedida.
A operação iria mesmo avançar.
LIII
Senhor: Se por acaso comprou este produto, por favor reenvie esta
mensagem a uma organização mundial de direitos humanos. Há
milhares de pessoas aqui perseguidas pelo governo do Partido
Comunista Chinês que lhe agradecerão e pensarão eternamente em
si.
“Florzinha!”
Ao ouvir o seu nome e reconhecer a voz que o pronunciava, Maria Flor
ergueu a cabeça e tou Tomás Noronha, incrédula. Os dois abraçaram-se e
ela, talvez pela primeira vez desde que fora sequestrada, começou a chorar.
“Agora não há tempo para isso”, cortou Charlie Chang. “Temos de sair
imediatamente daq…”
Os estampidos ensurdecedores de tiros disparados a curta distância
reverberaram pelo piso. Tomás largou bruscamente a mulher e, alerta,
rodopiou sobre si mesmo de modo a apontar a pistola-metralhadora para a
porta. Viu um corpo deitado no chão e a arma do operacional da CIA a
fumegar. Chang tinha razão; não era aquele o momento para celebrar
reencontros. O português voltou-se de novo para Maria Flor e constatou que
ela e a mulher ao lado dela estavam ambas algemadas a uma barra de ferro.
“Who are you?”, perguntou ele em inglês, para se certi car da identidade
da desconhecida. “Quem é você?”
A mulher estava tão assustada que por momentos não pareceu
compreender.
“Nĭ shì hóng lóng ma?”, questionou o homem da CIA em mandarim. “Você
é Dragão Vermelho?”
Com uma expressão de imenso alívio, pois só ao ouvir dirigirem-se-lhe
como “Dragão Vermelho” percebeu que estava mesmo a ser resgatada, ela
assentiu com um movimento enfático da cabeça.
“Shì de… uh… yes.”
Os dois homens olharam para as algemas e perceberam que precisariam
das chaves para as libertar. Chang correu para os corpos dos homens que
abatera, revistando-os em busca das chaves, mas Tomás compreendeu que o
método não era o mais expedito. Apontou a sua pistola-metralhadora à
corrente que unia a algema de Maria Flor à barra de ferro e disparou. O tiro
assustou-os a todos, pois fora desferido bem perto, mas a verdade é que a
mulher conseguiu soltar a mão. Sem hesitar, o português repetiu o
procedimento com Dragão Vermelho. Apontou, disparou e o braço da
mulher do lenço negro soltou-se também.
Quando as duas mulheres caram livres, Tomás ajudou-as a levantarem-se
e puxou-as para a porta; era imperativo que saíssem dali o mais depressa
possível. Dragão Vermelho, no entanto, resistiu e começou a falar em
mandarim para Chang de forma muito agitada enquanto apontava
freneticamente para uma salinha anexa.
“O dossiê!”, exclamou o homem da CIA. “Ela diz que o dossiê está no
gabinete do comandante!”
Sem perder tempo, o historiador deixou-as com Chang e correu para o
gabinete. Percorreu as gavetas da escrivaninha, abrindo-as uma a uma, mas
uma delas manteve-se xa; estava fechada à chave. Deveria ser ali que o
dossiê fora guardado. Já habituado a resolver tudo a tiro, pois era a forma
mais rápida de despachar as coisas, apontou o cano da pistola-metralhadora
para a fechadura e disparou. A gaveta soltou-se e libertou o seu segredo:
uma pen com as faces rabiscadas com um caractere chinês.
Tomás pegou na pen e veio à porta, exibindo-a entre os dedos.
“É isto?”
Dragão Vermelho assentiu com vigor.
Percebendo que estava na posse do famoso dossiê com a estratégia secreta
do Partido Comunista Chinês, o português guardou a pen no bolso do
casaco e fez sinal a Chang, indicando que estava pronto. O operacional da
CIA encaminhou-se para as escadas em espiral, a arma sempre em
prontidão, as mulheres e Tomás atrás dele.
Nesse instante, o tiroteio no exterior foi subitamente interrompido. Os
dois homens entreolharam-se. O que teria acontecido? A guarnição
conseguira nalmente destruir Colossus? O silêncio deixou-os muito
alarmados. Sabiam que o monstro metálico não aguentaria muito mais
tempo debaixo de fogo permanente, mas tinham alimentado a esperança de
que permanecesse operacional o tempo su ciente para lhes permitir
completar a missão. Será que iriam falhar tão perto do nal, quando já
estavam na posse do dossiê e das duas reféns?
A intercomunicação nos capacetes regressou à vida.
“Equipa Ómega, mayday, mayday!”, gritou Hector, nervoso. “Perdi o
controlo de Colossus!”
“Colossus foi abatido?”
“Negativo.”
“Então o que aconteceu?”
“Passou para o outro lado.”
Chang e Tomás zeram um esgar de perplexidade, sem entender o que
lhes era dito.
“Clari que. O que quer dizer com isso, passou para o outro lado?”
“Já não controlo Colossus!”, anunciou Hector, visivelmente nervoso. “O
inimigo fez hacking à minha ligação remota. O sistema foi pirateado e o
inimigo tomou conta de Colossus. Ele passou-se para o outro lado!
Entenderam? Colossus passou-se para o outro lado!”
O novo olhar que os dois homens na torre trocaram ao compreender o
verdadeiro sentido da mensagem já não foi de incerteza, mas de terror puro.
“Os chineses!”, exclamou Tomás. “Eles controlam Colossus!”
Ouviram nesse instante passos pesados nas escadas, claramente de algo
volumoso a escalar os degraus, e perceberam que se tratava de Colossus.
Não vinha já para os ajudar, mas para os matar.
LXV
Tomás Noronha lançou-se para a direita com Maria Flor e Charlie Chang
para a esquerda com Dragão Vermelho. Foi só graças à agilidade e rapidez
conferida pelos exosqueletos da DARPA que os quatro conseguiram escapar
aos primeiros tiros disparados por Colossus, uma rajada prolongada que
cravou las de buracos na parede interior da torre. Claramente quem quer
que tivesse pirateado o comando de Colossus e o estava agora a manobrar
desconhecia as potencialidades dos exosqueletos. Só isso explicava que
ainda estivessem vivos.
“Temos de saltar!”, gritou Chang, dirigindo-se para a janela enquanto
disparava a pistola-metralhadora contra Colossus. “Já!”
Percebendo o que o operacional da CIA pretendia fazer, o gigante de aço
antecipou-se e travou-o com uma nova rajada que o atingiu em cheio e o
atirou contra a parede.
“Chang!”, chamou Tomás, horrorizado. “Chang!”
O corpo do companheiro imóvel no chão e as manchas de sangue a
sujarem a parede e a encherem o piso não deixavam dúvidas quanto aos
efeitos devastadores do ataque. O exosqueleto fornecia alguma proteção
contra projéteis, mas as balas da metralhadora pesada M2A2 eram
demasiado grandes e haviam-lhe perfurado o corpo.
“O que aconteceu?”, chamou Hector pelo intercomunicador do capacete.
“Equipa Ómega, o que aconteceu?”
Tudo estava a suceder tão depressa que não havia tempo, nem disposição,
para informar quem quer que fosse sobre a evolução dos acontecimentos.
“Equipa Ómega?”
Ao ser abatido, Chang deixara cair Dragão Vermelho e esta, deitada no
chão, parecia ilesa, embora algo atordoada. Logo que percebeu o que
sucedera, a mulher do lenço negro gatinhou para junto do corpo de Chang.
Parou logo que constatou que ele estava morto. Bateu nesse instante
acidentalmente com o joelho na pistola-metralhadora deitada no piso.
Surpreendida, pegou na arma.
Foi então assomada por um acesso de raiva, desespero e loucura. Apontou
a pistola-metralhadora para Colossus e disparou. Uma nova rajada do
monstro metálico deixou-a quieta numa posição contorcida, como uma
boneca partida.
“Meu Deus!”, gritou Maria Flor. “Matou-a!”
Dois mortos em poucos segundos.
“Os dados biométricos não registam a pulsação de Chang”, indicou Hector
pelo intercomunicador. “Equipa Ómega, o que se passa? Señor Noroña!
Informe, por favor!”
Ignorando as intervenções do marine, Tomás concentrou-se no gravíssimo
problema que tinha em mãos. Não havia tempo a perder. Aproveitando o
facto de Colossus estar ainda com o corpo virado para Chang e Dragão
Vermelho, deu a volta pelo outro lado, contornando o gigante, e chegou às
escadas. No momento em que ia descer, deparou-se com vários soldados a
escalar os degraus. Num gesto instintivo, apontou a pistola-metralhadora
para eles e disparou, acertando no da frente e forçando os restantes a
recuarem num tropel e a emboscarem-se no piso inferior.
Por ali não poderia ir.
“Señor Noroña, o que se passa?”
Recuou um passo e viu Colossus voltar-se para eles. Estavam perdidos.
Mesmo que escapassem ao próximo ataque, para onde poderiam ir? Ainda
que de alguma forma conseguissem sair da torre, teriam a seguir de
enfrentar o que restava da guarnição. E supondo que conseguissem escapar
aos soldados chineses, como abandonariam a ilha? No plano original, o
monstro metálico era o meio de fuga, mas o hacking do programa de
Colossus tudo mudara.
Não havia dúvida, estavam perdidos.
“Señor Noroña?”
A máquina virou a metralhadora na direção deles. Até podiam estar
realmente perdidos, mas era próprio da natureza humana manter
a esperança e fugir ao perigo, pelo que Tomás reagiu instintivamente.
No momento em que o gigante metálico abriu fogo, deu um salto
impulsionado pelo exosqueleto e chegou à janela. A sua ideia era lançar-se
por ela, custasse o que custasse, e escapar assim à armadilha em que a torre
se havia transformado.
Puxou a estrutura de vidro e voltou-se para a mulher para a preparar para
o grande salto.
“Pronta?”
Foi só nesse instante que percebeu que ela estava inerte, os olhos vidrados
e com sangue no corpo. Tinha sido atingida. Ao vê-la assim, sentiu um
violento baque no peito.
“Señor Noroña, por favor informe!”
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
“Florzinha?”
A realidade abateu-se sobre ele com uma violência inaudita. Tinha-a
perdido.
LXIX
Nos dedos já quase não havia unhas para serem roídas. O corredor do
hospital de Okinawa tinha o cheiro assético típico dos hospitais e Tomás
Noronha estava ali sentado havia cinco horas à espera de novidades. Na
mente reconstituía repetidamente o momento fatídico da missão, aquele em
que Maria Flor fora baleada por Colossus. Se ao menos tivesse agido mais
cedo para desligar o monstro metálico. Se ao menos tivesse sido um pouco
mais lesto nos seus movimentos para escapar aos disparos. Se ao menos
tivesse saltado da janela com ela nos braços. Se ao menos…
A palavra “se” era talvez a mais terrível das palavras aparentemente
inócuas das línguas humanas. Quantos acidentes estúpidos, quantas mortes
inúteis, quantas tragédias não teriam sido evitadas “se”, no instante em que
ocorreram, alguém tivesse tomado uma decisão ligeiramente diferente? Se
não tivesse feito aquela curva, se tivesse saído de casa três segundos mais
cedo ou cinco segundos mais tarde, se não tivesse ido visitar a prima.
Se.
A verdade é que o “se” só existia na mente das pessoas. A realidade não
tinha “ses”. No mundo real, as coisas simplesmente aconteciam. Sem
alternativas. Talvez tudo conspirasse para que elas sucedessem daquela
maneira, daquela e não de outra, e as opções se reduzissem a uma ilusão. O
“se” não passava do fantasma de uma decisão que não fora tomada, a
sombra angustiante de uma potencialidade que nunca se realizara, a tragédia
da opção que não fora seguida e cujos efeitos se tornavam penosamente
evidentes quando tudo se desmoronava. O mundo não conhecia “ses”. Mas,
na hora do desastre, a mente dos sobreviventes estava cheia deles.
O mundo sem “ses” era o mundo dos factos. O facto é que Maria Flor fora
atingida. O facto é que a havia conseguido transportar, a ela, a Charlie
Chang e à mulher do lenço negro, para o submarino. O facto é que Maria
Flor estava nesse momento a ser operada no hospital de Okinawa. O facto é
que o médico japonês o avisara de que a situação era muito delicada e que
deveria preparar-se para o pior. O facto é que ele se encontrava havia cinco
horas sentado naquele banco do corredor do hospital a roer as unhas
enquanto esperava para saber se ela sobreviveria ou não. Esses eram os
factos. Os “ses” não passavam de mundos que não existiam.
Sentiu alguém sentar-se ao lado; era o coronel Poulson.
“Então?”, perguntou o comandante da base aérea de Kadena. “Há
novidades?”
Tomás abanou a cabeça, sombrio.
“Não.”
O coronel pôs-lhe a mão no ombro para o confortar.
“Tenha con ança”, disse. “Os médicos japoneses são muito meticulosos, já
os vi fazerem verdadeiros milagres. E o doutor Hamato é um craque. Ela vai
safar-se.”
“Como o Charlie Chang?”
A referência ao operacional da CIA igualmente baleado na operação foi
feita com irritação, quase como uma censura.
“A perda do nosso homem foi dura. Mas desde o início que sabíamos, e ele
também sabia, que havia uma elevada probabilidade de ninguém voltar
vivo.”
O português arrependeu-se do seu remoque, na verdade nascido da
angústia em que vivia por causa da operação da mulher. O americano tinha
razão. Ninguém embarcara naquela missão sem conhecer os riscos, a
começar por Chang e por ele próprio. Todos sabiam que havia uma vertente
suicida na operação de assalto a Cuarteron Reef. Se avançaram, zeram-no
de olhos abertos, conscientes do que estava em jogo e de todos os perigos
envolvidos. Tomás zera-o pela sua Maria Flor, Chang pela sua China.
“Desculpe, estou muito nervoso.”
“Eu sei.”
Ficaram ambos um longo momento em silêncio. O coronel Poulson tinha
aparecido para o confortar, mas o que poderia verdadeiramente dizer
naquelas circunstâncias? Que Maria Flor se iria safar? Como sabia ele isso?
Talvez fosse de facto melhor nada dizer. Ficar ali sentado, a fazer companhia
ao homem cuja mulher lutava pela vida na mesa de operações, era talvez a
única coisa que poderia fazer.
Ouviram uma porta abrir ao fundo do corredor e um homem de bata
encaminhou-se para eles. Reconheceram o cirurgião japonês que estava a
operar Maria Flor. Tomás pôs-se imediatamente de pé e olhou com
ansiedade para o médico, tentando ler-lhe a notícia no rosto.
“Noronha-san?”
“Sim?”
O médico chegou ao pé dele e fez uma vénia. Quando se endireitou,
esboçou um sorriso.
“A operação correu bem.”
Ao ouvir a notícia, o português deu um salto que misturava alívio e
alegria.
“Obrigado, doutor! Obrigado!”
Estava tão feliz que se sentia capaz de o abraçar e beijar.
“Foi uma intervenção muito delicada, pois as balas provocaram danos
internos e algumas hemorragias perigosas, mas felizmente nenhum órgão
vital foi atingido e conseguimos resolver as complicações. Agora a natureza
fará o resto. Ela é jovem e forte e, em princípio, não sofrerá danos
permanentes.”
Tomás soprava de alívio.
“Excelente! Excelente! E… e quando a poderei ver, doutor?”
“A sua mulher foi agora para o recobro. Penso que irá acordar daqui
a quarenta minutos, uma hora no máximo. Quando isso acontecer, a
enfermeira virá chamá-lo e o senhor poderá estar um pouco com ela.”
Ainda apertava a mão do médico com força.
“Obrigado. Muito obrigado.”
“Não tem nada que agradecer, Noronha-san. Sabe, a minha família é
originária de Nagasáqui, cidade que foi construída pelos portugueses. Foram
os portugueses que nos abriram as portas do Ocidente e os japoneses nunca
esquecem a história. Foi por isso um imenso prazer ter podido salvar uma
porutogaru-jin.”
Despediram-se com uma vénia. Tomás sentia-se esfuziante e regressou aos
pulos para junto do comandante da base aérea.
“Eu não lhe tinha dito?”, sorriu o coronel Poulson. “Os médicos japoneses
fazem verdadeiros milagres.”
Se pudesse, também abraçaria e beijaria o o cial americano.
“Tinha razão, tinha razão.”
O coronel consultou o relógio.
“Oiça, ainda vai levar algum tempo até que possa ver a sua mulher. Não
quer ir comer qualquer coisa?”
“Daqui não saio enquanto não a vir”, foi a resposta rme. “Agradeço a sua
ajuda, coronel, mas sei que é um homem muito ocupado. Vá à sua vida e eu
carei aqui tranquilo, não se preocupe comigo.”
“Nem pensar. Fico a fazer-lhe companhia até que o chamem.”
“Não o quero prender, coronel…”
“Está decidido.”
Sentaram-se ambos no mesmo banco comprido do corredor e Tomás
voltou a respirar fundo. Um terrível peso tinha-lhe saído do corpo e tudo lhe
parecia agora alegre e colorido. Até o cheiro assético do hospital se tornara
perfume. Além de que o que sobrava das unhas cara nalmente a salvo dos
seus dentes.
Uma vez aliviado da enorme preocupação em relação à mulher, no
entanto, a sua mente libertou-se para tudo o resto. No m de contas, a
missão de resgate a Cuarteron Reef não fora organizada simplesmente para
salvar Maria Flor. Havia mais do que isso em jogo. Muito mais.
“A minha mulher escapou, mas perdemos o nosso Charlie”, observou,
refreando a sua própria alegria. “Feitas as contas, coronel, acha que valeu a
pena?”
“Está a referir-se ao dossiê que Dragão Vermelho nos trouxe?”
“Sim.”
O comandante da base abanou a cabeça.
“Lamento, não lhe posso dar pormenores sobre o seu conteúdo. Top
secret.”
O português encarou-o com a expressão de quem não aceitava aquela
resposta.
“Ó coronel, não me venha com tangas. Se o Ocidente está agora na posse
desse documento, também a mim o deve. Eu próprio arrisquei a minha pele
em toda esta história… e o senhor nem sequer se digna a explicar-me o que
ele revela?”
O coronel Poulson coçou o couro cabeludo, avaliando a questão. Era
verdade que o dossiê era con dencial. Mas o seu interlocutor não deixava de
ter razão. O mundo estava em dívida para com ele. O que Tomás zera
valia-lhe alguns direitos.
“Okay, vamos fazer assim: não lhe posso mostrar o conteúdo do
documento, é material que Washington considerou con dencial e não tenho
maneira de contornar essa decisão. Mas, de facto, você acabou por se revelar
uma peça-chave nesta operação, isso é inegável. Quem pode garantir que
não deu uma olhadela à socapa ao dossiê e cou com uma ideia sobre o seu
conteúdo?”
Disse-o com ar sonso, como se convidasse Tomás a alinhar na charada.
“Sim, quem pode garantir isso?”
“Portanto, o que lhe vou dizer não fui eu quem lho disse, entendeu? Nem
o pode reproduzir a ninguém.”
“Fique descansado.”
O americano considerou por momentos a melhor forma de explicar o
conteúdo do dossiê.
“Não é ainda clara a forma como Dragão Vermelho chegou à posse deste
conjunto de documentos. Segundo o que pudemos perceber, ela pertencia a
uma minoria étnica na China, uma uigure de Xinjiang, e estava liada no
Partido Comunista Chinês, embora não passasse de uma militante sem
qualquer relevância. O que nos suscita perplexidade sobre como chegou ela
à posse de um dossiê tão importante. Estamos ainda a investigar o assunto,
mas acreditamos que estes documentos são genuínos, vieram do interior do
Partido Comunista Chinês e representam de facto a grande estratégia
secreta da China. Supomos que uma gura bem posicionada no Partido,
preocupada com o rumo do país, lhos entregou para que ela os zesse
chegar a nós. A nossa teoria é que Dragão Vermelho foi escolhida porque,
sendo provavelmente uma uigure, estaria altamente motivada para trair
o Partido. Não sei se sabe, mas os comunistas recriaram na China os campos
de concentração e encerraram aí até três milhões de uigures, o que não faz
deles grandes amigos do Partido.”
“Sim, as organizações de defesa dos direitos humanos têm denunciado
insistentemente o alargamento dos laogai às perseguições étnicas em
Xinjiang. O dossiê que Dragão Vermelho nos trouxe expõe esses campos de
concentração?”
“O documento não aborda os laogai. O seu âmbito é outro.” Cruzou a
perna. “Até que ponto está o senhor familiarizado com os jogos de poder
que há milhares de anos conduziram à constituição da China como país?”
“Está a referir-se ao Período dos Estados em Guerra?”
O coronel Poulson riu-se.
“Ah, pois! O senhor é historiador…”, lembrou-se. “Conhece então o tema
principal dessas lutas…”
“Se bem me recordo, as narrativas sobre o Período dos Estados em Guerra
encontram-se numa coleção de textos compilados na dinastia Han. O tema
principal das múltiplas alianças, traições, segredos e todos os jogos de poder
aí descritos era a forma como cada Estado agia para se tornar o ba, ou seja, o
Estado mais forte. O ba era a potência hegemónica, aquela que tinha mais
poder do que os outros Estados.”
“No mundo de hoje, qual é na sua opinião o ba?”
“O Ocidente, claro. A vitória do Ocidente sobre a União Soviética
na Guerra Fria signi cou a vitória da democracia sobre a ditadura, da
liberdade sobre a autoridade, do individualismo sobre o coletivismo,
da economia de mercado sobre a economia plani cada, da prosperidade
sobre o subdesenvolvimento, do primado da lei sobre o primado da força,
do liberalismo sobre o comunismo. A ordem que hoje domina o mundo é a
ordem liberal e os valores que dominam as instituições internacionais são
valores liberais. Isso só acontece porque o ba é o Ocidente, o berço e o farol
da democracia liberal. O conceito do respeito pelos direitos humanos, por
exemplo, é um conceito liberal, e o mesmo acontece com conceitos
concomitantes como a liberdade de expressão, a liberdade de opinião, a
liberdade de imprensa, a liberdade de assembleia, a liberdade de religião, a
independência do poder judicial, a delimitação de poderes entre várias
instituições, a scalização de poderes, o sistema de checks and balances…
en m, tudo o que é central nas democracias liberais.”
“E qual era a principal estratégia usada no Período dos Estados em Guerra
e defendida por Sun Tzu em A Arte da Guerra?”
“A dissimulação, claro.”
“Tenho a dizer-lhe que acabou de descrever o tema central do dossiê que
Dragão Vermelho nos trouxe.”
Tomás tou-o, intrigado, a tentar perceber o alcance da observação.
“O que quer dizer com isso?”
“A primeira coisa que tem de perceber é que o Partido Comunista Chinês
tem uma grande estratégia secreta desde que em 1949 subiu ao poder na
China”, revelou o comandante da base aérea de Kadena. “O documento que
Dragão Vermelho nos trouxe apresenta essa grande estratégia. Trata-se de
um conjunto de textos que circulam dentro do Partido Comunista Chinês e
que nunca foram traduzidos para outras línguas. Essa estratégia envolve a
dissimulação em grande escala, a começar pelos próprios textos. Uma coisa
é o que o Partido diz em público, outra é o que o Partido realmente pensa. O
dossiê revela-nos o que o Partido realmente pensa. O que nos conduz ao seu
verdadeiro objetivo.”
“Que é…”
“Já lá vamos, já lá vamos”, travou-o o coronel Poulson. “Sendo historiador,
explique-me primeiro por que razão o nome da China em chinês se diz
zhungguo.”
“Zhungguo quer dizer Reino do Meio e nasce do conceito de que a China é
o centro do mundo, o grande ba, a superpotência à qual todos prestam
vassalagem e todos se submetem”, respondeu Tomás. “Isso foi verdade na
Ásia durante milhares de anos. Até que os portugueses, e depois os
holandeses e os britânicos, chegaram às costas da China. Os chineses
chamaram-lhes bárbaros, mas a verdade é que esses bárbaros se impuseram
e até instalaram colónias no território chinês. Primeiro Macau, depois Hong
Kong, Xangai, Tsingtao… quem mandava nas costas da China eram os
ocidentais, senhores e mestres do mundo. A China descobriu que o ba era
a nal o Ocidente. Foi um grande choque, dando início àquilo a que os
chineses chamam o século da grande humilhação. Foi isso o que conduziu à
proclamação da república por Sun Yat-sen, o fundador do Partido
Nacionalista, o Kuomintang, cujo projeto era justamente pôr m à grande
humilhação e avançar para o que designou ‘rejuvenescimento da China’.
Quando o Partido Comunista Chinês derrotou o Kuomintang em 1949, os
comunistas chineses adotaram esse projeto nacionalista.”
“A grande estratégia secreta delineada no dossiê que Dragão Vermelho nos
trouxe começa justamente em 1949”, revelou o americano. “Quando o
Partido subiu ao poder, a sua ideia era também pôr m à grande
humilhação. Isso requeria desa ar o ba. Para tal, a China precisava de se
desenvolver, pois uma das grandes lições do Período dos Estados em Guerra
era que a primeira condição para desa ar o ba era o desenvolvimento da
economia, que conduzia ao desenvolvimento da tecnologia, que conduzia ao
desenvolvimento militar. O desenvolvimento da economia tornou-se assim
o primeiro passo da grande estratégia delineada no que designamos
Protocolo Dragão Vermelho. O modelo óbvio era a União Soviética, a quem
os comunistas chineses se aliaram por a nidade ideológica. O problema é
que o comunismo é um sistema de distribuição de riqueza, não da sua
produção. Sem riqueza disponível, só havia miséria para distribuir. Depois
de uma sucessão de grandes desastres económicos, incluindo fomes com
dezenas de milhões de mortos, o Partido Comunista Chinês percebeu que
com o modelo soviético não ia a lado nenhum e voltou-se para o modelo
ocidental. O problema era saber se o ba iria colaborar.”
“Se bem me recordo, o Ocidente aceitou ajudar a China com base em três
pressupostos”, lembrou o historiador. “O primeiro era que assim cavava um
fosso estratégico entre as duas ditaduras comunistas, a soviética e a chinesa.
O segundo era que ganhava um mercado gigantesco para os seus produtos.
O terceiro era que a adesão da China à economia capitalista e a consequente
prosperidade iriam inevitavelmente conduzir o país à democracia liberal, ao
respeito pelos direitos humanos, à limitação de poderes, ao respeito pelos
direitos individuais… en m, aos valores liberais associados à produção
sustentada de riqueza. A ideia era que uma revolução na economia
desencadearia uma revolução na sociedade e depois no sistema político. Em
suma, o capitalismo levaria inevitavelmente à democracia liberal. No fundo,
o que na Ásia já tinha acontecido no Japão, em Taiwan e na Coreia do Sul,
cujos regimes ditatoriais evoluíram para democracias liberais graças à
prosperidade gerada pelo capitalismo.”
“Isso mesmo”, con rmou o coronel Poulson. “Só que os dirigentes do
Partido Comunista Chinês tinham outras ideias. Democracia signi ca
alternância do poder, e se há coisa que os comunistas não aceitam de modo
algum é um sistema político que preveja a possibilidade de eles saírem do
poder. A China precisava da ajuda ocidental, sim, mas nem pensar em
democracia. E aqui está a questão: como convencer o Ocidente a ajudá-lo se
o Partido continuava a querer manter na China uma ditadura comunista? A
resposta estava nas narrativas do Período dos Estados em Guerra, e em
particular na da luta entre dois reis, Fuchai e Goujian. É capaz de não
conhecer essa história…”
Duvidar que Tomás conhecesse um facto da história era beliscar o seu
orgulho de historiador.
“Fuchai era o ba, Goujian o rival”, disparou o português de pronto, cioso
da sua reputação pro ssional. “O rival atacou o ba quando ainda não estava
preparado para tal e acabou derrotado. Para que o seu reino não fosse
devastado pelo ba, o derrotado apresentou-se com grande humildade na
corte do ba e aceitou ser seu criado. Limpava as mesas e chegou a provar as
fezes do ba para determinar a origem de uma doença que a igia o ba. Este
cou tão impressionado com a lealdade do novo servo que lhe concedeu
perdão. O antigo rival regressou então ao seu reino, onde passou a dormir
todas as noites numa cama de palha e a lamber diariamente a vesícula de um
animal morto para nunca esquecer a humilhação por que passara. Ao
mesmo tempo, jurou delidade ao ba, dizendo que apenas desejava a paz e a
harmonia e que doravante o ba nada tinha a recear dele. Mas em segredo foi
aumentando as suas forças e sabotando as forças do ba, subornando os seus
conselheiros, entretendo-o com mulheres e álcool, esvaziando os seus
celeiros e encorajando-o a endividar-se. Quando uma década mais tarde
constatou que tinha en m cado mais forte do que o ba, atacou-o à traição e
derrotou-o, tornando-se assim ele próprio o ba.”
“Portanto, usou a dissimulação.”
“A dissimulação é a grande estratégia usada no Período dos Estados em
Guerra e ensinada por Sun Tzu em A Arte da Guerra. Por causa disso,
nenhuma doutrina militar no mundo enfatiza mais o uso da dissimulação
do que a doutrina militar chinesa.”
“O episódio do ba Fuchai e do rival Goujian está a ser copiado pelo
Partido Comunista Chinês”, revelou o o cial americano. “Para recuperar do
século da humilhação e enfrentar o ba, o Partido precisava primeiro de
dissimular as suas verdadeiras intenções, de modo a adormecer
descon anças e ganhar tempo para se fortalecer. É aliás isso o que prevê um
provérbio que remonta ao Período dos Estados em Guerra: ‘tao guang yang
hui’ .”
“ ‘Esconder capacidades e ganhar tempo.’ ”
“Ah, conhece?”
“O Charlie Chang explicou-me esse princípio do Partido.”
“A origem do provérbio está nesse episódio do Período dos Estados em
Guerra. Em obediência a ele, os dirigentes comunistas chineses apareceram
perante o Ocidente numa postura muito humilde, dizendo que a sua nação
era muito atrasada, coitadinha, e que precisava da ajuda sábia dos ocidentais
para sair da pobreza e crescer paci camente. Os comunistas chineses não
desejavam de modo algum a guerra e a expansão, nem desa ar quem quer
que fosse, apenas a paz entre os povos e a harmonia na Terra.”
Tomás sorriu.
“Uns verdadeiros cristãos…”
“Oh, nem imagina. Era tudo ores e amor. E nós, ocidentais, acreditando
que a prosperidade traria democracia e respeito pelos direitos humanos à
China, e estando de olho no gigantesco mercado chinês, embarcámos na
conversa. Em 1978, a Diretiva Presidencial 43 criou uma multiplicidade de
programas de transferência de conhecimentos cientí cos e tecnológicos dos
Estados Unidos para a China em domínios muito diversos, desde a energia à
agricultura, passando pelo espaço, a educação, o comércio, a saúde pública e
as geociências. Foi também atribuído à China o estatuto de nação mais
favorecida no comércio com a América.”
“Espere aí, está a dizer-me que o desenvolvimento da China não resulta
apenas do roubo massivo de conhecimentos e tecnologias ocidentais, mas
que o próprio Ocidente colaborou ativamente nessa transferência de
conhecimentos e tecnologias?”
“Claro! Três anos depois, em 1981, a Diretiva de Segurança Nacional 11
autorizou a transferência de tecnologia de mísseis so sticados para
transformar o exército do Partido Comunista Chinês numa potência
mundial. Em bom rigor deve-se dizer que o presidente Reagan assinou essa
diretiva contrariado e acrescentou uma cláusula a estabelecer que toda a
assistência à China dependia de o país abandonar o sistema ditatorial e ir
fazendo reformas democráticas liberais. Foram a seguir fornecidos fundos e
dada formação a uma miríade de institutos do Partido Comunista Chinês
nas áreas da biotecnologia, robótica inteligente, engenharia genética,
tecnologia espacial, automação, supercomputação e uma série de outras
tecnologias de ponta. Tudo oferecido de mão beijada. Foram também
vendidos à China seis sistemas avançados de armamento para fortalecer o
Exército, a Força Aérea e a Marinha e concedida ajuda para expandir o
corpo de fuzileiros do Partido. Até se aceitou que uma delegação militar
chinesa visitasse a DARPA, veja lá.”
O historiador olhava com incredulidade para o seu interlocutor.
“Mas… e a tal cláusula imposta pelo presidente Reagan a condicionar a
transferência de tudo isso à democratização da China?”
“Foi ignorada.”
“Ignorada?”
O coronel Poulson suspirou.
“Oiça, o sucesso da grande estratégia explanada no Protocolo Dragão
Vermelho depende em larga medida da boa vontade, da ingenuidade e da
ganância dos países ocidentais. Acreditámos porque queríamos acreditar.
Essa é que é a verdade. A China não tinha nem tem nenhuma intenção de se
tornar uma potência pací ca e cooperante, mas precisava e precisa que se
acredite nisso. Para conseguir esse passe de prestidigitação, alimentou a
nossa credulidade através de uma cortina de fumo baseada no provérbio
‘wai ru nei fa’, ou ‘exteriormente benevolente e interiormente implacável’ .”
“Ou seja, dissimulação.”
“Sempre a dissimulação. Repare que a cortina de fumo não se dirigiu
apenas aos líderes ocidentais, mas a todos os setores da vida no Ocidente,
desde o cultural ao económico e ao cientí co, e envolveu uma
multiplicidade de estímulos positivos e negativos. No campo dos estímulos
positivos, o Partido passou a convidar académicos, intelectuais e
empresários ocidentais para verem o quão pací ca era a China e quão
nobres e sinceras as suas intenções. Distribuiu dinheiro e benesses por todo
o lado, convenceu as universidades ocidentais a abrirem dentro das suas
portas Institutos Confúcio, o lósofo da harmonia, e nanciou projetos
conjuntos com cientistas ocidentais, entre muitas outras coisas. Todas essas
pessoas e instituições tornaram-se naturalmente grandes defensoras do
Partido e, como se fosse uma medalha de honra, receberam a designação de
zhungguo panguiao, ou ‘amigos da China’. Uma expressão aparentemente
honorí ca para designar aqueles que Lenine descreveu cruamente como ‘os
idiotas úteis’. Isto é, fazem a propaganda da China, não percebendo que se
trata de pura propaganda e que a realidade nada tem a ver com a aparência
que lhes impingem.”
“Pois, mas isso são as elites ocidentais que se deixam comprar. E o público
em geral?”
“Também há campanhas para aldrabar o cidadão comum do Ocidente,
claro. Para esse efeito, o Partido desatou a nanciar o setor da produção
cultural ou a abrir-lhe as portas do imenso mercado chinês na condição de
que apresentasse como verdadeira uma imagem ctícia sobre as suas
intenções benévolas, de modo a ludibriar assim o grande público.”
“Sim, mas o que fez a China em concreto? Dê-me exemplos.”
“Hollywood, se quiser”, indicou o comandante da base aérea. “O mercado
chinês já ultrapassou o americano como principal fonte de receitas de
Hollywood. Isto quer dizer que os estúdios americanos passaram a ter
imenso cuidado em não produzir lmes que irritem o Partido Comunista
Chinês, dando efetivamente ao Partido o poder de vetar guiões ou impor
alterações. O que se está a passar é que, antes de fazerem um lme, os
estúdios de Hollywood submetem os respetivos guiões à comissão
comunista chinesa de censura prévia. Os censores do Partido leem os guiões
e, se não gostarem de algo, chamam a atenção dos estúdios e estes alteram o
guião no sentido desejado. Por exemplo, o lme Doctor Strange tinha uma
personagem tibetana. A censura chinesa opôs-se, pois pelos vistos na
ideologia nacional-socialista chinesa nunca existiram tibetanos. O que
zeram os estúdios? Alteraram a personagem, tornando-a celta.”
Tomás levantou a mão, como se pedisse ao seu interlocutor para parar.
“Espere aí, deixe-me só ver se percebo. Então os grandes artistas
de Hollywood fazem lindas declarações sobre a liberdade, opõem-se
e denunciam abusos no Ocidente contra as minorias, multiplicam-se em
proclamações arrebatadas de adesão ao movimento #MeToo, abraçam
entusiasticamente campanhas contra a discriminação, o assédio e a violação
de direitos humanos em geral… e submetem-se acriticamente à censura
comunista chinesa? Os arautos da liberdade indignar-se-iam se o governo
americano alguma vez tentasse interferir na produção artística, e muito
bem, mas aceitam obedecer às ordens do Partido Comunista Chinês?”
“Está a acontecer todos os dias em Hollywood. Produtores e argumentistas
já elaboram guiões segundo as linhas do Partido, fazendo autocensura para
não sofrerem o vexame de serem vetados pela censura comunista. Isto está a
atingir os próprios atores. Sabe por que razão já não se fazem lmes com
Richard Gere? Porque ele, apesar de ser um excelente ator e muito popular
no Ocidente, é amigo do dalai-lama e apoia a causa tibetana. A China não
gostou e… acabou-se o Richard Gere. Nunca mais ninguém o viu numa
grande produção de Hollywood.”
“Hollywood deu aos comunistas chineses o poder de cancelar Richard
Gere?”
“É para que veja como as coisas estão”, con rmou o coronel Poulson.
“Também Harrison Ford, Sharon Stone e Selena Gomez tiveram problemas
por terem participado em lmes que desagradaram ao Partido Comunista
Chinês. Acredita-se igualmente que o realizador de Sete Anos no Tibete,
Jean-Jacques Annaud, foi colocado na lista negra e só de lá saiu quando
publicou uma carta a pedir desculpas por esse lme.”
“Ridículo!”
“Ah, não tenha dúvidas de que o ridículo assentou arraiais em Hollywood.
E de que maneira. Em Missão Impossível III, por exemplo, há uma cena em
que Tom Cruise corre pelas ruas de Xangai e veem-se roupas a secar num
estendal de um apartamento. A censura comunista mandou retirar o
estendal, alegando que dava má imagem da China… e os produtores
obedeceram. Noutra ta do mesmo ator, Top Gun: Maverick, o trailer
mostrava uma bandeira de Taiwan e outra do Japão cosidas ao casaco do
Tom Cruise, mas no lme as bandeiras desapareceram misteriosamente para
reaparecerem depois de o ato censório ter sido denunciado. Em Skyfall, da
série James Bond, por ordens do Partido foram retiradas cenas em que um
guarda chinês era morto e em que se falava nas práticas de tortura na polícia
chinesa. Os censores chineses ordenaram alterações ao lme Bohemian
Rhapsody, sobre a banda musical Queen, e ainda a Alien: Covenant, a Star
Trek Beyond, a…”
“Pronto, pronto”, atalhou o historiador. “Já percebi.”
“Oiça, se eu continuar a contar histórias deste género, não me calarei
nunca mais. São umas atrás das outras. A coisa chegou a um ponto tal que,
quando o realizador Quentin Tarantino recusou fazer uma alteração
ordenada pelos censores comunistas chineses ao seu lme Once Upon a
Time in Hollywood, isso até foi notícia. Está a perceber o que isto signi ca?”
“A obediência à censura tornou-se regra, a recusa uma exceção.”
“O Partido Comunista Chinês chama a esta estratégia ‘usar um barco
emprestado para ir para o oceano’. Ou seja, usar os instrumentos culturais de
outros países para fazer passar de forma subliminar a mensagem do Partido.
As pessoas começam a construir uma imagem fantasiada e benigna da
China, e sobretudo do seu regime, sem terem noção de que os lmes que
estão a ver são submetidos à censura prévia do Partido Comunista Chinês.
Isto acontece nos lmes, mas também na literatura, no jornalismo… em
todos os aspetos da produção cultural. E é insidioso. Por acaso viu
Gravidade?”
“Aquele lme passado no espaço com o George Clooney e a Sandra
Bullock?”
“Esse mesmo. Se bem se lembra, a história do lme é esta: dois astronautas
americanos estão em órbita numa missão de rotina, de repente a malandra
da Rússia lança um míssil e destrói um satélite russo desativado, a explosão
espalha estilhaços por toda a órbita, alguns desses estilhaços atingem a nave
espacial americana, a nave é destruída e… e quem salva tudo, quem é?”
“Uma navette da estação espacial chinesa, que na altura se encontrava
disponível.”
“Ah, grande China!”, exclamou o coronel Poulson, a voz encharcada de
ironia. “A Rússia lançou o caos, sacana, mas foi uma navette da China que
salvou a coitada da Sandra Bullock! Esta narrativa mostra quão benévola e
amante da harmonia a China é. Só tem um problema: contraria totalmente
os factos. No mundo real, a Rússia nunca destruiu nenhum satélite com um
míssil. Zero. Mas a China já o fez. E fê-lo espalhando perigosos estilhaços
pela órbita terrestre, e depois de ter jurado mil vezes, com o ar mais sério,
que não tinha nenhum programa antissatélites. Além do mais, a estação
espacial chinesa foi construída intencionalmente de modo a que não fosse
possível qualquer interface com a tecnologia ocidental. Ou seja, o Partido
impossibilitou de propósito qualquer possível cooperação espacial com o
Ocidente. Está a perceber a questão? O lme, que o público vê, mostra-nos
uma China benigna e amante da paz, a China que coopera e salva os
astronautas americanos. A realidade, que só é conhecida pelos especialistas,
é a de uma China que destrói satélites com mísseis, assim espalhando
perigosamente estilhaços pela órbita, e que deliberadamente impossibilita
qualquer cooperação internacional.”
O exemplo revoltou Tomás. Tinha visto o lme e até gostara dele, mas
descobria agora que havia sido completamente ludibriado.
“Não há ninguém que denuncie isso?”
“Haver, há. Só que entra aqui em ação a segunda parte do provérbio ‘wai
ru nei fa’, ‘exteriormente benevolente e interiormente implacável’. Se alguém
começar a questionar detalhes que não batem certo, como, por exemplo, por
que razão nos Institutos Confúcio não se pode falar nos direitos humanos
ou, outro exemplo, por que razão os cientistas chineses que trabalham em
conjunto com cientistas ocidentais em projetos civis e pací cos estão na
verdade ligados ao complexo militar chinês e esses projetos conjuntos são
a nal canalizados para a indústria militar chinesa, então vêm os estímulos
negativos. Cortam-se nanciamentos, param os convites, expulsa-se quem
seja culpado de ‘ofender os sentimentos do povo chinês’ .”
“Vá lá, dê-me exemplos.”
“Oh, há imensos. Olhe, a Universidade de Sydney recebia dinheiro da
China para ter um Instituto Confúcio, onde se explicam aos estudantes
ocidentais que a China tem valores ‘pací cos’ e ‘sinceros’ e apenas quer
erguer ‘pontes que reforçam a amizade entre os povos’. Acontece que o dalai-
lama visitou Sydney e o Instituto para a Democracia e os Direitos Humanos
convidou-o a ir fazer uma palestra à universidade. De repente, a
universidade cancelou tudo. Porquê? Tinha medo de ‘ofender os
sentimentos do povo chinês’, isto é, tinha medo de perder os nanciamentos
do Partido. Que se lixassem a democracia e os direitos humanos e os valores
‘pací cos’ e ‘sinceros’ destinados a erguer ‘pontes que reforçam a amizade
entre os povos’! A universidade chegou a alegar que o cancelamento servia
‘os melhores interesses dos investigadores’. Você, que é académico, acha que
a censura serve mesmo os interesses da pesquisa cientí ca?”
“Claro que não”, devolveu o historiador. “A censura é inimiga do
conhecimento e da ciência. Todos sabem isso.”
“O problema é que histórias destas, meu caro, são legião por todo o
mundo”, indicou o o cial americano. “Todos os académicos ocidentais que
visitam a China e trabalham em projetos de pesquisa com académicos
chineses sabem, por exemplo, que há assuntos em que não podem tocar. O
uso da expressão ‘independência de Taiwan’ está interditado. Só é autorizada
a expressão ‘inter-relações no Estreito’. A chegada do Partido Comunista
Chinês ao poder em 1949 tem obrigatoriamente de ser designada por
‘libertação’. Perante isto, o que fazem os académicos ocidentais zhungguo
panguiao? Dizem-se independentes, mas acatam obedientemente estas
imposições e enchem os seus estudos supostamente cientí cos de
referências às ‘inter-relações no Estreito’ e à ‘libertação de 1949’. Claro que
esses académicos sabem que isso é linguagem eufemística, mas o público
que lê estes estudos e con a no trabalho cientí co ocidental desconhece
estes mecanismos censórios e ca com a impressão de que a independência
de Taiwan não é uma questão importante e que a chegada do Partido
Comunista Chinês ao poder em 1949 foi de facto uma libertação para
o povo chinês.”
“Isso faz lembrar a Rússia quando invadiu a Ucrânia e proibiu
internamente que se chamasse guerra à guerra”, notou Tomás. “Só se podia
dizer que se tratava de uma ‘operação militar especial’ destinada à
‘manutenção da paz’. Conseguiram chamar paz à guerra. O que é
extraordinário é ver que a China consegue impor esse tipo de censura, não
apenas aos seus meios de comunicação e à sua população, como fez a Rússia,
mas ao próprio Ocidente, proeza de que os russos não foram capazes. Na
sua opinião, foi isso o que aconteceu no lme Gravidade?”
“Não tenho dúvidas. Repare que Hollywood também está sujeita
ao mesmo cocktail de estímulos positivos, o nanciamento de lmes e a
abertura do gigantesco mercado chinês para a respetiva exibição em massa,
e de estímulos negativos, o corte desses nanciamentos e a interdição da
exibição dos lmes na China, com a consequente perda de um mercado de
mais de mil milhões de pessoas. Entre ganhar uma fortuna e não a ganhar, o
que escolhe Hollywood? E quando falo em Hollywood, falo em todas as
formas de comunicação artística ou informativa, incluindo o jornalismo e a
literatura. Ao público ocidental é assim apresentada uma imagem cor-de-
rosa do Partido Comunista Chinês, exatamente o objetivo de todo este
exercício. Quando por acaso alguém ganha coragem e se atreve a criticar
este estado de coisas, para além das sanções habituais logo aparecem os
zhungguo panguiao a acusar os críticos de serem motivados por racismo e de
agitarem o espantalho xenófobo do ‘perigo amarelo’ e mais não sei quê,
assim intimidando e silenciando qualquer pensamento crítico ou a simples
apresentação dos factos que revelam a duplicidade do Partido Comunista
Chinês.”
“Espere aí”, interveio o português. “Quando o Ocidente percebeu que os
Institutos Confúcio não aceitam que se fale em direitos humanos e que os
cientistas chineses envolvidos em projetos civis pací cos ocidentais eram
a nal cientistas militares que planeavam usar esses projetos para ns
militares, não soaram os alarmes? No m de contas, isso expunha as
verdadeiras intenções do Partido Comunista Chinês…”
“Pois é, mas aqui o Partido vale-se do primeiro dos trinta e seis
estratagemas da antiga China, que diz ‘man tian guo hai’, ou ‘atravessa o mar
perante o céu’. É o equivalente chinês ao provérbio ocidental ‘escondido à
vista de todos’. Não há nada mais bem escondido do que as coisas que estão
mais aparentes. Para ocultar o que se encontra à vista de qualquer pessoa, o
Partido Comunista Chinês apostou na credulidade do Ocidente, que queria
acreditar que o capitalismo traria obrigatoriamente a democracia à China, e
na ganância do Ocidente, que pretendia continuar a ter acesso ao mercado e
ao nanciamento chinês. Os académicos e os intelectuais, por seu turno,
queriam continuar a receber os convites, as viagens, os subsídios, as
regalias… tudo. É muito difícil fazer uma pessoa ou instituição acreditar
numa coisa quando os interesses dessa pessoa ou instituição dependem de
não acreditar nessa coisa. Portanto, os zhungguo panguiao esforçam-se por
ignorar ou desvalorizar a evidente natureza ditatorial, tirânica e violenta do
Partido, assim perpetuando a cortina de fumo que permite esconder a
realidade apesar de ela estar à vista de todos. Chegam ao ponto de achar que
a instituição de centenas de campos de concentração em Xinjiang com até
três milhões de prisioneiros não é algo que seja revelador da verdadeira
natureza do regime comunista chinês.”
“Está bem, os ‘amigos da China’ não acreditam que o Partido é uma
ameaça porque não lhes convém acreditar. Isso eu entendo. Mas nem toda a
gente no Ocidente está subornada pelo Partido Comunista Chinês,
presumo…”
“Você não está a compreender o quão diabolicamente e ciente é esta
estratégia. Repare, sempre que no Ocidente aparece uma crítica ao Partido
Comunista Chinês ou se faz uma tentativa de enfrentar a realidade sobre o
que o Partido realmente é, os zhungguo panguiao logo intervêm, calando as
críticas e pressionando o poder político. Chegam até a dizer que o Partido
Comunista não é comunista! Com tudo isto, tornámo-nos cegos à realidade,
apesar de ela estar à vista de todos. Passámos a acreditar no que queremos
que seja verdade, isto é, que a China deseja o desenvolvimento pací co e
harmonioso, e não acreditamos no que não queremos que seja verdade,
apesar de estar à frente dos nossos olhos. Isto é, acreditamos que a
interdição em falar nos direitos humanos e que o uso militar pela China de
cooperação cientí ca destinada a ns civis, por exemplo, não são sintomas
de um problema profundo, estrutural e grave.”
“Pois, mas quem governa os países do Ocidente tem decerto acesso a
melhor informação e percebe o que realmente se passa.”
“Infelizmente, não. Nunca me esqueço que uma vez conversei com o
conselheiro militar de um presidente americano e partilhei com ele as
minhas dúvidas em relação ao Partido Comunista Chinês. Ele disse-me: não
te preocupes, a China não tem intentos agressivos. Admirado, perguntei-lhe:
como sabes isso? E ele respondeu: porque é o que eles dizem.”
Tomás arregalou os olhos.
“Uau.”
“É para que veja o nível de autoilusão a que o Ocidente chegou”, disse o
coronel Poulson. “A estratégia de dissimulação do Partido Comunista
Chinês, inspirada nas narrativas do Período dos Estados em Guerra, e em
particular na história do ba Fuchai e do seu rival Goujian, está a funcionar
às mil maravilhas. Muito importantes nesta estratégia, insisto, são os
zhungguo panguiao. Vou dar-lhe um exemplo de algo que se passou ao mais
alto nível. O presidente Clinton apercebeu-se de que o Partido Comunista
Chinês dissimulava as suas verdadeiras intenções e que os seus intentos
eram perigosos. Recuperando a velha cláusula do presidente Reagan,
Clinton estabeleceu que a América só concederia benefícios comerciais à
China se o Partido avançasse para eleições democráticas e começasse a
respeitar os direitos humanos. Sabe o que fez o Partido Comunista Chinês?
Pegou nos zhungguo panguiao e pô-los a pressionar o presidente.
Empresários, políticos, intelectuais… foi uma roda-viva infernal na Casa
Branca, todos a avisarem Clinton e a escreverem nos jornais sobre o desastre
que essa medida seria, que a América não se devia preocupar em demasia
porque o Partido não era uma ameaça, que gradualmente a China evoluiria
para a democracia e o respeito pelos direitos humanos, que a medida tinha
um intuito racista e xenófobo… e por aí fora. Até a Boeing pressionou.
Cercado por todos os lados, o presidente Clinton recuou e as sanções foram
retiradas. Riram-se muito lá em Pequim. Esse episódio é hoje conhecido no
Partido Comunista Chinês como o ‘golpe Clinton’ .”
“Pois, estou a ver”, murmurou Tomás. “É então esse o conteúdo do
Protocolo Dragão Vermelho.”
“O cerco ao Ocidente através de manobras de dissimulação é apenas a
primeira parte dos documentos que Dragão Vermelho nos trouxe”,
esclareceu o comandante da base aérea de Kadena. “O pior vem a seguir.”
“Pior?”
O coronel Poulson esboçou um sorriso sem humor.
“Espere para ver”, aconselhou. “A grande estratégia secreta do Partido
Comunista Chinês, inspirada nas estratégias do Período dos Estados em
Guerra, desenvolve-se por fases. A primeira fase foi aceder a conhecimentos
cientí cos e tecnológicos que lhe permitissem ganhar poder, mas que não
desencadeassem a descon ança do ba, algo ensinado nos manuais daquele
Período. A primeira tentativa foi feita com a União Soviética e fracassou. O
Partido voltou-se então para o Ocidente, pois percebeu que era aqui que
estava a melhor ciência e tecnologia, além de que o Ocidente era o
verdadeiro ba. Graças à ajuda ocidental e, quando ela não havia, graças ao
roubo massivo de conhecimentos cientí cos e tecnológicos do Ocidente, o
Partido foi modernizando a China e fortalecendo as suas forças. Os Estados
Unidos notaram em 2002 que os gastos militares da China eram duas vezes
superiores ao orçamentado. Sabe o que isso signi ca?”
“Que a China se está a armar às escondidas.”
“Sempre o mesmo jogo da dissimulação. A par disso, o Partido Comunista
Chinês usou ao longo de todo o tempo uma linguagem dúplice, exatamente
como ensinado no Período dos Estados em Guerra, apresentando
internamente o Ocidente como o mal dos males e dizendo externamente
que queria ser amigo do Ocidente. A versão do Partido sobre a Segunda
Guerra Mundial, por exemplo, apresenta a invasão japonesa da China como
fazendo parte de uma estratégia ocidental para pôr os dois países asiáticos
um contra o outro, assim eternizando a guerra entre ambos e impedindo
que um deles emergisse e ameaçasse o ba, exatamente como no Período dos
Estados em Guerra. Uma evidente falsi cação da história, claro, mas para o
regime chinês o que interessa é o efeito propagandístico de demonização do
Ocidente, não a verdade em si. O Partido esperava que a contradição dos
seus discursos internos e externos não fosse notada no Ocidente, até porque
os textos antiocidentais não são traduzidos. Foi bem-sucedido.”
“Não vejo porquê”, objetou Tomás. “No m de contas, há muitos
ocidentais que sabem ler chinês.”
“É verdade”, admitiu o coronel Poulson. “Para lidar com esse problema, o
Partido Comunista Chinês contou com a cumplicidade e a in uência dos
zhungguo panguiao, todos eles de uma ingenuidade interesseira, e também
com o nosso desejo de acreditar que o Partido tinha realmente mudado e
que apenas continuava comunista no nome. Desvalorizámos assim a
demonização interna que o Partido fazia do Ocidente, achando que não
passava de retórica oca. Ou seja, não só o Partido nos enganava como nós
mesmos nos estávamos a enganar a nós próprios. À medida que ia
ganhando força, graças à transferência massiva da ciência e da tecnologia
ocidentais, o Partido Comunista Chinês foi implementando a segunda fase
do plano inspirado nas estratégias do Período dos Estados em Guerra: negar
ao ba a sua capacidade de exercer formas de controlo e construir as suas
próprias formas de controlo sobre os outros, mas fazê-lo sempre de forma
dissimulada, ngindo que o Partido não era uma ameaça para ninguém e
que apenas queria ajudar todos. Era fundamental que o ba permanecesse
adormecido quanto às verdadeiras intenções do Partido.”
Não era difícil deduzir a que ações da China se referia o o cial americano
como fazendo parte da segunda fase da grande estratégia do Partido
Comunista Chinês.
“Está a referir-se à Nova Rota da Seda?”
“Esse é o elemento mais importante da segunda fase, conforme
estabelecido pelo próprio Partido no dossiê que Dragão Vermelho nos
trouxe”, con rmou o coronel Poulson. “Fingir que ajudava países
necessitados e endividá-los até ao tutano, endividá-los até os tornar países
vassalos que ajudariam o Partido Comunista Chinês a enfrentar o ba
quando a hora chegasse. Ao mesmo tempo, construir uma poderosa força
militar, mas mais uma vez fazendo-o sem despertar as atenções, sem
assustar o ba e sem o fazer compreender as verdadeiras intenções do
Partido.”
“Foi por isso que o primeiro porta-aviões chinês foi comprado à Ucrânia
com recurso ao subterfúgio mirabolante de que se destinava a ser um casino
em Macau.”
“Ah, conhece essa história?”
“O Chang contou-ma.”
“Sim, a forma dissimulada como o Partido adquiriu o seu primeiro porta-
aviões enquadra-se nas táticas de dissimulação que vêm do Período dos
Estados em Guerra. Tudo sempre feito às escondidas, em obediência ao
velho princípio do ‘tao guang yang hui’, ou ‘esconder capacidades e ganhar
tempo’. Até que chegou o momento de abrir o jogo.”
“Esse momento já chegou?”
O coronel Poulson fez um sinal a rmativo.
“A terceira fase começou em 2008. Lembra-se do que aconteceu nesse
ano?”
Já se havia passado muito tempo, mas 2008 permanecia indelével na
memória de Tomás Noronha apenas por um acontecimento. O problema é
que esse evento, que ele soubesse, não tinha relação óbvia com a China.
“Confesso que só me lembro da queda do Lehman Brothers e da grande
crise mundial que se seguiu.”
A referência pareceu ser aceite pelo americano.
“Quando o Ocidente se impôs à China, um comandante militar da
dinastia Qing, o general Li Hongzhang, disse que o mundo estava a
atravessar ‘grandes mudanças que não se viam em três mil anos’. O que ele
queria dizer é que durante três milénios a China foi o centro do mundo, a
nação hegemónica do planeta, o ba, mas que nesse momento o planeta
assistia à transferência do estatuto de ba para outra potência, o Ocidente. A
China deixara de ser o ba. Foi essa a essência da grande humilhação.”
“O que tem isso a ver com 2008?”
“O colapso de Wall Street e a crise económica então desencadeada
convenceram o Partido Comunista Chinês de que se tratava da con rmação
do declínio do Ocidente. O ba estava nalmente em queda. O Partido achou
que chegara a hora de avançar para a terceira fase, uma espécie de xeque-
mate. Meses depois do início da crise no Ocidente, o Chefe do Partido
anunciou publicamente ‘medidas mais ofensivas’. E cumpriu. A China
adotou em 2009 um programa para construir uma frota de porta-aviões,
navios de guerra e capacidades anfíbias. Foi lançado um programa de
modernização geral dos sistemas de armas e o país desenvolveu o maior e
mais diversi cado arsenal de mísseis balísticos baseados em terra e os
primeiros mísseis hipersónicos do mundo. Começaram também a ser
construídas bases navais chinesas em todo o planeta, de Hambantota a
Gwadar, do Djibuti a Bagamoyo, de Omã às Seychelles, da Birmânia ao
Camboja. Sabe o que, em termos geoestratégicos, uma aposta militar destas
signi ca, não sabe?”
Sendo historiador, Tomás não podia deixar de saber.
“Só desenvolve uma marinha de guerra poderosa, estabelece bases navais
por toda a parte e moderniza massivamente os seus sistemas de armas quem
tem planos agressivos de projeção de força militar a nível global.”
“As máscaras caíram. A China começou a assumir publicamente a sua
postura de aspirante a ba, e fê-lo no momento em que considerou que seria
tarde demais para o ba decadente, o Ocidente, conseguir reagir. Os chineses
organizaram abertamente frentes contra o Ocidente nos órgãos
internacionais, como a ONU, usando para isso os países endividados pela
Nova Rota da Seda. Além disso, ocuparam os atóis das ilhas Spratly, onde
você esteve, reclamando como sendo exclusivamente chinês um mar que
banha o Vietname, as Coreias e as Filipinas e que até aí estava aberto à
navegação internacional. A crise das dívidas soberanas na Europa, a crise
dos refugiados e imigrantes na Europa, o Brexit, a incapacidade de o
Ocidente reagir à anexação da Crimeia pela Rússia e a eleição do presidente
Trump na América, com a consequente desvalorização da NATO e divisão
entre a América e a Europa, e mesmo as divisões dentro da América entre
trumpistas e antitrumpistas e dentro da União Europeia entre blocos do
Norte, do Sul e do Leste, para além do caos no Ocidente por causa da
pandemia da COVID-19, a retirada catastró ca e inglória por parte dos
exércitos ocidentais que estavam no Iraque e no Afeganistão e as
vulnerabilidades das democracias liberais ocidentais às campanhas de
desinformação orquestradas pelas autocracias russa e chinesa serviram para
con rmar a perceção formada em 2008: o Ocidente era fraco e aburguesado,
encontrava-se dividido, empobrecido e em decadência acelerada. O ba
entrara em queda livre.”
“E a nível de relações?”, quis saber Tomás. “A China mudou alguma
coisa?”
“Imediatamente. Logo em 2009, numa conferência sobre mudanças
climáticas em Copenhaga, os representantes da China mostraram-se muito
agressivos e mal-educados para com os representantes ocidentais. Nunca
um comportamento assim tinha sido visto nos governantes chineses, até aí
sempre muito humildes e pregadores da paz e da harmonia. O Chefe do
Partido declarou que ‘a Ásia é para os asiáticos’, uma frase reminiscente do
Japão imperial e que se fosse proferida por um líder europeu, nos termos de
que ‘a Europa é para os europeus’, seria considerada fascista. Além disso, os
chineses puseram-se a ameaçar explicitamente países do Ocidente, tendo
mesmo ido ao estrangeiro raptar cidadãos ocidentais que cometiam o crime
de criticar as violações dos direitos humanos na China.”
“Portanto, o rapto da minha mulher não foi caso único.”
“Começaram por raptar um cidadão sueco e chegaram a maltratá-lo à
frente de diplomatas suecos, veja lá. Quando a Suécia protestou, o
embaixador chinês em Estocolmo avisou o governo sueco de que ‘para os
amigos temos o melhor vinho, mas para os nossos inimigos reservamos
caçadeiras’ .”
O historiador abriu a boca de estupefação.
“Eles disseram isso à Suécia?”
“Puseram-se a fazer ameaças a torto e a direito. Mataram vinte soldados
indianos, começaram a exibir as suas novas armas e ameaçaram com
punições económicas a Austrália, a República Checa e uma série de outros
países. O Chefe do Partido Comunista Chinês anunciou que a era de
‘esconder capacidades e ganhar tempo’ chegara ao m. O Partido começou a
assumir os seus objetivos. O Chefe declarou que vinham aí ‘grandes
mudanças que não se viam em um século’, parafraseando assim a velha frase
do general Li Hongzhang de que, com o domínio do Ocidente, tinham
ocorrido ‘grandes mudanças que não se viam em três mil anos’. O século a
que o Chefe se referia era, evidentemente, o único século em que, na
perspetiva chinesa, a China não tinha sido o ba.”
As implicações desta a rmação foram imediatamente entendidas por
Tomás.
“Portanto, a China planeia ser o ba.”
O coronel Poulson fez com a cabeça um movimento a rmativo enfático.
“É isso mesmo”, con rmou. “A China planeia ser o ba. Mais, acredita que o
trajeto para chegar a ba é agora irreversível. Daí que tenha posto m à fase
do ‘esconder capacidades e ganhar tempo’ e assumido uma importante parte
das suas verdadeiras intenções. Toda a grande estratégia secreta do Partido
Comunista Chinês nunca foi trabalhar para o desenvolvimento pací co da
China, como propagandisticamente repetiu ao longo do tempo para
adormecer descon anças e ganhar tempo, mas derrotar o Ocidente e tornar-
se o ba. A China quer ser o ba. Era esse o objetivo último de todos os jogos
de poder que marcaram o Período dos Estados em Guerra e é esse o objetivo
último do Partido Comunista Chinês.”
Tudo o que estava em jogo desde o rapto de Maria Flor em Amritsar
tornava-se en m claro.
“É isso o que está escrito no Protocolo Dragão Vermelho?”
“O Protocolo Dragão Vermelho é um dossiê com uma série de
documentos altamente con denciais escritos em chinês a detalhar toda a
grande estratégia secreta do Partido Comunista Chinês para se tornar o ba.
Primeiro, recuperar do atraso cientí co, tecnológico e económico em
relação ao ba atual, o Ocidente. Depois, sabotar dissimuladamente o ba atual
ao mesmo tempo que o Partido se nge pací co e inofensivo. Por m,
quando for tarde demais para o Ocidente poder reagir, deixar cair a máscara
e assumir um novo objetivo dissimulado, o de um mundo multipolar, mas
na verdade bipolar, pois terá apenas dois ba, o Ocidente e a China. Porém, o
conceito de um mundo bipolar contradiz a natureza hierárquica da visão
chinesa de poder e contradiz também a estratégia mais profunda do Período
dos Estados em Guerra, até porque a China enquanto país não se formou
com dois ou vários ba a mandar, mas só quando os Chin se assumiram
como o único ba. Não se esqueça de que um velho manual chinês centrado
nos estratagemas do Período dos Estados em Guerra tem esta citação
atribuída a Confúcio: ‘não pode haver dois sóis no céu’. Ou seja, no mundo
só há lugar para um ba. Um único. A China. Em breve será ela o centro de
tudo, a potência hegemónica, o dono do mundo. O ba.”
Tomás pôs a mão na boca.
“Meu Deus!”, exclamou. “Vamos ter uma superpotência que pratica a
ditadura, a vigilância e a repressão a mandar no mundo? Isto é uma
catástrofe! Não se esqueça de que na China não há liberdade de expressão,
não há liberdade de imprensa, não há liberdade de reunião, não há justiça
independente, não há delimitação de poderes, não há poderes e
contrapoderes, não há o império da lei, não há respeito pelos direitos
humanos, não há respeito por liberdades e garantias… na verdade, não há
nada do que estamos habituados no nosso regime liberal. O regime chinês
ainda tem campos de concentração com milhões de pessoas lá fechadas!
Chegou ao ponto de recuperar o trabalho escravo! E um país assim quer
impor o seu modelo ao planeta inteiro?”
“Está a dizer-me isso a mim?”, questionou o o cial americano. “É esse o
problema. Temos sempre de partir do princípio de que o Partido Comunista
Chinês se comportará em todo o mundo como se comporta no seu próprio
país. Ou pior ainda. Queremos a mandar no mundo um regime que não tem
problemas em policiar a população, em instituir um sistema
concentracionário gigantesco e em estabelecer o trabalho escravo? Se esse
regime trata a sua própria população dessa maneira, o que não fará às outras
populações?”
O historiador começava a sentir-se deprimido.
“A China já se considera o ba?”
“Ainda não. Apesar de tudo, o Ocidente, no seu conjunto, continua a ter
uma economia superior à chinesa e uma força militar que impõe respeito. A
China considerava que o Ocidente era decrépito e estava decadente, mas a
invasão russa da Ucrânia, em 2022, mostrou-lhe algo que ela não sabia sobre
o Ocidente: a sua capacidade de se unir e enfrentar os avanços agressivos e
violentos dos regimes autocráticos ou ditatoriais. O Partido Comunista
Chinês seguiu a guerra na Ucrânia com muita preocupação e percebeu que
o Ocidente seria um osso bem mais duro de roer do que previra. O objetivo
é agora a China ultrapassar o Ocidente e tornar-se o ba precisamente um
século depois de o Partido ter subido ao poder. Ou seja, em 2049.
Consumar-se-á a seguir a essa data a neutralização da Europa.”
“Neutralização da Europa?”, estranhou o historiador. “O que quer isso
dizer?”
“Não é muito claro”, admitiu o coronel Poulson. “Mas é o que está escrito
no último documento do Protocolo Dragão Vermelho. Quando o século
estiver a meio, ocorrerá a neutralização da Europa. Interprete esta frase
como entender.”
Nesse instante, uma enfermeira japonesa abeirou-se de Tomás e,
interrompendo a conversa, fez-lhe uma vénia.
“Peço desculpa por incomodar, honorável Noronha-san, mas a sua
senhora acordou há poucos minutos. Por ordens do doutor Hamato-san,
venho convidá-lo a visitá-la.”
O anúncio signi cava o m brusco da conversa sobre o conteúdo do
Protocolo Dragão Vermelho. O português despediu-se apressadamente do
comandante da base aérea de Kadena e, ansioso, seguiu a enfermeira em
direção à zona do recobro.
“Como está ela?”
“Muito fraca, Noronha-san. Embora bem-sucedida, a operação foi
delicada e debilitante. O senhor só poderá permanecer um máximo de dez
minutos com ela, receio bem. São ordens do doutor Hamato-san. É muito
importante que a sua senhora descanse, pois o repouso é agora o melhor
remédio.”
Subiram umas escadas e percorreram outro corredor no andar de cima.
Por m, meteram por uma porta e entraram num espaço com uma série de
pequenos compartimentos onde se encontravam deitados pacientes ligados
a máquinas. No quarto compartimento, Tomás deparou-se com Maria Flor
estendida sobre uma cama, a cabeça enterrada numa grande almofada, o
tronco engessado, um tubo de soro ligado ao braço e ao lado uma máquina a
registar os sinais vitais.
“Olá, minha Florzinha.”
A voz dele fê-la virar a cabeça.
“És tu?”
“O teu príncipe encantado”, gracejou o marido, beijando-a na testa.
“Como te sentes, meu anjo?”
“Dói-me o peito”, queixou-se ela. “O que aconteceu?”
“Não te lembras?”
“Não.”
Tomás sabia que havia feridos traumáticos que não tinham memória dos
eventos em que haviam perdido a consciência.
“Fomos resgatar-te a uma base chinesa junto às Filipinas e foste baleada.
Mas conseguimos retirar-te num submarino e o doutor Hamato, o cirurgião
que te operou, salvou-te.” Sorriu para a encorajar. “Disse que vais car como
nova.”
Maria Flor não devolveu o sorriso.
“A Madina?”
“Quem?”
“A Madina. Aquela que tinha sido raptada comigo. Onde está ela?”
“Ah, sim. A mulher do lenço negro. A CIA chamava-lhe Dragão
Vermelho.”
Ela alçou uma sobrancelha.
“Chamava-lhe?”
“Receio que ela… en m, não conseguiu.”
A mulher arregalou os olhos, alarmada.
“Não conseguiu o quê?”
“Foi também baleada. Não sobreviveu.”
Apesar de Maria Flor permanecer muito quieta na cama, as lágrimas
começaram a brotar-lhe do canto dos olhos e a escorrer pela parte lateral da
cara até se fundirem no algodão alvo da almofada.
“Merda de vida.”
Tornava-se evidente a Tomás que entre as duas mulheres se estabelecera
um forte laço emocional, sem dúvida devido às circunstâncias do cativeiro,
mas talvez também porque houvera uma simpatia natural entre elas.
“Lamento muito. Fizemos o que pudemos, mas…”
“A pen?”
Tratava-se da pen que continha o Protocolo Dragão Vermelho.
“Recuperámo-la. O conteúdo está a ser estudado.”
A mulher suspirou.
“Valha-nos isso”, murmurou. “A Madina estava muito assustada com o que
lhe iriam fazer quando voltasse à China, mas também desesperada por
falhar na missão de levar a pen para o mundo exterior. Dizia que era muito
importante que as pessoas no Ocidente tivessem conhecimento do seu
conteúdo. Felizmente que isso se salvou. Pelo menos não foi tudo em vão.”
“Ela falou-te no que está dentro da pen?”
“Um bocadinho. Disse que as pessoas no Ocidente não tinham ainda
noção do que o Partido Comunista Chinês realmente é e que, quando
acordassem para a realidade, poderia já ser tarde demais.”
“Suponho que ela tenha razão.”
“Houve uma altura em que lhe tentei explicar que o Ocidente também não
é nenhum paraíso, que há igualmente muita coisa mal entre nós, que
estamos cheios de políticos aldrabões, que também há pobreza, que há
desigualdades… en m, tudo o que sabemos.”
“E ela?”
Maria Flor cou um momento calada, como se revivesse a conversa que
tivera com Madina quando ambas estavam fechadas numa cave a discutir os
males do mundo.
“Riu-se.”
“Perdão?”
“Riu-se”, repetiu a mulher. “Mas foi um riso feito de revolta, porque
a seguir perguntou se também tínhamos câmaras de videovigilância em
todas as ruas e espaços públicos, se também tínhamos essas câmaras a
espiar-nos dentro das nossas próprias casas, se os nossos governos também
usavam algoritmos para analisar os nossos rostos e saber o que pensávamos
politicamente, se nos puniam quando não gostavam do nosso pensamento,
se os nossos governos também decidiam tudo por nós, se também tínhamos
comissões do bairro que queriam saber por que razão não demos o habitual
passeio das oito da manhã ou a mandar-nos pintar a casa com as cores do
Partido ou a repreender-nos por termos livros em casa, se também não nos
podíamos deslocar para onde quiséssemos sem uma autorização da
comissão do bairro, se também a nossa polícia inspecionava os nossos
telemóveis, se também o nosso governo inspecionava os sites que
visitávamos e as mensagens que enviávamos e recebíamos e se as apagava
quando não gostava delas e a seguir nos perseguia, se também tínhamos
campos de concentração, se também nos fechavam nesses campos porque
tínhamos WhatsApp no telemóvel ou porque não pusemos um like numa
mensagem a cantar loas ao Partido ou porque recebemos um telefonema do
estrangeiro, se também nos torturava em cadeiras tigre, se também forçava
as nossas mulheres a esterilizarem-se e a fazerem abortos contra a sua
vontade, se também nos forçava a trabalhar como escravos em fábricas, se
também forçava as nossas mulheres a viverem com um tipo do Partido e a
recebê-lo na cama e ter as fotogra as expostas na Internet… en m, se nos
sujeitávamos a tudo o que o Partido Comunista os sujeita na China.”
“E tu?”
“O que querias que respondesse? Não sabia o que lhe dizer. Ela observou
então que as nossas queixas eram ridículas, que tínhamos liberdade, que
podíamos falar mal do governo, que podíamos derrubar o governo e eleger
outro, que podíamos até processar o Estado nos tribunais e ganhar, que
também nos podíamos queixar à imprensa e as notícias pressionariam o
governo, que fazíamos o que queríamos, que não vivíamos com medo, que
as pessoas podiam pensar o que lhes apetecesse e dizer o que lhes
aprouvesse e tomar as suas próprias decisões sem recear o governo, que a
nossa liberdade alimenta a nossa criatividade e dá-nos a ciência, a inovação,
o desenvolvimento e a prosperidade e que devíamos era estar muito
agradecidos por tudo o que temos em vez de nos portarmos como crianças
mimadas que nunca estão satisfeitas com nada. Disse que o maior sonho
dela era viver numa sociedade liberal como aquela de que nós nos estamos
sempre a queixar e da qual andamos sempre a falar mal. Depois começou a
chorar.”
Fez-se um silêncio desajeitado entre ambos, até porque as lágrimas
voltaram a deslizar pelo rosto de Maria Flor. Tomás passou-lhe a mão pelo
cabelo para a confortar. Sentiu nesse momento uma presença atrás e virou-
se. Era a enfermeira japonesa.
“Peço mil perdões, honorável Noronha-san”, disse ela, fazendo uma vénia.
“Receio bem que os dez minutos concedidos pelo doutor Hamato-san já se
tenham esgotado. A sua senhora precisa de descansar.”
Não podia car mais tempo, percebeu o historiador. Inclinou-se sobre a
mulher e colou-lhe os lábios ao ouvido direito.
“Tenho de ir, minha Florzinha”, sussurrou com in nita ternura. “Amanhã
voltarei cá.”
Beijou-a na testa. Esboçou um sorriso, para lhe dar alento, antes de dar
meia-volta e se encaminhar para a porta.
“Não voltes.”
O pedido de Maria Flor apanhou-o de surpresa.
“Perdão?”
“Não voltes amanhã”, repetiu ela. “Não voltes mais.”
Aquelas palavras deixaram-no chocado. Ficou plantado à porta, a boca
aberta, os olhos arregalados, mirando-a com incredulidade e estupefação.
Ela não podia ter dito aquilo que ele pensava que tinha ouvido.
“O que disseste?”
De cabeça pousada sobre a almofada, Maria Flor virou ligeiramente a cara
e pousou nele os seus olhos castanhos.
“Há quanto tempo não contemplas um pássaro?”
O marido pestanejou, confuso.
“Um pássaro?”
“Quando estávamos no cativeiro, a Madina contou-me que a sua história
favorita se chamava ‘Pombo Selvagem’, um conto sobre um pombo que
preferiu morrer a viver o resto da vida engaiolado. Ela viu no campo de
concentração o autor, um escritor uigure, preso por ter escrito essa história.
A Madina disse-me que desde que leu o conto que tem uma imensa
admiração pelos pássaros e pela liberdade de que eles gozam. Levantam voo
e vão e vêm para onde querem, ao sabor do vento e dos seus caprichos. São
livres. Tão livres quanto ela era prisioneira. Eles a voarem e ela acorrentada,
eles senhores do seu destino e ela escrava do seu. Ficava por isso horas a
contemplá-los e a sonhar que era livre como eles. Só quando se projetava na
liberdade deles é que conseguia passar os muros e libertar-se também. Por
isso te pergunto, Tomás: há quanto tempo não contemplas um pássaro?”
Ele coçou o couro cabeludo, sem saber o que pensar ou dizer.
“Bem… uh… confesso que… que nunca me ocorreu car a contemplar
um… um pássaro.”
“O maior sonho da Madina era ser mãe”, prosseguiu ela, como se a
resposta dele não lhe interessasse verdadeiramente. “Adiou esse sonho
durante muitos anos, tão embrenhada andava no Partido para agradar aos
chefes. Mas o sonho estava sempre presente. O lho que aí viria seria o seu
pássaro. Podia viver num país transformado numa prisão gigantesca, mas
com o lho voaria e com ele seria en m livre. Livre. Até que um dia a
levaram para a sala de operações de um campo de concentração e
esterilizaram-na à força. O sonho morreu.”
A revelação chocou Tomás.
“Fizeram-lhe isso?”
Maria Flor tou-o com intensidade.
“Por que razão nunca me perguntaste se eu queria ter lhos?”
Todo o rumo ziguezagueante da conversa estava a deixar Tomás
crescentemente desconfortável. E sobretudo esta última pergunta era-lhe
muito incómoda, à luz de tudo o que acontecera muito tempo antes, numa
outra vida, por altura da aventura de O Codex 632.
“Sabes bem porquê…”
A voz tremeu-lhe ao responder.
“Sei o que aconteceu no teu passado, claro, mas o futuro não se faz a
remoer o passado. Se casei contigo não foi para car no teu passado, mas
para construir o nosso futuro. Por que razão nunca me perguntaste se eu
queria ter lhos?”
Percebendo que não podia fugir à questão, mas que esta lhe era demasiado
dolorosa, eternamente dolorosa, e que não seria capaz de a abordar naquele
momento, Tomás respirou fundo.
“Nunca se proporcionou”, desculpou-se. “Tenho uma vida muito
atarefada, como já reparaste. Ando sempre de um lado para o outro, numa
correria interminável, e, para falar com franqueza, nunca parei para pensar
nisso.”
A mulher fez um movimento com a cabeça.
“Esse não é o verdadeiro problema, e tu sabe-lo. Essa é a desculpa que
arranjaste para escapares do problema, o que é diferente. Andas a fugir do
teu passado, a fugir de ti mesmo, e foi por isso que nunca paraste. Na
verdade, desde que te conheço que vives numa verdadeira montanha-russa.
Metes-te nas maiores alhadas, e arrastas-me nelas contigo, para evitar
enfrentar a questão que realmente te aterroriza. É por isso que nunca
paraste. É por isso que não consegues sentar-te e contemplar um pássaro. É
por isso que nem sequer és capaz de me perguntar se quero ter lhos.”
“Queres ter lhos?”
Maria Flor abanou a cabeça.
“É tarde demais para me fazeres essa pergunta, não achas? Só a fazes
porque levantei a questão. E sabes porque nunca me perguntaste? Porque
não queres ter lhos.”
“Isso não é verdade.”
“É verdade, e sabes bem que é verdade. Nestes últimos dias apercebi-me
de que tu e a Madina são o negativo um do outro. Ela era prisioneira e
sonhava com um lho para ser livre. Tu és livre e não queres um lho
porque te tornará prisioneiro. Não um prisioneiro físico, entenda-se, mas
um prisioneiro emocional. Tens medo de ter um lho porque tens medo de
car emocionalmente dependente dele, tens medo de não lhe controlares o
destino, tens medo de o perder e de te perderes com ele. Foi por isso que
nunca paraste. É por isso que nunca vais parar. Estás sempre a fugir. À luz
do teu passado, posso compreender isso, claro, mas… a questão é esta,
Tomás: para que quero eu um marido que foge da responsabilidade de ter
lhos?”
“Mas eu não fujo dessa responsabilidade.”
“Então porque nunca me perguntaste se eu queria tê-los?”
“Porque… porque…”
Perante a hesitação dele, a mulher suspirou e esboçou uma expressão
cansada.
“Cheguei ao m da linha, Tomás”, disse com súbita lassidão, como se lhe
custasse já falar. “Ao ouvir no cativeiro a história da Madina, meditei muito
sobre a minha vida. Jurei a mim mesma que, se por acaso escapasse, muita
coisa teria de mudar. És uma pessoa extraordinária, fazes coisas incríveis,
tens uma cultura fora do comum, és inteligentíssimo e tenho de te agradecer
por estar hoje aqui viva. Isso nunca esquecerei. És, além do mais, um
homem de uma coragem física inacreditável. Contaram-me que saltaste de
paraquedas para me vir salvar. Isso é verdade?”
“Sim.”
“Não é coisa pouca. O problema, Tomás, é que essa coragem não se
estende ao teu lado sentimental. Nos sentimentos não passas de um cobarde.
Foges do passado, foges de mim, foges de ti mesmo. Sofreste um trauma e
recusas-te a enfrentá-lo porque tens medo de lidar com ele. Daí essas
correrias, essas aventuras, essa fuga constante. Por muito grata que te esteja
por me teres salvo, e estou, acho que chegou a hora de fazermos uma pausa.
Por isso não voltes cá.”
“Como assim, não volto cá? Como me podes pedir uma coisa dessas?”
Ela tirou os olhos do marido e endireitou a cabeça na almofada, tando o
in nito.
“Preciso de tempo. Tempo para mim, tempo para as minhas coisas, tempo
para pensar.”
“Com certeza. Terás todo o tempo que quiseres, claro.”
“Isto signi ca que, quando sair daqui e regressar a Portugal, não irei para
tua casa.”
“O quê?!”
“Tenho de me afastar. Quero car sozinha e pensar.”
“Mas… mas…”
Maria Flor fechou as pálpebras.
“Estou cansada, Tomás. Vai-te.”
A enfermeira fez-lhe sinal para que se fosse embora; era evidente que a
paciente precisava mesmo de repousar. Tomás olhou para Maria Flor e viu-a
a virar-se na cama de modo a car de costas voltadas para ele. Percebeu
nesse instante que a conversa entre eles estava acabada. Assim. Sem mais
nem menos. Ou talvez como resultado de um processo lento e impercetível.
Conhecendo-a como conhecia, sabia que, uma vez a decisão tomada, ela era
irreversível.
Com relutância, mas ao mesmo tempo com resignação, Tomás Noronha
deixou o compartimento na sala do recobro e, caminhando ao abandono,
perdeu-se pelo corredor do hospital, triste e cabisbaixo. Deambulou sem
rumo nem destino, às cegas, embrenhado no labirinto da sua imensa
derrota.
A certa altura deu consigo, sem saber como nem porquê, sentado na ponta
de um banco público diante de um lago de nenúfares. Sentia-se atordoado.
Chegara horas antes àquele hospital com um medo horrível de perder Maria
Flor. Perdera-a, de facto, só que de uma maneira diferente daquela que
temera. Como era possível que não tivesse antevisto um desfecho daqueles?
Onde havia errado? Recapitulou na mente todos os episódios
signi cativos da sua relação com a mulher, os altos e os baixos, os grandes
momentos e os detalhes aparentemente insigni cantes. Revendo tudo à luz
do que acabara de acontecer, percebia agora que, ao longo do tempo, os
sinais sempre estiveram lá. Sempre. Ele é que andara demasiado distraído
para reparar neles. Porque estava constantemente a correr de um lado para o
outro, numa azáfama, como se a própria existência do mundo dependesse
dele. Sem nunca parar. Sem nada contemplar.
Ouviu um barulho surdo, uma espécie de farfalhar esvoaçado, e virou a
cara. Um pássaro acabara de pousar no banco público onde ele se
encontrava, só que na outra ponta. O pássaro fazia movimentos rápidos com
a cabeça na sua direção, tando-o como se o estudasse, como se se sentisse
curioso com aquele homem. Dir-se-ia que queria saber o que fazia ele ali
sentado e porque parecia tão desorientado. Talvez o quisesse conhecer. Ou
mesmo ajudar.
Tomás devolveu-lhe o olhar e também o tou longamente, apreciando-lhe
o porte altivo e os olhos argutos. Aprendera, havia não muito tempo, que os
pássaros eram inteligentes. Na verdade, inteligentíssimos. Mas agora re etia,
não na inteligência deles, mas na sua liberdade. Aquela que, enquanto
homem que vivia no Ocidente, ele próprio dava como adquirida, mas que
a nal continuava a ser uma miragem para tantos outros seres humanos.
Falava-se por vezes em democracia ocidental, mas ele sabia que tal coisa
não existia, não passava de conversa de autocratas para perpetuar o seu
domínio sobre povos inteiros. Não havia democracia ocidental. Havia
democracia. Ponto. Dizia-se que a liberdade era um tesouro, mas na verdade
ela era mais do que um tesouro porque não tinha preço. Talvez o enunciado
desta ideia, a liberdade não tem preço, se tivesse transformado num lugar-
comum, até uma frase pirosa, mas que ele soubesse nada impedia que uma
frase ou uma ideia pirosa fosse verdadeira.
As pessoas no Ocidente haviam sido tão mimadas pela liberdade e pela
democracia e davam-nas de tal modo como garantidas que até se davam ao
luxo de achar pirosa a sua exaltação. Mas era quando a ameaça se tornava
real que a arrogância se esfumava e o piroso se revelava tão
perturbadoramente importante. Como acontecera quando a Rússia revelara
a sua verdadeira face e o Ocidente, sempre dividido e mimado, de repente se
unira para a enfrentar. Como se calhar um dia teria de acontecer em relação
ao Partido, o verdadeiro dragão vermelho que em segredo se armava até aos
dentes com o projeto de um dia enclausurar a humanidade numa imensa
gaiola.
Manteve o olhar preso no pássaro, fascinado e ao mesmo tempo
impressionado. O pássaro estava livre e o autor do conto uigure fora preso
por se atrever a clamar por liberdade. Pássaros livres e seres humanos
engaiolados. Nada de piroso nisso. Apenas aterrador. Estremeceu.
Apercebeu-se nesse instante de que, pela primeira vez na vida, parara. E
para fazer o quê? Para contemplar. Parara para contemplar um pássaro.
E não era um pássaro qualquer. Era um pombo.
Um pombo selvagem.
Nota nal
Se havia coisa que fascinava Nathan Ruser eram as imagens por satélite e
os mapas. Este analista do Centro Cibernético Internacional do Instituto de
Política Estratégica da Austrália decidiu um dia virar as suas atenções para a
China. Nathan tinha o talento de extrair informações a partir de imagens de
alta de nição, cruzando-as com outros dados já existentes no domínio
público, e resolveu aplicar esse talento na análise do território chinês.
Ao estudar as imagens por satélite da região de Xinjiang, notou o que lhe
pareceu ser um frenesim de obras públicas em lugares bizarros. Intrigado,
estudou com cuidado essas imagens e constatou que elas registavam
estruturas com perímetros enormes delimitados por muros altos, pontuados
por torres de vigilância e cobertos com redes de arame farpado. Não era
uma ou outra estrutura deste género que ocasionalmente aparecia nas
fotogra as tiradas do espaço, mas muitas. Centenas, na verdade.
Admirado com o que via, o analista australiano chamou os colegas e, em
conjunto, analisaram ao detalhe vinte e oito dessas construções.
Vasculharam a seguir a Internet em busca de informações sobre aqueles
locais especí cos e constataram que as estruturas pareciam estar ligadas a
concursos públicos lançados para empreitadas de grande envergadura e a
um apressado recrutamento de gente para o corpo da polícia e para
empresas de segurança. É certo que os censores chineses atuavam depressa e
eliminavam essas informações logo que os australianos as detetavam, mas os
censores não eram su cientemente lestos a apagar os traços e muita coisa
acabou por car registada.
Um dos concursos públicos mencionava explicitamente que a obra em
questão era uma instalação de “transformação através da educação”. A
equipa do Instituto de Política Estratégica da Austrália não ignorava que os
comunistas tinham o hábito de designar eufemisticamente os campos de
concentração como campos de reeducação, pelo que a expressão
“transformação através da educação” fez soar os alarmes. O Partido
Comunista Chinês estava a construir em Xinjiang mais laogai, os campos de
concentração que vinham do tempo de Mao Tsé-tung e onde milhões e
milhões de pessoas tinham sido escravizadas e/ou haviam morrido desde
que o Partido Comunista Chinês subira ao poder.
A descoberta destas instalações através de imagens por satélite,
con rmada por pesquisas semelhantes e feitas paralelamente pelo
antropólogo alemão Adrian Zenz e por um estudante chinês no Canadá,
Shawn Zhang, parecia ter uma ligação com o crescente número de queixas
de uigures que viviam fora da China e que diziam não conseguirem entrar
em contacto com os seus familiares em Xinjiang desde 2017. Dir-se-ia que
havia uma epidemia de desaparecimentos na região. Mas foi preciso que no
ano seguinte aparecesse uma mulher no Cazaquistão para que tudo se
con rmasse.
A professora cazaque Sayragul Sauytbay pertencia ao Partido Comunista
Chinês quando, em 2018, surgiu em Zharkent, uma pequena cidade do
Cazaquistão junto à fronteira com a China, a dizer que tinha fugido de
Xinjiang após ter sido internada num campo de concentração para
doutrinar os “indígenas” ali aprisionados, a maior parte uigures, mas
também muitos cazaques. A fugitiva descreveu um campo orwelliano, de
vigilância total, em que os prisioneiros detidos pelas razões mais absurdas
eram tratados como gado e sujeitos a intensas sessões de lavagem ao cérebro
típicas dos laogai. Apesar de não ser uma reclusa, ela própria foi torturada e
submetida a medicação para esterilização, além de ter testemunhado
violações em grupo de prisioneiras, de ter encontrado indícios de trá co de
órgãos de prisioneiros e de, embora casada, ter sido forçada a viver com um
chinês han no quadro da campanha Tornar-se Família.
As autoridades do Cazaquistão mandaram agentes capturar Sayragul e
quiseram deportá-la discretamente para a China. Isto apesar de cidadãos
cazaques estarem também encerrados nesses campos de concentração pelo
simples crime de serem cazaques e terem cultura cazaque. O Cazaquistão é
um país altamente endividado a Pequim devido ao programa
neocolonialista da Nova Rota da Seda, também conhecido por BRI, e o
comportamento das autoridades cazaques é bem ilustrativo do nível a que
chegou a sua vassalagem em relação ao Partido Comunista Chinês.
O que salvou Sayragul foi uma organização cazaque de defesa dos direitos
humanos, a Atajurt, que lhe arranjou apressadamente um advogado e com
grande coragem tornou o caso público, alertando organizações ocidentais de
defesa dos direitos humanos e organizando manifestações em desa o ao seu
governo. A Atajurt conseguiu assim que ela fosse levada a tribunal antes da
deportação. Sentar-se no banco dos réus pode ser um pesadelo para
qualquer pessoa, mas naquelas circunstâncias constituiu uma tremenda
vitória para Sayragul. “No início de 2018 trabalhei no que é designado na
China por campo político”, começou ela por dizer perante um tribunal
apinhado de gente, explicando que o campo, “na verdade, é uma prisão
localizada nas montanhas”. A fugitiva sublinhou que “o facto de eu estar a
falar sobre este campo numa sessão aberta do tribunal signi ca que já estou
a revelar segredos de Estado”, crime punível na China com a pena de morte.
O julgamento foi acompanhado pela imprensa internacional e por
organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, tendo
fornecido o primeiro testemunho de um sobrevivente dos novos laogai de
Xinjiang. No nal do julgamento, e perante a enorme atenção internacional
que o caso estava a atrair, o tribunal não teve coragem de ordenar a sua
deportação para a China, onde certamente a esperava a execução por
divulgação de segredos de Estado. A sala irrompeu em aplausos quando a
decisão de a deixar sair em liberdade foi lida. À saída, uma enorme multidão
entoou o nome dela. Mesmo assim, a primeira sobrevivente dos modernos
campos de concentração chineses a trazer o seu testemunho ao mundo teve
medo de car no Cazaquistão e conseguiu asilo na Suécia, onde hoje vive.
Os acontecimentos precipitaram-se depois de Sayragul Sauytbay
con rmar o que as imagens por satélite e os desaparecimentos em Xinjiang
sugeriam. Surgiram novos testemunhos de vítimas que, de uma maneira ou
de outra, conseguiam escapar da armadilha e se dispuseram a depor apesar
das ameaças, muitas vezes concretizadas, que pesavam sobre os seus
familiares que tinham cado em Xinjiang. Os novos testemunhos revelaram
também que muitas vítimas saíam dos campos de concentração para serem
diretamente colocadas em fábricas, umas dentro dos próprios complexos
concentracionais e outras no exterior, onde eram sujeitas a trabalho forçado
muitas vezes não remunerado.
Citando o veredito dos julgamentos de Nuremberga sobre os campos de
concentração nazis, o Human Rights Watch considerou que o estatuto dos
prisioneiros dos atuais campos de concentração comunistas chineses que
foram forçados a trabalhar nessas fábricas, sem para isso receberem salário
ou apenas auferirem uma retribuição simbólica, encaixa na de nição de
escravatura. Também o Relator Especial da ONU para as Formas
Contemporâneas de Escravatura, Tomoya Obokata, emitiu um relatório a
concluir que a política laboral chinesa em Xinjiang pode ser considerada
“escravatura como um crime contra a humanidade.”
Muito importante, fontes anónimas dentro da China zeram chegar ao
Ocidente dezenas de documentos con denciais do Partido Comunista
Chinês a certi car tudo o que estava a ser revelado. A fonte original seria
alguém no interior do Partido que terá passado os documentos a uma
mulher uigure, exatamente como acontece neste romance. Esses
documentos estabelecem que o objetivo dos campos de concentração é
“lavar cérebros” e “limpar corações” de pessoas “infetadas por pensamentos
pouco saudáveis”, devendo-se para tal deixar os prisioneiros completamente
isolados do mundo exterior e submetidos a “uma cobertura total por
videovigilância dos dormitórios e salas de aula sem que haja pontos cegos”.
Os documentos incluíam ordens para recrutar informadores que espiassem
os prisioneiros.
Outros documentos divulgados pouco depois pelo e New York Times
incluem declarações feitas em segredo a quadros do Partido pelo Lingxiu, Xi
Jinping, no sentido de que não se mostrasse “absolutamente nenhuma
misericórdia” na aplicação de “instrumentos de ditadura”. O Chefe
sublinhou que “as armas da ditadura democrática popular têm de ser usadas
sem hesitação” e recordou que “nós, comunistas, combateremos
naturalmente uma guerra do povo”. Os documentos sublinham
explicitamente a necessidade de se “manter o segredo” sobre os novos laogai,
exatamente como os nacionais-socialistas alemães haviam feito com os lager
e os comunistas soviéticos com os gulag.
Um “Regulamento de Des-Extremismo cação”, emitido pelo Partido
Comunista Chinês em 2017, ilegalizou dezenas de situações banais da vida
quotidiana, incluindo “rejeitar ou recusar rádio e televisão”, “recusar ver
lmes normais ou programas de televisão”, ser “um homem novo ou de
meia-idade com uma grande barba”, “parar repentinamente de beber e
fumar e não interagir com outros que bebam e fumem”, “resistir a normais
atividades culturais e desportivas como futebol e competições de música” e
“resistir a propaganda do governo”.
Calcula-se que pelos campos de concentração chineses em Xinjiang
tenham passado entre um e três milhões de prisioneiros, isto numa
população de onze milhões de uigures, e que haja centenas desses laogai
espalhados pela região. Estamos a falar de entre dez e trinta por cento da
população da província fechada em campos de concentração. É a maior
operação de detenção em massa de uma minoria étnica desde o Holocausto.
Na melhor tradição dos regimes totalitários, o Partido Comunista Chinês
começou por negar em absoluto tudo o que se denunciava. Quando
constatou que os desmentidos não se sustentavam perante a vastidão das
provas e a multiplicação dos testemunhos de sobreviventes, Pequim mudou
de tática. Embora reconhecendo que a nal existiam mesmo uns centros de
“educação” em Xinjiang, o que signi ca uma admissão de que até ali só tinha
dito mentiras, o Partido assegurou que os “estudantes” são todos
“voluntários” e negou que lhes sejam ministrados quaisquer maus-tratos.
Mesmo tratando-se de um recuo, esta versão contradizia os factos já
apurados, pelo que as críticas do Ocidente se intensi caram. Pressionado, o
Partido anunciou em 2019 que tinha dado ordem para fechar esses centros
de “educação”, embora haja indícios de que isso não aconteceu realmente e
que apenas foram desenvolvidos novos subterfúgios. Para forçar a validade
das suas sucessivas versões, e como notou a Amnistia Internacional e o
con rmaram muitas testemunhas, “o governo da China ameaça, detém,
tortura e faz desaparecer quem quer que fale em público sobre a situação
dos direitos humanos em Xinjiang”.
Perante a continuação da repressão em Xinjiang, 43 países ocidentais
assinaram em 2021 uma declaração conjunta nas Nações Unidas a acusar a
China de práticas de tortura, desaparecimentos e esterilizações forçadas
contra os uigures. A Turquia, pasme-se, foi o único país muçulmano que
subscreveu esta declaração. Os países com ditaduras ou vassalizados pela
Nova Rota da Seda vieram em socorro da China e, coordenados por Cuba,
apoiaram as políticas de Pequim contra as minorias muçulmanas. Entre os
62 países que alinharam pela China estavam sobretudo regimes africanos,
mas também nações muçulmanas ricas, como a Arábia Saudita e o Irão.
As contas assustam. Eram mais os países contra do que a favor do respeito
pelos direitos humanos em Xinjiang. O presidente do Paquistão, esse grande
arauto da defesa do islão, conseguiu mesmo a proeza de, na mesma
entrevista em que acusou de “islamofobia” o Ocidente que saiu em defesa
dos uigures, se recusar a condenar o Partido Comunista Chinês por meter
em campos de concentração milhares de pessoas pelo crime de serem
muçulmanas e de forçarem as mulheres muçulmanas a esterilizações e
abortos em massa e ainda de as obrigarem a viver em casa com homens
estranhos a quem o Partido deu na prática poderes para fazerem a essas
mulheres o que bem lhes aprouvesse.
Este é um romance e por isso é uma obra ccional. Contudo, as situações
que apresenta são, infelizmente, baseadas em factos reais. Todas as
personagens foram criadas por mim, mas aquelas cuja história decorre em
Xinjiang, de Madina a Maysem, passando por Gulbahar, Qeyser e Erbakyt,
são inspiradas em pessoas reais, cuja vida reconstituí com base em
testemunhos sobre as situações que essas ou outras vítimas realmente
viveram. A vida de Madina mistura assim episódios diferentes das vidas de
pessoas reais, desde Sayragul Sauytbay a Gulbahar Haitiwaji, passando por
Maysem, Qeyser, Erbakyt e tantos outros.
Fui buscar o nome de Madina à irmã mais nova de Gulbahar, uma
sobrevivente uigure de Xinjiang que vive agora em França. A verdadeira
Madina foi enviada para os campos de concentração aparentemente porque
cometeu o crime de ser irmã de Gulbahar, a qual, aliás, já tinha sido enviada
para esses campos por ter cometido o crime de ser mãe de Gulhumar, a qual,
por seu turno, o Partido muito gostaria de enviar para os mesmos campos
por ter cometido o crime de comparecer numa reunião da secção francesa
do Congresso Mundial Uigure em Paris. Como notou a Amnistia
Internacional, muitas das pessoas detidas eram-no por “crimes de
associação” a alguém suspeito, em geral um familiar ou um amigo, não por
elas próprias terem feito algo em concreto.
A professora Qelbinur, que neste romance cumprimenta os prisioneiros
numa sala de aula do campo com um “as salaam alekum” proibido e que
chora enquanto dá a aula, é baseada numa pessoa que existe, também ela
chamada Qelbinur. Osman, o “pretendente” de Madina, é baseado em
Osman, um comerciante uigure que se destacava nos campos de
concentração de Xinjiang pelo seu espírito positivo e que acabou por morrer
aí. Já os verdadeiros Qeyser, Erbakyt e Maysem foram levados para os laogai
pelos motivos mais absurdos. Maysem pelo crime de estudar na Turquia,
Qeyser pelo crime de ter consultado sites estrangeiros, Erbakyt pelo crime
de ter descarregado as apps do Facebook, Instagram e WhatsApp no seu
telemóvel.
Roubei o nome da personagem Tursunay, a rapariga da cela 310 que no
romance é violada, a Tursunay Ziawudun, uma das prisioneiras
referenciadas pelo Human Rights Watch como tendo sido objeto de
violações coletivas nos laogai de Xinjiang em três ocasiões distintas, sempre
por parte de guardas mascarados. As violações envolvem sobretudo
mulheres, mas também homens, embora o único homem que tenha
admitido ter sido vítima de tal prática nos campos do Partido tenha sido o
escritor Abduweli Ayup. Os relatos de violações sexuais em massa nos
campos de concentração chineses são múltiplos, registados por ONG de
defesa dos direitos humanos como a Amnistia Internacional e o Human
Rights Watch e con rmados por testemunhas como Sayragul Sauytbay e
outros, embora se acredite que não passem da ponta do icebergue de uma
tragédia de proporções bem mais vastas dada a vergonha associada a
situações desse género, ainda para mais nessas culturas, e que inibe a
denúncia.
Várias personagens da elite uigure passaram por este romance com os
nomes verdadeiros. O cantor pop Ablajan Awut Ayup, conhecido como o
Justin Bieber uigure, foi realmente fechado num campo de concentração. O
mesmo aconteceu com o presidente da Universidade de Kashgar, Erkin
Ömer. São apenas dois dos muitos intelectuais uigures detidos para serem
“reeducados” pelo Partido Comunista Chinês. Quanto a Nurmemet Yasin, o
autor do conto “Pombo Selvagem”, foi condenado a dez anos de prisão por se
ter atrevido a escrever uma metáfora sobre a liberdade. Yasin foi fechado na
prisão de Shayar, considerada uma casa dos horrores, e correm rumores de
que morreu no cativeiro. A Amnistia Internacional e o PEN America
exigiram um inquérito. Até hoje o Partido Comunista Chinês não
con rmou formalmente a morte do autor de “Pombo Selvagem”. As
referências que lhe faço no romance são uma homenagem a ele e à liberdade
sobre a qual escreveu e pela qual deu a vida atrás das grades.
A história da idosa que morreu após ter passado três dias amarrada a uma
cadeira pelo crime de ter empurrado um guarda foi relatada por uma
testemunha à Amnistia Internacional. A única diferença é que o caso real se
passou com um homem. A história da septuagenária detida por ter dito que
na China não havia lei, apenas polícia, e que teve um ataque cardíaco
quando no campo de concentração ouviu os gritos dos três lhos a serem
torturados, também é verdadeira. A conversa telefónica de Leong com
madame Kashgari é baseada na conversa que Gulbahar Haitiwaji
efetivamente teve com um “contabilista” da sua antiga empresa em Karamay
para que ela voltasse a Xinjiang, um estratagema para a atrair a Xinjiang e a
enviar para um campo de concentração. A diferença é que o romance
imagina essa conversa vista da perspetiva do “contabilista”, o chefe da célula
do Partido na empresa.
A mensagem que Madina enviou numa embalagem da fábrica onde
trabalhava como escrava é inspirada numa mensagem que uma
consumidora americana realmente encontrou ao abrir a embalagem de um
produto irresistivelmente barato que havia comprado numa loja do Oregon
e que tinha sido produzido numa fábrica da China. A mensagem original,
incluindo os erros em inglês, é esta: Sir: If you occassionally buy this product,
please kindly resend this letter to the World Human Right Organization.
ousands people here who are under the persicuton of the Chinese
Communist Party Government will thank and remember you forever. A
história desta mensagem terrível e de todo o sistema esclavagista
implementado pelo Partido Comunista Chinês é contada por Amelia Pang
no seu livro Made in China. É útil para nos lembrarmos de que, sempre que
compramos certos produtos incrivelmente baratos fabricados na China,
esses produtos só são baratos porque a mão de obra foi forçada a trabalhar e
não foi remunerada – isto é, estamos a comprar um produto feito por
escravos e, assim, a nanciar a escravatura.
As palavras de ordem apresentadas neste romance são todas verdadeiras,
tal como são verdadeiros os conteúdos das “aulas” ministradas nos campos
de concentração para efeitos de “puri cação das mentes”, a expressão formal
usada pelo Partido Comunista Chinês para descrever o processo de lavagem
ao cérebro. Os conteúdos das “con ssões” apresentadas neste romance
correspondem a conteúdos reportados pelos sobreviventes dos campos e as
conversas com os interrogadores e as “professoras da vida”, as tutoras que
fazem de polícias bons do sistema concentracionário comunista chinês, são
também baseadas em conversas realmente ocorridas. Reconstituí um campo
de concentração com base nos testemunhos dos sobreviventes, embora pelos
relatos se perceba que existem instalações muito díspares, desde escolas
adaptadas até enormes complexos construídos de raiz. Documentos secretos
da polícia de Xinjiang divulgados em 2022 pelo Consórcio de Jornalistas
Internacionais con rmam os relatos dos sobreviventes, incluindo
pormenores brutais.
As esterilizações forçadas foram pela primeira vez reveladas por Adrian
Zenz, que teve acesso a documentos o ciais chineses a estabelecer “objetivos
de performance” de esterilizações em massa e de introdução forçada de
dispositivos intrauterinos em mulheres uigures para efeitos de “e cácia a
longo prazo”. Essas esterilizações forçadas foram depois con rmadas por
sobreviventes dos campos e re etiram-se em números. As próprias
estatísticas chinesas assinalaram uma quebra de quase metade dos
nascimentos em Xinjiang em 2019. Considerando que uma parte
signi cativa da população da província é chinesa han, que não só não foi
afetada por esta campanha de esterilizações forçadas como até foi
encorajada a ter mais lhos, pode-se imaginar facilmente a dimensão do
problema na população uigure. De resto, o Instituto de Política Estratégica
da Austrália emitiu um relatório onde constatou que o colapso da natalidade
entre os uigures é superior em mais do dobro ao declínio da população
cambojana no pico do genocídio perpetrado pelos Khmers Vermelhos – um
movimento genocida comunista apoiado, aliás, pela China.
Reminiscentes das práticas eugénicas dos nazis, as esterilizações forçadas
em mulheres uigures, aliadas aos abortos forçados, con guram de facto um
genocídio biológico. Assim, a secção d do artigo II da Convenção das
Nações Unidas sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio
estabelece claramente que “genocídio signi ca […] impor medidas
destinadas a impedir nascimentos num grupo” de nível como “nacional,
étnico, racial ou religioso”. É o caso das esterilizações e dos abortos forçados
nas mulheres uigures. De resto, os Estados Unidos declararam em 2021 que
o processo em curso em Xinjiang constitui realmente um genocídio. O
mesmo proclamou o Parlamento do Canadá. A União Europeia ainda não se
atreveu a descrever a situação em Xinjiang como um genocídio, pois as
Novas Rotas da Seda conseguiram já vassalizar alguns países europeus, mas
o Parlamento Europeu aprovou em 2022 uma resolução a considerar o que
está a ser feito pelo Partido Comunista Chinês aos uigures “crimes contra a
humanidade e um grave risco de genocídio”.
Para além de formas subtis de genocídio biológico, estão igualmente em
curso processos de genocídio cultural. Os uigures foram na prática
proibidos de possuir artefactos culturais uigures e o ensino da língua uigure
foi também na prática interditado. Ciente de que estudos americanos
mostravam que uma língua que não podia ser usada nas escolas acabava por
desaparecer em três gerações, o poeta Abduweli Ayup tentou combater a
interdição e abriu um infantário onde se falava em uigure e um centro de
ensino da língua uigure. Ayup foi preso por esse ato. Logo no primeiro dia,
mandaram-no despir-se e pôr-se de gatas, tendo sido violado coletivamente
por uma vintena de guardas chineses han. Este poeta foi acusado de
separatismo, crime punido na China com a pena de morte. Tudo por se ter
atrevido a tentar manter a língua uigure viva.
É importante sublinhar que as práticas de supremacismo han do Partido
Comunista Chinês e as consequentes perseguições aos uigures, e apesar da
retórica da união, harmonia e fraternidade entre as etnias para salvaguardar
as aparências, assumiram um claro per l racial. As autoridades comunistas
chinesas chegaram mesmo ao extremo de recolher o ADN da população
muçulmana para detetar marcadores SNP, ou single nucleotide
polymorphisms, de modo a estabelecerem traços como a estrutura facial e a
cor da pele da minoria étnica uigure. Ou seja, e para sermos claros, o
Partido determinou “cienti camente” as características raciais dessa minoria
étnica. O estabelecimento do marcador racial uigure permitiu ao Partido
desenvolver um algoritmo destinado a identi car racialmente qualquer
uigure captado pelas câmaras de vigilância.
O advogado uigure Nury Turkel, especializado na defesa dos direitos
humanos, não teve dúvidas em a rmar que as detenções decretadas pelo
Partido Comunista Chinês em Xinjiang são “baseadas na raça, etnicidade e
religião de cada indivíduo, o mesmo critério usado pela Alemanha nazi para
deter judeus e ciganos”, sublinhando que os uigures não perguntam uns aos
outros por que motivo foram presos porque “todos sabem que é
simplesmente devido à sua etnia”. Esta conclusão é sustentada numa
in nidade de indícios e comportamentos reportados pelos sobreviventes, de
que este romance apresenta apenas uma ín ma amostra. A sobrevivente
Sayragul Sauytbay fez questão de sublinhar que os dirigentes do Partido
consideram os chineses han “uma raça muito superior e mais valiosa, que é
precisamente o que o PCC e o seu secretário-geral, Xi Jinping, andam a
pregar com tão ardente nacionalismo”.
Tudo isto foi con rmado por um relatório que o Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos emitiu em 2022, e cuja divulgação
a China tentou por todos os meios e a todo custo impedir. Depois de
entrevistar em pormenor quarenta testemunhas, veri car os factos e
questionar Pequim, o Alto Comissariado determinou que “graves violações
dos direitos humanos foram cometidas em XUAR”, a designação
administrativa de Xinjiang, envolvendo “coerção e discriminação de
natureza étnica e religiosa” contra os uigures e outras minorias por “razões
inócuas” como “ter muitas crianças, ser uma ‘pessoa incerta’, ter nascido em
determinados anos, ser um ex-condenado, usar véu ou barba, ter pedido um
passaporte e não ter saído do país” e ainda “ter ligações com o estrangeiro,
tentar cancelar a cidadania chinesa, possuir registo num país vizinho ou ter
feito download do WhatsApp”. Os relatores da ONU constataram até que
houve pessoas presas pelos crimes de “constarem de uma lista ou por uma
quota precisar de ser preenchida”.
Sobre o que as vítimas passavam nos campos de concentração de Xinjiang,
o Alto Comissariado enumerou “tortura e outras formas de tratamento ou
punição cruel, desumana e degradante”, incluindo violência na “cadeira
tigre”, “fome constante”, “vigilância constante”, “violência sexual” com
“violações a terem lugar fora dos dormitórios”, “proibição de falar a sua
própria língua”, “doutrinação política” coerciva e a permanente prática de
“autocrítica”. Uma vítima citada pelos relatores da ONU revelou: “Não me
disseram porque estava eu lá nem por quanto tempo iria car. Mandaram-
me confessar um crime, mas eu não sabia o que devia confessar”. Entre as
violações dos direitos humanos praticadas pelas autoridades chinesas, o Alto
Comissariado designou a “privação arbitrária e em larga escala da liberdade”
das vítimas, as “restrições arbitrárias e discriminatórias dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais” das pessoas pertencentes a
minorias étnicas e as “violações dos direitos reprodutivos através da
imposição coerciva e discriminatória de planeamento familiar e de políticas
de controlo da natalidade”, incluindo “mulheres que disseram terem sido
forçadas a abortar ou forçadas a inserir DIU” e medicação coerciva “sem
consentimento informado”.
O relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos
condenou ainda a campanha Tornar-se Família, que envolve um milhão de
quadros do Partido Comunista Chinês instalados durante uma semana por
mês nas casas dos elementos das minorias étnicas contra a vontade destes,
chamando a atenção para “as implicações óbvias e signi cativas para a
privacidade da vida familiar” e para o inerente “assédio sexual”. O
documento condenou igualmente o trabalho “de natureza ou efeito
discriminatório e envolvendo elementos de coerção” e o facto de as
detenções estarem “frequentemente envolvidas em segredo”, o que “constitui
uma forma de tratamento cruel e desumano para a família mais próxima”.
Outras condenações por violação dos direitos humanos envolveram as
“intimidações e represálias contra as vítimas e os seus familiares”, o “regresso
forçado de uigures à China” e os “desaparecimentos forçados”. Estas práticas
foram dadas pelo organismo da ONU como demonstradas.
Já agora, e embora o Alto Comissariado não o tenha mencionado, há
também indícios e testemunhos de que prisioneiros estão a ser mortos para
alimentar o trá co de órgãos, negócio em que a China é o líder mundial.
Pequim anunciou que pôs m a essa prática em 2015, mas as organizações
de defesa dos direitos humanos e grupos perseguidos pelas autoridades,
incluindo membros do Falun Gong, disseram que a extração de órgãos de
prisioneiros vivos para efeitos de trá co continua. Sayragul deu conta da
suspeita da mesma prática em prisioneiros uigures jovens, embora nada
tenha testemunhado diretamente. No entanto, a Universidade Nacional da
Austrália fez um estudo publicado em 2022 no American Journal of
Transplantation a revelar ter de facto detetado provas de extração de órgãos
em prisioneiros vivos na China. Pequim negou.
Tudo o que está descrito neste romance sobre o Estado policial que
o Partido Comunista Chinês impôs em toda a China, não apenas em
Xinjiang, é baseado em factos reais. O Documento 9 mencionado no
romance, formalmente designado “Comunicado sobre o Atual Estado na
Esfera Ideológica”, existe mesmo. Trata-se de um documento interno do
Partido Comunista Chinês a alertar contra a “democracia constitucional
ocidental” e os seus perigosos “conceitos de classes capitalista”,
designadamente “a separação de poderes, o sistema multipartidário, as
eleições gerais, o sistema judiciário independente” e “liberdade ocidental,
democracia e direitos humanos”, e ainda “liberdade de imprensa”, “libertação
de ‘prisioneiros políticos’” e “a ideia de sociedade civil”. O documento
considera estes valores como sendo uma “tentativa de minar a atual
liderança e o socialismo com características chinesas”. O importante no
comunismo, sustenta o Partido, é a imprensa ter “uni cação do
pensamento” com o Partido. Vale a pena repetir a expressão, para que nela
meditemos com a devida profundidade. “Uni cação do pensamento.”
Quanto ao tema da vigilância omnipresente e do Sistema de Crédito
Social, já o tinha abordado no meu romance Imortal, uma das anteriores
aventuras de Tomás Noronha, mas pareceu-me que a situação tem uma tal
gravidade que requeria uma nova abordagem, esta muito especí ca. A forma
como o Partido Comunista Chinês espalhou centenas de milhões de
câmaras de videovigilância pelo país e desenvolveu algoritmos para
identi car cada pessoa é verdadeira, tal como é verdadeiro que esses
algoritmos são capazes de reconhecer uma pessoa de cara tapada pela
maneira como caminha e que esses algoritmos alegadamente conseguem até
perceber as ideias políticas de uma pessoa só com base em pormenores
comportamentais.
Os sucessivos episódios da história de Madina são baseados em
acontecimentos realmente ocorridos. O detalhe de lhe terem instalado uma
câmara de videovigilância e um microfone na sala de estar foi reportado
pela sobrevivente Maysem, o mesmo acontecendo com o pormenor da
obrigação de pintar de vermelho o apartamento azul. As comissões do
bairro existem na China e fazem parte do Estado policial ali implementado,
sendo que o Partido Comunista Chinês deu efetivamente a essas comissões
os poderes que este romance lhes atribui.
Todas as tecnologias de vigilância em massa implementadas na China em
geral e em Xinjiang em particular foram desenvolvidas e aplicadas pelas
mais prestigiadas tecnológicas chinesas, todas elas suspeitas de serem
extensões do Partido Comunista Chinês. Entre as acusadas estão a
Hikvision, a iFlyTek, a SenseTime, a Megvii, a Dahua e a Huawei. Todas
estas empresas tornaram-se alvos dos Estados Unidos pelo papel que
desempenharam no sistema concentracionário em Xinjiang. Um diplomata
americano que se tornou vice-presidente da Huawei em Washington disse
ter visto um slide interno da Huawei que dizia: “para o auditório doméstico,
a Huawei é uma empresa chinesa que apoia o Partido Comunista da China;
para o auditório internacional, a Huawei é uma empresa independente que
segue as práticas empresariais internacionalmente aceites”. No que diz
respeito à dissimulação, está tudo dito.
Também algumas empresas tecnológicas ocidentais contribuíram,
conscientes ou não dos verdadeiros objetivos do projeto, para o sistema
chinês de vigilância orwelliana, como a Nvidia e a Intel, que construíram os
poderosos computadores de vigilância usados no Centro de Computação de
Ürümqi, ou a Qualcomm, que forneceu os semicondutores à Megvii, ou a
In nova, que colaborou com a chinesa SenseTime para fornecer as
tecnologias de vigilância usadas em Xinjiang, ou a Promega, que vendeu
equipamento avançado para, em Xinjiang, se criarem registos a partir de
pequenos traços de ADN.
A informação relativa às marcas globais que bene ciam direta ou
indiretamente do trabalho forçado uigure foi obtida em várias fontes. A
principal foi o Instituto de Política Estratégica da Austrália, que emitiu em
2020 um relatório a identi car 27 fábricas em nove províncias chinesas onde
uigures eram forçados a trabalhar. Essas fábricas encontravam-se nas
cadeias de abastecimento de pelo menos 82 marcas, incluindo a Nike, a
Samsung, a Huawei, a Sony, a Apple, a BMW, a Volkswagen, a Lacoste e a
Nokia. Depois de o relatório sair, várias destas marcas negaram ter contratos
diretos ou indiretos com fabricantes de Xinjiang, como é o caso da Adidas e
da Puma, e outras deram ordens para pôr m às relações com essas fábricas
e anunciaram medidas para impedir que situações dessas se repetissem. O
problema é garantir que os fornecedores chineses, mesmo não sendo de
Xinjiang, não usem algodão oriundo de Xinjiang. Pesquisadores da
Agroisolab e da Universidade Hochschule Niederrhein zeram uma análise
isotópica aos tecidos da Adidas e da Puma, e ainda de outras marcas de
roupas, e de facto encontraram traços de algodão de Xinjiang.
Confrontadas, as marcas insistiram que não usam algodão de Xinjiang.
Convém, por outro lado, chamar a atenção para o facto de que os campos
de concentração de Xinjiang constituem apenas uma fração de todo o
sistema concentracionário comunista chinês. Os primeiros laogai abriram
na década de 1930, inspirados nos gulag soviéticos, e transformaram-se
numa enorme rede de campos de concentração que se espalhou por toda a
China. Aqueles que o Partido Comunista Chinês designou como seus
inimigos, sobretudo opositores políticos e proprietários de terras, foram aí
fechados e obrigados a trabalhar sem remuneração para produzir bens para
as forças militares do Partido. Ou seja, foram feitos escravos. Em 1952, já
existiam no país seiscentas quintas laogai e duzentas minas laogai. Cinco
anos depois, Mao Tsé-tung reforçou o contingente de vítimas do sistema
concentracionário com milhares de intelectuais. Um alto quadro do Partido
Comunista Chinês, Liu Shaoqi, revelou em 1951 que havia milhões de
reclusos encerrados nos laogai da China.
Os reclusos eram, em geral, pessoas arrebanhadas nas sucessivas purgas,
designadas por campanhas. Houve a campanha dos três anti, a campanha
dos cinco anti, a campanha da reforma do pensamento, a campanha das
cinco ores, a campanha das cem ores, a campanha para a eliminação dos
contrarrevolucionários escondidos, a campanha antidireitista, etc. Uma
delas, a das coletivizações para dar o Grande Salto em Frente, degenerou
numa fome de proporções bíblicas, fonte de imenso sofrimento e até de
múltiplos atos de canibalismo. O episódio, narrado neste romance, das
famílias que trocavam crianças para comer é verdadeiro e foi detalhado por
Wei Jingsheng. Essa fome foi também historiada a partir de testemunhos e
de documentos por um dos seus sobreviventes, Yang Jishen, cujos cálculos
apontam para um total de 36 milhões de pessoas mortas por falta de
comida. Em termos absolutos, foi a maior fome da história da humanidade.
As sucessivas campanhas do Partido contra inimigos ou supostos inimigos
foram abastecendo constantemente os laogai de escravos, todos eles forçados
a incontáveis sessões de autocrítica, admissão de culpa e arrependimento e
obrigados a delatar outros prisioneiros. A taxa de mortalidade nos campos
de concentração comunistas chineses variava entre os cinco e os cinquenta
por cento ao ano, havendo episódios de comandantes que enterraram vivos
mais de mil reclusos. Um prisioneiro ocidental, Jean Pasqualini, revelou que
três quartos dos elementos da sua brigada de trabalho morreram ou estavam
a morrer em agosto de 1960. Os cálculos apontam para vinte milhões de
mortos nos laogai.
Após a morte de Mao, mais campos de concentração foram abertos para
internar o que o Partido Comunista Chinês designava como “inimigos do
povo”, uma expressão su cientemente vaga para incluir quem o Partido
entendesse. Muito importante, os investigadores observaram a integração do
sistema concentracionário chinês no aparelho produtivo do país e notaram
que os períodos de maior crescimento económico da China parecem estar
ligados ao aumento do trabalho escravo nos laogai. Só entre 1958 e 1980, a
produção industrial nestes campos aumentou sete vezes de valor, graças ao
labor dos escravos. Em 2013, o antigo gestor de um laogai gabou-se mesmo
de que o seu campo de concentração, o campo de Masanjia, gerava quase
quinze milhões de euros por ano.
A detenção de pessoas por toda a China por motivos absurdos parece
indiciar que as detenções têm como verdadeiro propósito preencher quotas
de pessoal para a produção, de resto uma prática já existente nos gulag
soviéticos. A Fundação de Pesquisa dos Laogai, criada nos Estados Unidos
em 1992 pelo sobrevivente Harry Wu, identi cou um total de 1400 campos
de concentração a operar na China, muitos deles disfarçados com nomes
inócuos como “centro de desintoxicação de drogas” e “centro de detenção
pré-julgamento”. Encontravam-se aí sete categorias de reclusos e escravos:
prisioneiros políticos, crentes em religiões proibidas, minorias étnicas,
pessoas que faziam petições, migrantes, delinquentes juvenis e criminosos
adultos. Em 2013, o Partido Comunista Chinês anunciou que iria pôr m
aos laogai, promessa que não só não cumpriu como inverteu, aumentando
de novo o complexo de campos de concentração no país. Em suma, e apesar
de a sua tragédia ocupar um lugar central neste romance, os uigures estão
longe de serem as únicas vítimas do sistema concentracionário do Partido –
e do respetivo Estado de vigilância total.
Com tudo isto, será o regime do Partido Comunista Chinês um
verdadeiro regime socialista? A dúvida é pertinente e importante, razão pela
qual lhe vamos dedicar alguma atenção, apesar de isso nos obrigar a abordar
determinadas questões doutrinárias que poderão soar bizantinas. Ninguém
duvidará, presumo, que o Partido abraçou o capitalismo. Abraçou-o de tal
maneira, aliás, que muitos pensadores, políticos e empresários do Ocidente,
partindo do princípio de que o capitalismo é rejeitado pelo socialismo, até
acreditam que o Partido Comunista Chinês só é comunista de nome. Tal
conclusão é perfeitamente compreensível tendo em conta o capitalismo
selvagem que se pratica no país. Porém, não resiste a uma análise mais na.
Em primeiro lugar, Marx e Engels estabeleceram por várias vezes que o
verdadeiro socialismo só emerge no quadro do capitalismo avançado. O
próprio Lenine o a rmou meses antes de desencadear a revolução do
proletariado na Rússia, um país feudal que não tinha capitalismo nem
proletariado, assim violando frontalmente uma das premissas centrais da
doutrina marxista. Ora, também a China não tinha uma economia de
capitalismo avançado quando o Partido subiu ao poder. Pelo contrário, era
igualmente um país feudal – e assim na sua essência permaneceu até Deng
Xiaoping abrir a porta ao capitalismo.
Portanto, o facto de o Partido Comunista Chinês abraçar o capitalismo
não impede que continue a ser um partido comunista. De resto, e depois da
catástrofe social e económica que foi a aplicação do comunismo puro e duro
na Rússia, o próprio Lenine recuou em 1921 para a Nova Política
Económica e abriu a economia russa à iniciativa privada, ao investimento
estrangeiro e ao que os comunistas designam “o grande capital”. O Vozhd, a
expressão russa para o Chefe, defendeu então “o capitalista” que iria
“conduzir o seu negócio segundo linhas capitalistas, em busca do lucro”, e
chegou ao ponto de anunciar a necessidade de “pagar uma remuneração
muito alta pelos serviços dos melhores especialistas burgueses” de modo a
“atrair” tais especialistas com “salários extremamente elevados”. Apesar de
abraçarem abertamente políticas capitalistas, como vemos, Lenine e o seu
Partido Bolchevique nunca deixaram de ser considerados comunistas. Por
que razão o critério deveria ser diferente com o Partido Comunista Chinês?
Em segundo lugar, coloca-se a questão de determinar o que é efetivamente
o socialismo. Os bolcheviques reivindicaram-se os verdadeiros socialistas e
acusaram os socialistas liberais de não serem realmente socialistas, enquanto
os socialistas liberais se reivindicaram eles próprios os verdadeiros
socialistas e acusaram os bolcheviques de não serem realmente socialistas.
No meio dessa troca de reivindicações e acusações apareceram os fascistas a
acusar os bolcheviques e os socialistas liberais de não serem verdadeiros
socialistas e a reivindicar para o fascismo “o único socialismo possível” e o
“socialismo viável”, algo que os bolcheviques e os socialistas liberais, por seu
turno, negaram em absoluto. E, já agora, também os anarquistas
reivindicaram para si o estatuto de socialismo genuíno, acusando os
restantes movimentos de, com a sua defesa do Estado “opressor”, não serem
verdadeiramente socialistas. Isto já para não falar nas trocas de acusações
entre estalinistas, trotskistas, kruschevianos, titistas, maoístas,
enverhoxhanos, kimilsunguistas, polpotistas e uma miríade de outros
movimentos, tendências e regimes que se reclamavam e reclamam os
“verdadeiros” socialistas.
Não estamos, pois, em condições de determinar qual é o verdadeiro
socialismo, pois cada “crente” e cada “corrente” se proclama o socialismo
genuíno e acusa os rivais de serem falsos socialistas ou de nem sequer serem
socialistas. A única coisa que podemos fazer é constatar que todas estas
correntes, de facto, se reivindicaram do “verdadeiro” socialismo.
Ora, também o Partido Comunista Chinês se apresenta hoje como o
“verdadeiro” intérprete do socialismo e nunca nenhum dos seus dirigentes
alguma vez renegou a natureza comunista do Partido e do seu regime. Pelo
contrário, os líderes do Partido sempre o rea rmaram. Várias frases
colocadas na boca de personagens deste romance são na verdade cópias ipsis
verbis de declarações de Xi Jinping, o Lingxiu que ordenou a construção dos
campos de concentração para aí encerrar as minorias étnicas de Xinjiang,
sobretudo os uigures.
Assim, o Chefe defendeu sucessivas vezes a “revolução socialista”, disse
que o Partido “estabeleceu o socialismo como o nosso sistema básico” e está
em “processo de construção socialista”. Sustentou que “apenas o socialismo
pode salvar a China”, embora o país esteja ainda na “etapa primária do
socialismo” e seja necessária uma “modernização socialista”. Xi Jinping
sublinhou que “temos de permanecer profundamente conscientes da
necessidade de manter a integridade política” e “temos de con ar no
caminho, teoria, sistema e cultura do socialismo com características
chinesas”, até porque “o marxismo funciona”. Depois de sublinhar que “o
marxismo é a ideologia fundamental que nos guia e sobre a qual o nosso
Partido e o país se fundam”, apelou aos quadros do Partido para
acreditarem, mais do que nunca, nos “valores socialistas fundamentais”,
enfatizando a “superioridade do socialismo sobre o capitalismo”. Para além
de estar sempre a invocar os pensamentos de Marx, Engels, Mao, Lenine e
Estaline, Xi Jinping exigiu “pureza ideológica”, preconizou a “luta
revolucionária” e disse que “o ideal nobre do comunismo e o ideal comum
do socialismo com características chinesas são o pilar moral e a alma
política dos comunistas chineses e constituem o fundamento ideológico da
coesão e da unidade do Partido”.
O Partido Comunista Chinês emitiu mesmo recomendações especí cas
contra “a democracia constitucional ocidental”, contestando até os “valores
universais dos direitos do homem” intrínsecos aos regimes liberais, tendo o
Lingxiu avisado que “o desaparecimento do capitalismo e a vitória nal do
socialismo vão requerer um longo processo histórico antes de chegar ao seu
termo”. Como é bom de ver, o líder desse processo histórico é, na opinião do
Partido, o próprio Partido.
Portanto, perante a dúvida de determinar se o Partido Comunista Chinês
é ou não um partido comunista, a resposta só pode ser inequivocamente
a rmativa. O Partido continua a ser comunista e a apontar o comunismo
como o seu objetivo último. “Vamos usar o marxismo para observar,
compreender e tomar as rédeas das tendências dos tempos e continuaremos
a desenvolver o marxismo na China contemporânea do século ”,
assegurou o Chefe.
Ora, como a China abraçou também o nacionalismo, ao ponto de Mao
Tsé-tung o ter eleito como o primeiro dos três Princípios do Povo, isso
signi ca que estamos perante um Partido que preconiza a junção de duas
ideias, o nacionalismo e o comunismo, sob a tutela de um regime ditatorial.
Em suma, a China é governada por uma ditadura de socialismo nacionalista.
“Amem a pátria, cultivem e pratiquem conscientemente os valores socialistas
fundamentais”, preconizou Xi Jinping, numa declaração em que colocou na
mesma frase o ideal nacionalista, “amem a pátria”, e o ideal socialista,
“valores socialistas fundamentais”. A exaltação nacional-comunista do
Partido Comunista Chinês tornou-se aliás tão extremada que um hospital
da Universidade de Pequim iniciou até uma campanha de recolha para o seu
banco de esperma pondo como requisito que os dadores fossem pessoas que
“amem a pátria socialista e abracem a liderança do Partido Comunista”. Ou
seja, os genes ideais para procriação, na visão nacional-comunista chinesa,
são os nacionalistas e socialistas. Os nacionais-socialistas alemães não
diriam melhor.
Quanto ao projeto do Partido Comunista Chinês de transformar a China
na única potência hegemónica do mundo, impondo ao resto do planeta a
sua visão totalitária e censória da sociedade, o que este romance apresenta
são as descobertas que estão a ser feitas sobre a grande estratégia secreta do
Partido. É certo que o Protocolo Dragão Vermelho não existe enquanto
documento único e muito menos com esse nome. No entanto, o conteúdo
do dossiê ccional apresentado nesta obra corresponde ao que consta
efetivamente em múltiplos documentos do Partido Comunista Chinês, uns
públicos e outros secretos, sendo que nenhum deles foi traduzido para
qualquer língua ocidental e que apenas podem ser encontrados em chinês.
Os documentos secretos são aliás os mais importantes, pois aí as verdadeiras
ideias do Partido são apresentadas naturalmente sem ltros nem
subterfúgios retóricos.
Houve, no entanto, uma falha nas cautelas de Pequim. Trata-se do caso de
uma das obras-chave chinesas a expor a estratégia do Partido Comunista
Chinês para derrotar o Ocidente, um livro assinado por dois coronéis no
ativo das forças militares do Partido, o Exército de Libertação Popular. Por
motivos que não são claros, foi autorizada a tradução dessa obra para inglês
com o título Unrestricted Warfare. O problema é que o livro foi lido pelos
analistas ocidentais e provocou grande alarme, uma vez que expunha um
verdadeiro plano de agressão ao Ocidente. Ao aperceber-se do erro que fora
a tradução da obra, o Partido reagiu e imediatamente retirou do mercado
todos os exemplares do livro, alegando que o seu conteúdo não representava
o pensamento o cial. Isto apesar de Unrestricted Warfare ter sido publicado
pela editora do Exército de Libertação Popular e de os dois autores terem
sido promovidos após a publicação da obra. Para além disso, os académicos
e empresários ocidentais “amigos da China”, os famosos zhungguo panguiao,
apareceram de imediato a a rmar em coro que a obra não re etia o
pensamento do Partido. O erro, no entanto, não pôde ser corrigido por
inteiro, uma vez que o livro já havia sido lido e as devidas conclusões tiradas
pelos serviços de informações ocidentais, os quais, aliás, possuem de outras
fontes mais dados sobre os verdadeiros desígnios expansionistas do Partido
Comunista Chinês.
Uma última informação constante do Protocolo Dragão Vermelho
ccional, a de que o plano do Partido inclui a neutralização da Europa logo
que se passe o meio do século , foi revelada pela denunciante Sayragul
Sauytbay. Em bom rigor, a referência que ela fez foi: “2035-2055: Após a
realização do sonho da China ocorrerá a ocupação da Europa.” Esta ex-
militante do Partido Comunista Chinês e fugitiva de Xinjiang revelou ter
lido essa informação em textos carimbados como “documentos
con denciais de Pequim”. Devo dizer que considero a expressão “ocupação”
tão extraordinária que é difícil de acreditar, pelo que no romance a suavizei
para “neutralização”, embora não seja impossível que o Partido acredite
mesmo na possibilidade de ocupar a Europa daqui a algumas décadas.
A crença de que as democracias liberais estão em decadência, partilhada
desde Lenine a Putin, de Mussolini a Xi Jinping, é típica das ditaduras e
autocracias e tem-se revelado persistentemente errónea, como aliás a Rússia
descobriu à sua custa quando invadiu a Ucrânia e viu o Ocidente unir-se em
reação, mas continua a ser partilhada por esses regimes. Tal crença, aliada às
constantes fragilidades da construção europeia e ao seu massivo
desinvestimento na defesa, credibiliza a hipótese de o Partido Comunista
Chinês acreditar que poderá algures no futuro controlar ou mesmo ocupar a
Europa.
Em apoio dessa possibilidade existem vários fatores. O momento indicado
por Sayragul para a consumação dessa ocupação, que segundo ela está
planeado para após a concretização do chamado “sonho da China” a meio
do século , encontra-se em linha com a crença expressa pelo próprio
Partido Comunista Chinês de que se tornará a superpotência hegemónica
do planeta a meio do século – projeto conhecido justamente como “sonho
da China”. É certo que os dirigentes do Partido são sempre muito cautelosos
quando falam em público, pelas razões de dissimulação abundantemente
explicadas neste romance, mas este dado trazido para o exterior pela
dissidente do Partido é consonante com a a rmação feita em 2017 pelo
Lingxiu, Xi Jinping, de que vinham aí “grandes mudanças que não se viam
em um século”, frase que pelas suas ressonâncias históricas foi interpretada
como o anúncio de que, ao m de um século, se iria concretizar o “sonho da
China” e o país regressaria ao estatuto de ba, a potência hegemónica do
planeta. A contagem do século em causa começaria em 1949, o ano em que
o Partido Comunista Chinês subiu ao poder, pelo que os cem anos se
completam em 2049.
Ora, o próprio Xi Jinping declarou repetidamente em 2017 que “até
meados do século o Exército de Libertação Popular será um exército de
classe mundial”. Além disso, o e Wall Street Journal noticiou em primeira
página que o Lingxiu estabeleceu explicitamente 2049 como sendo o ano em
que se realizará o qiang zhongguo meng, ou o “sonho da China forte”. De
resto, há cálculos que apontam para a possibilidade de nessa altura a
economia chinesa ser três vezes maior do que a americana, com todas as
consequências que daí advirão a todos os níveis, incluindo o militar, o
geoeconómico e o geopolítico. Xi Jinping anunciou abertamente que o
zhongguo fang’an, ou a “solução da China”, constitui “uma nova opção para
os outros países”, designadamente a “perspetiva chinesa para resolver os
problemas que afetam a humanidade”, uma forma eufemística de dizer que o
modelo ditatorial chinês se destina a exportação e ir-se-á tornar dominante
“para resolver os problemas que afetam a humanidade”. O sinólogo
americano Rush Doshi foi claro a este propósito: “o objetivo nal de Pequim
é substituir a ordem global liderada pelos Estados Unidos de maneira a
tornar-se a potência dominante do mundo até 2049”.
A possibilidade de o Partido Comunista Chinês alimentar planos de
expansão mundial poderá parecer hoje extravagante e altamente fantasiosa,
mas de facto não é tão absurda nem improvável quanto à primeira vista
possa parecer. Em primeiro lugar, um tal projeto está em consonância com a
natureza expansionista do comunismo. Convém nunca esquecer que, de
Marx a Estaline, passando por Lenine e outros líderes comunistas de muitos
países, o projeto de uma “revolução mundial” nunca foi escondido. O
Comintern foi, aliás, criado em 1919 por Moscovo justamente com esse
objetivo explícito.
Por outro lado, é uma realidade que o expansionismo se mostra também
uma tendência dos países poderosos. A China está a multiplicar fortemente
as suas despesas militares e construiu e militarizou ilhas arti ciais no mar
do Sul da China, coisa que tinha assegurado que nunca iria fazer, além de
que estabeleceu bases navais em vários países para projetar a sua força
militar à escala global. “Um país forte tem de ter umas forças armadas
fortes”, declarou Xi Jinping. Além disso, a retórica diplomática do Partido
para com os outros países tornou-se muito agressiva. O ministro dos
Negócios Estrangeiros chinês, Yang Jiechi, avisou ameaçadoramente numa
reunião da ASEAN: “a China é um país grande e os outros países são
pequenos – e isso é um facto”. E o embaixador chinês na Suécia, Gui
Congyou, agastado por este país escandinavo ter tido a desfaçatez de dar um
prémio a um cidadão sueco raptado pela China, avisou o governo de
Estocolmo: “para os amigos temos o melhor vinho, mas para os nossos
inimigos temos caçadeiras”. Em suma, à medida que vai ganhando músculo,
o Partido Comunista Chinês está cada vez mais também a mostrar os
dentes.
Por m, e conforme notou Hannah Arendt nos seus estudos sobre o
totalitarismo, o expansionismo constitui uma parte intrínseca da natureza
dos regimes totalitários. O Partido Comunista Chinês, com a sua vigilância
paranoica orwelliana que o levou até a desenvolver algoritmos para “ler” o
pensamento político dos seus cidadãos, criou sem dúvida um regime
totalitário – mais invasivo ainda do que os regimes nacional-socialista da
Alemanha e comunistas da União Soviética e da RDA, dado o seu amplo
recurso às modernas tecnologias avançadas de vigilância e controlo para se
imiscuir nas esferas mais privadas dos cidadãos.
Ora, as ideologias totalitárias tendem a apresentar a realidade como
consonante com a sua visão ideológica. Quando há contradição entre a
ideologia e a realidade, estes regimes consideram que não é a ideologia que
tem de se ajustar à realidade – é a realidade que tem de se ajustar à
ideologia. Mas como não é realmente possível mudar a realidade, pois ela é
mais forte do que a ideologia, o que se tenta mudar é a sua perceção. Tal
compele os regimes totalitários a eliminarem o conhecimento dos aspetos da
realidade que contradigam a ideologia. Ou seja, mente-se, censura-se e
inventa-se para que a realidade pareça o que não é. A falsidade torna-se
imprescindível para que estes regimes se eternizem no poder, pois, como tão
bem notou George Orwell, quem controla o passado controla o presente e
quem controla o presente controla o futuro.
Este tipo de comportamento é visível nas coisas mais simples. Por
exemplo, uma vez que o socialismo soviético era apresentado pelo respetivo
regime como o mais perfeito de todos, as escolas da União Soviética
ensinaram durante algum tempo aos alunos que Moscovo era o único sítio
do mundo onde existia metro. O conhecimento da existência de redes de
metro nos países capitalistas foi censurado, pois contradizia a ideologia.
Naturalmente, quando se trata de coisas mais graves, como o envolvimento
do regime em grandes mortandades, este mecanismo censório torna-se
absolutamente indispensável. Assim, e uma vez que o comunismo chinês se
reivindica o melhor de todos os sistemas, o Partido determinou que na
passagem da década de 1950 para a de 1960 nunca houve nenhuma grande
fome na China e que em 1989 jamais ocorreu qualquer massacre em
Tiananmen. O conhecimento de tais acontecimentos foi censurado e
eliminado da memória coletiva, transformando a China no que alguns
sinólogos apelidam a República Popular da Amnésia. Apagam-se os factos
incómodos para alinhar a perceção da realidade com a ideologia.
O problema é que a tentativa de tornar a perceção da realidade consonante
com a ideologia totalitária, para que funcione no tempo, impulsiona
forçosamente essa ideologia para a expansão total. “O verdadeiro perigo
reside no facto de que o mundo arti cial, virado ao contrário, dos regimes
totalitários não é capaz de sobreviver a longo prazo se o resto do mundo
exterior não adotar um sistema análogo”, observou Arendt, para quem só a
conquista do mundo exterior permitirá que “o conjunto da realidade se
torne um todo coerente”. Ou seja, a única maneira de o Partido Comunista
Chinês garantir que o mundo exterior não contradiz a realidade ideológica
do Partido, “contaminando” a população com o “vírus” do conhecimento da
grande fome e do massacre de Tiananmen, o que contraditaria frontalmente
a ideologia do Partido e assim a minaria, é impor o seu modelo a todo o
planeta.
Por conseguinte, tal necessidade compele-o ao expansionismo, uma vez
que um regime totalitário nunca se satisfaz com um mundo que não esteja
conforme a sua visão e cuja narrativa não pode controlar. Para efeitos de
manutenção no poder, é crucial que o regime totalitário impeça narrativas
contraditórias fora de portas de modo a que não haja contágios para dentro
do país, e isso só se faz através da expansão. Conquistar o mundo para
impor a ideologia totalitária está, pois, na natureza do totalitarismo, caso
contrário o totalitarismo não seria total, apenas parcial, estando sempre
sujeito à ameaça de ver a sua mentira desmentida. Para que seja realmente
total, a ideologia totalitária tem de se estender à totalidade do mundo. Ou
seja, a expansão encontra-se inscrita na própria natureza do regime
totalitário. Como concluiu Arendt, “é com esse m, designadamente
assegurar a coerência de uma ordem mentirosa do mundo, e não por amor
ao poder ou por qualquer outro pecado humanamente compreensível, que o
totalitarismo tem necessidade de uma dominação total e de um regime que
se estenda a todo o planeta”.
Para quem tenha dúvidas sobre os desígnios expansionistas do Partido
Comunista Chinês e as intenções agressivas para com as democracias
liberais do Ocidente, basta observar com atenção todos os atos – os atos, não
as palavras propagandísticas para consumo externo – do Partido Comunista
Chinês ao longo dos anos. Em todas as situações, e enquanto apelava em
público à harmonia, à paz e à estabilidade, o Partido posicionou-se sempre
contra qualquer posição das democracias ocidentais. Uma coisa dessas não
devia, na verdade, surpreender ninguém. Como observou Sayragul
Sauytbay, que sofreu na pele o poder repressor da ditadura totalitária
comunista na China, o que está em funcionamento no país é um verdadeiro
“sistema fascista”.
Atente-se, por exemplo, na duplicidade do Partido Comunista Chinês na
questão da invasão russa da Ucrânia em 2022, para não ter de recuar muito.
Perante o mundo, Pequim apresentou-se como uma pomba. “Sempre
defendemos a manutenção da paz e opusemo-nos à guerra”, declarou o seu
ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, membro de um partido que
matou dezenas de milhões de pessoas. Todavia, a China não só se recusou a
condenar a invasão russa, assim aprovando implicitamente a guerra
desencadeada pela Rússia na Ucrânia, como deu ajuda efetiva à Rússia e
chegou ao ponto de só responsabilizar o Ocidente pela invasão russa e de
insinuar que os massacres perpetrados pelas forças russas na Ucrânia
constituíam invenções do Ocidente.
Muito signi cativo, nas redes sociais os censores do Partido apagavam
sistematicamente os textos dos internautas chineses a favor da Ucrânia e do
Ocidente e multiplicavam os textos a favor da Rússia, incluindo os que
apelavam aos russos para que usassem as suas armas nucleares. Alguém
pensa seriamente que esta atuação dos censores do Partido Comunista
Chinês era feita ao arrepio das diretivas do Partido? A dissimulação do
Partido Comunista Chinês atingiu proporções tais que um grupo de
dissidentes anónimos chineses criou uma plataforma chamada e Great
Translation Movement, destinada a traduzir para inglês, espanhol, coreano,
japonês e outras línguas as mensagens radicais pró-russas e antiocidentais
que o Partido geria nas redes sociais chinesas, para que o Ocidente
compreendesse o que se está realmente a passar na mente dos dirigentes do
Partido.
É importante entender que um regime ditatorial e altamente censório
como o do Partido Comunista Chinês, cuja ação assenta na dissimulação e
para quem as palavras não servem para revelar a verdade, mas para a
esconder ou manipular, não exprime os seus verdadeiros posicionamentos
pelo que diz, mas pelo que permite, encoraja ou proíbe que se diga. Ao
sistematicamente validar os comentários antiocidentais e censurar os pró-
ocidentais, o Partido está de facto a estabelecer a sua verdadeira posição.
Uma referência ainda às tecnologias militares invocadas na intriga deste
romance. Os exosqueletos como o que foi usado por Tomás Noronha
existem realmente. De resto, esta tecnologia militar já tinha aparecido no
meu anterior romance Imortal. Quanto a Colossus, a sua existência é a
consequência militar lógica do desenvolvimento de interfaces entre a mente
humana e a tecnologia robótica. O Laboratório de Física Aplicada da
Universidade Johns Hopkins, por exemplo, demonstrou que através de
implantes cerebrais é possível uma máquina captar sinais neurais com
instruções dadas por seres humanos. Graças a essa tecnologia, estão a ser
desenvolvidos braços metálicos que obedecem às ordens cerebrais de
amputados. Já se conseguiu mesmo gerar sensações dessa forma. Esta
ligação cérebro humano-máquina tem imensas implicações militares, como
é bom de ver. Uma demonstração da DARPA envolveu um piloto a controlar
simultaneamente três drones graças a um simples implante cerebral. No
futuro será possível um militar pilotar à distância um caça não tripulado
durante uma operação, até porque uma tetraplégica com este tipo de
implantes foi já capaz de pilotar um F-35 num simulador graças unicamente
ao poder do pensamento. Este é, no fundo, o princípio operacional por
detrás do conceito de Colossus.
A última palavra vai para os cidadãos da China. Durante a minha
juventude vivi alguns anos em Macau e aprendi aí a apreciar os chineses, um
povo trabalhador e com imensas qualidades. A sua cortesia, pragmatismo,
cultura, sentido de equilíbrio, ética e loso a são dignos de profunda
admiração e respeito. Testemunhei imensas vezes as enormes qualidades
deste povo para ser capaz de as ignorar. Este não é, por isso, um romance
sobre a China e os chineses, mas sobre o Partido Comunista Chinês e a sua
visão de ditadura de socialismo nacionalista – ou seja, de fascismo – que
tanto sofrimento produz dentro das suas fronteiras e que começou a tentar
exportar para o resto do mundo. Para se proteger, o Partido Comunista
Chinês usa amiúde o expediente de pretender que qualquer crítica a si
constitui uma crítica à China e aos chineses. O truque é velho. O Partido
não é a China, o Partido nem sequer foi eleito pelos chineses. Aliás, se
houvessem eleições livres na China, provavelmente seria derrubado.
A existência de uma ditadura que reprime os mais elementares direitos
humanos e ignora a vontade popular apesar de dela se proclamar
representante, que impede a justiça independente e o equilíbrio e separação
de poderes, que proíbe a liberdade de expressão e de associação, que oprime
as pessoas pelo que pensam ou pelo que são social ou etnicamente, que
pratica o princípio da culpa por associação, que instaurou uma sociedade
orwelliana de vigilância e delação com violação da esfera íntima dos
cidadãos e com um vasto sistema concentracionário onde existem milhões
de internados e um historial de milhões e milhões de mortos, é algo que
simplesmente, e em consciência, não podemos deixar passar em claro, sob
pena de, por omissão, nos tornarmos corresponsáveis e cúmplices
silenciosos.
Expor e denunciar as violações dos direitos humanos por parte do Partido
Comunista Chinês não é criticar a China. É defendê-la. Os chineses não são
algozes. São vítimas.
M
sobrevivente dos campos de Xinjiang
P L P
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