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a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros
(brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0” (2019, p. 49).
Segundo pesquisas apresentadas por Bueno; Marques; Pacheco e Nascimento, em
artigo no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, “a cor da pele da vítima, quando
negra, fez aumentar em 8% a probabilidade de vitimização por homicídio” (2019, p. 62). Os
autores destacam ainda que “o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade
Racial mostrou que a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é, em
média, 2,5 vezes superior à de um jovem branco” (2019, p. 62). O Atlas aponta, nessa direção,
que “analisando apenas a variação no último ano, enquanto a taxa de mortes de não negros
apresentou relativa estabilidade, com redução de 0,3%, a de negros cresceu 7,2%” (2019, p.
49).
De todo esse quadro de violência nos interessa aqui olhar com atenção para a
participação do Estado, ou seja, a violência relacionada às intervenções policiais. Segundo
levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado no Anuário Brasileiro de
Segurança Pública de 2019, “11 a cada 100 mortes violentas intencionais foram provocadas
pelas Polícias”, o que significa que 17 pessoas foram mortas por dia, totalizando 6.220
vítimas em 2018 (2019, p. 8).
Bueno; Marques; Pacheco e Nascimento também mostram o quanto a polícia tem
matado jovens. Isto é, a média de idade dos jovens mortos pela polícia é menor do que a
média de idade dos mortos por homicídio comum.
Enquanto jovens até os 29 anos representam 54,8% das vítimas de homicídio no
Brasil, esta faixa etária concentra 78,5% das vítimas de intervenções policiais com
resultado morte. Na faixa etária compreendida entre 20 e 24 anos é que se dá a
maior parcela da vitimização por intervenções policiais, com 33,6% das vítimas
neste estrato etário (2019, p. 63).
Esses índices de violência, sobretudo os números de homicídios, tem endereçamento,
mostram algo mais que a violência de um país. Eles mostram um “modelo”, uma biopolítica
que implica intervenção na população ou, mais especificamente, uma necropolítica que toma
por alvo certos grupos cujas vidas são desqualificadas. O que nos leva à pergunta: quem são
as pessoas mais vitimadas pela violência policial? Das pessoas mortas pela polícia 99,3% são
homens, 77,9 % tinham entre 15 e 29 anos e 75,4% eram negros (ANUÁRIO, 2019, p. 9).
Como chamam a atenção Bueno; Marques; Pacheco e Nascimento, “constituintes de cerca
de 55% da população brasileira, os negros são 75,4% dos mortos pela polícia. Impossível
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negar o viés racial da violência no Brasil, a face mais evidente do racismo em nosso país”
(2019, p. 62).
Em pesquisa realizada sobre a letalidade policial por Jacqueline Sinhoretto e Danilo
de Souza Morais, constatou-se que:
Tomando como referência o ano de 2011, calculando as taxas de mortos pela
polícia em ponderação com a população de brancos e negros de cada estado,
verificou-se que em Minas Gerais foram mortos pela polícia duas vezes mais
negros do que brancos. Em São Paulo, as taxas foram três vezes mais desfavoráveis
para os negros. No Rio de Janeiro, a polícia matou quase quatro vezes mais negros
do que brancos. Em todos os estados pesquisados, as vítimas da letalidade são na
sua maioria jovens, e a idade média entre os negros mortos é menor do que a dos
brancos mortos (2018, p. 18).
É importante ressaltar que o corte racial não pode deixar de apontar ainda que esses
jovens negros são, na sua imensa maioria, pobres e moradores de periferia ou comunidades.
É preciso fazer o corte racial da classe, nesse sentido. Pesquisa publicada no Atlas da
Violência de 2018, mostra que “analisando a correlação entre as condições de
desenvolvimento humano e as taxas de mortes violentas, em geral, nos municípios com
melhores níveis de desenvolvimento humano a taxa de homicídio tende a ser menor” (2018,
p. 11). Segundo a pesquisadora Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro da
Segurança Pública,
basicamente mostramos que municípios com melhores níveis de desenvolvimento – e aqui
falamos de habitação, educação, inserção no mercado de trabalho, dentre outros – também
concentram menores índices de homicídio. Ou seja, estamos falando de pobreza, mas
principalmente, estamos falando de vulnerabilidade econômica e de desigualdade (G1,
15/06/2018).
Em entrevista concedida a Martel Alexandre del Colle, publicada no site
“Justificando”, um policial relatou que: “estamos em uma guerra ideológica para matar
pobre” (COLLE, 2019). O policial afirma ainda que “somos treinados com o mantra bandido
bom é bandido morto, mas nunca vi policial executar deputado bandido, juiz que vende
sentença, senador chefe de tráfico” (COLLE, 2019). As frases enfáticas do policial remetem
para uma ação policial e uma justiça desiguais e, sobretudo, para uma política das vidas que
merecem ou não serem vividas (BUTLER, 2018a).
(ou mesmo sobreposição) do poder centrado no corpo individual (ou numa anátomo-política
do corpo) para um espectro mais amplo do alvo do poder, direcionado ao corpo-espécie da
população. Segundo o autor: “depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no
decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma
anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma ‘biopolítica’ da espécie
humana” (FOUCAULT, 2002, p. 289).
Mas o poder disciplinar e a biopolítica precisam ser entendidos, ainda, como uma
forma de poder que se diferencia do poder soberano, centrado na figura do monarca. Seria
uma forma de governo posterior ao triunfo da soberania, como a encontramos em Hobbes,
por exemplo. Chloë Taylor afirma que ao analisar o biopoder, Foucault “traça a mudança do
poder clássico, jurídico-legal ou soberano para duas formas tipicamente modernas de poder,
o poder disciplinar e o biopoder, como uma mudança de um direito de morte para um poder
sobre a vida (...)” (2018, p. 58). Continua o autor apontando que
a disciplina pode, portanto, ser vista como biopoder ao visar o corpo individual,
enquanto outro nível de biopoder visa o corpo-espécie. ... Esses dois níveis de
poder estão necessariamente entrelaçados, uma vez que corpos compõem
populações e populações são compostas de corpos individuais (TAYLOR, 2018, p.
63).
É nessa sucessão da soberania à biopolítica que Foucault mostra uma nova relação
com a vida e a morte. Não se trata mais, como na soberania, de um poder que faz morrer e
deixa viver e sim de um poder que ao tomar a vida da população como um valor político faz
viver e deixa morrer (FOUCAULT, 2002). A biopolítica marca a entrada da vida no cálculo
político. É o momento em que a saúde, as taxas de morbidade, nascimento, densidade
populacional, epidemias, raça, entre outros, passam a ser alvo de um governo que quer
otimizar a vida, que quer promovê-la, valorizá-la. A biopolítica marca, ainda, a emergência
do capitalismo e suas formas de valoração do mundo, e a vida, nesse sentido, passa a ser
investida de valor. Segundo Foucault,
Dizer que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, dizer pelo menos que o
poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda
a superfície que se entende do orgânico ao biológico, do corpo à população,
mediante o fogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das
tecnologias de regulamentação, de outra. Portanto, estamos num poder que se
incumbiu tanto do corpo quanto da vida, ou que se incumbiu, se vocês preferirem,
da vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo da população (2002, p. 302).
Nesse processo de cobertura da vida e do biológico pelo poder assistimos à
emergência do racismo de Estado. Contemporâneo ao nascimento do Estado-nação moderno,
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Vale ressaltar também que os estudos inspirados em Foucault vêm operando um alargamento espacial analítico
importante, se deslocando do caso europeu, que é por onde Foucault se movimenta, e abrindo espaço nos
estudos sobre a África e a América Latina, bem como aos estudos decoloniais, o que tem contribuído, inclusive,
para uma crítica ao universalismo de caráter eurocêntrico que marca as pesquisas sobre a modernidade.
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Fica evidente que o poder soberano tem nesse par categorial um dispositivo
fundamental que o possibilita dizer quem deve morrer sem que com isso se cometa
assassinato e, vale dizer, provoque comoção social. Como afirma Mbembe, “na economia do
biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções
assassinas do Estado” (2019, p. 18). Mbembe propõe uma análise do terror moderno, da
violência e da política da morte a partir do evento da escravidão moderna. Para ele o
colonialismo, antes do Estado Nazista, inaugura a biopolítica. Lançando mão das análises de
Arendt, coloca que “a conquista colonial revelou um potencial de violência até então
desconhecido. O que se testemunha na Segunda Guerra Mundial é a extensão dos métodos
anteriormente reservados aos ‘selvagens’ aos povos civilizados da Europa” (2019, p. 32).
Aimé Cesáire, a esse respeito já colocava que “o que não é perdoável em Hitler não é o crime
em si, o crime contra o homem em si, senão o crime contra o homem branco, é a humilhação
do homem branco, e haver aplicado na Europa procedimentos colonialistas que até agora só
concerniam aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da África” (2010, p. 21-
22).
Mbembe toma a plantation colonial como Agamben (2004) toma o campo, como um
modelo de Estado de exceção. Para ele, “em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema
de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de
exceção” (MBEMBE, 2019, p. 27). E segue apontando que
no contexto da plantation, a humanidade do escravo aparece como uma sombra
personificada. De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de
um ‘lar’, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla
perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte
social (que é expulsão fora da humanidade) (MBEMBE, 2019, p. 27).
A vida qualificada como objeto, desqualificada politicamente e sua suspensão da
humanidade traduzem um “tipo social” em estado permanente de exceção, de vida nua. A
suspensão da humanidade do escravo liga sua condição social da escravidão à raça, no caso,
uma raça sub-humanizada, cuja vida é destituída de valor, é desumanizada. Como afirma
Butler, “há ‘vidas’ que dificilmente – ou, melhor dizendo, nunca – são reconhecidas como
vidas” (BUTLER, 2018a, p. 17). Nesse sentido Mbembe afirma que “a vida do escravo, em
muitos aspectos, é uma forma de morte-em-vida” (MBEMBE, 2019, p. 29).
Para o escravo a experiência cotidiana do estado de exceção é permanente. A
racialização do escravismo moderno faz transbordar este estado ao negro, ou seja, o racismo
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figurou como o maior expoente da Escola de Medicina da Bahia, Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1906), deixou extensa e importante obra sobre os negros. Autor, entre outras, da obra
“As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil” (1894), tributária da antropologia
criminal de Cesare Lombroso. Dentre as abordagens de Nina Rodrigues sobre a
miscigenação, está a ideia de uma “criminalidade mestiça [como] uma peculiaridade
nacional” (SCHWARCZ, 2012, p. 22). Ideia comum na época, compartilhada por exemplo,
pelo penalista Laurindo Leão, que afirmava que “uma nação mestiça é uma nação invadida
por criminosos” (SCHWARCZ, 1993, p. 167). Seguindo, portanto, uma orientação advinda
do racismo científico, a miscigenação era vista como impedimento civilizatório.
As elites brasileiras do pós-abolição enxergavam nessa avaliação um obstáculo que
deveria ser ultrapassado. Em meio às discussões entre eugenistas e sanitaristas, que marcaram
os anos 1910-20, uma abordagem heterodoxa sobre a miscigenação passou a ser propagada
e amplamente aceita pelas elites da época (SKIDMORE, 2012). Tratava-se de um movimento
de ideias que inclusive foram divulgadas no exterior pelo então diretor do Museu Nacional,
Batista de Lacerda, quando de sua participação no Congresso Universal das Raças, realizado
em Londres, em 1911, ocasião em que proferiu a palestra Sur les metis au Brésil. A tese
central dessa abordagem é que a miscigenação ao contrário de sua potencial degeneratividade
do corpo-espécie da população, deveria operar uma depuração da cor, ou seja, sendo o sangue
branco superior ao do negro, sucessivas misturas raciais, auxiliadas pelos fluxos imigratórios
de tipos eugenizados, levariam ao branqueamento dessa população. Segundo a avaliação de
Lacerda sobre esse processo: “provavelmente antes de um século a população do Brasil será
representada, na maior parte, por indivíduos de raça branca, latina, e para a mesma época o
negro e o índio terão certamente desaparecido (sic) desta parte da América” (1912, p. 94-95).
A miscigenação vai sendo tratada como antídoto à degeneração, torna-se o meio pelo
qual o corpo-espécie podia ser constituído, branqueado. Certamente essa é uma versão
inusitada da eugenia, mas ganhou corpo e passou a ser um elemento-chave no processo de
integração do negro na sociedade nacional nos anos 1930, quando os elementos da tradição
afro-brasileira passaram a ser incorporados na cultura, como na música, culinária, arte etc.
Nos anos 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, assistimos à construção de uma narrativa
nacional que incorporará a miscigenação como “cimento constitutivo” da nacionalidade. E
nessa narrativa o negro podia ser incorporado, mesmo que seu virtual desaparecimento já
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país. É nesse sentido que a democracia racial contribuiu, ainda, para tornar mais invisível, do
que normalmente é, o racismo institucional. Em síntese, o racismo institucional, por si, coloca
no centro das análises o racismo como mecanismo incrustrado nas instituições - públicas ou
privadas – agindo para além da “consciência” dos sujeitos sociais. Wieviorka lembra que, do
ponto de vista da análise sociológica, o risco de fechar a análise na institucionalidade do
racismo é perder de vista os atores sociais e fazer do racismo “um fenômeno abstrato, a
repousar aparentemente sobre mecanismos abstratos, sem atores” (2007, p. 33).
É fundamental tomarmos como eixo analítico o racismo institucional para
entendermos, por outro lado, como as instituições promovem processos de constituição dos
sujeitos, como os próprios atores sociais estão implicados nas instituições e estruturas sociais
mais amplas. Talvez o exemplo mais claro das implicações do racismo institucional seja
encontrado nas ações das forças de segurança. Como afirmam Cerqueira e Moura, “não é
difícil colecionar situações em que as abordagens policiais e o uso excessivo da força são
totalmente diferenciados quando as relações se dão com cidadãos negros” (2013, p. 5). E não
se trata aqui de casos individuais aleatórios, pois temos, como mostram os dados estatísticos,
uma seriação de ações repetidas, similares quando não idênticas compartilhadas por inúmeros
sujeitos institucionalizados. Mecanismos jurídicos, como os “autos de resistência” (e mais
recentemente a tentativa de ampliar o excludente de ilicitude), amparado pelo artigo 292 do
Código de Processo Penal, por exemplo, contribuem para a institucionalidade da violência
policial. Segundo Lemos et al, “os autos de resistência são efeitos de uma política criminal
orientada pela metáfora da guerra, cujos discursos de segurança pública produzem o inimigo
interno da sociedade que deverá ser eliminado em nome da segurança” (2017, p. 173). Trata-
se de uma política que visa autorizar e, no limite, estimular a letalidade. Para exemplificar
como os autos de resistência de fato se constituem como um dispositivo da necropolítica,
vale lembrar a pesquisa coordenada por Michel Misse no Rio de Janeiro:
o número de inquéritos de “autos de resistência”, arquivados por “exclusão de
ilicitude” a partir de 2005 alcança a cifra de 99,2% por cento de todos os inquéritos
instaurados. De todos os autos de resistência registrados em 2005, apenas 19
chegaram a ser tombados no Tribunal de Justiça até 2007 e desses, 16 vieram do
Ministério Público com pedido de arquivamento e apenas três com denúncias
(2011, p. 28).
Como afirma Lemos et al, “na prática, esses homicídios só seguem para apuração por
parte do Ministério Público quando ganham visibilidade midiática e contam com a pressão
popular, se não são arquivados” (2017, p. 172). É nesse sentido que Cerqueira e Moura nos
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provocam: “Neste ponto, podemos tentar nos lembrar de tantas notícias sobre mortes
violentas de inocentes brancos e negros. Será que a repercussão, o impacto na mídia e a
reação midiática natural das autoridades é a mesma?” (2013, p. 14).
É importante dizer que a democracia racial, como dispositivo de segurança que
inclusive faz funcionar de forma efetiva e pouco evidente o racismo institucional, ao
interditar a admissão do racismo, produz uma sociedade incapaz de criar sensibilidades ou
ainda indignação frente às práticas cotidianas de racismo. A construção dos estereótipos
sociais cria as condições para a insensibilização e mesmo a autorização tácita de matar certos
grupos. Como afirma Lemos et al:
Olhar o jovem pelo lugar negativo, pela suspeita de que ele irá roubar, matar,
traficar, usar drogas, vagar ocioso, furtar, é uma maneira de forjar uma posição
subjetiva, um lugar social e institucional para ele e criar subjetividades como
modos de ser pela visão vingativa de que esses grupos devem receber punições
variadas, de sorte que a morte deles não causará revolta nem choro; apenas gerará
indiferença, já que eles foram privados, em primeiro lugar, de reconhecimento
positivo para, depois, serem enclausurados e/ou mortos, muitas vezes antes de
qualquer julgamento baseado na Constituição de 1988 (2017, p. 168-169).
Essas práticas de violência e letalidade, com anuência social (ainda que não
consensuada) faz com que esses grupos, nominalmente pobres e negros, vivam em
permanente Estado de exceção. São vidas nuas, não-enlutáveis, vulneráveis e desqualificadas
politicamente. Quando Foucault analisa a biopolítica e, nesse quadro analítico o racismo, ele
mostra que “a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria a
minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do
degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais e mais pura”
(2002, p. 305). É nesse sentido que o racismo, ainda segundo Foucault, assegura a função da
morte na economia do biopoder (2002, p. 308).
É preciso lembrar que o projeto de branqueamento do pós-abolição anunciava, de
certo modo, o desaparecimento de não-brancos da população brasileira. Eram os negros,
mestiços e indígenas considerados excedentes, verdadeiros entraves civilizatórios. O
abandono por parte do Estado, a insensibilidade social com esses segmentos da população,
majoritariamente pobres, é historicamente comprovado (LOBO, 2008; SCHWARCZ, 2019).
A percepção negativa que a branquitude construiu historicamente sobre negros, mestiços e
indígenas é traduzida na hierarquização do valor da vida no Brasil. Vidas pobres e negras
tem um valor depreciado comparado às vidas qualificadas, as vidas brancas e, sobretudo de
classe média. A imprensa não cansa de nos dar “bons” exemplos desse tipo de seletividade,
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atualizada nos contextos autoritários, para renovar uma moralidade seletiva em relação ao
corpo-espécie da população.
coloca na condição de precariedade ela se vê exposta ao que Butler aponta como “as
dimensões frágeis e necessárias da nossa interdependência”, o que quer dizer enfaticamente,
que “ninguém escapa da dimensão da condição precária da vida social” (2018b, p. 154).
Populações escuras são menos enlutáveis, é evidente, mas o que assistimos, na esteira
das considerações sobre o devir-negro do mundo, é uma captura mais ampla da vida nua.
Conforme Butler,
de quem são as vidas que importam? De quem são as vidas que não importam como
vidas, não são reconhecidas como vivíveis ou contam apenas ambiguamente
como vivas? Essas questões partem do pressuposto de que não podemos tomar
como garantido o fato de que todos os humanos vivos carregam o estatuto de
sujeito que é digno de proteções e de direitos, com liberdade e um sentido de
pertencimento político; ao contrário, um estatuto assim deve ser assegurado por
meios políticos e onde ele é negado, essa privação deve se tornar manifesta (2018b,
p. 256).
na sociedade atual, que nos ensinou a hierarquizar a vida e o luto, que teremos condições de
estranhar essas desigualdades afetivas e buscar, ainda que de forma precária, olhar para a
minha vida como a vida dos “outros”. A necropolítica no Brasil, como já disse acima, se
nutre de nossa seletividade, de nossa aceitação da morte do outro, daqueles que nutrem o
bando soberano. Mas, como menciona Butler, o reconhecimento dessa vida precária ou não-
enlutável “nos obriga a nos opor ao genocídio e a defender a vida em termos igualitários”
(2018b, 155).
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