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1 Filosofia Clínica – InstitutoPackter

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3 Caderno D
4 Especialização em Filosofia Clínica
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8 Instituto Packter
9 Cel. Lucas de Oliveira, 1937
10 conjuntos 301 / 302 /303 / 304
11 Porto Alegre - RS
12 fone (fax) 051 330 66 34
13 http://www.filosofiaclinica.com.br
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7 Introdução
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9 “- Senhor, tende compaixão de meu filho, que é lunático e
10 padece muito; porque muitas vezes cai no fogo e muitas vezes
11 cai na água. E tenho-o apresentado a teus discípulos, e eles
12 não o puderam curar.
13 E respondendo Jesus, disse:
14 - Oh geração incrédula e perversa, até quando hei de estar
15 convosco, até quando vos hei de sofrer? Trazei-mo cá.
16 E Jesus o abençoou, e saiu dele o demônio, e desde aquela
17 hora ficou o moço curado.
18 Então se chegaram os discípulos a Jesus em particular, e
19 lhe disseram:
20 - Por que não pudemos nós lançá-lo fora?
21 Jesus lhes disse:
22 - Por causa da vossa pouca fé!”
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24 (Mateus, XVII: 14 - 19)
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4 12. Paixão Dominante
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6 Blakelock
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8 Acompanhe um trecho de “The Seven Minutes”, de Irving Wallace, editado em 1969, a
9 história de um livro que narra os pensamentos de uma mulher nos sete minutos que duram a sua
10 relação sexual. Tudo acaba na justiça, onde o advogado Michael Barrett vai defender a liberdade
11 de escrever etc e tal. Nessa parte o advogado está em casa lendo um trecho de O Amante de Lady
12 Chatterley:
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14 “Barrett foi mais adiante, e aqui “ele apalpava de leve o declive sedoso de suas ancas, descendo cada vez
15 mais, até chegar ao meio da cálida maciez das nádegas”, e ali “Ternura, mesmo - ternura de boceta”, e
16 ainda, “ela segurou o pênis delicadamente na mão”.
17 Barrett fechou o volume, colocou-o sobre a mesa de cabeceira e apanhou o relatório do julgamento
18 londrino. Abrindo-o, deparou com um professor de Cambridge, biógrafo de D.H. Lawrence declarando ao
19 tribunal:
20 “- Creio que os trechos sexuais que causaram protestos não tomam mais que trinta páginas do livro inteiro -
21 que possui cerca de trezentas... Nenhum homem em seu juízo perfeito se dá ao trabalho de escrever um
22 livro de trezentas páginas como mero enchimento para trinta páginas de assunto sexual.”
23 Apenas trinta páginas de assunto sexual e 270 e tantas de outros assuntos. E no entanto a Lady de
24 Lawrence provocara décadas de furor. Teriam os outros assuntos suficiente importância social para
25 compensar as cenas sexuais explícitas? Barrett voltou às páginas da exposição inicial da defesa: “_Deduz-
26 se claramente do livro, que o autor também teve em mira certos aspectos de nossa sociedade - isto é, da
27 nossa sociedade como era na época, na década de vinte, nos anos da depressão - que ele desaprovava por
28 completo... Julgou... que os males de que ela padecia não seriam curados pela ação política; e que o
29 remédio consisitia na restauração de relações justas entre os seres humanos, e especialmente na união entre
30 homens e mulheres. Uma das coisas mais importantes da vida , a seu ver, era a relação de duas criaturas
31 apaixonadas, e a união física entre ambos formava uma parte essencial de uma relação normal e saudável e
32 não algo de que deviam envergonhar-se, algo que podia ser discutido franca e abertamente.”
33 Importância social compensatória. E de cada dez páginas, apenas uma dedicada ao sexo explícito.
34 Entretanto, cá estava Os Sete Minutos de Jadway, um livro em que não apenas uma página em dez, mas,
35 antes, página por página, 171 ao todo, dedicadas às relações sexuais. Mas ora, que diabo, não era apenas
36 disso que se tratava, apenas de fodas animalescas, senão como se sentira tão purificado como pessoa, tão
37 esclarecido em relação às mulheres, ao terminar o livro? A relação sexual prolongada tinha sido bela, e um
38 artifício que servia para discorrer sobre a compreensão entre os sexos, sobre o amor, a compaixão, a
39 ternura, os sonhos, o significado da vida e da morte. A conduta de Cathleen não carecia de nenhuma
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1 compensação mas se a lei exigisse que o retrato de sua paixão traçado por Jadway contivesse importância
2 social compensatória, ora, ali estava, página após página.
3 Mesmo assim, percebeu Barrett, existiam outros problemas, inúmeros, inclusive o motivo e a intenção do
4 autor. Como seria bom que Jadway estivesse vivo, para explicar não só porque escrevera o livro mas para
5 solucionar vários mistérios em suas páginas.”
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7 Ainda que as respostas sejam evidentemente superficiais, procure responder: o que parece
8 ser importante no livro O Amante de Lady Chatterley e no livro Os Sete Minutos, segundo o
9 escrito acima. Também confira o que parece se repetir como idéia, o que pode estar todo o tempo
10 subentendido sem jamais ser evidente; o que é apenas aparente; o que nada tem com relação à
11 temática central.
12 Depois disso, estude a transcrição literal de uma de nossas gravações feitas em aula:
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14 “Packter - ... Paixão Dominante diz respeito à freqüência com que uma idéia, um conceito,
15 um verbo mental age, atua, habita a malha intelectiva. Paixão Dominante não tem nada a ver
16 com a força do conceito, tem a ver com a freqüência.
17 Aluna - Não é essa a idéia inicial que passa. Parece uma coisa ligada à obsessão...
18 Packter - Quem mais entendeu assim?
19 Aluna - Eu entendi. Achei que fosse uma idéia que forçava a pessoa a se comportar de um
20 jeito estranho: tomar dez sorvetes por dia ou ficar pensando toda a hora na mesma idéia.
21 Packter - Bem, não está longe do objetivo. Vamos apenas orientar as informações. O
22 objetivo deste tópico é identificar o dado que habitualmente se encontra à malha intelectiva da
23 pessoa. Por exemplo: procurem identificar o que mais freqüenta as vivências que vocês têm.
24 Aluna - No meu caso, são imagens.
25 Packter - Quero entender melhor. Descreva essas imagens.
26 Aluna - Ah, são muitas, a maioria é parecida.
27 Packter - Descreva uma para nós.
28 Aluna - ... comida. Fico viajando, preparando cada prato!
29 Packter - ... sim, continua.
30 Aluna - Eu me distraio fazendo comida, adoro fazer comida. Durante o dia, posso estar em
31 qualquer lugar, se não estou gostando de nada, fico inventando.
32 Aluno - ... dá para caracterizar uma Paixão Dominante?
33 Packter - Provavelmente, sim. Ainda que a gente nem tenha maiores dados da EP de W.,
34 acredito que é um indício tranqüilo de uma Paixão Dominante.
35 Aluno - Tão fácil assim?
36 Packter - Podes acreditar. Aos poucos, o filósofo vai formando um estudo completo das
37 singularidades da pessoa. Como ela se sente sensorialmente onde vive, seus deslocamentos
38 intelectivos, o conceito do termo, os significados, aonde potencialmente se dirige, suas vivências, a
39 freqüência das idéias que estão nesta EP, e ainda muito mais...
40 ...
41 Packter - ... por último, é fundamental entender que uma pessoa pode pensar cem vezes o
42 mesmo conceito em um dia, a sua Paixão Dominante, e no entanto isso ter um mínimo de
43 importância e força subjetiva tópica para a EP da pessoa.
44 Aluno - O cara pode ficar pensando o dia inteiro em sexo e isso não ter importância?! Não
45 sei não, viu?
46 Packter - Pode acontecer sim. O sexo, neste caso, pode ser uma distração, como um jogo
47 de passatempo, pode até ser algo desagradável a ele, por que não?
48 Aluno - Acho difícil.
49 Packter - Para alguns realmente é difícil. Na tua opinião (representação), o cara que fica
50 pensando o dia todo em sexo tem isso como algo importante na EP?
51 Aluno - Tenho certeza.
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1 Packter - Bom, não vou dizer que fico triste por te desapontar quanto a isso, mas a prática
2 clínica demonstra exatamente diferente. Ruminar uma idéia pode ter como único sentido a
3 própria ruminação, sendo a idéia um joguete. Em outras ocasiões há um fator ambiental qualquer
4 que faz a pessoa se ocupar de determinada coisa cem vezes ao dia, como um cartão postal que
5 alguém esqueceu em cima da estante, mas que não causa qualquer paixão, agora sim, paixão à
6 pessoa. Bom, quero ir a um exemplo mais prático: a pessoa pode chegar ao filósofo e dizer que
7 pensa trinta vezes ao dia que vai morrer dormindo e que tem medo disso. O filósofo então vai
8 considerar tal Paixão Dominante como algo marcante à EP da pessoa e vai se atirar aos
9 submodos, é isso?
10 Aluna - Nunca.
11 Aluna - A EP pode mostrar choques muito mais importantes.
12 Aluno - Isso pode ser só Assunto Imediato.”
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14 Pesquisa em aula
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16 a . Mostre como uma Paixão Dominante (tópico 12) pode desvalorizar subjetivamente
17 dados sensoriais (tópico 3) importantes à pessoa:
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26 b. Mostre termos equívocos (tópico 8) aliados a Paixões Dominantes sendo contrariados
27 por dados de Pré-Juízos (tópico 5):
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36 c . Evidencie uma situação em que um tópico estrutural remeta a outro que retorna a
37 informação fazendo uma espécie de pingue-pongue:
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46 “Packter - Quero muito que vocês folheiem a Ética de Spinoza. Eu sei que vão achar
47 chatíssimo com todas as definições, axiomas e postulados que ele usa. Spinoza separa seu
48 trabalho em cinco partes, e segue, isso vocês vão notar muito bem, métodos rígidos. Mais ou
49 menos como tinha feito antes quando trabalhou os princípios cartesianos. Mas não é necessário
50 ler além da quarta e da quinta partes, quando ele fala dos sentimentos passivos, as paixões; é
51 importante cuidar a passagem das paixões às ações, aos atos. Agora, prestem muita atenção,
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1 porque vocês logo terão a idéia da diferença de como consideramos as paixões em Filosofia
2 Clínica. Especialmente porque não a relacionamos diretamente a Deus, como fez Spinoza.
3 Acho que Thomas Mann expressa algumas das “paixões dominantes” que povoam a
4 Europa no início do século através de Hans Castorp, personagem do livro A Montanha Mágica. O
5 que se passa naquele sanatório suíço tem muito a ver com a idéias que freqüentaram milhões de
6 pessoas.
7 Seneca também pode oferecer ajuda em suas cartas, naquelas discussões todas sobre os
8 problemas do estoicismo, afinal... seus ensaios são ilustrativos sobre a natureza de certas paixões.
9 É evidente que a gente não vai encontrar precisão nas idéias dele, mas isso acho que não importa
10 tanto aos nossos objetivos.
11 Há outro pequeno trabalho lírico de Edmond Rostand chamado “Cyrano de Bergerac”
12 onde existe uma combinação bonita entre paixão dominante, amor, honra e poesia.
13 ... assim, só para terminar, quando o filósofo encontrar um conceito que se repete muitas
14 vezes na EP da pessoa, ali estará uma paixão dominante qualquer.”
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18 13 . Comportamento & Função
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23 Quero simplificar da seguinte forma:
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26 Comportamento
27 Pesquisar o modo, a maneira &
28 como se estabelece Função
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31 É simples compreender.
32 Siga devagar e com atenção!
33 Bem, o pré-juízo aqui é que “um comportamento remete a uma função, e vice-versa”.
34 Há exceções a isso?
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1 Sim, mas apenas detectadas pela escola Racionalista, não pela Empirista, e menos ainda
2 pela Kantiana. Na prática clínica é seguro iniciar do pressuposto de que as exceções não são
3 significativas.
4 Então, sendo dado o comportamento:
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7 Ir à padaria comprar pão = comportamento 1
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9 Podemos considerar as funções prováveis:
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11 Comprar pão e leite (1) = Função Simples.
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14 Comprar pão e leite (1)
15 Respirar ar puro (2) = Função Composta
16 Madrugar (3)
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18 (Evitar encontrar a
19 mulher saindo pela manhã)(1) = Função Oculta Simples
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21 Evitar ver a mulher (1)
22 Sentir-se mal por ficar deitado (2) = Função Oculta Composta
23 Necessidade compulsiva de sair (3)
24 Falta de ar (4)
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26 Os exames categoriais seguidos da montagem cuidadosa da Estrutura do Pensamento
27 abrem as possibilidades listadas a seguir, entre incontáveis outras igualmente possíveis:
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29 1.Um comportamento pode ter uma ou muitas funções.
30 2.Uma função pode ter um ou muitos comportamentos.
31 3.Os comportamentos podem se enfraquecer, negar, afrontar, anular, gerar psicoses entre
32 si mesmos para dar cumprimento a uma ou mais de uma função (e vice-versa).
33 4.Nem todas as funções podem ser elucidadas em clínica.
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35 O filósofo precisa, necessariamente precisa, pesquisar como se dá a interseção
36 comportamento & função na malha intelectiva da pessoa.
37 Quero esquematizar os casos mais comuns aqui.
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39 Considere o seguinte:
40
41 Comportamento A = fumar cigarros.
42 Função X’ = relaxar.
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44 Então, a pessoa tem o comportamento de fumar (A) para assim poder relaxar (função X’).
45 Partindo do princípio que a pessoa queira alterar o comportamento, pesquisa-se um
46 comportamento B que cumpra a mesma função X’.
47 Pode-se, por exemplo, ‘descobrir’ na malha intelectiva da pessoa que se ela fizer duas
48 horas de natação ao dia, obterá os mesmos resultados de relaxamento.
49 É lógico que isso precisa ter a mesma receptividade subjetiva da pessoa que tinha o
50 comportamento A.
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1 Comportamento B = função X’.
2 Podemos também aventar a associação de um comportamento B ao comportamento A que
3 somados boicotem a função X’. Exemplo: a pessoa sorve uma pastilha de gosto horrível após cada
4 tragada no fumo, durante todo o processo de fumar...! Com o tempo, provavelmente não haverá
5 mais relaxamento algum e a pessoa terá que procurar um outro comportamento para cumprir a
6 função X’.
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8 Comportamento B & Comportamento A de modo a boicotar a função x’.
9
10 Anote outras maneiras de trabalhar:
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12 1.Comportamento B que impeça eticamente o Comportamento A: a pessoa assume um
13 cargo no Instituto do Câncer que lhe pede uma campanha anti-tabagismo.
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15 2.Comportamento B que torne impraticável o Comportamento A: tirar férias em uma
16 colônia naturista onde é expressamente proibido o uso do cigarro.
17 3.Comportamento B que ridicularize o Comportamento A: usar cigarros coloridos
18 associados a modos bizarros ao meio social.
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20 É importante repetir que isso somente alcançará algum resultado se encontrar aceite na
21 pessoa, de acordo com a representação intelectiva desta.
22 Assim, para algumas pessoas, um dos tópicos funcionará muito bem, enquanto que para
23 outras poderá ser uma afronta coercitiva inútil. O tópico precisa ser moldado às especificidades da
24 pessoa, e muito raramente o contrário.
25 Vejamos agora quando equacionamos a questão através de um molde das funções:
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27 Função Y’ maior (axiológica subjetivamente) à
28 Função x’.
29 Por exemplo: a pessoa vai ao médico e ele diz:
30 “ — Se você quer continuar vivendo (função y’), relaxar (função X’) é secundário!
31 Portanto, pare de fumar (Comp. A)!”
32
33 Detonar a função X’ via Arg.Derivada.
34 Ex: a pessoa fica sabendo que procura relaxar (X’) somente como subterfúgio para fugir
35 às responsabilidades profissionais, ao trabalho.
36 De um modo amplo, como falei tantas vezes, se o filósofo souber escutar a pessoa dará de
37 presente a resposta ao modo de relação entre comportamento e função, quando na colheita dos
38 exames categoriais.
39
40 A pessoa pode dizer coisas como:
41 “ — Eu sei que no fundo não quero relaxar (X’), é uma outra coisa aqui dentro e eu não
42 sei o que é.”
43 “ — Eu não vim aqui mudar o meu comportamento. Gosto de ser assim. O que eu quero é
44 só mudar o que eu sinto...”
45 “ — Só queria mesmo entender o motivo de agir assim para com as pessoas que gosto...!
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47 Confira algumas conseqüências de importância.
48 Você encontrará em clínica certas pessoas que viveram toda a vida se comportando (A) de
49 determinada maneira à procura de cumprir uma função(X’) absurda, utópica, irreal! Se você fizer
50 uma Argumentação Derivada bem concatenada, pode descobrir que o comportamento A está
51 edificado sobre uma função X’ sofismática — e aí vem tudo por terra.
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1 A pessoa pode conjecturar que relaxar era apenas uma procura abstrata (no sentido de
2 idéias complexas, em Locke) para saciar uma auto-imagem utópica, e mais, que de fato relaxar
3 sensorialmente é algo maior e para o qual ela não se considera preparada.
4 É fundamental que eu avise que nós não somos magos e nem sequer fazemos mágicas.
5 Estas modificações estruturais devem ser bem pesquisadas!
6 É anti-ético e irresponsável socialmente detonar, anular, substituir comportamentos e
7 funções sem os exames prévios categoriais!
8 Às vezes, pode-se obter um plasma sintético por uma ação clínica desencadeaste,
9 imprevisível. Isso pode ocorrer.
10 Se acontecer, refaça os exames categoriais e pesquise as modificações correlatadas na
11 Estrutura do Pensamento.
12 Contudo, é comum que as modificações existenciais se façam gradativamente, durante
13 vários meses, sendo mensuradas, vividas, exercitadas a cada novo encontro entre o filósofo e a
14 pessoa. Muitas reciclagens, ajustes, idas e vindas são tidas neste devir.
15 Ao promover um plasma, cuide de acompanhar a pessoa por várias consultas, promova
16 muitas divisões, compare dados e os sintetize.
17 Tenha atenção também à interpretação subjetiva sua que está em interseção!
18
19 “Packter - Sabe, não tenho dormido direito. Antes de fazer minhas orações, a cada bendita
20 noite, eu me viro perigosamente de um lado a outro na cama fazendo ondas no lençol, e quando
21 minha angústia já atingiu todo o insuportável, eu me levanto, caminho até a janela e pergunto:
22 “Meu Deus, pode existir algum comportamento sem uma função correspondente?” - e Deus não
23 me responde. Por isso tenho de recorrer aos meus alunos... então, qual dentre vós...?
24 ...
25 (aula seguinte) Aluna - Na prática, comportamento e função estão ligados.
26 Packter - A senhora me diria “ligados” no sentido de “grudados”?
27 Aluna - Sim senhor, Lucinho.
28 Aluno - Tem gente que vai poder dormir agora...
29 Packter - Não é que eu queira dificultar, na verdade eu quero, mas ocorreu a vocês que
30 uma pessoa pode estar estruturada de tal modo que acredite fundamente que existem
31 determinados comportamentos que não se remetem a uma função, apenas porque é essa a
32 representação dela?
33 Aluna - Um devaneio...
34 Packter - Não sei, isso eu não sei. É algo defensável se usarmos as abstrações, as idéias
35 que migram ao tópico 3 (Sensorial & Abstrato). Entendem? A pessoa que estiver assim
36 estruturada não vai conseguir compreender o que vivencia se o filósofo quiser considerar tudo do
37 ponto de vista Comportamento & Função porque, neste caso, ela terá outra construção conceitual
38 para explicar sua vivência.
39 Aluna - Lúcio, na prática a pessoa pode negar uma função que é evidente?
40 Packter - Não apenas na prática, na teoria também. Toma como exemplo o sujeito que se
41 masturba muito como maneira de aliviar uma ansiedade enorme que vivencia em compromissos
42 sociais. Pois bem, talvez ele entenda que sua masturbação não tenha nada a ver com um ciclo de
43 comportamento e função, mas sim como uma atitude de vida, onde uma estranha síntese alcançou
44 o absoluto etc e tal. Para ele é assim, queira a gente ou não.
45 Aluno - Como fica a escola comportamental nisso?
46 Packter - Fica onde tem que ficar, o que se vai fazer?
47 ...
48 Packter - ...antes de fazermos prática em aula, a começar daqui a pouco até o esgotamento
49 geral, vamos a uma pequena e insuportável explicação teórica. Como se trata de Comportamento
50 & Função, tenho a dizer que os sobreviventes serão recompensados com um lindo lanche logo no
51 primeiro intervalo.
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1 ...
2 Bem, o básico é entender que um procedimento normalmente é um comportamento e
3 função simultaneamente. Assim, beber água é um comportamento e saciar a sede, função; mas
4 saciar a sede pode ser um comportamento que tenho diante de um compromisso que eu quero
5 protelar. O básico é Comportamento & Função; depois temos mais de um comportamento para
6 uma ou mais de uma função, e vice- versa. Há ainda comportamentos e funções simples e
7 complexos, sendo ambos às vezes ocultos. Vamos agora aos trabalhos práticos, longe desta
8 enrolação que já está me dando vergonha...”
9
10 Quando estiver pesquisando o relacionamento existente entre comportamento & função,
11 para um eventual plasma sintético, lembre que aquilo que você ‘descobrir’ no intelecto da pessoa,
12 através da interseção, manifestar, será acomodado em formato de conceito como uma das
13 verdades subjetivas dessa pessoa! Seja, então, carinhoso, ético e profundamente condescendente
14 com quem estiver trabalhando!
15 Se você afirmar que a pessoa está com sérios problemas que são provavelmente
16 irreversíveis (o que é a ‘sua representação), a pessoa fará imediata e automaticamente uma
17 varredura em seu intelecto até encontrar (vai combinar juízos e conceitos) uma representação que
18 se identifique com a que você construiu; fará então uma comparação entre as duas e perceberá
19 que você tem razão em sua autoridade de clínico para afirmar aquilo. E de acordo com o grau de
20 intensidade que tal verdade subjetiva tenha para a pessoa, isso pode causar-lhe danos existenciais
21 graves!
22 O meu conselho é que você de fato poderá encontrar alguém em tal situação de penúria
23 que pense que ela está com sérios problemas talvez irreversíveis. Isso existe e constatar isso é ser
24 honesto. Mas eu não diria isso à pessoa mesmo que o estivesse pensando enquanto falasse como
25 ela. Mina formação em humanas ensinou-me que posso omitir temas que possam ferir
26 profundamente quem já está ferido e me procura em auxílio.
27 — Vamos trabalhar muito e fazer o melhor possível está bem? — é isso o que digo.
28
29 Se posso utilizar um procedimento prático como o Plasmar Sintético que me permite
30 garimpar verbos mentais (sensações de ser amado, imagens aprazíveis campestres, sons suaves
31 etc) reagrupá-los e constituir oportunidades de novas condições de vida, então é isso o que
32 procuro fazer.
33
34 Se eu expresso que amo você, o que acontece?
35 ...lá vai você à cata dessa representação em seu intelecto e provavelmente se sentirá
36 confortado(a).
37 Berkeley escreveu em seus apontamentos:
38 “1. Todas as palavras significantes representam idéias.”
39 A palavra, como parte do jogo comunicativo, efetivamente pode causar o amor ou a morte,
40 literalmente. Tenho em alta conta o adágio popular “meça suas palavras”, especialmente antes de
41 proferi-las.
42 Com Berkeley o nosso discurso (verbal ou não-verbal) é sempre representação pronta ou
43 em andamento. O que manifesto está em mim como ato e como representação. Vejamos uma
44 exemplificação de Fernando Pessoa:
45
46 “Em certa altura da cogitação escrita, já não sei onde tenho o centro da atenção — se nas sensações
47 dispersas que procuro descrever, como as tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que querendo
48 descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas. Formam-se em mim
49 associações de idéias, de imagens, de palavras -tudo
50 lúcido e difuso-, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o que a
51 alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou agir, me enfloram no chão, nem até se um som
52 de palavra bárbara, ou um ritmo de frase interposta, me não tiram do assunto já incerto,...
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1 Desde que falo de imagens, talvez porque fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens; desde
2 que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o próprio repúdio é uma
3 sensação com bordados; desde que, enfim a fé no esforço... e as letras da minha tinta da caneta são um
4 mapa absurdo de sinais mágicos.”
5
6 Pesquisa em aula:
7 1. “Desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já...”
8 Explane.
9
10 Quero ilustrar com um trabalho gravado de um rapaz de 23 anos com quem trabalhei ao
11 longo de dois meses.
12 Farei os comentários pertinentes de modo conciso. O Assunto Imediato é buscar resolução
13 a uma sensação de “bola” que lhe percorre o tórax até a garganta. Pedi exames médicos que nada
14 acusaram; depois levantei os dados relevantes às cinco categorias.
15
16 “ — e melhorei com os exercícios (de Feldenkrais e Alexander Lowen)..., agora se eu
17 soubesse por que isso me dá, meu Deus do céu, olha, eu fico bom pra sempre! (Releia o que ele
18 me disse da representação dele).
19
20 Entrevista posterior:
21
22 “ — ...agora eu sei que se você souber porque isso dá em você, meu Deus, olha, você fica bom pra
23 sempre! (Usando a certeza que há representação dele; sempre que repito o que a pessoa disse, procuro
24 usar as mesmas palavras, quase literalmente).
25 — Eu
26 — Preste atenção! (Tudo o que direi agora é uma compilação do que ele me disse durante os trabalhos,
27 quase que literalmente). Há quatros anos você começou a namorar G e ela notou que seus irmãos o
28 sobrecarregavam de trabalho e quem carrega os outros acaba sufocando.
29 Há quatro anos você começou a sentir uma bola na garganta porque você queria gritar “fodam-se”, e
30 engolia e carregava (falo pausado e convicto; seus olhos marejam).
31 Agora você se sente melhor porque passou o trabalho devido a eles, que foi a sua forma de dizer
32 “fodam-se”!, e com isso se descarregou e está aliviado, desafogado. Nós sabemos que se você soubesse
33 disso, como sabe agora, olha, você fica bom pra sempre...”
34
35 Na verdade, eu não sei qual o motivo de uma pessoa construir a frase intercalando “meu
36 Deus”, “olha” etc. Mas eu sei que na representação (Schopenhauer) dele é assim que funciona, é
37 como os juízos estão ordenados na questão. Outra coisa importante: se ele representou a sensação
38 de bola, a vontade de livrar-se dela com o termo (sinal externo do conceito) “desafogar”, não
39 suponho razão para usar desoprimir ou desapertar! Somando nossos mestres filósofos Berkeley e
40 Wittgenstein temos: “Todas as palavras significantes representam idéias” e “O sentido de uma
41 palavra está no seu uso”, respectivamente.
42 Usando “desafogar” tenho uma área se interseção muito maior e acesso livre à
43 representação dele. O mesmo se aplica aos juízos e proposições.
44 Uma pergunta que sempre me fazem aqui é se o problema da pessoa é realmente este que
45 trabalhamos.
46 Resposta: eu não sei. Quem sabe com certeza?
47 O que fiz, neste caso, foi ouvir atentamente enquanto juntava informações sobre o
48 relacionamento comportamento & função, sobre como ele representava para si mesmo sua
49 problemática. A um ponto desse caminho, ele me afirmou que se soubesse o motivo do que o
50 afligia ficaria bom. Então, ofereci o que captei da própria estrutura intelectiva do rapaz.
51
52 Quero passar algumas anotações importantes sobre Comportamento & Função:
53
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 13
1 A. Use o jogo comunicativo (Wittgenstein) que a pessoa usa. Se você for à Vila Restinga
2 clinicar, não use o filosofes, por favor. Se o jogo é xadrez, jogue xadrez.
3 B. Descubra maieuticamente a relação comportamento & função e cuide de acompanhar o
4 desenvolvimento paralelo, se possível, do Assunto Último.
5 C. Sócrates nos ensinou a melhor medida defensiva e a melhor medida ofensiva: a
6 maiêutica. Portanto, pergunte...
7
8
9
10 Além disso, se você usou o Atalho (submodo) e só fez aumentar a distância, então use a
11 Divisão (submodo), tente a Busca (submodo). O erro e o engano são partes essenciais de nosso
12 trabalho. De que outra forma teríamos parâmetros de que algo funciona conforme queremos?
13 A pessoa com quem trabalhamos tem carne sentimentos, alma, é um ser complexo e
14 maravilhoso. Merece o nosso carinho e a nossa condescendência pelo sofrer que se lhe abate.
15 No mínimo ela atribuí ao clínico um talento e conhecimentos específicos que a ajudarão a
16 melhorar de algum modo. Para entender o que a pessoa sente quando procura por você, pense em
17 como você se sente quando vai ao médico.
18 Como advertência geral e urgente, posso clinicar enquanto me gosto e tenho boa fé no
19 coração humano. Do contrário, corre-se o risco horrível das palavras que Elias Canetti colocou
20 no diálogo entre os irmãos Peter e Georges, em “Auto-de-Fé.”
21
22 “ — Você se veste com grande esmero — disse Peter...
23 — É uma obrigação desagradável. Minha profissão exige.
24 Enfermos de pouca educação impressionam-se muito quando um cavalheiro que lhes parece distinto os
25 trata como seu confidente. Outros melancólicos sentam-se confortados pelos frisos de minhas calças do
26 que pelas palavras que lhes dirijo. Se não curar essas pessoas, permanecerão no seu estado bárbaro. Para
27 lhes abrir caminho à cultura, mesmo que tardia, é necessário que as cure primeiro.
28 ...
29 — Seus êxitos baseiam-se numa adulação despudorada.
30 Agora entendo o estardalhaço que se faz a seu respeito.
31 É um mentiroso consumado. A primeira palavra que você aprendeu a pronunciar já era uma mentira. Pelo
32 prazer que lhe causa o ato de mentir, chegou a ser médico de loucos. Por que não se tornou ator? Deveria
33 ter vergonha de seus pacientes. Para estes, a miséria deles é a mais amarga verdade. Lamentam-na
34 quando ficam desnorteados. Posso imaginar o que acontece a um desses pobres diabos quando sofre
35 alucinações causadas por determinada cor. “Sempre tenho o verde diante dos olhos”, lamuria-se ele. Pode
36 ser que chore. Talvez tenha lutado meses a fio contra esse ridículo verde. E você, o que faz?
37 Sei muito bem o que você faz. Bajula o homem, tenta pegá-lo no seu ponto mais vulnerável. Claro de ele
38 tem um.
39 Os homens todos não passam de um conglomerado de fraquezas. Você o trata de “prezado amigo” ou
40 “meu caro”. Ele fica maleável, primeiramente respeita você, depois respeita a si mesmo. Mesmo que ele
41 seja o mais miserável de todos os coitadinhos do mundo, você o cumula de reverentes cumprimentos.
42 Mal o paciente começa a se sentir co-diretor de seu manicômio, de cuja chefia apenas uma sorte injusta o
43 afastou, você lhe revela sua verdadeira opinião: “meu caro amigo, a cor que você está vendo
44 absolutamente não é verde.
45 Na realidade é, digamos, azul!”
46
47 Mais do que as palavras do irmão, é a representação (Schopenhauer) que Georges faz de si
48 mesmo quem lidará com sua consciência.
49
50 Outra coisa importante é verificar como a pessoa estabelece a relação entre
51 comportamento e função quanto ao dado somático investigado.
52 a. Bunda contraída porque “quem está bem sentado não cai”.
53 b. Lábios macios porque “ o beijo é o melhor carinho”.
54 c. Pescoço enrijecido para “ter equilíbrio sobre todas as coisas”.
55
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 14
1 As funções para os comportamentos somáticos bem podem ser as enunciadas em a, b, c.
2 Mas também podem ser outras exatamente contrárias a elas. Por que não?
3 Afirmar que lábios macios e que pescoços rígidos significam necessariamente tal e tal
4 coisa, universalizando a vivência sensorial, é algo que considero clinicamente temerário.
5 Investigue primeiro quais as relações que a pessoa estabelece consigo mesma, quanto à
6 somaticidade, quais funções cumprem quais comportamentos, antes de agendar termos que
7 eventualmente ela possa tomar como alguma verdade absoluta.
8 A palavra que encontro para esse tipo de levianismo é irresponsabilidade ou má prática.
9
10 # 36
11
12 14. Espacialidade: Inversão; Rec. Inversão; Desl. Curto e Desl. Longo
13

14 Feuerbach
15
16 “Aluno - Qual é a definição de espacialidade em Filosofia Clínica?
17 Packter - Espacialidade é um tópico da EP que pesquisa a posição, a localização
18 intelectiva da pessoa. Teu corpo está aqui, algo que pesquisamos na Categoria Lugar, mas onde
19 estão os conceitos da malha intelectiva? Aqui, na serra de Canela, à beira do mar, passeando pela
20 Redenção?
21 ...
22 Packter - Inversão e Recíproca de Inversão se referem à interseção entre pessoas, só isso.
23 Quando o sujeito traz o outro ao seu mundo existencial, eis aí um movimento inversivo: “eu sinto
24 minha pele suave; esses meus sentimentos são tantos...! estou com fome” - são sentenças que
25 indicam movimento inversivo. A Recíproca de Inversão é o oposto da Inversão; é o sujeito quem
26 vai ao mundo existencial do outro. Já o Deslocamento Curto se refere ao direcionamento do meu
27 pensar, a minha atenção, ou intencionalidade, ocupada com objetos que estão presentes aqui
28 neste momento, ao alcance de meus sentidos, mas que não são pessoas. E o Deslocamento Longo
29 é o vôo que minha atenção dirigida dá em direção a objetos que não estão presentes, ou mesmo a
30 idéias complexas longínquas.”
31
32 Acho curioso como muitas terapêuticas somáticas incentivam o movimento de Inversão
33 (submodo) sem os cuidados categoriais!
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 15
1 Se, por exemplo, em minha Estrutura de Pensamento uso predominantemente o
2 Deslocamento Longo quando me refiro às coisas de meu corpo, um movimento inversivo forçado
3 pode perfeitamente detonar a estruturação em minha malha intelectiva.
4 Eticamente isso é alarmante.
5 Posso afirmar kantianamente que a pessoa deve vivenciar seu corpo de modo inversivo, o
6 mais que puder, afastando-se dos deslocamentos?!
7 Sim, posso, mas diante de um sólido exame categorial que me indique isto como
8 orientação.
9 Confira, por exemplo, como Manuel Bandeira usa deslocamentos para ser inversivo! É seu
10 modo de ser aqui, neste conto:
11
12 “Notou Mário de Andrade como em minha poesia a ternura se trai quase sempre pelo diminutivo; creio
13 que isso (em que não tinha reparado antes da observação de Mário) me veio dos diminutivos que minha
14 mãe, depois que adoeci, punha em tudo que era para mim: ö leitinho do Nenen”, “a camisinha do
15 Nenen”... Porque ela me chamava assim mesmo depois de eu marmanjo. Enquanto ela viveu, foi o
16 nome que tive em casa, ela não podia acostumar-se com outro. Só depois que morreu é que passei a
17 exigir que me chamassem - duramente - Manuel.”
18
19 Usando de Vice-Conceito (submodo) Manuel Bandeira encontra um modo de ser inversivo.
20 Se o terapeuta o encaminhasse a uma Inversão de modo direto, tal afronta poderia causar danos.
21 Somaticamente, o caminho é: Vice-Conceito, Deslocamento Longo e então Inversão. Mas,
22 é evidente, que isso é apenas assim neste caso específico.
23
24 # 37
25
26 Inversão e Recíproca de Inversão
27
28 Sócrates desconstruía as questões promovendo uma mudança irreversível no modo como
29 eram consideradas.
30 Conta-se que havia em Atenas uma mulher belíssima chamada Teódota, que nenhuma
31 palavra poderia expressar sua beleza. Um exagero ou não que deixou o mestre curioso:
32
33 “ — Caramba! Só vendo! — exclamou Sócrates — Não será ouvindo que se há de ter idéia do que
34 não exprime a palavra.
35 — Não percamos tempo: acompanha-me — dise-lhe o narrador.
36 Dirigiram-se à casa de Teódota e, encontrando-a com um pintor que lhe estudava as formas, puseram-
37 se a admirá-la. E enquanto o pintor terminou:
38 — Amigos meus — disse Sócrates agradeceremos nós a Teódota o haver-nos deixado admirar sua
39 beleza, ou deverá agradecer-nos ela pôr a termos contemplado?
40 Se mais prazer teve ela exibindo-se, agradeça-nos ela
41 Se mais gozamos nós admirando-a, agradecemos-lhe nós.
42 Tendo-lhe alguém dado razão:
43 — Convenho — disse — que de nós não ganha ela senão elogios. Mas como os publicaremos à boca
44 grande, ser-lhe-ão utilíssimos. quanto à nós, presas do desejo de tocar o que contemplamos, ir-nos-
45 emos mordidos no coração, tomados de arrependimento. Depende, sermos nós escravos e ela
46 soberana.
47 — Por Júpiter! — disse Teódota — se é assim, cumpre-me agradecer-vos por vos ter
48 oferecido o espetáculo.”
49
50 É o que nos dá contas Xenofontes.
51 Evidentemente, Teódota poderia entabular uma discussão sofismática sem fim, mas por
52 razões que não sabemos ela resolveu aceitar a interpretação daqueles homens, mestres em dizer e
53 desdizer qualquer coisa.
54
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 16
1 Inversão é o movimento quando o sujeito traz para o seu mundo existencial presente e no
2 que se refere a si mesmo, enquanto sujeito, a pessoa com quem está em relação em sua presença.
3
4 Se eu, filósofo clínico, sou o sujeito e trago a pessoa com quem falo ao meu mundo
5 existencial presente, promovo uma Inversão.
6 Ela, por sua vez, ao sair de seu mundo existencial para estar em interseção no meu,
7 efetuou uma Recíproca de Inversão.
8 Quem, portanto, determina o movimento inversivo é sempre o sujeito.
9 Atente para o que uma aluna comentou em aula:
10
11 “Quando eu me apaixonei, senti a sensação de sair de mim. Não me tornar o outro, mas sair de mim. Eu
12 já não era mais a pessoa que eu era. Eu me tornei diferente. As pessoas começam a fazer coisas
13 diferentes, se transformam.”
14
15
16 Houve uma Inversão fraca: ela não nos levou ao seu presente temporal, um pré-requisito
17 deste submodo, mas sim ao passado, promovendo um outro submodo que veremos em outra parte.
18 Agora, anote um caso curioso!
19 A pessoa, como sujeito, faz uma Recíproca de Inversão para falar de si mesma. Ou
20 seja, é através desta que ela realiza a Inversão!
21
22 “É difícil você chegar a uma concepção de ti mesmo.
23 O sujeito sente de uma maneira, no outro dia muda totalmente, não há normalidade.”
24
25 Usou o outro para falar de si mesma.
26 Bem, gosto de citar literalmente tais casos que gravamos durante as nossas aulas porque
27 eles mostram como você
28 encontrará em clínica os objetos conceituais que a pessoa exterioriza em termos, proposições,
29 raciocínios. É bem assim.
30 Nós misturamos, em nossa malha intelectiva, os conceitos como contou David Hume.
31 Também há casos raros e breves em que podemos constatar um movimento inversivo notório:
32
33 “ — Aqui, bem aqui no meu peito, não tenho nada. Não sinto nada, não me importo. Não me importo. Eu
34 quero continuar vivo... mas que isso não demore muito!”
35
36 É raro.
37 Em geral, os dados aparecem em miscelânea.
38 Agora, cuide de observar que neste dois submodos, é fundamental que os dados
39 conceituais se refiram ao tempo presente, à própria pessoa no aqui e agora e/ou à outra (que deve
40 estar necessariamente presente).
41 As coisas podem ser consideradas sob muitos aspectos, sob diferentes entendimentos.
42 Um homem possessivo o que aconteceria se estivesse no lugar possessivo e violento pode
43 ser perguntado pela mulher que o acompanha o que ele faria e como se sentiria se estivesse no
44 lugar dela, na pele dela. Isso o coloca em uma situação hipotética em que é vítima da mesma
45 situação possessiva e violenta que utiliza. Usando as mesmas justificativas e motivações, os
46 entendimentos deste indivíduo a esse respeito começaram uma desconstrução, aos poucos.
47
48 Pesquisa em aula:
49
50 1. “Repito: grande e pequeno, rápido e lento só existem no intelecto, por serem inteiramente relativos,
51 mudáveis com a posição e ordem dos órgãos dos sentidos. Portanto, a extensão existente fora do
52 intelecto não é grande nem pequena, o movimento nem rápido nem lento, não são nada.”
53
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 17
1
2 O que Berkeley nos diz confirma o modo de conceber o mundo como representação? O que
3 há aqui quanto aos movimentos inversivos e recíproco de inversivos?
4
5 2. “A avaliação exata daquilo que somos, efetivamente contra a do que somos aos olhos de outrem,
6 contribuirá em muito para a nossa ventura. À primeira delas pertence o preenchimento total do
7 tempo de que dispomos na vida, o seu conteúdo verdadeiro e, com isso, todos os bens examinados
8 sob as rúbricas relativas “ao que se é” e “ao que se tem”. Pois o lugar em que tudo isso tem a sua
9 esfera de ação é a nossa
10 consciência, ao passo que o daquilo que somos para outrem é a consciência alheia: é a representação
11 sob o qual nela aparecemos, com os juízos que aí lhe aplicam...
12 Isso de dar valor muito alto à opinião de terceiros é uma insânia comum... que influência por demais
13 todas as nossas ações e omissões e é inimiga da felicidade. Em tudo quanto fazemos, ou deixamos
14 de fazer, perguntamos o que é que pensam os outros; ora, examinando bem a coisa, veremos que
15 daí provém a metade de nossos sobressaltos e temores. É efetivamente a opinião alheia que está no
16 fundo do nosso amor-próprio, tantas vezes ferido, por ser tão doentiamente suscetível...
17 Se nos fosse possível fugir da loucura comum, aumentaria incrivelmente a nossa calma interior, a
18 nossa jovialidade, e teríamos como resultado um comportamento mais desenvolto e natural. O que
19 tanto faz com que uma vida retraída se reflita em nossa tranqüilidade de espírito provém de que,
20 afastando-se dos olhares alheios, e do respeito por suas eventuais opiniões devolve-nos ela a nós
21 próprios .... e tendo mais zelo pelos bens de fato estáveis, vimos a gozá-los com menor
22 perturbação.”
23
24 Já sabemos que Arthur Schopenhauer está falando dele mesmo (sua medida e sua
25 representação do mundo); uma pessoa com auto-estima forte, muito provavelmente não
26 importaria tanto com o que pensam os outros a respeito dela.
27 Quanto à Inversão ou à Recíproca de Inversão, o que você constatou neste fragmento
28 escrito por ele?
29
30
31 Espacialidade: em Aristóteles e em Kant (forma da sensibilidade a priori) é essencial!
32 Para nós simboliza apenas a posição geográfica do intelecto, e não do sujeito, em relação ao
33 objeto do qual se ocupa. Se você diz que viajou de trem de London à Edinburgh e imediatamente
34 comenta outro tema, eu não sei qual a posição geográfica do seu intelecto em relação ao trem no
35 momento em que você conta! Ainda que você tenha se movido de uma verdade subjetiva à
36 subseqüente, sem ter ciência de imagem, som cheiro, tato, gosto ou outra sensação derivada, posso
37 simplesmente perguntar o que você experiencia enquanto pensa naquele trem. E saberei a posição
38 geográfica de onde o intelecto rememora.
39
40 Espacialidade: cuide de entender como a pessoa realiza seus movimentos intelectivos em
41 consonância com a Categoria Lugar.
42
43 Inversão
44 Como me sinto Recíproca de Inversão
45 sensorialmente Deslocamento Curto
46 ‘LUGAR’ Deslocamento Longo
47
48 Anote também que cada tópico se subdivide por sua vez.
49
50
51 Em somaticidade, o essencial é visível aos sentidos, às emoções, aos pensamentos durante a
52 Espacialidade.. Isso pressupõe o dado fenomenológico: forma, conteúdo, estrutura e
53 funcionamento existencial. O critério de validação é a relação da pessoa com ela mesma,
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 18
1 mensurada através da área de interseção, o que afasta determinantemente o clínico do
2 experimentalismo científico.
3 Não há como especificar as condições exatas do tempo subjetivo e do Lugar (Categorias,
4 Caderno A), bem como da Espacialidade, no que se refere a um modo adequado de existir como
5 pessoa.
6 Isso é variável, circunstancial. O clínico e a pessoa pesquisam endereços existenciais
7 possíveis à representação trabalhada.
8
9
10
11
12
13

14 # 38
15
16 Deslocamento Curto e Deslocamento Longo
17

18
19
20 Deslocamento Curto é como chamo a mudança do enfoque, do ponto de vista, sobre certa
21 situação (O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche; Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss, e O Olho
22 e o Espírito, de Maurice Merleau-Ponty são os referenciais a este submodo).
23 Considere um polígono convexo de no lados:
24
25
26 M(Maria)
27 P(Pedro)
28 C(colega)
29 p(passarinho)
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 19
1 g(gato)
2 x;y;w;z.
3
4 Peço à Maria para me contar tudo novamente, desde antes do convite, mas que o faça do
5 ponto de vista do passarinho que descansa tranqüilo à janela (p); ou do ponto de vista do gato do
6 dono do bar (g), que parece mais interessado no cansaço do passarinho do que no resto; do ponto
7 de vista da colega (c).
8 Maria fará um exercício intelectivo em que sairá de si mesma para poder considerar-se do
9 ponto de vista do outro, conforme escreveu Merleau-Ponty em “O Olho e o Espírito” (p.33 deste
10 caderno). Como um polígono convexo de nove lados possui vinte e sete diagonais (uma diagonal
11 liga dois vértices não adjacentes), e apenas considerando isso, imagine se Maria se deslocar ao
12 longo de cada uma, além das mudanças mencionadas, quantos pareceres terá?
13 E usando o Atalho, por exemplo, podemos pedir que escolha o que preferir.
14 Um pouco mais de Merleau-Ponty para que fique bem caracterizado o Deslocamento
15 Curto, que é a visão de lá para cá a partir do entendimento que se projeta.
16
17 “O pintor ‘emprega seu corpo’ diz Valéry. E, com efeito, não se vê como um Espírito pudesse pintar.
18 Emprestando seu corpo ao mundo é que o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender estas
19 transubstanciações, há que reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é um pedaço de espaço, e
20 de movimento.
21 Basta que eu veja alguma coisa, para saber ir até ela e atingi-la, mesmo se não sei como isso se faz na
22 máquina nervosa. Meu corpo móvel conta no mundo visível, faz parte dele, e é por isso que eu posso
23 dirigi-lo no visível. Por outro lado, também é verdade que a visão pende do movimento. Só se vê aquilo
24 que se olha... Todos os meus deslocamentos por princípio está figuram num canto da minha paisagem,
25 são transladados no mapa do visível. Tudo o que vejo por princípio está a meu alcance, pelo menos ao
26 alcance do meu olhar, assinalado no mapa do “eu posso”. Cada um dos dois mapas é completo. O mundo
27 visível e o mundo dos meus projetos motores são partes totais do mesmo ser.
28 Esta extraordinária superposição, na qual não se pensa bastante, impede concebermos a visão como uma
29 operação de pensamento que ergueria diante do espírito um quadro ou uma representação do mundo, um
30 mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo, embora ele próprio visível, o
31 vidente não se apropria daquilo que vê: só se aproxima dele pelo olhar, abre-se para o mundo. E por seu
32 lado, esse mundo, de que ele faz parte, não é em si ou matéria. Meu movimento... é a seqüência natural e
33 o amadurecimento de uma visão...
34 O enigma reside nisto: meu corpo é o mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas,
35 também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o “outro lado” do seu poder vidente. Ele se
36 vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo...
37 ...
38 Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas; é captado na contextura do mundo, e
39 sua coesão é a de uma coisa. Mas já que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo à volta de si; elas
40 são um anexo ou prolongamento dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte da sua
41 definição plena, e o mundo é feito do próprio estofo do corpo.
42 Estes deslocamentos, estas antinomias são maneiras de dizer que a visão é tomada ou se faz no meio das
43 coisas, de lá onde um visível se põe a ver, torna-se visível por si e pela visão de todas as coisas, de lá
44 onde, qual a água-mãe no cristal, a indivisão do senciente e do sentido persiste.
45 ...
46 Visto que as coisas e meu corpo são feitos do mesmo estofo, cumpre que a sua visão se faça de alguma
47 maneira nelas, ou ainda, que a manifesta visibilidade delas se reforce nele por meio de uma visibilidade
48 secreta: ‘a natureza está no interior’, diz Cézanne. Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão aí diante
49 de nós, aí só estão porque despertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz acolhida.”
50
51 Quando se efetua o Deslocamento Curto, o primeiro passo é escolher um objeto importante
52 no contexto da pessoa. Cuide que o deslocamento se refere a objetos presentes e não a pessoas (o
53 que caracterizaria um movimento inversivo!)
54 Tão logo a pessoa eleja o objeto, deve-se pedir informações sucessivas que provoquem
55 realmente uma versão a partir do objeto no movimento projetivo realizado pela pessoa. Por
56 exemplo: qual o tamanho das coisas, da mesa, das pessoas, do ponto de vista do passarinho? Qual
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 20
1 a sensação de se estar coberto por uma aconchegante plumagem? O peso das asas é maior que o
2 da cabeça?
3 A pessoa precisa realmente se deslocar, como Sidharta faz na história de Hermann Hesse.
4 E se o fizer, ao retornar a si mesmo trará uma segunda opinião muito forte sobre a consideração
5 geral das coisas.
6
7 O filósofo pode se certificar da intensidade do Deslocamento Curto feito através da
8 qualidade das respostas da pessoa. Quanto mais estiver no lugar do outro, maiores serão e mais
9 minuciosas as informações.
10 O Deslocamento Longo, por sua vez, oferece os mesmos procedimentos do anterior.
11 A diferença é que no Curto nós usamos somente os dados captados pela percepção da
12 pessoa, não construímos outros. O gato, a colega, Pedro estavam realmente lá conforme a
13 percepção de Maria.
14 O Deslocamento Longo vai além disso!
15 Insere novos dados abstratos e sensoriais: pessoas, coisas e situações. (A ser trabalhado em
16 aula)
17 Após o estudo minucioso das categorias, sabemos desde a linguagem usual da pessoa
18 (Wittgenstein) até suas circunstâncias de ser-aí no mundo, segundo a nossa ‘medida de todas as
19 coisas’.
20 No caso de Maria houve o seguinte: do modo como seu intelecto se estruturou quanto à
21 problemática, ela arquitetou em sua representação que um modo de poder se relacionar com
22 algum rapaz sem ter as dificuldades usuais seria possível se ela tomasse a iniciativa, escolhesse e
23 fosse ao encontro, ao invés do contrário.
24 E por que isso?
25 O motivo realmente não importa, se não tem uso clínico. No esquema engendrado pelo
26 intelecto de Maria é assim que funcionava! (É surpreendente como as pessoas procuram as
27 respostas que de alguma forma já possuem.)
28 Mas para Maria outras condições precisam estar presentes: o lugar precisaria ser
29 “insuspeito”, como a biblioteca ou a sala de convenções; nunca o bar. Além disso, ela agora
30 sentia necessidade de explicar a ele sua insegurança e, por último, o rapaz deveria ser um tipo
31 “carinhoso”.
32
33 Acordante com a interseção mantida, pude colaborar com Maria na estrutura dessa
34 Construção Compartilhada, que para ela fez sentido e a ajudou a solucionar suas dificuldades.
35 O clínico precisa estar atento para o fato de que para além dos limites da representação da
36 pessoa nada existe; é na representação que o intelecto dela armou o lugar onde acharemos as
37 respostas, via interseção.
38 Maria prefere homens que não a procurem, por estranho que seja; ela é quem precisa
39 procurar. Para ela é assim.
40 Em “Verdade e Método”, Hans-Georg Gadamer, tratando de Heidegger e hermenêutica,
41 escreve algo que nos interessa:
42
43 “Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade das ocorrências e contra
44 a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar seu olhar ‘a coisa mesma’...Este deixar-se
45 determinar assim pela coisa mesma não é evidentemente para o intérprete uma boa decisão inicial,
46 mas verdadeiramente ‘a tarefa primeira, constante e última’. Pois o que importa é manter o olhar à
47 coisa, mesmo através dos desvios a que se vê submetido constantemente o intérprete em virtude de
48 suas próprias ocorrências. Aquele que quer compreender um texto realiza sempre um projetar. Logo
49 que aparece no texto um primeiro sentido, o intérprete projeta em seguida um sentido todo.
50 Naturalmente que o sentido só se manifesta porque já se estuda o texto desde determinadas
51 expectativas relacionadas, por sua vez a algum sentido determinado. A composição do que põe no
52 texto consiste precisamente na elaboração deste projeto prévio, que precisa ser constantemente
53 revisado com base no que resulta conforme se avança na penetração do sentido.”
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 21

2 Gadamer acha isso uma abreviação simplista:


3
4 “Pois toda a revisão do primeiro projeto implica na possibilidade de antecipar um novo projeto
5 de sentido; é bem provável que diversos projetos de elaboração rivalizem uns com os outros até que
6 possa se estabelecer univocamente a unidade do sentido; a interpretação entra sempre com conceitos
7 prévios que precisam ser substituídos progressivamente por outros mais adequados. E é todo este
8 constante reprojetar, o qual compreende o movimento do sentido de compreender e interpretar, o que
9 constituí o processo que descreve Heidegger. Quem intenta compreender está exposto aos erros de
10 opiniões prévias que não se comprovam nas coisas mesmas. Elaborar os projetos corretos e adequados
11 às coisas, que como projetos são antecipações que devem confirmar-se nas coisas, tal é a tarefa
12 constante da compreensão.
13 ...
14 O que se exige é simplesmente estar aberto à opinião do outro ou à opinião do texto. Mas esta
15 abertura implica que se ponha a opinião do outro em alguma classe de relação com o conjunto das
16 opiniões próprias, ou que um se ponha em certa relação com as do outro.
17 ...
18 Aquele que quer compreender um texto tem que estar em princípio disposto a deixar-se dizer
19 algo por ele. Uma consciência formada hermeneuticamente tem que mostrar-se receptiva desde o
20 início à alteridade do texto. Mas esta receptividade não pressupõe nem “neutralidade” frente às coisas,
21 nem tampouco anular-se, mas inclui a matizada incorporação das próprias opiniões prévias e pré-
22 juízos.”
23
24 Podemos fazer aqui uma correlação de Gadamer com a perspectiva, segundo o escrito de
25 Adelheid M. Gealt. Acompanhe:
26
27 A degree of visual perspective is often seen even in primitive art, but linear perspective was not
28 important before the ancient Greeks, who reportedly made extensive studies in perspective (none of
29 which survive). Later the Romans made copies of Greek works and achieved some prespective skills.
30 With the coming of Christianity and its emphasis on the spiritual, artists lost interest in depicting the
31 natural world. Thus perspective was largely ignored until, in the 14th century, a radically new
32 conception of space and form was first reflected in the art of Pietro CAVALLINI and renewed interest
33 in optics and mathematical laws contributed to the resoucers of ILLUSIONISM. Filippo
34 BRUNELLESCHI was one of the first to experiment with perspective theory, followed by
35 MASACCIO and Paolo UCCELLO; Leon Battista ALBERTI, in his treatise On Painting (1435), set
36 forth all that was then known on the subject. Through their versions of The Last Supper, ANDREA
37 DEL CASTAGNO and Domenico GHIRLANDAIO influenced LEONARDO DA VINCI, whose
38 LAST Supper (1494-95; Santa Maria delle Grazie, Milan) achieves a perfectly realized combination
39 of narrative and perspective (both linear and aerial) ideas. Piero Della Francesca, ANTONELLO DA
40 MESSINA, Andrea MANTEGNA, MELOZZO DA FORLI, Donato BRAMANTE, Sandro
41 BOTICELLI, PINTORICCHIO, and Fra Filippo LIPPI made important contributions to the
42 development of spatial ideas.
43
44 In the Netherlands similar progress was being made by such artists as Robert Campin, Jan van EYCK,
45 and Rogier van der WEYDEN. Their approach tended to be less rigidly mathematical and their
46 compositions--often set in vastly receding landscapes--less self-contained. These artists were no less
47 skiled, but their psychology was different and this was reflected in the way they interpreted space.
48 After the early 1400s painters everywhere took pleasure in extreme refinements and visual trickery of
49 various kinds; for example, in van Eyck’s Arnolifini Wedding (1434; National Gallery, London), a
50 convex mirror in the backgroud refllects the scene back to the viewer. In Italy the art of illusionism
51 was carried to ever more breathtaking extremes on baroque ceilings painted with vast flocks of saints
52 and angels being wafted upward into heaven. Annibale Carraci (see CARRACCI family), Guido
53 RENI, Pietro da CORTONA, and Andrea Pozzo excelled in feats of this kind.”
54
55
56 Considere o escrito retirado de “O Estrangeiro” de Albert Camus:
57
58 “Mesmo no banco dos réus, é sempre interessante ouvir falar de si mesmo. Durante as falas do
59 promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito em mim, e talvez até mais do que do
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 22
1 meu crime. Eram, aliás, assim tão diferentes estes discursos? O advogado levantava os braços e
2 admitia a culpa, mas com atenuantes. O promotor estendia as mãos e denunciava a culpabilidade, mas
3 sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações,
4 às vezes eu ficava tentado a intervir e meu advogado me dizia, então “cale-se, é melhor para o seu
5 caso”. De algum modo, pareciam tratar deste caso à margem de mim. Tudo se desenrolava sem a
6 minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha
7 vontade de interromper todo mundo e dizer: “Mas, afinal, quem é o acusado? É importante ser o
8 acusado. E tenho algo a dizer”. Mas, pensando bem, nada tinha a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o
9 interesse que se tem em ocupar as pessoas não dura muito tempo. Por exemplo, o discurso do
10 promotor me cansou logo. Apenas me impressionaram ou despertaram meu interesse alguns
11 fragmentos, gestos, ou tiradas inteiras, mas desvinculadas do conjunto.
12 A essência do seu pensamento, se compreendi bem, é que eu premeditara o crime. Pelo menos,
13 foi isso que tentou demonstrar. Como ele próprio dizia:
14 — Provarei o que digo, senhores, e eu o farei duplamente. À luz ofuscante dos fatos, em primeiro
15 lugar, e, em seguida, sob a iluminação sombria que me será fornecida pela psicologia desta alma
16 criminosa.”
17
18 Pesquisa em aula:
19 1. Houve deslocamentos por parte do réu?
20 2. O que pode ser colhido do texto com os exames categoriais?
21
22 Aqui vamos retomar o Deslocamento Longo.
23 Imagine que o seu intelecto tem a capacidade de se projetar, saindo figuramente de onde
24 habita, e podendo conceber o mundo em uma representação reversa: de lá para cá (como vimos
25 em Merleau-Ponty).
26 Franz Kafka explana este tópico em “A Metamorfose”, em que Gregor Samsa acorda um
27 dia e se percebe transformado em uma espécie de barata gigante. O resto da existência vive então
28 recluso em um quarto.
29
30 “Cada vez que ela entrava no quarto (a irmã que o atendia), Gregor se sentia terrivelmente mal. Mal
31 entrava, e a despeito do cuidado que sempre tinha de poupar aos outros a vista de seu interior, não
32 procurava sequer fechar a porta atrás de si; corria, ao contrário, para a janela, abria-a às pressas, com um
33 simples empurrão, como para escapar a uma sufocação iminente, lá permanecia, durante um minuto, por
34 mais frio que fizesse, a respirar profundamente. Duas vezes por dia, aterrorizava Gregor com a corrida e
35 o barulho que fazia. Ele encolhia-se a tremer todo o tempo, sob o sofá; mas sabia que a irmã o teria
36 poupado de tudo aquilo, se pudesse suportar ficar sozinha com ele , no quarto, com a janela fechada.
37 Certo dia - um mês, mais ou menos, após a transformação de Gregor, quando a irmã já não devia mais ter
38 razão para assustar-se com sua aparência - ela apareceu um pouco mais cedo do que habitualmente, e
39 encontro-o olhando para fora da janela, imóvel, numa posição de molde a inspirar terror. Se ela não
40 tivesse querido entrar isso não o teria surpreendido, pois a sua posição a impedia de abrir a janela.
41 Ela, porém, não só deixou de entrar como também recuou de um salto, batendo e trancando a porta
42 atrás de si; dir-se-ía que Gregor era um estranho que estivesse a sua espera, para atacá-la. Ele, por certo
43 meteu-se imediatamente de baixo do sofá, mas teve de esperar até o meio-dia para que Grete voltasse,
44 sendo que quando apareceu de novo, parecia estranhamente perturbada. Ele compreendeu que seu aspecto
45 causava repulsa à pobre menina; que seria sempre assim - e que ela precisava resistir violentamente ao
46 impulso de fugir, logo que lançava o olhar sobre a parte mais fina de seu corpo, mal encoberta pelo sofá.
47 A fim de poupar à irmã tal visão, pôs um lençol sobre as costas, arrastou-se até o sofá - tarefa que lhe
48 ocupou algumas horas, e estendeu-se de tal modo que a irmã nada pudesse ver sob o sofá, mesmo que se
49 abaixasse.”
50
51 Bem, Kafka se deslocou de si mesmo em direção à irmã e em direção ao enorme inseto;
52 para poder nos detalhar os sentimentos e as reflexões de ambos, ele foi um pouco Grete e um
53 pouco Gregor. Precisou vivenciar o que é ser uma barata enorme e desajeitada, suas dificuldades
54 e suas perplexidades em um corpo metamorfoseado...
55
56 Considere o inseto no ponto X:
57
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 23
1 Este paralelepípedo retângulo é um modelo do quarto de Gregor Samsa.
2 Para Kafka ter construído sua história, projetou-se ao longo de A’, B’, C’, e D’; A, B, C,
3 D, também. Mas além disso, ele se colocou no lugar de alguém que presenciava o que havia entre
4 Gregor e Grete. Criou toda uma dramatização, um contexto, uma situação. Realizou um
5 Deslocamento Longo, pois inventou dados que não têm correspondência na realidade exterior
6 (Deslocamento Curto, se tivesse).
7 Também fez um Deslocamento Longo Hermann Hesse:
8
9 “Na entrada da garganta, perto do penhasco escuro, parei hesitante e olhei em volta.
10 O sol brilhava neste mundo verde e agradável, sobre o prado flutuava cintilante a grama nova e
11 castanha. Ali havia bem-estar, ali havia cor e prazer, ali a alma sussurrava em tom profundo e
12 apaziguada, como um zangão em pleno perfume e luz. E eu talvez fosse um tolo em querer deixar tudo
13 isso, para subir a montanha.”
14
15 Porém, lá onde consta o “X” Kafka somente observou afastado dele, enquanto Hesse
16 entrou realmente na pele do personagem, viu com seus olhos e sentiu com sua pele tudo o que nos
17 reporta, viveu tudo o que o personagem viveu. Neste deslocamento a vivência é mais intensa e tem
18 o dom de se mesclar à realidade.
19 A diferença entre Kafka e Hesse que nos interessa aqui é a diferença entre quem é
20 espectador em uma peça teatral e quem é ator.
21 Depois dos estudos de Nietzsche sobre o teatro em forma de tragédia, na velha Grécia, a
22 função de catarse nunca mais se desvinculou dessa arte.
23 O romeno Jacob-Levy Moreno em sua obra Psychothérapie de groupe et psychodrame
24 (1965) transforma as lições iniciais e apontamentos de Nietzsche em poesia bruta maravilhosa!
25 Moreno traz as pessoas ao palco onde elas vivenciam um teatro espontâneo. A partir de 1921, em
26 Viena, surge o teatro improvisado em que os cenários são construídos pelo público, que também
27 participa da encenação. Um tema qualquer é proposto e os atores o encenam à sua maneira.
28 Moreno utilizou muito a inversão de papéis: a pessoa sai de si mesma e coloca-se no lugar da
29 outra.
30 Recentemente, Steve Jackson, introdutor da RPG levou o teatro de Moreno aos
31 adolescentes fazendo não apenas que incorporem personagens exóticos, mas que os criem com
32 personalidades e características sobre-humanas. As crianças se caracterizam em vestimentas
33 esdrúxulas e brincam horas e horas seguidas num teatro espontâneo belo e dinâmico, onde o
34 desenrolar segue a contingência da vida.
35 Quando fazemos um Deslocamento Longo em filosofia clínica estamos acompanhando e
36 complementando o trabalho desses homens. Contudo, a nossa especificidade é outra.
37 Se você fosse Grete, qual seria o seu comportamento em relação ao irmão Gregor,
38 transformado em barata? E, num caso infeliz, se fosse Gregor, como gostaria de ser tratado?
39
40 Pesquisa em aula:
41 1. Prática do Deslocamento Longo.
42

43 # 39
44
45 15 . Semiose
46
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 24

1 Jacques Louis David


2
3 Diz respeito ao que é usado como signo ou sinal: frases em forma de hipérboles ou
4 parábolas? Um beijo? A mão que aponta uma paisagem bucólica? Braços que protegem? Um
5 olhar de aprovação? O dobrar dos sinos? O som do dobrar dos sinos ao longe? O sentimento
6 íntimo de gratidão por uma sopa no inverno? O sabor delicado dos morangos? O que a pessoa
7 utiliza para significar nós denominamos aqui de Semiose (uma adaptação dos trabalhos de
8 Morris).
9 Logo, Semiose é o que você utiliza para dar sentido ao que quer comunicar.
10
11 “Packter - ... os termos que uso para dar vazão aos conceitos que habitam minha EP, isso
12 é Semiose em clínica. Se amo minha mulher e quero expressar isso que me vai na EP, posso
13 utilizar: beijo, flores, carinho tátil íntimo, passeio, conversa, riso, estar junto etc. São, todos,
14 dados de Semiose.
15 Aluna - Os submodos são dados de Semiose?
16 Packter - Quando usados pela pessoa, sim. Ao menos a parte deles que é traduzida em
17 termo.
18 Aluna - Qual a diferença?
19 Packter - Uma diferença fundamental é que os dados de Semiose em geral são submodos
20 informais usados pela pessoa; outra coisa importante é que Semiose é o que eu uso para
21 expressar: beijo, por exemplo. Já um submodo implica em um procedimento. Para os
22 ensinamentos iniciais, esses pareceres acho que são suficientes.
23 ...
24 Aluna - Lúcio, é possível que os dados de Semiose que eu uso estejam provocando
25 mudanças na minha EP que me causam dor?
26 Packter - Eu acredito nisso. Tu podes me dar um exemplo?
27 Aluna - Gostar muito de um cara e ser impaciente com ele.
28 Packter - Ser impaciente não é um dado de Semiose, está mais para submodo informal.
29 Aluna - ... quando ele diz algo gentil eu falo algo seco que corta.
30 Packter - Como o quê?
31 Aluna - “Que maluquice, que idiotice!!”
32 Packter - Bem, dado de Semiose verbal.
33 Aluna B - E corporal, não?
34 Packter - Provavelmente, sim. Mas não tenho ainda como saber.
35 Aluno - De repente o dado não-verbal de Semiose até pode estar confrontando o dado
36 verbal.”
37
38 Considere a somaticidade em Fernando Pessoa a partir do dado de Semiose que ele utiliza:
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 25

2 “Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um conceito superficial e decorativo. Sou
3 sujeito a paixões visuais. Guardo intacto o coração dado a mais irreais destinos.
4 Não me lembro de ter amado senão o “quadro em alguém, o puro exterior - em que a alma não
5 entra mais que fazer esse exterior animado e vivo - e assim diferente dos quadros que os pintores fazem.
6 Amo assim: fixo, por bela, atraente, ou, de outro qualquer modo, amável, uma figura, de mulher
7 ou de homem - onde não há desejo, não há preferência de sexo - e essa figura me obceca, me prende, se
8 apodera de mim. Porém, não quero mais vê-la, nem olhar nada que mais houvesse que a faculdade de
9 vir a conhecer e a falar à pessoa real que essa figura aparentemente manifesta.
10 Amo com o olhar, e nem com a fantasia. Porque nada fantasio desse figura que me prende. Não
11 me imagino ligado a ela de outra maneira porque o meu amor decerto...Não me interessa saber quem é,
12 que faz, que pensa a criatura que me dá para ver o seu aspecto exterior.
13 A imensa série de pessoas e de coisas que forma o mundo é para mim uma galeria intérmina de
14 quadros, cujo interior não me interessa. Não me interessa porque a alma é monótona e sempre a mesma
15 em toda a gente; diferem apenas as suas manifestações pessoais, e o melhor dela é o que transborda
16 para o sonho, para os modos, para os gestos, e assim entra para o quadro que me prende, e em que
17 diviso cenas constantes a essa afeição.
18 Assim vivo, em visão pura, o exterior animado das coisas e dos seres, indiferente, como um deus
19 de outro mundo, ao conteúdo-espírito deles. Aprofundo o ser próprio só em extensão, e quando anseio a
20 profundeza, é em mim, e no meu conceito das coisas, que a procuro. Que pode dar-me o conhecimento
21 pessoal da criatura que assim amo em decór? Não uma desilusão, porque, como nela só amo o aspecto,
22 e nada dela fantasio, a sua estupidez ou mediocridade nada tira, porque eu não esperava nada senão o
23 aspecto persistente. Mas o conhecimento pessoal é nocivo porque é inútil, e o inútil material é nocivo
24 sempre. Saber o nome da criatura para quê? E é primeira coisa que apresentado a ela, fico sabendo.
25 O conhecimento pessoal precisa ser, também, de liberdade de contemplação, a que o meu gênero
26 de amar deseja. Não podemos fitar, contemplar em liberdade quem conhecemos pessoalmente.
27 O que é supérfluo é a menos para o artista, porque, perturbando-o, diminui o efeito.
28 O meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado pelas aparências e da
29 manifestação das coisas - objetivista dos sonhos, amante visual das formas e dos aspectos da natureza.
30 Não é um caso do que os psiquiatras chamam de erotomania. Não fantasio, como no onanismo
31 psíquico; não me figuro em sonho de amante carnal, nem sequer amigo de fala, de criatura que fito e
32 recordo: nada fantasio dela. Nem, como o erotómano, a idealizo e a transporto para fora da esfera da
33 estética concreta: não quero dela, ou penso dela, mais que o que me dá aos olhos e à memória direta e
34 pura do que os olhos viram.
35 ...
36 Para mim a humanidade é um vasto motivo de decoração, que vive pelos olhos e pelos ouvidos,
37 e, ainda, pela emoção psicológica. Nada mais quero da vida senão assistir a ela. Nada mais quero de
38 mim senão o assistir à vida.
39 Sou como um ser de outra existência que passa indefinidamente interessado através desta. Em
40 tudo sou alheio a ela. Há entre mim e ela como um vidro.
41 Quero esse vidro sempre muito claro, para a poder examinar sem falha de meio intermédio; mas quero
42 sempre o vidro”
43
44 Ora, veja!
45 Imagine a bela porcaria que um terapeuta somático apressado ou pouco avisado faria
46 aqui.
47 Para começar, observe os dados de Semiose.
48 Ele utiliza a palavra escrita, não o toque epitelial.
49 Fernando parece saber tanto da vivência sensorial quanto sei da experiência de “amor
50 visual” dele.
51 Ele e o terapeuta vivem em mundos diferentes unidos por uma, e uma única coisa,
52 conforme a matemática do russo Georg Cantor : a interseção.
53 Estou sendo repetitivo, chato mesmo, e minha intenção é que você perceba a correlação
54 entre a primeira parte da Filosofia Clínica, o logicismo formal, e a segunda, a Esteticidade, que
55 estamos estudando agora. Esta correlação colocará você em contato epitelial. Com isso, a terceira
56 e última parte, a Matemática Simbólica, será agradável e tranqüila. Pode cobrar...
57 Então, vamos lá: é evidente que tenho dados apenas iniciais de como o Fernando interage
58 em sua corporeidade. Muito significados, mas ainda assim iniciais.
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 26

2 Pesquisa em aula:
3 1.Trace um esboço da Estrutura de Pensamento de Fernando Pessoa (considere as
4 limitações óbvias).
5 2.Em somaticidade, qual o caminho provável aqui?
6
7 “Packter - Olha, tem muita coisa que nós precisamos considerar aqui. Se o dado de
8 Semiose que eu uso para expressar carinho por minha mulher é o dado escrito, na forma exata de
9 poesia, enquanto a EP dela apenas tem como receber apropriadamente a manifestação de carinho
10 por via do tato, que tal? A confusão pode se armar por aí.
11 Pode acontecer também de usarmos o mesmo dado de Semiose mas associados a tópicos
12 diferentes da EP: pré-juízo, paixão dominante, busca ou todo o resto, até que pode.
13 Existe um tipo de pessoa que desvaloriza, subjetivamente, qualquer dado expresso - pois
14 avalia sua importância somente enquanto detida em conceito, nunca mesmo em termo.
15 ... o filósofo clínico deve pesquisar o que a pessoa usa como dado semiótico de expressão:
16 verbal, por exemplo, e que tipo de verbal... poesia, leitura de poesia, poesia declamada e assim vai.
17 Mais do que tudo, o filósofo precisa entender como isso está embutido na EP! Porque quando
18 tomamos uma coisa qualquer ilhada na EP o valor clínico é um redondo zero.
19 ... em algumas ocasiões a gente encontrará Eps bem desenvolvidas que só fazem conseguir
20 sofrimento existencial apenas porque utilizam dados de Semiose que muito pouco têm a ver com
21 elas. Uma tristeza, bah!
22 Há semioses estúpidas, patetas até o fim. Gente que agride quando deveria acariciar. Há
23 fenômenos que são realmente contrastantes em clínica.”
24
25 # 40
26
27 16. Significado
28
29 Está no uso que a pessoa faz do signo. Se alguém se aproxima de você e toca sua pele com
30 carinho, beija suavemente seu rosto de um modo espontâneo, e afirma com voz compassada e
31 calma que gosta muito de você, ela significou a comunicação.
32 Você, ao receber a mensagem, pode percepcionar e montar uma representação de estima e
33 carinho, ou satisfação, ou amor. Você está significando a mensagem. O significado é o sentido
34 que você cria.
35
36 “Packter - ...há muitas maneiras de se entender as coisas que nos chegam, há muitos
37 modos de cada um de nós compreender os sinais que são emitidos, os signos. Cada um de nós
38 provavelmente entende o termo amor, que digo agora, à sua maneira, cada um curte o solzinho de
39 inverno de um jeito próprio e o representa assim para si mesmo. Significado é o sentido que a
40 pessoa concede aos dados de Semiose que lhe chegam. Nós vamos agora em seguida fazer alguns
41 trabalhos práticos muito bonitos sobre isso. Quero que cada um de vocês compreenda a
42 importância e a extensão do Significado em clínica.
43 ...
44 Aluna - ... há tempo que estou procurando vivenciar na prática o que a gente tem estudado
45 aqui. Eu acho lindo isso tudo. A Filosofia Clínica é linda, é o que eu sinto. Mas todos esses dados
46 de Semiose que são passados, aula, aula, mais aula, me deixam um pouco confusa.
47 Packter - Os dados de Semiose?
48 Aluna - Acho que... ah, os submodos informais, não é?
49 Packter - Bem, do que se trata, então?
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 27
1 Aluna - Como é que eu junto tudo? Todos esses tópicos e esses submodos. Sabe, tem horas
2 que me dá um desespero. Os meses de curso estão passando e eu sinto que talvez não esteja pronta
3 para o estágio final.
4 Packter - Sim... bom, com base na leitura informal de tua EP, após esses meses que a
5 gente tem trabalhado juntos, acredito que posso agendar algumas informações que talvez te sejam
6 úteis. Queres experimentar?
7 Aluna - Ah! (afirmativamente)
8 Packter - É simples e...
9 Aluno - ... calmo como água de poço.
10 Packter - Pois é. Olha, quando uma pessoa expressar algo, um desenho, um riso, uma
11 lágrima, uma dor sincera ou fingida, um temor, um juízo, um modo de ser, um espirro, seja o que
12 for, entenda profundamente, com a graça de Deus e demais anjinhos do céu, que essa pessoa
13 diante de ti está gritando, à maneira dela, por favor, à maneira dela, que “isso é assim para ela”.
14 Isso não vai solto no ar, isso é o que surge como resultado da interseção da EP dessa pessoa com
15 alguma outra EP ou consigo mesma. Tem mais. Entenda também que esse “isso é assim” está
16 vindo de algum lugar da EP, de um tópico ou de vários tópicos ou da interseção de muitos tópicos,
17 e que se expressa graças a um submodo ou a vários submodos informais... bem, é evidente que
18 não estou pregando um modelo universal porque não acredito que aqui sirva algum modelo
19 universal, estou agendando algo segundo minha vivência nas aulas, e considero esse um dos
20 primeiros momentos de aprendizagem. Em seguida, e agora especificamente para ti, é a prática
21 em clínica quem cuidará de dar uma unidade aos ensinamentos.
22 Aluno - Lúcio, tem uma coisa aí. O submodo informal que a pessoa está usando pode estar
23 triturando a torcer o “isso é assim para mim” que está na EP da pessoa e que ela queira
24 expressar.
25 Packter - Olha, obrigado, sinceramente, por fazer uma observação inteligente como esta...
26 isso que tu disseste existe muito, por atacado. E fica difícil muitas vezes a gente perceber quando
27 isso está acontecendo. Mas ainda assim, triturado e torcido, é aquela a expressão da pessoa diante
28 do que estava em interseção com ela. O “isso é assim para ela” quer dizer, portanto, que é aquele
29 o modo de ser no mundo que ela encontrou para ser.
30 Aluno - ... você está recomendando uma leitura informal da EP da pessoa?
31 Packter - Quando for possível e oportuno, sim.
32 Aluno - Quando é possível e oportuno?
33 Packter - Simples, quando para a tua EP for assim, talvez de fato assim seja...
34 profeticamente falando.”
35
36 Vamos começar juntando alguns trechos das “Investigações Filosóficas”, de Wittgenstein:
37
38 “A linguagem é um labirinto de caminhos. Você entra por um lado e sabe onde está; você chega por
39 outro lado ao mesmo lugar e não sabe mais onde está...
40 Imagine que você fosse pesquisador em um país cuja língua lhe fosse inteiramente
41 desconhecida. Em que circunstância você diria que as pessoas ali dão ordens, compreendem-nas,
42 seguem-nas, se insurgem contra elas e assim por diante? O modo de agir comum a todos os homens
43 é o sistema de referência, por meio do qual interpretamos uma linguagem desconhecida.
44 Imaginemos que as pessoas naquele país executassem atividades humanas habituais, e, ao fazê-
45 lo, se utilizassem ao que tudo indica, de uma linguagem articulada. Se observamos suas atividades,
46 é compreensível que nos pareçam ‘lógicas’, vemos que é impossível. Pois entre eles não existe
47 nenhuma conexão regular do que é falado, dos sons, com as ações; contudo, esses sons não são
48 supérfluos; pois se amordaçamos, por exemplo, uma dessas pessoas este fato terá as mesmas
49 conseqüências que têm para nós. Sem aqueles sons, suas ações se tornariam confusas - se podemos
50 dizer assim.
51 Diríamos aquilo que essas pessoas têm uma linguagem, ordens, comunicações etc?
52 Para aquilo que chamamos de “linguagem”, falta a regularidade. Elucido, pois, o que significa
53 “ordem” e “regra” por meio de “regularidade”? Como elucido a alguém o significado de “regular”,
54 “uniforme”, “igual”? A alguém que, digamos só fala francês, elucidarei estas palavras francesas
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 28
1 correspondentes. Mas, a quem ainda não possui estes conceitos, ensinarei a empregar as palavras por
2 meio de exemplos e de exercícios. E, ao fazê-lo, não lhe transmito menos do que eu próprio sei.
3 ...
4 Mas você elucida para ele realmente o que você compreende? Você não o deixa adivinhar o
5 essencial? Você lhe dá exemplos - ele, porém , deve adivinhar sua tendência, adivinhar, pois, sua
6 intenção.” — Toda elucidação que posso dar a mim mesmo dou-a também a ele.
7 “Ele adivinha o que quero dizer” significaria: pairam em seu espírito diferentes interpretações de
8 minha elucidação e ele se decide por uma delas ao acaso. Ele poderia nesse caso perguntar e eu
9 poderia, e iria, responder-lhe.”
10
11 Logo, uma coisa é por demais evidente: a comunicação tem em si mesma um significado
12 próprio, ela pode criá-lo; é uma tradução de outro significado que ela está representando.
13 Se o Assunto Imediato é a falta de significado, isso evidencia que naquele momento o
14 objeto que ocupa o intelecto é aquele; de agora em diante, quando me referir a um objeto que está
15 na mente, aqui e agora, estou falando de intencionalidade.
16 Afirme ser a questão básica da pessoa a relação de infância mantida com os pais (logo, a
17 intencionalidade estará voltada a isso) e então colete dados a respeito, e bem cedo a pessoa
18 realmente passará a considerar assim sua existência. Ou então deduza que a problemática está
19 associada a vidas passadas (Pitágoras disse já ter vivido em outras vidas como porco e cachorro) e
20 que na última vida ela deixou uma dívida afetiva enorme... Novamente a intencionalidade se
21 dirigirá a isso e tentará juntar provas a respeito.
22 É bem determinado ao clínico, através da qualidade de interseção, se o que diz vai
23 encontrar algo ou não com o qual possa formar vínculo na representação (Schopenhauer) da
24 pessoa. Se na minha representação algo feito a transmigração das almas é tido como absurdo, o
25 clínico vai acabar falando sozinho.
26 A Plasticidade do intelecto é de uma beleza e de um tal maleabilidade que faz lembrar a
27 massinha colorida usada pelas crianças no colégio. Pelo próprio caráter que a define ela pode ser
28 transformada em uma casa, em uma árvore e muitas outras coisas dentro da preferência de quem
29 a modela.
30 O que me perguntam muito quando estou nesta parte dos ensinamentos é se a mente pode
31 tudo.
32 Em minha opinião, pode muito dentro de seus limites e de seu desenvolvimento, e sempre
33 há algo que posso em cada instante. Tal questão, como se sabe, foi banida pelo Círculo de Viena
34 por nos remeter a um nominalismo sem fim.
35
36 Vamos estudar detidamente a oração na vertical:
37 “Eu”: o intelecto da pessoa se refere a ela num todo. Após toda uma triagem complexa, foi
38 esta a palavra escolhida (termo) que se adequa à comunicação no momento.
39 “gosto”: a pessoa estima, acha bom (se o termo for equívoco, podemos usar Em Direção às
40 Sensações ou pedir definições que as representações (Schopenhauer) possam entender mais
41 singularmente. Seu intelecto escolheu a palavra mais conveniente às intenções do momento.
42 “de amar”: ela nos comunica que sabe o que é o amor, que já experienciou este
43 sentimento, que sabe defini-lo, tem uma idéia (conceito ou verbo mental) bem classificada que lhe
44 permite combinar tal termo a outros de modo a construir deduções
45 Tudo até aqui são apenas hipóteses.
46 “Eu gosto de amar” é o resultado das experiências desta pessoa; é o produto de
47 formulações complexas que são assim abreviadas e transmitidas. Contudo, é o significado
48 expresso em um momento.
49
50 Roland Barthes, tratando de semiótica, presenteia o filósofo com um escrito que pode ser
51 muito bem considerado em clínica:
52
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 29
1 “Suponhamos que um estudante queira empreender a análise estrutural de uma obra literária. Vamos
2 supô-lo suficientemente informado para não se admirar das divergências de abordagem por vezes
3 reunidas indevidamente sob a capa do estruturalismo; suficientemente sábio para não desconhecer
4 que em análise estrutural não existe nenhum método canônico que possa ser comparado ao da
5 sociologia ou da filologia, e concebido de tal forma que, ao ser aplicado automaticamente corajoso
6 para prever os erros, as “panes”, decepções e desânimos fatalmente suscitados pela viagem
7 analítica; bastante independente para se atrever a explorar a sensibilidade estrutural, a intuição dos
8 múltiplos sentidos que nele possam existir; e finalmente bastante dialético para se persuadir de que
9 não se trata de obter uma explicação do texto, um “resultado positivo” (um significado final que
10 seria a verdade da obra ou sua determinação); que se trata, pelo contrário, de penetrar pela análise
11 (ou por algo parecido com análise), no jogo do significante...”
12
13 Observe também que o corpo, ao sofrer modificações fisiológicas, passa a agendar
14 significados em si mesmo.
15 Nem sempre isso se relaciona à Estrutura de Pensamento já organizada. Ocorre às vezes
16 que cirurgias plásticas, experiências com alucinógenos e outras, podem dar à parte da pessoa que
17 denominados corpo uma prioridade sobre as demais partes (abstração, espírito, alma, Deus-
18 conforme cada um de nós acredita existir ou não).
19 Um longo carinho de amor ou as dores pouco suportáveis de um câncer terminal são
20 exemplificações disso.
21
22 Significado: qual o sentido que a pessoa dá aos signos, dados ou sinais de Semiose que lhe
23 chegam, na Categoria Relação, dentro dos Assuntos Imediato e Último tratados.
24 Por exemplo: o marido dá a mão à mulher quando ambos andam à rua. Ela significa este
25 signo das maneiras a seguir:
26 a. Posse por parte do marido.
27 b. Sente-se presa, atada.
28 c. O marido é inseguro de sua relação com ela.
29
30 O filósofo precisa necessariamente, via interseção, conhecer o Significado que a pessoa
31 reputa a alguns signos específicos e clinicamente importantes.
32
33 Cuide de observar o escrito de M. Foucault retirado de “As Palavras e as Coisas”:
34
35 “... o signo pode ter duas posições: ou faz parte, a título de elemento, daquilo que ele serve para designar;
36 ou é dele real e atualmente separado. Na verdade, esta alternativa não é radical; pois o signo, para
37 funcionar, deve estar ao mesmo tempo inserido no que ele significa e dele distinto. Com efeito, para que
38 o signo seja o que é, é preciso que ele seja dado ao conhecimento ao mesmo tempo que aquilo que ele
39 significa.
40 ..., para que um elemento de uma percepção possa tornar-se seu signo, não basta que dela faça parte; é
41 preciso que seja distinguido à título de elemento e destacado da impressão global a que estava
42 confusamente ligado; é necessário, pois, que ela seja dividida, que a atenção incida em uma dessas
43 regiões imbricadas que a compões e que delas tenha sido isolada. A constituição do signo é, pois,
44 inseparável da análise... Porque o espírito analisa, o signo aparece. Porque o espírito dispõe de signos, a
45 análise não cessa de prosseguir.
46 ...
47 A partir do século XVII, dá-se um valor inverso à natureza e à convenção: natural, o signo não é mais que
48 um elemento subtraído às coisas e construído como signo pelo conhecimento. Ele é pois prescrito, rígido,
49 incômodo, e o espírito não pode assenhorar-se dele.
50 ...
51 Com efeito, que o signo possa ser mais ou menos provável, mais ou menos afastado daquilo que significa,
52 que possa ser natural ou arbitrário sem que sua natureza ou seu valor de signo seja afetado por isso - tudo
53 isso mostra bem que a relação do signo com seu conteúdo não é assegurada na ordem das próprias coisas.
54 A relação do significante com o significado se aloja agora em um espaço onde nenhuma figura
55 intermediária assegura mais seu encontro: ela é, no interior do conhecimento, o liame estabelecido entre a
56 idéia de uma coisa e a idéia de uma outra.”
57
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 30
1 A Lógica de Port-Royal o diz: “O signo encerra duas idéias, uma da coisa que representa,
2 outra da coisa representada...”
3
4 Interessa ao filósofo clínico que este escrito de Foucault, mais o que estudamos do
5 empirismo e da filosofia analítica da linguagem, mais os critérios epistemológicos, sirvam de
6 farol; assim, a aplicação clínica da Matemática Simbólica encontrará correspondência,
7 verificabilidade e identidade em sua reciprocidade na prática. Se não for assim, conforme os
8 nossos objetivos, estaremos fazendo mera retórica vazia.
9
10 # 41
11
12 17. Padrão - Armadilha Conceitual
13
14 Em setembro de 1990 estava indo de trem para Glasgow, velha cidade ao sul da Escócia.
15 Voltava das Highlands onde havia o festival de danças.
16 Minha amiga, Maresa, tinha me dado um escrito de um médico chamado Edward Bach,
17 chamado “Heal Thyself”. Passei lendo e pensando sobre o texto de Edinburgh até Glasgow:
18
19 “Disease is in essence the result of conflict between Soul and Mind, and will never be eradicated except
20 by spiritual and mental effort. Such efforts, if properly made with understanding as we shall see later,
21 can cure and prevent disease by removing those basic factors which are its primary cause. No effort
22 directed to the body alone can do more than superficially repair damage, and in this there is no cure,
23 since the cause is still operative and may at any moment again demonstrate its presence in another
24 form. In fact, in many cases apparent recovery is harmful, since it hides from the patient the true cause
25 of his trouble, and in the satisfaction of apparently renewed health the real factor, being unnoticed, may
26 gain in strength. Contrast these cases with that of the patient who knows, or who is by some wise
27 physician instruted in, the nature of the adverse spiritual or mental forces at work, the result of which
28 has precipitated what we call disease in the physical body.
29 If that patient directly attempts to neutralise those forces, health improves as soon as this is successfully
30 begun, and when it is completed the disease will disapper. This is true healing by attacking the
31 stronghold, the very base of the cause of suffering.”
32
33 Em 5 de julho de 1995, gravamos a aula que é transcrita abaixo, em Porto Alegre, no
34 Instituto Packter, e que serve como complemento às palavras de Bach:
35
36 “Packter — ... a ‘autenticidade’ e a ‘inautenticidade’ em Heidegger. A gente sente na pele,
37 em um desconforto íntimo, alguma coisa errada lá dentro. É claro que a sociedade não nos
38 permite abrir o peito por aí, mas estou falando de algo maior! Acho que o clínico precisa chegar
39 mais perto do próprio coração, tanto quanto puder, tá? Olha aqui, a pessoa lerá isso no teu olho,
40 na tua pele, em cada célula do corpo que estiver em interseção. Rir de historinhas sem graça,
41 mentirinhas, mostrar quanto se é simpático...isso, podem ter certeza, será muito bem percebido
42 pela pessoa...mas, não, tudo bem, vocês também não precisam ser perfeitos. Só precisam ser
43 sempre vocês mesmos. Ouçam o que eu digo literalmente, tá legal?”
44
45 Marcuse, Santayana, Walter Benjamin, Michel Foucault, entre outros, mostraram a
46 impotência clínica diante de Armadilhas Conceituais que não nos deixam boas opções às vezes, tal
47 qual Prometeu, de Ésquilo.
48 Considere um pequeno peixe que tenha vivido sempre no interior de um aquário. Um dia,
49 ele começou a se sentir existencialmente mal... não sentia mais prazer em estar vivo, as coisas do
50 ambiente não lhe despertavam mais interesse. Apenas se manter vivo era algo aborrecedor.
51 O médico peixinho disse que ele precisava de exercício; o psicólogo peixinho afirmou que
52 aquilo se devia à antiga relação mal resolvida dele com seus pais; o padre peixinho explicou que
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 31
1 isso acontece muito com os fracos de fé; o feiticeiro peixinho afirmou a presença de uma praga;
2 os amigos do peixinho tentaram fazer com que pensasse de modo positivo...e assim por diante.
3 Então, o filósofo peixinho disse o seguinte:
4 Era uma vez um peixinho preso em uma cadeia. Na verdade, ele nada sabia sobre isso,
5 pois nascera ali e nada além daquilo ele conhecia. Então todos os problemas que precisasse
6 resolver, ele fazia assim: atribuía a algum objeto a questão que o definia como um problema; e
7 em seguida buscava dentro das grades na qual vivia um modo de resolução. De um modo geral, os
8 problemas surgiam conforme as especificidades lógicas do meio e eram resolvidas também
9 inerentemente conforme tais especificidades. Por exemplo: dado um problema gramatical [A + B],
10 somente se poderia resolvê-lo através de dados que respeitassem a estruturação lógica que
11 conferisse coerência à questão [A + B]. Então, às vezes um peixinho poderia passar a vida toda
12 muito infeliz lutando contra seus irmãos peixinhos, alegando questões religiosas, raciais,
13 econômicas, sexuais, políticas, que na verdade seriam apenas questões secundárias, sintomáticas,
14 de uma ou mais de uma questão verdadeiramente fundamental: a estrutura carcerária.”
15
16 Esta fábula já foi visitada no Mito da Caverna; Cândido, de Voltaire; em Ilusões, de
17 Richard Bach; em centenas de contos e escritos.
18 Quando um peixinho faz um tratamento médico, ele aceita que, via interseção, sujeito de
19 objeto relacional (que somente pode sê-lo se inserido em um sistema que o estrutura) existirá
20 provavelmente alguma espécie de Busca subjetiva. Acontece que às vezes o próprio sistema, a
21 própria estrutura limita muito a resolução possível a um número pequeno, ainda que o peixinho
22 nada saiba. Por exemplo, ele poderia:
23 a . Crer nos desígnios de Deus.
24 b. Fazer tratamento químico médico.
25 c. Conformar-se.
26 d. Entender, na terapia, que a vida é assim mesmo.
27
28 Assim, em graus diferentes de intensidade, nós vivenciamos a cada momento uma
29 Armadilha Conceitual - que pode, mesmo sem ser identificada, tornar a vida inviável, triste, feliz
30 etc...
31
32 A Armadilha Conceitual nem sempre pode ser reconhecida no trabalho clínico. Como
33 qualquer outra coisa, é via interseção que o filósofo e a pessoa chegarão à identificação subjetiva
34 sobre qual a (ou as) Armadilha Conceitual que a pessoa se encontra.
35 Suponha um país de cegos onde a felicidade estaria vinculada à vivência da cor azul!
36 Suponha as normas éticas e cognitivas de nossa época como condição à nossa realização pessoal!
37 Pense na infelicidade de um negro no regime escravocrata, enquanto avalia que só o que existe
38 entre ele e uma vida paradisíaca seja tal condição! Considere quem julgue que somente será feliz
39 nesta vida se tiver muito dinheiro e fama! Considere as Armadilhas Conceituais de um
40 drogadicto, de uma mulher ardente durante a época vitoriana.
41 Mas principalmente considere a Armadilha Conceitual de uma criatura que se guie por
42 parâmetros racionais.
43
44 O corpo pode estar organizado de modo a vivenciar uma Armadilha Conceitual ? Um
45 Padrão que o conduza a um desfecho invariável, inevitável?
46 Por que não?
47 Um amor sensorial, um câncer, uma ‘doença’ médica - são exemplos.
48 Quando me abro e sinto prazer mediante um toque caloroso e sincero, vivo uma Armadilha
49 Conceitual (veja a introdução do Caderno K).
50 Por sua própria aprendizagem, o organismo supõe em si mesmo Padrões: dores de cabeça,
51 delícia diante de uma salada de brócolis etc.
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 32
1 As Armadilhas Conceituais não podem ser consideradas isoladamente.
2
3 Quantas vezes nós nos colocamos em problemas que conceitualmente são insolúveis,
4 inexplicáveis, às vezes até mesmo incongruentes?
5 Exemplo: uma pessoa acredita que todo o caminho leva necessariamente a algum lugar. E
6 acreditando nisso, passa toda a sua existência andando com energia sobre a linha que perfaz um
7 círculo...
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9
10
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13
14
15
16 Quando uma pessoa vem ao filósofo clínico em busca de seus serviços, o filósofo deve
17 partir do seguinte pré-juízo: esta pessoa, independente de suas condições médicas, estruturou suas
18 questões dentro de idéias complexas (Locke e Hume) que a levaram a um Padrão, e vive algumas
19 Armadilhas Conceituais que podem ou não ter significação clínica.
20
21 Padrão, em Filosofia Clínica, é a tendência do sujeito a ser existencialmente repetitivo
22 quando em relação a um determinado contexto objetal. Desta forma, qualquer indivíduo tem
23 provavelmente milhares de Padrões.
24 O que mais nos importa é o que interage significativamente à interseção.
25 Padrão e Armadilha Conceitual podem estar ou não intimamente ligados. Os exames
26 categoriais precisam ser sempre cuidadosos.
27 Qual o sentido clínico à pessoa em conhecer as Armadilhas Conceituais que estão em sua
28 malha intelectiva?
29 Resposta: não sei.
30 Cada pessoa significará de modo diferente tal descoberta (?).
31
32 Aqui, vamos com vagar e muita atenção, ok?
33 Vimos em Wittgenstein os “jogos de linguagem”.
34 Então, se estamos jogando xadrez e você anuncia um xeque ao meu rei, sei que, contra
35 toda a afirmação possível, a primeira providência cabível é livrar meu rei de tal ameaça. É
36 condição fundamental de continuidade ao jogo. Pois bem, vivemos em acordo quanto às
37 propriedades que devem ser vigiadas e seguidas. Dependendo do cerco a que é submetido meu rei,
38 talvez o xeque-mate seja iminente, contra quaisquer defesas possíveis, levando a peça à morte e
39 encerrando o jogo. Na trama conceitual estabelecida, então, cumpre ao rei morrer e será esta a
40 única ação possível. Isso é uma Armadilha Conceitual.
41 O filósofo precisa considerar em clínica que na vida isso pode existir desde um elo fraco ou
42 fictício até um elo necessário e impiedoso.
43 Por isso, ao pesquisar a EP da pessoa, no tópico Padrão (Armadilha Conceitual) o filósofo
44 deve considerar qual o jogo existencial, na acepção quase a mesma dada por Wittgenstein.
45 Um enxadrista pode vivenciar a tal ponto a partida que joga que simplesmente esquece
46 estar envolvido em uma Armadilha Conceitual.
47
48 Há outra coisa importante: é muito difícil, enquanto se joga xadrez, tênis, futebol,
49 dependendo da EP, a pessoa parar para conjecturar sobre as contradições conceituais.
50 De maneira análoga, é difícil a uma pessoa parar e conjecturar sobre as contradições
51 conceituais da língua portuguesa em relação a uma política democrática da vida, em relação a
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 33
1 uma terapia verbal de orientação ética. Você já considerou a pobreza verbal para se descrever
2 sentimentos, em relação à riqueza para as descrições de coisas externas a nós?
3 Quantas pessoas conhecemos que nos avisaram de Armadilhas Conceituais que vivemos
4 hoje: postulado judaico-cristão com seus dogmas, tecnicismo moderno com sua relatividade, a
5 ética revisitada, o capitalismo em mutação avançada para o neoliberalismo, a abrangência da
6 capacidade cognitiva em relação aos valores milenares, o golpe da liberação de costumes em
7 referência à bioética etc. Esse choque de paixões antagônicas, de subfunções, tudo isso, você já
8 considerou sua vida como enredada nesta trama conceitual - maior ou menor, aqui e ali, para
9 cada um de nós?
10 Por exemplo, posso fazer terapia com uma pessoa muito machucada, religiosa, sem
11 considerar a Armadilha Conceitual oriunda do choque entre a ética religiosa e a ética capitalista
12 que convivem simultaneamente?!
13 Em 1931, o austríaco Kurt Gödel apareceu com um escrito que sacudiu a lógica e a
14 matemática.
15 Gödel ensinou como fazer uma fórmula aritmética G que significasse o enunciado
16 metamatemático: “A fórmula G não é demonstrável”. Imagine você isso: a fórmula G afirma de si
17 mesma que não é demonstrável! Sendo o cálculo consistente, nem G nem a negação ~G serão
18 derivados dos axiomas da aritmética. Agora, mesmo não sendo demonstrável, G é uma verdadeira
19 fórmula aritmética.
20 Uma conseqüência direta disso é que não se pode deduzir todas as verdades aritméticas
21 tomando como ponto de partida os axiomas.
22 Gödel mostrou que não se pode obter um argumento transportado para o cálculo
23 aritmético formal que estipule a consistência aritmética.
24 Portanto, os axiomas da aritmética são incompletos.
25 Por que tudo isso importa à Filosofia Clínica?
26 Bem, ao adaptar a lógica formal à clínica o que ficou entendido?
27 Que o filósofo preocupa-se, durante toda a primeira parte da Filosofia Clínica, com a
28 forma, não com o conteúdo.
29 A Esteticidade lida com a forma num sentido ainda mais complexo.
30 A Corporeidade lida com a estrutura: forma e conteúdo em interação.
31 Por exemplo: até os primeiros meses de curso nós tínhamos em grande consideração a
32 seguinte representação (Schopenhauer):
33 “- Se eu souber o motivo de ter isso, olha, eu fico bom para sempre!”
34 Porque a forma era um critério válido de representação subjetiva.
35 É bem verdade que os exames categoriais cuidavam para que o filósofo não se metesse em
36 complicações - pois um exame atento me revelaria algo das possibilidades clínicas da afirmação
37 do cliente acima.
38 Quando a forma é vazia, a pessoa pode saber o motivo de ter isso e não ficar boa para
39 sempre...
40 Por essa razão tive tantos cuidados ao associar a lógica aristotélica-kantiana à escola
41 empírica inglesa e à filosofia analítica da linguagem!
42 Esta era a garantia até agora de que o verbo não seria vazio em conteúdo!
43 O significante remete ao significado, conforme vimos em Berkeley.
44 Só que vamos construir alicerces ainda mais firmes!
45 Por estranho que seja, uma forma de fazermos isso é observando nossa fraqueza,
46 considerando os limites de nossa clínica, as objeções, forçando os parâmetros, vivenciando a
47 nossa arte terapêutica que não busca a cura, mas o exercício existencial da pessoa.
1 Filosofia Clínica – Instituto Packter 34
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