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Disrupção

dis·rup·ção
substantivo feminino

1 Ato ou efeito de romper(-se); dirupção, fratura.


2 Quebra de um curso normal de um processo.

Nos tempos atuais, essa tem sido a palavra-chave queridinha de muitos


CEOs e empresários para se referir a tecnologias e produtos. A expressão
“tecnologia disruptiva” nasceu na década de 90 e logo fez com que o sonho de
toda startup fosse ter seu app descrito como a mais nova tecnologia
disruptiva. No linguajar empreendedor (ugh), uma tecnologia/produto é
disruptivo quando cria um novo mercado e/ou desbanca quem estiver no
topo. Pense nos aplicativos de transporte ou de comida frente às formas
antigas de se fazer isso, pegando um táxi ou ligando pra um restaurante
específico. E, pra que fique bem claro, abominamos esse linguajar que se
pretende transgressor mas apenas disfarça a precarização e extinção de
direitos trabalhistas.

Felizmente, esse é um uso mais recente do termo e não se encaixa de forma


alguma no que chamamos aqui de disrupção. Nosso entendimento da palavra
nos leva até a Pedagogia. Uma frase-chave em voga há muito tempo tem sido
a “educação disruptiva”, isto é, uma educação de viés pós-estruturalista e
crítica ao antigo modelo engessado que era o estruturalismo. É claro que, pra
variar, os empresários que querem fazer da educação um negócio vêm
tentando emplacar a ideia de que uma educação disruptiva precisa passar pelo
uso da informática. Isso, num país em que ainda há alunos sem ter cadeiras em
sala de aula ou até banheiros, bate de frente com a realidade de inúmeros
alunos que sequer tem acesso à internet para assistir suas aulas de ensino a
distância na pandemia.

Deixando o academiquês de lado, a educação dita pós-estruturalista


questiona os papéis dos alunos e dos professores, colocando a(s)
experiência(s) discentes no centro do processo de aprendizado (CARDOZO,
2014). O objetivo é esse, mexer com as estruturas não só da relação
professor-aluno mas também das instituições de ensino que muitas vezes
ainda são reféns de políticas conservadoras. Isso significa trazer para o
protagonismo não apenas as experiências dos alunos mas também dar-lhes
agência no processo. Nas palavras de Paulo Freire (1979): “O homem deve ser
o sujeito de sua própria educação. Não pode ser o objeto dela”.

E o que diabos isso tem a ver com RPG? Tudo.

Tanto na pedagogia quanto nas artes, não cabe mais ignorar o sujeito que
está em jogo. Convidar as experiências pessoais para o jogo é também instigar
um pensamento mais crítico sobre si e sobre o mundo. Todas as partes do
processo “tradicional” numa partida de RPG podem e devem ser questionadas.
Da função do “mestre/narrador/condutor/etc.” do jogo ao próprio formato
físico (ou digital) em que o jogo se apresenta.

Nós dos Cronistas das Trevas acreditamos que não cabe mais, em pleno
2021, apoiar jogos que insistem em estereótipos preconceituosos de pessoas,
grupos étnicos e culturas humanas reais com a pífia desculpa do “é só um
jogo”. Isso, inclusive, sempre vem junto com uma boa dose de falta de
pesquisa e generalizações, em especial quando se trata de um grupo
marginalizado.

Acreditamos também que não é possível dar espaço para jogos que insistem
na figura do “mestre” e da aleatoriedade como árbitros únicos para a
progressão da narrativa¹, sem contar na defasada binariedade entre sucesso e
falha, essa última sempre uma interrupção brusca na narrativa.

1 Mostrando também um entendimento muito raso do que é um jogo, já que até


mesmo uma conversa entre pessoas é também, em seu modo, um jogo.

2
Em um ano marcado por genocídio, pandemia, redução do poder de compra
e outras mazelas, entendemos que o lazer precisa ser acessível². Capa dura e
papel couché são bonitos mas são secundários ao objetivo principal que é a
sessão de jogo em que se constrói uma narrativa em grupo.

Frente a tudo isso, deixamos a fala da Profª. Drª. Mridula Nath


Chakraborty (2019) que nos mostra porque somente jogos que fogem
completamente à lógica “tradicional” podem nos apontar para um futuro
melhor:

Tentar lutar contra a dominação econômica mundial através


de “ferir” o mercado é concordar com os termos em que
Mammon opera: a ação da sociedade civil tem que recusar
até as formas de engajamento através das quais a marcha
inexorável do capital perpetua desigualdade e exploração.

Para ela, a disrupção tem muito mais a ver com desobediência


civil e insurreição do que apenas “votar com o bolso” ou qualquer
uma dessas lógicas que não quebram com a estrutura do problema. Isso
também se traduz para o RPG. Não basta não consumir ou não
propagandear certos jogos e editoras, é necessário apoiar e
consumir de quem produz numa lógica contrária à tradicional.

Por fim, sabemos que todo jogo é político, mas, infelizmente, poucos jogos
sabem e reconhecem isso. É nosso objetivo apoiar e dar espaço aos RPGs
questionadores do status quo, que apresentam a periferia como protagonista,
que vão ativamente contra as estruturas opressivas do capitalismo neoliberal,
que colocam em xeque os papéis tradicionais do jogo e de toda sua estrutura
de produção. Queremos RPGs que provoquem a disrupção “do discurso
normalizante de forma a fornecer espaço para uma linguagem de

² Não-ironicamente, os jogos produzidos por empresas com a maior quantidade de


capital por trás são também os menos acessíveis financeiramente falando.

3
possibilidade" (MILLS, 1997). Uma linguagem de possibilidade é justamente
algo que não encontramos nos jogos mais “clássicos” ou feitos por boa parte
das “grandes editoras”.³

Bibliografia
CARDOZO, Guilherme Lima. O Pós-Estruturalismo e suas influências nas
práticas educacionais: a pesquisa, o currículo e a “Desconstrução”. In:
Pensares em Revista, 2014, n. 4, pp.118-134. <Disponível em:
https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/pensaresemrevista/article/view/14117>
CHAKRABORTY, Mridula Nath. Disruption. In: Cultural Studies Review.
2019, v. 25, n. 2, pp. 296-299. <Disponível em:
https://epress.lib.uts.edu.au/journals/index.php/csrj/article/view/6931>
FREIRE, Paulo. Alfabetização de adultos e conscientização. In: Educação e
Mudança. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1979.
MILLS, Martin. Towards a disruptive pedagogy: Creating spaces for student
and teacher resistance to social injustice. In: International Studies in
Sociology of Education. 1997, v.7, n.1, pp. 35-55 <Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/09620219700200004?
needAccess=true>

³ Grandes entre aspas pois tirando a Wizards e a Paradox-WhiteWolf, boa parte


das empresas de RPG não possuem um aporte de capital muito grande em
comparação com outros setores de lazer “nerd” como os video-games.

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