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As “ticas” das “matemas” de um saber corporal negro africano: a

etnomatemática dos penteados trançados


Luane Bento dos Santos
Doutora em Ciências Sociais/PUC-Rio
Docente de Sociologia/SEEDUC-RJ

Contar, dividir, adicionar, subtrair, padronizar, organizar são elementos


presentes na confecção dos penteados trançados. As trancistas e trançadeiras afro
utilizam diversos conhecimentos matemáticos para preparar os trançados. A matemática
das tranças, ou melhor, a etnomatemática das trançadeiras e trancistas afro está presente
do processo de preparação e execução das mais variadas tranças, assim como pode ser
observada no penteado finalizado nas cabeças das(dos) usuárias(os) dos trançados.
Os primeiros estudos que trataram da etnomatemática dos trançados foram da
professora e doutora em matemática Gloria F. Gilmer (1998) e do cientista da
computação Ron Eglash (1999). Dois estadunidenses que miraram seus olhares para os
padrões matemáticos presentes nas tranças de cabelos da população afrodiaspórica e
africana. Gloria Gilmer (1998) em seu texto Mathematical patterns in African-
American hairstyles descreveu o cotidiano de um salão de beleza voltado para afro-
americano nos Estados Unidos. Nesse estudo, ela comenta que no tecer dos penteados
trançados as cabeleireiras e trancistas afro utilizavam diversos padrões geométricos e
que a forma como os penteados eram organizados remetiam a conceitos como reflexão
de imagens, translação e rotação.
Em 1999, Ron Eglash desenvolveu um programa de computador (CSDTs) que
demonstrava para estudantes de escolas públicas estadunidenses os padrões fractais nos
penteados trançados. As imagens de seu estudo podem ser vistas em diversos trabalhos
do campo da etnomatemática e educação matemática que mencionam a presença de
padrões fractais nos penteados trançados.
Os estudos desenvolvidos por Gloria F. Gilmer (1998) e Ron Eglash (1999)
foram fundamentais para que em setembro de 2011, eu, Luane Bento dos Santos,
ingressasse no Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais do CEFET-RJ e
defendesse no ano de 2013 a primeira dissertação de mestrado que investigou as
práticas e técnicas de trançar cabelos por uma perspectiva teórica etnomatemática.
A dissertação de mestrado intitulada “Para além da estética: uma abordagem
etnomatemática para a cultura de trançar cabelos nos grupos afro-brasileiros”
demonstrou que durante a produção dos penteados trançados as trancistas e trançadeiras
usavam muitos saberes e fazeres matemáticos, conceitos muitas vezes que apareciam no
ambiente escolar, mas que, no entanto, não eram relacionadas as culturas corporais
negro-africanas.
Para trançar as trancistas precisam calcular desde custos com materiais como os
cabelos sintéticos chamados jumbos, os enfeites como os pingentes e anéis, as pomadas
e os gastos com a locomoção e alimentação. Questões matemáticas básicas e que fazem
parte de qualquer profissão, quanto se gasta com o serviço oferecido e quanto se lucra?
Entretanto, o ato de trançar cabelos envolve uma trama de percepções, racionalidades,
estratégias, lógicas que somente uma conhecedora dessa arte ou uma apreciadora
identifica. Como diz Gloria F. Gilmer (1998) “é preciso um olhar atento, um olhar
etnomatemático” para notar a matemática por trás do tecer de cada mecha.
A pesquisa de mestrado já mencionada verificou que as trancistas e trançadeiras
durante o seu fazer/saber utilizam diversos conhecimentos etnomatemáticos. Sobretudo,
que esses conhecimentos negros-africanos poderiam e podem ser usados no contexto
escolar para inserir a legislação federal de história e cultura africana e afro-brasileira
(Lei 10.639/2003) no currículo de matemática. Os conhecimentos impregnados no
fazer/saber das trancistas são: adição, subtração, progressão aritmética (PA), triângulos
equiláteros, diagonal do quadrado, frações, proporção e expressões numéricas. Também
aparecem relações que relembram o famoso Teorema de Tales de Mileto.
Importante informar ao leitor que os resultados da dissertação de mestrado
serviram como inspiração para os trabalhos de mestrado em Educação de Cleiton
Resplande (2019), Jorlânia Souza (2020) e para o artigo de especialização em Educação
Matemática Anne Cherrin (2021). Estes trabalhos abordaram a etnomatemática dos
trançados e aplicaram em sala de aula a temática. Além desses trabalhos a pesquisa de
mestrado foi inserida em manuais didáticos da rede municipal do Rio de Janeiro, nos
materiais do primeiro semestre do 2, 4 ano escolar e no Projeto Travessias (para alunos
do sexto ano com defasagem escolar). No caderno de linguagem, volume 3, ano 2021,
da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, no livro de Ciências Humanas, Coleção
Prisma, editora FTD, ano de 2021 e num livro de 6 ano do ensino fundamental da
editora Santillana, coleção Keppler, ano de 2022. Recentemente, seus resultados
também foram adotados no processo seletivo de uma instituição universitária privada da
cidade de Ribeirão Preto e (SP) e para compor as referências obrigatórias do processo
seletivo da área que atende do 1 ao 4 ano escolar da instituição federal, Colégio Pedro
II, do Rio de Janeiro. Ademais a etnomatemática das tranças também entrou em
pequenas produções audiovisuais de cineastas negros como no filme Enraizadas (2019)
e no minidocumentário Conhecimentos etnomatemáticos produzidos por mulheres
negras trançadeiras (2020).
A ampliação do debate sobre os conhecimentos das trancistas e trançadeiras afro
contribuem na desconstrução de imagens, estigmas, estereótipos e preconceitos que
recaem sobre as mulheres negras na sociedade brasileira. As trancistas e trançadeiras
são em sua grande maioria mulheres negras e no Brasil ser negra é cotidianamente estar
sobre a égide da colonialidade, sendo assim marcada pelo lugar de raça, gênero e classe.

Referências
EGLASH, Ron. Fractais africanos. Scientific American Brasil, n.11, p. 66-67, 2009.
GILMER, Gloria. Mathematical patterns in African-american hairstyles. Disponível
em: <http://www.math.buffalo.edu/mad/special/gilmer-gloria_HAIRSTYLES.html>,
Acesso em: 18/09/2008.
RESPLANDE, Cleiton da Silva. Saberes populares da Etnomatemática numa
cosmovisão africana: contribuições à Etnociência. Dissertação em Educação em
Ciências e Matemática, UFRRJ, 2020.
SANTOS, Luane Bento dos. Para além da estética: uma abordagem
Etnomatemática para a Cultura de Trançar cabelos nos grupos Afro-Brasileiros.
2013. 122f. Dissertação (Mestrado em Relações Étnico-raciais), Centro Federal de
Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, Rio de Janeiro, (RJ),
2013.
Conhecimentos etnomatemáticos produzidos por mulheres negras trançadeiras. Revista
ABPN, v. 9, 2017, p. 123-143.
SOUZA, Jorlânia Carolina Cândida de. Convergências entre Etnomatemática e a
Metodologia de Reconhecimento de saberes: potencializar identidades negras. (A
cultura das tranças para além da estética na Educação de Jovens e Adultos) Dissertação
de Mestrado Profissional em Educação de Jovens e Adultos, Universidade do Estado da
Bahia/UNEB, Salvador (BA), 2021.

Texto publicado em 16 de setembro de 2022. Disponível em:


http://blog.pat.educacao.ba.gov.br/blog/2022/09/as-ticas-das-matemas-de-um-saber-
corporal-negro-africano-a-etnomatematica-dos-penteados-trancados/

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