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FOTOGRAFIAS COM CORPO E ALMA...

KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotó-


grafo: Brasil, segunda metade do século XIX. Campinas: Editora da
Unicamp, 2010. 357p.

Já foi dito que fotografias são como As fotografias servem como docu-
fantasmas, pois são mentos para atestar a existência de um
condensação de tempos, nunca estão passado vivido, mas o fazem por meio
inteiramente no passado ou no pre- de certa linguagem e por ações codifi-
sente. São seres que habitam o limiar cadas. São, portanto, monumentos que
entre o passado e presente, entre vivo projetam a autoimagem de uma socie-
e morto, exatamente como os fantas- dade a ser perenizada para a posteri-
mas [...] Estão aqui e agora conosco dade. Fotografias são, ao mesmo tem-
e, no mesmo tempo, nos fornecem o po, documentos e monumentos, impor-
testemunho da nossa irremediável di- tantes suportes de relações sociais.2 É
ferença em relação ao que foi.1 neste registro teórico que o trabalho
Instigante pensar que o testemunho de Sandra Koutsoukos se inscreve.
de uma experiência vivida retorna do A obra de Koutsoukos se divide
passado como seu espectro, como em uma apresentação, três capítulos,
algo ou alguém que nos lembra quem um epílogo, um álbum de fotografias
fomos, que nos rememora vivências numeradas e devidamente relaciona-
e modos de ser que foram esqueci- das no corpo dos capítulos. A com-
dos ou, propositadamente, apagados posição destes guarda uma autonomia
pelos trabalhos de enquadramento de anunciada pela autora na sua apresen-
memória. tação (p. 20). Em cada um se busca

1
Maurício Lissovsky, “Dez proposições
2
acerca do futuro da fotografia”, FACOM: Ana Maria Mauad, Poses e flagrantes:
Revista de Comunicação e Marketing da ensaios sobre história e fotografias,
FAAP, n. 23 (2011), p. 9 Niterói: Eduff, 2008.

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responder a questões colocadas ao sil da época; avalia a experiência es-
passado que só poderiam ser respon- tética realizada nos estúdios fotográ-
didas por meio das fotografias. Ques- ficos por meio da negociação da pose
tiona-se, fundamentalmente, o papel entre fotógrafo e retratado, bem como
desempenhado na dinâmica social todos os artifícios para a mise-en-scène
pela presença de negros em estúdios adequada à construção da autoimagem
de fotógrafos, todos brancos, salvo aristocrática do Brasil imperial; e fi-
raríssimas exceções ainda não devi- naliza o capítulo com uma breve apre-
damente documentadas. A própria sentação dos álbuns de família, ver-
autora, com estilo claro e direto de dadeiros reservatórios da memória his-
apresentar as suas hipóteses de tra- tórica desse período, e as estratégias
balho, leva o leitor a imaginar as de colecionismo associadas a esses
múltiplas possibilidades que a práti- artefatos.
ca fotográfica poderia assumir, em- Koutsoukos constata a inexistên-
bora sem uma comprovação factual cia de álbuns de famílias negras, mas
específica (como é o caso do fotógra- não descarta a possibilidade dessa prá-
fo da galeria dos condenados estuda- tica ter existido também entre elas. A
do no terceiro capítulo da obra). forma de guarda das fotografias em ar-
Colocada essa questão fundamen- quivos e pelos colecionadores pode ter
tal, aliás, bem apresentada no título e de fato desmembrado conjuntos im-
na imagem da capa, Koutsoukos ori- portantes de registros familiares de
enta o leitor, no primeiro capítulo, num afro-brasileiros que buscassem também
passeio pelos ateliês fotográficos do a sua monumentalização. No entanto,
Brasil oitocentista, considerando o cir- o agenciamento da memória e suas for-
cuito social completo da imagem, ou mas de enquadramento e, neste caso,
seja, produção, circulação, consumo de reenquadramento, reordenam, sob
e o seu agenciamento pela memória uma nova lógica, os registros do pas-
histórica. Neste capítulo, intitulado “A sado. Há, portanto, que se estudar a
fotografia no Brasil do século XIX”, presença negra em arquivos de não
a autora utiliza bibliografia nacional e negros para entender a lógica de orga-
internacional atualizada sobre o tema, nização dos registros visuais sobre a es-
bem como fontes primárias, com des- cravidão e o pós-Abolição no Brasil. 3
taque para anúncios de jornais publi-
cados em várias cidades, principal-
3
mente os da Corte, São Paulo e Cam- Conforme projeto de pesquisa meu em fase
de desenvolvimento, “A presença negra em
pinas; problematiza o aprendizado do arquivos de branco: um estudo sobre a re-
ofício de fotógrafo e o acesso às novi- presentação visual de afrodescendentes em
dades e inovações estrangeiras no Bra- coleções fotográficas”, com apoio da
FAPERJ, 2011.

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Ressalta-se, no primeiro capítulo, poder compreender as mensagens
a discussão adequada da bibliografia transmitidas pelas fotografias.
já consagrada na historiografia bra- O primeiro tipo de álbum eviden-
sileira e o pertinente diálogo que es- cia a relação entre liberdade e escra-
tabelece com estudos realizados em vidão através dos jogos de represen-
outras sociedades, notadamente nos tação próprios do retrato fotográfico.
Estados Unidos e na França. A im- Negros livres, forros e escravos nego-
portância desse panorama é reconhe- ciam sua condição humana no estúdio
cida para entender o tema central da fotográfico, a moeda é a pose e a mise-
obra, embora já tenha sido assunto de en-scène do estúdio fotográfico. Os
estudos específicos e, portanto, cabia negros livres e forros procuravam a sua
ter sido resumido em favor de uma dignidade negociando com o mundo
maior ênfase no que se encontra no branco os signos da sua identidade li-
capítulo dois. vre, e com base nessa premissa a au-
“Entre liberdade e escravidão, a tora analisa os retratos dispostos no
fotografia”, é o capítulo central do “álbum de fotografia” apresentado no
livro, e por isso mesmo o mais longo. final do volume. Para cada imagem é
É nele que vemos as relações escra- narrada uma história que se apoia ora
vistas, com suas tensões e negocia- na imaginação fundamentada em pre-
ções, reveladas por meio das fotogra- missas históricas (pp. 97-98), ora em
fias. Na ausência de álbuns sobre as indícios documentais extrafotográfi-
famílias escravas, a autora propõe a cos (pp.99-100).
elaboração de “álbuns imaginados”, Como garrafas jogadas ao mar
nos quais se tecem relações sociais que nos chegam do passado, as men-
diferenciadas no seio da sociedade sagens contidas nos retratos nos apre-
escravista imperial. Uma tessitura que sentam situações diversas:
tem como fio condutor a questão:
o rapaz teria sido mandado estudar
“qual o motivo de uma pessoa (ne- em boas escolas, quem sabe até en-
gra) da segunda metade do século viado à Europa (p.97); o senhor ne-
XIX se fazer retratar?” (p.89). A auto- gro idoso vestido com casaca, cole-
ra apoia a análise das imagens foto- te, gravata-borboleta, lenço no bol-
gráficas na discussão que a historio- so da casaca, cartola colocada ao
grafia sobre escravidão desenvolve, lado de seu dono no chão, bengala à
desde a década de 1980, sobre ser li- mão e sapatos lustrados (p. 98),
vre e parecer livre. Realiza um breve
foi fotografado de cima para baixo.
balanço da situação das diferentes
O ângulo escolhido pelo fotógrafo
categorias (negros livres, forros e es-
denotaria o peso da condição de es-
cravos), mobilizando elementos para
cravo por toda uma vida, indaga a

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autora? Teria sido resultado de uma do universo africano e suas formas de
negociação entre o fotógrafo e o re- ressignificação em terras brasileiras
tratado? (p. 99). Em outra imagem, estava rotulada como exótica. Anun-
informações sobre a história da retra- ciadas pelos fotógrafos como “typos
tada ajudam a desvendar a sua ima- de pretos”, essas imagens eram ven-
gem: didas a título de souvenir para via-
jantes em passagem pelo Brasil. Neste
Esse é o retrato de Marcellina, a qual
era uma ex-escrava, que havia sido item, a autora também explora as pos-
libertada pelo seu senhor, seu Antô- sibilidades de encenação do exótico
nio, de quem ela era amante. Nessa no estúdio fotográfico, destacando os
foto, como deveria, aparece uma usos científicos dessas imagens se-
mulher bem vestida, bem ‘espartilha- gundo os protocolos de representação
da’, e penteada de acordo com a de ideias racistas voltadas para a com-
moda europeia vigente (p.100). paração e hierarquização de diferen-
tes “raças”; e os usos pitorescos, vol-
Munida de todos os adereços neces-
tados para a construção de um ideal
sários a uma senhora da boa socieda-
de representação onde o que é pró-
de, Marcellina, no entanto, não po-
prio de cada lugar entra no registro
dia esconder sua cor, estigma da es-
do típico e curioso.
cravidão reforçado pelo fato de que
Nesta série, tal como na anterior,
a foto foi encontrada no processo ins-
relatos imaginados ou comprovados
taurado pela esposa de seu Antônio
acompanham a análise dos retratos
que, sentindo-se lesada pelo marido
permitindo, por meio dessa estraté-
que gastava o patrimônio familiar
gia metodológica, que os retratados
para manter o luxo da amante negra
adquiram uma personalidade, ou ain-
na Corte, pediu anulação do matrimô-
da, corpo e alma. Deixam de ser fan-
nio. Muitos são os relatos de históri-
tasmas da máquina para serem sujei-
as possíveis que as imagens levantam,
tos que criam histórias, que se apre-
traduzindo em valores morais e com-
sentam diante da câmera na sua con-
portamentais as representações visu-
dição de protagonista social, portan-
ais do Brasil imperial e escravista.
do elementos de sua etnia, sejam es-
Um segundo tipo de álbum apre-
carificações no rosto, panos colori-
sentado neste capítulo é constituído
dos ou adereços variados. Dessa for-
por aqueles que exploram o imaginá-
ma, explicitam a sua identidade e
rio do exótico que perpassava as re-
atestam uma dignidade por meio da
lações de alteridade no século XIX.
negociação de uma representação
Como nesse registro era tipificado
negra em estúdio de branco. Mesmo
tudo o que não se adequava ao uni-
quando esse indivíduo escravizado
verso branco e ocidental, boa parte

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está despojado de suas vestes e trata- filho para alimentar o filho de outra
do como objeto de escrutínio cientí- que acaba sendo criado por quem o
fico, resta-lhe um olhar e a sua ex- alimenta. Na análise destaca-se o re-
pressão corporal de ser humano (fo- trato da escrava Monica acompanha-
tos 49-53). Sobre essas fotografias, da do menino por ela criado, que in-
Koutsoukos destaca: “o que interes- tegra a coleção Francisco Rodrigues,
sava ao profissional era o ‘olhar ci- pertencente ao acervo da Fundação
entífico’ [...] Mas o que interessa aqui Joaquim Nabuco, em Recife, já fa-
é exatamente o modelo” (p.133). As- mosa por ter sido reproduzida em di-
sim, sua análise persegue o que ferentes publicações. Koutsoukos se-
Barthes chamou de noema da foto, ou gue a trilha da possibilidade históri-
seja, aquilo que é inescapável ao olhar ca, avaliando a imagem como índice
e sintetiza todo o conjunto, o traço de uma relação social que se consti-
inimitável da fotografia de negros em tui tanto dentro como fora do estúdio
um mundo de brancos: a escravidão. fotográfico: no estúdio, porque Mo-
O terceiro e último “álbum ima- nica não desvia o olhar do fotógrafo
ginário” que compõe o capítulo 2 é e o mira como se quisesse contar a
composto por retratos de amas, des- sua história; fora do estúdio, levanta-
tacado pela autora devido a sua gran- se a questão: “Conseguiria ela a sua
de incidência: alforria, fruto do reconhecimento,
grande parte das fotos que vi de es-
após tamanha dedicação?” (p.140).
cravos levados pelos senhores aos Em busca de respostas, a autora
estúdios dos fotógrafos na segunda envereda pelo estudo das relações
metade do século XIX é de amas ne- entre amas e senhores através dos
gras com crianças brancas por elas anúncios em jornais onde se compra-
amamentadas e/ou cuidadas (p.136). va, vendia, alugava e buscava uma
ama. Estuda também a posição cien-
Nesta parte, como em outras situ-
tífica sobre as amas de leite negras
ações no livro, a autora assume os ris-
nas teses dos doutores de medicina,
cos de imputar a posição de escravo
onde se critica a suposta falta de hi-
a um retratado na foto por meio de
giene desse costume e se recomenda
indícios que atestam essa condição.
o aleitamento materno. Koutsoukos
As imagens que compõem esse
conclui essa parte, que poderia ser
“álbum imaginário” são as que reve-
menos extensa, avaliando a questão
lam a proximidade dos corpos e a
do afeto na sociedade paternalista,
convivência cotidiana entre brancos
valorizando a perspectiva das sensi-
e negros. Uma convivência marcada
bilidades sociais.
por sentimentos contraditórios, como
Apresentadas as condições his-
por exemplo, o de ter de largar seu

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tóricas em que se desenrolaram as re- bre dois álbuns que integram o acer-
lações entre amas, senhores e crian- vo da Coleção Dona Theresa
ças, a autora se volta para a presença Christina, constante da Divisão de
das amas no estúdio fotográfico. As Manuscritos da Biblioteca Nacional
fotografias analisadas, no item final do no Rio de Janeiro. Entretanto, antes
capítulo, revelam as condições de re- de iniciar a análise dos álbuns,
presentação de escravos domésticos Koutsoukos abre o capítulo com uma
numa mise-en-scène bastante artifici- extensa introdução sobre as diferen-
al, mas que, ainda assim, denotam as- tes formas de identificar criminosos,
pectos específicos desse tipo de escra- que vai do registro no próprio corpo
vidão. Mais uma vez, Koutsoukos ob- do preso, passando pelo retrato fala-
serva atentamente os indícios presen- do, pela fotografia até chegar à im-
tes nas fotos, indicando como as amas pressão digital.
se postavam diante da câmera, como O fato dos álbuns terem sido en-
seguravam os bebês no colo ou como contrados na coleção doada à Biblio-
os cobriam e carregavam com os pa- teca Nacional pelo imperador quan-
nos e xales usados pelas diversas na- do do seu exílio, leva a autora a le-
ções africanas (p.199). vantar a hipótese – como ela mesma
Entretanto, o que se destaca na chama atenção, não comprovada – de
análise de Koutsoukos é a busca por que ambos tivessem sido encomen-
transformar retratados em sujeitos, dados por d. Pedro II para atestar sua
escravos em seres humanos, de car- benevolência em fornecer indulto a
ne, osso e alma, como expõe na con- numerosos presos:
clusão do capítulo 2: não pude descartar a suposição de o
No entanto, o que mais interessa é objeto álbum ter sido usado e guarda-
que as amas, que também não teri- do como uma espécie de ‘troféu’, que
am sido levadas aos estúdios atestava a ‘magnanimidade’ do impe-
desavisadas (algum tipo de negocia- rador comutador de penas (p.223).
ção certamente acontecera), conse-
O capítulo, embora seja mais inte-
guiram trair a pretensa harmonia da-
ressante para a história da prática fo-
quelas fotos e deram, umas mais e
outras menos (é claro), um ‘jeito’ de
tográfica no Brasil do que propriamen-
participar daquele que também era te para o estudo da escravidão, eviden-
o seu retrato; as amas também se de- cia que a maioria absoluta dos presos
ram a ver (p. 202). era negra e escrava. Fato por si só re-
levante para se pensar o que era con-
O capítulo final, intitulado “Na siderado crime no século XIX, dentro
Casa de Correção da Corte, a ‘Gale- das estratégias de resistência à violên-
ria de Condenados’”, se debruça so- cia institucionalizada da escravidão.

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Além da parte introdutória, que dadeiro mar de histórias, nas quais
descreve as práticas de identificação aprendemos que, se o imperador con-
de criminosos no século XIX, o capí- cedia perdão imperial a um preso que
tulo é composto por mais quatro era escravo, o perdão da pena o li-
subcapítulos. No primeiro, a autora bertava também da escravidão (p.
apresenta os álbuns do ponto de vista 246). Por aí também conhecemos a
material e arquivístico, identificando trajetória do negro José Sebastião da
o local de guarda, os materiais de sua Rosa, conhecido nas ruas do centro
composição e o formato da apresen- da Corte como “Juca Rosa”, tido
tação das fotografias nas páginas. Nos como feiticeiro com uma grande cli-
seguintes, ela desenvolve um estudo entela feminina, que foi preso por
minucioso sobre a organização do estelionato, cumpriu pena e, depois
serviço de fotografia na Casa de Cor- de solto, tornou-se guarda da muni-
reção da Corte, por meio da consulta cipalidade. Na avaliação da autora:
dos relatórios ministeriais, da conta- “na foto da ‘Galeria’, vemos um bo-
bilidade da instituição, da correspon- nito homem negro, bem penteado, de
dência de seu diretor, entre outros barba (não apenas um ou outro fio),
documentos depositados no Arquivo bigode e rosto franzido” (p. 255).
Nacional, e consegue identificar os Pelo visto, os encantos de Juca Rosa
objetivos do serviço fotográfico, as sobreviveram ao tempo, impregnados
dificuldades de sua instalação e a pre- à sua imagem.4
cariedade de seu funcionamento, a Por fim, no epílogo do livro,
ponto de identificar que o fotógrafo Koutsoukos recupera algumas foto-
era ele próprio um preso que assu- grafias já tratadas nos capítulos ante-
miu a função, tendo para tanto de se riores como imagens referenciais de
submeter a um árduo aprendizado (p. uma condição social e que podem ser
227 e segs.). também trabalhadas por três catego-
Na sequência, a autora desenvol- rias de análise: retratos de estúdios
ve uma análise sobre os tipos de en- que denotam a condição social de li-
quadramento, fundo e pose, destacan- berto, forro ou escravo; o registro do
do o posicionamento dos presos di- exótico, que denota a mercantilização
ante da câmera, os aspectos da esté- e a objetificação da condição de ser
tica facial e os possíveis adereços e negro, presente nas fotos de souvenir
indumentárias entrevistos nas ima- e de documentação ‘científica’ de viés
gens. Como conclusão, escreveu
“Uma galeria de histórias” na qual 4
Ver mais sobre este personagem em
relaciona o que conseguiu levantar Gabriela dos Reis Sampaio, Juca Rosa:
sobre os presos fotografados, um ver- um pai-de-santo na Corte imperial, Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.

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racista; e, por fim, os retratos da “Ga- algo que não lhe pertence? Enfim,
leria dos Condenados”, em que a si- perguntas que à historiografia não ti-
tuação da tomada da imagem, cir- nham sido feitas porque as imagens
cunscrita a um estúdio improvisado ainda eram opacas.
e feitas por um fotógrafo que era tam- O livro de Sandra Koutsoukos
bém preso, gera condições específi- ainda possui outros importantes atri-
cas para a negociação da pose, com butos, como o de compartilhar com o
resultados variados, dentre os quais leitor, em escrita clara e direta, suas
a humanização do retratado. hipóteses, dúvidas e indagações.
Interessante pensar como práticas Comprova e atesta por meio de do-
fotográficas diferenciadas evidenci- cumentação minuciosamente compul-
am experiências históricas diversas sada em arquivos e bibliotecas, ao
numa mesma sociedade que denomi- mesmo tempo em que dá asas à ima-
namos de escravista. O que nos pos- ginação, ao preencher com possibili-
sibilita indagar se as relações sociais dades históricas aquilo que faltou à
escravistas não seguem também os documentação. Compõe, assim, uma
padrões da representação visual da obra densa, que possibilita ao leitor
forma como se revelam nas fotogra- uma rica experiência de leitura.
fias, na sua pluralidade de conflitos, Em suma, no livro de Koutsoukos
confrontos e negociações. Olhar di- a fotografia cumpre o papel fundamen-
retamente para o fotógrafo implica- tal de atestar que a experiência da es-
ria em encarar o senhor? O negro li- cravidão oitocentista deixou marcas
berto, ao andar calçado, pavimenta- indeléveis tanto nas superfícies
va o caminho da liberdade com um albuminadas dos carte-de-visite, quan-
signo que o diferenciava do escravo to na memória histórica que não deve
que não devia usar sapato? Amparar ser apagada. Daí a atualidade e rele-
a criança que não é sua com o pano vância dessa obra, que contribui para
da Costa seria identificar como seu que o passado se faça presente na cons-
trução de uma sociedade plural.
Ana Maria Mauad
anaessus@uol.com.br
Universidade Federal Fluminense

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