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ANTROPOLOGIA SOCIAL
11
)- Diretor: Gilberto Velho

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CARLOS NELSON FERREIRA DOS SANTOS
chefe do Centro de Pesquisas Urbanas do IBAM
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professor assistente do depto. de Arquitetura e Urbanismo da UFF

) História Social da Criança e da Família


Philippe Ariês
) Uma Teoria da Ação Coletiva
Howard S. 8ecker
)
Carnavais, Malandros e Heróis (3~ ed.)
) Roberto Da Matta

)
Cultura e Razão Prática
Marshall Sahlins
MOVIMENTOS
Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande
. E.E. Evans-Pritchard
URBANOS
)
) Elementos de Orqanização Social
Raymond Firth NO RIO DE JANEIRO
A I nterpretação das Culturas
) Clifford Geertz
Estigma: Notas sobre a Manipulação
) da Identidade Deteriorada (3~ ed.)
) Erving Goffman
O Palácio do Samba
) Maria Júlia Goldwasser
A Sociologia do Brasil Urbano
? Anthonye Elizabeth Leeds
\ Arte e Sociedade
Gilberto Velho
)
Desvio li Divergência (4~ ed.)
Gilberto Velho
Individualismo e Cultura: Notas para uma
Antropologia da Sociedade Contemporânea ZAHAR EDITORES
Gilberto Velho
Guerra de Orixá (2!1 ed.)
Yvonne M.A. Velho
RIO DE JANEIRO
)

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)
)
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I

ÍNDICE
)

)
11 INTRODUÇÃO
)
11 De urbanista e de antropólogo todos nós ...
)
14 Apresentação da partitura e afinação do instrumento
20 O tema, as variações e suas fontes inspiradoras )
25 Os casos a analisar )
28 Notas à introdução
)

)
31 BRÁS DE PINA }
}
Copyright © 1981 by Carlos Nelson Ferreira dos Santos
32 Uma briga que deu início à história
)
Direitos reservados. 36 O lugar de onde não queriam sair os favelados
A reprodução não autorizada 40 Quem eram os favelados )
desta publicação, no todo ou em parte, 42 E depois da crise?
constitui violação do copyright. (Lei 5.988) )
43 Como fui à favela pela primeira vez
44 Com quem tivemos de lidar )
46 Meu filho, você não entende nada do povo ...
Capa: Elaine Fernandes )
49 O grupo de trabalho GT 3881
Diagramação: Ana Cristina Zahar
52 O GT e nós e o GT e a favela )
Composição: Zahar Editores S.A.
56 A CODESCO, suas glórias e tradições }
60 Mãos à obra!
67 Casas para o "povo" )
1981 72 Os próprios favelados inventam saídas )
Direitos para esta edição contratados com 75 Voltam à cena todos os atores básicos
ZAHAR EDITORES 80 Daí para a frente ... )
Caixa Postal 207 (ZC-OO) Rio 85 Quadro-resumo
Impresso no Brasil
88 Notas à etnografia de Brás de Pina

J
I,'
rOl 6 íNDICE
~ íNDICE
)
95 MORRO AZUL
)
198 CONCLUSÕES

) M 96
97
Como se forma uma favela
Como era e como ficou
198 As idéias-instrumento servem para o uso?
) 214 MSUS como política a ruvel local
99 Ele subiu para levar uma bola ...
215 Campo e arena
) 101 Como os moradores eram organizados
218 Evento mobilizado r
102 Como é que eu fui parar lá
) 220 Instituição
104 Os primeiros contatos
223 Catalisador
) 106 Tive de fazer um cadastramento ...
227 Luta
110 Estudo de casos
) 231 Conjuntura favorável e memória
118 O plano urbanístico do padre
234 Representação gráfica de um MSU
) 121 O plano habitacional do padre
235 "No momento em que ele for atual"
123 O plano financeiro do padre .
) 241 Notas às conclusões
126 Uma comunidade que não era deste mundo
) 129 De cima, de baixo, do buraco quente, do edifício
137 E os critérios? E o padre?
) 248 BIBLIOGRAFIA
139 Lunata e pederau
142 Uma assembléia para conscientizar o povo
144 Depois disso. .. .
147 Notas à etnografia de Morro Azul

)
151 CATUMBI
)

} 152 "Catumbi, ame-o ou deixe-o"


153 O futuro será "elevado"
}
160 Faixas, cartazes e passeata
) 162 De comissão a associação
165 O que era igual, o que era diferente
167 Por que os padres se meteram?
168 E eu.por que me meti?
172 O "front" interno
179 O "front" externo
186 O trato com o Estado
189 Desânimo
191 Vai começar tudo de novo?
193 Pontos de partida não podem ignorar os pontos de chegada
195 Notas etnografia do Catumbi
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4;S....... r.'

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94 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO

consciente de seus próprios objetivos e procurava tirar partido no que lhe fosse favo-
, rável para alcançá-Ios.
I':
1.1
40. Aroeira Neves certa vez, numa conferência onde se discutia a experiência de Brás MORRO AZUL
i de Pina, ponderou que os moradores deveriam ter ficado mais acomodados e mais
I'
~ dispostos a não correrem o risco de perder as vantagens adquiridas e, em tom de
) blague, se confessou "com culpas de ter contribuído para que votassem mais na
Arena". Os resultados das entrevistas de Blank (1977) também apontam no sentido
) do aumento da tendência conservadora, Perlman (1976) registra o mesmo comporta-
mento nos movimentos reivindicatórios urbanos nos EUA que conseguem ver as suas
) demandas plenamente atendidas.

) , 41. Um dos antigos líderes, que se mudou para a praça e prosperou muito, está exer-
cendo um papel destacado na nova Brás de Pina. É uma espécie de "cacique". É dono
) de um bar com bilhares que ocupa um sobrado vistoso e.comanda um serviço de alto-
falantes. Parece estar ligado a políticos de quem seria cabo eleitoral. Foi quem cercou
metade da praça para fazer um clube que promove o samba e o futebol. Ouvi dizer
)
'1! que tem o apoio de uma parte de seus ex-colegas e que até o padre, reaparecido de-
) pois de um período de sumiço, lhe rende homenagens. Em compensação, os da facção
I que foi contra o assalto à Casa Branca detestam as atitudes de dono que esse .enhor
) 1.1 está tomando em relação ao lugar. Reconhecem, no entanto, que, frente a seus:fortes
d suportes exógenos, nada podem fazer-e se mostram conformados.
) '·1
42. Aquela senhora achava que a decadência da CODESCO estava vinculada ao que
li·· aconteceu com a Casa Branca. Supunha que toda a desorganização e a inércia que
vieram depois eram um castigo infligido à população pelo seu mau comportamento.
Ela fazia questão de ignorar a história da CODESCO como algo independente de Brás
de Pina. Era "lococêntríca".
) 43. Blank (1977, p. 117) faz uma crítica recuperadora dos problemas legais suscita-
dos por Brás de Pina, considerando que é difícil adequar planos de urbanização de
) uma favela às normas da legislação vigente. O fato, porém, é que os moradores de Brás
de Pina vivem em estado de angústia e frustração por não serem proprietários e têm
) toda a razão. Eles sabem o que isso significa em nossa sociedade urbana.
) 44. Em um seminário de avaliação dos meus trabalhos que. a CODESCO promoveu
em 1969, previ o problema e denunciei o "monstro jurídico" que estávamos .gerando.
') O alarma teve um efeito muito negativo, pois era uma ducha fria no entusiasmo geral.
Fui muito criticado e a conclusão foi que era preferível gerar uma situação de fato
que obrigaria a buscar uma solução no futuro. Como estratégia, não era ruim, já que
se admitia que Brás de Pina poderia seguir com sua luta e que seu processo não ficaria
estático, com a perfeição obtida de um só golpe. A ambigüidade, porém, que persiste
até hoje, é muito negativa para os moradores.

I 95
)

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! 96 MO VIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 97
')

Como se forma uma favela de Lucas, "onde havia outro trabalho da Cruzada São Sebastião", e puse- ')

ram todo o mundo lá. .


)
As primeiras pessoas que chegaram foram uns pretos de Cabo Verde, que, Em 1974, quando foi feita a pesquisa, ainda havia maneira de entrar
por volta de 1920, se estabeleceram no cocuruto do morro, com a licença na favela através da compra de direitos das famílias residentes. Isso podia ')

dos proprietários de uma casa na rua Marquês de Abrantes. A sua função ser feito ou não com a autorização da Associação. Quando o candidato era
')
I era tomar conta do lugar. Até hoje está lá uma filha deles. A favelização das simpatias dos líderes ou do padre encontrava facilidades. Caso contrá-
de verdade começa mais ou menos em 1940. Até tal data, de acordo com rio, um estatuto não-escrito, algo que nunca entendi bem, mas que fíguro

II
!
vários moradores antigos entrevistados, ninguém tinha construido na área
vigiada pelos cabo-verdianos. Do lado, porém, havia uns terrenos do INPS,
onde os. primeiros invasores fizeram seus barracos às escondidas. Eram uns
cinco e parece que hoje em dia nenhum deles vive mais na favela.
como uma espécie de consenso chamado "nosso regulamento", impedia a
transação. Os admitidos eram, em geral, filhos de favelados antigos no
lugar que, casando, constituíram novas famílias.
Através desse breve apanhado da forma pela qual foi ocupado
)

I
I
Na área invadida, havia um guarda do Estado (a então Prefeitura do
Distrito .Federal), que controlava o local e que começou a cobrar dos que
Morro Azul, já ficam apresentados os seus principais personagens: mora-
dores de diversas gerações e procedências e o padre. Também já fica
)

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queriam se estabelecer. Pedia de "5 a Lü mil-réis" para deixar construir delineado o quadro do poder no interior da favela: primeiro houve uma
! barracos. As famílias dos mais antigos residentes vieram para Morro Azul fase "pré-MSU", marcada por grilagem e exploração material: depois veio
nessa época. Eram poucos e concentravam-se no que hoje são as ruas C, o padre "libertar" a população através de uma "operação higiênico-
, ~' )
D e F. Foi então que surgiu um novo grileiro, que se associou ao guarda, proibitória" que vai conduzi-Ia a uma nova tutelagem, onde o móvel da
aperfeiçoando os métodos de exploração: começaram eles próprios a exploração, bem mais puro, parece ser o exercício da autoridade pela )
"fazer mal ocas para vender ou alugar direitos". Isso foi. em 1942 e, daí autoridade. Nesse caso, à diferença do de Brás de Pina, moradores e líderes
da Associação são categorias que vão se confrontar de modo quase puro )
por diante, passou a entrar muita gente, entre os quais a maioria dos atuais
moradores. Começou a se institucionalizar o hábito de fazer puxadas para com os outros atores do campo e da arena. As relações aqui não têm )
sublocar a recém-chegados ou para abrigar parentes. ambigüidades: a .fronteira parece uma linha reta e contínua, traçada por
Em 1950 a favela estava com sua população estabilizada, sendo mão firme, que nunca é a dos favelados. O seu papel, até onde pude acom-
registrados poucos que tivessem entrado depois. Para construir na área do panhá-lo, é sempre o dos submissos e manipulados.
INPS o processo sempre foi um destes: licença do guarda; pagamento de Na análise que passarei a fazer, haverá vezes em que demonstrarei
"direitos" ao guarda e a seu "sócio"; ocupação de uma puxada. Quanto como grupos e indivíduos tiram partido da própria passividade, das formas )
à área dos cabo-verdianos, o seu grupo, ao ver em 1945 o sucesso obtido mais cínicas possíveis. A sua identidade não é auto-atribuída e jamais é
)
pela dupla de grileiros, passou a ímítá-los, fazendo vários barracos para questionada de baixo para cima. Sempre aparecerão aceitando ser quem
deles extrair renda. lhes dizem que sejam e fazendo o que lhes mandam fazer, ou melhor, )
Nos velhos tempos (1945 a 1955) era comum a criação de animais deixando que alguém (grileiro, padre, Estado) o faça por eles ou em nome
deles, na expectativa de depois serem "malandros" e "deitarem na sopa". )
junto às moradias. Havia quem criasse porcos, cabras e galinhas. Os animais
viviam soltos e sujavam tudo. O padre, quando chegou, acabou com eles, Só que, sendo o espaço concedido muito estreito, nem sempre é possível )
dizendo que eram fonte de insalubridade e responsáveis pelo alto grau de qualquer tipo de malandragem, sendo então todos coagidos a se compor-
tarem de forma preestabelecida. )
mortalidade infantil. I Esse padre apareceu pela primeira vez em 1952,
levado pelo pároco da igreja próxima, que "mandava" na favela. Sua )
primeira tarefa foi a limpeza do morro. Além dos animais, deu uma corrida
nos grileiros, denunciando sua atividade' como ilegal e liberando o povo do Como era e como ficou )
pagamento aos dois, que nem sequer moravam em Morro Azul. Em 1954
)
ninguém pagava mais nada. Daí para a frente não entrou praticamente No final da década de 1950 OCOI;reuum grande incêndio em Morro Azul.
nenhuma família, exceto alguns parentes dos que já estavam lá e que se Os barracos de madeira arderam com facilidade, deixando um saldo de )
instalavam clandestinamente entre os barracos existentes. A limpeza 47 famílias desabrigadas. O acontecimento foi muito mobilizador, provo-
atingiu também outras pessoas: mulherio e vagabundos, que "não tinham cando movimentos internos de solidariedade intrafavelados e movimentos )
condições de ficar entre gente decente". Fizeram um barracão em Parada externos de solidariedade entre vizinhos e favelados. Sob a pressão do )
)

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I. (

98 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 99

choque, todos procuraram ajudar os flagelados. A favela e seus problemas Seria um contra-senso tentar desenvolver planos que exigiriam obras
passaram a ser uma questão prioritãría tanto para os grupos de dentro complicadas com investimentos financeiros relativamente altos e muito
quanto para os de fora. trabalho, sem garantias de estabilidade e de permanência naquele local. Por
( Quando pegou fogo, Morro Azul já existia há 20 anos e abrigava isso, desde quando surgiram as primeiras idéias de partir para uma ação
( umas 220 famílias (cerca de mil pessoas). A favela ocupava um pequeno transformadora das condições urbanísticas, começou a preocupação com
morro no bairro do Flamengo, que ficava totalmente escondido pela bar- a propriedade da terra. Levantamentos jurídicos demonstraram que o
( I reira de edifícios da rua Marquês de Abrantes, seu principal meio de terreno ocupado não tinha propriedade definida. Por conseqüência,
( I, acesso. Trata-se de uma localização excelente para os moradores. Por si estava sob a responsabilidade do Estado. Por outro lado, agências que
mesmo o Flamengo já é um ótimo centro de serviços com alta densidade. lidavam com o problema da habitação no Estado da Guanabara (CHISAM,
1
(
,I Está bem equipado com escolas, comércio e outras facilidades. Além do por exemplo), garantiram, em várias épocas, a não inclusão de Morro Azul
mais, fica eqüidistante do centro da cidade e de Copacabana e é bem em planos de erradicação. Consultado a respeito do assunto de sua atribui-
li servido por transporte coletivo. A população da favela reconhece essa ção específica, o Instituto de Geotécnica não via maiores dificuldades
! vantagem como preponderante e vive 'se referindo a ela: "Não vou morar quanto ao solo, Esses dados somados, cujo levantamento demandou
1
, grande esforço, constituíram uma garantia julgada suficiente para a exe-
í em Realengo porque o trabalho é aqui"; ''O morro é excelente para quem
cução de um plano urbanístico e habitacional.
L
li,
'I,
trabalha"; "Morar aqui é um privilégio, porque está perto da cidade."
Em 1974, data em que comecei a trabalhar lá, Morro Azul tinha o A favela de Morro Azul, depois da tragédia que havia sofrido, parecia
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aspecto de um típico aglomerado irregular de moradia em encosta na apresentar condições muito propícias para sobreviver e ser urbanizada.
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Zona Sul do Rio. A maioria de casas era de madeira, construida em torno Não estava em uma área cuja posse fosse contestada ou disputada. Não se
de becos íngremes. O que distinguia a favela era o fato de ser pequena, desejava o seu terreno para que aí fossem feitas obras públicas. A sua
(
de estar escondida e, principalmente, de apresentar algumas obras urba- localização não a tornava interessante para a especulação imobiliária. Não
( nísticas e arquitetônicas especiais. havia perigo de deslizamentos no morro. Sendo pequena e discreta, ela não
O incêndio serviu para comover D. Hélder Câmara, então bispo- atraía a atenção dos grandes planejamentos habitacionais a que o Estado
(
auxiliar do Rio de Janeiro, que estava em plena campanha da Cruzada da Guanabara estava sendo submetido. E, coroando tudo, havia uma popu-
( São Sebastião, tentando resolver o problema de moradia dos pobres.? lação pronta a trabalhar em conjunto, motivada para cuidar de si mesma.
Com essa finalidade, a Igreja havia acabado de construir os edifícios da
(
Praia do Pinto. Tomando-os como modelo, foi feito um prédio de cinco
andares para alojar os desabrigados. A partir daí, a população passa a se Ele subiu para levar uma bola ...
dividir entre os que moravam nos barracos (160 famílias) e os que mo-
ravam no prédio (47 famílias). Nas primeiras vezes em que fui à favela, O padre chegara ao local há 21 anos: "Naquele tempo era preciso ver isto;
os líderes locais me garantiram que não havia diferenças e que eram todos para subir tinha de se usar uma corda. Eu vim trazido pelo pároco." O
integrantes de um só grupo, que havia uma só "comunidade". pároco, que tinha lá umas obras sociais, era o "dono do morro" e fez dele
o seu herdeiro.
A idéia de comunidade em Morro Azul surgiu quando houve o
incêndio. Com o clima emocional propício, as necessidades urgentes de O padre acabara de chegar da França e logo assumiu um papel muito
moradia foram usadas como base para um trabalho de organização comu- ativo, Segundo um dos favelados, "ele subiu uma vez para trazer uma bola
nitária, dito "de ajuda mútua" e que expressava uma preocupação regular de futebol e nunca mais saiu daqui". Ficou na favela realizando trabalhos
com as questões da habitação e da provisão de serviços urbanos de con- de base e tentando organizar os moradores. Estimulou a criação de várias
sumo coletivo. Os favelados eram instados a se organizar para 'buscar, entidades (patrulha de escoteiros, órgãos de moradores, comissões de luz)
por conta própria, a solução para suas deficiências. Para tanto, teriam a e comandou os mais diversos trabalhos. Em 1957, quando aconteceu o
orientação e o auxílio do padre, cujo trabalho, em parte, era estimular incêndio, soube canalizar muito bem os recursos financeiros e humanos
as técnicas de grupo através de comitês de ação, de reuniões para discussão que teve à sua disposição, trabalhando com a Cruzada São Sebastião.
de assuntos de interesse geral e de treinamento de lideranças. No início Escolheu a parte mais baixa da favela, que era desabitada, para fazer um
de 1973, surge a Associação de Moradores do Morro Azul, entidade com edifício que abrigaria as vítimas. Parece que esse edifício, o primeiro de
personalidade jurídica substituindo o anterior Conselho de Vizinhança. um conjunto pretendido para alojar todos os favelados, já estava progra-

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MO VIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 101

=.L-, .iesde antes do acidente. A sua construção foi apenas adiantada. e nem sequer eram apresentadas como se fossem responsabilidades. Eram
= ;.~·iionão serviu, de fato, aos flagelados. O padre preferiu as famílias invenções do padre, seguidas porque eram úteis diretamente ou porque
. :.:~: <s melhores condições econômicas na favela e realizou trocas. Daí convinha obedecer ao protetor para auferir as vantagens que só ele podia
.:2.".':J todo um sistema discrirrúnatório de que tratarei adiante. )
manipular. Comunidade era uma categoria trazida por ele, logo lhe cabia
Construído o edifício, ficou constatado que aquela experiência era defini-Ia e aplicá-Ia. Por conseguinte, também era quem tinha o direito de )
i Ei~el. por ser muito cara. Já em 1967, o padre pediu um financiamento mandar em tudo o que tivesse o rótulo de "comunitário". Os favelados,
i ~ruições religiosas da França e do Canadá para fazer um segundo
:j ao percebê-lo e respeitã-lo, mostravam-se mais espertos do que o padre )
D!.i-.j. O projeto, apesar de considerado interessante, foi rejeitado, por supunha.
)
4' ..••• de seu orçamento elevado. Foi então que teve a idéia do plano
:J Wf:fcional: aos favelados ofereceria material e eles levantariam as pró- )
~t -ASaS, em vez de irem para um conjunto de apartamentos padroniza-
,! ~ Como os moradores eram organizados
h m:. Isso seria feito no mesmo lugar que, desde o incêndio, havia sido )
I~ ÍE"'4do vazio, à espera do tal outro bloco.
,lt
,1 O primeiro Comitê foi dirigido por um homem da confiança de D. Hélder. )
"í. O novo estudo foi mandado para o Canadá, através da Caritas Era ''uma grande figura" segundo o padre, mas foi embora da favela.
)
~ 3 Os planos eram acompanhados de um orçamento feito por Eleito mesmo, o primeiro foi o que chamarei de presidente 1. Depois veio
l.:::. >;<genheiro,o mesmo que projetou o prédio - ''um grande amigo", c. presidente 2, que era um tipo muito popular, político e inteligente. Com )
I ~_"1.t'>o o padre. Foi tudo aprovado e, através da instituição brasileira tais qualidades, não é de admirar que houvesse derrotado o outro, que era
J
~" ""%Viude intermediária, veio uma verba de 20 mil dólares com a qual muito pedante e com manias de grandeza. Só que, no meio do segundo

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:ê~"'::I.urna rua,
A rua foi considerada prioritária, pois, através dela, poderia subir
~ :.mllonete no morro, levando o material para a construção das casas.
mandato, o número 2 começou a praticar irregularidades financeiras.
Depois, não convocou novas eleições,
O presidente 2 era o dono da "cabine" da favela e cobrava muito
)

~:~ ") restante da verba, foi canalizada a principal vala de esgoto do lugar. caro as ligações. Ao mesmo tempo, também dirigia a Comissão de Luz que
~. ;'oi pedida outra quantia de 20 mil dólares ao Canadá, para completar estava encarregada de executar as redes aceitas oficialmente.e O propósito
z -:t'.rasda via (muros de arrimo, por exemplo) e para financiar as primei- declarado do governo estadual quando criou as Comissões era impedir
~ ~dias. Fora isso, o padre usava doações eventuais da Paróquia ou a exploração. g claro que a instalação das redes em Morro Azul andava a
IC .r,stiruições católicas para efetuar compras menores (veículos, por passo de cágado. Para culminar as contradições, o presidente parou de
~~yi.o). Quando conheci a favela, estava sendo pedida uma terceira pagar as contas de seu próprio relógio por seis meses, embora continuasse
.::::::.~ de dinheiro ao Canadá. Também havia uma instituição norte- cobrando dos seus clientes. Em 1973 estourou o escândalo ~ chega-
~:~a, a lnter American Foundation, que dava dinheiro para o plano. ram a prendê-lo. Comandando a campanha moralizadora estava firme o
~ Z:<J; as verbas consegui das eram colocadas em um banco, sendo a conta presidente 1.
:::GJ.:01adapor um contador oficial. Nessa história toda, o padre manteve-se neutro: "Casos como estes
Após o incêndio, o padre fundou o primeiro comitê de moradores. entrego à Associação" (isto é, não me comprometo). Mas assim que
=~qS disso sucederam-se várias diretorias, sempre com a sua participação. , o assunto rendeu bastante e ele viu todos interessados, logo tratou de
2. i974, foi criada a Associação de Moradores, miada à FAFEG, quase providenciar novas eleições. Ganhou outra vez o presidente 1, candidato
.:pe :'0 mesmo tempo que a Comissão da Luz. Em todos os casos o padre .j único. Aí se descobriu que a Associação não existia legalmente sem se miar
~re foi o iniciador e o mentor, com papéis mais do que ativos. Ele à FAFEG.s Foram, então, realizadas eleições formais para normalizar a
tiZ!:í que "até as atas sou eu quem escreve", para logo depois se corrigir, I filiação, Não chegaram nem a ter quórurn. Todos esses episódios em que
;CL'.! "sou eu quem tem horário integral para me dedicar à favela; os chefes entra o presidente 1, sai o presidente 1, entra o presidente 2, continua o )
ir t:.mília passaln o dia trabalhando ... ". presidente 2, sai o presidente 2 preso, volta o presidente 1 irregularmente
Nada do que era chamado de "atividades comunitárias" acontecia e depois é reentronizado através de eleições ritualísticas, servem para
:ê:Y: (/ estímulo ou o aval do padre, que reconhecia que isso era ruim, demonstrar a pouca expressividade da Associação. Aqui, em nenhum
! :u;a preferir que os moradores assumissem melhor as próprias responsa- momento, a entidade chegou a ter o mesmo papel que em Brás de Pina.
:ú.ltl~des. Creio que não as assumiriam nunca, porque não eram próprias Os moradores viam nela, no máximo, um campo estranho, onde se pas-

.li.I..;;;)
(

I J !
MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
MORRO AZUL 103
(
IJ t ;2.'::'= zistonas divertidas, fontes de "fofocas". Não detecto aquela per-
=~L.iiade entre campo e arena que em Brás de Pina chegou, em alguns curiosa. Um dos diretores da Fundação, o qual havia trabalhado com os
problemas habitacionais do Rio de Janeiro, indicara um famoso cientista
=~~:os. a fazer com que o campo se ampliasse até abranger a arena
=:ei..-L Em Morro Azul jamais existiu tal tipo de identificação simbólica, social brasileiro para assessorá-Ios quanto à descoberta de algum caso
Taivez porque soubessem que o símbolo importante estava em outra interessante que se encaixasse nas suas especificações. Este, lendo casual-
instância e que seu portador era outro personagem: o padre. mente um jornal, viu uma entrevista sobre Morro Azul. Achou que servia
( O papel da Associação tanto na favela quanto no plano habitacional e fez os contatos. Os norte-americanos foram lá, ficaram encantados e se
era insignificante. A diretoria limitava-se a endossar as atitudes do seu comprometeram a ajudar. Como não davam dinheiro sem que houvesse
( "orientador", na maioria dos casos, por sugestão ou a pedido dele mesmo, uma avaliação concomitante, vieram em seguida me procurar, por sugestão
Quando havia crises devidas ao temperamento do padre, o presidente 2 do diretor e do cientista social.
(
nneaçava demitir-se do cargo, sabendo que não podia atuar sem o seu Através de uma visita curta e muito objetiva, fui inteirado do que
( ;ti: "auxílio". era a Fundação e do que pretendia. Eles me falaram da favela, sem dizer
O gênio do padre (de quem se dizia que "tivera problemas com a o que achavam da situação. Contaram que o padre tinha um plano habita-
( li'!: guerra") a toda hora fazia surgir "conflitos insolúveis" com os moradores, cional e que lhes havia pedido dinheiro para custear a construção de nova,
i
( i- ocasião em que "entregava o problema à Associação". Tudo não passava casas, apresentando a seguir um projeto que já havia sido aprovado e com
:[ o qual eu nada teria a ver. Eles me convidavam, a título pessoal, para
.ie uma pa .itomirna, pois é evidente que os líderes não podiam fazer nada.
(
_l;
li A "entrega do problema" era uma espécie de descarrego ritual, em que avaliar os métodos de autoconstrução adotados em Morro Azul e verifica:
f'; J padre largava uma demanda de um lado para pegá-Ia adiante, desvestido a sua validade. Eu teria um ano de prazo para pesquisar, seguindo os cri-
.I'
~~ , ia identidade conflitante e acobertado por outra entidade que era ele térios que achasse convenientes e agindo com tanta autonomia quanto
<- =-=smo sem sê-lo e que permitia salvar a sua face, restabelecer a ordem possível. Os contatos com a Inter American se reduziriam a um mínimo
= manter um nível de tensão que, segundo mostrarei adiante, só favorecia de formalidades, como apresentação de relatórios e cumprimento de
(
1 sua autoridade. 6 prazos. Como naquele tempo estava muito interessado em conhecer
( ,[ melhor certas peculiaridades das relações entre o morar (processo sim.
bólico) e a moradia (produto material) para os pobres nas cidades, achei
( :/ que aí estava uma bela oportunidade de aprendizado. Aceitei o convite.
I, Como é que eu fui parar lá
( A partir de 1973 comecei a freqüentar a favela. Da primeira vez,
'! Eu não sabia nada sobre Morro Azul até que um dia, no final de 1972, fui levado por um técnico da Inter American, que me apresentou, muito
( formalmente, ao padre e ao presidente I e lhes explicou o que iria fazer.
.ui procurado por uns norte-americanos que estavam trabalhando para uma
.undaçâo nova subsidiada pelo Congresso dos EUA e que se chamava O padre me tratou muito amavelmente. Pudera ... eu era a única condição
~
que lhe era imposta para ganhar muitos dólares! O meu papel seria o de
( li Inter American Foundation. O objetivo expresso dessa organização era
ãnancíar experiências pioneiras em comunidades (sic!) rurais e urbana, um observador do plano. Tanto para os do campo (Associação e padre)
li em países subdesenvolvidos. Ao mesmo tempo, eles queriam analisar corno para os da arena (favelados) eu era uma figura muito insólita, difícil
1I
.:riticamente os resultados do que estariam financiando, na expectativa de explicar. Até eu mesmo me achava assim.
[
de que, através do estudo de atuações concretas e limitadas a pequenos Por força das circunstâncias do meu trabalho, passei a ser um repo-
casos, se adquiriria um know-how aplicável universalmente. Os objetivos sitório de lamentações e de acusações. Por mais que tentasse explicar a
(
da Inter American representavam uma oposição aos da USAID e refletiriam minha função acadêmica, sempre me identificavam como sendo um fiscal.
( 1 disputa entre o poder do presidente e o do Congresso nos EUA na época.. Acho que o padre e a diretoria da Associação, que me tratavam cheios de
Eles não queriam repetir as atuações monumentais da USAID porque salamaleques, imaginavam que, secretamente, eu era um espião dos gringos.
( Estes, inclusive, para garantir a lisura da minha atividade, comprometeram-
estavam convictos de que partiam de pressupostos preconceituosos, que
levavam a grandes erros. Pelo menos foi isso que me explicaram. se a "devolver à comunidade" os resultados integrais dos meus estudos, o ,, iI
~
Morro Azul foi o primeiro trabalho urbano da lnter American no que, no futuro, iria fazer com que eu me desentendesse com a Inter
( i
Brasil. Na América Latina já estavam financiando estudos críticos de American. Para a população, então, não havia disfarces; eu era um fiscal.
( cientistas sociais renornados. A favelinha escondida foi escolhida de forma Para poder entrar naquele meio resolvi explorar o papel que eles
mesmos me ofereciam e fui fazendo uma série de alianças sucessivas,
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MORRO AZUL 105
104 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
As listagens de moradores que me foram apresentadas eram de três
tomando partidos e me deixando manipular. O padre me fazia confidên- anos atrás e ninguém sabia ao certo' dados elementares sobre o número de
cias, dizia que a população era ingrata e preguiçosa, que não queria traba- famílias residentes ou o nome de seus chefes. O padre e os membros da
lhar e ameaçava, dramaticamente, largá-los a todos e nunca mais voltar. Associação, consultando a relação que possu íarn, ficavam discutindo se
Os líderes da Associação me chamavam de lado para cochichar que o fulano já havia morrido, se tal outro já tinha vendido seu barraco e se
padre, "apesar de muito nervoso, era ótimo caráter e bom amigo". Recla- mudado etc. Foi quando comecei a perceber os primeiros indícios de
mavam, no entanto, da instabilidade de seu gênio e concordavam com ele discriminação e privilégio. Sobre certas famílias que saíram da favela ou
quanto à apatia do povo. Os moradores me escoravam na rua ou me cujo chefe morrera, as expressões eram de alívio: ''Graças a Deus!"; "Já ')
pegavam quando ia em suas casas. para contar estórias sobre o padre e não era sem tempo!" etc.
a Associação. Havia vários grupos: o dos entusiastas, o dos apáticos e o dos Fiquei sabendo que existia gente na favela que não era considerada
opositores. Meio confuso e levado aos trambolhões todo o tempo que favelada como as outras, "não tinha direitos", apesar de morar há muito
)
freqüentei a favela, o que pude constatar mesmo é que lá imperava um tempo no lugar.' Certas áreas inteiras eram malditas e seus moradores esta-
forte espírito oportunista, em que cada um procurava tirar o mais que vam cientes de que nunca. seriam beneficiados com plano algum. As razões )
pudesse para benefício dos próprios objetivos, fossem eles quais fossem: de tais exclusões estariam em um "nosso regulamento", que as justificaria.
ajudar, por espírito cristão, a desenvolver a comunidade; ganhar status Em compensação, os moradores do edifício da Cruzada eram considerados
através de entidades locais; ou, para os que tinham razões mais práticas, favelados e, segundo me diziam, eles mesmos se viam como tais e faziam
morar da melhor maneira possível nas condições que se ofereciam naquele frente única com os interesses do morro.!
lugar. Descobri que a mobilidade era grande, apesar da situação populacio-
Para atuar, eu havia preparado um roteiro ambiciosíssimo, pois tinha nal se manter em .relativa estabilidade. A tendência era abrir o sistema da
pouco dinheiro e só dispunha de dois estagiários de arquitetura como favela em um s6 sentido: o da saída das famílias. As pessoas recebiam
auxiliares." As tarefas enormes que me havia proposto a executar em um ajuda para que se mudassem, desde que abandonassem o morro, perdéndo
ano acabaram por demandar um ano e meio para serem, em parte, realiza- o direito à urbanização. Isso era uma invenção do padre para conseguir
das. Freqüentei, portanto, Morro Azul do começo de 1974 até meados de diminuir, de forma lógica ainda que discriminatória, a densidade de ocupa-
1975. Com o tempo, descobri que seria impossível analisar qualquer plano, ção do solo. No entanto, acabava tudo zerado, porque as vagas não-usadas )
pelo simples fato de que dele só existiam intenções. Passei então a me para abrir ruas ou ganhar espaços para as moradias em construção eram
)
centrar na análise de comportamentos. A figura do padre e a dos líderes oferecidas a famílias "com direito" que estariam "esperando a sua vez":
foram as que primeiro chamaram a minha atenção. A coisa era tão desor- casais jovens, filhos de moradores antigos que, ao casarem, continuavam
ganizada que, durante todo o tempo que passei indo lá, não houve mudan- morando com os pais, nos mesmos barracos ou apartamentos da Cruzada.
ça substantiva no quadro habitacional. Havia sete casas construídas, seis Entretanto, os controles não eram nem tão ajustados nem tão
em construção e duas iniciando a construção quando cheguei à favela. Até fluentes: havia gente que tinha recebido a ajuda, saíra e depois voltara!
l to
eu considerar meu trabalho concluído, nenhuma casa nova ficou pror.ta. Outros alugavam barracos e sublocavam cômodos, apesar de todas as
proibições das autoridades locais e urbanas (havia mesmo gente da As-
sociação fazendo isso ... ). O padre parecia assumir uma atitude muito
clara quanto às saídas. Nas entradas, como não podia impedi-Ias por ter
Os primeiros contatos capacidade repressiva limitada, usava aquele expediente de passar a res-
ponsabilidade à Associação. Um mero formalismo, que funcionava como se
Comecei fazendo reuniões com o padre e o pessoal da Associação. Eu ele largasse uma estrada para tomar um atalho e ser encontrado adiante,
queria, além de me situar, colher informações e material que pudessem caminhando em sentido contrário. As situações fora da ordem ficavam
ajudar na pesquisa. Descobri logo que tudo era muito precário. Não havia pendentes à espera de alguma solução conciliatória: compra ou recompra
nada que se assemelhasse a um mapa. O sistema de numeração e de iden- de "direitos"; permissão especial para construir; pressão psicológica e
tificação das unidades habitacionais era uma trapalhada. Depois que o moral frente a outros moradores.
padre promoveu a execução da via de acesso a veículos, a antiga rede de Quando comecei a pesquisar, a Associação estava registrando oficial-
becos se desorganizara, havendo áreas onde nem mais se podia identificá-Ia. mente seus estatutos na FAFEG e preparando aquelas eleições pro forma a
O resultado era uma numeração salteada ou ilógica.
\
) ,! 106 MO VIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
! MORRO AZUL 107

que já me referi. Havia também uma nova Comissão de Luz, substituir.do


a anterior que sofrera a intervenção do Estado.
\

I'
A favela era abastecida de água dia sim, dia não, através de uma
caixa d'água situada no topo do morro. O conjunto caixa e bombas foi
)
feito pelos moradores em 1957, com a ajuda do padre. Ninguém pagava a

I água, mas havia uma taxa de Cr$ 10,00 pelo funcionamento mensal das
bombas. Essa taxa era um compromisso moral, porque não havia como ARS<\ 1=
li ·1
:I
;
proibir os não-pagantes a terem acesso aos chafarizes públicos. Nos dias em
que caía água havia filas de latas em volta da caixa. O padre acreditava que,
quando viesse a luz, haveria maneira de controlar os pagamentos: quem se
atrasasse teria a luz cortada.? Água dentro de casa, só para os que mo-
) ravam nas construções novas, pagando uma taxa de Cr$ 20,00.
Existia um clube em Morro Azul, independente da Associação e que
) ~..
(.
I
I
promovia partidas de futebol no campo que fizeram no alto do morro.
O organizado r fazia parte das lideranças da Associação. Havia também cais
<!J) ~)
}!i templos: uma capela católica e uma igreja protestante, uma em frente à
)

)
ri outra, numa curva da rua principal. Quando chamei atenção para a coinci-
dência, descobri duas coisas: 1) que o padre considerava a capela, feita pela
,~ h~

~/
famosa comunidade. como parte do plano de urbanização e 2) que o clima
) no escritório do padre e sede da Associação '? não era muito favorável aos
protestantes. De comércio havia apenas duas tendinhas muito simples ÁREA-H
) onde se serviam bebidas. Em uma delas, cujo proprietário era o presiden-
) te 2, havia uma puxada com uma mesa de bilhar.
/
Tudo o que fosse responsabilidade executiva ou burocrática ficava ~A6:e
) por conta do padre: o controle do plano habitacional; o registro dos livros
de contabilidade: a redação de documentos diversos: a promoção de reu-
niões; os contatos externos; o pagamento das mensalidades. Esse açambar-
camento de funÇ'\.\esera visto por todos como natural: o padre dispunha de
)
horário integral para a favela. Ali era o seu lugar de trabalho. .ÁReA M
)
Tive de fazer um cadastramento ...

Eu havia írnaginado referir o meu estudo a uma matriz básica. Para compô-
Ia precisava de dados que nem o padre nem a Associação possuía. Foi ine-
) ~ ~~ te AeRANTES
vitável que pl'OC'ed~~ a um cadastramento direto em campo que foi muito
útil: além de fornecer um instantâneo de toda a favela, me pôs em contato
com todas as Ún1l1ns e serviu para que nos familiarizássemos mutuamente.
Para ex~uur o cadastramento saímos, eu e os estudantes, visitando
barraco por t>;UT.!~'\.'1 rara preencher uma ficha. Para que nos orientássemos,
usamos um l'l1.>";~~' do sistema viário da favela, feito em conjunto co:n o 190CG0S~~-(Cff3
padre e os memt-:\~ da Associação. Quando da feitura do desenho, senti
que a imagem t1s:i,~.s que o pessoal de Morro Azul fazia do lugar em que
)

1 1 _ JJI
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! 108 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 109
(

morava era muito fraca. Nenhum dos presentes, inclusive o padre, foi Os outros dados revelavam ainda que a família média tinha 4,97 pes- ,(
capaz de se referir às vias, setores e marcos locais de forma coerente. 11 Só soas e que a maior incidência estava na faixa entre quatro e seis pessoas
!{
!
ij
quando fiz uma intervenção direta, usando a minha experiência de observa-
ção e de representação do espaço, aliada às informações deles, é que o
que representava quase 50% do total. .
'(
I
desenho saiu.
Todos os habitantes das casas novas, construídas pelo plano do padre, 1
tinham renda familiar e per capita médias. Mais da metade dos que estavam
H Para identificar famílias usei um critério de household semelhante construindo tinham renda familiar baixa, sendo que uma das famílias a ti-
ao dos trabalhos da CODESCO. O levantamento foi feito por visitas a nha muito baixa. Disso deu para deduzir que, quaisquer que fossem os (
família por família em companhia de um membro da Associação, para critérios seletivos, não havia preocupações com a capacidade de endivi- ,(

I facilitar as apresentações. As reações foram variadas. Fomos atendidos por


gente solícita, por gente desconfiada e por gente hostil. Todos, porém,
colaboraram respondendo às perguntas. Aproveitávamos a oportunidade
damento das pessoas, nem com as suas possibilidades realistas de adquiri-
rem uma casa. Das 15 casas novas construídas ou em construção só três
eram de famílias com renda alta.
I
;(

ij para uma explicação breve sobre o que estávamos fazendo. A maioria


t~
I' Quando perguntei sobre o plano, querendo saber sobre o seu conhe-
1i não entendia: "Quem éramos?" "Americanos?" ''Do governo?" Acabaram
cimento e receptividade, fiquei surpreendido com as respostas. A maioria
\" concluindo que éramos fiscais disfarçados para controlar as ações do padre.
o conhecia muito superficialmente ou nunca ouvira falar dele. Demonstra-
Ii Naturalmente isso não nos era dito e o sabíamos por comentários dos
nossos acompanhantes. vam uma atitude entre assustada e respeitosa em relação ao padre. Eram
COIIUJnsrespostas do gênero: "Se é coisa do padre, é boa." Poucos se mos-
\, O cadastramento revelou que a renda mínima familiar era de zero
travam conscientes dos compromissos financeiros que o plano traria e
!f cruzeiros. A máxima de..Cr$ 2_500,00. As modas de distribuição permiti-
í
ram a composição de três grandes faixas: muito raramente relacionavam a sua renda com a impossibilidade de terem
fi! casas de alvenaria equipadas com comodidades como luz, água corrente e (
Renda mensal (salários m/nimosl " Famflias (%) esgotos. Em contrapartida, a localização no morro era vista como excelente.
.(
Baixa 2- 50 Algumas entrevistas transformaram-se em críticas ao padre, visto
"

Média (
2a4 35 como figura paternalista e dominadora que não deixava que a população
Alta 4" 15 resolvesse nada por sua conta. A Associação era identificada como "coisa C
• O salário mínimo na época era de cerca de Cr$ 300,00. do padre". Ele era muito conhecido e comentado, mas o órgão, apresen-
tado como representativo dos moradores, não. ,\
Os resultados eram equilibrados em relação à média das favelas cario- ~
cas. Constatamos, entretanto, que, para obter melhores indicadores sobre
a situação financeira em Morro Azul, era preciso calcular a renda per capita Distribuição das Famílias de Acordo com (
e cruzá-Ia com a familiar. Para conseguir a primeira, foram divididas as ren- a Renda Familiar e Per Capita
i (
das familiares pelo número de membros na farmlia, incluindo dependentes,
I agregados e menores. O critério das maiores incidências permitiu distinguir Renda (
Familiar Alta Média Baixa
cinco faixas de renda per capita mensal: Renda \
Per Capita 4+ SM 2/4 SM 2-SM Sem Renda Total
B- =
inferior a Cr $ 40,00 (muito baixa) (
B de Cr $ 40,00 a Cr S 100.00 (baixa)
B- c-s 40- O O 4 O 4
M = de Cr $ 100,00 a Cr S ::!()().OO (média) B. Cr$40/100 2 4 34 O 40 (
A =
de Cr$ 200,00 a Cr$ -lOt).OO (alta) M. Cr$ 100/200 8 36 17 O 61
A+ = superior a Cr$ 400,00 (muito alta)
A. Cr$ 200/400 13 16 12 O 41
Do cruzamento resultou um quadro onde se revelava que a maioria \
A+. Cr$ 400+ 5 3 2 O 10
das famílias tinha renda familiar baixa e renda per capita baixa ou renda Sem renda O O O 3 3 \
familiar média e renda per capita média. Naturalmente os parâmetros eram
Total 28 59 69 3 159 \.
as rendas extremas dentro da própria favela.

\.

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110 »o.:«: =: __ ,;'B,~.vOSNORIODEJANEIRO MORRO AZUL 111
,,
o conjunto :.: :::..:.:- :~" en tos que obtive nos meus primeiros conta- Matriz Operacional da Pesqu isa
tos me levantou =:.:....~ z: ",,:as sobre aquela pretensa comunidade, sua
organização e suas =-;.::-=-- -"::-' ,:; ~ ão entrevi nenhuma solidariedade espe- Renda
cial nem nenhum, :':.' : :.:: ..uculação diferente das que já conhecia em Per
) , ,11 outras favelas ou 2: :--:---:::-: :ê outros estudiosos, Os moradores estavam Familiar Capita Endereços
) extremamente envo:T~ ;:"..r.:, seus problemas de sobrevivência pessoal, A+ J2 D10 C34 El8

~Ii
suas "ideologias do .:p..:o::.,";:-(J' (cf. Perlman, 1977); diziam não quererem
A CN severino C27 Kl El58
sair de onde estavzx ~..=::,1aiS do que conscientes das externalidades
positivas daquela 10;:0· n:-;- /, pareciam compreender que mudanças arbi- M M3 F7A E7 F2
trárias trariam altera:;:.:s I.·:'~~áveis nos seus processos de morar e que o B E5
Estado tinha a decisã; ~ l{;bre isso; apresentavam pouca disponibilida- Alta B

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)

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de para trabalhos em ~:C:L::7; cuja objetividade imediata não ficasse clara;
preferiam transferir 2! :::'-;:<::r...v..bilidadesde pensar e de tomar atitudes para
um elemento exógenc ::: - .
O que descobr: :~ : ::,;,:,,,,1 em Morro Azul foi a figura do padre, que
A+
A C35
G5 CN7 Kl3 C33
M CN je
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BN46 Al 1
K18 C36 El2B
L10 11 K22
trabalhava em horário z; ==-ó-::': na favela há 15 anos, As relações pareciam
) 'It
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ser in tricadas. A iden t ' ,'~:: ~_-:e pad re era definida por oposições. A come-
B M8BN12
I'
-çar por ele, todos o s:::.::..c. ":": fora". Um homem duplamente de fora; um Média B
) "

não-favelado e um e5-:;.::~-=:.:r;, Mas. à força de se impor como intérprete A+


\ e de trazer vantagens. ~::'::,:::,"por se firmar como símbolo. Dependia dos A CN m. josé El2 G6 M3
favelados à medida qu< :~ com que dependessem dele. Havia lugar para M J4 El4 A9 K7
seu papel (patrono, in:~~:=(,,:, catalisador) naquele palco como em qual- BN13 C2 BN52 BN44 F4A K2
quer palco de morador~_ =::i particular de favelados. O que fez foi empol- B ElO Jl Gl C30 BN20 A2
• li gá-Ia e dedicar-se a ele de -~; ÍrHma que o levou a um extremo, dominando Baixa B- C32 :
) ~';~ todos os outros atores e L=::'~újo se tomar o único metteur en scéne. nova nova
ili não
) "'1 Habitação habitada em construção pretende pretende
f;
I Estudo de casos
) Como nem todos os levantamentos se aplicavam a todos os casos, fiz
A matriz operacional que montei para orientar os meus levantamentos 'é uma separação entre casas novas habitadas, casas novas em construção, bar-
apresentada adiante. Ela servia como um mapa identificador de um terço racos de quem pretendia construir (casas novas em projeto) e barracos de
das fam I1ias. Parti em seguida para um estudo desses casos que correspon- quem não pretendia construir.
dia a uma parte da proposta intitulada: Observação da População e de seu A análise conjunta das plantas dos que estavam fazendo suas casas
Comportamento. ou dos que já as 'haviam feito mostrou que sete haviam executado os seus
A metodologia que segui agrupava os levantamentos em cinco áreas: próprios desenhos, dois recorreram a amigos residentes na favela, dois
; foram ajudados pelo padre e um recorreu a alguém de fora, "um engenhei-
) I. estudo dos processos de ConstrllÇão,desde a apresentação de plantas (quando as ro amigo". Só dois construíram seus planos, "riscando em cima da laje"
houvesse) até a ocupação das moradias; nas palavras de um deles. As plantas não divergiam muito entre si. Eram
) 11. análise dos espaços construúío- e de sua adequação aos programas e desejos dos limitadas pelo tamanho dos terrenos, todos com o mesmo tipo de divisas
moradores;
) laterais e de comunicação com a rua. O uso de materiais semelhantes e
1/1. estudo da distribuição de renda, em algumas famúias; ~
oriundos da mesma fonte (o armazém do padre) também deve haver con-
) IV. estudo do grau de envolvimento de toda a população com o plano; tribuído para a falta de·diversidade. Nos desenhos estavam figuradas ape-
V, estudo dos estilos de vida famihur depois da mudança para a casa nova. nas casas de um pavimento, embora os edifícios construídos ou em constru-
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Ih .~ AZ.UL.~~~ MORRO AZUL 113
)
ção tivessem dois ou até três andares. Para a maioria, a idéia de aproveitar
jI. ~~ CCNSiUJ'T1VA.-
ft;5Q)~
o embasamento (obrigatoriamente alto para construções em encostas) só
surgiu ao vê-lo materializado. Os favelados referiam-se aos subsolos como
\ "porões", ainda que os usassem como verdadeiras habitações, completan-
,I ~~~ .~, do o pavimento superior ou abrigando famílias, agregadas. Na época em
1i
~:~[#
'. I; '. •......•.
~ \
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que pesquisei, todos já entendiam as vantagens do uso desse espaço extra.
Os que construíram primeiro e não levantaram suficientemente o piso recla-
mavam que não foram instruídos sobre o aproveitamento da área. Em
-0- . \
compensação, os candidatos a construir já projetavam escadas, incorporan-
C~,~ )'" ~ do o "porão" ao corpo da casa.
~ . ~-
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~ :...~-"~ @~.
".'\ O modelo que predominava era o da casa com sala, dois quartos, cor- )
"-t-...~.
-i......;
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\
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i redor, banheiro e cozinha (ver quadro anexo). Só um morador não pedia
corredor em planta e só três pediam apenas um quarto (dois casais idosos
)

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e uma mulher sozinha). As casas com três quartos e duas salas eram as de
dois pavimentos, sendo uma delas para duas famílias e outras duas casas
)

-il~ ~u~;,ru tl\ com uso do "porão". Áreas de serviço eram populares, aparecendo em sete >
~- ~
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8.\
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das 12 plantas apresentadas, enquanto só quatro tinham' varandas. Talvez
por exigüidade de espaço, talvez por influência do padre, as razões práticas
I )

! '-~J~!.j:"Q_.: ~'l""-~ predominavam sobre as simbólicas. Curiosamente, havia duas plantas com
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copa ou sala de jantar, denunciando uma tendência arcaizante, já que as
maneiras mais modernas da moradia urbana brasileira excluíram essa peça,
)
)
transferindo suas funções para a sala ou a cozinha. Um dos moradores que
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il", t:t'tt~ ~~\ possuía carro planejou uma garagem no subsolo, o que não era um progra- )
na convencional em favelas.
Com exceção de uma planta, que expressava uma sutileza muito )
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grande em tirar partido das desvantagens de um terreno todo esconso, as
~-? ~ ~ \ )
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<:r't;! .
No.. .
outras poderiam ser classificadas como "racionalistas". O racionalismo te-
ria muito mais a ver com as' formas de morar correntes na cidade ("mode-

"~I"~;!
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\ los" superiores) que com as necessidades reais dos fave!ados. Valeriam aqui
)
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. (I!.
" 11.
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-- - Pfj[Jfj \ 05 mesmos argumentos e explicações que já usei em Brás de Pina.
Quanto aos barracos, a maioria era de madeira, com dimensões exí- )
•• 11
~ guas, A principal queixa era a falta de luz. Considerações quanto a espaços
---- ----'------1i ~ \
. _._ e materiais eram secundárias. Todos sabiam que, apesar dos incômodos, era
)

11II . _0-'-
! ,....
melhor morar em Morro Azul do que em lugares distantes ainda que com
maiores facilidades de espaço e de segurança nas construções. Alguns vi-

Itl
I'
i .~ viam a opção na prática: tinham casa fora e continuavam morando no morro.
i 1
Levantei 11 barracos dos que estavam construindo ou iam construir
para compará-los com as casas novas. A sua área ia de 4m2 a 35m2. As
I

I
di; . -\ divisões internas eram variadas. O cômodo mais constante era a cozinha,
I . aparecendo em dez casos. Só cinco barracos possuíam compartimentos
li!
i especiais para sala. Quatro tinham um quarto, quatro tinham dois quartos

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e um tinha três quartos. Em qualquer caso os quartos eram mínimos, com
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predominância dos de casal. Encontrei dois barracos com varandas e dois
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114 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
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..B 1<'11 Barraco no alto do morro. A casa nova estava sendo construfda em frente.
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~ xx X 1M com sala de jantar (copa), verdadeiro luxo frente à falta de espaço na favela.
) Em compensação, só um Com corredor, o que demonstra que esse é um
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elemento não-comum na favela e que é apropriado para uma casa, não para
um barraco (ver quadro anexo) .

)
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- XXXXXX XXXXIO
Como, além da planta, desenhava os móveis e utensi1ios mais impor-
tantes, pude verificar que as moradias eram muito atravancadas. Na maio-
ria dos exemplos, a circulação interna tinha de ser feita por cima de camas,
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N X XX 1M sofás e cadeiras. Era comum o uso de móveis Como divisórias e o espaço à
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noite era todo tomado por camas e colchões, recolhidos durante o dia. O
fogão era o equipamento doméstico mais constante, presente em todos os
barracos. Mas havia também geladeiras e televisores, desligados porque não
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havia luz no morro. As instalações sanitárias eram o que havia de mais
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precário. !
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As casas novas eram pequenas em relação ao tamanho das famflias
) (média de cinco pessoas), mas enormes se comparadas aos barracos primi-
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tivos. Embora a cozinha continuasse sendo o cômodo mais constante
(13/12), apareciam dez casas Com uma sala e duas Com duas, o que de-
} monstra as diferenças de concepção entre o que é casa e o que é barraco.
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116 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO


MORRO AZUL 117

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'co '~I X xxxXXXXXXIO do padre dão um resultado muito diferente do de Brás de Pina.
orienteções
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I "'JI X Todas as casas se caracterizavam pelo conjunto sala/corredor. O número de
quartos é outro fator de diferenciação. Nos barracos predominavam (8/10)
~I C\l1 XX XXX 11.0
::. os sem quarto ou com apenas um quarto; nas casas, a maior incidência
o
-I X X X
x I.,. (7/12) era de dois ou três quartos, sendo que seu tamanho era conside-
ravelmente maior. Em todas as casas (I 2/12) o banheiro estava dentro da
construção, sendo que em duas delas havia dois banheiros, contra apenas
c §;
"l::I '- seis (6/11) banheiros dentro dos barracos.
c ~.!!!I
.g<3~ >< X ><><><11.0 Finalmente, para nove famílias selecionadas procedi a uma relação
(J~ semanal dos gastos durante três meses, Os resultados sob a forma de per-
centuais (médias mensais) referidos aos gastos figuram no quadro anexo.
Como não se tratava de uma amostragem, não era o caso de proceder a
generalizações. Entretanto, os nove exemplos abrangiam diversos cruzamen-
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r-, "
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-;;; tos de renda familiar e per capita e incluíam casas em construção e já cons-
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truídas. Serviam para ilustrar como os favelados gastavam seu dinheiro e
quais eram as suas possibilidades reais de poupar para investir em habitação.

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1.039 40,50 0,58 24,00 4,45 1,80 1,73 1,71 1,73 6,40 9,00 8,10

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;;;:-~ 1.076 34,25 7,10 4,65 23,00 3,20 8,10 7,50 0,70 11,50
~ 3'<::: -;;, 480 52,00 3,14 0,12 2,00 0,12 27,50 0,12 15,00
3'<:C ,(~~ 370 88,00 0,18 0,16 0,16 6,70 4,80 ;
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1.000
1.500
42,40
27,00
1,90 0,35
5,00
13,30
10,50 1,10
3,70
2,30
5,90
38,50
10,80
7,80
4,95
0,40
7,00
3,50

dos demorados e uma boa dose de trabalho. A coisa era toda pragmática,
9"'0
3:90

"'-! .-\.5 :.~~. ::,rnJ1iasde renda mais alta (K I e J2) eram "ricas" para os com decisões do gênero: "A gente olha aquela casa lá em cima e sabe que
~:Ç5 :.:. ;.:<'I~:/'. Isso se evidenciava concretamente: tinham maior nível esta rua que está começando aqui vai ter que sair lá" ou: "A gente tem
) , ! := '_-::-":'::::'. ;:,z:am poupanças regulares e possuíam bens (terreno fora da todo o plano na cabeça e tem dificuldade de ex pressá-lo porque não encon-
)1; ::7--:-:.l.. z;::~:.I/,,:I). A média dos gastos mensais não correspondia à renda
~~~. :::-:. v:t'; casos os gastos eram inferiores à renda. Em dois eram
trou profissionais que se dispusessem a trabalhar aqui."
Quanto à infra-estrutura básica também não havia planos. Havia rea-
., ;:::..;:'.,~~::-s.. hr~ os primeiros seria permissível imaginar uma potenciali- lizações muito efetivas como a rua principal, por exemplo. Para alargar
~ :,: ;:<:'.;'Mlça: para os segundos seria atribuível um déficit acumulado a rua, construir arrimos e torná-Ia carroçãvel foi pedido um orçamento a
:.: :~:;_:-:-.~.'I, rj{Jméstico. No entanto, a natureza da pesquisa tornava o uma firma de engenharia, que apresentou um preço considerado excessivo.
~..:.:(,:::-..:.: ?rl~()\o. pois os dados fornecidos pelos favelados podiam não Usando os recursos provenientes das doações mais a mão-de-obra local, o
)
:-::::~;:>?,~Para c35 e BN 52 eu sabia que existiam complementações à padre executou o trabalho em mutirão por 1/5 desse preço. Outro exem-
::'::I.:.;l :~ ::'t;sr não-declaradas (aluguel de casas no subúrbio e filhos pedin- plo era o da rede de esgotos, que, a rigor, não poderia ser chamada assim,
:.c ~':W.~J. pois não seguia as regras convencionais. Era simplesmente uma vala cober-
S'.l.2_ntfJ ~os que ganhavam mais do que gastavam, podiam 'estar ta, com o leito tratado. Ambos, rua e esgoto, respondiam às necessidades
:,-::r-_co o ':y.ccsso em atividades não-relacionadas ou podiam ter exa- locais de modo realista, com a tecnologia apropriada e de menor custo,
~.c.::(. ao r(;<If:lar a sua renda. Alguns me chamaram atenção (K 1, E5, 18 e usando o que havia à mão.
?SC"ie:-irlO), pois sua poupança estaria entre c.s 500,00 e Cr$ 800,00. À primeira vista o plano do padre me agradou muito. Era uma espé-
=:::: SCU?O h~o verdade, essas pessoas poderiam enfrentar planos muito cie de "planejamento de ação" absoluto que eu considerava indicado para
~ :XJgent/:•. que o do padre (os do BNH, por exemplo). Para eles, pagar favelas. A oportunidade das visões urbanísticas do padre tinha efeitos visí-
_:S ~O_OO PIH mês para ter uma casa devia ser um negócio da China. veis, como a construção da via de acesso a veículos e o manilhamento de
esgotos. Se obras assim tivessem de ser feitas de maneira mais tradicional,
custariam muito e acabariam sendo complicadas demais. No entanto, do
) ;:}plano urhanístico do padre modo como foram feitas, eram admissíveis: tinham margem relativa de
)
segurança e de bom funcionamento; custaram barato e responderam per-
~.Ic navia plal10s urbanísticos, pelo menos no sentido que lhes dão os pro- feitamente às condições do local.
) ::.ssona!S_ qUI' os traduzem em plantas, esquemas e mapas que exigem estu-

)
,
)
~
MORRO AZUL 121

• HOI<:I'O p.;LUL Por outro lado, o empirismo era limitado pela própria pobreza con-
'MA-E~ ~TICt>5
ceitual. Se o "urbanista" (o padre) teve sensibilidade bastante para perce-
"" p<s:;o~1C.A5
ber as mudanças que um novo elemento físico (a rua principal) traria ao
microssistema da favela, isso não queria dizer que a sua intuição continua-
ria funcionando para tudo. Na abertura de outras vias ele estava chegando
a um estado de confusão total. É que tinha de controlar ao mesmo tempo
CI>CiA =~ processos de urbanização (abertura e correção de ruas) e processos habita-
cionais (remanejamento e financiamento de casas). Isso sem sequer dispor
de instrumentos elementares como um mapa da favela ou um cadastramen-
to decente dos barracos e das famílias.
O problema maior era o da divisão da terra. Para decidir sobre a área
~~ICA
a definir para cada construção, fizeram-se reuniões com as lideranças e o
povo. O padre queria 40m2 por família (era um cálculo estimativo: 30m 2
de construção + 10m2 de quintal). A proposta previa a construção em dois
pa .imentos. Já o comitê de moradores preferiu uma área de 48m 2, por ser
a mesma dos apartamentos da Cruzada. Além disso, lotes de 6 x 8m eram
C~IZ. fáceis de marcar.
~ Qualquer dos argumentos, o do padre ou. o dos moradores, refletia
situações idealizadas que horrorizaram o meu senso comum de urbanista
~A~r:r.... i ~
I
e arquiteto. Ninguém sabia qual era a superfície do morro e se ela compor-
I taria as áreas de 48m2 necessárias às famílias que moravam lá! Ninguém
I ~ c " c~ARrz- pensava tampouco que as áreas comunitárias de uso obrigatório (ruas e
i \ becos) consumiam espaço, nem ligava para a complicada operação de divi-
i ~t. ~ ~~tcA dir a terra em um morro, onde sempre sobram pedaços inaproveitáveis!
L._._.-·- ~.Ol
et:>-'-{::. ! Assim, não era impossível que, indo o plano até o final, padre e moradores
-_._.-.-.--+ tivessem a desagradável surpresa de descobrir que a terra não dava para
todos e que algumas famílias não teriam onde construir.
~
c:;oo.>. CE ilt lQ)I'r PRINC~

o plano habitacional do padre


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~4"'_·" ---- --- ...• _ .•.•.• --
A essência do plano habitacional era o financiamento a longo prazo dos
...-~~IRO
materiais de construção, ficando a mão-de-obra por conta dos moradores.
O padre mantinha uma espécie de armazém onde eram estocados os mate-
riais comprados a preço baixo no mercado. Os recursos monetários provi-
nham de diversas doações de instituições internacionais (Caritas, Igreja
Mapa com indicação das implementações urbanfsticas e habiracionais.
canadense, Inter American) e se constituíam em fundo rotativo, já que os
beneficiados deveriam fazer retomar, através de pagamentos regulares, o
dinheiro que lhes era emprestado para adquirirem o material necessário às
suas construções.
O saldo devedor sofria uma correção de acordo com o salário míni-
mo. O pagamento poderia ser feito em até 20 anos, mas os usuários eram

120
MORRO AZUL 123
122 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
fiar no padre. Este usava o prestígio da Paróquia (relações com paroquianos
instados a reduzir o prazo tanto quanto pudessem, para evitar o aumento influentes) para conseguir um certo reconhecimento oficial da sua ação no
da dívida. A cobrança era informal com estímulos diretos à poupança, pois morro. Isso ficará transparente em um episódio de conflito que depois
o morador beneficiado alterava a sua prestação de acordo com sua situação relatarei. Ele sabia que havia uma relação entre investimento e possibili-
mensal. dades de permanência e procurava fazer disso um trunfo a favor de seus
As famílias selecionadas deveriam receber um "lote" com 48m2 de planos. A decisão de assumir a responsabilidade da construção das casas só
forma variável, de acordo com a área disponível. Com a ajuda de gente da veio depois que se certificou o quanto pôde que a favela não seria erradica-
própria favela que teria conhecimento de obra, apresentariam uma planta da. Através de contatos em Brasília ("um general amigo"), conseguiu que
e um pré-orçamento. Assim abririam um crédito no armazém de materiais. o terreno fosse desapropriado, mas sabia que isso era só o começo de um
O limite do crédito seria dado pelo término da construção. Os materiais ne- processo complicado.
cessários teriam seus custos lançados em uma conta corrente. Um certo O problema da propriedade individual ou de como definir os direitos
controle técnico, exercido pelos práticos existentes na favela, evitaria des- de cada família como unidade isolada não era considerado. O máximo de
(
perdícios e pedidos exagerados. Supunha-se que a mão-de-obra seria forne- idealização do padre era a Associação (ele ... ), possuindo tudo coletiva-
( cida pelos interessados diretos. (Na prática o que acontecia era a contrata- mente por alguma fórmula que não se sabia qual deveria ser ("condomí-
ção de um mestre com um ou dois ajudantes para tocar a obra durante a nio? sociedade por quotas? a gente arruma um advogado ... "). Afinal, nem
( semana.) Aos sá: ados e domingos o trabalho seria feito em mutirão, com o edifício da Cruzada era legalizado e "o governo pode desapropriá-Io à
a ajuda dos outros favelado~~ hora que quiser".
Os critérios de seleção para participar do plano eram ilógicos do pon-
{
to de vista das necessidades de espaço. A falha principal é que não havia
( coordenação entre o espaço disponível e o remanejamento das casas. A o plano financeiro do padre
escolha de famílias por critérios de "colaboração em atividades comuni-
( tárias" não facilitava o desadensamento completo de setores como foi feito Não havia prazos prefixados para começar ou terminar de pagar. Em prin-
( em Brás de Pina e que parece ser o critério mais racional em planos de cípio, o início do pagamento estaria ligado à permissão de construir dada
recuperação de favelas. O padre só procurava concatenar ações quando não pelo padre. Como havia uma "correção" em cima do saldo devedor, cujos
( houvesse outro jeito, isto é, quando tinha de retirar barracos que atravan- critérios eram nebulosos, ninguém tinha uma idéia clara sobre quanto tem-
cavam o avanço da rua principal. po levaria pagando. Nem o padre podia dízê-lo, Havia quem começava a
I I
pagar antes de construir, mas havia também quem construíra, já estava
[: O "lote" de 48m2 permitia, em teoria, uma área construída igual a
{ I 48xn onde "n" fosse o número de pavimentos construídos. Na prática era morando na casa nova e, mesmo assim, ainda não havia pago nada.
:1
i o que acontecia, pois o aclive estimulava a que se fizessem casas em vários Além dos 40 mil dólares que recebera do Canadá, o padre contava
níveis. Observei até edifícios de três pavimentos, ocupando todo o terreno, com mais 33.500 dólares do Convênio feito com a Inter American. Era
o que desmentia um suposto comportamento ruralizante que o padre me uma razoável quantia, cuja aplicação, se se comprovasse o seu sucesso,
havia sugerido, dizendo que "eles preferiam casas térreas, com quintal". garantiria novas doações. Mais ou menos a metade desse dinheiro era desti-
Só que esse procedimento, natural e inteligente, não estava conveniente- nada à incrementação do fundo rotativo de empréstimos para a autocons-
mente explorado. Se o fosse, permitiria um uso maior das possibilidades trução. Em particular o subsídio da Fundação norte-americana serviria
espaciais do morro, com várias famílias localizando as suas unidades habi- para aumentar a taxa de construção de cinco para dez ou 15 novas uni-
tacionais em uma só unidade construtiva.P Em lugar disso, o que aconte- dades por ano.
cia é que os primeiros admitidos no plano estavam se revelando espertos: O padre estipulara um retorno obrigatório mínimo de Cr S 50,00
construíam casas grandes, desdobrãveis apenas para a própria família, sem mensais. Essa decisão era arbitrária e não se baseava em nenhum raciocí-
contribuir em nada para o arranjo do conjunto. nio econômico. Das 15 casas construídas ou em construção, 13 proprietá-
Todos os moradores mostravam-se temerosos de construir sem garan- rios pagavam só os Cr$ 50,00 mesmo. Um pagava CrS 100,00 e outro
tias em um terreno que não era seu. Sabiam, no entanto, que, melhorando pagava à vista o material que retirava. Os empréstimos eram concedidos
as condições físicas da favela, teriam justificativas mais sólidas (ao pé da de forma muito direta. O candidato a construir revelava ao padre o seu
letra) para a sua permanência. Ficavam na maior divisão e preferiam con-
::~ .\fOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL (
125

~=ScJ0. ~ ,.~ concordasse, providenciava o local e, no momento do acor. achava que teria de haver funcionários contratados. Como isso era irnpossí-
~! :0. lons~':'~2\"a aberta uma conta em nome do morador, que passava a ter vel, funcionava um regime de responsabilidade: ele dava a chave do depósi to
Jl ~::-::lot-~;::~"moral de manter as mensalidades em dia. para cada um retirar o necessário: "Aqui não é uma obra com escritório
A>-i:.~. que apresentou oplano em reuniões com moradores, o padre técnico, não dá para controlar tudo em avanço." Apesar do informalis-
::-~;':cbeu:c. apoio entusiástico. Na prática, porém, ninguém se candídata. mo declarado, para fins de cobrança era mantida uma escrita complicadís-
7"l. com medo de arriscar. Como o dinheiro já estava à disposição, foi pre- suna com listas minuciosas de materiais retirados por data. Tais listas eram
zso pro.:tLlf gente que quisesse começar de qualquer maneira. Assim muito personalizadas e difíceis de entender. Desconfio que a falta de regis-
eatraram os crês primeiros, Outros três foram escolhas forçadas (estavam tros regulares e mais compreensíveis não era devida apenas à falta de gente
::.2 direção ':3 rua nova ou o barraco caíra). Havia quatro casos de parentes especializada ou à desorganização inata do padre. Era também uma forma
::::1 que se raziam arranjos para resolver problemas de espaço ou de "direi- de criar dependência e de garantir um clientelato dócil.
:;)$". Os cinco restantes eram considerados amigos e participavam das ati- O padre dizia querer tudo muito claro e limpo, mas acho que nino (
ridades da Associação. guém tinha idéia da situação financeira real. Não era isso que importava
ali. O padre sabia que, em matéria de dinheiro, o plano era uma caricatura (
A razão das escolhas seguia uma lógica difícil de analisar. O que con-
dos oficiais. Pagando Cr$ 50,00 mensais, ninguém podia saldar uma dívida
~~Lli apurar é que ela não era nem urbanística nem econômica. Talvez corrigi da todo o ano. A correção, por outro lado, atingia tanto a prestação
?'Jdesse chamá-la de "solidarista". Só nos primeiros casos foi motivada por como o saldo devedor, mas era arbitrária. Não havia, apesar de o dinheiro (
~:na razão prática óbvia: necessidade de aplicar um dinheiro que de outra
ser doado, capital de giro acumulado. O retorno do dinheiro era tão insig-
:'::'mla se desvalorizaria e de produzir efeitos de demonstração estimulantes. (
'~ nificante que não dava nem para expandir o crédito e financiar novas casas.
As três escolhas forçadas estavam ligadas a "comportamentos chantagistas"
Foi inevitável que, quando insisti para que ele me explicasse melhor as suas
1~ :0 padre, dos moradores ou de ambos. As casas conjugadas para parentes contas, o padre se melindrasse e me visse como fiscal. No entanto, até
::-~ as "soluções diplomáticas" que o padre tinha de inventar para exercer
os seus desafetos, quando questionavam a sua honestidade, não a relacio-
: seu "poder de polícia" sem perder a face. Eram impasses surgidos a partir
~ navam diretamente com a sua maneira de fazer negócios, que julgavam
~ ~ ialta de direitos frente ao "nosso regulamento": pessoas que, apesar das correta.
~ ;;:.:-:çõesnegativas, insistiam em ficar na favela.
G Um "plano" tão permissivo abria todas as possibilidades de inadim-
i
I'
,I
Os arranjos para parentes naturalmente só foram feitos porque se
::-.ltava de amigos. Os outros eram vistos sem simpatia. Note-se que, além
plêncía. A maneira de contornã-la era o envolvimento quotidiano do padre
com a população, fazendo com que pudesse ter uma visão polifacetada
íos cinco escolhidos pela mera razão de serem bons colaboradores, todos de cada caso, uma thick description (cf Geertz, 1973, p. 6) e ten tasse
.s candidatos às próximas casas também eram dos quadros da Associação. soluções pessoais. Havia um participante, por exemplo, que estava há dois
(
) partidarisrno não era evidente, mas o padre tinha os seus favoritos entre meses sem pagar. O padre considerava o atraso justo, pois sabia que ele
:s que chamava de "bons chefes de família". Eles eram selecionados "por- estava desempregado.P Já um outro que devia muito não merecia consíde-
~ trabalhavam". Uma seleção viciosa, portanto,já que quem "trabalhava" ração, pois tinha "dois filhos homens dentro de casa, que não fazem nada
sacia que teria os benefícios decorrentes. e gastam para se divertir". A única forma de sancionar os atrasados era ~
cortar-lhes a água: "O proprietário das casas novas, as únicas onde permito (
Por outro lado, havia áreas da favela em que os tratamentos não
instalações internas de água, assina um documento onde se compromete
eram amistosos. Parece que seus moradores jamais teriam vez. Não que essa
a pagar as prestações em dia, senão fica sem água." O padre concordava
?-!nte não pressionasse para entrar para o plano ou para ter acesso às casas
que era pouC6, que o pagamento era apenas uma obrigação moral frente (
covas. Só que para eles as respostas sempre eram negativas, sob alegações
à sua autoridade. Houve mesmo um morador que o padre entregou à
::wrsas: falta de espaço, falta de dinheiro, ou simples descompromissos
Associação porque se recusava a pagar, alegando que, "se todo o dinheiro ~
, -w não tenho nada com vocês"). Dentro das classificações do padre, essa
que o padre tem é ganho, por que é que tenho de devolver o que ele me
~:
', I
?-!nte era "fora do plano" basicamente porque era "não-favelada" \
dá?" Aqui o tiro saiu pela culatra: num arroubo da independência, os ~; I
Para os que construíam, o processo de retirada do material era sirn- diretores decidiram levar o caso à Justiça. O padre logo deu para trás, (
;lC:;: "A gente vê o que sai"; "A gente não pode ter aqui uma organização que deixassem que ele resolvia tudo à sua maneira, "para não prejudicar
rurocrãtica, fazemos a coisa em família". Para um controle eficaz, o padre e humilhar um chefe de família" .15 <.
126 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 127

Uma comunidade que não era deste mundo freqüentes explosões de mau humor pelo não-colaboracionismo (na sua
opinião perverso) dos favelados. Ele fazia o que podia para motivar a
O padre imaginava um plano que, para dar certo, precisava de ampla Associação a assumir o papel de mobilizadora da comunidade. O esforço
participação comunitária. Ele se referia aos habitantes do morro como era inútil: aqui nem havia a possibilidade de o campo, como em Brás de í
I
"comunidade humana". Em relação a essa categoria, outras como "rnu- Pina, chegar a se estender tanto que se confundisse com a Arena. A As-
( tirão" e "ajuda mútua" eram situadas e ganhavam peso. Só que tais repre- sociação era muito artificial e os seus membros meros ostentadores de
( sentações, muito reais na cabeça do padre, eram entendidas de mil formas títulos enfatuados.
dentro do campo da Associação e da arena da favela. Daí resultava que a Os moradores de Morro Azul estavam longe de ser um grupo horno-
( "comunidade" de Morro Azul era tão abstrata como todas as ditas "comu- gêneose se desejasse classifícá-los com uma categoria mais consistente
nidades de moradores" que eu já conhecia. O laço principal que mobilizava do que "favelados". Lá havia pessoas com os mais variados tipos de infor- ~
(
os favelados e os fazia coesos, era o interesse comum em permanecerem no mação e de interesses, diferenciáveis por sua situação econômica, por seus
( lugar onde estavam. Isso não era um fato inédito: eu o tinha constatado em laços familiares, por sua confissão religiosa, por sua instrução e por suas
vários outros lugares e sabia que era solidariedade frágil e de curta duração. formas de vida e de percepção do seu lugar no meio urbano. Não era
(
Só aparecia quando pressões externas levavam a situação muito fortes complicado descobri-lo. As minhas visitas, quando começaram a se tornar
( de crise, que permitiam o recorte de uma aspiração comum a todos. regulares, -revelararn muitas maneiras de ver o padre, o seu plano, a As-
(
A crise em Morro Azul tinha sido o incêndio. Foi quando todo o mundo e
sociação, os líderes o Estado.
colaborou, dando origem ao mito da comunidade capaz de trabalhar por O padre, sendo de forá, um elemento exógeno, podia manipular
( si mesma, logo reiem brado quando era preciso dar a alguém de fora uma "uma fronteira bastante idealizada e que, no entanto, era eficaz, principal-
imagem positiva, convincente e "cosrnetizada" da favela. Criado o mito, mente, nas relações da favela com o exterior. Estava em relação de oposi-
( que definia as identidades de todos e as correlacionava de forma adequada, ção aos moradores, mas também era um "deles". Era uma ponte e, com
cada um tratava de tirar partido dele como pudesse, interpretando-o à um pé dentro e outro fora, podia servir de intermediário em relação
(
sua maneira. O padre precisava da "comunidade" para justificar seu às autoridades, ao Estado.P Ele viabilizava um diálogo, de outra forma
( trabalho. Os líderes definiam seu status em relação às posições que ocupa- impossível aos favelados, sem organização suficiente, sem representativi-
vam na "comunidade" _ Os moradores aceitavam ser membros da "comu- dade legal ou política (em particular depois de 1964 ... ) e sem acesso aos
(
nidade" para garantir uma casa nova sem terem de sair da favela. O mito, que tomavam decisões vitais para seus interesses de sobrevivência. Só os
( de fato, contava de forma um tanto épica como padre e moradores gosta- anos que havia passado na. favela, sem contar as realizações materiais
riam que tudo fosse. Que imagem projetavam para si mesmos. Qual era sua que propiciara, tornavam-no digno de confiança e "bem talhado" para seu
( autoversão das apresentações formais, ritualizadas e não-quotidianas. papel. Nesse nível de representação, "comunidade" era uma categoria
Através dele sabiam que aquela era uma favela particularizada e eles real: significava a relação entre favelados e padre, a partir de uma desig-
parte dela. nação imposta por ele e aceita pelos dois lados para facilitar as filtragens
Antes do incêndio o padre tentava, sem muito sucesso, organizar e os intercâmbios necessários entre aquele microuniverso, discriminado e
comitês de moradores e sonhava para Morro Azul com um plano semelhan- posto à margem, e o mundo urbano. As instâncias representativas do
te ao que D. Hélder fizera na Praia do Pinto, transportando favelados para último podiam ignorar a existência da favela, mas vice-versa não era i
edifícios de apartamentos. Depois do incêndio, sempre procurou organizar verdadeiro. Eis para o que servia o mito da comunidade que se auto-
a população dentro de um clima de nostalgia pela "idade de ouro" em
l que "todos trabalhavam de verdade, inclusive com a ajuda de gente do
asfalto". Havia muitos relatos, mais ou menos coincidentes, sobre como
ajudava: tornado digno de fé e respeito pela autoridade do padre/conver-
sor/intérprete, arranjava dinheiro de gringos, garantia a não-intervenção Ií
I do governo e contribuía até para resolver o maior problema, o da ilega- I
era antes e o que foi que aconteceu com o incêndio. Aí sempre se realçava lidade da ocupação da terra. Servia para comover os de fora e tomá-los i
o clima de cooperação desinteressado e nobre. aliados.
O grande momento havia sido o do sinistro. Depois dele, se a comu- Os trabalhos realizados em COmum foram feitos assim, muito mais
nidade não se formava espontaneamente, então era preciso forçá-Ia: "Se eu por aprovação e entendimento do que o padre significava, do que pela
paro um minuto que seja, esta favela vira um monte de lixo"; "Descansam consciência de valores coletivos. Valor coletivo, se havia algum, era meta-
em cima da gente". Estas e outras frases eram comuns ao padre nas suas foricamente representado pelo padre. Trabalhar para ele, ainda que signi-

i
j;
(
(

MORRO AZUL 129


128 (
MO VIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
quanto isso, praticava um autoritarismo que me levava a pensar que, para (
ficasse impor-se ao sistema urbano oficial (Estado) pela força de uma ele, os "homens" daquela favela eram uma espécie de bonecos que deviam
resposta conjunta, não era lido como tal. Bastava ver como eram feitas ser promovidos aos empurrões.
as referências diretas à sua pessoa e ao seu plano. Os partidários viam-no, O padre tinha consciência de que, se não fosse padre e se não estives-
jocosamente, como um capataz exigente. Os outros descreviam-no como
um tirano que queria obrigar todo o mundo a trabalhar de qualquer
se disponível para dedicar todo o seu tempo a Morro Azul, não estaria i
acontecendo nada lá e talvez a favela já tivesse sido erradicada. ''O ideal
maneira: "Ele não pode ver um nego de calção indo pra praia num domin- é que a própria comunidade estivesse em meu lugar, tomando as inicia- (
go que fica zangado." tivas", dizia, enquanto fazia tudo e não permitia que ninguém tomasse
Se as obras coletivas (rua, esgoto) contaram com a adesão de muita iniciativa alguma, em especial as que pudessem perturbar a rigidez de seus ~ (
gente, as casas estavam sendo feitas apenas pelos interessados e seus propósitos e sua imagem idealizada do "homem". O papel que pretendia I
parentes. Isso se devia a duas razões: 1) os trabalhos urbanísticos tinham desempenhar - o de portador de um conceito moderno de caridade - ~
sido feitos ainda sob o "o calor" do incêndio; 2) era muito mais fácil era prejudicado pela sua instabilidade emocional e pelas suas explosões (
convencer alguém de que deles resultaria um benefício comum. Por outro de mau gênio. Um paradoxo que era percebido pelos favelados, para quem (
lado, quando se iniciaram as casas, foi surgindo um consenso bem indivi- "o padre era boa pessoa, mas meio maluco". Talvez pudessem dizer o
dualista de que aquilo era um privilégio fechado e particular. A maioria mesmo do seu plano. (
dos participantes do plano fazia questãr de frisar que estava fazendo tudo
por sua conta, sem auxílio de ninguém e que pagava a mão-de-obra. (
Alguns revelaram o seu desapontamento porque o mutirão, de que também De cima, de baixo, do buraco quente, do edifício (
se falava em reuniões, não aconteceu na prática. Outros disseram que, com
(
a obra pronta, não fariam mais nada para ninguém. Levei algum tempo para entender que o padre fazia dois tipos de trabalho
Descobri que, como a maioria dos escolhidos fazia parte do mesmo e que a ambos chamava de "urbanização". O primeiro referia-se ao con- (
grupo, havia urna tendência a trocar favores na execução das obras. Um sumo coletivo urbano e dizia respeito a toda a população do morro:
"dava uma mãozinha" na construção do outro, através de um sistema abertura de ruas; racionalização do esgoto; melhorias no abastecimento
típico de "panelinhas". Também era usual o emprego de mão-de-obra de água: limpeza de valas; recolhimento de lixo. O segundo, exclusivo para
de filhos e de parentes. Nada disso, porém, chegava a identificar ações os participantes do plano, visava substituir alguns barracos por casas de
em comum que visavam ao bem geral. O que constatei, para a maior parte alvenaria, dotadas de "comodidades": água corrente interna; instalações
dos favelados de Morro Azul, é que eles tinham um desejo fantasioso de sanitárias; luz elétrica; mais espaço.
possuir uma casa, mas não conheciam as particularidades do plano do Tentando entender os critérios usados para selecionar 15 felizardos
padre. Não sabiam ou aparentavam ignorar que esse plano pressupunha entre 160 chefes de família, comecei a perceber que havia um sistema (
um trabalho coletivo frente ao qual não se mostravam entusiasmados. de classificação interno, manejado pelo padre. Do mesmo modo que esta-
<.
O que entendiam, e muito bem, é que, através do padre e de seus contatos belecia uma fronteira geral através da denominação "comunidade", ele
e credibilidade externos, teriam a chance de continuar ali, pagando decidia, dentro da favela, quem estava ou não qualificado para ser incluído (
Cr$ 50,00 por mês por uma casa confortabilíssima se comparada com os nela. Fazia surgir assim uma série de clivagens. O poder de criar uma
barracos em que moravam. Nisso demonstravam estar bastante integrados categoria unificadora para uso externo e outras separatórias de uso restrito (
às formas de morar urbanas e serem capazes de manejá-Ias inteligentemente ao grupo de moradores era um só e obedecia às mesmas lógicas. Se o padre
em proveito próprio.
\
tinha autoridade para dizer para os de fora quem eram os favelados, impli-
Imagino que o padre fosse sincero quanto ao seu desejo de melhorar citamente também podia dízê-lo aos próprios. O mais interessante é que
a vida da população de Morro Azul. Dedicava a isso todo o seu tempo e os critérios básicos para a classificação pareciam nascer do seu empenho ("
t~abalhava de forma obsessiva. O problema é que sua concepção de melho- em realizar um trabalho comunitário para a promoção do "homem".
na não correspolldia à dos favelados que não obstante aceitavam a sua O "homem favelado" que ele idealizava e pretendia atender, passava a {
~telagem, pois. através dela, viam a' ch~ce de progres;o efetivo em seu servir de paradigma. O critério era o da disposição para a atuação conjunta
{
dia-a-dia, O cOtllportamento do padre era paternalista ao extremo e ins- na urbanização (considerada sob a ambigüidade do conteúdo duplo que
pirado em propnsições conceituais confusas. Suas teorias tendiam a um dava ao termo). O "homem" digno do nome na favela era o que seguia (
vago socialismo cristão. Ele dizia querer "a promoção do homem". En-
(
(

130 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO


MORRO AZUL 131
as ordens do padre. Fazia, assim, parte da comunidade - era favelado,
t' isso funcionava como um acordo não-declarado. Quando havia conflito,
Os outros não.
redefiniam-se todos os papéis (o que cabia ao Estado, ao padre, à Associa-
~ claro que quem se dispunha a aceitar a classificação não o fazia ção e aos moradores). Havia muitos discursos sobre as idealizações que
de graça. A esses intérpretes eu os chamaria de "oportunistas bem-sucedi- cada um fazia acerca de si mesmo, eram ameaçadas recomposições de
dos". Ao atualizarem a imagem do "favelado comunizado", trabalhando alianças. Depois, por algum tipo de ritual (reuniões, assembléias), se
( para o bem geral, que era enfatizada em assembléias e nos documentos que recompunha o- quadro anterior. Estava implícito que, para os homens do
o padre escrevia, estavam resolvendo os seus problemas quotidianos. governo, o padre cobria uma lacuna de sua competência e que isso lhes
( Nem o padre, em que pese ao seu idealismo, estava isento de se aproveitar convinha. Havia uma delegação de poder que, por ser informal, não era
( do mecanismo de divisões que inventara. As suas classificações eram muito menos eficiente. A partir daí, o que fizesse lá entre os "seus favelados"
úteis em certos casos, quando declarava que alguns moradores não eram era uma questão interna. Nas suas relações com as autoridades o padre
( favelados e assim se desobrigava de resolver problemas imprevistos que chegava a questioná-Ias em público, deixando claro como eram, na prática,
revertiam a ordem de seus planos e arranhavam o seu poder. L-npotentes e como dependiam dele.
(
Como e por que o padre classificava? As classificações de moradores eram feitas com base em um "nosso
( A resposta a essa pergunta não é nada fácil. Era preciso buscá-Ia, regulamento", que servia como instrumento legitimador. Desde que
( talvez, no jogo de relações entre o Estado e o padre em Morro Azul. De entrei na favela ouvi falar tanto desse estatuto, invocado a toda hora por
todos os agentes externos, os órgãos de governo são os mais essenciais conta de situações corriqueiras ou complicadas, que deduzi que era es-
( à favela. Isso se explica pelo caráter ilegal dos aglomerados, que só podem sencial conhecê-Ia e pedi uma cópia. Para minha surpresa, soube que
existir, pelo menos em teoria, com algum tipo de beneplácito oficial jamais .fora escrito! Era um consenso informal funcionando como um
(
e que, por conseqüência, vivem numa situação muito instável, sempre sob contrato onde se estabeleciam as condições em que o padre trabalharia
( ameaça. Qualquer decisão sobre uma favela é muito fácil de executar e para a favela e os favelados. Para dar as regras do jogo, imagino que, antes,
o Estado e as agências que o representam manipulam bastante os mora- ele tinha de definir as duas peças. O que eram a favela e os favelados fazia
(
dores através dessa dependência (cf. Valladares, 1968). Mas a manipulação parte, portanto, desse estranho "nosso regulamento" que era nada mais
( tem de comportar também o seu reverso. As agências que cuidam de nada menos que a sua cabeça ... Pode-se logo deduzir o quanto era flexí-
favelas estão obrigadas a assistir os favelados que a elas recorrem quan- vel, o quanto variava para atender a cada novidade e o quanto era difícil
( do estão em dificuldades. Isso é verdade tanto para as diretamente lígadas de contestar. Acho que seus únicos artigos eram: 1) a favela é constituída
( à política habitacional (Fundação Leão XIII, COHAB e CODESCO, por por uma comunidade que trabalha para si mesma (orientada e organizada
exemplo) como para outras cuja vinculação e responsabilidade não são tão internamente pelo padre e representada e divulgada externamente por ele)
( específicas (Administrações Regionais, Delegacias de Polícia e, às vezes, e 2) quem trabalhar (no que o padre disser que é comunidade), por con-
até o Palácio do Governador). Não importa saber se o Estado tem ou não seqüência, é favelado e tem os "direitos" pertinentes. O uso de categorias
tem, de fato, o poder pleno de tomar qualquer decisão sobre uma favela. como "regulamento" e "direitos" não era casual. Contribuía para compor
A rigor, há uma série de limitações financeiras e políticas que impedem a imagem paraoficial e paralegal do padre.
a sua onipotência e que representam contradições estruturalmente dadas. A inclusão ou a exclusão "regulamentar" correspondia a ter ou a
Os favelados sabem disso e prestam atenção mesmo é ao conjunto de não ter "direitos". A sanção para os "sem direitos" era negar-lhes os
\ relações de reciprocidade que tratam de manipular a seu favor e de fazer benefícios correspondentes ao status de favelados. Como o maior deles
com que lhes traga o menor prejuízo possível. era participar do plano, o padre tinha meios muito eficazes de controle
real, que iam desde possibilidades de cortar água e luz até permissão ou
Como não podem agir contra, também é raro que as agências do
não para obterem uma casa de alvenaria. Em casos extremos, podia chegar
Estado possam agir a favor: no caso de Morro Azul, o governo reconhecia
às últimas conseqüências, decretando banimentos: o indivíduo "sem
oficiosamente o padre como autoridade. Apresentarei adiante um caso
direitos" e, portanto, "não-favelado" era mandado embora da área física
onde isso fica evidente. Para os órgãos competentes do Estado, o padre era
que caracterizava a favela de Morro Azul. Quando isso não podia ser
uma mão na roda, pois nerihum deles teria os recursos ou pessoal com
efetivado, isto é, quando o padre não podia mesmo expulsar quem queria,
a mesma disponibilidade para trabalhar em uma favela. A sua ação era uma
ele o fazia simbolicamente: decretava o indivíduo (ou o grupo) como
justificativa para a omissão oficial. Nos períodos de tranqüilidade social,
sendo não-favelado e passava a tratá-Io(s) como tal(is).
(

132 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 133 (

(
Os mecanismos de expulsão tinham outros correspondentes, os de aos seus argumentos, procuravam se apoiar em um poder de fora - "o Pa-
adoção. O padre, segundo as suas lógicas, podia declarar alguém favelado. lácio do Governador"!" - frente ao qual apelariam para uma lógica
O exemplo mais significativo era o dos moradores do edifício que não diferente da interna: se existia um plano que era viável apenas para a parte
, aceitavam ser classificados na categoria senão para fins utilitaristas. Con- alta do morro, então ou iriam todos para lá ou saíam todos. Os que pro-
(
,I"
cordavam com o padre na presença deste, mas em suas próprias represen-
tações não se viam como tais. Era o caso também dos filhos de moradores
antigos, com "direitos" ou não, de acordo com o grau de solidariedade
que manifestavam às idéias do padre. A manipulação de direito podia
servir inclusive para recuperar o princípio de autoridade: quando alguém
se recusava a obedecer e podia se constituir em um rebelde perigoso, o
testavam diziam que seus "direitos" de permanência eram garantidos por
sua antiguidade. Parecia-Ihes injusto que o plano servisse a gente que, na
sua opinião, era adventícia e menos identificável com o Morro Azul que
eles. Afinal, haviam vindo para baixo por causa do incêndio e insistiam
em que não podiam ser abandonados porque moravam ali.
I (

(
Os de Baixo discordavam das acusações de que não trabalhavam para
~
padre tratava de arranjar algum jeito de lhe dar "direitos". Eram os que todos. Diziam que "tinham até ficado doentes de limpar valas". "O padre (
saíram da favela e voltaram, para os quais foi permitido construir em é incompreensível e exigente, só vê os interesses dele. Eu já ajudei no
segundos pavimentos, ocupando um espaço não-comprometido. edifício e agora ajudo nas casas, mas o padre não dispensa nenhum dia (
As divisões internas da favela obedeciam a critérios geográficos. e reclama quando a gente falta. A turma moça odeia o padre, que não (
À primeira vista poderia parecer que a localização justificava a separação deixa ninguém se divertir." Como "1ão eram amigos dos de Cima e não
em grupos, mas isso era só parcialmente verdadeiro. Certos lugares foram faziam parte de suas "panelinhas" (não havia entre eles nenhum membro (
ocupados por conjuntos específicos de pessoas que então passaram a ser da Associação ) não viam por que ajudar a construir as suas casas. Essa
(
designados a partir da localidade onde estavam, como os do Edifício c os atitude é que parecia justificar as restrições do padre. Por outro lado,
de Baixo. Pude distinguir quatro categorias classificatórias gerais para a apesar das tentativas de protesto, os de Baixo mostravam-se conformados (
população de Morro Azul: os de Cima, os do Edifício,os do Buraco e dependentes: ''Não temos direito só porque não tem lugar lá em cima."
(
Quente e os de Baixo. Para cada uma delas havia uma posição numa "O governo vai ter de arrumar onde nos botar"; ''Não temos condição
escala de "direitos": as duas primeiras tinham todos os "direitos" (eram de escolher". Se houvesse um processo de erradicação violenta provavel-
favelados plenos); a terceira quase não tinha "direitos" (eram favelados mente ninguém faria nada, nem os movimentos de defesa comum, típicos
de segunda classe) e a quarta não tinha "direitos" (não eram favelados). dos momentos de crise. A "comunidade" era abstrata demais para isso. (
A disposição física da favela (vide mapa) facilitava as discriminações. Os de Cima não sofriam pressões imediatas. Estavam intitulados, (
O Edifício da Cruzada era uma espécie de barreira. Antigamente, a área por sua localização, a participar do plano. Não eram ameaçados pelo
abaixo dele não era ocupada. Quando houve o incêndio para ali foram governo. Praticavam o absenteísmo confortável de quem só pensa em si.
deslocadas 20 famílias, todas muito pobres e que não tiveram condições Revelavam uma visão curta. Quando eu lhes indagava se não achavam que
(
de ir morar nos apartamentos. Ficaram mesmo nos barracos, que, na época o morro era uma coisa só e que os acontecimentos futuros, quaisquer que
da pesquisa, estavam em péssimas condições. Mais ainda, a faixa de terreno fossem, atingiriam todos os seus moradores, preferiam desviar o assunto (
que ocupavam estava no caminho do Metrô e teria de ser evacuada pois e acusar os de Baixo de falta de colaboração e displicência. "O pessoal
(
nesse lugar deveria passar uma rua oficial. lá de Baixo queria que o padre lhes desse casas. Ele lhes dizia há tempos
O padre definitivamente não gostava do pessoal de Baixo, que que consertassem seus barracos e eles não tomavam providências." A As- (
acusava de preguiçosos e egoístas, sem se interessar por sua sorte. Não os sociação de Moradores (toda de Cima) preferia não se meter com o as-
incluía em seu plano por uma série de razões de "direitos", mas onde os sunto: "Eles não pregam um prego aqui em Cima. Por que a gente vai \
móveis mais fortes pareciam ser o ressentimento recíproco e o desejo de ajudar?"
descompromisso: "O problema deles é deles, não posso cuidar de todo Para essas pessoas o oportunismo era, declaradamente, uma das
\,
o mundo." Mas foram os de Baixo os que achei mais conscientes de que razões mais fortes para participar do plano e ser amigo do padre: ''Não
todo o morro constituía um só conjunto: "Quando o Metrô vier, irei ao trabalho em grupo, mas tenho que garantir o meu lugar" foi o que ouvi
Palácio do Governador: ou sai a favela toda ou sobe tudo. Não acho justo de um deles. A garantia do lugar era a aspiração da maioria dos que esta-
que nós, os antigos moradores, tenhamos de sair." Para eles era evidente vam relativamente bem instalados em seus barracos e sentiam que não
que, da perspectiva externa, o sistema da favela era único e que a ameaça tinham nada a perder adotando uma atitude passiva. Não ajudavam nem se
~
a uma das suas partes enfraquecia o todo. Se o padre se mostrava insensível mostravam predispostos a ajudar em programas coletivos, mas viam o

\..
134 MORRO AZUL 135
MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO

plano com entusiasmo, achavam-no "lega!". Estavam à espera de que ele lá viviam foram selecionados pelos seguintes critérios: antigüidade, ajuda
vingasse, de que o horizonte clareasse. Sentiam-se favelados de pleno durante as obras, orçamento familiar. O padre designara a comissão que se
direito, aceitavam a classificação do padre, que lhes era tão favorável, encarregou da seleção.
e não queriam sair do morro. Concordavam com todas as palavras de A causa imediata da construção fora a necessidade de abrigar os
ordem, eram a massa de apoio em reuniões, só que depois não faziam nem flagelados do incêndio. Poucos deles, porém, se mudaram para v prédio.
pretendiam fazer o que prometiam. Todos esses "acomodados" se identi- Os barracos provisórios, feitos para atendê-l os, foram mantidos, consti-
ficavam bastante com os que já estavam construindo ou morando em casas ruindo a parte de Baixo da favela. Originalmente eram em número maior,
novas, os quais também pensavam que sua chance fora única e que haviam porque várias famílias optaram por transferências para o bairro de Vigário
sido espertos ao aproveitá-Ia. Geral ou para a Cidade de Deus. Algumas trocaram o direito de ocupar
A oposição, tal como representada pelos próprios moradores, parecia um dos apartamentos da Cruzada por barracos na parte de Cima.
(
originar-se das condições do espaço e dos recursos para construir casas, O processo de seleções sucessivas programadas e autônomas (houve
( ambos minguados. Para os de Cima, o ideal era que os' de Baixo não exis- gente que depois abandonou os apartamentos por não poder pagar) fez
tissem: "O pessoal lá de Baixo vai sair, azar o deles. Eles vivem falando com que o edifício se tornasse o lugar de moradia das elites de Morro
( Azul. As mensalidades eram altas. No final de 1974 pagava-se Cr$ 120,00
mal do padre." Para os de Baixo, os de Cima eram vistos como encam-
por mês, o que representava quase que a metade do salário mínimo. Os
( padores de um privilégio que também devia ser seu: "Ele (o padre) está
moradores queixavam-se de que a administração era péssima e de que a
se aproveitando da situação da gente para beneficiar os outros, aqui para
( Cruzada desviava os fundos, não pagando sequer os impostos, o que
baixo ele diz que não tem nada a ver: 'Por que só o pessoal da diretoria
obrigava a reajustes de emergência. O edifício tinha um síndico que estava
( tem direito a fazer casa?'; 'Lá em cima tem cada casa imensa para duas
famílias, favela não é lugar de palacete.' " em oposição ao presidente 1.
( O padre insistia em que os habitantes do prédio eram favelados
Dentro da clivagem principal (de Cima/de Baixo) estavam situados
solidários com os outros e dizia que as provas eram os trabalhos que
os do "Buraco Quente". O Buraco Quente era uma área da favela cons-
exe:.:utavam pela comunidade e a sua participação na Associação. Os que
tituída quase como um apêndice, uma unidade espacial à parte. Não
( moravam em barracos não endossavam essa opinião. Reclamavam que
parecia que quem morasse lá tivesse algo a ver com incêndio. Eles sempre
\ "tem caras no prédio que se dizem não-favelados; eles não são melhores
( se haviam localizado ali, desde que chegaram. Eram uns 30 barracos.
que ninguém, saíram daqui". Quanto aos próprios, mantinham uma
Quando comecei a freqüentar a favela, fui advertido pelo padre e pelos
(
relação ambígua com a favela, a que estavam amarrados não só pela
líderes para "tomar cuidado com aquela gente". Eles eram descritos como
localização como por laços de parentesco e amizade. De todos eram os
"marginais e maconheiros". Era até possível que houvesse algum bandido
\ por lá, servindo para contaminar e estigmatizar a vizinhança, mas a acusa-
que podiam manter a atitude mais discreta: seu problema era diferente e
já sabiam que tinham outro status. Talvez no futuro viessem a se identifi-
( ção se devia a outras causas. Visitando o Buraco Quente, percebi duas
car mais com os que moravam nas casas novas do plano do padre. Não
coisas: 1) não havia indícios claros de que aquelas famílias, ditas perigosas,
( lhes custava aceitar o rótulo de "favelados iguais aos outros", pois, na
fossem distintas das outras da favela (comigo, pelo menos, não tiveram
prática, sabiam que não o eram, mas que disso saíam vantagens. Não
l nenhum comportamento suspeito ou desviante ... ); 2) o padre não era
admira que se mostrassem dispostos a trabalhar. Nas tarefas urbanísticas
popular por lá. No "geografismo" que coroava as práticas discriminatórias
( (melhoria das condições de acesso e sanitários) eram os primeiros benefi-
em Morro Azul, os do Buraco Quente estavam numa situação paradoxal:
ciados com os resultados, capitalizáveis prioritariamente por eles tanto em
\
estavam inegavelmente dentro (não haviam "sobrado" com o incêndio e
termos de conforto material como de status. Nas obras de construção de
se o governo fosse mexer neles, teria de mexer em toda a favela), mas eram
casas estavam apenas "dando uma mão" aos parentes e amigos, os favoritos
acusados de serem diferentes dos outros moradores. A solução era con-
do padre.
siderá-los como meio-moradores, cujos "direitos" não eram negados, mas I

que também não eram lembrados. Os do Buraco Quente não trabalhavam


Para além dessas subarenas, pude distinguir alguns campos na favela. .,f
!

para os de Cima porque "ninguém de lá nos ajuda em nada".


Eram todos embrionários, a começar pela Associação de Moradores, e ',!
No edifício havia 47 famílias morando (o 48? apartamento era o
estavam, de certa forma, correlacionados às divisões dos favelados. A As- i
sociação era o campo das elites e, por extensão, o dos moradores de Cima.
escritório do condomínio). A obra havia sido feita pelos próprios favela-
Marcando a identidade especial dos do Edifício, havia lá um condomínio
dos, trabalhando nos fins de semana com uma orientação técnica. Os que
MORRO AZUL 139
138 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO

(
pois "ela não inspirava muita confiança, nem tinha condições de fazer algo
ma; vejo a coisa mais para lá do que para cá. Se o próprio pessoal não pelos favelados". Tirar a posse da Cruzada era passá-Ia, de fato, para o pa-
mudar de atitude não chegará a nada." Porém, apesar de tanta indiferença dre. Aí, com os "favelados" proprietários de seu terreno, a situação melho- I
declarada, ele estava informado sobre todas as ocorrências e vivia "dando

I
raria muito: a remoção de alguns já não seria tão ameaçadora. A valoriza-
sugestões à Associação, que não resolvia nada". Usava o estratagema de ção trazida pelo Metrô e a nova rua esbarraria com proprietários legais,
sempre. capazes de negociar com o Estado, protegendo-se das suas arbitrariedades
Quando comentei que a favela era um todo e que, se uma parte da e das cobiças da especulação imobiliária.
população (OS de Baixo) fosse prejudicada, o conjunto seria enfraquecido, Pelo que pude observar, o problema maior em Morro Azul era o da

(
o padre mostrou-se consciente disso. Declarou-se na expectativa, porque
pensava que o pessoal já estava descobrindo que as coisas funcionavam
impossibilidade de continuar sustentando em seco os mitos de trabalho
coletivo e mutirão. Há 15 anos a população vivia na prática uma irrealidade
~
i
assim e, portanto, teria de agir. Como de costume, ao deparar com argu- que lhe estava pesando e custando caro. Isso só era possível graças à pre-
( mentos irrespondíveis, transferia a decisão para a "comunidade", fmgindo sença do padre em horário integral como fiscalizador e estimulante. Os
ignorar que durante anos os havia habituado a deixar por sua conta pensar moradores estavam ficando desesperados e a gota d'água foi o plano de
( e planejar. Alternava crises de pessimismo e otimismo e nunca cheguei a construção de casas. Foi ficando claro para todos que mitos e quotidiano
distinguir bem quando estava "fazendo cenas" para mim. Depois de mani- não se coadunavam. Aquele mutirão sem fim era apenas a maneira que o
(
festar suas desconfianças quanto ao sucesso do plano, traído pela falta de padre encontrara para submetê-Ios ad infinitum, As «asas só beneficia-
( espírito de colaboração dos favelados, argumentava que os moradores esta- riam a família específica que iria morar lá, não sendo úteis a nenhuma
vam em fase de transição e que os fatos os fariam voltar ao trabalho: "Se coletividade. Além do mais, era óbvio que a desorganização e a informali-
(
não, acontecerá o pior, pois ninguém sabe o que será quando for preciso dade operantes não asseguravam a ninguém que um dia seria contempla-
( tirar o pessoal de Baixo para passar o Metrô." Usava assim a ameaça exter- do com uma casa. Havia crise, sim, mas não o tipo de crise que gera um
na como um fator de coesão interno, como uma retocadora do desenho MSU com uma articulação interna crescendo e se fortificando a ponto de
esmaecido da fronteira. enfrentar uma forte pressão externa. Em Morro Azul, exterior e interior
Nisso, acho que o padre se revelava muito esperto e um excelente estavam em equilíbrio. A questão controvertida era o catalisador, o filtro
observador da mecânica prática dos MSUs. Ele era de um pragmatismo de passagem entre os dois sistemas que não queria aceitar a relatividade do
onde não estavam ausentes sutilezas maquiavélicas. Estava à espera de uma seu papel e às vezes se áchava mais importante que o palco, o drama e o
( crise para que ressurgisse a "comunidade" (quem sabe a mesma dos saudo- enredo, julgando-se mais que um personagem e querendo até escrever a

~
sos tempos do incêndio ... ). Sabia que a crise ia acabar com um pedaço da
favela. Esquecia-se do prejuízo e preferia especular sobre os efeitos que o
peça inteira, além de dirigi-Ia.
I
(

(
susto causaria no resto. O pior que poderia acontecer era a eliminação do
conjunto inteiro, o que incluía o resultado de muitos anos de seu traba-
lho. Ele sabia disso e bancava o jogo, porque só assim mantinha seu papel
Lunata e pederau I

!~
( e sua importância. Percebia que estava situado entre o Estado e os mora-
dores e que tinha um poder ínfimo frente ao primeiro e enorme frente aos
Quando estive em Morro Azul aconteceu, em fins de 1973, um evento dig-
no de nota, pois me deu a oportunidade de registrar um conflito de poder
,
.
( segundos. Adotava uma atitude hipocritamente conformista: "Vou parar onde as oposições se tomaram claras. Pouco antes do Natal, ao chegar à
o Metrô por causa da favela? Claro que não ... Já estou cansado." Enquan- favela, deparei com o seguinte aviso escrito no quadro-negro que havia no
(
to isso, manipulava o que podia o Metrô, que não podia parar, e o seu can- início da subida do morro:
( saço, que sempre podia deixar de ter.
Conforme decisão já comunicada ao Administrador Regional, a diretoria das
Na realidade havia um trunfo escondido e a situação não era tão Obras Sociais Padre Aleixo resolveu suspender no Morro Azul as suas ativi-
negra. O terreno da favela já estava de posse da Cruzada. O padre estava dades e as de seu representante Pe ...
fazendo gestões para que fosse doado à Associação. Se a figura jurídica As atividades das Obras Sociais ficam restritas a:
1) Assistência religiosa.
correspondente fosse a da Associação proprietária única ou se se formaria 2) Assistência ao grupo de escoteiros.
um condomínio de moradores, isso não interessava. Os detalhes legais esta- 3) Acabamento das casas já começadas.
vam fora de seu alcance. O importante era tirar a posse da Cruzada rápido,
140 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 141
(

Qualquer outro problema oeverá ser encaminhado à Administração R~gion:al nestidades. Falavam de propriedades do padre, de viagens à França para
ou à Cruzada São Sebastião. levar dinheiro e dos seus favoritismos pessoais. Como havia bastante res-
Pe...• sentimento contra o seu autoritarismo, as críticas encontravam terreno
Feliz Natal.
fértil em que se alastrassem. Sendo visto como um fiscal, eu era considera-
do o receptador ideal de tais estórias. Houve um dia em que um dos ma-
Poucos dias antes as chuvas fortes do começo do verão tinham feito
radores de Baixo me puxou de lado e desfiou uma série de aventuras sór-
cair dois barracos na parte de Baixo. A Comissão de Defesa Civil da Guana-
didas que atribuía ao padre, a quem acusava de "gringo que não tinha nada
bara interditou em seguida mais seis, todos considerados em perigo. Cons-
que se meter conosco que éramos homens e brasileiros, enquanto ele era
truiu um abrigo provisório para guardar os móveis e pertencens das famí-
um lunata (lunático) e pederau (pederasta)".'?
lias e mandou todos para um albergue de desabrigados de propriedade de
O padre ficou em estado de olímpica indiferença frente ao problema
Estado.
das oito famílias desabrigadas. Segundo ele, quem não trabalhava não
A facção contestadora dos de Baixo, através daquela mulher que os merecia cuidados. Quando a briga chegou ao auge, renunciou teatralmente
liderava, vinha fazendo uma campanha contra os trabalhos comunitários e: em seguida, desapareceu do morro. Não sem antes pedir proteção poli-
impostos, alegando que daí não lhes vinha qualquer bénefício. Estavam cial para as casas novas em final de construção e para a capela, pois os de
estigmatizados pelo padre, pela Associação e pelos de Cima. Quando fo- Baixo estavam apresentando uma reivindicação concreta: queriam que
ram atingidos pelo acidente, começaram a pressionar, pedindo que os re- aquelas casas lhes servissem de abrigo provisório e que o padre Ihes desse
cursos do plano fossem aplicados em construir casas para eles, que estavam o material que possuísse estocado para fazerem novos barracos. O pre-
em situação de emergência. Recorreram à Administração Regional, que, texto dos moradores é que isso era o mínimo que se poderia fazer por eles,
vendo ali a chance de lavar as mãos sobre uma questão que de qualquer jei- já que as edificações eram patrimônio da favela, feitas com dinheiro doado
to não resolveria, considerou lógico que o padre ajudasse e lhes deu apoio. aos favelados. O padre negou tudo, recusando-se a gastar Cr$ 30.000,00
Com isso desencadearam-se várias situações de conflito, até então mantidas para refazer os barracos ou a aplicar Cr$ 160.000,00 (cálculos dele) para
latentes na favela: o padre x os moradores de Baixo; os de Baixo x os de construir casas especiais. Ameaçou com represálias violentas quem invadis-
Cima; o padre x as autoridades do governo; os moradores x as autoridades se as construções e roubasse material. A Associação lhe deu todo o apoio.
do governo. Mais tarde, o padre me confessou que seu problema era de espaço: se
Os de Baixo aproveitaram a ocasião para denunciar as discriminações tivesse de remover mais oito moradias lá para Cima, não lhe sobraria lugar
do plano que os excluía como se não fossem de Morro Azul também, viven- para construir nada. Os barracos de Baixo já tinham sido um presente aos
do lá há tanto tempo como os outros. Não achavam justo que eles, os oito flagelados do incêndio. Quanto ao governo, ele, muito inteligentemente, ao
desabrigados, mais todos os outros ameaçados pelo Metrô, que eram os que sair da favela lhe entregava o comando da situação. Sabia que não havia
mais obviamente precisavam de casas novas, estivessem impedidos de cons- recursos humanos ou financeiros para fazer nada e que o Estado, se se me-
truí-Ias. Desafiaram o padre direta e indiretamente e foram se apoiar em tesse a executivo, se desmoralizaria frente aos moradores. O padre estava
uma força ex6gena que sabiam maior que a dele. Definiram-no então como a salvo de que o forçassem sequer a prestar contas de seus atos. A sua ação
um aproveitador que usava o nome da favela e da população para benefi- assistencial era voluntária, desvinculada de programas oficiais. Usava seus
ciar uns poucos amigos e acusaram-no de chantagista, manipulador da dis- próprios fundos e estava, de fato, fazendo um favor ao Estado ao realizar
tribuição da água e da luz e da Associação de Moradores. Intrigaram o mais tarefas que eram de sua competência.
que puderam a Administração Regional contra o padre, procurando fazer Os moradores de Cima não ajudaram os de Baixo. Fingiram ignorar
com que ela o obrigasse a aceitá-los no plano. o que estava acontecendo e deram a razão ao padre. A Associação também
A nível interno, os de Baixo sucitaram uma onda de boatos e mexeri- não se movimentou e, quando o presidente foi acusado frontalmente,
cos. Como a Administração Regional funcionava próxima ao Palácio do ameaçou abandonar o cargo, o que acabou não se concretizando. Nessa
Governo, exploravam muito bem a coincidência, dizendo que iam ao Palá- época, o escritório do padre e sede da Associação foi arrombado durante
cio, que eram ordens do Palácio etc. Começaram a inventar que as falhas a noite e sofreu uma depredação completa. Ninguém conseguiu apurar
do plano habitacional, as quais, na verdade, eram imputáveis à desorgani- quem o fez, mas pairavam suspeitas sobre os de Baixo, que se defendiam
zação do padre, às dificuldades de estocagem de materiais e às variações de dizendo que' tinham sido os próprios "meninos maconheiros amiguinhos
preços do mercado, seriam devidas ao seu mau gênio e a pretensas deso- 00 padre".
142 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
MORRO AZUL 143
As assistentes sociais da Administração Regional fizeram tudo para
que o padre desse abrigo aos que ficaram sem casa. Este lhes escreveu, final fez elogios: eles tinham capacidade para se cuidar sozinhos; Morro
explicando que a autoridade na favela estava entregue ao governo e que a Azul já não podia mais ser chamada de favela, era um bairro.
ele competiam apenas as casas do seu plano por terminar, em atenção a seus Falou em seguida o presidente 1, procurando dar uma demonstração
compromissos internacionais. Depois disso a Administração não teve outra da autoridade que não possuía. Falava alto, esmurrava a mesa, ameaçava
coisa a fazer do que suspender a interdição e dar material e autorização abandonar tudo, estabelecendo um prazo de quatro meses para que as pes-
para a reconstrução dos barracos. soas voltassem a trabalhar. Convocou as mulheres para assumirem o lugar
O caso terminou com uma assembléia geral, com a presença dos de dos homens nas tarefas pesadas, envergonhando-os com o exemplo. A tira-
Cima, dos de Baixo e da FAFEG. Aí, a maioria sugeriu um abaixo-assinado da foi de muito efeito, provocando reações na platéia masculina, tocada
pedindo a volta do padre. Não houve manifestações em contrário. Ele, em seus brios machistas. Terminou com um panegírico ao padre, "o ho-
após um bom sumiço, pouco a pouco foi se achegando. Para reassumir, exi- mem que veio da França há 22 anos para atuar desinteressadamente no
giu um. ritual de desagravo. Desconfio que a crise e a retirada dramática lhe morro" e que, portanto, "merecia todo apoio e prestígio".
fosse simpáticas, como uma forma de se desobrigar de continuar construin- O auditório comportou-se das mais diversas maneiras. Eis aqui algu-
do casas sem admitir que o plano fracassara. Por essa época ele andava mas frases que recolhi na ocasião: -s, os homens não querem nada mes-
muito pessimista. Os de Baixo, vendo as suas maquinações aguadas, classi- mo ... "; "Todo o mundo dá soco na mesa hoje ... "; "Por que é que o se-
ficaram .oda a coisa de "palhaçada". nhor está batendo nesta mesa?": "Todo o mundo está lhe respeitando ... ";
"Três paus do telhado da igreja fora carregados por mim, que sou mu-
lher. .. Homens e mulheres, temos que trabalhar em conjunto"; "O padre
Uma assembléia para conscientizar o povo julga todos por um, por isso a toda hora ameaça abandonar a favela"; 'Te-
remos' quatro meses para resolver nossos problemas. Nesse período teremos
No meio do ano foi convocada uma Assembléia Geral pela Associação dos quem comande?"; "Ou o padre põe o carro à disposição para tirar o li- f.
Moradores, cuja finalidade expressa era discutir com os favelados de Morro xo, ou a Administração Regional dá um caminhão. Sozinhos não temos 't
Azul por que não se dedicavam mais às tarefas essenciais ao bem-estar cole- recursos. "
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tivo: limpeza de valas e recolhimento do lixo. Essa assembléia dita "cons- A líder dos de Baixo estava presente e foi acusada de divisionismo.

l
cientizadora" tinha características de ultimato: ou o pessoal se comprome-
tia a colaborar, ou a Associação se consideraria desprestigiada e abandonaria
seus esforços de organização do morro. A reunião fora preparada com todo
Argumentou que nem estava batalhando em causa pr6pria, apenas havia
instruído os outros sobre seus direitos. Tinha uma visão atrapalhada da
situação. Havia se mostrado sabida o bastante para manejar instituições
I
o aparato. Cada morador estava avisado e convidaram-se autoridades da que contrabalançassem o poder do padre, mas, falando, professou uma fé
( Região Administrativa (Estado) e da FAFEG (representantes máximos de ingênua no governo. Segundo ela o Estado em outras favelas providenciava
moradores de favelas) além do padre. Em que pese a tanta ênfase na Asso- tudo: escola, creche, alimentos etc. Disse que sabia onde buscar ajuda, ape-
(
ciação, o verdadeiro objeto de desagravo era o padre, que havia "entregue" sar de haver ouvido minutos antes o representante oficial se descompromis-
( a favela ao governo e se recusava a continuar colaborando. saro Finalizou com uma exortação à união, perguntando por que todos não
haviam ajudado quando caíram os barracos de Baixo se a favela afinal era
( A assembléia se deu num domingo de manhã na capela. Com o audi- uma s6.
tório cheio, falou primeiro o representante da Administração Regional.
Ele se mostrou muito hábil, sendo cuidadoso em fazer o problema reverter O padre foi o último a falar. Durante todos os discursos manteve-se
à origem. A favela chegara a uma situação de impasse por problemas de discreto. Explicou com simplicidade que, além do pouco trabalho que ele
desunião interna. Daí fez uma transferência, afirmando que essa era a ori- realizava em nome da par6quia, ninguém fazia mais nada em Morro Azul.
gem de todas as dificuldades e que, enquanto os próprios moradores não Toda a parte que cabia ao governo ficou negligenciada por incapacidade ~
quisessem ajudar uns aos outros, a Administração Regional estaria omissa. das autoridades, que nem puderam substituí-Io. Com muita propriedade, ~
Ela s6 entraria quando não houvesse mais divisões. Com isso, esquivou-se lembrou que quem não providenciava sequer o recolhimento do lixo não
de qualquer responsabilidade, deixando nas entrelinhas que não havia con- iria construir escolas e creches. Depois de demonstrar seu domínio comple-
dições de ação oficial. Os favelados que contassem consigo mesmos. Ao to ca situação, declarou-se amigo e disposto a recomeçar o que abandonara,
desde que fossem respeitadas duas condições:
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MO VIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO MORRO AZUL 145 (


144

1) acatamento às ordens em benefício da comunidade, sem brigas;


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2) existência de uma colaboração efetiva.
A reunião terminou em clima de entusiasmo. Houve choradeiras e
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ajudado, que acreditavam na comunidade etc. O que é mais incrível é que ~~ ~' -4
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isso significava sacramentar, naquela situação ritual.ê? os conceitos do
padre sobre a favela e sobre quem era e não era "favelado"!
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os relatórios sobre Morro Azul, insistiu em mandá-los na íntegra ao padre e .~

à Associação. Os norte-americanos julgavam que a tal estavam obrigados o ..,c:: tIl '"
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e que essa era a sua promessa à comunidade. Por mais que eu argumentasse <1l
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Azul, então fiz bem. Além do mais, nunca entendi o que se objetivava com O
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"mobilízação mítica" e no incidente dos barracos de Baixo. De qualquer
forma, esses arremedos estão muito longe da força e dos significados das
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146
Notas à etnografia de Morro Azul
can, apesar de não ter nada com o fluxo de dinheiro que vinha para a fave- !
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la sem depender das minhas opiniões. O padre, os membros da Associação,
os de Baixo, os de Cima, cada.qual por seu turno tentou me alinhar do seu i
') lado. Isso significa que, no quadro, as minhas alianças se devam mais às
etapas do meu trabalho que aos eventos propriamente ditos. Lá nunca tive
o mesmo envolvimento que em Brás de Pina. O meu papel era bem mais
secundário. Quanto à Inter American, preferi considerá-Ia uma aliada de
l. Anthony Leeds realizou uma série de estudos nas favelas do Rio, demonstrando
a importância da criação de animais para diversos fins: sobrevivência, complementa-
ção da renda familiar e suporte das redes de solidariedade (compromissos de gentileza,
trocas de presentes de carne de porco).
2. Referências a D. Hélder Câmara e a seu trabalho frente à Cruzada São Sebastião
I
todos, pois fornecia o dinheiro sem nunca estar presente. podem ser encontradas em Leeds & Leeds (1978) e em Abreu e Bronstein (1979).
3. A Caritas Internacional é uma instituição da Igreja católica que recolhe dinheiro
) nos países ricos (notadamente Alemanha) para financiar atuações sociais nos países
pobres. A Caritas tenta pautar-se pelas recomendações conciliares.
)
4. A luz de cabine é um estatuto típico das favelas cariocas. O dono da cabine é
) aquele que consegue um relógio oficial da Light. Em geral, o relógio é conseguido
porque o indivíduo mora num local que está dentro das especificações de acessibili-
) à jde exigi das pela concessionária (fímbrias do aglomerado, ruas carroçáveis etc.). Ser
cabineiro é um grande trunfo na sociedade favelada: daí advêm vantagens financeiras,
políticas e sociais. O cabineiro cede ou vende luz, conforme sejam seus objetivos.
Pode até fazer as duas coisas. A venda se faz por "pontos" (o número de lâmpadas
e de tomadas "puxadas") com uma ren tabilidade tal que há casos em que o puxador
paga dez vezes mais do que pagaria se tivesse um relógio e recebesse as con tas regula-
é
res. Naturalmente o "gato" (puxada ilegal da luz) é considerado crime pela Compa-
nhia, mas na favela - por definição, o locus da ilegalidade e da inversão urbanística
- ninguém liga para a irregularidade. Tanto é assim que o Estado, percebendo o
alcance político do controle da luz, vai criar as Comissões de Luz, que resolvem de
) um só golpe duas ameaças: atrelam ao governo um poder até então de expressão
autóctone pura e estabelecem uma concorrente equilibradora para as Associações
) de Moradores. Quando se monta uma Comissão de Luz em uma favela, os moradores
pagam o material e a sua instalação. Depois vem o Estado (CEE) e encampa tudo para
) garantir o funcionamento.
) S. A FAFEG já estava emasculada mas conservava suas prerrogativas.
6. Estou jogando de propósito com o duplo sentido das categorias "descarrego",
)
"demanda" e "entidade" (cf. Maggie Velho, 1975). Será que os mecanismos usados
pelo padre estariam viciados por sua familiaridade com rituais religiosos? Nesse caso,
)
no seu esforço por submeter e enquadrar os favelados, ele estaria utilizando, de forma
) consciente ou não, uma "gramática" que é muito familiar e eficiente, em outros con-
textos, para a população pobre carioca. A especulação se justificaria: as ações simbó-
) licas teriam um valor de leitura próprio e seriam capazes de representar.vários conteú-
dos, conforme o problema a resolver. Um banda e "organização da comunidade para
urbanização" florescem na mesma arena e nada me impede de imaginar que possam
ser fei tas conversões nas suas respectivas linguagens.
7. O escopo, os objetivos e a metodologia de pesquisa propostos para Morro Azul
podem ser encontrados em Santos,.CNF, 1974, pp. 4, 5 e 6.
8. Eis um caso curioso em que a Associação, além de distribuir títulos e posições
de status (Valladares, 1976 e Santos, CNF, 1978), também conferiria identidades
depreciativas. A designação de favelado não é nada dignificada no meio urbano cario-
ca, significando para a opinião geral uma situação de "fim de fila", de subcidadão.

147
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148 MOVIMENTOS URBANOS NO RIO DE JANEIRO
NOTAS A ETNOGRAFIA DE MORRO AZUL
149 (
Era surpreendente que quem tivesse escapado do meio estigmatizador aceitasse se
autoclassificar em uma categoria denegridora e negativa. A entidade e os atores que cidade grande e moderna) (cf. Gluckrnan, 1966). Talvez muitas das fantasias sobre o ~ (
"ruralísmo" em favelas (cf. Leeds & Leeds, 1967) nasçam de uma interpretação sim-
atribuíam esse status mereciam ser vistos com suspeitas conforme se verificará adiante.
9. Sanções repressivas sempre apareciam no discurso do padre, que sonhava em pos-
plista de jogos desse gênero, possíveis pelo caráter fronteiriço e stranger (por analo-
gia ao termo de Simmel) com que a favela pode ser lida dentro do meio urbano maior
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suir instrumentos pelos quais exercesse "poderes de polícia" semelhantes aos do Esta- e condicionante. (
do. Se não pagassem, cortaria água e luz; se não trabalhassem, excluiria do plano; se
não se comportassem, não teriam "direitos" etc. 16. Parece que os padres são particularmente adequados a esses papéis. Como religio- (
sos eles já seriam símbolos da articulação entre dois mundos ... Oficiantes de rituais
10. Tudo funcionava no mesmo edifício, um salão sobre um depósito de materiais, equilibradores (cf. Gluckman, 1966). (
onde estava também a sede dos escoteiros. Era um lugar estranho, com móveis velhos,
17. PerIman (1977) chama atenção para essa manipulação sem-cerímõnía do poder (
material de construção, comida e roupas para distribuir aos pobres, aquários com pei-
nos seus mais altos escalões pelos que estão no ponto mais baixo da hierarquia de ci-
xinhos e estantes com curiosidades minerais, que o padre chamava de "meu escritó-
dadãos. O incrível é que os jogos às vezes dão certo e os indivíduos chegam a ser aten- (
rio". As instalações, para os padrões da favela, eram muito boas: havia luz e telefone,
didos em suas reivindicações pessoais! Acho que a explicação deve ser buscada nos
mas não existia banheiro.
padrões de comportamento político da fase populísta do governo brasileiro, até hoje (
lI. Não estou fazendo simples julgamentos de valor. Lynch (1974) estuda as condi- o único modelo de política urbana de larga difusão e entendimento.
ções em que o espaço urbano é ou não percebido de uma forma coerente. Gregotti (
(1975) referenda as análises de Lynch. A favela estava sendo submetida a mudanças 18. Em casos como Brás de Pina, Barro Vermelho e Parque União, que são bem fa-
que depois percebi serem desordenadas e obedientes a marcos e referências que esta- mosos, os favelados mais que tudo manifestavam sua in tenção de mudanças fren te ao (
vam na cabeça do padre c. que só eram manipulados por ele. E natural que houvesse governo. Essa discussão era o seu trabalho. Aqui em Morro Azul o trabalho era mate-
rializado mesmo, não era apenas uma metáfora discursiva. (
confusão e ansiedade quando o conhecimento do lugar tivesse de ser atualizado. De
qual espaço tratar: - do velho e familiar que já estava todo alterado? - do atual que 19. E interessante fazer urrrparalelísmo com o conceito muito mais abstrato de "ho-
se sabia provisório? - do pretendido que ninguém poderia saber qual seria? mem" com que o padre justificava suas ações. Este aqui é um homem à brasileira do (
12. A importância de elementos exógenos para a população e lideranças da favela é gênero "você sabe com quem está falando?", que se defmia por oposição ao gringo que
tinha poder, era superior, dominava, mas que, passando a limpo, era acusado de não (
enfatizada por Medina (1969), Machado da Silva (1967) e Santos, CNF (1978a).
13. Unidade Construtiva (UC) e Unidade Habitacional (UH) eram conceitos que ha-
ser um homem inteiro: era maluco, bicha e "não sabia com quem estava falando". °
uso de categorias sofisticadas (lunático e pederasta) servia para me cooptar. Eu podia
(
víamos criado na Quadra Arquitetos Associados para poder analisar as situações ser erudito, mas também era um homem brasileiro e tinha de estar solidário com o
arquitetônicas não-convencionais que encontrávamos nas favelas. A UC era a edifica- (
interIocutor, pois nos classificávamos de modo semelhante e éramos iguais frente ao
ção como um todo, a UH era a UC ou uma parte dela que servisse de abrigo a uma padre. Ergo, éramos companheiros e ele o nosso inimigo (cf. Da Matta, 1979). Aqui
Unidade Familiar (household). A UH tinha de apresentar um mínimo de duas carac-
(
há ao mesmo tempo uma acusação aliciadora (cf. Velho, 1978c) e um estabelecimen-
terísticas obrigatórias: entrada independente e um cômodo de ocupação permanente. to de fronteiras (cf. Velho, 1979).
(
14. Comparem-se os procedimentos descritos com os mecanismos e instrumentos ofi- 20. A Assembléia Geral de desagravo era um ritual coletivo para reafirmar identidades
ciais dos agentes do BNH para tratarem de casos semelhantes. Mesmo a CODESCO, (Gluckman, 1966 e Turner, 1979). Lá estavam todos os atores importantes na favela, (
com todo o seu liberalismo e sua Casa Branca dentro de Brás de Pina, não se livrou do lembrando uns aos outros os seus papéis e dizendo quem eram. Depois de feitos os
tratamento frio, impessoal e burocratizado que visava à eficiência da instituição e à acertos, podiam todos voltar a seus quotidianos,quando não precisavam obrigatoria- (
manutenção da sua identidade. A eficácia do plano enquanto provedor de soluções mente obedecer ao que se havia prometido.
(
para a habitação só é garantida através de soluções não-burocráticas (Valladares,
1978), isto é, locais e com grande capacidade de ajuste do modelo idealizado a situa- (
ções concretas. O padre estaria aqui fazendo o mesmo papel do corretor nos lotea-
mentos periféricos (Santos, CNF, 1978b). (
15. O jogo de ambigüidades do padre, que podia assumir várias identidades dentro do
mesmo campo e arena, tinha, como se vê, as suas limitações. Caberia talvez especular (
aqui sobre essa situação especial de "malha apertada" (cf. Bott, 1976). A "lei" feita
pelo padre não era de fato legal, ainda que ele jogasse com a imagem da legalidade (
para justificar os seus atos. Os códigos pelos quaís se faziam as suas transações finan-
ceiras estavam ligados ao seu papel na arena fechada da favela. Fora dali não valiam (
nada. Mas, por analogia, o padre tomava o respeito à lei e aos regulamentos oficiais
para enfeitar as suas decisões arbitrárias. A Associação cometeu uma ingenuidade ao (.
pretender que as duas leis eram a mesma coisa. O padre logo se apressou em encontrar (
uma saída que não o desmoralizasse. E um caso curioso de relações tipo multiplex
(interior da favela) convivendo muito bem com outras simplex (a favela estava numa (

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