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Eni P.

Oilandi
(Org~~-

travess
idos Públiclis no r;sJI!l-f-o U:
idade Atravessada toma a linguagem como observatório do ur
vendo a cidade na encruzilhada de um duplo movimento:
o do espaço urbano que se diz e o da linguagem que se espacializa na
idade. Mostra assim o espaço público como um espaço em que vivem
sujeitos que significam e que são significados em seus sentidos
sociais públicos urbanos. Desse percurso movido pela compreensão
lu cidade resultam novas formas de apreensão da realidade urbana em
seus aspectos histórico, social e político. Em que não se reduz o
sujeito urbano ao ocupante mas se pensa
orador, o proprietário, o passante, o que não tem lugar, todos como
iujcitos que vivem a cidade em diferentes condições, concentrados
em um mesmo espaço e em quantidade.

_idade
~uagem
_So (d·
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

C486 Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço Sumário


urbano / Eni P. Orlandi (org.). - Campinas, SP : Pontes, 2001.
190p. (Cidade, linguagem, sociedade, 1)

Apresentação: Cidade Atravessada . 7


1. Vida urbana - Aspectos sociais.
2. Análise do discurso. 3. Linguagem e história. Eni P. Orlandi
r. Orlandi, Eni P. lI. Título.
CDD - 301.36
Tralhas e troços: o flagrante urbano . 9
415
301.2 Eni P. Orlandi

Índices para Catálogo Sistemático Novas figuras do caos: mutações da subjetividade contempôranea . 25
1. Vida urbana - Aspectos sociais. 301.36
2. Análise do discurso 415
Suely Rolnik
3. Linguagem e história 301.2
Cidade e sujeito escolarizado . 29
Coleção Cidade, Linguagem, Sociedade
Claudia Castellanos Pfeiffer
Laboratório de Estudos Urbanos
Nudecri - Unicamp Casas e Centros de Cultura e o movimento de sentidos na cidade . 35

Copyright © dos autores Rosângela Morello

I{eltor
Questões sobre a solidariedade . 43
I h-rrnano de Medeiros Ferreira Tavares
Bethania Mariani
v ' -reitor
I' mando Galembeck
As ocupações dos sem-teto na cliscursividade da cidade . 51
(,oordcnadora do COCEN
I,dn Maria Loffredo D'Ottaviano
Suzy Lagazzi-Rodrigues e Priscila Salvato Brito

(,oordcnador do NUDECRI "Todo mundo sabe disso Mió eu sumi daqui" . 61


Glacy Queirós de Roure
(,oordcnadora do LABEURB
11,111 P rlandi
PONTES EDITORES Espaços interditados e efeitos-sujeito na cidade . 71
latente Editorial Rua Maria Monteiro, 1635
Pedro de Souza
f :111'11) .n SiJvia P. Teixeira 13025-152 Campinas SP Brasil
Fone: (019) 3252.6011 corpo, a cidade: repetição . 83
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Il,oIllomção Eletrônica Coordenador Editorial: Ernesto Guimarães () dis urso rp ral atravessado pela dança em cadeira de rodas . 89
I II Mary Feliciano Capa: Eckel Wayne
ill/flll 1 Lu 1:/Fcrrclre e Eni P. Orlandi
2001
1111\11" NO no I1msil
I

Questões sobre a Solidariedade

Bethania Mariani
Universidade Federal Fluminense

1 Introdução
'Solidariedade': uma das palavras de ordem nos dias de hoje. Filiada à memória semântica
do humanitarismo e, por esta via, estabelecendo uma rede parafrástica que engloba 'caridade',
'ajuda', 'ftlantropia', 'novas faces do bem' ou 'mão estendida', a palavra 'solidariedade' tem
circulado pela mídia como materialização de uma ação social que se mostra tão necessária
quanto óbvia sobretudo nos centros urbanos. Uma ação social da qual nenhum cidadão
pode escapar. 'Solidariedade': discurso que neste estudo remete para um objeto a conhecer,
no campo do discurso jornalistico remete para formas sociais de agir relacionadas com uma
concepção humanitária e cristã de estar no mundo.
Fala-se, por exemplo, em 'movimento solidário', em 'ação de solidariedade' e em
'comunidade solidária'. O alcance de atuação dos atos solidários vai das instituições públicas
às particulares, dos muito pobres aos muito ricos, sem distinção de raça ou credo. Vários
segmentos sociais caracterizados como 'solidários' aparecem citados na mídia e todos os
demais são convocados a participar: "Saiba como ajudar", diz um dos subtítulos de capa
da revista Época, publicada na última semana de outubro de 1999. Ou, ainda, como se
afirma em reportagem da revista Vga, publicada na mesma semana, trata-se de um
"movimento" que "já atinge mais de 9 milhões de pessoas".
A fim de questionar esta evidência que o discurso jornalistico divulga e faz circular e,
por extensão, discutir os silenciamentos produzidos quando um sentido se constitui de forma
hegemônica, situaremos nossa reflexão partindo das seguintes questões: o que designa e
para qual domínio de memória o discurso da solidariedade aponta? Onde, como e por que o
discurso da solidariedade na mídiase organiza e frutifica? De que modo esse discurso
dispõe sobre formas de agir e ser na cidade? Em síntese: qual a politica de sentidos que está
em jogo no campo da lingua e que estaria revestindo a ordem social urbana?
Na tentativa de responder a estas questões, e tomando como dispositivo teórico a Análise
do Discurso da escola francesa, organizamos nosso trabalho em duas etapas. Na primeira,
enfocamos alguns aspectos dos processos de produção de sentidos de 'solidariedade',
sobretudo quando contrapostos à 'responsabilidade' e 'ética'. Na segunda etapa, analisamos
textos Ia mídia impressa, visando compreender melhor os modos de significação que
naturalizam determinados sentidos de 'solidariedade'.
linalizand esta introdução, e já considerando minha filiação teórica à Análise do
I isrurso, liria ILI na mí lia que pode resvalar para a produção de diferentes efeitos de
1>('1 \I idos mui: ns v .~ 'S se ~. 'ha .m s nrid s at mizados, produzindo ilusões de consenso
11\ l.iI.

,.
Solidariedade, Responsabilidade e Culpabilidade
Jean-Marie Dornenach" elabora o percurso etimológico dos sentidos de 're~ponsáve~'/
Usualmente, emprega-se 'solidariedade' e/ou 'solidário' quando se quer demonstrar a
.nl 'são a uma causal ou quando se deseja partilhar sentimentos comuns a um grupo.2 'responsabilidade', esclarecendo o quanto a formação destes ,term~s, a 'partir, do la~~
'respondco' (ou seja, 'ser capaz de resposta', 'mostrar-se digno de ou, ainda, estar a altura )
No entanto, há um domínio outro de significação, ainda que indireto e historicamente
e seu uso inicial apenas no século XVII, pode ser relacionado com mudanças na for,ma de
pouco visível. Tal domínio pode ser traçado entre 'solidariedade' e 'responsabilidade'. É o
organização da sociedade européia. E tais mudanças, por sua vez, p~oduzem um amalgama
qu 'se pode observar na institucionalização dos significados e nas formas de emprego listadas
entre a responsabilidade e a culpa sociais na construção da cI~a~~rua. .. ,
c'm licionários filosóficos." nos livros de direito" e na enciclopédia Larousse d« XXeme siéde.
I) 'preende-se a relação entre 'solidariedade' e 'responsabilidade' em duas vias principais: a
Após remontar ao período greco-Iatino, período e~ que a Id~la =
responsa~~da~e so
era aplicável aos dirigentes, aos deuses e a alguns heróis e, tambem, a Idade ~:dla, epoca
Ilc) 'mprego de solidariedade no discurso jurídico, por um lado, e seu emprego no campo da
mornl constitutiva de uma nação, por outro. em que uma "pirâmide de responsabilidades" engajava as relações de submissão entre ~
suserano o rei e os vassalos, o autor nos mostra o quão recente é a noção de que cada um e
Assim é que solidário, na primeira acepção, é um "vínculo jurídico", "um compromisso
responsivel por suas próprias decisões e, conseq~entemente, passível de p~nição que ao
IH'l,o q.ual as pessoas se obrigam uma pelas outras e cada uma delas por todas".5 A
mesmo tempo é individual e partilhada no todo social. Se com a Reforma e.o I.ncreme~to do
lI11daCledade, então, é um "estado de duas ou de muitas pessoas obrigadas umas pelas
livre exame de consciência, responsabilidade e culpa podem passar a atJn~r a s~cI~dade
Iltllras e cada uma por todas"." Tal estado ou vínculo supõe uma dependência e uma
como um todo, é a partir dos séculos XVIII e XiX, que as modificações socloecono~cas e
I Onsabilidade mútuas. Por outro lado, trata-se também de um laço moral que une as
urbanas solidarizam "les gens dans Ia faute". Explicitando o entrecruzar da responsabilidade
111' nas em sociedade. Fala-se, então, em uma "solidariedade moral" quando os membros
111'11mgrupo assumem idênticas "responsabilidade/'.7 com a culpa na modernidade, afirma Domenach:
lIast~nte esclarecedora, neste ponto, é a frase de Renan dada como exemplo na tes codes dejtlstice ont commencé, dês le XVIII siêcle, à éualser les rep'0llsa~ilités,
I Ili'lrlopedla Larollsse du XXcme siêde: "Une nation est donc une grande solidarité." Lendo o suiuant l'euolution d'une société qtli se laiase et qui attribae aux indiuid«: ce
111i'lllI'i Ernest Renan, reencontramos a frase em sua íntegra: ql/ 'elle attribuai: auparasant à Die«: le pouuouir de déterminer leurs aaes,"

Uma nação é pois lima grande solidariedade, constisuida pelo sentimento dos Assim, a laicização da sociedade, bem como a maior participaçã? dos cida~ã?s na gestão
sacrijicios qlle fizemos e daqtleles qlfe ainda estamos dispostos a fazer. Ela dos centros urbanos, promove um deslocamento e uma maior difusão da idéia de. c~,lpa
sI/põe IIlII passado," resume-se, porém, 110presente, por tI1l1foto ta/'lgiveL- o COII- social, produzindo, nos dizeres do autor, um "S:lIti~~eJ1t obscur d:~n,e (atlte c~JI:~~zl~e e,
sentimento, o desejo claramente expresso de continnar a vida em CO/IIIIIJ/.8 paralelamente, faz com que recaia sobre cada cidadão UI1e.respol1sabtlzte indeterrsinée . .
É sendo perpassado pela memória destes efeitos de sentidos de responsabili~ad~ SOCial
(,; im[ ortante lembrarmos, aqui, que Renan é um pensador do século XIX representativo
que se materializa, ainda que de modo paradoxal: o proce~s~ de si~~cação de 'soli~~ne_dade'
IIII11 n cpção de nacionalismo como o exercício de um "plebiscito cotidiano". O sentimento
vendido atualmente pela mídia impressa. Ou seja, na mídia a VISIbilidade e a valonzaçao ~o
di uni lade nacional, de acordo com o autor, baseia-se em uma escolha realizada pelos
individualismo e das responsabilidades individuais vai aumentando na mesma proporçao
1IIIIvllu s, por vontade própria e em função de uma memória comum. Diz Renan, explicando
em que se defende uma coletivização nacional, enquanto repartição de culpas, destas mesmas
11111Idas características indispensáveis e constituidoras de uma nação: "Uma delas é a posse
responsabilidades sociais e individuais. . . .
1/111111111 de um rico legado de lembranças; a outra, o consentimento atual, o desejo de viver
Em uma conceituação provisória, diríamos que no discurso da solidanedade colocado
'1!lIIIIS,a vontade de continuar a fazer valer a herança que recebemos, indivisa ..."9
pelos jornais encontra-se o elogio de uma individualizaç~o qu~, ao mesm~ tempo, t~rna
Ao trazer um pensamento do século XIX como forma de dar sustentação às acepções de
cada um responsável por todos. No nosso en~ender, is~o e pos~lve! e~ funç:o dessa ~f~sa
' 111dnriedade', a Larotlsse dtl XX éme Siecle estabelece uma circularidade entre os sentidos
filiação interdiscursiva do processo de produçao de sentidos de solidanedade aos domínios
1110() I e jurídico. Desse ponto de vista, solidariedade representa "dependence muttuelle"
I "ohligation de s'entr'aider". de saber da religiosidade, da moral e do direito.
Curiosamente, ao traçarmos a etimologia de 'solidariedade', depreendem?s que o ter~o
I I11111de exemplo: "Pedetisra manifesta 'solidariedade' a MG" (Folha de S. Pau/o, 09/01/99); "Belga deriva do adjetivo latino 'solidus'," cujos significados, em latim~ s~o: :'inteiro, In~cto, maciço,
'1"'111 por solidariedade dos clubes europeus" (Folha de S. Pamo, 11/01/98).
1'1+ I resistente' firme resistente; inteiro, completo, total; que tem existencia real; que e duradouro,
111\) rn orno exemplo: "Deputados enviam mensagens de solidariedade [para Sergio Naya]" (Folha de firme' certo," Ora como nos ensina Domenach, "ce qlli est solide, eJ1efftt, ce qtli est inébranlable,
\ 1',l/Illi,03/03/98).
1 .rttbsis;e bors de 1I0Sprises, mais ee qtle nOl/s poutons lJ,al1iptller, exploiter et détmire - mais aussi atlléliorer
I "I 1\1 'I'rntcr Mora, Dicionário defilosojia, 4. Q/Z. Madri/Barcelona. Alianza editorial, 1979/1982.
II'/Ivlo /(od"igues, Direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 1987, eJ. M. Othon Sidou (org.). Diciol1ário;ilrídieo 'li J can-Maric Domcnach, La n:spol1sabilité. Essai SIIr lefll1dellletlt du civismc. Paris, Hatier, 1994.
II1II'min Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990. 1ID menach demonstra. também, ao separar o radical 'spondeo' ("prometer solenemente") do prefixo
I', 113.
1/1111''111, 'I'C' (ação que diz respeito a duas pessoas) o quanto a significação atu~l.de 'respons~bilida~e', enquanto
" IM/rl/l, p, 113. , bl'ig~ç~ode responder, de dar garantia de certos atos", traz a memona de suas raizes latinas,
/( ,"IIV'I, Vorn/",ltÍlYo de.lilosojia. Rio de Janeiro: Agir, 1975. 12 IIJirl"l/l, p. 6

• I' /lI nun, '( 'lU é uma nação?'. /1/: Cndemos de Letras da UFF. Nitcrói, 1997, 151-169 p. " l/JltIml. p. 7 8.
I11I'11lr/i1
"Sl1l1du , 11,-UIII, li< tll- tln m smn raiz de snluus [sólido, inteiro. intacro],
''';, 1'1' dr IIlIln' respolIscd;ilill'.15 Essas reverberações de sentidos do passado (ou ressonâncias
foge à regra. ASSim sendo, pedagogicamente, as matérias apresentam estatisticas, confrontam
111I('ldi~.ursivas!") e que funcionam no esquecimento desembocam na 'solidariedade' dos
resultados, comparam as atuações de brasileiros e de americanos, citam avaliações de
1/1.11ti . hoje, mencionada por muitos, conforme veremos nas análises a seguir, como única
sociólogos da USP e comentários de autoridades governamentais. Da mesma forma,
II(d:1humanitária frente aos inúmeros problemas e injustiças sociais.
distinguem o "dar esmolas" e o "agir de modo voluntário e descompromissado" do "gesto
Na P litica de sentidos que se instala no discurso da solidariedade, esses ecos contribuem solidário" e dos"tipos de ftlantropia". Mostram, ainda, que é possível "participar diretamente"
11.1d 'spolitização do sujeito, pois tornam os cidadãos co-responsáveis pela possibilidade de ou "doar recursos".
1III'IIlOriada sociedade e, paralelamente, silenciam sobre a responsabilidade do Estado. À Dentre os aspectos que movem as ações solidárias no Brasil depreendern-se o "sentimento
( 11\-lhança do modo de funcionamento do discurso sobre e da ética nos jornais, que já de culpa" e a "angústia existencial", por um lado, e também a adesão a "uma certa moda",
11\I'IIHlS portunidade de analisar em outro trabalho," o discurso da solidariedade se mostra ou a grupos específicos, tais como, o governamental "Comunidade Solidária", a "Organização
I 111111 \ .arninho resultante da descrença no politico ao pregar uma forma de engajamento de Auxílio Fraterno" e a "Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida", do Betinho.
1111ti :1 m~rgem da falta de ação do Estado. Porém, através das pesquisas citadas na matéria "Cultura da filantropia está enraizada nos
Estados Unidos", o leitor fica sabendo de outras motivações, tais como "pressão de grupos
OIl1daricdade e Fragmentação Social
primários de convívio", "empatia" e "razões religiosas".
11 11I\r\1110Scomo unidade de análise um total de 11 matérias jornalisticas publicadas no Apesar das diferenças presentes nos relatos personalizados, o caderno especial Mais
, 10"11\1)MClis do jornal Folba de J. Pardo, em 1997, inti tulado Especial Solidariedade, publicado projeta a imagem de uma coletividade, ou seja, há um 'nós' que se projeta para o leitor do
li" ,11,1I( de dezembro. Tendo em vista que coincidentemente a 'solidariedade' foi matéria texto jornalistico como um grupo homogêneo, coeso e fechado. Esse 'nós' inclui aqueles
," 1'111I'. 'ente publicação das revistas Época e Vqà, resolvemos incorporar, como contraponto, cidadãos que são solidários e a parcela de leitores que se reconhecem na necessidade de
111"111:1$bservações sobre as matérias que constam em arnbas as revistas. ações solidárias, Resulta, dessa forma, em uma exclusão dos beneficiários dos atos solidários.
Se há um 'nós', há um 'eles' externo. Em outras palavras, é pela exclusão dos outros que
1,1 () Especial Solidariedade esse 'nós' se constitui, E é, sobretudo, pela inserção em uma memória e em determinado
Com base em estatisticas de uma pesquisa do Datafolha, o titulo e o lead do editorial domínio de pensamento," em que se entrelaçam responsabilidade, culpa e fraternidade, que
011",1('.aderno Mais chamam a atenção para um conflito: "Pesquisa realizada pelo Datafolha esse /lÓS pôde se constituir, se mostrar como consensual e ser validado.
11111'(' os paulistanos revela quase unanimidade sobre a necessidade de ação social e os Se a posição discursiva de 'quem' pratica a solidariedade é visível, sendo bastante nomeada
e determinada, se as razões e motivações são igualmente explicitadas, se os benefícios
uuulvo que atrapalham a intervenção dos interessados em agir." Após discutir os prós
resultantes de tais ações são fundamentados com cifras e percentuais determinados, a posição
j I) COntras dos argumentos dos paulistanos apresentados pela pesquisa, os quais contribuem
discursiva do outro, ou seja, daquele que é o objeto de tais ações solidárias, é pouco citada
11111 11li a fi rmação presente no titulo - "Pessoas não atuam, mas valorizam solidariedade" _
e quando o é, aparece de modo indeterminado e indistinto. O leitor fica sabendo,
'1111'('dil rial não esconde seus propósitos, como é possível ler no último parágrafo do texto.
paradoxalmente, do que provavelmente já se espera que ele saiba: trata-se de
'/'1111:1 S' da publicação de "uma série de histórias de pessoas que optaram pela ação
"desfavorecidos", "da população brasileira carente de solidariedade", "de jovens infratores",
nlld,\da que servem de exemplo de iniciativa individual". Indo além, as últimas "de crianças na rua", "do Nordeste", "de minorias, como vítimas da AIDS, idosos e presos".
111111,11 rlll1 i nam duplamente como uma espécie de convocação e preceituário: "Aprenda Estes fragmentos sociais, como dizem as reportagens, "são potenciais beneficiários de
11111111 111as principais regras a seguir para que seu esforço não seja em vão." solidariedade". A indistinção da expressão "potenciais beneficiários" remete, também, para
( li li vrvc-se que, em seu conjunto, as matérias realçam: uma imagem estabilizada desse outro que necessita das ações solidárias. Tudo se passa
,I '1111'111 é ou já foi solidário. Isso é feito através da menção a casos determinados (e, como se, na história contada pela midia, todo mundo já soubesse, ou pelo menos devesse
ti 11I, IlilO .ira Ias pessoas ou instituições específicas - "o executivo suíço", "a dona de saber, do que se fala quando se empregam expressões como "população brasileira carente",
, ,.,,", "u nrquiteta", "o encanador", "Betinho", "D. Maria, 86" etc., "empresas", "meninos de rua" ou "desfavorecidos". '
t 111' Idora", "grupo", "instituto", "corporações"). Da mesma forma, como caso Discursivamente, constrói-se uma referência para este lugar social também a partir de
I '"11'1.11',C:' irado apenas um país: Estados Unidos. um domínio de pensamento já estabelecido sócio-historicamente na memória urbana. O
I, 111)111ICalgumas pessoas não são solidárias ou já foram e deixaram de ser ou, ainda, processo ideológico de construção de evidências e consensos funciona promovendo o retorno
1111111" 101':1111 mas gostariam de ser. Nesses casos, são feitas generalizações: "Pessoas não da memória destes sentidos já historicamente constituídos: há excluídos/desfavorecidos e
11111111, 111:15valorizam solidariedade"; "Brasileiros praticam solidariedade inconstante", situações de exclusão social. Da mesma forma, acoplado ao retorno deste já dito, há o
«lil c 111'dia participa cada vez menos". retorno, também, de outras memórias, como a da evidência da igualdade humanitária, que é
( ) IIIH'urso jornalistico muitas vezes é construído de forma pedagógica, ou seja, apresenta a ideologia dos direitos do homem ocidental ou, simplesmente, "ética dos direitos humanos"."
1I1I ('li Il'X(() <..:xemplos,gráficos e definições. O discurso da solidariedade nos jornais não
I. MichclPéchcux, SCllllillhca e disaoso - uma críticaà afirmaçãodo óbvio. Campinas,Ed. da Unicamp,1988.
I /1111111'11,1
li, 01. it., p. 10.
,,) l3adi li m stra como construiu-se um sentido de direitos humanos que esconde que se trata dos
I 1/111111:-\çj'I':ll1i,
/1 lillgl/agelll lia pesquisa soaocttltural; um estudo da repetição na discursividade. Carnpi- direitos d 'alguns humanos. Em tal sentido, de acordo com o autor, "supõe-se 11I11SIIjeito hlllJlallogeral tal qlle
111, "'I d,\ IJni :lI11P,1993.
ri f/"f I/;r' ,rtlfI'Il" d« Il/rllI .rl:}rI idm/(jirríi1/'III"ii1/'J:rtdlll/'"/1' ( ..)". Cf. J\lain Badiou, É/ica - um ensaio sobre a
I 11111111111,1
tlliu'inlli, euI e a i",prellSa. Rio de Janeiro, Revan & Campinas, Ed. da Unicarnp, 1998.
('IlIlNr!"lida do mnl. Rio elejnn .iro, Rclumc I umnrri, 19( 5.

li
I l\le 11\l' 'SS' outro, esse objeto das ações solidárias, então? Ele aparece de modo genérico de uma empresária que escreve cartas para alguns sem-teto em São Paulo: "Passei a encará-
I li I f 11110r1)5 li hês jornalísticos, ou seja, é traduzido em frases feitas e imagens emotivas los como gente."
I1II I Illas, manutenção desta ética. Ele é qualquer um a quem se possa aplicar o rótulo de
di !;IVIII" i I u minoria, como se ambos os casos designassem um mesmo lugar para estes 3,2 Dois anos depois, as revistas
fo , Apenas a título de uma breve comparação, vamos comentar al?uns aspecto_s das revi~tas
Me clando vocabulários do senso comum e do mundo acadêmico e, ao mesmo tempo, Vija e Época mencionadas no início deste trabalho, Uma pnmelra observaçao de carater
1111 iI"',lllll\ndo histórias particulares - cuja veracidade pode ser atestada - com iniciativas geral nos mostra que a reportagem de ambas mescla um enfoque de ~asos específi~os, todos
I I111I as u governamentais, o discurso jornalístico da solidariedade promove uma ética do de personalidades famosas, com outras informações, como estatísticas comparativas entre
1IIIIIIIIIIIInrismo que se configura como uma retomada do sentimento de culpa frente às o Brasil e os EUA e a América Latina, por exemplo.
di Hlliddades sociais. Não é à toa que os depoentes, em sua maioria, mencionam a mudança Época, em termos mais específicos, diferencia-se por dar desta.que na conclu~ão, ~a
.I 1" IlIgllstia existencial" que sentiam para um estar-bem-consigo-mesmo. Ser solidário, nesta matéria a uma espécie de convocação do leitor, convocação esta que inclui um preceltuano
,1111 li, ( I 'r culpas sociais, é buscar expiá-Ias através de ações, é sentir-se responsável por intitulado "como tornar-se voluntário".
'1"llqll 'I' um outro que se enquadre nas categorias de objeto-alvo potencial da ação solidária. Vai se produzindo, desta forma, um jogo de sustentação mútua entre as narrativa~ pessoai~
• 1I1I('/11' ângulo, poderíamos até mesmo supor que a solidariedade possa ser mais importante e a impessoalidade das informações jornalísticas objetivas de tal forma que o efeito final e
(11111 1(1I .rn ajuda do que para quem é ajudado. a constituição de uma realidade brasileira romanceada. Tudo se passa como se o esforço
C e 1111os sentidos que constitutem os alvos potenciais da solidariedade com freqüência pessoal pudesse ser responsável por mudanças na "filantropia" oficializada pe~o estado.
I " W'IJ "ricos, vagos, indeterrninados, então o objeto da ação solidária 'herda' este caráter Se no texto jornalístico lemos frases como "Marília Ga~riela chega so~nndo e t~nta
I e e 111 vngo, indeterminado. Se uso um sentido como 'desfavorecido', então o desfavorecido retirar as crianças do estado de letargia imposto pela dor..." (Epoca), nas coloridas e realistas
I" 111<' H 'I' qualquer um. Não importa o processo histórico que desencadeou aquela situação, fotografias, os "ricos e famosos" enxugam as lágrimas, seguram crianças no colo, abraçam
II11 Importa que alguma modificação social possa ser produzida naquele momento idosos ou fazem sinal de vitória abraçados aos carentes, etc. As fotografias cumprem o
di u-rminado. objetivo de ilustrar a visão romanceada e assim comover mais, mostrando uma expres~ão de
Mas trata-se de uma modificação contingencial, sem representar um gesto político, pois bem-estar, de alegria, de satisfação que atinge a todos que se envolvem nas açoes de
(111111 'o-se a solidariedade para diminuir as culpas sociais. solidariedade.
No sentido de solidariedade que se produz, confundem-se um progressista humanismo Em ambas as revistas, deve-se destacar o quanto, fazendo apelo à contemporaneidade,
I I fi () v Itado para os pobres e uma vaga idéia socialista de defesa dos oprimidos, ambos as ações de solidariedade são enfatizadas como um "fenômeno" "em gestação no pa~s".
I 11111li, ideologia homogênea de fraternidade. É o que nos diz Hours.i" assinalando que "Ia Este "movimento animadíssimo de ajuda e doações" é, então, r~denommado na revista
/lfíl~ tlb consaence est col/ective chez les marxistes et illdividtlel/e el grollj>llsctllaire chez les cbrétiens", Vija, como "responsabilidade social", enquanto que na revista Epoca lê-se: "organizações
t ) t' 'mpo da solidariedade se mostra sempre um tempo de urgências sociais. E, muitas do terceiro setor, a moderna assistência social."
I'" em função deste tempo, as condições de existência que propiciaram o surgimento Essas novas formas de designação, agora associadas às fotografias, da mesma forma
11111' I(I(·s "potenciais beneficiários de solidariedade" não são discutidas assim como também que as anteriormente citadas, cumprem discursivamente o papel ~e constitui~, id~ntificar e
11111I discute uma possível mudança em tais condições. isolar os referentes tornando aparentemente transparente a opacidade e a diversidade das
1\ ulidariedade é sempre pontual, localizada em uma comunidade, um hospital ou uma relações sociais. É'chamando de "responsabilidade social" ou "moder.na assi.stência social"
I II I 111 Funda-se a partir do olhar das elites locais que constituem pela via das formações que nessas revistas se produz um elogio à atuação do capital de personali~ade ricas e famosas.
111\1j\llIldas21 um outro, uma diferença necessária à manutenção do mesmo. As diferenças sociais e culturais servem, uma vez mais, de sustentaçao da l?eologJa. de
f 1110 10 afirma Bernard Hours, fazendo a crítica da ideologia humanitária presente nas ajuda aos necessitados e de mascaramento dos sentidos da dial~tic~ Estado/soc~edade CIV~.
11I I1' S lidariedade e nas ONGs, O elogio aos ricos e famosos acentua, dessa forma, uma desilusão que a SOCIedade teria
pour i11tég171riI jalll des exclus. De Ia méme façon que I'illtégratioll social e se com relação à atuação do Estado.
presente comsre 1111pbénomene positif CI1 sociologie, I'exclssion est présel1tée Apesar da redenominação da ação de solidariedade, ao longo das duas reportage~s,
comme 1111 mal, 01/ 1111 péché contre I'éga/ité des cbances, dans les sociétés dites adeias parafrásticas de substituição contextual são construídas de forma a manter as açoes
démocratiqtles.22 d s "ricos e famosos" no campo de significações do humanitarismo. Nesse jogo de paráfrases
I .xi ais, os processos de significação vão deslizando e produzindo um efeito, cuja função é
NhlS não podemos deixar de lembrar que, na dialética das imagens que constituem a
:ISS'gumr uma ancoragem semântica ao longo da variação da .superfície textual. .
11111
III ' ) ial, alguma coisa sempre se produz, nem que seja como o exposto no depoimento
Assim, a "responsabilidade social", inicialmente mencionada em V/?/a, desliza para
"bon~ a ii '5", "atendimento socia . I di reto, ""fiil antropla,. "" ,canida d e " , "novas faces do bem"
. '
"1\ IIIIIII'S,L'ltl/í%gie Humanitaire ou l«spetaclede I'a/téritéperdue. Paris, L'Harmattan, 1998, p. 99. •• oll(inl'i xlacl ''', "caridade" e "misericórdia". A revista Epoca, por sua vez, não traz muitas
I 111 I' '11'UX, /I/ln(yse AI/lbomatique dll discours. Paris, Dunod, 1969. dllc-r 'l1,n,: '\)I'ganiza - s do terceiro setor" e "moderna assistência social" são substituídas
1\ 111I1II'~,I, 'i( .. p. 120. 11111 "\I~'II) volunn rin", "espírito hurnanitári ", "rnã stcndida", "v luntariado", "trabalho.'

IIH
II ,Id H I," VOllll1lrír-io(a)" c "filantropia". Como se pode observar, em seu conjunto, as
1111IIIIII~'()C~I' 'nss 'gL"'lUTIa continuidade de uma mesma significação reinscrevendo assim
,I "u: llol1snbilidadc social" na memória discursiva de um humanitari~mo ao mesmo' temp~
11" Idl('1) , risrão.

11')llInlllA Observações

. 'I: 'ndo mo_ponto de ancoragem inicial uma memória discursiva que entrecruza aspectos As Ocupações dos Sem-Teto na Discursividade da
1111 dicos e crrstaos no pro.cesso de construção nacional, produziu-se uma ideologia dos
tlIIl'lIos humanos que distribui responsabilidades e culpas em nome de uma solidariedade
Cidade*
Ili bl. Mas o que esta solidariedade designa nos dias de hoje? Como diz B. Hours "cette
"'/II/on'/I es) presentée COfJlmetine cotisation d'appartenance à i'espêce h1lmaine".23 ' 5u?} Lagazzi-Rodrigtles
I\s reportagens analisadas mostram bem o preenchimento da noção de solidariedade DL/IEL - Unicamp
I ('!tI 11~)çãode fraternidade cristã. Em outras palavras, o apelo aos gestos solidários aponta, Priscila 5alvato Brito"
'''I'\() J~ mencionamos, para uma despolitização do sujeito, pois sinaliza-se um esvaziamento
Introdução
11I1r~II'Ç~o do estado e, ao mesmo tempo, como possível solução, aponta-se para uma
IIllt'grllçao moral aos valores dominantes. O espaço urbano é um tema em questão na atual ordem social, cada vez mais discutido
( . ~. co, no discurso jornalístico observado, está centrado mais nos relatos particularizados na esfera político-administrativa da cidade. E talvez menos discutido, mas sempre presente
" II:dlvldua!Jzados de quem pratica a solidariedade. O outro, excluído e necessitado, é em diferentes conversas, referido de diferentes formas, questionado ou endossado pelos
11(,~lIgl1ado de forma fragmentada e genérica. Tudo se passa como se fosse óbvia e natural a "cidadãos", os moradores da cidade, diretamente concernidos pelas conseqüências que os
11111 t.;~istência..Assim~ as reportagens restringem-se a delimitar um campo fixo de questões: gestos administrativos produzem. Enfim, o espaço urbano acolhe e também expulsa. Produz
11rnrcncra fOI suprida? Houve benefícios? Então não é necessário nem seguir os limites que acomodam e incomodam.
,Ic'st!obramentos dos resultados obtidos e nem discutir o pano de fundo histórico que produziu Não estaremos neste texto focalizando diretamente a modernidade urbana, mas ela sem
,11111 ,Ia deSigualdade. Em nome da solidariedade, portanto, apagam-se os (possíveis) dúvida se faz presente quando o objetivo é tratar as ocupações dos Sem-Teto no espaço da
, 1111(rontos sociars. cidade. O que nos traz essa modernidade urbana? Pensando a esfera político-administrativa,
I ':n ~m, a, política dos. sentidos para solidariedade que se instala na língua afirma de podemos dizer que a modernidade ressalta o planejamento da cidade, no qual sem dúvida
"11 li10 sC~lultaneo tanto a inclusão daqueles que praticam esse tipo de solidariedade quanto não estão previstas as ocupações, e muito menos as invasões.
I I' II1Isao daqueles que histórica e sistematicamente_se encontram fora do sistema dos Na perspectiva do planejamento urbano, os 'problemas de moradia' são muitas vezes
.1111Ilos humanos. E tal fato nos leva a um último questionarnento: qual seria a valia desta formulados como 'necessidade de projetos habitacionais', o que desloca os sentidos da
1,11,di I/lia humanitária, veiculada pelo discurso da solidariedade, senão a de manter as causa desses problemas e desvia a discussão do social. O planejamento torna-se o foco da
.I, 1',Ii,lidales sociais? discussão e circunscreve os problemas na esfera administrativa. Alocadas então no âmbito
dos resultados, as questões sociais e políticas podem ser identificadas como decorrência de
mau gerenciamento, de má organização, de planejamento insuficiente. Privilegia-se, nesse
caso, o administrativo.
Tendo como objeto de reflexão a linguagem numa perspectiva em que a significação é
trabalhada na discursividade de seus efeitos, olhamos para o espaço urbano não como um
lugar administrativo, mas como uma configuração administrada de sentidos sociais e políticos.
As crescentes ocupações/invasões de áreas urbanas têm sido motivo de preocupação e
atenção por parte de diferentes segmentos da sociedade. Veiculadas pela mídia, essas
ocupações/invasões tomam corpo em alguns momentos e em outros se diluem no cotidiano
das notícias. Nesse movimento, perguntamo-nos quais os sentidos postos pela mídia para os
Sem-Teto .
• Este artigo tem como base de sua reflexão o projeto de iniciação científica que leva o mesmo nome,
Iinan iad pela Fapcsp (99/03707-9) e desenvolvido por Priscila Salvato Brito sob a orientação de Suzy
I,flgrlzzi.R ddgues. Esse projeto de iniciação científica, por sua vez, foi elaborado tendo como referência
I' I' 'H~luisn"/\ cidade no movimento para a terra", desenvolvida por Suzy Lagazzi-Rodrigues, que inte-
1\1'11l!I) I'mj no Tcmático "O sentido público no espaço urbano" (Fapcsp 96/04136-7), coordenado por
'11 IIIIIII·S.01>. ca., p.162.
11111 o ,'lnlldi.
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