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Desigualdades

Tesão
pelo concreto
Oitenta anos depois, um olhar para o clássico de Caio Prado Júnior
com suas falhas, contribuições e multitudes
Thiago Krause

Caio Prado Jr. eventualmente encontradas em Ro- como estava pelos fracassos dos mo- acabou transformando-se na narra-
Formação do Brasil contemporâneo. berto Simonsen e Celso Furtado. vimentos contestadores que apoiara tiva dominante na educação básica
Companhia das Letras • 464 pp • R$ 69,90
nos anos anteriores. Em seu primei- após a redemocratização. Pouco de-
Miopia ro livro — Evolução política do Brasil pois, porém, estudiosos como João
Um livro sobre a Formação do Brasil Suas fontes foram, porém, escritas (1933) —, o autor demonstrara mais Fragoso demonstraram a importância
contemporâneo com o subtítulo (Co- em sua totalidade por membros da sensibilidade por essa questão, ainda do mercado interno e a relativa auto-
lônia) escrito por um radical oriun- elite, como autoridades (principal- que apenas ao analisar o período im- nomia dos comerciantes locais (domi-
do da plutocracia cafeeira que pou- mente oficiais régios) e viajantes es- perial. Além disso, tratava-se de um nantes no abastecimento interno e no
co antes havia trocado socos com um trangeiros. Prado Júnior muitas ve- momento em que o intelectual sen- tráfico negreiro) no final do período
“príncipe” da “família real brasileira” zes não conseguiu enxergar os vieses tia maior otimismo com o Brasil e o colonial. Para isso, utilizaram méto-
por causa de uma ex-namorada. Uma dessas fontes porque confirmavam mundo, pois se vivia o governo provi- dos quantitativos e exploraram inven-
obra discretamente marxista publi- os seus próprios como homem bran- sório de Vargas, debatia-se uma nova tários post mortem, registros portuá-
cada em meio à ditadura varguista do co socializado na elite intelectual e Constituição e Prado Júnior animava- rios e documentos notariais que
Estado Novo. Uma interpretação que latifundiária. Em consequência, não -se com a experiência soviética. retratavam o cotidiano da atividade
almejava a revolução, mas que pou- percebeu como o poder conformava econômica. Assim como no tocante
ca atenção prestou nas classes subal- a produção do saber ao determinar Sentidos e ecos aos grupos subalternos, a abordagem
ternas. Caio Prado Júnior e sua obra quais vozes seriam preservadas — e Deixemos de lado, porém, a honra- pradiana da economia colonial foi in-
mais conhecida continham multidões, da tradição dos resenhistas que re- fluenciada por suas próprias preocu-
e talvez esse seja um dos fatores para clamam do livro existente por bus- pações políticas e teóricas e reforça-
seu duradouro sucesso. carem algo que o autor não quis ou da pelos vieses de suas fontes — pois
Formação do Brasil contemporâneo Prado Júnior por vezes não não pôde escrever. Formação do Brasil as autoridades régias que produziram
(Colônia) completou oitenta anos contemporâneo é uma impressionante os documentos consultados preocu-
em 2022. O bicentenário da Inde-
enxergou os vieses de suas obra de síntese que trata com desen- pavam-se acima de tudo com a eco-
pendência é especialmente propí- fontes porque confirmavam voltura de demografia, desigualdades nomia de exportação, essencial para
cio para revisitar esse clássico. Nele, os seus próprios regionais, hierarquias sociais, trans- a arrecadação metropolitana.
o intelectual paulista buscou expli- portes, múltiplas atividades econô- A análise de Prado Júnior da política
car o Brasil da véspera de 1822, en- micas e estrutura política. Sua con- colonial foi igualmente seminal, ain-
xergando o início do século 19 como tribuição mais influente é a ideia de da que mais restrita à historiografia
síntese dos três séculos que o prece- publicadas. Assim, escreveu sem en- um sentido da colonização: “Se va- especializada, que continua a se ba-
deram e como chave para entender rubescer que africanos e indígenas mos à essência da nossa formação, ter até hoje com questões levantadas
a centúria e meia decorrida desde eram “povos de nível cultural ínfimo” veremos que na realidade nos cons- por ele. Embora não tenha compreen-
então. Escrito quase quarenta anos cuja contribuição “para a formação tituímos para fornecer [gêneros pri- dido a lógica particular do Antigo Re-
antes da profissionalização da histo- brasileira é, além daquela energia mários] para o comércio europeu”. gime, enxergando apenas confu-
riografia brasileira, a partir da déca- motriz, quase nula”. Não deixou de Era o persistente caráter extrati- são, centralização e desconfiança em
da de 1980, qual é o legado do livro mencionar episódios de resistência, vo da economia brasileira que o inte- uma administração régia que busca-
e como este pode ser lido hoje pelos mas os não brancos aparecem em lectual comunista desejava combater, va principalmente arrecadar impostos,
interessados em compreender a his- seu livro majoritariamente como se- em prol de uma estrutura mais volta- o intelectual paulista salientou as di-
tória colonial brasileira? res passivos submetidos à extinção e da para o mercado interno, industrial, nâmicas sociais que exigiam a contem-
Em um posfácio a Raízes do Brasil, à exploração, enquanto os pobres de urbanizado e menos desigual. A in- porização entre a autoridade régia e os
clássico de Sérgio Buarque de Holan- todas as cores são percebidos como poderes privados das elites coloniais,
da publicado seis anos antes, em 1936, vadios e preguiçosos. abrindo um abismo entre a norma eu-
o historiador Evaldo Cabral de Mello Não era tanto racismo quanto algo ropeia e a prática americana.
escreveu que a grandeza do trio trans- também pernicioso: o menosprezo O intelectual comunista O Brasil contemporâneo não é mais
formador do pensamento social brasi- pelas experiências e potencialidades o mesmo de Caio Prado Júnior: a ur-
leiro entre 1933 e 1942 se devia a seu de ação dos setores populares que se desejava combater o banização, a industrialização, a es-
tesão pelo concreto: se o primeiro desejava emancipar, como se as con- persistente caráter extrativo colarização e o desenvolvimento do
substantivo se aplica prioritariamen- dições de opressão os tornassem irre- da economia brasileira mercado interno transformaram o
te a Gilberto Freyre, o segundo encai- levantes. Em consequência, as rela- país — longe do grau desejado pelo
xa-se bem em Prado Júnior. ções entre dominantes e dominados velho comunista, mas o suficiente
Dentre os autores das grandes in- pouco aparecem na obra. Um leitor para tornar o início dos Oitocentos
terpretações do Brasil até a década teria mais sucesso ao buscá-las em fluência do marxismo era perceptível, menos reconhecível para os leitores.
de 70, o comunista paulista foi o que romancistas comunistas contempo- pois se tratava da formação do capita- Seu clássico ocupa hoje uma posição
mais escrupulosamente aderiu às râneos ao autor, como Jorge Amado lismo, embora o termo, como o nome ambígua: não há outra síntese auto-
fontes primárias. Ainda que não te- e Graciliano Ramos. de Marx, não apareça: atitude pruden- ral e interpretativa que forneça um
nha realizado pesquisa de arquivo, Talvez o fato de viver um momen- te de alguém que já havia sido preso panorama tão minucioso de nosso
investigou exaustivamente a docu- to de auge combinado da desigual- por dois anos pelo regime varguista. passado colonial, mas a historiogra-
mentação publicada, sem jamais en- dade e do autoritarismo tornasse Sua análise direta e compreensível fia já o ultrapassou em muito, graças
veredar por estimativas e extrapola- mais difícil para Prado Júnior enxer- encontrou eco em historiadores pos- inclusive ao impulso proporcionado
ções pouco fundamentadas, como as gar a agência subalterna, escaldado teriores, como Fernando Novais, e por suas férteis ideias.

2 Quatro cinco um novembro 2022

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