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Em 1842, de uma simples lei

sobre o roubo de madeiras, que os


grandes proprietários agrários que-
riam impor aOs camponeses pobres,
que juntavam ramos mortos para
as suas lareiras, Kar! Marx extraía
um fulgurante' panfleto acerca
do direito e da política.
À sua maneira; instruído por
Marx, Edelman segue '3 mesma
.via.. Ete parte de um pormenor
ínfimo: uma fotografia'. e daí
obtém imagens inesperadas' acerca
do direito.
o vosso rosto pertence-vos?
Suponde que o fotografam.
A quem pertence a imagem do
vosso rosto? do". vosso corpo? I\l
da vossa 'C3'33? do vosso, jardim?
. lU
e... da 'vossa.vida?' a.
Surpreendido pela fotografia' o
direito revela-se em plen"o ttà-
.balho e cada um pode ver ao vivo
que a ideologia do direito é indis-
'pemávCl ao funcionamento do
direito' ou mais precisamente que
.a ideologia burguesa assenta sobre
a ideologia jurídica. .
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o DIREIT O C A PTADO
PELA FOTOGRAFIA

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PERSPECTIVA
jURIOICA

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BERNARD EDELMAN

PERSPECTIVA JURÍDICA

1. - A Teoria Geral do Direito e o Marxismo


o DIREITO CAPTADO
- Pachukanis
PELA FOTOGRAFIA
2. - Direito e Luta de Classes
-Stucka
(ELEMENTOS PARA UMA TEORIA MARXISTA DO DIREITO)
3. -A Ordem Juridica do Capitalismo
- Vital Moreira

4. - O Direito Captado pela Fotografia


- Bernard Edelman

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I
A Ideologia encontra-se, actualmente, na ribalta de
nm discurso cénico proferido por personagens nem sempre _"
necessariamente marxistas. Desafio teórico lançado à
boca de cena por falas como a daqueles que referem a
TíTULO:

TRADUTORES:
EDITOR:
O direito cáptado pela fotografia
AUTOR: Bernard Edelman
Soveral Martins e Pires de Carvalho
Centelha-Promoção M Lioro, SARL
_sociologia - uma das suas problemáticas - como «um
discurso sobre as superestruturas de"idamente articulado
numa teoria da totalidade social (o materialiSmo histó-
rico)&('). Desafio teórico e, nem sempre encenação
pretenciosa e passageira com qne certos meios intelectuais
I
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Apartado 241 - COIMBRA pretendem distrair as atenções. Desafio teórico ante o
rea"i"ar de uma problemática sempre em cena, agudizando
atenções sobre um objecto que nunca deixou de se impôr
e que as exige cada "ez mais atentas, críticas e elaboradas.
A própria complexização crescente da luta de classes a
ní"el internacional a implicação consequente da reaeção
e defesa <,ideológiclJ),consciente ou inconsciente, do status
quo força o desafio, reforça a atenção crítica, o trabalho
teórico, coloca na pantalha da consciência transformadora

(') . Vide art .• Ideologias':-Inventário crit!co de um conceito.


de J. Madureira Pinto em Análise Social Vol. XIX (75) p. 127.

7
uma teoria da ideologia. Urgência e desafio que se poten- que constituem a ideologia-do-direito - pessoa, coisa,
ciam nessa região da estrutura ideológica que se designa propriedade, sujeito de direito - a cobrir ou a encobrir
por Direito com um passado de abandono/teórico/marxista o que lhe foi imposto pela realidade económica da fotografia
a reclamar novos, profundos e explícitos desenvolvimentos. que se vende porque dela se dispõe em propriedade.
Ede7man aceitou o desafio e pôs em cena a prática Edelman socorre-se de um vasto dossier de documentos
do direito que, surpreendido pela fotografia, se pôs a históricos jurídicos e económicos para captar a denúncia
representar de tal modo que o espectador mais desprevenido da prática teórica do direito oferecendo-nos ainda em
I
se pôde aperceber de que a ideologia do direito é indis- anexo algumas «Notas sobre o funcionamento da ideologia
pensável ao funcionamento do direito e tirar toda a moral jurídicQ» em que discorre, apresentando casos concretos,
da peça - a ideologia burguesa assenta sobre a ideologia sobre «direitos políticoSl>e «direitos privadoSl> e as institui-
jurídica. Em cena a elaboração de uma teoria da prática
• jurídica, uma concepção teórica do direito que o permite
denunciar como lugar e trama, campo e jogo (lieu et
ções representativas dos trabalhadores .
Por último, uma palavra sobre a tradução: que-
ríamo-la bastante melhor - o rigor do discurso impos
enjeu) da luta de classes, uma denúncia do direito captada a tradução literal; a urgência da divulgação impos cedêTi-
at~avés da sua prática sancionadora das relações econó- cias que venceram as nossas angústias de rigor próprio.
m£cas.
Cedendo aos compromissos de prazos editoriais e ao
Remard Edelman construiu um texto na procura do empenho da editora em apressar um desafio teórico,
rigor, um texto critico capaz de funcionar como libelo urgente e agressivo, ela aí vai -julgamos que aceitável ...
de acusação. «O Direito captado pela FotografiQ» é um Um livro para todos os juristas e práticos do direito
discurso cruel: Um texto teórico que nem por isso deixa lerem? Talvez não.
de usar da ironia e de um certo humor, essa arma mate-
rialista, muito do gosto e de tradição dos escritos marxistas: Pires de Carvalho e Soveral Martins
o Direito apanhado em flagrante delito, o Direito surpreen-
dido em cuecas.
Nos finais do séc. XI X perante um facto novo a
fotografia, o direito burguês deparou com questões a
resolver como aquela de saber a quem pertence a imagem
do rosto ou do corpo captado e registado por outrem.
Simples questão de direito, resolvida em direito, através
do trabalho teórico abstracto de um sistema de categorias

8 9
A Nicky

por este caminho
percorrido graças a ti
I

A PRÁTICA TEÓRICA
DO DIREITO

.1
, 1- As razões de uma lacuna

Vou desenvolver um discurso que nunca foi profe-


rido e explicarei porque razão jamais foi mantido.
É o discurso teórico da prática jurídica. Este discurso
é uma aposta: terá a pretensão de dizer o que somos
nós para o direito, isto é, o que realmente somos para
esta instância jurídico-política que é o Direito.
(,O que nos importa demonstrar, não é que os
conceitos jurídicos gerais podem entrar a título de
elementos constitutivos em processos e sistemas ideoló-
gicos mas que a realidade social, velada, em certa
medida, por um véu místico, não pode ser descoberta
através destes conceitos» (1).
A tarefa é complexa e não é inocente. Lenine na
lei sobre as multas (2) fazia distinguos de jurista: ele
contrapunha a multa à indemnização. Aquele que
causa um dano a alguém é obrigado a repará-lo: é uma
indemnização, os tribunais assim julgam. É o que dispõe
o nosso artigo 1382 do Código Civil. O operário que
causa um dano ao patrão é sancionado: é uma multa.
,I
(') PACIIUKANIS,A teoria geral do direito e o marxismo,
E.D.!., 1970, p. 64. Há tradução portuguesa (Perspectiva Jurl-
. dica-Centelha).
.. (')' LENINE, Explieação da lei sobre multas, .Oeuvreso,
Ed. SociaIes, 1958, t. li, p. 27 e sgs.

15
o patrão é o único juiz. Lenine fazia direito, isto é Era preciso lançar mãos ao trabalho de decifrar
«animava» o direito, ou se se preferir, dava-lhe a sua os julgamentos e as sentenças; era necessário tomar a
verdadeira ({alma». A fórmula genérica da responsabi- sério as categorias jurídicas, os raciocínios aberrantes
lidade civil ele contrapunha a luta de classes. O ({aquele» dos juristas, ~s fórmulas técnicas dos tribunais, o falso
do código de Napoleão torna-se ({O operário» da lei de rigor da Doutrina (4).
Junho de 1886; o ({alguém,)abstracto e geral torna-se Tomá-los a sério não queria dizer tomá-los por
o patrão; a indemnização, a multa; o tribunal, o capi- aquilo que eles pretendiam ser, mas tomá-los por.
talista. aquilo que eles eram no seu funcionamento necessário.
Lenine dizia: toda a gente julga saber o que é uma Esta seriedade era permitida pela teoria marxista,
multa e se perguntardes a um operário se sabe o que é que nos oferecia os meios, e nos fazia tomar consciência
uma multa ele admirar-se-á. Como não o saber, se é do seu empenho: o direito apresenta esta dupla fun-
justamente ele que tem de pagá-la? Aí reside a ilusão. ção necessária, por um lado, tornar eficaz as relações
Porque é pagando a multa que o operário não é um de produção, por outro, re[lectir concretamente e san-
homem livre. ({Subjugam-no com uns viténSl) (3). A lei cionar as ideias que os homens fazem das suas rela-
substitui o Knout (N. T.). ções sociais.
Para nós, Lenine fazia direito; para os juristas, Isto nos ensinava o marxismo. Ensinava-nos
Lenine faz política; para os ({políticos»,Lenine faz política. também que as categorias jurídicas dizem, sem dizer,
Eu não escondo o terreno onde me situo. É o a realidade das relações das quais são a expressão.
terreno da <<lutateórica». É o próprio terreno que me Ensinava-nos mais ainda: o movimento necessário pelo
é imposto por aquilo de que eu falo mesmo que aquilo qual estas categorias se tornam relativamente autónomas
de que falo (o direito), deva ignorar que esse é o seu e a razão pela qual são pensadas - no seu funciona-
terreno. Quero dizer que esse é justamente aquele mento, segundo entendo - como totalmente autónomas,
terreno que o direito circunscreve e que as fronteiras à sua maneira.
que ele se esforça por traçar são as ({verdadeiras,) fron-
teiras da sua ideologia.
Quero dizer que o direito apresenta este surpreen- (') A .Doutrinao, em direito, designa um corpus original,
constituído simultaneamente pelos comentários das leis e decisões
dente ({paradoxo» de sancionar, coactivamente, a sua judiciais (anotações a sentenças) e por obras .teóricas. acerca
própria ideologia. do direito. Pode dizer-se que se trata do lugar privilegiado da
.ideologiajuridica onde se estrutura o discurso ideológico e onde se
elabora a defesa e a ilustração do direito. Digo: lugar privilegiado,
(a) Ob. cit., p. 28. porque é também o lugar do conluio entre o ensino jurldico e
N. T. KNOUT: instrumento de pumçao introduzido na a produção prática juridica. O estudante de direito' faz dela o
Rússia na época de Ivan III (1462-1505). Espécie de chicote seu pão quotidiano, o magistrado encontra ai a confirmação da
com argolas de metal. sua jurisprudência, o professor a sua justificação.

16 17
2
Isto é, oferecia-nos a teoria do conteúdo concreto da propriedade privada -jus utendi et jus abutendi
da ilusão antropológica do direito, que julga pronunciar - exprimem «por um lado, o facto de que a proprie-
um discurso eterno sobre o homem eterno. dade privada se tornou completamente independente
Assim, o direito adquiria a sua verdadeira ampli- da comunidade, e por outro lado, a ilusão de que a
tude. Enchia o espaço político. Quero dizer que ele propriedade privada assenta ela própria sobre a simples
sancionava o poder polít,ico para santificar a proprie- vontade privada, sobre a livre disposição das coisas (5»>.
dade privada. Como contrapartida, legitimava a «essência Tais indicações são inestimáveis. Marx não cessa
do homem». Digo, como contrapartida, já que o homem de no-lo dizer. As formas jurídicas não determinam o
é o preço. próprio conteúdo do que elas tornam eficaz. Mas ele
Não me alongarei sobre estes resultados adquiridos. não cessa de nos dizer também que o direito torna
Eles são adquiridos para nós, para todos nós que eficaz este conteúdo pelo constrangimento do Aparelho
trabalhamos concretamente em descobrir quotidiana- de Estado. E aquilo que de mais importante ele ainda
mente o real para o transformar. Não me alongarei nos diz, é que a relação entre a expressão do conteúdo
também sobre a necessidade da ('crítica das armas». e a eficácia do conteúdo é ideológica; e que é esta
O gládio da lei desferiu bastantes e claros golpes na mesma relação que se torna um poder misterioso,
classe operária. (,verdadeiro fundamento de todas as relações de proprie-
Mas a questão que ponho, presentemente, é uma dade reais» (6). Com efeito, no fim de contas, ela remete
questão teórica. Ela é também política. A teoria para a çontade liçre, isto é, para a ilusão de que a proprie-
marxista do direito encontra-se ainda no seu ínício. dade privada, ela própria, assenta sobre a simples
Isto pode parecer inacreditável, impensável, e contudo vontade privada. Em direito, o ('eu quero» é um ('eu
assim é, pensáveI. Queria que me entendessem bem. posso»; o contrato é um acto hegeliano: um puro
Eu não digo: a teoria do direito, para nós marxistas, encontro de vontades.
ainda se encontra no início; digo, mais modestamente Isto, repito-o, é inestimável, tanto quanto o é
- e , talvez , mais ambiciosamente - a teoria marxista A Origem da Família, da propriedade priçada e do
do direito encontra-se ainda no início. Estado de Engels, os famosos capítulos IX, X, e XI do
Esta proposição ('enorme», devo, certamente, Anti-Duhring, as inúmeras indicações do Capital. Mas,
demonstrá-la. Marx deixou-nos obras sobre filosofia o que é mais inestimável ainda, é que isso permita
do direito; deixou-nos textos mais preciosos - mais desenvolver uma teoria marxista do direito.
preciosos para nós - de ('jurista»: o roubo de madeira, É tempo de me explicar.
a censura. Ele deixou-nos sobretudo indicações múlti-
plas sobre o direito em geral, desde a Sagrada Família
(') MARX-ENGELS, A Ideologia Alemã, <,Ed. Sociales»,
ao Capital. Penso na célebre passagem da (<Ideologia p. 107.
Alemã» onde nos demonstra que os caracteres jurídicos (') Ibid., p. 400.

18 19
Nós não possuímos uma teoria da prática «teórica~
Aos juristas, deixámos-lhes a «propriedade» da sua
interna do direito. Quero dizer que se sabemos - ou
ordem, deixámo-los impunes. Penso que lhes damos
antes se julgamos saber - o que é o direito, não
o lugar. Este lugar, é também a nossa ausência que
sabemos como ele funciona. Quero dizer ainda que
o perpetua no seu ser, isto é, inocente. O jurista,
o próprio conhecimento da ideologia remete para a
o «filósofo do direito», tem a alma inocente do bom
produção dos efeitos que ela engendra; que a ideologia
direito que ele legitima. Os arqui~os de filosofia do d,~reito.
só é efectiva através do seu funcionamento, e que o
podem publicar o seu volume anual de 1971 sob o
conhecimento concreto do seu funcionamento é o próprio
título «O direito investido pela política~, nós outros,
conhecimento teórico da ideologia. Mais precisamente:
marxistas nós não temos cura já que organizamos
separar a teoria geral do direito da prática teórica do
colóquios 'aos quais não vem ninguém. Nós, marxis.tas,
direito, produz efeitos teóricos e práticos incalculá-
preferimos consagrar-nos à tarefa urgente de assassmar
veis: o abandono ao direito do próprio terreno que ele
os nossos aliados; Pachukanis - de quem urge reco-
reivindica. A ignorância política do seu trabalho
nhecer o génio - é acusado friamente do crime de
(<teórico» deixa, no fim de contas, o direito livre de
«abstração», «o que o inscreve inevitavelmente em
se perpetuar na sua, própria ilusão que se torna a
contradição com todos os dados da batalha contem-
nossa.
porânea onde as análises ideológicas têm a sua refe-
«Porque razão os ideólogos inclinam inteiramente
rência e a sua problemática muito concretas» (8). Esta
a cabeça (... ). A propósito desta subdivisão ideológica
empresa sem precedentes é rebaixada para o níve.l de
no interior de uma classe 1.0) acessão da profissão à
uma «ilusão infantil» (9). Eis os nossos textos «teórlcosD
autonomia em consequência da divisão do trabalho,
contemporâneos. É pouco e é muito se considerarmos
cada um toma o seu ofício pelo verdadeiro. A propósito
como importante o «sintoma~. .
da relação da sua profissão com a realidade, fazem neces-
A tarefa que me atribuí vem a ser a segumte.
sariamente tantas mais ilusões quanto a natureza do
A consciência do jurista é uma má consciência, a sua
ofício já o exije. Em jurisprudência, em política, etc.
moralidade uma imoralidade, a sua ordem pública,
estas relações tornam-se - na consciência - conceitos;
a ordem d~ propriedade privada, a sua «alma», isto é
como eles não se elevam acima destas relações, os
a sua ilusão de tomar as relações jurídicas por relações
conceitos que têm delas são, na sua mente, conceitos
humanas é a alma de um proprietário e de um rentista,
fixos: o juiz, por exemplo, aplica o Código, e eis a
os seus conceitos, a expressão necessária do capital.
razão pela qual ele considera a legislação como o verda-
E já que falei da sua alma acrescento que falo dela
deiro motor activo. Respeito de cada um pela sua
mercadoria ... (7).
(') M. e R. WEYL, Ide%gie juridiquc e lutte de classes,
.La NouvelIe Critique., jan. 1972, n.O ~9.
(') Ibid., p. 108. (') Ibid ..

20 21
para não mais voltar a falar: (,O facto de a alma e tomamos em conta na exacta medida da necessidade
a consciência intervirem no direito é, para o ('crítico» da sua produção de certas formas abstractas e mode-
uma razão bastante para falar da alma e da cons- ladoras-coactivas que lhe permitem a sua própria
ciência, onde o que está em questão é direito, e da prática.
dogmática teológica, onde o que importa é a dogmá- Com efeito, as categorias jurídicas, tal como as
tica jurídica» (10). Ou antes, diria que é necessário categorias da economia burguesa, (,são formas do inte-
devolver a alma ao direito e que a sua (,alma» é a sua lecto que têm uma verdade objectiva enquanto reflectem
prática. relações sociais reais, mas estas relações não pertencem
«A teologia que dá constantemente às ideias reli- senão a esta época histórica determinada em que a
giosas uma interpretação humana (... ) peca assim produção mercantil é o modo de produção social» (12).
constantemente contra a sua hipótese de base; o carácter A prática constitui o.seu funcionamento como o seu
sobre-humano da religião» ("). O direito peca constan- funcionamento constitui esta prática. Isto basta para
temente contra a sua hipótese de base: a propriedade o direito. A economia política clássica bastava-se com
privada. A pretensão à justiça torna-se prática da Smith e Ricardo. Se eles se debatiam contra a proprie-
injustiça, a pretensão a dizer o homem, prática do dade privada, era ('em uma qualquer das suas formas
proprietário. parciais» (13). . . .
Compreende-se melhor o que em cima avancei: Mas o que basta à prática de uma IdeologIa - Isto
a teoria marxista do direito nada mais é do que o é as fronteiras que ela se traça - constitui precisamente
conhecimento concreto do funcionamento do direito. a sua função e o seu funcionamento. A ideologia
A prática deve restituir aquilo de que se apoderou jurídica define-se pelas suas fronteiras, pelos seus
ilicitamente. (,tabus». Cerca-se de um cordão sanitário. Ela teme a
Ora, esta prestação de contas, para nós que somos poluição do político; pior do que isso, da economia.
os seus responsáveis, não pode estabelecer-se, ser «dada O seu receio designa a sua função.
a balanço~, sem negligenciar a formalidade desta prática, Ela é o índice da sua censura, já que a sua
sem negligenciar a análise desta prática que é indisso- censura é ela própria. Ela denuncia a política no seu
ciável de certas formas de raciocínio, que não podem ('a-politicismo» (14), o económico na própria abstracção
compreender-se elas próprias fora de certos constran-
gimentos teóricos, ideológicos. Esta prática nós só a
(12) MARX, Le Capital, "Ed. Sociais" Iiv. I capo I, p. 88.
(") MARX-ENGELS, La Sainte Famille, op. cit., p. 43.
(") efr. em anexo o artigo publicado em La Pensée
(l0) .MARX-ENGELS. La Sainte Famille, .Ed. Sociais». (Abril 1971 n.O 156) onde .dem~nstre~ que. o. próprio pro.cesso
p. 120. da ideologia jurídica nesta matéria mUIto prlvl1eglada do dl~elto
(U) Ibid., p. 43. do trabalho, consiste em "despolitizar» os problemas políticos.

22 23
da lei, o teórico no seu empirismo. Ela denuncia-se
nas próprias formas que é obrigada a adoptar. Penso
na forma sujeito de direito. Voltaremos a este ponto.
Resta afirmar o nosso último projecto teórico:
fazer um discurso científico acerca do direito é também
fazer o discurso das condições da produção necessárias
das categorias jurídicas na prática do direito. 2- O acto de nascimento da ideologia jurídica:
o sujeito de direito

Disse, há momentos que a negação implicava a


presença negada. Quero agora precisar o essencial.
A ideologia jurídica denuncia-se delineando o seu
acto de nascimento. E o seu acto de nascimento é o
postular JllliLO---homem é naturalmente UID sujeito_de
direito, isto é, um proprietário em potência, visto que
é de sua essência apropriar-se da na~.
A «ilusão» é universal na filosofia especulativa.
Tratar-se-á; então, de formular o discurso da apropriação
privada (1) da natureza, na sua combinação histórico-
-sociàI. Os dois (,homens-bons» de que fala Engels fixam
a relação ideal da troca, do direito e da política.

'-",
(') A liberdade do homem realiza-se pela apropriação
.privada. de qualquer objecto. É este postulado (,inatacável.
que funciona simultaneamente na prática jurldica e, na sua
expressão abstrata, nas filosofias idealistas do direito. Toda
a extraordinária tentativa hegeliana dos Principias de filosofia
do direito se resolve neste dado muito simples: a propriedade é
,• uma determinação do sujeito. Assim, para Hegel, .a pessoa tem
o direito de colocar a sua vontade numa qualquer coisa que
então se torna própria e recebe como fim substancial (que ela
não tem em si mesma), como destino e 'como almá, a minha
vontade. É o direito de apropriação do homem sobre todas as
coisas. (~ 44).

24 , 25
A Robinsonada é o (<lugarcomum>ula--Bcono:rIl(a-yolíj:i~a jurisprudência quotidiana. É neste laboratório da
clássica e da teoria do direito. Uma única diferença: prática que veremos animarem-se as categorias que
- os JurIstas amda acreditam nela. vestem a roupagem mais banal do contrato, da vontade,
Não farei a (,história') do (,simples conceito de do consentimento.
homem» no direito, a teoria da passagem do direito Veremos, sobretudo, nesta prática, evoluir um ser
romano ao direito moderno, isto é, !la passagem dUI!I hem conhecido, e apesar de tudo mal conhecido, o sujeito
direito que pode ser ('qualidade J!g __c.9isa'),.-C~Q!110
dizia de direito.
Ihering, a um direito que é o próprio suj.ci!2. E contud"õ', E é por ele que começarei, já ue ('a categoria de
esta (,história», será mesmo necessário retomá-la, mas ,sujeito surgiu antes de tudo com o apareCImento t!-a
num terreno diferente da ('evolução histórica') do direito IaeõJ.Ogia JurídICa, que toma a categoria jurídica de
subjectiv~o; num terreno diferente daquele em que se '('sujeito de direito» para fazer dela uma noção ideoló-
situa Occam, ou Puffendorf ou Kant (2) ou Hegel; gica: o homem é, por natureza, um sUJeIto,)('). .
num terreno diferente ainda daquele em que se situa E é lendo-vos o sujeito de direito na prática dos
Loyseau, no seu Traité des Seigneuries; e diferente juristas, que compreendereis melhor aquilo de que
daquele em que se situa Dumoulin ou os Grands vamos falar e como vamos falar. A via do meu
Coutumiers. propósito mais directo estará assim aberta.
A reprise efectuar-se-á num lugar «insólito», o da
circulação: o lugar onde se desenvolve a troca mercantil Secção li;-.. A vida (,doutrinaI,) do sujeito. de direito
e onde se realiza a exploração do homem pelo homem
Vou pois ler-vos duas séries de textos. A primeira
sob a forma de (<livre.-l)ontrato').
série constituirá uma introdução jurídica à categoria
Ver-se-á, então, que a-Erópria função da ideologia
de sujeito de direito.
jurídica é a necessidade 'da Stla ficção, que lhe permite,
A segunda série constituirá uma explicação jurí-
cõmo, magniTIcamente o diz K. Marx, «uma prática
dica desta categoria. Constatarei uma categoria na
in abstracto,). E veremos que a luta de classes fez
primeira série, e fá-Ia-ei viver na segunda série. Tratarei
voar em estilhaços esta ficção da função.
de decifrar esta vida perante vós.
Mas o caminho até à teoria é longo, e é bom
interrogar primeiro a prática, na elaboração ocultada
I. A INTRODUÇÃO JURÍDICA

Para o direito, o direito começa pela pessoa:


(') Cfr. sobre este assunto o nosso artigo La Transition
dans la Doutrine du Droit de Kant, «La Pensée)" n.O 167 Fev.1973
«a personalidade jurídica do homem existe por SI
(3) ZDE WEK-KRYSTUFEK, Signifieation historique de la
fietion' du droit naturel, «Arehives de philosophie du droit> (') L. ALTHUSSER, Apareil d'Etal el appareils idéologiques
Lib. Sirey, 1969, p. 309. \ d'Elat, .La Pensée., Junho 1970. p. 29.

26 27
mesmo e independentemente da possibilidade para o
Finalmente dizem: se esta capacidade é o modo de ser
ser humano considerado de formar uma vontade» (6).
do sujeito, é porque o sujeito pode I quer I consente I
«Chama-se pessoa" na linguage.-j~.c-ª,_aos seres
~azes de terem direitos e obrigayões. De forma mais \ I é livre de poder dispor de si e de adquirir.
, Deste modo posso avançar coin todo o rigor est.a
sucinta diz-se que pessoa é todo o sujeito~.~ direito.
proposição: a liberdade é a capacidade jurídica de se
A ideia de personalidade, necessária para dar um
pertencer a si mesmo, isto é, de ser proprietário de si
suporte aos direitos e às obrigações (... ) é indispensável
(por essência). Posso precisar: a liberdade de adquirir
na concepção tradicional do direito» (6).
é a consequência jurídica da livre propriedade de si
~Desde a abolição da escravatura que todo o ser
próprio. O escravo «objecto de propriedade não pode,
humano é uma pessoa. Não é necessário que ele tenha
de modo algum, ser concebido como sujeito de
plena consciência de si próprio e seja dotado de inteli-
direito') (8); a pessoa, sujeito de propriedade, pode ser
gência e vontade. As crianças e os loucos são pessoas concebida como suj eito de direito.
ainda que não tenham vontade consciente; eles são
Chegado a este ponto ponho a questão: e que é que
pois titulares de direitos e de obrigações') (1).
é interpelado no sujeito de direito pela ideologia juridica?
Eis a minha primeira série de textos, extraída de Deixo provisoriamente a questão em suspenso.
dois grandes clássicos contemporâneos do direito civil Ficamos assim, nesta primeira leitura.
francês. Teria podido acrescentar muitos outros mas
eles mais não fazem do que dizer esta simples e única 11. A EXPLICAÇÃO JURÍDICA
coisa: a pessoa humana é juridicamente constituída
em sujeito de direito, em «sempre - já sujeito» inde- Apresento a minha segunda sene de textos. Eles
pendentemente da sua própria vontade. vão de Savigny a Carbonnier, de 1840 a 1972. Estudam
Estudarei mais adiante o conteúdo concreto desta «as aventuras da vontade».
forma sujeito. Neste momento queria simplesmente Salligny. - O. direito subjectivo_(~ é UILP.od~
decompor a postulação jurídica do sujeito de direito. que é reconhecido ao indivíduo «pelo direito objec~
Os textos dizem: o .sujeito de direito é a expressão
geral e abstracta da llessõã humana. Eles dizem também: (') Ibid., n.• 7, nota 1.
"O que torna esta expressão eficaz é a capacidade geral (') Dado que vai estar constantemente em questão o direito
do homem de ser senhor de si e logo de adquirir. subjectivo, importa indicar, sucintamente, o que está em causa
nesta categoria.
A questão: todo o direito tendo a sua origem na pessoa

• (') MARTY, RAYNAUD, Traité de droit eilJil, .Librairie gêne-


rale de droit e de 'jurisprudence&,t. I, n.• 141.
Traité de droit cilJil, t. I, n.• 6
(direito subjectivo) constitui o terreno privilegiado de toda a
filosofia idealista do direito.
O que está em causa, nesta categoria é simultaneamente


(') PLANIOL, RIPERT,
(') Ibid., n.• 7. a ideologia jurtdica - enquanto apreende toda a produção juri-
\ dica como a produção de um sujeito (de direito) - e 'a prática

28 29
afim de lhe garantir «um domínio onde a sua vontade delícias materiais. «Acima da fortuna colocam-se bens
-reine independentemente de qualquer voiitaaeal1ieÍa de natureza moral cujo valor é, de certo modo, grande:
e para que assim, o desenvolvimento paralelo dos a personalidade, a liberdade, a honra, os laços familiares.
indivíduos encontre independência e segurança» (10). Sem estes bens as riquezas exteriores e visíveis não
A vontade humana pode _exercer-se sobre as coisas teriam qualquer preço» (12).
do mun o exterpo - e o direito de propiiecIãáe - ela Deus seja louvado, eis-nos tranquilizados!
)!2.!le exercer-se sobre'- uma pessóaque passa- sob o A quem pergunte o que protege a minha liberdade?
império da vontade - são os direitos ditos «pesso-ªÍll.»-, lhering responde: o interesse. A quem pergunte: donde
todos os direitos de <êféditij? vem o meu interesse? lhering responde: da tua ~
O mistério deste direito objectivo mantém-se inte- dade. Ao _£!,oletl\!:ill-q;ue.Jnoawa-a-s.u.u.olsa vazia
gralmente. Tudo o que se sabe acerca dele é que dá lhering responde: «tu tens tanto quanto o rico,j~e
à pessoa o poder de ser proprietário ou patrão. É este o pre~ da riqJ.le.zaé a liberdad,g».
conceito de direito que determina para o Direito, ~'Passo a Michoux (l'). Este autor levanta uma grave
o domínio do direito. É o Sujeito que determina o questão: não é realista dizer que o direito subjectivo é_
o sujeito. Traduzamos: o Comércio prova-se pelo ~I!l poder concedido a 1!.!l1JI...Y_ont.ad.e-P-cl!Ldireito
obj ec-
comércio. É uma tautologia mistificadora. .t!vo,jà ...9ue;en1ão, (la ordem jurídica não tem outr.O
lhering - «Os direitos de modo algum existem _objecto que não seja proteger as manifestaçõe~a
para realizar a ideia da vontade abstracta, eles servem vontade». O que é realista é dizer que a vontade só
para garantir os interesses da vida (11). lhering previ- deve ser protegida em razão do seu objecto; isto é, por
ne-nos contra um erro trivial: importa que não se causa do iI!t~sse que ela tem. por fimSã"fisf1i'Z"iir.
julgue que «os interesses da vida» consistem apenas em Desta profunda meditação que fez dar à ciêiiCiãjurÍ-
dica um grande passo em frente, Michoux extrai, tal
como um prestidigitador tira um coelho do seu chapéu,
jurldica enquanto funciona sobre esta .forma acabada, dada esta definição: o direito subjectivo «é o interesse de
apriori. Pachukanis, (ob. cit., p. 101). _um homem ou de um grupo de homens juridicamente
Tal como a riqueza das sociedades capitalistas .se anuncia
protegido POI' meio ao poder reconhecido a uma von-
como uma imensa acumulação de mercadorias (e que) a análise
da mercadoria, forma elementar desta riqueza. constituiu, para tade de o representar ou de o defender.>(14). --
MARX, o ponto de partida, de igual modo o imenso edifício
legislativo e jurisprudencial destas mesmas sociedades se apre-
senta, na sua maior parte, como um prodigioso desenvolvimento (12) lbid., p. 326.
do sujeito de direito, o elemento mais simples e mais acabado (13) Théorie de la personnalilé morale el son applicalion
da relação jUl'ldica. au droil trançais, <.Libl'airie genérale de droit et de jurispru-
(' ') Trailé de droi! romain, 1840, t. I, pp. 326-327. dence, t. I, p. 70.
("). L'Espril du droil romain, 1878, t. IV, p. 319. (U) Ibid.

30 31
Fez-se descer a vontade do céu do Direito Romano aqui, é animal) do direito subjectivo.} ('8). São Sancho
à terra do Código Napoleónico e, sobre esta terra, é vencido: o cão tem um direito subjectivo sobre o seu
a terra dos homens, interrogam-na (,concretamente,). osso ('9). Na criança, (,desde o segundo ano, manifesta-se
Que quer a vontade? E a vontade, boa menina, gradualmente o instinto de conservar um objecto e
responde: eu quero o que sou, o teu interesse. E se
a sociedade anónima a interroga, ela responde também
serenamente: eu quero o vosso interesse que é o meu.
Ripert. - O direito subjectivo é um poder reco-
nhecido pelo direito objectivo ao sujeito. ('Quem tem
I de o defender, assim como a reacção correlativa de
irritação logo que este lhe é tirado.
dade, esta retractibiJidade,
Esta irritabili-
como a dum tecido, não
será a substância biológica do direito subjectivo ?) (20).
Não nos enganemos: o guiso da criança é já a renda

1
um direito face a uma outra pessoa tem sobre esta fundiária. A prQ}2riedade privada está inscrita ..n-as-
um poder privado, uma vez que o devedor é obrigado nossas células, ela é _cr.Q..mossómica. Das células às
a dar um bem ou a executar um trabalho para o vísceras a passagem faz-se rapidamente: a noção de
credor» ('5).
Descida à terra do Código Civil, a vontade huma-
nizou-se: O_ª,!lJL •.I~oder prova-se pela exploração do
!I direito subjectivo (<traduz um fenómeno pSlCo-socioló-
glCO elementar e, por assim dizer, visceral,) (21). Eis-nos
regressados ao ponto de partida.
-liomem pelo homem. f Não irei mais longe. Quero agora interrogar-me
Terminarei com Carbon]J.Í.er.. que se entronizou soció- acerca do que foi dito, do que foi ocultado, e da
logo de um direito (,sem rigor» ('6). relação entre o dito e o oculto nestes textos.
Para est~ sociólogo ('sem rigon), o direito subjectivo
nota-se e fundamenta-se na -actividad.e dos animais, (18) Ibid., p. 108).
(lO) .Um cão, escrevia Stirner, que vê um osso em poder
aas c.z:.iJll1ças...e..JJ.$fL-"iscer..as. Sabe-se. que se produzem
de um outro somente se afasta se se sentir demasiado fraco.
~ sociedades animais fenómenos jurídicos ou, pelo O homem, esse, respeita o direito doutrém sobre o seu osso,.
•... '
menos, sub-jurídicos,> (17), que quando o leão defende
o seu território de caça, nós, os humanos, conceptua-
(A Ideologia Alemã, ob. cit., p. 398). Marx ironisa: .Certamente,
um cão jamais transformou um osso em fósforo, em pó de osso,
lizaríamos esta reacção 6como um direito subjectivo». nem em cal, tal como jamais. lhe passou pela cabeça. algo acerca
do .direito. que tem sobre um osso. De igual modo, São Sancho
É «na profundeza destes instintos» que o nosso sociólogo também jamais .se lhe meteu na cabeça. analisar se o direito
não hesitaria em procurar» a raíz natural (natural, que os homens reinvindicam sobre um osso, e que os cães não
reivindicam, depende do partido que os homens tiram desse osso
na produção e que os cães não tiram. (Ibid., p. 399). O nosso
(") PLANI0L, Traité élémenlaire de droit civil, ed. 1965, santo nacional pulveriza São Sancho, após mais de um século
lo I, n.O 4, 648. de reflexão: ao cão tinha-lhe mesmo .passado pela cabeça. que
(") Flexible Droit Pour unc sociologie du droit sans rigueur,
.Libr. gen. de droit et de jurisprudence., 1969.
(lO) Ibid., p. 107.
1 tinha um direito sobre o seu osso ... como o lobo sobre o cordeiro •.
(") Ibid., p. 108.
(") Ibid.
.

32 i 33
8

1
dupla «estrutura especular da ideologia» (25) isto é, esta
estrutura de espelho duplo, assegura o funciQnam~
Secção 11.- Ideologia e sujeito de direito da ideologLajurídica de um lado, o sujeito de direito
• existe em nome do direito, isto é, o Direito dá-lhe
1. O que se disse, é que o homem tem um poder J
que lhe é dado pelo conceito de direito: o direito o seu poder j ainda melhor: ele dá ao direito o poder
objectivo. No que se disse, i. e., no que foi explicito de lhe dar um rlOderj Ror ou~!º lado, o poder que
podemos fel' já o funcionamento da ideologia, consi~ ele deu ao direito regressa a ele..: o poder do direito
derando como adquiridas as teses de Althusser (22). não é senão o poder dos sujeitos de direito: o Sujeito
~ Os (<indivíduos»são interpelados como sujeitospelo reconhece-se a si ró rio nos su' eitos. O pod~P.fO-'
direito. Esta interpelação é constitutiva do seu próprio prJeda e lL oder (o Estado). O Estado ocupa, ideQló-
ser jurídico, no sentido de que é esta interpelação • gicamente, este lugar, atribuído Ii"ilIdade Média!
«tu és um sujeito de direito», que lhes dá o poder Igreja. A Constituiçã_o d~_um..EstadQ sujeito de direito
concreto, que lhes permite uma prática concreta. assegura o funcionamento da ideologia jurídica. ~""' .• ,•.
- - ~~~~
(,Sendo sujeito de direitJ)-. t!LéLJllmaz de adquirir e
~(te) vender)\. Esta interpelação é interpelação por 2. C!-que está oculto é o próprio funcionam~
meio do conceito, do direito, do sujeito. Demonstrei ideologia juríaica. Com isto pretendo dizer que est'e
noutro lugar (23) que a ideologia jurídica no seu funciona- funcionamento bastando-se a si próprio, esta suficiência
mento postula a relação necessária entre dois sujeitos j é ocultação no próprio funcionamento da sua sufi-
e que uma relação de direito nada mais é do que uma ciência. Dito de outro modo, o funcionamento da
relação entre ('pares de sujeitos». Demonstrei também (24) ideologia jurídica torna (,inútilUl_questão do seu funcio-
que a regra de direito era ensada como uma relação namento. Um pouco como o Deus de Descartes, o
entre o direito e_Qs_suj(jitos de Irelto, ~l!lL-é_a impulso ideológico faz avançar a máquina. A um
~xistência de um Sujeito (que é o que faz o direito, &l Relógio apenas se pede que indique as horas e à Justiça
Isto ~, ? Estado) gue dá coerência e unidade à norm~ W que seja justa. Basta ao direito dizer que o Homem
de dIreIt~_JH!e-!!PJ,eI!J. existêncl!=J>Clã mediação ~s 'i tem um Podl!J:,_qJ!L~lLt..!L-eoder..pr1>j;gg.lLOseu Interesse,
~eitos de direito. A sujeição do sujeito de direito ao .• e que a su_avºnJ,~Jjvre é..lilll.~vontade que q~Ie!:...o..se!!
Sujeito permite-lhe simultaneamente legitimar o seu InteTJl!lse..p.a~a.«pôI:-em-aJ:).1tamento»
a ideofogIa j]!idica.
poder fora de si, e operar o regresso ao poder. Esta A tautologia é o processo último que permite ãgir sobre o
real sem o denunciar, tanto «na consciência comum (... )
como entre os políticos e os juristas que, encarregados,
pela divisão do trabalho, do culto deste conceito,
(")A LTHUSSER, o b'. clt ..
(") Cf. o nosso artigo citado em anexo.
(U) Ibid. I (lO) ALTHussER, ob. cit., p. 35.
,,

34 35
vêem nele e não nas relações de produção, o verda-
deiro fundamento de todas as relações de propriedade Veremos então animarem-se estas categorias, vê-las-
reais» (26). -emos celebrar contratos de trabalho, vê-las-emos justi-
3. A relação do que é dito e do que está oculto ficar condenações por greve ilícita, vê-las-emos aplicar
é a própria prática que a designa. Foi o que já ante- as regras necessárias das relações de produção. Mais
cipei. O direito ocupa este lugar único donde pode não direi: a enas que tratarei de mostrar o ue as
sancionar pelo constragimento a sua própria ideologia; anima e não animá-las. We move as marionettes
isto é, tornar também directamente eficazes as relações encontra-se semere nos bastidores.
de produção. Que estas relações de produção sejam
tornadas juridicamente eficazes pela categoria primeira
do sujeito de direito, revela bem a ligação imaginária
dos indivíduos nas relações de produção; e a prática
jurídica remete para a ideologia a sua própria prática;
a do Código Civil, a do Código Penal, a dos Tribunais.

(") MARX, na Ideologia Alemã, mostra-nos o movimento


pelo qual os conceitos jurídicos «adquirem valor de potência
misteriosa». «As anteriores relações de produção dos indivíduos
entre si», escreve elp., «(exprimem-se necessariamente também
sob a forma de relações polític.as e jurídicas. No quadro da
divisão do trabalho, estas relações tornam-se autónomas em face
dos individuos. Na linguagem qualquer relação exprime-se sob
a forma de conceito. Se estes conceitos gerais adquirem o valor
de potência misteriosa, tal é a consequência necessária do facto
de que as relações reais, de que eles são a expressão, se
tornaram autónomas. Além do valor que eles adquirem na
consciência comum, estes conceitos gerais são afectados por um
valor especial e desenvolvidos pelos políticos e pelos juristas,
que encarregados, pela divisão do trabalho, do culto destes
conceitos, vêem neles, e não nas relações de produção, o verda-
deiro fundamento de todas as relações de propriedade reais.
É esta ilusão que Sancho adopta de olhos fechados, conseguindo
assim fazer da propriedade jurídica a base da propríedade privada
e do conceito do díreito a base da propriedade jurídíca: pode
logo, para qualquer crítica, limitar-se a denunciar o conceito de
direito como conceito, como fantasma (... ). (p. 399-~OO).

36
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• 3 - A forma mercantil da criação

Terminei com o sujeito de direito. Serviu-me para


abrir a via, isto é, para precisar o conceito fundamental
da prática jurídica.
Presentemente, aquilo de que vou falar parecerá
ser uma questão ínfima, minúscula, -sem relação com
a ambição que pretendia ter. Vai tratar-se, com
efeito, do direito da fotografia e do cinema, isto é, duma
questão mais do que modesta: a dos problemas j urí-
dicos postos, levantados pela irupção técnica e econó-
mica do cinema e da fotografia. Ora, acabaremos por
descobrir que, nesta ínfima questão, se encontra todo
o direito condensado, todas as formas que o governam,
as vísiveis e as invisíveis. Há também questões de
estética, de economia e de filosofia. Mas tudo aquilo
que estará em questão se revelará, se formará nos
conceitos jurídicos. Quer dizer que nos contentaremos
com fazer proferir ao direito o discurso que é o seu.
! Melhor: procuraremos «surpreendê-lo') no seu discurso,
«surpreendido,) pela fotografia e pelo cinema. Surpreen-
dê-la-emas na sua própria formação, na sua decom-
posição I re-composição, no seu processo de absor"
ção destes novos modos de apreensão do real.

41
_Com efeito aquilo que fundamentalmente estará privado ('), de outro lado, a actividade específica do
em questão é a produção jurídica do real. Entenda- cineasta ou do fotógrafo exerce-se sobre um real já
mo-nos bem: utilizarei presentemente noções jurídicas. investido pela propriedade comum privada (domínio
Quando escrever sujeito será necessário entender sujeito público) (2). O direito deve assim levar a cabo este
de--aireito;" "quando escrever objecto ou real deve «golpe de força» de criar uma categoria que permita a
en.tendeT=";e o real. eng:uanto designa qualquer coisa que apropriação do que já está apropriado. ~
.pod;-~~~:;-e-;ncategorias jurídicas, portantÕ; Adiantamos então o conceito de sobre-apropriaçãQ
TamBéin, a categoria jurídica do real, isto é, o real do real.
• como objecto de direitQ, susceptível de apropriação,
de venda, decontratos. De igual modo, quando digo
que se vai tratar da prodl1yã()jurídica do real, entenãô ~ Convém precisar duas coisas. Por um lado, todo o
criador pode encontrar, na mesma ocasião, este .real. já inves-
pot-táLq-lte_s_e tratará da constituição do real - ou da tido pela propriedade. Penso em toda a jurisprudência relativa
-re=constituição do real - no direito e para o direito. ao romance, onde os tribunais condenam o autor que apresentou,
Mals precisamente do processo que vaI fazer do real um sob uma luz desfavorável, uma personagem .real.. Contudo,
objecto de direito. a especificidade da fotografia e do cinema consiste numa re-pro-
E já que falei do processo que constitui o real dução .mecânica> do .real. e o que estava somente latente
torna-se explícito. Ê assim, e tal é o segundo ponto, que a
em objecto de direito segue-se tratar de pôr as condi- simples visão de uma rua faz ,surgir» nela o carácter de
ções jurídicas que permitem a um fotógrafo ou a um propriedade privada comum, isto é, de uma propriedade que
cineasta proferir o seu discurso de proprietário sobre pertence a toda a gente... na determinação da propriedade
um real que está «sempre-jw)investido pela propriedade. Priva~
'} Este processo é ilustrado por Maihofer que, aplicando
Com efeito, e tal é este «paradoxo,) espantoso, a «reali- o con ,to de Gesellschaftlische Materie de Ernst Bloch (isto é,
dade') de que o cliché reproduz a imagem pertence que a uma estrutura concreta de existência soei I corres onde
uma superestrutura de consciência ~ escreve que: «A exis-
sempre a alguém. E_o paradoxo do paradoxo é o tência social do homem, nesta matéria social do mundo, 'pro-
seguinte: se aquilo que eu re roduzo « ertence» a toda duz-se»como um processo permanente da objectivação do sujeito
a gen e, IS o e, à comunidade naci.QJlal, por Q.u~s comprometido pela sua existência no mundo social exterior e
da subjectivação dos objectos da matéria social na consciência
palavras_s.e_aq.uilo que eu reproduzº-laz parte do social interior dos sujeitos assim comprometidos. (.Direito e
domínio público (as ruas, os rios, os mares territo- natureza das coisas na filosofiaalemã do direito. Ann. Fac. Drt,
riais ... ) isso só se tornará minha propriedade sob a Toulouse 1964 t XII fase I p. 130). Vê-se que o processo
condição de que eu me reaproprle a~ total é pensado como processo de um sujeito, isto é, na
própria determinação do sujeito. Nem a articulação do sujeito
Se pois, de um lado, toda a produção jurídica é sobre a infra-estrutura nem, por conseguinte, o conteúdo. do
produção de um sujeito cuja essêncía é a propriedade sujeito são analisáveis. Vogamos no mar eterno do direito
e cuja actividade só pode ser a de um proprietário , natural embarcados na nau do sujeito.

42 43
V01I, deste modo, provar, como questão prévia,
a validade deste conceito, estudando nos textos a cons-
Secção I. - A sobre-apropriação do real tituição ideológica desta sobre-apropriação.
É necessário demonstrar dois teoremas: a proprie-
Este conceito designa o conteúdo contraditório da dade literária e artística ... é uma propriedade. A sua
propriedade literária e artística que apresenta este natureza de sobre-apropriação do real pressupõe que elã
carácter estranho, único ori inal de ser uma proprIe- é produção de um sujeito de direit~
dade adqUiri a por so reposição sobre uma proprle a e i
lá estabêlecida. Este conceito designa, para nós, o nosso
-projecto concreto: o sujeito deve fazer «seu» o~
TEOREMA I. - A PROPRIEDADE LITERÁRIA E ARTÍSTICA
o fotógrafo deve põcfer ser proprlCtário deste «reflexo
É UMA PROPRIEDADE
do re_ál')_Casua fot.o.lP..:afia)tal como o cmeasta deve
fazer sua aquela «ficção do real,) que a sua máquína de
filmar «produz') (o seu filme). Escólio 1: a propriedade literária e artística é imaterial
Mas, ao mesmo tempo, o que é «meUl) opõe-se ao
«Habituados a ver a propriedade apenas sob uma
que é «teu»; o sujeito faz «seu') um real que é também
forma mais ou menos material e sempre tangível,
de «outrem,). O fotógrafo e o cineasta no mesmo
dificilmente nos acostumamos a reconhecê-la sob esta
momento em que-investem o real da sua personalida~e
forma nova e totalmente imaterial; estamos mesmo
captam na sua «objectiva,) a propriedade do outro:
dispostos a negá-la porque já não lhe encontramos as
asua Imagem, o seu movimento.,..Jlor vezes «a sua vida,)
privada. suas características, a sua aparência normal» (3).
O material da obra é «uma ideia essencialmente
Tal é o conte.ú.d..o concreto deste c.Q!!ceito. Ele
imaterial que, sempre distinta da matéria, continua a
constitui. o lugar onde se elabora «o descon~ecido» lL.1'
residir na inteligência do autoI'» ("). O que permite
do direito' desi na a cria ão com uma.lI) % tIF!" a Balzac exclamar: «Quem pode pois impedir o reco-
o criador como um suj eito e direito; a «sOciedade civil,) Y
nhecimento da única propriedade que o homem criou,
como um domínio de trocas entre sujeitos proprietá-
sem terra e sem pedra, uma propriedade que se acha
riOS. E torna «verdadeira» -'-'isto é, pressup-õe uma
constituída entre o céu e a: terra, com a ajuda de
Wdade impensada - uma prática que é real, quero
dizer, uma prática jurídica. Ele é a própria eficácia
da «crença» de que o homem é um sujeito de direito
e torna esta eficácia eficaz. (a) POUILLET, Traité, théorique el pratique de la proprieté
littéraire el arl~.lique, Paris, ,1-89'" p. 9. -
A ideologia jurídica tem a existência material da (') MORILLOT, Traité de législation comparée, Paris, 1877,
prática jurídica. p. 454.

44 45
refugos, o negro de fumo tomado aos ossos, e os trapos Os escritores:
deixados na via pública» (6). .
A ficção jurídica - a propriedade é um conceitQ..
Lamartine.' a ideia geral. «A propriedade e a socie-
dade identificaram-se de tal maneira uma com a outra
de direito, «os caminhos de ferro não pertencem verda-
que (... ) o filósofo reconhece através de certos sinais
ãeiramente aos accionistas mas aos est'a"t1Itõ"8»(6) - per-
que a ausência, a imperfeição ou a decadência da
mite, pelo funcionamento desta mesma ficção, fran-
propriedade no seio dum povo, são por toda a parte
quear a passagem do invisível - a (<intelígência,>, a
a medida exacta da ausência, da imperfeição ou da
«criaçao», o «gémo» - ao visível - o imóvel, o (<tangível,>,
decadência da sociedade» (9).
o «verdadeiro,) - do imaterial ao material. O funciona-
mento da ficção denuncia o seu pâpel: trata-s.e_de_dm: Victor Hugo: a aliança sagrada de todos os proprie-
ao invisível- o pensamento do homem - o.carácter do tários (incluso ele próprio). «Sentis actualmente a impor-
lJl.sivel- a propriedade privada j já se sabia isso, sem tância e a necessidade de defender a propriedade.
o saber, não se podia deixar de saber que o invisível Pois bem, começai pois por reconhecer a primeira e
era o que é o visível, já que ele aparece no visível. mais sagrada de todas, aquela que não é nem uma
Tal é, portanto, a eficácia da ficção. transmissão, nem uma aquisição, mas uma criação:
Voltarei a este ponto. a propriedade literária (... ), reconciliai os artistas com
a sociedade através da propriedade» ('0).
Esc6lio 2: o que não impede de modo' algum que Balzac: a ameaça revolucionária. «Deserdar a família
ela seja propriedade dos autores em nome do interesse público, não seria
O coro dos proprietários: isso preparar a ruína das outras propriedades» ("),
O legislador: «De todas as propriedades, a menos .lLpassagem do invisivel ao viJ>íye! é demonstrada
susceptível de contestação é, sem dúvida alguma, a das ~ pela identificação de direito de toda_a.produção humana.
produções do génio» (7). «A mais sagrad~a.--ª_mais legí- A-ficção da igualdade de direito, que remete fundamen-
tima, a mais inatacável e, se me é permitido falar_assim, talmente para o conceito jurídico de propriedade,
<"""a
mais pessoal de todas as propriedades, ~ a obra, permite a demonstração rigorosa: todo o «fruto». do
fruto do pensamento de um escrito!'» (8), . homem amadurece na árvore da propriedade (liberdade),
(') BALZAC, Nota de 3 de Março de 1841, na Comm. Pariam. ) A identificação jurídica é ao mesmo tempo, retorno
àcerca da Revisão da lei sobre a propriedade literária, citado à lonte jurídica do sagrado e do eterno.
por Potu, Revue trimes/rielle de doit civil, 1910.
(~ MARX-ENGELS, A ideologia,. ~Iemã, ob. cit., p. 399. (I) Discurso à Câmara, 1841.-
1ef> LAKANAL, redac/or da lei de 1973. ('O)Ao Conselho de Estado, 30 de Setembro de 1849.
(I) LE CHAPELL1ER, redactar da lei de 1971. (") Ob. CiL

46 47
Escólio 3: pOLS ela tem a mesma ongem de direito
natural Escólio 1: o domínio príblico é propriedade comum

Já se tinham pronunciado as palavras sagrado e Não pode contestar-se «o direito de visão que tem
legitimidade. O Tribunal de Paris vai pronunciar a
palavra mestra. «A criação literária ou artistica cons-
t
;
todo o indivíduo sobre tudo o que existe na rua:
fachadas que a marginam, personagens e viaturas que
titui em beneficio do seu autor uma propriedáde cujo ~: nela circulam, numa palavra, sobre todas as cenas que
fundamento se encontra no direito natural ou das gentes, aí se desenrolam e, por consequência, o direito de
mas cuja exploração é regulada pelo direito civil» (12). retratar tudo o que vê para reproduzir em postais
Eis o alicerce, o elemento original, o granito sobre ílustrados ou em bandas cinematográficas (... ) ('3 bis)'}
o qual, em última instância, assenta toda a propriedade . porquanto, «as ruas, as ci"dades, as regiões, os 10caÍs
• E se o alicerce é o trabalho «« ... ) se procurarmos a pítorescos, são de direito público no que respeita à
propriedade nas suas origens depressa descobriremos que sua reprodução pela indústria fotográfica (... ) (13ter.)').
o direito de autor procede da mesma fonte: o tra- A dedução jurídica é perfeita: eu tenho o direito
balho,})(13).-Lque o prÓprio trabalho se limita a objec- de fotografar o que está à minha vista, sob a condição,
tivar a essência do homem. isto é, a propriedade. é claro, de que recrie aquilo que fotografo. De outro
Este primeiro teorema está encerrado na sua pere- i, modo a minha fotografia mais não revelaria do que
nidade: a Propriedade demonstrou a propriedade. esta coisa: a natureza está já apropriada.
É precis~ovar que esta propriedade pode-;---sern \:;,(
custo, já que tal é o seu ser, sobre-apropriar-se da 1""\
Escólio 2: a propriedade pode inscrever-se aí sem
Propriedade. ~
custo

TEOREMA 11. - DO QUE O REAL É PRODUÇÃO DO Tratar-se-ia com efeito de uma «apropriação pessoal
SUJEITO que não prejudica ninguém,} (14). Esta vocação do
Domínio Público torna eficaz a articulação da criação
O direito tem horror ao vazio: a terra chama pela sobre o real.
propriedade. Ela tem sede de um senhor. Kant e
Hegel demonstraram-no: o estatuto da vontade -ostula
aaproprIação prIva a e toda a natureza.
(" bis) Trib. Paix, Narbonne, Março 1905, D 1905, 2389,
(" ter) Tribunal do Comércio, Seine 7 de Março 1861
DP. 3.32.
(12) Paris, 8 de Dezembro de 1853, Sirey, 195~, II Parte
("I" PATAILLE, Codeií,temational de proprieté industrielle
p. 109.
artistique et lil/eraire, 66 135, Paris, 1865.
(") POUILLET, Ibid ..

49
48

I,
~:
Escólio.3: sob a condição de ser (,criação') e mio - mas produzW!. Isto foi maravilhosamente expresso
«f'eprodução,)
por Portalis. No caso da propriedade literária e artís-
Eis ~ cha~e jurídica da criação. Se eu me limitar a tica, disse ele, ('não existe somente propriedade p_or
reproduzir o domínio público não terei direito à apropriação como dizem os filósofos, mas propriedade
pr~t~cção da lei ('porque um produto natural que não é por natureza, por essência, por indivisão, por indivisi-
estilizado (en~endamos por isso que não é investido ~Ililidade do objecto e do sujeito'). Propriedade por (<indi-
pela perso~al~dade) pertence ao domínio público,) ('5). visibilidade do objecto e do sujeito». Considero esta
O ,mesmo e dJzer que ('a reprodução de aspectos natu- formulação exemplar. O objecto, o real, deve tornar-se, .
~als,) ?U, ~elhor a (,reprodução da obra da natureza,) ('6) para ser ('apropriado') o róprio sujeito. O real deve
e antmómICa de uma apropriação. tornar-se a pro ução do sujeJto para ser protegido pela
~ O domínio público revela assim a sua verdadeira Im.
atureza de ~xpressão geral abstracta da propriedade (17). - Equacionei tudo o que queria equacionar. Entrei na
-v Eu explico-me. O direito diz-nos: as ruas pertencem prática como um aventureiro: tomando a sério os
a toda a g~nte ~al como os locais, as paisagens ... Para conceitos do direito. Posso presentemente fazer proferir
~e aproprJar (<Intelectualmente,) daquilo que pertence à prática o seu mais prosaico discurso: o dQs tribunais.
a t?da a gente devo, não reproduzi-lo porque mais não
farJa do que expor o que pertence a toda a gente
Secção n. - O homem e a máquina
(") Tribunal de Grand Instance, Paris, 6 de Janeiro de 1969
Reoue lnternatwnale des droits d'au.teu.r, ,Julho 1970 148' J á anunciei o meu(projecto1 a descrição do processÇl
(::) Chan:'béry, 18 de, Maio 1962, Dalloz 1962: ~: 599: que constitui o real em.-nb~.cto_<le-diJ::ill:to. Já anun-
, (,) ConSIderemos um umco exemplo: os juizes que recusam ciei a contradição: o fotógrafo, o cineasta produzem o
atrIbUIr um bem a uma
_ ou . outra das pessoas que ore' IVln
. d'lCam, real. Mas nesta produção encontram um real que
cometem a , de negaça o da , Justiça (art "',4 o Cod CI'V) m.mo.
° pretexto mvocado
, 'd consIste em dizer
' . que nenhuma d as par t es
pertence já a outrem. O fotógrafo pode muito bem
fotografar um rosto, mas este rosto pertence a alguém,
provou a SUperlOrI ade do seu dIreIto (Cass. civ. 16 de Abril
70 D 70 '>74 nota Contamine-Raynaud). Como nota o comen- o fotografado, que é seu proprietário. A produção do
tador, parte-se do postulado de <que o bem pertence necessaria- sujeito encontra assim a sua necessária limitação no
mente a alguém, e 'que o direito de propriedade não pode próprio sujeito. Esta tese exigirá o seu conceito: a forma
perder-se. mas ap~n~s transmitir-seo:, Esta sentença lembra
Pachukams: .0 dIreIto de propriedade é um direito bIt sujeito de direLto. Trataremos de construí-lo, sem perder
tá I' a so u o, de vista o movimento que anima a nossa cena: o sújeito
es ve, que segue a COIsa por toda a parte onde o acaso a
lance ? que, desde que a civilização burguesa estendeu o seu de direito põe em causa aquilo que ele tinha necessa-
dom!nlO a, todo o globo? é pr,otegido no mundo inteiro por leis, riamente consentido à ('objectividade,) do reai: a sua
pela poliCIa e pelos trIbunaIS' (Pachukanis, ob. cit" p, 105).
própria negação.
50 51
Queria estudar mais de perto «a história» jurídica
da criação fotográfica e cinematográfica. Esta história I. DO HOMEM-MÁQUINA •••
decorre em dois actos. O direito apenas conhecia a arte
('manuãl», o pincel, o cinze!..., ou a arte ('abstracta» , .O que vou analisar é, pois, uma étapa histórica:
a escrita. A erupção das técnicas modernas de (re)pro- a do nascimento jurídico da fotografia e do cinema.
dução do real, (aparelhos fotográficos, máquinas de Há, neste nascer, a forma da relação entre o homem
filmar) vão surpreendê-Io'''na quietude das suas cate- e a máquina, a forma da relação do trabalhador com
. gorias. Um fotógrafo que não faz mais do que premir a máquina. Esta forma dá-no-Ia o direito naquele
úm botão, um cineasta que dá voltas a uma mani- lugar privilegiado da alma burguesa a que se conven-
vela, são criadores? A sua (re)produção significa sobre- cionou cham ar: a criação. J á antes se disse: está-se
-apropriação do real? no tempo do trabalho sem alma, e é um tempo econo-
O direito, surpreendido pela questão, dá a sua micamente morto: o do artesenato. O direito vai revelar
primeira resposta ('resistindo,). O homem que mexe esse escândalo,-Jlue para ele não o é: o sujeito pode
uma manivela ou o que acciona um manípulo não são aesaparecer na máquina,-p-ode desintegr.i!.r-se na (,meg!-
criadores: são máquinas. A resistência do direito passa nica». Tal como o proletário ('servindo a máquina»
em primeiro lugar pela denegação do sujeito de dirgiLo. se esvazia da sua liberdade pelo uso da sua força de
U trabalho deste iiiêlivíduo é um trabalho sem alma. tr8'balho, do mesmo modo o fotógrafo deixa a sua
Tal é o primeiro acto. liberdade criadora pondo-se (,ao serviço» do seu aparelho.
O segundo aclo é a passagem do trabalho sem alma O fotógrafo de 1860 é o proletário da criação: ele faz
à alma do trabalho. O tempo da resistência não era corpo com o seu instrumento.
economicamente neutro. Era o tempo do artesanato. Ao subir do pano de boca, o cântico do espírito
A tomada em consideração das técnicas cinematográficas ilustrado: (, Um pintor não. é somente um copista,
e fotográficas pela indústria vai produzir uma revira- é um criador. Assim como um músico não seria um
volta radical: o fotógrafo e o cineasta devem tornar-se artista se se limitasse a imitar, com a ajuda de uma
criadores sob pena de fazer perder à indústria o bene- orquestra, o barulho de um caldeirão ao lume ou
fício da protecção legal. dum martelo sobre a bigorna, de igual modo um pintor
Esta (,evolução,) estudá-Ia-ei no próprio trabalho não seria um criador se se limitasse a decalcar a
das categorias jurídicas, ísto é, no visível do direito natureza, sem escolher, sem sentir, sem embelezar.
e chamarei - em meu socorro - o invisível do direito , É este servilismo da fotografia que me faz desprezar
para fazer compreender a intriga da nossa peça. profundamente tal invenção do acaso, que jamais será
uma arte, mas um plágio da natureza pela óptica.
Será arte a reflexão dúro copo num papel? Não,
é uma exposição ao sol apanhada em flagrante por um

52 53
trabalhador manual qualquer. Mas onde está a nação, e algumas vezes o génio formado pelos preceitos
concepção do homem? Onde está a escolha? No da arte» (21). Com efeito, «a arte do fotógrafo não
cristal, talvez. Mas não, de certo, no Homem (... }» (IS). consiste na criação de sujeitos da sua própria criação,
E Lamartine tem esta frase soberba: «O fotógrafo jamais mas na obtenção de clichés e, consequentemente, na
distituirá o pintor; um é um Homem, o outro é uma tiragem de provas reproduzindo servilmente, por meios
máquina. Não os comparemos» (l°}o mecânicos, a imagem de objectos de qualquer natu-
Os juristas não podem satisfazer-se com o senti. reza» (22}o
mento: eles têm necessidade de rigor (20), mesmo se O esforço dos juristas vai incidir-SQbre a j2rópria
este rigor demonstra o seu sentimento. Como se prova .análise do processo da cria£ãoo O que importa é que Q
juridicamente um trabalho sem alma? Pela análise sempre :eresente na criaç~o gu: e!~
,.Q ..sujtJ.!to_~steja __
dos seus produtos: a um produto sem alma, trabalho C5I desapareça, o espaço de um relâmpago e a sua ausenCIa
sem almao designara a sua natureza: era «maquinal».
O produto (a chapa fotográfica) é sem alma, dado (,Todo o trabalho intelectual e artístico do fotó-
que só a máquina age e o fotógrafo «somente aprendeu grafo é anterior á execução material (... ). Quando a
a pô-la convenientemente em acção (ooo)e a preparar ideia se traduz num produto, qualquer equiparação
as operações quimicas que devem reproduzir (oo.). (á arte) torna-se impossível (.. o). A luz fez a sua obra,
A sua arte reduz-se a um processo puramente mecâ. um agente esplêndido mas independente realizou
nico, no qual pode mostrar mais ou menos habilidade, tudo (.. o), a personalidade terá faltado ao produto
mas sem que possa ser equiparado aos que professam no momento exacto em que, essa personalidade lhe
as belas-artes, nas quais operam o espírito e a imagi- podia conceder protecção» (23}o
O trabalho do homem é «desqualificado» num
(U) LAMARTINE, Cours (amílier de littératureo Entretims trabmôIiieCâmcoo Ainda miilnor: não se podendo
sur LéiJpold Robert, t. VI, p. 140, ed. 18480 "realizar a obra senão através de meios artísticos; a utili-
(") Ibid.. Cfr. também a declaração escrita, na época zação em si de uma máquina não pode veícular o
por membros do Instituto: .( ... ) considerando que a fotografia pensamento do artista (24}oPor outras palavras, o fim
se resume a uma série de operações, todas elas manuais, que
necessitam sem dúvida de um certo hábito nas manipulações
que implicam, mas que as operações que dai resultam não (21) Tribunal de commerce, Turin, 25 de Outubro 1861,
podem, em nenhuma circunstância, ser assimiladas às obras, citado por POTU, La Protection des ouvres photografiques en droit
fruto da inteligência e do estudo da arte (... )•. (rançais.. Revue trimestrielle de droit civil 1910, p. 723 sq.
(20) .Num estado moderno, o direito não deve corresponder (22) Tribunal de commerce, Seine, 7 de Março de 1861,
somente à situação económica geral e ser sua expressão, ele deve «Dalloz-périodique,),1861, III part., p. 32.
ser uma expressão coerente em si próprio que, não se ridicularize (22) Conclusões do advogado imperial Thomas, em «Annales
a si próprio por contradições inlernas". (Engels, Carta a Conrad de la prop. ind.•, 1855, p. 405.
Schmidt, 27 de Outubro 1890). (24) COPPER, L'Art et la Loi, noO 23, p. 45.

54 55
(produção do sujeito) reenvia para os meios (produção Pensava-se que todo o homem ~era sujeito de
do sujeito) e os meios para o fim. O raciocínio recur- direito; tal era-nos afirmado nos textos sacramentais,
sivo é simultaneamente justificação e teologia. as suas causas eram-nos explicadas. A prática jurí-
Segue-se que um tal (,trabalho mecânico não pode, dica, nesses tempos heróicos, diz-nos, preto no branco:
desde logo, dar origem a produtos que possam justa- a actividade de um liomem pode ser 1\ sim-p-Jes actiVi'-
mente ser colocados entre as produções do espirito dade de uma máquina e a sua própria actividade o
humano» (25). A consequência juridica é radical uma transforma em máquina. O direito, repito-o, disse-o
vez que ('esta indústria não poderia ser equiparada à apenas naquele momento do nascimento da fotografia,
arte do pintor ou do desenhador que cria, apenas com quando ele ainda não «sabia» que a fotografia podia
os recursos da sua imaginação, composições e temas, ser uma arte, quando ele não sabia ainda que o cinema
ou então, que interpreta, segundo o seu sentimento podia, graças à indústria, ter assento na Academia
pessoal, os pontos de vista que a natureza lhe oferece francesa.
e que, em seu interesse, constituem uma propriedade», Porque, para os tribunais, fotografia e cinema são
o fotógrafo «que fixa um cliché, para a representação então da mesma natureza. A única diferença é que
dos lugares ou dos monumentos públicos, constitui este (cmexe». Mas, precisamente, a própria análise do
apenas um instrumento industrial que não implica qual- movimento será remetida para a máquina e o cinema
quer privilégio (... ») (28). surgirá consequentemente como produção da máquina.
Faltava aí o Belo e o Verdadeiro. O professor «Se é exacto pretender que a montagem e a compo-
Savatier não frustra a nossa expectativa: pois que, sição de quadros podem oferecer um carácter artístico,
por um lado, (COverdadeiro não se confunde necessa- o movimento de que são dotadas as próprias projecções
riamente com a arte& e que, por outro lado, a foto- não é devido ao autor nem aos executantes, mas antes
grafia é (Cem si um processo mecânico de reprodução à máquina especial por meio da qual este movimento
- . que não tem outro interesse senão a verdade fisica-
mente exacta da impressão que ela toma das formas
é obtido e à ilusão óptica ocasionada pela sucessão
ininterrupta de quadros diante da objectiva e pela
reais» (27), a reprodução exclui o sujeito criador do sua projecção sobre uma pantalha» (28).

-
belo.

(U) Tribunal de commerce, Turim, já citado.


Dito de outro modo, por um lado, o cinema é
assimilado a uma série de fotografias - sendo o autor
(,aquele que dispôs em primeiro lugar o seu tema (00')'
(!O) Tribunal de Commerce, Seine, 7 de Março de 1861, .' que se certificou da colocação, isto é, se o ponto
já citado; ibid., 29 de Janeiro de 1862, .Dalloz-periodiqueo,
1962, IH parle, p_ 8; Paris, 10 de Abril de 1862, Sirey, 1863,
I parle, p. l,1.
(") SAVATIER,Le Droil de l'arl el des leures, .Lib. gen_ de (") PAU, 18 de Novembro de 1904, Dal/oz, 1910, H part.,
droit e de jurisprudence&, 1953, n.OS 96-99. p_ 81.

56 57
importante da cena a reproduzir se encontrava bem «Na verdade», diz o tribunal de polícia de Hyeres
no centro do vidro fumado» (29) - e, por outro lado, em 1912 (34), «os espectáculos cinematográficos ( ) não
o movimento de que são animadas as fotografias não são feitos para o mesmo público dos teatros ( ); eles
é devido a nada que seja diferente de uma máquina. propõem-se antes excitar, e por vezes espantar a
Daí resultará não só que _"lJ,e.:p..rJl..d.Jlção
do real curiosidade pública, muito mais do que despertar e
nãq,sllrã;;~ae modo aJgum, criação artística - o cinema desenvolver o sentimento estético dos espectadores».
'sendoentão'juridicam'ente assimilado aos «espectáculos E a primeira decisão da censura interditava os filmes
de curiosidades», as Dobines vendendo-se ao metro (30) com quatro cortes capitais, nestes termos: «Ê indis-
-mas ainda que a repro<lQy~o de uma produção pensável interditar radicalmente todos os espectáculos
- tal como uma representação teatra!- na medida deste género, susceptíveis de provocar manifestações
em que é realizada graças «a meios de processos'illd@- que perturbem a ordem e tranquilidade pública» (35).
c triais,. elltI'a=1tamb~![j na definição dos espectáculos '!2do o probl~~~~giLee~nJlurª_rertiç!eassim na ilusão
de curiosidades» (31). ------- de realidade que a mÍ!.!Lui~~«r~l)-I!roduz»,«bem ou mal».
O corpo sem alma da máquina, a frieza da objec- 'Cr jurista, sancionador e «teórico» da ordem, por seu
tiva reproduzem o que se quis que eles sejam e que turno, mais não vê aí do que necessidade. «Por um
se tinha medo que fossem: a multidão, a turba, o povo. lado, com efeito, o cinema não poderia passar sem
O que é isso senão opor «a mecânica à inteligência censura porque constitui uma representação visual
(... ), a impersonalidadedo técnico à personalidade do exacta da realidade e se destina a um público ilimitado.
artesão, o anonimato ao individualismo do talento»? (32). Ora é bem evidente que existem realidades que não
Numa palavra o que é isso senão opor «a matéria ao podem ser mostradas a qualquer pessoa e que existem
espírito»? (33). outras que não se poriam em imagens. Também uma
liberdade absoluta não é tecnicamente concebíve!» (36).
O medo não tem fronteiras e mostra-se com profun-
dezas teológicas. É o caso daquele processo assom-
(") Tribunal civil, Seine, 10 de Fevereiro de 1905, Dal/oz, broso que correu entre um produtor e um empresário
1905, 11 part., p . .389; cfr. também MEIGNEN, DUMOURET,
Code du cinéma 192~: «A fotografia encontra-se na origem do
que se recusava a projectar um filme sobre a Paixão
cinema, e um filme é em suma apenas a reunião de fotografias
cuja sucessão na pantalha dá a ilusão do movimento e da vida •. (301) 18 out. 1912, «BulI. Spec. des Just. de Paix», 1913,
(' 0) P. LEGLISE,Histoire de la politique du cinema trançais, p.27.
«Lib. gen. de droit et de jurisprudence», 1970, p. 9 sq .. (35) Telegrama do ministro do Interior citado por LEGLISE,
(") Tribunal de simples policia, Marselha 30 de Janeiro oh. cit., p. 60.
1913 Dal/oz, Sommaire 23. (") DEMICHEL,Des poupoirs du maire em malÍere de police
(32) ELIE FAURE, Fontion du cinéma, «Méditations>" p. 123. du cinéma, «Ann. Université Lyon, Etude,; économiques et
(33) Ihid., p. 12~. politiqucs», 1960, fasc. 20, p. 8.

58 59
de Jesus Cristo, pois via nele um crime perpretrado Em 1910, já se podia escrever que a fotografia
por ordem das autoridades da épocal (3'). <,faz viver milhares de pessoas: fotógrafos profissionais,
A máquina é o lugar do combate entre o anjo e fabricantes, operários, que seriam profundamente lesa-
a besta e, pior do que tudo, ela reproduz esse próprio dos se a lei não os protegesse contra concorrentes
combate. O mesmo é dizer, então, que da máquina desprovidos de escrúpulos. Finalmente e sobretudo,
re-produção à «máquina de embrutecimento e de disso- a fotografia deu origem a uma multidão de processos
lução que não passa de um passatempo de iletrados e de aplicações químicas, mecânicas e industriais que
ignorantes e de criaturas miseráveis embrutecidas pela hoje alimentam uma indústria fiorescente» (3.). Desde
dura necessidade) (38), não há solução de continuidade. 1880 que se notava um aumento considerável dos
É assim esta primeira fotografia do direito, esta processos, paralelamente a ('uma extensão considerável
fotografia da sua resistência, fixada na sua pose eterna. do número de fotógrafos, amadores ou profissionais,
I Mas, e é o segundo acto, antecipo já que a tomada em
I e da aplicação da fotografia nas diferentes indústrias» (40).
I consideração da fotografia e do cinema pela indústria Isso levava, por exemplo, ao voto emitido, em 1898,
vai produzir os mais inesperados efeitos jurídicos: pela Sociedade Alemã para protecção legal da foto-
o fotógrafo sem alma vai ser entronizado como artista, grafia: (,É desejável (... ) 2. que a reprodução das
o cineasta como criador, logo que as relações de produção fotografias seja igualmente proibida, quando ela é utili-
o ex~g~rem.
zada em obras de indústria, de fábricas artesanais,
Poder-se-á então concretamente pôr a questão ou de manufacturasl).
(<insólita» por exCelência: o que é pois essa alma - quer Bulloz, que escrevia mais ou menos pela mesma
dizer: a criação - que depende em última instância época, depois de ter notado ('que em França há mais
das relações de produção?
de 50000 pessoas que. vivem da fotografia e que a
exportação dos seus produtos é da ordem dos milhões),
11. ... AO SUJEITO CRIADOR
••.... A importância económica da fotografia e do cinema
acrescentava, com ingénua astúcia que recusar-lhes a
protecção da lei equivaleria a «colocar os fotógrafos à
acabaria por levar a uma revisão fundamental. O que mercê de todos os contrafactores e precisamente a
nos propomos demonstrar, e descrever, não é o processo destruir entre eles todos aqueles que têm sentido
econ,ómicº-eIlguanto t~l, mas, ao m~smo t~mBo, ~ artístico (... )>>(41).
a maneira como este processo é reproduztdo no dtretto, Vê-se que o reconhecimento artístico da fótografia e,
e a maneira como o direito o torna eficaz. consequentemente, o reconhecimento da qualidade de

(") POTU, ob. cit., n.O 2.


(") LEGLISE. ob. cit., p. 65.
(U) Ibid., n.O 10.
(88) DURAMEL, Scênes de la vie future, p. 58.
(") La Proprieté photografique el la loi française.

60
61
criador ao fotógrafo se tornava uma necessidade da artístico, uma criação do espírito ou do génio,) (43),
indústria. Estas novas forças produtivas tinham de os tribu.nais vão utilizar o conceito de (,marc~
encontrar os meios da sua eficácia. Essa eficácia dis- personalidaJ1e,), para arrancar a fotografia à máquina,
farçava-se, precisamente aqui, de (,estética». e fazê-Ia entrar no âmbito do SUleItO.
Paralelamente, punha-se o problema da duração A emergência deste concei~x;.se-á a um...!!.!mJo
da protecção (monopólio) fazendo valer que (,compete preço: através da substituiÇãõãa máquina pela técnica,
ao legislador verificar se a duração do privilégio de -suporte da actividade do suj~, e portanto peià
reprodução é suficiente para encorajar os artistas e, interzenção~do,.lL1J.j,eij,º,...çQffiQJ&l,...no,.pr.o.ceâso
de repr.o-
ao mesmo tempo, verificar se esta duração não é, duç!2. É assim que a técnica, como meio e já não
pelo contrário, demasiado considerável tanto em relação -co~? fim em si, permite ao sujeito afirmar-se, e que o
ao esforço pessoal do autor como em relação à pertur- sUjeito só pode afirmar-se pela mediação de uma técnica
bação que essas restrições exorbitantes do direito que lhe permite investir o real e fazer dele o seu domínio
comum vão trazer ao comércio geral,) (42). privado. A subjectilJação da mdquina inverte a relação
Vemos assim subtilmente misturadas...considerações fim-meio. O trabalho da máquina torna-se trabalho
pseudo-estéticas com considerações francamente mer- do sujeito, e esse trabalho é apenas um meio da própria
cantis. Melhor ainda: a estética é subordin.ada ao comérJjQ. criação. A criação já não está subordinada aos «meios,)
Por outras palavras, o (,comércio,)impunha as suas da criação, são os meios que estão subordinados à
leis sob um duplo título: ao nível do necessário reco- finalidade da criação. Tal elluivale a dizer que a máquina
nhecimento do direito de autor, e ao nível da necessária erde seu ~ser» e ue se torna o meio de ser do
limitação deste reconhecimento. sujeito, É sob esta con lção, que ela se torna igna
Com efeito, se não há dúvida de que são os capi- de protecção «como produto utilizável do trabalho') (44).
tais investidos na indústria cinematográfica e fotográfica E o inefável Lamartine podia, mudando de montagem,
que levaram a esta reviravolta radical, é também
evidente que a relJir.asw~rídica - a que eufemisti- (") Tribunal de Cassação, 28 Nov. 1862, .Anais da proprie-
camente se chama ('mudança de oríentação jurispru- dade industrial>, 1862, p. 420.
dencial,) - deu à indlís:tria .oS-«IQeios»da sua yroduJão. (") BRUNOMEVER, Das Neue Photographishe, Schutzgesetz
nach dem Regierungsentwurfe, 1903; cf. também POUILLETDe la
Estas exigências não excluem certamente a arte foto- protectio.n des ouevres photografiques en France, t. lI, p. 55:
gráfica como tal, mas explicam a sua eficácia jurídica ,Pouco Importa que a execução seja resultado de um trabalho
e portanto económica. pura~ente material, mecânico, visto que este trabalho é apenas
Lembrando-se (,bruscamente», de que a lei não o melO de tornar perceptivel a criação, a produção do esplrito
etc.'. Para FERRARA, La Concezione economica dei diritti su beni.
defenia ('OScaracteres que constituem, para um produto tm.materiaii, Nápoles, 1910, .qualquer produção artistica consti,
tUl sempre um trabalho que tem a mesma natureza e dá origem
(") COPPER, L'art et la loi, p. 45. aos mesmos direitos».

62 63
exclamar sem vergonha que a fotografia, (,é mais do depressa o real deixe de aparecer como «criado» pelo
que uma arte, é um fenómeno solar em que o artista sujeito, a máquina volta a encontrar magicamente a
colabora com o solb) (45). Nada menos I sua função inicial de reproducão. Se eu utilizar, sobre
A máquina torna-se assim o lugar de um trabalho -uma nota de banco, uma fotografia aérea da cidade
humano j ela é mediação <<técnica&da produção do integrando-a num novo conjunto, não posso ser censu-
sujeito. Mas não é o lu~ar de um trabalho qualquer, rado por isso, pois não houve apenas uma re-produção
é ainda -necessário que, tornada pura mediação, ela de um sítio natural (46); se me contentar em tirar a
deixe o sujeito (únvestipl Q real. fotografia de um lago em que voguem por acaso, seis
Por outras palavras, a fotografia apenas beneficia barcos à vela, é certo que há aí uma escolha feliz,
da protecção legal sob a (,condição de trazer a marca mas é mais um produto da complacência do acaso
intelectual do seu autor, cunho indispensável para dar do que da criação artística (49). Em resumo, mesmo a
à obra o carácter de individualidade necessário para que reprodução fotográfica de uma graciosa rapariga não
haja criação& (46). Melhor ainda: a obra deve reflectir é suficiente para caracterizar a apropriação intelectual,
a personalidade do seu autor e revelar «o esforço e o pois ('OS sim pIes traços de um rosto (... ) não são
kaliã1ho pessoal daquele susceptível de o indivIdua- susceptíveis de apropriação» (50).
lizar» (47).
-O mesmo é dizer que, se o aparelho fotográfico
(U) Sena, 31 de Maio de 1944, Dal/oz, 1946, p. 117.
entrou claramente no âmbito do sujeito, é, por seu (") Cour de Cassation, chambre civile, 23 de Junho
turno, dominado por ele: aqui como lá o real só de 1959, já citado.
pertence ao sujeito desde gue este o invista: (se apodere (SO) Sena, 3 de Março de 1943, Dal/oz, 1946, p. 117.
aele). Convém dizer que a própria lei oscila na ambiguidade do
conceito de tomar posse do real pela personalidade declarando
O processo é significativo: a máquina .só regressa que .nomeadamente são consideradas como obras de espírito
ao sujeito dentro dos limites da relação fundamental (... ) as obras fotográficas de carácter artístico ou documenta] (... )
sujeito I criação do real. De tal maneira que, tão (art. 3.°, lei de 11 de Março de 1957). Isso implica uma .dupla.
ligação (artistica ou documental) ao real. Inútil será dizer que
é viva a disputa jurídica acerca do que deve entender-se por
(") Cours fámilier de litlérature, .Entrp.tien 37., p. 25, 4; .artistico. ou .documenta19. Consideremos dois exemplos: tra.
LVON, 5 de Fevereiro ele 195~, J uris-Classeur périodique, 1955, tando-se da fotografia, do aparelho Morane-Saulnier, que tinha
Il parte, 8564. O autor tem direito à protecção desde que sido utilizada num selo de correio, o tribunal administrativo
«graças aos seus conhecimentos técnicos e profissionais (... ) soube de Paris julgava em 20-2-1962 que esta obra fotográfica .em
criar uma obra. original nova•. razão da habilidade técnica necessária para a sua execução, da
(") Cour de cassation, chambre civile, I, 23 de Junho maneira como os traços principais do objecto reproduzido estão
de 1959, Dal/oz, .1959, p. 38~. ... postos em evidência e do valor informação que resultou destas
(U) Cour de Cassation, chambre criminelle, 7 de Dezembro operações, possui o cunho pessoal do autor a cujo saber é devida
de 1961, Dal/oz, 1962, p. 550. e assume um carácter documental.. O que significa que o

64 65
5
A marc~a das-!orças produtivas caEitalistas reali- transmite a alma do sujeito. Quer dizer que lhe basta
za-se.ç.Q.,ncretamenteneste lugar. o do s1!.ieitode direito. trocar os termos numa mesma estrutura: a máquina
I~ E esta realização toma a próJlria forma do sujeito:
.,toda. âjr'õdu,Ção é p'rodução de Úm sujeito. Um sujeito,
melhor dizendo, essa categoria em que o trabalho
sem alma torna-se a alma da máquina .
Tais são os (<imperceptíveis processos SOClalSque
(... ) estão sempre sub-jacentes (aos processos do Palácio
qualifica qualquer produção do homem como produção de Justiça) e que constituem à prática burguesa') (52).
de propriedade privada.
A vontade do homem é a alma da natureza Secção IH. - Processo do capital e processo criador
exterior, e esta alma é a propriedade privada, pois
é próprio do destino do homem, como sujeito de direito, O fotógrafo é um homem solitário, a sua produção
(,tomar posse desta natureza como sua propriedade é a de um sujeito. É certo que a indústria fotográfica
privadoo)(51). tomou em conta a criação, e isso foi já suficiente
Desde o momento em que as forças produtivas para dizer que o fotógrafo era um criador, mas ela
exigiram, para o seu bom funcionamento, que esses deixou-lhe o seu instrumento de trabalho, o aparelho
produtos fossem protegidos pela lei sobre a proprie- fotográfico. O fotógrafo é um artesãQ,
dade literária e artística, bastou-lhe dizer: a máquina O que vou estudar 'presentemente, são os efeitos
inteiramente extraordinários de uma produção artística
-inclustrializada"ou--seja,-4e -uma--produçãoem que se -
carácter documental existe apenas em virtude da personalidade
do criador. O Conselho de Estado iria estatuir em sentido realiza ao mesmo tempo a socialização da produção,
contrário depois de o ministro ter feito observar que o carácter da troca e do consumo. O <Jueme proponho estudar,
documental só existe na medida em que é um .prolongamento. no processo prodigioso deu~_produto artístico subme-
do carácter artlstico e onde não se trate de simples reprodução tido de UJ!l!LJ~onta à outra - e de parte a parte
.impessoal. de um objecto, considerando que o cliché «que não - à leFd~ caT2.ital, em que o processo do capital se
apresenta qualquer carácter artístico não poderia, por maioria
de razão, ser olhado como uma obra de carácter documental> torna'õ RróWio processo da criação intelectual, em que
(26 de Abril de 1963, Conclusões Chardeau, nota de Desbois, - a'f~ mercantil deste produto se torna a rodu~
Dalloz, 19M, p. 124). A indústria e o comércio vêm a mistu- d~rlO pro ut,?, o q me. propo~h? estud~r, ._éo,
rar.se, já que o Tribunal de Paris, numa sentença de 26 de 'âestmo da nossa eterna categorIa de sUJ81to(de dlr81to).
Abril de 1969 (Juris.Classeur periodique, fasc. 4) reconheceu
carácter documental a uma fotografia de manómetro na medida E, também e ao mesmo tempo, .Q..Jlestino do nosso
em que ela ilustra o texto, e que além disso, «o cliché foi real (de direito). Este duplo destino é prodigioso.
utilizado para uma publicação com fins comerciais, o que '":Eü da economia e do cinema. O meu projecto tor-
demonstra o interesse atribuido ao documento.. A anomalia na-se, neste ponto, ambicioso e devo fundamentar
é ainda aqui flagrante: a prova do carácter docu'!1ental em
nada mais residiria do que na sua utilização comercial.
(") K. MARX, O Capital, ob. cit., t. IH, p. 8, n.O 4. (") BRECIIT, Sur le Cinéma, .U Arche., p. 220.221.

66 67
a minha demonstração. Ela assenta sobre uma te.se . França: (,OSproblemas jurídicos nascidos do fenó-
fundamental: a socialização da indústria cinematográ- menó (,cinema» são problemas novos cuja solução deve
fica produz a socialização do sujeito criador, um sujeito ter em conta as exigências modernas da vida dos
colectipo. Ela produz uma socialização do real: o desen- negócios, a necessidade de andar rápido e de simpli-
rolar do acontecimento. ficar, pelo facto de o cinema ser uma indústria pode-
Repito-o: o meu propósito confessado é jurídico. rosa empregando dezenas de milhares de empregados.
Mas esta confissão nasce noutro lado que não no As subtilezas jurídicas devem ceder o passo às conside-
direito: nas relações de produção. rações práticas da flexibilidade das instituições, da
É por aí que começarei. simplicidade das regras, da comodidade dos processos
e dos métodos (... ») (56).
I. ECONOMIA E CINEMA Alemanha: o autor do filme (,fabrica em grande
quantidade uma mercadoria que importa escoar pelo
O cinema, que assenta numa base técnica indus- mundo inteiro. Deste facto e do facto do risco comer-
trializável, (,concedia aos homens de negócios o que o cial que isso engendra, pesa sobre ele um maior encargo
teatro sempre lhes tinha recusado: uma indústria dos económico (... ) a sua produção encontra-se inteiramente
espectáculos, e não havia razão já que, tecnicamente, centrada sobre o fabrico de uma mercadoria que é
tal era possível, para que produção e mercado não necessário escoar (... ) deve prever reservas. Ele é
fossem concentrados» (63). bem mais tributário da época, dos gostos do público,
Nos Estados Unidos: o controle dos industriais e da actualidade do assunto e da concorrência mundial
dos banqueiros sobre a indústria nascente fez-se em do que um director de teatro na sua cidade» .<56). .
três etapas: controle pelo competitipe small business, A apropriação do capital industrial e financeiro sobre
de 1896 a 1908; conflito entre trustes, cada empresa os meios materiais de produção (instrumentos, máqui-
querendo adquirir o controle absoluto (de 1909 a 1929); nas ... ) foi necessariamente acompanhada por uma mono-
H • de 1929 aos nossos dias ('graças à invenção do som, polização do «material humano», enquanto eleme~to
que ela controla, a grande banca toma posição» (64). original da produção cinematográfica. No que respeita
O capitalismo teve de adaptar os seus métodos ao cinema americano, ela inflectiu em duas direcções:
de produção-distribuição-consumo a este produto (,inte- monopolização da matéria prima intelectual- compra
lectual» que é o filme. Esta adaptação teve de ter de livros, de novelas, de best sellers - e fundamental-
em conta a especificidade do consumo que faz correr mente monopolização da mão de obra intelectual por
grandes riscos. Isso já fora notado pelos juristas. Dou
dois exemplos: um francês outro estrangeiro.
(") Droits d'auteur et einéma, These Paris, 1945.
HURET,
(U) 1IfERCILLON. Lo Cinéma américain, p. 51. (")Premiere Chambre Civile, Cour de easation. allemande,
(") lbid., p. 3. 16 de Junho de 1923, .cilado por Brecht>, ob. e,t., p. 197.

68 69
contrato. «As companhias constituiram um verdadeiro criador colectivo, mas antes, devo travar uma rápida
pool do talento e muniram-se de vedetas, de realiza- controvérsia.
dores, de cenaristas, de técnicos>}(57). ~ontrato surge P. Lebel, na sua obra Cinéma et Ideologie pretende
como o instrumento privilegiado da dominação capi- que a «produção do cinema é apenas uma produção
talista. EI~de.sigtJ.a a mercmtilização do-lloiM""m de espectáculo e esta produção, apesar da matéria que
enquanto ollli!cto de direili>. O star system é disso ela utiliza e da matéria sobre a qual ela se inscreve,
üillãilustração perfeita. Os contratos são draconianos: não entra no processo de apropriação material do mundo
a vedeta contratada perde uma grande parte da sua pelos homens>}(60). Com efeito, na sua opinião, «a infra-
liberdade; aí está previsto não só a organização da sua -estrutura complexa do cinema>}pertenceria à «esfera
vida pública mas também da sua vida privada. das super-estruturas)} (61). Se Marx tivesse lido este
A ruptura do contrato origina a inscrição numa lista texto, os olhos ter-lhe-iam saído das órbitas. O que
negra ... (58) ..• Quanto aos salários estravagantes eles é isto de uma infra-estrutura que faz parte da super-
são apenas uma peça ideológica deste sistema. estrutura? A ideologia faz estragos mesmo entre aqueles
Em suma, o filme i-Jlma .mercadoria subII!.etiQ.~ que se empenham em denunciá-la. Sejamos honestos.
)<leido):uerQ>~ e todos os que nele participam encontram-se A monopolização dos meios de produção cinematográfica
sujeitos à estrutura monopolista do cinema. «O filme (técnicos e intelectuais) põe em jogo uma nova forma
não é um produto para si próprio, não é um meio jurídica que exprime as relações de produção no estádio
de expressão artística. A sua produção permite aos do imperialismo: a de um sujeito colectivo.
financeiros uma colocação útil para os seus capit8is, A classe operária não se tinha enganado acerca
ela é, o mais possível, industrial e a estandardização do carácter monopolista da protecção cinematográfica.
do produto mostra que um critério comercial preside A C. G. T. elaborou em 1937 um plano de nacionali-
a todos os estádios da indústria>}(59). zação dos meios de produção cinematográfica (labora-
O que saliento desta análise, para o meu propósito tórios e estúdios) e das grandes empresas de distri-
particular, é o seguinte processo fundamental: a estru- buição (62).
tura monopolista do capital financeiro e industrial
origina a monopolização da matéria prima intelectual. 11. o CAPITAL-AUTOR
Pretendo ir mais longe e descortinar a relação entre Volto ao meu propósito. Ele assenta em duas
esta estrutura monopolista e a categoria do sujeito proposições que reflectem a própria dialética do processo

(") MERCILLON, 00. cit., p. 197. (6') Cinéma et Ideologie. 6Ed. Sociales., p. 89.
(58) .. err. para maiores pormenores, Ioid., p. 133. (61) Ibid.
(50) Ioid., p. 163. (") L'É GLISE, 00. cit., p. 140.

70 71
de socialização do sujeito criador. De início, os tribu- 1. . O capital, a alma danada do cinema
nais reconheciam o produtor como único autor do
Nos anos trinta os tribunais tomam posição: «não
filme, tendo em conta as responsabilidades financeiras
pode negar-se às produções cinematogrãficas o carácter
que lhe incumbiam. Porém, a luta travada pelos
de produções literárias, artísticas, científicas» (60J.
autores para obterem o reconhecimento dos seus
. As condições materiais desta criação deSIgnam
«direitos» de criadores intelectuais trouxe à luz a combi-
o autor, isto é, aquele que realiza o processo capita-
nação da produção intelectual e da produção industrial.
lista no filme. O autor/produtor faz parte do apa-
Ela fez (,surgir,) um sujeito colectivo comprometido
relho de produção, participa, na sua própria quali-
(<noprocesso da técnica, considerado como um processo
dade de autor, no processo de produção. «O produtor
de produção de mercadoria» (63) e cujos. interesses
é, de toda a maneira, uma mãquina de produção
morais estão subordinados em última instânCIa ao lucro
intelectual da qual cada peça possui um cérebro e um
mãximo do produto filme. Este aparecimento-reve-
talento particular, mas da qual todas se conf~n~em
lação..,gue fazia entrar na «esfera âa cria?ão» o argu-
no produto do conjunto» (66). Este texto de JU~lsta
'meiltista, o autor dos diãlo~ o realizador, et~,
é, indubitavelmente, um texto materialista. A deSCrIção
)JrodíiZiu ara o direito um e eito estético revolucionãrio:
metafórica é, ao mesmo tempo, descrição do processo
tomar em consideração a «essência socia') o cinema.
real da criação cinematogrãfica.
Não ignoro que os desvios por mim descritos são
O processo de produção é a essência (burguesa)
profundos. Mas, tais desvios, são justamente aqueles
do filme. A arte é simultaneamente « --6.
que o direito tomou de empréstimo e são significativos.
«momento') o capital. «O fi me não é produto para
Eles provalll.JLller étua contradição entre as represen-
si próprIO. Nao é um meio de expressão artístic.a.
'tações ideológicas que veícula o iscurso JUrI ICOe. a
A sua produção permite aos financeiros uma colocaçao
prãtica desse mesmo discurso. E .provam o próprIO
útil para os seus capitais» (67).
~füiiCionamento da ideologia Jurídica que Brecht descre-
Com efeito, o produtor (,dirige todos os elementos,
via genialmente: «O que é divertido é que eles (jus-
sucessivos donde resulta a produção completa de uma
tamente eles!) não poderiam mais exercer a sua prãtica
obra cine:natogrãfica, de que ele é responsãvel» (68).
nem abandonando a sua ideologia nem concretizan-
do-a»(").
(") DOUAI, 3 de Abril de 1930, citado por Daburon,
Le Réolizoteur de I'oueore cinémalographique, thêse, Paris, 1961,
p. 381.H
(") HURET, ob. cil., p. 10.
(") MERCILLON, ob. cil., p. 163.
(") BRECHT, ob. cil., p. 205. (U) DULLAC. Rapporl au comité direcleur de la chambre
(") Ob. cil., p. 207. syndicale cinématographique française, 29 Junho 1927.

72 73
Entenda-se, a inteira responsabilidade financeira. As auxiliares eSJlecializados, devidamente pagos por remu-
categorias juridicas tornam-se parte sustentadora 'lfo"' ~neração certa ou à tarefa, e além disso substituíveis por
processo (lo capital, Já que o capital se realiza ta..mbém outros empregados da mesma especialidade, que vão
atravesaelas, quer seja a categorIa do sujeito,3uer processar a.J~f.a mais ou menos intelectual ou mecâniça
-Seja a da criação. A oEra cinematográfica temo jjue lheª-.cab@; que a repartição pelo produtor do
seu ('autor» mesmo se o autor não é já um sujeito mas trabalho intelectual (... ) não poderia ter por conse-
um processo. Os documentos são irrefutáveis e são <te quência dar a todos, os que contribuem para fazer
uma importância extraordinária: o dIreIto vaI confessar percorrer à obra as suas etapas sucessivas, um direito
o que jamais julgaríamos que ele p'udesse confess.ar.: pessoal sobre a exploração do filme (... »} (69).
;)l(_ o verdadeiro sUleito criador é o capital. Esta confissão vai
?fi' lileincarná-la ~rópria ideologIãdo sujeito: o caJlital
torna-se a p.;:£pria pessoa que ele inter}lela* eadopta a
produz. °
O produtor é o EToprietário-<ia-<<eci.aJ)ã02} que ele
sujeito capital reveste-se com a máscara
da criação em todas as etapas industriais. A influência
máscara do sujeito, anima-se, fala e subscreve contratos. determinante do capital torna-se, para o direito, a influên-
O capItal nao pode prescindir do seu querido sujeito •• cw criadora; a direccão tm~a, uma direccãQ cria-
de direito,já que o sujeito de direito é o seu sujeito. dora; os alLtpLeJJ,proletários P..âgosà tarefa gue levam a
cabo uma obra-«tarefa>} e não uma actividade criadora,
° Afirmo-o, os documentos sao IrretutaveIs.
Tribunal de Paris, a 16 de Março de 1939,
---estatuia--n estes -term os-:('considerando- -que-a -protecção
a meio caminho entre o homem e a máquina e que se
.. -----podem-par -nárua -se-não -satisf azem;--0-capital-toma
legal da propriedade artistica pode, através da categoria o rosto da Arte, mas guarda os necessários métodos do
muito especial e ainda nova da criação cinematográfica, capItal: os dos compradores da força de trabalho,
ser plenamente, assegurada aos produtores já que, os de guarda-forçados, os dos contratantes privile-
sem o seu trabalho intelectual a obra não existiria (... ), giados. (,OS autores do filme são todos os que, na
que o produtor, isto é, a pessoa física ou moral cuja sua participação na elaboração da obra cinematográ-
.I!ro~o é a de realizar obras cinematográn~ ;e fica, manifestam uma actividade criadora, sob a condição,
manifesta incontestavelmente através de uma activi- contudo, de não estarem subordinados ao produtor
"dãí1e---criaaora de ordem intelectual, conforme a qüe por contratos de aluguer de obras ou de serviços» (70).
se eXIge a todo o autor; que imagina ou exprime A revelação é espantosa: a actividade criador.£l- i. é.
as ideias que constituirão o guião, que exerce sobre .2...JIue exprime ('a personalidade do homem» - pode
toda a realização e exe.f)Jção_umJl'::inTlUê~ ~ sujgjJa, a um contrato. Dito por outras pala~,
!iiinãiite e que é sob a sua direcção criadora,JIuer pes~otl1
quer por delegação que ele exerce sobre os múltIp os (") Paris, 16 de Março de 1939, Dalloz hebd na daire
1939, p. 263. .
* a quem ele se dirige: que ele suscita, motiva (N. T.). (") PARENT,Le film, 17 Janeiro, 1942.

74 75
bastam cláusulas contratuais para transformar~
É o capital que se torna o essencial da obra.
actividade criadora em dls êndlO uro e simples de for a
«Torna-se indispensável reconhecer ao produtor o direito
de trabalho. O contrato não é já um acto e vontade
de representação; chegar-se-ia, com efeito, a conse-
puro e simples, ele permite, no seu funciori~mento,
quências absurdas se se pretendesse privá-lo de tal
esta extraordinária mutação: fazer de um artISta 11m
direito em benefício dos outros autores do filme, cada
proletário. O autor é o «mandatário da sociedade
(comprometido) para dirigir a produção e não para um poderia então dizer-se com direito a disp.or .d~
sua própria parte na obra comum, não obstante tn:dMn-
a criar (... ); ele é o executante (tal como) o chefe
sivel, ou poderia unir-se para dispor desta obra mde-
de orquestra que dirige a execução de um programa
musical ou os artistas que o interpretam no palco (... )>>(71). pendentemente dele (... ») (74). . .
O que é indivisivel, isto é, o que constItUI a
É a grande partitura do capital, sob a batuta do
essência da obra cmematogr.ãfiii:a é o capttal cujo repre-
capitalista. E se, para o tribunal de apelação alemão,
sentante o produtor, é o autor único. E o perigo
o realizador pode desempenhar um certo papel em
pressentido pelo tribunal é real: é a colectivização do
face do público, este papel (<traduz-se na importância
produto artístico. Deixe-se os «outros» declararem-se
e na reputação da sociedade que deu um emprego
fixo ao realizador e confirmou as suas capacidades autores eyê-Ios-emos bem de,pressa..!texp.uJ.s.anw-p'rodu.t9s;
intelectuais» (72). É o capital que dá o nome a fim
lk deixem-se aos operários os meios legais de se apro-
de que o nome se ligue ao capital. A subordinaç~o
Yj( priarem dos meios de produção e eles verão que podem
dispor da produção «independentemente de nós»: tradu-
jurídica dos «auxiliares» aos capitais empregl!~s, ~ dIs-
zamos: independentemente do capital.
farce do capital em sujeito criador, a necessárIa (unter-
mutabilidadc» dos operários do filme traduzem-se num.a
2. Retórica e propriedade privada
formulação estética necessária: o trabalho dos auxI-
liares não é essencial ao processo artístico cinemato- O produtor e os juristas vão bater-se neste terreno.
gráfico. . As coisas passar-se-ão como se o cinema fosse uma
(,Em caso de ausência ou de falta às suas obrIga- uma espécie de teatro filmado, onde o que prima é o
ções, o realizador mantém-se essencialmente substituível «literário». Poder-se-á assim expulsar daí «esteticamente»
sem que a obra por isso se modifique no que quer que os auxiliares. (,Se se muda de realizador não se terá
seja» (73). mudado o tema nem a sucessão das cenas, nem o
diálogo (... ); a ~ssência da obra não terá sido modi-
ficada» (75). O realizador, diz o tribunal de apelação
(71) Seine, 24 de Maio de 1938, Gazelle du Palais, 1938,
II parto p. 509.
(") Seine, 19 de Março de 1935, Gazette du Palais, 1925
(") Tribunal de Apelação alemão, já citado.
II part., p. 62.
(") Seine, 24 de Maio de 1938, já citado.
(") OLAGNIER, Le droit d'auteur, 1934.

76 77
de Paris, não. po.de ser um auto.r dado. que permanece tográfico é a pro.priedade dos bancas. .Q...pJ.:Q.c.e.ê-ªº
do.
«essencialmente substituivel sem que a essência da abra capital fecha-se sabre si mesmo na sua própria palavra:
sej a mo.dificada co.m isso.»('"). A categoria estética do Ci' SUJelto -giiefara."1J capItal to.rno.u-se o seu próPrio
teatro - isto é,_11 ideologia da pala()ra -yai ser()ir contra retÓrICO: o. arauto do seu próprio pro.cesso.(18).
os auxiliares. O~Capital ()i:li-J,o!.nar-seo Verbo. O essen-
Cial, alíngua. «O verbo. rima sabre a ima em e o IH. CRIAÇÃOE SUJEITO COLECTIVO
~Iltista faz esquecer o realiza 01'» (").
Impo.rta recordar este facto económico capital: que é Mas o triunfo da «plebe» das imagens sabre a
graças à invenção do som que a alta finança tomou nobreza do verbo. caracterizava o tempo do cinema.
posição na indústria cinematográfica. Isso quer dizer O crescimento. das fo.rças pro.dutivas na indústria cine-
que, se no tempo do mudo. o. cinema era remetido mato.gráfica so.cializava o sujeito criado.r. E o sujeito
para o gestual do teatro, no. tempo do sonoro ele é colecti()o capitalista indica()a o que era o cinema. Não.
remetido para o verbo do teatro. Quero dizer com quero dizer que o pr9J!1!.t.o.:cs.e:rLeliminadonesta dialé-
isto que a ideologia da palavra, mesmo se esta pala- tica~ pois 'tal-seri:;_ll.xJ.>~lsar - 0". ca-pit~l: -qJiêro - diz~r
vra era muda, perseguia o cinema e que esta obces- "que-a luta pelo. recon~eçilllento_de.um sujei.to criador
são se fez carne quando incarno.u a evolução. das forças põe a nu a verdade dialéctica. do .pro'cesso cinemãi.~-
produtivas. 'gráfico. a coexistência fo.rçada da --arte-
- ---
-
e <ia 'indústria
-----~.".- . -~,
Esta «obcessão.»estética, esta mania retórica, arti- que não. po.de existir senão so.b a fo.rma sujeito..
cula-se sabre a «obcessão» do pro.duto.r. O verbo. cinema- E po.deria acrescentar que esta consciência necessária
da co.existência nada mais é do que o pôr a nu o objectivo
da so.cialização o.bjectiva d_~sforças pro.dutiyas.
(") Paris, 10 de Fevereiro de 1936, Gazette du Palais, O modo. de produção. capitalista destrói perpectua-
1936, L° part, p. 691.
('17) DADURON, Le Réalizateur de l'oue"re cinématographique, mente a ideal agia burguesa. O que destrói o cinema
these, Paris, 1961, p. 41. ,<Uminventário dos escritos teóricos «burguês» é simultaneamente a catego.ria do sujeito
desta época faria facilmente surgir uma surpreendente conver- de direito criador pelo aparecimento. do sujeito colectivo
gência de concepções: a imagem é como uma palavra, a sequência e o desenvo.lvimento. estético desta categoria pelo apare-
é como urna frase, urna sequência constrói-se de imagens corno
urna frase de palavras etc .. Colocando-seneste terreno, o cinema,
cimento da «essência» do cinema.
proclamando a sua superioridade, condenava-se a urna eterna
inferioridade. Em face de uma linguagem subtil (a linguagem
verbal) defenia-se a si próprio, sem o saber, corno um duplo (") Em Brecht a retórica do sujeito é eliminada pela
mais grosseiro. Mais não lhe restava do que arvorar orgulhosa- própria evacuação da palavra sujeito. .Não são as palavras
.mente a sua qualidade de plebeu ... no terror secreto de um que, em última análise, efectuam a critica, são as relações e
irmão mais velho, de melhor casta». CBRISTIAN METz,Le cinema: as não-relações internas de força entre os elementos da estru-
Langue ou language. Communications, IV, 1964, p. 66. tura da peça». ALTHUSSER, Pour Marx, Mas. pero, 1965, p. 143

78 79
A fase industrial da produção cinematográfica lingua~~m dos comentadores as palavras: investimento,
produz a sua contradição: a obra (confessada) colec/iça. rentabIlIdade, compromisso (... ») ('9).
O sujeito de direito criador é pulverizado em sujeitos . E o t~ibu.nal. de a~elação de Paris pode precisar
de direito criadores de um processo artístico: o filme .. o papel da mdustna no cmema at.ravés de uma confissão
A lei francesa de 11 de Março de 1957 toma em d~ mo~ta: «O produtor não é um autor (... ) mas parti-
atenção este assunto. Se, com efeito, ela admite no apa dIrectamente, com o realizador, na elaboração
seu artigo 14 que têm «a qualidade de autor de uma do filme, pela entre a dos meios materiais necessários
obra cinematográfica» a ou as pessoas fisicas que realizam a esta e~a~ora~ão; pertence-lhe, além ISSO, garant.ir
a criação intelectual desta obra, e que «se presumem ~ com~rcIalIzaçao da obra e a rentabilidade dos fundos
salvo prova em contrário, coautores de uma obra m,:es~Idos (... ») (80). A confissão, disse-o, é de monta,
cinematográfica realizada em colaboração: 1.0) o autor pOIS ~ uma .confissão dialética: a da contradição entre
do argumento, 2.0) o autor da adaptação, 3.°) o autor uma IdeologIa artística, que mede «o valor de uma
do texto falado, 4.°) o autor das composições musi- personalidade pelo modo como ela se exprime numa
cais (... ), 5.°) o realizador (... )>>, ela subordina dupla- obra e o resultado de uma obra pela quantidade de
mente os autores à produção. O lugar desta subor- I person~idade que nela se encontra expressa» (81), e uma
dinação indica a articulação essencial do processo. 1 produçao que está ameaçada por esta própria ideologia.
De um lado, ('(... ) os autores da obra cinematográ- I A confissão é de monta, porque se o produtor não é já
fica (... ) estão ligados aos produtores por um contrato um. autor, ele é o autor por excelência do filme merca-
que, salvo cláusula em contrário, implica cessão em seu
benefício do direito exclusivo de exploração cinemato- I dona.
autores.
Ver-se-á até onde pode ir o direito moral dos

gráfica (... ») (artigo 17.°) j por outro lado «se um dos


autores recusa terminar a sua contribuição para a obra
J Um tribunal pode anular a seguinte cláusula de um
contrato entre produtor e realizador. «Nós reserva-
cinematográfica (... ) ele não poderá opor-se à utilização, I mo-nos o d!reito de proceder a qualquer modificação ou
em vista do acabamento da obra, da parte desta c?~te que Ju~guemos necessári~s (... ) j salvo impossi-
contribuição j á realizada (... )>> (artigo 15.0). bIlIdade, sereIS consultado acerca destas modificações;
contudo, se um desacordo de qualquer natureza persistir
É a linguagem própria - «noblesse oblige» - de um
~n~es, ?u.rante ou após a produção, permaneceremos os
advogado comum. «A obra cinematográfica faz apelo
UlllCOS JUIzes da decisão final. Ainda neste caso, compro-
ao trabalho, à imaginação, ao sentido artístico de um
grande número de pessoas, ao mesmo tempo que à
ciência e finalmente ao poderio financeiro. É o «factor (a) Conclusões Lecourtier, Paris, 20 de Janeiro de 1971
Dalloz 1971, p. 307.. '
económico» que exerce por necessidade uma influ'ência ('0) Ibid.
que o legislador não pode ignorar. Surgem então na (") BRECHT, ob. cl.l., p. 216.

80 81
6
metemo-nos, a vosso pedido eventual, a retirar o vosso É o tempo humano, «esta dissolução do processo
nome do genérico e da publicidad81). Pode, na sua dramático em tantas imagens individuais, que resultam
lógica, condenar o produtor a indemnização por perdas (... ) do facto de que tudo é reunido em curtas cenas
e danos e a uma compensação por dano «moral»; porém, filmadas independentes (... ) o trabalho do realizador
na sua lógica que é a de assegurar o bom funcionamento não é somente pôr formalmente em cena, mas transpor
da produção, pode deixar ao produtor a exploração do na realidade todas estas coisas indispensáveis,) (84). Ele
seu filme. O direito moral desaparece no próprio dá «a vida cinematográfica» (85) ele leva a cabo «o acto
momento em que ele pode constituir um obstáculo criador essencial: a transformação de um texto em
para a produção. E quando o tribunal de apelação, imagens» (86), ele «vela pelo ritmo da sucessão das
ocupando-se por seu turno do assunto, teve de encarar cenas, como pela escolha dos ângulos de vi~ta, ele
a angustiante questão de saber qual dos dois, realizador participa essencialmente na criação artístIca do
ou produtor, deve prevalecer - qual das duas, arte ou film81)(87). Melhor: ele «cria o movimento e as imagens
indústria - não temeu resolver o problema na contra- que são a própria essência da arte cinematográfica,) (88).
dição absoluta da denegação de justiça (pois a recusa E, ao mesmo tempo que o produtor não é já o
de estatuir analiza-se numa demissão das próprias autor artístico, a essência do cinemaJ numa reviravolta
funções da justiça) remetendo «as partes (... ) a porem-se impressionante, ~ analizada como «reprodução» ideoló-
de acordo» (82). ~ca do real
«Se a contradição entr.e_os interesses materiais e os
interesses imateriais recebesse uma solução (... ) todo 1. Da ideologia como sujeito de direito
este aparelho unificado e racionalizado com tanta arte
teria também ele interesses morais e imateriais. Em Aqui mesmo, a ideologia vem em socorro da
resumo, se tudo não conduzisse exclusivamente à pro- produção: a máquina de filmar !!produz a estrutur..a
tecção do lucro, nós teríamos pelo nosso lado pouca do sujeito e o efeito desta reprodução é transformar
coisa a propor-lhe» (83). a Ideologia do S.ujeito em sujeito da ideologia.
A cat&goria do sujeito - e da criação - é salva- - Não exagero. «O aparelho cinematográfico é um
guardada na exacta medida da produção, mas o desen- aparelho puramente ideológico. Ele produz um código
volvimento das forças produtivas criou este sujeito
(") Tribunal de apelação alemão, já citado.
'()olectivo.. ijueanuncÍa «a incoerência ideológica» das ") BECQUET,Le droit d'auteur em matriée de cinéma, 1947,
relações de produção. n.O 49.
~ ---~'----~- (SO) LYON-CAEN, LAVIGNE, Traité du cinéma, 1947, n.O 49.
(87) Paris, H de Junho de 1950, Dalloz, 1951, p. 9.
(88) Paris, 13 de Maio de 1964, Juris-Classeur périodique,
(82) Paris, 20 de Janeiro de 197,1, já citado. 1964, II parto 13:932; Tribunal de apelação, secção civil, 1.0,
(") BRECHT, o'. cit., pp. 205-206. 22 novo 19666, Dalloz, p. 485.

82 83
perspectivo dir.ectamente herdado, construído sobre o
modelo da perspectiva científica do Quattrocento» (8~). vido pela máquina, é a máquina que se faz sujeito.
Não pode falar-se de cinema ('antes de ter desmon- Ela tornou-se o próprio lugar da criação, ela tornou-se,
tado a produção ideológica do aparelho (máquina de. em si, criadora. A máqnina/snjeit& ...apenas pode repro-
filmar) que, pela sua estrutura, se encontra na impossi- duzir o sujeito, Já que ela o <'encerra,) num espaço
bilidade de manter qualquer relação objectiva com o que (<reforça o envólucro begeliano (. .. ) (sic)>>
(93).
real,) (90). O que está em causa, de maneira latente, M. Pleynet
(,Deste modo o cinema foi apanhado de surpresa exprime-o '- de uma vez - sem amb~gui?ad~. ~d..9
(... ) por esta fatalidade da reprodução não das coisas o código perspectivo humanista «garantIdo mstltucIOnal-
na sua realidade concreta, mas como que refractada mente» pelos A. I. E. (de classe), se uma classe pode
pela ideologia (... ); deste modo a ideologia representa-se servir-se p.rovisoriamente deste tipó de represenlação
ela própria através do cinema. Ela mostra-se, fala, que (<serve fundamentalmente uma outra classe (... )_o
ensina-se nesta representação de si própria» (9'). comprometimento da luta de classes neste ponto n~o
M. Pleynet, ('rectificando') a sua posição, acrescenta: incide em primeiro lugar tanto sobrp. a representaçao
(,as questões postas pelo código perspectivo da «câmara como sobre os aparelhos do Estado que a garantem
monocular» forneciam-nos uma prova decisiva da cumpli- como única válida e fora dos quais ela não existe» (""-).
cidade fundamental existente entre o dispositivo de base Por outras palavras, a ideologia burg~esa sancio-
do cinema e 11maspecto importante da ideologia bur- ,naria a máquina de filmar, como aparelh~, já ~ue. a,
guesa (o centrar metafísico sobre ° sujeit.o) ("')'. Djz~r
máquina delilmar reproduz a sua próprIa e~senClal
E se se faz um filme sobre uma greve operárIa, esta
que fi máquina de ~lmar é um. aparelho Id;Ql?gl?o nao
~eve na medida' em que ela estaria rep.roduzida no
signi lCa que lhe seJa reconhecIda uma essenCla ~deoló-
gica (nem que seja confundida com um aparelho Ideoló- '«código perspectivo humanista'" na. medIda .em que
reforçaria o ('envólucro hegeliano,), serIa gara~tJda pelos

- gico' do Estado!), isso significa que a título de aparelho


votado a uma representação do espaço ~a é uma parte
da base mater.ial-de-.uma prática ideológica: as E.rátiQas
aparelhos ideológicos do Estado, salvo se tivesse por
objectivo críticar esses mesmos aparelhos de Estadol
Como? Ignora-mo-lo. . .
~matogr-á.1icAs (... ),)("). .
Dito por outras palavras, aSSIste-se a um retorno Esta algaraviada pretenciosa e pseudo-C1~ntJfica
da Câmara/Sujeito; já não é o sujeito que é absor- que ousa reclamar-se do marxismo revela l~m smtoma:
o imperialismo do sujeito entre aqueles ~esmos gue
pretendem liquidá-lo, em nome do marxismo. E a
(") PLEYNET, Le Po;nt apengle, .Cinétiqu~, n .• 3.
".l Ibid.
(ti) COMOLLJ,NARBONI, in .Cahiers du Cinéma., n.O 216.
("') COMOLLlin Cahiers du Cinéma, n.0211.
••) M. PLEYNET, in .Cinétique&, n.O 9-10, pp. 55 sq.
(") M, PLEYI';ET, art. cito

84
85
reprise ideológica do marnsmo que se encontra aqUi o seu pensamento original,) (95), opor-se-á a criaçãQ..(o
em causa. espírito) ao (,aCaSObistáriCD>)(a matéria). Ir-se-á perse-
Mas o que está em jogo é mais grave: a eliminação guir a re;;lidade nos seus recantos os mais escondidos.
da luta de classes no terreno da ideologia, a jmposl'ibili- Dir-se-á: existe a realidade e existe o (,coração,) da
dade (,mec~n.ic~,)d!J,tomada de consciência. Visto que realidade. «É quando se transporta ao próprio coração
a I'deológill (o _s_~jeito)imprime às leis da óptica a suª, da realidade que a arte televisual se desenvolve num
.nece.s~.ãria~loduçã.o,- o cap~tal é absolvido na fatalidade domínio que apenas ela pode explorar perfeitamente') (96) •
.do seu . processo: Dir-se-á: mostrar a realidade tal como ela é, é ainda
O fatcÜismo ideológico é a (,última jogada') estética; ('criá-la'). Um tribunal vai ter essa experiência amarga
ele apresenta esta vantagem política: a eliminação (,de e ingénua. Tendo de julgar se uma emissão de tele-
nature,) da luta política. visão poderia ser legalmente protegida pela legislação
O que reproduz a máquina, não é já a ideologia; sobre direitos de autor, ele exprime-se nestes termos .
é antes a ideologia que produz a máquina. Deste modo . «Basta, diz ele, assistir a algumas cenas de mon-
a ideologia torna-se, ela, o sujeito, e o real, o predi- tanhas, captadas em paisagens sugestivas e bem
cado: levou a cabo este golpe de força ('estético') de escolhidas, onde se vê camponeses na sua cabana,
aparecer como o sujeito criador do filme. ou ainda no mercado dos queijos trocando estes por
dinheiro com um feirante típico, muito vivo e captado
2. História e criação ao vivo, etc. para ficarmos convencidos de que se
trata mesmo de uma criação,) (97). Tudo aquilo de que
O nosso sujeito executou todas as figuras, tomou se está (,convencido') é que tal tem o ar de verdadeiro I
todas as poses. Resta-lhe tornar-se ('proprietário') do Mas eu queria dar um exemplo mais espantoso
acontecimento, sobre-apropriar-se da história. A aven- ainda da prática jurídica. Este exemplo vai permitir-me
tura está nisso,lIe forma muito exacta, e reside nesta articular o conceito de sobre-apropriação sobre o que
contradição: Q.IL,«Jacto.s.>l.....PJl.LLse
tornarem proprieda<!.e pareçeria ser o menos susceptível de apropriação pri-
âll um autor devem ser. (,criaíiü.S>Lporele. Ora como vada: a história.
'se pode ('criar') ou «produzi!'» qualquer coisa que verda- O problema concreto pôs-se nestes termos: um
deiramente acontece? Se isso não constitui problema cineasta amador tinha filmado, por acaso, o assassinato
para o filme (,artístico'), para a «filmagelID)em directo
é j á problema. (") GAUDEL-JRUYER, La Realité, source spécifique de la
criation télévisuelle, "Revue internationale des droits d'auteu1'>l,
A contradança jurídica vai ser prodigiosa. Com
Abril, 1970.
efeito se ('a criação visual deve, reflectindo a persona- (96) Ibid. .
lidade do seu autor, através da escolha e da compo- (97) Tribunal de grande instance, 28 de Abril 1971, Revue
sição das imagens, exprimir no seu desenvolvimento internationale des droits d'auteur, Julho, pág. 95.

86 87
de Kennedy, filme de 480 imagens em 8 mm que este é especificamenteconferído pela lei sobre o direito
se apressou á. vender ao editor da Life Magazine. de autor, e qualquer reclamação a este propósito
Ulteriormente, um livro foi escrito sobre este aconte- deve ser apresentada ao Congresso». E sobre a criat.i-
cimento (Seis Segundos em DalIas, por J osuah vidade, ele invoca que cada fotografia (ereflecte a
Thompson) que reproduzia ilicitamente 22 imagens do influência pessoal do autor e que jamais existem duas
filrrie. Um processo foi instaurado e Thompson sustentou que sejam idênticas» (99).
como defesa três espécies de argumentos: 1. tratava-se A dialéctica do juiz americano é espantosa. A his-
de um acontecimento da actualidadej 2. sobre o qual tória é o fundo. o domínio público, a expressão ab.Stracta
nenhuma criação se tinha operado; 3. e que não podia ãe toda a propriedade e o autor dá-lhe forma, isto é,
ser apropriado como tal sob pena de criar um verda- dá forma de propried~prIvãda a um fundo consi-
deiro «oligopolio» da informação (9S). <Ierado como propriedade privada.
Se resumirmos esta argumentação, podemos dizer
que o acontecimento, na medida em que, por um lado, (") É interessante aproximar esta decisão de uma outra
fazia parte do domínio público e em que, por outro decisão proferida pela secção de recurso do Supremo Tribunal
lado, era re-produzido tal qual, não podia ser apropriado, de New York e incidindo sobre a utilização da linguagem.
já que o sujeito mais não tinha feito do que seguir-lhe •Isolado do seu sujeito, qualquer que possa ser este, um titulo
ou um nome, composto de palavras ordinárias, não pode
o curso objecti~o. tornar.se propriedade de quem quer que seja. Dissociado da
Ora, o juíz Wyatt recusou esta defesa utilizando obra, este titulo ou este nome não constitui senão simples
uma estrutura do real que distingue o fundo e a forma. palavras e todas as alavras da nossa Hn ua ertencem ao
Se é verdade, observa ele, que «um acontecimento da jQminio pÚhliçp (in the public domain) ;-9uem quer que f c ou
actualidade não pode ser protegido pelo direito de escreva tem Q direito Datural (inherent rights) de utIhzar todas
as palavras que a Iingua inglesa comporta, assim como todas
autofl) não o é menos 'que a Life não reinvindica qual-
- .• quer direito de autor sobre o elemento de actualidade
do acontecimento, mas unicamente sobre. a forma parti-
as combinações que ela permite por pouco que esta utilização
seja legitima.. (O'Hara c. Gardner Advertising). A própria
Hngua surge estruturada sobre a propriedade privada. A inter-
rogação linguistica deveria tomar em conta a dimensão jurldica
cular do seu registo. Quanto à acusação de oligopóIÍo,
da lingua, isto é, a sua efectividade social. Propomo. nos apro-
-co"ntenia-se em óbservar que a Life não reinvindica fundar este dado em trabalhos posteriores .. O problema põe'.se
qualquer direito de autor sobre os acontecimentos de também quanto à apropriação da informação. Trata.se, por
DalIas, mas sobre a forma particular de expressão mate- sua vez, de factos também pertencendo a todos e que contudo
rializada pelo filme. «Se se trata aí de oligopólio, são .propriedade. das agências noticiosas. A jurisprudência
decidiu, subtilmente, que a apçopriação podia ser efectiva antes.
da divulgação, mas que após esta divulgação .cada um tem o
(") Aff. Times ineorporat.ed. Cito B. RINGim, Eoolução da direito de dai tirar proveito.. (Req., 8 de Agosto de' 1961,
jurisprudência nos Estados Unidos em matêria de direitos de autor, Dalloz, 1962, I parte, p. 136; Supremo Tribunal, 17 de Dezembro
.Revue internationale des droits d'auteufl), Janeiro, 1971. de 1968, .Revue internationale des droits d'auteufl), 1970, p. 91).

88 89
A sobre-apropriação do real constitui-se pelo simpks
..r.egisto_do..xeal. Não se poderia ter ido mais longe ('00).
Eu «mobilizei» as contradições «fiO seio das coisas
e dos acontecimentos» e mantive «os acontecimentos,
eles próprios, em movimento durante toda a duração
das investigações»('O'). A ideologia do sujeito foi tomadat)
~_p'ara lhe assinalãr a falência; mas é uma falência
~(ambígua)}. Quero dizer que é esta própria falência que ) 4 - A forma mercantil do sujeito
a faz rirer. Com efeito, o sujeito, longe de temer a
contradição, faz dela o seu pão quotidiano. Voltando
contra o sujeito as suas próprias armas, impõe-se saber Acabei com o sujeito criador e posso avançar
que estas armas perecerão com ele. presentemente o que permitirá fechar o processo da
- criação ou mais precisamente o que concluirá a dialéctica
do reªlJurídiQ9. O sujeito que reproduz vai produrir
o seu próprio concorrente: o sujeito que é reproduzido.
Digamos, para sim121ificar,que o' direito do fotógra o
sobre a sua foto' pr;;J;;z .0 direito do foto ra ado sobre
'a sua imagem."',-/ ' .---------------
Quando digo que se impõe fechar agora o processo,
quero dizer simplesmente que o homem, na sua des-
crição do homem, não encontra mais de que uma
essência privativa a qual o reflecte a ele próprio, que
a propriedade privada do fotógrafo não encontra mais
que a propriedade privada do fotografado; quero dizer
que, neste real pré-constítuido..eIJLpr.o.prieda~ivada,
3..P.rõpriedade privada se incorporou «no próprio homem.).
(' o O) Para a 'pequena. história, acrescento que esse mesmo
Quero dizer ainda que a reproaução ao real re-produz
JUIZ recusou sancionar o roubo dessas fotografias porque o não
tinha cometido de má-fé, tendo em conta «ointeresse que tinha a propriedade privada 'como «essência» do homem e
o público de dispor das maiores quantidades possiveis de infor- que a objectividade histórica da ,propriedade está_
mações sobre o assassinato." e sobretudo pelo facto de que radicalmente suprimida.
ele não era um concorrente sério pois em nada tinha afectado A jurisuiciilade do real é levada a cabo como
a difusão comercial da ohra protegida. Ahl em que termos
galantes são ditas estas coisasI pro'dúção do real na determinação da própria proprie-
('0') BRECHT, ob. cit., p, 220. dade.

90 91
Disse que. o processo criador é o processo da
própria propriedade privada. Queria precisar mais
---suj~o serve então, precisamente, de expressão geral a
esta ---:..:......;...:..=:..:..=.:.::.~:::.::..:
libérdade» (') .• ~--:-.
adiante. Este processo não se torna total senão produ- 'Devo precisar o meu propósito. O que quero
zindo a sua concorrência. Direi mais: esta concorrência. demonstrar é ue o su' eito de direito na sua própria
é a própria condição do seu movimento; o que faz es~rutura, é c~nstituí~o sobre o conceito e Ivre pro-
que ele se encerre a ele próprio. E se se estuda o _prledade de SI própriO; é que esta Forma, que é a
movimento do movimento, trata-se de um movimento ---" }orma-mer.cad?ria da. pesso~ - o conteAdo .c.91!.ct.e~oda
que se quer imobilizado, que gira sobre si próprio. r mterpelaçao IdeológICa da pessoa como sujeito de VE~
Dito de outro modo, o concorrente do sujeito de direito -, apresenta este carácter, inteiramente extraor- U>c.>'-'
~.
direito reprodutor é O-ê.llleito de direi.t.Q..reproduzÍdÕ, JI;.. dinário~ de produzir em si, isto é, na sua própria Forma,
isto é, uma decomposição mercantil da categoria do. r a relaçao da pessoa com ela própria, a relação do sujeito
~\.Oh
sujeito de dLreLto ou, se se prefere, uma decomposição que se toma ele próprio como objecto. Este carácter,
mercantil da (,essência» do homem. A forma mercantil de facto espantoso, designa",a relação jurídica de si
aa criação produz a forma mercantil do sujeito de consigo; indica que o homem investe a sua própria
direito e reciprocamente. .YQD1ade no objecto que ele se constitui, que ele é
• O nosso' primeiro momento descrevia a lfJfJJ1J!. para ele próprio um produto das relações sociais.
I mercantil Jia_-cr-iação. Foi o conceito de .sobr.e::.apro- O que vou pois descrever, definitivamente, é a necessi-
priação do real que se tomou em conta. Ele designava gade para ª pessoa humana de tomar a Fawª Sujeito
esta vocação j:uridic!1-do real a llod.e"LS.er.sobre-de coro- de Direito, isto é, em última instância, de tom;r a
_Rosto em propriedade privada. O nosso segundo Forma geral da mercadoria (2).
momento - aquele a que chego agora - significa o Ocupar-me-ei, como jurista, das condições jurídicas
.J' modo da reapropriação do real pelo sujeito de direito, desta Forma e ocupar-me-ei ainda das contradições

-. o momento do retomar pelo sujeIto de dIreito da sua


('essência» de proprietário. ~ste segundo momento é
que ai se desenvolvem.

(') PACHUKANIS Ob. cit., p.~ .


3-P.0stulaç!.o de um real sempre-já-privado, isto é,
o real que designa o homem como proprieffiio da sua (') A forma mercantil «torn~ a forma geral dos pro-
dutos do trabalho em que, consequentemente, a relação dos
produção. homens entre si, como produtores e permutadores de merca-
Este momento exige o seu conceito: avançamos o ~ dorias, se tornou a relação social dominante. (<<O Capital., L. I,
de Forma Sujeito de Direito. l!tJ I t. I, p. 73). Marx precisa nestes termos «o que caracteriza a
Por aí continuo o trabalho ensaiado por Pachukanis: época c~pitalista é, pois, que a forca de trabalho adquiro para
o próprIO trabalhador a forma de uma mercadoria que lhe
«EIf afirmo apenas», dizia ele, ('<Luea propriedade só pertence (... ), por outro lado,~.JU}.aS_a....Ilartirdeste momento ..
~ se torna o fundamento da forma jurídj,ç.a-enguanto ,qJlLa forma mercadoria dos produtoue torna a forma social
livre~ disposição de bens no mercado. A categQria de ., dominant!!.'. (Ob. cit., p. 173, nota i).
----------------------------
92 93
",. Com efeito, se o discurso do sujeito de direito sobre Já não se discute mesmo, em direito, que qualquer
a história tal como ela poude «produzir-se>}- e entendo expressão da personalidade - vida privada ou imagem
por isso as condições jurídicas do discurso histórico de si próprio - «pertence ao património moral de toda
- se confessa como o mesmo discurso do processo da a pessoa física e constitui o prolongamento moral da
propriedade privada, ele desdobra-se na contradição sua pessoa»('). Não se discute mais que «o fotografado
mais crucial. Numa única proposição, poderia dizer p~ssui, sobre a sua imagem e sobre o uso que dela é
que, ao me~ tempo que oh.QlU.lWl~é--lU'Q'pI:,tetátiQ feIto, um direito de propriedade absoluto do qual
da~u~J1Íst()rii,-anÍstórLa_ do~homem acaba e ultra- r
ninguém pode dispõr sem o seu consentimento>}(.).
passa a propriedade privada. A prática jurídica regista ,Não se discute, definitivamente, este facto fundamental.:
acontradIção. Ver-se-á como ela a resolve. que o sujeito é proprietária, de ,si próprio e que ,s~
se lhe «rouba>}o seu reflexo ou a su'a «vida», rouba-se-lhe
." ,---
-

Secção I. - A forma sujeito de direito uma parte de si próprio pela qual lhe é devida repa.'
,raç.ã(). De facto, o direito diz-nos a seguinte coisa:
A Forma sujeito de direito é aporética, isto é, o sujeito existe apenas a título de representante da merca-
põe um problema que não pode resolver . ..êe o JlOmem doria que ele possui, isto é, a título de representante
é para, e}e mesmo <!cseu ,próprio capi~~~_ª_,cú:cu~o de SI próprio enquanto m ';cadoria (6) .
.i:leste'capital sup(íe ,qqe, ,ele,_pJ:lss~a_disP9r
dele em nome
.(ao preç0 <lill~JlI'.ó.I>!iQ.",....ist.,ü---..h
em nome ao mesmo
'C%pítaI 'qie_o,~Q.I!stituj.' Podemos resumir esta aporiã: (') Paris, 6 de Julho de 1965, .Gazette du Paiais., 1966.
Parte, p. 39. A fórmula é repetida sem cessar.
o homem aeve ser simultaneamente Ilyjeito,-a-ohiecto (') Tribunal do comércio, Seine, 26 de Fevereiro de 1963.
de direito. O sujeito dev'e~reaTizar-se no objecto e o Dal/oz", 1963, .Sommaíre., p. 85.
objecto no sujeito. 'A estrutura da forma sujeito~-d;; ç{i).É necessário afirmar (... ) que o património é o que
direito anaÍiza-se então como a decomposiçã.o mercantil contém todos os direitos pecuniários ou não pecuniárias que
a.cabam por se fundir nele; a sua influência reciproca é dema-
do homem em sujeito/atributos. Vou explicar-me. Sendo Siado grande para qe se possa dissociar aí certos elementos,),
o homem reconhecido «como essência>) da proprie- MAZEUAD, de Juglard, Leçons de droit cioil, 4.° ed., 1970, t. I
dade (3), . qualquer produção do homem é a produção n.O 622). E estes autores têm esta frase magnífica: .0 direito
de um proprietário: melhor, de uma propriedade que francês repara o dano moral e esta reparação, em quase todos os
frutifica e produz a renda e o lucro. A valorização dele casos, é fixada em dinheiro; como se conceberia que um valor
pecu.niári? fosse assim introduzido, a titulo de reparação, no
próprio constitui o seu capital; não um vulgar capital- patrlmómo, se ele não viesse aí substituir um outro valor
-dinheiro, mas um capital digno da essência humana: pecuniário ou moral que desapareceu (... (j) (Ibid.). É genial,
um capital «moral». ~as ?one~tol Com efeito, se o dano moral é reparável em
d~nhe~ro,Isto quer dizer que a perda moral é uma perda de
dmheIro do mesmo modo que uma perda' de dinheiro é uma
(') K. MARX, Manuscritos de 1844. Ed. Sociais, p. 80, perda moral!

94 95
'I

Pela constituição de um património moral em que atributos lhe é arrancado sem o seu consentimento ,
o homem é para si próprio o seu próprio objecto, isto é, logo que um terceiro se apropria deles como
a história do sujeito define o seu terreno: um «verda- objecto, o sujeito descobre-se esbulhado da utilização
deiro édem dos direitos naturais do homem e do que é feita de si próprio: foi ('roubado».
cidadão» ('), o lugar de uma verdadeira circulação de E se ele foi ('roubado», é porque ele é livre de si
mercadorias. próprio, permitindo-lhe a sua liberdade simultaneamente
«Para pôr estas coisas em relação umas com as alienar os seus atributos e reivindicá-los.
outras, os seus guardiães devem eles pr6P:ios pôr-se Porém, queria aqui precisar o conceito. Ele só
em relação entre si a título de pessoas cUJa vontade adquire a sua eficácia real pondo também em circulação
habita nessas mesmas coisas, de tal modo que a vontade mercantil a liberdade do homem. E é necessário intro-
de um é também a vontade de outro e que cada um duzir a exigência ideológica que duplica e encerra a
,I se apropria da mercadoria alheia abandonando a sua, forma sujeito de direito: o sujeito é ele próe.rio 1bjecto
por meio de um acto voluntário comum. Eles. de.v~m de direito permanecendo «!Ivre» de si-2róp-rio. hber-
pois reconhecer-se reciprocamente como proprwtarJOll dade prova-se pela alienação de si, e a alienação d~
privados& (8). Si""'jmlni'l5erdade. Quero com isto dizer que a exigência
Ai está, uma vez m)is, a aventura. a aposta. .lA °i<leoJógica da liberdade do homem se desdobra na
O sujeito de direito deve pôr-se em relação co~sigo yr- 'l!strntura do sujeito de direito constituído em objecto
próprio: ele deve vender-se no seu «foro intImo», ae direito, ou ainda, se desdobra na essênCIa do homem
que é também o seu próprio mercado. Ele deve ser ('que se encontra ele próprio colocado na determmaçã(;"
ao mesmo tempo mercador e mercadoria na feira da da propriedade» (9). É precisamente porque a propriedade
ladra da liberdade. Numa palavra, o sujeito deve surge no direito como essência do homem, que o homem,
poder levar ao mercado os seus atributos. . objecto de contrato, vai tomar a forma jurídica desse
I O capital/sujeito é assim constituído pelos «atrI- mesmo contrato que ele é olhado como produzindo livre-
~-I butos» da sua personalidade, isto é, o que dá ao mente (lO). Por outras palavras o homem, patrimonia-
I suj eito de direito existência social:. o seu nome, o ~eu lizando-se, oferecendo-se sob a forma sujeito/atributos,
direito moral a sua honra, a sua Imagem, a sua VIda longe de se dizer escravo da sua patrimonialização,
I
privada... e ~o mesmo momento em que este capital
I está formado, ele produz as condições da sua circulação.
I A pessoa humana é proprietária dela própria e portanto (') MARX,Manuscritos de 1844, ob. cit., p. 80.
I dos seus atributos. Também, logo que um destes (' 0) (,O comprador e o vendedor celebram contrato em
conjunto na qualidade de pessoas livres e possuindo os mesmos
I direitos. Este contrato é o produto livre no qual a sua vontade
I (') MARX,O Capital, cob. cit .•, Iiv. I, t. I, p. 178. se reveste de uma expressão jurldica comum. (KARLMARX.
(') Ibid., p. 95. .I O Capital, <ob. clt." liv. I, pp. 178.179.
I
I
!
96 97
7
encontra aí a sua verdadeira liberdade jurídica: a sua
ou a minha imagem -, e nada mais sendo esta vontade
capacidade. E direi melhor: o homem não é verdadeira- do que a de contratar sobre e comigo mesmo-~
mente livre senão na sua actividade de vendedor; a sua . devo, nas minhas relações com outrem, surgir como B.f&Ç>
liberdade é vender-se, vender-se realiza a sua liber-
proprIetário de mim ~esmo. Se não .o fosse eu. s~ria (l)
dade (").
para outrem incapaz, I. é., apenas obJecto de dIreIto,
A liberdade articula-se com base na ~ontade (consen- Jb da mesma maneira não poderia tornar-me proprietário.
timento). Eu explico-me. Se me ('roubam» o meu t'[t (,É necessário que o proprietário da força de trabalho
reflexo ou a minha vida privada, nada mais me fazem
a venda só por um tempo determinado, porque se ele
do que ('roubarem:.me» o -JIl--.!ill.. consentimento para a vende em bloco, uma vez por todas, vende-se a si
divulgar o-meu reflexo ou minha vida prÍvada. Rouba-
próprio e de livre que era faz-se escravo, de mercador
ram-me a minha vontade de querer vender-me ou, mercadoria,) (13).
o que vem a dar no mesmo, o meu consentimento a
Volto por momentos a este ponto: a minha capa-
querer vender-me. Esta articulação é crucial: a relação
cidade reside na minha liberdade d~r
sujeito/atributos é subsumida juridicamente no conceito oomo .oEjecto de direito. O ~I)ca~- o escravo-~
de vontade. O direito pode então dizer, numa linguage!p
um objecto de direito. O sujeito de direito permite
humanista e -abstracta, que o sujeito de direito é um
esta espantosa revelação: a produção jurídica da liber- (~
sujeIto que quer (12).
E o conceito fecha-se: tornando-se a liberdade
dade é a produção de si-próprio c?m~ escra~o. O sujei~o -Y
de direito aliena-se na sua próprIa lIberdade. E querIa
vontade - de divulgar ou não a minha vida privada
acrescentar que a forma sujeito realiza, no seu conceito,
----------_ .. -_ .... as (,duas formas absurdas do vínculo social» de gue ._..
(1') O produto da reprodução «é a mercadoria dotada de fala Pachuk-anis,' que se apresentam simultaneamente
consciência de si e de actividade própria (... ) a mercadoria (,de um lado como valor mercantil e do outro como
humana (... ).,. MARX, Manuscritos de 1844, "ob. cit.', p. 72. capacidade do homem, de ser sujeito de direito» (14).
Podemos aproximar o pensamento juridico do que diz Marx
O sujeito de direito realiza a interpelação ideológica
acerca do comunismo primitivo, que enquanto acabamento reali-
zado da propriedade privada (na medida da generalização da do direito, na sua própria forma de sujeito de direito.
propriedade privada) <<negando em tudo a personalidade do Termino: a livre troca de propriedade de si postula
homem, é, apenas, precisamente a expressão consequente da uma reprodução da liberdade de si e uma compra liv@
propriedade privada, que é esta negação.. Ibid., p. 85. desta produção (l5). É assim que a liberdade só encontra
(U) «A vontade_Lo_elemento activo do direito subjecti'éo,.
(MARTIN,Le Secret de la oie prwee, "Revue trlmestrlelIe de droit
civil., 1959, n.O 10). "A ofensa à vida privada só pode ser
(13) MARX, Le Capital, «ob. cit.., p. 171.
justificada pelo consentimento da vitima., (BADINTER,Le Droit
(") PACIIUKANIS,ob. cit., p. 103.
au respect de la {lie privée, "J uris-Classeur périodique." 1968,
I Parte, 2 136, n.O 16. (15) HEGEL: .Através da alienação de todo o meu tempo
de trabalho e da totalidade da minha produção eu tornar-me-ia

98 99
L~~,~
a sua efectividade jurídica face à capacidade de alienar,
do sujeito de direito permite a descrição concreta e
capacidade que assenta ela própria sobre a liberdade.
acabada do real: ele é ao mesmo tempo criação de
Um notável julgamento equacionou a relação fUI1da-
um sujeito e vivido por um sujeito.
mental vontade-liberdade. Um tribunal julgou com
efeito que não se poderia fazer derivar a interdição
do .direito à imagem «seja do direito de propriedade Secção 11. - A cruzada dos cavaleiros do direito ou a
que cada um possui sobre a sua pessoa, seja da noção história de uma doutrina juridica
de liberdade individual ou humana (... ); que nesta É tempo de «fazer um pouco de direito». Vamos
matéria não se pode invocar um direito de propriedade penetrar juntos nos arcanos -ia dizer nas entranhas-
nos termos do artigo 544.0 do Código Civil, não estando -da doutrina. Queria mostrar-vos como se raciocina
a pessoa no comércio e não podendo constituir o na (<teoria pura. do direito'>, ou antes como não se
objecto de um direito real. Não se poderia além do raciocina neste espaço universitário que é também o
mais conseguir apoio na noção de liberdade indi"idual espaço político de um certo saber. E vereis então
ou humana, que não é em definitivo senão a expressão manifestar-se a extraordinária subtileza (,ineficaz)) dos
correcta da mesma ideia de propriedade, tendente a juristas, que tomam os seus raciocínios.:. por dinheiro
afirmar efectivamente apenas que o indivíduo é senhor em caixa!
do seu corpo e da sua imagem}) (16). O que diz a doutrina define o que é a doutrina:
Em última análise, a forma sujeito na sua cons- o apêndice professoral do capital. Impõe-se extrair
tituição sujeito-objecto (de si) remete para um modo de deste corpo doente a sua própria indigência.
produção que determina a própria forma de um sujeito A doutrina, justificando o sujeito de direito, defende
que pode vender-se e cuja liberdade apenas se produz o seu bife. Não importa que ele estf~ja putrefacto:
na determinação da propriedade. Esta análise teórica ela alimenta-se do seu. cadáver. O que ela quer é
.- legitimar um sujeito que seja simultaneamente
(la sua alma e do seu corpo, Isto é, que possa vender
livre

um oulro proprietário do que há ai de substâncial, de toda a


o seu cor o conservando a sua alma. Compreendeu-se
aclividade e realidade, da minha personalidade •. (Principias minha sem custo que é tam m e a que se trata.
da filosofia do direito, ~ 67). Um aulor juridico que por certo Voltamos a encontrar, em bom lugar, o nosso
não leu nem Marx nem Hegel enconlra espontaneamente a Du Guesclin do Direito, o nosso (,sociólogo sem rigor»,
mesma relação: « ... ) abandonar para sempre a sua vida privada
o nosso cavaleiro Carbornier, sem medo e sem mancha,
(... ) seria tão contrário à liberdade do individuo como ceder
por toda a vida o seu lrabalho. (BADINTER, La Droit au respect que se revestiu com a armadura cintilante da dogmá-
de la vie privée, aob. cit.o). tica. O Cavaleiro escreve, sem pestanejar e. sem ceder
(") Tribunal Civil, Yuetot, 2 de Março de 1932, <Gazelle um palmo de terreno, que o nosso Direito repudiou
du Palais., 1932, I parte, p. 855.
desde há longo tempo a ideia de que o ser humano fosse

100
proprietário do seu corpo, porque esta ideia implicava Platão até ... E. Mounier. Leio-vos as últimas linhas:
uma confusão absurda entre o objecto e o sujeito de (,O liberalismo, ele próprio, com as suas tendêncÍi!s
direito (17). Este rigor no não-rigor teria com que em primeiro luifar individualIstas, -fez muito pa~a
surpreender um soldado menos aguerrido do que o valoflzar a Jâela de resS,õ~».Notem bem: (,Esta noção
nosso Du Guesclin. Se não sou proprietário dos meus põe graiides prcililemas filosóficos». Vêde as suas refe-
('atributos», como posso colocá-los no comércio? Du rências: Huisman e Vergez, Métaphisique (F. Nathan,
Guesclin não cura disso! Sejamos honestos. Ele não p. 130-136). Continuo: (,Entretanto, o personalismo,
se importa com isso: ele descobriu, depois, nos campos cujo verdadeiro fundador é E. Mounier, sintetizando
de batalha, abrindo o inimigo de alto a baixo, que o todas as ideias proferidas (nada mais I), vê na pessoa
direito está nas nossas vísceras. uma liberdade comprometida num mundo e entre
Um outro cavaleiro entrou na liça. Confessou esta outros homens, para incarnar valores eternos em situa-
grave fórmula: «Mesmo no direito de propriedade ções particulares» (19), etc.! E todo este delírio de
«desmaterializado», o valor sobre o qual ele incide é classe terminal para acabar nesta genial (,dedução»
patrimonial e exterior ao sujeito, ao passo que a defesa ideológica: ignorar a (,esfera íntima>) da vida p~ivada
da personalidade diz respeito aos (<valores humanos», (,é tornar inúteis, humanamente fãlàlll'tõ;os<I:ITffio.s
que não são distintos do sujeito de direito» (Ih). A contra- (ffiõsàO património>) (20) .. Reencontramos. a velha anti-
vérsia é séria e vou tentar deslindar esta algaraviada. -fonatanto melhor quanto mais ruminada é: proletários
Que nos dizem? Existem dois tipos de valores. O valor de todo o mundo a vossa exploração prova que vós
patrimonial, o valor humano. O que não nos dizem tendes uma alma. E esta alma, todo o mundo sabe
é que os (,valores humanos'> se vendem. Dito de outro que ela é «um absoluto diante do qual tudo se deve
modo, dividiram-se os valores em (,humanos» e ('patri- inclinar» (21). O resto é vulgaridade porque, duma
moniais~ e desta divisão moralizadora (,deduziu-se» que maneira ou doutra, isto (,toca por qualquer lado na.
a alma não se vende. matéria» (22). E o nosso vicarius dei acrescenta esta
Porque, para os nossos soldados, a alma é o último feliz fórmula: (,Substituir a uma reunião de pessoas
lugar onde se disputa. espiritualmente livres uma amálgama de individuos
Foi o que descobriu ultimamente um jurista que sem constrangimentos, o que é isso, com efeito, senão
(,faz filosofia». Num arrebatado voo lírico, o nosso
filósofo traça em quinze linhas a ideia de Pessoa, de
(") MARTINLe Secre! de la oie prioée, .Revue trimestrielle
de droit civil., 1959, p. 231, n.O 7.
(17) Anotação do Tribunal correctionnel, Erasse, 8 Fev., (20) Ibid., p. 232.
1950, Dalloz, 1950, p. 712. (21) VIENNE, Preuoes eí -Attein!es à la personne, .Juris-
(18) NERSON, "Revue trimestrielle de droit civil., Jan., -Classeur périodique.>, 1949, I parte, p. 758.
Março 1971, p. 119. (") Ibid.

102 103
substituir a sociedade pelo rebanho ?,} Sã'o Panurge, é imenso - à «crítica roedora dos ratos>). Acrescentarei
protegei-nos I simplesmente duas coisas.
É verdade que São Panurge não perde completa- Estas tomadas de posição que se pretendem teóricas
mente a cabeça quando se refere a um outro ('grande são contrariadas pela prática mais vulgar do direito.
jurista,). F. Geny, com uma alma de banqueiro preo- Com efeito, se me «roubam,), digamos, a minha imagem,
cupado em não misturar os géneros, preconizava «subs- tenho o direito de reivindicá-Ia, porque me utilizam
tituir a consideração reilectida, dos interesses sérios, sem o meu consentimento. O prejuízo que sofro anali-
por sugestões enganosas de um sentimentalismo cheio I' za-se juridicamente numa violação do meu consenti-
de perigos,) (23). timento. O direito instaura assim uma relação neces-
Termino esta cruzada. Ela não podia acabar sária consentimento {prejuízo. Pois, se o homem não
senão no Santo Sepulcro do Direito Romarw. Um pro- é proprietário dele próprio, em nome de quê poderia
fessor lembrou-se oportunamente do Digesto que, como ele sofrer um prejuízo que o lesa na sua representação
todos sabem, tudo disse, e sobretudo previu o que de si próprio? A prática conduz a esta análise jurí-
teria podido dizer. Dominus membrorum suor um nemo dica inevitável: todos os ('atributos» da pessoa são
(Jidetur el. Fazendo isto, e passando do latim do direitos contratualmente protegidos.
BaIxo-Império para o francês de baixo nível, M. Kayser 'Quanto à «má consciência,) da Doutrina, posso
revela-nos o seu pensamento: deve re&..olver-sea questão situá-la no seu discurso latente, que enuncia a adequação
«reconhecendo ao poder do homem sobre o seu corpo «de direito natural» da pessoa humana e do. sujeito
'o carácter de um direito da nersonalidade tendo ~õr de direito. A interpelàção ideológica - toda a pessoa
fim assegurar a protecção dos interesses morais EUllate- é sujeito de direito - tornando-se categoria eterna
"'Fiaisdo homem relativamente ao seu corpo,) (25). O que - o sujeito de direito é qualquer pessoa - mergulha
quer dizer em bom francês: o homem pode vender-se a doutrina num terrível embaraço. Porque, se a Forma
sob condição de que o faça em nome ... de um direito Sujeito é bem a forma necessária do homem que parti-
de personalidade I A montanha pariu um rato. cipa nas trocas e na produção, ela é além disso esta
Não irei mais longe porque o leitor deve estar Forma na qual se deve também realizar a liberdade
fatigado destas exumaçQ£s, e deixarei o resto - que e a igualdade. E, para ('eles», o dilema vem a ser, o
seguinte: o sujeito de direito realiza a sua liberdade
pela venda dele próprio. Estes professores não com-
(;!.) Des Droits sur les letlres messivcs, t. lI, n,O 209,
preenderam que a categoria de sujeito de direito é um
C!') Digesto, 9,2, Ad, leg, aquil., 13, p. 2: ~não poderá
produto da história, e que a evolução do processo
ser-se senhor dos seus próprios membros•.
(") Les Droits de la. personnalilé. Aspects lhéoriqucs el capitalista realiza aí todas as determinações: o' sujeito
práliqucs, ~Revue trimestrielle de droit civilb, Julho-Setembro, de direito torna-se o seu último produto: objecto de
1971, p. 461. direito.

104 105
Por este facto, toda a ciência do direito se lhes medida em que o sujeito de direito é proprietário da
torna (<impossível,).Voltarei a este ponto. sua história, a História é necessariamente a proprie-
dade dos sujeitos de direito. Através deste mesmo
processo, o direito simultaneamente sanciona as rela-
Secção UI. - As figuras do sujeíto de díreíto ções de produção no próprio seio do indivíduo - e
reencontramos a forma mercantil do sujeito - e revela
A forma Sujeito de Direito vaí produzir, se posso a relação imaginária dos indivíduos com as relações
dizê-lo, a sua própria história. Falo, neste momento, de produção - a propriedade privada é ('realmente,) a
de uma Forma Sujeito que é um produto da históría, ('essência histórica') do homem. Mas esta relação imagi-
mas que, ao mesmo tempo, pretende produzir a sua nária torna-se por seu turno eficaz na própria prática:
própria história. o indivíduo vive-se e age realmente como se a proprie-
Esta pretens~ é a pretensão última de ~a-a- dade privada fosse a sua ('essência histórica,), e os
ideologia: sustentar um discurs~ antropológIco, isto é, tribunais «demonstram-lhe,) que ele tem razão, já que
--mã:iíter o discurso do homem eterno enquanto iI!.di- ele tem ('O direito».
víaúo. É, por outras palavras, confessar a pretensão O que vou, pois, abordar agora, _é__vretens~o
de que o processo da história nada mais é do que o hi~t9rjç~da __Fol'IDa Sujeito. Desvendá-Ia-ei tripla-
I
seu próprio processo, e que a história é a história acabada -mente, isto é, nas três figuras em que p~de suryre~n-
! e encerrada da propriedade privada. ..Qila. A priIge}E.a figura do bailado e um carrocel,
É neste lugar privilegiado da ('autoprodução histó- o dos Cadets de Saumur. Ele vai designar este facto
I rica,) da Forma Sujeito que a ideologia jurídica assume espantoso: a apropriação privada de um aconteci-
a sua última função. Posso retomar aqui o que tinha mento histórico. A se.g.unda figura é mais sinistra:
já enunciado no acto de nascimento da ideologia uma dança de morte em Haiti. Ela designará este
jurídica: a essência - e acrescento aqui (,histórica') facto mais espantoso ainda: um sujeito proprietário
- do homem é ser proprietário privado da sua história, da sua política. A terceira figura enfeita-se de um
e esta ('essênciro)redobra-se: a História é a propriedade véu místico para escõnder a sua nudez. É a dansa
privada dos sujeitos de direito. Reencontro então dos véus, mas aí reside a sua própria contradição:
essa ('estrutura especular redobrada da ideologia,), mas se com efeito, o Homem é proprietário da História, a
reencontro-a na sua pretensão ontológica. história do homem realiza e ultrapassa a propriedade
A História legítima a existência do sujeito, na privada. Ver-se-á então que o véu místico com que
exacta medida em que ela regressa ao Sujeito. O Sujeito o sujeito se enfeita, pudicamente e juridicamente,
é a propriedade privada historicizando-se que se dis- mais não é, precisamente, do que o véu da moral.
tribui nos sujeitos da história. E se dou o conteúdo Será o último acto do (<nossodrama,), a última meta-
concreto deste processo, posso dizer então que na \. morfose da nossa Forma. E restará, para encerrar

106 107
definitivamente o processo, demonstrar que em última «A cena da chicotada é inadmissível e deve ser
. instância não é mais o homem que significa a pro!2ciJl- suprimida» diz o tribunal. (,A atitude do jovem Patrice
dacle mas a propriedade que significa o homem. que, durante a primeira parte do filme, afirma diversos
----~=--~---~---~------ propósitos filosófico-políticos e parece preferir o seu
1. o CARROCEL amor ao seu uniforme, ao ponto de dar a impressão
de que está pronto a desertar, faria correr o risco,
A Associação dos Cadets de Saumur tinha pedido a na ausência de precauções apropriadas, de deixar aos
interdição da projecção de uma emissão de televisão .espectadores uma impressão falsa e perniciosa; que com
consagrada aos combates travados. pelos oficiais e efeito,' os combatentes de Junho de 1940 atestam a
subalternos da escola de cavalaria de Saumur. Era proeminência absoluta e unânime, entre todos os
necessário, dizia ela, proceder a profundos arranjos na Cadets, do espírito de sacrifício, com exclusão de toda
composição e sequência das cenas, e não induzir o a futilidade ou veleidade de 'abandono; que no que diz
público em erro. Era necessário que os Franceses respeito à figura do comandante da Escola ( ... ) a perso-
soubessem que este episódio tinha sido um ('alto feito nagem permenece heróica e altament.e exemplar, as
de armas& e que se tinha morrido no campo de suas dificuldades físicas ou excessos verbais não fazendo
batalha; que os oficiais tinham sido exemplares, isto é, mais do que pôr em relevo o valor dos actos importantes
nem filósofos, nem amorosos, nem perversos, e que, que realizou (... )). E o tribunal ordena que o filme
como consequência, era inadmissível descrever um sej a precedido de um aviso assim concebido: (,O filme
deles a aplicar uma chicotada a um jovem aluno oficial, que ides ver é uma mistura de verdade e ficção. No
assim como mostrar este mesmo aluno como pare- quadro de um alto feito de armas excepcional e autên-
cendo preferir o seu amor ao seu glorioso uniforme; tico os autores introduziram' uma aventura amorosa
que o comandante, finalmente, era um chefe, do qual puramente imaginária e criaram diversas personagens
não se tinha o direito de alterar a figura. Dizendo cujos traços fisicos ou intelectuais não reproduzem 'os
tudo, li França, isto é a Associação dos Cadets de Sau- dos combatentes vivos ou mortos que participaram no
mur, devia proteger a sua história. acontecimento. Assim sucede, muito particularmente,
O tribunal de Paris, que julga «em nome do povo com o comandante da Escola que apenas lembra o
francês», prestou justiça à história francesa, revista e verdadeiro comandante pelo que o papel fixou das
corrigida pela sua Associação. Este tribunal escreveu, qualidades de coragem, de autoridade, de decisão, de
para a nossa escola primária,' uma página de história ,'. lucidez e de competência na arte militar, que foram
que é também um ('alto feito de armas». Eu tinha-o as do oficial de 1940» (26).
anunciado: é um carrocel, onde não se sabe se são Os
cavalos que levam os homens ou os homens que levam (lO) Tribunal de grande instance, 15 de Junho de 1970,
os cavalos. i. Juris-Classeur periodique, 1970, II part., 16.550. M. Lindon, se

108 109
A vida privada «atributo» do sujeito encontr~ uma 11. A DANÇA DA MORTE
espantosa prática: fa.!!'rjulgar a história ?or um tnbun!!b
representando-a coemo propriedade prIvada. ,J á. que Um filme rodado sobre o Haiti descrevia as condi-
~.~ .-.- 't. -e' p'r oprietárIO da sua hIstórIa, ções de vida, e o cineasta punha djrectamente em causa
o sUJeI o 'I ele e, conse- o regime policial de Duvallier. Este último melin-
qrieiltemente, projmêláno do acontec~mento no. ~ua #f)
drou-se com estes ataques e nomeadamente com certas
. .
partIcIpou. T a I e' o redobramento da Forma ._ SUJeIto: ~ tiradas do género de: «Papa Doc é real e o horror é
na me d'd I a,
em que para o bom funCIOnamento . 'b' da sempre real» «Papa Doc e os seus gangsters». Melin-
ideologia, a História' é este. SUjeIto que. se .dIstr: UI drou-se também, virtuosamente, com uma sequência
.. - ... "t -o pr6prio m.o.vImento da HIstÓrIa nao é do filme onde se viam cândidas rapariguinhas ir ao
em sUJel 0& . . . . , S . .t
~_~o~;Rer_£~ctuo (<ir-voltar»âos sUJeI.tos ao uJeI t~ cemitério entoando cânticos de glória do Presidente,
r; do Sujeito aos sujeitos. Vamos maIS lon~e .. Es para assistir às execuções capitais,
«ir-voltar» ~pemdar é aquele mes~o da «eSSenCIa»do Os tribunais foram chamados a julgar o delito
h omem" I'StO é da propriedade prIvada. Por outras de ofensa aos chefes de Estado estrangeiros (art. 36.0
. d .
alavras, o que funciona aqui é o m.ovlmento ~ .propr~e~ da lei de 29 de Julho de 1881) e deram razão a Duval-
~ade privada na esfera da ideol?gIa.. E eu. dIrIa maIs. lier, julgando que «as cenas precedentemente invo-
cadas e as tiradas pré-citadas punham em causa não
se a fiIrm O - o que demonstrareI maIS abaIXO - .que _a só os actos do chefe de Estado, mas ainda lesavam a
.
Ideo IogIa . 'dolCa nada mais é do que
. JurI ., a etermzaçao . sua própria pessoa» (2').
da esfera da circulação, posso dedUZIr que o dIreI~o, O sujeito de direito revela directamente a /})La
fazendo da história o lugar da circulação de merca~or~as dimensão P!1.l.ít~ça, O SUjeito da história incarnou-se
(apropriação privada d.os acont~cimentos), constItUI-a dlrectaniente na Política, isto é, no chefe de Estado,
em teleologia da proprIedade prIvada. . . isto é, no prQPXio Estado, A Cour de Cassation dá-nos
Aqui se encerra a primeira figura do sUJeIto. a regra.' (,Se é conforme à Constituição estender o
exercício da liberdade pública do direito de discussão
à discussão dos actos políticos do Presidente da Repú-
blica, esta liberdade cessa onde começa a ofensa ao
-------

bemque premler. adçocat genera


. I' Junto. da Courd de Cassation, per-
- se trata
turbou-se como u~a ta~ consequêncla~e(~~atr~tiU;on:~rácter de
chefe de Estado» (28). E este mesmo tribunal precisa

(") Tribunal de grande instance, 20 de Março de 1970,



do respeito pela VIda prIvada, dado q d' 'to Dalloz, 1970, p. 487.
um acontecimento histórico, pode pergunt~se s~, no oJr~lue (") Cour de Cassation, .Câmara Criminal, 21 de Dezembro
francês, cabe aos juizes dizer o que é «c ocan e.>e de 1966, «Bulletin des arrêts de la Cour de Cassation., n.O 33,
não o é (... l', p. 699.

110 111
esta fórmula magnificamente sibilina: «A ofensa profe-
rida por ocasião dos actos políticos atinge necessaria- e em auxílio duma certa falência do sujeito de direito.
mente a pessoa» (20). E não é inocentemente, com certeza, que este auxílio
A crítica política volve-se em crítica da pessoa e é dado ao sujeito de direito, no lugar do discurso histó-
a crítica da pessoa em censura da crítica política. :1
rico, nesse lugar que contradiz a sua própria existência.
O Estado é ro ri ário da sua política, já..que ~ l Por aí verifica-se o que dizia Engels: «Os homens
r presentante supremo é pro,prietârio da s.~a '1i baseiam, em última análise, as suas concepções morais
nas relãÇões práticas sobre as quais constroem a S1lB
privada. O Estado tornou-se o próprio Sujeito da
PohíÍca e, ao mesmo tempo, proprietário privado da situação de clf!.SS.Jl)l
(30).
Política. Pode-se então tomar como ponto assente que o
Dito de outro modo, a adequação "ida pri"ada do sujeito de direito se subsume no sujeito moral, e, melhor
£hefe de Estadolactos políticos permite, em nome da ainda, que o Sujeito do sujeito de direito é a Moral.
violação da vida privada, expulsar a crítica dos actos E posso então dIzer que a Moral é o Deus dos juristas.
E é um Deus que usa também, no «céu estrelado»
políticos.
Kantiano, na moralidade realizada hegeliana e nos
Tal é. esta segunda figura.
negócios da «alta.) banca, um outro Nome: o de Estado.
111. A DANÇA DOS vÉUS
Então, o que queria provar, com meios de prova
à mão, é esta transferência que permite salvar com a
Na sua terceira figura o sujeito reveste-se do véu mão direita o que se mata com a mão esquerda.
místico; ele subsume-se sob o seu du 10: ~E-tt?. A esposa de Lambrakis propõe uma acção contra
moral. ponho imediatamente a questão: qual é o Costa Gravas, realizador do filme «Z», e contra Vassi-
sentido ideológico desta subsunção? Não posso aqui likos, autor do romance donde o filme foi extraído.
mesmo aprofundar o uebate que, para nós, outro não Ela sustenta que, posta directamente em causa nestas
seria senão o debate teórico e prático das condições duas obras, a sua vida privada foi violada. Tal é o
teóricas da luta ideológica, isto é, o retomar da reflexão lugar jurídico. Ele é também um lugar histórico:
engelsiana da ideia de igualdade, e queria limitar-me pode-se interditar em nome de um direito de proprie-
a este estudo preciso e circunstanciado do sujeito dade, um discurso histórico? Dou-vos os motivos. do
moral como justificação e revelação do sujeito de julgamento do tribunal de Paris, comentá-los-ei segui-
direito. De maneira mais concisa ainda: a utilização damente.
ideológica da moral como justificação do sujeito de Os motivos do tribunal são de duas espécies.
direito, isto é, a pretensão universal da moral ao serviço

(") Ibid. I Numa primeira série, ele canta a morte do sujeito de


direito. (,A vida e a morte de Lambrakis pertencem à

II
(,,) ENGELS, Anti-Dltring, «Ed. Sociales>, pp. 125.126.
112
113
8
história política da Grécia (... ); trata-se de aconteci- tence à história, pode utilizar-se a sua vida yresc.0-
mentos que de ora em diante pertencem à história dindo do seu consentimento ou do consentimento
e dos quais ninguém poderia interditar a descrição (31). <rãqueJesqueliajam sido Íillp1lcados na sua vida. Porém,
Eu traduzo. O homem, ao mesmo tempo que se pertence diz-nos, num mesmo movimento: prescinde-se deste
como sujeito, pertence ao «património público», isto é, consentimento sob a condição de que' as coisas sejam
à história. Esta pertença já não se constrói sobre o ápresentil.d;s- dignamCIl!e. rell-p_eit.Q.sl\mente
... , senão
conceito de propriedade mas sobre o de história objec- tanto o livro como o filme poderiam ver-se atingidos
tiva. A história já não é o processo da propriedade pela interdição.
privada, isto é, processo de um indivíduo que é apenas Por outras palavras, o tribunal reserva-se um
o representante da sua mercadoria, mas, muito pelo direito em nome da moralidade.
contrário, o processo contraditório da Forma mercantil A moralidade torna-se fonte do direito mas o direito
do sujeito. de que ela pretende ser fonte é o próprio direito da
E dou a minha segunda série de motivos. moralidade. A Forma mercantil do sujeito é bicéfala:
(,O herói do filme manifesta na realidade por sua a primeira cabeça leva um boné branco, a segunda
esposa um amor profundo e duradouro; a sua imagem cabeça um branco boné. E quando uma se cobre a
segue-o nas suas viagens e os seus pensamentos vão outra se descobre. A ordem suprema do sujeito é
para ela nos momentos que precedem a sua morte, a moralidade, mas esta moralidade regressa ao homem,
enquanto a mulher de Lambrakis, sob os traços de constituído em objecto de direito, isto é, ela sanciona,
uma actriz grega, Iréne Papas, impõe admiração e em última análise, a Forma mercantil do sujeito.
(

respeito». (,De qualquer maneira», diz o tribunal, (<não Ao mesmo tempo que ela o nega, neste lugar universal
somente a personagem de (,Z»,inspirada em Lambrakis, da moral, ela justifica-o na sua Forma Sujeito. A liber-
é evocada com simpatia, respeito e admiração, mas dade do homem, posta como produto e produtora da
ainda a sua companheira é descrita como um modelo história, reencontra o terreno que pretendia fazer-nos
de ternura e dignidade». esquecer: o das relações de produção.
E o tribunal faz-nos esta confissão: a lei para o ('Que ilusão colossal» exclamava Marx, a de «ser
caso comporta (<necessariamente uma parte de inter- obrigado a reconhecer e a sancionar, nos direitos do
pretação subjectiv_ae-»_' o

homem, a sociedade burguesa moderna, a sociedade


Vou tentart.~aptar ao Ba passagem do s~ieit£ da indústria, da concorrência universal, dos interesses
de direitç>-À",Jilllral,sobre o próprio terreno oIide ela privados que prosseguem livremente os seus fins, este
'se produz. O tribunal diz-nos: já que o homem per- regime da anarquia, do individualismo natural e espi-
ritual tornado estranho -a ele próprio» (32).
(") Tribunal de grande instance, Paris, 30 de Junho de
1971, Dalloz, 1971, p. 678. (SOl MARX, A Sagrada Famtlia, «ob. cit.', p. 148.

114 115
o tribunal de Paris dá-lhe razão (33). Num' segundo
Não posso dizer mais, salvo que esta (<ilusão colos- tempo, revê a sua posição.
sal» não é ilusão para toda a gente e que ela é necessária. Ides ver a sua argumentação.
O proprietário invoca em primeiro lugar um argu-
As nossas três figuras faziam, certamente, uma mento de peso. Ele diz que mandou efectuar repara-
só: a história da (,essência» do sujeito, e esta essência
ções, melhor ainda, que restaurou o seu castelo e q~e
impõe e realiza toda a apreensão do real. Para. o
esta restauração constitui uma criação. A consequênCIa
direito, a constituição do real fendeu-se em dois polos,
disso seria radical: a coisa, já investida pela criação,
Jlue responaem um ao outro. De um .Iado,~a s06re- não poderia ser re-produzida, sob pena de re-produzir
apropriaçao permite tornar-se proprietário ('pelo espí- uma criação artística. É a contrafacção. O tribunal
rito.) da matéria, de outro lado,f esta matéria humana
rejeita este argumento: houve apenas refazimento.
OlLJtattl~al possui a mesma..estrutura que esta sobre- O proprietário invoca um segundo meio que o
:iPJ:.o.]lriª,ç-ª2: Trata-se assim de uma bi-polarização de fará triunfar. O castelo é sua propriedade privada;.
um real constituído em objecto de direito e de que ele pode usá-lo, fruí-Io, ('abusa!'» dele. Como conse-,
cada termo é condição de outro.
quência pode encerrá-lo e recusar a entrada nel~. 9uem
Para terminar, e é um fim que será retorno às pode o mais pode o menos, diz-nos um adágIO ]urldICo.
fontes, queria fazer-vos assistir ao último avatar da
Se ele pode o mais - recusar a entrada nele -- pode
nossa personagem. Sabia-se que o. homem significava o menos - proporcionar a visita do castelo em certas
a propriedade, vamos aprender, preto no' branco, que condições. ,
a propriedade significa o homem, que os ('atributos.) Ora estas condições existem, elas estão até mate,
do homem,' as suas (,emanações.), podem ser um imóvel, rializada~ no bilhete de entrada. Leia-mo-Io. Aí se
uma casa, muros. Isto quererá dizer, concretamente, interdita (,a fotografia do imóvel assim como os croquis
que não somente o homem se representa na coisa, e pinturas que tomem este imóvel por tem{J) com vista
mas que a coisa é,concretamente, a essência <lo hQmCl)1....:- à comercialização dos produtos obtidos.
O pintor crê poder ganhar. a causa. Se se fala
de ('reproduções», tal não pode dizer respeito a «uma
IV. A PROPRIEDADE CONDUZ À DANÇA
pintura onde o imóvel é apenas um tema. trans-
formado, pela inspiração artística.). E se se fala, de
Um pintor reproduz um castelo classificado como
comercialização, isso não poderá aplicar-se à ~venda
monumento histórico. O proprietário reclama a apreen-
de obras de arte».
são da obra. O pintor replica que o seu 'quadro (,se
apresenta como sua visão pessoal». Isto queria dizer
(as) Tribunal de grande 'iiJstance, 17 de Março de 1970,
que a sua criação se analisava como uma sobre-apro- .Revue internationaJe des droits d'auteuN. Jan. 1971, p. 182.
priação. Num primeiro tempo, num processo sumário,
117
116
A resposta do tribunal é espantosa. O proprie- Uma professora do Instituto Notre-Dâme, membro
tário reservou (,a sua autorização, para terceiros, do conselho municipal e educadora infantil, teve a
quanto à imagem do seu castelo» ("). Isto quer dizer, surpresa de se aperceber de que o seu domínio servira
em boa prosa jurídica, que assim como um pintor ou de quadro a uma (,foto-novela,) intitulada suavemente
um fotógrafo não podem reproduzir os traços duma o amor conduz a dança. Virtuosamente indignada,
pessoa sem a sua autorização, assim também não ela reclama a interdição da obra. Foi-lhe dada razão,
podem re-produzir a imagem de uma propriedade. porque (mão carece de dúvida que os leitores vizinhos
Dito de outro modo, a coisa é tratada como a pessoa. não podem deixar de identificar os lugares e de consi-
Há um consentimento da coisa, porque a coisa tem-o derar com surpresa que a senhora Lemoiner permi-
seu pudor e a sua honra. tiu que a sua propriedade sirva de cenário à rodagem
Quanto à comercialização, o tribunal responde de um romance em forma de filme, cujo espírito é
vigorosamente, no mais puro estilo civilista, que a dificilmente compatível com a sua personalidade» (35).
palavra comercíalização (,deve ser entendida no seu Aí os juristas ficam de igual maneira emocionados.
sentido vulgar, isto é, a utilização de documentos (,Sob reserva dos direitos procedentes da noção de pro-
criados a partir da imagem do castelo com vista a priedade artística,), diz um, ('O que está à vista de
obter pela sua venda, pela sua locação ou por qual- todos e de cada um, não está de qualquer maneira
quer outro contrato a título oneroso, uma contra- no domínio público ?,) (36). «Não existe qualquer falta
partida, e, particularmente, o pagamento de uma em fotografar uma casa privada que se apresenta aos
quantia de dinheiro». Em resumo, não devemos fazer olhos de todos,), diz outro, ('e de modo nenhum também
de ínocentes: a pintura é um objecto de comércio. em publicar esta foto, pelo menos se nenhuma inter-
dição aparente o proibe e se nenhum direito de autor
está em causa,) (37).
V. o AMOR CONDUZ À DANÇA Um terceiro é mais profundo, mas também intei-
ramente mistificado. (,Na verdade,), diz ele, «eis que o
A coisa tornou-se a pessoa, e a estrutura do sujeito, direito à imagem faz novas e singulares conquistasl
-.3-J!-ªQoislC~'Apropriedáde déW>h-e ao proprietáriõ' o Reconhecido e defendido como um direito de personali-
seu próprio reflexo. .2_ significante __e_.0~_sig.nifIca<!p dade, ei-lo que se insinua entre as prerrogativas do
p_e~IlJ.u1@.!I!;.se
no _~~çQ. ~stI,:1!-_cto
d-ª-.RroR,rie.dade
eterna.
Vamos vê-lo ainda melhor.
(") Tribunal Seine, 1 Abril 1965, Juris-Classeur périodic
que, 1966, 11 parto 14.572, nota R. L.
(") Nota R. L. pré-citada.
(34) Tribunal de grande instance, 10 de Fevereiro de 1971, (") .Revue trimestrielie de droit civil., 1966, p. 293, obser-
Abril 1971, p. 237. vações Rodiére.

118 119
direito de propriedade e acaba por defender as coisas mostrar que tudo se tinha (,sempre-já') passado, e que
e não já apenas as pessoas ...•) (38). Está muito bem este (,sempre-já», que é também de uma certa maneira
visto, mas os juristas são decididamente incorrigíveis. um (<ire volta!'», é o (,sempre-já,) do sujeito, isto é, da pro-
(,Atendo-se') à justificação jurídica, o nosso autor faz priedade privada. Uma teleologia do sujeito, assim,
ent.ão apelo à noção de exercício abusivo de um díreito se desenhou, e o direito «se')funciona como a realização
de reprodução que desacreditaria o proprietário. Pode-se das determinações do sujeito. Reconhece-se aqui a
país abusar de uma casa como se abusaria ... de urna tese hegeliana dos Princípios da filosofia do Direito.
mulher! Mas, além disso, este primeiro trabalho era neces-
,
• Em suma, equacionámos a adequação homem I
I coisa, de tal modo que a coisa significa tanto a ('essência»
do homem quanto a «essência» do homem signífica a
cOIsa.
sário para mim próprio. Ele fornecia-me a base concreta
de urna análise mais ambiciosa: articular concretamente
a instância jurídico-política $.ÚhJ:c-a infra.:.e$rutnrª.
'Ele forneciã:'me, e regressarei aqui num ápice, as (<leis
Cheguei ao termo da minha análise ('jurídica.). imanentes do direito», e entendo aqui, por (<leisimanen-
Neste momento parece-me necessário retomar os resul- tes», as formas necessárias através das Qüais o real,
tados para os levar mais longe, isto é, para os situar enquanto objecto de direitQ, !2.LP.osto em cir<llilª,ç~o.
no seu verdadeiro lugar. Ora, no decurso de uma análise objêCtiva da jilris-
A introdução das técnicas modernas de repro- prudência e da Doutrina, ('revelou-se') que o pôr em
dução do. real permitiu-me determinar o funciona- circulação deste novo objecto de direito desvendava
mento do direito num terreno virgem, isto é, descrever esta lei fundamental: para o Direito, todo o processo
como um continente novo passava pelo corte jurídico. económico é processo de um Sujeito. E esta lei (,ima-
O que quis demonstrar foi que a constituição d~e nentCl) pareceu bastar-se a si própria. Quero dizer
novo objecto de direito, o real, se efectuou na cate- que, tal como para o Direito basta regulamentar o
goria jurídica predeterminada do sujeito. Dito por contrato de trabalho com auxílio das categorias de
outras palavras, .£..J!rocesso descrito (,surgiuo)como o
processo de um suj eito (de direito). Certamente,. se
empresário (<!ivre»,de trabalhador ~livre» e de (,livre»
salário «livremente» negociado, afim de (,julga!'» o tra-
..
-fiz surgIr a necessiããde econômICa de um tal processo, balho, assim lhe bastou, para ('produzir» um direito
este aparecime.nto dissolveu-se, de certa maneir~ do cinema e da fotografia, pôr a funcionar as catego-
~gorias jurídicas. ~ra necessário mostrar esta .~ rias de propriedade (literária) e de atributos da perso-
du;solucão~. por ue ela si nificava também.o' a el do nalidade, que remetem em última análise para a cate-
funcionamento da ideologia Jurí ica. Era necessárIO goria do sujeito de direito.
Esta (,continuidadCl) jurídica, era necessário fazê-la
(") .• Revue lrimeslrielle de droil civi1>, 1966, p. 317, funcionar no seu próprio terreno, para abstrair dela as
observações Bredin. leis do seu funcionamento. Porém, não basta constatar

120 121
estas mesmas leis; é ainda necessário explicar a última
instância do seu funcionamento. É necessário partir
daí para aí regressar. Também aqui termino anun-
ciando já o terreno da continuação: a teoria do valor.
Careço de precisar, à partida, que, sobre este
terreno novo, falarei e não falarei mais da minha,
demonstração jurídica, ou antes, falarei dela. <'em
silêncio,}. Não retomarei, enquanto tal, a minha
análise, mas supô-Ia-ei presente ao longo do discurso
que anuncio aqui. Peço ao leitor este «esforço,},que
será o último.

lU

ELEMENTOS PARA UMA TEORIA


MARXISTA DO DiREITO

"..-

122
Anunciei-o: trata-se para mim de localizar a
minha demonstração no campo teórico que a tornou
possível. Concretamente: 'de articular, no processo 'de
conjunto do Capital, o fúncionamento das categorias
jurídicas.
Quando Marx explica que ('a metamorfose do
homem com dinheiro em capitalista deve passar-se ,na
esfera da circulacão e ao mesmo tempo não deve passar-se
aí»(') ele fornece-nos o nosso ponto de partida : a esfera
da circulação. E quando ele acrescenta, na mesma
passagem, que «a transformação do dinheiro em capital
deve ser explicada tomando por base as leis imanentes
da circulação das mercadorias, de tal modo que !l
troca de e uivalentes serve de ponto de partidao (2)
ele fornece-nos o método ,científico: o estu o das leis
imanentes da circulação oculta e revela a esfera da lf
}.!:9.a:uçao, l:ê., o processo gloBal do Capital.
, Ora, na minha descrição «aparecew) q1!e tudo se
passava no Direito, e que, contudo, não se passava
., tudo aí~ Aí reside, precisamente, o «mistério» do nosso
Direito que, para além de todas as coisas iguais, é da

-.
mesma (<natureza» que o «mistério» do dinheiro.
O Direito fixando o conjunto das 'relàções sociais
tais como elas surgem na esfera da circulação, ~
possível, ao mesmo tempo, a produção.

(') MARX, O Capital, 'ob.' ciU; liv. I, t. I, p~


(') Ibid. ~

125
A produção aparece e não aparece no Direito da o «real,) enquanto objecto de direito, ~r outro lado,
mesma maneira que ela aparece e não aparece na
que esta Forma «aparecc» como categoria autónoma,.
circulação. E, tal como a circulação «é, sob todos os ~
independentemente de q]!alquer «história'),
aspectos, uma realiza ão da liberdade individuab) (3);
---rsto leva-me a formular duas teses: o Direito
assim o ireito realizando a roprle a e, pretende
fixa e assegura a realização, como dado natural, da
reãJizar a liberdade e a igualdade. om efeito é neces-
esfera da circulação (tese I); no mesmo momento
sárIO fazer aqui uma distin窺- fundamental sobre a
torna possível a produção (tese 11). O Direito vive
qual terei ocasião de me debruçar de novo: o Direito, J
desta contradição: ao tornar possível a produção
gue fixa as formas d~ fun~jonamentº dO.,Jlonj!illiO.-.d.M capitalista, em nome das determinações 'da'proprie--
relaçÕes sociaw, torna eficaz, no mesmo.JI)omento,
dade (liberdade/igualdade), esta propriedade desenvolve
a Ideologia JuriQ~ que é a Irelação imagmãrlal~s a sua própria contradição ela, confessa a sua natu-
indivíduoLco.ll:l-..M relações sociais em geral.
reza: é o produto da exploração do homem pelo
É assim que o Direito assume esta dupla funç~ ~ homem.
de fixar concretamente e (<imaginariamente» - e valeria
mais dizer que a fixação concreta jurídica é ao mesmo
tempo ideológica - o conjunto das relaçÕes sociais.
Se fosse necessário precisar poderia dizer-se que, .lli!
Direito, a produção surge sob um duplo título: por
um lado(nas formas necessárias pelas quais são fixadas
as relaçÕes sociais, por outro lad<)/ no facto de que
estas Formas apenas funcionam para a produção.
E ela não aparece também a um duplo títw.<z: por um
lado, porque estas Formas necessárias podem formal-
mente pretender a suficiência delas próprias,fi por outro
lado, 'porque o seu funcionamento ocul6, se posso
dizer, no seu próprio funcionamento, a raz~pela qu~1
elas funcionam.
E se «concretizo,) rapidamente estas determinações,
direi por um lado que é a Forma sujeito de direij&
que fixa as relaçÕes sociais e permite pôr em circulação

(I) MARA, Contribulion à la critique de l'économie politique,


Ed. Sociales, p. 220. •
126 127
'I

5 - Tese I: O direito fixa e assegura a realiza-


ção, como dado natural, da esfera da cir-
culação.

A .tsfera da circulacão constitui o lugar onde se


manifesta esta relação social dominante; todos os
indivíduos são (produtores) cambistas de mercado-
o,
rias. É o lugar onde reina o valor de troca; melhor
ainda; este lugar é, em si, «o movimento do valor de
troca» ('). Aqui os indivíduos, agentes da troca, são
todos proprietários privados, isto é, seres livres que
trazem para o mercado a mercadoria de que são possui-
dores.
Com efeito o mercado já não é um mercado de
escravos. Pelo contrário ~o lugar onde o homem
realiza a sua natureza trinitária; ele afirma-se .£roprie-
tário, portanto livre, portanto igual a qualquer outro
proprietário. E esta tripla afirmação, a esfera, da
circulação admite-a com estrépito, organiza-a, pondo-a
em movimento; o produto do trabalho pertence ao
trabalhador (melhor ainda; o trabalho pessoal é, o
título de propriedade originalJ e este produto é univer- o

{') MARX, Contribuição à critica da economia po/ltica, «ob.


ciLo, p. 212.

129
salmente susceptível de troca por qualquer outro"'pro,- . r;"ociedade ci~ e que o Direito ao fixar a circulação
duto. Mais simplesmente: o produto do trabalho maIS não laz do que promulgar os decretos dos direitos
tõ'riiado mercadoria - isto é, valor de troca; e mais do homem e do cidadão; que ele escreve sobre o fron-
longe ainda, dinheiro - pode trocar-se universalmente tespício do valor de troca os sinais da propriedade,
por qualquer outra mercadoria. da liberdade e da igualdade, mas que estes sinais, no
Esta esfera descobre-nos assim as suas leis im,ªvell- secreto «em qualquer parte.), se leem como exploração,
tes: cada indivíduo é proprietário (do fruto do seu escravatura, desigualdade, egoismo sagrado.
trabalho ou do seu trabalho em potê~cia) e o seu .0 que, portanto, vou abordar agora são as deter-
trabalho é um trabalho social ainda que isolado, isto minações da esfera da circulação, isto é, o «estatuto')
é, um trabalho que, embora sendo particular, parti- concreto/ideológico da proprieda~, da liberdade e
cipa do universal. «Daí que, produzindo para a socie- .!!JLigualdade.E veremos que o direito fixa este esta-
dade, na qual cada um trabalha por seu turno para tuto numa reali7.ação concreta/ideológica; e apro-
mim numa outra esfera, eu afinal produzo para mim.)(2). veito para lembrar ao leitor o esforço que eu exigia
Hegel não diz outra coisa: o sistema das necessidades dele: de não fazer qualquer tenção de esquecer a sorte
realiza, apesar do egoísmo individual, a universalidade da nossa minuscula questão de direito.
da sociedade civil. Na esfera da circulação, os indivíduos «não se
Então, pode afirmar-se na ideologia do direito, ~ enfrentam senão enquanto valores de troca subjecti-
que tudo se passa nesta esfera; que o essencial são C?!.I vados, IstO e, equivalentes vivos, valores Igualso (3).
as trocas e que as trocas realizam o Homem; .9.~ Dito de outro modo, eles não fazem mais do que incarnar
formas jurídicas que são im ostas pela circula!Q. e reproduzir o próprio movimento do valor de troca.
são as mesmas ormas a liberdade e <llL!gualdade j O valor de troca representa-os e eles representam o
que a Forma Sujeito desvenda a realidade das suas valor de troca. •
determinações numa prática concreta: o contrato j que Mas, ao mesmo tempo que o indivíduo, agente
a circulação é um processo de suj eitos. da circulação, reveste os mesmos caracteres do valor
O que me proponho demonstrar deixando. volun- de troca que ele representa, que a (,sua vontade», habi-
tariamente de lado o que se passa ('em qualquer parte» tando nas coisas, toma os mesmos caracteres das coisas
no (<laboratório secreto da produção.) é que o Direito que habita, isto é, ao mesmo tempo que o indivíduo
tfE toma a esfera da circulação como dado natural; que é encar'ado como um proprietário livre e Igual aos outros
esta esfera, tomada em si como absolilto não e oiltrã proprietários, ele encara-se como um proprietário livre
cOIsa senao a noção ideoló .ca que recebe o nome e igual aos outros proprietários. Por outras palavras,
o esiano, rousseauniano, kantiano ou hegeliano, de ele toma como (,dinheiro em caixa.) o facto de que o

(') lbid., p. 214. (3) MARX, Contriburion ...• oob. cit.., p. 221.
.1
130 I 131
I
!
'. .•...
.~

• valor, expressão social do produto do seu trabalho.,


realiza verdadeiramente a liberdade e a iguáldade,
no. mo.mento. próprio, se transmudam
trário (... )>> (6).
no. seu co.n-

neste lugar o.nde reina o. valo.r de tro.ca, à csuperfície» Dito de o.utro. m ed 9, .:;a~a~fi~r:.:m:.:a:.:ç,~ã,""e,-:-"d,",a,-=s.,-"d.
do. processo e o.nde esta ('superfície» igno.ra' o.s fundos ções da prepriedade (liberdade/igualdade) na esfera
marinhos que ela cobre. . da circulação. é pesta ao. mesmo. tempo. que a sua
Queria citar aqui o que me parece ser um texto necessária ignerância na esfera da preduçãe, aí ende
fundamental para a teoria da ideologia. Penso que ó hemem é cencretamente explerade pelo. ho.mem,
um co.mentário. deste texto. permitir-me-á lo.calizar aí ende e capital, nó próprio. seio. da pro.duçãe expelia
suficientemente a relação. entre a teo.ria do. valo.r e ~. e eperário da mais valia. . . .
a teoria da ideolo.gia, afim de que possa ir mais além O precesse de valer dé treca, crIando. a lIberdade
e tentar abordar directamente o Direito.. e a igualdade preduz assim, num mesmo. mevimente,
Estudando, no. (,Fragmento. da versão. primitiva» a ilusão. necessária de que a liberdade e a igualdade
são. realmente efectivas. E melher ainda: esta (,ilusão.»
da Contribuição para a crítica da economia política, as
manifestações da lei de apropriação na circulação. nada mais é de que e reflexo. das centradições reais
simples, e, mais precisamente as, determinações da de sistema de valer de treca: ele não. pede realmente
«preduzi;"> uma verdadeira liberdade nem uma verda-
liberdade e da igualdade, Marx escreve esta coisa
essencial: T deira igualdade.
cNe facto. de que e valo.r é a expressão. de trabalh.e
(,Deste modo, portanto, o. pro.cesso. do. valo.r de
tro.ca que desenvo.lve a circulação não remeita apenas so.cial centide nes predutes privades reside já a po.SSI-
bilidade da diferença entre este trabalho. e e trabalhe
a liberdade e a igualdade, cria-as, é a sua base real.
individual centide no. mesmo. pro.dute. Se pertante
Enquanto que ideias puras, elas são. as expressões ideali-
zadas destas diversas fases; os seus desenvolvimentos um produter privado. centinua a preduzir se~nde. e

., . jurídicos, {o.liticos e sociais mais não. são. do. que a


J reproduça~ no.utros planos» ('). .
medo antigo., enquanto. que e mo.de de preduçae s~Clal
pregride, esta diferença terna-se para el.e bem sensIve~.
A mesma ceisa se passa desde que e cenJunto des fabrI-
E Marx acrescenta mais adiante: «O sistema do.
valor de tro.ca e, mais ainda, o. sistema mo.netário. é cantes privado.s de um determinado. génere de merc~-
na realidade o. sistema da liberdade e da igualdade. derias preduza um quantum que ultrapasse as neceSSI-
dades seciais. No. facto.' de que e valer de uma merca-
Mas as contradições que surgem no. seu desenvo.lvi-
mento., são. contradições imanentes, implicações desta deria não. pede exprimir-se senão. numa eutra merca-
propriedade, desta liberdade e desta igualdade que, deria, e só pede realizar-se através da .treca desta,
reside já a pessibilidade. de que a treca nae chegue de

(') Ibid., p. 22~. (') Ibid., p. 225.

132 133
modo algum a fazer-se, ou pelo menos que não realize A circulação do valor de troca nada mais é do
o valor exacto. Finalmente, quando a mercadoria que a circulação da liberdade e da igualdade, enquanto
específica força de trabalho surge no mercado, o seu determinações da propriedade, e toda a ideologia
valor determina-se, como o de qualquer outra merca- burguesa é uma idealização destas determinações.
doria, segundo o tempo de trabalho socialmente neces- fodemos dizer, então, que a função última da
sário à sua produção. Eis a razão pela qual a forma ideologIa bur uesa consiste em idealizar as determi-
do valor dos produtos contém já em germe toda a forma naçoes a propriedade (liberdade/igualdade), isto é,
c.apitalista de produção, o antagonismo entre o capita- ãSã'êterminações objectivas do valor de troca. A base
lIsta e os assalariados, o exército industrial de reserva concreta de toda a ideologia é o valor de troca. Que
as crises. Por conseguência, querer abolir a forma d~ outra coisa fez Hegel, ao desenvolver a Ideia de direito,
prod ução capitalista instaurando o «verdadeiro valol'», que não fosse dar a expressão pura do movimento do
é querer abolir o catolicismo instaurando.-a <<verdadeiro v;Uor? E a «dialéctica,) dos Princípios' da filosofia do
~a,). ou instaurar uma sociedade na qual os produ- direito que coisa é senão a manifestação cada vez
tores acabem finalmente por dominar um dia o seu mais abstracta do valor? Com efeito, ao fim e ao cabo,
produto, através dum consequente recurso a uma a . Ideia hegeliana de direito - ou, antes, o que é o
categoria económica que é a mais ampla expressão Espírito no Direito - é o valor à espera dele próprio.
da sujeição do produtor ao seu próprio produto~ (6). Desde que o processo do valor' de troca é o mesmo
O pôr em movimento a propriedade privada cria processo da liberdade e da igualdade, desde que os
c.ertamente uma liberdade e uma igualdade, mas esta indivíduos são apenas «equivalentes viv~), ~rocesso
IIberdad.e e esta igualdade são as mesmas da proprie- ão vãlor de troca torna-se o processo do sujeito e o
dade prIvada .. Em última instância, toda a ideologia processo do sujeito, o processo do valor de troca.
?urguesa consIste em ocultar a contradição imanente Dito por outras palavras, na esfera da circulação,
desta liberdade e desta Igualdade, que se tr~ tudo se passa (e não se passa) entre suj eitos, que são
no seu contrário: a escravidão e a exploração (7). também, ~jeit.Q~ desse grande Sujeito que é o capital.
E .como, além disso, a circulação escamoteia (reve-
lando-a) a produção, pode dizer-se então que toda a
produção se manifesta corno produção de um sujeito .
(') ENGELS,.Anli-Duhring ob. cit.', p. 350. . Posso responder então à questão aberta por
. (') É assi~ que a reivindicação da igualdade pelo prole- (/) ~ Althusser: se é verdade que toda a ideologia interpela
tarl~d? no domímo eco~ónico e social passa necessariamente pela . (;"s indivíduos corno sujeitos, o conteúdo concreto/ideo-
abohçao das c1a~ses, ISto é, pela abolição da separação do lógico d.a interpelação burguesa é o seguinte: o indiví-
homem e .dos meIOs de produção (crr. ENGELS,ob. cit., p. 13"8).
Retomarei este ponto na conclusão desta obra quando tratar da. duo é interpelado corno incarnação das determinações
luta ideológica. do valor de troca. E posso acrescentar que o sujeito de

13/i 135
direito const(tui a forma privilegiada desta interpelação, • Para caracterizar este auto-engendrar Marx' utiliza
na exacta medida em que o Direito assegura e assume uma metáfora que não é inocente. O valor «distingue
a eficácia da circulação. em si o seu valor primitivo da sua mais valia, da mesma
Mas como, além disso, a circulação só 'pode pre- maneira que Deus dlstingúe na sua pessoa o PaI e o
tender a sua reprodução através dos sujeitos, o valor -Pilh£, e que ambos fazem apenas um e sao da mesm"ã
de troca, e a sua forma mais acabada o Capital, afir- idade, porquanto é apenas através da mais valia de
ma-se como Sujeito absoluto que se assegura e se 10 libras esterlinas que as 100 primeiras libras ester-
legitima em nome da sua própria redistribuição em linas adiantadas se tornam capital, e desde que isso
sujeitos. se conclui, desde que o filho foi engendrado pelo pai
Aqui é necessário precisar bem. Falo da circulação e reciprocamente, esta diferença esvai-se e não existe
e da sua ideologia, e da manifestação concreta/ideo- mais do que um ser: 110 libras esterlinas') (11) «Deus
lógica do capital nesta esfera. É nesta perspectiva -desdobra-se nele próprio e envia o seu filho à terra
que posso avançar que pouco importa, para a circulação, como simples sujeito «abandonado» (... ), sujeito mas
que o capital no seu processo, afirme o trabalho, esse Sujeito, homem mas Deus, para levar a cabo aquilo
(<não-capital real,) (8), esse valor de uso que constitui que a redenção final prepara, a Ressurreição de Cristo.
«o oposto e o complemento do dinheiro na sua quali- Deus tem ois necessidade de «se fazel'l) ele próprio
dade de capital,) (9). O que aparece nesta esfera, e o homem, o Sujeito tem necessl a e de se tor~r
que lhe importa, é que o c~pital, este valor que se sujeito (... )>> (10). O Julgamento Final, onue o sujeito
põe ele próprio em valor, pareça não só engendrado
por ele próprio mas pareça ainda engendrar o seu formação real do valor de uso em valor de troca. .0 trabalho
próprio processo (l0). produz as suas condições de produção enquanto capital - e o
capital, o trabalho que lhe permite realizar-se como capital-
o trabalhador assalariado. (La P.nsée, <ob. cito'), Então como
(') MARX,Contribuição ... , .ob. cit.», p. 251- o dinheiro só toma em conta a autonomia do valor no processo
- ,. (') Ibid. fechado da circulação, o Capital é o valor tornado processo
(' D) Que ele, realmente, o gera também produzindo não total. Eis porque razão o Capital aparece não só a auto-engen-
só Capital mas ainda reproduzindo aI, de maneira cada vez mais drar-se, mas ainda a gerar realmente as condições da sua
alargada, a matéria do capital (a massa crescente de Irabalho), produção. O homem está realmente submetido ao Capital, já
tal foi exposto por Marx nomeadamente num capitulo inédito que o Capital o produz realmente. Ao mesmo tempo °ele vive
do Capital (.La Pensée., Abril, 1971). O que diferencia ,a auto- as leis do Capital como .leis natUl"ais.. O Capital torna-se um
nomia do dinheiro, (que) deve aparecer como processo (e que é) .ser forte, mlstico; todas as forças produtivas sociais do trabalho
ao mesmo tempo condição prévia e resultado da circulação. parecem com efeito ser devidas ao Capital e não ao trabalho.
(.Contrib.', p. 245), da autonomia do Capital, é que o processo (.0 Capital., L. lU, p. 205).
do Capital é processo total. Dito de outro modo, o seu processo (U) MARX,O Capital, .ob. cit.', Iiv. I, t. oI, p. 158.
é ao mesmo tempo processo do valor de uso (o trabalho, o não- (U) ALTIIUSSER, Ideólõgie e appareils ideologiques d'Etat,
-capital) e do valor de troca, isto é, o próprio processo da trans- .ob. cit.'o
0.0
(.

136 137
entra no seio do Sujeito, são as 110 libras esterlinas titui-o em sUJuto de direito proprietário, isto é, em
o A' da fórmula A'-M-A'. O)ilho do Cap'ital é a mais pessoa capaz de adquirir e de vender; .
valia que se contemQIª no Cap.ital, é o Sujeito que se O
b) que a troca do equivalente entre dois sujeitos
desdobra em sujeitos, e os indivíduos, agentes da
de direito é a relação jurídica fundamental;
circulação, são os sujeitos que asseguram o funciona-
mento do Sujeito~ c) que toda a produção social do homem é pro-
Neste ponto convém reagrupar estes diferentes dução de um sujeito de direito;
enunciados para fazer deles a base concreta/teórica d) que o Direito manifesta como compuL.ivas
da minha demonstração. as leis «naturais') da liberdade e da igualdade, isto é,
também as leis de um processo que se fecha sobre
1. A ideologia burguesa idealiza (ideias puras) ele próprio, no funcionamento das suas categorias.
as determinações da propriedade (liberdade-igualdade).
Este «quadro» exige um comentário .. O que eu
O que a leva a equacionar:
quiz significar foi a relação entre a Ideologia burguesa
a) que a sociedade (= ('sociedade civil».enquanto em geral e a Ideologia jurídica. Ora,_Ilarece que o
totalidade das relações sociais) manifesta, nas suas seu terreno de encontro maÍs.nã!Lé do gUfUl.,c.!r..Q.ll.lac.ãQ,
leis imanentes, a totalidade do processo social; isto Ó, o terreno da realização do valor de troca e d~
b) que os membros desta sociedade são livres e suas determinações.
iguais entre eles; Se a ideologia burguesa em geral pensa o processo
social no seu conjunto através da noção de «democracia
c) que toda a produção é produção de um sujeito
política e económica.) (que mais não é do que um
livre;
plágio da velha noção de sociedade civil) é sobre
d) que as leis que permitem assegurar o funciona- esta mesma noção que se constitui a ideologia jurídica.
mento desta sociedade (democracia) são as leis natu- Compreende-se todo o valor que pode assumir,
rais da liberdade e da igualdade, isto é, as leis dum no próprio itinerário de Marx, a definição do lugar
processo que se fecha sobre si próprio. desta noção.
No Prefácio à Contribuição para a crítica da economia
2. O Direito assegura as formas da Circulação e política Marx recorda o seu caminho:
fixa-a como dado natural. (,As minhas investigações. conduziram a este resul-
O que o leva a equacionar: tado de que as. relações jurídicas - assim como as
formas do Estado - não podem ser compreendidas
a) que. a interpelação jurídica do indivíduo, nem por elas próprias nem pela pretensa evolução geral
agente dá troca (= membro (,sociedade civil») cons- do. espírito humano, mas que elas vão buscar pelo

138 139
contrário as" suas raízes às condições materIaIs de
existência, de que Hegel, a exemplo dos Ingleses e outro lado, ele engloba também «toda a organização social
dos Franceses do séc. XVIII, engloba o conjunto sob saída directamente da produção e do comércio').
o nome de «sociedade ci vil», !:...que a anatomia da soci~- Dito de outro modo, sob uma única categoria, estão ê
dade civil deve ser p'rocurada Jlor seu turno na economIa reunidas a produção e a circulação.
política». . .. Mas, ao mesmo tempo e Marx dá-se conta
• Marx na Ideologia Alemã dava dela esta defimçao: disso no Prefácio à Contribuição para a crítica da
(,A sociedade civil abarca o conjunto das relações "~ economia política -, esta noção é um «progresso»: ela
materiais dos indivíduos no interior de um determinado formula que as relações jurídicas e o Estado vão buscar
estádio de desenvolvimento das forças produtivas. as suas raízes (,às condições materiais de existência».
Ela abarca o conjunto da vida comercial e industrial A noção de ('sociedade civil» é ao mesmo tempo
de uma etapa e, por isso mesmo transborda o Estado e a falsa e verdadeira. Ela é verdadeira na sua visão
nação ainda que ela deva, além disso, afirmar-se no exte- totalizadora do processo socÍã1, ela e falsa na medida em
rior como nacionalidade e organizar-se no interior como que reduz o processo social à sua a,Rarêneia: a eirculaç!o.
Estado. O termo sociedade civil apareceu no séc. XVllI a Com efeito a sOCIedade civil é ela própria a super-
partir do momento em que as ~elações d~ propried~de se fície da relaçã~ do Capital. Tomar a superfície da
foram destacando da comumdade antIga e medieval. relação - a sociedade civil nas suas leis imanentes
A sociedade civil enquanto tal apenas se desenvolve com - pela totalidade do processo social (económico, jurí-
ãburguesia; contudo a orgamzação social saida directa- dico, político) equivale a afirmar q.ue, tal como ~la
-mente da produção e do comércio e que forma sempre ('aparecc», ela é a realidade do próprIO processo SOCl~..
a base do Estado e do resto da superestrutura idealista A melhor ilustração disso é ainda o «sistema das necessI-
"
foi constantemente designada sob o mesmo nomc» (13) . dades» tal como Hegel o desenvolve nos Princípios da
Este dois textos permitem eSp'ecificar a noção de filosofia do direito.
sociedade"civil-que, contrariamente às primeiras aparêfi: ~ . . A «sociedade civil», en quanto noção -ideológica 'que
C1as, nada mal~o que a esfera da circ~l.a.¥ão. pretende assim dar conta da totalidad~ do p~ocesso
Desde a ldeologta Alemã Marx descreve a «soCIedade social, constitui o lugar de encontro da IdeologIa bur-
civil» como umarnoç9P_lã~Iõ7!i'C[J Com efeito, por um guesa em geral e da ideologia jurídica. Mas este lugar,
lado este termo engloba «o conjunto das relações lugar de encontro é, ao mesmo tempo, um lugar de
mat~rlais dos indivíduos no interior de um determinado )
passagem.
estádio de desenvolvimento das forças produtivas»j por Com efeito, todas as categorias que fundamentaI!!
a noção de «sociedade civil» - propriedade privad~,
sUJeito, vontade, liberdade igualdade, são «espec~.
(lO) JliARX.ENGELS, A ideologia alemã, .ob. cit.t, p. 104. ficadas» pela ideologilLjurídica, Q..-.fl.l1jeito_é.-.e. ~~cl-
ficado em sujeito de direito; a produção do sUjeito
140
141
,I
"

em produção do sujeito d'e direito; a: liberdade e a Forma do p'rocesso que manifestou ;_ao tomar esi!!
igualdade em liberdade e igualdade de todo o sujeito Forma 'ele torna eficaz o próprio processo.
de direito. Mas, no mesmo momento, esta especi- ,É assim que toda a produção (do realLapareceu
ficação é coactiva. O que quer dizer que, se a ideologia como a produção de um sujei.t.P.(conceito de «sobre-
jurídica mais não faz do' que especificar «juridicamente» -apropriação~)3ue é a incarnação do•..Ya1-,QL,.déJroca
a ideologia burguesa, no mesmo movimento esta espe- (For~a, Sujeito). E, se s~ reexamina a'-!:orma s~~
cificação é realizada concretamente pela 'coacção do de dIreIto, esta mercadorIa que se põe ela .próprla em
aparelho de Estado. • .movimento, que se leva a si mesma ao mercado, eSta
É assim que o aparelho de Estado, impondo o mercadõFiã na qual se incarna, fundamentalmente,
«jurídico,) - enquanto manifestação real da ideologia o trabalhador, ela aparece constituída em dois polos:
jurídica - coactivamente, impõe a "ideologia jurídica, de uma lado,-º-p.oJo sw.eiW_(o ç()ns~ntimento, V.9Jl-
e que a ideologia jurídica, em retorno, justifica a tade ... ) de outro lado, o polo objecto deJ!.ireito (cie
coacção. próprio eng!!allto--ffi.er,cadoria). A Forma sujeito, esta
O reagrupamento destes enunciados permite espe- ~ I "Forina abstracta produzida realmente pela circulação,
cificar a função do Direito. O Díreito manifesta real- ~ «contém já em germe toda á forma capitalista de
mentelideologicamente, pela Cõacção do aparelh~ , produção,) <,ornoo dizia Engels da «forma do valo~ (U).
EStaao, as determmaçoes do valor de troca (proprie- I Porque, em última análise, o trabalhador é esse
(Iade/liberdade-igualdade). A manifestação real, nós ! específico ser que se leva a si próprio ao mercado,
chamamos o jurídico, à manifestação ideológica, a Ídeo- numa forma jurídica que lhe permite vender-se em
-logIa juridICa o conjunto do rocesso ao Dirmto. . nome da liberdade e da igualdade. Est.a Forma realiza
ra, o que apareceu na minha demonstração jurí- assim, «sobre o terreno~, a propriedade. Pois, a partir
dica, foj_<Iue a «constr~ão,) de um novo objecto @ do momento em que o. indivíduo é juridicamente cons-
direitó-'- o «real»- se efectuou inteiramente nas cate-
gorias yredet.erminadas da circulação; que o colocar
-em circulação jurídica de novas indÚstrias - as indús- (") Engels precisa a relação entre a lei do valor e a ideia
trias fotográficas e cinematográficas - se produziu nas de igualdade: ,Finalmente, a igualdade e o valor igual de todos
os trabalhos humanos, dado que e enquanto são trabalho humano
determinações do valor" isto é, nas determinações da em geral, encontraram a sua expressão inconsciente mas a mais
propriedade, e que estas próprias determinações apare- 'i vigorosa, na lei do valor da economia burguesa moderna, que quer
ceram como ãetermina.ÇQ.es do ~õ de-di!êitõ:. que o valor de uma mercadoria seja medido pelo trabalho
'-Reciprocamente, o pôr em circulação o real, pela neées- socialmente necessário que ela contém. (Anti-Duhring, «ob. cit.',
sária mediação do sujeito de direito, constitui o próprio I p. 137). E acrescenta: «Esta. dedução das ideias modernas de
igualdade a partir das condições economicas da sociedade
sujeito de direito. Condição e resultado do pro.c.es~ burguesa foi exposta pela primeira vez por MARX em O Capital,
}:
da circulação, o sujeito de direito tomou a mesin~ «id.•, n.O 1.
!
I.
142 143
tituido em sujeito do processo de troca, não só é
livre, já que possui «em propriedade plena~ os produtos ,,
e, melhor, a energia do seu trabalho, e que pode à sua til,
maneira trocá-los «<Donde, no direito romano, esta
i
definição correcta do ser"us (escravo): alguém que nada !
pode procurar obter por troca») ('5), mas ainda é igual i,
a todo o sujeito de direito pois que um sujeito.é igual; /. 6 - Tese 11: O direito, garantindo e fixando
socialmente, a um oútro sujeito. O comprador torna-se
vendedor, o vendedor comprador e esta permutação
como dado natural a esfera da circulação,
.é o próprio sentido da troca. torna possível a produção.
«À saída do acto de troca, cada um dos dois sujeitos
reentra em si próprio enquanto objectivo final de
todo o processo, enquanto sujeito que tem preferência " Resta-me agora demonstrar o seguinte: como é
sebre tudo. Assim se realiza pois a completa liberdade que a fixação (jurídica) das leis da circulação torna
do sujeito. Transacção livre; nenhuma violência nem possível a 'produção? Por outras palavras, qual é,
de um lado nem do outro; não se tornam um meio no processo do Capital, a relação que a circulação
para outrem senão para serem um meio para si ou o entretem com a produção?
seu próprio fim; finalmente, consciência de que o .N.;u::elação cap.italista produziu-se esta revolução:
int.eressegeral ou comum é justamente apenas a univer- J mercadoria específica força de trabalho apar~o
salidade do interesse egoístico})('6). mercado. A circulaçlio já não é esta região relativa-
Não me alongarei mais, mas posso acrescentar 'ÍÍÍente autónoma onde os indivíduos levavam ao mercado
que a Forma sujeito de direito, enquanto a mais d~- o excedente da sua produção, mas o lugar onde o ca~-
volvida e a mais abstracta dãSformas juríaica\b_desen- talista vem em pessoa comprar_o_que lhe permitirá
'volve as leis imanentes do Direito. ~um.!JnJljJ'_p~e.u_cap.itgJ: o trabalho humano (').-
É-me, pois, possível presentemente expôr a minha
segunda tese. (') Queria, acerca deste ponto, fornecer algumas indica-
ções. O problema do papel do direito num determinado modo
de produção remete para a relação circulação produção. Eu
explico-me. Historicamente, o valor de troca s6 aparece p'rimeir~
aRenas na esfera da circulação e, enquanto não se torna a b~
real aª-ill9.duç-ª.Q.,-!lliL~parece cpmp um-ª esfera relativam~
aut6noma e relativamente .desenvolvidg. Dito de outro modo,
ela aparece Gem avanço> sobre as relações de produção. O
(") MARX, Contribuição ... , Gob.cit.t, p. 220. Direito, que fixa as determinações do valor de troca, adquire assim
(") Ibid.

144 145
10
A circulação não só aparece assim como o lugar . Daí que (,a forma original da relação (dos produ-
de encontro do capital e do trabalho como ainda se tores de mercadorias iguais em direito que se enfrentam
tornou a mediação essencial da reprodução do capit~. no m~rcado) não subsista doravante senão como

uma .autonomia relativaJ)em relação à base real de produção. Isto teórica desta prática. A reposição do direito romano prova o
explica já o .milagre» do direito romano .• Tendo-se desenvolvido estatuto do sujeito. Vê-se também em quê o direito romano
no mundo antigo, pelo menos entre os homens livres, as diversas pôde tornar.se o lugar da justificação teóric~ de uma prátrca
fases da circulação simples, explica-se que em Roma, e especial- necessária. . .
mente na Roma imperial; cuja história é precisamente a da dis- Consideremos Hegel. Ele abstrai da prática do dIreIto
solução da comunidade antiga, se tenham desenvolvido as deter- romano as determinações essenciais do sujeito, que ele volta
minações da pessoa jurldica, sujeito do processo de troca; assim ontra o direito romano. O que 0eera esta reviravolta é o
se explica que o direito da sociedade burguesa ai tenha sido ~ 'onto de vista da ..!.,,:o?tadelivre», ISto é, o ponto de vIsta
elaborado nas suas determinações essenciais e que fosse defendido,' ~ mais abstracto do SUJeIto. Contra Kant, Hegel formula este
sobretudo em face da Idade Média, como o direito da sociedade principio fundamental :não existem ~ireitos r~a.is e di~ei~os
industrial nascente. (MARX,Contribuição ... , p. 224). Este .avançoo pessoais não existem direit.os que não sejam do SUjeito. O dl.r~Ito
da circulação, permite ao mesmo tempo a análise da filosofia romano tornou-se em I~ esta razão nascente do sUjeIto,
política dos séculos XVI,XVlle XVlIIe do papel que desempenha sempre ultrapassável ma'siempre conservada, e que ~e per~e~ua
o Direito num determinado modo de produção. Estes filósofos até ao Estado, este Sujeito que chama de novo a SI o S~jeIto.
do Direito postulam dois pressupostos naturais: de um lado, que A prática do direito tornou-se ideia pura isto é r~laçao do
a circulação é o processo total (que o direito fixa o processo sujeito com o sujeito. A pretensao de prov~r na prátrca <~~so-
total), de outro lado, que a troca é regida pelas',deis naturais. Juta. (o dIreIto, a polltica, o Estado) a eXistêncIa do. sUjeIto,
da propriedade, da liberdade e da iguald,ade. Em última instâncIa transforma esta prática em ~ dQ .homem" consIgo pró-
estes dois pressupostos formam apenas um:.A relação do .homem. O prio.. O sujeito prova-se pela prática do sujeito.
consigo próprio e eis a razão pela qual todas as relações reais -- O processo do valor de troca aparece assim tran~figurado
se tornam para eles ideiaso. (MARX-ENGELS, A Ideologia Alemã, _ na perenidade das suas formas jurídicas - em pe~ellldade d~
.ob. cit.', p. 107, n.O 3). sujeito. O <avançoo da circulli,ão...mall1feª-ta~se
_entao com,o~1
Com efeito, foi porque o direito romano já tinha desenvol- natural[eterna do sujeito. . .
vido as determinações da pessoa, sujeito juridico, que a burgue'ãi", ~- Isto leva-me ao papel concreto/ideológico que o dIreIto
nascente pôde apOIar-se nele. Mas esta .reposição. do direito desempenha. O papel principal que ~Ie ass~me actu~mente
~romano foi necessariamente acompanhada por uma 'ideologia' do -remete, já o disse, para a relação elrcu]açao/produçao.. ~o
sujeito. Com efeito, ao mesmo tempo que a burgueSIa o ufIr- processo do capital a circulação mais não. é do ,que medlaç~o
zava, os filósofos punham a questão do .sentido. desta utilização essencial. Marx di-lo incessantemente: a clrculaçao é. aRarêncla
e davam esta resposta: Se?~, em ~ eternidade civilizada, da relação, ela é aparência do processo total. O direito trxa
existiu propriedade priva a,,Sxis..\JJw:onJ,rato,existiu suj~ .I asSIm a marcha do processo totãl. Eu não dlgQ"com certeza,
o/reI to. J\-rep'ostçliõ-das éãtegorias do direito romano jstificava que ~ direito cria a marcha do prÕcesso mas que o proce~so
teoricamente
. a.~categoria do sujeito. q)le' aparecia
. assim
. como' próduz o direito do seu processo. É assim q.ue a forç.a .de
categorza cternr'?rw
-trãbãlho ao chegar ao mercado, se encontra regIda pelo dlrerto
Vê-se como li ideologia de uma prática necessária - o direito comum dos contratos .• Sob o ponto de vista do direito, não se
romano retomado em suas noções - <se transforma. em base reconhece pois, no contrato de trabalho, outras diferenças com

146 147

I
aparência da relação ue constitui o seu fundamento, obrigado a vendê-la! Ele é vendedor e comprador ...
a relaçao CapJta (os pOSSUIores da sua força de tra- das suhsistências necessárias para a reproduzir. Que
balho enfrentam no mercado os possuidores .dos meios importa finalmente que esta venda e esta compra
de produção») (2). sejam o resultado do próprio capital! É a liberdade
Dito de outro modo, para a circulação, o processo que está em jogo.
do capital nada mais fez que fornecer-lhe mais uma A circulação abole as diferen as: todo o su' eito
mercadoria: a força de trabalho, mas, sempre para a de -direito é igual a qualquer sujeito de direito. e um
circulação, esta mercadoria nova em nada altera as contrata é porque o outro quis contratar. A causa
suas próprias leis. a que lhe importa, agora como última do contrato é a própria vontade de contratar.
antes, é o movimento do valor de troca, isto é, o movi- a sujeito de direito possui-se a si próprio enquan!Q 'fJff.
mento abstracto da propriedade. Ela não aparece objeéto de direito: ele realiza assim a maIs desenvolvida
afectada em nada, pois trata-se sempre (para ela) Forma do sujeito: a propriedade de si próprio. Ele
estabelecer a relação entre um comprador e um vendedor realiza a sua liberdade no próprio poder que lhe é
proprietário da sua mercadoria. reconhecido de se vender.
As leis do mercado podem assim ter pretensões Voltei ao meu ponto de partida: a Forma sujeito
à liberdade e à igualdade. Que importa que o traba- de direito, mas é um regresso que se enriqueceu. Esta
lhador seja proprietário apenas da sua força de tra- categoria, a mais abstracta do direito, pode presente-
balhol Ele é proprietário. Que importa que ele seja mente revelar a sua verdade: o pôr em circulação o
homem. lsto quer dizer, para nós marxistas, o pôr
qualquer oulro gênero de contralo que não sejam as contidas nas em circulação a força de trabalho. E este pôr em cir-
Jórmuj.as-j.~c ente. e uivalenles: Do ut des, do ut facias, do culação fez-se em nome da propriedade e das suas
. ut des. et facto ut faetas. \uQ!!...P.arague dês, dou para qu.e
faças, faço para gue dês,~nara ue a as o. aptlo determinações, a liberdade e a igualdade. acontrato
-1iY."í, t. 1J,p:-2'ú. E arx, na mesma passagem, mostr; vai permitir a exploração do homem pelo homem em
como o salário, na exacta medida em que toma a forma da
relação monelária, .lorna invisivel a relação real entre capital
nome destas determinações. a contrato, isto é, o meio
de ser do direito, esta razão pela qual ele existe.
e lrabalho e mostra precisamente o conlrarioo (Ibid.). ,
Na medida em que o valor de lroca se tornou a base real Terei necessidade de o lembrar? a sujeito de
da produção O Direito pode desempenhar enlão o papel primor- direito «permitiUl) que o próprio «real» entrasse no
dial de sancionar as relações económicas do próprio processo. comércio; ele «permitiu» que as indústrias fotográficas
O papel do direito, num determinado modo de produção, e cinematográficas explorem os trabalhadores artís-
remete porlanto para a relação circulação/produção, isto é, em
última instância, para a relação que o valor de troca entretém
ticos em nome dos seus próprios contratos; ele «permitiu»
com a base r~al da produção. que o homem seja objecto de contratos.
(') MARX, Um eapltulo inédito do Capital, La pensée, Então, posso concluir neste terreno, isto é, no
.ob. cit.o. campo dos limites que a teoria burguesa do direito

148 149
não franqueará. _Este limite é aquele mesmo que lhe
traç~oria (lo sujeito de direito, enquanto a
mais desenvolvida Forma jurídica da propriedade.
Este limite é o campo fechado da propriedade privada,-
onde jamais se passa algo que não seja o proeesso da
propriedade privada. A apropriação da natureza pelo
homem é uma apropriação do sujeito de direito: assim, Conclusão: direito e luta ideológica
em Hegel, a humanização da natureza passa necessa-
riamente pelas determinações da propriedade; assim,
a totalidade da Forma Sujeito pode confessar as suas Não queria acabar sem ter posto o que pode ser,
determinações: elas nunca serão mais dó que a reali- aqui, a..!JJta ideológilla-
zação da propriedade privada. Quando Engels nos conta a (,verdadeira história»
O ponto de partida da ciência burguesa do direito da igualdade, ele escreve o seguinte:
_é o ~omem,lsto e.•_o::liomem::cimStítnjdQ em sui~ «Ou (esta reivindicação) é - e é nomeadamente o
de dIreIto. O ponto de chegada da ciência burguesa caso inicialmente, por exemplo, na Guerra dos Campo-
- do direito é o homem. O movimento desta 'êiência' neses - a reacção espontânea contra as gritantes desi-
burguesa é imóvel: pa!_te-se do sujeito para reencontrar gualdades sociais, contra o contraste entre ricos e pobres,
.!l,!j~i.:o..:.Do mesmo modo o métõ-do exege"tico: parte-sê senhores e escravos, dissipadores e esfomeados; como
da lei para regressar à lei. A teleologia do sujeito é tal, ela é simplesmente a expressão do instinto revo-
a teleologia da propriedade privada, que produz a lucionário, e é aí - e aí somente - que ela encontra
teleologia do método. a sua justificação. Ou então, nascida da reinvindi-
~m_lÍ!tima_j_nstância ideológica, jamais se pass@ cação burguesa de igualdade, de que ela extrai rein-
-illgo no direito; isto é, j2!!!-ais se-Eassa algo fora do vindicações mais ou menos justas e que vão mais longe,
.-s.ujeitg. Abole-seaJem disso (a produçao) pela própriã ela serve de meio de agitação para erguer os operários
Forma do sujeito. E esta abolição encontra a sua contra os capitalistas cóm a ajuda das próprias afirma-
expressão perfeita na técnica do direito: constata-se ções dos capitalistas e, neste caso, ela mantém-se e
que isto é para que isto seja. cai com a própria igualdade burguesa. Em ambos os
Assim seja. casos, o conteúdo real da reinvindicação proletária é
a reivindicação da abolição das classes. Qualquer
reivindicação de igualdade que vá além disso cai
necessariamente no absurdo» (1).

(') ENGELS, Anti-Duhring, ~ob. cit.», p. 139.

150 151
E é necessário não esquercer que Engels nos fala Mas, no mesmo momento em que Engels nos dá
de igualdade a propósito da desigualdade ~moral~ de o sentido da luta ideológica, ele dá-nos a sua teoria,
Duhring. o seu «conteúdo real»: a aboliç.ão das classes. Toda,
Ora, que pretende exactamente dizer Engels com a reivindicação proletária da ideia burguesa da igual-
«reivindicações mais ou menos justas e que vão mais =,dãde_vjsa,-em_últi.m.a...in,s.tância, a abolição das classeS.
longe», e sobretudo com «o conteúdo real~ da reivin- E é aqui que alcanço finalmente a falência da
dicação proletária? Vej o, neste texto, a relação entre «ciência burguesa» .do direito, e a teoria de uma prática
a luta ideológica e a luta de classes, a relação entre o teórica do direito: o direito, voltado cont~ró~~
rüiíciõnamento da luta ideológica e a luta de classes; fornece-nos as contradiCoes da suã:::pI:á"jjJ::Le,_conj!!!!.-
o sentido desta estratégica que consiste em tomar a tam ente.,_os-limites--da_sua «ciência.>.
burguesia à letra, isto é, na armadilha da sua própria Estudando a «história.> da economia burguesa
r ideologia. Porque é exactamente este «tomar à letra'> clássica, Marx traça a sua dupla fronteira.
que vai «mais longe~, _-9.!!~_]_e..v..cla
a contradição da
.-ide.oloW-a-hllrg~. A fronteira «cientí(icw):
Este «tQlllar à letra~.=- que é uma tomada de
.partido - tinha um sentido, um «conteúdo real» um, «( ••• ) Na medidaem que ela é burguesa, isto é,
«outro~ conteúdo, que não a arecia à rlmeJra vista, que vê na ordem capitalista não uma fase transitória
que estava oculto na som ra: il.-abQ]ição dilS_cla.s~S._ODõs:f do progresso histórico, mas antes a forma absoluta
. Havia portanto, na luta ideológic~ conteúdo e definitiva da produção social (... ) ela só pode subsis-
explícito e um conteúdo latente; havia pois um conteúdo tir como ciência sob a condição de que a luta de
explicito que apenas existia pelo seu conteúdo latente, classes permaneça latente ou não se manifeste senão
que o exprimia sem o saber. Melhor ainda: um conteúdo por fenómenos isolados.) (3).
explicito - a ideologia burguesa, voltada contra ela
própria, (<tomada à letra') - que era verdadeiramente A fronteira ideol6gica:
revolucionária apenas porque este voltar-se contra ia Quando, em França e em Inglaterra, «a burguesia
necessariamente mais longe do que um simples virar-se conquista o poder político, desde então, na teoria e
(incidir sobre si), mesmo se ele ainda o ignorava. E este na prática a luta de classes reveste formas cada vez
saber na ignorância existia apenas porque se apoiava mais pronunciadas, cada vez mais ameaçadoras. Assis-
~sobre as relações práticas sobre as quais se funda a te-se ao toque de finados da economia burguesa cien-
situação de classe: nas relações económicas nas quais tífica. Doravante, já não se trata de saber se tal ou
(os indivíduos) produzem e trocam.> (2). tal teorema é verdadeiro, mas se ele é bem ou mal
(') Ibid., p. 125. (a) MARX, O Capital, «ob. cit.>, Liv. I, t. I, p. 2~.

152 153
sonante, agradável ou não à polícia, útil ou prejudicial E ele precisa que é necessário entender por isso
ao capital. A investigação desinteressada dá lugar ao ('esta construção ideológica a que se chama o homemD(7).
pugilato pago, a investigação conscienciosa à má A prática teórica dá-nos a própria historicidade
consciência, aos miseráveis subterfúgios da apologé- do nosso combate: a crítica das noções ideológicas do
tica» (0). direito traz em si a morte da ciência burguesa do
Se a ciência burguesa do direito preenche todo direito. Para esse tempo a vir e que se anuncia hoje,
o espaço político, este mesmo espaço político é o da os intelectuais militantes, ('esses verdadeiros sábios
luta das classes; O Direito reproduz este espaço na armados da cultura científica e teórica mais autêntica,
serenidade nunca perturbada das suas categorias. instruídos pela realidade esmagadora e pelos meca-
A- ciência burguesa do direito viveu. Filosofica- nismos de todas as formas da ideologia dominante,
mente
~ . ela morreu com Kan.t e Hegel; ellLé....ent.erra!là --,- constantemente alerta contra elas e capazes de seguir
quotidia.nameR-t-e1lD~caixã:o~d-a-smr-p¥áti.c.çt,pois «a prá- • na sua prática teórica - na conta-corrente de todas as
"tica vela à cabeceira de todas as ideologias, ao pé do ('verdades oficiais»- as vias fecundas abertas por
seu berço e do seu caixão» (5). Marx, mas interditas e obstruídas por todos os precon-
Eu queria acabar com a lição que Brecht tirou ceitos reinantes», armados (,de uma confiança invencível
da sua experiência com os tribunais. e lúcida na classe operária» e fortalecidos ('por uma
(,Tentando defender os nossos (,direitos» num negócio participação directa no seu combate» (8) devem estar
real e bem preciso, tomámos à letra uma ideologia na primeira fila, cada qual no seu sector, cada qual
burguesa bem precisa e fizemo-la apanhar em falso na sua disciplina.
pela prática burguesa dos tribunais. Conduzimos um Eles devem denunciar a miserável apologética
processo prevalecendo-nos ruidosamente de represen- deste sistema que faz do homem uma mercadoria,
tações que não são as nossas, mas das quais devíamos fazendo-lhe crer que é livre.
supôr que eram as dos tribunais. É perdendo este A liberdade tem este preço.
processo que descobrimos nestes tribunais represen-
tações de um tipo novo que não estão em contradição
com a prática burguesa em geral. Elas só estão em
contradição com as velhas representações (aquelas
precisamente cuja totalidade constitui a grande ideologia
burguesa clássica» (6). I.

(') ]bid., pág. 25.


(0) . BRECHT, ob. cit., p. 206. I') Ibid., p. 215.
(6) Ibid ..
(') ALTHUSSER, pour M~arx, «oh. Cit.D, p. tt., n.O 1.

154 155
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I
Notas sobre o funcionamento da ideologia jurídica 1

AS ELEIÇÕES DOS ARGELINOS


I
I AS INSTITUIÇÕES REPRESENTATIVAS DO PESSOAL
J
Se afirmamos que o Direito é não só um empreen-
dimento arriscado (uma jogada) mas também um
campo da luta de classes (2), somos levados a formular
a seguinte questão: como é que o Direito, no seu funcio~
namento, resolve os problemas políticos que a ele se
põem? Porque se, por um lado, o Direito é também
o lugar da luta de classes, por outro lado, a sua própria
ideologia deve fazer-lhe ignorar aquilo de que ele é
empenho ou aposta (aleatória). A expressão jurídica
da relação do direito ao político implica, assim, neces-
sariamente a dialéctica desta contradição.
Atribuímo-nos por tarefa elucidar"o funcionamento
da instância jurí'dico-política, isto é, determinar a

(') Artigo publicado na revista ,La Pensée», n.O 156,


Abril, 1971,
(') Louls ALTHuss~R; Ideologie el Appareils Idéologiques
d'Elal, Notas para uma investigação, «La Pensée., n.O 151,
Junho 1970.

159
relação do político e do jurídico ~o seio desta instância.
senão em face de uma teoria real do Estado. Melhor
Esta elucidação nós não a qUlzemos abstrac~a, mas
ainda. Esta teoria na qual aparecerá a dialéctica da
concreta no sentido de que analisaremos as «mcarna-
contradição secundária entre ideologia do Estado e
ções suc~ssivas» de uma «questão de direito~ com que
ideologia jurídica vai permitir-nos explicar o funciona-
os nossos tribunais estão actualmente ocupados: nos
mento necessário e o sentido da própria ideologia jurí-
termos do artigo 7.0 da Declaração de. Princíp~os dos
dica. Desde logo, poderemos avançar como certo que
Acordos de Evian «os emigrantes argelInos, residentes
para o Estado é político o que participa no aparelho
em França, e, nomeadamente, os trabalhadores terão 1
do Estado. Como as Instituições Representativas do

I
os mesmos direitos que os nacionais franceses com
Pessoal (LR.P.) não fazem, evidentemente, parte deste
excepção dos direitos políticos». Um certo ~úmero ~e
aparelho enquanto representam apenas pessoas privadas
Argelinos, tendo apresentado a sua c~ndld~tura as
! numa actividade privada (privada para o Estado),
eleições das comissões de 'empresa, os ~rl~u~al~ f~r~m pode dizer-se que os direitos que aí se exercem não
encurralados com a questão: «qual é a dlstmçao Ju~t~tca são direitos políticos.
entre direitos políticos e direitos privad.o~ (SOCIaIS)?
Porque, vê-lo-em os, em última instância não se
«Se para o Estado é política o que participa do seu
trata de outra coisa senão de determinar o estatuto
funcionamento, esta ideologia, transportada para a
jurídíco do trabalho na instância jurídico-política.
ideologia jurídica, não só é (<trabalhada~ 'pe~a luta de
Na sua última formulação, a questão de direito leva
classes mas ainda só pode resolver em dtretto os. pr,?-
à seguinte resposta: a expressão jurídica do trabalho
blemas políticos que lhe são posto.s. É e~ta co~tradJç~o
(= elegibilidade para as L R. P.) só pode apresen-
da ideologia do Estado, a quem e reme~lda a Ideol?gla
tar-se em direito sob a forma jurídica do exercído de
jurídica assim (<trabalhada~, que quer~a~os segmr e
direítos profissionais, os quais são «por natureza'> apolí-
perseguir na marcha da «questão de direito,). .
ticos face à própria ideologia jurídica.
Numa formulação «ingénua~, tal como ela e da?a
Tal é o funcionamento desta instância que que-
pela doutrina jurídica (ortodoxa) e pela jurisprud~nCla,
ríamos mostrar em acção, sem perder de vista a extrema
a questão de direito não. encontra a sua ~ol~ça? .de importância da questão concreta a resolver.
direito. Dito por outras palavras, a reflex?,o JurldlCa
«pura~, ao nível dos seus próprios títulos, vai revelar-se
insuficiente: não podemos saber como. e .em no~e. de Apreensão da distínção direitos políticos e direitos
quê poderíamos distingui: .bem os direItos polItlCos privados (direitos sociais) pela doutrina e pela juris-
dos direitos privados (soCIais). _ prudência-
Esta insuficiência remete para a questao da sua Dissemos que o artigo 7.0 da Declaração de Prín-
insuficiência. A passagem à teoria torna-se nec~s~ári~: cípios relativa à cooperação económica e financeira
não poderemos compreender o sentido desta dlstmçao dos Acordos de Evian dispõe que os emigrantes arge-

160 161
11
linos terão os mesmos direitos que os franceses «com das ao mesmo tempo pelo povo francês e pelo povo
excepção dos direitos políticos». Este texto evoca duas argelino) permitiu dizer que a simetria destas aprova-
ordens de dificuldades nascidas de contestações rela- ções lhe tinha conferido valor de acordo inter~acional (4).
tivas à eleição dos trabalhadores argelinos para as '. Tal foi a posição do Ministro dos NegócIOSEstran-
comissões de empresa. A primeira dificuldade liga-se geiros (5), do Conselho de Estado e do Cour de
à natureza jurídica deste texto, a segunda à definição Cassation) (6).
do conceito de «direitos políticos». A natureza jurídica da declaração de princípios
Se o primeiro ponto suscita poucos comentários, litigiosa não parece que se possa voltar a pôr.
o segundo, em contrapartida, exige uma análise porme-
norizada. PRIMEIRA INSTÂNCIA DA DISTINÇÃO ENTRE DIREITOS
POLíTICOS E DE DIREITOS PRIVADOS (SOCIAIS)
NATUREZA JURÍDICA DA DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIO
RELATIVA A COOPERAÇÃO ECONÔMICA E FINANCEIRA DOS A doutrina, posta em confronto com a distinção
ACORDOS DE EVIAN jurídica dos direitos políticos e dos direitos priv~dos
vai de qualquer maneira, esvaziá-la de todo o sentIdo,
Se se tem podido criticar o valor de tratado dos for~ecendo, pura e simplesmente, uma distinção. em si.
Acordos de Evian, esta crítica deixa de ter lugar na Ora o expressar duma distinção deste tipo explica que
medida em que a questão foi regulamentada em direito ela não possa ser legitimada.
positivo. Contentar-nos-emos em lembrar que os Se com efeito nos recusarmos a encarar que esta
Acordos de Evian, concretizados pela publicação de " .
distinção deveria remeter para a questão do se~ sentId.o
oito declarações governamentais, adquiriram valor de e da sua realidade - porque só um tal reenvIO permI-
tratado em face de: por um lado, a lei referendária de tiria «descobrir') o conceito que preside a esta distinção
14 de Janeiro de 1961 (3) que reconheceu aos argelinos e seria suficientemente operatório para dar conta da
o direito de escolher por via de consulta, ao sufrágio sua natureza que é de direito - somos levados a pôr
directo e universal, o seu destino político em virtude do que, analisá-la como uma distinção em si, equiv~e a
artigo 55.0 da Constituição de 1958 e, por outro lado, tornar indeterminados os dois termos que a compoem.
o referendo que teve lugar em França a 8 de Abril
de 1962, assim como o escrutínio de autodeterminação (') SILVERA, in Dalloz, 1968, pág. 678 sob Conselho de
efectuado na Argélia no dia 1 de Julho de 1962. Estado 27 de Março de 1968.
(')' Cfr. o parecer ministerial sobre a questão prejudicial
A ratificação era desde logo perfeita e o particular do Conselho de Estado, 31 de Janeiro de 1969, Dalloz 1969,
processo seguido (declarações governamentais aprova- pág. 326. ._
(0) C.-E. Moraly, 31 de Janeiro de 1969, Cour de Cass.a-
(') Jornal Oficial, 15 de Janeiro; .Gazette du Palais, 1961, ção, Câmara Civil, 23 de Abril de 1969, .Gazette du Palms,
I. L., pág. 108. 20 de Maio de 1969.

162 163
a) A doutrina da ciência política
Dito de outro modo, poderá dizer-se indiferentemente
que tal direito é politico ou social (privado). Para Freund, ('por um lado, há a economia e, por
Esta (,habilidadCJ)que impede que seja encontrada outro, a política e estas duas essências tecem en tre
uma solução de direito para o problema revela, corrc- elas relações dialécticas de ordem antinómica que cons-
lativamente, a contradição da ideologia jurídica que só tituem a questão social em sentido próprio» ('). Sem
pode resolver em direito os problemas políticos que lhe entrar numa controvérsia, podemos já perguntar como
são postos, permite, assim, fundar uma oposição" (<1lmadialéctica de ordem antinómica,) se pode instaurar,
(direitos polít.icos - direitos sociais), declará-Ia imedia- implicando a dialéctica uma contradição que se ultra-
tamente falaciosa e, no fim de contas, ter (,dividido passa!
para melhor reinan). Max Weber tentou encontrar critérios que legi-
Partindo daí, as consequências práticas (jurídicas) timariam estas duas espécies de direitos: o direito
que se podem tirar são as seguintes: de uma maneira público seria ('O conjunto das normas que regulam
ou de outra, toda a oposição entre estes dois direitos a actividade respeitante à instituição estadual» e onde
é arbitrária; o Direito exige, contudo, uma distinção intervém a hierarquia da ordem e da obediência;
que, desde logo, não pode deixar de ser "arbitrária o «o direito privado, as normas que regulam qualquer
que permite determinar de maneira contingente o outra actividade que não seja a do Estado e onde as
conteúdo de cada um destes direitos. partes estão juridicamente em pé de igualdadCJ) (8).
Indo mesmo mais longe não seria impossível que Dito de outro modo, a distinção é toda descritiva sem
se possa em nome da própria técnica juridica entre- que, aliás, esteja ligada a outro sentido que não seja
gar-se à instância política. Uma tal solução seria o que dá a descrição.
apenas o termo final ('possíve!» de um jogo jurídico Para M. Burdeau não existe entre direitos polí-
que se elabora sobre a base de um direito que não ticos e direitos sociais (,nenhum princípio de distinção
se ('pode» confessar político. lógica nem nenhum critério material capaz de repartir
o seu campo de aplicação» (9). Finalmente, M. VedeI
precisa, quanto a ele, que o termo (,social» não nos
o PÚBLICO E O PRIVADO NA DOUTRINA ORTODOXA
diz nada etimologicamente ('porque se ('social» quer
Digamos, desde já, que esta análise pretende
(') FREUND, L'Essence du polilique, oSirey', 1965, pág, 284.
apenas dar as grandes linhas teóricas da maneira como (') MAX WEBER, Rechtssoziologic, 1960, pág. 87; err. tam-
o problema foi pensado. Digamos ainda que a unidade bém J. M. VINCENT, Remarques sur Jl.1arx el Weber comme
desta doutrina consiste em não querer pôr o problema théoriciens du droil de l'Elal, oArchives de philosophie du droit,
em termos ideológicos.,. em nome de uma" ideologia .Lib. Sirey', 1967, págs.,229 sq.
espontânea. (') BURDEAU, Traité de seience polilique, t. VI, págs. 350
e 3114.
\

165
164
dizer que se liga à (,sociedade», social deveria contra- não pertence à esfera de aplicação (à ('jurisdição») da
pôr-se a (,individual» e não a ('político»ou ('económico»('0). distinção entre direito privado e direito, público. Ele
É ainda Kelsen quem no seu rigor positivista desenvolveu-se à parte desta distinção. E inteiramente
melhor mostrou a unidade do direito público e do dominado pela realidade das massas ... ('3»>, nega, por
direito privado e, por aí mesmo, a realidade de uma isso mesmo, a realidade da ideologia política e também
instância jurídico-política. Segundo ele, o Estado nada não legitima a distinção. E quando este mesmo autor
mais seria do que uma ordem jurídica, sem ser toda opina que a distinção entre a acção sindical e a acção
a ordem jurídica, e a eficácia do Estado consistiria política é ('metafísica» acaba assim por desconhecer a
em tornar eficaz a totalidade da ordem jurídica. Donde realidade da luta ideológica e da lei que é sua expres-
a significação relativa da oposição direito público
- direito privado (direitos políticos - direitos pri-
vados (11)). E ele precisa: ('a distinção, entre um direito
são (14).
R. Savaticr tentou situar esta distinção num
contexto filosófico-jurídico. Este autor parte da cons-

público que seria político e um direito privado que não tatação duma ('publicização» do direito privado ('5).
o seria, não toma em conta o facto de que o direito Para ele, a intervenção do Estado reporia em causa
privado, criado por contrato, pertence, tal como o a liberdade, cujas determinações não seriam outra
direito público, ao domínio da política (12»). Mas Kclsen coisa senão as instituições fundamentais: Família, Pro-
não legitima com precisão o funcionamento da distinção, priedade, Contrato, Responsabilidade civil. O Direito
nem - por isso mesmo - a sua necessidade (o seu público - domínio do comando e do imperativo - opôr-
sentido).
Em definitivo, nenhum destes autores dá conta
da realidade da dialéctica que se instaura entre o polí- (13) G. LYON-CAEN, Manuet de Droit du traçai! et de
tico e o social (privado), e, consequentemente, da sécurité sociale, <,L. G. D. J.», p. 27.
(14) G. LYON-CAEN, Syndicats et Partis politiques, «Droit
necessidade política da sua oposição.
soei a!», Fev. 1970. Dever-se-ia antes dizer que o que é metafí-
sica é pensar como se a luta sindical e a luta política se confun-
b) A doutrina jurídica dissem. Poder-se-ia também citar a posição de Mauríce Cohen,
que se contenta com O afirmar que a expressão «à excepção dos
A posição da doutrina jurídica é fundamental- direitos polítticos», empregada no texto, 'só visa a participação
mente semelhante. Assim quando G. Lyon-Caen na~ eleições políticas. O legislador nunca empregou os term os
escreve «o facto é igualmente que o direito do trabalho .direitos políticos» para designar os direitos de voto e de elegi-
bilidade nas eleições profissionais». M. COHEN, Le Stalut des
delégués du personnel et des membres des comités d' entreprise,
(l») VEDEL, Démocratie politique, démocratie économique et «L. G. D. J.', 1968, págs. 192-193.
soeiale, .Droit Socia!», Maio de 1947, págs. 46-47.
(n) KELSEN, Teoria pura do dreito, capo IX-X.
(li) Op. eit., p. 152.
(") R. SAVAT'ER, Du droit cioil au droit public, à travers
les persomies; les biens et la responsabilit~ eioil, <,L. G. D. J.,
Paris, 1950. •
166 167
-se-ia, assim,. ao Direito privado - domínio do livre direito privado e, consequentemente, a que objectos
consentimento - como o espírito se opõe à matéria (16). se referem exactamente as proposições que enuncia (10).).
Esta evolução não seria, ao fim e ao cabo, mais Em última instância, quanto à determinação do
do que «a tradução no plano jurídico duma verdadeira conteúdo respectivo destes dois. direitos, é a contin-
alteração radical dos valores político-jurídicos, mais gência que reina (20).
precisamente da concepção da relação sociedade indi- Eisenmann (21) desenvolve, por seu lado, uma
víduo (17).). Assim, do reino da sociedade para o homem teoria positipista da distinção, o que o aparenta a
passaríamos ao reino do homem para a sociedade. Kelsen. Propomo-nos analizá-la extensamente, pois
Não nos vamos demorar com a crítica «jurídica.) ela é a dois títulos interessante: quanto às críticas
duma tal concepção (l0), pois o que aqui nos interessa positivistas que podem ser formuladas, por um lado,
mais particularmente é a conclusão que se pode tirar quanto aos limites do próprio positivismo, por outro_
quanto à determinação respectiva do conteúdo do direito Nesta matéria é preciso partir de dois (,factos.):
público e do direito privado. Com efeito, o desfaza- 1. 0) que a classificação direito público direito privado
mento desta tese com a realidade é «de tal modo imenso designa «antes de mais, conjuntos de «ramos'), sistemas
que, por fim, não se sabe que objectos concretos ele de normas e disciplinas;.) 2.°) que se trata de uma
(o autor) coloca sob os dois termos direito público e «repartição tradicional.) de que se conhece «da maneira
mais vasta, segundo as ideias tradicionais, o contelído
concreto assinalado a uma e a outra das noções (ro).).
(lO) Op. cit., .Vive la liberté ou, en d'autres termes, vive O que equivale a dizer que tal classificação apre-
le droit civil!" págs. 103, 130 e 143. Cf. também Rivero, D. 1947, senta «um carácter essencialmente prático: é uma
chr. 69, .0 direito privado na sua essência aparece como um
direito do livre consetimento e toda a análise do século XI X
divisão de objecto de estudo ou de ensino (23).), cuja
o desenvolveu no sentido da autonomia da vontade.' Em contra- justificação reside na evidência da própria classifi-
partida, o direito público é o domínio do constrangimento, .cujo cação (24).
procedimento-tipo é o da decisão executória pela qual a Adminis-
tração força a decisão do administrado e o comanda.. Cfr. sobre
a questão, de modo geral: R. SAVATIER, Droit public et droil (lO) Ibid., n .• 53; cfr. também J. FLouR, Rapport prépa-
prioé, D. 1946, chr. 25; MAZEAUD,Defense du droil prioé, D. 1%6, ratoire sur l'influence du droit public sur le droit prioé, .Ass. H .. C.•.
cad. 17; RIPERT, Le Déclin du droil, e nomeadamente o seu (") Cfr. supra. Ademais, pode notar-se que todos estes
capitulo lI, Tout deoient droil public, .Librairie Générale, 1949. estudos andam por volta dos anos 50, quer dizer depois da
Trabalhos da Associação Henri.Capitain para a cultura juridica ) Libertação numa altura em que se poderia .tudo esperar e temero
francesa, t. lI, 1946. Dal/oz, 1948. do legislador e do Estado.
(") Cfr. EISEN"ANN, Droit publie, droit prioé, ,Revue de (") lbid., n .• 20.
droit public et de la science politique en France et à l'étranger, (lO) Op. eit., n.• 53. .
Out.-Dez. 1952, págs. 903 sgs., n .• 16. (U) Ibid., n .• 54. .Assim, portanto, uma divisão - ou
('8) Cfr. EISENMANN, op. eit.
ant~s, um agrupamento - perfeitamente normais, naturais, mas
\.
168 169
Desta análise duas conclusões devem ser tiradas. Não existe, pois, um direito público e um direito
Em primeiro lugar, não se pode dar uma defenição pripado, mas antes direitos públicos e direitos pripados
política destes dois direitos, porque isso levaria a dizer que, longe de se caracterizarem por ('um conteúdo
('que o (,direito do Estado>}e o (,direito dos particulares>} político determinado (28»}, pertencem (,a uma plurali-
teriam fins, tendências, ideias políticas próprias, ine- dade de regulamentos das relações entre o Estado e
rentes à sua essência; que haveria um espírito, um os particulares e das relações entre os particulares (29»}.
génio do direito público e um espírito, um génio do Dito de outra forma, estes direitos são, ao mesmo
direito privado, distintos e até opostos (25»}. título e no mesmo grau, todos igualmente direitos
Em segundo lugar, é preciso afastar a ideia radi- públicos ou direitos privados (30)>>.
calmente falsa de que a interpençào do Estado, ('apare- Com efeito, fundamentalmente, a distinção das
lho governante na sua totalidade, quer dizer, em qual- duas categorias de normas não pode dizer respeito às
quer dos seus elementos (26»}, é criadora do Direito regras do direito sancionatório, «uma vez que o Estado,
público. Esta fórmula ('certamente que não vale para tendo decididamente o monopólio das sanções e sobre-
a intervenção legislativa, nem para a intervenção tudo da coacção, está sempre e em toda a parte presente
jurisdicional contenciosa; nem o Estado-legislador, neste último, que tem sempre, neste sentido, carácter
nem o Estado-juiz criam, enquanto tais, um direito de direito público (31 »}.
público, isto é, só criam algum direito público (certos Reagrupando as suas duas teses - impossibilidade
direitos públicos) (27»}. de uma definição política e unicidade fundamental do
direito público e do direito privado - Eisenmann cons-
sem grande alcance nem importâneia, sobre os quais não havia trói a «alternativa>} seguinte: ou bem que é necessário
motivo para demorar, para meditar mais longamente. (Ibid.). renunciar à concepção duma distinção tradicional ou bem
O erro dos juristas foi ter querido fazer ,<de duas séries de que é necessário renunciar a toda a teoria que ('preten-
regras de direito ... dois tipos diferentes pelas suas características
primordiais, de dois hemisférios dum mesmo mundo dois mundos
desse, fora desta concepção clássica, consignar institui-
contrários, senão mesmo antagónicos> (n.o 55).
(") Op. cit., n.O 56. Deste modo, Savatier ao aparentar
o direito privado ao direito natural, caracterizaria assim uma (") Op. c,.,
't n. o 56 .
ideologia do Código civil napoleónico. Eisenmann acrescenta (") Ibid.
que o erro dos juristas está em pretender descobrir um alcance (30) Ibid.
profundo, nomeadamente uma significação ideológica, aquilo (31) Op. cit., n.o 60. Parece haver para o autor um
que só foi concebido e adoptado como uma simples divisão. .direito determinado•• cujo objectivo seria fixar o domínio de
(Ibid.). É raro ver os juristas acusados de fazer política! aplicação de cada norma, e um direito sancionador, em último
(") Op. cit., n.O 40. lugar, dependente do Estado. Tal dicotomia remete para a dis-
(") Ibid .• É igualmente erro pensar o grau de intervenção tinção positivista direito público direito privado: unidade dos dois
do Estado como a medida e a extensão do direito públíco em direitos e determinação prática - ou .jurídica. - (?) - do seu
relação ao direito privado. (n.o 47). dominio.

170 171
ções ou regras determinadas ao direito público e ao
direito privado(32)Q. Ora, como razoavelmente se não pode quentemente é necessário afastar a ideia de um direito
escolher contra a realidade, é, então, mesmo necessário -públIco orlgmãl, dado que a quahhcação de públic~
regressar à teoria clássica que é o que há: de mais e rlvado (,depende unicamente. daquilo ue são os
simples: agrupar-se-à sob a etiqueta de direito privado seu_s sujeitos no momento consl era o 36),).
(,as normas relativas às relações entre particulares'> e Sobre esta ase «pOsItIva,), o pro lema da distinção
sob a etiqueta de direito público «as normas que insti- direito público-direito privado é reduzido à sua expres-
tuem o aparelho estadual ou de governo, e que defincm são mais simples: trata-se então unicamente de formular
as relações entre ele, isto é, entre os agentes ou orgãos um sistema coerente de comparação entre os dois
que o compõem e os membros da colectividade (33),). domínios ou, se se prefere, de construir enunciados de
SLiundamento te6rico desta tese está em que nos relações.
encontramos, em última mstaí1cía, na presen9.!J. de um É assim que a relação entre estas regras pode ser
lJireito UlllCO(um Sujeito), que rege de mod~- qualitativa, quer dizer que se estudará o seu «conteúdo
cHico os SU)eítos, tendo em atenção as suas qualidades objectivo (3'),>, quantitativa no sentido de que se estu-
determinadas. dará o domínio de aplicação das normas (38), tendo
Efectivamente, a relação entre «pares de sujeitos» em conta que é necessário considerar as variações tanto
é, ara Eisenmann, a relação jurídica fundamental.
Será regra e mito privado a regra que rege as rela-
(ao) Ibid., n.O 59. j{
ções entre sujeitos particulares; será regra de direito (") Três hipóteses são posslveis: 1.0) identidade da norma
público a que «rege as relações de dois sujeitos, dos quais de direi to público e de direito privado; as pessoas públicas e
um não é particular (34)>>. Por outras palavras pode adian- as pessoas privadaS' estarão sempre submetidas à mesma regra,
tar-se que «o elemento-critério é uma qualidade da relação relativamente à situação considerada; 2.0) serão sempre duas
regulada, qualidade essa que toca aos seus sujeitos (05).). regras diferentes que regularão a situação relativa a dois parti-
culares e a mesma situação respeitante a uma pessoa privada
Do que se conclui que, por um lado, nenhuma e a uma pessoa pública; 3.0) aplicação em parte da mesma
exclusão pode ser pronunciada - visto que uma normã regra e em parte de uma regra diferente.
pode mUIto bem ser ao mesmo tempo de direito público (U) 1.0) Esta relação não funciona, por falta de interesse,
e de direito privado - e que, por outro lado, conse- se as duas normas são no fundo idênticas; 2.°) No caso de
regras totalmente diferentes a relação quantitativa resultará da
importância numérica relativa dos dois grupos de sujeitos;
(") Op. eit., n.O 56. 3.°) No caso de norma em parte comum e em parte diferente,
(") Ibid., n.O 57. não se trata de um problema de comparação strieto sensu, pois
(M) Ibid. que a norma é simultaneamente de direito público e de direito
(U) Ibid., n.O 58. privado, mas geralmente apresenta-se como tal: investigaremos,
N. T. - Couples de sujels, eLe rapport entre 6couples de por exemplo, em que medIda se regula a Administração pelo
sujels&. direito privado (responsabilidade contratual) e que em medida se
regula ela pelo direito público.
172
173
da relação qualitativa (39) como da relação quantita- última análise o Estado, ainda que não crie direito
tiva ('0). público, é fundamentalmente (fundamentalmente
Tal é, .~~s-!1!.a~p!lp.iesEn!Ias,.~ _t!s!-l~ Eisen~ann, enquanto
. detém o monopólio da sanção e da coacção ,
.

que se pode qualIficar de (,modelo» do positivismo. Isto. é, da aplicação da norma de direito - que, portanto ,
Ora, do positivismo tem ela as qualidades, mas serIa sempre público ?) direito público, ainda que, por
sobret ugo_ps. ]im.i,tllS. outro lado, garanta o próprio funcionamento do direito
Em primeiro lugar, é necessário notar que Eisen- (público e privado).
mann critica de modo decisivo a tese de dois direitos Mais precisamente, considerando que o Estado é
essencialmente diferentes. Dito de outro modo ele consi- direito público, isto é, que ele está no direito (e, de
dera como um (,facto» ser a nossa sociedade regida por passagem, é bom notar a jurisprudência dos ('actos de
um Direito. Este reenvio para uma unidade juridica (41) governo», que consiste em colocar o Estado, dadas
é, por outro lado, caracterizado pela presença do Estado certas circunstâncias, «para além» do direito), e que
que detém o monopólio da sanção e da coacção e que (,neste portanto, há um direito do Estado enquanto tal, não
sentido ( ?) tem sempre o carácter de direito público (42»). se pode considerar que este Estado é ao mesmo tempo a
Que se poderia concluir senão que o Estado é garan- condição do direito, o que Eisenmann reconhece por
tia (e portanto condição) simultaneamente da unidade do outro lado.
direito e da sua distinção em direito público e privado? Podemos retomar esta contradição colocando a
Mas, Eisenmann recusa-se, precisamente, a analizar seguinte questão: como pode haver um direito do Estado,
a natureza do Estado. Melhor ainda. A maneira como quando o Estado detém um monopólio do funciona-
encara o seu papel não lhe permite estudá-lo enquanto mento do direito (sanção e coacção)? Ou então, se
tal. Depois de ter, efectivamente, considerado que o se diz que o Estado é direito público ('sob esta pers-
Estado não cria direito público, mas direito (49), sustenta pectivID)- da sanção e da coacção -, toda a norma
que sob certos aspectos, o Estado possui, quanto a ele, de direito é de direito público o que torna (,inútil» a
o carácter de direito público (M). Quer dizer que em distinção (<real»direito público-direito privado.
Dito de outra forma, ao caracterizar em direito o
~onopólio estadual de sanção e do constrangimento,
(") Aumento ou diminuição do grau de semelhança ou de
diferença dos dois direitos. Isto é, fazendo dele direito público, Eisenmann invalida
(' ') Transferência de categoria dos sujeitos, isto é, mudança toda a distinção real entre direito público e direito
de regime. Por exemplo, certa actividade assumida livremente privado, ainda que cómoda e ainda que tradicional,
é desempenhado pelo Estado. por falta de se apoiar numa teoria que coloque e man-
(") Op. cit., n.' 40, 56, 61.
tenh.a o Estado como «para além') do direito.
(") Ibid., n.O 60.
(") Ibid., n.O 40 e 47. É assim que este autor pode muito singularmente
(") Ibid., n.O 60. escrever: «é, pois, necessário afirmar pura e simples-

174 175
mente e em conformidade com o mais directo bom senso .. Em últi~a instância, é então admítida a possi-
que toda a norma que reja o Estado é urna norma de blhdade teórica de fazer do direito um (,objecto puro~
direito público, ainda que regulamente ao mesmo tempo de estudo, o que não só não encontra em si nada mais
relações de direita privado (45).). dO'q~e a justificação do que é por aquilo que é, mas
Ora, esta contradição não resolvida, que implica tamhem não pode expressar a realidade (49). .
urna concepção não científica da políl:Jca, remete-em E.s~e p.ositivismo, que assenta numa filosofia geraI
liltima análIse 2ara urna Ideologia do sujeIto. ---' do sUJetto e, por ISSOmesmo, contradito pela realidade
Com efeito, para Elsenmann, o que prova a impossi- histórica, isto é, pela realidade da luta de classes.
bilidade duma análise poJitica da distinção, é, ao que . .Efectivamente, para Eisenmann, dado que o
parece, o fracasso de toda a concepção política para se DIreIto só é compreendido como um sistema de rela-
aperceber dela. Este fracasso é o de Savatier, isto é, o ções entre sujeitos, a norma será de direito privado ou
de urna ideologia que acaba por se assemelhar a urna de direito público consoante aquilo que o sujeito é
espécie de direito natural. Partindo daí, Eisenmann (privado ou público).
extrapola até afirmar que não é nada necessário ('mis- i Assim, a ideologia jurídica, no seu funcionamento
j
turar a descrição e interpretação dos factos com a sua implica que tudo deve passar-se em relações dê sujeito~
(,tábua de valores') pessoal (46),). Indo mais longe, afirma 11
que dar urna definição política destes dois direitos redun- li
"

darin no fundo em considerar que eles são antagónicos


e a romper, por isso mesmo, a unidade do Direito (57). I'! sem querer compreender a existência - no sentido hegeliano-
do que é, rompe deste modo com a História. O menor dos
Por um lado, esta teoria é a própria negação da .par.adoxos. é qu!, Heisenmann pode considerar assim que o
11 dlrClto é um dacto. mas não a political

I
realidade de toda a ideologia, ainda que fosse de direito'
(") Hegel fez no seu tempo uma critica definitiva do
natural, enquanto não pode explicar o sentido da sua positivismo jurídico. A ciência positiva do direito ,que só inter-
existência e, por outro' lado, ela própria releva da roga a sua própria positividade - visto que ela não atribui a
política inerente a todo o positivismo, enquanto conduz si os autênticos títulos de interrogação - não pode senão cons-
toda a política a um juízo de valor e recusa, mais tactar a sua positividade e a sua constatação não é mais do
precisamente, toda a relação entre a política e o funciona-
1, que a constatação da sua constatação. Resultando dai que a
i
fonte do conhecimento do direito positivo, sendo aquilo que é .
mento da ideologia jurídica (48). ,J
:~ de dir~ito, .a ciência jurldica positiva é uma ciência que .tem
II por .prmclpIO a autoridadeo (Principes de philosophie du droil,
Gal!I~~d, col. ddéeS&,~ 212 R.l. A consequência disto é que a
(") lbid., n.O 61. ~ poslbvlda~e do direito não se apercebe do conceito naquilo em
(") lbid., n.O 56.
(") lbid.
'i qu~ ele nao pode responder à questão; .Tal regra jurídicíl é ela
taClo~al? Para nós a ciência positiva do direito não responde à
i
(<S) lbid. Direito e política constituem ,materiais radical- questao: .em que é que tal regra jurldica constitui a expressão
mente heterogéneoS&.. O positivismo ,que só considera o que é
\ de um dado modo de produção ?.

176
I Il
11
177
e que uma relação de direito não é mais do que uma efeito, o seu sistema de comparação implica que nos
relação entre «um par de sujeitos,>. Convém, então encontremos já em presença de sujeitos constituídos
qualificar como privado ou público cada um desses - de «sempre-já sujeitos,> para empregarmos uma
dois sujeitos (os elementos do «par») para que, conse- expressão de Althusser (60): sujeito de direito público
quentemente, estejamos em presença duma regra de ou sujeito de direito privado. Mas, precisamente, esta
direito público ou de direito privado (a qual é, de modo categoria não nos serve para nada, visto que não
mais geral, regra de direito, isto é, relação entre o Direito procuramos saber se as I.R.P. são ou não pessoas
e os sujeitos de direito). públicas ou privadas - pois à evidência elas não são
Quer dizer, é a existência dum Sujeito (que é quem pessoas públicas na medida em que o Estado, enquanto
faz o Direito, isto é, o Estado) que dá coerência e unidade tal, não as constitui -, mas antes se há «algo,>de público
à regra de direito, que não existe senão pela mediação nelas, de modo a que se pudesse, duma certa maneira,
dos sujeitos de direito. considerá.las como públicas.
Tudo se passa como se o Estado (que detém o Dito de outro modo, a partir do momento em que
monopólio da norma de direito) distribuisse aos seus a realidade nos põe questões, a categoria de sujeito
sujeitos (ou a pessoas - admire-se o termo - públicas rebenta e não é mais do que uma forma vazia. Decisi-
ou privadas) a norma jurídica, num espaço jurídico vamente, a tese de Eisenmann não pode aplicar-se a
abstracto e com características de eternidade. E é, situações que são a própria negação dela (61).
precisamente, a posição espacial destes suj eitos que
conduz a qualificá-los como pessoa pública ou privada. (") ALTHussER,op. cito Cfr. os nossos artigos: Esquisse
d'une théorie du sujet: l'homme et son image, DaIloz, 19?O,
Sendo o Estado feito Sujeito, não é inútil - nem
"Chronique XXV!»; Esquisse d'une théorie du sujet: liberté et
possível - examinar a sua natureza porque, por um création dans la proprieté littéraire et artistique, Dalloz, 1970,
lado, ele é por si mesmo e sua própria justificação e, <,Chronique XL!».
por outro lado, é o «criador,>de toda e qualquer norma, (") Tomemos como exemplo o famoso assento Monpeurt
em definitivo, para toda a eternidade. A natureza do (Consei!d'Etat, 31 Jul. 1942, D. C. 41-1-38, conclusions Ségalat).
Tendo ordenado uma organização provisória da produção indus-
Estado é a natureza do Direito. trial, a lei de 16 de Agosto de 1940 instituiria, para este efeito,
A categoria de Sujeito à qual Eisenmann é levado comissões encarregadas de gerir o serviço. A questão que se
em nome do seu positivismo «realista'>, desemboca, tal pôs dizia respeito à naturezajurldica destas comissões. O conselho
como o historicismo, na metafísica. Justificar o que de Estado considerou que, em atenção às prerrogativas que lhes
existe por aquilo que existe é dar àquilo que existe tinham sido conferidas (programas de produção e de fabricação,
regras imperativas a impor às empresas, papel de autoridade
(no tempo) valor transcendente, na impossibilidade de e de direcção), estas comissões de organização, ainda que não
perceber e explicar a dialéctica do que existe. sendo estabelecimentos públicos, «estão en.carregadas de patri-
Concretamente, daqui resulta que, para nós, as cipar na execução de um serviço público e que as decisões que
distinções de Eisenmann de nada nos servem. Com têm de tomar na esfera das suas atribuições, seja através de

178 179
Em última análise, é ao substituir urna teoria A Doutrina, no seu conjunto, deve pois confessar
real do Estado por uma teoria metafísica dum Estado a sua insuficiência.
Sujeito de Direito, que ele «falha.) a realidade da dia- Mas, dissemos nós, o Direito exige para o seu
léctica direito público/direito privado" e mais ainda, (bom) funcionamento esta distinção. E acrescentárnos
a realidade do funcionamento e do sentido da Ideologia que é grande a tentação para o abandonar-se a um
jurídica. entendimento arbitrário desta distinção.
Destas hesitações a jurisprudência dá-nos notícia,
assim como a instância política pela voz autorizada
regulamentos, seja através de disposições de ordem individual,
constituem actos administrativos». Ora, o que há de surpreen- dos. ~onitros dos Negócios estrangeiros e dos Assuntos
dente neste assento, é que se assiste à criação de um organismo SOClalS.
profissional que se coloca <na fronteira do direito público com
o direito privado, retendo do primeiro as suas prerrogativas
de poder público, recebendo do segundo os seus modos de gestão>.
o PUBLICO E O PRIVADO E A INSTÂNCIA JURÍDICO-
(Conc!. Ségalat). -POLÍTICA
O que é, pois, na sua essência, um sujeito semi-público
e semi-privado? E qual será a sorte de toda a tese de a) A jurisprudência
Eisenmann que consiste em dizer que é a relação pessoa
público.pessoa privada que permite ver se se está num domlnio Confinada aos têxtos não pôde a jurisprudência
público ou privado I Não se poderá certamente sustentar que há desprezar a distinção legal. É justo e evidente que se
norma comum, norma diferente ou norme parcialmente diferentel convém não distinguir onde a lei não distingue, «a for-
Porque é a própria noção de sujeito público ou privado que voa
em estilhaços. O que torna bem caduco um sistema estático tori.) convém distinguir onde a lei distingue, sob pena
que não permite apreender o que o Comissário do governo chamava de tornar letra morta toda a técnica jurídica.
<uma instituição inteiramente nova que não pode ser integrada Os tribunais estão divididos. Alguns evitam pro-
nos quadros jurldicos antigos> (Cone!. prec.). nunciar-se sobre o fundo recusando muito simplesmente
A nosso ver, a verdadeira questão que este assento funda- valor legislativo ao artigo 7.0 do Título II da declaração
mentai coloca é a seguinte: Qual é a natureza de um Estado
que pode delegar a particulares alguns dos ses poderes, quando de princípio de 19 de Março de 1962 (62). Em compen-
segundo a própria declaração do Comissário do governo, por sação, toda uma jurisprudência se pronuncia sobre a
um lado o Estado é <guiado na sua acção pelos únicos interesses
da nação>, e quando, por outro lado, os particulares a quem
foram delegados estes poderes <personificavam interesses pró- (") Tribunal d'instance *, Argenteuil, 1970, <Sommaireb,
prios distintos do Estado> (Ibid.). p. 109; tribunal d'instance, Nancy, 23 de Out. 1969; tribunal
É verdade que, como sublinhava o próprio Comissário do d'instance, Gonesse, 22 de Out. 1969.
governo, <as encomendas rareavam, as matérias primas eram * N. T. - <Tribunal d'instanceb - estes Tribunais são,
escassas e os capitais estavam desconfiados>. por assim dizer, o degrau inferior da hierarquia judiciária
* N. T. - ...i! <rate>la réalité de la dialectique droit public francesa, existe, em principio, um por cada annondissement
droit privé ... circunscrições administrativas em que se dividem os départmcnts,

180 181
actividade real das comissões de empresa * e, em conse- económica constituiria, por natureza, um direito profis-
quência, define a natureza dos direitos que os trabalha- sional.
dores aí podem exercer. Mais profundamente, e para além da imprecisão
É assim que um tribunal julgou que a actividade conceitual, as concepções destes tribunais devolv.e~
das comissões de empresa «é essencialmente económica para uma ordem que diz que, na empresa, a actlvl-
e social (e que elas) só participam, portanto, na gestão dade dos trabalhadores é profissional, sem que, a propó-
de um serviço privado, a saber, o de uma empresa sito nos seja dada uma definição do que é político.
privada (53).).
Um outro tribunal considerou que a elegibilidade b) A instância política
para as comissões de empresa constitui «um direito Muito diferente é a posição da instância política.
profissional, privado, social e não político, na medida Se, primeiramente, a Administração considerou que
em que elas têm por fim cooperar com a direcção no o artigo 7.0 da declaração de princípios significava
melhoramento das condições de trabalho e de vida que os trabalhadores argelinos conservavam os mesmos
do pessoal, controlar a gestão das obras sociais e asso- direitos que os trabalhadores franceses em matéria de
ciar os trabalhadores à gestão económica (54»). eleitorado e de elegibilidade para as eleições dos dele-
A imprecisão é extremamente grande. Com efeito, gados do pessoal e dos membros das comissões de
não se vê porque é que uma actividade «essencialmente» empresa (55), é necessário dizer que ela bem depressa
económica e social implicaria a gestão de um serviço reconsiderou.
privado, quando nenhum critério nos é dado para Uma circular «confidencial.) datada de 2 de Dezem-
distinguir o económico do social e o social e económico bro de 1966, lavrada pelo Ministro dos Assuntos Sociais
do político. Também não se vê porque é que, nomea- de acordo com o Ministro dos Negócios Estrangeiros,
damente a associação dos trabalhadores à gestão estabelecia muito ingenuamente que os trabalhadores
I argelinos podiam ser eleitos como delegados do pessoal,
mas que não poderiam pretender a elegibilidade quer
grandes divisões administrativas do território francês, que substi-
tuiriam as províncias em 1790. para as comissões de empresa, quer para representantes
Pela reforma judiciária de 1959 os Tribunaux d'instanoe sindicais.
vieram substituir e acabar com as justias de paix criadas em 1790, Um despacho ministerial vinha - muito oportuna-
as quais existiam, em principio, uma por Cantão (o que dava o mente - estabelecer as bases «teóricas» desta distinção
número de 2092 - agora substituido por ~55, número bastante
inferior, de Tribunais d'instanoe). à primeira vista surpreendente e que consistia em
* N. T. - "Comités d'entreprise». instituir um regime diferente no seio das I.R.P ..
(53) Tribunal d'instance, Lyon, 20 de J ano 1970, Dal/az,
p. 420. .
(") Tribunal d'instance, Nanterre, 12 de Nov. 1969. (55) M. COHEN, ab. oit., pág. 102.

182 183
<,Este texto, dizia o ministro dos Negócios Estran- em sentido lato (e poderíamos dizer do Estado) e o
geiros, deve interpretar-se como prescrevendo a assi- exercício de direitos políticos.
milação dos emigrados argelinos aos nacionais franceses Mas, de toda a maneira, não só os conceitos expostos
para o gozo de todos os direitos privados,. mas não são totalmente imprecisos mas ainda, e por consequência,
para os direitos de carácter político. Esta última não permitem resolver a questão posta: não podemos
expressão deve ser entendida num sentido lato: ela saber em nome de quê e como é que poderíamos distin-
engloba o gozo e o exercicio de todos os direitos cívicos guir os direitos políticos dos digeitos sociais (privad.os).
e, de uma maneira geral, o exercício de todas as funções
que, pela sua natureza ou objecto, comportem uma •
c) Técnica jurídica e instância política
participação na gestão dum serviço público ou simi-
lar (56)}). Como indicámos, o Direito pode, assim, em nome
I Deve-se prestar homenagem a uma certa logoma- do próprio Direito, entregar-se, à instância política.
qui a administrativa. Dizer antes de mais que os direitos Com efeito, nos termos de uma jurisprudência
I políticos englobam os direitos civicos só serve para atestar constante, se as jurisdições não estão de modo algum
origem greco-latina da nossa língua; dizer que os direitos ligadas pela doutrina administrativa e. conservam um
de carácter político devem, no caso, entender-se em poder soberano de interpretação perant.e os textos
sentido lato, extensivamente é nada menos nada mais do legislativos ou regulamentos submetidos à sua juris-
que ilustrar aquilo que dizíamos acima sobre a inde~ dição (57), as coisas passam-se de outra forma quando
terminação do conteúdo destes dois direitos. Aliás, a questão de interpretação levantada diz respeito a
segundo o ministro, a esfera do exercício de todas as um tratado ou acordo internacional, ou ainda a uma
funções de participação no exercício dum serviço questão respeitante à ordem pública internacional.
público ou similar, seria mais <<larga}) que a dos direitos Nesta hipótese, os trilmnais devem declara-se incom-
cívicos. Porquê e em nome de que é que será política petentes e remeter para a interpretação oficial do
a participação em tais serviços? A imprecisão concei- Ministro dos Negócios Estrangeiros (58).
tual é total. Pelo contrário, é reconhecida competência aos
Todavia, ainda que a passagem do conceito de tribunais da ordem judiciária para se pronunciarem
gestão de serviço público ao de política não esteja elabo-
rada, a posição da instância política revela uma certa
verdade: a conjunção entre a gestão da administração ! (") Sobre o poder das jurisdições judiciárias relativamente
às circulares ministeriais, Cour de cassation, Câmaras civil, 22 de
Dez. de 1931, Da/loz, 1932, I parte, pág. 131; Sircy, 1932,
I ParLe, pág. 257; conclusões MaLher. .
(") Citado pelo tribunal d'instance, Lyon, Dal/oz, 1970, (") Cour de cassation, 9 de Jun. de 1966, .JurÍs-Classeur
pág. 420. , périodique., 1966, 11, 15814.
I •.

184 185
sobre a interpretação de um tratado, quando o litígio jurisprudênciais, chegar-se-ia a dar à instância política
a que ele dá lugar tem por obj ecto interesses privados (59). (o Estado) o poder de dicidir, no direito interno, tanto
É assim que o Cour de cassation, em decisões recentes, aquilo que é privado como aquilo que não o é. Numa
considerou que um tribunal de apelação (cour d'appel) tal hipótese, mostrar-se-ia que uma parte importante
«sem exceder a sua competência, podia fundar-se na do Direito - e, nomeadamente, o direito do trabalho
declaração governamental de 19 de Março de 1952 - escaparia à técnica (protectora quando adquirida
(relativa à indemnização dos repatriados da Argélia), por meio de dura luta) do direito (61). No fim desta
cuja aplicação não suscita, na ocasião do litígio, nenhuma análise «concretaJ) não podemos saber como e em nome
questão de direito público nacional (60),). de quê poderíamos distinguir os direitos políticos dos
Deste modo se vê que a distinção direitos políticos- direitos privados. Esta insuficiência remete para a
-direitos privados reaparece numa outra instância: a da questão da sua ínsuficiência. A passagem à teoria
distinção direito internacional público-direito interno. torna-se necessária.
Atentemos aqui apenas que o direito declina, em nome
das suas próprias normas, a sua competência, para a
remeter ao Estado, único juíz do que releva do direito A dialéctica do direito e da política na instância juridico-
i -política
! .
i ínternacional público.
i ' Ora, naturalmente que se a Cour de cassation Como enunciámos, a questão da distinção direitos
- que ainda não julgou sobre o assunto que nos inte- políticos-direitos privados deve remeter para a questão
ressa - remetesse para a instância política, tal signi- do sentido e da realidade de uma tal distinção.
ficaria que a distinção direitos políticos-direitos privados «A distinção do público e do privado é uma dis-
é uma questão que diz respeito à ordem pública inter- tinção interior ao direito burguês e válida em todos
nacional. Melhor ainda. Pelo subterfúgio de tais regras os domínios (subordinados) onde o Direito «exerce os
seus poderes». O domínio do Estado escapa-se-Ihe,
(") Cour de eassation, Assembleia Plena 11 de Março de pois ele está «além do direito». O Estado, que é o
1953, Juris Classeur périodique, 1953, 11, 7673. Estado da classe dominante, não é nem público, nem
(' 0) Cour de cassation Chambre civile), 23 de Abr. de 1969,
«Gazette du Palais», 17-20 de Maio de 1969, pág. 6; ibid" 19 de privado, é, pelo contrário, a condição de toda a dis-
Març. de 1963, Dalloz, 1963, pág. 529, notas de Malaurie; Cour tinção entre público e privado (62)>>.
de cassation, Câmara comercial, 7 de Nov. de 1969, Bullelin des
arréls de la Cour de cassalion, III, 2n, pág. 547, que se pronun-
ciou sobre uma sentença que fizera uma aplicação automática da (61) Uma tal consequência escapou totalmente a Cohen
interpretação dada pelo ministro dos Negócios estrangeiros a que justifica o facto de não pedir o parecer do ministro dos
certas disposições dos Acordos de Evian, quando era da sua com- Negócios Estrangeiros unicamente pelo <carácter de urgêcia do
petência interpretá-los (sentença citada in Rapporl de la Cour de contencioso eleitoral •. (ob. cil.), p. 325.
cassalion, 1969-1970, pág. 65). (") ALTHussER, ob. cil., p. 13-14.

186 187
Podemos. assim, formular duas teses: por um
procura inventá-lo (63). Esta dialéctica parece-nos
lado, que a distinção direitos políticos-direitos privados reflectir o problema concreto das eleições de traba-
é uma distinção política, na medida em que supõe a
lhadores argelinos para comissões de empresa, na
existência de um Estado que é a expressão da classe
medida em que, precisamente, a extensão do político
dominante; por outro lado, que o Direito transmite
é posta em questão. Que haverá de mais estranho
esta distinção por e «sob»uma ideologia (a ideologia jurí- para a instância política do que dizer que uma eleição
dica) e que, por consequência ele deve «resolver em direito» profissional é política? Que haverá de mais revelador
a distinção política direitos políticos-direitos privados j.
do que a resistência do direito a esta «usurpação».
(sociais).
Mas estas duas teses, por seu turno, devem elas
próprias ser esclarecidas pela dialéctica da ideologia o ESTADO, CONDIÇÃO DA DISTINÇÃO DIREITO POLITICO-
política e da ideologia jurídica. -DIREITO PRIVADO

Por um lado, o Estado pensa como político aquilo


Trata-se de encontrar, em direito, um critério que
que participa do seu funcionamento; por outro lado,
permita <lseparai'l)o que é direito político e o que é
o Direito é lugar e empenho da luta de classes.
direito privado. Enunciámos que esta distinção é
Assim, se, por um lado, o Direito expressa as distin-
interior ao direito burguês, e supõe a existência de
ções do Estado (distinções de classe), regista, por outro,
um Estado, expressão da classe dominante. Segue-se,
a luta de classes. Do que resulta que, pouco a pouco,
portanto, que a análise a fazer é a da necessidade
se constitui um direito (direito do trabalho, por exemplo)
ideológica de uma tal distinção. Esta permitirá então
que poderá incomodar o poder político, devolvendo-lhe
compreender o funcionamento da própria ideologia
a luta de classes nele inscrita; o que também faz com
jurídica, da qual se pode dizer que (<ignora»o seu próprio
que o direito apareça como «protectoJ')} dos trabalha-
fundamento, isto é, aquilo que a legítima em última
dores, por exemplo, contra o poder político (e é signi-
instância. Tanto assim que a ideologia jurídica posta
ficativo ver que os juristas apresentam o Direito como
«protegendo» os trabalhadores, enquanto são precisa-
mente os trabalhadores que conseguem, por vezes, (oa) Certamente alguns direitos - direito comercial. por
criar para si o seu direito); resulta enfim que se esta- exemplo ou direito civil em certa medida - podem aparecer só
belece um hiato (ou contradição secundária) entre a comoprotectores do seu próprio funcionamento, mas esse funciona-
mento remete ele próprio para um dado modo de produção. Tal é
ideologia do Estado e a ideologia jurídica. o problema da autonomia mais ou menos relativa de cada .ramo.
A protecção do direito (do trabalho) não é mais de direito. Tal é a óptica real do. que deveria ser o estudo das
do que as vitórias da classe operária registadas, codi- relações técnicas entre diferentes ramos de idreito. (Asssim
ficadas e formalizadas; .e que, no seu próprio funciona- quanto a problema que agita os especialistas do direito do
mento (técnica jurídica) se opõe ao poder político que trabalho: qual a relação entre a técnica do direito civil e a técnica
do direito do trabalho).

188 189
perante um problema político não consegue mais do Só a participação nesse «poder» pode pois ser
que resolvê-lo em direito (efr. mais adiante). Tal é pensada como politica, enquanto pretende, precisa-
a sua lógica própria. \, mente, gerir o conjunto da sociedade. Qualquer outra
Para os marxistas, «o Estado não representa de participação será tão só social, profissional, económica ...
modo algum uma força imposta de fora à sociedade. mas em caso algum será política.
O Estado não é «a realidade da ideia moral>),«a imagem Dito de outro modo, a própria ideologia do Estado
e a realidade da Razão>),como Hegel pretende. O Estado leva este a só pensar como político o que participa do
é um produto da sociedade numa certa etapa do seu seu próprio funcionamento e a declarar como a-político
desenvolvimento (64»). «O Estado é o produto e a mani- o que não toma parte nele. Esse «apolitismo» que,
festação, comenta Lenine, dos antagonismos de classes se fosse confessado como político poria o Estado em
inconciliáveis. O Estado surge então, no momento e questão (assim, a greve política é ilegal), é própria
na medida em que, objectivamente, as contradições garantia de uma ordem que se quer impessoal.
de classes não podem ser conciliadas. E, inversamente, Mas, por outro lado, esta ideologia do Estado é
a existência do Estado prova que os antagonismos retransmitida pelas outras instâncias ideológicas (reli-
de classe são inconciliáveis (65»). giosa, escolar, sindical, culturaL.) que apresentam,
E;ta constituição do Estado exprime a distinção já o dissemos, a característica de também serem lugar
entre Público e Privado a, qual remete para a distinção de luta de classes.
entre direito político e direito privado. É assim que podemos retomar, pela nossa parte,
«A dominação de facto reveste um eminente carácter as teses de Althusser quanto à sua distinção entre
de direito público, a partir do momento em que nascem aparelho de Estado (Governo, Administração, Polícia,
ao lado e independentemente dela, relações que estão Tribunais, Prisões) que «funciona com violência,) e os
ligadas ao acto da troca, quer dizer relações privadas aparelhos ideológicos de Estado que funcionam com
por excelência. Na medida em que a autoridade ideologia, e que «encerram,) a sociedade privada (67).
aparece como garante destas relações, ela torna-se A distinção entre direitos políticos e direitos
uma autoridade social, um poder público, que repre- privados funda-se pois, em última instância, sobre a
senta o interesse impessoal da ordem (66»). distinção entre aparelho de Estado e sociedade .«pri-
v~da'), a qual é - ela mesmo - o lugar da luta ideoló-
gICa.
Dito de outro modo: para o Estado é político tudo
(") ENGELS, L'origine de la (amil/e, de la propriélé el de
o que participa da sua gestão (aparelho de Estado)
l'Êtal, Ed. SocÍales p. 155-156.
(56) LENINE, L'Êtal el la Révolulion, Ed. Sociales, pág. 12; e escapa à qualificação. de político tudo o que está
(") PACHUKANIS, Marxisme el Ihéorie générale du droil,
E. D. L, 1970, págs. 126 sgs. (67) ALTHUSSER, ob. cil.
I
190 191
fora desta gestão, isto é, o domínio das trocas econó- tização,) do Estado, o que é, afinal de contas, nad a
micas expressas em linguagem jurídica. Por outro lado, mais nada menos do que a expressão da própria natu-
o Estado detendo o poder político está ele próprio reza do Estado (70).
fora do direito naquele espaço onde reina a razão de . Para só tomar o exemplo do serviço público,
Estado, «que não permite interpretação jurídica (68)&. fez-se já observar que o (<lleo-capitalismo tecnocrático
Isso lhe permite ser o «garante» do direito. vai até ao fim da lógica do sistema, até à concepção
Assim, o Estado necessariamente é levado a fazer «americana» segundo a qual o ser,viço público é afinal
a distinção entre público e privado, distinção transmi- de contas uma empresa como outra qualquer, .sujeita
tida ao direito, onde ela é «trabalhada.) pela luta de à lei do mercado, da rentabilidade e do lucro (n),).
classes. A partir do momento em que o aparelho de Estado
Tal distinção é, aliás, recebida pelo nosso Código se «privatiza», .assiste-se a uma contradição cada vez
Civil cujo artigo 7.° dispõe que «o exercício dos direitos mais aguda entre um aparelho que se diz ser somente
civis é independente do exercício dos direitos políticos, político e que apesar disso se proj ecta no privado,
os quais se adquirem conforme às leis constitucionais - por definição «apolítico.) para ele.
e eleitorais (69)~. Quanto ao artigo 2.0 do mesmo Código, O que, nomeadamente, torna ainda mais ineficaz
estatui o seguinte: (<umestrangeiro gozará em França a noção de sujeito de direito público ou sujeito de
de direitos civis iguais àqueles que são ou serão reco- direito privado, uma vez que a própria natureza do
nhecidos aos franceses pelos tratados da nação à qual Estado infirma esta categoria ('2).
pertencer esse estrangeiro~.
A concepção do Código Civil, o mesmo é dizer
do princípio do século XIX, reflecte uma ideologia (' 0) O duplo movimento de .privatizaçãoD do Estado e de
(dngénua~, pelo facto de os direitos políticos só serem .publicizaçãoD do privado expressa bem a natureza de classe
pensados em termos de participação política do Estado. do Estado. Os juristas só presentemente começam a tomar cons-
(Critério formal fundamentado na «fonte» legislativa: ciência desta 'privatização. do Estado. .
(") DEMICIIEL,Vers le se/f-service public, .Dalloz, 1970,
leis constitucionais e eleit.orais). capo XVI.
Mas, precisamente, esta concepção do Código foi (") Veja-se o assento Montpeurt (já atrás referenciado)
pensada diferentemente atendendo à própria evolução - que, como foi dito, faz estalar a noção de sujeito de direito-
do capitalismo. É assim que se assiste a uma «priva- o Estado, ou mais propriamente o aparelho de Estado, é pensado
como podendo delegar os seus poderes a pessoas privadas. O que,
então, significa pessoas privadas - permanecendo como tais
(como parte (sujeito) privada) - poderem gerir serviços de
(") PACHUKANIS, op. cit., pág. 126. Estado. No fundo poderia _dizer-se que a '.privatização. do
(O') Pode-se já notar que este artigo contradiz a tese da Estado não é mais do que o facto de o Estado devolver, de
instância politica (Cfr. no texto). um certo modo, aquilo que ele recebeu, do mesmo modo.

192 193
13
r
Resulta então que a distinção direitos politicos De onde se conclui ser necessário tomar o direito
_ direitos privados é uma distinção politica que é a sério, isto é, aceitar o seu funcionamento não só
transmitida à ideologia jurídica onde ela perde, p.ara quanto ao como ele se apresenta mas ainda quanto
o bom funcionamento do direito, o seu carácter pol~tlCo. ao que ele é, em última instância, espaço e empenho *
Resta agora estudar o funcionamento desta Ideo- da luta de classes (74).
logia, que consiste em despolitizar os pr?blemas, pelo E assim que, o Direito apresentando a distinção
menos formalmente, e a regulá-los em dtretto. entre direitos públicos e direitos privados afinal não faz
mais do que dar conta duma ideologia que quer que
FUNCIONAMENTO DA IDEOLOGIA JURIDICA:
o direito possa, precisamente, fazer esta distinção (75).
A NECESSIDADE DE RESOLVER NO DIREITO
Por outras palavras, a própria necessidade de colocar
A DISTINÇÃO DIREITOS POLÍTICOS-DIREITOS PRIVADOS a distinção em direito resulta da necessidade ideológica
de a colocar como tal.
Considera a relação entre ideologia do Estado Em última análise a nossa ideologia jurídica, no
e ideologia jurídica, o direito num moviment? inces- seu funcionamento, deve levar necessariamente a que
sante (meutraliza» a luta de classes, de que e lugar, a questão política da distinção legal direitos políticos-
no sentido de que ele dere ser apolitico. Esta ne.ut:a- -direitos privados seja resolvida unicamente no direito,
lização - que é o próprio funcionamento do dueIt.o isto é, de modo «apolítico». Além disso tal distinção só
_ explica o facto de o direito funcionar «por f?rmah- pode fundar-se na análise marxista do Estado.
zação» (a formalização mais abstracta,. na medIda em A questão concreta de saber se as eleições para
que o capitalismo é a formulação maIS abstracta da as comissões de empresa e, mais geralmente, para
propriedade). ., ,
Ora esta formalização implica que o DIreIto so
formulamos aqui teses gerais que pretendem tão só dar uma
pense sobre o que é direito, que, em qualquer hipótese, orientação real ao estudo da norma jurídica.
uma qualquer distinção jurídica é sempre o pressu- * N. T. - (,Engem: partida, jogada, o que se arrisca.• Lieu
posto do seu funcionamento. . et engem: lugar e empenho arriscado. Larousse - «engeu: ce
Dito de outra maneira, o direito, para funcIOnar, qu'on expose dans une entreprise; figo I'emprise du monde
deve ser para si mesmo o seu próprio mot~r, é caracte- état I'engeu de la bataille de Pharsale. _
(") Como toda a ideologia o direito tem por funçao
rístico de um critério legal fornecer a SI mesmo os mascarar as relações reais. Mas, por um lado a ocultação desta
próprios títulos (73). função é privelegiada na medida da formalidade do direito e,
por outro lado a sua relação contraditória com o Estado revela
a especificidade da instãncia jurídico-polltica que pertence ao
mesmo tempo ao aparelho do Estado e ao sistema dos aparelhos
(") «A ciência positiva do direito (... ) tende sobretudo a ideológicos de Estado. Cfr. ALTHUSSER, op. cit., p. 13, n.O 9.
formular o que é de direito (... )., HEGEL, op. cit., ~ 2. Só (") Na medida do «apolitismo. da sociedade privada.

194 195
as I.RP., são ou não eleições de carácter político, por outro é perpectuamente neutralizada. Assim, em
reduz-se à questão de saber se as I.RP. fazem ou última análise, a distinção direitos políticos-direitos
não fazem parte do aparelho de Estado questão que privados remete para a realidade desse processo.
o direito deve resolver por si só. ' A empresa, que é exactamente o lugar deste pro-
cesso, vai pois condicionar a um tempo o nível da
o estatuto juridico-politico das ínstituições represen- representatividade das I.RP. e a sua missão. A partir
tativas do pessoal daqui podemos enunciar uma equivalência política das
I. RP. quer ao nível nacional quer a nível europeu.
. A lei cons~derando que as I.RP. não são polí-
tIC~~, mas estrICtamente profissionais expressa afinal O NivEL DE REPRESENTATIVIDADE DAS I. R. P.
- Ja o suhhnhámos - a ideologia do Estado. Mas
Não nos cabe aqui desenvolver este ponto.
co~o, por outro lado, esta lei é expressão de relações
O artigo 1.0 da lei de 16 da Abril de 1946 dispõe que
reaIs de cl.asse, e como ela encontra, por hipótese,
(,se institui em todos os estabelecimentos industriais,
a sua finahdade na empresa, esta última aparece por
comerciais, agrícolas (... ) em que se empreguem habi-
sua vez como l~gar da neutralidade política e lugar
tualmente mais de dez assalariados, delegados do pessoab>,
onde esta ne~t:ahdade é políticamente posta em questão
O artigo 1.0 do regulamento de 22 de Fevereiro de 1945
(a greve «pohtlca»). O que quer dizer que a acção dos
institui comissões de empresa nos mesmos estabeleci-
trabalhadores pode, enquanto tal, desenvolver no seio
mentos desde que empreguem habitualmente cinquenta
da empresa reivindicações políticas.
assalariados.
Assim se assiste à elaboração de um conceito de
Quanto à Secção sindical de empresa ela é insti-
empresa ('estranhamente» cruxificado. De um lado o
tuída em todas as empresas empregando habitual-
que ~i. entra em jogo (a luta de classes) é profissional
mente pelo menos cinquenta assalariados, segundo a
(apohtICo) ~ de outro lado o que aí se desenrola só pode
lei de 27 de Dezembro de 1968 no seu artigo 2.0 ('6).
~er profissIOnal sob pena de se tornar político e então
A empresa condicionar assim o nível da represen-
tlegal.
tatividade só levanta problema no que concerne ao
Se tomamos a lei ao pé da letra devemos dizer
próprio conceito de empresa. Ora, precisamente, O'apa"
que o direito nos obriga a considerar' que as eleições
relho de Estado tendo a privatizar-se, ou, se se prefere,
para as I.RP. são profissionais.
a «comercializar-se», para retomar a expressão carre-
É o que o direito positivo nos revela. Mas dito
gada de sentido de (:serviço público de carácter indus-
isto, re~ta. levan~a.r a questão fundamental: o que é
que. ~ dIreIto pOSItIVOrealmente prova? Ora, o direito
POSItIVOdá-nos justamente notícia do processo segundo (") DESPAX, L'Exereiee du droit syndieal dans les
o qual por um lado a luta de classes se desenvolve e en/reprises, .Juris-Classeur périodique., 1969, I parte, 2276.

196 197
trial ou comercial.). É o que explica também, por A MISSÃO DAS INSTITUIÇOES REPRESENTATIVAS DO

outro lado, a reacção da instância política à eleição PESSOAL


de argelinos para as comissões de empresa de seme- O nível da representatividade (empresa) deveria
lhantes estabelecimentos. condicionar formalmente o conteúdo da representação.
A doutrina dominante e os tribunais judir.iais e Com efeito, todo o esforço jurisprudencial consiste
administrativos tendem, com efeito, a considerar que em manter a missão das I.R.P. nos limites profissio-
aos serviços públicos industriais e comerciais se pode nais da empresa. Mas, precisamente, este contexto
aplicar o artigo 1.0 do regulamento de 22 de Fevereiro profissional da empresa é incessantemente posto em
de 1945. O mesmo é dizer que, segundo este ponto causa pela prática da luta de classes. O que tem a
de vista, esses serviços são equiparados a empresas ver com o seguinte, se as classes exploradas encontram
privadas (77). meio de se exprimirem nos aparelhos ideológicos,
Quer dizer que se encontra a este nível a contra- a luta de classes ultrapassa-os, pois ela tem raízes
dição entre a ideologia do Estado e a ideologia jurí- noutro lado que não na ideologia, está enraizada na
dica, na mesma medida da extensão do conceito de infraestrutura que constitui a base das relações de
empresa. classe (78).
Assiste-se assim na própria descrição do direito
(77) Parecer do Conselho de Estado de 17 de Jun. de 1947. positivo a um afrontamento entre o funcionamento da
n.O 241-249, citado por COHEN.op. cit.• pág. 85; Conselho de ideologia jurídica e a prática da luta de classes.
Estado, Toledo. 26 de Març. de 1958. Rec.• pág. 200; Conselho Deste modo, no que respeita aos delegados do
de Estado. 2 de Maio de 1959; sindicato geral do pessoal da pessoal - cuja missão essencial é serem os porta-
Air France; Droit Social. 1956. p. 25 conclusion~ Chardeau;
Cour de Cassation. Câmara social, 18 de Fev. de 1949. Bulle-
-vozes do pessoal junto do empregador da Inspecção
tin des. arrêts...• n.O 153, p. 204; Tribunal civil, Sena 12 de do trabalho e da comissão de empresa - formou-se
Janeiro de 1959; Droit ouorier, 1959, pág. 180; Paris, 3 de toda uma jurisprudência que tende a encerrá-los no
Nov. de 1955. ibid .• 1956, pág. 25. conclusões Rolland; Bréthe quadro da empresa entendida ideologicamente como
de la GRESSAYE.La Réforme des comités d'entreprise, .Juris- terreno neutro (apolítico). E assim, se eles podem
-Classeur périodique•• 1946. I part., pág. 570. onde se escreve
nomeadamente que a situação dos serviçso públicos industriais em princípio ausentar-se da empresa (79), e se o empre-
e comerciais .é análoga à das grandes empresas capitalistas, no
sentido de que estão subordinadas a uma direcção impessoal evolução da legislação social que. cada vez mais. tende a
e longínqua (sic!).. Este autor prossegue acentuando o facto de colocar sob um regime uniforme estes serviços e o conjunto
que a nacinalização das empresas tem 'por fim permtir aos dos estabelecimentos industriais privados .•
trabalhadores participar na gestão (... ).. Cfr. conclusões Chardeau (") ALTHUSSER, op. cit.• pág. 15, n.O 10 bis; MARX,Intro-
prec. (lAinstituição das comissões de empresa l.I0 conjunto dos dução à Contribuição para a critica da economia poUtica.
serviços públicos industriais e comerciais, qualquer que seja (") Cour de Cassation, Câmara social. 4 de Dez. de 1952,
o seu modo de gestão, responde ao desejo do legislador e à Juris-Classeur périodique, 19M, 11, 7903.

198 199
gador que a tal se oponha pode ser condenado' por se o controle do empregador não pode ser antecedente
entrave às funções dos delegados do pessoal (80), é ainda - pois constituiria então delito de entrave às funções
necessário que haja uma ligação entre a saida do dele- dos delegados do pessoal (88) -, a recusa de um dele-
gado e as suas funções. Esta ligação é a estrita medida gado de retirar uma comunicação política dos quadros
do profissional e do político, quer dizer afinal de contas, destinados a afixação pode constituir, perante o empre-
do trabalho considerado como valor de uso e como valor gador, lesão de interesses e correspectiva obrigação de
(produção de mais-valia) (81). O que é' profissional é indemnização e justificar a resolução judicial do contrato
o que está relacionado com o trabalho entendido como de trabalho (87).
produção de valor (quantitativo) e portanto com a Quanto à secção sindical de empresa, na medida
empresa como lugar de produção de valor, isto é, de em que, nos termos da lei, ela assume a representação
subordinação do trabalho ao capital (82). dos interesses profissionais, basta que os delegados
A partir do momento em que os trabalhadores saiam desse domínio profissional, tal como o definimos,
queiram estabelecer a ligação entre a subordinação para serem sancionados. Nestas condições um cartaz
do trabalho ao capital e a política que é a expressão no qual um sindicato C. G. T. tomava posição na
desta subordinação, os tribdnais afirmam que essa campanha presidencial pôde ser julgado ilícito e orde-
'. relação é política. nado o seu levantamento (88).
É assim por exemplo que os representantes do Pode-se assim compreender que a técnica da
pessoal só podem tomar contacto com as organizações atribuição de personalidade ci"il às comissões de empresa
sindicais se a ordem do dia for suficientemente precisa se tenha acabado por <<neutralizar» com a aplicação
e circunstanciada para justificar a sua presença (83); do principio do controle da afectação do seu patri-
é ainda assim que as comunicações ao pessoal só podem mónio. Com efeito a personalidade civil só lhe é reco-
ter um carácter profissiçmal (84) e não político (85), e que,

IV part., pág. 184; COllEN,op. cit .• págs. 431 sgs.; P.-H. SUET,
('0) Cour de Cassation, Câmara criminai. 2 de Março de Comités d'en/reprise et délégués du personnel, n.o 511 sgs.
1961. Dalloz. 1961, pág. 476. (") Cours de Cassation, Câmara criminal. 8 de Maio de 1968,
(") MARX.O Capital, «op. cit.., liv. I, T. I, capo VII. Dalloz, 1968, pág. 564. nota de Verdier.
(") Ibid., pág. 187. (S') Com de Cassation. Câmara social. 2 de Març. de 1960,
(") Com de Cassation. Câmara social, 15 de Março de 1957, .Bulletin des arrêts ...•• IV part., pág. 184.
.
Dalloz, 1957. pág. 730; ibid., 3 de Maio de 1962, Dalloz ' 1962,
pago 491.
(") Tribunal de grande instance. Lyon, 12 de Jun. de 1969,
Juris-Classeur périodique, 1969, Il part., 16028.
(") Com de Cassation. Câmara social, 5.de Abr. de 1954. (N. T. - Depois da reforma de 1959 a organização francesa
.Droit social,. 1954. pág. 408. . .. dos trihunais ficou assim ordenada, na sua linha normal: Tribu-
(") Com de Cassalion, Câmara social, 2 de Março de 1960 naux d'instance, Tribunaido de grande instance (em principio, um
(,Bulletin des arrêls de la Cour de cassation. Chambres civiles.: por Département), Cours d'appel, Cour de cassatian.'

200 201
nhecida para fins precisos, e tanto o seu património comercial, seriam órgãos políticos (91). Com efeito, aí
como a sua capacidade jurídica são unicamente desti- onde se instituem tais comissões, não há dúvida nenhuma
nados a facilitar-lhes o estrito cumprimento da sua que estabelecer uma discriminação importaria violar
missão profissional. De onde a existência de um controle o princípio da igualdade perante a lei. Ora o próprio
judicial sobre a afectação dos fundos (89); de onde a funcionamento do Direito proíbe que se possa intro-
posição da Cour de Cassation que considerou que uma duzir critérios qualitativos na lei, uma vez que esta
comissão de empresa desviava os fundos a ela confiados não os preveja (92).
se os utilizava para socorrer grevistas estranhos à Ademais é bom sublinhar que esta equivalência
empresa (90). A jurisprudência nada mais faz do que política se aplica igualmente às secções sindicais de
expressar o próprio estatuto do trabalho no modo empresa, pondo assim em relevo o carácter de aparelho
de produção capitalista, utilizando a distinção ideo- ideológico de Estado dos sindicatos. O artigo 10.0 da
lógica profissional-política. lei de 27 de Dezembro de 1968 introduz uma compati-
Partindo de aqui pode-se agora enuncIar a eqUI- bilidade entre as funções de delegado sindical e de
valência política das L R. P .. representante nas comissões de empresa. O que equivale
a dizer que a função sindical comporta, no caso, o mesmo
nível de representatividade que os delegados do pessoal
A EQUIV ALENCIA POLÍTICA DAS L R. P. ou os representantes das comissões de empresa, e que
todas essas instituições respondem à mesma missão
Diga-se desde já que tal equivalência política
responde à questão das eleições dos argelinos para as
(91) Assim deveria ser quanto à Régie Renault, à da S. N.
comissões de empresa. Com efeito, não se pode disso-
E. P., dos bancos nacionalizados. Deve-se notar a hesitação e a
ciar arbitrariamente o que representam as L R. P., resistência da instância política quanto à aplicação da lei
que têm todas como característica que as une o facto (Cfr. COHEN, op. cit., págs. 76-83). Para só tomar um exem-
de serem a expressão jurídica (profissional) dos tra- plo, um protocolo de acordo relativo às comissões de empre-
balhadores. sas nas .H uilleres de bassin que tinha sido concluído em 11 de
Jul. de 1947 e em virtude do qual se tinham instituído comis-
O que já anularia a tese - política - que consis- sões de estabelecimento, foi exactamente eliminado a quando
tíria em dizer que as comissões de empresa encarre- da greve de Nov.-Dez. de 1947 e substituído por uma decisão
gadas de gerir um serviço público, seja industrial ou geral de 16 de Qut. de 1950 que institui comissões de empresa
em que os delegados nem sequer são eleitos, onde a ordem do
1 dia é fixada pelo ptesidente que é o director do grupo, etc.
(ibid., págs. 79-80). Assim se vê que a <'privatização» do aparelho
(") Cour de Cassation, Câmara social, 8 de Qut. de 1953, de Estado é um processo con traditório, no sentido de que o
Droit social, 195~, pág. 3~2. Estado, privatizando alguns dos seus serviços, recusa-lhes a apli-
(•.~) Courde Cassation, Câmara criminal, 27 de Qut. de 1955, cação do direito comum do trabalho .
•Bulletin des arrêts de la Cour de Cassatiom, pág. ~26. (") Cfr. conclusões Chardeau, já citado.

202 203
profissional. . O que mais uma vez contradiz a tese Que quererá isto dizer senão que encontramos à
da instância política, para mais se se notar que o escala europeia as mesmas relações ideológicas que em
delegado sindical podendo ser um trabalhador estran- França? Que o trabalhador é diferentemente tratado
geiro, a compatibilidade entre as I. R. P; de:eria, consoante é europeu ou não é .europeu? Tal «protec-
para o direito, implicar a unidade da capacIdade cionismo jurídico,> não é mais do que a recusa de reco-
electiva (93). Por fim é necessário focar a equivalência nhecer ao trabalho o seu valor universal, expressando
ideológica das I. R. P. ao nivel europeu. Desde 16 de exactamente o estatuto geral do trabalho na nossa
Agosto de 1961 que o artigo 8.°, alínea 2) do regula- ideologia.
mento 15 do Conselho da Comunidade europeia previa '. Em última instância, sobre a questão fundamental
para os trabalhadores provenientes de um estado da relação entre direitos políticos e direitos privados,
membro, igualdade de tratamento em matéria de filiação fomos remetidos para a relação entre ideologia de
nas organizações sindicais e direito de voto para os Estado e ideologia jurídica, e, mais longe ainda,. para
órgãos de representação dos trabalhadores na empresa. o estatuto ('jurídico-político,) do trabalho. Só este
O ministro do trabalho interpretava este artigo como percurso nos permitiu responder à questão concreta
dando, aos trabalhadores vindos de países-membros, que de início colocámos. O direito só pode encarar as
um direito de eleitorado para as comissões de empresa, eleições para as I., R. P. como eleições profissionais; por
sem exigência de qualquer condição de residência ou' consequência não se pode tratar do exercício de direitos
de posse de carta de residente privilegiado (9'). O regu- políticos. ,
lamento n.O 1612/68 de 15 de Outubro de 1968 no Mas, como já dissemos, este estudo permite-
seu artigo 8.° retoma as mesmas disposições mas declara, -nos fazer aparecer o estatuto jurídico do trabalho.
acrescentando, que o trabalhador proveniente de um No nosso modo de produção o trabalho, considerado
qualquer Estado-membro da Comunidade «pode ser unicamente desde um ponto de vista de produção de
excluído da participação na gestão de organismo de valor, apresenta-se sob a forma de consumo de força
direito público e do exercício de função de direito de trabalho. Por um lado o operário trabalha sob o
público. Não obstante, por outro lado beneficia de controle do capitalista, por outro lado «o produto é
direito de elegibilidade para órgãos de representação propriedade do capitalista (... ). No seu ponto de vista
dos trabalhadores na empresa (9S),). o processo de trabalho não é mais do que o consumo
da força de trabalho, da mercadoria que ele com-
(") SlN AY, .L' Exercice du droit syndical dans les entreprises, ) prou (... ). O processo de trabalho é uma operação
.Dano,", 1969, cal'. 12. entre coisas (96),).
(") . Resposta do ministério do Trabalho, J. O. A. N.,
17 de Maio de 1963, pág. 2955, n.O 1867.
(OS) G. LYON-CAEN. La Libre Circulation des Traoailleurs,
•J uris-Classeur périodique., 1969, p. 2222. (lO) MARX, op. cit., pág. 187 .

204 205
A subordinação do trabalho ao capital encontra
É desta maneira que a descrição da dialéctica
a sua expressão ideológica no conceito jurídico de
entre ideologia jurídica e ideologia de Estado, no seio
profissionalização; que ganha valor operatório no da instância jurídico-política, só pode surgir na sua
campo jurídico propriamente díto (97).
coerência por meio de uma análise da relação capital-
Mas por outro lado, a luta de classes tende a -trabalho.
romper ~ neutralidade política da ideologia jurídica,
desenvolve uma contradição secundária entre o polí-
tico e o jurídico, o qual apanha na (,armadilha') da sua
formalização as relações reais de classe (98).

(") Sobre a importância das .Comissões de fábrica na


U. R. S. S.", cfr. Notas et Études documentaires, 12 de Maio de 1969, .
n.O 26664; "Situation syndicale en U. R. S. S.l', B. I. T., 1960;
ROMACHKINE, Principios do direito soviético, Moscovo, 1964.
(") Cfr. a noção de greve polltica «ilegal> que se torna
(,legal. quando é desencadeada por um apelo governamental:
Cour de Cassation, Câmara social, 19 de J uno de 1963,
Dalloz, 1963, p. 686; Juris-Classeur périodique, 1963, 11, 13428,
nota de Sinay, o que aconteceu aquando do~ levantamentos
de 1 de Fevereiro de 1960 e de H de Abril de 1961.

*
Posteriormente à redacção deste artigo o Cour de Cassation
pronunciou-se no sentido que eu tinha indicado, p~r. dois assellt~s
com data de 18 de Maio de 1971 (efr.• Revue crItIque de drOlt
,international privé,. 1971, 669, nota de Lyon-Caen; (,Jo~rnal de
(efr. as referências já citadas) o eour de Cassatim julgou por outra
droit international., 1972, 578, nota de J.-M . .verdler) e a
via que os argelinos não podiam ser elegloeis para secções sindi.
Câmara criminal seguiu-o (Crim. 5 de Out. de 1972. Dalloz,
cais de. empresa, em nome de uma subtil exegese que não interessa
1973 12). Convém notar que esta jurisprudência foi confirmada
aqui discutir. O essencial a sublinhar é o seguinte: impedir
pela 'lei n.O 72-517 de 27 de Jun. de 1972~ relativ,! _aoeleitorado }
aos trabalhadores estrangeiros conduzir uma acção concreta nacional,
e à elegibilidade dos estrangeiros em matéria de elelçoes dos mem-
enquanto trabalhadores, na medida em que tal acção pode directa-
bros das Comissões de empresa e dos dtilegados do pessoal. . .
mente contestar a poUtiea do Estado. A A. I. E. sindical não
Tornou-se assim de direito que as tileições profiSSIOnaIS
surC1oe assim com a sua cverdadeira natureza: não como simples
constituem apenas o exercicio de «direitos'poltticos». Mas e~sascoisas.
aparelho de reprodução da ideologia dominante, mas como um
não são assim tão, simples. Por um assento de 18 de MaIO de 1971
aparelho que permite também conduzir a luta de classes?

206 207
íNDICE

r
Pág.
I. A prática teórica do direito . . . . . . . . 13
1. AS RAZÕES DE UMA LACUNA . 15
2. o ACTO DE NASCIMENTO DA IDEOLOGIA JURí-
DICA: o SUJEITO DE DIREITO ..•.. 25
Secção I. A oida «doutrinai do sujeito de direito 27
I. A Introdução jurídica . . 27
11. A Explicação juridica . . 29
Secção lI. Ideologia e sujeito de direito. 34
11. A produção juridica do real. . . . 40
3. A FORMA MERCANTIL DA CRIAÇÃO. 41
Secção I. A «sobre-apropriação. do real 44
Secção I I. O homem e a máquina 51
I. Do homem-máquina... . . 53
I I L ... ao sujeito criador . . . 60
Secção I I I. Processo do capital e processo criador 67
I. Economia e Cinema 68
I I. O Capital-autor 71
I I I. Criação e sujeito colectim 79
A FORM'A MERCANTIL DO SUJEITO. 91
Secção I. A forma sujeito de direito 94
Secção lI. A cruzada dos caoaleiros do direito ou
a história de uma doutrina juridica 101
Secção. 111. As figuras do sujeito de direito 106
I. O carrossel 108
I I. A dança da morte 111

209
Pág.
IH, A dança dos véus 112
IV. A propriedade conduz à dança. 116
V. O amor conduz à dança 118 ~
I,
i
I
,!
m. Elementos para uma teoria marxista do direito 123
I
5. TESE I: o DIREITO FIXA E ASSEGURA A REALI-
ZAÇÃO, COMO DADO NATURAL, DA
ESFERA DA CIRCULAÇÃO 129
6. TESE II: o DIREITO GARANTINDO E FIXANDO
COMO DADO NATURAL A ESFERA DA
CIRCULAÇÃO, TORNA POSSíVEL A PRO-
DUÇÃO H~

Conclusão: Direito e luta ideológica. . 151


Anexo: Notas sobre o funcionamento da Ideologia juridlca 159

Este livro foi composto na


Tipografia da Gráfica de Coimbra
em Setembro de 1976

210
I

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