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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA

EVELYN VIRIATO

PRÁTICAS DE EDUCADORES DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA REFUGIADOS:


UM ESTUDO SOBRE A ORGANIZAÇÃO SOCIAL “COMPASSIVA”

SÃO PAULO
2022
EVELYN VIRIATO

PRÁTICAS DE EDUCADORES DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA REFUGIADOS:


UM ESTUDO SOBRE A ORGANIZAÇÃO SOCIAL “COMPASSIVA”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Educação, Arte e História da
Cultura, da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito à obtenção do título
de Mestre.

ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Ramos de Andrade

SÃO PAULO
2022
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da Mackenzie
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
V818p Viriato, Evelyn.
Práticas de educadores de língua portuguesa para refugiados: um
estudo sobre a organização social "Compassiva" : [recurso eletrônico]
/ Evelyn Viriato.
1 KB ;

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) -


Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2022.
Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Maria de Fátima Ramos de Andrade.
Referências Bibliográficas: f. 71-74.

1. Refugiados. 2. Imigrantes. 3. Aula De Português. 4. Educação.


5. Formação De Professores. I. Andrade, Maria de Fátima Ramos de,
orientador(a). II. Título.

Bibliotecário(a) Responsável: Marcela Da Silva Matos - CRB 8/10691


Folha de Identificação da Agência de Financiamento

Autor: Evelyn Viriato

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Arte e História da Cultura

Título do Trabalho: PRÁTICAS DE EDUCADORES DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA


REFUGIADOS: UM ESTUDO SOBRE A ORGANIZAÇÃO SOCIAL “COMPASSIVA”

O presente trabalho foi realizado com o apoio de 1:


CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de Mensalidades e Taxas
MACKPESQUISA - Fundo Mackenzie de Pesquisa
Empresa/Indústria:
Outro:

1
Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os.
A Deus, que preparou todo o caminho percorrido
neste processo de pesquisa. Ao meu esposo
Nelson, cuja conquista também lhe é devida por
conta de todo o apoio a mim oferecido nesse
tempo. À minha filha Bianca, para que se inspire
na jornada pelos estudos. Aos imigrantes, que
possam ter seus direitos de mobilidade
garantidos.
AGRADECIMENTOS

São muitos os agradecimentos; definitivamente, um trabalho de pesquisa dessa


dimensão não se faz de forma solitária; contei com muito apoio. O primeiro que
gostaria de salientar foi todo o suporte recebido de Deus, que preparou a oportunidade
do mestrado. Além disso, Ele me concedeu o privilégio de contato com pessoas chave
para o processo de pesquisa, sem as quais nada disso teria sido possível. Faço
questão de reverter o conhecimento adquirido em ajuda aos refugiados e imigrantes
que buscam melhores condições de vida.

Agradeço à minha família, ao meu marido Nelson, que tanto me ajudou,


cobrindo minhas ausências no que deixei de contribuir na nossa dinâmica familiar por
conta das horas de estudo. Agradeço à minha filha Bianca, que apesar da pouca idade
teve maturidade para entender minha falta de tempo. Agradeço ao meu pai Érico e às
minhas irmãs Eloá e Égle, que ofereceram suporte com a minha filha em muitos
momentos para que eu pudesse dedicar tempo aos estudos de forma tranquila,
sabendo que ela estava bem amparada. Agradeço à minha mãe Ivone, que mesmo
não mais entre nós, despertou muito cedo em mim o prazer pelos estudos, a vontade
de me aprimorar e o desejo de ajudar o próximo.

Agradeço a minha querida orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Ramos de


Andrade, que me inspirou e me inspira a ser uma profissional de excelência por meio
de sua prática embasada em teoria e reflexão. Com ela me senti segura, evoluí
academicamente e entendi o que todos os verbos na primeira pessoa do plural ao
longo do trabalho indicam, pois realmente NÓS fizemos este trabalho juntas.

Agradeço à minha companheira de curso Maiara Frida Elsing, que me


acompanhou na jornada e tornou o fardo mais leve em muitos momentos. Juntas
crescemos.

Agradeço às minhas queridas amigas Aline Cristiane Teixeira de Oliveira


Morais e Ana Lucia Nakahara, que me suportaram em oração e em ouvidos atentos.

Agradeço à querida amiga Laís de Almeida Cardoso, que além de ser uma
inspiração na jornada da busca pelo aperfeiçoamento acadêmico, ainda me deu o
privilégio da leitura desta pesquisa.
Agradeço por todo o apoio recebido da ONG Compassiva, que tem os
seguintes valores: a) Relacionamentos Relevantes: construir relacionamentos
humanizados e pontes para aproximar pessoas e unir forças; b) Serviço: ajudar e
servir ao próximo de maneira prática; c) Integridade: ser exemplo e agir com
transparência e respeito em todas as relações. Percebi esses valores não só no
trabalho desenvolvido com seu público-alvo, mas também na disponibilidade em me
apoiar nesse trabalho de pesquisa. Agradeço em especial aos educadores voluntários
que separaram tempo para contribuírem com a pesquisa acadêmica, bem como às
coordenadoras Débora Blair e Jéssica Lux, que abriram os braços já acostumados a
acolherem, para esse trabalho. E por fim, obrigada à Marlene, que foi a primeira a
ouvir meu pedido e me colocar para dentro da Compassiva.

Agradeço aos refugiados e imigrantes, pela constante inspiração que me


despertam e pela força interior que possuem.
Sou Imigrante

Sou Imigrante dalém


Lá do outro lado do oceano
Forçado a abandonar o país
Sim o país de origem
Que há séculos venho lutando
Querendo viver
Batendo as portas nunca descerradas
Sempre encerradas
Não tenho terra
Lá de onde eu venho
Do qual vós chamais
ou dizeis ser minha terra…
Eu era igual uma flecha
Querendo ir pra frente
Eu era cada vez mais puxada pra trás
Com mais força!
E de tanto me puxarem
Fui lançada veementemente
Para atingir o alvo
E vim aqui parar!
Sou Imigrante
Não tenho terra
Tudo é terra
Não importa se aqui ou lá!
Quem dera que não houvessem fronteiras!
Quem dera que não houvessem leis
Leis essas que nos prendem, Separam,
Hostilizam, injuriam e abalam!
Oh, se não houvessem fronteiras
Divisões geográficas
E que todos os homens fossem só homens!
Sem distinção de cores, raças, nacionalidades!
Que culpa tenho eu em ser Preto ou branco?
Cristão ou muçulmano? Hindu ou Budista?
Judeu ou Samaritano?
Se talvez as raças negra ou branca, não existissem!
Na verdade, não existem
O que apenas existe é…
Raça humana!
Sou Imigrante, emigrante, migrante
Resistente, com força pra viver, almejando viver
Sou resistível como um Leão da África
Tenho garras de um falcão do mato
Sou persistente como a onda movível
Porém, me respeitem!
Só quero viver a vida…
Porque a terra é nossa, de todos nós
Feito por Deus e entregue à todos os homens
Não importa se aqui ou lá!

(Moisés Tiago António)


RESUMO

O tema “refugiados” é contemporâneo e marca a nossa sociedade. Recebemos no


Brasil pessoas de diferentes países e culturas que precisam se adaptar a uma nova
realidade. Quando chegam, necessitam de aulas de língua portuguesa para que haja
integração de fato, e são em geral auxiliadas por ONGs que ministram essas aulas.
Nesse contexto, o objetivo do presente trabalho foi investigar a base de
conhecimentos do educador voluntário que atua na ONG Compassiva no ensino de
língua portuguesa no acolhimento dos refugiados/imigrantes. O trabalho teve como
percurso metodológico a revisão bibliográfica (pesquisas correlatas), análise de
documentos e entrevistas com sete educadores voluntários. O processo de análise
das respostas foi ao encontro dos objetivos específicos do trabalho, culminando na
criação de três eixos de análise: a) a escolha profissional, o papel do educador
voluntário e as concepções de acolhimento; b) a base de conhecimento,
aprendizagem da docência e a desconstrução das crenças e c) a proposta institucional
de formação de educadores de língua portuguesa para refugiados/imigrantes. Como
a maioria dos voluntários que aplicam as aulas de língua portuguesa na ONG não
pertence à área da educação, optamos por nomeá-los de “educadores”. Concluímos
com esta pesquisa que, apesar da carência de formação adequada, há grande
motivação por parte dos educadores em oferecer aulas de qualidade. Há um
alinhamento entre os voluntários e a missão e visão da organização. A instituição
demonstra preocupação na formação de seus colaboradores, e suas ações diante da
equipe são realizadas por uma necessidade prática que surge a partir das demandas
rotineiras das aulas. Percebemos que, nesse aspecto, reside a grande diferenciação
do trabalho voluntário de cunho assistencialista do trabalho do professor formado e
que está em contínua capacitação, e que busca relacionar teoria e prática em sua
atuação docente.

Palavras-chave: Refugiados. Imigrantes. Aula de Português. Educação. Formação


de Professores.
ABSTRACT

The theme “refugees” is contemporary and marks our society. We receive in Brazil
people from different countries and cultures who need to adapt to a new reality. When
they arrive, they need Portuguese language classes so that there is real integration,
and they are usually helped by NGOs that teach these classes. In this context, the
objective of the present work was to investigate the knowledge base of the volunteer
educator who works in the NGO Compassiva in the teaching of Portuguese language
in the reception of refugees/immigrants. The methodological course of the work was
made by the bibliographic review (related research), document analysis and interviews
with seven volunteer educators. The process of analysis of the answers met the
specific objectives of the work, culminating in the creation of three axes of analysis: a)
the professional choice, the role of the volunteer educator and the reception concepts;
b) teaching learning, the theoretical sources to support educational practices and the
deconstruction of beliefs and c) the institutional proposal for training Portuguese-
speaking educators for refugees/immigrants. As most of the volunteers who teach
Portuguese language classes at the NGO do not belong to the area of education, we
chose to name them as “educators”. We conclude with this research that, despite the
lack of adequate training, there is great motivation on the part of educators to offer
quality classes. There is an alignment between the volunteers and the mission and
vision of the organization. The institution shows concern in the training of its
employees, and its actions in front of the team are carried out by a practical need that
arises from the routine demands of the classes. We realize that, in this aspect, lies the
great difference between the voluntary work of an assistentialist nature and the work
of the trained teacher who is in continuous training, and who searches to relate theory
and practice in his teaching activities.

Keywords: Refugees. Immigrants. Portuguese Class. Education. Teacher Training.


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Levantamento das pesquisas correlatas - Dissertações ........................ 22


Quadro 2 – Levantamento das pesquisas correlatas - Artigos .................................. 25
Quadro 3 – Datas das entrevistas realizadas com os educadores voluntários ......... 45
ABREVIATURAS E SIGLAS

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados


BDTD Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
HVP História de Vida Profissional
L2 Segunda Língua
LAR Levando Ajuda ao Refugiado
LE Língua Estrangeira
LM Língua Materna
NEPPE Núcleo de Ensino e Pesquisa em Português como Língua Estrangeira
OIM Organização Internacional para as Migrações
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PLAc Português como Língua de Acolhimento
PLE Português como Língua Estrangeira
SESC Serviço Social do Comércio
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático
UNHCR United Nations High Commissioner for Refugees
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13
2 LEVANTAMENTO DE PESQUISAS CORRELATAS ................................... 22
2.1 O que encontramos no levantamento da BDTD ................................. 22
2.2 O que encontramos no levantamento no portal da CAPES ............ 255
3 PORTUGUÊS: LÍNGUA ESTRANGEIRA, LÍNGUA DE ACOLHIMENTO E O
CONTEXTO DA ONG COMPASSIVA ............................................................. 29
3.1 Diferença conceitual entre ensino da língua portuguesa como
língua estrangeira e como língua de acolhimento ...................................... 29
3.2 Contexto da Ong Associação Compassiva ........................................ 31
4 DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DE PROFESSORES AO
DESENVOLVIMENTO DE EDUCADORES VOLUNTÁRIOS .......................... 37
4.1 Desenvolvimento profissional docente .............................................. 37
4.2 Relação da teoria e da prática na ação docente................................. 39
4.3 As crenças dos professores ................................................................ 40
4.4 Formação continuada do professor e sua expertise ......................... 41
5 PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA.......................................... 43
5.1 O método e os procedimentos metodológicos .................................. 43
5.2 Os participantes da pesquisa: quem são? ......................................... 46
6 BASE DE CONHECIMENTO DOS EDUCADORES VOLUNTÁRIOS .......... 48
6.1. A escolha profissional, o papel do educador voluntário e as
concepções de acolhimento ......................................................................... 48
6.2 A base de conhecimento, aprendizagem da docência e a
desconstrução das crenças .......................................................................... 51
6.3 A proposta institucional de formação de educadores de língua
portuguesa para refugiados/imigrantes ....................................................... 61
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 68
REFERÊNCIAS................................................................................................ 71
APÊNDICE 1 – TCLE – EDUCADOR VOLUNTÁRIO ..................................... 75
APÊNDICE 2 – TCLE – INSTITUIÇÃO............................................................ 78
APÊNDICE 3 – QUESTIONÁRIO PERFIL DO EDUCADOR .......................... 82
APÊNDICE 4 – TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA DAS ENTREVISTAS ............ 83
13

1 INTRODUÇÃO

Começo a introdução pela minha apresentação, para que haja um


entendimento do processo de escolha deste tema de pesquisa. Inicio pela faceta
profissional da minha vida, a ser incrementada pelos outros aspectos dela, como o
pessoal, emocional, intelectual e espiritual.

Sou professora há 20 anos, dentro dos quais pude vivenciar a prática docente
em diferentes segmentos. Hoje leciono na Educação Infantil, conduzindo crianças
entre 4 e 6 anos no desenvolvimento de diversas habilidades a serem avaliadas por
alguns indicadores, tais como grafismo, escrita, oralidade, competência auditiva,
competência visual, desenvolvimento lógico-matemático, interação social,
desenvolvimento psicomotor. Além disso, também me dedico a ensinar inglês para
crianças de primeiro e quinto ano do Ensino Fundamental, outra paixão que tenho.

Minha relação com a educação começou em 2002, quando, ao voltar de uma


experiência de um ano e dois meses nos Estados Unidos, percebi que estava
esquecendo a língua inglesa que tinha aprendido com bastante dificuldade. Isso me
inquietou, e decidi dar aulas de inglês para colegas de trabalho interessados, somente
para manter viva a língua em minha mente. A partir dessa experiência, descobri minha
real vocação, na verdade a redescobri, pois desde muito pequena ajudava amigos na
escola que tinham dificuldade de aprendizagem. Foi um momento de muita alegria,
finalmente aos 24 anos, encontrar meu caminho profissional: a angústia tinha chegado
ao fim.

Comecei a trabalhar em escolas de idiomas, cursei Letras Inglês-Português e


então iniciei meu trabalho em escolas bilíngues de Educação Infantil. Cursei
Pedagogia e segui lecionando neste segmento por um bom tempo, até que, em 2016,
fui contratada como professora no Colégio Presbiteriano Mackenzie, unidade
Tamboré. Tive então a oportunidade de cursar Psicopedagogia em nível de pós-
graduação, momento em que estudei bastante sobre a aprendizagem e que se
consolidou em mim o interesse pelo tema dos refugiados. Para o trabalho de
conclusão de curso, investiguei um pouco sobre o preparo dos professores para
lecionar aulas de língua portuguesa para refugiados em ONGs localizadas na Grande
São Paulo. Foi uma experiência muito gratificante e que me trouxe um desejo de
continuar a pesquisa de uma maneira mais aprofundada, em nível de mestrado.
14

A pergunta a ser respondida agora é: por que o tema “refugiados” me é caro?


Nasci na região metropolitana de São Paulo, mais precisamente em Osasco, em 22
de outubro de 1978. Minha família tem origem simples, com fortes valores e princípios
e dentro da qual me formei; ela representa muito para mim. Meus antepassados eram
imigrantes. Meus bisavós maternos (pais do meu avô) vieram de navio de Portugal
tentar uma vida melhor aqui no Brasil. Meus bisavós maternos (pais da minha avó)
eram itinerantes, de origem caipira, e viveram por um bom tempo como nômades,
construindo a estrada velha de Santos. Meus bisavós paternos também migraram
inúmeras vezes em busca de melhores condições de vida.

Sou casada com o Nelson, e, juntos, temos uma filha de sete anos chamada
Bianca. Meu esposo tem ascendência japonesa, e seu pai já migrou para o Japão,
também em busca de recursos financeiros para prover sua família.

Gosto de me relacionar com as pessoas, tenho bons amigos e amo meu


trabalho. Nas minhas horas vagas gosto de passear, tomar um bom café com pessoas
queridas e ler.

Entendo que nossa vida deve ser vivida da forma mais plena possível,
respeitando os vários pilares que a sustentam. Devemos cuidar na nossa saúde física,
emocional, intelectual e espiritual. O meu relacionamento com Deus é um aspecto
fundamental da minha vivência.

Ao refletir sobre o meu tema de estudo no mestrado, sou transportada de volta


no tempo, para o ano de 1998. Desde a juventude, percebia em mim uma vontade
grande de desbravar novos lugares e buscar melhores condições de vida. Com esse
forte desejo, aos vinte anos fui para os Estados Unidos, com o apoio da família, onde
fiquei por um ano e dois meses. Nessa experiência aprendi sobre diferentes culturas
e sobre a luta das pessoas em busca de qualidade de vida. Passei a entender o
sentimento de ser cidadã do mundo, de me sentir pertencente ao todo e não a uma
nação específica. Ir e vir é um direito humano. Talvez a partir dessa ideia comecei a
me interessar pelo tema refugiados.

Dentro desse contexto, parece ser compreensível que pessoas se planejem e


partam em busca de seus sonhos. E o que dizer então de pessoas que, sem
possibilidade de planejamento, são obrigadas a sair de suas casas, abandonar sua
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cultura, familiares e história, para irem a outros lugares em busca de refúgio,


segurança, saúde, educação e dignidade?

Esse tema tem cada vez mais ganhado visibilidade na mídia, ainda não estou
certa se da melhor maneira, mas entendo que migração e refúgio são temas atuais e
que carecem de reflexão também dentro da área educacional.

Além do tema que me interessa, sempre fui incentivada a estudar por minha
mãe, que era uma pessoa bastante disciplinada e esforçada. Esse mestrado também
é uma forma de honrar sua memória; embora ela tenha partido cedo, deixou forte em
mim o gosto pelos estudos e pelo desejo de melhorar em prol do outro.

Dentro deste contexto pessoal, parto para o assunto da pesquisa em si.

O tema “refugiados” é contemporâneo e marca a nossa sociedade. Existe um


fluxo de imigração que é gerido por três frentes ao redor do mundo: a) governo,
representado por suas autoridades, b) organizações internacionais, que fazem a
intermediação entre estados e refugiados, neste caso destacando-se o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), e c) a sociedade
civil, por meio de Organizações Não Governamentais – ONGs (MOREIRA, 2014).

De acordo com a agência ACNUR, refugiados são pessoas que, por temor, são
obrigadas a ficar fora de seus países de origem. Esse temor pode ser relacionado com
questões de opinião política, pertencimento a um certo grupo social, nacionalidade,
religião, raça ou violação dos direitos humanos (ACNUR, 2011).

Segundo dados da ACNUR, existem 82,4 milhões de pessoas que


forçadamente deixaram seus países. Desse total, 26,4 milhões têm status de
refugiado (UNHCR, 2021).

Em relação ao Brasil, segundo dados divulgados pelo relatório “Tendências


Globais 2020”, até o final de 2020, foi registrada a entrada de 57.099 refugiados de
diferentes países. Desse total, a maioria vem da Venezuela (60%), seguida por Síria
(23%) e Congo (5%) (UNHCR, 2021).

Outro aspecto importante é a diferenciação da emissão do status de “refugiado”


versus emissão de “visto”. O status de refugiado confere ao indivíduo todos os direitos
humanos e o protege na sua já fragilizada situação. Quando somente o visto lhe é
conferido ou, por vezes, nem isso, o imigrante fica vulnerável a inúmeras situações de
16

violência, tais como tráfico de pessoas e trabalho escravo (ANNONI; LIMA MANZI,
2016). Além disso, a definição de “refugiado” pela Organização das Nações Unidas
(ONU) não abarca os refugiados econômicos, aqueles têm suas vidas inviabilizadas
pela má condição de vida de seu país natal. Ainda mais desamparados em termos
legais encontram-se os imigrantes econômicos, que poderiam sobreviver em seu país,
mas optam por buscar melhores condições de vida em outro lugar (CASELLA, 2017,
p. 2001).

No Brasil, por meio da Lei n. 9.474/97 de 22 de julho de 19971, houve uma


definição mais específica para a condição do refugiado e, inclusive, mais abrangente
do que a da ONU, já que engloba também o conceito de refugiado encontrado na
Declaração de Cartagena (JUBILUT, 2006).

Ademais, é importante conceituar as diferenças entre migrantes (emigrantes e


imigrantes), exilados e asilados em comparação com os refugiados. Migrantes são
aqueles que mudam de local. Uma pessoa que deixa sua terra natal é chamada
emigrante; já quando ela chega a seu destino, passa a ser um imigrante no novo lugar.
Dentro desse conceito, o refugiado pode ser considerado um migrante, porém ele se
desloca involuntariamente, ou seja, por estar em perigo e não por um simples desejo.
O exilado se diferencia do refugiado mais por questões legais, assim como o asilado.
A condição de asilo pode ser cedida pelo Presidente da República, ou por um
responsável pelo mais alto cargo de liderança de um país, não precisando
necessariamente passar por um órgão específico.

Há uma legislação internacional que assegura os direitos dos refugiados, a


saber: a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – 19512 e a Declaração de
Cartagena – 19843. Já no Brasil, além da Lei n. 9.474/97, de 22 de julho de 1997, há
também a Lei de Migração, Lei n. 13.4454, de 24 de maio de 2017, que dispõe sobre
os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a entrada e estada no País

1 BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define o termo refugiado. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm. Acesso em: 12 maio 2019.
2 ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – 1951. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_R
efugiados.pdf. Acesso em: 12 maio 2019.
3 ACNUR. Declaração de Cartagena – 1984. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declar
acao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 12 maio 2019.
4 BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Regulamenta o estado dos migrantes e visitantes no

Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso


em: 12 maio 2019.
17

e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.


(CADERNOS SESC DE CIDADANIA, 2018).

De acordo com Moreira (2014, p. 87),

O estatuto de refugiado constitui uma condição jurídica, em tese, provisória.


Os refugiados fugiram de seus países em função de eventos políticos (como
guerras civis, regimes repressivos, entre outras situações de instabilidade
política e violações de direitos humanos) e, uma vez findados, os cidadãos
deveriam ser repatriados. Contudo, muitas vezes, esses fatores se arrastam
por anos ou décadas, enquanto os refugiados buscam meios e estratégias
para restabelecer suas vidas, (re)construindo relações sociais e laços
afetivos, constituindo, por vezes, famílias nos países de destino. Esses
fatores dificultam o regresso dos refugiados à sua terra natal e acarretam
implicações em meio às comunidades e aos países acolhedores.

Quando um imigrante chega a um novo país, a aprendizagem da nova língua é


vital para que ele se estabeleça e se adapte à nova realidade e que compreenda a
nova cultura a que se expõe. Os imigrantes apresentam diferentes experiências e
olhares diante da vida, o que cria um cenário bastante heterogêneo no país receptor,
especialmente naqueles que recebem estrangeiros de diferentes locais. Logo, a
formação linguística deve ocorrer de forma rápida e de modo a contemplar também o
contexto social e pragmático existentes. Em geral, uma das dificuldades enfrentadas
por imigrantes é o não domínio da nova língua.

Nesse momento, o professor de Português como Língua de Acolhimento


(PLAc) tem um papel muito importante. De acordo com Grosso et al. (2008), os
modelos de ensino adotados para refugiados devem ter abordagem comunicativa. Na
Europa, temos o documento “Portfolio Europeu das Línguas”5, criado pelo Conselho
da Europa, que auxilia os aprendizes da nova língua a traçarem objetivos a serem
alcançados, servindo também como uma ferramenta avaliativa.

No contexto brasileiro, em especial no estado de São Paulo, há ONGs que se


propõem a acolher esses imigrantes que chegam fragilizados ao país. Na capital
paulista há diferentes tipos de instituição que inclusive oferecem suporte aos
refugiados, ministrando aulas de língua portuguesa. É importante que os refugiados
sejam ouvidos e participem do processo de integração no novo local de vida
(CASTLES et al., 2002). Ainda é desconhecido, de uma maneira mais sistematizada,
como os professores dessas instituições foram preparados para atuar nesse

5Conselho da Europa. Portfolio Europeu das Línguas. Disponível em: http://www.dge.mec.pt/portefolio-


europeu-de-linguas. Acesso em: 12 maio 2021.
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segmento, o quanto sabem sobre o seu papel no ensino para refugiados e imigrantes
de uma forma geral, se compreendem a realidade desses indivíduos e qual modelo
de ensino utilizam em suas aulas. Não se sabe também quais dificuldades esses
professores enfrentam em suas práticas pedagógicas.

De acordo com o Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas


(CONSELHO DA EUROPA, 2001), seria interessante que os professores passassem
por um processo reflexivo que contemplasse as seguintes perguntas:

• Posso prever os domínios nos quais os meus aprendentes vão operar e as


situações com as quais terão de lidar? Se sim, que papéis terão de
desempenhar?
• Com que tipo de pessoas terão eles de lidar?
• Quais serão as suas relações pessoais e profissionais e em que
enquadramentos institucionais?
• A que objetos necessitarão de referir-se?
• Que tarefas terão de levar a cabo?
• Que temas terão de tratar?
• Terão de falar ou bastará compreender o que ouvem e leem?
• Que tipo de coisas lerão ou ouvirão?
• Em que condições terão eles de agir?
• A que conhecimento do mundo ou de outra cultura terão eles necessidade
de apelar?
• Que capacidades terão de desenvolver? Como poderão ser eles próprios
sem serem mal interpretados?
• Até que ponto posso ser eu responsável por isto?
• Se eu não consigo prever as situações nas quais os aprendentes vão utilizar
a língua, como posso eu prepará-los da melhor forma para usarem a língua
para a comunicação sem os treinar excessivamente para situações que
nunca vão acontecer?
• Que poderei eu dar-lhes que perdure, quaisquer que sejam os caminhos
que as suas carreiras tomem? (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 74).

Pensando na quantidade de imigrantes que temos em nossa cidade e na


relevância desse tema em nossa sociedade, é importante pensarmos sobre como
estamos oferecendo subsídios para que essas pessoas, em situação de
vulnerabilidade, possam se comunicar na língua oficial do nosso país.

Em 2018, no período do meu Lato Sensu, fiz um levantamento via busca na


internet das organizações na cidade de São Paulo que ministravam aulas de língua
portuguesa para imigrantes e refugiados. Nessa pesquisa, constatei a ocorrência de
sete organizações não governamentais que ofereciam esse serviço e uma instituição
ligada ao governo do estado de São Paulo e o Serviço Social do Comércio (SESC).
Das sete ONGs, duas se dispuseram a estabelecer um diálogo para a pesquisa
acadêmica, e uma delas, a Compassiva, abriu as portas para o trabalho de fato.
19

A Compassiva tem diferentes frentes de trabalho e uma delas lida diretamente


com a questão dos refugiados. Trata-se do programa Levando Ajuda ao Refugiado
(LAR).

Atualmente são ministradas aulas para oito turmas, sendo quatro delas em
modo remoto e as demais em modo presencial. A coordenadora Debora Blair, em
entrevista realizada em 28 de outubro de 2021, relatou a dificuldade enfrentada no
período de pandemia para condução das aulas, devido à falta de acesso aos recursos
tecnológicos por parte dos alunos. De todo modo, a evasão notada nesse período não
foi maior que a já existente, visto que o público refugiado é volátil por natureza. Eles
entram e saem do curso com certa facilidade, segundo a coordenadora. Inicialmente
as aulas começaram pelo aplicativo WhatsApp. Atualmente existem aulas pela
plataforma Zoom.

Os educadores voluntários não precisam ter formação na área da educação,


mas passam por uma entrevista inicial, na qual se avaliam suas habilidades de
comunicação, de conhecimento da língua portuguesa e de facilidade de
relacionamento, uma vez que a ONG preza pelas relações interpessoais como uma
ferramenta de transformação positiva na vida das pessoas. Há um treinamento para
explicação da estrutura do curso para os voluntários aprovados, o método adotado
pela organização, o conceito básico de ensino de línguas e o uso do livro didático
adotado, cujo título é Muito Prazer Português para Estrangeiros, da editora Disal. Além
dessa formação inicial, existem momentos intitulados de reciclagem ao longo do ano.
Em 2021 houve três treinamentos para os educadores voluntários e duas em 2022.

A Compassiva conta com 49 educadores voluntários, grupo composto por


titulares e substitutos. A principal ação de acolhimento dos refugiados dentro da ONG
é propiciar o espaço para que os imigrantes aprendam a língua portuguesa. Vale
ressaltar que essa é a frente de atuação da maioria dos voluntários.

Assim, diante do que foi exposto, temos como pergunta de pesquisa: Qual a
base de conhecimentos do educador voluntário que atua na ONG Compassiva no
ensino de língua portuguesa no acolhimento aos refugiados/imigrantes? Sob sua
ótica, quais os conhecimentos necessários para ensinar a língua portuguesa aos
refugiados atendidos na ONG Compassiva?
20

Com isso, o objetivo geral do presente trabalho é investigar a base de


conhecimentos do educador voluntário que atua na ONG Compassiva no ensino de
língua portuguesa no acolhimento dos refugiados/imigrantes.

Como objetivos específicos, pretendemos:

- Identificar as fontes de conhecimento que os educadores voluntários utilizam


para ensinar;
- Conhecer como se dá a relação de teoria e prática na ação do educador
voluntário;
- Identificar as crenças em relação ao processo ensino-aprendizagem que
estão presentes na prática do educador;
- Identificar a motivação pela escolha da docência para refugiados/imigrantes;
- Identificar se há alguma proposta institucional de formação de educadores de
língua portuguesa para refugiados/imigrantes.

Para a realização do trabalho optamos por uma abordagem qualitativa de


cunho descritivo-analítico. Inicialmente, demos andamento em uma revisão
bibliográfica e, como segunda etapa, realizamos as entrevistas com os educadores
voluntários que atuam no ensino da língua portuguesa, bem como a análise do Manual
do Voluntário.

O trabalho está organizado em seis seções, compostas da seguinte maneira:

Seção 1 – INTRODUÇÃO: apresentamos meu contexto de vida pessoal, o tema


do presente trabalho, sua relevância e seu problema de pesquisa, bem como uma
breve apresentação da ONG Compassiva, que cedeu espaço para o estudo de caso.

Seção 2 – LEVANTAMENTO DE LEITURAS CORRELATAS: elencamos a


relação das leituras selecionadas a partir de descritores pré-determinados citados no
capítulo.

Seção 3 – PORTUGUÊS: LÍNGUA ESTRANGEIRA, LÍNGUA DE


ACOLHIMENTO E O CONTEXTO DA ONG COMPASSIVA: discorremos sobre o
conceito do ensino da língua portuguesa como língua de acolhimento, procurando
fazer relações com o ensino de Português como língua estrangeira. Na sequência,
apresentamos a Organização Não Governamental (ONG) Associação Compassiva.
21

Seção 4 – DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DE PROFESSORES


AOS DESENVOLVIMENTO DE EDUCADORES VOLUNTÁRIOS: apresentamos o
conceito de formação docente, procurando ressaltar os eixos teoria-prática, crenças
dos professores e formação continuada do professor e sua expertise.

Seção 5 – PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA: revelamos os


procedimentos metodológicos, a escolha do método e o contexto da pesquisa.

Seção 6 – BASE DE CONHECIMENTO DOS EDUCADORES VOLUNTÁRIOS:


apresentamos os dados que foram gerados nas entrevistas. Após leitura recorrente
das respostas fornecidas, estabelecemos os seguintes eixos de análise: a) a escolha
profissional, b) o papel do educador voluntário e c) as concepções de acolhimento.

Por fim, apresentam-se as considerações finais, os referenciais e os apêndices.


22

2 LEVANTAMENTO DE PESQUISAS CORRELATAS

Nessa seção, apresentamos o levantamento dos estudos correlatos realizado


na Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e de artigos no portal da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

2.1 O que encontramos no levantamento da BDTD

A fim de ampliar o conhecimento dentro do tema, foi feito um levantamento na


Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), por meio do recurso da
busca avançada, com as palavras-chave: refugiados, educação, língua portuguesa.
A busca foi limitada dentro do período de 2018 a 2021, a fim de que os estudos mais
recentes relacionados ao tema fossem selecionados. Com esta delimitação,
obtivemos acesso a 35 trabalhos, dos quais selecionamos, após a leitura dos
resumos, três dissertações de mestrado, que constam no Quadro 1.

Dada a limitação no resultado da busca, refizemos a pesquisa inserindo o


descritor “língua de acolhimento”, e então obtivemos mais treze trabalhos, dos quais
selecionamos dois, que são justamente os dois últimos do quadro.

Quadro 1 – Levantamento das pesquisas correlatas - Dissertações


AUTOR TÍTULO DO TRABALHO UNIVERSIDADE DATA

Issaka Maïnassara Por uma construção cultural: Universidade 2019


Bano crianças e adolescentes Estadual de
refugiados africanos em São Campinas
Paulo

Camilla Martins Da invisibilidade à visibilidade: a Universidade de 2020


Cavalcanti insuficiência da política pública Fortaleza – Unifor
educacional para crianças e
adolescentes migrantes e
refugiados em Fortaleza no
período de 2015 a 2020

Adriana de Carvalho Imigrantes latino-americanos na Universidade 2019


Alves Braga escola municipal de São Paulo: Mackenzie
sin pertenencias, sino equipaje
– formação docente, o currículo
e cultura escolar como fontes de
acolhimento
23

Yara Carolina Campos Narrativas em curso: subsídios Universidade 2021


de Miranda para a formação de professores Federal de Minas
de português em contexto de Gerais,
acolhimento a estudantes Faculdade
migrantes e refugiados no de Letras
ensino básico brasileiro

Arabela Vieira dos O encontro com o Universidade 2021


Santos Silva e Franco estranhamente familiar (Das Federal de Minas
Unheimliche) na formação de Gerais,
professores de Português como Faculdade
Língua Adicional e de de Letras
Acolhimento

Fonte: Elaborado pela própria autora

O trabalho intitulado Por uma construção cultural: crianças e adolescentes


refugiados africanos em São Paulo foi elaborado pelo pesquisador Issaka Maïnassara
Bano. O estudo teve como objetivo investigar a interação de crianças e jovens
refugiados africanos pelo viés da linguagem. Os imigrantes participantes da pesquisa
vinham de países de língua francesa e moravam na cidade de São Paulo. Constatou-
se que a linguagem foi crucial no processo de socialização desses sujeitos e que a
educação é eficaz ao promover conscientização de direitos das crianças e
adolescentes refugiados. Embora não seja esse o foco da presente pesquisa, temas
como discriminação, racismo e xenofonia foram levantados por conta da temática
abordada no texto. O trabalho contribuiu, especialmente, no sentido de reforçar o valor
da educação para garantir direitos de imigrantes e refugiados, o que reforça a
relevância deste estudo.

No segundo trabalho, cujo título é Da invisibilidade à visibilidade: a insuficiência


da política pública educacional para crianças e adolescentes migrantes e refugiados
em Fortaleza no período de 2015 a 2020, a autora Camilla Martins Cavalcanti
investigou o universo da política pública educacional elaborada para receber
migrantes e refugiados em Fortaleza, Ceará (CE). Objetivou-se compreender o melhor
modelo de política pública educacional para acolher as crianças e os adolescentes
migrantes e refugiados no município de Fortaleza. Essa pesquisa foi enriquecedora
para o presente trabalho, pois mostra a responsabilidade do Estado Brasileiro em
conceder, por meio de políticas públicas, o direito à educação das crianças e dos
adolescentes migrantes e refugiados como forma de efetivar o que está previsto na
Lei n° 13.445 de 24 de maio de 2017. O Estado precisa de fato trabalhar em prol desse
24

segmento da sociedade e, embora a pesquisa de Mendonça tenha sido conduzida no


contexto de Fortaleza, ela retrata uma realidade de outros estados da nação brasileira.

O trabalho Imigrantes latino-americanos na escola municipal de São Paulo: sin


pertenencias, sino equipaje – formação docente, o currículo e cultura escolar como
fontes de acolhimento foi importante no sentido de esclarecer e desmistificar
informações sobre o panorama dos fluxos migratórios contemporâneos. Por exemplo,
embora muitos pensem que o Brasil sofre uma “invasão” de imigrantes, pesquisa da
Organização Internacional para as Migrações (OIM) revela que as porcentagens de
estrangeiros no Brasil são baixas em relação aos países vizinhos.

O quarto trabalho, Narrativas em curso: subsídios para a formação de


professores de português em contexto de acolhimento a estudantes migrantes e
refugiados no ensino básico brasileiro, trouxe uma interessante reflexão sobre a
defasagem na formação dos professores para ensino de Português como Língua de
Acolhimento (PLAc), contemplando aspectos importantes da interculturalidade
inerente a essa área de ensino.

Embora o último trabalho – O encontro com o estranhamente familiar (Das


Unheimliche) na formação de professores de Português como Língua Adicional e de
Acolhimento – tenha um viés voltado para os estudos psicológicos ligados à
psicanálise, ele vem ao encontro de um dos objetivos da pesquisa, que é compreender
o que motiva um professor a ensinar sua língua materna para um estrangeiro. Essa
reflexão foi muito rica para o presente trabalho, especialmente considerando que a
maioria dos voluntários da Compassiva não tem formação na área da educação.

Os cinco trabalhos elencados foram muito esclarecedores em diversos


aspectos, como por exemplo: 1) ressaltar a relação da educação e da conscientização
dos direitos de imigrantes e refugiados; 2) a compreensão da responsabilidade do
Estado Brasileiro em termos de políticas públicas em prol dos direitos à educação dos
imigrantes e refugiados; 3) informações importantes sobre os fluxos migratórios no
Brasil; 4) a defasagem na formação dos professores para ensino de Português como
Língua de Acolhimento (PLAc) e 5) as razões que levam um professor a ensinar sua
língua materna para um estrangeiro.
25

2.2 O que encontramos no levantamento no portal da CAPES

Também buscamos trabalhos no portal da CAPES, com as mesmas


especificações. Encontramos 102 trabalhos, dos quais, após leitura dos resumos,
selecionamos sete artigos para enriquecimento do arcabouço teórico do trabalho,
conforme Quadro 2. Além disso, ainda surgiram outras leituras ao longo do processo
de pesquisa, motivo pelo qual incluímos mais dois artigos, sendo um datado de 2017,
que foi importante para escrita do presente trabalho. Totalizamos nove artigos.

Quadro 2 – Levantamento das pesquisas correlatas - Artigos


AUTOR TÍTULO DO TRABALHO REVISTA / DATA
UNIVERSIDADE

Ana Paula de O professor de português como FÓLIO – REVISTA 2020


Araújo Lopez língua de acolhimento: entre o DE LETRAS /
ativismo e a precarização
UFMG

Ana Cristina Língua e cultura na feminização TRABALHOS EM 2019


Balestro; Telma das migrações no Brasil LINGUÍSTICA
Pereira APLICADA /

UFF

Ev'Angela Batista Português como língua @RQUIVO 2018


Rodrigues de estrangeira (PLE): formação BRASILEIRO DE
Barros; Maria docente e construção de EDUCAÇÃO /
Tereza Maia de expedientes didático-
Assis metodológicos UFMG e PUC
Minas

Bruno Deusdará; “É um problema de todo FÓRUM 2018


Poliana Coeli Costa mundo”: conceitos, métodos e LINGUÍSTICO /
Arantes; Ana práticas no ensino de português
Karina Brenner para refugiados UERJ

Mirelle Amaral de Ensino de português como FÓLIO – REVISTA 2018


São Bernardo; língua de acolhimento: DE LETRAS /
Lúcia Maria experiência em um curso de
Assunção Barbosa português para imigrantes e UFSC
refugiados(as) no brasil

Carla Alessandra Formação de professores numa CALIDOSCÓPIO / 2020


Cursino perspectiva plurilíngue para o
acolhimento linguístico de UFP
estudantes migrantes /
refugiados

Ana Letícia Ensino de português para ESTUDOS 2020


Carneiro de refugiadas e refugiados: pode LINGUÍSTICOS /
Oliveira entrar?
UEPG
26

Juliana Bertucci Formação de professores e ESTUDOS 2017


Barbosa; Deolinda ensino de Português como LINGUÍSTICOS /
de Jesus Freire Língua Adicional
UFTM

Marcus Vinícius da Do Global ao Local no Ensino LINGUAGEM & 2021


Silva; Cora Elena de PLAc em Roraima: por uma ENSINO /
Gonzalo Zambrano formação de histórias locais na
Universidade Federal de UFR e UER
Roraima

Fonte: Elaborado pela própria autora

No artigo “O professor de português como língua de acolhimento: entre o


ativismo e a precarização”, a autora Ana Paula de Araújo Lopez discute a atuação de
20 professores de PLAc que demonstram como voluntários um forte viés militante
ativista na tentativa de cobrir falhas governamentais na promoção de acolhimento
linguístico adequado aos imigrantes. Por outro lado, percebe-se nessa realidade a
defasagem da formação do docente desse segmento educacional, o que coopera para
a fragilização do professor como profissional.

No segundo artigo, “Língua e cultura na feminização das migrações no Brasil”,


Ana Cristina Balestro e Telma Pereira propõem a reflexão sobre língua e suas
barreiras na sociedade que recebe as imigrantes, bem como a cultura na esfera
feminina do movimento migratório específico de refugiadas.

No terceiro artigo do Quadro 2, cujo título é “Português como língua estrangeira


(PLE): formação docente e construção de expedientes didático-metodológicos”, as
autoras Ev'Angela Batista Rodrigues de Barros e Maria Tereza Maia de Assis
verificam que língua, cultura e identidade se relacionam intimamente com a didática
escolhida para o ensino de Português como língua estrangeira. Analisam-se, nesse
trabalho, unidades didáticas do Portal do Professor de Português Língua Estrangeira
e levantam-se os temas mais recorrentes nessa fonte.

No artigo “‘É um problema de todo mundo’: conceitos, métodos e práticas no


ensino de português para refugiados”, os autores Bruno Deusdará, Poliana Coeli
Costa Arantes e Ana Karina Brenner tecem uma discussão sobre conceitos e métodos
que norteiam a conduta de acolhida de imigrantes. Com base nessa discussão, deu-
se início a construção de material didático e acompanhamento de aulas lecionadas
por voluntários.
27

No quinto artigo, intitulado “Ensino de português como língua de acolhimento:


experiência em um curso de português para imigrantes e refugiados(as) no Brasil”,
Mirelle Amaral de São Bernardo e Lúcia Maria Assunção Barbosa tratam do tema
língua de acolhimento e compartilham o Projeto de Pesquisa: PROACOLHER:
Português como Língua de Acolhimento, oferecido no Núcleo de Ensino e Pesquisa
em Português como Língua Estrangeira (NEPPE) da Universidade de Brasília. As
autoras concluem que o ensino em ambiente de acolhimento é peculiar e deve ser
considerado como tal no momento do planejamento do curso, da escolha do material
e na condução do professor.

No sexto artigo, “Formação de professores numa perspectiva plurilíngue para


o acolhimento linguístico de estudantes migrantes/refugiados”, Carla Alessandra
Cursino destaca o valor da visão plural no acolhimento linguístico de imigrantes e
refugiados. Após análise de duas ações plurilíngues, a autora verifica que a chance
de mobilização da língua e cultura do imigrante em conjunto com aprendizagem do
português confere melhores resultados na aquisição da nova língua. Essa dinâmica
de sucesso só é possível a partir do desenvolvimento de habilidades plurilíngues por
parte do professor.

No sétimo artigo selecionado, “Ensino de português para refugiadas e


refugiados: pode entrar?”, Ana Letícia Carneiro de Oliveira analisa um livro didático
para refugiados. Como conclusão, observa pouco espaço para diálogo intercultural e
de acolhimento.

No oitavo artigo, “Formação de professores e ensino de Português como


Língua Adicional”, as autoras Juliana Bertucci Barbosa e Deolinda de Jesus Freire
abordam a questão da carência em formação de professores de língua portuguesa
como língua estrangeira e, por consequência, como língua de acolhimento, que seria
uma formação mais voltada a um público refugiado e fruto de migração forçada.

O nono artigo, “Do Global ao Local no Ensino de PLAc em Roraima: por uma
formação de histórias locais na Universidade Federal de Roraima”, de autoria de
Marcus Vinícius da Silva e Cora Elena Gonzalo Zambrano, foi muito útil na
compreensão do conceito de PLAc e sua diferenciação de língua portuguesa como
língua estrangeira ou língua adicional. Além disso, trouxe uma importante elucidação
nos conceitos de PLAc global e PLAc local, que serão oportunamente abordados
neste trabalho.
28

Os artigos trouxeram informações de diversas naturezas para o presente


trabalho, a saber respectivamente: 1) o docente voluntário tem um viés ativista ao
tentar suprir uma demanda da sociedade, porém a falta de formação desse voluntário
impede o desenvolvimento da atividade profissional com qualidade; 2) a reflexão
sobre língua e cultura na migração de mulheres, visto que elas sofrem mais
preconceito e violência pela questão de gênero e o impacto disso na aquisição da
língua de acolhimento; 3) o contexto de ensino de PLE (português como língua
estrangeira) no Brasil e metodologias de materiais didáticos existentes no mercado
editorial; 4) reflexão sobre práticas de acolhimento a refugiados; 5) conceito de língua
de acolhimento; 6) importância de abordagens de acolhimento plurais ao imigrante,
na qual a sua cultura e língua é valorizada e, por último, 7) análise de material didático,
8) formação de professores para o universo de PLAc e 9) conceito de PLAc global e
PLAc local como conhecimento importante para professores de língua portuguesa
para imigrantes forçados.
29

3 PORTUGUÊS: LÍNGUA ESTRANGEIRA, LÍNGUA DE ACOLHIMENTO E O


CONTEXTO DA ONG COMPASSIVA

Nesta seção, inicialmente, discorremos sobre o conceito do ensino da Língua


Portuguesa como Língua de Acolhimento (PLAc), procurando fazer relações com o
ensino de Português como língua estrangeira (PLE). Na sequência, apresentamos a
Organização Não Governamental (ONG) Associação Compassiva, descrevendo seu
contexto de atuação.

3.1 Diferença conceitual entre ensino da língua portuguesa como língua


estrangeira e como língua de acolhimento

Quando o assunto é aquisição de língua, há algumas expressões que carecem


de identificação para que não ocorra confusão conceitual. Quando lemos a expressão
língua materna (LM), somos direcionados à primeira língua social do indivíduo,
geralmente a aprendida em família no período do desenvolvimento infantil. Já a língua
estrangeira (LE) se refere à língua do outro. Ao observarmos o termo segunda língua
(L2), verificamos a conexão com a língua aprendida na escola ou língua oficial
(GROSSO, 2010).

Considerando os estudos de Barbosa e Freire (2017), não há cursos oferecidos


por universidades particulares ou do governo para formação de professores que
possam lecionar Português como língua estrangeira, embora haja demanda para isso,
especialmente nas regiões fronteiriças do país, que recebem estrangeiros. Nessa
linha, também se pode dizer que falta formação de professores com a compreensão
do Português como língua de acolhimento. Esse conceito vai além do domínio da
estrutura da língua em si por parte do professor, e é o que nos interessa no presente
estudo, já que ele extrapola as definições de língua citadas anteriormente e considera
que a língua vai além do falar, mas engloba o fazer (GROSSO, 2010). No contexto do
imigrante, a língua de acolhimento possibilita que ele exerça de fato a cidadania no
novo país. De acordo com o autor,

O conhecimento sociocultural e a competência sociolinguística são


importantes no desenvolvimento da competência comunicativa e servem
30

como base de debate e de diálogo para uma cidadania plena e consciente,


aspecto fundamental na língua de acolhimento. (GROSSO, 2010, p. 71)

A língua de acolhimento visa à ação, então se distancia da artificialidade e se


aproxima da vida real. Esse movimento acontece entre quem ensina e quem aprende
numa relação de aprendizagem mútua (GROSSO, 2010).

Outro aspecto importante a ser considerado, segundo Edleise Mendes (2004),


é a junção da língua com a cultura, pois a linguagem é um fator de comunicação entre
as pessoas e essa comunicação leva ao desenvolvimento da cultura. Para a autora,

É pensando no processo de ensino/aprendizagem de línguas como conjunto


de ações engajadas social, cultural e politicamente, e no indivíduo como
sujeito atuante e crítico, o qual está imerso em ambientes sociais, históricos
e políticos específicos, que· destacamos a importância de uma reflexão sobre
o que significa ensinar língua como cultura e sobre a eleição da
interculturalidade como modo privilegiado de criação e elaboração de novas
perspectivas para se ensinar e aprender línguas. (MENDES, 2004, p. 91)

Quando pensamos no ensino de língua portuguesa como língua de acolhimento


para adultos imigrantes, precisamos considerar que se trata de um público com uma
experiência de linguagem anterior. Logo, esse processo de aprendizagem não se
assemelha ao processo de alfabetização de uma criança, uma vez que esse público
já possui uma língua consolidada, o que leva à escolha de um método de ensino
voltado para o diálogo, a interculturalidade e praticidade (BARROS; ASSIS, 2018).

De acordo com os estudos de Silva e Zambrano (2021), e sua revisão


bibliográfica de autores como Walter D. Mignolo acerca de colonização, colonialidade
e perspectivas decoloniais e suas contribuições para o PLAc,

[...] a língua como sistema não é importante, visto que a fala e a escrita são
consideradas estratégias de manipulação na interação social. E para evitar a
manipulação mediante o ensino de PLAc, devemos deixar de lado a visão de
língua como estrutura e a concepção de que a língua portuguesa é o único
idioma nacional do Brasil. Assim, ao pensar o acolhimento por meio da língua,
é importante ressaltar que não é a língua que define quem é incluído ou não
como cidadão na sociedade brasileira. (SILVA; ZAMBRANO, 2021, p. 215)

Nesse sentido, no processo de acolhimento, deve-se levar em conta o aspecto


global da língua de acolhimento, no caso do presente estudo, a língua portuguesa
como língua oficial do Brasil. Mas para além disso, deve-se observar com atenção o
aspecto local dessa língua, já que se trata de um público específico, de maioria árabe,
concentrado na região central da cidade de São Paulo, em contato com uma
população bastante heterogênea, que sofre influência de culturas de outros países e
de outros estados da nação.
31

Esse é um contexto diferente, por exemplo, do ensino de PLAc em Roraima


(SILVA; ZAMBRANO, 2021, p. 216):

No caso de Roraima, uma história local permeada pela convivência de


diversas línguas: indígenas nacionais e transnacionais, europeias
(espanhola, inglesa e portuguesa) e de sinais (LIBRAS e LSV/Língua de
Sinais Venezuelana). Desse modo, o PLAc em Roraima deve ser
contextualizado levando em consideração a realidade do estado, não pode
mais seguir a ideologia do Estado-Nação no qual surgiu, isto é, no sistema
eurocêntrico, a partir do programa Portugal Acolhe, desenvolvido pelo
governo português.

A formação do professor nessa área deve contemplar o olhar para o PLAc


global culminando no PLAc local, que então considerará o perfil dos alunos
específicos, garantindo assim um processo intercultural de ensino e aprendizagem,
inaugurando um movimento democrático, no qual não existe a melhor ou pior cultura,
mas sim um ambiente onde todos os participantes, sejam os imigrantes, ou os que
acolhem, tenham suas culturas valorizadas, havendo espaço para troca e
enriquecimento de ambos os lados (SILVA; ZAMBRANO, 2021).

3.2 Contexto da Ong Associação Compassiva

A ONG “Compassiva”, localizada na cidade de São Paulo, tem como mote a


“Compaixão que Transforma”. Tive conhecimento dessa organização na igreja em que
congregava, por volta de 2015, pois há uma parceria firmada entre essas duas
instituições. Fiquei muito tocada com o trabalho desenvolvido pela Compassiva que,
entre outras atividades, se propõe a obedecer às orientações dadas por Deus em sua
palavra: “Não oprimam a viúva e o órfão, nem o estrangeiro e o necessitado. Nem
tramem maldades uns contra os outros” (Zc 7,10).

A Compassiva auxilia crianças, adolescentes, mulheres e refugiados em


situação de fragilidade na capital do estado de São Paulo. Localizada
intencionalmente na região central da cidade para facilidade de acesso, promove
atividades diversas nas áreas de esporte, artes e cultura.

Em contato com a ONG, fui acolhida pela coordenadora Debora Blair,


coordenadora do Programa Levando Ajuda ao Refugiado (LAR) que, em entrevista
realizada no dia 28 de outubro de 2021, nos forneceu muitas informações importantes
sobre a ONG. Ela foi a coordenadora do Programa por quatro anos.
32

Durante a entrevista, Debora Blair ressaltou que há uma busca genuína por
relacionamentos saudáveis que promovam o acolhimento do mais vulnerável,
intenção que permeia todas as ações desenvolvidas na ONG. Existe a compreensão
da complexidade da realidade do público-alvo da instituição, compreensão esta que
cria oportunidades reais de transformação na vida dos refugiados/imigrantes, visando
ao resgate da dignidade, dos valores humanos, da esperança e dos sonhos.

A Compassiva ganhou o Selo de Direitos Humanos e Diversidade da Prefeitura


Municipal de São Paulo em 2020, ao se destacar em suas práticas humanitárias de
promoção da empregabilidade, gestão de pessoas, cultura organizacional,
investimento social e posicionamento, especificamente no programa LAR.

A instituição começou suas atividades esportivas, culturais e artísticas em


1998, promovendo ações para crianças moradoras de rua, pessoas viciadas em
drogas, travestis e famílias com dificuldades na área central da capital, nos bairros do
Glicério, Luz, República, Vale do Anhangabaú, região da “Cracolândia” e Praça da Sé.
Somente em 2010 passou a se chamar oficialmente “Compassiva” e, em 2014, passou
a existir juridicamente como “Associação Compassiva”.

O programa LAR, atualmente coordenado por Matheus Nakamura, foi iniciado


para suprir a demanda de refugiados sírios na cidade em seu processo de
reconstrução de história de vida no Brasil. Atualmente o LAR oferece cinco tipos de
serviços.

O primeiro é o curso gratuito de língua portuguesa, que conta com duas


coordenadoras voluntárias: uma no período matutino e outra, no noturno. Ambas
cuidam de oito turmas. As aulas da manhã acontecem às terças e quintas, e trata-se
de uma turma de mulheres árabes. As aulas noturnas ocorrem às segundas, quartas
e sextas; essas turmas são mistas e compostas por árabes e latinos. Debora relatou
que os educadores são voluntários e que não precisam ter formação na área de
educação para ministrarem aulas para os refugiados. Há uma entrevista inicial por
meio da qual se verifica o perfil do candidato a educador. Uma vez aceito, o educador
passa por um treinamento e um estágio, no qual assiste a três aulas de educadores
já em atuação.

O segundo serviço oferecido é a revalidação de diplomas e assistência jurídica,


em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
33

A ONG conta com a ajuda de dois advogados e dois assistentes que auxiliam neste
setor.

O terceiro serviço é o de empregabilidade, que ajuda os refugiados e imigrantes


a serem inseridos no mercado de trabalho.

O quarto serviço é nomeado como “Projeto Amparo”. Ele visa ao atendimento


de quatro necessidades básicas: saúde, alimentação, moradia e integração social.

O quinto serviço é relacionado às crianças, especialmente aos filhos de


refugiados que cursam aulas de língua portuguesa. O objetivo é proporcionar
atividades lúdicas e que estimulem as crianças a se desenvolverem na nova cultura
em que estão inseridas.

Quando o educador voluntário é aceito para contribuir com a ONG, ele assina
três documentos: um contrato de trabalho voluntário, uma autorização de uso de
imagem e de voz e uma declaração de compromisso à proteção de crianças e
adolescentes.

Em seguida passa por um treinamento inicial, no qual é informado sobre essas


cinco frentes de trabalho em que a ONG atua, além de receber informações sobre o
tema refúgio, o cenário mundial atual da migração, vocabulário relacionado ao
assunto, bem como a tratativa não aprofundada dos impactos psicológicos do refúgio,
que pode provocar inúmeros diagnósticos de patologias de saúde mental, como
Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT), depressão, ansiedade, ataques de
pânico, luto, síndrome de Ulisses, choque cultural, entre outros. Este treinamento
inicial é feito em geral em um encontro online, de duração média de três horas. É
ministrado pelo coordenador do programa LAR, que atualmente também é um
voluntário. Ainda como parte deste treinamento inicial, em um segundo momento, o
voluntário é treinado em caráter pedagógico, no qual entende a estrutura e duração
do curso, material utilizado, perfil do bom professor para refugiados e suas
responsabilidades, cuidados a serem tomados, elaboração de um plano de aulas e
motivações a serem buscadas para as aulas. Esta etapa também é online e tem
duração média de duas horas.

Além disso, nesse treinamento inicial, o voluntário tem acesso a um panorama


do Islã, visto que a maioria dos refugiados atendidos na Compassiva é muçulmana.
Verificamos aqui o cuidado da ONG em preparar os voluntários para o público
34

específico atendido, cuidado este que vai ao encontro do conceito de PLAc local
apresentado em nosso referencial teórico (SILVA; ZAMBRANO, 2021). Essa fase do
treinamento é necessária para que os futuros educadores entendam a realidade do
imigrante e evitem na medida do possível conflitos de ordem cultural que possam
surgir por falta de conhecimento. Nessa etapa os voluntários aprendem sobre quem
foi Mohammad (Maomé), como nasceu o Islã, quais são os cinco pilares dessa
religião, a importância de Meca e da Medina, o livro sagrado do Alcorão, a diferença
da cosmovisão islâmica e cristã e outros aspectos culturais relevantes para que a aula
corra bem, além de algumas regras, como vestimentas apropriadas e o tratamento
que se deve dar a homens e mulheres. Os voluntários também são orientados a não
chamar os estudantes de “refugiados”, mas, sim, de alunos, e evitar temas
relacionados à guerra e violência etc.

Os voluntários então recebem um documento chamado “Manual do Voluntário


– LAR – Levando Ajuda ao Refugiado” (COMPASSIVA, 2019). Observamos na
introdução desse material o seguinte texto:

A apostila de voluntariado tem como objetivo proporcionar a reflexão sobre a


causa do refúgio e suas implicações com o cuidado emocional. Além de
mostrar como o voluntário pode ter ferramentas teóricas e práticas para, junto
à Compassiva, proporcionar um ambiente seguro e de acolhimento aos
refugiados(as).
Desta forma, para uma melhor compreensão, no primeiro momento, serão
apresentados os aspectos sociológicos da crise migratória no âmbito mundial,
trazendo as nomenclaturas referentes ao tema e as situações nos países em
que este contingente é maior, assim como meios de mostrar a crise migratória
como uma crise humanitária. Em continuidade, o primeiro assunto, fruto de
uma pesquisa científica, foca nas dificuldades de adaptação cultural do
migrante involuntário e a relação da Psicologia junto a projetos
socioeducativos.
No segundo momento, de maneira objetiva, é apresentada a Política de
Proteção à Criança e Adolescente, assim como o código de conduta e
orientações de comportamento. (COMPASSIVA, 2019, p. 3)

Nesse manual, o voluntário pode ter alguns conceitos sobre refúgio


desmistificados. Por exemplo, nele existe a informação de que:

[...] A maioria dos países que recebem refugiados são subdesenvolvidos no


Oriente Médio. Como a mídia massifica as informações sobre refugiados com
a chegada dos mesmos na Europa, de modo generalizado a imagem que o
mundo tem é que a crise está na Europa, sendo que na realidade está no
Oriente Médio. Os países com o maior número de refugiados são Turquia,
Paquistão e Líbano. Os países os quais mais possuem deslocados internos
e consequentemente refugiados são a Síria, Afeganistão, Iraque, Palestina
(sendo estes apátridas), Colômbia e Sudão do Sul. (COMPASSIVA, 2019, p.
5)
35

É também abordada a questão da integração saudável do imigrante, na qual a


sua cultura deve ser validada e aceita, o que tende a criar espaço para
relacionamentos baseados em confiança e respeito entre eles e os membros da
sociedade que os acolhe. Há um impacto muito negativo quando não há o acolhimento
da cultura do imigrante, não ocorrendo de fato o multiculturalismo, condição ideal em
que as duas culturas se encontram, se fundem, sem perder suas origens e
peculiaridades, mas sobretudo, dando origem a um contexto rico de interações e
experiências. O grupo imigrante, quando não acolhido apropriadamente, pode ser
excluído, entrando em um ciclo de luto difícil de ser superado, no qual se fecha com
outros emigrados, idealizando o próprio país de origem.

Parte do manual é dedicada às consequências biopsicossociais da migração


forçada e a ação do psicólogo na tarefa de minimizar os traumas decorrentes desse
deslocamento.

O material é finalizado com uma abordagem sobre aulas de língua portuguesa


ministradas na ONG, que é o ponto chave de acolhimento dos refugiados:

Levando em consideração todo o contexto social e psicológico da condição


do refugiado no Brasil estudado nesta apostila, a ministração das aulas é
orientada de tal forma que sejam levados em conta os diversos aspectos e
esferas do aprendiz em questão, tais como: barreiras linguísticas (diferenças
entre as estruturas da Língua Portuguesa e da língua materna de cada aluno),
bagagens culturais, história de vida, anseios, expectativas, necessidades
específicas com o idioma de acordo com cada classe social. Enfim, o
indivíduo é considerado como um todo na sala de aula, além da construção
comunitária formada em cada turma. Todos esses elementos, juntos,
fornecem matéria-prima para que o ensino da Língua Portuguesa na
Compassiva seja eficiente e humanizado. (COMPASSIVA, 2019, p. 23)

Depois de se vincular formalmente à ONG, receber treinamento sobre os


campos de atuação, sobre a parte pedagógica, ler o Manual do Voluntário, realizar
estágio de observação de três aulas ministradas por professores já ativos, o educador
voluntário começa então a ministrar as aulas, utilizando o material didático Muito
Prazer, da Lexikos Editora, escrito por Glaucia Roberta Rocha Fernandes, Telma de
Lurdes São Bento Ferreira e Vera Lúcia Ramos, selecionado pela instituição como
norteador das ações pedagógicas. Trata-se de um material desenhado para os níveis
básico e intermediário, divididos em três volumes, acompanhados de um livro de
exercícios. O livro traz informações do Brasil e sua cultura. Além dele, o professor
complementa as aulas com atividades extras a seu critério. Como cada turma é
assistida por três professores, a coordenação mantém um grupo de WhatsApp para
36

que os colaboradores troquem informações sobre o andamento das atividades, e para


que também a coordenadora conduza os trabalhos, passe orientações e
comunicados. De tempos em tempos treinamentos são oferecidos para os educadores
voluntários e, apesar de a maioria dos voluntários não ser da área da educação, há
um acompanhamento da coordenação que confere unidade ao trabalho realizado.

O Manual do Voluntário revela a identidade da organização e da visão existente


sobre o perfil do voluntário, perfil este ilustrado no seguinte trecho:

[...] Galina et al. (2017) ao citar Jensen et al. relatam que o trabalho com
refugiados se enquadra num mandato maior de competência cultural, onde
se enfatiza a necessidade dos praticantes estarem conscientes de suas
próprias crenças e valores culturais, ter conhecimento da cultura do cliente e
possuir as habilidades para intervir de forma clinicamente significativa e
apropriada. O conhecimento cultural relevante pode ser acessado através de
literaturas cognatas, como a antropologia cultural, bem como em sites e
resultados específicos de refugiados que fornecem informações úteis para
profissionais. (COMPASSIVA, 2019, p. 12)

Esse processo a que é submetido o educador voluntário o prepara para o início


de um trabalho bastante dinâmico de ministração de aulas, sendo que as
coordenadoras seguem no acompanhamento das aulas.
37

4 DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DE PROFESSORES AO


DESENVOLVIMENTO DE EDUCADORES VOLUNTÁRIOS

Nesta seção, apresentamos o conceito de formação docente, procurando


ressaltar o eixo teoria-prática, as crenças dos professores e a formação continuada
do professor e sua expertise. É importante destacar que, como estamos tratando de
uma ONG que angaria voluntários não necessariamente da área da educação e com
formação para professores, optamos por nomeá-los no presente trabalho como
“educadores voluntários”.

De acordo com Lopez (2020), esse termo “voluntário” remete a um contexto


assistencialista, muitas vezes enxergado pelo senso comum como uma ação vinda de
pessoas caridosas e que carregam uma missão, e não de profissionais com uma área
de atuação específica para tal. Dentro desse entendimento, verificamos a abertura
para a ocorrência da seguinte reflexão:

De certo modo, isso acaba autorizando um lugar de prática do voluntariado


que, por consequência, retira do Estado brasileiro a sua responsabilidade de
promover políticas, dentre elas, políticas linguísticas de ensino da língua
portuguesa para os migrantes de crise. (LOPEZ, 2020, p. 171)

Quando temos essa perspectiva do educador voluntário, mesmo de forma


involuntária, acabamos por considerar a posição de extrema inferioridade do
imigrante, que precisa dessa atitude caridosa para se integrar à nova sociedade para
a qual se mudou (LOPEZ, 2016; 2018). Passamos a enxergá-lo como um necessitado
e desconsideramos que, na verdade, esse cidadão tem direitos que devem ser
respeitados. É importante que, no processo de acolhimento do imigrante, em especial
no tocante ao ensino de língua portuguesa, a cultura do país receptor seja
apresentada, mas não com conotação de superioridade e que, em paralelo, a própria
cultura e história de vida do aluno sejam valorizadas. É importante também que o
professor tenha seu papel profissional reconhecido e valorizado.

4.1 Desenvolvimento profissional docente

O professor tem um papel fundamental no caminho que será trilhado pelos


alunos em termos de aprendizagem. Para isso, sabe-se que quanto mais bem
38

preparado está esse profissional, melhores serão os resultados obtidos por seus
alunos. É preciso muito aprendizado para a desafiadora tarefa de ensinar (MARCELO,
2009).

Assim como os alunos precisam aprender, o professor também carece de


aprender a ensinar, e esse processo se prolonga por toda a sua trajetória profissional,
isto é, não ocorre em um momento específico, pontual, estanque na história do
docente, mas ao longo de sua atuação dia a dia, como parte da construção de sua
identidade profissional. Esse processo é complexo, individual em alguns momentos,
e coletivo, em outros. A escola é o “espaço mágico” onde tanto o desenvolvimento
dos alunos quanto dos professores acontece (MARCELO, 2009, p. 7).

De acordo com Marcelo (2009), o processo de desenvolvimento profissional do


professor compreende três etapas principais: a formação inicial, a inserção na
profissão propriamente dita e a formação continuada, que se dá ao longo de toda a
trajetória docente. Todas essas etapas são muito importantes e poderiam estar mais
integradas, garantindo um processo de desenvolvimento profissional mais coerente e
de qualidade.

É importante salientar que a mera “passagem” por essas etapas não garante
que o professor se transforme em um perito da sua área, já que para que essa
expertise de fato seja alcançada há de se contar com reflexão sobre todo o processo
(MARCELO, 2009).

O desenvolvimento profissional docente implica, inevitavelmente, mudanças, e


para que haja mudanças, algumas crenças devem ser confrontadas. A alteração de
crenças leva tempo e só acontece de fato quando o profissional comprova em sua
prática a eficácia da nova maneira de agir e pensar sobre uma prática já cristalizada
(MARCELO, 2009).

Existem três esferas de conhecimento que fazem parte do desenvolvimento


profissional do professor: a primeira é o conhecimento pedagógico geral, que tem
relação direta com a gestão de sala de aula e questões mais filosóficas relacionadas
à educação; a segunda é o conhecimento da disciplina ministrada, o que legitima a
atuação do professor, pois não se ensina o que não se sabe; e, por último, o
conhecimento pedagógico do conteúdo, que ocupa o espaço intermediário entre as
39

duas primeiras esferas; é a área de domínio exclusiva do professor, e que quanto mais
rica, mais torna o profissional um perito (MARCELO, 2009).

Parece haver uma falta de formação para professores de língua portuguesa


como língua de acolhimento no contexto brasileiro, e segundo Amado (2013) muitos
professores, apesar da disponibilidade, têm apenas a habilidade de falar a língua
adicional a que se propõem ensinar. Sua prática está pautada em “métodos intuitivos
e muito autodidatismo”.

4.2 Relação da teoria e da prática na ação docente

De acordo com Shulman (2014), a prática pela prática não é suficiente para que
o professor aprenda o seu ofício. É necessário combinar pesquisa, conhecimento dos
conteúdos, discussão, documentação e reflexão sobre sua prática. Para o autor,

Assim, chegamos ao novo começo, à expectativa de que, por meio de atos


de ensino “pensados” e “lógicos”, o professor atinja uma nova compreensão,
tanto dos propósitos e dos conteúdos a serem ensinados como dos alunos e
dos próprios processos didáticos. (SHULMAN, 2014, p. 222)

Há uma tendência, inclusive verificada nos próprios documentos oficiais que


regem a educação, da valorização exclusiva da prática como meio de formar os
professores em detrimento da teoria, que fica em segundo plano.

Outro assunto de grande importância é o conhecimento pedagógico do


conteúdo, que é a área de conhecimento específica dos docentes (SHULMAN, 2014),
que exige dos professores um processo contínuo de formação, que envolve tanto
teoria quanto prática. Trata-se de um processo que abrange uma estrutura complexa
de fatores, tais como: um trabalho coletivo que possibilite a percepção de sua prática,
concepções sobre o ensino, aprendizagem e crianças, entendimento de como utilizar
essas concepções, intencionalidade refletida em suas práticas e recursos que as
viabilizem (DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2019, p. 329).

Tendo em vista as considerações de Nóvoa (2007, p. 6),

A pedagogia tradicional era baseada nos conhecimentos e na transmissão


dos conhecimentos. A grande ruptura provocada pela pedagogia moderna foi
colocar os alunos no centro do sistema. Mas a pedagogia moderna precisa
ser reinventada na sociedade contemporânea. Não se trata de centrar na
escola nem nos conhecimentos, como advogava a pedagogia tradicional,
nem nos alunos, como advogava a pedagogia moderna, mas, sim, na
40

aprendizagem. É evidente que a aprendizagem implica alunos. A


aprendizagem implica uma pessoa, um aluno concreto, implica o seu
desenvolvimento, o seu bem-estar. Mas uma coisa é dizer que nosso objetivo
está centrado no aluno e outra coisa na aprendizagem do aluno. E definirmos
isso como nossa prioridade no trabalho dentro das escolas.

E para levar adiante a pedagogia centrada na aprendizagem, faz-se necessário


o equilíbrio entre prática e teoria na ação docente.

No final de 2020 foi lançado, em complementação ao Currículo da Cidade, o


Caderno Povos Migrantes – Orientações Pedagógicas. O trecho abaixo explicita os
objetivos do documento:

[...] Ao oferecer subsídios teóricos e revelar experiências exitosas


implementadas no trabalho cotidiano com os estudantes migrantes temos a
intenção de possibilitar a reflexão sobre as práticas educacionais realizadas
na Rede, nos mais diversos momentos da vida escolar – desde a matrícula
aos espaços de vivências e salas de aula, desde a Educação Infantil ao
Ensino Médio. (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 2021, p. 5)

Verificou-se justamente que, embora na introdução exista uma preocupação


com subsídios teóricos, o texto leva o leitor às questões práticas e de ordem
histórico/cultural envolvidas no tema migração.

Outro aspecto interessante de se pesquisar junto aos professores de alunos


migrantes é o discernimento sobre os conceitos de: a) conhecimento para a prática –
pedagogia, utilização do conhecimento adquirido formalmente, b) conhecimento na
prática – experiência do dia a dia e c) conhecimento da prática – o professor
assumindo o desenvolvimento pedagógico do conteúdo e refletindo sobre sua prática
(MARCELO, 2009).

4.3 As crenças dos professores

Existem as crenças que os professores carregam por conta de suas


experiências anteriores, inclusive como alunos, crenças essas que influenciam
diretamente em suas práticas e são de difícil modificação (MARCELO; VAILLANT,
2012).

Uma vez que as suas próprias crenças sejam reconhecidas e modificadas,


aumentam as chances de ressignificação de suas práticas. Esse movimento requer
41

do profissional maior flexibilidade e disponibilidade para a reflexão, a fim que de


melhorias em sua ação educativa sejam implementadas.

Há maneiras de se examinar as crenças do professor em formação. Uma delas


é o do relato da História de Vida Profissional (HVP), por meio do qual o professor, ao
escrever sua experiência, se distancia dela e cria uma possibilidade de um olhar
diferenciado para sua própria experiência. Outra forma de análise de crenças é por
meio de práticas reflexivas, tanto durante a ação docente quanto sobre a ação
docente. Esse movimento reflexivo ajuda o professor a desvendar os conhecimentos
práticos já consolidados como hábitos em sua vida profissional (MARCELO;
VAILLANT, 2012).

Seria muito enriquecedor entender se os professores que lecionam para


imigrantes carregam crenças específicas, e em que medida elas afetam sua ação
docente.

4.4 Formação continuada do professor e sua expertise

A formação continuada do professor é um tema de grande complexidade, mas


que, quando considerado e enfrentado, impacta diretamente na melhoria da qualidade
da educação. Para Marcelo (2009, p. 19),

[...] seja qual for a orientação que se adote, é necessário que se compreenda
que a profissão docente e o seu desenvolvimento constituem um elemento
fundamental e crucial para assegurar a qualidade da aprendizagem dos
alunos.

Para que o professor desenvolva sua expertise, ele precisa aprimorar


continuamente seu conhecimento de conteúdo pedagógico, que é mais do que o
necessário conhecimento pedagógico e de conteúdo, é na verdade o conhecimento
que conecta essas duas esferas (SHULMAN, 2014).

Os estudos mostram que os professores eficientes têm características em


comum, como por exemplo a clareza das suas expectativas em relação aos alunos,
exibição dos trabalhos realizados pelos alunos, sua movimentação contínua em sala
de aula, organização dinâmica do layout da sala, especialmente para trabalho em
pequenos grupos, atmosfera de diálogo e questionamento durante as atividades, e
planejamento primoroso de aulas (DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2019).
42

Entender o nível de expertise dos professores envolvidos com a educação de


imigrantes pode ser uma ação relevante na formação continuada desses docentes,
pois pode oferecer subsídios para uma tomada de decisões coerentes com suas
necessidades.
43

5 PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA

Nessa seção, apresentamos a abordagem utilizada em termos de metodologia


no presente trabalho. Em um primeiro momento trataremos do método e dos
procedimentos metodológicos e, no segundo, apresentaremos os entrevistados.

Por se tratar de uma pesquisa na área da educação, o caminho metodológico


não se fez de forma tão analítica, pois as variáveis envolvidas no estudo são de difícil
isolamento (LÜDKE; ANDRÉ, 2013). Segundo as autoras,

Justamente para responder às questões propostas pelos atuais desafios da


pesquisa educacional, começaram a surgir métodos de investigação e
abordagens diferentes daqueles empregados tradicionalmente. As questões
novas vinham, por um lado, de uma curiosidade investigativa despertada por
problemas revelados pela prática educacional. Por outro lado, elas foram
fortemente influenciadas por uma nova atitude de pesquisa, que coloca o
pesquisador no meio da cena investigada, participando dela e tomando
partido na trama da peça. (LÜDKE; ANDRÉ, 2013, p. 8)

Trata-se de uma pesquisa qualitativa na área da educação, e, por isso mesmo,


apresenta características próprias de sua condição, como, por exemplo, o foco na
obtenção de dados descritivos que são coletados na relação direta e pessoal do
pesquisador com o seu objeto de pesquisa, no qual a perspectiva dos participantes é
fundamental e o processo é mais importante que o produto (LÜDKE; ANDRÉ, 2013).

É importante ressaltar que, na pesquisa qualitativa,

O fato de não existirem hipóteses ou questões específicas formuladas a priori


não implica a inexistência de um quadro teórico que oriente a coleta e a
análise dos dados. O desenvolvimento do estudo assemelha-se a um funil:
no início há questões ou focos de interesse muito amplos, que no final se
tornam mais diretos e específicos. O pesquisador vai precisando melhor
esses focos à medida que o estudo se desenvolve (LÜDKE; ANDRÉ, 2013,
p. 14).

Entendemos que a melhor abordagem para o presente trabalho seja a de um


estudo de caso pois,

O estudo de caso é o estudo de um caso, seja ele simples e específico, como


o de uma professora competente de uma escola pública, ou complexo e
abstrato, como o das classes de alfabetização (CA) ou o do ensino noturno.
O caso é sempre bem delimitado, devendo ter seus contornos claramente
definidos no desenrolar do estudo (LÜDKE; ANDRÉ, 2013, p. 20).

5.1 O método e os procedimentos metodológicos


44

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa caracterizado como estudo de


caso, que contará com os seguintes procedimentos metodológicos: revisão
bibliográfica (pesquisa correlatas), análise de documentos, e entrevista.

Assim, como parte do caminho metodológico, me debrucei sobre os estudos


realizados por outros pesquisadores, o que propiciou uma revisão bibliográfica,
contribuindo para o referencial teórico da pesquisa. Segundo Lozada e Nunes (2019,
p. 102),

Toda pesquisa científica demanda que o pesquisador se dedique à leitura


daquilo que outros autores já produziram sobre o assunto que pretende tratar
em seu estudo. Ou seja, uma pesquisa requer trabalho de leitura, o que
corresponde a uma demanda integrante já dos primeiros estágios da
pesquisa científica. Essa tarefa permite ao pesquisador formar a base teórica
necessária para confirmar ou refutar os argumentos existentes e, com base
nisso, escrever suas próprias conclusões a respeito, gerando o produto do
estudo realizado. Esse é o principal papel desempenhado pela
fundamentação teórica.

No tocante à análise da documentação, segundo o teórico Holsti (1969),


existem pelos menos duas situações que justificam o uso desta técnica nos estudos
acadêmicos. E uma delas vai ao encontro da necessidade da presente pesquisa,
conforme verificado no trecho:

Quando se pretende ratificar e validar informações obtidas por outras técnicas


de coleta, como, por exemplo, a entrevista, o questionário ou a observação.
Quando duas ou mais abordagens do mesmo problema produzem resultados
similares, nossa confiança em que os resultados reflitam mais o fenômeno
em que estamos interessados do que os métodos que usamos aumenta”
(HOLSTI, 1969, p. 17).

Entendemos por documentação “quaisquer materiais escritos que possam ser


usados como fonte de informação sobre o comportamento humano” (PHILLIPS, 1974,
p. 187).

Neste sentido optamos por analisar o Manual do Voluntário (COMPASSIVA,


2019), material concedido a todos que passam a trabalhar na organização. Esse
manual foi bastante útil no sentido de nos ajudar a entender a identidade da ONG,
além de servir como norteador para o voluntário.

Com relação à entrevista, procedimento muito utilizado em trabalhos


acadêmicos nas ciências sociais, essa técnica oferece a oportunidade de interagirmos
com os participantes da pesquisa, sem a ideia de hierarquia, pois ambos os lados
(pesquisador e pesquisado) se igualam em um processo de troca, especialmente
quando a estrutura das perguntas não é rígida (LÜDKE; ANDRÉ, 2013).
45

Os educadores foram convidados a participar por link do formulário on-line a


partir de contato prévio com a ONG. Eles foram informados sobre os objetivos da
pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
(Apêndice 1). A instituição também foi convidada a fornecer o TCLE (Apêndice 2). A
própria coordenadora da ONG foi quem selecionou os educadores voluntários dentro
do seu quadro de colaboradores, priorizando os mais engajados com o trabalho
desenvolvido.

A entrevista estava dividida em duas partes: na primeira constavam perguntas


destinadas à tentativa de traçar um possível perfil desses educadores, com
informações pessoais (idade, sexo) e profissionais (formação, tempo de experiência
na docência, e para qual turma leciona atualmente). Na segunda parte, as perguntas
foram abertas e voltadas para o tema de formação dos professores (Apêndice 3). No
Apêndice 4 consta a transcrição das entrevistas que foram feitas com os sete
educadores voluntários, sendo quatro mulheres e três homens. Para preservar a
identidade dos entrevistados, optamos por substituir os nomes reais dos participantes
por nomes de países dos quais a Compassiva recebe refugiados. No Quadro 3
constam as datas das entrevistas.

Quadro 3 – Datas das entrevistas realizadas com os educadores voluntários


Data da entrevista Pseudônimo do(a) entrevistado(a) Gênero

23/03/2022 Afeganistão M

24/03/2002 Síria F

24/03/2022 Venezuela F

25/03/2022 Marrocos M

30/03/2002 Iraque M

30/03/2002 Arábia Saudita F

06/04/2022 Palestina F
Fonte: Elaborado pela própria autora

As entrevistas ocorreram entre março e abril de 2022, foram feitas de forma


online, foram gravadas e duraram em média quarenta minutos, sendo que o
questionário foi enviado previamente para os voluntários para que pudessem refletir
sobre o assunto.
46

Inicialmente concluímos que uma boa amostra de educadores a serem


entrevistados seria um grupo de dez participantes. Fizemos essa solicitação junto à
coordenação do programa LAR, que após contato com os voluntários, conseguiu a
adesão dos sete que participaram da pesquisa.

5.2 Os participantes da pesquisa: quem são?

No dia 23 de março a entrevista foi realizada com o educador Afeganistão, de


49 anos, e uma vasta formação no ensino superior: Teologia, Logística, Letras
(incompleto) e Jornalismo. Além disso, cursou pós-graduação em Gestão de Pessoas.
Leciona há oito anos e, atualmente, atua como instrutor de formação profissional. Seu
grupo de alunos na Compassiva é composto por egípcios, sírios, iranianos e
palestinos.

A educadora Síria, de 46 anos, foi entrevistada em 24 de março. Formada em


Marketing, teve a oportunidade de cursar MBA em Inteligência do Mercado e pós-
graduação em Administração de Negócios. Leciona há um ano e anteriormente atuou
por quatro anos na área administrativa da Compassiva como voluntária. Seu grupo é
composto por alunos avançados, que já se comunicam bem na língua portuguesa.

A educadora Venezuela, de 68 anos, nos concedeu a entrevista também em


24 de março. Cursou Direito e pós-graduação em Direito Empresarial. Ensina
português para refugiados há sete anos e, profissionalmente, atua como advogada.
Sua turma de alunos é mista, avançada e, muitas vezes, com casais que trazem os
filhos. A maioria é síria e de origem árabe. Ela leciona às sextas-feiras e divide a turma
com a educadora Síria, que leciona às segundas-feiras.

O educador Marrocos, de 32 anos, concedeu a entrevista em 25 de março.


Sua formação é em Administração de Empresas com ênfase em Comércio Exterior.
Cursou MBA em Concentração, Empreendedorismo e Inovação na FGV e pós-
graduação em Fitoterapia Clínica. Leciona há três anos, e trabalha na área de
fitoterápicos. Sua turma na Compassiva é composta por afegãos, maioria de
fotógrafos. São cinco mulheres e dois homens.

No dia 30 de março o educador Iraque, de 39 anos, foi entrevistado. Formado


em Educação Física (licenciatura plena) e Teologia, há dois anos leciona na
47

Compassiva, mas está envolvido com ministração de aulas diversas há 23 anos.


Normalmente leciona para o nível básico, inclusive sendo o seu grupo atual formado
por de pessoas de perfil simples, sem formação universitária. A maioria é de sírios e
egípcios.

A educadora Arábia Saudita, de 31 anos, também foi entrevistada em 30 de


março. Formada em Biomedicina, leciona há sete anos, e atualmente trabalha em um
hospital. Suas aulas na ONG são no período matutino, sendo o grupo formado
somente por mulheres de maioria síria. Só há uma turca.

A última entrevistada foi a educadora Palestina, de 26 anos, em 6 de abril. Ela


cursou Educomunicação e leciona há quatro anos no total, e há quase um ano na
Compassiva.

Como verificado na descrição dos educadores entrevistados, eles têm


formações muito diversas e tempo de experiência distintos, formando uma equipe de
trabalho com um perfil bastante heterogêneo, inclusive em termos de idade.

A seguir, apresentamos os resultados das entrevistas que foram feitas com


cada um dos participantes da pesquisa.
48

6 BASE DE CONHECIMENTO DOS EDUCADORES VOLUNTÁRIOS

Nessa seção, apresentamos os dados gerados nas entrevistas, que foram


divididos em duas partes: na primeira abordamos perguntas que nos ajudaram na
obtenção do perfil dos educadores de uma forma geral. Na segunda, elencamos onze
questões, e cada uma delas nos ajudou na criação dos eixos de análise que revelaram
uma intersecção com a base teórica utilizada na pesquisa.

Após leituras recorrentes das respostas dadas pelos entrevistados,


estabelecemos os seguintes eixos de análise: 1) a escolha profissional, o papel do
educador voluntário e as concepções de acolhimento; 2) a base de conhecimento,
aprendizagem da docência e a desconstrução das crenças e 3) a proposta
institucional de formação de educadores de língua portuguesa para
refugiados/imigrantes.

6.1. A escolha profissional, o papel do educador voluntário e as concepções de


acolhimento

Inicialmente, solicitamos aos participantes que falassem sobre os motivos pelos


quais escolheram atuar na ONG Compassiva como educadores. A maioria dos
educadores demonstrou profundo interesse em ajudar. Outro ponto de apoio para este
eixo é que há interesse pelo contato com culturas diferentes.

O educador Afeganistão citou que sua experiência pessoal fora do Brasil o fez
perceber a importância de ajudar o imigrante no que diz respeito ao aprendizado da
língua. A educadora Síria relatou seu interesse em ajudar o refugiado a aprender a
língua portuguesa para que viva com mais qualidade no Brasil e que tenha maiores
chances de encontrar trabalho. Marrocos verbalizou o desejo de compartilhar o
conhecimento de língua portuguesa com as pessoas em situação de refúgio. Iraque
informou que, primeiramente, deve obediência ao amor de Deus, que o faz querer
ajudar as pessoas, e seu objetivo é tentar levar esse amor através da educação; em
segundo lugar, ajudar os refugiados a terem melhores condições no Brasil. Arábia
Saudita deseja ajudar, especialmente depois da chegada maciça de sírios no Brasil
49

em 2014. Palestina expressou sua vontade de se aproximar de culturas, línguas e


costumes muito diferentes.

A seguir, apresentamos alguns trechos das respostas dadas:

Eu acredito que pela minha própria experiência, tendo ido morar na Bolívia,
sem dominar o idioma e ter aprendido ao longo do tempo, também há outra
experiência na Nova Zelândia, porque mesmo eu já tendo uma base de inglês
é completamente diferente quando você vai morar num país que fala inglês e
no caso da Nova Zelândia, um inglês um pouco diferenciado daquele que a
gente está acostumado na escola. Então, é mais ou menos português do
Brasil e português de Portugal. Então, assim, eu passei por muitas
dificuldades, tinham situações engraçadas, claro, mas era muito desafiador,
às vezes frustrante também e nas minhas duas experiências eu não tive uma
ajuda como essa da Compassiva. Eu tinha que aprender mesmo na
convivência, no dia a dia, pessoas me ajudavam que não eram professores,
eram as pessoas com quem eu estava convivendo, as famílias que estavam
me recebendo e quando eu voltei para o Brasil em 2015, eu queria de alguma
forma ajudar estrangeiros aqui. E foi aí que eu conheci a Compassiva.
(Afeganistão).

Primeiro foi o contato com os refugiados. Porque a gente ajuda o refugiado


não só com a aula. A gente ajuda o refugiado também com as necessidades
básicas que possam acontecer. Nós acabamos sendo uma ponte do
refugiado com a coordenação da Compassiva, porque a gente tem maior
contato com eles. Então isso também me atraiu muito para dar a aula. Porque
o meu o meu principal objetivo no início era até fazer uma missão transcultural
em outro país. Antes de ir para a Compassiva, por isso que eu fiz o curso da
perspectiva. Aí entrando na Compassiva eu fiz essa etapa de ir para área
administrativa, e claro, veio a pandemia, eu quis continuar o trabalho e por
esse motivo de contato mais estreito com o refugiado para ajudá-lo melhor
então me motivou para dar a aula para eles. Essa motivação deles poderem
utilizar o português como ferramenta para conseguirem emprego. Então, é
mais nessa questão. Nessa missão social de imersão do refugiado, da ajuda
financeira, até para se recolocar. Isso me motivou muito a dar a dar aula. Foi
isso. (Síria)

Para ser sincera eu tinha bastante receio, por não conhecer mesmo assim
muitos refugiados próximos de mim, eu não tinha ainda contato com essas
pessoas; imigrantes sim, mas refugiados ainda não tinha tido contato
próximo. Então eu estava um pouco insegura. Eu gostaria de me aproximar,
sempre me motivou estar próxima dessas pessoas e conhecer outras
culturas, outros costumes. Então, acho que eu diria que minha proximidade
com a Compassiva e com, enfim, a causa do refúgio e da migração, imigração
de um modo geral, acho que foi um pouco essa. E aí a docência veio como
uma grata surpresa mesmo, de poder dar aulas de português e aí a grata
surpresa de enfim poder descobrir que a gente tem muito a compartilhar com
eles mesmo, eu não sendo formada em Letras sendo professora de
português. Então acho que foi um pouco isso, se eu fosse responder de modo
curto, seria conhecer ali e me aproximar de culturas diferentes, de línguas
diferentes, costumes muito diferentes. E aí muito diferentes mesmo, de ponta
cabeça quase. (Palestina)

Na pergunta sobre o papel do professor para os educadores, visualizamos


como eles concebem o acolhimento do refugiado. O educador Afeganistão respondeu
que o papel do professor extrapola a sala de aula e se desenrola em uma tentativa de
50

relacionamento com os refugiados, para criação de vínculos de amizade. Nessa


relação, o professor pode ajudar inclusive com questões médicas, ou inscrições em
universidade, ou compra de passagem de ônibus para outro estado, por exemplo. A
educadora Síria relatou que no contexto de aula de língua portuguesa para refugiados,
a aula vai além da aprendizagem do novo idioma, o professor tem um papel social de
ajuda, de inserção desse cidadão na sociedade de acolhimento. A nova língua, por
exemplo, o ajuda a achar emprego para se manter. A educadora Venezuela expressou
que “ensino de português é doação de amor”. Marrocos reforçou que o ensino da
língua portuguesa deve ser feito de forma acolhedora, reduzindo o impacto que eles
sofreram ao serem inseridos em uma nova cultura totalmente diferente da deles. O
papel do professor é entender as outras pessoas e suas necessidades, e então passar
o conteúdo da melhor forma. Iraque fala da importância de facilitar ao máximo o
aprendizado da língua portuguesa sem que esse processo represente mais um trauma
na vida dos refugiados. A educadora Arábia Saudita entende que o professor deve
compartilhar saberes e formar opiniões e caráter. Palestina enxerga o professor como
mediador entre o conhecimento, o aluno e o novo contexto em que ele está inserido.

A seguir, apresentamos alguns trechos das respostas dadas:

Olha, no nosso caso, nós trabalhamos com refugiados. É primeiro ensinar a


eles o que eles estão precisando, que é aprender português. Isso é
primordial. E mais uma coisa que a gente dá para eles, tem que dar um pouco
de amor. Porque eles estão sozinhos, saíram de um país em guerra. Então
tudo que eles querem é uma atençãozinha, sabe? (Venezuela)

Então, ainda mais quando a gente está falando de refugiados, então vai muito
além de uma gramática, de um idioma. Então, de forma básica, eu vejo um
professor como aquele que é capaz de passar de forma eficiente um
conhecimento. Para que a gente consiga passar uma mensagem, consiga se
comunicar com as pessoas, você tem que quebrar algumas barreiras, você
tem que entender as pessoas, OK? O professor para mim é que ele consegue
passar uma mensagem, passar um conhecimento de uma forma eficiente
para outras pessoas, OK? Garantir que essas outras pessoas estão
recebendo a mensagem exatamente da forma com que ele deseja passar.
Então na Compassiva eu vejo que o professor coloca um papel extra, porque
quando a gente fala de pessoas em situação de refúgio, a gente não pode
pensar, elas vão lá, vão aprender gramática, algo extremamente pesado, não,
a gente tem que criar um ambiente em que se sintam acolhidos, criar um
ambiente em que eles consigam aprender a cultura. Quando você aprende
uma língua você aprende uma cultura. E às vezes quando você faz isso numa
escola, você vai aprendendo de forma gradual. Eles não, eles chegaram de
uma realidade totalmente diferente e estão tentando se adaptar. E não criar
um choque cultural tão forte, mostrar, apresentar que aquilo é o português, é
dessa forma que os brasileiros são, OK? Então, tentar não criar um impacto
muito forte, cultural, reduzir essa questão, criar um ambiente acolhedor e que
eles se sintam em paz, aprendam, claro, que é o nosso objetivo, e que eles
aprendam, mas que eles se sintam em paz em um lugar, sintam-se felizes,
então não é só gramática não, a gente não chega lá e ataca matéria, não, a
51

gente tenta criar um ambiente muito light, muitos entram aqui e já têm que
procurar emprego, vão para sala, às vezes vão para sala acabados, mas eles
gostam de estar lá, eles gostam de pertencer ao local, então a gente tem que
ter essa consciência, tem que ter essa empatia, então acho que o papel do
professor é esse, entender as outras pessoas, as necessidades das outras
pessoas e passar da melhor forma o conteúdo. (Marrocos)

Em suas respostas, constatamos que os voluntários demonstraram uma


preocupação com a dimensão humana da ação educativa. Já com relação às
questões técnicas do trabalho educativo, não observamos apontamentos de
preocupação formativa. Resumidamente, observamos que há uma preocupação
latente em todos os discursos com a questão do acolhimento, da necessidade de
relacionamento com os refugiados, que inclusive vai ao encontro da missão da ONG,
do mote dela, que é “compaixão que transforma”.

Como verificado em nossa base teórica, estes educadores se apropriam de um


método de ensino voltado para o diálogo, a interculturalidade e praticidade (BARROS
E ASSIS, 2018, p. 67), inclusive as questões práticas são muito priorizadas de acordo
com a fala dos participantes.

O próprio Manual do Voluntário traz também de forma oficial esse olhar sobre
a dimensão humana do acolhimento aos refugiados ao longo do texto, como por
exemplo em: “A apostila de voluntariado tem como objetivo proporcionar a reflexão
sobre a causa do refúgio e suas implicações com o cuidado emocional”
(COMPASSIVA, 2019, p. 3).

Essa constatação ao longo das entrevistas realizadas ilustra o que já foi


anteriormente citado na base teórica da presente pesquisa, quando Amado (2013)
aponta para a falta de formação para professores de língua portuguesa como língua
de acolhimento no contexto brasileiro, sendo que esses voluntários, apesar da
disponibilidade, dão andamento nas aulas de forma intuitiva.

6.2 A base de conhecimento, aprendizagem da docência e a desconstrução das


crenças

Observou-se nas entrevistas a importância do ensino superior como suporte


para a docência, o que começou a nos apontar um norte em relação ao aspecto da
base de conhecimentos dos educadores. A maioria dos voluntários relatou que seus
52

cursos de formação superior foram úteis para suas práticas docentes na Compassiva,
ainda que não tenham sido na área da educação. Somente a entrevistada Síria
reportou pouca contribuição; os demais reiteraram a importância do que aprenderam
em suas variadas experiências acadêmicas.

Afeganistão enfatizou que o curso de Letras o ajudou muito com as questões


de língua portuguesa e a Teologia colaborou muito no sentido de ampliar o seu olhar
por meio da disciplina de antropologia, ao estudar e conhecer diferentes culturas. Já
o curso de jornalismo foi feito na Bolívia, então o domínio da língua espanhola foi útil
nas aulas ministradas para refugiados venezuelanos. Tudo foi aproveitado. A
educadora Síria foi a única que verbalizou pouca contribuição do seu curso superior
em Marketing para as aulas na Compassiva, sendo que o que ela mais aproveitou foi
o lado da criatividade no preparo e condução das aulas. A voluntária Venezuela disse
que o Direito contribui muito, porque antes de tudo, na Compassiva, os indivíduos
praticam a justiça. Além disso, os alunos costumam consultá-la sobre suas dúvidas
legais. Marrocos relatou que especialmente no aspecto do modelo a ser seguido dos
professores no curso de graduação e nos cursos de pós-graduação a contribuição foi
grande. Para ele, o exemplo dos bons professores que conseguem motivar seus
alunos é importante para a ministração das aulas na ONG. Iraque respondeu que os
cursos de Educação Física e Teologia foram vitais para a ministração das aulas, em
especial na questão da didática. Arábia Saudita disse que houve contribuição, pois ela
é uma pessoa tímida, e ter que apresentar trabalhos na faculdade a ajudou a se
expressar em público e a se expor. A educadora Palestina informou que o curso de
Educomunicação a ajudou muito no refinamento do olhar para a utilização de
diferentes mídias nas aulas, como uso de jogos, vídeos, podcasts e áudios, por
exemplo.

Parece-nos que o conhecimento do conteúdo foi o mais evidenciado pelos


entrevistados. Essa postura aponta para o que Shulman (2014) discorre sobre uma
das esferas inerentes do fazer docente, já que existe uma preocupação por parte dos
educadores com o preparo do conteúdo propriamente dito das aulas a serem
ministradas.

Seguem trechos das entrevistas:


53

Demais, demais. Primeiramente a buscar o conhecimento e passar esse


conhecimento de uma maneira prática, de uma maneira fácil, de uma
compreensão fácil que seja leve, que seja prático, desde a maneira de trazer
o conhecimento como da maneira de me portar dentro de uma sala de aula,
de não falar de costas, de usar exemplos práticos da vida para trazer o
conhecimento teórico. Foram muitas coisas que tanto na Educação Física
quanto no seminário eu coloco em prática na hora de estar falando ali o
ensino do português. Então foi vital mesmo ter esses dois cursos de
graduação para poder ser um melhor professor. Eu acredito, acredito que que
foi muito importante sim. (Iraque)

Eu acho que a partir do momento que eu tive também que apresentar algum
conteúdo durante as aulas ou alguma coisa do tipo, isso tudo ajuda a formar,
né? Aprendemos a nos expressar melhor. Eu sou uma pessoa tímida, então
o contato que eu tive com a faculdade, ter que também expor algumas coisas
me ajudou sim. É interessante porque às vezes nessas conversas com os
outros professores, em cursos assim aleatórios que não têm muita relação
direta com a educação, mesmo assim a gente sempre encontra um ponto de
contato. (Arábia Saudita)

Quando partimos para a pergunta sobre quais fontes/base teóricas direcionam


as práticas dos educadores, emergiu a percepção da falta dessa relação nas ações
dos educadores. Não houve referência, por exemplo, às teorias de aprendizagem. O
olhar é mais direcionado para as questões práticas da docência. Somente a
entrevistada Palestina conseguiu mencionar a questão das teorias da aprendizagem,
contudo de forma mais genérica.

Afeganistão direcionou a resposta para as práticas adotadas em aula que


ajudam os alunos a se apropriarem do conteúdo; não houve uma conexão com o
aspecto da teoria mencionado na pergunta, ou seja, ele não se referiu, por exemplo,
às teorias de aprendizagem. Síria apontou a conexão do uso da teoria sobre culturas
adquirida nos cursos proporcionados pela ONG como muito úteis nas aulas de língua
portuguesa para os refugiados, mas não se referiu às teorias de aprendizagem.
Venezuela entendeu o embasamento teórico para condução das aulas como uma
postura prática a ser adotada em sua atividade docente, então ela disse que a “teoria”
é a responsabilidade de levar o trabalho a sério e não faltar às aulas, e dar a maior
atenção possível aos alunos. Ela também não se referiu às teorias de aprendizagem.
Marrocos direcionou a resposta para as práticas adotadas em aula que ajudam os
alunos a se apropriarem do conteúdo, privilegiando a organização da aula de forma
que as quatro habilidades sejam trabalhadas (escuta, fala, escrita, leitura). Ele
igualmente não se referiu às teorias de aprendizagem. Iraque se referiu às teorias
relacionadas aos conteúdos que precisa ministrar em aula: “acho que a teoria e a
prática têm que caminhar lado a lado e eu procuro tentar fazer muito isso. Dá um bom
54

embasamento teórico daquilo que eu estou ensinando, mas sempre colocando a parte
prática junto com esse conhecimento.” Assim como os demais, ele referiu, em
especial, ao conhecimento do conteúdo. Arábia Saudita direcionou a resposta para as
práticas adotadas em aula que ajudam os alunos a se apropriarem do conteúdo,
privilegiando a organização da aula de forma que as quatro habilidades sejam
trabalhadas (escuta, fala, escrita, leitura). Ela também não fez menção às teorias, mas
mostrou preocupação com conhecimento pedagógico (gestão da aula). Palestina
afirmou que existe relação entre teoria e prática no planejamento das aulas, como o
conteúdo deve ser trabalhado e como a dúvida do aluno deve ser acolhida. Também
citou questões de ordem prática das aulas, como o gerenciamento de situações não
previstas e que demandam uma tomada de decisão rápida do professor. Ela ressaltou
que essa relação estabelecida entra teoria e prática se faz mais natural entre
professores com formação na área da educação, embora na Compassiva essa
questão não seja tão formalizada quanto em escolas de ensino regular, por se tratar
de uma instituição do terceiro setor e por isso com características distintas.

Resumidamente, as entrevistas apontam para a importância no que tange ao


conhecimento do conteúdo e ao conhecimento pedagógico em termos de teoria no
olhar destes educadores no preparo e ministração de suas aulas (SHULMAN, 2014).
Seguem trechos das entrevistas:

Então, eu acredito que aí algum tempo da minha experiência tem me ajudado


muito, mas tem coisas que são muito novas, uma coisa é você dar aula de
português para brasileiro, outra coisa é para estrangeiro. E eu vou usar como
exemplo a aula passada. Eu tinha que falar com eles sobre apresentação em
português, o uso do possessivo “dele e dela” e eu queria trazer aqui um grupo
de personalidades. Só que nem todo mundo que é celebridade no Brasil é
celebridade no Afeganistão, então como eu tenho um amigo afegão, eu liguei
para ele e falei com ele, eu vou dar uma aula assim e eu preciso de algumas
sugestões, nomes de famosos afegãos ou de famosos para os afegãos. E ele
me passou isso, aí e eu utilizei e era interessante ver quando eles olhavam
para alguém ali que era conhecido deles, totalmente anônimo para nós, mas
conhecido deles, quando eles iam falar sobre aquela pessoa, então eu acho
que a prática desse aprendizado vem dessa maneira, você vai ter que ser
criativo para instigar o aluno a falar, fazer pontes entre a cultura que ele já
tem, eu não posso jogar fora tudo que ele tem, mas agora fazendo uma
parceria com o próprio português, está entendendo? Nesse sentido aí de
tornar as coisas práticas. Então, às vezes eu digo para eles, olha, eu vou dar
uma aula sobre lugares da cidade. Aí eu mando lá no grupo do WhatsApp,
olha eu quero uma foto de uma farmácia, de um supermercado, de uma
padaria para que isso vá gerando para ele vocabulário e familiarizando ele
com essas palavras para tornar prático, porque se você ficar só no livro, no
livro, no livro, ele sai pela porta ali, chega em casa e quer guardar aquele
livro, o conteúdo está perdido porque a vida deles em média vai ser noventa
e cinco por cento na língua nativa, porque eles moram com nativos do país
deles, a língua nativa dele, o contato com o português se resume a sala de
55

aula na maioria dos casos. Então, você tem que fazer com que ele leve o
idioma com ele para onde ele for, então você vai desafiando-o a olhar para
os lugares, olhar para os objetos e começar a dar nome disso, mas é agora
em português. (Afeganistão)

Sim, sim, existe, existe bastante. Claro que ali é muito no dia a dia, na nossa
atuação ali, mas ela é constante. Então acho que desde o modo de como
acolher a dúvida, de como a gente vai trabalhar algum conteúdo específico
do livro, como a gente acolhe essa dúvida que chega, até enfim, falando tudo
fora de ordem, mas a preparação da aula também, é a mudança ali da
preparação mesmo, na hora da aula. Às vezes você vê que o que você
preparou não vai caber bem ali. Por mais que você tenha, poxa, uma super
ideia. Ficou demais, vai ser demais essa aula e ali você, na hora percebe,
“putz”, não vai rolar. E eu já tive algumas experiências assim, também na
Compassiva e todas elas me ensinaram demais. Mas acho que sim, tem
muito de trazer da teoria também para prática. Claro que a gente não tem
assim na Compassiva algo tão formal como nós temos em escolas formais.
A gente está falando de uma instituição do terceiro setor também. Um pouco
diferente. Mas não, eu acho que não tem como desvincular assim. Ainda mais
para quem é formado. Quem tem uma licenciatura. Quem fez pedagogia acho
que é muito difícil você dissociar assim de algum modo. Então acho que tem
bastante. (Palestina)

A primeira teoria é a seguinte, se eu estou lá, eu estou indo fazer o trabalho


bem-feito, a partir do momento que o voluntário se candidata. E tem
responsabilidade, sabe? A responsabilidade é muito grande, especialmente
porque eles são pessoas muito vulneráveis. Eles estão aqui fugindo de
alguma coisa muito dura, muito triste, que eles já passaram. Então a nossa
responsabilidade de não fazer nada errado, de aceitar, às vezes, até alguma
coisa que eles fazem lá, que a gente não gosta ou quando a gente fala, vamos
trabalhar, eles continuam a conversa, tal. Então, a gente tem que ter um
pouco de aceitação. Porque, veja, nós somos ali, o professor, ali na classe, é
a única pessoa que está dando atenção para eles aqui nesse país, eu acho.
Eu acho que somos nós ali naquele momento que eles têm a liberdade de
chegar e falar alguma coisa. Então nós fomos lá assim, muitas vezes a gente
perde um pouco da aula para ficar dando atenção para eles, dando amor,
sabe? Porque um faz uma pergunta, o outro também precisa de alguma coisa
e não dá para a gente falar, vamos fazer aula, não dá para fazer isso, é
impossível. Então, é a teoria, a minha teoria é essa, a maior responsabilidade
que a gente tem, não faltar às aulas também, sabe? É triste, eles já estão
acostumados com a gente ali naquele período. É um semestre, aí vem outro
professor que pega o bonde andando, a aula não flui tão bem. Então é
responsabilidade, às vezes é quando a gente se abre um pouquinho, eles
pedem ajuda para alguma coisa, sabe? E só da gente poder fazer isso, olha,
é demais de importante, é demais de importante para eles. Em outros anos,
eu já fui com a turma da Compassiva, tem uma pessoa específica, fazer visita
nas casas, sabe? Ou porque tinha criança ou alguma coisa. Olha, você não
faz ideia de como é bom eles sentirem esse amor. (Venezuela)

Especialmente no trecho acima relativo à resposta de Afeganistão podemos


fazer relação com o conceito de PLAc local, já que o educador considera em seu
planejamento de aulas os alunos específicos para os quais ministra aulas,
intencionalmente fazendo relações da cultura dos refugiados com o conteúdo a ser
ensinado (SILVA; ZAMBRANO, 2021).
56

Quando pedimos exemplos de aulas exitosas no ponto de vista dos


educadores, verificamos a preocupação de que as aulas sejam dinâmicas e inclusivas.
As práticas docentes que parecem motivar mais tanto os educadores quanto os alunos
são as que valorizam a cultura dos estudantes e o que eles têm como contribuição
para enriquecimento da aula, bem como atividades que envolvam metodologias
ativas, como jogos, trabalho em grupo, sala de aula invertida.

O educador Afeganistão citou uma aula na qual ensinou o uso do possessivo


“dele/dela” por meio de uma apresentação surpresa de celebridades afegãs para a
turma de afegãos, conforme já mencionado anteriormente. O conteúdo foi
desenvolvido juntamente com a valorização da cultura dos alunos. O educador envia
conteúdo via grupo de WhatsApp para complementação da aula e para introduzir
assuntos a serem discutidos presencialmente. A educadora Síria utiliza estratégias
lúdicas na aula para torná-la mais atrativa e menos cansativa para os alunos, pois
alguns trabalham inclusive de madrugada e todos vêm de contextos de stress. A aula
com um caráter mais relaxante tende a ser mais interessante para os alunos. A
educadora Venezuela motiva os alunos a falarem de suas experiências e suas vidas
pessoais, mas respeita os mais reservados que preferem se calar. Essa tentativa visa
dinamizar a aula e sair um pouco do formato do livro didático. O voluntário Marrocos
procura transmitir a teoria para prática ou para a vivência deles durante as aulas, para
a realidade deles. Nesse sentido, o educador sempre propõe dinâmicas ao final dos
conteúdos trabalhados a fim de consolidar o tema trabalhado. Iraque busca fazer
associações e contextualizações para ministrar suas aulas. Por exemplo, prioriza
ensinar vocabulário do campo semântico religioso no período do Ramadã, pois isso
faz mais sentido para os alunos, tanto emocionalmente quando de forma prática, uma
vez que será um vocabulário muito mais explorado nesse período. A voluntária Arábia
Saudita propõe aulas com jogos, cards, vídeos, trechos de filmes do gênero Sci-Fi e
leitura de livros de literatura. Palestina ministra aulas que envolvem jogo da memória
para enriquecimento de vocabulário, jogo de “cara a cara” para explorar vocabulário
relacionado às características físicas das pessoas, jogos de perguntas e respostas,
atividades com áudio, competição de soletrar palavras para verificação de nível de
compreensão dos alunos e trabalhos em grupo. A educadora envia conteúdo via grupo
de WhatsApp para complementação da aula.

Seguem alguns trechos das entrevistas:


57

Eu tenho só três meses. Mas eu gosto muito de fazer brincadeiras lúdicas


que é uma coisa que a gente até aprendeu nesse curso, até porque eles são
refugiados. Eles vêm de um contexto de guerra, vem fragilizados
emocionalmente. Então não dá para você ser muito pragmático e muito
autoritário na hora de passar alguma coisa. Nós também temos limites, fiz
assim para falar de contextos. Para não trazer gatilhos. Para o refugiado ou
porque como a gente falou, como eu falei. A maioria vem nesse contexto de
guerra ou até perseguição. Então eu gosto muito de usar algumas coisas
lúdicas, algumas brincadeiras para descontrair a aula, apesar dessa turma
ser uma turma avançada, mas juntando com esse contexto social. Do nosso
trabalho, eu acho que isso ajuda muito. Eu dou aula à noite, então a maioria
deles trabalha. Como tem alguns que trabalham na feira da madrugada de
sábado para domingo e depois trabalham de dia, chegar numa segunda-feira
à noite para a aula, não dá para ser alguma coisa muito rígida como a gente
faz. Para alfabetizar uma pessoa no Brasil e esquecer do contexto. Então
brincadeiras lúdicas é uma forma mais relaxante. Para que eles absorvam o
conteúdo e não fique cansativo numa segunda-feira à noite para isso. Um
idioma que eles não escolheram aprender. Porque eles vieram para o Brasil
não por escolha. Então a gente não pode esquecer dessas coisas que estão
por trás. (Síria)

A gente sempre pede alguns exercícios igual a esse trabalho que a gente
está fazendo para que eles falem alguma coisa deles sabe? É para não ficar
só no português na gramática e tal. Então a gente sempre pede para que eles
falem alguma coisa da vida deles. Então dependendo da turma, às vezes
você vê uns que são muito fechados, não querem falar, sabe? Então a gente
respeita. Outros querem sim, outros falam da família, dos pais, dos irmãos,
sabe? Falam com alegria, então a gente vê que é um povo assim, como nós.
São como nós também, eles são bastante amorosos, bastante cuidadosos
com a família, esse é o amor. A relação familiar deles é muito importante
também. Mas tem alguns que se fecham, não querem falar, então a gente
respeita. Então, a cada momento, assim, a cada assunto que a gente está
falando, a gente puxa assim, a gente puxa para ver se eles se abrem para
falar alguma coisa, até para eles saírem daquele do livrinho. E procurar assim
palavras diferentes, porque eles vão falar de coisas diferentes. (Venezuela)

Ficou explícito nas respostas dadas pelos entrevistados que há uma


preocupação com o conhecimento pedagógico. Praticamente, todos responderam que
estão atentos para o preparo de aulas com diferentes recursos que as tornem
dinâmicas e proveitosas.

Ao serem questionados sobre o material de apoio das aulas, verificou-se o uso


do material padrão combinado com a adição de atividades para sistematizar o
conteúdo. Todos utilizam o livro didático Muito Prazer, adotado pela Compassiva,
porém todos enriquecem a aula com algum recurso que contribua para a leveza da
aula e a eficácia na transmissão do conteúdo.

O educador Afeganistão utiliza diversos materiais próprios, não ficando na


dependência somente da Compassiva. Tem, por exemplo, um conjunto de bandeiras
do mundo inteiro e mapas que utiliza nas aulas. Faz apresentações em PowerPoint
para introduzir conteúdos, bem como lousa e recursos visuais para auxílio
58

especialmente dos alunos em nível básico. A educadora Síria utiliza o livro Muito
Prazer e outros materiais didáticos disponibilizados pela Compassiva, além de
atividades lúdicas e material de apoio fornecido por uma ONG que treina educadores
voluntários para ministração de aulas. A voluntária Venezuela faz uso de recortes de
jornal, livro do aluno e livro de exercícios e vídeos. Marrocos usa o livro Muito Prazer,
dinâmicas com bolas, músicas e suas respectivas letras para preenchimento de
lacunas, e jogos do tipo “imagem e ação”. Iraque também citou o livro Muito Prazer e
materiais extras preparados de acordo com o conteúdo a ser lecionado. Arábia
Saudita mencionou o uso de jogo da memória, cards, e materiais didáticos
compartilhados de forma virtual na nuvem (Google Drive). Palestina utiliza jogos de
memória, jogos de características físicas, jogos de perguntas e respostas, áudio,
lousa, apresentações em PowerPoint, jogos competitivos e de soletrar.

Abaixo seguem trechos ilustrativos das entrevistas:

Sempre, por exemplo, quando coloco uma matéria em si, a gente tenta pegar,
colocar uma música que tem alguns vocabulários que a gente treinou em
aula, treinar essa música, preencher aquelas palavras que estão faltando e é
justamente as palavras que a gente aprendeu em aula. Na semana passada
a gente teve um momento, claro, muito tenso, um momento de correção de
prova, então eu chamei um por um. Cada aluno para conversar do lado de
fora, para ver as dúvidas que eles tiveram na prova, por que eles acertaram,
por que eles erraram, tentei esclarecer naquele momento meio particular no
final da aula. A gente fez como se fosse um jogo de imagem em ação, no
sentido horário, um falava uma palavra, aí a pessoa ia desenhar na lousa e a
outra tinha que adivinhar, claro, a palavra em português. Muitos falam muito
bem inglês. Então, tem que depender também desse idioma. Por exemplo,
falei, em português, forçando e estimulando, para eles falarem o idioma.
Então, acho que essas dinâmicas sempre são bem válidas. (Marrocos)

Eu sigo o material proposto pela coordenadora pedagógica da Compassiva.


Então no caso é um livro de apoio. Acho que é o Muito Prazer que nós
estamos usando agora. Mas o bom é que ela me dá liberdade para eu trazer
algo extra para complementar o ensino teórico daquela matéria. Então se eu
tenho que ensinar verbo eu vou seguir o material proposto, mas em alguns
momentos eu falo, poxa, se eu fizer uma complementação aqui de algo da
minha cabeça que eu acho que vai ser melhor, ela me dá liberdade de eu
fazer isso. Então, às vezes eu coloco alguma coisa extra para poder facilitar
o aprendizado. (Iraque)

Constatamos com as respostas dadas que todos os entrevistados têm o livro


como material de apoio. Contudo, reforçaram que sempre quando necessário,
introduzem conteúdos e dinâmicas que ampliam o que está no livro. Percebemos que
todos têm uma grande preocupação em ensinar.
59

Ao serem questionados sobre a questão das crenças, tivemos recorrente


resposta no sentido de que o professor não deve ser visto como uma figura distante,
que está disponível somente para transmitir um conteúdo que domina. Há o
entendimento da necessidade do vínculo que deve existir entre professor/educador e
aluno. A crença de que o professor é um ente distante na dinâmica do processo de
ensino e aprendizagem caiu por terra para a maioria dos educadores voluntários
(quatro), que o professor também deve saber ouvir, não só falar. O compartilhar
saberes foi uma nova crença percebida, no lugar da meritocracia pura e simples. A
crença do respeito à figura do professor foi reforçada. Uma educadora apontou para
a direção de que as crenças culturais entre educadores e alunos são muito diferentes,
e que essa consciência é importante para o processo de aprendizagem.

Afeganistão reportou que o professor na década de 1970 era o detentor do


conhecimento, existia um distanciamento grande entre ele e o aluno. A crença
construída em torno dessa imagem foi desmistificada na experiência de Afeganistão,
que percebeu que o vínculo entre professor e aluno é um aliado importante no
processo de ensino e aprendizagem. A educadora Síria ressaltou que se esforça para
sempre trazer à memória que suas crenças são culturalmente distintas das crenças
de seus alunos, aliás não só suas crenças como sua realidade também. Já Venezuela
informou que suas crenças foram reforçadas, sempre houve relação de respeito
mútuo entre professores e alunos e muita gratidão por parte dos aprendizes. Para
Marrocos, a crença que caiu por terra é a que o professor não deve somente falar,
mas deve saber escutar também. Essa é uma das grandes descobertas que teve
como professor. Iraque tinha uma visão de que a relação professor-aluno era distante,
e ao se deparar com a experiência da docência, ressignificou essa crença ao perceber
que o estabelecimento de vínculo com seus alunos facilita muito o processo de
aprendizagem, além de favorecer relacionamentos de amizade. Arábia Saudita tem
consciência de que fez parte de um sistema educacional meritocrático no qual não
acredita, pois teve menos oportunidades por ser economicamente desfavorecida e por
isso teve de se esforçar muito mais para conseguir acesso ao ensino superior público.
Apesar disso, ela relatou ter tido bons professores na educação básica, que a
motivaram a gostar da área da educação. Também teve boas experiências na escola
dominical da igreja, que a entusiasmaram a ingressar na área. Toda essa vivência a
ajudou a desmistificar a crença da meritocracia que ela enxerga no Brasil e a fez
60

compreender que o ponto chave é a busca por compartilhar saberes. A educadora


Palestina relatou haver uma desmistificação da relação rígida aluno-professor, na qual
poderia haver até mesmo punição caso a expectativa não fosse alcançada pelo aluno.
A prática docente de Palestina derrubou o muro separando essas duas pontas do
processo educativo.

Seguem trechos das entrevistas:

Eu acho que no nosso sistema educacional tem muito do lance do você


estuda, você faz a prova e você passa se você foi bem na prova. E eu acho
que isso é um sistema que de fato não avalia as aprendizagens das pessoas.
E eu já não acreditava nesse sistema educacional que a gente infelizmente
tem, a maioria aqui no Brasil nas escolas públicas. Eu sou uma pessoa que
veio de escola pública. Estudei no Ensino Médio, depois fui bolsista do
PROUNI porque gente que nasceu pobre não tem condição de pagar
faculdade. Estudar um monte para passar na faculdade, para passar na USP,
para passar na UNIFESP. Então sempre foi esse negócio meio meritocrático
e a educação não tem nada a ver com isso. Eu tive bons professores na
minha jornada educacional que sempre me fizeram gostar da área de
educação. E até vivências na igreja mesmo de pessoas, por exemplo, da
escola dominical, de ter ótimos professores e aquilo me fazer ter vontade de
aprender e de ensinar também, então quanto mais eu tive contato com a
educação, mais eu entendi que não é sobre meritocracia, é sobre realmente
compartilhar coisas, compartilhar conhecimento, compartilhar opinião, formar
opinião, formar pessoas. Não é sobre dividir quem sabe, quem passou, quem
não passou, eu acho que isso é uma das maiores falhas que a gente tem aqui
no Brasil. (Arábia Saudita)

Acho que no meu processo, grande parte foi de desmistificar mesmo.


Concordo que a gente vai desenvolvendo muito isso ao longo da vida, a partir
das nossas experiências enquanto alunos. E aí quando acontece da gente
ocupar um lugar de professor em algum momento, a gente consegue
entender algumas coisas que aconteceram no nosso processo, porque foi
assim e aí acho que às vezes até tem uma relação meio tardia de perdão e
reconciliação com professores que você teve ao longo da vida. Pelo menos
comigo foi assim, eu nunca mais os vi, mas no meu coração estão perdoados,
eu tenho outra compreensão deles, é muito legal isso. Acho que para mim foi
poder transformar tudo isso e sigo transformando. Não estou pronta, estou
longe disso, mas acho que eu consigo reconhecer e acho que muito eu vejo
da relação entre professor e aluno. É claro que na Compassiva a gente tem
ainda um lugar diferente. Acho que a gente tem algumas peculiaridades. Mas
algo que eu vejo em comum, por exemplo, da minha prática docente
enquanto um espaço formal de educação no Brasil e no espaço não formal,
como a ONG, acho que essa relação entre aluno e professora, ela pode ser
mais valorizada e mais próxima do que geralmente ela é. Pelo menos
conforme eu tive na minha experiência enquanto aluna durante a minha
formação na faculdade, foi diferente para mim, eu vim de um curso que são
poucos alunos por turma por ano. Por turma também, são os mesmos
professores, então já foi um pouquinho diferente nesse sentido. Enquanto
criança, adolescente estudando, eu percebia que tinha uma relação às vezes
de medo entre aluno e professor. Eu tinha muito dessa relação de respeito
com os meus professores, eu era uma boa aluna e tirava notas boas e tal,
então para eles, no que era valorizado de certo modo, eu estava dentro. Então
eu tinha uma relação com eles na qual não tinha nenhum tipo de desgaste.
Mas quando acontecia de algum aluno fugir daquele padrão, era uma relação
muito difícil. E aí mesmo nessa relação, onde eu estava atingindo ali aquelas
expectativas eu tinha muito medo também. Eu percebo que isso foi algo que
61

eu desmistifiquei ao longo do meu processo também de preparação para ser


professora um dia. Acho que é de derrubar um pouco dessas barreiras,
desses muros, tirar essa ideia de que você vai ser punido por não saber algo.
Mas que você está sempre ali, se você se coloca à disposição de aprender e
de receber algo novo ali, é isso que importa e é por isso que a gente trabalha.
Então acho que eu percebo e consigo reconhecer, e continuo assim, é um
processo que não para nunca. Nunca acaba. (Palestina)

Dentro deste eixo de análise, as cinco perguntas feitas foram importantes para
refletirmos sobre aprendizagem da docência, as fontes teóricas para embasar a
práticas educativas e a desconstrução das crenças. Considerando a base teórica do
trabalho, entendemos, após a análise dos dados, que a aprendizagem dos
educadores voluntários existe dentro da Compassiva, mas ainda está distante de
alguns pilares importantes dentro da formação de professores, como, por exemplo, a
consciência de que a prática docente deve estar relacionada à teoria, como visto em
Shulman (2014), já que a prática pela prática não é suficiente para que o professor
aprenda o seu ofício. É necessário combinar pesquisa, conhecimento dos conteúdos,
discussão, documentação e reflexão sobre sua prática.

O conhecimento das teorias de aprendizagem e como elas podem se desdobrar


dentro das aulas ministradas não apareceu nas respostas concedidas pelos
participantes da pesquisa. Além disso, constatamos que a reflexão sobre a prática
ainda acontece de forma individual. É um repensar mais solitário.

No tocante à questão das crenças, os voluntários entenderam o conceito após


apresentação da pergunta, e inclusive relataram suas percepções a respeito delas e
como algumas foram descontruídas positivamente ao longo da ministração das aulas.
Apesar disso, não há intencionalidade no exame das crenças desses voluntários, por
meio por exemplo, do relato da História de Vida Profissional (HVP) ou por meio de
práticas reflexivas, tanto durante a ação docente quanto sobre a ação docente.
(MARCELO; VAILLANT, 2012).

6.3 A proposta institucional de formação de educadores de língua portuguesa


para refugiados/imigrantes

Ao serem questionados sobre o que define um professor expert, se consolidou


nas respostas dos educadores a atitude de troca com os alunos. O professor expert é
aquele que está aberto para aprender com seus alunos, tem compaixão por eles,
62

anseio por se relacionar, tem conhecimento do conteúdo que pretende ensinar, boa
gestão de conflitos e pontualidade.

Para o educador Afeganistão, o professor expert é aquele que está disposto a


aprender a ensinar, especialmente quando se trata de aulas para refugiados. Já para
a voluntária Síria, nas aulas para refugiados, compaixão é uma característica
imprescindível para os educadores. O olhar do educador deve estar voltado também
para as necessidades do aluno, e não só para as questões gramaticais e teóricas do
estudante. Venezuela apontou para o fato de que primeiro o professor tem de dominar
o que está ensinando. É necessário também gostar das pessoas, ser compassivo e
flexível, sempre tendo em mente que os alunos têm uma realidade difícil. Marrocos
ressaltou a questão da pontualidade, postura, conhecimento, boa gestão de conflitos,
conexão genuína com os alunos sem uso de autoritarismo na relação estabelecida
com eles. Iraque relatou que o professor expert é aquele que consegue cumprir o seu
objetivo, que é fazer com que o aluno aprenda sobre a matéria proposta. Arábia
Saudita entende que o professor expert precisa de formação. Caso ele não tenha
formação na área, precisa de alguma forma buscar o estudo. Ele também precisa ser
aberto a escutar e a aprender. Palestina acredita que um professor expert está sempre
disponível para aprender com a sua prática e com os seus alunos e compartilha o seu
conhecimento de modo livre, sem ressalvas.

Apresentamos alguns trechos para exemplo:

Primeiramente aquele professor disposto a aprender, vai chegar na sala de


aula muitas vezes com o material preparado, com tudo pronto e talvez seja
aquele dia que o seu aluno vai te ensinar muito. Lidando com estrangeiros,
primeiramente esteja aberto para aprender como ensinar. Que é muito
diferente e é algo que não tem um manual para isso, é o dia a dia que vai te
ensinar. Nem toda receita de sucesso com alunos nacionais vai funcionar
com o aluno estrangeiro. E aí cabe a você, no desenvolvimento do curso, das
aulas, perceber isso aí. Então, eu acho que o expert é aquele que não para
de aprender. Você se fecha no seu conhecimento, na sua experiência
achando “eu já sei tudo”, infelizmente, aí talvez tudo esteja perdido. Então,
eu acho que o expert é aquele que não para de aprender. (Afeganistão)

Para dar aula para refugiado, compaixão, que é também o mote da


Compassiva. Principalmente porque você não tem olhar só para gramática,
só para teoria, o que você aprende, mas compaixão, principalmente como eu
falei. A própria coordenação orientou: “olha, veja se eles estão com algumas
necessidades porque a gente tem contato direto com eles. Empatia, sentar-
se no lugar deles mesmo. E entender, como que você falou de crenças. Tem
que quebrar essas questões para conseguir colocar em prática. (Síria)

Com exceção da educadora Palestina, poderíamos afirmar que a preocupação


de pensar refletidamente a prática não foi apontada pelos entrevistados.
63

Na pergunta relacionada ao preparo dos voluntários pela ONG para ministração


das aulas, emergiu o tripé de preparo dentro dos aspectos da cultura árabe, identidade
da ONG e observação de aulas. A Compassiva prepara seus voluntários oferecendo
treinamento sobre a cultura árabe, sobre a identidade da própria ONG e
proporcionando treinamentos ao longo do processo. Além disso, os novos professores
assistem a aulas dos professores veteranos, numa espécie de estágio docente.

Afeganistão informou que há um treinamento inicial para entendimento das


diferenças culturais dos povos de origem muçulmana. De posse desse conhecimento,
o educador deve ter um olhar cuidadoso em sua prática para observar o que de
cultural pode afetar sua prática docente. Síria mencionou o treinamento recebido na
Compassiva sobre as diferenças culturais entre brasileiros e muçulmanos. Além disso,
informou que é constante a preocupação da própria coordenação, que orienta os
voluntários para verificar se os alunos estão com alguma necessidade, uma vez que
são os educadores que estão em contato direto com eles. Já a educadora Venezuela
focou sua resposta nos cuidados que ela deve ter ao preparar suas aulas, por
exemplo, não citando assuntos relacionados à religião ou à guerra. Marrocos
mencionou uma preocupação da Compassiva em preparar os voluntários para as
aulas, por isso disse que teve que assistir a aulas de professores já em atuação, e
também conversou com os professores mais experientes e com a coordenação. Além
disso, faz cursos de capacitação que ocorrem periodicamente. Iraque relatou que é
preparado por meio de cursos, tanto na área de língua portuguesa como para
entendimento da situação de refúgio. Arábia Saudita respondeu que a Compassiva
oferece treinamentos, inclusive sobre a cultura árabe, que são bastante úteis.
Palestina mencionou que é preparada por meio de cursos tanto na área de língua
portuguesa como para entendimento da situação de refúgio. Também relatou que há
um treinamento falando um pouco sobre a ONG, sobre suas frentes de atuação junto
à comunidade.

Seguem trechos das entrevistas:

Olha, normalmente a gente conhece a situação deles. O professor sabe de


onde eles vêm, o que está acontecendo lá no país de onde eles vieram. O
que a gente pode falar de assunto, o que que a gente não deve falar. Por
exemplo, a gente não fala de religião, não fala de nada disso. Eles são
muçulmanos, a gente não leva nada para o caminho da religiosidade, a não
ser no nosso coração. Então principalmente e especialmente com refugiados
nós temos que ter que ter esse cuidado muito grande de não levar o problema
que tem lá no país dele para sala de aula. Hoje, por exemplo, está
64

acontecendo tudo isso na Ucrânia, a gente não toca no assunto. Quando eu


levo, por exemplo, o jornal, eu vejo se tem uma matéria numa página e eu
vejo isso na outra página se não tem alguma coisa, se tiver não levo. Nada
que fale de guerra, entendeu? Então isso é importante também. E ensinar o
português, eles estão lá para isso. Quer dizer, não é física, não é química,
não é geografia, não é nada disso. Eles estão lá para aprender a falar
português. Óbvio que entra um pouco de tudo. (Venezuela)

Então, na Compassiva eles têm uma preocupação sobre quando você vai
iniciar com as aulas. Antes de começar dando aula sozinho, eu assisti várias
aulas, eu conversei tanto com professores, quanto com a coordenação,
muitas dicas valiosas. De como lidar, o que fazer, o que não fazer e claro,
periodicamente, eles também têm algumas capacitações, alguns cursos que
eles oferecem. Então acho que isso é muito importante. (Marrocos)

Quando a pergunta foi direcionada para as dificuldades encontradas referentes


à formação de professores, foi interessante observar que os três educadores
graduados na área educacional reportaram sentir dificuldades relacionadas à
capacitação de professores, que para eles é uma necessidade contínua. O trabalho
docente pressupõe olhar a profissão com a ideia da profissionalidade, e este olhar se
faz mais presente nos educadores com formação. Dos outros quatro, dois apontam
dificuldades.

Afeganistão sente falta de ter mais habilidades da língua inglesa, que serve
como ponte em suas aulas, especialmente para os alunos de nível mais básico. Síria
não reportou dificuldades referentes à formação de professores, mencionou que a
Compassiva oferece grande apoio nesse sentido. Venezuela não reportou
dificuldades referentes à formação de professores, mencionou que na Compassiva os
professores são muito unidos e dedicados ao trabalho. Marrocos reportou dificuldade
na formação de professores, principalmente quando se considera o cenário de
voluntariado no sentido de encontrar pessoas dispostas a exercer essa atividade.
Iraque não reportou dificuldades referentes à formação de professores, mas
mencionou que talvez professores inexperientes ou sem formação possam sentir
dificuldade nesse sentido. Arábia Saudita entende que uma dificuldade é a falta de
tempo para estudo. Palestina mencionou a falta de tempo para formação em conjunto,
para estudo do material utilizado, além da falta de debate e formação na faculdade
sobre o trabalho de inclusão de refugiados, inclusive nas escolas de ensino regular.

Seguem trechos das entrevistas:

Para mim eu acho que está bem tranquilo, eu acho que a gente sempre pode
melhorar, lógico, se tiver um curso eu vou fazer o proposto, acho que a gente
sempre pode adquirir mais conhecimento e melhorar ainda mais, mas hoje
eu me sinto capaz daquilo que eu estou fazendo. Eu creio que os dois cursos
65

de graduação, toda a experiência prática que eu tive na vida de ensino,


mesmo que não seja a área da língua portuguesa, mas me deram base, eu
já errei bastante. Então acho que é mais fácil não cometer esses erros já
tendo errado anteriormente. Então eu me sinto bem capacitado para dar aula
de português ali para eles. Mas eu acredito que se uma pessoa que seja
voluntária e não tenha experiência na área do ensino, uma pessoa mais
jovem que não tem formação acadêmica ou na formação acadêmica não
exista essa parte da licenciatura, sei lá, em geologia, o cara que estuda as
pedras, o terreno, eu acho que essa pessoa vai ter mais dificuldades para
lecionar. (Iraque)

Tempo, eu acho que é uma das principais coisas que a gente precisa muito
para estudar e às vezes na correria do dia a dia você não encontra. Então
acho que tempo. É tempo para investir mesmo em estudo, sabe? De ir atrás,
de poder aprender coisas. Por exemplo, essa aluna que a gente tem agora,
a “SaSaSa”. Ela vai precisar de uma professora que caminhe só com ela, ela
não vai acompanhar o ritmo das meninas mais novas, sabe? E a gente teve
uma aluna dessas uns tempos atrás, ela tinha uma professora só para ela, e
aí às vezes quando eu estou nessa aula com a “SaSaSa” e eu falo uma coisa
e ela não entende o que eu falei, eu preciso das meninas para traduzirem
para ela. É um pouco frustrante, você quer fazer a pessoa entender, você
quer que ela entenda o que você está falando e você não consegue. Então
acho que para isso eu precisaria de tempo para ver se eu consigo dar uma
estudada e para conversar com as meninas da coordenação, ver se a gente
arranja uma professora só para ela ou que outros tipos de método a gente
pode aplicar com ela, sabe? (Arábia Saudita)

Parece-nos que há uma preocupação com a necessidade de espaços coletivos


para formação dentro do grupo, momentos estes em que discussões sobre os
desafios são oportunizadas, e trocas de práticas exitosas são possíveis.
A última pergunta da entrevista foi sobre a ocorrência de troca entre colegas ou
mesmo um momento de estudo e formação. Cada um parece ter uma percepção
distinta do tempo e formato dedicado à troca entre colegas, isto é, parece um aspecto
subjetivo. Para uns, a troca de mensagens via WhatsApp sobre a aula ministrada
parece suficiente; para outros, não.

Afeganistão sente falta de um tempo de troca entre os pares, para inclusive


ajudar os alunos de forma mais holística. Para ele, as trocas via grupo de WhatsApp
não são suficientes. Síria se sente satisfeita com as trocas por meio dos grupos de
WhatsApp e nos cursos oferecidos pela Compassiva. Venezuela entendeu como troca
a possibilidade de trocar dias de aulas com outros colegas. Marrocos entende que há
trocas por meio dos grupos de WhatsApp. Iraque reportou que não há muitos
momentos de troca, exceto por meio dos grupos de WhatsApp. Arábia Saudita disse
que sim, há troca. Palestina respondeu que sim, por meio dos grupos de WhatsApp.

Seguem trechos:
66

Sim, apesar de sermos todos voluntários na Compassiva, é um trabalho que


eu fico realmente impressionada pela qualidade. E do que tem sido feito com
pouco recurso que se tem, então é realmente inspirador e algo claro. A gente
gostaria de ter mais tempo, ter mais condição para poder estudar juntos e nos
formar juntos, mas acho que de troca eu acho isso muito legal, apesar da
gente não conseguir ver os voluntários, geralmente eles estão lá apenas no
dia que eles vão dar aulas. Pensando no português, mas a gente troca muito
pelo grupo do WhatsApp e isso ajuda muito, muito mesmo. Então a gente tem
uma prática, tem até um modelinho, uma mensagem padrão de um relatório
entre o que aconteceu entre uma aula e outra. E isso norteia muito também
o que a gente vai preparar para nossa próxima aula. Então segunda-feira sou
eu que dou aula, quarta-feira é o Irã, sexta-feira é a Venezuela. Então para
mim é muito importante saber a sequência do Irã e da Venezuela,
principalmente porque depois da aula da Venezuela vem a minha. E aí eu
dou sequência naquilo e é o jeito da gente dar sentido e significado para os
estudantes, apesar de serem três professores diferentes. Mas a gente segue
uma sequência. A Compassiva tem esse currículo mesmo. Então tudo isso
deve seguir ali. Então acho que esse grupo, apesar da gente não conseguir,
sei lá, ter uma reunião de sala, de turma e tal, dentro do que a gente tem
disponível, eu acho que vale muito assim essa troca que a gente tem lá. As
impressões sobre as provas, às vezes, que foi algo recente que aconteceu.
Tudo isso ajuda muito mesmo. E aí a gente acabou criando ali um formatinho
de relatório que é o que a gente passa ali também para o sistema da
Compassiva. E aí a coordenação olha, acompanha e tal, mas a coordenação
também vê no grupo. E aí, a partir daquele relatinho, daquele modelo, a gente
consegue conectar as aulas. Então ter essa troca, apesar de talvez não ser o
ideal, mas dentro do possível, eu acho que ela acontece muito bem e tem
sido legal assim. (Palestina)

Não, é uma coisa que eu realmente sinto muita falta. Como nós trabalhamos,
por exemplo, entre três professores a mesma turma, o que acontece é que
no final da aula a gente manda um relatório daquilo que foi que foi feito, mas
eu sinto falta sim da gente sentar junto, conversar, não apenas pelo
desenvolvimento linguístico do aluno, mas o desenvolvimento holístico do
aluno. De uma maneira muito mais ampla nas relações dele, nas interações
em sala de aula, cotidiano da vida dele. Então, eu acho que seria bem mais
proveitoso, a gente teria uns resultados melhores, é porque nós, como
professores, eu acredito. Talvez não, mas eu acredito que somos as pessoas
mais próximas dos nossos alunos. Pelo contato que a gente tem aqui. Então,
até mesmo para própria organização, para poder ajudar mais ou
compreender mais, era importante que a gente tivesse essa conversa dando
daquilo que a gente está lutando. (Afeganistão)

As quatro perguntas finais da entrevista dão corpo para a criação do terceiro


eixo de análise do trabalho, que versa sobre a proposta institucional de formação de
educadores de língua portuguesa para refugiados/imigrantes.

De acordo com a nossa base teórica, existem três esferas de conhecimento


que fazem parte do desenvolvimento profissional do professor: o primeiro é o
conhecimento pedagógico geral, que tem relação direta com a gestão de sala de aula
e questões mais filosóficas relacionadas à educação; o segundo é o conhecimento da
disciplina que se ensina, o que legitima a atuação do professor, pois não se ensina o
que não se sabe; e por último o conhecimento pedagógico do conteúdo, que ocupa o
67

espaço intermediário entre os dois primeiros, isto é, a área de domínio exclusiva do


professor, que quanto mais rica, mais torna o profissional um perito (MARCELO,
2009). Fragmentos dessas esferas estão aparentes nos discursos dos entrevistados,
mas sem a intencionalidade e coesão necessárias para a prática docente profissional,
embora saibamos que se trata de educadores voluntários, como já mencionado
anteriormente.

O desenvolvimento do conhecimento pedagógico do conteúdo, que norteia a


maneira como o professor decide o que ensinar e como ensinar, requer, entre outras
coisas, a ocorrência do espaço coletivo entre os educadores e entre os voluntários da
Compassiva, o espaço coletivo parece existir em grande parte do tempo via
Whatsapp.

A Compassiva, dentro da sua limitação de recursos tanto financeiros quanto


humanos, demonstra ter preocupação com a formação dos voluntários, preocupação
essa surgida da demanda prática das aulas desde o início do programa. Há um
esforço prático para preencher as lacunas geradas no processo de ministração de
aulas, como o treinamento dos voluntários com as informações sobre a atuação e
identidade da ONG, disponibilização de conhecimento sobre a cultura árabe, espécie
de estágio docente, no qual os voluntários assistem a aulas de educadores voluntários
já veteranos. Apesar de todo esse esforço, não ficou claro por meio das entrevistas,
talvez até por razões metodológicas, o estabelecimento da relação com teorias como
a de Shulman, por exemplo, que nos alerta para o fato de que o professor, para
desenvolver sua expertise, precisa aprimorar continuamente seu conhecimento de
conteúdo pedagógico, que é mais do que o necessário conhecimento pedagógico e
de conteúdo, é na verdade o conhecimento que conecta essas duas esferas
(SHULMAN, 2014).

Vale ressaltar que o grupo de entrevistados é composto pelos professores mais


engajados da Compassiva, os quais se esmeram para desenvolver um trabalho de
excelência e que ministram a maior parte das aulas. Nem todos os educadores
voluntários têm esse perfil e a ONG encontra dificuldade na área de recursos
humanos, visto que conta com o trabalho de pessoal dispostas a se dedicarem sem
remuneração.
68

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A condução do trabalho foi revelando aos poucos um fator muito importante,


que funciona como fio condutor motivador nas ações dos voluntários envolvidos na
pesquisa, que é a confessionalidade religiosa pessoal de cada um. Embora a ONG
Compassiva não seja ligada diretamente a nenhuma religião, todos os colaboradores
são cristãos, e todos demonstraram o desejo de servir ao próximo, sendo a escolha
da docência para refugiados o caminho encontrado para colocar em prática um
chamado espiritual que parece emergir de forma individual para cada um deles. Esse
apelo originário de fonte religiosa se mostra como altamente motivante para os
educadores voluntários, gerando grande engajamento de todos. É interessante pensar
que não há nenhuma motivação financeira, pelo contrário, os voluntários têm gastos
com esse trabalho, o que não os impedem de dedicar tempo de preparo e
planejamento para as aulas, que acabam tendo muito alinhamento, mesmo
considerando as diferentes personalidades de cada educador. Há uma espinha dorsal
no trabalho desenvolvido, que em parte existe em função do material didático padrão,
o livro Muito Prazer, mas também devido ao aspecto da motivação religiosa pessoal
de cada voluntário.

Foi interessante observar que, ainda que os coordenadores não sejam da área
da educação, há uma estrutura para que os educadores sejam preparados no sentido
de compreenderem de forma geral a situação do refugiado, o panorama do refúgio no
mundo, as questões inerentes às diferenças culturais especialmente entre árabes e
brasileiros, e sobre a religião dos muçulmanos. Existe também uma preocupação por
parte da coordenação da Compassiva em proporcionar capacitação continuada por
meio de formações ao longo do ano. Há uma regra para que todos os educadores
voluntários, antes de começarem a ministrar suas aulas efetivamente, assistam a
aulas de educadores já em exercício, para que tenham modelos em quem se inspirar.
A rede de educadores parece solícita e está sempre disposta a ajudar, especialmente
os novos voluntários e aqueles que têm menos experiência no universo da educação.
Os coordenadores também acompanham bastante os grupos de WhatsApp de cada
turma e prestam auxílio sempre que necessário.

Apesar dessa estrutura criada – e que é bastante funcional para o andamento


das aulas para o público refugiado –, notamos que, quando investigamos mais a fundo
69

a base de conhecimentos do educador voluntário que atua na ONG Compassiva no


ensino de língua portuguesa no acolhimento dos refugiados/imigrantes, questões mais
teóricas ainda são um desafio. Essa falta de profundidade ficou clara nas respostas à
pergunta: “Que fontes/base teórica utiliza para embasar sua prática? Como se dá a
relação prática e teoria em sua atividade docente?”. Por meio dos depoimentos dos
voluntários, é possível perceber que o trabalho é direcionado para as questões
práticas das aulas, e suas fontes de conhecimento são concentradas ao que é
proposto pelo material padrão e por atividades que venham reforçar esse conteúdo.
A teoria é mencionada por eles, e embora eles não tenham pleno conhecimento das
fontes, elas estão presentes em seus discursos.

Os educadores demonstraram alinhamento em várias respostas ao longo das


entrevistas, e um dos assuntos em que se gerou sintonia foi o das crenças em relação
ao ensino-aprendizagem na sua prática. Os voluntários acreditam que, diferentemente
do que viveram quando eram alunos, deve-se haver vínculo entre aluno e educador,
pois essa proximidade facilita a aprendizagem. Além disso, em um contexto de aula
menos distante, há mais espaço para a valorização da cultura do imigrante e,
consequentemente, de uma troca maior.

Com esse estudo de caso, pudemos observar alguns aspectos que valem ser
ressaltados sobre o trabalho desses educadores, a saber:

- Embora haja um nivelamento das turmas, é muito difícil o alcance de


homogeneidade dentro delas, além da grande rotatividade de alunos, que entram e
saem em função de mudança de casa, de trabalho e de condição de vida. Esse
cenário força o professor a preparar aulas muito dinâmicas e variadas, que possam
alcançar os mais diversos estilos de aprendizagens.

- De acordo com as respostas dos entrevistados, que a graduação de todos os


educadores, apesar de não ser voltada à formação do professor e apresentar uma
gama de diferentes especialidades (Direito, Educação Física, Teologia, Marketing...),
colaborou significativamente para formar os educadores voluntários. Ou seja, ainda
que de forma não intencional, esse educador sem formação acadêmica na área da
educação está desenvolvendo na prática o conhecimento pedagógico do conteúdo, o
que nos faz acreditar que, se houver um direcionamento para o trabalho vinculado
entre teoria e prática, vivenciaremos aulas ainda mais ricas.
70

- Conseguimos enxergar a ocorrência do conhecimento do conteúdo e do


conhecimento pedagógico nas respostas analisadas, porém o conhecimento
pedagógico do conteúdo não foi evidenciado com clareza, talvez pelo fato dos dados
da pesquisa serem coletados por meio de entrevistas. Este conhecimento seria melhor
captado e estudado na atuação dos professores em caso de observação de aulas.
Fica um espaço para aprofundamento da pesquisa.

- A falta do espaço coletivo de reflexão foi verificada, sendo que a falta de tempo
de formação foi citada inclusive por alguns voluntários como um empecilho
encontrado.

Esse cenário nos faz crer que educadores voluntários tão motivados e
engajados, se oportunizados com políticas públicas sérias voltadas para a formação
de professores, seriam ainda mais eficazes em suas práticas.
71

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Português como Língua Adicional em contextos de minorias: (co)construindo sentidos
a partir das margens, BIZON & DINIZ (orgs.), Curitiba, v. 13, n. 1, p. 9-34, 2018.

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74

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Migrantes - Orientações Pedagógicas. São Paulo, 2021. Disponível em:
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Cadernos Cenpec, São Paulo, v. 4, n. 2, p.196-229, dez. 2014. Original: SHULMAN,
Lee S. Knowledge and Teaching Foundations of the New Reform, a Harvard
Educational Review, v. 57, n. 1, p. 1-22, primavera 1987 (Copyright by the President
and Fellows of Harvard College). Traduzido e publicado com autorização. Tradução
de Leda Beck e revisão técnica de Paula Louzano.

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Ensino de PLAc em Roraima: por uma formação de histórias locais na Universidade
Federal de Roraima. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 24, n. 2, p. 207-225, abr./jun.
2021.

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Disponível em: https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/60b638e37/global-trends-
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75

APÊNDICE 1 – TCLE – EDUCADOR VOLUNTÁRIO

Dados de identificação

Título do Projeto: Práticas de professores de língua portuguesa para


refugiados: um estudo sobre a Organização Social “Compassiva”
Pesquisador Responsável: Maria de Fatima Ramos de Andrade
Assistente Responsável: Evelyn Viriato
Participante:
Data de Nascimento: R.G.:

Informamos que você, educador voluntário da ONG Compassiva, está sendo


convidado(a) para participar, como voluntário(a), do projeto de pesquisa “Práticas de
professores de língua portuguesa para refugiados: um estudo sobre a organização
social “Compassiva””, sob a assistência da mestranda em Educação, Arte e História
da Cultura, Evelyn Viriato, e responsável Prof.ª Drª. Maria de Fátima Ramos de
Andrade, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da
Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Trata-se de um Colegiado
interdisciplinar, com múnus público, de caráter consultivo, deliberativo e educativo,
criado para defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade
e dignidade, e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões
éticos. Qualquer dúvida, pedimos a gentileza de entrar em contato com Evelyn Viriato,
pelo telefone: XXXXXXX ou e-mail: XXXXXXX e com Maria de Fatima Ramos de
Andrade no e-mail: XXXXXXX e/ou com CEP/UPM, localizado na Rua da Consolação,
896 – Consolação - Ed. João Calvino - 4º Andar - Sala 400, e-mail:
cep@mackenzie.br, atendimento de segunda e quarta-feira das 15 às 18 horas, de
terça e quinta-feira das 9h30 às 12h30 (sujeito à alteração durante a pandemia).
Leia cuidadosamente o que segue e me pergunte sobre qualquer dúvida que
você tiver. Após ser esclarecido(a) sobre as informações a seguir, basta clicar em
aceito participar da primeira fase, e caso queira participar da etapa seguinte, clique
em aceito participar da segunda fase. Em caso de recusa não haverá nenhuma
penalidade ou consequência.
Declaro ter sido esclarecido sobre os seguintes pontos:
76

1. O trabalho tem por objetivo investigar a base de conhecimentos do educador


voluntário que atua na ONG Compassiva no ensino de língua portuguesa no
acolhimento dos refugiados/imigrantes.
2. É importante ressaltar os benefícios da participação dos professores, pois, a partir
dos resultados desta pesquisa, será possível apontar contribuições para a
implementação de melhorias no processo formação de professores.
3. A partir do meu aceite, participarei de uma entrevista. As perguntas serão enviadas
com antecedência e o prazo estimado para a realização da entrevista é entre 20 e 30
minutos.
4. Durante a realização das pesquisas, a previsão de riscos é mínima, ou seja, poderei
me sentir desconfortável, exposto ou cansado. Neste caso, poderei optar em continuar
posteriormente ou deixar de responder, ocasionando assim, minha desistência.
Poderei também ter possíveis dúvidas no momento preenchimento. Estou ciente de
que elas poderão ser esclarecidas por meio dos e-mails dos pesquisadores, indicados
nesse respectivo Termo.
5. Não terei nenhuma despesa ao participar da pesquisa e poderei deixar de participar
ou retirar meu consentimento a qualquer momento, sem precisar justificar, e não
sofrerei qualquer prejuízo.
6. Fui informado e estou ciente de que não há nenhum valor econômico a receber ou
a pagar, pela participação, no entanto, caso eu tenha qualquer despesa decorrente
da participação na pesquisa, serei ressarcido.
7. Nossos nomes serão mantidos em sigilo, assegurando assim a privacidade, e se
eu desejar terei livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais
sobre o estudo e suas consequências, enfim, tudo o que eu queira saber antes,
durante e depois da participação.
8. Todos os dados coletados nesta pesquisa ficarão armazenados pelo período
mínimo de cinco anos. Fui informado de que esses dados poderão ser utilizados, única
e exclusivamente, para fins desta pesquisa, e que os resultados poderão ser
publicados.
9. Caso queira ter acesso às informações desta pesquisa estou ciente de que estão
disponíveis na respectiva dissertação de mestrado, após defesa e disponibilização na
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Presbiteriana Mackenzie
e, se houver interesse, poderei receber uma cópia por e-mail, mediante solicitação.
77

Após ter sido esclarecido sobre os objetivos, importância e o modo como os dados
serão coletados nessa pesquisa, além de conhecer os riscos, desconfortos e
benefícios que ela trará para mim e ter ficado ciente de todos os meus direitos,
concordo em participar da pesquisa “Práticas de professores de língua portuguesa
para refugiados: um estudo sobre a organização social Compassiva”, e autorizo a
divulgação das informações por mim fornecidas em congressos e/ou publicações
científicas desde que nenhum dado possa me identificar.

Aceito em participar voluntariamente da entrevista da pesquisa (Questionário


de Perfil).

Sim, autorizo o uso de imagem e som com a gravação da entrevista.

Não autorizo o uso de imagem e som com a gravação da entrevista.


78

APÊNDICE 2 – TCLE – INSTITUIÇÃO

Dados de identificação

Título do Projeto: Práticas de professores de língua portuguesa para


refugiados: um estudo sobre a Organização Social “Compassiva”
Pesquisador Responsável: Maria de Fatima Ramos de Andrade
Assistente Responsável: Evelyn Viriato

Este é um convite para que sua Instituição possa participar do projeto de


pesquisa “Práticas de professores de língua portuguesa para refugiados: um estudo
sobre a organização social Compassiva”, sob a assistência da mestranda em
Educação, Arte e História da Cultura, Evelyn Viriato e responsável Prof.ª Drª. Maria
de Fátima Ramos de Andrade, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O trabalho tem por objetivo investigar a base de conhecimentos do educador
voluntário que atua na ONG Compassiva no ensino de língua portuguesa no
acolhimento dos refugiados/imigrantes. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Trata-se
de um Colegiado interdisciplinar, com múnus público, de caráter consultivo,
deliberativo e educativo, criado para defender os interesses dos participantes da
pesquisa em sua integridade e dignidade, e para contribuir no desenvolvimento da
pesquisa dentro de padrões éticos. Qualquer dúvida, pedimos a gentileza de entrar
em contato com Evelyn Viriato, pelo telefone: XXXXXXX ou e-mail: XXXXXXX e com
Maria de Fatima Ramos de Andrade no e-mail: XXXXXXX e/ou com CEP/UPM,
localizado na Rua da Consolação, 896 – Consolação - Ed. João Calvino - 4º Andar -
Sala 400, e-mail: cep@mackenzie.br, atendimento de segunda e quarta-feira das 15
às 18 horas, de terça e quinta-feira das 9h30 às 12h30 (sujeito à alteração durante a
pandemia).
Para alcançar o objetivo geral citado anteriormente, estabelecemos os
seguintes objetivos específicos: a) identificar as fontes de conhecimento que os
educadores voluntários utilizam para ensinar; b) conhecer como se dá a relação de
teoria e prática na ação do educador voluntário; c) identificar as crenças em relação
ao ensino-aprendizagem que estão presentes na prática do educador; d) identificar a
motivação pela escolha da docência para refugiados/imigrantes.
79

Caso permita a participação, a pesquisa será composta por duas etapas,


sendo:
1ª Fase: realização de entrevista individual com 10 professores. As perguntas
serão enviadas com antecedência. O prazo estimado para realização da entrevista é
entre 20 e 30 minutos. Após o aceite de todos os envolvidos, os participantes
receberão o link para entrevista online que será enviado por e-mail.
2ª Fase: análise dos documentos da ONG em dia e horário a serem pré-
agendados.
Leia cuidadosamente o que segue e me pergunte sobre qualquer dúvida que
você tiver. Após ser esclarecido (a) sobre as informações a seguir, caso autorize,
basta clicar em aceite.

Declaro ter sido esclarecido sobre os seguintes pontos:

1. É importante ressaltar os benefícios da participação dos educadores voluntários,


pois, a partir dos resultados desta pesquisa, será possível apontar contribuições para
a formação de professores.
2. Durante a realização das entrevistas, a previsão de riscos é mínima, ou seja, o
educador voluntário poderá sentir desconforto, exposto ou cansado. Neste caso, é
possível optar em continuar posteriormente ou deixar de responder, ocasionando
assim, a desistência. Poderá também ter possíveis dúvidas no momento
preenchimento que poderão ser esclarecidas por meio dos e-mails dos
pesquisadores, indicados nesse respectivo Termo.
3. Será necessária a gravação e filmagem dos participantes para a coleta dos dados
e identificação da Instituição.
4. A participação neste projeto se dará de forma pontual, alinhada com o(a)
respectivo(a) docente presencial ou de forma on-line.
5. O entrevistado não terá nenhuma despesa ao participar da pesquisa e poderá
deixar de participar ou retirar seu consentimento a qualquer momento, sem precisar
justificar, e não sofrerá qualquer prejuízo.
6. Não há nenhum valor econômico a receber ou a pagar, pela participação, no
entanto, caso o entrevistado tenha qualquer despesa decorrente da participação na
pesquisa, será ressarcido.
80

7. Todos os nomes serão mantidos em sigilo, assegurando, assim, a privacidade, e


se o voluntário desejar, poderá ter livre acesso a todas as informações e
esclarecimentos adicionais sobre o estudo e suas consequências, enfim, tudo o que
o entrevistado queira saber antes, durante e depois da participação.
8. Todos os dados coletados nesta pesquisa ficarão armazenados pelo período
mínimo de cinco anos e poderão ser utilizados, única e exclusivamente, para fins desta
pesquisa, e os resultados poderão ser publicados.
9. Caso queira ter acesso às informações desta pesquisa elas estarão disponíveis na
respectiva dissertação de mestrado, após defesa e disponibilização na Biblioteca
Digital de Teses e Dissertações da Universidade Presbiteriana Mackenzie e, se
houver interesse, poderá receber uma cópia por e-mail, mediante solicitação.

Após ter sido esclarecido sobre os objetivos, importância e o modo como os dados
serão coletados nessa pesquisa, além de conhecer os riscos, desconfortos e
benefícios que ela trará aos voluntários e ter ficado ciente de todos os direitos,
concordo em participar da pesquisa “Práticas de professores de língua portuguesa
para refugiados: um estudo sobre a organização social Compassiva”, e autorizo a
divulgação das informações fornecidas em congressos e/ou publicações científicas.

Aceite

Sim, autorizo o uso de imagem e som com a gravação da entrevista.

Não autorizo o uso de imagem e som com a gravação da entrevista.


81

Este documento foi impresso em duas vias. Uma ficará com você e a outra com a
assistente Evelyn Viriato.

Pesquisadora Responsável: Maria de Fatima Ramos de Andrade


Telefone de contato: XXXXXXX
Assistente Responsável: Evelyn Viriato
Telefone para contato: XXXXXXX
Data: ____/____/____

São Paulo, janeiro 2022

Nome Completo:
Assinatura

____________________________
82

APÊNDICE 3 – QUESTIONÁRIO PERFIL DO EDUCADOR

Instruções: Considerando que você aceitou fazer parte desta pesquisa por meio
do respectivo Termo de Consentimento/Assentimento Livre e Esclarecido, este
questionário visa conhecer melhor o perfil dos educadores de língua
portuguesa da ONG Compassiva. A sua finalidade é exclusiva para fins
acadêmicos. Procure responder às questões a seguir, de forma individual e
consciente.
Parte 1
Nome:
Sexo ( ) Feminino ( ) Masculino
Idade:
Qual sua formação/graduação?
Fez pós-graduação? Qual?
Leciona há quanto tempo?
Em que série leciona/lecionou?
Quais são as características do grupo de imigrantes/refugiados atual para o qual leciona? (idades,
nacionalidades, sexo, formação no país de origem, motivo de expatriação)

Parte 2
1. Qual o motivo da escolha da docência para refugiados/imigrantes?
2. Qual o papel do professor?
3. Houve contribuição do curso superior ou outros cursos para sua prática docente?
4. Que fontes/base teórica utiliza para embasar sua prática? Como se dá a relação prática e
teoria em sua atividade docente?
5. Cite um exemplo de sua prática docente.
6. Que tipo de material de apoio é utilizado nas aulas?
7. Consegue reconhecer crenças que tinha relacionadas à educação que foram desmistificadas
ou reforçadas com sua prática docente?
8. Quais as características que um professor expert deve ter, no seu ponto de vista?
9. Como o professor foi preparado para trabalhar com refugiados?
10. Quais são as dificuldades encontradas em sua prática referentes à formação de professores?
11. Há possibilidade de troca entre colegas e momento de estudo/formação?
83

APÊNDICE 4 – TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA DAS ENTREVISTAS

Entrevista Afeganistão – 23/03/2022

Pesquisadora: Então eu vou compartilhar a telinha aqui para ajudar a gente, apesar
que você está na tela do celular.

Afeganistão: Estou.

Pesquisadora: Ok.

Afeganistão: Tinha que ser computador? Não?

Pesquisadora: Não.

Afeganistão: Está bom.

Pesquisadora: É que eu acho que você não consegue ver. Eu acredito.

Afeganistão: Consigo ver você, consigo ver a telinha.

Pesquisadora: Então está bom.

Afeganistão: Pois não, estou só vendo aqui, mas pode conversar comigo que eu
escuto.

Pesquisadora: Deixa-me ver aqui, vou compartilhar uma guia.

Afeganistão: Estamos aqui nos preparando, eu vou ligar aquela ventarola que não é
o ventilador. A ventarola ali. Só um minutinho. Vou ligar aqui esse ventilador. Nossas
janelas. Eu estava muito feliz com o clima de segunda e o clima de ontem, mas minha
alegria trocou. Perfeito, tudo no lugar agora.
84

Pesquisadora: Maravilha. Então vamos lá, eu gostaria de fazer algumas perguntas,


eu não sei se você teve a oportunidade ler aquele termo de aceite. Da pesquisa,
depois inclusive se você não teve a oportunidade de ler eu só preciso da sua
autorização formal para eu conseguir usar seus dados na pesquisa.

Afeganistão: Tudo bem, aquele negócio da LGPD ou não?

Pesquisadora: Na verdade é o seu consentimento para participar da pesquisa, até por


uma questão ética que a gente tem que responder. Eu estudo no Mackenzie. Aí a
gente tem que fazer todos esses procedimentos éticos porque como trata-se de uma
pesquisa que envolve pessoas, então a gente tem uns protocolos rígidos em relação
a isso. Mas então, aí, para dar um panorama rápido, só para você entender, eu estou
fazendo uma pesquisa, eu sou da área da educação também, assim como você. E eu
estou estudando especificamente formação de professores. E a minha intenção com
essa pesquisa é entender a base de conhecimento dos professores, é um estudo de
caso da Compassiva mesmo. Então é entender a base de conhecimento dos
educadores e professores que trabalham aí, nem todos são professores mesmo de
formação, pelo que eu entendi. Não é o seu caso, você é realmente um professor de
formação. Você estava me dizendo que você trabalha com isso. E então o meu
objetivo é entender como é a base de conhecimento desses professores ou
educadores que se dispuseram a lecionar para os refugiados ou imigrantes. É um
trabalho tão bonito que merece esse estudo. Então é basicamente isso, se você tiver
dúvida e quiser perguntar, tranquilo. Não quero me estender muito, também para não
te atrapalhar. Bom, então depois você vai preencher lá para mim, aí você vai colocar
a sua idade e o seu nome certinho, mas eu já sei que é Afeganistão. E já sei que você
tem quarenta e nove anos, porque eu participei da sua aula e você respondeu.

Afeganistão: Você vai divulgar isso? Brincadeira.

Pesquisadora: Aí então a próxima pergunta. Essa parte um é mais para a gente traçar
o perfil do educador. Qual é a sua formação?

Afeganistão: Então, eu tenho formação em Teologia e também em Logística. Estudei


Letras, porém eu não concluí, e fiz jornalismo.
85

Pesquisadora: Ai, que legal, bem diversificada. Você teve a oportunidade de fazer pós-
graduação e se sim, qual?

Afeganistão: Sim, em gestão de pessoas.

Pesquisadora: Legal. Leciona há quanto tempo?

Afeganistão: Eu tenho lecionado de maneira consecutiva desde 2014. Mas já tinha


tido experiência tanto em escolas públicas como em escolas particulares durante o
período em que eu estava fazendo curso de Letras.

Pesquisadora: E o que você leciona, em que série você seleciona?

Afeganistão: Eu sou instrutor de formação profissional. Então o meu trabalho é mais


voltado tanto para o preparo de jovens aprendizes. E aí você tem uma gama de
matérias que vão desde português, logística, comportamento no ambiente de trabalho,
ética profissional, procedimentos de RH, departamento pessoal, toda essa parte mais
estrutural porque o curso é de formação na área de assistente administrativo. Também
trabalhamos com jovens aprendizes na formação de logística. Então, vai todos os
processos logísticos aí. Viria a ser, por exemplo, a movimentação dentro de armazéns,
procedimento, documentação no transporte. Além desses, a gente também trabalha
com cursos na área de capacitação profissional dos trabalhadores do transporte.
Então, por exemplo, hoje estive numa empresa ministrando sobre noções de
desenvolvimento de liderança. Mas aí entram outros cursos e de acordo com a
necessidade, a empresa pode solicitar e aí a gente tem no trabalho, ética profissional,
inteligência emocional, o leque é bem grande.

Pesquisadora: Tem que ter uma formação diversificada mesmo para conseguir
atender tanta diversidade de aula. Legal. E quais são as características do grupo de
imigrantes ou refugiados que atende na Compassiva?

Afeganistão: Então, o nosso grupo é bastante heterogêneo. Porque nós temos aqui
várias nacionalidades, nesse sentido eu me refiro, por exemplo, a gente tem do
princípio cultural, então nós temos uma diversidade muito grande. Então, nós temos
aqui egípcios, sírios, iranianos a palestinos, então isso dá para a gente uma gama
cultural muito grande. Com essa gama, quando eu falo assim da questão dessa
variedade cultural, e aí vão entrar outros detalhes, a questão religiosa. Questão da
86

religião na mesma região, por exemplo, então a gente tem variações. Da mesma
maneira como a gente também vê no cristianismo, uma variedade muito grande, então
a gente tem tradicionais, pentecostais, católicos e essa variedade tão grande do
mesmo jeito se manifesta também em outras religiões. Então primeiramente o perfil é
marcado por essa diversidade cultural. E de outra forma, de um certo modo também,
há uma igualdade porque quando você chega num país onde você não domina o
idioma com a cultura muito diferente, então a gente vê que naquele primeiro momento
algumas características são comuns. E eu não sei se posso já ir falando delas ou se
você vai fazer isso numa outra pergunta.

Pesquisadora: Não, pode falar, pode falar.

Afeganistão: A gente percebe primeiramente aquela concentração cultural e isso não


é só característica, por exemplo, do refugiado. Eu vi isso entre brasileiros quando eu
estava em outros países, que a pessoa naquele primeiro momento quando se choca
com a língua, não consegue se comunicar, então elas ficam meio concentradas ali
naqueles guetos. Pessoas do mesmo país. O que na verdade é até muito ruim porque
se torna um obstáculo para o desenvolvimento da nova língua. Mas é comum isso
acontecer. Não é uma característica apenas dos nossos alunos. Então nesse sentido
eles se igualam, porque eles ficam muito isolados. Nesse primeiro contato com o novo
país, são as dúvidas, as incertezas e aí sim tem mais a ver com a realidade refugiada.
Estou chegando no novo país, que eu vou fazer aqui? Será que um dia eu aprendo
esse idioma? Como eu vou poder me virar? Então são aqueles questionamentos que
ele tem que muitas vezes ele nem consegue expressar, não tem o domínio da língua,
da língua deste país. Então fica muito naquele grupo ali, esse tipo de conversação.

Pesquisadora: Entendi. E agora a gente vai seguir então para parte dois, né, que são
as perguntas mais voltadas para pesquisa em si. Para parte teórica. Então a primeira,
qual o motivo da escolha da docência para refugiados e migrantes? Por que que você
fez essa escolha?

Afeganistão: Eu acredito que pela minha própria experiência, tendo ido morar na
Bolívia, sem dominar o idioma e ter aprendido ao longo do tempo, também há outra
experiência na Nova Zelândia, porque mesmo eu já tendo uma base de inglês é
completamente diferente quando você vai morar num país que fala inglês e no caso
87

da Nova Zelândia, um inglês um pouco diferenciado daquele que a gente está


acostumado na escola. Então, é mais ou menos português do Brasil e português de
Portugal. Então, assim, eu passei por muitas dificuldades, tinham situações
engraçadas, claro, mas era muito desafiador, às vezes frustrante também e nas
minhas duas experiências eu não tive uma ajuda como essa da Compassiva. Eu tinha
que aprender mesmo na convivência, no dia a dia, pessoas me ajudavam que não
eram professores, eram as pessoas com quem eu estava convivendo, as famílias que
estavam me recebendo e quando eu voltei para o Brasil em 2015, eu queria de alguma
forma ajudar estrangeiros aqui. E foi aí que eu conheci a Compassiva.

Pesquisadora: Que legal. E qual o papel do professor no seu ponto de vista?

Afeganistão: Olha, na no meu ponto de vista é impossível você ser exitoso no seu
trabalho se você se mantém nessa distância. Eu digo para você, sem sombra de
dúvida, meus melhores amigos em São Paulo são ex-alunos meus, são ex-alunos
refugiados, e isso foi possível porque para mim o meu tempo com eles era muito curto,
era insuficiente para a gente poder realmente desenvolver, ter outras experiências,
sair um pouquinho do livro. Então, eu comecei marcando com eles passeios pela
cidade, no final de semana. Então, eu falava, vamos sair porque é nesse ambiente,
fora da sala de aula, que a gente vai poder indicar o supermercado, o hospital, a praça,
de uma maneira que é experimental, não é uma coisa apenas de olhar o livro e não,
você vai ver, ali é uma praça, ali tem árvores, tem pássaros, então você traz esse
ambiente para criar ali um vocabulário. Nessas experiências nós estamos ficando
mais amigos e, para minha surpresa, porque na cultura árabe não é muito comum
essa coisa: “Vou te convidar para minha casa”. Especialmente no caso de famílias.
Tem as mulheres e aí as famílias começaram a me convidar, “vamos almoçar lá em
casa, vamos lá na minha casa”. E isso foi estreitando os laços, me foi ensinando muito
sobre cultura e então eu acredito, respondendo à pergunta, sem querer fugir do tema,
eu acredito que a função do professor vai muito além da sala de aula, ela propicia
isso, porque o refugiado quando ele chega nesse novo país ele não tem amigos. O
meu grande desafio com meus alunos é dizer para eles assim, “olha, você precisa
praticar o português e para isso você precisa fazer amigos brasileiros” e ele fala, “mas
eu não tenho amigos aqui”. Eu falei, “e eu sou o quê?” Aí eles começam a entender,
“ele é meu professor, mas pode ser meu amigo também?”. Então, assim, já viajei com
meus alunos, para você ter uma ideia, no último dia do ano a gente foi para o Rio de
88

Janeiro, fui para o Rio de Janeiro com nove alunos, passar o réveillon lá. Sempre
estou viajando assim, já cometi erros. Misturei países numa mesma viagem, não é
uma boa ideia e eu não sabia disso. Porque a interação é diferente e a gente vai
aprendendo na verdade. Com o tema que não tem um manual de instrução, você vai
aprendendo, então eu já tenho, quando eu vou sair com os sírios, é só com os sírios,
só os sírios. Então, tem essa coisa também, e é natural, é cultural também. Então,
acredito que o papel do professor precisa ir muito mais além. Então, só para fechar,
eu sei que está longo, mas eu queria só te dizer.

Pesquisadora: Não, está ótimo, estou adorando. Se por acaso ficar muito longo, te
atrapalhar, a gente quebra.

Afeganistão: Chega um ponto que teu aluno, por exemplo, hoje eu virei meio que
consultor dos meus alunos, ele fala assim, outro dia um chegou e falou, “Afeganistão,
eu estou com dor nas costas, eu preciso ir ao médico, mas eu não falo português
suficiente, pode me ajudar?”. “Com certeza, vamos marcar consulta, vamos lá”. E aí
é aquele tipo mãe. Que chega lá, a gente chega lá com aquele adulto daquele
tamanho, quem fala sou eu, só pedindo para ele ali o que que ele está sentindo para
poder traduzir. Outra hora ele me liga: “Afeganistão, quero fazer um curso na
universidade, como que eu acho uma universidade?” Vamos pesquisar, vamos lá.
Então, assim, ele olha para você e ele vê essa figura de referência. E uma pessoa fala
assim, olha, quando eu tenho qualquer dúvida, eu já falo, liga Afeganistão. E às vezes
eu recebo ligação de gente que eu não conheço. O fulano mandou te ligar.” Porque
olha, eu estou querendo que a minha família volte para o Rio, mas eu não sei comprar
passagem no aplicativo. Você pode me ajudar?” Cara, com certeza. Sabe por quê?
Porque quando eu estava na Nova Zelândia eu não sabia ir ao médico. Eu não sabia
onde comprar remédio, e as pessoas me ajudaram. Então eu sei como é importante
para a gente que não é nativo do país ter esse tipo de ajuda, que para nós, nativos,
nada é complicado, porque eu estou no meu país, eu estou na minha cultura, eu estou
na minha língua, mas para quem vem de fora, tudo é muito diferente. Então, eu acho
que, sim, o papel do professor precisa ir um pouquinho além das quatro paredes. Se
você vir, você pode vir aqui, você pode dar uma aula de português e sair e viver tua
vida. Mas eu acho que você está fazendo muito pouco, você está comendo a casca e
jogando a banana fora. Você pode fazer, aprender muito mais, ser muito mais útil,
está entendendo? Eu penso assim.
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Pesquisadora: Que legal! A terceira, houve contribuição do curso superior ou outros


cursos? Sua prática de curso superior contribuiu para sua prática como professor
desse curso da Compassiva?

Afeganistão: Olha, o curso de português eu nem preciso falar. Então assim, ter feito
Letras me ajudou muito. Meus alunos surgem com dúvidas e eu vou te dizer a
verdade, tem coisa que nem o curso superior ajudou. Porque, por exemplo, o aluno
chega para você e fala assim, “professor, você fala dor de cabeça, fala dor na cabeça?
Existe dor de perna? Existe dor na, por que que tem dor de e tem dor na?” Cara,
desculpa, no meu curso de Letras não me explicaram isso dessa forma, está
entendendo? Não era um questionamento comum, porque a gente desde sempre
aprendeu isso aí. E aí você fica assim, espera aí, vamos raciocinar. Então, assim, na
parte da base gramatical do português, Letras me ajudou demais. Com certeza me
ajudou, continua me ajudando. A formação em Teologia também me ajudou porque
nós trabalhamos muito com antropologia. Então isso me ajuda muito a entender essa
questão cultural que os homens vão chegar e vão me dizer “oi”, eles vão me dar um
beijo, mas as mulheres eu não posso nem tocar se ela for muçulmana. Então, assim,
o lado da antropologia me ajudou muito, que se eu não tivesse tido eu cometeria muito
mais erros. E alguns erros na cultura árabe e outras culturas podem ser um erro muito
grave que pode fechar as portas completamente para você. Então toda a formação
me ajudou bastante. Como a gente também trabalha com venezuelanos, porque na
minha turma agora não tem, mas já tive, então o curso de jornalismo que eu fiz foi na
Bolívia, então o curso indiretamente, por serem espanhóis, me ajudou bastante. E
hoje quando eu dou aula de português para eles, às vezes eu uso o espanhol como
um paralelo também. Para poder fazer essa ponte com o português.

Pesquisadora: Nada é perdido. Incrível.

Afeganistão: Nada. Incrível.

Pesquisadora: Em que base teórica, onde você bebe para embasar a sua prática?
Como acontece essa relação de teoria e prática na sua atividade docente?

Afeganistão: Então, eu acredito que aí algum tempo da minha experiência tem me


ajudado muito, mas tem coisas que são muito novas, uma coisa é você dar aula de
português para brasileiro, outra coisa é para estrangeiro. E eu vou usar como exemplo
90

a aula passada. Eu tinha que falar com eles sobre apresentação em português, o uso
do possessivo dele e dela e eu queria trazer aqui um grupo de personalidades. Só que
nem todo mundo que é celebridade no Brasil é celebridade no Afeganistão, então
como eu tenho um amigo afegão, eu liguei para ele e falei com ele, “eu vou dar uma
aula assim e eu preciso de algumas sugestões, nomes de famosos afegãos ou de
famosos para os afegãos”. E ele me passou isso, aí e eu utilizei e era interessante ver
quando eles olhavam para alguém ali que era conhecido deles, totalmente anônimo
para nós, mas conhecido deles, quando eles iam falar sobre aquela pessoa, então eu
acho que a prática desse aprendizado vem dessa maneira, você vai ter que ser criativo
para instigar o aluno a falar, fazer pontes entre a cultura que ele já tem, eu não posso
jogar fora tudo que ele tem, mas agora fazendo uma parceria com o próprio português,
está entendendo? Nesse sentido aí de tornar as coisas práticas. Então, às vezes eu
digo para eles, “olha, eu vou dar uma aula sobre lugares da cidade”. Aí eu mando lá
no grupo do WhatsApp, “olha eu quero uma foto de uma farmácia, de um
supermercado, de uma padaria”, para que isso vá gerando para ele vocabulário e
familiarizando ele com essas palavras para tornar prático, porque se você ficar só no
livro, no livro, no livro, ele sai pela porta ali, chega em casa e quer guardar aquele
livro, o conteúdo está perdido porque a vida deles em média vai ser noventa e cinco
por cento na língua nativa, porque eles moram com nativos do país deles, a língua
nativa dele, o contato com o português se resume à sala de aula na maioria dos casos.
Então, você tem que fazer com que ele leve o idioma com ele para onde ele for, então
você vai desafiando-o a olhar para os lugares, olhar para os objetos e começar a dar
nome disso, mas é agora em português.

Pesquisadora: Está certo, eu vou pular a cinco, porque você já respondeu para mim
como exemplo. A seis, que tipo de material de apoio é utilizado nas aulas?

Afeganistão: Bom, eu tento utilizar de tudo, então assim, muitas vezes sem muito
depender da própria Compassiva. Eu comprei, por exemplo, um kit de bandeiras do
mundo inteiro, que eu tenho para dar aula de nacionalidades. Eu estou usando isso
aqui. Consegui na empresa onde eu trabalho vários mapas. Mapa-múndi. Tento
também trazer para que eles entendam onde é o Brasil, onde eles estão e quando a
gente fala também sobre nacionalidades. Utilizo bastante o PowerPoint. No meu
computador, utilizo a lousa, entendendo que como nós temos pessoas de diferentes
culturas, com diferentes formações, você tem que buscar um método que alcance a
91

todos, tanto aqueles que são mais instruídos, que tiveram mais acesso à educação,
quanto aqueles que não tiveram. Então, nesse primeiro momento, nesse nível em que
eles estão, o visual é muito importante. Tudo que eu puder usar de visual, eu sempre
opto por isso porque é aquela fase de não é tanto de alfabetização, eles conhecem o
alfabeto, mas de familiarização. De criação, desse dicionário, português-afegão.
Então nessa parte aqui eu utilizo bastante o PowerPoint.

Pesquisadora: Legal. Você consegue reconhecer crenças que você tinha relacionadas
à educação e que foram desmistificadas na sua prática do dia a dia ou talvez
reforçadas, porque a gente acaba tendo crenças em relação às coisas em geral. E em
relação à educação, porque a gente passa grande parte da nossa vida jovem, da
nossa infância, nossa juventude, dentro da sala de aula. Então, a gente vai criando as
nossas crenças em relação à educação. E aí, quando chegou a sua vez de ser
professor, você reconheceu alguma crença que você tinha ou falou, não, não, nada a
ver, realmente eu tinha essa crença e não confere com a realidade.

Afeganistão: Sim, eu sou dos anos 70. Então, eu tive um contato com a escola, com
os professores, diferente do que hoje é praticado. Então, o professor era o detentor
do conhecimento, era aquele ser incontestável, não existia Google na época, a gente
não verificava aquela informação. Era Barsa. Da nossa época. Hoje mudou. O nosso
aluno está lá. Você está falando uma coisa e ele está lá no Google consultando aquilo
para ver a veracidade daquela informação. Isso gera muito mais compromisso, no que
era a crença que eu falo e que mudou muito. A primeira grande crença era aquela
coisa da diferença entre o professor e o aluno. Aquela distância mantida. Até em nome
da conservação, preservação da autoridade e eu vi que não funciona assim. Na
verdade eu trabalho tanto na Compassiva como em uma outra empresa, lido também
com diferentes públicos aí. E o que acontece? Eu percebo que quanto mais próximo
do meu aluno, mais aberto ele está para o conhecimento. Porque isso é muito simples
de se entender. Se algum estranho te oferece algo como sendo algo bom, você põe
em dúvida a credibilidade daquela informação, principalmente porque você não sabe
quem é aquela pessoa, mas quando um amigo teu chega para você e fala assim,
“olha, toma esse chá aqui que ele é muito bom; olha, vai naquela lanchonete que a
comida lá é maravilhosa; compra aquela roupa que é boa”. Você já teve ali um critério.
Você já passa, você fala assim, “cara, eu vou fazer isso”. Então, como professor, hoje
eu percebo que, quando eu consigo quebrar essa barreira que separa o professor do
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discente, o fluxo de informação, o conhecimento flui muito mais facilmente, ele é


absorvido de uma maneira muito mais natural, muito mais prazerosa, tanto para o
aluno como para o professor. Então, quando ele chega aqui na minha sala de aula,
eu falo, “nossa, que roupa bonita, como você está, legal”. Ele fala, “o professor me
viu, o professor me notou”. Quando você tenta trazer para o aluno, ele não é mais um
biscoito ou bolacha do pacote, que ele é um ser único, você o reconhece, você sabe
como ele se chama, você sabe de onde ele é, isso muda para ele. Tá entendendo?
Então eu não via isso, na minha época, nós éramos um pacote de bolachas, onde o
professor mal sabia seu nome, não sabia quem você era, eu sei que eu lido com
muitos alunos, me esforço muito para a questão de nomes, por exemplo, mas é
fantástico quando o aluno escuta o nome dele. “Fulano, você não veio na minha aula
passada, senti sua falta, está tudo bem com você?” “Caramba, o professor sabe que
eu faltei na aula dele, sentiu a minha falta”. Então, assim, isso para mim foi mágico.
Quando eu entendi isso, foi maravilhoso e eu tento aplicar isso. E aí vai uma dica.
Escritores da liberdade me ajudou muito nesse sentido. Maravilhoso, é aquilo que ela
fala. Mas nessa sala de aula é muito mais do que isso. Então, é algo que eu não tive
e não fui assim ensinado, mas a sala de aula acabou me trazendo essa informação e
eu vi que ela é realmente verdadeira.

Pesquisadora: Legal. No seu ponto de vista quais são as características que um


professor expert deve ter? Como é um professor expert?

Afeganistão: Primeiramente, aquele professor disposto a aprender, vai chegar na sala


de aula muitas vezes com o material preparado, com tudo pronto e talvez seja aquele
dia que o seu aluno vai te ensinar muito. Lidando com estrangeiros, primeiramente
esteja aberto para aprender como ensinar. Que é muito diferente e é algo que não tem
um manual para isso, é o dia a dia que vai te ensinar. Nem toda receita de sucesso
com alunos nacionais vai funcionar com o aluno estrangeiro. E aí cabe a você, no
desenvolvimento do curso, das aulas, perceber isso aí. Então, eu acho que o expert é
aquele que não para de aprender. Você se fecha no seu conhecimento, na sua
experiência achando “eu já sei tudo”, infelizmente, aí talvez tudo esteja perdido. Então,
eu acho que o expert é aquele que não para de aprender.

Pesquisadora: Legal. E como que você foi preparado para trabalhar com os
refugiados?
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Afeganistão: Como que eu poderia te dizer isso? Olha, existe toda uma
contextualização inicial que a gente tem. Explicando alguns detalhes de culturas, de
religiões, que nos ajuda bastante. Sem esse preparo, sem essa orientação, muitos
erros seriam cometidos. Então, essa é a base. Mas ainda com essa base, aí é no dia
a dia que você vai percebendo, porque, como eu te disse, são diferentes culturas,
diferentes países, diferentes experiências. Então, no dia a dia é que você vai
começando a perceber alguns detalhes que não estão expressos ali. Olhares,
posturas, respostas, e aí cabe a você aguçar bem o ouvido e abrir bem os olhos para
entender o que está acontecendo. Exemplo simples, em alguns casos você tem que
ter cuidado, por exemplo, ao elogiar uma aluna pelo desempenho dela quando o
marido dela está na sala de aula e não tem o mesmo desempenho, o que é muito
comum. A esposa tem mais essa mais sede de aprendizado e elas são mais abertas,
porque enquanto o homem tem que manter aquela postura de “sabe tudo”, “sei tudo
e quando não sei me calo para não dar uma resposta errada”; a esposa é como
criança, ela não tem essa preocupação, vai mergulhar de cabeça, ela vai pronunciar
algo errado e vai aprender com aquilo sem nenhum constrangimento. Para o homem
é diferente. O ser corrigido, se você mostrar dessa maneira aqui e tal pode ser
ofensivo. Estando o casal na sala de aula, tenha o cuidado de, por exemplo, não
elogiar muito a esposa em relação ao marido, vai ficar claro que ela está mais
dedicada, está com o aprendizado mais desenvolvido e isso para o casal pode gerar
um problema.

Pesquisadora: Caramba, interessante isso. E quais são as dificuldades encontradas


na sua prática referente a formação mesmo, formação de professores, você consegue
identificar alguma?

Afeganistão: Olha, deixa eu te dizer, eu acredito pessoalmente para mim não é uma
grande dificuldade, mas uma fluência em inglês para o nível com que eu trabalho é
um pré-requisito, porque como eles chegam aqui sem a ponte para o português. Por
exemplo, no caso do espanhol, é mais simples, mas no caso do afegão, no caso do
árabe, muitos deles vem com uma bagagem de inglês, certo? Que seria talvez um
intermediário. E se o professor chega na sala de aula para dar uma aula para eles
sem essa base mínima, fica mais complicado. Eu gostaria de aprender inglês melhor
do que eu tenho hoje, sabe? Eu acho que ajudaria mais. Então eu acredito que até
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mesmo no curso de Letras você tem. Com habilitação em inglês ou habilitação em


francês ou mesmo em espanhol. No caso dos árabes é claro, a língua que seria aí a
ponte é o inglês, é uma necessidade.

Pesquisadora: Legal. E a última pergunta é: há possibilidade de troca entre colegas,


há um momento de estudo e de formação aí entre vocês?

Afeganistão: Não, é uma coisa que eu realmente sinto muita falta. Como nós
trabalhamos, por exemplo, entre três professores a mesma turma, o que acontece é
que no final da aula a gente manda um relatório daquilo que foi que foi feito, mas eu
sinto falta sim da gente sentar junto, conversar, não apenas pelo desenvolvimento,
linguístico do aluno, mas o desenvolvimento holístico do aluno. De uma maneira muito
mais ampla nas relações dele, nas interações em sala de aula, cotidiano da vida dele.
Então, eu acho que seria bem mais proveitoso, a gente teria uns resultados melhores,
é porque nós, como professores, eu acredito. Talvez não, mas eu acredito que somos
as pessoas mais próximas dos nossos alunos. Pelo contato que a gente tem aqui.
Então, até mesmo para própria organização, para poder ajudar mais ou compreender
mais, era importante que a gente tivesse essa conversa dando daquilo que a gente
está lutando.

Pesquisadora: Entendi. Que ótimo, Afeganistão. Nossa, me ajudou muito, agradeço


demais pela sua disponibilidade, mais uma vez. Segunda vez que isso acontece.

Afeganistão: A gente está aqui para isso, é um prazer muito grande, viu?

Pesquisadora: E eu começo a dar aula on-line na segunda-feira. Depois eu te conto


como é que vai ser a experiência.

Afeganistão: Qualquer coisa que você precisar, material que eu tiver, conta comigo,
está bom? Você vai dar aula para quais turmas?

Pesquisadora: Eu não sei ainda o perfil dos alunos, mas eu sei que é básico.

Afeganistão: Básico também. Tira de letra.

Pesquisadora: Não sei, vamos ver. Qualquer coisa eu vou recorrer, hein? Qualquer
coisa eu vou te chamar.
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Afeganistão: Precisar, fala com a gente, estou a sua disposição.

Pesquisadora: Tá bom, Afeganistão, mais uma vez, muito obrigada, viu?

Afeganistão: Prazer, de todo coração, viu?

Pesquisadora: Obrigada, boa aula para você.

Afeganistão: Obrigado. Bom, bom final de semana aí também.


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Entrevista Síria – 24/03/2022

Pesquisadora: Eu parei de compartilhar, um momento. Vamos lá, acho que agora vai.
Bom, então, mais uma vez, muito obrigada pela ajuda. Pela segunda vez já, você já
me deixou assistir sua aula, foi muito legal. Agora tem essa segunda parte, que é a
parte da entrevista, só rapidamente dando um panorama, eu estou fazendo essa
pesquisa. Eu sou uma aluna de mestrado lá no Mackenzie.

Síria: Eu estudei lá!

Pesquisadora: É mesmo? O que você estudou lá?

Síria: Eu fiz Publicidade, Marketing.

Pesquisadora: Mackenzista também. Eu faço, a minha área é de educação. O meu


programa é Educação, Arte e História da Cultura e eu tenho estudado formação de
professores. Então o meu objetivo com esse trabalho é um estudo de caso, na verdade
meu objetivo é entender um pouco a base de conhecimento dos educadores e dos
professores que são voluntários na Compassiva. É muito lindo o trabalho que vocês
realizam e aí a ideia é entender um pouco melhor esse contexto.

Síria: Obrigada!

Pesquisadora: Nossa, eu que eu que agradeço. Já faz um tempo que eu gostaria de


trabalhar lá. E aí agora misturou. Graças a Deus deu certo. Então em paralelo com a
pesquisa eu também vou começar a voluntariar. Aí segunda-feira eu vou começar a
dar aula. Estou superfeliz.

Síria: Seja bem-vinda no que precisar de apoio. Nossa! Mas eu acho que você tem
muita bagagem aí, principalmente didática para ajudar a gente, vai ser uma boa troca.

Pesquisadora: Mas eu dou aula há bastante tempo, mas não nesse contexto. Então é
sempre diferente, a gente sempre está aprendendo muito, muito, muito. Então com
aquele gelinho na barriga. Bom, então seu nome, sexo, idade, você já preencheu lá
no outro formulário, então eu vou pular isso daqui. Qual sua formação?

Síria: Eu fiz Marketing no Mackenzie.


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Pesquisadora: E teve a oportunidade de fazer pós e se sim qual?

Síria: Fiz. Eu tenho uma MBA em Inteligência do mercado e uma pós-graduação em


Administração de negócios.

Pesquisadora: Legal, bacana. Essa primeira parte aqui é para a gente traçar o perfil
do educador. Há quanto tempo que você leciona?

Síria: Na Compassiva eu comecei a lecionar eu acredito faz um ano.

Pesquisadora: E antes você já também teve a experiência de dar aula?

Síria: Não, foi a primeira imersão que eu fiz para dar aula. Na Compassiva foi a
experiência que eu tive porque eu trabalhava na área. Eu fiquei mais ou menos quatro
anos trabalhando na área administrativa com coordenação. Dos benefícios e vale
transporte dos refugiados, então eu tinha já um contato com os refugiados nessa parte
e em alguns eventos. Dia da saúde, dia da mulher, experiências com outros eventos
pontuais. Como veio a pandemia a gente parou com essa parte administrativa e eu
senti falta do trabalho da Compassiva e pedi para que eu pudesse agora em 2021
entrar com as aulas on-line. Então a minha primeira foi no início de 2021 entrando
com as aulas on-line. Aí acabando 2021 a coordenadora perguntou se eu gostaria de
ter o desafio de ir para a aula presencial e eu aceitei, então estou há três meses com
as aulas presenciais. E um ano no on-line, foi assim a minha migração, mas a minha
experiência maior na verdade em relação a cursos é com refugiados, não com
pedagogia ou didática para aula, né? Toda essa outra parte a gente desenvolve em
cursos na própria Compassiva, a Compassiva tem parcerias com algumas ONGs que
desenvolvem materiais específicos de apoio para línguas para povos de língua de
outros idiomas, que necessitam de uma alfabetização ou até mesmo a imersão total
no idioma. Nós temos esses cursos pontuais com eles e com os materiais didáticos e
as coordenadoras da Compassiva. Para entender o contexto aí. Mas a gente vai
conversar mais nas demais perguntas, mas eu já acabei respondendo algumas.

Pesquisadora: Perfeito, perfeito. Agora fala um pouquinho do grupo que seleciona lá


na Compassiva?

Síria: Bacana. Na verdade, eu conheci a Compassiva através de um curso que eu fiz


de missão transcultural na Igreja Presbiteriana de Pinheiros. Eles dão o curso de
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missões transculturais. Para povos de outras culturas. Eu fiz esse curso com o André,
que é o presidente da Compassiva. Era um dos professores nesse curso, né? Foi há
cinco anos. Então como ele foi professor, eu estava com uma outra colega fazendo
curso, ela queria trabalhar com a Compassiva, depois que o André apresentou todo o
trabalho dele também, trabalho com refugiados e povos de outras culturas. E nós
fomos conversar com o André. Aí ele falou assim, “é bacana, a gente precisa”, e aí
nós fomos até a Compassiva, fizemos uma entrevista com ele, uma triagem, aí
esperamos algum, acho que um mês mais ou menos, aí ele nos deu o retorno e depois
fomos conversar com a coordenação para dividir os trabalhos. Então aí eu fui para
essa área mais administrativa pelas minhas experiências. O primeiro contato pelas
minhas experiências que são mais ligadas a área administrativa, na verdade, além da
minha experiência, minha formação também. Então eu ajudava mais lá no backoffice,
então a minha seleção aconteceu dessa forma e o meu contato com a Compassiva.

Pesquisadora: Entendi. Bom, eu assisti à sua aula, então eu ouvi. Essa última
pergunta aqui da parte um. As características do grupo de imigrantes, eu vi que é um
grupo de alunos mais avançados, eles conversam já bem em português, o que mais
você pode me falar desse grupo a que você leciona?

Síria: Essa é a característica principal, que você até colocou, é um grupo avançado,
então eles têm bastante conhecimento, têm até dentro do grupo uma aluna que ela é
professora, eu fiquei sabendo essa semana através da Jéssica, ela não estava, que é
a VVVV. Ela não estava, mas ela é professora, então eles mesmos têm algumas
experiências, a SSSS também tem alguma outra experiência assim, relacionada a
idiomas, então é um grupo em que um ajuda o outro, ajudam até o professor algumas
vezes, porque é diferente de você passar o seu idioma para alguém que é de outra
cultura e de outro idioma completamente diferente. Então a característica deles é uma
característica avançada. E até um nível intelectual um pouquinho maior. Eles pegam
muito rápido assim.

Pesquisadora: Entendi. Então, agora a gente parte para a parte dois, que é mais
voltada para teoria mesmo do trabalho. Então, a primeira pergunta, por que que você
escolheu a docência para refugiados e imigrantes? De certa forma você já me deu um
spoiler aí porque você disse que estava sem atividade por conta da pandemia e pediu
uma atividade diferente e aí você acabou...
99

Síria: Isso.

Pesquisadora: Indo para parte de aulas, mas o que mais o que te motivou a continuar
então, o que te motivou a pender para esse lado da docência?

Síria: Primeiro foi o contato com os refugiados. Porque a gente ajuda o refugiado não
só com a com a aula. A gente ajuda o refugiado também com as necessidades básicas
que possam acontecer. Nós acabamos sendo uma ponte do refugiado com a
coordenação da Compassiva, porque a gente tem maior contato com eles. Então isso
também me atraiu muito para dar a aula. Porque o meu principal objetivo no início era
até fazer uma missão transcultural em outro país. Antes de ir para a Compassiva, por
isso que eu fiz o curso da Perspectiva. Aí, entrando na Compassiva, eu fiz essa etapa
de ir para área administrativa, e claro, veio a pandemia, eu quis continuar o trabalho
e por esse motivo de contato mais estreito com o refugiado, para ajudá-lo melhor,
então me motivou para dar a aula para eles. Essa motivação deles poderem utilizar o
português como ferramenta para conseguirem emprego. Então, é mais nessa
questão. Nessa missão social de imersão do refugiado, da ajuda financeira, até para
se recolocar. Isso me motivou muito a dar a dar aula. Foi isso.

Pesquisadora: Bacana. No seu ponto de vista, qual o papel do professor?

Síria: Então, eu já falei um pouquinho. Essa ajuda social. Essa missão social que a
gente tem, o refugiado, ele vem num contexto fragilizado, ele precisa de emprego.
Eles procuram o idioma português para conseguir emprego, para conseguir suprir a
necessidade básica dele para se manter aqui. Então esse papel social do professor é
muito forte. Não dá só para você dar a aula sem pensar o que ele vai fazer com o
idioma aqui no Brasil. Ele é um recurso dele. Um recurso social para ele se estabilizar
aqui. Tem a ver com a renda dele, com a sobrevivência dele. Então vai muito além do
aprender um idioma novo no contexto do refugiado. Tem um papel social muito
grande.

Pesquisadora: Está certo. A sua formação não foi na área de educação. E você
acredita que sua formação contribuiu de alguma forma para sua prática docente?
Você enxerga uma contribuição?
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Síria: Eu acredito que, como a sala acaba comportando alunos com um nível
intelectual um pouco maior, claro né? De formação. Eles têm formação superior,
alguns com alguma formação superior, acaba contribuindo até com outros tipos de
conhecimento. Claro que noventa por cento do que eu levo para aula é relacionado à
pedagogia e à didática para a aula. Que a Compassiva mune a gente de outros cursos
relacionados a esse tema, o que contribui muito, né? O que eu tenho de formação na
verdade contribui, eu acho que cinco por cento nessa questão, mais de você buscar.
Outra, que você tem que usar muito a criatividade, às vezes surgem alguns exemplos
na aula até relacionados com o dia a dia deles, daí contribui, mas bem pouco, a maior
parte para desenvolver a aula é o conhecimento que a Compassiva deu para a gente
e desse curso de Perspectivas que eu fiz para entender a cultura árabe e a religião
islâmica. Porque alguns ainda praticam o islamismo, então essas duas coisas
interferem bastante. Então isso ajudou.

Pesquisadora: Muito bem. Agora a quatro aqui. Como que você enxerga a relação
teoria e prática na sua atividade docente? Você consegue traçar uma relação da teoria
ou você vai mais para prática? Como é que funciona isso?

Síria: Os dois juntos, como eu falei, né? Os cursos que a Compassiva oferece para a
gente ajudam bastante. Eu até esqueci o nome da ONG, depois eu posso até passar
para você. Mas, nossa, contribuiu muito, porque às vezes eles têm dúvidas culturais
dentro do que você vai passar da língua portuguesa. Então surge uma dúvida cultural.
E até às vezes contextos religiosos. Então os cursos para povos de outros idiomas
contribuíram para a gente conseguir trazer ao nosso conhecimento que a gente tem
da língua portuguesa, da gramática com o contexto religioso e com o contexto cultural.
Então a gente tem que unir essas três coisas para conseguir levar a teoria gramatical
do português para esse tipo de aluno com essas características.

Pesquisadora: Esses cursos que você está citando são cursos que a Compassiva
promove para vocês?

Síria: Isso, a Compassiva promove. Há instituições muito sólidas nessa área com
pedagogas, com professoras. De formação, elas constroem até materiais e elas têm
contato com povos de outros idiomas, até povos árabes. Colocar em prática a
gramática portuguesa nesse contexto, então eu posso até passar depois o nome, mas
101

eu fiz acho que três módulos, ainda tem alguns módulos que eles disponibilizaram
também materiais de apoio, além do material oficial da Compassiva para a gente
trabalhar a criatividade, que às vezes você precisa trabalhar com figuras, com objetos,
para eles entenderem, por exemplo, vocabulário. Então isso ajuda muito.

Pesquisadora: Se você puder depois me passar, eu gostaria muito.

Síria: Eu tenho nome e está no meu celular porque eles formaram até um grupo de
WhatsApp para a gente, caso precisemos de alguma ajuda. Então eu e os professores
da Compassiva temos acesso a esse a esse grupo, a esse material.

Pesquisadora: Você tem algum exemplo de prática docente que você utiliza e que
você sente que funciona, que você gosta de utilizar?

Síria: Eu tenho só três meses. Mas eu gosto muito de fazer brincadeiras lúdicas que
é uma coisa que a gente até aprendeu nesse curso, até porque eles são refugiados.
Eles vêm de um contexto de guerra, vêm fragilizados emocionalmente. Então não dá
para você ser muito pragmático e muito autoritário na hora de passar alguma coisa.
Nós também temos limites, fiz assim para falar de contextos. Para não trazer gatilhos.
Para o refugiado ou porque como a gente falou, como eu falei, a maioria vem nesse
contexto de guerra ou até perseguição. Então eu gosto muito de usar algumas coisas
lúdicas, algumas brincadeiras para descontrair a aula, apesar dessa turma ser uma
turma avançada, mas juntando com esse contexto social. Do nosso trabalho, eu acho
que isso ajuda muito. Eu dou aula à noite, então a maioria deles trabalha. Como tem
alguns que trabalham na feira da madrugada de sábado para domingo e depois
trabalham de dia, chegar numa segunda-feira à noite para a aula, não dá para ser
alguma coisa muito rígida como a gente faz para alfabetizar um uma pessoa no Brasil,
e esquecer do contexto. Então brincadeiras lúdicas é uma forma mais relaxante para
que eles absorvam o conteúdo e não fique cansativo numa segunda-feira à noite para
isso. Um idioma que eles não escolheram aprender. Porque eles vieram para o Brasil
não por escolha. Então a gente não pode esquecer dessas coisas que estão por trás.

Pesquisadora: Está certo. Material de apoio que você utiliza nas aulas?

Síria: É um material de apoio da Compassiva. Tem cartilhas, a gente segue uma


sequência porque eles têm provas em cima disso, têm livros de exercícios e livros
102

gramaticais, nós seguimos essa sequência e além desse material também existem
materiais de apoio que eu citei desta dessa ONG que deu um curso para a gente.
Também temos a liberdade de criar. É como eu falei, brincadeiras lúdicas e buscar
outras fontes para desenvolver o trabalho com eles. Mas tem o material mãe, que é
da Compassiva, esse a gente não pode deixar a parte.

Pesquisadora: Que é o Muito Prazer?

Síria: Sim.

Pesquisadora: Essa pergunta sete, ela é relacionada ao assunto de crenças. A gente


desenvolve crenças ao longo da vida em relação a várias coisas e em relação à
educação. A gente passa a maior parte da infância e da juventude dentro da escola.
Então a gente desenvolve crenças do que que a gente entende que é uma aula, o que
é aprendizagem. Qual é a relação professor-aluno, o que é um bom professor, o que
é um bom aluno, enfim, esse tipo de crença que a gente vai desenvolvendo. Você,
quando você começou a dar essas aulas, reconheceu crenças que você tinha na sua
prática e que você desmistificou ou que você reforçou?

Síria: É assim, eu tenho prática como aluna, não como professora. Mas pensando
nesse sentido, eu reconheci logo no início porque a escolha foi trabalhar com
refugiados. Outra cultura, outro contexto totalmente diferente, no qual a maioria é
árabe. Tem alguns alunos venezuelanos, mas na minha aula não, na minha sala não
tem. Então, quando eu escolhi dar aula para esse para esse grupo, eu já tive que me
olhar, né? E falar assim: não, as dificuldades que eu tive vão ter que ser guardadas
embaixo na gaveta. Porque não tem nada a ver com o contexto. Como eu falei lá em
cima, tem o contexto de trabalho deles. Tudo bem, eu também estudei à noite, na
faculdade. Só que eu não ia trabalhar sábado à noite na feirinha da madrugada. Eu
soube isso através de uma dinâmica que eu fiz. Eu pedi para eles, já que estávamos
estudando verbos no pretérito, fazerem uma redação do que eles fizeram no final de
semana. Então eles mostraram muito a realidade deles no final de semana. Alguns
descansaram, outros não. Então tem que desmistificar muitas crenças e eu fiz isso
logo no início, e me policio todos os dias que eu vou dar aula por causa do contexto
que eles chegaram no Brasil e por que eles estão procurando aprender o idioma, que
é totalmente diferente da minha vida. Não, não, não dá para encaixar. Então isso é
103

um trabalho diário. Enquanto você prepara ou dá aula, mas de início eu já tentei mudar
esse mindset aí na minha cabeça, porque não tinha nada a ver. E o curso do
Perspectivas me ajudou nisso, mas também esse curso dessa ONG que a
Compassiva ofereceu falou muito sobre isso também. Das nossas crenças, não só
crenças na questão de diferença de eu ser aluna, mas também nas crenças culturais
brasileiras. E a gente tem que mudar.

Pesquisadora: Que interessante, nossa, deve ser muito bacana. Muito mesmo. No seu
ponto de vista o que um professor expert deve ter?

Síria: Para dar aula para refugiado, compaixão, que é também o mote da Compassiva.
Principalmente porque você não tem olhar só para gramática, só para teoria, o que
você aprende, mas compaixão, principalmente como eu falei. A própria coordenação
orientou: “olha, veja se eles estão com algumas necessidades porque a gente tem
contato direto com eles”. Empatia, sentar-se no lugar deles mesmo. E entender, como
que você falou de crenças. Tem que quebrar essas questões para conseguir colocar
em prática.

Pesquisadora: Certo. Bom, a nove acho que você já meio que respondeu. Como o
professor foi preparado para trabalhar com refugiados e quais são as dificuldades
encontradas na sua prática referente a formação de professores? Você encontra
dificuldades em relação à formação?

Síria: Olha, a Compassiva dá um apoio muito grande para a gente nesse contexto. Eu
acredito que essa questão que eu pensei quando eu resolvi dar aula, por não ter
formação, que a questão gramatical pesaria mais, mas eu acho que tem um peso de
cinquenta por cento. O conhecimento gramatical, da educação, da pedagogia não
relacionada a refugiado é cinquenta por cento. Agora a o contexto de você entender
o refugiado, a dor do seu refugiado, a empatia com ele, com a situação, pesa
cinquenta por cento. Porque se você tirar isso, você não consegue dar aula. E se você
não entender de onde ele veio, por que que ele está aqui, como que é o dia a dia dele.
Então eu acredito que é unir essas duas coisas. A palavra é unir, unir essas duas
coisas. O conhecimento que você tem do idioma é o conhecimento pedagógico. O
didático com esse outro contexto social, eu acho que é muito importante para você
conseguir desenvolver o trabalho.
104

Pesquisadora: Está certo. E por fim, há possibilidade de troca entre colegas, um


momento de estudo, de formação entre vocês?

Síria: Muito, muito, principalmente eu que decidi mudar do administrativo para dar
aula. Tem professores que já dão aula há algum tempo. Tem professores que vêm da
academia. Que estudaram, que lecionaram, por exemplo, eu não tenho experiência.
Com educação a gente tem uma troca imensa, todos eles, até mesmo por WhatsApp,
em momentos rápidos que a gente precisa, eles dão para a gente feedback do que
acontece na Compassiva. Esse feedback das aulas, isso é diário, eu terminei a aula
na segunda-feira, eu jogo no sistema como foi a aula e coloco nesse grupo do
WhatsApp a descrição da minha aula para os outros professores que revezam a minha
turma. Mas eu também tenho liberdade de conversar com outros professores nesses
cursos que a Compassiva fornece, a gente tem a experiência de troca com os demais
professores, do que eles já passaram de dificuldades na aula, dicas, então isso
acontece com frequência.

Pesquisadora: Muito bom. Síria, era isso, deixa eu parar de gravar aqui, agradeço
muito, conseguimos no horário, deixa eu interromper.

Síria: Muito bom, gostei.


105

Entrevista Venezuela – 24/03/2022

Pesquisadora: Está certo, então a gente começou a gravar aqui. Primeiramente eu


agradeço muito pela sua colaboração. É importante para mim. Nesse trabalho, nessa
pesquisa que eu estou fazendo, só para te contextualizar rapidamente, eu estou
fazendo uma pesquisa de mestrado, eu estudo no Mackenzie e é um estudo de caso.
Eu sou da área de educação e eu estudo mais especificamente formação de
professores. E eu gostaria de entender um pouco melhor a base de conhecimento dos
educadores que são voluntários na Compassiva. Os professores/educadores, porque
pelo que eu entendi nem todos são professores mesmo de formação, mas todos estão
lá como educadores para ajudar os alunos a aprenderem a língua portuguesa. Então,
em linhas gerais é isso, se você tiver alguma dúvida e quiser, pode ficar à vontade,
está bem?

Venezuela: Não, eu entendi. Bacana. OK, só que eu imagino que lá deve ter assim
um uma variação muito grande, de pessoas e de atividades, de profissionalismo, de
qualquer coisa assim. Essas entidades precisam de voluntários. Elas precisam de
voluntários, então principalmente no caso da Compassiva, que a gente trabalha com
pessoas que vêm de outros países. E às vezes, sem saber absolutamente nada de
português. No começo, em 2015, foi quando começaram a vir os refugiados sírios,
eles não sabiam uma palavra de português. E era uma coisa complicadíssima. Hoje
os mesmos que estão lá, os sírios, eles já estão aqui no Brasil há algum tempo e,
assim, já aprenderam português de rua. Mas eles não sabem ler, nem escrever, então
agora eles viram a necessidade, então eles estão indo para lá para aprender a ler e
escrever. Por exemplo, nós temos uma classe lá à noite que eles todos falam
português muito bem, falam bem direitinho, sabe? Mas precisam escrever, então eles
estão lá para isso. Mas já tivemos os que não sabiam nada, absolutamente nada, e
tem os que estão vindo agora de outros países, que estão no zero.

Pesquisadora: Entendi. Sério? Legal. Eu vou começar aqui com essa primeira parte,
que é mais para traçar o perfil do educador. Essa parte de nome, sexo e idade você
já preencheu lá no Google Forms, então eu vou pular. Qual sua formação na
graduação?

Venezuela: Eu sou advogada, eu fiz Direito.


106

Pesquisadora: E você teve a oportunidade de fazer alguma pós-graduação?

Venezuela: Olha, eu fiz, a minha a minha especificidade era Direito Empresarial. Eu


sempre trabalhei com empresas.

Pesquisadora: Entendi. Leciona há quanto tempo?

Venezuela: Desde 2015.

Pesquisadora: Certo. E sempre na Compassiva?

Venezuela: Então, esse trabalho meu de voluntária foi na Compassiva, foi aí que eu
encontrei e senti vontade de participar e fiquei. Eu tenho 67 anos. Sessenta e oito, já.
Então a turma jovem, você vê que eles querem participar. Eles participam o semestre,
mas dificilmente eles ficam dois semestres, porque jovens mudam muito. Eles mudam
de emprego, mudam de local, então não tem aquele pessoal fixo como professores,
está entendendo? A rotatividade é bem grande. Então, às vezes, quando tem bastante
jovens lá, eu fico na sala de espera. Eu fico só para cobrir buraco, e tal, mas a gente
vê isso, é difícil porque também todo mundo trabalha, tem que preparar a aula, tem
isso, tem aquilo, tem reuniões. “Bom, neste semestre agora eu vou parar”, ou porque
casa, vai para outro lugar, vai para outro país, muitos deles foram até para outros
países. Então é assim, mas eu estou lá, eu estou lá faz tempo.

Pesquisadora: Entendi. E nessas aulas que você tem lecionado lá, você leciona para
diferentes níveis?

Venezuela: Já, já lecionei para diferentes níveis já. Já peguei a turma do zero. Já
peguei a turma do cinco, do seis. A Compassiva tem material assim específico para
estrangeiros. Português para estrangeiros. Hoje tem bastante, hoje no mercado tem
muito material, bastante material. Então a gente adota um material desse, é o que nós
usamos. Então no primeiro semestre, certas unidades, eles vão até certo caminho. No
segundo semestre, às vezes algum fica ainda porque não pegou muito bem, eles
faltam também, eles também trabalham. Então, a gente tem material, material
especificamente para estrangeiros.

Pesquisadora: Entendi. E atualmente você tem algum grupo fixo seu?


107

Venezuela: Sim, agora a gente tem a turma número um, tem a turma zero também.
Turma número um. E tem a minha classe, tem esse que eu te falei, tem uma turma
que já está no Brasil, eles trabalham inclusive, uns já falam muito bem até, mas não
sabem ler nem escrever, então eles não sabem a gramática, não sabem verbos, não
sabem essa parte gramatical, eles não conhecem, então eles estão lá porque eles
sabem da deficiência deles, eles querem melhorar. E é uma turma mista, homens,
mulheres, a faixa etária é mediana. É, mediano. Uma coisa interessante é que eles
vêm em família, muitos vem em casal e às vezes já vem os filhinhos junto porque não
têm com quem deixar, por isso que nós temos lá até a turma que cuida das crianças,
inclusive à noite. Então, enquanto os pais estão fazendo aula, as crianças estão lá
brincando, se divertindo, fazendo alguma coisa, entendeu? Tem uma turma que cuida
deles.

Pesquisadora: Tem irmãos, tem irmãs, tem alguma nacionalidade predominante na


sua turma?

Venezuela: Sim, na minha classe a maioria é da Síria e acho que tem um ou dois que
é daquela região lá também, não é da Síria, mas é daquela região lá. Então é mais de
origem árabe. E tem uma pessoa inclusive, ele trabalha já, muito esforçado, tem uma
sede de aprender e a família dele eu acho que ficou lá na terra dele, porque eu
costumo levar sempre alguns chocolatezinhos, uns bombonzinhos. E outro dia eu
levei bastante, não tinham muitos alunos, tinham seis alunos só, aí eu fui dando mais
um. Aí eu sei que umas lá tem irmãos, eu falei, olha, quantos irmãos você tem? Ela
falou, eu tenho três. Falei, então leva para cada um deles. Aí o outro me disse, o meu
filho está lá na minha terra, não vou poder levar para ele. Eu sei que ele tem um filho
que não está no Brasil.

Pesquisadora: Está certo. Bom, então essa era a parte um, para a gente traçar um
perfil da turma e conhecer um pouquinho mais sobre você e agora a gente vai para
parte mais teórica do trabalho. Então a pergunta um, qual o motivo da escolha da
docência para refugiados e imigrantes? O que te motivou a escolher dar essas aulas?

Venezuela: Olha, aconteceu. Eu não procurei não. Eu tinha uma amiga que dava aula
que estava começando lá na Compassiva também. E ela era da minha igreja e falou
desse trabalho, aí e eu falei, nossa, que legal, gostaria de conhecer. Ela disse: “então
108

vamos, estamos precisando de gente lá, no dia seguinte eu estava lá. Foi mais ou
menos assim. Foi ao acaso. E eu achei interessante, porque no comecinho, o André,
como vinham os muçulmanos para cá, ele deu inclusive aula sobre a matéria dele,
sobre a religião deles para a gente saber como trabalhar com eles, sabe? Então foi
uma coisa que eu achei muito séria e gostei muito, gostei muito. E como eu disse para
o meu filho, eu tenho um filho só, já era grande e eu sempre trabalhei, como continuo
trabalhando até hoje, então eu fico com mais uma atividade que é boa.

Pesquisadora: Legal, então você continua atuando dentro do Direito?

Venezuela: Eu continuo até agora.

Pesquisadora: Que legal. E no seu ponto de vista, qual é o papel do professor?

Venezuela: Olha, no nosso caso, nós trabalhamos com refugiados. É primeiro ensinar
a eles o que eles estão precisando, que é aprender português. Isso é primordial. E
mais uma coisa que a gente dá para eles, tem que dar um pouco de amor. Porque
eles estão sozinhos, saíram de um país em guerra. Então tudo que eles querem é
uma atençãozinha, sabe? Para qualquer coisa que a gente faça, eles são muito gratos.
Eu costumo levar, por exemplo, além do material que a gente tem, eu costumo levar
sempre recortes de jornal. Eu ainda sou daquelas que assina jornal, eu assino o
Estadão ainda. Então sempre tem uma matéria assim interessante, hoje eu tenho
cuidado, por exemplo, para não ter, não levar nem uma página que está escrito a
palavra guerra. Então, tem assim coisas de natureza, tem coisas de parques, de São
Paulo, tem exposições, tem um monte de coisa. Então eu procuro levar um
recortezinho para eles e falar olha, se vocês lerem um pouquinho só já é bom para
ajudar. Eles ficam super gratos.

Pesquisadora: Que legal, isso é muito bom, muito bom. Você disse que fez Direito, fez
uma especialização na área empresarial, você enxerga alguma contribuição desse
curso superior ou algum outro curso que tenha feito para sua prática docente ou é
realmente muito distante do que você tem lá na Compassiva? Seu universo
acadêmico contribuiu com a sua prática docente ou não?

Venezuela: Contribui sim! Contribui muito, claro. Porque a gente antes de tudo pratica
a justiça. Tudo que vai, tudo que a gente vai fazer, o que vai acontecer, o que a gente
109

está vendo na frente, a gente luta! Bato acima de tudo na justiça, se é justo, se não é,
se não for, eu não concordo, sabe? Então eu acho importante sim. E quando eu falo
que sou advogada é engraçado, sempre alguém tem uma pergunta para fazer, tem
uma dúvida sabe? Então isso é interessante, sempre eles têm, ou porque um alugou
uma casa ou porque não sabe alguma coisa assim, sabe? A documentação. Embora
a Compassiva trabalhe com isso, mas eles sempre consultam a gente e tal. E o
professor é o mais próximo que ele tem ali.

Pesquisadora: Entendi. Que interessante. A pergunta quatro, que base teórica você
utiliza, que fonte, que teoria você usa para embasar sua prática e como acontece essa
relação teoria e prática na sua atividade docente?

Venezuela: Eu não entendi que fontes, base, fonte, base teórica.

Pesquisadora: O que de teoria te ajuda na sua prática?

Venezuela: A primeira teoria é a seguinte, se eu estou lá, eu estou indo fazer o


trabalho bem-feito, a partir do momento que o voluntário se candidata. E tem
responsabilidade, sabe? A responsabilidade é muito grande, especialmente porque
eles são pessoas muito vulneráveis. Eles estão aqui fugindo de alguma coisa muito
dura, muito triste, que eles já passaram. Então a nossa responsabilidade de não fazer
nada errado, de aceitar, às vezes, até alguma coisa que eles fazem lá, que a gente
não gosta ou quando a gente fala, vamos trabalhar, eles continuam a conversa, tal.
Então, a gente tem que ter um pouco de aceitação. Porque, veja, nós somos ali, o
professor, ali na classe, é a única pessoa que está dando atenção para eles aqui
nesse país, eu acho. Eu acho que somos nós ali naquele momento que eles têm a
liberdade de chegar e falar alguma coisa. Então nós fomos lá assim, muitas vezes a
gente perde um pouco da aula para ficar dando atenção para eles, dando amor, sabe?
Porque um faz uma pergunta, o outro também precisa de alguma coisa e não dá para
a gente falar, vamos fazer aula, não dá para fazer isso, é impossível. Então, é a teoria,
a minha teoria é essa, a maior responsabilidade que a gente tem, não faltar às aulas
também, sabe? É triste, eles já estão acostumados com a gente ali naquele período.
É um semestre, aí vem outro professor que pega o bonde andando, a aula não flui tão
bem. Então é responsabilidade, às vezes é quando a gente se abre um pouquinho,
eles pedem ajuda para alguma coisa, sabe? E só da gente poder fazer isso, olha, é
110

demais de importante, é demais de importante para eles. Em outros anos, eu já fui


com a turma da Compassiva, tem uma pessoa específica, fazer visita nas casas,
sabe? Ou porque tinha criança ou alguma coisa. Olha, você não faz ideia de como é
bom eles sentirem esse amor.

Pesquisadora: Que legal. Você tem um exemplo de alguma prática que você tenha
feito em sala de aula que você acha que foi válida, que você gostaria de compartilhar?

Venezuela: A gente sempre pede alguns exercícios igual a esse trabalho que a gente
está fazendo para que eles falem alguma coisa deles sabe? É para não ficar só no
português na gramática e tal. Então a gente sempre pede para que eles falem alguma
coisa da vida deles. Então, dependendo da turma, às vezes você vê uns que são muito
fechados, não querem falar, sabe? Então a gente respeita. Outros querem, sim, outros
falam da família, dos pais, dos irmãos, sabe? Falam com alegria, então a gente vê
que é um povo assim, como nós. São como nós, também, eles são bastante
amorosos, bastante cuidadosos com a família, esse é o amor. A relação familiar deles
é muito importante também. Mas tem alguns que se fecham, não querem falar, então
a gente respeita. Então, a cada momento, assim, a cada assunto que a gente está
falando, a gente puxa assim, a gente puxa para ver se eles se abrem para falar alguma
coisa, até para eles saírem daquele do livrinho. E procurar assim palavras diferentes,
porque eles vão falar de coisas diferentes.

Pesquisadora: Bacana, a seis, que tipo de material de apoio é utilizado nas aulas?
Você já me disse que usa recortes de jornais. Fora isso tem algum outro recurso que
você utiliza?

Venezuela: Então, tem livros. A gente tem livros lá, a gente tem um livro do aluno e o
livro de exercícios, para cada unidade que a gente termina no livro do aluno, há uma
unidade no caderno de exercícios. Então isso é para a gramática, para redação, para
saber escrever uma frase, para saber se expressar em português, às vezes tem que
criar frases. Então eles se expressam em português. É um material didático, livros e
gramática. E depois, às vezes, tem um vídeo que a gente mostra para eles também,
para eles prestarem um pouco de atenção e ver se eles entenderam alguma coisa, e
eu gosto de levar jornais, recorte de jornal, porque sempre é uma coisa bem diferente
daquilo que a gente está vendo, sempre bem diferente. Outro dia eu levei um artigo
111

que era de uma pessoa que começou a cuidar de alunos de aula de português nas
favelas, sabe? E tem uma coisa muito interessante, então eu falei para eles, olha que
legal, vocês têm aula aqui na classe. Às vezes eles lá, sentadinhos no chão, mas é
assim que eles têm que aprender.

Pesquisadora: Que legal. Muito bom. A questão sete é relacionada às crenças. A


gente vai desenvolvendo crenças ao longo das nossas vidas. E a gente desenvolve
crenças em relação à educação também, porque a gente passa grande parte da nossa
infância e adolescência dentro da sala de aula, criando ali uma ideia de educação, de
professor, de relação de aluno e professor, de aprendizagem, como se aprende, como
se ensina. Então, a gente vai criando esse repertório de crenças. A minha pergunta é
a seguinte: você reconhece suas crenças nesse processo, na sua maneira de dar
aula? Você reconhece crenças que você tinha que de repente foram desmistificadas
ou que foram reforçadas?

Venezuela: Não, as minhas crenças todas foram reforçadas. Nada foi desmistificado
não. Por exemplo, isso de você ser primeiro, a gente mostra lá dentro que nós somos
iguais a eles. Não estamos acima nem abaixo. E estamos lá para ajudar. Eles nos
respeitam porque a gente exige. Então tem que ter essa relação de respeito também,
eles nos respeitam, nós os respeitamos e o que a gente dá para eles de acordo com
a nossa convicção, eles aceitam muito bem, se sentem muito felizes. Nunca teve
alguém que reclamou ou que falou com a gente, porque depois da aula a gente bate
um papinho, tal, fala com um, fala com outro, sempre agradecimento, sempre as
pessoas estão felizes, sabe? De bom humor, você não vê ninguém chateado com
alguma coisa, de maneira alguma. Então, e depois quando a gente termina o
semestre, aí no próximo semestre você pega outra classe. É legal as pessoas virem,
“ô professora”, às vezes a gente nem lembra quem é, não sabe nem quem é e abraça,
e é engraçado porque no começo a gente fica bem reticente. Nos próximos semestres,
todo mundo já vem, abraça, eles parecem família de italianos. É gratificante.

Pesquisadora: Eu assisti uma aula de um professor lá semana retrasada que era de


afegãos, no presencial. Fui lá presencialmente. E é aquela coisa, a gente aprende
tanto. A gente aprende demais e a gente fica com essa ideia: o pessoal daquela parte
do planeta, diferente. Nossa, eles são superabertos, superacessíveis. Eu já fiz
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amizade com a moça, inclusive a gente vai segunda-feira se encontrar para eu mostrar
para ela o centro da cidade.

Venezuela: Eu falei. Eu falei, gente, olha só que interessante. A classe dos afegãos à
noite, eu sempre chego um pouquinho mais cedo, para arrumar as coisas, tal. E as
meninas chegam mais cedo. Aí eu chego, como eu levo minha sacola de chocolates
e essas coisas, aí eu levo lá para elas, falo “olha, o chocolate para uma, chocolate
para outra”, e eu já levei também lápis, borracha, apontador, caneta porque às vezes
eles chegam com um toquinho de lápis. Na minha mochila tem. Aí eu falei “olha, eu
trouxe para vocês também”, mas você precisa ver como elas me abraçaram e me
beijaram. Bonitinha. É, assim, sabe? Agora eu chego lá, elas vêm assim, felizes, não
falam uma palavra em português ainda. Todas felizes, é assim, é gratificante, viu? É
gratificante.

Pesquisadora: Vamos lá, seguindo, então, para a pergunta oito, no seu ponto de vista,
o que um professor expert deve ter? Um professor especialista, um bom professor
deve ter?

Venezuela: Eu acho que se pegar a turma lá da Compassiva, acho que não deve ter
nenhum professor formado. Não sei se tem. E cada um tem seu trabalho, os meninos
trabalham. Não sei se tem algum que é professor. Não sei. Mas é óbvio que pelo
menos a primeira coisa, ele tem que conhecer a matéria que ele está dando. Porque
às vezes você está lá com um determinado capítulo do livro, eles fazem uma pergunta
que não tem nada a ver com aquilo. Então, se a gente não tiver um bom português,
se não tiver uma boa gramática, aí fica chato. Acho que, assim, eles perdem até a
confiança, eles falam, “puxa vida, quem que está aqui ensinando a gente?” Porque
quando eles puxam e você consegue ajudar, consegue explicar, nossa, eles se
sentem superfelizes, outros já perguntam outra coisa. Então, isso é interessante.
Primeiro tem que dominar o que você está falando. Nós temos que dominar a
gramática, por exemplo, hoje a gramática tem muita coisa que mudou do tempo que
eu estudei, mas aí o que eu faço? Eu estudo. Então eu não perco a oportunidade, eu
estudo para saber responder o que eles precisam e explicar também. Não adianta só
falar que tem um artigo masculino e feminino e ficar nisso. Então tem que ter, primeiro
tem que estar bem-preparado. E outra coisa é gostar do povo. Porque não adianta
chegar lá de mau humor se as pessoas não fizeram nada, você pediu para fazer um
113

trabalho em casa, não fizeram, não adianta dizer não, não adianta. A gente tem que
ter empatia, sabe? Saber que eles têm muito problemas, metade de nós não temos
nenhum problema comparado com eles. Eles estão fora do país deles, longe da
família, não sabemos se estão morando num lugar bom, se não estão. Não sei como
eles estão vivendo. Então, a gente tem que saber que eles são pessoas difíceis, eles
estão passando por dificuldade. E o que nós temos que fazer é isso, é ser
compassivos. Ser compassivos e tratar, tratar com muito carinho e aplicar aquilo que
nós sabemos. Quando a classe começa, a gente fala, “olha, nós estamos aqui”, eu
falo sempre, eu falo, “olha, eu saí da minha casa para vir aqui dar aula para vocês,
porque eu quero que vocês falem português, não é para brincar não, vamos trabalhar”.
Então, todo mundo trabalha.

Pesquisadora: A questão nove, como o professor é preparado para trabalhar com os


refugiados?

Venezuela: Olha, normalmente a gente conhece a situação deles. O professor sabe


de onde eles vêm, o que está acontecendo lá no país de onde eles vieram. O que a
gente pode falar de assunto, o que que a gente não deve falar. Por exemplo, a gente
não fala de religião, não fala de nada disso. Eles são muçulmanos, a gente não leva
nada para o caminho da religiosidade, a não ser no nosso coração. Então
principalmente e especialmente com refugiados nós temos que ter que ter esse
cuidado muito grande de não levar o problema que tem lá no país dele para sala de
aula. Hoje, por exemplo, está acontecendo tudo isso na Ucrânia, a gente não toca no
assunto. Quando eu levo, por exemplo, o jornal, eu vejo se tem uma matéria numa
página e eu vejo isso na outra página se não tem alguma coisa, se tiver não levo.
Nada que fale de guerra, entendeu? Então isso é importante também. E ensinar o
português, eles estão lá para isso. Quer dizer, não é física, não é química, não é
geografia, não é nada disso. Eles estão lá para aprender a falar português. Óbvio que
entra um pouco de tudo.

Pesquisadora: Quais são as dificuldades encontradas na sua prática referentes à


formação de professores? Do que você sente falta em relação à formação de
professores para lecionar suas aulas de português para imigrantes, refugiados?
114

Venezuela: Então, na Compassiva a gente não tem nenhuma dificuldade, porque tem
muitos jovens lá e os jovens hoje, eles são, eles têm muito interesse, sabe?
Normalmente eles são de igrejas, alguma coisa assim, sabe? Então, eles têm também
um coração muito aberto para o amor. E eu vejo, eu vejo assim. Na Compassiva há
muito interesse, quando um professor, por exemplo, tem problema, não vai poder dar
aula, “olha, quarta-feira que vem não posso dar aula”, imediatamente já tem outro lá
substituindo, se oferecendo, sabe? Então, existe assim uma união bem grande dos
professores voltados para isso, voltados para o trabalho. Todo mundo quer cooperar,
quer ajudar, ninguém cria problema com nada, ninguém traz problemas para sala de
aula e aí a gente vê também que depois, quando nós terminamos as aulas, a gente
faz um relatório e eu vejo que todo mundo fala com alegria. Às vezes a gente fala:
“olha, o fulano hoje não está rendendo nada, não está entendendo, está precisando
de um pouco de reforço e tal”, mas com muito carinho. Ninguém tem preparo assim
de professor. Como eu te disse, são jovens que ainda estão estudando também, sei
lá. E não sei se a maioria é formada na área, não sei, eu acredito que não. Mas, assim,
todo mundo tem se saído muitíssimo bem, muitíssimo bem.

Pesquisadora: Está certo. E a última pergunta é: há possibilidade de troca entre


colegas e momento de estudo e formação de professores?

Venezuela: Sim, isso que eu acabei de falar agora. Por exemplo, o mês que vem é o
mês do Ramadã. Então eles não assistem aula de sexta-feira, então sexta-feira não
tem aula. Então o que nós aqui da Compassiva estamos fazendo? Então ela pega os
professores de sexta-feira e faz algumas aulas de segunda, a quarta é para os outros
também darem uma descansadinha, entendeu? E faz com muito carinho, sem
problema nenhum. Porque dou aula de sexta-feira, então até o mês que vem não vou
fazer nada? Não, vamos sim, vamos, nós estamos lá para trabalhar.

Pesquisadora: Está certo. Que legal, muito obrigada, Venezuela, eu vou parar de
gravar aqui, espera aí que eu vou interromper a gravação.
115

Entrevista Marrocos – 25/03/2022

Pesquisadora: Muito obrigada por permitir a gravação, obrigada por me ajudar com
isso, com a pesquisa, só para a gente contextualizar, então eu estou fazendo essa
pesquisa. Eu estudo na área de educação, é um mestrado na área de educação, arte
e história da cultura lá no Mackenzie e a minha linha de pesquisa é bem voltada para
formação de professores. Você também é Mackenzista?

Marrocos: Sou, sou sim.

Pesquisadora: Ah, que legal. E aí a ideia, o meu objetivo é pesquisar a base de


conhecimento dos professores/ educadores que que atuam na Compassiva. É um
estudo de caso mesmo da Compassiva. Se você tiver alguma dúvida depois, alguma
pergunta, fique livre para fazer. Você já preencheu aquele aceite. Então já tem seu
nome lá, idade. Já vamos partir para formação. Qual sua formação?

Marrocos: Então, eu sou formado em Administração de Empresas com ênfase em


Comércio Exterior, no Mackenzie. Eu fiz uma pós-graduação e MBA com
Concentração, Empreendedorismo e Inovação na GV. E agora estou finalizando uma
pós-graduação em Fitoterapia Clínica.

Pesquisadora: Que diferente do que você fez como graduação!

Marrocos: Sim, porque agora eu comecei a trabalhar nessa área de fitoterapia e eu


precisava cobrir um gap técnico. Então eu comecei a fazer outros cursos, até decidir
fazer uma pós-graduação nessa área. Então, eu estou gostando, viu? Muito legal.

Pesquisadora: E há quanto tempo você leciona?

Marrocos: Na Compassiva?

Pesquisadora: É. De forma geral e na Compassiva?

Marrocos: Na Compassiva eu comecei em 2018, setembro de 2018. Aqui uma pausa.


No período de pandemia, que aí mudou para on-line, eu fiz algumas aulas que eram
gravadas. E aí quando retornou, aí interrompi, aí quando retornou ao presencial eu
voltei com tudo. E fora da Compassiva eu tive algumas experiências como professor.
Dando aula de inglês, assim algo bem básico, na verdade, acho que a Compassiva
116

que despertou essa paixão por aula, por lecionar e eu comecei a buscar, por exemplo,
hoje eu dou aula de inglês, comecei até a ajudar na igreja, dando aula para as
criancinhas e realmente eu descobri uma paixão que estava aí escondida.

Pesquisadora: Que máximo isso. Eu descobri também que eu gostava de dar aula
dando aula também. Muito bom e por causa do inglês, eu comecei dar aula porque eu
estava esquecendo o inglês. Aí eu comecei a dar só para manter. E aí no fim eu acabei
me apaixonando.

Marrocos: É. Pelo ato de dar aula.

Pesquisadora: Em que série? Na verdade, você já deu essa resposta, então já vou
partir para última da parte um aqui. Quais são as características do grupo que você
leciona atualmente lá na Compassiva?

Marrocos: Então, são refugiados afegãos, OK? Eles vieram para cá, para o Brasil por
conta do Talibã, que tomou o poder na região e a maioria dos alunos são fotógrafos.
E por alguma questão eles consideram, o talibã considera que é uma profissão não
permitida, não é autorizada. Então eles sofrem perseguição e decidiram, não, foram
obrigados a sair de onde estavam, para exercer sua profissão, e sim, para ter o mínimo
de dignidade na vida. Então é isso, essa é a característica. A maioria de mulheres,
OK? Na sala hoje temos dois homens e cinco mulheres. Tinha mais pessoas, só que
aí começam a arrumar emprego, aí não aparecem mais, mas a maioria é de mulheres.

Pesquisadora: Está certo. Então, essa foi a parte um, mais para a gente traçar um
perfil do educador. E agora vamos para parte dois, que é para eu relacionar com a
parte teórica do trabalho. Então qual o motivo da escolha da docência para refugiados
e imigrantes? Por que você fez essa escolha?

Marrocos: Olha, em 2018 eu estava procurando um trabalho, vamos dizer assim, um


trabalho voluntário, OK? Não especificamente um trabalho com refugiados, busquei
até, como eu gosto muito de inglês, algo como professor de inglês. E realmente depois
descobri que encontrar um trabalho voluntário é tão difícil quanto um trabalho regular.
E aí acabou que eu não encontrei nenhum local, ou você tem que passar por uma
seletiva enorme, tinha mais voluntário do que vaga e, enfim, é algo bem complexo,
longo, os lugares são longe e ficaria totalmente inviável, até que o André foi na minha
117

igreja, apresentou o projeto e falei, olha, nunca pensei em dar aula de português, não
é meu forte, já falo, é gente, meu, não é meu forte, mas acho que chegou num ponto
que é o que com certeza a gente sabe mais, o pouco que a gente sabe a gente pode
compartilhar com essas pessoas. Então a gente pode ajudar e acho que vai mais do
interesse, ter interesse em ajudar várias vezes, vale muito mais do que eu um super
mega currículo com doutorado, mestrado, se a pessoa não tem essa humildade, essa
empatia com as pessoas, principalmente as pessoas em situação de refúgio.

Pesquisadora: Legal. E qual o papel do professor na sua opinião?

Marrocos: Pensei muito quando eu tinha estudado uma colinha, porque para mim eu
acho que até dá para fazer um gancho com essa resposta que eu dei, um professor
acho que vai muito além da aula em si. Então, ainda mais quando a gente está falando
de refugiados, então vai muito além de uma gramática, de um idioma. Então, de forma
básica, eu vejo um professor como aquele que é capaz de passar de forma eficiente
um conhecimento. Para que a gente consiga passar uma mensagem, consiga se
comunicar com as pessoas, você tem que quebrar algumas barreiras, você tem que
entender as pessoas, OK? O professor para mim é aquele que consegue passar uma
mensagem, passar um conhecimento de uma forma eficiente para outras pessoas,
OK? Garantir que essas outras pessoas estão recebendo a mensagem exatamente
da forma que ele deseja passar. Então na Compassiva eu vejo que o professor coloca
um papel extra, porque quando a gente fala de pessoas em situação de refúgio, a
gente não pode pensar, elas vão lá, vão aprender gramática, algo extremamente
pesado, não, a gente tem que criar um ambiente em que se sintam acolhidos, criar
um ambiente em que eles consigam aprender a cultura. Quando você aprende uma
língua você aprende uma cultura. E às vezes quando você faz isso numa escola, você
vai aprendendo de forma gradual. Eles não, eles chegaram de uma realidade
totalmente diferente e estão tentando se adaptar. E não criar um choque cultural tão
forte, mostrar, apresentar que aquilo é o português, é dessa forma que os brasileiros
são, OK? Então, tentar não criar um impacto muito forte, cultural, reduzir essa questão,
criar um ambiente acolhedor e que eles se sintam em paz, aprendam, claro, que é o
nosso objetivo, e que eles aprendam, mas que eles se sintam em paz em um lugar,
sintam-se felizes, então não é só gramática, não, a gente não chega lá e ataca
matéria, não, a gente tenta criar um ambiente muito light, muitos entram aqui e já têm
que procurar emprego, vão para sala, às vezes vão para sala acabados, mas eles
118

gostam de estar lá, eles gostam de pertencer ao local, então a gente tem que ter essa
consciência, tem que ter essa empatia, então acho que o papel do professor é esse,
entender as outras pessoas, as necessidades das outras pessoas e passar da melhor
forma o conteúdo.

Pesquisadora: Está certo. Sua formação, apesar de não ter sido dentro da área da
educação, você acha que ela de alguma forma contribui para sua prática docente?

Marrocos: Com certeza a gente sempre absorve o que há de melhor dos professores.
Então, seja pela coisa, seja pelo conteúdo em si, que por exemplo, a parte na
graduação ou na pós-graduação nós temos a comunicação, nós temos matérias
relacionadas, mas talvez até pela questão de postura. Do quanto um professor é
capaz de talvez motivar, de incentivar ou permitir que essas pessoas consigam
crescer em determinadas áreas. Então, acho que um professor, como eu disse, vai
além da gramática. Em uma pós-graduação, muitas vezes, foram além da matéria em
si. Então isso eu tento repassar também sempre quando tenho oportunidade de dar
aula.

Pesquisadora: Está certo. Como acontece a relação de teoria e prática na sua


atividade como professor lá na Compassiva? Você pensa sobre isso, você tenta trazer
teoria para prática ou você está mais voltado para sua prática docente mesmo? Como
funciona isso?

Marrocos: Não acho que é uma característica minha. Não sei, eu sou bem-organizado.
Então eu tento estruturar tanto para aulas de inglês quanto as da Compassiva, com
as aulas de português, estruturar para que eles consigam treinar. As quatro skills: a
parte de leitura, a parte de escrita, a parte de fala, a parte de escutar. Que também é
muito importante, às vezes, não somente o professor falando, mas também outros,
uns vídeos. Uma música, um vídeo na internet, um filme, um trecho de um filme. Então
tento estruturar isso de uma forma bem clara no início das aulas; nos primeiros
minutos eu compartilho aquilo que eu vou passar durante a aula e então a prática.
Assim segue conforme a programação. Não sei se era isso. Qualquer coisa me pede
para complementar.

Pesquisadora: Não, tudo bem. Eu gostaria que você respondesse de acordo com o
que você entendeu mesmo. Então vou fazer poucas interferências mesmo. Tem algum
119

exemplo que você possa compartilhar? De alguma aula que você acha que é bem
válida, que você gosta de aplicar com eles?

Marrocos: Olha, eles estão no nível zero, acabaram de chegar no Brasil. Chegaram
no final do ano passado, a gente ainda está naquelas aulas bem básicas. De
pronomes, verbos importantes, então a gente tenta, por exemplo, passar o conteúdo
apoiado no livro. O livro é um guia. No caso, a gente utiliza aquele livro, a gente
sempre fala que o livro não é suficiente, mas o livro de certa forma serve para nos dar
um direcionamento. Então, a gente pega a uma matéria, compartilha o conteúdo
sempre quando precisa, por exemplo, a questão agora dos possessivos. Nossa,
explicar possessivo, explicar que seu é para ele e ela e você, até brinquei sobre isso
com você, é muito difícil. Então, o que a gente faz? A gente começa a trazer matérias
de exercícios ou faz algumas brincadeiras de, por exemplo, pego uma bola, jogo para
uma pessoa, “agora fala, cria uma frase, utiliza o seu”. Então sabe, tento colocar uma
dinâmica para consolidação dos conteúdos. Então eu sempre tento colocar talvez
uma, além da matéria em si, além do livro ou até uma atividade extra também, alguma
dinâmica em aula para, sei lá, trazer o idioma para o cenário, vamos dizer assim, para
vida dessas pessoas. Então, porque não adianta nada só pegar alguns exemplos do
livro ou da internet que não façam sentido para vida deles. Então, trazer para quanto
mais próximo da realidade melhor. Então a gente sempre tem de fazer esse link de
trazer da teoria para prática ou para vivência deles, para realidade deles.

Pesquisadora: Está certo. A pergunta seis é sobre o tipo de material que é utilizado,
então você já disse que tem o livro, que eu tive acesso, o Muito Prazer. Você usa
dinâmicas, por exemplo, bola, como você falou e o que mais?

Marrocos: Sempre, por exemplo, quando coloco uma matéria em si, a gente tenta
pegar, colocar uma música que tem alguns vocabulários que a gente treinou em aula,
treinar essa música, preencher aquelas palavras que estão faltando e é justamente as
palavras que a gente aprendeu em aula, na semana passada a gente teve um
momento, claro, muito tenso. Um momento de correção de prova, então eu chamei
um por um, cada aluno para conversar do lado de fora, para ver as dúvidas que eles
tiveram na prova, por que eles acertaram, por que eles erraram, tentei esclarecer
naquele momento meio particular no final da aula. A gente fez como se fosse um jogo
de imagem em ação, no sentido horário, um falava uma palavra, aí a pessoa ia
120

desenhar na lousa e a outra tinha que adivinhar, claro, a palavra em português. Muitos
falam muito bem inglês. Então, tem que depender também desse idioma. Por
exemplo, falei, em português, forçando e estimulando, para eles falarem o idioma.
Então, acho que essas dinâmicas sempre são bem são válidas.

Pesquisadora: Legal. Em relação à questão sete, ela é um pouquinho mais complexa


de se entender. A gente tem crenças que a gente desenvolve ao longo da vida.
Quando a gente fala de educação a gente cria várias crenças porque a gente também
é aluno durante grande parte da nossa vida. A gente passa a infância sendo aluno ou
adolescência sendo aluno, ou vida adulta, enfim. Então, a gente cria crenças do que
é estudar, do que é aprender, do que é um bom professor. O que é esse processo de
ensino-aprendizagem. E aqui a pergunta é, quando você começou a dar aula, nas
suas aulas na Compassiva, você conseguiu se deparar com crenças que você tem ou
tinha e essas crenças foram reforçadas ou elas de repente foram desmistificadas, de
repente falou: nossa eu achava isso e não é não tem nada a ver, não é isso?

Marrocos: Sim, eu acho que a primeira crença que a gente tem é que o professor está
lá só para ensinar. Professor está lá para primeiramente entender quem são as
pessoas, tem que entender a dificuldade, porque não adianta eu chegar falando de,
sei lá, de algum tema específico, ou de um jeito específico, sendo que eles não estão
preparados ou eles não estão habituados. Eu lembro da minha primeira aula, eu acho
que eu tinha grande medo e eu cheguei lá vomitando tudo aquilo que eu tinha treinado
ao invés de escutar também. Então o professor tem que saber escutar, não só saber
falar. Então, acho que essa é uma das grandes coisas que eu aprendi como professor
da Compassiva ou como professor de inglês ou como professor das criancinhas, é
muito importante isso. Eu lembro certinho que quando eu fui me apresentar, aí estava
me apresentando na primeira aula, eles tinham acabado de chegar e um aluno
egípcio, que depois virou um grande amigo, me falou em inglês: “Professor, como é
que você espera que a gente entenda o que você está falando?” Opa. Falei, “não, eu
só estou me apresentando”. Então, foi uma situação que foi um choque para mim,
com uma primeira aula sozinho. E depois eu entendi, OK? Vamos entender como é
que é essa turma, então essa é a primeira coisa que eu tive que desmistificar. Esse
professor. Você está lá para falar, mas o professor está lá também para escutar.
121

Pesquisadora: Muito bom. Bacana. No seu ponto de vista, o que é um professor


expert? O que que ele deve ter para ser um professor expert?

Marrocos: Básico, primeiro, né? Pontualidade e a postura. Quando o bom senso reina,
acho que tudo isso é básico, mas às vezes a gente vê situações que não são. Então
acho que um professor expert, além claro de ter todo um conhecimento que vai pela
experiência, tem que ter calma, saber, não sei até em situações de que, sei lá, algum
conflito entre alunos, saber lidar com uma situação como essa, não se desesperar, eu
acho que são pontos importantes. E claro, como eu comentei, demonstrar de uma
forma genuína o interesse no aprendizado e nos alunos em si, acho que um professor
expert é aquele que consegue se conectar com os alunos. E quando você se conecta,
você não cria aquela barreira, a gente está trabalhando junto para um objetivo comum,
acho que é o cenário perfeito, é o que a gente vê, por exemplo, em escolas, quando
tem aquela professora e todo mundo conversando, as crianças não estão maduras o
suficiente para entender que a professora está lá para ajudá-los. Só que quando a
gente amadurece, a gente percebe que talvez isso tem que ser colocado de uma forma
muito clara durante as aulas, porque a gente está lá trabalhando para um objetivo em
comum. Então, o professor expert para mim é o que consegue não de uma forma
autoritária, consegue sei lá passar essa mensagem de uma forma simples e engajar
os alunos a estudar para não virar um peso, ou seja, não virar uma dor, tanto para os
alunos como professores. Para que todo mundo veja que há realmente ali uma
oportunidade, que está todo mundo ali para aprender, enfim, para desenvolver um
idioma ou simplesmente para ajudar um ao outro.

Pesquisadora: Entendi. Muito bem. Agora a nove. Como você foi preparado para
trabalhar com os refugiados?

Marrocos: Então, na Compassiva eles têm uma preocupação sobre quando você vai
iniciar com as aulas. Então, eu assisti várias aulas. Antes de começar, sozinho. Antes
de começar dando aula sozinho, eu assisti várias aulas, eu conversei tanto com
professores, quanto com a coordenação, muitas dicas valiosas. De como lidar, com o
que fazer, o que não fazer e claro, de periodicamente, eles também têm algumas
capacitações, alguns cursos que eles oferecem. Então acho que isso é muito
importante.
122

Pesquisadora: Legal. Você encontra dificuldade em relação à formação de


professores para dar aula?

Marrocos: Eu tenho contato com os professores do nosso grupo. Por exemplo, agora
se você está perguntando sobre a inclusão de novos professores para dar aula na
Compassiva e a formação, treinamento deles, eu acho que sim, no sentido que não
sei se tem tantas pessoas, tanto é que a gente está com alunos na fila de espera e eu
acredito que seja por falta não somente de uma questão de local, de espaço, mas
também por uma questão de professores que estão engajados aí, que queiram
participar e não queiram ficar só um mês dando aula, e depois ir embora. Acho que
tem uma dificuldade para essa formação de professores, principalmente quando a
gente está falando num cenário de voluntariado.

Pesquisadora: Entendi. E a última pergunta é a possibilidade de troca entre colegas,


há um momento de estudo, de formação?

Marrocos: Sim, todo final de aula a gente tem um relatório, que é uma formalização,
mas a gente sempre conta algo. É colocado nesse grupo, a gente conversa, a gente
discute, fala qual que seria a melhor alternativa de acordo com o nosso objetivo.
Envolve a coordenação para essas discussões. Então, tem bastante troca sim. Por
exemplo, uma situação recente, tem um casal na nossa aula e a aluna é super
dedicada, já está nitidamente mais acelerada, muito mais rápida do que o seu marido,
só que seu marido fica muito apegado, por exemplo, ela fica auxiliando ele todo o
tempo, e um dos professores falou assim, “olha, eu separei eles, coloquei ela de um
lado e ele do outro, para ele desprender, não depender somente dela, para ele se
soltar”. Eu não faria isso, mas ele falou que deu muito certo. É algo muito interessante,
que talvez possa até aplicar nas próximas aulas. Até mesmo para a pessoa
desprender, não ficar dependendo da esposa, para interagir com outros alunos, que
isso é, acho que também é muito importante.

Pesquisadora: Entendi. Então está bom, Marrocos, deixa eu parar aqui de gravar,
muito obrigada mais uma vez.
123

Entrevista Iraque 30/03/2022

Pesquisadora: Está joia? Aqui está gravando então, é Iraque, não é? Você prefere
Iraque, ou tanto faz?

Iraque: Iraque. Pode ser.

Pesquisadora: Então está bom. Iraque, muito obrigada por me ajudar com isso, por
participar desta pesquisa. Vou compartilhar aqui uma janela com as perguntas para
nortear a nossa conversa. Então só para contextualizar rapidamente, eu estou
fazendo uma pesquisa na área de formação de professores, eu estou fazendo
mestrado lá no Mackenzie e a minha ideia é entender um pouco qual é a base de
conhecimento dos educadores que dão aula para os refugiados ou imigrantes lá na
Compassiva, é um estudo de caso da própria Compassiva. Pelo que eu entendi a
maioria dos professores de lá não tem formação na área de educação, não sei qual é
o seu caso, a gente vai conversar um pouquinho agora. Mas não tem problema porque
essa inclusive é a proposta, entender a base de conhecimento dessas pessoas que
se propuseram a fazer esse trabalho super bonito, que é o ensino da língua
portuguesa para os refugiados. Então, eu tenho a parte um, que é para a gente traçar
o perfil do educador e a parte dois, que são as perguntas mais relacionadas à parte
teórica do meu trabalho. Então vamos lá, você vai preencher as três primeiras
perguntas naquele formulário, então eu vou pular essas. Vamos lá, qual sua
formação? Graduação.

Iraque: Eu sou formado, eu tenho licenciatura plena em Educação Física. Então eu


acho que eu fui uma das últimas turmas pelo currículo do MEC que saía tanto na área
de licenciatura como de bacharelado. Eu não sei se depois mudou a Educação Física,
era só bacharelado e se você quiser lecionar em escolas fazia mais um ano para pegar
a licenciatura. Eu não sei como é que está hoje. Mas eu acho seja assim hoje. Mas
no meu caso chamava licenciatura plena. Eu saía com o título de bacharel para poder
dar aula em escolas de Educação Física. Então essa é uma formação minha, essa
graduação e eu também sou graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano José
Amaral da Conceição.

Pesquisadora: Legal, você teve a oportunidade de fazer pós-graduação?


124

Iraque: Não. Eu fiz só cursos de especialização na área que eu queria, mas não fiz
nenhuma pós-graduação, nem mestrado, nada.

Pesquisadora: Você leciona há quanto tempo?

Iraque: Essa pergunta é complicada. Porque se for português eu leciono há dois anos
aqui na Compassiva. Mas eu comecei a lecionar em escola dominical quando eu tinha
ainda dezesseis, dezessete anos. Eu lecionei violino durante dez, quinze anos, depois
dando aula de futebol, lá no Oriente Médio, eu dava aula de árabe para os brasileiros.
Então a minha vida inteira foi uma coisa assim de dar aulas direcionadas. Então é
uma paixão muito grande ensinar. Seja o que for eu gosto de ensinar. Então ensinar
português eu estou há dois anos na Compassiva.

Pesquisadora: Que legal. Então, você fala árabe?

Iraque: Falo árabe.

Pesquisadora: Que bacana. Nossa, isso deve ser de grande ajuda.

Iraque: Demais, com esse nível zero aí na Compassiva é vital mesmo.

Pesquisadora: Interessantíssimo. E quais são as características do grupo que leciona


atualmente lá na Compassiva?

Iraque: A maioria são de pessoas que não têm o terceiro grau completo, então são
pessoas mais simples com relação à educação. Uma linguagem mais simplista, de
segundo grau. Então eu tenho costureiro, tenho açougueiro, tenho mulheres do lar
que não fizeram faculdade, então essa é a maioria do meu público, na minha sala eu
tenho também um médico e tem uma outra pessoa que tem curso superior também,
mas a maioria são de pessoas assim que não tem o terceiro grau completo. Só o
segundo grau completo.

Pesquisadora: Tem alguma nacionalidade que prevalece no seu grupo?

Iraque: A maioria são sírios. Mas eu tenho iraniano que cresceu nos Emirados. É,
então até uma pessoa de uma terceira cultura. Tenho palestino, tenho saudita,
libanês, marroquino, egípcio, mas a maioria é de sírios e egípcios.
125

Pesquisadora: E essa turma sua é de nível básico?

Iraque: É o nível zero, aprender a falar “oi”, aprender o alfabeto, aprender os sons das
letras. Então, assim, é nível zero mesmo. Quando eles começam a conversar um
pouquinho melhor, ler melhor, escrever melhor, aí eles mudam de turma e eu pego
uma outra turma de nível zero, zero mesmo. Justamente porque eu falo árabe, então
ajuda a fazer algumas relações. Eu procuro sempre falar português, mas tem
momentos que a relação, eu falar o exemplo árabe para o português, ajuda demais
na compreensão no início. Então eu uso o árabe como uma língua ponte para chegar
no português.

Pesquisadora: E uma curiosidade, isso não tem a ver com essas perguntas, como que
você aprendeu o árabe?

Iraque: Eu estudei durante dois anos no Instituto de Árabe quando eu estava morando
no Oriente Médio. Então, era um instituto que tinha aula de segunda a sexta-feira, das
sete da manhã à uma da tarde. Então era como se fosse uma faculdade. Eu tinha aí
cinco, seis horas de aula por dia, cinco dias na semana, durante dois anos. Então foi
possível eu sair de lá me comunicando, lendo, escrevendo e falando para continuar o
aprendizado durante a vida. É uma língua muito complexa, uma língua muito difícil,
até hoje eu continuo aprendendo. Não parei de aprender ainda.

Pesquisadora: Muito legal. Então vamos lá, parte dois, qual motivo da escolha da
docência para os refugiados e imigrantes?

Iraque: O primeiro motivo é a questão mais da obediência ao amor a Deus que me faz
querer ajudar as pessoas. Então o motivo é tentar levar o amor de Deus através da
educação, que elas vejam algo diferente do que só o português. De tentar entender
por que esse cara vem aqui lá de São José dos Campos, que eu não moro em São
Paulo, para dar aula para mim, para me ajudar, ele não está recebendo nada para
isso. Ele está gastando dinheiro para isso. Por que ele faz isso por mim? Então eu
quero ter a chance de explicar que isso é uma graça, um amor de Deus, que Deus
tem por ele e eu reflito esse amor de Deus nas aulas de português. Esse é o objetivo
primário, o objetivo principal, a glória de Deus ao dar aula de português para eles. E
o segundo motivo é de querer ajudá-los, claro, a terem melhores condições aqui no
Brasil. Falando a língua portuguesa eles vão conseguir novas amizades, vão
126

conseguir alugar uma casa sem serem passados para trás na hora de pagar aluguel,
de conseguir expressar a dor deles na hora de ir a uma consulta médica, de conseguir
um emprego. Então ajudar mesmo essas pessoas, eu quero que elas tenham
melhores condições de vida no Brasil. Então esses dois motivos principais.

Pesquisadora: Legal e no seu ponto de vista, qual o papel do professor?

Iraque: O papel do professor é facilitar esse aprendizado fazendo com que ele não
sofra mais um trauma ao chegar no Brasil. Ele já vai ter alguns motivos de
preocupação, talvez alguns motivos traumáticos de conseguir um emprego, de
conseguir pagar o aluguel, então eu quero que aprender a língua seja um processo
bem simples, bem fácil, prazeroso. Então o meu papel ali é ensinar o português de
uma maneira prazerosa para que não seja mais um motivo de estresse na vida dele.
Então meu papel é esse, facilitar ao máximo esse aprendizado.

Pesquisadora: E você sente que houve contribuição do curso de Educação Física e


do curso de Teologia para sua prática docente na Compassiva?

Iraque: Demais, demais. Primeiramente a buscar o conhecimento e passar esse


conhecimento de uma maneira prática, de uma maneira fácil, de uma compreensão
fácil, que seja leve, que seja prático, desde a maneira de trazer o conhecimento como
da maneira de me portar dentro de uma sala de aula, de não falar de costas, de usar
exemplos práticos da vida para trazer o conhecimento teórico. Foram muitas coisas
que tanto na educação física quanto no seminário eu coloco em prática na hora de
estar falando ali o ensino do português. Então foi vital mesmo ter esses dois cursos
de graduação para poder ser um melhor professor. Eu acredito, acredito que que foi
muito importante sim.

Pesquisadora: A teoria e a prática, elas se conversam na sua atividade docente ou


você é mais voltado para prática? Como é isso?

Iraque: Não, acho que a teoria e a prática têm que caminhar lado a lado e eu procuro
tentar fazer muito isso. Dar um bom embasamento teórico daquilo que eu estou
ensinando, mas sempre colocando a parte prática junto com esse conhecimento. Eu
tenho medo de ir muito para prática, de ensinar muito o coloquial e aquilo do dia a dia
e depois essas pessoas terem dificuldades numa prova, numa entrevista de trabalho,
127

de escreverem algumas coisas erradas. Eu procuro sempre tentar trazer a teoria à


prática porque eu acho que elas não se contradizem e elas precisam caminhar lado a
lado. Eu creio que algumas aulas são mais práticas, já em algumas aulas o enfoque
é mais para a teoria, acho que tem que ter um equilíbrio muito grande aí.

Pesquisadora: Está certo. Tem alguma aula que você poderia citar como exemplo que
você dá e que você acha que é uma aula boa, que você consegue alcançar os alunos?

Iraque: Eu acho que, quando eu coloco algo que é muito, que fala muito no coração
deles, que eles conhecem muito desse tema de vida, então quando eu vou colocar o
português, isso faz mais sentido para eles, isso vai vir na memória deles de uma
maneira mais fácil, encontrar um lugar na cabeça deles com mais aceitação. Então,
por exemplo, o Ramadã começa nessa semana. Então se eu for ensinar vocabulário
da área religiosa nesse momento de vida deles vai fazer muito mais sentido eles
aprenderem que é oração em português, então eles vão precisar usar mais esse
vocabulário para eles poderem conversar com o chefe deles, que eles precisam sair
mais cedo do trabalho para quebrar o jejum. Então vou falar que jejum é o “sum” no
árabe. Então eu preciso aprender “jejum”. Porque eu preciso falar com o meu chefe
que eu estou em jejum, por isso o meu rendimento no trabalho vai ser mais baixo, que
eu não estou comendo, então dar uma aula nesse sentido nessa época do ano vai
fazer com que entre muito mais na cabeça deles, eles têm muito prazer em aprender
esse vocabulário, muito mais que talvez numa outra época do ano quando eles não
precisam utilizar isso. Então isso é muito importante para mim, fazer essa associação.

Pesquisadora: Está bem. Vamos ver aqui, que tipo de material de apoio você utiliza
nas aulas?

Iraque: Eu sigo o material proposto pela coordenadora pedagógica da Compassiva.


Então no caso é um livro de apoio. Acho que é o Muito Prazer que nós estamos usando
agora. Mas o bom é que ela me dá liberdade para eu trazer algo extra para
complementar o ensino teórico daquela matéria. Então se eu tenho que ensinar verbo,
eu vou seguir o material proposto, mas em alguns momentos eu falo, poxa, se eu fizer
uma complementação aqui de algo da minha cabeça que eu acho que vai ser melhor,
ela me dá liberdade de eu fazer isso. Então, às vezes, eu coloco alguma coisa extra
para poder facilitar o aprendizado.
128

Pesquisadora: Vamos lá. A pergunta sete eu vou, talvez eu precise falar um pouquinho
sobre ela. A gente vai ao longo da vida desenvolvendo um sistema de crenças. A
gente desenvolve sobre educação também, a gente passa a nossa infância dentro da
escola, e grande parte da adolescência. Ou talvez a adolescência inteira dentro da
escola e a gente vai criando crenças a respeito do que é a escola, do que é
aprendizagem, o que é um bom professor, como é a relação professor-aluno, ou como
eu aprendo melhor, como eu não aprendo, enfim, essas coisas que a gente acaba
carregando no momento que a gente vai dar aula, quando a gente se torna o
professor. Então, quando você se viu dando aula nessas várias experiências que você
teve e, em especial, no caso da Compassiva, que é o nosso objeto de estudo aqui,
quando você começou a dar aula lá, você percebeu alguma crença que você tinha em
relação à educação e essa crença foi desmistificada ou reforçada, ou não?

Iraque: Eu pensei um pouquinho nessa pergunta quando eu estava dando uma olhada
nesse questionário e a aí me veio muito na mente o que você comentou na sua
explicação agora, essa relação professor e aluno. Porque eu não sou tão velho assim,
mas na minha época de escola o professor era uma pessoa com a qual a gente não
tinha muito contato da sala de aula. Eu cresci numa escola meio rígida, onde o
professor entrava e você tinha que ficar de pé. O diretor entrava na sala, todo mundo
ficava em pé. As meninas usavam saia engomada. Então a camiseta era polo, era um
colégio meio rígido assim. Então sempre a relação professor-aluno era uma coisa
assim de ele estar ali somente para me passar uma informação que eu preciso
aprender. E depois eu fui vendo que eu não concordo com isso e que eu acho que
isso possa atrapalhar e prejudicar. Mas uma outra visão nessa relação professor-
aluno pode ser que o aluno fique mais aberto a absorver e o professor tenha mais
conhecimento do aluno para poder chegar com o ensino de uma maneira mais eficaz.
Então eu tento o máximo possível estreitar essa relação de professor-aluno, a gente
se colocar no mesmo degrau, a gente se colocar na mesma linha de como tem no
exército, como fala oligarquia, não sei se essa é a palavra. Então eu sempre tento
passar o português, obviamente a minha língua nativa, mas que eu estou ali no
mesmo nível. Eu não estou num nível acima, onde eles têm que me olhar com um
olhar de tipo “sim, senhor”. Mas eu estou aqui para te ajudar, para te conhecer melhor,
para saber das suas necessidades, porque assim talvez eu consiga passar a
informação da língua portuguesa de uma maneira mais precisa e que vai encontrar
129

um lugar melhor no seu coração. Então, a partir do momento que o árabe tem, eu já
conheço da cultura árabe, então eu sei que eles têm o professor em um nível de
respeito muito grande, onde ele não tem a oportunidade de estar próximo, é uma
relação muito longe, de muito respeito e faz com que não tenha tanta intimidade. Então
quando eu chego e eu cumprimento os meus alunos e começo a conversar sobre
como é que foi seu final de semana e dou risada e faço piada. E quando eu erro eu
peço desculpa. Olha, isso aqui eu falei, mas eu falei bobagem. Esquece isso que eu
acabei de falar. Então para ele falar: “poxa, um professor pedindo perdão e desculpa”.
Então ele não está falando isso. Foi um equívoco. Não, desculpa, eu achei que eu
estava vendo certo. E essa regra aqui já mudou do português. Não existe mais. Então
eu errei ao ensinar. Então esse tipo de relação faz com que eles fiquem mais abertos
a receber o conhecimento. Eu percebo muito isso. Então eu procuro ser mais amigo
do que professor. Então eu sou uma pessoa que eu gosto muito de vocês e eu quero
aqui ajudar vocês. Então eu sou professor de vocês, mas, olha, ali, na calçada, antes
da aula, vamos conversar, depois da aula vamos conversar, você precisa de carona?
Então eu acho que isso abre muitas portas, além de várias coisas também, para
aquisição de conhecimento. Eu acho que tira um pouco do ranço, talvez de um gatilho
que a pessoa tenha, eu tive vários professores que não foram bons. Esse é mais um
professor que está agindo daquela maneira numa relação professor-aluno. Então, eu
tento quebrar isso, ser mais um amigo que está ali para ajudar, um facilitador do que
um professor. Então acho que é bem isso.

Pesquisadora: Legal. Agora vamos para oitava. No seu ponto de vista, o que que é
um professor expert?

Iraque: O professor expert para mim é aquele que consegue cumprir o objetivo dele,
que é fazer com que o aluno aprenda sobre a matéria proposta. Então no nosso caso,
o nosso objetivo é fazer com que aquelas pessoas saiam dali falando português.
Então, se elas estão saindo falando português, para mim ele é um professor expert.
Para mim, eu meço pelo resultado alcançado, e não pela maneira que foi alcançado
ou o grau de conhecimento do professor. Então, se o professor tem doutorado, mas
ele não consegue passar todo o conhecimento dele de uma maneira prática para que
o aluno consiga, e uma pessoa voluntária, que tem o segundo grau completo, mas
consiga, com a limitação dela, passar o conhecimento para o aluno sair falando
português, o expert é esse e não o que tem o doutorado.
130

Pesquisadora: Legal. E como você foi preparado para trabalhar com refugiados lá na
Compassiva?

Iraque: A Compassiva ofereceu cursos tanto na área de português, para dar aula de
português, quanto para entender a situação: o que é um refugiado, o que é um
migrante, o que é um imigrante. Então deixar claro alguns conceitos como lidar com
temas, então eu vou falar do vocabulário e vou evitar os que possam despertar
gatilhos emocionais. Então evitar temas como guerra, como religião ou quando for
tratar esse assunto, tratar com bastante cuidado. Então a Compassiva deu muito
curso nessa área para que a gente tivesse um melhor conhecimento do nosso público-
alvo. Então acho que isso foi muito bom. Mesmo eu tendo um conhecimento muito
grande da cultura árabe, da língua árabe, eu não tinha muito conhecimento sobre o
refugiado. Não trabalhei com refugiados. Eu trabalhava com árabes que têm uma vida
tranquila, segura e estável no país deles. Então para mim foi muito útil, mesmo tendo
esse conhecimento da língua árabe e da cultura, entender melhor quem é o refugiado,
e como ele pensa, possíveis traumas. Como falar, como ensinar português para o
refugiado é diferente, português para um brasileiro ou para um americano, enfim,
então foi muito bom esses cursos que eles deram para a gente.

Pesquisadora: Lá você trabalhava como missionário?

Iraque: Sim, mas sem eles saberem que eu era um missionário. Usava a minha
profissão da educação física como uma forma para entrar no país e estar lá.

Pesquisadora: Muito bom e vamos lá, a décima: quais são as dificuldades em relação
à formação de professores para sua prática lá na Compassiva?

Iraque: Deixa-me pensar aqui. Eu não sei se tem como eu responder muito isso.
Deixa-me ver se eu estou entendendo bem a pergunta. As dificuldades encontradas,
as minhas dificuldades que eu encontrei para dar aulas de português?

Pesquisadora: É, se você acha que poderia ter alguma formação, alguma formação
que está faltando para dar essas aulas.

Iraque: Para mim eu acho que está bem tranquilo, eu acho que a gente sempre pode
melhorar, lógico, se tiver um curso eu vou fazer o proposto, acho que a gente sempre
pode adquirir mais conhecimento e melhorar ainda mais, mas hoje eu me sinto capaz
131

daquilo que eu estou fazendo. Eu creio que os dois cursos de graduação, toda a
experiência prática que eu tive na vida de ensino, mesmo que não seja a área da
língua portuguesa, mas me deram base, eu já errei bastante. Então acho que é mais
fácil não cometer esses erros já tendo errado anteriormente. Então eu me sinto bem
capacitado para dar aula de português ali para eles. Mas eu acredito que se uma
pessoa que seja voluntária e não tenha experiência na área do ensino, uma pessoa
mais jovem que não tem formação acadêmica ou na formação acadêmica não exista
essa parte da licenciatura, sei lá, em geologia, o cara que estuda as pedras, o terreno,
eu acho que essa pessoa vai ter mais dificuldades para lecionar.

Pesquisadora: Está certo. E a última pergunta: lá vocês têm possibilidade de troca,


momento de estudo, de formação?

Iraque: Eu não tenho muitos momentos de troca com os professores. O que eu tenho
é, o meu, a minha turma tem três professores. Então a gente fala no grupo de
WhatsApp como foi a aula passada. Olha, eu dei isso, até tal lugar eles encontraram
muita dificuldade em pronome possessivo, então reforça isso. Então é isso que rola,
é isso que acontece no grupo. Agora o que acontece comigo é que, por eu conhecer
a língua árabe, eu dou muitas dicas, muitas dicas para eles dizendo assim, olha eles
não estão entendendo muito o verbo ser/estar porque esse verbo não existe na língua
árabe, então eles vão falar “meu nome Junior, meu nome Armand”, e não “meu nome
é Mohamed”. Eles nunca vão falar “meu nome é Mohamed, meu nome é Arm”, que
nem no inglês my name is. Então não existe esse is, não existe esse to be, então é
difícil para eles mesmo.

Pesquisadora: Não sabia que não tinha.

Iraque: É, mas não tem esse verbo, mas eles têm outros verbos. É, existem outros
verbos. Como, andar, pular, o verbo ser/estar não existe. Então, vão com calma,
tenham mais paciência nisso. Então essa troca, né? Então alguns sons na língua
árabe não existem, a letra “P”, por exemplo. Então se ele falar “B”, de fato, então você
fala: “poxa, por que que você está falando “bato”? Vou encaminhá-lo para um
fonoaudiólogo.” Não precisa encaminhar para o fonoaudiólogo, é porque ele nunca
falou a letra “P”. Ele vai trocar sempre pelo “B”. Então essas dicas eu costumo dar
para os meus colegas ali, os meus amigos.
132

Pesquisadora: Tem sons que eles têm e que a gente não tem?

Iraque: Vários. Os sons guturais que nós não temos. A gente fala só com a boca. E
tem sons que eles falam com a garganta. Então esses sons a gente não tem. Então
isso eu costumo fazer. E aí os professores que eu vejo na segunda-feira, que eu estou
lá, surgiu no corredor alguma coisa assim que eu escutei, eu falo, “olha, é por causa
disso”, agora eu não tenho acesso a todos os professores, eu não tenho acesso aos
professores de quarta e sexta da turma um, da turma dois e da turma três. Então
quando eu posso eu tento ajudar por conta dessa experiência com a língua árabe.
Mas acho que não existe uma troca muito grande entre os professores da
Compassiva, é mais em dias de curso. Um ajudando o outro. De forma informal.

Pesquisadora: Entendi. Está certo. Eu vou parar aqui de gravar. Muito obrigada Iraque
até aqui.
133

Entrevista Arábia Saudita – 30/03/2022

Pesquisadora: Então, obrigada por permitir aqui a gravação, Arábia Saudita e


obrigada também por me ajudar com isso, é muito importante, porque meu trabalho,
resumindo, para não tomar muito tempo, eu estou fazendo um trabalho de mestrado,
eu trabalho na área de formação de professores e a minha intenção é entender qual
é a base de conhecimento dos educadores que dão aula lá na Compassiva. Pelo que
eu entendi, são poucos os professores de lá que realmente são professores de
formação. Então eu não sei qual é o seu caso, a gente vai saber agora. Mas eu
gostaria de entender qual é a base de conhecimento desses educadores/professores
que atuam lá dando aula para esses refugiados ou imigrantes. É um trabalho muito
bonito, que eu admiro muito e eu estou muito feliz de poder participar. Já assisti a
algumas aulas e estou fazendo entrevistas com professores e comecei a voluntariar
lá também, aí comecei dar aula on-line, estou superfeliz, vamos ver, tomara que dê
certo.

Arábia Saudita: Vai sim, com certeza!

Pesquisadora: Então, vamos lá. Bom, eu vi que você já fez no link o termo de aceite,
então não precisa, a gente pula aqui essas três informações iniciais, então vamos lá,
qual sua formação?

Arábia Saudita: Eu sou formada em Biomedicina.

Pesquisadora: E você teve a chance de fazer pós-graduação?

Arábia Saudita: Ainda não, não sou pós-graduada ainda.

Pesquisadora: E você leciona há quanto tempo?

Arábia Saudita: Eu dou aula na Compassiva desde agosto de 2015, já vamos fazer aí,
faz tempo. Sete anos.

Pesquisadora: E fora da Compassiva, você já atuou como professora ou não? Só na


Compassiva?

Arábia Saudita: Não, só na Compassiva.


134

Pesquisadora: Legal. E você já lecionou para que níveis?

Arábia Saudita: Todos os níveis, zero, iniciante, intermediário e avançado.

Pesquisadora: E o seu grupo atual hoje, qual é a característica dele? Idades,


nacionalidades, só mulheres?

Arábia Saudita: A maioria das mulheres são sírias, eu acho que tem uma que é turca.
Elas têm uma idade média de uns trinta, quarenta anos, foge da média uma senhora,
que tem acho que sessenta e dois e ela é uma das maiores dificuldades nossas, elas
são iniciantes, e a maioria está aqui no Brasil em média de seis meses há um ano
mais ou menos.

Pesquisadora: Está certo. Então essa primeira parte aqui é para a gente traçar um
perfil. E agora a gente vai para parte dois, que é a parte das perguntas mais
relacionadas à pesquisa mesmo. Então, a primeira pergunta: Qual o motivo da escolha
da docência para refugiados ou imigrantes? O que te motivou a escolher dar aula para
esse público?

Arábia Saudita: Certo. A minha intenção inicial não era dar aula. Eu tenho dificuldade
ainda de me enxergar como educadora porque eu acho que é um papel, uma
responsabilidade muito grande. E eu sinto assim, que eu sou um apoio, uma
ferramenta, sabe? E a minha intenção inicial era ajudar de alguma maneira na
situação dos refugiados aqui no Brasil quando deu aquele pico lá no começo de 2015,
final de 2014, quando vieram muitos refugiados sírios e aí eu fui fazer pesquisa na
internet do que eu poderia fazer para ajudar e a Compassiva foi uma das ONGs que
eu consegui ver ali na minha pesquisa, e aí eu entrei em contato, fiz a entrevista,
comecei primeiro como apoio, mas logo não tinha professor suficiente, e aí eu fui dar
aula. Foi uma descoberta muito boa para mim, dar aula na Compassiva é uma das
coisas que eu mais gosto de fazer e eu, inclusive, quero muito conseguir na minha
área mesmo ter alguma base para lecionar, porque eu aprendi que eu gosto muito de
compartilhar dando aula.

Pesquisadora: Que delícia. Descobrir fazendo, muito bom. E a número dois, qual o
papel do professor no seu ponto de vista?
135

Arábia Saudita: Primeiro eu acho que compartilhar, eu acho que é uma das coisas que
eu mais aprendi na Compassiva, compartilhar conhecimento. Eu compartilho o que eu
sei, elas compartilham o que elas sabem e acho que formar também opiniões nas
pessoas, formar pensamentos, formar ideias, formar caráter. Acho que tudo isso.

Pesquisadora: E você fez Biomedicina, você disse. Você enxerga alguma contribuição
desse curso para sua prática docente?

Arábia Saudita: Eu acho que a partir do momento que eu tive também que apresentar
algum conteúdo durante as aulas ou alguma coisa do tipo, isso tudo ajuda a formar,
né? Aprendemos a nos expressar melhor. Eu sou uma pessoa tímida, então o contato
que eu tive com a faculdade, ter que também expor algumas coisas me ajudou sim. É
interessante porque às vezes nessas conversas com os outros professores, em
cursos assim aleatórios, que não têm muita relação direta com a educação, mesmo
assim a gente sempre encontra um ponto de contato.

Pesquisadora: É muito interessante. Como funciona a relação prática e teoria na sua


atividade docente?

Arábia Saudita: Eu sempre tive muito suporte das coordenadoras da Compassiva,


pelo fato de não me sentir professora, por não saber ou não ter formação. Na língua
portuguesa eu já me senti muitas vezes assim, não sei, duvidando da minha
capacidade de poder partilhar algo do tipo, mas eu sempre tive muito apoio das
meninas e acho que com um pouco de informação, um pouco de leitura a gente
consegue entender melhor e partilhar a nossa ideia e partilhar o conteúdo. Então eu
já li algumas coisas. Então eu sempre penso que tem a competência oral, a
competência escrita. E a competência auditiva. E eu procuro sempre focar em uma
dessas competências na minha aula. Na Compassiva eu creio que, como a gente tem
esse foco no português como língua de acolhimento, então elas precisam se
comunicar, eu sempre foco um pouco mais na competência da fala para as meninas
falarem, conversarem entre si. Eu gosto muito de estimular a fala na aula, a
comunicação. Então, eu sempre faço um planejamento assim, quais são a
competências que eu quero focar naquela aula, se eu quero, por exemplo, focar um
pouco na competência auditiva, eu levo, eu procuro uma música, por exemplo, que
tenha algum tipo de conteúdo, sei lá “artigo”, uma música que tenha bastante artigo.
136

Aí eu peço para as meninas ouvirem a música, completar as lacunas. Aí se for uma


outra competência, a competência, escrita, eu passo mais uma interpretação de texto,
algo que elas precisam ler, escrever. Então eu vou dividindo assim.

Pesquisadora: Legal. E você pode dar algum exemplo de uma aula que você acha
que funciona, que você gosta de dar, que é um sucesso?

Arábia Saudita: Eu gosto bastante de aulas que a gente tem materiais na Compassiva,
materiais de apoio. Então quando é para o intermediário, para o mais avançado, fazer
algum jogo, eu gosto de fazer jogo com eles. Aqueles sabe? Aqueles cards e eles
gostam muito daqueles ou vídeo mesmo, gosto de compartilhar vídeo. Eu sou, por
exemplo, uma pessoa que gosta bastante de filme. Aí, se eu vou falar sobre isso com
eles, assim, o intermediário ou avançado já entendem melhor. E aí eu falo qual o filme,
qual é o tipo de filme que você gosta? Eu levo um pedaço de um filme que eu gosto,
eu vou levar um livro, um filme de Sci-Fi, eu gosto de Sci-Fi, por causa disso e aí a
gente discute. Eu gosto mais dessas aulas que tenho esse tipo de interação, assim
de games ou de vídeo. E eles gostam também. Imagino.

Pesquisadora: Bom, isso entra um pouco já na pergunta seis. Que tipo de material de
apoio é utilizado, você já está falando.

Arábia Saudita: Dos jogos, e a gente também tem um drive na Compassiva que a
gente utiliza, aí tem vários livros, tem o Muito Prazer, tem o Bem-vindo, o Portas
Abertas, a gente trabalha com eles, o Muito Prazer, mas sempre tem outras literaturas
com outros tipos de exercício, tem o Falar, Ler e Escrever, o Pode Entrar, então eu
sempre dou uma corrida lá e vejo se tem alguma coisa aqui, tem os games que tem
lá na Compassiva, tem também jogo da memória lá ou aqueles cardzinhos de tipo de
profissões, nacionalidades que as meninas fizeram, então eu uso todos esses
materiais que elas disponibilizam e se eu tiver qualquer tipo de dúvida, qualquer tipo
de dificuldade, eu sempre pude contar com as meninas da coordenação, a Jéssica,
que é maravilhosa, qualquer coisa que que eu tenha dúvida, ela sempre me apoia,
sempre me dá ideia. Então, assim, apesar de às vezes me sentir sem as competências
necessárias para partilhar do português, eu sempre fui muito apoiada, sabe? Então
por isso que eu nunca desisti e tive vontade de sair porque eu sempre tive todo o
suporte que eu precisei lá na Compassiva.
137

Pesquisadora: Legal. A pergunta sete talvez seja um pouco mais difícil de


compreender, mas eu vou tentar explicar. A gente tem um sistema de crenças. A gente
desenvolve crenças ao longo da vida, e crenças em relação a tudo, inclusive em
relação à educação. A gente passa grande parte da infância e grande parte da
adolescência dentro da escola como estudante e isso contribui para a gente criar um
sistema de crenças em relação à educação, o que a gente entende como boa
educação ou má educação, um bom professor, um mau professor, como a gente
aprende, como a gente gosta de aprender, enfim, são essas crenças que a gente
acaba levando, para nossa prática docente. Isso a gente carrega com a gente na hora
da gente ensinar. Quando você começou a ensinar você identificou algumas dessas
crenças? Se você identificou, você desmistificou essas crenças ou não, você reforçou,
era isso mesmo?

Arábia Saudita: Eu acho que no nosso sistema educacional tem muito do lance do
você estuda, você faz a prova e você passa se você foi bem na prova. E eu acho que
isso é um sistema que de fato não avalia as aprendizagens das pessoas. E eu já não
acreditava nesse sistema educacional que a gente infelizmente tem. A maioria aqui
no Brasil nas escolas públicas. Eu sou uma pessoa que veio de escola pública. Estudei
no Ensino Médio, depois fui bolsista do PROUNI, porque gente que nasceu pobre não
tem condição de pagar faculdade. Estudar um monte para passar na faculdade, para
passar na USP, para passar na UNIFESP. Então sempre foi esse negócio meio
meritocrático e a educação não tem nada a ver com isso. Eu tive bons professores na
minha jornada educacional, que sempre me fizeram gostar da área de educação. E
até vivências na igreja mesmo de pessoas, por exemplo, da escola dominical, de ter
ótimos professores e aquilo me fez ter vontade de aprender e de ensinar também,
então quanto mais eu tive contato com a educação, mais eu entendi que não é sobre
meritocracia, é sobre realmente compartilhar coisas, compartilhar conhecimento,
compartilhar opinião, formar opinião, formar pessoas. Não é sobre dividir quem sabe,
quem passou, quem não passou, eu acho que isso é uma das maiores falhas que a
gente tem aqui no Brasil.

Pesquisadora: É verdade. Vamos lá agora para oitava, no seu ponto de vista, o que
um professor expert deve ter?
138

Arábia Saudita: Acho que em primeiro lugar é formação. Eu acho que um professor
tem que ser formado. De algum modo, mesmo se ele não tiver formação de faculdade,
ele tem que ir atrás daquela informação, ele tem que procurar estudar, acho que ele
tem que ser aberto a escutar e aprender também. Eu aprendo muito na Compassiva.
Eu acho que um bom professor tem essas qualidades de escutar e de trocar mesmo
com o aluno.

Pesquisadora: Como o professor foi preparado para trabalhar com refugiados lá na


Compassiva. Como você foi preparada?

Arábia Saudita: Como eu disse, em questão de suporte lá na Compassiva eu tive,


infelizmente às vezes por causa de tempo, por causa da correria a gente não participa
de um treinamento ou de outro, mas os treinamentos são importantes. A Débora, que
era ex-coordenadora, e a Jéssica disponibilizaram sempre muitos treinamentos em
questão de gramática em questão de cultura. Eu tive lá na Compassiva um curso
sobre a cultura árabe, acho que nem as meninas lembram disso porque faz um
tempão, acho que foi lá por 2015, mas eu aprendi sobre cultura árabe, aprendi sobre
as crenças deles, sobre como me portar com homens árabes, por exemplo, que tipo
de roupa eu posso usar. Qual tipo de roupa vai fazer as pessoas se sentirem
desconfortáveis, se eu for de regata ou se eu colocar brinco, ou se eu puxar o cabelo
muito para trás, então dependendo da turma, tem alunos que a gente já tem mais
intimidade, que a gente já conhece há um tempo e tal, mas, dependendo, se for por
exemplo uma sala só de homens, você já tem um comportamento diferente, você não
pega na mão, por exemplo. Eu tive, sim, esse treinamento lá na Compassiva.

Pesquisadora: Legal, e quais são as dificuldades que você encontra na sua prática
referente à formação de professores?

Arábia Saudita: Tempo, eu acho que é uma das principais coisas que a gente precisa
muito para estudar e às vezes na correria do dia a dia você não encontra. Então acho
que tempo. É tempo para investir mesmo em estudo, sabe? De ir atrás, de poder
aprender coisas. Por exemplo, essa aluna que a gente tem agora, a “SaSaSa”. Ela vai
precisar de uma professora que caminhe só com ela, ela não vai acompanhar o ritmo
das meninas mais novas, sabe? E a gente teve uma aluna dessas uns tempos atrás
ela, tinha uma professora só para ela e aí às vezes quando eu estou nessa aula com
139

a “SaSaSa” e eu falo uma coisa e ela não entende o que eu falei, eu preciso das
meninas para traduzirem para ela. É um pouco frustrante, você quer fazer a pessoa
entender, você quer que ela entenda o que você está falando e você não consegue.
Então acho que para isso eu precisaria de tempo para ver se eu consigo dar uma
estudada e para conversar com as meninas da coordenação, ver se a gente arranja
uma professora só para ela ou que outros tipos de método a gente pode aplicar com
ela, sabe? Perdão. Está quente hoje.

Pesquisadora: É. Entendi. A última pergunta: vocês conseguem trocar? Tem um


momento de estudo, de formação entre vocês professores?

Arábia Saudita: Sim, quando eu estava de noite tinha mais professores. Então como
eu fiquei um tempo maior à noite, eu tinha mais contato. Então a gente conseguia
assim trocar quando tinha o treinamento presencial, pela internet, mesmo agora de
manhã eu conheci há pouco tempo a professora da manhã, a Maria, ela troca comigo,
eu não sei qual a formação dela, a gente conversa mais sobre a turma mesmo,
precisava até ter uma troca maior com ela. Acho que ela conversava mais sobre essas
coisas com os professores da noite.

Pesquisadora: Entendi. Arábia Saudita, vou interromper aqui a gravação, eu agradeço


demais, muito obrigada.
140

Entrevista Palestina – 06/04/2022

Pesquisadora: Tudo certo? Estamos gravando, obrigada, Palestina, por me permitir


gravar, eu vou compartilhar as perguntas para ir norteando aqui a nossa conversa. E
aí facilita para a gente. A primeira parte das perguntas é mais para a gente traçar o
perfil do educador. E, bom, você já respondeu para mim aquele formulário? Então eu
vou para terceira pergunta já. Qual a sua formação?

Palestina: Eu sou licenciada em Educomunicação. Eu vou até escrever para você, vai
que ajuda?

Pesquisadora: Maravilha. De todo mundo, você é a sétima pessoa que eu faço a


entrevista, a sétima educadora de lá. E você e o Iraque são os únicos que são da área
da educação mesmo, de formação, da área de educação.

Palestina: Olha só, é o Iraque é formado em Educação Física.

Pesquisadora: Você teve a oportunidade de fazer pós-graduação?

Palestina: Por enquanto ainda não.

Pesquisadora: Há quanto tempo você leciona?

Palestina: Estava aqui fazendo as continhas. Quatro anos.

Pesquisadora: Da Compassiva e depois você pode me dar o dado geral.

Palestina: Ok. Então, o geral é quatro, na Compassiva não tem um ano ainda. Eu
entrei em agosto. Setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março,
abril, oito meses de Compassiva.

Pesquisadora: E nesse período de quatro anos em que série você lecionou, para quem
você lecionou?

Palestina: Bom, como eu atuava como professora de tecnologias educacionais, eu


tinha uma função mais transversal ali. E então eu atuava com todas as séries do
Fundamental 2 e Ensino Médio. Então desde sexto até o terceiro ano do Ensino Médio.

Pesquisadora: E lá na Compassiva, são com alunos de qual nível?


141

Palestina: Eu estou com o nível um agora. Agora não. Sempre estive na verdade.
Nível um.

Pesquisadora: Certo. E quais são as características desse grupo? Idade média,


nacionalidade, se você tem informação da formação deles.

Palestina: Legal. Bom, então respondendo ali a primeira característica, são alunos
refugiados, acho que todos eles, se eu não me engano. Acho que todos eles. E me
deixa ver, idade tem uma variação interessante assim, eu não tenho crianças, eu tinha
um adolescente como aluno, mas ele não continua conosco. Ele era filho inclusive de
um aluno que já era nosso. E ele vinha às vezes com o pai e tal, e como ele já estava
ali na adolescência e tal, ele começou a frequentar como aluno mesmo, mas no fim
ele estuda cedo, não estava dando conta de acompanhar, por enquanto não está mais
com a gente. Então a gente tem desde agora a mais nova, acho que tem uns dezenove
anos e a pessoa mais velha, vai até acho que creio eu que esteja com quarenta e
cinco por aí, mas a gente já teve um aluno, e ele era dessa turma inclusive, ele não
pôde continuar também que tinha sessenta e seis anos, o Sr. MMMM. Ele e a esposa.
Aliás, eram pais inclusive de dois alunos antigos da Compassiva que super se
formaram assim, enfim. E aí só respondendo, eu vi que perguntou do perfil deles. De
formação. As alunas mais novas ainda não estudam e até elas perguntaram para mim
um pouco sobre isso. A gente tem uma abertura para conversar sobre estudos no
Brasil. Os demais alunos têm trajetórias muito diferentes, não sei se todos tem
formação, acredito que não, na verdade alguns atuavam, eu sei que a gente tem dois
irmãos que estão conosco que trabalham com marcenaria e aí o irmão mais velho tem
a marcenaria, o irmão mais novo ajuda. Nós já tivemos o Sr. MMMM, ele era formado,
ele era professor de árabe e a CCCC, que era esposa dele, não são mais nossos
alunos, mas, enfim, ela era professora de matemática. Então tinha. Tinha eles que
eram formados mesmo. Desses que eu me lembre.

Pesquisadora: Legal. Está certo. Então agora a gente vai para as perguntas mais
relacionadas à teoria do trabalho, da pesquisa que eu estou realizando. Na verdade,
eu nem falei. Nem introduzi, é uma pesquisa do tipo estudo de caso da Compassiva
e a proposta é entender a base de conhecimento dos professores ou educadores. A
gente optou por chamar de educadores, já que a maioria não é da área, não é formado
na área de educação, então a gente optou em vez de falar “professor”. O termo
142

“professor” remete ao profissional formado, então a gente optou no trabalho por


nomeá-los como “educadores”, embora na Compassiva a gente chame de professor.
Então a intenção dessa pesquisa é entender a base de conhecimento desses
educadores, porque a área de pesquisa é dentro de formação de professores. Então
qual é o motivo da escolha da docência para refugiados? Por que você escolheu
especificamente essas aulas?

Palestina: Olha, foi engraçado como eu cheguei na Compassiva. Contando um pouco


da minha experiência, eu acabei me inscrevendo para ser voluntária, eu não vou
lembrar agora se eu me inscrevi diretamente para ser professora, eu acho que não,
na verdade o que aconteceu, mas foi uma feliz surpresa, uma grata surpresa, isso foi
antes da pandemia. Então depois a gente teve o período da pandemia. No final, no
meio do ano passado, quando as coisas começaram a dar sinais de melhora,
expectativa de vacina e tudo mais, enfim entraram em contato comigo e aí por conta
da minha formação, me sugeriram ser professora, então foi isso. Para ser sincera, eu
tinha bastante receio, por não conhecer mesmo assim muitos refugiados próximos de
mim, eu não tinha ainda contato com essas pessoas; imigrantes, sim, mas refugiados
ainda não tinha tido contato próximo. Então eu estava um pouco insegura. Eu gostaria
de me aproximar, sempre me motivou estar próxima dessas pessoas e conhecer
outras culturas, outros costumes. Então, acho que eu diria que minha proximidade
com a Compassiva e com, enfim, a causa do refúgio e da migração, imigração de um
modo geral, acho que foi um pouco essa. E aí a docência veio como uma grata
surpresa mesmo, de poder dar aulas de português e aí a grata surpresa de enfim
poder descobrir que a gente tem muito a compartilhar com eles, mesmo eu não sendo
formada em Letras, sendo professora de português. Então acho que foi um pouco
isso, se eu fosse responder de modo curto, seria conhecer ali e me aproximar de
culturas diferentes, de línguas diferentes, costumes muito diferentes. E aí muito
diferentes mesmo, de ponta cabeça quase. Acho que você tem reparado isso também.

Pesquisadora: É verdade. Qual é o papel do professor para você?

Palestina: Bom, para mim acho que o papel do professor se dá muito numa relação
de mediação. E aí trazendo mediação entre o quê? Entre o conhecimento, o que a
gente quer compartilhar. Sendo professores, partilhar isso, então mediar essa relação
entre o conhecimento, entre o aluno, entre o contexto que o aluno está e como esse
143

conhecimento se relaciona com o contexto dele; eu vejo muito desse modo, e aí acho
que para mim isso faz muito sentido na Compassiva, como um todo. Às vezes, na
escola, no ambiente mais formal de educação, isso nem sempre acontece desse
modo, mas na Compassiva eu vejo que tem um espaço maior para isso, essa
mediação. Então onde a gente pode trazer ali esse aproximar o português e a cultura
brasileira considerando também o contexto, a cultura e o conhecimento que eles já
têm também. Então acho que eu vejo que o papel do professor tem um pouco desse
olhar de mediação mesmo.

Pesquisadora: Certo. E o curso que você fez, Educomunicação, auxiliou você nessa
prática docente na Compassiva?

Palestina: Sim, bastante, bastante. Acho que do que eu posso comentar, trazer fontes
diferentes e fazer uso de diferentes mídias também com os nossos estudantes. Então
isso é algo que eu vejo que tem não só mídias, mas a prática como um todo. Eu faço
uso de alguns recursos e eu percebo que são recursos para além do livro. E isso foi
algo que eu tive um olhar mais cuidadoso, eu recebi esse olhar mais cuidadoso
durante a faculdade. Para esses outros materiais que podem contribuir muito. Não só
podem como contribuem de fato bastante, então, no uso de jogos, uso de vídeos, de
podcasts, áudios, acho que com os nossos alunos também essas outras linguagens
contribuem bastante. Então isso foi um olhar que eu tive durante a faculdade e eu vejo
que com esses alunos também é algo bastante potente.

Pesquisadora: Para você, como é essa relação da teoria e prática na sua atividade
docente? Existe essa conversa? Entre teoria e prática?

Palestina: Sim, sim, existe, existe bastante. Claro que ali é muito no dia a dia, na nossa
atuação ali, mas ela é constante. Então acho que desde o modo de como acolher a
dúvida, de como a gente vai trabalhar algum conteúdo específico do livro, como a
gente acolhe essa dúvida que chega, até, enfim, falando tudo fora de ordem, mas a
preparação da aula também, é a mudança ali da preparação mesmo, na hora da aula.
Às vezes você vê que o que você preparou não vai caber bem ali. Por mais que você
tenha, poxa, uma super ideia. Ficou demais, vai ser demais essa aula e ali você, na
hora percebe, “putz, não vai rolar”. E eu já tive algumas experiências assim, também
na Compassiva e todas elas me ensinaram demais. Mas acho que, sim, tem muito de
144

trazer da teoria também para prática. Claro que a gente não tem assim na Compassiva
algo tão formal como nós temos em escolas formais. A gente está falando de uma
instituição do terceiro setor também, um pouco diferente. Mas não, eu acho que não
tem como desvincular assim. Ainda mais para quem é formado. Quem tem uma
licenciatura, quem fez pedagogia, acho que é muito difícil você dissociar assim de
algum modo. Então acho que tem bastante.

Pesquisadora: Você poderia citar algum exemplo de uma prática sua que você gostou
ou algo que você faz com frequência que você acha que dá bom resultado?

Palestina: Sim, tem duas coisas que eu percebo que eu gosto e eu tenho um resultado
bem satisfatório de fazer com os alunos, eu percebo que eles gostam bastante
também. Uma delas é trazer jogos para sala de aula, tem sido uma surpresa bem
gratificante mesmo, a gente tem alguns jogos na Compassiva, no armário ali tem um
milhão de coisas legais, e aí, por exemplo, jogos da memória com imagens e palavras
são coisas super simples, não são jogos super elaborados, eu até tenho interesse em
pensar em jogos onde eu possa produzir mais coisas com eles, mas eu percebo que
desde o simples assim, algo muito potente. Então eu percebo que é potente para eles
ali para aprender palavras novas, para associar a escrita da palavra, a fonética da
palavra e a imagem, dá muito resultado, é muito legal porque eles trazem exemplos
do que eles viram nesses jogos, nas falas deles, nas produções deles. Mas, enfim,
tem esses jogos de memória, tem alguns jogos de falar características também, são
jogos bem simples, assim, a gente fez um “cara a cara” lá bem simples, mas que foi
para trabalhar assim, a gente dividia a sala em dois grupos. Foi para poder trabalhar
características das pessoas, então se a pessoa usa óculos, qual é a cor do cabelo,
cabelo curto, liso, cacheado. Acho que são esses jogos assim que eu tenho trazido.
Tem alguns outros de perguntas e respostas também. Então são sempre jogos que
são mais físicos. Raramente, pelo menos nas minhas aulas, assim, às vezes eu trago
um vídeo, mas geralmente eu mando para eles no grupo de WhatsApp, e trago muito
áudio para eles também, que é algo que eu acho que é para eles é um pouco mais
carente até pelo dia a dia que eles têm ali, sempre em contato com outras pessoas
que falam árabe também. Então acabo trazendo mais isso, assim eu não uso muita
lousa. Eu prefiro usar a lousa do que necessariamente trazer um PowerPoint para
eles, embora eu mande algumas coisas no grupo para eles também depois. Então, às
vezes, algum esqueminha que eu fiz. Às vezes on-line mesmo, mas mando no grupo
145

depois. Mas em geral na sala é isso, eu prefiro algo bem mesmo da lousa. Eles vindo
para lousa também, eles adoram e aí outra coisa que eu ia comentar, eles gostam
muito, e eu adoro também, porque é um jeito muito bom de saber como é que a coisa
está, quando peço para eles soletrarem algumas palavras. Então eu até fiz isso nessa
segunda e ajuda muito, assim é onde você percebe em que ponto a coisa está indo
muito bem, onde tem algumas coisas para a gente trabalhar melhor, onde eles
associam também o português com outras línguas, também dá para perceber, por
exemplo, para quem fala inglês, eu vejo muito isso. Às vezes, eles vão falar as vogais
e eles falam com o som das letras em inglês. E aí eu corrijo o falar, parece o inglês,
mas não é, em português é diferente e tal. Então isso ajuda um pouco também a
entender como funciona a cabeça ali para eles. Que realmente árabe e português são
muito diferentes. A nossa ponte às vezes é o inglês, mas nem todos os alunos falam
inglês. Eu tenho um aluno que não fala inglês, mas fala francês e aí eu não falo francês
por exemplo, mas tem um professor que fala, né? E aí é a ponte entre eles, por
exemplo. Então tem tudo isso assim, acho que esses momentos de jogos têm sido
muito bons, eu tenho gostado muito de trazer, eu percebo que eles se conversam
melhor também. Então é o momento que eles mais se relacionam entre eles nas
turmas. Então eu os divido em grupos. E todos os meus alunos gostam muito de
competir, é impressionante, tem que tomar um cuidado até, que isso já deu um
problema assim, já deu um desconforto uma vez, então isso foi uma coisa que me
ensinou também. Eles se cobram bastante, como nós também, mas então tudo o que
envolve algum tipo de, nem tinha recompensa na verdade, ganhar ou perder, ir bem
ou não, e que envolve nota é algo que para eles tem um valor muito grande. Então
acho que os jogos também engajam um pouco por isso.

Pesquisadora: Entendi. A seis acho que você já abordou. Que tipo de material de
apoio é utilizado? Eu acho que isso, seriam esses. A sete, vou falar um pouquinho
sobre ela. Não sei se ela ficou clara. A gente desenvolve ao longo da vida um sistema
de crenças sobre diversas coisas, diversos temas. E a gente desenvolve crenças
sobre a educação também, porque a gente passa nossa infância, nossa adolescência
dentro da escola. Então como alunos, porém, a gente acaba criando crenças do que
é a educação, do que é um bom professor, o que é aprender, qual é a relação que se
tem que ter entre professor e aluno, a gente vai desenvolvendo isso de acordo com
as nossas experiências pessoais. E muito bem, aí você passou sua vida, desenvolveu
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suas crenças e chegou ao ponto de ser professora. Nesse momento, você reconheceu
algumas crenças que você tinha em relação à educação e você desmistificou essas
crenças ou, de repente, não? De repente reforçou essas crenças, você chegou a ter
alguma reflexão sobre essa questão de crenças ou não?

Palestina: Acho que no meu processo, grande parte foi de desmistificar mesmo.
Concordo que a gente vai desenvolvendo muito isso ao longo da vida, a partir das
nossas experiências enquanto alunos. E aí, quando acontece da gente ocupar um
lugar de professor, em algum momento, a gente consegue entender algumas coisas
que aconteceram no nosso processo, por que foi assim, e aí acho que às vezes até
tem uma relação meio tardia de perdão e reconciliação com professores que você
teve ao longo da vida. Pelo menos comigo foi assim, eu nunca mais os vi, mas no meu
coração estão perdoados, eu tenho outra compreensão deles, é muito legal isso. Acho
que para mim foi poder transformar tudo isso e sigo transformando. Não estou pronta,
estou longe disso, mas acho que eu consigo reconhecer e acho que muito eu vejo da
relação entre professor e aluno. É claro que na Compassiva a gente tem ainda um
lugar diferente. Acho que a gente tem algumas peculiaridades. Mas algo que eu vejo
em comum, por exemplo, da minha prática docente enquanto um espaço formal de
educação no Brasil e no espaço não formal, como a ONG, acho que essa relação
entre aluno e professora, ela pode ser mais valorizada e mais próxima do que
geralmente ela é. Pelo menos conforme eu tive na minha experiência enquanto aluna
durante a minha formação na faculdade, foi diferente para mim, eu vim de um curso
que são poucos alunos por turma por ano. Por turma também, são os mesmos
professores, então já foi um pouquinho diferente nesse sentido. Enquanto criança,
adolescente estudando, eu percebia que tinha uma relação às vezes de medo, entre
aluno e professor. Eu tinha muito dessa relação de respeito com os meus professores,
eu era uma boa aluna e tirava notas boas e tal, então para eles, no que era valorizado
de certo modo, eu estava dentro. Então eu tinha uma relação com eles na qual não
tinha nenhum tipo de desgaste. Mas quando acontecia de algum aluno fugir daquele
padrão, era uma relação muito difícil. E aí mesmo nessa relação, onde eu estava
atingindo ali aquelas expectativas eu tinha muito medo também. Eu percebo que isso
foi algo que eu desmistifiquei ao longo do meu processo também de preparação para
ser professora um dia. Acho que é de derrubar um pouco dessas barreiras, desses
muros, tirar essa ideia de que você vai ser punido por não saber algo. Mas que você
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está sempre ali, se você se coloca à disposição de aprender e de receber algo novo
ali, é isso que importa e é por isso que a gente trabalha. Então acho que eu percebo
e consigo reconhecer, e continuo assim, é um processo que não para nunca. Nunca
acaba.

Pesquisadora: Eu trabalho com uma professora que tem sessenta e seis anos e ela
tem um entusiasmo e toda vez ela está aprendendo uma coisa nova e é incrível, falo
“nossa, é isso, é isso mesmo”. É muito legal. Ela falou, “faz quarenta anos que eu dou
aula, parece que agora eu estou achando o meu caminho”. É isso, assim.

Palestina: É por isso que eu falo, quando eu converso com professores, eu dei dois
passos aqui, dois passos perto de um monte que eu nem sei quanto que é o total.

Pesquisadora: Então é muito legal. Vamos lá, oitava. No seu ponto de vista o que um
professor expert deve ter?

Palestina: Ele deve ter disposição para aprender com o aluno também. De modo geral.
Acho que não ter uma postura arrogante ou de ser o “conheço tudo” e estou mandando
ver aqui. Eu sei o que eu estou falando, e tal, mas acho que, para mim, hoje o que eu
considero um professor expert é aquele que consegue realmente perceber que ele vai
aprender com os seus alunos. Uma coisa que ele não tem nem escolha, quer dizer,
ele pode escolher. Não, não estar ali aberto de algum modo. Mas para ser expert, no
meu ponto de vista, ele tem que estar disponível para isso e compartilhar o seu
conhecimento de modo livre mesmo, assim, sem ressalvas. Sem ficar pensando se
vale a pena ou não. Eu acho que nem sempre a gente tem condição de colocar esses
valores sobre alguém, então nossa função é ensinar. E é isso, então eu vejo que estar
aberta a aprender, inclusive com aqueles que a gente olha e fala: “nossa, não, esse
vai ser difícil”. Mas são esses aí que são ótimos. Então acho que um bom professor,
um professor expert, ele se põe disponível para aprender com a sua prática e com os
seus alunos.

Pesquisadora: Legal. E como você foi preparada para trabalhar com os refugiados lá
na Compassiva?

Palestina: Legal. Bom, eu tive uma preparação até junto com um outro professor que
dá aula comigo, a gente teve alguns encontros, acho que foram dois ou três no total,
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depois eu posso resgatar isso se você precisar dessa informação certinha, mas a
gente teve um panorama geral assim, nossa, foi ótimo, inclusive esse foi a Débora
que nos apresentou, ela era funcionária da Compassiva, ela não está mais lá hoje,
mas a gente teve um curso. Acho que era para além de apresentar os materiais que
a Compassiva usa ali para ensinar os estudantes. Então quais são, o que é o livro,
como é o livro, a gente tem acesso ao livro digital, aos materiais extras, às produções
que os professores foram levantando ao longo do tempo, que a gente compartilha
entre nós. Para além disso, a gente teve uma grande apresentação sobre o que é o
refúgio, o que é a situação de refúgio, algumas situações comuns desse momento no
mundo, o que, para mim, assim, foi muito esclarecedor mesmo, eu não tinha ideia de
meio por cento, então a gente teve um pouco dessa noção. Acho que entender um
pouco disso também ajudou a entender um pouco da cultura deles e como ela se
relaciona com a fé que a grande maioria deles tem, a maioria é de mulçumanos. Então
isso também acaba refletindo muito em outras situações, acaba chegando na sala de
aula, apesar da gente não falar sobre fé ou religião dentro nas aulas. Então, para mim,
só o pouco que eu tive noção ali e o que eu fui aprendendo com os alunos e
pesquisando depois por conta foi muito importante para essa preparação. Eu costumo
dizer que eu ainda estou sendo preparada, porque toda vez que eu acho que eu
aprendi alguma coisa, eu falo: “nossa, é tudo novo, é tudo diferente”. Então, acho que
a gente teve esse encontro de algumas horas, foi uma formação para entender um
pouco dessa situação de refúgio, o perfil dos nossos alunos na Compassiva, também
de quais países eles vêm, quais são refugiados, se temos imigrantes, e nós temos
também na Compassiva, temos de entender como ela funciona, então isso também
foi bem importante. Que não são só as aulas de português, mas são outros tantos
projetos a Compassiva tem para atuar ali no apoio a esse refugiado, e acho que essa
compreensão cultural para além do material, como a gente trabalha e da organização
como um todo. Então quem são as pessoas que estão ali na Compassiva e tal.

Pesquisadora: Legal. E você consegue listar alguma dificuldade que você encontra na
sua prática que a causa seja relacionada à formação de professores ou você acredita
que não tenha?

Palestina: Eu acho que eu consigo sim identificar dificuldades, por exemplo, eu acho
que na formação como um todo. Mas só antes de eu responder, uma dúvida, a
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formação da Compassiva ou formação no geral? Tipo a minha formação, por exemplo,


é mais voltada para formação da Compassiva.

Pesquisadora: É na Compassiva.

Palestina: Olha, eu acho que a gente tem na Compassiva e acaba tendo em outros
lugares também. Mas eu acho que a gente tem ainda pouco tempo dedicado para o
material que a gente usa e aí acho que isso é algo que a gente poderia ter um tempo
maior de se debruçar mesmo, olhar as possibilidades, acho que nós sabemos que
teve uma escolha por trás desse material. Então quais eram as outras opções? A
gente tem acesso a outros livros também. Aí realmente a gente vê que o que a gente
usa é um material bom. Não é o melhor, inclusive precisamos de produções assim,
voltadas para esse público. Ele tem muitas defasagens, mas todos os livros têm. Aí a
gente vê, em alguns, o ponto forte é um, em outros, o ponto forte é outro. Então eu
acho que referente à prática da Compassiva, eu vejo a de outros lugares também,
acho que tempo mesmo de dedicação e de estudo do material que a gente usa de
certo modo. Eu vejo desse modo. E de modo geral, trazendo mais para minha
formação mesmo, e aí nem tanto para a Compassiva, é quem está me trazendo um
pouco isso. Mas acho que eu de modo algum vi na faculdade, e aí eu fico pensando.
Uma coisa que eu fui entender depois de entrar na Compassiva, a gente tem no Brasil
uma quantidade tão grande, mas tão grande de refugiados, e de imigrantes, de países
tão diversos. De todos os continentes a gente tem. E aí eu fico pensando, boa parte
dos meus alunos, todos os que são pais, os filhos que estão matriculados em escolas.
E eu fico pensando, como é que se prepara esses pais que estão aqui, está sendo
assim, imagina para esses estudantes em escolas municipais, estaduais, enfim. Nas
faculdades também. Então como a gente recebe isso? Na minha formação eu vejo
assim. A gente fala muito da necessidade de trabalhar mais sobre inclusão, e eu
concordo inclusive. Inclusão é um espectro também que engloba muitas coisas, a
gente talvez de cara imagine algo relacionado a alguma deficiência que algum aluno
possa ter, mas a gente tem também a inclusão desses alunos que são imigrantes,
refugiados e então acho que eu vejo quem tem trazido isso para minha prática, assim
como professora. Então às vezes a gente não vê no nosso contexto. Eu, enquanto
trabalhei em escola, não tinha alunos refugiados nem imigrantes, mas se eu
trabalhasse talvez no município ou em qualquer outra escola, talvez eu tivesse, e
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como que a gente acolhe isso? Como que a gente inclui e traz para perto todo mundo
ali? Então eu vejo que tem muito disso aí.

Pesquisadora: Exatamente, e depende da região da escola, por exemplo. Ontem eu


visitei uma escola, uma escola de Educação Infantil no Brás. Tem muitas crianças
refugiadas. Ou imigrantes, muitos. É. Então é isso. Como fazemos? Numa situação
dessa e como você, na minha graduação, pós-graduação não vi nada a respeito disso.
Nossa, nada mesmo.

Palestina: E é isso né? Inclusão, às vezes ainda fala, né? Que nem eu tive aula de
LIBRAS, aquela coisa que agora é obrigatória. Mas são seis meses que a gente tem
ali, que é muito pouco também. Hoje, infelizmente (eu não gostaria de dizer), não
consigo falar em LIBRAS, eu não posso ajudar qualquer pessoa, não consigo,
infelizmente. Preciso estudar mais até, mas não só para isso, mais essa questão de
refúgio e imigração, e a gente está numa cidade onde a gente recebe muito. O Brasil
todo recebe, mas a gente está numa cidade, num estado que tem muito. Então a gente
precisava realmente ser melhor preparado aí.

Pesquisadora: Justamente. E para finalizar, acho que isso que você comentou entra
um pouco dentro dessa última. A possibilidade de troca entre colegas e momentos de
estudo que você falou que talvez seja uma deficiência, já que não há esses momentos
de troca, de discussão. Você gostaria de complementar mais alguma coisa em relação
a isso?

Palestina: Sim, apesar de sermos todos voluntários na Compassiva, é um trabalho


que eu fico realmente impressionada pela qualidade. E do que tem sido feito com
pouco recurso que se tem, então é realmente inspirador e algo claro. A gente gostaria
de ter mais tempo, ter mais condição para poder estudar juntos e nos formar juntos,
mas acho que de troca eu acho isso muito legal, apesar da gente não conseguir ver
os voluntários, geralmente eles estão lá apenas no dia que eles vão dar aulas.
Pensando no português, mas a gente troca muito pelo grupo do WhatsApp e isso
ajuda muito, muito mesmo. Então a gente tem uma prática, tem até um modelinho,
uma mensagem padrão de um relatório entre o que aconteceu entre uma aula e outra.
E isso norteia muito também o que a gente vai preparar para nossa próxima aula.
Então segunda-feira sou eu que dou aula, quarta-feira é o Irã, sexta-feira é a
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Venezuela. Então, para mim, é muito importante saber a sequência do Irã e da


Venezuela, principalmente porque depois da aula da Venezuela vem a minha. E aí eu
dou sequência naquilo, e é o jeito da gente dar sentido e significado para os
estudantes, apesar de serem três professores diferentes. Mas a gente segue uma
sequência. A Compassiva tem esse currículo mesmo. Então tudo isso deve seguir ali.
Então acho que esse grupo, apesar da gente não conseguir, sei lá, ter uma reunião
de sala, de turma e tal, dentro do que a gente tem disponível, eu acho que vale muito
assim essa troca que a gente tem lá. As impressões sobre as provas, às vezes, que
foi algo recente que aconteceu. Tudo isso ajuda muito mesmo. E aí a gente acabou
criando ali um formatinho de relatório, que é o que a gente passa ali também para o
sistema da Compassiva. E aí a coordenação olha, acompanha e tal, mas a
coordenação também vê no grupo. E aí, a partir daquele relatinho, daquele modelo, a
gente consegue conectar as aulas. Então ter essa troca, apesar de talvez não ser o
ideal, mas dentro do possível, eu acho que ela acontece muito bem e tem sido legal
assim.

Pesquisadora: Está certo. Eu vou encerrar aqui a gravação então. Muito obrigada.

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