Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA
EVELYN VIRIATO
SÃO PAULO
2022
EVELYN VIRIATO
SÃO PAULO
2022
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da Mackenzie
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
V818p Viriato, Evelyn.
Práticas de educadores de língua portuguesa para refugiados: um
estudo sobre a organização social "Compassiva" : [recurso eletrônico]
/ Evelyn Viriato.
1 KB ;
1
Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os.
A Deus, que preparou todo o caminho percorrido
neste processo de pesquisa. Ao meu esposo
Nelson, cuja conquista também lhe é devida por
conta de todo o apoio a mim oferecido nesse
tempo. À minha filha Bianca, para que se inspire
na jornada pelos estudos. Aos imigrantes, que
possam ter seus direitos de mobilidade
garantidos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à querida amiga Laís de Almeida Cardoso, que além de ser uma
inspiração na jornada da busca pelo aperfeiçoamento acadêmico, ainda me deu o
privilégio da leitura desta pesquisa.
Agradeço por todo o apoio recebido da ONG Compassiva, que tem os
seguintes valores: a) Relacionamentos Relevantes: construir relacionamentos
humanizados e pontes para aproximar pessoas e unir forças; b) Serviço: ajudar e
servir ao próximo de maneira prática; c) Integridade: ser exemplo e agir com
transparência e respeito em todas as relações. Percebi esses valores não só no
trabalho desenvolvido com seu público-alvo, mas também na disponibilidade em me
apoiar nesse trabalho de pesquisa. Agradeço em especial aos educadores voluntários
que separaram tempo para contribuírem com a pesquisa acadêmica, bem como às
coordenadoras Débora Blair e Jéssica Lux, que abriram os braços já acostumados a
acolherem, para esse trabalho. E por fim, obrigada à Marlene, que foi a primeira a
ouvir meu pedido e me colocar para dentro da Compassiva.
The theme “refugees” is contemporary and marks our society. We receive in Brazil
people from different countries and cultures who need to adapt to a new reality. When
they arrive, they need Portuguese language classes so that there is real integration,
and they are usually helped by NGOs that teach these classes. In this context, the
objective of the present work was to investigate the knowledge base of the volunteer
educator who works in the NGO Compassiva in the teaching of Portuguese language
in the reception of refugees/immigrants. The methodological course of the work was
made by the bibliographic review (related research), document analysis and interviews
with seven volunteer educators. The process of analysis of the answers met the
specific objectives of the work, culminating in the creation of three axes of analysis: a)
the professional choice, the role of the volunteer educator and the reception concepts;
b) teaching learning, the theoretical sources to support educational practices and the
deconstruction of beliefs and c) the institutional proposal for training Portuguese-
speaking educators for refugees/immigrants. As most of the volunteers who teach
Portuguese language classes at the NGO do not belong to the area of education, we
chose to name them as “educators”. We conclude with this research that, despite the
lack of adequate training, there is great motivation on the part of educators to offer
quality classes. There is an alignment between the volunteers and the mission and
vision of the organization. The institution shows concern in the training of its
employees, and its actions in front of the team are carried out by a practical need that
arises from the routine demands of the classes. We realize that, in this aspect, lies the
great difference between the voluntary work of an assistentialist nature and the work
of the trained teacher who is in continuous training, and who searches to relate theory
and practice in his teaching activities.
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13
2 LEVANTAMENTO DE PESQUISAS CORRELATAS ................................... 22
2.1 O que encontramos no levantamento da BDTD ................................. 22
2.2 O que encontramos no levantamento no portal da CAPES ............ 255
3 PORTUGUÊS: LÍNGUA ESTRANGEIRA, LÍNGUA DE ACOLHIMENTO E O
CONTEXTO DA ONG COMPASSIVA ............................................................. 29
3.1 Diferença conceitual entre ensino da língua portuguesa como
língua estrangeira e como língua de acolhimento ...................................... 29
3.2 Contexto da Ong Associação Compassiva ........................................ 31
4 DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DE PROFESSORES AO
DESENVOLVIMENTO DE EDUCADORES VOLUNTÁRIOS .......................... 37
4.1 Desenvolvimento profissional docente .............................................. 37
4.2 Relação da teoria e da prática na ação docente................................. 39
4.3 As crenças dos professores ................................................................ 40
4.4 Formação continuada do professor e sua expertise ......................... 41
5 PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA.......................................... 43
5.1 O método e os procedimentos metodológicos .................................. 43
5.2 Os participantes da pesquisa: quem são? ......................................... 46
6 BASE DE CONHECIMENTO DOS EDUCADORES VOLUNTÁRIOS .......... 48
6.1. A escolha profissional, o papel do educador voluntário e as
concepções de acolhimento ......................................................................... 48
6.2 A base de conhecimento, aprendizagem da docência e a
desconstrução das crenças .......................................................................... 51
6.3 A proposta institucional de formação de educadores de língua
portuguesa para refugiados/imigrantes ....................................................... 61
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 68
REFERÊNCIAS................................................................................................ 71
APÊNDICE 1 – TCLE – EDUCADOR VOLUNTÁRIO ..................................... 75
APÊNDICE 2 – TCLE – INSTITUIÇÃO............................................................ 78
APÊNDICE 3 – QUESTIONÁRIO PERFIL DO EDUCADOR .......................... 82
APÊNDICE 4 – TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA DAS ENTREVISTAS ............ 83
13
1 INTRODUÇÃO
Sou professora há 20 anos, dentro dos quais pude vivenciar a prática docente
em diferentes segmentos. Hoje leciono na Educação Infantil, conduzindo crianças
entre 4 e 6 anos no desenvolvimento de diversas habilidades a serem avaliadas por
alguns indicadores, tais como grafismo, escrita, oralidade, competência auditiva,
competência visual, desenvolvimento lógico-matemático, interação social,
desenvolvimento psicomotor. Além disso, também me dedico a ensinar inglês para
crianças de primeiro e quinto ano do Ensino Fundamental, outra paixão que tenho.
Sou casada com o Nelson, e, juntos, temos uma filha de sete anos chamada
Bianca. Meu esposo tem ascendência japonesa, e seu pai já migrou para o Japão,
também em busca de recursos financeiros para prover sua família.
Entendo que nossa vida deve ser vivida da forma mais plena possível,
respeitando os vários pilares que a sustentam. Devemos cuidar na nossa saúde física,
emocional, intelectual e espiritual. O meu relacionamento com Deus é um aspecto
fundamental da minha vivência.
Esse tema tem cada vez mais ganhado visibilidade na mídia, ainda não estou
certa se da melhor maneira, mas entendo que migração e refúgio são temas atuais e
que carecem de reflexão também dentro da área educacional.
Além do tema que me interessa, sempre fui incentivada a estudar por minha
mãe, que era uma pessoa bastante disciplinada e esforçada. Esse mestrado também
é uma forma de honrar sua memória; embora ela tenha partido cedo, deixou forte em
mim o gosto pelos estudos e pelo desejo de melhorar em prol do outro.
De acordo com a agência ACNUR, refugiados são pessoas que, por temor, são
obrigadas a ficar fora de seus países de origem. Esse temor pode ser relacionado com
questões de opinião política, pertencimento a um certo grupo social, nacionalidade,
religião, raça ou violação dos direitos humanos (ACNUR, 2011).
violência, tais como tráfico de pessoas e trabalho escravo (ANNONI; LIMA MANZI,
2016). Além disso, a definição de “refugiado” pela Organização das Nações Unidas
(ONU) não abarca os refugiados econômicos, aqueles têm suas vidas inviabilizadas
pela má condição de vida de seu país natal. Ainda mais desamparados em termos
legais encontram-se os imigrantes econômicos, que poderiam sobreviver em seu país,
mas optam por buscar melhores condições de vida em outro lugar (CASELLA, 2017,
p. 2001).
1 BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define o termo refugiado. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm. Acesso em: 12 maio 2019.
2 ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – 1951. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_R
efugiados.pdf. Acesso em: 12 maio 2019.
3 ACNUR. Declaração de Cartagena – 1984. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declar
acao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 12 maio 2019.
4 BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Regulamenta o estado dos migrantes e visitantes no
segmento, o quanto sabem sobre o seu papel no ensino para refugiados e imigrantes
de uma forma geral, se compreendem a realidade desses indivíduos e qual modelo
de ensino utilizam em suas aulas. Não se sabe também quais dificuldades esses
professores enfrentam em suas práticas pedagógicas.
Atualmente são ministradas aulas para oito turmas, sendo quatro delas em
modo remoto e as demais em modo presencial. A coordenadora Debora Blair, em
entrevista realizada em 28 de outubro de 2021, relatou a dificuldade enfrentada no
período de pandemia para condução das aulas, devido à falta de acesso aos recursos
tecnológicos por parte dos alunos. De todo modo, a evasão notada nesse período não
foi maior que a já existente, visto que o público refugiado é volátil por natureza. Eles
entram e saem do curso com certa facilidade, segundo a coordenadora. Inicialmente
as aulas começaram pelo aplicativo WhatsApp. Atualmente existem aulas pela
plataforma Zoom.
Assim, diante do que foi exposto, temos como pergunta de pesquisa: Qual a
base de conhecimentos do educador voluntário que atua na ONG Compassiva no
ensino de língua portuguesa no acolhimento aos refugiados/imigrantes? Sob sua
ótica, quais os conhecimentos necessários para ensinar a língua portuguesa aos
refugiados atendidos na ONG Compassiva?
20
UFF
O nono artigo, “Do Global ao Local no Ensino de PLAc em Roraima: por uma
formação de histórias locais na Universidade Federal de Roraima”, de autoria de
Marcus Vinícius da Silva e Cora Elena Gonzalo Zambrano, foi muito útil na
compreensão do conceito de PLAc e sua diferenciação de língua portuguesa como
língua estrangeira ou língua adicional. Além disso, trouxe uma importante elucidação
nos conceitos de PLAc global e PLAc local, que serão oportunamente abordados
neste trabalho.
28
[...] a língua como sistema não é importante, visto que a fala e a escrita são
consideradas estratégias de manipulação na interação social. E para evitar a
manipulação mediante o ensino de PLAc, devemos deixar de lado a visão de
língua como estrutura e a concepção de que a língua portuguesa é o único
idioma nacional do Brasil. Assim, ao pensar o acolhimento por meio da língua,
é importante ressaltar que não é a língua que define quem é incluído ou não
como cidadão na sociedade brasileira. (SILVA; ZAMBRANO, 2021, p. 215)
Durante a entrevista, Debora Blair ressaltou que há uma busca genuína por
relacionamentos saudáveis que promovam o acolhimento do mais vulnerável,
intenção que permeia todas as ações desenvolvidas na ONG. Existe a compreensão
da complexidade da realidade do público-alvo da instituição, compreensão esta que
cria oportunidades reais de transformação na vida dos refugiados/imigrantes, visando
ao resgate da dignidade, dos valores humanos, da esperança e dos sonhos.
A ONG conta com a ajuda de dois advogados e dois assistentes que auxiliam neste
setor.
Quando o educador voluntário é aceito para contribuir com a ONG, ele assina
três documentos: um contrato de trabalho voluntário, uma autorização de uso de
imagem e de voz e uma declaração de compromisso à proteção de crianças e
adolescentes.
específico atendido, cuidado este que vai ao encontro do conceito de PLAc local
apresentado em nosso referencial teórico (SILVA; ZAMBRANO, 2021). Essa fase do
treinamento é necessária para que os futuros educadores entendam a realidade do
imigrante e evitem na medida do possível conflitos de ordem cultural que possam
surgir por falta de conhecimento. Nessa etapa os voluntários aprendem sobre quem
foi Mohammad (Maomé), como nasceu o Islã, quais são os cinco pilares dessa
religião, a importância de Meca e da Medina, o livro sagrado do Alcorão, a diferença
da cosmovisão islâmica e cristã e outros aspectos culturais relevantes para que a aula
corra bem, além de algumas regras, como vestimentas apropriadas e o tratamento
que se deve dar a homens e mulheres. Os voluntários também são orientados a não
chamar os estudantes de “refugiados”, mas, sim, de alunos, e evitar temas
relacionados à guerra e violência etc.
[...] Galina et al. (2017) ao citar Jensen et al. relatam que o trabalho com
refugiados se enquadra num mandato maior de competência cultural, onde
se enfatiza a necessidade dos praticantes estarem conscientes de suas
próprias crenças e valores culturais, ter conhecimento da cultura do cliente e
possuir as habilidades para intervir de forma clinicamente significativa e
apropriada. O conhecimento cultural relevante pode ser acessado através de
literaturas cognatas, como a antropologia cultural, bem como em sites e
resultados específicos de refugiados que fornecem informações úteis para
profissionais. (COMPASSIVA, 2019, p. 12)
preparado está esse profissional, melhores serão os resultados obtidos por seus
alunos. É preciso muito aprendizado para a desafiadora tarefa de ensinar (MARCELO,
2009).
É importante salientar que a mera “passagem” por essas etapas não garante
que o professor se transforme em um perito da sua área, já que para que essa
expertise de fato seja alcançada há de se contar com reflexão sobre todo o processo
(MARCELO, 2009).
duas primeiras esferas; é a área de domínio exclusiva do professor, e que quanto mais
rica, mais torna o profissional um perito (MARCELO, 2009).
De acordo com Shulman (2014), a prática pela prática não é suficiente para que
o professor aprenda o seu ofício. É necessário combinar pesquisa, conhecimento dos
conteúdos, discussão, documentação e reflexão sobre sua prática. Para o autor,
[...] seja qual for a orientação que se adote, é necessário que se compreenda
que a profissão docente e o seu desenvolvimento constituem um elemento
fundamental e crucial para assegurar a qualidade da aprendizagem dos
alunos.
23/03/2022 Afeganistão M
24/03/2002 Síria F
24/03/2022 Venezuela F
25/03/2022 Marrocos M
30/03/2002 Iraque M
06/04/2022 Palestina F
Fonte: Elaborado pela própria autora
O educador Afeganistão citou que sua experiência pessoal fora do Brasil o fez
perceber a importância de ajudar o imigrante no que diz respeito ao aprendizado da
língua. A educadora Síria relatou seu interesse em ajudar o refugiado a aprender a
língua portuguesa para que viva com mais qualidade no Brasil e que tenha maiores
chances de encontrar trabalho. Marrocos verbalizou o desejo de compartilhar o
conhecimento de língua portuguesa com as pessoas em situação de refúgio. Iraque
informou que, primeiramente, deve obediência ao amor de Deus, que o faz querer
ajudar as pessoas, e seu objetivo é tentar levar esse amor através da educação; em
segundo lugar, ajudar os refugiados a terem melhores condições no Brasil. Arábia
Saudita deseja ajudar, especialmente depois da chegada maciça de sírios no Brasil
49
Eu acredito que pela minha própria experiência, tendo ido morar na Bolívia,
sem dominar o idioma e ter aprendido ao longo do tempo, também há outra
experiência na Nova Zelândia, porque mesmo eu já tendo uma base de inglês
é completamente diferente quando você vai morar num país que fala inglês e
no caso da Nova Zelândia, um inglês um pouco diferenciado daquele que a
gente está acostumado na escola. Então, é mais ou menos português do
Brasil e português de Portugal. Então, assim, eu passei por muitas
dificuldades, tinham situações engraçadas, claro, mas era muito desafiador,
às vezes frustrante também e nas minhas duas experiências eu não tive uma
ajuda como essa da Compassiva. Eu tinha que aprender mesmo na
convivência, no dia a dia, pessoas me ajudavam que não eram professores,
eram as pessoas com quem eu estava convivendo, as famílias que estavam
me recebendo e quando eu voltei para o Brasil em 2015, eu queria de alguma
forma ajudar estrangeiros aqui. E foi aí que eu conheci a Compassiva.
(Afeganistão).
Para ser sincera eu tinha bastante receio, por não conhecer mesmo assim
muitos refugiados próximos de mim, eu não tinha ainda contato com essas
pessoas; imigrantes sim, mas refugiados ainda não tinha tido contato
próximo. Então eu estava um pouco insegura. Eu gostaria de me aproximar,
sempre me motivou estar próxima dessas pessoas e conhecer outras
culturas, outros costumes. Então, acho que eu diria que minha proximidade
com a Compassiva e com, enfim, a causa do refúgio e da migração, imigração
de um modo geral, acho que foi um pouco essa. E aí a docência veio como
uma grata surpresa mesmo, de poder dar aulas de português e aí a grata
surpresa de enfim poder descobrir que a gente tem muito a compartilhar com
eles mesmo, eu não sendo formada em Letras sendo professora de
português. Então acho que foi um pouco isso, se eu fosse responder de modo
curto, seria conhecer ali e me aproximar de culturas diferentes, de línguas
diferentes, costumes muito diferentes. E aí muito diferentes mesmo, de ponta
cabeça quase. (Palestina)
Então, ainda mais quando a gente está falando de refugiados, então vai muito
além de uma gramática, de um idioma. Então, de forma básica, eu vejo um
professor como aquele que é capaz de passar de forma eficiente um
conhecimento. Para que a gente consiga passar uma mensagem, consiga se
comunicar com as pessoas, você tem que quebrar algumas barreiras, você
tem que entender as pessoas, OK? O professor para mim é que ele consegue
passar uma mensagem, passar um conhecimento de uma forma eficiente
para outras pessoas, OK? Garantir que essas outras pessoas estão
recebendo a mensagem exatamente da forma com que ele deseja passar.
Então na Compassiva eu vejo que o professor coloca um papel extra, porque
quando a gente fala de pessoas em situação de refúgio, a gente não pode
pensar, elas vão lá, vão aprender gramática, algo extremamente pesado, não,
a gente tem que criar um ambiente em que se sintam acolhidos, criar um
ambiente em que eles consigam aprender a cultura. Quando você aprende
uma língua você aprende uma cultura. E às vezes quando você faz isso numa
escola, você vai aprendendo de forma gradual. Eles não, eles chegaram de
uma realidade totalmente diferente e estão tentando se adaptar. E não criar
um choque cultural tão forte, mostrar, apresentar que aquilo é o português, é
dessa forma que os brasileiros são, OK? Então, tentar não criar um impacto
muito forte, cultural, reduzir essa questão, criar um ambiente acolhedor e que
eles se sintam em paz, aprendam, claro, que é o nosso objetivo, e que eles
aprendam, mas que eles se sintam em paz em um lugar, sintam-se felizes,
então não é só gramática não, a gente não chega lá e ataca matéria, não, a
51
gente tenta criar um ambiente muito light, muitos entram aqui e já têm que
procurar emprego, vão para sala, às vezes vão para sala acabados, mas eles
gostam de estar lá, eles gostam de pertencer ao local, então a gente tem que
ter essa consciência, tem que ter essa empatia, então acho que o papel do
professor é esse, entender as outras pessoas, as necessidades das outras
pessoas e passar da melhor forma o conteúdo. (Marrocos)
O próprio Manual do Voluntário traz também de forma oficial esse olhar sobre
a dimensão humana do acolhimento aos refugiados ao longo do texto, como por
exemplo em: “A apostila de voluntariado tem como objetivo proporcionar a reflexão
sobre a causa do refúgio e suas implicações com o cuidado emocional”
(COMPASSIVA, 2019, p. 3).
cursos de formação superior foram úteis para suas práticas docentes na Compassiva,
ainda que não tenham sido na área da educação. Somente a entrevistada Síria
reportou pouca contribuição; os demais reiteraram a importância do que aprenderam
em suas variadas experiências acadêmicas.
Eu acho que a partir do momento que eu tive também que apresentar algum
conteúdo durante as aulas ou alguma coisa do tipo, isso tudo ajuda a formar,
né? Aprendemos a nos expressar melhor. Eu sou uma pessoa tímida, então
o contato que eu tive com a faculdade, ter que também expor algumas coisas
me ajudou sim. É interessante porque às vezes nessas conversas com os
outros professores, em cursos assim aleatórios que não têm muita relação
direta com a educação, mesmo assim a gente sempre encontra um ponto de
contato. (Arábia Saudita)
embasamento teórico daquilo que eu estou ensinando, mas sempre colocando a parte
prática junto com esse conhecimento.” Assim como os demais, ele referiu, em
especial, ao conhecimento do conteúdo. Arábia Saudita direcionou a resposta para as
práticas adotadas em aula que ajudam os alunos a se apropriarem do conteúdo,
privilegiando a organização da aula de forma que as quatro habilidades sejam
trabalhadas (escuta, fala, escrita, leitura). Ela também não fez menção às teorias, mas
mostrou preocupação com conhecimento pedagógico (gestão da aula). Palestina
afirmou que existe relação entre teoria e prática no planejamento das aulas, como o
conteúdo deve ser trabalhado e como a dúvida do aluno deve ser acolhida. Também
citou questões de ordem prática das aulas, como o gerenciamento de situações não
previstas e que demandam uma tomada de decisão rápida do professor. Ela ressaltou
que essa relação estabelecida entra teoria e prática se faz mais natural entre
professores com formação na área da educação, embora na Compassiva essa
questão não seja tão formalizada quanto em escolas de ensino regular, por se tratar
de uma instituição do terceiro setor e por isso com características distintas.
aula na maioria dos casos. Então, você tem que fazer com que ele leve o
idioma com ele para onde ele for, então você vai desafiando-o a olhar para
os lugares, olhar para os objetos e começar a dar nome disso, mas é agora
em português. (Afeganistão)
Sim, sim, existe, existe bastante. Claro que ali é muito no dia a dia, na nossa
atuação ali, mas ela é constante. Então acho que desde o modo de como
acolher a dúvida, de como a gente vai trabalhar algum conteúdo específico
do livro, como a gente acolhe essa dúvida que chega, até enfim, falando tudo
fora de ordem, mas a preparação da aula também, é a mudança ali da
preparação mesmo, na hora da aula. Às vezes você vê que o que você
preparou não vai caber bem ali. Por mais que você tenha, poxa, uma super
ideia. Ficou demais, vai ser demais essa aula e ali você, na hora percebe,
“putz”, não vai rolar. E eu já tive algumas experiências assim, também na
Compassiva e todas elas me ensinaram demais. Mas acho que sim, tem
muito de trazer da teoria também para prática. Claro que a gente não tem
assim na Compassiva algo tão formal como nós temos em escolas formais.
A gente está falando de uma instituição do terceiro setor também. Um pouco
diferente. Mas não, eu acho que não tem como desvincular assim. Ainda mais
para quem é formado. Quem tem uma licenciatura. Quem fez pedagogia acho
que é muito difícil você dissociar assim de algum modo. Então acho que tem
bastante. (Palestina)
A gente sempre pede alguns exercícios igual a esse trabalho que a gente
está fazendo para que eles falem alguma coisa deles sabe? É para não ficar
só no português na gramática e tal. Então a gente sempre pede para que eles
falem alguma coisa da vida deles. Então dependendo da turma, às vezes
você vê uns que são muito fechados, não querem falar, sabe? Então a gente
respeita. Outros querem sim, outros falam da família, dos pais, dos irmãos,
sabe? Falam com alegria, então a gente vê que é um povo assim, como nós.
São como nós também, eles são bastante amorosos, bastante cuidadosos
com a família, esse é o amor. A relação familiar deles é muito importante
também. Mas tem alguns que se fecham, não querem falar, então a gente
respeita. Então, a cada momento, assim, a cada assunto que a gente está
falando, a gente puxa assim, a gente puxa para ver se eles se abrem para
falar alguma coisa, até para eles saírem daquele do livrinho. E procurar assim
palavras diferentes, porque eles vão falar de coisas diferentes. (Venezuela)
especialmente dos alunos em nível básico. A educadora Síria utiliza o livro Muito
Prazer e outros materiais didáticos disponibilizados pela Compassiva, além de
atividades lúdicas e material de apoio fornecido por uma ONG que treina educadores
voluntários para ministração de aulas. A voluntária Venezuela faz uso de recortes de
jornal, livro do aluno e livro de exercícios e vídeos. Marrocos usa o livro Muito Prazer,
dinâmicas com bolas, músicas e suas respectivas letras para preenchimento de
lacunas, e jogos do tipo “imagem e ação”. Iraque também citou o livro Muito Prazer e
materiais extras preparados de acordo com o conteúdo a ser lecionado. Arábia
Saudita mencionou o uso de jogo da memória, cards, e materiais didáticos
compartilhados de forma virtual na nuvem (Google Drive). Palestina utiliza jogos de
memória, jogos de características físicas, jogos de perguntas e respostas, áudio,
lousa, apresentações em PowerPoint, jogos competitivos e de soletrar.
Sempre, por exemplo, quando coloco uma matéria em si, a gente tenta pegar,
colocar uma música que tem alguns vocabulários que a gente treinou em
aula, treinar essa música, preencher aquelas palavras que estão faltando e é
justamente as palavras que a gente aprendeu em aula. Na semana passada
a gente teve um momento, claro, muito tenso, um momento de correção de
prova, então eu chamei um por um. Cada aluno para conversar do lado de
fora, para ver as dúvidas que eles tiveram na prova, por que eles acertaram,
por que eles erraram, tentei esclarecer naquele momento meio particular no
final da aula. A gente fez como se fosse um jogo de imagem em ação, no
sentido horário, um falava uma palavra, aí a pessoa ia desenhar na lousa e a
outra tinha que adivinhar, claro, a palavra em português. Muitos falam muito
bem inglês. Então, tem que depender também desse idioma. Por exemplo,
falei, em português, forçando e estimulando, para eles falarem o idioma.
Então, acho que essas dinâmicas sempre são bem válidas. (Marrocos)
Dentro deste eixo de análise, as cinco perguntas feitas foram importantes para
refletirmos sobre aprendizagem da docência, as fontes teóricas para embasar a
práticas educativas e a desconstrução das crenças. Considerando a base teórica do
trabalho, entendemos, após a análise dos dados, que a aprendizagem dos
educadores voluntários existe dentro da Compassiva, mas ainda está distante de
alguns pilares importantes dentro da formação de professores, como, por exemplo, a
consciência de que a prática docente deve estar relacionada à teoria, como visto em
Shulman (2014), já que a prática pela prática não é suficiente para que o professor
aprenda o seu ofício. É necessário combinar pesquisa, conhecimento dos conteúdos,
discussão, documentação e reflexão sobre sua prática.
anseio por se relacionar, tem conhecimento do conteúdo que pretende ensinar, boa
gestão de conflitos e pontualidade.
Então, na Compassiva eles têm uma preocupação sobre quando você vai
iniciar com as aulas. Antes de começar dando aula sozinho, eu assisti várias
aulas, eu conversei tanto com professores, quanto com a coordenação,
muitas dicas valiosas. De como lidar, o que fazer, o que não fazer e claro,
periodicamente, eles também têm algumas capacitações, alguns cursos que
eles oferecem. Então acho que isso é muito importante. (Marrocos)
Afeganistão sente falta de ter mais habilidades da língua inglesa, que serve
como ponte em suas aulas, especialmente para os alunos de nível mais básico. Síria
não reportou dificuldades referentes à formação de professores, mencionou que a
Compassiva oferece grande apoio nesse sentido. Venezuela não reportou
dificuldades referentes à formação de professores, mencionou que na Compassiva os
professores são muito unidos e dedicados ao trabalho. Marrocos reportou dificuldade
na formação de professores, principalmente quando se considera o cenário de
voluntariado no sentido de encontrar pessoas dispostas a exercer essa atividade.
Iraque não reportou dificuldades referentes à formação de professores, mas
mencionou que talvez professores inexperientes ou sem formação possam sentir
dificuldade nesse sentido. Arábia Saudita entende que uma dificuldade é a falta de
tempo para estudo. Palestina mencionou a falta de tempo para formação em conjunto,
para estudo do material utilizado, além da falta de debate e formação na faculdade
sobre o trabalho de inclusão de refugiados, inclusive nas escolas de ensino regular.
Para mim eu acho que está bem tranquilo, eu acho que a gente sempre pode
melhorar, lógico, se tiver um curso eu vou fazer o proposto, acho que a gente
sempre pode adquirir mais conhecimento e melhorar ainda mais, mas hoje
eu me sinto capaz daquilo que eu estou fazendo. Eu creio que os dois cursos
65
Tempo, eu acho que é uma das principais coisas que a gente precisa muito
para estudar e às vezes na correria do dia a dia você não encontra. Então
acho que tempo. É tempo para investir mesmo em estudo, sabe? De ir atrás,
de poder aprender coisas. Por exemplo, essa aluna que a gente tem agora,
a “SaSaSa”. Ela vai precisar de uma professora que caminhe só com ela, ela
não vai acompanhar o ritmo das meninas mais novas, sabe? E a gente teve
uma aluna dessas uns tempos atrás, ela tinha uma professora só para ela, e
aí às vezes quando eu estou nessa aula com a “SaSaSa” e eu falo uma coisa
e ela não entende o que eu falei, eu preciso das meninas para traduzirem
para ela. É um pouco frustrante, você quer fazer a pessoa entender, você
quer que ela entenda o que você está falando e você não consegue. Então
acho que para isso eu precisaria de tempo para ver se eu consigo dar uma
estudada e para conversar com as meninas da coordenação, ver se a gente
arranja uma professora só para ela ou que outros tipos de método a gente
pode aplicar com ela, sabe? (Arábia Saudita)
Seguem trechos:
66
Não, é uma coisa que eu realmente sinto muita falta. Como nós trabalhamos,
por exemplo, entre três professores a mesma turma, o que acontece é que
no final da aula a gente manda um relatório daquilo que foi que foi feito, mas
eu sinto falta sim da gente sentar junto, conversar, não apenas pelo
desenvolvimento linguístico do aluno, mas o desenvolvimento holístico do
aluno. De uma maneira muito mais ampla nas relações dele, nas interações
em sala de aula, cotidiano da vida dele. Então, eu acho que seria bem mais
proveitoso, a gente teria uns resultados melhores, é porque nós, como
professores, eu acredito. Talvez não, mas eu acredito que somos as pessoas
mais próximas dos nossos alunos. Pelo contato que a gente tem aqui. Então,
até mesmo para própria organização, para poder ajudar mais ou
compreender mais, era importante que a gente tivesse essa conversa dando
daquilo que a gente está lutando. (Afeganistão)
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi interessante observar que, ainda que os coordenadores não sejam da área
da educação, há uma estrutura para que os educadores sejam preparados no sentido
de compreenderem de forma geral a situação do refugiado, o panorama do refúgio no
mundo, as questões inerentes às diferenças culturais especialmente entre árabes e
brasileiros, e sobre a religião dos muçulmanos. Existe também uma preocupação por
parte da coordenação da Compassiva em proporcionar capacitação continuada por
meio de formações ao longo do ano. Há uma regra para que todos os educadores
voluntários, antes de começarem a ministrar suas aulas efetivamente, assistam a
aulas de educadores já em exercício, para que tenham modelos em quem se inspirar.
A rede de educadores parece solícita e está sempre disposta a ajudar, especialmente
os novos voluntários e aqueles que têm menos experiência no universo da educação.
Os coordenadores também acompanham bastante os grupos de WhatsApp de cada
turma e prestam auxílio sempre que necessário.
Com esse estudo de caso, pudemos observar alguns aspectos que valem ser
ressaltados sobre o trabalho desses educadores, a saber:
- A falta do espaço coletivo de reflexão foi verificada, sendo que a falta de tempo
de formação foi citada inclusive por alguns voluntários como um empecilho
encontrado.
Esse cenário nos faz crer que educadores voluntários tão motivados e
engajados, se oportunizados com políticas públicas sérias voltadas para a formação
de professores, seriam ainda mais eficazes em suas práticas.
71
REFERÊNCIAS
ANNONI, Danielle; LIMA MANZI, Maria Júlia. Política migratória brasileira e seus
reflexos para os Estados da UNASUL: um estudo a partir do tratamento dado pelo
Brasil ao caso dos haitianos. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, ano 49, n.
146, p. 61-83, maio-ago., 2016.
BARROS, Ev’Angela Batista Rodrigues de; ASSIS, Maria Tereza Maia de. Português
como língua estrangeira (PLE): formação docente e construção de expedientes
didático-metodológicos. @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, v. 6, n.
13, jan./abr., p. 60-84, 2018.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora
Vida, 2000.
BIZON, Ana Cecília Cossi; CAMARGO, Helena Regina Esteves de. Acolhimento e
ensino da língua portuguesa à população oriunda de migração de crise no município
de São Paulo: por uma política do atravessamento entre verticalidades e
horizontalidades. In: BAENINGER, R. et al. (orgs.). Migrações Sul-Sul. Campinas:
NEPO/UNICAMP, 2018, p. 712-726.
CASELLA, Paulo Borba. Refugiados: conceito e extensão. In: ARAÚJO, Nadia de;
ALMEIDA, Guilherme Assis. (coords.) O Direito Internacional dos Refugiados: uma
perspectiva brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2017. p. 17-26.
GALINA, Vivian. F. et al. A saúde mental dos refugiados: um olhar sobre estudos
qualitativos. Interface – Comunicação, Saúde e Educação. v. 21, n. 61, p. 297-308,
2017.
73
HOLSTI, O.R. Content analysis for the social sciences and humanities. Reading,
Mass.: Addison-Wesley, 1969.
JUBILUT, Liliana Lyra. Refugee Law and Protection in Brazil: a model in South
America? Journal of Refugee Studies, v. 19, n. 1, 2006.
LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Alfonso de. Pesquisa em Educação -
Abordagens Qualitativas, 2ª edição. Grupo GEN, 2013. Disponível em:
https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/978-85-216-2306-9/. Acesso em: 18 nov.
2021.
SÃO BERNARDO, Mirelle Amaral de; BARBOSA, Lúcia Maria Assunção. Ensino de
português como língua de acolhimento: experiência em um curso de português para
imigrantes e refugiados(as) no Brasil. Fólio – Revista de Letras Vitória da
Conquista, v. 10, n. 1, p. 475-493, jan./jun. 2018.
Dados de identificação
Após ter sido esclarecido sobre os objetivos, importância e o modo como os dados
serão coletados nessa pesquisa, além de conhecer os riscos, desconfortos e
benefícios que ela trará para mim e ter ficado ciente de todos os meus direitos,
concordo em participar da pesquisa “Práticas de professores de língua portuguesa
para refugiados: um estudo sobre a organização social Compassiva”, e autorizo a
divulgação das informações por mim fornecidas em congressos e/ou publicações
científicas desde que nenhum dado possa me identificar.
Dados de identificação
Após ter sido esclarecido sobre os objetivos, importância e o modo como os dados
serão coletados nessa pesquisa, além de conhecer os riscos, desconfortos e
benefícios que ela trará aos voluntários e ter ficado ciente de todos os direitos,
concordo em participar da pesquisa “Práticas de professores de língua portuguesa
para refugiados: um estudo sobre a organização social Compassiva”, e autorizo a
divulgação das informações fornecidas em congressos e/ou publicações científicas.
Aceite
Este documento foi impresso em duas vias. Uma ficará com você e a outra com a
assistente Evelyn Viriato.
Nome Completo:
Assinatura
____________________________
82
Instruções: Considerando que você aceitou fazer parte desta pesquisa por meio
do respectivo Termo de Consentimento/Assentimento Livre e Esclarecido, este
questionário visa conhecer melhor o perfil dos educadores de língua
portuguesa da ONG Compassiva. A sua finalidade é exclusiva para fins
acadêmicos. Procure responder às questões a seguir, de forma individual e
consciente.
Parte 1
Nome:
Sexo ( ) Feminino ( ) Masculino
Idade:
Qual sua formação/graduação?
Fez pós-graduação? Qual?
Leciona há quanto tempo?
Em que série leciona/lecionou?
Quais são as características do grupo de imigrantes/refugiados atual para o qual leciona? (idades,
nacionalidades, sexo, formação no país de origem, motivo de expatriação)
Parte 2
1. Qual o motivo da escolha da docência para refugiados/imigrantes?
2. Qual o papel do professor?
3. Houve contribuição do curso superior ou outros cursos para sua prática docente?
4. Que fontes/base teórica utiliza para embasar sua prática? Como se dá a relação prática e
teoria em sua atividade docente?
5. Cite um exemplo de sua prática docente.
6. Que tipo de material de apoio é utilizado nas aulas?
7. Consegue reconhecer crenças que tinha relacionadas à educação que foram desmistificadas
ou reforçadas com sua prática docente?
8. Quais as características que um professor expert deve ter, no seu ponto de vista?
9. Como o professor foi preparado para trabalhar com refugiados?
10. Quais são as dificuldades encontradas em sua prática referentes à formação de professores?
11. Há possibilidade de troca entre colegas e momento de estudo/formação?
83
Pesquisadora: Então eu vou compartilhar a telinha aqui para ajudar a gente, apesar
que você está na tela do celular.
Afeganistão: Estou.
Pesquisadora: Ok.
Pesquisadora: Não.
Afeganistão: Pois não, estou só vendo aqui, mas pode conversar comigo que eu
escuto.
Afeganistão: Estamos aqui nos preparando, eu vou ligar aquela ventarola que não é
o ventilador. A ventarola ali. Só um minutinho. Vou ligar aqui esse ventilador. Nossas
janelas. Eu estava muito feliz com o clima de segunda e o clima de ontem, mas minha
alegria trocou. Perfeito, tudo no lugar agora.
84
Pesquisadora: Aí então a próxima pergunta. Essa parte um é mais para a gente traçar
o perfil do educador. Qual é a sua formação?
Pesquisadora: Ai, que legal, bem diversificada. Você teve a oportunidade de fazer pós-
graduação e se sim, qual?
Pesquisadora: Tem que ter uma formação diversificada mesmo para conseguir
atender tanta diversidade de aula. Legal. E quais são as características do grupo de
imigrantes ou refugiados que atende na Compassiva?
Afeganistão: Então, o nosso grupo é bastante heterogêneo. Porque nós temos aqui
várias nacionalidades, nesse sentido eu me refiro, por exemplo, a gente tem do
princípio cultural, então nós temos uma diversidade muito grande. Então, nós temos
aqui egípcios, sírios, iranianos a palestinos, então isso dá para a gente uma gama
cultural muito grande. Com essa gama, quando eu falo assim da questão dessa
variedade cultural, e aí vão entrar outros detalhes, a questão religiosa. Questão da
86
religião na mesma região, por exemplo, então a gente tem variações. Da mesma
maneira como a gente também vê no cristianismo, uma variedade muito grande, então
a gente tem tradicionais, pentecostais, católicos e essa variedade tão grande do
mesmo jeito se manifesta também em outras religiões. Então primeiramente o perfil é
marcado por essa diversidade cultural. E de outra forma, de um certo modo também,
há uma igualdade porque quando você chega num país onde você não domina o
idioma com a cultura muito diferente, então a gente vê que naquele primeiro momento
algumas características são comuns. E eu não sei se posso já ir falando delas ou se
você vai fazer isso numa outra pergunta.
Pesquisadora: Entendi. E agora a gente vai seguir então para parte dois, né, que são
as perguntas mais voltadas para pesquisa em si. Para parte teórica. Então a primeira,
qual o motivo da escolha da docência para refugiados e migrantes? Por que que você
fez essa escolha?
Afeganistão: Eu acredito que pela minha própria experiência, tendo ido morar na
Bolívia, sem dominar o idioma e ter aprendido ao longo do tempo, também há outra
experiência na Nova Zelândia, porque mesmo eu já tendo uma base de inglês é
completamente diferente quando você vai morar num país que fala inglês e no caso
87
Afeganistão: Olha, na no meu ponto de vista é impossível você ser exitoso no seu
trabalho se você se mantém nessa distância. Eu digo para você, sem sombra de
dúvida, meus melhores amigos em São Paulo são ex-alunos meus, são ex-alunos
refugiados, e isso foi possível porque para mim o meu tempo com eles era muito curto,
era insuficiente para a gente poder realmente desenvolver, ter outras experiências,
sair um pouquinho do livro. Então, eu comecei marcando com eles passeios pela
cidade, no final de semana. Então, eu falava, vamos sair porque é nesse ambiente,
fora da sala de aula, que a gente vai poder indicar o supermercado, o hospital, a praça,
de uma maneira que é experimental, não é uma coisa apenas de olhar o livro e não,
você vai ver, ali é uma praça, ali tem árvores, tem pássaros, então você traz esse
ambiente para criar ali um vocabulário. Nessas experiências nós estamos ficando
mais amigos e, para minha surpresa, porque na cultura árabe não é muito comum
essa coisa: “Vou te convidar para minha casa”. Especialmente no caso de famílias.
Tem as mulheres e aí as famílias começaram a me convidar, “vamos almoçar lá em
casa, vamos lá na minha casa”. E isso foi estreitando os laços, me foi ensinando muito
sobre cultura e então eu acredito, respondendo à pergunta, sem querer fugir do tema,
eu acredito que a função do professor vai muito além da sala de aula, ela propicia
isso, porque o refugiado quando ele chega nesse novo país ele não tem amigos. O
meu grande desafio com meus alunos é dizer para eles assim, “olha, você precisa
praticar o português e para isso você precisa fazer amigos brasileiros” e ele fala, “mas
eu não tenho amigos aqui”. Eu falei, “e eu sou o quê?” Aí eles começam a entender,
“ele é meu professor, mas pode ser meu amigo também?”. Então, assim, já viajei com
meus alunos, para você ter uma ideia, no último dia do ano a gente foi para o Rio de
88
Janeiro, fui para o Rio de Janeiro com nove alunos, passar o réveillon lá. Sempre
estou viajando assim, já cometi erros. Misturei países numa mesma viagem, não é
uma boa ideia e eu não sabia disso. Porque a interação é diferente e a gente vai
aprendendo na verdade. Com o tema que não tem um manual de instrução, você vai
aprendendo, então eu já tenho, quando eu vou sair com os sírios, é só com os sírios,
só os sírios. Então, tem essa coisa também, e é natural, é cultural também. Então,
acredito que o papel do professor precisa ir muito mais além. Então, só para fechar,
eu sei que está longo, mas eu queria só te dizer.
Pesquisadora: Não, está ótimo, estou adorando. Se por acaso ficar muito longo, te
atrapalhar, a gente quebra.
Afeganistão: Chega um ponto que teu aluno, por exemplo, hoje eu virei meio que
consultor dos meus alunos, ele fala assim, outro dia um chegou e falou, “Afeganistão,
eu estou com dor nas costas, eu preciso ir ao médico, mas eu não falo português
suficiente, pode me ajudar?”. “Com certeza, vamos marcar consulta, vamos lá”. E aí
é aquele tipo mãe. Que chega lá, a gente chega lá com aquele adulto daquele
tamanho, quem fala sou eu, só pedindo para ele ali o que que ele está sentindo para
poder traduzir. Outra hora ele me liga: “Afeganistão, quero fazer um curso na
universidade, como que eu acho uma universidade?” Vamos pesquisar, vamos lá.
Então, assim, ele olha para você e ele vê essa figura de referência. E uma pessoa fala
assim, olha, quando eu tenho qualquer dúvida, eu já falo, liga Afeganistão. E às vezes
eu recebo ligação de gente que eu não conheço. O fulano mandou te ligar.” Porque
olha, eu estou querendo que a minha família volte para o Rio, mas eu não sei comprar
passagem no aplicativo. Você pode me ajudar?” Cara, com certeza. Sabe por quê?
Porque quando eu estava na Nova Zelândia eu não sabia ir ao médico. Eu não sabia
onde comprar remédio, e as pessoas me ajudaram. Então eu sei como é importante
para a gente que não é nativo do país ter esse tipo de ajuda, que para nós, nativos,
nada é complicado, porque eu estou no meu país, eu estou na minha cultura, eu estou
na minha língua, mas para quem vem de fora, tudo é muito diferente. Então, eu acho
que, sim, o papel do professor precisa ir um pouquinho além das quatro paredes. Se
você vir, você pode vir aqui, você pode dar uma aula de português e sair e viver tua
vida. Mas eu acho que você está fazendo muito pouco, você está comendo a casca e
jogando a banana fora. Você pode fazer, aprender muito mais, ser muito mais útil,
está entendendo? Eu penso assim.
89
Afeganistão: Olha, o curso de português eu nem preciso falar. Então assim, ter feito
Letras me ajudou muito. Meus alunos surgem com dúvidas e eu vou te dizer a
verdade, tem coisa que nem o curso superior ajudou. Porque, por exemplo, o aluno
chega para você e fala assim, “professor, você fala dor de cabeça, fala dor na cabeça?
Existe dor de perna? Existe dor na, por que que tem dor de e tem dor na?” Cara,
desculpa, no meu curso de Letras não me explicaram isso dessa forma, está
entendendo? Não era um questionamento comum, porque a gente desde sempre
aprendeu isso aí. E aí você fica assim, espera aí, vamos raciocinar. Então, assim, na
parte da base gramatical do português, Letras me ajudou demais. Com certeza me
ajudou, continua me ajudando. A formação em Teologia também me ajudou porque
nós trabalhamos muito com antropologia. Então isso me ajuda muito a entender essa
questão cultural que os homens vão chegar e vão me dizer “oi”, eles vão me dar um
beijo, mas as mulheres eu não posso nem tocar se ela for muçulmana. Então, assim,
o lado da antropologia me ajudou muito, que se eu não tivesse tido eu cometeria muito
mais erros. E alguns erros na cultura árabe e outras culturas podem ser um erro muito
grave que pode fechar as portas completamente para você. Então toda a formação
me ajudou bastante. Como a gente também trabalha com venezuelanos, porque na
minha turma agora não tem, mas já tive, então o curso de jornalismo que eu fiz foi na
Bolívia, então o curso indiretamente, por serem espanhóis, me ajudou bastante. E
hoje quando eu dou aula de português para eles, às vezes eu uso o espanhol como
um paralelo também. Para poder fazer essa ponte com o português.
Pesquisadora: Em que base teórica, onde você bebe para embasar a sua prática?
Como acontece essa relação de teoria e prática na sua atividade docente?
a aula passada. Eu tinha que falar com eles sobre apresentação em português, o uso
do possessivo dele e dela e eu queria trazer aqui um grupo de personalidades. Só que
nem todo mundo que é celebridade no Brasil é celebridade no Afeganistão, então
como eu tenho um amigo afegão, eu liguei para ele e falei com ele, “eu vou dar uma
aula assim e eu preciso de algumas sugestões, nomes de famosos afegãos ou de
famosos para os afegãos”. E ele me passou isso, aí e eu utilizei e era interessante ver
quando eles olhavam para alguém ali que era conhecido deles, totalmente anônimo
para nós, mas conhecido deles, quando eles iam falar sobre aquela pessoa, então eu
acho que a prática desse aprendizado vem dessa maneira, você vai ter que ser criativo
para instigar o aluno a falar, fazer pontes entre a cultura que ele já tem, eu não posso
jogar fora tudo que ele tem, mas agora fazendo uma parceria com o próprio português,
está entendendo? Nesse sentido aí de tornar as coisas práticas. Então, às vezes eu
digo para eles, “olha, eu vou dar uma aula sobre lugares da cidade”. Aí eu mando lá
no grupo do WhatsApp, “olha eu quero uma foto de uma farmácia, de um
supermercado, de uma padaria”, para que isso vá gerando para ele vocabulário e
familiarizando ele com essas palavras para tornar prático, porque se você ficar só no
livro, no livro, no livro, ele sai pela porta ali, chega em casa e quer guardar aquele
livro, o conteúdo está perdido porque a vida deles em média vai ser noventa e cinco
por cento na língua nativa, porque eles moram com nativos do país deles, a língua
nativa dele, o contato com o português se resume à sala de aula na maioria dos casos.
Então, você tem que fazer com que ele leve o idioma com ele para onde ele for, então
você vai desafiando-o a olhar para os lugares, olhar para os objetos e começar a dar
nome disso, mas é agora em português.
Pesquisadora: Está certo, eu vou pular a cinco, porque você já respondeu para mim
como exemplo. A seis, que tipo de material de apoio é utilizado nas aulas?
Afeganistão: Bom, eu tento utilizar de tudo, então assim, muitas vezes sem muito
depender da própria Compassiva. Eu comprei, por exemplo, um kit de bandeiras do
mundo inteiro, que eu tenho para dar aula de nacionalidades. Eu estou usando isso
aqui. Consegui na empresa onde eu trabalho vários mapas. Mapa-múndi. Tento
também trazer para que eles entendam onde é o Brasil, onde eles estão e quando a
gente fala também sobre nacionalidades. Utilizo bastante o PowerPoint. No meu
computador, utilizo a lousa, entendendo que como nós temos pessoas de diferentes
culturas, com diferentes formações, você tem que buscar um método que alcance a
91
todos, tanto aqueles que são mais instruídos, que tiveram mais acesso à educação,
quanto aqueles que não tiveram. Então, nesse primeiro momento, nesse nível em que
eles estão, o visual é muito importante. Tudo que eu puder usar de visual, eu sempre
opto por isso porque é aquela fase de não é tanto de alfabetização, eles conhecem o
alfabeto, mas de familiarização. De criação, desse dicionário, português-afegão.
Então nessa parte aqui eu utilizo bastante o PowerPoint.
Pesquisadora: Legal. Você consegue reconhecer crenças que você tinha relacionadas
à educação e que foram desmistificadas na sua prática do dia a dia ou talvez
reforçadas, porque a gente acaba tendo crenças em relação às coisas em geral. E em
relação à educação, porque a gente passa grande parte da nossa vida jovem, da
nossa infância, nossa juventude, dentro da sala de aula. Então, a gente vai criando as
nossas crenças em relação à educação. E aí, quando chegou a sua vez de ser
professor, você reconheceu alguma crença que você tinha ou falou, não, não, nada a
ver, realmente eu tinha essa crença e não confere com a realidade.
Afeganistão: Sim, eu sou dos anos 70. Então, eu tive um contato com a escola, com
os professores, diferente do que hoje é praticado. Então, o professor era o detentor
do conhecimento, era aquele ser incontestável, não existia Google na época, a gente
não verificava aquela informação. Era Barsa. Da nossa época. Hoje mudou. O nosso
aluno está lá. Você está falando uma coisa e ele está lá no Google consultando aquilo
para ver a veracidade daquela informação. Isso gera muito mais compromisso, no que
era a crença que eu falo e que mudou muito. A primeira grande crença era aquela
coisa da diferença entre o professor e o aluno. Aquela distância mantida. Até em nome
da conservação, preservação da autoridade e eu vi que não funciona assim. Na
verdade eu trabalho tanto na Compassiva como em uma outra empresa, lido também
com diferentes públicos aí. E o que acontece? Eu percebo que quanto mais próximo
do meu aluno, mais aberto ele está para o conhecimento. Porque isso é muito simples
de se entender. Se algum estranho te oferece algo como sendo algo bom, você põe
em dúvida a credibilidade daquela informação, principalmente porque você não sabe
quem é aquela pessoa, mas quando um amigo teu chega para você e fala assim,
“olha, toma esse chá aqui que ele é muito bom; olha, vai naquela lanchonete que a
comida lá é maravilhosa; compra aquela roupa que é boa”. Você já teve ali um critério.
Você já passa, você fala assim, “cara, eu vou fazer isso”. Então, como professor, hoje
eu percebo que, quando eu consigo quebrar essa barreira que separa o professor do
92
Pesquisadora: Legal. E como que você foi preparado para trabalhar com os
refugiados?
93
Afeganistão: Como que eu poderia te dizer isso? Olha, existe toda uma
contextualização inicial que a gente tem. Explicando alguns detalhes de culturas, de
religiões, que nos ajuda bastante. Sem esse preparo, sem essa orientação, muitos
erros seriam cometidos. Então, essa é a base. Mas ainda com essa base, aí é no dia
a dia que você vai percebendo, porque, como eu te disse, são diferentes culturas,
diferentes países, diferentes experiências. Então, no dia a dia é que você vai
começando a perceber alguns detalhes que não estão expressos ali. Olhares,
posturas, respostas, e aí cabe a você aguçar bem o ouvido e abrir bem os olhos para
entender o que está acontecendo. Exemplo simples, em alguns casos você tem que
ter cuidado, por exemplo, ao elogiar uma aluna pelo desempenho dela quando o
marido dela está na sala de aula e não tem o mesmo desempenho, o que é muito
comum. A esposa tem mais essa mais sede de aprendizado e elas são mais abertas,
porque enquanto o homem tem que manter aquela postura de “sabe tudo”, “sei tudo
e quando não sei me calo para não dar uma resposta errada”; a esposa é como
criança, ela não tem essa preocupação, vai mergulhar de cabeça, ela vai pronunciar
algo errado e vai aprender com aquilo sem nenhum constrangimento. Para o homem
é diferente. O ser corrigido, se você mostrar dessa maneira aqui e tal pode ser
ofensivo. Estando o casal na sala de aula, tenha o cuidado de, por exemplo, não
elogiar muito a esposa em relação ao marido, vai ficar claro que ela está mais
dedicada, está com o aprendizado mais desenvolvido e isso para o casal pode gerar
um problema.
Afeganistão: Olha, deixa eu te dizer, eu acredito pessoalmente para mim não é uma
grande dificuldade, mas uma fluência em inglês para o nível com que eu trabalho é
um pré-requisito, porque como eles chegam aqui sem a ponte para o português. Por
exemplo, no caso do espanhol, é mais simples, mas no caso do afegão, no caso do
árabe, muitos deles vem com uma bagagem de inglês, certo? Que seria talvez um
intermediário. E se o professor chega na sala de aula para dar uma aula para eles
sem essa base mínima, fica mais complicado. Eu gostaria de aprender inglês melhor
do que eu tenho hoje, sabe? Eu acho que ajudaria mais. Então eu acredito que até
94
Afeganistão: Não, é uma coisa que eu realmente sinto muita falta. Como nós
trabalhamos, por exemplo, entre três professores a mesma turma, o que acontece é
que no final da aula a gente manda um relatório daquilo que foi que foi feito, mas eu
sinto falta sim da gente sentar junto, conversar, não apenas pelo desenvolvimento,
linguístico do aluno, mas o desenvolvimento holístico do aluno. De uma maneira muito
mais ampla nas relações dele, nas interações em sala de aula, cotidiano da vida dele.
Então, eu acho que seria bem mais proveitoso, a gente teria uns resultados melhores,
é porque nós, como professores, eu acredito. Talvez não, mas eu acredito que somos
as pessoas mais próximas dos nossos alunos. Pelo contato que a gente tem aqui.
Então, até mesmo para própria organização, para poder ajudar mais ou compreender
mais, era importante que a gente tivesse essa conversa dando daquilo que a gente
está lutando.
Afeganistão: A gente está aqui para isso, é um prazer muito grande, viu?
Afeganistão: Qualquer coisa que você precisar, material que eu tiver, conta comigo,
está bom? Você vai dar aula para quais turmas?
Pesquisadora: Eu não sei ainda o perfil dos alunos, mas eu sei que é básico.
Pesquisadora: Não sei, vamos ver. Qualquer coisa eu vou recorrer, hein? Qualquer
coisa eu vou te chamar.
95
Pesquisadora: Eu parei de compartilhar, um momento. Vamos lá, acho que agora vai.
Bom, então, mais uma vez, muito obrigada pela ajuda. Pela segunda vez já, você já
me deixou assistir sua aula, foi muito legal. Agora tem essa segunda parte, que é a
parte da entrevista, só rapidamente dando um panorama, eu estou fazendo essa
pesquisa. Eu sou uma aluna de mestrado lá no Mackenzie.
Síria: Obrigada!
Síria: Seja bem-vinda no que precisar de apoio. Nossa! Mas eu acho que você tem
muita bagagem aí, principalmente didática para ajudar a gente, vai ser uma boa troca.
Pesquisadora: Mas eu dou aula há bastante tempo, mas não nesse contexto. Então é
sempre diferente, a gente sempre está aprendendo muito, muito, muito. Então com
aquele gelinho na barriga. Bom, então seu nome, sexo, idade, você já preencheu lá
no outro formulário, então eu vou pular isso daqui. Qual sua formação?
Pesquisadora: Legal, bacana. Essa primeira parte aqui é para a gente traçar o perfil
do educador. Há quanto tempo que você leciona?
Síria: Não, foi a primeira imersão que eu fiz para dar aula. Na Compassiva foi a
experiência que eu tive porque eu trabalhava na área. Eu fiquei mais ou menos quatro
anos trabalhando na área administrativa com coordenação. Dos benefícios e vale
transporte dos refugiados, então eu tinha já um contato com os refugiados nessa parte
e em alguns eventos. Dia da saúde, dia da mulher, experiências com outros eventos
pontuais. Como veio a pandemia a gente parou com essa parte administrativa e eu
senti falta do trabalho da Compassiva e pedi para que eu pudesse agora em 2021
entrar com as aulas on-line. Então a minha primeira foi no início de 2021 entrando
com as aulas on-line. Aí acabando 2021 a coordenadora perguntou se eu gostaria de
ter o desafio de ir para a aula presencial e eu aceitei, então estou há três meses com
as aulas presenciais. E um ano no on-line, foi assim a minha migração, mas a minha
experiência maior na verdade em relação a cursos é com refugiados, não com
pedagogia ou didática para aula, né? Toda essa outra parte a gente desenvolve em
cursos na própria Compassiva, a Compassiva tem parcerias com algumas ONGs que
desenvolvem materiais específicos de apoio para línguas para povos de língua de
outros idiomas, que necessitam de uma alfabetização ou até mesmo a imersão total
no idioma. Nós temos esses cursos pontuais com eles e com os materiais didáticos e
as coordenadoras da Compassiva. Para entender o contexto aí. Mas a gente vai
conversar mais nas demais perguntas, mas eu já acabei respondendo algumas.
missões transculturais. Para povos de outras culturas. Eu fiz esse curso com o André,
que é o presidente da Compassiva. Era um dos professores nesse curso, né? Foi há
cinco anos. Então como ele foi professor, eu estava com uma outra colega fazendo
curso, ela queria trabalhar com a Compassiva, depois que o André apresentou todo o
trabalho dele também, trabalho com refugiados e povos de outras culturas. E nós
fomos conversar com o André. Aí ele falou assim, “é bacana, a gente precisa”, e aí
nós fomos até a Compassiva, fizemos uma entrevista com ele, uma triagem, aí
esperamos algum, acho que um mês mais ou menos, aí ele nos deu o retorno e depois
fomos conversar com a coordenação para dividir os trabalhos. Então aí eu fui para
essa área mais administrativa pelas minhas experiências. O primeiro contato pelas
minhas experiências que são mais ligadas a área administrativa, na verdade, além da
minha experiência, minha formação também. Então eu ajudava mais lá no backoffice,
então a minha seleção aconteceu dessa forma e o meu contato com a Compassiva.
Pesquisadora: Entendi. Bom, eu assisti à sua aula, então eu ouvi. Essa última
pergunta aqui da parte um. As características do grupo de imigrantes, eu vi que é um
grupo de alunos mais avançados, eles conversam já bem em português, o que mais
você pode me falar desse grupo a que você leciona?
Síria: Essa é a característica principal, que você até colocou, é um grupo avançado,
então eles têm bastante conhecimento, têm até dentro do grupo uma aluna que ela é
professora, eu fiquei sabendo essa semana através da Jéssica, ela não estava, que é
a VVVV. Ela não estava, mas ela é professora, então eles mesmos têm algumas
experiências, a SSSS também tem alguma outra experiência assim, relacionada a
idiomas, então é um grupo em que um ajuda o outro, ajudam até o professor algumas
vezes, porque é diferente de você passar o seu idioma para alguém que é de outra
cultura e de outro idioma completamente diferente. Então a característica deles é uma
característica avançada. E até um nível intelectual um pouquinho maior. Eles pegam
muito rápido assim.
Pesquisadora: Entendi. Então, agora a gente parte para a parte dois, que é mais
voltada para teoria mesmo do trabalho. Então, a primeira pergunta, por que que você
escolheu a docência para refugiados e imigrantes? De certa forma você já me deu um
spoiler aí porque você disse que estava sem atividade por conta da pandemia e pediu
uma atividade diferente e aí você acabou...
99
Síria: Isso.
Pesquisadora: Indo para parte de aulas, mas o que mais o que te motivou a continuar
então, o que te motivou a pender para esse lado da docência?
Síria: Primeiro foi o contato com os refugiados. Porque a gente ajuda o refugiado não
só com a com a aula. A gente ajuda o refugiado também com as necessidades básicas
que possam acontecer. Nós acabamos sendo uma ponte do refugiado com a
coordenação da Compassiva, porque a gente tem maior contato com eles. Então isso
também me atraiu muito para dar a aula. Porque o meu principal objetivo no início era
até fazer uma missão transcultural em outro país. Antes de ir para a Compassiva, por
isso que eu fiz o curso da Perspectiva. Aí, entrando na Compassiva, eu fiz essa etapa
de ir para área administrativa, e claro, veio a pandemia, eu quis continuar o trabalho
e por esse motivo de contato mais estreito com o refugiado, para ajudá-lo melhor,
então me motivou para dar a aula para eles. Essa motivação deles poderem utilizar o
português como ferramenta para conseguirem emprego. Então, é mais nessa
questão. Nessa missão social de imersão do refugiado, da ajuda financeira, até para
se recolocar. Isso me motivou muito a dar a dar aula. Foi isso.
Síria: Então, eu já falei um pouquinho. Essa ajuda social. Essa missão social que a
gente tem, o refugiado, ele vem num contexto fragilizado, ele precisa de emprego.
Eles procuram o idioma português para conseguir emprego, para conseguir suprir a
necessidade básica dele para se manter aqui. Então esse papel social do professor é
muito forte. Não dá só para você dar a aula sem pensar o que ele vai fazer com o
idioma aqui no Brasil. Ele é um recurso dele. Um recurso social para ele se estabilizar
aqui. Tem a ver com a renda dele, com a sobrevivência dele. Então vai muito além do
aprender um idioma novo no contexto do refugiado. Tem um papel social muito
grande.
Pesquisadora: Está certo. A sua formação não foi na área de educação. E você
acredita que sua formação contribuiu de alguma forma para sua prática docente?
Você enxerga uma contribuição?
100
Síria: Eu acredito que, como a sala acaba comportando alunos com um nível
intelectual um pouco maior, claro né? De formação. Eles têm formação superior,
alguns com alguma formação superior, acaba contribuindo até com outros tipos de
conhecimento. Claro que noventa por cento do que eu levo para aula é relacionado à
pedagogia e à didática para a aula. Que a Compassiva mune a gente de outros cursos
relacionados a esse tema, o que contribui muito, né? O que eu tenho de formação na
verdade contribui, eu acho que cinco por cento nessa questão, mais de você buscar.
Outra, que você tem que usar muito a criatividade, às vezes surgem alguns exemplos
na aula até relacionados com o dia a dia deles, daí contribui, mas bem pouco, a maior
parte para desenvolver a aula é o conhecimento que a Compassiva deu para a gente
e desse curso de Perspectivas que eu fiz para entender a cultura árabe e a religião
islâmica. Porque alguns ainda praticam o islamismo, então essas duas coisas
interferem bastante. Então isso ajudou.
Pesquisadora: Muito bem. Agora a quatro aqui. Como que você enxerga a relação
teoria e prática na sua atividade docente? Você consegue traçar uma relação da teoria
ou você vai mais para prática? Como é que funciona isso?
Síria: Os dois juntos, como eu falei, né? Os cursos que a Compassiva oferece para a
gente ajudam bastante. Eu até esqueci o nome da ONG, depois eu posso até passar
para você. Mas, nossa, contribuiu muito, porque às vezes eles têm dúvidas culturais
dentro do que você vai passar da língua portuguesa. Então surge uma dúvida cultural.
E até às vezes contextos religiosos. Então os cursos para povos de outros idiomas
contribuíram para a gente conseguir trazer ao nosso conhecimento que a gente tem
da língua portuguesa, da gramática com o contexto religioso e com o contexto cultural.
Então a gente tem que unir essas três coisas para conseguir levar a teoria gramatical
do português para esse tipo de aluno com essas características.
Pesquisadora: Esses cursos que você está citando são cursos que a Compassiva
promove para vocês?
Síria: Isso, a Compassiva promove. Há instituições muito sólidas nessa área com
pedagogas, com professoras. De formação, elas constroem até materiais e elas têm
contato com povos de outros idiomas, até povos árabes. Colocar em prática a
gramática portuguesa nesse contexto, então eu posso até passar depois o nome, mas
101
eu fiz acho que três módulos, ainda tem alguns módulos que eles disponibilizaram
também materiais de apoio, além do material oficial da Compassiva para a gente
trabalhar a criatividade, que às vezes você precisa trabalhar com figuras, com objetos,
para eles entenderem, por exemplo, vocabulário. Então isso ajuda muito.
Síria: Eu tenho nome e está no meu celular porque eles formaram até um grupo de
WhatsApp para a gente, caso precisemos de alguma ajuda. Então eu e os professores
da Compassiva temos acesso a esse a esse grupo, a esse material.
Pesquisadora: Você tem algum exemplo de prática docente que você utiliza e que
você sente que funciona, que você gosta de utilizar?
Síria: Eu tenho só três meses. Mas eu gosto muito de fazer brincadeiras lúdicas que
é uma coisa que a gente até aprendeu nesse curso, até porque eles são refugiados.
Eles vêm de um contexto de guerra, vêm fragilizados emocionalmente. Então não dá
para você ser muito pragmático e muito autoritário na hora de passar alguma coisa.
Nós também temos limites, fiz assim para falar de contextos. Para não trazer gatilhos.
Para o refugiado ou porque como a gente falou, como eu falei, a maioria vem nesse
contexto de guerra ou até perseguição. Então eu gosto muito de usar algumas coisas
lúdicas, algumas brincadeiras para descontrair a aula, apesar dessa turma ser uma
turma avançada, mas juntando com esse contexto social. Do nosso trabalho, eu acho
que isso ajuda muito. Eu dou aula à noite, então a maioria deles trabalha. Como tem
alguns que trabalham na feira da madrugada de sábado para domingo e depois
trabalham de dia, chegar numa segunda-feira à noite para a aula, não dá para ser
alguma coisa muito rígida como a gente faz para alfabetizar um uma pessoa no Brasil,
e esquecer do contexto. Então brincadeiras lúdicas é uma forma mais relaxante para
que eles absorvam o conteúdo e não fique cansativo numa segunda-feira à noite para
isso. Um idioma que eles não escolheram aprender. Porque eles vieram para o Brasil
não por escolha. Então a gente não pode esquecer dessas coisas que estão por trás.
Pesquisadora: Está certo. Material de apoio que você utiliza nas aulas?
gramaticais, nós seguimos essa sequência e além desse material também existem
materiais de apoio que eu citei desta dessa ONG que deu um curso para a gente.
Também temos a liberdade de criar. É como eu falei, brincadeiras lúdicas e buscar
outras fontes para desenvolver o trabalho com eles. Mas tem o material mãe, que é
da Compassiva, esse a gente não pode deixar a parte.
Síria: Sim.
Síria: É assim, eu tenho prática como aluna, não como professora. Mas pensando
nesse sentido, eu reconheci logo no início porque a escolha foi trabalhar com
refugiados. Outra cultura, outro contexto totalmente diferente, no qual a maioria é
árabe. Tem alguns alunos venezuelanos, mas na minha aula não, na minha sala não
tem. Então, quando eu escolhi dar aula para esse para esse grupo, eu já tive que me
olhar, né? E falar assim: não, as dificuldades que eu tive vão ter que ser guardadas
embaixo na gaveta. Porque não tem nada a ver com o contexto. Como eu falei lá em
cima, tem o contexto de trabalho deles. Tudo bem, eu também estudei à noite, na
faculdade. Só que eu não ia trabalhar sábado à noite na feirinha da madrugada. Eu
soube isso através de uma dinâmica que eu fiz. Eu pedi para eles, já que estávamos
estudando verbos no pretérito, fazerem uma redação do que eles fizeram no final de
semana. Então eles mostraram muito a realidade deles no final de semana. Alguns
descansaram, outros não. Então tem que desmistificar muitas crenças e eu fiz isso
logo no início, e me policio todos os dias que eu vou dar aula por causa do contexto
que eles chegaram no Brasil e por que eles estão procurando aprender o idioma, que
é totalmente diferente da minha vida. Não, não, não dá para encaixar. Então isso é
103
um trabalho diário. Enquanto você prepara ou dá aula, mas de início eu já tentei mudar
esse mindset aí na minha cabeça, porque não tinha nada a ver. E o curso do
Perspectivas me ajudou nisso, mas também esse curso dessa ONG que a
Compassiva ofereceu falou muito sobre isso também. Das nossas crenças, não só
crenças na questão de diferença de eu ser aluna, mas também nas crenças culturais
brasileiras. E a gente tem que mudar.
Pesquisadora: Que interessante, nossa, deve ser muito bacana. Muito mesmo. No seu
ponto de vista o que um professor expert deve ter?
Síria: Para dar aula para refugiado, compaixão, que é também o mote da Compassiva.
Principalmente porque você não tem olhar só para gramática, só para teoria, o que
você aprende, mas compaixão, principalmente como eu falei. A própria coordenação
orientou: “olha, veja se eles estão com algumas necessidades porque a gente tem
contato direto com eles”. Empatia, sentar-se no lugar deles mesmo. E entender, como
que você falou de crenças. Tem que quebrar essas questões para conseguir colocar
em prática.
Pesquisadora: Certo. Bom, a nove acho que você já meio que respondeu. Como o
professor foi preparado para trabalhar com refugiados e quais são as dificuldades
encontradas na sua prática referente a formação de professores? Você encontra
dificuldades em relação à formação?
Síria: Olha, a Compassiva dá um apoio muito grande para a gente nesse contexto. Eu
acredito que essa questão que eu pensei quando eu resolvi dar aula, por não ter
formação, que a questão gramatical pesaria mais, mas eu acho que tem um peso de
cinquenta por cento. O conhecimento gramatical, da educação, da pedagogia não
relacionada a refugiado é cinquenta por cento. Agora a o contexto de você entender
o refugiado, a dor do seu refugiado, a empatia com ele, com a situação, pesa
cinquenta por cento. Porque se você tirar isso, você não consegue dar aula. E se você
não entender de onde ele veio, por que que ele está aqui, como que é o dia a dia dele.
Então eu acredito que é unir essas duas coisas. A palavra é unir, unir essas duas
coisas. O conhecimento que você tem do idioma é o conhecimento pedagógico. O
didático com esse outro contexto social, eu acho que é muito importante para você
conseguir desenvolver o trabalho.
104
Síria: Muito, muito, principalmente eu que decidi mudar do administrativo para dar
aula. Tem professores que já dão aula há algum tempo. Tem professores que vêm da
academia. Que estudaram, que lecionaram, por exemplo, eu não tenho experiência.
Com educação a gente tem uma troca imensa, todos eles, até mesmo por WhatsApp,
em momentos rápidos que a gente precisa, eles dão para a gente feedback do que
acontece na Compassiva. Esse feedback das aulas, isso é diário, eu terminei a aula
na segunda-feira, eu jogo no sistema como foi a aula e coloco nesse grupo do
WhatsApp a descrição da minha aula para os outros professores que revezam a minha
turma. Mas eu também tenho liberdade de conversar com outros professores nesses
cursos que a Compassiva fornece, a gente tem a experiência de troca com os demais
professores, do que eles já passaram de dificuldades na aula, dicas, então isso
acontece com frequência.
Pesquisadora: Muito bom. Síria, era isso, deixa eu parar de gravar aqui, agradeço
muito, conseguimos no horário, deixa eu interromper.
Venezuela: Não, eu entendi. Bacana. OK, só que eu imagino que lá deve ter assim
um uma variação muito grande, de pessoas e de atividades, de profissionalismo, de
qualquer coisa assim. Essas entidades precisam de voluntários. Elas precisam de
voluntários, então principalmente no caso da Compassiva, que a gente trabalha com
pessoas que vêm de outros países. E às vezes, sem saber absolutamente nada de
português. No começo, em 2015, foi quando começaram a vir os refugiados sírios,
eles não sabiam uma palavra de português. E era uma coisa complicadíssima. Hoje
os mesmos que estão lá, os sírios, eles já estão aqui no Brasil há algum tempo e,
assim, já aprenderam português de rua. Mas eles não sabem ler, nem escrever, então
agora eles viram a necessidade, então eles estão indo para lá para aprender a ler e
escrever. Por exemplo, nós temos uma classe lá à noite que eles todos falam
português muito bem, falam bem direitinho, sabe? Mas precisam escrever, então eles
estão lá para isso. Mas já tivemos os que não sabiam nada, absolutamente nada, e
tem os que estão vindo agora de outros países, que estão no zero.
Pesquisadora: Entendi. Sério? Legal. Eu vou começar aqui com essa primeira parte,
que é mais para traçar o perfil do educador. Essa parte de nome, sexo e idade você
já preencheu lá no Google Forms, então eu vou pular. Qual sua formação na
graduação?
Venezuela: Então, esse trabalho meu de voluntária foi na Compassiva, foi aí que eu
encontrei e senti vontade de participar e fiquei. Eu tenho 67 anos. Sessenta e oito, já.
Então a turma jovem, você vê que eles querem participar. Eles participam o semestre,
mas dificilmente eles ficam dois semestres, porque jovens mudam muito. Eles mudam
de emprego, mudam de local, então não tem aquele pessoal fixo como professores,
está entendendo? A rotatividade é bem grande. Então, às vezes, quando tem bastante
jovens lá, eu fico na sala de espera. Eu fico só para cobrir buraco, e tal, mas a gente
vê isso, é difícil porque também todo mundo trabalha, tem que preparar a aula, tem
isso, tem aquilo, tem reuniões. “Bom, neste semestre agora eu vou parar”, ou porque
casa, vai para outro lugar, vai para outro país, muitos deles foram até para outros
países. Então é assim, mas eu estou lá, eu estou lá faz tempo.
Pesquisadora: Entendi. E nessas aulas que você tem lecionado lá, você leciona para
diferentes níveis?
Venezuela: Já, já lecionei para diferentes níveis já. Já peguei a turma do zero. Já
peguei a turma do cinco, do seis. A Compassiva tem material assim específico para
estrangeiros. Português para estrangeiros. Hoje tem bastante, hoje no mercado tem
muito material, bastante material. Então a gente adota um material desse, é o que nós
usamos. Então no primeiro semestre, certas unidades, eles vão até certo caminho. No
segundo semestre, às vezes algum fica ainda porque não pegou muito bem, eles
faltam também, eles também trabalham. Então, a gente tem material, material
especificamente para estrangeiros.
Venezuela: Sim, agora a gente tem a turma número um, tem a turma zero também.
Turma número um. E tem a minha classe, tem esse que eu te falei, tem uma turma
que já está no Brasil, eles trabalham inclusive, uns já falam muito bem até, mas não
sabem ler nem escrever, então eles não sabem a gramática, não sabem verbos, não
sabem essa parte gramatical, eles não conhecem, então eles estão lá porque eles
sabem da deficiência deles, eles querem melhorar. E é uma turma mista, homens,
mulheres, a faixa etária é mediana. É, mediano. Uma coisa interessante é que eles
vêm em família, muitos vem em casal e às vezes já vem os filhinhos junto porque não
têm com quem deixar, por isso que nós temos lá até a turma que cuida das crianças,
inclusive à noite. Então, enquanto os pais estão fazendo aula, as crianças estão lá
brincando, se divertindo, fazendo alguma coisa, entendeu? Tem uma turma que cuida
deles.
Venezuela: Sim, na minha classe a maioria é da Síria e acho que tem um ou dois que
é daquela região lá também, não é da Síria, mas é daquela região lá. Então é mais de
origem árabe. E tem uma pessoa inclusive, ele trabalha já, muito esforçado, tem uma
sede de aprender e a família dele eu acho que ficou lá na terra dele, porque eu
costumo levar sempre alguns chocolatezinhos, uns bombonzinhos. E outro dia eu
levei bastante, não tinham muitos alunos, tinham seis alunos só, aí eu fui dando mais
um. Aí eu sei que umas lá tem irmãos, eu falei, olha, quantos irmãos você tem? Ela
falou, eu tenho três. Falei, então leva para cada um deles. Aí o outro me disse, o meu
filho está lá na minha terra, não vou poder levar para ele. Eu sei que ele tem um filho
que não está no Brasil.
Pesquisadora: Está certo. Bom, então essa era a parte um, para a gente traçar um
perfil da turma e conhecer um pouquinho mais sobre você e agora a gente vai para
parte mais teórica do trabalho. Então a pergunta um, qual o motivo da escolha da
docência para refugiados e imigrantes? O que te motivou a escolher dar essas aulas?
Venezuela: Olha, aconteceu. Eu não procurei não. Eu tinha uma amiga que dava aula
que estava começando lá na Compassiva também. E ela era da minha igreja e falou
desse trabalho, aí e eu falei, nossa, que legal, gostaria de conhecer. Ela disse: “então
108
vamos, estamos precisando de gente lá, no dia seguinte eu estava lá. Foi mais ou
menos assim. Foi ao acaso. E eu achei interessante, porque no comecinho, o André,
como vinham os muçulmanos para cá, ele deu inclusive aula sobre a matéria dele,
sobre a religião deles para a gente saber como trabalhar com eles, sabe? Então foi
uma coisa que eu achei muito séria e gostei muito, gostei muito. E como eu disse para
o meu filho, eu tenho um filho só, já era grande e eu sempre trabalhei, como continuo
trabalhando até hoje, então eu fico com mais uma atividade que é boa.
Venezuela: Olha, no nosso caso, nós trabalhamos com refugiados. É primeiro ensinar
a eles o que eles estão precisando, que é aprender português. Isso é primordial. E
mais uma coisa que a gente dá para eles, tem que dar um pouco de amor. Porque
eles estão sozinhos, saíram de um país em guerra. Então tudo que eles querem é
uma atençãozinha, sabe? Para qualquer coisa que a gente faça, eles são muito gratos.
Eu costumo levar, por exemplo, além do material que a gente tem, eu costumo levar
sempre recortes de jornal. Eu ainda sou daquelas que assina jornal, eu assino o
Estadão ainda. Então sempre tem uma matéria assim interessante, hoje eu tenho
cuidado, por exemplo, para não ter, não levar nem uma página que está escrito a
palavra guerra. Então, tem assim coisas de natureza, tem coisas de parques, de São
Paulo, tem exposições, tem um monte de coisa. Então eu procuro levar um
recortezinho para eles e falar olha, se vocês lerem um pouquinho só já é bom para
ajudar. Eles ficam super gratos.
Pesquisadora: Que legal, isso é muito bom, muito bom. Você disse que fez Direito, fez
uma especialização na área empresarial, você enxerga alguma contribuição desse
curso superior ou algum outro curso que tenha feito para sua prática docente ou é
realmente muito distante do que você tem lá na Compassiva? Seu universo
acadêmico contribuiu com a sua prática docente ou não?
Venezuela: Contribui sim! Contribui muito, claro. Porque a gente antes de tudo pratica
a justiça. Tudo que vai, tudo que a gente vai fazer, o que vai acontecer, o que a gente
109
está vendo na frente, a gente luta! Bato acima de tudo na justiça, se é justo, se não é,
se não for, eu não concordo, sabe? Então eu acho importante sim. E quando eu falo
que sou advogada é engraçado, sempre alguém tem uma pergunta para fazer, tem
uma dúvida sabe? Então isso é interessante, sempre eles têm, ou porque um alugou
uma casa ou porque não sabe alguma coisa assim, sabe? A documentação. Embora
a Compassiva trabalhe com isso, mas eles sempre consultam a gente e tal. E o
professor é o mais próximo que ele tem ali.
Pesquisadora: Entendi. Que interessante. A pergunta quatro, que base teórica você
utiliza, que fonte, que teoria você usa para embasar sua prática e como acontece essa
relação teoria e prática na sua atividade docente?
Pesquisadora: Que legal. Você tem um exemplo de alguma prática que você tenha
feito em sala de aula que você acha que foi válida, que você gostaria de compartilhar?
Venezuela: A gente sempre pede alguns exercícios igual a esse trabalho que a gente
está fazendo para que eles falem alguma coisa deles sabe? É para não ficar só no
português na gramática e tal. Então a gente sempre pede para que eles falem alguma
coisa da vida deles. Então, dependendo da turma, às vezes você vê uns que são muito
fechados, não querem falar, sabe? Então a gente respeita. Outros querem, sim, outros
falam da família, dos pais, dos irmãos, sabe? Falam com alegria, então a gente vê
que é um povo assim, como nós. São como nós, também, eles são bastante
amorosos, bastante cuidadosos com a família, esse é o amor. A relação familiar deles
é muito importante também. Mas tem alguns que se fecham, não querem falar, então
a gente respeita. Então, a cada momento, assim, a cada assunto que a gente está
falando, a gente puxa assim, a gente puxa para ver se eles se abrem para falar alguma
coisa, até para eles saírem daquele do livrinho. E procurar assim palavras diferentes,
porque eles vão falar de coisas diferentes.
Pesquisadora: Bacana, a seis, que tipo de material de apoio é utilizado nas aulas?
Você já me disse que usa recortes de jornais. Fora isso tem algum outro recurso que
você utiliza?
Venezuela: Então, tem livros. A gente tem livros lá, a gente tem um livro do aluno e o
livro de exercícios, para cada unidade que a gente termina no livro do aluno, há uma
unidade no caderno de exercícios. Então isso é para a gramática, para redação, para
saber escrever uma frase, para saber se expressar em português, às vezes tem que
criar frases. Então eles se expressam em português. É um material didático, livros e
gramática. E depois, às vezes, tem um vídeo que a gente mostra para eles também,
para eles prestarem um pouco de atenção e ver se eles entenderam alguma coisa, e
eu gosto de levar jornais, recorte de jornal, porque sempre é uma coisa bem diferente
daquilo que a gente está vendo, sempre bem diferente. Outro dia eu levei um artigo
111
que era de uma pessoa que começou a cuidar de alunos de aula de português nas
favelas, sabe? E tem uma coisa muito interessante, então eu falei para eles, olha que
legal, vocês têm aula aqui na classe. Às vezes eles lá, sentadinhos no chão, mas é
assim que eles têm que aprender.
Venezuela: Não, as minhas crenças todas foram reforçadas. Nada foi desmistificado
não. Por exemplo, isso de você ser primeiro, a gente mostra lá dentro que nós somos
iguais a eles. Não estamos acima nem abaixo. E estamos lá para ajudar. Eles nos
respeitam porque a gente exige. Então tem que ter essa relação de respeito também,
eles nos respeitam, nós os respeitamos e o que a gente dá para eles de acordo com
a nossa convicção, eles aceitam muito bem, se sentem muito felizes. Nunca teve
alguém que reclamou ou que falou com a gente, porque depois da aula a gente bate
um papinho, tal, fala com um, fala com outro, sempre agradecimento, sempre as
pessoas estão felizes, sabe? De bom humor, você não vê ninguém chateado com
alguma coisa, de maneira alguma. Então, e depois quando a gente termina o
semestre, aí no próximo semestre você pega outra classe. É legal as pessoas virem,
“ô professora”, às vezes a gente nem lembra quem é, não sabe nem quem é e abraça,
e é engraçado porque no começo a gente fica bem reticente. Nos próximos semestres,
todo mundo já vem, abraça, eles parecem família de italianos. É gratificante.
amizade com a moça, inclusive a gente vai segunda-feira se encontrar para eu mostrar
para ela o centro da cidade.
Venezuela: Eu falei. Eu falei, gente, olha só que interessante. A classe dos afegãos à
noite, eu sempre chego um pouquinho mais cedo, para arrumar as coisas, tal. E as
meninas chegam mais cedo. Aí eu chego, como eu levo minha sacola de chocolates
e essas coisas, aí eu levo lá para elas, falo “olha, o chocolate para uma, chocolate
para outra”, e eu já levei também lápis, borracha, apontador, caneta porque às vezes
eles chegam com um toquinho de lápis. Na minha mochila tem. Aí eu falei “olha, eu
trouxe para vocês também”, mas você precisa ver como elas me abraçaram e me
beijaram. Bonitinha. É, assim, sabe? Agora eu chego lá, elas vêm assim, felizes, não
falam uma palavra em português ainda. Todas felizes, é assim, é gratificante, viu? É
gratificante.
Pesquisadora: Vamos lá, seguindo, então, para a pergunta oito, no seu ponto de vista,
o que um professor expert deve ter? Um professor especialista, um bom professor
deve ter?
Venezuela: Eu acho que se pegar a turma lá da Compassiva, acho que não deve ter
nenhum professor formado. Não sei se tem. E cada um tem seu trabalho, os meninos
trabalham. Não sei se tem algum que é professor. Não sei. Mas é óbvio que pelo
menos a primeira coisa, ele tem que conhecer a matéria que ele está dando. Porque
às vezes você está lá com um determinado capítulo do livro, eles fazem uma pergunta
que não tem nada a ver com aquilo. Então, se a gente não tiver um bom português,
se não tiver uma boa gramática, aí fica chato. Acho que, assim, eles perdem até a
confiança, eles falam, “puxa vida, quem que está aqui ensinando a gente?” Porque
quando eles puxam e você consegue ajudar, consegue explicar, nossa, eles se
sentem superfelizes, outros já perguntam outra coisa. Então, isso é interessante.
Primeiro tem que dominar o que você está falando. Nós temos que dominar a
gramática, por exemplo, hoje a gramática tem muita coisa que mudou do tempo que
eu estudei, mas aí o que eu faço? Eu estudo. Então eu não perco a oportunidade, eu
estudo para saber responder o que eles precisam e explicar também. Não adianta só
falar que tem um artigo masculino e feminino e ficar nisso. Então tem que ter, primeiro
tem que estar bem-preparado. E outra coisa é gostar do povo. Porque não adianta
chegar lá de mau humor se as pessoas não fizeram nada, você pediu para fazer um
113
trabalho em casa, não fizeram, não adianta dizer não, não adianta. A gente tem que
ter empatia, sabe? Saber que eles têm muito problemas, metade de nós não temos
nenhum problema comparado com eles. Eles estão fora do país deles, longe da
família, não sabemos se estão morando num lugar bom, se não estão. Não sei como
eles estão vivendo. Então, a gente tem que saber que eles são pessoas difíceis, eles
estão passando por dificuldade. E o que nós temos que fazer é isso, é ser
compassivos. Ser compassivos e tratar, tratar com muito carinho e aplicar aquilo que
nós sabemos. Quando a classe começa, a gente fala, “olha, nós estamos aqui”, eu
falo sempre, eu falo, “olha, eu saí da minha casa para vir aqui dar aula para vocês,
porque eu quero que vocês falem português, não é para brincar não, vamos trabalhar”.
Então, todo mundo trabalha.
Venezuela: Então, na Compassiva a gente não tem nenhuma dificuldade, porque tem
muitos jovens lá e os jovens hoje, eles são, eles têm muito interesse, sabe?
Normalmente eles são de igrejas, alguma coisa assim, sabe? Então, eles têm também
um coração muito aberto para o amor. E eu vejo, eu vejo assim. Na Compassiva há
muito interesse, quando um professor, por exemplo, tem problema, não vai poder dar
aula, “olha, quarta-feira que vem não posso dar aula”, imediatamente já tem outro lá
substituindo, se oferecendo, sabe? Então, existe assim uma união bem grande dos
professores voltados para isso, voltados para o trabalho. Todo mundo quer cooperar,
quer ajudar, ninguém cria problema com nada, ninguém traz problemas para sala de
aula e aí a gente vê também que depois, quando nós terminamos as aulas, a gente
faz um relatório e eu vejo que todo mundo fala com alegria. Às vezes a gente fala:
“olha, o fulano hoje não está rendendo nada, não está entendendo, está precisando
de um pouco de reforço e tal”, mas com muito carinho. Ninguém tem preparo assim
de professor. Como eu te disse, são jovens que ainda estão estudando também, sei
lá. E não sei se a maioria é formada na área, não sei, eu acredito que não. Mas, assim,
todo mundo tem se saído muitíssimo bem, muitíssimo bem.
Venezuela: Sim, isso que eu acabei de falar agora. Por exemplo, o mês que vem é o
mês do Ramadã. Então eles não assistem aula de sexta-feira, então sexta-feira não
tem aula. Então o que nós aqui da Compassiva estamos fazendo? Então ela pega os
professores de sexta-feira e faz algumas aulas de segunda, a quarta é para os outros
também darem uma descansadinha, entendeu? E faz com muito carinho, sem
problema nenhum. Porque dou aula de sexta-feira, então até o mês que vem não vou
fazer nada? Não, vamos sim, vamos, nós estamos lá para trabalhar.
Pesquisadora: Está certo. Que legal, muito obrigada, Venezuela, eu vou parar de
gravar aqui, espera aí que eu vou interromper a gravação.
115
Pesquisadora: Muito obrigada por permitir a gravação, obrigada por me ajudar com
isso, com a pesquisa, só para a gente contextualizar, então eu estou fazendo essa
pesquisa. Eu estudo na área de educação, é um mestrado na área de educação, arte
e história da cultura lá no Mackenzie e a minha linha de pesquisa é bem voltada para
formação de professores. Você também é Mackenzista?
Marrocos: Na Compassiva?
que despertou essa paixão por aula, por lecionar e eu comecei a buscar, por exemplo,
hoje eu dou aula de inglês, comecei até a ajudar na igreja, dando aula para as
criancinhas e realmente eu descobri uma paixão que estava aí escondida.
Pesquisadora: Que máximo isso. Eu descobri também que eu gostava de dar aula
dando aula também. Muito bom e por causa do inglês, eu comecei dar aula porque eu
estava esquecendo o inglês. Aí eu comecei a dar só para manter. E aí no fim eu acabei
me apaixonando.
Pesquisadora: Em que série? Na verdade, você já deu essa resposta, então já vou
partir para última da parte um aqui. Quais são as características do grupo que você
leciona atualmente lá na Compassiva?
Marrocos: Então, são refugiados afegãos, OK? Eles vieram para cá, para o Brasil por
conta do Talibã, que tomou o poder na região e a maioria dos alunos são fotógrafos.
E por alguma questão eles consideram, o talibã considera que é uma profissão não
permitida, não é autorizada. Então eles sofrem perseguição e decidiram, não, foram
obrigados a sair de onde estavam, para exercer sua profissão, e sim, para ter o mínimo
de dignidade na vida. Então é isso, essa é a característica. A maioria de mulheres,
OK? Na sala hoje temos dois homens e cinco mulheres. Tinha mais pessoas, só que
aí começam a arrumar emprego, aí não aparecem mais, mas a maioria é de mulheres.
Pesquisadora: Está certo. Então, essa foi a parte um, mais para a gente traçar um
perfil do educador. E agora vamos para parte dois, que é para eu relacionar com a
parte teórica do trabalho. Então qual o motivo da escolha da docência para refugiados
e imigrantes? Por que você fez essa escolha?
igreja, apresentou o projeto e falei, olha, nunca pensei em dar aula de português, não
é meu forte, já falo, é gente, meu, não é meu forte, mas acho que chegou num ponto
que é o que com certeza a gente sabe mais, o pouco que a gente sabe a gente pode
compartilhar com essas pessoas. Então a gente pode ajudar e acho que vai mais do
interesse, ter interesse em ajudar várias vezes, vale muito mais do que eu um super
mega currículo com doutorado, mestrado, se a pessoa não tem essa humildade, essa
empatia com as pessoas, principalmente as pessoas em situação de refúgio.
Marrocos: Pensei muito quando eu tinha estudado uma colinha, porque para mim eu
acho que até dá para fazer um gancho com essa resposta que eu dei, um professor
acho que vai muito além da aula em si. Então, ainda mais quando a gente está falando
de refugiados, então vai muito além de uma gramática, de um idioma. Então, de forma
básica, eu vejo um professor como aquele que é capaz de passar de forma eficiente
um conhecimento. Para que a gente consiga passar uma mensagem, consiga se
comunicar com as pessoas, você tem que quebrar algumas barreiras, você tem que
entender as pessoas, OK? O professor para mim é aquele que consegue passar uma
mensagem, passar um conhecimento de uma forma eficiente para outras pessoas,
OK? Garantir que essas outras pessoas estão recebendo a mensagem exatamente
da forma que ele deseja passar. Então na Compassiva eu vejo que o professor coloca
um papel extra, porque quando a gente fala de pessoas em situação de refúgio, a
gente não pode pensar, elas vão lá, vão aprender gramática, algo extremamente
pesado, não, a gente tem que criar um ambiente em que se sintam acolhidos, criar
um ambiente em que eles consigam aprender a cultura. Quando você aprende uma
língua você aprende uma cultura. E às vezes quando você faz isso numa escola, você
vai aprendendo de forma gradual. Eles não, eles chegaram de uma realidade
totalmente diferente e estão tentando se adaptar. E não criar um choque cultural tão
forte, mostrar, apresentar que aquilo é o português, é dessa forma que os brasileiros
são, OK? Então, tentar não criar um impacto muito forte, cultural, reduzir essa questão,
criar um ambiente acolhedor e que eles se sintam em paz, aprendam, claro, que é o
nosso objetivo, e que eles aprendam, mas que eles se sintam em paz em um lugar,
sintam-se felizes, então não é só gramática, não, a gente não chega lá e ataca
matéria, não, a gente tenta criar um ambiente muito light, muitos entram aqui e já têm
que procurar emprego, vão para sala, às vezes vão para sala acabados, mas eles
118
gostam de estar lá, eles gostam de pertencer ao local, então a gente tem que ter essa
consciência, tem que ter essa empatia, então acho que o papel do professor é esse,
entender as outras pessoas, as necessidades das outras pessoas e passar da melhor
forma o conteúdo.
Pesquisadora: Está certo. Sua formação, apesar de não ter sido dentro da área da
educação, você acha que ela de alguma forma contribui para sua prática docente?
Marrocos: Com certeza a gente sempre absorve o que há de melhor dos professores.
Então, seja pela coisa, seja pelo conteúdo em si, que por exemplo, a parte na
graduação ou na pós-graduação nós temos a comunicação, nós temos matérias
relacionadas, mas talvez até pela questão de postura. Do quanto um professor é
capaz de talvez motivar, de incentivar ou permitir que essas pessoas consigam
crescer em determinadas áreas. Então, acho que um professor, como eu disse, vai
além da gramática. Em uma pós-graduação, muitas vezes, foram além da matéria em
si. Então isso eu tento repassar também sempre quando tenho oportunidade de dar
aula.
Marrocos: Não acho que é uma característica minha. Não sei, eu sou bem-organizado.
Então eu tento estruturar tanto para aulas de inglês quanto as da Compassiva, com
as aulas de português, estruturar para que eles consigam treinar. As quatro skills: a
parte de leitura, a parte de escrita, a parte de fala, a parte de escutar. Que também é
muito importante, às vezes, não somente o professor falando, mas também outros,
uns vídeos. Uma música, um vídeo na internet, um filme, um trecho de um filme. Então
tento estruturar isso de uma forma bem clara no início das aulas; nos primeiros
minutos eu compartilho aquilo que eu vou passar durante a aula e então a prática.
Assim segue conforme a programação. Não sei se era isso. Qualquer coisa me pede
para complementar.
Pesquisadora: Não, tudo bem. Eu gostaria que você respondesse de acordo com o
que você entendeu mesmo. Então vou fazer poucas interferências mesmo. Tem algum
119
exemplo que você possa compartilhar? De alguma aula que você acha que é bem
válida, que você gosta de aplicar com eles?
Marrocos: Olha, eles estão no nível zero, acabaram de chegar no Brasil. Chegaram
no final do ano passado, a gente ainda está naquelas aulas bem básicas. De
pronomes, verbos importantes, então a gente tenta, por exemplo, passar o conteúdo
apoiado no livro. O livro é um guia. No caso, a gente utiliza aquele livro, a gente
sempre fala que o livro não é suficiente, mas o livro de certa forma serve para nos dar
um direcionamento. Então, a gente pega a uma matéria, compartilha o conteúdo
sempre quando precisa, por exemplo, a questão agora dos possessivos. Nossa,
explicar possessivo, explicar que seu é para ele e ela e você, até brinquei sobre isso
com você, é muito difícil. Então, o que a gente faz? A gente começa a trazer matérias
de exercícios ou faz algumas brincadeiras de, por exemplo, pego uma bola, jogo para
uma pessoa, “agora fala, cria uma frase, utiliza o seu”. Então sabe, tento colocar uma
dinâmica para consolidação dos conteúdos. Então eu sempre tento colocar talvez
uma, além da matéria em si, além do livro ou até uma atividade extra também, alguma
dinâmica em aula para, sei lá, trazer o idioma para o cenário, vamos dizer assim, para
vida dessas pessoas. Então, porque não adianta nada só pegar alguns exemplos do
livro ou da internet que não façam sentido para vida deles. Então, trazer para quanto
mais próximo da realidade melhor. Então a gente sempre tem de fazer esse link de
trazer da teoria para prática ou para vivência deles, para realidade deles.
Pesquisadora: Está certo. A pergunta seis é sobre o tipo de material que é utilizado,
então você já disse que tem o livro, que eu tive acesso, o Muito Prazer. Você usa
dinâmicas, por exemplo, bola, como você falou e o que mais?
Marrocos: Sempre, por exemplo, quando coloco uma matéria em si, a gente tenta
pegar, colocar uma música que tem alguns vocabulários que a gente treinou em aula,
treinar essa música, preencher aquelas palavras que estão faltando e é justamente as
palavras que a gente aprendeu em aula, na semana passada a gente teve um
momento, claro, muito tenso. Um momento de correção de prova, então eu chamei
um por um, cada aluno para conversar do lado de fora, para ver as dúvidas que eles
tiveram na prova, por que eles acertaram, por que eles erraram, tentei esclarecer
naquele momento meio particular no final da aula. A gente fez como se fosse um jogo
de imagem em ação, no sentido horário, um falava uma palavra, aí a pessoa ia
120
desenhar na lousa e a outra tinha que adivinhar, claro, a palavra em português. Muitos
falam muito bem inglês. Então, tem que depender também desse idioma. Por
exemplo, falei, em português, forçando e estimulando, para eles falarem o idioma.
Então, acho que essas dinâmicas sempre são bem são válidas.
Marrocos: Sim, eu acho que a primeira crença que a gente tem é que o professor está
lá só para ensinar. Professor está lá para primeiramente entender quem são as
pessoas, tem que entender a dificuldade, porque não adianta eu chegar falando de,
sei lá, de algum tema específico, ou de um jeito específico, sendo que eles não estão
preparados ou eles não estão habituados. Eu lembro da minha primeira aula, eu acho
que eu tinha grande medo e eu cheguei lá vomitando tudo aquilo que eu tinha treinado
ao invés de escutar também. Então o professor tem que saber escutar, não só saber
falar. Então, acho que essa é uma das grandes coisas que eu aprendi como professor
da Compassiva ou como professor de inglês ou como professor das criancinhas, é
muito importante isso. Eu lembro certinho que quando eu fui me apresentar, aí estava
me apresentando na primeira aula, eles tinham acabado de chegar e um aluno
egípcio, que depois virou um grande amigo, me falou em inglês: “Professor, como é
que você espera que a gente entenda o que você está falando?” Opa. Falei, “não, eu
só estou me apresentando”. Então, foi uma situação que foi um choque para mim,
com uma primeira aula sozinho. E depois eu entendi, OK? Vamos entender como é
que é essa turma, então essa é a primeira coisa que eu tive que desmistificar. Esse
professor. Você está lá para falar, mas o professor está lá também para escutar.
121
Marrocos: Básico, primeiro, né? Pontualidade e a postura. Quando o bom senso reina,
acho que tudo isso é básico, mas às vezes a gente vê situações que não são. Então
acho que um professor expert, além claro de ter todo um conhecimento que vai pela
experiência, tem que ter calma, saber, não sei até em situações de que, sei lá, algum
conflito entre alunos, saber lidar com uma situação como essa, não se desesperar, eu
acho que são pontos importantes. E claro, como eu comentei, demonstrar de uma
forma genuína o interesse no aprendizado e nos alunos em si, acho que um professor
expert é aquele que consegue se conectar com os alunos. E quando você se conecta,
você não cria aquela barreira, a gente está trabalhando junto para um objetivo comum,
acho que é o cenário perfeito, é o que a gente vê, por exemplo, em escolas, quando
tem aquela professora e todo mundo conversando, as crianças não estão maduras o
suficiente para entender que a professora está lá para ajudá-los. Só que quando a
gente amadurece, a gente percebe que talvez isso tem que ser colocado de uma forma
muito clara durante as aulas, porque a gente está lá trabalhando para um objetivo em
comum. Então, o professor expert para mim é o que consegue não de uma forma
autoritária, consegue sei lá passar essa mensagem de uma forma simples e engajar
os alunos a estudar para não virar um peso, ou seja, não virar uma dor, tanto para os
alunos como professores. Para que todo mundo veja que há realmente ali uma
oportunidade, que está todo mundo ali para aprender, enfim, para desenvolver um
idioma ou simplesmente para ajudar um ao outro.
Pesquisadora: Entendi. Muito bem. Agora a nove. Como você foi preparado para
trabalhar com os refugiados?
Marrocos: Então, na Compassiva eles têm uma preocupação sobre quando você vai
iniciar com as aulas. Então, eu assisti várias aulas. Antes de começar, sozinho. Antes
de começar dando aula sozinho, eu assisti várias aulas, eu conversei tanto com
professores, quanto com a coordenação, muitas dicas valiosas. De como lidar, com o
que fazer, o que não fazer e claro, de periodicamente, eles também têm algumas
capacitações, alguns cursos que eles oferecem. Então acho que isso é muito
importante.
122
Marrocos: Eu tenho contato com os professores do nosso grupo. Por exemplo, agora
se você está perguntando sobre a inclusão de novos professores para dar aula na
Compassiva e a formação, treinamento deles, eu acho que sim, no sentido que não
sei se tem tantas pessoas, tanto é que a gente está com alunos na fila de espera e eu
acredito que seja por falta não somente de uma questão de local, de espaço, mas
também por uma questão de professores que estão engajados aí, que queiram
participar e não queiram ficar só um mês dando aula, e depois ir embora. Acho que
tem uma dificuldade para essa formação de professores, principalmente quando a
gente está falando num cenário de voluntariado.
Marrocos: Sim, todo final de aula a gente tem um relatório, que é uma formalização,
mas a gente sempre conta algo. É colocado nesse grupo, a gente conversa, a gente
discute, fala qual que seria a melhor alternativa de acordo com o nosso objetivo.
Envolve a coordenação para essas discussões. Então, tem bastante troca sim. Por
exemplo, uma situação recente, tem um casal na nossa aula e a aluna é super
dedicada, já está nitidamente mais acelerada, muito mais rápida do que o seu marido,
só que seu marido fica muito apegado, por exemplo, ela fica auxiliando ele todo o
tempo, e um dos professores falou assim, “olha, eu separei eles, coloquei ela de um
lado e ele do outro, para ele desprender, não depender somente dela, para ele se
soltar”. Eu não faria isso, mas ele falou que deu muito certo. É algo muito interessante,
que talvez possa até aplicar nas próximas aulas. Até mesmo para a pessoa
desprender, não ficar dependendo da esposa, para interagir com outros alunos, que
isso é, acho que também é muito importante.
Pesquisadora: Entendi. Então está bom, Marrocos, deixa eu parar aqui de gravar,
muito obrigada mais uma vez.
123
Pesquisadora: Está joia? Aqui está gravando então, é Iraque, não é? Você prefere
Iraque, ou tanto faz?
Pesquisadora: Então está bom. Iraque, muito obrigada por me ajudar com isso, por
participar desta pesquisa. Vou compartilhar aqui uma janela com as perguntas para
nortear a nossa conversa. Então só para contextualizar rapidamente, eu estou
fazendo uma pesquisa na área de formação de professores, eu estou fazendo
mestrado lá no Mackenzie e a minha ideia é entender um pouco qual é a base de
conhecimento dos educadores que dão aula para os refugiados ou imigrantes lá na
Compassiva, é um estudo de caso da própria Compassiva. Pelo que eu entendi a
maioria dos professores de lá não tem formação na área de educação, não sei qual é
o seu caso, a gente vai conversar um pouquinho agora. Mas não tem problema porque
essa inclusive é a proposta, entender a base de conhecimento dessas pessoas que
se propuseram a fazer esse trabalho super bonito, que é o ensino da língua
portuguesa para os refugiados. Então, eu tenho a parte um, que é para a gente traçar
o perfil do educador e a parte dois, que são as perguntas mais relacionadas à parte
teórica do meu trabalho. Então vamos lá, você vai preencher as três primeiras
perguntas naquele formulário, então eu vou pular essas. Vamos lá, qual sua
formação? Graduação.
Iraque: Não. Eu fiz só cursos de especialização na área que eu queria, mas não fiz
nenhuma pós-graduação, nem mestrado, nada.
Iraque: Essa pergunta é complicada. Porque se for português eu leciono há dois anos
aqui na Compassiva. Mas eu comecei a lecionar em escola dominical quando eu tinha
ainda dezesseis, dezessete anos. Eu lecionei violino durante dez, quinze anos, depois
dando aula de futebol, lá no Oriente Médio, eu dava aula de árabe para os brasileiros.
Então a minha vida inteira foi uma coisa assim de dar aulas direcionadas. Então é
uma paixão muito grande ensinar. Seja o que for eu gosto de ensinar. Então ensinar
português eu estou há dois anos na Compassiva.
Iraque: A maioria são de pessoas que não têm o terceiro grau completo, então são
pessoas mais simples com relação à educação. Uma linguagem mais simplista, de
segundo grau. Então eu tenho costureiro, tenho açougueiro, tenho mulheres do lar
que não fizeram faculdade, então essa é a maioria do meu público, na minha sala eu
tenho também um médico e tem uma outra pessoa que tem curso superior também,
mas a maioria são de pessoas assim que não tem o terceiro grau completo. Só o
segundo grau completo.
Iraque: A maioria são sírios. Mas eu tenho iraniano que cresceu nos Emirados. É,
então até uma pessoa de uma terceira cultura. Tenho palestino, tenho saudita,
libanês, marroquino, egípcio, mas a maioria é de sírios e egípcios.
125
Iraque: É o nível zero, aprender a falar “oi”, aprender o alfabeto, aprender os sons das
letras. Então, assim, é nível zero mesmo. Quando eles começam a conversar um
pouquinho melhor, ler melhor, escrever melhor, aí eles mudam de turma e eu pego
uma outra turma de nível zero, zero mesmo. Justamente porque eu falo árabe, então
ajuda a fazer algumas relações. Eu procuro sempre falar português, mas tem
momentos que a relação, eu falar o exemplo árabe para o português, ajuda demais
na compreensão no início. Então eu uso o árabe como uma língua ponte para chegar
no português.
Pesquisadora: E uma curiosidade, isso não tem a ver com essas perguntas, como que
você aprendeu o árabe?
Iraque: Eu estudei durante dois anos no Instituto de Árabe quando eu estava morando
no Oriente Médio. Então, era um instituto que tinha aula de segunda a sexta-feira, das
sete da manhã à uma da tarde. Então era como se fosse uma faculdade. Eu tinha aí
cinco, seis horas de aula por dia, cinco dias na semana, durante dois anos. Então foi
possível eu sair de lá me comunicando, lendo, escrevendo e falando para continuar o
aprendizado durante a vida. É uma língua muito complexa, uma língua muito difícil,
até hoje eu continuo aprendendo. Não parei de aprender ainda.
Pesquisadora: Muito legal. Então vamos lá, parte dois, qual motivo da escolha da
docência para os refugiados e imigrantes?
Iraque: O primeiro motivo é a questão mais da obediência ao amor a Deus que me faz
querer ajudar as pessoas. Então o motivo é tentar levar o amor de Deus através da
educação, que elas vejam algo diferente do que só o português. De tentar entender
por que esse cara vem aqui lá de São José dos Campos, que eu não moro em São
Paulo, para dar aula para mim, para me ajudar, ele não está recebendo nada para
isso. Ele está gastando dinheiro para isso. Por que ele faz isso por mim? Então eu
quero ter a chance de explicar que isso é uma graça, um amor de Deus, que Deus
tem por ele e eu reflito esse amor de Deus nas aulas de português. Esse é o objetivo
primário, o objetivo principal, a glória de Deus ao dar aula de português para eles. E
o segundo motivo é de querer ajudá-los, claro, a terem melhores condições aqui no
Brasil. Falando a língua portuguesa eles vão conseguir novas amizades, vão
126
conseguir alugar uma casa sem serem passados para trás na hora de pagar aluguel,
de conseguir expressar a dor deles na hora de ir a uma consulta médica, de conseguir
um emprego. Então ajudar mesmo essas pessoas, eu quero que elas tenham
melhores condições de vida no Brasil. Então esses dois motivos principais.
Iraque: O papel do professor é facilitar esse aprendizado fazendo com que ele não
sofra mais um trauma ao chegar no Brasil. Ele já vai ter alguns motivos de
preocupação, talvez alguns motivos traumáticos de conseguir um emprego, de
conseguir pagar o aluguel, então eu quero que aprender a língua seja um processo
bem simples, bem fácil, prazeroso. Então o meu papel ali é ensinar o português de
uma maneira prazerosa para que não seja mais um motivo de estresse na vida dele.
Então meu papel é esse, facilitar ao máximo esse aprendizado.
Iraque: Não, acho que a teoria e a prática têm que caminhar lado a lado e eu procuro
tentar fazer muito isso. Dar um bom embasamento teórico daquilo que eu estou
ensinando, mas sempre colocando a parte prática junto com esse conhecimento. Eu
tenho medo de ir muito para prática, de ensinar muito o coloquial e aquilo do dia a dia
e depois essas pessoas terem dificuldades numa prova, numa entrevista de trabalho,
127
Pesquisadora: Está certo. Tem alguma aula que você poderia citar como exemplo que
você dá e que você acha que é uma aula boa, que você consegue alcançar os alunos?
Iraque: Eu acho que, quando eu coloco algo que é muito, que fala muito no coração
deles, que eles conhecem muito desse tema de vida, então quando eu vou colocar o
português, isso faz mais sentido para eles, isso vai vir na memória deles de uma
maneira mais fácil, encontrar um lugar na cabeça deles com mais aceitação. Então,
por exemplo, o Ramadã começa nessa semana. Então se eu for ensinar vocabulário
da área religiosa nesse momento de vida deles vai fazer muito mais sentido eles
aprenderem que é oração em português, então eles vão precisar usar mais esse
vocabulário para eles poderem conversar com o chefe deles, que eles precisam sair
mais cedo do trabalho para quebrar o jejum. Então vou falar que jejum é o “sum” no
árabe. Então eu preciso aprender “jejum”. Porque eu preciso falar com o meu chefe
que eu estou em jejum, por isso o meu rendimento no trabalho vai ser mais baixo, que
eu não estou comendo, então dar uma aula nesse sentido nessa época do ano vai
fazer com que entre muito mais na cabeça deles, eles têm muito prazer em aprender
esse vocabulário, muito mais que talvez numa outra época do ano quando eles não
precisam utilizar isso. Então isso é muito importante para mim, fazer essa associação.
Pesquisadora: Está bem. Vamos ver aqui, que tipo de material de apoio você utiliza
nas aulas?
Pesquisadora: Vamos lá. A pergunta sete eu vou, talvez eu precise falar um pouquinho
sobre ela. A gente vai ao longo da vida desenvolvendo um sistema de crenças. A
gente desenvolve sobre educação também, a gente passa a nossa infância dentro da
escola, e grande parte da adolescência. Ou talvez a adolescência inteira dentro da
escola e a gente vai criando crenças a respeito do que é a escola, do que é
aprendizagem, o que é um bom professor, como é a relação professor-aluno, ou como
eu aprendo melhor, como eu não aprendo, enfim, essas coisas que a gente acaba
carregando no momento que a gente vai dar aula, quando a gente se torna o
professor. Então, quando você se viu dando aula nessas várias experiências que você
teve e, em especial, no caso da Compassiva, que é o nosso objeto de estudo aqui,
quando você começou a dar aula lá, você percebeu alguma crença que você tinha em
relação à educação e essa crença foi desmistificada ou reforçada, ou não?
Iraque: Eu pensei um pouquinho nessa pergunta quando eu estava dando uma olhada
nesse questionário e a aí me veio muito na mente o que você comentou na sua
explicação agora, essa relação professor e aluno. Porque eu não sou tão velho assim,
mas na minha época de escola o professor era uma pessoa com a qual a gente não
tinha muito contato da sala de aula. Eu cresci numa escola meio rígida, onde o
professor entrava e você tinha que ficar de pé. O diretor entrava na sala, todo mundo
ficava em pé. As meninas usavam saia engomada. Então a camiseta era polo, era um
colégio meio rígido assim. Então sempre a relação professor-aluno era uma coisa
assim de ele estar ali somente para me passar uma informação que eu preciso
aprender. E depois eu fui vendo que eu não concordo com isso e que eu acho que
isso possa atrapalhar e prejudicar. Mas uma outra visão nessa relação professor-
aluno pode ser que o aluno fique mais aberto a absorver e o professor tenha mais
conhecimento do aluno para poder chegar com o ensino de uma maneira mais eficaz.
Então eu tento o máximo possível estreitar essa relação de professor-aluno, a gente
se colocar no mesmo degrau, a gente se colocar na mesma linha de como tem no
exército, como fala oligarquia, não sei se essa é a palavra. Então eu sempre tento
passar o português, obviamente a minha língua nativa, mas que eu estou ali no
mesmo nível. Eu não estou num nível acima, onde eles têm que me olhar com um
olhar de tipo “sim, senhor”. Mas eu estou aqui para te ajudar, para te conhecer melhor,
para saber das suas necessidades, porque assim talvez eu consiga passar a
informação da língua portuguesa de uma maneira mais precisa e que vai encontrar
129
um lugar melhor no seu coração. Então, a partir do momento que o árabe tem, eu já
conheço da cultura árabe, então eu sei que eles têm o professor em um nível de
respeito muito grande, onde ele não tem a oportunidade de estar próximo, é uma
relação muito longe, de muito respeito e faz com que não tenha tanta intimidade. Então
quando eu chego e eu cumprimento os meus alunos e começo a conversar sobre
como é que foi seu final de semana e dou risada e faço piada. E quando eu erro eu
peço desculpa. Olha, isso aqui eu falei, mas eu falei bobagem. Esquece isso que eu
acabei de falar. Então para ele falar: “poxa, um professor pedindo perdão e desculpa”.
Então ele não está falando isso. Foi um equívoco. Não, desculpa, eu achei que eu
estava vendo certo. E essa regra aqui já mudou do português. Não existe mais. Então
eu errei ao ensinar. Então esse tipo de relação faz com que eles fiquem mais abertos
a receber o conhecimento. Eu percebo muito isso. Então eu procuro ser mais amigo
do que professor. Então eu sou uma pessoa que eu gosto muito de vocês e eu quero
aqui ajudar vocês. Então eu sou professor de vocês, mas, olha, ali, na calçada, antes
da aula, vamos conversar, depois da aula vamos conversar, você precisa de carona?
Então eu acho que isso abre muitas portas, além de várias coisas também, para
aquisição de conhecimento. Eu acho que tira um pouco do ranço, talvez de um gatilho
que a pessoa tenha, eu tive vários professores que não foram bons. Esse é mais um
professor que está agindo daquela maneira numa relação professor-aluno. Então, eu
tento quebrar isso, ser mais um amigo que está ali para ajudar, um facilitador do que
um professor. Então acho que é bem isso.
Pesquisadora: Legal. Agora vamos para oitava. No seu ponto de vista, o que que é
um professor expert?
Iraque: O professor expert para mim é aquele que consegue cumprir o objetivo dele,
que é fazer com que o aluno aprenda sobre a matéria proposta. Então no nosso caso,
o nosso objetivo é fazer com que aquelas pessoas saiam dali falando português.
Então, se elas estão saindo falando português, para mim ele é um professor expert.
Para mim, eu meço pelo resultado alcançado, e não pela maneira que foi alcançado
ou o grau de conhecimento do professor. Então, se o professor tem doutorado, mas
ele não consegue passar todo o conhecimento dele de uma maneira prática para que
o aluno consiga, e uma pessoa voluntária, que tem o segundo grau completo, mas
consiga, com a limitação dela, passar o conhecimento para o aluno sair falando
português, o expert é esse e não o que tem o doutorado.
130
Pesquisadora: Legal. E como você foi preparado para trabalhar com refugiados lá na
Compassiva?
Iraque: A Compassiva ofereceu cursos tanto na área de português, para dar aula de
português, quanto para entender a situação: o que é um refugiado, o que é um
migrante, o que é um imigrante. Então deixar claro alguns conceitos como lidar com
temas, então eu vou falar do vocabulário e vou evitar os que possam despertar
gatilhos emocionais. Então evitar temas como guerra, como religião ou quando for
tratar esse assunto, tratar com bastante cuidado. Então a Compassiva deu muito
curso nessa área para que a gente tivesse um melhor conhecimento do nosso público-
alvo. Então acho que isso foi muito bom. Mesmo eu tendo um conhecimento muito
grande da cultura árabe, da língua árabe, eu não tinha muito conhecimento sobre o
refugiado. Não trabalhei com refugiados. Eu trabalhava com árabes que têm uma vida
tranquila, segura e estável no país deles. Então para mim foi muito útil, mesmo tendo
esse conhecimento da língua árabe e da cultura, entender melhor quem é o refugiado,
e como ele pensa, possíveis traumas. Como falar, como ensinar português para o
refugiado é diferente, português para um brasileiro ou para um americano, enfim,
então foi muito bom esses cursos que eles deram para a gente.
Iraque: Sim, mas sem eles saberem que eu era um missionário. Usava a minha
profissão da educação física como uma forma para entrar no país e estar lá.
Pesquisadora: Muito bom e vamos lá, a décima: quais são as dificuldades em relação
à formação de professores para sua prática lá na Compassiva?
Iraque: Deixa-me pensar aqui. Eu não sei se tem como eu responder muito isso.
Deixa-me ver se eu estou entendendo bem a pergunta. As dificuldades encontradas,
as minhas dificuldades que eu encontrei para dar aulas de português?
Pesquisadora: É, se você acha que poderia ter alguma formação, alguma formação
que está faltando para dar essas aulas.
Iraque: Para mim eu acho que está bem tranquilo, eu acho que a gente sempre pode
melhorar, lógico, se tiver um curso eu vou fazer o proposto, acho que a gente sempre
pode adquirir mais conhecimento e melhorar ainda mais, mas hoje eu me sinto capaz
131
daquilo que eu estou fazendo. Eu creio que os dois cursos de graduação, toda a
experiência prática que eu tive na vida de ensino, mesmo que não seja a área da
língua portuguesa, mas me deram base, eu já errei bastante. Então acho que é mais
fácil não cometer esses erros já tendo errado anteriormente. Então eu me sinto bem
capacitado para dar aula de português ali para eles. Mas eu acredito que se uma
pessoa que seja voluntária e não tenha experiência na área do ensino, uma pessoa
mais jovem que não tem formação acadêmica ou na formação acadêmica não exista
essa parte da licenciatura, sei lá, em geologia, o cara que estuda as pedras, o terreno,
eu acho que essa pessoa vai ter mais dificuldades para lecionar.
Iraque: Eu não tenho muitos momentos de troca com os professores. O que eu tenho
é, o meu, a minha turma tem três professores. Então a gente fala no grupo de
WhatsApp como foi a aula passada. Olha, eu dei isso, até tal lugar eles encontraram
muita dificuldade em pronome possessivo, então reforça isso. Então é isso que rola,
é isso que acontece no grupo. Agora o que acontece comigo é que, por eu conhecer
a língua árabe, eu dou muitas dicas, muitas dicas para eles dizendo assim, olha eles
não estão entendendo muito o verbo ser/estar porque esse verbo não existe na língua
árabe, então eles vão falar “meu nome Junior, meu nome Armand”, e não “meu nome
é Mohamed”. Eles nunca vão falar “meu nome é Mohamed, meu nome é Arm”, que
nem no inglês my name is. Então não existe esse is, não existe esse to be, então é
difícil para eles mesmo.
Iraque: É, mas não tem esse verbo, mas eles têm outros verbos. É, existem outros
verbos. Como, andar, pular, o verbo ser/estar não existe. Então, vão com calma,
tenham mais paciência nisso. Então essa troca, né? Então alguns sons na língua
árabe não existem, a letra “P”, por exemplo. Então se ele falar “B”, de fato, então você
fala: “poxa, por que que você está falando “bato”? Vou encaminhá-lo para um
fonoaudiólogo.” Não precisa encaminhar para o fonoaudiólogo, é porque ele nunca
falou a letra “P”. Ele vai trocar sempre pelo “B”. Então essas dicas eu costumo dar
para os meus colegas ali, os meus amigos.
132
Pesquisadora: Tem sons que eles têm e que a gente não tem?
Iraque: Vários. Os sons guturais que nós não temos. A gente fala só com a boca. E
tem sons que eles falam com a garganta. Então esses sons a gente não tem. Então
isso eu costumo fazer. E aí os professores que eu vejo na segunda-feira, que eu estou
lá, surgiu no corredor alguma coisa assim que eu escutei, eu falo, “olha, é por causa
disso”, agora eu não tenho acesso a todos os professores, eu não tenho acesso aos
professores de quarta e sexta da turma um, da turma dois e da turma três. Então
quando eu posso eu tento ajudar por conta dessa experiência com a língua árabe.
Mas acho que não existe uma troca muito grande entre os professores da
Compassiva, é mais em dias de curso. Um ajudando o outro. De forma informal.
Pesquisadora: Entendi. Está certo. Eu vou parar aqui de gravar. Muito obrigada Iraque
até aqui.
133
Pesquisadora: Então, vamos lá. Bom, eu vi que você já fez no link o termo de aceite,
então não precisa, a gente pula aqui essas três informações iniciais, então vamos lá,
qual sua formação?
Arábia Saudita: Eu dou aula na Compassiva desde agosto de 2015, já vamos fazer aí,
faz tempo. Sete anos.
Arábia Saudita: A maioria das mulheres são sírias, eu acho que tem uma que é turca.
Elas têm uma idade média de uns trinta, quarenta anos, foge da média uma senhora,
que tem acho que sessenta e dois e ela é uma das maiores dificuldades nossas, elas
são iniciantes, e a maioria está aqui no Brasil em média de seis meses há um ano
mais ou menos.
Pesquisadora: Está certo. Então essa primeira parte aqui é para a gente traçar um
perfil. E agora a gente vai para parte dois, que é a parte das perguntas mais
relacionadas à pesquisa mesmo. Então, a primeira pergunta: Qual o motivo da escolha
da docência para refugiados ou imigrantes? O que te motivou a escolher dar aula para
esse público?
Arábia Saudita: Certo. A minha intenção inicial não era dar aula. Eu tenho dificuldade
ainda de me enxergar como educadora porque eu acho que é um papel, uma
responsabilidade muito grande. E eu sinto assim, que eu sou um apoio, uma
ferramenta, sabe? E a minha intenção inicial era ajudar de alguma maneira na
situação dos refugiados aqui no Brasil quando deu aquele pico lá no começo de 2015,
final de 2014, quando vieram muitos refugiados sírios e aí eu fui fazer pesquisa na
internet do que eu poderia fazer para ajudar e a Compassiva foi uma das ONGs que
eu consegui ver ali na minha pesquisa, e aí eu entrei em contato, fiz a entrevista,
comecei primeiro como apoio, mas logo não tinha professor suficiente, e aí eu fui dar
aula. Foi uma descoberta muito boa para mim, dar aula na Compassiva é uma das
coisas que eu mais gosto de fazer e eu, inclusive, quero muito conseguir na minha
área mesmo ter alguma base para lecionar, porque eu aprendi que eu gosto muito de
compartilhar dando aula.
Pesquisadora: Que delícia. Descobrir fazendo, muito bom. E a número dois, qual o
papel do professor no seu ponto de vista?
135
Arábia Saudita: Primeiro eu acho que compartilhar, eu acho que é uma das coisas que
eu mais aprendi na Compassiva, compartilhar conhecimento. Eu compartilho o que eu
sei, elas compartilham o que elas sabem e acho que formar também opiniões nas
pessoas, formar pensamentos, formar ideias, formar caráter. Acho que tudo isso.
Pesquisadora: E você fez Biomedicina, você disse. Você enxerga alguma contribuição
desse curso para sua prática docente?
Arábia Saudita: Eu acho que a partir do momento que eu tive também que apresentar
algum conteúdo durante as aulas ou alguma coisa do tipo, isso tudo ajuda a formar,
né? Aprendemos a nos expressar melhor. Eu sou uma pessoa tímida, então o contato
que eu tive com a faculdade, ter que também expor algumas coisas me ajudou sim. É
interessante porque às vezes nessas conversas com os outros professores, em
cursos assim aleatórios, que não têm muita relação direta com a educação, mesmo
assim a gente sempre encontra um ponto de contato.
Pesquisadora: Legal. E você pode dar algum exemplo de uma aula que você acha
que funciona, que você gosta de dar, que é um sucesso?
Arábia Saudita: Eu gosto bastante de aulas que a gente tem materiais na Compassiva,
materiais de apoio. Então quando é para o intermediário, para o mais avançado, fazer
algum jogo, eu gosto de fazer jogo com eles. Aqueles sabe? Aqueles cards e eles
gostam muito daqueles ou vídeo mesmo, gosto de compartilhar vídeo. Eu sou, por
exemplo, uma pessoa que gosta bastante de filme. Aí, se eu vou falar sobre isso com
eles, assim, o intermediário ou avançado já entendem melhor. E aí eu falo qual o filme,
qual é o tipo de filme que você gosta? Eu levo um pedaço de um filme que eu gosto,
eu vou levar um livro, um filme de Sci-Fi, eu gosto de Sci-Fi, por causa disso e aí a
gente discute. Eu gosto mais dessas aulas que tenho esse tipo de interação, assim
de games ou de vídeo. E eles gostam também. Imagino.
Pesquisadora: Bom, isso entra um pouco já na pergunta seis. Que tipo de material de
apoio é utilizado, você já está falando.
Arábia Saudita: Dos jogos, e a gente também tem um drive na Compassiva que a
gente utiliza, aí tem vários livros, tem o Muito Prazer, tem o Bem-vindo, o Portas
Abertas, a gente trabalha com eles, o Muito Prazer, mas sempre tem outras literaturas
com outros tipos de exercício, tem o Falar, Ler e Escrever, o Pode Entrar, então eu
sempre dou uma corrida lá e vejo se tem alguma coisa aqui, tem os games que tem
lá na Compassiva, tem também jogo da memória lá ou aqueles cardzinhos de tipo de
profissões, nacionalidades que as meninas fizeram, então eu uso todos esses
materiais que elas disponibilizam e se eu tiver qualquer tipo de dúvida, qualquer tipo
de dificuldade, eu sempre pude contar com as meninas da coordenação, a Jéssica,
que é maravilhosa, qualquer coisa que que eu tenha dúvida, ela sempre me apoia,
sempre me dá ideia. Então, assim, apesar de às vezes me sentir sem as competências
necessárias para partilhar do português, eu sempre fui muito apoiada, sabe? Então
por isso que eu nunca desisti e tive vontade de sair porque eu sempre tive todo o
suporte que eu precisei lá na Compassiva.
137
Arábia Saudita: Eu acho que no nosso sistema educacional tem muito do lance do
você estuda, você faz a prova e você passa se você foi bem na prova. E eu acho que
isso é um sistema que de fato não avalia as aprendizagens das pessoas. E eu já não
acreditava nesse sistema educacional que a gente infelizmente tem. A maioria aqui
no Brasil nas escolas públicas. Eu sou uma pessoa que veio de escola pública. Estudei
no Ensino Médio, depois fui bolsista do PROUNI, porque gente que nasceu pobre não
tem condição de pagar faculdade. Estudar um monte para passar na faculdade, para
passar na USP, para passar na UNIFESP. Então sempre foi esse negócio meio
meritocrático e a educação não tem nada a ver com isso. Eu tive bons professores na
minha jornada educacional, que sempre me fizeram gostar da área de educação. E
até vivências na igreja mesmo de pessoas, por exemplo, da escola dominical, de ter
ótimos professores e aquilo me fez ter vontade de aprender e de ensinar também,
então quanto mais eu tive contato com a educação, mais eu entendi que não é sobre
meritocracia, é sobre realmente compartilhar coisas, compartilhar conhecimento,
compartilhar opinião, formar opinião, formar pessoas. Não é sobre dividir quem sabe,
quem passou, quem não passou, eu acho que isso é uma das maiores falhas que a
gente tem aqui no Brasil.
Pesquisadora: É verdade. Vamos lá agora para oitava, no seu ponto de vista, o que
um professor expert deve ter?
138
Arábia Saudita: Acho que em primeiro lugar é formação. Eu acho que um professor
tem que ser formado. De algum modo, mesmo se ele não tiver formação de faculdade,
ele tem que ir atrás daquela informação, ele tem que procurar estudar, acho que ele
tem que ser aberto a escutar e aprender também. Eu aprendo muito na Compassiva.
Eu acho que um bom professor tem essas qualidades de escutar e de trocar mesmo
com o aluno.
Pesquisadora: Legal, e quais são as dificuldades que você encontra na sua prática
referente à formação de professores?
Arábia Saudita: Tempo, eu acho que é uma das principais coisas que a gente precisa
muito para estudar e às vezes na correria do dia a dia você não encontra. Então acho
que tempo. É tempo para investir mesmo em estudo, sabe? De ir atrás, de poder
aprender coisas. Por exemplo, essa aluna que a gente tem agora, a “SaSaSa”. Ela vai
precisar de uma professora que caminhe só com ela, ela não vai acompanhar o ritmo
das meninas mais novas, sabe? E a gente teve uma aluna dessas uns tempos atrás
ela, tinha uma professora só para ela e aí às vezes quando eu estou nessa aula com
139
a “SaSaSa” e eu falo uma coisa e ela não entende o que eu falei, eu preciso das
meninas para traduzirem para ela. É um pouco frustrante, você quer fazer a pessoa
entender, você quer que ela entenda o que você está falando e você não consegue.
Então acho que para isso eu precisaria de tempo para ver se eu consigo dar uma
estudada e para conversar com as meninas da coordenação, ver se a gente arranja
uma professora só para ela ou que outros tipos de método a gente pode aplicar com
ela, sabe? Perdão. Está quente hoje.
Arábia Saudita: Sim, quando eu estava de noite tinha mais professores. Então como
eu fiquei um tempo maior à noite, eu tinha mais contato. Então a gente conseguia
assim trocar quando tinha o treinamento presencial, pela internet, mesmo agora de
manhã eu conheci há pouco tempo a professora da manhã, a Maria, ela troca comigo,
eu não sei qual a formação dela, a gente conversa mais sobre a turma mesmo,
precisava até ter uma troca maior com ela. Acho que ela conversava mais sobre essas
coisas com os professores da noite.
Palestina: Eu sou licenciada em Educomunicação. Eu vou até escrever para você, vai
que ajuda?
Palestina: Ok. Então, o geral é quatro, na Compassiva não tem um ano ainda. Eu
entrei em agosto. Setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março,
abril, oito meses de Compassiva.
Pesquisadora: E nesse período de quatro anos em que série você lecionou, para quem
você lecionou?
Palestina: Eu estou com o nível um agora. Agora não. Sempre estive na verdade.
Nível um.
Palestina: Legal. Bom, então respondendo ali a primeira característica, são alunos
refugiados, acho que todos eles, se eu não me engano. Acho que todos eles. E me
deixa ver, idade tem uma variação interessante assim, eu não tenho crianças, eu tinha
um adolescente como aluno, mas ele não continua conosco. Ele era filho inclusive de
um aluno que já era nosso. E ele vinha às vezes com o pai e tal, e como ele já estava
ali na adolescência e tal, ele começou a frequentar como aluno mesmo, mas no fim
ele estuda cedo, não estava dando conta de acompanhar, por enquanto não está mais
com a gente. Então a gente tem desde agora a mais nova, acho que tem uns dezenove
anos e a pessoa mais velha, vai até acho que creio eu que esteja com quarenta e
cinco por aí, mas a gente já teve um aluno, e ele era dessa turma inclusive, ele não
pôde continuar também que tinha sessenta e seis anos, o Sr. MMMM. Ele e a esposa.
Aliás, eram pais inclusive de dois alunos antigos da Compassiva que super se
formaram assim, enfim. E aí só respondendo, eu vi que perguntou do perfil deles. De
formação. As alunas mais novas ainda não estudam e até elas perguntaram para mim
um pouco sobre isso. A gente tem uma abertura para conversar sobre estudos no
Brasil. Os demais alunos têm trajetórias muito diferentes, não sei se todos tem
formação, acredito que não, na verdade alguns atuavam, eu sei que a gente tem dois
irmãos que estão conosco que trabalham com marcenaria e aí o irmão mais velho tem
a marcenaria, o irmão mais novo ajuda. Nós já tivemos o Sr. MMMM, ele era formado,
ele era professor de árabe e a CCCC, que era esposa dele, não são mais nossos
alunos, mas, enfim, ela era professora de matemática. Então tinha. Tinha eles que
eram formados mesmo. Desses que eu me lembre.
Pesquisadora: Legal. Está certo. Então agora a gente vai para as perguntas mais
relacionadas à teoria do trabalho, da pesquisa que eu estou realizando. Na verdade,
eu nem falei. Nem introduzi, é uma pesquisa do tipo estudo de caso da Compassiva
e a proposta é entender a base de conhecimento dos professores ou educadores. A
gente optou por chamar de educadores, já que a maioria não é da área, não é formado
na área de educação, então a gente optou em vez de falar “professor”. O termo
142
Palestina: Bom, para mim acho que o papel do professor se dá muito numa relação
de mediação. E aí trazendo mediação entre o quê? Entre o conhecimento, o que a
gente quer compartilhar. Sendo professores, partilhar isso, então mediar essa relação
entre o conhecimento, entre o aluno, entre o contexto que o aluno está e como esse
143
conhecimento se relaciona com o contexto dele; eu vejo muito desse modo, e aí acho
que para mim isso faz muito sentido na Compassiva, como um todo. Às vezes, na
escola, no ambiente mais formal de educação, isso nem sempre acontece desse
modo, mas na Compassiva eu vejo que tem um espaço maior para isso, essa
mediação. Então onde a gente pode trazer ali esse aproximar o português e a cultura
brasileira considerando também o contexto, a cultura e o conhecimento que eles já
têm também. Então acho que eu vejo que o papel do professor tem um pouco desse
olhar de mediação mesmo.
Pesquisadora: Certo. E o curso que você fez, Educomunicação, auxiliou você nessa
prática docente na Compassiva?
Palestina: Sim, bastante, bastante. Acho que do que eu posso comentar, trazer fontes
diferentes e fazer uso de diferentes mídias também com os nossos estudantes. Então
isso é algo que eu vejo que tem não só mídias, mas a prática como um todo. Eu faço
uso de alguns recursos e eu percebo que são recursos para além do livro. E isso foi
algo que eu tive um olhar mais cuidadoso, eu recebi esse olhar mais cuidadoso
durante a faculdade. Para esses outros materiais que podem contribuir muito. Não só
podem como contribuem de fato bastante, então, no uso de jogos, uso de vídeos, de
podcasts, áudios, acho que com os nossos alunos também essas outras linguagens
contribuem bastante. Então isso foi um olhar que eu tive durante a faculdade e eu vejo
que com esses alunos também é algo bastante potente.
Pesquisadora: Para você, como é essa relação da teoria e prática na sua atividade
docente? Existe essa conversa? Entre teoria e prática?
Palestina: Sim, sim, existe, existe bastante. Claro que ali é muito no dia a dia, na nossa
atuação ali, mas ela é constante. Então acho que desde o modo de como acolher a
dúvida, de como a gente vai trabalhar algum conteúdo específico do livro, como a
gente acolhe essa dúvida que chega, até, enfim, falando tudo fora de ordem, mas a
preparação da aula também, é a mudança ali da preparação mesmo, na hora da aula.
Às vezes você vê que o que você preparou não vai caber bem ali. Por mais que você
tenha, poxa, uma super ideia. Ficou demais, vai ser demais essa aula e ali você, na
hora percebe, “putz, não vai rolar”. E eu já tive algumas experiências assim, também
na Compassiva e todas elas me ensinaram demais. Mas acho que, sim, tem muito de
144
trazer da teoria também para prática. Claro que a gente não tem assim na Compassiva
algo tão formal como nós temos em escolas formais. A gente está falando de uma
instituição do terceiro setor também, um pouco diferente. Mas não, eu acho que não
tem como desvincular assim. Ainda mais para quem é formado. Quem tem uma
licenciatura, quem fez pedagogia, acho que é muito difícil você dissociar assim de
algum modo. Então acho que tem bastante.
Pesquisadora: Você poderia citar algum exemplo de uma prática sua que você gostou
ou algo que você faz com frequência que você acha que dá bom resultado?
Palestina: Sim, tem duas coisas que eu percebo que eu gosto e eu tenho um resultado
bem satisfatório de fazer com os alunos, eu percebo que eles gostam bastante
também. Uma delas é trazer jogos para sala de aula, tem sido uma surpresa bem
gratificante mesmo, a gente tem alguns jogos na Compassiva, no armário ali tem um
milhão de coisas legais, e aí, por exemplo, jogos da memória com imagens e palavras
são coisas super simples, não são jogos super elaborados, eu até tenho interesse em
pensar em jogos onde eu possa produzir mais coisas com eles, mas eu percebo que
desde o simples assim, algo muito potente. Então eu percebo que é potente para eles
ali para aprender palavras novas, para associar a escrita da palavra, a fonética da
palavra e a imagem, dá muito resultado, é muito legal porque eles trazem exemplos
do que eles viram nesses jogos, nas falas deles, nas produções deles. Mas, enfim,
tem esses jogos de memória, tem alguns jogos de falar características também, são
jogos bem simples, assim, a gente fez um “cara a cara” lá bem simples, mas que foi
para trabalhar assim, a gente dividia a sala em dois grupos. Foi para poder trabalhar
características das pessoas, então se a pessoa usa óculos, qual é a cor do cabelo,
cabelo curto, liso, cacheado. Acho que são esses jogos assim que eu tenho trazido.
Tem alguns outros de perguntas e respostas também. Então são sempre jogos que
são mais físicos. Raramente, pelo menos nas minhas aulas, assim, às vezes eu trago
um vídeo, mas geralmente eu mando para eles no grupo de WhatsApp, e trago muito
áudio para eles também, que é algo que eu acho que é para eles é um pouco mais
carente até pelo dia a dia que eles têm ali, sempre em contato com outras pessoas
que falam árabe também. Então acabo trazendo mais isso, assim eu não uso muita
lousa. Eu prefiro usar a lousa do que necessariamente trazer um PowerPoint para
eles, embora eu mande algumas coisas no grupo para eles também depois. Então, às
vezes, algum esqueminha que eu fiz. Às vezes on-line mesmo, mas mando no grupo
145
depois. Mas em geral na sala é isso, eu prefiro algo bem mesmo da lousa. Eles vindo
para lousa também, eles adoram e aí outra coisa que eu ia comentar, eles gostam
muito, e eu adoro também, porque é um jeito muito bom de saber como é que a coisa
está, quando peço para eles soletrarem algumas palavras. Então eu até fiz isso nessa
segunda e ajuda muito, assim é onde você percebe em que ponto a coisa está indo
muito bem, onde tem algumas coisas para a gente trabalhar melhor, onde eles
associam também o português com outras línguas, também dá para perceber, por
exemplo, para quem fala inglês, eu vejo muito isso. Às vezes, eles vão falar as vogais
e eles falam com o som das letras em inglês. E aí eu corrijo o falar, parece o inglês,
mas não é, em português é diferente e tal. Então isso ajuda um pouco também a
entender como funciona a cabeça ali para eles. Que realmente árabe e português são
muito diferentes. A nossa ponte às vezes é o inglês, mas nem todos os alunos falam
inglês. Eu tenho um aluno que não fala inglês, mas fala francês e aí eu não falo francês
por exemplo, mas tem um professor que fala, né? E aí é a ponte entre eles, por
exemplo. Então tem tudo isso assim, acho que esses momentos de jogos têm sido
muito bons, eu tenho gostado muito de trazer, eu percebo que eles se conversam
melhor também. Então é o momento que eles mais se relacionam entre eles nas
turmas. Então eu os divido em grupos. E todos os meus alunos gostam muito de
competir, é impressionante, tem que tomar um cuidado até, que isso já deu um
problema assim, já deu um desconforto uma vez, então isso foi uma coisa que me
ensinou também. Eles se cobram bastante, como nós também, mas então tudo o que
envolve algum tipo de, nem tinha recompensa na verdade, ganhar ou perder, ir bem
ou não, e que envolve nota é algo que para eles tem um valor muito grande. Então
acho que os jogos também engajam um pouco por isso.
Pesquisadora: Entendi. A seis acho que você já abordou. Que tipo de material de
apoio é utilizado? Eu acho que isso, seriam esses. A sete, vou falar um pouquinho
sobre ela. Não sei se ela ficou clara. A gente desenvolve ao longo da vida um sistema
de crenças sobre diversas coisas, diversos temas. E a gente desenvolve crenças
sobre a educação também, porque a gente passa nossa infância, nossa adolescência
dentro da escola. Então como alunos, porém, a gente acaba criando crenças do que
é a educação, do que é um bom professor, o que é aprender, qual é a relação que se
tem que ter entre professor e aluno, a gente vai desenvolvendo isso de acordo com
as nossas experiências pessoais. E muito bem, aí você passou sua vida, desenvolveu
146
suas crenças e chegou ao ponto de ser professora. Nesse momento, você reconheceu
algumas crenças que você tinha em relação à educação e você desmistificou essas
crenças ou, de repente, não? De repente reforçou essas crenças, você chegou a ter
alguma reflexão sobre essa questão de crenças ou não?
Palestina: Acho que no meu processo, grande parte foi de desmistificar mesmo.
Concordo que a gente vai desenvolvendo muito isso ao longo da vida, a partir das
nossas experiências enquanto alunos. E aí, quando acontece da gente ocupar um
lugar de professor, em algum momento, a gente consegue entender algumas coisas
que aconteceram no nosso processo, por que foi assim, e aí acho que às vezes até
tem uma relação meio tardia de perdão e reconciliação com professores que você
teve ao longo da vida. Pelo menos comigo foi assim, eu nunca mais os vi, mas no meu
coração estão perdoados, eu tenho outra compreensão deles, é muito legal isso. Acho
que para mim foi poder transformar tudo isso e sigo transformando. Não estou pronta,
estou longe disso, mas acho que eu consigo reconhecer e acho que muito eu vejo da
relação entre professor e aluno. É claro que na Compassiva a gente tem ainda um
lugar diferente. Acho que a gente tem algumas peculiaridades. Mas algo que eu vejo
em comum, por exemplo, da minha prática docente enquanto um espaço formal de
educação no Brasil e no espaço não formal, como a ONG, acho que essa relação
entre aluno e professora, ela pode ser mais valorizada e mais próxima do que
geralmente ela é. Pelo menos conforme eu tive na minha experiência enquanto aluna
durante a minha formação na faculdade, foi diferente para mim, eu vim de um curso
que são poucos alunos por turma por ano. Por turma também, são os mesmos
professores, então já foi um pouquinho diferente nesse sentido. Enquanto criança,
adolescente estudando, eu percebia que tinha uma relação às vezes de medo, entre
aluno e professor. Eu tinha muito dessa relação de respeito com os meus professores,
eu era uma boa aluna e tirava notas boas e tal, então para eles, no que era valorizado
de certo modo, eu estava dentro. Então eu tinha uma relação com eles na qual não
tinha nenhum tipo de desgaste. Mas quando acontecia de algum aluno fugir daquele
padrão, era uma relação muito difícil. E aí mesmo nessa relação, onde eu estava
atingindo ali aquelas expectativas eu tinha muito medo também. Eu percebo que isso
foi algo que eu desmistifiquei ao longo do meu processo também de preparação para
ser professora um dia. Acho que é de derrubar um pouco dessas barreiras, desses
muros, tirar essa ideia de que você vai ser punido por não saber algo. Mas que você
147
está sempre ali, se você se coloca à disposição de aprender e de receber algo novo
ali, é isso que importa e é por isso que a gente trabalha. Então acho que eu percebo
e consigo reconhecer, e continuo assim, é um processo que não para nunca. Nunca
acaba.
Pesquisadora: Eu trabalho com uma professora que tem sessenta e seis anos e ela
tem um entusiasmo e toda vez ela está aprendendo uma coisa nova e é incrível, falo
“nossa, é isso, é isso mesmo”. É muito legal. Ela falou, “faz quarenta anos que eu dou
aula, parece que agora eu estou achando o meu caminho”. É isso, assim.
Palestina: É por isso que eu falo, quando eu converso com professores, eu dei dois
passos aqui, dois passos perto de um monte que eu nem sei quanto que é o total.
Pesquisadora: Então é muito legal. Vamos lá, oitava. No seu ponto de vista o que um
professor expert deve ter?
Palestina: Ele deve ter disposição para aprender com o aluno também. De modo geral.
Acho que não ter uma postura arrogante ou de ser o “conheço tudo” e estou mandando
ver aqui. Eu sei o que eu estou falando, e tal, mas acho que, para mim, hoje o que eu
considero um professor expert é aquele que consegue realmente perceber que ele vai
aprender com os seus alunos. Uma coisa que ele não tem nem escolha, quer dizer,
ele pode escolher. Não, não estar ali aberto de algum modo. Mas para ser expert, no
meu ponto de vista, ele tem que estar disponível para isso e compartilhar o seu
conhecimento de modo livre mesmo, assim, sem ressalvas. Sem ficar pensando se
vale a pena ou não. Eu acho que nem sempre a gente tem condição de colocar esses
valores sobre alguém, então nossa função é ensinar. E é isso, então eu vejo que estar
aberta a aprender, inclusive com aqueles que a gente olha e fala: “nossa, não, esse
vai ser difícil”. Mas são esses aí que são ótimos. Então acho que um bom professor,
um professor expert, ele se põe disponível para aprender com a sua prática e com os
seus alunos.
Pesquisadora: Legal. E como você foi preparada para trabalhar com os refugiados lá
na Compassiva?
Palestina: Legal. Bom, eu tive uma preparação até junto com um outro professor que
dá aula comigo, a gente teve alguns encontros, acho que foram dois ou três no total,
148
depois eu posso resgatar isso se você precisar dessa informação certinha, mas a
gente teve um panorama geral assim, nossa, foi ótimo, inclusive esse foi a Débora
que nos apresentou, ela era funcionária da Compassiva, ela não está mais lá hoje,
mas a gente teve um curso. Acho que era para além de apresentar os materiais que
a Compassiva usa ali para ensinar os estudantes. Então quais são, o que é o livro,
como é o livro, a gente tem acesso ao livro digital, aos materiais extras, às produções
que os professores foram levantando ao longo do tempo, que a gente compartilha
entre nós. Para além disso, a gente teve uma grande apresentação sobre o que é o
refúgio, o que é a situação de refúgio, algumas situações comuns desse momento no
mundo, o que, para mim, assim, foi muito esclarecedor mesmo, eu não tinha ideia de
meio por cento, então a gente teve um pouco dessa noção. Acho que entender um
pouco disso também ajudou a entender um pouco da cultura deles e como ela se
relaciona com a fé que a grande maioria deles tem, a maioria é de mulçumanos. Então
isso também acaba refletindo muito em outras situações, acaba chegando na sala de
aula, apesar da gente não falar sobre fé ou religião dentro nas aulas. Então, para mim,
só o pouco que eu tive noção ali e o que eu fui aprendendo com os alunos e
pesquisando depois por conta foi muito importante para essa preparação. Eu costumo
dizer que eu ainda estou sendo preparada, porque toda vez que eu acho que eu
aprendi alguma coisa, eu falo: “nossa, é tudo novo, é tudo diferente”. Então, acho que
a gente teve esse encontro de algumas horas, foi uma formação para entender um
pouco dessa situação de refúgio, o perfil dos nossos alunos na Compassiva, também
de quais países eles vêm, quais são refugiados, se temos imigrantes, e nós temos
também na Compassiva, temos de entender como ela funciona, então isso também
foi bem importante. Que não são só as aulas de português, mas são outros tantos
projetos a Compassiva tem para atuar ali no apoio a esse refugiado, e acho que essa
compreensão cultural para além do material, como a gente trabalha e da organização
como um todo. Então quem são as pessoas que estão ali na Compassiva e tal.
Pesquisadora: Legal. E você consegue listar alguma dificuldade que você encontra na
sua prática que a causa seja relacionada à formação de professores ou você acredita
que não tenha?
Palestina: Eu acho que eu consigo sim identificar dificuldades, por exemplo, eu acho
que na formação como um todo. Mas só antes de eu responder, uma dúvida, a
149
Pesquisadora: É na Compassiva.
Palestina: Olha, eu acho que a gente tem na Compassiva e acaba tendo em outros
lugares também. Mas eu acho que a gente tem ainda pouco tempo dedicado para o
material que a gente usa e aí acho que isso é algo que a gente poderia ter um tempo
maior de se debruçar mesmo, olhar as possibilidades, acho que nós sabemos que
teve uma escolha por trás desse material. Então quais eram as outras opções? A
gente tem acesso a outros livros também. Aí realmente a gente vê que o que a gente
usa é um material bom. Não é o melhor, inclusive precisamos de produções assim,
voltadas para esse público. Ele tem muitas defasagens, mas todos os livros têm. Aí a
gente vê, em alguns, o ponto forte é um, em outros, o ponto forte é outro. Então eu
acho que referente à prática da Compassiva, eu vejo a de outros lugares também,
acho que tempo mesmo de dedicação e de estudo do material que a gente usa de
certo modo. Eu vejo desse modo. E de modo geral, trazendo mais para minha
formação mesmo, e aí nem tanto para a Compassiva, é quem está me trazendo um
pouco isso. Mas acho que eu de modo algum vi na faculdade, e aí eu fico pensando.
Uma coisa que eu fui entender depois de entrar na Compassiva, a gente tem no Brasil
uma quantidade tão grande, mas tão grande de refugiados, e de imigrantes, de países
tão diversos. De todos os continentes a gente tem. E aí eu fico pensando, boa parte
dos meus alunos, todos os que são pais, os filhos que estão matriculados em escolas.
E eu fico pensando, como é que se prepara esses pais que estão aqui, está sendo
assim, imagina para esses estudantes em escolas municipais, estaduais, enfim. Nas
faculdades também. Então como a gente recebe isso? Na minha formação eu vejo
assim. A gente fala muito da necessidade de trabalhar mais sobre inclusão, e eu
concordo inclusive. Inclusão é um espectro também que engloba muitas coisas, a
gente talvez de cara imagine algo relacionado a alguma deficiência que algum aluno
possa ter, mas a gente tem também a inclusão desses alunos que são imigrantes,
refugiados e então acho que eu vejo quem tem trazido isso para minha prática, assim
como professora. Então às vezes a gente não vê no nosso contexto. Eu, enquanto
trabalhei em escola, não tinha alunos refugiados nem imigrantes, mas se eu
trabalhasse talvez no município ou em qualquer outra escola, talvez eu tivesse, e
150
como que a gente acolhe isso? Como que a gente inclui e traz para perto todo mundo
ali? Então eu vejo que tem muito disso aí.
Palestina: E é isso né? Inclusão, às vezes ainda fala, né? Que nem eu tive aula de
LIBRAS, aquela coisa que agora é obrigatória. Mas são seis meses que a gente tem
ali, que é muito pouco também. Hoje, infelizmente (eu não gostaria de dizer), não
consigo falar em LIBRAS, eu não posso ajudar qualquer pessoa, não consigo,
infelizmente. Preciso estudar mais até, mas não só para isso, mais essa questão de
refúgio e imigração, e a gente está numa cidade onde a gente recebe muito. O Brasil
todo recebe, mas a gente está numa cidade, num estado que tem muito. Então a gente
precisava realmente ser melhor preparado aí.
Pesquisadora: Justamente. E para finalizar, acho que isso que você comentou entra
um pouco dentro dessa última. A possibilidade de troca entre colegas e momentos de
estudo que você falou que talvez seja uma deficiência, já que não há esses momentos
de troca, de discussão. Você gostaria de complementar mais alguma coisa em relação
a isso?
Pesquisadora: Está certo. Eu vou encerrar aqui a gravação então. Muito obrigada.