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São Paulo, sábado, 25 de novembro de 2000

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LIVRO/LANÇAMENTO
Delegado Fleury é tema de
relato prolixo em "Autópsia do
Medo"
Folha Imagem

Sérgio Paranhos Fleury,


perseguidor de opositores ao
regime militar, que agora
ganha biografia

MARIO SERGIO CONTI


DA REPORTAGEM LOCAL

O delegado Sergio Paranhos Fleury foi um


brasileiro notável. Nos anos 70, seu nome era
imediatamente associado ao Esquadrão da Morte e
à tortura. Ele foi o mais vistoso símbolo do regime
militar, inclusive no exterior: um tira especializado
em espancar bandidos recebeu dos militares a
missão de enfrentar o terrorismo de esquerda.
Fleury cumpriu a tarefa com eficácia. Matou Carlos
Marighella numa alameda de São Paulo. Participou
do cerco ao capitão Carlos Lamarca no sertão
baiano. Adestrou o cabo Anselmo e o infiltrou nas
fileiras do inimigo. Teve um papel preponderante
na destruição dos grupos engajados na luta armada.
Sob o seu comando, o Departamento Estadual de
Ordem Política e Social de São Paulo, Dops, tornou-
se uma câmara de horrores. Pelo seu prédio, no
bairro da Luz, passaram milhares de "subversivos".
Centenas deles foram torturados por Fleury e sua
equipe. Dezenas foram mortos e sumiram.
Na madrugada de 1º de maio de 1979, depois de ter
se entupido de uísque, Fleury tentou pular de um
barco para outro, em Ilhabela. Caiu no mar, afogou-
se e morreu aos 44 anos. Seu caixão foi carregado
pelo então governador Paulo Maluf e pelo hoje
senador Romeu Tuma. Policiais e militares
acompanharam o enterro. Uma salva de tiros foi
disparada. Era um herói do regime.
Em São Bernardo, na festa do 1º de maio, a morte
do delegado foi saudada por milhares de pessoas
com uma paródia de "A Jardineira", a velha
marchinha de Carnaval: "Ó repressão, por que estás
tão triste?/ Mas o que foi que te aconteceu?/ Foi o
Fleury que caiu do barco/ Deu dois suspiros e
depois morreu".
Percival de Souza se propôs a contar essa vida
espantosa em "Autópsia do Medo - Vida e Morte do
Delegado Sergio Paranhos Fleury". Credenciais não
lhe faltam. Repórter do "Jornal da Tarde", ele tem
décadas de experiência na cobertura policial,
acompanhou os processos contra o Esquadrão da
Morte e conheceu Fleury. Trabalhou dois anos no
livro, tendo entrevistado a viúva do biografado, sua
amante, seus filhos, seus melhores amigos, muitos
dos seus subordinados e vários de seus superiores.
"Autópsia do Medo" tem um punhado de novidades
e algumas cenas de impacto. Infelizmente, elas
estão perdidas ao longo de uma narrativa confusa e
prolixa. O livro avança e volta no tempo sem avisar
o leitor. A história se enreda num sem-número de
detalhes irrelevantes. Documentos que nada têm a
ver com o biografado são copiosamente transcritos.
Na interpretação de Percival de Souza, Fleury foi
produto da "cultura do pau" vigente na polícia. Para
obter confissões, policiais "desciam o pau" em
suspeitos de cometer crimes comuns. Os choques
elétricos, o pau-de-arara, a cadeira do dragão, o
espancamento, a detenção sem culpa formada -essa
metodologia de combate ao crime era a moeda
corrente desde os anos 50.
Fleury doutorou-se nessa escola, primeiro como
aluno exemplar e depois como seu maior mestre.
Tanto que foi formalmente acusado de ter
assassinado 22 das 69 vítimas do Esquadrão da
Morte em São Paulo. Graças a esse currículo, os
militares o chamaram para organizar a caça a
terroristas quando houve os primeiros atentados e
assaltos a banco.
Na prática, Fleury virou o chefe da repressão
política. Por meio dele, a "cultura do pau" entrou
nas Forças Armadas. Agradecidos, os militares
tornaram-no inimputável. Fizeram que, no prazo
recorde de um mês, fosse aprovada a legislação que
impedia a sua prisão devido aos processos pelos
assassinatos do Esquadrão da Morte: a Lei Fleury.
Percival de Souza exemplifica a onipotência do
delegado ao contar uma reunião de militares e
policiais para decidir se um determinado preso
deveria ou não ser morto: "Havia dúvida, a
discussão se alongava. Fleury foi à cela individual
onde estava o preso, colocou um silenciador na sua
pistola e desferiu um tiro certeiro. Voltou à reunião
e disse: não precisa mais discutir esse assunto. O
caso está resolvido".
Fleury participou também da montagem da
operação que fazia os cadáveres de presos políticos
desaparecerem. Segundo Percival de Souza, foi no
Dops que se fez os primeiro teste de corte dos dedos
de um preso, para evitar uma futura identificação.
"Se o capturado já estava condenado, a mutilação
poderia ser feita a sangue frio, como parte do
interrogatório", escreve ele. Teria havido também
pelo menos dois casos de corte e troca de cabeças de
cadáveres.
O Segundo Exército encarregou o delegado Romeu
Tuma, chefe do Serviço Secreto do Dops, de nomear
o delegado que deveria se livrar dos terroristas
mortos em dependências policiais e militares de São
Paulo. Tuma indicou o delegado Alcides Cintra
Bueno Filho, católico fervoroso. Foi ele o
responsável pelo enterro clandestino de dezenas de
presos políticos, boa parte deles no cemitério de
Perus.
O retrato humano que "Autópsia do Medo" faz de
Fleury é desbalanceado. A sua infância e
adolescência cabem em dois mirrados parágrafos, e
maior espaço é dado à análise risível que uma
psicóloga faz de sua mente. O pior é que a psicóloga
não conheceu e muito menos atendeu Fleury. Ela
surge no livro porque morava perto de um quartel
que foi atacado por terroristas e ouviu o barulho da
explosão.
Fleury aparece como um tira típico daquele período
(e dos de hoje também?): gostava de futebol e
bebida, só lia histórias em quadrinhos, divertia-se
em boates e botequins de quinta categoria, onde se
esbaldava com prostitutas, era violento, inculto,
sádico, autoritário e leal aos amigos.
Em 1976, Fleury foi seduzido e se apaixonou pela
advogada Leonora Rodrigues de Oliveira.
Tornaram-se amantes. O delegado ficava mais na
casa dela do que na em que vivia com a mulher e os
filhos. Escreveu cartas a ela mendigando atenção e
carinho.
Percival de Souza revela que Leonora era irmã de
Raimundo Rodrigues Pereira, um dos jornalistas de
esquerda mais conhecidos do país, na época editor
do semanário "Movimento", de oposição ao
governo. A família da advogada era contra o
namoro, mas ela continuou ligada a Fleury até sua
morte.
É uma pena que "Autópsia do Medo" seja um livro
desconexo e irritante. Desconexo porque
entrevistas atravancam a narrativa, pululam as
informações inúteis (como o nome completo e os
apelidos das 69 vítimas do Esquadrão da Morte), e a
verborragia atrapalha o entendimento.
E irritante porque o autor repete casos de maneira
absurda. A informação de que Fleury andava num
Opala azul que tinha metralhadoras no chão e
granadas no porta-luvas aparece cinco vezes. O
endereço de Leonora Rodrigues é dado quatro
vezes. A história de que ele namorava uma mulher
casada com um seu colega delegado aparece na
página 101 e reaparece na 482. O seu enterro é
contado no começo e no fim do livro.
Com isso, "Autópsia do Medo" é um livro mais para
especialistas no período, que tenham paciência
para garimpar dados, do que para os leitores
interessados em conhecer o notável Sergio
Paranhos Fleury e sua época.

Autópsia do Medo - Vida e Morte do Delegado Sergio Paranhos


Fleury
    Autor: Percival de Souza Editora: Globo Quanto: R$ 44
(650 págs.)

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