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POLÍCIA CIVIL DE MINAS GERAIS

ACADEMIA DE POLÍCIA CIVIL DE MINAS GERAIS

A ESCUTA PROTEGIDA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES:

Escuta Especializada e Depoimento Especial

Administração: Dra. Cinara Maria Moreira Liberal


Belo Horizonte - 2022
A ESCUTA PROTEGIDA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES:

Escuta Especializada e Depoimento Especial

Coordenação Geral
Dra. Cinara Maria Moreira Liberal

Subcoordenação Geral
Dr. Marcelo Carvalho Ferreira

Coordenação Didático-Pedagógica
Rita Rosa Nobre Mizerani

Coordenação de Recrutamento e Seleção

Dr. Luiz Carlos Ferreira

Coordenação Técnica
Dr. Luiz Fernando da Silva Leitão

Conteudistas:
Isabella Franca Oliveira
Renata Ribeiro Fagundes
Gleice Messias Cardoso Pamplona

Produção do Material:
Polícia Civil de Minas Gerais

Revisão e Edição:
Divisão Psicopedagógica - Academia de Polícia Civil de Minas Gerais

Reprodução Proibida
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................................4
2. O SISTEMA DE GARANTIAS DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA
OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA .................................................................................................................6
2.1 MECANISMOS PARA PREVENIR E COIBIR A VIOLÊNCIA .............................. 7
2.2 A VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ............................... 11
2.3 PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL.............................................. 17
2.4 REDE DE PROTEÇÃO ..................................................................................... 18
2.5 MEDIDAS DE PROTEÇÃO ............................................................................... 20
3. ORIENTAÇÕES PARA REALIZAÇÃO DE ESCUTA PROTEGIDA................................................ 22
3.1 REGISTRO E TRANSMISSÃO DAS INFORMAÇÕES ..................................... 22
3.2 ACOLHIMENTO INICIAL .................................................................................. 23
3.2.1 A importância do ambiente ......................................................................... 25
3.2.2 Salas de Depoimento Especial.................................................................... 25
3.3 FALSAS DENÚNCIAS ...................................................................................... 26
3.4 PROFISSIONAIS ENVOLVIDOS NA ESCUTA PROTEGIDA ........................... 28
3.5 MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL ................................................ 29
3.6 TIPOS DE PERGUNTAS .................................................................................. 32
3.6.1 Perguntas Desejáveis E/Ou Adequadas ..................................................... 32
3.6.2 Perguntas Inadequadas e que Devem Ser Evitadas ................................. 34
4. ESCUTA ESPECIALIZADA.......................................................................................................................... 38
4.1 FASE INTRODUTÓRIA ..................................................................................... 40
4.2 CONSTRUÇÃO DA EMPATIA .......................................................................... 41
4.3 TRANSIÇÃO ..................................................................................................... 42
4.4 ANÁLISE DO INCIDENTE ................................................................................ 44
4.5 INTERVALO ...................................................................................................... 44
4.6 ENCERRAMENTO ............................................................................................ 45
5. DEPOIMENTO ESPECIAL............................................................................................................................ 46
5.1 FASE INTRODUTÓRIA ..................................................................................... 51
5.2 CONSTRUÇÃO DA EMPATIA OU RAPPORT.................................................. 52
5.3 PRÁTICA NARRATIVA E TREINO DE MEMÓRIA ........................................... 53
5.4 TRANSIÇÃO ..................................................................................................... 54
5.5 INVESTIGAÇÃO DO INCIDENTE ..................................................................... 58
5.6 INTERVALO ...................................................................................................... 58
5.7 ENCERRAMENTO ............................................................................................ 59
6. FATORES QUE PODEM INFLUENCIAR A ENTREVISTA ................................................................ 61
6.1 PASSAGEM DO TEMPO .................................................................................. 61
6.2 TÉCNICAS DE ENTREVISTA UTILIZADAS ..................................................... 61
6.3 AMBIENTE FÍSICO ........................................................................................... 62
6.4 SÍNDROME DO SEGREDO .............................................................................. 62
6.5 REPETIÇÃO DE ENTREVISTAS OU DE PERGUNTAS .................................. 62
7.CONCLUSÃO .................................................................................................................................................... 63
REFERÊNCIAS..................................................................................................................................................... 64
1. INTRODUÇÃO

A Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (PCMG), com grande


contentamento, formalizou o Manual para a Escuta Protegida de Crianças e
Adolescentes: escuta especializada e depoimento especial, como resultado de seu
compromisso com a promoção e garantia dos direitos das crianças e adolescentes,
sobretudo daquelas que se encontram em situação de violência e vulnerabilidade.
O documento, que integra o presente curso, possui como objetivo
estabelecer parâmetros para a escuta protegida, realizada no âmbito da PCMG, de
crianças e adolescentes que sofreram ou presenciaram situações de violência.
Apesar de suas orientações serem direcionadas aos profissionais da instituição,
elas se estendem aos demais componentes da rede de proteção, uma vez que
pretendem evitar a revitimização e a violência institucional.
A elaboração do manual e deste curso encontra-se fundamentada nos
princípios constitucionais, tratados internacionais e normativas legais às quais o
Estado brasileiro é signatário e que versam, sobremaneira, sobre as garantias e
direitos das crianças e dos adolescentes. Em destaque, a Convenção sobre os
Direitos da Criança (CDC/ONU), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a
Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabeleceu o sistema de garantia de
direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
A metodologia proposta segue os padrões estabelecidos pelo Protocolo
Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF), desenvolvido por meio de parceria entre a
Childhood Brasil, Conselho Nacional de Justiça, Fundo das Nações Unidas para
Infância (UNICEF) e a National Children’s Advocacy. Assim, assume-se como
procedimento a realização de entrevistas semiestruturadas, em formato flexível e
adaptável, coerentes ao desenvolvimento das crianças e adolescentes, como
sugerido naquele documento.
Também parte da compreensão da criança e do adolescente como sujeitos
de direito, aos quais devem ser garantidos o acesso à justiça e à informação por
meio do atendimento humanizado, célere e urgente. Bem como, da percepção
sobre a relevância da interdisciplinaridade, integralidade, contextualização e
priorização do atendimento para consolidação dessas ações.
Cabe ainda destacar que a elaboração do referido manual atende à
Resolução n.º 02/2019 do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil
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(CONCPC), que instituiu as diretrizes a serem observadas pelas Polícias Civis dos
Estados e do Distrito Federal sobre a oitiva de crianças e adolescentes. Ainda
corrobora com o Termo de Cooperação Interinstitucional nº 022/2021, firmado entre
os órgãos, instituições e entidades de Minas Gerais, do campo da justiça,
segurança, saúde e educação, que estabeleceu ações e fluxos internos e
interinstitucionais para a implantação da escuta especializada no estado.
A Polícia Civil de Minas Gerais espera que as orientações apresentadas no
manual e neste curso possam contribuir para efetivação dos direitos das crianças e
adolescentes, colaborando para a consolidação e ampliação do Sistema de
Garantia de Direitos do Estado.

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2. O SISTEMA DE GARANTIAS DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA

Analisando a história, é possível constatar que as relações sociais e


familiares sofreram grandes transformações com o passar dos séculos e, com tais
transformações, o lugar reservado à criança e ao adolescente na família e na
sociedade, bem como os cuidados relativos a estes sofreram grandes impactos.
Práticas sociais consideradas até então aceitáveis, em relação à criança e ao
adolescente, passaram a ser consideradas condenáveis, e novas formas de
cuidados passaram a ser exigidas tanto pelo estado quanto pela própria sociedade.
A concepção atual que temos de infância começou a surgir no final do
século XVII. O sentimento de infância como um momento de desenvolvimento com
necessidades particulares, para uma formação adequada do homem, não existia.
Logo que alcançavam alguma independência física, as crianças passavam a ser
tratadas como adultos em miniaturas, não sendo dispensada a esta qualquer
atenção especial. Elas aprendiam com os adultos tudo o que necessitavam para
manutenção de sua vida. O número de mortes de crianças e adolescentes nesse
período era elevado e o infanticídio era uma prática comum.
O crescente interesse pela infância gerou reflexos em diversas áreas do
conhecimento, como a medicina, o direito, filosofia e a psicologia, chegando-se à
compreensão de que, para crescerem e se desenvolverem, as crianças e
adolescentes precisam de um ambiente emocionalmente estável, acolhedor e de
respeito às suas condições peculiares de pessoa em desenvolvimento, e onde
nenhuma forma de violência seja admitida.
Como consequência, essa nova consideração da infância como um
momento peculiar do desenvolvimento humano gerou preocupação com a proteção
das crianças e dos adolescentes. Essa preocupação gerou formas de participação
das crianças nos sistemas jurídicos de diversos países, tendo como exemplo o art.
12 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia
das Nações Unidas em 1989, “que garante a toda a criança o direito de expressar
livremente sua opinião e de ser ouvida nos processos judiciais que lhe dizem
respeito, seja diretamente ou através de representante legal”.

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“ARTIGO 12.º
1 – Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de
discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as
questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em
consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e
maturidade.
2 – Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida
nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja
directamente, seja através de representante ou de organismo adequado,
segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação
nacional.” (Presidência da República, 1990)

A Constituição Federal, em seu artigo 227, estabelece que é da família, da


sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, além de prever que a
lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do
adolescente.
Este é o princípio da proteção integral, o qual norteia a construção de todo o
ordenamento jurídico voltado à proteção dos direitos da criança e do adolescente,
em razão da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.
Com o objetivo de efetivar a proteção das crianças e adolescentes vítimas
ou testemunhas de violência, foi promulgada a Lei 13.431/17, de 04 de abril de
2017, que estabelece o Sistema De Garantia de Direitos de Crianças e
Adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Referida Lei foi regulamentada
pelo Decreto 9.603, de 10 de dezembro de 2018.

2.1 MECANISMOS PARA PREVENIR E COIBIR A VIOLÊNCIA

A Lei 13.431/2017 entrou em vigor um ano após a sua publicação oficial e


estabelece o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente vítima e
testemunha de violência.
Esta Lei normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e
do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir
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e coibir a violência, nos termos do art. 227 da Constituição Federal, da Convenção
sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais, da Resolução nº
20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e de outros diplomas
internacionais, e estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao
adolescente em situação de violência.
Prevê que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios
desenvolvam políticas integradas e coordenadas visando a garantir os direitos
humanos da criança e do adolescente no âmbito das relações domésticas,
familiares e sociais, de forma a resguardá-los de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão.
Referida lei traz importantes inovações, pois estabelece o sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência,
medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de
violência e cria mecanismos para prevenir e coibir a violência, bem como formas
especiais de escuta destas vítimas.
Na exposição de seus motivos do projeto de lei, é ressaltado que o Brasil
tem se ressentido da falta de legislação que proteja os direitos de crianças e
adolescentes expostos ao sistema de justiça, seja como vítimas ou como
testemunhas de violência física, psicológica, sexual e institucional, sendo
observada de forma frequente a falta de consideração quanto à condição de
pessoas em desenvolvimento, o que resulta em violência institucional, que se dá
nas interações de crianças e adolescentes com os órgãos educacionais, de
atenção e de proteção especial, assim como órgãos de segurança e justiça
institucional.
Traz ainda que crianças e adolescentes são expostos à vitimização
secundária, produzida pela ineficiência no trato da questão, e à vitimização
repetida, quando ocorre mais de um incidente delitivo, ou ação ineficiente do
Estado, ao largo de um período determinado.
A aplicação da lei é obrigatória para todas as crianças e adolescentes
vítimas e testemunhas de violência e facultativa para as pessoas entre dezoito e
vinte um anos de idade, em conformidade com o parágrafo único do art. 2º da Lei
8069/90.

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Em dezembro de 2021, foi assinado Termo de Cooperação Interinstitucional,
firmado entre Ministério Público, Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, OAB,
Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, Policia Militar, Policia Civil,
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, Secretaria de Estado de Saúde,
Secretaria de Estado de Educação visando a adoção de ações integradas para
fomentar a implementação da escuta especializada e do depoimento especial de
crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência em Minas Gerais,
conforme as disposições da Lei 13. 431/17 e do Decreto 9.603/18.
Uma das atribuições comuns às Instituições signatárias do Termo é a
realização de cursos e outros eventos de capacitação, qualificação e
aprimoramento conjunto para seus integrantes e, sempre que possível, para os
demais profissionais da rede de atendimento. É necessário elaborar fluxos,
protocolos e materiais informativos, internos e interinstitucionais que sirvam de
parâmetros para a realização da escuta especializada e depoimento especial e que
visem a uniformização do atendimento e à intervenção especializada, com a
máxima qualificação dos profissionais responsáveis pela entrevista avaliativa da
vítima, evitando-se a repetição de seu relato perante outros órgãos da rede de
atendimento, a preservação da memória dos fatos e o sofrimento de forma
secundária.
Dentre as atribuições da Policia Civil de Minas Gerais no referido Termo,
que pode ser encontrado de forma integral nos anexos deste curso, registra-se a
importância de evitar a oitiva de crianças ou adolescentes vítimas e testemunhas
de violência, buscando a instrução do procedimento de outra forma, priorizando a
busca de informações junto à pessoa que acompanha a criança ou adolescente e
por meio de documentação remetida por outros serviços, programas e
equipamentos públicos.
Apenas se não for possível a busca de informações por outros meios, e se
revelar imprescindível ouvir a criança ou adolescente para obter elementos
mínimos sobre autoria e circunstâncias do fato, realizar-se-á a escuta
especializada, limitada ao estritamente necessário para cumprimento de sua
finalidade e garantida a livre narrativa sobre a situação de violência, sem
intervenção investigativa.

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Da mesma forma, e, neste mesmo sentido, nos casos que a Lei autoriza,
poderá ser realizado o Depoimento Especial em Unidade Policial.
A aplicação da Lei da Escuta Protegida e a realização do atendimento da
criança ou adolescente terão como base, sem prejuízo dos princípios estabelecidos
nas demais normas nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e
do adolescente, os seguintes direitos e garantias fundamentais:
- receber prioridade absoluta e ter considerada a condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento;
- receber tratamento digno e abrangente;
- ter a intimidade e as condições pessoais protegidas quando vítima ou
testemunha de violência;
- ser protegido contra qualquer tipo de discriminação, independentemente de
classe, sexo, raça, etnia, renda, cultura, nível educacional, idade, religião,
nacionalidade, procedência regional, regularidade migratória, deficiência ou
qualquer outra condição sua, de seus pais ou de seus representantes legais;
- receber informação adequada à sua etapa de desenvolvimento sobre
direitos, inclusive sociais, serviços disponíveis, representação jurídica, medidas de
proteção, reparação de danos e qualquer procedimento a que seja submetido;
- ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim como permanecer
em silêncio;
- receber assistência qualificada jurídica e psicossocial especializada, que
facilite a sua participação e o resguarde contra comportamento inadequado
adotado pelos demais órgãos atuantes no processo;
- ser resguardado e protegido de sofrimento, com direito a apoio,
planejamento de sua participação, prioridade na tramitação do processo, celeridade
processual, idoneidade do atendimento e limitação das intervenções. A Lei prevê
que o planejamento da participação no processo será realizado entre os
profissionais especializados e o juízo;
- ser ouvido em horário que lhe for mais adequado e conveniente, sempre
que possível;
- ter segurança, com avaliação contínua sobre possibilidades de intimidação,
ameaça e outras formas de violência;

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- ser assistido por profissional capacitado e conhecer os profissionais que
participam dos procedimentos de escuta especializada e depoimento especial;
- ser reparado quando seus direitos forem violados;
- conviver em família e em comunidade;
- ter as informações prestadas tratadas confidencialmente, sendo vedada a
utilização ou o repasse a terceiro das declarações feitas pela criança e pelo
adolescente vítima, salvo para os fins de assistência à saúde e de persecução
penal;
 Importante ressaltar que os procedimentos que envolvem crianças e
adolescentes são sigilosos e a defesa técnica dos envolvidos pode ter acesso
mediante procuração juntada nos autos. A mídia gravada, seja do Depoimento
Especial ou da Escuta Especializada, não deve ser compartilhada, sem ordem
judicial autorizativa, permitindo-se à defesa técnica do investigado o acesso às
referidas mídias apenas no interior das Unidades Policiais.
- prestar declarações em formato adaptado à criança e ao adolescente com
deficiência ou em idioma diverso do português.
- pleitear, por meio de seu representante legal, medidas protetivas contra o
autor da violência.
 Todos os direitos assegurados às crianças e aos adolescentes são
igualmente importantes. E em relação à temática abordada do presente
documento, é necessário ressaltar o direito da criança e adolescente vítima ou
testemunha de violência ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim
como permanecer em silêncio. Ou seja, a criança ou adolescente pode ou não falar
sobre a violência que sofreu ou presenciou, não podendo os profissionais
responsáveis pelo atendimento forçar, insistir ou tentar convencer que ela fale.

2.2 A VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

“Quando uma criança vive uma situação de violência, uma sequência do


seu desenvolvimento é rompida. Seja ela vítima ou testemunha de atos
violentos, contra si, contra sua família ou na própria comunidade, os
efeitos sobre sua formação são inevitáveis. Além de cuidar para que isso
não aconteça e de punir os responsáveis, caso venha a acontecer, é
responsabilidade dos profissionais que venham a ter contato com esta

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criança ou adolescente proporcionar condições para superação do
impacto da violência”. (MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS
DIREITOS HUMANOS, 2019)

Os efeitos da violência contra crianças e adolescentes podem acontecer de


formas variadas, dependendo da idade da vítima, a duração e frequência dos
abusos, a relação com o agressor, a presença ou não de ameaças, além de outros
fatores individuais.
A Lei 13.431/2017 conceitua, em seu artigo 4º, as formas de violência contra
crianças e adolescentes, quais sejam:

I - violência física, entendida como a ação infligida à criança ou ao


adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe
cause sofrimento físico;
II - violência psicológica:
a) qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito
em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e
xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação
sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento
psíquico ou emocional;
b) o ato de alienação parental, assim entendido como a
interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente,
promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os
tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de
genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de
vínculo com este;
c) qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente,
direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou
de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido,
particularmente quando isto a torna testemunha;
III - violência sexual, entendida como qualquer conduta que
constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção
carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em
foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda:
a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da
criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou
outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico,

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para estimulação sexual do agente ou de terceiro;
b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança
ou do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou
qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob
patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou por
meio eletrônico;
c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte,
a transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou do
adolescente, dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o fim
de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra forma de
coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de
situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre
os casos previstos na legislação;
IV - violência institucional, entendida como a praticada por
instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.

O decreto 9.603/2018, em seu artigo 5º, conceitua violência institucional


como a violência praticada por agente público no desempenho de função pública,
em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que
prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de
violência.
Traz também o conceito de revitimização, qual seja, discurso ou prática
institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos
desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a
reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento,
estigmatização ou exposição de sua imagem.
De acordo com a Psicologia e com a Medicina, a violência contra crianças e
adolescentes pode ser classificada da seguinte forma:

Maus-tratos

Os maus-tratos, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (GUZZO et


al.), podem ser definidos como atos praticados pela omissão, suspensão ou
transgressão dos direitos da criança e do adolescente, sendo divididos em:

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● Maus-tratos físicos: uso da força física, de modo intencional e não acidental,
praticada por responsáveis ou cuidadores com o objetivo de ferir a criança ou
adolescente, deixando marcas físicas ou não.
● Síndrome do bebê sacudido: tipo de maus-tratos caracterizado por lesões
cerebrais causadas pelo sacudimento de bebês, geralmente menores de seis
meses de idade.
● Síndrome da criança espancada: diz respeito a crianças, geralmente de
pouca idade, que sofreram grandes traumas (fraturas, queimaduras, etc.) em razão
de punições inadequadas praticadas pelos pais e responsáveis.
● Síndrome de Munchausen por procuração: diz respeito ao cenário em que a
criança é levada para cuidados médicos, administração de exames e de
medicamentos por sintomas inventados pelos responsáveis por seu cuidado.

Negligência

Negligência configura o ato dos responsáveis de deixar de prover as


necessidades básicas necessárias para o desenvolvimento da criança e do
adolescente. A negligência abrange falta de cuidados com a saúde, com a higiene,
com a alimentação, a frequência e acompanhamento escolar, dentre outros. A
negligência é um fenômeno de grande complexidade, uma vez que grande parte da
população brasileira vive em situação de dificuldades socioeconômicas (GUZZO et
al.).

Violência psicológica

A violência psicológica é classificada como o tipo de violência praticada


através de atos que humilhem, rejeitem ou firam emocionalmente a criança ou o
adolescente, sendo comum o uso de insultos, ridicularização, indiferença ou
ameaças para se referir a criança: “você é burro”; “a culpa é sua”; “eu vou te bater
até não aguentar”; etc.
As condutas que exponham a criança ou o adolescente a crimes violentos
contra membros de sua família, comunidade ou rede de apoio também podem ser
caracterizadas como violência psicológica.

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Além disso, a recente inovação legislativa trazida pela Lei 14.088/21 registra
no art. 147-B do Código Penal a conduta típica de causar dano emocional a criança
e adolescente do gênero feminino que a prejudiquem e perturbem seu pleno
desenvolvimento ou que visem a degradar ou a controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde
psicológica e autodeterminação; e a Lei 14.132/21, a tipificação da conduta de
perseguição, no art. 147-A do Código Penal, com aumento de pena quando
praticada contra crianças ou adolescentes.

Alienação parental

Pode ser classificada como alienação parental a interferência na formação


psicológica da criança ou do adolescente, sendo ela ocasionada por pessoas da
família da criança e do adolescente (pais, avós, tios, madrasta, padrasto, etc) que
levem à rejeição ou o desprezo a um dos genitores. No Brasil, a alienação parental
é definida pela Lei nº 12.318, de agosto de 2010.

Violência institucional

A violência institucional é classificada como a:

“Violência praticada por agente público no desempenho de função pública,


em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou
omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente
vítima ou testemunha de violência”. (BRASIL, 2018)

Violência sexual

A violência sexual pode ser classificada como “qualquer tipo de atividade de


natureza erótica ou sexual que desrespeita o direito de escolha de um dos
envolvidos. O direito de escolha pode ser suprimido por coação, ascendência ou
imaturidade” (WAKSMAN, 2011).

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“O contato genital não é condição obrigatória para que uma situação seja
considerada abusiva. Carícias não genitais, beijos, exibicionismo,
voyeurismo e exposição à pornografia podem ser tão danosos quanto às
situações que envolvem contato genital”. (WAKSMAN, 2011)

As práticas de violência sexual contra crianças e adolescentes podem ser


subdivididas em:
 Assédio sexual: Diz respeito a propostas sexuais, geralmente baseadas na
autoridade que o autor tem sobre a vítima, fazendo uso de chantagens ou
ameaças de agressão.
 Abuso sexual verbal: pode ser definido por conversas abertas sobre
atividades sexuais destinadas a despertar o interesse da criança ou do
adolescente ou a chocá-los. Nessa classificação podem ser incluídos os
contatos por meio telefônico ou através da internet.
 Exibicionismo: é o ato de mostrar os órgãos genitais ou se masturbar diante
da criança ou do adolescente ou no campo de visão deles.
 Voyeurismo: é o ato de observar fixamente atos ou órgãos sexuais de outras
pessoas, quando elas não desejam serem vistas e obter satisfação com
essa prática.
 Estupro: Constranger a criança ou adolescente, mediante violência ou grave
ameaça, a ter conjunção carnal.
É de extrema importância ressaltar que:

“A aceitação ou participação da criança em atividades de natureza sexual


com adultos também deve ser caracterizada como abusiva. As sensações
físicas do contato sexual são geralmente prazerosas e é bastante comum
que crianças estimuladas sexualmente por adultos busquem a repetição
desses estímulos, quer com adultos quer com outras crianças”.
(WAKSMAN, 2011)

Em qualquer circunstância, é dever do adulto conhecer, impor e respeitar os


limites no contato realizado com a criança e com o adolescente, uma vez que estes
podem não ter pleno desenvolvimento e conhecimentos sobre práticas sexuais e
suas implicações.

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2.3 PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

Conforme visto anteriormente, a violência institucional pode ser


compreendida como aquela praticada por agente público no desempenho de suas
funções, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos ou omissões que
prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de
violência. Em vista de tais características, essa conduta abarca também o conceito
de revitimização, referindo-se ao “discurso ou prática institucional que submeta
crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos,
que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras
situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem”.
(BRASIL, 2018).
Policiais civis e demais funcionários das unidades policiais são, muitas
vezes, os primeiros garantidores dos direitos das crianças e adolescentes vítimas
de violações, o que torna mais importante o constante aperfeiçoamento desses
profissionais.
Durante os primeiros atendimentos e, posteriormente, no processo de
averiguação dos crimes e violações, faz-se imprescindível que os profissionais
envolvidos se atentem para alguns comportamentos prejudiciais. Por exemplo, a
elaboração de pré-julgamentos influenciados pelo clamor público, uma vez que
percepções equivocadas podem causar sofrimentos desnecessários às vítimas e
testemunhas, afetar as investigações e a possível comprovação de autoria e
materialidade.
As informações prestadas pela criança ou adolescente vítima ou testemunha
são essenciais, mas a forma como essa prova foi colhida – como o fato foi relatado
e mediante quais circunstâncias e perguntas – deve ser levada em consideração.
Isso significa que a investigação de crimes envolvendo esse grupo deve manter-se
cautelosa, sigilosa e, principalmente, resguardar a integridade física e psicológica
dos envolvidos para evitar a revitimização.
A Constituição Federal, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente
determinam que nenhuma pessoa deve ser discriminada em razão do nascimento,
situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência,
condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica,
ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as
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pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. Assim, faz-se obrigatório que
toda criança e adolescente, vítima ou testemunha de crime, seja tratada com
respeito, sem questionamentos sobre suas características pessoais e sem
julgamento de valor sobre suas condições de vida.
Também é importante destacar que não existe um padrão de
comportamento esperado para crianças/adolescentes que tenham passado por
situações de violência, não sendo correto julgar a veracidade dos relatos a partir
das atitudes apresentadas pela vítima/testemunha do momento de seu
acolhimento.
Os profissionais envolvidos no sistema de garantia de direitos da criança ou
adolescente vítima ou testemunha de violência primarão pela não revitimização da
criança ou do adolescente e darão preferência a abordagem com questionamentos
mínimos e estritamente necessários ao atendimento, quando não for possível a
busca por informações por outros meios.
Conclui-se pela importância em prestar um acolhimento e atendimento
adequado das crianças e adolescentes, sem julgamentos, sem questionamentos
desnecessários, evitando, assim, a prática da revitimização e da violência
institucional.

2.4 REDE DE PROTEÇÃO

O contato de crianças e adolescentes com a rede de proteção, que é parte


do Sistema de Garantia de Direitos, embora não intencional, pode ser revitimizante.
Uma criança vítima de violência sexual em geral passa pelo Conselho Tutelar, por
uma unidade da polícia, pelo Instituto Médico Legal, por uma unidade de Saúde e
por uma Unidade de Assistência Social; e mais tarde ainda passa pelo Sistema de
Justiça.
A falta de integração dos serviços e de preparação específica dos
profissionais para lidar com crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de
violência faz com que demorem a receber ajuda, tenham que relatar os fatos
ocorridos inúmeras vezes e, muitas vezes, não recebam o cuidado adequado.

18
Esta falta de integração dos serviços e de capacitação adequada e a
repetição dos relatados dos episódios de violência terminam por revitimizar as
crianças e os adolescentes.
Com o objetivo de evitar a revitimização, a lei 13.431/17 estabelece
diretrizes para a integração das políticas públicas de atenção e proteção, mediante
a implantação de centros integrados de atendimento a crianças e adolescentes
vítimas de violências.

Art. 16. O poder público poderá criar programas, serviços ou


equipamentos que proporcionem atenção e atendimento integral e
interinstitucional às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de
violência, compostos por equipes multidisciplinares especializadas.
Parágrafo único. Os programas, serviços ou equipamentos públicos
poderão contar com delegacias especializadas, serviços de saúde, perícia
médico-legal, serviços socioassistenciais, varas especializadas, Ministério
Público e Defensoria Pública, entre outros possíveis de integração, e
deverão estabelecer parcerias em caso de indisponibilidade de serviços de
atendimento.

Nas cidades de pequeno porte, visando à implementação das


determinações da lei, a Childhood Brasil defende que seja definido os
procedimentos para esse atendimento integrado, o que deve incluir o desenho de
fluxos integrados, os protocolos de escuta de crianças e adolescentes e
parâmetros para criação de ambientes amigáveis e para capacitação dos
profissionais da rede de proteção.
O Termo de Cooperação Interinstitucional nº22/2021, tem o objetivo de
direcionar este fluxo, apontando como cada agente da rede de proteção deve
realizar o atendimento protetivo em caráter de acolhimento e acompanhamento.
Compõe a rede de proteção órgãos assistenciais (CREAS, CRAS), a saúde, a
educação, Conselho Tutelar, Segurança Pública, Ministério Público, dentre outros.
A escuta especializada limitada ao cumprimento de sua finalidade de
acolhimento e superação da violência sofrida, garantida a livre narrativa da vítima
pode ser realizada pelos órgãos da rede de proteção dentro da competência e
atribuição de cada um.

19
A cooperação entre os órgãos, os serviços, os programas e os
equipamentos públicos deve sempre ser priorizada e mecanismos de
compartilhamento de informações devem ser estabelecidos para evitar a
revitimização.
Cada órgão da rede de proteção tem uma atuação específica, porém em
cada Comarca podem conduzir seu trabalho de forma diferente dentro de sua
atribuição, primando sempre pela atuação integrada e de forma que não revitimize
a criança/adolescente.
Ressalta-se que, nos termos do art. 13 do ECA, qualquer órgão da rede de
proteção que tomar conhecimento de criança ou adolescente em situação de
violência deverá comunicar o Conselho Tutelar.

2.5 MEDIDAS DE PROTEÇÃO

O artigo 6º da Lei 13.431/2017 prevê que a criança ou adolescente vítima ou


testemunha de violência tem direito de solicitar, por meio do representante legal,
medidas de proteção em desfavor do autor da violência.
As medidas de proteção previstas no artigo 101 do Estatuto da Criança e do
Adolescente e nos artigos 22, 23 e 24 da Lei Maria da Penha, continuam sendo
aplicadas em conjunto com as medidas previstas no art. 21 da Lei 13.431/2017 à
crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, numa interpretação
sistemática do ordenamento jurídico.
Crianças e adolescentes, independentemente do sexo, gozam de proteção
expressa quando vítimas ou até mesmo testemunhas de infrações, o que não era
possível com Lei 11.340/2006, que restringe sua aplicação às vítimas do sexo
feminino.
Urge mencionar que a lei, em seu artigo 4º, conceitua alguns atos de
violência que não são necessariamente criminosos, como a alienação parental e o
bullying, sendo possível a utilização e aplicação de medida protetiva de urgência,
buscando torná-la mais efetiva, abrangendo qualquer espécie de violência
perpetrada em desfavor de criança e adolescentes.
O art. 21 da Lei 13.431/2017 estabelece algumas medidas para proteger a
criança ou o adolescente em risco, conforme artigo a seguir:

20
Art. 21. Constatado que a criança ou o adolescente está em risco, a
autoridade policial requisitará à autoridade judicial responsável, em
qualquer momento dos procedimentos de investigação e
responsabilização dos suspeitos, as medidas de proteção pertinentes,
entre as quais:

I - evitar o contato direto da criança ou do adolescente vítima ou


testemunha de violência com o suposto autor da violência;
II - solicitar o afastamento cautelar do investigado da residência ou local
de convivência, em se tratando de pessoa que tenha contato com a
criança ou o adolescente;

III - requerer a prisão preventiva do investigado, quando houver suficientes


indícios de ameaça à criança ou adolescente vítima ou testemunha de
violência;

IV - solicitar aos órgãos socioassistenciais a inclusão da vítima e de sua


família nos atendimentos a que têm direito;

V - requerer a inclusão da criança ou do adolescente em programa de


proteção a vítimas ou testemunhas ameaçadas; e

VI - representar ao Ministério Público para que proponha ação cautelar de


antecipação de prova, resguardados os pressupostos legais e as garantias
previstas no art. 5o desta Lei, sempre que a demora possa causar prejuízo
ao desenvolvimento da criança ou do adolescente.

Assim, diante da gravidade dos fatos relatados e risco à integridade da


crianças ou adolescente, é possível que a Autoridade Policial represente pelas
Medidas de Proteção previstas na Lei 13.431/2017 após o registro da ocorrência
policial ou em qualquer fase do procedimento investigatório.

21
3. ORIENTAÇÕES PARA REALIZAÇÃO DE ESCUTA PROTEGIDA

A escuta protegida tem como objetivo dar oportunidade às crianças ou


adolescentes vítimas ou testemunhas de violência em receber atendimento mais
humanizado e menos revitimizante para que possam reportar as autoridades
ocorrência de eventual violência sofrida.
A criança e o adolescente são pessoas vulneráveis, visto que são pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento físico, psíquico e moral, que se
encontram em situação ainda mais vulnerável ao terem sido vítimas ou
testemunhas de alguma violência. Assim, é preciso haver um mecanismo diferente
para se relatar e colher as provas do crime, para não ferir ainda mais essa criança
ou adolescente, uma vez que a simples lembrança e a mera narrativa do ocorrido
já causam a revitimização.
Assim, a Lei 13.431/17 prevê que a criança e o adolescente serão ouvidos
sobre a situação de violência por meio de escuta especializada e depoimento
especial.
Tais instrumentos de escuta têm por finalidade impedir que a criança reviva
o drama sofrido, que a leva ao sofrimento psicológico, reforça o trauma vivido,
dificulta a superação da violência e o posterior desenvolvimento da criança,
protegendo-a, e ao mesmo tempo visa combater a impunidade, ao evitar
influências externas ao depoimento da vítima, por vezes promovidas pelo agressor
bem como que contradições inerentes aos sucessivos depoimentos de uma vítima
em particular situação De desenvolvimento sejam utilizadas para impedir a
responsabilização dos agressores.

3.1 REGISTRO E TRANSMISSÃO DAS INFORMAÇÕES

O registro da escuta especializada pode ser feito através de relatório, onde


devem ser registradas as perguntas realizadas pelo profissional, bem como as
falas da criança ou do adolescente, da forma mais fidedigna possível. A
vítima/testemunha e seu responsável devem ler e assinar o relatório. Caso a
criança ou adolescente sinalize que não deseja que seu responsável tenha
conhecimento sobre seu relato, isso deve ser sinalizado no relatório, e apenas a
vítima/testemunha deve assinar o documento.

22
O registro através de relatório deve ser inteiramente descritivo, sem
qualquer tipo de avaliação, julgamento ou conclusões sobre os fatos ou sobre a
criança/adolescente que foi acolhido. Além da reprodução fidedigna das perguntas
do entrevistador e das respostas da criança/adolescente, o relatório deve conter
apenas a descrição de comportamento observáveis da vítima/testemunha, como se
ela chorou em algum momento, se recusou-se a responder algo, características
marcantes sobre o desenvolvimento (exemplos: crianças maiores ainda não
alfabetizadas; adolescentes com comportamento infantilizado, não esperado para a
idade; dificuldades de fala ou compreensão; etc.). Não há, no entanto, impedimento
legal para que seja feito registro da escuta especializada através de áudio e vídeo.
O registro do depoimento especial deve ser realizado através de áudio e
vídeo. A gravação permite ainda que seja evitada a coleta de novo depoimento da
vítima/testemunha em Juízo, uma vez que a mídia será juntada ao procedimento e
remetida à Justiça com o Inquérito Policial (recomendado realização de backup das
gravações).
É essencial a observância do cuidado de não compartilhamento da mídia
gravada, seja da Escuta Especializada ou do Depoimento Especial, salvo ordem
judicial autorizativa, permitindo-se à defesa técnica do investigado o acesso aos
referidos registros de áudio e vídeo apenas no interior das unidades policiais.
Ressaltando que as informações prestadas pela vítima/testemunha devem ser
tratadas confidencialmente sendo vedada a utilização ou repasse a terceiro das
declarações feitas, salvo para os fins de assistência à saúde e de persecução
penal.

3.2 ACOLHIMENTO INICIAL

O primeiro contato da criança/adolescente vítima ou testemunha de violência


com servidor da Unidade Policial deve observar os mesmos parâmetros de
acolhimento, proteção e respeito à sua condição peculiar de sujeito de
desenvolvimento utilizados pelos demais órgão da rede de proteção.
O Decreto 9.603/2018 estabelece que, ao tomar conhecimento da prática de
crime envolvendo criança e adolescente vítima ou testemunha de violência, a
autoridade policial procederá ao registro da ocorrência policial e realizará a perícia.

23
O registro da ocorrência policial consiste na descrição preliminar das
circunstâncias em que se deram o fato e, sempre que possível, será elaborado a
partir de documentação remetida por outros serviços, programas e equipamentos
públicos, além do relato do acompanhante da criança ou do adolescente.
É necessária postura empática, respeitosa, acolhedora, responsiva e
protetiva do servidor, que deve entender seu papel de agente de proteção, quando
realiza o atendimento inicial à criança/adolescente e àquele que a estiver
acompanhando.
É direito da criança/adolescente ser ouvida em suas demandas na
perspectiva de superação das consequências das violações sofridas, porém, no
momento do registro da ocorrência, deve-se evitar a conversa diretamente com a
criança/adolescente, colhendo todas as informações necessárias com o
representante legal ou acompanhante da vítima/testemunha.
Deve-se, ainda:
1) Garantir o conforto da criança/adolescente dentro das possibilidades do
espaço físico da Unidade Policial;
2) Manter postura amigável e receptiva, zelando pela ética e respeito à
criança e seu acompanhante;
3) Realizar a entrevista para a confecção do REDS com o acompanhante,
em lugar reservado e separado do local em que estiver a criança/adolescente,
sempre que possível;
4) Não externar opiniões, questionamentos acerca das circunstâncias da
ocorrência da violência na presença da criança/adolescente;
5) Não é necessário pormenorizar detalhes da violência no histórico do
REDS; caso haja relatórios de atendimentos médicos ou outros documentos
trazidos pelos envolvidos, mencioná-los na ocorrência e juntar as cópias
apresentadas sempre que possível;
6) Caso a vítima não tenha recebido atendimento médico e não seja
possível à Autoridade Policial proceder às diligências necessárias para
atendimento da ocorrência naquele momento, encaminhar a vítima para Hospital
de referência, caso seja necessário receber atendimento médico imediatamente
para medidas de profilaxia, ou realizar FAEP para exame de corpo de delito.

24
7) O acolhimento e registro da ocorrência policial deve ser realizado, ainda
que a criança ou o adolescente esteja desacompanhado.
A Escuta Protegida é organizada em fases, entretanto o servidor que fará o
atendimento deve ser flexível ao perceber, durante a entrevista, que a ordem das
fases deve ser alterada.
As perguntas que serão apresentadas ainda neste módulo são sugestões,
devendo o entrevistador adaptar todas as intervenções para o caso e as
necessidades específicas de cada criança ou adolescente.

3.2.1 A importância do ambiente

A implementação de sala para realização das escutas especializadas e


depoimentos especiais nas Delegacias de Polícia Civil de Minas Gerais faz-se
necessária para atender o disposto na Lei 13431/17 e demais dispositivos legais de
proteção de crianças e adolescentes com a principal finalidade de reduzir os
traumas da situação vivenciadas, além de resguardar as vítimas do desconforto e
constrangimento que podem advir da coleta do depoimento em seu formato
tradicional.
A sala para atendimento das crianças e adolescentes deverá ser apropriada
e acolhedora, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade. Deve
ser reservada, silenciosa, com decoração acolhedora e simples, para evitar
distrações.

3.2.2 Salas de Depoimento Especial

A sala para a realização do Depoimento Especial deve ser um ambiente


acolhedor e amigável dotado de infraestrutura que garanta privacidade. A gravação
permite registro visual dos gestos e expressões faciais e corporais que
acompanham a fala da criança/adolescente e acesso por profissionais da rede de
proteção e com maior fidedignidade dos relatos. A disposição dos móveis vai
depender da estrutura física da Unidade Policial e espaço físico disponível para
montagem do material, considerando as necessidades de adaptação de cada local.
(vide sugestão de layout nos anexos)

25
O objetivo da sala é proporcionar ambiente saudável e adequado para o
atendimento específico de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de
violência em equilíbrio com as atividades desenvolvidas nas Unidades Policiais.
As salas devem ser implementadas em local adequado possibilitando um
ambiente humanizado e acolhedor com espaço lúdico, bem como instalação de
equipamento audiovisual para gravação dos atendimentos nos casos em que
couber.
O mobiliário da sala de atendimento inclui poltronas, pufes, armário para
armazenamento de brinquedos e materiais psicopedagógicos, mesa infantil e
equipamento para gravação do procedimento.
A ante sala ou sala de observação será composta por estações de trabalho
e equipamentos de informática para acesso aos sistemas policiais e realização dos
procedimentos de polícia judiciária.
Além dos cômodos citados, pode ser feita sala de espera com armário com
brinquedos e jogos, longarinas, mesa e cadeiras, para que a criança possa
aguardar o atendimento em ambiente apropriado e acolhedor.
Um tablet será utilizado pelo profissional capacitado a realizar a escuta
protegida para conversa - chat com sala de observação.
Um dos computadores pode ser colocado em outra sala da Unidade Policial
beneficiada, que poderá servir como um segundo lugar de observação, se
necessário.

3.3 FALSAS DENÚNCIAS

Durante a investigação de crimes envolvendo crianças e adolescentes, é


possível que o servidor se depare com falsas denúncias, com relatos da prática de
delitos que não ocorreram. Estas situações são pontuais, mas merecem ser
abordadas.
As falsas acusações podem ser trazidas pela própria suposta vítima por
diversos motivos ou por outra pessoa em nome da criança/adolescente. Podem
ocorrer em razão de má interpretação, sugestão acidental, delírio, má comunicação
infantil, mentira infantil inocente, entre outros.

26
Quando trazida por outra pessoa em nome da suposta vítima, é possível a
ocorrência de alienação parental, regulamentada pela Lei 12.318/2010, já
mencionada no módulo anterior. A lei define alienação parental como a
interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou
induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou
adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou
que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Uma das formas de alienação parental trazida pela legislação é a falsa
denúncia contra um dos genitores, contra familiares deste ou contra avós, para
obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente.
Ressalte-se que, ainda que a criança ou adolescente que seja submetida à
prática de alienação parental, a violência noticiada pode ter ocorrido, e não se
tratar de uma falsa acusação.
Durante a escuta da criança ou adolescente em casos de falsas denúncias,
o profissional pode se deparar com algumas circunstâncias que deverão ser
observadas. Em regra, a criança ou adolescente não consegue aprofundar o seu
relato nem trazer detalhes da prática criminosa e de outros fatos que perpassam a
violência noticiada, mantendo uma narrativa rasa, com grande dificuldade de trazer
mais informações além das contadas inicialmente.
Outra característica que pode estar presente, é o uso de palavras não
compatíveis com a faixa etária, sugerindo a influência por uma pessoa adulta. A
criança ou adolescente pode já começar o relato contando que sofreu a violação de
direito por algum familiar e pode trazer informações extremamente depreciativas,
com sentimento de ódio em relação ao mesmo.
Por fim, vale mencionar que o protocolo de atendimento deve ser seguido na
íntegra e, caso presentes algumas das circunstâncias acima citadas, estas devem
ser constatadas no relatório de atendimento, sem, todavia, trazer juízos de valor
nem mesmo concluir se a violência ocorreu ou não.
Durante a investigação que há suspeita da prática de alienação parental e
da ocorrência de falsas denúncias, é imprescindível a realização de outras
diligências com o objetivo de verificar a existência de conflitos entre os envolvidos,
devendo fazer pesquisa de ocorrências anteriores, procedimentos judiciais em
andamento, oitiva de familiares, vizinhos e outras pessoas de convivência do

27
núcleo familiar, além da interlocução com a rede de proteção. Acrescenta ainda a
importância da escuta da criança ou adolescente ser realizada por profissionais
qualificados.

3.4 PROFISSIONAIS ENVOLVIDOS NA ESCUTA PROTEGIDA

Os profissionais envolvidos na Escuta Protegida no âmbito da PCMG serão


os policiais civis, analistas e técnicos administrativos com perfil para execução da
tarefa, e devidamente capacitados para atendimentos de acordo com protocolos
específicos de escuta protegida nas Delegacias.
Quando da necessidade da realização da Escuta Protegida, o profissional
que fizer o atendimento seguirá o protocolo de entrevista forense, não utilizará
uniforme policial ou portará arma de fogo. Observará e deverá ser sensível às
necessidades da criança/adolescente (necessidade de ir ao banheiro, cansaço,
ansiedade, estresse etc.), devendo sempre observar o objetivo principal da escuta,
que é o acolhimento, permitindo a narrativa espontânea da criança.
O servidor deve ser paciente, deixar com que a criança responda a todas as
perguntas realizadas, sem interrupções. É também de extrema importância que o
entrevistador se atente para adequar suas falas, tamanho das frases e vocabulário
para a correspondente idade ou fase desenvolvimental da criança ou adolescente.
Ao formular perguntas, no caso do Depoimento Especial, o servidor deve
utilizar palavras que já tenham sido usadas pela criança ou adolescente, e solicitar
que ela explique termos que não sejam de conhecimento do entrevistador. Por
exemplo, se a criança ou adolescente se referir à sua parte íntima como "florzinha",
o entrevistador deve usar essa mesma nomenclatura durante a entrevista. Ou,
caso a criança ou adolescente diga "fulano deu um monte de coisada na minha
perna", o entrevistador pode solicitar à mesma "me explique melhor o que é
coisada".
Tratando-se especificamente de partes do corpo, caso a criança ainda não
tenha utilizado nenhum termo, o servidor não deve determinar o termo a ser usado,
e sim perguntar à criança qual o nome daquela parte. Caso a criança fale, por
exemplo, "fulano encostou aqui", e apontar para a sua região genital, o
entrevistador pode perguntar "qual o nome dessa parte do corpo?" ou “como você
chama essa parte do seu corpo?”
28
Caso o registro seja feito por meio de relatório, o servidor deve transcrever
as respostas da criança ou adolescente com a maior precisão possível, mesmo que
tenham sido usados termos incorretos, imprecisos ou de baixo calão.
Nos casos em que a criança ou adolescente comece a revelação já nos
momentos iniciais da entrevista, ele não deve ser interrompido.

3.5 MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL

O relato de um episódio vivenciado ou testemunhado tem como base os


registros da memória, sendo importante compreender como funciona a memória
das crianças e adolescentes, bem como os fatores que podem promover ou
prejudicar a qualidade de um relato testemunhal.
A memória significa aquisição, formação, conservação e evocação de
informações. É a capacidade individual de adquirir, reter e resgatar informações de
maneira a permitir utilizar as experiências anteriores como dados para a tomada de
decisão.
A base de nosso sentimento de identidade é formada pela memória, que
orienta nossos pensamentos e nossas decisões, influencia nossas reações
emocionais e nos permite aprender. É o meio pelo qual nós recorremos às nossas
experiências passadas a fim de usar essas informações no presente. Refere-se a
mecanismos dinâmicos associados à retenção e à recuperação da informação
sobre a experiência passada.
Sem aprofundar na abordagem, a memória é adquirida em processos que
interagem reciprocamente e são interdependentes, quais sejam, a codificação, no
qual você transforma dados sensoriais numa forma de representação mental, é o
processo de entrada e registro inicial da informação e a capacidade de mantê-la
ativa para o processo de armazenamento; o armazenamento, no qual você
conserva a informação codificada na memória, é a manutenção da informação
codificada pelo tempo necessário para que possa ser recuperada e utilizada
quando evocada; e a recuperação, no qual você extrai ou usa a informação
armazenada na memória, é recuperação da informação registrada e armazenada,
para que possa ser usada por outros processos cognitivos como pensamento,
linguagem e etc..

29
Em relação ao conteúdo, a memória pode ser classificada em memória de
procedimentos e memória declarativa. A memória procedural é aquela que tem
capacidade ou habitualidade motora ou sensorial (atos motores ou concatenação
de atos). Assim, conecta-se ao aprendizado de atividades como digitar um texto,
andar de bicicleta, nadar, por exemplo. Pode, outrossim, ser subdividida em
implícita (aquela adquirida de maneira mais ou menos automática, sem que o
sujeito perceba claramente a aprendizagem, tal como ocorre com a língua materna)
e explícita, a que se constitui em memória adquirida com plena intervenção da
consciência.
A memória declarativa refere-se à memória de fatos, eventos, de pessoas,
de faces, de conceitos e de ideias e subdivide-se em episódicas, relativas a
eventos dos quais assistimos ou participamos, também chamadas de
autobiográficas, e em semânticas, relacionadas aos conhecimentos gerais.
Aliado à memória, está o esquecimento. A imensa maioria de tudo aquilo
que aprendemos, de todas as inúmeras memórias que formamos na vida, se
extingue ou se perde. Nós esquecemos a maioria das informações que foram
armazenadas. Sem o esquecimento, o convívio entre os membros de qualquer
espécie animal seria impossível.
Assim, verifica-se que o esquecimento é normal, somente o excesso, a
perda real de memórias que não queremos perder, denomina-se amnésia.
De acordo com Carmen Lisbôa Weingärtner Welter, a memória apresenta
diferentes níveis, de acordo com a fase de desenvolvimento do sujeito. Os bebês
apresentam memória episódica, ou seja, fragmentada e inacessível. Aos dois anos,
com o desenvolvimento da linguagem, desenvolve-se memória autobiográfica. Em
torno do quinto ano de vida, a criança tem a capacidade para evocar detalhes
perceptivos e referências contextuais.

Verifica-se que a memória da criança varia a cada fase infantil, ou


seja, no período dos 2 aos 3 anos de vida, as lembranças dessa etapa
serão inacessíveis com o passar da infância e principalmente em sua
idade adulta, ao que eles chamam de amnésia infantil, que nada mais é
que um adulto não conseguir lembrar as vivências autobiográficas desse
momento inicial de sua vida. (WELTER; FEIX,2010).

30
Pesquisas mostram que crianças em idade pré-escolar (de 4 a 6 anos) já
possuem recursos cognitivos (habilidades linguísticas, memória como fonte da
recordação, construção de referências espaciais e temporais) que as tornam
capazes de relatar um episódio vivido com riqueza de informações. Entretanto,
sabe-se que as crianças nessa faixa etária são mais suscetíveis à aceitação de
informações sugestivas.
Assim, as crianças em idade pré-escolar apresentam maior
dificuldade em tarefas de recordação livre, tendendo a não ter uma
memória legítima sobre determinado fato, pois seu sistema cognitivo ainda
está em formação. Sua recordação pode ser espontânea e isso não quer
dizer que não seja verdadeira, mas pode ser fruto de seu imaginário, bem
como ela pode ser sugerida, ou por meio do próprio entrevistador, com
perguntas fechadas (sim e não), ou pelos próprios familiares, que passam
ao infante sua visão do acontecimento, induzindo os a acreditar no que
aquele lhes relata (WELTER;FEIX,2010).

Faz-se importante salientar que o desenvolvimento infantil não é linear ou


universal. O desenvolvimento da memória, bem como da linguagem, pode
acontecer em idades diferentes, dependendo de fatores congênitos (doenças e
síndromes), traumas e contexto cultural da criança (socialização com a família, na
escola e comunidade). Assim, as fases de desenvolvimento da memória devem
funcionar como uma expectativa a respeito das capacidades da criança, e não
como uma prescrição de que todas as crianças terão o mesmo desenvolvimento
em determinada idade.
Abaixo é apresentado um quadro de referência para a elaboração de
perguntas apropriadas para cada nível de desenvolvimento infantil. As áreas mais
claras indicam que tal habilidade linguística não é esperada para a idade; as áreas
mais escuras indicam que é esperado que a criança ou adolescente já tenha
desenvolvido a habilidade a partir de determinada idade.

31
As perguntas concretas dizem respeito a experiências sensoriais, ou seja,
descrições de fatos relacionados aos sentidos. Essas perguntas dizem respeito a
quem fez algo, o que aconteceu, onde algo aconteceu, e se ocorreu mais de uma
vez. São perguntas que requerem um desempenho narrativo mais básico.
Já as perguntas abstratas são aquelas que exigem um desempenho
narrativo mais complexo, sendo esperadas descrições mais completas a respeito
de contexto, temporalidade e frequência. Crianças e adolescentes com
compreensão de perguntas abstratas conseguem descrever situações de forma
sequencial (começo, meio e fim).

3.6 TIPOS DE PERGUNTAS

Um dos principais objetivos da oitiva é realizar questionamentos à criança ou


adolescente sem condicionar e influenciar suas respostas. Para tanto, a seguir são
expostos tipos de perguntas, destacando quais são adequadas e quais devem ser
evitadas.

3.6.1 Perguntas Desejáveis E/Ou Adequadas

- Perguntas abertas, que iniciem o relato espontâneo: São perguntas que


encorajam o detalhamento de fatos já trazidos pela criança, sem fornecer qualquer

32
tipo de informação externa ao relato da criança ou adolescente, e sem indicar qual
a resposta esperada. O entrevistador pode começar essas perguntas repetindo
partes dos relatos já feitos pela criança ou adolescente. Exemplos:

“Você me disse que _______. Me explique melhor tudo o que


aconteceu.”
“Me conte mais sobre esse lugar onde _______ aconteceu.
Descreva tudo o que você viu lá.”
“Descreva pra mim a aparência de ______, dos pés à
cabeça.”
“Me diga tudo o que aconteceu, do começo até o final.”
“O que aconteceu depois de _____?”

- Perguntas focadas ou diretas: Essas são perguntas sobre pessoas ou


eventos específicos, partes do corpo, local dos fatos ou outras circunstâncias da
denúncia. Elas geralmente são iniciadas com "quem", "o que", "como" ou "onde",
sendo mais específicas do que as perguntas abertas. As respostas a essas
perguntas são geralmente curtas, mas não sugestionadas. Assim como nas
perguntas abertas, o entrevistador não deve fornecer qualquer tipo de informação
que não tenha sido trazida pela criança ou adolescente. Exemplos:

“Quem estava com você em _______ quando _____ isso


aconteceu?”
“O que ______ falou enquanto ele te batia?”
“Como sua mãe/pai/responsável descobriu que _____ estava
fazendo essas coisas com você?”
"Onde ____ levou você, depois que ele te pegou no/na
______?

- Perguntas com segmentação de tempo: São perguntas que dividem o


evento denunciado em menores períodos, sendo recomendadas para estimular que
a criança dê mais detalhes sobre fatos já narrados por ela. Recomenda-se o uso de
"antes de", "depois de" e "enquanto". Exemplos:

33
“Você me disse que _____ ficou muito bravo e te bateu. Me
conte tudo o que aconteceu depois dele te bater.”
“Você me contou que _____ encostou no seu pipiu, e que
você não gostou disso. Conte tudo o que ____ fez antes de
encostar no seu pipiu.”
“Você falou que ___ te xingou enquanto batia em você. Repita
para mim tudo o que ele disse enquanto te batia.”

3.6.2 Perguntas Inadequadas e que Devem Ser Evitadas

- Perguntas fechadas ou de múltipla escolha: Esse tipo de pergunta deve


ser evitado em todas as formas de entrevista com crianças e adolescentes,
especialmente durante a Escuta Especializada, uma vez que são perguntas que
podem eliciar respostas sugestionadas e que trazem informações externas ao
relato da criança. Entretanto, elas podem ser úteis para esclarecer fatos
específicos, caso a criança não esteja respondendo bem às perguntas abertas e
caso exista a suspeita que a criança está em situação de risco iminente.
Antes de realizar este tipo de pergunta, o entrevistador deve tentar estimular
a criança a relatar espontaneamente, retomando sua apresentação inicial e as
regras. Caso o uso desse tipo de pergunta ainda seja necessário, elas devem ser
seguidas de perguntas abertas ou focadas, para assim dar à criança ou
adolescente espaço para fazer relatos mais complexos. Exemplo:

Entrevistador: “Você me disse que veio aqui hoje porque uma


pessoa te machucou. Quem é essa pessoa?
Criança ou adolescente permanece em silêncio.
Entrevistador: “No começo da nossa conversa eu te contei
que eu trabalho conversando com as crianças e adolescentes
para entender melhor algumas coisas que aconteceram na
vida delas, você se lembra?
Criança ou adolescente: “Sim”, "lembro" ou movimento
positivo com a cabeça.

34
Entrevistador: “Então, seria muito importante que você me
explicasse o que aconteceu com você, pois eu não estava lá e
eu não sei. Quem te machucou?”
Criança/adolescente continua em silêncio.
Entrevistador, percebendo que a criança estava muito
machucada, e que o convívio com o(a) suspeito(a) pode
representar risco de novas violências, faz uma pergunta
fechada: “Foi alguém que mora na sua casa que te
machucou?”
Criança/adolescente: "Foi a minha mãe".
Entrevistador: "Me explique melhor como a sua mãe te
machucou. Me conte tudo o que ela fez".

- Perguntas confirmativas: São perguntas em que o entrevistador fornece


uma explicação, e depois apenas solicita uma confirmação ou negativa para a
criança ou adolescente. São perguntas altamente sugestivas, e que não devem ser
realizadas durante a entrevista. Exemplos:

"Foi o seu pai que bateu em você, não é verdade?"


"Você ficou com muito medo nessa hora, não é?"
"Quando ele colocou o pênis em você deve ter doído, não é?"

- Perguntas ou intervenções coercitivas: Este tipo de pergunta envolve


técnicas que induzem ou convencem a criança a dar uma resposta. Podem ser
incluídas aqui barganhas ou promessas feitas para a criança. Exemplos:

"Responda todas as perguntas, que eu deixo você ir ficar com


a sua mãe lá fora".
"Se você conversar direitinho, no final eu te dou um pirulito".
"Tá vendo aquele brinquedo? Depois que você responder a
todas as perguntas que eu fizer, eu deixo você brincar com
ele".
"Se você não me contar o que aconteceu, eu não vou poder
te ajudar."
35
- Perguntas acusatórias: São perguntas sobre o comportamento da criança
ou adolescente, que podem ser interpretadas como culpabilização ou
responsabilização destas pela ocorrência da violência denunciada. São perguntas
de juízo de valor sobre as vestimentas da vítima, sua reação diante a violência, se
ela obteve algum tipo de ganho ou satisfação, se ela provocou ou facilitou o fato
etc. e que não devem ser realizadas sob nenhuma circunstância. Exemplos:

"O que você estava vestindo quando ele abusou de você?"


"Por que você não gritou por ajuda?"
"Por que você está denunciando só agora, depois de tanto
tempo?"
"Quando ele fez isso, você gostou/sentiu prazer?"
"Você deixou ele colocar a mão dentro da sua roupa?"

- Perguntas que citam relatos de outras pessoas: Durante a realização


deste tipo de perguntas, o entrevistador insere informações relatadas por outros
atores envolvidos na denúncia. Além de serem altamente sugestivas, essas
perguntas podem fazer com que a criança ou adolescente perca a confiança na
pessoa que transmitiu a informação, deixando-as ainda mais vulneráveis a outras
violências futuras. Exemplos:

“Eu li aqui, nesse boletim de ocorrência, que a sua mãe disse


que...”
“A sua escola mandou uma carta pra gente falando que você
contou para a sua professora que...…”
“Eu já conversei com o seu irmão, e ele me disse que...…”

- Perguntas que estimulem a criança a especular ou fazer uso da


fantasia: Consiste em convidar a criança ou adolescente a dar opiniões, fazer
especulações ou pedir que a criança use sua imaginação para descrever o que
pode ter acontecido. O desenvolvimento infantil não é linear e depende de vários
fatores e, ao mesmo tempo que uma criança ou adolescente pode conseguir fazer

36
a distinção entre fantasia e realidade, outra criança da mesma idade talvez não
consiga. Exemplo:

"O que você acha da gente perguntar à Juju [um boneco].


Talvez ela possa nos dar uma dica, e assim a gente descobre
o que aconteceu". [Nesse momento o entrevistador começa a
interagir com a criança ou adolescente como se o boneco
estivesse fazendo as perguntas, inserindo elementos
fantasiosos na entrevista]
"O que você acha que acontece com seu irmão, quando você
não está em casa?" [Convite à especulação].

37
4. ESCUTA ESPECIALIZADA

A Escuta Especializada é realizada, especialmente, nos casos de demanda


espontânea que aportam na unidade policial. Como primeira providência nesses
casos, antes ou após o registro da ocorrência, é o acolhimento da
criança/adolescente por meio da Escuta Especializada. O acolhimento deve ser
realizado por servidor capacitado, em ambiente acolhedor e observando-se o
protocolo de entrevista, bem como os princípios norteadores do atendimento
protetivo.
Trata-se do procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos
campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos
direitos humanos, com o objetivo de assegurar o atendimento da vítima em suas
demandas, na perspectiva de superação das consequências da violação sofrida,
inclusive no âmbito familiar.
A Escuta Especializada deve observar o fim social pelo qual foi criada, qual
seja o acolhimento da vítima/testemunha, possibilidade de superação da violação
sofrida, além da identificação de sinais de violência que requeiram a aplicação de
medidas protetivas de urgência. Em sede policial, pode ser necessário realizar a
Escuta Especializada para solicitação/encaminhamento a atendimento médico ou
exame pericial, solicitação de medidas de proteção, representação por cautelares
diversas, dentre outras providências urgentes que devem ser tomadas
imediatamente para garantir a proteção daquela criança/adolescente.
Nos termos da Lei 13.431/2017, a Escuta Especializada deve limitar-se
estritamente ao necessário para cumprimento da finalidade de proteção, e, em que
pese possibilitar a coleta de evidências que subsidiem a apuração da materialidade
e autoria de fatos criminosos no âmbito de um procedimento investigatório, não tem
o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de
responsabilização, conforme art. 19, §4º, do Decreto 9603/2018.
Tem por objetivo o acolhimento da criança/adolescente, que devem, sempre
que possível, ser escutados sem interrupções, com o mínimo de questionamentos,
evitando-se perguntas diretivas ou interrupções.
As diretrizes para a Escuta Especializada têm o objetivo de não agravar
ainda mais o sofrimento da vítima/testemunha por sua exposição a diversos

38
procedimentos em que tem que relatar sobre a violação sofrida, salvo alguns casos
excepcionais.
A criança ou o adolescente deve ser informado em linguagem compatível
com o seu desenvolvimento acerca dos procedimentos formais pelos quais terá
que passar e sobre a existência de serviços específicos da rede de proteção, de
acordo com as demandas de cada situação. (art. 19, §1º, do Decreto 9.603/2018).
O servidor responsável pelas diligências iniciais deve sempre buscar a
instrução do procedimento por outros meios de prova, priorizando a busca de
informações junto à pessoa que acompanha a criança ou adolescente e por meio
de documentação remetida por outros serviços, programas ou equipamentos
públicos, de modo a evitar, sempre que possível, a Escuta Especializada e o
Depoimento Especial em sede policial.
Conforme já foi ensinado no módulo anterior, que uma vez realizado o
registro da ocorrência e a análise dos fatos denunciados, o profissional responsável
pela Escuta Protegida deve, antes de convidar a criança ou o adolescente para a
entrevista em um ambiente mais reservado, realizar um breve acolhimento.
O referido acolhimento tem por objetivo a apresentação do profissional à
vítima/testemunha e ao responsável, como explicar aos mesmos sobre a realização
da Escuta Protegida, criando-se, assim, um vínculo de confiança com a
criança/adolescente, além de permitir ao profissional a análise inicial do
desenvolvimento da criança e de seu estado emocional no momento. Em seguida,
a criança ou adolescente deve ser convidada a entrar na sala de atendimento, sem
a presença do representante legal.
A Escuta Especializada se organiza nas seguintes fases:
 Fase introdutória;
 Construção da empatia ou rapport;
 Transição;
 Análise do incidente
 Intervalo (opcional);
 Encerramento.

39
4.1 FASE INTRODUTÓRIA

Esta fase tem por objetivo explicar à vítima ou testemunha como a oitiva
deve acontecer, cientificar a criança/adolescente e representante legal acerca da
gravação em áudio e vídeo (se for feita), além de estabelecer junto à
criança/adolescente regras sobre a entrevista.
Deve-se, ainda no ambiente externo à entrevista, cumprimentar e
apresentar-se à criança, e assim conduzir a mesma até a sala de acolhimento. O
profissional explicar à criança como a entrevista será realizada, apresentar o
ambiente em que a entrevista vai acontecer, explicar as regras da entrevista e
explicar sobre o método de registro das informações (gravação de áudio/vídeo ou
confecção de relatório).
Recomenda-se que, no ambiente da Escuta Especializada, permaneçam
apenas a criança/adolescente e o entrevistador. A criança/adolescente deverá ser
informada sobre o acesso de outras pessoas ao registro de relatório/vídeo que será
realizado.
É importante avaliar o nível de estresse inicial da criança ou adolescente
para dosar a duração dessa fase introdutória. Este estágio da entrevista
geralmente não é muito longo, mas deve ser adequado às necessidades da criança
e da família.
Caso o acompanhante/responsável tenha entrado na sala junto com a
criança/adolescente para ambientação, explicar que nesse momento o primeiro vai
aguardar do lado de fora. Caso a criança se recuse veementemente a ficar na sala
sem a presença do seu responsável, deve ser realizada, junto à autoridade policial,
uma avaliação sobre a possibilidade da realização da entrevista com a presença do
responsável.
Caso o responsável permaneça na sala durante a entrevista, é necessário
orientar ao mesmo que ele deve permanecer sentado em uma cadeira fora do
alcance visual da criança/adolescente (preferencialmente, atrás), devendo ele
permanecer em silêncio durante toda a entrevista, de modo a não influenciar o
relato.

40
4.2 CONSTRUÇÃO DA EMPATIA

O objetivo desta etapa é o estabelecimento da empatia com a criança ou o


adolescente, componente essencial da entrevista forense. Trata-se mais de um
estilo de interação a ser mantido ao longo de toda a entrevista do que um de seus
estágios. A construção da empatia busca a construção de uma relação baseada
em confiança mútua, respeito e aceitação, por meio de uma conversação amigável,
contato visual, sorrisos, braços descruzados, postura de observação e uso de
enunciados abertos, solicitando descrições sobre si e estados emocionais.
Esta etapa diminui a formalidade da situação e possibilita que a criança ou o
adolescente fique mais à vontade para se envolver em uma conversa natural sobre
assuntos pertinentes à entrevista. Este estágio é também conhecido como fase do
rapport ou engajamento inicial.
O entrevistador deve envolver a criança ou o adolescente em uma conversa
sobre assuntos neutros ou positivos, não relacionados à violência, estabelecendo
uma relação de empatia e confiança com a vítima, para que assim ela se
comunique com menos resistência. Podem ser usados temas como amigos,
animais de estimação, escola, atividades favoritas, comidas preferidas, sempre de
maneira mais aberta possível.
O entrevistador tem ainda a oportunidade de observar os padrões
linguísticos da criança ou adolescente, a interação com o ambiente e o nível de
conforto que mantém com um adulto que não lhe é familiar.
Pedir à criança/adolescente que conte sobre coisas que gosta de fazer,
sobre sua escola, sobre alguma peça de roupa ou brinquedo que esteja em posse
da criança, se ela tem animais de estimação etc.
Caso a criança ou o adolescente necessite de um estímulo para continuar
falando, o entrevistador pode fazer uma solicitação do tipo “Me fale mais sobre
_______”.

41
4.3 TRANSIÇÃO

O objetivo desta etapa é preparar a criança ou o adolescente para fazer


espontaneamente a transição para a revelação ou “deixar a porta aberta”. O
profissional irá explicar para a criança ou adolescente sobre a atuação da
delegacia na proteção de direitos de crianças e adolescente, e sobre a importância
do seu relato sobre as violações sofridas.
A criança ou o adolescente que se encontra no estágio de “revelação ativa”
pode iniciar o relato sobre a alegação durante a fase de construção da
empatia/prática narrativa. Nesses casos, o servidor capacitado deve estar
preparado para seguir na direção apontada pela criança ou adolescente.
São regras que devem ser apresentadas à criança/adolescente nesse
momento da entrevista:
Tudo bem se você não entender a pergunta: "Se eu fizer uma pergunta que
você não entendeu, diga “eu não entendi”. Está bem?”.
Eu (servidor) não sei as respostas: “Se eu não entender o que você está me
contando, vou pedir para você me explicar melhor. Eu não estava lá, então eu não
sei o que realmente aconteceu. Está bem?”.
Tudo bem se você não souber me responder: “Se eu fizer uma pergunta e
você não souber a resposta diga apenas “eu não sei”. Está bem?
Pode usar qualquer palavra: "Não tem problema se você precisar usar
alguma palavra "feia" para me explicar o que aconteceu. Na nossa conversa não
tem palavra certa e nem palavra errada, você pode falar do jeito que quiser”.
Repetição de perguntas: "Se eu fizer a mesma pergunta mais de uma vez,
isto não significa que a primeira resposta estava errada. Talvez eu apenas tenha
me esquecido ou me confundido. Se a sua primeira resposta estava correta,
apenas me diga novamente. Tudo bem?”.
Explicar para a criança a forma de registro da entrevista: "Durante a nossa
conversa, eu vou anotar/digitar algumas coisas que você falar, para que assim eu
não me esqueça de nenhum detalhe." Neste momento a criança ou adolescente
poderá apresentar dúvidas sobre quem vai ter acesso ao registro realizado. Nesse
caso, deve-se explicar à mesma, com honestidade e de acordo com seu nível de
desenvolvimento, quais atores da rede terão acesso ao conteúdo do acolhimento.

42
Deve-se iniciar o diálogo solicitando à criança que fale sobre sua família ou
onde mora (no caso de crianças em situação de abrigamento institucional), pois o
tema pode revelar preocupações que precisam ser analisadas durante o
acolhimento.
Neste momento, devem ser realizadas perguntas ou abordagens abertas,
incentivando que a criança ou o adolescente inicie um relato sobre acontecimentos
da sua própria maneira, no seu próprio passo. O servidor deve estar preparado
para seguir na direção dada pela criança ou adolescente. Neste momento a criança
deve relatar os fatos espontaneamente, sem interrupções por parte do servidor.
Caso o relato da criança seja curto e sem detalhes, deve-se estimular, de forma
não diretiva, que ela forneça mais informações.
O profissional, de posse das circunstâncias em que a violação ocorreu
(REDS, relatórios ou falas do responsável legal), poderá utilizar algumas
perguntas, tais como:

“Já aconteceu alguma coisa em sua vida que você não gostou
ou que tenha te deixado triste?”
“Já aconteceu alguma coisa em sua vida que te deixou com
medo de falar para alguém de confiança?”
“Alguém já te pediu segredo sobre algo?”
“Eu fiquei sabendo que você contou para ____ sobre algo que
te deixou triste ou que te incomodou. É verdade? O que você
contou para ___?”
Caso a criança não relate espontaneamente, formule
perguntas mais focadas, mas que ainda estimulem o relato
espontâneo, como:
“Conte-me porque _____ trouxe você aqui para falar comigo
hoje”
“Alguém falou com você sobre o assunto da nossa conversa?”

Não é aconselhável interromper a criança ou o adolescente para perguntar


detalhes ou esclarecer ambiguidades. Tais intervenções devem ser realizadas na
fase de análise do acidente.

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Caso a criança apresente sinais visíveis de machucados (vermelhidões,
arranhões, curativos etc.), peça a ela para contar tudo sobre o que os causou (“Eu
vejo que você tem (uma queimadura/corte/ferida/curativo etc.) no seu ______.
Conte-me tudo sobre isto”.
Se a criança/adolescente NÃO relatar a violência, verifique com cuidado a
necessidade de continuar perguntando ou parar com a entrevista. O objetivo da
Escuta Especializada é o acolhimento para superação da violência. Perguntas mais
diretas podem ser necessárias caso exista a preocupação com o fato de a criança
estar em elevado risco de sofrer novos abusos. Lembre-se, no entanto, que o
abuso pode não ter ocorrido.

4.4 ANÁLISE DO INCIDENTE

Esta fase, na Escuta Especializada, tem o objetivo de esclarecer


informações que sejam absolutamente necessárias para o encaminhamento do
caso e que já tenham sido reveladas pela criança, como identificação dos
envolvidos, local e data dos fatos ou, então, para compreender melhor trechos do
relato que não tenham ficado claros para o entrevistador, como:
“Você me disse que um tio te bateu. Qual o nome desse tio?”
“Quando você estava me contando o que aconteceu, você disse que estava
em uma sala. Onde fica essa sala?”
Não se deve perguntar à criança/adolescente detalhes que não tenham sido
espontaneamente relatados por ela sobre os fatos narrados.

4.5 INTERVALO

Uma vez que o registro da Escuta Especializada é feito, na maioria das


vezes, através de relatório, o entrevistador deve explicar à criança/adolescente que
será realizado um intervalo para a confecção e impressão dele.
O entrevistador deve comunicar à criança/adolescente que, nesse momento,
ele vai esperar o entrevistador do lado de fora da sala de entrevistas, enquanto o
relatório é produzido. Também deve-se sugerir à mesma que pense, enquanto
espera, se há algo mais que ela gostaria de contar.

44
Durante o intervalo, o responsável pode acompanhar a criança/adolescente,
se necessário, ao banheiro, beber água ou fazer um lanche. Também se
recomenda que seja fornecido a crianças pequenas atividades como lápis e papel,
jogos, livros ou revistas em quadrinhos.

4.6 ENCERRAMENTO

Ao final da produção do relatório, o entrevistador deve chamar a


criança/adolescente novamente à sala, e perguntar à mesma se, durante o
intervalo, recordou-se de algum fato importante que ela ainda não havia
mencionado. Em caso de resposta afirmativa, o entrevistador deve ouvir a criança
e adicionar o complemento no relatório já redigido.
Caso a criança relate que não há mais nada para revelar, deve-se, então,
agradecer a criança por sua presença, pela oportunidade de conhecê-la e pelo seu
esforço.
Retorna-se a conversa, então, para assuntos do cotidiano da
criança/adolescente, de forma a ajudar a mesma a voltar a um estado mais
confortável. Pode-se retomar os assuntos conversados na fase de construção da
empatia ou sugerir outros assuntos neutros.
O servidor vai concluir o relatório feito após a Escuta Especializada, devendo
este ser assinado por ele, pela criança/adolescente, se possível, e pelo
representante legal que o acompanha. Caso a vítima/testemunha manifeste não
querer que o representante legal tenha acesso a seu relato, o servidor vai analisar
a possibilidade de atendimento do pedido junto ao Delegado de Polícia.
Caso a criança/adolescente faça relato espontâneo de violência cometida
pelo representante legal que a acompanha, o Delegado de Polícia deve analisar a
necessidade de adoção de medidas de proteção ou encaminhamento a outros
órgãos da rede, como Conselho Tutelar, por exemplo.

45
5. DEPOIMENTO ESPECIAL

O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente


vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (art. 8º
da Lei 13.431/2017). Busca a apuração da materialidade e autoria dos fatos
criminosos no âmbito de um processo investigatório e de responsabilização judicial
do suposto autor da violência.
A autoridade policial ou judiciária deverá avaliar se é indispensável a oitiva
da criança ou do adolescente, consideradas as demais provas existentes, de forma
a preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e
social (art. 22, §2ºº do Decreto 9.603/2018).
Tanto durante a investigação policial como na instrução criminal, a criança
ou adolescente também deverá ser resguardado de qualquer contato, ainda que
visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente
ameaça, coação ou constrangimento.
Deverá ser gravado com equipamento que assegure a qualidade
audiovisual. A sala de depoimento especial poderá ter sala de observação ou
equipamento tecnológico destinado ao acompanhamento e à contribuição de outros
profissionais da área da segurança pública e do sistema de justiça.
A criança ou o adolescente devem ser respeitados em sua iniciativa de não
falar sobre a violência sofrida. Durante o depoimento especial, deverão ser
respeitadas as pausas prolongadas, os silêncios e os tempos de que a criança ou o
adolescente necessitarem.
Em casos de ocorrência de problemas técnicos impeditivos ou de bloqueios
emocionais que impeçam a conclusão da oitiva, ela deverá ser reagendada,
respeitadas as particularidades da criança ou do adolescente.
O Decreto 9.603/2018 disciplina que o depoimento especial deve ser
conduzido por autoridades capacitadas, que deverão observar o seguinte:
1) os repasses de informações ou os questionamentos que possam
induzir o relato da criança ou do adolescente deverão ser evitados em
qualquer fase da oitiva;
2) os questionamentos que atentem contra a dignidade da criança ou
do adolescente ou, ainda, que possam ser considerados violência
institucional deverão ser evitados;

46
3) o profissional responsável conduzirá livremente a oitiva sem
interrupções, garantida a sua autonomia profissional e respeitados os
códigos de ética e as normas profissionais;
4) as perguntas demandadas pelos componentes da sala de
observação serão realizadas após a conclusão da oitiva;
5) as questões provenientes da sala de observação poderão ser
adaptadas à linguagem da criança ou do adolescente e ao nível de seu
desenvolvimento cognitivo e emocional, de acordo com o seu interesse
superior;
6) durante a oitiva, deverão ser respeitadas as pausas prolongadas,
os silêncios e os tempos de que a criança ou o adolescente necessitarem.

O depoimento especial deverá ser registrado na sua íntegra desde o começo


e, em casos de ocorrência de problemas técnicos impeditivos ou de bloqueios
emocionais que impeçam a conclusão da oitiva, ela deverá ser reagendada,
respeitadas as particularidades da criança ou do adolescente.
É regido por protocolos e, sempre que possível, será realizado uma única
vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa
do investigado.
Diz o artigo 156, I do CPP que:

A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao


juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada
de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade,
a adequação e proporcionalidade da medida.

O depoimento especial deve ser realizado preferencialmente como prova


antecipada, a ser produzida pelo juiz com observância do contraditório real antes
mesmo do início do processo ou antes da audiência de instrução e julgamento.
Mas, sendo impossível sua realização, pode ser feito em sede policial e repetido
posteriormente em juízo.
Todavia, o depoimento especial seguirá o rito cautelar de antecipação de
prova quando a criança tiver menos de sete anos de idade e nos casos de violência
sexual.

47
Nessas situações, em vez da oitiva realizada pela Autoridade Policial, deve-
se buscar a realização na fase processual como prova. Nestes casos, conforme
trazido anteriormente, a polícia poderá realizar escuta especializada, com o relato
limitado ao estritamente necessário para tomada das medidas urgentes, dentre
elas a representação pelo depoimento especial como prova antecipada.
Assim, o Depoimento Especial, quando não segue rito de produção
antecipada de prova judicial (art. 11, §1º), poderá ser realizado em Unidade Policial
em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a
privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência.
O depoimento especial será colhido conforme o seguinte procedimento (art.
12 da Lei 13.431/17):

I - os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente


sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e
os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo
vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;
II - é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a
situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando
necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;
III - no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido
em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;
IV - findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após
consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos,
avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em
bloco;
V - o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem
de melhor compreensão da criança ou do adolescente;
VI - o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.
Verifica-se que o contato direto com a vítima será feito pelo profissional
habilitado, devidamente capacitado, e que a autoridade judicial ou policial
terá contato com as informações por meio remoto, bem como terá acesso
posterior às informações colhidas, que serão gravadas por meio de áudio
e vídeo.

Deve ser respeitada a intervenção do profissional com expertise técnica, que


poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou
do adolescente, bem como a gravação do ato em áudio e vídeo, além de todas as
48
medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima
ou testemunha, evitando-se o contato com o suposto autor ou acusado, ou com
outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.
De acordo com o art. 22 da Lei 13.431/17, os órgãos policiais envolvidos
envidarão esforços investigativos para que o depoimento especial não seja o único
meio de prova para o julgamento do réu, apesar da dificuldade, muitas vezes, de se
obter outros meios de prova, em razão da natureza do crime, principalmente os de
natureza sexual.
A Lei 13.431/17 possibilita a vítima ou testemunha de violência prestar
depoimento diretamente ao juiz, assim, caso a vítima entenda ser melhor, poderá
ser ouvida no sistema tradicional.
O depoimento especial deverá ser realizado o mais próximo possível do
momento em que os fatos foram revelados. Não será admitida a tomada de novo
depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela
autoridade policial ou judicial e houver a concordância da vítima ou da testemunha,
ou de seu representante legal.
O profissional especializado, responsável pelo depoimento especial como
produção antecipada de provas em Juízo, comunicará ao juiz se verificar que a
presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento
ou colocar a criança ou adolescente em situação de risco, caso em que, fazendo
constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.
Em caso de risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o
juiz tomará as medidas de proteção cabíveis, inclusive a restrição da transmissão
em tempo real para a sala de audiência e a gravação em áudio e vídeo.
O depoimento especial tramita em segredo de justiça, de forma a garantir o
direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.
Apesar de não ser possível estabelecer um tempo de duração da entrevista,
profissionais e autoridades devem envidar esforços para que esta não ultrapasse
uma hora de duração.
Importante mencionar que nos casos de suspeita de crimes contra dignidade
sexual e nos demais quando a vítima tiver menos que sete anos de idade, havendo
elementos suficientes sobre a existência do fato e sua autoria, o Depoimento
Especial não deve ser realizado na Unidade Policial, devendo o Delegado de

49
Polícia representar ao Ministério Público pela produção antecipada de prova,
encaminhando os autos ou cópia do Inquérito Policial com a maior brevidade
possível.
O procedimento pode ser realizado quando da formalização de Auto de
Prisão em Flagrante, devidamente agendado, ou em atendimento de demanda
espontânea, após manifestação de consentimento da criança/adolescente e de seu
representante legal.
Como o procedimento realizado em Unidade Policial não se trata de
produção antecipada de provas, não é imprescindível a presença do investigado ou
seu advogado, no entanto, podem participar do procedimento em sala de
observação.
No caso de depoimento especial previamente agendado, a criança ou
adolescente deverá ser intimada 30 minutos antes do horário previsto para o início
da oitiva, com o objetivo de possibilitar a apresentação do profissional e da sala a
ser utilizada, além de evitar contato com o investigado, caso ele participe do
procedimento.
Sugere-se que a intimação seja acompanhada de material explicativo (vide
anexos) destinado à criança/adolescente e aos responsáveis legais sobre o trâmite
do Depoimento Especial.
Importante ressaltar que a criança/adolescente é uma pessoa em
desenvolvimento e não pode ser tratada como mero objeto de prova.
O Depoimento Especial organiza-se com as seguintes fases:

1. Fase introdutória;
2. Construção da empatia ou rapport;
3. Prática narrativa e treino de memória;
4. Transição;
5. Investigação do incidente
6. Intervalo;
7. Encerramento.

50
5.1 FASE INTRODUTÓRIA

Esta fase tem por objetivo explicar à vítima ou testemunha como a oitiva
deve acontecer, cientificar a criança/adolescente e representante legal acerca da
gravação em áudio e vídeo, além de estabelecer junto à criança/adolescente regras
sobre a entrevista.
Deve-se, ainda no ambiente externo à entrevista, cumprimentar e
apresentar-se à criança, e assim conduzir a mesma até a sala de entrevista. O
profissional explicar à criança como a entrevista será realizada, apresentar o
ambiente em que a entrevista vai acontecer, explicar as regras da entrevista e
explicar sobre o método de registro das informações (gravação de áudio/vídeo).
Recomenda-se que, no ambiente da entrevista, permaneçam apenas a
criança/adolescente e o entrevistador. A criança/adolescente deverá ser
cientificada da existência da sala de observação e que outras pessoas
acompanharão a oitiva, como o Delegado de Polícia, advogado, dentre outros.
Caso a criança manifeste-se negativamente sobre a presença de uma das pessoas
na sala de observação, é necessário avaliar se tal presença é realmente
necessária para a realização da entrevista.
É importante avaliar o nível de estresse inicial da criança ou adolescente
para dosar a duração dessa fase introdutória. Este estágio da entrevista
geralmente não é muito longo, mas deve ser adequado às necessidades da criança
e da família.
Caso o acompanhante/responsável tenha entrado na sala junto com a
criança/adolescente para ambientação, explicar que nesse momento o primeiro vai
aguardar do lado de fora. Caso a criança recuse veementemente a ficar na sala
sem a presença do seu responsável, deve ser realizada, junto ao Delegado de
Polícia, uma avaliação sobre a possibilidade da realização da entrevista com a
presença do responsável.
Caso o responsável permaneça na sala durante a entrevista, é necessário
orientar ao mesmo que ele deve permanecer sentado, em uma cadeira fora do
alcance visual da criança/adolescente (preferencialmente, atrás), e em silêncio
durante toda a entrevista, de modo a não influenciar o relato.

51
Caso haja indicadores de que o investigado, caso presente, não deva ter
acesso ao conteúdo da entrevista durante a realização do depoimento, deve-se
adotar os procedimentos previstos no Art. 12 § 3º e 4º: “o profissional especializado
comunicará ao Delegado se verificar que a presença, na sala de audiência, do
autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em
situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o
afastamento do imputado”.

5.2 CONSTRUÇÃO DA EMPATIA OU RAPPORT

Nesta fase, inicia-se a gravação do depoimento especial.


O objetivo desta etapa é o estabelecimento da empatia com a criança ou o
adolescente, componente essencial da entrevista forense. Trata-se mais de um
estilo de interação a ser mantido ao longo de toda a entrevista do que um de seus
estágios. A construção da empatia, busca a construção de uma relação baseada
em confiança mútua, respeito e aceitação por meio de uma conversação amigável,
contato visual, sorrisos, braços descruzados, postura de observação e uso de
enunciados abertos, solicitando descrições sobre si e estados emocionais.
Esta etapa diminui a formalidade da situação e possibilita que a criança ou o
adolescente fique mais à vontade para se envolver em uma conversa natural sobre
assuntos pertinentes à entrevista que sejam interessantes para ela ou para ele.
Este estágio é também conhecido como fase do rapport ou engajamento inicial.
O(a) entrevistador(a) deve envolver a criança ou o adolescente em uma
conversa sobre assuntos neutros ou positivos, não relacionados à violência,
estabelecendo uma relação de empatia e confiança com a vítima, para que assim
ela se comunique com menos resistência. Podem ser usados temas como amigos,
animais de estimação, escola, atividades favoritas, comidas preferidas, sempre de
maneira mais aberta possível.
O(a) entrevistador(a) tem ainda a oportunidade de observar os padrões
linguísticos da criança ou adolescente, a interação com o ambiente e o nível de
conforto que mantém com um adulto que não lhe é familiar.

52
Pedir à criança/adolescente que conte sobre coisas que gosta de fazer,
sobre sua escola, sobre alguma peça de roupa ou brinquedo que esteja em posse
da criança, se ela tem animais de estimação etc.
Caso a criança ou o adolescente necessite de um estímulo para continuar
falando, o(a) entrevistador(a) pode fazer uma solicitação do tipo “Me fale mais
sobre _______”.

5.3 PRÁTICA NARRATIVA E TREINO DE MEMÓRIA

Essa fase da entrevista tem como objetivo a observação do estado físico e


emocional da criança/adolescente, bem como sua disposição para interagir com o
entrevistador. Também é importante para avaliação da capacidade da
criança/adolescente de fazer relatos espontâneos, o que traz indicativos sobre o
seu nível de desenvolvimento.
As seguintes variáveis devem ser consideradas para avaliação do
desenvolvimento linguístico:
- Tamanho das frases;
- O tipo de palavras usadas e se são apropriadas à idade da
criança/adolescente:
- Aspectos da linguagem corporal, como expressões
comunicadas por gestos;
- Consistência de contato visual;
- Demonstração de afeto;
- A capacidade da criança/adolescente de delinear algumas
descrições espaciais e temporais como: “O que é dentro e o
que é fora”, “o que é embaixo e o que é em cima”, e “o que é
antes e o que é depois”;
- Avaliação da compreensão, por parte da
criança/adolescente, de conceitos como data e hora, duração,
frequência, localização, medidas. Nestes casos o uso de
comparações e analogias pode ajudar.
- Averiguar a capacidade de responder: Porque, Quando,
Onde, Como, Quem, O quê?

53
Deve-se iniciar o diálogo solicitando à criança que fale sobre sua família ou
onde mora (no caso de crianças em situação de abrigamento institucional), pois
esse tema pode revelar preocupações que precisam ser investigadas em
entrevista.
Caso a criança cite apenas nomes, sem revelar sua relação com as pessoas
citadas ou for muito objetiva, o entrevistador deve estimular para que ela continue
falando ("Quem são essas pessoas?", "Há quanto tempo você mora nesse lugar?").
O(a) entrevistador(a) deve, então, perguntar à criança sobre um evento
específico em sua vida, solicitando que ela relate tudo, do começo até o final. Isso
permite que o(a) entrevistador(a) tenha chance de compreender as habilidades
narrativas da criança/adolescente. Pergunte sobre algum evento neutro e que não
tenha ligação com a denúncia (primeiro dia na escola, aniversário, comemoração
de data especial, férias, viagem etc.).
Caso a entrevista esteja sendo realizada com uma criança bem pequena ou
com adolescente que apresente suspeita ou confirmação de atraso cognitivo, esse
é o momento adequado para observar se ele possui compreensão sobre datas ou
tempo decorrido ("Qual foi a data do seu aniversário?", “Qual seu horário de aula?”,
“Quando foram as suas últimas férias?”, etc.).
Caso o entrevistador não tenha sucesso ao tentar explorar um evento
específico da vida da criança, sugere-se fazer perguntas sobre ontem e hoje ("Me
conte como foi o seu dia ontem, desde a hora que você acordou até a hora em que
foi dormir", “Me conte tudo o que você fez no final de semana”).

5.4 TRANSIÇÃO

O objetivo desta etapa é preparar a criança ou o adolescente para fazer


espontaneamente a transição para a revelação ou “deixar a porta aberta”. O
profissional irá explicar para a criança ou adolescente sobre a atuação da
delegacia na proteção de direitos de crianças e adolescente, e sobre a importância
do seu relato sobre as violações sofridas.
A criança ou o adolescente que se encontra no estágio de “revelação ativa”
pode iniciar o relato sobre a alegação durante a fase de construção da

54
empatia/prática narrativa. Nesses casos, o(a) entrevistador(a) deve estar
preparado(a) para seguir na direção apontada pela criança ou adolescente.
São regras que devem ser apresentadas à criança/adolescente nesse
momento da entrevista:
Tudo bem se você não entender a pergunta: "Se eu fizer uma
pergunta que você não entendeu, diga “eu não entendi”. Está
bem?”.
Eu (entrevistador) não sei as respostas: “Se eu não entender
o que você está me contando, vou pedir para você me
explicar melhor. Eu não estava lá, então eu não sei o que
realmente aconteceu. Está bem?”.
Tudo bem se você não souber me responder: “Se eu fizer
uma pergunta e você não souber a resposta diga apenas “eu
não sei”. Está bem?
Pode usar qualquer palavra: "Não tem problema se você
precisar usar alguma palavra "feia" para me explicar o que
aconteceu. Na nossa conversa não tem palavra certa e nem
palavra errada, você pode falar do jeito que quiser.
Repetição de perguntas: "Se eu fizer a mesma pergunta mais
de uma vez, isto não significa que a primeira pergunta estava
errada. Talvez eu apenas tenha me esquecido ou me
confundido. Se a sua primeira resposta estava correta,
apenas me diga novamente. Tudo bem?”.
Deve-se iniciar o diálogo solicitando à criança que fale sobre sua família ou
onde mora (no caso de crianças em situação de abrigamento institucional), pois o
tema pode revelar preocupações que precisam ser analisadas durante a entrevista.
Neste momento, devem ser realizadas perguntas ou abordagens abertas,
incentivando que a criança ou o adolescente inicie um relato sobre acontecimentos
da sua própria maneira, no seu próprio passo. O servidor deve estar preparado(a)
para seguir na direção dada pela criança ou adolescente. Neste momento a criança
deve relatar os fatos espontaneamente, sem interrupções por parte do servidor.
Caso o relato da criança seja curto e sem detalhes, deve-se estimular, de forma
não diretiva, que ela forneça mais informações.

55
O profissional, de posse das circunstâncias em que a violação ocorreu
(REDS, relatórios ou falas do responsável legal), poderá utilizar algumas
perguntas, tais como:

“Já aconteceu alguma coisa em sua vida que você não gostou
ou que tenha te deixado triste?”
“Já aconteceu alguma coisa em sua vida que te deixou com
medo de falar para alguém de confiança?”
“Alguém já te pediu segredo sobre algo?”
“Eu fiquei sabendo que você contou para __ sobre algo que te
deixou triste ou que te incomodou. É verdade? O que você
contou para ___?”
Caso a criança não relate espontaneamente, formule
perguntas mais focadas, mas que ainda estimulem o relato
espontâneo, como:
“Conte-me porque _____ trouxe você aqui para falar comigo
hoje”
“Alguém falou com você sobre o assunto da nossa conversa?”

Não é aconselhável interromper a criança ou o adolescente para perguntar


detalhes ou esclarecer ambiguidades. Tais intervenções devem ser realizadas na
fase de análise do acidente. Caso a criança apresente sinais visíveis de
machucados (vermelhidões, arranhões, curativos etc.), peça a ela para contar tudo
sobre o que os causou (“Eu vejo que você tem (uma
queimadura/corte/ferida/curativo etc.) no seu ______. Conte-me tudo sobre isto”.)
Fazer referência ao nome do suspeito não é um problema se ele/ela é
alguém que está rotineiramente na vida da criança/adolescente. Pedir à criança
para contar coisas que ele/ela gosta e não gosta sobre tal pessoa é aceitável como
forma de transição. O entrevistador deve certificar-se de também formular
perguntas similares sobre outras pessoas na vida da criança (Se o entrevistador
sabe que o suspeito é o padrasto, ela pode pedir à criança que relate, por exemplo:
"Você me contou que mora com a sua mãe, com o seu padrasto e o seu irmão.
Fale para mim quais coisas sua mãe faz e que te deixam feliz/você gosta. Agora

56
me conte as coisas que ela faz e que te deixam triste/que você não gosta". Após a
resposta da criança, fazer as mesmas perguntas sobre o irmão e sobre o
padrasto).
Caso a criança confirme, através dessas perguntas, a existência de violação
por parte do suspeito, o(a) entrevistado pode pedir, com perguntas abertas, que a
criança descreva os fatos.
Se as estratégias anteriores não estiverem funcionando, para facilitar que a
criança ou o adolescente converse sobre o fato denunciado, o(a) entrevistador(a)
pode prosseguir com um tipo de abordagem denominada estratégia de
afunilamento. Nela, o(a) entrevistador(a) se move gradualmente de perguntas ou
abordagens abertas para perguntas ou abordagens mais focadas e/ou perguntas
mais diretas, introduzindo uma quantidade mínima de informações necessárias
para focar a criança ou o adolescente no assunto da denúncia.
O(a) entrevistador(a) deve seguir o caminho sinalizado pela criança ou
adolescente em suas respostas. (Exemplo: “Eu sei que você conversou com sua
professora, e que você contou para ela que algo aconteceu. Conte para mim o que
você disse para a ela”). Cada resposta positiva deverá ser seguida por “Me conte
mais sobre isso”.
Caso a criança ou o adolescente tenha negado ou se recusado a falar sobre
os fatos denunciados, mesmo após o uso gradual das perguntas da abordagem do
“afunilamento”, deve-se oferecer suporte emocional à mesma, perguntando como
ela se sente e o que poderia ser feito para que ela se sentisse mais à vontade para
relatar os fatos. Recomenda-se, também, retornar aos objetivos da entrevista,
explicando à criança/adolescente sobre a importância de ela falar o que aconteceu,
uma vez que só ela sabe detalhes. Caso a criança ainda se recuse a falar sobre os
fatos, o(a) entrevistador(a) poderá prosseguir diretamente para a etapa de abertura
para perguntas da sala de observação.
Se a criança/adolescente NÃO relatar a violência, verifique com cuidado a
necessidade de continuar perguntando ou parar com a entrevista. Perguntas mais
diretas podem ser necessárias caso exista a preocupação com o fato de a criança
estar em elevado risco de sofrer nova violência abusos. Lembre-se, no entanto,
que a violência pode não ter ocorrido.

57
5.5 INVESTIGAÇÃO DO INCIDENTE

Esta fase, no Depoimento Especial, tem o objetivo de esclarecer


informações que tenham sido prestadas, ou que sejam essenciais para a
investigação e que ainda não tenham sido fornecidas pela criança/adolescente,
como:
- A utilização de armas ou instrumentos durante o fato e onde
estes ficavam guardados;
- Presença de drogas ou bebidas e quem as consumiu;
- Quando e onde os fatos aconteceram;
- Frequência dos fatos;
- Possibilidade de existência de outras vítimas;
- Presença de marcas, machucados ou cicatrizes;
- Privação de cuidados de higiene ou alimentares;
- Verificação se o agressor falava algo antes, durante e depois
da violência;
- Quem foi a primeira pessoa a ter conhecimento sobre os
fatos e se outras pessoas tiveram conhecimento.

Caso a criança forneça novas informações que ainda não haviam sido
exploradas durante a fase de transição, cada resposta deverá ser seguida por “Me
conte mais sobre isso”.

5.6 INTERVALO

O intervalo durante o Depoimento Especial é necessário para obter


comentários e perguntas vindas da sala de observação (chat pelo tablet ou
conversa na sala de observação). O entrevistador deve comunicar à
criança/adolescente que, nesse momento, as pessoas que aguardam do lado de
fora serão consultadas, para saber se elas possuem alguma dúvida sobre o que foi
relatado.

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Deve-se, também, sugerir à mesma que pense, enquanto espera, se há algo
mais que ela gostaria de contar. Também se recomenda que seja fornecido a
crianças pequenas atividades como lápis e papel, jogos, livros ou revistinhas.

5.7 ENCERRAMENTO

Ao final do intervalo, o entrevistador deve perguntar à criança/adolescente


se, durante o intervalo, recordou-se de algum fato importante que ela ainda não
havia mencionado. Em caso de resposta afirmativa, o entrevistador deve ouvir a
criança e explorar mais informações sobre o fato.
Caso a criança relate que não há mais nada para revelar, deve-se, então,
realizar as perguntas feitas pelas pessoas presentes na sala de observação. Nos
termos do art. 12 da Lei 13431/17, o profissional especializado pode intervir quando
necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos; podem
também ser vetadas perguntas que podem gerar constrangimento nos termos do
art. parágrafo primeiro do art. 26 do decreto 9603/18.
Estratégias para transformação de perguntas da sala de observações
Na hipótese de as perguntas realizadas pelos observadores serem
fechadas, acusatórias ou possam causar algum tipo de desconforto na
criança/adolescente, elas devem ser transformadas.
Segue um conjunto de exemplos que podem orientar o processo de abertura
de perguntas:

• “Quais foram os atos de agressão?”


Pergunta transformada: “Eu soube que você falou em [indicar local –
delegacia, hospital, escola etc.] sobre alguém ter te batido. Me conte o que
você contou lá” e aguarde a resposta.
• “Quantas vezes o ato aconteceu?”
Pergunta transformada: [retomar o que a criança disse sobre a violência]
“Me conte sobre mais outra vez em que isso aconteceu” ou “Existe alguma
outra vez em que isso aconteceu e que você ainda não tenha me
contado?”.
Caso a criança ainda revele sobre outra vez, o(a) entrevistador(a) deverá
realizar perguntas de narrativa focalizada sobre esta outra vez.

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• “O autor usou de violência física, psicológica, ameaçou de causar mal
injusto ou grave?”
Pergunta transformada: [retomar o que a criança disse sobre a violência]
“Quando isso aconteceu, você ficou com alguma marca ou machucado no
seu corpo?”.
Caso a resposta da criança seja “Sim”, continue: “Me conte de que jeito
aconteceu essa marca/machucado”. [retomar o que a criança disse sobre
a violência]
“Quando isso aconteceu, [nome do autor, caso tenha sido revelado antes]
disse algo para você?”
Caso a resposta tenha sido “Sim”, prossiga com a pergunta: “O que [nome
do autor] disse?” ou “[nome do autor] disse que alguma coisa de ruim ou
de mal ia acontecer com você ou com alguém que você gosta?” – em caso
afirmativo de resposta, continue: “Me conte tudo sobre isso”.
• “O autor usou de violência física? Foi só com a força ou se valeu de faca,
arma de fogo ou qualquer outro instrumento capaz de ofender a
integridade física de alguém?”
Pergunta transformada: [retomar o que a criança disse sobre a violência]
“Quando isso aconteceu o(a) [nome do autor, caso tenha sido revelado
antes] estava com algum objeto?”.
Caso a criança tenha respondido “Sim”, pergunte: “O que era esse objeto?
Serve para que isso?”.
Caso a criança revele sobre o objeto, diga “Me conte tudo sobre isso”.
• “Existe grau de parentesco com o autor, ou ele é vizinho, padrasto etc.?”
Pergunta transformada: [retomar o que a criança disse sobre a violência]
“Quem é [nome do autor, caso tenha sido revelado antes]? O que essa
pessoa é de você? Quem é essa pessoa?”.
Caso seja extrafamiliar: “Como foi que você ficou conhecendo essa
pessoa?”.
• “Em que parte da casa ocorreu?”
Pergunta transformada: “Me fale como era o local em que ocorreu
[especificar o evento]. Me conte tudo o que você se lembra sobre o
momento em que [especificar o evento]”.
• Solicitação de acareação quanto a depoimento anterior
Não constitui boa prática da entrevista confrontar ou acarear informações
prévias da criança.

60
6. FATORES QUE PODEM INFLUENCIAR A ENTREVISTA

6.1 PASSAGEM DO TEMPO

Um dos fatores que devem ser levados em conta no atendimento de


crianças e adolescentes, e que podem afetar negativamente a qualidade das
informações colhidas, é a passagem do tempo. É necessário que o atendimento à
criança/adolescente seja feito o mais breve possível para, assim, preservar a
qualidade da recordação sobre os fatos vivenciados.

“Particularmente com crianças, o tempo prolongado, além de promover o


esquecimento e facilitar o aparecimento de distorções de memória,
associa-se à ocorrência de várias mudanças no desenvolvimento da
compreensão do mundo, de si e dos outros, o que também pode vir a
influenciar sua memória e alterar a precisão de suas recordações”.
(WELTER, C. L. W. et al., 2010)

6.2 TÉCNICAS DE ENTREVISTA UTILIZADAS

Outra preocupação a respeito do atendimento diz respeito às técnicas de


entrevistas realizadas na coleta do depoimento, uma vez que a forma que a
entrevista é realizada pode influenciar na qualidade do relato, e favorecer a
formação de informações falsas ou distorcidas.
Em relação aos bonecos anatômicos, existe muita divergência na literatura a
respeito de seu uso. Assim, o uso desse recurso deve ocorrer por profissionais com
a devida competência para tal, e seu uso deve ser feito apenas se houver a
revelação da violência, como fonte de complementação do relato.
O policial responsável não deve manusear, de forma alguma, os bonecos
anatômicos, muito menos despi-los, deixando-os sobre controle da
criança/adolescente de maneira livre, após a disponibilização dos mesmos.

61
6.3 AMBIENTE FÍSICO

Os eventos de violência, por si só, muitas vezes são geradoras de tensão e


ansiedade. Assim, em relação ao ambiente físico, é importante estar atento ao
clima proporcionado ao sujeito que, além de vítima, ainda está em formação. Um
ambiente excessivamente formal, frio e sem privacidade pode causar desconforto e
estresse, e até exacerbar sintomas já vivenciados pela criança/adolescente.

6.4 SÍNDROME DO SEGREDO

As estatísticas apontam que grande parte dos abusos sexuais contra


crianças e adolescentes são perpetrados por pessoas da família da vítima ou
conhecidos. Por muitas vezes, as crianças e os adolescentes podem apresentar
resistência em relatar a violência sofrida ou presenciada em razão do envolvimento
emocional com o abusador, por sofrer culpabilização ou ameaças.

6.5 REPETIÇÃO DE ENTREVISTAS OU DE PERGUNTAS

É recomendado que a criança seja entrevistada pelo menor número de


vezes possível, sendo de grande importância que as instituições compartilhem
seus registros. Uma nova entrevista só deve ser realizada se houver a necessidade
da coleta de informações que apenas a criança ou o adolescente tenha condições
de fornecer.
“Neste sentido, em virtude do estresse emocional envolvido num
depoimento, a repetição de entrevistas tem sido contraindicada, uma vez
que pode causar sofrimento desnecessário à criança, além de
comprometer negativamente a qualidade do relato”. (WELTER, C. L. W. et
al., 2010)

As perguntas realizadas à criança e ao adolescente só devem ser repetidas


caso o entrevistador não compreenda a primeira resposta dada. Quando uma
pergunta é repetida à criança ou ao adolescente, este pode deduzir que sua
primeira resposta não foi satisfatória e, em uma tentativa de agradar ao
entrevistador ou de encerrar a entrevista, a mesma pode mudar sua versão.

62
7. CONCLUSÃO

Os efeitos da violência no desenvolvimento de uma criança ou adolescente


vítimas ou testemunhas são inevitáveis. Porém, a ocorrência de tais efeitos pode
ser minimizada através de atendimentos adequados, acompanhamento da vítima e
de sua família e orientações sobre os procedimentos legais.
Além de possibilitar a responsabilização dos responsáveis pela violência, é
obrigação dos profissionais que atuam na rede de proteção proporcionar condições
adequadas para a superação da violência através de atendimentos adequados,
levando em consideração as peculiaridades do indivíduo.
Sem esquecer a necessidade de apurar os fatos criminosos, buscar
minimizar as consequências criminais, acolhendo a criança e o adolescente de tal
forma que suas lembranças não sejam motivos de tortura psicológicas, mantendo-
as o mais distante do presente de suas vidas.
Objetiva-se, assim, a conscientização sobre o importante papel de todos os
participantes da rede de proteção da criança e do adolescente como aliados no
combate da violência e na minimização da revitimização decorrente da
investigação policial e do processo judicial.
Não existe um padrão de comportamento de crianças/adolescentes que
possam ter passado por situações de violência e a condução do acolhimento e
escuta da vítima deve ocorrer analisando cada caso concreto que se apresente na
Unidade Policial.
A instrução dos procedimentos de polícia judiciária, nesses casos, deve
sempre primar pela utilização de outros meios de prova e caso seja necessária a
realização da escuta protegida, ela deve ser realizada com acolhimento,
observando os protocolos específicos e garantindo a proteção dos direitos das
crianças e adolescentes.

63
REFERÊNCIAS

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violência. Brasília, DF. 2017.

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da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, Brasília, 2018.
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