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O MATERIALISMO OBSCENO NOS VERSOS DE PIMENTÕES (1897),

DE PUFF (GUIMARÃES PASSOS) E PUCK (OLAVO BILAC)

Renata Ferreira Vieira (UERJ/CNPq) 1

Resumo: O jornal carioca Gazeta de Notícias, ao completar 21 anos, em 1896, criou a coluna
satírica “O Filhote” para comemorar sua “maioridade”. Entre os redatores de “O Filhote”
estavam escritores importantes da imprensa, como o alagoano Sebastião Cícero Guimarães
Passos (1867-1909) e o carioca Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918). Sob os
pseudônimos Puff & Puck, eles escreveram rimas obscenas para a coluna. O sucesso de “O
Filhote” atraiu o interesse da distinta livraria-editora Laemmert, que publicou os poemas da
dupla em livro com o título Pimentões em 1897. O objetivo do trabalho é conhecer a trajetória
desse livro e sua inscrição na literatura de entretenimento por meio do materialismo obsceno.

Palavras-chave: Materialismo; obscenidade; Pimentões; Guimarães Passos & Olavo Bilac

Este trabalho apresenta, de modo sintético, os resultados parciais da minha tese de


doutorado sobre o surgimento da categoria de “leitura alegre” no Brasil no final do
século XIX, relacionada a leituras de livros de conteúdo licencioso, atrelado ao aspecto
divertido e de entretenimento desse gênero de literatura, sob a orientação do professor
Leonardo Mendes, da UERJ. O objetivo da pesquisa é conhecer os gêneros textuais que
constituíam a categoria de “leitura alegre” nas práticas culturais dos escritores, críticos,
livreiros-editores, distribuidores e, se possível, do leitor comum dessa época no país.
Neste trabalho o foco de interesse é o estudo de um dos livros que compõe o corpus da
pesquisa: Pimentões (Rimas d’ O Filhote), de dois escritores importantes da imprensa: o
alagoano Sebastião Cícero Guimarães Passos (1867-1909) e o carioca Olavo Brás
Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), publicado pela distinta livraria-editora
Laemmert no Rio de Janeiro em 1897. Para cumprir o objetivo do trabalho, a pesquisa
investiga informações sobre esses escritores e suas relações com o mercado da “leitura
alegre”, entre as décadas do final do século XIX e a inicial do XX, no Acervo da
Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional, por meio dos pressupostos
teóricos da história do livro e da leitura do historiador francês Roger Chartier (1990).

1
Doutoranda em Literatura Comparada da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
Contato: rfv_30@yahoo.com.br

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Guimarães Passos e Bilac eram parceiros de trabalho e escreveram uma variedade
de textos humorísticos para diversos jornais e revistas, entre eles Almanaque Holanda,
A Bruxa e a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Em 1896, a parceria conquistou um
grande sucesso por meio da coluna “O Filhote”, uma seção humorística criada pelo
fundador da Gazeta de Notícias, o editor Ferreira de Araújo (1848-1900), para
comemorar os 21 anos de existência do jornal. Desde sua fundação em 1875 na cidade
do Rio de Janeiro, a Gazeta era conhecida como um jornal popular, liberal e irreverente.
Ao longo dos anos, o periódico tornava-se o local de trabalho dos sonhos dos homens
de letras, por reunir no seu quadro de colaboradores escritores eminentes como o
brasileiro Machado de Assis (1839-1908) e o português Eça de Queiroz (1845-1900)
(SIMÕES JUNIOR, 2007).

Legenda: “A Gazeta de Notícias completa hoje vinte um anos de existência”. Nessa edição, os chargistas
do jornal ilustraram uma “jovem formosa” para representar a Gazeta e, por extensão, a “mamãe” de “O
Filhote”, diagramado no alto da seção, no canto superior direito. Horizontalmente, a coluna ocupava o
espaço com um cabeçalho de três linhas, contendo data, número de edição e local de publicação e,
verticalmente, o espaço era ocupado com 4 colunas, com o rodapé dedicado à publicação de folhetins.

Fonte: Gazeta de Notícias/RJ, 02/08/1896, p.1.

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“O Filhote” surgia, diariamente, na primeira página da Gazeta de Notícias, entre 2
de agosto de 1896 e 28 de maio de 1897, como espaço de circulação de conteúdo adulto
e licencioso, veiculado com adorável permissividade infantil (MENDES, 2017). O
aparecimento da coluna estava ligado, sensivelmente, à realidade de um Brasil
republicano que favorecia a visibilidade crescente de impressos pornográficos (entre
eles a ficção naturalista) na imprensa e no mercado livreiro (MENDES, 2016). Os
redatores da coluna eram quatro jovens escritores profissionais, que atuavam,
simultaneamente, nos campos literário e jornalístico: Coelho Neto (1864-1934), Pedro
Rabelo (1868-1905), Bilac e Guimarães Passos. Em julho de 1897, todos tornaram-se
membros-fundadores da Academia Brasileira de Letras, instituição literária de maior
prestígio no Brasil. Sob pseudônimos, cada um deles colaborava com literatura
licenciosa para coluna: Coelho Neto (como Caliban) escrevia “contos brejeiros”, Pedro
Rabelo (como Pierrot) “poemas galantes”, e a dupla Guimarães Passos (como Puff) e
Bilac (como Puck) contribuía com “poemas maliciosos chegando alguns às audácias da
pornografia decotada”, conforme a crítica da época (PONTES, 1944, p.356).
O sucesso de “O Filhote” despertou o interesse da editora Laemmert, que
transformou os “textos picantes” dos redatores da coluna em livros. Um deles recebeu o
título de Pimentões (Rimas d’ O Filhote), publicado em dezembro de 1897 no Rio de
Janeiro sob a assinatura de Puff & Puck, “dois pseudônimos transparentes” segundo o
jornal carioca A Notícia (A Notícia/RJ, 28 e 29/12/1897, p.2). Pimentões são a seleção
de 75 poemas da extensa produção poética da dupla publicada na coluna. A maioria dos
poemas é organizada em quadras de versos heptassílabos (ou redondilha maior)
rimados, obrigatoriamente, no segundo e quarto versos. Na coluna literária “Sobre a
Mesa”, de A Notícia, o livro era recomendado aos leitores como um “prato fino
apimentado”, preparado com todo “culto à forma” com a capacidade de oferecer “uma
agradabilíssima leitura” para aqueles que “gostam de desopilar o baço com gargalhadas
sadias” (A Notícia/RJ, 28 e 29/12/1897, p.2).
No final dos oitocentos, a obra era vendida por 3$000 (três mil réis) num “volume
elegante e bonito”, como eram as edições do selo editorial Laemmert, em 1900
Pimentões custavam 2$000 (dois mil réis) (O Rio Nu/RJ, 18/08/1900, p.3). Composto
de “versos obscenos”, o livro conquistou o público amante de “leitura alegre” e lugar na
seção mais cobiçada das livrarias, a dos livros pornográficos, também conhecida como:

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“Biblioteca do Solteirão”, “Leituras para os homens” ou “Contos Salgados” até as
primeiras décadas do século XX.

Legenda: Em destaque, o anúncio de Pimentões por 2$000 (dois mil réis) na “Biblioteca do Solteirão”, a
seção dos livros de “leitura alegre” da livraria Laemmert. Fonte: O Rio Nu/RJ, 19/01/1907, p.2.

A circulação de Pimentões era ampla e bem sucedida, pois a Laemmert tinha


filiais em São Paulo e Recife, que fortalecia, por extensão, a popularidade de Guimarães
Passos e Bilac, assim como o título da obra conhecidos por “pimentões”. Na expressão
da época, essa alcunha se referia a sujeitos travessos e irrequietos e, especialmente, ao
humorismo “malicioso” dos escritores (PEDERNEIRAS, 1922). Produzido para a área
do entretenimento, Pimentões traziam dois tipos de humor: o riso inserido no contexto
de críticas ao costume e o riso obsceno da literatura humanista do Renascimento do
autor italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375) e, especialmente, do francês François
Rabelais (1490-1553). Convém ressaltar que os dois tipos de humor empregado em
Pimentões se tratam, somente, de uma diferença de ênfase nos poemas, podendo o
discurso poético apresentar as marcas de ambos os risos.

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O poema “O sinal”, com rimas cruzadas ABAB, de Puff (Guimarães Passos),
cabe, essencialmente, no “riso dos costumes” por meio da sátira às cenas do cotidiano
doméstico. No poema, conhecemos o desespero de Nicolau após ser abandonado pela
mulher. Ela é descrita como uma mulher atrevida e transgressora como as personagens
femininas da ficção naturalista desiludida, que se desvincula dos pressupostos teóricos
do discurso cientificista (BAGULEY, 1990). Além de compartilhar o interesse por
mulheres ousadas com o naturalismo, Pimentões também se interessavam pelos fatos
escandalosos do cotidiano (como do “pateta” Nicolau) e os conflitos gerados pelo
desejo sexual. De temperamento forte, a mulher de Nicolau – apesar da ausência do seu
nome próprio no poema – era senhora do seu corpo e de suas vontades, pois pintava e
bordava na moral da sociedade patriarcal.

VIII

O SINAL

Tinha uma pinta na coxa


A mulher do Nicolau:
Ela gorda, era uma trouxa,
Ele magro – um vara-pau.

A mulher era de truz,


O marido era um bocó;
Por qualquer coisa, Jesus!
Havia forrobodó.

A vizinhança tremia
Quando a mulher se enfunava,
O Nicolau se escondia,
Ela saia... e pintava...

Um dia ficou sozinho


Nicolau aos prantos e ais,
Triste como um bacorinho...
A mulher não voltou mais.

Pôs anúncios nas gazetas,


Foi ao chefe de polícia,
Ouviu mentiras e tretas,
Mas ninguém lhe deu notícia.

Até que um sujeito mau,


P’ra vê-lo ficar na tinta,
Diz-lhe: - Vi-a, Nicolau:
Conheci-a pela pinta.

Fonte: Publicado na 1ª página da Gazeta de Notícias/RJ em 13/01/1897, assinado por Puff (Guimarães
Passos). Em Pimentões o poema está nas páginas 20-21.

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No poema “Indigestão”, com rimas cruzadas ABAB, Bilac (como Puck) –
pseudônimo extraído da peça shakespeariana Sonho de uma noite de verão (1595),
retomava o riso obsceno do humanismo renascentista de Rabelais, por meio da
percepção de um “plano único sensível e material” da vida, ou seja, o aqui e o agora da
existência humana (BAKHTIN, 2010, p.334). O riso rabelaisiano associava-se às ações
vitais do corpo humano vinculadas à digestão, ao sexo, à concepção, à gravidez, ao
parto, ao que Bakhtin classificou de “baixo corporal” no seu estudo sobre a cultura
popular no Renascimento (BAKHTIN, 2010). Segundo Bakhtin, os traços obscenos e
materialistas da literatura recreativa e burlesca do Renascimento, principalmente a de
Rabelais, influenciaram (diretamente) na ficcionalização do sexo no naturalismo e no
humor licencioso dos textos de duplo sentido dos séculos seguintes.
Em “Indigestão”, Pimentões exploravam outro modo de humor no livro. Um
humor ligado à maneira de ler textos licenciosos sem a pretensão de criticar os
costumes, mas a de criar uma atmosfera de descontração para desfrutar a “leitura
obscena” com total entretenimento. Nesse modo de humor, o livro oferecia aos leitores
o chamado locus amoenus, a experiência de criar um local adequado para se distrair e se
afastar, ainda que fosse por algumas horas, das tensões do dia a dia. O poema recorda a
noite natalina de Rita, por meio do “riso festivo” de Rabelais associado ao “conjunto
alegre e benfazejo” das festas em torno da mesa repleta de comida e bebida
(BAKHTIN, 2010, p.17), que, simultaneamente, saciam o estômago e despertam o
apetite sexual. Brincando com as palavras, o poema ilustra o prazer carnal de Rita com
o ferrador Juca, à luz da associação ambígua entre os males digestivos e a gravidez pelo
humor obsceno da cultura popular renascentista (BAKHTIN, 2010).

XII

INDIGESTÃO

Linda como a madrugada,


Cheirosa como um rosal,
Rita, faceira e enfeitada,
Foi à missa do Natal.

Depois da missa, passeio,


Com o Juca, ferrador...
Ceiam leitão com recheio,
Beijam-se, falam de amor.

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Que noite quente e bonita!
Que regalo para os dois!
Mas que mudança na Rita,
Logo dois meses depois!

Desejos extravagantes...
Ora a rir, ora a chorar...
Não trabalha como d’antes...
Põe-se a engordar... a engordar.

Diz a mãe:- Tu, com certeza,


- Tiveste uma indigestão...
-Tu abusaste da mesa:
-Comeste muito leitão. . .

Rita cora, ao ouvir isto:


Pois bem sabe que, afinal,
Depois do Natal de Cristo,
Vai haver outro Natal...

Legenda: Publicado na 1ª página da Gazeta de Notícias/RJ em 25/12/1896, assinado por Puck (Bilac).
Em Pimentões, o poema está nas páginas 27-28.

O objetivo da pesquisa é conhecer como os versos de Puff & Puck, na coluna “O


Filhote”, transformaram-se no livro Pimentões, por meio das três noções fundamentais
para as reflexões teóricas da história do livro e da leitura: práticas de escrita, práticas de
leitura e a apropriação. (CHARTIER, 1990). Segundo Chartier, as apropriações dos
textos e as práticas de escrita e leitura são o “ponto de entrada” para decifrar o
imaginário cultural das sociedades de épocas passadas e, principalmente, para
reconstituir as condições propícias para a produção e a circulação dos livros e de outros
objetos impressos (CHARTIER, 1991, p.177). Desse modo, a pesquisa segue os
vestígios de Pimentões e da atuação dos escritores Guimarães Passos e Bilac no
mercado da “leitura alegre”, buscando informações sobre eles e suas relações de
trabalho com os livros de entretenimento nas fontes primárias do Acervo da Hemeroteca
Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.
A consulta aos jornais (por meio de notas, artigos, resenhas, comentários e
anúncios de livrarias) nos ajudará a entender como foi realizada a trajetória de
produção, circulação e recepção de Pimentões nas primeiras décadas republicana. A
possibilidade de compreender essa trajetória permitirá a pesquisa, primeiramente,
conhecer a literatura que Guimarães Passos e Olavo Bilac produziram para o mercado

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da “leitura alegre” que surgia na imprensa brasileira, com vistas à publicação do
material em formato de livro. Em segundo, a oportunidade de conhecer as facetas
divertidas (e pouco estudada pela historiografia) desses escritores, que eram tão
apreciadas nos hábitos de lazer e divertimentos da sociedade brasileira.

Referências

BAGULEY, David. Naturalist fiction. The entropic vision. Cambridge: Cambridge


University Press, 1990.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto


de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.

BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Seleção, tradução, introdução e notas: Maurício


Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, Difel,


Rio de Janeiro, Bertrand, 1990.

________________. O mundo como representação. Estudos Avançados, vol. XI, 1991,


p. 173-191.

GUIMARÃES PASSOS, Sebastião & BILAC, Olavo. [sob os pseudônimos Puff &
Puck]. Pimentões (Rimas de O Filhote). Editora Laemmert e Companhia, Rio de Janeiro
1897.

MENDES, Leonardo. MENDES, Leonardo. Álbum de Caliban: Coelho Neto e a


literatura pornográfica na Primeira República. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 26, n.
3, p. 205-228, 2017.

________________. O livro pornográfico na Belle Époque: a década de 1890 e a


invenção da “leitura alegre”. In: NEGREIROS, Carmem; OLIVEIRA, Fátima; GENS,
Rosa (Org.). Belle Époque: crítica, arte e cultura. São Paulo: Ed. Intermeios, p. 303-
320, 2016.

PEDERNEIRAS, Raul. Geringonça carioca. Verbetes para um dicionário da gíria. Rio


de Janeiro. Oficinas do Jornal do Brasil, 1922.

PONTES, Eloy. A vida exuberante de Olavo Bilac. 2º volume, Editora José Olympio,
1944.

RABELAIS, François. Gargântua. Tradução de Aristides Lobo. Rio de Janeiro: Edições


de Ouro, 1966.

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Periódicos: Hemeroteca Digital Brasileira/Fundação Biblioteca Nacional:
<http://memoria.bn.br/> Acesso em: 24/04/18.

A Bruxa (1896)
Almanaque Holanda (1896)
A Notícia/RJ, 28 e 29/12/1897, p.2
O Rio Nu/RJ, 18/08/1900, p.3
O Rio Nu/RJ, 19/01/1907, p.2
Gazeta de Notícias/RJ, 02/08/1896, p.1
Gazeta de Notícias/RJ, 10/12/1896, p.1
Gazeta de Notícias/RJ, 21/12/1896, p.1

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