Você está na página 1de 197

274 Laemmert

(500 páginas), produzido sob o patrocínio do Governo Fe-


deral, em 7 de setembro de 1922.
Todavia, em 1942, outro incêndio acabou com a longa
existência do Almanack: o último número foi o relativo ao
ano de 1943. Mas a firma continuou como tipografia, a Grá-
fica Laemmert, e por volta de 1970 voltou a publicar livros
com esse nome.

Ro CC
Hippolyte
sarnier
Não é um serviço de somenos dentre
os que tem prestado a Livraria Garnier
o seu proposito que sempre manteve de
tambem editar obras puramente litterarias,
genero em geral repelido pela maioria de
nossos editores. Quando outros e muitos
meritos lhe faltassem, este bastaria à Casa
Garnier de ter sido a editora das principaes
producções da litteratura nacional na poesia,
no romance, na philosophia e na critica.

Almanaque Brasileiro Garnier'

O DECLÍNIO DO COMÉRCIO LIVREIRO NA DÉCADA DE 1890 S79

No ano da morte de Baptiste Louis Garnier, um de seus


assistentes, seu compatriota Ferdinand Briguiet, estabeleceu-
-se por conta própria no negócio de livros, ao adquirir a li-
vraria de Lachaud na rua Nova do Ouvidor. Luiz Edmundo
descreve-o como um “verdadeiro gentleman”, que aprendera
as habilidades comerciais do patrão sem adquirir seu desma-
zelo: “Tem maneiras distinctas. Affabilidade. Linha. Cordura.
Fez a prosperidade da loja sorrindo, cumprimentando, dizen-
do bem dos collegas, achando tudo bom, muito certo, muito
natural. Typo sem pessimismos, sem arestas, sem attitudes de-
sagradaveis, dá a impressão de um homem superior e feliz”*.
À nova firma especializou-se em livros importados, especial-
mente franceses, alemães e ingleses. À livraria era pequena,
mas em pouco tempo ficou famosa pela eficiência, particular-

1. Abnanaque Brasileiro Garnier (1914), Rio de Janeiro, Garniegn. 11, 1913.


2. Luiz Edmundo da Costa, O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional, 1937, vol. 2.
278 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 279

mente na obtenção das últimas publicações científicas. Entre sio Azevedo. Baptiste Louis Garnier tinha publicado apenas
seus clientes destacavam-se o estadista Joaquim Nabuco, o a segunda edição de O Mulato (1889) e a primeira de O
poeta Medeiros e Albuquerque, o romancista Graça Aranha, Cortiço (1890). O Livro de uma Sogra (1895), seu primeiro
os historiadores Homem de Melo e Pandiá Calógeras, o ju- romance após a morte de Baptiste e (como veio a ocorrer)
rista Rui Barbosa, os críticos Sílvio Romero, José Veríssimo sua última obra, fora entregue a Magalhães. Talvez a obra
e Arthur Orlando, e o cientista Cândido de Oliveira. Seu de um naturalista radical constituísse o tipo de trabalho de
programa de publicações, embora modesto, notabilizou-se um autor brasileiro mais fácil de ser apreciado por um editor
pela edição do Atlas do Brasil, do barão Homem de Melo francês. De qualquer forma, no mesmo ano de 1895, Hip-
(primeira edição em 1909), da Pequena História da Litera- polyte consentiu em lançar uma terceira edição de O Mulato
tura Brasileira, de Ronald de Carvalho (uma obra não muito e, em seguida (1897), continuou a publicar novas edições
grande, mas bastante popular, cuja segunda edição [1922] foi dos principais romances desse autor.
impressa pela Annuario do Brasil) e, pela criação, em 1929, da Por ocasião da morte do irmão mais moço, François-
Coleção Pedagógica, dirigida por Paulo Maranhão. -Hippolyte Garnier tinha 77 anos, mas sua cautela não pode
A Garnier, tendo perdido seu fundador e um assistente ser atribuída à idade, nem às dificuldades de comunicação
tão capaz, além de seu controle ter passado para as mãos de entre os dois continentes. Esta era surpreendemente rápida:
François-Hippolyte, que estava tão longe e aparentemente se uma carta de Machado de Assis, de 18 de junho de 1899,
mostrava indiferente aos negócios, em pouco tempo perdeu recebeu resposta de Hippolyte, em Paris, em 7 de julho (e
para a Laemmert a proeminência no mercado de livros. À isso era um fato normal)! Além do mais, desde 1874 esta-
precária saúde de Baptiste, em seus últimos anos de vida, já va funcionando o telégrafo submarino entre o Brasil e a
havia provocado um declínio dos negócios, apesar de sua po- Europa. Tampouco se tratava de falta de interesse pelo mer-
lítica editorial ter prosseguido quase inalterada. No entanto, cado sul-americano. Ão contrário, essa aquisição acidental
agora que todas as decisões eram tomadas em Paris, havia de uma filial no Novo Mundo parece ter despertado novos
grande relutância em investir em livros novos. Mesmo com entusiasmos no velho cavalheiro. Estes, porém, se manifes-
a primeira edição de Quincas Borba (novembro de 1891), taram, inicialmente, num programa de edições de literatura
de Machado de Assis, esgotada no começo de 1895 (um bom hispano-americana. Grande parte da América Latina come-
resultado, na época, para um romance brasileiro), Hippolyte çava, então, a acalmar-se após as lutas civis do começo do
levou dois anos para autorizar uma segunda impressão. No século xIX € suas classes médias urbanas estavam adquirin-
entanto, imprimiu, em 1896, uma segunda edição de Memó- do alguma prosperidade. Em consequência, a iniciativa de
rias Póstumas de Braz Cubas (a edição de 1891 fora impres- Garnier acabou bem-sucedida, de tal modo que, entre as
sa pela Typographia Nacional, a partir da composição feita décadas de 1890 e 1920, foi ele o principal editor de litera-
para a publicação seriada na Revista Brasileira, de março a tura hispano-americana em todo. o mundo. O equatoriano
dezembro de 1880). Como Quincas Borba era a continua- Jorge Carrera Andrade atribui o crescimento do interesse
ção de Braz Cubas, é possível que tenha julgado mais in- francês por essa literatura a Alfredo Valleta (diretor) e Rémy
teressante apresentar novamente o primeiro romance antes de Gourmont (editor) do Mercure de France, periódico que,
de reimprimir sua sequência. Nesse meio tempo, como já de 1897 até 1915, manteve uma seção regular de autores
dissemos, Machado de Assis havia entregue seu livro seguin- hispano-americanos!. De qualquer forma, em 1900, o de-
te (Várias Histórias, outubro de 1896) a Laemmert, que lhe partamento espanhol da matriz da Garnier em Paris era
pagou pela edição 4008000 mais vinte exemplares grátis. unanimamente considerado uma das melhores livrarias do
Até mesmo o fiel Melo Morais Filho foi forçado, entre 1893 mundo de obras em língua espanhola. Para vários países do
e 1901, a procurar uma editora alternativa para a publica-
ção de seus livros. À única decisão editorial digna de nota 3. Jorge Carrera Andrade, “Los Hispanoamericanos Editados en Pa-
que Hippolyte tomou nos primeiros três ou quatro anos de ris antes de la Primera Guerra Mundial”, Revista Interamericana de
sua gestão foi com respeito à publicação das obras de Aluí- Bibliografia, n. 23, Pp. 447-450, 1950.
280 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 281

hemisfério ocidental — Cuba, por exemplo — a publicação interesses do decoro social”, os livros e os periódicos tinham
pela Garnier constituía praticamente o único meio para os gozado, durante décadas, de uma liberdade sem paralelo no
autores locais de terem suas obras editadas. hemisfério ocidental; com a revolução de novembro surgiu
Em contraste com essa situação, o Brasil atravessava um uma imposição imediata de uma rigorosa censura. Os repu-
período de agitação política e de declínio editorial que sub- blicanos, bem conscientes de que grande parte de seu sucesso
sistiria até o fim do século xr1x. No final da década de 1860, se devia à tolerância imperial à sua propaganda, estavam
Moreira de Azevedo pôde escrever: “Cada ano aumenta-se determinados a não cometer o mesmo erro.
o número das obras impressas no país, vai-se propagando o
gosto da leitura, vai tomando um caráter mais peculiar e prá- Nos ultimos vinte anos do Império, nenhuma [imprensa] seria mais
tico a literatura do país; há mais animação e vida nas letras”s. livre no mundo. Com a Republica essa liberdade diminuiu sensivel-
Não foi apenas uma questão de diferença de temperamento mente, tornando-se vulgar, em todo o paiz, a destruição, o incendio,
que levou Adolfo Caminha a encarar a situação de forma tão o empastellamento de typographias, os ataques pessoaes, ferimen-
diferente quando, um quarto de século mais tarde, escreveu: tos, mortes ou tentativas de morte de jornalistas*.

O algarismo anual das nossas produções literárias é de um cômico Seguiu-se então uma guerra civil, na qual somente a inter-
impagável. Enquanto Paris recebe por dia cem, duzentas obras de venção estrangeira — a favor da ditadura — salvou a própria
escritores franceses, das quais 20 pc podem ser consideradas boas e cidade do Rio de Janeiro de um bombardeio naval. Nos anos
5 pc excelentes, nós [...] produzimos anualmente cingienta ou cem, de 1891 e 1892, a incerteza política, criada pelos efeitos da
das quais dez sofríveis e cinco boas... emancipação dos escravos e do colapso do banco comercial
|...] A nova geração continua a fazer literatura por simples di- londrino Baring Brothers, provocou a pior crise financeira
letantismo... Não se estuda, não se trabalha, não se lê quasi, vive-se da história do Brasil (e quase forçou Briguiet a fechar sua
da produção estrangeira, no meio de uma apathia e de uma indif- loja antes de completar um ano de funcionamento). À isso
ferença lamentaveis. [...] Actualmente presenciamos uma geração seguiram-se a crise do café de 1895, 0 conflito de Canudos
sem vida propria, sem estimulo de especie alguma, arrastando sua (que proporcionaria a Euclides da Cunha o assunto de sua
indolencia pelos botequins e pelas redacções, commentando poli- obra épica — $77) em 1896, e outra crise financeira em 1898.
tica e discutindo frivolidades numa pasmaceira de todos os dias*. O mil-réis caiu de 9,08 por libra esterlina, em 1889, para
25,26 em 1900, e o desenvolvimento do país quase parou: a
As mortes de Baptiste Garnier e dos irmãos Laemmert — construção de novas estradas de ferro, que, no último quin-
os três homens que haviam dominado por tanto tempo quênio do Império, atingira a média de 600 quilômetros por
o mercado livreiro do Brasil - contribuíram para esse ano, caiu para apenas 180 por ano por volta de 1900.
mal-estar, mas a causa subjacente era o estado conturbado Mais significativo para o comércio de livros foi o modo
de todo o corpo político que se seguiu ao fim do Império como a queda do Império transformou completamente
em 1889. Embora o que pudesse aparecer na cena públi- o clima social. O velho regime fora dominado pela antiga
ca fosse sempre controlado estritamente de acordo com os aristocracia açucareira do Nordeste, para quem a cultura
constituía uma marca de nobreza: ideologicamente ele se
modelara segundo a França napoleônica e a Inglaterra li-
beral. A República representou a vitória do exército e dos
4. Antonio Miguel Alcover y Beltrán, Los Libros de Producción Lati-
no-americana, Havana, Siglo Veinte, r9T2.
5. Manuel Duarte Moreira de Azevedo, “Origem e Desenvolvimento 7. Cf. Sonia Salomão Khede, Censores de Pincenê e Gravata: Dois Mo-
da Imprensa no Rio de Janeiro”, Revista do IHGB, vol. 29, n. 2, pp. mentos da Censura Teatral no Brasil, Rio de Janeiro, Codecri, 1981.
169, 1868. 8. José Veríssimo de Matos, “A Imprensa”, em Livro do Centenário,
6. Adolfo Caminha, Cartas Litterarias, Rio de Janeiro, Aldina, 1895, Rio de Janeiro, Associação do Quarto Centenário do Descobrimento
PP. 3-4. do Brasil, 1900, vol. 1, seção 4, p. 70.
282 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 283

novos-ricos fazendeiros de café, que julgavam a riqueza (não riqueza mal adquirida. Uns se escondem para ocultar a miséria; ou-
importando sua origem) muito mais importante do que o tros para fugir à justiça... Um belo carnaval! E ninguém Jê livros””.
berço, a educação ou a cultura. À própria constituição dos
Estados Unidos do Brasil refletiu sua admiração pela jovem
e impetuosa plutocracia tanque. O centralismo do Império A RECONSTRUÇÃO S8o
tinha dependido da classe média intelectual do Rio de Janei-
ro, enquanto o novo federalismo era uma rejeição deliberada Por volta do final da década de 1890, conseguira-se final-
dessa burguesia urbana. Mesmo a mudança do centro de gra- mente uma nova estabilidade política. À deflação drástica do
vidade político para o sul teve, na época, uma implicação an- ministro Joaquim Murtinho possibilitou a volta dos investi-
ti-intelectual. Como destaca Adolfo Caminha (perdoemo-lo mentos estrangeiros e o desenvolvimento econômico pôde ser
por ter omitido Machado de Assis), “quaes os nossos maiores retomado gradualmente. Uma certa simbiose entre os velhos
escriptores e poetas? José de Alencar, Gonçalves Dias, Castro e os novos elementos da sociedade brasileira começava mo-
Alves [...], e dos contemporaneos: Aluizio Azevedo, Coelho dificar a recente indiferença pela literatura e pelas artes. Em
Netto, Raymundo Correa, Araripe Junior, Artur Azevedo- 1898, Hippolyte enviou para o Rio um novo gerente, Julien
todos nortistas”, e acrescenta os locais de maior atividade Lansac. Os contemporâneos apontaram-no como um homem
literária: “Pernambuco, Ceará, Parᔺ. No entanto, mesmo o de voz rouca, dono de muitas histórias sobre os dias que, na
aristocrático Nordeste, nas palavras de um comentador, fora juventude, passara na Indochina, apreciador exagerado do
reduzido pelas novas atitudes diante da luta sem princípios conhaque e, mais a propósito, com parco domínio da língua
para obter riqueza material, “abandonando suas tradições, portuguesa, o que o tornava dependente de seu assistente-
seus hábitos e seu passado”"º, -chefe brasileiro, Jacinto Silva. Hippolyte concedeu grande
Da vida literária no Rio, na década de 1890, Caminha autonomia ao gerente, cabendo-lhe assim (ou, antes, a Jacin-
comenta: to) o mérito pela revitalização da Garnier no novo século.
Essa revitalização começou já no ano seguinte, quando
Ha quasi sempre [...] má vontade para os que ousam estrear na lite- Hippolyte decidiu reconstruir a livraria. Sem dúvida, o le-
ratura. O poeta deve se mostrar humilde, “bom mancebo”, um pou- gado de Baptiste proporcionou os recursos para isso, mas
co timido, sem parecer tôlo de mais, e confessar imediatamente as o maior estímulo foi dado pela sua principal concorren-
suas culpas, isto é, dizer-se idolatra do $r. Sylvio Romero, admirador te, a Laemmert, que, sob a nova direção de Egon Widman
absoluto do Sr. Valentim Magalhães e discipulo do Sr. Luiz Delfino. Laemmert, acabara de substituir a velha loja da firma, de
Actualmente é de bom conselho dizer o que pensa em materia de po- um único andar, por imponente prédio de três andares no
lítica republicana. A politica já vae penetrando nos dominios da lite- mesmo local: exatamente em frente à Garnier.
ratura e das artes... Nada de symbolismo... Um poeta de talento não A Garnier, apesar do elegante endereço — rua do Ouvidor,
escreve versos errados, e papa Verlaine... “erra” desgraçadamente””. nº 21 (renumerado em 1910 para 109) -, estava instalada
num local pequeno e miserável, com duas portas que perma-
No ano anterior (1893), Aluísio Azevedo, em O Álbum, neciam abertas e sem janelas (o estilo português tradicional).
observara com amargura ainda maior: Coelho Neto, no romance Fogo Fátuo, nos fornece uma des-
crição evocativa:
Depois da bancarrota, o publico brasileiro divide-se apenas em duas
ordens: a dos que tudo perderam e a dos que tudo ganharam. Os Casebre de aspecto ruinoso, achaparrado, poento, com o soalho
primeiros choram de fome, e os segundos tremem de mêdo pela sua frouxo, mole que nem palhada, o této ensanefado a teias de aranha,
tão escuro para o fundo que nem se distinguiam os vultos que por
9. Adolfo Caminha, op. cit., p. 133.
TO. Elias Chaves Neto, A Revolta de 1924, São Paulo, 1924. 12. Apud Mário da Silva Brito, Antecedentes da Semana de Arte Moder-
11. Adolfo Caminha, op. cit., p. 18. na, 2. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964.
284 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 285

lá andavam em cuscuvilhice bibliofila e entre eles a figura rabinica de ligeireza e de solidez, que se encontra em todos os detalhes da
do velho editor, pigarrento, sempre de brim preto, barrete seboso, construcção. Nos fundos estão, além dos pavimentos citados, um
afuroando pelos cantos em rebusca de avaro, a sacudir brochuras, outro menor, destinado a morada dos empregados, cujo assoalho
limpando-se á manga de paletó". se acha a mais de 20 metros acima do nivel da area, e que provido
de larga saccada, goza de vista a mais seductora para o mar, até
O impressionante é que essas instalações tão pouco Nictheroy e a barra [decorreriam 29 anos antes que o primeiro
atraentes não constituíam uma relíquia dos dias de pionei- arranha-céu bloqueasse a vista!). Este edifício que vem quebrar a
rismo de Baptiste, mas haviam sido adquiridas pouco tempo monotonia das construcções sem originalidade, que continuamos a
antes, em fins de 1878, quando o editor já devia ter amealha- ver por toda a parte, merece os mais francos elogios"4.
do a maior parte de sua considerável fortuna.
Determinado a eclipsar Laemmert, Hippolyte encomen- Fotografias da época mostram-nos a opulência do mobi-
dou a seus arquitetos parisienses, messieurs Bellissime e Pe- liário do andar térreo, de madeira de lei polida. Dois longos
darrieu, uma transformação completa, com a construção de balcões estendiam-se de cada lado, e diante deles uma dú-
um magnífico prédio de quatro andares, com um aparta- zia de cadeiras para os fregueses cansados. Estas, em breve,
mento para o gerente no último. O novo prédio foi inaugu- tornaram-se conhecidas como as “cadeiras dos doze apósto-
rado com uma festa de gala no 19º dia do novo século, com los”, quando Lansac provocou uma campanha da imprensa
a presença do cônsul francês, de toda a imprensa do Rio de por ter mandado retirá-las. Ele concluíra que elas apenas en-
Janeiro e dos principais homens de letras da cidade. Para corajavam as várias “rodinhas” literárias, que então faziam
marcar a ocasião, cada um dos convidados recebeu de pre- da livraria seu ponto de encontro, a prolongar suas reuniões,
sente um exemplar autografado de um romance de Macha- bloqueando a passagem.
do de Assis, presumivelmente Dom Casmurro, cuja segunda Seus contemporâneos deixaram registrados não apenas
edição aparecera em abril do ano anterior. Algumas semanas os nomes dos componentes desses grupos, mas também a
antes, em 7 de dezembro de 1900, o Jornal do Commercio parte da loja preferida por cada grupo. Na entrada, a “su-
publicara uma nota entusiástica sobre a nova Garnier: blime porta”, ficavam os parnasianos: Elísio de Carvalho,
Alberto de Oliveira, José Albano e Melo Morais Filho. No
Tem a fronte de cantaria macissa e de ferro, domina do ultimo pa- espaço logo após a porta, permaneciam Gonzaga Duque,
vimento todas as casas da visinhança. Simples e sem enfeite algum, Mário Pederneiras, Cardoso Júnior, Santos Maria e Lima
a fachada resume-se a poucas linhas architectonicas do caracter o Campos. Em seguida vinham os simbolistas: Gustavo San-
mais monumental. O emprego racional das materias, dá-lhe um tiago, João Ribeiro, Maximino Maciel, Rocha Pombo, Mú-
aspecto ligeiro, e ao mesmo tempo traduz uma grande solidez. Os cio Teixeira, Fábio Luz, Pedro Couto, Nestor Vítor e Xavier
vãos largos e altos em todos os andares fazem penetrar no interior Pinheiro. Mais para dentro ainda encontraríamos Severiano
luz e ar em grandes abundancias, e accusão o fim da construcção, de Rezende, Curvello de Mendonça, Osório Duque Estrada
despertando á primeira vista a noção da grande claridade que reina e Souza Bandeira. No fundo da loja, onde o assistente-chefe
por dentro. No interior, ha além do andar terreo, com 6,10 metros Jacinto tinha sua mesa, havia sempre uma cadeira especial
de pé direito, tres ordens de galerias com 5,4 metros, 5 metros e 4 reservada para Machado de Assis, que aparecia todas as tar-
metros de altura, que são iluminadas por uma grande clara-boia na des, depois de terminada sua jornada de trabalho no Minis-
parte central, que completa a distribuição de luz até os cantos os tério de Viação, para encontrar Mário de Alencar, José Ve-
mais remotos, ao mesmo tempo que, com o auxilio de uma area de ríssimo, Medeiros e Albuquerque, Joaquim Nabuco, Clóvis
3 metros de largura que existe nos fundos, facilita uma ventilação Bevilacqua, Sílvio Romero, o jovem Taunay e, algumas ve-
natural, facil de graduar á vontade. [...] As galerias supportadas por zes, Coelho Neto ou Olavo Bilac.
columnas de ferro fundido e vigas de aço, gozão do mesmo aspecto
14. “Livraria Garnier”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 dez.
13. Henrique Coelho Neto, Fogo Fátuo, Porto, Chardron, 1929. 1900, p. 2.
286 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 287

$81 A POLÍTICA EDITORIAL maior vendagem da década de uma obra literária. Falamos
de Chanaan (Canaã), que alcançaria cinco edições até 1913
Nem todos estes cavalheiros tinham obras publicadas pela e sete até 1922. Seu autor, José Pereira da Graça Aranha,
Garnier: a elegante loja atraía até aqueles cujas lealdades então com 34 anos, escrevera-o durante uma missão diplo-
editoriais estavam alhures. Na verdade, como editora, a mática na Europa como assistente de Joaquim Nabuco, e
firma em breve ganhou a reputação de interessar-se apenas tudo leva a crer que tenha submetido seu livro diretamente à
pelos grandes nomes, aqueles de venda segura. Nas pala- apreciação de Hippolyte em Paris, com o apoio da calorosa
vras de Lima Barreto, “o seu critério editorial era o pisto- recomendação pessoal de Nabuco. Segundo Estelita Lins's,
lão, editando diplomatas” "5, Lima Barreto estava pensando, a impressão teve início em 9 de janeiro de 1901 e terminou
certamente, em alguém como Joaquim Nabuco — publicado em 15 de março, o que significa que o livro fora publicado em
anteriormente por Leuzinger —, de quem a Garnier lançou Paris doze meses antes de aparecer à venda no Brasil — a
Um Estadista do Império (1898-1900), Minha Formação menos, o que parece provável, que Estelita Lins tenha se en-
(1900), Escritos e Discursos Literários (1901) e — em tra- ganado de ano!
dução para o espanhol — La Guerra del Paraguay (também A ousadia de Garnier chegou ao fim por volta de 1904.
em 1901). Sejamos caridosos e digamos que o conhecimento Jacinto Silva havia deixado a firma no ano anterior: fora
que Lansac tinha do Brasil era muito recente para aventurar- dirigir o departamentos de livros da Casa Garraux, em São
-se em novas experiências e que Hippolyte, com 85 anos, Paulo. Mais tarde, provou sua grande preocupação com a
estava muito velho para encorajá-lo. literatura brasileira quando, em 1919, estabeleceu-se por
Naturalmente, a firma não via a si mesma dessa manei- conta própria e transformou sua Casa Editora “O Livro” no
ra. Matéria publicada no Almanaque Brasileiro Garnier de centro do movimento modernista ($103). De 1903 a I9TO,
1914, da época de Lansac, traz a citação com que iniciamos trabalharam com Lansac como conselheiro editorial (e como
este capítulo, acompanhada de uma relação de autores pu- editor do Almanaque Brasileiro Garnier) Benjamin Franklin
blicados no período: Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Ramiz Galvão, antigo diretor da Biblioteca Nacional, e, de-
Allfredo] Varela, Nestor Vítor [dos Santos], Medeiros e Al- pois dele, João Ribeiro (que, em 1917, saiu para trabalhar
buquerque, Olavo Bilac, Afonso Celso, Visconde de Taunay, com Francisco Alves). No entanto, durante esse período, a
Sílvio Romero, Domício da Gama, Clóvis Bevilacqua, mon- firma não publicou nem mesmo as obras dos mais moços,
senhor Lustosa, Antônio Salles, Adherbal de Carvalho, Lau- como fizera antes. Com relação a Graça Aranha, embora
delino [de Oliveira] Freire e Maximino Maciel. mantivesse Canaã sempre à venda, não aceitou nenhuma
Todavia, nem todos os autores citados tiveram seus livros outra obra do autor até 1930, quando publicou A Viagem
publicados regularmente pela Garnier, embora, no início da Maravilhosa, com o autor já tendo atingido a segura idade
administração de Lansac, a firma tenha demonstrado, cer- de 62 anos. A única exceção a-esse conservadorismo foi a
tamente, alguma receptividade aos jovens escritores. A se- pronta aceitação de Paulo Barreto (1872-1921), que, sob o
gunda edição da História de Sergipe (1901), de Laudelino pseudônimo de João do Rio, tornou-se o mais conhecido jor-
Freire, e o Quadro Corografico de Sergipe (1902), do mes- nalista e frequentador da vida social da cidade de 1906 até
mo autor, foram publicados antes que ele completasse trinta sua morte prematura. Seu livro Religiões do Rio (tagarelices
anos. Homens e Livros, de Magalhães de Azeredo, e Esboços sobre seitas pouco comuns e práticas religiosas) alcançou
Literários, de Adherbal de Carvalho, foram publicados em cerca de oito edições, e Alma Encantadora das Ruas (1908)
1902, quando os dois autores tinham apenas trinta anos. chegou a três edições, além de outros sucessos efêmeros se-
Outro jovem autor, cujo primeiro romance foi publicado melhantes que proporcionou à Garnier - O Momento Lite-
em abril do mesmo ano, proporcionou à Livraria Garnier a rário (1908), Vida Vertiginosa, Psicologia Urbana, Portugal

15. Afonso Henrique de Lima Barreto, Correspondência, org. F. de 16. Augusto Emílio Estelita Lins, Graça Aranha e o “Canaã”, Rio de
Assis Barbosa e À. Noronha Santos, São Paulo, Brasiliense, 1956. Janeiro, São José, 1967.
288 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 289

d"Agora (todos de r911), Dentro da Noite (1912) e Fados, Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac e, de Portugal,
Canções e Danças de Portugal (1909) — antes de passar para Guerra Junqueiro””.)
outros editores (Francisco Alves, Briguiet, Lello, Leite Ribei- O editor preferia, claramente, obras que pudesse publi-
ro e Villas-Boas). car em coleções, em que a oferta de algum título individual
Tem-se a impressão, além disso, de que aqueles que se atrairia o leitor, levando-o a adquirir outros volumes da sé-
aproximavam dos quarenta anos não eram muito bem re- rie. Isto se aplicava aos autores já falecidos cujas obras pu-
cebidos pela Garnier. Medeiros e Albuquerque (nascido dessem ser reeditadas numa coleção completa, como era o
em 1867) só conseguiu publicar pela Garnier um volume caso dos romances de Franklin Távora, publicados em 1902
de contos, Mãe Tapuia (1898); a edição definitiva de suas numa pequena coleção de quatro volumes, À Literatura do
poesias foi lançada pela Laemmert (1905). O maior poeta Norte; ou de um escritor consagrado de quem se pudesse
brasileiro da época, Olavo Bilac (nascido em 1865), com esperar o acréscimo de outras obras similares a uma coleção
exceção de uma edição de suas poesias completas feita pela já existente (Machado de Assis); ou ainda — caso bastante
Garnier em 1904, teve toda a sua obra publicada pela Fran- excepcional de João do Rio — de um escritor novo mas pro-
cisco Alves (para quem fez traduções). Afonso Celso (nas- lífico, com quem se pudesse contar para a produção ininter-
cido em 1860) tinha quarenta e dois anos e já era famoso rupta de outras obras semelhantes. Por outro lado, a obra
com seu Por que me Ufano de Meu País ($74) quando Gar- isolada era um risco que, mesmo no caso de transformar-se
nier decidiu publicar uma de suas obras (Notas e Ficções) em grande sucesso editorial, não levava a nada.
e acabou por assumir a publicação do (muito lucrativo) Devemos concordar que havia um sólido bom senso co-
Por que me Ufano após o incêndio da Laemmert em 1909, mercial nessa política cautelosa. Apesar da recuperação do
chegando mesmo a produzir uma tradução francesa des- mercado de livros após a depressão da década de 1890, os
sa obra, Pourquoi je m'enorgueillis de mon pays (1911). leitores estavam muito menos predispostos a acolher com
Os autores mais moços publicados regularmente por entusiasmo novos escritores brasileiros do que quarenta
Hippolyte Garnier foram Alberto de Oliveira (1859-1937), anos antes. Nas palavras de Adolfo Caminha, quando apa-
José Veríssimo (1857-1916) - menos sua História da Lite- recia um ocasional trabalho nacional:
ratura Brasileira, que saiu em 1916, pela Francisco Alves —
e Aluísio Azevedo (1857-1971): todos completaram seu [...] Os críticos apenas sentam-se, tomam o escalpello da analise,
quingquagésimo aniversário no período da administração erguem ligeiramente a ponta de uma folha, dizem-lhe muitas coisas
de Lansac. O mais importante destes, Azevedo, foi herdado bonitas ou feias, conforme a moda, e — adeusinho! mandam-na
de Baptiste Louis. Na verdade, a maior parte da lista de passear. — Que não vale nada; que é uma brasileirice!
autores de Garnier parece constituir-se de nomes aceitos, E voltam-se novamente para os dramas de Sardou e para os
trinta, quarenta ou cinquenta anos antes, por B. L. Garnier. romances de Zola.
Alguns, como Sílvio Romero, Melo Morais Filho e, é claro, A mocidade brasileira não lê obras nacionaes; agarra-se no ro-
Machado de Assis, ainda estavam vivos e em plena produ- mance estrangeiro com um entusiasmo verdadeiramente lamentavel"*.
ção. Aluísio Azevedo estava vivo, mas já havia abandona-
do a carreira de escritor. Muitos já haviam falecido, mas Além disso, o mercado ainda era muito pequeno. Não
um círculo de leitores conservadores mantinha a demanda apenas a população brasileira (cerca de 18 milhões em 1904)
de seus livros, particularmente os de Bernardo Guimarães era apenas um sétimo da cifra que alcançaria em 1980, como
(doze edições publicada por Hippolyte) e de José de Alen- também as classes médias urbanas constituíam uma pro-
car (com dez edições). porção ainda menor desse total do que a de hoje e tinham
(Na opinião de Gilberto Freyre, o romancista nacional uma renda média per capita inferior (em termos reais). Já
preferido era José de Alencar. O autor europeu mais lido
nessa época no Brasil era Eça de Queirós, seguido de Émi- 17. Gilberto Freyre, Ordem e Progresso, Rio de Janeiro, José Olympio, 1959.
le Zola e Anatole France. Os poetas mais populares eram 18. Adolfo Caminha, op. cit.
290 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 291

falamos do alto custo de vida ($$26, 57). Em Problemas servando o nome do primeiro dono), parece ter sido parti-
Brasileiros (1911), afirma Arthur Guimarães que uma famí- cularmente receptiva aos brasileiros, editando livros escritos,
lia operária de quatro pessoas no Rio precisava de 2508000 entre outros, por Paulo Barreto, Almáquio Diniz, Péricles
por mês para a simples sobrevivência - em comparação com Morais, Garcia Redondo, Virgílio Várzea, Armando Erse, Síl-
1308000 no Reino Unido ou 80$000 na Alemanha — en- vio Romero e Coelho Neto. Alguns autores conseguiam bom
quanto as necessidades essenciais de uma família de classe resultado com isso: Coelho Neto, cujo estilo atraía o leitor
média de tamanho comparável teriam custado 1:500$000. português, é o exemplo óbvio. Em muitos casos, porém, parti-
Em conversa com João do Rio, disse Lansac, em 1904, que cularmente quando era desconhecido, o autor tinha de ceder
de todos os livros editados pela Garnier apenas dois, um gratuitamente os direitos autorais ao editor português, restan-
romance (Canaã?) e um livro de poesias, tinham quase che- do-lhe apenas o prazer de ver sua obra publicada. Foi o que
gado a vender uma edição (isto é, dois mil exemplares) em aconteceu com Lima Barreto: depois de publicar o primeiro
doze meses. As edições da maioria dos outros editores limi- romance, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, uma sá-
tavam-se à metade dessa tiragem e, mesmo assim, geralmen- tira sobre o jornalismo carioca, em sua própria revista, Flo-
te levavam de três a cinco anos para esgotar. No caso de um real, não conseguiu encontrar no Brasil quem se dispusesse a
bom romance, o autor receberia de cinquenta mil-réis a um editá-lo em livro. Assim, seu amigo Antônio Noronha Santos
conto. Quanto aos livros de poesia, porém, segundo Luiz entrou em contato com Antônio Maria Teixeira, antigo dono
Edmundo'*, mesmo editados em regime comercial, o editor da Livraria Teixeira, em São Paulo, que voltara há pouco para
os aceitava sem qualquer compromisso de pagamento. Lisboa, onde fundara a Livraria Clássica Editora, na praça
dos Restauradores. À princípio, Teixeira não quis aceitar o
manuscrito, mesmo sem precisar pagar direitos autorais. Ape-
$82 OUTRAS SAÍDAS PARA O AUTOR BRASILEIRO sar de ter editado Crítica e Fantasia, de Olavo Bilac, o roman-
ce Miss Kate, de Araripe Júnior (sob o pseudônimo de Cosme
As perspectivas de um jovem com pretensões a escritor eram Velho), A Pátria Portuguesa, de Sílvio Romero, e Selvas e Céus,
realmente pouco auspiciosas. Se não pudesse arcar com as de João Pereira Barreto, primo de Romero, o editor afirmava
despesas da impressão de seu trabalho por conta própria, sua que os escritores brasileiros não eram vendidos em Portugal.
maior esperança era imitar Luís Tinoco, que conseguiu pro- No entanto, mudou de ideia quando leu o romance de Bar-
duzir sua obra Goivos e Camélias mediante subscrições dos reto: “As particularidades sobre a vida em um jornal: [...] tal
amigos e conhecidos — o que não era, com certeza, uma ideia como a imprensa aqui em Lisboa”. O livro apareceu em no-
nova. Essa prática, frequente na Inglaterra do século xvirr, vembro de 1909, mas somente depois que Albino Forjaz de
fora introduzida no Brasil no começo do século x1x:º. Outra Sampaio fez uma revisão da linguagem, removendo todos os
alternativa seria tentar a publicação em Portugal: é bastante brasileirismos, embora apropriados no contexto. Lima Barre-
grande o número de obras brasileiras produzidas nesse país to recebeu apenas cinquenta exemplares grátis pela edição! E
durante os trinta primeiros anos da República. A Livraria os livreiros brasileiros importaram tão poucos exemplares — o
Chardron:?*, do Porto (adquirida pelos irmãos Lello, mas con- que mais comprou foi Francisco Alves, com uma encomenda
de cinquenta livros — que o romance se esgotou e, em janeiro
19. Luiz Edmundo da Costa, op. cit. de r9ro, já não podia ser encontrado no Rio.
20. Maria Beatriz Nizza da Silva, “Produção, Distribuição e Consu-
mo de Livros e Folhetos no Brasil Colonial”, Revista do IHGB, n. 314,
PP. 78-94, jan.-mar. 1977.
21. Ernest Chardron (1840-1885) emigrou da França para o Porto foi comprada pelos senhores Lugan e Genelioux. Estes, que quase
em 1865, empregado por seu compatriota Moré, até conseguir sua nada sabiam do comércio de livros, venderam o negócio, em 1894,
independência, em 1869, e adquirir importância como editor do po- a António Pinto de Sousa Lello, sócio do irmão José, numa livraria,
pularíssimo Camilo Castelo Branco (do qual publicou trinta títulos desde 1882. Seus descendentes continuariam a explorar o negócio até
em quinze anos). Com a morte do proprietário, a Livraria Chardron os anos de 1990 sob a designação de “Lello & Irmão”.
292 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 293

$83 COPYRIGHT INTERNACIONAL E COMPRA DE DIREITOS 26 de setembro de 1922, como parte das comemorações do
centenário da Independência. Os eufóricos sentimentos de
Parece que a agitação provocada pela lei de direitos autorais fraternidade luso-brasileira engendrados pela ocasião leva-
de 1898 produziu algum efeito sobre a opinião com refe- ram o governo brasileiro não apenas a oferecer a Portugal
rência às obras de autores estrangeiros. De qualquer modo, o mútuo reconhecimento dos direitos autorais com base na
apesar de a nova lei contemplar apenas a propriedade inte- lei de r912, como também a conceder a suspensão das taxas
lectual dos escritores residentes no Brasil, foi mais ou me- alfandegárias sobre a importação de livros desse país (desde
nos a partir dessa época que a publicação ilícita de obras que fossem brochuras): um sério golpe para a indústria na-
estrangeiras deixou de ser uma prática normal de editores cional, com seus custos significativamente mais altos.
respeitáveis. Um exemplo seria a edição de Dom Quixote Nessa ocasião, as autoridades brasileiras tinham fica-
feita pela Laemmert em r90r, para a qual contratou uma do tão entusiasmadas com a ideia da proteção dos direitos
tradução brasileira ($75) em vez de copiar um dos textos autorais internacionais que logo depois assinaram também
portugueses existentes; sua edição de Gulliver foi igualmen- a versão corrente da Convenção de Berna (a de Berlim, de
te uma versão nova. 1908), tornando-se, assim, um dos dois únicos países do
Em 1906, um dos acordos firmados na 111 Conferência mundo que aderiram às duas convenções: a de Berna e a
dos Estados Americanos, realizada no Rio de Janeiro, foi a Pan-americana (o outro país foi o Haiti). Desde então, o Ita-
Convenção sobre Patentes de Invenção, Desenhos e Mode- marati aceitou todas as sucessivas revisões das duas conven-
los Industriais, Marcas Registradas e Propriedade Artística ções, até a Convenção Interamericana sobre os Direitos do
e Literária, cuja última seção constituía a terceira versão da Autor de Washington (1946) e a reunião dos países signatá-
Convenção Pan-americana de Direitos Autorais. Como na- rios da Convenção de Berna realizada em Bruxelas (1948).
ção anfitriã, o Brasil dificilmente poderia deixar de aderir O Brasil não ratificou as malfadadas emendas à Convenção
à Convenção, mas não tomou qualquer providência para de Berna decididas em Estocolmo em 1967, mas é signatário
pô-la imediatamente em prática, provavelmente porque ape- da Declaração dos Direitos Autorais de Paris (1971), Inspi-
nas o Chile, dentre todos os signatários (os outros foram o rada pela Unesco.
Equador e as seis repúblicas da América Central), possuía No entanto, graças à notória facilidade de burlar as leis
um comércio de livros, embora de reduzida importância. no Brasil, desde então sempre acontecem eventualmente
Quatro anos mais tarde, porém, a 1v Convenção Pan-ame- casos de publicação não autorizada de obras estrangeiras.
ricana de Direitos Autorais, em Buenos Aires, com a adesão Tanto que, ainda hoje, os Estados Unidos colocam o Bra-
declarada da Argentina, do México e dos Estados Unidos, sil entre os países que menos respeitam os direitos autorais
encorajou o Congresso brasileiro a aprovar a lei n. 2577, de norte-americanos. Não obstante, tal pirataria já deixou de
17 de janeiro de 1912, que estendia aos cidadãos dos países ser a prática geral das editoras. responsáveis. Todavia, este
membros da Convenção todas as disposições da lei de 1898 novo respeito aos direitos autorais dos estrangeiros, aumen-
($76), salvo a necessidade de registrar a propriedade dos di- tando os custos das edições, não poderia deixar de exercer
reitos autorais na Biblioteca Nacional. Uma reformulação algum efeito sobre os editores brasileiros: eles se tornaram
da lei no novo Código Civil de 1916 prolongou a duração financeiramente mais cautelosos em outros sentidos, tais
dos direitos autorais, que passou a ser de sessenta anos após como na receptividade a novas obras de autores nacionais.
a morte do autor, a menos que excedesse o tempo admitido Hippolyte não apenas se revelara muito menos disposto
pela legislação do país em que a obra fora publicada pela do que o irmão a correr riscos com autores brasileiros, como
primeira vez. Os direitos autorais sobre as traduções conti- era mais antiquado (e cauteloso) em seus entendimentos com
nuaram limitados a dez anos. os escritores, sempre preferindo a compra definitiva dos di-
O decreto n. 4818, de 24 de janeiro de 1924, aprovou a reitos a uma obra ao pagamento de uma porcentagem so-
Convenção Especial sobre a Propriedade Literária e Artísti- bre as vendas. Muitas vezes essa prática acabou tornando-se
ca entre o Brasil e Portugal, assinada no Rio de Janeiro, em excelente negócio para a editora. Em setembro de 1897,
294 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 295

Hippolyte conseguiu convencer Aluísio Azevedo a vender os Cubas. Em 1913, foi publicada uma tradução espanhola de
direitos autorais sobre suas onze obras já publicadas por Quincas Borba, de autoria de J. de Amber.
apenas 10:0008000 o lote, quando, apenas sete anos antes, A casa parisiense de Garnier produziu, em r9ro, além
Baptiste havia pago 6008000 pelos mil exemplares da pri- dos citados, uma edição francesa de Canaã, de Graça Ara-
meira edição de O Cortiço. Entre essa data e 1934, a Gar- nha, em tradução de Clément Gazet. Foi, presumivelmente, a
nier publicou seis edições de O Mulato, cinco do Livro de Garnier que permitiu a publicação em espanhol do romance
uma Sogra, quatro de Casa de Pensão e assim por diante; a de Graça Aranha em capítulos, em La Nación, de Buenos
Briguiet, que comprou os direitos, e a Martins, a quem os Aires, mais ou menos nessa época, e em inglês, na forma
vendeu em seguida, publicaram muitas outras. Somente o de livro, pela Four Seas Company, de Boston (Massachu-
romance O Cortiço teve vinte e sete edições desde a data setts), em tradução de Mariano Joaquín Lorente. À Gar-
em que Hippolyte comprou os direitos até 1973, quando as nier também editou, em Paris, duas introduções à literatura
obras de Aluísio caíram em domínio público. brasileira: Littérature brésilienne (x910), de Victor Orban
O próprio Machado de Assis foi persuadido a vender (1868-1946), obra patrocinada pelo governo brasileiro, e Le
os direitos autorais de todas as suas obras, uma a uma, ao roman au Brésil (1918), de Benedito Costa. Fora do cam-
longo de seis anos a partir de 1900, e em alguns casos por po da literatura, temos a obra de Afonso Celso, Pourquoi
quantias tão irrisórias como 5008000. Isso foi particular- je m'enorgueillis de mon pays, já citada ($74), e Formation
mente lamentável porque impediu a difusão de Machado historique de la nationalité brésilienne, de Oliveira Lima,
no exterior: Hippolyte, como proprietário dos direitos, tal- ambas editadas em 1911. À importância contemporânea da
vez inspirado por sentimentos antialemães, tão difundidos Garnier, tanto no mercado francês como no espanhol, dava
entre os franceses da época, frustrou a publicação de uma a esses livros ótimas possibilidades de ampla distribuição.
tradução alemã, feita por Alexandrina Highland, ao pedir No Rio de Janeiro, a Garnier continuou sendo impor-
um pagamento absurdo, apesar do apelo pessoal do autor. tante editora de obras traduzidas para o português. Não
podemos deixar de reproduzir a singular relação de autores
estrangeiros que acompanhava o artigo do Almanaque ao
$84 TRADUÇÕES PARA O FRANCÊS E PARA O ESPANHOL qual já referimos: F. I. €. [sic], Reclus, Lapporent, Troost,
Langelbert, Balzac, Nodier, H. Sienkiewicz e Merjkowski.
Por outro lado, Hippolyte e seu sucessor cuidaram de pro- Esta seleção de autores estrangeiros pelos quais a casa
mover a obra de Machado em francês e em espanhol, conse- tinha, sem dúvida, o maior apreço (compreensível somente
guindo a tradução de dois romances para o francês e quatro por serem autores de grande venda na época?) parece ainda
para 0 espanhol, todas entre 1910 e 1913. Don Casmurro, mais estranha quando vemos que seu catálogo incluía mui-
em espanhol, saiu em rgro, traduzido por Rafael Mesa Ló- tos clássicos consagrados (Scott e Dickens, por exemplo) e
pez, contando com reimpressões. Quelques contes, em tra- que, exatamente nessa ocasião, João do Rio aumentava sua
dução de Adrien Delpech, apareceu nesse mesmo ano e, no fama traduzindo, para a Garnier, Oscar Wilde (Salomé, In-
ano seguinte, o equivalente espanhol, Varias historias. Em tenções e O Retrato de Dorian Gray).
1911, foram publicadas também as versões francesa e espa-
nhola de Bras Cubas, pelos mesmos tradutores: Mémoires
posthumes de Braz Cubas e Memorias posthumas de Blas NOVAMENTE OS IRMÃOS GARNIER $85

22. Para discussão com exemplos dos contratos da Livraria Garnier Hippolyte morreu em 1911, aos 95 anos de idade, e Lan-
desde 1858 até 1920 (atualmente no arquivo da Garnier, na Livraria sac voltou para a França pouco depois, em 31 de janeiro de
Itatiaia, de Belo Horizonte), cf. Maria Lajolo e Regina Zilberman, 1913. Os negócios foram confiados então a um sobrinho,
O Preço da Leitura: Leis e Números detrás das Letras, São Paulo, Auguste Pierre Garnier, que chegou a cogitar do fechamen-
Ática, 2001. to da filial brasileira. Todavia, acabou enviando para o Rio
296 Hippolyte Garnier Hippolyte Garnier 297

outro gerente francês, Êmile Izard (nascido em 1874). Além À Briguiet continuou também uma destacada importa-
disso, tinha planos de visitar pessoalmente o Brasil no ano dora de livros, principalmente da França e da Itália, até que,
seguinte, no que foi impedido pela eclosão da guerra na Eu- com a gradual americanização da intelectualidade brasileira,
ropa, em julho de 1914. no começo da década de 1960, o mercado para os livros
O período final da Garnier no Brasil foi, se é que isso era franceses e italianos reduziu-se a quase nada. Durante mui-
possível, ainda menos ousado do que os últimos anos da tos anos, a firma usou o nome comercial de Livraria Bri-
administração de Lansac. Infelizmente, seus impressores pa- gutet-Garnier para mostrar que ainda havia uma conexão
risienses — e desde a morte de Baptiste quase todos os livros comercial com a casa de Paris. Isso durou até 1951, quando
da casa eram impressos na capital francesa — tinham deixa- a então recém-formada Difusão Europeia do Livro (Difel)
do sistematicamente de datar seus trabalhos, o que dificulta assumiu a filial da Garnier no Brasil ($201).
qualquer pesquisa. Frequentemente, a retomada da marca À Briguiet manteve sua sede no esplêndido edifício da
“Garnier Irmãos”, em substituição a “Hippolyte Garnier”, é Garnier até que a valorização imobiliária do centro do Rio
a única indicação de que alguma coisa foi ou não publicada de Janeiro tornou o local extravagantemente dispendioso
até 1911, ou mais tarde. Basta dizer que, a partir de então, para uma simples livraria. Foi vendido em 1953 e demolido
a Garnier publicou pouquíssimas primeiras edições brasilei- para dar lugar a um banco. À Briguiet restringiu-se então à
ras, contentando-se em explorar os direitos autorais já ad- loja original (sempre mantida), logo ali na rua Nova de Ou-
quiridos, reeditando os livros em sua “Coleção dos Autores vidor. Nessa altura, a rua voltara ao nome original, travessa
Célebres da Literatura Brasileira”. do Ouvidor, após várias décadas como rua Sachet (nome do
O fim chegou com a Depressão, em 1934. Os pormeno- assistente francês de um pioneiro brasileiro da aviação, com
res desse final relataremos em nosso capítulo sobre a José quem morrera num acidente em 1904).
Olympio ($139). Ironicamente, a firma que, mais do que Foi nessa época do pós-guerra que ao primeiro Briguiet
qualquer outra, tornou possível o desenvolvimento da lite- sucedeu seu sobrinho, também Ferdinand, que morreu em
ratura brasileira no século x1x acabou por sucumbir na com- 1973, sem herdeiros diretos. Alguns dos ativos da firma, in-
petição com o homem que foi marcadamente responsável clusive os arquivos comerciais, foram comprados pela Li-
pelo florescimento dessa literatura em meados do século xx. vraria Itatiaia, de Belo Horizonte, que continua usando o
nome Garnier-Briguiet, mas, como isso parece apenas uma
indicação de arquivo, podemos realmente sustentar que a
$86 BRIGUIET-GARNIER longa saga Garnier-Briguiet no Brasil, como atividade edito-
rial, chegou ao fim na data de fechamento da loja Briguiet,
Ainda mais irônico foi o destino da própria Livraria Gar- pela morte de Ferdinand sobrinho.
nier. Foi vendida ao antigo assistente de Baptiste Louis
Garnier, de que falamos no início deste capítulo. Ele deu
continuidade à Coleção dos Autores Célebres da Literatura
Brasileira, com a aquisição da Garnier e de todos os direi-
tos autorais de valor. Entre estes estavam incluídos Canaã,
cuja oitava edição publicou em 1939,e as obras completas
de Aluísio Azevedo, que Briguiet reimprimiu apenas uma
vez (em 1937-1941), antes de revender os direitos à edi-
tora Martins, de São Paulo ($160). Comprou também os
direitos das obras de Machado de Assis, de que nunca fez
uso, preferindo repassá-los à W. M. Jackson Ltda., uma
pioneira na venda de coleções a domicílio pelo sistema de
crediário ($r 19).
Francisco
Alves
rn. SO
La fuerza principal de la publicación de
libros reside en el aumento constante de la
demanda de libros de texto...

PETER $, JENNISON & WILLIAM H. KURTH'

O CENÁRIO DO RIO NO COMEÇO DO SÉCULO XX 487

Embora Garnier e Laemmert continuassem a dominar a área


editorial nos primeiros anos do novo século, vários de seus
concorrentes merecem pelo menos uma referência de passa-
gem. À dois dos mais importantes, Lombaerts e Leuzinger, já
fizemos menção anteriormente ($$68, 69).
Uma firma de origem muito anterior a qualquer uma
dessas foi a Sellos e Couto, livraria fundada em 1816, por
Jerônimo Gonçalves Guimarães na rua do Sabão, nº 22 (rua
rebatizada posteriormente como General Câmara e, atual-
mente, faz parte da avenida Getúlio Vargas). Nos anos de
1830, essa livraria passou às mãos de Agostinho de Freitas
Gonçalves, que, por sua vez, foi sucedido, pouco depois de
1852, por seus sobrinhos Antônio e Agostinho Gonçalves
Guimarães. Estes ampliaram o âmbito de ação da firma com
o acréscimo de uma oficina impressora, a Typographia Epis-
copal, e a publicação de títulos como o Calendário de 1854,
Noções de Chronologia e o Código Commercial Brasileiro.
Segundo Senna”, Antônio esteve envolvido no singular
episódio do Novo Diccionario da Lingua Portuguesa, de
Faria. Eduardo Augusto de Faria (1823-1860), um suspeito

r. Peter S. Jennison e William H. Kurth, El Libro en América, Wa-


shington (DC), União Pan-Americana, 1960, p. 25.
2. Ernesto Senna, Velho Commercio do Rio de Janeiro, Rio de Janei-
ro, Garnier, [19112], p. 95.
302 Francisco Alves Francisco Alves 393

editor de romances franceses traduzidos, que se apoiava o negócio foi arrematado por Antônio Joaquim de Sellos e
em intensa propaganda para compensar a atroz qualidade Gaspar Pereira do Couto, que passaram a operar, primeiro
de suas traduções, havia feito uma compilação apressada e sob a razão social Sellos, Guimarães & Cia. e, mais tarde,
extremamente descuidada de todos os dicionários portugue- como Sellos x Couto.
ses existentes. Sua obra, apesar do extremo rigor da aprecia- Pimenta de Mello foi outra firma antiga, fundada em
ção dos críticos, teve três edições em Lisboa em oito anos 1843 e estabelecida na rua Sachet, nº 34 (hoje, travessa do
(1849-1857). Estabelecido depois no Rio de Janeiro, Faria Ouvidor). Sobreviveu pelo menos até 1937, ano em que
autorizou Villeneuve a produzir uma quarta edição (1859), anunciou a publicação de uma “Bibliotheca Scientifica Bra-
mas textualmente idêntica aos dois volumes in-quarto da sileira”, composta de caros manuais de sociologia, direito
terceira, de 1855-1857, e, para estimular as vendas da obra, civil, medicina, ciências puras e história.
oferecia bilhetes da loteria oficial aos compradores. Em ju-
nho de 1860, com apenas dois terços impressos, vendeu a
obra a um infeliz, Elias Francisco Totta, com total desconhe- S. J. ALVES E CRUZ COUTINHO $88
cimento de Villeneuve, e, para escapar de vários outros cre-
dores, retirou-se às pressas para a Inglaterra, onde faleceu Muito mais importante foi o negócio fundado por Serafim
em setembro. Para concluir o trabalho, Totta iria precisar de José Alves em 1851, no número r6 da praça Dom Pedro
14:1038000 e, nas diversas tentativas de conseguir tamanha rm (hoje, praça 15 de Novembro). Como já mencionamos
soma, o resultado parece ter sido a falência. Villeneuve, ciente ($73), nos últimos anos do século x1x, essa casa publicou
dos defeitos do dicionário e querendo ver-se livre do proble- mais livros no Brasil do que qualquer outra, com exceção da
ma, vendeu toda a edição (“alguns milheiros”) a Guimarães Garnier e da Laemmert. Perto do final do século, mudou-se
por uma quantia que Senna diz ter sido de ro$000, presumi- para a rua 7 de Setembro, nº 83.
velmente querendo dizer r10:000$000. Todos do ramo viram Serafim José Alves editou Vozes d"África, Navio Negreiro
em Guimarães um tolo por haver adquirido a edição, mesmo e Os Escravos, de Castro Alves; Judite e Vôos Incertos, de
que por um preço de ocasião. Contudo, ele sabia que a opi- Adolfo Caminha; diversas obras dramáticas de Artur Azeve-
nião da crítica nem sempre afeta a venda de uma obra de refe- do e algumas das primeiras obras do crítico Sílvio Romero.
rência, particularmente um livro volumoso, e o dicionário de Tão importante quanto a de Serafim foi a livraria Popu-
Faria o era indiscutivelmente. Pôs a obra à venda por 20$000 lar, de A. A. da Cruz Coutinho, na rua São José, nº 75. Seu
e, após alguns meses, diante da grande procura, subiu o preço irmão mais velho, Antonio Rodrigues da Cruz Coutinho,
para 30$000 e, finalmente, num golpe de ousadia, fixou-o em ficou no Porto, onde era respeitado editor de eminentes lu-
so$000 para as últimas centenas de exemplares. minares como Camilo Castelo Branco e Júlio Diniz. A. A. da
Conta Senna que, em seguida, Antônio dedicou-se a ati- Cruz Coutinho estabeleceu-se no Rio de Janeiro por volta
vidades bancárias (com os lucros?) e, com a aposentadoria de 1855. Nessa cidade, publicou alguma coisa de literatura
do irmão Agostinho, em 1887, a firma foi vendida a seu brasileira, como, por exemplo, Gonzaga (1875), de Castro
enteado João Antônio Pinto. Este viu-se às voltas com um Alves, e a quinta edição de Espumas Flutuantes (1881), do
equipamento de impressão antiquado e com a própria ina- mesmo autor, mas concentrou-se em publicações obscenas,
bilidade para a obtenção de crédito; quando morreu, falido, protegido por uma força policial complacente e pelas “frou-
xas leis do Brasil”+.
Jacinto Ribeiro dos Santos, que o sucedeu, parece não ter
3. Segundo A. A. Teixeira de Vasconcelos, apud Diccionario Biblio-
graphico Portuguez, de Innocencio Francisco da Silva (vol. 2, pp. 220- prosseguido nessa linha de publicações, dando preferência
223; vol. 9, pp. 160-161), Faria demonstrava “um desconhecimento a livros de direito, mas editando também obras de outras
completo da índole da lingua” e fizera “uma compilação feita ao aca-
so sem mérito e sem inteligência, capaz só de perverter o gênio da 4. Agrippino Grieco, Zeros à Esquerda, Rio de Janeiro, José Olympio,
língua e de alimentar a ignorância”. 1947, PP. 195, 197.
304 Francisco Alves Francisco Alves 305

áreas. Luiz Edmundo descreveu a livraria Jacinto como “de O amor que ela exaltava, “a violência biológica da pai-
aspecto modesto, porém, é a que edita as melhores obras xão”, chocou de tal modo os tradicionalistas que garanti-
jurídicas do país, livros de Teixeira de Freitas, Viveiros de ram ao livro um succés de scandale, reforçado pelo apelo de
Castro, Nabuco de Araújo, Martinho Garcez, Moraes Car- sua linguagem florida.
valho e Carlos de Menezes”s. À Livraria Jacinto existiu até 1945, quando foi adquirida
Os anúncios de Jacinto exibem também uma miscelânea pela Editora “A Noite” ($158).
de assuntos. Em 1919, oferecia, ao lado de livros de direito e
texto escolares, uma edição da Divina Comédia, na tradução
de José Pedro Xavier Pinheiro, em dois volumes encaderna- AS LIVRARIAS QUARESMA, SÃO JOSÉ, CASTILHO E OUTRAS $89
dos, com 1440 páginas, por 25$000; um best-seller de culiná-
ria, Noções de Arte Culinária (que vendeu perto de treze mil Parece que a firma de S. J. Alves também tinha alguma liga-
exemplares em seu primeiro ano e atingiu vinte e seis impres- ção com a Livraria Quaresma, pois, segundo o Almanack
sões em 1947) e a terceira edição do romance Exaltação. Laemmert para 1892 (isto é, pouco antes de Jacinto assu-
Este último livro, publicado originalmente em 1926, mir), ela pertencia a uma sociedade de Joaquim Caetano
vendeu nove mil exemplares em dois anos e chegou à sexta Villa Nova e Pedro da Silva Quaresma. Este Quaresma fora
edição em 1931; apresenta, por isso, algum interesse como o fundador, em 1879, da Livraria do Povo, à rua São José,
um dos livros brasileiros de ficção de maior êxito na sua nº 65-67 (depois 71-73), estabelecimento que, nos primeiros
época. À autora, Albertina Bertha de Lafayette Stockler, filha anos do século xx, superou a Livraria Jacinto em importân-
de proeminente advogado, ainda publicou outros dois ro- cia. O nome Quaresma perdurou até a década de 1960, sem-
mances: Voleta (1926) e Ela Brincou com a Vida (1948). De pre fiel à política implícita em seu nome original, concen-
Lima Barreto, a quem enviou um exemplar de seu primeiro trando-se na publicação de livros baratos de apelo popular.
livro, obteve a seguinte resposta, cortês mas reveladora: Embora entre esses estivessem incluídos trivialidades
como a Arte de Fazer Sinais com o Leque e com a Bengala;
Ele é belo de linguagem, é mesmo sobrecarregado de beleza no o Diccionario das Flores, Folhas e Frutas; o Manual dos
que toca em efeitos verbais. Toda vez que a senhora trata da natu- Namorados e O Secretario Poetico, ou Coleção de Poesias
reza, do esplendor da natureza que nos cerca, mesmo na penteadi- de Bom Gosto, Proprias para Serem Enviadas [...] em Dias
nha dos jardins, eu encontro nas suas páginas uma grande corre- de Anniversarios, Baptismos, Quaresma dedicou-se igual-
lação entre o objeto e a representação; mas (sem crítica) julgo que mente a livros práticos como O Padeiro Moderno, de A.
essa exuberância afoga a análise dos sentimentos quando se trata Corellões, Livro do Criador, Livro do Lavrador e Livro do
de explicá-los da mesma forma e dá não sei o que de artificial aos Industrial Agricola, de M. Dutra, Manual Practico do Dis-
seus diálogos... tillador, de Anibal Mascarenhas, ou, entre livros de interesse
O seu livro é bem um poema em prosa, e um poema de mulher, mais amplo, o Secretario Moderno, ou Guia Indispensável
de senhora, pouco conhecedora da vida total, dos altos e baixos para Cada Um se Dirigir na Vida sem Auxilio de Outrem,
dela, da variedade de suas dores e das suas injustiças. Vivendo à uma série de cartas-padrão para negócios de família, trato
parte, em um mundo muito restrito, a senhora, muito naturalmen- com a burocracia etc. À sua Lyra Popular se descrevia como
te, não podia conhecer senão uma espécie de dor, a dor de amar; e uma “escolhida coleção das mais celebres poesias de poetas
dessa mesma, a senhora faz dela uma Exaltação”. brasileiros e portugueses, compreendendo muitas que nun-
ca foram publicadas em volume”.
Outra atividade muito bem remunerada foram as canções
5. Luiz Edmundo da Costa, O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Rio de populares: a Biblioteca dos Trovadores incluiu as primeiras
Janeiro, Imprensa Nacional, 1937, vol. 2, p. 768. publicações de Catulo da Paixão Cearense. Muito embora seu
6. Lima Barreto, Correspondência, org. Assis Barbosa e Noronha autor as tenha renegado, posteriormente, como prejudiciais
Santos, São Paulo, Brasiliense, 1956. à sua reputação literária séria, títulos como o Cancioneiro
306 Francisco Alves Francisco Alves 307

Popular de Modinhas Brasileiras (vinte e cinco edições até EUA, nem à Biblioteca Britânica, mesmo tendo havido uma
1908), Choros ao Violão, Lira Brasileira e Novos Cantares segunda impressão poucos meses após a primeira. Tão rápido
devem ter sido generosamente lucrativos tanto para o poeta desaparecimento teve, sem dúvida, a ajuda do horrível e or-
quanto para o editor. dinário papel utilizado. Catorze anos depois, em 1910, outro
Quaresma também merece ser mencionado pela revolu- romance de Dias, Os Telles de Albergaria, teria uma edição
ção que fez, no Brasil, no campo das edições para crianças. publicada no Rio de Janeiro pela Francisco Alves.
Na época, a maior parte da literatura infantil e praticamente A Quaresma exercia especial atração como ponto de en-
todos os livros para as crianças menores vinham de Por- contro dos escritores mais jovens (e, por isso, mais pobres),
tugal; e mesmo a pequena parte produzida no Brasil ain- em grande parte, parece, porque seu negócio como livraria
da seguia, na linguagem, os usos da pátria-mãe. À criança estava quase todo baseado em livros usados! Foi também
não apenas se confundia com as palavras e o estilo grotesco onde o editor e livreiro Carlos Ribeiro se iniciou na profis-
desses livros, como, frequentemente, tinha dificuldade até são, em 1921. Anos mais tarde, em 1947, próximo dali, no
mesmo de compreendê-los. Quaresma contratou o jornalista número 38, Carlos Ribeiro estabeleceu seu próprio negócio:
Alberto Figueiredo Pimentel para produzir toda uma cole- a Livraria São José. Esta atuou de forma moderada na ativi-
ção de livros infantis escritos em português do Brasil. Con- dade editorial nas décadas de 1950 e 1960, sobretudo com
tos da Carochinha saiu em 1894, logo seguido, em 1896, literatura brasileira e crítica literária. A Carlos Ribeiro e à
por Historias da Avozinha e Historias da Baratinha, todos Livraria Teixeira de São Paulo tem-se atribuído a introdu-
adaptados de Andersen, Grimm e Perrault, e depois por Os ção, no Brasil, do recurso promocional das “tardes de au-
Meus Brinquedos, Theatrinho Infantil e Album das Crian- tógrafos”, na década seguinte à Segunda Guerra Mundial,
ças. Os tradicionalistas mostraram-se horrorizados”, mas a embora, segundo Érico Veríssimo, essa prática tenha sido
inovação garantiu a Quaresma o virtual monopólio do mer- iniciada, em 1940, pelos irmãos Saraiva*, No entanto, desde
cado de livros infantis. Após o falecimento do editor, essa 1947,a loja de Ribeiro dedicou-se principalmente aos alfar-
Biblioteca Infantil Quaresma foi reeditada, em 1967, pela rábios: parece que, por não ter de conceder tanto desconto
editora de livros de bolso Edições de Ouro. ao comprador, o livro usado dá mais lucro.
Na área de ficção para adultos, Quaresma publicou pou- À rua da qual a loja de Carlos Ribeiro tirou o nome era,
ca coisa. Garnier há muito vinha dominando o campo com então, o centro do comércio carioca de livros usados. Mui-
livros de pretensões literárias, e o resto de menor qualidade tos desses “sebos” tiveram de mudar-se quando, na década
era atendido satisfatoriamente por Cruz Coutinho. Não obs- de 1960, foi demolido todo o lado esquerdo da rua. À evo-
tante, obteve excepcional sucesso quando, em 1896, adquiriu, lução gradual do centro da cidade do Rio de Janeiro para
por 1:5008000, os direitos definitivos de A Mulata, de Carlos uma zona bancária de aluguéis altíssimos, quase desprovida
Malheiros Dias (1875-1941), que estava positivamente falido de vida cultural, expulsou os restantes. À Livraria São José,
e ansioso para regressar a Portugal. Este livro, que Wilson de Carlos Ribeiro, era praticamente o último sobrevivente
Martins diz ser um dos melhores romances naturalistas jamais quando, em princípios da década de 1970, a contínua trans-
editados no Brasil, teve tanto êxito que não restou sequer um formação da cidade obrigou-a a mudar-se para a vizinha rua
exemplar que pudesse chegar à Biblioteca do Congresso dos do Carmo. Estava nesse endereço quando foi comprada, em
1979, por três empregados, José Germano da Silva, Carlos
Vieira e Adelbino Espíndola.
7. C£., por exemplo, as observações a este respeito em Marisa Lajolo
e Regina Zilberman, Literatura Infantil Brasileira: História « Histó-
rias, São Paulo, Ática, 1984: “[...] pessoas do feitio intelectual de um
Olavo Bilac, Coelho Neto ou Francisca Júlia não podiam, mesmo que 8. O simples lançamento de um livro na presença do autor para au-
quisessem, ter nas suas carreiras de escritor para crianças uma atitude tografar cada exemplo vendido foi introduzido, ao que parece, por
perante a língua diferente da posição acadêmica, culta e perfeccionis- José Olympio, em 1934, com o romance Banguê, de José Lins do
ta que permeia seus escritos não infantis”. Rego ($138).
308 Francisco Alves Francisco Alves 309

O livreiro e impressor Castilho também começou na rua tos e muitas vezes têm algo a dizer sobre Jacinto, Castilho e
São José, nos últimos anos do século x1x, porém, as edições até mesmo Cruz Coutinho. No entanto, deixam totalmente de
mais expressivas da firma foram publicadas pelo filho do lado outro editor e livreiro tão importante quanto aqueles, tal-
fundador, Antônio Joaquim Castilho, nos anos de 1920, de- vez porque lidasse principalmente com livros didáticos e, por
pois de mudar-se para a rua da Assembleia, nº 92. Lançou isso, sua loja não atraísse as reuniões de escritores. Estamos fa-
traduções de Balzac, Anatole France, Tagore e Dostoiévski, lando de Francisco Alves. Todavia, ao final da primeira década
e muita literatura brasileira, como obras de Augusto dos do novo século, já não se podia ignorar aquele homenzinho
Anjos, Gastão Cruls, Viriato Corrêa, Antônio Torres e Ca- magro, frágil e nervoso, com seu bigode branco, óculos de aro
tulo da Paixão Cearense (depois que o poeta se desligou da de ouro, trajes escuros e formais e a pele “como um pergami-
Quaresma). Castilho lançou o folclorista Leonardo Motta, nho encarquilhado”, pois havia usurpado o lugar de Laem-
publicando seu popularíssimo Cantadores (1921), numa mert e estava tirando da Garnier sua tradicional preeminência.
edição de dez mil exemplares. Sete anos mais tarde, publicou Memorialistas da época (cerca de r910) impressionaram-
a primeira edição nacional de A Bagaceira, o romance nor- -se sobretudo com as maneiras bruscas, o temperamento ir-
destino pioneiro de José Américo de Almeida, e, em 1929, ritadiço e a linguagem desabrida desse personagem. Um erro
reimprimiu Luzia Homem, a história de um hermafrodita, de seus auxiliares desatava uma torrente de injúrias em altos
de autoria de Domingos Olympio, publicada originalmen- brados: “Quem foi a besta que informou a um freguês estar
te em 1903 e tida geralmente como precursora da escola esgotada a Philosophia de Barbe? Esgotada anda a caixa dos
nortista. À viga mestra do negócio de Castilho, porém, está miolos de vocês todos”*. Até mesmo um pedido perfeitamente
indicada no seu slogan: “Grande variedade de romances para normal era expresso deste modo: “Oh seu besta, deixe o raio
moças”. Esses romances para adolescentes eram traduzidos dessa escada, largue a porcaria desses dicionários e venha cá a
(em sua maioria do francês) por Fernando Nery. Infelizmente, baixo, servir este sujeito”'º. E se a reação a essa diatribe fosse
Castilho enfrentou dificuldades financeiras e, em 1931, sua mais lenta do que a esperada: “Canalha, salafrário, patife!”,
firma transformou-se na Livraria América, de Américo Bedes- ou algo ainda mais pesado: “Ser assim grosseiro com uma se-
chi, que continuou a publicar Catulo, Viriato Corrêa e Augus- nhora tão distinta”"", sem qualquer consideração pelo embara-
to dos Anjos até a década de 1940, enquanto o próprio À. J. ço da dita senhora. Nem mesmo seus fregueses escapavam: al-
Castilho foi trabalhar na Civilização Brasileira ($r 14). guém o ouviu desculpando-se polidamente com um deles: “Se
Os primeiros anos do século xx viram também o início vossa excelência diz isso, minha senhora, queira vossa excelên-
de duas firmas do Rio de Janeiro que se tornariam impor- cia me perdoar, mas é porque vossa excelência é muito tola”"=.
tantes nos anos de r9so e 1960: a Livraria H. Antunes e a Luiz Edmundo menciona uma ocasião em que, tendo-se
Editora Vecchi. À primeira foi fundada por Hector Antunes, desentendido com um jovem freguês a ponto de ofender sua
em 1909, visando principalmente a revenda de livros impor- mãe ausente e de mandar o próprio rapaz para o inferno,
tados de Portugal. Quatro anos mais tarde, Arthur Vecchi Alves teve de enfrentar o pai zangado que veio indagar “com
fundava a empresa que tinha o seu nome e afirmava ter sido que intenções” dissera tais coisas. “Com que intenções, meu
pioneira na edição, no Brasil, de livros de André Maurois, caro senhor? Ora essa! Mas, com intenções puramente co-
Ibsen, André Gide, Schopenhauer e Nietzsche; mais tarde merciais” Observando o espanto do interlocutor, continuou:
concentrou-se na edição de revistas e de livros infantis.
Claro que, se em vez de estar na minha casa, que é de negócio, esti-
vesse à mesa de um príncipe ou de um embaixador, eu não diria a
$9o A PERSONALIDADE DE FRANCISCO ALVES

9. Tancredo Paiva, “O Livreiro Alves”, Espelho, p. 30, jul. 1935.


Às reminiscências da vida literária no Rio de Janeiro, na virada 10. Luiz Edmundo, op. cit., vol. 2, p. 748.
do século, estão cheias de referências à Garnier, mencionam 11. Agrippino Grieco, op. cit.
com frequência a Livraria Quaresma e seu gerente José de Ma- 12. Idem, ibidem.
310 Francisco Alves Francisco Alves 311

seu filho o que aqui lhe disse. Está-se a ver que sou um homem de Não é preciso dizer que Francisco Alves trabalhava duro.
princípios. Aqui, porém, meu amigo, na roda do comércio, isso não Contudo, como atingimos agora uma época relativamente
tem a menor importância. Nós nos criamos assim e assim havemos civilizada, trabalhar duro significava estar na loja seis dias
de ser toda a vida! Intenções puramente comerciais. Mesmo porque por semana entre nove da manhã e cinco da tarde, e não
eu não tenho o prazer de conhecer a senhora sua esposa. Sei lá, das cinco e meia da madrugada às oito da noite, como B. L.
afinal, se ela é branca, preta ou azul; se é mesmo aquilo que eu disse Garnier, e menos ainda das seis da manhã às dez da noite,
que era, ou não é! Conheço-a eu, por acaso?" sete dias por semana, como o pobre Belarmino de Mattos.
No entanto, parece que empregava a maior parte do tempo
Os autores podiam também tornar-se vítimas do seu livre em escrever alguns dos seus próprios livros didáticos.
temperamento irascível. Houve um caso em que, segundo Apesar de ter começado a trabalhar muito jovem, tinha ad-
Josué Montello, o rompimento de negociações com um au- quirido uma cultura bastante ampla, que incluía perfeito
tor acabou por deixá-lo com uma edição da qual queria se domínio da língua francesa, bem como conhecimentos de
ver livre. Usou-a, então, para encher a vitrina da livraria, inglês e de italiano. Principios de Composição e Trechos dos
com um cartaz: “Mil-réis o quilo, e ainda é caro”. Autores Classicos apareceram, ambos, em meados da dé-
Certamente, Francisco Alves tinha outras qualidades. cada de 1880, sob o pseudônimo de Guilherme do Prado.
Sua meticulosa honestidade era tida em tão alta conta que Mais tarde, colaborou (como F. d'Oliveira) com J. Monteiro,
não eram poucas as pessoas que lhe confiavam a guarda de em um Diccionario Practico Francês-Português e num Novo
dinheiro, como se a livraria fosse um banco — num caso, o Atlas de Geographia. Em 1895, realizou uma adaptação
montante de 300 contos — tendo apenas sua palavra como brasileira da bem-sucedida obra de Johann Franz Ahn, Prak-
garantia. Fonte de financiamento extremamente útil! Um elo- tischer Lebrgang der fransôsischen Sprache (223 edições no
gio anônimo, que apareceu na Ilustração Brasileira, de 14 de século xIX), com o título de Novo Methodo Practico e Fa-
julho de 1922, chegou a afirmar que, se o livro estivesse ven- cil para Aprender a Lingua Francesa. À este seguiu-se uma
dendo bem, Alves continuava a pagar aos herdeiros direitos adaptação semelhante da gramática inglesa de Ahn, acom-
autorais do autor, mesmo depois de caídos em domínio pú- panhada dos Novos Methodos para o italiano (por volta de
blico. (Como isto só aconteceria sessenta anos após a morte 1905) e para o alemão, todos eles com constantes reedições
do autor, a incidência de tais casos não pode ter sido alta, mas por muitos anos. O uso de diversos pseudônimos manteve
talvez essa referência fosse feita a traduções, que eram prote- desconhecido esse lado de suas atividades, até mesmo para
gidas apenas por dez anos.) Soube-se mesmo que comprou os amigos de trinta anos; após sua morte, porém, Oswaldo de
direitos de livro que não tinha qualquer intenção de publicar, Melo Braga conseguiu identificar nada menos que trinta e
apenas para compensar o autor, de quem adquirira, por preço nove livros de autoria de Francisco Alves.
muito baixo, uma obra anterior que fizera sucesso! Infeliz- Certamente, era também parcimonioso, mas não ava-
mente para essa história, nunca foi seu hábito adquirir direi- rento. Seus empregados eram bem pagos, para compensar
tos definitivos sobre uma obra; sempre preferiu os contratos o constante castigo verbal que recebiam, e isso contribuiu
na base de porcentagem sobre as vendas. Afrânio Peixoto cita para que mantivesse um quadro de pessoal de alto nível.
a opinião do velho editor sobre a primeira prática (então a Segundo o editor S. Fittipaldi, um funcionário que o supor-
mais comum): “Mau negócio: se tem êxito o livro, queixa-se o tara por mais tempo, foi agraciado, por ocasião da morte
autor e dele se desinteressa: é um enjeitado, sem progresso; se de Alves, com um legado em torno de cem contos, muito
não o tem, o editor é vítima e culpado, ao mesmo tempo” '* — embora o testamento publicado pela Academia Brasileira de
crítica implícita a Hippolyte Garnier em particular ($83). Letras nada fale a esse respeito. Exemplo de generosidade
ainda mais impulsiva foi o caso narrado por Josué Montel-
13. Luiz Edmundo, op. cit. lo: comovido pela súplica do ladrão que pegara em flagran-
14. Afrânio Peixoto, “Francisco Alves, o Pioneiro do Livro Didático te a cortar as grades do guichê de sua caixa, o editor aca-
no Brasil”, O Imparcial, 2 jul. 1917. bou por facilitar-lhe a fuga. Ficou conhecido também pelas
Francisco Alves 313

312 Francisco Alves Após cerca de dois anos, pôde vender o negócio com lucro
satisfatório e regressar ao Porto.
frequentes doações de livros a escolas, expressão da perma- Ao receber o convite do tio, não apenas apressou-se a
nente paixão pela educação que costuma caracterizar os au- aceitar, como logo resolveu que dessa vez permaneceria no
todidatas, ainda que apenas a publicação de seu testamento Brasil; naturalizou-se em 28 de julho de 1883. Os outros


tenha tornado evidente a extensão de tal paixão. Tampouco sócios, logo que descobriram o temperamento irascível de
era excessivamente apegado ao dinheiro. “Sabe gastar, às ve- Francisco, não ficaram muito satisfeitos com a companhia.
zes é até meio bohemio”, diz Luiz Edmundo. “Gosta da sua Magalhães vendeu-lhe sua parte quase imediatamente. O tio
ceiazinha, da sua francezinha, da sua champagnezinha”'. Nicolau permaneceu um pouco mais, feliz por abdicar de
Não foi dessa forma, porém, que o viu Antônio Austregésilo; todo o controle do negócio, devido à sua precária saúde e
para este, Alves não tinha outros interesses além do traba- vista deficiente. Depois, em 1897, acabou por vender-lhe sua
lho, nunca saindo socialmente, não tendo amigos íntimos e parte, por 250:0008000, pagáveis em cinco anos.
sequer vestindo-se bem, embora — apesar de seu tempera-
mento — se diga que tratava seus empregados como se fos-
sem a própria família's. FRANCISCO ALVES E OS LIVROS DIDÁTICOS S$9z
Desde 1872, Nicolau vinha anunciando a especialidade da
$91 O COMEÇO DA VIDA DE FRANCISCO ALVES sua firma: “livros colegiaes e academicos”. Isso talvez se
referisse mais a livros importados do que a obras editadas

ey
Sua firma, originalmente denominada Livraria Classica, foi por ela, apesar de, ocasionalmente, já na década de 1860,
aberta na rua dos Latoeiros (atual Gonçalves Dias), nº 54 ter adquirido direitos autorais, como os da terceira edição

ED
(alterado mais tarde para 48), no dia 15 de agosto de 1854, de Geometria, de C. B. Ottoni ($74), pelos quais pagou

dd
por um tio, Nicolau Antônio Alves, que tinha chegado ao 10:0008$000, € os da terceira edição de uma obra do mesmo
Brasil em 1839, com onze anos de idade. (Nem este nem seu autor, Álgebra (mais os últimos duzentos exemplares da se-
sobrinho tinham qualquer parentesco com seu concorrente gunda edição), por 2:500$000.
Serafim José Alves, mencionado anteriormente [$88]). Em Francisco não só manteve a linha de trabalho do tio,
1868, Nicolau fez sociedade com um patrício, Antônio Joa- como ampliou-a com a inclusão de material para a escola
quim Ribeiro de Magalhães, mas, sentindo necessidade de primária e o desenvolvimento da parte editorial. Os livros
maior ajuda, decidiu, em princípio de 1882, convidar Pran- didáticos constituem uma linha de vendas segura e perma-
cisco para que viesse reunir-se a eles. nente, além de proporcionar ao editor nacional uma van-
O jovem já havia comprovado sua capacidade para os ne- tagem sobre os competidores estrangeiros, cujos produtos
gócios. Nascido Francisco Alves d'Oliveira (de pai António jamais podem adaptar-se tão bem às condições ou aos cur-
José Alves e mãe Maria José de Oliveira), em 2 de agosto de rículos locais. Por isso, Baptiste Louis Garnier já tinha ini-
1848, chegara ao Rio em 1863 e conseguira emprego numa ciado a publicação de livros didáticos ($64), mas Francisco
loja de artigos náuticos, com o salário mensal de 608000. Alves foi o primeiro editor brasileiro a fazer dessa linha edi-
Talvez nessa loja tenha adquirido sua pitoresca linguagem. torial o principal esteio de seu negócio.
Impressionando o patrão pela inteligência, diligência, exce- Como qualquer outra coisa, era uma questão de oportu-
lente memória e impaciência com a frouxidão dos outros, nidade. Até então, o pequeno tamanho do mercado escolar
logo ascendeu ao posto de subchefe, apesar da pouca idade. simplesmente não justificava uma atenção total de qualquer
Em 1872, tendo economizado 1:120$000, começou a ne- firma. Desde a Constituição Imperial de 1824 (art. 179),a edu-
gociar por conta própria, abrindo um sebo na rua São José, cação primária gratuita e universal fora introduzida como um
primeiro no nº 75 e depois, sucessivamente, nº 99 enº TI8. conceito abstrato, mas os recursos e os professores nunca fo-
ram suficientes. O naturalista Henry Walter Bates, escrevendo
15. Luiz Edmundo, op. cit.
16. Revista da Academia Brasileira de Letras, n. 57, pp. 185, 1939.
314 Francisco Alves Francisco Alves 315

em 1863, assegura que, “em qualquer cidadezinha, do Pará às finalmente tomaram consciência do atraso da nação e a
fronteiras do Império”"”, existiam escolas primárias básicas. crescente prosperidade do comércio cafeeiro proporcio-
No entanto, em seu Through the Wilderness of Brazil, Wil- nou os recursos necessários, pelo menos no centro e no sul
liam Cook nos mostra quão básicas eram, frequentemente, do país. A mudança do regime, em novembro de 1889, foi
essas escolas, mesmo meio século mais tarde: outro fator importante, pois a nova República, seguindo,
na educação como em tantas outras coisas, o modelo dos
Esse homem fora empregado pela prefeitura, por um salário de Estados Unidos, procurou substituir a herança educacional

VT
cerca de dez dólares por mês, para manter uma escola em sua pró- elitista do Brasil por um sistema moldado na escola pública

a
pria casa, frequentada por dez ou doze meninos. Não havia livros ianque. Naturalmente, os positivistas anticlericais de 1889

e
impressos em uso nessa escola. Algumas páginas manuscritas eram também foram atraídos pela filosofia puramente secular
usadas em lugar de livro de leitura, À educação dos meninos con- da educação norte-americana. Simplesmente em termos de
sistia em aprender leitura e escrita, tabuada de multiplicação e tal- crescimento, os números (apresentados na tabela 7, p. 844)
vez um pouco de adição e subtração. À prefeitura exigia que essa são impressionantes, porém, mais importantes para o mer-
escola [...] funcionasse das 7 às ro da manhã, |...) mas o professor cado de livros didáticos foram os grandes progressos nos
|...) fazia uma sessão vespertina das 2 às 4, grátis. [...] Inúmeras métodos educacionais.
escolas, como a que acabamos de descrever, raramente possuem Em nível federal, foi criado um Ministério da Instrucção
uma página que seja de material impresso, sendo usada para a aula Pública, Correios e Telegraphos, em 19 de abril de 1890,
a leitura de uma carta escrita por algum comerciante... As crianças logo após a Revolução, mas tratou-se, na verdade, de uma
estudam em voz alta e em conjunto... Não há escolas na zona rural, criação ad hoc, para proporcionar uma pasta ministerial a
exceto quando um criador de gado ou fazendeiro emprega uma Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Foi abolido, por
governante ou um tutor. desnecessário, em dezembro de 1892, isto é, tão logo se en-

em
tmn
[...] As escolas semibárbaras acima descritas são mantidas em controu para ele um ministério vacante. À União, através

ia AA
locais que mais parecem estábulos, carentes de todo tipo de equi- de seu ministro da Justiça e Negócios Interiores, continuava
pamento, exceto bancos e carteiras rústicos”, com a responsabilidade nominal pela educação secundária e
tir ee
superior, mas essa educação restringia-se a uma elite diminu-
Os últimos vinte anos do Império testemunharam al- ta e, no nível secundário, era suprida principalmente por ins-
guma melhora, pelo menos em termos quantitativos, com tituições privadas: a intervenção do governo limitava-se, na
a duplicação do número de escolas de 3 561 para 7 500, e prática, à supervisão geral do currículo. O ensino primário
e

o aumento de 1,2% para 2,1% na proporção de escolares (isto é, de massa) e a formação de professores ficavam, como
comparada à população. São Paulo foi suficientemente pro- nos Estados Unidos, a cargo de cada estado, muitos dos quais
gressista para tornar o ensino primário obrigatório apenas não possuíam os recursos para cumprir suas responsabilida-
quatro anos depois da Inglaterra, pela Lei Rodrigues Al- des de forma adequada: por exemplo, a cidade de Fortaleza
ves, de 2 de fevereiro de 1874. Nenhuma outra província tinha, em 1906, 8 500 crianças em idade escolar (num total
seguiu-lhe o exemplo, e o projeto de lei apresentado ao Con- de 55 mil habitantes), porém apenas 1 675 frequentavam a
gresso, em abril de 1879, tornando compulsória a educação escola. Mas o Ceará era um dos estados mais pobres. Às uni-
na capital do país, não conseguiu aprovação. dades mais ricas e mais adiantadas tinham a liberdade, sob
A revolução na educação brasileira começou mais ou a nova e descentralizada constituição republicana, de pro-
menos no último ano do Império, quando os políticos gredir por si mesmas. Na dianteira e inspirando o resto do
Brasil, estava (como não podia deixar de ser) o próprio es-
tado do café: entre 1888 e 1893, 0 orçamento paulista para
17. Henry Walter Bates, Naturalist on the River Amazons, Londres,
Murray, 1863. Citado a partir da reimpressão: 1892, vol. 2, p. 148.
a educação duplicou de 870:692$251 para 1739:437$8228,
18. William Azel Cook, Through the Wilderness of Brazil, Londres, embora parte desse aumento deva ser descontado em resul-
tado da inflação.
om

Fisher Unwin, 1910, p. 26.


o
316 Francisco Alves Francisco Alves 317

As missões protestantes norte-americanas já se haviam nº 166), onde permaneceu até 1981, quando se mudou para
tornado ativas na educação brasileira, e uma de suas reali- a rua 7 de Setembro, nº 177. Conta-se que, não tendo o edi-
zações mais notáveis foi a fundação da Escola Americana, tor dinheiro suficiente para concluir o negócio, diversos ami-
escola primária anexa ao Colégio Mackenzie de São Paulo. O gos se cotizaram para emprestar-lhe os recursos necessários,
presidente do estado, Prudente de Morais, ficou tão impres- o que demonstra a grande consideração de que desfrutava
sionado com os métodos empregados nessa escola que, em tanto por sua honestidade como por suas perspectivas comer-
1890, solicitou ao diretor, dr. Horace M. Lane, que recrutasse ciais. Quais foram exatamente esses amigos não ficou claro.
um pequeno grupo de professoras norte-americanas para O No entanto, sabe-se que mantinha relações bastante estreitas
sistema escolar de São Paulo. Lideradas por Marcia Browne, com os dois Leão citados, com Rodrigo Otávio (seu advoga-
de Boston, figura histórica da educação brasileira, essas jovens do), Sílvio Romero, Barbosa Romeu, Capistrano de Abreu,
senhoras criaram uma escola primária modelo, que se tornou João Ribeiro, Carlos de Carvalho, Felisbelo Freire e, mais tar-
o núcleo de um sistema de âmbito estadual baseado nas ideias de, Olavo Bilac e Afrânio Peixoto. Dava-se bem igualmente
e técnicas norte-americanas. Nos cinco ou seis anos que se com Clóvis Bevilácqua, José Veríssimo, Coelho Neto, Manuel
seguiram, o estado conseguiu instalar uma média de duzentas Bonfim, Alberto de Oliveira, Olavo Freire, Emílio de Menezes
novas escolas por ano. Às taxas estaduais de alfabetização e a romancista Júlia Lopes de Almeida.
logo começaram a disparar à frente daquelas do restante do Esta última, importante romancista da época e autora
país, até que surgiu o desafio gaúcho do princípio do novo sé- de livros infantis, tem uma história editorial que não dei-
culo (cf. $124). À própria cidade de São Paulo saltou de uma xa de apresentar uma certa tipicidade. Seus Contos Infantis
taxa de alfabetização de 45%, em 1887, para 75%, em 1920, (1886) e Viúva Simões (1897) foram publicados em Lisboa.
e 85%, em 1946. Mesmo assim, o crescimento populacional Ânsia Eterna (1902) foi impresso pela Garnier, e Histórias
impôs ao estado encargos de tal monta que, em 1978, apenas da Nossa Terra (para crianças, 1907), À Intrusa (1908), Eles
232 mil de suas crianças de sete a doze anos de idade, de um e Elas, a história infantil Era Uma Vez (1910), Alma Infantil
total de 380 mil, frequentavam a escola. (1912) e Correio da Roça (1913) saíram pela Alves, que con-
Teófilo das Neves Leão, que se tornou secretário da Edu- tinuou a reeditar suas obras anteriores até a terceira edição
cação na gestão de Prudente de Morais, era amigo pessoal de de Cruel Amor (1928), apesar de Leite Ribeiro ter publicado
Francisco Alves. De fato, conforme afirma Edmundo Moniz, A Isca (1922). Na década de 1930, foi editada pela Editora
Leão foi “até o fim da vida [...] seu leitor, seu conselheiro Nacional, por exemplo, Casa Verde (1932).
secreto e, à semelhança do que fazem os grandes editores Em 1906, Francisco Alves abriu uma segunda filial: em
de todo o mundo, só editava o que o leitor aprovava. Ora, Belo Horizonte, a nova cidade-jardim que, desde 1897,
como Teófilo das Neves Leão era, em seu tempo, a maior vinha sendo construída pelo estado de Minas Gerais para
autoridade em matéria de ensino, daí o sucesso dos livros substituir, como capital, a antiquada Ouro Preto. À firma
didáticos editados por Alves!”'º Foi talvez por sugestão de havia crescido rapidamente a partir de meados da década
Leão que Alves decidiu abrir sua primeira filial: em São Pau- de 1890 e logo chegou a deter o quase monopólio no campo
lo, em 23 de abril de 1894. Seja como for, seu filho, Manuel do livro didático brasileiro. Isso foi conseguido, em parte,
Pacheco Leão, tornou-se logo depois o encarregado da su- com a suplantação dos concorrentes mediante a prática de
cursal e, em 1902, por acordo estabelecido, adquiriria parte tiragens maiores, o que barateava os preços, e, em parte, com
das quotas da sociedade por setenta contos de réis. a aquisição das firmas rivais. Em São Paulo, adquiriu a firma
Por essa época, a Alves já havia mudado sua sede do Rio de N. Falconi. No Rio de Janeiro, comprou a Lombaerts
para instalações maiores, localizadas na então rua Morei- ($68),a Livraria Católica, de Sauvin, a Livraria Luso-Brasi-
ra César, nº 134 (que se tornaria, depois, rua do Ouvidor, leira, de Lopes da Cunha, a Empresa Literária Fluminense,
de A. A. da Silva Lobo e — aquisição particularmente impor-
19. Edmundo Moniz, Francisco Alves de Oliveira: Livreiro e Editor, tante — a casa de Domingos de Magalhães ($73). À seguir,
Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1943, p. 8. em 1909, adquiriu a editora e livraria de Laemmert ($77) e,
A,
318 Francisco Alves Francisco Alves 319

com ela, os direitos de edição de Os Sertões, de Euclides da escola primária, e o grande reformador educacional de uma

E
Cunha (cuja quarta edição Alves publicou em r9rr, a 28º geração posterior, Lourenço Filho, pagou-lhe o tributo de um
em 1979 ca 39º em 1999),€ de Inocência, de Taunay, e, mais estudo detalhado.
prosaicamente, porém com maiores lucros, os do Tratado Embora muitos, como Agripino Grieco, tenham dito de
Completo da Conjugação dos Verbos Franceses, de Casemi- E Alves (ou de qualquer editor bem-sucedido) que enrique-
ro Lieutaud, uma obra amplamente utilizada, que já havia ceu “empobrecendo os autores”, João Ribeiro, um de seus
vendido trinta mil exemplares (Francisco Alves continuou a mais importantes editados, adianta uma opinião lisonjeira-
reeditá-la até cerca de quarenta anos depois). mente diferente em seu tributo póstumo no Imparcial, de 2
Muitas dessas aquisições — houve pelo menos dez — fo- de julho de 1917:

o
ram realizadas apenas para obter determinados direitos de
edição. Francisco Alves comprou a pequena livraria da viúva

DS
O que Alves estimava em mim era a minha vontade de trabalhar...
Azevedo, no Rio de Janeiro, apenas para adquirir os direi- Contribuí com muito mais do que uma “gota d'água” para sua
tos de Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de caudalosa fortuna. Das 150 edições dos meus livros didáticos cor-
Laet (primeira edição em 1887), amplamente adotada nas reram e correm ainda muito perto de um milhão de exemplares.
escolas. À Livraria Melilo, de São Paulo, foi comprada por- Mas [...] tudo isto foi a obra do editor... Em mão de outros ou
que os livros de João Kopke que editava eram os principais nas minhas, gramáticas e compêndios nada valeriam e disso fiquei
concorrentes das obras de Felisberto Rodrigues Pereira de certo por algumas experimentações decisivas. Era o editor com seu
Carvalho ($64), então editados pela Alves. serviço admirável de propaganda... Ele pagava o meu trabalho e em
Foram autores de livros didáticos da Alves, entre outros, melhores condições que outros quaisquer... Era dedicado, pronto,
Francisco Vianna, João Ribeiro e Joaquim Maria de Lacerda

AO
fiel, exato e liberal”,
(compêndios de história do Brasil), Júlio Ribeiro e Maximino
Maciel (gramáticas), Tomás Galhardo (cuja Cartilha atingiu
225 edições em 1979), Ramiz Galvão (Vocabulário de Étimos FRANCISCO ALVES E AS EDIÇÕES LITERÁRIAS $93
Gregos) e Afrânio Peixoto. As publicações para o magistério
incluíam tanto obras brasileiras, como A Educação Nacional, > O mesmo jornal, O Imparcial, trouxe naquele mesmo dia
de José Veríssimo, o Tratado de Metodologia, de Felisberto de mais um tributo de outro autor de F. Alves, Júlio Afrânio
Carvalho, ou os quatro volumes dos Princípios de Pedagogia, Peixoto (1867-1948):
de J. Augusto Coelho, como traduções do francês, do alemão
e do inglês. Entre estas últimas, encontravam-se Da Educa- Nossas relações vieram de um verão nas Palmeiras, onde éramos os
ção, de Herbert Spencer, Ciência da Educação, de Alexander dois hóspedes que não jogavam. Passeávamos pelos terraços e, um
Bain, e as Lições de Coisas: Manual de Ensino Elementar para dia, falamos. À uma ambição de ir novamente à Europa, pergun-
os Pais e Professores, “traduzido da quadragésima edição, é tou-me: — Por que não vai? — Não tenho com quê.
adaptado para as condições dos países de língua portuguesa,
por Rui Barbosa”. Estas Lições de Coisas baseiam-se no Pri- Alves, presumivelmente sabedor de que Peixoto, que era
mary Object Lessons for a Graduated Course of Development médico, já havia escrito sobre assuntos de sua área, sugeriu:
(primeira edição: Nova York, Harper, 1861), de Norman
Allison Calkins (1822-1895), obra inspirada nas teorias de — Escreva um livro. — E encomendou-me a Medicina Legal [do Tra-
Pestalozzi e de Froebel e na sua aplicação por Robert Owen balho e das Doenças Profissionais: oito edições, 25 mil exemplares
em New Harmony (Indiana). Rui Barbosa fez sua adaptação até 1938], cuja primeira edição me deu para visitar o Mediterrã-
e

em 1881, mas levou cinco anos para encontrar um editor. À neo clássico, o Oriente próximo... Mário de Alencar elegera-me
influência desse livro na educação brasileira foi enorme; o nú-
mero de referências contemporâneas demonstra ter sido esse

20. João Ribeiro, “Uma Recordação Pessoal”, O Imparcial, 2 jul.


o manual par excellence para a formação de professores de 1917.
e
320 Francisco Alves Francisco Alves 321

acadêmico, sem livro literário, e, essa promissória, tive de pagá-la. reagira à notícia de que não havia mais nada do autor de A
Escrevi, perto do Cairo, num hotel do deserto em Helovan, o meu Esfinge, perguntando:
primeiro romance.
Tornando a Paris, na primavera seguinte, estava Francisco Al- “Ter-se-ia cansado?”
ves no Hotel do Louvre, onde fui vê-lo. Contei-lhe o que sucede- — Em boca bonita, comentava, este cufemismo ofende; respon-
ra ao João Ribeiro, oferecendo O Fabordão ao Garnier. “O livro de-lhe com outro romance. Disse-lhe que tinha pronto o Maria
didático, a carne, é para o Alves; a literatura, o osso, para mim” Bonita. - Como não m'o trouxe? —- Não quisera onerá-lo. Fui,
[de qualquer modo, Garnier o aceitou; foi publicado nesse mesmo então, escrevê-lo*>,
ano de 1910]. Não quisera me acontecesse o mesmo. Quanto devia
dar-lhe, para que me publicasse A Esfinge? Respondeu-me irônico: O novo romance, que aborda o tema de que a beleza físi-
“Atendo ao Garnier: se tenho o livro didático, devo ter também o ca pode ser maldição, acabou vendendo mais ainda do que
literário”, Como podia haver laivo de impolidez, nessa querela de o anterior: treze mil exemplares em cinco edições da Alves,
“carne e osso”, acrescentou: “E não será osso — pois que terá mil a última em 1924. O terceiro romance de Peixoto, Fruta do
colegas [os outros médicos] a esgotarem uma primeira edição para Mato, retrato psicológico da mulher “primitiva” do interior
ver se não escorregou”. Como podia não ter sido amável, ajuntou: da Bahia, atingiria, num ano a partir de sua publicação em
“E o melhor, é que hão de verificar o contrário”*”, dezembro de 1919, três edições (isto é, três mil exemplares).
Os sucessos editoriais alcançados com Afrânio Peixoto
A Esfinge foi publicada às expensas de E Alves — com di- estimularam Francisco Alves a aventurar-se mais na litera-
visão dos lucros (partes iguais para o editor e para o autor)- tura. Além dos títulos que adquirira ao assumir o controle
tão logo regressaram ao Rio de Janeiro no ano seguinte. Uma da Laemmert, já havia publicado uma ou duas obras lite-
segunda edição fez-se necessária em um mês e, finalmente, rárias por sua própria iniciativa, entre as quais as Poesias
perto de onze mil exemplares foram vendidos em cinco edi- (1909), de Emílio de Menezes, e a terceira edição de O Ate-
ções da Alves, as duas últimas em 1919 e em 1923. Foram neu (1905), de Raul Pompeia. O editor impressionou par-
feitas também duas edições em espanhol: em Buenos Aires, ticularmente os contemporâneos pela disposição de correr
em 1912, e em Barcelona (Maucci), em 1920. Entre todos, riscos com autores desconhecidos.
foi o romance brasileiro de maior vendagem desde Canaã,
oito anos antes. Seu atrativo está, em grande parte, no fato Alves sentenciou um dos seus princípios de ética editorial. Todo
de retratar a sociedade carioca contemporânea. Canaã tra- homem inteligente tinha direito a editar um livro. Sem êxito, não
tava da vida do campo; Machado de Assis e Lima Barreto insistiria no segundo, pois negociante não queria nem forçar o pú-
haviam retratado a pequena burguesia urbana; Aluísio Aze- blico, nem falir; obtido o sucesso criara o autor, automaticamente,
vedo havia até escrito um romance proletário (O Cortiço). o direito a editar segundo livro, e assim por diante”.
Em A Esfinge, porém, encontrava-se o elegante mundo da
alta sociedade: políticos, diplomatas e salões aristocráticos. Afrânio Peixoto compara essa atitude com a de outros
O tema do romance, uma análise um tanto superficial da editores brasileiros, mais diletantes do que homens de ne-
psicologia feminina como algo fundamentalmente inescru- gócios, que aceitavam os originais de um autor como se lhe
tável — daí seu título — tornou-o particularmente atraente estivessem fazendo um favor pessoal e que não tinham nem
para o público feminino, além da atração adicional de ser mesmo o bom senso de reeditar seus sucessos. Edmundo
um roman à clef. Moniz e Medeiros e Albuquerque também se mostraram
Peixoto relata novo encontro com F. Alves, alguns meses impressionados com o modo de Francisco Alves estimu-
depois. Um dia, ao café, ele lhe contou como uma freguesa lar os jovens escritores literários, embora sejam difíceis de

22. Idem, ibidem.


21. Afrânio Peixoto, op. cit. 23. Idem, ibidem.
322 Francisco Alves Francisco Alves 323

encontrar exemplos concretos dessa atitude. Foi muito hábil os Diccionarios do Povo, de José Joaquim Ferreira Lobo,
em “roubar” autores de outros editores, especialmente de uma coleção de dicionários de português, português-inglês
Garnier, seu principal concorrente. São exemplos: Alber- e português-francês (que a Alves continua a reeditar, anoni-
to de Oliveira, José Veríssimo, Olavo Bilac, Júlio Ribeiro, mamente, até hoje) e a tradução portuguesa de Júlio Verne,
Hermes Fontes e José Maria Goulart de Andrade. Francisco autor ainda muito popular no Brasil na época e que, ante-
Alves também publicou muita coisa de Júlia Lopes de Almei- riormente, fora monopólio de B. L. Garnier ($65).
da (já citada) e de Medeiros e Albuquerque, mas ambos já Entretanto, houve outra ligação portuguesa de muito
tinham diversos livros editados em outras casas. Além disso, maior importância, aquela com a Aillaud-Bertrand, que data
muitos romances de Júlia eram reimpressões de folhetins pu- dos anos de 1890, na qual as firmas representavam-se mu-
blicados nos jornais. No único caso em que tivemos conhe- tuamente na distribuição de suas edições.
cimento de alguém que teve sua primeira oportunidade com Os nacionalistas brasileiros criticavam Francisco Alves
Francisco Alves e veio a tornar-se proeminente escritor — Gil- por imprimir seus livros no exterior. Já mencionamos ante-
berto Amado com A Chave de Salomão, em 1914 — verifi- riormente ($$26, 57) as fortes razões econômicas e técnicas
camos que entregou seus dois livros seguintes a outro editor que levavam os editores brasileiros a essa prática. Laemmert,
(Jacinto). É possível que o julgamento literário de Francisco como dissemos ($72), foi uma exceção, porque precisava de
Alves é que estivesse errado, pois temos a impressão de que uma gráfica para a produção rápida do Almanack, mas a fir-
tendia a avaliar os escritores como o fazia com seus auxilia- ma abandonou a edição de livros em geral em 1909. Havia
res: por sua diligência e dedicação. Nessa base, seus autores também, ainda que ocasionalmente, livros impressos a par-
contemporâneos favoritos eram Olavo Bilac e Júlia Lopes. tir de sua publicação seriada em jornal, utilizando a mesma
No entanto, ao analisar a contribuição da Alves para a composição tipográfica (cf. $59). É exemplo disso Numa e
difusão da literatura brasileira, não devemos desprezar a ine- a Ninfa, de Lima Barreto, editado por Irineu Marinho em
gável importância de seus compêndios escolares e antologias. 1917, depois de ter sido publicado como folhetim, de março
Antes de 1918, uma parcela muito pequena do que se publi- a julho de 1915, em A Noite, jornal de Marinho.
cava em literatura no Brasil conseguia alguma distribuição Francisco Alves era um homem de negócios muito sagaz
eficiente ou qualquer impacto real fora da elite intelectual do para não se dar conta das vantagens de imprimir na Euro-
Rio de Janeiro e de algumas das maiores capitais dos estados. pa, vantagens que aumentaram após 1912, com o aumen-
Somente os livros didáticos atingiam a consciência de toda a to dos impostos de importação sobre o papel (cf. tabela 6,
nação, e através deles é que a grande massa dos brasileiros p. 840). O desenvolvimento das suas relações comerciais
tinha algum contato com sua herança literária. com Aillaud-Bertrand lhe proporcionou uma razão adicio-
nal muito forte. Esses dois nomes eram originários de fa-
mílias de livreiros-tipógrafos franceses que emigraram, no
$94 AS LIGAÇÕES PORTUGUESAS E OS ESQUEMAS DE IMPRESSÃO século xvrrt, para Portugal, onde, então, o comércio do livro
dependia grandemente das importações de Lyon.
Entre as aquisições de Alves, inclui-se uma firma lisboeta Os Aillaud editaram livros em Coimbra nos anos de
que ele comprou em r913,a Livraria “A Editora”, com uma 1770, mas voltaram em 1808 para Paris, onde participaram
filial no Rio de Janeiro. Essa casa, fundada por Pedro Cor- da nova indústria editorial de livros em português que surgia
reia (“entre os mais distinguidos editores que em Portugal naquele tempo ($15). Além da publicação de livros nessa lín-
houve”), fora vendida depois a David Corazzi, cujo compro- gua, associou-se a Bossange para criar, em 1827, uma filial
misso social se expressava na sua Biblioteca do Povo, livros no Rio de Janeiro, que veio a transformar-se na Casa Laem-
baratos de cultura para as massas. Quando, devido à saúde mert ($$55, 70). Em 1890, a firma, agora de propriedade de
deficiente, Corazzi vendeu o negócio em 1888,0 comprador Júlio Monteiro Aillaud, genro do livreiro que restabelecera
adotou o nome de “A Editora”. Entre os direitos de edição o negócio em Paris, abriu uma filial em Lisboa. Pouco depois
dessa firma, podemos citar, dentro da Biblioteca do Povo, teve início sua ligação com Francisco Alves.
324 Francisco Alves Francisco Alves 325

Os irmãos Jean Joseph e Pierre Bertrand fizeram parte havia a ameaça dos submarinos alemães: toda uma edição
de um grupo de livreiros da região de Briançon, no sudeste de Praias e Várzeas, de Gustavo Barroso, que vinha de Lis-
da França, que emigraram para Portugal no século xvrr. Os boa, perdeu-se quando o navio foi torpedeado. À solução
Bertrand estabeleceram o seu negócio em Lisboa, em 1742, € óbvia era voltar a imprimir no Brasil, mas não havia gráfica
sua casa tornou-se rapidamente a editora mais importante da local capaz de fazê-lo em escala adequada à edição de livros
cidade. Em 1876, seus descendentes venderam o negócio a um didáticos. Francisco Alves, então com quase setenta anos e,
empregado, que se associou a um sr. Carvalho. O empregado portanto, um dos editores mais velhos do país, continuava
logo passou sua parte a Mendonça Cortes, e, em 1907, a so- sendo o mais cheio de energia. Comprou a primeira oficina
ciedade foi vendida a um assistente de Carvalho, José Bastos, gráfica que aparecera no mercado, a Companhia Progresso,
nome que passou a integrar a nova razão social da empresa. e adaptou-a para a produção de livros.
Em rgr0, Aillaud assumiu o controle da Livraria Ber- Graças a Monteiro Lobato”, temos o detalhamento do
trand, associando-se com a Empresa Gráfica José Bastos & custo de um livro didático típico da Alves nesse período:
Cia. Quase ao mesmo tempo, a ligação de Aillaud com Al- uma edição da Cartilha da Infância, de Tomás Galhardo.
ves transformou-se numa associação formal, que durou até Lobato não indica a tiragem, mas uma análise da atividade
a morte de Francisco Alves. Em Paris, a razão social era Ail- editorial, feita cinco anos depois pelo jornal O Estado de S.
laud, Alves et Compagnie; em Lisboa, Aillaud, Alves, Bastos Paulo?s, indica que as tiragens dos livros didáticos variavam
& Cia.; e, no Brasil, simplesmente F. Alves x Cia. Mesmo após de cinco mil a cinquenta mil exemplares. Como a cartilha
a morte de Francisco Alves, subsistiu alguma ligação comer- era uma obra amplamente adotada, talvez seja possível esti-
cial entre as duas firmas, pelo menos até que Júlio M. Aillaud mar em vinte mil exemplares; certamente, como o custo to-
(falecido em 1927) reorganizasse sua companhia no início da tal gráfico (isto é, composição e impressão) representa ape-
década de 1920, quando criou uma nova sociedade com dois nas 25% dos custos de produção (e apenas 9,1% do preço
portugueses, José Júlio da Fonseca e João Lopo da Cunha de de capa), dificilmente a edição terá sido menor do que isso.
Eça. Ao mesmo tempo, José Bastos separou-se da empresa e O detalhamento do custo é o seguinte:
quando, em 1933,0 controle passou ao sócio Artur Brandão,
voltou ao nome tradicional de Bertrand. Com essa designa- Papel (65 gramas, a £r9 por tonelada) $o48 8,0%
ção, a casa entrará de novo nesta história, em 1984 ($181), Imposto de importação sobre o papel (1$000 porkg) $065 10,8%
por associar-se com a Civilização Brasileira, de Ênio Silveira. Impressão Soss 9,1%
Além de oferecer facilidades de impressão, a ligação com Acabamento $120 20,0%
Aillaud-Bertrand também proporcionou muitas publicações Direitos autorais $120 20,0%
comercialmente valiosas, entre elas muitos outros livros didá- Desconto para o varejista $r80 30,0%
ticos para o curso primário e todas as obras do principal his- Lucro bruto do editor S$orz 2,0%
toriador português, Alexandre Herculano. O maior dos em-
preendimentos conjuntos do novo grupo foi, provavelmente, Preço de capa no varejo $600 100,0%
a Historia Universal, de G. Onken, “traduzida em português
por um grupo de homens de letras”. Pouco antes da sua fusão, Isso mostra uma surpreendente (ainda que não sem pre-
Bastos-Bertrand haviam iniciado este projeto, que resultou cedentes) generosidade para com o autor, combinada com
em vinte e dois volumes no curso de quase dez anos. um resultado incrivelmente baixo para o editor: de uns me-
O quarto aniversário de Aillaud, Alves, Bastos & Cia. ros 2%! Naquele tempo, os direitos autorais normalmente
assistiu à deflagração da Primeira Guerra Mundial. O cré- eram bastante altos — 13% ou 14% —, talvez para compen-
dito tornou-se difícil, a comunicação com a Europa era
cada vez mais errática à medida que a escassez de espaço 24. Monteiro Lobato, Cartas Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1952,
nos navios se tornava crucial, enquanto os preços cobra- vol. 1, p. 198.
dos pela impressão subiam vertiginosamente. Além disso, 25. Reproduzido na Revista do Brasil, vol. 16,n. 63, p. 278, mar. 1921.
326 Francisco Alves Francisco Alves 327

sar a tiragem geralmente pequena (cf. $ro4). Em contraste, dura lição sobre o quanto seu sucesso se devera a seu gênio e
noventa anos depois, 40,8% das editoras brasileiras paga- incomparável capacidade de trabalho. Surpresa ainda maior
vam 10% e 23,6% delas pagavam de 7% a 10% de direitos causaram as disposições testamentárias.

e
autorais. Sem dúvida, sendo um dos principais livreiros em Com exceção de um legado a Maria Dolores Braun, sua
três das maiores cidades do país, a própria Alves ficaria com amante desde 1891 (que foi contemplada com 2:000$000
o desconto do varejista nas vendas de muitos exemplares. por mês pelo resto da vida), tudo o mais ficaria para a Aca-
Dificilmente, porém, isso parece explicação suficiente. Pro- demia Brasileira de Letras: algo em torno de cinco mil con-

II
vavelmente, como sugere Lobato, o papel terá sido impor- tos. À única exigência era que a Academia teria de realizar,
tado como papel de jornal e, assim, pagou menos imposto: a cada cinco anos, dois concursos em sua homenagem, cada
isso teria reduzido o custo de papel, por exemplar, de $114 um deles com um primeiro prêmio de dez contos, um segun-
(18,8%!) para $094 (11,3%), aumentando, desse modo, o do de cinco contos e um terceiro de três contos. Um dos con-
lucro do editor para $057, ou 9,5%, o que parece correto. cursos deveria versar sobre monografias acerca da “melhor

ST
maneira de ampliar a educação primária no Brasil” e o outro
para monografias sobre a língua portuguesa.
$95 O LEGADO Rodrigo Otávio reivindicou ter sido o primeiro a fazer

oii
essa sugestão a F. Alves. Este havia pedido aos amigos que o
O esforço decorrente da implantação do setor gráfico in- aconselhassem sobre como poderia fazer alguma coisa, em
felizmente sobrecarregou a combalida resistência de Fran- seu testamento, que correspondesse à sua dupla paixão pelos
cisco Alves e explica a rapidez com que sucumbiu à doença livros e pela educação, e prontamente aceitou a ideia. Outro
final. Embora poucas vezes durante a vida tivesse deixado de admirador, Levi Carneiro, leva-nos a crer que apenas seu
trabalhar por motivo de doença, sua débil saúde teve uma desejo de tornar essa doação a maior possível terá mantido
longa história. Além da diabetes de que fora acometido (na- Alves trabalhando muito tempo depois de já haver acumu-
queles tempos em que não havia insulina), apanhou uma lado uma quantia mais do que suficiente para garantir-lhe

0
pneumonia que evoluiria para tuberculose. Agripino Grieco uma regalada aposentadoria.

am
sugere que essa má saúde crônica é que estava na raiz de A Academia, que estivera sempre lutando com a falta
sua irritabilidade e mau gênio. Todavia, ele se cuidava, le- quase absoluta de receita (o próprio testamento de Alves
vava uma vida disciplinada e moderada e, nos últimos anos, incluíra, por precaução, um legatário alternativo, caso a
habitualmente conseguia tirar férias a cada dois anos, mais Academia já tivesse sido extinta por ocasião de sua mor-
o

ou menos, e gozava-as numa estação de cura na Europa. te), via-se agora com uma dotação generosa. Poucos anos
Quando fez seu testamento, em 1904, estivera às portas da depois, o governo francês homenagearia o centenário da
a

morte, mas, após convalescência na Europa, voltou com óti- Independência do país oferecendo, para sede da Academia,
ma saúde e humor. No fim, seu sócio, Pacheco Leão, acabou uma réplica do Petit Trianon, completando assim a base
morrendo antes, em 23 de dezembro de r9r3, precedendo-o material essencial de sua existência. Graças a cuidadosos
em três anos e meio. À viúva de Leão herdou r017:5898045, investimentos posteriores, atribuídos a Alceu Amoroso
o lucro sobre o investimento original de 947:000$000, em
CO

Lima, o patrimônio da instituição rendia, em 1977, mais


onze anos. Francisco Alves conseguiu organizar-se para en- de Cr$300 000,00 mensais, enquanto se faziam novos
tregar-lhe esse dinheiro em cinco parcelas anuais. investimentos que, estimou-se, renderiam Cr$20 000,00
Francisco faleceu a 29 de junho de 1917, três dias de- por mês.
pois de haver ferido uma perna num acidente ferroviário
sem importância, vítima de uma complicação causada por
sua diabetes. Seu testamento provocou surpresa. Diz-se que
o espanto com o tamanho da fortuna produziu uma corrida 26. “Enfim a Mulher Imortal”, Veja, n. 466, pp. 87-90, 10 ago.
generalizada para a abertura de livrarias — e constitui uma 1977.
328 Francisco Alves Francisco Alves 329

$96 PAULO DE AZEVEDO & CIA., E A SEQUÊNCIA resse por literatura. Por exemplo, o último livro de Afrânio
Peixoto a sair com o sinete editorial da Alves foi a terceira
Já deve ter sido notado que praticamente todas as editoras edição de Bugrinha (1928); seu romance seguinte, Uma Mu-
brasileiras (e portuguesas) eram propriedade pessoal de um lher como as Outras, foi lançado pouco depois, no mesmo
indivíduo, ou sociedades de pouca duração entre duas ou ano, numa primeira edição de dez mil exemplares”, pela
três pessoas. À morte de um proprietário ou de um sócio Companhia Editora Nacional, que, a partir de então, passou
implicava não apenas a mudança de gerência, mas até mes- a ser sua editora. Alberto de Oliveira e (como já mencionei
mo uma alteração na constituição jurídica da firma, normal- acima) Júlia Lopes de Almeida também foram editados pela
mente refletida na mudança da razão social. Era possível até Alves até 1928, quando tiveram de procurar outras edito-
que a firma tivesse de suspender as atividades comerciais ras — finalmente a Nacional, em ambos os casos. Medeiros e
enquanto se completavam as formalidades legais de transfe- Albuquerque, editado pela Alves pela última vez em 1922, é
rência, como aconteceu, por exemplo, com a Livraria Gar- mais um exemplo, ainda que a Alves tenha aceito, em 1933,
nier, por ocasião da morte de Baptiste Louis. seu Vocabulário Brasileiro de Ortografia Oficial, obra de
O conceito de propriedade de uma empresa no sentido evidente potencial de vendas no mercado educacional.
moderno é a investidura da propriedade numa sociedade Paulo de Azevedo faleceu em 1946, sendo sucedido por seus
anônima perpétua e impessoal possuída por grande número filhos Ivo e Ademar, que logo depois admitiram como sócios
de acionistas, cujas ações mudam frequentemente de mãos. Álvaro Ferreira de Almeida, Raul da Silva Passos e Lélio de
Se esquecermos o triste período, maio de 1924 a junho de Castro Andrade. À partir de então, houve novamente uma am-
1925, da existência da Cia. Gráfico-Editora Monteiro Loba- pliação dos programas da editora, sem dúvida com a ajuda das
to ($$1og-r 10), é lícito dizer que esse conceito é quase desco- dimensões fenomenais atingidas pelo mercado nos anos mais
nhecido no comércio de livros no Brasil, pelo menos até que recentes, e desde então ela seria mais bem descrita como uma
a Livraria José Olympio Editora se tornou uma sociedade das mais importantes editoras não especializadas no Brasil.
de capital aberto em 1960 ($149). Mesmo a prematura ex- Seu sucesso editorial mais conhecido nos últimos cin-
periência de Paula Brito na constituição de uma companhia, quenta anos talvez tenha sido o livro de Carolina Maria de
a Dous de Dezembro ($40), foi encarada por seus acionistas Jesus, Quarto de Despejo (1960), relato autobiográfico da
mais como um modo de emprestar dinheiro a um entrepre- vida numa favela paulistana. Este não apenas foi um gran-
neur do que uma participação na gestão de uma empresa, E de sucesso no Brasil, com nove edições em três anos, como
em muitos casos, ainda hoje, uma mudança na propriedade ganhou rapidamente fama mundial. No que diz respeito à
de uma empresa tem sido pouco mais do que uma formali- venda de direitos de tradução logo após a publicação, se-
dade legal, já que a propriedade de quotas concentra-se num guramente ultrapassou qualquer outro título brasileiro an-
pequeno grupo de parentes ou amigos íntimos. terior: foi vendido para os Estados Unidos (onde apareceu
Como a Academia está, estatutariamente, impedida de com o título Child of the Dark), para o Reino Unido (Be-
gerir qualquer tipo de negócio, vendeu a livraria a um grupo yond Al Pity), França, Itália, Alemanha Ocidental, Polônia,
de velhos empregados de F. Alves, liderados por Paulo Ernes- Argentina e outros catorze países. Houve também uma ver-
to Azevedo, sucessor de Pacheco Leão na gerência da filial são cubana, publicada à revelia das convenções internacio-
de São Paulo, e por Antônio de Oliveira Martins. À nova nais de direitos autorais. Em 1976, a Edibolso, subsidiária
firma adotou como razão social o nome Paulo de Azevedo da Editora Abril, reeditou o diário como livro de bolso e,
&« Companhia, mas continuou a utilizar a marca “F Alves”. em 1983, a Alves reimprimiu a versão original. O êxito de
Continuou também a dominar o mercado brasileiro de li- Carolina talvez se deva ao jornalista Audálio Dantas, que
vros didáticos, até o aparecimento da Companhia Editora
Nacional, de Octalles Marcondes Ferreira, em fins da déca- 27. Marisa Lajolo e Regina Zilberman, A Formação da Leitura no
da de 1920, que a deslocou para o segundo lugar. Durante Brasil, São Paulo, Ática, 1996, p. 106, citando o prefácio da terceira
essa década, a firma parece ter perdido aos poucos o inte- edição (1940).
Francisco Alves

a descobriu. Afirmou-se que ele foi um editor (no sentido


inglês do termo) um pouco radical demais. De todo modo,
os dois livros seguintes de Carolina, Casa de Alvenaria e
Provérbios de Carolina de Jesus, não conseguiram repetir o
sucesso do primeiro livro. Anos depois, o brasilianista ame-
ricano Robert Levine descreveu a triste história da escritora
e a alta proporção dos seus direitos que ela nunca recebeu.
Outra obra na mesma coleção (Contrastes e Confron-
tos), a autobiografia do maior esportista brasileiro, Edson
Arantes do Nascimento, também revelou-se uma decepção.
Eu Sou Pelé (1961) vendeu muito pouco no Brasil e foi pra-
ticamente ignorado no exterior: Ich bin Pelé, editado pela
casa alemã Ullstein, em 1963, parece ter sido a única tra-
dução de importância. Os países de língua inglesa tiveram
de esperar até que Robert Fish escrevesse, em nome de Pelé
(foi seu ghost writer, como se diz em inglês), My Life and the
Beautiful Game, para Doubleday, em 1977, obra também
publicada em alemão pela Ullstein.
Em 1972,a empresa foi vendida ao almirante José Celso O Crescimento da
de la Rocque Maciel Soares Guimarães, que tornou a modi-
ficar seu nome para Livraria Francisco Alves Editora, enfa- Atividade Editorial
tizando sua posição como a mais velha firma carioca com em São Paulo
atividade ininterrupta no ramo editorial. Em fins de 1974, a
empresa de navegação Netumar, de Ariosto Amado, adqui-
riu 80% do seu capital e Carlos Leal assumiu a gerência da
editora. À crise daquele ano ($$152, 162, 179) obrigou Leal
a adotar imediatamente uma política de economia, com a
despensa de parte dos empregados. Por ocasião do 125º ani-
versário da firma em 1979, porém, ela voltou a crescer. Nesse
ano, o catálogo da Alves compreende catorze coleções, entre
as quais Horas em Suspenso, Ipê (ficção de autores brasilei-
ros) e Mundo Fantástico (ficção científica, dirigida por Faus-
to Cunha). À Coleção Latino-americana, de obras hispano-
“americanas, foi lançada, em julho de 1979, com Obsceno
Pássaro da Noite, de José Donoso, logo seguida, em agosto,
por uma coleção sobre ocultismo, Arcano. O almirante So-
ares Guimarães passaria a ser presidente de outra editora
carioca, a Rio Fundo, nos fins de 1989.
Tudo isso, porém, foi como um longo parêntese. Após a
morte de Francisco Alves, o centro de nosso Interesse já não
está no Rio de Janeiro, mas na capital do café, São Paulo,
em rápido desenvolvimento, para onde nos levarão os três
capítulos seguintes.
Os paulistas são trabalhadores, espirituosos,
robustos, afáveis, generosos e bastante polidos;
são dotados de talentos próprios para grandes
coisas assim as pudessem cultivar...

Os paulistas [...] são [...] hospitaleiros,


prestativos, ativos, industriosos... Têm, em geral,
gênio inventivo e a imaginação ardente”.

Duas impressões de viajantes sobre


São Paulo no início do século xtx.

A CIDADE E SUA FACULDADE DE DIREITO $97

O Almanack de Plancher para 1827 apresenta a receita gover-


namental do Brasil no ano anterior no valor de 9821:772$867.
É verdade que nessa cifra está incluída a província Cisplatina
(o atual Uruguai), mas perto de 80% desse valor — exatamente
7684:027$393 — provinham das quatro maiores províncias:
Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão. São Paulo,
que na época constituía uma única província com o Paraná,
contribuía com apenas 197:850$480, ou pouco mais de 2%.
A capital dessa província sem importância do interior
era um sonolento vilarejo com menos de dez mil almas; a
megalópole de hoje foi intuída apenas no traçado sem plane-
jamento de suas ruas sinuosas e escarpadas: o pragmatismo

t. Louis d'Allincourt, Memória sobre a Viagem do Porto de Santos


à Cidade de Cuiabá, São Paulo, Martins, 1953; reimpressão: Belo
Horizonte, Itatiaia, 1975.
2. Alcide dOrbigny, Voyage dans les deux Amériques, Paris, Furne
[c.1826]; tradução brasileira: Viagem Pitoresca Através do Brasil,
trad. de David Jardim, Belo Horizonte, Itatiaia, 1976.
334 O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo 335

português desprezou o rígido padrão urbanístico regular, Uma das novas faculdades de Direito instalou-se em
imposto na América espanhola. As casas ainda eram, em sua Olinda, na época ainda capital de Pernambuco ($s1), e a
maioria, de pavimento único, exceto no centro da cidade, outra fora destinada ao Rio de Janeiro. As razões que leva-
onde era comum encontrar um andar superior, e sua monó- ram à decisão posterior de instalá-la em São Paulo não são
tona uniformidade de reboco branco ou amarelo € pintura claras, mas parece que tiveram como base, em grande parte,
verde ocultava paredes de massa primitiva, a taipa, mistura a esperança de que, ali, os insetos causassem menos dano
de barro, cal e palha socada, posta a secar durante algum aos livros.
tempo entre tábuas e que necessitava de largos beirais para Os estudantes, idealizando o comportamento de univer-
proteção contra a água da chuva. Esses beirais é que da- sitários a partir das lembranças de seus pais dos dias passa-
vam à cidade seu caráter físico mais marcante, sua saliência dos na universidade em Portugal, começaram aos poucos a
criando a ilusão de ruas excessivamente estreitas, as quais animar a cidade e a transformá-la numa Coimbra brasileira,
eram, na verdade, bem mais largas do que muitas ruas do com suas serenatas, namoros, bebedeiras e tagarelice sem
centro do Rio de Janeiro atual, com bastante espaço para fim. Tabernas, um teatro e, pouco depois, uma livraria apa-
passarem as raras carroças de camponeses, cujos rangidos receram para atender às suas necessidades. Em 1836, uma
eram, frequentemente, a única perturbação na calmaria de gráfica local havia até mesmo impresso um livro, Questões
uma longa tarde preguiçosa. sobre Presas Marítimas, de José Maria de Avelar Brotero, e
No ano seguinte ao da Independência do Brasil, o pre- dois anos mais tarde imprimiu outro, São Paulo em 1836:
sidente da província, o barão de Congonhas do Campo, Ensaio dum Quadro Estatístico da Província, de Daniel
tentara adquirir um prelo para fins administrativos, mas Pedro Miller. No ano seguinte (1839), a mesma gráfica
enquanto a máquina ainda se encontrava no Rio de Ja- (de Costa Silveira) produziu um livro didático, o Resumo
neiro, a Assembleia Constituinte requisitou-a para impri- de Historia Universal para Uso da Aula de Historia e Geo-
mir seus próprios debates. Quatro anos depois, em 1827, grafia, adaptação, por Júlio Frank, da obra alemã de H. L.
José da Costa Carvalho, futuro marquês de Monte Alegre, Poelitz. Em 1845, a cidade tinha pelo menos mais um pre-
importou um prelo e um impressor (um espanhol, José lo, pois, nesse ano, um drama histórico de 102 páginas, O
Maria Roa) e produziu o primeiro jornal da província, O Tumulto do Povo em Evora, também de Avelar Brotero, foi
Farol Paulistano. publicado pela gráfica de Silva Sobral.
Evento muito mais importante ocorreu no ano seguinte, Depois disso, nenhum outro livro foi impresso em São
quando a pequena cidade teve a ventura de ser escolhida Paulo até 1849, quando surgiu a primeira obra literária, em
para abrigar uma das duas novas escolas de Direito do país. livro, de um estudante, Rosas e Goivos, de José Bonifácio, o
Na época colonial, os brasileiros eram obrigados a procurar Moço, seguida, em 1852, por Cantos da Solidão, de Bernar-
no exterior qualquer tipo de educação superior. À vinda do do Guimarães, ambos impressos na Typographia Liberal, de
governo português no exílio, em 1808, suscitara a implan- Joaquim Roberto de Azevedo Marques.
tação de duas escolas médicas, no Rio e em Salvador, para Essa ausência de publicações na década de 1840 é, qua-
fornecer cirurgiões para as forças armadas. Depois, com a se certamente, um reflexo do destino inconstante da esco-
Independência e a consequente necessidade de expandir a la de Direito, que sofreu um período de declínio após um
administração civil, foi julgado oportuno desenvolver tam- promissor início — a primeira turma começou seu curso no
bém a formação jurídica. Gradualmente, no correr do res- dia de ano-novo de 1828 — e da qual não se pode dizer, até
tante do século, foram introduzidos cursos superiores para mais ou menos 1855, que estivesse solidamente construída:
diversas outras áreas (por exemplo, a Academia Real Militar o número de diplomados sempre foi inferior a dez em 1831,
de 1810, localizada no Rio, foi mais tarde transformada em 1840, 1842 (ano da Revolução Liberal), 1847 e 1851. Já
faculdade nacional de engenharia), mas a criação de uma em 1865, um visitante norte-americano pessimista, James
universidade brasileira propriamente dita, ainda que nomi- Coldman, opinou que, não obstante a importância — peque-
nalmente, estava distante noventa e dois anos. na — da cidade na época, essa importância desapareceria tão
336 O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo 337

logo a estrada de ferro atingisse Campinas, ainda que esta Azevedo Marques, que agora se tornara a Typographia Im-
cidade tivesse adquirido um prelo somente em 1860, tendo perial, imprimiu os Fragmentos Geológicos e Geográficos
sido precedida, na província, pela própria São Paulo, por para a Parte Estatística das Províncias de São Paulo e Para-
Sorocaba (1842), Santos (1848), Itu (1849) e Guaratinguetá ná (1856), de Carlos Rath; Os Guaianazes (1860), de José
(Typographia Commercial, de V. R. da Fonseca, 1859). Já Vieira Couto de Magalhães; Noturnas (1861), Estandarte
falamos do envolvimento de Hercule Florence com a revo- Auriverde (1863) e Vozes da América (1864), de Fagundes
lução de 1842 ($33); no entanto, a História da Tipografia Varela; e Estudo sobre Algumas Questões Internacionais
no Brasil afirma que ele instalou, efetivamente, uma gráfica (1867), de Antônio Pereira Pinto. Antônio Lousada Antu-
em Campinas e que simplesmente abandonou-a, após o fra- nes, cuja Typographia Dous de Dezembro parece não ter li-
casso da revolução, “na estrada de Sorocaba”. O impressor gação alguma com a gráfica de mesmo nome de Paula Brito
pioneiro em Santos foi o açoriano Francisco Manuel Raposo ($40), produziu, em 1853, uma reimpressão de Constitui-
de Almeida (1807-1886), que anteriormente dirigira jornais ções Primeiras do Arcebispado da Bahia, obra de 1719, de
na Bahia, em Pernambuco, Minas Gerais, Santa Catarina e Sebastião Monteiro da Vida, e reimprimiu os Elementos do
Rio e escrevera obras de teologia, história, geografia, crítica, Processo Criminal (1856), de Joaquim Inácio Ramalho, o
biografia e drama histórico; o primeiro livro que imprimiu texto oficial do Código de Instrução Pública da Província de
em Santos foi A Colônia Senador Vergueiro: Considerações São Paulo (1857) e os Estudos Históricos Brasileiros (1858),
(1851), de Carlos Perret Gentil, em que se relata a experiên- de Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo. À terceira
cia do autor com o trabalho livre. gráfica funcionava com o nome de Typographia Litteraria,
De fato, em 1855,embora a cidade de São Paulo contasse para mostrar que realmente era especialista na impressão de
com apenas quinze mil habitantes (em comparação com um livros. Entre sua produção estão incluídos Esboços Biográfi-
quarto de milhão na corte e mais de oitenta mil em Salvador cos (1858), de Homem de Melo, Primeiras Trovas Burlescas
e no Recife — cf. tabela 4), o número de estudantes chegara (1859), de Luís G. P. da Gama, Os Dois Mundos: Academia,
a seiscentos. Fletcher?, que visitou a cidade mais ou menos Teatro (1861), de J. J. Pessanha Póvoa, e Gennesco: Vida
nessa época, considerou-a mais intelectual e menos comer- Acadêmica (1862), de Teodomiro Alves Pereira, Nessa épo-
cial do que qualquer outra cidade brasileira, e Elizabeth ca, havia também um encadernador, o alemão U. Knossel,
Agassiz ficou impressionada com “o sólido aprendizado e a cujo negócio veio a ser adquirido, na década de 1880, por
cultura liberal”* dos formados pela faculdade. Já havia, en- um compatriota, Jorge Seckler, e tornou-se importante gráfi-
tão, três livrarias: as de Fernandes de Souza (que trabalhava ca, com prelos movidos a vapor. Em fins da década de 1860,
apenas com livros jurídicos), de Gravesnes e de Torres de encontramos diversas firmas novas: a Typographia da Lei,
Oliveira. Apesar disso, os estudantes ainda precisavam re- a Typographia Americana e uma “com nome de gente”, a
correr à corte para satisfazer algumas de suas necessidades, typographia de Henrique Schroeder.
como sabemos por carta de Álvares de Azevedo, datada de
1849, em que pede a Démocratie en France, de Guizot, e o
Raphael, de Lamartine. A CASA GARRAUX $98
Além das livrarias, existiam agora três gráficas, que
não eram, é claro, editoras: ninguém fora do Rio imprimia Em 1860, o livreiro Baptiste Louis Garnier, do Rio de Janei-
um livro, a não ser por encomenda do autor. À Liberal, de ro, abriu uma filial em São Paulo, fato por si só indicativo de
que o mercado de livros na cidade já alcançara bom tama-
nho, e confiou sua administração a Anatole Louis Garraux
3. Daniel Parish Kidder e James Cooley Fletcher, Brazil and the Bra-
zilians Portrayed in Historical and Descriptive Sketches, Filadélfia, (1833-1904), que vinha trabalhando para Garnier desde que
Childs and Petersen, 1857. chegara da França com dezessete anos. Em 1863, Garraux
4- Louis e Elizabeth Cary Agassiz, A Journey in Brazil, Boston, Tick- já se tornara independente de Garnier e abrira a Livraria
nor Fields, 1868, p. 498. Academica, em sociedade com Guelfe de Lailhac e Raphael
338 O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo 339

Suarês, embora todos continuassem a chamar a firma de Preconceitos de Civilidade, Polidez, Conduta e Maneiras em
Casa Garraux, mesmo muito tempo depois que este a ven- Todas as Circunstâncias da Vida (in-quarto, apenas 2$000),
deu e regressou a Paris. Antes de 1920, Garraux não publi- e para a dona de casa uma seleção de livros de culinária
cou praticamente nada (temos conhecimento de apenas um de autores nacionais. Livros do gênero “faça você mesmo”
caso, em 1865), mas tornou-se um destacado livreiro, cuja vão desde o Manual de Fotografia, de J. A. Bentes, in-oitavo,
casa foi descrita, em 1883, por um visitante americano, Ch- 28000, até Arte de se Curar a si Mesmo das Doenças Vené-
ristopher C. Andrewss, como a melhor livraria e papelaria de reas [...] Adaptado aos Climas do Brasil, Vertido do Francês,
todo o Brasil, opinião compartilhada, no ano anterior, por de Godde de Liancourt (Paris, 1839), in-oitavo, encader-
um viajante brasileiro, Antônio de Paula Ramos Júnior, que nado, 38000, traduzido por Caetano Lopes de Moura (cf.
considerou seu estoque mais atualizado que o de qualquer $71). Havia também a Preservação Pessoal: Tratado Medico
livraria do Rio de Janeiro. Os catálogos por ela publicados sobre as Doenças dos Órgãos da Geração, Resultantes dos
oferecem um registro sem igual do que existia disponível Hábitos Clandestinos com Observações sobre a Impotên-
para o comprador brasileiro de livros da época. cia Prematura [...] Hustrado, in-oitavo, 3$000, que, embora
O catálogo de 1865, atribuindo à firma a condição de o catálogo não o mencione, era a tradução, publicada por
“Livreiros da Academia Jurídica de São Paulo”, inicia-se E. « H. Laemmert, do Personal Preservation (1841), de Sa-
com vinte páginas de livros sobre Direito: 189 títulos, desde muel La"Mert. Outra obra médica, o Manual Completo dos
a Constituição Política do Império do Brasil, por $640, até Partos, também é, muito provavelmente, uma publicação da
as obras completas do grande jurista português Manuel de Laemmert, a Arte Obstétrica, de Langaard. Para diversão,
Almeida e Souza Lobão, em vinte e um volumes in-quarto, havia um Manual dos Jogos (in-oitavo, 3$000) para dentro
por rro$000. Seguem-se sete páginas em que são relaciona- de casa e, para o ar livre, uma Escola de Caça, ou Monteira
dos sessenta e nove livros de religião e misticismo, a maioria Paulista (28000, brochura).
deles oferecidos ao preço entre um e quatro mil-réis. “Edu- Vem a seguir uma seção “Poesias, theatro, poetas nacio-
cação, alphabetos, grammaticas, diccionarios, compendios naes e estrangeiros”, com 120 livros, cujos preços chegam
de geographia, historia, geometria, arithmetica, etc” ocu- até 22$000, mas a maioria são anunciados entre $s00 e
pam doze páginas para relacionar r54 livros, da mesma am- 58000. À esta segue-se “Obras de literatura, historia, novel-
plitude de preços. las, romances illustrados, etc. etc.”, totalizando 473 títulos,
A seção seguinte, “Artes, e officios, medicina, miscela- dos quais 215 são traduções: uma do italiano, uma do es-
nea”, é muito mais curta (45 livros, de cerca de dois a quatro panhol (Dom Ouixote), uma do alemão, nove do inglês —
mil-réis, ocupando cinco páginas), porém mais interessante. na maioria de sir Walter Scott, além de Piloto, de Fenimore
Há livros para o agricultor: Novo Manual Pratico da Agri- Cooper — e o restante do francês. Os mais populares são os
cultura Intertropical, encadernado, por s$000; Monografia livros de Dumas (75 títulos), Sue (22 títulos) e Paul de Kock
da Cana de Açucar, encadernado, in-quarto, 48000; e Novo (21); dos demais, Soulié, Paul Féval e Georges Sand estão
Método de Plantação do Café, por Luiz Torquato Marques bem representados, mas Victor Hugo menos. Flaubert rem
de Oliveira, por apenas $400, em brochura. Para o comer- apenas Salambô. (Teria Madame Bovary permanecido sem
ciante, há a Arte da Correspondência Comercial, in-oitavo, tradução em razão de sua franqueza, ou apenas era rejeitado
encadernado, 38000, e o Manual Teórico-Prático do Guar- por ser muito deprimente para o gosto brasileiro da epóca?)
da-livros, de J. E de A. Lessa, in-quarto, encadernado, por Os autores portugueses mais populares eram Castelo Ban-
8$000. Para os que desejam ascender na vida social, é ofere- co (evidentemente), Almeida Garrett e Herculano, enquanto
cido o Novo Manual de Bom Tom, Contendo Moderníssimos José de Alencar e Joaquim Manoel de Macedo eram os prin-
cipais entre os brasileiros.
À pequena cidade já estava sendo observada pela ativi-
5. Christopher C. Andrews, Brazil, its Condition and Prospects, apud
Ernani Silva Bruno, História e Tradições da Cidade de São Paulo, Rio dade empresarial do paulistano. Já em 1867, um grupo de
de Janeiro, José Olympio, 1953-1954. fazendeiros e de negociantes, reunido por Joaquim Saldanha
340 O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo 341

Marinho, planejava a construção de uma estrada de ferro de uma seção de 192 páginas de livros em português. Des-
sem recorrer a qualquer capital estrangeiro: um projeto tes, cerca de 44% vinham de Portugal, 5% da França, 1%
inédito. Em 1873, fora realizada a enorme façanha de ligar de outros lugares (Roma, Genebra, Nova York), e so% ti-
por trem Santos e São Paulo e, em 1875, uma estrada de nham sinetes editoriais brasileiros — embora muitos, sem
ferro virtualmente completa ligava a cidade ao Rio de Ja- dúvida, fossem apenas publicados no Brasil, tendo sido im-
neiro. Embora a população, pelo censo de 1872 (primeiro pressos na Europa (a própria impressão do catálogo fora
recenseamento nacional do Brasil), mal atingisse trinta mil feita em Paris). Muitos dos mais conhecidos autores fran-
habitantes, a proporção de alfabetizados subira de 5%, em ceses estavam representados exclusivamente por traduções
1836, para 30%. O ano de 1872 também testemunhou ou- publicadas em Portugal: toda a obra dos dois Dumas, todos
tros sinais do progresso da cidade, tais como o início de uma os livros de Balzac, de Kock, de Sue, de Chateaubriand (ex-
rede de transporte coletivo, com bondes, e o fornecimento de ceto um, vindo de Paris), e todos os de Féval, com exceção
gás. Cinco anos mais tarde, a Companhia Cantareira tornou de um. Por outro lado, B. L. Garnier publicara toda a obra
disponíveis os mais importantes de todos os melhoramen- de Musset, a maior parte da de Júlio Verne e metade dos
tos urbanos: suprimento de água e sistema de esgotos, os livros de Hugo e Gautier.
melhores de todo o Império, fator primordial, ao lado da Esse novo catálogo mostra ligeiro aumento proporcional
inexistência dos mosquitos da febre amarela, para a futura e de obras de literatura inglesa então disponíveis em português.
frenética expansão de São Paulo. Walter Scott continua liderando, com dezoito títulos, seguido
Nessa época, estava bem adiantado o grande desenvol- do americano Fenimore Cooper (com onze), Ann Radcliffe
vimento da cafeicultura que iria transformar a província, (nove) e do capitão Mayne Reid, autor irlandês de estórias de
a cidade — que em breve teria apenas Santos como centro aventuras (oito)7. Aparecem três das peças de Shakespeare e
concorrente na comercialização da colheita — e finalmente dois dos relatos de viagens de Stanley (Através do Continente
a nação. À colheita de 2 250 toneladas, em 1850, crescera Negro e Terra da Escravidão). Os outros autores de língua
para 15 400 em 1864, 34059 em 1870 e 78450 em 1878. inglesa, cada um deles com um livro, são Dickens (Cânticos
No fim do século, seriam 390 mil toneladas. À população da do Natal), Longfellow, Marryat, Milton, Poe (Assassinatos
província, por sua vez, subira de 160 milem 1795 e 219246 na Rua Morgue), Frances Trollope e Harriet Beecher Stowe,
na época da Independência*, para 837 354 por ocasião do com Cabana do Pai Thomaz, traduzido por Francisco Ladis-
censo de 1872. lau Álvares de Andrade e publicado em Paris em 1853, ape-
Foi em 1872 que Garraux se mudou do largo da Sé para nas dois anos depois da publicação do original, em capítulos,
o centro da rua da Imperatriz (antiga rua do Rosário e futu- no National Era de Washington. Inteiramente ausentes estão
ra rua 15 de Novembro). Ali construiu uma nova loja com Thackeray, George Eliot e as irmãs Brontê.
uma façade de mármore e amplas vitrines, que se tornou A seção de “Artes e Officios” foi bastante ampliada, mas
o local de encontro não apenas dos estudantes de Direito, diversas das obras mencionadas em 1865 se repetem (conti-
mas também dos grandes fazendeiros de café, que, agora, nuam populares, ou estoque morto nas prateleiras por vinte
eram educados, em número cada vez maior, na França ou na anos?). Mas, surpreendentemente para nós, os preços esta-
Alemanha, e cujo consequente conhecimento do progresso vam inalterados! Todos os livros de culinária continuavam
europeu iria desempenhar papel considerável no desenvolvi- ali, mas, como testemunho do gosto brasileiro por doces, o
mento econômico, social e intelectual de São Paulo. muito bem-sucedido Doceira Brasileira do catálogo de 1865
Onze anos depois, em 1883, surge um novo catálogo, tem agora dois concorrentes, Doceira Doméstica e Docei-
volume lindamente encadernado em vermelho, que se inicia ra Nacional. É oferecida também extensa seleção de livros
com 250 páginas de obras em língua estrangeira (das quais sobre namoro € casamento, desde redações românticas até
35 em espanhol, 54 em alemão e 251 em italiano), seguidas
7. Mayne Reid teve obras traduzidas por Monteiro Lobato para a Co-
6. Estas cifras incluem, até 1854, 0 território do atual estado do Paraná. leção Terramarcar ($114).
342 O Crescimento da Atividade Editorial em
São Paulo
O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo 343
aspectos práticos do amor conjugal (pa
rticularmente preo-
cupados em promover a concepção, ao pelo italiano Narciso Sturlini, designação que mais tarde
contrário do cuidado
atual com as técnicas para evitá-la). mudaria para Cia. Industrial de Papéis e Cartonagens. Uma
Esse novo catálogo data do ano em que terceira empresa foi a Cia. Melhoramentos de São Paulo,
Garraux passou
as rédeas para seu genro, Willy Fischer. formada, em 1890, pelo coronel Antônio Proost Rodovalho,
Est
e, por sua vez, apo-
sentou-sem e 1888 e seu sucessor, Alexandre Thiollier graças a um empréstimo de quinze contos de réis concedido
caixa, dirigiu os negócios até 1893, qua , antigo
ndo a direção passou pelo Banco do Brasil; a maior parte da produção era feita em
às mãos do sócio Charles Hildebrand, de Estrasburgo. sua segunda fábrica, em Caieiras.
Vale a pena mencionar, neste ponto, out Estas não eram como as fábricas tradicionais, de pe-
ra livraria pau-
listana, a Gazeau, sebo pioneiro da cid quenas proporções, da floresta da Tijuca, que descrevemos
ade, ativo de 1893 a
1981, com cerca de roo mil livros e que anteriormente ($58), mas fábricas grandes e tecnicamente
ocupava o pe e
os porões de uma sala na Praça da Sé. modernas, embora produzissem quase que exclusivamente
| papel de pasta mecânica, um papel impróprio para qualquer
livro, salvo aqueles muito baratos, e destinado principal-
$99 A EXPANSÃO DE SÃO PAULO A PARTIR
DE 1890 mente à confecção de sacos e papel de embrulho. Enquanto
o papel para livros continuasse a gozar da isenção do im-
Nessa data é que se inicia realmente o cre posto de importação ($r ro), dificilmente haveria qualquer
scimento fenome-
nal de São Paulo. Um afluxo de flagelados, perspectiva de sua produção pelas fábricas brasileiras a pre-
fugindo à terrível
seca do sertão do Nordeste, em 187 ços competitivos, principalmente porque optaram por conti-
7-1880, ajudou a in-
char a população da cidade, que chegou nuar amplamente dependentes da celulose importada, ainda
ao total de 44030
em 1886. Nos quatro anos seguintes (ou que, a julgar pelas estatísticas de importação, a maioria das
tro grande rio
de seca naquela região), aumentou par fábricas de papel brasileiras, até quase a segunda década do
a 64934 habitantes
Depois, em apenas três anos, em 1 890-1893, século xx, utilizasse matéria-prima nacional. O total da im-
graças à onda
nova da imigração europeia, explodiu par portação de polpa em toneladas foi: em 1901, nenhuma; em
a 192 409, e assim
a cidade do boom cafeeiro se tornara, quase da noi I902, 87; em 1903, 401; em 1904, 467; em 19085, TIO7;
dia, a segunda maior cidade do Brasil. te para o
Na pas sagem do sé- em 1906, 1839; em 1907, 621; em 1908, 1383; em 1909,
culo, São Paulo igualou a população do desconhecida; em 1910, 3 504; EM I9IT, 5312; em I9I2,
Rio de apenas vinte
é cinco anos antes, com 239 820 habita 6 118. À Melhoramentos, porém, constituiu uma exceção a
ntes.
o mercado criado por esse rápido cre essa crescente dependência da polpa do exterior. Não apenas
scimento de popu-
laçã
o, na cidade e no estado, mais a pro foi pioneira no uso de madeira brasileira para a produção de
nta disponibilidade
de capitais decorrente dos repentinos luc polpa (principalmente o pinheiro-do-paraná, como também
ros da cafeicultura
levaram a um gradual desenvolvimento o eucalipto, trazido da Austrália), como, em 1920, ingressou
de indústrias ma-
nufatureiras. Graças à proteção oferec no mercado de papel para livros, quando se associou à edi-
ida pelos novos im-
postos de importação criados em 1887 tora Weiszflog Irmãos, e em seguida criou um exemplo ím-
— e, sobretudo pelas
taxas ainda mais altas de 1896 (cf. tab
me

ela 6, p. 840) EE entre par no Brasil de integração vertical: “do pinheiro ao livro”,
asprimeiras dessas novas indústrias no est como diz seu slogan.
ado estava a de
fabricação de papel. Em 1888, já existi Na década de 1890, porém, era pequeno o interesse em
a a primeira fábrica
em Salto de Itu. Ainda que tivesse sido São Paulo pela produção de livros.Já abordamos antes ($79)
implantada pelo ge-
neral Couto de Magalhães, sua razão a melancólica situação da vida intelectual no Brasil, parti-
social levava o nome
de seu sócio, Adolpho Melchert. Logo cularmente do comércio livreiro, nesse período. À maioria
depois, com a entrada
de novo sócio, Maurício Klabin, a das razões que expusemos aplica-se, na verdade, ainda mais
razão social foi alterada
para Cia. Fabricadora de Papel. A seguinte fortemente a São Paulo doque ao Rio. Se não houvesse ou-
a aparecer foi a
Sociedade Ítalo-americana, fundada em Osasco, em tras razões, a própria rapidez da expansão da cidade nesses
1889,
anos deve ter sido hostil ao desenvolvimento cultural. De
344 O Crescimento da Atividade Editorial em São Paulo

três que existiam na década de 1850, as livrarias já eram cin-


co em meados da década de 1870. Ainda existe uma destas,
a Grande Livraria Paulista, que os irmãos Antônio Maria e
José Joaquim Teixeira abriram em 1876, embora tenha-se
mudado, em 1899, do seu endereço primitivo (rua São Ben-
to, nº 26A) para tornar a mudar-se em 1933 (para a rua
Libero Badaró) e, mais uma vez, em 1958, para a sua sede
atual, à rua Marconi, nº 40. Como já foi dito ($82), 0 irmão
mais velho regressou a Portugal, sua terra natal, onde se tor-
nou livreiro e editor.
No fim do século x1x, porém, São Paulo ainda tinha ape-
nas oito livrarias: a metade das existentes no Rio de Janeiro
em 1820! À atividade editorial praticamente cessara, mesmo
que os irmãos Teixeira, primordialmente importadores de
livros portugueses, tenham publicado as Poesias, de Olavo
Bilac, e o romance naturalista A Carne, de Júlio Ribeiro, am-
bos em 1888 e ambos impressos em Portugal. A Casa Ecléc-
tica também merece menção por publicar traduções da His-
tória da Civilização, de Henry Thomas Buckle, e da clássica
obra sobre o século xvr brasileiro, Viagens e Cativeiro entre Monteiro
os Selvagens do Brasil, de Hans Staden, ambos em 1900. Lobato
Eram agora tão fáceis as comunicações com o Rio de
Janeiro —- e com a Europa - que até mesmo as escassas edi-
ções locais para a faculdade de Direito já não eram necessá-
rias. Além dos poucos títulos que acabamos de mencionar,
restavam apenas os livros esporádicos encomendados pelo
próprio autor a um dos impressores da cidade, dos quais Se-
ckler era o mais importante. À análise do mercado paulista
de Teresinha Aparecida del Fiorentino! registra a edição (ou
reedição), na cidade, de 92 romances e livros de contos entre
1900 € 1922, mas apenas 24 destes saíram antes de irromper
a Primeira Guerra Mundial: em média apenas 2,5 por ano.
À autora registra ainda a edição, nesses quinze anos, de uns
trinta livros de poesia, mas, como dissemos antes ($6 3),a pro-
dução de poesia importa muito menos na saúde e prosperi-
dade de autores, livrarias ou editores. O desenvolvimento
de uma indústria editorial paulista viável ainda precisaria
aguardar a grande revolução no clima intelectual da cidade,
que iria ocorrer na geração seguinte.

8. Teresinha Aparecida del Fiorentino, Prosa de Ficção em São Paulo:


Produção e Consumo, 1900-1922, São Paulo, Hucitec, 1982.
Fui um editor revolucionário...

MONTEIRO LOBATO

A “VELHA PRAGA” $roo

A Primeira Guerra Mundial e suas consequências tiveram


um efeito extremamente estimulante sobre a indústria brasi-
leira, na medida em que produtos locais foram substituindo
cada vez mais produtos importados não disponíveis. Entre
[914 € 1920, a indústria manufatureira paulistana cresceu
cerca de 25% ao ano. Em seguida, até mesmo a atividade
editorial brasileira iria ser beneficiada. Contudo, por oca-
sião da morte de Francisco Alves, em 1917, ainda não havia
qualquer sinal desses benefícios. Na verdade, a situação do
comércio de livros era extremamente desalentadora. Eram
poucos os pontos de venda de varejo e praticamente limi-
tados aos bairros mais ricos do Rio e de São Paulo; a maior
parte dos negócios estava baseada na importação, princi-
palmente de Portugal e da França. A produção editorial
que tinha lugar no Brasil raramente se aventurava além dos
campos seguros dos livros didáticos e das obras de Direito
e legislação brasileiros e, mesmo assim, não passava de uma
atividade casual e secundária das grandes livrarias. Mesmo
no caso de obras jurídicas, os clientes preferiam autoridades
estrangeiras: Rui Barbosa era o único escritor forense do
país que tinha venda garantida:

t. José Bento de Monteiro Lobato, Prefácios e Entrevistas, São Paulo,


Brasiliense, 1959, vol. 1, p. 252.
2. José Maria Bello, Novos Estudos Críticos, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1917. O autor investiga o que os brasileiros estavam lendo
em setembro de 1917.
348 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 349

Os nomes consagrados da literatura brasileira, como Como as obras Numa e a Ninfa e Triste Fim de Policarpo Qua-
Machado de Assis e José de Alencar, continuavam ven- resma têm tido regular aceitação nesta capital, seria de muita con-
dendo, mas nas edições da Garnier impressas em Paris. E veniência para V. Senhoria nos remeter à consignação uns vinte
mesmo eles eram superados, em popularidade e prestígio, exemplares da primeira e uns dez da segunda e nós por nossa vez
pelo português Eça de Queirós. O único romancista brasi- empregaremos os nossos esforços para melhor divulgação das mes-
leiro vivo a conseguir algum sucesso continuado foi Coelho mas entre o nosso público ilustrado. À medida que forem se esgo-
Neto, e fora publicado no Porto, pela Livraria Chardron tando o stock iremos pedindo nova remessa...º
de Lello x Irmão ($82) desde que Laemmert abandonou
o ramo livreiro, quase dez anos antes; de qualquer modo, Tal situação era particularmente adversa à produção de
o escritor tinha mais leitores em Portugal do que no Bra- qualquer obra substancial, e não admira vermos Medeiros e
sil. Com exceção dele e de pouquíssimos outros (Afrânio Albuquerque queixar-se, nesse mesmo ano de 1917, de que
Peixoto, Júlia Lopes de Almeida...), qualquer escritor bra- qualquer bibliografia brasileira compreensiva acabava sendo,
sileiro que quisesse ver impressa uma obra sua deveria mais do que tudo, uma relação de livros de poesias. Contudo,
encomendá-la diretamente aos impressores, por sua pró- foi também em 1917 que um cafeicultor paulista chamado
pria conta, e depois incumbir-se da distribuição: era como José Bento de Monteiro Lobato deu os primeiros passos para
se Paula Brito e Baptiste Louis Garnier nunca houvessem o renascimento da atividade editorial brasileira e que iriam
existido. Todavia, permitam-me citar o editor Pongetti revolucionar as perspectivas do autor brasileiro.
quando descreveu, em 1937, a situação em que se encon- Nascido em 18 de abril de 1882, de uma filha ilegítima
trava o autor vinte anos antes: do visconde de Tremembé, Monteiro Lobato alterara seu
nome de infância (José Renato) para pô-lo de acordo com
Quem quisesse ser lido que pagasse a impressão e deixasse de frico- o de seu pai (José Bento). Após receber a tradicional educa-
tes, como dizia o livreiro milionário alisando o papelão das capas ção jurídica da classe média, tornou-se promotor público
das suas minas de ouro e de besteiras didáticas. Quando o livro saía em Taubaté, sua cidade natal, e depois, a partir de 1907, em
com sua horrível capa de relatório do Ministério da Agricultura, o Areias, pequena cidade decadente do vale do Paraíba do Sul
mercador incumbido da distribuição mandava o caixeiro depositar com o declínio da cafeicultura na região, da qual havia de-
o fardo no porão da loja, vale comum do talento nacional. Seis pendido sua prosperidade. Em r911, com a morte do avô,
meses depois o autor recebia a carga integral, escondia o fiasco no mudou-se para Buquira (agora Monteiro Lobato), um pou-
próprio porão e espalhava que “o livreco, graças a Deus, estava co mais adiante no vale do Paraíba, perto de São José dos
esgotado”. Nenhuma lei foi jamais invocada contra os sabotadores Campos, para tomar conta da velha fazenda da família; Lo-
do pensamento nacional. Pelo contrário: nossos generosos plumiti- bato já havia perdido os pais, vítimas da tuberculose, cerca
vos iam bater papo na livraria; cavar a colocação de um exemplar de doze anos antes.
das suas obras na vitrina do centro, verdadeiro Prêmio Nobel só Sua primeira vocação fora a pintura — a revista Fon-Fon
me
ti

concedido aos amigos do peito da casa'. publicou caricaturas suas sob o pseudônimo de Hélio Bruma
e, mais tarde, ele próprio ilustraria algumas de suas obras —
e

Nem mesmo um livro bem-sucedido proporcionaria um mas a pressão familiar transformara-o num advogado relu-
a

retorno muito rápido do investimento do autor, pois ne- tante: a consciência da própria estatura baixa, “pouco mais
nhum livreiro estava disposto a arriscar seu próprio capital: de 1,60 m”, tornava-lhe desagradável falar em público. Ago-
é O que comprova uma carta de 22 de agosto de r917 da ra, a herança fizera dele um agricultor ainda mais relutante.
me

Casa Garraux ao romancista Lima Barreto:


4. Afonso Henrique de Lima Barreto, Correspondência, org. F. de As-
sis Barbosa e A. Noronha Santos, São Paulo, Brasiliense, 1956.
3. Henrique Pongetti, “Em Dez Curtos Anos”, Anuário Brasileiro de $. Sobre a edição de poesia como coisa (frequentemente) pouco subs-
Literatura, n. 2, pp. 9-10, 1937. tancial, cf. nossas observações nos $$63, 141 € 209.
350 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 351

Não apenas carecia de qualquer experiência em agricultura, de um novo escritor desconhecido e o sucesso que despertou
como a fazenda São José, localizada na mais antiga região parece ter sido importante para sua decisão final de vender a
cafeeira do sul do Brasil, tinha o solo esgotado e erodido, fazenda e tornar-se um escritor em tempo integral.
cujo cultivo se tornava particularmente difícil pela topogra- Embora ainda tivesse continuado por mais algum tempo
fia. Uma velha casa colonial de taipa e os casebres de escra- como fazendeiro, começou cada vez mais a usar seu tempo
vos ligados à fazenda criavam uma atmosfera de isolamento livre para escrever contos, muitos deles sobre a vida na fa-
e dilapidação, ainda mais acentuada pelo círculo de som- zenda e sobre aqueles mesmos vizinhos caipiras, tipificados
brias montanhas que a cercavam por todos os lados. Além em sua criação do Jeca Tatu, nome que utilizara pela pri-
disso, três anos após ter assumido sua administração, sobre- meira vez no “Velha Praga”. Os contos tiveram seu début
veio a guerra na Europa para deprimir o mercado cafeeiro. quando alguns de seus amigos (Luís Pereira Barreto, Plínio
Lobato também se afligia com a técnica primitiva de der- Barreto, Júlio Mesquita e Alfredo Pujol) lançaram a Revista
rubar e queimar, utilizada por seus vizinhos caipiras, e com do Brasil, em 1976,e convidaram-no a colaborar. Choopan,
as queimadas destruidoras dela resultantes. Isso o levou, em

a
título mais tarde alterado para “A Vingança da Peroba”,
fins de r914, a escrever sobre a “velha praga”, em carta ao apareceu no primeiro número da Revista, em março, e foi se-
jornal O Estado de $. Paulo, queixando-se desse costume pe- guido por outros em agosto e novembro e por mais dois em
rigoso e ecologicamente desastroso e comparando sua luta dezembro; a partir daí, tornou-se um colaborador regular,
contra inimigo tão implacável (as queimadas) com a luta dos com contos, artigos e críticas. À “Velha Praga” descrevera os
Aliados na Europa para resistir ao furor germanicus*. Nada casebres dos caboclos a brotar da noite para o dia no meio
foi feito a esse respeito: o direito de queimar impunemente da floresta como os cogumelos que nascem sobre a madeira
era parte do pacto eleitoral dos caboclos com o partido no podre — o urupê — e isso lhe forneceu o título para um artigo
poder. No entanto, a carta foi muito admirada por suas qua- em que retomou o ataque ao Jeca Tatu e seu modo de vida
lidades literárias, particularmente pelo poder de observação indolente e antissocial,
demonstrado na evocação do avanço do fogo pela floresta. Um ano depois de ligar-se à Revista, Lobato já se lamen-
A lenda, que ele próprio alimentou, de que se tornara um tava do cosmopolitismo em que se deixara envolver, como
escritor apenas devido à receptividade que essa pequena escreveu ao amigo Rangel: “só falamos de coisas nossas o
carta encontrou é, até certo ponto, enganadora. De fato, vi- Medeiros e eu”.
nha escrevendo quase ininterruptamente desde sua primeira O Estado de S. Paulo, de Júlio Mesquita, naturalmente
colaboração para uma revista escolar, quando tinha catorze acolhia com prazer seus trabalhos: suas colaborações para
anos, de modo que somente os artigos que publicou duran- o jornal incluíram uma pesquisa sobre as lendas do Saci-Pe-
te sua permanência na Faculdade de Direito de São Paulo rerê. Essa criatura, um diabrete do folclore brasileiro, com
constituem um volume de suas obras completas. No entanto, uma perna só e sempre fumando seu pito, divertindo-se em
com uma única exceção (um artigo de 1913 sobre sua ami- pregar peças em viajantes noturnos. Lobato reuniu e apre-
ga pianista Guiomar Novais, no Correio Paulistano), todos sentou dúzia de versões desse mito em todo o país.
os seus trabalhos anteriores haviam aparecido sob diversos
pseudônimos, de modo que a carta “Velha Praga” (publicada
em 12 de novembro de 1914) realmente pareceu ser trabalho URUPÊS SioI

6.A opinião brasileira, em 1914,era favorável,


Finalmente, em 10 de agosto de 1917, vendeu a fazenda a
em geral, aos Aliados,
não apenas pelos fortes laços econômicos e culturais que o país tinha um certo Alfredo Leite e mudou-se para São Paulo. Por su-
com a França e a Grã-Bretanha, mas também porque quase todas as gestão de Plínio Barreto, usou parte do dinheiro para finan-
notícias nos jornais chegavam por meio da agência noticiária fran- ciar a publicação de Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito
cesa Havas, que, graças à divisão do mercado mundial pelo cartel e de uma coletânea com doze de seus contos, ambas as publi-
dessas agências, detinha o monopólio em toda a América do Sul. cações impressas na gráfica de O Estado de $. Paulo. O Saci
352 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 353

era um livro de trezentas páginas “com muitas illustrações”, Evidentemente, como acontece com tantos livros, as ven-
assinado com o pseudônimo, típico de Lobato, de Demonó- das decorriam principalmente da velhíssima, conhecida e
logo Amador, e cuja capa em vermelho e preto trazia o retra- invisível propaganda boca a boca entre os leitores. E essa
to do Saci. Esse livro fez muito sucesso, com duas impressões propaganda se devia, por sua vez, à natureza revolucioná-
esgotadas até princípios de julho de 1918, dois meses após ria, oportuna e persuasiva do livro — o tema revolucionário
o lançamento. da mensagem de Lobato, sua maneira revolucionária de ex-
À seleção de contos saiu com o próprio nome de Lobato, pressá-la e seu conceito revolucionário do público leitor que
em 26 de junho, não obstante tenha atribuído suas 24 ilus- estava procurando atingir.
trações a “um curioso sem estudos”. À primeira edição de Embora se aproximasse o centenário da independência
mil exemplares foi vendida em exatamente um mês (somente política, a classe dominante do país ainda encarava o Bra-
a Livraria Francisco Alves comprou 250) e deu um lucro de sil - o Brasil urbano — como um posto avançado da Europa
1:3008000. Em 3 de outubro, já haviam sido vendidos 1800 plantado numa terra inculta de semisselvagens. À galoma-

A
exemplares da segunda edição e, por ocasião de uma quarta nia vicejava como sempre, mas começava a vislumbrar-se
edição, que se fez necessária em abril do ano seguinte, o livro também um fortalecimento dos laços com Portugal. O fluxo
já havia vendido um total de oito mil exemplares. Em junho de imigrantes portugueses quase duplicara desde 1890; com
(décimo segundo mês após a publicação da primeira edição), o fim da entrada em massa de italianos, em 1904, o Brasil
esse número subira para 11 500. Dificuldades na impressão voltara a encontrar nos portugueses a principal fonte de imi-
adiaram a edição seguinte até dezembro, resultando um acú- gração (47,1% do total em 1913). À revolução de 1910 em
mulo tal de pedidos que fê-la esgotar-se no mesmo dia da Portugal, que expulsou os Braganças e invocou as bênçãos
publicação. Assim, em princípio de 1920, Lobato ousou ar- de uma constituição republicana, liberal e secular, parecia
riscar uma nova edição de oito mil exemplares, tiragem qua- fazer prever uma aproximação política dos dois países, que
se inaudita para um livro brasileiro de ficção na época. Até em breve seriam companheiros de armas na guerra europeia.
1923, tinham sido feitas nove impressões, totalizando trinta Setores influentes da opinião pública já sonhavam com a
mil exemplares, número que, como a experiência posterior criação de uma federação luso-brasileira. E quando, afinal,
demonstraria, representava aproximadamente o ponto de chegou o centenário da Independência do Brasil, sua come-
saturação do mercado para um livro de ficção da época. moração pareceu preocupar-se mais com o tema da herança
O sucesso de Lobato, sem precedente para um livro de comum do que com qualquer identidade brasileira indepen-
estreia de um escritor nacional, surpreendeu a todos, inclu- dente. Até mesmo os edifícios da exposição foram erguidos
sive a ele próprio. Parte desse sucesso deveu-se, sem dúvida, em estilo colonial. O ano foi marcado por um acordo bi-
a uma referência de Rui Barbosa a Jeca Tatu em discurso lateral de direitos autorais ($83), com algumas espantosas
durante sua campanha eleitoral de 1919, vinculando a igno- concessões à pátria-mãe. E Portugal entrou esplendidamen-
rância e o atraso do Brasil rural à política de seus adversá- te no espetáculo, enviando Gago Coutinho e Sacadura Ca-
rios. Essa referência pública foi feita tão somente em 20 de bral, de simbólico sobrenome, para realizar o voo pioneiro
março daquele ano, ao passo que Lobato já havia escrito ao de travessia do Atlântico Sul; chegaram à capital brasilei-
amigo Rangel cerca de nove meses antes: “O Urupês vai se ra em meio a ruidosa recepção. A primazia atribuída à li-
vendendo melhor do que esperei, e neste andar tenho de vir teratura da pátria-mãe, simbolizada pela preeminência de
com a segunda edição dentro de três ou quatro semanas. Há Guerra Junqueiro (morto em 1923) na poesia e de Eça de
livrarias que no espaço de uma semana repetiram o pedido Queirós (morto em 1900) no romance, permanecia inalte-
três vezes, e como os jornais nada disseram...””. 93
rada por absoluta penúria de talentos na nova geração de
autores portugueses*. Ainda em 1945, Eduardo Frieiro pôde

7. Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre: Quarenta Anos de Corres- 8. Para a grande maioria dos leitores de 1922, Fernando Pessoa ainda
pondência, São Paulo, Brasiliense, 1964, vol. 2, p. 173. era um desconhecido.
354 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 355

escrever sobre Eça: “raro será o leitor brasileiro maior de fina educação”'S. O povo de condições mais modestas, re-
vinte anos que não tenha lido ou não esteja lendo toda a sua

ça
pelido por tal aridez, recebeu bem a agradável leveza estilís-
obra”*. Acima de tudo, para os brasileiros instruídos, o uso tica do novo autor. De modo que não demorou muito para
lisboeta da língua continuava ditando o que era português que Lobato dirigisse conscientemente sua mensagem, para
correto, falado ou escrito. além dos oligarcas, a toda a nação, ou, pelo menos, aos seus
Contra esse pano de fundo, Urupês chegou como um 1688000 adultos alfabetizados.
grito de convocação para o nacionalismo brasileiro. Po- De início, nem mesmo sua mensagem era consciente. O tí-
rém, não, penso eu, como algo que tivesse sido assim con- tulo de uma de suas histórias, “Meu Conto de Maupassant”,
cebido desde o princípio pelo autor. Em linguagem, pelo sugere claramente que a intenção original era puramente li-
menos, Lobato não era rebelde. No prefácio da segunda terária, como também o título que escolhera inicialmente
edição, chega a contar que pediu ao amigo Adalgiso Pereira para a coletânea, Doze Mortes Trágicas. Felizmente, diz ele,
que corrigisse sua colocação de pronomes (o teste crucial ficou enjoado com tantas mortes antes de completar as doze

e
do português metropolitano), atitude que as gerações mais e, por isso, precisou de novo título. Artur Neiva sugeriu a

a O
jovens, constituídas de devotados nacionalistas linguísti- inclusão de seu artigo “Urupês”, usando esse nome tam-
cos, iriam considerar intolerável. Mas a maneira irreveren- bém como título do livro. “Urupês” tinha retomado o tema
te de agradecer essa ajuda mostra o quanto era pequena a do infeliz povo do interior (cujo modo de vida atacara pela
preocupação que realmente tinha por esses refinamentos. primeira vez em “Velha Praga”) e confrontara as sórdidas
Mais importante que isso, optando por escrever sobre a realidades do interior brasileiro com a tendência tradicional
flora, a fauna e os habitantes do interior do Brasil e, acima dos escritores em romantizá-lo. Isso alterou completamente
de tudo, pelo uso constante do diálogo idiomático natural, o equilíbrio do livro, que acabou reunindo o artigo-tema
talvez tenha desempenhado papel tão importante quanto “Urupês”, seis contos sobre os próprios caipiras, três sobre
o de qualquer outro escritor no abrasileiramento da lin- fazendeiros, os seus patrões, e apenas três sobre temas de
guagem literária. fora do Brasil rural. À capa da coletânea ilustrava o assunto
Seu estilo — direto, claro, cáustico e preeminentemente de um dos contos, “O Mata-pau”, terrível parasita estrangu-
vivo, algo que nenhum escritor brasileiro recente se atrevera lador de árvores. Na segunda edição, acrescentou o texto da
a ser, exceto o trivial João do Rio — era muito mais a expres- carta “Velha Praga”, acentuando a nova ênfase. O resultado
são natural da própria personalidade de Lobato do que o re-
=
foi um apelo à nação para que despertasse para a própria
sultado de qualquer desejo consciente de inovar. Seja como realidade, para as condições sociais, econômicas, tecnoló-
for, nada poderia estar mais distante da rebuscada sintaxe e gicas e políticas terrivelmente primitivas de grande parte de
da recôndita verbosidade preferidas por Coelho Neto, Eu- seu território, realidade que a oligarquia sempre preferira
e

clides da Cunha ou quase todos os outros autores brasileiros ignorar e negligenciar.


da moda nos trinta anos anteriores. A própria atitude de Lobato também mudou de ataque
im

O estilo determina, porém, o público leitor. A maneira es- para simpatia, e a quarta edição começa com seu pedido de
E
A se

tudada, erudita, de seus contemporâneos dirigia-se ao leitor desculpas ao pobre Jeca Tatu, explicando que ignorava se-
das classes altas, tão bem caracterizado por Nelson Travas- rem todas as enfermidades do corpo e do espírito do Jeca
sos como “cidadão respeitável que andava de preto, usava manifestações de doença crônica e da infestação de parasitas.
chapéu coco, marchava lentamente, falava pausadamente, Realmente doentes eram as classes mais altas, que abrigavam
merecia todo o conceito e todo o respeito. À linguagem dos na alma os vermes que Jeca trazia nos intestinos: gente que
livros devia ser sonora; os assuntos sempre muito sérios, de- falava francês, dançava tango, fumava havanas e cuidava
viam ser tratados com o vagar e a gravidade exigidos pela para que ele, Jeca, permanecesse em sua geena trabalhando

9. Eduardo Frieiro, Os Livros Nossos Amigos, 2. ed., Belo Horizonte, 10. Nelson Palma Travassos, Livro sobre Livros, São Paulo, Hucitec,
Inconfidência, 1943, p. 44. 1978, Pp. 177.
356 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 357

como escravo para lhes tornar possíveis suas próprias exis- cedo, mesmo do tempo em que começou a colaborar com
tências ociosas. a Revista do Brasil, pois seus companheiros já debatiam a

re
À preocupação com os problemas do país foi aos pou- criação de uma nova editora de obras literárias nacionais,

im
cos dominando a vida de Lobato, como teremos oportuni- em São Paulo, e haviam publicado um artigo sobre o assun-
dade de relatar. E foi por sua mensagem nacionalista que to, em novembro de 19r6.
Urupês ganhou significação na história cultural do Brasil.

sr
Lobato logo se deu conta de que o mais sério problema
Para avaliar a importância dessa obra, porém, no desenvol- queo livro enfrentava no Brasilera a falta de pontos de venda:

o
vimento da moderna atividade editorial e livreira, devemos com pouco mais de trinta livrarias, em todo o país, dispos-
voltar à sua inovação estilística. Tudo quanto Lobato aca- tas a aceitar livros em consignação, os mil exemplares da

a
bou conseguindo com a criação de uma indústria editorial primeira edição de Urupês poderiam muito bem ter leva-
nacional dependeu de sua capacidade de, em primeiro lugar, do cinco anos para esgotar: muitos livros limitavam-se, de

e
criar virtualmente todo um mercado novo para o produto fato, a tiragens de trezentos exemplares. Seu primeiro pas-

crunttai
“livro”. E foi capaz de fazê-lo porque havia, antes, trans- so foi aumentar os possíveis pontos de venda para perto de
formado o estilo em que os livros eram escritos — e, com duzentos, utilizando a rede de distribuição da Revista do

-
isso, O tipo e a quantidade de leitores que iriam atrair. Na Brasil. No entanto, a revista lutava duramente para sobre-
feliz comparação de Nelson Travassos, Lobato foi, como es- viver. Apesar de manter um alto padrão e de ter adquirido
critor, parecido a um reformador religioso iconoclasta que reputação excepcional, não era um sucesso comercial; seus

ii
despedaçasse todos os vitrais coloridos para que os raios proprietários, por isso, foram facilmente persuadidos a ven-

a
do sol banhassem o interior da igreja, e que substituísse o dê-la e, em dezembro de 1918, Lobato usou treze contos de

e SAI
solene órgão por um música alegre e leve, para mostrar que réis do dinheiro proveniente da fazenda para tornar-se seu
Deus é uma divindade amável, acessível a qualquer um de único proprietário.
sua ruidosa congregação e que não precisa ser invocado O passo seguinte foi escrever a todos os agentes postais

ini
através de rituais complicados realizados apenas em locais do Brasil (1300 ao todo), solicitando nome e endereço de
especialmente consagrados. bancas de jornal, papelarias, farmácias ou armazéns que
pudessem estar interessados em vender livros. Quase 100%


dos agentes postais, orgulhosos de que alguém da cidade
$roz A REVISTA DO BRASIL ct
grande pudesse estar realmente necessitando de sua ajuda,
responderam. Para os endereços que sugeriram e para outros
Sugere-se, às vezes, que o posterior envolvimento de Lobato obtidos de amigos e conhecidos em todo o país, Lobato en-
no negócio de livros foi resultado acidental de seu êxito com viou a famosa circular cujos termos, anos mais tarde, recor-
mesma

Urupês, que lhe proporcionou uma clara visão do quanto dava terem sido mais ou menos os seguintes:
era mal organizada a atividade editorial da época no Brasil.
Sua correspondência com Rangel mostra, ao contrário, que

Vossa Senhoria tem o seu negócio montado, e quanto mais coi-


data de pelo menos um ano antes de Urupês seu interesse sas vender, maior será o lucro. Quer vender também um coisa
pai

por esse ramo de negócios. De fato, parece que já tinha algu- chamada “livros”? Vossa Senhoria não precisa inteirar-se do que
ma ideia do rumo que iria tomar quando vendeu a fazenda, essa coisa é. Trata-se de um artigo comercial como qualquer ou-
pois, em carta escrita apenas seis semanas depois, diz que es- tro: batata, querosene ou bacalhau. É uma mercadoria que não
mm

tivera “estudando o negócio editorial” e conversando sobre precisa examinar nem saber se é boa nem vir a esta escolher. O
direitos autorais com “o Jacinto” — quase certamente o Ja-
and

conteúdo não interessa a V. S., € sim ao seu cliente, o qual dele to-
cinto Silva já mencionado, assistente de Lansac na Garnier, mará conhecimento através das nossas explicações nos catálogos,
e que, na época, se tornara encarregado do departamento de prefácios, etc. E como V. S. receberá esse artigo em consignação,
qm

livros da Casa Garraux e, mais tarde, iria tornar-se editor não perderá coisa alguma no que propomos. Se vender os tais
e

independente. Os planos de Lobato devem datar de até mais “livros”, terá uma comissão de 30 p. c.; se não vendê-los, no-los
358 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 359

devolverá pelo Correio, com o porte por nossa conta. Responda programa da editora, para estes dois anos, está completamente
se topa ou não topa”. cheio... É lógico que eu poderia substituir alguns dos livros progra-

a e
mados por sua esplêndida obra, mas acontece que todos os autores
Isso proporcionou a Lobato uma rede de quase dois mil a serem publicados... já firmaram contrato”,
distribuidores espalhados pelo Brasil - em todo tipo de loja
de varejo, de farmácias a padarias: “os únicos lugares em Não importava: os 20% restantes eram mais que su-
que não vendi foi nos açougues, por temor de que os livros ficientes para, por si sós, dar a impressão de um pequeno

e
ficassem sujos de sangue”. No entanto, mesmo esses dois mil renascimento literário. Naturalmente, representavam, de
eram pouco mais do que o número de pontos de venda dis- fato, o produto acumulado de muitos anos, durante os quais
poníveis para o comércio de livros na França quase um sécu- apenas os ricos, os influentes e os já consagrados podiam al-
lo antes, ou seja, 564 livrarias e outros vendedores de livros mejar a publicação de seus originais. Um exemplo típico: Os
em Paris e 922 nas províncias, totalizando 1486, em 1823! Caboclos, de Valdomiro Silveira, que Lobato publicou em
Nesse meio tempo, Lobato começou a publicar obras de 1920, foi o primeiro livro do autor. Embora viesse escreven-
autoria de amigos (José Antônio Nogueira, Ricardo Gonçal- do desde r89r, jamais conseguira, antes dessa coletânea de
ves, Godofredo Rangel, Valdomiro Silveira, Martim Fran- pequenos contos regionais, que seus trabalhos fossem acei-
cisco...) e, quando tornou público que estava à procura de tos para publicação, com exceção de artigos para revistas.
novos talentos, candidatos de todo o Brasil inundaram-no Para os consagrados, Lobato só tinha desprezo: “Nada
com originais de cuja publicação há muito haviam perdido de velharias, medalhões, nada de acadêmicos com farda de

css
a esperança. “Fui um editor revolucionário. Abri as portas general de opereta do tempo de Luís xrv, armado daquela es-

o
aos novos. Era uma grande recomendação a chegada dum padinha de corta-papel. Gente nova, de paletó saco, humilde
autor totalmente desconhecido- eu lhe examinava a obra nas suas pretensões, mas gente nova”4.
com mais interesse. Nosso gosto era lançar nomes novos, Entre essa “gente nova” lançada por Lobato estiveram

iii
exatamente o contrário dos velhos editores que só queriam Léo Vaz, Ribeiro Couto, Paulo Setúbal, Toledo Malta e o
saber dos 'consagrados”.” Se algum destes se apresentava era historiador Oliveira Vianna. O Professor Jeremias, primeiro
polidamente dispensado: “Você já está graúdo, já tem nome. romance de Vaz, de 1920, esgotou-se em apenas duas se-
Arrume-se lá com o Garnier ou o Alves. Nós aqui somos manas € atingiu sua quarta edição no mesmo ano. Malta
para os que se iniciam”"2, escreveu, com o pseudônimo de Hilário Tácito, a história
Como era de esperar, 80% ou mais desse novo material picaresca de uma elegante prostituta judia dentro da alta
TT

era descartado, embora isso dificilmente pudesse ser admiti- burguesia de São Paulo, Madame Pommery; o livro preten-
do publicamente. Confessa Lobato: dia ser uma sátira, porém marcou sua passagem como um
grande succês de scandale. O livro de poesias Alma Cabocla
a

Foi a época em que mais menti: o golpe é tratar a coisa com jeito (1920), de Setúbal, vendeu seis mil exemplares, sendo que
e açúcar... “Achei seu livro esplêndido, meu caro... o senhor não os três mil da primeira edição se esgotaram em menos de
compreende o meu sofrimento em não poder editá-lo... Todo o um mês. Cinco anos mais tarde, Lobato publicou do mesmo
autor o romance histórico A Marquesa de Santos, que foi
traduzido para o francês, inglês, russo, croata e árabe e que
11. Lobato fez pelo menos duas tentativas de lembrar o texto da iniciou Setúbal em sua carreira como o romancista brasileiro
famosa circular. Uma apareceu na revista Leitura, set. 1943; a outra de maior vendagem nos fins da década de 1920: em 1928,
foi citada na biografia Monteiro Lobato, Vida e Obra, de Edgard
Cavalheiro (3. ed., São Paulo, Brasiliense, 1962). As duas redações
já tinha vendido 130 mil exemplares de seis romances. Nos
coincidem na substância, mas diferem em estilo. A versão dada
aqui baseia-se em ambas, mas sobretudo na segunda (ligeiramente
mais formal). 13. Idem, vol. 1,p. 155.
12. Monteiro Lobato, Prefácios e Entrevistas, op. cit. 14. Leitura, n. 13, set. 1943.
360 Monteiro Lobato Monteiro Lobato

princípios dos anos de 1980, A Marquesa seria adaptada Rio de Janeiro. O desafio de São Paulo nesse campo assumiu
numa telenovela da Rede Globo. a forma da revolução artística conhecida como Modernismo,
Muitos dos autores de Lobato não eram completamente homônimo enganoso do movimento literário hispano-ameri-
novos, ainda que muitas vezes seus livros anteriores tives- cano, totalmente distinto, de uma geração atrás.
sem tido circulação apenas limitada. Publicou, por exemplo, É comum negar-se qualquer ligação entre Monteiro Lo-
Guilherme de Almeida, Gilberto Amado, Amadeu Ama- bato e os modernistas, além, talvez, de uma comum “bra-
ral, Oswald de Andrade, Lima Barreto, Gustavo Barroso, silidade” e de certa simpatia na escolha de seus assuntos
Alphonsus de Guimaraens, Francisca Júlia, Arthur Motta, prediletos, embora Wilson Martins apresente um ponto de
Menotti del Picchia, João Ribeiro e Mário Sette. vista intermediário, segundo o qual Lobato teria sido “o che-
Além disso, Lobato pagava-lhes os direitos generosamen- fe natural” do novo movimento, rejeitado, porém, por “um
te e, muitas vezes, antes da publicação da obra. Parece ter mal-entendido inexplicável do destino”'s. As ideias estéti-
sido de 10% a taxa de direitos autorais que pagava normal- cas de Lobato são tidas, geralmente, como extremamente
mente; muitas vezes, porém, oferecia uma porcentagem ain- tradicionais para que ele possa ser admitido sequer como
da maior. Em novembro de 1978, ofereceu a Lima Barreto a precursor dos modernistas. Na atitude diante da linguagem
metade dos lucros de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, e no gosto artístico, eles estavam, sem dúvida, muito afas-
com que o autor não concordou. Lobato sugeriu, então, as tados. Em 1916, Lobato criticou acerbamente a pintura de
alternativas de 8008000 contra a entrega dos originais ou Anita Malfatti, inspiradora da Semana de Arte Moderna,
5008000 nessa ocasião e mais soo$o0o três meses após a pu- tachando-a de “paranoia ou cinismo”,
blicação. Como o livro seria vendido a 28ç00, isso represen- O Modernismo, em sua forma original de teoria dos ar-
tava direitos de mais de 13% sobre toda a edição de três mil tistas e poetas que participaram da Semana de Arte Moder-
exemplares — e muito possivelmente prejuízo para o editor: na de 1922, era um amálgama de duas correntes. Pelo lado
o livro acabou por vender-se muito lentamente, em parte por estético — a substituição, para dizê-lo de modo grosseiro,
ter saído na época do carnaval de 1919, tendo sido, assim, do Simbolismo pelo Dadaísmo — não passava de imitação
pouco noticiado (embora João Ribeiro e Tristão de Athayde da última moda nos círculos artísticos e literários de Paris,
tenham publicado críticas favoráveis), em parte porque o tí- e importada pelos jovens elementos da elite galicizada bra-
tulo sugeria a biografia de algum “ilustre desconhecido”. Po- sileira exatamente do mesmo modo como seus pais, seus
demos sugerir também que os leitores se afastaram por causa avós e seus bisavós haviam, por sua vez, importado todas as
de sua tese franca e honesta contra o preconceito de cor no novas modas estéticas francesas desde o neoclassicismo, por
Brasil. Foi reeditado em 1921, com uma capa diferente, mas volta de 1790. Nesse caso, o Modernismo só foi significati-
tratou-se — presumivelmente — apenas de uma tentativa de vo pelo fato de a iniciativa haver passado dos cariocas para
estimular a venda de um estoque encalhado. os paulistanos. O que havia de novo era o elemento nacio-
nalista, o reconhecimento da realidade brasileira e a preo-
cupação com essa realidade; e, nisso, a inspiração exemplar
$ro3 O MODERNISMO e não reconhecida pelos modernistas foi, com toda a certe-
za, o Urupês, de Monteiro Lobato.
No começo da década de 1920, São Paulo presenciou muito Contudo, tão importante quanto o tema era o público. O
mais do que o renascimento da indústria editorial brasileira. Modernismo do início dos anos de 1920 foi um movimento
Embora a cidade continuasse a crescer firmemente, agora já de apelo muito limitado. Não obstante seu desejo de atacar
tivera tempo de firmar-se em seu novo papel de grande me- a burguesia, seus partidários eram essencialmente diletantes
trópole. Sua rivalidade com a capital federal já não era ape- da classe alta a dirigirem-se a essa mesma classe, ou, senão,
nas uma questão de tamanho da população ou de importân-
cia comercial e capacidade industrial, mas já havia começado 15. Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, 2. ed., São
a ameaçar a tradição de hegemonia cultural e intelectual do Paulo, T. A. Queiroz, 1996, vol. 6, p. 14.
362 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 363

de fato, apenas uma juventude dourada a falar para si mes- Outra livraria que serviu de ponto de encontro dos mo-
ma. O objetivo de Lobato de criar e cultivar um público dernistas foi a Livraria Italiana, de Antonio Tisi, no largo de
leitor em âmbito nacional, tentativa para a qual era inevi- São Bento. Esse editor publicou um ou dois títulos de Mário
tável certo grau de conservadorismo estético, não lhes dizia e Oswald de Andrade, porém, é mais lembrado por apresen-
respeito absolutamente. À procura de um público maior só tar aos leitores brasileiros as figuras da literatura italiana
viria com a chegada do romance modernista — alguns diriam contemporânea, dentre os quais publicou Luigi Pirandello,
pós-modernista — nos anos de 1930. Giovanni Papini, Filippo Tommasso Marinerti, Ardegno
Em parte por causa dessas diferenças, em parte por ter Soffici e Aldo Palazzeschi. A firma subsistiria por muitos
editoras concorrentes com grande interesse no movimen- anos, sob o nome de Rede Latina Editora.
to, Lobato lançou pouquíssimos autores de tendência mo- Entre outras editoras cujos nomes aparecem em obras
dernista, embora seja justo admitir que seu sócio Octalles modernistas, temos a Casa Mayença (por exemplo, Pauliceia
não teria concordado com essa afirmação. Entrevistado em Desvairada, de Mário de Andrade, 1922),a Editorial Helios
1970, declarou que Lobato estava tão preocupado com o Ltda. (em torno de 1926-1927), a Casa Garraux (cerca de
desenvolvimento cultural da nação, mesmo não sendo de 1926-1928), E. Cupolo (cerca de 1928), a Casa Chiarato, de
modo nenhum um modernista, que “manteve abertas as por- L. G. Miranda (cerca de 1930-1934) e a Piratininga (por vol-
tas de sua editora” para os que o fossem. No entanto, os úni- ta de 1932). Um ou dois dos modernistas desse período fo-
cos exemplos dados por Octalles foram o álbum Fantoches, ram publicados também no Rio de Janeiro, por Leite Ribeiro
de Di Cavalcanti, em 1920, e, mais tarde, obras de Menotti ($131)e pelos sucessores de Laemmert, o Anuário do Brasil.
del Picchia e Oswald de Andrade'*. O faro de aparecer no livro o nome de um editor não exclui
Um desses concorrentes que editavam modernistas era o a possibilidade de o próprio autor ter assumido os custos da
outrora mentor de Lobato, Jacinto Silva, nessa época pro- edição. Manuel Bandeira, por exemplo, pagou todas as edições
prietário da Casa Editora “O Livro”, estabelecida à rua 15 de seus poemas até 1940. Houve até nomes fictícios de edito-

Tr
de Novembro, nº 32. Jacinto estava envolvido tão estreita- ras, inventados pelo autor para aumentar as chances de venda
mente com a avant-garde que sua livraria se transformou, a do livro, como as Edições Pindorama, cujo nome foi utilizado
partir de 1920, em seu ponto de encontro habitual e em local por diversos poetas de Belo Horizonte. Contudo, o público dos
de muitas reuniões literárias e exposições artísticas. Chegou modernistas nos anos de 1920, como já indicamos, era tão li-
a ser mesmo o primeiro local escolhido para a Semana de mitado que, de modo geral, o máximo que podiam esperar era
Arte Moderna. serem publicados em pequenas revistas, como Klaxon e Festa.
Mesmo assim, Jacinto não publicou muita coisa de litera- Existiu de verdade uma Editora Klaxon de livros, mas, como
tura modernista; temos conhecimento apenas do Jardim de a Pindorama, não passou de um conjunto de obras editadas
Hespérides, de Cassiano Ricardo, e de três títulos de Menot- por conta dos autores. Um vínculo efetivo entre a nova litera-
ti del Picchia, Flama e Argila, Juca Mulato e Os Três Reinos. tura e a nova atividade editorial só viria a estabelecer-se com o
Além disso, imprimia edições pequenas, normalmente de surgimento da José Olympio, em meados da década de 1930.
mil exemplares. Publicou autores não modernistas, entre os
quais Xavier Marques, Alfredo Pujol, Taunay, Afonso Ari-
nos, Júlia Lopes de Almeida, Carlos Magalhães de Azeredo, OS MÉTODOS REVOLUCIONÁRIOS DE LOBATO $104
Leôncio de Oliveira e Amadeu Amaral, cuja segunda edição
de Dialeto Caipira foi o primeiro lançamento de “O Livro”. Deve-se dizer que a importância de Monteiro Lobato vai mui-
O próprio Jacinto Silva escreveu um Guia Ilustrado do Via- to além dos autores que publicou. O que realizaram editoras
jante para São Paulo. posteriores, como a José Olympio, somente foi possível por-
que puderam trilhar o caminho que Lobato já havia explora-
16. Gabriel Romeiro, “Nosso Livro Começou com Ele”, Correio do do. Durante os sere anos de sua primeira aventura editorial, ele
Livro, vol. 3,n.31,p. 11, mar. 1970. conseguiu revolucionar todos os aspectos da indústria. Lançar
364 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 365
novos autores e pagar direitos autorais compensadores são Se necessário, o próprio título seria mudado. “Ponha
apenas dois desses elementos. Já discutimos sua inovadora de preferência um nome feminino — aconselhou certa vez
abordagem do problema fundamental da distribuição. Sua ati- a um autor — porque em cheirando a mulher lá dentro, os
tude com respeito à propaganda também se mostrou original leitores concupiscentes compram “por ver": editar é fazer
a seus contemporâneos: percebendo que já não era suficiente psicologia comercial.”
depender da cortês recomendação verbal do livreiro a cada Lobato também tinha consciência da necessidade de me-
freguês potencial, baseada quase sempre no conhecimento lhorar a insípida aparência interna dos livros. Não se trata-
íntimo de uma clientela bastante limitada, lançou-se a uma va apenas de mudar a diagramação: nenhuma melhora real
ampla publicidade em jornais. Isso já tinha sido, no século xIx, poderia ser obtida enquanto não fossem importados tipos
uma prática comum de promoção de vendas, mas, em 1918, novos e modernos. Quando isso finalmente foi feito, o resul-
ainda era considerado uma afronta à dignidade de um livreiro tado foi espantoso, como se pode verificar pela comparação
respeitável. Lobato não tinha inibições desse tipo: se os livros da apresentação gráfica limpa e clara da Revista do Brasil
deviam ser vendidos como sabão, precisavam ser anunciados de 1920 em diante com o aspecto pesado e desequilibrado
da mesma maneira. Certa ocasião, gastou 4:000$000 num dos anos anteriores. Entre os artistas que empregou para
anúncio de página inteira para divulgar um único título (A diagramar e ilustrar seus livros e capas, estão Antônio Paim,
Menina do Narizinho Arrebitado, em maio de 1921). Belmonte e Mick Carnicelli.
Evidentemente, a capa era um elemento importante. Ca- Outro problema era o papel. À maior parte do papel dis-
pas ilustradas haviam sido muito comuns entre 1890 € 1900. ponível era de qualidade tão ruim que, segundo Borba de
Dorothy Loos, em seu Naturalist Novel of Brazil, chega a Moraes, é mais fácil encontrar uma primeira edição de Cara-
criticar seu sensacionalismo, exemplificando com a cena de muru, publicada em 1781, do que de Macunaíma, impressa
sedução utilizada na capa da edição de 1893 de A Normalis- em 1928. O papel ainda era importado em sua maior parte,
ta, de Caminha. Dez anos antes, Casa de Pensão, de Aluísio e apenas em folhas no formato de 96 x 76 cm, o formato
Azevedo, foi publicado por Faro & Lino com uma capa em francês, que resultava num livro de 12 x 19 cm.
que aparecia uma mulher nua, apenas com os sapatos. Tais Lobato não se satisfaria também com a introdução de
frivolidades, porém, há muito estavam fora de moda. À capa melhoras superficiais na diagramação e na aparência dos li-
típica por volta de 1920 era apenas a reprodução, em papel vros. Partiu deliberadamente para arrancar o livro brasileiro
cinza ou amarelo, dos caracteres tipográficos da página de de sua desinspirada submissão aos padrões e sistema france-
rosto. Lobato rompeu com esse uso desde o início. Já fala- ses, então inexoravelmente inferiorizados com a introdução
mos das capas de Urupês e Saci: foram obra de J. Wasth Ro- da tipologia art nouveau alemã e italiana ($$32, 69).
drigues (1891-1957), proeminente pintor que, mais tarde, Uma revolução como a pretendida pelo autor de Urupês
seria escolhido pelo sócio de Lobato, Octalles, para ilustrar dificilmente poderia ser imaginada enquanto se dependes-
os romances de Paulo Setúbal. Perfeitamente consciente do se da indústria gráfica brasileira da época. Com exceção da
valor publicitário de uma atraente aparência externa de sua Anuário do Brasil (dirigida por um português), diz Borba
mercadoria, Lobato continuou a agir dessa maneira: “Cha- de Moraes, era difícil encontrar uma gráfica capaz de pro-
mei desenhistas, mandei pôr cores berrantes nas capas. E duzir um livro impresso sequer decentemente — fosse no es-
também mandei pôr figuras!!”:7 tilo francês ou em qualquer outro. Há até mesmo o caso de
uma obra (Cravo Vermelho, de Domingos Ribeiro Filho, de
1907) cujo fracasso é atribuído, verdadeiramente, à calami-
17. Leitura, n. 13, set. 1943. Há várias reproduções em cores das suas
tosa aparência de sua impressão: “o mau aspecto tipográfico
capas na autobiografia de Carmen Lúcia de Azevedo e outros, Montei-
ro Lobato, Puracão na Botocúndia, 2. ed., São Paulo, Editora Senac,
da brochura em que apareceu
”"*,
1998. Cf. também, sobre capistas e ilustradores, Yones Soares de Lima,
A Ilustração na Produção Literária: São Paulo — Década de Vinte, São
Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros da usr, 1988. 18. Lima Barreto, op. cit., p. 177.
366 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 367

À invenção do sistema punch cutter por L. B. Benton, em tê-lo contratado como guarda-livros e sem que dispusesse de
fins do século x1x, permitira o surgimento da composição qualquer capital, atendeu à sua reivindicação de participa-
mecânica (a Linotype de Otrmar Mergenthaler, em 1884, ção na sociedade. Como diz o próprio Octalles, Lobato lhe
e a Monotype de Tolbert Lanston, em 1897), mas a grande havia dito que estava pensando em contratar um gerente, ao
maioria das oficinas gráficas do Brasil ainda realizava todo que o jovem respondeu prontamente que aceitaria o posto,
o trabalho manualmente; as novas máquinas continuavam desde que lhe desse sociedade na firma: “Aceito a vaga com
praticamente desconhecidas fora das oficinas de jornais das uma condição: que eu deixe de ser empregado e passe a ser
grandes cidades. De fato, a maioria dos livros produzidos seu sócio... Dinheiro não tenho. Mas tenho muita disposição
localmente, nesse período, provinha de gráficas de jornais para trabalhar. E não vou ficar me matando para ganhar só o
ou de revistas — que não tinham a menor noção do que fosse meu salário”:º, Aos poucos, Lobato passou a depender cada
produção de livros, bem como não estavam equipadas para vez mais de Octalles, consciente de que o realismo comer-
produzi-los em quantidade. Mesmo que Lobato não estives- cial do jovem era um meio vital de neutralizar seu próprio
se interessado na parte estética da impressão, alguma coisa idealismo superotimista.
tinha de ser feita, apenas para fazer face à crescente escala de O restante do ano de 1919 assistiu a um progresso inin-
seu programa editorial. terrupto: a edição total do ano chegou a cerca de quin-
No início de 1919, Lobato já importava seu próprio ze livros com aproximadamente sessenta mil exemplares.
papel e planejava sua própria oficina gráfica, como disse Dentre as obras publicadas, mais duas do próprio Lobato:
a Lima Barreto, em carta de 22 de fevereiro: “Estamos Cidades Mortas*', uma nova coletânea de contos, e Ideias
montando oficina e logo podemos iniciar edições decen- de Jeca Tatu, uma série de artigos em que desenvolvia sua
tes”. Isso lhe permitiu abandonar o tradicional “forma- mensagem nacionalista no campo cultural, exigindo uma
to francês” ($66) e introduzir um novo padrão próprio, emancipação das imitações estrangeiras na literatura e na
16,5 x 12,0 cm. Esse formato menor — quase o mesmo dos arte, um “7 de setembro estético”. Seu livro seguinte, Ne-
folhetos de cordel - combinado com o menor custo uni- grinha (1920), outra série de contos, teve resultado ainda
tário de maiores tiragens, permitiu-lhe reduzir o preço de melhor, pois em três anos vendeu quinze mil exemplares,
capa usual de seus livros para 48000 (ou s$000, encader- em três edições. Isso contrasta com sua expectativa nor-
nados). Determinados títulos particularmente populares mal, revelada em carta a Lima Barreto, datada de março de
eram depois reeditados em sua Colleção Brasilia e vendidos 1922, de levar dois meses para produzir e imprimir a pri-
a 1$500 (ou 3$000 encadernados). meira edição de um livro e dois anos para vendê-la. Quan-
do sua firma foi liquidada, em 1925, tinha vendido como
autor 250 mil exemplares.
Sros MONTEIRO LOBATO & CIA. Em princípios de 1920, a firma vendia em média quatro
mil livros por mês e, em 1921, publicava uma nova edição a
Em março de 1919, sua firma adotou a razão social de Mon- cada semana, A marca “Monteiro Lobato” tornou-se reco-
teiro Lobato « Cia.; no entanto, o antigo sinete editorial, mendação bastante conhecida para vender livros por si só.
Edições da “Revista do Brasil”, continuou a ser usado por Em 1925, tinha quase duzentos títulos em catálogo.
algum tempo junto com o novo. À “companhia” era um bri-
lhante jovem de dezoito anos, vindo de Belo Horizonte, a que
já fizemos menção: Octalles Marcondes Ferreira'”, Este rapaz
causara tanta impressão em Lobato que, alguns meses após

19. Cf. Ephraim de Figueiredo Beda, Octalles Marcondes Ferreira: 20. Gabriel Romero, op. cit.
Formação e Atuação do Editor, dissertação de mestrado, São Paulo, 21. As “cidades mortas” eram as pequenas cidades do Vale do Paraí-
ECA/USP, 1987. ba, onde Lobato exercera advocacia.
368 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 369

$ro6 OUTROS EDITORES DE SÃO PAULO com uma linha editorial diversificada, ao passo que a maio-
ria de seus concorrentes especializaram-se em livros didáti-
Embora haja razoável consenso com relação à importância cos ou em outros campos limitados.
que atribuímos à Monteiro Lobato & Cia., não faltam ocasio- De qualquer modo, a importância da aventura editorial
nais vozes discordantes. Wilson Martins empenhou o prestí- de Lobato não é tanto uma questão de quanto ele publicou e
gio de sua História da Inteligência Brasileira na afirmação de nem mesmo do que publicou, mas, como procuramos mos-
que, “graças ao seu extraordinário poder de autopropagan- trar, o modo totalmente revolucionário com que dirigiu o
da e ao meio privilegiado e prestigioso de publicidade que negócio como um todo.
lhe proporcionava a Revista do Brasil e O Estado de S. Pau- Voltemos, porém, ao inquérito de 1920. À atividade edi-
lo, Monteiro Lobato monopolizou toda a glória da imensa torial na cidade de São Paulo, durante aquele ano, apresen-
expansão editorial dos anos vinte”, Mas havia algo de que tou Os seguintes totais:
a atividade editorial nos anos de 1920 mais necessitasse do
que de alguém com o dom da propaganda? Editoras gerais, com ênfase em literatura:
Uma coisa que torna fácil subestimar a importância da Monteiro Lobato & Cia. rs títulos 56000 exemplares
firma é a circunstância de que os melhores dados disponí- Casa Editora “O Livro” stítulos 7000 exemplares
veis sobre esse período referem-se a 1920. Provêm de um
inquérito realizado por O Estado de S. Paulo (provocado, Editora geral, com interesse especial em livros infantis:
talvez, pelo próprio Lobato) e reproduzido em sua Revista Cia. Melhoramentos 33 títulos 144700 exemplares
do Brasil. Segundo esse inquérito, seis editoras produziam
mais exemplares do que a firma de Lobato e três publica- Editoras de literatura, livros didáticos, livros jurídicos e assuntos
vam um número maior de títulos. O ano 1920 foi o último comerciais:
do boom do pós-guerra, de modo que, para a maioria das Soc. Ed. Olegário Ribeiro r2 títulos 41700 exemplares
empresas, os números devem estar próximos de seu pico Saraiva & Cia. 8títulos 3000 exemplares
para o período. Não, porém, os da empresa de Monteiro
Lobato, que crescia rapidamente: ainda no ano seguinte, sua Editora de livros didáticos, livros jurídicos e obras populares:
produção (cerca de cinquenta edições, totalizando duzentos C. Teixeira e Cia. rotítulos 23 500 exemplares
mil exemplares) deve ter estado muito acima da de qualquer
um de seus concorrentes. De fato, Monteiro Lobato & Cia., Editoras primordialmente de livros didáticos:
ou sua sucessora, a Companhia Editora Nacional, ocupou Paulo de Azevedo e Cia. 32 títulos 113000 exemplares
o primeiro lugar entre as firmas brasileiras dedicadas exclu- Augusto Siqueira e Cia. 26 títulos 196000 exemplares
sivamente à edição de livros, desde 1921 até princípios da Liceu Coração de Jesus - 9títulos 24000 exemplares
década de 1970, sem interrupção. Na São Paulo de 1920,
era a única firma dedicada exclusivamente à edição de livros. Editoras primordialmente de livros sobre assuntos comerciais:
A Melhoramentos era, antes de qualquer coisa, uma fabri- Empresa Editora Brasileira g títulos 35100 exemplares
cante de papel. Às outras eram, primordialmente, livrarias.
(É interessante notar que oitenta anos depois, quase a me- Editoras primordialmente de livros populares:
tade — 47,3% — das editoras no Brasil ainda eram também Livraria Magalhães 13 títulos 100000 exemplares
livreiros.) Além disso, a Monteiro Lobato s Cia. publicou, D. Silva 11 títulos 60000 exemplares
proporcionalmente, muito mais títulos importantes ou cul- Antônio F de Moraes 8títulos 32000 exemplares
turalmente significativos, quando menos por ser uma casa
Editora especializada em assuntos agrícolas:
22. Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, São Paulo, Empr. Ed. “Chácaras e Quintais” S$rítulos 80000 exemplares
Cultrix, 1977-1978, vol. 6, p. 212.
370 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 371

Editora especializada em obras sobre espiritualismo e ocultismo: blicações fora do ocultismo. Em 1957, produzia três milhões
Empresa Editora “O Pensamento” 8títulos 25 000 exemplares de exemplares por ano e tinha 150 empregados. Em r9ss,
constituiu-se a companhia subsidiária Editora Cultrix para,
Isso totaliza 209 títulos de editoras com gor mil exem- sob a direção do biógrafo de Lobato, Edgard Cavalheiro,
plares; cinco outras editoras deixaram de fornecer qualquer editar textos literários, particularmente clássicos brasileiros
informação; provavelmente, eram todas editoras de folhe- e obras de história do Brasil, história e teoria literárias, lin-
tos populares ($ 197). O inquérito chama a atenção também guística, comunicação e cibernética, com séries como “Ro-
para a existência de certo número de empresas em outras teiro das Grandes Literaturas” e “Momentos Históricos”.
cidades do estado com alguma atividade editorial, como a Posteriormente, acrescentaram-se obras científicas e técni-
Livraria Genoud, de Campinas (livros infantis e didáticos)>. cas, como seu Curso de Ciências Biológicas. Em 1970, na 1
Já fizemos menção, anteriormente, à Paulo de Azevedo Bienal Internacional do Livro de São Paulo, a Cultrix ganhou
($96), sucessora de Francisco Alves, e à Livraria Teixeira a medalha de ouro para editoras brasileiras, com seu álbum
($99). A Saraiva e Cia. foi fundada em 1906, como outra de desenhos, gravuras e trabalhos em silk screen de Aldemir
Livraria Acadêmica, por Joaquim Inácio da Fonseca Saraiva, Martins. Esse álbum era o primeiro volume da série “Mestres
natural de Veiga de Cemieira, que aprendera o negócio na do Desenho”, sobre artistas brasileiros, em edições limitadas
Livraria Ceilão, do Porto. A Saraiva vem sendo, há muito de duzentos a quatrocentos exemplares, destinadas ao comér-
tempo, uma das principais editoras da cidade, importante cio de brindes de Natal. Semelhante luxo custava Cr$200,00
tanto por seus livros jurídicos (em que é atualmente a pri- em 1971, ou seja, dez vezes o preço da segunda incursão da
meira do Brasil) como pela Coleção Saraiva (iniciada em Cultrix na edição de arte: uma série em edições de dois mil
1944, com reimpressões baratas dos clássicos das literaturas exemplares, entre as quais Morros e Telhados de Ouro Preto,
brasileira e estrangeira). Em fins da década de T960, como de Carlos Scliar, e Olha o Boi, de Carybé. Outra realização fo-
fosse pequena a perspectiva de expansão no campo das ram os sete volumes, publicados em 1977-1978, da História
edições jurídicas, foi feita uma tentativa de diversificação da Inteligência Brasileira, 1550-1960. Em 1998, o catálogo
da atividade da editora. O notável resultado foi o Dicioná- da Pensamento abarcava 1030 títulos e o da Cultrix, 570.
rio Literário Brasileiro Ilustrado (1969), de Raimundo de Toda a produção do grupo Edipe desde 1930 tem sido feita
Menezes, em cinco volumes; uma segunda edição, revista em suas próprias oficinas gráficas, Edipe Artes Gráficas, que
e mais prática, sem as ilustrações, foi publicada em 1979, também executa trabalhos de impressão e acabamento para
condensada num volume único, por outra editora. O princi- diversas outras editoras importantes”.
pal rumo dessa diversificação foi o dos livros didáticos para
o primeiro grau, que atualmente respondem por perto da
metade do movimento total da Saraiva, convertendo-a na A MELHORAMENTOS $107
terceira maior editora nesse campo, no ano de 2003. Sua
cadeia de livrarias figura entre as mais importantes do Brasil. À Companhia Melhoramentos de São Paulo é um enorme
A Empresa Editora “O Pensamento”, de Antônio Olívio conglomerado, classificado em 1971 no 145º lugar entre
Rodrigues, foi iniciada exatamente um ano depois da Sarai- as quinhentas maiores empresas do Brasil. Além disso, é
va, em 1907. Embora persista seu interesse inicial em ocul- uma das maiores indústrias de papel do país. Seus interes-
tismo (Allan Kardec, Vivekananda, Blavatsky, Mulford etc.), ses vão desde o reflorestamento, passando pela produção
começou a abrir-se para edições de caráter mais geral, em
1943, quando Diaulas Riedel assumiu a direção; no início 24. Cf. J. €C. Ismael, “Fusão de Editoras Esquenta Circo Místico”, e
da década de 1950, adotou o acrônimo Edipe para suas pu- Lina de Albuquerque, “Tudo o que Diaulas Riedel Edita Vende, Diz
Livreiro”, O Estado de S. Paulo, p. ro, 18 jun. 1991 (Caderno 2). O
23. O Estado de S. Paulo, reproduzido na Revista do Brasil, 1º série, diretor atual da Cultrix (570 títulos no catálogo) e da Pensamento
vol. 16,n. 63, p. 278, mar. 1921. (1030 títulos) é Ricardo FE Riedel.
Monteiro Lobato Monteiro Lobato 373
372

de polpa, até um grande número de produtos e atividades na história [do Brasil|”*s, antes de Paulo Coelho! Vendeu 1,2
relacionadas com papel, inclusive papelaria, diversos ti- milhão de exemplares em menos de dez anos, mais outros
pos de trabalhos gráficos e atividade editorial, em perfeita três milhões em traduções publicadas no exterior, entre as
integração vertical: “do pinheiro ao livro”. Em termos de quais My Sweet Orange Tree, da Knopf, além de uma versão
recursos totais, a empresa era, então, a segunda em tama- para a televisão. Por ocasião de sua morte, em 2.4 de julho de
nho no negócio de livros do Brasil; contudo, mesmo sem 1984, tinha vinte títulos editados em 32 países. No entanto,
contar a fabricação de papel, seria facilmente uma das dez suas obras posteriores: O Palácio Japonês (1969), Farinha
maiores. Quer em termos de sua atual produção editorial, Órfã (1970), O Veleiro de Cristal (1973) e Kuryala, Capitão
quer de seu catálogo geral, a Melhoramentos tem estado, e Carajá (1979), foram consideradas repetitivas quanto ao
há muitos anos, entre as três maiores. Em 1967, seu capital tema, levando a um declínio acentuado de sua popularidade,
mais reservas totalizavam 32,8 milhões de cruzeiros novos A Melhoramentos publica também diversos atlas e dicio-
e seu lucro líquido foi de 9,6 milhões. À produção naque- nários, tais como o Grande Dicionário Brasileiro Melhora-
le ano foi de 7 416000 exemplares e 391 títulos, 38 dos mentos, de Adalberto Prado e Silva, em cinco volumes, e seu
quais (com s1$s mil exemplares) eram primeiras edições. companheiro em três volumes, Novo Dicionário Brasileiro
Em 1979, apenas as novas edições somaram r$o títulos. O Melhoramentos (Ilustrado), o Michaelis, um dos melhores di-
grande parque gráfico da Melhoramentos é utilizado por cionários inglês-português disponíveis, e o Novo Dicionário
muitas outras editoras, tendo sido responsável pela impres- de História do Brasil. Em meados da década de 1970, surgiu
são em offset, em quatro cores, dos vinte volumes da Enci- uma série de livros de bolso, impressos em offset, em quatro
clopédia Mirador Internacional (1975), da Encyclopaedia cores, a Prisma, que fornece introduções básicas — semelhan-
Britannica do Brasil. tes aos livros da “Que sais-je2” francesa — de um grande nú-
A Melhoramentos foi concebida, originalmente, no lon- mero de assuntos, com o benefício adicional de abundantes
gínguo ano de 1877, como uma empreiteira de obras públi- ilustrações, a maioria delas coloridas, e ainda assim a preço
cas, donde seu nome. No entanto, foi constituída formalmen- muito baixo (Cr$90,00 no início de 1980); apesar de muitas
te, em 9 de setembro de 1890, para fabricar papel ($99). A dessas obras serem traduções, os autores brasileiros contri-
parte editorial teve início em 1915, como firma independente, buíram com um grande número de títulos, como, por exem-
a Weiszflog Irmãos, e, quando o diretor Alfredo Weiszflog as- plo, a História do Calendário, de Hernâni Donato.
sumiu o controle das fábricas de papel no início de 1921 — de No entanto, a viga mestra da atividade editorial da Me-
fato, entre a data do inquérito de O Estado de S. Paulo e sua lhoramentos está apoiada na literatura infantojuvenil e nos
publicação — deu-se a fusão das duas empresas. livros didáticos, que respondem aproximadamente por dois
A atual produção editorial da Melhoramentos é de gran- terços da produção total em títulos, Em 1967, uma relação
de amplitude, com 4 500 títulos no catálogo, além de 9% do de fontes de livros para crianças utilizada pela Biblioteca
mercado nacional de cps. Seus lançamentos para o público Pública de São Paulo concedeu o primeiro lugar à Melhora-
em geral abrangem ciência popular, culinária e artes domés- mentos, seguida, na ordem, por Flamboyant, Egeria, Brasi-
ticas, atividades de lazer e belas-artes. Embora não publique liense, Cultrix, Dongo, Delta, Mérito, José Olympio, Vecchi,
muita coisa de ficção, em sua produção figura um dos mais Paulinas e Martins. Essa concentração na área dos livros
populares e bem-sucedidos romancistas do Brasil do meio infantis vem dos primeiros anos da Weiszflog Irmãos, em
do século xx, José Mauro de Vasconcelos (1920-1984), cuja 1915, quando deram início à sua atividade editorial com
obra a maioria dos críticos ignorou ou ridicularizou como O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen, ilustrado
um escapismo medíocre — apesar do comprometimento po- por Francisco Richter. Graças às ligações de Andersen com
lírico de alguns de seus primeiros livros. O êxito não o tocou Portugal, foi para o português que seus livros foram tradu-
por vinte anos: seu primeiro sucesso foi Rosinha, Minha Ca- zidos em primeiro lugar. Contudo, somente nessa época é
noa (1962), mas Meu Pé de Laranja Lima (1968) foi a obra
que o transformou no “mais espantoso fenômeno literário 25. Wilson Martins, op. cit., vol. 7, p. 200.

meme e E qa a =
374 Monteiro Lobato
Monteiro Lobato 375
que apareceu uma tradução brasileira de um
livro do autor mas, como admitiu mais tarde, nenhum homem de negócios
Arnaldo de Oliveira Barreto, primeiro gerente da
Weiszflog racional teria ousado imobilizar tanto capital, nem compro-
Irmãos, deu sequência a essa linha com à publicaçã
o de uma meter tanto espaço para armazenamento, num único título
série de livros infantis vivamente coloridos, a
Coleção Biblio- de uma linha completamente nova de negócio, e certamente
teca Infantil. Outro nome ligado aos primeiros tem
pos da ati- jamais teria arriscado fazer uma edição maior do que o total
vidade editorial da empresa foi Manuel Bergstrôm
Lourenço das vendas de todos os outros livros já publicados pela firma.
Filho (1897-1970), cujas atividades, a part
ir de I922, como No dizer de Lobato, porém, existe evidentemente um deus
diretor do ensino no Ceará, do que resultaram
Escola Nova que cuida dos bêbados e outro que toma conta dos inocen-
(1925) e Introdução ao Estudo da Escola Nov
a (1929), ins- tes. Os quinhentos exemplares que doou a escolas foram sua
piraram toda uma geração de reformadores edu
cacionais em salvação. O governador do estado, Washington Luís, Re Seni
todo o Brasil, Além do cargo de consultor editoria
l em que a uma inspeção nas escolas, observou como as crianças liam
Mel horamentos fez questão de mantê-lo por muitos
anos, a avidamente aquele novo livro e, assim, instruiu seu secretário
partir de 1927 organizou a “Biblioteca de Educação”
para a do Interior, Alarico Silveira (tio-avô de Ênio Silveira, da Civi-
editora. A partir de 1926, fez também a revisão
sistemática de lização Brasileira), a fazer uma “compra grande , para pos-
todos os livros infantis da casa, num esforço par
a ampliar a sibilitar que outras escolas pudessem usá-lo. No dia seguin-
faixa etária de cada título, mediante a simplificaçã
o do voca- te, Alarico indagou quantos exemplares havia disponíveis.
bulário e a eliminação de quaisquer passagens
que pudessem Como lhe oferecessem quantos quisesse: dez, vinte, a
provocar “sentimentos de medo ou de terror”.
mil..., considerou aquilo uma brincadeira e pediu trinta mil,
percebendo o erro apenas quando a encomenda foi entregue.
$r108 OS LIVROS PARA CRIANÇAS Os restantes vinte mil foram vendidos em oito meses, dan-
do um lucro de cem contos de réis. Uma segunda edição de
A carreira de escritor de Monteiro Lobato com dez mil exemplares foi posta à venda, apoiada Tur anúncio
eçou também de página inteira no jornal O Estado de S. Paulo**. Ro co-


com livros para crianças. Conta ele que Toledo
Malta apa- meçou, então, a dedicar-se sistematicamente a escrever da
recera uma vez no escritório para uma partida
de xadrez — infantis, mantendo os mesmos personagens € eocuLao o
atividade que tinha precedência até mesmo sobre
o trabalho aprontar um novo livro a cada ano, para a época das vendas
edit
orial - e perturbou sua concentração com uma
história de Natal. O êxito de Narizinho, superando em venda todos os
sobre um peixe que saíra da água e ficara tão
habituado a seus livros para adultos, foi sem dúvida um estímulo; pareçe
viver de ar que, ao voltar a seu elemento natural,
morreu no entanto, que, de qualquer modo, já estava disposto a dei-
afogado. Tão logo saiu, vitorioso no xadrez,
Lobato decidiu xar de escrever contos. Como em muitas outras ocasiões em
tirar algum proveito do incidente e elaborou
o relato que ou- sua vida, tão logo dominava uma arte começava a fi
vira sob a forma de um conto, publicado num
a revista com dela e procurava novo desafio. Escrever para crianças foi,
o título de “A História do Peixinho que Morreu
Afogado”. de fato, a única exceção, pois continuaria a fazê-lo duran-
Contudo, intrigado pelo caráter desse peixinho
e recordando te toda a vida. Com efeito, sobre seu prestígio como escritor
as histórias que Joaquina, ex-escrava de seu
pai, lhe conta-
va na infância sobre lambaris, lagostins e out
ras criaturas
antropomórficas como essas, aventurou-se à
escrever todo 26. Marisa Lajolo (org.), Monteiro Lobato, São Paulo, Abril Educa-
um livro para crianças, “nos intervalos entre
Am

as partidas de ção, 1981, p. 111. Outras obras da professora Lajolo são Monteiro
xadrez”. Então, num momento de loucura,

decidiu publicar Lobato: Um Brasileiro sob Medida (São Paulo, Moderna, 2000) co
A Menina do Narizinho Arrebitado, numa tir mais breve Monteiro Lobato: A Modernidade do Contra (São pi
agem de nada
menos que so 500 exemplares — número praticamente Brasiliense, 1985). Cf. também Fernando Marques de Vale, A ge bra
igual Infantil de Monteiro Lobato: Inovações e Repercussões, ig ne
a toda a sua produção do ano anterior (1920)
. À enorme ti- tugalmundo, 1994, e Alice Mitika Koshiyana, Monteiro Lobato: In-
ragem permitiu-lhe fixar o preço de venda em
apenas 2$500, telectual, Empresário, Editor, São Paulo, T. A. Queiroz, 1982.
e
Monteiro Lobato 377
376 Monteiro Lobato

sua reputação nando de 3$300 por dólar, em 1978, para 72$800 em 1921
para crianças é que se baseia mais firmemente e 98800 em 1923. Queda semelhante, em 1930, resultaria
vidade poem a
póstuma. Escrever para crianças era uma ati num grande estímulo à atividade editorial nacional. Na dé-
nto ii ip
qual era soberbamente bem-dotado, tanto qua cada de 1920, porém, a vantagem de preço para as editoras
parado. eu
Collodi e Lewis Carroll, aos quais tem sido com brasileiras, decorrente da desvalorização, foi gravemente
er ou com
êxito decorreu, acima de tudo, da recusa a proteg os anulada. À maioria das empresas ainda imprimia seus livros
seus própri
descender: tratava seus leitores, como fazia com na Europa. Lobato estava implantando sua própria oficina
nas através
filhos, como seres humanos racionais. Talvez ape gráfica, mas isso significava que teria de pagar quantias cres-
as é dr sua
da mente aberta € despreconceituosa das crianç centes, em moeda brasileira, pelas máquinas estrangeiras
eria ter em
abordagem franca e absolutamente cândida pod necessárias. E todo o mundo continuava dependente de ma-
sua pi
çado aceitação integral, e podemos supor que térias-primas importadas, cujos preços subiam à medida que
r da juventude,
do fato foi determinante na sua decisão de faze o mil-réis caía. A Weiszflog-Melhoramentos seria a primeira
em. ali
a partir de então, o alvo principal da sua mensag a libertar-se da dependência do suprimento externo de papel
a produ
Ainda mais importante, talvez, do que sua própri de imprensa: presumivelmente, foi esse o motivo da fusão.
para arc
ção foi sua influência, ao mostrar que escrever Mas essa conexão ainda era muito recente para produzir
autor bem-
não era algo que diminuísse a dignidade de um todo o seu potencial nesse aspecto.
a nos
-sucedido. Podemos comparar essa ideia com à un O material para encadernação tornou-se particularmen-
infantis Er
países de língua espanhola, onde os bons livros te caro. No final de 1920, seu preço tinha triplicado. Até
por exemplo
tam-se, praticamente, a traduções — de Lobato, então, os livros brasileiros usavam mais a capa dura do que
arriscar
exatamente porque nenhum autor competente Em a brochura. À alta dos preços inverteu essa situação. Daí
Seplade
sua reputação com a dedicação a tais atividades em diante, a brochura passaria a ser a apresentação nor-
, . oba
Ao mesmo tempo em que escrevia livros infantis mal dos livros, embora, pelo menos até a Segunda Guerra
a poço
to estimulava outros autores a submeterem par Mundial, tenha continuado a existir a versão encadernada
ões e o dg
seus originais na mesma área e lançava traduç na maioria dos títulos, a preços adequadamente mais altos
de Oscar A tá
para crianças, com O The Happy Prince,

onde
mm, de s Via- (pelo menos em um terço mais caros). Em fins da década de
versões dos Contos de Fadas, dos irmãos Gri 1930,a proporção de vendas era mais ou menos de um livro
Quixote, com
gens de Gulliver, de Robinson Crusoe e de D. encadernado para cada três brochuras. Hoje, apenas edições
Garnier €
base nas traduções portuguesas publicadas pela
o

dadosamen- especiais (como obras completas para venda em prestações,


pela Laemmert ($75), mas com a linguagem cui a domicílio), grandes livros médicos, científicos ou de refe-
a

te modernizada e abrasileirada. rência são encadernados.


O efeito da crise sobre o consumidor brasileiro foi desas-
troso. Em fins de 1923, o custo de vida, devido à contínua
$r10o9 A DEPRESSÃO DO PÓS-GUERRA queda da taxa cambial, era quase o dobro em relação ao
Eee final da guerra, À atividade editorial, em especial, como sem-
Os primeiros três anos da atividade editorial çã pre em tais situações, foi duramente atingida: “A vendagem
do pós-gu :
responderam ao período do vertiginoso boom dos livros tem caído; todos os livreiros se queixam — mas o
os preços de
Esse boom chegou ao fim em 1920, quando público tem razão. Câmbio infame, aperto geral, vida cara.
mente Earl
todas as exportações latino-americanas subita Não há sobra no orçamento para a compra dessa absoluta
cia, dech
çaram a cair e o mil-réis acompanhou a tendên inutilidade chamada livro”,
A reação de Lobato foi cortar a edição de literatura, de
r, pelo E e
27. Parece que esta situação já começou à muda de ua
modo que, em 1924, invertendo sua política original, come-
o grande número
xico. Em contraste, nota-se no Brasil
o, part
consagrados que, seguindo O exemplo lobatian : 28. Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, op. cit., vol. 2, p. 259.
Graciliano
para crianças: Jorge Amado, Clarice Lispector,

378 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 379

çou a limitar-se a nomes já conhecidos e a traduções. Os livros dívida (“pagamentos mensais de contos e contos”) pela qual a
didáticos passaram a dominar o programa da editora: “O firma estava respondendo, e desgostoso por haver abandona-
bom negócio é o didárico. Todos os editores começam com a do seus “pobres autores nacionais”. Já não tinha mais tempo
literatura geral e por fim se fecham na didática. Veja o Alves”. para a Revista — cuja condução passou inteiramente para Pau-
Evidentemente, Lobato encarava essa mudança como lo Prado e Sérgio Milliet- e menos ainda para jogar xadrez du-
mera inversão tática: com relação às perspectivas a longo rante o expediente, como nos velhos tempos da rua Boa Vista.
prazo da firma, seu otimismo se mantinha. Dois anos antes, A crise tinha suas repercussões políticas. Às cinco da ma-
quando o boom já havia chegado ao fim, tinha-se mudado nhã de s de julho de 1924, a guarnição de São Paulo, de
para instalações novas e maiores, na rua Santa Efigênia, nº 3A. pouco mais de três mil homens, sob as ordens de seu coman-
Agora planejava expansão ainda maior e, em abril de 1924, dante, general Isidoro Dias Lopes, depôs o governador do
mudou-se para uma fábrica de cinco mil metros quadrados estado, Carlos de Campos, e apossou-se da cidade, na expec-
na rua Brigadeiro Machado, no Brás. Foram importadas dos tativa ilusória de que isso acarretaria uma rebelião militar
Estados Unidos as mais modernas máquinas de impressão e generalizada em todo o país. Ao contrário, porém, a cida-
acabamento, a despeito da taxa de câmbio muito desfavorá- de foi rapidamente cercada por um exército legalista, com
vel em vigor. Seu equipamento incluía até mesmo as primeiras quinze mil homens. Os revoltosos não se haviam preocupado
componedoras monotipo de São Paulo. O esteticamente cons- com o apoio civil, nem tentado obtê-lo: sua escolha de São
ciente Lobato utilizava-as em todos os trabalhos de sua ofici- Paulo baseara-se puramente em considerações estratégicas.
na, ainda que o desenvolvimento subsequente da impressão Infelizmente, isso não pesou na decisão dos legalistas que,
tipográfica no Brasil — segundo o costume norte-americano — no dia 12, começaram a bombardear indiscriminadamente
tenha aconselhado reservar a maior flexibilidade da monoti- o centro da cidade, com o declarado objetivo de aterrorizar
po para composições particularmente complicadas (fórmulas os cidadãos. Carlos de Campos, a salvo fora da cidade, pro-
matemáticas, tabelas etc.) e usar a linotipo, mais simples e clamou: “Estou certo que São Paulo preferirá ver destruída
mais barata (embora mais tosca), para o grosso do trabalho. sua formosa Capital do que destruída a legalidade no Brasil”.
Na verdade, a nova oficina estava tão bem equipada que, des- Enquanto isso, a luta prosseguiu até o dia 15, dentro da ci-
de o início, Lobato planejou estender suas atividades a outros dade, contra postos legalistas isolados, como o quartel da po-
campos, como a produção de livros de contabilidade, apenas lícia na Liberdade. Então, no dia 26, o governo começou um
para ocupar inteiramente o equipamento. Talvez tenha cal- ataque direto. Os rebeldes não possuíam um programa polí-
culado que a queda na taxa de câmbio, desfavorável para o tico claro; com o fracasso do levante de outras unidades mi-
Brasil, iria permitir-lhe atrair clientes que até então vinham litares em apoio ao movimento, estavam até mesmo sem um
imprimindo seus livros e outros trabalhos na Europa. plano coerente de campanha. Apesar de tudo, resistiram até o
Em maio de 1924, a Monteiro Lobato e Cia. foi reorga- amanhecer do dia 28, quando inúmeros civis já haviam sido
nizada com o nome de Cia. Gráfico-Editora Sociedade Anô- mortos — de fato, em número superior ao das baixas militares
nima, com um capital de 2 2000008000 dividido em 4400 verificadas de ambos os lados — e grande número de prédios
ações, adquiridas por sessenta sócios fundadores, entre eles destruídos. Metade da população fugira e todo o movimento
os líderes do empresariado paulistano, e sob a presidência de comercial cessara. À maioria dos rebeldes fugiu, então, para,
José Carlos de Macedo Soares. Ao mesmo tempo, iniciaram-se sob o comando do coronel Luís Carlos Prestes, futuro líder
negociações relativas a uma fusão da nova firma com a Leite do Partido Comunista Brasileiro, iniciar a “grande marcha”
Ribeiro (depois Freitas Bastos — $131), que, na época, era a através do interior do país, que, supõe-se, tenha inspirado o
principal livraria e casa editora do Rio de Janeiro. feito de Mao Tsé-Tung, analogamente denominado.
Aparentemente, Lobato desgostou-se quase imediatamen- Lobato viajara para o Rio de Janeiro quando se inicia-
te com o rumo que as coisas iam tomando. Em carta ao amigo ram os distúrbios. Ao regressar, verificou que as instalações
Rangel, datada de 7 de abril de 1924, mistura orgulho pela de sua empresa haviam sido atingidas por apenas dois projé-
grandeza da nova operação com temores sobre a carga da teis de artilharia e por armas de fogo de pequeno porte, mas
380 Monteiro Lobato Monteiro Lobato 381

a gráfica já estava parada há um mês e não se podia esperar Foi este o momento escolhido pelo presidente Bernardes,
que os negócios se reativassem inteiramente enquanto a ci- irritado com as críticas desferidas por Lobato às suas políti-
dade não voltasse ao normal. Tudo somado, a revolta custou cas, para mandar cessar qualquer negócio do governo com
à Cia, Gráfico-Editora Monteiro Lobato a perda de cerca de a empresa, forçando assim a suspensão de todas as edições
três meses de produção, num momento em que ainda devia escolares dela.
grandes somas do seu novo equipamento, além da obrigação O procedimento sensato teria sido procurar algum en-
do pagamento de juros relativos a nova e vultosa hipoteca. tendimento com os credores. Isso porque, não havendo
Em dezembro (de 1924), a receita voltara a subir para nenhuma outra gráfica de dimensões comparáveis nem de
quatrocentos contos mensais e esperava-se que atingisse longe às da companhia de Monteiro Lobato, era muito im-
seiscentos no início do ano seguinte. Infelizmente, porém, a provável que se pudesse vender os equipamentos por preço
companhia recebeu um novo golpe alguns meses mais tar- próximo do seu valor real. Pelo menos era esta a opinião
de, quando a produção foi cortada pela pior seca de que se de Octalles, que infelizmente estava fora, numa viagem de
tinha lembrança, que causou drástica redução na produção negócios, quando estourou a crise. Lobato, com sua carac-
hidrelétrica da empresa Light. Até bem recentemente, o su- terística impetuosidade, decidiu pela liquidação imediata.
primento de energia para São Paulo sempre esteve no limiar Estávamos em agosto de 1925, embora o processo concreto
do colapso. Nos anos imediatamente seguintes à Segunda de liquidação se tenha estendido até fins de setembro, que
Guerra Mundial, sua deficiência prejudicou seriamente a ex- decretou também, ironicamente, o fim da grande seca.
pansão industrial: entre 1953 e 1955, havia frequentes cor- Como empreendimento editorial, a Cia. Gráfico-Editora
tes de energia de cinco a sete horas diárias. Mas o inverno de Monteiro Lobato surgiu, de fato, cerca de dez anos antes do
1925 foi excepcional, mesmo para os padrões de São Paulo. tempo. Como tentativa de unir gráfica e editora numa única
Em julho, a produção da cidade caíra para 30% do normal, organização, surgiu ainda mais cedo, e quase todos os seus
e as oficinas de Lobato só podiam ter energia para dois dias sucessores dos anos de 1930 prudentemente concentraram-se
de trabalho por semana. Ele instalou seu próprio gerador numa ou noutra dessas atividades. Como inspiração, porém,
a diesel — com isso endividando-se ainda mais —, mas logo mostrando o que podia ser realizado, sua importância é incal-
descobriu que não havia água suficiente nem mesmo para culável. Somos tentados a compará-lo com Paula Brito, seren-
alimentar o sistema de refrigeração do motor! ta anos antes. Até agora, nesta história, todos os editores de
importância foram estrangeiros, com exceção de dois: Brito e
Lobato. Todos, fora estes, foram prudentes negociantes, que
$rIo A FALÊNCIA assumiram poucos riscos inevitáveis e, em diversos casos, acu-
mularam vultosas fortunas. Para os brasileiros Brito e Lobato,
Mesmo assim, a receita mensal — que caíra para uns o patriotismo era motivação bem mais significativa do que o
300:000$000 — era quase suficiente para pagar as contas do simples fato de ganhar dinheiro. Ainda que, no fim, seu amor
mês anterior, de tal sorte que a firma poderia ter superado patria superotimista tivesse levado a uma expansão rápida
as dificuldades. Em ro de julho, Lobato afirmava a Rangel: demais, com base em capital emprestado, e à liquidação, a
“Breve estaremos novamente de pé”. Foi quando uma súbita experiência pioneira de ambos foi vitalmente necessária para
medida de pânico do governo Bernardes, com vistas a vencer provar que as obras de autores brasileiros podiam ser publica-
a inflação a qualquer preço, suspendeu temporariamente O das em bases comerciais. Sem Paula Brito, é possível que qua-
desconto de duplicatas ou títulos em todo o país; Lobato viu- se não houvesse literatura brasileira no século xrx, ainda que
-se privado do indispensável crédito a curto prazo. (Na época, sua maioria acabasse sendo publicada por B. L. Garnier. Sem
os saques a descoberto eram praticamente desconhecidos no Lobato, possivelmente muito pouco também se teria feito a
Brasil, e ainda hoje não são a fonte mais comum de crédito respeito neste século, ainda que o crédito relativo à publica-
bancário a curto prazo, que ainda é obtido por meio de letras ção da maioria dos autores se deva, de fato, à José Olympio, à
de câmbio a noventa, cento e vinte ou cento e oitenta dias.) Martins e a outras editoras.
Octalles
Marcondes
Ferreira
Eu sou um editor tradicional...

OCTALLES MARCONDES FERREIRA“

A FÊNIX NACIONAL Grri

A taxa de mortalidade das editoras é notoriamente alta.


Mesmo que a seleção de originais — especialmente originais
literários - e sua apresentação em forma impressa exijam
alto grau de julgamento estético, essa qualidade precisa estar
subordinada a uma perspicácia empresarial acima da média.
A dificuldade no ramo editorial (e muito do fascínio que ele
exerce sobre quem o vê de fora) é que essa indispensável
combinação raramente ocorre no mesmo indivíduo: essa é
a razão pela qual tantas editoras bem-sucedidas foram so-
ciedades (como já assinalamos, no $71, ao tratar dos irmãos
Laemmert). Lobato e Octalles constituem uma ilustração
perfeita desse tipo de pessoa.
Na época do colapso da Cia. Gráfico-Editora Monteiro
Lobato, aquele que havia começado como humilde auxiliar
de Lobato tinha-se tornado seu sócio em perfeita igualdade
de condições. Suas relações naquele tempo foram saboro-
samente descritas por Nelson Palma Travassos em Minhas
Memórias dos Monteiros Lobatos*. Tratava-se de uma du-
pla de sentimentais, diz ele, cada qual com horror de revelar
ao outro seus próprios sentimentos. À conduta de ambos,
quando estavam juntos, era séria e profissional, muitas vezes
brusca e até mesmo agressiva. Ambos evitavam o bate-papo.

1. Gabriel Romeiro, “Nosso Livro Começou com Ele”, Correio do


Livro, vol. 3,n.31,p. 11, mar 1970.
2. Nelson Palma Travassos, Minhas Memórias dos Monteiros Loba-
tos, São Paulo, Edart, 1964, p. 238.
386 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 387

Lobato estava sempre pondo em prática alguma ideia nova e levou a escrever muitos artigos sobre seu herói e a tradu-
brilhante, quase sempre desastrosa; e Octalles sempre atrás zir My Life and Work e Today and Tomorrow. Em maio de
dele, procurando juntar os pedaços do desastre. E todas as 1927, surgiu-lhe a oportunidade de conhecer os Estados
vezes Octalles decidia - na ausência de Lobato — que aquilo Unidos: aceitou o cargo de adido comercial brasileiro em
fora, realmente, a gota d'água e que, quando Lobato vol- Washington, o que o afastou completamente da direção da
tasse, passariam a comunicar-se apenas por escrito durante editora. Mas essa experiência acabou desviando o volátil
algum tempo. Nunca, porém, tiveram uma briga de verdade. Lobato para outro rumo. Tomando consciência do quanto
Cada um deles estimava sincera e carinhosamente as quali- o Brasil estava atrasado em relação ao gigante ianque e do
dades do outro, tão diferentes - e complementares. quanto dependia deste, seu conhecimento dos EUA transfor-
A melhor prova disso foi o que sucedeu imediatamen- mou-o num cruzado da luta pelas indústrias petrolífera e
te após o colapso da Cia. Gráfico-Edirora Monteiro Loba- siderúrgica nacionais, e, desse modo, desviou seus interesses
to. Em lugar de manifestar justificado ressentimento pelo e energias para ainda mais longe da atividade editorial. Foi
modo como Lobato mergulhara de cabeça na falência, com igualmente uma das inúmeras vítimas da febre americana da
a consequente perda de cinco mil contos, e praticamente sem época: a especulação na bolsa de valores; e, quando sobre-
seu conhecimento, Octalles começou a planejar calmamen- veio o crash de outubro de 1929, teve de vender a Octalles
te como poderiam continuar trabalhando juntos. Cerca de suas ações da editora, o correspondente a 50% do capital,
dois meses antes da liquidação final da antiga companhia, para cobrir os prejuízos. Sua parte foi comprada por The-
ele já havia persuadido o irrequieto Lobato a constituir uma mistocles Marcondes Ferreira, irmão de Octalles, que du-
nova editora. Com cem contos de réis, produto da venda rante anos e até sua morte, em 1965, foi diretor-presidente
de pequena casa lotérica da qual os dois eram sócios, iriam da editora. No entanto, o cargo era apenas nominal, uma
começar tudo de novo», vez que a direção geral sempre esteve nas mãos de Octalles.
Em novembro de 1925,a Cia. Editora Nacional já estava À carreira diplomática de Lobato terminou exatamente
constituída e preparava-se para iniciar seu programa edito- um ano depois, com a deposição do governo de Washington
rial com a publicação de uma versão, supervisionada por Luís pela Revolução de 1930. Voltando ao país, não aceitou
Lobato, do primeiro de todos os livros escritos sobre o Brasil a oferta de Octalles de reintegrar-se à diretoria da editora,
no século xvr, o relato de Hans Staden de sua aventura entre apesar do interesse intermitente que manteve pela empresa.
os canibais, Meu Cativeiro entre os Selvagens Brasileiros, Assim, em dezembro de 1937, vemo-lo escrevendo a Fran-
numa tiragem de cinco mil exemplares. cisco de Campos, ministro da Educação, pedindo-lhe que
No início, a sociedade restringia-se aos dois amigos, po- imprimisse centenas de milhares de livros sem acentos (a re-
rém, com as respectivas posições invertidas. Enquanto Oc- forma ortográfica era outro de seus entusiasmos). Quanto à
talles ficava em São Paulo à frente dos negócios e tomava nova companhia, todo o trabalho efetivo de construção cou-
todas as decisões no dia a dia da firma, Lobato dirigia uma be a Octalles. A única contribuição significativa de Lobato,
filial no Rio de Janeiro. Isso lhe deixava tempo para escrever, depois dos primeiros dezoito meses, foi a de tradutor e autor.
o que fazia com uma assiduidade cada vez maior. Suas traduções do inglês iam de Hemingway a Eleanor H.
Era agora, antes de qualquer outra coisa, um escritor Porter. Como autor, produziu livros infantis de venda ex-
para crianças, mas um novo entusiasmo o preenchia: a eco- cepcional, os quais deram significativa contribuição para o
nomia industrial mais avançada do mundo, a dos Estados sucesso da Nacional, além de proporcionar ao escritor gene-
Unidos da América, personificada por Henry Ford. Isso o rosa receita anual em direitos autorais: quatrocentos contos
em 1944, chegando, mais tarde, a mil contos. Naturalmente,
3- À aquisição dessa casa lotérica, em 1925, fora uma forma de ne- a maior parte desse dinheiro ele gastou em suas campanhas
gociar as letras de câmbio da Cia. Gráfico-Editora Monteiro Lobato. a favor da indústria brasileira de petróleo e de aço. Wilson
Cf. Carmen Lúcia de Azevedo et al., MonteiroLobato: Furacão na Martins resume o fato com perfeição:
Botocúndia, 2. ed. São Paulo, Editora Senac, 1998, p. 146.
388 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 389

Lobato é um extraordinário raté, um raté de gênio, que realizou dele se aproximavam uma ameaça a seu precioso tempo; e,
tudo o que desejava, porque para ele a realidade começava e ter- quando parava para conversar, ficava sempre em movimento,
minava dentro dos limites da ideia. Mostrar o que podia ser feito, apoiando-se ora numa perna, ora noutra, como se desejasse
o que devia ser feito, e lutar até o momento da aceitação das suas ter terminado para poder ir embora. Em resumo, diz Travas-
ideias, realizando apenas o indispensável para convencer os adver- sos, um tipo evidentemente não talhado para enfrentar as
sários e os descrentes, e deixando aos outros a exploração sistemá- aborrecidas minúcias do dia a dia numa oficina gráfica.
tica e organizada de tudo... À principal razão do envolvimento de Lobato e Octal-
les com oficina gráfica fora a capacidade inadequada das
O afastamento efetivo de Lobato da direção da empresa, tipografias então existentes. Como a Nacional, em seus pri-
nas circunstâncias da Revolução de 1930, não deixou de ser meiros tempos, era de pequena dimensão, isso deixara de
vantajoso para a firma, Sua vinculação, embora de caráter ser importante.
mais pessoal que político, com membros importantes do re-
gime deposto, entre eles o próprio Washington Luís, poderia
no mínimo torná-lo persona non grata para o novo governo. A SÃO PAULO EDITORA E A REVISTA DOS TRIBUNAIS $rr2
Uma editora dirigida por alguém que seja primordial-
mente um homem de negócios pode ser algo um tanto menos As máquinas e as instalações que Lobato tinha importado
aventuroso — e muito menos excitante do ponto de vista do para sua magnífica empresa gráfica, evidentemente, não de-
historiador literário —, mas, com certeza, erguer-se-á sobre sapareceram fisicamente com a falência da firma. De fato,
alicerces mais sólidos e mais duradouros. Lembremo-nos da os credores estavam muito ansiosos por encontrar compra-
administração de sir Stanley Unwin na editora londrina Allen dores para elas; de sorte que Lobato e Octalles conseguiram
and Unwin. Assim foi com Octalles e a Editora Nacional. persuadir dois de seus antigos associados, Natal Daiuto e
Octalles esforçou-se para que a nova firma se restringisse Savério D'Agostino, a adquirirem parte do equipamento
à atividade editorial. No início, com um pequeno capital de para formar a São Paulo Editora. Embora, anos mais tar-
cem contos de réis, ele e Lobato tinham pouca escolha com de (1966), 0 livro Revoluções do Brasil Contemporâneo, de
relação a isso. De qualquer modo, porém, Octalles concluíra Edgard Carone, trouxesse o sinete da São Paulo Editora,
que a causa fundamental da falência de 1925 fora a criação em circunstâncias excepcionais, o nome “editora” era, na
do setor gráfico: não só imobilizara enorme volume de capi- verdade, uma denominação incorreta porque foi criada es-
tal - e capital emprestado -, como também a necessidade de pecificamente para prestar serviços gráficos e, mais do que
manter inteiramente ocupadas as impressoras havia desvir- isso, deveriam dedicar-se exclusivamente a atender às neces-
tuado a política editorial da empresa. sidades da Editora Nacional. Desse modo, não apenas per-
Acrescente-se a isso o que disse Nelson Palma Travas- maneciam disponíveis muitas das excelentes impressoras de
sos, em artigo publicado em 1943: a cabeça mais adequada Lobato, como, o que também era importante, continuavam
para dirigir um negócio editorial raramente tem o tempe- a funcionar sob a direção de Daiuto, consumado artista em
ramento mais ajustado à gerência de uma oficina gráfica (e produção e planejamento gráficos, cujo trabalho estabeleceu
vice-versa). Travassos ilustra sua tese com uma divertida série um padrão para todo o desenvolvimento posterior da apa-
de esboços sobre o caráter de proeminentes editores brasilei- rência física do livro brasileiro, influência tão significativa
ros. Descreve Octalles como um indivíduo inquieto, sempre no século xx quanto a de Plancher no século x1x.
preocupado em terminar depressa o trabalho que tem em Por feliz coincidência, foi exatamente nessa mesma oca-
mãos para poder lançar-se à próxima tarefa, que se apres- sião que o jovem Nelson Travassos, então (1924) recém-no-
sará a completar com igual ansiedade, vendo em todos que meado diretor do periódico jurídico Revista dos Tribunais,

4: Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, 2. ed., São Pau- $. Nelson Palma Travassos, Livro sobre Livros, São Paulo, Hucitec,
lo,T. A. Queiroz, 1996, vol. 7, p. 88. 1978, p. 125.
390 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 391

decidiu promover a reimpressão de todos os seus números ocupada depois da reimpressão da Revista. Felizmente, para
anteriores, algo equivalente a uns cem volumes. A circula- suas esperanças, a Grande Depressão que se seguiu ao crash
ção da revista, fundada em 1912, crescia muito lentamente de outubro de 1929 em Wall Street distava pouco mais de
e ainda não havia atingido o equilíbrio entre despesa e re- dois anos. De que modo esse fato iria, ao mesmo tempo,
ceita. O plano de Travassos visava a gerar uma receita extra, revitalizar a atividade editorial brasileira e tornar impossível
angariando novos assinantes (que poderiam pagar os vo- a continuação da impressão dos livros brasileiros no exte-
lumes atrasados em prestações) e conseguindo publicidade, rior é assunto de que trataremos mais adiante ($$127, 132,
extremamente necessária. À revista já tinha adquirido uma 146). Mesmo isso foi enormemente ajudado pela existência
pequena impressora, em consequência das dificuldades fi- da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, especialmen-
nanceiras por que passara o periódico O Comentário, de te pelo apoio financeiro que pôde oferecer a uma indústria
Veiga Miranda; em busca de alguém para fazê-la funcionar, subitamente florescente. À velha história do banqueiro que,
Travassos dirigiu-se à Seção de Obras (impressão de livros) para conceder um empréstimo à editora, aceita como ga-
de O Estado de $. Paulo, que estava sendo fechada, e con- rantia o papel em estoque desde que o cliente concorde em
tratou o supervisor-geral da oficina, Cesário Seckler, e o não estragá-lo transformando-o em livros, ilustra o proble-
impressor-chefe, Laerte Romeu. Isso, porém, não lhe deu, ma fundamental do levantamento de empréstimos no ramo
nem de longe, os meios suficientes para projeto tão grande. editorial. Travassos percebeu que as dificuldades de finan-
Assim, recorreu ao acervo da antiga companhia de Monteiro ciamento seriam um grande obstáculo para o crescimento
Lobato e adquiriu quase tudo o que não fora passado para da indústria editorial brasileira; persuadiu, então, o Banco
a São Paulo Editora. Econômico do Estado de São Paulo e o Banco Hipotecário e
Essas máquinas, compradas pelas duas firmas, eram, sem Agrícola de Minas Gerais a concederem empréstimos à sua
sombra de dúvida, as mais modernas do país, e assim per- firma, mediante a garantia das máquinas, de modo que ela,
maneceram por mais de uma década. (Algumas, sobretudo por sua vez, pudesse dar crédito às editoras, que assim po-
as de composição, estão em uso ainda hoje: por exemplo, a deriam, por seu turno, conceder crédito aos livreiros. Hoje
Gabarito Arte « Composição Ltda. tem duas monotipos da em dia, esse mecanismo é tão normal que dispensa comen-
São Paulo Editora.) Naturalmente, desse modo a Companhia tários, mas, no Brasil de setenta anos atrás, sua introdução
Editora Nacional passou a dispor de outra gráfica confiável revolucionou as perspectivas de uma indústria nacional do
para suplementar os serviços da São Paulo Editora. livro. Travassos, na pequena história que escreveu sobre sua
No entanto, a Revista dos Tribunais, como impressora firma, manifesta especial gratidão ao contínuo apoio que
de livros, foi muito mais do que um apoio para a Nacional. recebeu de Moraes de Abreu e José Maria Whitaker, do Ban-
De fato, no decorrer dos vinte anos seguintes, sua impor- co Econômico — particularmente durante os anos difíceis da
tância para a indústria gráfica brasileira seria tão grande crise mundial (e dos conflitos civis que a ela se seguiram no
quanto a da Nacional para a indústria editorial. Veiga Mi- Brasil), em 1929-1932.
randa logo deixou de participar de O Comentário, vendeu Nas décadas de 1930 e 1940, a Empresa Gráfica da Re-
suas ações a Noé de Azevedo, proprietário da Revista, e foi vista dos Tribunais foi responsável por cerca de 60% da
plantar algodão. Noé de Azevedo, um renomado jurista, ti- produção brasileira de livros, ou seja, praticamente todos
nha pouco interesse pela parte gráfica. Por isso, fundou a os livros que não eram produzidos em gráfica pertencente
Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais como companhia ou associada a uma editora. Em 1939, na expectativa da
separada, dirigida por Nelson Travassos (embora possuísse guerra, Travassos assumiu um risco calculado, ao importar
a maioria das ações). Graças ao que adquirira das oficinas de grande quantidade de novas máquinas. Isso não só se mos-
Lobato, a nova firma, no momento de sua fundação (1927), trou compensador como, e mais importante ainda, facilitou
tornava-se a maior impressora de livros do Brasil. Travassos uma grande expansão da produção de livros no país durante
estava convencido de que o sucesso da Nacional estimularia
o crescimento de novas editoras, o que manteria sua oficina 6. Nelson Palma Travassos, op. cit., pp. 48-73.
392 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 393

a guerra. Logo após o conflito mundial, L. J. Hughlerr, em outra coisa que não fosse a impressão de jornais. O papel
seu livro Industrialization of Latin America, dizia que as 22 para livros passaria agora a pagar um imposto de $300 por
linotipos e as 14 impressoras planas automáticas da Gráfica quilo (cerca de 200%), ao passo que os livros estrangeiros
da Revista dos Tribunais transformavam-na numa oficina em geral continuavam a entrar no país com um imposto de
gráfica excepcionalmente grande. Essa posição quase mo- $rro por quilo, e os livros de Portugal não pagavam impos-
nopolista do negócio não poderia manter-se com a grande to algum ($83). Essa concessão para os livros portugueses
expansão da produção brasileira de livros a partir do final fora estabelecida com vistas a obras científicas e técnicas,
da década de 1950; mesmo em 1973, porém, as impressoras cuja necessidade as editoras brasileiras ainda não eram ca-
da Revista ainda estavam atendendo a cerca de 20% de um pazes de suprir - o mercado ainda era muito pequeno para
mercado então muito maior. ser viável. Na verdade, porém, dela se beneficiavam todos os
tipos de livros portugueses.
Foi uma reação emocional, que penalizou as gráficas
$113 IMPOSTOS SOBRE PAPEL IMPORTADO brasileiras e criou dificuldades para as editoras brasileiras,
sem conceder o benefício correspondente aos fabricantes
No primeiro mês de trabalho da Nacional, fevereiro de brasileiros de papel. Até mesmo o aumento da receita alfan-
1926, valor das vendas foi de sessenta contos, chegando a degária foi uma ninharia. Na época, a produção de livros
cem no mês seguinte. Em maio, Octalles e Lobato já tinham devia estar utilizando muito menos de duas mil toneladas
acumulado lucros suficientes para comprar de volta, de seus de papel por ano — taxável, então, em cerca de £1 5000. As
credores, o estoque de livros e os contratos de direitos au- importações de papel para outros fins além da impressão de
torais da antiga firma. Em junho, Lobato escrevia a Heitor jornais, com baixas taxas alfandegárias, chegava a três vezes
de Morais: “A Companhia Editora Nacional está crescendo aquela quantidade, porque a maioria era importada para a
numa vertigem... Nosso ativo já é de mais de mil contos e o impressão de revistas, periódicos e imprensa oficial: 7 151
passivo uma miserinha... Só de gramáticas vendemos 260 de toneladas em 1922, 6020 em 1923, 5 147 em 1924, subindo
fevereiro até hoje... Um colosso!”” de repente para 9 977 toneladas em 1925, antecipando-se à
Esse sucesso inicial era duplamente meritório. Tinham de- nova taxação. Mesmo assim, porém, £50000 parece ter sido
cidido recomeçar tudo numa época de depressão dos negó- o máximo que o governo obteve de receita extra.
cios (1926-1927). E recomeçavam, também, exatamente no Certamente, não houve decréscimo no consumo de papel
momento em que as autoridades impunham uma nova e se- estrangeiro (37 078 toneladas em 1922, 39 $16 em 1923,
vera limitação à indústria editorial brasileira. 40619 em 1924, 49914 em 1925, 38 165 em 1926, 32096
Já desde 1912, 0 imposto de importação incidente sobre em 1927,36$539em 1928,41909 em 1929). Às importações
o papel era superior ao de importação de livros (cf. tabela 6, de livros, que teriam incluído edições brasileiras impressas
p. 840), mas geralmente era possível importá-lo como papel no exterior com papel estrangeiro, registraram uma notável
de imprensa, cuja alíquota ecra muito menor (cf. $$58, 94). alta: sucessivamente 624 577, 607 864, 672322 € 749269
Os fabricantes brasileiros de papel, preocupados em obter toneladas nos quatro anos anteriores à nova lei, € aumen-
o máximo de proteção para a sua indústria, exigiam o fe- tando, nos quatro anos seguintes, para 912 391, 779302,
chamento dessa brecha. Quando, em agosto de 1925, uma 995 380 e 852922 toneladas. À produção brasileira de pa-
das maiores empresas do setor faliu, o Congresso, aturdi- pel, por outro lado, apresentou ligeira queda. Foram 59600
do, foi pressionado a modificar a lei. Em fevereiro de 1926, toneladas em 1925 (provindo a maior contribuição da Cia.
criou-se uma linha-d'água especial para o papel de imprensa Fabricadora de Papel, dos irmãos Klabin, com 6 500 tone-
importado e passou a ser ilegal usar esse papel para qualquer ladas, seguida da Melhoramentos, com 6 396). Em 1926,
esse total diminuiu para 56000 e, em 1930, para $3 200.
7. Monteiro Lobato, Cartas Escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1959, Pouca quantidade desse papel era, porém, de boa qualidade
vol. 1, p. 199. e para impressão.
394 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 395

Na verdade, a indústria de papel do Brasil não estava equi- cresceu rapidamente, frustrando qualquer redução adicional
pada para atender às necessidades da indústria editorial, nem da relativa dependência de polpa estrangeira. Mesmo vinte
tinha real interesse nisso. Após o colapso do comércio expor- anos mais tarde, em 1955, as fábricas de papel brasileiras
tador do país, em 1930, pressão do governo e o aumento das ainda importavam cerca de 120000 toneladas: 48% de suas
taxas de importação obrigaram as editoras a utilizar papel necessidades. Lobato expressou energicamente sua preocu-
nacional, uma coisa calamitosa, com alta proporção de pasta pação a respeito, em carta de s de dezembro de 1937 ao
mecânica. Todavia, como assinalou, em 1940, seu porta-voz”, ministro da Educação, Francisco de Campos:
os fabricantes de papel não tinham qualquer incentivo para
produzir papel especial para uma indústria cujo consumo to- O mais reles jornaleco, a mais sórdida revista, têm papel importado
tal por ano (na época, um valor em torno de 1000:000$000) com isenção de direitos - e a mais necessária cartilha carrega às
somava pouco mais do que gastava em sacos, num mês, uma costas o proibitivo imposto que barra o papel de fabrico estrangei-
única fábrica de cimento (800:0008000)! Três anos depois, ro. Por essa razão o nosso livro só é feito em papel “nacional”, isto
a indústria do livro ainda consumia apenas quatro mil to- é, em papel estrangeiro que entra com taxas mínimas sob forma de
neladas, menos de 4% da produção nacional de 116 mil pasta e aqui apenas sofre a operação final de desdobramento em
toneladas. Não havia obstáculo técnico para a produção de folhas. Trata-se de uma das muitas indústrias de tarifa inventadas
papel de qualidade para livros no Brasil, o que foi demonstra- pela República Velha e mantidas pela Nova, para benefício duns
do pelo folheto publicado pela indústria do papel para pres- tantos magnatas de nariz adunco.
sionar o Congresso em 192.5: foi impresso em diversos papéis Esse papel estrangeiro, aqui apenas laminado pelos judeus Kla-
de excelente qualidade, todos eles especialmente fabricados bins, Weiszflogs e Prados, é vendido cada vez mais caro, já que se
no Brasil para aquele fim*. goza da bonificação da taxa proibitiva que grava o similar de fora,
Bom ou ruim, qualquer papel fabricado no Brasil teve, e em consequência o preço do livro vai em constante ascensão, com
por muitos anos, preço sensivelmente mais alto (sem con- prejuízo evidente da cultura popular.
tar as taxas alfandegárias) do que o importado. À grande Há anos, desde os tempos do Presidente Washington, venho me
queda da taxa de câmbio em 1930-1931 reduziu a diferen- batendo por isso. Mas inutilmente. Às representações dos editores
ça, mas não chegou a eliminá-la. Além dos empecilhos cos- ao Congresso morreram nas comissões"? (grifos originais).
tumeiros à industrialização num país em desenvolvimento
com mercado limitado, a indústria de papel dependia qua- Os ataques da carta de Lobato eram uma enorme injusti-
se totalmente da celulose importada. O Brasil possuía em ça. A Companhia Melhoramentos ($107) pertence à família
abundância madeira e matéria-prima vegetal (como o ba- Weiszflog, que não é israelita; além disso, fora a pioneira não
gaço de cana), que poderiam ser facilmente transformadas apenas na manufatura de celulose a partir de madeira brasi-
em polpa, mas as máquinas necessárias para fazê-lo eram leira — suas primeiras experiências, usando pinho-do-paraná
taxadas tão pesadamente na alfândega que ninguém se inte- e eucalipto australiano cultivado no país, datam de 1923 -,
ressava em importá-las. Quando esse imposto específico de mas também no reflorestamento sistemático necessário para
importação foi abolido, em 1933,a produção local de polpa sua continuidade. Os Klabin estavam em vias de dar uma con-
começou a crescer; em dois anos, atingiu 72 000 toneladas tribuição igualmente valiosa para a autossuficiência nacional.
anuais, um pouco mais do que as 63 410 toneladas que con- Ainda em 1938, 0 papel de jornal em bobina, adequado para
tinuavam a ser importadas. Contudo, o consumo também as rotativas modernas, ainda não podia ser obtido nas fábri-
cas nacionais. O presidente Getúlio Vargas, preocupado em
8. Randolfo Pereira da Silva, “Questão Econômica do Livro Brasilei- superar a contínua drenagem resultante do comércio exterior,
ro”, Revista do Serviço Público, p. 40, jul. 1940. empenhou-se em encontrar algum industrial disposto a reme-
9. Centro dos Fabricantes Nacionaes de Papel, A Marca d'Água no diar a situação, oferecendo como incentivos um empréstimo
Papel de Imprensa e a Indústria Nacional de Papel, São Paulo, Me-
lhoramentos, [19252]. 10. Monteiro Lobato, Cartas Escolhidas, op. cit., vol. 2, p. 32.
396 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 397

do governo, acesso a divisas estrangeiras e a promessa de mo- possível produzir versões brasileiras de livros norte-america-
nopólio. Mesmo assim, Ássis Chateaubriand, proprietário nos e vendê-las pela metade do preço do original dos Estados
dos Diários Associados, então a maior cadeia jornalística do Unidos (embora, naturalmente, as tradições mercadológicas
Brasil, recusou-se a assumir o risco, como também os velhos diferentes nos dois países signifiquem que os livros norte-ame-
Klabin. Em 1941, porém, os membros mais jovens da família ricanos seriam publicados com capa dura —“encadernados” —
aceitaram a proposta e, no fim da guerra, sua fábrica de Mon- e os brasileiros em brochura). Assim, em 1944,a História da
te Alegre, no Paraná, já estava em funcionamento, utilizan- Civilização, de Will Durant, em tradução de Monteiro Loba-
do madeira local e produtos químicos importados; três anos to, era vendida a 30 cruzeiros (Us$2,50), enquanto a edição
depois, em 1948, tinham até mesmo sua própria indústria americana custava US$5,00,
química. Em 1962, o Brasil produzia dois terços de suas ne-
cessidades de papel de imprensa.
Contudo, a queixa de Lobato com relação aos preços era A EDIÇÃO DE OBRAS DIDÁTICAS E LITERÁRIAS $1r4
inteiramente justificada. Os fabricantes de papel, num folhe-
to que publicaram em 1934, cotavam em 28000 o quilo de Lobato, como vimos ($109), fora forçado pela depressão do
papel nacional, quando o preço do importado, sem imposto pós-guerra a concentrar suas atividades editoriais nos livros
de importação, mesmo depois da desvalorização do mil-réis didáticos, decisão comercialmente saudável numa década
em 1930-1931, era de apenas 1$300 o quilo. Argumenta- que experimentou o surgimento da influência da Escola
vam que isso representava uma diferença de apenas 2% ou Nova. Este grupo de reformadores foi liderado por Louren-
3% no preço de capa de uma edição de dez mil exemplares. ço Filho" (sucessivamente no Ceará, em São Paulo e no novo
Mas deixavam de mencionar que o produto nacional era Ministério da Educação e Saúde), por Anísio Teixeira (na
de qualidade muito inferior e incerta, o que por si só au- Bahia e no Rio de Janeiro, para onde fora em 1932, ao re-
mentava os custos de produção pela simples dificuldade de gressar de cerca de sete anos de estudos na área de educação
trabalhar: por exemplo, a constante necessidade de parar a na Europa e nos Estados Unidos), por Francisco de Campos
impressora para limpá-la, Mais ainda, não se referiam ao e Mário Casassanta (em Minas Gerais), por Fernando de
fato de que uma diferença de 3% poderia representar dois Azevedo (em São Paulo, para onde retornara após a Revo-
terços da margem bruta de lucro do editor. Em 1943, essa lução de 1930) e por Carneiro Leão (em Pernambuco). E
diferença de preço atingira roo%: dois cruzeiros por quilo os esforços desses homens estimularam muitos estados a
do papel importado, contra quatro cruzeiros" por quilo do agir — finalmente — com relação às lamentáveis deficiên-
nacional, e este papel — de custo mais alto e de qualidade cias da educação pública no Brasil. Todavia, Octalles não
mais baixa do que qualquer outro no mundo — representava abandonou de modo algum a literatura. A Editora Nacional
agora 20% do custo industrial de um livro. chegou a contratar alguns autores da Paulo de Azevedo &
Felizmente para a indústria, o alto custo da matéria-prima Cia. (Francisco Alves), quando esta firma se desinteressou
e a tiragem limitada das edições não chegavam a neutralizar pela literatura, no final da década de 1920 ($96). À tiragem
inteiramente a vantagem dos custos baixíssimos da mão de das edições era, muitas vezes, surpreendentemente grande.
obra':, de modo que, no início da década de 1940, ainda era Lobato, escrevendo em fevereiro de 1927, fala de dez mil
exemplares como algo nada excepcional e diz que, para uma
obra de bom potencial de vendas, como Nassau, de Setúbal,
11. À mudança de mil-réis para cruzeiro ocorreu em 1º de novembro a editora frequentemente fazia primeiras edições de vinte mil
de 1942.
12. Situação muito distinta daquela anterior à Primeira Guerra Mun-
exemplares. Um exame detalhado da produção da Editora
dial descrita nos $$26, 57, 81. Claro, foram os salários dos trabalha- Nacional, em 1933, pode dar uma ideia da proporção entre
dores nos EUA e na Europa que subiram no intervalo (relativamente,
em termos do mil-réis, e absolutamente em poder aquisitivo) muito 13. Cf. Lourenço Filho: Outros Aspectos, Mesma Obra, org. Carlos
mais do que quaisquer quedas nas remunerações dos brasileiros. Monarcha, Campinas, Mercado de Letras/Unesp, 1997.
398 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 399

os diversos tipos de livros. Dos 1192000 exemplares pro- para as novas editoras que surgiram, como a José Olympio e
duzidos naquele ano, 467 mil eram de títulos educacionais, a Martins, que se concentravam nessa linha editorial. À pro-
429 500 de livros para crianças — dos quais perto de noventa dução da Civilização voltou a revitalizar-se somente quando
mil de obras de Lobato — e ro7 mil de literatura popular Ênio Silveira assumiu a gerência, em 1991. Contudo, sua
ligeira. O que sobra são 188 500, dos quais 82 100 poderiam política editorial tornou-se crescentemente conflitante com
ser classificados como belles lettres. a de Octalles, que, em 1963, decidiu separar novamente as
Em 1932, Octalles adquiriu a Civilização Brasileira, fun- duas casas. A história da Civilização sob a direção de Ênio é
dada, em 1929, por Getúlio M. Costa, Ribeiro Couto e Gus- assunto do capítulo 18.
tavo Barroso. Passou a ser a filial da Nacional no Rio de
Janeiro e proporcionou à editora um local de venda. Quase
imediatamente, começou a usar o nome da nova editora na O MERCADO PORTUGUÊS $115
edição da maior parte dos livros para adultos; em 1934, O
sinete Nacional foi reservado quase totalmente para a pro- Com o nome da Civilização, Octalles abriu também uma
dução de livros didáticos e literatura infantil, apesar de sua filial em Lisboa, em 1932, com o objetivo de vender seus
instituição recente do prêmio de romance “Machado de As- livros em Portugal. Embora a Livraria Bertrand continuasse
sis”, Contudo, nunca houve uma total divisão de ativida- distribuindo, em Portugal, as edições da Paulo de Azevedo,
des. Por exemplo, a Nacional iniciou, em 1938, uma coleção em virtude da ligação anterior entre a Aillaud e a Francisco
de obras completas de poetas brasileiros, sob a direção de Alves ($94), € haja indícios de que os leitores portugueses
Afrânio Peixoto, começando com Castro Alves, vendida ao tinham acesso a livros brasileiros durante a segunda metade
preço de 4$000. Ressalte-se que a editora continuou a man- do século xIx, como, por exemplo, a familiaridade de Eça
ter uma fatia expressiva e de muito sucesso no mercado de de Queirós com as obras de Machado de Assis, de modo
literatura leve: Coleção Terramarear (aventuras, incluindo geral pode-se dizer que, até então, o comércio de livros entre
os livros da série Tarzan, de Edgar Rice Burroughs), de 1934, Portugal e Brasil consistira quase inteiramente em expor-
Coleção Paratodos e Série Negra (policiais) e Biblioteca das tações portuguesas para o Brasil. Naqueles tempos, muitos
Moças (trinta títulos, traduzidos do francês, de Jeanne Ma- livreiros do Rio e de São Paulo eram portugueses ou france-
rie Henriette Petitjcan de la Rosiêre e Frédéric Henri Joseph ses e mantinham vínculos comerciais diretos com a Europa.
Petitjean de la Rosiere). À Cia. Editora Nacional reeditaria a Imediatamente antes da Primeira Guerra Mundial, muitos
Coleção Terramarcar e a Biblioteca das Moças em setembro autores brasileiros imprimiam seus livros com editores por-
de 1983. tugueses (482). Coelho Neto, o primeiro escritor brasileiro
Diga-se de passagem que Getúlio Costa retornou à ativi- a conseguir real popularidade em Portugal, começou a ser
dade editorial em 1939, sozinho e usando seu próprio nome publicado nesse país em 1903, e, a partir de 1907, cedeu a
na razão social, Lello, da Livraria Chardron, do Porto, direitos exclusivos
Em 1935, a Civilização lançou uma coleção completa sobre suas obras. Lello foi responsável também pela produ-
das obras do estadista Joaquim Nabuco e, em 1936, produ- ção de edições portuguesas de Vicente de Carvalho, Euclides
ziu quarenta e quatro títulos de autores como José de Alen- da Cunha e Paulo Barreto (João do Rio).
car, Balzac, Édison Carneiro, Dostoiévski, Dumas, Górki, Depois de Coelho Neto, nenhum outro escritor brasilei-
Victor Hugo, Maurois, Edgar Wallace e Zola, num total ro provocou um real impacto junto ao público português
de cerca de trezentos mil exemplares, que vieram somar-se até por volta de 1930, com o aparecimento de José Amé-
ao 1,7 milhão da Nacional. O ano de 1937 viu cinquenta rico de Almeida, José Lins do Rego e outros romancistas
e sete títulos da Civilização, no total de 329 mil exempla- do Nordeste. A literatura portuguesa atravessava, nessa
res, acrescentados aos dois milhões de exemplares da Na- época, uma fase pouco fecunda. Todos os grandes escrito-
cional. Depois disso, sobreveio um declínio: Octalles parece res do passado recente (Eça de Queirós, Herculano, Rama-
ter abandonado um pouco o mercado literário, deixando-o lho Ortigão) haviam morrido; a maioria dos modernos — já
400 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 401

sentindo, talvez, o efeito insensibilizador da vida sob Sala- capas berrantes, que dão uma nota de vida e de cor, junto à tristeza
zar? — “estavam narcisisticamente preocupados com o estilo das edições portuguesas, todas elas de aspecto pobre, envergonha-
sem substância”'s. No entanto, o que mais atraía os leitores do, como se tivessem vergonha de aparecer ao público... O fato
portugueses no romance nordestino era, sem dúvida, sua está causando certo mal-estar nos editores nacionais. Ninguém ig-
ambientação exótica, na qual, além do mais, já haviam sido nora que mercê do câmbio o Brasil pode apresentar-nos livros [...]
introduzidos pelos romances de Ferreira de Castro. Pode ser por um preço que em Portugal não pode ser igualado [...] O Brasil
que as expressões regionais lhes tenham causado alguma di- invadiu o mercado português de livros, traduzidos de todas as lín-
ficuldade de linguagem, mas dificilmente foram maiores do guas, em edições suas [...], e o resultado foi que todos adquirem
que as enfrentadas pelos leitores de outras regiões do Bra- essas obras, que à parte a questão da ortografia, é o mesmo que
sil, Isso não impediu, porém, que os editores portugueses de ler no seu próprio idioma. Se por um lado o comerciante de livros
obras brasileiras continuassem com seu hábito de substituir está satisfeito com o fato, por outro o editor [...] está alarmado. O
brasileirismos: vocabulário, ortografia ou gramática ($82). público, ao ver um livro na montra, fixa os olhos nas capas das edi-
À reação expressa, vigorosamente, por Rachel de Queiroz a ções brasileiras. O preço também convida a comprar € as capas têm
uma abordagem de seu editor português nesse sentido, em grande influência no seu espírito. Os editores portugueses estão,
junho de 1955, foi incluída em suas obras completas. À es- pois, numa situação que os apavora. Para vencer vão tratando de
critora insiste na afirmação de que não há nenhum problema apresentar novas edições a preços reduzidos. Vencerão a batalha?
real de compreensão, mas apenas de um mal orientado orgu- É de supor que sim!'$
lho nacional. “Afinal, o Brasil não é um filho bastardo de
Portugal. É seu filho legítimo e, mais que isso, é o seu morga- E evidentemente venceram, pois o mercado para os livros
do — com todos os direitos e privilégios que estão inerentes brasileiros decaiu apesar de o câmbio ter continuado favo-
à primogenitura”'s, rável por mais alguns anos. O Portugal de Salazar não era
O êxito do livro brasileiro no mercado português no iní- um grande consumidor de livros, mesmo baratos, e, quan-
cio da década de 1930 deveu-se menos à evolução do gosto do os editores de Lisboa começaram a responder ao desafio
literário do que à queda na taxa de câmbio do mil-réis. Entre mediante o corte dos preços, parece ter Octalles chegado à
maio de 1930 e outubro de 1931, seu valor em escudos caiu conclusão de que o resultado comercial não justificava o es-
de 2$40 para r$s0; agora os livros brasileiros deixavam de forço. Vendeu a filial de Lisboa a seu gerente português, que,
ser caros em Portugal e podiam facilmente concorrer com o em 1944, revendeu-a a um patrício, Antônio À. de Souza
produto local. Parece ter sido Octalles o primeiro editor bra- Pinto, que trocou o nome Civilização Brasileira para Livros
sileiro a avaliar com perícia a nova situação. No outono (eu- do Brasil, nome paralelo ao de Livros de Portugal, firma que
ropeu) de 71932, seus livros inundavam o mercado português havia aberto no Rio de Janeiro"”.
a tal ponto que, em outubro de 1933, relatava a United Press: De fato, as exportações mantiveram-se em seu novo ní-
vel até a deflagração da Segunda Guerra Mundial, atingindo
O Brasil pode gabar-se de ter conquistado o mercado português e, um pico em 1938, quando chegaram a 47,7%, em peso, das
mais ainda, de ter conquistado o leitor português. Nunca, como exportações de livros de Portugal para o Brasil (cf. tabela 9).
agora, aquele país sul-americano remeteu tanto milhar de livros No entanto, mesmo assim, um observador contemporâneo,
para esta nação. Percorre-se Lisboa e em todas as montras das li- Mário Borges da Fonseca, ainda pôde comparar a procura
vrarias, das tabacarias e até nos pequenos “guichets” dos cafés, nós
encontramos os livros de edições brasileiras, todos eles com suas
16. Livros e Autores, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, n. 3, de-
zembro de 1933.
14. José Campos de Figueiredo, O Necessário Encontro, Lisboa, Pa- 17. Herbert R. Lottman, “Publishing in Portugal”, Publishers Weekly,
norama, 1965, p. 220, vol. 213,0. 19, pp. 29-35, 8 maio 1978. Este artigo descreve a situa-
15. Rachel de Queiroz, “Carta de um Editor Português”, em Seleta, ção da indústria do livro em Portugal em 1978, com ênfase nas mu-
Rio de Janeiro, José Olympio, 1973, pp. 56-59. danças decorrentes da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974.
402 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 403
de livros brasileiros em Portugal, ou livros portugueses no maior do que qualquer outra, em português, em qualquer
Brasil, à procura de uma agulha no palheiro, concluindo, outro lugar. Disso resulta que o Brasil, ao longo dos anos,
melancolicamente, que todos os esforços para procurar unir aos poucos reconstruiu seu mercado em Portugal, embora o
as duas nações continuavam sendo “meros gestos de inútil que poderia vender nesse mercado tenha sido, durante muito
cortesia através de um vasto abismo”'S, Foi por isso, talvez, tempo, limitado pela rígida censura salazarista. Mas o cres-
que o acordo cultural de 1941, entre o Estado Novo de Ge- cimento foi tão satisfatório que, em 1973 (ou seja, mesmo
túlio Vargas e o Estado Novo de Salazar, incluiu o interesse antes da Revolução de 25 de Abril), a situação do intercâm-
dos governos no comércio livreiro entre os dois países. Uma bio comercial de livros entre os dois países estava se aproxi-
seção portuguesa, então recém-criada no Departamento de mando da paridade: cerca de 217 toneladas de exportação
Imprensa e Propaganda (Dir), promoveu a edição portugue- para Portugal e 279 toneladas de importação pelo Brasil.
sa de cerca de vinte e cinco dos principais autores brasileiros, Dada, porém, a enorme diferença de tamanho entre os dois
entre os quais Gilberto Freyre, Cecília Meireles, Graciliano países, isso significa, é claro, uma paridade apenas aparente.
Ramos e José Lins do Rego. Embora o objetivo dessa prática
fosse demonstrar a unidade ideológica luso-brasileira diante
de um mundo despedaçado pela guerra, algumas das ofertas O MERCADO AFRICANO $rr6
(entre as quais toda a obra de José Lins) foram demais para
a cautelosa censura portuguesa. O DIP estimulou também a O ano seguinte (1974) testemunhou um fato que, potencial-
exportação direta de livros brasileiros, e esta reconquistou mente, é de grande importância para o comércio livreiro do
rapidamente o nível anterior à guerra. Brasil: a conquista da independência pelas antigas colônias
Mas isso não durou muito. A não desvalorização do cru- portuguesas na África: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e
zeiro depois da guerra ($163) fez com que, por uma déca- Cabo Verde, o que abriu esses países para a exportação bra-
da, o preço dos livros brasileiros ficasse totalmente fora das sileira de livros"”. No entanto, a maioria dos colonos brancos
possibilidades do mercado português. Havia autores bra- (muitos deles ávidos leitores)*º regressou a Portugal, depois
sileiros — sobretudo Érico Veríssimo e Jorge Amado — que da independência, reduzindo significativamente o mercado li-
continuavam a vender bem, mas apenas porque agora, em vreiro desses países. Além disso, outros fatores influíram para
vez de importar as edições brasileiras, a Livros do Brasil os essa redução, quais sejam: a grande pobreza dos novos Esta-
reimprimia em Lisboa. Como isso não é nem exportação, dos, as baixíssimas taxas de alfabetização e — de importância
nem tradução, essa forma de influência cultural e de entrada mais imediata — a terrível carência de divisas estrangeiras. Um
de divisas estrangeiras normalmente é ignorada nas estatís- exemplo pertinente seria Long Walk to Freedom, a autobio-
ticas do comércio de livros. grafia do presidente sul-africano Nelson Mandela, apresen-
Ao pesquisar para a primeira edição deste livro, nos anos
de 1980, concluí que os livros importados do Brasil ainda 19. Outra colônia que ganhou a sua independência nessa mesma épo-
custavam para o comprador lisboeta duas vezes mais que ca foi a do Timor, mas sofreu quase imediatamente o terrível desti-
as edições produzidas localmente. Agora, porém, a alta do no de ser invadido por uma Indonésia agressora e genocida, com o
euro em relação ao dólar e ao real, possivelmente, reduziu projeto de eliminar toda a população cristã e, com ela, sua cultura €
de forma significativa tal diferença e, além disso, as impor- língua portuguesas. Quando uma força expedicionária australiana
tações são produtos de uma indústria editorial enormemen- finalmente expulsou o invasor, apenas os guerrilheiros na selva ain-
te desenvolvida, que oferece uma variedade de itens muito da falavam português. Na nova constituição implantada, embora os
idiomas oficiais sejam o português e o tetum indígena, permitem-se
“idiomas de trabalho”, e é notório que qualquer indústria implanta-
18, Mário Borges da Fonseca, “Aproximação Cultural Luso-brasilei- da com investimentos do além-mar, australianos ou norte-americanos
ra”, Boletim de Ariel, vol. 8,n. 1,p. 15,0ut. 1938. No entanto, talvez obriga o uso do inglês.
devamos fazer uma distinção entre a procura de livros traduzidos zo. Grande número desses brancos optaram por emigrar, não para a
importados do Brasil c a procura de livros de autores brasileiros. pátria-mãe, mas para o Brasil.
404 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 405

tado por Richard Stengel (Nova York, Little Brown, 1994), objetivo declarado era o de evitar impropriedades e inexati-
presumivelmente de grande interesse para os leitores do Mo- dões factuais: a Comissão era constituída de proeminentes
çambique, como país vizinho, e, especialmente por causa da membros do magistério, muitos dos quais pertencentes ao
ligação romântica de Mandela com a viúva de Maciel. Não corpo docente do Colégio Pedro 1 do Rio de Janeiro, en-
obstante, a tradução de Ana Saldanha de Brito, Longo Cami- tão paradigma do ensino secundário, Quase tão importante
nho para a Liberdade (Porto, Campo de Letras, 1995) ven- foi a preocupação do governo com a unidade nacional, cuja
deu, em Moçambique, apenas cinquenta exemplares no ano consolidação fora uma das principais forças motivadoras da
seguinte à sua publicação! No entanto, não podemos senão Revolução de 1930, é que parecera ameaçada com a Re-
adivinhar quantos de seus leitores potenciais dominam o in- volução Constitucionalista de 1932. O Estado Novo estava
glês o suficiente para comprar a edição original. particularmente desejoso de tornar obrigatória a língua por-
Mesmo assim, as editoras brasileiras já têm demonstrado tuguesa no ensino primário, em todo o país, como um meio
algum interesse ao menos pelo mercado angolano — o único, de abortar o separatismo linguístico em algumas comunida-
até o momento, com um público leitor de alguma dimensão des de imigrantes europeus no Sul do Brasil, um separatismo
em língua portuguesa. A Editora Ática, de São Paulo, tem-se que, no caso de alguns grupos de língua alemã, vinha sen-
mostrado particularmente ativa nesse aspecto, é começou a do ativamente estimulado e explorado pelo Terceiro Reich
publicar ficção de autores africanos de língua portuguesa. de Adolf Hitler.
Ainda assim, porém, as vendas totais aos países africanos Dificuldades de outra natureza eram criadas pela inter-
têm sido extremamente pequenas. O quanto são difíceis as minável vacilação do governo com relação à reforma or-
condições podemos ver pelo convênio estabelecido entre a tográfica, À ortografia etimológica (principalmente as con-
Codecri e o governo de Moçambique. Na remessa da pri- soantes duplas e a inserção de um perdido c ou p antes de s
meira encomenda de duzentos volumes do governo moçam- ou t em étimos latinos, e do y no lugar de f, e a manutenção
bicano, no valor total de Cr$24 mil, chegaram a Cr$32,5 dos dígrafos ph, th, ch e rh em étimos gregos) constituía um
mil os custos do transporte marítimo mais barato, que levou desenvolvimento recente em português. Tornara-se usual
três meses na viagem (segundo Jaime Bernardes, da Nórdica, apenas a partir do século xvrrr. Não era consistente e nunca
citado pelo jornal O Globo, de 30 de novembro de 1981)! se tornou universal. À ortografia simplificada continuou a
Das antigas colônias portuguesas da Ásia, Goa foi ocupa- ser usada, intermitentemente (também por impressores in-
da pela Índia em 1955, anexada em 1961, e o uso do portu- dividuais), durante todo o século x1x, mas tal uso recebeu
guês foi substituído, efetivamente, pelo hindu e pelo inglês; aprovação oficial, apenas em agosto de 1897, e como uma
a tragédia do Timor Leste acabou igualmente com o uso do alternativa à ortografia etimológica aprovada. Em Portugal,
português no país; e Macau brevemente voltará à China. com a revolução de r9ro, o governo deu apoio à simplifi-
cação, e duas décadas se seguiram durante as quais a práti-
ca brasileira atrasou-se com relação à da pátria-mãe. Logo
$117 A NOVA ORTOGRAFIA após a revolução brasileira de 1930, desenvolveu-se um mo-
vimento no sentido de exigir a reforma, O decreto n. 20 108,
Simultaneamente à sua frustrada aventura em Portugal, de 15 de junho de 193 1, tornou obrigatório um novo acordo
Octalles consolidou a posição de sua empresa no Brasil, ortográfico entre a Academia Brasileira de Letras e a Acade-
onde rapidamente deslocou a Paulo de Azevedo & Cia. da mia de Ciências de Lisboa.
pretensão de ser a maior editora de livros didáticos no país. Esse acordo de 1931 estabeleceu as linhas principais de
Este não era, de modo algum, um mercado fácil na época. toda a moderna ortografia do português: parece extravagan-
O governo de Vargas estava cada vez mais preocupado em te, hoje em dia, apenas por preferir o final z em vez de s após
controlar o conteúdo dos livros escolares. Após a implan- uma vogal tônica (Queiroz em lugar de Queirós, paiz em vez
tação do Estado Novo, foi criada para esse fim, em dezem- de país, e Pariz para indicar a capital da França). Por infelici-
bro de 1938, a Comissão Nacional do Livro Didático. Seu dade, foi então decidido manter, para a nova Constituição, a
406 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 407

mesma ortografia utilizada na de 1891. Esse ato retrógrado cujas decisões foram adotadas pela Academia de Letras e
despertou tal oposição que a adoção de sua ortografia tradi- aceitas no uso geral, sem qualquer ação formal, legal ou ad-
cional foi declarada opcional, e a mensagem do presidente ministrativa — evitando, assim, sua aplicação sistemática aos
Vargas ao Congresso, no ano seguinte (1935), foi impressa nomes próprios. Fora o apego sentimental dos brasileiros
na ortografia simplificada. À falta de qualquer determinação ao h em Babia — que lembra a intolerância dos mexicanos a
mais enérgica do Governo Federal (o decreto modernizador Méjico*' — as únicas diferenças remanescentes entre os dois
n. 293, de 23 de fevereiro de 1938, não chegou a ser aplica- países eram (pelo menos até o Novo Acordo Ortográfico
do), o uso era determinado isoladamente pelas autoridades que entrou em vigor em 2009) a manutenção, em Portugal,
educacionais de cada estado. Mais uma ambiguidade, assim, de alguns c mudos, para indicar a qualidade da vogal (tec-
somou-se aos riscos da indústria editorial; todos os compên- tolteto) e algumas diferenças desprezíveis no uso de acentos
dios escolares deviam ser impressos nas duas versões. Então, (que, em parte, refletem diferenças na pronúncia). Não obs-
a posterior reintrodução da uniformidade nacional, com o tante, para alguém (como o presente autor) que esteja ten-
acordo ortográfico luso-brasileiro de 1940, resultou na re- tando corrigir um texto no português do Brasil por meio de
dução a pasta de papel de todos os exemplares impressos na um corretor ortográfico adequado ao português europeu, as
ortografia tradicional, agora definitivamente rejeitada. poucas dessemelhanças que sobram bastam para enfurecê-lo.
Nessa época, a ortografia portuguesa era tão racional No entanto, ainda havia aqueles, como Lobato ($xrr1),
quanto o permitem as diferenças dialetais em qualquer lín- que se opunham ao excesso de sinais diacríticos, cuja fre-
gua falada extensamente. Poder-se-ia discutir sobre a or- quência fora de fato aumentada com a reforma ortográfica.
tografia das vogais átonas, ou sobre a manutenção de di- A campanha para reduzi-los tornou-se intensa por volta de
tongos históricos que já não são pronunciados como tais 1967 e culminou num acordo entre as academias brasileira
pela maioria dos falantes. O h inicial é o epitáfio do túmulo e portuguesa para limitar o uso do trema, restringir o uso do
de um som que abandonou quase todas as falas latinas há acento grave à indicação das contrações da preposição a com
quase dois mil anos; ch e x vêm sendo pronunciados identi- demonstrativos subsequentes, € eliminar o uso do acento cir-
camente desde o século xvrrr, e o próprio x é usado engano- cunflexo para indicar uma vogal fechada em palavras homó-
samente em várias palavras por razões puramente etimoló- grafos, exceto em pode!póde, simplificando assim a impressão
gicas. À etimologia ainda decide a escolha entre s e z e entre às custas da conveniência do leitor. À aprovação do governo
ss e g. Tanto o s como o z são mantidos em posições em foi dada pela lei n. s 765, de 18 de dezembro de 1971, mas
que a maioria dos falantes os palatalizam num som idên- dessa vez concedeu-se a gráficas e editoras um prazo de qua-
tico ao do x ou j. Finalmente, a indicação da nasalização tro anos para adaptação às novas regras. Haveria outro acor-
das vogais, ainda que mais coerente, é desnecessariamente do luso-brasileiro de unificação ortográfica em 1990, para
complicada, entrar em vigor a partir de 1º de janeiro de 1994. Tudo bem,
Embora menores, haveria ainda mais quatro reformas mas o autor deste livro acha que, no mundo real, a decisão
ortográficas. Fizeram-se algumas pequenas alterações quan- não cabe aos governos nem às academias, mas às empresas
do a Academia Brasileira de Letras adotou o Vocabulário (norte-americanas) fabricantes dos nossos computadores. Por
Ortográfico da Língua Portuguesa, as quais foram incorpo- ter comprado um corretor ortográfico para a preparação do
radas numa nova Convenção Ortográfica entre os gover- texto que você, caro leitor, está lendo é que fiquei sabendo
nos do Brasil e de Portugal, assinada em 29 de dezembro de que a Microsoft vende versões distintas para o português de
1943. Houve um certo desapontamento com a divergência Portugal e para o do Brasil, ambos seguindo os padrões tra-
entre o uso brasileiro e o português, permitida por esse acor- dicionais de cada país. Tal é o poder do capitalismo global:
do: Salazar ficou particularmente desgostoso com o fato e citando Gramsci, “quem domina a língua domina o poder”.
determinou a seu embaixador no Rio de Janeiro que tentas-
se conseguir uma revisão no sentido de maior uniformida- 21. Um decreto de 1723 determinou a substituição geral da letra x
de. Disso resultou nova conferência luso-brasileira em 1945, pela letra j, que no castelhano moderno são foneticamente idênticas.
408 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 409

$118 A REFORMA CAPANEMA as novas edições de todos os livros didáticos para o ní-
vel secundário. Para a Companhia Editora Nacional, isso
O período da Segunda Guerra Mundial gerou para as edito- significava a revisão drástica e imediata de não menos de
ras outros problemas além da reforma ortográfica: não bas- quarenta títulos.
tasse a escassez de todas as matérias-primas, da qual teremos
ocasião de tratar mais adiante em detalhe ($153), as editoras
de livros didáticos foram atingidas pelas consequências de A EDITORA DO BRASIL E A BRASILIENSE $119
uma drástica reforma do ensino secundário.
O grande êxito de Francisco Alves coincidira com a No ano seguinte (1943), um duplo cisma traumatizou a
expansão do ensino primário brasileiro após 1888: seus Editora Nacional. O primeiro deu-se com o abandono da
herdeiros continuaram a especializar-se em livros didáticos empresa por seis professores responsáveis pela execução do
para a escola primária. O crescimento inicial da Compa- programa de livros didáticos, que decidiram estabelecer seu
nhia Editora Nacional foi paralelo a um desenvolvimento próprio negócio, a Editora do Brasil, que logo se tornou,
significativo do ensino secundário, e Octalles orientou para c ainda é, importante editora de livros didáticos e infantis.
esse nível do ensino o trabalho editorial didático de sua Mais séria ainda foi a saída, nesse mesmo ano, do principal
empresa. Um número muito pequeno de crianças frequen- auxiliar de Octalles, Arthur Neves (1916-1971). Seduzido
tava a escola secundária: não mais de 83000 em 1930. Mas pelo êxito da W. M. Jackson Company na venda direta de
cada criança precisava de um número maior de livros, € coleções de livros em prestações, Arthur Neves tentara per-
mais caros. Além disso, o aluno da escola secundária difi- suadir Octalles a imitá-la, À Jackson, empresa de Nova York
cilmente ficava sem livros por causa da pobreza dos pais: com amplos interesses latino-americanos, fora pioneira nes-
em 1930, apenas dez mil das 83 mil mencionadas acima sa linha de comércio livreiro no Brasil desde 1911. Em r914-
não frequentavam escolas particulares, nas quais seus pais 1921, à Jackson havia produzido a primeira enciclopédia
deviam pagar anuidades. brasileira, a excelente Enciclopédia e Dicionário Internacio-
As consequências sociais da Revolução de 1930 ($132) nal, em vinte volumes, “organizada e redigida com a colabo-
aceleraram a expansão do ensino secundário, que o Minis- ração de distintos homens de ciência e de letras brasileiros e
tério da Educação e Saúde, então recém-constituído, co- portugueses” (teve uma segunda edição em 1936). Em 1937,
meçava a modernizar (pela Reforma Campos, de 1931), adquiriu os direitos autorais do maior nome da literatura
principalmente atribuindo maior importância às ciências brasileira, Machado de Assis ($$86, 147), e reeditou suas
puras no currículo. Em 1940, o número de crianças na es- obras completas sob a forma de coleção. Estranhamente, a
cola secundária havia duplicado (para 170 mil) e, ao final Jackson não parece ter sofrido qualquer concorrência até o
da Segunda Guerra Mundial, já chegava a um quarto de final da década de 1930. Um de seus primeiros concorrentes
milhão. Uma aceleração tão rápida da taxa de crescimen- foi a LER Editores, de São Paulo, que, em 1939, anunciava
to apresentava inquietantes implicações sociais; o receio edições completas de José de Alencar e do crítico Humberto
dessas consequências talvez tenha suscitado uma reação de Campos, em vinte e dois pagamentos de 208000 por cole-
conservadora. Em abril de 1942, 0 novo ministro da Edu- ção. À José Olympio (que deve ter vendido à LER os direitos
cação, Gustavo Capanema, produziu uma completa revi- de publicação de Campos) entrou nesse mercado em r9so
ravolta no ensino secundário, que perduraria até 1961: à ($147), e, a partir daí, esse segmento cresceu em popula-
reforma que leva seu nome. Como tantas coisas que, ao ridade, especialmente no início dos anos de 1970, quando
tempo do Estado Novo, foram moldadas na Itália de Mus- responderia por cerca de 90% de todas as vendas de livros
solini, ela seguia de perto a Reforma Gentile introduzida fora da área dos didáticos ($164).
naquele país, vinte anos antes, enfatizando as disciplinas Octalles não se deixou convencer. Como declarou em
tradicionais e uma abordagem elitista. Às editoras, foi con- entrevista no fim da vida, apenas o livro vendido no balcão
cedido um prazo de apenas quatro meses para adequarem da livraria apresentava algum benefício cultural; “O livro
410 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 4u

que o vendedor vende de casa em casa, à prestação, é um |...] Nacional”*s, sem especificar qual teria sido esse trata-
livro impingido. A pessoa só o compra para se livrar do mento. Lobato morreu em 1948, tendo seu funeral provo-
vendedor. Quando muito, porque o livro é bonito e fica bem cado enorme manifestação de afeto por parte do público.
na estante da sala”**, Na multidão triste e silenciosa, diz Travassos, Octalles era
Diante dessa recusa, Neves decidiu começar por conta o único a destacar-se, agitado e falador, procurando, como
própria. Foi fácil persuadir Nelson Palma Travassos, da Em- sempre, ocultar sua profunda emoção.
presa Gráfica da Revista de Tribunais, a fornecer-lhe o capi- Neves tinha pontos de vista políticos fortemente progres-
tal inicial sob a forma de crédito para impressão. Travassos sistas — era militante do Partido Comunista Brasileiro — que
era um entusiasta do tipo de mercado que Neves tinha em devem ter sido responsáveis, em parte, pelo pronto apoio
mente, tendo-o, ele mesmo, desenvolvido para os números que recebeu de Travassos. Lobato, também, era bastante ra-
atrasados da Revista ($112). Em suas memórias”, Travas- dical: até mesmo seus livros infantis haviam sido atacados
sos menciona que, nessa época, advogou a introdução, com por doutrinar os leitores com um positivismo ateu. De faro,
sucesso, do plano de vendas em prestações para resolver Neves, Lobato e Caio Prado Júnior, economista marxista
os problemas financeiros de “uma das maiores editoras do e amigo íntimo de Lobato, já nesse mesmo ano de 1943,
país”. O mais surpreendente, talvez, é que Neves conseguiu tinham acabado de criar uma pequena revista, Hoje: O
que o próprio Monteiro Lobato adotasse a ideia. As obras de Mundo em Letra de Forma, para divulgar clandestinamen-
Lobato, reimpressas em duas coleções, para adultos e para te material do PCB contra a ditadura”, e essa associação é
crianças, seriam (pensava Neves) um começo ideal para a que formaria a base da nova companhia, com a adição de
nova firma, e Lobato sentiu-se atraído pela oportunidade um quarto membro da diretoria, Maria José Dupré, bem-su-
de ter toda a sua aeuvre editada em coleção, como obras cedida escritora para crianças sob o nome de sra. Leandro
completas. Na verdade, esse projeto veio a tornar-se, nas pa- Dupré. Sua obra mais conhecida, Éramos Seis, foi publicada
lavras de Octalles, “o espírito da Brasiliense” (o nome da nesse ano de 1943; atingiu oito edições em dez anos e conti-
nova empresa). É extremamente expressivo da grande ami- nua popular.À Brasiliense também implantou sua própria li-
zade existente entre os dois antigos sócios o fato de Octalles vraria (Livraria Brasiliense) e sua empresa gráfica, a Urupês.
não ter levantado qualquer objeção a essa edição, embora A livraria permaneceu, até pouco tempo, no mesmo prédio
os direitos dos livros de Lobato pertencessem legalmente à da rua Barão de Itapetinga, nº93, mas a gráfica foi fechada
Nacional, que os adquirira, entre outros bens, da Compa- em 1968, ano da segunda prisão de Caio Prado Júnior.
nhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato após sua falência em A Brasiliense foi a primeira editora a publicar uma edição
1925. Por seu lado, Lobato manteve suas ligações com a completa do até então desprezado Lima Barreto — atraída, tal-
Editora Nacional até quase sua morte, segundo Octalles:s, vez, pela implicação social da sua obra — mas não deu outras
embora Paulo Nogueira afirme que ele rompeu todos os la- demonstrações de grande interesse pela publicação de roman-
ços, em 1945, “desgostoso com o tratamento recebido da ces. Suas coleções de contos, por outro lado, são dignas de
nota. Há trinta anos, a revista Visão (7 de outubro de 1974, p.
22. Gabriel Romeiro, op. cit. 95) referia-se às suas coleções Jovens de Todo o Mundo (inau-
23. Nelson Palma Travassos, op. cit., p. 60. gurada em 1960) e Contos Jovens como “talvez o único oásis,
24. Em conversa com Octalles, em 1971, mas pode-se encontrar a
no momento, para os jovens ficcionistas brasileiros”. Entre
mesma frase na breve história da casa, Danda Prado et al., so Anos:
Brasiliense (1943-1993), São Paulo, Brasiliense, 1993, que explica a
escolha do nome como “a tentativa de arrancar das mãos do Esta- 26. Paulo Nogueira, “Cultura como Sorvete”, Veja,n.782,pp. 108-t10,
do autoritário o epíteto do ideal de uma nação, transferindo-o para 31ago. 1983.
as forças de oposição que exigiam a democratização e a mudança” 27. Paulo Teixeira lumatti, “Dias Sombrios”, em Danda Prado et al.,
(p. 3). À nova editora recusou-se até mesmo a adotar a ortografia 1943-1993: No Aniversário da Brasiliense Convidamos Você a Dar
reformada por considerá-la símbolo da ditadura de Getúlio Vargas. um Passeio pelos so Anos que Contam a Nossa História, São Paulo,
25. Na mesma conversa com Octalles, em 1971. Brasiliense, 1993.
412 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 413
outras séries, encontram-se Teatro Universal, Uma Nova Mu- lista de 1932 (quatro meses de trabalho perdidos). Compa-
lher e Sexo e Educação. re-se sua produção, mostrada na tabela 12, com a produção
À empresa não se limitou à publicação de coleções com- total de livros na cidade — tabela 8, p. 846- de apenas 117 ti-
pletas (embora, infelizmente, vários dos livros de Lobato tulos (e 418 800 exemplares) em 1931, 177 títulos (789 soo
para crianças só possam ser obtidos mediante a compra de exemplares) em 1932 € 210 títulos em 1933. Em 1938, Oc-
todo o conjunto). Ao contrário, é considerada uma editora talles afirmava que sua empresa respondia por cerca de um
eclética, não obstante dê forte ênfase a obras sobre admi- terço de toda a produção do país (na época, em torno de
nistração de empresas e ciências sociais, particularmente dez milhões de exemplares por ano). À esse respeito, são
interpretações esquerdistas dos problemas do Brasil, por au- interessantes os títulos relacionados na bibliografia quinze-
tores como Josué de Castro, Manuel Correia de Andrade e nal Euclides, de Simões dos Reis. O total para os primeiros
o próprio Caio Prado Júnior, o sucessor de Neves na chefia seis meses de 1940 mostra a Nacional na liderança entre as
da editora, quando este saiu, em 1962, para implantar a Edi- editoras comerciais, com 79 títulos novos (entre os 622 de
tora Universidade de Brasília ($187). Caio, por sua vez, foi todo o Brasil), seguida pela Melhoramentos com 36, José
substituído, em 1975, por seu filho Caio Graco Prado, que Olympio com 32, Globo, de Porto Alegre, com 31, Pongetti
conseguiu reanimar a empresa ao atrair, na atmosfera mais com 22, Briguiet e Empresa Editora Brasileira com 17 cada,
livre dos fins da ditadura militar, a geração jovem, ávida de Francisco Alves e Freitas Bastos com 14, Saraiva com 13,
informação depois de toda a restrição imposta pela censura. Vecchi com 12, Civilização Brasileira — na época ainda sub-
Uma expressão dessa nova atitude foi a coleção Primeiros sidiária da Nacional - com nove, Martins com oito, Guaíra,
Passos ($196), iniciada em 1980 e formada por livros de de Curitiba, e Jacinto com seis cada uma, A, Coelho Branco
pequeno formato e baixo preço e que constituem introdu- Filho e Zélio Valverde com cinco cada, Antunes com dois,
ções básicas a assuntos gerais de interesse de espíritos inda- e Quaresma com apenas um. Havia, também, três títulos
gadores — cultura, economia, política, sociedade: O que é o novos de editoras do estado** do Rio de Janeiro, quatro de
Comunismo?, O que é o Capitalismo?, O que é Cinema?, editoras de Minas Gerais, oito do Paraná (além da Guaíra),
«» Teatro, ...Arquitetura, ...Sindicalismo — inclusive O que é três de Pernambuco, dois de Sergipe, c um de cada um de
Editora? — lembrando muito os Cadernos do Povo Brasileiro outros seis estados.
($169) que Ênio Silveira vinha publicando pela Civilização A saída de Arthur Neves e dos outros funcionários que
Brasileira imediatamente antes da “revolução” de 1964. constituíram a Editora do Brasil, e a perda dos direitos
A referência a Ênio Silveira é oportuna, aqui, uma vez que de edição de Lobato, apesar de sua gravidade, não foi de
deveu seu ingresso na atividade editorial à saída de Arthur modo algum um golpe traumatizante: o crescimento da em-
Neves da Editora Nacional. Munido de uma apresentação presa continuou até meados da década de r950, quando
de Monteiro Lobato, o jovem fora procurar emprego na Re- sua produção atingiu o pico entre cinco e sete milhões de
vista dos Tribunais. Causou boa impressão a Travassos, mas, exemplares por ano. Em 1954, produziu 368 edições num
como não dispusesse de cargo adequado para oferecer-lhe, total de 5 141 500 exemplares; em 1955, 349 edições, com
sugeriu a Octalles que o aproveitasse como possível subs- 6 002 500 exemplares impressos. Então, ainda ocupava,
tituto de Neves. com folga, o primeiro lugar entre as editoras brasileiras; po-
demos comparar sua produção no último desses anos com
as das outras editoras: a Melhoramentos —- 203, a Francisco
$120 O DESENVOLVIMENTO NO PÓS-GUERRA Alves - 137,a Editora do Brasil - 100, a José Olympio — 83,
a Saraiva - 69,a Progresso (Salvador) — 66, a Pongetti — 57,
Já no início dos anos de 1930, a Companhia Editora Na- a Vozes (a fundação franciscana de Petrópolis) - so, a Glo-
cional tornara-se a maior editora de livros de São Paulo,
sobrevivendo às vicissitudes da Revolução de 1930 (dois 28. Antes da abolição do estado da Guanabara, em 1975, 0 estado do
meses de trabalho perdidos) e da Revolução Constituciona- Rio não incluía a cidade do Rio de Janeiro.
414 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 415
bo — 49, a Martins — 47 e, a seguir, a Conquista — 42, a Vec- universitário, a tal ponto que, em 1966, Octalles Marcondes
chi-4r,a Agir e Organização Simões dos Reis - ambas com foi procurado, pessoalmente, por Curtis Benjamin, presidente
36,a Aurora — 33,a Freitas Bastos — 32, a Mérito — 28, a da McGraw-Hill, a fim de entabular algum tipo de negociação
Brasil-América — 27, a Difel — 26, a subsidiária da Nacional, entre as duas editoras. Foram abertas diversas possibilidades:
Civilização Brasileira — 24,a Científica - 22,a Forense — 21, aquisição da editora brasileira pela empresa norte-americana;
a Borsoi e Paulinas - ambas 20, “O Cruzeiro”, Noite e Eda- a compra de parte de suas ações pela McGraw-Hill - em di-
meris — 19 cada, Vitória — 18, “Jornal do Commercio” — 17, nheiro ou em troca de ações da McGraw-Hill; ou ainda asso-
São José — 16, Konfino — 14, Coelho Branco e Lux - ambas ciação entre as duas empresas para a criação de uma tercei-
com 12, Briguiet e Revista dos Tribunais — 11 cada, Atlas e ra, que se encarregaria não só da distribuição, no Brasil, das
Olímpica — 10 cada, Flamboyant e Sociedade Brasileira de edições da editora americana, como do desenvolvimento de
Autores Teatrais — 9 cada, Brasiliense — apenas 8 (mas este um programa editorial próprio. Todavia, Octalles não estava
foi um ano atípico; em 1954 publicara 20 edições), Casa do de modo nenhum interessado em comprometer sua indepen-
Estudante do Brasil, Lake e LEP — cada uma também com dência. Diante da negativa, a McGraw-Hill estabeleceu-se
oito, Brasileira de Artes Gráficas, Di Giorgio, Haddad e Su- sozinha no país, em 1971, na cidade de São Paulo, com uma
lina, de Porto Alegre — sete cada uma; Acadêmica, Anhembi, subsidiária, a McGraw-Hill do Brasil Ltda.
Antunes, Max Limonad, Salesiana e Tupy — sete cada uma e Não havia, de fato, verdadeira educação universitária
Americana, Batista de Souza, Brand, Casa Mattos, Cupolo, no Brasil até meados da década de 1930. Antes da Primeira
Ipanema, “Jornal do Brasil”, Gráfica Laemmert, Livros de Guerra Mundial, a educação superior era muito acanhada
Portugal, Lumen Christi, Mundo Latino, Quaresma e União em seus objetivos ($97) e extremamente limitada em nú-
Cultural - cada uma com cinco títulos. Outras editoras de meros (cf. tabela 7, p.844). Em 1920, por ocasião da visita
São Paulo foram responsáveis por mais 182 títulos, outras oficial ao Brasil do rei Alberto 1, da Bélgica, e desejando o
do Rio por 149, além dos 137 títulos de editoras comerciais governo conferir ao monarca o título de doutor honoris cau-
espalhadas pelo país, e 243 publicações oficiais, totalizan- sa, uma determinação administrativa apressou-se em reunir
do, para o Brasil, 2 696 títulos (novas edições e reimpres- a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (que tinha sido
sões) para aquele ano. iniciada, em 1808, com cursos de cirurgiões para o exército),
Doze anos mais tarde, ainda se atribuíam à Editora Na- a Faculdade de Direito (fundada em 1891) e a Escola Poli-
cional 55% de todos os livros didáticos para o ensino primá- técnica (criada em 1874, cujos atos constitutivos datavam de
rio e secundário publicados no Brasil. Para este último nível, r8ro, para a engenharia, e de 1816 para as belas-artes) num
em 1970, havia praticamente apenas duas concorrentes, a conglomerado denominado Universidade do Rio de Janeiro.
Ática e a Editora do Brasil. Em 1931,a Reforma Campos agregou diversas outras insti-
tuições a esse conjunto que, em 1937, funcionou por algum
tempo com a designação de Universidade do Brasil. Somente
Grzr LIVROS DE NÍVEL UNIVERSITÁRIO após sua reforma, em dezembro de 1945 — em seguida à
queda de Vargas -, é que teve início o processo de integrar
À preeminência da Nacional no mercado de livros didáticos realmente as escolas constituintes numa unidade funcional.
era de tal ordem que constituiu surpresa geral o fato de não Desde 1947, essa unidade passou a usar o nome de Univer-
ter participado do programa governamental para a edição de sidade Federal do Rio de Janeiro.
livros básicos de leitura para o Mobral (Movimento Brasilei- A primeira universidade do Brasil, no sentido geralmente
ro de Alfabetização), campanha de alfabetização de adultos aceito da palavra, foi a criada em São Paulo, em 1934, como
iniciada em março de 1968: o programa foi dividido entre a um subproduto da derrota daquele estado na Revolução
José Olympio e a Editora Abril. No entanto, o outro extre- Constitucionalista de 1932, derrota diretamente atribuída
mo do mercado educacional oferecia ampla compensação. A às deficiências educacionais de seus oficiais! No ano seguinte
Editora Nacional teve crescente êxito com seus livros de nível (1935), Pedro Ernesto Batista, prefeito do Rio de Janeiro,
416 Octalles Marcondes Ferreira
Octalles Marcondes Ferreira 417

fundou a Universidade do Distrito Federal, muito semelhan- 1945, Universidade do Brasil, para toda uma rede de insti-
te à sua congênere paulista. Essas instituições recrutaram tuições financiadas pelo poder central; até mesmo a universi-
proeminentes professores estrangeiros - em sua maioria, dade estadual da pequena Paraíba foi federalizada. Os planos
franceses — e introduziram muitas disciplinas novas, em es- de JK para sua nova capital, Brasília, incluíam uma universi-
pecial a sociologia. Ambas representaram também mais um dade com o status — e consequente autonomia — de fundação.
triunfo dos reformadores do grupo da Escola Nova, espe- Os governos seguintes deram continuidade à sua políti-
cialmente Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira ($r14). ca, apesar dos frequentes confrontos entre o regime pós-64 e
Infelizmente, os que estavam no poder com Vargas não mos- uma liderança estudantil politicamente comprometida. Em
travam muito entusiasmo por qualquer desenvolvimento 1968, havia 280 799 estudantes universitários; em meados
da educação superior. O preconceito contra qualquer ino- da década de 1970, esse número subiu para quatrocentos
vação era suficientemente forte para confundir sociologia mil (em mais de sessenta instituições) e, em 1980, para cerca
com socialismo. O secularismo de Anísio Teixeira, de inspi- de um milhão e meio. Escolas técnicas, de comércio e nor-
ração norte-americana, tornara-o um anátema para todos mais, juntas totalizaram outro milhão. A última tendência
os bons clérigos e objeto de uma campanha de ódio, que é a expansão da educação em nível de pós-graduação, que
terminou com sua demissão. Além disso, a administração de aumentou de 1 983 pós-graduandos em 1959, para perto de
Pedro Ernesto parecia perigosamente progressista em outras vinte mil, em 1979,€ 78 mil em 1998.
áreas e, como isso lhe estivesse dando um inaceitável grau Entre os êxitos da Nacional nas décadas de 1960 e 1970,
de popularidade, os círculos militares insistiram — apesar de num mercado universitário agora razoavelmente rentável,
sua amizade íntima com Vargas — em que fosse demitido e contam-se quase duas centenas de títulos, principalmente
preso”. A partir daí, o Governo Federal começou a intervir nas áreas de sociologia, psicologia, pedagogia, comunicação,
na gestão da Universidade, dispensando grande número de linguística, genética, zoologia, geologia, economia. Além de
seus professores, acabando por fechá-la em definitivo, pouco coleções como Atualidades Pedagógicas e Iniciação Científica,
depois do golpe de Estado de novembro de 1937. Em conse- mais antigas, ambas dirigidas, desde meados da década de
quência, as estatísticas da educação superior para o período 1940, pelo educador J. B. Damasco Penna, reunindo cerca de
(cf. tabela 7, p. 844) revelam uma queda de 25% no número 170 títulos e um sem-número de reedições, Octalles criou, no
de estudantes entre 1935 e 1940. início dos anos de 1960, uma Biblioteca Universitária, com-
À usp sobreviveu, embora até 1941 os diplomados em preendendo várias séries (Filosofia, Ciências Sociais, Ciências
humanidades e ciências não chegassem a uma centena. Às Puras, Ciências Aplicadas, Letras e Linguística) e organiza-
perspectivas melhoraram com o estabelecimento da chama- da e dirigida por destacados scholars da Universidade de São
da República Populista, em 1945: vários outros estados cria- Paulo: João Cruz Costa, Florestan Fernandes, Antônio Brito
ram universidades, além das muitas iniciativas da Igreja e de da Cunha, Antonio Candido, Isaac Nicolau Salum. Perto de
entidades privadas no ensino superior. Em r9s0, o número cem títulos seletos foram publicados, até princípios de 1970,
de estudantes matriculados tinha duplicado, em âmbito na- tanto de autores nacionais como de traduções. Alguns desta-
cional, chegando ao total de 44 097. À expansão realmen- ques foram: Geologia do Brasil (Leinz « Amaral), Zoologia
te significativa teve início no governo de Juscelino Kubits- Geral (Storer « Usinger), Princípios de Aerofotogrametria
chek, quando aumentou o envolvimento direto do Governo e Interpretação Geológica (Petri « Ricci), Prolegômenos a
Federal: as universidades federais passaram de uma única em Toda Metafísica Futura (Kant), Tratado de Metafísica (Gus-
dorf), O Pensamento Selvagem (Lévy-Strauss), Teorias de Es-
29, Um acadêmico norte-americano, Michael L. Conniff, sugeriu, de tratificação Social (O. lanni), Elementos de Genética (Pavan &
forma bastante plausível, em sua tese de doutoramento, defendida na Cunha), Química (Sienko & Plane), Comunidade e Sociedade
Universidade de Stanford, em 1976, Rio de Janeiro durante a Grande (F. Fernandes), As Novas Tendências da Linguística (Malm-
Depressão, que foi Pedro Ernesto quem forneceu a Vargas o modelo berg). De certo modo, foi então uma iniciativa pioneira pelo
para suas experiências posteriores com o populismo de massa. seu caráter sistemático e por sua abrangência.
418 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 419
Poucos anos antes de sua morte, numa demonstração de Apesar de toda essa preocupação com livros didáticos, a
continuada e autêntica vocação para o métier que abraçou, Nacional prosseguiu com a publicação de clássicos brasilei-
Octalles ensejou condições para que se projetasse e iniciasse, ros, como José de Alencar e Machado de Assis. Publicou tam-
sob a supervisão de Florestan Fernandes, uma nova coleção bém livros de arte de cuidadosa feitura gráfica relacionados
voltada para os estudos universitários, compreendendo per- com a história do Brasil, uma linha iniciada com o álbum Mi-
to de cinquenta títulos em sua fase inicial: Grandes Cientis- nas: Cidades Barrocas (desenhos de Renée Lefevre e texto de
tas Sociais. No entanto, com a estatização da Nacional, o Sílvio Vasconcelos), em 1968, com a participação da Editora
projeto foi abortado e, alguns anos depois, absorvido (com da Universidade de São Paulo. Para comemorar seu 45º ani-
vários títulos prontos ou em andamento) pela Editora Ática, versário, a Companhia publicou o magnífico trabalho, apre-
que iniciou sua publicação em 1980. sentado por J. E de Almeida Prado, Quarenta Paisagens Inédi-
Muito se tem falado sobre a manifesta fragilidade da tas do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, de
barreira linguística hispano-portuguesa, a partir do lado es- Jean-Baptiste Debret. No prefácio, informa-se que a Editora
panhol, e de sua suposta impenetrabilidade, absoluta, na di- Nacional havia alcançado um total de doze mil edições e du-
reção contrária: sempre se pode vender livros em espanhol zentos milhões de exemplares durante esses 45 anos”,
para falantes em português, mas se considera impossível levar Muitos títulos da Biblioteca Universitária, particular-
falantes em espanhol a aceitar seja o que for em língua por- mente alguns da área de ciências sociais, alcançam o público
tuguesa. No que diz respeito ao leitor comum, pode ser que em geral. Pode-se citar, como exemplo, Teoria e Política do
isso ainda seja verdadeiro. Mas parece não mais se aplicar ao Desenvolvimento Econômico, de Celso Furtado: sua pri-
mercado da educação superior no caso de obras de qualidade meira edição na Nacional (vinte mil exemplares) esgotou-se
suficientemente boa, pois, já na década de 1970, muitos livros em seis meses, e os direitos de publicação no exterior foram
da Editora Nacional foram adotados em muitas universida- comprados, entre muitas outras, pela Siglo Veintiuno (cuja
des de países hispano-americanos: mais um campo em que a edição em espanhol teve de ser reimpressa em menos de um
empresa de Octalles se mostrou pioneira. Um Curso de Física, mês) e pelas Presses Universitaires de France (cuja edição em
em três volumes, de autoria de José Goldemberg, da usr, pu- francês apareceu em 1970).
blicado pela Nacional, foi selecionado, após ampla pesquisa Uma coleção ainda mais antiga, destinada ao público
continental, como o melhor texto para uso nos países hispa- universitário e que interessa também ao leitor em geral, é
no-americanos; nesse caso, porém, foi feita uma tradução. a Biblioteca do Espírito Moderno, iniciada em 1938: ven-
Devido, em boa parte, a essa adoção de textos brasileiros deu meio milhão de exemplares em seus primeiros quatro
por universidades do exterior, as exportações de livros bra- anos. À série de filosofia dessa coleção foi responsável pela
sileiros para países de língua espanhola tornou-se tão impor- apresentação ao leitor brasileiro de autores, entre outros,
tante quanto aquelas para Portugal (cf. tabela 10, p. 854). como Bertrand Russell, John Stuart Mill, William James e
O México foi um importador particularmente bom até a Jacques Maritain; a série de ciência incluiu, por exemplo,
desvalorização do peso mexicano, em 1974, mas em 1978 Alfred Adler, Albert Einstein, Julian Huxley e James Jeans; a
recebia apenas 1,5% das exportações brasileiros de livros. de literatura estendeu-se desde Hemingway, Saint-Exupéry e
Ainda assim, mesmo nesse ano, a América Latina como um Steinbeck até Warwick Deeping e Lin Yutang. À maior série
todo absorvia 49,9% dessas exportações'º. dessa coleção é a de história e biografia, que publicou obras
de Macaulay, Emil Ludwig, H. G. Wells, Maurois, Toynbee,
Van Loon, Will Durant e a História da República, de José
30. Para uma discussão sobre os obstáculos representados pelo câm-
bio, tarifas, documentação e transportes na exportação de livros para Maria Bello.
os países hispano-americanos, cf. New Writers of Latin America: Fi-
nal Report and Working Papers of the xx Seminar on the Acquisi-
tion of Latin American Library Materials, Bogotá, 197$, Austin (Te- 31. À edição nº 12000 foi, sugestivamente, A Galáxia de Guttem-
xas), Salalm Secretariat, 1978, pp. 16-19, 147-260. burg, de Marshall MacLuhan.
420 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 421

$122 A BRASILIANA de livros usados, alcançando preços, em valores de 1970, de


Cr$100,00 (US$25,00)”, ou até mais. São alguns exemplos
Incursões ainda mais antigas no mercado da educação su- A Princesa Isabel, de Pedro Calmon (vol. 207, de 1941), As
perior foram a Biblioteca Médica Brasileira e, sobretudo, Culturas Negras do Novo Mundo, de Arthur Ramos (vol.
a Biblioteca Pedagógica Brasileira, cujo lançamento pra- 12, 1937), Estudos de História Colonial, de Hélio Vianna
ticamente coincidiu com a criação do novo Ministério da (vol. 261, 1948), O Patriarca: Gênio da América, de Arman-
Educação e Saúde, em 1931, com implicações no ensino do Caiuby (vol. 265, 1949) e A Aculturação dos Alemães no
médico e na formação de professores. A Biblioteca Pedagó- Brasil, de Emílio Willems (vol. 250, 1946).
gica Brasileira, dirigida até 1946 por Fernando de Azevedo, Naturalmente, numa coleção tão numerosa e de tão gran-
subdividia-se em várias subséries importantes, algumas das de duração, houve lapsos quanto ao padrão de qualidade,
quais continuaram a ser publicadas depois que a coleção em geral muito alto. Isso pode ser atribuído, algumas vezes,
deixou de existir nos anos de 1950, Entre elas, podemos ci- a pressões políticas, sobretudo durante os difíceis dias do Es-
tar a Biblioteca de Divulgação Científica, iniciada em 1937, tado Novo (novembro de 1937 a outubro de 1945). Como a
sob a direção de Arthur Ramos, e que publicou muitas obras coleção era, em larga medida, um empreendimento de pres-
de etnografia e antropologia brasileiras. Outras subséries tígio para a editora, a inclusão de uma obra sempre foi, na
abrangiam a formação profissional, a literatura infantil e, prática, uma garantia de vendas e de publicidade. Em 1936,
principalmente, a pedagogia. no auge da influência do movimento integralista (fascismo
A mais importante dessas subséries foi a coleção Brasilia- brasileiro), a Nacional deve ter considerado prudente incluir
na, iniciada em 1931, com a obra Figuras do Império e Outros na coleção a obra de Gustavo Barroso, História Secreta do
Ensaios, de Antônio Baptista Pereira. A Brasiliana abarcou Brasil, grosseiramente antissemita. No Brasil, como em tan-
muito mais do que poderia sugerir sua inclusão inicial numa tos outros países, o antissemitismo tem uma longa história,
“biblioteca pedagógica”. Ao atingir o volume quatrocentési- embora nem sempre bem conhecida, como o mostram abun-
mo, o jornal O Estado de $. Paulo reconhecia na coleção “até dantes provas durante as décadas de 1920 e 1930. Por exem-
hoje o mais completo repositório de informação sobre o Brasil, plo, é com muito cuidado que os comentaristas afirmam ser
suas origens, sua formação, sua vida em todos os campos”*:, do conhecimento dos leitores que J. C. Rodrigues (por exem-
Com efeito, a Brasiliana pode ser considerada uma das plo) era judeu. Ou, ainda mais grave, a atribuição aos israe-
primeiras manifestações do novo interesse pelo Brasil e por litas do plano Cohen, uma invenção da política brasileira, a
sua herança, despertado com a Revolução de 1930. Poste- serviço dos mesmos propósitos alarmistas anticomunistas da
riormente, sentiu-se lisonjeada quando foi imitada por vá- análoga Zinoviev letter na política do Reino Unido.
rias outras coleções de diversas editoras. Dentre elas, pode- Não que o Brasil contasse com uma grande comunidade
mos citar Documentos Brasileiros ($141), da José Olympio israelita. Havia talvez cerca de dois mil judeus praticantes
(a partir de 1936), Corpo e Alma do Brasil, da Difusão Eu- no Brasilem rgro, setemilem 1917,42milem 1935€ 69957
ropeia do Livro, Retratos do Brasil, da Civilização Brasilei- pelo censo de rgso. O crescimento, dadas as condições da
ra ($169), além da reedição de obras antigas sobre o Brasil Europa de então, era rápido, e a comunidade concentrava-se
pela Martins em sua Biblioteca Histórica Brasileira ($r 57); (89%, segundo o censo) em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio
são dignas de nota, ainda, coleções mais recentes, como a Grande do Sul. Não foi pequena a contribuição da longa tra-
da Itatiaia, de Belo Horizonte, a Coroa Vermelha: Estudos dição luso-brasileira de perseguição ($$1,9) para o surgimen-
Brasileiros, da T. A. Queiroz (que abrigou a primeira edi- to de preconceitos antissemitas no país, mas o principal fator
ção deste livro), a Biblioteca Estudos Brasileiros, da Ibrasa, foi uma característica nacional brasileira: a extrema recepti-
e outras. Alguns dos títulos mais antigos da Brasiliana são vidade, muitas vezes inquestionada, a tudo quanto estivesse
bastante raros e muito procurados, hoje em dia, no mercado
33. Na época, um livro novo da coleção era vendido ao preço equi-
32. O Estado de 8. Paulo, 4 mar. 1973 (Suplemento Literário). valente de usgio.
422 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 423
na moda no pensamento europeu e norte-americano. No Nelson Werneck Sodré a produzir sozinho sua própria ver-
caso particular da política editorial da Editora Nacional, são, muitos anos mais tarde (em 1965). No entanto, talvez
pode ser que os próprios sentimentos nacionalistas extrema- não tenha sido o caso do dito acima, mas o de que muitos
mente fortes de Lobato também tenham exercido alguma que mexeram na panela não souberam como o fazer. Em
influência: haja vista seu ataque aos judeus fabricantes de lugar disso, então, Octalles organizou um programa radio-
papel ($113). fônico especial para comemorar o lançamento do volume
O próprio Gustavo Barroso, tradutor dos Protocolos dos nº 200 (Geologia e Geografia Física do Brasil, de Hartt),
Sábios de Sião, foi honrado com a eleição para a Academia durante o qual sua filha Cléo fez a doação de uma coleção
de Letras, com a idade, sem precedentes até então, de apenas Brasiliana completa ao Instituto Nacional do Livro, órgão
44 anos de idade, e logo, em seguida, foi eleito presidente do do governo, e o orador principal foi um autor militar, o mes-
órgão. Depois disso, escreveu Brasil, Colônia de Banqueiros mo Nelson Werneck Sodré.
e outros panfletos da mesma espécie, a maioria deles edita- Devido ao prestígio da coleção, as edições da Brasiliana
dos pela Civilização Brasileira. Outra editora que parece ter foram sempre pequenas (muitas vezes apenas mil ou mil e
publicado muitas obras antissemitas foi a Globo, de Porto quinhentos exemplares). De fato, o primeiro volume da His-
Alegre. The International Jeiw, de Henry Ford, foi traduzido tória Secreta, de Gustavo Barroso, é, por essa razão, mais
em 1933. (Ernest Liebold, secretário pessoal de Ford, apro- raro que os dois volumes posteriores, publicados fora da
vou expressamente sua publicação sem pagamento de direi- coleção, pela Civilização Brasileira, em consequência dos
tos autorais: a autorização não “era necessária, uma vez que protestos contra a inclusão, na Brasiliana, de obra tão inútil
o livro não havia tido seu copyright registrado”34.) Quatro e tendenciosa. Apesar de outras editoras terem procurado
anos depois, apareceu o virulento Nacionalismo: O Proble- imitá-la, a coleção jamais deu muito lucro; ao contrário, a
ma Judaico e o Nacional-Socialismo, de Amor Butler Maciel, partir de mais ou menos 1945, passou cada vez mais a conta-
e, com o nibil obstat da Igreja, A Questão Judaica, do padre bilizar prejuízos. Segundo disse Octalles, em março de 1970,
J. Cabral. O caso da Globo, editor igualmente de muitos o único título, então recente, que tivera sucesso comercial
autores judeus, foi simplesmente uma resposta comercial à fora Os Dois Brasis, de Jacques Lambert, do qual se vende-
demanda do mercado, como explicarei mais adiante ($130). ram vinte mil exemplares em quatro edições, estando plane-
Um caso semelhante de política editorial da Brasiliana, jada uma quinta para o fim daquele mesmo ano. No entanto,
de sujeição a exigências políticas, ocorreu em 1940, quando quando, apenas três anos antes, a empresa foi solicitada a re-
a impetuosidade de Lobato levou-o a atacar o general Horta lacionar seus maiores sucessos editoriais, ela citou as obras
Barbosa, presidente do Conselho Nacional do Petróleo, por História Econômica do Brasil, de R. Simonsen, Primeiros
não encontrar tanto petróleo brasileiro quanto o escritor Povoadores do Brasil, de ). E. de Almeida Prado (número 37,
afirmava existir, Octalles inguietou-se (com boas razões), um dos mais antigos da coleção), e Formação Histórica do
temeroso de que as autoridades, não satisfeitas com a pri- Brasil, de Pandiá Calógeras, todas elas com diversas edições.
são de Lobato, pudessem praticar alguma represália contra Nos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra
a companhia, devido às suas ligações com o escritor. A so- Mundial, a continuidade da coleção passou a depender de
lução do editor foi o planejamento de uma grande História um subsídio direto do Governo Federal, através da compra
Militar do Brasil, com colaborações de todas as mais altas de quinhentos exemplares pelo INL. Logo depois, esse apoio
patentes do exército, a ser publicada como o ducentésimo cessou, com o término do mandato de Juscelino Kubitschek,
-

volume da Brasiliana. No entanto, como “panela em que


e

em 1960, e a Brasiliana foi suspensa por vários anos, em


muitos mexem fica insossa ou salgada”, essa obra jamais parte devido à alta inflação do período. Embora tenha sido
se concretizou, a não ser pelo fato de ter induzido o general retomada em 1964, sua publicação foi, desde então, bastan-
a

te irregular. Até cerca de 1973, quando apareceu o volume


A e gem cm

34. Albert Lee, Henry Ford and the Jews, Nova York, Stein and Day, 349 (Evolução Industrial do Brasil, de Roberto €C. Simon-
1980, p. go. Cf. também $130. sen), apenas dois novos volumes eram publicados por ano e
a
424 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 425
às vezes apenas um. Em 1972, nem mesmo um foi editado. como a maior empresa do ramo exclusivamente editorial,
Mais tarde, o ritmo de lançamentos parece ter aumentado mas também como a mais lucrativa. À década foi marcada,
para cerca de três por ano, embora seja difícil de verificar na Nacional, por uma mudança programática. Com o cresci-
esse fato, porque, muitas vezes, os volumes eram publicados mento da concorrência na área didática, concomitantemente
fora da sequência: em 1973, 0 volume 354 (Uma Filha de D. com o crescimento do mercado (Ática, Ibep, Moderna, a
Pedro 1, Dona Maria Amélia, organizado por Sílvia Lacerda nova FTD, ÀÃo Livro Técnico, Scipione, Saraiva etc., além de
Martins de Almeida) parece ter saído imediatamente depois inúmeras casas de menor projeção que também começavam
do volume 349; 0 volume 3 59, publicado em 1977, apareceu a disputar esse segmento editorial), Octalles voltou-se, deli-
entre os volumes 362 e 363. E com o volume 378 de 1984 berada e conscientemente, para a melhora do material e do
(A Consciência Didática no Pensamento Pedagógico de Rui conteúdo das inúmeras séries didáticas constantes do seu ca-
Barbosa, de José de Arruda Penteado), a série praticamente tálogo. Os livros, que, até então, tinham, em sua maioria,
chegou ao fim. uma apresentação gráfica modesta e econômica (poucas ilus-
Podemos citar, além disso, pouco mais de vinte títulos trações e menos ainda em cores, formatos pequenos), passa-
de uma Brasiliana Grande Formato, com numeração autô- ram a ser retrabalhados no sentido de modernizar a forma e
noma. Uma relação dos títulos da Brasiliana completa até o conteúdo: formatos maiores, ilustrações em cores e fartas,
janeiro de 1969 encontra-se publicada na Revista do Livro, muitos deles acompanhados — uma inovação na época — de
do INL (nº 38, pp. 123-268, julho de 1969). O diretor da co- livros de exercícios e livros do professor; foram contratados
leção foi durante muitos anos Américo Jacobina Lacombe, e elaborados novos títulos, sobretudo para o nível 1 (antigo
biógrafo de Rui Barbosa. primário) do primeiro grau, área à qual a editora, há mui-
Em 1972, o Instituto Nacional do Livro concedeu um tos anos, não se dedicava com empenho, Data dessa época
subsídio à Editora Tropicália, do Rio de Janeiro, para a pu- o desenvolvimento e lançamento, por exemplo, da Coleção
blicação de uma série de reimpressões baratas de cinquen- Sérgio Buarque de Holanda, uma série de história para o
ta dos mais importantes títulos esgotados da Brasiliana. curso secundário, inovadora no método e no tratamento, €
Além disso, o Instituto utilizou seu esquema de coedições a introdução no país da chamada matemática moderna. O
para apoiar a publicação de novas obras na coleção, bem desenvolvimento de textos para o mercado universitário e
como a reimpressão de títulos antigos. De 1974 a 1978, o crescente interesse por obras de caráter mais geral foram
sete novos títulos e 44 reedições foram publicados na Bra- outras manifestações de mudanças da política editorial que,
siliana em coedição com o INL, € nos últimos anos a série embora não tenha afetado a produção em número de itens,
dependeu deste apoio, mas os recursos foram diminuindo aumentou consideravelmente o tamanho e o valor médio de
cada vez mais até sua abolição definitiva pelo presidente cada publicação. Em termos de consumo de papel e volume
Fernando Collor de Mello. de páginas impressas, a produção da Nacional cresceu ao
longo da década de 1960, com reflexos, por conseguinte, no
faturamento e consequente lucratividade.
$123 A NACIONAL É ESTATIZADA Esses aperfeiçoamentos haviam sido precedidos de uma
revolução do design gráfico, que remonta ao final da década
A produção da Companhia Editora Nacional, na década de de 1940. Para isso, o principal instrumento de Octalles foi
1960, estabilizou-se em torno de seis milhões de exemplares Rubens de Barros Lima, responsável pela produção gráfica
por ano: mais ou menos 10% do total do país. A média anual da casa desde o final da década de 1940 até cerca de 1970,
de edições novas era de 200 a 250 títulos; no entanto, esse e introduziu marcantes inovações no estilo da editora, che-
número parece ter sofrido uma redução progressiva: 133 em gando a criar escola. Vencendo a tendência vigente para as
1963, 94 em 1964, 76 em 1968, 81 em 1969 € 77 em 1970. soluções rebuscadas, desenvolveu um estilo despojado, equi-
Essa aparente estagnação quantitativa, contudo, esconde librado, limpo, na ficção e nos livros de interesse geral. Nos
um crescimento qualitativo, que manteve a Nacional não só livros didáticos, empregou soluções modernas (formato, dia-
426 Octalles Marcondes Ferreira Octalles Marcondes Ferreira 427

gramação, ilustrações etc.). Menção deve ser feita também à McGraw-Hill. Contudo, a situação econômica e financeira da
qualidade dos desenhos de capa € ilustrações, decorrente da José Olympio tornava impossível a desejada transferência, e a
colaboração de artistas como Carlos Bastos, Carybé, Darcy Nacional acabou tornando-se propriedade do BNDE.
Penteado, Walter Levy e outros. Como já soubessem que o provável resultado das nego-
Em 1973, Octalles faleceu, repentinamente, ainda em ciações em curso seria, sem dúvida, a compra da Nacional
plena atividade, após cinquenta e cinco anos de trabalho pelo Governo Federal, através do BNDE, um mês antes da
com livros, quarenta e oito dos quais à frente de sua própria conclusão das negociações, três diretores da empresa (Jairo
empresa. Por ocasião de sua morte, a empresa tinha cerca de Marques Netto, Félix Cohen Zaide e o editor da primeira edi-
duzentas obras registradas em seu departamento editorial ção deste livro, Thomaz de Aquino de Queiroz), acompanha-
em vários estágios de produção (em redação, em negociação dos por um grupo de funcionários de escalão intermediário
de direitos, tradução, revisão etc.). Como era o detentor de e vários autores, afastaram-se da empresa, por não acredita-
quase a totalidade das ações da companhia, a propriedade rem naquela aventura. Em novembro de 1974, fundaram a
foi dividida, depois da sua morte, entre a viúva, os filhos — Editora Nova Ltda. Baseados em sua experiência, constitu-
Caio e Cléo (esposa de Ênio Silveira) — e os irmãos, dos íram, montaram e equiparam rapidamente a nova casa em
quais apenas Indalice Ferreira de Barros tinha ligação fun- São Paulo, inclusive uma filial no Rio, de tal sorte que, em
cional com a firma: acompanhara Octalles desde o início da fevereiro de 1975, já estavam em condições de iniciar a pu-
Nacional e, nos últimos anos, ocupava as funções de caixa blicação dos primeiros títulos didáticos. O BNDE, conquanto
geral e, nominalmente, de diretor-tesoureiro. Infelizmente, cientificado da cisão antes da compra da Nacional, mostrou-
os herdeiros não queriam que o cargo de presidente fosse -se depois inconformado com o “esvaziamento do objeto
ocupado pelo único membro da família capacitado para a comprado” e iniciou démarches com vistas ao retorno dos
função — o genro de Octalles — e menos ainda por qualquer diretores, funcionários, autores e livros (em preparo para pu-
outro executivo. Assim, a presidência ficou com o irmão blicação ou apenas contratados). Apesar da relutância inicial
Lindolfo, que não possuía experiência gerencial e desconhe- dos proprietários da nova firma, as negociações terminaram
cia o negócio editorial. com a compra desta pelo BNDE; no entanto, depois de con-
O consequente incômodo de se sentirem dependentes de cretizada a operação, o Banco foi acusado de não cumprir as
seus auxiliares levou os herdeiros a decidirem pela venda. À condições acordadas. Foi alegado que a organização credití-
LTB, do Grupo Hubert, chegou a manifestar algum interesse cia criara condições insuportáveis de trabalho na Nacional
na compra, o que, afinal, não passou de simples sondagem. para os ex-funcionários, esclerosara a administração e o tra-
Um dos filhos de Octalles (que também não ocupava cargo balho gerencial em todos os setores, demitira alguns diretores
na empresa) chegou a propor a venda da companhia à Sa- e funcionários e tornara impossível a permanência de outros.
raiva e à Abril, mas sem qualquer resultado, principalmente A gestão estatal da Nacional por meio do BNDE foi desas-
porque o preço aventado na época — o equivalente a cerca de trosa: o trabalho de burocratas, sem experiência no ramo,
US$14000000- era exagerado, mesmo levando-se em conta a levou à deterioração da empresa em termos gerenciais, liqui-
rentabilidade da casa, Então, pelos motivos expostos adiante dação do espírito empresarial, queda da rentabilidade — em
($152),a José Olympio mostrou interessse na aquisição e, na 1979/1980, a editora que havia sido, em termos relativos,
época, a imprensa falou num valor de 150 milhões de cruzei- uma das empresas privadas mais sólidas e rentáveis do Bra-
ros, ou cerca de Us$20000000. À empresa de José Olympio sil, teve prejuízo contábil — perda de posições, de ano para
solicitou ajuda governamental: no caso,o financiamento total ano, no ranking do setor (primeiro lugar em 1974, quinto
da operação; assim, o Banco Nacional de Desenvolvimento em 1979), e naturalmente, depreciação do valor negocial.
Econômico (BNDE) adquiriu a totalidade das ações da empresa Exemplo típico de má administração teria sido o aumento
pelo equivalente a mais ou menos us$r6 milhões, tendo o
negócio sido concluído às pressas, em fins de 1974, aparen- 35. Segundo declarações de Jorge Yunes, presidente do Ibep, à Gazeta
temente por causa do infundado receio de melhor oferta da Mercantil de São Paulo, 5 set. 1980.
428 Octalles Marcondes Ferreira

do quadro de funcionários: até 1974, a Nacional jamais che-


gara a ter cem empregados, mas apenas dois anos após sua
estatização contava, afirma-se, perto de quatrocentos.
Em 1979, O BNDE estava decidido a livrar-se tanto da
Nacional como da Livraria José Olympio Editora, que tam-
bém passara a seu controle. Um ativo representado por um
catálogo de cerca de quinhentos títulos, um saudável esto-
que de papel, o prestígio do nome e a possibilidade de re-
torno - pela implantação do espírito empresarial privado
em sua gestão — a resultados operacionais positivos, torna-
ram a Nacional mais vendável do que a José Olympio. Em
1980, foi adquirida pelo Ibep (Instituto Brasileiro de Edições
Pedagógicas), pelo vantajoso preço de Cr$252 milhões, o
equivalente, na época, a apenas us$4,5 milhões. À maior
vantagem da operação para o Ibep, entretanto, parece ter
sido a possibilidade de — aproveitando sua própria estrutura
operacional, com uma declarada ociosidade de 30% — redu-
zir imediatamente os custos administrativos e comerciais da
empresa a praticamente zero, inclusive desativando sua sede DO
A ATO O
e transferindo-a para a do Ibep.
Veríssimo
Estou encantado com o pessoal e a organização
aqui... Esta editora é a única que realmente sabe
para onde vai. Os outros que se dizem idealistas
etc. e tal estão simplesmente ganhando dinheiro.
Trabalham dia a dia, acertam por palpite. Aqui, o
barco navega diferentemente. Depois de muito terem
errado, com traduções, edições etc., resolveram
que a coisa tem de ser feita sob base da mais pura
seriedade intelectual [...] Traçamos um programa
por um ano e meio. Dentro de nove meses nos
reuniremos de novo, para ver o que foi cumprido,
como foi cumprido, e o que iremos fazer de novo [...]
Livro sem qualidade literária não entra nem a tiro!

EDGARD CAVALHEIRO, logo após ter assumido


um cargo na Livraria Globo em 1943'

A ATIVIDADE EDITORIAL NO RIO GRANDE DO SUL $124


No exato momento em que a produção de livros didáticos se
tornava monopólio de São Paulo, um novo centro editorial
começava a surgir mais para o sul, em Porto Alegre, capital
do Rio Grande do Sul, onde, no início dos anos de 1930,
a Livraria Globo tornou-se uma produtora nacionalmente
conhecida e dedicada à tradução de literatura estrangeira.
O crescimento de São Paulo, que de província do inte-
rior sem qualquer importância passara a ser um membro
dominante da federação, foi um processo que se estendera
pela maior parte do Segundo Reinado (1840-1889). O cres-
cimento do Rio Grande do Sul aconteceu uma geração mais

r. Apud Nelson Werneck Sodré, Memórias de um Escritor, Rio de


Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, vol. 1, pp. 2917-293.
432 Bertaso e Veríssimo Bertaso e Verissimo 433

tarde, durante a República Velha (1889-1930). Durante o de sexto estado, em população, para quarto; São Paulo, Mi-
Império, permanecera uma região de fronteira sempre con- nas e Rio Grande do Sul, juntos, ocupavam apenas 13,3% da
flagrada, incorporada a custo à vida nacional. Todas as guer- superfície do país e eram responsáveis por 41% de sua popu-
ras externas do Brasil no século x1x foram travadas — pelo lação, 52% dos eleitores registrados e 55% das estradas de
menos em parte — em seu território: a tentativa de manter ferro. Contribuíam, também, com 41% do imposto de renda,
o domínio sobre o Uruguai entre 1817 e 1828, 0 conflito e, entre todos os estados, o Rio Grande do Sul era o terceiro
com a Argentina de Rosas, de 1849 a 1852, e a Guerra da em contribuição para a Receita Federal.
Tríplice Aliança contra o Paraguai, entre 1864 e 1870. Ainda Um dos primeiros atos do novo regime republicano no
mais devastadores foram os conflitos internos da província: Rio Grande do Sul foi estimular as exportações para o resto
a Revolução Farroupilha, de 1835 a 1845 — que foi, de fato, do Brasil, eliminando o imposto provincial de exportação
um anseio de independência malsucedido — e a carnificina, de 4% sobre todos os produtos, com exceção da carne €
curta, porém selvagem, da guerra civil de 1893 a 1895, que do couro. No entanto, o início da atividade editorial no es-
assegurou o controle do Estado sobre a mais extremada de tado parece dever-se muito mais à posição de desrespeito
suas facções republicanas. do novo governo aos direitos dos autores de outros estados
Nos derradeiros anos do Império, Porto Alegre era uma ($76). Segundo Rubens Borba de Moraes: “No século xIx,
pequena cidade de 25 mil almas, sem abastecimento público foram os belgas os grandes piratas das edições francesas. No
de água nem serviços de esgoto, sem iluminação de rua após Brasil, em fins do século xIx e princípios deste, os editores
dez horas da noite, com apenas dois bancos e três livrarias. rio-grandenses, protegidos por uma constituição positivista,
Era uma capital sem nenhuma instituição de ensino supe- imprimiam toda sorte de livros sem autorização dos editores
rior e com um porto marítimo que dependia de um solitário legítimos e sem pagar direitos autorais”*.
vapor que, uma vez por mês, a ligava ao resto do país. Os Não se faz menção a nenhuma firma, mas o principal
novos tempos de ordem e progresso foram um período de culpado era a editora gaúcha mais importante da época, a
governo estável, embora despótico. Pelo esforço conjunto de Livraria Americana, de Carlos Pinto, estabelecida, desde a
Júlio de Castilhos e de seu sucessor, Borges de Medeiros, o década de 1880, em Pelotas, no extremo sul do estados. Sua
estado beneficiou-se de trinta e cinco anos (1895 a 1930) série Biblioteca Econômica, de baixo preço e em formato
de continuidade política e, por consequência, de rápido de- de bolso, publicava traduções de Bourget, Alphonse Daudet,
senvolvimento. Já em 1891, subira para dez o número de Dostoiévski, Elslander, irmãos Goncourt, de Kock, Maupas-
instituições bancárias em Porto Alegre. Entre 1896 e 1906, sant, Sacher-Masoch, Turguêniev e Zola.
a cidade foi dotada de faculdades de engenharia, direito, me-
dicina e farmácia e, neste estado sumamente marcial, de sua
própria Academia Militar. À educação nos níveis inferiores OS PRIMÓRDIOS DA LIVRARIA GLOBO $125
expandiu-se a tal ponto que, em 1907, 0 Rio Grande do Sul
podia orgulhar-se de ter proporcionalmente mais crianças em As origens da Livraria Globo remontam a esse período, em
idade escolar nas escolas do que qualquer outro estado bra- que começou a publicar de maneira esporádica; no entanto,
sileiro: 228 por mil, em comparação com os 162 por mil de somente em 1928 é que deu início a um programa editorial
São Paulo. Paralelamente, as comunicações também melho- regular. Nessa época, a pirataria já saíra de moda, pelo me-
raram. Em 1890, cinco navios zarpavam, mensalmente, para nos no que diz respeito a livros. Com os periódicos, porém,
o Rio de Janeiro e um para os estados do Nordeste. À ligação a coisa era diferente. Érico Veríssimo, em seu texto autobio-
ferroviária com Rio e São Paulo foi completada em [910 e, gráfico O Escritor diante do Espelho, conta que, ainda em
dezessete anos mais tarde, foi constituída uma empresa es-
tadual de transporte aéreo, a Viação Aérea Rio-grandense, a 2. Rubem Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 2. ed., São Paulo,
Varig. Com a intensificação da imigração, a população cres- Nacional, 1975, Pp. 1I2-113.
ceu. No fim da República Velha,o Rio Grande do Sul passara 3. Informe oral de Rubem Borba de Moraes ao autor.
434 Bertaso e Veríssimo Bertaso e Veríssimo 435

1931, no caso da Revista do Globo (e muitas outras então como os Três Poemas Franciscanos, de 1927. Também lan-
existentes), “como não havia verba para comprar matéria çou no Brasil as biografias de autoria de Emil Ludwig, das
inédita, o remédio era recorrer à pirataria”; ele mesmo co- quais Napoleão foi especialmente bem-sucedida. Ao mesmo
laborou com traduções de “contos, de artigos de revistas tempo, vinha formando um corpo de artistas gráficos, tradu-
americanas, francesas, inglesas, italianas e argentinas”+, No tores e editors (revisores de conteúdo) e acabou por lançar
começo, a Globo era apenas uma pequena papelaria e livra- uma revista, a Revista da Globo.
ria, fundada, em 1883, por um imigrante português, Lau-
delino Pinheiro de Barcellos, junto à qual logo foi instalada
uma oficina gráfica para executar trabalhos sob encomenda. O INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO $126
Contudo, os alicerces da prosperidade da firma foram lan-
çados por José Bertaso, rapazinho admitido para pequenos O Rio Grande do Sul projetou-se no cenário nacional quase
serviços, em 1890, e que evoluiu a ponto de tornar-se sócio da noite para o dia com a Revolução de 1930, quando, em 31
e, no final, proprietário,
com a morte de Barcellos, em 19719. de outubro, a cavalaria gaúcha do exército revolucionário,
Prevendo a escassez de papel que sobreviria com a Primeira simbolicamente, deu de beber a seus animais nos chafarizes da
Guerra Mundial, importou boa quantidade que rendeu um capital federal. Na sua esteira, o presidente gaúcho (e habitué
lucro considerável na posterior revenda. Logo após a guerra, da Livraria Globo), Getúlio Dornelles Vargas — como que um
a firma, que usava a razão social Barcellos, Bertaso e Cia,, Mussolini em sua marcha sobre Roma — chegou ao Rio de
adquiriu uma linotipo, a primeira no estado, e, em 1922, trem, confortavelmente, depois que tudo já estava sob contro-
começou a publicar os livros oriundos de um renascimen- le e em total segurança. Naturalmente, os altos cargos foram
to literário local — de certo modo, a contrapartida gaúcha destinados a seus amigos gaúchos: no ministério, seu número
do movimento modernista de São Paulo ($r03). Entre os superou os indicados de qualquer outro estado, terminando
autores, alguns dos quais acabaram por se tornar figuras efetivamente com o domínio “café com leite” do governo bra-
nacionais, encontravam-se Carlos Dante de Moraes, Darcy sileiro pelos paulistas e mineiros*. No plano ligeiramente mais
Azambuja, Atos Damasceno Ferreira, Manoelito de Ornel- baixo, Bernardi, no início de 1931, abandonou a atividade
las, Ernani Fornari, Ruy Cirne Lima, Theodomiro Tostes, editorial para assumir a direção da Casa da Moeda.
Cyro Martins, De Souza Júnior, Reynaldo Moura, Moysés Outra nomeação de um gaúcho por Vargas, ainda que
Vellinho, Vieira Pinto, Vargas Neto, Augusto Meyer, Telmo feita somente em dezembro de 1937, teve especial importân-
Vergara e Paulo Correia Lopes. cia para a história do livro: a do poeta Augusto Meyer, que
Mansueto Bernardi, italiano de nascimento (de Treviso), deveria criar o Instituto Nacional do Livro, mediante refor-
que dirigia o departamento de propaganda, tinha ideias ma do Instituto Cairu, um órgão de pequena importância até
muito mais ambiciosas, que anteviam a Globo como uma então. O INL, que Meyer dirigiria até 1954, ano da morte de
editora de nível nacional e mesmo internacional, Essas ambi- Vargas, e novamente de 1961 a 1967, foi uma consequência
ções grandiosas não eram bem recebidas por seu patrão, que imediata do golpe de Estado de novembro de 1937, que im-
via no setor editorial a parte financeiramente mais duvidosa plantou o Estado Novo. Vargas, ao tornar-se ditador, decidiu
do negócio. Não obstante, Bernardi conseguiu fazer a firma dar mostra da necessária e paternal preocupação com a cul-
dar os primeiros passos rumo a um mercado mais amplo, tura nacional. Inspirado na magnífica enciclopédia italiana
publicando alguns títulos traduzidos, a maior parte da Itália,
Espanha e França. Entre esses, havia um bom número de
s. O primeiro ministério de Vargas era formado por três gaúchos e
exposés sobre o comunismo, pois Bernardi era um fervoroso
apenas um paulista. Entre outubro de 1930 e novembro de 1937, oito
filho da Igreja, aliás ele próprio autor de trabalhos literários, ministros eram do Rio Grande do Sul, sete de São Paulo, sete de Minas
Gerais e onze dos outros estados — e parece que muitos dos que não
4. Érico Veríssimo, Ficção Completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1970, eram gaúchos teriam sido escolhidos por seus vínculos com o estado:
vol. 3, p. 49. Capanema, por exemplo, era casado com uma sul-rio-grandense.,
436 Bertaso e Veríssimo Bertaso e Veríssimo 437

Treccani, então recém-completada no governo de Mussolini, Nacional, com graus variáveis de insucesso, vinha lutando
e que já servira de modelo para empreendimento semelhante para realizar desde 1847, quando lhe foi concedido o pri-
no Portugal de Salazar, sonhou com uma enciclopédia e um vilégio do chamado “depósito legal”. Infelizmente, existe,
dicionário nacional iguais para o Brasil, Contudo, a tarefa na administração brasileira, um hábito profundamente ar-
foi planejada em escala por demais ambiciosa e jamais rece- raigado: primeiro, torna-se inviável um órgão do governo
beu os recursos apropriados; assim, permaneceu inacabada (especialmente aqueles sem boas ligações com os centros do
por sessenta anos. Maria Alice Barroso, em sua curta gestão poder) com a dotação de recursos insuficientes, e, depois,
como diretora do INL (1970-1974), falou de planos para quando suas consequentes deficiências se tornam intolerá-
ressuscitar O projeto; no entanto, com tantas enciclopédias veis, cria-se outro órgão inteiramente novo (e no início, com
e dicionários brasileiros de excelente qualidade produzidos recursos mais pródigos) para assumir — ou, mais frequente-
comercialmente, agora disponíveis no mercado, parece im- mente, apenas duplicar — algumas ou todas as funções do
provável que a Enciclopédia Brasileira seja algum dia com- primeiro órgão. Entre 1938 e 1972, a Biblioteca Nacional
pletada e publicada. € O INL esforçaram-se, cada um de seu lado, para produzir
Um objetivo secundário do INL era a publicação de “todo uma bibliografia nacional; a Bibliografia Brasileira, anual,
tipo de obras raras ou importantes” de interesse para a cul- do último (e às vezes sua Bibliografia Brasileira Corrente,
tura luso-brasileira que não tivessem qualquer possibilidade trimestral), em geral, vinha a público mais rapidamente”;
de encontrar uma editora privada. Esse programa também nenhuma dessas publicações, porém, aproximava-se da cir-
foi suspenso pelo governo da “revolução” de 1964, mas, culação do Boletim Bibliográfico Brasileiro, editado pelo
após um tímido início, foi o único que se concretizou a con- setor privado, cujo conteúdo bibliográfico era, na verdade,
tento durante a gestão de Meyer*. Entre as obras publicadas trabalho do próprio Áureo Ottoni, do INL. Em fins de 1967,
pelo programa estão a Bíblia Medieval Portuguesa, o Di- a publicação do Boletim Bibliográfico Brasileiro foi suspen-
cionário de Filosofia (1952), de Orris Soares, as edições de sa (4166). O general Umberto Peregrino (diretor do INL de
Augusto Magne do Boosco Deleitoso de 1515 (em 1950) e- 1967 a 1970) preencheu essa lacuna com a transformação
em 1944 — da versão portuguesa ainda mais antiga (do sécu- imediata da bibliografia do seu INL em mensário. Graças aos
lo x1v) da lenda do rei Artur, Demanda do Santo Graal. Sob aperfeiçoamentos da lei e da administração do depósito legal
a presidência de José Renato Santos Pereira (1956-1961) € que ela assegurara, e ao acesso que Ottoni tinha aos servi-
com a volta de Meyer, foram publicados a História Natural ços do escritório da Biblioteca do Congresso de Washington,
Médica da Índia Ocidental (1957), de Guilherme Piso, em no Rio de Janeiro*, a Bibliografia Brasileira Mensal, durante
tradução de Mário Lobo Leal, e as reedições, em 19571, das sua curta existência, ofereceu o melhor registro corrente dos
obras de João Emanuel Pohl, Viagem ao Interior do Brasil novos livros que eram publicados. Infelizmente, pouco de-
e Viagem pelo Norte do Brasil no Ano de 1859, a Antolo- pois da substituição de Umberto Peregrino por Maria Alice
gia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial (1952-1953), de
Sérgio Buarque de Holanda, e a edição da Correspondência 7.A Bibliografia Brasileira foi publicada entre os anos de 1938 e 1955
de Capistrano de Abreu (1964), de José Honório Rodrigues, e entre 1962 e 1967; 0 período intermediário foi coberto pela inclu-
Posteriormente, O INL foi encarregado da produção de são trimestral da Bibliografia Brasileira Corrente, como uma seção da
uma bibliografia nacional atualizada, obra que a Biblioteca Revista do Livro. Dezessete anos mais tarde, a Biblioteca Nacional
adotou o nome de Bibliografia Brasileira para substituir o título do
seu até então Boletim Bibliográfico.
6. O lento início do INL — consequência de insuficiência de recursos — 8. À Biblioteca do Congresso dos EUA abrira um escritório no Rio
ocorreu paralelamente ao programa editorial particularmente ativo, de Janeiro, à rua Melvim Jones, dois anos antes, para cuidar da ob-
dirigido por Jayme Fernandes Guedes, no Departamento Nacional do tenção de livros e revistas brasileiros para o seu grande acervo em
Café, que culminou na publicação da História do Café no Brasil, de Washington. Isso é uma indicação da importância dos produtos da
Afonso d'Escragnolle Taunay, em 15 volumes (1939-1943), dando ori- indústria brasileira para o pesquisador no exterior e, igualmente, dos
gem à maldosa piada: enquanto o DNc editava livros, o INL bebia café. problemas que ainda existiam na sua distribuição e comercialização.
Bertaso e Veríssimo 439
438 Bertaso e Veríssimo

Barroso, Jarbas Passarinho, então ministro de Educação, UMA EDITORA DE ÂMBITO NACIONAL $127
decidiu racionalizar e reorganizar completamente o setor
de publicações do Ministério. Com isso, foi suspensa a Re- A revolução que projetara o Rio Grande do Sul no cenário
vista do Livro, publicada pelo iNL (título depois adotado nacional acabou sendo também um momento decisivo nos
pelo Círculo do Livro da Editora Abril). Foi aí que alguém destinos da principal editora do estado. À saída de Bernardi,
descobriu — depois de 35 anos! - a superposição de funções longe de marcar uma decadência nas atividades da Globo,
entre o INL e à Biblioteca Nacional. Determinou-se que a ocorreu no momento exato em que suas ambições com rela-
Bibliografia Brasileira Mensal fosse encerrada no final de ção à editora começaram a ser concretizadas, transforman-
1972. À Biblioteca Nacional, cujo Boletim Bibliográfico es- do-a numa editora verdadeiramente nacional.
tava atrasado cinco anos, foi instruída a abster-se de qual- O mais velho dos três filhos de Bertaso, Henrique d Ávila
quer cobertura do período 1967-1972 e prosseguir com os Bertaso, que começara na livraria em 1922, com quinze anos,
números relativos a 1973. assumiu o setor editorial, enquanto a direção da revista foi
No decreto original de 1937, ao INL haviam sido atribuí- entregue a um jovem escritor que então surgia, Érico Veríssi-
das as funções de instrumento do controle direto do governo mo, cujo recrutamento para a empresa fora um dos últimos
sobre os livros que poderiam ser legalmente publicados ou atos de Bernardi antes da saída, e em breve tornar-se-ia um
importados. Passados dois anos sem que o INL tomasse quais- dos principais tradutores da Globo.
quer medidas concretas nesse sentido, essas atribuições foram Com o advento dos acordos internacionais de proteção
transferidas para um serviço de censura criado especialmente dos direitos autorais, o Brasil passou a contar com as im-
para isso, o Departamento de Imprensa e Propaganda (Dr). portações de Portugal para suprir-se de ficção traduzida, No
Ao lado dessas tarefas específicas, o governo de Vargas entanto, a produção dos editores de Lisboa e do Porto era li-
atribuiu ao INL duas áreas básicas de responsabilidade: de- mitada tanto em abrangência como em quantidade; isso, po-
senvolver as bibliotecas públicas - quando de sua nomea- rém, não importava muito, porque, antes da Revolução de
ção, Meyer era diretor da biblioteca pública estadual em 1930, 0 consumo de livros era, em geral, privilégio de uma
Porto Alegre — e cuidar dos interesses mais amplos do livro elite a tal ponto galicizada em sua educação (pelo menos nas
no Brasil. Essas funções passaram a constituir suas princi- principais cidades: Rio, São Paulo, Recife, Salvador) que era
pais atividades sob a direção de Herberto Sales, desde fins da praticamente bilíngue. À leitura normal de entretenimento
década de 1970. A livre escolha na área de coedições acabou para essa classe havia sido René Bazin, Pierre Benoit, Co-
restringida, nos anos de r98o, por estar sujeita à ratificação lette, Octave Feuillet, Anatole France, Mardrus ou Octave
de um Conselho Consultivo, com representantes da Fun- Mirabeau, no original.
dação Pró-Memória, do Conselho Federal de Cultura e da Tudo isso mudou com a crise econômica mundial, cujos
Academia Brasileira de Letras. Nessa altura, Sales deixou o efeitos sobre países como o Brasil, inteiramente dependen-
INL para trabalhar na Civilização Brasileira, e, quando esta tes da exportação de produtos primários, foram calami-
se associou com a Difel, mudou-se para a Nova Fronteira. tosos. As exportações de café caíram de 95 milhões de li-
Seu sucessor na direção do 1NL foi Fábio Lucas (1986-1987). bras esterlinas, em 1929, para 65 milhões, em 1930,€ para
Nos anos difíceis da alta inflação dos anos de 1980,0 INL 21 milhões, em 1934. Um déficit orçamentário calculado
sofreu com a falta de recursos, apesar de, em 1987, então em 117 milcontos de réis (£2 200000) acabou, no final, em
sob a presidência de Wladimir Murtinho, passar a fazer par- 785 mil contos (cerca de £r$ 000000). Em consequência,
te da Fundação Pró-Leitura, até sua abolição (junto com a o valor do mil-réis caiu verticalmente. Não só o escudo
Pró-Leitura), em 1990, por decreto do presidente Fernando português subiu (em termos de mil-réis) 150%, entre maio
Collor de Mello. Sobreviveu apenas na forma de um peque- de 1930 e outubro do ano seguinte ($115); O franco francês
no Departamento Nacional do Livro, dentro da Biblioteca subiu ainda mais depressa. Enquanto, em 1935, O custo
Nacional, preocupado principalmente com a promoção da das importações portuguesas apenas dobrara, o franco su-
edição de livros brasileiros traduzidos no exterior. bira de $250 para 1$200 e o custo dos livros franceses, no
440 Bertaso e Veríssimo
Bertaso e Veríssimo 441
Rohmer, Rex Stout, S. S. Van Dine e, mais do que qualquer
Brasil, encarecera 600%, passando de um preço médio de
outro, Edgar Wallace — além de um único autor de outro
38000 para 18$000.
idioma, o valão (belga de fala francesa) Georges Simenon.
À extensão da resistência do consumidor aos novos pre-
Em 1936, a empresa originária ocupava um edifício pró-
ços está refletida na queda das importações. O total de livros
prio de três andares e tinha quinhentos empregados. A venda
vindos do exterior diminuiu dois terços no período 1928-
de livros e o trabalho tipográfico continuavam sendo seus
1932, passando de 995 para 302 toneladas. Às importações
principais interesses — a oficina possuía agora vinte lino-
de Portugal diminuíram três quartos (72,7%) nesse período,
tipos - mas a parte editorial já estava muito bem implantada,
caíndo de 154 toneladas, em 1928, para 42 em 1932, quando
com uma produção de cerca de quinhentos títulos. Érico Ve-
então teve início uma gradual recuperação, à medida que a
ríssimo foi aos poucos se afastando da Revista, cuja direção
taxa de câmbio do escudo estabilizou-se (cf. tabela 9, p. 848).
transferira a De Souza Júnior, para tornar-se consultor edito-
As vendas brasileiras de livros franceses reduziram-se um
rial de Henrique. Foi desse modo que entrou, na indústria do
pouco menos no início: de 314 toneladas, em 1928, caíram
livro no Brasil, a figura do editor profissional, que funcionava
dois terços (68,8%), para 98 toneladas, em 1932 (talvez uma
como editor da obra sem ser dono da editora. O papel pionei-
clientela mais rica tivesse melhores condições de resistir à ne-
ro de Veríssimo nessa função veio a generalizar-se somente
cessidade de fazer sacrifícios imediatos), mas, nesse caso, a
décadas mais tarde, exemplificado por Pedro Paulo de Sen-
queda prosseguiu e atingiu um declínio máximo em 1936,
na Madureira (primeiro na Nova Fronteira, cf. $196) e por
com apenas 19 toneladas de livros franceses importados;
Sérgio Flaksman (diretor editorial da Record). Somente em
94% abaixo de 1928, o último ano “normal”.
1972 foram criados, no Brasil, cursos de editoração, implan-
Pela primeira vez desde o início do século x1x, o livro bra-
tados em algumas faculdades de comunicação'º,
sileiro — vendido a mais ou menos 68000 para um romance
normal —- tornava-se competitivo em seu próprio mercado na-
Graças à influência de Veríssimo, a programação da
Globo no campo literário ganhou qualidade. Mas a ênfase
cional. Era a grande oportunidade para uma editora nacional
em autores anglo-americanos (e outros anglófonos) se man-
de ficção traduzida. A Livraria Globo aproveitou-a. Outros
teve: John Galsworthy, Joseph Conrad, G. K. Chesterton,
logo a acompanharam —a Athena Editora, do Rio, por exem-
Somerset Maugham, Willa Carher, Edith Wharton, Kathe-
plo, fundada em 1935; a Globo, porém, tendo saído na dian-
rine Mansfield, Sinclair Lewis, James Joyce, Aldous Huxley,
teira, iria manter uma situação de proeminência nesse campo
Robert Graves, John Steinbeck, William Faulkner, Graham
até a década de 1950. Para compensar sua posição geográfica,
Greene, Charles Morgan, Liam O'"Flaherty e Virginia Woolf,
tão distante das duas cidades centrais onde se encontravam os
ao lado de outros mais leves, muito lucrativos, como Vicki
concorrentes, já em 1943, Bertaso empreendeu uma viagem
Baum (Hotel Berlim), Louis Bromfield (As Chuvas Vieram,
para abrir escritórios no Rio e em São Paulo e recrutar agentes
Noite em Bombaim), Pearl Buck (The Good Earth apareceu
distribuidores em Salvador, Recife e Natal.
em 1939 com o título China, Velha China)", Norman Dou-
No início, o empreendimento editorial era puramente co-
mercial, é Henrique Bertaso encontrou no Publishers Weekly
americano uma fonte adequada onde procurar possíveis
ro. Cf. “Editoração — Livro: Mercado em Expansão”, Revista de Co-
best-sellers. Em consequência, a maior parte dos primeiros municação, vol. 1,n. 3, Pp. 14-16, 1985, e “Os Executivos do Livro:
sucessos da Globo originou-se da mania anglo-americana A Imaginação contra a Crise Econômica: Debate [entre diretores edi-
de histórias policiais, que sua Coleção Amarela trouxe, em toriais]”, coordenado por Marília Pacheco Fiorillo e Mário Sabino
grande parte, para o Brasil, oferecendo traduções em portu- Filho, Folhetim (Folha de S.Paulo), n. 4$1, pp. 3-XT, 15 set. 1985.
guês de E. C. Bentley, Raymond Chandler, Agatha Christie, TT. Érico Veríssimo, no seu Um Certo Henrique Bertaso (Porto Ale-
Sidney Horler, E. Phillips Oppenheimer, Ellery Queen, Sax gre, Globo, 1972, p. 105), narra como, em carta à autora norte-ame-
ricana de grande êxito, Pearl Buck, apresentou sua editora como uma
pequenina empresa perdida no fim do mundo e conseguiu dela, como
9. É bem provável que o governo brasileiro permitisse a entrada de
ato de caridade, direitos de tradução em português totalmente grátis.
livros em português mais livremente do que daqueles em francês.
442 Bertaso e Veríssimo
Bertaso e Veríssimo 443
glas (Vento Sul), James Hilton (Adeus Mr. Chips), Richard Veríssimo recaiu sobre obras de Ibsen, Juan Ramón Jiménez,
Llewellyn (Como Era Verde o Meu Vale). Giovanni Papini, Pirandello - todos em sua Coleção No-
Pode ser que essa preponderância de traduções do inglês bel - Púchkin e Tolstói. Por pura sorte, o Guerra e Paz, deste
se tenha devido, pelo menos em parte, ao Publishers Weekly e último autor, apareceu logo após o início da campanha de
aos consequentes contatos com agentes literários dos Estados Hitler na Rússia, numa tradução de Gustavo Nonnenberg,
Unidos. É possível que a própria novidade da literatura anglo- em dois volumes. À Globo também adquiriu os direitos para
“americana, para a maioria dos leitores brasileiros, a tenha o Brasil do Livro de San Michele, de Axel Munthe, reminis-
tornado uma linha atraente para a editora. E a própria pre- cências de um psiquiatra sueco que, embora pouco ou nada
ferência de Veríssimo foi fator importante. Qualquer que te- literário, teve o mérito de ser, nos anos de 1930, o mais lu-
nha sido a razão, esse fato assinala um estágio significativo crativo lançamento da casa na linha não didática ou técnica.
no declínio da influência cultural francesa no Brasil e no sur- Não que os livros franceses tivessem sido totalmente
gimento da influência dos Estados Unidos, pois mesmo a in- rejeitados — a viagem de 1936 incluiu a França, além da
clusão de tantos autores ingleses não era mais que um reflexo Inglaterra, Alemanha e Itália —, mas um número muito pe-
da importância e prestígio de que gozavam então no cenário queno de autores modernos foram traduzidos: André Gide
editorial norte-americano. O Handbook of Latin American (O Imoralista), Romain Rolland (Jean Christophe) e Roger
Studies para 1940 arrolou, naquele ano, 52 traduções brasi- Martin du Gard (Os Thibault e Jean Barois) são os mais des-
leiras dignas de nota, 24 das quais eram de autores britânicos tacados. Autores mais distantes no tempo, como Montaigne,
ou americanos, e apenas 20 de franceses. Marie-Madeleine de La Fayette (A Princesa de Clêves), La-
Em muitos casos, a influência decisiva era Hollywood. clos (As Ligações Perigosas), Voltaire, Stendhal, Flaubert,
As décadas de 1930 e de 1940 estão repletas de exemplos Maupassant e Verlaine, estavam bem representados na Bi-
de “o livro do filme”. Curiosamente, os dois de maior su- blioteca dos Séculos. Nela, saiu até mesmo a Comédia Hu-
cesso foram publicados por outras editoras. Gone with the mana completa, em dezoito volumes, cada um com 500-600
Wind (E o Vento Levou...), de Margaret Mitchell, coube à páginas e com um prefácio de um crítico contemporâneo
Pongetti, em 1939 ($140). Rebecca, de Daphne du Maurier, de Balzac: Taine, Saint-Beuve, Brunetitre, Thibaudet etc.
saiu pela Nacional, no ano seguinte, em tradução de Lígia Nelson Werneck Sodré, falando dessa edição, considerou-a
Junqueira Smith e Monteiro Lobato. Outro livro de 1940, a maior realização da empresa na década de 1940 e elogiou
Eu, Claudius, Imperador, de Graves, traduzido para a Globo especialmente o trabalho de coordenação geral e direção
por Mário Quintana, foi um sucesso, ainda que o filme — que editorial da obra, a cargo de Paulo Rónai:
seria estrelado por Charles Laughton e Merle Oberon — te-
nha sido abandonado! Contudo, não houve o mesmo inte- Balzac [...] encontrava agora |...] um conhecedor de suas minúcias
resse em relação aos livros sobre estrelas: o Boa Noite, Sua- e das suas riquezas, capaz de analisá-la e capaz, acima de tudo, de
ve Príncipe, da Globo, biografia de John Barrymore (1943), coordenar intelectualmente o empreendimento de grande propor-
não teve repercussão no Brasil. ções que era escolher tradutores, selecionar, no patrimônio univer-
Já em 1936, Henrique Bertaso estava viajando pela Eu- sal, estudos críticos, anotar, além de superintender a preparação
ropa para negociar a compra de outros direitos. Não cons- integral dos textos”,
titui surpresa que a Globo, sendo uma editora sediada no
Rio Grande do Sul, tenha traduzido também muitos autores Um brilho quase igual teve a publicação, no início da dé-
de língua alemã, desde Franz Kafka, Thomas Mann, Lion cada de 1950, de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel
Feuchtwanger (O Judeu Sitss) e Erich Maria Remarque, até Proust, em sete volumes, traduzido por figuras literárias emi-
aquele sempre popular autor de westerns, Karl May. Um nentes como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de An-
resultado direto da viagem de Bertaso foi a publicação de
Minha Luta, obra escrita pelo então novo chanceler alemão,
Adolf Hitler. De outras literaturas, a escolha de Henrique e 12. Nelson Werneck Sodré, op. cit.
444 Bertaso e Verissimo Bertaso e Veríssimo 445
drade, Mário Quintana e Lúcia Miguel-Pereira. Essa obra foi por exemplo, evitando linguagem indelicada, no francês, ou
reeditada em 1981. amenizando o anticlericalismo, no espanhol. O aumento da
A Biblioteca dos Séculos publicou também traduções de influência norte-americana no Brasil, nos anos de 1940 €
Platão, Shakespeare (Romeu e Julieta), Fielding (Tom Jo- 1950, igualou o idioma inglês ao francês no que respeita a

e
nes), Emily Brontê, Charles Dickens (Grandes Esperanças), conhecimento e utilização, mas isso não alterou basicamente
Nietzsche e toda a obra de Edgar Allan Poe, em três volumes o quadro existente. Por volta de 1980, por exemplo, a Civili-
(Poesia e Prosa), a poesia traduzida por Milton Amado e a zação Brasileira publicou alguma ficção japonesa, traduzida
prosa por Oscar Mendes. das versões norte-americanas. Embora o Centro de Estudos
Publicou-se, também, uma coleção de livros para crian- Nipo-brasileiros tivesse publicado bem antes alguma litera-
ças, que abrigou clássicos como A Ilha do Tesouro, de tura japonesa em tradução direta do original por Antônio
Robert Louis Stevenson, Os Meninos d'Água, de Charles Nojiro, a Civilização foi pioneira como iniciativa de editora
Kingsley, Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, comercial; e a tradução indireta certamente foi considerada
de Lewis Carroll, Heidi, de Johanna Spyri, ilustrada em co- mais conveniente, presumivelmente porque os tradutores
res por João Fahrion, e as obras de Hans Christian Ander- japoneses no Brasil podem, em geral, exigir remuneração
sen, ilustradas por Nelson Boeira Faedrich. superior à capacidade de absorção de custos de um romance
de quatro mil exemplares, ou menos. O principal defeito do
inglês como-veículo de intermediação de tradução é sua im-
$128 AS TRADUÇÕES DA GLOBO precisão (como a ênfase é dada mais pela entoação do que
pela ordem das palavras, na forma impressa não aparece
Um programa dessa monta obrigou a Livraria Globo a en- qualquer pista; a falta de formas gramaticais distintivas €

eee
frentar o estado insatisfatório da tradução no Brasil. O pa- usos como o de um subjuntivo verbal ou de uma forma fa-
drão sempre fora muito baixo. Antes de 1940, o reduzido miliar para a segunda pessoa criam ambiguidades...). Além
mercado livreiro limitava os orçamentos das editoras, o que disso, em comparação com outras línguas europeias, o in-
acabou por estabelecer uma tradição, que perdura até hoje, glês representa uma cultura consideravelmente afastada do
de que a tradução é um trabalho subalterno e mal remune- padrão romano (e, portanto, do luso-brasileiro) em campos
rado ($61). À escassez de tradutores competentes em outras como os do direito, administração, política e religião.
línguas além do francês e do espanhol aumentava a distorção Esse problema do uso de um terceiro idioma como in-
decorrente da utilização de uma versão nessas línguas como termediário pode acontecer também no sentido contrário.
intermediária para a tradução. O francês é veículo excelente
E

À versão sueca de Os Sertões, por exemplo, foi feita a partir


para transmitir o sentido literal de um texto, mas positiva- da tradução norte-americana de Samuel Putnam, Rebellion
mente elimina muitas nuanças da sua expressividade”, en- in the Back Lands.
quanto o espanhol é tão parecido com o português que pode O desempenho da Globo nas traduções, junto com o de
facilmente contaminar o estilo e a língua. Semelhante mé- outras editoras, em particular a José Olympio, levou Paulo
todo reproduzirá, além dos erros involuntários do primeiro Rónai a designar os anos de 1940 “a idade de ouro da tradu-
tradutor, as modificações que tenha feito deliberadamente: ção no Brasil”. Não obstante, Érico Veríssimo, ele próprio
tradutor de muitas obras para a Globo, de Aldous Huxley a
Edgar Wallace, estava cada vez mais insatisfeito com o nível
13. Um exemplo simples da possibilidade de uma tradução sofrer
geral dos trabalhos; no entanto, o negócio editorial no Brasil
distorção na passagem pelo francês seria a palavra russa Gá6yuixa,
diminutivo de 6a6a, que se traduz no francês por petit grand'mêre, ainda era precário e pouco se poderia fazer, na década de
porque não existe nesse idioma o diminutivo por inflexão. O tradu- 1930, para diminuir essa deficiência. Foi quando a Segunda
Guerra Mundial provocou uma súbita e desconhecida pros-
O

tor para o português, por não se dar conta dessa falha, porá o literal
pequena avó em vez do afetivo avozinha, que teria sido o equivalente peridade no negócio de livros ($153), gerando recursos para
o O(OOOe—

exato e idiomático do termo russo. atacar o problema. À editora contratou como empregados

446 Bertaso e Veríssimo Bertaso e Veríssimo 447
permanentes alguns tradutores — como Leonel Valandro, de títulos disponíveis. Oportunidades de publicar certas
Juvenal Jacinto, Herbert Caro e Homero de Castro Jobim — obras não foram aproveitadas, ou se perderam em benefício
podendo cada um especializar-se nas línguas de sua com- de Lisboa - como aconteceu, por exemplo, com O Pequeno
petência, além do estímulo de terem seu trabalho citado na Mundo de Don Camilo, de Guareschi — e o que foi produzi-
página de rosto. Todas as traduções eram submetidas a uma do perdeu vendas devido à demora na publicação.
cuidadosa revisão em dois estágios: primeiro, uma revisão As coisas melhoraram durante os anos de 1960. Os paga-
técnica para verificação da sua correspondência literal com mentos de direitos autorais estrangeiros por editoras brasilei-
o original e, em seguida, uma revisão, a cargo de um segundo ras passaram de us$647 000, em 1960, para US$12153 000,
especialista, com vista a assegurar a fidelidade estilística e a em 1968. Nesse ano, foram traduzidas 281 obras literárias (de
qualidade do português'4, um total de 698 títulos traduzidos), 448 (de um total de 1037)
Infelizmente, o custo de um trabalho tão completo era em 1970 € 1995 em 1979 (de um total geral de cerca de 4380
por demais elevado para poder sobreviver à virada econô- traduções). No entanto, parece que a Globo, como firma in-
mica do fim da Segunda Guerra Mundial: embora a Glo- dependente, nunca mais recuperou o antigo interesse, Seu ca-
bo continuasse a empenhar-se em manter um alto padrão tálogo de r980 apresentou cerca de quarenta autores literá-
em suas traduções, esse método de revisão, tão elaborado, rios estrangeiros, mas somente oito deles (Borges, Pearl Buck,
teve de ser abandonado em 1947. Posteriormente, no início Diirrenmatt, Greene, Aldous Huxley, Lagerkvist, Maugham e
dos anos de r9so, o rigor do governo brasileiro no contro- Rilke) estão representados por mais de um título cada um. À
le da remessa de divisas para o exterior foi tornando cada empresa especializava-se em outras áreas.
vez mais difícil o pagamento de direitos de tradução ($163).
Em consequência, houve um rápido declínio no número de
publicações, pela Globo, de literatura traduzida. Em 1959, LIVROS DIDÁTICOS E DICIONÁRIOS $129
o periódico Boletim Bibliográfico Brasileiro do setor livreiro
lamenta o pequeno número de escritores estrangeiros impor- Em r941, Veríssimo, então um dos mais destacados autores
tantes que estavam sendo publicados no Brasil, e cita alguns do Brasil, aceitou um convite oficial para lecionar nos Es-
que já haviam sido colocados ao alcance do público através tados Unidos. Essa temporada que passou na América do
das edições da Globo, como Thomas Mann e André Gide, Norte ele descreveu em Gato Preto em Campo de Neve. No
e que agora só podiam ser lidos em versões importadas de regresso, passou a dedicar-se cada vez mais a escrever. De
Portugal. Sobre Faulkner, afirma o Boletim ser “quase com- 1943 a 1945 ede 1952 a 1956, voltou aos Estados Unidos:
pletamente desconhecido aqui”'s. Diga-se de passagem que no primeiro período, para lecionar na Universidade da Ca-
Herbert Caro, tradutor da Globo de 1939 a 1948, tornou-se lifórnia e, no segundo, para ocupar o cargo de diretor da
depois um livreiro e publicou um livro muito interessante divisão cultural da Organização dos Estados Americanos,
sobre esse ramo de negócio do ponto de vista do varejista'*. em substituição a Alceu Amoroso Lima. Nesse meio tempo,
Ele reconhece ter havido uma melhora geral de qualidade falecera José Bertaso (1948) e, em 1956,a Globo, ao atingir
nas traduções brasileiras, mas lamenta o número reduzido sua edição nº 2000, a contar de 1930, decidiu transformar
a parte editorial numa empresa legalmente distinta. Nasceu,
assim, a Editora Globo como sociedade autônoma. Daí por
14. Algo muito parecido aconteceu com a preparação, pela T. A. Quei- diante, a ligação de Veríssimo com a Globo, “tecnicamente
roz, da primeira edição do presente livro, com a precaução adicional pelo menos, se não sentimentalmente”"”, ficou reduzida a
de dar ao próprio autor a tarefa final da correção das provas impressas.
15. Boletim Bibliográfico Brasileiro, vol. 7,n. 10, p. 476, nov. 1959.
um ou outro convite para opinar sobre política editorial, O
Segundo Ênio Silveira, Faulkner tornou-se conhecido da elite intelec- escritor voltou ao exterior entre 1958 e 1961 €, pouco tem-
tual do Rio de Janeiro principalmente por meio das versões espanho- po depois do regresso, sofreu uma trombose que por pouco
las da Claridad, de Buenos Aires.
16. Herbert Caro, Balcão de Livraria, Rio de Janeiro, MEC, [1955]. 17. Érico Veríssimo, Um Certo Henrique Bertaso, op. cit., p. 93.
448 Bertaso e Veríssimo Bertaso e Veríssimo 449
não o levou à morte. Em 1972, publicou um relato sobre sua golpe, todos os seus livros didáticos para o nível secundário.
longa ligação com a Livraria e Editora Globo, sob a forma Por muitos anos depois, a Globo preferiu concentrar-se no
de homenagem a Um Certo Henrique Bertaso. Morreu em campo mais estável da educação superior. Posteriormente,
28 de novembro de 1975. Henrique, que algum tempo an- voltou a ingressar no mercado para o nível elementar e a
tes já tinha passado o controle dos negócios aos filhos José tal ponto que, no início dos anos de 1970, este segmento
Otávio, Fernando e Cláudio, faleceu em 26 de maio de 1977. editorial já era sua principal atividade. Depois, as reformas
Os interesses da Globo jamais estiveram totalmente vol- de 1972 deixaram-na com cinquenta toneladas de livros di-
tados para a ficção e a literatura em geral. Como a maioria dáticos inúteis, e ela novamente resolve dar menos atenção
das editoras provincianas, também publicou ocasionalmen- à área do ensino primário e secundário. Assim, na década de
te, desde o início de suas atividades editoriais, livros didá- 1980, os livros didáticos para o nível fundamental represen-
ticos para uso local e, quando a Revolução de 1930 abriu tavam apenas cerca de um décimo do seu catálogo.
novas perspectivas, ingressou resolutamente no campo Na realidade, depois da Segunda Guerra Mundial, a Glo-
educacional. A década de 1920 havia testemunhado diver- bo tornou-se mais conhecida por seus livros técnicos — como
sos esforços locais esporádicos — a chamada Escola Nova o Manual do Engenheiro Globo — e por suas obras de refe-
($114) — para melhorar a educação que era então oferecida, rência, particularmente a linha de dicionários. O interesse da
lamentavelmente insatisfatória. À revolução trouxe a opor- Globo por esse campo vem desde a década de 1930 e parece
tunidade de uma coordenação desses esforços e permitiu ter crescido naturalmente a partir do extenso envolvimen-
a aplicação, em nível nacional, daquela nova abordagem to com a tradução. O notável Dicionário Inglês-Português
educacional. Quase imediatamente foi criado um Ministério (1954), com sessenta mil verbetes, agora em sua terceira revi-
da Educação (decreto n. 19 402, de 14 de novembro). Cin- são, foi obra dos irmãos Valandro. Leonel Valandro tinha in-
co meses depois, em 18 de abril de 1931, 0 novo ministro, gressado na empresa como modesto tradutor de novelas po-
Francisco da Silva Campos, dava início à grande reforma que liciais e foi promovido a encarregado de traduções de obras
leva seu nome. Campos foi descrito como “talvez o único literárias em reconhecimento da superior qualidade de seu
ideólogo de peso que teve oportunidade de experimentar na trabalho, Entre outros importantes lexicógrafos da Globo
prática uma filosofia de educação voltada para os problemas encontram-se: Francisco Fernandes (Dicionário de Verbos e
conjunturais”'*, Basicamente, era um elitista, que se voltou Regimes, Dicionário de Sinônimos e Antônimos), Eugênio
firmemente para a extrema direita política; foi quem, mais Furstenau (Dicionário de Termos Técnicos Inglês-Português)
tarde, redigiu tanto a Constituição fascista de 1937 como e Iris Strohschoen (Dicionário de Termos Comerciais Inglês,
o Ato de abril de 1964 que institucionalizou o regime mili- Francês, Alemão). Podemos citar ainda a Enciclopédia Bra-
tar. Não obstante, preocupava-se seriamente em instituir um sileira Globo, em treze volumes, iniciada doze edições atrás,
sistema nacional de ensino elementar gratuito e satisfatório. em 1943, com o Dicionário Enciclopédico Brasileiro Ius-
Quanto à educação secundária, sua reforma, ao dar maior trado, de Álvaro Magalhães, e que se afirma ser a primeira
importância às ciências, tinha em vista, primordialmente, a enciclopédia inteiramente brasileira publicada.
modernização do currículo. Como no caso de Edgard Cavalheiro, Francisco Fernan-
A reforma atraiu a Globo para o mercado do livro di- des (1900-1965) — que antes era editado pela Civilização
dático e, sob a direção de Álvaro Magalhães, a empresa Brasileira — ingressou na Globo na época da Segunda Guerra
lançou-se à elaboração sistemática de uma série de livros Mundial, atraído pelo grande desempenho e perspectivas da
para cada assunto do currículo, preparados por professores casa. Entrou na Seção de Dicionários e Enciclopédias em
de reconhecido prestígio. Dez anos mais tarde, porém, outra 1940, um departamento significativo graças à elaboração
reforma, a de Capanema ($118), tornou obsoletos, de um só da primeira enciclopédia por especialistas brasileiros, a En-
ciclopédia Globo (1943), e onde contribuiu com sua mais
18. Lauro de Oliveira Lima, Estórias da Educação no Brasil, de Pombal notável realização: a organização do imponente Dicionário
a Passarinho, 2. ed., Rio de Janeiro, Editora Brasília, [19752]. Brasileiro Globo, publicado ininterruptamente desde 1952.
e—
4so Bertaso e Veríssimo Bertaso e Veríssimo 451
intensa realização literária não tivesse publicado mais do

e
Já em fins da década de 1930, a Globo firmara-se como
uma das principais editoras do país, com produção de mais que dois novos autores nacionais importantes: Vianna Moog

Lo
de cem títulos por ano. Edgard Cavalheiro (biógrafo de Mon- eo próprio Érico Veríssimo. Ambos eram do Rio Grande do
Sul e, de fato, nesse período (década de 1930 e começo dos

im
teiro Lobato) ficou tão impressionado com seu desempenho
que, em 1943, abandonou o emprego na Livraria Martins anos de 1940), a Globo publicou considerável número de

e it
Editora e tornou-se representante da Globo em São Paulo, autores locais, mas, com exceção daqueles dois, não havia
apesar de Nelson Werneck Sodré ter procurado dissuadi-lo outros nomes novos de significação nacional.
dessa atitude, argumentando que, na Globo, considerações À carreira de Veríssimo como autor teve início em 1928,

e
meramente comerciais costumavam ter precedência sobre as quando Bernardi aceitou seu conto “Ladrão de Gado” para

e
culturais; o que, decerto, pode explicar por que a casa gaú- publicação na Revista da Globo. O primeiro livro, Fan-
cha sobreviveu a tantos concorrentes. Cavalheiro teria con- toches, foi uma coletânea de contos e peças já publicados
cordado, talvez, se pudesse ter previsto o modo abrupto com anteriormente, que Henrique Bertaso aceitou publicar em

TT
que seria despedido em 1953. Naquele momento, porém, 1932. Da edição de rçoo exemplares, foram vendidos ape-
estava empolgado pelo entusiasmo demonstrado na citação nas quatrocentos, mas o livro acabou dando lucro graças

0
de abertura deste capítulo, Mais tarde, foi gerente da Cultrix ao dinheiro do seguro, quando os exemplares não vendidos
($106) e ali introduziu uma série de traduções literárias que foram providencialmente destruídos num incêndio do de-
bem pode ter sido inspirada em sua experiência na Globo. pósito! Clarissa (1933) foi mais um início frustrante. Veio

PR
Três anos antes, uma visitante canadense deixara-se à luz na Coleção Globo ($197), uma série econômica que
igualmente empolgar, O relato de viagem de Vera Kelsey de reunia ficção popular e clássica, cujo reduzido preço de capa

ie
1940, Seven Keys to Brazil, destaca a empresa numa menção exigia uma tiragem, bastante grande para a época, de sete
especial, ainda que ligeiramente imprecisa, como representa- mil exemplares. Demorou cinco anos para o livro esgotar-se

Sm
tiva do espírito progressista do Rio Grande do Sul: e, ainda assim, porque os últimos três mil exemplares foram
liquidados como saldo. A fama — senão o êxito comercial —

cmi
Estabelecida há cerca de cinquenta anos, por dois jovens, numa sali- chegou com Caminhos Cruzados (1935), que suscitou am-
nha de um pequeno prédio, expandiu-se de sala em sala, de andar em pla manifestação da crítica e recebeu o prêmio anual de ro-
andar e, finalmente, de prédio em prédio, até chegar a ocupar todo mance conferido pela Fundação Graça Aranha, além de ter
um edifício com sete pavimentos, no momento em que foi necessária e sido agraciado, pelo Handbook of Latin American Studies,
uma estrutura nova e maior. Hoje uma das mais importantes editoras de Washington D. C., com a distinção de “o melhor do ano”.
do continente, lança um livro por dia em português, inglês, alemão ou Todavia, muitos críticos brasileiros foram menos bondosos.
italiano, e orgulha-se de que, no mesmo dia em que um novo volume Henrique segurou os originais do livro por muito tempo an-
cam

de Stefan Zweig [que, infelizmente para o relato de Miss Kelsey, foi tes de arriscar-se à sua publicação; assim, foi lançado somen-
publicado pela Guanabara Koogan, do Rio] é publicado na América te depois da publicação de Point Counterpoint, de Huxley
nt

do Norte ou na Europa, aparece também em Porto Alegre...'?. (1933), na tradução de Veríssimo.


Isso fez com que alguns críticos o acusassem de mera imi-
ao

tação, ignorando que semelhante técnica já tinha sido em-


pregada por Gide, em Les faux monnayeurs, e por John dos
ame mea

$130 LITERATURA BRASILEIRA


Passos, em Manhattan Transfer. No entanto, a publicidade,
À empresa não tinha o mesmo elevado conceito junto à apesar de adversa, despertou o interesse do público, e não só
intelligentsia brasileira. Esta lamentava - com algum fun- pelo romance de Veríssimo — as vendas foram subindo pouco
damento, mas com pouca justiça — que em uma década de a pouco até atingir dezoito mil exemplares em seis edições,
O

em 1943 —, mas também pela tradução de Contraponto. Em


———

19. Vera Kelsey, Seven Keys to Brazil, Nova York, Funk and Wagnalls, 1943, a MacMillan de Nova York publicou Crossroads, tra-
1940, p. 239. dução de Caminhos Cruzados, que, na referência feita por Ve-
O

452 Bertaso e Verissimo Bertaso e Veríssimo 453

ríssimo, constitui o trabalho de “um modesto funcionário do Esses triunfos pessoais tornaram-no muito mais sensível
correio de Chicago [Lewis C. Kaplan], que havia aprendido à crítica segundo a qual a Globo desprezava autores nacio-
português sozinho, lendo alguns livros meus com o auxílio de nais, de tal forma que, em 1943, convenceu Henrique Bertaso
um dicionário”, Uma versão espanhola, Caminos Cruzados, a confiar a Maurício Rosenblatt, que ele mesmo recrutara
de Ana Rivas, foi publicada por Santiago Rueda, de Buenos para a Globo, a representação da editora no Rio de Janeiro.
Aires, em 1944, e, em 1945, a MacMillan publicou Brazilian Esperava-se que pudesse recrutar bons autores para a Glo-
Literature: An Outline, pequena introdução de Veríssimo às bo e, simultaneamente, desenvolver um trabalho de relações
letras brasileiras para norte-americanos. públicas. De fato, Maurício conseguiu contratar autores de
Também em 1935, Veríssimo escreveu uma bela Vida de reputação nacional para o desenvolvimento de prestigio-
Joana d'Arc, lançada a 198000. Depois, publicou algumas sos projetos de tradução. Já fizemos menção, anteriormen-
histórias na Biblioteca de Nanquinote, uma grande coleção te, à Comédie humaine e A la recherche du temps perdu. E
de livros ilustrados, e, em seguida, lançou, em nível juvenil, convenceu Cecília Meireles a traduzir Orlando, de Virginia
Aventuras de Tibicuera (1937), Viagem à Aurora do Mun- Woolf. Não teve, porém, quase nenhum êxito em obter tra-
do e Aventuras no Mundo da Higiene (ambos de 1939). balhos originais de qualquer autor de importância. Cecília
Nesse meio-tempo, haviam aparecido mais dois romances Meireles, com Mar Absoluto, parece ter sido a única exceção.
para adultos: Música ao Longe (continuação de Clarissa), Era de esperar. Mesmo considerando a importância po-
em 1935,e Um Lugar ao Sol, em 1936. Foi então que che- lítica agora muito maior do Rio Grande do Sul, ainda era
gou, finalmente, o verdadeiro sucesso com Olhai os Lírios extraordinário o fato de uma editora sediada tão longe do
do Campo, romance que o Handbook of Latin American centro ter podido estabelecer-se tão firmemente no cenário
Studies qualificou de uma “visão [socialista] da singulari- nacional. Era bastante improvável que os principais autores
dade da humanidade”. A primeira edição de três mil exem- de literatura do Brasil pudessem ser convencidos a abandonar
plares esgotou-se em duas semanas após o lançamento, em as editoras da capital política e intelectual do país, particu-
1º de julho de 1938,e, em 1941, livro estava em sua nona larmente quando uma delas era do calibre da José Olympio.
edição. Depois disso, Veríssimo tornou-se, para o êxito co- Como Veríssimo foi forçado a concordar:
mercial da Globo, um fator quase tão importante quanto
Jorge Amado vinha sendo para o da Martins, de sorte que Maurício fez um excelente trabalho nesse sentido durante o tempo
para o romance seguinte, Saga (1939), a tiragem inicial em que permaneceu no Rio de Janeiro. Cedo, porém, descobriu
foi de vinte mil exemplares. Em 1947, Olhai os Lírios do que os melhores escritores nacionais preferiam ser lançados por
Campo foi distinguido com uma versão publicada em Nova editoras cariocas e seria impossível — e fútil - querer “destronar”
York, Consider the Lilies of the Field, em tradução de Jean nosso amigo José Olympio, o editor que então lançava escritores
N. Karnoff. Dois anos depois, apareceu o primeiro volume brasileiros novos...**,
de um sucesso ainda maior: O Tempo e o Vento, uma histó-
ria romanceada do Rio Grande do Sul. Este roman-flenve, É para o Rio de Janeiro e para as circunstâncias que fi-
concebido originalmente como uma trilogia, acabou sendo zeram de José Olympio o editor par excellence da literatura
concluído no sétimo volume, em 1963, nacional nos anos de 1930 e no início dos anos de 1940 que
devemos voltar agora a nossa atenção, registrando, como
fecho deste capítulo, que até mesmo o próprio filho de Érico
29, Érico Veríssimo, Ficção Completa, op. cit., vol. 3, p. 74. Veríssimo, Luís Fernando, iria finalmente tornar-se um autor
21. Exemplos de outros sucessos posteriores de Veríssimo: Israel em
Abril (janeiro de 1970) alcançou, em apenas um mês, o segundo lugar da José Olympio (Luís Fernando voltou por pouco tempo
na relação dos mais vendidos do Correio do Livro; Incidente em Anta- para a Globo, com sua coleção de crônicas, O Rei do Rock,
res (fins de 1971) vendeu quinze mil exemplares no lançamento, mais
cinco mil na semana seguinte, foi o quarto na lista dos mais vendidos 22. Érico Veríssimo, “Breve Crônica duma Editora de Província”, O
em novembro, o terceiro em dezembro e o primeiro no início de 1972. Estado de 8. Paulo, p. 3,2 abr. 1972 (Suplemento Literário).
ce
sia
454 Bertaso e Veríssimo Bertaso e Veríssimo 455

——
editado em 1978, mas desde 1979 começou a ser publicado Globo, que, desejando aumentar suas atividades no campo
pela Codecri e pela Companhia das Letras, a qual em 2000 do livro, optou pela compra da editora para substituir a Rio

O
lançou Borges e os Orangotangos Eternos). Gráfica, apenas porque ambas tinham, por acaso, o mesmo

mm
No capítulo sobre a Nacional, fiz referência a certos nome e símbolo comercial!:* Naquele tempo, a editora tinha
títulos antissemitas publicados pela Globo na década de alcançado a cifra de 2 830 títulos publicados.

e
1930. Para fazer justiça, quero deixar claro que a política Atualmente, a editora, depois de mudar-se para São

Ti
da casa a esse respeito foi, puramente, uma resposta co- Paulo, tem 520 títulos ativos no catálogo e, segundo o dire-
mercial à demanda do mercado. Naquela mesma época, tor de marketing, Heitor Paixão, seus diretores procuram

o 2
a editora também lançou muitos livros de autores judeus: “seguir mais ou menos as mesmas premissas editoriais da
Franz Kafka, Emil Ludwig, Stefan Zweig, por exemplo. Foi [antiga] Editora Globo, mas um pouco mais preocupados
ameaçada de processo pela representação diplomática ale- com o mercado”*s,
mã porque, na edição da tradução de Minha Luta, de Hi- Não nos é lícito deixar de fazer breve menção à editora
tler, foi dada destacada publicidade, nas orelhas do próprio paulistana Catavento, atualmente dirigida por Manuel Au-

O e
volume, ao livro Napoleão, de Emil Ludwig e a outro de gusto Pires, que se originou como filial da Globo, comprada
Feuchtwanger! Para desculpar-se, substituíram, na edição por seu próprio pessoal,
seguinte, os livros anunciados pelo Judeu Internacional, de
Henry Ford, mas, ao lado deste, apareceu a chamada de

ii
Catarina 11, outro livro de Ludwig! Antes que a embaixada
alemã reagisse, o Brasil entrou na guerra ao lado dos Alia-

a
dos (22 de agosto de 1942), e o Di? mandou queimar toda
a edição: Minha Luta permaneceria proibido no Brasil até
os anos de 1980 (cf. $r63).

o
Nos anos de 1960, teve início um declínio, com o núme-

DS mms
ro de novos lançamentos caindo de quarenta para apenas
seis por ano.
No ano de seu centenário (1983), 45 % das ações estavam
de posse dos três netos de José Bertaso. Uma reestruturação
administrativa, iniciada en 1980, dispensou as subsidiárias
Globo Distribuidora,
JB Propaganda e a Cia. Sul-Americana
de Direitos Autorais, reduziu a área da sede e da livraria no
CT

centro de Porto Alegre de 3 500 m? para 2000 m? e começou


a construção de uma nova sede, de 3000 m?, na avenida
Brasil, no Rio de Janeiro, para onde já havia se mudado em
1979. Foram abertas sete lojas pelo sistema de franquia, com
o projeto de abertura de outras lojas em Santa Catarina e no
Paraná”, Parece, no entanto, que tais medidas não deram re-
sultado. O destino final da Editora Globo foi sua aquisição, 24. José Otávio Bertaso, A Globo da Rua da Praia, São Paulo, Globo,
O a

em outubro de 1986, pela Rio Gráfica, editora (principal- 1993; uma história da casa por um dos filhos de Henrique Bertaso, com
mente de revistas) da formidável organização de mídia Rede apresentação de Luís Fernando Veríssimo, filho de Érico Veríssimo.
25. Heitor Paixão, “Editora Globo,” Anuário Editorial Brasileiro,
PP. 79-83, 1988. Segundo Paixão, a aquisição realizou-se em 1982.
23. Cf. Inácio Luiz Soares, “Globo, o Cruel Sinal dos Tempos”, O Isso me surpreende, já que visitei a Editora Globo em 1983 sem
Estado de 8. Paulo, To jul. 1983, e “Reeditando o Antigo Sucesso”, encontrar qualquer indicação de que a casa não pertencia mais à
Exame, n. 294, Pp. 59-61, 8 fev. 1984. família Bertaso.
José Olympio
gt
Um país se faz com homens e livros.

Frase de MONTEIRO LOBATO adotada como


lema pela Livraria José Olympio Edirora

Há dois nomes, na história do livro neste


País - Monteiro Lobato e José Olympio.

ANTÔNIO CARLOS VILLAÇA,


biógrafo de José Olympio'

O PANORAMA EDITORIAL DO RIO NA DÉCADA DE 1920 $r31

ro
Mesmo que, em 1920, 0 Rio de Janeiro fosse quase duas
vezes maior do que São Paulo, ainda assim não se igualava
à capital paulista na atividade livreira (nem na vida cultural
como um todo). Não contando os “sebos”, o Rio contava
com apenas cerca de dez livrarias de alguma importância no
centro da cidade, ao passo que São Paulo já possuía o dobro
desse número em verdadeiras editoras.
A posição de livraria mais importante do Rio fora arre-
batada da Francisco Alves pela Livraria Leite Ribeiro, fun-
dada em 1917, cujo impressionante edifício circular, de qua-
tro pavimentos, suplantou até mesmo a sede da Garnier. Esse
prédio acabou se tornando grande demais e sua localização
(à rua Bittencourt, nº 21, no largo da Carioca) revelou-se
excessivamente cara para sobreviver como simples livraria
no Rio de Janeiro de meados do século. Em 1960, a empresa
vendeu o prédio e mudou-se para instalações mais modes-

t. Antônio Carlos Villaça, José Olympio, o Descobridor de Escrito-


res, Rio de Janeiro, Thex, 2001, p. 40.
460 José Olympio José Olympio

tas, à rua Sete de Setembro, nº 111, utilizando o produto da nha: “Na década de 1920, o Leite Ribeiro adquiriu grande
venda para modernizar suas oficinas gráficas. prestígio nos círculos dos literatos moços, sendo editora de
A Leite Ribeiro especializou-se em livros jurídicos, didá- poetas lidos pela sociedade, um Olegário Mariano, um Her-
ticos, de ciência, medicina, espiritualismo, literatura brasi- mes Fontes, um Pereira da Silva, um Ronald de Carvalho...”3.
leira e livros para crianças. A Freitas Bastos, como passou Como já vimos ($109), em 1922 aventou-se uma fu-
a chamar-se na metade da década de 1920, manteve essas são entre a Leite Ribeiro e Monteiro Lobato e Companhia,
linhas, acrescentando-lhes algumas obras de sociologia e li- que acabou abortando: “não nos convinha o negócio”, se-
vros técnicos. Um número especial do Boletim Bibliográfico gundo Lobato.
Brasileiro publicou a relação de seus mais importantes au- Outra editora recém-criada no Rio de Janeiro, em 1922,
tores desde 1917: foi a Livraria Editora Schettino, na rua Sachet (hoje travessa
do Ouvidor). Prosperou modestamente com Gianlorenzo
De obras jurídicas: Clóvis Bevilácqua, José de Castro Nunes, Evaris- Schettino, mas acabou arruinando-se sob a direção de seu
to de Moraes, Araújo Castro, Afonso Dionísio da Gama, e (a partir filho Francisco, por volta de 1931, vitimado pelo fato de
de 1930) Eduardo Espínola, Carlos Maximiliano,J. X. Carvalho de seu entusiasmo por literatura jamais ter sido controlado por
Mendonça, J. M. Carvalho Santos, Temistocles Brandão Cavalcan- adequada prudência comercial. Publicou Fetiches e Fanto-
ti, Francisco Campos, Antônio Muniz Sodré, Vicente Faria Coelho, ches, de Agripino Grieco, e História de João Crispim, de
Hélio Tornaghi, Hélio Gomes, Pedro Calmon e Arnaldo Siissekind. Eneias Ferraz, mas deve ser lembrado principalmente por
De livros didáticos: Júlio Nogueira, Floriano de Brito, Leonor ter ajudado Lima Barreto. Monteiro Lobato, que havia
Pousada, Araújo Castro, José Hermógenes de Andrade Filho, An- publicado Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá ($r102),
tenor Nascentes e Romanda Gonçalves Pentagna, e arrependera-se amargamente dessa decisão; portanto,
De obras literárias: Medeiros e Albuquerque, Humberto de relutava em publicar qualquer outra obra desse autor; de
Campos, Ronald de Carvalho, Gustavo Barroso, Bastos Tigre, Théo qualquer modo, quando ficou pronto o livro seguinte, His-
Filho, Peregrino Júnior, Emílio de Menezes, Mendes Fradique, Emi tórias e Sonhos: Contos e Fantasias de Várias Épocas, esta-
Bulhões de Carvalho da Fonseca, Marília São Paulo Penna e Costa, va começando a depressão do pós-guerra e Lobato perdia o
Hermógenes Faustino Nascimento, Aparício Fernandes, Luís Otá- entusiasmo inicial pelos autores desconhecidos (ainda que
vio, Joaquim Pimenta, Zálkind Piatigorski e J. G. de Araújo Jorge. não totalmente). “Chico” Schettino não só publicou Histó-
rias e Sonhos - em 1920, lançado ao preço de 28500 - como
A predominância das obras jurídicas é maior do que também arrematou de Irineu Marinho os exemplares enca-
podem sugerir as extensões relativas dessas três listas. To- lhados de Numa e Ninfa (1917), relançou-os (a r$500) com
mando-se como exemplo o ano de 1936, 0 mais importante uma capa nova e colorida de Ivã e com o sedutor subtítulo
entre as duas guerras do ponto de vista da atividade edito- de “romance sugestivo de escândalos femininos”. Também
rial, verificamos que a Freitas Bastos produziu trinta títu- estimulou Lima Barreto, já então próximo da morte, a es-
los: um de sociologia, um sobre gramática portuguesa, nove crever Clara dos Anjos e começar Cemitério dos Vivos, mas
de medicina e dezenove obras de direito. Sua importância o declínio de seus negócios acabou por impedi-lo de publi-
como editora de literatura provavelmente tenha alcançado car essas duas obras.
o ponto máximo por volta do início dos anos de 1920. Nos Poucos anos após a morte de Lima Barreto, deparamo-
primeiros três meses de 1919, por exemplo, Leite Ribeiro e -nos com um dos primeiros dos muitos casos no Rio de
Maurillo (como então se chamava) produziram, de obras transformação de autor em editor. Benjamim Costallat foi
novas, apenas duas de direito, dois livros didáticos, quatro um diletante literário bem-sucedido, que começou a carreira
textos de medicina e nove de literatura. Conta José Arata- como crítico teatral, publicou três volumes de contos e, em
1922, conseguiu um succês de scandale com Mile. Cinéma,
2. Boletim Bibliográfico Brasileiro, vol. 4,m. $, p. 25, Set.-out. 1956;
número especial sobre o editor Freitas Bastos. 3. José Aratanha,
“O Passado nas Letras”, Jornal de Letras, jan. 1969.
462 José Olympio José Olympio 463

que vendeu sessenta mil cópias em seis edições. Era um ro- do Brasil em geral — quanto a chegada da família real, em
mance que analisava a influência dos filmes estrangeiros so- 1808, o foi para o país.
bre a moral da juventude feminina carioca — para pior, é Politicamente, representou o fim da República Velha, a
claro — inspirado, porém, em La garçonne (1921), de Victor fachada erguida para ocultar a oligarquia dos fazendeiros
Margueritte, que se tornara o assunto do dia depois que o por trás da aparência de uma democracia liberal moderna,
governo francês, ofendido, destituíra seu autor da Légion Economicamente, proclamou o fim da escravização do país
d'honneur, e as autoridades brasileiras haviam instaurado à agricultura dominada pela exportação, que sustentara
um malogrado processo por obscenidade. aquela república. Socialmente, viu a elite francófila do café,
Após outros êxitos nesse nível - Depois da Meia-noite que controlava a velha ordem, ser obrigada a ceder espaço a
(1923) teve uma segunda edição reimpressa em quinze dias — uma classe média em ascensão. Intelectualmente, significou
Costallat associou-se a um amigo, Miccolis, “que entendia o fim da antiga e tradicional adoração da Europa «e do con-
de artes gráficas”*. Embora dedicada principalmente aos sequente desprezo por tudo quanto fosse brasileiro.
livros do próprio Costallat —- escreveu mais de trinta -, a O desunido conglomerado de soberanias que constituía
Minha Livraria Editora publicou também outras obras li- a federação brasileira iria, afinal, iniciar seu firme retorno ao
terárias do período: Gritos Bárbaros (1925), de Moacir centralismo administrativo e a restauração de uma verda-
de Almeida, por exemplo. A firma subsistiu até os anos de deira união nacional. Haveria até mesmo um Ministério da
1930, sendo adquirida, em 1934, por Nello Garavini, que Educação e uma política nacional para a educação ($129).
lhe imprimiu uma orientação editorial mais séria, com a pu- Outra prova de que a revolução representava, sob certos
blicação de traduções de Górki e de Thomas Carlyle, aspectos, um efetivo retorno a posições predominantes antes
Uma empresa muito conhecida dos compradores estran- de 1889 pode ser encontrada em seu repúdio ao positivismo,
geiros de publicações brasileiras foi a Livraria J. Leite, fun- A Constituição de 1934 rejeitou a separação entre a Igreja
dada em 1921 e estabelecida na rua São José, com especia- e o Estado do velho regime: aboliu o divórcio, restaurou a
lização em obras sobre o Brasil. Seu proprietário, José Ático educação religiosa nas escolas e, embora evitando um resta-
Leite, foi provavelmente o primeiro negociante de livros a belecimento formal, voltou a reconhecer tacitamente o cato-
interessar-se seriamente pela abertura, no exterior, dos mer- licismo como a religião nacional.
cados acadêmicos e de bibliotecas para o livro brasileiro, No mundo das letras, esse renascente nacionalismo bra-
mas suas atividades como editor foram muito limitadas e sileiro já encontrara expressão, oito anos antes, na poesia do
cessaram muito antes que a firma cerrasse as portas, em modernismo, através da avant-garde em São Paulo ($103).
1973, quando seu proprietário parou de trabalhar. Em 1928, tinham aparecido os dois primeiros grandes ro-
mances da nova escola, Macunaíma, de Mário de Andrade, e
A Bagaceira ($23), de José Américo de Almeida, companhei-
$132 A REVOLUÇÃO DE 1930 ro próximo do mártir da revolução, João Pessoa, e que a ele
sucedeu como líder no Nordestes.
De um modo geral, os anos de 1920 foram um período de
pouca significação para a história do comércio livreiro no
Rio de Janeiro. Não se registrou nenhuma evolução real en-
tre a morte de Francisco Alves, em 1917,€e a Revolução de $. Ao preparar a segunda edição deste livro, descobri, surpreso, que,
1930. No entanto, a revolução constitui um marco tão fun- no texto original, citei apenas a segunda obra. Como pude cometer tal
injustiça? Acho que estava realmente concentrado de maneira estreita
damental para esta nossa história — e, de fato, para a história demais na história da indústria editorial. A obra de Mário de Andrade
é, sem dúvida alguma, a obra superior, mas é algo único, sem segui-
dor. Na história da editoração,A Bagaceira é muito mais significativa
4. Nelson Werneck Sodré, Memórias de um Escritor, Rio de Janeiro, por ter fundado uma escola, a do romance nordestino (mesmo que
Civilização Brasileira, 1970, vol. 1, p. 285. admitamos Luzia Homem,de Domingos Olympio, como precursor).
464 José Olympio José Olympio 465

Contudo, o florescimento dessa nova literatura e seu real fenomenal, mesmo em relação a essa situação geral. Ás cifras
impacto sobre o grande público vieram somente após a revo- relativas a São Paulo (as únicas de que dispomos) sugerem
lução, na medida em que os acontecimentos de 1930 € 1932 uma taxa de crescimento, na produção de livros, entre 1930
anunciavam uma nova era de consciência nacional, desper- e 1936, de mais de 600%! (cf. tabela 8, p. 846). Mesmo que
tando (ou tornando a despertar), nos brasileiros instruídos, na realidade tivesse alcançado apenas a metade desse núme-
uma preocupação apaixonada por seu país e seus problemas. ro, teria sido, de qualquer modo, impressionante. Ninguém,
Além disso, o fracasso do novo regime na solução de muitos na época, punha em dúvida uma realidade: a de que surgira
desses problemas gerou um crescente descontentamento po- praticamente do nada, no período que se seguira à revolução,
lítico. Nos três anos imediatamente seguintes à revolução, uma indústria editorial brasileira viável.
esse sentimento provocou uma torrente de escritos, estudada Diz Henrique Pongetti, em 1937:
de modo tão competente por Lúcia Lippi Oliveira, em Elite
Intelectual e Debate Político nos Anos Trinta. Essa torrente Em nenhuma outra parte da vida nacional a transformação teve
aos poucos estancou-se, à medida que um governo cada vez um jeito tão perfeito de milagre como nas oficinas gráficas... Vocês
mais intolerante empenhava-se em reprimir qualquer crítica já observaram que nós traduzimos imediatamente a melhor produ-
direta ou debate aberto. Foi quando os descontentes busca- ção mundial e que se esgotam tiragens grandes de obras ditas para
ram uma saída na ficção política. As intermitentes tentativas a elite, elite que há dez anos era composta de so brasileiros que
de coibir até mesmo isso apenas serviram para estimular o sabiam francês e achavam hediondo o casamento do pensamento
interesse dos leitores, enquanto a prisão de proeminentes es- europeu com o nosso bárbaro idioma?”
critores contribuiu para convencer o público de sua integri-
dade intelectual. Além disso, o público leitor da nova classe José Olympio, em maio de 1937, faz uma afirmação um
média recebia com evidente satisfação obras sobre a deca- pouco exagerada (cf. $114): “Hoje já podemos lançar edições
dência da velha aristocracia rural, tais como os romances do de 5 a ro milexemplares. Há dez anos isto seria uma utopia”*.
ciclo da cana-de-açúcar, de José Lins do Rego, ou os textos A Revista do Livro, de dezembro de 1939, completa:
de história social de Gilberto Freyre. “Data de uma dezena de anos o acentuado impulso que re-
Além disso, havia um fator econômico de importância cebeu o movimento editorial do País [...] A ninguém passa
avassaladora, sobre o qual já tecemos comentários ($$1 15, despercebida a dificuldade que tinha de enfrentar o autor
127): o efeito catastrófico da depressão mundial sobre o brasileiro de há dez anos atrás”*.
poder aquisitivo externo do mil-réis, que resultou no preço E Rosário Fusco complementa, em 1940:
proibitivo dos livros importados, até então predominantes
no mercado brasileiro. Os reflexos disso na Companhia Edi- O movimento editorial se anima. Ás reedições se sucedem. O co-
tora Nacional estão claros na tabela 12 (p. 858). Da pronta mércio do livro nacional é um dos mais prósperos do continente
avaliação, pela Globo, da demanda por ficção estrangeira [...] Pela primeira vez no Brasil, um escritor já pode gabar-se (como
traduzida também já falamos ($127). No Rio, as novas fez o Senhor José Lins do Rego, em sensacional entrevista ao
oportunidades ocasionaram um dilúvio de publicações na Observador Econômico) que os direitos autorais de seu trabalho
área de literatura. lhe garantem um apreciável ordenado normal.
À insuficiência do comércio exterior forçava, de fato, o au- Pela primeira vez no Brasil, as edições dos romances se sucedem
mento da substituição de importações em toda a economia: com apenas meses de intervalo quando, poucos antes de trinta, as
entre 1930 € 1937,0 produto industrial brasileiro deu um sal-
to de quase 50%. Mas o crescimento da edição de livros foi
7» Henrique Pongetri, “Em Dez Curtos Anos”, Anuário Brasileiro de
Literatura, n. 2, Pp. 9-10, 1937.
6. Elite Intelectual e Debate Político nos Anos Trinta: Uma Bibliogra- 8. José Olympio Pereira Filho, entrevista em “O Livro na Economia”,
fia Comentada da Revolução de 1930, org. Lúcia Lippi Oliveira et. Observador Econômico, n. 16, 26 maio 1937.
al., Rio de Janeiro, rGv, 1980. 9. Revista do Livro, 1º série, s dez. 1939.
466 José Olympio José Olympio 467

edições de mil exemplares, na sua maioria pagas pelo próprio au- de seu mais influente sucessor, Alceu Amoroso Lima (Tris-
tor, demoravam meses e meses nas estantes, quando não se esgota- tão de Athayde); e do primeiro êxito político do movimento,
vam pela distribuição grátis dos escritores... com a reintrodução, em Minas Gerais, do ensino religioso
De 1936...) as casas editoras, estimuladas pela procura do livro nas escolas e nas capelas militares na Força Pública.
e pela quantidade dos originais que lhes são oferecidos [...] disputam Os escritores que passaram a frequentar a nova livra-
os autores, aumentam as suas tiragens, incrementam os concursos ria — entre os quais Hamilton Nogueira, Sobral Pinto, Ma-
[...] co movimento editorial prospera formidavelmente'”. nuel Bandeira, Afonso Arinos de Melo Franco €e o próprio
Alceu Amoroso Lima — ficaram conhecidos pelo nome de
Outro intelectual a comentar foi Almir de Andrade, em 1942: Círculo Católico. Muitos de seus textos, inclusive a poesia
do próprio Schmidt desse período (por exemplo, Canto da
Tivemos antes da Revolução de 1930 um longo período de estag- Noite, de 1934), marcam uma volta aos valores religiosos
nação em que pouco se fazia pela vida do livro brasileiro. Havia tradicionais, de maneira talvez análoga à de Hilaire Belloc e
deficiência de produção intelectual pela falta de estímulo de meios G. K. Chesterton, na Inglaterra. No entanto, o espírito pre-
eficazes de publicidade. Os editores se preocupavam mais com os dominante entre os membros da geração da revolução não
livros de vendagem fácil, as novelas sensacionalistas, as obras co- era a posse de qualquer ideologia comum — além da rejeição
legiais de saída certa. Foi depois de 1930 que se operou o movi- total da República Velha e de todas as suas obras — mas,
mento renovador nessa esfera: devemo-lo aos intelectuais nossos certamente, a convicção de que o escritor deve preocupar-se
que foram surgindo, mas também à nova mentalidade que se for- com questões de teoria política e social. À arte pela arte era
mou nos editores", repudiada em benefício daquilo que Sartre viria a batizar, no
fim da década, de littérature engagée.
Essa singular aceitação do compromisso ideológico ge-
$133 LIVRARIA SCHMIDT EDITORA rou estranhas associações. Uns rejeitavam a antiga e espúria
liberal democracia porque era um simulacro; muitos outros
Um editor com essa “nova mentalidade” foi o homem de rejeitavam-na por ser liberal, ou até mesmo democrática, no
negócios e poeta Augusto Frederico Schmidt, que, após oito sentido burguês tradicional. E nem os clérigos nem os sol-
anos de indecisão, durante os quais associou várias formas dados queriam qualquer conversa com um sistema em que
de emprego comercial com seus primeiros ensaios de litera- a política era privilégio dos leigos e dos civis. Apenas pouco
tura, abriu em 1930,a Livraria e Editora Schmidt, localizada a pouco, no correr do tempo, foram-se aclarando as incom-
à rua Sachet, nº 27, no Rio de Janeiro. Com sua ampla ca- patibilidades básicas entre os radicais de esquerda e os de di-
pacidade de apreciação e grande facilidade para reconhecer reita. Antes, porém, que isso ocorresse, católicos, fascistas e
talentos, logo se tornou o principal editor da nova geração. comunistas podiam “bater papo” alegremente, todos juntos,
Os modernistas haviam sido os pioneiros do nacionalis- na livraria e até mesmo ler e recomendar entre si a leitura
mo brasileiro diante da perspectiva curopeizada da Repú- dos livros de uns e de outros.
blica Velha. Aos poucos, esse nacionalismo ganhara impli- Que fossem inúmeros os apologistas católicos do fascis-
cações religiosas, quando um catolicismo renascido surgiu mo é fácil de compreender. Muito mais difícil de entender
como uma contestação ideológica ao positivismo impe- é que a distinção axiomática entre fascismo e socialismo,
rante. Esse renascimento pode ser datado, apropriadamen- como a percebe um leitor de hoje, não fosse feita pela opi-
te, de dois anos antes: precisamente, 1928, ano da morte nião da época. Mesmo na Alemanha de então, porém, o ape-
de seu maior defensor, Jackson de Figueiredo; da conversão lo do Partido Nacional-Socialista baseava-se quase tanto
nas alegações de ser socialista como na insistência em ser
ro. Rosário Fusco, Política e Letras, Rio de Janeiro, José Olympio, 1940. arrogantemente nacionalista; foi preciso a Noite dos Longos
rt. Almir de Andrade, Três de Julho, Uma Data do Livro Brasileiro, Punhais, de 1934, para decapitar, efetiva e inequivocamente,
Rio de Janeiro, José Olympio, 1942. a ala socialmente radical do partido. Para muitos — e não
468 José Olympio José Olympio 469

apenas no Brasil - o que se necessitava naquele tempo era obra de juventude felizmente esquecida (folhetim de jornal
apenas uma figura de pai política, alguém que rompesse im- publicado na forma de livro por A. Coelho Branco Filho),
placavelmente as amarras do passado e deixasse penetrar este “[...] romance de carne e de sangue, grande romance de
a deslumbrante luz do sol do admirável mundo novo tão verdade e de sentimento”'*,como o qualificou Faria, foi a pri-
ardentemente desejado. Para tal tarefa, Salazar, Mussolini, meira obra do jovem baiano no que se refere ao público em
Pilsudski, Mustafá Kemal, Lênin, Hitler ou Stalin pareciam geral. Schmidt recebeu os originais por intermédio do entu-
quase igualmente aceitáveis e suas filosofias políticas pouco siasmado Faria, mas aparentemente deixou-os de lado para
mais que sutilezas pessoais. consideração posterior. Foi convencido a publicá-los pelos
Schmidt não era, certamente, inflexível na orientação comentários de Tristão da Cunha, quando este, casualmen-
ideológica de sua editora. Chegou mesmo a eliminar a pala- te, deparou com o manuscrito no escritório de Schmidt, que
vra “Católica” de seu selo, que passou a ser a descomprome- decidiu, então, não apenas publicá-lo como fazer, ele mesmo,
tida Livraria Schmidt Editora. Seu primeiro lançamento foi um prefácio para o livro. Os críticos também gostaram: os
Oscarina, uma coletânea de contos sobre a classe baixa ur- mil exemplares da primeira edição esgotaram-se rapidamen-
bana e a vida militar, na linha de Lima Barreto e Manuel An- te e, em junho do ano seguinte, Schmidt lançou uma segunda
tônio de Almeida. O autor era um jovem caixeiro-viajante edição, dessa vez de dois mil exemplares.
de 24 anos, Eddy Dias da Cruz, que se assinava Marques Outro livro desse primeiro período da atividade editorial
Rebelo, mas que, até então, só tivera publicados uns poucos de Schmidt foi Outubro de 1930, uma defesa da revolução
poemas numa revista local. À obra não era exatamente mo- por um de seus líderes em Minas Gerais, Virgílio de Melo
dernista, mas empregava um português simples, brasileiro, Franco. Oswaldo Aranha, lugar-tenente de Vargas e, até seu
com expressões típicas dos personagens, e foi aplaudida pe- exílio como embaixador em Washington, em 1934, con-
los críticos. Em seguida, Schmidt lançou o primeiro livro do siderado seu provável sucessor na presidência, foi o autor
ainda mais jovem Otávio de Faria (23 anos). Seu pequeno li- do prefácio. Ainda em r931, saiu O Inconfidente Cláudio
vro, Maquiavel e o Brasil, associava uma apreciação de Nic- Manuel da Costa, o Parnaso Obsequioso e as “Cartas Chi-
colô Machiavelli aos chavões políticos populares de então: lenas”, de autoria de Caio de Melo Franco, irmão de Virgií-
difamação da República Velha positivista, louvor ao bom lio, a respeito de um dos líderes da Inconfidência Mineira.
governo do Brasil sob dom Pedro 11 e admiração por Benito Também naquele ano foi publicado Alberto Torres e o Tema
Mussolini. Faria continuou dedicando os quarenta anos se- de Nossa Geração, de Cândido Motta Filho, em louvor do
guintes a manifestar sua fúria contra a sociedade liberal da governo de um “homem forte”, prefaciado por Plínio Salga-
classe média em A Tragédia Burguesa, imenso roman-fleuve do. De Alceu Amoroso Lima, foram publicados os Debates
em quinze volumes; porém, quando ficou pronto o primeiro Pedagógicos, em que atribuía todos os males do velho regi-
volume, em 1937, Schmidt já havia perdido sua fugaz pree- me à secularização da educação.
minência como principal editor literário do Rio, e Mundos Prosseguia o debate político, e especialmente para apre-
Mortos foi confiado à José Olympio. sentá-lo Schmidt criou a Coleção Azul. Em 1932, por ela
O terceiro livro publicado por Schmidt foi um romance, foram publicados A Desordem, de Virgínio Santa Rosa, a fa-
A Mulher que Fugiu de Sodoma, a primeira obra de ficção de vor de um Estado corporativo brasileiro; uma réplica a este,
algum fôlego de José Geraldo Vieira, excêntrico talento ca- A Gênese da Desordem, de Alcindo Sodré, advogando a re-
rioca, cujos livros posteriores saíram pela Livraria Globo. Es- tirada dos militares da política; e a tréplica de Santa Rosa, O
crito, presumivelmente, no período do carnaval de 1924, esse Sentido do Tenentismo. Em outubro, apareceu o Brasil Erra-
romance deve ter permanecido inédito por sete anos. Essa do, de Martins de Almeida, para quem o país oscilava entre
mesma festa inspirou O País do Carnaval, lançado a seguir, os tenentes insurretos e os velhos oligarcas, sem salvação
em setembro de 193 1: embora o jovem Jorge Amado, então
com dezenove anos, houvesse colaborado, dois anos antes, com 12. Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira: 1915-1933, São
Dias da Costa e Édison Carneiro na redação de Lenita, uma Paulo, Cultrix, 1978, vol. 6, p. g12.
47º José Olympio José Olympio 471

em qualquer dos lados. Em 1933, a coleção apresentou O de cinco anos — na verdade, ele o escreveu durante sua pri-
Que é o Integralismo e A Psicologia da Revolução, de Plínio meira gestão na prefeitura.
Salgado, contrabalançados por Na Revolução de 1930, de Em fevereiro de 1933, Schmidt deu prosseguimento ao
Estêvão Leitão de Carvalho, em que o autor, que lutara nas debate ideológico, com o primeiro livro do terceiro e mais jo-
tropas leais a Washington Luís, declarava ser obrigação do vem dos irmãos Melo Franco, Afonso Arinos, a Introdução à
soldado, como indivíduo politicamente neutro, apoiar a au- Realidade Brasileira. No mês de dezembro desse mesmo ano,
toridade estabelecida. apareceu a memorável obra de um jornalista quase desconhe-
Nesse mesmo tempo, foi descoberta outra jovem e pro-- cido do Recife — pois assim Gilberto Freyre deve ter parecido
missora ficcionista do Nordeste, politicamente radical, Ra- a qualquer pessoa que não fosse do Nordeste. Casa-grande
chel de Queiroz (nascida em r910). Seu O Quinze, sobre & Senzala, baseada em sua dissertação de mestrado na Uni-
a seca de 1915 no sertão, havia tido uma edição local em versidade de Colúmbia, em Nova York, e o primeiro título
seu estado de origem, o Ceará ($23), reimpressa no ano se- do que viria a ser uma monumental história social, apareceu
guinte pela Nacional, que também publicou a terceira edi- com o selo de “Maia &« Schmidt Ltda.” e ganhou reputação
ção em 1942. Schmidt, que o elogiara em crítica intitulada nacional quase da noite para o dia. Com nova edição em
“Uma Revolução”, tratou de garantir para si os direitos de 1936 e outra em 1938, foi também o primeiro grande suces-
seu romance seguinte, João Miguel, obra, talvez, não tão so da Livraria Schmidt Editora. No entanto, Casa-grande &
boa quanto O Quinze (e certamente menos política), mas Senzala fez mais do que isso. Ao tornar os brasileiros cons-
igualmente bem recebida em sua edição de 1932, exceto pelo cientes de sua herança, esse livro contribuiu — mais, talvez,
Partido Comunista Brasileiro, que escolheu a ocasião de sua do que qualquer outro fator isolado - para o crescimento da-
publicação para expulsar a autora de seus quadros. quele saudável nacionalismo cultural que caracteriza o clima
Em 1933, apareceu Caetés, primeiro romance de outra intelectual dos anos de governo de Vargas.
grande descoberta de Schmidt, Graciliano Ramos, novamen- Schmidt persistiu em restringir sua atividade editorial a
te um nordestino, dessa vez do pequeno estado de Alagoas. autores brasileiros e apresentou ao público leitor uma dúzia
Graciliano fora, por pouco tempo, prefeito da cidadezinha ou mais de nomes novos, entre os quais Amando Fontes,
de Palmeira dos Índios, e seu primeiro relatório anual, publi- Luiz Martins e, muito importante, Lúcio Cardoso, cuja obra
cado no Diário Oficial do estado em 24 de janeiro de 1929, Maleita, um romance regional ambientado em seu estado
provocara certa sensação por não empregar, em sua redação, natal, Minas Gerais, foi lançada em 1934. Daí em diante,
nada do estilo e do jargão oficiais. Tanto que o Jornal de Ala- porém, o negócio começou a declinar, muito embora, em
goas, de Maceió, reimprimiu-o integralmente no dia seguin- 1937,a editora ainda tenha produzido, ao longo do ano, cer-
te, com uma nota de Alfredo de Barros Lima Júnior em que ca de vinte edições novas, num total de cem mil exemplares.
expressava sua deliciosa surpresa. Isso, por sua vez, resultou Finalmente, em 1939, a empresa foi absorvida e suas insta-
numa notícia no Jornal do Brasil, onde presumivelmente lações adquiridas por Zélio Valverde, de cuja firma Schmidt
Schmidt tomou conhecimento do assunto. Concluindo que se tornou sócio.
somente um escritor não realizado poderia ter escrito tão É difícil ser dogmático a respeito das razões do fracasso
bem sobre os fatos e as cifras de uma administração pública de Schmidt: sua escolha de autores é prova de seu discer-
municipal, fez com que seu assistente, Rômulo de Castro, es- nimento literário, e sua carreira subsequente, marcada por
crevesse a Graciliano oferecendo um contrato, “assediando notável série de cargos de direção em empresas (Canaco
o futuro romancista com cartas [...) em nome do editor até s. A., Companhia de Potassa e Adubos Químicos, Compa-
que um dia a resistência de Graciliano foi afinal vencida”5. nhia Mannesmann de Irrigações é Orquina s. A.), não indica
O palpite estava certo: o romance já estava escrito há cerca falta de capacidade empresarial. O que lhe faltou, parece,
foi capital, pois não teve a sorte de conseguir, logo no início,
13. Moacir Medeiros de Sant'Ana, Graciliano Ramos, Maceió, Ar- um livro capaz de fazer dinheiro rapidamente, como acon-
quivo Público de Alagoas, 1973, p. 38. teceu com Urupês para Monteiro Lobato, ou — para dar um
472 José Olympio

exemplo britânico dessa década de 1930 — para Frederick


Warburg com Clochemerle, sátira rabellaisiana de Gabriel
Chevallier à política nas pequenas cidades do interior da
França na virada do século. Certamente, sua concentração
na nova literatura brasileira, por mais admirável que nos
pareça retrospectivamente, pouco contribuiu para propor-
cionar-lhe o êxito financeiro de que necessitava para con-
tinuar o negócio. Foi acusado de excessiva prudência, de
produzir apenas edições pequenas, baseando suas vendas na
elite intelectual do Rio de Janeiro e não fazendo qualquer
esforço para desenvolver um mercado junto ao grande pú-
blico. Também pode ser que, em matéria de gosto literário,
ele tenha sido um tanto precoce, um pouco avançado em re-
lação ao leitor de seu tempo. Seus autores, contudo, parecem
ter sentido as coisas de modo diferente, pois a partir de 1933
começaram a abandoná-lo, passando para outras empresas
mais conscientes da necessidade de propaganda. À maioria
deles passou para a Ariel, enquanto Alceu Amoroso Lima foi
para a Civilização Brasileira.
Talvez Schmidt não se tenha dedicado de corpo e alma
aos livros, uma vez que jamais abandonou todos os seus de-
mais negócios. Em 1932, por exemplo, esteve envolvido com
Oscar Neto (tio de Lúcio Cardoso) na organização de uma
companhia de seguros, a Metrópole. Pessoalmente, suponho
que seu grande entusiasmo residisse na atividade editorial
política e que, quando suas metas a respeito disso começa-
ram a ficar cada vez mais restritas devido à intolerância e re-
pressão do governo, ele perdeu o interesse — ou o ânimo. Em
todo caso, em suas memórias, ele se refere ao seu empreen-
dimento editorial como “de amarga memória para mim”,
A firma de Zélio Valverde merece breve referência por
ter sido importante livraria e editora na década de 1940.
Valverde (1921-1985), jovem e “espantosamente obeso”'s,
iniciou-se nos negócios em 1937, com uma pequena livraria
num primeiro andar de um prédio da rua do Rosário, volta-
da sobretudo para a história do Brasil e para os clássicos da

t4. Augusto Frederico Schmidt, As Florestas, Rio de Janeiro, José


Olympio, 1959.
15. “A prosperidade estava marcada no crescimento do stock e nas
tendências de alarmante obesidade do jovem livreiro”, escreve Ban-
deira Duarte, “Zélio Valverde, Livreiro e Editor”, Anuário Brasileiro
de Literatura, n. 5, p. 368, 1940.
José Olympio 473

literatura brasileira: Francisco de Assis Barbosa foi seu edi-


tor literário. Suas primeiras edições, em princípios de 1938,
foram Prudente de Morais, de Gastão Pereira da Silva, e a
nova Constituição, de novembro de 1937. Seguiram-se edi-
ções das obras completas dos poetas do século x1x, Casi-
miro de Abreu, Castro Alves (em dois volumes), Gonçalves
Dias (em dois volumes) e Fagundes Varela (em três volumes),
vendidas a 6$000 em brochura e 8$000 encadernado. Com
a fusão com Schmidt sua atividade aumentou, levando-o a
anunciar a publicação das memórias de Francisco Gomes da
Silva, O Chalaça, — escritas no início de século x1x -, o livro
de José Presas sobre as memórias secretas da rainha Carlota
Joaquina e outras biografias de autoria de Pereira da Silva.
Em 1943, reeditou suas coleções de poesia em nova série,
Grandes Poetas do Brasil (que, devido à inflação do tempo
da guerra, saíram ao novo preço de dez cruzeiros em bro-
chura), à qual acrescentou edições de Álvares de Azevedo,
Moacir de Almeida, Cruz e Souza, Laurindo Rabelo, Jun-
queira Freire e Emiliano Perneta, Nesse mesmo ano, reimpri-
miu a segunda edição portuguesa (Eugênio Egas, 1914) da
História do Brasil [...] 1808-1831, de Armitage, com notas
de Garcia Júnior. Em 1944, apareceu Folclore Brasileiro, de
Joaquim Ribeiro, além da coleção Depoimentos Históri-
cos, publicada juntamente com a Pongetti. Sua edição de O
Cortiço, de Aluísio Azevedo, lançou Fayga Ostrower como
ilustradora de livros. Valverde, depois diretor-gerente dos
jornais Diário Carioca e Última Hora e mais recentemente
assessor técnico da gráfica do Senado Federal, morreu em 25
de abril de 1985, vítima de enfarte,

EDITORA ARIEL $r34


Pouco depois de A. F. Schmidt ter aberto sua livraria, uma
firma bem maior e também dedicada à literatura brasilei-
ra foi constituída pelos escritores Gastão Cruls e Agripino
Grieco. À Editora Ariel, como o nome indica, era exclusiva-
mente editora, sem loja para vendas a varejo, mas sua linha
editorial era bem mais ampla, incluindo várias obras estran-
geiras traduzidas, como a ficção policial do belga Georges
Simenon, livros jurídicos e obras sobre outros assuntos
não literários; assim, evitava o risco de depender trotalmen-
te da literatura brasileira, o que contribuiu para o fracasso
474 José Olympio José Olympio 475

final de Schmidt. Publicou também a revista literária mais im- panha no jornal O Globo, acabou conseguindo a revogação
portante da época, o mensário Boletim de Ariel (numa tira- da medida. A propaganda daí resultante garantiu a popu-
gem de três mil exemplares), que, além de ser uma boa fonte laridade do livro: em quarenta dias, foi preciso fazer uma
de renda, ajudava a divulgar suas edições. reimpressão de três mil exemplares. Um ano depois, Suor,
Cruls era filho de Louis Cruls, belga de nascimento, di- de Jorge Amado, ambientado numa favela de Salvador, ven-
retor do observatório no velho Morro do Castelo — demo- deu igualmente bem.
lido nos princípios do século para dar passagem à avenida Outros editados da Ariel foram Gilberto Amado, José
Rio Branco; seu Atlas Celeste, publicado pela Ariel, não foi Maria Bello, Raul Bopp, Otávio de Faria, Murilo Mendes,
suplantado até a década de 1970. O próprio Gastão Cruls Odilon Nestor, Lúcia Miguel-Pereira (Em Surdina), Corné-
estudou medicina e colaborou na Revista do Brasil (fase de lio Penna (Fronteira), Graciliano Ramos (São Bernardo),
Monteiro Lobato) com contos baseados em suas experiên- Marques Rebelo, José Lins do Rego (Doidinho), além dos
cias médicas, os quais Castilho reuniu e publicou, em 1920, próprios sócios.
com o título Coivara. Outros contos se seguiram, mas sua Apesar do êxito muito maior nos primeiros anos e da dis-
fama literária repousa em A Amazônia Misteriosa (1925),e, tribuição muito mais ampla de seus produtos, a Ariel acabou
mais tarde, na Hileia Amazônica (publicada pela Nacional, não durando muito mais que a firma de Schmidt, pois tam-
em 1944, numa edição graficamente excepcional para a épo- bém cerrou as portas em 1939, e seu estoque foi adquirido
ca). Fez também algumas traduções literárias para a Ariel. pela Civilização Brasileira. O declínio da Ariel data de 1934,
O sócio principal, porém, parece ter sido Agripino Grie- ano em que José Olympio se transferiu de São Paulo para
co, que cuidava do Boletim. Grieco possuía extremo discer- o Rio de Janeiro. Parece não haver dúvida de que a Ariel
nimento para julgar as qualidades literárias, com uma rara não estava à altura de competir com o jovem paulista que,
capacidade de valorizar até mesmo os escritores que tives- rapidamente, se tornou o editor literário mais importante do
sem cânones estéticos totalmente diversos dos seus, como os Brasil e o nome mais prestigioso no negócio livreiro do país.
da nova escola nordestina.
Grieco possuía também a faculdade de manejar uma pena
extremamente ácida, e, a julgar pela maneira como a utilizou JOSÉ OLYMPIO: O COMEÇO DA VIDA $r35
para atacar Schmidt e Valverde'*, o relacionamento entre as
editoras Schmidt e Ariel não deve ter sido muito amigável, José Olympio Pereira Filho, o segundo de nove irmãos, nas-
embora Valverde tenha publicado, em 1944, uma reimpres- ceu em 19 de dezembro de 1902, em Batatais, então peque-
são de A Amazônia Misteriosa, de Cruls. De qualquer ma- na cidade de cerca de vinte mil habitantes, na região da Alta
neira, com o passar do tempo, a Ariel, maior e mais prós- Mojiana, no estado de São Paulo. Ali, passou uma infância
pera, foi capaz de tirar de sua concorrente diversos autores de pés descalços, “pobre mas tecida de sol e liberdade”"7. A
importantes, entre eles Jorge Amado, de quem a Ariel publi- família de sua mãe era paulista de muitas gerações (com algu-
cou o romance Cacau em agosto de 1933, numa edição de mas ligações mineiras) e o pai veio da Bahia, e dessa mistura
dois mil exemplares, com ilustrações de Tomás Santa Rosa resultou — segundo Paulo Rónai — a feliz combinação da visão
Júnior. A violenta mensagem social do romance — baseada do baiano caloroso e imaginativo com a energia do paulis-
no conhecimento direto de Amado da vida do trabalhador ta sério, positivo e trabalhador, o que levou José Olympio a
agrícola — levou à apreensão do livro pela polícia do Rio de tornar-se o principal editor do país. Seja como for, a escolha
Janeiro. Contudo, um pedido feito diretamente a Oswaldo de sua vocação profissional foi completamente fortuita.
Aranha, então ministro da Justiça, por Cláudio Ganns, amigo A vida profissional de José Olympio começou aos onze
comum do ministro e dos editores, apoiado por uma cam- anos de idade, no balcão da farmácia de sua cidade natal.

16. Agripino Grieco, Zeros à Esquerda, Rio de Janeiro, José Olympio, 17. “Nota da Editora”, em Cândido Portinari, Poemas de..., Rio de
1947, P. 71. Janeiro, José Olympio, 1964, p. 7.
476 José Olympio José Olympio 477

Acontece, porém, que o doutor Altino Arantes Marques, en- salário durante os primeiros dois anos obrigou-o a valer-se
tão presidente do estado de São Paulo, era seu conterrâneo; de sua relação com o dr. Arantes para conseguir alojamento
quando chegou a ocasião de sua crisma, José Olympio pediu nas dependências da criadagem do palácio do governo.
ao doutor que fosse seu padrinho na cerimônia. Assis Barbosa Finalmente, José Olympio foi promovido a ajudante de
menciona que Altino Arantes teria contado: “Um dia recebi balconista e começou a adquirir conhecimento dos livros é
em Batatais a visita de um menino que me disse “O bispo está do gosto do público, até que, no palavreado grandiloquente
na cidade; vim pedir ao senhor para ser meu padrinho””"*. de Humberto de Campos, “aprendendo no livro a vida dos
Esse relacionamento, estabelecido em tão boa hora, ca- homens e aprendendo na conversa dos homens a utilidade
pacitou-o a buscar a ajuda de Altino Arantes quando, quatro do livro, o garoto de Batatais tornava-se em breve a primeira
anos mais tarde, se viu sem trabalho e decidiu tentar a sorte figura da livraria em que entrara simplesmente para servir
na capital do estado. Sua secreta ambição era conseguir um no balcão”"º, A esses anos difíceis de aprendizado, que lhe
emprego que lhe permitisse um período livre para frequen- proporcionaram sólida e ampla base nesse ramo de comér-
tar a Faculdade de Direito, e almejava uma colocação no cio, deve-se, sem dúvida, muito do seu êxito posterior como
armazém de secos e molhados de Araújo Costa, pois ali os editor independente nos anos de 1930, quando tantos de
balconistas tinham cama e mesa. Infelizmente, Araújo Costa seus concorrentes não conseguiram sobreviver.
escolheu exatamente aquele momento para abrir falência, e A década de 1920 marcou os últimos anos de esplendor
quando, no devido tempo, chegou do Palácio dos Campos da Casa Garraux; todas as figuras proeminentes da cidade —
Elíseos a resposta oficial à sua solicitação, assinada em nome da sociedade, da política e da vida intelectual - compareciam
do dr. Arantes pelo coronel Afro Marcondes de Rezende, ela quase diariamente à livraria da moda: o próprio Altino Aran-
informava que se havia conseguido um lugar para o jovem tes, agora ex-presidente de São Paulo, o seu sucessor — € futuro
na Casa Garraux. Um mês depois, em julho de 1918,0 co- presidente do Brasil - Washington Luís, membros destacados
ronel, formalmente uniformizado de oficial da milícia esta- das profissões liberais, como o jurista Estêvão de Almeida e o
dual, acompanhou o afilhado do grande homem à presença médico Américo Brasiliense, homens de letras famosos, como
do proprietário, Charles Hildebrand, que o encaminhou a Paulo Serúbal, o romancista mais vendido da época... E, de
Jacinto Silva, chefe da seção de livros da loja. muito maior importância para a futura carreira de José Olym-
O emprego, conseguido de maneira insólita, consistia em pio, desde a geração mais jovem até todos os mais importan-
abrir caixotes de livros novos, limpar a poeira das estantes e tes modernistas, entre os quais Menotti del Picchia (Juca Mu-
outros pequenos serviços semelhantes, pelo que recebia um lato, 1917), Mário de Andrade (Pauliceia Desvairada, 1922),
estipêndio mensal de trinta mil-réis. As condições de trabalho Oswald de Andrade (Pau-brasil, 1924), Plínio Salgado (O Es-
eram duras: a loja funcionava das sete da manhã às sete da trangeiro, 1926) e Cassiano Ricardo (Martim Cererê, 1928).
noite e, após um intervalo de uma hora para o jantar, o pes- Um de seus primeiros contatos com esse público seleto
soal voltava a trabalhar até as dez ou onze horas da noite. As ocorreu quando, ouvindo casualmente o pedido de duas da-
tardes de domingo eram livres, após a manhã dedicada à lim- mas de sociedade, que desejavam os mais recentes romances
peza e arrumação, recompensada com uma garrafa do vinho de Paris, precipitou-se para o balconista que as atendia com
mais barato que havia na loja (o estoque de Garraux não se um exemplar de Madame Bovary, que acabara de desem-
limitava a livros, mas ia de vinho a papel de parede e a uni- pacotar naquela manhã. Instruiu-se, porém, rapidamente e
formes para a milícia estadual — tudo importado da França). adquiriu um conhecimento tão bom do negócio que passou
O longo expediente eliminava qualquer possibilidade de a sugerir aos editores títulos para publicação. A edição bra-
estudar Direito, mesmo de frequência quase livre; o pequeno sileira de Havelock Ellis, ideia ousada para a São Paulo dos
anos de 1920, mas que acabou resultando em vendas muito
18. Francisco de Assis Barbosa, “Alguns Aspectos da Influência Fran-
cesa no Brasil”, em Anatole Louis Garraux, Bibliographie brésilienne, 19. Humberto de Campos, “A Vitória de um Bandeirante”, Diário
2, ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1962. Carioca, 3 jul. 1934.
478 José Olympio José Olympio 479

boas, parece ter sido uma dessas sugestões, feitas a Octalles primorosamente gravado a ferro. Mesmo quando adquiria
Marcondes Ferreira, com quem fizera amizade a partir dos um livro que não era, sob nenhum aspecto, um item de cole-
seus encontros na livraria. cionador, ainda assim enviava-o de volta a Paris para receber
Mentor de Monteiro Lobato, Jacinto Silva deixara a uma requintada encadernação. Embora muitas dessas limi-
Garraux, em 1920, para estabelecer sua própria empresa, tadas edições francesas dos anos de 1920, produzidas para o
a Casa Editora “O Livro” ($103). O sucessor de Jacinto agrado de uma clientela que possuía muito mais riqueza ma-
como gerente da seção de livros da Garraux, chamado Lo- terial do que discernimento artístico ou literário, não tives-
pes, manteve-se no cargo até 1926. Nesse ano, Charles Hilde- sem conseguido manter seu valor, outras eram objetos sem
brand faleceu e a propriedade passou ao sócio Fausto Bresso- dúvida agradáveis, qualquer que fosse o padrão de gosto.
ne. José Olympio foi escolhido para substituir Lopes naquele Em todo caso, os dez mil livros de Pujol não se restringiam a
que era o cargo mais importante no quadro de auxiliares da esse tipo de publicações modernas, mas abrangiam inúmeras
Casa Garraux, e que oferecia amplas oportunidades de ínti- raridades nos campos da jurisprudência, filosofia, literatura
mo contato com clientes de prestígio. Também possibilitou a clássica e brasiliana. Seria quase vergonhoso pensar em
José Olympio travar amizades valiosas com autores promis- fragmentar uma biblioteca como essa; por isso, a família de
sores — Cassiano Ricardo, por exemplo, em sua autobiogra- Pujol, sem interesse em mantê-la, ofereceu-a ao governo do
fia, manifesta gratidão pela ajuda recebida no início da car- estado por cem contos de réis, soma considerada fabulosa na
reira, quando José Olympio expôs, numa vitrine, exemplares época, algo além de us$r00000 em valores de hoje.
de Borrões de Verde e Amarelo com as páginas abertas, para Os governos brasileiros poucas vezes demonstraram gran-
oferecer aos passantes uma amostra da sua poesia. Mário de de entusiasmo por bibliotecas. Um exemplo recente, e bastan-
Andrade escolheu “José Olympio, padroeiro da gente” para te típico, foi a recusa do estado de Pernambuco, catorze anos
homenagear na dedicatória de Macunaíma. antes, em adquirir a magnífica coleção de história de Alfredo
de Carvalho: a objeção aparente tinha sido a de que “as obras
em sua maioria eram escritas em |...) idiomas estrangeiros”.
$136 LIVROS RAROS E A INDEPENDÊNCIA De fato, a aquisição da biblioteca de Félix Pacheco pela Pre-
feitura de São Paulo, em 1935, para constituir a base de um
No final da década de 1920, José Olympio interessou-se serviço de biblioteca pública inteiramente reorganizado e re-
por livros raros e antigos e logo se tornou um entendido no vigorado, parece ter sido um dos primeiros exemplos de uma
assunto, a tal ponto que poucos bibliófilos paulistas com- aplicação de recursos públicos desse tipo”. Por isso, não foi
pravam ou vendiam um livro usado sem antes consultá-lo. nenhuma surpresa o estado recusar a biblioteca de Pujol.
Uma grande oportunidade de tirar proveito prático desse José Olympio percebeu que era uma oportunidade que
conhecimento deu-se com a morte de Alfredo Pujol, em 29 não podia deixar escapar e fez uma oferta à família 50%
de maio de 1930. Pujol, mais lembrado por sua obra sobre mais alta: 150 contos de réis, ou seja, 158000 por livro. En-
Machado de Assis, era também advogado, político e um dos tre tantos amigos que fizera entre os clientes da Garraux, os
primeiros colaboradores de Lobato em sua aventura edito- mais velhos e mais ricos, impressionados com o entusiasmo
rial. Para José Olympio, o mais importante é que Pujol fora e a determinação do jovem, emprestaram-lhe o dinheiro ne-
dono da maior biblioteca particular do estado. Coleciona- cessário para o negócio. O principal desses financiadores foi
dor apaixonado por pinturas (francesas), vinhos (france- José Carlos de Macedo Soares, um bibliófilo que fora presi-
ses) e livros bonitos (em sua maioria, também franceses), dente da Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato na
encomendava edições de alto preço, especiais para biblió-
filos, examinava-as amorosamente, planejava com todo o 20. Felizmente, as coisas estão um pouco melhor em nossos dias. Po-
cuidado uma capa atraente e adequada e, após ter decidido, demos citar, entre muitos outros exemplos, a aquisição da biblioteca
enviava o livro de volta a Paris para receber a encaderna- de Sérgio Buarque de Holanda pela Unicamp e a de Florestan Fernan-
ção que encomendara especialmente, em couro espesso e des pela Universidade Federal de São Carlos.

480 José Olympio José Olympio 481

época de sua liquidação. Diretor do Banco de São Paulo e pular livro norte-americano, How to Psychoanalyse Your-
de vários outros negócios importantes, Macedo Soares ini- self, de Joseph Ralph: o livro teve o mais completo êxito e foi
ciara uma segunda carreira, em política, após a Revolução reimpresso continuamente no curso dos vinte anos seguin-
de 1930, e por isso se dizia que “colecionava ministros e tes. Pelo tempo que se leva para produzir um livro, é evidente
livros”. Sua ajuda no momento foi tão importante que José que J. Olympio já vinha planejando publicar mesmo antes
Olympio reconheceu que “sem esse ilustre brasileiro, não de abrir a livraria, de modo que pôde perfeitamente afirmar
teria existido a Livraria José Olympio Editora”*. ter sido editor desde o começo de seu negócio.
A família de Pujol aceitou a oferta e, em poucos dias,
a magnífica biblioteca foi aberta à visitação e venda. Vera
Pacheco Jordão, futura esposa de José Olympio, a quem co- HUMBERTO DE CAMPOS $137
nhecera como cliente da Garraux, estava entre Os primei-
ros compradores, adquirindo um exemplar de as Mil e Uma Os primeiros meses de existência da Livraria José Olympio
Noites, ricamente ilustrado com pranchas coloridas de apu- Editora foram marcados por uma deterioração da situação
rado refinamento. polírica. Em qualquer circunstância, teria sido difícil para
Pouco tempo depois, José Olympio adquiriu a biblioteca São Paulo reconciliar-se facilmente com uma revolução que
de outro cliente da Garraux, Estêvão de Almeida, também se preocupava, em grande parte, em eliminar a hegemonia
advogado, com uma grande coleção de livros raros. Com es- desse estado sobre os outros membros da federação brasi-
sas duas bibliotecas como estoque inicial, e ainda com apenas leira. Todavia, o novo regime cometeu o deplorável erro de
28 anos de idade, estabeleceu-se por conta própria, em 29 enviar para São Paulo, como interventor federal, um jovem
de novembro de 1931, à rua da Quitanda, nº 19A, Entre os e inábil oficial do exército, originário de Pernambuco, João
livros que tinha à venda encontravam-se: Histoire d'un vo- Alberto Lins de Barros. Antigo “coronel” na Coluna Prestes,
yage faict en la terre du Brésil, de Jean de Lery (2. ed., Paris, João Alberto nunca tivera qualquer tipo de experiência po-
Antoine Choppin, 1580); Cronica d'el Rey D. Joam 111, de lítica e, por isso, acabou tendo contra si até mesmo os que
Francisco Andrada, edição cuidada por F A. Varnhagen (Lis- apoiavam o governo, a ponto de, em r3 de janeiro de 1932,
boa, Imprensa Nacional, 1850), e História Geral do Brasil, de o Partido Democrático de São Paulo romper com o novo re-
Varnhagen, primeira edição, em dois volumes (Rio de Janei- gime, unindo-se logo depois a seus adversários republicanos
ro, Laemmert, 1854-1857); a tradução da Arte de Amar, de numa Frente Única contra Vargas. Em 23 de maio, Oswaldo
Ovídio, por José Feliciano de Castilho (Laemmert, 1862),e o Aranha, que, na qualidade de ministro da Justiça, chegara a
Curso de Literatura, de F. Sotero dos Reis, em cinco volumes, São Paulo como mediador, escapou por pouco de ser lincha-
trabalho do grande impressor Matos, do Maranhão (1866). do, e em 9 de julho foi deflagrado um conflito armado entre
Outros livros comuns, novos, foram acrescentados ao es- os paulistas e o Governo Federal. Ao contrário da revolta
toque e, um mês depois, José Olympio lançava-se em seu pri- de 1924, a chamada Revolução Constitucionalista foi uma
meiro empreendimento editorial. A psicologia à la Sigmund ação desencadeada por políticos civis que desfrutavam de
Freud constituía um assunto muito novo para o público lei- amplo apoio popular local; por essa razão, estendeu-se por
tor brasileiro: o primeiro manual profissional, de C. Weiss, quase três meses, até 2 de outubro. Fracassou, afinal, porque,
publicado pela Globo, só apareceu em 1937, mas o êxito de como aquela revolta anterior, não conseguiu um apoio con-
Havelock Ellis em português já mostrara grande interesse siderável de outros estados. O resto do Brasil não desejava
pelo assunto. José Olympio lançou, então, Conhece-te pela outra coisa senão ver diminuído o poder de São Paulo e esta-
Psicanálise, tradução de José Almeida Camargo de um po- va justificadamente temeroso da ameaça à unidade nacional
representada pela alegada tendência separatista da rebelião.
21. Apud José Cândido de Carvalho, “José Olympio, a Maravilhosa O conflito desorganizou de tal modo os negócios que a
em Ninguém Mata o Arco-íris, Rio de Janeiro, José Olym-
Lavoura”, nova empresa certamente teve sorte: conseguiu ao menos
pio, 1972, PP. 136-142.
sobreviver. Evidentemente, José Olympio não se atreveu a
482 José Olympio José Olympio 483

correr o risco de publicar qualquer outra coisa antes que as apelo constante por muito tempo. O maranhense Humberto
condições voltassem à normalidade. Assim, apenas no mês de Campos é a exceção que confirma a regra. À transitorie-
de maio seguinte (1933) lançou seu segundo livro, Itararé, dade, porém, é relativa, e o êxito da José Olympio com esse
Itararé: Notas de Campanha, relato de combate por um par- autor estender-se-ia por quase uma década.
ticipante do lado dos insurretos, Honório de Sylos. À revo- Os editores e o autor encontraram-se pela primeira vez
lução e suas consequências ainda foram tema dos dois livros no início de 1933, quando José Olympio e Vera foram para
seguintes: Sala de Capela, de Vivaldo Coaracy, no fim daque- o Rio em sua lua de mel. José contratou com Humberto de
le ano, e Diário de um Combatente Desarmado, de Sertório Campos uma segunda edição de suas Memórias, numa ti-
de Castro, em março de 1934. ragem de cinco mil exemplares — cinco vezes o que então se
Nessa altura, porém, o editor já havia cessado de decidir considerava normal. Alguns meses mais tarde, voltou a fa-
sozinho sua política editorial. Se a escolha de psicanálise foi lar com Humberto de Campos, deixando-o atônito com um
uma clara indicação do seu conhecimento do gosto do públi- programa pormenorizado para 1934, pelo qual, entre reim-
co que havia adquirido como gerente da Garraux, e o con- pressões e livros novos, seria publicado quase um livro por
flito civil lhe forneceu um assunto de sumo interesse no mo- mês, numa produção total de 63 500 exemplares. Embora
mento para o leitor paulista, toma agora uma nova direção não tenha sido cumprido exatamente dessa maneira — talvez
temerária, para fazer de sua firma uma editora preeminente- Humberto de Campos não tenha conseguido fornecer-lhe a
mente literária e, ainda mais, de obras da literatura nacional. tempo o material necessário - o programa tornou-se a viga
E isso, sem dúvida, deveu-se à nova esposa, íntima colabora- mestra do período inicial da José Olympio. Até 1935, a edi-
dora e sócia no negócio. Vera Pacheco Jordão (1910-1980) tora já havia lançado ou reeditado dezessete títulos, diversos
pertencia à elite intelectual da cidade, consciente dos modos, deles na tiragem de vinte mil exemplares ou mais. Em 1934,
correntes e personagens do seu mundo. E se podia contribuir ano da morte do festejado cronista, a José Olympio publi-
com seu bom gosto e discernimento, o marido estava pron- cou postumamente seis novos livros e reimprimiu quinze ou-
to a acrescentar o espírito especulador tão necessário para tros. Houve ainda mais sete edições em 1937, três em 1938,
empreendimento tão arriscado. E, na verdade, José Olympio treze (!) em 1939 e quatro em 1940 — já então totalizando
era jogador nato- de cavalos, de pôquer, de edições... cerca de meio milhão de exemplares. Não é de admirar que
No princípio, os riscos eram mínimos. O terceiro título de José Olympio expressasse sua gratidão dando o nome de
José Olympio, e seu primeiro lançamento literário, foi uma Humberto de Campos ao primeiro concurso literário da edi-
reimpressão de A Ronda dos Séculos, contos de Gustavo Bar- tora (um prêmio anual para a melhor coletânea de contos).
roso, que acabara de ser eleito para a Academia Brasileira de Em 1939, porém, a LER Editores, de São Paulo, foi auto-
Letras ($122). À nova editora atingiu seu verdadeiro sucesso rizada a imprimir uma edição das obras completas de Hum-
com o autor de sua quarta publicação, Os Párias, do cronista, berto de Campos, para venda domiciliar a prazo ($119) e,
contista, ensaísta e crítico Humberto de Campos, muito po- em 1941, percebendo, talvez, que já se esgotara o potencial
pular na época, além de ter sido, de 1922 a 1929, sob o pseu- de vendas desses livros, parece que a José Olympio vendeu
dônimo de Conselheiro xx, o editor de uma revista fescenina, definitivamente os direitos de todas as obras de Humber-
A Maçã. Humberto de Campos agora está esquecido, feliz- to de Campos a uma outra editora de livros para venda a
mente: um sentimentalismo enjoado torna sua leitura apenas prazo, a W. M. Jackson Co.
tolerável nos dias de hoje, mas correspondia tão bem ao gosto
da época que representou, para José Olympio, aquele autor
best-seller de que qualquer novo editor precisa desesperada- JOSÉ LINS DO REGO $138
mente para sobreviver nos primeiros anos.
Tem-se dito que o talento de José Olympio (ou de Vera, Enquanto isso, a José Olympio ia constituindo um patrimô-
ou de ambos) não estava em encontrar o best-seller imedia- nio literário mais duradouro. José Lins do Rego Cavalcanti
to, mas transitório, porém em localizar obras e autores de já tinha a reputação de “grande crítico do Norte” quan-
484 José Olympio José Olympio 485

do enviou seu primeiro romance, Menino de Engenho, ao que foi lançado em outubro de 1933, numa tiragem aproxi-
irmão de Jorge de Lima, Hildebrando, pedindo-lhe que o madamente igual, a 68000.
fizesse publicar — por conta do autor. Cogitou-se de uma As tiragens desses dois títulos foram, assim, um pouco su-
edição de 1500 exemplares, na Pongetti Irmãos. Esta firma periores a um milheiro, cifra habitual na época para qualquer
era uma antiga gráfica, e somente em 1935 é que se tornou novo autor, mas sua circulação ainda se restringia pratica-
editora. Em vez disso, porém, Hildebrando entregou os ori- mente à intelectualidade do Rio e de São Paulo. Para o leitor
ginais a uma das novas editoras que haviam surgido graças comum, especialmente nas províncias, a literatura brasileira
às novas oportunidades criadas pela Revolução de 1930. ainda estava parada em Machado de Assis. Somente José
Adersen Editores era uma firma muito pequena que S.O. Olympio teve a perspicácia necessária para dar-se conta de
Hersen e Adolfo Aizen haviam acabado de fundar e estava à quanto e do quão rapidamente as perspectivas da nação es-
procura dos primeiros títulos para publicação. (Aizen logo tavam mudando. Os brasileiros começavam a preocupar-se
se afastou para voltar à revista O Malho. Depois, em 1943, apaixonadamente com o Brasil e o público leitor médio es-
fundou a Editora Brasil-América, com o objetivo de impor- tava, afinal, preparado para canalizar esse interesse para o
tar histórias em quadrinhos dos Estados Unidos, em cuja romance pós-modernista.
tradução empregou o jovem Alfredo Machado. Morreu em Convencido de que poderia vender José Lins, e bem, num
ro de maio de r99r.) Agora sozinho, O. Hersen, que havia mercado mais amplo, José Olympio resolveu tomar a inco-
acabado de contratar a publicação de Poemas Escolhidos, mum iniciativa de dirigir-se ao autor. Telegrafar-lhe-ia ofe-
de Jorge de Lima, recebeu muito bem o novo romance, pro- recendo-se para publicar uma segunda edição de Menino de
pondo, para espanto de José Lins, publicar uma edição de Engenho, de três mil exemplares, e uma edição de cinco mil
dois mil exemplares (mas numerados de 1 a 1000 e de 4001 exemplares de Banguê, que fora anunciado na contracapa de
a 5000 para impressionar a freguesia!), com pagamento de Doidinho como o próximo romance de Lins. Na agência do
direitos autorais e um preço de capa de s$000º:. Menino de correio, o bom jogador José foi levado, no último momento,
Engenho saiu em fins de junho de 1932. Embora as vendas por um impulso repentino, a dobrar as cifras, para cinco mil
tivessem sido dificultadas pela deflagração, em 9 de julho, da e dez mil. “Você é doido mesmo”, reagiu Vera à sua tímida
Revolução Constitucionalista, que fechou o mercado paulis- confissão do que acabara de fazer. José Lins do Rego, ain-
ta, o livro atraiu a atenção de Gastão Cruls. Em seu Boletim da mais atônito, telegrafou imediatamente de Pernambuco a
de Ariel, de outubro de 1932, teceu comentários favoráveis resposta: “Tomo o próximo navio”, e enviou a Gastão Cruls
à obra, entre os quais o de que ela merecia melhor sorte um pedido de desculpas por sua deserção”. “Recebi proposta
do que aquela que comumente se reserva no Brasil a um de José Olympio de São Paulo para edições de Menino e Ban-
novo escritor, mesmo talentoso, e elogiando especialmente guê. O editor quer se meter numa aventura, pois me propõe
“a maneira clara e despretensiosa com que tudo [...] é narra- uma tiragem de 5000 de um e 10000 de outro. Não é preciso
do, sem arrebiques de estilo e a preocupação dos adjetivos, dizer que em igualdade de condições você terá preferência.
sem torneio de períodos e a balofa retórica da nossa falsa Não acredito que este negócio lhe seja interessante.”
literatura”», Os críticos João Ribeiro e Augusto Frederico Consciente, sem dúvida, do estupendo impacto publi-
Schmidt também se manifestaram favoravelmente e o ro- citário do que iria fazer, José Olympio pagou o total dos
mance esgotou-se em três meses. À Editora Adersen subsistiu direitos autorais referentes aos dois livros — nove contos de
por mais uns quatro anos, mas Gastão convenceu Lins a réis - no mesmo dia em que recebeu os originais de Banguê.
entregar à Ariel a publicação do livro seguinte, Doidinho, Tratava-se de coisa inédita no mundo editorial brasileiro,
quer no tocante à forma de pagamento, quer ao montan-
22.ºS. O. Hersen, o Primeiro Editor”, em José Lins do Rego: o Ho- te. Então, em 23 de junho de 1934, lançou ambos os livros
mem e a Obra, compilação de Eduardo Martins, João Pessoa, Direto- ao mesmo tempo, a 7$000, com atraentes capas de Cícero
ria Geral da Cultura/sEC, 1980, pp. 345-349.
23. Boletim de Ariel, rº série, vol. 2,m. T, 14 Out. 1932. 24. Gastão Cruls, em Leitura (Ns), n. 5, p. 55, Nov. 1932.
486 José Olympio José Obympio 487
Dias —- e com outra inovação: José Lins ali se encontrava, em T$ cruzeiros), seguido de outras reimpressões (a 12 cruzeiros)
pessoa, para autografar cada exemplar vendido. de Menino de Engenho, Doidinho, Banguê, Pureza e Pedra
O problema, agora, era vender o estoque que restou de- Bonita. Já em 1940, José Olympio declarava, em entrevista,
pois desse primeiro dia. José e Vera, trabalhando com um que José Lins do Rego era o único autor brasileiro vivo com
livro de informações sobre os municípios do país e estiman- vendas comparáveis às de Humberto de Campos. Durante
do as vendas possíveis em cada pequena cidade, com base algum tempo chegou a conseguir o quase impossível feito de
em sua população, mandaram pacotes de livros, em consig- ser um autor brasileiro a viver de direitos autorais.
nação, para os mil e poucos pontos de venda existentes no Para um editor, as implicações de um aumento, embora
país. A maioria foi devolvida. Para uma cidade de dez mil pequeno, da tiragem média eram impressionantes. O levan-
habitantes seguiam dez exemplares, e logo depois vinham tamento de 1976, de Datus Smith Junior, divulgado em The
nove de volta, acompanhados de uma colérica carta do li- Economics of Book Publishing in Developing Countries, es-
vreiro. Não demorou para que o carteiro pedisse uma gra- timava os custos de composição (na América Latina como
tificação especial da editora pelo trabalho extra de trazer um todo) em 15,1% do preço de capa numa tiragem de mil
as enormes devoluções. Aprenderam a não mais inundar as exemplares, caindo para 9,5% numa de cinco mil e, mais
livrarias desse modo, e as duas edições levaram cinco anos ainda, para 7,1% numa edição de dez mil. Essa economia
para esgotar-se, mesmo que, no final, Menino do Engenho dificilmente terá sido menor para uma editora brasileira nos
tenha se tornado o título mais reeditado pela editora: vinte e anos de 1930.
nove edições até 1981.
À compensação veio de outro modo. Os escritores afluí-
ram para uma editora suficientemente louca para imprimir O PAULISTANO SE FEZ CARIOCA $139
dez vezes mais que a tiragem normal de um novo romance
brasileiro, e ainda pagar adiantado. À “Casa” (José Olympio A “Casa” mudou-se para o Rio de Janeiro pouco tempo de-
sempre se referia à sua firma dessa forma impessoal) conti- pois da publicação de Banguê, inaugurando suas instalações
nuou a publicar os romances seguintes de José Lins do Rego, em 3 de julho de 1934. Tudo parecia parado em São Pau-
à medida que iam surgindo, não mais, porém, em edições de lo; os efeitos da Grande Depressão sobre a vida comercial €
dez mil exemplares. Moleque Ricardo apareceu em julho de cultural haviam sido intensificados pela Revolução Consti-
1935,numa tiragem de três mil cópias, juntamente com uma tucionalista de 1932. O Rio, por outro lado, começava a re-
segunda edição de Doidinho, de quatro mil, e quando Vera cuperar a posição de preeminência literária e intelectual que
sugeriu o título coletivo de “Ciclo da Cana-de-açúcar” para parecia ter perdido para a capital do café, no início do mo-
a obra, Tomás Santa Rosa foi contratado para projetar no- vimento modernista, dez anos antes. Não apenas José Lins,
vas capas uniformes. Moleque Ricardo teve sucesso, a ponto mas quase todo o grupo nordestino havia-se mudado para a
de sair uma segunda edição (de quatro mil exemplares) em capital federal. Os jovens e ambiciosos editores sentiram-se
menos de um ano — ajudado, sem dúvida, por suas (anacrôni- obrigados a fazer o mesmo.
cas) referências à repressão que então se verificava no Recife. Sua nova loja, bem moderna, no corrente estilo art déco,
Em 1937, foram publicados Usina (cinco mil exemplares) estava muito bem situada, na rua do Ouvidor, nº 110, pró-
e um livro para crianças, Histórias da Velha Totônia, com ximo da esquina da avenida Rio Branco. Além disso, locali-
ilustrações de Santa Rosa. Seguiu-se Pureza (sete mil exem- zava-se quase defronte à Livraria Garnier, no nº 109, e isso
plares), em 1937, reimpresso em 1940. Pedra Bonita veio à pode até mesmo ter apressado a extinção daquela antiga
luz em 1938 (a r0$000) e foi reimpresso, juntamente com firma, pois o ativo paulista significou uma competição su-
uma terceira edição de Menino de Engenho, em fevereiro de perior às forças da Garnier. Mesmo no campo da sua espe-
1939. Riacho Doce apareceu em fins de 1939 e Água Mãe cialidade, a literatura francesa, seu estoque estava obsoleto,
em 1941 — com uma reimpressão em 1942. Em fins de 1943, enquanto a José Olympio importava todos os autores re-
saiu Fogo Morto (com o preço, inflacionado pela guerra, de centes. Todavia, como observamos antes, os livros vindos
488 José Olympio José Olympio 489

da França já tinham ficado excessivamente caros ($127), € lançara apenas oito livros. Em 1934, publicou trinta e dois e,
uma pronunciada valorização adicional do franco, no pe- em 1935 — O primeiro ano completo que passou na capital
ríodo de 1933-1935, colocou-os inteiramente fora do alcan- do país — cinquenta e nove. Em 1936, que iria ser o melhor
ce da maioria dos leitores brasileiros. Isso ajuda a explicar ano para a atividade editorial brasileira entre as guerras, saí-
não só o fim da Garnier no Rio como também o da Casa ram sessenta e seis novas edições da José Olympio, que então
Garraux em São Paulo. A Garnier vendeu sua loja do Rio era, indiscutivelmente, “o maior editor nacional” no campo
a Ferdinand Briguier e Companhia no curso de 1934 (ano de edições literárias e livros não didáticos. De fato, publicou
da morte do velho Ferdinand Briguiet). Dois anos depois, o todos os escritores importantes de seu tempo, com exceção
sobrinho, Ferdinand Briguiet 11, adotou o nome de “Livra- do gaúcho Érico Veríssimo, que era, como sabemos, diretor
ria Briguiet-Garnier”*. À Casa Garraux, que já sentira, três de empresa concorrente.
anos antes, a saída de José Olympio de seus quadros (entre
outras coisas, ele fora seu chefe de compras de livros), foi
vendida em 1935, € seu proprietário, Bressone, abriu uma OUTROS SUCESSOS LITERÁRIOS
confeitaria, “A Menina de Chocolate”! Nada poderia ilus- DA DÉCADA DE 1930, E UMA FALHA $r40
trar de maneira mais impressionante a decadência pós-revo-
lucionária das importações de livros franceses no mercado Entre os muitos ex-autores da Schmidt e da Ariel que J. Olym-
brasileiro (cf. tabela 15, p. 863). pio acabou publicando, encontram-se: Gilberto Amado, Jor-
Mas era na literatura nacional que a José Olympio pre- ge Amado, Oswald de Andrade, Lúcio Cardoso, Otávio de
tendia distinguir-se, e, na ocasião, o mercado para essa lite- Faria, Amando Fontes, Gilberto Freyre, Murilo Mendes, Vi-
ratura estava crescendo rapidamente. Quanto sua política nícius de Moraes, Cornélio Penna, Lúcia Miguel-Pereira, Ra-
deveu a um patriotismo altruísta e quanto terá sido resul- chel de Queiroz, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Plínio
tado de um cálculo comercial nem os próprios editores tal- Salgado, José Geraldo Vieira e ainda, mais tarde, os próprios
vez pudessem dizê-lo, tão completamente entrelaçadas se Gastão Cruls, Agripino Grieco e Augusto Frederico Schmidt.
encontram as duas linhas, a de avaliação estética e a de pers- Do mesmo modo que Garnier tinha feito, setenta anos
pectiva comercial, nas decisões de um editor literário. Almir antes, José Olympio correu poucos riscos com nomes com-
de Andrade, pelo menos, não tinha dúvida: José Olympio pletamente novos. De outros autores seus, diversos vieram
veio para o Rio da Editora Nacional: Pedro Calmon, Josué de Castro e Me-
notrti del Picchia. O romance pioneiro nordestino, A Bagacei-
disposto a trabalhar menos para si do que para a cultura nacio- ra, de José Américo, tivera edições na Imprensa Estadual da
nal, dedicado a afrontar todos os riscos € prejuízos imediatos da Paraíba, na Castilho, na Adersen e duas na Nacional, antes
aventura difícil. [...] Em José Olympio se reuniam as qualidades do que a José Olympio publicasse sua sexta edição, em 1936.
trabalhador infarigável, do organizador, o tino comercial, a decisão Rubem Braga fora publicado anteriormente pela Jacinto,
desinteressada de afrontar todos os riscos para o amparo econômi- Drummond de Andrade pela Pongerri, Mário Sette pela Lello
co e editorial da cultura brasileira. & Irmão, do Porto, Peregrino Júnior pela Ipiranga, e Galeão
Coutinho tivera sua própria editora, a Cultura Brasileira.
Decidiu mudar-se - geograficamente para o Rio de Janei- Diversos autores haviam publicado por conta própria toda
ro e comercialmente para a moderna ficção brasileira — no a sua obra anterior: Vivaldo Coaracy e Otávio Tarquínio de
momento certo e, num mercado que voltava a avolumar-se, Sousa, por exemplo. Os únicos autores que, na década de
alcançou rapidamente uma posição de predomínio. Em 1933, 1930 e no início da de 1940, tiveram seus primeiros livros
publicados pela J. Olympio parece que foram Luís Jardim
25. Paulo Barbosa, “Planos e Realizações da Livraria Briguiet-Garnier”, (que era empregado da “Casa”), Sérgio Buarque de Holanda,
Anuário Brasileiro de Literatura, n. 7/8, pp. 313-314, 1943-1944. Emil Farhat, Adalgisa Nery (esposa de Lourival Fontes) e - o
26. Revista do Livro, 1º série, s dez. 1939. mais bem-sucedido de todos — Dinah Silveira de Queiroz.
490 José Olympio José Olympio 491

Ainda assim, quase todos esses autores tornaram-se ampla- proeminentes da cultura brasileira. Acolhia com prazer escritores
mente conhecidos e fizeram sucesso porque foram lançados novos e sempre se preocupava antes com oferecer uma chance ao
com o sinete editorial da José Olympio. autor que tivesse alguma contribuição à cultura brasileira do que
Em 1935, Jorge Amado deu à José Olympio, com Jubiabá, com auferir lucros...
seu primeiro êxito notável depois de Banguéê, e isso o persua-
diu a empreender a reedição de todos os romances anterio- E o ano de maior sucesso daqueles primeiros tempos
res de Jorge Amado, sob o título coletivo de “Romances da estava por vir: em 1939, todos os prêmios literários ofere-
Bahia”. Uma terceira edição de Cacau e uma segunda de Suor cidos no Brasil, que não estivessem ligados a uma editora,
acompanharam a primeira publicação de Mar Morto, em ju- foram conquistados por autores da J. Olympio. O prêmio
lho de 1936. Capitães de Areia, livro em que Jorge Amado da Academia Brasileira de Letras foi ganho por João Al-
amplia seu poder de atração com uma empolgante história phonsus, com seu Rola-moça, publicado no ano anterior. O
de aventuras, foi lançado em 1937, juntamente com a tercei- prêmio Felipe de Oliveira foi para Rachel de Queiroz, com
ra edição de O País do Carnaval e uma reimpressão de Ju- As Três Marias. Os prêmios João Carneiro e Lima Barreto
biabá. Jorge Amado, porém, não apenas mudara de editora; couberam, ambos, a Emil Farhat, com Cangerão, romance
realmente, passara a pertencer aos quadros da J. Olympio em sobre a exploração de crianças numa região de mineração,
1934 e, em agosto de 1936, tornara-se o gerente de propa- cujos mil e duzentos exemplares se esgotaram dois meses
ganda da “Casa”, ocupando-se, principalmente, da publici- após o lançamento, em setembro — apesar de o romance
dade nos jornais e no rádio. apresentar, se confiarmos em Wilson Martins, todos os pio-
O ano de 1936 foi também aquele em que Graciliano res defeitos da ficção daquela época: “romance [...] típico
Ramos se tornou autor da José Olympio com seu terceiro da década [...], vagamente comunista, de um comunismo
romance, Angústia. Em 1937, foram lançados pela “Casa” sentimental e utópico”*7. Melhor vendagem do que qual-
os primeiros títulos de Rachel de Queiroz e de Gilberto Frey- quer desses teve o primeiro romance de Dinah Silveira de
re, início de uma ligação duradoura. O Quinze alcançou, em Queiroz, Floradas na Serra, que conquistou o prêmio An-
1981,a sua 26º edição, Casa-grande & Senzala, a vigésima. tônio de Alcântara Machado da Academia Paulista de Le-
No ano seguinte (1938), a Livraria José Olympio Editora tras, livro que teve uma reimpressão no mesmo mês do seu
publicou a primeira edição de Vidas Secas, de Graciliano lançamento e outra no começo do ano seguinte. Em 1941,
Ramos, talvez o mais conhecido de todos os romances nor- Los Amigos del Libro, de Buenos Aires, lançou uma edição
destinos, e certamente a mais bem-sucedida obra de seu au- de dez mil exemplares em espanhol, enquanto continuou
tor: duzentos mil exemplares vendidos no Brasil, além de sendo bem vendido no Brasil, chegando à oitava edição em
mais ou menos 420 mil em traduções para onze línguas, até 1955, quando foi transposto para um filme de muito êxito.
1970, em comparação com os 95 mil exemplares vendidos Em 1982, alcançou a décima sétima edição.
no Brasil, e outros tantos no exterior, de São Bernardo, seu O ano de 1939 foi aquele em que a “Casa” participou do
best-seller seguinte. extraordinário êxito mundial de The Citadel, de A. J. Cro-
Já em 1937, um crítico, no Anuário Brasileiro de Litera- nin. Traduzido por Genolino Amado, esse ataque roman-
tura, escrevia a respeito da José Olympio; ceado à prática da medicina na Grã-Bretanha mereceu uma
reimpressão quase imediatamente, mais duas em poucos
Esta importante casa editora [...] veio continuando no mais belo meses, e uma outra em meados de 1940. Naturalmente, foi
programa editorial até hoje empreendido no Brasil. Seu fundador ajudado pelo fato de ser um “livro de filme”.
e proprietário, o maior editor nacional na mais lídima acepção da O fracasso mais notável do ano, do ponto de vista co-
palavra, não tem poupado esforços ou economizado energias no mercial, foi a rejeição, por Vera, do épico da Guerra Civil
sentido de converter a pequena ou, digamos com mais propriedade,
a inexistente indústria do livro genuinamente brasileiro numa rea- 27. Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira: 1933-1960,
lidade brilhante... O editor reunira à sua volta os intelectuais mais São Paulo, Cultrix, 1979, vol. 7, p. 129.
492 José Olympio José Olympio 493

norte-americana de Margaret Mitchell, Gone with the Wind “DOCUMENTOS BRASILEIROS” E POESIA $r41
(1936), por considerá-lo grande demais, muito mal escrito,
sobre um assunto impopular aqui e, no tocante ao tema de Um acontecimento da maior importância a longo prazo des-
fundo da escravidão, uma repetição dos romances sobre o sa época, e típico do modo pelo qual José Olympio tirava
Nordeste brasileiro. Érico Veríssimo já havia recusado o li- partido da consciência nacional que então despertava, foi a
vro na Globo, apreensivo com o custo da tradução de volu- criação, em 1936, da mais importante coleção da “Casa”, a
me tão alentado, e por não esperar interesse dos brasileiros Documentos Brasileiros, inspirada na Brasiliana de Octalles”.
num romance baseado na história dos Estados Unidos. Ape- A série estreou com Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
sar das vendas realmente assombrosas dessa obra no país de Holanda, com prefácio de Gilberto Freyre, o diretor da cole-
origem (1700000 exemplares, até meados de 1938), outras ção. Essa obra foi uma das mais importantes de não ficção da
editoras, entre as quais a Civilização Brasileira, recusaram- década de 1930 no Brasil: já chegou a mais de vinte edições.
-no por motivos análogos. A versão brasileira foi afinal Outros títulos publicados sob a responsabilidade de Gil-
publicada, com uma campanha publicitária intensa, pela berto Freyre foram Nordeste, de sua própria autoria — uma
Pongetti Irmãos, em dezembro de 1939, em tradução da ampliação, da sociologia para a ecologia, do seu interesse pe-
poeta Francisca de Bastos Cordeiro, filha do barão Rodolfo los efeitos do cultivo da cana-de-açúcar; as sinceras Memórias
Smith de Vasconcelos, viúva do procurador do Conde d'Eu, do diplomata e historiador Oliveira Lima; a biografia de Ber-
e promotora pioneira dos direitos da mulher brasileira**, À nardo Pereira de Vasconcelos, feita por Otávio Tarquínio de
Pongetti era uma empresa gráfica, e apenas quatro anos an- Sousa; e O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, de Afon-
tes entrara no ramo editorial. Apesar de um catálogo sem so Arinos. À publicação de A Vida Dramática de Euclides da
dúvida de bom nível — que incluía Maurois e Dostoiévski — Cunha, de Elói Pontes, em 1938, seguiu-se uma reimpressão de
dizia-se que a empresa estava sofrendo pesados prejuízos Peru versus Bolívia, e a primeira edição de Canudos, obras de
em seu novo empreendimento. E o Vento Levou... acabou Euclides, cujos direitos ainda estavam com a viúva — o que não
sendo sua salvação. À publicidade em torno da dificulto- sucedia com Os Sertões, que continuou sendo propriedade da
sa busca de uma atriz para o papel de Scarler O'Hara, na Francisco Alves até 1969, quando caiu em domínio público.
versão de Hollywood, despertou tremendo interesse pelo A ideia da Documentos Brasileiros deveu-se muito a Otá-
livro, e, quando o filme finalmente chegou ao Brasil, suas vio Tarquínio de Sousa, que se tornou responsável pela cole-
vendas estouraram. Não obstante o preço de 258000 por ção a partir do número dezenove (em 1939) e pela inclusão
um livro de 854 páginas- 358000 na versão encaderna- de títulos como História da Literatura Brasileira, Seus Funda-
da - a Pongetti conseguiu o grande êxito da década, ven- mentos Econômicos, e Introdução à Revolução Brasileira, de
dendo cinquenta mil cópias. Esse livro encontra-se à venda Nelson Werneck Sodré; Literatura Oral e Geografia do Brasil
até hoje. O resultado foi que a Pongetti se tornou uma das Holandês, de Luís da Câmara Cascudo; uma reimpressão da
maiores editoras do país, mesmo que seu nome continuas- Bibliographie brésiltenne, de Anatole Garraux (compilada em
se a abrigar inúmeras obras sem valor algum, encomen- Paris pelo velho livreiro de São Paulo, depois de aposentado);
dadas a seu departamento gráfico por conta dos autores. e A Democracia Coroada, de João Camilo de Oliveira Torres.
Francisca de Bastos Cordeiro também traduziu Por quem A esposa de Otávio, Lúcia Miguel-Pereira, colaborou com
os Sinos Dobram, obra de Hemingway que trata da Guerra Prosa de Ficção de 1870 a 1920 e Machado de Assis. Quando
Civil Espanhola de 1936-1939 e que também virou filme Otávio e Lúcia morreram numa colisão aérea, pouco antes
de Hollywood.
29. Para uma comparação entre essas duas coleções c a Biblioteca
Histórica Brasileira, da Martins, cf. Heloisa Pontes, Retratos do Bra-
sil: Um Estudo dos Editores, das Editoras e das “Coleções Brasilia-
nas”, nas Décadas de 1930, 40 e 50, São Paulo, Instituto de Estudos
28. Cf, Veja, vol. 26,n. 24, pp. 66-67, 7 abr. 1993. Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo, 1988.
494 José Olympio José Olympio 495

que o avião em que viajavam pousasse no aeroporto Santos AMIZADES E POLÍTICA $142
Dumont, em dezembro de 1959, a direção ficou vazia até ser
assumida por Afonso Arinos, de 1962 a 1988 (a partir do vo- Um aspecto importante do programa editorial de José Olym-
lume 111). No volume 150, Contagem Regressiva (1972), de pio, nos anos de 1930, foi sua produção política. No come-
Cândido Motta Filho, é dada uma lista de toda a coleção até o ço de 1934, ele havia publicado A Voz do Oeste: Romance-
número 156,e a Revista do Livro (vol. 35,n.4, pp. IX1-138, -poema da Época das Bandeiras, de um velho conhecido
1968), do IN, publicou um índice até o nº 131. seu dos tempos da Casa Garraux, Plínio Salgado, autor
À produção inicial da “Casa” era (e na realidade ainda é) importante como modernista, mas que as tendências na-
predominantemente de ficção, ensaios e história, sendo bem cionalistas do movimento levaram para a política, e agora
pequena a proporção de poesia. Das primeiras mil edições — tinha importância muito maior como líder da Ação Inte-
que chegam ao início de 1947 -, cerca de trinta títulos eram gralista Brasileira, o fascismo nativo, de camisa verde. Logo
de poesia brasileira e quinze de poesia traduzida: no total, depois, José Olympio lançou uma coleção de Plínio e seus
menos de 5% da produção da editora. Dos brasileiros, os úni- correligionários, Problemas Políticos Contemporâneos,
cos autores importantes de poesia foram Vinícius de Moraes, que era pura propaganda integralista, tal como os livros
Carlos Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo, Augusto que, até então, vinham sendo publicados — mas ao lado de
Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Adalgisa Nery e Olegá- outros que apresentavam pontos de vista opostos — na Co-
rio Mariano. Ás traduções foram publicadas, em sua maioria, leção Azul, de Schmidt. Este era abertamente simpatizante
na Coleção Rubaiyat, Joias da Poesia Universal. Essa série, do integralismo, mas isso dificilmente seria o caso de José
que publicava pequenos volumes, tirou seu nome da obra de Olympio.
Omar Khayyam, na tradução de Otávio Tarquínio de Sousa, A motivação de José Olympio era talvez apenas amizade
que foi o primeiro livro da coleção, uma reimpressão de 1935 pessoal, No entanto, pode também ter havido um elemento de
do texto publicado originalmente pela Imprensa Nacional, cálculo comercial, ou até mesmo político. O material tinha mer-
em 1928. À coleção incluía alguns autores ocidentais — Emily cado garantido eo movimento parecia estar sendo bafejado por
Brontê, por exemplo = mas era dedicada, em sua maior parte, favores oficiais e militares. Em 1934, Plínio Salgado proclama-
a poctas orientais, entre os quais Rabindranath Tagore, Hafiz va que sua organização possuía quase duzentos mil membros.
e Saadi. Alguns anos mais tarde (1950), saíram os Pequenos Em 1937, haviam subido para quatrocentos mil membros e
Poemas em Prosa, de Baudelaire, em tradução especialmente contava com o apoio de rso revistas semanais € oito jornais
bem cuidada de Aurélio Buarque de Holanda. diários. À Câmara dos Quarenta (órgão central do partido)
Contudo, a “Casa” não publicou regularmente poesia até contava altos funcionários públicos, um ex-ministro e um di-
1954, quando editou um volume de 401 páginas com toda retor do Banco do Brasil. Pantaleão Pessoa, chefe do Estado-
a poesia de Manuel Bandeira, e que teve vendas bastante -Maior do Exército até 1935, era um notório simpatizante.
satisfatórias. A essa edição seguiu-se, no ano seguinte, Fa- Também o eram o chefe da Polícia Federal, Filinto Miller,
zendeiro do Ar e Poesia até Agora, que reunia, em 561 pági- e uma assombrosa proporção dos oficiais navais da ativa —
nas, toda a obra de Carlos Drummond de Andrade. Como a 75% — em certos setores.
venda do volume esgotou-se em poucos meses, a José Olym- Por outro lado, a direita não detinha o monopólio do
pio tomou coragem para lançar-se num programa de poe- programa editorial da José Olympio, mais bem descrito
sia bastante ousado. Em 1956, foram publicadas as Poesias pela expressão de Vera: “eclético”. Drummond de Andra-
Completas de Augusto Frederico Schmidt (802 páginas) e de teceu encômios generosos à neutralidade política do
Duas Águas, Poemas Reunidos, de João Cabral de Mello editor: “José Olympio editou com o mesmo espírito auto-
Neto (445 páginas). Entre os volumes seguintes figuram, em res da direita, do centro, da esquerda e do planeta Sirius”,
1959, Poesias, 192$-5$, de Murilo Mendes (482 páginas), afirmando, a propósito de qualquer ligeira preferência em
seguido, em 1960, por Poesias, de Rui Ribeiro Couto,e Ven- algum momento, que “isto se deve à tendência da época,
to Geral: Poemas 1951-1959, de Tiago de Mello. aos rumos da sensibilidade, tangida pelos acontecimentos
496 José Olympio José Olympio 497

mundiais”sº. Werneck Sodré alude a certo grau de prudente seus autores, oferecia-lhes amizade, respeito e estímulo, e
calculismo, sugerindo que “havia os títulos que eram acei- isso valia tanto para os provincianos como para os cariocas.
tos ou procurados porque o público os preferia. E havia A reação deles está expressa, tipicamente, na descrição que
outros em que os prováveis, às vezes certos prejuízos, eram José Lins do Rego faz do seu José Olympio:
compensados por outra forma de lucro, não contábil, por
exemplo a de amizade que poderia ser útil adiante, seja É o amigo de todos os instantes e em todas as horas, em todas as
para crédito bancário, seja para a obtenção de algum favor circunstâncias. Às vezes parece um furacão de Jamaica. Mas é só
ou concessão do poder”"". parecer. Atrás da fúria, está a ternura do homem de lágrimas que
É certamente legítimo presumir que as amizades pessoais estão à flor dos olhos como fonte em pé de serra. Este é o maior J.
tiveram o seu papel na política da “Casa”. De fato, pode-se Olympio. Maior que o editor tem sido um gigante na tormenta, O
dizer que as amizades pessoais foram a pedra angular do editor de literatura que se projetou nos centros de cultura do mun-
êxito de José Olympio, desde os dias de seu aprendizado na do com sua Casa que é um modelo em tudo: na seleção de valores,
na honestidade de comércio, no bom gosto da matéria que trata...
Garraux. Nem tudo, porém, era oportunismo. Até mesmo
Werneck Sodré tem de admitir que nem todos os seus ami- Acreditando nos livros que faz com a alegria do pai que em cada
gos eram pessoas ricas ou poderosas. Arrola no círculo mais filho descobre uma revelação de Deus".
íntimo de José Olympio, na década de 1930, um suboficial
da Marinha e um jogador de futebol profissional — naqueles Um dos resultados foi tornar a livraria da rua do Ou-
dias, gente de status bastante modesto. E suas amizades com vidor conhecida como ponto de encontro, no centro da ci-
pessoas influentes tampouco foram meras pontes para bons dade, para escritores e artistas de todos os matizes de opi-
negócios. Manteve-se íntimo de Plínio Salgado por muito nião progressista, um verdadeiro clube onde as pessoas se
tempo após a repressão do integralismo, e sua amizade com encontravam, conversavam, deixavam recados, até mesmo
Getúlio Vargas, embora iniciada ao tempo da ditadura do usavam como endereço para correspondência. Para evitar
Estado Novo, perdurou após a queda do ditador em 1945, (supomos) que as acaloradas discussões atrapalhassem os
quando seria no mínimo contraproducente, fregueses, José Olympio mudou seu escritório para o andar
Muito de seu êxito se deve ao especial cuidado em cul- de cima, liberando aos frequentadores a parte dos fundos da
tivar estreito relacionamento com os críticos. Suas apre- loja, com o famoso banco preto que havia sido adquirido
ciações, quando favoráveis, eram incorporadas às orelhas junto com os livros da biblioteca de Pujol. Nele, postava-se
(uma inovação da época) do livro, costume atribuído à José Graciliano Ramos, os olhos entrefechados, um eterno cigar-
Olympio, embora a primazia seja disputada pela Civiliza- ro pendendo dos lábios, mais ouvindo do que participando
ção Brasileira, ainda no tempo em que pertencia à Nacional. da conversa, até que, subitamente, aparteava com alguma
Preocupava-se também com os leitores — que, por exemplo, coisa inteiramente extravagante, apenas para provocar uma
eram estimulados a escrever aos autores, aos cuidados da reação. Em torno dele, ficavam seus companheiros nordes-
editora, com a inédita certeza de que suas cartas seriam real- tinos: José Lins, preocupado com suas doenças imaginárias,
mente encaminhadas. Acima de tudo, José Olympio preo- o político socialista Osório Borba, eternamente investindo
cupava-se com seus autores: nesse particular, constituía um contra Vargas e todos os seus feitos, Tomás Santa Rosa, res-
contraste surpreendente com o editor tradicional do Brasil, ponsável por grande parte dos trabalhos de ilustração da
que se mantinha distante, quase desdenhoso, da literatura e “Casa”, Luís Jardim, cujos retratos a bico de pena ocuparam
dos homens de letras, vendo numa obra apenas as perspecti- tantas das suas páginas de rosto, o companheiro artista Cân-
vas comerciais imediatas. José Olympio, longe de humilhar dido Portinari, o sociólogo Gilberto Freyre, e o gerente co-
munista de propaganda da editora capitalista, Jorge Amado.
30. Carlos Drummond de Andrade, “A Casa”, Diário de Pernambu-
Co, 11 set. 1946.
32. Apud Margarida Autran, “José Olympio...”, Jornal do Brasil, 18
31. Nelson Werneck Sodré, op. cit., vol. 1, p. 94. dez. 1971, p. 1 (Caderno 2).
498 José Olympio José Olympio 499

De outras partes do país vinham o amavelmente irônico de ser o editor preferido dos integralistas, jamais concordou
Otávio Tarquínio, historiador consciencioso e politicamente em publicar quaisquer das diatribes racistas de inspiração
ortodoxo, o poeta Murilo Mendes, proclamando em alta voz nazista— como Brasil, Colônia de Banqueiros ou Judaísmo,
sua conversão ao catolicismo, Nelson Werneck Sodré, mili- Maçonaria e Comunismo — que constituíam a contribuição
tar e marxista, Hermes Lima (futuro ministro de Goulart), característica de Gustavo Barroso ao movimento. Ão con-
Astrojildo Pereira (ex-secretário-geral do Partido Comunista trário, publicou obras em defesa do povo judeu, como as de
Brasileiro) e Paes Leme, “que passou da revolução proletária Paul Claudel (Les juifs), Jacques Maritain, Denis de Rouge-
mundial para a crônica esportiva em São Paulo”. Mais afas- mont, André Spire, George Cattaui e outros proeminentes in-
tados, encontravam-se também Aníbal Machado, Genolino telectuais cristãos liberais. O livro de Claudel saiu em 1938,
Amado, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Almir de An- com o título de Os Judeus, em tradução de Jorge de Lima,
drade, Valdemar Cavalcanti, Marques Rebelo, Amando Fon- que a ela acrescentou um poema de sua autoria, “Invocação
tes, Guilherme Figueiredo, Órris Soares, Dias da Costa, Lúcio a Israel”,
Cardoso, Peregrino Júnior, Rui Ribeiro Couto, Gastão Cruls,
Brito Broca... — toda a geração mais jovem. E não apenas
literatos ou artistas, mas também médicos, professores, jor- GETULISTA? $143
nalistas... Mulheres das letras, também, coisa de que nunca se
ouvira falar nos tempos em que os escritores se encontravam Ao permitir que sua loja se transformasse no foco do des-
na Livraria Garnier ou na Casa Garraux. O acolhimento ali contentamento intelectual, José Olympio demonstrava sua
de Lúcia Miguel-Pereira, Rachel de Queiroz, Adalgisa Nery e tolerância liberal. E o fato de fazê-lo sem se indispor com
Eneida talvez ajude a explicar como José Olympio conseguiu seus fregueses integralistas — descritos por Vera como sendo,
trazer para o catálogo de sua editora praticamente todas as em sua maioria, idosos almirantes e irados conservadores
escritoras proeminentes da época. reacionários — diz muito de sua habilidade. Diz ainda mais
Acentuando a importância da Livraria José Olympio co- de sua coragem, pois mostrou-se preparado para apoiar seus
mo catalisador intelectual, Carlos Drummond de Andrade autores esquerdistas mesmo diante dos evidentes sinais do
sugere que a orientação socialista adotada pela literatura bra- desagrado oficial. Uma das muitas prisões de esquerdistas
sileira na época (por volta de 1935-1937) só pode ser com- que se seguiram aos malogrados levantes comunistas em
preendida como resultado da interação entre esses escritores Natal, Recife e Rio de Janeiro, em novembro de 1935, foi
(e outros participantes) nos bate-papos da rua do Ouvidor, a de Graciliano Ramos, detido, em 3 de março de 1936, em
nº TIO. seu gabinete de diretor do ensino de Alagoas. Outra foi a de
José Olympio, com suas camisas eterna e folgadamente Jorge Amado, em abril. O faro de José Olympio ter prosse-
desabotoadas no pescoço, e seu andar balançado de mari- guido com a publicação de seus últimos romances (Angiis-
nheiro, muitas vezes se fazia presente nessas discussões, mas tia, de Graciliano Ramos, e Mar Morto, de Jorge Amado)
sempre evitava tomar partido. Embora isso não passasse de enquanto ainda se encontravam presos foi encarado como
simples prudência, suspeita-se de que era capaz de agir desse um desafio frontal a Filinto Miiller, que, de 1934 a 1942, foi
modo porque seu evidente gosto pelo jogo político era de o temido chefe de polícia de Getúlio Vargas. E, em seguida,
natureza apartidária. Patriota sincero e nacionalista carac- quando Jorge Amado foi libertado, José Olympio não ape-
teristicamente otimista, compreendia a política mais como nas o reintegrou aos quadros da editora como o promoveu
a arte prática de administrar os negócios humanos do que para o cargo provocativamente importante de responsável
como expressão de qualquer ideologia em particular. pela propaganda da “Casa”.
Do que pode certamente ser absolvido é de qualquer parti- Havia, no governo de Vargas, uma gama muito ampla de
cipação no antissemitismo em moda nos anos de 1930. Apesar opiniões, desde os “linhas duras” como Miiller (responsável
por mandar Olga Prestes, a esposa judia do líder comunis-
33. Aydono do Couto, em Jornal da Bahia, 8 dez. 1961. ta encarcerado, para a morte num campo de concentração
soo José Olympio José Olympio sol

da Alemanha), até os liberais como Oswaldo Aranha, cuja anônimo, citado por Afonso Arinos em A Alma do Tempo,
intervenção pessoal garantiu a livre circulação de Cacau, de disse que “Vargas é espiritualmente o filho de uma índia com
Jorge Amado ($134). O grande círculo de amizades pessoais um jesuíta”. Apenas quatro anos antes de Getúlio se tornar
de José Olympio mostrou-se de utilidade também para aju- presidente da República, o embaixador britânico deprecia-
dá-lo a discernir até onde podia ir sua ousadia. Um de seus va-o, ao dizer que não passava de mais uma “mediocridade
contatos mais úteis foi Lourival Fontes, que, de dezembro provinciana” no governo de Washington Luís, e, de início,
de 1939 a agosto de 1942, foi diretor do Ministério Federal de ninguém parece ter encarado sua presidência senão como
Propaganda, quando de sua transformação em Departamento algo provisório num momento imediatamente pós-revolu-
de Imprensa e Propaganda (DIP)**, Mesmo nesse caso, porém, cionário. Seja como for, embora até mesmo a pessoas tão
o relacionamento era de verdadeira amizade, tendo perdura- íntimas como Oswaldo Aranha ele desse a impressão de ser
do até a morte de Lourival, e a editora continuou a publicar tão inocente quanto “Cristo entre os ladrões”, Vargas conse-
suas obras muito tempo depois que o autor já não ocupava guiu chegar a uma posição mais forte do que a de qualquer
qualquer posição oficial que lhe pudesse ser útil. outro presidente desde Floriano Peixoto e manteve-se no po-
Foi através de Lourival Fontes que José Olympio veio a der por mais tempo do que qualquer governante brasileiro
conhecer o próprio ditador e, durante o Estado Novo, publi- desde dom Pedro 11.
cou obras de Getúlio Vargas, como A Nova Política do Bra- Vargas possuía, sem dúvida, grande encanto pessoal e ti-
sil, embora o governo tivesse, na época, assumido o controle nha uma compreensiva simpatia até mesmo por aqueles inte-
direto e total de outra editora, “A Noite”. À “Casa” seguiu lectuais que considerava politicamente oportuno perseguir.
até os anos de 1980 com o livro Governo Trabalhista do Jorge Amado, falando sobre a repressão durante o Estado
Brasil no catálogo. Novo, confessa que, na única ocasião em que se encontrou
José Olympio, evidentemente, acabou nutrindo verda- com Vargas — imediatamente após sua deposição em 1945 —
deira admiração pessoal por Getúlio. Nelson Werneck So- ficou surpreso com a profundidade de seu conhecimento de
dré cita uma carta recebida de José Olympio, em 1940, em literatura brasileira moderna (seu autor favorito era José
que o editor afirmava ser um fervoroso getulista e realmente Lins do Rego) e, diz Amado, a impressão que deixava era a
acreditar no homem. É possível que a afirmação tenha sido de ser uma personalidade inteligente e muito agradável.
influenciada pelo fato de o destinatário ser, na época, editor Como José Olympio, também parece ter-se mantido a
da publicação Cultura Política, do DIP. No caso de ter sido salvo do antissemitismo corrente naqueles tempos: são tes-
emitida com sinceridade, essa opinião indica, sem dúvida, temunhos disso sua cooperação com a família Klabin no de-
antes um reconhecimento da aptidão de Vargas para o lado senvolvimento da produção brasileira de papel de imprensa
prático de governar do que qualquer identificação com sua ($rr3), e mesmo a comemoração oficial do segundo cen-
mal definida filosofia política. tenário do martírio do dramaturgo judeu Antônio José da
Getúlio Vargas era uma personalidade estranha e enig- Silva, em 1939, que incluiu uma edição comemorativa de
mática, cuja aparência física pouco atraente (era um homen- suas peças pela editora “A Noite”.
zinho baixo e gordo) e maneiras tipicamente despretensiosas O papel de Vargas como virtual criador do moderno Es-
ocultavam, na verdade, uma férrea firmeza de propósitos, tado brasileiro, social, econômica e administrativamente, é
associada a um maravilhoso talento para a política e ex- um tema extenso demais para ser tratado aqui de maneira
traordinárias habilidades táticas: um diplomata colombiano adequada. Todavia, deve-se pelo menos fazer referência a
algumas contribuições de seu governo à cultura brasileira: o
Serviço Nacional de Teatro, o Serviço do Patrimônio Histó-
34. Silvana Goulart, em Sob a Verdade Oficial: Ideologia, Propagan-
da e Censura no Estado Novo (São Paulo, Marco Zero, 1990), por-
rico Nacional, a Universidade do Brasil e, de particular inte-
menorizou o papel do pir. Fica claro que, em grau de importância resse para o comércio livreiro, o Instituto Nacional do Livro
que lhe era dado pela censura getulista, o livro vinha logo atrás do ($126). Adotou medidas que contribuíram para apoiar a in-
cinema, do rádio, da revista e do jornal. dústria gráfica brasileira (decreto-lei n. 2 130, de 12 de abril
soz José Olympio José Olympio 503

de 1940), no sentido de centralizar na Imprensa Nacional rios pejorativos sobre seus membros; c) qualquer notícia que
todos os trabalhos gráficos do Governo Federal, ao mesmo pudesse ameaçar a ordem pública e incentivar a subversão;
tempo em que restringia sua esfera de ação à “divulgação de d) ataques pessoais a qualquer pessoa; e) crítica a governos
atos oficiais”, aumentando, assim, o mercado de trabalho estrangeiros ou a seus representantes; f) qualquer notícia
para as gráficas comerciais. que pudesse causar alarme, inclusive sobre assuntos finan-
ceiros e econômicos; g) “meros boatos de tendenciosidade
manifesta”. Não obstante, a Assembleia teve a coragem de,
na nova constituição que elaborou, restaurar virtualmente a
$744 A CENSURA NO PERÍODO VARGAS
posição liberal do Império, mesmo que, infelizmente, tenha
A atitude de Vargas no sentido de controlar a imprensa era, concedido aos chefes de polícia poderes discricionários am-
de acordo com seu caráter, puramente pragmática. Não sen- plos para utilizarem sempre que considerassem necessário
do falsamente vaidoso, o simples insulto pessoal jamais o tomar alguma medida em caráter de urgência.
perturbava: se fosse espirituoso, talvez até o agradasse. Mas O ano seguinte (1935) foi de crescente tensão política. À
não era um democrata, Seria esperar muito de alguém que contínua ascensão do fascismo em todo o mundo tornava
crescera sob a tutela política de Borges de Medeiros. Para os integralistas cada vez mais seguros de si e arrogantes. Na
um homem como esse, sacrificar a liberdade de imprensa em esquerda, os comunistas, obedientes a uma Moscou cada vez
defesa de qualquer ameaça imaginária à sua posição era per- mais desesperada, esforçavam-se para formar uma frente
feitamente natural. Que não se incomodasse em defendê-la popular unificada, antifascista. Vargas nomeou Miiller chefe
contra os preconceitos de seus correligionários era com- da Polícia Federal e, em 4 de abril, promulgou uma nova e
preensível. Muitas vezes, porém, parece que a sacrificou draconiana Lei de Segurança Nacional, que permaneceria
como mero expediente para agradar o intolerante. em vigor até janeiro de 1953. O novo dispositivo proibia
De certo modo, a censura foi uma característica da vida toda propaganda que defendesse a guerra ou que ameaçasse
brasileira desde a queda do Império ($79). Artur Bernardes ativamente a ordem social ou política: conceito quase tão
(presidente de 1922 a 1926), em especial, depois de decre- universal quanto a sanção da lei militar no Army Act, do
tar a repressão ao anarquismo em 1923, com uma lei que Reino Unido, contra condutas “prejudiciais à boa ordem e à
penalizava com quatro anos de prisão aquele que escreves- disciplina militar”.
se ou editasse material subversivo e promulgar uma lei que A ação das autoridades nessa etapa estava quase toda
dispunha sobre o sigilo oficial em outubro do mesmo ano, voltada para os jornais, sendo os livros pouco atingidos. À
preferiu, durante a maior parte do seu mandato, não se con- Companhia Editora Nacional, por exemplo, que havia pu-
tentar com todas as garantias constitucionais à liberdade blicado, em 1934, URSS, um Mundo Novo, de Caio Prado
de imprensa, mantendo o país num permanente estado de Júnior, continuou, em 1935, lançar obras de louvor à vida
sítio. Acabar com a censura foi uma das metas declaradas na Rússia de Stalin, como Proteção à Maternidade e à In-
da Revolução de 1930, mas nunca foi eferivada, exceto du- fância na União Soviética, de Esther Cenus, e o documen-
rante a breve passagem de Maurício Cardoso pelo Ministé- to oficial soviético A Educação na República dos Sovietes.
rio da Justiça (dezembro de 1931 a fevereiro de 1932); ele Em novembro, os malogrados levantes comunistas deram a
renunciou, porém, envergonhado com sua incapacidade de Vargas o pretexto para decretar um estado de sítio de trinta
controlar a ação dos interventores em cada um dos estados. dias, que foi seguidamente prorrogado no curso dos dois
Quando a Assembleia Constituinte de 1934 discutiu a anos subsequentes. Isso ofereceu ampla esfera de ação para a
questão das garantias constitucionais da liberdade de im- opressão do governo, mas, mesmo assim, a censura, no final
prensa, usou da palavra Francisco Antunes, que sucedera a das contas, provavelmente acabou bencficiando o comércio
Cardoso e a Aranha no Ministério da Justiça. Em seu dis- de livros. Exatamente os perigos do comentário político le-
curso aos deputados, asseverou que a censura era necessária varam os jornais a dedicar espaço a assuntos menos arris-
para evitar: a) críticas acrimoniosas ao governo; b) comentá- cados, como resenhas de livros e crítica literária, ao mesmo
so4 José Olympio José Olympio 505

tempo em que as restrições nos meios normais de expressão subversivo que, não satisfeito em confiscar a edição, o gover-
ao descontentamento político levaram tanto escritores como no prendeu Cecília Meireles por tê-lo traduzido.
leitores a buscar na nova ficção a crítica social. A perda financeira ocasionada por essa destruição em
Com a criação do Tribunal de Segurança Nacional (rr massa de quaisquer livros a que alguém em posição de
de setembro de 1936), tiveram início sérias restrições ao co- mando fizesse objeção foi suficiente para desativar algumas

ed
mércio livreiro, e José Olympio logo se viu perseguido por editoras menores. Assim, a Edições Cultura Brasileira, de
dois lados: a polícia apreendia seus romances, por seu pre- propriedade do escritor Galeão Coutinho, foi à falência no

o
tenso conteúdo comunista, ao mesmo tempo em que con- decorrer de 1938. Sua empresa era, primordialmente, uma
fiscava seus livros políticos integralistas por defenderem o editora de literatura, tendo publicado, entre outras obras, a
tipo errado de fascismo. As coisas pioraram ainda mais com História do Romantismo Brasileiro, de Haroldo Paranhos,
a instituição do Estado Novo, em consequência do golpe de Maurício de Nassau, de Thermudo Lima, História da Li-
Estado de 10 de novembro de 1937. Entrevistado, em 19 38, teratura Brasileira, de Nelson Werneck Sodré, e O Lobo
a respeito do declínio da atividade editorial no Brasil no cur- da Estepe, de Hermann Hesse. Tinha também uma linha
so dos doze meses anteriores, em comparação com o recorde importante de clássicos da filosofia (Platão, Aristóteles,
atingido em 1936, José Olympio falou sem rodeios: “O que Voltaire, Diderot...). Infelizmente, também dispunha de um

=
tem causado um enfraquecimento no mercado é a apreensão pouco mais de capital do que poderia perder investido em
de livros em todo o território nacional, sem que na maioria algumas obras políticas modernas, como a História do So-
das vezes obedeça a um critério justificável”ss. cialismo e das Lutas Sociais, de Max Beer. O confisco das
O “critério” poderia, certamente, ser a linguagem fran- edições em larga escala levou ao fechamento da firma. Mais
ca, ou O erotismo no tema ou no tratamento, tanto quan- tarde, em 1944, a incoerência do governo (ou o enfraqueci-
to a inaceitabilidade política. Além disso, os estados — até mento de sua posição?) permitiu que a Calvino reeditasse o
mesmo São Paulo — sofreram muito mais do que o Rio de livro de Beer sem dificuldade.
Janeiro. Jorge Amado, em seu livro Vida de Luís Carlos Às apreensões não eram apenas de livros. Na verdade, a
Prestes, nos dá o seguinte inventário de livros apreendidos detenção de autores com opiniões suspeitas começou antes.
na Bahia por ordem do coronel Antônio Fernandes Dantas, Jorge Amado, como já dissemos, foi preso pela primeira vez
comandante da 6º Região Militar, em 19 de novembro de em fins de 1935. Em janeiro de 1936, 0 ministro da Justiça,
1937, nas livrarias Editora Bahiana, Catilina e Sousândra- Vicente Rao, instalou a Comissão Nacional para a Repres-
de, e queimados em público por divulgarem ideias simpá- são ao Comunismo, dedicada a uma política de detenção
ticas ao comunismo: 808 exemplares de Capitães de Areia, preventiva. Seguiu-se a prisão de Graciliano Ramos, em mar-
223 de Mar Morto, 89 de Cacau, 93 de Suor, 214 de O País ço. Abril de 1936 foi um mês especialmente agitado, quando
do Carnaval, quinze de Doidinho, 26 de Pureza, treze de diversas outras pessoas ligadas à José Olympio foram apri-
Banguê, quatro de Moleque Ricardo, catorze de Menino de sionadas, inclusive mulheres, como Eneida de Moraes e Ra-
Engenho, 23 de Educação para a Democracia, seis de Ídolos chel de Queiroz, e o principal ilustrador e capista da “Casa”,
Tombados, dois de Ideias, Homens e Fatos, dois de Dr. Ge- Tomás Santa Rosa. Em 6 de novembro de 1937, Jorge Ama-
raldo, quatro de O Nacional-socialismo Germânico e um do foi detido novamente, sendo encarcerado em Manaus,
exemplar de Miséria através da Polícia. juntamente com o antropólogo Nunes Pereira, sob a ridícula
Nem os livros infantis escapavam. As obras de Monteiro acusação de fomentar uma rebelião de índios da Amazônia
Lobato foram queimadas arbitrariamente e As Aventuras de (não foi libertado senão em janeiro de 1938). Mesmo aque-
Tom Sawyer, de Mark Twain, foi julgado tão perigosamente les que tinham opiniões moderadas, como Gilberto Freyre,
tiveram seus livros incinerados e eles próprios foram acusa-
dos publicamente de subversivos. Casa-grande & Senzala era
35. José Olympio de Pereira Filho, “O que se Lê no Brasil”, Anuário livro “pernicioso [...], antinacional, anticatólico, anarquis-
Brasileiro de Literatura, n. 3, p. 401, 1938. ta, comunista” e seu autor merecia “purificação por um (...]
so6 José Olympio José Olympio $07

auto de fé cristão” para salvar sua alma**. Perdeu seu cargo Seignobos, a autobiografia de Helen Keller, a Pequena Histó-
docente na Universidade do Distrito Federal e, embora te- ria do Mundo, de H. G. Wells. (Contudo, a maior parte dos
nha escapado à prisão graças à sua amizade pessoal com o livros de Wells foi publicada pela Nacional: este prolífico au-
governador de seu estado natal, Carlos de Lima Cavalcanti, tor inglês era notório por mudar constantemente de editora
foi encarcerado pelo sucessor deste, Agamenon Magalhães, em Londres, de modo que jamais houve uma casa britânica
em junho de 1942, por “escrever contra o escorismo”37, Ou- com a qual os editores estrangeiros pudessem negociar os
tros que foram atacados, porém não chegaram a ser presos; direitos de tradução de sua obra como um todo.)
José Lins do Rego, o arquiteto Oscar Niemeyer, o artista Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial na Euro-
Cândido Portinari e até mesmo o biógrafo do ditador, André pa, sobreveio uma clara mudança. E não somente por causa
Carrazoni, todos eles habitués da Livraria José Olympio. da guerra. Em 1940, o casal separou-se: divorciar-se-iam
Em princípios de 1938, por sugestão de Lourival Fontes, em 1943. Vera já não podia tolerar o vício do marido. Não
José Olympio removeu para seu escritório o “subversivo” satisfeito em apostar nas corridas, José Olympio tornou-se
banco de Graciliano — hoje se encontra guardado na Casa proprietário de cavalos, dando-lhes nomes dos livros mais
de Rui Barbosa — mas esta foi, praticamente, sua única con- bem-sucedidos da “Casa”.
cessão pública. Ele poderia facilmente ter sido cauteloso, Com a sua saída, a acolhida da José Olympio à publica-
concentrando sua atividade editorial em traduções que não ção de novos escritores brasileiros diminuiu, ao passo que
fossem motivo de controvérsia, mas a “Casa” manteve a alta cresceu a proporção de títulos traduzidos (cf. tabela 17,
proporção de títulos brasileiros que caracterizara sua políti- p. 869). Esta maior receptividade às traduções, até então a
ca editorial desde o início: em ano algum, entre 1933 € 1944; preocupação especial de Vera, pode ser atribuida à guerra,
representaram menos de 85% de suas edições. como vamos explicar, mas nota-se depois do divórcio uma
Como Estado corporativo, o Estado Novo caraterizou-se tendência marcada, da parte da “Casa”, a incluir no seu
por estimular a criação de associações de classe, e José Olym- programa uma proporção muito maior de romancistas de
pio teve papel proeminente na criação, em 18 de novembro menor expressão literária — como os lucrativos A. J. Cronin,
de 1940, da Associação Profissional das Empresas Editoras Lloyd C. Douglas, Vicki Baum — e até mesmo autores de his-
de Livros e Publicações Culturais, transformado, em 22 de tórias de amor escapistas totalmente despretensiosos como
novembro de 1941, em Sindicato Nacional. Haveria outra Faith Baldwin e Ruby M. Ayres.
mudança no título, em 6 de julho de 1959, quando passou a No início de 1940, a “Casa” lançou sua coleção popu-
chamar-se Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). lar Romances da Vida, publicando obras como as biografias
históricas de Bertita Harding e Hendrik van Loon, a vida
de Nijinski (de autoria de sua mulher Romola), as autobio-
os

$145 TRADUÇÕES grafias de Isadora Duncan e Leon Tolstói, Microbe Hunters,


de Paul de Kruif, e a vida de Jack London, por Irving Stone.
A década de 1930, no Brasil, marcou o auge da mania por Ao mesmo tempo, foram também traduzidos muitos
romances policiais, de que a Globo foi pioneira ($127). Isso clássicos da literatura estrangeira, como A Ciência da Vida,
teria proporcionado à José Olympio um mercado comercial de H. G. Wells e Julian Huxley, e outros títulos semelhantes,
e politicamente seguro. Ão invés disso, porém, não só as tra- publicados na coleção À Ciência de Hoje. Como se observa
duções eram parte muito pequena da produção da “Casa” pelos exemplos dados, o programa de traduções favorecia
como as que foram publicadas tinham sistematicamente largamente os originais de língua inglesa (idioma que Vera
maior valor: História da Civilização Europeia, de Charles conhecia bem), podendo-se dizer que a José Olympio de-
sempenhou uma função especialmente valiosa ao colocar ao
-—

36. Hélio Silva, Mil Novecentos e Trinta e Sete: Todos os Golpes se alcance do leitor brasileiro muitos clássicos menores da lite-
Parecem, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, p. 429. ratura inglesa e, desse modo, ajudar um pouco a corrigir a
37. Edgard Carone, O Estado Novo, São Paulo, Difel, 1976. perspectiva até então excessivamente francesa de seus com-
so8 José Olympio José Olympio 509

patriotas. Quanto a isso, suas traduções de literatura russa de Rachel de Queiroz, por exemplo — tinham de sofrer as
talvez tenham sido de utilidade ainda maior. consequências da tradução indireta ($128).
Esse trabalho de tradução da década de 1940 foi feito, Houve diversas razões para dar essa ênfase aos autores
em grande parte, por escritores bem conhecidos, ou por al- estrangeiros, na década de 1940, em detrimento dos nacio-
guns que ganharam renome mais tarde — embora o mesmo nais. É evidente que a guerra deslocou a atenção do públi-
se possa dizer dos programas de traduções de outras impor- co de sua preocupação com os acontecimentos nacionais,
tantes casas do período: Nacional, Civilização, Globo, Me- que havia caracterizado os anos de 1930. As dificuldades
lhoramentos. Rachel de Queiroz foi particularmente ativa de transporte marítimo durante a guerra estimularam José
nesse trabalho, traduzindo para a José Olympio Mansfield Olympio e as demais editoras a publicar versões em portu-
Park, de Jane Austen, Cranford, de Elizabeth Gaskell, The guês de obras que, em condições normais, teriam sido im-
Forsyte Saga (Crônica dos Forsyte), de Galsworthy, The Way portadas em suas edições originais europeias ou norte-ame-
of AI Flesh (Destino da Carne), de Samuel Butler, Wuthering ricanas. Ào mesmo tempo, a grande onda literária da década
Heights (O Morro dos Ventos Uivantes), de Emily Brontê, anterior começara a refluir, em grande medida devido à
The Old Maid (Eu Soube Amar), de Edith Wharton, La fem- crescente esterilidade da vida cultural da nação sob o Esta-
me de trente ans (Mulher de Trinta Anos), de Balzac, e, a par- do Novo, que então atravessava seu mais violento período
tir de versões francesas, Unizheennye i oskorblennye (Humi- de repressão (1939-1942). À política do governo, até 1942,
lhados e Ofendidos), de Dostoiévski, e Detsvo, otrochestvo, apoiava abertamente as potências do Eixo, e até mesmo
yunost' (Memórias), de Tolstói. Traduziu também vários títu- Franklin Roosevelt (segundo Jorge Amado) era oficialmente
los de talentos menores, como Cronin, Pearl Buck e Daphne um “comunista dos mais perigosos”. Nada do próprio Jor-
du Maurier, Entre outros tradutores da José Olympio nesse ge Amado podia de modo algum ser publicado. Tampouco,
período, encontram-se Raimundo Magalhães Júnior, Dinah apesar do grande êxito de Vidas Secas em 1938 (indubitavel-
Silveira de Queiroz, Gastão Cruls, Vinícius de Moraes, José mente o livro do ano), José Olympio ousara publicar qual-
Lins do Rego, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Barroso, José quer outra obra de Graciliano Ramos. São Bernardo fora
Geraldo Vieira, Lúcia Miguel-Pereira, Valdemar Cavalcanti, reimpresso mais tarde, no mesmo ano — mas Vidas Secas
Genolino Amado, Accioly Netto, Adalgisa Nery, Almir de não, embora a primeira edição tivesse se esgotado em nove
Andrade, Vivaldo Coaracy, Luís Jardim, Clóvis Ramalhete, meses - e ele arriscou uma segunda impressão de Angústia
Guilherme de Almeida, Herman Lima, Brito Broca, Rubem em 1941, mas, fora isso, não haveria novas edições de qual-
Braga (particularmente elogiado por sua tradução, em 1940, quer obra de Graciliano para adultos até 1947, quando já
a

de Terre des hommes, de Saint-Exupéry, que atingiu a 22º terminara o Estado Novo e quando a “Casa” pôde publicar
mtme

edição em 1982) e Lúcio Cardoso (cuja tradução de Orgu- Insônia e reeditar todos os outros romances. Graciliano es-
lho e Preconceito, do original inglês Pride and Prejudice, de creveu também livros para crianças, € estes parecem ter sido
Jane Austen, também de 1940, apareceu juntamente com o um pouco mais tolerados: a Globo publicou A Terra dos
filme de Greer Garson e Lawrence Olivier). Meninos Pelados, em 1936,a Leitura lançou as Histórias de
Contratando, para isso, escritores profissionais, a José Alexandre, em 1944, algumas das quais voltaram a aparecer
Olympio proporcionava-lhes uma renda suplementar extre- no volume Histórias Verdadeiras, em edição da editora co-
mamente útil. Em contrapartida, assegurava-se não só de munista Vitória, em 19$I.
que todos os textos estariam bem escritos, como também de O crescimento do interesse da José Olympio pela tradu-
que os trabalhos seriam feitos com cuidado e com preocu- ção de ficção estrangeira, especialmente do inglês, represen-
pação pela correção precisa, uma vez que o tradutor devia tou a invasão de um campo até então quase monopolizado
pensar na própria reputação como escritor. Por outro lado, pela Livraria Globo ($127). Em alguns casos, houve con-
como dificilmente qualquer desses escritores tinha proficiên- corrência direta. Por exemplo, a Globo já havia publicado,
cia a não ser em inglês e francês, os livros em todas as demais em 1938, O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronté,
línguas — o russo de Tolstói ou de Dostoiévski, nas versões cuja tradução, feita por Oscar Mendes, atingiu cinco edições
sro José Olympio José Olympio sr

em 1943- sem dúvida, com a ajuda do filme de Lawrence de 1940) — foi a de livros para crianças, quer originais, quer
Olivier e Merle Oberon. Jane Eyre, de autoria de Charlotte traduzidos, a despeito do interesse demonstrado por mui-
Bronté, irmã de Emily, não foi editado pela José Olympio tos dos autores da José Olympio: Rachel de Queiroz, Lúcio
nem pela Globo, mas, sim, por Vozes (como Joanna Eyre) em Cardoso, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Luís Jardim
1926, e depois por Pongetti, em tradução de Sodré Vianna, e o ilustrador Santa Rosa. Nota-se aqui, sem dúvida, outro
com várias edições nos anos de 1930 € 1940,€ outra da Fran- resultado da saída da firma de Vera Pacheco Jordão: a Meni-
cisco Alves, em tradução de Marcos Santarrita em 1983. À na e Moça foi claramente uma contribuição sua. Mais tarde,
Globo tendia, porém, a concentrar-se mais em autores popu- a situação mudou, porém não antes da década de r960: daí
lares contemporâneos, como Louis Bromfield, C. S. Forester para cá, contudo, suas edições infantis têm sido muito im-
e Richard Hughes. À concorrência vinha também de outro portantes ($$ 107, 203).
lado: agora que o livro brasileiro deixara de ter qualquer
vantagem de preço, os editores portugueses começavam a
pôr suas traduções à venda também no Brasil, ainda que, em PROJETO GRÁFICO PARA LIVROS $146
muitos casos, houvessem adquirido os direitos de tradução
apenas para Portugal e colônias. Os romances de Vicki Baum José Olympio procurou não repetir o erro de Monteiro Lo-
foram o exemplo mais notável desse comércio ilícito. bato, isto é, o de adquirir oficinas gráficas próprias. No co-
Ao mesmo tempo em que a José Olympio ameaçava a meço, necessitava de todo o seu capital para desenvolver a
predominância da Globo no mercado de ficção traduzida, atividade editorial e a venda de livros; quando teve capital
sua própria preeminência como editora de autores nacio- excedente, a firma já crescera e se tornara suficientemen-
nais começava a ser ameaçada pelo surgimento de uma te importante para assegurar fornecedores interessados em
nova editora, a Martins, de São Paulo. José de Barros Mar- prestar bons serviços. Em momento algum o trabalho da
tins (de quem trataremos no capítulo seguinte) começara a “Casa” foi monopólio de uma única gráfica, ainda que, des-
editar em 1941 e estabelecera rapidamente a reputação de de os anos de 1960, parte considerável desse trabalho tenha
ser um rebelde antigetulista, o que atraiu muitos autores. sido feito pela Bisordi, de São Paulo. Nas décadas de 1930,
Não obstante, a José Olympio continuou a publicar um nú- 1940 € 1950, uma posição ainda mais preponderante foi
mero substancial de novas obras de escritores brasileiros, ocupada pelo setor gráfico da Revista dos Tribunais, que
durante os anos da guerra e posteriormente, e também não (como se explicou no $r 12), depois de ter adquirido a maior
temeu ir contra a linha oficial. Publicou relativamente pou- parte do excelente equipamento de Lobato, após sua falên-
cos títulos que abordassem diretamente os acontecimentos cia em 1925, era, na época, a mais importante impressora
internacionais, mas os que publicou eram todos favoráveis de livros do Brasil.
à Grã-Bretanha e seus aliados. Livros sobre Churchill, A O equipamento por si só não garantia um produto de
Inglaterra sob os Bombardeios Aéreos, de Ingersoll, e E a primeira qualidade, e embora o trabalho técnico fosse satis-
França Teria Vencido, de Charles de Gaulle, são bons exem- fatório, a qualidade artística da tipografia brasileira estava
plos. Isso pode ter sido reflexo das simpatias pessoais de num nível muito baixo quando José Olympio iniciou sua
José Olympio, porém, o que é mais importante, indica que carreira editorial, Lobato parece ter sido quase a única pes-
ele (corretamente) esperava atrair mais desse modo a aten- soa no Brasil a sofrer a influência, no imediato pós-Primeira
ção do público leitor de seu tempo. Guerra, da revolução mundial no aprimoramento tipográfi-
A“Casa” parece ter sido também a precursora na edição de co e no projeto gráfico do livro; não tendo rido seguidores,
romances sobre a classe trabalhadora urbana, como Desola- o que realizou nesse campo não sobreviveu à Cia. Gráfico-
ção (1940), de Dionélio Machado, que trata da repressão poli- -Editora Monteiro Lobato. Em torno de 1930, a qualida-
cial nos conflitos trabalhistas, e Favela (1946), de Elói Pontes. de média dos serviços gráficos dos impressores brasileiros,
Curiosa omissão, quase total - a não ser pela pequena co- tanto privados como oficiais, era uma coisa tão lamentá-
leção Menina e Moça, de 1934 (reativada no fim da década vel esteticamente que o produtor gráfico Luiz Santa Cruz,
$12 José Olympio
José Olympio 513
referindo-se à existência da boa tipologia então disponível,
contribuiu como produtor gráfico e ilustrador para editoras
dizia ser como dar “pérolas aos porcos”**,
comerciais, principalmente a Schmidt e a José Olympio. De-
Em 1930, a antiga alternativa de imprimir os livros em
pois, realizou uma verdadeira revolução no aspecto físico
Paris ou Lisboa já não era praticável. A Industrialization of
das publicações do Governo Federal. A Casa de Rui Barbo-
Latin America, de Hughletr, menciona vagamente um decreto
sa, o Instituto Nacional do Livro, o Itamarati e o Serviço de
federal daquele ano que teria obrigado os editores a abando-
Informação Agrícola, todos utilizaram seus serviços, mas é
nar tal prática. Não pode ter sido uma proibição total: mesmo
lembrado principalmente por sua colaboração (a partir de
nove anos mais tarde, as estatísticas comerciais francesas ain-
1947) com José Simões Leal, diretor do Serviço de Docu-
da registram 12 100 quilos de livros exportados para o Brasil
mentação do Ministério da Educação. Finalmente, exerceu
“em outras línguas que não o francês”. Em 1937, certamente
influência como professor: em 1946, dirigiu o efêmero cur-
Briguiet fazia imprimir em Paris títulos da sua Coleção dos
so de artes gráficas na Fundação Getúlio Vargas.
Autores Célebres. Contudo, mais eficiente do que qualquer le-
Outro artista que deu importante contribuição para a
gislação foi a desvalorização do mil-réis ($ 127), que tornou a
história da José Olympio foi Luís Jardim, novamente um
impressão no estrangeiro proibitivamente cara para qualquer
nordestino: nasceu em Garanhuns (Pernambuco), em 8 de
tipo normal de livros, mesmo nas condições especialmente fa-
dezembro de r9or, e conseguiu nome primeiramente como
voráveis que as impressoras francesas e portuguesas sempre
escritor. Depois que seu livro de contos, Maria Perigosa, ga-
ofereceram a seus clientes da América do Sul.
nhou o prêmio Humberto de Campos, em 1938, continuou
Os livros com o sinete editorial da José Olympio logo
a escrever romances, peças e, com especial sucesso, histórias
começaram a destacar-se da insípida mediocridade dos con-
para crianças, que ele mesmo ilustrava. À partir de 1942,
correntes, pois o editor, desde o início, dedicou cuidado-
executou com regularidade desenhos de capas para livros
sa atenção ao projeto gráfico. Seu colaborador nessa área,
da “Casa” e, desde a morte de Santa Rosa até aposentar-se,
mais uma vez, foi um nordestino, Tomás Santa Rosa, que
em 1969, assumiu a responsabilidade pela produção gráfica
trabalhara anteriormente em diagramação e em desenhos
e diagramação dos livros da José Olympio. O leitor comum,
de capa para a Schmidt. Santa Rosa era da Paraíba da Nor-
porém, provavelmente se lembrará mais dele pelos (já men-
te, hoje João Pessoa, onde nasceu em 20 de setembro de
cionados) retratos a bico de pena que fez para o frontispício
1909. Sem nenhuma educação artística formal, já ganhava
de inúmeras publicações da José Olympio.
dinheiro aos doze anos de idade, pintando bandeiras para
No início, a produção da Livraria José Olympio Edi-
procissões religiosas. Mais tarde, conseguiu um emprego na
tora era constituída, em sua maior parte, de livros de for-
agência local do Banco do Brasil, mas abandonou-o para
mato pequeno, in-16º (18 x 12 cm), nada aparatosos, mas
dirigir-se ao Rio de Janeiro. Ali, começou sua carreira artís-
geralmente de diagramação simples e agradável. As capas
tica — muito influenciada por Portinari — que envolveria não
eram decoradas habitualmente com vinhetas a traço, em
apenas pintura e artes gráficas como ilustração de livros,
sua grande maioria por Santa Rosa. Mais tarde, esse tra-
cenografia, direção de cena, ensino e crítica. Conseguiu
balho foi dividido com Raul Brito (que trabalhou na José
também, em 1939, com seu livro O Circo, obter o primeiro
Olympio de 1940 a 1949) e com Luís Jardim. George Bloow
lugar no concurso de literatura infantil do Ministério da
também contribuiu com muitas capas de 1948 a 1962, €
Educação. Provavelmente será lembrado, sobretudo, por
ocasionalmente foram utilizados trabalhos de Guilherme
sua obra teatral, mas tem sido considerado o maior produ-
Salgado (entre 1942 € 1947), Axel Leskoschek (de 1944 a
tor gráfico de livros do Brasil, responsável, quase sozinho,
1952),0 italiano Danilo di Prete (de 1947 a 1965) e Oswald
pela transformação estética do livro brasileiro nos anos de
de Andrade Filho (entre 1951 € 1954).
1930 € 1940. Sua influência foi tríplice. Em primeiro lugar,
Para a coleção Documentos Brasileiros foi adotado um
formato maior, classificado como duodécimo, mas de fato in-
38. Luiz Santa Cruz, “Um Padrão de Cultura, o s. D. do M. E. C”, -oitavo (21,5 x 13,5 Cm).À partir de aproximadamente 1948,
Cadernos Brasileiros, vol. 4,n. 1, p. 20.
a “Casa” adotou esse formato como padrão para quase todos
s14 José Olympio José Olympio 515

os tipos de livros'”. Santa Rosa faleceu em 1956, e por essa original do século xvir, além de um retrato em cores de Cer-
época a José Olympio instituiu capas coloridas (frequente- vantes e um mapa colorido em que se mostram as andanças
mente reproduzidas na página de rosto), tendo Poty Lazzarot- do cavaleiro. À tradução foi de Almir de Andrade e Milton
to como principal artista. Poty foi também importante ilustra- Amado. À ideia de publicar uma edição de Dom Quixote
dor de muitos títulos da José Olympio, entre os quais algumas partiu de Daniel, irmão de José Olympio, e conta-se que este,
edições de O Quinze, de Rachel de Queiroz, Chapadão do ao vê-lo trabalhando nisso, teria resmungado: “À mim o que
Bugre, de Mário Palmério, O Coronel e o Lobisomem, de José interessa mesmo é o Brasil”. Assim, talvez como compensa-
Cândido de Carvalho, e Sagarana, de Guimarães Rosa. ção ao menos parcial, quando essa edição e uma outra de
Entre outros capistas que trabalharam nos anos mais 1954 esgotaram, José Olympio contratou o grande artista
recentes, podemos citar Teresa Nicolau (desde 1960), Eugê- brasileiro Cândido Portinari para preparar uma série de ilus-
nio Hirsch (a partir de mais ou menos 1963), Gian Calvi (a trações para uma nova edição de Dom Quixote, c uma outra
partir de cerca de 1966) e Marius Lauritzen Bern (a partir para uma versão ilustrada de Vidas Secas. Portinari foi uma
de 1967). Ocasionalmente, também fizeram capas Darel Va- escolha ideal, mas infelizmente ambos os projetos tiveram
lença Lins (1957 a 1963), Luís Canabrava (1954 a 1961), de ser abandonados devido ao falecimento do artista — por
Cyro del Nero (1960 € 1961) e Lúcio Cardoso (desde 1966). envenenamento crônico por chumbo — em 6 de fevereiro de
Hirsch e Lauritzen Bern, antes de trabalhar na José Olym- 1962, quando completara apenas pequena parte do trabalho:
pio, colaboraram com a Civilização Brasileira, onde contri- somente vinte e duas ilustrações para o Quixote. Estas ilus-
buíram de maneira importante para o grande progresso que trações inspiraram 21 poemas de Drummond de Andrade,
aquela editora realizou no projeto gráfico brasileiro de livros que foram publicados juntos, mas sem o texto de Cervantes,
a partir do final dos anos de 1950. por outra editora, José Aguilar, dois anos antes da morte do
pintor. Anos depois, em 1986, as ilustrações acompanharam
uma tradução dos poemas por Octavio Paz numa edição de
$r47 COLEÇÕES NO PÓS-GUERRA luxo lançada na Cidade do México, por iniciativa do Consu-
lado mexicano no Rio.
Durante os anos de r950, a José Olympio interessou-se por Fogos Cruzados, uma coleção que reunia os maiores ro-
coleções ilustradas de clássicos da literatura e de obras sobre mances do mundo, iniciada por José Olympio em dezembro
o Brasil, Começou, em 1951, com uma edição em dezesseis de 1940, com Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, in-
volumes de toda a ficção de José de Alencar, com introdu- cluiu, no curso dos anos, muitas das maiores obras de ficção
ções escritas por proeminentes autores da época. No ano -.
russa do século x1x, diversas delas em edições ilustradas. No
seguinte, publicou o que se afirmava ser a primeira tradução mesmo ano em que saiu seu primeiro Dom Quixote, José
brasileira de Dom Quixote+º, Olympio decidiu publicar, reunidos numa coleção comple-
Tratava-se de esplêndida edição anotada, em cinco volu- ta, todos os livros de Dostoiévski. O resultado foi uma co-
mes, impressa em três cores, com as ilustrações de Gustave leção magnífica, em dez volumes, no formato 24 x 16 cm,
Doré (376 delas), fac-símiles de ambas as páginas de rosto do com um total de 457 desenhos de diversos artistas. As ilus-
trações de Irmãos Karamázov, Demônios, Eterno Marido,
39. Conhecido hoje como formato americano, é o mais usado em obras Adolescente e O Jogador, da autoria de Axel de Leskos-
de ficção e de cultura geral. Os formatos padronizados no Brasil atual chek, vienense exilado por causa da guerra, representam o
são explicados por Denis Policani em seu artigo “Produção Gráfica”, ponto mais alto de sua obra no Brasil, e haviam sido pre-
Revista de Comunicação, Rio de Janeiro, vol. 1,n. 4, pp. 28-29, 1985. paradas entre 1941 e 1944. Também nesse período foram
40. À versão de Miller, em 1901, para a Laemmert ($75) apresentou
um texto modificado para o público jovem. Houve também o D. Qui-
feitas as xilogravuras de Oswaldo Goeldi para Humilhados
xote das Crianças (1925), de Monteiro Lobato, e outra adaptação, a e Ofendidos, Recordações da Casa dos Mortos e O Idiota,
de Antônio Acauã, para os Clássicos para a Juventude, da Globo, apa- consideradas pelos críticos uma perfeita combinação entre
receu um ano depois da tradução integral de José Olympio, em 1953. artista e tema. Os outros ilustradores foram Tomás Santa
516 José Olympio José Olympio 517

Rosa, responsável por Crime e Castigo, Darel Valença Lins Em 1965, foi a vez de o Rio de Janeiro comemorar seu
(Amos e Servos), Marta Schidrowitz (Nietótchka Niezvâno- quarto centenário, e a Livraria José Olympio Editora pu-
va), Luís Jardim, Marcelo Grassmann e Danilo di Prete. Os blicou uma coleção em seis volumes, Rio Quatro Séculos,
tradutores foram Rachel de Queiroz, Rosário Fusco, José com colaborações de Carlos Drummond de Andrade, Vi-
Geraldo Vieira, Boris Schnaiderman, Olívia Kráhenbiúhl, valdo Coaracy, Manuel Bandeira e Gastão Cruls, ricamente
Vivaldo Coaracy, Wanda Miguel de Castro, Costa Neves, ilustrada com estampas fotográficas, reproduções de ilus-
Ledo Ivo e Gulnara Lobato de Morais Pereira. Parte impor- trações de Debrer, Rugendas e outros, e desenhos a traço de
tante dessa coleção eram as introduções, escritas por Otto Luís Jardim, George Bloow etc. Essa coleção constitui um
Maria Carpeaux, Costa Neves, Roberto Alvim Corrêa, Wil- excelente exemplo do estilo da “Casa” na época: um proje-
son Martins, Adonias Filho, Brito Broca, Agripino Grieco, to adequado, atraente e imediatamente reconhecível como
Ledo Ivo e Wilson Lousada. “da José Olympio” — e, no entanto, também surpreenden-
Entre as obras dessa época publicadas sobre o Brasil, em temente econômico.
vários volumes, encontra-se História e Tradições da Cidade Consciente do mercado muito limitado para tal tipo de
de São Paulo, de Ernani Silva Bruno, em três volumes, cada obras através dos pontos de venda normais de varejo, a José
um deles com uma página de rosto em cores de Portinari, e Olympio, ao mesmo tempo em que desenvolvia sua ativida-
um total de 112 desenhos a bico de pena de Clóvis Gracia- de editorial de coleções, ingressou naquilo que, na Améri-
no, além de 170 fotografias. Essa obra foi encomendada por ca do Norte, se chama subscription books market, ou seja,
José Olympio em 1948,e publicada em 1953 para comemo- venda de porta em porta, pelo crediário. Como já dissemos
rar o quarto centenário da fundação da cidade, que ocorre- ($119), esse tipo de negócio foi iniciado no Brasil pela W. M.
ria no ano seguinte. O autor é um historiador autodidata, Jackson Company. Embora não tenha sido, absolutamente,
que vinha contribuindo, desde 1942, com artigos sobre a seu principal concorrente, a José Olympio logo se tornou
cidade para o jornal O Estado de S. Paulo. Com o intuito um dos mais importantes. À História do Brasil, de Calmon,
de oferecer-lhe o lazer necessário para escrever a obra, José por exemplo, parece ter sido lançada em concorrência dire-
Olympio pagava-lhe um salário mensal equivalente ao seu ta com a obra de mesmo título, de Rocha Pombo, editada
estipêndio de funcionário público. “Procurei escrever o li- por Jackson em cinco volumes, À Jackson, porém, sempre
vro numa linguagem mais literária que de historiógrafo”, e trabalhara exclusivamente com coleções, ao passo que as
o resultado, segundo IstoÉ (1º de agosto de 1984), correu edições em muitos volumes da José Olympio eram lançadas,
“como um romance, onde surgem flagrantes dignos de um inicialmente, em volumes separados, a não ser nos poucos
ficcionista”. Foi reeditado pela Hucitec, em 1984. casos em que a coleção consistia em uma única obra. Essa
Em 1957, saíram as obras completas de Oliveira Vian- foi uma política deliberada. Quando a Garnier foi vendida
na, em quinze volumes, e as Memórias de G. Casanova, em a Ferdinand Briguiet, em 1934, José Olympio pediu a um
dez. No entanto, um projeto de publicação das obras com- advogado amigo que procurasse negociar os valiosos direi-
pletas (ilustradas) de Charles Dickens em trinta volumes tos de publicação de Machado de Assis. Ficou estupefato
terminou com a impressão do segundo volume, devido às ao saber que, devido à lentidão do advogado, eles haviam
vendas decepcionantes, e um outro relativo às obras de Tols- sido vendidos à Jackson. Sua decepção não foi tanto por ter
tói, também ilustradas, em doze volumes, nunca se realizou. perdido uma mina de ouro, mas por temer que a política
Durante o ano de 1957 e o seguinte, várias obras de Otávio de Jackson de vender apenas coleções completas estancas-
Tarquínio de Sousa foram reunidas na História dos Funda- se o crescimento do natural interesse em Machado de As-
dores do Império do Brasil, em dez volumes, com um total sis através da compra casual de volumes avulsos. Encarava
de 193 ilustrações. Em 1959, surgiu a História do Brasil, isso como uma restrição ao crescimento natural do mercado
de Pedro Calmon, em sete grandes volumes (25,5 x 17 cm), para autores nacionais. Curiosamente, a Companhia Edi-
com 948 ilustrações, das quais s9 eram desenhos de J. Wasth tora Nacional obteve permissão para incluir os Conceitos e
Rodrigues e oito grandes encartes de pranchas coloridas. Pensamentos, de Machado de Assis, “colhidos e editados por
$18 José Olympio José Olympio 519

Júlio César da Silva”, como quarto volume de sua coleção reaberta. Esse segmento dos negócios já não era importante.
Os Grandes Livros Brasileiros, de 1935. O centro do Rio deixara de ser o cixo da vida intelectual do
Em 1967,a “Casa” realizou uma façanha na área das co-

e
país — e até mesmo da cidade — e a firma já era suficientemen-
leções quando conseguiu negociar, enfrentando fortes com- te conhecida para não precisar de uma livraria pelo seu valor

ii
petidores, os direitos brasileiros das publicações Time Life, publicitário. De qualquer maneira, como explicamos a pro-
tais como a Life Science Library. Mas José Olympio resistiu, pósito da Briguiet e da Freitas Bastos ($$86, 131), os locais

ED
até 1972, à tentação de entrar no mercado das enciclopédias, nobres do centro da cidade haviam-se tornado por demais
tradicionalmente o esteio principal do vendedor domiciliar:

E
valiosos para serem mantidos como simples livrarias: na rua
naquele ano publicou, associada à outra editora carioca, a

ai
do Ouvidor, nº 1 ro, foi instalada uma agência bancária.
Expressão e Cultura, a Enciclopédia Século Vinte, em treze Em seu lugar, foi inaugurado, em 27 de novembro de
volumes. Todavia, esta parece ter sido a menos satisfatória 1964, um esplêndido edifício novo, com quatro andares de
de todas as coleções publicadas pela firma: tratava-se da escritórios, na rua Marquês de Olinda, tranquila rua resi-
obscura New Twentieth Century Encyclopaedia, da editora dencial a poucos passos da praia do Botafogo. (Na verdade,

A
britânica Hutchinson, adaptada para o Brasil sob a diletante era tranquila na época: infelizmente, transformada depois
supervisão editorial do jornalista, transformado em político, em via de mão única, a tranquilidade cedeu lugar a um trân-

a
Carlos Lacerda. sito movimentado, ruidoso e poluente.) O projeto do edifi-
cio foi executado pelo arquiteto Pedro Teixeira Soares Neto,

O
genro de J. Olympio. Os escritores continuaram a reunir-se
$r48 AMIZADES E POLÍTICA NA DÉCADA DE 1960 na editora — na verdade, na nova sede podiam até almoçar
juntos no restaurante da empresa — não, porém, em tão gran-
Ao término da Segunda Guerra Mundial, a expansão dos de número como antes. José Lins do Rego, por exemplo,
negócios levara José Olympio a mudar seus escritórios para passou a frequentar a Livraria São José ($89) quando a loja
a praça Quinze e, pouco tempo depois, para a avenida Nilo da Ouvidor foi fechada, e foi lá que lançou seu último livro,
Peçanha.À livraria na rua do Ouvidor, cuja fama como pon-

e
Gregos e Troianos. Não obstante, Cassiano Ricardo ainda
to de encontro literário transformara-a numa das pequenas pôde escrever“, em 1970, a respeito da importância literá-
atrações turísticas da cidade para o visitante da província, ria, social e até mesmo política das animadas discussões nos
foi fechada, no final de setembro de 1955, para reforma do almoços na rua Marquês de Olinda, mencionando entre os

a
prédio. Já nessa época, a fama da “Casa” mereceu o arti- participantes habituais Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz,
go lisonjeiro de Paulo Rónai para os leitores continentais Juracy Magalhães, Ariano Suassuna e Moysés Vellinho.
da revista Américas da OEA, “Published by jo: A Boom to Os bate-papos podiam prosseguir, muitos dos partici-
Brazilian Books” (vol. 8, n. ro, outubro de 1956, pp. 4-9). Ce
pantes podiam ser os mesmos de trinta ou mais anos atrás,
Nos anos de 1930, o suporte principal dos negócios fora a porém, muita coisa havia mudado além do prédio, Ao se
venda de livros no varejo, não passando a atividade edito- aproximar de seu septuagésimo aniversário, seria difícil es-
rial de ocupação menor. No decurso dos anos, essa relação perar que José Olympio fosse exatamente o mesmo corajoso
inverteu-se completamente e, antes que o novo prédio ficas- defensor de jovens agitadores esquerdistas como havia sido
se pronto, José Olympio decidiu restringir as atividades da nos anos de 1930 e 1940. De fato, com o passar do tem-
“Casa” à edição. Embora seu nome completo continuasse po, José Olympio, como seus autores mais proeminentes,
a ser Livraria José Olympio Editora — a constituição legal tornara-se quase um personagem do establishment. Isso foi
de uma livraria facilitava a obtenção de licenças de impor- particularmente verdadeiro no período imediatamente se-

tação de livros*' — a livraria no centro da cidade jamais foi guinte à deposição de Goulart, quando o cientista político

41. Com a liberação do comércio internacional nos anos de 1990, 42. Cassiano Ricardo, Viagem no Tempo e no Espaço: Memórias, Rio
tornou-se simplesmente “José Olympio Editora”. de Janeiro, José Olympio, 1970, p. 263.
o
s20 José Olympio José Olympio $21

norte-americano Thomas Skidmore pôde referir-se aberta- esforçara, de fato, para publicar obras desses autores, en-
mente aos “estreitos vínculos” de José Olympio com o novo tão talvez não pudesse ter feito escolha mais irritante para
governo militar. Praticamente a única exposição completa da o regime. Dom Helder Câmara, integralista na juventude,
filosofia política desse governo, o livro Geopolítica do Brasil, tornou-se, no pós-1964, O bispo socialmente mais radical
escrito pela eminência parda da “revolução de 1964”, gene- de toda a Igreja brasileira, e suas relações com os governos
ral Golbery do Couto e Silva, não apenas foi publicado pela militares lembram as de Thomas Becket com Henrique 11.
“Casa”, como teve a suprema honra de ser incluído na cole- Márcio Moreira Alves (sobrinho de Afonso Arinos, diretor
ção Documentos Brasileiros. Um artigo de José Cândido de da Documentos Brasileiros) foi um ex-deputado que fugiu
Carvalho, publicado na imprensa e endossado pela “Casa” para o exterior depois de expulso do Congresso Nacional
com sua reimpressão, chegou a afirmar que Castelo Branco por haver (diz-se) insultado a honra do Exército e escrito um
selecionara José Olympio para ser um dos vinte membros exposé sobre a tortura política no Brasil,
fundadores da Arena (Aliança Renovadora Nacional), que
estava organizando para tornar-se o partido oficial do gover-
no no curioso bipartidarismo de novembro de 1965. Fiel a EXPANSÃO E DIVERSIFICAÇÃO
toda uma vida de abstenção de compromissos políticos for- NO COMEÇO DA DÉCADA DE 1970 $149
mais, José Olympio recusou firmemente o convites,
Minha impressão pessoal é a de que tais “vínculos”, se Durante os anos de 1960 e início da década de 1970, a
existiram, mesmo com o presidente Castelo Branco, foram “Casa” fortalecia-se cada vez mais. Em 1960, tornara-se
muito mais pessoais do que políticos. Não muito antes do uma sociedade anônima de capital aberto, a primeira editora
golpe de Estado, José Olympio publicara Política Externa brasileira a tér suas ações cotadas regularmente na bolsa de
Independente (1962), de Santiago Dantas, ministro do Exte- valores. Logo passou a constar na lista das quinhentas maio-
rior de Goulart. Entre os títulos políticos publicados após o res empresas do país: em julho de 1962, ocupava o 309º
golpe havia, certamente, muitos que teriam sido vistos com lugar. Os lucros subiram de 29% (Cr$ 1127000), sobre um
bons olhos pelo regime: Desde as Missões, de Daniel Krieger, capital de quatro milhões de cruzeiros em 1968, para 77%
um dos principais sustentadores civis do movimento; Me- (Cr$9 600000) sobre um capital de doze milhões e meio, em
mórias, do herói militar Mascarenhas de Moraes, e O Go- 1971. Com a aquisição da Sabiá (de que trataremos mais
verno Castelo Branco, de Luís Viana Filho. Publicaram-se adiante), uma pequena mas empreendedora editora literá-
também muitas autobiografias da geração anterior, talvez ria dirigida pelos escritores Fernando Sabino — donde seu
porque a passagem do tempo as tivesse tornado terreno neu- nome - e Rubem Braga, a produção da “Casa” alcançou,
tro ou, mais provavelmente, apenas por serem de contem- em 1972,0 total de 7 500000 exemplares e 146 títulos (TIO
porâneos do próprio José Olympio: A Palavra e o Tempo, dos quais de autores nacionais). E além do novo edifício em
de José Américo, A Alma do Tempo, de Afonso Arinos, Do Botafogo, a companhia possuía filiais em São Paulo, Brasília,
Sindicato ao Catete, de Café Filho, ou Uma Vida e Muitas Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Recife e Salvador.
Lutas, de Juarez Távora. Sem dúvida, a Livraria José Olym- O controle da empresa, de modo tipicamente brasileiro,
pio Editora ainda era capaz de publicar obras que divergiam permanecia nas mãos da família. O próprio José Olympio,
completamente da linha oficial. Em novembro de 1975, por descrito (por Carlos Drummond de Andrade*), na épo-
exemplo, um porta-voz da empresa, entrevistado a respeito ca de sua maior prosperidade, como uma figura serena e
das dificuldades com a censura, declarou que as apreensões
realmente feitas pela polícia, até então, tinham-se limitado
44. Em 1972,€ citado em “Editora José Olympio, so Anos: À Presen-
às obras de apenas dois autores: dom Helder Câmara e Már-
ça da Grande Lireratura Brasileira”, O Globo, 30 abr. 1981:“Grande
cio Moreira Alves. Se isso implica que a José Olympio se serenidade emana de sua pessoa. E confiança. Tem alguma coisa de
patriarca na figura repousada, nos gestos vagarosos e protetores, na
43. José Cândido de Carvalho, op. cit. calma conversa”,
522 José Olympio José Olympio 523

patriarcal, lento nos movimentos e calmo na conversa, ir- tuídas duas empresas subsidiárias, responsáveis pelo novo
radiando confiança, era o presidente da companhia. O pri- segmento operacional: Didacta Sistemas Educacionais s. A.
meiro parente a associar-se a ele havia sido seu irmão Da- e Encine Audiovisual s. A. Em 1972, a José Olympio obte-
niel Joaquim Pereira, que ingressou na companhia logo que ve a invejável (e lucrativa) indicação para partilhar com a
completou o curso de Direito, ficando responsável pelas re- Editora Abril o contrato governamental para a produção de
lações públicas, das quais José, até certo ponto um retraído, textos para o Mobral ($$121, 202).
tendia a esquivar-se — apesar de seu dom evidente para fazer
amizades. Daniel era também o principal leitor de novos ori-
ginais. O cunhado Luiz Gonzaga de Mello, cujos interesses DECLÍNIO DA FICÇÃO NA METADE DO SÉCULO $rso
principais são política e arte, era o encarregado da filial de
São Paulo, assistido pelo irmão romancista de José, Antônio A despeito de toda essa diversificação e de uma crescente
Olavo Pereira, e pelo irmão mais novo, Flávio À. Pereira, re- sofisticação no planejamento de suas atividades editoriais
visor de provas € antigo professor de ciências. Participavam (segundo se afirmava, uma complera pesquisa de mercado
também da companhia o irmão Gabriel Athos Pereira (que antecedia, agora, a decisão final a respeito de qualquer títu-
para ali fora diretamente da escola), o filho Geraldo Jordão lo), a José Olympio continuou a ser uma das editoras mais
Pereira e os primos José Mário de Almeida, Moacir de Al- importantes de ficção, poesia, ensaios, e história de autores
meida (um entusiasta da ficção científica) e Gilberto de Aze- brasileiros. Mas a firma passara a contar cada vez mais com
vedo. Além disso, muitos dos empregados da firma torna- novos livros (e novas edições) dos autores que havia lançado
ram-se acionistas, em parte como resultado da distribuição antes da guerra, como Dinah Silveira de Queiroz, cujo Mar-
de ações da companhia como prêmio por mérito, garida La Roque, de 1949, fora traduzido para o francês
À expansão desse período incluiu a criação de uma li- (Vile aux démons) e para o espanhol (El Juício de Dios).
nha de literatura policial traduzida e a coleção Sagarana, O número de novos autores literários com o sinete da
ampla seleção de literatura moderna brasileira (principal- José Olympio nunca se recuperou, realmente, após sua redu-
mente) em reimpressões muito econômicas, quase em for- ção no início da Segunda Guerra Mundial. Em certa medida,
mato de bolso, (O nome, claro, vem do romance de Guima- a mudança pode ser explicada por fatores externos. Já não
rães Rosa.) À José Olympio começou também a explorar o existia o Rio de Janeiro dos anos de 1930, onde a “Casa”
campo educacional, inaugurando, em 1968, uma série de crescera e prosperara com os bate-papos de escritores extro-
pedagogia, a Coleção Didática Dinâmica. Em 1970, uma vertidos e espontâneos, com um poder de atração quase uni-
total reorganização administrativa levou à criação de um versal. Os autores haviam-se tornado mais introspectivos,
departamento especial de livros didáticos, de modo que o obcecados com a técnica, interessando a poucos fora da elite
velho editor tomou a iniciativa, então incomum (no Brasil), intelectual, ao mesmo tempo em que toda a vida social se
de encomendar títulos para a coleção pedagógica a autores afastara do centro do Rio, agora transformado num deserto
nacionais. Todos esses livros destinavam-se ao magistério, de bancos e casas comerciais. Até mesmo a leitura de roman-
e não aos alunos. Com exceção de alguns títulos em fins da ces era agora um componente de menor importância entre
década de 1940 sobre religião, educação moral e francês, a as atividades de lazer da classe média. No entanto, quando
única experiência da José Olympio no mercado do livro di- se considera, por exemplo, a maneira como, no fim da dé-
dático propriamente dito havia sido a Coleção Brasil Moço, cada de 1950, toda a obra de Graciliano Ramos foi deixada
coletâneas (em sua maioria) de textos literários num forma- esgotar-se, impossível de obter, por quase cinco anos, antes
to semelhante ao da série Sagarana. Confiante no grande que ele decidisse negociar os direitos de publicação com a
potencial do mercado educacional no Brasil, a José Olym- Martins ($160), fica difícil deixar de atribuir papel funda-
pio começou a produzir materiais didáticos, tais como os mental à saída de Vera Pacheco Jordão e admitir que tenha
minilaborarórios. Essa parte de suas atividades expandiu-se havido apenas um enfraquecimento do interesse da “Casa”
de tal maneira no ano seguinte (1971) que foram consti- pela literatura brasileira.
s24 José Olympio José Olympio 525

A única figura literária de grande projeção a incorporar-se Com exceção de Guimarães Rosa, contam-se nos dedos
ao catálogo da José Olympio nos anos seguintes à guerra os novos romancistas importantes promovidos pela José
mundial foi João Guimarães Rosa. Curiosamente, porém, Olympio no pós-guerra. Em fins da década de 1940, ape-
seu primeiro livro, Sagarana, embora tirasse o segundo lugar nas dois nos vêm à mente. Adonias [Aguiar] Filho teve seu
no Concurso de Contos Humberto de Campos, de 1938, não primeiro romance, Servos da Morte, lançado em 1946, em-
foi aceito para publicação naquela ocasião*. Oito anos de- bora seus livros posteriores tenham saído pelas Edições “O
pois, finalmente, foi publicado por outra editora, a Universal. Cruzeiro” e pela Civilização Brasileira. Mário Donato, cujo
Apenas a partir da terceira edição, em 1957, livro passou a pai, Luís, fora diretor da antiga editora de Monteiro Lobato,
integrar o catálogo da José Olympio. Trinta anos mais tarde, já havia escrito para crianças quando seu primeiro roman-
encontrava-se na 23º edição e dava nome à coleção de litera- ce para adultos, Presença de Anita, tornou-se best-seller em
tura brasileira da “Casa”, Seguiu-se Corpo de Baile (1956), 1948. Chegou a vender cinquenta mil exemplares em dez
que seria subdividido, posteriormente, em três livros separa- edições, êxito que o Handbook of Latin American Studies
dos: Manuelzão e Miguilin, No Urubuquaquá, no Pinhém e atribui à “tremenda ênfase no sexo”. A José Olympio pu-
Noites no Sertão. Naquele mesmo ano, saiu sua obra-prima, blicou também seus livros Galateia e o Fantasma (19$1) €
Grande Sertão: Veredas, que atingiu a décima edição vinte Madrugada sem Deus (1954).
anos depois. Primeiras Estórias foi publicado em 1962, Tuta- O romancista novo mais significativo da José Olympio,
meia em 1967 e (postumamente) Estas Estórias, em 1969, € no início dos anos de r9so- depois de Guimarães Rosa -,
Ave, Palavra, em 1970, Parte do Corpo de Baile foi publicada foi Rosalina Coelho Lisboa, cujo “brilhante e superficial”+*
com o título Buriti pelas Éditions du Seuil, de Paris, em 1961, A Seara de Caim veio à luz em 1952. Antes disso, publicara
seguida, um ano depois, por Les muits du sertão. Desde então, apenas um livro de poesias, Passos no Caminho (1932). Em
traduções de Guimarães Rosa apareceram em Milão, Nova 1956,a José Olympio lançou Mário Palmério, com Vila dos
York, Toronto, Colônia, Barcelona — Seix Barral lançou Gran Confins, romance sobre as tramas eleitorais numa pequena
Sertón: Veredas, traduzido por Ángel Crespo, em 1967 — e cidade mineira, que, em 1981, alcançou sua décima nona edi-
Varsóvia, além de edições lisboetas do português. O uso abun- ção. Palmério veio a criar depois, com Chapadão do Bugre
dante que faz de expressões regionais, juntamente com um (também sobre manobras políticas no interior), o mais no-
uso joyciano da linguagem, criam enormes problemas de tra- tável romance de 1965. À José Olympio publicou também
dução, resolvidos de maneira inteiramente satisfatória — se- o primeiro romance de Autran Dourado, Tempo de Amar
gundo o próprio Guimarães Rosa — por seu tradutor italiano (1952), e os primeiros livros de Antônio Callado (uma peça,
Edoardo Bizzarri. Na versão inglesa original, ao contrário, A Cidade Assassinada, em 19$4, € seu primeiro romance, A
apesar do excelente trocadilho no título, The Devil to Pay in Madona de Cedro, em 1957). Callado veio a publicar de-
the Backlands, o romance foi “assassinado e reduzido a uma pois — pela Civilização Brasileira — alguns dos comentários
fração de seu tamanho original... O tema da homossexualida- mais sinceros, em ficção, sobre a vida no Brasil sob o regime
de, um dos mais importantes no romance, foi expungido”+*, A pós-1964. O primeiro livro de Dalton Trevisan publicado
Fundação Gulbenkian decidiu custear uma tradução comple- comercialmente, Novelas Nada Exemplares, saiu pela José
tamente nova, confiada a Thomas Colchie, mas que, depois de Olympio em 1959, mas suas obras posteriores também fo-
quarenta anos, ainda não apareceu. ram publicadas pela Civilização Brasileira.
Praticamente o único nome novo na década de 1960 foi
o de José Cândido de Carvalho, cujo romance O Coronel e o
Lobisomem surgiu em 1964, mas o livro não causou um im-
45. Parece que houve intenção de oferecer-lhe um contrato, mas Gui-
marães Rosa estava ausente do país, a serviço do Itamarati,e o editor
não pôde conseguir seu endereço no exterior. 47. Ralph Edward Dimmick, “Brazilian Literature”, Handbook of
46. Sarah Crichton, “El Boom de la Novela Latinoamericana”, Hand- Latin American Studies, n. 14, p. 237, 1948.
book of Latin American Studies, n. 14, Pp. 237, 1948. 48. Wilson Martins, “Livros de 30 Dias”, Anhembi, ago. 1952.
$26 José Olympio José Olympio $27

pacto sensível antes de março de 1971, quando de repente che- 1964. Antes disso, seu primeiro êxito real, A Maçã no Escu-
gou ao segundo lugar na lista dos best-sellers do Correio do ro, terminado em 1956, rodara de editor em editor até que,
Livro, ao vender cerca de trinta mil exemplares no ano e atin- finalmente, foi aceito pela Francisco Alves, em 1961, mas
gir uma sétima edição no mês de janeiro seguinte. Foi um dos seu preço de Cr$980 foi considerado (pelo Boletim Biblio-
títulos mais reeditados da “Casa”, atingindo trinta edições nos gráfico Brasileiro) “proibitivo” para uma edição que, segun-
anos de 1980 e ainda figurando no catálogo de 1997. do o periódico, era “graficamente [...] ruim [... com] revisão
Um autor novo mais recente é Ariano Suassuna. Seu pri- péssima, os caracteres tipográficos de mau gosto”. Quando
meiro romance, A Pedra do Reino — também incluído no passou para a José Olympio, a autora já era considerada
catálogo de 1997 —, vendeu os cinco mil exemplares da pri- (segundo o crítico americano Earl E. Fitz) “inquestionavel-
meira edição de 1971 em menos de um mês e encabeçou a mente a mais importante e respeitada escritora da literatura
lista dos mais vendidos no início de 1972. Naquele ano, po- latino-americana”, Mas sua experiência não foi a única na
rém, a posição da José Olympio como editora de literatura época: citemos, entre outros, Hélio Pólvora, que estreou na
transformou-se com a aquisição da Sabiá. Civilização Brasileira em 1958, com Os Galos da Aurora,
teve sua obra seguinte, A Mulher na Janela, editada pela Es-
tante Publicações em 1962, passando depois sucessivamen-
$rs1 A SABIÁ te à Lidador, Expressão e Cultura, Antares (dois títulos, em
1979 e 1980), Difel, Horizonte de Brasília, Pão de Açúcar,
A Sabiá, cuja marca registrada, o pássaro, ficou sendo o sím- Melhoramentos, e então José Olympio, em 1989.
bolo da própria José Olympio, teve origem numa espécie Com o intuito, principalmente, de assegurar uma base
de cooperativa de autores, a Editora do Autor, constituída financeira para que a Sabiá pudesse promover autores nacio-
em 1960, entre cujos fundadores figurava o poeta Manuel nais, Fernando e Rubem publicaram também traduções de
Bandeira. Desentendimentos entre os três diretores da firma algumas obras literárias modernas, da América do Norte e
acarretaram uma separação, em 1966, e dois deles, Fernan- da Europa, bem como da América espanhola. Os intelectuais
do Sabino e Rubem Braga, constituíram sua própria edito- brasileiros não desconheciam a literatura hispano-americana
ra. À Sabiá especializou-se em ensaios, poesia e ficção de no original, graças principalmente às edições de Barcelona
autores brasileiros. Um de seus títulos de maior êxito, Para importadas pela Livraria Espanhola, do Rio, desde o início
Uma Menina com Uma Flor (1966), de Vinícius de Moraes, do século. Praticamente, porém, nada dessa literatura jamais
atingiu dez edições — cinquenta mil exemplares - em quatro fora traduzido. Os únicos casos que nos vêm à lembrança
anos. Milho pra Galinha, Mariquinha, coletânea de 33 con- são dois livros do argentino Manuel Galvez (Nacha Regules,
tos de Marisa Raja Gabaglia (1971), vendeu dez mil exem- por Lobato, em 1925, Jornada de Agonia, por G. Loureiro,
plares numa semana, somente no Rio de Janeiro. de Salvador, em 1931), Facundo, de Sarmiento (Biblioteca
Outro autor que acabou entrando no catálogo da José do Exército, 1938), Todo Verdor Perecerá, de Mallea, por
Olympio através da Editora do Autor e da Sabiá foi Clarice José Lins do Rego (Globo, 1938), O Túnel, de Sábato (Ci-
Lispector, que tivera, como escritora, uma experiência muito vilização Brasileira, 1931), El Mundo es Ancho y Ajeno, do
infeliz com editoras, raramente conseguindo contratos sa- peruano Ciro Alegria, em 1944, e, em 1946, algumas cole-
tisfatórios. À primeira, “A Noite” Editora, apenas aceitou tâneas de contos da Pr «9, Esse romance de Alegria,
seu trabalho depois que ela concordou em abrir mão de após receber um prêmio internacional de melhor romance
todos os seus direitos autorais. À Agir publicou O Lustre, latino-americano, foi traduzido por Amadeu Amaral com o
em 1946, e “A Noite” lançou A Cidade Sitiada, em 1949. título de Grande e Estranho é o Mundo. Assim, o programa
Alguns Contos (1952) saiu pelo Serviço de Documentação
do MEC, Laços de Família (1960) pela Francisco Alves e 49. Josef Bella, “Libros de Literatura Argentina Traducidos al Portu-
A Legião Estrangeira (1964) pela José Álvaro. Ligou-se à gués”, Fichero Bibliográfico Hispanoamericano, vol. 12,n. 12, p. 42,
Editora do Autor com A Paixão Segundo G. H., em fins de set. 1973.
José Olympio 529
528 José Olympio

da Sabiá foi quase que uma novidade completa. Mas seu êxi- As expectativas, da parte do público, de rápidos lucros
to, particularmente com a versão portuguesa de Cien Arios de nos negócios de ações foram, infelizmente, extremamente
Soledad, de Gabriel Garcia Márquez, em 1968, rapidamente irrealistas. O resultado foi uma bonita, mas frágil bolha de
encorajou outros editores. No início de 1969, a Brasiliense sabão, cujo estouro, em 1971, reforçou a classe média bra-
publicara O Senhor Presidente, do prêmio Nobel Miguel Án- sileira em sua propensão a restringir os investimentos finan-
gel Asturias (do qual vendeu vinte mil exemplares dentro de ceiros à especulação com imóveis. À seguir, sobreveio a crise
dois anos), e anunciava seu Weekend na Guatemala, e a Edi- mundial do petróleo de 1973. Embora seja fácil exagerar
“Nova tinha planos de traduzir diversos autores mexicanos € suas consequências sobre a economia brasileira como um
equatorianos. Em 1970, a Civilização Brasileira, a Expressão todo, seu impacto direto sobre a indústria editorial do país
e Cultura, a Globo e a Artenova, todas já haviam entrado foi destruidor, principalmente porque o enorme aumento do
nesse campo. Naturalmente, naquele tempo do grande boom custo da energia e do transporte ocorreu exatamente quan-
do romance hispano-americano, todas essas publicações do, por outras razões— aumento de consumo nos EUA, esgo-
eram de ficção, embora, logo depois, a Difel publicasse o poe- tamento das reservas de madeira e efeitos das leis antipolui-
ta chileno Pablo Neruda, Não obstante, o leitor brasileiro ção sobre a produção — os preços mundiais do papel estavam
frequentemente ainda tinha de esperar anos para que mesmo subindo dramaticamente. No Brasil, o preço do papel subiu
os autores mais bem-sucedidos em língua espanhola fossem 125% entre junho de 1973 e fevereiro de 1974. Embora as
publicados em português. Assim, Sobre Heróis e Tumbas, de vendas de livros didáticos se mantivessem, as editoras de-
Ernesto Sábato, só foi publicado (pela Francisco Alves) em pendentes do mercado de livros não escolares foram dura-
1980, dez anos depois da edição argentina. mente atingidas, na medida em que a classe média reagia ao
Com o êxito de títulos como Cem Anos de Solidão, a Sa- custo de vida mais alto pela redução de consumo dos itens
biá logo superou a concepção de seus proprietários, de uma de lazer. À Artenova, por exemplo, cortou sua produção pela
pequena casa editora que lhes deixasse muito tempo livre metade, de duzentos para cem títulos por ano (cf. $179).
para seu próprio trabalho literário. Por isso, venderam-na Para tornar calamitosa uma situação que já era séria, foi
para a José Olympio, que então pôde, uma vez mais, vanglo- precisamente nessa ocasião que o superdesenvolvido merca-
riar-se de um catálogo que incluía cerca de 80% dos autores do de vendas pelo crediário a domicílio atingiu a saturação.
mais representativos do Brasilsº, Como já haviam descoberto editores de outros países*!, a
tendência natural dos vendedores pelo crediário numa si-
tuação como essa é concentrar seus esforços nos bairros
mais pobres — até mesmo nas favelas — independentemente
$rs2 O FIM DA INDEPENDÊNCIA
da capacidade dos compradores de manterem os pagamen-
À era de expansão e diversificação que acabamos de descre- tos em dia. À primeira prestação, ou “entrada” — frequen-
ver foi típica da economia brasileira no período de 1968 a temente paga apenas para se verem livres de um vendedor
1973. Alcançara-se a estabilidade política, e a inflação pa- importuno - constitui a comissão do vendedor. As presta-
recia ter sido dominada. À ideia do ministro Delfim Netto, ções seguintes são cobradas (se puderem ser cobradas) num
da área econômica, de transformar o Brasil numa “demo- período de 10 a 24 meses, por uma empresa financeira, que
cracia de proprietários”, no estilo norte-americano, através envia 80% desses recebimentos ao editor. Mesmo em tem-
da ampla distribuição de ações das indústrias, produzira o pos normais, pode-se esperar que cerca de um quinto de to-
desejado boom no mercado de valores mobiliários, e o país dos esses contratos de crédito para compra de livros estará
parecia estar preparado para um longo período de contínuo com seus pagamentos atrasados. Não constituiu surpresa,
crescimento industrial e econômico. pois, o fato de a maioria das editoras brasileiras com grande

s1. Robert Heller, “A Textbook Pergamon Didn't Want Published”,


50. “Livraria José Olympio Editora s. A.”, Fichero Bibliográfico His-
Observer, Londres, 18 jun. 1971.
panoamericano, vol. 12,n. 12, p.72,SEL. 1973.
s30 José Olympio José Olympio 531

atividade no crediário encontrar-se, antes do final de 1974, Em abril de 1974, a José Olympio anunciou que concen-
em sérias dificuldades financeiras. traria sua produção em reimpressões, especialmente de auto-
Os problemas da José Olympio haviam começado com o res mais importantes e de renome e de textos clássicos. Ape-
colapso do mercado de ações e as consequentes dificuldades sar disso, a situação piorou ainda mais no restante de 1974.
para obtenção de capital de giro, seriamente exaurido pela A inflação produzida pela crise do petróleo estava reduzindo
expansão exageradamente otimista no campo dos recursos todas as vendas, especialmente as de crediário. O despropor-
didáticos e pela aquisição da Sabiá. Foram iniciadas negocia- cional desenvolvimento do departamento de vendas de co-
ções para uma associação com a Harcourt Brace; estas, po- leções da José Olympio fizera com que ele deixasse de ser
rém, não chegaram a bom termo devido a uma depressão dos uma fonte de recursos e se tornasse, com seus pesados custos
negócios em Wall Street, que ocasionou uma baixa nas ações fixos, o calcanhar de aquiles da casa.
dessa empresa de Nova York, de us$125 para us$21. Não só As coisas tampouco melhoraram com o custoso fiasco de
foram suspensas as negociações com a José Olympio como Jogando com Pelé. Na esperança de que um livro sobre fute-
a Harcourt teve também de interromper a operação de três bol, escrito pelo maior jogador do país, teria venda garanti-
importantes editoras acadêmicas adquiridas na Alemanha da num ano de disputa da Copa Mundial, a José Olympio
Ocidental, em 1970. À José Olympio voltou-se, então, para lançou-o, com enorme publicidade, numa edição de duzentos
a Empar (Empreendimentos Portugueses do Brasil, Partici- mil exemplares - apesar do medíocre resultado da Francisco
pantes), uma empresa holding de propriedade da Socieda- Alves com Eu Sou Pelé, alguns anos antes. À seleção brasileira
de Financeira Portuguesa, de Lisboa, Isso deu à Empar uma saiu-se mal no campeonato e o livro foi um fracasso comple-
participação de 19,8% no capital da José Olympio. A cri- to. Rendeu algum dinheiro com a venda de direitos de tradu-
se decisiva sobreveio quase imediatamente quando a José ção (a Hodder « Stoughton lançou, em 1975, Play Ball with
Olympio tentou comprar a Companhia Editora Nacional Pelé e a Calmann-Lévy, em 1976, publicou Jouer au football
($123). Octalles Marcondes Ferreira morrera no início do avec Pelé), mas então a crise já tinha passado.
ano anterior (1973), e seus irmãos e filhos, com pouco inte- O fracasso dos livros de Pelé ilustra bem uma peculiari-
resse no negócio de livros e nenhuma experiência empresa- dade da indústria editorial brasileira. À nação que mais joga
rial, estavam ansiosos para vender a empresa. José Olympio futebol no mundo não lê livros sobre futebol. O Futebol
foi atraído pela enorme fatia do mercado do livro didático de Campo e o Mercado Editorial Brasileiro, preparado por
que a Nacional ainda mantinha e por sua excelente rentabili- Maria das Graças Leite Targino pouco antes da Copa Mun-
dade. No seu entender, não apenas a lucratividade da Nacio- dial de 1982, relata como pesquisou a produção de cerca de
nal salvaria a José Olympio, como a fusão das duas maiores setenta das maiores editoras do Brasil e encontrou apenas
e mais tradicionais editoras brasileiras permitiria economias treze livros sobre algum aspecto do futebol, sete dos quais
de escala potencialmente benéficas a ambas as firmas. Deses- publicados por apenas-duas editoras. Mais expressivo ainda:
perado para levantar o capital necessário, tentou conseguir, a única editora especializada em futebol, a Gol, cerrara as
em março, que a Empar aumentasse sua participação na José portas. Na opinião da autora da pesquisa, esse fato é revela-
Olympio e fornecesse os recursos necessários para a compra dor do apelo elitista do livro no Brasil, mas prefiro ficar com
da Nacional. Sua proposta, porém, foi frustrada menos de sua teoria alternativa segundo a qual a natureza do jogo é
um mês depois em decorrência da deflagração da Revolução que conta. Isso se ajustaria à minha experiência de quarenta
dos Cravos em Portugal, em 25 de abril. Fez-se, então, uma anos atrás, de jovem bibliotecário público na então colônia
abordagem junto ao BNDE (Banco Nacional de Desenvolvi- de Trinidad e Tobago, onde verifiquei que a procura de livros
mento Econômico), que teria assegurado um empréstimo de sobre criquete, esporte nacional na estação seca (verão), su-
200 bilhões de cruzeiros (equivalentes a pouco mais de 22 perava de longe a de livros sobre futebol, esporte nacional
milhões de dólares, na época): 1 go milhões para a compra da na estação das chuvas, embora ambos os esportes tivessem
Nacional e so milhões como reforço de capital de giro para aproximadamente a mesma popularidade. Minha conclusão
a Livraria José Olympio Editora, já em situação falimentar. foi que o criquete, sendo um jogo de estratégia, prestava-se
532 José Olympio José Olympio 533

muito mais à discussão intelectual e, portanto, à publicação O próprio José Olympio foi visivelmente afetado, física e
de livros de sucesso, ao passo que o fã de futebol está atrás psicologicamente, “muito abalado com o rumo que as coisas
sobretudo de notícias sobre fatos e pessoas da atualidade, tomaram”s:, e desejoso de não se envolver no assunto, mas
proporcionadas de modo mais adequado pelos jornais, re- Péricles Madureira de Pinho, do novo Conselho Editorial,
vistas e rádio. definiu a política do novo regime como a de publicar au-
O controle da Nacional pela José Olympio nunca se con- tores nacionais de qualidade e obras de valor permanente,
cretizou: O BNDE, antes mesmo de completar-se a venda, fi- ilustrando-a com o programa de edições para 1976: O Rei
cou preocupado com aquele financiamento. Mesmo nesta Degolado, de Ariano Suassuna, O Outro Amor do Dr. Paulo
situação extrema, porém, foi decisiva a influência de amigos (um romance de Gilberto Freyre), as Memórias, de Daniel
importantes: Meira Matos, Luís Viana Filho, Mário Hen- Krieger, O Rei Baltazar, de José Cândido de Carvalho, as
rique Simonsen, Roberto Campos e, sobretudo, Golbery Confissões Impublicáveis, de Salvador Dalí, e O Mundo que
do Couto e Silva, a eminência parda do regime, cujo livro- Vejo e não Desejo, de Roberto Campos. Naturalmente, a
-chave, Geopolítica do Brasil (como dissemos), a Casa edi- “Casa” continuou a publicar obras importantes de porta-
tou em 1966. Diante do alegado interesse da McGraw-Hill -vozes do regime: por exemplo, Uma Geopolítica Pan-ama-
em adquirir a Nacional, com uma oferta de us$25000000 zônica, do general Carlos de Meira Matos, publicada em
(na época, cerca de 175 milhões de cruzeiros), o presidente 1979, como o nº 189 da coleção Documentos Brasileiros.
Geisel foi convencido a não permitir que a José Olympio e Em outubro de 1979, após quatro anos nas mãos do ban-
a Nacional fossem vendidas a estrangeiros, e ordenou ao co, anunciou-se que o BNDE estava procurando, insistente-
banco que interviesse, mente, um comprador (brasileiro) para a empresa. Talvez por
O BNDE assumiu o controle total de ambas as empre- causa do contínuo envolvimento de elementos da família na
sas. À Nacional, financeiramente sólida, foi comprada por gerência, o período de intervenção do banco parece não ser
Cr$142000000 (o equivalente a us$16 100000) e a forte- sido tão desastroso para a José Olympio quanto o foi para
mente endividada José Olympio foi desapropriada pelo valor a Nacional. À produção em 1980 somou 95 edições, 20 das
simbólico de Cr$1,00, embora o próprio José Olympio fos- quais eram títulos novos (contra apenas cinco em 1979), ga-
se mantido como presidente honorário da companhia. Não rantindo-lhe o décimo lugar entre as editoras brasileiras não
apenas o banco do governo, com isso, assumiu um passivo didáticas. Em abril de 1981, artigos na imprensa, anunciando
a descoberto da ordem de Cr$280000000 (US$3 1000000), o próximo transcurso do cinquentenário da firma em novem-
como logo depois se soube que não tinha fundamento a bro, informavam que a produção total nesse meio século fora
ameaça de compra por parte de uma empresa americana de 2214 títulos (1644 dos quais nacionais), de 1289 autores
(que, de qualquer modo, só teria afetado a Nacional): não (dos quais 844 eram brasileiros) em 4 s 10 edições.
passara da tentativa de Curtis Benjamin oito anos antes! O lado financeiro foi menos expressivo. O Estado de 5.
Na época, a opinião foi de que isso representava o fim Paulo, de 20 de março de 1984, informou que as dívidas da
da José Olympio como editora literária inovadora, e foram empresa eram, nove meses antes, de Cr$2,8 bilhões, embora
publicadas notícias que eram virtualmente obituários da fir- a IstoÉ, de 11 de janeiro, tenha afirmado que, na época, ha-
ma - após 46 anos, setecentos autores, quatro mil edições e viam diminuído para Cr$1,5 bilhão. Entre os autores mais
perto de trinta milhões de exemplares. Esperava-se que, daí proeminentes da “Casa”, Carlos Drummond de Andrade
em diante, a José Olympio publicasse apenas “obras con- (citado em IstoÉ de 25 de janeiro de 1984) queixou-se ve-
sagradas” (foi nomeado um Conselho especial para super- ementemente do desempenho da empresa sob o controle
visionar a produção dessas obras) e outras publicações do do BNDE: “Eles mataram a José Olympio. Só pagaram as
tipo, que pudessem satisfazer os critérios mercadológicos es- dívidas, não investiram um tostão”. Qualquer que tenha
treitamente financeiros dos contadores do banco. Temia-se sido a história deste período, o principal problema para o
também que a empresa, por meio do BNDE, ficasse exposta a
pressões políticas. 52. Antônio Olavo Pereira, em correspondência de abril de 1976.
534 José Olympio José Olympio 535

banco de repassá-la a um comprador nacional — assim como do edifício-sede em Botafogo, o ativo por ele adquirido limi-
a maior dificuldade de a indústria editorial brasileira resistir tou-se a pouco mais que a clientela (cadastro), o estoque e os
à penetração estrangeira — pode ser atribuido à natureza da direitos de edição ainda em vigor, além do prestígio de man-
propriedade industrial local. À base legal dessa propriedade ter o próprio José Olympio como presidente. Na verdade,
pode ter mudado desde os tempos de Francisco Alves ($94, foram tantos os autores que deixaram a “Casa” nos últimos
$96), não, porém, sua realidade. Quase todas as empresas meses de incerteza anteriores à venda (surgiram rumores
nacionais, grandes ou pequenas, ainda pertencem a uma de desativação, pura e simples, da firma) que a empresa era
única pessoa ou a uma família, ou a um pequeno grupo de apenas uma sombra do que fora em outros tempos. Em ja-
amigos íntimos. Como não há uma ampla tradição de par- neiro, a Record pôde alardear, em publicidade na imprensa,
ticipação acionária impessoal, não pode haver, no setor, um que assinara contrato com Carlos Drummond de Andrade,
mercado de ações realmente efetivo. Isso torna difícil tanto e em março a Nova Fronteira informava que, dos 22 novos
vender uma empresa como a José Olympio quanto esta con- autores que a ela se ligaram no primeiro trimestre de 1984,
seguir o capital de giro de que necessita para operar. O resul- nada menos de catorze haviam sido da José Olympio. Entre
tado é que a maioria das empresas brasileiras, sobretudo do os autores que permaneceram fiéis à “Casa” até o fim, con-
setor editorial, sofre de descapitalização crônica, dependen- tudo, estavam nomes prestigiosos como Pedro Calmon, José
do, nos financiamentos, de empréstimos bancários, das ca- Cândido de Carvalho, Gilberto Freyre, Luís Jardim, Mário
suais benesses do governo, ou do seguro, mas lento, recurso Palmério e Rachel de Queiroz, e entre os já falecidos, José
do autofinanciamento, isto é, do reinvestimento de lucros, Lins do Rego. Destes ficaram no catálogo de 1997 apenas
Entre as poucas firmas que demonstraram interesse na José Cândido, Luís Jardim, Mário Palmério e José Lins, e,
aquisição da José Olympio estava a Crescendo Empreen- representada por alguns contos numa coletânea, Rachel de
dimentos e Serviços, pertencente ao próprio filho de José Queiroz. E este catálogo pôde celebrar os 65 anos da “Casa”
Olympio, Geraldo Jordão Pereira, mas esta e a Sharp, ou- anunciando o lançamento da história do fundador, José
tro possível comprador, desistiram (segundo IstoÉ) dian- Olympio: Editor no Brasil, de Cláudio Bojunga.
te dos resultados financeiros. Uma proposta dos próprios Tragicamente, Henrique Sérgio Gregori e sua esposa Ana
funcionários da empresa, de financiamento da compra com Elisa morreram num acidente de automóvel, em 15 de abril
garantia dos futuros lucros, era, naturalmente, inaceitável. de 1990. Morreu José Olympio subitamente à sua mesa de
Acusações de má administração e mesmo fraude feitas por almoço, apenas dezoito dias depois, em 3 de maio de 1990.
um ex-funcionário, Arthur Herbert, que fora assessor para Subsequentemente, Maria Amélia Mello seria gerente edi-
assuntos tributários da empresa, não ajudou em nada a ven- torial da José Olympio durante o resto dos anos de 1990.
da, mas finalmente o BNDE (depois BNDES, Banco Nacio- Finalmente, a “Casa”, já com seis mil títulos no catálogo, foi
nal de Desenvolvimento Econômico e Social) aceitou uma comprada em 2001 pela Record.
proposta de Cr$300 000000, feita pelo paulista Henrique
Sérgio Gregori, presidente da Xerox do Brasil e do Banco
Crefisul, cuja limitada experiência no comércio livreiro fora
a de produzir cópias reprográficas através da Biblioteca Re-
prográfica da Xerox, além de ter feito parte do conselho ad-
ministrativo da própria José Olympio entre 1967 e 1970.
Esses Cr$300 000 000 equivaliam, na época da transação,
a apenas US$240000... (A enorme diferença entre estes va-
lores e os recursos injetados pelo BNDE quando da desapro-
priação, da ordem de us$3 1 000000, encerram talvez uma
lição sobre os males das estatizações.) Gregori assumiu O
controle em abril de 1984, mas, como O BNDE reteve a posse
José de Barros
Martins
Ah! Se eu pudesse editar Os Sertões:
faria uma beleza...

JOSÉ DE BARROS MARTINS"

A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL $153

À imperiosa necessidade do Brasil de restringir suas impor-


tações, nos anos de depressão da década de 1930, havia
ampliado a tal ponto o parque manufatureiro de São Paulo
que, em 1941,a cidade se tornara o maior centro industrial
da América Latina. Como parte desse desenvolvimento, ela
convertera-se também num dos maiores centros gráficos
do hemisfério ocidental, com 4 368 firmas de impressão ti-
pográfica, 33 oficinas litográficas e 26 estabelecimentos de
estereotipia, os quais empregavam uma força de trabalho
especializada de cerca de quinze mil pessoas — além de abri-
gar dezesseis das 38 fábricas de papel mais importantes do
Brasil. Sua produção representava 70% do material de leitu-
ra impresso no país. No entanto, apenas um pouco mais da
metade desse total era editado na cidade. A partir da guerra
civil de 1932, 0 Rio de Janeiro havia recuperado sua posi-
ção de centro cultural e intelectual do país: não só mais da
metade das edições brasileiras eram feitas no Rio (embora
grande parte delas fosse impressa em São Paulo), como tam-
bém a capital brasileira possuía todas as editoras inovadoras
e quase todas aquelas de importância literária ou cultural.
À atividade editorial paulista, dominada pelas editoras Na-
cional e Melhoramentos, estava esmagadoramente centrada ,
nos livros didáticos e na literatura infantil.

t. Apud Mário da Silva Brito, “Breve História de uma Editora”, em


Martins, Trinta Anos, São Paulo, Martins, 1967.
s4o José de Barros Martins José de Barros Martins 541
Um pouco dessa divisão da produção editorial entre li- desviou da literatura para os livros técnicos, uma mudança,
teratura e livro didático persiste até hoje entre Rio e São aliás, impulsionada muito mais pela ação governamental do
Paulo, porém, é muito menos acentuada agora do que era que pela escolha do consumidor. De fato, a Fiban (Fiscaliza-
no final da década de 1930; a causa dessa mudança foi a ção Bancária do Banco do Brasil), órgão oficial encarregado
expansão da atividade editorial brasileira em consequência da distribuição das divisas estrangeiras, relutava de tal modo
da Segunda Guerra Mundial. O repentino florescimento da em autorizar a importação de livros da França, que uma das
literatura nacional na metade dos anos de 1930 já se havia mais importantes livrarias especializadas em obras francesas
extinguido então. Verificavam-se sérios problemas de escas- do Rio de Janeiro (Nova Galeria de Arte) quase teve de cer-
sez de materiais, de custos crescentes e interferência política. rar as portas, em 1960, por não ter nada para vender!
No entanto, o hábito de leitura desenvolveu-se — no Brasil Durante a guerra, com a dificuldade de importação de
como em muitos outros países durante a guerra -, e a venda livros franceses, os livreiros brasileiros voltaram-se para
de livros surpreendeu o setor por sua exuberância. outras repúblicas latino-americanas, cujo idioma, o espa-
A partir de setembro de 1939, 0 bloqueio naval inglês nhol, era aceito por um número cada vez maior de leito-
interrompeu quase todo o suprimento de livros provenientes res; além disso, a indústria editorial hispano-americana
dos territórios sob controle alemão, e, em menos de um ano, encontrava-se em plena expansão. Três anos antes do con-
estava entre estes a França, ainda a principal fonte de livros flito mundial, a deflagração da Guerra Civil Espanhola
em língua estrangeira para o Brasil. O resultado foi não só acarretara uma virtual paralisação da atividade editorial da
a redução do consumo de livros estrangeiros — as importa- Espanha, proporcionando uma oportunidade única às edi-
ções, em 1942, foram praticamente iguais, em peso, às de toras hispano-americanas. Às editoras argentinas assumi-
1936 -, como também mudou sua proveniência, que passou ram a dianteira e, em poucos meses, estavam abastecendo
da Europa para o Novo Mundo. Graças à prosperidade do o mercado mundial de livros em espanhol. Sua produção,
Brasil durante a guerra e à consequente recuperação do po- que era, em 1938, de 1736 títulos e 6950000 exemplares,
der aquisitivo do mil-réis (que, em outubro de 1942, passou subiu, em 1944, para $ 323 títulos € 30700000 exempla-
a chamar-se cruzeiro), um número cada vez maior de livros res, Z0 500000 dos quais destinavam-se à exportação. Os
em inglês provinha dos Estados Unidos (43% de todas as editores mexicanos e chilenos também procuraram tirar

——
importações de livros em 1943 [cf. tabela 19, p. 872]). Infe- proveito da nova situação, mas estavam em desvantagem
lizmente, nas condições de transporte marítimo em tempo porque sua expansão partia de uma base muito menor.
de guerra, era mais fácil importar livros dos Estados Unidos Esse novo crescimento editorial da América espanhola
do que equipamentos gráficos, que eram muito mais neces- já tivera um feliz e inesperado efeito lateral para os auto-
sários, porém muito mais volumosos, € teriam aumentado a
-

res brasileiros. Editoras agora prósperas, com ambiciosos


capacidade da produção gráfica do Brasil. O caráter repen- programas de publicação de obras literárias modernas tra-
tino desse influxo ianque é bem ilustrado pelo caso de uma duzidas, passaram a interessar-se, como parceiras latino-
única livraria do Rio de Janeiro, cujas compras de livros -americanas, pela inclusão de literatura brasileira contem-
nos Estados Unidos subiram de us$12 000, em 1939, para porânea. O êxito de Dinah Silveira de Queiroz, em 1941,
US$110000, em 1940. com Floradas en la Sierra, já mencionado ($ 140), não foi de
Contudo, o inglês ainda não era muito conhecido no Bra- modo algum o primeiro. Ainda antes de a Guerra Civil Espa-
sil, Com o restabelecimento das importações oriundas da nhola completar dezoito meses, a Claridad, de Buenos Aires,
França após a guerra, sua expansão foi rápida, de sorte que, iniciou a publicação da Biblioteca de Novelistas Brasilenos,
em 1953, já haviam empurrado as importações americanas com Cacao e Mar Muerto de Jorge Amado; a Imán (também
para o segundo lugar (comparar a tabela 15 com a tabela de Buenos Aires) publicou Jubiabá; c a Ercilla, de Santia-
19). À rápida inversão da situação se deveu, em grande par- go do Chile, editou Sudor. Em 1943, 0 romancista baiano
te, ao início da “revolução do paperback”. Foi um reflexo já tinha dez edições somente em Buenos Aires. O caso de
igualmente de uma mudança no padrão de consumo, que se Monteiro Lobato foi ainda melhor: trinta e sete edições ar-
542 José de Barros Martins José de Barros Martins 543

gentinas até 1946, a maioria delas pela Americalee. E ser o ponto mais alto desde 1930. Essa aceitação de livros es-
editado em espanhol muitas vezes despertava o interesse em trangeiros era, em grande parte, consequência da paridade
outras partes do mundo: já em 1937, Jubiabá fora traduzido do cruzeiro mantida pelo Brasil, a despeito da alta inflação
pelas Editions NRE, de Paris, e Suor (traduzido com o título interna durante a guerra. Com os romances comuns sendo
de Slums), pela New Americas, de Nova York. As edições vendidos, em 1943,a 15, 16 ou 18 cruzeiros, nem mesmo os
portenhas de Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em livros americanos — em torno de vinte cruzeiros — pareciam
1942 € 1943, foram seguidas das edições de Nova York, em tão caros. Os livros importados do Chile e os argentinos,
1946, e de Paris, em 1952; contudo, as versões alemã e a graças às suas tiragens maiores (em média, seis mil em 1940
italiana não apareceram antes de 1965. Também foram tra- e onze mil em 1953), custavam, respectivamente, a metade e
duzidos os escritores mais antigos: em r941, já haviam sido um terço do preço dos brasileiros.
publicadas versões em espanhol de obras de Machado de Todavia, a produção livreira dos países hispano-america-
Assis, Aluísio Azevedo, Graça Aranha, Farias Brito, Pontes nos foi dificultada pela escassez de papel, de tinta e de equi-
de Miranda e Lima Barreto. Houve casos também de partici- pamento gráfico, e sua exportação sofreu com a carência de
pação oficial. À comissão revisora de textos de história e geo- transporte marítimo. Para preencher essa lacuna, a ativida-
grafia americana do Ministério da Justiça e Instrução Pública de editorial brasileira expandiu-se, com a proliferação de
da Argentina editou uma Biblioteca de Autores Brasileios, novas editoras: “uma em cada esquina”, segundo Edgard
na qual foram incluídas Historia de la Civilización Brasileria, Cavalheiro”. Os números oficiais apresentados pelo Anuário
de Pedro Calmon; Evolución del Pueblo Brasileio, de Oli- Estatístico do Brasil indicam uma taxa de crescimento de
veira Vianna (ambos em 1937); Los Sertones, de Euclides da 46,6% entre 1936 e 1944 e de 31% entre 1944 € 1948 (cf.
Cunha, numa tradução de Benjamín de Garay; El Emperador tabela 20, p. 881, observando-se, porém, que os seus núme-
Pedro 11, de Afonso Celso (ambos de 1938); Conferencias y ros podem ser enganosos, visto que, até recentemente, os
Discursos, de Rui Barbosa; e Mis Memorias de los Otros, de levantamentos estatísticos oficiais podiam registrar como
Rodrigo Otávio (ambos de 1940), todos com introduções de “editoras” inclusive gráficas que tivessem, em sua razão so-
destacados homens de letras argentinos. Octalles Marcondes cial, o nome editora).
Ferreira, muito impressionado com o aumento de interesse da E o volume produzido parece ter aumentado três vezes
Argentina pela literatura brasileira, desenvolveu um projeto mais rapidamente. Pelo menos o número de títulos publi-
de instalar sua própria Editora Nacional Argentina em Bue- cados a cada ano cresceu 300%, passando de cerca de mil
nos Aires, para publicar traduções de autores brasileiros, mas livros e folhetos, em 1938, para quase quatro mil, em 1950,
a irrupção da guerra impediu sua implementação. e sendo de cerca de três para um a proporção entre livros
De início, como se pode ver na tabela 16 (p. 866), a cres- e folhetos. Um padrão de medida mais útil teria sido o nú-
cente indústria editorial hispano-americana parece não ter mero de exemplares impressos. Não existem, porém, dados
feito qualquer esforço para vender no Brasil: presumivel- globais para nenhum dos anos entre 1929, quando foram
mente, o mundo de fala espanhola absorvia toda sua capaci- produzidos 4 496 123 livros (e folhetos?), e 1950, quan-
dade de produção. Isso, porém, começou a mudar em 1941. do esse total sextuplicou, chegando a 19 583 000 livros e
Em dois anos, passou a responder por quase um terço do vo- 8 433000 folhetos. Para esses anos intermediários, temos
lume total da importação de livros pelo Brasil: 30,3 %, equi- dados relativos a São Paulo, que, com sua concentração em
valente à soma das importações provenientes dos Estados livros didáticos, de tiragens acima da média, era responsável
Unidos e do Reino Unido (cf. tabela 19, p. 872) e superada por cerca de dois terços do total nacional, apresentados na
apenas pela oriunda de Portugal (34,6%). A Espanha parti- tabela 8 (p. 846). Infelizmente, não parecem dignos de fé,
cipava com apenas 4,3%, e ainda menos em 1944. O peso pelo menos para os anos de 1940. Talvez tenha havido um
total de livros importados de todas as origens caiu no difícil
ano de 1942 —- o auge dos ataques dos submarinos alemães — 2. Apud Nelson Werneck Sodré, Memórias de um Escritor, Rio de
mas esse comércio logo se recuperou e, em 1944, atingiu Janeiro, Civilização Brasileira, 1970, vol. 1.,p. 261.
544 José de Barros Martins
José de Barros Martins 545
decréscimo entre 1936 e 1941, sob o impacto da repressão nos anos do pós-guerra. Destes, um dos mais importantes foi
do Estado Novo, mas dificilmente chegaria a 20%. Daí por

ii
a Agir — a livraria e editora Artes Gráficas Reunidas s. A. —,
diante, é registrado um aumento significativo e constante, cujo departamento gráfico acabou por ser vendido. O nome,
menor, porém, tanto em proporção como em valores abso- porém, permaneceu. Seu principal fundador foi Cândido

iii
lutos, nos anos de expansão da leitura durante a guerra do Guinle de Paula Machado. Seu filho, José de Paula Macha-
que nos anos imediatamente posteriores, quando, segundo do, foi o último presidente da empresa, que cerrou as portas
todos os demais indicadores, houve um declínio do hábito
em 1999. Outro dos fundadores foi o mais proeminente ca-

ii
de leitura. Ainda mais expressiva é a total incompatibilidade tólico leigo do Brasil, Alceu Amoroso Lima. Os interesses da
desses dados com os que fornecemos na tabela 12 (p. 858) empresa abrangem, desde o princípio, as áreas de religião,
com respeito à produção da Editora Nacional. Frank Cipo- arte, literatura brasileira, pedagogia e livros didáticos (em
lon, que registra 2 159 289 exemplares para a produção de especial, com a coleção Nossos Clássicos, manuais sobre os
1941- 2% abaixo do total do Rio de Janeiro em 1929! — dá

>> E
escritores mais representativos das letras luso-brasileiras),
como produção da Nacional quinhentos mil livros, cifra que aos quais foram acrescidos depois os campos da biografia,
essa firma já havia ultrapassado em 1932. Além do mais, comunicação, fotografia, culinária, teatro e literatura in-
em 1932,a produção fora interrompida por vários meses de fantojuvenil. O primeiro título da editora foi A Descober-
guerra civil. Minha estimativa seria a de uma produção na- ta do Outro, autobiografia espiritual de Gustavo Corção,
cional total de oito milhões de livros em 1939, aumentando
obra que produziu um impacto sensacional por ocasião de
para dez milhões em 1941, e talvez para quinze milhões em sua publicação, em 1944. Um dos primeiros sucessos foi a

cem
1945. Isso implicaria uma tiragem média por edição de cin- encantadora história para crianças de Saint-Exupéry, O Pe-
co a seis mil exemplares, o que parece correto (era de 7 885, queno Príncipe, cujos direitos de publicação no Brasil foram

e
em 1955), e um peso de pouco menos de 270 gramas por adquiridos quando a Globo, de Porto Alegre, sua detentora
livro (o consumo de papel pela indústria editorial girava em desde maio de 1943, logo após a publicação original (em

es
torno de quatro mil toneladas por ano, em 1944). francês, em Nova York), decidiu não levar avante a edição.
Havia, por certo, dentro do setor, manifestações de temor À versão da Agir apareceu no exato momento em que o
quanto ao perigo de uma superprodução. Daniel, irmão de autor virou notícia: acabara de desaparecer numa missão
José Olympio, mostrou-se especialmente preocupado com de voo sobre a França ocupada. Desde então, o livro mantém
o baixo padrão de muitos dos novos editores, sob todos os uma firme vendagem, atingindo sua 21º impressão em 1980

mt
aspectos do negócio, desde a qualidade do texto (em particu- e permanecendo como o maior best-seller da casa. Uma das
lar de sua tradução) até o projeto gráfico, impressão, comer- primeiras edições dessa editora foi também O Lustre, obra
cialização e distribuição. Terminado o boom do período da
-
já citada da jovem Clarice Lispector ($ 151). À Agir, com 320
guerra, sobreveio o castigo. À tabela 20 sugere que a maioria títulos em seu catálogo, gozava da reputação de ser a editora
das novas firmas lutou até o final da década de 1940. No mais bem administrada de toda a indústria editorial do Brasil.
entanto, a limpeza final foi realmente drástica; em 1953, 0 Outro novato no ramo (surgido em 1943) foi o depar-
Brasil viu-se com menos editoras do que em 1936. tamento de edições de O Cruzeiro, na época a revista ilus-
trada brasileira — e latino-americana — de maior circulação.
Fundada em 1927, integrava a cadeia dos Diários Associa-
$rs4 LIVRARIA AGIR E EDIÇÕES “O CRUZEIRO”
dos, de Assis Chateaubriand, o mais importante magnata
da imprensa do país. Em 1940, a revista vendia setecentos
Alguns dos novos empreendimentos mais bem conduzidos, mil exemplares semanais, chegando, em 1960, a mais de um
contudo, conseguiram sobreviver para fortalecer a indústria milhão, o que gerou no processo um sem-número de ativi-
dades subsidiárias, inclusive quinze outras revistas, além do
3. Frank Cipolon, “São Paulo, Book Center of Brazil”, Book Binding departamento de livros. O primeiro ano de sua atividade na
and Book Production, out. 1944, Pp. 52-53.
edição livreira incluiu uma reedição de O Lobo da Estepe,
546 José de Barros Martins José de Barros Martins 547

de Hermann Hesse, na tradução de Augusto de Sousa. Logo Buenos Aires, publicou a versão de Estela dos Santos, La
depois, por instigação de Marques Rebelo (nome literário de Muralla, como parte de um acordo de coedições entre a Ar-
Eddy Dias da Cruz), Geraldo de Freitas, colunista literário gentina e o Brasil.) Contudo, 1954 marca um momento de-
de O Cruzeiro, convenceu o departamento de edições a pu- cisivo para “O Cruzeiro”, pois foi o ano de lançamento de
blicar o primeiro romance de um baiano desconhecido, que Lygia Fagundes Telles, com Ciranda de Pedra, e de Antônio
havia concorrido no Concurso Internacional de Romance Accioly Netto, com A Vida é Nossa. (Contudo, Lygia já ti-
Latino-americano de 1941 e fora revisto pelo próprio Re- nha publicado O Cacto Vermelho, em 1949, pela Editora
belo. Trata-se de Cascalho, de Herberto Sales, lançado em Mérito, de São Paulo.) Daí em diante, o selo editorial “O
1944, sob unânime aprovação da crítica. Teria havido uma Cruzeiro” passa a ser visto com seriedade. Nesse mesmo
reedição quase imediata se Herberto Sales não tivesse insisti- ano, foi lançado o romance Os Condenados, de Constanti-
do em reescrevê-lo completamente; assim, a segunda edição no Paleólogo, ao mesmo tempo que um succês de scandale,

TTÕÕ
apareceu somente em r9sT. Nesse meio tempo, O Cruzeiro o volumoso Diário Secreto, de Humberto de Campos, an-
havia publicado, em 194$, Poesia, de Antônio Rangel Ban- tes publicado em capítulos na revista. Em 1953, Herberto
deira, um dos líderes da “Geração de 1945”; em 1946, À Sales publicou Macedo Miranda (A Hora Amarga) e, em
Alimentação no Brasil, de A. da Silva Mello; em 1950, A Ci- 1956, Armindo Pereira (Açoite). Uma inovação diferente foi
dade Vazia, de Fernando Sabino, coletânea de crônicas sobre Candomblé (1957), de José Medeiros, que se acredita ter

e
os três anos que o autor acabara de passar em Nova York; sido o primeiro álbum de fotografias lançado por um editor
e, em 1951, Espiridião, retrato ficcional da política minei- brasileiro, cerca de uma centena delas. Foi criada também

mm
ra, escrito pelo antigo governador (1934-1945) do estado, uma coleção, a Brasílica, imitação em menor escala da Bra-
Benedito Valadares. No entanto, a política geral do departa- siliana, da Nacional, e da Documentos Brasileiros, da José

a
mento de edições, na década de 1940, foi a de concentrar-se Olympio. Iniciada com uma reimpressão das Memórias do
nos best-sellers, em geral naqueles de tipo mais efêmero. Isso Distrito Diamantino, de Joaquim Felício dos Santos, obra
começou a mudar quando Herberto Sales passou a traba- de 1868, estendeu-se por três anos, publicando desde Um
lhar na revista. Foi o responsável pela aceitação do segundo Senhor de Engenho Pernambucano (1959), de Anibal Fer-

a
romance de Adonias Filho, Memórias de Lázaro, em 1952. nandes, até O Presidencialismo no Brasil, de Oliveira Torres,
E quando, dois anos mais tarde, tornou-se diretor do que e Vida Amorosa de D, Pedro 11, de Mozart Monteiro (ambos
passou a chamar-se Edições “O Cruzeiro”, ele a transfor- de 1962). Foram feitas importantes reedições de literatura
mou numa marca editorial primordialmente literária, apesar brasileira, como os primeiros romances de Cornélio Penna
da publicação de um bom número de títulos sobre assuntos (Fronteira), de Lúcio Cardoso (Maleita) e de João Alphonsus
políticos (especialmente de David Nasser), esporte, questões (Totonho Pacheco), bem como o último romance de Ranulfo
Cm

sociais e outros de interesse geral, como a vulgarização de Prata (Navios Iluminados). No entanto, a publicação de que
assuntos médicos. Algumas obras foram reimpressas a par- Herberto Sales mais se orgulhou foi uma obra sugerida por
tir de publicações seriadas na revista, embora o mais bem- Aurélio Buarque de Holanda — ele mesmo importante cola-
-sucedido de todos os folhetins de O Cruzeiro não o tenha borador das Edições “O Cruzeiro” — depois de seu autor ter
sido, porque sua autora mantinha um contrato anterior de tentado sem êxito todas as demais editoras importantes: a
exclusividade com a José Olympio. Estamos falando de A monumental História da Literatura Ocidental, de Otto Ma-
Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz (sobre a fundação de ria Carpeaux, que saiu em oito volumes, entre 1959 € 1966,
São Paulo), publicado em capítulos durante o ano de 1954. e reeditada posteriormente pela Editora Alhambra.
Esse livro, publicado pela José Olympio no mesmo ano, não Em fins de 1972, Herberto Sales foi transferido, passan-
só foi extremamente bem-sucedido, como teve muitas ver- do a dirigir a revista A Cigarra, e as Edições “O Cruzeiro”
sões para o rádio e a televisão. (Curiosamente, apesar do foram-se afastando lentamente da linha estabelecida por ele.
sucesso de Floradas en la Sierra, não foi traduzido para o Finalmente, toda a organização “O Cruzeiro” foi adquirida
espanhol antes de 1978, quando a Macondo Ediciones, de por novos proprietários e o setor editorial foi extinto. Em
548 José de Barros Martins José de Barros Martins 549

[974,0 próprio Herberto Sales afastou-se, quando assumiu manter o custo por volume (inclusive porte), para os sócios,
a direção do Instituto Nacional do Livro. em cerca de um terço do preço de livraria; além do mais, o
Outra editora que adotou o nome de uma revista foi a editor sempre procurou reservar um terço da produção para
Editora Revista Acadêmica, de Murilo Miranda. É digna os autores nacionais. À partir de 1968, o Clube começou
de menção por ter dado oportunidade a artistas brasileiros a estimular deliberadamente a produção de novos autores

O
na área da ilustração dos livros que editava. Entre os dese- com a instituição de concursos nacionais, a cada dois ou três
nhistas destacou-se Axel Leskoschek, que ilustrou Uma Luz anos, para romances inéditos. O concurso de 1972 atraiu
Pequena, de Carlos Lacerda, e Dois Dedos, de Graciliano 108 concorrentes, contra 52 e 76 nos dois primeiros. Em
Ramos, logo após a guerra, em 1948. novembro de 1973, porém, o Clube passou para o controle
do grupo gráfico-editorial da Revista dos Tribunais, uma das
empresas entre as muitas que foram forçadas a suspender
$155 OS CLUBES DE LIVRO temporariamente suas atividades devido aos efeitos da cri-
se mundial do petróleo ($179). Mais tarde, o Clube passou
Outro editor que estimulou a ilustração de livros foi Ray- para o grupo Ática ($174). Outros clubes do livro da década
mundo de Castro Maya, com a criação, em 1942, da Socie- de 1940 foram o Livro do Mês e o Círculo Literário.
dade dos Cem Bibliófilos do Brasil, que sobreviveu até sua Tipo peculiar de clube de livro foi a Biblioteca Militar,
morte, em 1968, depois de editar 23 títulos. Esse programa recriação, em 1938, da antiga Biblioteca do Exército. Em
de uma edição de luxe por ano, destinada a seus membros, 1943, seus associados militares e civis já haviam recebido
foi iniciado em 1943, com Brás Cubas, de Machado de Assis, 661350 volumes, à razão de um por mês, ao preço de apenas
com ilustrações de Portinari, e prosseguiu com obras ilustra- cinco cruzeiros cada. Mais tarde, a coleção retomou o nome
das por artistas como Axel, Iberê Camargo, Carybé, Cícero originale, de 1954 a 1967, foi dirigida pelo general Umberto
Dias, Djanira, Goeldi, Aldemir Martins e Tomás Santa Rosa. Peregrino, que posteriormente foi diretor do INL.
A partir de 1953, a direção técnica da sociedade foi confiada
a Darel Valença Lins, que ilustrou as edições de Memórias de
um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e LIVROS TÉCNICOS $rs6
de Poranduba Amazonense, de Barbosa Rodrigues.
Esse não foi, porém, o primeiro clube do livro no Brasil. Encarado a longo prazo, o progresso mais importante desse
No ano anterior, Mário de Andrade, Cândido Portinari e período foi o aumento de edições na área de tecnologia. Até
Aníbal Machado haviam constituído um pequeno clube do então, o mercado de livros no Brasil fora pequeno demais
livro de poesia, que se iniciou com edições de Metamorfoses, para estimular a publicação do que quer que fosse para um
e

do poeta Murilo Mendes (com ilustrações de Portinari), de


a

público leitor especializado — e, portanto, limitado. Embora


Girassol da Madrugada, de Domingos Carvalho da Silva, e a grande desvalorização da moeda, em 1930-1935, tivesse
do Cancioneiro do Ausente, de Ribeiro Couto, todos com posto fim à predominância portuguesa € francesa no merca-
Dm

tiragens de 350 exemplares.


ED

do de livros para o público em geral no Brasil ($127), essas


À esses seguiu-se, em janeiro de 1943, 0 “Clube do Li- e outras fontes estrangeiras haviam continuado a suprir o
vro” mais democrático, de Mário Graciotti, bascado em três mercado brasileiro com a maior parte dos livros nos campos
princípios: “texto limpo e anotado, preço barato, entrega
AE

profissional, técnico, científico, e outros igualmente restri-


em domicílio”. Sua produção iniciou-se, em julho de 1943, tos. Essa é a razão pela qual, mesmo com o efêmero êxito de
com uma edição de O Guarani, de José de Alencar. Daí em Octalles, com seu ingresso no mercado português de leitura
as a

diante, lançou mensalmente uma obra de literatura, mui- de lazer, em 1932-1934, Portugal continuou a exportar li-
tas vezes um romance brasileiro inédito, para um quadro vros para o Brasil em quantidade três ou quatro vezes maior
de sócios calculado, em janeiro de 1969, em mais de cin- do que importava da região (cf. tabela 9, p. 848). Contudo,
quenta mil. À garantia desse grande mercado possibilitava o aumento do consumo de livros no Brasil foi tão grande
sso José de Barros Martins José de Barros Martins 551

a
durante os anos de guerra que tornou, afinal, comercialmen- da em 1976. À Editora Souza especializou-se nesse campo,
te viável a atividade editorial técnica local; foi nessa época produzindo, em 1949, o ainda insuperado Manual Biblio-
que algumas das mais importantes editoras especializadas gráfico de Estudos Brasileiros, de Rubens Borba de Moraes
deram início a seu trabalho. Em 1939, 0 periódico jurídico e William Berrien. Infelizmente, por mais essencial que seja
Revista Forense — fundado em 1904 — ampliou suas ativi- para os estudos acadêmicos, a bibliografia raramente é re-
dades, ingressando na edição de livros, tornando-se, atual-

e
muneradora para o editor, e a Souza deixou de operar no
mente, a editora brasileira mais importante na área jurídi- início dos anos de T9so.
ca. Por certo, muito tempo antes já existiam editoras nessa
área, como, por exemplo, a Freitas Bastos ($131),a Saraiva
($106), e a Jacinto ($88), mas nenhuma delas dependia ex- LIVRARIA MARTINS EDITORA $rs7

ça
clusivamente desse segmento editorial especializado. Quase
ao mesmo tempo, a família Afonso Pena, que havia fundado As novas editoras, em sua grande maioria, optaram por es-
a revista Antenna, em abril de 1926, destinada aos aficciona- tabelecer-se no Rio (cf. tabela 20, p. 881). Uma das poucas
dos do rádio, criou a Antenna Edições Técnicas, hoje muito que não o fez foi, em termos culturais, a mais importante e
mais importante do que a revista de que se originou. Utili- certamente ajudou a restabelecer o equilíbrio intelectual na
zou também os selos editoriais Lojas do Livro Eletrônico, atividade editorial entre o Rio de Janeiro e São Paulo.
Editora Promotrônica Com. e Seleções Eletrônicas Editora.

o
José de Barros Martins foi admiravelmente descrito, em
Esta última apresentou uma produção normal (em 1980) de 1943, por Nelson Travassos, como “o benjamim dos edito-
quinze títulos por ano, metade dos quais traduções, a maio- res, moço elegante e galante, que se traja no mais moderno

O
ria de originais norte-americanos. dos alfaiates, pelo mais moderno dos feitios, divulgador da
Ão Livro Técnico foi fundada, no Rio de Janeiro, por Paul última pilhéria, amante da boa mesa e dos bons vinhos”+.
Emil Bluhm, quando se mudou de Belo Horizonte para a ca- Era escriturário na agência do Banco do Brasil, em São Pau-
pitalem 1942: continua até hoje nas mãos da família Bluhm. lo, quando, em 5 de abril de 71937, abandonou o emprego
Em 1945,0 espanhol Felipe Mestre Jou fundou, em São Pau- para abrir uma livraria numa pequena sala do primeiro an-
lo, a editora de literatura técnica que levava seu nome até a

ea
dar de um prédio da rua da Quitanda. Nessa época, São
morte do filho, Juan Ramón, em junho de 1981, apenas dez Paulo estava saindo da depressão cultural que havia provo-
meses depois da morte do pai. Em 1943, Frederico Hermann cado o êxodo de José Olympio três anos antes. À Revolução
Júnior, um economista decepcionado com a escassez de li- Constitucionalista havia posto à mostra muitas deficiências
vros em português sobre contabilidade e administração de do estado, particularmente a falra de liderança resultante da
empresas, constituiu em São Paulo a Editora Continental, estrutura educacional muito estreita e limitada. Em 1937,
convertido no ano seguinte na muito bem-sucedida Editora
e

depois de tempo suficiente para sua recuperação do choque


Atlas Ltda. Na década de 1980, dirigida por Luiz Hermann, inicial, os paulistas começavam a dar os primeiros passos
tinha um catálogo com três mil títulos. para corrigir a situação. O próprio Martins referiu-se a “um
A guerra, ou, melhor, a entrada do Brasil na guerra, ao instante excepcional em nossa vida espiritual — a criação da
lado dos Aliados (22 de agosto de 1942), foi também res- Universidade e do Departamento de Cultura, duas realiza-
ponsável por um súbito despertar, no país, do interesse aca- ções que modificaram totalmente o panorama intelectual
—e ado

dêmico pelos Estados Unidos. Foi então que se percebeu a de São Paulo”s. À Universidade fora fundada em 1934. Por
total carência de guias adequados para estudos do Brasil.
Naturalmente, a preparação desse material levou tempo, de
modo que, somente em 1945, foi publicado, pela Leitura, 4. Nelson Palma Travassos, “Os que Mandam Imprimir Livros”, O
Estado de S. Paulo, 24 nov. 1943, reproduzido em Livro sobre Livros,
a primeira obra de importância: O que se Deve Ler para
São Paulo, Hucitec, 1978, pp. 124-128.
Conhecer o Brasil, de Nelson Werneck Sodré. Desde então, 5. José de Barros Martins, “O Livreiro Obedece a uma Vocação”,
o autor manteve-o atualizado: a quinta edição foi publica- Boletim Bibliográfico Brasileiro, vol.7,n. 11, pp. s1o-s1 1, dez. 1959.
Mo
557 José de Barros Martins José de Barros Martins 553

uma estranha ironia, o importante decreto estadual n. 6533 com base em livros importados da Europa, Martins parece
foi baixado em 4 de julho, exatamente o dia seguinte à aber- ter sido um dos primeiros do ramo livreiro no Brasil a dar-se
tura da nova loja de José Olympio, no Rio de Janeiro, se bem conta de que a nova situação poderia beneficiar a atividade
que, somente em 1941, o número de graduados em Letras e editorial no país tanto quanto na América espanhola ou nos
Ciências pela USP superasse uma centena. O Departamento Estados Unidos. Poucos meses depois da deflagração da
de Cultura veio a seguir, em 1935, sendo seu primeiro dire- guerra, Martins já tinha organizado seu próprio departa-
tor Mário de Andrade, entre cujas realizações encontra-se a mento editorial, sob a direção de Edgard Cavalheiro (futuro
construção do mais imponente edifício de biblioteca pública biógrafo de Monteiro Lobato).
da América Latina, com espaço para meio milhão de livros. O primeiro título da Martins, publicado em princípios
Mário da Silva Brito, em sua introdução ao volume Martins, de 1940, foi Direito Social Brasileiro, de Antônio Ferreira
Trinta Anos, comemorativo da editora, em 1967, destacou Cesarino Júnior, um tema de atualidade, pois o regime de
o quanto as pessoas associadas a essas instituições iriam co- Vargas produzira volumosa legislação em prol do bem-estar
laborar com a Livraria Martins Editora, quer como autores, da classe trabalhadora industrial. Na verdade, esta expansão
tradutores ou organizadores de obras ou coleções. Cita o do direito do trabalho já estimulou a formação, em 1937, de
próprio Mário de Andrade, Herbert Baldus, João Cruz Cos- uma nova Revista da Legislação Trabalhista, cuja editora,
ta, Sérgio Milliet, Pierre Monbeig, Rubens Borba de Moraes, LTr, logo entrou na edição de livros jurídicos.
Eurípedes Simões de Paula e Donald Pierson. À dívida espe- Martins publicou também outras obras jurídicas de Ce-
cial para com Mário de Andrade seria reconhecida em 1956, sarino Júnior, bem como de Ataliba Vianna, Vicente de Paulo
quando a nova sede da Martins recebeu seu nome. Vicente de Azevedo e Miguel Reale. Depois disso, não conti-
A nova Livraria Martins especializou-se em livros impor- nuou, como seria de esperar, com as traduções de obras fran-
tados. Embora a desvalorização da moeda, em 1930-1935, cesas, mas fez planos de reeditar importantes textos sobre
houvesse representado forte golpe para esse mercado, ele o Brasil, que devido à raridade estavam fora do alcance da
continuava sendo substancial. Não só a demanda de obras bolsa do leitor comum. Essa Biblioteca Histórica Brasileira,
técnicas e especializadas ainda era muito pequena — como já como foi chamada a coleção, teve sua supervisão editorial
assinalamos — para tornar viáveis edições brasileiras, como confiada ao então bibliotecário municipal de São Paulo, Ru-
também uma grande parte do público comprador de livros bens Borba de Moraes, que posteriormente dirigiu a Bibliote-
continuava a exigir livros literários ou recreativos em fran- ca Nacional do Rio de Janeiro e acabou tornando-se diretor
cês, e podia e estava disposta a pagar os novos preços. Em das bibliotecas das Nações Unidas. À coleção foi inaugurada
1935,a França ainda supria um quarto, em valor, das impor- com uma tradução, feita por Sérgio Milliet, da Malerische
tações de livros do Brasil, embora isso representasse menos Reise in Brasilien, de Johann Moritz Rugendas, obra de 1835,
de um décimo em volume (tabela r$, p. 863). À especialidade com a reprodução de todas as cem litogravuras originais; as
de Martins eram as edições de luxo, apesar de ter arrema- vendas da Martins chegaram a sete mil exemplares no primei-
tado, em Paris, estoques de liquidação de livros comuns em ro ano. À coleção continuou com traduções de outros anti-
leilões para oferecer negócios vantajosos a seus fregueses gos viajantes, como Saint-Hilaire, Kidder, Debret, Luccock,
menos ricos. Seu estoque total era bastante reduzido, mas Ribeyrolles e Nicuhof. O anúncio dessas obras enfatizava a
selecionado criteriosamente, de modo que sua loja logo se “cuidadosa seleção de títulos, lindamente impressos”, todos
tornou um local regular de encontro dos bibliófilos da cida- eles em “traduções fiéis e integrais, cuidadosamente revistas,
de. Importava também da Inglaterra e dos Estados Unidos, anotadas e com introduções, contendo reproduções perfeitas
mantendo um estoque em língua inglesa tão bom que seu de todas as ilustrações originais”. Os preços variavam entre
estabelecimento tornou-se também a livraria mais popular 208000 e 308000, mas de cada título foram feitas edições
entre os americanos e britânicos residentes em São Paulo. especiais, limitadas a cerca de duzentos exemplares, em pa-
Veio então a Segunda Guerra Mundial. Estimulado, sem pel de qualidade especial e grande formato (26 x 22 cm),
dúvida, pela consciência de que já não poderia sobreviver vendidas a 1008000. Infelizmente, a indústria gráfica no Bra-
554 José de Barros Martins José de Barros Martins 555

sil ainda não estava equipada para impressões em cores de dois primeiros lançamentos foram a Síntese do Desenvolvi-
alta qualidade para livros a um preço econômico, e todas mento Literário do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, e Baile
essas obras tiveram de ser ilustradas em uma cor. À Biblioteca das Quatro Artes, de Mário de Andrade. Entre os seguintes,
Histórica Brasileira adquiriu tamanha importância que o Ins- destacam-se A Poesia Afro-brasiletra, de Roger Bastide (tam-
tituto Nacional do Livro publicou, em sua Revista do Livro, bém de 1943), Mar de Sargaços (1944) e Portulano (1945),
um catálogo e índice completo da coleção”. Os volumes dessa de Afonso Arinos de Melo Franco Sobrinho, e Brigada Li-
coleção, suspensa no início da década de 1960, foram reedi- geira, de Antonio Candido (também de 1945). Esses livros
tados, nos anos de 1980, pela Itatiaia, de Belo Horizonte. A não tiveram boa vendagem; além do pequeno público para
Martins produziu também uma Biblioteca Histórica Paulista, livros de crítica, as livrarias não demonstraram muito entu-
sob a supervisão editorial de Afonso d'Escragnolle Taunay. siasmo pela coleção devido ao pequeno tamanho dos livros
Durante seu primeiro ano como editor, José Martins (e, consequentemente, baixo preço), de sorte que a coleção
publicou, entre outras obras, o ainda clássico Memórias de foi interrompida no número doze. No entanto, àquela al-
um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida tura, Martins considerou ter atingido seu objetivo, que era
($66), com vinte e duas ilustrações de F. Acquarone, lançado vincular à nova editora nomes de autores importantes.
a 208000, e Iracema, de José de Alencar ($62), com doze Mais ou menos na mesma época, encarregou Edgard Ca-
ilustrações de Anita Malfarti, por 158000, ambos na cole- valheiro da preparação de duas coletâneas de contos, uma
ção Biblioteca de Literatura Brasileira (disponíveis, também, de escritores brasileiros e outra de estrangeiros. Esta última,
em edições limitadas de duzentos exemplares, vendidos a embora se tenha restringido a autores mortos e tenha sido
408000). Entre as obras de autores brasileiros contemporá- forçada a excluir (devido à extensão ou a problemas de direi-
neos, podemos citar Fagundes Varela, de Edgard Cavalheiro, tos autorais reservados) Dostoiévski, Flaubert, Brett Harte,
ilustrado por Belmonte, lançado a r5$000, e Anquinhas e Hawthorne, O. Henry, Kipling, Poe e Mark Twain, entre ou-
Bernardas, de Mário Sette, ilustrado por Nestor Silva, por tros, foi um sucesso total para os padrões da época: sua pri-
10$000. Entre as traduções, destacam-se Frédéric 11, de Pier- meira edição de 2 500 exemplares vendeu-se em vinte dias.
re Gaxotte, obra de 1938, traduzida por Eurípedes Simões Pouco depois, a Martins estendeu sua atividade a novo
de Paula (208000), e a tradução (8$000), por A. C. Couto de campo, com sua Biblioteca de Ciências Sociais. À coleção
Barros, de Histoire économique contemporaine, de Laurent era formada principalmente por traduções de clássicos, sob
Dechesne, obra de 1936. a supervisão editorial de Donald Pierson, antropólogo social
Não podemos esquecer a muito bem-sucedida coleção norte-americano que, na época, era o diretor da Escola de
Biblioteca do Pensamento Vivo, uma série de antologias crí- Sociologia e Política da Universidade de São Paulo. Não obs-
ticas de autores como Rousseau (organizada por Romain tante, a sociologia era uma área perigosa sob um regime que
Rolland e traduzida por João Cruz Costa), Montaigne (de a via como uma forma de positivismo, praticamente sinôni-
autoria de André Gide), Voltaire (organizada por Maurois ma de socialismo, e que, em 1939, havia suspendido todos
e traduzida por Lívio Teixeira), Darwin (na organização os estudos sociológicos na Universidade do Distrito Federal.
de Julian Huxley), Schopenhauer (obra de Thomas Mann),
Emerson (organizada por Edward Lee Masters e traduzida
por Ida Goldstein) e Nietzsche (por Heinrich Mann); para os RELAÇÕES COM O ESTADO NOVO $r58
críticos da época, essas traduções eram muito superiores às
perpetradas normalmente por editores brasileiros. Em 1943, Em novembro de 1943, a Martins lançou uma edição das
foi iniciada a Coleção Mosaico, constituída de obras con- Lyras, do poeta da Inconfidência Mineira, Tomás Antônio
temporâncas brasileiras, em sua maioria de crítica literária, Gonzaga, antecedida por um prefácio do organizador, Afon-
em volumes finos e pequeno formato (17 cm de altura). Os so Arinos de Melo Franco Sobrinho, em que enfatizava o
significado do “destemido Cririlo [pseudônimo político de
6. Revista do Livro, 2º série, vol. 12,0. 37, Pp. I51-164, 1969. Gonzaga] e seus decassilabos de fogo, ainda hoje capazes
ss6 José de Barros Martins José de Barros Martins 557

de flagelar um governo incompetente e opressor”. A Mar- Portuguesa (1939-1944), de Laudelino de Oliveira Freire,
tins voltaria a reeditar a poesia de Gonzaga, em fevereiro de em cinco volumes, e Perto do Coração Selvagem (1944), de
1966, aparentemente com propósitos semelhantes. autoria de uma jovem de 18 anos, Clarice Lispector. Este
No ano seguinte (1944), a empresa lançou uma nova romance introspectivo, original tanto na ideia como no es-
edição de Urupês, num momento em que Monteiro Loba- tilo, marca importante fase no desenvolvimento da ficção
to, encarcerado pelo regime, se tornara “o cidadão que não brasileira moderna, Após a queda de Vargas, em outubro de
se submete, e o intelectual que não se corrompe”, símbolo 1945, a Editora “A Noite” foi dirigida, até 1950, por Ado-
do antigetulismo. nias Filho e, depois, até 1957, por Cassiano Ricardo (antigo
Para um editor que iniciava seu negócio sob o Estado chefe da agência paulista do D1P). Entre os lançamentos do
Novo, o programa de José de Barros Martins talvez fosse período em que esteve sob a direção de Adonias e de Cassia-
notável mais pelo que não continha. Sua inabalável recusa no, destacam-se o terceiro romance de Clarice Lispector, A
em publicar o que quer que fosse favorável ao regime, ou Cidade Sitiada (1948) — a Agir, como já dissemos ($149), ti-
à sua filosofia, era rotulada de “subversiva” tanto quanto nha publicado seu segundo romance; Repouso, de Cornélio
poderia ter sido a publicação de material contrário a ele. E Penna (1949); Bota de Sete Léguas (1951), de José Lins do
não havia dúvida quanto aos riscos envolvidos: quando O Rego; Retrato de Machado de Assis (1952), de José Maria Bel-
Estado de 8. Paulo, jornal conservador, adotou uma linha lo; a coletânea de contos A Vida Real (1952), de Fernando
por demais independente, o governo simplesmente o ocu- Sabino; a obra pioneira da nova crítica, Correntes Cruzadas
pou (23 de março de 1940), sob o pretexto da existência de (1953), de Afrânio Coutinho; Economia Brasileira (1954),
um depósito de armas escondido em seu prédio! A família de Celso Furtado, e uma coleção de romances estrangeiros
Mesquita só conseguiu recuperar a propriedade em 6 de de- traduzidos, entre os quais o clássico inglês de 1896, Judas,
zembro de 1945, pouco depois da queda do ditador. Mesmo o Obscuro, de Thomas Hardy. No final da década de 1960,
assim, Martins não teve receio de publicar textos do chefe sob direção inteiramente diferente, a Editora “A Noite”
da família, Júlio de Mesquita Filho, que fugira para Buenos especializou-se em ciência militar, educação e direito.
Aires em novembro de 1938. Embora Martins tenha-se livrado da intervenção do gover-
Entre os bens que o especulador financeiro francês Paul no, seus negócios sofreram contínuas interferências indiretas.
de Leuze tinha no Brasil e foram expropriados pelo governo, À escassez de papel causada pela guerra dava ao governo uma
em dezembro de 1939, estava o jornal carioca A Noite, que ótima cobertura para suas tentativas de prejudicar a empre-
incluía uma subsidiária, a editora de livros”. Irineu Mari- sa mediante a retenção de seu suprimento. Exatamente assim
nho, que tinha fundado o jornal em julho de 1911 e fora seu foram frustrados os planos de Martins, em 1942, de publicar
proprietário até 1929, havia publicado um ou outro livro uma “grande coleção de literatura estrangeira”, com autores
($94), mas a subsidiária como tal data de 1936. Da pro- como Thomas Mann, Robert Graves, D. H. Lawrence, John
dução de seu primeiro ano, podemos citar Sol das Almas, Galsworthy e William Faulkner. É verdade que a provisão
de Martins Fontes, Vida de Santos Dumont, de Ophelia e disponível de papel era distribuída equitativamente, mas a in-
Narbal Fontes, Fuga e Outros Contos, de Raimundo Maga- dústria teria problemas com certeza, embora seja difícil quan-
lhães Júnior, e Aspectos do Brasil, de Celso Vieira. Durante tificar a escassez por absoluta falta de dados. Os números de
ju
o período de controle oficial, tudo o que publicou no campo que dispomos são muito incompletos por serem tabulados e,
da política ou das questões sociais é, claramente, suspeito mesmo quando se distingue o papel de imprensa daquele des-
de ter sido inspirado pelo governo; porém, a editora con- tinado a outros fins, normalmente não é declarada a distinção
tinuou a publicar textos isentos de controvérsia em outras entre papel para jornais e papel para livros. Não há dúvida
áreas, como o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua de que as importações caíram drasticamente em 1942, ano
em que chegaram ao Brasil 24 153 toneladas de papel para
7. Cf. Karl Loewenstein, Brazil under Vargas, Nova York, Macmillan, imprensa — das quais apenas 783 para livros - em compa-
1942, Pp. 321-324. ração com as 47 733 toneladas (1848 para livros) do ano
558 José de Barros Martins José de Barros Martins 559

anterior. Para compensar essa falta, aumentou-se a produção condições se tornavam mais favoráveis. À revista crítica e bi-
nacional de papel, que subiu de 197 318 toneladas de todos bliográfica Leitura, que começou a circular em dezembro de
os tipos de papel, em 1942, para 229004, em 1943; contudo, 1942, fundou sua editora, de mesmo nome, responsável pelo
dessas quantidades apenas 16 197 e 18881 toncladas, respec- lançamento de obras de interesse afro-brasileiro (Zumbi dos
tivamente, eram de papel de impressão. E, depois, a produção Palmares, de Leda Maria de Albuquerque, A Atualidade de
voltou a cair para 151 mil toneladas, em 1944, presumivel- Nina Rodrigues, de Augusto Lins e Silva), da trágica Vida
mente por falta de matéria-prima: as importações de polpa de Miguel Angelo, de Romain Rolland, de A Voragem, do
haviam caído de 79 926 toneladas em 1941, para 41 566, em colombiano José Eustasio Rivera, uma denúncia ficcional
1942. Os custos também subiram, uma vez que as importa- contra o comércio de borracha do Amazonas, e de traduções
ções tanto de polpa como de papel passaram a ser feitas de de Agnes Smedley, desde seus textos sobre a miséria provo-
fontes norte-americanas, por um preço mais alto do que o cada pela pobreza na zona rural de Wisconsin até os relatos
cobrado pelos produtores da Europa. Já em 1940, os Estados da resistência do Exército Vermelho de Mao Tsé-Tung aos
Unidos e o Canadá supriam o Brasil com 54,4% da polpa e japoneses. À revista Leitura cerrou suas portas em 1968, mas
63,1% do papel importado. Em 1943, essas porcentagens ha- a editora ainda existia em 1975, ano em que publicou a His-
viam subido para 97,1% e 89,6%, respectivamente, Quando tória das Lutas do Povo Brasileiro, de José Barboza Mello.
retornou a possibilidade de livre escolha, o Brasil demonstrou A Editorial Calvino já existia pelo menos desde 1932, com o
sua preferência de modo decisivo: em 1946, apenas 10,5% nome de Calvino Filho. Em 1943, publicou algumas séries,
de suas importações de polpa ainda provinham da América como a Coleção de Estudos Sociais (em que foi publicada, por
do Norte. exemplo, Lenine, de D. S. Mirski), A Verdade sobre a Rússia
O primeiro conflito aberto da Martins com as autori- (com, por exemplo, O Cristianismo e a Nova Ordem So-
dades aconteceu em 1941, quando resolveu publicar o ABC cial, de Hewlett Johnson, o Deão “vermelho” de Canterbury,
de Castro Alves. À obra era de um autor proscrito, Jorge Missão em Moscou, do antigo embaixador norte-americano
Amado, e, assim, a edição foi totalmente apreendida. Mar- Joseph Davies, Stalin, de Emil Ludwig, Dez Dias que Aba-
tins apelou imediatamente ao censor, insistindo na afirmação laram o Mundo, de John Reed) e Luta pela Liberdade (com
de que o livro constituía um trabalho de pura crítica literá- obras como A China Luta pela Liberdade, de Ana Louise
ria, sem nada de politicamente censurável além do nome do Strong). Em 1944, a Calvino acrescentou a seu catálogo o
autor. Em agosto, o censor cedeu e permitiu a liberação do Anti-Dithring, de Engels e, em 1945, URSS: Uma Nova Civi-
ABC, mediante o compromisso de Martins de que o livro não lização, de Sydney e Beatrice Webb, época em que se revelou
seria resenhado, nem mencionado em propaganda alguma, ser o órgão da seção carioca do Partido Comunista. À Edi-
nem exposto em qualquer vitrine. Apesar dessas precauções, torial Vitória ($145), fundada em 1944, que começou com a
a obra vendeu bem, Agradecido, Jorge Amado, que, pouco publicação de romances de autores nacionais e estrangeiros,
depois de ter entregue os originais, se exilara voluntariamen- considerou seguro, no ano seguinte, mudar sua linha para
te na Argentina, cedeu à Martins os direitos de publicação história e teorias marxistas e, então, não muito depois da
de suas obras anteriores, que a editora teve a temeridade de queda de Getúlio Vargas, tornou-se o principal editor do Par-
começar a reeditar em tiragens de quinze mil exemplares. tido Comunista, tomando esse papel das Edições Horizonte
A reversão da política externa do governo, com o fim de (fundada no início de 1943). À Vitória publicou a coleção
sua neutralidade pró-Eixo em janeiro de 1942, e a entrada proletária Romances do Povo (sob a supervisão editorial de
na guerra, em agosto, ao lado dos Estados Unidos e da União Jorge Amado) e outros livros semelhantes de ficção, como,
Soviética, comprometeu fatalmente sua posição interna, e por exemplo, A Hora Próxima (1955), de Alina Paim; Linha
daí em diante seu controle foi diminuindo gradualmente. do Parque (1962), de Dalcídio Jurandir; A Situação Política e
Apareceram muitas editoras cuja orientação esquerdista, a Luta por um Governo Nacionalista e Democrático (1960),
frequentemente uma clara ligação com o Partido Comunista de Luís Carlos Prestes; Formação do pcs (1962), de Astro-
Brasileiro, foi aos poucos sendo revelada, à medida que as jildo Pereira, obras sobre leis trabalhistas e cooperativas,
s6o José de Barros Martins José de Barros Martins

publicações oficiais do próprio partido e ainda Problemas Por trinta e dois anos, a Martins continuou sendo a edi-
Brasileiros de Educação (1959), de Pascoal Leme, Brasil, tora brasileira exclusiva de Jorge Amado, exceção feita a
Século Vinte (1960), de Rui Facó, e Minha Experiência em três títulos, O Mundo da Paz, O Cavaleiro da Esperança e
Brasília (1961), de Oscar Niemeyer. As atividades da Vitória A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. O primeiro,
foram encerradas, abruptamente, pelo golpe militar de 1964. um livro de viagem, de 1951, um elogio da vida nos países
A Editora Germinal sobreviveu e publicou o anarquista José comunistas, não foi incluído entre suas obras completas.
Oiticica na década de 1970. Quanto ao segundo, a Vitória publicou sua segunda edição
e, como dissemos, as edições subsequentes. À terceira obra,
em contraste completo, apareceu, em 1962, numa edição de
$r59 JORGE AMADO luxo da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil.
Jorge Amado tem sido o maior sucesso de vendas entre
Nem mesmo esse abrandamento pós-1942 foi suficiente para os autores de literatura brasileira, e as tiragens de seus livros
permitir a publicação do livro seguinte de Jorge Amado, O aumentaram ano após ano. À primeira edição de Gabriela,
Cavaleiro da Esperança, uma biografia romanceada do líder Cravo e Canela, de agosto de 1958, teve seus vinte mil exem-
comunista Luís Carlos Prestes, já lançada em Buenos Aires plares vendidos em duas semanas e, em meados de 1961, a
em 1942 (somente após o fim do Estado Novo é que seria obra já tinha chegado à vigésima edição, num total de r6o
editado em português pela Vitória). No entanto, a Martins mil exemplares. Em meados da década de 1960, a Martins
havia lançado, em princípios de 1942, Brandão entre o Mar podia planejar com segurança tiragens iniciais de 75 mil
e o Amor, romance escrito em conjunto por Jorge Amado, exemplares para qualquer novo livro de Jorge Amado. Sua
Graciliano Ramos, Aníbal Machado, José Lins do Rego e Tenda dos Milagres, em janeiro de 1969, tornou-se o primei-
Rachel de Queiroz, depois de sua publicação como folhetim ro romance brasileiro a alcançar a cifra de cem mil exem-
(março de 1940). Em seguida, publicou os dois romances se- plares em sua primeira edição. No caso de Teresa Batista
guintes de Jorge Amado: Terras do Sem Fim, sobre a “corrida Cansada de Guerra (dezembro de 1972), a primeira edição,
do ouro” pelo cacau de Ilhéus em 1890 (numa tiragem de dez também com tiragem de cem mil exemplares, esgotou-se em
mil exemplares, em 1943, seguidos quase que imediatamente menos de dois meses; em fevereiro, foi providenciada rapi-
de uma reedição de vinte mil exemplares), e São Jorge dos damente uma reimpressão de mais cinquenta mil; e, no final
Hhéus (vinte mil exemplares, em dezembro de 1944). do ano, suas vendas mundiais já haviam chegado a meio
Uma viagem de Blanche Knopf pela América Latina, em milhão de cópias. Esses sucessivos recordes são um reflexo,
1942, colocou Jorge Amado em contato com a editora do em parte, do crescimento geral do mercado. É possível que
casal, Alfred A. Knopf, de Nova York, donde resultou a pu- constituam, também, um caso de sucesso produzindo suces-
blicação, em 1945, de The Violent Land, tradução de Samuel so. Não se pode deixar de lado, igualmente, o fato de que
Putnam de Terras do Sem Fim, segundo romance de Amado Jorge Amado manteve o poder de atração característico do
a aparecer em inglês. Quanto ao autor, tão logo retornou da estilo da ficção dos anos de 1930, enquanto muitos outros
Argentina, em setembro de 1942, foi preso imediatamente romancistas brasileiros tenderam para a introspecção e para
em Porto Alegre, sendo libertado somente com a condição o cultivo de um público leitor minoritário. Ao lado disso,
de que não saísse de seu estado natal, a Bahia. Com o fim do porém, é muito grande a probabilidade de que o poder de
Estado Novo, foi eleito deputado federal, mandato que cum- atração de Jorge Amado tenha crescido na proporção direta
priu apenas até 1948. Nesse ano, o governo de Dutra voltou da passagem de seus romances do protesto social para a se-
a colocar o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade e xualidade irreverente: aquilo que o Publishers Weekly cha-
cassou os mandatos de seus representantes no Congresso. mou de “relatos rabelaisianos de tolas intrigas de vilarejo”S,
Entre estes estavam Jorge Amado, que a seguir empreendeu
uma longa viagem pelos países da Europa Oriental, e Caio 8. Herbert R. Lottman, “Brazil - A Long Way to Go”, Publishers
Prado Júnior, da Brasiliense, que foi encarcerado. Weekly, vol. 218,n. 21, pp. 20-33, 21 nov. r98o.
s62 José de Barros Martins José de Barros Martins 563

Não que o objetivo social tenha sido posto de lado; é, antes, autores modernos brasileiros, publicadas por outras casas,
que Jorge Amado já não usa o sexo apenas para efeito de como, por exemplo, Graciliano Ramos, pela Peter Owen, de
choque, mas integra-o inteiramente em sua sátira social e, Londres. Versões inglesas de autores anteriores foram lan-
mais ainda, converte-o num elemento cômico, mais do que çadas, em grande parte, por editoras universitárias norte-
erótico, de sua narrativa. -americanas, apesar do sucesso da Knopf com a publicação
Essa avaliação é corroborada pelo relativo fracasso, em de Rebellion in the Backlands, a tradução de Samuel Putnam
maio de 1954, da trilogia Subterrâneos da Liberdade, sua para Os Sertões, de Euclides da Cunha: os 4 926 exemplares
obra mais comprometida socialmente e a que menos con- da edição em capa dura esgotaram-se em 1963, € as vendas da
tém humor ou sexo, € a que de longe teve as piores vendas. edição em pocket, de 1957, chegaram, em 1980, a vinte
Contudo, Farda, Fardão, Camisola de Dormir (1980), com e cinco mil cópias. À reimpressão de outras traduções da
o qual volta à temática política (e ao mesmo ambiente do Knopf em livro de bolso foi assumida pela Avon/Bard, cujo
Estado Novo), vendeu tão bem quanto seus romances sexy: diretor, Bob Wyatt, “descobriu” outros autoresº. O resultado
pré-venda de 120 mil exemplares e mais cinquenta mil no foi muito variado. Apple in the Dark, de Clarice Lispector
dia do lançamento, (1967), e The Girl in the Photograph, de Lygia Fagundes
O início da década de 1950, cuja maior parte ele passou Telles, quase passaram despercebidos, mas Emperor of the
no exterior, não foram, porém, seus melhores anos, e pouca Amazon, de Márcio Souza, vendeu 290 mil exemplares. Ne-
coisa produziu digna de nota entre Seara Vermelha, de 1945, nhum autor brasileiro alcançou as vendas de Jorge Amado,
e Gabriela, Cravo e Canela, de 1959, ano anterior ao de sua ainda que, vinte anos mais tarde, parte de sua obra ainda
eleição para a Academia Brasileira de Letras. não estivesse traduzida: O País do Carnaval e Cacau, por
Depois de The Violent Land (1945), sua editora america- exemplo. Em fins de 1982, nove títulos de Jorge Amado ti-
na não publicou qualquer outra tradução até 1962, sem dú- nham sido publicados pela Avon/Bard, em brochura, e dois
vida impedida pelo fator inibidor do macarthismo. Depois pela Knopf, com capa dura. Em 1984, a Avon começou a
disso, a Knopf agiu de maneira amplamente compensadora: lançar novas traduções, como as de Jubiabá, Mar Morto e
pagou Us$300 000 pelos direitos de Gabriela, Clove and Capitães de Areia.
Cinnamon; veio a ser o primeiro romance latino-americano
a entrar nas listas americanas de best-sellers e o primeiro a
ser escolhido pelo Book of the Month Club, o clube de livro OUTRAS PUBLICAÇÕES $160
norte-americano mais conhecido. Suas vendas chegaram a
65 mil exemplares em fins de 1982. Seguiram-se Os Velhos Os lucros constantes obtidos com sua longa associação com
Marinheiros, em duas partes: Home is the Sailor (1964), na Jorge Amado devem ter sido de grande importância para a
tradução de Harriet de Onís, e The Tivo Deaths of Quincas política editorial da Martins, porque, sem eles, é duvidoso que
Wateryell (1965), traduzido por Barbara Shelby. Pastores pudesse ter enfrentado o risco de especializar-se em literatu-
da Noite (1964) tornou-se Shepherds of the Night (1967) ra nacional na medida em que o fez. Martins, Trinta Anos, o
e Dona Flor e seus Dois Maridos recebeu o título de Dona volume comemorativo publicado em 1967, mostra que, em
Elor and Her Two Husbands (1967), ambos traduzidos por fins de 1966, a editora já tinha publicado mil e cem títulos,
Oniís. Tenda dos Milagres (1969) foi traduzido por Barbara 90% dos quais eram de autores nacionais. Entre essas edições,
Shelby com o título de Tent of Miracles, em 1971. constam reedições de importantes figuras do passado, como
O êxito alcançado com Jorge Amado estimulou a Knopf Matias Aires, José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida,
a tentar outros autores brasileiros: Gilberto Freyre, Graci- Castro Alves, Aluísio Azevedo, Bernardo Guimarães, Joaquim
liano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Antonio Manoel de Macedo, Taunay e Franklin Távora. Em muitos
Callado, Autran Dourado, Clarice Lispector, José Mauro
de Vasconcelos, num total de 22 títulos lançados em 1969. 9. Juana Ponce de León, “Brazilian Authors, American Readers”, Pu-
Foram feitas algumas outras traduções para o inglês de blishers Weekly, 25 nov. 1988, p. 26.
564 José de Barros Martins José de Barros Martins 565

desses casos, Martins tinha comprado os direitos da Briguiet Num tempo em que, com exceção de José Olympio, a regra
(486). Entre os contemporâneos, editou o economista Hum- era confiar a capa ao primeiro desenhista comercial à mão,
berto Bastos e os escritores Guilherme de Almeida, Mário de Martins escolhia, invariavelmente, artistas genuínos como
Andrade, Paulo Bonfim, Lasinha Luís Carlos, Raimundo de Darcy Penteado e Clóvis Graciano. É significativo que o vo-
Menezes, Josué Montello, Menotti del Picchia, Graciliano lume comemorativo de 1967 contenha toda uma seção dedi-
Ramos (a partir de 1961), Marques Rebelo, Lygia Fagundes cada a esboços biográficos de seus ilustradores, com repro-
Telles, Luís Viana Filho e José Geraldo Vieira. Para exempli- duções do trabalho que realizaram para a editora. Dez anos
ficar sua escolha de autores estrangeiros, podemos relacionar antes, numa comemoração pelo vigésimo aniversário da
aqueles de quem publicou três ou mais títulos: Balzac, Louis firma, um dos oradores (Soares de Mello) declarou que fora
Bromfield, Dostoiévski, Dumas pai, Knut Hamsun, Maupas- o “alto cunho artístico e técnico” dos livros da Martins que
sant, Pirandello e Shakespeare, muitos deles em volumes da tinham ajudado a trazer para ela autores do calibre de José
Coleção Excelsior. E isso sem incluir livros para crianças, de Geraldo Vieira, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida
que a Martins publicou um número considerável. e Marques Rebelo!". Exemplo notável dessa preocupação
Outras edições que merecem especial menção: a História estética com seus livros foi a contratação do pintor Aldemir
Universal, em sete volumes, de Veit Valentin, Ler e Saber Martins como capista, especialmente para os romances de
(enciclopédia juvenil em doze volumes) e um Decameron Jorge Amado. No início da década de 1970, Aldemir recebia
integral, ilustrado por Gino Bocasili e traduzido por Raul dois mil cruzeiros (Us$400) por desenho, quando a maior
de Polilo. Em 1962, um meritório esforço para publicar a parte dos capistas ganhavam entre 250 e mil cruzeiros, o
Enciclopédia da Civilização e da Arte, de B. M. Ugolorti, em normal estando por volta de Cr$400,00. De fato, é chocante
tradução de Sérgio Milliet, foi frustrado em virtude da limi- o contraste entre seu trabalho e as capas dos livros de Ama-
tação do público e, ao mesmo tempo, dos efeitos da infla- do editados pela Distribuidora Record!
ção, que o forçaram a reduzir a tiragem dos últimos volu-
mes abaixo do mínimo econômico. Quando o trabalho foi
abandonado, no oitavo dos doze volumes programados, o A LIQUIDAÇÃO fr6z
custo de produção de cada volume aproximava-se daquele
previsto originariamente para toda a coleção! O papel de um editor literário, especialmente se visa a um
padrão consistentemente alto e à concentração de sua pro-
dução em autores nacionais, não é fácil, mesmo quando seu
$161 A ESTÉTICA DO TRABALHO GRÁFICO catálogo inclui um Jorge Amado. Por isso, a Martins deve ter
sido tentada, muitas vezes, a expandir-se para outros cam-
Os livros editados por Martins sempre testemunharam seu pos mais remuneradores. Uma simples comparação basta
bom gosto que, como sugere Mário da Silva Brito, foi for- para ilustrar como deve ter sido forte essa tentação. Os mil e
mado nos dias em que vendia edições de luxo importadas cem títulos publicados pela Martins em seus primeiros trinta
de Paris. Desde seus primeiros tempos como editor, ele e seu anos somaram cinco milhões de exemplares: um pouco me-
produtor gráfico, Frederico José da Silva Ramos, demonstra- nos do que a Editora Nacional vendia quase todos os anos,
vam enorme cuidado na escolha dos tipos, na diagramação desde o início da década de 1950. O fato de José de Barros
e (na medida em que as restrições do tempo da guerra per- Martins haver resistido quase sozinho entre os editores bra-
mitiam) no papel. Mário da Silva Brito conta como o ouviu sileiros a essa tentação aumenta a dívida que a literatura
lamentar-se um dia: “Ah! Se eu pudesse editar Os Sertões! nacional tem para com ele.
Faria uma beleza de edição com ilustrações de Portinari!
Uma edição que Euclides nunca teve e que tanto merecia!”:º
11.ºImagino o que Terá Sido a Sua Luta nesses Vinte Anos”, Boletim
10. Mário da Silva Brito, op. cit. Bibliográfico Brasileiro, vol. s, nm. 6, p. 296, nov.-dez. 1957.
566 José de Barros Martins

Em 1972, porém, até mesmo ele estava sendo obrigado


a diversificar, embora a ficção ainda representasse mais de
70% de seu catálogo. Quando estourou a crise de 1973-1975
(cf. $$152, 179), esse número de 70% mostrou-se alto demais,
particularmente porque o editor também tinha-se envolvido
profundamente nas vendas em prestações (cf. $$152, 164).
Martins promoveu, voluntariamente, a liquidação de sua
companhia, em 1974, mas procurou manter-se no ramo me-
diante uma negociação com a Distribuidora Record dos con-
tratos de publicação mais valiosos que possuía (inclusive os
de Jorge Amado e Graciliano Ramos), reservando-se, porém,
direitos de 5% sobre eles, até que novas edições fossem ne-
cessárias e os autores ou detentores dos direitos assinassem
novos contratos com a Record.
Durante esse período, a firma teve dificuldades para pa-
gar os direitos de seus autores, entre eles, parece, Jorge Ama-
do. Presume-se que isso explique a amargura que surgiu nas
relações entre o autor e o editor, demonstrada na omissão Ze
do nome de Martins no tributo que, alguns anos mais tarde, ECON TRE
Jorge Amado prestou a seus editores.
Martins manteve alguns poucos de seus direitos de publica-
ção, entre eles os de Mário de Andrade. Continuou a publicar
Aluísio Azevedo, cujos direitos adquiriu da Briguiet-Garnier
na década de 1940 — apesar de as obras desse autor já terem
caído em domínio público. E ainda mantinha a Biblioteca
Histórica Brasileira, Por outro lado, pelo menos um im-
portante ficcionista, Marques Rebelo, continuou esgotado
e, portanto, inacessível desde a liquidação da empresa até
1984, quando a Nova Fronteira começou a reeditá-lo. Esse
esforço para continuar sua atividade em escala reduzida du-
rou pouco tempo, e o editor morreu em agosto de 1992, sem
nunca se restabelecer. Sem embargo, a sua Livraria Martins
Editora teve a glória de ter conseguido, por três décadas,
uma importância na literatura brasileira apenas igualada
pela José Olympio e por Ênio Silveira, para quem voltare-
mos agora nossa atenção.
Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.

Lema da Civilização Brasileira

A DÉCADA DE 1950 $163

O rápido crescimento da indústria editorial brasileira, oca-


sionado pelo surto de leitura durante a guerra ($1$3), não
subsistiu por muito tempo após a assinatura da paz. Em
1947, já havia virtualmente chegado ao fim, e os empresá-
rios do ramo estavam certos de que o desastre os estava ron-
dando. A “crise” foi assunto durante vários anos. Examinan-
do os arquivos da imprensa sobre o setor, chega-se a indagar
se, em algum momento, essa “crise” deixou de ser assunto.
O ramo livreiro não apenas havia quase estagnado (em tor-
no de vinte milhões de exemplares por ano, cf. tabela 22,
p. 885), como também a competição tornou-se mais dura,
na medida em que cada editora, agora em maior número (cf.
tabela 20, p. 881), procurava manter sua parcela desse limi-
tado mercado, reduzindo, assim, a tiragem média de cada
edição. Segundo Nelson Travassos", em 1948, livros que,
alguns anos antes, teriam facilmente alcançado os seis mil
exemplares, eram agora produzidos em tiragens de apenas
quatro mil cópias, com implicações óbvias para as margens
de lucro da indústria.
A queda de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945,
fora precedida pela extinção do Dir, em março do mesmo
ano, € com isso cessava o permanente envolvimento das
autoridades federais com a censura. Desde fevereiro, fora
desativada a censura prévia. No que concerne ao comércio

1. Nelson de Palma Travassos, Livro sobre Livros, São Paulo, Huci-


tec, 1978, p. 215.
570 Enio Silveira Ênio Silveira 571

de livros, pouca coisa mais mudou. À apreensão de publica- no controle de matéria pornográfica e de tendência esquer-
ções indesejáveis continuou sendo feita no plano estadual, dista. Somente em 1983 é que a Editora Moracs pôde lan-
como a ocorrida, na Bahia, quando foram confiscados dois çar uma nova edição de Minha Luta em português. Pode-se
mil exemplares de Zé Brasil (1948), de autoria de Monteiro notar o quanto as coisas mudaram nos anos de r980 pelo
Lobato, um folheto de 28 páginas, publicado pela Edito- surgimento, em Porto Alegre, da Editora Revisão, fundada,
ra Vitória, de “poesia popular sobre o homem comum”*, A em 1987, por Sigfried Ellwanger. Em 1990, Jair Krischke,
legalidade do Partido Comunista Brasileiro, decretada pela dirigente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, so-
nova constituição, não durou mais do que três anos, € Jor- licitou a apreensão de treze títulos da editora, entre eles Ho-
ge Amado, na época proeminente deputado do pcs, teve de locausto, do próprio Ellwanger, por afirmar que essa suposta
exilar-se, novamente, no exterior para evitar um processo tragédia não passara de “uma trama do judaísmo interna-
por sedição. Caio Prado Júnior, na mesma situação, foi en- cional contra a Alemanha”; Hitler: Culpado ou Inocente, do
carcerado. Fica-se a imaginar se, em tal clima, a filiação de militar Sérgio de Oliveira, em que se negava a morte de mais
Graciliano Ramos ao Partido (e sua visita à Europa Orien- de seiscentos mil judeus na Segunda Guerra; Acabou o Gás,
tal, em 1952) não terá sido um dos motivos que levaram a de Fred Leuchter Júnior, que negava o uso de câmaras de
José Olympio a deixar seus livros sem reedições após sua gás nos campos de concentração; e reimpressões de O Judeu
morte ($149). Nos primeiros anos da década de 1950, bem Internacional, de Henry Ford, e de Brasil: Colônia de Ban-
como durante algum tempo após a repentina renúncia do queiros, de Gustavo Barroso. No entanto, a Revisão obteve
presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, o frequente da Justiça, em agosto de 1991, autorização para vendê-los,
recurso ao estado de sítio, à maneira de Bernardes, significou em nome da liberdade de opinião, obrigando a prefeitura a
a repetida reintrodução, ainda que intermitente, da censura indenizar a editora pelos danos causados com a apreensão
no plano nacional. Mesmo quando, em 1953, foi finalmente desses “clássicos do antissemitismo”.
revogada a lei n. 38, de abril de 1933 ($144), a nova legis- Economicamente, a restauração da democracia, em 1945,
lação (decreto n. 2 083, de 12 de novembro de 1953), que pouco representou como apoio à atividade editorial. À taxa
vigorou até 1967, repetia quase textualmente os termos da de câmbio continuou fixada ao nível de 18$500 por dólar,
antiga lei. Mais importante do que isso é talvez o fato de que como fora estabelecida em 1939, quase impedindo que os
existia, e sempre continuou a existir, a aceitação implícita da livros brasileiros enfrentassem a concorrência estrangeira. Já
interferência administrativa na disseminação da informação em 1945, nível interno dos preços de livros no Brasil havia
e da opinião como se fosse uma coisa normal no governo da aumentado 80% em relação aos importados e os custos grá-
sociedade. Por maior que seja a amplitude dada às frontei- ficos haviam subido 120% em comparação com os de 1939.
ras da liberdade, a mentalidade legal brasileira admite, auto- Em 1948, os linotipistas ganhavam doze cruzeiros por hora,
maticamente, a necessidade da definição de algumas dessas quando, em 1939, o salário/hora era de 48000, € mesmo
fronteiras por parte da autoridade. Um exemplo pertinente é nesse nível as gráficas especializadas em livros estavam per-
o da edição de Mein Kampf, de Hitler ($130), proscrita pelo dendo seus melhores operários para as oficinas dos jornais,
Estado Novo, quando o país ingressou na guerra ao lado que podiam pagar bem mais. O papel nacional (bouffant
dos Estados Unidos. Durante a República populista, essa inferior) era vendido a Cr$7,50 o quilo, contra Cr$4,00
proscrição persistiu, mesmo contra a importação para fins em 1943. Desse modo, as indústrias editoriais da Argentina
de estudo acadêmico. Com base na suposição de que suas e dos Estados Unidos podiam manter sua predominância
ideias são detestáveis a todos os setores da opinião pública no mercado brasileiro de livros técnicos e científicos, esta-
influente, a interdição continuou, não sendo alcançada pela belecida no início da guerra. Em 1947, possivelmente um
“abertura” de Figueiredo e pelo consequente afrouxamento quinto das necessidades brasileiras de livros era satisfeito
pelas importações, metade das quais (50,3%) provinha dos
2. Ronald H. Chilcote, Brazil and its Radical Left... 1922-1972, Estados Unidos ou da Argentina. Em abril de 1951,0 súbito
Milwood (nv), Kraus International, 1980, p. 25. aumento das tarifas postais argentinas, somado às crescen-
572 Ênio Silveira Ênio Silveira 573

tes dificuldades das editoras para obrer moedas “fortes” para outubro, porém (quando o dólar chegava a Cr$43,32), esse
pagar os direitos de tradução, tornou menos atraentes as im- dólar-livro foi reduzido para apenas sete cruzeiros! Um ar-
portações de Buenos Aires. Isso, porém, apenas acarretou tigo do Boletim Bibliográfico Brasileiro, que lamenta a de-
um aumento compensatório na importação dos produtos cisão de atualizar o sistema por meio de uma série de rápi-
da indústria editorial espanhola, que recomeçava a ganhar dos aumentos de preço, durante o ano de março de 1958
projeção (cf. tabela 21, p. 882). Também a França voltava a a fevereiro de 1959, parece dar a entender que essa taxa
exportar para o Brasil em quantidades maciças — de 53 374 absurdamente baixa prevalecera durante todo esse período,
kg de livros, em 1952, passou para 228650 kg, em 1953 o que, no entanto, é incoerente com a estimativa oficial da
(cf. tabela 15, p. 863). alfândega sobre as importações de livros. Mesmo esta, po-
Com uma taxa de câmbio tão artificial, pouco mais de rém, fornece cifras que vão de menos de um terço a pouco
um ano de paz foi suficiente para acabar com as reservas mais da metade do verdadeiro valor do dólar: pouco menos
de divisas do Brasil. Em vez de desvalorizar a moeda — e de Cr$19,00, em 1954, com o dólar real a Cr$62,52, su-
irritar os exportadores de café - o governo preferiu adotar bindo para Cr$33,00 em 1955, e para Cr$44,00 em 1956,
um sistema de licenças de importação. Depois de outubro quando o dólar real estava a Cr$75,14. Durante o período
de 1953, esse sistema foi substituído pelo de taxas múltiplas de atualização, a vantagem continuou apreciável: Cr$81,08,
de câmbio, mas, em ambos os sistemas, os livros estrangeiros em dezembro de 1958, com o mercado livre a Cr$131,00
recebiam tratamento preferencial. Era indiscutível a neces- e, no final, em fevereiro de 1959, quando o custo ainda se
sidade de importar livros técnicos (considerados essenciais encontrava apenas em Cr$113,00'.
para o desenvolvimento econômico), e, consequentemente, À importação de papel também era subsidiada em grau
os livros estrangeiros — todos os livros estrangeiros — acaba- menor, sendo que, no início, as taxas especiais eram aplica-
ram sendo beneficiados pelo que era, em essência, um sub- das apenas ao papel para jornal. De fato, em 1951,0 impos-
sídio cambial, subsídio tão grande que esses livros podiam to de importação sobre o papel para livros fora aumentado,
ser vendidos, no Brasil, pela metade do preço cobrado nos tornando-o mais alto do que o imposto sobre livros, e esse
países de origem! Isso não quer dizer que pudessem ser im- ônus continuou mesmo depois que foi instituído um dólar
portados livremente em qualquer circunstância: as licenças subsidiado para o papel para livros. Esse “dólar de papel de
de importação eram concedidas ou negadas segundo o arbí- imprensa” custava Cr$18,82 até março de 1958, quando su-
trio de conceitos burocráticos sobre a importância relativa biu para Cr$22,07, passando depois, sucessivamente, para
das diferentes categorias de livros - como no caso da livraria Cr$26,82 em dezembro de 1958, Cr$43,24 em fevereiro de
Nova Galeria de Arte ($153), que quase fechou as portas 1959, Cr$51,35 em dezembro de 1959, Cr$58,38 em fe-
depois de passar um ano inteiro sem receber qualquer auto- vereiro de 1960 e, finalmente, Cr$100,00, de dezembro de
rização de divisas para importar livros da França. 1960 até o fim da concessão, em julho de 1961 — quando
O resultado dessas políticas pode ser observado na tabe- então os custos do papel duplicaram e alcançaram o valor
la 22 (p. 885). À taxa de câmbio desfavorável no pós-guerra real do dólar, que era de Cr$200,00.
foi suficiente para exterminar, em apenas três anos, as inci- O efeito final dos impostos alfandegários e da taxa do
pientes exportações brasileiras de livros, enquanto as impor- dólar foi tornar mais barato, durante a maior parte da dé-
tações cresceram rapidamente para mil toneladas anuais. O cada de 1950, importar livros do que importar papel para
efeito do sistema de licenças de importação de 1951 foi um imprimi-los. E como os direitos de tradução deviam ser pa-
salto de 50% nas importações de livros, subindo para quase gos pela taxa cambial plena, também era muito mais barato
1500 toneladas, À seguir,o sistema de taxas múltiplas de câm- importar um livro estrangeiro em tradução publicada em
bio, estabelecido em 1953, elevou-as para duas mil toneladas.
Quando esse esquema foi introduzido em janeiro de 3. Cf. Peter S. Jennison e William H. Kurth, El Libro en América,
1953, O “dólar-livro” custava Cr$18,72, em comparação Washington (Dc), Pan American Union, 1960, p. 44, € Anuário de
com um valor no mercado livre de cerca de Cr$40; em Imprensa, Rádio e Televisão, n.21,p. 6, 1960/1961.
574 Ênio Silveira Ênio Silveira 575

Lisboa do que adquirir esses direitos e produzir uma ver- ponto de vista está expresso em um artigo de Warren Dean,
são brasileira, De fato, as autoridades tinham em tão pouca no qual se assinala que muitos títulos foram encomendados
conta as necessidades da indústria editorial nacional que, especificamente para serem incluídos neles. Nacionalistas
muitas vezes, editoras brasileiras que haviam negociado em brasileiros, como Nelson Werneck Sodré, criticaram acerba-
boa-fé direitos de tradução tiveram recusada a permissão, pe- mente a exportação subsidiada de manuais como uma forma
los agentes oficiais do controle cambial, para efetuar o paga- de dumping. E houve críticas até mesmo da parte de uma das
mento. O resultado inevitável foi que a maior parte das edito- figuras mais expressivas do setor editorial dos Estados Uni-
ras estrangeiras passou a vender os direitos de tradução para dos, Curtis Benjamin, antigo presidente da McGraw-Hill.
a língua portuguesa apenas a editoras de Lisboa ou do Porto. No seu entender, as implicações propagandísticas de todas
Ainda pior foi o hábito de certas editoras técnicas da Es- as atividades da Usia, entre elas o programa editorial, foram
panha e da América espanhola de comprar os direitos de contraproducentes. Seria preferível uma abordagem mais su-
tradução para o castelhano e o português juntos, para evitar til, mais consentânea com a linha de ação do British Council
a possibilidade de uma versão neste idioma, visando a obri- (conhecido no Brasil como o “Conselho Britânico”).
gar os leitores lusófonos a comprar a edição em castelhano. Por outro lado, o Geil, embora concordando que a maior
Além do preço do papel, havia o problema do contro- parte dos títulos eram políticos e de pouco interesse para
le das quantidades pelo governo que, levando em conta o o leitor brasileiro (“ataques ao comunismo ou discussões
ajuste da balança dos pagamentos, regulava a importação. acadêmicas sobre o subdesenvolvimento”), considerou que
Na pequena história da Brasiliense, so Anos Brasiliense, o programa era útil para provar que existia, afinal, um mer-
1943-1993, de Danda Prado et al., lê-se: “A Empresa prati- cado brasileiro para obras sérias sobre assuntos como eco-
camente cessou suas atividades em 1952, ano em que o papel nomia, sociologia, crítica literária, matemática e psicologia.
quase desapareceu do mercado”. Mais ainda, o Geil afirmou que algumas das “mais esclareci-
Não obstante, a indústria editorial brasileira sobreviveu e das” (mais espertas?) editoras foram capazes de usar os pro-
até mesmo voltou a crescer. Em 1967,0 Grupo Executivo da gramas do Usia e da Usaid para produzir “centenas” de ma-
Indústria do Livro (Geil), criado por lei pelo Executivo, ao nuais extremamente necessários a estudantes universitários.
discutir esse período difícil, atribuiu boa parte de tal sobrevi- O programa da Usia continuou: 264 edições em portu-
vência e mesmo crescimento à ajuda do governo dos Estados guês no quinquênio 1971-1976; porém sua ajuda limitava-
Unidos. Essa ajuda, parte de um programa internacional ini- -se agora ao compromisso de adquirir determinado número
ciado em 1950, apresentava-se sob diversas formas. A Usia de exemplares, comumente entre um quarto e metade de
(United States Information Agency)! fornecia, normalmen- cada edição, que ela distribuiria gratuitamente aos políti-
te, O texto original, ou pelo menos orientava sua seleção. cos, professores e estudantes universitários, e bibliotecas
Comumente ficava a seu cargo a obtenção dos direitos de públicas. Dentre as editoras brasileiras que participaram do
tradução e, muitas vezes, pagava parcial ou integralmente programa nos anos de 1970 e 1980, encontram-se a Agir,
os direitos dos autores norte-americanos. Muitas vezes lo-
a
A

calizava ou recomendava um tradutor, ou até mesmo for- $. Warren Dean, “The Usia Book Program: How Translations of'Po-
td

necia a tradução. Frequentemente financiava a publicidade litically Correct' Books Are (Secretly2) Subsidized for Sale in Latin
necessária. Podia, até mesmo, colaborar nos custos diretos America”, Punto de Contacto/Point of Contact, vol. 1,n. 3, Pp. 4:14,
de produção. De âmbito mundial, esse programa, durante set.-out. 1976. Na sua tese, O Imaginário em Movimento: Cresci-
mento e Expansão da Indústria Editorial no Brasil, 1960-1994, de-
e

seus primeiros quinze anos, deu suporte a nove mil edições,


com a tiragem média de dez mil exemplares cada uma. fendida em fevereiro de 1995, no Instituto de Pesquisas do Rio de
Janeiro, Gilberto Barbosa Salgado menciona os acordos feitos pelo
O programa teve muitos detratores. Os liberais america- regime pós-1964 com “agências do tipo Usis e Usaid, que tiveram
nos viram nele uma tentativa de doutrinação política. Esse grande impacto sobre a área editorial voltada para o público acadê-
mico”, Isso aconteceu, sem dúvida, mas não foi novidade alguma,
4- Atualmente, United States Information Service (Usis). apenas intensificando um processo já bem estabelecido.
e
576 Ênio Silveira Ênio Silveira 577

Artenova, Atlas, Bloch, “O Cruzeiro”, Cultrix, Expressão e sucesso financeiro com as obras do educador escocês À. S.
Cultura, Forense, Forum, Freitas Bastos, Fundação Getúlio Neill, de cujo Liberdade sem Medo venderam-se setenta mil

a
Vargas, Ibrasa, Lidador, Victor e Zahar. exemplares*. Dirigida atualmente por Expedito Jorge Leite,
bem possível que o apoio norte-americano tenha ajuda- Moacir C. Côrrea e Tânia Jorge, tem 380 títulos no catálogo.
do muitas editoras a sobreviver durante o difícil período do Menos bem-sucedido foi o IPE: Instituto Progresso Edi-
pós-guerra. Mas, com a devida vênia do Geil, não era por si

ci
torial, empreendimento — também de 1947 — de um grupo
só suficiente para estimular substancialmente o crescimento de empresários de São Paulo, novatos no ramo editorial,
de novas casas. De modo geral, as editoras que haviam lide- mas decididos a provar que a experiência e o conhecimento
rado as atividades do setor antes da guerra mantiveram suas comercial geral, aliados a um produto de boa qualidade e
posições, ainda que tendendo a abandonar a maneira mais ao uso pródigo da publicidade, era tudo de que se preci-
eclética de atuar dos anos prósperos para deter-se na segu- sava. O castigo veio em pouco mais de um ano, apesar da

a
rança de suas especialidades tradicionais: a Melhoramentos publicação de algumas obras interessantes e importantes,
centrou-se novamente na literatura infantil, a Nacional nos entre as quais aquelas que apresentaram Roger Bastide ao
livros didáticos, a José Olympio na literatura brasileira e a público brasileiro.
Globo nas traduções. Quando a situação começou a melho- A Bloch Editores foi fundada, mais ou menos nessa épo-
rar, por volta de 71956, a Editora Globo, que nesse mesmo ca, por Adolfo Bloch (1908-1995) e por seus irmãos Arnaldo
ano se havia separado juridicamente da Livraria Globo, pas- e Bóris. Adolfo chegou ao Brasil, em 1922, com 14 anos de
sou, sob a direção editorial técnica do competente engenhei- idade, depois de ter trabalhado na gráfica do pai em sua ci-

ei
ro Álvaro Magalhães, a dar crescente ênfase a obras técnicas dade natal, Zhitomir (perto de Kiev). Embora tenha publica-
de nível superior, entre as quais a série monográfica Manual do grande número de livros, esse lado de suas atividades tem
do Engenheiro Globo. sido ofuscado um pouco pela vitoriosa publicação de revistas,
Apareceram poucos nomes novos. Savério Fittipaldi, que especialmente Manchete e Fatos e Fotos. À primeira foi fun-
começara aos doze anos como auxiliar na Quaresma e, de dada em 1952 para concorrer com O Cruzeiro pela liderança

e
I919 à 1937, tivera sua própria Livraria Carioca (depois das revistas populares ilustradas em cores: batalha que durou
Livraria João do Rio, quando da morte de Paulo Barreto), quase trinta anos antes de terminar com a vitória definitiva

E
foi para São Paulo, onde, em 1946, já reunira capital sufi- da Manchete. A atividade editorial da Bloch no setor de li-
ciente para voltar aos negócios com a Editora das Améri- vros para o público em geral talvez tenha atingido sua maior
cas (Edameris), publicando clássicos da história e da litera- intensidade nos fins da década de r960, quando sua pro-
tura mundiais em muitos volumes: História Universal, de dução chegava a cerca de trinta títulos por ano. Realização
Cesare Cantú (em 32 volumes), Vidas Ilustres, de Plutarco notável desse período foi a venda, em 1969, para a Deutsch
(em dezessete volumes), e História dos Hebreus, de Flávio Verlag, de Stuttgart, dos direitos de tradução para a língua
Josefo (sete volumes, traduzidos diretamente da edição de alemã de Um Nome para Matar, de Maria Alice Barroso,
Amsterdã de 1700). autora da casa. Nos anos de 1970 e de 1980, a principal
Em 1947, José Nabantino Ramos fundou o Instituto Bra- importância da Bloch residia no fato de ser uma das maiores
sileiro de Difusão Cultural s. A. (Ibrasa), que começou suas editoras de vendas em prestações. Não se pode esquecer a
atividades com a publicação de títulos populares sobre saú- Divisão de Educação da empresa, criada na década de 1970,
de (Escola das Mães, de Alencar de Campos, Nosso Mundo e que adquiriu importância no campo do livro didático, so-
Mental, de Virgínia Leone Bicudo), mas aos poucos esten-
deu sua ação aos campos da ciência, educação, filosofia, es-
portes, ficção e obras de referência (como o Dicionário das 6. Enquanto eu escrevia para a segunda edição do presente livro, em
2004,0 Ministério da Educação da Inglaterra estava considerando o
Batalhas Brasileiras, 1987, de Hernâni Donato). Em 1963,
fechamento obrigatório da Summerhill, escola experimental fundada
a Ibrasa adquiriu notoriedade com a edição de Trópico de por Neill (depois de oitenta anos!), por não se adequar com o novo, e
Câncer e Trópico de Capricórnio, de Henry Miller, e obteve rigido, “currículo nacional”.
e —
578 Ênio Silveira Ênio Silveira 579

bretudo junto à Fename. Cabe ainda mencionar o best-seller VENDAS EM PRESTAÇÕES $r64
da casa, A Vida do Bebê (Rinaldo de Lamare), que alcançou
mais de trinta edições já nos anos de 1980. Durante todo este período do pós-guerra, continuou a desen-
Outra editora importante para a literatura nacional foi à volver-se o setor de vendas de coleções em prestação — preci-
Edições GRD, de Gumercindo Rocha Dória. Além das mui- samente porque a falta de crescimento do mercado tradicio-
tas obras novas de literatura brasileira (e algumas notáveis nal de livros estimulou as editoras a buscar meios alternativos
reedições) que lançou, principalmente nos anos de 1960 — de de expansão. Outra pioneira dessa prática foi a Globo, de
Gerardo Mello Mourão, O Valete de Espadas (1960); de Porto Alegre, que, já antes da guerra, recorrera a esse sistema
Rubem Fonseca, Os Prisioneiros (1963); de Samuel Rawet, para resolver o problema da Enciclopédia de Arte Culinária,
Diálogos (1963); de Jones Rocha, A Graça e a Culpa (1966; uma obra de 1200 páginas, em dois volumes, cujo preço
primeira edição, MEC, 1955); e de Jorge Medauar, Histórias final era alto demais para a venda na livraria. Com o fim da
de Menino (1967; primeira edição, J. Ozon, 1961) - a GRD grande expansão de suas atividades, a editora retomou as
publicou uma boa quantidade de ficção científica traduzi- vendas domiciliares em 1947, com o lançamento de séries
da, antes de praticamente cessar suas atividades por volta como Coleção Nobel, Vidas Ilustres, das obras completas de
de 1970, supostamente pelo erro oposto ao do 1PE: propa- Karl May e de A Comédia Humana, de Balzac, e, mais tarde,
ganda insuficiente. Nos anos de 1990, Gumercindo reati- do Grande Manual de Agricultura. De modo semelhante, a
vou as Edições GRD, especializando-se em ficção científica, José Olympio, com sua tradicional linha de literatura nacio-
tanto de autores nacionais (Henrique Flory, José de Santos nal ainda limitada quase sempre, nos anos do pós-guerra, a
Fernandes, Ivan Carlos Regina e Jorge Luiz Calife) como pequenas edições de um, dois ou três mil exemplares, que
de estrangeiros (Robert Sheckley, George Stewart, Edmund levavam de três a cinco anos para esgotar-se, foi particular-
Cooper). Gumercindo, cujo interesse na área remonta aos mente incentivada a criar e expandir um setor de crediário
anos de r9s0, foi premiado por seus esforços na Bienal do ($147). Outra editora que surgiu para explorar esse campo
Livro de 1997”. foi a Guanabara Koogan.
A Livraria Pioneira, fundada em São Paulo, em 1948, Certamente, os judeus contribuíram enormemente para a
é mais um exemplo de melhoria da atividade editorial so- atividade editorial em quase todos os países ocidentais, po-
mente na década de 1960, quando as condições se tornaram rém, são poucos os casos brasileiros. Os únicos que mencio-
mais favoráveis. Sua linha principal é dirigida para as ciên- namos até agora foram José Carlos Rodrigues e as Edições
cias sociais, com a criação de séries como Aprenda Sozinho, Adersen, de Adolfo Aizen ($138). À Encyclopedia Judaica cita
Manuais de Estudo e Bibliotecas Pioneira: de Ciências So-
O
apenas Adolfo Aizen, as empresas Brasil-América, Biblos,
ciais, de Administração e Negócios, de Estudos Brasileiros, Perspectiva, Bloch, a sociedade Waissman-Koogan e, erro-
de Direito Empresarial. A partir dos anos de 1980, esta casa neamente ($$107, 113), a Melhoramentos". No entanto, a
ganhou destaque também na literatura infantil. importância relativa pelo menos das quatro últimas empre-
Finalmente, uma pequena editora interessante, fundada sas no cenário brasileiro é plenamente compensadora. Antes
em 1949 ou antes, foi a Organização Simões, dedicada espe- de fundarem sua própria editora em 1930, Abrahão Koogan
cialmente à bibliografia — especialidade de seu proprietário, e Nathan Waissman eram vendedores domiciliares”. Qua-
Antônio Simões dos Reis -, à filologia (com a Coleção Rex) e tro anos depois, adquiriram a Editora Guanabara, do Rio, a
à literatura brasileira (com o lançamento do primeiro roman- primeira editora brasileira especializada em livros médicos.
ce do repórter José Louzeiro, Depois da Luta, em 1959). Ao mesmo tempo, publicaram obras não médicas, como as

8. Encyclopedia Judaica, Jerusalém, 1972, verbete Brazil,


7. Sobre ficção científica no Brasil e seus editores, cf. Jorge Luis Calife, 9. Podemos ver um retrato de Abraão Koogan em Roger Smith,
“Science Fiction in Brazil”, Locus, pp. 23, 32, dez. 1985;€ Roberto de “Brazil's Book Industry: A Giant Comes of Age”, Publishers Weekly,
Sousa Causo, “sr in Brazil”, Locus, pp. 37,65, abr. 1992. vol, 202,n. 8, pp. 38-39, 21 ago. 1972.
são Ênio Silveira Ênio Silveira s81

traduções de Freud, Malraux e Mauriac e, em 1937, uma tora Primor, uma empresa de encadernação adquirida pelo
coleção das obras completas do escritor austríaco Stefan grupo em 1969, cuidava de todo o trabalho gráfico, embora
Zweig. Essa edição constituiu um grande golpe de sorte. Sua mantivesse seu próprio programa editorial na área de livros
oferta para a aquisição dos direitos exclusivos para a lín- de referência, livros didáticos para a escola primária e edu-
gua portuguesa chegou às mãos do agente literário de Zweig cação de adultos, estes últimos destinados ao Mobral ($121)
apenas uma semana antes da oferta da Globo. É provável e à exportação para a África.
que as duas firmas tenham sido estimuladas pelo sucesso de A W. M. Jackson ($119), que adquirira, em 1941, suas
Erasmo de Rotterdam, obra de Zweig, que a Globo tinha próprias oficinas gráficas, a Gráfica Editora Brasileira, esta-

e
publicado pouco antes. O certo é que as vendas da coleção va também em expansão: em 1969, controlava a Mérito e a
de Zweig foram tão boas que os primeiros volumes se esgo- Livro do Mês, do Rio de Janeiro, e a Gustavo Gilli, de São
taram antes que os últimos chegassem às livrarias. Já disse Paulo, cujo capital somado tornava-a a sexta maior empresa
como um outro escritor sentimental (Humberto de Campos, brasileira dedicada exclusivamente à edição de livros (de-
$137) foi muito bem recebido pelo público brasileiro dos pois da Nacional, José Olympio, Editora do Brasil, Saraiva e

ic
anos de 1930. À popularidade de Stefan Zweig cresceu ainda Forense). Na época, sua publicação mais conhecida foi pro-
mais quando, fugindo de sua pátria então anexada pela Ale- vavelmente a Enciclopédia Brasileira Mérito (1958-1964),
manha nazista, veio morar em Petrópolis, onde escreveu o em vinte volumes.
lisonjeiro Brasil, País do Futuro (1941). Esse êxito encorajou Outra editora americana dedicada à venda em prestações
os filhos de Waissman, Simão e Sérgio, a criar a Editora Del- que funcionava no Brasil era a Encyclopaedia Britannica
ta, em r9so, para dedicar-se exclusivamente à venda de co- do Brasil. Começou, em 1951, como simples importadora
leções em prestações, entre elas, a última edição do clássico de seu material em inglês, mas logo descobriu que vendia
Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Cal- mais no Brasil do que no Canadá, De fato, os brasileiros são
das Aulete, em cinco volumes, e a Grande Enciclopédia Del- ávidos devoradores de enciclopédias, mesmo em inglês. Em
ta-Larousse, em quinze volumes (produzida sob licença da 1967 — último ano antes da grave distorção de dados pra-
editora francesa, mas supervisionada por Antônio Houaiss ticada pelos editores americanos que imprimem fora suas
e com 40% de material preparado especialmente para a ver- edições para exportação, quer no próprio Brasil, quer em
são brasileira). Em 1965, foi constituída a Editora Larousse outros países como Índia, Japão, Formosa, Hong Kong ou
do Brasil, com capital dividido paritariamente entre a Delta Panamá — encontramos o valor de us$2 804 283 de expor-
e a Librairie Larousse, e, em 1979, editou, em um volume, tações de livros para o Brasil registrado pelo Bureau of the

o
o Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan-Larousse, Census dos Estados Unidos (inferior aos números citados
baseado na obra maior da Larousse. Ao mesmo tempo, a em nossa tabela 19, p. 872, de us$4 308082, porque não
própria Delta publicou uma adaptação brasileira da World a .de valor inferior a cem dólares). Desse to-
inclui embarques
Book Encyclopedia (dos Estados Unidos), também em quin- tal, “Bíblias, testamentos e outras obras religiosas” perfazem
ze volumes, e a Enciclopédia Delta Júnior, para a juventude, 39,3% — forte evidência do número de missões protestantes
baseada na Golden Book Encyclopedia, da Bertha Morris. do chamado Bible belt (“região da Bíblia”) do sul dos Esta-
Em 1966, a Delta contava 1800 empregados, metade dos dos Unidos que estavam em ação no Brasil. Os “Dicionários”
quais vendedores domiciliares (em 1972, esse número che- constituem a segunda maior categoria, com 25,4%, seguidos
gou a dois mil). Em 1968, a Delta era um grupo formado por de “Enciclopédias”, com 17,6%. “Livros técnicos, cientifi-
nove empresas distintas: Corrente, Delcar, Delmax, Mapi, Pi- cos e profissionais” são responsáveis por apenas 10,2%, €
lar, Principal, Progresso, Sedel e a principal, Guanabara Koo- “Livros didáticos, livros de exercícios e testes padronizados”
gan. Dois anos mais tarde, já eram quinze empresas, quase por apenas 3,4%. Em 1960, a Encyclopaedia Britannica do
todas dedicadas à venda em prestações. O faturamento total Brasil estava suficientemente motivada para lançar-se à pu-
do grupo, em 1970, foi de 24 milhões de cruzeiros, inferior blicação em português, no Brasil. Uma Enciclopédia Barsa,
o

somente ao da José Olympio (28 milhões). A Gráfica Edi- “elaborada sob a supervisão dos editores da Encyclopaedia
$82 Ênio Silveira Ênio Silveira 583
Britannica”, em dezesseis volumes, surgida em 1964, era trechos, ou obras curtas — os textos especialmente visados
uma adaptação, sob a direção de Antonio Callado, de obra eram contos — sem qualquer autorização do detentor dos di-
já vendida em toda a América Latina, em espanhol; mas a reitos autorais, com o engenhoso argumento de que o pará-
Enciclopédia Mirador Internacional (1975), em vinte volu- grafo primeiro do artigo 666 do Código Civil permitia a um
mes, mais um atlas e um dicionário em dois volumes, foi autor incorporar partes de obras já publicadas a seu próprio
uma publicação muito mais notável, com grande número texto, desde que este fosse de natureza científica ou tivesse
de ilustrações coloridas e um texto elaborado, em grande propósito literário, didático ou religioso — a chamada cláu-
parte, com a colaboração de autores brasileiros. Seu preço, sula da “reprodução lícita”. Uma vez que a mera referência à
em maio de 1981, era de Cr$69 600,00 e sua venda chegou fonte era tudo o que o Código exigia, alguns editores passa-
ao total de treze mil coleções por ano. ram a produzir obras inteiras compostas de tais “excertos”.
Durante toda a década de 1960, o mercado de vendas Diaulas Riedel, da Cultrix, uma das editoras acusadas dessa
em prestações continuou a atrair novas empresas, entre elas prática, admitiu ter publicado, ocasionalmente, algum ex-
a Martins e a Maltese, cujos primeiros sucessos incluíam certo sem autorização, mas negou que isso implicasse a falta
a Enciclopédia Trópico e coleções infantojuvenis. Diga-se de algum pagamento ao autor original. Quando, afinal, de-
que a Maltese, editora de livros infantojuvenis, foi fundada pois de muito tempo - em 1970 — foi movida uma ação con-
nos anos de 1960. Mais tarde, a estabilidade da editora foi tra a Gráfica Record, o juiz evitou toda discussão a respeito
ajudada por parcerias e associações: com a Oesp Gráfica, o da letra do art. 666, declarando-o inconstitucional. Como
grupo italiano Edicart e o grupo colombiano Carvajal. Tra- o direito à propriedade intelectual é protegido pela Cons-
gicamente, em agosto de 1994, seu dono, Cláudio Maltese, tituição, nenhuma modificação pode ser legal. Felizmente,
foi morto por dois assaltantes que o mantinham prisioneiro a Constituição dava ao Congresso o poder específico de es-
em seu próprio carro, sintoma dos problemas da marginali- tabelecer um limite temporal a esse direito, pois, de outro
zação de tantos brasileiros numa economia em apuros. modo, aquela decisão estaria endossando um privilégio per-
Durante muitos anos, as vendas de porta em porta fo- pétuo e incondicional. Isso levou a vitórias análogas contra a
ram extremamente lucrativas. Numa venda típica, em onze Distribuidora Record, em 1970, e contra a Bloch, em 1971.
prestações, o editor pagaria a comissão do vendedor com o Presumivelmente, essa decisão tornava ilegal — sem, porém,
pagamento da entrada e recuperaria os custos da produção ter conseguido conter, sequer em grau mínimo — o costume
com a quitação da terceira prestação, isto é, depois de dois brasileiro, vigente em estabelecimentos de ensino públicos e
meses. Como os empréstimos obtidos para o financiamento privados, de publicar “apostilas”. Estas consistem de “notas
inicial venciam no prazo de seis meses, a editora começaria no de leitura” descarada e profusamente copiadas de livros e
a receber o lucro quatro meses antes de fazer qualquer de- mimeografadas para serem vendidas aos estudantes, exata-
-

sembolso. Infelizmente, um dinheiro assim tão fácil atraiu mente para que não precisem adquirir os livros.
muitíssimas firmas, muitas das quais ofereciam mercadoria O enorme prejuízo que esse lamentável costume acar-
de qualidade inferior. Em 1973, o mercado estava saturado reta à indústria e ao comércio de livros é incalculável, indo
e, como relatamos ($152), até mesmo muitas das mais repu- muito além da questão da infração aos direitos autorais. Já é
tadas editoras que trabalhavam com vendas em prestações bastante ruim que também reduza significativamente o mer-
viram-se em grandes dificuldades. cado para os livros em questão; muito pior, porém, é o modo
como isso inibe o desenvolvimento do hábito de leitura em
cada nova geração, Como, até mesmo no ensino superior, é
$r6s BURLA AOS DIREITOS DO AUTOR considerado falta de “espírito esportivo”, e quase falta de
ética, a exigência, por parte de um professor, de qualquer
Outro progresso — se é que a isso se pode chamar progres- outro conhecimento além dos contidos nas “apostilas”, a
so — na década de 1950 foi o crescimento de outro tipo de grande massa dos alunos jamais aprende a ler extensa e cri-
“coleção”: livros formados a partir da reunião de diversos ticamente, ou com prazer e curiosidade intelectuais. Outro
584 Ênio Silveira Ênio Silveira 585

costume arraigado e pernicioso — infelizmente mundial — é Juscelino Kubitschek de Oliveira à presidência da República,
a indução dos estudantes a pagar por cópias “xerocadas” em 31 de janeiro de 1956. Pode-se avaliar a extensão de seu
para evitar o incômodo de visitar uma livraria, embora o envolvimento pela mensagem que enviou ao Congresso em
produto impresso, isto é, o livro, seja mais barato e muito princípios de 1958, na qual afirmou que a produção de li-
mais conveniente. vros, um “indicador excelente” do progresso cultural do país
Pouco depois desses casos de ação judicial contra infra- e um tributo à empresa privada brasileira, exigia do governo
ção a direitos autorais, a legislação brasileira sobre o as- “a mais entusiasta ajuda e estímulo”. Tudo deveria ser e seria
sunto foi atualizada (lei n. 5988/1973). À disposição sobre feito para suprir a crescente necessidade brasileira de livros.
reprodução lícita foi restabelecida; o art. 49 reproduz quase Os custos de papel e de impressão precisavam ser reduzidos,
literalmente o art. 666 do Código Civil: “de modo que, reti- e a indústria editorial devia ter o mesmo direito de amplo
rada a transcrição, permaneça a obra” na definição do que se acesso ao financiamento de que desfrutavam os demais seto-
considerava lícito; mas a inclusão não autorizada de obras res da indústria.
literárias em antologias foi, afinal, declarada especificamen- Antes da leitura dessa mensagem, o presidente já havia
te ilegal. Uma inovação (revogada uns poucos anos mais autorizado uma liberal concessão de licença de importação
tarde) dessa nova lei fora a cobrança de 5% sobre obras de para o setor gráfico. Uma atitude extremamente necessária:
domínio público, a serem pagos ao Fundo de Direito Au- quase trinta anos de escassez de divisas estrangeiras e con-
toral: o motivo dessa cobrança parece ter sido o desejo das sequentes restrições à importação de bens de capital haviam
autoridades de garantir a integridade do texto do autor, após deixado a indústria gráfica, como a maioria das demais in-
expirado o direito autoral, em particular no caso dos clás- dústrias brasileiras, com maquinaria obsoleta, atrasada de
sicos da literatura brasileira". Outra disposição da nova lei uma geração em relação à Europa e à América do Norte.
foi que os direitos sobre “obras encomendadas pela União Graças a Kubitschek, a indústria gráfica cresceria 143,3%
e pelos Estados, Municípios e Distrito Federal” cairão em entre 1950 € 1960, a quinta maior taxa de crescimento
domínio público depois de quinze anos. entre as indústrias do país (ainda que grande parte desse
crescimento representasse recursos para a produção de jor-
nais). Os equipamentos antiquados não apenas aumenta-
$166 JUSCELINO KUBITSCHEK DE OLIVEIRA vam consideravelmente os custos de produção, como sua
capacidade limitada havia mantido as editoras brasileiras
Os livros didáticos (apesar das apostilas) continuavam a ofe- dependentes de impressores do exterior para muitos tipos
recer segura retaguarda para muitas editoras e uma renda de trabalho especializado. O livro Matemática Financeira
razoável para seus autores mais bem-sucedidos. À série de e Atuarial, de Francisco d'Áuria (Nacional, 1928), que se
matemática de Osvaldo Sangiorgi, por exemplo, iniciada esgotou em 1935, nunca foi reeditado até 1955, fato atri-
em 1953 e destinada às quatro séries das antigas escolas se- buído à simples falta, na época, de máquinas de composi-
cundárias, chegou a vender trezentos mil exemplares em um ções Monotype no Brasil, e à consequente impossibilidade
ano, em meados da década de 1950, quando as tiragens de de compor de modo adequado uma obra com tantas fórmu-
seus principais concorrentes estavam por volta de oitenta las matemáticas. Mas isso parece inverossímil: a São Paulo
mil exemplares”. Editora possuía algumas dessas máquinas, que haviam per-
O crescimento real do mercado do livro não didático foi tencido a Lobato ($112). À não reedição desse livro por
retomado somente quando o governo começou a se interessar cerca de vinte anos deve indicar uma limitação do mercado
por essa indústria, e isso aconteceu apenas com a ascensão de naqueles tempos. Não obstante, a renovação e moderniza-
ção do parque gráfico foi essencial para o aumento da capa-
ro. Cf. Cleusa Maria, “Direito do Autor”, Jornal do Brasil, 23 jul. cidade da indústria editorial de então, permitindo também
1977 (seção Livro). considerável progresso no que se refere ao aspecto material
11.“ºLições Milionárias”, Veja, p. 43, 3 mar. 1983. do livro brasileiro.
586 Ênio Silveira Ênio Silveira 587

O novo governo foi também de muita ajuda em questões do as portas do Brasil ao investimento privado estrangeiro,
como a tributária, em que, isentando o setor livreiro (e a mediante a concessão de amplos privilégios cambiais, alfan-
indústria de papel para livros) de quase todos os impostos, degários e tributários. Embora Kubitschek tenha mantido
com exceção do imposto de renda, acompanhou o exemplo aquela Instrução e, de fato, haja encorajado o ingresso de
pioneiro do governo do estado de São Paulo, desde 1947. As empresas estrangeiras onde quer que pudessem ajudá-lo a
tarifas postais para livros também foram reduzidas. As me- realizar suas ambições da industrialização mais rápida pos-
didas protecionistas para afastar o papel estrangeiro deram sível do Brasil, no fundo, o presidente era um nacionalista,
lugar a subsídios ao produto brasileiro para permitir sua preocupado em estimular a participação da empresa privada
competição com o importado. brasileira em seus planos para dar ao Brasil “cinquenta anos
Os impostos alfandegários sobre livros estrangeiros tam- de progresso em cinco”. Não obstante, o governo poderia ter
bém foram abolidos em agosto de 1957 (salvo para livros com continuado a ignorar as reivindicações da indústria editorial:
encadernação de luxo e livros em português impressos fora de afinal, todas as editoras, livrarias e outras empresas do setor
Portugal), medida confirmada pelo decreto n. 48820, de 12 de reunidas somavam apenas 1% do capital total investido em
dezembro. Ao mesmo tempo, a taxa de câmbio especial para atividades não agrícolas da economia. O fato de não tê-lo
a importação de livros foi sendo modificada gradativamente, feito pode ser atribuído principalmente à vigorosa campanha
até se extinguir em fevereiro de 1959. Essa medida, associada dos editores através de seus órgãos de classe, a Câmara Brasi-
à redução dos preços do papel, acabou possibilitando a publi- leira do Livro e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros.
cação de traduções brasileiras a preços competitivos com os (Snel), em particular de Ênio Silveira, que foi presidente deste
dos originais importados. Em dois anos, as traduções brasilei- último de r9s2 a 1958.
ras já eram vendidas por um terço do preço de venda, no Bra- A lúcida liderança de Ênio Silveira, bem demonstrada
sil, de um livro americano, invertendo-se assim a situação de por suas frequentes colaborações nos periódicos da catego-
1953-1958. Por sua vez, isso tornou comercialmente possível ria nesse período, foi fundamental no desenvolvimento da
o aumento considerável do número de obras especializadas em indústria editorial brasileira, Foi, por exemplo, a força im-
português. Em 1963, 0 número de títulos publicados no Bra- pulsionadora da única bibliografia nacional regular impressa
sil ($ 133) já era bem superior aos produzidos em qualquer pelo setor no Brasil da segunda metade do século xx, o Bole-
outro país latino-americano (4 362, no México, seguido pela tim Bibliográfico Brasileiro (ou BBB), que durou de novembro
Argentina, com 3 989, e pelo Chile, com 1577). de 1952 até 1967, pouco depois de seu escritório editorial ter
Um decreto de 9 de junho de 1959 criou, no Ministério sido destruído no incêndio da Freitas Bastos ($178), embora
da Educação, um órgão destinado a estudar os problemas da sua extinção tenha sido atribuída mais ao “desaçordo entre
indústria editorial: o Grupo Executivo da Indústria do Li- os que o dirigiam”** do que àquele incêndio.
vro (Geil), a cujo relatório de 1967 já nos referimos. O Geil
era formado por representantes dos editores, dos livreiros,
da indústria gráfica, da União Brasileira de Escritores, do ÊNIO SILVEIRA E A CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA $167
Instituto Nacional do Livro e dos ministérios da Educação,
Fazenda e Transportes. Desempenhou um papel muito útil Pelo menos de igual importância para o desenvolvimento da
enquanto pôde influir na política do governo, até 1971, indústria editorial brasileira foi o exemplo dado por Ênio
quando o governo Médici o integrou ao Instituto Nacio- Silveira na administração de sua própria empresa, a Civili-
nal do Livro.
A total mudança da atitude oficial em relação ao ramo li-
12. Hagar Espanha Gomes, “Instituto Brasileiro de Bibliografia e
vreiro descrita acima foi possível, fundamentalmente, porque Documentação”, Fichero Bibliográfico Hispanoamericano, vol. 12,
se ajustava às políticas de Kubitschek. Em princípios de 1955, n. 12, Pp. 24, Set, 1973. ÀS principais editoras que cooperavam no
seu predecessor, João Café Filho, com a crucial Instrução n. BBB eram; Agir, Civilização, Cultrix, Freitas Bastos, Globo, Hachette,
113,da Sumoc (órgão de controle cambial), havia escancara- Melhoramentos,
José Olympio, São José e Saraiva.
588 Ênio Silveira Ênio Silveira 589

zação Brasileira. Sua contribuição em métodos administra- “esse vício estranho numa época em que o mundo das letras
tivos, publicidade, produção gráfica e política editorial foi, estava praticamente reservado aos diletantes da alta burgue-
no conjunto, quase tão importante em seu tempo quanto sia ou aos fauves nordestinos”, levou-o (após curta incursão
haviam sido as inovações de Monteiro Lobato. pela crítica literária) para a atividade editorial, “o contra-
Como Lobato, Ênio Silveira foi um radical; mas, enquanto ponto ideal de Iudus e status” 4.
Lobato praticamente abandonou a atividade editorial para Aqui, sua capacidade levou-o rapidamente ao ponto
dedicar-se a suas campanhas políticas, a política de Ênio Sil- mais alto. Em dois anos estava definindo a política editorial
veira encontrou expressão em seu trabalho editorial - a ponto da empresa (no cargo de diretor editorial) e, em seis (isto
de pôr em risco a própria existência de seu negócio durante os é, em 1951), tinha sob sua responsabilidade a subsidiária
primeiros anos após a revolução de 1964. do Rio de Janeiro. Mesmo antes disso, havia sido eleito
O autor em desacordo com um regime que teimava em vice-presidente da associação dos editores e livreiros do
ultrapassar os limites da tolerância oficial pode frequente- Brasil, a Câmara Brasileira do Livro, que ajudara a fundar
mente imitar Victor Hugo ou Karl Marx, fugindo para o (zo de setembro de 1946). Tinha apenas vinte e seis anos
estrangeiro para disseminar suas ideias malquistas a partir quando, em 1952, seus colegas editores elegeram-no pre-
do abrigo do exílio. Um editor não tem essa opção: ou calará sidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. ...E
sua crítica, ou se exporá, e seu negócio, à enorme variedade casou-se com a filha do patrão.
de sanções de que dispõe o Estado moderno. E enquanto Esse patrão era Octalles Marcondes Ferreira, pois o selo
o autor perseguido tem quase assegurada a simpatia do editorial da Civilização Brasileira - como já dissemos ($ 114) —
público, o editor que tomba, vítima das formas mais insi- era utilizado pela Editora Nacional para abrigar parte de
diosas de pressão governamental (como restrição de crédito suas edições não didáticas e de ficção. Contudo, quando
ou tributação injusta), pode ver sua própria ruína popular- Ênio assumiu o posto, o negócio principal da subsidiária
mente atribuída à mera inépcia comercial, Contudo, apare- era uma livraria, pois o nível de sua atividade editorial era
cem ocasionalmente homens (e mulheres) dispostos a correr baixíssimo: a bibliografia nacional brasileira registra apenas
esse risco por suas convicções. Ênio Silveira manteve-se fiel dez títulos da editora em 1955, embora entre esses estivesse
a uma política editorial que pôs à prova os limites de tole- uma reimpressão do eterno sucesso Pequeno Dicionário da
rância de todos os governos, desde Castelo Branco até Gei- Língua Portuguesa, de Hildebrando Mateus de Lima e Gus-
sel. Como resultado, sofreu contínuos prejuízos financeiros tavo Barroso (9º edição, 1951). O catálogo da Civilização
e dilapidação de patrimônio, repetidas prisões e pelo menos Brasileira não abrangia mais de duas dezenas de títulos, em
uma tentativa de assassinato. comparação com os quatrocentos € tantos da Nacional.
Conforme ele próprio declara, sua condição social de A administração de Ênio foi construindo gradualmente
nascimento era de molde a assegurar-lhe o conforto material o acervo da empresa até que, no final da década de 1950,
de um posto em “uma profissão liberal ou de um cargo qual- ela se tornara uma das principais editoras do país. Na época
quer no aparelho administrativo da classe dominante”2. em que assumiu o controle total da firma, seu catálogo era
Alto e bem apessoado, o jovem descendente de antiga família comparável ao da Nacional em número de títulos e, no ano
paulista (a romancista Dinah Silveira de Queiroz é sua pri- seguinte (1964), publicou 46 títulos novos, o segundo maior
ma) teve seus dotes naturais de encanto pessoal, vivacidade, número entre os editores brasileiros. À posição relativa de
energia, visão e impulso para a ação complementados por sua empresa pode ser observada no seguinte levantamen-
uma educação de primeira qualidade, que terminou com um to dos títulos em estoque, às vésperas do golpe militar de
ano numa das melhores universidades ianques (Columbia). 1964, com base, em grande parte, nas Edições Brasileiras:
Uma queda por livros e por literatura, que ele descreve como Nacional, 406 títulos; Freitas Bastos, 314; Melhoramen-
tos, 310; Forense, 173; Biblioteca do Exército, 149; Editora
13. Ênio Silveira, “msB: Poeta Apesar de Tudo”, em Mário da Silva
Brito, Poemário, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. 14. Idem, ibidem.
590 Ênio Silveira Ênio Silveira 591

Civilização Brasileira, 137; Ao Livro Técnico, 127; Cultrix, de seus tempos de estudante na Universidade Columbia — e
1243 Vecchi, 122; José Olympio, 115; Saraiva, 110; Pensa- também da França e da Itália. Dedicou-se também inten-
mento, 88; Atlas, 81; Distribuidora Record, 79; “O Cruzei- samente a traduções do alemão e do russo. O resultado é
ro”,72; Francisco Alves, 68; Difusão Europeia do Livro (Di- que em 1970 controlava aproximadamente 20% de todo o
fel), 67; Martins, 64; Vitória, 61; Agir, 60; Editora do Autor, mercado brasileiro de ficção.
so; São José, 46; Herder, 45; Boa Leitura, 45; Globo, 40; Embora grande parte de sua produção na área de ficção
Minerva, 40; Zahar, 39; Pongetti, 37; “Revista dos Tribu- tenha sido de alto nível, sempre teve o cuidado de temperá-la
nais”, 37; Edart, 34; Edameris, 32; Acadêmica, 30; Aguilar, com um número suficiente de best-sellers para garantir a
28; Biblos, 27; José Álvaro, 22; Vozes, 22; Brasil-América, saúde financeira da firma. Dentre os autores que lançou ou,
“.

20; Mestre Jou, 17; Trabalhistas, 14; Jackson, 11; Colibris, em alguns casos, relançou no mercado brasileiro, estão auto-
8: Alfa, 2; Mérito, 2º. Infelizmente, trata-se de uma rela- res ingleses, desde Margery Allingham, Eric Ambler, Agatha
ção incompleta, pois foram omitidas editoras importantes, Christie, Daphne du Maurier, lan Fleming e Rafael Sabatini
como a Editora do Brasil e a Brasiliense. até George Elior, Graham Greene, Radclyffe Hall, Aldous
Ênio Silveira sentia um entusiasmo particular em estimu- Huxley, D. H. Lawrence, George Orwell e Evelyn Waugh.
lar autores nacionais. Em 1956, publicou O Encontro Mar- Entre os autores americanos de seu catálogo, encontram-se
cado, de Fernando Sabino, romance autobiográfico que iria T.S. Eliot, Faulkner, Scotr Fitzgerald, Hemingway — cujo O
atingir dezesseis edições e seis edições traduzidas no correr Velho e o Mar (1956) teve quatro edições em cinco meses,
dos vinte anos seguintes. Esse romance inaugurou a cole- numa tiragem total de vinte e cinco mil exemplares (e vende-
ção Vera Cruz, dedicada à literatura brasileira. Chegando a ria um milhão em vinte e oito anos!) - Henry James, Mary
umas três centenas de títulos, essa coleção abrigava original- McCarthy, Norman Mailer, Poe, Saroyan, Steinbeck e Ten-
mente todo tipo de literatura, inclusive algumas reimpres- nessee Williams. À América espanhola — tão frequentemente
sões de obras antigas. Logo, porém, foi restrita a romances desprezada pelas editoras brasileiras (como já tivemos oca-
novos, já que foram criadas coleções especiais para abrigar sião de observar, $1$1) — foi representada por Carpentier,
os outros gêneros: Panorama do Conto Brasileiro (iniciada Augusto Céspedes, Cortázar, Jorge Icaza, Juan Carlos Onet-
em 1960), Poesia Hoje (a partir de 1963), Novela Brasileira ti, Roa Bastos e Ernesto Sábato. Do alemão, traduziu Brechr,
(de 1964) e Teatro Hoje (de 1966). O resultado final foi que Diirrenmatt, Hermann Hesse, Kafka e B. Traven; de obras
a Civilização Brasileira se tornou o canal mais importante francesas, desde Sartre e Jean Genet a Moliêre (Tartufo, na
para a literatura moderna brasileira nos anos de 1960. Seus tradução de Guilherme Figueiredo, em 1959). De outras li-
autores iam, politicamente, de Adonias Filho a Carlos Hei- teraturas, publicou Tchékhov, Gyórgy Lukács, Curzio Mala-
tor Cony, e entre eles estavam Hermilo Borba Filho, Antonio parte, Púchkin, Strindberg, Alexei Tolstói, Oscar Wilde e Lin
Callado, Geir Campos, José Condé, Autran Dourado, Enei- Yutang. Ênio teve a coragem de encomendar uma versão em
da, Millôr Fernandes, Guilherme Figueiredo, Dias Gomes, português do Ulysses, de James Joyce (confiada a Antônio
Ferreira Gullar, Álvaro Lins, Moacir C. Lopes, Raimundo Houaiss), e teve a perspicácia de adquirir os direitos brasi-
Magalhães Júnior, Esdras do Nascimento, Flávio Rangel e leiros de Lolita.
Dalton Trevisan. Ulisses saiu em 1966, numa primeira edição de oito mil
Ênio Silveira tornou importante a Civilização Brasileira exemplares, lançada a Cr$r0,00, rapidamente seguida de
com a grande variedade de traduções de literatura moderna uma segunda edição, para a qual o tradutor fez cerca de oi-
da Europa, América do Norte e, nos anos de 1970, também tocentas correções — quase uma para cada uma das 846 pá-
do Japão. Falando um excelente inglês, Ênio estabeleceu ginas, além de algumas indicações sobre a complexidade de
muitos contatos com editoras dos Estados Unidos — entre os sua tarefa. À dificuldade de remunerar de maneira adequada
quais os entabulados com a Doubleday que parecem datar os tradutores, nas condições brasileiras, é bem ilustrada pelo
fato de Houaiss ter recebido “uma importância menor que o
15. Edições Brasileiras, vols. 1-3, 1963-1965. salário mínimo mensal legal então em vigor para operários
592 Ênio Silveira Ênio Silveira 593

não qualificados”'* para a primeira edição € seiscentos cru- [1969], de Roberto Pontual). No entanto, esse selo editorial
zeiros para a segunda (reimpressa em 1975). sob a direção de Ênio Silveira sempre será lembrado, prin-
Lolita (1959) — o original americano é de 1955 — é um cipalmente, por suas publicações nos campos da sociologia,
excelente exemplo da capacidade comercial de Ênio Silveira. economia e política, que geralmente refletiram as posições da
Apesar de Nabokov ser completamente desconhecido no chamada “esquerda jacobinista”, posições bem próximas das
Brasil, foi encomendada uma primeira tiragem de sessenta do próprio Ênio Silveira. Sua atitude a esse respeito foi bem
mil exemplares — esgotada em dez meses. Isso foi possível, expressa em 1966, numa homenagem a seu colega Mário da
em grande parte, pela intensa campanha publicitária que Silva Brito (que fora para a Civilização Brasileira depois de
Ênio confiou a uma agência, a Abaeté: medida inaudita para começar sua carreira com José de Barros Martins e ter traba-
um editor brasileiro da época. Nas cinco cidades em que lhado sucessivamente para a Globo, a Saraiva, após 1948, a
se concentrou a campanha (Rio, São Paulo, Porto Alegre, Edart e a Edameris):
Salvador e Recife), Ênio pôs o livro à venda inclusive nas
bancas de jornal. Mais bem-sucedida ainda foi, alguns anos [...] Acreditávamos no Brasil, acreditávamos nas imensas possibi-
mais tarde, a tradução publicada pela Civilização Brasileira lidades de nosso povo avançar rumo à sua plena realização, desde
de The Devil's Advocate (O Advogado do Diabo), de Morris que fossem eliminados de seu caminho os empecilhos tradicionais —
West, que vendeu “um livro por minuto” no curso de um miséria, fome, doenças, incultura — resultantes da exploração cruel
semestre, 250 mil exemplares ao todo. a que sempre esteve submetido, tanto pelas classes dominantes
No entanto, não há editor infalível, e um exemplo de um nacionais como pelas potências imperialistas que, por sua vez, as
título que “escapou” pode ser The Catcher in the Rye, de Sa- controlavam. Para alcançar a eliminação desses empecilhos, pú-
linger, que Ênio recusou, por considerá-lo difícil de conguis- nhamos (e ainda pomos) muita fé na eficiência dessa arma branca,
tar o gosto brasileiro. Ao contrário, Fernando Sabino, na silenciosa e paciente, que é o livro. A despeito da externa perse-
época na Editora do Autor, aceitou-o por considerá-lo, como guição que em todas as épocas e sociedades sempre lhe movem as
disse, “coloquial, sexy porém não ofensivo, e um vencedor forças do obscurantismo e da prepotência, ele é instrumento capaz
certo”. Em 1969, isto é, quatro anos depois, O Apanhador de revolver o mundo e levar os homens a repensá-lo criadoramente.
no Campo de Centeio já havia tido cinco edições”. Convencidos disso, agimos. MSB e eu fomos dos que primeiro acre-
ditaram na necessidade de institucionalizar a atividade editorial
brasileira, a fim de que encerrasse a fase artesanal em que, com
$168 EDITORAS PROGRESSISTAS NA REPÚBLICA POPULISTA raras exceções, ainda se encontrava encaminhando-se para o de-
sempenho, em nível de indústria sofisticada e dinâmica, das tarefas
Entre os assuntos abarcados pelas edições da Civilização Bra- sociais que tem diante de si, como desafio constante...'*
sileira, além da ficção, podemos citar psicologia popular e edu-
cação sexual, filosofia, ioga e zen-budismo. Não se pode esque- A Civilização Brasileira não estava sozinha em sua orienta-
cer das importantes obras de história (como, por exemplo, O ção política. À chamada República “Populista” (1945-1964),
Ciclo de Vargas, de Hélio Silva, em diversos volumes), coleções particularmente em seus últimos anos, foi um período em que
de assuntos de atualidade (Documentos do Nosso Tempo, com se destacaram muitas editoras de posições progressistas. Já
obras como O Estado Militarista, de Fred Cook, ou A Máfia mencionamos algumas delas ($1 58), inclusive as que tinham
por Dentro, de Norman Lewis), antropologia (como Moron- vínculos diretos com o comunismo ortodoxo. Também fala-
guetá: Um Decameron Indigena [1967], de Nunes Pereira) e mos ($119) do editor marxista Caio Prado Júnior, da Bra-
de referência (como Dicionário das Artes Plásticas no Brasil siliense. À Fulgor representou forte apoio ao nacionalismo
econômico; foi importante também por lançar, em 1967, a
16. Veja, n. 372, p. 125, 22 Out. 1975. Ênio disse que encomendou a terceira edição da História Sincera da República, de Leôn-
tradução a Houaiss por ele ter perdido tudo no golpe de 1964.
17. Em contato pessoal, em setembro de 1970. 18. Ênio Silveira, op. cit.
594 Ênio Silveira Ênio Silveira 595

cio Basbaum, de orientação esquerdista, em quatro volumes, carreira se iniciou com a rede de livrarias LER, fundada em
cuja primeira edição, incompleta, saíra pela Livraria São José, 1947, criou a Zahar Editores em 1957, especializada em
em 1957. Alguns livros foram publicados pela revista pro- ciências sociais, a que acrescentou arte, filosofia, psicologia,
gressista Anhembi, de São Paulo (fundada em 1950), até que antropologia, história, linguística e comunicações. Suas tra-
a revista interrompeu suas atividades devido à inflação, em duções (cerca de 530, em seu catálogo de oitocentos títulos,
novembro de 1962. À pequenina Tempo Brasileiro (sete titu- em 1980) incluíram Gordon Childe, Croce, Duverger, Erich
los em 1964), embora com uma linha voltada principalmente Fromm (dezesseis títulos), Galbraith, Heilbroner, Leo Huber-
para a filosofia (da Escola de Frankfurt) e os ensaios literários, man, Ernest Jones, Jung, Mannheim, Marcuse, Wright Mills,
publicou, a partir de 1962, a revista nacionalista de esquerda Wilhelm Reich, Bertrand Russell, Toynbee e Jean Ziegler. Em
Tempo Brasileiro e foi responsável, em 1965, pelo incisivo 1963, a Zahar publicava cerca de quarenta títulos por ano
O Ódio Destrói o Brasil, de Beneval de Oliveira. Seu diretor, e, em 1980, esse número chegara a 140: oitenta livros novos
Eduardo Portella, iria simbolizar a “abertura” ao se tornar, e sessenta reedições. (Como explicaremos adiante, $196, em
em 1979, um liberal ministro da Educação do governo Figuei- 1965, Jorge iria separar-se da Zahar Editores para formar a
redo, mas a oposição de seus colegas mais conservadores de Jorge Zahar Editores.)
Ministério forçou-o a renunciar quando se mostrou incapaz Em 1964, Jorge Zahar, com Ênio Silveira e Carlos Ri-
de enfrentar com a firmeza desejada uma greve nacional de beiro (da Livraria São José), colhendo assinaturas em suas
professores universitários em dezembro de 1980. Mais tarde, livrarias, ajudou a organizar o Manifesto dos Intelectuais,
o presidente Fernando Henrique Cardoso nomeá-lo-ia diretor um protesto contra as ameaças revolucionárias à liberdade
da Biblioteca Nacional. A Tempo Brasileiro é dirigida atual- de expressão.
mente pelo irmão de Eduardo, Franco Portella. Apenas um
pouco maior (cerca de quinze títulos por ano) foi a firma de O DESLIGAMENTO DA COMPANHIA EDITORA NACIONAL $169
José Álvaro. A edição politicamente mais significativa de José
Álvaro foi, sem dúvida alguma, Tempo de Arraes (1964), de Ênio Silveira foi, sem qualquer discussão, a figura mais im-
Antonio Callado, em louvor do governador de Pernambuco portante desse grupo de editoras progressistas. De especial
então recém-deposto, e que estava preso e sendo processado importância em sua produção sociopolítica foi a coleção
por suas supostas ligações com o comunismo. À popularida- Retratos do Brasil, iniciada em 1960, com Radiografia de
de de Miguel Arraes (que sobreviveria a todos os presidentes Novembro, de Bento Munhoz da Rocha, que tratava da ten-
militares) incomodara até mesmo Goulart e, do ponto de vista tativa de Carlos Lacerda, em 1954, de induzir o Exército
do novo regime, era evidentemente o político mais perigoso brasileiro a impedir a posse do presidente eleito Juscelino
do país. José Álvaro publicou também crítica literária (Henry Kubitschek. A coleção prosseguiu com títulos como Retrato
Miller, de Hermilo Borba Filho, Kafka, de Leandro Konder), sem Retoque, de Adalgisa Nery; Revolução e Contrarrevo-
obras de psicologia e muita literatura brasileira contempo- lução no Brasil, de Franklin de Oliveira; Política Externa
rânea: Walmir Ayala, Autran Dourado, Millôr Fernandes, Independente, do ministro das Relações Exteriores de Gou-
Judith Grossmann, Ferreira Gullar, Orígenes Lessa, Clarice lart, Santiago Dantas; O Ano Vermelho: A Revolução Rus-
Lispector (inclusive seu livro infantil, O Mistério do Coelho sa e Seus Reflexos no Brasil, de Moniz Bandeira e outros
Pensante), Moacir Costa Lopes, José Louzeiro e Nélida Pinón, (1967), sobre a formação do Partido Comunista Brasileiro;
entre outros. A atividade editorial de José Álvaro começou Inflação e Monopólio no Brasil, de Alberto Passos Guima-
em 1963 e perdurou até princípios da década de 1970'*. Bem rães; e Assim Marcha a Família: Onze Dramáticos Flagran-
maior e ainda ativa foi a Zahar Editores. Jorge Zahar, cuja tes da Chamada Sociedade Cristãe Democrática no Ano do
4º Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, do jornalista e
19. Embora tivesse parado de editar, a firma José Álvaro ainda existia romancista José Louzeiro.
em 1980 (com um catálogo de 47 títulos), mas distribuia seus livros Dois anos mais tarde, quando os acontecimentos iam
e Terra.
pela Editora Paz construindo rapidamente o clímax que sobreveio com a “re-
s96 Ênio Silveira Ênio Silveira 597

volução” de 1964, Ênio Silveira lançou seus provocativos 24. Barbosa Lima Sobrinho, Desde Quando Somos Nacionalistas?
Cadernos do Povo Brasileiro, série de folhetos populares Extra 1. Violão de Rua: Poemas para a Liberdade, 1.
cujo texto de capa dizia: “Os grandes problemas do país Extra 2. Franklin de Oliveira, Revolução e Contrarrevolução no Brasil.
são estudados nesta série com clareza e sem qualquer sec- Extra 3. Violão de Rua: Poemas para a Liberdade, 2.
tarismo; seu objetivo principal é informar: somente quando Extra 4. Violão de Rua: Poemas para a Liberdade, 3.
bem-informado é que o povo consegue emancipar-se”. Uma
relação completa dos títulos pode dar uma indicação ade- Álvaro Vieira Pinto, autor do volume quatro e orientador,
quada da natureza da coleção: com Ênio, da série, era um dos principais luminares no Insti-
tuto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), instituição finan-
t. Francisco Julião, Que São as Ligas Camponesas? (julho de 1962). ciada pelo Governo Federal para a pesquisa e ensino em todos
2. Nelson Werneck Sodré, Quem é o Povo no Brasil? (julho de 1962). os campos de estudos brasileiros, que acabara sendo virtual-
3. Osny Duarte Pereira, Quem Faz as Leis no Brasil? (julho de 1962). mente monopolizada pelos nacionalistas da esquerda”.
4. Álvaro Vieira Pinto, Por que os Ricos não Fazem Greve? (julho Octalles Marcondes Ferreira desaprovava cada vez mais
de 1962), a quantidade de material esquerdista que seu genro publi-
5. Wanderley Guilherme [dos Santos], Quem Dará o Golpe no cava, e os Cadernos do Povo Brasileiro parecem ter sido a
Brasil? (livro extremamente profético, o único a antever um gota d'água. Na verdade, Octalles distanciava-se tanto da
golpe da direita). posição de Ênio na política que, em 1963, ajudou no apoio
6. Theotônio Júnior, Quais São os Inimigos do Povo? financeiro ao programa editorial do Instituto de Pesquisas
7. Bolívar Costa, Quem Pode Fazer a Revolução no Brasil? (no- e Estudos Sociais (Ipes) ($172). Como os dois continuavam
vembro de 1962). a manter ótimas relações pessoais, independentemente do
8. Nestor de Holanda, Como Seria o Brasil Socialista? (novembro vínculo familiar, jamais cogitou de desligar Ênio da empresa.
de 1962). Ao invés disso, foi-lhe oferecida a oportunidade de ficar com
9. Franklin de Oliveira, Que é a Revolução Brasileira? (novembro a maioria das ações da Civilização Brasileira, pondo fim,
de 1962). assim, a seu controle pela Editora Nacional. Como disse o
10. Paulo R. Schilling, O que é a Reforma Agrária? (março de 1963). próprio Octalles em 1970:
11. Maria Augusta Tibiriçá, Vamos Nacionalizar a Indústria Far-
macêutica? Eu sou um editor tradicional, gosto de conservar nossa tradição
12. Silvio Monteiro, Como Atua o Imperialismo lanque? (janeiro cultural. Já o Ênio é um editor de vanguarda, sempre pronto a lan-
de 1963). çar novas ideias. Há dez anos, ele era diretor da Civilização, que
13. Jorge Miglioli, Como São Feitas as Greves no Brasil? pertencia a mim e a meus irmãos. Quando percebi que o Ênio que-
14. Helga Hoffmann, Como Planejar Nosso Desenvolvimento? ria imprimir sua orientação à Editora, antes que houvesse choque,
(março de 1963). na família, comprei a parte dos meus irmãos e transferi tudo para
t$. Aloísio Guerra, A Igreja Está com o Povo? ele. Desde então recuso-me a fazer qualquer comentário sobre a
16. Aguinaldo N. Marques, De que Morre o Nosso Povo? Civilização. Gosto muito do Ênio, ele é muito bom marido...”.
17. Eduard Bailby, Que é o Imperialismo? (março de 1963).
18. Sérgio Guerra Duarte, Por que Existem Analfabetos no Brasil? Muitas dessas “novas ideias” diziam respeito à publicida-
19. João Pinheiro Neto, Salário é Causa de Inflação? de, um aspecto do negócio negligenciado, tradicionalmente,
20. Plínio de Abreu Ramos, Como Agem os Grupos de Pressão?
21, Vamireh Chacon, Qual a Política Externa Conveniente ao Brasil?
20. Sobre o Iseb, cf. Caio Navarro de Toledo, “Intellectuals of the
22, Virgínio Santa Rosa, Que foi o Tenentismo? (segunda edição de Iseb, the Left, and Marxism”, Latin American Perspectives, vol. 2$,n.
O Sentido do Tenentismo, de 1932, cf. $133). E, PP. 109-135, jan. 1998.
23. Osny Duarte Pereira, Que é a Constituição? (com 341 páginas, 21. Apud Gabriel Romeiro, “Nosso Livro Começou com Ele”, Cor-
sem dúvida o maior livro da coleção). reio do Livro, vol. 3,n. 31, p. IX, mar. 1970.
s98 Ênio Silveira Ênio Silveira 599

pelo editor brasileiro a tal ponto que um levantamento fei- um rompimento final com padrões e práticas oriundos da
to pelo Snel, em 1967, sobre editoras do Rio de Janeiro e França e a adoção de métodos norte-americanos”. A maio-
de São Paulo revelou que 40% delas sequer possufam um ria das famílias de tipos que passou a ser utilizada é de cria-
orçamento para publicidade. Já mencionamos o caso de Lo- ção norte-americana. À transferência do índice ou sumário
lita como um exemplo dos êxitos de Ênio Silveira obtidos do fim para o começo do livro é típica dessa tendência, como
a partir da publicidade dirigida ao público em geral. Ou- também o fato de, atualmente, os livros praticamente serem
tra ideia que lançou foi a extensa promoção por via postal. sempre publicados com as páginas refiladas, o que, além de
Uma dessas tentativas foi feita através da criação do Clube melhorar o aspecto, tem a grande vantagem promocional
dos Amigos da Cultura, cujos sócios tinham direito a ad- de estimular o hábito de folhear os livros na livraria, In-
quirir livros da Civilização com desconto de ro-20%. Para felizmente, muitos desses progressos acabaram sendo com-
associar-se ao Clube, pagava-se uma taxa de apenas dez cru- prometidos pela rigorosa economia imposta nessa indústria
zeiros, com uma oferta especial para professores a Cr$5,00 pela crise do petróleo: as margens são menores, a qualidade
durante algum tempo, em 1970. da impressão piorou, as “orelhas” foram eliminadas...
Disse Ênio Silveira que a primeira coisa que fez quando Na verdade, a memória de Ênio Silveira deve tê-lo traído
assumiu o controle total da editora foi renovar completa- um pouco, pois evidentemente já havia introduzido muitas
mente a imagem da empresa, contratando Eugênio Hirsch de suas inovações bem antes de tornar-se independente da
como seu principal produtor. Com isso, deu início a uma Nacional, em 1963. Hirsch, por exemplo, já desenhava ca-
revolução que, desde então, se estendeu à indústria editorial pas para ele em 1959. Muitas de suas mudanças parecem
brasileira como um todo. O aspecto do moderno livro bra- datar da já mencionada revogação, por Kubitschek, das res-
sileiro, qualquer que seja a editora, ajusta-se basicamente ao trições à importação dos novos equipamentos necessários.
estilo adotado pela Civilização Brasileira em meados da dé-
cada de r960. As capas passaram a usar desenhos que ocu-
pavam toda a altura e largura do volume, em quatro cores, OS ÚLTIMOS ANOS DO POPULISMO $r7o
quase sempre com o registro do devido crédito ao artista no
verso da página de rosto. O projeto tipográfico finalmente O mandato de Kubitschek (1956-1960) foi um período de
atualizou-se segundo o melhor costume moderno: particular- euforia nacional sem precedentes. À construção de Brasília
mente os espaços em branco passaram a ser utilizados mais representou o desbravamento das vastas regiões centrais do
generosa e atraentemente do que até então, e um esforço real país e possibilitou, finalmente, a mudança da capital para
foi dedicado à elaboração do leiaute, pelo menos da página longe da sibarítica costa oceânica. Esse primeiro “milagre
de rosto”. De muitas maneiras, as inovações representaram econômico” brasileiro produziu taxas de crescimento anual
de sete a oito por cento e um súbito aumento de produção
22. Um excelente estudo crítico do desenho do livro no Brasil é Bro-
chura Brasileira: Objeto sem Projeto, de Ana Luisa Escorel (Rio de
Janeiro, José Olympio, 1974). Após declarar que “nosso livro, herdei- víssima Editora, com suas bonitas brochuras dos autores verde-ama-
ro da paupérrima tipografia portuguesa, não tinha nenhuma tradição relistas”. Na sua análise da situação contemporânea, pede ao leitor
tipográfica que lhe permitisse processar com certa originalidade os que escolha “dois livros representativos |...| um, da Editora Civilização
[...] aperfeiçoamentos ocorridos [...] na Europa e nos Estados Uni- Brasileira, onde é visível a atenção dada à eficiência gráfica do texto —
dos” e que “a influência das ripografias francesa e alemã através |...] legibilidade — e ao equilíbrio formal [grifos nossos], outro da Editora
da Plancher, Garnier, Laemmert, Lombaerts [...] não contribuíram Brasiliense, onde aspectos de ordem estética não são considerados,e a
com muito mais para o desenvolvimento de nosso sentido gráfico”, mediocridade da organização tipográfica do miolo denota um proces-
admite a existência nos anos de 1920 de “algumas editoras que se samento errado do que seja o significado da diagramação do livro”.
preocupavam com esse aspecto do objeto, como a Anuário do Brasil 23. Os pormenores do formato americano são descritos por Denis
ce a Livraria Castilho, no Rio; a Monteiro Lobato, mais tarde Com- Policani, “Produção Gráfica”, Revista de Comunicação, Rio de Ja-
panhia Editora Nacional, em São Paulo, de onde era também a No- neiro, vol. 1,n. 4, pp. 28-29, 1985.
Ênio Silveira 601
600 Ênio Silveira
evidente para limitar o poder de um indivíduo que acabou
que beneficiou até mesmo o ramo editorial: de 1955 a 1962, simplesmente resultando numa série de administrações fra-
a produção de livros triplicou (cf. tabela 22, p. 885). cas, incapazes de controlar a economia. Em janeiro de 1963,
Não havia, porém, um grande número de novas casas
Goulart recuperou seus poderes através de um plebiscito. No
editoras. Em São Paulo, foi fundada a Duas Cidades, peque-
entanto, sua política externa independente opunha-se aos
na editora dedicada à sociologia, religião, literatura e arte.
Estados Unidos e sua postura de extremo nacionalismo em
Novas editoras voltadas para o público em geral estabelece-
assuntos econômicos internos provocou a fuga do capital es-
ram-se no Rio, entre as quais a Expressão e Cultura (espe-
trangeiro, já alarmado com a taxa de inflação. À consequente
cialmente arte e livros infantis), J. Ozon (livros didáticos e
decadência da economia — que apresentou um crescimento
um pouco de literatura brasileira) e a Lidador. À Eletrônicas negativo no início de 1964 — causou, por sua vez, um rápido
Editora, associada à Antenna ($156), data de 1960. Outra
aumento da mobilização popular e do confronto de classes.
nova € importante editora especializada, que caracterizou a
Embora tal situação possa ter criado novas oportunida-
crescente diversificação da atividade editorial brasileira, foi des editoriais - como os Cadernos do Povo Brasileiro, de
Análise e Perspectiva Econômica Editora (Apec), criada, em Ênio Silveira -, ela tornou o lado prático da atividade edito-
1963, por um grupo de economistas, entre os quais Roberto
rial cada vez mais difícil. Com a queda de valor da moeda
de Oliveira Campos, Mário Henrique Simonsen e Lucas a uma taxa constantemente acelerada, que acabou por atin-
Lopes, para editar um boletim quinzenal, mas que logo am- gir, no início de 1964, doze por cento ao mês, tornou-se im-
pliou sua esfera de ação, passando a publicar livros, como possível planejar financeiramente as operações. O cálculo
História Econômica do Brasil, de Mircea Buescu, e Brasil e
dos custos era impossível e os preços só podiam ser fixados
Iniciativa Privada, de T. Pompeu Netto. através do acompanhamento do fluxo de caixa. Além disso,
A entrada desse pequeno número de novas empresas na os impostos deviam ser pagos sobre os lucros monetários
indústria editorial pode ter sido causada pelo efeito inibidor nominais, lucros que podiam perfeitamente não existir em
de uma taxa inflacionária em rápida ascensão. Já durante termos reais, especialmente se houvesse alguma falha na re-
1958, os custos de impressão haviam subido 30%. Sem dú- marcação periódica dos estoques não vendidos (o que, por
vida, essa inflação foi deflagrada pela política expansionista sua vez, produziria um “crescimento” tributável dos ativos).
de Kubitschek: dizia-se que seu “progresso de cinquenta anos Níveis semelhantes de inflação voltariam a acontecer nos
em cinco” estava sendo pago com “quarenta anos de infla- anos de 1980, e seriam mantidos por muito mais tempo,
ção em quatro”. Mas os sucessores de Kubitschek permiti- embora atenuados até certo ponto pela correção monetária,
ram que a situação se tornasse inteiramente incontrolável. À
e pela própria habilidade que se aprende em longos anos de
direita ganhou as eleições seguintes, com o candidato Jânio
luta contra os males da inflação.
Quadros, que alguém descreveu, com perfeição, como “um Um efeito especialmente cruel da inflação sobre o mer-
cruzamento de William Ewart Gladstone e Groucho Marx”. cado brasileiro de livros foi o fortalecimento inevitável da
Em 1961, possuía reputação nacional como ex-prefeito da tradicional tendência da indústria a concentrar-se na região
cidade de São Paulo e governador do estado de São Paulo, de
Rio-São Paulo e negligenciar o restante do Brasil. Não só a
rígida moral e inimigo da corrupção, mas, em agosto de 1961,
distribuição para os pontos mais distantes do país é um pro-
renunciou dramaticamente após poucos meses de exercício,
cesso demorado, como também o conhecimento (e, portan-
o que tem sido atribuído à instabilidade mental, inutilidade to, a demanda) de novos títulos nessas regiões desenvolve-se
de seu trabalho, ou atabalhoada tentativa de golpe de Estado. muito lentamente. Em condições de custos (e taxas de juros)
Para evitar que o vice-presidente esquerdista João Goulart — rapidamente ascendentes, nenhuma editora pode permitir-se
antigo ministro do Trabalho de Getúlio Vargas — assumisse manter dinheiro imobilizado em estoques à espera de ven-
a presidência, a Constituição foi emendada às pressas, para das tão demoradas: uma edição menor, destinada ao centro
permitir o retorno à prática em vigor antes de 1889, a de do mercado no eixo Rio-São Paulo, e que ali se esgote com
um ministério chefiado por um primeiro-ministro responsá- relativa rapidez, faz muito mais sentido, comercialmente, do
vel perante o Congresso. Essa medida foi um remendo tão
602 Ênio Silveira Ênio Silveira 603

que uma edição maior, mas de venda mais lenta, destinada a 1968 e 1970 nunca foram publicadas — indicam apenas um
servir todo o país. modesto declínio em 1963 e 1964 (cf. tabela 22, p. 885): esta-
Embora os governos de 1961-1964 tenham procurado riam, talvez, as editoras valendo-se de seus estoques de papel?
abrandar a intranquilidade dos operários urbanos com au- Houve, porém, evidente queda na quantidade de papel no
mentos maciços de salários, o poder aquisitivo das classes mercado entre 1961 e 1966, como se vê na tabela 26 (p. 893).
médias (isto é, a maioria dos compradores de livros) foi O clamor resultante obrigou Jânio Quadros a constituir
sendo corroído firmemente, acelerando uma tendência que um grupo de estudos para examinar os problemas do co-
já havia começado muito tempo antes. O periódico Desen- mércio livreiro. De maneira notavelmente rápida, esse grupo
volvimento e Conjuntura, de julho de 1961, oferece índices apresentou seu relatório em menos de um mês, em 3 de maio
esclarecedores sobre os salários reais na cidade do Rio de de 1961, mas não tinha nada de novo a dizer. O problema
Janeiro (tabela 24, p. 897)“. básico continuava sendo o tamanho reduzido do mercado,
Entretanto, os custos de impressão subiam ainda mais atribuído à falta de poder de compra, tanto individual como
depressa: cerca de 250% nos últimos seis meses de 1961, institucional, e a uma distribuição deficiente. Isso significava
enquanto as tarifas postais passaram, nesse mesmo período, reduzidas tiragens, antieconômicas. Apesar dos grandes pro-
de quarenta centavos para catorze cruzeiros para um único gressos feitos no governo Kubitschek, ainda não havia equi-
livro de tamanho pequeno. Especialmente séria foi a decisão pamentos gráficos modernos suficientes, e o relatório lamen-
de Jânio Quadros, em março daquele ano, de inverter a po- tava a falta de apoio financeiro direto da parte do governo,
lítica de Kubitschek relativa ao papel de impressão ($166). como o concedido à agricultura e a certos setores da indústria.
A partir de 1º de julho, não apenas estendeu às importações O setor livreiro não pode ter pensado seriamente em ser
de papel as taxas de câmbio do mercado livre, como ainda salvo de seus problemas por um governo já tão preocupado
retirou o subsídio compensatório aos fabricantes brasilei- com problemas monetários, mas dificilmente poderia prever
ros de papel (80% do qual ia para as mãos de uma única que Jânio Quadros fosse reagir de modo a representar uma
empresa, a Klabin, graças ao monopólio do papel de jornal ameaça direta a um tradicional e seguro segmento: o merca-
que lhes fora possibilitado por Vargas). Essas medidas ele- do de livros didáticos.
varam o preço do quilo de papel, em apenas seis meses, de
seis para 150 cruzeiros, o que Jânio Quadros justificou com
a esperança de que isso reduzisse o tamanho desnecessário A HISTÓRIA NOVA $171
dos jornais brasileiros.
Em 1950, 0 papel correspondia a mais ou menos 10% As escolas particulares sempre tiveram liberdade para esco-
do custo de produção de um livro. Após o enorme salto dos lher seus próprios livros didáticos, mas, no Brasil, como em
preços mundiais do papel, em 1973-1974, calculou-se que outros países, esse setor tem sido desgastado continuamente
as editoras latino-americanas em geral estariam gastando pelo crescimento do ensino público. No país, mesmo as es-
com papel uma média de 18% de seus custos editoriais e de colas públicas (e, no nível secundário, os professores, indivi-
produção para uma tiragem de cinco mil exemplares. Antes dualmente) tradicionalmente têm tido liberdade para decidir
do final de 1961, as editoras brasileiras de livros gastavam sobre os livros didáticos que irão adotar, devendo essa esco-
não menos de 75% de seus custos de produção: situação lha (na maioria dos casos) ser feita a partir de uma lista de
maluca — que perduraria até 1966 — na qual ninguém ousava títulos já aprovada pelas secretarias estaduais de educação:
pensar em publicar qualquer livro que não oferecesse a cer- sistema semelhante ao existente em muitos estados dos EUA.
teza de ser vendido rapidamente. O Governo Federal nada mais faz que estabelecer as linhas
As estatísticas oficiais sobre a produção brasileira de li- gerais do currículo básico, embora, durante o Estado Novo,
vros, quando disponíveis — parece que as relativas a 1966, essas listas oficiais fossem cuidadosamente controladas pelo
Governo Federal por intermédio de sua Comissão Nacional
24. Desenvolvimento e Conjuntura, vol, s,n.7,p.7s,jul. 1961, do Livro Didático, criada em 30 de dezembro de 1938, numa
6o4 Ênio Silveira Ênio Silveira 605

deliberada tentativa de censura política (decreto n. 1006). Jânio Quadros, como professor que tinha sido, estava bem
Não obstante, pode-se dizer que, em geral, o sistema salva- consciente do quanto a inflação tornava cada vez mais difícil
guarda a independência do magistério e procura evitar que para os pais enfrentar as despesas necessárias para manter
qualquer autor ou editora estabeleçam monopólio em qual- os filhos na escola. Como político, também deve ter-se dado
quer campo. À principal crítica, provinda dos acadêmicos, conta de que os livros didáticos, embora não representassem
é a de que muitos professores são incapazes de fazer uma mais de três ou quatro por cento dessas despesas, constituíam
escolha criteriosa e de que é muito fácil serem aceitos livros geralmente a parte mais sensível, por ser sua necessidade
didáticos de má qualidades. muito menos óbvia do que as de alimentação, roupa ou con-
Em contrapartida, os pais reclamam frequentemente da dução. Assim, decidiu fazer baixar os preços do livro didático
mudança constante, pelos professores, do livro escolhido — e adotou a padronização total como meio para conseguí-lo.
talvez pelo simples tédio de ter de repassar o mesmo texto já Antes mesmo que o grupo de trabalho tivesse apresentado
conhecido ano após ano! Em 1939, 0 Governo Federal jul- seu relatório, o decreto n. so 489, de 25 de abril de 1961,
gou necessário proibir a substituição de um livro indicado no apresentava um esquema para um único texto básico para
curso do ano letivo: a legislação atual exige que a indicação cada ano de todos os cursos não universitários, bem como
de qualquer livro seja mantida por pelo menos quatro anos, um dicionário e um atlas padrão. Para conseguir economia
exigência frequentemente ignorada, especialmente quando máxima, a Campanha de Assistência ao Estudante, órgão do
sai uma nova edição, ainda que as editoras sustentem que a Ministério da Educação, atuaria como editora e distribuiria
maioria das novas edições são revisões antieconômicas de os livros diretamente a professores e alunos.
textos satisfatórios, a que são obrigadas devido a mudan- Se um projeto como esse tivesse sido implementado, te-
ças desnecessárias no currículo. Muitas vezes, as escolas têm ria retirado do setor privado quase todo o mercado de li-
de indicar uma nova edição (ou um novo livro) porque o vros didáticos, tanto na produção como na venda a varejo,
adotado anteriormente esgotou: as vendas dos livros didá- e Ênio Silveira, como proeminente editor comercial, mesmo
ticos são extremamente sazonais e as editoras relutam em não estando, ele mesmo, envolvido na publicação de livros
providenciar sua impressão com suficiente antecedência em didáricos, protestou veementemente, juntando sua voz ao
relação às vendas devido ao alto custo do crédito. Em 1983, clamor geral da classe.
a revista Veja estimava em quatro anos a vida média de um Mesmo assim, os preparativos prosseguiram, e, após a
livro didáticos. renúncia de Jânio Quadros, o Ministério da Educação do
Críticas feitas ao sistema sempre se referiram à economia governo sucessor deu prioridade aos novos textos de his-
de escala que se poderia conseguir com a maior uniformida- tória. Foram confiados a Pedro de Alcântara Figueira, Joel
de dos livros didáticos. Portugal dos tempos de Salazar, por Rufino dos Santos, Maurício Martins de Melo, Pedro Celso
exemplo, com uma população mais de dez vezes menor que a de Uchôa Cavalcanti e Rubem César Fernandes, todos do já
do Brasil, produzia, nos anos de 1960, livros didáticos para a citado Iseb — Instituto Superior de Estudos Brasileiros ($169),
escola primária em tiragens de quinhentos ou seiscentos mil organização politicamente comprometida”. Quando o golpe
exemplares, em comparação com a média brasileira de duzen- de 31 de março/rº de abril de 1964 pôs um ponto final defi-
tos mil ou menos. Na verdade, a diferença no custo unitário nitivo no projeto, com a apreensão dos livros e prisão de seus
entre tiragens de duzentos, quatrocentos ou seiscentos mil é autores, apenas a metade dos dez volumes projetados havia
quase desprezível, além de que existem informações de que sido publicada em livro, sob direção de Nelson Werneck So-
muitos títulos no Brasil já chegavam a tiragens ao redor de dré: 1, O Descobrimento; 2, As Invasões Holandesas; 4, À
quinhentos mil, Isso, entretanto, não demoveu os críticos. Expansão Territorial; 6, A Independência de 1822; e 7, Da

25.“A Grande Fábrica de Trinta Obras Nossas”, Veja, pp. 44-45, 2 mar. 27. Sobre o Iseb, cf. Caio Navarro de Toledo, “Intellecruals of the
1983, em que é atacado o autor de livros didáticos Elian Alabi Lucci. Iseb, the Left, and Marxism”, Latin American Perspectives, vol. 25,
26. “Lições Milionárias”, Veja, p. 43, 3 mar. 1983. n. 1, PP. 109-13S, jan. 1998.
606 Ênio Silveira Ênio Silveira 607

Independência à República. Surpreendentemente, a obra foi A ATIVIDADE EDITORIAL SOB OS PRIMEIROS


produzida (pela Brasiliense) numa edição de apenas quarenta PRESIDENTES MILITARES $172
mil exemplares; é evidente, pois, que pelo menos não havia
plano algum de obrigar seu uso generalizado imediatamente. Quer devido a pressões externas — os Estados Unidos estavam
Depois do golpe militar, Caio Graco Prado ficou preso por inquietos, não apenas com a política externa independente
dez dias no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) do Brasil, mas ainda mais com a perspectiva iminente de um
pelo seu papel no projeto. atraso de pagamento de sua dívida externa” — quer à inépcia
Ênio Silveira conseguira sua independência exatamente do governo, quer ainda porque Goulart considerasse que o es-
um ano antes do golpe, num período de crescente incerteza tabelecimento do caos fosse uma preliminar necessária a um
política, quando um golpe de Estado, fosse de direita ou de golpe que ele próprio estava planejando, o fato é que o país
esquerda, começava a parecer inevitável. Um clima como esse atingira, no início de 1964, um tal estado de desespero que
estava destinado a dar proeminência ao editor mais compro- tornava inevitável a ocorrência de mudanças políticas radi-
metido com assuntos politicamente controversos. Há poucas cais. Quando a chamada “revolução” aconteceu, sob a forma
razões para supor que ele nutrisse qualquer simpatia real pe- de uma ação militar na véspera de 1º de abril, recebeu um
las metas vacilantes, pelas táticas contemporizadoras e pela apoio bastante amplo, inclusive da “grande massa dos brasi-
incompetência administrativa do governo Goulart. Todavia, leiros da classe média urbana”, como admite um adversário”.
dada a natural tendência humana a ver indecisão, inconsis- Grande parte da base desse apoio fora plantada cuida-
tência e desunião apenas em suas próprias hostes, ao passo dosamente numa intensa campanha de propaganda, quase
que os opositores são sempre vistos como uma estrutura mo- toda orquestrada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos So-
nolítica de astúcia maquiavélica, é fácil compreender que a ciais (Ipes), organização financiada por entidades privadas
maioria da direita passasse a encará-lo virtualmente como o (e virulentamente anticomunistas)?*. Entre as editoras, ofe-
braço editorial do governo”. Apesar dos protestos de Ênio receram apoio financeiro a Agir, Paulo de Azevedo (Francis-
Silveira contra a própria ideia de um “texto único”, a His- co Alves), Globo, Kosmos, LTB, Monterrey, Nacional, José
tória Nova foi tomada amplamente como prova disso pelo Olympio e Vecchi. A Agir, “O Cruzeiro” e a AGGS deram as-
único motivo, na falta de melhor, de Nelson Werneck Sodré, sessoria técnica ao Ipes; a Saraiva cuidou de publicações e
organizador da série, pertencer aos quadros da Civilização forneceu espaço de publicidade na TV; a GRD foi importante
Brasileira, e muitos Cadernos do Povo Brasileiro terem sido entre as fontes de livros distribuídos pelo Instituto, como
escritos por autores pertencentes ao Iseb, Cuba — Nação Independente ou Satélite?, de Michel Aubry;
Os adversários mais imaginativos do governo chegaram A China Comunista em Perspectiva, de Doak Barnett; A
a convencer-se de que a mesma desculpa da grave situação Agricultura sob o Comunismo, de George Benson; e Ana-
financeira do país, que servira para ocultar essa tentativa de tomia do Comunismo, de Margaret Dorvar et al. O próprio
impor a todas as escolas o uso de um livro didático de história dono da erp, Gumercindo Rocha Dória, era presidente da
de caráter marxista, estava agora em vias de ser usada para in- Confederação de Centros Culturais da Juventude. O grupo
troduzir o racionamento de papel por motivação política, sen-
do Ênio Silveira o suposto escolhido de Goulart como “czar 29. O embaixador norte-americano da época deu sua própria opi-
da imprensa”. O aspecto notável desse boato é a surpreenden- nião em Brazif's Second Chance: En Route Toward the First World,
te proeminência atribuída a Ênio Silveira, um simples editor Washington, Brookings Institution Press, 200, pp. 63-71.
de livros, quando teria parecido muito mais natural, naquele 30. Leslie Bethel, “Brazil: The Last Fifteen Years”, Index on Censor-
contexto, ter caluniado algum jornalista de esquerda. ship, vol. 8,n. 4, pp. 3-7, maio 1979. Número especial sobre o Brasil.
31. O quadro de sócios, as atividades e as fontes de financiamento
do Ipes foram amplamente documentados em René Armand Dreifuss,
28. Para uma opinião de um participante sobre a desunião das es- 1964: A Conquista do Estado, Ação Política, Poder e Golpe de Classe,
querdas em 1964, cf. Paulo Francis, O Afeto que se Encerra: Memó- Petrópolis, Vozes, 1981, pp. 195-196, 220. Edição original: State, Class
rias, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, pp. 55-67. and Organic Elite.
608 Ênio Silveira Ênio Silveira 609

que dirigia as atividades editoriais do Ipes, de que faziam entanto, em 1973,0 governo proclamava ter reduzido a infla-
parte Rachel de Queiroz e Augusto Frederico Schmidt, ins- ção do país a apenas 15% ao ano. Isso era um tanto otimista,
talou no Rio o Centro de Bibliotecnia, com vistas a publicar mas, em comparação com a turbulenta história monetária do
livros infantis e distribuir livros recebidos através do projeto Brasil do pós-guerra, seu real desempenho era, de fato, bas-
norte-americano Franklin Book Programs. tante meritório. Esse restabelecimento, que levou a algo muito
É interessante assinalar, a propósito, que sob os auspí- próximo da estabilidade econômica, foi, basicamente, a maior
cios dos Franklin Book Programs foi criado também, em São contribuição que o regime poderia ter dado à prosperidade
Paulo, um Centro de Biblioteconomia para o Desenvolvi- da indústria editorial brasileira; porém deu também valioso
mento, instalado em 1966 como órgão do Instituto Roberto apoio de outros modos. À isenção de todos os impostos, exce-
Simonsen da Federação das Indústrias do Estado de São to o de renda, por exemplo, foi estendida a todos os estágios
Paulo. Não tinha qualquer objetivo político, mas apenas téc- da produção e venda do livro, inclusive à fabricação do papel
nico: promoveu um seminário para editores e livreiros, criou de impressão, e um dispositivo nesse sentido foi incluído na
um prêmio de criatividade (pequeno núcleo de biblioteca, nova Constituição (1967).
selecionado pelo Sesi) para operários e chegou a esboçar um A fabricação de papel e a produção local de celulose foram
ambicioso projeto de pesquisa para o levantamento de um de tal modo estimuladas que, em 1977, a importação de pa-
vocabulário básico de português. Teve, porém, vida efêmera. pel limitava-se, virtualmente, a pequenas quantidades de ti-
Somente a partir de 9 de abril (com a assinatura do Ato pos especiais: dez anos antes, a produção nacional cobria
Institucional n. 1) é que ficou claro que o Exército pretendia apenas 60% do consumo - praticamente todo o papel cou-
manter indefinidamente uma parcela direta do poder no go- ché (por exemplo) era importado da Escandinávia, e ainda
verno, embora dificilmente se pudesse considerar inesperada havia reclamações sobre a baixa qualidade. Graças à nova
essa reação, uma vez que um dos últimos e desesperados política, o país passou a ser um exportador de papel e celu-
lances de Goulart havia sido um apelo ao apoio das camadas lose em escala bastante considerável: em 1983, 393 mil tone-
de militares sem patente das Forças Armadas. ladas, contra um consumo interno de três milhões, das quais
A tomada do poder e a ampliação das prerrogativas pre- 733,6 mil para impressão e 106,4 mil para jornais; a expor-
sidenciais que se seguiram deram carta branca à nova ad- tação de celulose assumiu uma escala bem maior (cerca de
ministração para aplicar os conselhos de seus técnicos, sem um milhão de toneladas no mesmo ano, para uma produção
qualquer consideração pela impopularidade imediata de suas de pouco mais de três milhões). Esse sensível aumento de
ações. Medidas deflacionárias rigorosas eram, provavelmen- produção foi obtido, em parte, com maciços investimentos
te, O único meio de restaurar a saúde econômica do país, mas estrangeiros: calcula-se que a participação de empresas na-
implicavam longa recessão que atingia o setor livreiro de cionais na indústria de papel tenha caído, a partir de 1964,
modo particularmente duro, como é comum das recessões. para apenas um terço. Em 1977, surgiu uma preocupação
Até mesmo isso, porém, era preferível ao estado caótico da inicial sobre a existência ou não de um número suficiente de
economia nos governos de Jânio Quadros e Goulart, e a in- compradores no mercado externo para absorver o nível de
flação que ela deixara como legado não podia ser extinta de produção esperado para o início da década de 1980. Preo-
um golpe, nem mesmo por uma ditadura militar. Houve, por cupação infundada, uma vez que, já em 1984, a produção
exemplo, um aumento de 50% nos custos gráficos apenas em local de celulose e papel, embora registrando elevados ín-
sete meses, de novembro de 1965 a junho de 1966. De fato, dices de aumento nos anos recentes, mal conseguia atender
todos os primeiros seis anos após a “revolução” foram tem- à crescente demanda externa, a tal ponto que as editoras
pos difíceis, e, antes de 1970, os benefícios das novas políticas brasileiras já se queixavam de dificuldades na colocação de
para o setor livreiro foram sentidos muito fracamente::. No pedidos para pronta entrega. As vendas no exterior tinham

32. À gravidade de deflação de 1966 pode ser medida pelo fato de o 1961, atingindo 85,7% em 1964, ter tido seu crescimento limitado a
aumento do meio circulante, que fora de mais de 50% por ano desde apenas 15% em 1966.
óIo Ênio Silveira Ênio Silveira 611

sido estimuladas de tal modo por atraentes incentivos fiscais e logo voltou aos métodos tradicionais quando descobriu que
que começavam a prejudicar os consumidores nacionais em os custos haviam subido violentamente de Cr$30000 para
termos de disponibilidade e preço. Cr$80 000, enquanto o tempo de produção aumentara de
Em 1966, o governo criou o Geipag, órgão para a in- vinte para oitenta dias. Por sua vez, as máquinas para re-
dústria gráfica, equivalente ao Geil da indústria editorial produção em offset, em pequena escala, de textos a partir
(e, como o Geil, extinto em 1971, no governo Médici). O de originais datilografados especialmente preparados revo-
Geipag convenceu as autoridades da necessidade de uma lucionaram o trabalho de impressão em muitas das pequenas
nova e extensa renovação dos equipamentos da indústria. empresas do Brasil, particularmente no interior, que até então
Apesar dos esforços de Kubitschek ($166), a idade média da dependiam da impressão tipográfica a partir da composição
maquinaria dessa indústria era de 35 a 40 anos, e, de qual- manual. Mais importante ainda foi a introdução da moderna
quer modo, tinha havido desde então muitos progressos téc- maquinaria de acabamento: até então o miolo, por exemplo,
nicos e um considerável crescimento da indústria editorial. recebia a capa numa operação realizada à mão, o que era
O decreto-lei n. 46, de 18 de novembro de 1966, isentava de uma das principais razões de os livros serem mais caros no
taxas alfandegárias a importação de máquinas para a pro- Brasil do que na Argentina ou em Portugal.
dução de livros, e em três anos haviam sido concedidas auto- No entanto, com que rapidez mudam as tecnologias nos
rizações para importações no valor total de us$40000000. dias de hoje! Esse último parágrafo escrito nos anos de 1970
Isso aumentou de tal maneira a capacidade da indústria parece agora ter apenas interesse histórico. O aperfeiçoa-
que logo começou a aceitar encomendas do exterior, espe- mento do computador pessoal no escritório do autor, e do
cialmente da Argentina. Sua versatilidade técnica também editor, além de tantas outras aplicações de tecnologia eletrô-
aumentou enormemente, a ponto de o sistema offset pas- nica na área gráfica nos anos de 1990, já revolucionou tudo,
sar a concorrer com a tipografia como processo normal de dando assim um salto de qualidade e provocando aumento
impressão de livros e logo a superá-la. Já em 1966, 52,9% da produtividade e queda dos preços. Tornou-se possível
dos livros publicados por empresas filiadas ao Snel, no Rio entregar o texto do livro em arquivo digital, mesmo pela
e em São Paulo, eram impressos em offset. Em 1978, 77% internet, para ser inserido diretamente num equipamento
da produção livreira nacional era em offset, apenas 13% em acoplado à impressora offset, eliminando assim os fotolitos,
tipografia e os restantes 10% em rotogravura*. a montagem manual e a heliográfica. E, em vez do offset, que
Olímpio de Souza Andrade manifestou fortes reservas usa tinta (última sobrevivente da idade de Gutenberg?), te-
com relação à grande parte desse investimento: a produção mos impressão a laser, que utiliza o toner, em líquido ou em
de livros no Brasil, sustentou ele, ainda era muito pequena pó. E com tudo isso, a enorme vantagem de poder imprimir
para justificar equipamentos que, em muitos casos, só podem a medida da demanda. A distinção entre as várias reimpres-
operar cconomicamente a partir de tiragens em torno de trin- sões sucessivas realmente acabou: produz-se a quantidade
ta mil exemplares*t, Nesse caso, porém, embora não o diga em exata de livros que as encomendas estipulam, repetindo o
seu trabalho, provavelmente estava se referindo às rotativas, processo cada vez que for necessário.
uma vez que quatro ou cinco mil exemplares já são tiragens
econômicas para impressão pelo sistema offset. Exemplifica
com um periódico de economia que passou do processo tipo- SUBSÍDIOS E LIVROS DIDÁTICOS $173
gráfico para a fotocomposição e impressão em offset em 1972,
O novo governo começou também a financiar diretamente
o setor livreiro de vários modos através do subsídio a livros.
33: Snel: Produção e Comercialização de Livros na Região Rio/São
Paulo, Rio de Janeiro, 1969, e Snel: Produção Editorial Brasileira Um desses modos era o Conselho Federal de Cultura, consti-
1976-1977-1978, Rio de Janeiro, [19802], mimeo. tuído em novembro de 1966, com vinte e quatro membros —
34. Olímpio de Souza Andrade, O Livro Brasileiro desde 1920, 2. ed., sobretudo escritores proeminentes como Rachel de Queiroz,
revista, atualizada e aumentada, Rio de Janeiro, Catédra, 1978. Cassiano Ricardo e Peregrino Júnior — sob a presidência de
612 Ênio Silveira Ênio Silveira 613

Arthur Cezar Ferreira Reis (depois, de Adonias Filho), e tendo escolas, em caráter gratuito. Tanto os livreiros como os edi-
Manuel Bandeira como secretário executivo. O Conselho ocu- tores queixavam-se da Fundação Nacional de Material Es-
pou-se da edição de obras de importância cultural; sua ajuda colar (Fename), do Governo Federal, criada em 1956 como
possibilitou, por exemplo, que a Aguilar publicasse edições Campanha Nacional de Material de Ensino, para oferecer
das obras completas de Graça Aranha e Afonso Arinos por aos alunos carentes material de papelaria barato, mas que
cerca da metade do preço comercial normal. O crc também agora estava invadindo o mercado de livros didáticos, com a
publicou edições próprias: a antologia patriótica de 1964, O produção de atlas, dicionários etc., vendidos em seus pontos
Brasil e os Brasileiros, de Djacir Menezes (reitor da Universi- de venda a preços irreais, altamente subsidiados, prejudi-
dade Federal do Rio de Janeiro e membro do Conselho), por cando a comercialização de obras similares produzidas pelo
exemplo, foi reeditado pelo Conselho, em 1972, com o título setor privado. O problema das milhares de crianças cujos
O Brasil no Pensamento Brasileiro. pais eram pobres demais para comprar seus livros escola-
A “revolução” pôs fim à ameaça do governo de assumir a res persistia; na verdade, esse problema exacerbara-se com
indústria de livros didáticos, que continuou a responder por o impacto das políticas anti-inflacionárias do regime sobre
parcela bastante substancial da produção de livros do país. os rendimentos da classe trabalhadora. Para resolvê-lo de
O Correio do Livro estimou que, em meados de 1968, 2 500 modo compatível com a empresa privada, foi instituído o
títulos de livros didáticos estavam à venda no Brasil para to- Programa Nacional do Livro Didático, para adquirir livros
dos os níveis educacionais, publicados por cerca de sessenta das editoras, cuja execução foi confiada a um órgão deno-
editoras*s, No entanto, 80% desses títulos provinham de de- minado Comissão Nacional do Livro Técnico e Didático
zesseis editoras: Melhoramentos, Agir, José Ozon, Francisco (Colted) - nome quase idêntico ao do órgão existente sob
Alves e Conquista (principalmente para o primário); Na- o Estado Novo ($117). Criado pelo decreto presidencial
cional, Atlas e Editora do Brasil (principalmente para o se- n.59355,de 4 de outubro de 1966, a Colted foi financiada
cundário); Agir, Fundo de Cultura e Zahar (universitários); conjuntamente pelo Ministério da Educação e pela Usaid
Ao Livro Técnico, Globo, Científica e Guanabara Koogan (United States Agency for International Development), com
(técnicos), e Freitas Bastos e Forense (jurídicos). Os preços, a colaboração do sindicato dos editores (Snel)*.
declarava o Correio do Livro, eram os mais baixos possíveis Apesar da participação do $nel, o setor editorial ficou
(só poderiam ser ainda mais baixos se fossem mais simples, muito apreensivo no princípio, temeroso, senão de uma
impressos numa cor, em papel inferior e com um mínimo de repetição da ideia de Jânio Quadros de padronizar o livro
ilustrações). O lucro da editora era estimado em 7% sobre o didático, pelo menos de que se desviassem as vendas de li-
preço de capa, mas aos livreiros atribuía-se um desconto de vros dos canais regulares do comércio livreiro. No entanto,
até 40%, exceto no caso de livros primários e secundários segundo Kenneth T. Hurst, assessor da Usaid para o pro-
(30%), com base no tradicional argumento de que só se po- grama, ao contrário disso, houve na verdade um aumento
deria manter uma rede adequada de livrarias para o comér- das vendas normais, devido à publicidade gerada pelo es-
cio do livro em geral se contasse com a segurança básica do quema para os textos nele incluídos. O programa da Colted,
mercado de livros didáticos. Além disso, queixavam-se os li- ele estava seguro, fortaleceria o comércio livreiro em todos
vreiros de que o sistema de livre escolha os obrigava a manter os estágios — dos livreiros varejistas aos fabricantes de tinta
estoques desnecessariamente grandes, que muitas vezes fica- para impressão.
vam em suas mãos. Ressentiam-se também da concorrência Certamente,a Colted beneficiou o lado industrial, pois sig-
desleal da Fundação para o Livro Escolar, de São Paulo, en- nificava que perto de nove milhões de dólares estavam sendo
tidade mantida pelo governo estadual, cuja função é aprovar investidos no setor livreiro apenas seis meses após o início
os livros didáticos para uso naquele estado e adquirir alguns
títulos, entre os mais solicitados, para distribuição direta às 36. À Usaid é uma organização subordinada à Administration for
International Development (com a mesma sigla, Usaid) do State De-
38. Correio do Livro, vol. 2,n. 10, maio-jun. 1968. partment (Ministério de Relações Exteriores dos EUA).
614 Ênio Silveira Ênio Silveira 615

do programa. Outro resultado foi a publicação, pelo Snel, da mas um aumento tão grande no desconto tradicional era
primeira bibliografia atualizada de livros didáticos e livros inaceitável pelas editoras, que firmaram posição nesse senti-
técnicos brasileiros, publicada em 1969. Nela foram relacio- do. O resultado foi que a Colted recebeu descontos de ape-
nados s 986 títulos postos à venda, aumento notável sobre a nas 30%, ocasionalmente de 35%.
cifra de 2 500, observada em 1968. Alguns dos novos títulos Em novembro de 1968, teve início um programa intensivo
eram traduções de livros universitários e técnicos (america- de treinamento de professores para uso dos livros. À Colted
nos) de interesse local, que a Colted estimulava as editoras realizou seminários para editores e profissionais de editora-
brasileiras a publicar nos casos em que não houvesse pu- ção e comercialização, embora, na opinião de seu consultor,
blicação brasileira similar. Nem todos aprovaram esse pro- Emerson Brown, os padrões editoriais brasileiros fossem tão
cedimento. O deputado do mpB*”, Márcio Moreira Alves, diferentes dos dos Estados Unidos que chegavam a limitar
escreveu um livro, O Beabá dos mEc-Usaid (Rio de Janeiro, seriamente qualquer possível transferência de técnicas.
Gernasa, 1968), para atacar esse tipo de “imperialismo cultu- Nesse mesmo ano, num esforço conjunto da CBL, do Snel
ral”, e um observador estrangeiro, Armand Mattelart, viu em e da Usaid (que já colaborara na implantação da Colted),
tudo isso uma artimanha para tornar os “livros editados pela foi realizado o | Encontro de Editores e Livreiros, com a
McGraw-Hill [sic] obrigatórios em todos os níveis do ensino vinda de um seleto grupo de norte-americanos especialis-
brasileiro”s!, Reação mais prática veio da França, cujo gover- tas em produção e venda de livros. Apesar da opinião ex-
no se prontificou a subsidiar a tradução de compêndios fran- pendida por Emerson Brown, a partir daí foram institu-
ceses (arcando com o pagamento dos direitos dos autores). cionalizados, no Brasil, os encontros de editores e livreiros
Nos níveis primário e secundário, o programa da Colted anuais, sempre promovidos pela cBL e pelo Snel: depois
começou com a seleção, após consulta a professores, de li- dos norte-americanos, foram trazidos especialistas france-
vros já existentes e disponíveis comercialmente. Estes foram ses (1969), alemães (1971 e 1978) e, agrupados num desses
entregues às escolas em duas etapas: primeiro, em demons- encontros (1979), profissionais da Inglaterra, Áustria, Ho-
tração, conjuntos de trezentos livros para avaliação por par- landa e Espanha. Nos anos subsequentes, os temários es-
te dos professores, e, em fins de 1969, haviam sido enviados tiveram voltados para assuntos e problemas locais ligados
para as escolas perto de 15 676000 livros em 3 698 municí- à indústria e ao comércio do livro. Antes desses encontros,
pios. Depois, as escolas receberam um suprimento gratuito foram realizados no Brasil três congressos de editores: o pri-
de quantidades variáveis de alguns desses livros para serem meiro em 1948, o segundo em 1954 (ambos em São Paulo)
emprestados aos alunos: em fins de 1969, haviam sido dis- e o terceiro e último em 1956, no Rio. À interrupção desses
tribuídos desse modo s 874 320 livros didáticos, à razão de congressos deve-se, aparentemente e ao menos em parte, à
um por aluno. realização dos encontros.
O plano da Colted em relação a livros de nível superior Mas o próprio conceito de fornecimento gratuito gene-
era adquiri-los das editoras, com descontos especialmente ralizado de livros didáticos era estranho à tradição educa-
negociados (50%?) e distribuí-los às universidades com des- cional brasileira. À Colted foi absorvida pelo Instituto Nacio-
conto de 45% sobre o preço de capa nas livrarias, para que os nal do Livro e todo o programa foi extinto em maio de 1971.
revendessem aos alunos com 40% a menos. Esperava-se que A atitude brasileira, exposta claramente pelo então ministro
pages

essa parte das atividades da Colted fosse autossustentável, da Educação, Jarbas Passarinho, era que os pais que podiam
pagar deveriam fazê-lo.
Embora continuassem a afirmar que desaprovavam in-
37. Movimento Democrárico Brasileiro, o partido da oposição na-
quela era de bipartidarismo. teiramente a ideia do livro único, as autoridades brasileiras
38. Armand Matrelart, The New Multinational Educators (inédito), tomaram algumas medidas após a desativação do projeto
apud Peter Golding, “The International Media and the Political Eco- Colted, que poderiam vir a eferivá-la. Em 1971, foi introduzi-
nomy of Publishing”, Library Trends, vol. 24,n. 2, p. 464, 1978. Nú- do um núcleo central de ensino uniforme para todo o país. No
mero especial sobre a atividade editorial do Terceiro Mundo. mesmo ano, doze editores participaram da primeira Mostra
616 Ênio Silveira Ênio Silveira 617

do Livro Didático, em Petrópolis, e, entre os livros apresen- e dois colegas, professores no Curso Supletivo Santa Inês,
tados, encontrava-se a série Estudos Dirigidos de Português, estabelecimento particular de educação de adultos de São
de Reynaldo Mathias, da Editora Ática, que já vendera três Paulo, constituíram-na originalmente para comercializar
milhões de exemplares naquele ano, e Matemática na Escola cópias mimeografadas de seu próprio material de ensino,
Renovada, da Saraiva, que havia vendido dois milhões. Cin- para satisfazer a demanda de professores de outras insti-
quenta anos antes, quando Monteiro Lobato estava em vias tuições. Tornaram-se autênticos editores no ano seguinte,
de entrar no mercado do livro didático, considerava-se que quando começaram a produzir manuais para professores —
um texto de escola primária era estrondosamente bem-suce- na época, uma novidade no Brasil - e, pouco depois, a co-
dido quando vendia cinquenta mil exemplares! Uma ideia leção Bom Livro, série de clássicos da literatura brasileira.
para reduzir ainda mais o custo dos livros escolares, apresen- Dando grande ênfase ao projeto gráfico, sendo um dos pio-
tada no vi Encontro Nacional dos Coordenadores do Livro neiros no uso educativo das histórias em quadrinhos e dan-
Didático (Brasília, 1975), foi a do livro integrado: um único do preferência a obras de autores nacionais (95% de seus
texto que cobrisse todo o material para as quatro primeiras títulos à venda), sua produção anual saltou de nove livros,
séries, a ser produzido com o apoio do Ministério da Edu- em 1968, para 22 em 1970 € para r80 em 1980: 98 livros
cação e Cultura. Uma vez que se previa uma edição de dez didáticos para nível secundário, dezesseis obras para nível
milhões de exemplares, argumentava-se que as economias de universitário, dois dicionários, 42 livros infantis e 22 títulos
escala seriam maximizadas. Embora com isso não se visasse em sua coleção Autores Brasileiros (muitos dos quais são o
especificamente a produzir a uniformidade, dificilmente se primeiro trabalho de novos autores). Em 1983, incorporou
teria podido evitar a criação de uma concentração maior do a Editora Scipione e o Clube do Livro ($755). Em 1984
mercado. Todavia, os órgãos de classe dos editores acaba- (depois da extinção dos direitos autorais), publicou a pri-
ram demonstrando inequivocamente que — além dos riscos meira edição crítica de Os Sertões, organizada por Walnice
educacionais e ideológicos envolvidos em sua possível trans- Nogueira Galvão.
formação, na prática, em livro único (dado o envolvimento A Ática implementou também um próspero negócio de
do Ministério da Educação) — o resultado não seria econômi- exportações — para a Venezuela, a Nigéria e o Senegal, bem
co. Ao contrário, ao fato de a economia de escala ser despre- como para a África de fala portuguesa e para Portugal —
zível em faixas de milhões de exemplares somava-se outro, com alguns títulos destinados especialmente ao mercado
dizia-se, mais grave e que não havia sido levado em conta de exportação. À decisão original de limitar seus livros não
nos estudos de sua viabilidade: a elevadíssima evasão escolar didáticos a 128 páginas ajuda na exportação, assim como
no Brasil tornaria seu custo, do ponto de vista prático, muito abre maiores possibilidades de serem adotados nas escolas
mais elevado que o das edições comerciais existentes no mer- (no caso de obras literárias). À maior atenção oferecida à
cado. De qualquer modo, parece que o projeto acabou sendo área da literatura tem dado bons retornos desde 1993 e, em
fulminado pelo próprio MEC quando se soube que ele teria 2004, numa lista de ço0 títulos, 89% são de autores nacio-
sido concebido para beneficiar uma única editora, sem ex- nais, entre eles Pedro Bandeira, Ana Maria Machado e Mar-
pressão, que, segundo algumas fontes, fora autora do projeto cos Rey. A Ática também tem obtido sucesso na venda dos
e já possuía tudo pronto para impressão. direitos de tradução, inclusive para os EUA. Em novembro
de 1995, a empresa comemorou os trinta anos de atividade
com a edição de uma história do livro no Brasil desde 1900,
$174 A ÁTICA E OUTRAS NOVAS EDITORAS DIDÁTICAS magnificamente ilustrada, Momentos do Livro no Brasil, de
autoria de Fernando Paixão et al., que inclui a “História da
Um dos nomes mais conhecidos entre os maiores produ- Editora Ática” em capítulo especial, e presta (p. 200) um tri-
tores de livros educacionais no Brasil é o da Editora Ática. buto muito generoso ao autor deste livro, designando-o “o
Fundada em 1964, rapidamente atingiu um lugar de pree- historiador do livro”. No ano de 2002, a Ática empregava
minência no setor. Anderson Fernandes Dias (1932-1988) 470 funcionários e tinha 2715 títulos no catálogo.
618 Ênio Silveira Ênio Silveira 619

Embora a Ática seja um dos mais conspícuos exemplos radical. Todas essas editoras começaram em São Paulo. São
de sucesso entre os que se iniciaram no campo do livro didá- apenas alguns exemplos, entre inúmeros outros, dos casos
tico após a “revolução” de 1964, a expansão do ensino no que surgiram nos anos da ditadura militar.
Brasil em todos os níveis, a partir daquele ano (cf. tabela 13,
p. 859), e o interesse do governo pelo fornecimento de li-
vros didáticos a alunos carentes estimularam apreciável COEDIÇÕES, TRADUÇÕES E O PREÇO DO LIVRO $175
aumento no número de editoras de livros didáticos e de li-
teratura infantil. Os vários casos de empresas estrangeiras Com efeitos sobre a indústria editorial bastante semelhantes
serão comentados em capítulo posterior. Entre as nacionais aos das aquisições vultosas e regulares feitas por um órgão
podemos mencionar: o Ibep (Instituto Brasileiro de Edições governamental como a Colted, é o costume das coedições en-
Pedagógicas), de Jorge Yunes e Paulo Marti (a quem cou- tre editoras comerciais e instituições educacionais. O primei-
beram 30% do mercado em 1983, e que publicou Hermí- ro esquema desse tipo foi estabelecido por Mário Guimarães
nio Geraldo Sargentim, cujos livros de português já vende- Ferri, em 1963, quando se tornou presidente da Edusp (Edi-
ram 3 600000 exemplares até aquele ano); a FTD (“Frêre tora da Universidade de São Paulo)*º. Qualquer autor ou edi-
Thêophane Durand”, de propriedade dos Irmãos Maristas, tor que precisasse de apoio na comercialização de um livro
editora de Benedito Castrucci, autor de livros de matemática sobre qualquer assunto especializado de possível interesse
desde 1942, cuja obra A Conquista da Matemática, escri- para a Universidade era estimulado a submetê-lo à Comissão
ta em colaboração com José Ruy Giovanni, vendeu, apenas Editorial da Edusp, composta de cinco membros, todos proe-
em 1982, seiscentos mil exemplares*?); a Editora Moderna, minentes acadêmicos; a Comissão também se valia, quando
fundada por Ricardo Feltre e mais dois professores, que se necessário, dos pareceres de outros especialistas, até mesmo
iniciou, em 1968, na área do segundo grau e que, estenden- de fora da Universidade, Para o nível de pós-graduação, da-
do-se, nos anos de 1980, à literatura infantil e, em 1990, vam preferência a livros escritos originalmente em português:
ao primeiro grau, ocupa hoje posição de relevo no mercado era opinião da Universidade que nesse nível ela não tem de
de livros didáticos (1300 títulos no catálogo em 1997); a proporcionar traduções aos seus graduados, Para o nível de
Atual Editora, que também operava com destaque na área graduação, aceitavam-se obras de origem estrangeira e eram
do segundo grau, foi fundada, em 1973, por Osvaldo Dolce tomados cuidados especiais para garantir a boa qualidade
e Gelson lezzi; a Editora Edgard Bliicher, fundada em 1966 da tradução. A Comissão podia sugerir, quando pertinentes,
e que se tornou uma das mais importantes editoras de livros que fossem feitas adaptações das obras às realidades ou ne-
técnicos; a Edart Livraria Editora Ltda. (que atua nos níveis cessidades locais; em muitos casos, essas adaptações eram
primário e secundário, fundada também em 1966, chegou uma condição indispensável para a coedição. Contudo, às
a dois títulos por mês em 1968) e a Editora Cortez e Mo- vezes, a Edusp podia ser tolerante; o livro Eletricidade, de
raes Ltda., formada, em fevereiro de 1969, por José Xavier D. R. G. Melville, coeditado com a Melhoramentos, na sua
Cortez e Orozimbo José de Moraes, posteriormente trans- coleção Prisma, poderia ter tido reescritas as poucas páginas
formada em Cortez Editora, publica predominantemente referentes ao suprimento doméstico de energia elétrica, com
material de caráter progressista (como, por exemplo, Educa- uma explicação do que se faz no Brasil e não no Reino Unido.
ção e Dominação Cultural [1981], de Dulce Maria Critelli, Nesse caso, porém, a coedição parece ter sido atípica, o que
e As Belas Mentiras: A Ideologia Subjacente aos Textos Di- limitou a interferência da Edusp.
dáticos [1979], de Maria de Lourdes Chagas Deiró Nosella)
e edita uma revista que rivalizava, na época da “abertura”,
com a Encontros com a Civilização Brasileira como veículo 40. Cf.a homenagem que os editores brasileiros lhe prestaram: Mário
Guimarães Ferri e Sua Obra (São Paulo, Câmara Brasileira do Livro,
nacional mais importante dos pontos de vista da oposição 1986), que inclui uma lista das “Editoras que publicaram em convê-
nio com a Edusp”, entre elas a T. A, Queiroz. (Foi assim que consegui-
39. “Lições Milionárias”, Veja, p. 43, 3 mar. 1983. mos publicar a primeira edição de O Livro no Brasil!)
620 Ênio Silveira Ênio Silveira 621

A maioria das propostas era encaminhada pelas editoras. em grande medida, o seu acervo de livros. O programa foi
Quando a Edusp analisava uma obra apresentada direta- concebido para a publicação de autores novos, mas incluiu
mente por um autor, este era aconselhado a procurar, even- a reimpressão de clássicos. Em março de 1970, foi decidido
tualmente através da Câmara Brasileira do Livro, uma edi- que o INL deixaria de adquirir livros para distribuição a bi-
tora que pudesse interessar-se pelo projeto. As negociações bliotecas públicas, e iria dedicar-se inteiramente a coedições;
entre a Edusp e a editora baseavam-se no compromisso da ao mesmo tempo, seu programa editorial independente de-
primeira de adquirir, com um desconto de até 50%, um de- veria restringir-se virtualmente aos periódicos. Um decreto
terminado número de exemplares a combinar (raramente presidencial de fevereiro de 1976 tornou parte obrigatória
menos de duzentos ou mais de um terço da tiragem), que do programa a reimpressão de “obras fundamentais da cul-
seriam pagos em até trinta dias após a publicação, em troca tura brasileira” (de literatura, história e sociologia), ao mes-
da liberdade de revender os exemplares assim adquiridos mo tempo em que determinava que o INL também restabele-
nas livrarias do campus da Universidade, com 30% a 40% cesse sua atividade editorial própria nesse campo.
de desconto, A Universidade pôde, assim, abandonar intei- O sistema do 1NL foi bastante diferente do da Edusp. Não
ramente a produção editorial própria, investir seus recursos só a iniciativa da proposta do título cabia com muito mais
num número bem maior de títulos (até setembro de 1984 ha- frequência ao INL do que à editora, como ainda havia uma
via publicado nada menos que 1787 obras) e evitar tanto os participação direta do órgão na elaboração do orçamento
inconvenientes dos processos de concorrência pública como e no cálculo do preço final, que, até 1979, devia vir impresso
quaisquer entendimentos de natureza técnica, sempre com- na capa do livro. Quando a taxa de inflação voltou a au-
plexos, com as gráficas, embora a editora da coedição fosse mentar naquele ano, um livro como o primeiro volume de
obrigada a submeter, para aprovação prévia, o projeto gráfi- A Pesquisa Histórica no Brasil, de José Honório Rodrigues
co geral. As editoras podiam, assim, arriscar a publicação de (Nacional, 1978), continuava sendo vendido a Cr$75,00
títulos que, de outra forma, não teria sido viável e aumentar quando seu valor de mercado já atingira bem mais do que
a tiragem de outros, do que, segundo Mário Guimarães Fer- o dobro. Por isso, a obrigação de marcar o preço no livro
ri, resultavam preços 10% a 15% mais baixos para o pú- foi logo suspensa. Outra restrição do programa foi a deter-
blico em geral e, para os estudantes da usr, reduções de até minação prévia da maneira de alocar o dinheiro, segundo o
50% sobre o preço de capa que teria sido fixado pela editora orçamento do INL. Para livros para adultos era, na época da
particular sem a coedição. Além disso, o nome da Editora da “abertura”: 15% poesia e teatro, 20% ficção e 65% “estu-
Universidade de São Paulo é, em si mesmo, uma garantia de dos brasileiros”. Dava-se preferência a obras de autores bra-
qualidade e de promoção institucional das vendas. Não obs- sileiros, mas não havia qualquer preocupação em restringir
tante, após a morte de Ferri, a Edusp abandonou em grande o esquema a editoras de capital nacional: a McGraw-Hill do
medida esse sistema de coedições. Brasil teve dez títulos coeditados em seus primeiros quatro
O esquema de Ferri foi amplamente imitado, especial- anos de funcionamento.
mente por outras universidades, embora muitas dessas, No decorrer de 1970, O INL produziu uma centena de
diferentemente da usp», incluíssem apenas trabalhos de seu coedições, todas numa tiragem de cinco mil exemplares ou
próprio quadro de professores e estudantes. Sem dúvida, o mais, distribuídas entre trinta e três editoras. À Tecnoprint
mais importante desses outros programas foi o do Instituto Gráfica encabeçava a lista, com quinze títulos do tipo “faça
Nacional do Livro, cuja quota de exemplares em qualquer você mesmo”, ou de artes aplicadas; vêm em seguida a Me-
coedição destinava-se à distribuição gratuita às bibliotecas lhoramentos (nove títulos, a maioria para crianças), a José
públicas. Muitas destas, localizadas nas regiões mais pobres Olympio (nove títulos de literatura moderna brasileira),
do país e destituídas de recursos para a compra de livros, a Cultrix (oito títulos, a maioria de clássicos brasileiros), a
dependiam exclusivamente dessas doações, de modo que o Agir, a Coordenada de Brasília e a LIA (cinco títulos cada),
programa do NL (infelizmente encerrado com a abolição do a Brasiliense, Conquista, Lidador e Livros do Mundo Inteiro
órgão pelo presidente Collor em 1991) era que determinava, (três títulos cada), a José Álvaro, Ática, Bonde, Bruguera,
622 Ênio Silveira
Ênio Silveira 623

Expressão e Cultura, Globo, Grifo, Laudes, Paz e Terra, Qua- cipal crítica que se faz à escolha dos títulos não é à existência
tro Artes e Tempo Brasileiro (dois cada), e Brasília, Cader- de algum viés político declarado nessa escolha, mas, sim,
nos Didáticos, Cátedra, Civilização Brasileira,
“O Cruzeiro”, ao fato de terem sido abertamente literários e “culturais”.
GRD, Leitura, Livro Místico, Nosso Tempo, Poster Graph, Somente em 1970, com a inclusão de alguns títulos da Tec-
Distribuidora Record e Renes (um título cada uma). noprint Gráfica - Como Construir uma Casa, de Roberto
Após a extinção da Colted em 1971, O INL estendeu o Chaves, Prática de Transistores, de L. Péricono, e Taquigrafia
princípio da coedição ao campo do livro didático para a es- sem Mestre, de Fernando Trindade -, é que o INL tentou ofe-
cola primária, fornecendo sete milhões de livros por meio recer o tipo de livro popular ou utilitário que deve se tornar
do Fundo do Livro Didático (órgão representativo das au- a viga mestra do acervo das bibliotecas públicas brasileiras,
toridades educacionais federais e estaduais), a cerca de dois se é que se espera que algum dia progridam no sentido de
milhões de alunos pobres, e possibilitando que os restantes serem mais do que apenas agradáveis salas de leitura onde
treze milhões de alunos das escolas primárias adquirissem os escolares podem ir fazer suas lições de casa. Ao contrário,
seus livros a preços reduzidos em 40%. Em 1972,0 progra- isso era obstado pelo decreto de 1976, que limitou as coedi-
ma de coedições foi estendido aos livros universitários, sen- ções do INL à “cultura” e transferiu a responsabilidade por
do publicados dezenove títulos naquele ano, e o dobro em coedições no campo educacional à Fename, não deixando
1973. Nesse mesmo ano de 1973, 0 INL começou a financiar entidade alguma com poderes para apoiar coedições fora
autores brasileiros na produção de manuais universitários dessas duas áreas.
em áreas em que não existisse obra disponível em português. Muitas outras entidades culturais e científicas brasilei-
A julgar pelo Catálogo das Coedições do INL, 1971-1974, ras desenvolveram, nessa época dos anos de 1970 e 1980,
a relação das editoras que mais se beneficiaram desse pro- esquemas de estímulo à publicação de livros, quase sempre
grama ampliado durante esses anos foi: a José Olympio (116 na forma de coedição. Entre elas, podemos citar: o Conse-
edições), o Ibep (65), a Editora do Brasil e a Melhoramentos lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(ambas com 63), Ao Livro Técnico (57), Abril Cultural (53), (ainda conhecido pela antiga sigla de cnrq); a Universidade
Nacional (50), Tabajara (38), Martins (37), Conquista (35), Estadual de Campinas (Unicamp), a Fundação Cultural do
FTD (30), Blúcher (27), Expressão e Cultura (25), Bloch e Estado da Bahia, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Esta-
Brasiliense (cada uma com 24), Agir e Vigília, de Belo Hori- do de São Paulo (Fapesp, nesse caso, quase sempre na forma
zonte (23 cada), Globo (21) e Aguilar (20). O catálogo para de subvenção a autores para o preparo de originais); a Esco-
1975-1978 registra seis obras publicadas diretamente pelo la Federal de Engenharia de Itajubá (MG),e a Eletrobrás. São
INL, mais 602 coedições com 57 editoras, lideradas pela Ci- apenas alguns exemplos, a reforçar minha opinião de que a
vilização Brasileira (1 10 edições), vindo a seguir José Olym- iniciativa da Edusp, pioneira nesse esquema ao implantá-lo
pio (72), Melhoramentos (68), Cátedra (53), Nacional (44), em 1964, frutificou: a favor do livro e, sobretudo, em bene-
Quiron (21), Martins (18), Tempo Brasileiro (17), Nórdica fício do consumidor final.
(16) e Abril (13). Infelizmente, persiste também nos círculos oficiais a cren-
Evidentemente, um sistema como esse permitiria às au- ça de que se pode incrementar a leitura pela redução dos pre-
toridades o exercício de alguma influência sobre o setor ços dos livros e que essa deve ser a principal meta do sistema
editorial. Contudo, isso não aconteceu. Embora seja difícil de coedições. Há nisso duas falácias. À primeira está na ideia
compreender a participação variável de cada uma das edito- de que os custos de produção determinam os preços, quando
ras-a Globo, por exemplo, não conseguiu sequer uma única o contrário é que é verdadeiro. Até mesmo alguns editores
coedição entre 1975 e 1978, e a Brasiliense apenas uma — (que deviam saber mais sobre isso) são capazes de dizer que
sua escolha esteve surpreendentemente livre de considera- o preço de capa de um livro é quatro (ou cinco) vezes o custo
ções políticas: mesmo em 1971-1974, O periodo mais duro de produção, quando o que querem dizer é que uma edição
dos governos militares, a Civilização Brasileira e sua então não será comercial se os custos de sua produção forem su-
subsidiária Paz e Terra participaram de 21 coedições. À prin- periores a 25% (ou 20%) do preço normal para aquele tipo
624 Ênio Silveira Ênio Silveira 625

de livro. Ninguém espera, realmente, que os romances de livros, em troca de abrir mão de seus direitos autorais — é
Jorge Amado sejam mais baratos do que os de outros auto- em consequência, apesar da enorme reputação do autor, as
res, apenas porque vendem trezentos mil exemplares em vez vendas caíram imediatamente. (Cf, também minhas obser-
de três mil, reduzindo, assim, enormemente o custo unitário. vações sobre os preços de brochuras no $197.)
Outra falácia é admitir que os livros têm demanda elástica, O custo de produção é importante apenas para o esta-
€ que preços mais baixos gerarão mais vendas. Mais uma belecimento do preço mínimo, abaixo do qual é mais eco-
vez, O inverso é que é verdadeiro. Já se observou, há mui- nômico deixar os morangos apodrecerem nos campos— ou
to tempo, que a superabundância de um produto agrícola não publicar o livro. Mas os custos de produção dos bens
no mercado, embora produza uma queda catastrófica nos manufaturados possuem considerável flexibilidade. No caso
preços do produtor, e reduza os custos para o afortunado de livros, as editoras podem optar entre encadernação ou
atacadista e até mesmo para o varejista, não se reflete nem brochura, entre acabamento costurado ou colado. O nú-
mesmo remotamente no que o consumidor irá gastar. Isso mero de páginas numa dada espessura de livro dependerá
porque grandes reduções de preço não gerarão um aumento do papel utilizado. A mesma quantidade de texto pode, por
proporcional das vendas: o consumidor não tem qualquer sua vez, distribuir-se por um número variável de páginas,
razão para aplicar suas economias na aquisição de um pro- dependendo do corpo da composição, da generosidade das
duto cujo preço foi reduzido, comprando maior quantidade. margens e do espaço em branco que se deixe entre os capítu-
Ele deseja uma certa quantidade de morangos —- ou de ma- los. Pode-se abrir mão de índices, ilustrações, notas, tabelas
terial para ler— até um certo preço máximo, e não um certo e bibliografias, ou incluí-los com prodigalidade. Os custos
montante de reais de morangos - ou de livros — seja qual for de composição serão diferentes para monotipo, linotipo, fo-
a quantidade que isso represente. Em segundo lugar, o con- tocomposição, ou reprodução direta da datilografia ou do
sumidor costuma associar o determinado preço de um dado print-out do computador, Os custos de impressão depende-
produto a uma determinada qualidade. Ele pode ser con- rão de ser feita tipograficamente ou em offset, e a decisão de-
vencido, especialmente numa situação inflacionária, quando terminará que tipos de papel poderão ser usados. À editora
todos os preços estão subindo, a pagar mais - pode não ter pode aceitar o texto do jeito que o autor o entrega, ou pode
outra alternativa a não ser a de ficar sem o produto. Mas gastar energia, tempo, e (claro) dinheiro numa cuidadosa
quase certamente interpretará um preço mais baixo como revisão. À remuneração a tradutores — e consequentemente
indício de qualidade inferior e, por isso, relutará mais e não a qualidade da tradução - pode ser fixada em nível mais alto,
menos em comprar. À malograda experiência da Revlon, al- ou mais baixo. Até mesmo as condições de comercialização
guns anos atrás, foi um caso desse tipo, quando uma tenta- e os direitos autorais talvez possam ser renegociados. Ácima
tiva de incrementar o poder de atração de seus cosméticos de tudo, a menor tiragem aceitável de uma edição pode ser
sobre o consumidor mediante a redução dos preços resultou aumentada ou diminuída, e pode-se usar de maior ou menor
realmente numa queda das vendas. Quando José Louzeiro cautela quanto à aceitação de originais. No caso do Brasil,
teve seis obras publicadas pela Cedibra em formato de livro o firme progresso na qualidade da produção de livros nos
de bolso, para venda em bancas de jornais, a Cr$6,00 cada anos de 1950 foi seguido de uma rápida queda dos padrões
um, em princípios de 1976, ele atribuiu as fracas vendas ao após 1973, em consequência do ajuste à inflação de custos
baixo preço: “O público por sua vez desconfia de um livro provocada pela crise do petróleo.
muito barato”, e, além disso, o proprietário da banca de jor- Tem-se dito que, em relação ao salário médio dos profes-
nal tinha um lucro muito pequeno nesses livros, insuficiente sores universitários, não houve praticamente alteração no
para estimulá-lo a forçar as vendas. Em sua autobiografia, preço dos livros acadêmicos em geral, desde o século xv1, ou,
Now, Barabbas (Nova York, Harcourt Brace Jovanovich, até mesmo, segundo um autor, desde o século x111. Uma pes-
1960), 0 editor americano William Jovanovich cita Bernard quisa sobre a relação entre as rendas das classes médias (isto
Shaw a propósito do fato de Leon Tolstói, em sua velhice é, compradoras de livros) e os preços de seu principal lazer
utopista, ter forçado seu editor a reduzir o preço de seus intelectual poderá revelar uma constância semelhante. Seria
626 Ênio Silveira Ênio Silveira 627

necessário distinguir entre o custo dos livros propriamente de cada segmento de mercado (ficção de peso, ficção ligeira,
ditos e o custo da leitura, especialmente no caso da Inglater- livros infantis e assim por diante), as editoras utilizaram o
ra, onde, de meados do século xvirr ao início do século xx, crescimento do mercado para distribuir seu risco por um
a maior parte da leitura de lazer era proporcionada à classe maior número de títulos. Mesmo quando o mercado previs-
média pelos serviços de bibliotecas circulantes comerciais, to para um dado título foi maior do que o normal, a maioria
sendo o preço de novos livros fixado em nível suficiente- das editoras, cronicamente subcapitalizadas, tem preferido
mente alto para desencorajar a compra individual e, assim, fazer cautelosamente uma série de pequenas reimpressões a
proteger as bibliotecas. Certamente, o fim, nos anos de 1980, arriscar-se a uma grande primeira impressão. Em segundo
do diferencial de preços entre os livros publicados em Lon- lugar, e muito mais importante, a amplitude das publica-
dres e os editados em Nova York coincidiu rigorosamente ções feitas pelas editoras brasileiras cresceu enormemente.
com a eliminação da diferença entre a remuneração profis- Há noventa anos, editar no Brasil significava publicar livros
sional e acadêmica na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. didáticos para o curso primário, ou obras esporádicas de
The Business of Book Publishing, de Bingley, registra que, na literatura nacional; a maior parte do mercado continuava
Inglaterra, entre 1955 e 1967, O índice de preços ao consu- a depender das importações. Agora, nos últimos vinte ou
midor subiu 42%, os níveis do salário industrial cresceram trinta anos, praticamente não existe qualquer mercado es-
83%, o produto nacional bruto, 93%, e os preços de livros, pecializado de livros, do xadrez à biblioteconomia e da ele-
140%; a inferência implícita parece ser a de que os custos trônica à administração de empresas, que não esteja coberto
de produção foram forçados para cima por uma queda no por uma editora brasileira.
consumo por título. De minha parte, considero mais signi- Mesmo assim, ainda há muitos títulos, especialmente
ficativo o fato de as entradas de teatro terem subido 130% em certos campos, em que pode ser útil subsidiar tiragens
nesse mesmo períodos*'. Comprar um romance ou passar não econômicas para ampliar ainda mais as opções disponí-
uma noite no teatro podem ser encarados como prazeres veis para o leitor: sem dúvida alguma, o modo mais eficiente
mais ou menos equivalentes e, pelo menos no caso do Brasil, de estimulá-lo a ler mais. E é aqui que as coedições podem ter
apresentam correlação notavelmente consistente ao longo papel importantíssimo. As do INL eram feitas na tiragem de
do tempo. Em São Paulo, em r917, tanto o livro como o tea- três a quinze mil exemplares, ficando o Instituto obrigado a
tro custavam 3$000, enquanto o humilde cinema cobrava adquirir a metade. Com as menores tiragens, o programa ob-
apenas 1$000. Em meados de 1980, a proporção continuava viamente tornava exequíveis títulos que, de outro modo, não
a mesma: Cr$300,00, mais ou menos, para comprar um ro- teriam atingido o mínimo econômico de três mil exemplares.
mance ou ir ao teatro, Cr$100,00 para ver um filme. Isso talvez tenha sido da maior importância para a literatura
Nesses quase sessenta anos, de 1917 a 1980, 0 mercado brasileira, da qual, nestes últimos cinquenta anos, a produção
brasileiro de livros cresceu quase cem vezes. Houve aumento de nova ficção esteve estagnada em torno de cinquenta novos
na tiragem média das edições (teoricamente, um fato po- autores por ano. Mas coedições de muito mais de cinco mil
tencial para a diminuição de preços), mas de modo algum exemplares não são necessárias para a viabilidade econômica
na mesma proporção. Na verdade, à parte o campo pecu- do lançamento e simplesmente farão diminuir os custos uni-
liar dos livros didáticos, o aumento da tiragem das edições tários, criando uma economia que O INL costumava repassar
foi pouco maior do que o imposto pela elevação da tiragem ao consumidor. Isso é nocivo, por resultar, a longo prazo,
econômica mínima, o que é pura inflação de custos. Ao con- numa distorção do mercado, tornando artificial a expectati-
trário, duas tendências combinaram-se para oferecer ao con- va do consumidor sobre o que seja um preço “normal”. Não
sumidor uma escolha muito maior, mas ao mesmo nível de só os livros que não eram subsidiados passariam a exigir ti-
preço relativamente a seu ganho. Em primeiro lugar, dentro ragens proporcionalmente maiores, como também teria de
ser aumentado o mínimo econômico para uma coedição. Ao
41. Clive Bingley, The Business of Book Publishing, Oxford, Perga- invés disso, ou as coedições devem limitar-se a edições de
mon, 1972, p. 21. menos de cinco mil exemplares — isto é, títulos que de outro
628 Ênio Silveira Ênio Silveira 629

modo não seriam publicados — ou dever-se-ia autorizar a edi- A CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA E O NOVO REGIME $176
tora a ficar com o lucro adicional em edições com tiragens
acima desse número. Esta última hipótese não seria de modo Para a indústria e o comércio do livro, o resultado líquido das
algum um resultado indesejável; pois, amenizando, de certo políticas do novo regime militar, no período de 1964-1973,
modo, a instabilidade financeira de uma indústria cronica- foi uma notável expansão. O ano de 1964 tinha começado
mente subcapitalizada, poderia estimular as editoras a aceitar com a economia nacional à beira do colapso e com uma
mais riscos comerciais — tanto na escolha de assuntos como na inflação aparentemente fora de controle; contudo, a indús-
de autores — em direções nas quais órgãos públicos como o an- tria editorial brasileira conseguiu produzir, naquele ano, 52
tigo INL não poderiam aventurar-se, milhões de livros, 3,5 vezes seu resultado anual ao fim da
Uma ação legislativa de 1973, de utilidade para as edito- Segunda Guerra Mundial (cf. $153 e tabela 22, p. 885). Se-
ras, embora em detrimento dos escritores, foi a nova lei de gundo o Serviço de Estatística da Educação e Cultura (SEEC),
direitos autorais, lei n. s 988/1973, que determina a cessão a produção saltou para o impressionante número de 189 mi-
dos direitos de publicação de um livro sem levar em conta a lhões de exemplares em 1967, mas caiu para apenas 68 mi-
chamada mídia. Assim, todo lucro procedente do uso do tex- lhões em 1969. Uma recuperação posterior elevou-a de novo
to em filmes, televisão etc. caberia, no futuro, exclusivamente a 136 milhões em 1972 e a 187 milhões em 1978. Todavia,
ao editor. as estatísticas oficiais não parecem gozar de muita credibi-
Outro aspecto dos fins dos anos de 1960 e início dos de lidade no setor livreiro. De fato, uma comparação com os
1970 foi o renascimento do interesse de editoras estrangeiras resultados dos levantamentos das próprias editoras sugeri-
pela tradução de autores brasileiros. Já mencionamos o caso ria que podem representar graves subestimativas. À cifra de
de traduções inglesas publicadas pela Knopf de Nova York 47,2 milhões de exemplares, obtida pelo Snel de 596 firmas
($159). Casas de Barcelona e de Buenos Aires também estive- pesquisadas em São Paulo e na Guanabara, em 1966, apro-
ram em evidência, publicando versões em espanhol de Jorge xima-se da apresentada pelo sEEC, para 1964, de 45,9 mi-
Amado (a Losada tinha seis títulos desse autor publicados em lhões de exemplares de todas as fontes em ambos os estados,
meados de 1975), Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Ado- mas, com relação ao número de títulos publicados, existe
nias Filho, Autran Dourado, Fernando Sabino, Dalton Tre- grande disparidade. O Snel menciona 8 386 títulos (apenas
visan, Antônio Olinto, Hermilo Borba Filho, Nélida Pinón, livros) em 1965, 12355 em 1966 e 8695 nos primeiros oito
José Mauro de Vasconcelos, Carlos Drummond de Andrade, meses de 1967: dados que excedem de longe as estimativas
Vinícius de Moraes, Antonio Callado e outros. Em parte, isso oficiais para todo o país para qualquer ano anterior a 1974,
parece ter resultado dos esforços de promoção do Ministé- quando o SEEC registrou 8 362 títulos“.
rio das Relações Exteriores do Brasil por intermédio de suas Ão apresentar seu levantamento de 1965-1967,0 Snel cal-
embaixadas no exterior (particularmente a de Madri), e em culou uma taxa anual de crescimento de 11,9% para 1968 e
alguns casos por meio do patrocínio direto de coedições*. 1969: parece ser essa a origem da afirmação contida no folhe-
to Brazil *71, Cultural Aspects (material de propaganda das
embaixadas brasileiras) de que a produção de livros estava
crescendo 12% ao ano. Em setembro de 1968, logo depois de
publicado o levantamento, Antônio de Carvalho escrevia, no
42. Jorge Lafforgue, “Apuntes sobre Literatura Brasileira”, Fichero
Bibliográfico Hispanoamericano, vol. 12,n. 12, Pp. 9-12, set. 1973.
O mundo de fala inglesa constitui sempre o mercado de inserção mais 43. Nos anos de 1970, essa discrepância sofreu uma inversão. O Snel
difícil para o autor estrangeiro; veja, por exemplo, a dificuldade que € O SEEC concordaram mais ou menos no tocante ao número de títulos
mesmo alguém com a popularidade internacional de Paulo Coelho (seus totais respectivos foram 12271 € II $39 para 1976,€ 12717 €
teve na luta para vender nos Estados Unidos, narrada por Martin 12318 para 1977). Quanto ao número de exemplares (apenas livros),
Pedersen, “Paulo Coelho: Brazil's Star Secks us Market”, Publishers porém, estavam muito distanciados: respectivamente 121,7 € 144,8
Weekly, vol. 243,n. 16, p. 28, 5 abr. 1996. milhões em 1974, 232,5 € 186,8 milhões em 1978.
630 Ênio Silveira Ênio Silveira

Correio do Livro, sobre o “extraordinário boom editorial” que a ideia de tal exposicão vem de Porto Alegre, cuja Feira
brasileiro e uma correspondente explosão de novas livrarias. do Livro começou com catorze estandes em 1955 (teve 71
O mesmo periódico, examinando os lucros das editoras em já em 1983).
1967, informou que esses aumentaram em 58% em compa- Foi precisamente nessa época que Robert Escarpit, pro-
ração com o ano anterior. À Ibrasa conseguiu a impressio- fessor francês, pesquisando a indústria do livro em toda a
nante taxa de lucro de rs 1% sobre seu capital mais reservas, América Latina, declarou, em 1969, que o livro brasileiro
a Nacional, 67%, o Livro do Mês, 64%, o Fundo de Cultura, era o único desta região cuja implantação nacional cobria
63%, a Martins, 52%, a Ateneu, 48%, a Ipiranga, 36%, a todo o território**.
FTD, 33%,a Irradiantes, 31%, a Mérito, 29%, a José Olym- O crescimento realmente fenomenal do comércio livrei-
pio, 272% e a Brasiliense, 26%. Mesmo restringindo nossa ro foi conseguido apesar da política de repressão que, nas
avaliação aos dados do sEEC para o ano aparentemente me- palavras de Ênio Silveira, “dispersou e destruiu o mercado
díocre de 1969, temos de admitir que a produção editorial de ciências sociais e de política”4”, e tornou arriscado, tanto
foi então quase o dobro da de qualquer ano anterior a 1962. financeira como pessoalmente, publicar qualquer coisa que
À produção de algumas das editoras em 1969 (calculada a pudesse ultrapassar os limites, aliás mal definidos, da tole-
partir de dados colhidos nos escritórios da Library of Con- rância oficial.
gress no Rio de Janeiro) foi: Edições de Ouro, 281 edições; Era infalível: qualquer pessoa que fosse considerada não
Brughera, 149; Melhoramentos, 148; Vozes, 84; Nacional, favorável ao novo governo seria rotulada de “comunista”. No
81; José Olympio, 68; Civilização Brasileira, 67; Globo, 63; caso de Ênio, isso podia até mesmo ser aplicado literalmente.
Ao Livro Técnico, 61; Atlas, 60; Zahar, 59; Herder, ss; Pon- Segundo Hermano Alves, antigo deputado católico radical,
getti, 51; Distribuidora Record, 46; Brasiliense e Editora do que passou muitos anos no exílio para escapar do regime mili-
Brasil, 42 cada; Martins, 41; Disbra e Monterrey (ambas tar,Enio Silveira, embora fosse realmente membro do Partido,
editoras de literatura ligeira em formato pequeno e barato), demonstrou excepcional tolerância, tendo sido capaz de pu-
39 cada; Sulina, 36; Nobel (livros técnicos), 35; Nova Fron- blicar “até mesmo trotskistas da velha guarda, como Edmun-
teira, 29; Brasil-América, Sabiá e Tabajara, 26 cada; Agir, 22; do Moniz”+*. Uma editora que seguia mais rigorosamente a
Editora do Mestre (didáticos), Itatiaia e Mestre Jou, 21 cada; linha oficial do Partido era, até o golpe de 1964, a concor-
Saga, 19; Blúcher, Conquista e “O Cruzeiro”, 18 cada, No rente Vitória, já mencionada ($158). Curiosamente, Ênio não
número de 18 de dezembro do ano anterior (1968), a nova consta da lista de “comunistas infiltrados”*, divulgada pelo
revista Veja (n. s), apresentando sua seção dos “Livros mais Ipes imediatamente antes do golpe de 1964, embora essa lista
Vendidos” - Aeroporto, de Arthur Hailey, da Nova Frontei- inclua muitos autores da Civilização Brasileira, entre os quais
ra, estava na dianteira — fala de uma “explosão editorial”++, Eneida, Rui Facó, Francisco Julião, Leandro Konder, Maria
Em 1970, a indústria livreira sentiu-se suficientemente Augusta Tibiriçá Miranda, Astrojildo Pereira, Osny Duarte
segura para organizar, no pavilhão da Bienal de Arte no Par- Pereira e Nelson Werneck Sodré.
que Ibirapuera de São Paulo, a primeira das bienais interna- Seja como for, as ações subsequentes daqueles que toma
cionais do livro, trazendo da Argentina, para sua abertura, ram o poder em 1º de abril mostrariam, sem sombra de dúvi-
o decano da literatura latino-americana, Jorge Luis Borges; da, a categorização de Ênio como perigoso inimigo de todos
23 países se fizeram representar. À segunda Bienal do Livro
(1972) teve 140 expositores, inclusive editoras universitárias;
na quinta (em 1978), o número de editoras representadas au- 46. Robert Escarpit, “O Livro no Brasil”, Revista do Livro, INL, 39:
mentara para 1200 e o de visitantes para 250 mil*s. Parece 14-19, 1969. No ano seguinte, à Fundação Getúlio Vargas pesquisou
a indústria do livro no país do que resultou um relatório muito úril ao
autor do presente livro.
44. Citado por Sandra Reimão, Mercado Editorial Brasileiro: 1960-1990, 47. Em contato pessoal, em 1971.
São Paulo, Com-Arte, 1996. 48. Entrevistado em seu exílio em Londres, em 1973.
45. Veja, 23 mar. 1978. 49. Dreifuss, op. cit., p. 651.
oo

632 Ênio Silveira Ênio Silveira 633


os objetivos da “revolução”. Qualquer que fosse sua posição Ourro dos principais atos do novo governo foi a indica-
exata, ele estava evidentemente no lado oposto da grande li- ção de Flávio Suplicy de Lacerda, reitor da Universidade do
nha divisória da política contemporânea. Esta era a recepti- Paraná e antigo integralista, para o Ministério da Educação
vidade ao capital estrangeiro no desenvolvimento do Brasil, e Cultura**. Suplicy estivera tão preocupado com a obsceni-
a agora denominada “globalização”. Um modelo econômico dade a ponto de mandar arrancar várias páginas de obras de
baseado no investimento privado estrangeiro exige, antes de Zola, Pérez Galdós e Eça de Queirós na biblioteca da univer-
mais nada, estabilidade política e política interna que inspi- sidade, de onde baniu também obras de Sartre, Graciliano
re confiança ao investidor estrangeiro social e politicamente Ramos, Jorge Amado e Guerra Junqueiro, além da revista
conservador. Admite também a necessidade de manter um su- Anhembi, de São Paulo. No Ministério, teve a oportunidade
peravit na balança de pagamentos, suficiente para pagar juros de demonstrar preocupação semelhante com a leitura de toda
e amortização de uma dívida externa eternamente crescente. a nação. Milhares de livros foram sumariamente confisca-
Tudo o mais se segue a isso. Não são claras as alternativas dos de livrarias e de editoras pelas mais diversas razões: por
possíveis, a não ser uma submissão de tipo cubano pré-rg9o falarem do comunismo (mesmo que fosse contra), porque
à Rússia, ou nenhum desenvolvimento (como a Cuba do o autor era persona non grata do regime, por serem tradu-
pós-r990)'º. Todavia, os acontecimentos dos anos de 1980 ções do russo, ou simplesmente porque tinham capas verme-
e de 1990, em muitos países em desenvolvimento, que até lhas. Muitos policiais contentavam-se com qualquer coisa
então pareciam estar conseguindo pelo menos uma “suada” que tivesse a marca Civilização Brasileira, enquanto outros
prosperidade com aquele modelo, tornam imperativo encon- demonstravam especial preferência por dicionários, obras
trar essa alternativa. Evidentemente, esse debate forneceu à de referência ou qualquer coisa que se vendesse rapidamen-
editora progressista um suprimento infindável de material. te como livro usado, Dentre as muitas vítimas totalmente
Nessas circunstâncias, diz muito do espírito de camarada- inocentes estiveram O Livro Vermelho da Igreja Perseguida
gem e de solidariedade profissional entre os editores brasilei- (relato dos martírios dos cristãos primitivos), editado pela
ros o fato de José de Barros Martins, sabidamente favorável Agir, e o romance A Capital, de Eça de Queirós.
à deposição de Goulart, ter-se dado ao trabalho e ao risco de E isso não foi apenas um ímpeto efêmero do entusiasmo
viajar para o Rio, imediatamente após a “revolução”, para, revolucionário de primeira hora. Quase dois anos depois,
como colega editor, jantar publicamente com Ênio. Essa foi em 22 de janeiro de 1966, 0 Jornal do Brasil (que apoiava
apenas a primeira das muitas demonstrações corajosas de o governo) lamentava, em editorial, os confiscos feitos pelo
apoio que recebeu de outros colegas do ramo livreiro, dos Dops, em São Paulo:
quais poucos tinham por ele qualquer simpatia ideológica.
Não constitui surpresa Ênio ter sido distinguido com a atentados contra o patrimônio € contra os brios culturais do País:
inclusão no primeiro ato de proscrição do governo, o de 10 numerosos livros nacionais e estrangeiros, entre os quais se contam
de abril de 1964, que expulsou do Congresso quarenta de- alguns dos principais clássicos da literatura política e econômica de
putados e suspendeu por dez anos os direitos políticos de todos os tempos, foram apreendidos numa blitz e confiscados. [...]
sessenta não parlamentares. Além de Ênio, estava entre eles Aqui e alhures [as proezas da polícia política] poderão ser citadfa]
Nelson Werneck Sodré, o autor politicamente mais conhe- s como peças modelares de ignorâncias organizada e instituciona-
cido da Civilização Brasileira, que foi colocado sob prisão lizada. [...] Há também a parte de chantagens e do achaque, leva-
domiciliar e pouco depois encarcerado, dos a efeito sob a mira de metralhadoras e com selo da autorida-
de pública. [...] Entre os livros que o Dops paulista arrola como
50. Sobre uma avaliação também pessimista das possíveis estratégias
o

econômicas para o Brasil (e o México) antes da crise financeira de $1. Em entrevista à televisão, dada em 1982, Castelo Branco afirma
1982, cf. Gary Gereffi e Peter Evans, “Transnational Corporations, que sua primeira escolha tinha sido Gilberto Freyre, que recusou, por
Dependent Development and State Policy in the Semi-Periphery”, sentir que não havia glória nem mesmo conveniência em ser ministro
Latin American Research Revieto, vol. 16,n. 3, Pp. 3:64, 1981. da Educação numa época de severos cortes orçamentários.
ces
im cas.
634 Ênio Silveira Ênio Silveira 635

subversivos se incluem [...] uma vasta relação de teóricos e divul- Dines et al., e Até Quarta, Isabela (1965), cartas da prisão
gadores da doutrina socialista, ou simples estudiosos neutros da escritas pelo líder camponês Francisco Julião. A empresa lan-
matéria. [...| Todo livro cujo título se refira a socialismo, marxismo çou também uma série de periódicos que serviram de impor-
ou comunismo ou tenha na capa nome de autor russo ou asseme- tantes veículos para as opiniões contrárias ao governo. Reu-
lhado. [...] Só parece ter escapado o Livro Vermelho de Telefones. nião, revista quinzenal de comentário político, foi publicada
durante poucos meses até que o Ato Institucional n. 2, de 27
Esses confiscos ilegais feitos pela polícia, muitas vezes de de outubro de 1965, ampliou de tal maneira os poderes arbi-
livros publicados anos antes, parecem ter continuado a ocor- trários do Governo Federal que a maioria dos proprietários
rer intermitentemente, desde então até a eleição para a presi- de pontos de venda ficaram temerosos de vender a revista.
dência de Tancredo Neves. De modo geral, o Rio de Janei- Política Externa Independente, publicada durante 1967 pelo
ro sofreu mais do que São Paulo. Nos primeiros tempos da bem-intencionado, mas pouco prático, José Honório Rodri-
“revolução”, isso se deveu principalmente ao zelo do então gues, extinguiu-se, após alguns números, por falta de colabo-
governador da Guanabara (que ainda não caíra em desgraça rações adequadas. A Paz e Terra (nome inspirado na encíclica
com o regime). Ênio Silveira, juntamente com muitos outros de João xx1rr, Pacem in terris) começou em julho de 1966, sob
eminentes cariocas de posições suspeitas (Ferreira Gullar, a direção do jornalista e sociólogo Waldo A. César; destinava-
Dias Gomes, Moacyr Félix, Álvaro Lins, Édison Carneiro, -se a exprimir a reaproximação entre os progressistas religio-
Carlos Ribeiro, Alex Viany, José Leite Lopes e Oscar Nieme- sos de todas as igrejas cristãs, protegida por uma organização
yer), tiveram suas próprias casas invadidas pela polícia em editorial legalmente separada e que, depois, passou a publicar
busca de livros para confiscar. Quatro anos mais tarde, as livros, constituindo assim uma nova editora (16 títulos em
queixas de que a censura era mais rigorosa no Rio do que em 1968; 25 em 1969). Como quase todas as questões sociais e
São Paulo foram atribuídas ao fato de estas cidades estarem políticas eram, para os cristãos radicais do Brasil, merecedo-
situadas em regiões militares diferentes. Sizeno Sarmento, co- ras de uma abordagem ou interpretação religiosa, seu alcance
mandante do 1 Exército, cuja jurisdição abrangia o Rio de Ja- tomou uma notável amplitude. Entre os autores que publi-
neiro, foi mencionado pela revista Netstweek como um dos cou, muitos deles nunca antes traduzidos para o português,
mais importantes linhas-duras que apoiavam Costa e Silva. destacam-se Harvey Cox, Roger Garaudi, Oscar Kullmann,
O primeiro núcleo de oposição à nova situação política Jean Lacroix e Paul Tillichs:. Em 1975, presumivelmente para
foi constituído pelo jornal carioca Correio da Manhã, sob aliviar a situação financeira da Civilização Brasileira, a Paz
a responsabilidade editorial de Edmundo Moniz e Antonio e Terra foi vendida a Fernando Gasparian, proprietário do
Callado; todavia, em princípios de 1965, a Civilização Brasi- jornal de oposição Opinião. Depois, passaram a fazer parte
leira tornou-se igualmente importante nesse aspecto. Sua li- de seu conselho editorial Fernando Henrique Cardoso, futuro
vraria — na ocasião, uma das mais importantes entre as ainda presidente da República, e Antonio Callado. Entre os assuntos
existentes no centro do Rio — tornou-se o conhecido ponto de suas edições, destacam-se o feminismo, como Do Cabaré
de encontro dos escritores e outros intelectuais contrários ao Lar (1986), de Margareth Rado, e a tradução de Lilith; A
ao governo: os romancistas Carlos Heitor Cony e Antonio Lua Negra (1985), de Roberto Sicuteri,
Callado, o historiador José Honório Rodrigues, os jornalis- O mais conhecido dos periódicos de Ênio Silveira des-
tas Paulo Francis e Edmundo Moniz, e outros como Moacyr se período foi, sem dúvida, a Revista Civilização Brasileira,
Félix, Nelson Werneck Sodré e Antônio Houaiss. Na mesma lançada em março de 1965, e que publicou vinte e um nú-
época, o prédio da José Olympio, no Botafogo, desempenha- meros até fins de 1968. No seu segundo número, alcançou
va a mesma função em relação aos escritores que apoiavam a tiragem de vinte mil exemplares, e aqueles que chegavam
Castelo Branco.
A produção editorial da Civilização Brasileira acolheu o 52. Podemos ver opiniões sobre o papel de Ênio na Paz e Terra em
primeiro relato brasileiro da queda de Goulart, Os Idos de Waldo Cesar, “Um Homem de Diálogo”, Jornal do Brasil, 20 jun.
Março e a Queda em Abril (em meados de 1964), de Alberto 1996.
ro
cm 7 A
636 Ênio Silveira Ênio Silveira 637

às cidades do interior do país eram revendidos com lucro Como o pFsP havia apreendido livros publicados ou ven-
considerável. Parte do sucesso da Revista deveu-se talvez ao didos pela Civilização Brasileira com base no fato de que
fato de ter vindo preencher a lacuna deixada pelo desapa- procuravam “disseminar doutrina veementemente repudia-
recimento da Revista Brasiliense. Esta apresentava alguma da pelo povo brasileiro”, seu mandado argumentava:
semelhança, porém, mais tradicionalmente, era uma revista
marxista ortodoxa, fundada por Caio Prado Júnior e Elias Os livros [...] poderiam ser classificados em três categorias:
Neves Neto, em outubro de 1955, para dar “uma visão hu- 1. Os que foram apreendidos por equivoco [...] Entre esses: [...]

ri
manista de nossos problemas sociais e econômicos”. Seu O Caminho e a Foice, de Pinchas Lapide, apreendido por causa
último número saiu em fevereiro de 1964 (agentes dos gol- da palavra foice que é, para a obtusidade policial, um tabu;
pistas invadiram a Gráfica Urupês para destruir a edição de trata-se de um romance, escrito por antigo secretário da Em-
abril ainda em composição). baixada de Israel no Brasil, tendo por tema o conflito entre
Em outubro de 1965, pressões do governo Castelo Bran-

iii
árabes e judeus na Palestina; Julião, Nordeste, Revolução, de
co obrigaram Ênio a retirar-se da direção nominal tanto da Lêda Barreto, apreendido porque no título aparecem duas pa-
Revista como da editora, para evitar que houvesse uma ação lavras suspeitas, Julião e revolução: trata-se de uma reportagem
oficial direta contra elas. Naquela altura, ele já havia sido sociológica escrita por jornalista da cadeia dos Diários Asso-
preso três vezes. À primeira, logo após o golpe de abril, para ciados procurando descrever a realidade social do Nordeste;

iii
ser interrogado sobre a origem de seus bens, pois alguns mi- Marxismo e Alienação, de Leandro Konder, apreendido porque
litares consideravam inconcebível que se pudesse obter lucro no título aparece a palavra Marxismo, intolerável expressão:
comercial normal no Brasil com a publicação de livros sérios o volume reúne ensaios sobre problemas de estética e moral,
sobre política e ciências sociais. À segunda vez, em maio de escritos sob o prisma da análise marxista; Política e Revolução
1965, pela infundada suspeita de haver auxiliado Miguel Social no Brasil, reunião de ensaios sociológicos e políticos, por
Arraes, o governador radical de Pernambuco deposto pela professores da Faculdade de Filosofia da Universidade de São
“revolução”, que, libertado da prisão por determinação do Paulo, Octávio lanni [...), Paulo Singer, [...] Gabriel Cohn [...]
Supremo Tribunal Federal em 25 de abril, escapara de ser Francisco Wefforrt |...] Quando a lei é desrespeitada a violência
novamente detido ao refugiar-se na embaixada da Argélia. policial não tem outros limites que não sejam a ignorância e a
A única ligação existente de fato entre Ênio e Arraes, em estupidez dos tiras da polícia política.
1965, foi a publicação, pela Civilização Brasileira, de uma 2. Os que foram apreendidos porque se referem ao Marxismo:
coletânea de discursos e escritos do ex-governador, Palavras nesta categoria estão as obras de Marx e Engels [...] Não são
me

de Arraes! Em julho, Ênio foi novamente encarcerado sob obras que visem à ação política, mas sim, à exposição e debate
a acusação de haver publicado material subversivo antes dos fundamentos teóricos do marxismo; sua publicação está
da “revolução”: os números 8,9, 15 e 17 dos Cadernos do rigorosamente amparada pela cláusula constitucional.
Povo Brasileiro, de 1962-1963. 3. Os que foram apreendidos porque se referem à revolução de
Longe de se intimidar com tudo isso, Ênio publicou, na abril ou a políticos por esta perseguidos. Aqui estão as obras
Revista, duas cartas abertas ao presidente Castelo Branco, apreendidas porque, como se diz na informação do senhor Ge-
argumentando que os melhores interesses da nação exigiam neral Riograndino Kruel, “intentam desfigurar a Revolução de
o tipo de diálogo ideológico entre a esquerda e a direita que Março” ou porque pretendiam “ridicularizar a Revolução”. Se-
seu programa editorial procurava estimular. Confundindo, melhante afronta era intolerável.
talvez, causa e efeito, mencionou o atraso econômico da Es- A revolução de março,a que a autoridade se refere, de forma res-
cc

panha e de Portugal daquele momento como prenúncio de peitosa e quase mística, como Revolução de Março, não pode ser ob-
destino semelhante para o Brasil caso persistisse a ditadura jeto de crítica? Trata-se de um culto religioso profanado por infiéis?
direitista. Um ano depois, teve a coragem de impetrar um [...] Entre os livros desta categoria estão: O Golpe de Abril, de Ed-
mm

mandado de segurança contra o Departamento Federal de mundo Moniz (coletânea de artigos já divulgados anteriormente na
Segurança Pública (DFsp), que publicou na Revista. imprensa), ce O Golpe Começou em Washington, de Edmar Morel.
e
ed
DD
638 Ênio Silveira Ênio Silveira 639

Em situação especial está o livro História Militar do Brasil, de de três anos de relativa tolerância. O retorno à política civil
Nelson Werneck Sodré, que é um livro de história e não pode ser parecia uma razoável possibilidade, e Ênio Silveira entusias-
um livro “subversivo” no sentido policial da palavra. Sua apreen- mou-se, claramente, com a perspectiva de criação de uma
são se justifica, como confessa o Senhor General Kruel, “por sua oposição unificada, tendo a Revista como veículo ideológi-
orientação sectária”, e porque “busca denegrir a memória de gran- co, Em 26 de outubro de 1966, a Frente Ampla lançou seu
des vultos de nossa pátria”, manifesto, a partir do qual teve existência uma organização
que abrangia figuras tão dispares quanto o exilado ex-presi-
A última obra mencionada estava de fato em “situação dente Kubitschek e Carlos Lacerda (que já então abandona-

o cr
especial”, pois ousava tratar do assunto mais sensível pos- ra a “revolução” que havia ajudado a fazer).
sível; o exército brasileiro e suas conexões políticas. Escrito Segundo a expectativa pessoal de Castello Branco, seu

O
por alguém que, embora marxista, possuía a ligação senti- sucessor seria o político mineiro Bilac Pinto, mas os linhas-

eim
mental com as Forças Armadas que se pode esperar de um -duras do meio militar mostraram-se suficientemente fortes
oficial general, ele apresentava, em sua maior parte, a inter- para garantir a indicação, em janeiro de 1966, do ministro
pretação militar ortodoxa dos acontecimentos (por exemplo, da Guerra, Costa e Silva, para suceder a Castello na Presi-
em relação ao papel do Exército na deposição de dom Pedro dência, decisão reforçada quando Costa e Silva escapou de
1). Contudo, isso não era bastante para alguns dos talvez um atentado terrorista no aeroporto dos Guararapes (Reci-
hipersensíveis ex-colegas de Sodré: ou sua cólera fora pro- fe), em 24 de julho, confirmando sua inaceitabilidade pela
vocada por diferenças de ênfase, na verdade frívolas, sobre extrema esquerda. Ele assumiu pacificamente, em março de
o tenentismo e sobre o papel das Forças Armadas durante o 1967. Parece que os linhas-duras encontraram nele um ins-
Estado Novo etc., ou, mais provavelmente, era simplesmente trumento maleável e aos poucos foram conseguindo impor
inaceitável para eles que um assunto como esse fosse tratado políticas mais repressivas. Não obstante, em abril, o novo

im
extensamente por uma pessoa tão profundamente non grata. presidente permitiu que Kubitschek retornasse do exílio, e
O interessante é que, treze anos mais tarde, quando o clima parece que desaprovou, sem qualquer resultado, a extrema
político mudou um pouco, a Civilização Brasileira pôde pu- violência com que foi dissolvida uma manifestação antia-
blicar uma nova edição da História Militar do Brasil sem que, mericana dos estudantes na Universidade de Brasília. Em
aparentemente, obstáculo algum lhe fosse posto. junho, porém, curvou-se às exigências de apreensão de Tor-
Uma das maiores perdas econômicas desses atos arbitrários turas e Torturados, do deputado Márcio Moreira Alves (já
cabe na categoria 2 do mandado. Trata-se da invasão, pelos mencionado, $$148, 173), uma revelação dos métodos poli-
agentes da ditadura, da gráfica onde se preparava uma tradu- ciais publicada no ano anterior e então em segunda edição.
ção de Álvaro Vieira Pinto das obras completas de Lênin. Le- Alves reagiu e obteve uma ordem judicial para a liberação
varam tudo: os textos originais, o manuscrito da tradução, os do livro, alegando que o presidente se excedera no uso de
prelos com a material em composição e os livros já impressos.
“ “

seus poderes! (A ordem foi simplesmente ignorada.) Costa e


Silva concordou também em que se pressionassem os bancos


no sentido de não concederem facilidades de crédito à Civili-
$177 ÊNIO SILVEIRA E A FRENTE AMPLA zação Brasileira. O efeito dessa medida é perceptível na pro-
dução da editora que, de 56 edições em 1964, subira para 80
Retrospectivamente, pode-se dizer que Castelo Branco re- em 1968 mas caiu para 67 em 1969 e apenas 46 em 1970.
presentou uma influência favorável à moderação e, tão logo Nesse ínterim, a oposição armada ao regime dera início,
a revolução se instalou solidamente, sobreveio um período em abril, à guerrilha de Caporoá, intensificada no ano seguin-
te. No outono de 1968, os protestos estudantis, aquietados
$3. Editora Civilização Brasileira, s. A., “Mandado de Segurança da (fora de Brasília) por quase quatro anos, encorajaram-se subi-
E. C. B. contra O D.F.s. P”, Revista Civilização Brasileira, n. g/ro, p. tamente com os protestos da classe trabalhadora contra o cus-
291, Set.-nov. 1966. to de vida e irromperam, em fins de março, em demonstrações
640 Ênio Silveira Ênio Silveira 641

das massas no Rio e em São Paulo. A de São Paulo realizou-se Graças, em grande parte, à coragem de um capitão, Sér-
pacificamente, mas no Rio um estudante foi morto por um gio Ribeiro Miranda de Carvalho, coordenador aeroterres-
tiro, o que suscitou novas manifestações de âmbito nacio- tre da tropa do Parasar, que contestou a legalidade dessas
nal. Sem dúvida, por acreditar que a linguagem imoderada ordens, houve uma recusa geral em acatá-las, e foi feita uma
de Lacerda em seus ataques ao regime tinha alguma culpa representação ao comandante do Parasar, brigadeiro Itamar
nisso tudos, o governo, em 5 de abril, declarou a ilegalidade Rocha, que ignorava aquela reunião, bem como o emprego
da Frente Ampla, e o general Sarmento, comandante militar da de suas tropas durante os distúrbios de abril. O protesto de
Guanabara, para conter os tumultos, convocou o Parasar, tro- Itamar Rocha junto à assessoria militar do presidente di-
pa brasileira de elite para salvamento no ar e no mar. O obje- vidiu a opinião das Forças Armadas e, em 1º de setembro,
tivo imediato foi conseguido, mas a cobertura pela imprensa alguém permitiu a comunicação de detalhes desse fato aos
da violência dessa repressão começou a indispor a opinião presidentes das duas casas do Congresso. Um mês depois, em
pública, que até então se mostrara hostil aos estudantes. En- 1º de outubro, a questão veio a público quando o deputado
tão, as notícias sobre os distúrbios estudantis em Paris, em do MDB, Maurílio Figueira de Ferreira Lima, falou a seu res-
maio, ajudaram a agitar as coisas novamente, e outros tumul- peito na Câmara dos Deputados. No dia 29, Itamar Rocha
tos ocorreram em grande escala em 12 de junho. À reação de publicou sua versão pessoal do incidente e todo o esquema
Costa e Silva foi ignorar seus companheiros da linha dura e se foi abandonado. À versão oficial veio a ser a afirmação de
dispor a abrir negociações diretas com a liderança estudantil. que o capitão Sérgio havia acusado Burnier de ter planejado
Diante dessa provocação, teve início o estranho inciden- “atos de sabotagem que, posteriormente, verificou-se serem
te da Operação Mata-estudantes'*. João Paulo Burnier, da de responsabilidade de terroristas da esquerda”s*. Itamar
extrema direita, chefe de gabinete do Ministério da Aero- Rocha foi exonerado “por atitude contrária ao brigadei-
náutica (e fervoroso partidário de Rearmamento Moral), ro Burnier”s”, e outros dezoito oficiais sofreram punições
concebeu a desatinada ideia de liquidar toda a liderança es- diversas: o próprio Sérgio Carvalho cumpriu vinte e cinco
tudantil, que seria raptada pelo Parasar e lançada ao mar. dias de prisão e, depois, foi transferido para Recife, sendo
Por precaução, também se livrariam ao mesmo tempo de aposentado compulsoriamente em setembro de 1969. Onze
todos os mais destacados membros da Frente Ampla, entre anos depois, ainda tentava, em vão, ser reintegrado, enquan-
os quais Kubitschek, Lacerda e o próprio Ênio. Em 14 de to Burnier requeria a indicação de uma comissão especial da
junho, Burnier convocou uma reunião do pessoal do Parasar Aeronáutica para isentá-lo formalmente de qualquer envolvi-
para transmitir instruções aos oficiais designados a levar a mento no incidente que, do ponto de vista oficial, não havia
cabo essa “solução indonésia” para os males da nação. existido. No entanto, o ministro da Aeronáutica não fez mais
que indeferir, por “inadequada”, solicitação tão ilógica, ain-
da que, prudentemente, louvasse o alto nível profissional do
brigadeiro, seu patriotismo e dedicação ao dever.
54. Exemplos da linguagem de Lacerda: Castelo Branco era “feio por
fora e horrível por dentro”, ele era “frio, insensível, vingativo, impla-
O fundamento para o Mata-estudantes era a existência
cável, desumano, cruel”, Tribuna da Imprensa, 19 jul. 1967. de uma guerrilha cada vez mais disseminada, embora em es-
55. Fontes sobre os eventos de 1968: Hermano Alves (jornalista € ex- cala muito pequena, e que agora começava a afetar as áreas
-deputado do MDB), em contato pessoal em Londres, em 1973; New- urbanas. Em 28 de setembro de 1968, o sóbrio Jornal do Bra-
ton Carlos, “El Brasil Está en Guerra”, Ercilla, Santiago do Chile, n.
1740, Pp. 23-29, out. 1968); Carlos Castello Branco, Os Militares
no Poder; O Ato Cinco, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978, vol. 56.0 Globo, p. 4, 27 set. 1980 (caderno 1, cols. 5-6). Tais atos de sa-
2; Georges Fiechter, Le régime modernisateur du Brésil: 1964-1972, botagem que Burnier planejava, inculpando a esquerda, teriam criado
Genebra, Institut Universitaire de Hautes Études Internationales, um clima de pânico adequado para justificar a matança.
1972; edição em inglês: Brazil Since 1964: Modernisation Under a s7. Correio da Manhã, p. 3,2 out. 1968 (caderno 1); p. 2, 3 out. 1968
Military Regime, traduzido por Alan Bradley, Londres, Macmillan, (caderno 1); p. 3, 4 out. 1968 (caderno 1); p. 6,9 out, 1968 (caderno
1975, Pp. 149 e as notas seguintes, 41 € 42. 1); Pp. 13, 15 Out. 1968 (caderno 1).
642 Ênio Silveira Ênio Silveira 643

sil chegou a publicar o manifesto de Carlos Marighela, que Exército, invadiu a Universidade de Brasília para efetuar a
advogava o conflito armado como único caminho para con- prisão preventiva de cinco estudantes, e o fez da maneira mais
seguir a mudança política. Em reação, passaram a ocorrer provocadora possível, cometendo atos gratuitos de violência,
seguidos atos de violência da direita não oficial contra a destruindo instalações e agredindo deputados presentes, o
oposição. No final das contas, porém, suas vítimas eram que pareceu uma tentativa deliberada de fazer o Congresso
quase sempre os culpados de divergência não violenta. Por protestar — e desse modo demonstrar sua impotência.
exemplo, provocou-se um distúrbio num teatro de São Pau- O protesto resultante foi assinado até mesmo pela maio-
lo em que era encenada uma peça considerada contrária ao ria dos deputados do partido do governo. O ministro da
governo, e a atriz principal, Norma Benguell, foi jogada no Justiça negou sua responsabilidade e, encorajado, Márcio
meio da rua inteiramente despida (24 de julho de 1968). Moreira Alves fez um discurso no Congresso em que de-
Entre muitos outros atos terroristas, uma bomba explodiu fendia um boicote nacional das comemorações militares do
diante da livraria da Civilização Brasileira, no Rio, em 14 de Dia da Independência, com a ofensiva sugestão de que as
outubro — bem mais de um mês antes que os responsáveis mulheres brasileiras demonstrassem seu amor pela liberdade
realizassem ação semelhante contra os escritórios do Cor- mantendo-se distantes dos oficiais das Forças Armadas. E
reio da Manhã (o diário mais crítico dos donos de poder). tudo isso ocorria ao mesmo tempo em que seus homólogos
Apesar de as autoridades encararem a Civilização Brasileira russos estavam oferecendo, na então Tchecoslováquia, um
com evidente desagrado, o setor livreiro aproveitou a opor- exemplo extremamente convincente de como se deve tratar
tunidade para demonstrar sua solidariedade profissional; o estudantes e políticos recalcitrantes.
Sindicato Nacional de Editores de Livros enviou à editora Em 10º de outubro, Costa e Silva foi pressionado a so-
uma carta aberta em que expressava indignação pela vio- licitar a suspensão da imunidade parlamentar de Moreira
lência sofrida. Alves — no mesmo dia em que a Edição Gernasa lançava ou-
tro livro seu censurável, o já citado O Beabá dos MEC-Usaid
(em que ataca os acordos entre o Brasil e os Estados Unidos
$178 O ATO INSTITUCIONAL N.$ E SUAS SEQUELAS na área da educação). Foi pedida, igualmente, a suspensão
da imunidade parlamentar de Hermano Alves — que não era
Assim como as doutrinas da esquerda eram, em grande par- parente de Márcio, mas que havia defendido seu homônimo
te, as desenvolvidas pelo Iseb, também os pressupostos dos no Correio da Manhã. A reação de Hermano pretendia con-
linhas-duras nos meios militares refletiam predominantemen- vencer o Congresso a enviar observadores a uma reunião, no
te os ensinamentos da Escola Superior de Guerra, de inspira- Rio de Janeiro, de representantes de todos os exércitos do
ção americana, onde todos os fatos da vida social, política e hemisfério ocidental, intromissão calculadamente provoca-
econômica eram vistos como uma faceta da guerra fria entre dora em assuntos militares.
OS EUA € à URSS. À oposição era subversão e toda informa- O Congresso tergiversou por dois meses antes de rejeitar
ção era vista militarmente em função de seu valor potencial decididamente ambos os pedidos, e quase ao mesmo tem-
para o “inimigo”. À nação era uma posição a ser defendida e po o Supremo Tribunal Federal libertou setenta e nove líde-
consolidada contra eventual ataque e sua população era uma res estudantis presos. Diante de tal desafio, não havia outra
massa de manobra amorfa, sem individualidade, e com quase opção para o presidente exceto derrubar a Constituição e
nenhuma inteligência, ou sequer bom senso. atribuir-se maiores poderes, o que fez por meio do Ato Insti-
Os militares que assim pensavam atribuíam as crescentes tucionaln. s (13 de serembro de 1968). Esse golpe de Estado,
desordens à falta de energia dos altos postos. Exasperavam-se que finalmente prescindiu do Congresso como órgão efetivo,
especialmente porque, em vez de apoiar o projeto Mata- foi acompanhado de duzentas detenções, entre as quais a de
estudantes, O governo mostrava sinais de ceder às pressões Ênio Silveira. O número de eminentes brasileiros — políticos,
do Congresso no sentido de conceder anistia às lideranças jornalistas e outros, inclusive muitos autores da Civilização —
estudantis. Em 29 de agosto, a Polícia Federal, a mando do destituídos de seus direitos civis recebeu novo impulso e logo
644 Ênio Silveira Ênio Silveira

ultrapassou a casa dos quinhentos. Lacerda teve seus direitos os Tito, os Truman, os Franco e os Salazar, e até mesmo os
cassados em 30 de dezembro de 1968. Quatro senadores e Atlee e os Macmillan deste mundo tiveram, sabidamente,
95 deputados perderam os seus em 9 de abril de 1969: bem vida longa. Uma desastrosa queda do poder — a de Pombal,

Lar
dg
menos que os 276 que haviam votado contra a suspensão da por exemplo — pode ser fatal, embora até isso possa ser su-
imunidade parlamentar de Márcio Moreira Alves. portado por aqueles que, como Lloyd George, Churchill, de
Outra consequência do golpe foi a imposição imediata Gaulle, Nixon ou Washington Luís, são dotados de tal im-

a7 e
de aberta censura à imprensa, coisa que Castello Branco penetrabilidade paquidérmica que jamais deixam de crer na
havia feito de tudo para evitar. Foi aplicado apenas aos jor- eficácia e na retidão de suas políticas repudiadas. A doença
nais € revistas e, embora impusesse a extinção da Revista que debilita um líder nacional é sempre psicossomática —
Civilização Brasileira, os livros continuavam a sofrer apenas resultado, sintoma e prova de frustração, fracasso e derrota
confiscos intermitentes sem estrita justificação legal. É claro intoleráveis, e daquela enfermidade pior de todas que é a
que foram promulgadas leis para a punição post factum de dúvida sobre si mesmo: Woodrow Wilson, Lyndon Johnson,
editores pela publicação de material difamatório, obsceno, Franklin Roosevelt, Neville Chamberlain, Adolf Hitler, os
sedicioso e outros igualmente censuráveis, leis que, com o dois Napoleões...
passar do tempo, foram se tornando cada vez mais rigoro- Foi o que se deu com Costa e Silva. Sujeito a pressões ex-
sas. O decreto-lei n. 314, de 13 de março de 1967, teve um tremas e contraditórias, tanto de dentro como de fora de seu
alcance particularmente amplo, pois proibiu governo, enganado (segundo parece) sobre o caso Mata-estu-
dantes por um velho amigo pessoal, o ministro da Aeronáuti-
a divulgação de notícias falsas capazes de pôr em perigo o nome, ca Márcio de Sousa Melo, incapaz de impor sua própria po-
autoridade e crédito ou prestígio do Brasil, ofensa à honra do pre- lírica, mesmo claramente consciente dela, ficou incapacitado,
sidente de qualquer dos Poderes da União; incitação à guerra ou à em agosto, em decorrência de um derrame cerebral e faleceu
subversão da ordem político-social, desobediência coletiva às leis, no final do ano (1969). Seu vice-presidente, Pedro Aleixo, um
à animosidade entre as Forças Armadas, à luta entre as classes so- civil, foi descartado e uma nova administração linha-dura as-
ciais, à paralisação dos serviços públicos, ao ódio ou à discrimina- sumiu o poder, primeiro através de um triunvirato c, a seguir,
ção racial, propaganda subversiva, incitamento à prática de crimes com o mais conservador — e certamente o mais intransigente
contra a segurança nacional. e inflexível — de todos os presidentes militares do Brasil nestes
últimos anos, Emílio Garrastazu Médici.
“Subversão da ordem política e social” existia há muito Em 26 de janeiro de 1970, 0 novo governo baixou o de-
tempo como uma vaga e quase ilimitada abrangência sem- creto-lei n. 1077, em vigor a partir de 6 de fevereiro, esten-
pre à mão, mas as leis anteriores incluíam a expressão “pro- dendo a censura prévia aos livros, mas apenas àqueles “sobre
paganda de guerra ou de processos violentos para subverter temas referentes ao sexo, moralidade pública e bons costu-
a ordem política ou social”; agora, tal especificação tinha mes”, “Bons costumes” é uma expressão sujeita a interpreta-
desaparecido e a mera defesa de mudança, quaisquer que ção muito ampla, que proporcionou base legal para diversas
fossem os meios preconizados, seria criminosa, punível com proibições discutíveis. À juventude da República deveria,
dez anos de prisão e multa equivalente a cinquenta vezes o além disso, ser protegida também por uma exigência: qual-
salário mínimo. Além disso, de acordo com essa nova lei, o - quer publicação que contivesse “matéria erótica ou versasse
processo correria em tribunais militares e não civis. Em de- sobre crime, violência, aventura amorosa, horror ou humor
zembro de 1969 a lei foi invocada para julgar Ênio Silveira picante” só poderia ser distribuída em embalagens resisten-
por ter publicado a História Militar do Brasil, de Werneck tes e opacas, com a advertência “proibida a venda a meno-
Sodré, quase dois anos antes de ela ter sido promulgada. res de 18 anos de idade”. As editoras que acreditassem que
Não há nada melhor para produzir saúde, vigor e vida seus livros tratavam de assuntos inteiramente fora das áreas
longa do que as responsabilidades, tão agradáveis para o ego, suscetíveis de sanção poderiam publicá-los sem autorização,
dos mais altos cargos políticos. Os Gladstone, os Bismarck, correndo, porém, o risco de severas penas por qualquer erro
646 Ênio Silveira Ênio Silveira 647

de julgamento. Por sua vez, submeter um livro duvidoso à a Polícia Federal fez saber subitamente (aliás, medida mui-
aprovação, além de praticamente equivaler a uma admissão to conveniente) que, a partir daquela data, ficava proibida
de culpa, poderia implicar a retenção da publicação por me- qualquer referência crítica aos fundamentos, legitimidade
ses enquanto a burocracia estudava uma decisão (embora ou funcionamento da censura, ou ao trabalho individual de
a letra da lei estabelecesse o prazo de vinte dias para uma censores ou às atividades dos órgãos de censura.
decisão). José de Barros Martins queixou-se de que foi o que Ênio Silveira queixou-se de que esse tipo de ação ex-
aconteceu com Dois Mundos das Três Américas, de Jânio tralegal mostrava-se muito eficiente na redução do número
Quadros, que nada tinha de condenável em si mesmo, mas de pontos de venda dispostos a comercializar os livros que
que foi submetido à censura porque o ex-presidente era uma publicava. Ele mesmo estava sendo pressionado a retirar
pessoa claramente malquista pelo governo militar. Ênio Sil- de circulação Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon, de
veira, de sua parte, manteve obstinada recusa em submeter à 1963; entrevistado por O Estado de S. Paulo, em 2 de abril
aprovação qualquer original, fosse qual fosse. de 1970, deu-se inutilmente ao trabalho de mencionar essa
A razão desse estranho tipo de censura, voluntária, pode obra e a História Militar como livros que de maneira algu-
ter sido apenas o fato de não haver pessoal suficiente no ma poderiam ser classificados de subversivos ou pornográ-
departamento de censura, mas, segundo Jorge Amado (em ficos. (Nesse ponto, seu entrevistador referiu-se ao fato de
entrevista a António Amaral Pires, do jornal português Tem- saber-se que a censura havia proibido até mesmo títulos se-
po), isso foi um recuo do governo diante de uma ameaça lecionados pelo Instituto Nacional do Livro para publicação
conjunta e acertada por “enorme” número de escritores bra- como obras de cultura. De qualquer modo, concluía o jornal,
sileiros (encabeçados por ele próprio e por Érico Veríssimo) as coisas estavam longe de ser tão ruins como sob o Estado
de publicar todos os seus futuros livros no exterior, Novo; obviamente, a apropriação pelo governo do jornal
Um americano que pesquisou, em 1975, a atividade edi- dos Mesquita ainda era uma ferida aberta.)
torial brasileira relatou que “muitos editores entrevistados Em maio de 1970, Ênio Silveira foi preso por ter publicado
afirmaram que a publicação, em jornal ou revista, de capítu- (cinco anos antes) Brasil- Guerra Quente na América Lati-
los potencialmente mais ofensivos de um livro, sem reação na, de João Maia Neto, obra acusada de “reforçar o ressen-
da pcpr (Divisão de Censura de Diversões Públicas), repre- timento entre os civis € as Forças Armadas”. Os protestos de
sentaria razoável garantia de que o livro poderia ser publi- seus colegas editores permitiram-lhe aguardar o julgamento
cado sem problemas com a censura”, o que significa que isso em liberdade, mas, em junho, as acusações contra ele foram
era utilizado frequentemente como um recurso para “sondar aumentadas com a inclusão de Os Condenados da Terra (um
as águas” antes da decisão de publicá-lo**. dos vinte títulos interditados como subversivos pelo ministro
Essa nova lei suscitou veementes protestos até mesmo da Justiça, Alfredo Buzaid, em 3 de junho) e Fundamentos
do jornal situacionista O Globo, enquanto O Estado de S. da Filosofia, de Viktor Afanassiev (publicado em 1968). À
Paulo opinava (22 de fevereiro de 1970) que, embora o go- propósito, o livro de Afanassiev havia sido impresso pela Edi-
verno possuísse todos esses poderes, preferia agir “sigilosa- tora Vitória ($158), cujos diretores, José Gutman, Severino
mente, pelas ordens verbais, pela coação psicológica, pelas Teodoro de Melo e Ramiro Luchesi, também estavam sendo
ameaças verbais”. Até mesmo ordens escritas eram baixadas processados. Félix Cohen Zaide, diretor da Gráfica Lux, do
frequentemente por autoridades que não tinham, legalmen- Rio de Janeiro, foi processado igualmente na época, apenas
te, o direito de fazê-lo. Em s de junho de 1973, por exemplo, porque imprimia parte do programa editorial da Civilização
Brasileira. Por essa mesma época, o colega editor esquerdista
Caio Prado Júnior fora condenado a quatro anos e meio de pri-
48. Peter T. Johnson, “Academic Press Censorship Under Military
and Civilian Regimes: The Argentine and Brazilian Cases, 1964-
são por haver manifestado, cerca de três anos antes, opiniões
1973”, Luso-Brazilian Review, vol. 15,n. 1, pp. 3-25, 1978. Segundo contrárias ao governo numa reunião de estudantes.
Johnson, o quadro de funcionários da censura, em 1975, era de qua- Em 30 de outubro de 1970, às dez horas da noite, Ênio
trocentas pessoas. Silveira foi subitamente preso (pela sexta vez) “sob a mira de
648 Ênio Silveira Ênio Silveira 649

duas metralhadoras” e mantido incomunicável até ro de no- à espera do resultado do julgamento, afirmando que o livro
vembro. Não foi dada qualquer justificativa nem para a pri- estava agora desatualizado. Isso levou um comentarista a
são nem para sua subsequente libertação, mas, no período sugerir a possibilidade de ter havido um acordo secreto entre
imediatamente anterior, a polícia política vinha visitando ele e as autoridades: pois valeria a pena recuperar tal quan-
sua livraria e depósitos quase diariamente, confiscando tidade de livros apenas pelo seu valor como papel velho, por
“centenas” de livros. Relatando tais fatos a um redator de mais “desatualizado” que fosse o texto, Acabou reeditando,
The Times (de Londres), disse o editor que isso o fazia lem- em 1978, Condenados da Terra, de Fanon, do qual mais uma
brar-se dos “terríveis tempos da s. s. e da Gestapo”, e que edição foi necessária em menos de um ano.
ele estava vivendo “sob constante ameaça, num estado de É possível que as autoridades tenham se sentido um tan-
tensão permanente”. to constrangidas em suas ações contra Ênio Silveira, pes-
Pouco depois, um misterioso incêndio destruiu os escri- soalmente, devido à publicidade dada a esse caso em The
tórios centrais da editora e sua principal livraria, na rua Sete Times, bem como através da Anistia Internacional e em ou-
de Setembro, nº 97, no coração do centro comercial do Rio. tros lugares. Não obstante, seus negócios enfrentaram uma
A livraria era um velho edifício que se projetava pouco mais luta extremamente dura para sobreviver à constante pressão
de cinco metros além do alinhamento atual dos prédios, o exercida sobre seus fornecedores e pontos de venda. Já em
que lhe permitia ter uma vitrine saliente, em ângulo reto com meados de 1970, a recusa de crédito bancário fora bastante
o fluxo do trânsito, facilmente visível da avenida Rio Branco, eficiente para obrigá-lo a levantar capital de giro por meio
próximo dali. Justamente essa proeminência do prédio, com de vultosas liquidações, até mesmo de obras como o Dicio-
seu lema “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”, deve ter nário das Artes Plásticas no Brasil, de Roberto Pontual, livro
contribuído para torná-la ainda mais ofensiva para a facção de referência absolutamente não polêmico (porém caro), pu-
insensata dos defensores do regime. Vizinha à Civilização blicado apenas um ano antes, e que, em circunstâncias nor-
Brasileira e também localizada num velho prédio saliente mais, teria tido uma vendagem firme e garantida por vários
em relação aos edifícios mais novos, a livraria Freitas Bas- anos. Nada disso, porém, parece ter afetado seu programa
tos fora inteiramente destruída por um incêndio igualmen- editorial. Em princípios de 1974, por exemplo, encontramos
te misterioso, em janeiro de 1968. Acreditava-se, em geral, entre os novos livros publicados títulos como A Origem da Fa-
entre os simpatizantes da esquerda, que ambos os incêndios mília, da Propriedade Privada e do Estado e A Revolução
tinham sido obra de terroristas políticos, que, por ocasião do Peruana. O primeiro era uma tradução, de Leandro Konder,
primeiro atentado, haviam confundido as livrarias. do Der Ursprung der Familie, des Privateigenstums und des
A editora conseguiu sobreviver, ainda que obrigada a Staats, de Engels, e o outro era a interpretação esquerdista
operar em escala mais restrita. Durante o primeiro ano após dos últimos acontecimentos no Peru, de autoria de Carlos
o incêndio, ocupou apenas um pequeno escritório no bairro Delgado, El Proceso Revolucionario Peruano, em tradução
da Lapa. Durante todo o ano de 1971 — e principalmente em de Miguel Urbano. Outro exemplo, de agosto de 1979, foi O
maio, agosto e novembro — Ênio Silveira teve de suportar Golpe de 64: A Imprensa Disse “Não”, de Thereza Cesário
contínua hostilidade e outras prisões. Os processos também Alvim, reproduzindo artigos contrários ao governo publica-
se prolongavam cansativamente, mas, em agosto de 1972,0 dos naquele ano em jornais do Rio.
editor já havia sido absolvido em relação a todos os livros, Sem dúvida, a ficção, e especialmente a ficção alegórica,
com exceção de Guerra Quente. Referindo-se ao veredito propícia um método ligeiramente mais seguro de ataque ao
unânime dos juízes no caso Afanassiev, o presidente do Tri- establishment e seus valores. Entre os trabalhos de ficção
bunal Militar chegou a declarar que o livro nada continha publicados por Ênio Silveira em 1974 encontram-se Fazenda
que não fosse do conhecimento de qualquer escolar. Em fins Modelo, Novela Pecuária, de Chico Buarque, uma investi-
de setembro, afinal, Ênio foi também absolvido relativamen- da contra o modo como estava sendo conduzido o Brasil —
te a Guerra Quente, mas abriu mão de seu direito de recla- inspirada em Animal Farm, de George Orwell — e Agá, de
mar a devolução dos dois mil exemplares retidos pela polícia Hermilo Borba Filho, em que se antecipava a evolução do
6so Ênio Silveira Ênio Silveira 6s1

regime autoritário para algo totalmente corrupto e corrup- da justa parcela que lhe cabia nessa prosperidade. As vendas
tor, De Fazenda Modelo foram vendidos sessenta mil exem- aumentaram, porém as margens de lucro foram sendo cada
plares apenas da edição do Círculo do Livro. Dois anos vez mais comprimidas. Um levantamento dos balanços das

mA
depois, Hermilo Borba Filho deu nova investida contra os principais editoras, publicado no Correio do Livro, revelou
males sociais do Brasil com seu alegórico Os Ambulantes quedas sucessivas nos lucros brutos (em relação porcentual

io —
de Deus. Mas a Civilização Brasileira também publicou ao capital mais reservas): de uma taxa, sem dúvida muito
romances que eram quase tão óbvios e declarados em sua satisfatória, de 46% em 1967, para 43% em 1968, 27% em
discordância política quanto poderia ser qualquer obra não 1969 e apenas 159% em 1970. Não dispomos de dados para
ficcional; Quarup (1967), de Antonio Callado, e, ainda mais os anos seguintes (por serem desconcertantemente inexpres-
descritivo do cenário contemporâneo, seu Bar Don Juan sivos?), mas certamente o setor livreiro não estava preparado
(1972). Outras obras de ficção politicamente significativas para enfrentar a crise geral que modificou roda a situação

Mio
O
são Roteiro da Agonia (1965), de Macedo Miranda, e Emis- nacional — e internacional - em 1973.
sários do Diabo (1968), de Gilvan Lemos, ambos sobre as Em outubro daquele ano, o custo de um barril de petróleo
disputas de terras no interior do Nordeste. subiu de us$3,20 para us$8,00. O Brasil, que então dependia
De outro lado, a ação oficial contra os clássicos do socia- do petróleo importado para atender a 809% de seu consumo,
lismo teórico foi uma característica predominante dos anos foi duramente atingido, mais ainda por basear-se excessiva-
de 1960. Na década de 1970, a sensibilidade política do go- mente no transporte rodoviário e aéreo: a ferrovia e a na-
verno limitava-se, de modo geral, a obras de crítica direta vegação costeira foram condenadas, deliberadamente, pelos
à situação do Brasil. Não demorou para que Ênio Silveira planejadores econômicos brasileiros a uma lenta decadência
pudesse comercializar uma edição completa de Das Kapital, logo após o final da Segunda Guerra Mundial. Pior foi o que
em português, da qual se venderam cinquenta mil exempla- se seguiu: em cinco anos, os custos de importação do petróleo
res no Brasil, e, graças à revolução de 1974, mais uns vinte subiram de 14% para 33% do total do dispêndio nacional
mil em Portugal. De fato, Ênio Silveira havia encomendado com importações. À taxa de inflação estourou, em menos de
esse trabalho, primeira versão brasileira não abreviada, des- um ano, para 30% por ano e, em 1979, havia alcançado no-
de 1967, quando contratou Reginaldo Santam e o econo- vamente o nível pré-revolucionário de 80%, com tendência
mista Cid Silveira para realizar a tradução direta a partir da a subir ainda mais. E, naturalmente, o petróleo continuou a
última edição alema. subir: em maio de 1981,0 barril estava a Us$3 5,00.
Indubitavelmente, um importante fator da continuidade O efeito imediato disso sobre os preços de livros pode
da existência da empresa foi a extinção da Editora Nacional ser observado na tabela 31 (p. 902), de aumentos médios,
como companhia independente, em 1975 ($123), uma vez extraída de um artigo do exportador de livros de São Paulo
que a esposa de Ênio Silveira, como herdeira de Octalles, foi José Heydecker. Como já explicamos anteriormente ($$ 152,
uma das principais beneficiárias, em termos financeiros, da 162), os efeitos dos novos preços do petróleo sobre o custo
sua venda ao BNDE. da energia, do transporte e do combustível surgiram no exa-
to momento em que os preços do papel estavam subindo ra-
pidamente (125% entre junho de 1973 e fevereiro de 1974,
$179 DA CRISE DO PETRÓLEO À ABERTURA 300% em meados de 1977).
Heydecker não discrimina esses dados por categoria,
Os anos de censura mais rigorosa foram um período em que mas o exemplo específico que dá basta para sugerir que a
os linhas-duras militares não pararam de ganhar terreno, Fo- literatura suportou pelo menos a parte que lhe cabia nesse
ram também os anos do segundo “milagre econômico” do aumento: Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado,
Brasil, com taxas de crescimento anual de 9% a 11%, O que
pode fazer com que se perdoe muita coisa a qualquer governo. 59. Cf. “Crise do Papel Afeta a Indústria do Livro”, Conjuntura Eco-
No entanto, a indústria editorial não parece ter desfrutado nômica, vol. 28,n. 4, pp. 131-133,abr 1974.
652 Ênio Silveira Ênio Silveira 653

subiu de Cr$20,00, na décima primeira edição, em janeiro em 17 de maio de 1977; e foi abolida com relação a outros
em janeiro de
de 1971, para Cr$45,00 na vigésima primeira, jornais, em 9 de junho de 1978. No tocante à censura de
1973. Podemos mencionar também a terceira edição da tra- livros, uma das primeiras manifestações da “distensão” foi
dução de Ulysses, por Antônio Houaiss, lançada pela Civi- a publicação, em agosto de 1976, de A Ilha: Um Repórter
lização Brasileira, em 197$,a Cr$100,00: dez vezes o preço Brasileiro no País de Fidel Castro, de Fernando Morais, edi-
da edição de 1966, apesar do formato menor adotado devi- tada pela Alfa-Ômega (numa tiragem de três mil exempla-
do à crise do papel. Naturalmente, as editoras tinham de fa- res). Quase imediatamente entrou na relação dos best-sellers
zer o máximo para limitar os aumentos de preço por meio de e ali permaneceu por quase um ano, tendo, em 1980, che-
medidas de economia como essa ($175). Um seminário or- gado à cifra de 146 mil exemplares em dezesseis edições. A
ganizado na época pela Fundação Getúlio Vargas recomen- Alfa-Ômega, que nos anos de 1980 editaria a revista Socia-
dava o uso de corpos menores na composição, eliminação de lismo e Democracia, tipifica as várias editoras pequenas de
páginas supérfluas, inclusive as “orelhas”, uso de papel mais esquerda, muitas delas da chamada “imprensa nanica” por
leve, margens menores, além da adoção de novo sistema de sua escala amadora, que apareceram nesse tempo, algumas
acabamento (presumivelmente, o chamado erroneamente como a Global e a Graal, editoras de Marx, Engels e Lênin,
perfect binding, que no fundo não passa da substituição da destinadas a sobreviver e crescer.
costura pela cola). À busca da economia também deu maior Entrementes, em 1977, a Civilização Brasileira publicou
impulso à passagem para o sistema offset (cf. $172), que, com sucesso 1964: O Papel dos Estados Unidos no Golpe
quando é mal executado — como, infelizmente, é o caso fre- de 31 de Março, de Phyllis Parker, cujo título não apenas im-
quente — dá à impressão uma aparência acinzentada, fraca. plicava uma conexão estrangeira na deposição da República
O resultado de tudo isso foi uma lamentável, mas inevitável, Populista como ousava reduzir a “revolução” a um mero gol-
deterioração da aparência material do livro brasileiro em pe de Estado.
geral, Embora estranho, parece não ter havido declínio no No entanto, Armando Falcão, ministro da Justiça de
volume de produção (cf. tabela 33, p. 904), mesmo que algu- Geisel, fez pouquíssimas concessões no que diz respeito às
mas editoras, individualmente, possam ter restringido suas obras de crítica direta à política do governo brasileiro, ou
atividades: a Artenova reduziu-a à metade, descendo para que se afastassem dos costumes sexuais tradicionais. Na
cem títulos por ano; a Vozes diminuiu o número de novos verdade, em relação a esses assuntos, Falção tem sido acu-
títulos. Entre as empresas que acabaram por enfrentar sérios sado até mesmo de maior rigidez do que seus antecessores:
problemas, encontrava-se a Editora de Guias LTB (da qual o decreto-lei n. 427, de 1977, por exemplo, ampliava ainda
uma das subsidiárias era a AGGs — Artes Gráficas Gomes de mais o campo de ação da censura prévia, estendendo-a a
Sousa, na ocasião uma das maiores gráficas da América do publicações importadas. Isso constituiu, quase certamente,
Sul): em 1978, passou a ser controlada, temporariamente, uma reação natural, embora bastante atrasada, à revolução
pelo Banco do Brasil. Nesse caso, porém, a causa parece ter portuguesa de 1974, que havia transformado as atividades
sido a inflexibilidade do governo na renegociação do con- editoriais daquele país, que passaram de um estado de per-
trato, economicamente inviável, de produção e publicação feita inocuidade para um caldeirão de bruxas a preparar a
de listas telefônicas. mais perigosa subversão. Em fins de 1978, perto de quinhen-
Os efeitos econômicos da crise de 1973 logo tiveram re- tos livros eram proibidos no Brasil.
percussões políticas. Um grau preocupante de insatisfação O livro de contos Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca,
popular com o governo, manifestado nas eleições de 1974, lançado pela Artenova, em novembro de 1975, vendeu
levou o presidente seguinte, Ernesto Geisel (que tomou posse trinta mil exemplares antes de ser repentinamente proibido
em março de 1974), a anunciar um programa de cautelosa (apesar da considerável reputação literária do autor), em
liberalização, a chamada “distensão”. A censura prévia dos dezembro de 1976, devido declaradamente a sua lingua-
jornais mais importantes já fora abolida em 4 de janeiro de gem desabrida em questões sexuais, porém, mais plausivel-
1975, antes mesmo de sua extensão a materiais importados, mente, pelas críticas implícitas que fazia aos efeitos sociais
654 Ênio Silveira Ênio Silveira 655

da política econômica do governo sobre as camadas mais Esse tipo de interdição de obras, meses após sua publica-
pobres. O conto que dá nome ao livro relata um horrível ção, era considerado particularmente irritante pelos adver-
assalto a uma casa de classe média na noite de ano-novo sários do regime, mas, na medida em que a censura prévia
por proletários “marginalizados” e socialmente alienados. continuava a ser, na prática, voluntária, é difícil imaginar
Somente em 1979 é que o protesto do autor chegou ao o que se poderia esperar além disso. Como explicou, de
tribunal, onde o juiz não concordou com a acusação de maneira apaziguadora, Rogério Nunes, diretor do Depar-
“atentado à moral e aos bons costumes”, mas achou que tamento Federal de Censura, “os livros são proibidos após
o livro incitava à violência e fazia apologia ao crime, e por a publicação, dependendo de que alguém reclame contra
isso manteve a sentença (cf. IstoÉ, de 7 de dezembro de eles à Polícia Federal. Não temos funcionários suficientes
1983). O governo de Figueiredo permitiu uma nova edição, para examinar todos os livros publicados anualmente neste
€ o primeiro conto da coletânea transformou-se em filme, país”, acrescentando que “a censura ainda é muito branda,
Seu título lembra o de outra coletânea de contos, Feliz Ano em relação ao número de reclamações”*. Foi assim que Em
Velho: Treze Histórias de Nosso Tempo, de Luiz Paiva de Câmara Lenta: Romance, de Renato Tapajós (São Paulo,
Castro, editado por José Álvaro, em 1968. Alfa-Ômega, 1977), circulou tranquilamente, protegido
Em 1978, A Rebelião dos Mortos, de Luiz Fernando por seu título enigmático, até que Erasmo Dias, secretá-
Emediato, foi processado após haver ganho um prêmio li- rio da Segurança Pública de São Paulo, descobriu que o
terário oficial no mês de dezembro anterior. Em artigo de livro tratava das experiências do autor como militante po-
um crítico norte-americano, esse “livro de contos cuidado- lírico em 1968-1973. Convencido de que o livro incluía
samente organizado, e controvertido, que tem sua unidade matéria utilizável por revolucionários, mandou confiscar
nas variações sobre o tema violência cultural, espiritual e todos os exemplares ainda não vendidos e prender o au-
política no Brasil” é considerado uma obra que aproveita “a tor por um mês. Apesar de descrito como “altamente peri-
oportunidade no momento certo de dizer em letra de forma goso” — pois, entre outras coisas, mencionava a guerrilha
aquilo que até então estivera proibido pela censura”. É na Amazônia, cuja existência ainda não fora admitida por
evidente, porém, que o livro de Emediato não foi suficiente- nenhum dos governos brasileiros —, Em Câmara Lenta foi
mente oportuno! Zero: Romance Pré-histórico, de Ignácio liberado por Armando Falcão exatamente um dia antes de
de Loyola Brandão, escrito em 1968-1969, foi publicado deixar o Ministério.
inicialmente em tradução na Itália, onde ganhou diversos O excesso de zelo, como sempre, produziu sua safra de
prêmios literários, antes de ser editado no Brasil, pela Edi- fatos ridículos. A revista IstoÉ, de 30 de agosto de 1978,
tora Brasília, em julho de 1975. Foi, então, incluído nas conta o caso de Nicolas Behar, um jovem poeta cujos livri-
listas de best-sellers durante alguns meses e alcançou uma nhos mimeografados “samizdat” causaram sua prisão e um
segunda edição antes de ser subitamente proibido e pro- processo formal por pornografia e subversão. Foi solicitado
cessado como imoral e pornográfico, em 1976. Dado que a explicar por que a ilustração de um de seus poemas mos-
o livro ataca abertamente vários aspectos da política do trava um “menino puxando o Congresso como um carrinho
governo, desde os métodos de investigação da subversão de brinquedo”: “Você quer dizer que o Congresso pode ser
até a exploração econômica da Amazônia, é de se admi- manipulado por uma criança?”
rar a reação excessivamente atrasada do regime, que lem- Boa ilustração da censura feita a partir de reclama-
bra aquela descrição da antiga dupla monarquia austro- ções recebidas é o caso de Aracelli Meu Amor: Um Anjo
“húngara como “uma autocracia, mitigada por ineficiência Espera a Justiça dos Homens. Em 1973, em Vitória (ES),
administrativa”. uma infeliz menina de nove anos de idade, Aracelli, havia
sido violentada e morta por três jovens de proeminentes
60. David William Foster, “Major Figures in the Brazilian Short
Story”, em Margaret Sayers Peden, The Latin America Short Story: À 61. Apud Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, Censura & Liberdade
Critical History, Boston, Twayne, 1983, p. 32. de Expressão, São Paulo, Taika, [19742].
656 Ênio Silveira Ênio Silveira 657

famílias da cidade, e José Louzeiro, autor de Assim Marcha No entanto, quando julgou a questão em abril, o Tribunal
a Família ($169), escrevera um relato de todo o caso, ligei- Militar considerou a acusação sem fundamento e o livro
ramente disfarçado como ficção — dando, porém, nomes teve de ser liberado. Em menos de um ano, atingiu a sétima
aos criminosos. Seu livro foi publicado pela Civilização edição e, em 1980, a décima nona. Em 1982, a Siglo xxa,
Brasileira, em novembro de 1975,€, naturalmente, as famí- do México, publicou uma tradução em espanhol, por Eva
lias dos acusados protestaram por intermédio de seus ad- Grosser Lerner, La Dictadura de las Carteles. Nesse ínte-
vogados. Bom exemplo da demora dos processos judiciais rim, a Civilização Brasileira editara, em 1978, uma sequên-
brasileiros, isso levou meses; mas quando, finalmente, o cia do livro, Condenado ao Subdesenvolvimento; em 1979,
protesto chegou ao Ministério da Justiça, Armando Falcão Mirow atacou a Loucura Nuclear: Os Enganos do Acordo
agiu no sentido de proibir o livro no prazo de três semanas. Brasil-Alemanha, e começou a trabalhar num quarto livro,
É difícil perceber como esse procedimento difere, na práti- A Ação dos Cartéis no Mercado Brasileiro.
ca, do costume estabelecido pelo direito inglês no sentido Infelizmente, em casos como esse, a absolvição nunca
de proibir referências a qualquer assunto que se encontre é uma vitória completa para o acusado nem uma derrota
sub judice. Um ano depois, a polícia indiciou formalmente total para a promotoria. Mesmo que a edição seja no final
os jovens Dante de Brito Magalhães, Paulo Helal (ambos liberada, sua retenção manteve não rentável o capital nela
com dezoito anos na época do crime) e Dante de Barros investido e perturbou o ritmo normal do programa editorial
Michelli (dois anos mais moço). Com base nesse fato, José da empresa. O autor, o editor, ou ambos, foram obrigados a
Louzeiro acionou o Estado por danos. À seguir, em 1979, despender dinheiro, tempo e talvez seu mais precioso patri-
a Distribuidora Record lançou uma segunda edição, muito mônio, a energia mental, Além disso, são poucos os credores
embora a questão ainda estivesse à espera de julgamento. que encaram favoravelmente uma empresa que sofre com
Outro exemplo faz crer na receptividade do governo tanta frequência atritos tão dispendiosos com as autorida-
a representações do exterior. À empresa elétrica Codina des, por mais inocente que possa ser,
s. A., de Kurt Rudolf Mirow, com cem anos de existên- As preocupações de Armando Falcão não eram, no en-
cia, fora à falência, em 1970, devido a maquinações de tanto, todas de natureza política. De fato, a literatura erótica
um cartel sediado em Londres, que operava no Brasil. Isso parece ter sido visada com muito maior cuidado durante
levou Rudolf a investigar o funcionamento dos cartéis e sua permanência no Ministério do que nas gestões de seu
das multinacionais no país, e seu efeito sobre a economia antecessor, ou de seu sucessor. Brigitte Bijou (pseudônimo)
nacional. Quando foi anunciado o livro, A Ditadura dos (A Tarde [1968] e Noites de Amor [1969], ambos da Edito-
Cartéis: Anatomia de um Subdesenvolvimento, O autor re- ra Terra, de São Paulo) e Adelaide Carraro, ambos autores
cebeu, segundo a Leia Livros“, ameaças de um agente de pornográficos extremamente patológicos, “partilharam com
quatro multinacionais (especificadas). Ele não deu atenção Lênin o título de autor mais censurado de 1978”9.
ao fato e logo depois uma bomba explodiu nas oficinas
em que o livro estava sendo impresso. Não obstante, foi
publicado em princípios de 1977. E então — apesar de a LIVROS PELO CORREIO $r8o0
Civilização Brasileira já ter publicado sem problemas uma
obra semelhante em 1975, Cartéis e Desnacionalização: A Como já observamos ($102), um dos fatores mais impor-
Experiência Brasileira 1964-74 — em 24 de fevereiro, Ar- tantes na limitação das vendas de livros ao leitor brasileiro
mando Falcão instaurou processo contra Mirow por “vol- sempre tem sido a insuficiência da rede de livrarias. Isso foi
tar a opinião pública contra as autoridades constituídas”. sentido de maneira especialmente aguda pela Civilização
Brasileira durante seus anos de dificuldades com o gover-
62. Ubirajara Loureiro, “As Aventuras de Kurt Mirow”, Leia Livros,
vol. 1,n. 1, p. 8, 15 maio 1978. Cf. também “Volta por Cima: Mirow, 63. Maria da Glória, “Mutilating the Written Word”, Index on Cen-
Falido no Brasil, Virou Milionário”, Veja, n. 839, 3 out. 1984. sorship, vol. 8,n. 4, Pp. 27-30, maio 1979,
658 Ênio Silveira Ênio Silveira 659

no militar, quando muitos dos pontos de venda existentes a Brasiliense, que o vendeu a Joruês, que, nos anos de 1970,
relutavam em trabalhar com suas edições, quer em conse- tinha editado o algo parecido Correio do Livro. Subsistiu
quência de pressões diretas, quer simplesmente por receio até 1990,
de prejuízos financeiros devidos ao confisco policial dos
títulos transgressores. Uma solução parcial foi utilizar mais
intensamente a distribuição direta por via postal. Isso já SURGEM A DIFEL E A BERTRAND $181
fora experimentado por Lobato na década de 1920, mas
sua praticidade naquela época era limitada pelas compli- A despeito da evidente cautela de Armando Falcão, pode-se
cações de pagamento num país que não dispunha de uma perceber um certo relaxamento da censura dos livros ainda
câmara de compensação bancária para cheques e pelo pro- no tempo do presidente Geisel. O ano de 1977 assistiu à pu-
blema de determinar a conveniência de concessão de crédi- blicação de uma enxurrada de títulos políticos, especialmen-
to aos novos clientes. O uso do correio em larga escala veio te obras de membros do mpB: Nação Oprimida, de Marcos
a tornar-se uma possibilidade prática com a introdução, Freire (décimo na lista dos best-sellers), É Hora de Mudar, de
pela empresa postal brasileira, do sistema de reembolso Paulo Brossard (sexto na lista) e Os Militares no Poder, de
postal, em 1º de janeiro de 1933. No curso dos anos, po- Carlos Castello Branco (terceiro), e, no final daquele ano, o
rém, a crescente burocracia e a decrescente eficiência torna- número de livros proibidos baixara de 500 para 3 50. Em julho
ram o serviço desinteressante tanto para as editoras como do ano seguinte, Enio Silveira pôde lançar sua revista Encon-
para os leitores: seu desempenho insatisfatório já cons- tros com a Civilização Brasileira, o que equivalia a ressusci-
titui, nos anos de 1950, assunto constante na imprensa do tar a antiga Revista Civilização Brasileira de 1965-1968; até
ramo editorial. o editor (Moacyr Félix) era o mesmo. Já em janeiro de 1978,
Em outubro de 1976, o sistema foi afinal reformado, com tornara-se possível vender livremente pela rua a revista da ex-
enormes simplificações tanto em relação ao despacho dos trema esquerda Em Tempo, por exemplo. No entanto, ainda
objetos como à transferência do dinheiro para pagamento. que naquele ano se tenha publicado, em edição da Civilização
Em menos de seis meses, os livros eram responsáveis por 40% Brasileira, Das Catacumbas: Cartas da Prisão, 1969-1971, de
do serviço, em volume de transações, e por 30% em valor. À Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo), minuciosa descri-
Civilização Brasileira realizava desse modo s% do total de ção da vida de um prisionciro político, a “abertura”, no que
suas vendas, em contraste com a Record, com apenas 0,5%, se refere aos livros, começou realmente com a posse de João
e coma José Olympio, que apenas atendia aos pedidos feitos Figueiredo, em março de 1979. Não só foram suspensos os
pelo correio, sem qualquer preocupação com um programa poderes especiais do Ato Institucional n. 5, como o sucessor
de publicidade para estimulá-los. A Vozes, ao contrário, ti- de Armando Falcão, Petrônio Portela, procurou transferir as
nha uma revista especial, Vozes e Letras, destinada ao com- responsabilidades da censura para o Ministério da Educa-
prador pelo correio, e havia aumentado suas vendas por via ção, por se tratar mais de um problema de cultura do que de
postal de 3% do total de vendas em 1976 para 5% em 1977. aplicação da lei. Teria ele esquecido que presidia o Senado, em
Mais bem-sucedida, ainda, foi a editora Ao Livro Técnico, 21 de maio de 1970, quando foi aprovada a censura prévia,
que declarou vender por esse sistema mais de 15% de suas com apenas dois votos contrários? Quem sabe a ambição por
edições, c em 1971 já existia pela menos uma empresa espe- um posto ainda mais alto o tenha levado ao desejo de cultivar
cializada em vendas por via postal: a Borges & Damasceno”, uma imagem mais simpática? À reação do homólogo, mas não
O lançamento do mensário de crítica de livros, o Leia Li- aparentado, Eduardo Portella, novo ministro da Educação, e
vros, em maio de 1977, foi mais um estímulo ao reembolso ele próprio um editor, foi declarar publicamente ser contrário
postal, embora ele não desse lucro à editora que o publicava, à ideia de incluir a censura em seu portfólio. Para evitar forçar
outro ministro a aceitar esse desagradável ônus, foi criado es-
64. Susana Schild, “Livros pelo Reembolso...”, Jornal do Brasil, 8 abr. pecialmente um Conselho Nacional de Censura (outubro de
1978 (seção Livro). 1979), mas o ato administrativo concreto de confiscar jornais
660 Ênio Silveira Ênio Silveira 661

e revistas e de retirar livros de circulação continuava sendo O clima havia mudado de tal maneira que, em junho de
tarcfa da Polícia Federal, órgão do Ministério da Justiça*s. 1979, Ênio Silveira já era aceito pelas autoridades o suficiente
Nesse meio tempo, essa mudança de atitude do governo para ser incluído numa delegação de três pessoas que iria
vinha provocando tremendo impacto sobre a política edito- propor ao ministro da Educação, Eduardo Portella, futuras
rial, à medida que um número cada vez maior de assuntos medidas do governo em apoio à indústria e ao comércio do
deixava de ser tabu. À Global publicou o Dossiê Herzog: livro; os outros eram Sérgio Lacerda, da Nova Fronteira, €
Prisão, Tortura e Morte no Brasil, de Fernando Jordão, sobre Jorge Zahar. As principais propostas feitas diziam respeito
a prisão do jornalista oposicionista Wladimir Herzog e a a facilidades especiais de crédito governamental de 250 mi-
simulação de seu “suicídio” pela Polícia Militar de São Pau- lhões de cruzeiros (equivalente à metade do faturamento to-
lo. A revista satírica Pasquim, que se iniciara na publicação tal das editoras em 1977) e a medidas em favor de deduções
de livros sob a direção de Alfredo Gonçalves Manso, com mais generosas no imposto de renda para despesas pessoais
o nome de Codecri, “a editora do rato que ruge”, lançou o com livros. Foi sugerido que a permissão de desconto de s%
maior best-seller brasileiro de muitos anos, o detalhado re- na Cédula € para despesas com livros técnicos e científicos
lato de Fernando Gabeira sobre a tortura, O Que é Isso, fosse estendida a todos os tipos de livros, porém, com a exi-
Companheiro?, do qual se venderam oitenta mil exempla- gência posterior de comprovação da compra.
res apenas em 1979. Com Jeferson de Andrade no papel É oportuno lembrar, aqui, que, entre 1974 € 1976, um
de editor de livros, a Codecri publicou também uma ter- grupo de editores e livreiros, representantes da Câmara Bra-
ceira edição do antes proibido Zero, de Ignácio de Loyola sileira do Livro e do Sindicato Nacional dos Editores de Li-
Brandão, e uma série de romances-reportagem de Valério vros, desenvolveu um intenso trabalho com o objetivo de
Meinel: Por que Cláudia Lessin vai Morrer (1978), O Se- preparar a fundamentação e o anteprojeto de uma lei do
questro (1980) e Aézio: Um Operário Brasileiro (1981), que livro, trabalho que procurava diagnosticar os principais
acusava a polícia de assassinato, disfarçado em suicídio. Em problemas do setor e oferecer-lhes soluções. O resultado,
1984, Sérgio Jaguaribe, o cartunista Jaguar, acionista majo- consubstanciado na publicação Uma Política Integrada do
ritário da Codecri, teve de vendê-la para pagar a dívida de Livro para um País em Processo de Desenvolvimento: Preli-
quatrocentos milhões de cruzeiros em direitos autorais. A minares para a Definição de uma Política Nacional do Livro
Edições Populares, de São Paulo, foi constituída por Anal- (vol. 1: “Preliminares”, 250 p., vol. 2: “Projeto”, 60 p., O
dino Paulino para editar as obras de Che Guevara, Trótski primeiro contendo a fundamentação social, política, econô-
e Rosa Luxemburgo. E antes do final de 1979, apareceu nas mica e cultural, e o segundo apresentando o anteprojeto de
bancas um tablóide de declarada linha moscovita, a Hora do lei e suas justificativas), editado em 1976, em São Paulo e
Povo. No fronte sexual, passou a ser premiada a importação e Rio de Janeiro, e com a rubrica dos órgãos de classe, foi en-
a publicação de Playboy, e Ela e Ele podia agora circular com caminhado formalmente ao ministro da Educação do gover-
fotos indisfarçadas de sexo. Joy of Sex, de Alex Comfort, foi no Geisel, Ney Braga. Apesar da objetividade desse esforço,
lançado, em bela impressão, pela Martins Fontes, com o título o Ministério da Educação não lhe dedicou a atenção que
de Os Prazeres do Sexo. Essa editora, de São Paulo, tem mil sua importância merecia e esses estudos caíram no vazio.
títulos em catálogo, entre eles Deus e os Homens, do filósofo Em 1984, outro grupo de trabalho estava em vias de enviar
francês Voltaire, Formação Social da Mente, O Livro da Arte, ao Governo Federal um novo documento consubstanciando
Vocabulário de Psicanálise, além de vários títulos sobre agri- algumas medidas — a partir daquelas constantes do antepro-
cultura, ecologia, medicina e ciências sociais. jeto de 1976 — capazes de dinamizar a indústria e o comércio
do livro. Tudo leva a crer que a paciência e a pertinácia são,
também, atributos dos editores e livreiros brasileiros.
65. À retirada da censura das atribuições do Ministério da Justiça Houve quem sugerisse que a reaproximação de Ênio com
foi mais aparente do que real: o chefe de gabinete do ministro foi o o regime teria sido acompanhada de alguma alteração em
presidente ex officio do Conselho Nacional de Censura. seu radicalismo político. Muito embora sua produção de
662 Ênio Silveira Ênio Silveira 663

1979 incluísse os dois volumes das Memórias de Gregório carro, estacionado do lado de fora do Riocentro, onde o
Bezerra, que descreviam seus cinquenta anos como membro Centro Brasileiro Democrático, de tendência esquerdista,
ativo do PCB, Ênio Silveira parece efetivamente ter perdi- realizava uma reunião pública em comemoração da passa-
do um ou dois de seus autores mais esquerdistas (Nelson gem do Dia do Trabalho. Os ocupantes do carro eram um
Werneck Sodré teve vários de seus últimos livros publica- capitão e um sargento do setor de segurança da Força Aé-
dos pelas Edições Graal, do Rio, e Dalton Trevisan passou rea, no Galeão, sob o comando de um certo brigadeiro João
a ser editado pela Record), mas outras considerações são Paulo Burnier. O fato de a opinião liberal ter imediatamente
talvez pertinentes. Ênio já não era um jovem e um dos fato- dado como certo que, literalmente, “o tiro saíra pela culatra”
res de sua mudança foi a saúde, depois de tão longo período para as forças de segurança durante uma operação terroris-
de tensão, para não falar da péssima saúde financeira da ta foi muito menos surpreendente do que a liberdade com
sua empresa, depois de tantos anos de confisco e de outros que a imprensa sentiu que podia discutir tão perigosa teoria.
atos repressivos contra ela. Não obstante, a produção da A presteza da explicação oficial da Força Aérea, segundo a
Civilização, nos últimos anos do governo Figueiredo, ainda qual um terrorista de esquerda (que não foi visto) coloca-
impressionava: cerca de duzentos títulos por ano, 60% dos ra a bomba no colo do infeliz sargento (enquanto dormia,
quais novos, 30% de ficção nacional, 20% de ficção estran- ou estava momentaneamente distraído?) e escapara sem ser
geira contemporânea e 30% de obras brasileiras de ciências percebido, foi menos significativa do que a prontidão com
sociais. À escolha de títulos novos continuava a apresentar que todos no governo aceitaram-na, o que indicava que toda
qualidade e originalidade, e sustentava-se num excelente ca- cautela estava sendo tomada para acalmar a extrema direita,
tálogo, aumentado com um programa de coedições com a ou, pelo menos, evitar qualquer balanço desnecessário do
Universidade Federal do Ceará. A firma era também a distri- barco político. Finalmente, o fato de a comissão de inquérito
buidora brasileira de três editoras portuguesas: C. L. B. e as haver recusado investigar mais profundamente a ocorrência
radicais Antídoto e Socicultur. foi menos importante do que o fato de que ela só poderia
A despeito do grande progresso conseguido na restau- encerrar o caso por maioria de votos, o que faz crer que
ração da liberdade de expressão no Brasil, a manutenção outros pontos de vista diversos não deixavam de ter apoio
da “abertura” não estava de modo nenhum assegurada. nos círculos militares e, de fato, foi a força de tal apoio que
Os verdadeiros linhas-duras não se satisfizeram nem mes- possibilitou a continuação da “abertura”,
mo com Médici, e tinham feito oposição efetiva, embora Os longos anos de luta de Ênio Silveira, como já disse-
não declarada, desde janeiro de 1976, quando Geisel demi- mos, representaram enorme esforço financeiro, a que apenas
tiu o comandante do 11 Exército, general Eduardo d'Ávila temporariamente a herança de sua esposa com a venda da
Mello, por considerá-lo tecnicamente responsável pela mor- Nacional dera algum alívio. Em 1981, Ênio deixou claro que
te inexplicada de um suspeito político, Manoel Fiel Filho, procurava um sócio que pudesse oferecer à Civilização Bra-
detido no poi-Codi. Alguns dos mais extremados direitistas sileira uma injeção de capital extremamente necessária, mas
tinham-se indisposto de tal maneira com as medidas do go- ninguém se apresentou. Afinal, em 1982, aceitou uma oferta
verno Figueiredo voltadas para os direitos civis e a liberdade operacional da Difel, empresa estrangeira ($201), para cola-
de expressão que, desde o fim de 1979, levavam seu protesto borar com sua firma: a Civilização Brasileira passaria a ser
para o nível da ação direta. Sua campanha iniciou-se com distribuidora no Rio de Janeiro das edições da Difel e esta fi-
ameaças e incêndios criminosos, no Rio e em São Paulo, con- caria responsável pelas vendas da Civilização em São Paulo.
tra bancas de jornal que vendessem material esquerdista. Em Paralelamente, o Banco Pinto de Magalhães (cujo prin-
agosto de 1980, as instalações da Ordem dos Advogados, no cipal acionista, Manuel C. Boullosa, é cidadão português)
Rio de Janeiro, foram alvo de um atentado a bomba (para e uma pessoa física de nacionalidade também portuguesa,
forçar os profissionais do Direito a uma maior consciência o major Fernando da Silva, adquiriram 90% do capital da
política?), em que morreu uma funcionária, Lydia Monteiro.
Nove meses mais tarde, uma bomba explodiu dentro de um 66.CE.“A Bomba na Mão”, IstoÉ, vol. 5,n. 228, pp. 12-16, 6maio 1981.
664 Ênio Silveira
Ênio Silveira 665

Civilização, ficando Ênio Silveira com os restantes 10%. Em to, em 2003, de sua obra A Arte da Política, um ensaio teóri-
março de 1984 — exatamente um ano antes da volta da de- co ilustrado com situações que viveu no exercício do poder,
mocracia ao Brasil - formalizou-se a transferência da matriz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo o
da Civilização Brasileira para São Paulo, onde se incorporou jornal O Estado de $. Paulo (29 de agosto de 2002), optou
à Livraria Bertrand do Brasil, empresa subsidiária da tradi- pelo selo Civilização “por se identificar com arte e ciências
cional editora lisboeta. Na sequência, a Bertrand Brasil edi- sociais, com orientação centro-esquerda”. Em 2004, o selo
tava cerca de 35 títulos por ano, dos quais 50% eram ficção, tinha setecentos títulos no catálogo.
e a Civilização, com o selo da Bertrand, editava uns 25, dos Contudo, ficará para sempre a contribuição de Ênio Sil-
quais 60% eram ficção e com uma proporção maior de au- veira ao progresso da indústria editorial brasileira e ao de-
tores nacionais. Em abril de 1996, a Civilização, a Bertrand senvolvimento do livro brasileiro, nos meados do século xx.
e a Difel uniram-se com o nome de BcD União de Editoras, Nenhuma editora teve efeito estético mais benéfico sobre
sendo dirigida por João Salomão e Rafael Golkorn. Antes de a indústria, no que deve grande parcela a seus sucessivos
ser vendida, a Civilização constituiu a pequena Philobiblion, produtores gráficos Eugênio Hirsch, Marius Lauritzen Bern,
editora de poesia (publicou, por exemplo, Poesia Completa Roberto Pontual e (nos anos de 1980) Léa Caulliraux. Pou-
de Cesar Vallejo [1985], traduzida por Tiago de Mello); to- cos editores foram tão empreendedores em seus métodos
davia, por aceitar obras em demasia por amizade pessoal, empresariais, ou em seu programa editorial, e poucos man-
a editora acabou por fechar, e Ênio, depois de ter editado tiveram tão coerentemente um alto padrão de tradução. E,
mais de três mil livros, foi obrigado, no fim da vida, a fazer acima de tudo, sempre houve a contínua disposição de Ênio
traduções para aumentar a renda. Silveira de aceitar o risco financeiro de promover a literatura
Os efeitos dos tantos anos de luta não foram apenas fi- brasileira contemporânea. É justo que fique a última palavra
nanceiros. Sua querida esposa Cléo, que sofria de depressão com o próprio Ênio, que, analisando o universo editorial
crônica, morreu de uma queda enquanto estava alcoolizada. brasileiro, em Leia, (n. 26, junho de 1988) declara:
Um dos três filhos do casal suicidou-se. Ênio voltou a casar-
-se com Lígia Jobim, com quem teve outros dois filhos e, em O progresso cultural da humanidade, felizmente, não se apoia nos
1986, fez um terceiro casamento, com a romancista Irene Ro- massificadores, mas naqueles que desbravam e semeiam... Os ver-
drigo Octávio Moutinho. No último ano de vida, Ênio caiu dadeiros editores e os verdadeiros jornalistas [...] exercem desta-
enfermo de coração. E morreu de repente, de uma embolia cada função no plantio e no cultivo de ideias. Ainda que isso nem
pulmonar, em 11 de janeiro de 1996, com 69 anos de idade”. sempre lhes assegure imediato êxito material [...) são eles [...] que
Em janeiro de 1997, a Livraria Bertrand do Brasil foi efetivamente promovem esse repensar a vida que tanto contribui
vendida à Record, e desde então a Civilização Brasileira para o alargamento de horizontes e a elevação tanto dos indivíduos
existe apenas como um dos vários selos da Record. No en- como das comunidades...
tanto, é interessante observar que, ao negociar o lançamen-
Sua calorosa conclusão é que “a indústria editorial bra-
67. Entre os muitos tributos prestados a Ênio no momento da sileira [...] está perfeitamente à altura das necessidades do
sua
morte, citamos: André Luiz Barros, “Resistência à Serviço da país, e tem maiores méritos do que imaginam pessimistas e
Cultu-
ra,” Jornal do Brasil, p. 6, 13 jan. 1996 (caderno B); “Civilizaç
sileira Perde Talento de Ênio Silveira”, Tribuna do Norte, Natal
ão Bra- complexados, pois luta com dificuldades e problemas ine-
(RN), xistentes em outras áreas. Vive numa corda bamba, mas faz
P. 7, 13 jan. 1996; Carlos Heitor Cony, “Réquiem para um
Escotei- acrobacias admiráveis, mesmo sem ter por debaixo a rede”.
ro”, Folha de 8. Paulo, 22 jan. 1996; Paulo Francis, “Ênio Silvei
ra”, O
Estado de S.Paulo, p. D-11,18 jan. 1996 (caderno 2); “Morre o
Editor
Ênio Silveira”, IstoÉ,n.1 372,P. 85,17 jan. 1996;“On-Line”,
Diário
do Comércio s Indústria, São Paulo, 1 3 jan. 1996; Patrícia Sabóia
,
“A Última Entrevista do Editor Ênio Silveira”, Atenção,
reimpresso
em O Estado de 8. Paulo, p. D-10, 20 jan. 1996 (caderno 2).

Você também pode gostar