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Meditações em Catástrofes ou Sonhei que Parei um Trem com meu Soutien

Meditações em Catástrofes
ou
Sonhei que Parei um Trem com
meu Soutien
Andrew Knoll

Andrew Knoll 1
Meditações em Catástrofes ou Sonhei que Parei um Trem com meu Soutien

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Meditações em Catástrofes ou Sonhei que Parei um Trem com meu Soutien

ÊXTASE NA GLORIOSA MANHÃ

(Audiência canta trecho de ‘La Marseillaise’ lendo a letra impressa. As páginas estão sobre
os assentos)
(Abertura ‘I Dream of Jeannie’ - Jeanie é um Gênio):

LOC: Era uma vez, num lugar mítico chamado Cabo Kennedy, um astronauta de nome
Tony Nelson. Foi lançado em uma missão espacial. O míssil subiu, porém algo aconteceu, e
ele teve que retornar à Terra. O capitão Nelson chegou numa ilha onde encontrou a garrafa.
E não era uma garrafa qualquer, pois dentro dela havia um lindo gênio que tinha o poder de
realizar seus desejos.
Diferente! Divertido! Surpreendente! Um programa verdadeiramente genial! A garota deste
programa é um sonho, é um espetáculo! É muito viva! Jeannie é um Gênio! Estrelando
Barbara Eden, um provocante gênio das mil e uma noites. E Larry Hagman como seu amo e
senhor.
O capitão Nelson ficou tão grato que deu liberdade à Jeannie. Só que ela não queria ser
livre. Você deve compreender se já ficou preso numa garrafa por dois mil anos. Ela queria
divertir-se. E queria divertir-se com o capitão Nelson. Por isso acompanhou-o até Cocoa
Beach, uma cidade mítica de um mítico estado chamado Flórida. E aqui nesta casa a garota
da garrafa...
(Sobe trilha)

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(Publicitário dando entrevista para um jornal em seu escritório)

Boa noite
Muito obrigado por este convite

(Tempo, como se ouvisse uma pergunta que não nos é permitido ouvir)

Imagina, eu que agradeço. Sim, podemos começar.

Muitíssimo menos do que eu deveria ser frente a todos que durante este tempo me
confiaram suas prerrogativas de amizade, tempo, confiança...
‘I confess!’
Tenho sido covarde!

Quanto à forma de agir, pensar, decidir...


Tenho suportado o inferno e os dias são nada mais que humilhações veladas mascaradas
de conquista - Tenho sido menos de mim. Em todos os sentidos. Todos, absolutamente
Tenho sido medíocre!
Perdulário! Egoísta! Mesquinho! Pobre de espírito, roto de ideias, ausente de nobreza e
caráter. Tenho usado de subterfúgios para justificar minhas ausências, confesso! Tenho
sufocado calado na esperança que minha raiva e dor pudessem alimentar uma força
adormecida. Egoísmo em seu estado mais puro. Levando vantagens onde não há
esperança

Acho mesmo que não me encontro no local de direito ou que deveria ‘civilmente’ me
encontrar. Tenho sido verdadeiramente muitíssimo menos do que deveria

E tenho bebido. Muito. Whiskey, principalmente


(Tempo)
E tudo o mais que possa conter gin
Prometi parar de fumar com o nascimento de minha primeira filha. Nada adiantou. O
adesivo com nicotina serve pra te lembrar de puxar outro cigarro

A ética, dizem, é se mostrar sempre ‘One hundred percent’. Mostrar-se ao outro ‘por inteiro’.
Íntegro... Transparente, a fim de oferecer sempre a chance de decidir...
‘Nestas horas o silêncio vale ouro’

Mas é claro que não é nada disso que vou dizer.


Apague isto. Apague, apague agora! Vamos refazer!
.
Não interessa, vamos refazer tudo.

Vamos lá, do começo!

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(Trilha SING SING SING - Benny Goodman)

Noite com pesadelo e o acordar transpirando. Chuveiro frio e eu aqui novo em folha. Café
expresso forte puro. Outro. E outro lindo dia pagando pau pra todo tipo de gente escrota!
Uma máxima que tem sido parte constante do dia-a-dia do acordar publicitário!

Clientes!

(Para ser lido com urgência):


Uma grande conta, que iria nos tirar do buraco. Elevar os lucros da empresa, expandir,
contratar, quitar débitos, subir, abrir portas para ainda mais lucros, outras contas, novas
empresas, viagens, contatos, uma mão lava a jato, no no no, uma mão lava a outra, tudo vai
se articulando, se encaixando, impulsionando, como um perfeito trem, todo ele encarrilhado
forte e impávido nos trilhos lustrosos do sucesso, a vida como um todo, desde o acordar,
fazer a barba, exercícios, tomar banho, vestir-se, fechar os botões com a esquerda
enquanto a direita pega a loção depois perfume, o nó da gravata correto, nó simples, não,
hoje windsor, o relógio, o cabelo, colocar os cadarços para dentro do sapato, e mais que
apressado sair, pisando compassado, com os beats da cidade todo ele anunciando ‘à frente
sempre sem desviar!’. No caminho, adivinha? Café STARBUCKS! Comprar junto o jornal do
dia, seguir pelas ruas corretas, não pisar fora da faixa, contemplar os luminosos, os táxis, os
rails, sentir toda a urbe, toda ágora, toda prova, ondas de vapor, os sons ininterruptos de
ininterruptos motores, celulares, as pessoas, os cafés, as vitrines, os charutos, madeira e
couro dos escritórios que frequento, transito e permaneço - desde que tenham Whiskey

Rua e pensamentos giram com todos os sons, cores, cheiros, reais e imaginários como um
alucinado carrossel entrando e saindo em nós enquanto caminhamos
E no turbilhão... um reflexo de sol que faz cegar

No meio da rua, o som estridente de pneus freando e rasgando o asfalto. É o fim. Black-out.
Então sinto o impacto mas é de algo me abraçando e arremessando para a calçada em
velocidade atordoante. Abro os olhos devagar... Estou... Intacto? O sol ainda contra, e
começo a ver... É uma jovem mulher. Sua roupa colada ao corpo, ela é forte, decote, capa,
botas e... óculos. De seus olhos saem uma cor intensa púrpura. Ela sorri. Pergunta: ‘Está
tudo bem?’ Digo que sim. ‘Oki-doki’, ela diz. Ela me ajuda a ficar de pé e a multidão começa
a se juntar em volta. Fotos e flashes. ‘Obrigado’, eu digo. Ela sorri. 'Posso fazer uma foto?'
Retiro minha KODAK - Você Merece Uma Kodak -, nos abraçamos e...

(Sobe luz fria no teatro. Rápida votação com a audiência para decidir a continuação da cena
entre dois caminhos: Um tom com ‘Mais Aventura’ ou um tom com ‘Menos Aventura’
Após a votação, independente do resultado, continua:)

Ela sorri
De repente, o chão some. Sob nossos pés, um alçapão se abriu, e ambos estamos caindo
na repentina escuridão. Caindo, caindo, caindo. Um solavanco... E estamos suspensos no
ar, nossos corpos colados frente a frente, amarrados com os braços pra trás. “Santo Deus,
como está quente aqui. E como ela está quente”. E desmaiada, apoiada com a cabeça em
meu ombro. E esse perfme... CHANEL N.5? Então o surdo estalar de grandes mandíbulas.
Imensos alligators albinos exibem-se esfomeados poucos metros abaixo, quase tocando
nossos pés. Começamos a transpirar e a corda já não vai aguentar. Está se desfazendo em
fios. Eu tento acordá-la, chamo, sopro em seu rosto. Nada. Ok, pelo jeito, serei eu agora a
ter de nos salvar. Mas como? Minha caneta no bolso. O anel no meu dedo. O prendedor de
minha gravata. O TRIDENT de Canela. Droga, esqueci o TRIDENT de Canela. Mas então,
de onde este cheiro? Ela está acordada. E sorri.

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Sinto seu hálito TRIDENT de Canela. Meu coração se acelera - Deus, não posso ter uma
ereção!

- Tira com a boca! - ela diz


- O quê?
- Tira com a boca!

Demoro, mas entendo. Viro a cabeça para o lado direito, abro a boca, fecho os olhos, e
começo a avançar para beijá-la
Ela retrai-se para trás, escapando do meu gesto que se tornou pa-té-ti-co. Só consigo
pensar “Que bom que não têm ninguém do escritório olhando”.
- Não seu idiota! Meus óculos. Tira eles. Usa a boca
- Ma mas.. como assim?
- “Aff”, ela se impacienta... Câmara lenta. Ela fecha os olhos. Com um movimento de
cabeça, atira os óculos para o ar. Seus cabelos são ainda mais incríveis com este
movimento. Aponta a cabeça para cima, na direção da corda a que estamos presos. Ela
abre os olhos. E deles, um feixe púrpura incandescente corta a corda nos libertando.
Caímos. Na queda, ela apanha os óculos no ar - mesmo de olhos fechados, ela é realmente
excelente! - põe novamente os óculos. agarra meu punho e saímos dali para o alto... e
avante...subindo... subindo o túnel escuro em direção à luz... E alcançamos a superfície.
Subimos até a atmosfera. Agora tudo é... ouço nossas respirações. Posso ver a cidade lá
embaixo, o sol e o mar no horizonte. Ela sorri. Penso novamente em abrir a boca, virar a
cabeça de lado e fechar os olhos... Mas não. Descemos. Estou no solo
- Hey. Isto foi super incrível!
Sua mão toca meu peito. ‘Mais cuidado, campeão’.

A multidão começa a se juntar em volta. Fotos e flashes. ‘Obrigado’, eu digo. Ela sorri.
'Posso fazer uma foto?' Retiro minha câmera PENTAX K1000 - A Melhor Câmera Que Você
Jamais Viu -, nos abraçamos e...

Mira o céu, ‘Tally-ho!’


E num impulso ela some, assim como chegou

Enfim algo bom no dia

Sou todos os espaços em saltos múltiplos na cidade que nunca dorme e ruge e fere ainda
por um tempo indefinido

Atravesso a rua, compro meu café e chego ao trabalho


Sou eu o edifício, portentoso, imenso arranha-céu desvio de aviões, instalado na sétima
com a quinta. Com 112 andares, de puro concreto armado, paredes externas envidraçadas,
na cobertura restaurantes, academia, piscina borda infinita e vista do topo do mundo.
Subindo, pegar o elevador, sétimo andar, falar do tempo, da chuva, do banco, décimo
quinto andar, falar da copa, da casa, dos filhos, do golpe, vigésimo nono, participações num
horizonte azul ilimitado com NIKE, LUCKY STRIKE, DOVE, EXXON MOBIL, SHEVRON,
VOLVO, OVEN, ARMANI, DIOR, GUCCI, CHAPITAL INVESTORS, ‘Trend Forex like a
Pro!’. Falar baixo dos Lobbys, caixas de campanha, entre-safras, variações na Bolsa, da
filha herdeira do Banco de Peter Paul Arnold, trigésimo sétimo andar, convidar para o Clube
Náutico, depois aceitar o convite para o casamento da filha do psiquiatra consagrado que
será no Santa Mônica, com direito a flashes, DON PERIGNÓN, MONTEPULCIANNO e a
presença de todo o Jet Set. Sorrir, se despedir, sair do elevador, e caminhar pelo corredor
branco iluminado com som ambiente agradável, instigante, revigorante e vencedor

Cumprimentar a nova secretária - terceira no semestre, lhe entregar o chapéu, o casaco,


whiskey, marcar reunião, fumar um cigarro, beber com os sócios, esquecer das imagens

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que o perseguem, da ex mulher que o despreza, da ex namorada que o traiu, ex vizinha


louca de pedra, ex corretor, ex advogado, ex adolescência ‘Hit and run! hit and run! Hit and
run!’, que fugiu de casa pra nadar pelado, que matou sem querer um filhote de pato, que
brigou com o tio que nunca vê, que gritou com o pai, que subiu no telhado, que trepou atrás
da igreja, tudo isso em milissegundos, fumar outro cigarro, olhar a janela, desejar o outro
lado, começar o dia pois há ainda mais clientes, mais whiskey, mais cigarros, motivar a
equipe, outras campanhas, e uma grande conta

A questão é quando o cliente sabe. Sabe que é essencial. Sabe que é a cereja do Bolo, a
prata da casa. Aí ele abusa. Abusa, deita e rola. Afrouxa a gravata, chega atrasado na
reunião, ou nem vêm. Sugere festas, quer se divertir. Quer presentes, bebidas, prostitutas
pagas em dólares. E a gente Faz. Faz tudo. Tudo mesmo. Tudo pra que depois o
faturamento compense. Se o cliente é ético, eu me encaixo. Se ele é canalha... Também me
encaixo! Posso bajulá-lo, posso levá-lo pra jantar, oferecer meu carro, oferecer a casa, a
esposa, a conta e os cambau! ‘It’s just business’! pagar o jantar, os drinks, as apostas, subir
as apostas, dobrar as apostas! Quem ele é? Quem eu sou?
My life... It’s just a trial, and a Prove!... And Prove! and Prove!, and Prove and Prove and
bombs and míssiles and bombs and napalms everyday! Everyday! Everyday!

O que está rugindo agora?


C’moooon! Give me ALL THE POWER OF THE WORLD, son of a bitches!
.

Em pé em frente à parede janela do escritório vejo outros prédios de Vidro. As paredes


externas, fachadas inteiras refletindo as outras todas em frente e ao longo de toda a imensa
avenida... E o céu. A mulher de capa e botas e óculos - a mesma - passa voando frente a
minha janela acena e pisca
Outra dose antes da reunião

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'UMA E TRÊS CADEIRAS'

SEPIA YELLOW
O apartamento fica no centro abafado de ... É noite e a cidade vibra. Agulha no disco e tudo
toma outro tom

Na sala ele senta à frente do cavalete e observa a modelo nua mais adiante. Vai retomar a
pintura. Pincel na tinta, Trompetes irrompem. Inicia a fazer a boca. Solo de bateria. Molha o
pincel no vermelho preparado a óleo. Leva o pincel com tinta ao ar. No estouro dos pratos e
tímpano... Um estrondo na cozinha: O cano d’água da pia estoura. Ele levanta-se
bruscamente e tropeça. O pincel voa no ar... Ele no ar...

Suspensos
A água suspensa parada no ar
Respingos de tinta no ar
Suspenso

BRANCO PÉROLA
LSD. Da primeira vez não senti nada. Eles queriam que eu tomasse, sabe? Alguns dormem!
Eu não durmo! Não consigo. Mais energia. Você têm de dançar. Não se consegue dormir.
Não se dorme nunca. Uma felicidade eufórica. Diretamente proporcional à sua ‘bad’.
O êxtase te deixa mais tenso, vontade de tocar em tudo, aliviar a tensão.
Quando começa a derreter na língua, as pessoas nunca estão sempre iguais.
Não foram completamente terminadas. São todas rascunhos e borrões.
Sempre mudando, simbiose em trânsito... Como a linha do trompete demarcando a frase,
falando, conversando, mudando de órbita, adensando, sussurrando, beijando, acariciando,
te dando uma bofetada que te faz sentir como se tivesse tomado 20 garrafas de whiskey de
uma só vez com alguém te acariciando com a língua. O trompete é língua passeando suave
na pele. Deslizando sobre a percussão marcando o ritmo, cozinhando, controlando o pulso.
E que acelera, quebra, pausa, retoma, rebate, como o eterno desenrolar de forças cósmicas
ali, nos pratos, no tímpano, nos ton-tons, no chimbau. Ali, ecos do big ben se pode ouvir nas
caixas reverberando as paredes e o corpo inteiro vibrando e úmido como as pedras on the
rocks. Outro whiskey, enquanto os metais são outras tantas línguas agora em você por fora
e por dentro, seus dedos dos pés sentem de imediato e não é possível mais nenhum
controle, suas pernas sabem, pois o todo é o continuum do som que se propaga e é cada
célula porque agora tudo tudo é jazz, a gota de suor descendo em seu pescoço é jazz, seu
canto de olho apertando com a boca bem aberta é jazz, o universo todo é jazz, e o jazz é o
máximo pra esquecer tudo!

Compasso final

PRATA
Água

Reflexos de sol na água

Embaixo pedras, rio raso


Água límpida corrente, correndo livre rasa sobre pedras escorregadias
Há musgo, sombra de eucaliptos e tenho 11 anos
Em pé inerte meio do rio
Subitamente, algo gelado em meus tornozelos. Uma pequena cobra albina passa
deslizando entre as pernas. Estou paralisado
Então ela retorna e... Nos encaramos

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Tempo

Ela ataca implacável e rápida, quase some com o movimento, um borrão. Crava seus
dentes em minha perna... e segue impune seu curso, cortando o rio de prata e raios de sol
de setembro vindo deste recorte de montanha parte dele na sombra como uma imensa
parede recortando o sol como uma pintura-metáfora para tudo o que virá... E virá

VERDE MUSGO
No restaurante a dama na mesa ao lado, acompanhada, flerta toda vez que seu marido vira
pra chamar o garçom. Levanta-se para ir ao banheiro. Ao passar por mim, morde o lábio.
Não irei atrás, conheço o filme. Um mês depois a vejo entrar num Pub pra tomar um café.
Williamstown, leste de NY. Banco vazio a sei lado, me convido a acompanhá-la - “Este lugar
está ocupado?” - Na rua nossos lábios se encontram e a convido para entrar. “Vou em casa
tomar um banho e já volto. Me espera?” Ela diz. Ela se encanta com minha coleção de vinis.
Tiramos nossas roupas, ela projeta os quadris pra frente tocando de leve minha boca. Bem
de leve no início. Bem de leve. Ela sobre ele, em cópula e em silêncio troca olhares com o
voyeur, sob a luz fria dos prédios da rua

Ela interrompe a cópula por instantes... Ela acha que ouviu alguma coisa...
Um grito de desespero quase inaudível se pode ouvir ao longe... bem longe
Ela aperta os olhos... suas mãos agarram o lençol... seus olhos se molham com lágrimas...
e ela continua

E trepamos por três noites como se fossem os últimos dias de vida no planeta

SEPIA YELLOW
No ateliê, após 1 hora em que a observo e trabalho no quadro, ela sai da posição. Está
cada vez mais difícil fazer com que se mantenha quieta
‘Tenho tentado não fugir de minhas emoções’ - ela diz
Ontem se cansou e tentou atirar tudo em tudo

Parece um bicho arisco aprisionado. Diz que não se mover é ir contra a pulso do universo,
mas que também não consegue ir embora. Este eterno vai e vêm de forças incontroláveis.
‘Quando tinha 7 anos - ela diz - estava com minha mãe visitando o escritório do pai, com
minha roupa da ‘Jeannie-é-um-Gênio’ que havia ganhado no aniversário. Correndo,
derrubei um de seus troféus. Minha mãe me bateu. Queria fugir gritando. Saí correndo e
entrei no elevador. Na rua as luzes todas da cidade se apagaram. Fiquei perdida até que vi
na vitrine de um supermercado a boneca Jeannie. Entrei. Peguei uma caixa e sentei no
chão com ela, lá no fundo. Conversamos. Ela me entendia e dizia que todas nós
poderíamos um dia nos casar com o ‘Capitão Nelson’. Ia ser apaixonante, fabuloso, um
sonho! Ele esfregaria a garrafa, e a gente surge, exatamente como acontece na tv... Até
que um homem surgiu. Era ele, o Capitão Nelson. Ele me pegou pela mão e disse que iria
me levar pra casa’

Disse também que queria que eu soubesse que no dia que veio para cá algo nela mudou e
que tem sido um imenso privilégio não só ter estado a meu lado mas ter sido honrada com
ela sendo a ‘única’. Fiquei sem palavras. ‘Oki-doki’, ela diz, e se acalma. Digo a ela que
preciso terminar de pintar a boca. Pego o pincel, ela retorna. Aumento a música, ela despe-
se e retorna à posição. Tinta. Trompetes
.

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GREY
19h e o metrô é abarrotado. Corpos cansados ao final do dia se avolumam mais e se
adensam em todos os espaços. Então a cidade inteira se apaga. É um Black-out. Há certo
pânico no início. Passa-se para as reclamações, depois as conversas se amenam, alguns
desistem da posição em pé e decidem sair do vagão, caminhar nos túneis e seguir a pé
mesmo no escuro. Uma mulher grita. Um homem sai correndo. Há esperma em seu
pescoço. Querem linchá-lo. Outros saem em seu encalço. Eu também alcanço a rua. Vejo
Dante escrevendo outros círculos. Pode ver? Há latões e roupas em fogo, vidros se
estilhaçam junto às luzes de polícia. Brancos, negros, latinos e chinas assustados e
agressivos. No parque, um grupo dança ao som de ‘freak-out’, alguns já semi despidos.
Desvio de uma horda enfurecida entrando no supermercado arrombado. No fundo,
encolhida entre caixas de brinquedos e Herschey’s, uma criança ali perdida de sua mãe. Me
aproximo. Seus olhos enormes olham através de mim. ‘Você é o Capitão Nelson?
Estávamos te esperando...’ Pego sua mão e vamos pela rua até encontrar sua mãe em
prantos mais adiante. A criança me abraça e quer me dar sua boneca. A mãe grita comigo e
somem na multidão. É uma selva. Uma pedra me acerta o olho direito. Entro na briga. Bato
e apanho. Cambaleante, chego em casa após 1 hora não sei como, minha camisa agora um
Pollock com o sangue e suor. Gelo. Sofá. E o zumbido contínuo. Não é jazz. É setembro

Tempo

Sentado em frente à parede janela do escritório vejo outros prédios de Vidro


Silêncio
No silêncio, um poderoso som de avião que se aproxima rapidamente. Pela janela, vejo a
jovem mulher de bota, capa e óculos voando. Ela acena e pisca para mim. Depois, voa
direto em direção a uma das torres. Ela vai sem desviar. E então... o estrondo
E o grande cogumelo de fogo, som, fúria e medo
Ouço também dinamites
Outro estrondo
Aviões e dinamites. Pode ver?
Corpos em queda em câmara lenta antes de tudo escurecer
Então, o sol
Depois de tanto tempo, vejo o sol entrar quando a primeira das duas torres vêm abaixo

SEPIA YELLOW
Forte clarão
Pancadas na porta... É ela, a garota com superpoderes, a 'garota da capa'
Disse que, antes de ir, gostaria de ser modelo em um quadro
Convido a entrar

Eu criança descalço no leito do rio


Eu os trilhos sob os vagões - pode ver?

BRANCO PÉROLA
No hospital, não quero que me encostem... Não quero que me olhem. Não sentir cheiro de
nada. Então me mostram a cobra que me picou quando criança, mas não quero olhar.
Reúno forças pra sentar na cama. Cabeça pesada e transito entre o sono, este passado
borrado, um futuro de areia e os dias recentes. Vultos passam em queda do lado de fora da

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minha janela. Um, depois outro. Lá embaixo as pancadas. São pessoas. Se atiram da torre
ao lado antes do segundo avião chegar. Ainda assim acho que pude ouvir dinamites. Não
quero ninguém por perto. Mais que isso. Quero o tempo passando e correndo longe fora
daqui

18h
Vento e eletricidade no ar

Folhas soltas com o vento viajam ganhando distância

A sala de pintura vazia, repleta de espessa camada de pó cobrindo tudo, o papel de parede
desfeito, a água da pia parada no ar, um homem suspenso no ar em desequilíbrio, pincel
suspenso e tintas. No quadro, a mulher sendo pintada segura uma foto. A boca ainda por
fazer. A modelo suspensa segura a foto

Na foto, a sala vazia, repleta de espessa camada de pó cobrindo tudo, o papel de parede
desfeito, a água da pia parada no ar, o homem suspenso como que em desequilíbrio, pincel
suspenso e tintas no ar. No quadro, a mulher segura uma foto. A boca ainda por fazer. A
modelo suspensa segurando a foto

Na foto, sala vazia. Pó. Papel de parede desfeito, água parada no ar, homem suspenso em
desequilíbrio, pincel suspenso e tintas no ar
No quadro, a mulher segura uma foto
A boca ainda por fazer

Pagando pau pra muita muita gente escrota

Em pé em frente à parede janela do escritório bebo e vejo outros prédios de Vidro. É noite,
e as luzes tornam tudo ecos da sala de casa. É natal. Fachadas inteiras refletem as outras
todas em frente e ao longo de toda a avenida

Uma jovem mulher de capa e botas passa voando frente à minha janela e acena e pisca
para mim. Some na noite

Deixo meu copo de lado

Lá fora o vento é gelado agora

SECRETARY! 'DOWN FOR THE DAY!

- end of first act -

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TIPICAMENTE BONITA

A câmera se move lentamente flutuando entre os flocos de neve avançando sobre o parque
em direção a esta esta janela e a atravessa sala adentro. Flutua até uma mesa onde há um
objeto redondo de vidro, apoiado sobre uma base. Dentro da esfera de vidro uma
pequenina cidade reluzente, rica em detalhes... e flocos de neve artificial se agitam criando
uma atmosfera noturna, tipicamente fria, tipicamente bonita, tipicamente kitsch e natalina

Som de chamada telefônica


Está?
Oi!
...

O que está rugindo agora?

(Tempo)

O que está rugindo agora?

O vencido

O vencido, o executado

O derrotado

O sujeito parado ali na chuva, molhado da cabeça aos pés à alma olhando ir embora o carro
do ano que acabou de passar e lhe dar um banho de realidade sórdida

O que 'tomou o fora' após se encher de coragem pra 'fazer o pedido' - pensava ele poder ter
chance de ter a primeira dança, oferecer fatia de bolo, copo de whiskey, vender em pedaços
a gravata

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O que não conseguiu abre aspas poder de compra fecha aspas, nem com esforço, dores
nas costas e pouco sono

O que não conseguiu abre aspas poder de compra fecha aspas e teve de deixar o filho/

Ou a filha

Sim ou a filha. Teve de deixar o filho ou a filha chorando clamando abraço, pra ir procurar
trabalho subalterno

O que perdeu a fala, corpo tremendo em queda escada abaixo depois de tanta e tanta e
tanta resignação

Pra levantar e cair de novo/

Pra levantar e cair de novo

Cair de novo, cair melhor

O que os amigos se afastaram, pois ele já não era mais digno de nota. Aquele que inspirou
VICTOR HUGO a desenhar VALJEAN, FANTINE, COSETTE

O desprovido de capital simbólico nas disputas estratégicas de cada campo. O 'caipira'


BOURDIEU chegando pela primeira vez na École de Sociologie, ainda com a mala de
viagem à mão, passando entre os que o atravessavam de cima a baixo com desdém, todos
com suas gravatinhas bem alinhadas

STENDHAL a desenhar o jovem JIULIEN SOREL estudando com afinco e suor enquanto
seu pai e irmãos o dificultavam

HUCK FINN dormindo em seu barril era Nietzsche desenhando seu pastor dançando após
cuspir a cabeça da serpente, triunfal em eterno retorno

O que vai dormindo em pé no ônibus, ainda de madrugada

E que retorna também já tão exausto, perdendo tempo com o que lhe sobra de seu quinhão
de subjetividade

Jesus criança brincando e sendo interrompido pra deixar passar a guarda do Império, de
botas e elmos brilhantes em expansão

O que queimou tudo de FITZGERALD, CAPOTE, e outros ternos caríssimos. Pois enquanto
a cidade ergue suas taças cintilantes com 'diamantes do tamanho do Ritz' sôfregos de
hedonismo democraticamente autorizado a sangue frio - pode ouvir o tilintar?/

Pode ouvir o tilintar?/

- em suas ricas sacadas admirando a vista de luzes internas de apartamentos dos predios
vizinhos que lhe tapam a paisagem - uma réstia de céu estrelado neste inverno cristalino -
glamour para uns, fatal para outros. Pode ver?/

Pode ver?

É como estar no centro silencioso de um tufão de Conrad - eu só tenho é páginas e páginas


e páginas

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Nada mais?

É a doxa escancarando a ortodoxia polida, enquanto dominados caminham em ladrilhos


úmidos com um dragão rugindo em cada ventre! Hei-la-ho!/

Você que aí vai de olhar soturno! Hei-la-ho!/

Bentinho que amaste Capitulando pra si mesmo o que faria se a visse de novo! / Hei-la-ho!

Artista soterrado a cada dia, cavando um palmo a mais a cada linha grafada de poesia! - é
faca que escreve a carne!/

Faca rangendo dentes!/

Pressa em fazer-se vivo!

Você que sonha com as manhãs de sua infância insular, estes é que interessam!
Interessam! Porque não é apenas a fome que está rugindo. Não é apenas fome! É 'Outra'
fome! Estes quero ouvir. Os que estão à sombra dos novos novíssimos empreendimentos.
Porque de 'consagrados'... a cidade já está repleta

(Som de chamada desligando)

A ONDA QUE NÃO ESPERA

(Continuando a entrevista para o jornal em seu escritório):

Vamos lá, continuando:

Sendo completamente franco, um dos principais pontos que levava a uma cultura tão tóxica
é o próprio ‘BV’.

Pensa na mentira que é isso. Você cria toda uma estrutura que começa com uma mentira.
Uma mentira em que você têm de criar uma coisa que não vai resolver um problema. Pra
colocar na rua, pra ganhar dinheiro de um outro jeito… E aí as marcas não querem pagar a
estrutura da agência pelo trabalho… Aí as pessoas não recebem… elas não recebendo,
elas têm de, enfim… elas têm de entrar em concorrência. Existem muitas concorrências que
as agências precisam entrar pra se sustentar. Só que, no caso de concorrência, as marcas
não estando pagando as pessoas para trabalhar, então as PESSOAS - sim, porque
estamos falando de PESSOAS e não MÁQUINAS - estando trabalhando O DOBRO, sem
RECEBER o dobro, e aí elas ficam VIRANDO NOITE APÓS NOITE… enfim, tá tudo errado.

E aí o que me atraiu aqui nesta empresa, além desta questão do próprio BV, e da não
dependência de mídia, e da consequência disso que é a gente PODER CRIAR QUALQUER
COISA têm o ponto importante que estou querendo implementar aqui que é o Homem

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Meditações em Catástrofes ou Sonhei que Parei um Trem com meu Soutien

Office - que é bem atrativo, não têm como não olhar pra isso porque você começa a
entender que você pode mexer no seu horário ao longo do dia, você pode ficar um tempo
na sua casa, tem um modelo aí interessante surgindo…

(De repente ele tira um vidrinho e começa a pingar loucamente na boca)

- É FLORAL?
- Não, é FLUOXETINA. Toda vez que eu 'tô entendiado eu tomo umas gotas…

Então, continuando

Têm uma questão também de modelo não hierárquico, se trata de um modelo mais
horizontal na prática, têm uma diferença de ego que acho que toda agência deveria ser
assim… porque como a minha área é a maior área dentro da empresa, têm pessoas que
são da redação, pessoas da direção de arte, de ‘data’, de ‘planejamento’, e essas pessoas
se ajudam porque são expertises totalmente diferentes… Então têm uma questão de ego
também que é muito diferente… Isso aqui na nossa empresa não existe

E o principal pra mim é o que nosso presidente vêm implementando nesta agência desde
quando ele a fundou que é a ‘cultura do não’
Então a agência diz muitos ‘nãos’ e eu nunca vi outra empresa de grande porte fazendo
isso… Somos pioneiros neste quesito
Quando, por exemplo, marcas pedem que a gente entre em concorrência de projeto, a
gente aqui diz ’não’… a gente têm um email formal pra dizer esse grande ‘NÃO’, e eu posso
garantir que todos da nossa equipe, todos sem exceção, desde o mais reles estagiário até o
diretor de arte têm uma abertura de verdade pra dizer ‘não’ pra qualquer coisa que a gente
se sinta mal em fazer… mesmo que tenha dinheiro envolvido (tosse, pigarro disfarça)

É um ambiente que se propõe a quebrar vários problemas do mercado

Jornalista: - Ok, sr. Acho que já temos o suficiente. Agora uma foto

FLASH

(Trilha: Sing Sing Sing - Benny Goodman)

Visto meu colã reluzente e a roupa de trabalho por cima. Outro dia na vida de uma garota
com superpoderes que precisa ganhar a vida como qualquer um. Quase saio voando mas
lembro que estou agora à paisana. Prendo os cabelos no coque alto, pego as chaves e saio
como civil. O metrô, passo a catraca e o vagão, como sempre, lotado de meninas indo para
a escola

Meio do caminho, meliantes levantam e dão voz de assalto. Dois homens fortemente
armados. Querem reféns. Usam palavras deselegantes, xingam e gritam com todos,
ameaçam com coronhadas. Temo pela vida de todas e a adrenalina sobre gelando o
cérebro por trás da nuca. Eles ordenam que todas se levantem e fiquem de pé para descer,
mãos para cima à vista. E acontece o que eu mais temia: Antes que todas saiam, eles
tomam uma refém. Começam declaradamente a molestá-la. Tentam beijar seu rosto, tocá-la
onde não se deve. Ela se esquiva, grita e chora. Sua saia se rasga

Então, o black-out

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Já próximo à saída, ela olha para mim em súplica, nossos olhares se cruzam. E eu quase
posso ouvir o que ela não diz com os lábios
Súbito, num impulso, faço o tempo ficar lento. Soco um, chuto o outra, sinto o cano gelado
da arma em minha nuca. Giro rápido, desvio a arma com a esquerda, golpe no pescoço,
joelho no estômago, ele se contrai. Desvio a arma com a mão esquerda. Golpe no pescoço.
Joelho no estômago, gancho no rosto. Ele voa. O outro, boca aberta, está petrificado. Estalo
os dedos. Ele corre para fora do veículo

Ela, chorando, vêm e me abraça


Um abraço carinhoso a consola
Levanta o rosto com lágrimas
Esse perfume... Será CHANEL N.5?
Nossos lábios se encontram

FLASH
Câmeras ROLLEI FLEX 35, LEIKA MP2, POLLAROIDS SX-70 são acionadas

(Falando calmamente)
Digo a ela: Calma, garota...

ELA: Calma garota


EU: Feche os Olhos
ELA: Feche os Olhos
EU: Relaxe
ELA: Relaxe...
EU: Shhhh... Relaxe...

... Você está ficando completamente relaxada...

(À audiência)

... Vocês estão ficando completamente relaxados...

Seus braços e pernas estão ficando ainda mais relaxados...

Fechem os olhos...

Isso, fechem os olhos...

Isso...

Ainda mais relaxados...


É praticamente impossível re-sis-tir...

(Luz na sala vai à penumbra)

Eu vou contar de 10 a 1, e vocês vão estar completamente relaxados...

Tudo em volta tornando em nada em 10... mais relaxados...


NOVE... seus braços mais e mais relaxados...
OITO... sua coluna relaxada...
SETE... pernas relaxadas...
SEIS... todo o corpo relaxado...
CINCO... nada mais...

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QUATRO... todo o peso...


TRÊS... maxilar língua relaxados...
DOIS... completamente relaxados...
UM... você vai para outro lugar...

Você se vê de fora...

(Tempo. Som de harpa característico de incursão hipnótica)

Estamos em Curitiba em uma Praça na região central, ao lado do Passeio Público. Há duas
enormes estátuas que representam uma Mulher e um Homem Nus. E um imenso monolito
entre eles

Vencendo a gravidade
Você está ali, na Praça, como em um exercício contínuo, de pé, tento girar....e flutuar. Girar
sobre o próprio eixo, perna direita dobrada, apoiado sobre o pé esquerdo, a girar. A questão
aqui é que, apartir de determinado momento, no esforço continuado, você começa aos
poucos a vencer a gravidade. E então, a flutuar. Sempre no giro, consegue se manter
elevado. Sabe que, se parar a intenção do esforço, vai cair repentinamente. Então você não
para a intenção de girar, e flutuar, cada vez mais alto...
Agora você retorna lentamente ao chão...

Toda a Pça. está tomada com uma coloração avermelhada


Você está no centro da praça, caminha por ela e os sapatos estão pegajosos ao contato
com o chão algo vermelho intenso hemácias e hemoglobinas por todo o chão e até 2 metros
de altura ali nas pernas da estátua do homem e da mulher nua na Praça 19 nas paredes do
shopping nas colunas do portal do Passeio
Ao longe ainda ouve a grande concentração de pessoas em marcha

(Trilha “La Marseillaise’)

... portando Bandeiras cantando palavras de ordem já se distanciando pela Inácio Lustosa
acima, indo firmes em direção ao Bigorrilho.
Estes são os últimos momentos da monarquia absolutista do Champagnat

Você apenas não consegue mais caminhar. O sangue ali no chão te impede, como uma
marca eterna fazendo sempre com que você se lembre, e que agora também está marcada
em você

(Sussurrando) De quem é o sangue?...

(Sussurrando) ‘Onde ele está’?

(Sussurrando) ‘Onde ele está?’

Você ouve confundido com o vento vindo das árvores do Passeio

Mais relaxados... vocês estão ainda mais relaxados...

Tenta ouvir. Aperta os olhos, apura os ouvidos


(Sussurrando) ‘Quem está rugindo agora?’

O sussurro agora é grito de centenas em marcha que vai subindo já a Padre Anchieta. E
como cantam!

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(“La Marseillaise”):

Aux armes, citoyens!


Formez vos bataillons!

‘Pode ouvir?’

Marchons, marchons
Qu’ung sang impur
‘Pode ouvir?’
Abreuve nos sillons...
Abreuve nos sillons...

ÀS CIDADES TROVEJANTES

Do Portal do Passeio, dizem que, toda quinta 23h55, se atravessar pelo Portal, chega-se
diretamente naquela rua estreita que fica na parte de trás da Catedral. E vice-versa. Dalton
fora o primeiro a testar. Economiza tempo de caminhada. Nas terças, a chegada é na parte
de dentro da catedral, mais especificamente na Torre do Sino. É possível solicitar ao
corcunda pra te deixar soar as badaladas da meia-noite enquanto ele pode se sentar e tocar
- o grande órgão de tubos da igreja. Uma de suas maiores paixões. Se não interrompê-lo,
ele irá tocar noite adentro, fazendo-se ouvir à distância, transformando a capela em uma
grande caixa amplificadora. Ele toca, e todos na Pça. Tiradentes são de repentes tomados
pela música e começam a se mover tomados por seus acordes irresistíveis, gemendo,
suando, em um transe cada vez mais intenso. E já gargalham, se tocando e tendo ereções,
e prolongam suas vozes em uníssono. Os sinos de outras igrejas também podem ser
ouvidos, desde a Santa Casa até a dos Passarinhos. O MON subitamente abre seu olho
polifemo, e dele um feixe de luz triunfal ilumina os céus - um chamado e um convite à
aproximação
Na porta do Paço da Liberdade, os dois colossos de estátuas que sustentam suas colunas
se desprendem e dançam, apaixonando as prostitutas na Riachuelo que se acumulam à
sua volta, admirando seus corpos de mármore. ‘Vêm benzinho... vêm comigo... vâmo?’;
alguma arrisca em adoração. E eles vão. Claro, não são palhaços!

A estátua da lavadeira negra desce a lata de sua cabeça, já tão cansada pelos anos de
imobilidade, põe-na de lado e dança feroz e sensualmente entre as flores do mercado. Na
nave, o corcunda tange com vigor as teclas do poderoso órgão de tubos, e a imensa massa
dançante da Praça se expande como uma onda avançando sobre a Marechal Floriano, indo
em direção à Ferrovila. Galpões de ferro funcionando madrugada adentro, onde ciclopes de
ferro forjam as novas armas da insurreição, iluminados na escuridão pelo vermelho vivo do
ferro líquido na forja. De lá partia a primeira marcha, passando pela Pça dos pelados. Do
outro lado, os Leões do Palacete rugem e saltam vindo em direção ao Passeio

E o imenso Touro Negro do Curitiba Trade Center escapa bufando em fúria, rebentando
paredes e as calçadas de granito do Batel. Cansado, desce a Vicente Machado, vindo se

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banhar no chafariz da Osório. O corcunda toca, e a Praça da Ucrânia temerosa já ouve a


massa de pessoas no pé de sua montanha. No Portal de Sta. Felicidade, a onça de bronze
de João Turim se desprende, ruge para a noite invernal e corre selvagem em direção ao
centro, seguindo o túnel de som e o facho de Luz nos céus. Ela encontra seu par na
rotatória do Centro Cívico num abraço ruidoso e, vindo ambas se resfolegar nas escadarias
aqui da frente

Do chão, vinha uma vibração retumbante. As pedras que compunham os motivos naturais
do Paranismo pareciam mover os desenhos do Petit Pavet. Das bocas de lobo e tampas
dos bueiros, o vapor aspergia o odor de feromônios, repletos de som e fúria
Nos subterrâneos se dava o mesmo. Nas galerias os trabalhadores largavam as picaretas e
os vagonetes de carvão e punham-se a dançar uns com os outros
Já não bombeavam mais o fluxo de água para os chafarizes, nem davam mais corda ao
Relógio das Flores. A cascata do Parque Tanguá subitamente cessou de cair
O cavalo babão ficou um tanto mais digno, porém não menos feio
Os carvoeiros - estes que vinham do CIC, e cidades conurbadas - enfim sorriam. E tudo o
que se via na escuridão eram seus dentes muito brancos e a grandes órbita de seus olhos
melancólicos, lembranças de quando viam a luz do sol em sua infância.
Alguns deles estavam encurtando suas camisas, amarrando com um nó, e lavando o suor
dos rostos. E então era possível perceber que se tratavam de mulheres, algumas ainda
adolescentes, muito pálidas e de corpos muito fortes pela exaustão do trabalho - este o de
escavar e carregar o carvão que alimenta caldeiras que aquecem a água que serve os
bairros nobres de Curitiba no inverno
E eram tantos. E tantas. Se quisessem poderiam tomar toda a cidade, passando eles a
viver nas coberturas com vistas para a Serra do Mar, nas mansões com piscinas e quadras
de esportes. Bastava que alguém lhes tirasse os grilhões. Com palavras engatilhadas e
armadas com afeto. Quantos carvoeiros são necessários para que o burguês possa tomar
seu Montepullciano na Praça da Espanha? Seu Café na Livraria descolada? Para que o
psiquiatra possa custear sua filha em NY?

A cidade sabe e clama enquanto dança em frenesi. No lago do Barigüi, a imensa e negra
serpente de Nietzsche, de olhos amarelos e bocarra aberta destilando veneno, chicoteia
seu corpo no ar, e torna a mergulhar causando o primeiro tsunami no Ecoville, fazendo vir
abaixo a torre com apartamentos de 10 milhões de reais do Palazzo Lumini. Mas o onda
ainda não têm força pra alcançar o topo do Bigorrilho.
Novo acorde, agora com sétima e nona. Outra onda que avança Padre Anchieta acima.
Na Capela Santa Maria instrumentos se unem à Ode Triunfal. E no Guairão, vozes
poderosas do Coral e Orquestra respondem oitavando os acordes do corcunda na Catedral.
No tubos, Mi Menor. Nas vozes, Mi menor com sétima aumentada. Mais forte. Outra vez.
Fortíssimo! E a fachada de vidro do Guairão se faz em milhões de cacos, deixando o ar
entrar.
Então podemos ver, ali no hall do primeiro andar, dançando sobre o tapete vermelho, a
Polaquinha trans dançando nua com o Vampiro de Curitiba. E chama para o beijo qualquer
um que se aproxime. A três. Ela beija. Ele crava os dentes.
Na Santos Andrade, todas as estátuas também ganharam a rua, e o rosto de Lala
Schneider gargalha, canta, mostra a língua, se transfigura, bebe, se desprende e gira, gira,
gira em torno de seu próprio eixo, se elevando no ar cada vez mais alto, assustando o piloto
da Gol que já anunciava da cabine o pouso em S.J. dos Pinhais. Atenção senhores
passageiros, o tempo em Curitiba é est... AH MEU DEUS!!!

A cidade enraivecida, sedenta de justiça grita ‘não não não não não’ infinitamente
altissonante, fazendo-se ouvir daqui a NY. A estátua da Liberdade doada pelos franceses
se comove de indignação, arranca a própria coroa, retira fora sua bata. E pisando firme pela
primeira vez em Manhattan, fazendo rachar as paredes dos teatros, dos cafés, do aps,
riscando os discos, quebrando as camas, rachando trilhos de trens, derrubando aviões

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Ela enche seus pulmões do fôlego da liberdade e grita forte ‘No! L’audace! No! L’audace!
No! L’audace! L’audace!
(Indica à audiência para acompanhar em coro uníssono de ‘No! L’audace!’ em intensidade
crescente até o ápice final)

O apito do trem desgovernado, vindo de Williamstown. Os gritos de pânico e horror. Dentro,


uma mulher. Ela é fina como papel. De frente, quase não pode ser vista. De lado, um rosto
em cada perfil. Duas caras, quase transparente. Ela têm nas mãos trêmulas o acionador.
Um gesto apenas, e tudo já vai pelos ares. Ela põe o que seria sua suposta cabeça para
fora da janela e de repente grita para o maquinista ‘Don’t Stop!’ (Audiência responde):
DON’T STOP!
(De novo): ‘Don’t Stop!’ (Audiência responde): DON’T STOP!
(De novo): ‘Don’t Stop!’ (Audiência responde): DON’T STOP!
(De novo): ‘Don’t Stop!’ (Audiência responde): DON’T STOP!
DON’T STOP! DON’T STOP! DON’T STOP! DON’T STOP!

(Tempo)

A grande mãe da liberdade recoloca sua coroa. Caminha descomunal contornando


Downtown em direção à via férrea
Então magestosamente, ela levanta a bata de cobre, que por anos lhe protegeu das
intempéries ali na ilha da liberdade, e retira seu soutien. Com ele em mãos, ela se posiciona
na linha do trem. Os vagões de aço avançam em alta velocidade, colocando em risco a vida
de tantos! Então, num súbito gesto, firme e audaz, a grande estátua francesa posiciona
firme seu soutien, engancha a locomotiva... e a faz parar... A cidade chora e aplaude em
gratidão, fanfarras, fogos de artificio e papel picado

A estátua abre uma garrafa de COCA-COLA e sorve lentamente


Ergue a garrafa e ‘brinda’ com a população que também erguem suas respectivas garrafas
Entra Logo Trademark e Assinatura Sonora 'Sempre Coca-Cola'

Chvisco na imagem

Imagem com filtro verde, revoada de pássaros


Trovejar. Céu Negro na Pça da Mulher e do Homem Nu
Com a água misturando ao espesso líquido no chão, enfim consegue se mover.
Sobre o imenso monolito da Praça jaz um corpo de um homem. Deitado de costas, braços
abertos pendendo ao lado do corpo. Pode ver? Ele está em balanço. Então... Queda.
Queda lenta. Ele cai...
Chuva que inicia
Ele está caindo
A chuva torna-se torrente espessa e fluída
A marcha estaca em silêncio. Ainda com as bandeiras asteadas, volta-se para olhar
Ele cai
Um ato de traição feriu hoje a pátria
O mundo entrou nas trevas
E na região central, um mar revolto toma forma. Nunca mais parou de chover

“Timoneiro... levante!
Se não consegues me ouvir, com os trovões e estrondos, tome meu braço! Chega de
medo!
Levante!

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Pegue esta garrafa, abra e beba!


Isso! Você conhece, é JHONNY WALKER!
Agora pegue esta corda e se ate ao mastro! Vai ver que é medo tolo o que te põe em febre.
Mas veja: febre maior têm o mar por não poder navegar
Se acalme, homem. Se acalme
Passe a corda, envolva a cintura. Não tente gritar, impossível ouvir. Atento: Este é o
momento em que a vida deixa cair seus véus e se mostra nua. E ela não te quer
tombadilho. Quer teus olhos bem abertos, quer teu corpo por inteiro. De pé! Coração casa
de máquinas! Bandeira em riste. Selvage, dominatus est
Omnia vincit amor
Tomo eu o timão agora!
E nos tornamos Centauro

Seja grato. Seja grato. Estrondos de ondas e tormenta é perfeitorquestra de dois mil
tambores ribombando a trilha deste arrasto calamar. Vai chorar! Vai rir depois!
Só-mos céu, tempestade e timão. Ainda que se demore dez anos! Iríeis! Iríada!
Acima, no centro-calmo tufão, aquele pequeno recorte de céu - pode ver? - estrelas nos dão
seu acenos gentis. Elas Alfa. Eu Centauro. O albatroz ali sabe o quão pequeno somos, mas
espera ver também do que somos feitos. E deseja ver-nos ao raiar do dia, para lhe dar
companhia, história e confirmação.
Timoneiro, homem, l’audace!
Que a tempestade e os mares se amem. Renovados estarão na manhã!
Encore est toujours de l’udace!
L’evant!”

A chuva cessa, o silêncio arrebenta


Raio de sol sobre campo blau
Na Pça da Mulher e do Homem Nu, o imenso obelisco range... Pode ouvir? Range e
despenca lento e com estrondo na Praça. A estátua da Mulher Nua levanta-se e sai
caminhando em direção ao olho do MON, para melhor ser observada. O Homem Nu vai ao
boteco da esquina, e finalmente finalmente finalmente pede um pastel com Coca-Cola.
A marcha, no meio da subida da Padre Anchieta, volta seus olhos para o topo da montanha,
já vendo o cume na Pça da Ucrânia. Apenas o vento sopra agora. Sol e poeira, as duas
essências da glória. A multidão prossegue. A marcha não pode esperar.
Meio da Praça onde ficava o Casal Nu, você de pé segura um corpo nos braços.
Há facas em suas costas - você observa - atravessando os pulmões
Nada se ouve

Nada

O homem deposita o corpo


Abre uma garrafa de HEINEKEN, e brinda ao corpo do homem caído

E então... (La Marseilleise):

‘Marchons, marchons!
Qu’ung sang impur...”

Pode ouvir?

‘Abreuve nos sillons!

As pessoas em marcha, todas com suas Heinekens, bebendo, sorrindo e erguendo garrafas
ao ar em comemoração

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Allons enfants de la patrie


Le jour de glorie est arrivé
Contre nous de la tyranie.
L’étandart sanglant elevé
L’étandart sanglant elevé
Entendez-vouz dans les campagnes
Mugir ces feroces soldats
Ils viennent jusque dans vos bras
Égorger vos fils, vos compagnes

Aux armes, citoyens!


Formez vouz bataillons!
Marchons. Marchons
Qu’ung sang impur...
Som vai diminuindo de intensidade, até ir sumindo
Abreuve nos sillons!
Abreuve nos sillons!’

Tudo isso que estou te mostrando...


Toda essa sugestão...

DEZ - tudo isso é apenas e unicamente pra te confundir...


NOVE - uma tentativa desde já inútil de escancarar os circuitos de consagração...
OITO - simples estratégia de contato, sedução e persuasão, expondo aqui ítens atraentes
da linguagem... preparando a revolução, te trazendo pra perto e te deixando mais forte
SETE - tudo isso... foi só para te trazer até aqui. Aqui, no meio da Praça Nua segurando nos
braços seu corpo nu...
SEIS - a morte de todos os nossos sonhos e esperanças anda à roda, anda à roda...
CINCO - ainda que você mal respire...
QUATRO - por breves instantes...
TRÊS - eu te seguro...
DOIS - e há um lastro de som...

UM - Você respira
(Estalar de dedos)

Acorde final, fim das badaladas. A cidade silencia. A imagem ficou pensativa...

(Tempo)

Vestir casaco, gorros, luvas, cachecol. Sair... e caminhar. A cidade torna-se novamente fria
e as estátuas imóveis em seus lugares. Menos as da Santos Andrade.
Menos o estômago vazio dos que têm fome, apressados em dormir e não morrer na
madrugada. Estes tantos que são necessários a oferecer suas vidas... miseráveis e
bonitas... para se fabricar um maldito publicitário

Este é o momento em que entra a trilha sonora triste e bonita. Eu caminho para fora dos
limites, até alcançar os eucaliptos. E é onde me encontro agora, defronte para este imenso
pinheiro que sempre retorna em meus sonhos. Nós dois imóveis, frente a frente, banhados
à luz da lua

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Meditações em Catástrofes ou Sonhei que Parei um Trem com meu Soutien

E apenas ficamos assim, sabendo que tudo isso sempre foi, é e será completamente uma
coisa só, todo o tempo... Todo o tempo

O que restou do “nós somos”...


E também do “como nos importamos”

(Trilha sobe: RJD2 - A Beautiful Mine)

FIM

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