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RESUMO
O presente estudo discute questões relativas à identidade ficcional em dois autores da nova escrita
britânica, Martin Crimp e Sarah Kane. A pesquisa se concentrou nas peças em que as falas das
personagens são distribuídas por siglas (letras ou números) e naquelas cuja interlocução é marcada
apenas por travessões ou quebras de linha, deixando para a montagem a atribuição das falas. Ao
analisar as peças, o estudo busca pistas de modos alternativos de figuração de identidade e de
subjetividade.
ABSTRACT
The present study discusses issues regarding fictional identity in two authors of the new British
writing, Martin Crimp and Sarah Kane. The research focused on the pieces in which the lines of the
characters are distributed by acronyms (letters or numbers) and in those whose interlocution is marked
only by dashes or line breaks, leaving for the assembly the attribution of the lines. By analyzing the
pieces, the study looks for clues of alternative modes of figuration of identity and subjectivity.
1. INTRODUÇÃO
Falando sobre a (crise da) personagem contemporânea, Jean-Pierre Ryngaert afirma que “o
personagem enunciador passou por um regime de emagrecimento a ponto de sua silhueta apagar-se”
(in SARRAZAC, 2012, p. 138). Um dos indícios que o autor aponta é o esvaziamento da dramatis
personae, agora habitada por monossílabos e apelidos – Hamm, Clov, Didi, Gogo – em Beckett, ou
mesmo por siglas – H1, F2 – em Natalie Sarraute. Já não se sustenta a expectativa histórica de um
drama baseado na individualização da ação e do discurso, na relação entre a ação – o motor da
narrativa – e seu sujeito – a figura que age e fala, corporificada no ator: “o desaparecimento de uma
1
Attempts on Her Life, de Martin Crimp, estreou no Royal Court Theatre em 07 de março de 1997. (CRIMP,
2005, p. 201).
2
Fewer Emergencies, de Martin Crimp, é uma trilogia composta por três peças curtas. Uma delas, Face To
The Wall, estreou no Royal Court Theatre em 12 de março de 2002. A trilogia completa estreou no mesmo
teatro em 08 de setembro de 2005. (CRIMP, 2015, p. 80-81).
3
Crave, de Sarah Kane, estreou em Edimburgo em 13 de agosto de 1998. (KANE, 2015, p. 154).
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4.48 Psychosis, de Sarah Kane, estreou no Royal Court Theatre em 23 de junho de 2000. (KANE, 2015, p.
204).
2 Ela vêisso mesmoA sua vida inteira diante dos seus olhos como um…
3 Cadáver?
1 Cadáver?nãonãoo quê?nãonão é isso que ela pensaé mais como uma auto-
estrada à noiteuma faixa de asfalto que se estende diante dela, com sinais luminosos
indicando os quilômetrosquilômetro após quilômetro após quilômetro. (Pausa) Ela não
sabe muito bem o que fazer. (CRIMP, 2015, p. 87)6.
Os outros falantes comentam, fazem perguntas, contradizem a voz central. Libertos da tarefa
de representar seres ficcionais definidos e individualizados, estes falantes assemelham-se a actantes
(ver UBERSFELD, 1995, p. 33-46). O falante 1 é o sujeito – aquele que conduz a narrativa – e os
demais falantes revezam-se nas funções de adjuvantes e antagonistas. O objeto, a matéria da narrativa
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2 She gets married very young, doesn’t she. / 3 Does what? / 2 Gets married, gets married very young, and
immediately realises– / 3 Oh? That it’s a mistake? / 2 Immediately realises – yes – that it’s a mistake. (O
artigo utiliza, no caso desta peça, a tradução de Marcos Davi Steuernagel, encenada em 2007 e não
publicada em livro).
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2 She sees – that’s right – her whole life stretched out in front of her like a... hmm... / 3 Corpse? / 1 Corpse?
– no – no – what? – no – that’s not the way she thinks – it’s more like a motorway at night – a band of
concrete stretched out in front of her with reflective signs counting of the miles – mile after mile after mile.
(Pause) She’s not sure what to do.
Como no caso de Menos emergências, a maioria dos quadros apresenta uma narrativa ou um
ponto de vista claro (embora a narrativa de cada quadro contradiga as demais). Uma análise do
discurso vai sugerir que num quadro estes falantes sejam roteiristas de cinema, por exemplo. Em
outro quadro, vizinhos; em outro, policial (ou policiais) e interrogado; em outro, críticos de arte. Ao
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1 like a swimmer – not swimmer – don’t help me – like a diver – that is right – diving into blood – he’s like a
diver diving into blood – that’s right – that’s good – very good.
8
A dash ( - ) at the beginning of a line indicates a change of speaker. If there is no dash after a pause, it
means the same character is still speaking. (para esta peça, usa-se tradução de Murilo Hauser, não
publicada em livro).
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– Summer. A river. Europe. These are the basic ingredients. / –And a river running through it. / A river,
exactly, running through a great European city and a couple at the water’s edge. These are the basic
ingredients. / –The woman? / –Young and beatiful, naturally.
10
The principal speaker is a very young woman. As she speaks her words are translated dispassionately into
an African, South American os Eastern European language.
11
“We sympathise”; “We can’t be sure”; “Haven’t we seen all that (...)?”.
12
A I’m not a rapist. / M David? / (a beat) / B Yeah. / A I’m a paedophile. / M Do you remember me? (KANE,
2015, p. 156).
Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 5, n. 10, p. 17877-17886, out. 2019. ISSN 2525-8761
17882
Brazilian Journal of Development
LOPES, 2012, p. 07). Em algumas passagens pode-se mesmo identificar fragmentos de diálogos
entrelaçados, como pedaços de cenas paralelas que foram emaranhadas: “B Você é lésbica? / M Ora
por favor. / B Achei que esse seria o porquê de você não ter filhxs. / A Por quê? / M Nunca encontrei
um homem em que eu confiasse. (KANE in LOPES, 2012, p. 11) 13.
Tende-se a empreender o esforço de desembaraçar o texto na tentativa de encontrar cada
diálogo em sua especificidade e, por este meio, entender a quem pertence cada uma destas vozes. Tal
esforço costuma levar à hipótese de que as letras/siglas estejam ligadas a quatro palavras-chave, child,
mother, abuser, boy: “Neste caso, A representa abusador, B é rapaz, C é criança e M é mãe”. (SIERZ,
2014, p. 142). É este, por exemplo, o ponto de partida de Graham Saunders (2002, p. 32), para quem
“o pedófilo confesso chamado ‘A’, em Crave, inflige sofrimentos psicológicos indizíveis à jovem ‘C’
e, ao mesmo tempo, faz um longo e ardente discurso em que fala dos vários modos pelos quais tenta
expressar seu amor”. Porém, associar as quatro letras a estes quatro indivíduos ficcionais é uma tarefa
inglória. No todo do texto, os falantes assumem diversas outras funções e não se fixam em nenhuma.
Além disso, há diversos momentos em que um discurso unívoco e articulado se fragmenta entre os
quatro falantes, como se eles representassem uma única subjetividade: “M Regra número um. / C
Nada de registros. / M Nada de cartas. / A Nada de contas no cartão de tardes no motel, nada de notas
de joias caras, nada de ligar pra casa e desligar em silêncio” (KANE in LOPES, 2012, p. 30)14. Assim,
não é possível colocar as falas em uma situação definida nem entender os falantes como portadores
de um objetivo articulado. Em lugar disso há narrativas e identidades dispersas pelo texto e os falantes
são eventualmente atravessados por elas. Neste sentido, uma abordagem racionalista da peça não
oferece o suficiente para formar uma imagem da identidade singular de cada falante. Ainda assim,
estas quatro identidades – pedófilo(a), vítima de abuso, rapaz e mulher que quer ter filhos – mesmo
que não corporificadas claramente, sustentam o poema dramático com sua presença espectral.
Em Psicose 4.48 desaparecem as siglas para atribuição de falas. Sarah Kane não deixa nenhuma
instrução prévia sobre quem fala e as pistas de eventual troca de interlocutor são fugidias: travessões,
quebras de linha, diferentes recuos. Os fragmentos guardam relação com um quadro clínico de
depressão e, por extensão, com um(a) paciente. Esta primeira presença de um sujeito – paciente –
percorre todo o texto e se intensifica no emprego ostensivo da primeira pessoa: “Eu estou triste / (...)
/ Eu estou entediadx e insatisfeitx com tudo / (...) / Eu gostaria de me matar”. (KANE, 2015, p. 206) 15.
Tende-se a entender a peça como monólogo, pela própria natureza da sua escrita. Como aponta
13
B Are you a lesbian? / M Oh please. / B I thought that might be why you don’t have children. / A Why? / M I
never met a man I trusted. (KANE, 2015, p. 163).
14
M Rule one. / C No records. / M No letters. /A No credit card bills for afternoons in hotel rooms, no receipts
for expensive jewelry, no calling at home then hanging up in silence. (KANE, 2015, p. 181).
15
I am sad / (...) / I am bored and dissatisfied with everything / (...) / I would like to kill myself. (no caso desta
peça, a tradução é do articulista).
16
– You don’t need a friend you need a doctor. / (A long silence) – You are so wrong.
17
Lofepramine, 70mg, increased to 140mg, then 210mg. Weight gain 12kgs. Short term memory loss. No
other reaction.
18
Dr This and Dr That and Dr Whatsit (...).
19
I trusted you, I loved you, and it’s not losing you that hurts me, but your bare-faced fucking falsehoods that
masquerade as medical notes.
20
the broken hermaphrodite who trusted hermself alone (...).
21
I dislike my genitals.
22
a sense interned in an alien carcass (...).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A visão de conjunto destas seis peças permite avançar algumas colocações interessantes. Em
primeiro lugar, há a constatação de que o apagamento da dramatis personae corresponde a um
deslocamento da noção de personagem, mais que a uma dissolução desta noção. O que se apaga, em
termos gerais, é a individualização das falas e dos falantes. O efeito disso é o colapso de um modelo
histórico de personagem. A ideia de que uma personagem corresponde a um corpo e/ou a um falante,
o gesto em que o performer se coloca no lugar de uma personagem, eis o que entrou em crise – e
eventualmente se dissolveu – nestas dramaturgias. Em seu lugar, instaurou-se “uma ideia dispersa de
self, e esta dispersão foi (ou tem sido) representada de muitos modos diferentes no teatro alternativo
contemporâneo” (FUCHS, 1996, p. 9). Tais modos de representação incluem desde a possibilidade
de construção de identidades coletivas até a ideia de um corpo atravessado por identidades múltiplas
ou uma subjetividade individual representada por uma multiplicidade de corpos.
Em segundo lugar, a par da similaridade estrutural destas quatro peças, pode-se perceber a
oposição entre dois modos majoritários de figuração da identidade. Em Crimp, trata -se
principalmente da representação de identidades coletivas em tempos e lugares concretos, embora
eventualmente indeterminados. Mesmo estando apagados os traços de individualização, é possível
ver o encontro concreto de um grupo de pessoas. Em cada quadro destas peças, geralmente, o
endereçamento é claro e todos ouvem todos. Os falantes são anônimos mas sua fala os caracteriza
como grupo e sua função dentro do grupo também está marcada no texto, em maior ou menor grau.
As duas peças de Sarah Kane, por sua vez, parecem propor outro tipo de figuração da subjetividade.
Nestas obras não há o sentido de ação coletiva das primeiras, os falantes parecem muitas vezes
isolados dos demais e não há nenhuma certeza a respeito do endereçamento das falas. São falantes
atravessados por identidades múltiplas, flutuantes, “desencarnadas”. Há momentos de exceção em
ambos os casos (os seis diálogos claros em Psicose 4.48; a voz solitária listando palavras no quadro
10 de Atentados), mas a análise geral aponta para este contraste.
Em terceiro lugar, é possível apontar o possível sentido político de algumas destas
representações de identidade e de subjetividade, partindo do que se apaga e do que se mantém das
marcas de caracterização dos falantes. Para Cristina Delgado-García, a recusa a definir e
individualizar os falantes permite a representação de subjetividades para além da norma e dos
modelos hegemônicos, permite representar sujeitos “estranhamente híbridos, relacionais ou baseados
na prática, que problematizam a noção de identidade e sua política” (DELGADO-GARCÍA, 2015, p.
REFERÊNCIAS
ABIRACHED, Robert. La Crise du Personnage dans le Théâtre Moderne. Collection Tel. Paris:
Galimard, 1994.
CRIMP, Martin. Martin Crimp Plays 2. Contemporary Classics. London: Faber & Faber, 2005.
_. Martin Crimp Plays 3. Contemporary Classics. London: Faber & Faber, 2015.
FUCHS, Elinor. The Death of Character: Perspectives on Theater after Modernism. Drama and
Performance Studies. Indianapolis: Indiana University Press, 1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de: Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 11ª. edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3a. edição.
São Paulo: Perspectiva, 2011.
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Coleção Estudos. São
Paulo: Perspectiva, 2010.
SAUNDERS, Graham. Love me or Kill me: Sarah Kane and the Theatre of the Extremes. Manchester:
Manchester University Press, 2002.
SIERZ, Aleks. The Theatre of Martin Crimp. Methuen Drama. London: A & C Black Editors Limited,
2006.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução de José Simões. Coleção Estudos. São Paulo:
Perspectiva, 2005.