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Brazilian Journal of Development

Quem são estas vozes: modos difusos de figuração da identidade em martin


crimp e sarah kane

Who are these voices: diffused modes of identification of identity in martin


crimp and sarah kane
DOI:10.34117/bjdv5n10-054

Recebimento dos originais: 10/09/2019


Aceitação para publicação: 04/10/2019

Márcio Luiz Mattana


Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal do Paraná
Instituição: Universidade Estadual do Paraná
Endereço: Rua dos Funcionários, 1357 – Bairro Cabral – Curitiba – PR
E-mail: marciomattana@yahoo.com.br

RESUMO

O presente estudo discute questões relativas à identidade ficcional em dois autores da nova escrita
britânica, Martin Crimp e Sarah Kane. A pesquisa se concentrou nas peças em que as falas das
personagens são distribuídas por siglas (letras ou números) e naquelas cuja interlocução é marcada
apenas por travessões ou quebras de linha, deixando para a montagem a atribuição das falas. Ao
analisar as peças, o estudo busca pistas de modos alternativos de figuração de identidade e de
subjetividade.

Palavras chave: Identidade; subjetividade; dramaturgia contemporânea.

ABSTRACT

The present study discusses issues regarding fictional identity in two authors of the new British
writing, Martin Crimp and Sarah Kane. The research focused on the pieces in which the lines of the
characters are distributed by acronyms (letters or numbers) and in those whose interlocution is marked
only by dashes or line breaks, leaving for the assembly the attribution of the lines. By analyzing the
pieces, the study looks for clues of alternative modes of figuration of identity and subjectivity.

Keywords: Identity; subjectivity; contemporary dramaturgy.

1. INTRODUÇÃO
Falando sobre a (crise da) personagem contemporânea, Jean-Pierre Ryngaert afirma que “o
personagem enunciador passou por um regime de emagrecimento a ponto de sua silhueta apagar-se”
(in SARRAZAC, 2012, p. 138). Um dos indícios que o autor aponta é o esvaziamento da dramatis
personae, agora habitada por monossílabos e apelidos – Hamm, Clov, Didi, Gogo – em Beckett, ou
mesmo por siglas – H1, F2 – em Natalie Sarraute. Já não se sustenta a expectativa histórica de um
drama baseado na individualização da ação e do discurso, na relação entre a ação – o motor da
narrativa – e seu sujeito – a figura que age e fala, corporificada no ator: “o desaparecimento de uma

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identidade fixa é paralelo à crise da fábula”, pois “a lógica da narrativa progride em função de
personagens coerentes e submetidos a uma ação federativa” (in SARRAZAC, 2012, p. 137).
Por outro lado, nada faz crer que um teatro da fala vá deixar de existir ou que as representações
de identidade estejam exiladas do palco contemporâneo. Assim, a pergunta de Ryngaert continua
válida: “Quem fala aqui?” Mesmo em um teatro livre “das necessidades da encarnação”, ainda há
uma voz que “não é nem diretamente a do autor, nem obrigatoriamente a do narrador [...], nem
completamente a do ator”. (in SARRAZAC, 2012, p.139-140). Se o ator produz uma voz que não é
completamente a sua, de quem é a voz? Na busca de aprofundar esta questão, o presente artigo se
concentra no estudo de quatro peças teatrais da recente dramaturgia britânica: Atentados 1 e Menos
emergências2, de Martin Crimp; e Ânsia 3, e Psicose 4.48 4, de Sarah Kane; Duas delas apresentam
falantes definidos por siglas (letras ou números). Outras duas excluem até mesmo as siglas oferecendo
no máximo marcas de interlocução (travessões, quebras de linha, recuos), de modo que fica para cada
montagem a tarefa de definir quantos e quais falantes estão em cena.
Em que medida a ideia de personagem se apagou nestas dramaturgias? Stuart Hall afirma que
o entendimento do sujeito como “uma identidade unificada e estável”, aceito desde o Iluminismo,
tem dado lugar à noção do sujeito como “fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). É sensato
imaginar que noções menos unificadas de identidade ficcional se apresentem em resposta. A
identificação entre ator e personagem é uma construção histórica. Como afirma Patrice Pavis (2011,
p. 285), “apesar da ‘evidência’ desta identidade entre um homem vivo e uma personagem, esta última,
no início, era apenas uma máscara – uma persona”. A transmutação “em entidade psicológica e moral
semelhante aos outros homens” é um fenômeno histórico e pode-se pensar que a referida crise da
personagem é, na verdade, a crise deste modelo histórico.
Cristina Delgado-García considera o tema por este viés. Concentrada em peças cujas falas “não
têm atribuição ou são atribuídas a falantes opacos, parecem ser (des)corporificadas ou receber várias
encarnações ao mesmo tempo, e não criam sensação convincente ou estável de individualidade
ficcional” (2015, xi), a autora defende que tais textos “evocam e provocam entendimentos do sujeito
ininteligíveis sob a norma liberal-humanista que parece dominar a concepção aceita de sujeito e de
personagem teatral” (2015, xii). Contra a visão hegemônica do sujeito como “um indivíduo auto-

1
Attempts on Her Life, de Martin Crimp, estreou no Royal Court Theatre em 07 de março de 1997. (CRIMP,
2005, p. 201).
2
Fewer Emergencies, de Martin Crimp, é uma trilogia composta por três peças curtas. Uma delas, Face To
The Wall, estreou no Royal Court Theatre em 12 de março de 2002. A trilogia completa estreou no mesmo
teatro em 08 de setembro de 2005. (CRIMP, 2015, p. 80-81).
3
Crave, de Sarah Kane, estreou em Edimburgo em 13 de agosto de 1998. (KANE, 2015, p. 154).
4
4.48 Psychosis, de Sarah Kane, estreou no Royal Court Theatre em 23 de junho de 2000. (KANE, 2015, p.
204).

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idêntico, único, coerente e racional”, Delgado-García entende personagem como “qualquer figuração
de uma subjetividade, qualquer esboço teatral da existência humana, não importa quanto seus
contornos sejam individualizados ou, inversamente, quanto sejam indefinidos”. (2015, p. 231).
Seguindo caminho similar, a presente pesquisa busca quaisquer traços de caracterização e quaisquer
indícios de identidade ficcional neste grupo de textos, procurando entender que figurações de sujeito
(e de subjetividade) eles projetam.

2. ATENTADOS E MENOS EMERGÊNCIAS, DE MARTIN CRIMP


Na trilogia Menos emergências (formada por três peças curtas, Todo o céu azul, De cara pra
parede e Menos emergências) os falantes são indicados por números. O texto indica apenas que a
falante 1 da primeira peça é mulher e que o falante 1 da segunda é homem. Os demais podem ter
qualquer gênero. Estes falantes constroem narrativas sobre personagens que jamais entram em cena:
uma mulher que se casa muito cedo, um assassino que invade uma escola, um casal que veleja pelo
mundo e deixa o filho em casa. Os números funcionam como siglas para indicar os falantes, dos quais
foram subtraídos quase todos os traços: “2 Ela se casa muito nova, não é mesmo? / 3 Faz o quê? / 2
Se casa, se casa muito nova e, imediatamente, percebe / 3 Ah é? Que foi um erro? / 2 Imediatamente
percebesimque foi um erro. (CRIMP, 2015, p. 87) 5. A maioria dos traços individuais dos falantes
foi omitida mas é possível perceber que há entre os falantes uma definição bastante clara das funções
a desempenhar. O falante 1 conduz a narrativa, articula os dados da fábula e define o ponto de vista
da personagem central:

2 Ela vêisso mesmoA sua vida inteira diante dos seus olhos como um…
3 Cadáver?
1 Cadáver?nãonãoo quê?nãonão é isso que ela pensaé mais como uma auto-
estrada à noiteuma faixa de asfalto que se estende diante dela, com sinais luminosos
indicando os quilômetrosquilômetro após quilômetro após quilômetro. (Pausa) Ela não
sabe muito bem o que fazer. (CRIMP, 2015, p. 87)6.

Os outros falantes comentam, fazem perguntas, contradizem a voz central. Libertos da tarefa
de representar seres ficcionais definidos e individualizados, estes falantes assemelham-se a actantes
(ver UBERSFELD, 1995, p. 33-46). O falante 1 é o sujeito – aquele que conduz a narrativa – e os
demais falantes revezam-se nas funções de adjuvantes e antagonistas. O objeto, a matéria da narrativa

5
2 She gets married very young, doesn’t she. / 3 Does what? / 2 Gets married, gets married very young, and
immediately realises– / 3 Oh? That it’s a mistake? / 2 Immediately realises – yes – that it’s a mistake. (O
artigo utiliza, no caso desta peça, a tradução de Marcos Davi Steuernagel, encenada em 2007 e não
publicada em livro).
6
2 She sees – that’s right – her whole life stretched out in front of her like a... hmm... / 3 Corpse? / 1 Corpse?
– no – no – what? – no – that’s not the way she thinks – it’s more like a motorway at night – a band of
concrete stretched out in front of her with reflective signs counting of the miles – mile after mile after mile.
(Pause) She’s not sure what to do.

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– a mulher casada, o assassino, o casal que veleja, a criança trancada em casa – está sempre ausente,
jamais entra em cena. Destinador e destinatário – de onde vêm e a que se destinam as narrativas – são
ocultos ou indefinidos. Além disso, uma análise das falas permite afirmar que os falantes de Menos
emergências se comportam, na maioria do tempo, como um grupo de autores. Embora isto não se
evidencie sempre, os gestos de autor estão por todo o texto, na escolha das palavras e nos juízos de
valor: “como um nadador – não é nadador – não me ajude – como um mergulhador – está certo isso
– mergulhando no sangue – ele é como um mergulhador mergulhando no sangue – é isso mesmo –
isso é bom – bem bom” (CRIMP, 2015, p. 110)7.
Atentados é anterior a Menos Emergências e o texto não oferece sequer siglas (letras ou
números) para atribuição das falas. A peça apresenta 17 quadros em que vozes indefinidas falam de
uma personagem ausente – Anne ou Anya, Anny, Annushka. Pela voz destes falantes, a personagem
ausente ganha uma nova identidade a cada quadro. É “uma heroína de filme, uma vítima da guerra
civil, uma consumidora típica, uma mega estrela, uma guia de turismo, uma marca de carro, (...) uma
terrorista internacional, uma fundamentalista, uma artista, uma refugiada” (SIERZ, 2006, p. 49). No
lugar de nomes ou siglas, as falas são marcadas por travessões: “Um travessão ( – ) no começo da
linha indica a mudança de orador. Se não houver travessão após a pausa significa que o mesmo
personagem continua falando”. (CRIMP, 2005, p. 202) 8. Não há siglas, não há distribuição prévia das
falas. Não se sabe sequer quantos falantes há. Também não há marcas individuais ou indicação de
gênero e idade. O texto se recusa a escolher que corpos dirão que textos. O que se tem e uma espécie
de jogo de montar entre o discurso dos falantes no texto e os corpos/as vozes de um elenco:

– Verão. Um rio. Europa. Estes são os ingredientes básicos.


– E um rio a atravessá-la.
– Um rio, exatamente, atravessando uma grande cidade européia e um casal na margem do
rio. Estes são os ingredientes básicos.
– A mulher?
– Jovem e bela, naturalmente. (CRIMP, 2005, p. 208)9.

Como no caso de Menos emergências, a maioria dos quadros apresenta uma narrativa ou um
ponto de vista claro (embora a narrativa de cada quadro contradiga as demais). Uma análise do
discurso vai sugerir que num quadro estes falantes sejam roteiristas de cinema, por exemplo. Em
outro quadro, vizinhos; em outro, policial (ou policiais) e interrogado; em outro, críticos de arte. Ao

7
1 like a swimmer – not swimmer – don’t help me – like a diver – that is right – diving into blood – he’s like a
diver diving into blood – that’s right – that’s good – very good.
8
A dash ( - ) at the beginning of a line indicates a change of speaker. If there is no dash after a pause, it
means the same character is still speaking. (para esta peça, usa-se tradução de Murilo Hauser, não
publicada em livro).
9
– Summer. A river. Europe. These are the basic ingredients. / –And a river running through it. / A river,
exactly, running through a great European city and a couple at the water’s edge. These are the basic
ingredients. / –The woman? / –Young and beatiful, naturally.

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atribuir as falas, cada montagem define quantos e quais atores estarão em cena, tomando quase todas
as decisões relativas a gênero, idade, etnia. Uma única exceção digna de nota se coloca no quadro 16
(Pornô), em que o texto indica claramente idade e gênero da falante principal: “O principal orador é
uma mulher muito jovem. À medida que ela vai falando as suas palavras são desapaixonadamente
traduzidas para uma língua africana, da América do Sul ou do Leste Europeu”. (CRIMP, 2005, p.
269)10. Fora esta exceção o que resta são as funções próprias de cada cena. Os falantes se caracterizam
a partir do que são enquanto grupo em cada quadro – são roteiristas, vizinhos, testemunhas, locutores,
críticos de arte – e na relação estabelecida entre este grupo e a protagonista ausente. Não é mero
acidente, portanto, que estes diversos grupos empreguem com tanta frequência a primeira pessoa do
plural: “Nós simpatizamos”, “Nós não podemos ter certeza”, “Nós já não vimos isso tudo (...)?”, etc.
(CRIMP, 2005, p. 219; 232; 255)11. O que se vê, quadro a quadro, são personagens que se definem
por seu pertencimento a um grupo. E se cada quadro revela uma nova Anne, também se pode afirmar
que cada quadro revela um novo grupo, com sua própria lógica e suas próprias regras.

3. ÂNSIA E PSICOSE 4.48, DE SARAH KANE


Se em Menos emergências, de Martin Crimp, as siglas (números) indicam falantes cuja função
actancial pode ser claramente definida, o mesmo não acontece em Ànsia, de Sarah Kane, outra peça
organizada pelo mesmo procedimento de atribuição de fala. Nesta peça as falas estão divididas entre
quatro falantes nomeados por letras (C, M, B, A) e não há qualquer outra indicação individual. Todos
os traços habituais de caracterização são indefinidos ou ambíguos: “Os sinais alfabéticos que
nomeiam os falantes de Crave não são marcados por gênero, não possuem conotações étnicas ou
religiosas e não sugerem, nem de modo tênue, idade ou posição social” (DELGADO-GARCÍA, 2012,
p. 238). De início não é fácil entender a natureza da relação que se dá entre estes falantes. Não é
possível definir quem fala a quem nem precisar em que medida uns respondem aos outros. A busca
por marcas de identidade e subjetividade nas falas, por outro lado, vai revelando uma série de
vestígios de caracterização: “A Eu não sou estupradorx. / M David? / (Um momento). / B Aham. / A
Eu sou pedófilx. / M Você lembra de mim?” (KANE in LOPES, 2012, p. 05) 12. Cada vestígio permite
supor um leque de identidades possíveis por detrás das falas. Um(a) pedófilo(a), alguém chamado
David, uma mulher mais velha que um rapaz, diversas imagens soltas de individualidade emergem
do texto: “B Você vai chegar em mim e me seduzir? Preciso ser seduzido por uma mulher mais velha.
/ M Não sou uma mulher mais velha. / B Mais velha que eu, não mais velha de velha” (KANE in

10
The principal speaker is a very young woman. As she speaks her words are translated dispassionately into
an African, South American os Eastern European language.
11
“We sympathise”; “We can’t be sure”; “Haven’t we seen all that (...)?”.
12
A I’m not a rapist. / M David? / (a beat) / B Yeah. / A I’m a paedophile. / M Do you remember me? (KANE,
2015, p. 156).
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LOPES, 2012, p. 07). Em algumas passagens pode-se mesmo identificar fragmentos de diálogos
entrelaçados, como pedaços de cenas paralelas que foram emaranhadas: “B Você é lésbica? / M Ora
por favor. / B Achei que esse seria o porquê de você não ter filhxs. / A Por quê? / M Nunca encontrei
um homem em que eu confiasse. (KANE in LOPES, 2012, p. 11) 13.
Tende-se a empreender o esforço de desembaraçar o texto na tentativa de encontrar cada
diálogo em sua especificidade e, por este meio, entender a quem pertence cada uma destas vozes. Tal
esforço costuma levar à hipótese de que as letras/siglas estejam ligadas a quatro palavras-chave, child,
mother, abuser, boy: “Neste caso, A representa abusador, B é rapaz, C é criança e M é mãe”. (SIERZ,
2014, p. 142). É este, por exemplo, o ponto de partida de Graham Saunders (2002, p. 32), para quem
“o pedófilo confesso chamado ‘A’, em Crave, inflige sofrimentos psicológicos indizíveis à jovem ‘C’
e, ao mesmo tempo, faz um longo e ardente discurso em que fala dos vários modos pelos quais tenta
expressar seu amor”. Porém, associar as quatro letras a estes quatro indivíduos ficcionais é uma tarefa
inglória. No todo do texto, os falantes assumem diversas outras funções e não se fixam em nenhuma.
Além disso, há diversos momentos em que um discurso unívoco e articulado se fragmenta entre os
quatro falantes, como se eles representassem uma única subjetividade: “M Regra número um. / C
Nada de registros. / M Nada de cartas. / A Nada de contas no cartão de tardes no motel, nada de notas
de joias caras, nada de ligar pra casa e desligar em silêncio” (KANE in LOPES, 2012, p. 30)14. Assim,
não é possível colocar as falas em uma situação definida nem entender os falantes como portadores
de um objetivo articulado. Em lugar disso há narrativas e identidades dispersas pelo texto e os falantes
são eventualmente atravessados por elas. Neste sentido, uma abordagem racionalista da peça não
oferece o suficiente para formar uma imagem da identidade singular de cada falante. Ainda assim,
estas quatro identidades – pedófilo(a), vítima de abuso, rapaz e mulher que quer ter filhos – mesmo
que não corporificadas claramente, sustentam o poema dramático com sua presença espectral.
Em Psicose 4.48 desaparecem as siglas para atribuição de falas. Sarah Kane não deixa nenhuma
instrução prévia sobre quem fala e as pistas de eventual troca de interlocutor são fugidias: travessões,
quebras de linha, diferentes recuos. Os fragmentos guardam relação com um quadro clínico de
depressão e, por extensão, com um(a) paciente. Esta primeira presença de um sujeito – paciente –
percorre todo o texto e se intensifica no emprego ostensivo da primeira pessoa: “Eu estou triste / (...)
/ Eu estou entediadx e insatisfeitx com tudo / (...) / Eu gostaria de me matar”. (KANE, 2015, p. 206) 15.
Tende-se a entender a peça como monólogo, pela própria natureza da sua escrita. Como aponta

13
B Are you a lesbian? / M Oh please. / B I thought that might be why you don’t have children. / A Why? / M I
never met a man I trusted. (KANE, 2015, p. 163).
14
M Rule one. / C No records. / M No letters. /A No credit card bills for afternoons in hotel rooms, no receipts
for expensive jewelry, no calling at home then hanging up in silence. (KANE, 2015, p. 181).
15
I am sad / (...) / I am bored and dissatisfied with everything / (...) / I would like to kill myself. (no caso desta
peça, a tradução é do articulista).

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Delgado-Garcia, “há casos que são uma reminiscência do solilóquio” (2015, p. 99). Mas as marcas
gráficas do texto, ao contrário, sugerem uma pluralidade de vozes. Em primeiro lugar, há seis
fragmentos que contêm diálogos (indicados por travessões), o que oferece, direta ou indiretamente, o
embate entre duas possíveis posições de sujeito. E alguns destes diálogos podem ser entre paciente e
médico(a): “– Você não precisa de umx amigx. Você precisa de umx médicx. / (Um longo silêncio)
/ – Você está tão erradx” (KANE, 2015, p. 236) 16. Não há como precisar quantas vozes médicas
aparecem no texto, seja nestes diálogos, seja no corpo do texto, na forma de prontuário médico:
“Lofepramina, 70 mg, aumentada para 140 mg, depois para 210 mg. Ganho de 12 kg. Perda de
memória recente. Nenhuma outra reação”. (KANE, 2015, p. 224) 17. Falantes ou não, há certamente
diversas figuras médicas, há “Doutorx Isso e Doutorx Aquilo e Doutorx Quéisso” (KANE, 2015, p.
209)18. E ao menos uma delas assume um papel que transcende a relação profissional: “confiei em
você, amei você, e não é perder você que me machuca, mas sim tuas falsidades descaradas do caralho
que se mascaram em notas médicas” (KANE, 2015, p. 210)19. Há, portanto, um jogo de montar entre
a matéria verbal difusa do texto e o(s) corpo(s) em cena. Mesmo que a unidade temática leve a encenar
a obra como um grande solilóquio, trata-se de um texto atravessado por múltiplas vozes. E, por mais
ambíguas e contraditórias que sejam as marcas de identidade no texto, a peça oferece figurações
profundas de subjetividade humana e, com elas, uma noção singular de identidade ficcional.
Sobre estas duas peças de Sarah Kane, Cristina Delgado-García defende que o apagamento das
marcas – especialmente as de gênero – faz parte de uma estratégia política de escrita não
normatizante. Partindo da crítica de Judith Butler, Delgado-García entende estes textos como
exemplos de uma “performatividade própria da recusa que, neste caso, insiste na reiteração da
sexualidade além dos termos dominantes” (BUTLER; LACLAU; ZIZEK, 2000, p. 177). A autora
reúne um sólido conjunto de marcas textuais da ambiguidade de gênero nas duas peças.
Especialmente no que toca a Psicose 4.48, é notável a quantidade de referências a um corpo queer
pelo texto, em imagens como a de uma “hermafrodita despedaçadx que confiava em si mesmx”
(KANE, 2015, p. 205)20, ou nos indícios de insatisfação com a genitália (p. 207) 21, ou ainda a imagem
de “um sentido preso numa carcaça alienígena” (p. 214) 22. Delgado-García entende que “as sugestões

16
– You don’t need a friend you need a doctor. / (A long silence) – You are so wrong.
17
Lofepramine, 70mg, increased to 140mg, then 210mg. Weight gain 12kgs. Short term memory loss. No
other reaction.
18
Dr This and Dr That and Dr Whatsit (...).
19
I trusted you, I loved you, and it’s not losing you that hurts me, but your bare-faced fucking falsehoods that
masquerade as medical notes.
20
the broken hermaphrodite who trusted hermself alone (...).
21
I dislike my genitals.
22
a sense interned in an alien carcass (...).

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de intersexualidade e transgênero em Psicose 4.48 permitem uma leitura queer da noção de
subjetividade que a peça apresenta” (DELGADO-GARCÍA, 2015, p. 103).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A visão de conjunto destas seis peças permite avançar algumas colocações interessantes. Em
primeiro lugar, há a constatação de que o apagamento da dramatis personae corresponde a um
deslocamento da noção de personagem, mais que a uma dissolução desta noção. O que se apaga, em
termos gerais, é a individualização das falas e dos falantes. O efeito disso é o colapso de um modelo
histórico de personagem. A ideia de que uma personagem corresponde a um corpo e/ou a um falante,
o gesto em que o performer se coloca no lugar de uma personagem, eis o que entrou em crise – e
eventualmente se dissolveu – nestas dramaturgias. Em seu lugar, instaurou-se “uma ideia dispersa de
self, e esta dispersão foi (ou tem sido) representada de muitos modos diferentes no teatro alternativo
contemporâneo” (FUCHS, 1996, p. 9). Tais modos de representação incluem desde a possibilidade
de construção de identidades coletivas até a ideia de um corpo atravessado por identidades múltiplas
ou uma subjetividade individual representada por uma multiplicidade de corpos.
Em segundo lugar, a par da similaridade estrutural destas quatro peças, pode-se perceber a
oposição entre dois modos majoritários de figuração da identidade. Em Crimp, trata -se
principalmente da representação de identidades coletivas em tempos e lugares concretos, embora
eventualmente indeterminados. Mesmo estando apagados os traços de individualização, é possível
ver o encontro concreto de um grupo de pessoas. Em cada quadro destas peças, geralmente, o
endereçamento é claro e todos ouvem todos. Os falantes são anônimos mas sua fala os caracteriza
como grupo e sua função dentro do grupo também está marcada no texto, em maior ou menor grau.
As duas peças de Sarah Kane, por sua vez, parecem propor outro tipo de figuração da subjetividade.
Nestas obras não há o sentido de ação coletiva das primeiras, os falantes parecem muitas vezes
isolados dos demais e não há nenhuma certeza a respeito do endereçamento das falas. São falantes
atravessados por identidades múltiplas, flutuantes, “desencarnadas”. Há momentos de exceção em
ambos os casos (os seis diálogos claros em Psicose 4.48; a voz solitária listando palavras no quadro
10 de Atentados), mas a análise geral aponta para este contraste.
Em terceiro lugar, é possível apontar o possível sentido político de algumas destas
representações de identidade e de subjetividade, partindo do que se apaga e do que se mantém das
marcas de caracterização dos falantes. Para Cristina Delgado-García, a recusa a definir e
individualizar os falantes permite a representação de subjetividades para além da norma e dos
modelos hegemônicos, permite representar sujeitos “estranhamente híbridos, relacionais ou baseados
na prática, que problematizam a noção de identidade e sua política” (DELGADO-GARCÍA, 2015, p.

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5-6). Para a autora, trata-se também de uma recusa aos limites de representação de gênero,
especialmente nas peças de Sarah Kane.
Nos dois textos de Crimp, a caracterização do gênero dos falantes também tem viés político
evidente. Em Menos emergências, as duas marcas de gênero – referentes ao falante 1 de dois quadros,
indicados como um homem e uma mulher – tematizam claramente o lugar de fala: uma mulher
falando por outra, um homem falando por outro. O mesmo talvez possa ser dito da figura feminina
no quadro Pornô, de Atentados. De resto, o anonimato dos falantes das dua peças de Crimp produz
um discurso que, mesmo distribuido entre vozes de um elenco, continua sendo um discurso coletivo.
Neste sentido, tematizam as próprias políticas de distribuição da fala. Isto se dá no embate de cada
cena ou quadro, mas está também no embate entre protagonistas ausentes – Anne, a mulher que casa
cedo, o assassino, etc. – e falantes anônimos. O anonimato dos falantes é, portanto, estrutural.
Em O espectador emancipado, ao descrever os movimentos da arte contemporânea para
responder politicamente ao mundo, Jacques Racière fala que “uns se empenham em mostrar -nos os
‘viéses’ da representação dominante das identidades subalternas, outros nos propõem afinar o olhar
diante das imagens de personagens com identidade flutuante ou indecifrável” (RANCIÊRE, 2012, p.
51). As quatro peças aqui tratadas podem ser entendidas no trânsito entre estes dois campos.

REFERÊNCIAS

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