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Eastverso
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Garotos mortos não contam mentiras – volume
2
—
Aquele garoto – volume 1
GAROTOS MORTOS NÃO CONTAM MENTIRAS
Copyright © 2021 Mark Miller.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução
deste livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do autor,
exceto em casos de pequenas citações usadas em resenhas ou artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações, eventos e incidentes
são, ou parte da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças
com indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são inteiramente coincidentes.
Sobre Eastview
Playlist
Aviso de gatilho
PRÓLOGO
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
oito
De fato vêm.
O sinal abre novamente. Toco o volante emborrachado e piso de
leve no acelerador. O carro não arranca a mais de 30km/h; as ruas mais
próximas da delegacia de Eastview são pouco agitadas. Ergo o livro na
altura dos olhos, pois a linha seguinte me chama a atenção:
Pego meu marcador de texto amarelo largado no painel e destaco
a passagem: talvez seja esse o problema de Tommy. De qualquer forma,
ele vai se abrir conosco quando for o tempo certo. Estamos com ele há
poucos meses, mas não tem dúvida alguma em meu peito de que adotá-
lo foi a melhor decisão que Laura e eu já tomamos. Um sorriso se abre
em meu rosto.
Paro em frente à delegacia. Desligo as engrenagens, pego meu
revólver e o acoplo no coldre do cinto. Apanho alguns relatórios que
preparei durante o fim de semana e saio do carro.
Ser policial em Eastview é como ser um policial em uma cidade
pequena: todo mundo conhece você e coloca em seus ombros o peso de
resolver até as mínimas inconveniências. Ainda assim, amo meu
trabalho. Amo a equipe com a qual trabalho. Amo esse bairro.
O problema é que nunca tivemos uma situação como essa antes.
Nunca antes um crime desses foi cometido em Eastview, menos ainda
um suicídio tão suspeito. Tenho a sensação de que algo bastante
perigoso está acontecendo, o que pode arruinar a paz deste bairro. Isso
não posso deixar acontecer.
Entro na delegacia. Sou recepcionado pela visão de sempre: meu
parceiro, Eduardo Scooper, sentado em sua mesa ao lado da minha, um
copo largo e borbulhante de café preto nas mãos, um sorriso torto no
rosto de mandíbula bem definida e as insígnias douradas presas no peito
do uniforme amarronzado.
— Bom dia, Vilarreal — cumprimenta.
Passo direto por ele e me aproximo da cafeteira. Sirvo um copo
grande de café para mim.
— Acordou de bom humor, Scooper? — respondo em um tom
alto para sinalizar minha presença para o resto da equipe.
— O de sempre — ele dá um gole em seu café.
Chris sai de sua sala no corredor ao lado e se aproxima.
— Novidades sobre o garoto suicida? — Entrego a ela meus
relatórios e me recosto sobre o balcão onde fica a cafeteira.
— Analisamos todos os pertences dele — ela diz com os olhos
nas folhas em suas mãos —, em casa e na escola.
Chris dá um aceno sutil quando termina de ler os relatórios. O
óculos pequeno e escuro parece imóvel em seu rosto, os fios escuros na
altura dos ombros são perfeitamente alinhados.
Do corredor à minha esquerda, Samara, outra policial
investigativa, aparece e caminha até mim trazendo uma pasta escura nas
mãos. Ela me cumprimenta em silêncio com o queixo e me passa a
pasta.
— O que é isso? — Abro e vasculho o conteúdo de seu interior.
— Fotos do armário — ela responde enquanto pego uma das
fotos e analiso. — Está vazio.
Meu cenho se franze. Procuro alguma coisa incomum nas fotos,
mas não acho nada. Parecem fotos ordinárias de um armário vazio.
— E isso é importante por...? — Ergo uma sobrancelha.
— Não estava vazio antes do acontecido. — Samara diz e
estende o próprio celular até mim. Na tela, vejo uma foto do garoto
ainda vivo junto de seu melhor amigo, ambos na frente do armário
aberto, que tem seu interior repleto de materiais de estudo e objetos
seus.
Observo a foto do celular, e então as fotos físicas da pasta.
— Foi roubado?
Samara dá de ombros e recolhe o celular. Fecho a pasta.
— Ou esvaziado pela vítima por alguma razão. — Ela senta em
uma cadeira próxima de Scooper.
Meu parceiro ajeita sua postura antes de dizer:
— Interrogamos a família, amigos próximos, colegas distantes.
— Suspira. — Não encontramos nada que indicasse que ele estava
planejando suicídio. Nenhum histórico de transtornos psicológicos na
família, nenhum comportamento suspeito, nenhuma fala duvidosa. —
Cruzo os braços sobre o peito. Minha intuição de que algo bastante
errado está acontecendo em Eastview se acentua. — Os pais disseram
que o dia da morte foi apenas um dia normal... até notarem a ausência do
filho à noite.
Movo a mandíbula de um lado para o outro pensando nisso.
Abandono a pasta com as fotos do armário, dou um gole longo no meu
copo de café. A sensação fervente e amarga me deixa um pouco mais
desperto.
— Mesmo que ele quisesse se suicidar... — murmuro para meus
três companheiros de delegacia —, por que na escola?
— Pra chamar atenção? — Chris sugere em tom despreocupado.
— De quem, exatamente? — Scooper rebate. — Ninguém na
escola tinha qualquer tipo de coisa contra ele, Eddie. — Me fita
brevemente.
Encaro a porta fechada da delegacia, me lembrando do que
investiguei na cena do crime e descrevi em detalhes nos relatórios que
seriam enviados às instâncias superiores da Polícia Federal mais tarde.
— A traqueia dele estava quebrada? — Chris pergunta.
— Sim — respondo, um pouco frio, um pouco ríspido.
Um silêncio estático se ergue entre nós. Um silêncio que, quando
quebrado, significará o fim da paz neste bairro. Então que eu o faça.
— Esse garoto não se matou, não foi? — pergunto em um tom
mais baixo.
É uma pergunta retórica, mas Samara a responde de qualquer
forma:
— Não.
— Porra — murmuro, e esfrego os olhos. Penso em todas as
pessoas que conheço e que agora estão em perigo. Penso em Laura.
Penso em Tommy.
— Um assassino em Eastview — Scooper comenta em um tom
jocoso e ansioso. — Essa é nova.
— Devemos mesmo envolver as autoridades de São Paulo? —
Chris pergunta com certa relutância, a nuca curvada em direção aos
relatórios em suas mãos.
Todos sabemos a resposta para aquilo.
— Não. — Apanho as folhas de suas mãos. Caminho até a
máquina de cortar papel no espaço entre minha mesa e a de Scooper e
retalho os relatórios que escrevi. — Nada disso pode sair de Eastview.
— Comento em um tom sombrio quando o último pedaço de papel se
fragmenta.
Retiro o canivete que guardo no cinto e passo a lâmina afiada
sobre a palma da minha mão direita. Pele e carne se rompem. Um filete
delicado e rubro de sangue escorre.
Estendo o canivete a Scooper.
A ndo por um corredor longo e escuro. Serpentes rastejam
pelas paredes. Fumaça acinzentada cobre meus pés, também não
consigo ver o teto. Os armários possuem o símbolo de Eastview. Me
sinto aturdido: não consigo sentir medo ou controlar meus movimentos.
Ainda assim, algo me propulsiona a continuar caminhando, mas não sei
bem o quê.
Estou sozinho. Está frio. Esfrego meus braços para tentar me
esquentar. Visto o uniforme anil do colégio. Caminho até o laboratório
de biologia. Pelo vidro de uma das janelas, vejo a cena que me
atormenta: um garoto deitado no chão sendo estrangulado por uma
figura encapuzada.
Tento me mexer, mas não consigo. Meus olhos ficam bem
abertos tentando captar cada detalhe da cena; talvez eu consiga descobrir
a identidade do assassino dessa vez. Mas os dois corpos diante de mim
parecem apenas sombras, silhuetas em meio à escuridão do laboratório.
— Alexis...? — Minha voz ecoa fantasmagórica entre as paredes.
Neste momento, as sombras se afastam do rosto do garoto e
consigo visualizá-lo claramente.
— Tommy, por favor... — Alexis pede. — Me ajuda...
Minha respiração acelera. Penso em entrar no laboratório e salvá-
lo, mas as palavras de Matty ecoam em minha mente.
— Eu não posso, eu... — balbucio. — Não posso falar nada pra
ninguém...
As palavras saem com um gosto amargo. Me sinto tão mal
quanto na primeira vez em que o vi morrer, talvez pior.
— Tommy, por favor... — ele insiste, mas não me movo. Desta
vez, por vontade própria. — Tommy... — o garoto grunhe, as mãos do
assassino aumentando o aperto em sua garganta. As pareces ao meu
redor começam a se distorcer, sangue vaza do teto e mancha meu
uniforme. O assassino vira o rosto coberto por sombras em minha
direção, vejo seu sorriso largo e cheio de dentes longos e pontudos como
os de uma hiena. — Tomas. — Fecho os olhos. A voz de Alexis soa
mais próxima, muda de timbre e fica mais grave. Fecho os olhos com
mais força. — Tom. — Sinto uma superfície rija sob meu rosto, meus
dentes cerrados. O frio do corredor se foi. A sensação de impotência
também. — Tomas Minori!
Acordo bruscamente com o chamado do professor Duarte. Me
impulsiono pra trás na cadeira e arfo tão alto que soa como um gemido.
Percebo que a turma inteira me olha. O professor de biologia está logo à
minha frente, a expressão severa e preocupada; o punho em minha mesa
denuncia o soco que usou para me acordar.
Fico desnorteado por um momento. Fito o rosto do professor: os
olhos esverdeados familiares, os fios amarelos penteados para trás na
parte de cima e mais curtos nas laterais da cabeça. Meus lábios tremem.
Desço o olhar para sua camisa social perfeitamente arrumada e a gravata
vermelha. Engulo em seco e curvo a nuca em direção ao tablet desligado
na minha mesa.
Que merda.
— Me desculpa — murmuro um pouco hesitante. — Eu não
quis... — Mas não consigo finalizar o pensamento, ainda estou perdido.
Começo a ofegar, as lembranças da manhã me invadem. Me
lembro de como sofri para me convencer a levantar da cama, do café
silencioso e desconfortável com meus pais adotivos, da caminhada
mórbida pelos corredores até o laboratório de biologia antes das
primeiras aulas do dia.
— Está tudo bem? — a voz de Duarte me tira do turbilhão de
pensamentos.
— Sim — respondo rápido demais.
— Tem certeza? — ele ergue uma das sobrancelhas amarelas.
Umedece os lábios rosados e finos. Seu cenho está franzido.
Cruzo os braços sobre o peito e tento fugir de seu olhar
preocupado.
— Já disse que sim — reitero em tom ríspido, aflito para desviar
logo toda aquela atenção de mim.
De relance, vejo algumas pessoas cochicharem. Sussurros e
risadas se elevam pelas costas do professor, certamente a respeito do
bolsista que acabou de dormir em uma das aulas mais importantes do
semestre. Duas fileiras à minha esquerda, Matt tem uma expressão
sombria, quase irritada, no rosto.
— Tudo bem... — Duarte responde. Ele leva um segundo a mais
do que o necessário para virar de costas e caminhar de volta até o quadro
digital na frente da sala. Quando chega lá, seu olhar cruza com o meu
brevemente. O sinal toca. As aulas da manhã finalmente acabaram. —
Nessa nota, estão todos dispensados para o memorial em homenagem a
Alexis. Se lembrem da atividade para a semana que vem, que contará
50% da nota final de vocês. Espero que já tenham decidido suas duplas.
Sequer penso muito sobre isso. Jogo o tablet de qualquer jeito de
volta na mochila e levanto da cadeira. Ao redor, todos fazem o mesmo,
embora com menos afinco. Ninguém está animado para dar adeus a
Alexis naquele memorial.
Eu certamente não estava.
Matty não olha pra mim ao sair da sala acompanhado por
Bárbara, a namorada de fachada que encontrou depois que E.V. começou
a nos aterrorizar. Formavam um belo casal: feliz e falso. O pensamento
me enfurece.
Passo pela mesa de Duarte sem me dar conta de que ele está ali.
Pelo menos até sua voz se erguer:
— Tom? — Interrompo meus passos imediatamente. — Pode
ficar comigo um pouquinho?
Isso é um pedido ou uma ordem implícita?
— Por quê? — questiono enquanto a sala se esvazia. Alguns
segundos depois, sou o único aluno restante.
— Precisa perguntar? — sua boca se contrai. Reviro os olhos e
ele aponta a cadeira mais próxima. Sentindo o peso do sermão de longe,
sento nela e abandono a mochila no chão. — Dormindo na aula,
Tommy? Você nunca fez isso antes. — Seu tom é suave, mas severo, o
que não combina em nada com seu rosto quase adolescente.
Woody Duarte é o professor mais jovem de Eastview. Às vezes, é
difícil acreditar que ele tem mesmo vinte e cinco anos. O brinco
prateado na orelha e as tatuagens que cobrem os braços, o peito e parte
do pescoço certamente não ajudam.
Desvio o olhar para uma das janelas da sala e aprecio a vista do
terceiro andar do prédio enquanto minha mente rumina. Como aquilo
aconteceu? Como consegui o feito de dormir na aula do único professor
que realmente me fazia querer ficar acordado? Biologia era um porre.
Mas biologia com Woody Duarte era tolerável.
— Eu sei, prof. Duarte — murmuro envergonhado comigo
mesmo. — Sinto muito.
— Não se preocupe comigo, Tom — responde. Sem pressa, volto
a encarar seus olhos. A voz dele é profunda e quase rouca, possui um
magnetismo que me atrai sem que eu pense no que estou fazendo. —
Preocupe-se consigo mesmo — completa. — Se Wolmer souber disso,
sua bolsa estará em risco.
Aceno sutilmente. Sei da lista quase infindável de regras, termos
e condutas que vêm com a minha bolsa. Dormir em aula é uma infração
grave. Mordo o lábio inferior. Olho para baixo, sem conseguir sustentar
o brilho sábio e empático dos olhos dele por muito tempo.
— Você vai contar? — sussurro.
Ele suspira.
— Eu deveria. — Se recosta na cadeira, o peito aberto sob a
camisa social branca e fina, as tatuagens ainda mais proeminentes, o
olhar preso em mim. Seus dedos brincam com a caneta prateada que
apenas os professores de Eastview possuem. — Mas não vou —
responde depois de um tempo em silêncio —, se você me contar o que
está acontecendo. — Se inclina sobre a mesa em minha direção,
entrelaçando os dedos. — Por que a mudança súbita de comportamento?
Aperto os lábios. Devo mentir pra ele?
Woody é uma das poucas pessoas em que confio nessa escola.
Com certeza, o único professor em que confio. Será que ele poderia me
ajudar? Poderia ajudar Matt e eu a nos livrarmos de E.V? Será que
alguém sequer poderia ajudar?
Droga.
— É a morte de Alexis — é tudo o que encontro coragem para
confessar.
— Desconfiei disso — ele diz com uma expressão triste. — Ver
um colega de classe se machucar desse jeito não deve ser fácil. Essa
situação não está sendo fácil... — pausa por um momento, os olhos
miram a caneta em sua mão — pra ninguém. — Sua mandíbula se
retesa. Alexis era seu aluno afinal de contas. A morte dele deve ser tão
perturbadora pra Woody quanto pra mim, fora o psicopata me
chantageando. — Mas você, em particular — a tristeza se afasta de seu
rosto —, precisa se desvencilhar da dor e do estresse, Tommy, antes que
seu comportamento acabe levando-o pra um caminho sem volta.
Fico em silêncio. Não tenho o que responder, ele está certo. Mas
lidar com toda essa merda está sendo mais difícil do que imaginei. Só
quero que acabe logo, que eu possa voltar à minha vida ordinária e
invisível.
— Acha que precisa de ajuda psicológica? — pergunta.
— Não preciso da porra de um psicólogo — a resposta sai mais
áspera do que deveria. — Perdão. Perdão. — Inspiro fundo. Apanho
minha mochila do chão. Levanto da cadeira. — Prof. Duarte, muito
obrigado por não contar nada disso a Wolmer, e por tentar ajudar. Mas
acho que um psicólogo não pode fazer alguma coisa para o meu caso.
Acho — me interrompo por um segundo, as palavras parecem cacos de
vidro na minha garganta — que ninguém pode.
Me dar conta disso me deixa ainda mais frustrado.
Woody também levanta de sua cadeira, dá a volta na mesa, e se
aproxima de mim. Dou um passo para trás, incerto do que ele quer fazer,
mas relaxo quando suas mãos ajeitam o colarinho do meu blazer, que
provavelmente ficou fora do lugar durante meu cochilo vergonhoso. Em
seguida, ajeita o nó da minha gravata. Ele se concentra naquilo, os olhos
presos nos próprios dedos. Os vinte centímetros que tem a mais do que
eu me deixam incerto sobre para onde olhar. Devo erguer a nuca e
encarar seu rosto concentrado? Ou abaixá-la e encarar o peito tatuado
sob a camisa?
Merda.
Merda. Merda. Merda.
— Bem — ele murmura quando finaliza o trabalho com a gravata
e passa as mãos sobre os ombros do blazer, me livrando de alguns
amassados —, eu estou aqui, se precisar conversar sobre qualquer coisa.
— Suas mãos param em meus ombros. Nossos olhares se encontram por
um longo momento. Vários segundos. Um minuto. Alguns minutos. —
Qualquer coisa — reitera. Tudo o que consigo fazer é engolir em seco.
— Tudo bem? — Aceno. Suas mãos se desvencilham de mim. — Pode
ir — diz com um sorrisinho de canto no rosto.
Quando deixo a sala, tenho a impressão de que seu olhar
penetrante está cravado em minha nuca.
O memorial é a estátua do rei de um tabuleiro de xadrez
colocada no centro do pátio interno do segundo andar do prédio. Há
uma foto de Alexis no topo, vários de seus pertences escolares ao redor
e sobre a estátua, velas acesas no chão e um sentimento onipresente de
devastação.
No dia anterior, o diretor Wolmer pediu para que cada um de nós
escolhesse um objeto que nos lembrava do garoto e o colocasse na
estátua hoje. Agora, estou na fila para entregar o meu. É simples: o
tabuleiro de madeira em que Alexis me ensinou a jogar xadrez. Eu não
era parte do clube — não era parte de clube algum —, mas ele foi gentil
comigo naquele dia. Me ensinou truques e jogadas infalíveis.
Eu entendia por que ele era tão popular, por que todos o
adoravam. Mas isso só deixava tudo ainda mais confuso. Por que
alguém o mataria na escola? Por que alguém faria seu assassinato
parecer um suicídio? Que merda toda era aquela? E por que eu tinha que
estar no meio dela?
Na fila ao meu lado, Matt está com seu círculo de amigos,
incluindo Bárbara, que aparentemente não consegue desgrudar dele por
um instante sequer. Será que ele também se sente atordoado como eu?
Será que também se sente culpado pela morte de Alexis? Que merda
acha sobre este memorial estúpido?
Não sei. Não sei nada do que passa pela cabeça dele porque faz
uma semana desde que nos falamos pela última vez. Uma maldita
semana. Matt deve achar que se esquecer de mim é o mesmo que se
esquecer do que aconteceu naquela noite. Não é ele que está recebendo
as mensagens de E.V. de qualquer forma.
Chega a minha vez na fila. Deixo o pequeno tabuleiro aos pés da
estátua de pouco mais de um metro de altura. Encaro o rosto sorridente
de Alexis na foto, então começo a ofegar. Dou meia-volta e me encosto
em uma parede qualquer, tentando controlar minha respiração.
Quando por fim consigo me recompor, vejo Matt saindo da fila e
correndo em direção ao banheiro do pátio.
É a minha chance de falar com ele.
Me aproximo do banheiro com passos apressados, tentando não
parecer suspeito. Entro no banheiro. É o mais largo de toda a escola,
então conseguiríamos conversar sem muitos problemas.
Matt está usando um mictório na parte mais distante do banheiro.
Caminho até ele.
— Posso falar com você? — pergunto quando alcanço o mictório
à direita do seu.
— Sobre...? — ele rebate sem sequer me olhar diretamente.
Engulo em seco, tentando suprimir minha irritação. Esfrego a
boca com a mão. Penso um pouco. Para não parecer suspeito, resolvo
usar o mictório ao lado dele. Abro o zíper, encaro a parede de azulejos
brancos à minha frente.
— Sabe de qual assunto quero falar — sussurro.
Ele fica em silêncio enquanto o ouço esvaziar completamente a
bexiga, então me lança um brevíssimo olhar de relance.
— Recebeu alguma mensagem nova? — questiona ríspido.
— Não.
— Então esse assunto tá morto — diz com a voz grave e
impaciente.
Um calafrio atravessa minha espinha com aquelas palavras.
Matt fecha seu zíper e se aproxima das pias próximas à saída do
banheiro. Faço o mesmo.
— Escuta — falo, observando seu reflexo pelo espelho em frente
às pias —, talvez a gente não devesse ficar calado.
Ele lava as mãos em silêncio, depois as enxuga com um jato de ar
quente, também em silêncio. Quando finalmente me encara e responde,
seu rosto não parece mais o mesmo. Ele não parece mais o garoto por
quem me apaixonei:
— Me deixa em paz, Tommy.
Matt me dá as costas, sai do banheiro e me deixa sozinho ali para
lidar com os demônios e com o psicopata que deveríamos enfrentar
juntos. Não é como se só eu estivesse presente na noite em que Alexis
morreu; não é como se eu devesse suportar tudo aquilo sem ajuda, sem
ninguém a quem recorrer.
E eu já faço demais para manter porra do segredo dele a salvo.
Então, definitivamente enfurecido, saio do banheiro atrás dele,
pisando forte no chão. Seguro a alça da mochila no meu ombro com
força e o alcanço rapidamente. Viro seu ombro para que me encare.
— Podemos de alguma forma contar à polícia que não foi um
suicídio — sussurro o mais baixo que consigo. As pessoas ao redor não
parecem se importar, estão imersas em seus próprios lamentos e
murmúrios perdidos. — Sem que esse psicopata descubra que fomos
nós.
— Cala a boca, Tommy. — Ele olha ao redor freneticamente, se
certificando de que ninguém nos ouve. Me empurra até a parede mais
próxima, nos afastando do centro do pátio onde todos estão
aglomerados.
— Me escuta, Matt! — grito baixo, com a mandíbula tensa, e
espalmo as mãos em seu peito, afastando-o de mim. Ele dá alguns
passos para trás, e, pela primeira vez, parece interessado no que tenho a
dizer. Passeio os dedos pelos fios do meu cabelo, arrumando-os, e
continuo: — Temos que fazer esse assassino ser punido, somos as únicas
pessoas que sabem que ele existe. Se deixarmos ele nos chantagear
desse jeito—
— Matty — Bárbara diz em sua voz melódica e insinuante —,
quem é esse seu amigo novo? — Ela se aproxima de nós, cercada pelo
grupo de amigos de Matt.
Ele dá mais alguns passos pra trás.
— Ninguém, Babi — esfrega o rosto e me olha com o semblante
irritado.
A garota pega em sua mão e começa a puxá-lo para longe. Ele se
vira de costas para mim mais uma vez.
— Matt! — grito e puxo seu ombro em minha direção outra vez.
Sua mão se solta da de Bárbara, e Matty não perde um segundo
sequer. A mão que acabou de ficar livre se aproxima do meu rosto em
um punho fechado e acerta meu nariz em cheio. Sinto o impacto antes
da dor, e sou jogado para trás. Caio. Meu rosto encontra a superfície fria
do chão.
Meu coração para por um segundo. Como esse desgraçado teve a
coragem de fazer isso?
Pasmo, me ergo do chão com o apoio dos cotovelos e vejo meu
sangue rubro manchando a superfície branca. Fico nauseado. Toco meu
nariz: está dolorido, mas não quebrado. Semicerro os dentes e
impulsiono meu punho para cima, devolvendo o soco na mandíbula de
Matt. Ele não tem tempo de reagir ou de se defender, mas não cai no
chão. Naquele ponto, todas as pessoas do pátio já estão nos encarando;
se aproximam e formam um círculo ao nosso redor.
Com a nuca curvada para baixo, Matt cospe sangue no chão e
limpa a boca com a manga do próprio uniforme. De um instante para o
outro, parte pra cima de mim, o rosto contorcido em fúria e um grunhido
feroz na garganta.
Me empurra bruscamente contra a parede. Uma de suas mãos
aperta meu peito e me prende contra ela. Vejo seu punho livre se
aproximando milissegundos antes de me acertar mais uma vez. Consigo
desviar para o lado, e os nós de seus dedos encontram a superfície dura
da parede em cheio. Como que por reflexo, chuto suas bolas. Ele grita
de dor. Consigo me desvencilhar da mão que me prende e me afastar.
Estou enfurecido, mas também devastado. Olho a expressão de
dor de Matt e meu estômago se revira. Ele tenta avançar contra mim
outra vez, mas os amigos o impedem; agarram seus braços, seu peito e
puxam-no para trás.
Nos fitamos de forma voraz, meu peito sobe e desce rapidamente.
Penso em atacá-lo, mas a coragem já me deixou. Não quero machucá-lo.
Nunca quis. Tudo o que quero é conversar e arranjar uma maldita forma
de resolvermos essa merda toda, mas claramente não escolhi o melhor
momento para tentar fazê-lo.
Limpo o novo filete de sangue que escorre do meu nariz e viro
para trás na intenção de deixar o pátio.
— O que está acontecendo aqui? — Duarte entra no meu campo
de visão, seu olhar é confuso e decepcionado.
N afundo
sala de Wolmer, mantenho um pedaço de algodão enfiado no
de uma das narinas pra conter o sangramento causado pelo
punho de Matt. Ele faz o mesmo e, agressivamente, evitamos o olhar um
do outro.
— Alguém se importa em me dizer sobre o que isso se trata? — o
diretor pergunta, a voz impaciente. Olha ora pra mim, ora pro jogador de
basquete ao meu lado.
Wolmer está sentado em sua cadeira na posição costumeira.
Woody está ao seu lado, as mãos nos bolsos da calça escura e o olhar
decepcionado voltado direta e unicamente a mim. Ele me acanha, e me
deixa ainda mais inseguro do que eu deveria estar em uma situação
como esta: criada por Matt.
— Alguém aqui tem problemas pra controlar a raiva —
praticamente rosno quando me dou conta da cena que ele criou sem
motivo algum.
A tensão entre nós dois se acentua, e vejo de relance Matt virar o
rosto em minha direção.
— Pelo menos esse é o meu único problema — resmunga.
Cerro os dentes. Que porra ele quer dizer com isso?
Também viro o rosto em sua direção. Sinto meu sangue
borbulhar.
— Garotos... — Wolmer cicia, atraindo nossas atenções e
apaziguando o conflito que estava prestes a explodir. Ele suspira. — Sei
que esse é um momento estressante para todos, mas comportamentos
como estes são intoleráveis. — Woody concorda sutilmente, e volto a
ficar acanhado. — Não somos um colégio para animais. Eastview e tudo
o que representa merece mais do que dois adolescentes inconsequentes
levando suas diferenças para os corredores. — Embora esteja nos dando
uma bronca, Wolmer tem um tom mais brando do que o usual. A morte
de Alexis também parece tê-lo afetado. Engulo em seco. Mais uma
pessoa vítima dessa mentira maldita. — Terei uma conversa seríssima
com os pais de ambos.
Matt retira o algodão do nariz e o joga na lixeira ao lado da mesa
de Wolmer com desdém.
— Ótimo. — Ele levanta da cadeira. — Podemos ir agora? Tenho
treino em alguns minutos.
— Sente-se, Armani — Woody ordena entredentes.
Nunca o vi desse jeito antes, e acho que Matt também não, pois
retorna ao assento imediatamente. Mordo o lábio inferior. Por algum
motivo, minha timidez vai embora nesse instante. Observo seu corpo
entre a penumbra e os feixes de luz do sol que entram na sala pelas
janelas fenestradas.
— Se qualquer coisa do tipo voltar a se repetir... — a voz de
Wolmer atrai minha atenção outra vez, seu olhar é direcionado a Matt
—, pode dizer adeus às finais do Campeonato Interestadual semana que
vem.
Arregalo os olhos e consigo prever a ira de Matt antes de ele
dizer em uma voz alterada:
— Você não pode fazer isso!
— Não? — Wolmer rebate imediatamente — Por quê?
— Sou o melhor jogador do time. — Ele fica tão desesperado que
até me direciona um breve olhar de indignação. — Me suspender seria o
mesmo que entregar a vitória aos canalhas de Westview.
— Tome cuidado com a linguagem, Armani — Wolmer
repreende. Matt morde o próprio lábio com força, e bufa. — Você será
suspenso dos jogos e das aulas caso volte a se meter em confusão,
especialmente em um momento tão delicado e difícil como o que
estamos enfrentando.
— Isso é um absurdo.
— Eu decido o que é absurdo ou não nessa situação! — O tom do
diretor é severo agora, mais próximo do usual. Matt inspira fundo, mas
fica calado. Não posso negar que aquilo me deu algum conforto. Ao
menos Matt não ficaria impune por ter começado aquela merda toda. —
E você, Tom... — Meu coração acelera quando seu foco muda para mim.
— Preciso dizer o quão decepcionado estou? — Afundo na cadeira. —
Não esperamos nada além de excelência dos nossos alunos bolsistas.
Vocês são escolhidos por motivos bem específicos em um processo
árduo e complexo... — Suspira e troca um olhar com Woody. — Mas
talvez tenhamos cometido um erro com você.
Quando entendo o que ele quer dizer, me desespero.
— Não, por favor... — tento suplicar, mas as palavras me faltam.
Olho para Woody em busca de alguma proteção, mas tudo o que
ele faz é contrair a boca. Estou perdido.
— Bolsistas já foram expulsos por muito menos, Tom — o
diretor diz, colocando o último prego no meu caixão. Começo a pensar
em como vou explicar a Edgar e Laura que fui expulso de Eastview, em
como seu filho adotivo é um completo fracasso. Meus olhos começam a
arder quando Wolmer continua: — Mas levando em consideração o
momento difícil que estamos vivendo — paro de respirar —, vou lhe dar
uma segunda chance. Uma segunda e última chance. Se sair da linha
outra vez, será caso encerrado.
Merda.
— Muito, muito obrigado! — Curvo a nuca para baixo, sentindo
uma descarga de alívio percorrer minhas costas.
De relance, vejo a expressão preocupada no rosto de Matt. A
noção de que quase perdi minha bolsa por culpa dele parece fazê-lo se
dar conta de toda a merda que está fazendo.
— Vocês dois ganharam uma segunda chance — Wolmer
prossegue. — Não a desperdicem. — Se recosta na cadeira.
— Estão dispensados — Woody diz, e nos acompanha até a
porta.
S aio da sala de Wolmer querendo fugir da escola, do
bairro, do planeta. Já não basta chegar tão perto de perder minha
bolsa, agora tenho que lidar com Bárbara se atirando nos braços de Matt,
que saiu da sala logo depois de mim.
— Como foi? — ela pergunta enquanto segura o rosto dele rente
ao seu. Sinto vontade de vomitar.
O restante do time de basquete está ali para recepcioná-lo
também.
— Só o Wolmer tendo mais um de seus chiliques — Matt
responde.
Bárbara o beija, e, logo depois, um de seus amigos envolve seu
ombro com um dos braços, arrastando-o para longe.
— Vem, vamos pro treino.
Matt vai embora sem me lançar um olhar de relance sequer. Sou
muito, muito estúpido mesmo. Caminho furioso para longe da sala de
Wolmer. Cruzo um corredor, então dou de cara com Edgar em seu
uniforme de policial investigativo.
— Tomas? — Ele toca meus ombros depois do susto. Me
sobressalto. Ótimo. — Vim assim que pude, o que aconteceu com...
— Não quero falar sobre isso. — Me desvencilho de seu toque.
Não estou com paciência ou ânimo pra conversar com ele neste instante.
— Vou esperar no carro — digo, já caminhando pra longe.
N ofachada
assento do passageiro do carro de Edgar, observo a
de Eastview enquanto os alunos saem da escola. Ganhamos
a tarde livre depois do memorial; talvez a morte de Alexis tenha servido
para algo além de me traumatizar para a vida inteira, afinal de contas.
Mas não consigo parar de pensar: como Matt pode ser tão
babaca? Como pôde agir daquela forma depois de dizer que me ama?
Ele me ama mesmo? Ou só falou aquilo pra me convencer a ficar
calado?
A esse ponto, não duvido mais de nada. Só quero tirar tudo isso
da cabeça, esquecer de alguma forma da merda em que me enfiei. Só
quero um maldito momento de paz.
Inspiro fundo. Lágrimas ardem em meus olhos. Esfrego-os,
consigo contê-las; a última coisa de que preciso é Edgar me ver
chorando. Ele já está na reunião com Wolmer há meia hora. Por quanto
mais isso vai durar?
Engulo minhas mágoas e apanho o celular. Talvez tenha algo no
YouTube que possa me distrair, nem que seja por alguns minutos.
Desbloqueio a tela. A primeira coisa que vejo é uma nova mensagem.
Leio a prévia.
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