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"Quando o mundo estiver
unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e
poder, então nossa
sociedade poderá enfim
evoluir a um novo nível."
Fronteiraverso

Além da fronteira – volume 1


Além da escuridão – volume 2
Além da tempestade – volume 2.5
Além das chamas – volume 3
Além das cinzas – volume 3.5
Além do alvorecer (conto)
Além do crepúsculo (conto)

Eastverso

Garotos mortos não contam segredos – volume


1

ã
Garotos mortos não contam mentiras – volume
2

Aquele garoto – volume 1
GAROTOS MORTOS NÃO CONTAM MENTIRAS
Copyright © 2021 Mark Miller.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução
deste livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do autor,
exceto em casos de pequenas citações usadas em resenhas ou artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações, eventos e incidentes
são, ou parte da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças
com indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são inteiramente coincidentes.

Os direitos morais do autor foram assegurados.

Leitura Crítica: Brendon Idzi Duhring


Revisão: Brendon Idzi Duhring
Diagramação: Bruno Louvres, Mark Miller
Capa e Ilustrações: Senara Sousa
Ilustração de Personagens © Alessandra Rozendo (Cidade Literária)
Emblema de Eastview © C. M. P. Vargas

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Primeira edição, 2021.
Para aqueles que ainda não se sentem seguros o suficiente para assumir publicamente quem são.
Está tudo bem.
Sumário

Sobre Eastview
Playlist
Aviso de gatilho

PRÓLOGO
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
oito

Garotos mortos não SANGRAM


AQUELE GAROTO
Agradecimentos
Sobre O Autor
Eastview é um colégio particular de Ensino Médio fundado em 1903
pelo benfeitor puritano Carlos Wolmer, localizado em Eastview, São
Paulo.
Está na vanguarda da pesquisa acadêmica e intelectual. Aqueles
que se aventuram aqui - para aprender, pesquisar, ensinar, trabalhar e
crescer - se juntam a mais de um século de tradição e estudantes que
buscam pela verdade, conhecimento e pela construção de um mundo
melhor.
Como a maior instituição de renome do Brasil, Eastview estará
sempre focada em criar oportunidades educacionais para os jovens que
representam o futuro da nação - e do mundo.
Esse livro possui uma playlist cuidadosamente organizada para
complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do código
abaixo (abra a barra de busca do spotify, clique sobre o ícone da câmera
e o escaneie), ou busque pelas palavras-chave “Garotos Mortos Não
Contam Mentiras – Playlist Oficial” no serviço de streaming.
D irigir e ler ao mesmo tempo é mais difícil do que parece,
deveria haver um curso pra ensinar esse tipo de coisa. Paro no sinal
vermelho e tenho alguns segundos pra ler a passagem aberta no meu
colo.

O sinal abre. Tenho que focar nas ruas novamente.


Quando a mãe de Laura me deu aquele livro, não imaginei que
seria tão útil. Mas também não imaginei que adotar um filho fosse ser
tão complicado, outra coisa que as pessoas fazem parecer mais fácil do
que é na prática.
Cruzo uma esquina e me deparo com outro sinal fechado. Ótimo.
Curvo a nuca em direção ao livro.

Reflito um pouco: Tommy é mesmo mais fechado do que


imaginamos que seria, mesmo que Laura e eu tentemos nosso melhor o
tempo todo pra entender mais sobre ele. Sempre fica na defensiva
quando se trata de conversar sobre garotas, e as cápsulas de cafeína....
Bem, as cápsulas são uma história à parte. Leio a próxima linha na
página.

De fato vêm.
O sinal abre novamente. Toco o volante emborrachado e piso de
leve no acelerador. O carro não arranca a mais de 30km/h; as ruas mais
próximas da delegacia de Eastview são pouco agitadas. Ergo o livro na
altura dos olhos, pois a linha seguinte me chama a atenção:
Pego meu marcador de texto amarelo largado no painel e destaco
a passagem: talvez seja esse o problema de Tommy. De qualquer forma,
ele vai se abrir conosco quando for o tempo certo. Estamos com ele há
poucos meses, mas não tem dúvida alguma em meu peito de que adotá-
lo foi a melhor decisão que Laura e eu já tomamos. Um sorriso se abre
em meu rosto.
Paro em frente à delegacia. Desligo as engrenagens, pego meu
revólver e o acoplo no coldre do cinto. Apanho alguns relatórios que
preparei durante o fim de semana e saio do carro.
Ser policial em Eastview é como ser um policial em uma cidade
pequena: todo mundo conhece você e coloca em seus ombros o peso de
resolver até as mínimas inconveniências. Ainda assim, amo meu
trabalho. Amo a equipe com a qual trabalho. Amo esse bairro.
O problema é que nunca tivemos uma situação como essa antes.
Nunca antes um crime desses foi cometido em Eastview, menos ainda
um suicídio tão suspeito. Tenho a sensação de que algo bastante
perigoso está acontecendo, o que pode arruinar a paz deste bairro. Isso
não posso deixar acontecer.
Entro na delegacia. Sou recepcionado pela visão de sempre: meu
parceiro, Eduardo Scooper, sentado em sua mesa ao lado da minha, um
copo largo e borbulhante de café preto nas mãos, um sorriso torto no
rosto de mandíbula bem definida e as insígnias douradas presas no peito
do uniforme amarronzado.
— Bom dia, Vilarreal — cumprimenta.
Passo direto por ele e me aproximo da cafeteira. Sirvo um copo
grande de café para mim.
— Acordou de bom humor, Scooper? — respondo em um tom
alto para sinalizar minha presença para o resto da equipe.
— O de sempre — ele dá um gole em seu café.
Chris sai de sua sala no corredor ao lado e se aproxima.
— Novidades sobre o garoto suicida? — Entrego a ela meus
relatórios e me recosto sobre o balcão onde fica a cafeteira.
— Analisamos todos os pertences dele — ela diz com os olhos
nas folhas em suas mãos —, em casa e na escola.
Chris dá um aceno sutil quando termina de ler os relatórios. O
óculos pequeno e escuro parece imóvel em seu rosto, os fios escuros na
altura dos ombros são perfeitamente alinhados.
Do corredor à minha esquerda, Samara, outra policial
investigativa, aparece e caminha até mim trazendo uma pasta escura nas
mãos. Ela me cumprimenta em silêncio com o queixo e me passa a
pasta.
— O que é isso? — Abro e vasculho o conteúdo de seu interior.
— Fotos do armário — ela responde enquanto pego uma das
fotos e analiso. — Está vazio.
Meu cenho se franze. Procuro alguma coisa incomum nas fotos,
mas não acho nada. Parecem fotos ordinárias de um armário vazio.
— E isso é importante por...? — Ergo uma sobrancelha.
— Não estava vazio antes do acontecido. — Samara diz e
estende o próprio celular até mim. Na tela, vejo uma foto do garoto
ainda vivo junto de seu melhor amigo, ambos na frente do armário
aberto, que tem seu interior repleto de materiais de estudo e objetos
seus.
Observo a foto do celular, e então as fotos físicas da pasta.
— Foi roubado?
Samara dá de ombros e recolhe o celular. Fecho a pasta.
— Ou esvaziado pela vítima por alguma razão. — Ela senta em
uma cadeira próxima de Scooper.
Meu parceiro ajeita sua postura antes de dizer:
— Interrogamos a família, amigos próximos, colegas distantes.
— Suspira. — Não encontramos nada que indicasse que ele estava
planejando suicídio. Nenhum histórico de transtornos psicológicos na
família, nenhum comportamento suspeito, nenhuma fala duvidosa. —
Cruzo os braços sobre o peito. Minha intuição de que algo bastante
errado está acontecendo em Eastview se acentua. — Os pais disseram
que o dia da morte foi apenas um dia normal... até notarem a ausência do
filho à noite.
Movo a mandíbula de um lado para o outro pensando nisso.
Abandono a pasta com as fotos do armário, dou um gole longo no meu
copo de café. A sensação fervente e amarga me deixa um pouco mais
desperto.
— Mesmo que ele quisesse se suicidar... — murmuro para meus
três companheiros de delegacia —, por que na escola?
— Pra chamar atenção? — Chris sugere em tom despreocupado.
— De quem, exatamente? — Scooper rebate. — Ninguém na
escola tinha qualquer tipo de coisa contra ele, Eddie. — Me fita
brevemente.
Encaro a porta fechada da delegacia, me lembrando do que
investiguei na cena do crime e descrevi em detalhes nos relatórios que
seriam enviados às instâncias superiores da Polícia Federal mais tarde.
— A traqueia dele estava quebrada? — Chris pergunta.
— Sim — respondo, um pouco frio, um pouco ríspido.
Um silêncio estático se ergue entre nós. Um silêncio que, quando
quebrado, significará o fim da paz neste bairro. Então que eu o faça.
— Esse garoto não se matou, não foi? — pergunto em um tom
mais baixo.
É uma pergunta retórica, mas Samara a responde de qualquer
forma:
— Não.
— Porra — murmuro, e esfrego os olhos. Penso em todas as
pessoas que conheço e que agora estão em perigo. Penso em Laura.
Penso em Tommy.
— Um assassino em Eastview — Scooper comenta em um tom
jocoso e ansioso. — Essa é nova.
— Devemos mesmo envolver as autoridades de São Paulo? —
Chris pergunta com certa relutância, a nuca curvada em direção aos
relatórios em suas mãos.
Todos sabemos a resposta para aquilo.
— Não. — Apanho as folhas de suas mãos. Caminho até a
máquina de cortar papel no espaço entre minha mesa e a de Scooper e
retalho os relatórios que escrevi. — Nada disso pode sair de Eastview.
— Comento em um tom sombrio quando o último pedaço de papel se
fragmenta.
Retiro o canivete que guardo no cinto e passo a lâmina afiada
sobre a palma da minha mão direita. Pele e carne se rompem. Um filete
delicado e rubro de sangue escorre.
Estendo o canivete a Scooper.
A ndo por um corredor longo e escuro. Serpentes rastejam
pelas paredes. Fumaça acinzentada cobre meus pés, também não
consigo ver o teto. Os armários possuem o símbolo de Eastview. Me
sinto aturdido: não consigo sentir medo ou controlar meus movimentos.
Ainda assim, algo me propulsiona a continuar caminhando, mas não sei
bem o quê.
Estou sozinho. Está frio. Esfrego meus braços para tentar me
esquentar. Visto o uniforme anil do colégio. Caminho até o laboratório
de biologia. Pelo vidro de uma das janelas, vejo a cena que me
atormenta: um garoto deitado no chão sendo estrangulado por uma
figura encapuzada.
Tento me mexer, mas não consigo. Meus olhos ficam bem
abertos tentando captar cada detalhe da cena; talvez eu consiga descobrir
a identidade do assassino dessa vez. Mas os dois corpos diante de mim
parecem apenas sombras, silhuetas em meio à escuridão do laboratório.
— Alexis...? — Minha voz ecoa fantasmagórica entre as paredes.
Neste momento, as sombras se afastam do rosto do garoto e
consigo visualizá-lo claramente.
— Tommy, por favor... — Alexis pede. — Me ajuda...
Minha respiração acelera. Penso em entrar no laboratório e salvá-
lo, mas as palavras de Matty ecoam em minha mente.
— Eu não posso, eu... — balbucio. — Não posso falar nada pra
ninguém...
As palavras saem com um gosto amargo. Me sinto tão mal
quanto na primeira vez em que o vi morrer, talvez pior.
— Tommy, por favor... — ele insiste, mas não me movo. Desta
vez, por vontade própria. — Tommy... — o garoto grunhe, as mãos do
assassino aumentando o aperto em sua garganta. As pareces ao meu
redor começam a se distorcer, sangue vaza do teto e mancha meu
uniforme. O assassino vira o rosto coberto por sombras em minha
direção, vejo seu sorriso largo e cheio de dentes longos e pontudos como
os de uma hiena. — Tomas. — Fecho os olhos. A voz de Alexis soa
mais próxima, muda de timbre e fica mais grave. Fecho os olhos com
mais força. — Tom. — Sinto uma superfície rija sob meu rosto, meus
dentes cerrados. O frio do corredor se foi. A sensação de impotência
também. — Tomas Minori!
Acordo bruscamente com o chamado do professor Duarte. Me
impulsiono pra trás na cadeira e arfo tão alto que soa como um gemido.
Percebo que a turma inteira me olha. O professor de biologia está logo à
minha frente, a expressão severa e preocupada; o punho em minha mesa
denuncia o soco que usou para me acordar.
Fico desnorteado por um momento. Fito o rosto do professor: os
olhos esverdeados familiares, os fios amarelos penteados para trás na
parte de cima e mais curtos nas laterais da cabeça. Meus lábios tremem.
Desço o olhar para sua camisa social perfeitamente arrumada e a gravata
vermelha. Engulo em seco e curvo a nuca em direção ao tablet desligado
na minha mesa.
Que merda.
— Me desculpa — murmuro um pouco hesitante. — Eu não
quis... — Mas não consigo finalizar o pensamento, ainda estou perdido.
Começo a ofegar, as lembranças da manhã me invadem. Me
lembro de como sofri para me convencer a levantar da cama, do café
silencioso e desconfortável com meus pais adotivos, da caminhada
mórbida pelos corredores até o laboratório de biologia antes das
primeiras aulas do dia.
— Está tudo bem? — a voz de Duarte me tira do turbilhão de
pensamentos.
— Sim — respondo rápido demais.
— Tem certeza? — ele ergue uma das sobrancelhas amarelas.
Umedece os lábios rosados e finos. Seu cenho está franzido.
Cruzo os braços sobre o peito e tento fugir de seu olhar
preocupado.
— Já disse que sim — reitero em tom ríspido, aflito para desviar
logo toda aquela atenção de mim.
De relance, vejo algumas pessoas cochicharem. Sussurros e
risadas se elevam pelas costas do professor, certamente a respeito do
bolsista que acabou de dormir em uma das aulas mais importantes do
semestre. Duas fileiras à minha esquerda, Matt tem uma expressão
sombria, quase irritada, no rosto.
— Tudo bem... — Duarte responde. Ele leva um segundo a mais
do que o necessário para virar de costas e caminhar de volta até o quadro
digital na frente da sala. Quando chega lá, seu olhar cruza com o meu
brevemente. O sinal toca. As aulas da manhã finalmente acabaram. —
Nessa nota, estão todos dispensados para o memorial em homenagem a
Alexis. Se lembrem da atividade para a semana que vem, que contará
50% da nota final de vocês. Espero que já tenham decidido suas duplas.
Sequer penso muito sobre isso. Jogo o tablet de qualquer jeito de
volta na mochila e levanto da cadeira. Ao redor, todos fazem o mesmo,
embora com menos afinco. Ninguém está animado para dar adeus a
Alexis naquele memorial.
Eu certamente não estava.
Matty não olha pra mim ao sair da sala acompanhado por
Bárbara, a namorada de fachada que encontrou depois que E.V. começou
a nos aterrorizar. Formavam um belo casal: feliz e falso. O pensamento
me enfurece.
Passo pela mesa de Duarte sem me dar conta de que ele está ali.
Pelo menos até sua voz se erguer:
— Tom? — Interrompo meus passos imediatamente. — Pode
ficar comigo um pouquinho?
Isso é um pedido ou uma ordem implícita?
— Por quê? — questiono enquanto a sala se esvazia. Alguns
segundos depois, sou o único aluno restante.
— Precisa perguntar? — sua boca se contrai. Reviro os olhos e
ele aponta a cadeira mais próxima. Sentindo o peso do sermão de longe,
sento nela e abandono a mochila no chão. — Dormindo na aula,
Tommy? Você nunca fez isso antes. — Seu tom é suave, mas severo, o
que não combina em nada com seu rosto quase adolescente.
Woody Duarte é o professor mais jovem de Eastview. Às vezes, é
difícil acreditar que ele tem mesmo vinte e cinco anos. O brinco
prateado na orelha e as tatuagens que cobrem os braços, o peito e parte
do pescoço certamente não ajudam.
Desvio o olhar para uma das janelas da sala e aprecio a vista do
terceiro andar do prédio enquanto minha mente rumina. Como aquilo
aconteceu? Como consegui o feito de dormir na aula do único professor
que realmente me fazia querer ficar acordado? Biologia era um porre.
Mas biologia com Woody Duarte era tolerável.
— Eu sei, prof. Duarte — murmuro envergonhado comigo
mesmo. — Sinto muito.
— Não se preocupe comigo, Tom — responde. Sem pressa, volto
a encarar seus olhos. A voz dele é profunda e quase rouca, possui um
magnetismo que me atrai sem que eu pense no que estou fazendo. —
Preocupe-se consigo mesmo — completa. — Se Wolmer souber disso,
sua bolsa estará em risco.
Aceno sutilmente. Sei da lista quase infindável de regras, termos
e condutas que vêm com a minha bolsa. Dormir em aula é uma infração
grave. Mordo o lábio inferior. Olho para baixo, sem conseguir sustentar
o brilho sábio e empático dos olhos dele por muito tempo.
— Você vai contar? — sussurro.
Ele suspira.
— Eu deveria. — Se recosta na cadeira, o peito aberto sob a
camisa social branca e fina, as tatuagens ainda mais proeminentes, o
olhar preso em mim. Seus dedos brincam com a caneta prateada que
apenas os professores de Eastview possuem. — Mas não vou —
responde depois de um tempo em silêncio —, se você me contar o que
está acontecendo. — Se inclina sobre a mesa em minha direção,
entrelaçando os dedos. — Por que a mudança súbita de comportamento?
Aperto os lábios. Devo mentir pra ele?
Woody é uma das poucas pessoas em que confio nessa escola.
Com certeza, o único professor em que confio. Será que ele poderia me
ajudar? Poderia ajudar Matt e eu a nos livrarmos de E.V? Será que
alguém sequer poderia ajudar?
Droga.
— É a morte de Alexis — é tudo o que encontro coragem para
confessar.
— Desconfiei disso — ele diz com uma expressão triste. — Ver
um colega de classe se machucar desse jeito não deve ser fácil. Essa
situação não está sendo fácil... — pausa por um momento, os olhos
miram a caneta em sua mão — pra ninguém. — Sua mandíbula se
retesa. Alexis era seu aluno afinal de contas. A morte dele deve ser tão
perturbadora pra Woody quanto pra mim, fora o psicopata me
chantageando. — Mas você, em particular — a tristeza se afasta de seu
rosto —, precisa se desvencilhar da dor e do estresse, Tommy, antes que
seu comportamento acabe levando-o pra um caminho sem volta.
Fico em silêncio. Não tenho o que responder, ele está certo. Mas
lidar com toda essa merda está sendo mais difícil do que imaginei. Só
quero que acabe logo, que eu possa voltar à minha vida ordinária e
invisível.
— Acha que precisa de ajuda psicológica? — pergunta.
— Não preciso da porra de um psicólogo — a resposta sai mais
áspera do que deveria. — Perdão. Perdão. — Inspiro fundo. Apanho
minha mochila do chão. Levanto da cadeira. — Prof. Duarte, muito
obrigado por não contar nada disso a Wolmer, e por tentar ajudar. Mas
acho que um psicólogo não pode fazer alguma coisa para o meu caso.
Acho — me interrompo por um segundo, as palavras parecem cacos de
vidro na minha garganta — que ninguém pode.
Me dar conta disso me deixa ainda mais frustrado.
Woody também levanta de sua cadeira, dá a volta na mesa, e se
aproxima de mim. Dou um passo para trás, incerto do que ele quer fazer,
mas relaxo quando suas mãos ajeitam o colarinho do meu blazer, que
provavelmente ficou fora do lugar durante meu cochilo vergonhoso. Em
seguida, ajeita o nó da minha gravata. Ele se concentra naquilo, os olhos
presos nos próprios dedos. Os vinte centímetros que tem a mais do que
eu me deixam incerto sobre para onde olhar. Devo erguer a nuca e
encarar seu rosto concentrado? Ou abaixá-la e encarar o peito tatuado
sob a camisa?
Merda.
Merda. Merda. Merda.
— Bem — ele murmura quando finaliza o trabalho com a gravata
e passa as mãos sobre os ombros do blazer, me livrando de alguns
amassados —, eu estou aqui, se precisar conversar sobre qualquer coisa.
— Suas mãos param em meus ombros. Nossos olhares se encontram por
um longo momento. Vários segundos. Um minuto. Alguns minutos. —
Qualquer coisa — reitera. Tudo o que consigo fazer é engolir em seco.
— Tudo bem? — Aceno. Suas mãos se desvencilham de mim. — Pode
ir — diz com um sorrisinho de canto no rosto.
Quando deixo a sala, tenho a impressão de que seu olhar
penetrante está cravado em minha nuca.
O memorial é a estátua do rei de um tabuleiro de xadrez
colocada no centro do pátio interno do segundo andar do prédio. Há
uma foto de Alexis no topo, vários de seus pertences escolares ao redor
e sobre a estátua, velas acesas no chão e um sentimento onipresente de
devastação.
No dia anterior, o diretor Wolmer pediu para que cada um de nós
escolhesse um objeto que nos lembrava do garoto e o colocasse na
estátua hoje. Agora, estou na fila para entregar o meu. É simples: o
tabuleiro de madeira em que Alexis me ensinou a jogar xadrez. Eu não
era parte do clube — não era parte de clube algum —, mas ele foi gentil
comigo naquele dia. Me ensinou truques e jogadas infalíveis.
Eu entendia por que ele era tão popular, por que todos o
adoravam. Mas isso só deixava tudo ainda mais confuso. Por que
alguém o mataria na escola? Por que alguém faria seu assassinato
parecer um suicídio? Que merda toda era aquela? E por que eu tinha que
estar no meio dela?
Na fila ao meu lado, Matt está com seu círculo de amigos,
incluindo Bárbara, que aparentemente não consegue desgrudar dele por
um instante sequer. Será que ele também se sente atordoado como eu?
Será que também se sente culpado pela morte de Alexis? Que merda
acha sobre este memorial estúpido?
Não sei. Não sei nada do que passa pela cabeça dele porque faz
uma semana desde que nos falamos pela última vez. Uma maldita
semana. Matt deve achar que se esquecer de mim é o mesmo que se
esquecer do que aconteceu naquela noite. Não é ele que está recebendo
as mensagens de E.V. de qualquer forma.
Chega a minha vez na fila. Deixo o pequeno tabuleiro aos pés da
estátua de pouco mais de um metro de altura. Encaro o rosto sorridente
de Alexis na foto, então começo a ofegar. Dou meia-volta e me encosto
em uma parede qualquer, tentando controlar minha respiração.
Quando por fim consigo me recompor, vejo Matt saindo da fila e
correndo em direção ao banheiro do pátio.
É a minha chance de falar com ele.
Me aproximo do banheiro com passos apressados, tentando não
parecer suspeito. Entro no banheiro. É o mais largo de toda a escola,
então conseguiríamos conversar sem muitos problemas.
Matt está usando um mictório na parte mais distante do banheiro.
Caminho até ele.
— Posso falar com você? — pergunto quando alcanço o mictório
à direita do seu.
— Sobre...? — ele rebate sem sequer me olhar diretamente.
Engulo em seco, tentando suprimir minha irritação. Esfrego a
boca com a mão. Penso um pouco. Para não parecer suspeito, resolvo
usar o mictório ao lado dele. Abro o zíper, encaro a parede de azulejos
brancos à minha frente.
— Sabe de qual assunto quero falar — sussurro.
Ele fica em silêncio enquanto o ouço esvaziar completamente a
bexiga, então me lança um brevíssimo olhar de relance.
— Recebeu alguma mensagem nova? — questiona ríspido.
— Não.
— Então esse assunto tá morto — diz com a voz grave e
impaciente.
Um calafrio atravessa minha espinha com aquelas palavras.
Matt fecha seu zíper e se aproxima das pias próximas à saída do
banheiro. Faço o mesmo.
— Escuta — falo, observando seu reflexo pelo espelho em frente
às pias —, talvez a gente não devesse ficar calado.
Ele lava as mãos em silêncio, depois as enxuga com um jato de ar
quente, também em silêncio. Quando finalmente me encara e responde,
seu rosto não parece mais o mesmo. Ele não parece mais o garoto por
quem me apaixonei:
— Me deixa em paz, Tommy.
Matt me dá as costas, sai do banheiro e me deixa sozinho ali para
lidar com os demônios e com o psicopata que deveríamos enfrentar
juntos. Não é como se só eu estivesse presente na noite em que Alexis
morreu; não é como se eu devesse suportar tudo aquilo sem ajuda, sem
ninguém a quem recorrer.
E eu já faço demais para manter porra do segredo dele a salvo.
Então, definitivamente enfurecido, saio do banheiro atrás dele,
pisando forte no chão. Seguro a alça da mochila no meu ombro com
força e o alcanço rapidamente. Viro seu ombro para que me encare.
— Podemos de alguma forma contar à polícia que não foi um
suicídio — sussurro o mais baixo que consigo. As pessoas ao redor não
parecem se importar, estão imersas em seus próprios lamentos e
murmúrios perdidos. — Sem que esse psicopata descubra que fomos
nós.
— Cala a boca, Tommy. — Ele olha ao redor freneticamente, se
certificando de que ninguém nos ouve. Me empurra até a parede mais
próxima, nos afastando do centro do pátio onde todos estão
aglomerados.
— Me escuta, Matt! — grito baixo, com a mandíbula tensa, e
espalmo as mãos em seu peito, afastando-o de mim. Ele dá alguns
passos para trás, e, pela primeira vez, parece interessado no que tenho a
dizer. Passeio os dedos pelos fios do meu cabelo, arrumando-os, e
continuo: — Temos que fazer esse assassino ser punido, somos as únicas
pessoas que sabem que ele existe. Se deixarmos ele nos chantagear
desse jeito—
— Matty — Bárbara diz em sua voz melódica e insinuante —,
quem é esse seu amigo novo? — Ela se aproxima de nós, cercada pelo
grupo de amigos de Matt.
Ele dá mais alguns passos pra trás.
— Ninguém, Babi — esfrega o rosto e me olha com o semblante
irritado.
A garota pega em sua mão e começa a puxá-lo para longe. Ele se
vira de costas para mim mais uma vez.
— Matt! — grito e puxo seu ombro em minha direção outra vez.
Sua mão se solta da de Bárbara, e Matty não perde um segundo
sequer. A mão que acabou de ficar livre se aproxima do meu rosto em
um punho fechado e acerta meu nariz em cheio. Sinto o impacto antes
da dor, e sou jogado para trás. Caio. Meu rosto encontra a superfície fria
do chão.
Meu coração para por um segundo. Como esse desgraçado teve a
coragem de fazer isso?
Pasmo, me ergo do chão com o apoio dos cotovelos e vejo meu
sangue rubro manchando a superfície branca. Fico nauseado. Toco meu
nariz: está dolorido, mas não quebrado. Semicerro os dentes e
impulsiono meu punho para cima, devolvendo o soco na mandíbula de
Matt. Ele não tem tempo de reagir ou de se defender, mas não cai no
chão. Naquele ponto, todas as pessoas do pátio já estão nos encarando;
se aproximam e formam um círculo ao nosso redor.
Com a nuca curvada para baixo, Matt cospe sangue no chão e
limpa a boca com a manga do próprio uniforme. De um instante para o
outro, parte pra cima de mim, o rosto contorcido em fúria e um grunhido
feroz na garganta.
Me empurra bruscamente contra a parede. Uma de suas mãos
aperta meu peito e me prende contra ela. Vejo seu punho livre se
aproximando milissegundos antes de me acertar mais uma vez. Consigo
desviar para o lado, e os nós de seus dedos encontram a superfície dura
da parede em cheio. Como que por reflexo, chuto suas bolas. Ele grita
de dor. Consigo me desvencilhar da mão que me prende e me afastar.
Estou enfurecido, mas também devastado. Olho a expressão de
dor de Matt e meu estômago se revira. Ele tenta avançar contra mim
outra vez, mas os amigos o impedem; agarram seus braços, seu peito e
puxam-no para trás.
Nos fitamos de forma voraz, meu peito sobe e desce rapidamente.
Penso em atacá-lo, mas a coragem já me deixou. Não quero machucá-lo.
Nunca quis. Tudo o que quero é conversar e arranjar uma maldita forma
de resolvermos essa merda toda, mas claramente não escolhi o melhor
momento para tentar fazê-lo.
Limpo o novo filete de sangue que escorre do meu nariz e viro
para trás na intenção de deixar o pátio.
— O que está acontecendo aqui? — Duarte entra no meu campo
de visão, seu olhar é confuso e decepcionado.
N afundo
sala de Wolmer, mantenho um pedaço de algodão enfiado no
de uma das narinas pra conter o sangramento causado pelo
punho de Matt. Ele faz o mesmo e, agressivamente, evitamos o olhar um
do outro.
— Alguém se importa em me dizer sobre o que isso se trata? — o
diretor pergunta, a voz impaciente. Olha ora pra mim, ora pro jogador de
basquete ao meu lado.
Wolmer está sentado em sua cadeira na posição costumeira.
Woody está ao seu lado, as mãos nos bolsos da calça escura e o olhar
decepcionado voltado direta e unicamente a mim. Ele me acanha, e me
deixa ainda mais inseguro do que eu deveria estar em uma situação
como esta: criada por Matt.
— Alguém aqui tem problemas pra controlar a raiva —
praticamente rosno quando me dou conta da cena que ele criou sem
motivo algum.
A tensão entre nós dois se acentua, e vejo de relance Matt virar o
rosto em minha direção.
— Pelo menos esse é o meu único problema — resmunga.
Cerro os dentes. Que porra ele quer dizer com isso?
Também viro o rosto em sua direção. Sinto meu sangue
borbulhar.
— Garotos... — Wolmer cicia, atraindo nossas atenções e
apaziguando o conflito que estava prestes a explodir. Ele suspira. — Sei
que esse é um momento estressante para todos, mas comportamentos
como estes são intoleráveis. — Woody concorda sutilmente, e volto a
ficar acanhado. — Não somos um colégio para animais. Eastview e tudo
o que representa merece mais do que dois adolescentes inconsequentes
levando suas diferenças para os corredores. — Embora esteja nos dando
uma bronca, Wolmer tem um tom mais brando do que o usual. A morte
de Alexis também parece tê-lo afetado. Engulo em seco. Mais uma
pessoa vítima dessa mentira maldita. — Terei uma conversa seríssima
com os pais de ambos.
Matt retira o algodão do nariz e o joga na lixeira ao lado da mesa
de Wolmer com desdém.
— Ótimo. — Ele levanta da cadeira. — Podemos ir agora? Tenho
treino em alguns minutos.
— Sente-se, Armani — Woody ordena entredentes.
Nunca o vi desse jeito antes, e acho que Matt também não, pois
retorna ao assento imediatamente. Mordo o lábio inferior. Por algum
motivo, minha timidez vai embora nesse instante. Observo seu corpo
entre a penumbra e os feixes de luz do sol que entram na sala pelas
janelas fenestradas.
— Se qualquer coisa do tipo voltar a se repetir... — a voz de
Wolmer atrai minha atenção outra vez, seu olhar é direcionado a Matt
—, pode dizer adeus às finais do Campeonato Interestadual semana que
vem.
Arregalo os olhos e consigo prever a ira de Matt antes de ele
dizer em uma voz alterada:
— Você não pode fazer isso!
— Não? — Wolmer rebate imediatamente — Por quê?
— Sou o melhor jogador do time. — Ele fica tão desesperado que
até me direciona um breve olhar de indignação. — Me suspender seria o
mesmo que entregar a vitória aos canalhas de Westview.
— Tome cuidado com a linguagem, Armani — Wolmer
repreende. Matt morde o próprio lábio com força, e bufa. — Você será
suspenso dos jogos e das aulas caso volte a se meter em confusão,
especialmente em um momento tão delicado e difícil como o que
estamos enfrentando.
— Isso é um absurdo.
— Eu decido o que é absurdo ou não nessa situação! — O tom do
diretor é severo agora, mais próximo do usual. Matt inspira fundo, mas
fica calado. Não posso negar que aquilo me deu algum conforto. Ao
menos Matt não ficaria impune por ter começado aquela merda toda. —
E você, Tom... — Meu coração acelera quando seu foco muda para mim.
— Preciso dizer o quão decepcionado estou? — Afundo na cadeira. —
Não esperamos nada além de excelência dos nossos alunos bolsistas.
Vocês são escolhidos por motivos bem específicos em um processo
árduo e complexo... — Suspira e troca um olhar com Woody. — Mas
talvez tenhamos cometido um erro com você.
Quando entendo o que ele quer dizer, me desespero.
— Não, por favor... — tento suplicar, mas as palavras me faltam.
Olho para Woody em busca de alguma proteção, mas tudo o que
ele faz é contrair a boca. Estou perdido.
— Bolsistas já foram expulsos por muito menos, Tom — o
diretor diz, colocando o último prego no meu caixão. Começo a pensar
em como vou explicar a Edgar e Laura que fui expulso de Eastview, em
como seu filho adotivo é um completo fracasso. Meus olhos começam a
arder quando Wolmer continua: — Mas levando em consideração o
momento difícil que estamos vivendo — paro de respirar —, vou lhe dar
uma segunda chance. Uma segunda e última chance. Se sair da linha
outra vez, será caso encerrado.
Merda.
— Muito, muito obrigado! — Curvo a nuca para baixo, sentindo
uma descarga de alívio percorrer minhas costas.
De relance, vejo a expressão preocupada no rosto de Matt. A
noção de que quase perdi minha bolsa por culpa dele parece fazê-lo se
dar conta de toda a merda que está fazendo.
— Vocês dois ganharam uma segunda chance — Wolmer
prossegue. — Não a desperdicem. — Se recosta na cadeira.
— Estão dispensados — Woody diz, e nos acompanha até a
porta.
S aio da sala de Wolmer querendo fugir da escola, do
bairro, do planeta. Já não basta chegar tão perto de perder minha
bolsa, agora tenho que lidar com Bárbara se atirando nos braços de Matt,
que saiu da sala logo depois de mim.
— Como foi? — ela pergunta enquanto segura o rosto dele rente
ao seu. Sinto vontade de vomitar.
O restante do time de basquete está ali para recepcioná-lo
também.
— Só o Wolmer tendo mais um de seus chiliques — Matt
responde.
Bárbara o beija, e, logo depois, um de seus amigos envolve seu
ombro com um dos braços, arrastando-o para longe.
— Vem, vamos pro treino.
Matt vai embora sem me lançar um olhar de relance sequer. Sou
muito, muito estúpido mesmo. Caminho furioso para longe da sala de
Wolmer. Cruzo um corredor, então dou de cara com Edgar em seu
uniforme de policial investigativo.
— Tomas? — Ele toca meus ombros depois do susto. Me
sobressalto. Ótimo. — Vim assim que pude, o que aconteceu com...
— Não quero falar sobre isso. — Me desvencilho de seu toque.
Não estou com paciência ou ânimo pra conversar com ele neste instante.
— Vou esperar no carro — digo, já caminhando pra longe.
N ofachada
assento do passageiro do carro de Edgar, observo a
de Eastview enquanto os alunos saem da escola. Ganhamos
a tarde livre depois do memorial; talvez a morte de Alexis tenha servido
para algo além de me traumatizar para a vida inteira, afinal de contas.
Mas não consigo parar de pensar: como Matt pode ser tão
babaca? Como pôde agir daquela forma depois de dizer que me ama?
Ele me ama mesmo? Ou só falou aquilo pra me convencer a ficar
calado?
A esse ponto, não duvido mais de nada. Só quero tirar tudo isso
da cabeça, esquecer de alguma forma da merda em que me enfiei. Só
quero um maldito momento de paz.
Inspiro fundo. Lágrimas ardem em meus olhos. Esfrego-os,
consigo contê-las; a última coisa de que preciso é Edgar me ver
chorando. Ele já está na reunião com Wolmer há meia hora. Por quanto
mais isso vai durar?
Engulo minhas mágoas e apanho o celular. Talvez tenha algo no
YouTube que possa me distrair, nem que seja por alguns minutos.
Desbloqueio a tela. A primeira coisa que vejo é uma nova mensagem.
Leio a prévia.

Ah, não. Não. Não. Não. Não essa merda de novo.


Atiro o celular no painel do carro por impulso e desvio o olhar
janela a fora. Meu coração acelera, estou ansioso. Tenho que lutar ainda
mais para conter as lágrimas desta vez. Por que não posso simplesmente
dizer tudo a Edgar? Por que me forço a continuar nessa tortura por Matt?
Por que o assassino manda mensagens para o meu número? Por que eu?
Me concentro na minha respiração. Tento me acalmar.
Apanho o celular outra vez depois de alguns minutos. Sinto o
vidro frio nos meus dedos como algo que pode me machucar se eu fizer
algum movimento errado. Desbloqueio a tela e então abro a maldita
mensagem.
Cubro a boca com uma das mãos.
Meu primeiro impulso é bloquear o número, mas percebo que há
algo além da mensagem de texto desta vez. Há três fotos anexas.
Começo a ofegar de novo.
Clico na primeira.
Fico boquiaberto.
Clico na segunda.
Meu coração para.
Clico na terceira.
Desvio o olhar da tela para o prédio de Eastview completamente
aterrorizado. Quero correr deste carro, ir direto a Edgar e contar sobre
essa merda toda, mas não consigo me mover.
As fotos são minhas. Ou melhor, minhas e de Matt transando.
Parece que foram tiradas há algumas semanas, muito antes da noite da
morte de Alexis. Meu estômago se revira. Provavelmente vomitaria se
tivesse comido qualquer coisa depois do café da manhã.
Encaro as fotos sem reação.
Essa pessoa não começou a nos chantagear simplesmente porque
presenciamos a morte de Alexis, a maldita já nos stalkeia há muito
tempo. E se... e se... nós também estivermos na sua lista de assassinatos?
Preciso falar com Matt sobre isso. Urgentemente.
Encaminho a mensagem e as fotos para ele.
Encaro a tela do celular com nervosismo imaginando que, se ele
me ignorar outra vez, significa que estou mesmo fodido e sozinho.
Mas, depois de alguns segundos, ele responde:
Edgar abre a porta do lado do motorista assim que envio a
localização. Ele senta no banco e deixa a porta aberta, tem o olhar
perdido à frente. Suspira profundamente antes de comentar:
— Uma briga com um jogador de basquete?
Suas sobrancelhas estão erguidas, ele tem um brilho de
preocupação no olhar.
— Sinto muito, Edgar. Eu juro que não... — falo baixinho — não
foi minha intenção...
— Ei, não há com o que se preocupar — ele se apressa em dizer.
Fecha a porta do seu lado e toca em um dos meus ombros. — Também
tive minha própria parcela de brigas quando estava no ensino médio. —
Afasta a mão e pondera por um momento. — A maioria por garotas —
diz de forma descontraída. Mal consigo me concentrar em suas palavras.
Tudo em que consigo pensar é Matt e nosso encontro daqui a pouco.
Diante do meu silêncio, ele pergunta em um tom desconfiado: — Isso é
sobre aquela garota que discutimos na semana passada?
Pisco rapidamente. A conversa que tivemos no carro a caminho
de Eastview na manhã em que o corpo de Alexis foi descoberto me vem
à mente. Acabo rindo da ingenuidade dele.
— Quem me dera... — murmuro. A minha garota era Mateus
Armani, e tinha dúvidas se eu era o garoto dele. — Escuta — passo o
cinto de segurança sobre o peito —, tenho que encontrar alguém daqui a
pouco...
Ele coloca a chave na ignição.
— Posso te levar até lá.
Abro um sorrisinho de canto.
— Obrigado.
Edgar manobra o carro para deixar o estacionamento de
Eastview.
— Vai encontrar quem? — pergunta casualmente.
Engulo em seco. Por um segundo, considero contar a verdade
para ele. Mas dou valor às minhas promessas, e prometi a Matt que não
contaria sobre nós a ninguém. Quando se cresce em lares adotivos, suas
promessas são tudo em que você pode confiar.
— Um... amigo — murmuro, ao menos não é mentira. — É pra
esse projeto estúpido de biologia.
Edgar acena, se dando por convencido.
Viro o rosto em direção à janela no segundo em que passamos em
frente à entrada de Eastview, e algo faz meu coração acelerar. É Fabian
Obalhe, melhor amigo de Alexis...
E ele veste um sobretudo escuro idêntico ao do assassino.
O bservo as águas do canal correrem calmamente no
limite de Eastview. Ao longe e um pouco acima, está uma das
pontes que conectam o bairro ao resto da cidade. Aqui de baixo,
protegido pelas árvores do bosque e em completo silêncio, sei que estou
seguro. Ninguém sabe deste local, ou, se sabe, não desafiria a cruzá-lo.
Não há motivo para fazê-lo de qualquer forma. Eu mesmo só venho aqui
quando preciso muito me afastar de tudo e todos. O que, ultimamente,
acontece com muita frequência.
Ouço galhos se quebrarem atrás de mim e alguém se aproximar.
Não preciso me virar para saber quem é.
— Que lugar é esse? — Matt pergunta, se apoiando em uma
árvore para pular sobre um tronco grande e apodrecido no chão.
Fito ele sobre meu ombro.
— É afastado e isolado o suficiente. O assassino não vai nos
encontrar aqui.
Ele dá mais alguns passos em minha direção, a mochila marrom
sobre os ombros, a corrente de prata que usa no pescoço reluzindo diante
das águas do canal, o semblante inquieto.
— E como você sabe como chegar aqui?
— Eu... — Me viro em sua direção. Ele se aproxima mais,
ficamos lado a lado. — Eu venho aqui quando preciso... — encaro o
chão — ficar sozinho por um tempo.
Ele acena sutilmente e olha ao redor. Se aproxima da extremidade
do canal, se dá conta da profundidade da água e então dá um passo pra
trás.
— Você apagou aquelas fotos? — pergunta.
— Sim, mas isso não é importante, Matt.
— Como assim não é importante? — Seu cenho se franze, a voz
soa desconfiada. Ele estende uma das mãos. — Me mostra seu celular.
— O quê?
— Me mostra seu celular. Preciso saber se você as deletou
mesmo.
Minha mente dá voltas e voltas até compreender que ele está
mesmo me pedindo este absurdo. Inclino o pescoço para o lado, sentindo
meu sangue correr mais rápido.
— Não vou te dar o meu celular.
Ele suspira e abaixa a mão. Recosta-se sobre uma árvore próxima
e encara os próprios sapatos. Nego com a cabeça e tento afastar minha
frustração.
— Escuta... — digo em um tom mais calmo —, acho que sei
quem é o assassino.
— O quê?
— É Fabian — respondo firme e convicto.
Matt distancia o olhar, provavelmente tentando se lembrar de
quem estou falando.
— Fabian? — repete. — O melhor amigo de Alexis?
— Sim. — Aperto com mais força a alça da mochila em minhas
costas.
— Ficou louco? — rebate com um sorriso cínico.
Reviro os olhos.
— Eu vi ele usando um sobretudo idêntico ao do assassino há
alguns minutos na saída da escola.
— E? — Arqueia as sobrancelhas e faz um gesto de confusão
com as mãos. — Ele pode ter comprado na mesma loja ou alguma porra
dessa.
— Acha mesmo que é coincidência que Fabian, o melhor amigo
do garoto que vimos ser assassinado, tem o mesmo sobretudo que o
assassino que está nos perseguindo? — A expressão cínica se esvai de
seu rosto. Semicerro os olhos em sua direção. — Você é tão estúpido,
Matt?
Ele se recosta mais contra a árvore, o olhar perdido em algum
lugar entre o canal e a ponte atrás de mim.
— Talvez não seja uma coincidência — diz —, mas não significa
que ele matou Alexis, Tommy. — Nega com a cabeça. — Não significa
nada.
— Mas já é a droga de um começo — falo, perdendo a paciência.
— Deveríamos ir à polícia nesse exato momento e contar tudo.
— Isso de novo? — rebate, e sinto um fundo de cansaço em sua
voz.
Me aproximo mais dele, o suficiente para sussurrar:
— Você ainda tem a foto que tirou naquela noite, não tem? Deve
ser prova suficiente pra confirmar nosso lado da história. — Matt morde
o lábio inferior e evita meu olhar. — O que foi?
Matt curva a nuca um pouco mais para baixo e esfrega os lábios
com a mão. É como se pensasse cuidadosamente em como falar de
alguma coisa.
Nas minhas entranhas, sei que isso não pode ser algo bom.
— A foto... — murmura, e finalmente me fita. — Eu apaguei.
Sinto algo dentro de mim queimar em fúria.
— Mas que porra?
— Você leu a primeira mensagem, Tommy — se apressa em
explicar. — Ele mandou que fizéssemos isso.
— E você fez? — rebato, minha mandíbula tensa. Empurro seus
ombros contra a árvore em um golpe sutil. — Acabou com a única
maldita prova que tínhamos de que esse psicopata matou Alexis?
— É a coisa certa a se fazer.
— A coisa certa? — Me afasto. Encaro as correntes do canal
tentando conter o sentimento de desespero que me assola por dentro. —
Que porra tá passando na sua cabeça, Matt? — Encaro-o de relance. —
Quando você se tornou um covarde tão grande?
Ele deixa a árvore e se aproxima de mim, o semblante atordoado.
— Não temos escolha.
E isso, essa expressão atordoada em seu rosto, esse ar de
desespero, me faz voltar atrás da minha própria palavra, me faz crer que
talvez não valha a pena ser torturado dessa forma por causa de Matt.
— Ah, temos sim — rebato firme. — E vou escolher neste
segundo.
Caminho para longe da extremidade do canal, em direção ao
interior do bosque.
— Pra onde está indo? — pergunta quando passo por ele.
— Pra polícia — respondo sem olhar pra trás. — Vou acabar com
essa loucura agora, contar tudo a Edgar.
— Você não pode — ouço o desespero ganhar sua voz.
— Isso é o que veremos.
Afasto um galho do caminho. Logo depois, sinto Matt puxar meu
braço para trás. Ele me pressiona contra a árvore em que estava
recostado até então. Minhas costas doem com o impacto. Agarro seu
punho para tentar afastá-lo, mas quando olho no fundo de suas íris,
perco as forças.
— Tommy, você prometeu que não ia contar.
Há lágrimas nos seus olhos. Lágrimas de desespero.
Engulo em seco. Meus próprios olhos começam a arder. Droga.
— Não, não, não, não. — Nego com a cabeça veementemente. —
Nós deveríamos ter contado tudo na noite que essa merda aconteceu,
não deveríamos ter ficado com o rabo entre as pernas desse jeito, Matt!
Eu não posso — balbucio, perdendo a fúria que me impulsionou até
agora —, não posso mais...
Fecho os olhos, mas não largo o punho dele. Sua mão livre se
fecha atrás da minha nuca, sinto nossas testas se tocarem.
— O quê? — ele sussurra.
— Eu... — tento explicar, mas minha voz falha por conta dos
suspiros trazidos pelas lágrimas. — Eu... não consigo parar de pensar...
— agarro a mão dele que me pressiona contra a árvore, entrelaço nossos
dedos — que a morte de Alexis vai ficar sem resolução por nossa causa,
que esse psicopata vai continuar impune.
Abro os olhos. Minhas bochechas são umedecidas com as
lágrimas silenciosas. Encaro Matt de perto. Ele também está chorando.
— Eu sei. Eu também... — pausa por alguns segundos. —
Também me sinto um merda por fazer isso.
Mordo a língua com força para tentar conter as lágrimas. Olho
para o céu. Matt deixa de me pressionar contra a árvore. Em vez disso,
seus braços envolvem minhas costas sobre a mochila em um abraço
apertado e reconfortante. Descanso a cabeça no vão de seu pescoço. Ele
descansa uma das mãos na parte de trás da minha cabeça. Em seus
braços, me sinto mais dele. Subestimei o quanto senti sua falta, o quanto
preciso do seu calor e do seu toque. Respiramos fundo, juntos, até as
lágrimas restantes nos deixarem.
— Mas uma hora ele vai ser pego, Tommy. Uma hora a polícia
vai achar alguma coisa que indique que Alexis não se suicidou — ele
sussurra contra meu pescoço. Aperto Matt com ainda mais força. — Isso
sempre acontece nos filmes, séries. Você não pode matar alguém e ficar
livre pelo resto da vida. Só precisamos relaxar, tudo bem? Relaxar e
esperar até que isso aconteça. — Assinto contra seu pescoço. — Eu
prometo que vai melhorar. Prometo que em breve esse peso vai ficar
menor.
Fico em silêncio. Não quero falar nada. Quero apenas aproveitar
esse momento enquanto posso, pois sei que não vai durar muito, nem
terei outro como esse tão cedo. Me sinto mal por ter pensado em quebrar
a promessa que fiz a Matt. Me sinto mal por toda essa situação.
Mas quando a imagem de Fabian vestido com o mesmo
sobretudo que o assassino vestia retorna à minha mente, sei que não
posso deixar meus sentimentos tomarem o melhor de mim. Então nos
afasto gentilmente.
— Mas e se não ficar? — pergunto contra o rosto dele, tão
próximo do meu que consigo sentir cada respiração quente e pesada.
Ele me encara e, sutilmente, nega com a cabeça apenas uma vez.
Ele não tem uma resposta. Eu também não tenho. Tudo o que temos é a
nós mesmos.
Matt aproxima nossos lábios e os sela suavemente. Dou um passo
para trás, sentindo o peso do peito dele sobre o meu. Ele me encurrala
contra a árvore novamente, mas, desta vez, eu coopero. Minha mão
desce de seu pescoço até o peitoral definido, até o abdome e então à
cintura. Afasto nossos lábios por apenas alguns centímetros.
— Mas precisamos descobrir quem é essa pessoa, Matty —
sussurro. Ele geme quando minha mão toca o volume em sua calça. —
Precisamos estar um passo à frente dela. Não temos ideia do que ela
pode ou não revelar sobre nós, ou do motivo por trás da morte de Alexis.
— Tem razão — ele geme contra meu ouvido. Sua mão também
se aproxima do zíper da minha calça. — Mas temos que ter cuidado
nisso. Realmente acha que pode ter sido Fabian?
Encosto os lábios nos seus novamente e, às cegas, abro o zíper de
sua calça, e ele o da minha. Tateio sua cueca delicadamente, e fecho a
mão ao redor do seu pau ao mesmo tempo em que ele o faz com o meu.
— Acho que pode ter sido qualquer um — falo entre dois
gemidos curtos. Agarro os fios de sua nuca com a mão livre, e beijo seu
pescoço. — Mas, sim. É um bom começo. Tenho uma ideia pra
descobrir se ele teve mesmo envolvimento na morte de Alexis ou não.
Ele pressiona a cintura contra a minha.
— Qual? — grunhe.
— Acho que você não vai gostar...
D epois de deixamos o bosque no limite de Eastview, Matt
nos levou em sua moto até próximo da casa de Fabian. Ficamos à
espreita por algumas horas, esperando o momento certo de invadi-la.
Vimos o garoto chegar com os pais, vestindo o sobretudo do assassino, e
sair novamente com eles alguns minutos depois, sem a peça de roupa.
Agora já é quase noite, e não sabemos por quanto tempo eles vão
ficar fora. Ainda assim, precisamos nos apressar: prometi a Edgar que
voltaria antes do jantar.
Depois de vermos que não havia mais ninguém na rua,
caminhamos até a porta de entrada da casa de Fabian sem fazer alarde.
Está destrancada, entramos logo em seguida. Nenhuma das casas em
Eastview possui sistema de segurança, não era necessário ter isso por
aqui — até agora.
Caminho cuidadosamente pelos corredores brancos da casa,
atento a qualquer som, a qualquer coisa fora do lugar. Matt está logo
atrás de mim. Se Fabian for mesmo o assassino, então deve haver
alguma coisa — qualquer coisa — aqui que o denuncie.
Procuramos na sala de estar, na cozinha, na sala de jantar e no
quintal. Nada suspeito. Olho para as escadas que levam ao segundo
andar e me dou conta de que deveríamos ter nos concentrado em um
cômodo específico naquele tempo todo: o quarto dele.
Chamo Matt com um gesto e subo os degraus silenciosamente; a
escada é revestida por uma tapeçaria vinho. Quanto mais me aproximo
do segundo andar, mais certo estou de que há algo macabro ali.
No corredor do andar de cima, giro a maçaneta da primeira porta
após a escada; dou uma olhada breve no interior do cômodo antes de
entrar. É o quarto de Fabian. Possui paredes azul-marinho, uma larga
janela fenestrada e móveis comuns. Uma cama. Um closet. Uma mesa
de estudos. Sua mochila está jogada em uma cadeira qualquer, e seu
uniforme está perdido em um sofá na parede mais afastada. Mas está
estranhamente frio, apesar do clima ameno de outono lá fora.
— Pelo que estamos procurando, exatamente? — Matt sussurra
depois de um tempo.
Me aproximo da mochila de Fabian e a vasculho.
— Por qualquer coisa que pareça suspeita — respondo sem
encará-lo.
— Eu tenho um canivete suíço no meu quarto, Tommy. Isso seria
suspeito pra você? — ele rebate em um tom cínico.
— Seu idiota — abandono a mochila e me volto a ele. —
Qualquer coisa que ligue ele ao assassinato — falo enquanto meus olhos
analisam todas as partes do quarto. — Luvas de couro. Um capuz
escuro. Algo assim.
Ele assente e senta na cadeira junto da mesa de estudos de
Fabian, logo liga o notebook que descansa sobre ela. Observo meu
reflexo no largo espelho diante da porta do closet. Deslizo-a para o lado
e encontro as roupas do garoto. Investigo cada cabide pendurado. Não
há muito especial ou extravagante: uma dúzia de blazers de Eastview,
gravatas vermelhas, algumas camisas polo. Então encontro o tecido
escuro que foi a razão de sequer considerarmos invadir sua casa.
— Matty? — Retiro o sobretudo do cabide.
Matt se afasta do notebook, e analisamos juntos o tecido escuro.
Possui botões grandes e também escuros. Bolsos largos e fundos. Uma
lapela que pode ser erguida para encobrir metade do rosto de quem a
usa. Matt também toca no tecido macio, mas que parece afiado como
uma lâmina.
— É o mesmo sobretudo — murmura boquiaberto. Meu coração
acelera, mas então para bruscamente quando ouço o barulho de uma
porta se abrindo no andar de baixo. — Merda.
Ele corre e fecha a porta do quarto, depois abaixa a tampa do
notebook. Devolvo o sobretudo ao cabide e fecho a porta do closet me
esforçando para não fazer barulho.
— ...eu sei, mas é tão difícil me concentrar em qualquer coisa
agora que...
É a voz de Fabian abafada pela porta. E tenho a impressão de
ouvir murmúrios de seus pais também. Porra. Encaro Matt, que parece
completamente desnorteado. Não há como sair daqui agora.
— Embaixo da cama! — ele grita sem voz, apontando para o vão
entre o esqueleto da cama e o chão.
Assinto rapidamente e me escondo ali. De relance, o vejo abrir a
porta do closet e se esconder em seu interior. Se Fabian retornou pra
buscar alguma peça de roupa, estamos fodidos.
Assim que a porta do closet se fecha, o antigo melhor amigo de
Alexis entra em seu quarto. Encubro minha boca com a mão, tentando
respirar devagar.
— Estive tentando manter a cabeça centrada em outras coisas.
Mas sempre que paro pra pensar, ou quando fecho os olhos... tudo no
que penso é ele, e tudo o que vejo é ele — ele fala em um tom
melancólico. Parece estar falando no telefone com alguém. Há um
minuto de silêncio, provavelmente a pessoa do outro lado está
respondendo. Fabian senta na cama. Fico completamente paralisado. —
E ele vai ser mesmo enterrado com o sobretudo que compramos um pro
outro. Como eu vou suportar isso? — Sua voz começa a falhar, e ele
suspira alto. Está chorando. — O sobretudo que usei hoje na escola —
me concentro na explicação —, que ele comprou pra mim. Eu comprei
um idêntico pra ele. Foi nosso presente um pro outro por uma década de
amizade. — Mais uma pausa. Ele grunhe, tentando controlar as
lágrimas, que devem ser muitas. — São parte de uma coleção exclusiva.
Só existem cinco como eles no mundo. E três deles estão aqui em
Eastview.
Meus ombros ficam tensos. Fitando a escuridão do chão sob a
cama, me dou conta do absurdo que foi achar que Fabian teria mesmo
assassinado Alexis daquela forma brutal. Talvez eu tivesse arrastado a
mim e a Matt para aquela merda inutilmente. Se Fabian nos descobrisse
ali, estaria tudo perdido. Não haveria mais como mentir. Fecho os olhos.
A voz do garoto se eleva no quarto depois de mais uma pausa:
— Conversar sobre roupas realmente me distrai facilmente.
Obrigado por estar aqui e por me ouvir, prof. Duarte. — Abro minhas
pálpebras outra vez e afasto a mão da boca. Woody estava confortando
Fabian. É claro que estava. E eu estava ali vasculhando suas coisas,
acusando-o de ser um assassino. — Eu vou, prometo. — Ele assoa o
nariz contra algum tipo de tecido.
Solto meu peso contra o chão, me sentindo um inútil e um merda.
Meu desejo é nunca levantar daqui.
— Fabian, desça logo, saímos em cinco minutos! — a mãe do
garoto grita do andar de baixo.
Ele assoa o nariz outra vez, então levanta da cama.
— Meus pais estão me chamando, preciso ir agora — diz a
Woody pelo telefone. — Obrigado de novo, por tudo.
Prendo a respiração enquanto ele dá alguns passos para longe da
cama, abre a porta e a fecha novamente. Suspiro aliviado, mas
permaneço deitado no chão até ouvir Matt deslizar a porta do closet e
sair dele. Ele se agacha no vão onde estou escondido e me encara por
um breve segundo. Estende uma mão para me ajudar a sair dali.
Não preciso disso realmente; ainda assim, me sinto reconfortado
com seu carinho. Apanho a mão dele e me arrasto para fora do vão.
Quando me ponho de pé, ele toca meus ombros e meu rosto brevemente,
se certificando de que estou bem.
— Essa passou perto — comenta baixinho.
— Pelo menos sabemos que ele não matou Alexis — meu tom é
frustrado.
Me desvencilho de seu toque e caminho até o closet outra vez.
Apanho o cabide do sobretudo, dando uma última olhada neste maldito
tecido.
— Duvido que Fabian possa machucar um inseto — Matt
sussurra. Cruza os braços sobre o peito quando percebe meu interesse
renovado no sobretudo. — Você o ouviu, tem três desses em Eastview.
Pondero sobre a conversa entre Fabian e Woody por um tempo.
— Um está com Fabian, um com Alexis, e o terceiro...
— Está com o assassino — Matt complementa.
Encaro os botões escuros da peça de roupa por mais alguns
segundos, várias ideias passam pela minha cabeça.
— Talvez consigamos descobrir quem o comprou — murmuro, e
viro o sobretudo do avesso. Encontro sua etiqueta perdida na parte
interna de um dos bolsos. Leio as recomendações de uso, o tamanho, até
chegar na parte mais importante, o nome da loja onde foi vendido: —
Cut&Scissors — um calafrio atravessa minhas costas. — Já ouviu falar
desse lugar?
— Não — ele responde sem emoção.
Tento forçar minha memória e me lembrar de alguma menção
àquela loja, mas nada me ocorre.
— O Google vai ser útil, então — murmuro por fim. Pego meu
celular do bolso e tiro uma foto da etiqueta. Devolvo o sobretudo ao
closet e o fecho.
Inspiro fundo. Pela janela fenestrada, vejo que o crepúsculo já
está praticamente inteiro sobre nós. Em breve, Edgar começará a se
preocupar.
— Ok, mas vamos sair daqui agora.
Deixamos o quarto frio estranhamente desconcertante de Fabian
para trás.
M atty me leva de volta para casa em sua moto, e eu me
agarro em sua cintura durante a viagem toda. Quando chegamos na
minha rua e ele desliga as engrenagens da moto, percebo que,
honestamente, eu não quero soltá-lo agora. Mas preciso fazê-lo. Já é
noite, mas ainda não é a hora do jantar.
Desço do banco e destravo o capacete, retiro da minha cabeça e o
entrego a Matt. Nossas mãos se tocam pelo mais breve dos momentos.
Fico acanhado. Olho para baixo, e escondo as mãos nos bolsos. Está
escuro, e quase ninguém anda pelas ruas de Eastview depois do
crepúsculo, então é improvável que alguém nos veja neste momento.
Matt também retira seu capacete e me observa em silêncio;
mantém a moto equilibrada com as duas pernas no chão como se fosse
um brinquedo leve.
— Obrigado — digo baixinho.
Matt não responde de imediato. Em vez disso, apoia os dois
capacetes no banco, trava a moto no chão e desce dela, então se
aproxima de mim.
— Pelo quê? — sussurra tão próximo que meus joelhos
fraquejam.
Engulo em seco. Ergo os olhos até os dele.
— Por ter ido comigo à casa de Fabian.
Ele assente sutilmente.
— Também quero descobrir quem é esse desgraçado. —
Permanece com os lábios abertos por um tempo, até completar: — Só
quero fazer tudo com cuidado.
— Eu sei... Você provavelmente tem razão. — Evito seu olhar;
me concentro nas casas atrás dele, do outro lado da rua. — Mas poderia
demonstrar isso de outras formas — as palavras arranham minha
garganta.
— O que quer dizer?
— Não me ignorar já seria um começo. — Expiro pela boca.
Estou inquieto e inseguro. — Eu preciso de você, Matt. Muito. — Meu
cenho se franze. Nunca pensei que teria a coragem de confessar isso em
voz alta. — Não está sendo fácil lidar com toda essa merda. — Volto a
fitá-lo. — E ter você me tratando como uma aberração só torna tudo
pior.
Ele dá mais um passo em minha direção, o semblante
arrependido.
— Me desculpa. — Sua a voz soa preocupada e frágil. Meu
sangue corre mais rápido, alívio pelos meus ombros tensos. Ele
continua, o olhar amargurado: — Eu não sei o que me deu nessa
semana. Acho que tô em negação ou algo assim. Eu só... não queria
pensar ou falar sobre isso, queria fingir que essa merda toda não está
acontecendo.
— Eu entendo... — Mordo o lábio inferior.
Seus dedos tocam meu queixo.
— Me desculpa mesmo. — Seu toque se afasta em seguida. —
Eu não queria te magoar.
— Tá tudo bem... — sussurro. Ouço a brisa noturna balançando
os galhos de algumas árvores próximas de nós. Miro a porção
machucada de seu rosto. — Eu também soquei você, então meio que
estamos quites.
Um sorriso risonho se abre em seu rosto lentamente. Ele desvia o
olhar para longe.
— Sinto muito por isso também.
— Eu não — rebato, abafando uma risada.
— Cuzão!
Ficamos em silêncio. Não quero que ele vá. Sei que é impossível,
ao menos agora, mas quero que entre escondido no meu quarto, que
fique ali pelo resto da noite, que nunca mais se afaste de mim. No
entanto, isso não tenho coragem de confessar, então apenas observo
enquanto ele dá alguns passos para trás, se aproximando da moto outra
vez. Matt coloca o capacete e gira a chave na ignição.
— Te ligo depois, tá certo? — ele diz. Assinto em resposta. —
Vou indo nessa. — E a moto arranca para longe.
Observo seu trajeto inteiro ao longo da rua, até ele cruzar a
esquina e desaparecer. Sozinho na rua, me aproximo da varanda de
minha casa. Abro a porta. Sou recepcionado pelo cheiro envolvente do
jantar sendo preparado na cozinha.
E pelo olhar desconfiado de Laura.
— Chegando em casa tarde outra vez? — ela diz com os braços
cruzados. — Depois de uma briga na escola?
— Foi mal, Lau... — suspiro. — Tava fazendo esse trabalho de
biologia e nem vi o tempo passar.
Sua boca se contrai, mas ela não insiste.
— Falamos mais sobre isso no jantar — diz. Me aproximo das
escadas em direção ao meu quarto. — Desça em vinte minutos.
— Tudo bem.
Subo as escadas sem pressa e giro a maçaneta da porta do quarto.
Estranhamente, mesmo depois desse dia fodido, não estou cansado;
talvez tenha energia suficiente para pesquisar sobre a loja do sobretudo
de Fabian nesta noite. O pensamento faz meu estômago revirar.
Entro no quarto. Arfo. A mochila cai do meu ombro ao chão, e
tenho a certeza de ter quebrado o tablet em seu interior. Mas não há
tempo para pensar sobre isso agora. Minha respiração falha. Meu
coração para. Minha mente é invadida por medo e ansiedade.
Inúmeras fotos da cena da morte de Alexis estão coladas nas
minhas paredes, remetem a um suicídio. Há fotos minhas e de Matt no
bosque mais cedo, e à espreita na casa de Fabian. Todas estão
manchadas por uma tinta rubra que lembra demais sangue.
E, com a mesma tinta, uma mensagem foi deixada em uma das
paredes:

“Estou sempre a um passo de vocês, Tommy


Achei que você soubesse disso
Talvez eu tenha superestimado sua inteligência
— E.V.”
FIM DO LIVRO DOIS
P or dezesseis anos, imaginei como seria a sensação de ser
popular. Qual seria o sentimento de andar pelos corredores do
colégio e ser notado por todos.
Que tipo de roupa eu precisaria vestir para que aquilo
acontecesse? Certamente não o all-star sujo que usava ao invés dos
sapatos sociais do uniforme oficial do Colégio Eastview para Jovens de
Elite.
E quando acontecesse, será que todos os garotos ao redor
babariam por mim, como eu babava por eles?
Será que eu teria um tanquinho trincado como o dos garotos do
time de futebol? Como o de Caspian Wolmer?
Eu sei, fantasia demais.
Mas meu momento de popularidade finalmente tinha chegado.
Dezesseis anos de uma vida nas sombras jogados no lixo. Os holofotes
estavam sobre mim.
E não podia ser por motivos piores.
Enri fecha a porta da cabine do banheiro bruscamente. O
estampido irritante ressoa pelo mármore perfeitamente polido do chão e
teto do lugar. Ele nos tranca logo em seguida, e me sento sobre o vaso
sanitário com a tampa abaixada. Me inclino à frente, e cubro meu rosto
com as mãos, tentando inspirar fundo. Mas não consigo. Meu peito pesa.
Aquilo é um pesadelo.
— Porra — vocifero para mim mesmo. Sinto a mochila
escorregar dos meus ombros, e cair no chão da cabine. Dentro dela está
o notebook responsável por toda aquela merda. — Porra. Porra. Porra.
Porra. Porr—
— Se acalma, Dani — Enri me interrompe —, não tem motivo
pra entrar em pânico.
— Como assim não tem motivo? — Ergo os olhos em direção
aos dele. — A porra do meu blog acabou de vazar pra escola inteira,
Enri, que droga você quer que eu faça além de entrar em pânico?
Ele se encosta contra a porta selada da cabine. Estamos na última
do banheiro, então é improvável que alguém perceba nossa presença ali.
Descobrimos no ano passado que aquela cabine é um dos poucos lugares
neste colégio onde se pode ter alguma privacidade.
Enri descansa sua mochila no chão ao lado da minha. Ele parece
exasperado, mas por motivos severamente diferentes dos meus.
— Olhar as coisas pelo lado bom, talvez — responde.
— E que lado bom seria esse? — falo entre os dentes cerrados.
Enri fica em silêncio, e me lança um sorriso chocho de conforto,
que mais parece uma careta.
Respiro fundo. Volto a esconder o rosto entre as mãos. Curvo a
nuca ainda mais em direção ao chão, observando os azulejos brancos. A
cada segundo que passa, sinto a vergonha da humilhação pública me
subir mais e mais.
De alguma forma, de algum jeito inexplicável, meu blog secreto
acabou se tornando não tão secreto assim, e agora meus textos estão nas
mãos de todos no colégio, no bairro, na cidade.
Tudo. Absolutamente tudo que escrevi desde os dez anos, quando
ganhei meu primeiro computador e montei aquele blog estúpido.
Tudo nas mãos das pessoas que nunca deveriam ter acesso a
esses textos. Escrevi eles para desabafar, para ser uma forma de escape
para mim mesmo. E agora eles estavam por aí, soltos no mundo.
Que ódio. Que ódio. Que ódio. Que ódio.
Aquilo era um filme de terror.
E como em um bom filme de terror, aquele também começou no
acampamento de verão.

LEIA AQUELE GAROTO AGORA


Dizem que sequências são mais fáceis de escrever, que o
difícil é o começo e, em um segundo livro, tudo deveria fluir mais
facilmente porque a estrutura já está montada e estabelecida no primeiro
livro. Eu discordo. É difícil escrever uma sequência, manter o ritmo de
euforia, mistério e surpresas de um primeiro livro sem soar repetitivo e
mantendo a atenção do leitor a todo instante. Fazer uma sequência não é
fácil, por isso sou tão grato às pessoas que trabalharam comigo nesta
para torná-la a melhor sequência daquele primeiro livro cheio de intrigas
e suspense.
Agradeço a Brendon pelo excelente trabalho crítico e de revisão.
Nunca pensei que trabalhar com outro autor independente poderia ser
tão prazeroso e reconfortante. Você entende as dificuldades desse
mercado e me ajuda imensamente. Obrigado mesmo.
Agradeço também às pessoas que me ajudaram na concepção
visual desse livro: Senara e Bruno. Não poderia estar trabalhando com
pessoas mais talentosas.
E, por fim, muito obrigado a todos que apoiaram essa série e
fizeram-na alcançar marcas que eu não pensei serem possíveis até então.
Digo que tenho os melhores leitoresdo mundo e vocês só continuam
provando que isso é verdade, lançamento após lançamento.
Reencontro todos no Halloween desse ano para o terceiro livro
dessa série que vai fazer todos se arrepiarem. Curiosos para descobrirem
o que Tom e Matt farão com a informação da loja que fabricou o
sobretudo? Por que o assassino já esteve obcecado pelo nosso casal
preferido de eastview antes mesmo de matar Alexis? São tantas
perguntas... e agora quero que vocês peguem suas lupas e descubram
tudo. As cartas estão todas lançadas em sua frente, cabe a vocês revelá-
las... antes que seja tarde demais.
Amo a todes <3
MARK MILLER É ESCRITOR PELA MANHÃ, estudante de medicina pela
tarde, e leitor voraz pela noite. Nasceu na região norte do Brasil, mas
mudou-se para São Paulo aos 14 anos de idade.
É uma pessoa de hábitos noturnos, o que talvez explique sua
obses-são por café. Não gosta de climas muito quentes, ou muito frios,
adora conhecer a cultura de outros países e ama gatos.
Escreve pelo simples desejo de ver mais representatividade em
his-tórias usualmente dominadas pelo imaginário heteronormativo, bus-
cando leitores que, como ele, desejam ver mais personagens LGBTQ+
em posições de protagonismo.

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Twitter: @markmillerbooks
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