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FIORIN A Luofonia Como Espaço Linguístico
FIORIN A Luofonia Como Espaço Linguístico
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Pedro Américo louva-se, principalmente, no relato de Francisco de Castro Canto e Melo a res-
peito do que aconteceu na colina do Ipiranga (apud Moraes, A. J. de M., 1982, p. 428-432).
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Nossa análise de O guarani é tributária da fortuna crítica desse romance, principalmente dos
estudos feitos por Affonso Romano de Sant’Anna (1974, p. 54-83) e Alfredo Bosi (1992, p.
176-193).
Mas qual o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não era ela quase uma filha
desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas águas cristalinas?
A cidade lhe aparecia apenas como uma recordação da primeira infância, como
um sonho do berço; deixara o Rio de Janeiro aos cinco anos, e nunca mais ali
voltara.
O campo, esse tinha para ela outras recordações ainda vivas e palpitantes; a flor
da mocidade tinha sido bafejada por essas auras; o botão desatara aos raios desse
sol esplêndido.
Toda a sua vida, todos os seus belos dias, todos os seus prazeres infantis viviam
ali, falavam naqueles ecos da solidão, naqueles murmúrios confusos, naquele
silêncio mesmo.
Ela pertencia, pois, mais ao deserto do que à cidade; era mais uma virgem brasi-
leira do que uma menina cortesã; seus hábitos e seus gostos prendiam-se mais às
pompas singelas da natureza, do que às festas e às galas da arte e da civilização
(p. 288).
precipitar-se pelo Paraíba. Não tem tempo de embrenhar-se na mata. Sobe então
no alto de uma palmeira e fica lá com Cecília. A tempestade continua ao longo
da cordilheira, a água cresce sempre (p. 293)
Peri diz que vai salvar Cecília e conta-lhe o mito de Tamandaré, que é o
Noé indígena. O mito narra que, tendo havido um dilúvio, que cobriu toda a
Terra de água e matou todos os homens, Tamandaré e sua mulher escaparam
em cima da copa de uma palmeira, pois a água cavara a terra, arrancara a pal-
meira e esta subira com as águas acima do vale, das árvores, das montanhas.
O casal povoou a Terra (p. 295). Peri abraça-se à palmeira em que está com
Cecília, sacode-a, abala suas raízes, que se desprendem da terra já minada
profundamente pela torrente. A luta do homem com a árvore é sobre-humana.
“Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; luta
do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade” (p. 295). No fim,
a cúpula da palmeira resvala pela flor da água, levando o casal que escapara
do dilúvio. Os dois beijam-se. E o livro termina da seguinte maneira: “A pal-
meira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte”. O
horizonte onde some a palmeira é o futuro do povo que se constituiria a partir
de um casal inicial formado de um índio que aceitara os valores cristãos e de
uma portuguesa que acolhera os valores da natureza do Novo Mundo. Essa
nação teria um caráter cultural luso-tupi.
O mito é sempre uma coincidentia oppositorum (Eliade, 1991, p. 127). No
nosso caso, o mito de origem da nação brasileira opera com a união da natureza
com a cultura, ou seja, dos valores americanos com os europeus. O Brasil seria
assim a síntese do velho e do novo mundo, construída depois da destruição do
edifício colonial e dos elementos perversos da natureza. Os elementos lusitanos
permanecem, mas modificados pelos valores da natureza americana.
A nação brasileira aparece, depois do dilúvio, em cuja descrição se juntam
os mitos das duas civilizações constitutivas da nação brasileira, o de Noé e o
de Tamandaré.
Como diz Alfredo Bosi, os mitos ajudam muito mais a compreender a
época em que foram forjados do que o universo remoto que pretendem explicar
(1992, p. 176). O selo de nobreza da nação brasileira é dada pela fusão sangue
português com o sangue tupi. Essa interpenetração une a nobreza de uma e de
outra cultura. Dela está excluído o elemento africano, que foi importantíssimo,
juntamente com o indígena e o europeu, para a formação da nacionalidade. No
período em que o romance foi produzido, os negros eram escravos no Brasil. Não
poderiam, portanto, os africanos estar no relato que se pretendia fosse sobre as
origens míticas da nacionalidade. No entanto, também essa conciliação luso-tupi
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Para Herder, não há línguas comuns a diferentes Estados nacionais, porque, em cada um, ele
assume feições distintas. Por outro lado, quando um Estado tem diversas línguas nacionais (por
exemplo, Bélgica, Suíça, Finlândia), o que ocorre é que ele é uma confederação de nações.
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Alencar diz que, além do vocabulário, também o “mecanismo” da língua se modifica. Pergunta
o romancista: “E como podia ser de outra forma, quando o americano se acha no seio de uma
natureza rica e opulenta, sujeito a impressões novas ainda não traduzidas em outra língua,
em face das magnificências para as quais não há ainda verbo humano?”. Depois de afirmar
que o Brasil vai aperfeiçoar a língua, diz que “todos os povos de gênio musical possuem
uma língua sonora e abundante. O Brasil está nestas condições: a influência nacional já se
fez sentir na pronúncia muito mais suave de nosso dialeto” (1965, p. 260-261).
...o defeito que eu vejo nessa lenda, o defeito que eu vejo em todos os livros
brasileiros, e contra o qual não cessarei de bradar intrepidamente, é a falta de
correção a linguagem portuguesa, ou antes a mania de tornar o brasileiro uma
língua diferente do velho português, por meio de neologismos arrojados e injus-
tificáveis, e de insubordinações gramaticais, que (tenham cautela!) chegarão a
ser risíveis se quiserem tomar as proporções de uma insurreição em regra contra
a tirania de Lobato (apud Melo, 1972, p. 11-12)
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Observe-se este trecho de um poema de Gonçalves Dias:
(...) Ao ver nublado
Um céu de inverno e as árvores sem folhas,
De neve as altas serras branqueadas,
E entre esta natureza fria e morta
A espaços derramados pelo vale
Triste oliveira, ou fúnebre cipreste,
O coração se me apertou no peito (...)
do homem com essa natureza exuberante, que lhe dava um espírito de liberdade
e de coragem e, ao mesmo tempo, restituía-lhe a inocência primitiva do jardim
do Éden. Todo nacionalismo precisa de origens, de mitos, de começos heróicos.
O índio do passado não constituía nenhum perigo à ordem vigente, fundada na
escravidão dos negros. Por outro lado, a ideia de que ele não se adaptava à es-
cravidão servia para constituir o mito de um homem com espírito de liberdade e
coragem, qualidades necessárias para ser um dos heróis fundadores.
Sem dúvida nenhuma, a constituição da nação brasileira foi um sucesso.
Todos, filhos e neto de imigrantes, sentimo-nos brasileiros. No entanto, dizia
Renan que “as nações não são algo eterno. Elas começaram e acabarão. A
confederação europeia, provavelmente, as substituirá” (1947, p. 902).
As nações surgem há mais ou menos dois séculos no bojo de uma mutação
econômica importante, a consolidação do capitalismo com a revolução indus-
trial. Elas parece estarem sendo ultrapassadas por outra mudança econômica
significativa, a internacionalização do capital. Com efeito, para os agentes
econômicos as fronteiras nacionais não fazem sentido: o capital desloca-se
sem nenhum constrangimento. E diante dessa movimentação do capital, os
estados nacionais vêem-se impotentes. Num movimento, só aparentemente
contraditório, explode na rede mundial de computadores uma produção cultural
fundada nas identidades nacionais, quando não regionais. Poder-se-ia pensar que
o multiculturalismo levará à criação de um novo patrimônio identitário a partir
da interpenetração de componentes das identidades nacionais. Entretanto, isso
não parece ser verdadeiro na medida em que a extrema direita, ressurgente em
todo o mundo, investe no culto ao legado ancestral, reanima-o, toma-o como
base de sua ação política. E assim o nacionalismo, um dos flagelos do século
XX, começa a novamente despertar, tornando-se o contraponto da globalização,
que liquida as nações.
A atual etapa do capitalismo exige a criação de entidades transnacio-
nais. A União Europeia talvez seja a mais bem sucedida delas. Ela promulga
regulamentos comunitários sobre um sem número de temas, propicia a livre
circulação de bens e de pessoas, tem uma moeda comum, tem um parlamento
e um executivo. No entanto, falta-lhe aquilo que é próprio a uma nação: “uma
identidade coletiva, o apego a um território comum, o ideal partilhado de uma
fraternidade solidária” (Thiesse, 1999, p. 288). Os europeus têm identidades
nacionais (ou mesmo regionais), mas não uma identidade europeia. Se tivessem,
não teria ocorrido a recusa da Constituição Europeia em plebiscitos na França e
na Holanda. É pela ausência de uma identidade europeia que os bilhetes do euro
são ornados com pontes e janelas fictícias, inspiradas nos estilos arquitetônicos
da Europa Ocidental, ou seja, em motivos pré-nacionais. No entanto, há cerca
de dois séculos não existia uma identidade comum a um calabrês e um toscano
ou a um bávaro e a um hamburguês.
No que nos concerne, pertencemos todos à CPLP, ao espaço da chamada
lusofonia. Essa entidade transnacional tem escassas chances de se transformar
num espaço econômico, de livre circulação de bens. Isso se deve ao fato de
que o Brasil pertence ao MERCOSUL e Portugal, à União Europeia. Por outro
lado, pelos compromissos de Portugal com a União Europeia, nossa comuni-
dade nunca será um espaço de livre circulação de pessoas. Só pode ser uma
comunidade política, cultural e linguística. Para isso, é preciso construir uma
identidade comunitária. A constituição das identidades nacionais mostra que
uma identidade comum se forja num trabalho coletivo, que atualmente deve
apoiar-se nas novas tecnologias de informação. Essa identidade estará apoiada
na diversidade, que agrega, e no fundo comum da cultura e da língua. Essa
identidade não é a assimilação de umas identidades a outras, não é a exclusão de
identidades, não é a segregação de patrimônios identitários. A ideia de nação foi
elaborada em conjunto com duas ideias novas, liberdade e democracia (Thiesse,
1999, p. 288). A identidade comum só fará sentido se estiver associada a um
projeto político que proponha aos comunitários ser atores de seu destino.
Passamos mal pelo primeiro teste de construção de uma identidade lu-
sófona: a ratificação e a implementação do acordo de unificação ortográfica.
Talvez haja razões relacionadas à afirmação do português no mundo para essa
unificação. Entretanto, isso é o que menos importa. O que é significativo é que
o acordo é um instrumento político de construção de uma identidade comum.
O que houve? Completa indiferença no Brasil, onde o acordo foi tratado com
desdém (“há coisas mais importantes do que isso”; “é uma reforma meia-sola,
pois não unifica de fato”), quando não com chacotas, e um clima de beligerância
em Portugal.
Os linguistas têm graves responsabilidades no clima de confusão que se
formou. Não fomos capazes sequer de explicar que não se tratava de unificação
linguística, mas de unificação ortográfica. Até mesmo Luiz Fernando Verissimo
incorreu nessa confusão (O Estado de S. Paulo, 18/10/2007, D16). Uma das mais
lamentáveis intervenções dos que se dizem especialistas na linguagem foi a de
Amélia Mingas, Diretoria do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, em
diz respeito à língua, que seja um espaço em que todas as variedades linguísticas
sejam, respeitosamente, tratadas em pé de igualdade. É necessário que não haja
a autoridade “paterna” dos padrões lusitanos. Evidentemente, a lusofonia tem
origem em Portugal e isso é preciso reconhecer. No entanto, o que se espera na
construção do espaço enunciativo lusófono é a comunidade dos iguais, que têm
a mesma origem. Esse é o significado da afirmação de Caetano Veloso.
Não se pode esquecer que pátria e pai são formados da mesma raiz. A
eles estava ligada a potestas (Benveniste, 1969, p. 217-218). A lusofonia não
será pátria, porque não será um espaço de poder ou de autoridade. Será mátria,
porque deve ser um espaço do sentimento, e será fátria, porque deve ser o espaço
dos iguais, que têm a mesma origem. Se assim não for, ela não terá nenhum
significado simbólico real, será um espaço do discurso vazio de um jargão
político sem sentido. Nesse caso, parafraseando Mário de Andrade, o melhor
será esquecer Portugal e ignorar essa tal de lusofonia (1958, p. 222).
Referências bibliográficas
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2.ª ed. São Paulo: Martins, v. II, 1964.
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