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Os aleijados entrarão primeiro

Sheppard sentou -se n um banco, j unto ao balc ão q ue d iv idi a a cozinha ao


meio, c om endo fl oco s d e cere ais n a em balag em ind iv idu al em qu e vi nham .
Comia mecani camente, de olho n o garoto qu e vagava na cozinha rodead a
de armários, coletando ingredientes, de porta em porta, para o seu café-da-
man hã. E ra um garoto de dez anos, louro e parrudo, em q uem os ol hos de
Shepp ard, de um azu l intenso, se man tinha m fix os. O futuro desse men ino

estava esc rito em seu rosto. I a ser ban queiro. Não, pior ainda. I a ser d on o d e
peq uen a financei ra, f azendo em préstimos. Tudo o qu e ele queria para o fil ho
era qu e foss e bo m e al truísta, ma s ne nh um a dessas carac terísti cas parecia
pro váv el. Shepp ard, send o ainda moço, já estav a de cabelo bran co, que pai !
rava como um halo estrei to apara do sobre su a face cor-de-rosa e sensí ve l.
O garoto se aproximou d o bal cão com o pote de pasta de am en !
doim d ebai xo do braço, trazendo nu m a das m ãos o ketc hup e na outra
um prato com um quarto de um p equeno bolo de c hocol ate. Nem pare !
ceu notar seu pai . S ubiu n o banco e começou a passar pasta de am en !
doim n o bolo. Ti nha orelhas de aba no, redondas e grandes, que davam
a i mp ressão de pu xar os ol hos à p arte , afa stando-os m uito um do outro.
Sua camiseta verde estava tã o d esbotada q ue d o caubói impresso no

peito restav a apenas a sombra.


"Norton" , di sse Shepp ard , "on tem eu v i R ufus Johnson . S abe o q ue
ele estava fazend o?"
O garoto olhou-o com uma espécie de atenção pelo meio, olhos
à frente mas não de todo envolvidos. Olhos azuis, iguais aos do pai,

porém mais claros, como se tivessem desbotado, como a camiseta; um


deles se repuxava, quase imperceptivelmente, para a borda externa.
"Estava num beco", Sheppard disse, "com a mão enfiada numa lata
de li xo, de on de ten tava tirar o que com er" Fez um a pausa, para deixar que
is so impr essi onasse. "E stava faminto" , concluiu, tent and o t raspassar com o
olhar a con sciênci a do filho.
O men ino pegou a fat ia de bol o d e chocol ate e c om eçou a mord er
num a bei rada.
"Norto n" , di sse S hep pard , "por acaso você tem algum a idéia do q ue
significa compartilhar?"
Um trem or leve de atenção. " Que um a p arte é sua" , Norton di sse.
"Que u m a parte é dele",d isse S hep par d rispidam ente. M as era inútil .

Praticamente qualquer outro defeito tería sido preferível ao egoísmo


- um temp eramen to vi olento, até mesm o um a tendên ci a a ment ir.
O fi lho vi rou o vi dro de cabeça para baixo e começou a despejar
ketchup no b olo .
A expressão de sofrimento de Sheppard acentuou-se. "Você tem
dez anos e Rufus Johnson tem catorze", disse. "Mas eu tenho certeza
de qu e suas camisetas dão nele. " Rufus Johns on era u m a dolescente a
qu em el e tentara ajudar no reformatori o, durante o ú lti mo ano, e que
há doi s m eses fo ra sol to. "Qua nd o estava no reformatori o, tinha u m a
boa aparênci a, mas ontem , quand o o vi, e ra pele e osso . Não come b olo
de chocol ate com pasta de amen doim n o café- da-man hã."
O filho fez um a p ausa. " Está ran çoso" , di sse. " Por isso é qu e eu tive de

pôr alguma coisa.”


Shepp ard virou o rosto para a j anela na extremidade do balcão.
O gram ado da casa , hom ogêneo e v içoso, de sci a po r uns qu inze
metros até um pequ eno bosq ue de arrabalde . Q uan do su a esposa e stav a
viva, era com um el es fazerem as refei ções ao ar li vre, tom an do ali no
gram ado até o café- da -m an hã . Nunca h avi a então notad o que seu fi lho
era egoísta. "Olhe aqui" disse ele, virando-se para o garoto outra vez,
"olhe p ara m im e m e esc ute. "
O garoto o en carou. S eus olhos, pelo meno s, se voltavam para a frente .
"Qua nd o Ruf us saiu do reformatorio, d ei- lhe um a chave da nossa
cas a - para m ostrar minha confi ança nele , que assi m teri a um lugar

on de p udesse vi r e sentir- se bem recebi do a qu alquer ho ra. E le não a


usou, mas acho qu e agora vai us á-l a, porqu e me viu e está passando
fome. Se não a usa r, eu mesm o vou pr ocur á-l o p or aí para traz ê- lo para
cá. Não p osso ver u m a criança com end o em lata s de li xo."
O fil ho franz iu a testa. Começava a suspeitar de qu e algo qu e lhe
pertencia estava sob ameaça.
A bo ca d e Shep pa rd se esti cou em desgosto. "O pai de R ufus m or !
reu ant es d e ele nasce r", di sse. "A m ãe está n a p en iten ciária estad ual. E le
foi cri ado p elo avô num barracão sem águ a nem luz, e todo d ia o velho
bat ia nele. Você gostaria de pert encer a um a fam ília assim?"
"Não sei", disse claudicantemente o garoto.
"Pois depois, então, pen se u m po uco ni sso" , Shep par d disse .
!
Sheppard era diretor de recreação da prefeitura. Aos sábados, tra
balhava no reformatóri o com o orie ntador, sem ganh ar na da por is so, a
não ser a sa ti sfa ção de saber qu e estava ajudan do jovens par a os quais
ningu ém lig ava. Johnson era o m ai s inteli gente, e tamb ém o mais des !
val ido, c om quem já ti nha trabal hado.
Norton p ôs de lado o qu e restava do bolo, com o se não quisesse mai s.
"Pode ser qu e ele não venha ", di sse depo is, com u m leve ful gor
nos ol hos.
"Pense e m t ud o o q ue você tem e ele não! " disse S hepp ard. " Já i m agi !
no u se ti ve sse de catar sua com ida no lixo? Já i m aginou se ti ve sse um pezão
inchado e um lado seu caí sse mais qu e o outro q uan do você andasse?"
Obviam en te i ncap az d e ima ginar tai s coi sas, o m enino fic ou

desconcertado.
jií L

"Você tem um corpo saud ável ", Shep pa rd disse , “e um a bo a casa.


Nunca lhe foi ensinado nad a qu e não fosse a verdade. Seu pai l he dá
tud o o qu e você qu er e preci sa. Você não tem um avô qu e lhe bate.
E sua m ãe n ão está n a p enitenciári a estadual. "
O garoto afastou o prato. Um gem ido se exal ou d e Shepp ard.
Por baix o da boca bruscam ente retorc ida d o m enino sua car !
ne enrugou. Todo o seu rosto se tornou massa informe com incisões
pa ra os olhos. "Se ela estiv esse na p enitenciária" , com eçou ele, nu m a
espécie de torm enta em crescendo, " eu po dia ir ver eee el a. " Lágri m as
lhe rolaram pela face e o ketchup escorreu pelo seu queixo. Dando a
imp ressão de ter l evado u m soco na boca, Norton se desm inli ngüiu
e berrou.
Sheppard, nu m afl ito desamp aro, parecia um hom em açoi tado por
um a for ça el em entar da na tureza. Aquilo não era um sofri mento n or !
mal. Tudo era parte do egoísmo dele. ffá mais de um ano q ue ela ha vi a
morrido e o sofrimento de uma criança não devia durar tanto assim.
"Você já vai fazer onz e anos" , di sse em tom de reprimend a.

A cri ança pass ou a resf ol ega r, de um m odo torturante, fazendo


muito barulho.
"Se parar de pensar em você mesmo e pensar no que pode fazer
pelos outros", disse Sheppard, "vai parar de sentir falta da sua mãe."
O garoto fi cou cal ado, mas seus ombros continua vam tremend o.
Depois seu rosto de sabo u e ele vol tou a chora r.
"Você não acha q ue eu tam bém m e sinto só sem ela? " Shepp ard diss e.
"Não acha que sofro com a falta dela? Sinto tudo isso sim, mas não fico sen !
tado me entristecendo. Estou ocupado ajudando outras pessoas. Quando é
que você m e vê sentado p or aí , pensan do nos meus própri os problemas? "
O garoto afundava, c omo que já no auge da exaustão, mas novas
lágri ma s lhe cortaram a fac e.
"O qu e é qu e você vai fa zer ho je ?", pergu nto u Sheppard, p ara m ud ar
de assunto .
O m enino passou o braço pelos olhos. "Vend er semente s", m urm urou .
Sempre vendendo alguma coisa. Tinha quatro potes de moedas
economizadas p or el e, qu e as ti rava de v ez em qu and o do arm ário para
recontar. "Vend er sement es? Mas pra q uê?"
"Para concorrer a u m prêmio. "
"Qua l é o prêm io? "
"Mil dólares."
"E o qu e você faria se tiv esse m il dólares?"

"Eu guardava" a criança disse, enxugando o nariz na manga.


"Ah, eu já sabia" , di sse Shep pa rd . " Mas o lhe aqui" , di sse e a ba ixou
a voz a um tom quase de súpli ca, "vamos su por qu e por um gol pe
de sorte você gan he os m il dólares. Não gostaria d e gastá- los com
cri anças men os afortunad as qu e v ocê? Não gostari a de doa r balan !
ço s e trapézi os para o orfanato? De comp rar um par de sapatos para
Rufus Johnson?"
O garoto foi para trás, retroceden do d o balcão, e v oltou b ru scam en !
te à f rent e, debru çado d e boca aberta em seu prato. Shepp ard gem eu de
novo. V ei o tud o goela afora, o bolo, a pasta de am end oim, o ketchup
- em massa m ole e adoci cada. N orton, por cima, vom itava g osma, e vei o
mais, e el e continuo u d e boca abert a no p rato, como se esperasse que

agora viesse seu coração.


"Não é nada" , Shep pa rd dis se. "Não é nad a. V ocê n ão t eve com o se
control ar. L ave a boca e v olte u m po uco p ra cama. "
A cri ança, cabi sbaixa ainda um instante, por fim ergu eu o rosto e
olho u às cegas o pai.
"Vai", disse Shep pa rd . "Vai se d eitar u m pou co. "
O garoto puxou a barra da camiseta para cima e limpou a boca
com el a. D epois pu lou do ba nco e sai u da cozi nha.
Sheppard olhava para aquela mixórdia de comida semidigerida.
O cheiro azedo, alcançand o-o, deu -lh e engu lhos. E le se lev anto u, levou o
prato para a pia, abriu a águ a po r ci m a e a duras penas viu tu do descer
pelo ralo. A mão de Johnson, magra e tristonha, vasculhava latas de

lixo à cata de comida, enquanto seu filho, egoísta, guloso, indiferente,


tinha tanta que punha para fora. Para fechar a torneira, deu-lhe um
soco. Johnson, privado de tudo desde o nascimento, era dotado de real
capacidade de interação; N orton , qu e estava quant o a is so na méd ia, ou
aba ixo da méd ia, tinha tido todas as v antagen s.

Ele v oltou ao ba lcão pa ra a cabar s eu café . O s floco s d e cereai s, na


caixinha de papelão, estavam encharcados, mas Sheppard nem prestava
atenção n o q ue comia. Johns on m erecia qualqu er esfo rço que se fi zesse ,
porque tinha potencial. Desde que o garoto entrara mancando, na pri !
meira entrevista, percebera isso.
O minúscu lo gabinete de S hepp ard no reform atorio era pou co mai s
que um armário, com uma janela, duas cadeiras e a mesinha. Nunca
ha via estado num confessi onário, mas achava qu e tal prática devia ser
do m esm o tipo d a qu e ele man tinha al i. A dife rença era ele expl ic ar, não
absolv er. S uas credenciai s eram m enos d uvi dos as q ue as de um pad re:
fora formado para o que estava fazendo.
Quan do John son en trou p ara a primeira entrevi sta, estav a lendo a fic ha

do rapaz - ato s d e vandali smo, como quebra r v idraç as, f urar pneus, pôr fogo
em latões de lixo, o tipo de coisa que faziam adolescentes abruptamente
transplantados d a roça para a cidade, como era o caso des se. Chegou ao qi

de Jo hnson, qu e era cento e quarenta, e an siosamente ergueu os ol hos.


O rapaz arriou na b eirada da cadeira, enfi and o os braços nas cox as.
A luz q ue en trava pe la jane la batia bem em seu rosto. Seus olhos, cor
de aço e imóvei s, dirigi am -se aten tam ente para a frente . O cabel o, preto
e fi no, caí a para u m lado da testa, nã o com o as mechas d escui dad as de
um jov em, mas si m com o orgulho d e um vel ho. E ra p alpável em seu
rosto um a esp éci e de inteligência fanática.
Shep par d sorriu, para d iminuir a d istância entre el es.
A expressã o d o rapaz n ão se abran dou. Recostando-se na cadeir a,

el e dobrou sobre o j oelho um monstruoso p é to rto, conti do n um sapatã o


preto, muito surrado, com uns dez centímetros de sola. O couro estava
descol ado n um canto e a po nta d e um a p almil ha inútil esti cav a- se como
a língua cinza que parte de uma cabeça cortada. Instantaneamente o
cas o se esc la rece u par a S heppard . O m au comport amen to desse j ovem
era um a compens ação pel o pé.
"Bem , Rufus" , el e disse, " pe lo q ue vejo aq ui n a s ua ficha, você tem
apenas u m ano de internaç ão. Que planeja fa zer quand o sai r? "
"Não planejo nada", disse o garoto, cujos olhos se desviaram indi !
ferentemente para alguma coisa ao longe entrevista pela janela atrás
de S hepp ard.

"Mas talvez fosse bom ", She pp ard disse com u m sorriso .
Johnson continuava a olhar além d ele.
"Que ro ver vo cê tirar o m áximo de s ua inteli gênci a" , di sse S hepp ard.
"O que é mais importante para você? Vamos conversar sobre o que é
importante para voei" Invol un tariamen te seus olhos se fi xaram n o pé.
"Exam ine e t ire a concl usão" , o rap az disse arrastand o as palav ras.
Shep par d corou. A massa preta d eform ada intum escia a seus ol hos.
Mas ele i gnorou essa fra se, bem como a olhad a qu e o garoto lhe d ava .
"Rufus ", di sse, "você se m eteu nu m m ont e d e encrencas s em s entido, mas
penso que, qu and o en tend er por qu e fa z essa s coi sas, sua incl inação a
fazê-l as será m eno r" Ele sorri u. Tinha m tão p oucos am igos, viam tão
poucos rostos agradáveis, que metade de sua eficiência não provinha

senão d e lhes so rri r. "Há um a p orção de coi sas sobre você m esmo que
acho qu e eu poss o lhe expli car" , di sse el e.
Johnso n lan çou -lhe u m olhar infl exí vel . "Não p edi expli cação
nenh um a" , di sse. "Já sei po r q ue é qu e eu faço o qu e eu fa ço ."
"Muito bem !" S hep pa rd disse . "Qu e tal então m e dizer o que é q ue
o leva a fazer as co isas q ue vo cê tem fei to? "
Um brilho ne gro luziu nos olhos do rapaz, qu e disse : "Satã. E le me
tem em seu poder".
Shep pard o olhou a fund o. N ão h avia ind ic ação em seu rosto de qu e
el e disse sse aquilo para ser engraçado. E ra com orgulho qu e os traços de
seus l ábios fi nos se defini am. Sheppar d, consolidada a vi são, sentiu u m
desespero m om entân eo e obscuro, como se esti ve sse em face de algum a

aberraç ão elementar da natureza, a contec ida há mu ito tempo p ara pod er


ser corri gi da agora . As indagações d o garoto sobre a vi da tinham encon !
trado resposta nas tabuletas pregadas em pinheiros: satã t e. t e m e m s e u

PODER? ARREPEND E-TE, OU Q UEIMA NO INFERNO . SÓ JESUS SAL VA. Claro que
ele , quer a lesse, quer n ão, saber ia a B íbli a. O excesso su cedeu ao deses !
pero de Sheppard. "Bobagem!", ele vociferou. "Estamos vivendo na era
espaci al . V ocê é m uito intelige nte para m e d ar u m a resposta des sa s."
A boca de Johnson se retorc eu um pouco. S ua expressão até que
era div ertida, m alg rado a pon ta d e desprezo. Um bril ho desafi ador se
perceb ia em seus ol hos.
Shepp ard exam inou -lhe com aten ção o rosto. On de havia i nteli !
gência, tud o era pos sív el. Sorriu d e novo; um sorriso que eq uivalia a
um convi te para o rapaz entrar nu m a sala de aula c om tod as as ja nel as
abertas p ara a claridade. " Rufus” di sse ele , "vou m arcar p ara você ter
um a conversa comigo um a vez por sem ana. T al ve z haja u m a expli caç ão
par a a sua expli cação. Tal ve z e u possa exp li car a você o s eu dem ônio. "
Depois disso, e pelo resto do ano, todos os sábados ele tinha con !
versado com Johnson. F alav a ao acaso, nu m tipo de conversa qu e o
rapaz n un ca teria ouvido antes. F alava nu m nível super ior ao dele, para
da r-lhe razões p ara se esfo rça r. Div agand o, passava d a simples psicol o !
gia e dos subterf ugi os da m ente hu m ana p ara a astronom ia e as c ápsu !
la s espaci ai s q ue est avam girando em torno da Terr a aci m a da veloci !
dade do som e qu e em breve circundariam estrel as. Por i nstinto ele se
concentr ou n as estrel as. Qu eria dar ao gar oto algo po r qu e se inte ressar ,
além d os ben s d a vi zinhan ça. Queria abrir seus hori zontes. Queria fazê-
lo v er o u niverso, ver q ue até em suas partes m ais obscuras era po ssível
penetrar . Te ri a dado qualqu er coi sa para ser c apaz d e pôr n as m ãos d e
Johnson um tel escó pio .
Johnson falava pouco, e o que dizia, por causa de seu orgulho,
acha va- se em discórdia ou contr adição sem senti do. N essas ocasi ões,
sempre p unh a o pé torto no joel ho, como arm a pronta para uso, mas
Shep par d nã o se decepcionava. Obs ervan do -lhe os ol hos, via qu e nel es,
de sem ana em s ema na, al gum a coi sa esbor oava-se. Pel o rosto do g aroto,
que se esti cav a, du ro p orém tocado, contra a luz q ue o atingia em cheio,
podia ver que estava chegando ao centro inerte.
Mas Johnson agora estava livre, injustiça gritante, para viver das
latas de li xo e redescobrir sua an tiga i gnorância. T inha sido m and ado de
volta para o avô, velho cuja imb ecil idade n em se pod ia i m agi nar. T al ve z
o garoto já tivesse fugido da casa dele. A idéia de obter a guarda de
Johnson ocorrera antes a Sheppard, mas a existência do avô se interpu !

sera a i sso . N ada o anim ava tanto com o pen sar no que pod ia f azer pel o
rapaz. Pri m eiro era preci so pro vi den ciar para ele um no vo sapato orto !
pédic o, porq ue suas costa s saíam m uito de pru m o, tod a v ez qu e dava
um passo. Era preci so tam bém incen tivá-l o a um a ativi dad e intel ectual
especí fi ca. Pensava mu ito no telescópio. Podería comp rar u m de segun !
da m ão, que inst alari am n a janela do sótão. Sent ou-se por quase dez
minutos pensando no que podería fazer se Johnson estivesse ali com
el e. O q ue falha va com Norton levaria J ohn son a fl ore scer . Na v éspera ,
quando o viu com a mão no lixo, acenou e fez menção de ir em frente.
Johnson também o viu e, antes de desaparecer com a rapidez de um
rato , deteve- se ainda um segundo, o bastante para Sheppard notar sua
expressão mud ada. E le estav a cer to de qu e algum a coi sa, de qu e alguma

memória da luz perdida, tinha se acendido nos olhos do rapaz.


Levan tou -se e jogou n o lixo a caixi nh a de fl oco s. A ntes de sair de
ca sa, foi ao quarto de Norton para verifi car se o m al- est ar h avia passado.
O garoto, sentad o na cam a, de pernas cruzadas, esvaziar a seus potes de
moedas no m onte que agora ti nh a pela f rente , do qu al a s separava e m
pilhas de ci nco, dez e vinte e cinco centavos.

Agac had o no quarto, ao fi car sozinho em casa e ssa tarde, N orton arru !
m ava pacoti nhos de sementes d e fl ore s, dispon do-os à sua volta em
fi le iras. A ch uva açoitava as vidraças da janela, gorgolejava nas cal has.
O quart o já estav a esc uro. Mas de vez em qua nd o o aclarav a um
sil encioso rel âm pago, ao qual os pacotinhos de sem entes se ex ibi am
aleg rem ente no chão. De repente, po nd o-se ele imóvel, com o um sapo
grande e descorado no meio daquele jardim em potencial, seus olhos
se deram conta: sem m ai s nem men os a chu va ti nh a parado. O sil ênci o
era op ressiv o, com o se o agua cei ro tivesse si do calado à forç a. I m óvel,
só com os olhos se m exendo, ele perm aneceu.
No sil ênci o o uviu-se o bar ulho inconfund ível de u m a chave gi ran !

do na fec hadu ra da p orta de entrada. Ní ti do e mu ito d eci dido, c ham ava


e man tinha a atenção como se f osse provocad o p or mente, e não p or
mão. O g aroto deu um pu lo e se e scondeu n o armário.
Passos c om eçaram a se m over no corredor. Em bor a decidi dos, eram
irregula res, um mais lev e, depois outro mais pesad o e depo is um sil ên !
cio, com o se o v isi tant e parasse para exam inar algum a coi sa ou atentar
em si mesmo. E m um m inu to ran geu a porta da cozinha, qu e os passo s
cruzaram a cam inho d a gel adeira. A parede do armário e da cozinha era
a mesm a, e Norton, de pé, c olou o o uvido contra ela. A port a da geladei !
ra se abriu. Fez-se prolongado silêncio.
Ti rando os sapatos , na pon ta dos pés ele sai u d o arm ári o e an dou
por entre se us pacotinhos de sem entes . N o m ei o d o quarto, parou e
continuou ond e estav a, rí gi do. Na p orta se plantava um rapaz m agro,
de rosto oss udo, num terno p reto molhad o, que lhe imp edia a f uga.
Com o cabelo achatado pela chuva no crânio, plantava-se ali como
um corvo ensopado e furi oso. S eu olhar , varand o o garoto com o um
pino, paralisou- o. De pois passou a esquad ri nh ar tudo o qu e havia no
qu arto - a cama p or fa zer , c ortinas sujas no janelão, a foto de um a
m ulher d e rosto l argo, e ai nd a jov em , a al tear- se d a barafun da em
ci ma d a cômoda.
O garoto, em descontrole, soltou a língua. "Ele estava te esperando.
Vai te dar um sapato n ovo, por qu e você tem de catar com ida no lixo!",
di sse , nu m a espéc ie de guincho d e camun don go.
"Cato nO l ixo", diss e le nta m ente o rapaz, com um olhar semicerrado
e fi rme, " po rqu e eu gosto de com er em lata de li xo. Enten de?"

O garoto fez que si m com a cabeç a.


"E tenh o m eus próp rios meios de conseguir meu sapato. Enten de?"
O garoto, hipnotizad o, fe z qu e sim novam ente.
O rapaz avançou, mancando, e sentou-se na cama. Pôs um tra !
vessei ro nas co stas e estic ou sua p erna curta p ara qu e o sapatão preto
fica sse bem em destaque sobre um a dobra do lenç ol .
O olha r de Norton, ao bater n ele, dele não d esgrudou . A sola era da
grossura d e um tij ol o.
Johnson retorceu-o ligeiramente, sorriu e disse: "Se eu chutar

alguém com isso, um a vez só , ele apren de a n ão se m eter co migo" .


O garoto fez que si m.
"Vai l á n a cozinha" , di sse Johnson , "faz um san du íche de p resun to
em pão d e centei o e traz pra m im com um copo de le ite ."
Norton sai u como um brinqued o mecânico e m purrad o na direç ão
ce rta. Fez um sandu íc he enorm e e gordurento, c om presunto sobrand o
nas bei radas, que levou em segui da p ara o quarto, num a das m ãos,
enqu anto na outra trazi a o copo d e l ei te.
Johns on se r egal ava, al un da do de costas no trave sseiro. "Obrig ado,
garç om" , disse ap anh and o o sand uíc he.
Norton, e m pé ao lado d a cama, f icou segurando o copo.
O rapaz atacou o sandu íc he, que com eu sem parar até o fi m. S ó

então p egou o copo d e l ei te, qu e segurou com as duas mãos, como crian !
ça . Em torno d e sua boca, qua nd o o abaixou para t omar fôl ego, havia
um debr um de le ite . Ao devolver o copo vazio a N orton, em voz áspera
ele deu ou tra ord em: " Garç om , agora pega u m a laranja lá pra mim" .
Norton foi à cozinha e retom ou com a l aranja. Johns on des cascou-
a com as unh as, deix ando a casc a cair em cima d a cama, e com eu-a
devagar, cuspindo os caroços fora. Ao acabar, limpou as mãos no lençol
e lançou a Norton u m longo olhar de aprovaç ão. Aparentemente o se r !
viço p restado o am olecera. " Logo s e vê q u e você é fil ho del e", disse então.
"Tem a mesma cara de burro."
O garoto agü ent ou impa ssíve l, como s e não tiv esse ouvido.
"Ele nem distingue, nele mesm o, a m ão d irei ta d a esquerda" , di sse

Johnson, com um prazer que se mesclava à aspereza da voz.


O mais novo, com os olhos um pouco além do rosto do garoto
mais vel ho , fi tava apenas a parede.
"Com ele é tudo um blablablá", Johnson disse, "que não quer
dizer nada."

O garoto ficou quieto, embora seu lábio superior se erguesse


um pouc o.
"Conversa fiada", disse Johnson. "Conversa fiada."
O rosto do g aroto começou a assum ir um a pr udent e ex pressão de
beli gerânci a. Como se esti vesse preparad o p ara u m a retirada instantâ !
nea, el e deu um peq uen o p asso atrás. "Ele é bom", m urm uro u. " Ele aj ud a
os outros."
"Bom!", Johnson disse enraivecido, esticando a cabeça para a frente.
"Olh e aqui" , ciciou, "se ele é b om ou nã o é, nã o m e interessa. Não está é c erto!"
Norton ficou atordoado.
A porta da cozinha bateu e alguém entrou. Johnson, na mesma
hora, sen tou -se m ai s apr um ado. "É ele?", pergun tou.

"É a cozinh eira" , disse N or to n. "E la vem de t arde. "


Johnson se l evantou e, m ancand o pelo co rredor , f oi pl antar -se na
porta da cozinha. Norton seguiu-o.
A m ulata tirava a capa de chuva, v erm elha, que b ril hava m uito. E ra
alta e clara. Sua boca lembrava uma grande rosa que houvesse escu !
rec ido e m urchado. O cabel o estava penteado em camadas no topo da
cabeça e pen dia p ara o lado com o a Torre de P isa.
Johnso n fez u m bar ulho com os dentes. "Bons olhos a vej am " diss e.
A garota, feita uma pausa, lançou-lhes um olhar insolente. Ambos,
para el a, não passavam d e poeira no chã o.
"Vamos lá", di sse J ohn son, "v am os ver o q ue é qu e vocês têm , além
de uma negra." Abriu a primeira porta à sua direita, no corredor, e deu

com um banheiro todo cor-de-rosa. "A privada é rosa", murmurou.


Ao olh ar pa ra o gar oto, fez u m a cara côm ica. " Ele us a isso aí ?"
"É para visitas", Norton disse, "mas às vezes ele usa."
"Deve esvaziar a ca beça n ela", disse John son .
A porta para o quarto contíguo estava aberta. Era onde Sheppard dor !
m ia desde a mor te d a esposa. A c ama, d e fer ro, era asc éti ca. No chão, não
ha via tapetes. U niformes d a li ga de beisebol, um a porção, em pilhavam -se
num canto. Papéis se espalhavam sobre a grande escrivaninha de tampa
corrediç a, man tidos aq ui e ali por seus cachimbos. J ohn son, calado, fic ou
olhan do para o qu arto. De nariz contraído, dis se: 'Adiv inha de q uem é?".
No quar to segui nte, a porta estava fe chada, mas Johnson ab riu-a e
enfi ou a cabeça na semi- escuridão reinante. C om as corti nas pu xadas, um
lev e ve stígi o de p erfum e i mp regnava o ar parado. Havi a um a cam a antiga
e l arga e um a côm oda en orme cuj o espelho ci nti lav a na penum bra. J ohn !
son apert ou o i nterru ptor ao lado da porta e atrave ssou o quarto para se
olhar no esp el ho. S obre o p ano de li nho, um a escova e um p ente de prata ,
que el e ap anh ou e com o qu al passou a se pente ar. Pôs o cabelo todo
par a a frente, caindo n a testa, e depois p uxo u de lado, à mo da Hitler.
"Deixe o pe nt e dela em paz! ", disse o m en ino. E le estava n a p orta,
páli do e respirand o com difi culdade, como se presenciasse um sacri lég io
num lugar sag rado.
Johnson, largando o pente, pegou a escova e com ela ainda alisou
o cabelo.
"Ela morreu ", o m en ino disse .
"Não tenho medo de coisas de gente morta", disse Johnson, que
abriu a primei ra gav eta da côm oda e nela meteu a mão.
"Tire essa m ão im un da , essa mão p orca, das roupas da m inha mãe! ",
o me nino dis se em voz já sufoc ada.
"Fic a de cami sa, amor ", mu rm uro u Johnson. Ti rou e largou u m a b lu !
sa de bolinhas verm elha, muito amassad a. Depoi s tirou um lenço v erd e
de seda, qu e enrolou na cabeça e deixou flutuando. S ua m ão con tinuava
a escav ar cada v ez mai s fund o n a gav eta. Acabou vi nd o com u m desbo !
tado esparti lho q ue tinha quatro suporte s de metal pendurad os. " Devi a
ser a sela dela", ele observou.
Ergu eu-o, com extrem o cuidado, e sacud iu- o. Depoi s o colocou n a
próp ria ci ntura, dand o seguidos salti nhos para fazer os suportes de m etal

567
balançarem. Ao mesmo tempo, ele estalava os dedos e rebolava. "Rock
and rol l", cantou. " Não cons igo qu e a am ad a/ salve m inha alma dan ada.
Roc k and ro ll." Movend o-se em tom o, bati a com o pé nor m al no chão e
jo g a va a o lo n g e o p e s a d o . D a n ç a va a in d a a s s im q u a n d o s a iu p e la p o r t a ,

passou pelo m enino p erplexo e segui u p el o corredor para a cozi nha.

Meia hora depois Sheppard chegou em casa. Largou a capa de chuva


nu m a cadeira do corredor e se deteve ao chegar à porta da sala. Seu
rosto se transformou de repente. B ril ha va de prazer , lohnso n, som bria
fi gura, estav a senta do n um a cadeira à parte, de encosto alto e estofa-
men to rosado. A pared e por trás del e era forrada d e li vros, do chão até o
tet o. E el e estava l endo um . O olhar d e S hep pard se aguçou. U m volum e
d a Ency clopae dia Brita nnica. Tão e ntretido est ava o rapaz que nem sequer
ergu eu a vi sta. S hep pa rd co nte ve a respiração. Era o lugar, o am bient e
perfei to p ara ele . T inha d e m an tê-l o al i. T inha d e d ar u m jei to na quil o.
"Rufus! ", disse el e, "qu e bo m te ver, rapaz! ", e avan çou de m ão esten dida.

lohnson olhou para cima, mas sem expressão na face. "Olá", disse
apenas. Enq uan to pôd e, ig noro u a m ão do outro. C omo Shepp ard n ão a
recol hia, acabou apert and o- a.
Shepp ard já estava preparad o p ara esse ti po de reação. Nunca
dem onstrar entusiasmo era parte da camu fl agem d e lohnson .
"Com o vão as c oisas? ", disse el e. "Com o seu avô está te trata nd o?"
Sento u-se na beira do sof á.
"Ele morreu", o rapaz disse com indiferença.
"Não m e diga! " excl am ou Shepp ard, l evan tan do -se par a ir sentar -se
mais perto do rapaz, na mes inha de centro.
"Não" , loh n so n disse, "nã o m or reu nã o. A nt es t ive sse. .."
"Onde é então que ele anda?" murmurou Sheppard.
"Foi pro m ato com u m a turm a" , lohn son di sse. "Ele e uns outros,
m orro a ci m a. Vão enter rar B íbli as n um a cavern a e pegar casai s de dife !
rentes espécies de anim ais. Uma s coi sas assim, qu e nem Noé. S ó qu e
dessa vez vai ser fogo, e não dilúvio."
A boca de Sheppard, querendo se esticar, se entortou. "Entendo", ele
disse. E acrescentou: "Em outras palavras, o velho maluco te abandonou?".
"Ele não é m aluco n ão” , disse o rapaz e m tom indignado.
"Ele te aband onou ou n ão?" S hepp ard pergu ntou com imp aci ênci a.
O rapaz deu de ombros.
"E o seu assistente social , ond e an da ?"
"Ele é que tem de m e acomp anhar", disse Johnson. "N ão s ou eu que

tenho d e acom pan há-l o não ."


She pp ard riu. " Esp ere u m pou co" , ele disse. Levan to u -se, fo i até o
co rredo r, pegou sua capa na cadei ra e l evou -a par a pend urar n o arm á !
rio . Preci sava de tem po p ara pensar, para decidir com o con vi da r o rapaz
de u m m odo qu e o fi zesse acei tar. Não p od ia forçá-l o a fi car com ele.
Tinh a de ser u m a coisa v oluntária. J ohn son fingia não gostar dele. Pura
ati tude para preservar seu orgulho, mas era prec iso con vi dá -lo de u m
m odo qu e seu orgulho pudesse ser pre serv ado. Abri u a p orta do arm á !
ri o do corredor e apa nho u u m cabi de. U m velho sobretudo ci nzento de
sua fal eci da m ulher ainda estava pendur ado. E m pu rrou -o d e l ado, mas
o casacão não se moveu. Ao puxá-lo para abrir-se, tremeu, como se
esti ve sse vend o a lar va no interi or do casulo. De rosto pálido e inchado ,

com um a expres são d e sofri mento e torpor, era Norton qu e estava al i.


Shepp ard, ao en cará-lo, viu-se de súbito em face de um a pos sibi lidad e
concreta. " Sai a daí" , di sse. P egou o fil ho pelo o m bro e firmem ente o
comp el iu para a sal a e até a cadei ra cor -de-rosa ond e J ohn son sen tava-
se com a encicl opéd ia no colo. Ia arriscar tud o n um a só jogada.
"Rufus" , di sse ele, "eu est ou co m u m pr oblem a. P reciso d e sua ajuda."
Johnson, desconfiado, ergueu os ol hos.
"Preci sam os d e outr o rap az nest a ca sa" , Shep pa rd disse, com g en uí !
no desespero na voz. "O Norton nunca teve de dividir nada na vida.
Não s abe o qu e sig nif ic a comp artil har. E eu p reci so d e alguém que
ensine i sso a el e. Que tal você m e ajudar? F iqu e um tem po aqu i co m
a gente, R ufus. S ua ajud a m e é mu ito necessária. " Sua voz , de tanta
excitação, se afinou.

569
Mas Norton, de repente, voltou à vida. Seu rosto se intumesceu,
furi oso. " Ele entro u n o qu arto dela e u sou o p ente d ela", gritou ele , des -
vencilhando-se do braço do pai. "Pôs um espartilho e foi dançar com a
Leola, ele..."

"Cala essa boca!", Sheppard disse acerbamente. "É só fofoca que


você sabe faze r? Não estou lhe p edindo um rel atóri o sobre a cond uta d e
Rufus. Peço-l he é q ue lhe d ê as boa s-vi nd as aqui. Enten deu ?”
Viran do -se par a Ruf us, pergun tou: " Está ven do com o é? ".
Norton deu um chute raivoso na perna da cadeira rosada, quase
acert ando no pé torto de Johnson. S hepp ard voltou a agarrá-l o.
"Ele di sse qu e você n ão p assava de u m conversa-fi ada !", berrou
o menino.
Uma sonsa ex pressão de prazer cruzou o rosto de J ohnson.
Sheppard não se sentiu atingido. Tais insultos eram parte dos
mecanismos de defesa dele. "E então, Rufus" perguntou. "Você passa
uma temporada conosco?"
!
Johnson, olhando reto em frente, ficou calado. Mas sorriu ligeira
mente, como se v islumbrasse u m futuro qu e lhe seri a agradável .
“Pra m im tan to fa z", di sse depois, vi ran do um a p ágina d a encicl opé !
dia. "Qua lquer lugar eu agüento. "
"Que ótim o!”, disse S hep pa rd . "Qu e ót imo!"
"Ele di sse ", o m enino disse n um sussurr o rou fenho, "que você n ão
distingue sua m ão d irei ta d a esquerda. "
Fez-se silêncio.
Jo hnson m ol hou o dedo e vi rou mai s um a pági na.
'Tenh o u m a coi sa a dizer a vocês d ois” , disse Shep par d nu m a voz
sem infl exão. Seus olhos se m overam de u m ao outro dos garot os e ele
falou l entam ente, como se o qu e estava di zen do fosse ser di to u m a vez

só e os inti ma sse a esc utar. "Se o qu e R ufus p ensa a m eu respeito fi zesse


algum a diferença para mim", disse el e, "eu n ão o esta ria convidan do
pa ra fi car aqui. Rufus vai me ajudar, eu tam bém vou ajud á-l o e n ós doi s,
ju n t o s , va m o s a ju d a r vo c ê . Se r ia p u r o e g o ís m o d e m in h a p a r t e d e ix a r
qu e o que Ruf us pens a de m im interfi ra com o qu e eu posso fazer por
Rufus. S e sou capaz d e ajud ar um a pessoa, fazê- lo é tudo q ue q uero.
Estou acima e além da simples mesquinhez.”
Ambos ficaram quietos. Enquanto Norton olhava para a almofada
da cadeira, Johnson examinava mais de perto alguma interessante estam !
pa da enciclopédia. Sheppard, olhando-os por cima das cabeças, sorria.
Afi nal, ele tinha gan ho. O ra paz ia fi car. De braço est icado, deu u m a des !
m anchad a no cabelo de N orton e, no om bro de J ohnson, um tapinha.
"Agora, amigos, sen tem -se aí para se conhecer" , disse alegrem ent e e se
encam inhou para a porta. " Vou ver o que a Leola d eixou para o janta r.”
Quando ele saiu, Johnson levantou a cabeça e olhou para Norton.
O m enino, d esanimad o, retribuiu o olhar. " Cara" , di sse J ohn son n um a
voz dissonante, com o rosto ofendido e tenso, "como é que você agüenta
isso? Meu Deus ! Ele p en sa q u e ele é J esus Cristo! "

II

O sótão de S heppard era um cômodo gran de e inaca bado, ainda sem

luz elétrica e com os barrotes expostos. O telescópio, instalado por eles


nu m tripé a um a das janel as, apontava agora para o céu esc uro, onde
a lua, frági l c omo casca de ovo, tinh a acabad o de sair de um a nu vem
cuj as bordas prateadas br il havam . Um lam pião a querosene, posto em
ci ma de um baú, projetava sua s som bras para o al to, enleand o-as a
trem ular no madeirame. S hepp ard estava sentado nu m caix ote, olhand o
pe lo tele scópio, e Johns on, po r trás dele, esp erava su a vez. S hep par d o
comp rara dois di as antes, por q uinze dólare s, num a loja de penhores.
"Deixa de ser egoísta", Johnson disse.
Sheppard se levantou, cedendo o caixote a Johnson, que pôs seu
olho no instrumento.
Shepp ard sentou -se n um a cadeira reta, que estav a perto. S eu rosto
trans bordava de pra zer. Aquela parte de s eu son ho era realidade agora.
No decorrer de urna sem ana, já possibi li tara à vi são do rapaz, por um
estreito cana l, chegar até as estrelas. Com a mais com pleta s atisfação,
olhou para Johnson, curvado de cos tas, que u sava um a cam isa xadrez,
de Norton e a nova calça cáqui que ele já lhe comprara. O sapato ficaria
pront o na sem ana seguinte. Logo o levara à l oja de ortop edia, um dia
após sua chegada, para tirar a medida. Johnson era tão suscetível quanto
àquele pé como se f os se um obje to sagrado . Quando o atendente o med iu
com m ãos p rofanas, era um jovem d e careca rosa e bri lhante, seu rosto se
anu viou. O sapato ortopédico fari a enor m e diferenç a nas atitudes do rapaz.
Até mesmo crianças de pés normais tomavam-se de amor pelo mundo
depoi s d e ganhar u m novo p ar de sapato s. N orton, quando is so l he acon !
tec ia , passava dias dand o voltas sem tirar os olhos dos pés.
Atrav és d o côm odo, S hepp ard o lhou para seu fil ho. S entad o no chão,
de cos tas nu m b aú, el e estava envolvido nu m a corda qu e achara e enrola ra
nas pernas, dos tornozelos aos joel hos. P areci a t ão distante qu e Sheppard
bem pod eria estar a esp iá- lo pelo l ado errado do telescó pio. Só um a
ve z, desde que Johnson estav a com el es, teve de bater no m enino - na
primeira noi te, quando Norton se deu conta de que Johnson ia dorm ir
na cam a de sua mãe. S hepp ard n ão acredi tava que bater em cri anças,
sobretud o com raiv a, adi antasse. C ontrad isse- se p orém nos dois caso s, nes !
sa noi te, com bons resultados. N ão tinh a tido mais problema s com Norton.
O m enino não d emonstrara nen hu m a generosi dade explí ci ta para
com Johnson, p arecendo r esignar-se ao qu e não pod ia ev itar. P ela s
manhãs Sheppard mandava os dois para a piscina da Associação Cristã
de M oços, dava-l hes dinheiro para o almoço na lanchon ete e instruía !
os a encontrá-lo à tarde no parque, para assistirem aos seus treinos de
beisebol. To das as tardes, ao pa rqu e el es chegavam cal ados, and and o a
contrag osto e imersos em seus respecti vos pensam entos, como se um
nem desse pela exi stência do outro. M as Shepp ard pod ia agrade cer, pelo

menos, por não haver brigas.


Norton não manifestou interesse pelo telescópio. "Não quer subir
e olhar p elo telesc ópio, N orton? ", pergu nt ara-lhe o pai, irri tado po r não
ver em seu fi lho ne nh um sinal de curiosi dad e intel ectual. "Ruí us vai te
deixar p ara trá s."
Norton se i ncli nou para a fre nte, di straído, olhan do para as c osta s
de Johnson.
Johnson se virou do instrumento. Seu rosto estava começando a
ficar cheio de novo. O ar de ofensa, retirando-se das bochechas chupa !
das, agora se encolhia soment e nas cavernas dos olhos, com o um fugi !
tivo da bon da de de Sheppard . "Não per ca seu tem po p reci oso, menino" ,
ele disse. " Você já viu a lua um a vez. B asta."
Sheppard se divertia com essas bruscas tiradas de perversidade.
O rapaz resisti a a tudo q ue sus peitasse ten cionado para seus progressos e
ainda p or ci ma m aquinava, quan do realmen te i nteressado em algo , para
dar a impressão de entediar- se. Sheppard n ão estava enganado . Era em
segre do qu e Johnson aprend ia o que el e mai s qu eria ensinar- lhe - que o
benfei tor era imu ne a insultos e que não havia bre chas, na sua arm adura
de bon dad e e p aci ênci a, por on de u m a lança se inseri r com êx ito. “ Um
dia você aind a p od e ir à l ua" , di sse el e. " Daqui a u ns dez anos os hom ens
provavelmente farão viagens marcadas de ida e volta até lá. Vocês, rapa !
zes, pod erão ser hom ens espaci ais. Astron autas! "

"Astrolunáticos", Johnson disse.


"Lunático ou nauta", disse Sheppard, "é perfeitamente possível que
você, Rufus J ohn son , aind a vá à lu a".
Nas pr ofundezas dos olhos de Johnson, algum a coi sa se mexeu. Seu
estado d e espí ri to, o dia todo, fora de abatimen to. " Não vou à lua nem
chego vivo na lua" , el e disse, "e eu, qu an d o m orrer, vou pro inf erno. "
"Pelo menos é possível chegar à lua", Sheppard disse secamente.
A melhor m aneira de li dar com aqu ele tipo de coi sa era apelar para
um li gei ro ridí culo. "Podemo s vê-la. Sabemos qu e ela está lá . Já de que
exi sta inferno nin guém nu nca d eu p rova conf iáv el ."
"A Bíbli a p rova" disse Johns on com um ar m isterioso, " e qu em vai
para lá, qu and o m orre, arde para sempre. "

O m enino chegou -se m ai s p ara a fr ente .


"Quem disser que o infer no n ão exi ste" , John son disse , "estará co n !
trad izend o Je sus. Os mortos serão jul gados . Os maus, cond enad os à
danação, choram rangendo os dentes, enquanto queimam", prosseguiu,
"e as trevas são eternas."
O m enino abriu a boca. Pareci a estar de olhos oco s.
"Satã impera" , bra do u Johnson.
Norto n, puland o em pé, deu um passo v aci lante para junto do pai.
"Ela está l á?", pe rgu nt ou em voz alta. "Está se nd o qu eim ad a lá? " De um
chute, l ivrou-se da corda q ue ainda estav a em seus pés. "Está em fogo? "
"Oh, m eu Deus" , She pp ard res m un gou . "Não, não" , disse el e, " claro
qu e ela nã o está l á. R ufus se engana . Sua m ãe nã o está em parte algu !
ma. Ela não é infeliz. Ela apenas não é." A tarefa que lhe cabia ficaria
mais fáci l se tiv esse dito a Norton, q uan do a esposa m orreu , que el a foi
para o céu e q ue algum dia el e a veri a de no vo, mas e du cá- lo com base
nu m a m entira e ra algo que não se permiti a.
O rosto de Norton começou a se contorcer e no seu queixo se for !
mou um ca lombo.
"Olhe", Shep pa rd disse com p resteza, puxa nd o o m en ino p ara si , "o
espírito de sua mãe vive em outras pessoas e continuará vivo em você,
se voc ê for bo m e generoso com o ela fo i."
Desc rentes, os ol hos p áli dos d o m enino se end ureceram .
E a pen a de Sheppar d se transformou em repul sa. O garoto p refe ri a
tê-la no inferno do que nenhures. "Você entendeu?" ele disse. "Ela não
exis te. " Pôs a m ão s obre a cab eça do fil ho e a crescentou e m tom m ais bai !
xo, e xaspera do: " Isso é tudo o qu e eu ten ho p ara d ar a você, a verdad e. "
O m enino, em vez d e cho rar, safou -se dali para ir puxar Johnson pela
m an ga "Ela está l á, Rufus? ", peigun tou . "Está lá, ard end o na s cham as?"
Os olh os d e Joh ns on faiscaram . "Bem ”, ele disse, "ela está se ela foi
m á. E la era p uta?"
"Sua m ãe nã o era pu ta" perem ptoriament e interpôs-se S heppard . A im !
pressão de estar diri gindo u m carro sem frei os o d ominava. “ Mas vam os
acabar com essa conversa boba. Era da lua que estávamos falando..."
“Ela acre ditava em Jesus? ", John son per gun tou .
Nort on ficou confuso. Um segu nd o dep ois disse " Sim" , como se vis !
se que era o necessário. "Acreditava", disse. "O tempo todo."
"Não, el a não" , m urm uro u Shepp ard.
"Sim, o tempo todo", Norton disse. "Eu ouvi ela dizendo que acredi !
tava o tem po todo. "
"Então ela está salva", disse Johnson.

O menino ainda parecia intrigado. "Mas onde?" ele disse. "Onde ela
está agora?"
"Nas alturas", disse Johnson.
"Ond e é i sso? " N orton per gunt ou arq uejante.
"Em algum -lugar d o céu" , disse Johnson, " ma s você tem de m orrer
para po der ir pr a l á. N ão se pod e ir de n ave espaci al ." O br ilho de seus
ol hos se estrei tava c om o o de um holof ote m antido fi rme em seu alv o.
"A ida do h om em à lua" S hep pard dis se, já de cara am arrada, " tem
muita semelhança com a vinda do primeiro peixe que se arrastou da
água p ara a terra há b ilhões e bil hões de an os atrás. Ele não esta va apa !
relhado par a a vida terrestre . Tendo de criar suas adaptações p or dentro,
des envolveu os pu lmões. "
"Quan do eu m orrer eu vou pro inferno ou pra on de el a est á?", per !
guntou Norton.
"Se fosse agora, ia pa ra on de ela está, mas" , John son disse , "se você
viver muito, vai pro inferno."
Sheppard se l evantou abrup tam ente e apa nh ou o lampião. "Fec he
a janela, Rufus", disse ele. "É hora de ir para a cama."
Na escada, quan do desciam d o sótão, Johnson disse à s suas cost as,
em cochi cho a ud ível: "Deix a qu e am anh ã, qua nd o ele ti ver saí do, eu te
conto tudo" .

No dia seg uinte, quan do os g arotos foram ao beisebol no par que, S heppard
os viu chegar por trás da arquibancada e contornar o campo. Johnson,
com a m ão no om bro de Norton, tinha a cabeça i ncli nada s obre o ouvi do
do m ai s n ovo, em cujo rosto reinava um a expressão de confiança c om !
ple ta, de luz da aurora. No rosto de Sheppard, paten teou -se um esgar de
desagrado. Johnson tentava aborrecê-lo com aqueles modos. Ele porém
não se aborrec erí a. N orton não era assim tão bril han te para ter m uito
que estragar. Olhou para o rostinho do filho, tolamente embasbacado.
Por que tentar fazê-lo superior? Céu e inf erno d estinavam -se aos medíocre s,
e era isso que ele era , se é q ue er a algum a coi sa.
Os gar otos surgiram n a ar quibancada e s entaram -se a cerca de trê s
metros, de frente par a el e, ma s nã o d eram ne nh um sinal de o ter v isto. Ele
olhou p ara trá s, ond e os jog adores se espalhavam p el o camp o, e caminhou
para a arquibancada. Quando se aproximava, Johnson parou de cochichar.
"E então, o que foi que vocês fizeram hoje?" , pe rgu nt ou jovialmen te.
"Ele andou me contando que...", Norton começou.
Mas Johns on, com o cotovelo, cutu cou o m enino nas costelas. "Ah,
não fi zemos nada" , di sse. Seu rosto par eci a estar coberto p or u m verniz
de i nd if erença, pelo qu al trans parecia no entant o, blason ado com inso !
lênci a, um ar de cum plic idade.
Sheppard sentiu um a quen tura no rosto , mas n ão dis se nada. Uma
cri ança em uniforme d a li ga de beisebol tinha vi nd o atrás dele e c om
um taco o espetava na barriga da perna. Mal se v irou, el e passou o b ra !
ço pelo pescoço d o garoto, com o qu al fo i de volta ao jogo.
Nessa noite, qu and o foi par a o sótão, par a junta r-se aos g arotos n o
telescópio, encontrou seu filho sozinho. Norton estava sentado no cai !
xo te, dobrado à frente e olhando atentam ente atrav és do instrum ento.
"Ond e está Rufus ?", pergu nto u Shepp ard.
"Eu per gun tei on de está Rufus? ", disse ma is alto.
"Foi po r aí ", o m en ino r esp ond eu s em se v irar.
"Por aí onde?" , pergu nt ou Shepp ard.
"Ele só di sse qu e ia sair por aí . D isse qu e esta va cansad o d e olhar
estrelas."
"Entendo", Sheppard disse. Aborrecido, virou-se e retornou pela
escada para dentro d e ca sa, ond e em vão p rocurou p or J ohnson. Depoi s
ficou sentado na sala. Ainda na véspera estivera convencido de seu
sucesso com el e. Mas hoje já en carava a poss ibi li dad e de estar f racassan !
do. Tinha sido tolerante demais, preocupado como estava em ficar com
o rapaz. S ent iu um a pon tad a de culpa. Que diferença f azi a, se Johnson
gostasse dele ou não ? Que s ig nifi cava i sso para ele? Ah, quan do o rapaz
vol tasse, c ertas coi sas teriam de ser deixadas b em cl aras. Enq ua nt o esti !
ver ficando aqui, nada de sair à noite sozinho, entendeu?

Não ten ho de fic ar aqui. Não q uer dizer nada, para m im, fi car aqui.
Oh, m eu Deus, ele pensou. Não p od ia chegar a esse pont o. Teri a de
ser f irme, mas n ão de fazer um escândal o. Apan hou o jornal da tarde.
Se bon dad e e paciênci a sem pre eram nece ssári as, e le porém não esta !
va sendo suficientemente firme. Sentava-se segurando o jornal, mas
não lia. O rapaz nã o o respeitaria, a nã o ser qu e dem onstras se fi rmeza.
A camp ainha tocou e el e fo i ate nder. Abriu a port a e recuou com u m
rosto contrito de d ecepção.
Um polic ial m al- encarad o e p arrudo, com J ohns on agarrado p elo
cotovel o, post ava- se em li geira curvatura. Na esqu ina, à espera, um car !
ro de patrulha. O rapaz, branco feito cera, tinha o queixo esticado à
frente , como q ue par a imp ed i-lo de tremer.
!
"Vie mos aqu i primeiro, po rqu e ele f ez um a confusão m edonh a", di s
se o polici al, "mas, agora qü e o senh or o viu, vam os levá-lo à d eleg aci a
para fazer um as p erguntas a e le."
“Que foi que houve?", Sheppard balbuciou.
"U m a casa alí na esq uina, um po uco m ais adiante" , disse o polici al.
"Uma verdadeira arruaça, pra tos qu ebrados pelo chão, móvei s virados
de pés pra cima..."
"Não ten ho nad a a ver com isso !" Johnson di sse. "Eu ia passando po r
ali, c uidand o da m inha vi da, qu and o esse guard a apareceu e m e peg ou. "
Sheppard olhou para o rapaz com toda a severidade, sem fazer
nen hu m esf orç o para abr andar su a ex pressã o.
Johns on corou. " Eu só estava and and o po r lá", m urm uro u ele, mas
sem convicç ão n a v oz.
"Vam os lá, rapa z”, o p olicial disse.
"Você n ão va i d eixar ele m e levar não , não é?", di sse Johnson . "Você
acre dita em m im , não é ?" Nunca Sheppard tinha podido ouvir em sua
voz o ped ido de ajuda que ela agora ex pressava.
Era um m om ento cruci al. O rapaz teria de aprend er que nã o seri a

pro tegido q ua nd o fosse culpad o. " Você tem de ir com ele, Rufus" , di sse.
"Vai deixar que ele me leve qu and o estou te dizend o qu e eu n ão fi z
nada?", Johnson disse estridentemente.
Sheppard, à medida que se sentia mais ofendido, endurecia mais o
rosto . O rapaz lhe dava u m a decepção antes mesm o de ele ter ti do a chance
de lhe dar o sapato. Era am anh ã qu e deveríam bu scá-l o. T oda a sua tris !
teza se concentrou de repente no sapato; e sua irritação, à visão de John !
son, dobrou.
"Você deu a entender qu e tinha m uita confi ança em mim" , mur m u !
rou o rapaz.
“Eu tinha", Sheppard disse. Seu rosto continuava impassível.
Johns on segu iu com o p oli cial . Porém , antes de se virar, bem do fun !
do dos seus olhos um bril ho d e puro ód io partiu em d ireção a S heppard.
Sheppard, de pé à porta, viu-os entrar no carro de patrulha e afas !
tar-se. Arm ou -se então d e comp aix ão. Am an hã iria à del egaci a e v eria o
que pod ia f azer para tirá- lo da enrascada. Um a noite na cadei a n ão lhe
fari a m al e a experiênci a ensinari a que el e nã o po dia engana r impu ne !
men te alg uém que só lhe demonstrava bondad e. Depoi s i riam ap anhar
o sapato, que talvez, após a noite na cadeia, fosse significar ainda mais
para o rapaz.

Às oi to horas d a m anh ã segui nte, li gou u m tenen te da políc ia, dizendo


que el e pod ia ir apanh ar J ohnson. " O au tor do cri me, que já p rendemos,
é um neg ro" , dis se el e. "O rap az n ão t eve nad a a ve r com o cas o."
Em dez m inutos Shepp ard estava na dele gac ia , ro sto todo verm e !

lho de vergonha. Num a sala de espera bem som bri a, se ntado d eslei xa-
damente num banco, Johnson lia uma revista policial. Não havia mais
ninguém na sala . Sheppard sentou -se ao lado d el e e experimentou pô r-
lhe a m ão no ombro.
O rapaz ergueu o s olhos - de l ábi os repuxados - e tom ou a a baixá-
lo s n a revista.
Shepp ard sent iu- se fisi camente m al . A i nd ig nidade do q ue tinha
fe ito p esou -lhe com intensidade subitamente desanimadora. Ti nha fal !
tado ao rapaz bem no p onto em que o pod ería ter posto, de um a v ez

por todas, na direção certa. "Rufus", ele disse, "peço desculpas. Eu estava
errad o e você certo. Fiz m au ju ízo d e v ocê. "
O rapaz continuou le ndo.
"Desculpe."
O rapaz molhou o dedo e v irou um a pági na.
Shep pa rd se retes ou. " Fui um tolo, R ufus" , di sse.
A boca d e Johns on to rceu -se ligei ram ent e de lado. E ele deu de
om bros sem levantar a cabeça d a rev ista.
"Vamos esquecer isso?", disse Sheppard. "Dessa vez aconteceu, mas
não vai se repetir."
O rapaz ergueu os olhos, que brilhavam inamistosos. "Eu vou
esqu ecer, mas você" , disse ele, "é m elh or se lem br a r." Levan to u -se e alti !

vo foi para a porta. M as volto u d o m eio da sala e , nu m safanão, esten !


deu o braço a S hepp ard, que n ele se apo iou para levant ar-se e segui- lo,
como se o rapaz o p uxasse por u m a colei ra invi sív el.
"Seu sapato" , el e disse ansioso. " Hoje é o d ia de ap an ha r o seu s apa !
to!" Graças a Deus que havia esse sapato!
Porém, quando chegaram à loja, constataram que o sapato tinha
fi cado peq uen o, e o novo não estaria pro nto an tes de m ais de z dias.
O destem pero d e Johns on nã o se f ez e sperar. Era ób vio que o at en -
dent e, ao tirar a s med idas, c om etera um erro, mas ele m esm o insi s !
tia que seu pé h avia cresci do. E saiu da loja de ortoped ia com um a
expressão de conten tam ento, com o se o pé, ao expa nd ir- se, ti ve sse
agido por algum tipo de inspiração própria. No rosto de Sheppard, a
perturbação imperava.
Depois disso ele redobrou de esforços. Como Johnson tinha perdido
o inter esse pelo tele scópi o, c om prou um microsc ópio, com um conjunto
de lâminas preparadas. Se com a imensidão não conseguira impressio !
ná -lo, tentaria agora com o infi nitesi mal. P or d uas noites Johnson pare !
ceu absorto no novo instrum ento, mas dele também se desi nteressou de
repente. Gostava no entanto de sentar-se na sala, de noite, lendo a enci !
clo pédia. Devorava a en ci clopédia com o d evorava o jantar, sem parar, sem
dar folga ao apetite. Cada assunto parecia entrar na sua cabeça para logo
ser desfe ito em pedaços e d espejado fora. Nada agra dava m ais a S hepp ard
do que o ver espichado no sofá, de boca fechada, lendo. Após duas ou
três noi tes assi m passadas, seu m odo de ver se recompôs. Sua confiança
vol tou. El e sabia qu e algum dia ainda se orgulharia de Jo hnson.
Na noite de quinta-fei ra Sheppard foi a um a reun ião da câmara
m unici pal. A c am inho, deix ou os g arotos n o cinema, e r ecol heu-os n a
vol ta. Ao chegarem em casa , diant e dela, à espera, estava um carro com
um a luz vermelha no teto, ac ima do p ára-bri sa. Doi s rostos m al- enca !
rados apareceram no carro, qu and o S hep pard os i lum inou com seus
faró is, ao d obrar n a entrada.
"Os policiais!", disse Johnson. "Algum negro andou fazendo arruaça
e el es vi eram m e buscar d e nov o. "
"Vamos ver d o q ue se trat a", Shepp ard m urm urou . P arou o carro
na entra da, des ligou os faróis e di sse: "Ent rem logo e vão d ireto pra cam a.
Eu cuido disso".
Ele desceu, an dou até o carro d a po lí cia e enfiou a cabeça n a janela.
Os doi s guardas, ambos cal ados, obs ervavam -no com u m ar de sagaci !
dad e no rosto. “Um a casa na esq uina da s ruas Shelton e Mi lls” , disse o
motorista. "Parece até que um trem pass ou po r dentro. "
"Ele estava no cinem a, no centro" , Shep pa rd disse. " Meu fil ho e sta va
com ele. Não tinha nada a ver com a outra invasão e não tem nada a
ver co m essa. Eu m e responsabil izo. "
"Se eu fosse o senhor", disse o qu e esta va mais p erto d ele, "nã o m e
responsabi li zaria por u m m oleque assim safado qu e nem ele."
"Eu já di sse qu e m e resp onsabil izo" S hep pard repetiu friamente.
"Da última v ez, v ocês com eteram um erro. Não com etam outr o ago ra. "
Os po liciai s se en tre olhara m . "Isso d aí nã o é com a gente" , di sse o
motorista, gi ran do a chave n a igni ção.
Shep par d en trou em casa e , no escuro, fi cou sen tado n a sal a. Não
susp ei tava de Johnson n em qu eria que o rapaz adm iti sse ess a hi pó !
tese. Tudo estaria perdido se Johnson pensasse que desconfiava dele
!
outra vez. Queria porém saber se o álibi do rapaz era irrefutável mes
mo. P ensou em ir ao quarto de Norton p ara pe rgun tar-l he se Johnson
tinha saído do cinem a. Mas isso ai nd a seria pi or. Johnso n aca baria por
saber o qu e ele andar a fazendo e se enfurec erí a. R esolveu então per !
guntar ao próprio Johnson. Seria direto. Pensando agora no que iria
dizer , l evanto u-se e d iri giu- se para a porta do quarto do rapaz.
A po rta se achava ab erta, como se ele fo sse esperado, mas John !
son já estav a na cam a. A l uz vind a d o corredor d ava somen te para
vislumb rar, sob o lençol , a forma d e seu corpo. Sheppar d se ap roximou,
ficou ao p é da cam a e disse: "A po lí cia já f oi. Eu disse qu e você nã o tem
na da a ver com isso e que eu seria responsável ".
Do travesseiro partiu um "Tá" murmurado.

Sheppard hesitou. "Rufús", ele disse, "por acaso você não saiu do
ci nem a para n ada n ão, não é? "
"Você fi nge qu e tem e no rm e confiança em mim" , disse um a voz
subitam ente ofendi da, "mas não tem nen hu m a! Não confi a em m im
agora, c om o antes n ão con fi ou !" A v oz, desen corpad a, parecia ema !
nar m ai s cl aram ente das pro fundezas de J ohn son do q ue qu ando
seu rosto era vi sível . Era u m grito d e repro vação, orlado de um
ligeiro desprezo.
"Confi o em você sim" , Shep par d disse ardorosam ente. " Tenho com !
pleta confiança em você. Ac redito sem restri ções na s ua palav ra. "
"Você vi ve é d e olho em m im o tem po todo" , dis se a v oz em bur !
rada. " Depoi s d e m e pergun tar um m onte d e co isas, você sem pre atra !

vessa o corredor e vai ao quarto de Norton pergun tar outras tan tas .”

581
"Não tenho a meno r intenção de pergun tar nad a a N orton e nunca
fiz isso", Sheppard disse gentilmente. "Não desconfio de você não. No
tempo de que dispunha, não dava para você vir do cinema no centro,
invad ir um a casa por aqu i e depoi s voltar para lá ."

"E assim que você acredita em mim!" exclamou o rapaz. "Porque


acha que eu não tinha como faze r"
"Não, não" , di sse S hep par d. " Acredito em vo cê p or acred itar qu e tem
cérebro e firmeza de caráter para não querer se meter em confusões
novam ente. A credito que já se conh eça basta nte bem a essa altura para
saber que não precisa fazer tais coisas. Acredito na sua capacidade de
faze r de você m esmo aquil o qu e bem qui ser !'
Johnson sentou -se. U m a luz frac a brilhava em sua testa , mas o
resto de seu rosto era invisível. "E eu podería ter entrado lá, se tivesse
quer ido, no tem po de q ue d ispunha" , el e di sse .
"Sei mu ito bem qu e nã o entrou" , di sse S hepp ard. " Não ten ho a
m enor som bra de dúvi da. "
Fez-se silêncio. Depois a voz, baixa e roufenha, como se estivesse
sendo forçada a sair c om difi culdade, di sse: "Ni ngu ém qu e já tem tu do o
que qu er vai querer rou bar coi sas e faze r quebra-quebra" .
Shep pard p rend eu a respiraç ão. E ra um agradecimento! O ra paz
estava lhe agrad ecend o! Havia gratidão e consideração n a voz dele . Ali
em p é, sorri ndo tolamente no esc uro, tentou m anter o m om ento em
susp ensão. Involun tariam ent e deu um passo em direção ao trav essei ro,
estic ou o br aço e pôs a m ão n a testa de Johnson, qu e estava fri a e seca
como ferro enf errujado.
"Eu entendo. Boa noite, filho", ele disse e se virou rapidamente e
saiu do quarto. Fechou a porta atrás de si e, dominado pela emoção,
quedou-se um instante.
A porta do q uart o de Norton, do outr o l ado do corredor, estava
aberta. O me nino, deitado de lado, ol ha va para a l uz q ue entrava.
O cam inho com Johns on, dep oi s daq uilo, ia ser fá cil.
Norton sentou -se na cam a e f ez um si nal c ham and o- o.
Sheppard, que custara a ver o ñlho, não deixou que seus olhos se
focassem diretamente nele. Não podería entrar e ir conversar com Norton
sem p erder a confiança de Johnson. H esitou, mas p erm aneceu ond e estav a,
por u m mom ento, c omo se nad a v isse. Aman hã era o dia em q ue tinham
de vol tar para ap anhar o sapat o. S eri a o dím ax do b om entendi mento
entre el es. Virou-se pois rapidam ente e voltou p ara seu p róprio quarto.
O m enino, sentado ainda algum tempo, fi cou olhand o para o lugar

em que o pai estivera. Finalmente seu olhar perdeu o objetivo e ele


voltou a deitar- se.
No dia seguinte Johnson se manteve calado e carrancudo, como se
esti vesse com vergon ha d e ter se aberto. C om u m a expressão sombria
nos olhos, pareci a recolhido em seu íntimo, atrave ssand o u m a cri se deci !
sori a. S hepp ard n ão conseguiu chegar à loja de ortoped ia com a rapidez
desejada. Deixou Norton em casa, para não ter sua atenção dividida, pois
queria fi car l iv re p ara obs ervar atentamen te a reação d e Johnson . O rapaz
não p areci a contente, nem sequer intere ssado no sapato em qu estão, que
ao se tom ar fato concret o, no entan to, por certo o comovería.
A l oja de aparelhos ortopédi cos era um pequ eno depósi to de con !
creto, entulhado de equipamentos para deficientes. Cadeiras de rodas

e andadores cobriam a maior parte do piso. Muletas e cintas dos mais


diversos feitios eram expostas nas paredes. Nas prateleiras estocavam-se
membros artificiais, pernas, braços, mãos, e ganchos, garras, correias e
arreios humanos, instrumentos inidentificáveis para deformidades sem
nom e. Num a p equ ena clarei ra, no m ei o d a loja, ha via um a fi la de cadei !
ras de pl ásti co amarelas e um ban qu inho para experim entar sapato s.
Jo hnson se jogou num a del as e pôs o pé no banq uinho, olhan do-o
am uad o. Um novo rasgo, mais ou m enos on de fi cava o dedão, havia
sido remendado por ele com um pedaço de tela; já o que lhe serviu
pa ra fazer o remend o, n um outro lugar, par eci a ser a lí ngu a do or igi nal
sapato. Os doi s lados estavam unidos com b arban te.
Um rubo r de animação ocup ou o rost o de S heppard , cujo c oração

bat ia c om inat ural rapidez.


O atenden te surgiu dos f undos d a loj a com o sapato no vo nas m ãos.
"Dessa vez sa iu dire ito !", di sse ele. Pôs-se a cavalo no ban qu inh o e ergueu
o sapato à mostra, sorrindo com o se o ti vesse f ei to aparecer po r mágica.
Era u m objeto informe, preto, lustroso, que brilhava h orrivel m ente.
Pareci a um a arm a ceg a, mas p oli da em exc esso.
Johnson o olhou sombríamente.
"Com esse sapato" , o aten den te disse, "você ne m sentirá estar an da n !
do. V ai pensa r qu e está voand o!" Curvando -se, sua carec a co r-de-rosa a
lamp ejar em destaque, c om as pontas d os dedos ele des fe z o laço do cor !
dão e descalç ou o sapato velho, como se esfol asse um anim al ainda m eio
viv o. Sua expressão era tensa. A mas sa des guarnecida de pé na m eia suja
causou certa repugnância a Sheppard, que d esvi ou os olhos para longe
até já e star coloc ado o sapato n ovo. R apidam ente o atend ente deu o l aço.
"Agora se lev ante, and e um pou co e veja se não é q ue n em vôo p la nado" ,
disse el e, piscando o olho par a Sheppar d. " Com esse sapato" , ac rescentou ,
"el e nem perceberá que n ão tem um pé normal ".
O rosto de Shepp ard se i lum inou d e pra zer.
Johnson deu alg uns passos em volta. Anda va duro, prati camente
sem cair para o seu lado mais curto, e de repente estacou, rígido, de
costas para eles.
"Maravilha! ", Shep pa rd d isse. "Ficou u m a m ar avilha!" Era com o se
el e tiv esse dado ao rapaz u m a no va espinha dorsal .
Johnson se vi rou. Ti nha a bo ca repu xada n um a li nh a fina e gela !
da. Voltou para a cadeira, tirou o sapato novo, enfiou o pé no velho e
começou a am arrá- lo.
"Quer levar para casa e fazer um a experiência primeiro ?" mur m u !
rou o atendente.
"Não" , J ohn son disse. "Não vou us ar isso não. "
"O que é que há?", disse Sheppard, levantando a voz.
"Não estou precisando de sapato novo", Johnson disse. "Quando
esti ver, eu m esm o tenh o com o consegui d' S eu rosto estava emp edern ido,
mas nos olhos havia um bril ho d e tri unfo .
"Vem cá , r apaz, s eu p roblema é no pé ou na cabeça? ” perguntou
o atendente.
"Cabeça? Ponh a a s ua em baixo d'água" , John son dis se, "po rqu e é ela
que está quente."
O atendente se ergueu m al- hu m orad o, mas com d igni dade, e per !
guntou a Sheppard o que fazer com o sapato, que ele balançava, desa !
nimado, pelo cadarço.
O rosto de S hep pard estava de um verm elho escuro e zangado.
Ele olhava reto em frente para u m b raço artifi ci al que saía de um col e !
te de couro.
O atendente perguntou novamente.
"Emb rulhe" , mu rm uro u Sheppard , olhand o agora par a Jo hnson . "Ele
ainda não está sufici entem ente m adu ro par a is so ", di sse. "Pensei que
fosse menos criança."
O rap az o olh ou de soslaio e disse : "Você já se eng an ou ante s".

Nessa noite, como de hábito, sentaram-se na sala para ler. Sheppard, rabu-
gentamen te entrinchei rado p or trá s do Ne w York Tim es dominical, que !
ri a recuperar seu bom humor, mas toda vez qu e se lembrava do sapato

reje itado sentia um no vo surto d e irri tação . Nem sequer se perm iti a olhar
para Johnson. Dava- se conta de q ue o rapaz o recusara po r esta r inseg uro.
Johnson tinha ficado assustado com su a própria grati dão. Não sabia o que
fa zer da no va personalidade da q ua l se tom ava consci ente. Com preen dia
que alg o q ue h avia si do ele estav a am eaçado e d efrontava- se p ela pri meira
vez consigo mesmo e com suas possibilidades. Estava questionando sua
identidade. R elutantemen te S hepp ard sentiu l ig ei ro r etom o d e sua simpa !
tia pelo rapaz. E m pou cos m inut os, abaixand o o jornal, olho u par a el e.
Johnson, sentado no sof á, olhava p or cima d o top o d a encicl opédia,
com u m a expressão de estar em transe. Pode ria e star prestand o aten !
ção em alg um a coi sa m uito di stante . S hepp ard ob servou -o bem , mas
o rapaz continuava absorto e não virou a cabeça. Esse pobre menino

está perdido, pen sou Shep pard . E e le tinh a fi cado ali toda a noite, l end o
m al- hu m orad am ente o j ornal, e não dissera um a palavra para desf azer
a tensão. "Rufus", disse então.
Johnson permaneceu como estava, imóvel, atento.
"Rufus" , di sse Shepp ard nu m a voz ba ixa e hipnót ica, "saiba qu e
você pod e ser qu alquer coi sa qu e quiser no m und o. P ode ser c ie nti sta,
engenh eiro, arquiteto e, seja o qu e for que r esolv a, na carreira qu e tiver
escol hido pod e ser o m elhor" Im aginou su a v oz p enetrand o no rapaz
pelas obscuras cavernas da psique. Johnson se inclinou à frente, mas
seus ol hos não se vi raram . U m carr o bateu a p orta na rua. Houve um
sil ênci o. E depois um súbito to qu e na s ineta da casa.
Sheppard, de um pulo, correu para abrir a porta. O mesmo poli !
cial que já tinha vindo antes lá estava plantado. Na esquina, o carro de
patrulha esperav a.
"Que ro ver o rapaz", ele disse.
Shep pard franziu o cenho e s e pôs de lado. " Ele passou a n oite toda
aqu i" di sse. " Sou eu qu e estou atestando. "
O policial entrou na sala. Johnson parecia mergulhado em seu livro.
Um segundo depois ergueu a vi sta com um a expre ssão cha teada, como u m
grande hom em interrompido em seu trabal ho.
"O qu e é que você estava olhand o na quela janela de cozi nha lá na
Winte r Av enu e m eia hor a atrás, hein, parc ei ro? ", per gun tou o guarda.
"Deixe de p ers eguir o garot o!" She pp ard disse. "Atesto qu e ele estava
aqu i porqu e eu estava aqui com ele."
"Você ouviu" , disse J ohn son . "Est ive aqu i o tem po t odo."
"Não é q ualqu er um qu e d eix a pegadas com o você" o polic ial di sse ,
e olhou par a o pé torto .
"Não p od em ser pegadas del e", gru nh iu furioso S hep pard . "Ele não
sai u d aqui um instante. O senh or está perdend o o seu tem po e fa zen !
do -no s perd er o nosso ." Sent iu qu e o no ss o selav a sua solidari edad e com
o rapaz . "Est ou cans ado disso ", el e disse. "Vocês sã o m uito pregu içosos
par a sair po r aí e descobrir que m realm ente an da fazendo essa s coi sas.
Vocês vêm aqu i autom atic ament e. "
O polici al, ignorand o isso , c ont inuou de olho em Johns on. P erscru -
tava-o, com olhos qu e no s eu rosto c arnud o eram pequenos e al er tas.
Finalment e se virou e cam inhou par a a porta. "Mais cedo ou m ais tarde
vam os p egá-l o", disse, "com a cabeça n um a jane la e o rab o de for a."
Shepp ard o acom pan hou até a por ta, que bateu com tod a a fo rç a.
Seu esp íri to estava nas alturas. Era exatam ente d e um a coisa assi m q ue
ele necessitava. Voltou com o rosto cheio de esperança.

Johnson tinha abaixado o livro e, ainda lá sentado, lançou-lhe um


olhar malicioso. "Obrigado", disse.
Shep pard parou. E ra pred atória a ex pressão d o rapaz, que o olhava
ostensiv amente de banda.
"Até que vo cê n ão é m au mentiroso", disse el e.
"Mentiroso?" , mu rm uro u Sheppard . C om o assim, será que ele pod ia
ter saído e vol tad o? S ent iu-se mal, pou co antes de u m ímpeto de raiv a
arr ojá-lo à frente. " Você saiu daq ui?"
O rapaz se limitou a sorrir.
"Você foi lá no sótão para ver o Norton, não é?"
"Não" Johnson disse, "ele está biruta. Não quer fazer mais nada, só
olhar pela droga do telescópio."

"Não quero saber de Norton", disse Sheppard rispidamente. "Onde


você estava?"
"Sentad o naq uela pr iv ada cor-de-rosa sozi nho" , Johns on di sse. " Não
há t estemunhas. "
Sheppard tirou seu lenço do bolso e enxugou a testa. Conseguiu sorrir.
Johns on re virou os olhos e disse: "Você não acredita no qu e eu digo,
nã o é? ". Sua voz, como n o qu arto escuro, du as noites antes, soou rachad a.
"Finge ter toda essa c onfi ança em m im, mas não tem nenhu ma. Quan do
as c oi sas esquen tarem m esm o, você há de su m ir como todos. " O tom se
tornou exagerado e côm ic o, em cl amorosa zom baria . " Não acredita, não
tem mesm o confiança em mim" , l astim ou- se ele. "E não é m ais esperto do
qu e o poli ci al. Aquela história de pegadas - era pur a arm adilha. O lugar
lá é todo ciment ado nos fundos e os m eus pés es tavam sec os ."

587
Lentam ente Shepp ard pôs o lenço no bolso. Desabou n o sofá , ol hou
para o tapete a seus pés. O pé torto do rapaz estav a em s eu cam po de
vi são e era com a própria c ara de J ohnson que o sapato remend ado
parecia ri r dele . Abalado p or um trem or de raiv a, agarrou-se à beirada
do sofá , com os nos dos dedos m uito brancos. E odiou o sapato. Odiou
o pé. Odio u o rapaz . Seu rost o em palideceu . A raiva o su focava. Ele esta !
va horrorizado consigo mesmo.
Mas pôs a m ão no om bro d o rapaz, como se foss e para não ca ir, tal a
força com qu e se ap oiou, e disse: "Sei qu e você só foi olhar na qu ela janela
para m e cri ar embaraço s. T udo o q ue qu eria era i sto - abalar minh a deci !
são de ajudá-lo, mas minha decisão não se abalou. Sou mais forte do que
você. S ou m ais fo rte do q ue você e vou salvá-lo. O bem triunfará” .
"Não se nã o for verdade", disse o rapaz . "Não se não estiver ce rto. "
"M in h a decisão n ão se abalou" , Shep par d rep etiu. " Eu vo u salvá- lo. "
A expressão de Johnson tornou-se sonsa outra vez. "Não, não vai
me. salv ar" , disse ele . "Vai é m an da r q ue eu saia des ta casa. Fui eu t am !
bém que fi z as outras duas bagunças - tanto aqu ela primeira como a
que fiz quan do devia estar no cine ma."
"M an d á-lo em bora? Ja mai s", Shep pard dis se. S ua voz soava m ecâni !
ca, atonal. "Vou é salvá-lo."
John son esp ichou a cabeça. " Salve- se vo cê m esmo", cic iou. " A m im
nin gué m po de salv ar, só J esu s."
Shepp ard deu um a risadinha e disse : “Ah, você nã o m e engan a! Isso
eu tirei da sua cabeça ainda no reformatorio. Disso ao menos o salvei".
Os m úsculos do rosto de Johnson se re tesaram. O olhar de repulsa
endu receu- lhe o sem bla nte de tal mod o qu e Sheppard chegou para trás .
Os olhos do rapaz eram como espelhos deformantes nos quais ele se
via agora rep elente e grotesco. "Pois vou lhe m ostrar ", sussurr ou Jolm -
son, que abruptam ente se le vantou e cam inhou para a porta, como se

esti ve sse louco para s um ir da vi sta d e S hepp ard, mas foi pela porta qu e
dava para o corredor dos fundos, e não pela da frente, que ele saiu.
Viran do -se n o sofá, Sheppa rd o fitou pelas costas até o rapaz d esaparecer.
Depoi s, ouviu a porta d o qu arto d el e bate r. N ão, não estava indo em bora.
A i ntens idade se esv aíra dos olhos de Sheppard, qu e se mostravam t otal !
mente desprovidos de vida, como se o choque das revelações do rapaz
só agor a lhe atingi sse o centro da consciência. "Se ao m enos ele se f oss e",
m urm urou . "Se ao men os se f osse ag ora, por vont ad e própri a. .."

No dia segui nte Jo hns on ap arec eu p ara o café-da- m anh ã vesti ndo o
terno do avô no qual tinha chegado. Sheppard fingiu não notar, mas
um simples olhar lhe disse o que ele estava sabendo, que caíra numa
armadil ha, que n ada p odería haver agora senão a guerra de nervos que
Johns on iri a ganhar. Seu desejo era jam ais o ter v isto. O fr acasso de
sua compaixão o entorpecia. Saiu de casa assim que pôde e o dia intei !
ro temeu retornar à noi te. Ti nha u m a vaga esperança de que, quand o
vol tasse, o rapaz já pud esse ter partido. O te m o d o avô talvez fo sse um
sinal de qu e ele e stava i ndo embora. Na parte da tard e a esperança de
Sheppard cresceu. Quando ele abriu a porta da frente, ao chegar em
casa, seu coração batia acelerado.
Quan do parou no corre dor, dan do u m a olhada sil enci osa na sala ,
sua expressão expectante se desfez. Seu rosto tornou-se bruscamente

tão velho quanto seu cabelo branco. Os dois garotos estavam sentados
ju n t o s n o s ofá, le n d o o m e s m o li vr o . O r os t o d e No r t o n s e a p o ia va j u n !
to à m anga do terno p reto de J ohnson , c ujo dedo corri a sob as li nhas
qu e el es estavam lendo. O irmão m ais velho e o mais novo. S hep pard
olhou para essa ce na, po r quas e um m inuto, sem expressão. Em seguida
entrou na s ala e tirou o paletó, que deixou cair nu m a cadei ra. S em q ue
ne nh um dos g arotos o notasse, foi então p ara a cozi nha.
Todas as tardes Leola deixava o jantar no fomo, antes de sair, e ele o
pôs na mesa. S eus nervos es tavam tensos e ele com do r de cabeça. Sento u-
se no banco da cozinha e lá ficou, afundado na sua depressão. Peigunta-
va- se se consegui ría enfure cer Johnson a pon to de fazê-l o ir em bora p or
vontade própria. O que mais o havia enraivecido, na noite anterior, foi a

questão de Jesus. Questão que, se em Johnson despertava ódio, a ele só

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deprimia. P or qu e não p edir simplesm ente ao rapaz q ue se fo sse? Admitir a
derrota. A i déia de enfrentar Johnso n de n ovo, c ara a cara, dava-lhe grand e
mal- estar. O rapaz o tinh a olhad o com o se fosse ele o cul pado, com o se ele
fosse um a excrescê ncia moral. E ele , sem p resunção, sabia ser um hom em
bom , qu e nada tinha a se reprov ar. Seus sentim entos em relação a Johnson
eram agora involuntários. Gostaria de lhe ter compaixão. Gostaria de ser
capaz de ajudá-lo. E ansiava pelo tempo em que não havería mais nin !
guém na ca sa a não ser el e e Norton, em que o único problema a enfre ntar
seri a o simples egoísmo do fi lho, além de s ua pr ópria soli dão.
Levantou-se e foi até o fogão com tigelas que apanhou na prate !
lei ra e nas quais p reparou para s ervi r o feijão- m ant eig a e o guisado.
Quan do a com ida já estav a na mesa, c ham ou-os.
Consigo eles trouxeram o livro. Norton mudou de lugar, passando
para o lado d a mesa em que estava Jo hnson, em cuj a cadei ra encostou
bem a sua. Ent re ele s, sentad os, o s dois pus eram o l ivro, qu e era um
livro preto com beiradas vermelhas.
"O qu e é que estão le ndo?" , Shep pard pergu ntou , sentand o- se.
"A Bí blia Sagrada" , disse John son .
Que Deus m e dê forç as, Shepp ard p ediu em seu í ntimo.
"Afanamos n um a lojinha" , disse Johns on.
"Nós? ", Shep par d m urm uro u, vi ran d o-se par a encarar o fi lho. O rosto
do m enino resp landeci a, ha via um lam pejo de agitaçã o em seus olhos.
Pela primeira vez a mudança nele ocorrida o impressionou. O menino
parecia estar c om mais en ergi a. S end o az ul sua camisa x adrez , mais int en !
so do qu e nu nca brilhava o azul dos seus ol hos. U m a vi vaci dad e estranha
e nova o envolvia, sinal de novos e mais escabrosos vícios. "Então agora
você deu pra roubar?", indagou irritado. "Não aprendeu a ser generoso,
mas apren deu a rou bar ."
"Não foi ele não", disse J ohn son . "Qu em afano u fui eu. E le só ficou
vendo, porqu e não p ode se suj ar . Para mim, j á que eu vo u m esm o para
o inferno, é q ue nã o faz dif erenç a. "
Shepp ard se m anteve cal ado.
"A nã o ser" , John son disse , "qu e eu m e arrepen da."
"Arrepen da-se, R ufus" , disse Nort on n u m a voz s up licante. " Se nã o
qu er i r para o inferno, é melho r se a rrepender"
"Vamos parar com essa bobagem", Sheppard disse, fechando a cara
par a o fil ho.
"Se eu me arrepender", disse Johnson, "vou ser pastor. Se for para
fazer m esm o a coi sa, nã o tem sent ido fi car pe la metade. "
"E você, Norton, o qu e vai s er ", Shep pard pergu nto u com a voz n um
tom desagradável , "pregad or tamb ém?"
Os olhos do menino faiscaram de incontido prazer. "Homem do
espaço!", exclamou ele.
"Que ótimo! ", Shep par d disse com az edum e.
"Essas naves espaci ai s nã o vão faze r nen hu m bem , a não ser que se
acredite em Jesus", disse Johnson, que molhou o dedo e começou a pas !
sar as páginas da Bíblia. "Eu vou ler para vocês onde está dito isso."
Shep pard se i ncli nou para a frente e disse em voz furi osa e b aix a:
"Lar gu e ess a Bí blia, Rufus , e coma".
Mas J ohn son con tinuou a pro curar a passa ge m.
"Largue essa Bíblia!", gritou Sheppard.

O rapaz, detendo-se, ergueu a vista. Sua expressão, malgrado o


espanto, era de satisfação.
"Esse li vro é um a esp éci e de biom bo atrás do qu al você se esc onde" ,
Sheppard disse. "É para covardes, para gente que não se atreve a ter os
pés no chão e a descobrir as coisas por si."
Os olhos de Johnson fuzilaram. Arredando um pouco sua cadeira
da mesa, ele disse: "Satã te tem em seu poder. A você também, não só
a m im".
Shepp ard se esti cou sobre a m esa para ap anh ar o li vro, mas J ohn !
son, qu e o pu xou p ri m ei ro, o pôs no col o.
Shep par d r iu. " Você não acredita nesse l ivro, e sab e disso mu ito bem !"
"Acre dito sim! " disse Johnso n. " Você é qu e nã o sabe n o q u e eu acre !

dito ou não."

591

"m

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PPl
Sheppard balançou a cabeça. "Não é possível que acredite. Você é
m uito inteli gente. "
"Não sou inteligente demais", o rapaz disse. "Você não sabe nada a
m eu respeito. Mesm o qu e eu nã o acreditasse na B íbli a, além do m ais,
ela seria verdad eira. "
"Você nã o acredi ta! ", di sse Shepp ard , com o rosto cheio de escárnio.
"Acredito! ", Joh ns on disse, arfante. " Vou t e m ost rar com o acredito! "
Abriu o li vro no colo e arrancou fora um a página q ue enfiou direto na
boca, ol hos fix ados em Shepp ard. Com tal furor me teu -lhe os dentes,
que o papel estalava enquanto o mastigava.
"Pare com isso !", Shep pa rd disse em voz estafad a e seca. " Pare com isso ."
O rapaz, levantando a Bíblia, rasgou com os dentes outra página
que en tão pass ou a triturar na b oca, o lhos ardentes.
Shep par d se estic ou outra vez, e dessa to m ou -lhe o li vro das m ãos.
“Retire-se d a m esa" , disse friamente.
Johnson engoliu tudo o que tinha na boca. Seus olhos se arrega !
laram , como se em face dele se abrisse um a vi sã o d e esplendor. " Comi! ",
suspirou. " Com i como Ezequ iel , e fo i m el para a m inha boca! "
"Retire-se da mesa", repetiu Sheppard, de punhos fechados a cada
lado do prato.
“Comi! ", o rapaz b rad ava, de r osto t rans forma do po r m ilagre. " Comi,
como Ezequiel, e da vossa comida, depois disso, nunca mais quero saber"
"Ent ão vai, está b em ?" Shepp ard disse em tom concil iador. " Vai, va i."
O rapaz se lev anto u, pegou a B íbli a e com ela se encam inhou para
o corre dor. Na port a f ez um a pausa, negra e dim inuta figura no limiar
de algum negro ap ocal ipse. " O diabo te tem em seu poder" , disse nu m a
voz jubilosa, e desapareceu.

Depoi s d o jantar Sheppard sento u-se sozinho na sal a. Johnson saí ra

de casa, mas ele nã o con seguia acreditar que o rap az tiv esse simples !
m ente ido em bora. O prim eiro sentimen to d e ter f ic ado liv re passara.
Sentia- se fraco e estava c om fri o, com o n a instalação de u m a doen ça,
e a apreensão se di spersara po r el e como névoa. A penas ir emb ora,
como desfec ho, seri a p or dem ai s um an tic lí m ax para o gosto de
John son ; ele voltar ia e tentaria pro var algum a coi sa. Poder ia voltar
um a sem ana d epois e botar fogo na casa. Nada pareci a, agora, ser
ultraje excessi vo.
Apanhou o jornal e tentou ler. Mas logo o jogou de lado, levan !
tou -se, foi até o corred or e se pôs à escuta. D esconfiou d e qu e estiv esse

escond ido no sót ão e para lá segui u. Abriu a porta.


O lamp ião estava ace so e lançava na escad a um a résti a de l uz. Não
ou vind o nad a, el e cham ou: " Norton, é você que está aí? " Com o nã o ho uve
resposta, sub iu para ver p ela escadinh a estrei ta.
Em meio às e stranhas sombras rampan tes que o l am pião desenha !
va, Norton sentava-se de olho grudado no telescópio. "Norton" disse
Shep pard , "você sab e aon de Rufus foi ?"
O menino, de costas para ele, todo encurvado e atento, tinha as
orel has imensas pousadas diretamente sobre os om bros. De súbi to ele
acenou para longe e se achegou ainda mais ao tel esc ópio , como se não
conseg uiss e se aproximar bastante do qu e estav a vendo.
"Norton !" S hep par d disse em voz al ta.

O m enino nem se mexe u.


"Norton!" gritou Sheppard.
Norton, sobressaltado, virou -se. E ra inat ura l a c lari dad e qu e p aira !
va ao red or dos seus ol hos. Parece u ver q ue er a o pai, mas para isso l he
foi preciso um instante . "Eu achei ela! ", excl am ou , qua se sem fôleg o.
"Ela qu em?" , Shep pa rd dis se.
"Mam ãe!"
Shepp ard se aprum ou junto à porta. E m torno d e seu fi lho a selv a
de sombras se adensou.
"Vem ver! ", g ritou ele, enxu gan do a cara su ada na barr a da camisa
para logo se pôr de olho ao telescópio outra vez. Suas costas se torna !
ram fixa s, num a rígi da intensidade. S em mais nem menos el e acenou

de novo.
"Norton" , Shep pa rd d isse, "na da se vê p elo telescopio, além d as
constel açõe s. V ocê é qu e fic ou aq ui dem ais essa noite, é m elhor ir para
a cam a agora. S abe a ond e é qu e Ruf us foi ?"
"Ela está lá !", ele gritou, sem se virar do telescóp io. " Ela m e d eu
adeus!"
"Tem quinze minutos para ir para a cama", disse Sheppard. Logo a
segui r, acrescen tou : "Está m e ouvin d o, N ort on?"
O m enino começou a dar adeus sem pa ra r.
"Olhe be m o qu e estou dizendo" , Shep par d disse. "Dentro de qu inze
minutos vou bater lá , para ver se você já está na ca ma. ”
Desceu pela escada e voltou para a sala. Foi até a entrada da casa,
deu u m a rápida olhad a ao redor. O céu estava coalhado das estre la s
que tolam ente ele ac hou que Johnson p ode ría al canç ar. Um sap o- boi,
em algum canto do pequeno arvoredo que havia atrás da casa, emitiu
um a no ta baixa e cavernosa. E le, de volta ao seu lugar, sen tou -se aind a
alguns m inutos. M as resolveu i r para a cam a. Pô s as m ãos nos braços
da p oltrona para se levantar e ou vi u, como a primeira nota estridente de
um sinal de alarme, a si rene do carro de políc ia que lentam ente rodava
pela v izinhança e se aproximou de sua ca sa, diante da qual estaci onou
com um gemi do.
Ele sentiu um peso fri o nos om bros, como se l he jogassem p or
ci m a um a capa de gel o. Mas levantou -se e abriu a porta.
Doi s polic iai s vinh am pela cal çada, com Johns on n o terno preto
emar anhad o entre ele s e alge m ado a ambos. Um repórter c orri a atrás e
outro polici al fi cou à espera n o carro.
"Aqui está o seu rapaz", o mais durão dos guardas disse. "Eu não
fal ei qu e nós íamos pegá-lo?"
Johns on, enraiveci do , sacud iu de um pu xão o braço. " Eu est ava à
su a espe ra! ”, disse. "Você nã o ia m e pegar, se eu m esm o nã o qu isesse ser
pego. F oi i déia m inha. " Dirigi a-se ao gu arda, po rém olhan do de sos la io
para Sheppard.
Shepp ard olh ou -o frí amente.
"Por que você queria ser pego?", perguntou o repórter, correndo
agora pa ra se pôr ao lado d e Johnson. " Por que essa i ntenção deli berada
de cair nas m ãos d a políc ia? "
A pergunta e a presença de Sheppard pareceram arrojar o rapaz a
u m acesso de furia . "Pra mos trar pr a esse daí, qu e é u m Jesus de ar aqu e!"
disse el e, sibi lante, e deu u m chu te no ar em direção a Shep par d. " Ele
pensa que é Deus. Prefiro o reformatorio a estar na casa dele, prefiro

até i r pra cadei a! O d iabo o tem em seu poder. E le não disti ngue a mão
di rei ta da esquerda, não tem nem mesm o o bom senso do maluco do
fi lho dele! ” Fez um a pau sa e d erivou en tão p ara esta conclusão fantásti !
ca: " Até m e fez um as insinua ções!" .
O rosto de S hepp ard, que se apoiou na b eira da porta, bran queou .
"Insinuações?" , pe rgu nt ou avida m en te o repórter. "Qu e tipo de
insinuações?"
"Insinuações imorais!", Johnson disse. "De que tipo você acha que
são? Mas eu não quero saber disso, eu sou cristão, eu...”
"Ele sabe qu e isso não é v erdade" , di sse S hep pard em voz trêm ula,
com o rosto retorci do d e dor, "sabe q ue está mentindo. Tudo o q ue podia,
eu fi z p or esse rapa z. F iz mais po r ele do que po r m eu próprio fil ho. Tinha

esperan ça de s alvá-l o e frac assei , mas foi um frac asso honroso . A mim
mes mo, na da t enh o q ue r eprovar. A ele, nu nca fiz insi nuações. "
"Você se lem br a dessas insinuações? ", o repó rter p ergu nt ou. " Pode
nos dizer exatam ente o q ue ele di sse? "
"Ele é um ateu imu nd o” respond eu Johnson. " Disse que n ão h avia
inferno."
"Bem , agora q u e el es já se viram ", di sse um dos p olici ais, c om um
suspi ro de qu em havia entendido, "vamos an dand o?"
"Esperem ", Shep pa rd d isse. Desceu u m d egra u e fixou seus olhos
nos d e J ohns on, nu m último e d esesperad o esforç o par a se sal va r. " Diga
a verda de , Rufi is", disse el e. "Você nã o p od e qu erer s ust ent ar essa m en !
ti ra. Não é m á pessoa, só está é m ortalm ente confuso. Você nã o pr eci sa
de com pen sações p or causa d e seu pé, não p reci sa de. .."
Joh ns on s e arro jou à frente. " Olh em só o q u e ele di z!", gritou. "E u
minto e roubo porque ni sso eu sou bom. O meu pé não tem n ada a ver
eom isso! Os alei jados en trarão p rimeiro! Todos os man cos serão reu ni !
dos. Qua nd o eu estiv er pron to p ara ser sal vo, Je sus m e salvará, e não a
esse ateu m ent iroso e d espr ezível , não a ess e..."
"Já chega disso" , disse o guard a, pu xan d o-o p ara trás. "Só queríam os
qu e o sen ho r visse qu e o pegamos" , di sse então p ara Sheppard , e o s dois
se viraram e lá se foram arrastando Johnson, que, virado em parte, gri !
tava por su a v ez para Sheppard.
. "Os alei jado s carregar ão os desp ojos! ", be rro u aind a, m as su a voz,
de den tro do carro , já saiu abafada. O repórter pu lou no b an co da frente ,
coin o motorista, e bateu a po rta; a sirene gem eu n a esc uridão.
(Sheppard continuou ali, ligeiramente dobrado para a frente, como
um hom em q ue lev ou u m ti ro mas se ag üenta ai nda em pé. Um m inuto
depois entrou em ca sa e voltou a sentar- se na po ltrona de ond e há po u !
co saí ra. D e olhos fec hados, veio- lhe a ima gem de John son na delega cia,
\
rodead o d e repórte res, a inventar suas m enti ras. “Nada t enho qu e m e
reprovar", ele murmurou. Suas ações, todas elas, haviam sido desinteres !
sadas, seu ún ico objeti vo era salvá- lo, prep arar Johns on p ara algum t ipo
de trab alho d igno, e ele não se p oup ara, sac rif ic ou su a próp ria reputação,
fez mais por Jolmson do que jamais fizera por seu próprio filho. À sua
volta pend ia, como u m perfume n o ar, a sórdida perfí dia, tão p róxi m a
qu e parecia em anar de su a respira ção. "Nada tenh o q ue m e reprov ar" ,
repetiu. Sua voz soou seca e áspera. "Fiz mais por ele do que por meu
filho. " E foi tom ad o p or u m t rem or de p ânico. Ou viu a jubilosa voz d o
rapaz. Satã te tem em seu pod er.
"Nada te nh o q ue m e re provar" , recomeçou . “Fiz ma is po r ele do qu e
po r m eu fil ho. " Ou viu a pró pria voz com o se fosse a de seu acusador, e
em sil ênd o repetiu aind a a fr ase .

Lentamente seu rosto se descorou. Por baixo do halo branco do


cabelo, to m ou -se qu ase ci nza. A f rase , cada sílaba como u m golpe surd o,
lhe ecoava na mente. Sua boca se retorc eu e ele fec hou os olhos contra

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a revel ação. O rosto d e Norton lhe sur gi u p ela fr ente, c arente, desam pa !
rado, c om o olho esquerdo desl izando quase imp erceptiv el m ente para
a borda exte rna, c om o se i ncapaz de agüenta r um a vi são integral do
sofri mento. Seu coração se c ontr aiu com u m a repulsa tão clara e i ntens a
por si m esm o q ue ele preci sou to m ar fôl ego. Com boas obras, el e, como
um gl utã o, tinh a ench ido seu v az io. Ignor ara o pró prio fi lho para ali !
m enta r a imagem qu e fazi a de si . Viu o Diabo perspica z, o sond ador dos
cora ções, olha nd o-o de soslai o pelos olhos de Johnson. S ua im agem de
si se decompôs , não lhe restan do p ela fre nte, por fi m, senão a escuri dão.
Sentava-se ali paralisado, cheio de horror.
Viu Nort on ao telescópi o, vend o-lhe as costa s, as orel has, o braço
ergui do a acenar freneti camente. C om o u m a transfusão de vi da, um a
ond a de a m or afl ito pelo fi lho se preci pitou sobre ele . O rosto do m eni !
no lhe apareceu transformad o; era a imagem de sua própria salv ação,
toda de luz. A alegria o pôs a suspirar. Faria tudo por seu filho. Nunca
mais o deixari a sof re r. S eria pai e m ãe p ara ele. Levant ou -se d e um pulo
e fo i correndo ao seu qu arto, para beijá-l o, para diz er-l he qu e o am ava,
que nunca lhe faltaria outra vez.
A l uz es tava acesa no qua rto d e Norton, mas a cama, vazia. Ele se

vi rou, p reci pitou-se pela escada do s ótão e camb aleou p ara trá s, c he !
gand o ao topo, como alguém à beira de um desp enhad ei ro. O tr ipé
tinha caí do e o tel escópio estava no chão. Um p ouco além, na selva de
sombras, o men ino pend ia do barrote de ond e havia l ançado seu vôo
para o espaço .

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