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estava esc rito em seu rosto. I a ser ban queiro. Não, pior ainda. I a ser d on o d e
peq uen a financei ra, f azendo em préstimos. Tudo o qu e ele queria para o fil ho
era qu e foss e bo m e al truísta, ma s ne nh um a dessas carac terísti cas parecia
pro váv el. Shepp ard, send o ainda moço, já estav a de cabelo bran co, que pai !
rava como um halo estrei to apara do sobre su a face cor-de-rosa e sensí ve l.
O garoto se aproximou d o bal cão com o pote de pasta de am en !
doim d ebai xo do braço, trazendo nu m a das m ãos o ketc hup e na outra
um prato com um quarto de um p equeno bolo de c hocol ate. Nem pare !
ceu notar seu pai . S ubiu n o banco e começou a passar pasta de am en !
doim n o bolo. Ti nha orelhas de aba no, redondas e grandes, que davam
a i mp ressão de pu xar os ol hos à p arte , afa stando-os m uito um do outro.
Sua camiseta verde estava tã o d esbotada q ue d o caubói impresso no
desconcertado.
jií L
do rapaz - ato s d e vandali smo, como quebra r v idraç as, f urar pneus, pôr fogo
em latões de lixo, o tipo de coisa que faziam adolescentes abruptamente
transplantados d a roça para a cidade, como era o caso des se. Chegou ao qi
"Mas talvez fosse bom ", She pp ard disse com u m sorriso .
Johnson continuava a olhar além d ele.
"Que ro ver vo cê tirar o m áximo de s ua inteli gênci a" , di sse S hepp ard.
"O que é mais importante para você? Vamos conversar sobre o que é
importante para voei" Invol un tariamen te seus olhos se fi xaram n o pé.
"Exam ine e t ire a concl usão" , o rap az disse arrastand o as palav ras.
Shep par d corou. A massa preta d eform ada intum escia a seus ol hos.
Mas ele i gnorou essa fra se, bem como a olhad a qu e o garoto lhe d ava .
"Rufus ", di sse, "você se m eteu nu m m ont e d e encrencas s em s entido, mas
penso que, qu and o en tend er por qu e fa z essa s coi sas, sua incl inação a
fazê-l as será m eno r" Ele sorri u. Tinha m tão p oucos am igos, viam tão
poucos rostos agradáveis, que metade de sua eficiência não provinha
senão d e lhes so rri r. "Há um a p orção de coi sas sobre você m esmo que
acho qu e eu poss o lhe expli car" , di sse el e.
Johnso n lan çou -lhe u m olhar infl exí vel . "Não p edi expli cação
nenh um a" , di sse. "Já sei po r q ue é qu e eu faço o qu e eu fa ço ."
"Muito bem !" S hep pa rd disse . "Qu e tal então m e dizer o que é q ue
o leva a fazer as co isas q ue vo cê tem fei to? "
Um brilho ne gro luziu nos olhos do rapaz, qu e disse : "Satã. E le me
tem em seu poder".
Shep pard o olhou a fund o. N ão h avia ind ic ação em seu rosto de qu e
el e disse sse aquilo para ser engraçado. E ra com orgulho qu e os traços de
seus l ábios fi nos se defini am. Sheppar d, consolidada a vi são, sentiu u m
desespero m om entân eo e obscuro, como se esti ve sse em face de algum a
PODER? ARREPEND E-TE, OU Q UEIMA NO INFERNO . SÓ JESUS SAL VA. Claro que
ele , quer a lesse, quer n ão, saber ia a B íbli a. O excesso su cedeu ao deses !
pero de Sheppard. "Bobagem!", ele vociferou. "Estamos vivendo na era
espaci al . V ocê é m uito intelige nte para m e d ar u m a resposta des sa s."
A boca de Johnson se retorc eu um pouco. S ua expressão até que
era div ertida, m alg rado a pon ta d e desprezo. Um bril ho desafi ador se
perceb ia em seus ol hos.
Shepp ard exam inou -lhe com aten ção o rosto. On de havia i nteli !
gência, tud o era pos sív el. Sorriu d e novo; um sorriso que eq uivalia a
um convi te para o rapaz entrar nu m a sala de aula c om tod as as ja nel as
abertas p ara a claridade. " Rufus” di sse ele , "vou m arcar p ara você ter
um a conversa comigo um a vez por sem ana. T al ve z haja u m a expli caç ão
par a a sua expli cação. Tal ve z e u possa exp li car a você o s eu dem ônio. "
Depois disso, e pelo resto do ano, todos os sábados ele tinha con !
versado com Johnson. F alav a ao acaso, nu m tipo de conversa qu e o
rapaz n un ca teria ouvido antes. F alava nu m nível super ior ao dele, para
da r-lhe razões p ara se esfo rça r. Div agand o, passava d a simples psicol o !
gia e dos subterf ugi os da m ente hu m ana p ara a astronom ia e as c ápsu !
la s espaci ai s q ue est avam girando em torno da Terr a aci m a da veloci !
dade do som e qu e em breve circundariam estrel as. Por i nstinto ele se
concentr ou n as estrel as. Qu eria dar ao gar oto algo po r qu e se inte ressar ,
além d os ben s d a vi zinhan ça. Queria abrir seus hori zontes. Queria fazê-
lo v er o u niverso, ver q ue até em suas partes m ais obscuras era po ssível
penetrar . Te ri a dado qualqu er coi sa para ser c apaz d e pôr n as m ãos d e
Johnson um tel escó pio .
Johnson falava pouco, e o que dizia, por causa de seu orgulho,
acha va- se em discórdia ou contr adição sem senti do. N essas ocasi ões,
sempre p unh a o pé torto no joel ho, como arm a pronta para uso, mas
Shep par d nã o se decepcionava. Obs ervan do -lhe os ol hos, via qu e nel es,
de sem ana em s ema na, al gum a coi sa esbor oava-se. Pel o rosto do g aroto,
que se esti cav a, du ro p orém tocado, contra a luz q ue o atingia em cheio,
podia ver que estava chegando ao centro inerte.
Mas Johnson agora estava livre, injustiça gritante, para viver das
latas de li xo e redescobrir sua an tiga i gnorância. T inha sido m and ado de
volta para o avô, velho cuja imb ecil idade n em se pod ia i m agi nar. T al ve z
o garoto já tivesse fugido da casa dele. A idéia de obter a guarda de
Johnson ocorrera antes a Sheppard, mas a existência do avô se interpu !
sera a i sso . N ada o anim ava tanto com o pen sar no que pod ia f azer pel o
rapaz. Pri m eiro era preci so pro vi den ciar para ele um no vo sapato orto !
pédic o, porq ue suas costa s saíam m uito de pru m o, tod a v ez qu e dava
um passo. Era preci so tam bém incen tivá-l o a um a ativi dad e intel ectual
especí fi ca. Pensava mu ito no telescópio. Podería comp rar u m de segun !
da m ão, que inst alari am n a janela do sótão. Sent ou-se por quase dez
minutos pensando no que podería fazer se Johnson estivesse ali com
el e. O q ue falha va com Norton levaria J ohn son a fl ore scer . Na v éspera ,
quando o viu com a mão no lixo, acenou e fez menção de ir em frente.
Johnson também o viu e, antes de desaparecer com a rapidez de um
rato , deteve- se ainda um segundo, o bastante para Sheppard notar sua
expressão mud ada. E le estav a cer to de qu e algum a coi sa, de qu e alguma
Agac had o no quarto, ao fi car sozinho em casa e ssa tarde, N orton arru !
m ava pacoti nhos de sementes d e fl ore s, dispon do-os à sua volta em
fi le iras. A ch uva açoitava as vidraças da janela, gorgolejava nas cal has.
O quart o já estav a esc uro. Mas de vez em qua nd o o aclarav a um
sil encioso rel âm pago, ao qual os pacotinhos de sem entes se ex ibi am
aleg rem ente no chão. De repente, po nd o-se ele imóvel, com o um sapo
grande e descorado no meio daquele jardim em potencial, seus olhos
se deram conta: sem m ai s nem men os a chu va ti nh a parado. O sil ênci o
era op ressiv o, com o se o agua cei ro tivesse si do calado à forç a. I m óvel,
só com os olhos se m exendo, ele perm aneceu.
No sil ênci o o uviu-se o bar ulho inconfund ível de u m a chave gi ran !
então p egou o copo d e l ei te, qu e segurou com as duas mãos, como crian !
ça . Em torno d e sua boca, qua nd o o abaixou para t omar fôl ego, havia
um debr um de le ite . Ao devolver o copo vazio a N orton, em voz áspera
ele deu ou tra ord em: " Garç om , agora pega u m a laranja lá pra mim" .
Norton foi à cozinha e retom ou com a l aranja. Johns on des cascou-
a com as unh as, deix ando a casc a cair em cima d a cama, e com eu-a
devagar, cuspindo os caroços fora. Ao acabar, limpou as mãos no lençol
e lançou a Norton u m longo olhar de aprovaç ão. Aparentemente o se r !
viço p restado o am olecera. " Logo s e vê q u e você é fil ho del e", disse então.
"Tem a mesma cara de burro."
O garoto agü ent ou impa ssíve l, como s e não tiv esse ouvido.
"Ele nem distingue, nele mesm o, a m ão d irei ta d a esquerda" , di sse
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balançarem. Ao mesmo tempo, ele estalava os dedos e rebolava. "Rock
and rol l", cantou. " Não cons igo qu e a am ad a/ salve m inha alma dan ada.
Roc k and ro ll." Movend o-se em tom o, bati a com o pé nor m al no chão e
jo g a va a o lo n g e o p e s a d o . D a n ç a va a in d a a s s im q u a n d o s a iu p e la p o r t a ,
lohnson olhou para cima, mas sem expressão na face. "Olá", disse
apenas. Enq uan to pôd e, ig noro u a m ão do outro. C omo Shepp ard n ão a
recol hia, acabou apert and o- a.
Shepp ard já estava preparad o p ara esse ti po de reação. Nunca
dem onstrar entusiasmo era parte da camu fl agem d e lohnson .
"Com o vão as c oisas? ", disse el e. "Com o seu avô está te trata nd o?"
Sento u-se na beira do sof á.
"Ele morreu", o rapaz disse com indiferença.
"Não m e diga! " excl am ou Shepp ard, l evan tan do -se par a ir sentar -se
mais perto do rapaz, na mes inha de centro.
"Não" , loh n so n disse, "nã o m or reu nã o. A nt es t ive sse. .."
"Onde é então que ele anda?" murmurou Sheppard.
"Foi pro m ato com u m a turm a" , lohn son di sse. "Ele e uns outros,
m orro a ci m a. Vão enter rar B íbli as n um a cavern a e pegar casai s de dife !
rentes espécies de anim ais. Uma s coi sas assim, qu e nem Noé. S ó qu e
dessa vez vai ser fogo, e não dilúvio."
A boca de Sheppard, querendo se esticar, se entortou. "Entendo", ele
disse. E acrescentou: "Em outras palavras, o velho maluco te abandonou?".
"Ele não é m aluco n ão” , disse o rapaz e m tom indignado.
"Ele te aband onou ou n ão?" S hepp ard pergu ntou com imp aci ênci a.
O rapaz deu de ombros.
"E o seu assistente social , ond e an da ?"
"Ele é que tem de m e acomp anhar", disse Johnson. "N ão s ou eu que
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Mas Norton, de repente, voltou à vida. Seu rosto se intumesceu,
furi oso. " Ele entro u n o qu arto dela e u sou o p ente d ela", gritou ele , des -
vencilhando-se do braço do pai. "Pôs um espartilho e foi dançar com a
Leola, ele..."
II
O menino ainda parecia intrigado. "Mas onde?" ele disse. "Onde ela
está agora?"
"Nas alturas", disse Johnson.
"Ond e é i sso? " N orton per gunt ou arq uejante.
"Em algum -lugar d o céu" , disse Johnson, " ma s você tem de m orrer
para po der ir pr a l á. N ão se pod e ir de n ave espaci al ." O br ilho de seus
ol hos se estrei tava c om o o de um holof ote m antido fi rme em seu alv o.
"A ida do h om em à lua" S hep pard dis se, já de cara am arrada, " tem
muita semelhança com a vinda do primeiro peixe que se arrastou da
água p ara a terra há b ilhões e bil hões de an os atrás. Ele não esta va apa !
relhado par a a vida terrestre . Tendo de criar suas adaptações p or dentro,
des envolveu os pu lmões. "
"Quan do eu m orrer eu vou pro inferno ou pra on de el a est á?", per !
guntou Norton.
"Se fosse agora, ia pa ra on de ela está, mas" , John son disse , "se você
viver muito, vai pro inferno."
Sheppard se l evantou abrup tam ente e apa nh ou o lampião. "Fec he
a janela, Rufus", disse ele. "É hora de ir para a cama."
Na escada, quan do desciam d o sótão, Johnson disse à s suas cost as,
em cochi cho a ud ível: "Deix a qu e am anh ã, qua nd o ele ti ver saí do, eu te
conto tudo" .
No dia seg uinte, quan do os g arotos foram ao beisebol no par que, S heppard
os viu chegar por trás da arquibancada e contornar o campo. Johnson,
com a m ão no om bro de Norton, tinha a cabeça i ncli nada s obre o ouvi do
do m ai s n ovo, em cujo rosto reinava um a expressão de confiança c om !
ple ta, de luz da aurora. No rosto de Sheppard, paten teou -se um esgar de
desagrado. Johnson tentava aborrecê-lo com aqueles modos. Ele porém
não se aborrec erí a. N orton não era assim tão bril han te para ter m uito
que estragar. Olhou para o rostinho do filho, tolamente embasbacado.
Por que tentar fazê-lo superior? Céu e inf erno d estinavam -se aos medíocre s,
e era isso que ele era , se é q ue er a algum a coi sa.
Os gar otos surgiram n a ar quibancada e s entaram -se a cerca de trê s
metros, de frente par a el e, ma s nã o d eram ne nh um sinal de o ter v isto. Ele
olhou p ara trá s, ond e os jog adores se espalhavam p el o camp o, e caminhou
para a arquibancada. Quando se aproximava, Johnson parou de cochichar.
"E então, o que foi que vocês fizeram hoje?" , pe rgu nt ou jovialmen te.
"Ele andou me contando que...", Norton começou.
Mas Johns on, com o cotovelo, cutu cou o m enino nas costelas. "Ah,
não fi zemos nada" , di sse. Seu rosto par eci a estar coberto p or u m verniz
de i nd if erença, pelo qu al trans parecia no entant o, blason ado com inso !
lênci a, um ar de cum plic idade.
Sheppard sentiu um a quen tura no rosto , mas n ão dis se nada. Uma
cri ança em uniforme d a li ga de beisebol tinha vi nd o atrás dele e c om
um taco o espetava na barriga da perna. Mal se v irou, el e passou o b ra !
ço pelo pescoço d o garoto, com o qu al fo i de volta ao jogo.
Nessa noite, qu and o foi par a o sótão, par a junta r-se aos g arotos n o
telescópio, encontrou seu filho sozinho. Norton estava sentado no cai !
xo te, dobrado à frente e olhando atentam ente atrav és do instrum ento.
"Ond e está Rufus ?", pergu nto u Shepp ard.
"Eu per gun tei on de está Rufus? ", disse ma is alto.
"Foi po r aí ", o m en ino r esp ond eu s em se v irar.
"Por aí onde?" , pergu nt ou Shepp ard.
"Ele só di sse qu e ia sair por aí . D isse qu e esta va cansad o d e olhar
estrelas."
"Entendo", Sheppard disse. Aborrecido, virou-se e retornou pela
escada para dentro d e ca sa, ond e em vão p rocurou p or J ohnson. Depoi s
ficou sentado na sala. Ainda na véspera estivera convencido de seu
sucesso com el e. Mas hoje já en carava a poss ibi li dad e de estar f racassan !
do. Tinha sido tolerante demais, preocupado como estava em ficar com
o rapaz. S ent iu um a pon tad a de culpa. Que diferença f azi a, se Johnson
gostasse dele ou não ? Que s ig nifi cava i sso para ele? Ah, quan do o rapaz
vol tasse, c ertas coi sas teriam de ser deixadas b em cl aras. Enq ua nt o esti !
ver ficando aqui, nada de sair à noite sozinho, entendeu?
Não ten ho de fic ar aqui. Não q uer dizer nada, para m im, fi car aqui.
Oh, m eu Deus, ele pensou. Não p od ia chegar a esse pont o. Teri a de
ser f irme, mas n ão de fazer um escândal o. Apan hou o jornal da tarde.
Se bon dad e e paciênci a sem pre eram nece ssári as, e le porém não esta !
va sendo suficientemente firme. Sentava-se segurando o jornal, mas
não lia. O rapaz nã o o respeitaria, a nã o ser qu e dem onstras se fi rmeza.
A camp ainha tocou e el e fo i ate nder. Abriu a port a e recuou com u m
rosto contrito de d ecepção.
Um polic ial m al- encarad o e p arrudo, com J ohns on agarrado p elo
cotovel o, post ava- se em li geira curvatura. Na esqu ina, à espera, um car !
ro de patrulha. O rapaz, branco feito cera, tinha o queixo esticado à
frente , como q ue par a imp ed i-lo de tremer.
!
"Vie mos aqu i primeiro, po rqu e ele f ez um a confusão m edonh a", di s
se o polici al, "mas, agora qü e o senh or o viu, vam os levá-lo à d eleg aci a
para fazer um as p erguntas a e le."
“Que foi que houve?", Sheppard balbuciou.
"U m a casa alí na esq uina, um po uco m ais adiante" , disse o polici al.
"Uma verdadeira arruaça, pra tos qu ebrados pelo chão, móvei s virados
de pés pra cima..."
"Não ten ho nad a a ver com isso !" Johnson di sse. "Eu ia passando po r
ali, c uidand o da m inha vi da, qu and o esse guard a apareceu e m e peg ou. "
Sheppard olhou para o rapaz com toda a severidade, sem fazer
nen hu m esf orç o para abr andar su a ex pressã o.
Johns on corou. " Eu só estava and and o po r lá", m urm uro u ele, mas
sem convicç ão n a v oz.
"Vam os lá, rapa z”, o p olicial disse.
"Você n ão va i d eixar ele m e levar não , não é?", di sse Johnson . "Você
acre dita em m im , não é ?" Nunca Sheppard tinha podido ouvir em sua
voz o ped ido de ajuda que ela agora ex pressava.
Era um m om ento cruci al. O rapaz teria de aprend er que nã o seri a
pro tegido q ua nd o fosse culpad o. " Você tem de ir com ele, Rufus" , di sse.
"Vai deixar que ele me leve qu and o estou te dizend o qu e eu n ão fi z
nada?", Johnson disse estridentemente.
Sheppard, à medida que se sentia mais ofendido, endurecia mais o
rosto . O rapaz lhe dava u m a decepção antes mesm o de ele ter ti do a chance
de lhe dar o sapato. Era am anh ã qu e deveríam bu scá-l o. T oda a sua tris !
teza se concentrou de repente no sapato; e sua irritação, à visão de John !
son, dobrou.
"Você deu a entender qu e tinha m uita confi ança em mim" , mur m u !
rou o rapaz.
“Eu tinha", Sheppard disse. Seu rosto continuava impassível.
Johns on segu iu com o p oli cial . Porém , antes de se virar, bem do fun !
do dos seus olhos um bril ho d e puro ód io partiu em d ireção a S heppard.
Sheppard, de pé à porta, viu-os entrar no carro de patrulha e afas !
tar-se. Arm ou -se então d e comp aix ão. Am an hã iria à del egaci a e v eria o
que pod ia f azer para tirá- lo da enrascada. Um a noite na cadei a n ão lhe
fari a m al e a experiênci a ensinari a que el e nã o po dia engana r impu ne !
men te alg uém que só lhe demonstrava bondad e. Depoi s i riam ap anhar
o sapato, que talvez, após a noite na cadeia, fosse significar ainda mais
para o rapaz.
lho de vergonha. Num a sala de espera bem som bri a, se ntado d eslei xa-
damente num banco, Johnson lia uma revista policial. Não havia mais
ninguém na sala . Sheppard sentou -se ao lado d el e e experimentou pô r-
lhe a m ão no ombro.
O rapaz ergueu o s olhos - de l ábi os repuxados - e tom ou a a baixá-
lo s n a revista.
Shepp ard sent iu- se fisi camente m al . A i nd ig nidade do q ue tinha
fe ito p esou -lhe com intensidade subitamente desanimadora. Ti nha fal !
tado ao rapaz bem no p onto em que o pod ería ter posto, de um a v ez
por todas, na direção certa. "Rufus", ele disse, "peço desculpas. Eu estava
errad o e você certo. Fiz m au ju ízo d e v ocê. "
O rapaz continuou le ndo.
"Desculpe."
O rapaz molhou o dedo e v irou um a pági na.
Shep pa rd se retes ou. " Fui um tolo, R ufus" , di sse.
A boca d e Johns on to rceu -se ligei ram ent e de lado. E ele deu de
om bros sem levantar a cabeça d a rev ista.
"Vamos esquecer isso?", disse Sheppard. "Dessa vez aconteceu, mas
não vai se repetir."
O rapaz ergueu os olhos, que brilhavam inamistosos. "Eu vou
esqu ecer, mas você" , disse ele, "é m elh or se lem br a r." Levan to u -se e alti !
Sheppard hesitou. "Rufús", ele disse, "por acaso você não saiu do
ci nem a para n ada n ão, não é? "
"Você fi nge qu e tem e no rm e confiança em mim" , disse um a voz
subitam ente ofendi da, "mas não tem nen hu m a! Não confi a em m im
agora, c om o antes n ão con fi ou !" A v oz, desen corpad a, parecia ema !
nar m ai s cl aram ente das pro fundezas de J ohn son do q ue qu ando
seu rosto era vi sível . Era u m grito d e repro vação, orlado de um
ligeiro desprezo.
"Confi o em você sim" , Shep par d disse ardorosam ente. " Tenho com !
pleta confiança em você. Ac redito sem restri ções na s ua palav ra. "
"Você vi ve é d e olho em m im o tem po todo" , dis se a v oz em bur !
rada. " Depoi s d e m e pergun tar um m onte d e co isas, você sem pre atra !
vessa o corredor e vai ao quarto de Norton pergun tar outras tan tas .”
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"Não tenho a meno r intenção de pergun tar nad a a N orton e nunca
fiz isso", Sheppard disse gentilmente. "Não desconfio de você não. No
tempo de que dispunha, não dava para você vir do cinema no centro,
invad ir um a casa por aqu i e depoi s voltar para lá ."
Nessa noite, como de hábito, sentaram-se na sala para ler. Sheppard, rabu-
gentamen te entrinchei rado p or trá s do Ne w York Tim es dominical, que !
ri a recuperar seu bom humor, mas toda vez qu e se lembrava do sapato
reje itado sentia um no vo surto d e irri tação . Nem sequer se perm iti a olhar
para Johnson. Dava- se conta de q ue o rapaz o recusara po r esta r inseg uro.
Johnson tinha ficado assustado com su a própria grati dão. Não sabia o que
fa zer da no va personalidade da q ua l se tom ava consci ente. Com preen dia
que alg o q ue h avia si do ele estav a am eaçado e d efrontava- se p ela pri meira
vez consigo mesmo e com suas possibilidades. Estava questionando sua
identidade. R elutantemen te S hepp ard sentiu l ig ei ro r etom o d e sua simpa !
tia pelo rapaz. E m pou cos m inut os, abaixand o o jornal, olho u par a el e.
Johnson, sentado no sof á, olhava p or cima d o top o d a encicl opédia,
com u m a expressão de estar em transe. Pode ria e star prestand o aten !
ção em alg um a coi sa m uito di stante . S hepp ard ob servou -o bem , mas
o rapaz continuava absorto e não virou a cabeça. Esse pobre menino
está perdido, pen sou Shep pard . E e le tinh a fi cado ali toda a noite, l end o
m al- hu m orad am ente o j ornal, e não dissera um a palavra para desf azer
a tensão. "Rufus", disse então.
Johnson permaneceu como estava, imóvel, atento.
"Rufus" , di sse Shepp ard nu m a voz ba ixa e hipnót ica, "saiba qu e
você pod e ser qu alquer coi sa qu e quiser no m und o. P ode ser c ie nti sta,
engenh eiro, arquiteto e, seja o qu e for que r esolv a, na carreira qu e tiver
escol hido pod e ser o m elhor" Im aginou su a v oz p enetrand o no rapaz
pelas obscuras cavernas da psique. Johnson se inclinou à frente, mas
seus ol hos não se vi raram . U m carr o bateu a p orta na rua. Houve um
sil ênci o. E depois um súbito to qu e na s ineta da casa.
Sheppard, de um pulo, correu para abrir a porta. O mesmo poli !
cial que já tinha vindo antes lá estava plantado. Na esquina, o carro de
patrulha esperav a.
"Que ro ver o rapaz", ele disse.
Shep pard franziu o cenho e s e pôs de lado. " Ele passou a n oite toda
aqu i" di sse. " Sou eu qu e estou atestando. "
O policial entrou na sala. Johnson parecia mergulhado em seu livro.
Um segundo depois ergueu a vi sta com um a expre ssão cha teada, como u m
grande hom em interrompido em seu trabal ho.
"O qu e é que você estava olhand o na quela janela de cozi nha lá na
Winte r Av enu e m eia hor a atrás, hein, parc ei ro? ", per gun tou o guarda.
"Deixe de p ers eguir o garot o!" She pp ard disse. "Atesto qu e ele estava
aqu i porqu e eu estava aqui com ele."
"Você ouviu" , disse J ohn son . "Est ive aqu i o tem po t odo."
"Não é q ualqu er um qu e d eix a pegadas com o você" o polic ial di sse ,
e olhou par a o pé torto .
"Não p od em ser pegadas del e", gru nh iu furioso S hep pard . "Ele não
sai u d aqui um instante. O senh or está perdend o o seu tem po e fa zen !
do -no s perd er o nosso ." Sent iu qu e o no ss o selav a sua solidari edad e com
o rapaz . "Est ou cans ado disso ", el e disse. "Vocês sã o m uito pregu içosos
par a sair po r aí e descobrir que m realm ente an da fazendo essa s coi sas.
Vocês vêm aqu i autom atic ament e. "
O polici al, ignorand o isso , c ont inuou de olho em Johns on. P erscru -
tava-o, com olhos qu e no s eu rosto c arnud o eram pequenos e al er tas.
Finalment e se virou e cam inhou par a a porta. "Mais cedo ou m ais tarde
vam os p egá-l o", disse, "com a cabeça n um a jane la e o rab o de for a."
Shepp ard o acom pan hou até a por ta, que bateu com tod a a fo rç a.
Seu esp íri to estava nas alturas. Era exatam ente d e um a coisa assi m q ue
ele necessitava. Voltou com o rosto cheio de esperança.
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Lentam ente Shepp ard pôs o lenço no bolso. Desabou n o sofá , ol hou
para o tapete a seus pés. O pé torto do rapaz estav a em s eu cam po de
vi são e era com a própria c ara de J ohnson que o sapato remend ado
parecia ri r dele . Abalado p or um trem or de raiv a, agarrou-se à beirada
do sofá , com os nos dos dedos m uito brancos. E odiou o sapato. Odiou
o pé. Odio u o rapaz . Seu rost o em palideceu . A raiva o su focava. Ele esta !
va horrorizado consigo mesmo.
Mas pôs a m ão no om bro d o rapaz, como se foss e para não ca ir, tal a
força com qu e se ap oiou, e disse: "Sei qu e você só foi olhar na qu ela janela
para m e cri ar embaraço s. T udo o q ue qu eria era i sto - abalar minh a deci !
são de ajudá-lo, mas minha decisão não se abalou. Sou mais forte do que
você. S ou m ais fo rte do q ue você e vou salvá-lo. O bem triunfará” .
"Não se nã o for verdade", disse o rapaz . "Não se não estiver ce rto. "
"M in h a decisão n ão se abalou" , Shep par d rep etiu. " Eu vo u salvá- lo. "
A expressão de Johnson tornou-se sonsa outra vez. "Não, não vai
me. salv ar" , disse ele . "Vai é m an da r q ue eu saia des ta casa. Fui eu t am !
bém que fi z as outras duas bagunças - tanto aqu ela primeira como a
que fiz quan do devia estar no cine ma."
"M an d á-lo em bora? Ja mai s", Shep pard dis se. S ua voz soava m ecâni !
ca, atonal. "Vou é salvá-lo."
John son esp ichou a cabeça. " Salve- se vo cê m esmo", cic iou. " A m im
nin gué m po de salv ar, só J esu s."
Shepp ard deu um a risadinha e disse : “Ah, você nã o m e engan a! Isso
eu tirei da sua cabeça ainda no reformatorio. Disso ao menos o salvei".
Os m úsculos do rosto de Johnson se re tesaram. O olhar de repulsa
endu receu- lhe o sem bla nte de tal mod o qu e Sheppard chegou para trás .
Os olhos do rapaz eram como espelhos deformantes nos quais ele se
via agora rep elente e grotesco. "Pois vou lhe m ostrar ", sussurr ou Jolm -
son, que abruptam ente se le vantou e cam inhou para a porta, como se
esti ve sse louco para s um ir da vi sta d e S hepp ard, mas foi pela porta qu e
dava para o corredor dos fundos, e não pela da frente, que ele saiu.
Viran do -se n o sofá, Sheppa rd o fitou pelas costas até o rapaz d esaparecer.
Depoi s, ouviu a porta d o qu arto d el e bate r. N ão, não estava indo em bora.
A i ntens idade se esv aíra dos olhos de Sheppard, qu e se mostravam t otal !
mente desprovidos de vida, como se o choque das revelações do rapaz
só agor a lhe atingi sse o centro da consciência. "Se ao m enos ele se f oss e",
m urm urou . "Se ao men os se f osse ag ora, por vont ad e própri a. .."
No dia segui nte Jo hns on ap arec eu p ara o café-da- m anh ã vesti ndo o
terno do avô no qual tinha chegado. Sheppard fingiu não notar, mas
um simples olhar lhe disse o que ele estava sabendo, que caíra numa
armadil ha, que n ada p odería haver agora senão a guerra de nervos que
Johns on iri a ganhar. Seu desejo era jam ais o ter v isto. O fr acasso de
sua compaixão o entorpecia. Saiu de casa assim que pôde e o dia intei !
ro temeu retornar à noi te. Ti nha u m a vaga esperança de que, quand o
vol tasse, o rapaz já pud esse ter partido. O te m o d o avô talvez fo sse um
sinal de qu e ele e stava i ndo embora. Na parte da tard e a esperança de
Sheppard cresceu. Quando ele abriu a porta da frente, ao chegar em
casa, seu coração batia acelerado.
Quan do parou no corre dor, dan do u m a olhada sil enci osa na sala ,
sua expressão expectante se desfez. Seu rosto tornou-se bruscamente
tão velho quanto seu cabelo branco. Os dois garotos estavam sentados
ju n t o s n o s ofá, le n d o o m e s m o li vr o . O r os t o d e No r t o n s e a p o ia va j u n !
to à m anga do terno p reto de J ohnson , c ujo dedo corri a sob as li nhas
qu e el es estavam lendo. O irmão m ais velho e o mais novo. S hep pard
olhou para essa ce na, po r quas e um m inuto, sem expressão. Em seguida
entrou na s ala e tirou o paletó, que deixou cair nu m a cadei ra. S em q ue
ne nh um dos g arotos o notasse, foi então p ara a cozi nha.
Todas as tardes Leola deixava o jantar no fomo, antes de sair, e ele o
pôs na mesa. S eus nervos es tavam tensos e ele com do r de cabeça. Sento u-
se no banco da cozinha e lá ficou, afundado na sua depressão. Peigunta-
va- se se consegui ría enfure cer Johnson a pon to de fazê-l o ir em bora p or
vontade própria. O que mais o havia enraivecido, na noite anterior, foi a
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deprimia. P or qu e não p edir simplesm ente ao rapaz q ue se fo sse? Admitir a
derrota. A i déia de enfrentar Johnso n de n ovo, c ara a cara, dava-lhe grand e
mal- estar. O rapaz o tinh a olhad o com o se fosse ele o cul pado, com o se ele
fosse um a excrescê ncia moral. E ele , sem p resunção, sabia ser um hom em
bom , qu e nada tinha a se reprov ar. Seus sentim entos em relação a Johnson
eram agora involuntários. Gostaria de lhe ter compaixão. Gostaria de ser
capaz de ajudá-lo. E ansiava pelo tempo em que não havería mais nin !
guém na ca sa a não ser el e e Norton, em que o único problema a enfre ntar
seri a o simples egoísmo do fi lho, além de s ua pr ópria soli dão.
Levantou-se e foi até o fogão com tigelas que apanhou na prate !
lei ra e nas quais p reparou para s ervi r o feijão- m ant eig a e o guisado.
Quan do a com ida já estav a na mesa, c ham ou-os.
Consigo eles trouxeram o livro. Norton mudou de lugar, passando
para o lado d a mesa em que estava Jo hnson, em cuj a cadei ra encostou
bem a sua. Ent re ele s, sentad os, o s dois pus eram o l ivro, qu e era um
livro preto com beiradas vermelhas.
"O qu e é que estão le ndo?" , Shep pard pergu ntou , sentand o- se.
"A Bí blia Sagrada" , disse John son .
Que Deus m e dê forç as, Shepp ard p ediu em seu í ntimo.
"Afanamos n um a lojinha" , disse Johns on.
"Nós? ", Shep par d m urm uro u, vi ran d o-se par a encarar o fi lho. O rosto
do m enino resp landeci a, ha via um lam pejo de agitaçã o em seus olhos.
Pela primeira vez a mudança nele ocorrida o impressionou. O menino
parecia estar c om mais en ergi a. S end o az ul sua camisa x adrez , mais int en !
so do qu e nu nca brilhava o azul dos seus ol hos. U m a vi vaci dad e estranha
e nova o envolvia, sinal de novos e mais escabrosos vícios. "Então agora
você deu pra roubar?", indagou irritado. "Não aprendeu a ser generoso,
mas apren deu a rou bar ."
"Não foi ele não", disse J ohn son . "Qu em afano u fui eu. E le só ficou
vendo, porqu e não p ode se suj ar . Para mim, j á que eu vo u m esm o para
o inferno, é q ue nã o faz dif erenç a. "
Shepp ard se m anteve cal ado.
"A nã o ser" , John son disse , "qu e eu m e arrepen da."
"Arrepen da-se, R ufus" , disse Nort on n u m a voz s up licante. " Se nã o
qu er i r para o inferno, é melho r se a rrepender"
"Vamos parar com essa bobagem", Sheppard disse, fechando a cara
par a o fil ho.
"Se eu me arrepender", disse Johnson, "vou ser pastor. Se for para
fazer m esm o a coi sa, nã o tem sent ido fi car pe la metade. "
"E você, Norton, o qu e vai s er ", Shep pard pergu nto u com a voz n um
tom desagradável , "pregad or tamb ém?"
Os olhos do menino faiscaram de incontido prazer. "Homem do
espaço!", exclamou ele.
"Que ótimo! ", Shep par d disse com az edum e.
"Essas naves espaci ai s nã o vão faze r nen hu m bem , a não ser que se
acredite em Jesus", disse Johnson, que molhou o dedo e começou a pas !
sar as páginas da Bíblia. "Eu vou ler para vocês onde está dito isso."
Shep pard se i ncli nou para a frente e disse em voz furi osa e b aix a:
"Lar gu e ess a Bí blia, Rufus , e coma".
Mas J ohn son con tinuou a pro curar a passa ge m.
"Largue essa Bíblia!", gritou Sheppard.
dito ou não."
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Sheppard balançou a cabeça. "Não é possível que acredite. Você é
m uito inteli gente. "
"Não sou inteligente demais", o rapaz disse. "Você não sabe nada a
m eu respeito. Mesm o qu e eu nã o acreditasse na B íbli a, além do m ais,
ela seria verdad eira. "
"Você nã o acredi ta! ", di sse Shepp ard , com o rosto cheio de escárnio.
"Acredito! ", Joh ns on disse, arfante. " Vou t e m ost rar com o acredito! "
Abriu o li vro no colo e arrancou fora um a página q ue enfiou direto na
boca, ol hos fix ados em Shepp ard. Com tal furor me teu -lhe os dentes,
que o papel estalava enquanto o mastigava.
"Pare com isso !", Shep pa rd disse em voz estafad a e seca. " Pare com isso ."
O rapaz, levantando a Bíblia, rasgou com os dentes outra página
que en tão pass ou a triturar na b oca, o lhos ardentes.
Shep par d se estic ou outra vez, e dessa to m ou -lhe o li vro das m ãos.
“Retire-se d a m esa" , disse friamente.
Johnson engoliu tudo o que tinha na boca. Seus olhos se arrega !
laram , como se em face dele se abrisse um a vi sã o d e esplendor. " Comi! ",
suspirou. " Com i como Ezequ iel , e fo i m el para a m inha boca! "
"Retire-se da mesa", repetiu Sheppard, de punhos fechados a cada
lado do prato.
“Comi! ", o rapaz b rad ava, de r osto t rans forma do po r m ilagre. " Comi,
como Ezequiel, e da vossa comida, depois disso, nunca mais quero saber"
"Ent ão vai, está b em ?" Shepp ard disse em tom concil iador. " Vai, va i."
O rapaz se lev anto u, pegou a B íbli a e com ela se encam inhou para
o corre dor. Na port a f ez um a pausa, negra e dim inuta figura no limiar
de algum negro ap ocal ipse. " O diabo te tem em seu poder" , disse nu m a
voz jubilosa, e desapareceu.
de casa, mas ele nã o con seguia acreditar que o rap az tiv esse simples !
m ente ido em bora. O prim eiro sentimen to d e ter f ic ado liv re passara.
Sentia- se fraco e estava c om fri o, com o n a instalação de u m a doen ça,
e a apreensão se di spersara po r el e como névoa. A penas ir emb ora,
como desfec ho, seri a p or dem ai s um an tic lí m ax para o gosto de
John son ; ele voltar ia e tentaria pro var algum a coi sa. Poder ia voltar
um a sem ana d epois e botar fogo na casa. Nada pareci a, agora, ser
ultraje excessi vo.
Apanhou o jornal e tentou ler. Mas logo o jogou de lado, levan !
tou -se, foi até o corred or e se pôs à escuta. D esconfiou d e qu e estiv esse
de novo.
"Norton" , Shep pa rd d isse, "na da se vê p elo telescopio, além d as
constel açõe s. V ocê é qu e fic ou aq ui dem ais essa noite, é m elhor ir para
a cam a agora. S abe a ond e é qu e Ruf us foi ?"
"Ela está lá !", ele gritou, sem se virar do telescóp io. " Ela m e d eu
adeus!"
"Tem quinze minutos para ir para a cama", disse Sheppard. Logo a
segui r, acrescen tou : "Está m e ouvin d o, N ort on?"
O m enino começou a dar adeus sem pa ra r.
"Olhe be m o qu e estou dizendo" , Shep par d disse. "Dentro de qu inze
minutos vou bater lá , para ver se você já está na ca ma. ”
Desceu pela escada e voltou para a sala. Foi até a entrada da casa,
deu u m a rápida olhad a ao redor. O céu estava coalhado das estre la s
que tolam ente ele ac hou que Johnson p ode ría al canç ar. Um sap o- boi,
em algum canto do pequeno arvoredo que havia atrás da casa, emitiu
um a no ta baixa e cavernosa. E le, de volta ao seu lugar, sen tou -se aind a
alguns m inutos. M as resolveu i r para a cam a. Pô s as m ãos nos braços
da p oltrona para se levantar e ou vi u, como a primeira nota estridente de
um sinal de alarme, a si rene do carro de políc ia que lentam ente rodava
pela v izinhança e se aproximou de sua ca sa, diante da qual estaci onou
com um gemi do.
Ele sentiu um peso fri o nos om bros, como se l he jogassem p or
ci m a um a capa de gel o. Mas levantou -se e abriu a porta.
Doi s polic iai s vinh am pela cal çada, com Johns on n o terno preto
emar anhad o entre ele s e alge m ado a ambos. Um repórter c orri a atrás e
outro polici al fi cou à espera n o carro.
"Aqui está o seu rapaz", o mais durão dos guardas disse. "Eu não
fal ei qu e nós íamos pegá-lo?"
Johns on, enraiveci do , sacud iu de um pu xão o braço. " Eu est ava à
su a espe ra! ”, disse. "Você nã o ia m e pegar, se eu m esm o nã o qu isesse ser
pego. F oi i déia m inha. " Dirigi a-se ao gu arda, po rém olhan do de sos la io
para Sheppard.
Shepp ard olh ou -o frí amente.
"Por que você queria ser pego?", perguntou o repórter, correndo
agora pa ra se pôr ao lado d e Johnson. " Por que essa i ntenção deli berada
de cair nas m ãos d a políc ia? "
A pergunta e a presença de Sheppard pareceram arrojar o rapaz a
u m acesso de furia . "Pra mos trar pr a esse daí, qu e é u m Jesus de ar aqu e!"
disse el e, sibi lante, e deu u m chu te no ar em direção a Shep par d. " Ele
pensa que é Deus. Prefiro o reformatorio a estar na casa dele, prefiro
até i r pra cadei a! O d iabo o tem em seu poder. E le não disti ngue a mão
di rei ta da esquerda, não tem nem mesm o o bom senso do maluco do
fi lho dele! ” Fez um a pau sa e d erivou en tão p ara esta conclusão fantásti !
ca: " Até m e fez um as insinua ções!" .
O rosto de S hepp ard, que se apoiou na b eira da porta, bran queou .
"Insinuações?" , pe rgu nt ou avida m en te o repórter. "Qu e tipo de
insinuações?"
"Insinuações imorais!", Johnson disse. "De que tipo você acha que
são? Mas eu não quero saber disso, eu sou cristão, eu...”
"Ele sabe qu e isso não é v erdade" , di sse S hep pard em voz trêm ula,
com o rosto retorci do d e dor, "sabe q ue está mentindo. Tudo o q ue podia,
eu fi z p or esse rapa z. F iz mais po r ele do que po r m eu próprio fil ho. Tinha
esperan ça de s alvá-l o e frac assei , mas foi um frac asso honroso . A mim
mes mo, na da t enh o q ue r eprovar. A ele, nu nca fiz insi nuações. "
"Você se lem br a dessas insinuações? ", o repó rter p ergu nt ou. " Pode
nos dizer exatam ente o q ue ele di sse? "
"Ele é um ateu imu nd o” respond eu Johnson. " Disse que n ão h avia
inferno."
"Bem , agora q u e el es já se viram ", di sse um dos p olici ais, c om um
suspi ro de qu em havia entendido, "vamos an dand o?"
"Esperem ", Shep pa rd d isse. Desceu u m d egra u e fixou seus olhos
nos d e J ohns on, nu m último e d esesperad o esforç o par a se sal va r. " Diga
a verda de , Rufi is", disse el e. "Você nã o p od e qu erer s ust ent ar essa m en !
ti ra. Não é m á pessoa, só está é m ortalm ente confuso. Você nã o pr eci sa
de com pen sações p or causa d e seu pé, não p reci sa de. .."
Joh ns on s e arro jou à frente. " Olh em só o q u e ele di z!", gritou. "E u
minto e roubo porque ni sso eu sou bom. O meu pé não tem n ada a ver
eom isso! Os alei jados en trarão p rimeiro! Todos os man cos serão reu ni !
dos. Qua nd o eu estiv er pron to p ara ser sal vo, Je sus m e salvará, e não a
esse ateu m ent iroso e d espr ezível , não a ess e..."
"Já chega disso" , disse o guard a, pu xan d o-o p ara trás. "Só queríam os
qu e o sen ho r visse qu e o pegamos" , di sse então p ara Sheppard , e o s dois
se viraram e lá se foram arrastando Johnson, que, virado em parte, gri !
tava por su a v ez para Sheppard.
. "Os alei jado s carregar ão os desp ojos! ", be rro u aind a, m as su a voz,
de den tro do carro , já saiu abafada. O repórter pu lou no b an co da frente ,
coin o motorista, e bateu a po rta; a sirene gem eu n a esc uridão.
(Sheppard continuou ali, ligeiramente dobrado para a frente, como
um hom em q ue lev ou u m ti ro mas se ag üenta ai nda em pé. Um m inuto
depois entrou em ca sa e voltou a sentar- se na po ltrona de ond e há po u !
co saí ra. D e olhos fec hados, veio- lhe a ima gem de John son na delega cia,
\
rodead o d e repórte res, a inventar suas m enti ras. “Nada t enho qu e m e
reprovar", ele murmurou. Suas ações, todas elas, haviam sido desinteres !
sadas, seu ún ico objeti vo era salvá- lo, prep arar Johns on p ara algum t ipo
de trab alho d igno, e ele não se p oup ara, sac rif ic ou su a próp ria reputação,
fez mais por Jolmson do que jamais fizera por seu próprio filho. À sua
volta pend ia, como u m perfume n o ar, a sórdida perfí dia, tão p róxi m a
qu e parecia em anar de su a respira ção. "Nada tenh o q ue m e reprov ar" ,
repetiu. Sua voz soou seca e áspera. "Fiz mais por ele do que por meu
filho. " E foi tom ad o p or u m t rem or de p ânico. Ou viu a jubilosa voz d o
rapaz. Satã te tem em seu pod er.
"Nada te nh o q ue m e re provar" , recomeçou . “Fiz ma is po r ele do qu e
po r m eu fil ho. " Ou viu a pró pria voz com o se fosse a de seu acusador, e
em sil ênd o repetiu aind a a fr ase .
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a revel ação. O rosto d e Norton lhe sur gi u p ela fr ente, c arente, desam pa !
rado, c om o olho esquerdo desl izando quase imp erceptiv el m ente para
a borda exte rna, c om o se i ncapaz de agüenta r um a vi são integral do
sofri mento. Seu coração se c ontr aiu com u m a repulsa tão clara e i ntens a
por si m esm o q ue ele preci sou to m ar fôl ego. Com boas obras, el e, como
um gl utã o, tinh a ench ido seu v az io. Ignor ara o pró prio fi lho para ali !
m enta r a imagem qu e fazi a de si . Viu o Diabo perspica z, o sond ador dos
cora ções, olha nd o-o de soslai o pelos olhos de Johnson. S ua im agem de
si se decompôs , não lhe restan do p ela fre nte, por fi m, senão a escuri dão.
Sentava-se ali paralisado, cheio de horror.
Viu Nort on ao telescópi o, vend o-lhe as costa s, as orel has, o braço
ergui do a acenar freneti camente. C om o u m a transfusão de vi da, um a
ond a de a m or afl ito pelo fi lho se preci pitou sobre ele . O rosto do m eni !
no lhe apareceu transformad o; era a imagem de sua própria salv ação,
toda de luz. A alegria o pôs a suspirar. Faria tudo por seu filho. Nunca
mais o deixari a sof re r. S eria pai e m ãe p ara ele. Levant ou -se d e um pulo
e fo i correndo ao seu qu arto, para beijá-l o, para diz er-l he qu e o am ava,
que nunca lhe faltaria outra vez.
A l uz es tava acesa no qua rto d e Norton, mas a cama, vazia. Ele se
vi rou, p reci pitou-se pela escada do s ótão e camb aleou p ara trá s, c he !
gand o ao topo, como alguém à beira de um desp enhad ei ro. O tr ipé
tinha caí do e o tel escópio estava no chão. Um p ouco além, na selva de
sombras, o men ino pend ia do barrote de ond e havia l ançado seu vôo
para o espaço .
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