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O DISCURSO DE PACIENTES PSICÓTICOS EM ENTREVISTAS


PSICODIAGNÓSTICAS: UM ESTUDO BASEADO EM CORPUS*

Izabella dos Santos MARTINS MENDES


(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

Resumo
Este projeto propõe a análise do discurso de pacientes psicóticos em entrevistas
psicodiagnósticas. O objetivo geral da pesquisa é contribuir para o estudo da linguagem na
psicose, ampliando os conhecimentos para a interface entre as áreas da Lingüística de
Corpus, da Lingüística Sistêmica e Funcional e da Análise Crítica do Discurso e trazendo
reflexões de cunho lingüístico que possam auxiliar a prática clínica de profissionais de Saúde
Mental. Para realizar a pesquisa, proponho o uso dos referenciais teórico-metodológicos da
Lingüística de Corpus (BERBER SARDINHA, 2000; SCOTT, 2001; STUBBS, 1996) e da
Lingüística Sistêmica e Funcional (HALLIDAY, 1985), complementados com as contribuições
da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1992).

Palavras-chave: discurso; corpus; psicóticos; sistêmica.

1) Introdução e justificativa

A psicose é um conceito utilizado por todas as teorias da psicologia e da psiquiatria.


Sob a perspectiva humanista, é vista como uma perturbação transitória, ligada a certas
vivências específicas e ao contexto social (DAVIDOFF, 1983). Já a visão funcionalista situa a
psicose como um extremo do desequilíbrio mental (DAVIDOFF, 1983). Nas perspectivas da
Psiquiatria e da Psicopatologia, a psicose é vista como um transtorno mental que compromete

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No VII CBLA, este artigo foi submetido com o seguinte título: “O delírio psicótico como prática social: um
estudo em lingüística de corpus e em análise crítica do discurso”.
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gravemente a personalidade, fazendo com que o relacionamento do doente com o mundo se


perturbe ou se torne impossível (ALVIM, 1971). Essa perspectiva fixa-se na descrição de
sintomas, catalogação de casos e na capacidade produtiva do sujeito. Na perspectiva
psicanalítica, a psicose é vista como um modo específico de se construir as relações com os
outros e com o mundo, em que os processos inconscientes são manifestos de maneira bruta,
sem qualquer barreira (GAZZOLA, 2000). Nessa perspectiva, a referência que oferece as
bases para o estudo da psicose é a análise, empreendida por Sigmund Freud, em 1911
(FREUD, 1998), da obra “Memória de um Doente dos nervos”, escrita por Paul Schreber
(SCHREBER, 1984). A partir dessa análise, o autor construiu toda uma teoria sobre as
psicoses. Lacan (1992), dialogando com a lingüística estruturalista, a análise de discurso e a
teoria da enunciação francesas, deu uma nova ênfase ao estudo e à prática da clínica
psicanalítica sobre as psicoses.
Segundo Jaspers (1990), autor da área de Psicopatologia – que consiste no estudo da
vida psíquica mórbida, anormal e patológica – com a qual pretendo dialogar, a psicose é
sinalizada sobretudo pela presença de dois fenômenos: a alucinação e o delírio. A alucinação é
uma percepção sem objeto (JASPERS, 1990): no psicótico, isto se dá no nível do real. O
delírio consiste em uma crença que não sucumbe a nenhuma crítica ou contraposição, que é
irrefutável por si e tenta explicar um fato ou evento (PAIM, 1975), e que diz respeito a uma
construção ou visão muito particular da realidade.
A linguagem empregada pelos indivíduos classificados pelos profissionais de Saúde
Mental como psicóticos, que apresentam um quadro de delírio, foi, até hoje, muito pouco
pesquisada. Conforme pesquisa por mim realizada, os poucos trabalhos existentes sobre o
tema são quase todos realizados ou dentro de um enquadre psiquiátrico – em que os autores
situam a linguagem como mais um dos tópicos pertinentes à prática clínica, não dando a ela
importância especial e abordando quase que exclusivamente os aspectos fonéticos e
fonológicos da fala dos psicóticos (como em JASPERS, 1990; PAIM, 1975) – ou
psicanalítico, em que a preocupação dos autores é relacionar a linguagem a conceitos
psicanalíticos, podendo-se, talvez, falar em uma psicanálise do discurso (como em
ANSERMET, GROGRICHARO y MELA, 1990; AULAGNIER et al., 1979; LACAN, 1989).
Em alguns desses enfoques, a linguagem é abordada de maneira intuitiva e/ou aleatória e
pouco sistematizada, seja por falta de conhecimentos ou de ferramentas de análise adequadas,
seja por falta de interesse pela grande área da Lingüística ou, ainda, por diferenças de ponto de
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vista e enfoque.
Em meu levantamento bibliográfico, não encontrei trabalhos sobre psicose e linguagem
que tivessem sido realizados seguindo os pressupostos teóricos e metodológicos quer da
Lingüística de Corpus, da Lingüística Sistêmica e Funcional ou da Análise Crítica do
Discurso. O trabalho na área de Análise do Discurso de linha anglo-americana do qual tomei
conhecimento, e que apresenta alguma relação com meu tema de pesquisa, foi feito seguindo a
perspectiva da Sociolingüística Interacional (TELLES, 1994). Nesse trabalho, a autora
pesquisou a maneira como pacientes psicóticos constroem a coerência de seu discurso, em
entrevistas psiquiátricas.
Endossando Castello Branco (1998), é importante não matar, pela projeção, a
singularidade do acontecimento do outro. Dessa forma, é importante considerar a linguagem
dos psicóticos, o seu discurso, como um acontecimento único e rico e, portanto, merecedor de
um estudo mais aprofundado.
Dessa forma, proponho, por meio deste projeto, estudar o discurso de pacientes
psicóticos em entrevistas psicodiagnósticas, do ponto de vista da Lingüística Aplicada,
adotando os referenciais teóricos e metodológicos da Lingüística de Corpus – que permite
selecionar e quantificar elementos semelhantes em um conjunto relativamente grande de
dados, que é um procedimento difícil, demorado e pouco confiável quando feito a olho nu/
manualmente – e da Lingüística Sistêmica e Funcional, complementados pelas contribuições
da Análise Crítica do Discurso – teorias relevantes de análise de uso de linguagem natural e
em contexto social específico.
No que concerne a conhecimentos lingüísticos, o trabalho pretende contribuir na
descrição e análise de características discursivas de pacientes psicóticos que não tenham sido
esclarecidas do ponto de vista das linhas de pesquisa mencionadas. A realização deste trabalho
também vai me permitir apontar relações entre o discurso psicótico e o dito “normal”, uma vez
que o LAEL – o programa de pós-graduação no qual estou inserida – dispõe de outros corpora
– como de interações em reuniões de trabalho –, que poderão ser úteis para comparações. Uma
vez que o discurso dos pacientes, que será o foco da análise, foi produzido em um contexto de
interação específico – a entrevista psicodiagnóstica – características desse gênero discursivo,
bem como as características da interação entrevistador-entrevistado serão conseqüentemente
abordadas em meu trabalho.

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Da mesma forma que o trabalho interessa aos analistas do discurso, deve também
interessar a profissionais de Saúde Mental, que se queixam – como pude constatar em
entrevistas preliminares com alguns deles, buscando referências bibliográficas e discutindo o
assunto – de que há falta de estudos sobre a psicose com enfoque na linguagem. A gravação
do material, bem como o uso de um grande número de consultas como objeto da análise, e o
processamento dos dados com o auxílio de ferramentas computacionais permitirão que muitas
das características do discurso psicótico, que são passíveis de passar despercebidas no
momento da interação face a face sejam percebidas, sistematizadas, categorizadas e
analisadas, o que permitirá que psicólogos e psiquiatras possam se valer dos resultados
inclusive para auxiliá-los em sua prática clínica e diagnóstica.
É importante ressaltar que esta pesquisa tem uma motivação transdisciplinar, mas
objetiva fazer uma análise lingüística, e não psicológica ou psiquiátrica, usando para tanto
referenciais teóricos e metodológicos da Lingüística. No entanto, para responder às minhas
perguntas de pesquisa é preciso conhecer o fenômeno que influencia a linguagem analisada – a
psicose. É nessa medida que pretendo usar os conhecimentos das áreas de Psicologia,
Psicopatologia e Psiquiatria: na medida do possível e das necessidades para a coerência do
trabalho, ampliarei a bibliografia desta área, mas estarei trabalhando dentro da Lingüística,
com base principalmente na literatura da Análise de Discurso de vertente anglo-saxônica.
A partir deste olhar, discursivo, algumas perguntas delineiam-se:
1) Na construção de sua experiência de mundo, expressa pela sua linguagem e por ela
construída, quais são os processos (HALLIDAY, 1985) mais recorrentes observáveis no
discurso dos pacientes psicóticos? A quais participantes e circunstâncias (HALLIDAY, 1985)
esses processos geralmente estão ligados?
2) De que maneira os traços ideacionais identificados no discurso dos psicóticos podem ser
relacionados às alterações patológicas decorrentes da psicose?
3) Quais (inter)discursos e gêneros podem ser evocados pela escuta do discurso dos pacientes
psicóticos? Existe recorrência ou predominância de algum deles?
4) Os psicóticos são ou não “alienados” da realidade, como diz o senso comum? Seu discurso
apresenta relação com o contexto de cultura (HALLIDAY, 1985)? E com o contexto de
situação (HALLIDAY, 1985)?

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2)Objetivos
O objetivo geral da pesquisa é contribuir para o estudo da linguagem na psicose,
ampliando os conhecimentos para a interface entre as áreas da Lingüística de Corpus, da
Lingüística Sistêmica e Funcional e da Análise Crítica do Discurso e trazendo reflexões de
cunho lingüístico que possam auxiliar a prática clínica dos profissionais da Saúde Mental.
Os objetivos específicos são:
A) Detectar padrões lingüísticos no discurso de pacientes psicóticos, enfocando a
análise na função ideacional da linguagem (HALLIDAY, 1985) para observar o modo como
esses pacientes constroem a realidade no discurso e de que maneira traços identificados nessa
análise podem ser relacionados à psicose;
C) Apontar a interdiscursividade e a intertextualidade inerentes aos textos,
respondendo à pergunta de quais (inter)discursos e gêneros podem ser detectados pela escuta
do discurso desses pacientes;
B) Investigar a relação do discurso dos psicóticos com o contexto de cultura e com o
contexto de situação;

3)Fundamentação Teórica

3.1)A Lingüística de Corpus


A Lingüística de Corpus trata da coleta e exploração de corpora – plural de corpus. Um
corpus pode ser definido como:
“um conjunto de dados lingüísticos (pertencentes ao uso oral ou escrito da
língua, ou a ambos), sistematizados segundo determinados critérios,
suficientemente extensos em amplitude e profundidade, de maneira que
sejam representativos da totalidade do uso lingüístico ou de algum de
seus âmbitos, dispostos de tal modo que possam ser processados por
computador, com a finalidade de propiciar resultados vários e úteis para a
descrição e análise” (SANCHEZ, citado por BERBER SARDINHA,
2000:338).

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Conforme Stubbs (1996), o uso da Lingüística de Corpus é proposto como um modo de


captar os discursos presentes nos textos, embora os usuários da língua raramente estejam
conscientes desses discursos. O uso da metodologia da Lingüística de Corpus permitiria
descobrir, de forma mais abrangente e representativa, os discursos presentes no texto,
relacionando-os a ideologias e instituições. Nesta perspectiva, o gênero, assim como as
instituições sociais, são vistos como convenções que governam o uso e o sentido da
linguagem.
Segundo Biber, Conrad e Reppen (1998), o uso da Lingüística de Corpus em Análise
do Discurso procura responder à questão central de como a análise de padrões gramaticais e de
palavras em um texto pode contribuir para a compreensão de seu sentido.
A teoria da Lingüística de Corpus defende que as descrições baseadas em corpus
devem ser vistas na perspectiva do uso da linguagem. Assim, na Lingüística de Corpus a
linguagem também é vista mais como uma questão de probabilidade (STUBBS, 1996) que de
possibilidade, pois a visão que adota é de que a língua é usada de forma padronizada, através
de colocações recorrentes.
Há uma série de programas disponíveis para o processamento de corpora, figurando
entre os principais o “WordSmith Tools”(SCOTT, 2001), que, de acordo com Berber Sardinha
(2004), é um dos mais completos, já que oferece grande conjunto de ferramentas e é
facilmente utilizável em microcomputadores.
A ferramenta “Concord” disponibiliza concordâncias, que são listas de ocorrências de
uma dada palavra procurada pelo pesquisador, dadas juntas aos cotextos nos quais elas
aparecem (SCOTT, 2001). A ferramenta “WordList”, segundo Scott (2001) também uma das
mais usadas nas pesquisas em Lingüística de Corpus, cria listas de palavras, que abarcam
todas as palavras do corpus trabalhado, apresentando-as em ordem alfabética ou em ordem de
freqüência. Outra ferramenta muito utilizada é a “KeyWords”, que usa duas listas de palavras,
a do corpus de estudo e a de um corpus de controle (que deve ter pelo menos duas vezes mais
palavras que o primeiro) e as compara, com o propósito de detectar as palavras-chave de um
corpus. Neste trabalho, usarei as três ferramentas citadas acima, como deixarei claro na
“Metodologia”.
É importante deixar claro que, considerando-se que toda metodologia só existe como
correspondente de uma teoria, a Lingüística de Corpus, embora haja controvérsias, é também
uma teoria, uma vez que, segundo Berber Sardinha (2000), seus praticantes produzem
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conhecimento novo, muitas vezes não adquirível com base em outros pressupostos teóricos.
Este é o caso de meu trabalho, que tem em seu próprio fundamento as noções de padronização
e recorrência, para citar apenas alguns conceitos, que são centrais na teoria da Lingüística de
Corpus. A teoria eleita para refinar qualitativamente a minha análise é a já citada Lingüística
Sistêmica e Funcional, por oferecer o cabedal de conceitos e a abordagem que melhor se
enquadram aos meus interesses de pesquisa, como veremos a seguir.
3.2)A Lingüística Sistêmica e Funcional:
Na Lingüística Sistêmica, a linguagem é entendida como um “sistema de sistemas, formulado
como um conjunto de sistemas de traços lingüísticos, ligados em redes, que organizam as co-
seleções opcionais e obrigatórias desses traços” (PEDRO, 1997:31). A linguagem é vista como
uma questão mais de probabilidade que de possibilidade.
Halliday (1985) leva em conta dois tipos de contexto: o de cultura (pré-concebido
socialmente) e o de situação (imediato). Este último, o registro, apresenta três variáveis: o
campo, que corresponderia ao tópico da situação, ao tipo de atividade social; a relação, que
corresponderia à relação social entre os membros da interação (envolvendo, por exemplo, um
continuum da menos formal à mais formal) e, finalmente, o modo, que corresponderia ao
modo de apresentação do texto (escrito, oral, escrito para ser falado, dentre outros).
Nessa concepção, a linguagem, qualquer que seja ela, apresenta três tipos de
significado, que constituem as “metafunções”: ideacional, interpessoal e textual, que
encontram seus correspondentes nas três variáveis do registro.
De acordo com Halliday (1985), a transitividade é a realização da função ideacional da
linguagem, através da representação de idéias e experiências. Assim, o sistema da
transitividade constrói o mundo da experiência em conjuntos de tipos de processos. O
processo apresenta três componentes: o próprio processo (tipicamente realizado pelo verbo da
oração); os participantes do processo (tipicamente realizados pelos substantivos e grupos
nominais); as circunstâncias associadas ao processo (tipicamente realizadas pelo advérbio). De
acordo com essa abordagem (HALLIDAY, 1985:102), na transitividade há um padrão de
processos que, de alguma forma, é universal entre as línguas humanas.
São apontados três tipos principais de processos, que seriam o material, ligado aos
verbos de ação, significando que um indivíduo explicitamente pratica a ação expressa pelo
verbo; o mental, ligado a verbos de sentimento, pensamento e percepção, e o relacional,
representado pelos verbos do ser (being), que estabelecem atributos e relações de posse. O
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autor ainda acrescenta outros subtipos, que seriam o comportamental, referente ao


comportamento fisiológico e psicológico do indivíduo, o verbal, referente ao ato de dizer, e o
existencial, representado pelos verbos que indicam acontecimento ou existência propriamente
dita.
A metafunção interpessoal é realizada no texto pelo sistema do modo que, segundo
Martin et al (1977:57), é o recurso gramatical usado para expressar um movimento interativo
no diálogo. Esse sistema, de acordo com Halliday (1985), revela o grau de engajamento do
produtor do texto em relação ao conteúdo por ele expresso.
A terceira metafunção, a textual, está relacionada à própria organização da mensagem
no texto, principalmente através da seqüência tema e rema (HALLIDAY, 1985). De acordo
com o autor, o tema é o primeiro elemento ideacional, a informação primeira, e o rema é o que
se quer acrescentar à informação anterior.
Na presente pesquisa, estarão em foco a metafunção ideacional e os conceitos de
contexto de cultura e contexto de situação. Apesar de a teoria que serve de base à minha
análise ser a Lingüística Sistêmica e Funcional, considerei oportuno usar também
contribuições de outra teoria, a Análise Crítica do Discurso, já que temas como ideologia e
interdiscursividade, centrais nesta teoria, perpassam algumas de minhas perguntas de pesquisa.

3.3)A Análise Crítica do Discurso


Na Análise Crítica do Discurso, o discurso é entendido como conjunto de afirmações
sistematicamente organizado que dá expressão aos significados e valores de uma instituição:
“Um discurso fornece um conjunto de afirmações possíveis sobre uma dada área, e organiza e
dá estrutura ao modo como se deve falar sobre um tópico particular, um objeto, um processo”
(KRESS, 1985:7).
O discurso é, então, visto como um tipo de prática social, uma vez que ele constitui o
social. A linguagem é vista como invariavelmente investida de poder e ideologias e capaz de
constituir as dimensões do conhecimento, das relações e da identidade sociais. As ideologias
são vistas como significações ou construções da realidade, como sistemas básicos de
cognições sociais que regulam e organizam as ações e modos de representação dos membros
de um grupo ou sociedade (VAN DJIK, 1993).
A Análise Crítica do Discurso pretende, enfim, mostrar o modo como as práticas
lingüístico-discursivas estão imbricadas com as estruturas sociopolíticas mais abrangentes.
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FAIRCLOUGH (1992) considera que a análise do discurso, para ser feita a contento, deve
abordar três dimensões, uma vez que, de acordo com o autor, qualquer discurso é
simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social.
A primeira dimensão é a análise textual, que usa o aparato da já citada Lingüística Sistêmica e
Funcional de HALLIDAY (1985).
A segunda dimensão é a análise das práticas discursivas (prática discursiva aqui sendo
entendida, nas palavras de MAGALHÃES (2001:17), como “a dimensão do uso da linguagem
que envolve os processos de produção, distribuição e consumo dos textos, sendo variada a
natureza desses processos dentre os tipos diferentes de discurso e de acordo com os fatores
sociais”. Nesse nível da análise, há um interesse em desvendar a ordem do discurso1, conceito
muito utilizado na Análise Crítica do Discurso, e que significa a totalidade das práticas
discursivas de uma instituição, e as relações entre elas. Apoiando-se nas teorias de Bahktin
(1986), o texto é trabalhado centrando-se na intertextualidade e na interdiscursividade. A
intertextualidade é definida como o fenômeno de diálogo entre textos e a interdiscursividade é
vista como a configuração de convenções discursivas na produção do texto (MAGALHÃES,
2001).
A terceira dimensão é a análise da prática social, que tem em vista os contextos
culturais e sociais mais amplos, levando em consideração, primordialmente, o conceito de
hegemonia de Gramsci (1971). O discurso é visto numa perspectiva de poder como hegemonia
e de evolução das relações de poder como luta hegemônica. Fairclough (1992) atenta para o
fato de que as três dimensões são dinâmicas e estão em constante interpenetração.
Fazer análise crítica do discurso é, enfim, estabelecer relações entre formas e funções
da linguagem, tratando os autores e receptores de textos como atores ideológicos.
Um dos principais fatores que justificam minha escolha de unir as teorias que
orientarão meu trabalho foi o de Michael Halliday e Norman Fairclough serem eles próprios
herdeiros da tradição lingüística iniciada por Firth (1935), a qual norteia toda a teoria da
Lingüística de Corpus.
4)Metodologia
4.1)O corpus
O corpus da pesquisa será formado por cerca de trinta entrevistas psicodiagnósticas

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Termo cunhado por Michel Foucault em FOUCAULT (1971).
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com pacientes psicóticos em delírio, gravadas por psicólogos e psiquiatras em consultórios


particulares e hospitais psiquiátricos, durante o ano de 2004. O diagnóstico da doença será
informado pelo profissional que conduziu a entrevista. Disporei também de um corpus de
controle, o Banco de Português, disponibilizado por pesquisadores do Programa de Doutorado
no qual estou inserida, que será útil para a elaboração de listas de palavras-chave e para a
comparação de características lingüísticas entre os dois corpora.
4.2)Procedimentos
4.2.1)Coleta de dados
Psicólogos e psiquiatras gravarão as entrevistas psicodiagnósticas, após a devida assinatura
dos pacientes em um termo de consentimento. As entrevistas não serão realizadas com
objetivo exclusivo de fornecer material para a pesquisa, já que serão feitas nos ambientes
normais de trabalho, como parte de um atendimento de rotina. O entrevistador só manterá
gravadas, entregando a seguir à pesquisadora, as entrevistas de pacientes cujo diagnóstico for
de psicose e que apresentem algum grau de delírio.
4.2.2)Organização dos dados
As entrevistas gravadas serão transcritas e salvas em arquivos individuais no formato “txt”,
que é o formato padrão para o trabalho com o “WordSmit Tools”. Para cada consulta, serão
feitos dois arquivos, um contendo toda a entrevista e outro contendo somente as falas dos
pacientes. O arquivo só com as falas dos pacientes é imprescindível para a descrição e análise
quantitativa dos padrões que possam vir a ser encontrados. Na análise qualitativa, serão
considerados os arquivos completos.
4.2.3)Procedimentos de análise
Farei uso da ferramenta “WordList”, do programa “WordSmith Tools” (SCOTT, 2001),
usado em Lingüística de Corpus, para obter as listas de palavras individuais dos arquivos que
contêm apenas a fala dos pacientes e uma lista geral envolvendo o conjunto desses arquivos.
Baseada na lista de palavras dos pacientes, observarei os processos mais freqüentes no seu
discurso.
De posse desses dados, poderei obter, por meio da ferramenta “Concord”, as
concordâncias desses processos mais freqüentes, que facilitarão a visualização de alguns
padrões discursivos no discurso dos psicóticos. As concordâncias serão feitas usando os
arquivos que contêm as falas do entrevistador e do paciente, porque pode ocorrer, por
exemplo, de uma palavra aparecer com freqüência na fala dos pacientes por ser uma resposta a
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uma pergunta freqüente, como a idade desses pacientes. Considerei, portanto, útil visualizar a
interação nas concordâncias, já que essa visualização pode fornecer dados relevantes para a
análise. As concordâncias também permitirão saber quais os tipos de participantes mais
freqüentes quando são usados os vários tipos de processos.
Concomitantemente a esses procedimentos, continuarei o levantamento bibliográfico
nas áreas da psicologia e da psiquiatria e entrevistando psicólogos e psiquiatras com o objetivo
de conseguir mais sugestões sobre a bibliografia específica da área, bem como para entender
mais sobre aspectos da psicose, na medida em que forem surgindo questões durante a leitura
dos textos, a transcrição do material e a análise.
Com a ajuda das ferramentas “WordList” e “Concord”, citadas acima, poderei
observar também os substantivos e adjetivos mais freqüentes, as combinações recorrentes,
bem como os campos semânticos aos quais pertencem as palavras selecionadas, para poder
apontar os possíveis padrões e discursos majoritariamente presentes no discurso psicótico.
Usarei também a ferramenta “Keywords” para ter acesso às palavras-chave do discurso de
pacientes psicóticos.
Fica claro, portanto, que seguirei a metodologia da Lingüística de Corpus e os
pressupostos da Lingüística Sistêmica e Funcional, complementando a análise com as
contribuições da Análise Crítica do Discurso.
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