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(20211020-PT) JL 1332
(20211020-PT) JL 1332
JOANA CRAVEIRO
JORNAL Abelaira vestido de hoje PÁGINAS 22 A 24
DE LETRAS,
ARTES E MAFALDA SOARES DA CUNHA
IDEIAS Resistências no Império Português
PÁGINAS 28 A 30
DANTE, CONTEMPORÂNEO,
EM (BOM) PORTUGUÊS
* Sai uma nova tradução integral da Divina Comédia: entrevista
com o – e texto do - tradutor, Jorge Vaz de Carvalho.
* Nos 700 anos da morte do genial poeta, ensaio de Rita Marnoto,
crónicas de António Mega Ferreira e Marco Lucchesi
PÁGINAS 6 A 10
Colunas e crónicas de Afonso Cruz, Boaventura de Sousa Santos, Gonçalo M. Tavares, Guilherme d’Oliveira Martins,
GETTY IMAGES
Daniel Tércio, Helena Simões, Miguel Real, Patrícia Portela, Valter Hugo Mãe e Viriato Soromenho-Marques
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DESTAQUE 20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
›BREVE ENCONTRO‹
Germano Almeida
Homenagem no Escritaria
O festival tem uma dimensão de rua. João Jacinto na Travessa da Ermida “Limpar a Seco” é o nome
Agrada-lhe essa dimensão?
Isso também me surpreendeu. Estou da exposição de João Jacinto que se inaugura a 23, no Projeto
a imaginar uma espécie de procissão Travessa da Ermida, em Belém, Lisboa.
[risos]. Na verdade, não sou um escritor
que aceite muito este tipo de convite. O artista (n. 1966) apresenta trabalhos
O meu feitio não se ajusta muito a estas recentes de desenho. “O seu imenso corpo
situações.
de trabalho emana da sedução por temas e
Esta é, na verdade, um encontro com motivos destacados de algum instante do
leitores de várias idades...
É justamente o que espero. Um encontro onde se possa falar,
acaso ou do hábito, sacralizados pela repetição compulsiva”,
trocar impressões, ouvir e contar histórias. escreve, na folha de sala, Ricardo Escarduça. “Desenhar é
Valoriza esse momento? É importante para si enquanto
descobrir o outro no eu”. Simultaneamente, será inaugurada
escritor? também uma mostra individual de Horácio Frutuoso
É certamente agradável — são dias que passamos fora de casa,
numa sociedade diferente, com pessoas distintas. Nesse sentido,
já é um ganho. A nível pessoal é enriquecedor. Ajudará a fazer
chegar mais livros às pessoas? Não é garantido. TEMPS D’IMAGES MÚSICA PARA FEIRA DE DESENHO EDUCAÇÃO DIGITAL
EM LISBOA CRIANÇAS NO CCB NA SNBS
Os escritores homenageados no Escritaria são convidados a Educação Digital é o tema
escolher uma frase que dá origem a uma escultura pública em O segundo momento do O Festival Big Bang regressa Quarta edição de A Drawing do III Encontro da Secção
Penafiel. Já escolheu a sua? Festival Temps d’images ao Centro Cultural de Room Lisboa, feira de arte de Educação a Distância da
Já escolhi e já me esqueci dela [risos]. Assim será uma surpresa decorre até 7 de novembro, Belém, nos dias 22 e 23, com contemporânea dedicada ao Sociedade Portuguesa de
quando a vir lá. Tinha a ver com questões que são importantes com obras de teatro, dança, performances e espetáculos desenho, de 27 a 31 de outu- Ciências da Educação, que
no meu percurso, relacionadas com o prazer da escrita, o prazer instalação e performance, em direcionados para o público bro, na Sociedade Nacional de decorre a 25 e 26, através do site
da leitura. vários espaços de Lisboa. O mais jovem, que inclui Belas Artes, em Lisboa, com https://videoconf-colibri.zoom.
Momento II traz sete obras música tradicional, música 26 galerias representando us/84666324877. Dia 25, às 18,
No Escritaria fará a primeira apresentação do seu novo em estreia absoluta ou em contemporânea, sapatea- mais de 70 artistas de todo sessão de abertura com Paulo
romance. O que podemos esperar do desfecho desta trilogia? primeira apresentação em do, instalações sonoras e o mundo. Inclui obras de Dias (U. Aberta), Isolina Oliveira
A confissão do assassino. Ele vem contar-nos as razões que o Lisboa. Este mês, nos dias 23 visuais. Entre as atrações, Jorge Molder, Pedro Cabrita (U. Aberta), Henrique Gil (IP.
levaram a matar o amigo. Mas com quase 250 páginas, há tempo e 24, estreiam-se Cobertos estão o concerto desenhado Reis, Luísa Cunha, Jorge Castelo Branco) e João Correia
para vários desvios e histórias paralelas. pelo Céu/Paisagem em Linha, Olá zente que aqui samo, Queiroz, Pedro Barateiro, de Freitas (U. Nova de Lisboa); e
de Gustavo Ciríaco, e Salão com música e ilustração Pedro Calapez, José Loureiro, painel moderado por Maria Flor
Esta trilogia parece ter crescido por vontade própria, sem para o Século XXI, de Isabel ao vivo pelo artista visual Gonçalo Pena, Manuel Vieira, Pedroso e com Glória Bastos
controlo... Costa; de 25 a 29, Terceira JAS, o musical Sou filha das Mafalda Santos, Vera Mota, (U. Aberta), António Osório (U.
Completamente. Aliás, se tivesse pensado nela como uma tri- Pessoa apresenta a instalação ervas, baseado em canções Alberto Carneiro, Sara Bichão Minho), Fernando Ramos (U.
logia teria pensado numa construção diferente. A história foi QR Code, enquanto a 28 e de Amália Rodrigues, e ou Claire de Santa Coloma.A Portucalense), José Armando
acontecendo e a verdade é que a certa altura senti a necessi- 29 estreia-se A Estação de a estreia de Estradas, de feira inclui ainda um foco Valente (UniCamp) e Vítor
dade deste terceiro volume para explicar muitas questões em Outono - Ciclo Sobre Lembrar Salvador Sobral, com a atriz Berlim e a exposição dos Teodoro (U. Lusófona). Dia 26, às
aberta. A ideia inicial seria deixar o mistério no ar, sem saber e Esquecer III. Em novembro, Jenna Thiam e o músico trabalhos dos 10 finalistas ao 18, painel “Investigadores”, mo-
as razões, mas os leitores reclamam sempre muito, querem dias 6 e 7, estreia-se Missed- Javier Galiana. Os Sete Dixie Prémio FLAD de Desenho, um derado por Paula Peres (IP. Porto)
saber as motivações do assassino, mesmo quando o autor as en-Abîme, de Rogério Nuno encerram os dois dias do espaço editorial com livros e com Cecília Tomás, Elisabete
desconhece. Neste caso, acabei por inventar uma solução Costa, e Dobra, de Romain festival com canções de dedicados ao desenho, lança- Barros, Fernanda Nogueira, Luísa
[risos]. J Beltrão Teule. grandes músicos do jazz. mentos e conversas. Azevedo e Paula Cardoso.
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N
oficial. Abdulrazak Gurnah é o
Prémio Nobel de Literatura de
2021. A distinção foi justificada ão vou falar aqui do Orçamento de Estado para a
pela sua “incursão intransigente Cultura, que continua longíssimo, às vezes parece
e compassiva em relação aos que cada vez mais longe, do 1% há mais de 20 anos
efeitos do colonialismo e do apontado como meta desejável. E não vou porque nem
destino do refugiado no abismo o espaço consente uma sua análise fundamentada,
entre culturas e continentes”, lê- nem teria a competência necessária para o efeito.
se no comunicado da Academia Assim, fora da linha habitual desta coluna, vou aqui apenas aconselhar
Sueca. “As suas personagens três exposições, uma delas por “remissão”, mais uma peça e o livro de
encontram-se num hiato que ela parte.
entre culturas e continentes,
entre a vida que era e uma WORLD PRESS PHOTO Começo pela exposição que primeiro encer-
vida que emerge; é um estado rará: quem a desejar ver tem agora apenas dez dias, e só por haver sido
inseguro que nunca pode ser prolongada até ao próximo dia 30, quando estava previsto fechar a 15. É
superado. No universo literário decerto o mais famoso certame de reportagem fotográfica e dá-nos uma
de Gurnah tudo está a mudar — muito expressiva, e tantas vezes dramática, mostra do estado do mundo e
recordações, nomes, identidades. dos mais relevantes acontecimentos do ano anterior.
Provavelmente, porque o seu Não se trata, pois, apenas de uma exposição de excelentes ou extraor-
projeto não pode chegar ao dinárias fotos, mas também de uma visão do planeta e da sociedade em
fim em qualquer sentido mais que vivemos: factos, fenómenos, pessoas que fizeram as manchetes dos
definitivo. Em todos os seus livros media a nível global. E para isso contribui imenso haver, de par com as
está presente uma exploração fotos, textos que dão a necessária informação sobre as mesmas: a "gente",
infinita movida pela paixão Abdulrazak Gurnah a realidade, a situação que as imagens documentam e respetiva contex-
intelectual.” tualização.
Quarto escritor negro a Dois exemplos: a “foto do ano”, "O primeiro abraço", de Mads Nissen,
receber o Nobel de Literatura, símbolo da pandemia, tema de numerosas outras imagens; e a “história
Abdulrazak Gurnah narra a Nascido em 1948, numa das de dez romances e de vários do ano”, "Habibi" (“meu amor”, em árabe), de Antonio Faccilongo,
experiência dos refugiados e ilhas de Zanzibar, na Tanzânia, contos publicados em revistas. sobre a sua ausência/presença em casa, até com as suas roupas no mesmo
exilados, da condição colonial Abdulrazak Gurnah exilou- Estreou-se, em 1987, com sítio, de Al-Barghout, há mais de 40 anos preso pelos israelitas.
e pós-colonial. Os seus se com a sua família no Reino Memory of Departure, depois A exposição está patente no Parque dos Poetas, em Oeiras – e, assim,
romances fogem de descrições Unido no final dos anos 60, de anos a escrever para si. quem a for ver, como deve, terá o bónus suplementar de (re)visitar esse
estereotipadas e chamam devido às perseguições de que Começou aos 21 anos, para belíssimo espaço. E é organizada entre nós, uma vez mais, pela Visão
a nossa atenção para uma os árabes eram alvo na altura. tentar compreender e enquadrar – que por falta dos anteriores apoios mecenáticos não promoveu nos
África Oriental culturalmente Tem no swahili a sua língua a sua condição de refugiado. últimos anos o Prémio de Fotojornalismo que criou há 20 anos (quando
diversificada, desconhecida materna, mas tem publicado Seguiram-se, entre outros, também trouxe para Portugal a WPP) e era o mais importante do género
para muitos em outras partes exclusivamente em inglês. Paradise, Admiring Silence, By entre nós.
do mundo”, sublinhou ainda a Durante anos, foi professor the Sea, o único publicado em
Academia Sueca. O cruzamento de Literaturas Inglesas e Pós- Portugal numa edição da Difel há JOÃO ABEL MANTA Já na última edição foi o destaque no Vai Acontecer,
de mundos é, também, a marca Coloniais na Universidade de muito esgotada, Gravel Heart e aqui na p. 2. Vai até 15 de janeiro, mas impõe-se manter acesa a chamada
a do seu percurso biográfico. Kent, na Cantuária. É autor Afterlives, este de 2020.J de atenção para A Máquina de Imagens, essa mostra do trabalho, sobre-
tudo gráficos – desenhos, retratos, caricaturas cartoons -, de João Abel
Manta (JAM) promovida pela Fundação D. Luís I / Centro Cultural de
Cascais. Patente na Galeria do Palácio da Cidadela, afeto à Presidência da
República, com curadoria de Pedro Piedade Marques, aquela fundação
Festival Eufémia mulheres, o racismo, as formas de opressão do
pós-colonialismo, a homofobia, a discriminação,
merece todo o nosso aplauso, pela oportunidade, justeza e justiça da sua
iniciativa. Porque João Abel Manta, que pela sua incomodidade e recusa
em Lisboa a desigualdade no trabalho e a identidade e a
memória da ditadura.J
dos circuitos do êxito vai ficando muito esquecido ou “ocultado”, é uma
figura rara da arte portuguesa do nosso tempo e o nosso artista maior,
de par com Rafael Bordalo Pinheiro, mas esteticamente o ultrapassando,
naquele domínio. Seja na crítica e intervenção social e política, em que
Espetáculos, mesas-redondas e ações de teve um papel único antes e depois do 25 de Abril, seja na intervenção e
formação para refletir e debater as questões de ilustração na área da cultura, de que a sua colaboração aqui no JL é talvez
género através da arte, no Festival Eufémia, Conceição Lima, o mais brilhante, e o derradeiro, exemplo.
Mulheres, Teatro e Identidades, que decorre de
26 a 31, em Lisboa, na Biblioteca de Marvila,
na E.S. de Camões, na FCSH da Un. Nova e no
prémio nos EUA JUVENTUDE INQUIETA / A CIDADE DAS FLORES Estes são os títulos
da peça e do livro aconselhados. A primeira uma adaptação ou recriação
Mercado de Culturas de Arroios. É a primeira do segundo, o romance de estreia de Augusto Abelaira, em 1969, aos
edição do festival, promovido pelo Grupo Um poema da poetisa e jornalista sãotomense 33 anos, que logo o afirmou um escritor singular e relevante no nosso
Eufémias. Um concerto das CRUA, às 19h, e Conceição Lima foi um dos dois premiados de um panorama literário. Como sublinhado por José Fernandes Fafe ainda em
Silêncios Persistentes, uma criação de Joana concurso promovido pela revista Words Without 1969, no longo ensaio Um novo romancista português ou o otimismo cica-
Craveiro, do Teatro do Vestido, às 21 e 30, Borders e pela Academia Americana de Poetas. trizado. Da peça, em cena na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II,
marcam a abertura, Da programação destaca- Concorreram 606 poemas em 61 línguas, de 327 poe- e do livro, falam a encenadora Patrício Craveiro em entrevista e Helena
se ainda Epopeia, d’ A Corda Teatro, a 27; tas de 79 países. Conceição Lima é um dos nomes mais Simões na sua crítica (pp. 23). De Abelaira, desde o início cá da “casa” e
Tita no País das Maravilhas, da brasileira Tita destacados da poesia africana de lígua portuguesa, duas décadas cronista permanente, muito mais teria e tenho a dizer. Por
Maravilha, a 28, (In)visível, de Marisa Paulo, a tendo entre os seus livros, editados em Portugal pela agora, insisto: leiam A Cidade das Flores – e o que se lhe seguiu...
29; o cabo-verdiano Batuko Ramedi Terra, a 30; Caminho, O Útero da Casa, A Dolorosa Raiz do Micondó
Semillas de Memória, da argentina Ana Woolf, e O País de Akendenguê. Licenciada em Estudos PAULO LEMINSKI É um excelente poeta brasileiro, com Toda Poesia
entre outras participações. Em discussão, com Afro-Portugueses e Brasileiros pelo King's College, de completa editada entre nós, pela Imprensa Nacional (448 pp, 25 euros). A
uma forte dimensão política e social, feminista Londres, ontre colaborou na BBC, é jornalista, com Patrícia Portela também o admira muito, sugeri-lhe que escrevesse sobre
e multicultural, vão estar temas da agenda formação em Portugal, fundou o O País Hoje, tem a sua exposição ora em Lisboa, como aliás sabia ela gostaria de fazer. Fez
contemporânea, como a violência contra as trabalhado na imprensa, rádio e televisão. J – e remeto, última sugestão, para a última página…J
4 DESTAQUE
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20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
Em territórios de origem do es- Garrudo, conta com o apoio, entre outras atividades, a oficina Museu
Dançar
ALEKSEI OU A FÉ, a partir de Os
Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski,
critor José Saramago, Prémio Nobel
da Literatura, e do fotógrafo Carlos
outros, da Junta de Freguesia de
Azinhaga e da Câmara Municipal da
do Pensamento, com a escritora
Joana Bértholo, a palestra Processos
no Beato
com encenação e dramaturgia de Sónia
Relvas, no Ribatejo, foi lançado Golegã. de Escrita, do escritor João Tordo,
Barbosa, estreia no Teatro Viriato, em Viseu, o PIPA, Programa da Imagem e O PIPA, que teve início com o concerto Por uma Árvore do
dias 22 às 21. da Palavra da Azinhaga, que irá um atelier para crianças na antiga músico, compositor e artista sonoro Dançar é a minha Revolução,
promover uma série de iniciativas Escola Primária de Azinhaga, Fernando Mota, a conferência Arte e terceira edição do festival de dan-
BACK TO BACK FESTIVAL, com Mão em torno da literatura e das artes justamente a terra natal do escritor, Educação, pelo comissário do Plano ça, com performances de Filipe
Morta, Bizarra Locomotiva, Process Guilt e visuais, para públicos de diferentes Ser Magritte por um Dia, orientado Nacional das Artes, Paulo Pires do Baptista, Carlota Lagido, Maria
The Quartet of Woah!, dias 19, no LAV-Lisboa idades, procurando a partilha e o pela historiadora de arte e curadora Vale, e a inauguração da exposição Fonseca, Gaya de Medeiros e, em
Ao Vivo, e 20, no Hard Club, no Porto. envolvimento de artistas, escrito- Catarina da Ponte, propõe para o Sol, de Rui Horta Pereira. No âmbito contínuo, Joana Magalhães e Pedro
res e pensadores, em ligação com dia 22 a exibição do filme Mulheres do PIPA realizar-se-ão também Barreiro, a decorrer a partoir das
LUZ DE PRESENÇA, filme de Diogo a comunidade local. Criado pela do Meu País e uma conversa com residências artísticas e literárias, a 19h, de 31 de outubro às 19h, na
Costa Amarante, ganhou o Lobo de Prata
Associação Isto não é um Cachimbo, a realizadora Raquel Freire. Até ao primeira das quais será com o fotó- Fábrica do Pão (Casa do Capitão),
de Ana Saramago Matos e Cláudio final do ano, estão previstas, entre grafo Augusto Brázio.J ao Beato, em Lisboa. J
para melhor curta-metragem no Festival du
Nouveau Cinéma de Montréal, Canadá.
JORGE
www.imprensanacional.pt
www.incm.pt
GUERRA
O sétimo volume da Série Ph. aborda seis décadas de atividade de Jorge Guerra na fotografia. O livro revela algumas obras inéditas e o texto,
de Tereza Siza e Maria do Carmo Serén salienta a sua produção fotográfica como um bloco em contínua experimentação, absorvendo técnicas
e correntes em criações próprias e inovadoras. A Série Ph., coleção dedicada à fotografia portuguesa, é uma edição da Imprensa Nacional.
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TEMA 20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
Q
LUÍS RICARDO DUARTE
de ser um livro, a Divina Comedia foi
memorizada e comentada oralmente.
Essa condição implicou seguramente
uma grande consciência criativa por
parte do autor, no sentido de escrever
um texto que seja musical, já que
a musicalidade do verso ajudava à
memorização.
Como em Homero.
Sem dúvida. Só passámos a fruir o
texto escrito a partir da invenção da
imprensa por Gutenberg, no século
XX, o que de alguma maneira condu-
Quando começa a ler sente muitas ziu a uma perda dessa ideia funda-
vezes o impulso de traduzir aquele mental da musicalidade do verso.
texto que o inebria e encanta. Em Porque a poesia sempre esteve ligada
cada tradução que assina Jorge Vaz à música. Falamos de poesia lírica
de Carvalho, 66 anos, procura não porque era acompanhada à lira, na
só respeitar a melodia da língua de mesma medida em que nos referimos
partida, como imaginar como poderia às cantigas de amigo e de amor. Essa
ser um livro caso o autor o tivesse dimensão, tão forte na criação de
escrito em português. Fê-lo com Dante, tem de ser transmitida pelo
o Ulisses, de James Joyce, que lhe tradutor. A procura da melodia é ine-
LUÍS BARRA
valeu o Grande Prémio de Tradução vitável, o que não quer dizer que seja
Literária APT/SPA 2015, com Ciência sempre bonita ou delicada. Por vezes
Nova, de Giambattista Vico, dis- é intencionalmente áspera e dura.
tinguido com Prémio de Tradução Jorge Vaz de Carvalho “Um texto de exigência máxima” Para a traduzir, é preciso tocar vários
Científica e Técnica FCT/União Latina instrumentos.
2006, e com William Blake, Jane
Austen, Virginia Woolf ou Baldassarre Parece mesmo uma caminhada pelo
Castiglione. E também o faz agora poética (publicou, em 1992, o volume atendermos ao léxico, através de um Dante está a fazer em cada momen- Inferno até se chegar ao Paraíso...
com Dante Alighieri e a sua Divina A Lenta Rendição da Luz) como de estudo filológico, também consegui- to, com que outros autores está a Tem essa dimensão, sim, de esforço
Comédia, que considera ser uma das toda a sua formação musical. E vê esta remos encontrar equivalentes. Porém, dialogar, de onde vem o léxico que antes da recompensa, como tem,
grandes obras de todos os tempos. tradução também como uma defesa Dante está a escrever uma língua nova, usa, por que se altera a sintaxe. Tudo aliás, a tradução de qualquer grande
Um trabalho de vários anos, iniciado da nossa língua. “A Divina Comédia inovadora, que rompe com tudo o que isto sabendo que, no fim, tem de se texto. Mas como digo aos meus alu-
ainda na década de 90, durante a sua não pode ser traduzida num portu- tinha sido feito até então. Em grande encontrar a rima certa, sem torcer o nos, o importante é colocarmo-nos
carreira de destacado cantor lírico em guês qualquer”, defende. “Implica um parte da Idade Média, por norma, os verso para para obter esse efeito, e ser em cena. Não se traduz de fora, numa
Itália (e em muitos outros pontos do profundo amor à língua e à cultura escritores faziam uma glosa a qualquer fiel à melodia e ao timbre do texto. atitude exterior ou afastada do texto.
mundo) e que aprofundou nos últimos portuguesas”. autoridade maior, a um grande escri- Atender ao que se diz, mas sobretu- É preciso mergulhar, perceber por
anos, a partir do momento em que, tor. Dante, pelo contrário, é completa- do ao como é dito. Traduzir a Divina que determinada personagem diz o
livre da gestão de projetos na área da JL: Traduzir a Divina Comedia é uma mente original, tal como a linguagem Comédia não é uma corrida de 100 que diz, o que isso implica do ponto de
cultura e da música (foi diretor da viagem tão longa e tortuosa como a a que recorre. Escreve no vulgar metros, são várias maratonas. vista psicológico e que relação esta-
Orquestra Nacional do Porto, entre narrada por Dante? toscano, e não em latim, e enriquece-o belece com as demais personagens. É
1999 e 2006, e diretor do Instituto Jorge Vaz de Carvalho: Uma tremenda com sicilianismos, provencialismos e Como um cantor de ópera, é preciso fundamental que o tradutor percorra,
das Artes, entre 2005 e 2007), se tem viagem. A Divina Comédia é um texto galicismos, recorrendo ainda a lati- conhecer todos os instrumentos que quase corporalmente, as várias etapas
dedicado à investigação, ao ensino (na de exigência máxima, pelas dificul- nismos e a construções latinizantes, a compõem a música para depois cantar que o Dante peregrino, autor e perso-
Universidade Católica Portuguesa) e dades que levanta, pela sua extensão formulações arcaicais e a neologismos. por cima? nagem, vai superando.
justamente à tradução. e pelo sumo intelectual que contém. Exatamente. Não se conhece nenhu-
Para recriar em português a terza Mas isto não quer dizer que o texto Ou seja, exige uma investigação ma versão escrita por Dante, com A forte visualidade do texto é uma
rima da Divina Comédia, e todas as seja, por si só, difícil de traduzir. Se constante. a sua assinatura. O que temos são ajuda nessa caminhada que se propõe
cambiantes do texto de Dante, so- estudarmos a história, perceberemos Sim, e essa dimensão é que pode ser textos fixados por diversos escritores ao tradutor?
correu-se não só da sua sensibilidade as personagens que ele convoca. Se considerada difícil. Perceber o que que vêm de uma tradição oral. Antes Sim, claro. A Divina Comédia é, de
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DIVINA COMÉDIA
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DIVINA COMÉDIA
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
literária em Portugal
a estar) absolutamente esquecida,
o que não faz muito sentido. Não se
pode compreender Camões sem ir a
Petrarca, ou Francisco Manuel de Melo
sem Castiglione.
vestes, a viagem cósmica de Dante. entre as várias personagens, algumas guardista. É essa intersecção sábia e
Nesse âmbito, a grande exceção das quais com consistência histórica, paradoxal a desencadear os efeitos
é uma obra-chave do Modernismo, levam por viagens e dissertações, chocantes do livro. Alberto Pimenta
The cantos, de Ezra Pound. A assom- guiadas pelo autor, sobre conheci- foi capaz de poupar a Divina comédia
brosa amálgama poética de Pound mento científico, hagiografia, erudição à dissipação magmática, sem a
foi iniciada em 1915 e é discutível literária, mas também consumismo, subtrair ao caixilho que a fixava,
que alguma vez pudesse vir a ter um mundanidades, etc. A portentosa visão para depois a preencher com a esfera
fim. Foi concebida, por si, como um cósmica de Dante é submetida à atua- corroída da contemporaneidade.
trabalho in progress. Cadeias e acu- lização corrosiva do mundo-global. É tempo de concluir, mas uma
mulações de segmentos e volumes, Aliás, a fidelidade de Alberto Pimenta pergunta resta. Diz respeito ao
mudanças súbitas de ritmo, cortes ao caixilho da Divina comédia é a fundo dessa resistência à imitação
e reenvios condensam de facto um grande estratégia que põe ao serviço ou à recriação da Divina comédia.
universo, mas um universo em que da sátira mordaz e contundente. Gianfranco Contini explicou esse
a ordem foi superada por uma dissi- Com efeito, o estrondo provocado fenómeno geral a partir das próprias
pação ininterrupta e transbordante. pela leitura da Divina multi(co)média características do poema. O opus
Facto é que, com The cantos, é resultado preciso dessa aliança: magnum de Dante Alighieri é o
Pound entregava a Divina comé- por um lado, a ordem dantesca, por poema da pluralidade: pluralidade
dia à modernidade. Com efeito, o outro lado, a irreverência do van- de vozes, de estilos, de pontos de
poema de Dante é uma das obras da vista, de níveis de língua, de planos
literatura universal dotada de uma Alberto Pimenta “A fidelidade ao caixilho é a grande estratégia que põe ao serviço cósmicos. A sua heterogeneidade e
formatação mais precisa e rigorosa, da sátira mordaz e contundente” as suas contradições não comportam
calibrada pelo sistema aristotéli- uma imitação ou uma recriação pró-
co-escolástico. A genialidade de ximas, despistando-as por frames.
Pound reside na descoberta que, A interpretação de Contini é
para o imitar, havia que o libertar do REGRESSANDO AO LADO De resto, é do campo das novas Os processos de verdadeiramente aguda. Não é de
caixilho fixo que o prendia. PORTUGUÊS, não deixa de ser vanguardas que nos chega uma das descartar, porém, que essa mesma
Assim se poderá compreender significativo que uma das mais mais arrojadas e espantosas revisi- reelaboração na pluralidade possa igualmente valer
melhor que tivesse sido das orlas de recentes propostas de reescrita do tações do poema dantesco, A divina poesia portuguesa como motivação para uma remon-
Ezra Pound que provieram as recria- poema de Dante fique situada em multi(co)média (1991), de Alberto tagem que preserve a fidelidade à
ções mais assertivas da Divina comé- espaços de reflexão crítica sobre o Pimenta, escrita em prosa. Neste contemporânea (...) estrutura dantesca. Mas isso é só
dia. Do lado italiano, assinale-se La Modernismo. Refiro-me a Pedro quadro, é desde logo surpreendente desenvolvem-se à para aqueles visionários que, como
divina mimesis, de Pier Paolo Pasolini Eiras e à série em verso Inferno como o livro observa de tão de perto Alberto Pimenta, são capazes de
(iniciada em 1963, ed. póstuma 1975), (2020), Purgatório (2021) e Paraíso a organização e a repartição do opus margem da estrutura ultrapassar, impávidos, o non plus
uma agudíssima diatribe contra o (a editar). Na verdade, Pedro magnum de Dante. de conjunto que escora ultra das Colunas de Hércules.J
neocapitalismo, onde contracenam Eiras, professor da Faculdade de A divina multi(co)média abre-se
Dante, Gramsci e personagens de bas Letras do Porto, é um investigador, com um Prólogo que reescreve, em
aquela diversidade * Rita Marnoto é profª catedrática da
fond. Escrita em prosa, esta súmula especialmente familiarizado com tom jocoso, o início do I canto da de valores sapienciais Faculdade Letras da Universidade de
do pensamento do último Pasolini foi culturas de língua inglesa, que se Divina comédia, ao que se seguem três Coimbra, especialista em literatura
desde o início concebida como for- tem vindo a dedicar ao estudo do partes: I Transe-expresso, II Sex-Shop-
enquadrada pela Divina portuguesa e italiana, comissária para as
ma-progetto magmática e inconclusa. Modernismo. Suey, III As 4 Estações. Os diálogos comédia comemorações dos 500 anos de Camões
Dante 700
Não abandona a literatura de cordel,
os romances antigos, o alfabeto de
vaqueiros e a linguagem armorial, que
rege a presente exposição.
A leitura passa pelo Barroco, em
que se prolonga, transfigurado, o
tempo de Dante, nas igrejas coloniais,
altares e torres antigas, onde dobram
os sinos de Ouro Preto, Salvador
RUMOR DE FUNDO
e Paraty.Chega à Semana de Arte
Moderna, com A divina increnca, e às
escolas de samba.
Marco Lucchesi Nossa abordagem dantesca possui
leitores de águas claras: Camões, Vieira
D
e Pessoa. E desta suma trindade, outra
se acrescenta, não menos admirável:
esde a infância, Dante Os timbres novos e os acentos Murilo Mendes, Cabral e Drummond.
é meu fantasma. Quase vários descerram uma viagem audaz E me permitam acrescentar: Jorge de
de carne e osso. Vibrátil. no mundo das almas. Terreno até Lima e Joaquim Cardozo.
Tornou-se meu enigma então desconhecido, seu canto renova A política entra na corrente
e obsessão. Determinou as potências da linguagem. Severa, sanguínea da Divina comédia. Escrita
parte de minhas sublime, fulgurante. Leitura que no exílio, o poeta criticou duramente
escolhas e de minhas recusas. Todos produz uma força de tração irresistível, o que lhe parecia indigno, sem meias-
os anos volto ao Inferno, Purgatório a Terra e o Cosmos. Densidade brutal palavras, papas e imperadores, leigos
e Paraíso. Basta entrar uma vez, para ou leve transparência, segundo a e padres. Defendeu a separação entre
nunca mais sair. Um labirinto de beleza. cartografia dos três reinos. Obra que poder temporal e poder espiritual.
A morte de Dante é celebrada, mundo traduz um tempo misto, ao longo A república e a poesia, tão caras ao
afora, com pompa e circunstância, da qual o antigo e o moderno se poeta, não fogem ao olhar de Beatriz.
em quase todas as línguas da Terra, entrelaçam, liberdade e erudição, Na distopia, impõe-se pensar o bom
para as quais foi traduzida a Divina matéria e sonho. lugar. Assim, a transição do Inferno
comédia. Setecentos anos de presença Quantos interrogam o mistério de ao Paraíso reflete a crise de seu tempo.
e juventude. Seu decassílabo é fonte Beatriz e buscam trazê-la ao mundo Sinal de quem se rebela e sonha com
cristalina, pura dinâmica e inspiração. em que vivemos, num gesto de adesão séculos, entre algas e correntes de uma nova ordem.
Como se Dante estivesse mais vivo do e profecia. A obra de Dante, em certo leitores, cardumes incontáveis, quase Estamos dentro da Divina comédia.
que nunca. Não tanto pelo impulso e largo sentido, escapa ao controle infinitos. Nessa metáfora de vidros claros. Em sua
motor que imprime direção aos cem do autor e da crítica. Tornou-se uma Assim, num país como o Brasil, translúcida beleza. Nela desenhamos
cantos da Comédia, mas pelo fulgor da grande metáfora, uma espécie de os olhos de Beatriz confundem-se parte de um destino. Beatriz nos
poesia, no repertório das imagens, na universo inflacionário. Vive além do com os olhos de Diadorim. Nossa cumprimenta do futuro, até onde nossos
nitidez de seu olhar. espaço-tempo, na longa viagem pelos Divina comédia passa através do olhos podem alcançá-la. J
10 TEMA ↗
DIVINA COMÉDIA
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
E
ser preparada para novembro
e com um lançamento
especial: a leitura integral
desta revisitação, na Casa
Fernando Pessoa. Na mesma m pleno verão de 1321, talvez em agosto, rendida homenagem do poeta a Francesca da Polenta, sua tia, mais
casa, outra surpresa do Dante Alighieri deixou Ravena ao serviço conhecida como Francesca da Rimini, cujos amores adúlteros com
escritor e ensaísta argentino: do seu mecenas Guido Novello da Polenta, o cunhado tinham trazido o opróbrio a toda a estirpe. A desafron-
uma exposição de marionetas podestà da cidade, para se dirigir a Veneza. ta ficou lavrada no Canto V da primeira parte (Inferno) da Divina
criadas por si (paixão que tem Dias antes, Guido pedira-lhe que integrasse Comédia, conhecido a partir de 1308. Assim, nesta pequena cidade,
desde a juventude) das mais uma embaixada junto da Sereníssima no de passado glorioso mas apenas sete mil habitantes, Dante encon-
importantes personagens de A sentido de aplanar as divergências existen- trou um relativo conforto, que lhe permitiu concluir a escrita do
Divina Comédia. tes entre as duas cidades, a propósito do seu poema, o que deve ter acontecido nos primeiros meses de 1321.
Entretanto, continua na comércio do sal. Veneza detinha o monopó-
Gulbenkian Visões de Dante, lio deste comércio, mas o sal passava por Ravena; os ravennati acha- O trajeto por mar, ao longo da costa leste da península itálica,
que traz a Portugal dois vam-se prejudicados, os venezianos insistiam nos seus privilégios. A era mais seguro e rápido do que o percurso por terra, que incluía
desenhos de Sandro Botticelli, Ravena tinham chegado notícias de uma aliança de Veneza com Forlì forçosamente a travessia de numerosos cursos de água e das terras
um dos muitos pintores que e Rimini para lançarem um assalto conjunto contra a cidade. Para o alagadiças do delta do Pó. O tempo urgia, perante a ameaça ve-
se inspiraram na obra-prima senhor da antiga capital imperial, tratava-se de evitar a todo o custo neziana. É, por isso, admissível que Guido Novello tenha dispo-
do poeta italiano. A mostra é uma guerra que só podia concluir-se com a derrota da sua cidade. nibilizado uma embarcação, provavelmente de pequeno calado,
complementada com obras E não é arriscado deduzir que os para levar os seus embaixadores
da fundação, como A Eterna embaixadores de Guido Novello a Veneza, que ficava a umas
Primavera, de Auguste Rodin, e eram portadores de concessões quarenta léguas de distância.
uma série de Rui Chafes, e com suscetíveis de acalmar a impa- Não existe prova documental
várias edições manuscritas ciência veneziana. ou testemunho que avalize a
da Divina Comédia. Em torno Guido conhecia bem a vasta presença de Dante em Veneza
da exposição decorrem experiência diplomática de antes desta viagem. No entanto,
várias conversas, sempre Dante, que no princípio do século é quase certo que conhecera o
às 19,: Il Dante di Botticelli, fora embaixador de Florença Arsenal veneziano, porque, no
por Lucia Battaglia Ricci, dia junto da corte do papa Bonifácio canto XXI do Inferno (escrito an-
28; Dante e Ulisses. Do Mito VIII, em diligência que acaba- tes de 1308), toma o seu ambiente
à Modernidade, por António ra por lhe valer o exílio. Além como termo de comparação para
M. Feijó e Teresa Bartolome, disso, durante os vinte anos do descrever o fosso dos preva-
a 2 de novembro; O Inferno seu afastamento de Florença, ricadores, culpados de barat-
de Rui Chafes, com o artista, pusera os seus talentos ao serviço teria ou abuso doloso da coisa
Joaquim Sapinho e Paulo Pires de diversos patronos, sobretudo pública: “Como no arsenal dos
do Vale, a 3 de novembro, e Ler em Verona, onde viveu a partir Venezianos/ ferve tenaz durante
a Divina Comédia, por Alberto de 1312 à sombra da família Della o inverno o pez/ p’ra reparar os
Manguel, a 24 de novembro. Scala – a dura “escada” (scala em lenhos dos seus danos, […] fervia
Na rubrica Lições de Dante, italiano) da dependência, a que em baixo uma resina espessa, /
debates, às 18, sobre Dante em alude no Paraíso: “Tu provarás o que a riba enviscava em toda a
Portugal, com Isabel Almeida, quanto sabe a sal/ o pão alheio, e parte.”
Rita Marnoto e António Mega quão duro cale/ o descer e subir Não se sabe em que termos e
Ferreira, dia 8, e Dante em alheio vial”, na tradução de Jorge circunstâncias Dante e os seus
português, com Jorge Vaz de Vaz de Carvalho. Fora, aliás, ao colegas se desempenharam do
Carvalho, Arnaldo Espírito serviço de Cangrande della Scala encargo. Uma persistente lenda
Santo e Alexandra Lopes. que viera ter a Ravena, em 1318, transmitida ao longo dos séculos
encarregado de diligências junto sustenta que o poeta-diplo-
de Guido Novello. Este retivera-o; Dante mata foi humilhado pelo Doge
Dante acabara por ficar. Giovanni Soranzo, que se teria
Guido foi mais que um patrono recusado a negociar com ele e
de Dante: realmente, foi um o mandara regressar a Ravena
mecenas, que não só lhe pelos seus próprios meios. Mas
proporcionou a sobrevivência a verdade é que uma espécie de trégua viria a ser celebrada logo
financeira, permitindo que em outubro, conduzindo às negociações que desembocaram num
ele encontrasse alojamento tratado de paz assinado no ano seguinte. Como Dante regressou a
independente e uma vida au- Guido foi mais que Ravena no princípio de setembro, não é difícil adivinhar que, em
tónoma, como ainda acolheu vez do fracasso propagandeado, as conversações se desenrolaram
os seus três filhos, atribuindo um patrono de Dante: com mútuo reconhecimento.
ao mais velho, Pietro, duas foi um mecenas, que Em função da apertada cronologia, uma hipótese se levanta: a
sinecuras eclesiásticas que de que Dante tenha adoecido na viagem de ida, ou já em Veneza, e
haviam de assegurar a sub- lhe proporcionou tenha sido mandado regressar sozinho, enquanto os seus cole-
sistência dos três. Além disso, a sobrevivência gas permaneciam na Sereníssima a concluir o acordo que viria a
tudo fizera para que a única ganhar forma em outubro. É o mais consentâneo com a atribulada
filha, Antonia, fosse acolhida financeira e ainda viagem de volta, feita através dos pântanos e dos braços do delta
no mosteiro de Santo Stefano. acolheu os seus três do Pó, a pé, de mula ou em bote a remos, durante a qual, segundo a
Dante estava-lhe agradecido, tradição inaugurada por Boccaccio, Dante teria contraído malária,
mas não parece que o senhor filhos, atribuindo ao doença que o levaria deste mundo em poucos dias. Dante Alighieri
de Ravena tivesse abusado mais velho, Pietro, morreu na noite de 13 para 14 de setembro de 1321, aos 56 anos de
da sua posição. Gratíssimo, idade. Nove meses depois, seriam encontrados num esconderijo do
Alberto Manguel Guido devia-lhe o resgate
duas sinecuras seu quarto os 13 últimos cantos de Paraíso, que completavam a sua
da honra da família, pela eclesiásticas obra máxima, a Comédia, a que Boccaccio chamou “divina”.J
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LETRAS 20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
O
LUÍS RICARDO DUARTE
A mulher que inspirou Os
Informantes tinha uma vida que
me contava um fragmento do
século XX em concreto. A vida do
Segio Cabrera foi para mim tão
sedutora precisamente porque
me dava tudo. Através de uma
só vida fala-se da Guerra Civil
Espanhola, através do seu pai,
do surgimento das ideias de
esquerda na América Latina, da
Revolução Cultural na China de
Mao e dos movimentos revolu-
cionários na Colômbia a partir
O passado, a memória, as raízes dos anos 60. O meu primeiro
dos problemas presentes. Pode pensamento, quando conheci
dizer-se que em todos os seus a fundo a vida do Sergio, foi: se
romances procurar confrontar-se isto fosse uma novela ninguém
com estes temas, sempre com o acreditaria, seria inverosímil.
objetivo de perceber (ou definir) O que me interessa desde Os
o lugar da Colômbia no mundo. Informantes é contar histórias
Juan Gabriel Vásquez é, também nas quais as vidas privadas e as
o poderíamos dizer, um grande públicas chocam. O que acontece
viajante do século XX, que tem nesse momento? E como aconte-
descrito como poucos em obras já ce? Nesse sentido, continuo com
distinguidas com os mais impor- essa obsessão.
tantes prémios da América Latina
e não só. A obsessão pela memória?
Em Olhar para Trás, o seu Sim. E pela convicção de que o
romance mais recente, escrito passado só é acessível através
durante os primeiros confina- das histórias. O que consegues
mentos da atual pandemia, tomou Juan Gabriel Vásquez ”Todos os meus livros perguntam pelo lugar da Colômbia no mundo” contar com o jornalismo ou com
como ponto de partida a vida do a história é muito valioso, mas
seu amigo e realizador colom- há um espaço da experiência do
biano Sergio Cabrera. Da Guerra passado que só está ao alcance do
Civil Espanhola, cujo desfecho secreta de Costaguana (ainda sem sional, que nasciam da minha romance. É outro tipo de conhe-
determinou o exílio dos seus país, tradução portuguesa), O Barulho curiosidade em saber mais de cimento.
até às crises do presente, pas- das Coisas ao Cair, As Reputações uma vida que me parecia exótica,
sando pela Revolução Cultural e A Forma das Ruínas. Em Olhar certamente pouco usual, fas- Em que sentido?
da China de Mao, é um retrato da para Trás tentou desaparecer do
O romance é uma cinante. A certa altura, percebi O romance é uma forma de
geopolítica internacional das úl- livro enquanto narrador para que forma de conhecimento que esta não era apenas uma vida conhecimento ambíguo, não se
timas décadas, que tanto marcam as personagens pudessem falar por interessante, mas também um pode quantificar ou medir, mas
os destinos de um país, como as si só.
ambíguo, não se pode percurso que contava algo maior. sem o qual não compreendería-
vivências individuais e íntimas. quantificar ou medir, Cada episódio que o Sergio par- mos totalmente nenhum episódio
Nascido em Bogotá, na Jornal de Letras: “Essas vidas tilhava comigo configurava um do passado. Isto é, para entender
Colômbia, em 1973, Juan Gabriel que nos contam uma História
mas sem o qual não retrato de todo um momento do o passado público e o seu im-
Vásquez formou-se em Literatura maior”, lê-se a meio deste seu compreenderíamos século XX, cujas consequências pacto na vida privada é preciso
na Sorbonne, em Paris, e viveu novo romance. É um dos seus totalmente nenhum continuam a marcar o presente, conjugar todos esses saberes: do
durante muitos anos em Barcelona. lemas enquanto escritor? nomeadamente o da Colômbia. jornalista, do historiador e do
Começou a publicar romances Juan Gabriel Vásquez: Sim e episódio do passado romancista.
com 20 e poucos anos, mas apenas sobretudo deste romance. Olhar Os Informadores, um dos seus
considera Os Informadores, de para trás nasceu de uma série de primeiros romances, também se O século XX todo e a vida um
2004 (publicado em 2020 em conversas que tive com o Sergio inspirava na vida de uma mulher amigo muito próximo. É um
Portugal, pela Alfaguara, como Cabrera ao correr de muitos anos. que partilhou a sua vida consigo. escritor que gosta de desafio ou
todos os seus livros) o seu primeiro Eram conversas entre amigos, Foram experiências literárias de correr riscos?
romance. Seguiram-se História sem qualquer objetivo profis- semelhantes? Tudo neste livro era um enorme
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 13 ENTREVISTA
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problema, de facto [risos]. Contar Foi só minha. Quando a certe- ro me disse que os grandes
a vida de um amigo sem causar za se formou na minha cabeça vencedores da Guerra Civil
dano e sem dizer uma só menti- disse-lhe que queria escrever um Espanhola, entre republicanos
ra. Sem maquilhar ou camuflar romance e ele concordou. Nunca e nacionalistas, foram os países
a realidade, no fundo. O objetivo pediu para ler uma página, nem latino-americanos. Porque
era esse, tal como falar de assun- nunca soube o que eu estava a receberam os exílados republi-
tos que ainda hoje no meu país fazer. canos, uma série de intelectuais
são focos de conflito. Quando e de pioneiros com vontade de
o livro estava prestes a sair, o Não teve a sensação de estar a inventar coisas novas em países
Sérgio escreveu-me a dizer que falar com uma personagem? que ainda estava à procura do
estava nervoso e com medo da Isso foi mudando ao longo do seu lugar no mundo. Vivendo
reação das pessoas: de esquerda, livro. Sempre tive presente num país como a Colômbia, que
de direita e da sua família [risos]. que a minha estratégia como nessa época não se abriu a esse
Na verdade, vivemos num tempo romancista era escrever como se exílio, a Guerra Civil Espanhola
e, no meu caso, num país em que o Sergio não existisse ou como e as suas consequências na
é difícil falar do passado. Por ter se tivesse morrido. Tinha de América Latina sempre me
essa vontade, também percebi Sergio Cabrera Numa comuna comunista na China, nos anos 60 (é o segundo escrever a sua história como a interessaram. O que seríamos
que a melhor estratégia era de- a contar da esquerda) Virginia Woolf escreveu a da Mrs. hoje caso tivéssemos sido um
saparecer do livro, ausentar-me, Dalloway, como uma personagem país mais aberto? É preciso
para que a história, o passado e de ficção. Mas sabia que termina- imaginá-lo.
os intervenientes a contassem na que a sua escrita conferiu ordem passar na censura. Nessa altura, do o manuscrito dá-lo-ia a ler ao
primeira pessoa. e propósito aos dias caóticos da contudo, eu já percebera que Sergio, para ter a sua opinião ou Todas as personagens deste livro,
quarentena e permitiu-me em a sua vida era iluminadora. O cortar o que ele achasse neces- e da família de Sergio, são de
Já não publicava um romance há mais de um sentido conservar filme podia nunca ser feito, mas sário. Com uma enorme satisfa- grandes convicções. Também o
seis anos e em várias entrevistas uma certa sensatez no meio da- o romance tinha de existir. Até ção percebi que, pelo contrário, cativou essa dimensão?
lhe perguntaram pelo próximo. quela vida centrífuga. porque a morte do pai do Serio apenas quis acrescentar uma O que mais me seduziu foi a
Ter um desafio tão grande foi apanhou-o em Barcelona, no ou outra informação. Foi muito reflexão sobre as decisões que
importante para si, inclusive em Antes de ser romance, a história meio de uma crise matrimonial comovedor, sobretudo porque tomamos. Em 1969, Sergio
tempos de pandemia? de Sergio Cabrera foi um guião e na altura em que os acordos de usou os diálogos do meu livro toma a decisão de se unir à
Acredito de sim. Este livro foi, de cinema. Foi um percurso com paz foram recusados pelos co- para dizer ao seu pai o que não guerrilha colombiana, mas à
na verdade, um refúgio extraor- muitas alterações? lombianos. Pareceu-me a metá- conseguiu dizer enquanto ele medida que me contava a sua
dinário. Depois de sete anos de Algumas. Esse guião surgiu de fora perfeita de uma grande crise ainda estava vivo. história era evidente que essa
conversas, a pandemia apanhou- um convite de uma produtora existencial a partir da qual se decisão não a tomou sozinho,
-me com 20 páginas escritas chinesa ao Sergio. A ideia era recorda o passado para perceber O romance começa com a Guerra mas com o passado familiar,
que não me convenciam de todo. contar apenas a sua passagem o que se passou. Ou seja, a cons- Civil Espanhola. Estamos sempre as convicções do tio e do pai,
Durante as dúvidas e incertezas pela China num filme, para trução de todo este livro deve ao a regressar a esse momento tão a tradição de uma família com
dos primeiros confinamentos, o qual ele me convidou para romance, não à biografia. importante, mesmo quando o heróis e todo o enquadramento
este romance foi o antídoto escrever o argumento de uma ponto de vista é o da América histórico. Esse mecanismo é
perfeito. Como digo na nota final ficção. Os produtores acabaram A decisão de escrever esta vida Latina? muito interessante: acredita-
do livro, estou convencido de por achar que o filme nunca iria foi sua ou tomou-a com o Sergio? Foi Juan Villoro quem primei- mos que tomamos decisões au-
VISÕES
DANTE DE
O
INFERNO SEGUNDO
BOTTICELLI
24 SET — 29 NOV 2021
GULBENKIAN.PT
ENTREVISTA/FERNANDO ECHEVARRÍA
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
LUCÍLIA MONTEIRO
todas as partes no mundo, deci- matriz ibérica, nasce de uma aguda vacante e auroral: “O ímpeto de aná-
diu que a luta armada era o único intuição, constantemente trabalhada lise progride/ em profunda extensão
caminho para os seus ideais. Os pela experiência percetiva do real, e grande altura./ Seu tenso interior
ideais eram os corretos, mas os pela razão discursiva e pelo trabalho Fernando Echevarría abre limites/ de exterioridade, ainda
meios para os concretizar des- da língua. Em linguagem tomista, tão oculta,/ mas onde já tropeçam ritmo,
virtuaram-nos imediatamente. cara ao poeta, diríamos que ela apa- timbre» (p. 193).
É um das grandes lições que re- rece como uma forma perseverante O exílio factual que o poeta sofreu
cebemos, hoje, de histórias como de amor intellectualis que transfor- Inacabada (1360 páginas, ao todo), Analítica (1), se diria epitomizar o por motivos políticos, levando-o a
a sua: a capacidade da violência ma o dom poético em dádiva (e em editados pela Afrontamento em 2006 longo caminho percorrido. São mais edificar uma língua poética sua, dá
para envenenar tudo, para des- obra), através da experiência unitiva e 2016 para assinalar, respetiva- de 500 poemas que se nos impõem agora lugar a um exílio maior, que
truir até os melhores ideais. Em de criação. mente, os seus 50 e 60 anos de vida como a súmula de um percurso sem não se distingue do tempo de uma
O Homem Revoltado, Camus põe A sua vasta produção poética, literária, viu-se acrescida, em 2018, deflexões, em que o movimento do velhice em que a ressonância da
a pergunta fundamental: temos reunida nos dois volumes de Obra de um alentado livro cujo título, Via pensamento não se distingue do fazer realidade do mundo está prestes a
direito a matar ou a ver alguém dissolver-se no fulgor da sua ausên-
ser assassinado como meio para cia: “E, aí, a solidão deu em sossego./
a Revolução? A minha resposta é Agora tudo é horizonte e espaço/
não. Nada justifica o sacrifício de onde só conta registar o acréscimo/
uma vida humana.
A Luz de um Mais-Saber
JOÃO BARRENTO
Estava sentado no amplo pátio É disso que se trata sempre na É assim na poesia de
do grande béguinage de Bruges, poesia de Echevarría. De, contor- Fernando Echevarría, que não
ao cair da tarde de um dia de ju- nando sem contemplações nem cede à tentação da “clareza” rasa
lho de 2009, e levava comigo mais hesitações os baixios da mimese e nem se fecha em celas hermé-
um livro de Fernando Echevarría o simplismo de uma subjetividade ticas, mas não prescinde de
acabado de sair, Lugar de Estudo. estreita, dar corpo a uma “dialé- nos fazer sentir o peso do signo
Nas páginas livres do fim do livro, tica” atravessada por um subtil em textos poéticos tecidos com
ao lado de um desenho da capela sopro de espiritualidade profana, rigor, numa trama de lingua-
e das árvores, que ia fazendo, que reflete a complexidade do real gem em ação permanente sobre
encontro, escrito a lápis nessa na sua unidade última: entre o quem lê. De facto, esta poesia
tarde, um breve texto-síntese visível e o invisível (sem cair na parece querer dizer-nos sempre
da minha leitura desse livro e falácia do inefável), entre o grave que, quando o sentido parece
de grande parte da Obra deste e o jubiloso, entre a lágrima e a esvair-se, há um silêncio loquaz
poeta, que essencializa os fenó- alegria, entre o negro e a luz do que tudo absorve e traz para a
menos reenviando a experiência azul. solidão habitada pela luz de um
do sensível para zonas de uma mais-saber. Que o estudo, o do
imagética ou de uma conceptuali- livro e o do mundo (o do livro
LUCÍLIA MONTEIRO
dade muito próprias, para a esfera do mundo) tem a sua escola na
de uma metafísica que supera, atenção, um lugar onde não há
sem a ignorar, a linguagem mais lugar para a fala vazia, onde uma
comum, as suas insuficiências e Fernando Echevarría espécie de evanescência, mais
a sua “impostura”, para chegar, do que um discurso acabado e
como diria Hölderlin, a um “canto cheio, faz nascer o inédito, onde
da alma” — e ao escrevê-la vejo Uma dialética há uma mais-palavra na pala-
agora que a expressão pode, neste nasce, na poesia, nesta poesia, mais real no real, ‘um horizonte vra, pairando para lá das razões
caso, ser entendida no seu duplo um modo de ver órfico (não her- mais longínquo’, o ‘Aberto’. Por atravessada por da razão com a sua humilde e
sentido: as zonas mais recônditas mético): ‘O mundo era acolhi- isso esta poesia precisa de uma um subtil sopro insistente força imaginante, a
da interioridade e do silêncio, e do na palavra / que devolvia o ‘nova condição da língua’, aquela sua matriz telúrica, a sua busca
os seus cânticos mais sublimes! A mundo, / não só abstrato, mas que ‘diz somente o que não diz de espiritualidade do enigma de estar-aí. Nisto
minha anotação no final de Lugar de urgência dada / ao espanto.’ A a fala’. E nasce o espanto — em profana, que reflete a reside um certo “classicismo” da
de Estudo dizia: este olhar, a superfície do mundo quem estuda o mundo, e em quem poesia de Fernando Echevarria,
“O estudo é a atenção que o anima-se de fulgores e tudo se lê esse mundo estudado com apu-
complexidade do real onde tudo se funde, e o que há de
olhar da alma presta às coisas. Daí abre para mostrar o que há de ro no poema”. na sua unidade última vir é como o que já foi. J
LIVROS/ESTANTE
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
Mia Couto
Um romance notável
O Caçador de
Elefantes Invisíveis
é o título do novo
volume de contos de
Mia Couto, que neste
registo já publicou
Vozes Anoitecidas, Cada
Homem É uma Raça,
Estórias Abensonhadas ou O Fio das
OS DIAS DA PROSA
Missangas. O volume reúne as his-
tórias curtas que o escritor moçam-
bicano, um dos mais destacados da
Miguel Real língua portuguesa, Prémio Camões
em 2013, tem vindo a publicar men-
N
salmente na revista Visão (referência
que não se omite, como acontecia
otável entre ro), do afastamento das “femini- na publicação em livro das crónicas
os romances nas” do seu corpo, considerado de A. Lobo Antunes), em edição re-
notáveis de “sujo”, até ao final apoteótico do vista e em alguns casos reescrita. Os
Valter Hugo encontro de Honra com o seu pai contos acompanham muitas vezes
Mãe (VHM) (A branco no além das “três ilhas” a atualidade, mesmo quando não o
desumanização, após a travessia do “animal líqui- fazem diretamente. O que dá título
O filho de mil homens, A máquina do”, quando o ódio de matar se ao conjunto aborda, precisamente,
de fazer espanhóis), As doenças do transforma em “gentileza” abaeté. as campanhas de informação sobre
Brasil é um romance extraordi- Um abaeté só mata para se de- a Covid-19 em aldeias remotas. Mas
nário, que capta o sentir poético fender, não possui ódio, só possui são também contos de efabulação,
e mítico dos Abaetés (povo nativo fúria, cólera rompante. O branco, de personagens que se encontram e
do Brasil), transpondo-o em detentor do “ferro que cospe fogo” desencontram em episódios do quo-
forma de narrativa (cf. “Um outro (arma de fogo) mata por cupidez, tidiano. Num deles, Júlio Macavira
Brasil”, entrevista ao autor por por ganância, por interesse e por confronta-se com as estátuas da Ilha
Luís Ricardo Duarte, JL, nº 1339, ódio. Honra não pode tornar-se de Moçambique a sair do seu pedes-
22/9/21). igual ao inimigo. tal, surpreendendo um diálogo entre
As doenças do Brasil acrescenta A Honra junta-se outro “feio”, Vasco da Gama e Luís de Camões a
às diversas doenças europeias que fugido dos brancos, procurando propósito de Os Lusíadas.
os brancos levaram para o Brasil um “mocambo” desconhecido que
(bexigas, gripe, varíola, saram- havia na mata. Porque era negro, é › Mia Couto
po…), que exterminaram centenas chamado pela comunidade abaeté O CAÇADOR DE ELEFANTES
LUCÍLIA MONTEIRO
XV BIENAL
é um hino ao despojamento,
› Daša Drndic escrito de uma forma também ela
BELLADONNA despojada.” Poemas breves que
Tradução de António Pescada, captam a transitoriedade da vida
Sextante, 432 pp, 18,80 euros e se afirmam como um louvor da
vida simples, longe da agitação
POESIA
(e das intrigas palacianas) da
cidade, que já no seu tempo era a
INTERNACIONAL
imagem de esgotamento da força CERÂMICA ARTÍSTICA
Liberto Cruz vital da vida.”
AVEIRO
Um livrinho singu- › Kamo no Chomei
lar, porque uma bre- HOJOKI — REFLEXÕES
ve “paródia poética” DA MINHA CABANA
e porque em francês Tradução de Jorge Sousa Braga,
(assim também se Assírio & Alvim, 96 pp, 8,80 euros
lhe podia chamar
um divertissement...),
segunda língua do OUTROS
autor, Liberto Cruz — também
crítico, ensaísta, biógrafo e
tradutor, que em França durante Mário de Moura,
muitos anos foi prof. universitá-
rio de Literatura Portuguesa. Les memórias AVEIRO MUSEUMS
mains sur la tête é o título, com Mário Mendes de
duas partes: “Poèmes à deux Moura é um português,
mains” e “Poème a la têten. editor há mais de 60
Todos com agrupamentos de anos, durante cerca de
dois versos, em geral de quatro 40 fora de Portugal,
sílabas e rimados. Por exemplo: sobretudo no Brasil
“La main de Dieu/ La mais de - no total, calcula, 30.10.2021 > 30.01.2022
vieux// La mais nue/ La main publicou mais de três
que tue// La mais riche/ La main mil títulos, com milhões de exem-
(qui) triche”. plares. Só regressou a Portugal em
1988, e ainda fundou editoras como
› Liberto Cruz a Pergaminho e a Vogais (que em
LES MAINS SUR LA TÊTE 2008 e 2010 venderia), publican-
Palimage, 68 pp., 12,50 euros do entre nós, por exemplo Paulo
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20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
PORTUGUESE BASKETRY
EXPOSIÇÃO EXHIBITION
// A PARTIR DE // FROM
10 DE SETEMBRO SEPTEMBER 10th
2021 2021
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
ARTES 19 ↗
DocLisboa
O mundo de volta a Lisboa
249 filmes, 51 estreias mundiais, 46 filmes portugueses e 62 países representados, dezenas de realizadores convidados
e duas grandes retrospetivas. O DocLisboa volta em grande ao seu formato original, com uma vastíssima programação
concentrada em 11 dias, de 21 a 31 deste mês, na Culturgest, São Jorge, Cinemateca Portuguesa, City Campo Pequeno,
Cinema Ideal, e outros espaços da cidade de Lisboa. O JL percorre a programação com a ajuda de Miguel Ribeiro,
um dos diretores do festival, e entrevista Edgar Pêra, realizador convidado da secção Riscos
V
MANUEL HALPERN
ecrã, ou refletindo sobre o assunto,
de forma mais direta, como é o
caso de A Kid’s Flick, de Nikita
Lavretski, apresentado como a
primeira ficção bielorrussa depois
dos protestos contra as eleições
forjadas, que faz uma reflexão
sobre como a pandemia afetou a
contestação.
O facto do filme se apresen-
tar como ficção relança uma das
grandes questões em relação ao
DocLisboa. Já sabemos que os
formatos muitas vezes se tornam
Volta a haver Riscos, secções pa- híbridos e há objetos habitualmen-
ralelas, o programa Da Terra à Lua, te apelidados de “ficções do real”
o Heart Beat, as secções compe- que o Doc sempre acolheu. Mas
titivas, as festas na Barraca, uma quais são os limites que o festival
homenagem a duas realizadoras se autoimpõe? Miguel responde:
maiores e dezenas de convidados. “Interessa-nos a relação que o
O DocLisboa renasce das cinzas cinema pode estabelecer com real.
da pandemia e volta a ser o grande Sendo que do real fazem parte a
festival a que nos habituámos. A imaginação, o desejo e a memória.
edição anterior, já com esta nova A partir daí abrem-se as possibili-
direção - o trio Joana Gusmão, dades. Se o filme recorre a métodos
Joana de Sousa, Miguel Ribeiro da ficcionais para retratar esse real faz
APORDOC - tentou contornar a sentido para o Doclisboa que é um
adversidade das restrições pan- festival que se propõe a pensar o
démicas com uma programação seu tempo.“
alargada no tempo, ao ritmo de um Tal dúvida acentua-se no filme
evento por mês. O festival man- de encerramento Re Granchio, de
teve-se vivo mas transformou-se Filmes Portugueses (Da esq.ª para a dt.ª e de cima para baixo) Do Bairro, de Diogo Varela Silva; Hotel Royal, de Salomé Alessio Rigo de Righi e Matteo
numa temporada, alternando Lamas; Nazaré, Praia de Pescadores, de Leitão de Barros; e Eunice, Carta a uma Jovem Atriz, de Tiago Durão Zoppis. Os realizadores exibiram
exibições em sala com sessões de o seu primeiro filme Il Solengo,
streaming (ao sabor das normas no DocLisboa, em 2015, em que
da DGS), mas sempre procuran- com uma alegria redobrada. Temos em viajar são os asiáticos.“ os habitantes de uma remota ilha
do manter unidades temáticas e muitos cineastas e equipas que vêm Da experiência online forçada em Itália contava a história de um
espaços para reflexão, com sessões a Portugal falar dos seus filmes. da edição anterior ficaram alguns lendário eremita. Agora voltam
online com realizadores. Contudo, Uma celebração de fazer cinema, elementos positivos. No Nebula, à mesma aldeia para ouvir uma
nesse conceito de recurso ficaram ver em conjunto, e refletir sobre o programa da indústria, é possível, fantástica lenda de uma caça ao
para trás secções importantes - es- que vemos e fazemos” através das tecnologias digitais au- tesouro, em que um caranguejo
pecialmente notável foi a ausên- Apesar da incerteza, esta edição mentar o número de participantes. indica o caminho. Só que formal-
cia das secções competitivas - e do DocLisboa já foi programada “Há pequenos exibidores da Ásia e mente este é, sem sombra para dú-
perdeu-se o impacto de festival, com o plano de vacinação em cur- de África que nunca teriam a capa- Interessa-nos a relação vidas, um filme de ficção (fabuloso,
definido pela densidade e concen- so, pelo que desde início previram cidade financeira de vir a Lisboa e diga-se), mas bastou essa âncora
tração de eventos no tempo. um festival de 11 dias. O que correu assim estão presentes”. que o cinema pode na realidade (e na história do Doc)
“Este período permitiu fazer melhor do que se esperava foi a E se, aos poucos, é possível tirar estabelecer com para convocá-lo para a sessão de
uma reflexão muito profunda abertura da lotação das salas e, a pandemia da vivência do festival, abertura.
sobre o que queremos que seja o mais recentemente, a possibilidade mais tempo demorará a que ela saia real. Sendo que do
Doclisboa. O que é fundamental de fazerem as festas – os espaços dos ecrãs. Naturalmente são muitos real fazem parte a A COMPETIÇÃO PORTUGUESA
na sua estrutura base e do que não de convívio informal e de troca de os filmes em que as máscaras e A produção de cinema em Portugal
podemos prescindir” – explica, ao ideias são sempre muito frutíferos outros sinais dos tempos marcam imaginação, o desejo e esteve praticamente parada
JL, Miguel Ribeiro, um dos direto- em festivais de cinema presença. “O cinema documental a memória. O Doclisboa durante os meses mais agudos da
res. “Acreditamos no cinema como Além disso, com os certificados, acontece no tempo e no presente. pandemia. Se tal não se repercutiu
experiência coletiva e foi algo que voltou a ser possível receber de- Os filmes produzidos neste mo- que é um festival que se nas edições de festivais de 2020,
batalhámos muito para que acon- zenas de convidados estrangeiros. mento acabam por ser atravessados propõe a pensar o seu porque ainda havia muitas obras
tecesse, mesmo quando já não era “Este ano há uma presença forte de pela pandemia. Pode ser de forma rodadas anteriormente por estrear,
possível mostrar filmes em sala”. cineasta europeus e latino-ameri- circunstancial, quando as másca-
tempo tornou-se claro e e evidente em
E continua: “Este ano fazemos isso canas, os que têm mais dificuldade ras aparecem de forma natural no Miguel Ribeiro 2021. Verificou-se no Curtas de
20 ARTES ↗
FESTIVAL
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
ENTREVISTA
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
Joana Craveiro
O filme da memória em palco
O Teatro do Vestido apresenta-se na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II com Juventude Inquieta, a nova criação de Joana
Craveiro, a partir do romance A Cidade das Flores, de Augusto Abelaira, publicado no final dos anos 50. “Um espetáculo que se
passa no presente a refletir sobre o passado”, diz ao JL a atriz e encenadora, que recentemente se estreou na realização, com o
filme Elas Também Estiveram Lá, que será apresentado a 14 de novembro, no S. Jorge, no festival Olhares do Mediterrâneo.
E na sala estúdio do D. Maria II irá estrear amanhã, 21, Pranto de Maria Parda, o monólogo de Gil Vicente interpretado por Cirila
Bossuet, revisitado e encenado por Miguel Fragata. É o arranque de Próxima Cena, o projeto que Tiago Rodrigues idealizou
para levar o teatro e os clássicos da dramaturgia portuguesa aos territórios de baixa densidade populacional
D. Maria II (TNDMII) até 31, e será meira vez. E penso que há no livro pela primeira vez na Sala Garrett,
apresentado depois, em novembro, uma dimensão muito interessante, em 20 anos da sua história.
no Teatro Viriato, em Viseu, uma que tem a ver precisamente com as
“segunda casa” da companhia, relações de intimidade e entre as Um momento especial?
que irá posteriormente rumar a pessoas. Para qualquer companhia. Já
sul, prosseguindo a sua Viagem a Joana Craveiro “O meu trabalho no teatro e a minha luta é para as pessoas tínhamos estado na Sala Estúdio,
Portugal, em Santiago do Cacém e poderem ter ferramentas para pensar o futuro” mas foi um desafio do Tiago
Odemira. Rodrigues, que achou que este
espetáculo devia ir para a Sala
Jornal de Letras: O que a motivou Garrett. Na verdade, também
teatralmente no romance de forças para, de alguma manei- o livro foi escrito, não se vislum- não procuramos salas com essa
Augusto Abelaira? ra, o combater, embora sejam brava como podia ser derrubada. A emergência das dimensão, porque o teatro que faço
Joana Craveiro: É um livro que me resistentes. Apenas um deles luta E Abelaira espelha esse desalento é mais intimista. Procuro uma re-
acompanha desde os 13 anos, altura e é preso. Eu não vivi o fascismo, de uma geração. novas formas de lação mais próxima com o público,
em que a minha mãe mo recomen- tudo isso tocou-me muito, mas extrema-direita, mas aceitei o convite e disse: va-
dou/obrigou… (riso) Pôs-mo nas não compreendi inteiramente O livro foi publicado em 1959. mos lá. Claro que nada veio até nós
mãos e disse que tinha de o ler, por- todo aquele desencanto e deses- Mas Abelaira acabou de o escrever movimentos por sorte ou acaso. Trabalhamos,
que era muito importante para a sua perança, sentimentos que são em fevereiro de 1957, quando ainda fascizantes, fomo-nos afirmando, ganhando
geração. Lembro-me que o li e depois verbalizados ao longo de toda a nem estavam no horizonte as elei- o nosso público, já fizemos teatro
partilhei com uma grande amiga que narrativa que, de resto, Abelaira ções a que se candidatou Humberto potenciais fascismos, em todos os lugares imagináveis
tinha na escola. Creio que não o tere- faz decorrer em Florença. Claro Delgado, que, configurou um faz com que A Cidade e ainda gostava de fazer em mais
mos percebido completamente. que, à luz das minhas pesquisas momento de esperança para um alguns… (riso)
posteriores, e como pessoa que movimento amplo e transversal
das Flores, apesar
Mas foi marcante? pensa ativamente a relação com os de resistência ao regime. Embora de ter já quase seis Por exemplo?
Há no romance um conjunto de acontecimentos históricos que se apanhasse a crise estudantil de Todos os dias vejo lugares onde gos-
jovens esmagados pelo fascismo, reportam ao período da nossa di- 1956/57, o MUD Juvenil – e outras
décadas, seja um tava de fazer teatro, normalmente
que não conseguem encontrar tadura, percebo agora que quando ações de resistência que foram romance muito atual espaços devolutos, a quem ninguém
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT ARTES 23
ENTREVISTA/CRÍTICA
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RECUPERAR A MEMÓRIA
Juventude Inquieta passa-se na
contemporaneidade.
Passa-se no presente, refletindo
sobre o passado. Em cena, aliás,
temos duas gerações de atores, na
casa dos 40, aqueles com quem o
Teatro do Vestido trabalha nor-
malmente, e os mais jovens, entre
os 21 e os 26 anos, para fazer o que
nós estamos demasiado velhos para
fazer (riso). É preciso uma recupe-
ração da memória, perceber o que
se fez no passado para ler o presente
e o futuro. Tem sido esse o meu tra-
balho no teatro e a minha luta, para
as pessoas, nomeadamente os mais
jovens com quem trabalho e a quem
TEATRO
artística, de informações extra, tanto de
época, como as que a História produziu A Cidade das Flores é também a cidade
desde então até hoje, mas também da do amor, da educação pela arte, da
Helena Simões reflexão de causa em causa sobre o que é justiça, da fraternidade, uma utopia que
resistir, o que é ser livre, quanto tempo pode ressoar na sociedade pela prática
dura o amor. E o palimpsesto continua individual quotidiana na criação da
nas cenas de exteriores que são gravadas realidade. Este espetáculo é metáfora e
A Cidade das Flores (1959), primeiro na construção dos sentidos do objeto sobre imagens de Florença hoje, recolhi- prova disso.
romance de Augusto Abelaira (1926- teatral. das este verão por Joana Craveiro e João
2003), inspirou Joana Craveiro (1974) A Cidade das Flores, que se insere na Paulo Serafim, autor do vídeo, no encalço Juventude Inquieta, texto e direção Joana
e o coletivo do Teatro do Vestido segunda fase do movimento neorrealis- das personagens. Craveiro a partir de Augusto Abelaira;
(2001) para a sua nova criação teatral, ta português, é um romance que, para E porque a temática da memória cocriação e interpretação David dos
Juventude Inquieta, em cena no Teatro iludir a censura salazarista, decorre em pessoal e coletiva na sua relação com Santos, Estêvão Antunes, Francisco
Nacional D. Maria II, até ao fim do mês. Florença, na Itália de Benito Mussolini, a sociedade e a realidade é um dos Madureira, Gonçalo Martins, Gustavo
Como sempre, com o Teatro do Vestido nos anos 30 do século passado, com eixos das criações do Teatro do Vestido, Vicente, Inês Minor, Inês Rosado, João
assistimos a uma festa de celebração da personagens jovens, na casa dos 20, cujas assistimos também a uma revista, por Raposo Nunes, Sara Ferrada, Simon
expressão cénica, na exultante alegria histórias pessoais estão sujeitas ao fascis- vezes subtil, por vezes crispada, de uma Frankel, Tânia Guerreiro, Tozé Cunha,
de comunicação artística entre os mo em ascensão. Escrita em vários níveis multitude de marcas, da nossa história Violeta D'Ambrosio; música e espaço
fazedores e os espectadores. de discursividade, submete o discurso recente, da revolução dos cravos e de ou- sonoro Francisco Madureira; cenografia
Na passagem de 20 anos de contínua direto das personagens a diversas instân- tras diferentes revoluções (Brecht, Bella Carla Martinez; figurinos Tânia
produção artística, ideológica e estetica- cias de autorreflexividade, a estabelecer Ciao; Louise Michel, Capela do Rato, D. Guerreiro; conceção visual, realização e
mente consolidada, o Teatro do Vestido tensão entre realidade, a ficção e o sonho. António Ferreira Gomes, Diário de Miguel imagem João Paulo Serafim; assistência
mantém os pressupostos enunciados no Escrita complexa, mas livre e extre- Torga, Cadernos Dom Quixote e muito, e operação de câmara José Torrado;
manifesto da sua fundação, nomeada- mamente cinematográfica, que Joana muito mais). desenho de luz João Cachulo; desenho
mente na forma ética de fazer teatro, na Craveiro sabiamente transpôs para palco, Os jovens intérpretes de Fazio, de som Pedro Baptista, Sérgio Milhano
procura de novas linguagens dramatúrgi- numa dramaturgia igualmente comple- Soldati, Domenico, Rosabianca, Renatta, (PontoZurca); direção de produção
cas e de processos de trabalho específicos xa, livre, plural e original, a organizar Vianello (e, do outro lado, Briganti), Alaíde Costa; produção Teatro do Vestido;
para cada peça e a sua importância na de forma dinâmica as várias camadas a par da criação das personagens de coprodução Teatro Nacional D. Maria II,
construção do artefacto teatral, na atri- dos tempos passados e presentes, por Abelaira, em figurinos de época, a ex- Teatro Viriato.J
buição e partilha de um amplo espaço de intermédio de diferentes gerações de perienciarem a amizade, o amor, a luta
criação por todos os intervenientes, que intérpretes e diversas técnicas cénicas de política, a solidariedade, mas também Teatro Nacional D. Maria II, quarta a sábado às
inclui o público como participante ativo grande eficácia teatral. a inércia, o pessimismo, a descrença, a 19h, domingo às 16h. Até 31 de outubro.
24 ARTES ↗
ENTREVISTA/ESPETÁCULOS
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
O teatro pode contribuir para mos a quarta parede, dirige-se encenadora há muitos anos e, pode acontecer naquele lugar. Já
avivar a memória? a uma personagem e diz: “Não de facto, o meu trabalho é olhar, fizemos espetáculos no Minho,
Sim. Se as políticas da memória faz mal teres medo, eu também propor, corrigir, visualizar e com as Comédias, no centro do
fizessem parte do nosso modus tenho”. Tudo isso me interes- não é assim tão diferente do de país, em Alcanena, que foram
operandi de pensar o futuro, o sou muito na minha adaptação.
Tudo está montado um realizador, só que é necessá- muito interessantes. E agora
país seria diferente. Uma das Porque não se trata de uma para que nos ria a técnica, a prática especi- estou muito entusiasmada em
atrizes, por exemplo, é alenteja- versão do romance, mas de uma fica. Mas até já fiz um curso de relação ao Alentejo, um ter-
na, a avó e a mãe participaram tentativa de o pôr em cena, o
esqueçamos, a cinema documental este ano, ritório onde há muito queria
na Reforma Agrária, e fui eu, que retrato no texto que escrevi. sociedade demite-se para me preparar melhor para o trabalhar, mas a companhia
enquanto sua professora, que lhe que quero fazer. nunca teve meios. Já estive em
falei disso. Ela perguntou à mãe Essa dimensão cinematográfica
de transmitir a Santiago do Cacém, falei com
porque nunca lhe tinha dito e seria o ponto de partida memória e ter Depois de Juventude Inquieta, qual pessoas, visitei sítios, museus
teve como resposta que ela não dramatúrgico? um papel ativo, o projeto que se segue, no Teatro e há muitos pontos de parti-
lhe tinha perguntado. Na verda- A ideia que se desenhou no meu do Vestido? da. Ainda por cima com todas
de, tudo está montado para que espírito foi realmente fazer o filme por isso há várias Estamos a trabalhar no próximo as noticias que recentemente
nos esqueçamos, a sociedade de- do livro. E estamos a rodar em responsabilidades espetáculo de Viagem a Portugal, envolveram a região, há muitas
mite-se de transmitir a memória cena um filme que é A Cidade das que será em Santiago do Cacém questões passíveis de serem tra-
e ter um papel ativo. Assim, Flores. Esse foi o enredo que criei numa certa amnésia e em Odemira. Vamos rumar a balhadas. Por outro lado, estou
há várias responsabilidades, para sustentar tudo o que queria que vivemos sul. Nunca abordámos o Alentejo a escrever Porque é Infinito, a
educacionais, políticas, sociais, dizer. e estou muito feliz com essa pos- partir de Romeu e Julieta, para
na não transmissão, numa certa sibilidade. É um projeto em cola- o próximo espetáculo de Victor
amnésia em que vivemos. Gostaria de fazer mesmo um filme Se as políticas da boração com o Lavrar o Mar, da Hugo Pontes.
sobre o romance? Madalena Vitorino e do Giacomo
Como foi o trabalho de Gostava, sem dúvida. Talvez mes- memória fizessem Scalisi. E já comecei o trabalho de Quando irá estrear?
transposição de um romance para mo em Florença. Nós, eu e o João parte do nosso modus campo. Em dezembro, no Porto, no
a cena? Paulo Serafim, que fez os vídeos, Teatro Nacional S. João. Estou
Na verdade, o Teatro do Vestido fomos lá recolher imagens para o
operandi de pensar Tem sido estimulante essa ainda a escrever um outro
tem um longo historial de tra- espetáculo, visitei os lugares. o futuro, o país seria experiência? texto para um dos espetácu-
balho a partir de obras de vários A Viagem é uma espécie de los finais dos meus alunos do
autores, mas isso faz parte de Curiosamente, vai estrear em sala
diferente chapéu-de-chuva que alber- 3º ano da Escola Superior de
uma outra vida da companhia. o primeiro filme que realizou. ga espetáculos diferentes. O Artes e Design das Caldas da
Fala-se mais do nosso trabalho Sim, Elas Também Estiveram Lá que apresentámos este ano, Rainha, onde sou professora.
depois do Museu Vivo, mas aí já vai estar a concurso, no festi- no Festival de Almada, é uma Desta vez sobre feminismos,
levávamos dez anos de exis- val Olhares do Mediterrâneo, de súmula e pode rodar por várias para uma turma só de mulheres
tência. De facto, adoro partir cinema no feminino. E foi uma salas. Mas há aqueles que são e que espero estrear em sala em
de obras literárias. A questão experiência incrível: transformar te de sempre como legítimo particulares, de cada localida- janeiro. Depois, em março, vou
foi como pegar n’A Cidade das uma peça em filme, filmar em (riso). Há quem diga que o que de. É sempre muito estimulante, rumar aos Estados Unidos para
Flores. Gosto muito da própria tempo recorde, em pandemia, uma faço é muito cinematográfi- porque vamos para um sítio uma sabática de investigação.
estrutura narrativa, é um livro loucura. Mas foi lindo. co, mas sempre tive um certo em residência artística e com E trabalhar num documentário
quase cinematográfico, usa pudor de fazer cinema, porque as pessoas que conhecemos, a sobre alguns americanos que
muito o flashback, o narrador É o apontar a um outro caminho o que estudei foi teatro. Neste informação que recolhemos, apoiaram a revolução portu-
é omnipresente e a dada altura no seu percurso? caso, estive rodeada de pessoas construímos um espetáculo site guesa, que quero realizar no
quebra que no teatro chama- Estou a assumir o meu aman- que sabem fazer cinema. Sou specific, um percurso que só próximo ano. J
DANÇA
peça, a referência ao cisne, figura
emblemática do ballet clássico,
transmuta-se em fotões trémulos e
Daniel Tércio breves. Com efeito, tratando-se de
um projecto em formato mutável
(capaz de variar em cada apresen-
tação), a versão programada para o
No próximo dia 23 de outubro, uma verdadeira incubadora em teatro-cine de Torres Vedras evoca
no Cine-teatro de Torres artes performativas, versátil e momentos da morte do cisne,
PEDRO FIGUEIREDO
Vedras, a coreógrafa Né Barros atuante. imerso num espaço imaterial de luz
apresenta CO:LATERAL, uma Neste contexto, Né Barros tem e projeção.
peça produzida pelo Balleteatro uma longa e persistente carreira A outra peça de que aqui se
em que a luz impregna o corpo da na exploração da linguagem da dá notícia é IO, estreada no dia
intérprete Sónia Cunha em ritmos dança, trabalhando-a a partir dos Mundial da Música, 1 de outubro, e
digitais concebidos por João corpos, das suas imensas possibili- programada para ser apresentada Beatriz Valentim em IO Coreografia de Né Barros
Martinho Moura. dades de movimento, mas também a 4 de dezembro no âmbito do 20º
O Balleteatro – dirigido por Né combinando-a com linguagens de aniversário do festival Dans6T, em
Barros e por Isabel Barros - tem na outras disciplinas, como o teatro, Tarbes, França. Trata-se de um
História da dança contemporânea a música, as artes plásticas e o trabalho que nas palavras da co- Alberto Gomes), do dispositivo o que está abaixo. Este espaço, re-
em Portugal um lugar incontor- cinema, e finalmente ensaiando reógrafa se move entre “Paisagens, cénico (de Flávio Rodrigues e Né pleto de sons magnéticos, contém
nável, permanente e persistente, novas ferramentas. Para tanto, Máquinas e Animais”. O título Barros) e dos movimentos dos fluxos, capazes de perfurar arestas
não apenas como espaço de criação no processo criativo, Né Barros IO transporta-nos para uma das intérpretes Beatriz Valentim e e desvanecer formas. Nesta atmos-
e de miscigenação de linguagens, pode partir e combinar referências grandes luas de Júpiter, agenciando Bruno Senune. Da simbiose desses fera, o início da peça mostra como
mas também enquanto lugar de literárias, plásticas, científicas ou simultaneamente uma gravidade, elementos resulta uma experiência o simples ato de abrir os olhos ga-
formação. Desde 1983, data da sua filosóficas e colaborações de outros uma temperatura e um magnetis- que transporta o espetador para nha uma intensidade perturbante.
fundação, mas sobretudo após a criadores. mo não terrestres. Evidentemente outros mundos sem sair do mesmo. Então, todos os gestos dos corpos,
sua reestruturação nos anos 90, há As duas peças de que aqui se dão que, sendo a peça feita sob o efeito O extremo vulcanismo de IO, visto amplificados e dialogantes pelas
que reconhecer o impacto assina- notícia ilustram o trabalho explo- da nossa gravidade, o processo de pelos olhos dos criadores, reflete-se sonoridades permanentes (como
lável na formação dos artistas da ratório da coreógrafa. agenciamento resulta de artifí- num triângulo de arestas efémeras, permanente seria a presença tutelar
dança e da performance sobretudo CO:LATERAL é, conforme já foi cios gerados pela combinação de duplicado num reflexo que desafia de Júpiter), revelam-se zonas de
no norte do país. Trata-se pois de referido, uma proposta que, graças sonoridades (compostas por José a divisão entre o que está acima e intensidade.J
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT ARTES 25 ESPETÁCULOS
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Próxima Cena
Pranto de Maria Parda tornou-se
assim “pretexto” para refletir sobre
questões do feminismo, do racismo
e “dos processos racistas que houve
FILIPE FERREIRA
do feminismo e do racismo ao palco, de alguma maneira, o espartilho que o monólogo, mas haverá um texto
em que o público é convidado a se podia impor ao pegar num texto paralelo que ilumina a relação com
assistir a um “ritual sacrificial, clássico.” o presente. Foi escrito pelo próprio
para dizer adeus a um ano mau e MF acabou, no entanto, por MF. Nesse sentido, convidou vários
libertarmo-nos do peso deste tempo “aceitar o desafio e catalisar o pre- Pranto de Maria Parda, a partir de Gil Vicente consultores para a equipa de criação,
que vivemos”, como adianta ao JL o conceito em relação ao texto a favor especialistas em Gil Vicente como
encenador. do espetáculo.” Atentou, desde José Camões, e ativistas, como
Que interesse pode ter levar hoje logo, na Lisboa contemporânea, Mamadou Ba. “Foram olhares e
à cena um monólogo com 500 anos, ainda antes da pandemia, “uma muito pertinente, mas entretanto tem de morrer para se poder entrar perspetivas muito importantes para
mesmo tratando-se de um texto cidade já muito alterada, desertifi- dá-se a pandemia e tudo ficou num ano bom e de abundância. E a escrita e para o pensamento do
‘fundador’ da dramaturgia portu- cada, com muita gente a ser expulsa ainda mais evidente. Porque, de interessou-me muito pensar porque espetáculo que serve a ideia de uma
guesa, da autoria do ‘pai’ do teatro do centro, com um turismo verda- facto, quando Gil Vicente escreveu Gil Vicente escolhe personificar o ponte teatral com 500 anos.”
português? Esta foi a pergunta que deiramente excessivo e destruidor” este monólogo, havia ainda peste ano mau numa mulher e também Até 5 de novembro no TNDMII,
desde logo surgiu no espírito de e encontrou um certo “paralelismo” e vivia-se o rescaldo de um ano porquê que a tradição, ao longo de a peça será depois apresentada em
Miguel Fragata (MF), quando o diretor com a Lisboa “devastada pela seca terrível, 1521”, sublinha MF. “Por muitos anos, foi imaginando que Tondela, Viana do Castelo, Ponte
do TNDMII, Tiago Rodrigues, há uns e pela fome” em que Maria Parda outro lado, percebi que Maria Parda Maria Parda seria uma mulher ra- de Lima, Vinhais, Ourém, Ponta
anos, o convidou a encenar Pranto de vagueia pelas ruas quase irreconhe- era uma espécie de figura sacrificial, cializada, embora nada o indicasse Delgada, nos Açores e Funchal
Maria Parda para inaugurar um novo cíveis. “Pareceu-me que isso era que personifica esse ano mau e que no texto de Gil Vicente.” (Madeira). J
insistir no seu teatro “humanista”. filme, completamente diferente. So- inovadores, modernos, mas não nos
“Qual a minha idade”, pergunta, nhámos ”, adianta. “A peça começa ligam. Somos o ‘patinho feio’... Mas
súbito, João Lourenço. Era de fazer exatamente quando acaba uma vamos sempre para a frente. Porque
as contas: o ator e encenador nasceu festa, e o filme desenrola-se antes o que me importa é o público e o
em 1944. Mas antes que se puxasse e durante a festa e tem a ver com as teatro”, afirma. “Queríamos fazer
pela cabeça ou pela calculadora, ele Começar, de David Eldrige Pedro Laginha e Cleia Almeida, encenação de João Lourenço duas personagens, o passado delas, agora o Peter Handke, mas estamos
avançou: “A minha idade é a que as famílias, coisas que nem eram sem dinheiro e, por isso, escolhemos
aparentam as peças que faço”. A afloradas no texto da peça.” Começar. E como conseguimos um
idade do seu teatro está sempre entre O filme, de que apenas se usam apoio do Programa 20/20, iremos fazer
a longevidade do percurso e a juven- também faz a cenografia. “São dois um filme, ainda sem nome, e que dois curtos excertos, no início e no ópera em dezembro, a Mahagonny.”
tude da criatividade, é essa afinal a atores fantásticos, vale a pena encher está a ser rodado simultaneamente. fim do espetáculo, é, portanto, uma E será uma “versão nuclear” da
equação a fazer. o teatro só para os ver.” É que Come- “Um gesto novo”, diz ao JL. “Não espécie de prequela de Começar ou obra de Bertolt Brecht e Kurt Weil,
A prova real é Começar, a peça de çar, “uma comédia muito humana, sei se já foi feito algures no mundo, uma narrativa transmediática. Está para seis atores e 12 músicos, que irá
David Eldrige, que o Teatro Aberto trágica, tocante, sobre a solidão, o porque felizmente há muita gente a ser realizado em coautoria com o subir à cena do Teatro Aberto, não
estreia hoje, com Cleia Almeida e amor, uma sátira ao namoro moder- a fazer coisas novas e interessantes realizador Nuno Neves, sem apoios. a que, nos anos 80, João Lourenço
Pedro Laginha, que dão “um show, no, aos encontros nas redes”, é um em muitos sítios. E por que não as Conta com a participação de mais encenou no Teatro São Carlos – mas
uma masterclass de interpretação”, espetáculo teatral, que vai ficar na podemos fazer também? Não quero atores, e só estará concluído no de novo com o maestro João Paulo
como assevera o encenador, que Sala Azul até 14 de novembro, e será medalhas, mas acho que é único.” próximo ano. “Depois vamos tentar Santos. J
26 ARTES ↗
FILMES/ENTREVISTA
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
Ariodante
Teatro Nacional de São Carlos acolhe o meio-soprano Cecilia Molinari, na estreia da obra de G. F. Händel
até 27 de novembro
Casa das Histórias Paula Rego
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Ilse, a Menina Andarilha até 16 de janeiro 2022 novos olhares sobre o património de Milreu.
Agenda Cultural
A audiovisual » C colóquios / conferências » D dança » E exposições » M música » MD multidisciplinares » NC novo circo » P pedagogia » T teatro
Com Fátima Cardoso, Paulo Viegas, Centro Internacional M Rita Onofre Beatriz Bagulho e Madalena Castro.
Humberto Veríssimo e Patrícia Dores. das Artes José de Guimarães 24 de outubro – 21h30 4ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 13 H E DAS 14 H 30 ÀS 18 H
A RQUEÓLOGO POR UM D IA ! – DIRECIONADA
Av. Conde Margaride, 175. Tel.: 253 424 715 T 26º ACASO: Anjo, Henry Neylor até 4 de dezembro
A PESSOAS COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA
3 ª A 6 ª , DAS 10 H ÀS 17 H ; S ÁB . E D OM ., DAS 11 H ÀS 18 H Encenação de Ángel Fragua. E At Play: Arquitetura & Jogo
20 de outubro - 14h MD TERRA - Música e Cinema do Mundo 29 de outubro – 21h30 3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H
V ISITA SENSORIAL “S ENTIR M ILREU ” – até 30 de janeiro 2022
Programação em www.ciajg.pt. T Cabaz de Histórias do Arco da Velha
DIRECIONADA A PÚBLICO INVISUAL
até 31 de outubro 31 de outubro – 16h E Fragmentos Arqueológicos da
23 de outubro - 10h30
E Ficcionar o Museu Arquitetura Portuguesa 1987–2006
C Gregos e Bárbaros, 3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H
até 12 de fevereiro 2022
uma Relação Intercultura l LISBOA até 30 de janeiro 2022
Por Dámaris R. Gonzáles (Univ. de Córdoba). T Sobre Lembrar e
22 de outubro - 17h30 GUARDA Biblioteca Nacional de Portugal Esquecer III: A Estação de Outono
Campo Grande, 83. Tel.: 217 982 000 Cláudia Gaiolas e Paula Diogo em diálogo
ÉVORA Teatro Municipal da Guarda
R. Batalha Reis, 12. Tel.: 271 205 240
E 100 Anos Nadir com Alexander Kelly e Chris Thorpe.
até 30 de outubro 28 e 29 de outubro -19h
A Bruxa Teatro M Tagua Tagua E João da Rocha: um Escritor a Descobrir M Glenn Miller Orchestra
Espaço Celeiros R. Eborim. Tel.: 266 747 047 20 de outubro – 21h30 até 17 de dezembro 27 e 28 de outubro – 21h
T Évora Teatro Fest: O Triciclo T Minimu E Seara Nova, Editora de Livros D Segunda 2
Texto de Fernando Arrabal. Encenação Texto e direção de Fernando Mota. Co-criação até 31 de dezembro Produção Companhia Paulo Ribeiro.
e Tradução de Ivo Alexandre. Interpretação e Interpretação de Ana Sofia Paiva, Fernando E Um Arquivo, Doze Documentos 29 e 30 de outubro – 21h
de Anabela Faustino, João Reixa, Marques Mota, Gueladjo Sané e José Grossinho. até abril 2022 C Conversas com História
D’Arede, Alheli Guerrero e Ivo Alexandre. 23 de outubro – 16h Raquel Varela entrevista Maria Manuel Mota.
C Cultura Luso-Árabe e Luso-Islâmica
21 de outubro – 21h30 M Hodiernus Ensemble Colóquio organizado pela Univ. Lusófona em 30 de outubro – 17h
T Évora Teatro Fest: 27 de outubro – 21h30 homenagem a Al-Mu’tamid e Adalberto Alves.
A Coragem da Minha Mãe T Morte de um Caixeiro Viajante 21 de outubro Cordoaria Nacional
Texto de George Tabori. Interpretação de De Arthur Miller. Encenação de Jorge C Jorge Borges de Macedo - Av. da Índia. Tel.: 213 637 635
Pedro Carraca, Antónia Terrinha, Hélder Braz. Silva Melo. Interpretação de Américo Silva, E Ai Weiwei – Rapture
Caminhos da Historiografia I
23 de outubro – 21h30 Joana Bárcia, André Loubet, entre outros. até 28 de novembro
Seminário organizado pelo Centro de História
30 de outubro – 21h30
da Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa.
Culturgest
FARO 27 de outubro
LEIRIA E A Bibliotheca Iluminada
R. Arco do Cego, 1. Tel.: 217 905 155
E O Pequeno Mundo.
Teatro das Figuras Produção e circulação da Bíblia em Portugal.
Horta das Figuras, E. N. 125. Tel.: 289 888 100 Teatro José Lúcio da Silva Itinerários dos manuscritos iluminados românicos. A partir da Coleção da CGD
Av. Heróis de Angola. Tel.: 244 834 117 28 de outubro a 22 de janeiro 2022 Curadoria: Sérgio Mah.
T País das Canções de Embalar
Artista convidado: Gonçalo Barreiros.
Criação: Projeto Ariadne. Texto de T Aurora Negra C Memória e Pós-Memória da 3ª A DOM., DAS 12H ÀS 19H; SÁB. E SOM., DAS 11H ÀS 18H
Daniela Silva e Vânia Geraz. Interpretação De Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema. Guerra de Angola em Duas Escritoras até 31 de dezembro
de Carlos Sério, Daniela Silva e Vânia Geraz. 22 de outubro – 21h30 Cubanas: Karla Suarez e Wendy Guerra E Samson Kambalu: Fracture Empire
21 de outubro – 21h30 T Commedia a La Carte: Mais do Mesmo Conferência por Raquel Ribeiro (University of até 6 de fevereiro 2022
M Zé Eduardo & Baby Jazz 27 a 29 de outubro – 21h30 Edinburgh), integrada no V Ciclo Literatura
A DOCLISBOA. 19º Festival Interna-
22 de outubro – 21h30 T Mr. Abelho Freak Show Escrita por Mulheres 2020/2021. Organização
cional de Cinema
M Flauta Mágica Vista da Lua 31 de outubro – 21h30 de Isabel Araújo Branco (CHAM NOVA).
Programa completo em doclisboa.org.
Texto e encenação de Mário João Alves. 28 de outubro – 18h
21 a 31 de outubro
Interpretação de Gabriel Neves, Paulina Teatro Miguel Franco
Machado, Mário João Alves, João Tiago Magalhães. R. Dr. Correia Mateus. Tel.: 244 839 680 Carpintarias de São Lázaro Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva
24 de outubro – 11h30 T 26º ACASO: Recital Burlesco R. de São Lázaro, 72. Tel.: 213 815 891 Pç. das Amoreiras, 56. Tel: 213 880 044
M Carmen de Poesia Erótica e Satírica E Imago Lisboa Photo 4 ª A DOM . DAS 10 H ÀS 18 H ; ENCERRA 2 ª , 3 ª E FERIADOS
De Bizet. Produção Ópera 2001. Festival: Family In Transition
Conceção e encenação de Filipe E Pedro Calapez: Perto da Margem
27 de outubro – 21h Crawford. Coreografia de Ísis Melo. até 31 de outubro até 16 de janeiro 2022
M Rollover Beethoven 21 de outubro – 21h30 E Viera da Silva & Arpad
Conceção, interpretação e vídeo de T 26º ACASO: Primeiro Amor Centro Cultural de Belém Azenes na Colecção Ilídio Pinho
Pedro Moura. Produção Trupe dos Bichos. Monólogo de Samuel Beckett. Direção de Pç. do Império. Tel.: 213 612 400 até 16 de janeiro 2022
31 de outubro – 10h30 Rui M. Silva. Interpretação de Pedro Diogo. E Do Outro Lado da Toca E Kaissa
23 de outubro – 21h30 Instalação imersiva de Alice Albergaria Borges, Exposição de fotografia de Anne Lefebvre.
GUIMARÃES até 22 de janeiro 2022
D
MARIA LEONOR NUNES
No entanto, quem resiste nem sempre e sobre as quais existem mais traba-
passa à História. lhos. São as revoltas, os tumultos, os
Mais recentemente, as abordagens levantamentos, os motins. Existe,
têm sido alteradas e tem havido uma aliás, um vocabulário muito extenso
maior preocupação com o estudo para as designar. Um outro nível, me-
desse tipo de tópicos e de temas, mas nos trabalhado porque também mais
a verdade é que, até há pouco tempo, difícil, são as resistências quotidianas,
normalmente o que se escrevia eram mais invisíveis, tendencialmente
as visões dos vencedores, não tanto protagonizadas por indivíduos, em
dos vencidos. espaços privados.
Costuma dizer-se, de resto, que dos Por isso, aparecem ainda menos nos
fracos não reza a História. compêndios?...
E essa é uma cultura transversal que No caso das manifestações públicas,
Do Minho ao Algarve, do Brasil a também contaminou a forma como muitas vezes há repressão da insubor-
Timor, de Angola ao Japão, da Índia se fazia a História e se escolhiam os dinação para repor a ordem, pelo que,
a Macau, 50 histórias de resistência temas relevantes. Não se estudavam apesar de tudo, é possível encontrar
em Portugal e nos territórios que aqueles cujo papel era considerado alguma documentação. Sobre as
estiveram sob o seu domínio colonial, menor, os que não pertenciam às outras, não. Normalmente, assumem
entre 1500 e 1850, são agora contadas elites, ao poder, havia a ideia que não formas mais dissimuladas e podemos
em livro: Resistências – Insubmissão tinham importância na modelação falar, por exemplo, da deserção, do
e Revolta no Império Português, um da História, que eram marginais e contrabando, mas também das fugas
volume organizado pela historiadora secundários na compreensão do dos escravos e, em, alguns casos, da
Mafalda Soares da Cunha, que conta processo histórico. Tudo isso resulta resistência de género ou da persistên-
com a participação de 35 investigado- de pré-conceitos e não de conceitos. cia em formas culturais e religiosas,
res de Portugal, Brasil, Cabo Verde e Por outro lado, a História faz-se com como nas populações ameríndias. São
Estados Unidos. documentação, geralmente produzida formas de resistência que normal-
LUÍS BARRA
Uma prova da resistência que, com e preservada por instituições, o que mente eram vistas como rebeldia à
diferentes protagonistas, pessoas e significa que delas constam os regis- conversão, à civilização, ou seja, de
grupos discriminados, oprimidos, tos daqueles que a elas pertenciam. E uma forma negativa e não como uma
marginalizados, em diversos tempos Mafalda Soares da Cunha “Fazer a História das populações que têm sido mais que eram os grupos dominantes. preservação de características cultu-
e geografias, sempre existiu, ainda silenciadas e ocultadas é apaixonante” rais próprias.
que tivesse sido “invisibilizada” pelo Daí que passe sobretudo a narrativa
poder dominante, e ignorada pela dos vencedores? E o terceiro nível?
História, que durante muito tem- É aquela que imediatamente as fontes Tem a ver com a participação no
po registou sobretudo a “visão dos A época moderna e a história contam. Analisar vozes pouco presen- sistema político institucional, através
vencedores”. “Escreve-se agora outra social e institucional em Portugal tes, até reprimidas ou desqualificadas por exemplo das confrarias, das
narrativa. E é importante que se re- e no seu império colonial estão e desacreditadas, exige um processo petições dirigidas aos monarcas, em
cupere o envolvimento desses grupos no cerne do seu trabalho, sobre crítico muito exigente. Mas, hoje em que grupos de pessoas procuram levar
na História”, como adianta Mafalda o qual publicou vários estudos. dia, essas ideias estão a ser radical- adiante as suas reivindicações. E eram
Soares da Cunha ao JL. Além da investigação sobre a mente desconstruídas, desmontadas. populações que conheciam esses
Mafalda Soares da Cunha é profª resistência, está agora a trabalhar É importante que se faça essa des- mecanismos.
de História Moderna na Universidade sobre “as suspeições levantadas Estudar as resistências construção e se recupere o envolvi-
de Évora. Desde 2018 coordena o aos magistrados, acusados de falta mento desses grupos na História. Reconhecer essas manifestações
projeto europeu Resistance. Rebellion de imparcialidade e de prejudi- devolve-lhes uma de resistência é uma forma
and Resistance in the Iberian Empires, carem a boa execução da justiça”. importância que lhes INVISIBILIDADE E de recuperar o lugar desses
16th – 19th Centuries, que apos- Um assunto que pode parecer ESQUECIMENTO movimentos e populações no próprio
ta no “intercâmbio” e “troca de um pouco aborrecido, como faz foi retirada e negada São diversas as resistências desenvolvimento histórico?
conhecimentos”, e na circulação de notar, mas tem “esperança” que se ao longo de séculos que podemos encontrar no seu Sim. Essas populações foram invisi-
investigadores por um conjunto de possam encontrar “histórias muito livro. Algumas completamente bilizadas muitas vezes como forma de
universidades europeias e não euro- interessantes”. desconhecidas. dominação. Na realidade, existiram e
peias. Um projeto em que se inscreve Os dinheiros investidos A resistência das pessoas comuns, foram agentes ativos e tinham capaci-
a obra agora publicada e que se soma Jornal de Letras: Não há dúvidas de que tem sido pouco atendida e tratada dade de intervir e reivindicar melho-
a outros títulos da sua autoria, como que “há sempre alguém que resiste”, na investigação pela historiografia, observa-se em res condições de vida, mais recursos,
A Casa de Bragança (1560 -1640), D. como diz o poema de Manuel Alegre? devem traduzir-se três níveis. O primeiro tem que ver ou a preservação das suas culturas,
João IV, com Leonor Freire Costa, e Mafalda Soares da Cunha: Diria que com as revoltas abertas, coletivas, e o combate pelos seus ideais. Nesse
Os Municípios no Portugal Moderno, é mesmo uma evidência, em todas
em contributos violentas, em espaço público, que sentido, estudar estas resistências
com Teresa Fidalgo Fonseca. as circunstâncias e contextos. para a sociedade apesar de tudo são as mais conhecidas trata-se de efetivamente lhes devol-
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT IDEIAS 29 ENTREVISTA
↗
ver uma importância, uma ‘agência’, tagonistas, de género, étnica, de cate- Tentei incorporar no livro casos mais
como hoje se diz, que lhes foi retirada gorias sociais e níveis de riqueza, em conhecidos e significativos, como
e negada ao longo de séculos. diferentes cronologias e espaços. a revolta contra a Companhia das
Vinhas do Alto Douro, no Porto, as
Vivemos um tempo de muitos Houve histórias que a surpreenderam revoltas fiscais no Algarve, as histó-
ativismos relacionados com particularmente? rias dos mártires no Japão, da rainha
questões de género, racismo, pós- Houve. Por exemplo, a dos protestos Ginga, em Angola, com episódios
colonialismo, e eles têm, de facto, um das mulheres negras em Lisboa, em desconhecidos como o dos desacatos
longo passado histórico. 1717, que era completamente desco- das freiras no convento de Santa Ana,
Exato. Investigar e estudar estas nhecida. em Viana do Minho, hoje Viana do
resistências não é apenas o poli- Castelo.
ticamente correto, como alguns Como foi possível chegar até essa
podem pensar. Não se trata disso, história? Essa é uma das histórias que assina.
mas de diversificar e complexificar Creio que foi sinalizada por um inves- E que dá conta de como aquelas mon-
os próprios processos históricos, tigador norte-americano que esteve jas tinham capacidade de reivindica-
devolvendo-lhes pluralidade. É em Portugal a fazer o seu doutora- ção e de enfrentar as autoridades, de
perceber que sempre houve múltiplos mento, Cacey B. Farnsworth, que as- uma forma muito inesperada. Seria
combates e lutas protagonizados por sina a história com Pedro Cardim. E a de esperar que estando num mosteiro
muitas pessoas. Desse ponto de vista, referência foi encontrada no Arquivo estivessem quietinhas e submissas,
é um enriquecimento. Claro que os da Biblioteca Municipal do Porto. mas não. Eram truculentas, sem
historiadores distinguem os ativismos receio de romper com todas as regras,
da análise histórica, que tem as suas de sair da clausura. Também acho
regras e convenções, de natureza Ilha de Ceilão Dois soldados lascarins do século XVI surpreendente a história dos irmãos
académica e científica, mas trata-se Barbalho, no Brasil, ou das mulheres
de facto de a enriquecer e ao próprio angolanas em Benguela no séc. XIX,
processo da evolução histórica. de Mariana P. Cândido, ou sobre as
do império português, incluindo o entre 1500 e 1850, para desfazer um A historização dos mouriscas, da minha colega, que
É também um contributo para pensar território ibérico, o reino. pouco a ideia de que havia caracte- processos de resistência entretanto faleceu, Filomena Lopes
essas temáticas na ordem do dia? rísticas de rebeldia e insubmissão de Barros.
Claro. A historização destes processos Porquê? em determinadas épocas e regiões. é muito importante
de resistência é muito importante para Não era apenas no espaço imperial Porque o que me pareceu impor- como contributo para Também apostou na diversidade de
um melhor conhecimento, um con- que se revoltavam e insubordinavam. tante sublinhar foi precisamente a investigadores?
tributo para a própria estruturação dos Revoltavam-se também em Portugal, diversidade. a própria estruturação Sim. É uma equipa bastante grande,
movimentos que combatem por uma em todo o lado. E, por outro lado, dos movimentos que 35 investigadores. Alguns escreveram
maior inclusão. Porque são lutas que, achei importante que as histórias A diversidade é uma palavra-chave mais de uma história. E são realmente
hoje, também reivindicam uma maior se desenvolvessem ao longo de 350 para esta galeria de histórias?
combatem por uma de origens institucionais diferentes,
aceitação da diferença, da diversidade anos, num horizonte cronológico Sim. Procurei a diversidade de pro- maior inclusão de universidades em Portugal, Brasil,
de pontos de vista e de abordagens,
por um mundo mais inclusivo.
COLUNA
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
INTERCÂMBIO E
CONHECIMENTO
Resistance é o projeto europeu
A PAIXÃO DAS IDEIAS
Guilherme d’Oliveira Martins
A
que coordena e no qual se inscreve
Resistências. Qual o seu âmbito?
É um projeto de mobilidade e faz
parte das Marie Curie Actions. É,
portanto, composto por instituições Revolução do Porto de 24 de agosto de Tendo participado na Junta Provisional do Supremo Governo do
europeias e não europeias e o objetivo 1820 constitui, para os portugueses, a Reino e tendo sido um dos mais influentes autores do Relatório sobre a
é que os investigadores circulem entre génese da consagração do moderno Es- situação do País e sobre as providências consideradas necessárias, foi
as universidades. O financiamento de tado de direito. O acontecimento deu as- um dos 100 deputados eleitos para a Assembleia, que reuniria no Palácio
mais de um milhão de euros é para sim início à democracia atual, apesar de das Necessidades, com a missão de elaborar a nova Constituição, após
essa circulação, para pagar deslo- todas a vicissitudes, desde a fugaz tenta- o debate do Relatório que coordenara na Junta Provisional. Perante os
cações, estadias, dos investigadores tiva de regresso do poder absoluto com erros da governação, a subalternização do interesse comum, a injustiça
nessas missões. D. Miguel, até à Regeneração de 1851, e a ilegitimidade da condenação dos mártires da pátria, haveria que tirar
que viria a tornar a Carta Constitucional consequências sérias da soberania da nação. O exercício da soberania
Começou em 2018? de 1826 uma lei fundamental legitimada por um poder constituinte. Em estaria “nas Cortes que legislam, no monarca que executa, nos juízes
Sim, a equipa fez a sua candidatura complemento, as datas de 5 de outubro de 1910 e de 25 de abril de 1974 que julgam, e nas autoridades que administram”. Daí a importância da
à Comissão Europeia em 2017, ga- constituem duas referências que continuam o que Jaime Cortesão de- representação e do mandato, o que corresponde a uma ideia premonitó-
nhámos o financiamento e come- signou como fatores democráticos na formação e afirmação de Portugal, ria de democracia.
çámos em 2018. Mas, infelizmente, desde as mais longínquas raízes históricas, abrangendo a fundação do É por isso muito profícua a leitura das intervenções de Fernandes
por causa da pandemia, tem estado Estado, as Cortes, o municipalismo, a influência dos povos das cidades Tomás na Constituinte. Aí encontramos a opção moderna de três pode-
parado. É que o objetivo do proje- e dos mesteres, a causa do Mestre de Aviz em 1383-85, a Restauração da res, como em Montesquieu, a noção de um parlamento unicamaral e o
to é precisamente a mobilidade, a Independência de 1640, a República e a Democracia constitucional de veto suspensivo do rei… Não importará neste momento fazer o diagnós-
troca de experiências, a partilha de hoje. A verdade é que a democracia não se faz instantaneamente. Cons- tico da força e das fragilidades dessa primeira lei fundamental, tão in-
conhecimentos, não só de conteúdos trói-se gradualmente e assenta a sua legitimidade na vontade dos povos fluenciada pela Constituição de Cádis. É, porém, essencial compreender
científicos, mas também a nível de e na afirmação da cidadania livre e responsá- a virtude do contributo de Fernandes Tomás,
formas de investigação e organiza- vel, igual e solidária. cujo percurso envolveu o compromisso no
ção universitária ou da realização de Manuel Fernandes Tomás (1771-1822) combate anti-napoleónico e a participação
colóquios por parte das diferentes foi figura marcante da Revolução. A ele se ativa nas boas-vindas ao rei D. João VI (cuja
universidades. A intenção é que haja deveu a afirmação dos elementos cruciais do atitude positiva se contrapôs à perspetiva
um impacto positivo nas carreiras dos pensamento regenerador, de que resultou o negativa assumida por Fernando VII) – na
investigadores, seja dos mais novos constitucionalismo – a divisão de poderes, a compreensão do necessário equilíbrio de um
ou dos mais velhos. É essa a ideia base articulação da autoridade das Cortes com o patriotismo prospetivo.
destes intercâmbios. poder executivo e o rei, os fundamentos e as Uma das marcas do carácter da nova
práticas do poder judicial, o conceito e o exer- ordem constitucional foi a liberdade de
O foco da investigação do projeto é cício da soberania popular, além da afirmação imprensa, que constituiu um fator de magna
unicamente o das resistências? da liberdade de imprensa, da importância importância para o reconhecimento do que
Há quatro grupos de trabalho ligados do exercício do direito de voto e do princí- tornou 1820 muito mais do que um movimen-
às diferentes formas de resistências pio do consentimento, além das tomadas de to circunstancial. Foi um novo período que
– ativas, quotidianas, políticas e cul- posição sobre a extinção da inquisição, sobre se abriu, tornando-se uma marca indelével
turais – e um quarto grupo, que tem a liberdade e abusos da autoridade ou sobre a em que a ideia de soberania popular se tornou
que ver com a produção de materiais liberdade do cidadão e a liberdade da nação. uma referência que nos nossos dias procura-
de divulgação, de comunicação com a Pode dizer-se que o edifício constitucional mos que se fortaleça e consolide. “É evidente
sociedade, um aspeto que a Comissão de 1822 muito deveu à solidez e coerência do que a liberdade de imprensa deve ser o mais
Europeia valoriza especialmente. mais influente dos artífices do movimento de ampla possível (como afirmou o deputado
Porque os dinheiros investidos na 1820 e de um dos mais determinados deputa- Manuel Fernandes Tomás constituinte), porque com efeito num país
investigação devem traduzir-se em dos constituintes. livre não se pode viver sem ser também livre a
contributos para a sociedade. Nessa E se falo de Fernandes Tomás, que está imprensa, mas devemos enquanto for possível
perspetiva, deve haver transferência representado no uso da palavra na sala das reparar para o exemplo das nações que nos
de conhecimento, no quadro da qual sessões da Assembleia da República, é porque ele é no pensamento e na cercam e das que olham com mais cuidado para a sua conservação. (…)
este livro foi feito. ação um símbolo evidente da Revolução de 1820 e do constitucionalismo. Está demonstrado que o poder da opinião é maior que o poder da for-
Como jurisconsulto de qualidade superlativa, o facto de estar particular- ça…”. E a História política foi provando que, apesar da conjuntura ibé-
Que outras iniciativas estão previstas? mente informado e atento à evolução das notícias liberais e constitucio- rica de então ser muito complexa, favorecendo opções que obrigariam
Está prevista a realização de um coló- nais, designadamente na vizinha Espanha, permitiu-lhe compreender a a ajustamentos ao longo do tempo, a Revolução do Porto foi decisiva e
quio semestral sobre diferentes temas inevitabilidade das repercussões em Portugal do movimento liberalizador ainda hoje é marcante.
e, entretanto, temos um canal no na sequência das revoluções inglesa, americana e francesa. Assim, em Se é verdade que só o poder constituinte concretizado com o Ato
YouTube com uma série de entrevis- 1818 fundou o Sinédrio juntamente com Ferreira Borges e Silva Carvalho, Adicional de 1852 garantiu a acalmação e um consenso minimamente
tas com especialistas em resistência, com o comerciante Ferreira Viana, preparando as mobilizações militares durável, em que os beligerantes das diversas guerras civis (liberais e
académicos, diretores de museus e e civis que conduziram ao golpe absolutistas; cartistas e constitucionalistas) enterraram os machados
de arquivos, em que falam dos seus do Porto. Escreveu, por isso, as de guerra com a garantia de uma alternância partidária exigida pelo
trabalhos ou da importância dos seus proclamações que prenunciaram progresso económico e social, o certo é que foi o início da continuidade
fundos documentais para o estudo das a proclamação nacional regene- constitucional que rasgou o horizonte da cidadania democrática.
resistências. Também já fizemos uma radora, visando: fazer regressar É essa a marca deixada desde 24 de agosto de 1820, que hoje
série de vídeos para jovens entre os 12 D. João VI à capital europeia recordamos, não como uma celebração retrospetiva, mas como uma
e os 15 anos e queremos dinamizar a do reino; exonerar a Regência oportunidade para pensarmos a democracia como um sistema de
nossa relação com as escolas. Vamos que governava em nome do rei; Uma das marcas do valores que permanentemente se aperfeiçoa, e que mobiliza a sociedade
lança-los no reinício das atividades afirmar a liberdade e a igualda- carácter da nova ordem e os cidadãos. Por isso privilegiamos nesta comemoração, não a mera
e gostaríamos igualmente de fazer de dos cidadãos perante a lei e lembrança, e mais o estudo, a reflexão, a investigação, mobilizando o
exposições digitais. E de preparar garantir a convocação das Cortes
constitucional foi a ensino superior, as instituições de investigação e a sociedade toda. Não
e-books sobre resistência e mulheres constituintes, que exprimissem liberdade de imprensa, nos ocupa apenas uma data, mas um movimento de progresso e de-
e resistência religiosa, histórias curtas o sentido de uma soberania senvolvimento – considerando o constitucionalismo como um fator de
com ilustrações, vocacionadas para a nacional baseada na vontade do
que constituiu um fator cidadania e de legitimidade. Deste tempo resultará um melhor conheci-
mesma faixa etária.J povo. de magna importância mento do que nos antecedeu para que sejamos melhores no futuro. J
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT IDEIAS 31 COLUNA
↗
David Attenborough
derio transformador da huma-
nidade na Terra - só poderá ter
dois desfechos. Se continuarmos
apenas a fingir que fazemos al-
ECOLOGIA
escasso, para com as gerações
futuras, poderíamos realizar um
milagre de inversão de rumo.
Viriato Soromenho-Marques
N
Nesse sentido a Antropoceno:
“Pode ser um tempo em que
aprendemos a lidar com a natu-
reza e não contra ela (…) passa-
ão ríamos a ser os guardiões atentos
perder › David Attenborough de toda a Terra, invocando a
a espe- VIAGENS AO OUTRO extraordinária resiliência da na-
rança, LADO DO MUNDO. tureza para nos ajudar a resgatar
abrin- MAIS AVENTURAS a sua biodiversidade à beira do
do ao DE UM JOVEM colapso” (p. 244).
mesmo NATURALISTA Neste momento, os pratos da
tem- tradução do inglês por Marta Pinho, balança inclinam-se para a pri-
po os Lisboa, Temas e Debates/Círculo de meira possibilidade. Se quisermos
olhos e erguendo a voz para o Leitores, 2021, 419 pp. evitar o pior não podemos deixar
dever de contemplar e dizer a de o dizer em voz alta: “Falamos
verdade por mais amarga que › David Attenborough muitas vezes de salvar o Planeta,
seja, é não só uma obrigação éti- mas a verdade é que temos de fa-
UMA VIDA NO NOSSO
ca, mas também um exercício de zer tudo isto para nos salvarmos
PLANETA. O MEU
humildade gnosiológica. A seguir a nós mesmos. Connosco ou sem
TESTEMUNHO E A
ao otimismo dogmático, que hoje MINHA VISÃO PARA O nós, a natureza regressará.” (p.
campeia na cultura suicidária FUTURO 246). Será que é preciso gritar até
dominante, o pessimismo dog- rasgar os tímpanos para que a hu-
tradução do inglês por Marta Pinho,
mático constitui a segunda pior Lisboa, Temas e Debates/Círculo de manidade acorde do seu perigoso
atitude perante a crise existen- Leitores, 2020, 293 pp. sonambulismo? J
cial da civilização humana sobre
a Terra. O autor das duas obras
recenseadas nesta crónica, não se David Attenborough ”Uma das personalidades mais conhecidas pelos
afasta um milímetro da postura telespectadores em qualquer parte do mundo”
correcta. Nunca desistir, sem
nunca se iludir.
David Attenborough (1926) último, “2020”). Cada um desses
é uma das personalidades mais capítulos inicia-se com um tríp-
conhecidas pelos telespecta- tico de indicadores do estado do
dores em qualquer parte do mundo: a) população mundial;
mundo. Depois de se ter for- Um livro, escrito aos b) concentração das emissões de
mado em Ciências Naturais na 94 anos, que pode ser gases de efeito de estufa na at-
Universidade de Cambridge, mosfera; c) áreas naturais ainda
lançou-se numa brilhante car-
lido triangularmente: preservadas. WĂƌĂWƌŽĨĞƐƐŽƌĞƐĚĞWŽƌƚƵŐƵġƐ
reira de jornalismo de divulga- é um testemunho, um Com uma clareza comovente,
Terceira Edição
ção científica na BBC, que ainda Attenborough revela-nos a sua
prossegue, quase sete décadas
testamento e um apelo progressiva tomada de consciên- Edital de Abertura
depois do seu início em 1952. Os dramático cia sobre a acelerada destruição
dois livros aqui abordados devem da biodiversidade e dos nichos Promovido pelo Centro de Literatura Portuguesa e apoiado pela Fundação
ser lidos pela ordem inversa à ecológicos, provocada pela ação Eng. António de Almeida, o Prémio Isabel M. Aguiar Branco e Silva tem o valor
cronologia da sua publicação em antrópica, nomeadamente, ativi-
pecuniário de 3000 Euros (1º lugar), 1500 Euros (2º lugar) e 1000 Euros (3º lugar).
Portugal. dades extrativas e poluentes que
No primeiro livro, Viagens inviabilizam habitats e conduzem
O Prémio destina-se a ƉƌŽĨĞƐƐŽƌĞƐĚĞWŽƌƚƵŐƵġƐĚŽϯǑŝĐůŽĚŽŶƐŝŶŽĄƐŝĐŽĞĚŽ
ao outro lado do mundo, o leitor preensão da estrutura complexa à extinção de espécies. O natu-
ŶƐŝŶŽ^ĞĐƵŶĚĄƌŝŽ e tem como principais objetivos:
encontra, servidas por uma e interdependente de todas ralista começou a tomar partido.
linguagem ágil e elegante, 28 as criaturas. As reportagens Relata-nos o seu envolvimento na 1. Honrar a memória de um nome que se destacou no domínio do ensino das
crónicas das reportagens na- passam a integrar não só a vida luta pela preservação dos habitats línguas;
turalistas realizadas por David animal, em sentido estrito, mas dos gorilas-das-montanhas e
2. Estimular a apresentação de propostas didáticas centradas nos conteúdos
Attenborough durante uma o ecossistema que a sustenta e as pelo fim da caça às baleias, que os literários que figuram nos Programas de Português.
década, entre 1954 e 1964, por relações com os povos e os seus estudos científicos revelaram se-
lugares que, na altura, não eram modos de vida. rem, por analogia grosseira com
só exóticos, mas profundamente O segundo livro, escrito aos as abelhas, um tipo de “poliniza- O prazo para a apresentação de originais decorre entre os dias ϭϱĚĞƐĞƚĞŵďƌŽ
pristinos, com uma biodiversi- 94 anos de idade, pode ser lido dores” do mar aberto, fazendo a ĞϯϬĚĞŶŽǀĞŵďƌŽĚĞϮϬϮϭ͘
dade e paisagens naturais ainda triangularmente: é um teste- circulação dos nutrientes ao longo
Para mais esclarecimentos, os interessados devem consultar o Regulamento do
não perturbadas pela interven- munho; um testamento; e um da coluna de água, prestando um Prémio que se encontra disponível no sítio do Centro de Literatura Portuguesa
ção da civilização industrial e apelo dramático. A obra, após serviço vital para a sobrevivên- (www.uc.pt/fluc/clp).
extractivista contemporânea. Os a introdução, está dividida cia de todas as outras espécies
nomes são claramente suges- em três partes, fechando com oceânicas.
tivos: Papua-Nova Guiné, Fiji, uma Conclusão e um utilíssimo A vertiginosa rota de co-
Tonga, Madagáscar, Austrália… Glossário. A primeira parte é lisão em que a humanidade
Nesses anos, o jovem naturalista constituída por dez subcapítulos, está embarcada, implica que o
vai alargando a sua perspetiva que têm datas como títulos (o Antropoceno - esta novel época
e enriquecendo a sua com- primeiro é “1937”, e o décimo e geológica que reconhece o po-
32 IDEIAS ↗
COLUNA
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
SOCIEDADE BREVE
muito ao longo do tempo. Nos primeiros
momentos dos impérios quase sempre
dominou o poder cru, mas as exigências da
Boaventura de Sousa Santos
I
sustentabilidade rapidamente exigiram a
presença do poder cozido. Pela sua lógica
expansionista, os impérios coexistiram
dificilmente uns com os outros e, por isso,
nspirando-me livremente tenderam a suceder-se no tempo. Quando
num dos binarismos que coexistiram, um dado império teve de se
subjazem às Mitológicas de acomodar ou subordinar a outro. Foi este o
Leví-Strauss, sugiro que as caso do império português que, a partir do
formas de poder que domi- século XVIII, sobreviveu subordinado ao
nam nas sociedades tendem a império britânico.
ter uma versão cozida e uma Para me limitar à época moderna (sé-
versão crua. As duas versões culo XV e seguintes), podemos identificar
implicam diferentes formas os seguintes impérios cada um com as
de exercício de poder e, reciprocamente, suas versões cozidas. A força bruta que os
suscitam diferentes tipos de resistên- animava foi sempre disfarçada por princí-
cias e de resistentes. Ao contrário do que pios universais, ou seja, ideias ou valores
pode sugerir a metáfora culinária, não há cuja vigência era supostamente benéfica
qualquer sequência entre o cru e o cozi- para todos. A versão cozida dos impérios
do. As duas versões coexistem, podem ser português e espanhol foi a propagação da
acionadas alternativa ou conjuntamente e o cristandade e da salvação de que ela era
domínio relativo de uma ou outra depende portadora; no caso do império britâni-
dos contextos sociais, económicos, políti- co, foi o comércio livre e o progresso; no
cos e culturais em que o exercício do poder caso do império francês, foram, depois
ocorre. da Revolução Francesa, os princípios
Convém definir à partida o que en- revolucionários e os direitos humanos; no
tendo por poder: poder é a capacidade de caso do império soviético, foi o homem
alguém (pessoa, grupo, ideia, entidade) novo, o socialismo e o comunismo; e, por
afetar a existência de outrem sem ser por fim, no caso do império norte-americano
esta afetado, ou sê-lo de forma subjetiva ou (sobretudo depois da II Guerra Mundial),
objetivamente considerada menos inten- foi a democracia, os direitos humanos e o
sa. Quanto maior é o desequilíbrio entre primado do direito.
afetar e ser afetado, mais intensa ou brutal Discute-se hoje se está ou não a surgir
é a forma de poder e maior a desigualda- um outro império, o império chinês, que
de entre as partes. O brutalismo não é, Soldados israelitas em Gaza substituirá o império norte-americano. Se
assim, uma forma extrema de poder, é uma assim for, a versão cozida do império chi-
dimensão sempre existente em qualquer nês será provavelmente o desenvolvimen-
forma de poder. A versão cozida é a versão to económico e tecnológico, o cinturão e
que mistura a força bruta do poder com a rota da seda. São cada vez mais nume-
ingredientes, condimentos e preparações e, através dela, exalta, idealmente por rosos e convincentes as análises sobre o
que o disfarçam e lhe conferem diferentes excesso, as diferenças de poder. Quando declínio do império norte-americano.
sabores, roupagens, maquilhagens. Não tal exibição pode ser contraproducen- A mutação mais notória é o predomínio
se trata de disfarces no sentido comum te, desculpa-a por vias que minimizam cada vez mais visível do poder cru sobre o
do termo, algo exterior e apenso que não
O poder cru é o poder que se danos ou responsabilidade, tais como, poder cozido.
interfere com a “essência da coisa”. Pelo exerce com plena exibição da erros técnicos, falsos positivos, danos
contrário, os disfarces do poder cozido colaterais, zonas de sacrifício, “maçãs DA VITÓRIA SOBRE O ADVERSÁRIO AO
são constitutivos porque o poder cozido é
força bruta. O cozido mistura- podres”. A lógica organizativa que preside EXTERMÍNIO DO INIMIGO O extermínio
sempre o resultado da força bruta e de tudo -lhe ingredientes, condimentos ao exercício do poder cru é a violência, de inimigos políticos sempre foi uma das
o que é investido na cozedura. o exercício incondicional da força física armas de eleição dos governos ditatoriais.
O poder cru é o poder que se exerce com
e preparações que o disfarçam (guerra, assassinato, incêndio, pilhagem, Preocupante e intrigante é o recurso à
plena exibição da força bruta. Isto não quer e lhe conferem diferentes tortura física, mutilação) ou psíquica liquidação de adversários políticos em
dizer que não tenha sabores, roupagens ou sabores (“tortura-sem-tocar”, “técnicas avança- regimes democráticos que, apesar dos so-
maquilhagens. Mas estas são usadas para das de interrogatório”, discurso do ódio, bressaltos e contradições, têm prevalecido
salientar a brutalidade, a crueza do poder ameaças), funcional (trabalho escravo) ou no campo da hegemonia norte-americana.
cru. É como se a forma de o poder se vestir estrutural (racismo, sexismo). O declínio do império norte-americano
fosse a de parecer nu. As duas formas de começou ou tornou-se mais evidente a
poder recorrem a diferentes instrumentos AS DUAS FORMAS DE EXERCÍCIO DO partir de 2003 com a invasão do Iraque e
para se exercer e a diferentes narrativas vas que idealmente não são afetadas por PODER condicionam a resistência dos que a guerra contra o terrorismo. A ideia da
e retóricas para se justificar. Enquanto o diferenças de poder. As duas lógicas fun- são afetados por ele. A dificuldade rela- superioridade global do capitalismo por
poder cozido se justifica com argumentos damentais são a burocracia e a retórica. A tiva da resistência depende, em primeira combinar a promessa do desenvolvimento
que nada têm a ver com poder, o poder burocracia é a lógica da racionalidade ins- instância, do grau de desigualdade entre global com a promessa da liberdade (com-
cru pretende que o seu exercício seja a sua trumental que opera por regras ou normas quem tem poder e quem não tem ou entre binação que o modelo soviético não con-
justificação. (escritas) a que todos têm de sujeitar-se. quem tem mais poder e quem tem menos seguia) caiu por terra e foi substituída pela
Como referi, é próprio do poder cozido A retórica é a lógica da argumentação que poder. Mas as formas de resistência ao defesa nacionalista e unilateral dos EUA
ser apresentado segundo ações, formas não visa impor nada a ninguém. Visa ape- poder cozido e ao poder cru variam subs- contra os inimigos externos e internos.
e ideologias de não-poder: princípios nas persuadir ou convencer. Há diferenças tancialmente: diferentes formas de luta, O convívio conflitual com regras acor-
universais, salvação ou benefício poten- de poder argumentativo, mas elas conver- diferentes ideologias, bem como diferen- dadas entre adversários políticos, que é a
cial de todos, busca de verdade, virtude, gem para resultados mutuamente aceites. tes protagonismos por parte de diferentes essência da democracia, foi gradualmente
pureza, beleza, cooperação, solidariedade, O poder cru é exercido e apresentado tipos de resistentes e de alianças entre eles. substituído pela ideia da urgência do ex-
reciprocidade, irmandade em luta por bens por formas que salientam a força bruta A resistência ao poder cozido tem de ser ela termínio do inimigo em face da qual os fins
comuns ou contra inimigos comuns. As cuja justificação reside no seu próprio própria cozida, tal como a resistência ao justificam os meios. E os meios passaram a
instituições que o promovem tendem a ser exercício e na devastação que causa. Longe poder cru tem de ser crua. As duas formas ser as diferentes formas de violência, tanto
constituídas segundo lógicas organizati- de esconder esta devastação, exibe-a de exercício do poder estão tendencial- legais (o direito penal do inimigo) como
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT IDEIAS 33 COLUNA
↗
PARALAXE
COMPOSIÇÃO DO CAPITAL DA ENTIDADE
PROPRIETÁRIA: 10.000,00 euros
PRINCIPAL ACIONISTA: Luís Delgado (100%)
J
Afonso Cruz PUBLISHER: Mafalda Anjos
R
JORNAL
EDES nadar dos destroços do seu barco até à costa. Neste contexto, a DE LETRAS,
ARTES E
frase torna-se grotesca e seria risível apontar a importância da IDEIAS
Em Cama de Gato, Kurt Vonnegut viagem ou os benefícios da natação e a beleza turquesa do mar DIRETOR: José Carlos de Vasconcelos
certo dia, depois de receber uma série de mensagens de ami- em Pequim... Benditos, mil vezes benditos aqueles carrosséis OUTROS COLABORADORES: A. Laborinho Lúcio, A. Cândido Franco, A. Pedro
Pita, A. Sampaio da Nóvoa, Ana Maria Bettencourt, Arnaldo Saraiva, B.
gos (todas tinham a literatura como tema) se apercebeu que que ensinaram aos meninos de meu tempo a pura alegria de Bénard-Guedes, C. Mendes de Sousa, Fernando J. B. Martinho, F. Pinto
do Amaral, Gastão Cruz, Filinto Lima, E. Marçal Grilo, Graça Morais,
estas se interli- viajar!” Hélia Correia, I. de Loyola Brandão, Inês Pedrosa, João Abel Manta, João
gavam, sem que De facto, Barrento, João Costa, J. A. Cardoso Bernardes, Jorge Fazenda Lourenço,
J.-A. França, José Luís Peixoto, José Manuel Castanheira, José Manuel
os seus autores a ausência Mendes, José Reis, J. Gomes André, Leonor Xavier, Manuel Alegre, M.
o soubessem, de destino, o Frias Martins, Marcello Duarte Mathias, Mª Fernanda Abreu, Mª Graciete
Besse, Mª Helena Serôdio, Mª Irene Ramalho, Mª Luísa R. Ferreira,
criando assim no passeio lúdico Mário Avelar, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, M. Vieira de Carvalho,
seu conjunto um (que não serve Miguel Carvalho, Nélida Piñon, Norberto V. Cardoso, Ondjaki, Pilar del
Rio, Ramón Villares, Ricardo Araújo Pereira, R. Miguel Puga, Rui Vieira
significado bem um fim), é Nery, Salvato Teles de Meneses, Sérgio G. Sousa, Sérgio Rodrigues, Sofia
Soromenho, Teolinda Gersão, Teresa Toldy
maior ou mais uma excelen-
PAGINAÇÃO: Patrícia Pereira
profundo do que te defesa do
SECRETÁRIA: Teresa Rodrigues
o seu conteúdo aforismo citado
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO: Gesco
isolado: no início deste REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS: Rua da Fonte da
“Muitas vezes texto, o que Caspolima – Quinta da Fonte, Edifício Fernão de Magalhães, 8
2770-190 Paço de Arcos - Tel.: 218 705 000 Fax: 218 705 001
me refiro a uma significa que, email: jl@jornaldeletras.pt. Delegação Norte: Rua Roberto Ivens, 288
seita como a tal como todas 4450-247 Matosinhos - Tel.:220 993 810
MARKETING: Marta Silva Carvalho (diretora) - mscarvalho@trustinnews.
comunidade de as verdades
pt e Marta Pessanha (Gestora de Marca) - mpessanha@trustinnews.pt
escritores, edi- reducionistas,
ILUSTRAÇÃO DE AFONSO CRUZ
decorado com uma fotografia do crepúsculo em que se vê a Terra era um planeta como os outros e que orbitava o Sol (fogo
silhueta de um caminhante que contempla a paisagem, foi e central) e não era portanto o centro do universo – inventou o
continua a ser alvo de milhões de partilhas nas redes sociais. chocalho ou um tipo de chocalho. Também dizem que criou Ligue já 21 870 5050
A frase, com todas as suas variações, umas mais complexas uma pomba de madeira capaz de voar. Assine o
Dias úteis: 9h às 19h
outras mais subtis, parece ao fruidor, não apenas bela, mas Aristóteles, em Política, diz o seguinte sobre o chocalho:
também inapelavelmente verdadeira e sábia. “As crianças devem sempre ter algo para fazer, e o chocalho
A objeção à solidez do aforismo raramente é posta em cau- de Arquitas, que as pais dão aos filhos para que se entrete-
sa, ainda que, sem grande esforço, se possam enunciar alguns nham e impedir que partam coisas em casa, foi uma invenção
exemplos: será que quando viajo para me encontrar com fundamental, pois uma criança não consegue estar quieta.”
alguém que amo, é o trajeto que importa e não o reencontro? Nesse sentido, eis alguns dos mais recentes chocalhos (para
Imaginemos ainda outro cenário, em que um náufrago tem de todas as idades): televisão, tablets, consolas. J
20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT DEBATE-PAPO 35 ↗
HOMEM DO LEME
Manuel Halpern
Crianças
sem rede
Y
ou can’t say fuck in Radio Free
America”. A frase é da Patti Smith e,
nos anos 70, sintetizou as contradições
e a hipocrisia do país das grandes liberdades.
AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA
parece, estes legisladores do mundo virtual
deixam-se tomar pelo mais básico instinto
de pudor e esquecem-se de tudo o resto…
Valter Hugo Mãe Se o mundo é um lugar perigoso, as redes
sociais deveriam ter todas o símbolo de uma
É
sirene, sobretudo para os menores que as
sociedades modernas almejam proteger.
importante a exposição de Francisco representa-se a si mesma e está ao abandono de suas próprias ca- Estreia agora em sala À Solta na Internet,
Laranjo na Sala Júlio Resende, em pacidades. Não procura fazer ver o mundo, ela é o mundo em causa. uma chocante experiência filmada. A dupla
Gondomar. Não se frequenta a arte de Contudo, a arte de Laranjo é a profunda encenação. Postas em de realizadores checos Barbora Chalupová e
Laranjo sem a perturbação elementar dos painéis soltos, como estruturas de obra, pladures num estaleiro de Vít Klusák contratou três atrizes adultas que
conceitos, algo que nos envolve imedia- construção civil, as aguarelas mimetizam o colorido casual da ofi- aparentassem 12 anos. Montou-lhe quartos
tamente em questões de fronteira entre cina mas são sempre aguarelas num formato padronizado, pecu- de pré-adolescentes em estúdio, criou-lhes
o que é e não é arte. Talvez nunca como liarmente pequeno, protegidas por um vidro. A aguarela também contas nas redes sociais e ficou à espera para
agora o artista tenha levado o assunto a nunca seria o "borrão" natural de um estaleiro de construção. É ver o que sucedia. E o que sucedeu foi que, ao
tão extremo limite. Na montagem peculiar uma ironização, uma espécie de delicadeza da arte plástica levada longo de apenas 10 dias, as supostas crianças
desta série de aguarelas se desconstrói a convenção da arte para para o espaço bruto onde se ergue uma casa. Como se ao acaso receberam 2.458 contactos de predadores
se insinuar o seu acontecimento acidental, o que torna o artista nascesse a mais bela renda num sarilho involuntário de linhas. sexuais. Note-se que as atrizes cumpriram um
naquele que colhe mais do que naquele que faz. código de conduta em que não provocam os
Vai nisto uma ferida à intencionalidade da obra. Uma certa COM OS PLADURES ENCOSTADOS ÀS PAREDES e tijolos des- homens e faziam por resistir aos assédios de-
crítica à folia dos que correm por inscrever na obra um sentido pontando aqui e ali, a galeria Júlio Resende confunde-se. Alude clarados. Nada disto impediu estes predadores
de algum rigor, explícito, como se a subjugassem a uma visão à construção civil para coincidir com esta na obtenção da arte. de avançarem sem escrúpulos, tirando partido
preferencial, tendencialmente única. Com Laranjo o que vemos é Acidentalmente, exatamente pela mestria do artista que sabe onde da fragilidade infantil ou pré-adolescente,
a mistificação do avesso. O sentido vai insinuado no corte, num cortar, o que editar naquilo que o mundo contém, a obra nas- utilizando métodos manipulatórios, incluindo
efeito semelhante ao do fotógrafo que edita de entre tudo quanto ce. A obra nasce da colheita, como dizia acima. Essa é a mimesis a chantagem. O filme, que serve de grito de
tem diante de si o que lhe interessa destacar. As suas aguare- essencial da exposição de Francisco Laranjo. Ela mimetiza o que o alerta, vai até ao limite de filmar encontros
las surgem como essas inadvertido gesto humano pode conter de estético. com estes homens através de câmaras escon-
opções tomadas de entre Sob o título de “Contramuros", a série de aguarelas que se didas. E no final chega mesmo a confrontar um
as infinitas possibilidades, mostram também nos leva a pensar na arte como um reforço da deles com o seu crime. Tudo isto se passa no
e sobem à parede como se parede, um reforço da casa, um elemento essencial para a robustez mesmo sítio onde partilhamos os gatinhos.
fossem eleitas. Claro que é de um lugar e de alguém. O contramuro reforça ou substitui um Claro que Zuckerberg e companhia se
um efeito, mas é exata- muro preexistente, o que significa que participa no edifício para poderão refugiar alegando que as redes são
mente o efeito que levanta o proteger ou segurar, para o fazer perdurar. A arte vista como para maiores de 13 anos, que os pais devem
a questão. A arte vista como complemento dos lugares onde cabemos, desde logo mentais e tomar conta dos seus filhos, etc… Mais difícil
O que Francisco complemento dos identitários, impõe a sua dimensão tutelar, humanizante, sem a de explicar é como o Facebook e outros
Laranjo problematiza é a qual se não pode falar da completude de alguém. deixaram escapar informação confidencial
intencionalidade que uma lugares onde cabemos, A pessoa, como a casa, maturará longeva e equilibrada apenas com para a Cambridge Analytica, influenciando
imagem pode conter. A sua desde logo mentais e o atempado levantamento destes contramuros, apoios fundamen- e manipulando momentos-chave da políti-
ansiedade em significar tais para o pensamento, para o assombro, para o deslumbre, para ca mundial (como o Brexit e as eleições dos
concretamente alguma identitários, impõe a a vital necessidade de imaginar. Somos o que imaginamos, talvez EUA e Brasil), mas não consegue controlar os
coisa. No espectro do gesto sua dimensão tutelar, bem mais do que aquilo a que as evidências obrigam. horrendos meandros da pedofilia e abuso de
espontâneo ele encontra Na Sala Júlio Resende vai uma urgência de imaginar. As evidên- menores.
caminho para erodir o
humanizante, sem a cias são todas dobradas à sua força. Gosto especialmente desta expe- Cada vez menos as crianças brincam
artista e deixar que obser- qual se não pode falar riência de nada ser deixado à facilidade. Entrar numa galeria de arte sozinhas nas ruas, porque cresceu a ideia de
vemos o resultado também não deve ser coisa para incautos. Nem uma obra deve ocupar-se com que as ruas se tornaram lugares perigosos.
em assinalável resistência
da completude de ser obrigatoriamente gentil. O quieto das peças não é passividade al- Mas de nada vale trancar as portas quando o
à representação. A obra alguém guma. Muito ao contrário. Francisco Laranjo propõe um tumulto. J monstro está dentro de casa.J
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J 20 de outubro a 2 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT
DIÁRIO
Múltiplos Leminskis Gonçalo M. Tavaress
O mundo e o
olho humano
NA HORA DE COMER O TREINADOR
1
Patrícia Portela
N
Começar a pensar o mundo a partir da
morte do pai; aliás, a partir do nasci-
mento do pai. No caso de Onfray, 1921.
Cosmos – Uma Ontologia materialista, de
em sempre temos a oportunidade dos curto circuitos no cérebro, menosprezando os destinos Michel Onfray.
de deambular pelo pensamento de lineares. É perceber que ser, estar, saber, poder, querer, fazer,
2
alguém que aprendeu a aprender ouvir ou caber são afinal os únicos verbos regulares da nossa
para nunca mais deixar de saber língua, e que é no tentar e no ser tentado que está o engenho Quando começa o mundo? Começa
sempre mais. mesmo quando não se prevê (em números) o ganho, o jeito ou a quando nasce o pai, a mãe.
Nem sempre temos a oportuni- conclusão. Antes, o que é o mundo? História,
dade de saber mais caminhando ao A exposição Múltiplo Leminski grita-nos: Não podemos passar não memória.
lado de sábios atentos, sedentos, e um dia sem pensar! Não podemos pensar um dia sem pensar! O que é a História? É o que aconteceu
de, com eles, darmos os primeiros Como se pode passar um dia sem pensar? antes do nascimento do meu pai.
passos pela arte do bem pensar. Mais do que permitir o encontro com a sua magnífica obra, O que é a memória? É o que aconteceu
Nem sempre temos a oportunidade de bem pensar enquanto mais do que celebrar a sua Poesia Reunida, agora também depois do nascimento do meu pai.
fazemos: o amor, a arte, o trabalho, o dever, os dias. Passamos editada em Portugal (pela Imprensa Nacional) e mais do que
3
pelas horas a cumprir - horários e promessas - sempre em comemorar e revelar a multiplicidade da sua atividade artística
atraso, mais em dívida do que em boa companhia, mais em ou revelar aspetos mais privados do seu processo de criação, Em parte, o que faz a ciência contem-
velocidade do que com ponderada ação. Agimos sem tempo, esta exposição é um convite a percorrer a lógica, as associações porânea? Ilumina alguns caminhos
concluímos sem raciocínio, dizemos sem sentido, orienta- de ideias, as circunstâncias e as atitudes de um criador que se vê antigos, vira as costas a outros.
mo-nos sem bússola, sinónimo de sim na sua A investigação atual por vezes resulta,
perdemos tantas vezes relação com o mundo. então, da crença numa hipótese antiga que
o coração em nome de Percorro a exposição foi abandonada. Com mais meios técnicos,
(outra) razão. e pergunto-me se ocupo volta-se ao mesmo caminho.
Talvez por isso os meus dias como deve- Nas Edições 70, o livro de Carlo Rovelli,
vivamos hoje com mais ria, se os dedico de facto físico teórico italiano, Anaximandro de Mileto
medo. Com mais dúvi- ao livre exercício de – ou o nascimento do pensamento científico.
das. Com mais pressa. criar e de proporcionar Curioso, neste particular, um capítulo
Com menos palavras. espaço de criação, de intitulado: “Pensar Anaximandro depois de
Com mais entusiasmo “pensação”, de desar- Einstein e Heisenberg”.
forçado pelo que nos de- rumação. Dedicar uma O que é antigo muda, se o que é contem-
sanima, e menos paixão vida a pensar é talvez a porâneo não ficar no mesmo lugar.
pelo que nos falta ainda mais nobre das tarefas.
4
conhecer. Nem sempre Traduzir o ato de pensar
somos quase, nem tudo em projetos, em casas, A expressão “ver a olho nu”.
é sempre tão pouco, em jardins, em livros, Expressão que só existia, de forma
nem tanto do que se vive em histórias aos qua- pura, antes da invenção da lente,
preenche tanto como se, dradinhos, em ensaios, qualquer que ela seja.
de facto fosse muito, e Paulo Leminski em aulas, em formas de A lente subitamente curou a solidão do
no entanto, afunda-nos, estar e de viver é talvez olho diante do mundo visível.
pesa-nos em demasia. a única atividade que O olho parte para ver, mas já não parte
Felizmente, nem nos distingue de sermos sozinho.
sempre o tudo que nos falta conhecer está fora do nosso al- pedras que não voam só porque não têm asas. De sermos pó. De
5
cance. Passear pela exposição Múltiplo Leminski, na Casa da sermos tralha complexa à deriva pelo universo.
América Latina em Lisboa, é uma bênção; um rapto consentido Se tem um minuto, ou mesmo se não o tiver, pare. Pegue Falar em olho nu, diga-se, é atribuir aos
ao atabalhoamento dos nossos dias para desembaciar os olhos no mapa. Tire a hora de almoço para não comer, ou o fim de olhos uma nudez que estes nunca tive-
das correntes turvas do que se escreve em vão. Uma viagem tarde para esquecer aquele email que só lhe trará mais chati- ram. Os olhos nunca estão nus ou, pelo
pela forma de pensar de um homem que foi poeta, tradutor, ces no emprego antes de lhe resolver o negócio ou a situação. menos, quase nunca. O resto do corpo sim.
publicitário, jornalista, escritor, letrista, compositor, judoca, Desloque-se. Suba as escadas. Leia com carinho o trabalho O pudor tapa tudo e por vezes só os olhos
pai, filho de um polaco e de uma brasileira de origem africana e minucioso das suas filhas Áurea e Estrela Leminski e da sua resistem. E não apenas nas mulheres e em
indígena, seminarista na sua jovem idade adulta, aprendiz toda companheira e poeta Alice Ruiz. Não aprecie apenas o que vê. certos países; também nas festas carnavales-
a vida, provavelmente bom cozinheiro (não há notícia, mas faria Procure passear pela mente de quem chegou àquelas lín- cas e noutras.
sentido), apreciador de amigos, línguas e gins. guas, àquelas influências, àquelas obras, àquelas geografias e Os olhos tapados, no limite, cegam o
Um homem que escreveu a biografia de Jesus antes de Cristo qual situacionista francês, coloque o mapa do pensamento de seu portador. Não há maior pudor, poderia
(sobre a sua costela de filósofo e poeta), de Baschô, o mestre Leminski sobre o seu. Que lugares ainda lhe falta ocupar? Que dizer-se, não há pudor mais terrível do que
dos Haikus, ou de Trostky. Um homem que traduziu Petrarca, saberes ainda lhe falta descobrir? Siga as instruções do poeta, a cegueira.
Joyce, Jarry ou Mishima, entre 156 traduções de 14 línguas como se fosse uma criança e prometa: estar sempre alegre/ Não quero ver, tenho pudor: por isso
diferentes, umas vivas, outras mortas. Um homem que dedicava nunca ficar inativo/ e chorar com força por tudo o que se quer! cego-me.
os seus dias a satisfazer a sua desmedida ambição intelectual e Depois tenha uma ideia brilhante! Como se olhasse para dentro
6
erudita e que amava os universos entre o amarelo e o azul. Um de um diamante e o seu olho ganhasse mil faces num só instan-
homem muita coisa, e portanto, alguém que sabia encher pou- te! Um olho nu é um olho que vê.
cas palavras de muitos sentidos. Nunca cometa o mesmo erro duas vezes/ cometa duas, três/ Não vê tudo, mas vê o suficiente.
Percorrer a exposição Múltiplo Leminski é confirmar que quatro, cinco, seis/ até esse erro aprender/que só o erro tem O humano pode gritar pelo que vê,
somos todos feitos de muitos corpos, muitos saberes, muitas vo- vez! e não apenas pelo que imagina.J
zes, muitas nossas, muitas de outrem, mas é também perceber e Conclua como Leminski: “Haja hoje para tanto ontem!”
perguntar como é possível nem todos abraçarmos essa multi- Saia da exposição sabendo que Inverno é tudo o que sinto,
plicidade como forma de estar e de agir, no espaço e no tempo, Viver (afinal) é sucinto! J
na vida e na morte, na saúde e na doença. Com voracidade e
lentidão. (A exposição Múltiplo Leminski está até dia 3 de novembro, na
Percorrer esta exposição é descobrir a vantagem peculiar Casa da América Latina em Lisboa)