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“O Começo”: jóia de San Sebastián

finalmente nos cinemas. Entrevista a Dea


Kulumbegashvili
Produzido por Carlos Reygadas, “Beginning” (O Começo) chega aos cinemas
portugueses na semana de 19 abril

16 de Abril, 2021
Publicado por Rodrigo Fonseca
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Com estreia nos cinemas portugueses após a reabertura das salas a 19 de abril, a
avassaladora experiência estética classificada como obra-prima por onde passou,
“Beginning” (O Começo) tem feito furor nos festivais na Europa, com os certames de
Gotemburgo (29 de janeiro – 8 fevereiro) e Roterdão (1-7 de fevereiro) comprovaram-

Vencedor da Concha de Ouro de 2020 no Festival de San Sebastián, laureado ainda com
o Prémio da Crítica Internacional em Toronto, esta é a estreia da jovem
Dea Kulumbegashvili, da Geórgia, em longas-metragens. E “Dasatskisi”, na sua língua
natal, vem sendo encarado como uma aposta ao Oscar de Melhor Filme Internacional,
tendo sido chancelado com o selo de Cannes, onde a cineasta integrou o júri da Palma
de Ouro de curtas-metragens, em outubro de 2020. Além da Concha dourada, este
drama contemplativo deixou o norte da Espanha, onde fica a já citada San Sebastián,
consagrada por uma equipa de jurados liderado pelo cineasta Luca Guadagnino com os
prémios de melhor realização, argumento e atriz, dado a Ia Sukhitashvili. 

Uma comunidade de Testemunhas de Jeová é o mundo sobre o qual Dea se debruça


para estudar a violência contra uma mulher, relegada à solidão diante de um universo
opressor.
Dea Kulumbegas
hvili em San Sebastián

Na trama escrita por Dea e Rati Oneli, coproduzida pelo realizador mexicano Carlos
Reygadas (de “Luz Silenciosa”), Yana é uma atriz que não teve sucesso na sua carreira
nos palcos e nos ecrãs – ou nunca teve a verdadeira hipótese de apostar na arte com a
liberdade necessária. Longe dos holofotes, casou-se com um sacerdote e teve um filho,
prestes a entrar na adolescência. O templo deles, na cidade de Lagodekhi, é incendiado
através do uso de coquetéis Molotov nos primeiros minutos de “Beginning”, num dos
planos longuíssimos onde a câmara pouco mexe, deixando as personagens importantes
fora do quadro, para entender as reações de Yana à brutalidade que lhe imposta por
múltiplos homens, alheios aos seus sentimentos.

Via Zoom, Dea compartilhou com o C7nema as suas noções de Tempo e de Espaço… e
de Fé.

O que encontrou de mais revelador no universo das Testemunhas de Jeová?

O universo que investigo vem daí, mas vai além, porque não é uma narrativa sobre a
religião e, sim, sobre o inaudito da experiência individual de uma mulher. O que me
importa na prática religiosa é a relação instintiva.  

Classificado como obra-prima na sua passagem por San Sebastián, “Beginning” é


uma longa de estreia impressionante por sua sinestesia e por sua dimensão
existencial. De que modo seu processo de filmagem talhou a sua experiência de
fazer cinema, antes restrita a curtas?

Trabalhei com (o mexicano) Carlos Reygadas no projeto e ele também tem um cinema
de muita liberdade, que tangencia a relação que temos com o Mistério, ou seja, aquilo
que vivenciamos de maneira quase irracional, intuitiva. Um pouco como é a fé.
Reygadas falava que a estetização da forma é menos importante do que a atenção que
damos à condição humana. E foi um pouco o que me guiou num processo de construção
que consumiu cerca de seis meses de ensaio. Ia Sukhitashvili veio até nós, procurando
trabalhar connosco, o que foi importante para ampliar a troca na relação
realizadora/atriz.

E é possível repetir esses procedimentos nos seus próximos projetos?

Já estou a pensar num novo guião, mas tenho a perceção de que cada filme é um
processo único, uma aventura situacional, que não se estende para as demais histórias
que contas. Quando tenho um filme na cabeça, ele sai de dentro de mim como que em
resposta a um radar, que faz a triagem do que quero narrar. Um radar que mapeia o
espaço, em primeiro lugar. O lugar dá-me a perceção do tempo. 

Como você define Lagodekhi, cidade de quase 6 mil habitantes, onde “Beginning”


desenrola-se?

Fica nos arredores do Cáucaso, próxima à fronteira do Azerbaijão. É uma cidade antiga
que teve muitas construções ancestrais reconstruídas. Muitas etnias convivem ali.

Qual é a dimensão plástica do silêncio numa narrativa sobre a opressão?

“Beginning” é um estudo de indivíduos e não uma reflexão sobre a prática cristã.


Existem ali pessoas que são tocadas por um mistério, que é a fé, mas não é a religião
que me interessa e, sim, a experiência individual, a vivência de uma mulher num espaço
de repressão. O silêncio é uma parte essencial da geografia humana que nos rodeia e,
através dele, é possível perceber a beleza natural e existencial à nossa volta. E este filme
requer a cumplicidade do espectador para entramos na psique da personagem central,
que encontrou no silêncio um modo de resistir. Por isso, há longos hiatos entre as
palavras no meu filme. O que interessa é escutar o que as personagens escutam. É com o
Tempo que quero dialogar. Venho de um país com muita beleza. Estava na hora de
retratá-lo a partir das relações simbólicas que definem aquele espaço, onde muitos
templos tornaram-se cinemas, durante o período soviético.

O que significa lançar um espetáculo visual como “Beginning”, numa outra forma
de exibição que não a projeção em sala?

O impacto do streaming na maneira como consumimos filmes já está a ser imenso. A


MUBI não é uma plataforma que opera por critérios convencionais de resultados, o que
é interessante num momento em que o mundo vivência uma passagem da receção
presencial para a online. Vi o filme projetado no grande ecrã em diferentes locais, com
toda a excelência de engenharia de som que idealizei. Foi uma experiência em que,
através do silêncio, pude notar como as pessoas respiram em reação ao que veem na
trama. Agora, nós escolhemos a MUBI e levamos esse filme ao terreno da exibição
online. Vai ser interessante ver como será a reação das pessoas e descobrir toda uma
nova forma de receção. Estamos cercados de imagens por todos os lados. É importante
existir um espaço, um canal, como as plataformas digitais, que possa levar imagens
potentes até elas.    

[Entrevista originalmente publicada em janeiro, após a estreia do filme na


plataforma MUBI]

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