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�reolillda Gersã()

OS ANJOS
Narrativa

2.a edição

Teolinda Gersão nasceu em Coimbra, em 1940, estudou


nas Universidades de Coimbra, Tübingen e Berlim,
doutorou-se em 1976 e prosseguiu na carreira universitária
até 1995, como professora catedrática da Universidade Nova
de Lisboa. O seu primeiro romance, O Silêncio (198 I), foi
saudado pela crítica como «um livro-data na ficção portuguesa
pós-25 de Abril». Tendo nascido e crescido sob a ditadura
fascista, o sofrimento imposto ao indivíduo por estruturas
autocráticas, não só político-sociais mas também culturais
:e mentais, é um dos temas recorrentes na sua obra. Paisagem
com Mulher e Mar ao Fundo (1982) retrata uma sociedade
sufocada pela censura, exausta por uma guerra colonial injusta
e sem saída, e encena o derrubar da ditadura de O.(liveira)
S.(alazar). Outras formas de opressão social e mental
são os temas de O Cavalo de Sol (1989), retomados, de forma
irónica, em A Casa da Cabeça de Cavalo (1995).
Além da estadia na Alemanha viveu dois anos em São Paulo,
Brasil (reflexos dessa estadia surgem em alguns textos
de Os Guarda-Chuvas Cintilantes) (1984) e conheceu
Moçambique, cuja capital, então Lourenço Marques, é o lugar
onde decorre o romance de 1997 A Arvore das Palavras.
Em 1999 é editado Os Teclados (narrativa).
As suas ohras en con t ram se traduzidas em diversas línguas.
-

{J Silêncio c O Cavalo de Sol foram distinguidos com o prémio


do f'cn (:Iuh e A Casa da Cabeça de Cavalo foi vencedor
do (;randc Prémio de Romance e Novela da Assodação
Porruguesa dt· Escritorc.li. Os Anjos é o seu livro mais recente.
HibliorL'cl Naóollal - Caralogação na P u bl icação
l ;L'rsJo, ')'L'olinJa, 1 �40-

Os anjos: narrativa. - (Aurores de língua portuguesa)


ISBN �72-20-1747-0
CDU 821.134.3-3"19"

A minha mãe estava em cima de um


banco e tinha na mão uma cavaca acesa. Eu
tinha ido prender o cão e quando voltei dei
com ela assim.
Gritei-lhe da porta: Pára!
Mas ela não me ouvia, esticava o corpo e
agitava os braços, o fogo saía da cavaca e to­
Publicações Dom Quixote, Lda. cava nas traves do tecto. Corri para ela e agar­
Rua Cintura do Porro
Urbanização da Marinha - Lore A - 2,0 C rei-lhe os pés, então ela caiu por cima de mim
1900-649 Lisboa • Portugal
e começámos a arder, eu tinha muito calor na
Reservados todos os direitos cara e sentia a roupa colada ao corpo. Então
de acordo com a legislação em vigor
ela parou de rebolar no chão e de gritar, agar­
© 2000. Teolinda Gersão e Publicações Dom Quixore
rou o cântaro da água e deitou-o por cima de
Revisão ripogdflca: Francisco Paiva Roléo nós, a cozinha encheu-se de fumo e não se
I." edição: revereiro de 2000

2." edição: Novemhro de 2000


conseguia ver nada.
J\BC (;ráfica, I.da,
hJrocom ro\ição:
Depois ela começou a chorar e a tremer de
I Jcrú\iro It:galn." ),)722H/OO
IrflJ!f('\\;io ( alaharm:nro: (;ráfica Manuel Barbosa & hlhos, l.da.
' frio e disse que a culpa era minha, porque lhe
I\Br 1: 'r/). J.(J 1Ft/o
7
tinha agarrado'- os pés e ela não podia saltar do Se eu me punha na frente ela não me via. (Js
banco. olhos pareciam vazios, como se tivesse ficado
Não sei se foi por minha causa que ela cega de repente. Nunca sorria quando lhe sor­

caiu. Eu só tinha querido agarrar-lhe a camisa ríamos, nem se voltava para nós quando a cha­

de noite e puxá-la para baixo, mas talvez com mávamos.

a aflição lhe puxasse os pés e tombasse °


No princípio o meu pai enfurecia-se,

banco. Não sei se foi assim. Mas não valia a quando ela começou a ficar assim. Não se

pena dizer mais nada. vestia nem penteava, trazia a camisa de noite

Quando ela se levantou e abriu a porta o dia inteiro, andava descalça e falava sozi­

para deixar sair o fumo, reparei que havia um nha, não fazia a lida da casa, esquecia-se do
)antar. O meu pai bebia e partia a garrafa na
rasgão na camisa. Podia ter-lhe dito: Foi a tua
parede, dizia que assim não se podia viver, ela
camisa que puxei, a prova é que está rasgada.
não respondia, deixava cair os copos e os pra­
Mas também não disse.
tos e ficava a torcer as mãos e a olhar a ja­
Havia agora muito menos fumo e era
nela.
como se nada tivesse acontecido. A casa afinal
A certa altura começou a fugir de casa, en-,
�ão pegara fogo e eu não ia contar ao meu pai.
:contrávamo-Ia mais longe, caída debaixo das
lamos ficar à noite à lareira, como sempre sem
,árvores, com os cabelos cheios de terra e pa­
dizer palavra, o meu pai bebendo da garrafa
recendo dormir de olhos abertos. Quando a
até adormecer, a minha mãe sentada no chão,
.levantávamos olhava-nos espantada, como se
olhando em frente sem pestanejar, como se
nada do que acontecia tivesse relação com ela.
quisesse cair dentro do lume.
E houve o dia em que cortou os pulsos com a
Às vezes estendia as mãos sobre as chamas,
faca da cozinha e a encontrámos numa poça
até se queimar. A pele ficava vermelha e devia
de sangue, debaixo da nespereira.
doer-lhe, mas ela nunca se queixava. Untava a
Então o meu pai montou-a na burra e le­
mão com azeite, enrolava-a num lenço, vol­
vou-a ao médico da vila. Andaram três léguas,
tava a sentar-se e continuava a olhar o fogo.

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ele a pé e ela montada na burra. E toda a cura. Ela tornou a tomar os pós e a durmir o
gente viu como ele lhe queria bem. dia todo, e continuou a fugir de casa e a olhar,
O meu pai sempre tinha dito que a minha emparvecida, para o lume.
O meu pai tinha medo que ela se quei­
,mãe era muito bonita. Tinha um retrato dela
masse, se perdesse nos campos, morresse afo­
em cima da prateleira, com um vestido novo,
gada no rio. Vigiava-a constantemente quando
num dia de festa. Nesse tempo do retrato a
estava em casa e antes de ir para o trabalho di-
minha mãe ria e cantava e eu ainda não tinha
7.ia-me: Olha pela tua mãe, se não acontece.
nascido.
uma desgraça.
Agora, em cima da burra, ela ainda pare­
Eu também tinha medo que lhe aconte­
cia bonita, sentada ao lado do alforge e do saco
cesse algum mal, por isso, e porque o meu pai
do farnel, com uma blusa de manga curta às
mandava, a seguia sempre.
Horinhas, que o meu pai a obrigou a vestir, e
Mas ela não gostava de ser seguida, desa­
um chapéu de palha na cabeça. Mas debaixo
tava a gritar e a ficar vermelha, as pernas e bra�
,do chapéu a cara estava triste, parecia que nem
ços punham-se rijos como paus, começava a
'tinha olhos.
vomitar e a espumar da boca, e revirava os
Quando lá chegaram o meu pai disse:'
olhos para cima. Bastava um olhar para enfu­
Doutor, olhe que eu morro se ela nunca mais
recê-la, sobretudo um olhar do meu pai. Mas
ficar como era dantes.
também comigo se enervava, fechava-me. no
O médico limpou os óculos e enxugou a
canil com o cão ou metia-me no galinheiro e
testa, mandou-a tirar a blusa e auscultou-a, to­
não me dava de comer durante todo o dia.
mou-lhe o pulso e receitou uns pós que ela
Uma vez fugi e corri para a fonte, ela cor­
deitava num copo e desfazia em água e depois
ria atrás de mim e gritava: Pára, Ilda, se não
ficava todo o dia a dormir.
apanhas mais, eu continuava a correr porque
Quando acabou de os tomar voltaram lá,
tinha medo dela, corri até à fonte com ela
o médico receitou-lhe outros pós e disse que
atrás de mim, na fonte estava a Lourença Car-
não havia mais nada a fazer, porque não tinha
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neiro que me agarrou e dizia à minha mãe, ai coisa ruim, porque quando as casas se en­
vizinha, agora é que é dar-lhe poucas, a minha chiam assim de gente era quando morria uma
mãe batia e a outra não me largava, até que pessoa e então não saí de debaixo da cama
lhe mordi na mão com toda a força e foi as­ com medo de que alguém estivesse morto e eu
sim que ela me soltou. não sabia.
De outra vez fui atrás da minha mãe es..; Mas isso foi antes de ela ter piorado. Por­
condida atrás das árvores, seguindo-a de longe que no princípio da doença ainda eu ia com
para ela não me ver, ia por dentro dos valados os outros brincar no olival, onde gostávamos
de estar porque havia muito espaço, os mais
e saltava os muros, mas de repente deu-me
pequenos sentavam-se em mantas, os maiores
uma dor tão forte na barriga que caí no chão
tomavam conta deles, éramos sempre muitos,
e desmaiei. Quando me encontraram era
porque a Lourença, a Marília, a Prazeres e a
quase noite, já não estava desmaiada mas não
Belmira tinham cada uma oito filhos, dor­
tinha conseguido pôr-me em pé.
miam todos na mesma cama, uns com a ca­
Também me lembro de um dia, por vin­
beça na cabeceira e outros com a cabeça nos
gança, lhe querer pregar um susto. Escondi­
pés. As outras mulheres da aldeia também ti­
-me debaixo da cama enquanto ela ia à fonte,
nham muitos filhos e era bom assim, porque
e pus na minha ideia que quando ela voltasse
ninguém estava só.
e passasse perto lhe tocava no pé, para ela pen­
Jogávamos com pedrinhas, atirávamos gra­
sar que era um rato e soltar um grito. Mas
vetas aos buracos, jogávamos o galo no chão
adormeci debaixo da cama e quando ela vol­
e a apanhada, os rapazes pequenos faziam bur­
tou e não me viu foi por mim a todo o lado,
ros das oliveiras tortas, se encontravam algum
juntaram-se os vizinhos e andaram pelos quin­
tronco no caminho.
tais, o meu pai dizia que eu tinha caído ao
Quando passava um avião dizíamos: Se ele
poço, a minha mãe tinha medo que eu tivesse
caísse aqui em baixo ficávamos ricos. Porque
fugido. Quando acordei e vi a casa cheia de
devia haver muita coisa lá dentro. E então gri-
gente pensei que tinha acontecido alguma
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távamos: Cai aqui em baixo, cai aqui em gritava mais alto que o outro� 'E depois o--meu
baixo, e ficávamos a olhar para o céu e a agi­ pai bateu com a porta e saiu e a minha mãe
tar os braços enquanto ele passava. sentou-se diante da mesa da cozinha e come­
Mas depois a minha mãe começou a pio­ çou a chorar.
rar e eu fiquei em casa para tomar conta dela. Nos dias seguintes discutiram mais. O meu
Não me importava, porque não gostava de an­ avô era um peso, dizia a minha mãe. Carre­
dar na escola. O meu pai também dizia que gasse-o ele, que era seu filho. Fosse buscá-lo a
não fazia mal eu não ir, porque assim como casa do diabo e viesse com ele às costas, já que
o trazia por paus e por pedras. E para cuidar
assim nunca lá tinha aprendido nem as letras.
dele, que se aviasse sozinho, com ela não con­
A minha mãe ficava muito tempo à janela,
tasse. Para a moer, já bastava eu.
depois fazia uma trouxa com roupa e dizia
Mais tarde a Germana Marreira disse que
que se ia embora. Às vezes abria a porta, ar­
tinha sido o meu avô a pegar-lhe a doença,
�astava a trouxa até à soleira, e quando eu di� porque ele também deixava cair as coisas, tre­
:lia que ia com ela enfurecia-se comigo e co­
mia muito dos braços e das mãos e ficava sen­
meçava a bater-me. Outras vezes dizia que não
tado, emparvecido, na soleira da porta. Não
podia levar-me, desatava a chorar e abraçava­
era verdade, porque a minha mãe já andava as­
-me. Escondia por fim a trouxa atrás da porta
sim muito antes de ele vir. Mas era verdade
ou dentro do armário do quarto, tirava os sa­
que o meu avô também estava doente, ele pró­
patos e guardava-os debaixo da cama, voltava
prio contou. O meu pai já sabia quando o foi
para a janela e chorava olhando o caminho.
buscar, mas não disse nada sobre isso.
Na altura em que o meu pai foi buscar o
Quando ele chegou pareceu-me quase da
meu avô, ela já andava assim há muito tempo.
minha altura, porque era franzino de corpo e
Quando se soube que a avó tinha morrido e o
muito magro. Trazia um chapéu muito pe­
avô vinha viver connosco a minha mãe zan­
queno na cabeça e não tomava banho. A mi­
gou-se e gritou e o meu pai também gritou,
nha mãe foi-se deitar e não quis recebê-lo.
não se percebia o que diziam porque cada um

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eram caseiros numa quinta, nessa altura, por­
Durante muito -tempo fingiu que não o via,
que a aldeia em que moravam antes tinha sido
nem sequer olhava para ele. O meu pai dava­
inundada. De propósito, sim. Fizeram uma
-me dinheiro, eu ia comprar o necessário e fa­
barragem e abriram as comportas, a aldeia de­
zia o comer sozinha.
sapareceu mas as pessoas não morreram, ti­
O meu avô gostava de falar. Era muito di­
nham ido para outros lugares e outras casas.
ferente do meu pai, que sempre tinha sido de
Foi nessa altura que ele adoeceu. Mas não
poucas falas. Antes de a minha mãe adoecer,
sabia que era doença, cuidou que passava. Co­
ela perguntava-lhe à noite, quando ele vinha
meçou por sentir falta de força no polegar da
do trabalho: Então? Ele encolhia os ombros e
mão esquerda. Foi mau jeito que dei, pensou.
respondia: O costume.
Mas não melhorou com o passar do tempo,
O meu pai cortava árvores, para a serração.
alastrou também aos outros dedos, não con­
Às vezes eu pensava que ele tinha emudecido,
seguia separá-los nem dobrá-los, sentia a mão
como um tronco. As árvores não tinham nada
muito pesada e inchada. Com aquela mão não
para dizer. Mas estavam lá e davam sombra.
conseguia pegar na ferramenta, embora com a
Eu gostava do meu pai e das árvores.
direita segurasse bem o escopro e o martelo.
O meu pai também gostava das árvores e
Mas faltava-lhe a esquerda para trabalhar. Ho­
preferia não as cortar. Mas o dinheiro tinha de
messa, pensou. Não querem lá ver esta agora.
se ganhar e ele ganhava.
A avó insistia que fosse ao médico, acabou
O meu avô também gostava do meu pai,
por ir, mas só quando a falta de força lhe pas­
embora ele não o visitasse quase nunca, no
sou para o antebraço e o braço e depois tam­
tempo em que a avó vivia, e quando lá ia, de
bém para a outra mão. Porque ele acreditava
fugida, não achava nada para lhe dizer. Não
pouco em médicos, nunca até ali precisara de­
era por mal, dizia o meu avô. Ele era assim.
les. O médico mandou-o a outro médico, e
Mas o meu avô contava muitas coisas. este ao hospital. Foi lá umas dez vezes, deram­
A avó tinha sempre saúde e morreu de re­
-lhe quinino, salvarsan, e até lhe fizeram trans-
pente, quando ninguém esperava. Ele e a avó
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fusões de sangue, mas avisaram-no de que iria mundo, porque ninguém podia mandar tanta
pIorar sempre. água, só Deus. O meu avô contava mal, ou ti­
Na altura não quis acreditar, mas agora nham-lhe mentido. Fora de certeza mais de­
sabia: era uma coisa que trepava pelo corpo, vagar que tudo acontecera: eu via a água cor­
como uma hera na parede. Avançava pedaço rer, como um ribeiro (pensava nela de noite,
a pedaço, devagar mas sem recuos. Já a sen­ quando ficava acordada a ouvir a chuva), de­
tia subir a caminho da cabeça, tinha muito pois engrossava, ficava revolta e irada como
peso nos ombros e dores na nuca quando um rio, quando o rio se zangava e rugia e
voltava o pescoço. Mas não lhe custava falar, inundava as terras e todos lhe fugiam pela
e por isso falava: Lembrava-se da aldeia que frente, as pessoas e o gado, cavalos, machos e
tinha sido inundada, depois de todos se te­ cães, manadas de bois e rebanhos de ovelhas e
rem ido embora, da casa onde tinham vivido cabras, homens de foicinha ao ombro, mu­
quarenta e oito anos, e onde o meu pai tinha lheres com crianças ao colo, e outras crianças
nascido. tropeçando, levadas pela mão -
A água veio de repente e cobriu tudo, disse mas tinham tido tempo de fugir, porque a
o meu avô. Num instante galgou as ruas, as água não matara ninguém, disse o meu avô,
portas e janelas das casas, os telhados e as cha­ eu via a água avançar, cobrir as pedras da
minés, e tudo ficou debaixo dela, as pedras da calçada, chegar às portas, às janelas, subir até
calçada, os passadiços, as escadas, os currais do à cozinha, ao forno, à ombreira das portas, aos
gado, os cachorros de pedra com vasos de flo­ cachorros das janelas, às chaminés e aos telha­
res. Porque ninguém tinha podido levar tudo, dos, e depois muito acima, muito acima das
eles próprios tinham deixado, dos lados das ja­ casas, de tal modo que a aldeia ficou lá no
fundo como um monte de conchas, de pedras
nelas, vasos de gerânios encarnados.
ou de ossos.
Mas eu não podia acreditar que aquilo ti­
vesse acontecido assim tão de repente, como
A superfície a água ficou larga e fechada
como um mar. Ouvia-se a sua voz, a água fa-
se Deus tivesse aberto o céu e inundado o

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eu voltava lá, e ele ficava com a minha mãe e
lava. Mas a aldeia ficou em silêncio, não ha­
o meu avô.
via nenhum som além da voz da água, tornou­
Tive ganas de fugir ou de esconder-me,
-se uma aldeia muda, um lugar dos mortos.
para não obedecer ao meu pai. À noite chorei
No fundo, no fundo.
porque tudo ia continuar como antes:
No entanto quando fechavam as compor­
A professora perguntava o que estava es­
tas e a água retrocedia podia-se lá voltar, disse
crito no quadro preto e eu ficava a olhar e não
o meu avô. De tantos em tantos anos isso
sabia. Perguntava aos outros e logo eles res­
acontecia.
pondiam: «ro-da», «ri-o», «ri-bei-ro».
Ele já não podia, nunca ia lá voltar. E se
Então a professora deu-me com a régua na
calhar era melhor assim, não veria os estragos,
palma da mão e mandou-me para o canto da
a aldeia deserta, as ruas onde não passava nin­
sala com as orelhas de burro na cabeça. Virei­
guém, as pedras, as paredes, os telhados ar­
-me para a parede para esconder a cara, mas
rancados, porque muita coisa, é claro, tinha
ela mandou-me voltar de frente e então co­
ido por água abaixo, mas na vida era assim,
mecei a chorar porque faziam pouco de mim
muita coisa ia por água abaixo, voltava-se a ca­
e a mão estava inchada e me doía.
beça e as coisas já lá não estavam, as pessoas O João e o Faustino, na fila da frente,
já lá não estavam - abanavam as mãos em cima da cabeça, a fin­
No entanto também era como se a água gir de orelhas, e depois no pátio gritavam to­
cobrisse a aldeia e a deixasse lá guardada para dos à minha volta: É burra! É burra! e fa­
sempre, pensei. Podia imaginar que a avó con­ ziam: Hi-ho, hi-ho, e eu comecei a fugir,
tinuava a morar na casa, assomava de quando mas eles corriam mais e vinham atrás de
em quando à janela ao fim da tarde, espe­ mim e então tropecei e caí e uma chanca
rando o avô para a ceia. Podia imaginar. perdeu-se, ou eles a esconderam, porque
Aprendia muita coisa com o meu avô. nunca mais a achei e voltei para casa com
Só na escola eu não aprendia. Mesmo as­ um pé descalço.
sim, uma vez por semana o meu pai disse que
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naram a dizer que a irmã dele andava com o
Mas o meu avô disse que não fazia mal
Serafinl.
uma chanca a mais ou a menos. Deu-me um
Quando vou à mercearia também ouço fa­
almanaque para eu ver as figuras e contou-me
lar mal do Serafim:
que sabia tocar gaita de beiços, embora agora
Dia em que ganhe algum, perde-o logo às
não pudesse tocar porque lhe faltava o sopro.
cartas, pela noite adiante, disse a Adelaide
Quando era pequeno tinham-lhe dado uma.
Pinto à Fernanda Candeias. Não tem nada
Chamavam-lhe harmónica. A primeira que
que preste, o Serafim das Canas, a não ser boa
teve, foi ele que a inventou: era um pente pe­
figura. Mas disso não se vive, disse a Maria
queno, coberto com um papel de celofane.
Salvada, boa figura e paleio, o diabo que os
Quando ele lhe soprava com a boca, o papel
leve. Deve dinheiro a toda a gente, disse a
cantava.
Adelaide Pinto, o Zé Caçador já nem lhe fia.
E eu contei-lhe que no outro dia o João e
E dizem que não dá nada à Maurícia, garan­
o Faustino começaram a saltar em volta do Zé
tiu a Felisbela Raposo, nem sequer dinheiro
Paulo, no recreio, e disseram que a irmã dele
para alimentar a menina. E a Salvada tornou:
se ia encontrar com o Serafim das Canas e to­
Pois, a Maurícia, coitada, foi mais uma. Mas
dos se puseram a rir e a gritar, batendo com
as mulheres ainda olham para ele, irritou-se a
o punho na palma da mão: A tu-a ir-mã e o
Eugénia. Não chega o que fez à Maurícia. Se
Se-ra-fi-im-im, a tua irmã e o Se-ra-fim-im­
calhar, querem igual. Começa a fazer-lhes
-imo E o Rui disse que por causa do Serafim olhos e elas caem que nem tordos. Não sei o
o homem da Palmira era destes - e espetou que tem a mais que os outros, disse a Ade­
dois dedos na testa, e o Albertino Quintas riu­ laide. Só se for sacanagem. E a Fernanda Can­
-se e bateu-lhe porque isso não se dizia. deias suspirou: Ai de quem se fia em homens
E a Josefa abanou a saia em volta do Zé desses.
Paulo e cantou: 6 Laurindinha, laranja la­ Quando vou à venda buscar vinho tam­
ranja, quem não tem amores depressa os ar­ bém os homens falam:
ranja e fizeram muito barulho e chacota e tor-
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Pediu outra vez ao Barbeiros, disse o Cruz. logo a mão e puxa por mim quando chega
Garante que vai receber uma herança, pediu perto, com muita pressa de passar adiante.
por conta, riu-se o Cândido Moutinho. Pois Hoje a minha mãe não foi à missa, doía­
sim, fia-te nessa e mais na Virgem, riu-se tam­ -lhe a cabeça e ficou na cama e a Maria Sal­
bém o Carlos. Aquele só depois de morto é vada passou para me levar. À saída da igreja o
que se emenda, disse o Beato Bordalo. Nem Serafim veio ter connosco e deu-me um em­
depois de morto, disse o Carlos. Ainda há-de brulho. É um remédio para o teu avô, disse
jogar o que tem e o que não tem, com três pal­ ele. Não te esqueças de entregar à tua mãe,
mos de terra em cima. porque é urgente.
Eu fazia a comida e dava-a na boca ao Não dei o embrulho à minha mãe porque
meu avô, porque as mãos lhe tremiam e não não gosto do Serafim, entreguei-o logo ao
segurava a colher. O meu pai vestia e lavava meu avô. Ele cheirou o pacote mas não o abriu
o meu avô e ficava calado, bebendo à noite e entregou-o à minha mãe que pareceu irritada
até adormecer ao pé do lume, a minha mãe e o meteu no bolso, com o papel e a guita.
continuava a fugir e a desmaiar debaixo das É uma receita do boticário de Alvião, disse
árvores, ou encostava-se à janela, com a a minha mãe mais tarde, sem olhar para nós.
trouxa da roupa atrás da porta, olhando o ca­ Dizem que é um remédio bom para as tre­
minho. muras.
Eu também tinha vontade de fugir, cho­ O meu avô aceitou experimentar e ela fez­
rava à noite debaixo do lençol e não me ape­ -lhe um chá, que ele bebeu em pequenos go­
tecia falar com ninguém. les, sem o deixar arrefecer.
Ao domingo, quando se sente melhor, a Nos dias seguintes a minha mãe tinha um
minha mãe vai comigo à missa. O Serafim ar melhor. Parecia-se mais com a cara que ti­
está sempre à saída, no meio de outros ho­ nha no retrato, quando dançava nas festas, de
mens e rapazes, mas nunca nos diz nada. vestido novo. Nessa altura ela não prendia o
A minha mãe também não diz nada, dá-me cabelo nem amarrava o lenço como agora, na

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parte de trás da cabeça, nem se vestia de preto nha nlãe não agradeceu, mas eu corei de prazer
ou de cinzento, que eram as cores com que a porque não costumava receber presentes.
vi sempre, trazia saias rodadas, de cor, e blu­ O primeiro tinha sido o almanaque. Inte­
sas atadas com fitas, que ficavam muito justas ressava-me cada vez mais pelas figuras, ficava
na cintura, e gostava de rir e de cantar. Quando a olhá-las até as saber de cor. Algumas tinham
se fica a olhar para o retrato, muito tempo, letras em baixo, o meu avô apontava-as com
quase se pode ouvir a música de dança. o dedo. As letras diziam o mesmo que as fi­
O meu avô também se lembrava de ir a guras. Assim por exemplo, se ele mostrava: O
festas, na aldeia onde vivia. Saíam os cabeçu­ cão do Belarmino, em baixo as letras repe­
dos, disse ele, o Ramada tocava concertina, o tiam: O cão do Belarmino. Podiam olhar-se as
Xavier gaita de foles, e havia pandeiretas e fer­ figuras ou as letras, eu preferia sempre as fi­
rinhos, cantava-se e dançava-se. O que mais se guras.
ouvia era a concertina, o Ramada começava a Um dia olhei uma figura, e as letras em
tocar no cimo da vila, ao pé da igreja, e vinha baixo, e novamente a figura. E então as le­
por aí abaixo, com um cortejo de miúdos atrás tras, quando tornei a olhá-las, correram a
dele. E depois juntava-se mais povo, rapazes e juntar-se em molhos. Cada molho era uma
raparigas, homens e mulheres, todos acorriam coisa, um molho era um cão, outro molho
ao toque da concertina e começavam a dan­ era uma casa. Fiquei vermelha de surpresa e
çar. No largo da feira já todo o povo tinha senti-me quase sufocar. O meu avô riu-se, e
eu vi que agora não podia voltar atrás: não
vindo, só quem era muito velho ficava a ver
conseguia olhar as letras sem ler o que di­
da janela.
ziam. Era assim com tudo o que me aparecia
De dentro do saco da roupa o avô mandou­
pela frente, rótulos de garrafas, caixas de fós­
-me tirar um gato de louça, um espelho e uma
foros, latas de sardinhas, letreiros das lojas,
caixa de vidro em forma de meia-lua. Tinham
nomes de ruas nas paredes. Passei a ler peda­
pertencido à avó, disse ele, e agora eram um
ços do almanaque, uma coisa aqui e outra ali.
presente para a minha mãe e para mim. A mi-

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Sentia-me curiosa e deslumbrada, mesmo estava vestido de soldado. Agora já não tinha
quando não entendia o sentido. a farda, mas a cara era a mesma, quando espe­
Arrumei na prateleira o gato de louça, o rava à saída da missa, ao fundo dos degraus da
espelho e a caixa em meia-lua. O almanaque Igreja.
meti-o no gavetão do roupeiro, lá bem no Olá, disse-me no domingo seguinte, quando
fundo. passei adiante, pela mão da Salvada. Não lhe res­
Foi nessa altura que pensei de repente: Era pondi porque estava a pensar nas coisas que
com o Serafim que a minha mãe dançava. No a Felisbela, a Adelaide e as outras mulheres
tempo em que eu não tinha nascido. tinham contado.
De noite sonhei que ouvia o som da con­ Amanhã vou outra vez a Alvião e trago o
certina descendo a rua e uma voz que dizia: remédio para o teu avô, disse ele depressa.
Vem dançar. E ela ia, levada pela música, os Passa lá em casa a buscá-lo.
pés de ambos mal tocavam o chão, como se Continuei sem responder e fui-me em­
voassem, dançavam por montes e vales, na bora, sem passar por casa dele a buscar nada.
areia das dunas e na beira das ondas, dança­ Logo a seguir a mãe tornou a piorar e cor­
vam mais e mais sobre as ravinas escarpadas, tou novamente os pulsos. Perdeu mais sangue,
até que chegavam demasiado à beira e ela pu­ ficou muito mais pálida que das outras vezes
nha um pé em falso e caía no mar. e a Lourença, a Fernanda Candeias e o Carlos
Acordei e senti que o sonho era real. Lem­ Bordalo disseram ao meu pai que era melhor
brei-me de um retrato do Serafim no fundo do ela ir para o hospício, porque não podíamos
gavetão do roupeiro, no lugar onde havia um vigiá-la o tempo todo.
pedaço de tábua levantada. Eu tinha-o visto, O meu avô ficou apreensivo e começou a
muito tempo atrás, e tinha-me esquecido. Ou dar voltas em redor da casa, com a cabeça in­
isso também era sonho? clinada. Fazia impressão vê-lo caminhar: avan­
Fui ver e lá estava. Era um retrato muito çava com muito esforço e os braços, em lugar
pequenino, do tamanho de uma unha, e ele de balançarem, ficavam pendurados ao longo

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do corpo, como se não lhe pertencessem. ao longo da margem. A nossa era a última, a
Agora também nas pernas ele perdia a firmeza. alguma distância da correnteza das outras. Do
Parecia-lhe que o chão lhe fugia debaixo dos outro lado da aldeia, ainda um pedaço dis­
pés, como se as pernas fossem curtas de mais tante das primeiras construções, era o lugar
para o seu peso, ou se tivessem transformado onde ele morava. A primeira coisa que se via,
em borracha. descendo pelo olival, era o telhado vermelho
Sentou-se finalmente no banco, na soleira e, através da porta sempre aberta, o clarão da
da porta, como a minha mãe costumava fazer, forja.
e pareceu-me tão alheado e perdido como ela. Foi portanto o que vi primeiro, o fogo e o
Para o fazer voltar a si, comecei a falar. vulto dele passando adiante, de um lado para
Contei-lhe que o Serafim me tinha falado do o outro. Quando cheguei mais perto, ouvi o
remédio, mas que do Serafim só queríamos bater do martelo na bigorna, cada vez mais
distância porque ele não prestava, toda a gente forte. Falei-lhe da porta mas ele não ouviu, o
dizia. barulho abafava-me completamente a voz.
Mas o meu avô não estava de acordo. Pode Esperei um pouco, mas ele não se inter­
ser tudo isso que dizem, mas é também um rompia, descia os braços sobre o fogo e batia
bom homem, achou. O remédio tinha-lhe o ferro, sem medo de queimar-se. Estava des­
feito bem às dores e era urgente que eu fosse calço e tive a sensação de que ele poderia an­
dar, sem sentir dor, sobre carvões acesos.
buscar mais. Vai pelo olival, disse, escusas de
O ferro brilhava e era vermelho como o
atravessar a aldeia e de perder tempo a falar
fogo. Se se olhasse muito tempo ficava-se pre­
com este e mais aquele.
gado ao chão, encandeado.
Não lhe contei do retrato escondido no ga­
Finalmente ele viu-me. Olá, disse. Tirou o
vetão do roupeiro, porque isso me parecia ou­
avental de couro e, em tronco nu, saiu a porta
tra vez sonho. Embora fosse verdade.
do quintal, abriu a torneira e lavou as mãos,
Pus-me a caminho, pelo meio do olival e
os braços e a cara. Depois lavou os ombros e
dos pinheiros bravos, evitando o rio e as casas

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o tronco, deitando para cima chapadas de Quando o vi de manhã pareceu-me um
água. morto: estava branco como a cal (ultimamente
Já não trazia fuligem na pele quando se andava cada vez mais pálido) e tive que o am­
aproximou de mim, com uma toalha em volta parar para não cair. Olhei para a cruz no te­
do pescoço. lhado, recortada contra o céu, como se o es­
Vens por causa do teu avô. pigueiro fosse um jazigo, e tive medo da
Era uma afirmação, não uma pergunta. morte.
Não respondi e entrei pela porta atrás dele. Pa­ Então o avô disse: São espíritos que andam
rei junto do fogo, com vontade de estender as com ela. A tua mãe tem de saber o que que­
mãos e de tocar as chamas. Queria vê-lo ou­ rem. Tem de ir sozinha, de noite, ter com eles.
tra vez bater o ferro, lidar com o fogo como De contrário nunca a vão deixar em paz.
se domasse um animal. O que são espíritos? perguntei.
Mas ele não recomeçou o trabalho. Abriu São anjos, disse ele.
uma gaveta e retirou um embrulho em tudo Bons ou maus? perguntei ainda, porque ti­
igual ao outro, atado com uma guita da nha medo pela minha mãe.
mesma cor. Entrega à tua mãe, disse. É ur­ O avô abanou a cabeça, como se nada
gente. disso fizesse sentido. São anjos, repetiu.
Não entreguei à minha mãe, dei-o logo di­ E eu pensei que os anjos lhe batiam e ba­
rectamente ao meu avô. Mas tudo se passou tiam, lhe apertavam o corpo com tenazes e es­
como antes, o meu avô não o abriu e entre­ petavam os olhos com agulhas, anjos ou espí­
gou-lho a ela. A minha mãe meteu-o no bolso ritos, havia bons e maus, mas o avô coçou a
do avental muito depressa, desapareceu para cabeça e repetiu que eram apenas anjos e que
a minha mãe tinha de ir ter com eles. Quando
dentro da casa e gritou alegremente da cozi­
eles querem que se vá, a gente tem de ir, disse
nha: Já lhe levo o chá.
ele. De contrário acontece algum mal. Não se
Nessa noite o avô quis dormir no espI­
pode desobedecer aos anjos.
gueiro. Para rezar e pensar, disse.

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Mas eu não estava convencida e continua­ A minha mãe passou a sair de noite,
va a ter medo. E se ela se perdesse e não achasse quando mudava a lua. Dias certos, uma vez
o caminho? Se tropeçasse nas pedras, caísse nas em cada lua. No primeiro dia da mudança.
silvas, se se cruzasse com lobos, se escorregasse Não via nada em redor de si, quando vol­
do alto das ravinas? tava. Não existíamos nós, nem a casa, o poço,
Mas o meu avô abanava a cabeça. Ela es­ o cão, os coelhos, as galinhas. Não existia
taria segura, disse, porque os espíritos iriam nada. Sentava-se ao lado do avô na soleira da
com ela e a guiariam. Os anjos. porta e olhava o caminho. Mas não tornou a
Ando na catequese e vou à missa e por isso fugir nem a cortar os pulsos. Ao contrário do
também eu conheço os anjos. São como vento avô, parecia melhorar.
ou pássaros, como um sopro roçando na face. Mas o meu pai enfureceu-se e gritou que o
Trazem recados de Deus. avô era um porco velho e um porco sujo, e que
E há também os querubins. E os serafins, estava a comprar quem tratasse dele na doença
que têm seis asas, duas para cobrir a face, duas e nem se importava de fazer pouco do seu pró­
para cobrir os pés e duas para voar. Tenho a prio filho, porque ele bem sabia dos anjos e das
certeza de ter ouvido isso sobre os serafins. Se­ noites de lua, agarrou na pá do forno com
guram brasas nas mãos e não se queimam. tanta força que julguei que ele ia matar o meu
Antes de adormecer penso nos serafins. avô, ou a minha mãe, mas o meu avô deu um
Mas não consigo vê-los, tudo o que vejo é a grito tão forte que o meu pai parou de repente
cara do Serafim das Canas, ao fundo dos de­ e deixou cair a pá, encostou-se à parede e es­
graus da igreja, penteado com brilhantina e corregou para o chão como se fosse desmaiar.
com olhos que parecem rir e deitar lume. Durante muito tempo ficou sentado, com a ca­
Quando adormeço ele está sentado à mesa da beça entre os joelhos, depois bateu a porta e
cozinha. Joga as cartas com a minha mãe e ga­ saiu e só voltou passados vários dias.
nha sempre. Talvez seja por isso que ela co­ Quando ele se foi embora tornei a abrir a
meça a chorar. porta e fiquei a olhar o caminho. Era uma

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noite escura e não se via nenhuma estrela no
céu. sibilava como cobra, enovelava-se sobre si
Pensei se também ele iria ao encontro dos própria. As chamas dançavam, nunca mais lar­
anjos. Mas só se via a noite, em toda a volta. gando o que tocavam, enrolavam-se em volta,
Achei que para ele não haveria anjos no ca­ faziam corpo com o outro corpo, como se o
minho. devorassem. Os troncos grossos e rugosos iam
Fechei a porta e ouvi o meu avô dizer que, ficando escavados, finos por fim que nem ga­
se a minha mãe não fosse, a cada mudança de lhos ou píncaros de fruta. E depois nada, su­
lua, mudaria outra vez ela própria. Tornaria a miam-se no lume, voavam no ar.
ficar louca e morria. São horas de dormir, dizia finalmente o
meu avô cabeceando e acordando o meu pai,
Quando ia à noite soltar o cão habituei-me
que já tinha adormecido.
a ver a lua diminuir e crescer no céu, uma lua
O meu pai tirava da lareira a última ca­
partida que devagar se ia outra vez enchendo,
vaca, batia-a no chão para a apagar, deitava­
como água a subir num cântaro redondo. Ou­
-lhe água por cima. A lenha chiava, deitava
tras vezes olhava-a do postigo da cozinha,
fumo, a água dançava à superfície, feita em pe­
quando ela parecia pousada no parapeito,
quenas bolhas, desaparecia. A cavaca ficava ne­
como um pássaro.
gra e, à medida que ele a batia, ia-se desfa­
Quando a lua mudava, a minha mãe saía.
zendo em pedaços incandescentes de carvão.
Voltava de manhã, com a roupa cheirando a
Acesos por dentro, apesar da água. Porque o
fumo. Não a deixava ao relento, a arejar es­
fogo era mais forte.
tendida na corda, metia-a logo no armário.
Num domingo, na missa, o padre também
Durante muitos dias, quando se abria a porta,
falou dos anjos e do fogo:
sentia-se no ar aquele cheiro a fumo, resina,
Um rei mandava deitar três jovens numa
madeira queimada.
fornalha acesa, a chama subia e subia, saía para
Nas noites em que ela saía eu sentava-me
fora e abrasava os que estavam próximos, mas
no seu lugar a olhar o fogo. A lenha torcia-se,
o anjo do Senhor fazia soprar uma brisa fresca

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como o orvalho no meio da fornalha e o fogo Por vezes eu continuava a ler em voz aJta,
não os queimava e eles cantavam. saltando páginas e folheando ao acaso, mesmo
Naquela altura eu prestava mais atenção à depois de ele ter adormecido.
missa, porque ia fazer a primeira comunhão. Foi assim que encontrei a história de Mao­
O padre dizia que o dia da primeira comu­ mé.
nhão era o mais feliz da nossa vida. Quem era Maomé? perguntei no dia se­
O meu avô tinha piorado entretanto, tra­ guinte ao meu avô, mas ele não sabia.
zia as pernas cada vez mais cansadas, doía-lhe Na catequese, perguntei ao padre. Porquê
a cabeça, sentia formigueiro nas coxas, depois essa pergunta? disse ele franzindo a testa. Con­
começaram a dar-lhe grandes sacudidelas tei-lhe do almanaque, ele mandou-me levá-lo,
como se fossem ataques, e quando lhe davam sem falta, na vez seguinte. Não me esqueci e
não conseguia mexer-se, deixava-se ficar dias levei-lho, ele meteu-o no bolso, sem dizer pa­
inteiros na cama com as pernas muito enco­ lavra.
lhidas. Também a vista estava cada vez mais Demorou muito sem mo devolver. De
fraca, às vezes eu lia-lhe coisas do almanaque, cada vez eu esperava que no fim da catequese
ele gostava de ouvir, embora já não conse­ mo desse, e respondesse à pergunta, mas ele
guisse ver nem as figuras. mandava-nos embora e não dizia nada. Hesi­
Eu abria o livro e lia o que calhava: Leitão tei algum tempo ainda, por fim pedi-lho, já ti­
de Janeiro, vai com a mãe ao fumeiro. Temporã nha passado mais de um mês. Ele respondeu
é a castanha que por Março arreganha. O sol qualquer coisa entre dentes, desabrido. De­
nasce às 7h e 55m e o ocaso é às 17h26m. Em volveu-mo por fim, quando eu já desesperava,
tempo frio e seco deve-se proceder à trasfega e se tinha passado outro mês.
do vinho. Em cama quente plantar o pepino, Agarrei no almanaque e corri para casa.
o melão, o pimento e a abóbora. Pouco me importava agora quem era Maomé.
Ele assentia com um mover de pálpebras, Bastava-me a sua história, bela como o toque
ou abanava um pouco a cabeça e sorria. de um sino.

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Folheei o almanaque à procura, para trás- �
como uma palavra ouvida de repente. E depois
para a frente, várias vezes. Até dar conta de
nada ficava igual. Uma palavra que era como
que as páginas estavam arrancadas.
um relâmpago e rasgava uma janela no mundo.
Chorei de raiva, atirei o almanaque à pa­
Quando sentia vir a revelação ele escondia
rede como se o atirasse à cara do ladrão - era
a face, a palavra abatia-o e ele suava em gotas
o MEU almanaque, ele tinha roubado o que
grossas, como se um peso enorme o esmagasse.
não lhe pertencia. Aos ladrões cab ia o fogo
Por vezes a palavra chegava como o ressoar
do inferno, enfureci-me. Fosse padre ou
de um sino. Depois desaparecia, mas ele tinha
não.
compreendido. Outras vezes o anjo tomava a
No domingo seguinte ele falou na homilia
forma de um homem, e dirigia-se a ele com
do perigo das leituras não vigiadas. Almana­
palavras.
ques e quejandos, na sua aparência inocente,
Maomé dormia quando o arcanjo Gabriel
estavam cheios de superstições e crendices, e
veio procurá-lo e o conduziu, rápido como um
podiam até aliciar para falsas religiões. Deve­
relâmpago, ao primeiro céu e a todos os outros
riam só ler-se jornais e folhetos visados pela
céus. Maomé elevou-se tão alto que ouvia o
autoridade eclesiástica, porque esses é que eram
ranger das asas dos anjos em volta da cabeça.
amigos do povo e tementes a Deus.
Percorreu os céus em quinhentos anos. Um céu
Chorei outra vez de raiva no meu quarto, era de aço, outro céu era de ouro, outro de pe­
com o almanaque na mão. Pouco me impor­ dras preciosas. E lá dentro havia anjos de fogo.
tava quem era Maomé, mas a sua história ti­ E ele viu muitas coisas, e mesmo a face de
nha-me pertencido. Continuava a pertencer­ Deus, até ao momento em que o anjo o trouxe
-me, apesar de o padre a ter rqubado. Porque de volta à terra. Atravessou num relâmpago
eu a ainda a sabia, verifiquei procurando na todos os mundos, até ao local onde o anjo o
memória os pormenores: procurara.
A revelação era uma coisa que caía sobre Diz-se que ao partir para os céus derrubou
ele, dizia Maomé. Uma coisa que o tocava, um copo de água. Quando a água se entornou

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e o copo caiu no chão, já ele tinha voltado da
sua viagem celeste. de ouro, outro de pedras preciosas. Em volta
eu ouvia um ruído quase ensurdecedor de ran­
Sabia-a de cor, verifiquei com júbilo, re­
ger de asas, mas era ao mesmo tempo uma
petindo-a vezes sem conta mentalmente, o pa­
música suave como um zumbir de abelhas.
dre não podia nada contra mim. A história ia
Havia anjos azuis e vermelhos que espelhavam
ficar comigo, mesmo que ele tivesse arrancado
reflexos como as chamas, outros tinham pés de
as páginas. A história do instante em que a
cabra e brilhavam como bronze derretido, ti­
vida de alguém se transformava.
nham faces animais e humanas, também face
Pensava nela dia e noite, porque também
de homem e mãos de homem. Eu entendia a
eu ia passar por uma revelação, agora que o dia
sua língua sem precisar de palavras, um olhar
mais feliz da minha vida estava perto. Deus ia
bastava. Porque mil coisas se transmitiam num
tocar no meu corpo, e mudar a minha vida
segundo, quando o meu olhar e o do anjo se
para sempre.
cruzavam.
Distraía-me na missa, não ouvia o padre.
Um anjo oferecia-me o seu corpo como es­
Ele falava com voz humana, mas os anjos fa­
cada, por ele eu subia até Deus. Outro anjo
lavam com vozes que soavam como o toque de
segurava uma brasa nas mãos, que tinha reti­
um sIno.
rado com pinças do altar. Com ela tocava-me
O sol entrava pelos vitrais da igreja, lan­
na boca.
çava reflexos azuis e vermelhos no chão. O
E então o meu amado estaria em mim, e
fogo das velas tremia nos altares, a música do
eu nele. A hóstia tocaria a minha boca como
órgão subia até aos candelabros do tecto, em
um fogo, abrasando-a sem doer. Enquanto a
redor o povo repetia em coro: Ó anjos cantai
face de Deus se revelava.
comigo, ó anjos louvai sem fim.
Mas o dia mais feliz da minha vida chegou
Os anjos eram súbitos e poderosos como
e passou e nada aconteceu.
labaredas, viriam até mim como o vento e nas A hóstia era uma coisa leve como pó, que
suas asas eu voaria, de céu em céu. Um céu era me ficou colada à língua e quase nem senti ao

42 43

n
engolir. Rezei para que Deus se revelasse e eu nhum anjo me esperava nos degraus da porta,
visse a sua luz, mas não havia luz nem revela­ nem nos degraus do altar.
ção, só a chama trémula da lamparina, igual a Vamos para a mesa, disse a minha mãe
sempre, boiando sobre o azeite, diante do sa­ pondo-me na mão uma travessa cheia.
erário. O coro do povo entoava ó anjos cantai Odiei-a porque ela parecia feliz, enquanto
comigo, mas as vozes desafinavam, arrastadas, para mim o dia mais feliz já passara e fora
e uma nota na música do órgão, a que fazia igual aos outros, se felicidade era isso eu não
mais falta, no som mais agudo, emudecera. a queria, o melhor era a minha vida acabar na­
Devia ter essa corda partida. quele instante, pensei em desespero, se o que
No fim da missa houve um almoço de tinha a oferecer-me era nada.
festa e toda a gente estava alegre, mas eu só de­ Então os anjos roçaram a minha face e
sejava que tudo acabasse depressa para poder abrasaram-na de fogo. Os anjos maus desce­
ir-me embora. ram sobre mim como relâmpagos, estende­
No domingo seguinte nem sequer fui à ram-me o braço na direcção do roupeiro, abri­
missa, fingi-me doente e fiquei na cama, às es­ ram-me a boca e encheram-na de palavras
curas. Como a minha mãe fazia dantes, pen­ como carvões acesos:
sei. Mas agora esse tempo parecia muito longe, Ela tem lá dentro o retrato do Serafim,
porque ela deixara de estar doente. Voltara a vestido de soldado, há um retrato escondido
ver-nos e a sorrir-nos, tinha paciência com no gavetão, no lugar onde a madeira do forro
tudo, mesmo com o meu avô, que deixara de está levantada.
andar. Empurrava-lhe a cadeira de rodas para Mas os anjos bons roçaram a minha outra
ao pé da janela, metia-lhe a comida na boca e face e não cheguei a dizer as palavras. Só dei­
nunca parecia enervada ou cansada. xei cair a travessa.
Aos domingos voltava da igreja, onde o Se­ Não me lembro exactamente do que acon­
rafim esperava à porta, para a ver à saída. Mas teceu depois. Tenho ideia de pegar no balde,
eu não voltaria à Igreja, decidi. Porque ne- no pano do chão, de água vertida para limpar

44 45

b
a sujidade, de cacos de louça espalhados, da
voz enfurecida do meu pai dizendo desperdí­
cio e desastrada e da voz da minha mãe res­
pondendo que não era o fim do mundo e que
havia mais comida, além da que tinha posto
na travessa.
Não me lembro de ouvir mais do que isso,
talvez tivesse ficado de algum modo surda.
Mas lembro-me de olhar e de ver tudo muito
claro, como se uma luz mais forte se acen­ Obras de Teolinda Gersão

desse.
o SILÊNCIO (Romance), 1981, 4.a edição, 1995
Éramos uma família, vi. O meu pai, a mi­
Prémio de Ficção do Pen Club, 1981
nha mãe, o meu avô e eu. O que quer que (tradução alemã)
acontecesse, a minha mãe voltaria sempre, não PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO
(Romance), 1982, 4.a edição, 1996
punha um pé em falso ao andar nem caía do
(tradução alemã e holandesa)
alto das ravinas. Nem a levava o vento. Por­ HISTÓRIA DO HOMEM NA GAIOLA E DO
que estava ligada a nós. PÁSSARO ENCARNADO (literatura infantil), 1982
Olhei para ela outra vez: Estava tão bonita OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES (Diário
Ficcional), 1984, 2.a edição, 1997
como no tempo do retrato, antes de eu nas­ O CAVALO DE SOL (Romance), 1989
cer. E eu estava contente por ter nascido. Prémio de Ficção do Pen Club, 1989
(tradução francesa)
A CASA DA CABEÇA DE CAVALO (Romance),
1995, 2.a edição, 1996
Grande Prémio de Romance e Novela da Associação
Portuguesa de Escritores, 1995
A ÁRVORE DAS PALAVRAS (Romance), 1997
OS TECLADOS (Narrativa), 1999
OS ANJOS (Narrativa), 2000

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