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Ficha Técnica
Título: Anatomia de Uma Revolução – A Reforma Agrária em Portugal 1974-1976
Autor: António Barreto
Capa: Rui Garrido
Fotografia da capa: © Direitos reservados
Revisão: Rita Almeida Simões
ISBN: 9789722063111
Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 2017, António Barreto e Publicações Dom Quixote
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.dquixote.leya.com www.leya.pt

Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de 1990.


ANTÓNIO BARRETO

ANATOMIA DE UMA
REVOLUÇÃO
A REFORMA AGRÁRIA EM PORTUGAL
1974-1976
PREFÁCIO

por Maria de Fátima Bonifácio

Este livro – Anatomia de Uma Revolução. A reforma


agrária em Portugal, 1974-1976 – é certamente um dos
livros mais importantes que se escreveram em Portugal
depois do 25 de Abril de 1974. Publicado em 1987, logo na
altura fez-se em torno dele um silêncio total. Ninguém
comentou e os poucos que o terão lido não se
pronunciaram publicamente. O livro, entretanto, levou
sumiço: nem por encomenda se encontra nas livrarias, e a
editora, Publicações Europa-América, faliu ou desapareceu
há meia dúzia de anos, após uma lenta agonia
desencadeada em 2004 pela morte do seu fundador e
animador, Lyon de Castro.
Em suma: o livro, misteriosamente, eclipsou-se quase
logo que apareceu e muito pouca gente terá dado por ele.
Não é fácil explicar o que terá motivado este fenómeno
bizarro. António Barreto conduz a narrativa desde Abril de
1974 até Julho de 1976; termina-a, portanto, antes de ser
nomeado ministro da Agricultura e Pescas em 5 de
Novembro de 1976, no I Governo Constitucional presidido
por Mário Soares, e também muito antes de elaborar a
para sempre chamada “Lei Barreto”, aprovada pelo
Parlamento na madrugada de 22 de Julho de 1977, da qual
se comemora este ano o quadragésimo aniversário. O
livro, que agora se reedita, não é um relatório, não é um
ensaio, não é uma justificação pessoal, não é
autobiográfico, não é de memórias – é um estudo muito
sólido resultante de um longo trabalho de investigação
muito sério, que cumpre todas as regras do cânone
académico: a pertinência do tema é incontestável, as
alegações apoiam-se em fontes devidamente
referenciadas em notas de pé de página, e no final, além
da habitual bibliografia, deparamos com uma longa e
detalhada explicação “sobre as fontes e os métodos”
utilizados na pesquisa – desde documentação arquivística
até entrevistas e inquéritos. Com efeito, a Anatomia de
Uma Revolução constitui, com as necessárias adaptações e
devidamente condensada, a versão portuguesa da tese de
doutoramento defendida por António Barreto em 1984 na
Faculdade de Ciências Económicas e Sociais da
Universidade de Genebra1.
O livro traz a marca inconfundível do sociólogo, com a
particularidade, porém, do recurso ao género narrativo,
que não é usual na disciplina. É que, sem dispensar a
“análise dos antecedentes imediatos assim como das
estruturas sociais e agrárias” pré-existentes, o estudo
centra-se principalmente no processo revolucionário que
se desenrolou na ZIRA2 entre 1974, ano da revolução de
Abril que abriu as portas à “legitimidade revolucionária”, e
1976, ano em que o regime democrático se consolidou e
abriu as portas ao triunfo da legitimidade democrática e do
Estado de Direito. No País inteiro, mas sobretudo no
Alentejo, aqueles dois anos foram dos mais convulsos.
Acontecimentos, mudanças e ocorrências inesperadas,
sucedendo-se a ritmo vertiginoso, conjugaram-se para
gerar uma espécie de movimento permanente e acção
constante, em que sobressaíram múltiplos protagonistas,
individuais e colectivos, de que muitos apenas se
salientaram fugazmente como figurantes transitórios, e
muitos outros, decerto mais discretos, actuaram em
permanência como vanguarda impulsionadora e condutora
do processo revolucionário alentejano. Um processo
revolucionário, por definição, não é algo de estático e
abstracto. É o produto da acção concreta de homens
concretos, que se traduz em factos e acontecimentos
concretos. Ora a narrativa é a forma literária privilegiada
para abordar este tipo de objecto: “um processo social e
político […] muito rico em acontecimentos e mudanças”.
Por outras palavras: António Barreto narra e portanto
interpreta uma história que era, na altura em que a
escreveu, “uma espécie de história contemporânea […] um
pouco de história do presente”. Por isso nos deparamos
com um texto acessível e fluente, expurgado do jargão
académico desnecessário, que se lê agradavelmente.
A Anatomia de Uma Revolução conta-nos como o Partido
Comunista se apoderou do Alentejo. A revolução
alentejana é um fruto da revolução de Abril, e o território
alentejano abeirou-se do estatuto de um estado dentro do
Estado. Esta é uma das teses do livro. Outra é de que a
massa do proletariado alentejano, chamada sazonalmente
a semear ou ceifar nos latifúndios e nas herdades, nunca
tinha estado interessada na posse ou propriedade da terra;
a suma e única prioridade desses assalariados miseráveis
consistia na segurança do emprego e portanto do salário.
O slogan sempre repetido – «a terra a quem a trabalha» –
não fazia para eles grande sentido. A solução encontrada
pelos sindicatos comunistas foi a aplicação do modelo
colectivista das Unidades Colectivas de Produção (UCP),
uma réplica fiel do kolkhoz soviético. Graças ao crédito
abundantemente concedido pelo Estado, as UCP garantiam
as duas coisas – emprego permanente e salário todo o ano.
Este é apenas um dos aspectos sob os quais a cooperação
do Estado foi vital; sem ela, a revolução alentejana não
teria sido possível. E o Estado cooperou porque tanto
centralmente como localmente, todas as instâncias de
decisão tinham sido rapidamente ocupadas por militantes
comunistas. Antes de desencadear a conquista da terra,
lutou-se e conquistou-se o poder de Estado; consumou-se
a “ocupação institucional”. Dominado o aparelho de
Estado, não foi difícil reunir as peças que comporiam o
dispositivo revolucionário: “a força, o dinheiro, a
legalidade, a hierarquia administrativa, os meios de
comunicação e a mobilidade”3.
Durante os governos de Vasco Gonçalves, não só as
ocupações foram legalizadas, como foram legisladas as
expropriações e as nacionalizações. Afirma Barreto: “Tudo
foi feito na prática, e quase tudo na lei, com vista a uma
expropriação geral da terra, ou da sua maior parte.”4 Os
responsáveis máximos não se coibiram de incentivar a
apropriação de terras privadas. “Os principais actos
revolucionários nascem no governo, nas assembleias
militares e nos quartéis.” Algumas leis de 1975 sobre a
reforma agrária assemelham-se a “panfletos políticos” em
que a população e os trabalhadores alentejanos são
exortados a dar livre curso às suas iniciativas. Não menos
importante, os revolucionários estavam seguros do apoio
político do MFA bem como da protecção militar, no terreno,
das operações de ocupação. Por vezes verificou-se até
muito mais do que protecção: o quartel de Vendas Novas,
cujos soldados ostentavam nas boinas a efígie de Che
Guevara, chegou a lançar no terreno “brigadas de
ocupação” ou “brigadas da reforma agrária”.
Outra das teses do livro é a de que, ao contrário do mito
que se espalhou, não foram ocupados latifúndios incultos
ou terras abandonadas à natureza selvagem. Estas não
tiveram procura; dariam muito trabalho a arrotear e a
cultivar. O ministro da Agricultura de Vasco Gonçalves,
Oliveira Baptista (26.3.75 a 19.9.75), distribuiu conselhos e
indicou critérios: “«Deve-se começar pelas melhores
terras»”; deve-se liquidar “«o poder social e económico
dos grandes proprietários»”; deve-se ficar com tudo: “«as
árvores e meios de produção, todo o equipamento que lá
estiver»”; deve-se “«acabar com o latifúndio e com o
pequeno agricultor. Não podemos admitir que a reforma
agrária faça novos pequenos patrões»”5. O regime agrário
do Alentejo, a extrema polarização social, a ancestral
miséria e a terrível insegurança dos assalariados rurais
criaram, muito compreensivelmente, as condições para
uma total receptividade ao tipo de exortações acima
exemplificadas. O Estado, o MFA, o Partido Comunista e os
sindicatos exerceram sem dúvida um papel determinante.
Mas este facto não invalida a genuinidade da mobilização
e combatividade dos milhares de trabalhadores que em
dois anos se apropriaram de mais de um milhão de
hectares de terras privadas, entre herdades capitalistas e
latifúndios, e organizaram mais de 600 UCP.
Para esta massa de assalariados, trabalhar a terra não
era muito diferente de assentar tijolos ou preparar betão
armado. Não assim para o camponês, o pequeno ou médio
agricultor. Para este, o trabalho da terra possui uma
específica dimensão religiosa; liga entre si o homem, a
terra, a natureza, os animais, a família, os vizinhos, a
comunidade, e para os crentes liga até o homem com
Deus. Ao voltar-se contra camponeses, pequenos e médios
agricultores, a revolução alentejana alienou apoios, forjou
uma barreira de inimigos e cavou o seu próprio isolamento
social. Mais: fez tocar o alarme nas regiões do Centro e
Norte do País, cujos camponeses e agricultores,
proprietários ou rendeiros geralmente modestos, se
sentiram directamente ameaçados e reagiram com
violência, não lhes tendo faltado a solidariedade das
populações urbanas. O Alentejo isolou-se do restante
conjunto nacional.
Tendo-se desenvolvido com considerável autonomia, nem
por isso a revolução alentejana era impermeável aos
efeitos do refluxo da revolução mais geral que foi a de Abril
de 1974. Este refluxo, provocado pelo sentimento, cada
vez mais generalizado no País, de que as liberdades
públicas e individuais estavam ameaçadas, conduziu à
“meia contra-revolução” de 25 de Novembro de 1975, que
teve o apoio conjugado dos partidos políticos
democráticos, dos militares moderados, da pequena
burguesia, das classes médias e até de um sector
maioritário do mundo do trabalho. A relação de forças
política alterou-se por completo. Os partidos democráticos
recuperaram a iniciativa e a balança do poder tornou-se-
lhes favorável. Por outro lado, as Forças Armadas
venceram o MFA. Dois meses após o 25 de Novembro, os
militares, regressados aos quartéis e reintegrados na
hierarquia de comando de um exército regular,
desapareceram da paisagem alentejana. Sem o Estado,
sem o dinheiro e sem a força; “minoritária e sem apoio
externo”, a reforma agrária no Alentejo refluiu e depois
estancou. Mas deixou mais de um milhão de hectares de
terras colectivizadas, e uma classe social destruída – a dos
grandes proprietários rurais alentejanos. “Em paralelo com
a descolonização, foi certamente a mais profunda
mudança provocada pelo processo revolucionário dos anos
1974 a 1976.”6
Temos de voltar ao silêncio que se fez sobre o livro de
António Barreto aquando da sua publicação em 1987.
Muito possivelmente, o livro desagradou tanto à esquerda
como à direita. Sobre as razões de queixa do Partido
Comunista, de tão óbvias, não vale a pena falar. Já a
reacção dos socialistas, que ainda hoje não exaltam a “Lei
Barreto” como património seu, só se pode compreender à
luz da própria natureza do PS e também das circunstâncias
que rodearam a saída de António Barreto do I Governo
Constitucional, liderado por Mário Soares. Soares, falhado o
diálogo com o PSD, precisava dos votos dos comunistas no
Parlamento, e em troca dos votos o PC exigiu a demissão
de Barreto. Ao prescindir dos seus serviços, Soares
desvalorizou-os automaticamente, e com isso demarcou-se
implicitamente da “Lei Barreto”, a nova Lei da Reforma
Agrária aprovada no Parlamento em 22 de Julho de 1977.
Mas terá pesado tanto ou mais a natureza peculiar do
Partido Socialista: um partido democrático, defensor da
liberdade, mas dentro do qual foram sempre vivendo
alojadas várias correntes radicais, mais ou menos
influentes consoante os tempos, com grande afinidade
ideológica com a extrema-esquerda. Por último, talvez se
deva levar em conta o complexo de esquerda de que o
Partido Socialista, com as suas várias costelas bem
burguesas, sempre padeceu. Ora o socialismo brilhou pela
ausência do Alentejo pelo menos até ao 25 de Novembro;
e o PC teve a actuação que se sabe. A esquerda em bloco
não sai muito bem do retrato que dela se pode extrair da
Anatomia de Uma Revolução.
E a direita também não. Por um lado, não há bons
argumentos com que se pudesse justificar e defender os
direitos dos latifundiários. E no clima de exaltação
anticapitalista que se instalara em Portugal, seria muito
difícil ou até impossível explicar e fazer acatar a
necessidade de uma destrinça entre grandes proprietários
absentistas e empresários agrícolas donos de herdades
bem regadas, bem equipadas e bem exploradas, que
também os havia e não eram poucos. Por outro lado, os
próprios visados largaram barcos e redes, renderam-se
sem qualquer resistência. Mal começou a revolução no
Alentejo, a polícia e a GNR, os seus antigos protectores
naturais, desapareceram dos campos, substituídos por um
MFA em processo de contínua radicalização. Porém, houve
resistência, e resistência física com armas na mão, mas
por parte de pequenos agricultores, que “queriam
conservar o que tinham feito com as suas mãos e que era
a sua única maneira de viver”7.
A Anatomia de Uma Revolução conta uma história que é
de nós todos, dos que estiveram contra e dos que
estiveram a favor da deriva revolucionária desencadeada
pelo 25 de Abril; dos que participaram e dos que
observaram. É tempo de f icarmos a saber mais
exactamente como é que tudo se passou no Alentejo de
1974 a 1976.
21 de Março de 2017

1 Título original: «L’État et la société civile au Portugal: La réforme agraire en


Alentejo, 1974-76».

2 Zona de Intervenção da Reforma Agrária, criada legalmente em Abril de 1976.

3 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987.

4 Maria de Fátima Bonifácio, António Barreto. Política e Pensamento, Alfragide,


2016, p. 248.

5 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987.

6 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987, p. 332.

7 António Barreto, Anatomia de Uma Revolução, Mem Martins, 1987, p. 315.


APRESENTAÇÃO

Devo à Maria de Fátima Bonifácio, a quem dedico este


livro, o estímulo decisivo para promover a sua reedição.
Outras pessoas me encorajaram também, em especial a
Maria Filomena Mónica e o Rui Ramos. Mas foi a Fátima que
tomou a iniciativa, deu os passos necessários, me
convenceu, falou com o editor e aceitou fazer o prefácio.
Estou-lhe muito grato. Como também agradeço ao editor,
Duarte Bárbara, o cuidado e a diligência.
Este livro conta uma história que se passou há mais de
40 anos. Entre 1975 e 1976, o essencial do Alentejo
agrário produtivo mudou de mãos. Mais de um milhão de
hectares de herdades e explorações agrícolas foram
ocupados pelos trabalhadores organizados em sindicatos e
unidades colectivas de produção. Tudo se passou sob a
orientação do Partido Comunista Português, com o apoio
das unidades militares da região, do governo, dos
funcionários do Ministério da Agricultura e de outros
grupos políticos de menor importância. Foi um processo
revolucionário rápido que usou de intimidação e terror,
mas não, graças à presença das forças armadas, de
violência física.
A primeira edição da Anatomia, de 1987, foi
integralmente mantida. Apenas se fez uma revisão formal.
Os acontecimentos aqui relatados decorrem de Abril de
1974, início da revolução, a meados de 1976, ano em que
o país se dotou de uma Constituição, de um Chefe de
Estado eleito, de um Parlamento democrático e de um
Governo constitucional. A legitimidade e a legalidade
democrática passaram a prevalecer, assim derrotando,
sem violência, a revolução que alguns pretendiam
prosseguir.
Hoje, nada sobra desta reforma agrária que só
sobreviveria em contexto político comunista e autoritário.
Mas talvez aquela tenha contribuído para a criação de uma
sociedade mais igualitária e socialmente mais equilibrada.
Todos, proprietários, lavradores e trabalhadores terão
percebido melhor o que é a dignidade humana e o que são
os direitos dos cidadãos.
António Barreto
Primeira Parte

NAS VÉSPERAS DA REVOLUÇÃO


CAPÍTULO I

A SOCIEDADE, O REGIME POLÍTICO E A


ECONOMIA

Velha nação europeia, Portugal ilustrou-se, durante os


séculos do Renascimento, através das descobertas
marítimas, da colonização de vastos territórios
ultramarinos e da expansão do comércio. Tendo há muito
cessado de pesar na balança da Europa, o Portugal
contemporâneo conheceu com grande atraso a revolução
industrial, a inovação tecnológica e o desenvolvimento do
capitalismo. O antigo regime demorou a chegar ao fim,
mesmo se os seus aspectos essenciais tinham quase
desaparecido nos finais do século XIX8.
A agricultura de subsistência e a sociedade rural baseada
em grande parte no autoconsumo mantiveram-se vivas até
ao século XX. No princípio dos anos 50, a população
agrícola atingia ainda os 52% e eram raras as indústrias
modernas. O País é pobre em matérias-primas, faltando
em particular o ferro, o carvão e o petróleo. Mesmo
indústrias tradicionais como os têxteis, o vidro e o
mobiliário cresceram penosamente. Os recursos coloniais
foram certamente úteis, indispensáveis até, para esta
economia pobre e frágil: primeiro o milho, o feijão, o café,
o açúcar, o algodão, o sisal, e, mais tarde, o ferro, os
diamantes e o petróleo. Graças aos mecanismos de
protecção, as colónias constituíram também o mercado
inevitável para alguns produtos alimentares e industriais:
vinho, têxteis e depois máquinas, ferramentas, adubos e
outros.
Mau grado o seu carácter dependente e subalterno e
apesar do seu atraso em relação aos outros países
europeus, o capitalismo impõe-se em Portugal, desde os
princípios do século XX, como a mais dinâmica forma de
produção. Na mesma altura e até aos anos 30, o País vive
um longo período de instabilidade política e social9. Os
conflitos entre grupos dirigentes, facções ideológicas e
interesses económicos eram permanentes. Sem uma
hegemonia social, a conciliação era difícil. O antagonismo
entre a Igreja e o mundo laico, em particular a Maçonaria,
manteve-se no proscénio da vida política durante todo o
século XIX e boa parte do século XX. Paralelamente, as
rivalidades entre absolutistas e liberais e entre a capital e
a província perpetuaram-se tenazmente, mudando embora
de feição com os tempos. Comércio, indústria e agricultura
tinham mais conflitos do que afinidades. Poucos grupos
económicos, ou apenas alguns grandes empresários,
tinham interesses simultaneamente na finança, na
indústria, no comércio e, eventualmente, na propriedade
fundiária. Burguesias e grupos económicos eram mais
rivais do que solidários.
Em Lisboa e no Porto, mas sobretudo na capital, tinha-se
desenvolvido uma classe média de importância relativa,
composta por profissões liberais, comerciantes,
funcionários de Estado e descendentes de proprietários
rurais. Desempenhava papel político importante, apesar de
não possuir grandes recursos de capital ou de saber
técnico. Sendo embora numericamente reduzida, o seu
peso na vida pública era razoável, quanto mais não fosse
pela agitação e pela perturbação que gerava. Entre os
seus representantes, oficiais do exército e da marinha,
intelectuais, jornalistas e políticos mais ou menos
profissionais foram os veículos das ideias republicanas que
vencem durante a rápida revolução de 1910, para o que
contarão esporadicamente com o apoio de alguns
sindicatos e outras associações de classe dos
trabalhadores industriais da capital. A implantação da
República não trouxe estabilidade política. Certas lutas
sociais, em Lisboa e no Alentejo, desenvolver-se-ão desde
então. Conflitos políticos, por vezes armados e sangrentos,
prosseguirão até 1926. Muitos destes ocorrerão sob o
signo da oposição entre monárquicos e republicanos.
Todavia, já não se trata de uma verdadeira questão de
regime, ou é-o cada vez menos: o que está em causa é a
apropriação do aparelho de Estado, independentemente da
forma do regime.
Uma parte importante das receitas de Estado provinha
de contratos e empréstimos externos e de arranjos
diversos estabelecidos com banqueiros, industriais e
comerciantes estrangeiros. O acesso aos postos de
comando do Estado era o meio mais seguro de obter
oportunidades de negócios, fontes de rendimento e
empregos. Por via do proteccionismo ou da importação, os
negócios dependiam estreitamente do poder político e da
decisão administrativa. Por outro lado, num país onde o
mercado e o nível de vida das populações eram muito
reduzidos, as encomendas de Estado (obras públicas,
fornecimentos militares, equipamentos, etc.) eram
indispensáveis para a sobrevivência de muitas empresas.
Finalmente, numa economia onde a indústria e os serviços
cresciam muito lentamente, os empregos de Estado eram
bens raros e desejados: meios de influência, eram também
objecto de lutas políticas.
A luta entre patrões e operários teve diversos episódios e
algumas fortes tensões, mas nunca foi de real âmbito
nacional. Era geralmente limitada a certos sectores,
regiões, empresas ou localidades. Em certo sentido, as
lutas partidárias e políticas também não eram
verdadeiramente nacionais nem mobilizavam largas
camadas da população da província. Tinham todavia um
carácter imediatamente político e nelas participavam as
instituições, a Igreja, as forças armadas, partidos, clubes e
funcionários. Os operários de Lisboa agitaram-se
frequentemente, chegando a decretar a greve geral em
1912, enquanto os trabalhadores rurais do Alentejo e do
Ribatejo se empenharam em lutas enérgicas em 1911 e
1912. Com estas excepções, a maior parte das lutas
sociais eram pouco mais do que desordens ou «casos de
polícia», eventualmente uma ou outra revolta localizada. O
desemprego era significativo, as reservas de força de
trabalho abundantes e a emigração permanente: nesta
situação, a força do movimento operário era reduzida,
tanto mais que a ele não estavam ligados os principais
partidos políticos.
Era grande a clivagem entre, por um lado, as regiões de
Lisboa e do Porto e, por outro, o resto do País. A política e a
economia, as decisões e os rendimentos, o emprego e os
equipamentos, concentravam-se nas duas grandes
cidades. A industrialização reforçou este desequilíbrio,
mesmo quando assentou arraiais em pequenas vilas de
província, geralmente a poucos quilómetros das duas
cidades: Almada, Barreiro, Setúbal, Vila da Feira, Braga,
Guimarães ou São João da Madeira. A história do poder
central e do comércio marítimo, assim como a pobreza de
matérias-primas, estão na origem deste forte desequilíbrio
regional, agravado pela civilização industrial e pelo Estado
moderno.
No princípio da República, em 1910, Lisboa cresce de
modo acelerado: a capital acolhe já 70% da população
urbana e as suas taxas de crescimento são duas vezes as
do resto do País. A agricultura ocupa ainda mais de 60% da
população activa, enquanto a indústria apenas emprega
21%. A concentração de Lisboa tem ainda outros valores:
62% dos Lisboetas sabiam ler e escrever, ao passo que no
conjunto do País o analfabetismo atinge 75%10.
Apesar do crescimento acelerado de Lisboa, o
desenvolvimento económico e industrial de Portugal está
longe do dos países europeus. No princípio do século XX, o
atraso em relação à média europeia é considerável.
Indicadores do desenvolvimento económico, 1910
Indicadores do desenvolvimento económico, 1910 11

  Portugal Europa

Produto nacional bruto, por habitante (dólares de 1960) 290 499

População residente em cidades com mais de 5000


17% 36%
habitantes

Caminhos-de-ferro: quilómetros de via construída por


0,033 0,104
quilómetro quadrado

Consumo de ferro: quilos por habitante 11,1 80,0

Consumo de carvão: quilos por habitante 200 1509

Indústria têxtil: número de fusos de algodão por 1000


80,6 237
habitantes

A produção industrial limitava-se a algumas empresas de


média dimensão instaladas nas regiões de Lisboa e do
Porto. Além dessas, contavam-se por centenas, ou alguns
milhares, as pequenas fábricas, fabriquetas e pequenos
ateliers que, também nas duas cidades e nas regiões
vizinhas, empregavam em geral menos de cinco operários.
A burguesia industrial e financeira não era rica, nem
importante em número. A parte essencial da vida
económica, sobretudo os seus sectores mais modernos,
girava à volta do Estado: financiamento dos orçamentos
por via dos empréstimos internos, empréstimos
internacionais, importações e respectivas autorizações,
contratos de fornecimento ao exército, obras públicas,
tráfego colonial, caminhos-de-ferro e mesmo empregos. Se
é certo que a liberdade de comércio levou gradualmente a
melhor desde os anos 50 do século XIX, também é verdade
que um certo proteccionismo esteve sempre em vigor. O
comércio livre manteve-se razoavelmente controlado,
submetido a autorizações, às influências políticas e às
clientelas, condicionado pelas encomendas de Estado e
pela disponibilidade de moeda e de crédito.
A apropriação do Estado pelos republicanos, depois de
duas décadas de crises políticas e de mal-estar económico,
não resolveu nada: os conflitos prosseguiram e agravaram-
se. Durante 16 anos, até 1926, 46 governos tomaram
posse, alguns dos quais não ficaram em funções mais do
que poucos dias. Sem hegemonia social nem direcção
política, faltava a autoridade. As forças armadas estavam
divididas, envolvidas frequentemente em lutas partidárias,
mas agindo também com a sua própria autonomia política.
Os militares intervieram múltiplas vezes na vida política:
golpes, intentonas e levantamentos sucediam-se.
O mundo rural vivia relativamente à margem destas
lutas. Mesmo se o capitalismo estava presente um pouco
por todo o lado, sobretudo nas regiões vinícolas e
cerealíferas, a verdade é que o autoconsumo e a
subsistência predominavam no Norte e no Centro, quer
dizer, em três quartos do País. No Sul, no Alentejo e no
Ribatejo, a situação é diferente. A grande propriedade
domina, aí se desenvolveram as principais empresas de
capitalismo agrário, a produção é geralmente
comercializada e são numerosos os assalariados agrícolas.
Os proprietários fundiários do Sul pertencem, uns, a
antigas aristocracias; outros, em maioria, são de origem
recente, meados do século XIX. Em conjunto, representam
um poder certo, constituem um real grupo de pressão.
Com fortuna e alguma instrução, próximos de Lisboa e dos
centros de decisão, têm entrada fácil nos corredores do
poder. Com as suas próprias organizações, relativamente
mais fortes do que as de outras regiões, têm capacidade
para influenciar as decisões e os governos, o que não
deixarão de fazer cada vez que os seus interesses o
exigem.
O trigo é uma cultura nacional. O seu mercado, assim
como o da farinha e do pão, está mais ou menos
organizado em função do consumidor citadino. Onde falta,
crescem tensões, desordens e revoltas. Nas regiões onde
subsistem o milho e o centeio, as instabilidades do trigo
não terão grandes consequências. Mas a civilização do
trigo e do pão urbano, «o pão branco», vai penetrando por
todo o lado, vilas e aldeias. Quando a produção nacional
não chega para as necessidades, importa-se: fazem-se
negócios, mas ameaçam-se os preços, visto que os custos
nacionais são superiores ao do trigo importado. A
arbitragem do Estado no sector do trigo e do pão é
necessária e superior à que exerce em outros sectores da
vida económica. Eis que implica a acção de grupos de
pressão, as influências políticas e o tráfego respectivo. Os
proprietários do Sul, tal como os grandes comerciantes e
os industriais da moagem, estão atentos e mais ou menos
organizados, criam hábitos de cortejar e frequentar o
poder. No resto do País não tiveram equivalente, com
excepção eventual dos produtores e comerciantes de
vinho.
Os agricultores do Sul compreenderam há muito o poder,
souberam influenciá-lo ou mesmo exercê-lo. Ligaram-se de
tal modo ao Estado que dele ficaram dependentes. Bem
mais tarde, já na actualidade, privados de poder e de
relações no topo da administração pública, terão
dificuldades em agir. Aliás, não agirão.
O início do regime republicano é marcado por lutas
sociais nos campos do Sul12. Não é a primeira vez: ao longo
do século XIX são numerosos os conflitos, as tensões e os
movimentos reivindicativos. Eram todavia esporádicos,
isolados, locais e sem organização. No entanto, desde
1911, multiplicaram-se os sindicatos rurais concelhios. Um
importante processo reivindicativo é desencadeado: os
trabalhadores lutam por «tabelas», embriões de contratos
colectivos, e outras condições de trabalho. Durante dois
anos realizam-se dezenas de lutas e de greves: são
geralmente locais, mas o movimento toma inegável feição
regional. As expectativas criadas pela República são
grandes, mas a repressão também o será. Em Abril de
1913 contam-se já 127 sindicatos de trabalhadores rurais
no Alentejo e no Ribatejo13. Mais do que uma real
organização, esta proliferação é resultado da
efervescência. Dez anos mais tarde, contar-se-ão 300
sindicatos. Mas, no fim da República liberal, em 1926,
pouco ficará deste movimento de classe, tanto menos
quanto os sindicatos livres são proibidos a partir dos anos
30.
O regime de Salazar, o «Estado Novo» corporativo,
estabelece-se gradualmente a partir de 1926, depois do
golpe de 28 de Maio. Vários episódios conduzem Salazar ao
cargo de primeiro-ministro. À ditadura militar, que dura
cerca de sete anos, sucede uma ditadura civil, depois do
plebiscito constitucional de 1933. Apesar da rapidez e da
eficácia do golpe militar, o novo regime demora alguns
anos a instalar-se através de lutas pouco ruidosas. Salazar
teve de sobrepor o seu poder, e o do Estado, a diversos
grupos e interesses, incluindo económicos. Depois de ter
conseguido o apoio dos militares, estabeleceu a autoridade
do Governo sobre as forças armadas, cujas autonomia e
tendências centrífugas eram notórias. Foi apoiado pela
Igreja, mas teve também de lhe impor o seu poder de
Estado. Mais do que proclamado ou espectacularmente
conquistado, o poder político de Salazar foi pacientemente
construído e consolidado, graças à utilização de todos os
meios repressivos.
O Estado Novo, que muito ficou a dever à desordem
social e económica e à instabilidade política que o
precederam, tem uma base de interesses sociais que inclui
proprietários rurais, empresários, militares e a Igreja, mas
goza ainda de um certo apoio do campesinato, das
pequenas burguesias urbanas e rurais, do pequeno
comércio e dos funcionários públicos. Tem também diante
de si silêncio e indiferença. Mas sobretudo não se lhe
depara, desde o início, uma real oposição, pelo que elimina
com facilidade eventuais obstáculos. Uma autoridade
firme, a supressão das liberdades e a diligência das
polícias vão ajudar o regime a instalar-se, a consolidar-se e
a manter-se. As oposições são praticamente desfeitas e só
conseguirão exprimir-se periodicamente quando as
eleições vigiadas permitem uns aparentes debates. Só o
Partido Comunista, fundado em 1921, consegue atravessar
todo o regime. Todavia, lutando pela sua sobrevivência, o
PC será quase sempre uma pequena organização
clandestina e muito fechada, cujos dirigentes vivem
frequentemente no estrangeiro, quando não estão na
prisão.
O regime encontrará na doutrina social da Igreja e no
pensamento corporativo europeu da época as suas
principais fontes de inspiração. Mas acrescenta um certo
pragmatismo: as soluções políticas e institucionais serão
bem mais portuguesas e empíricas do que importadas ou
copiadas. A inclusão do regime no grupo dos fascismos
europeus foi sistematicamente feita pelos seus opositores,
alguns dos quais, todavia, sublinharam as diferenças que o
distinguiam do seu homólogo italiano. Tratar-se-ia de um
«fascismo sem movimento», pouco agressivo, muito pouco
politizado, com pouco apelo às massas, mas repressivo
apesar de tudo14. Internacionalmente, o regime preferiu
sempre a prudência e a distância à aventura e à expressão
enérgica das solidariedades. Um dos segredos do sucesso
da mais longa ditadura ocidental do século XX reside sem
dúvida na sua neutralidade durante a guerra de 1939-
1945.
O período que vai até ao fim da Segunda Guerra
caracteriza-se pela instalação e consolidação de um
regime e de um Estado submetido ao poder pessoal. Os
adversários são gradualmente eliminados e afastados da
vida pública, ao mesmo tempo que se afirma a ideologia e
se desenvolvem as instituições. Dada a falência financeira
de quase todas as administrações precedentes, a
austeridade será a primeira preocupação do Governo. Daí
resultarão a breve prazo a moeda forte e estável e o
equilíbrio orçamental, mas também a estagnação
industrial e uma queda drástica do nível de vida das
populações. Todavia, a agricultura regista um certo
crescimento, em particular nas regiões cerealíferas do Sul.
Defende-se a ideia de que «o pão é a fronteira do País».
Este nacionalismo económico e alimentar inspira a
administração, que organiza campanhas de produção de
cereais, sobretudo de trigo, apoiadas por políticas de
subsídios aos arroteamentos e às sementeiras. Os
resultados económicos são imediatamente convincentes:
durante alguns anos a produção aumenta de modo
significativo. A longo prazo, as consequências são menos
felizes: a erosão afectou de maneira quase irreparável
largos solos que não deveriam ter sido cultivados, dada a
sua pobreza e tendo em conta a sua vocação florestal.
No fim da guerra, as oposições tentam tirar proveito da
vitória das democracias ocidentais, mas os seus esforços
são ineficazes. Uma relativa aceitação internacional,
ajudada em parte pela cedência, aos Americanos e aos
Ingleses, das bases militares dos Açores, contribui para a
consolidação do regime. A oposição contra o regime não se
vê sequer legitimada pelas democracias.
Da neutralidade, Portugal retirou alguns benefícios
palpáveis: continuou a obter rendimentos do comércio, em
particular da venda de volfrâmio e de outros minérios
necessários às indústrias militares.
Um certo apoio internacional, uma moeda mais forte e
mais estável, alguns recursos financeiros e a recordação
da paz interna durante a guerra dos outros, eis os trunfos
que permitirão o relançamento do regime depois da guerra
e até aos anos 60. Anunciadas desde os anos 30 como
constituindo o núcleo do sistema sociopolítico, as
corporações vão sendo finalmente criadas. Começam a
realizar-se os primeiros grandes projectos de infra-
estruturas, inicia-se a época das obras públicas do Estado
Novo, tão frequentemente propagandeadas. Importantes
investimentos públicos e privados preparam o nascimento
de algumas novas indústrias: ferro, cimentos, energia e
química. A situação social e política continua estável,
noutras palavras, bem em mãos do Governo e das polícias.
No entanto, o nível de vida da população não melhora
significativamente e a agricultura retoma um ciclo de
estagnação de que praticamente não sairá mais. A
modernização tecnológica e a mecanização progridem
dificilmente.
Não tendo conhecido as destruições da guerra, os
Portugueses não sofreram as respectivas privações.
Paradoxalmente, também não beneficiaram dos efeitos da
expansão e da modernização que, na Europa, resultaram
das grandes obras de reconstrução. O plano Marshall não
foi desejado, terá mesmo sido recusado por Salazar, que
nele via uma ingerência americana em Portugal e,
eventualmente, um factor de crescimento económico
descontrolado. O Governo era certamente nacionalista e
orgulhoso da sua independência e não via com simpatia as
aberturas políticas e a forte dinâmica económica do após-
guerra.
De qualquer modo, e apesar dos atrasos, os anos 50 e 60
anunciam uma nova era: assiste-se a uma real expansão
capitalista, acompanhada dum crescimento industrial
jamais visto. De 1953 a 1966, a produção nacional cresce a
um ritmo anual próximo dos 6%; a indústria
transformadora regista taxas de expansão anual da ordem
dos 9%. Uma nova economia parece nascer15. A procura
externa tem uma influência real: entre 1958 e 1963, por
exemplo, as importações aumentam 22%, enquanto as
exportações crescem 38%16. Opera-se uma reorientação
económica: gradualmente, a Europa ocupa o primeiro lugar
como parceiro exterior, tanto no comércio como no
investimento. As colónias perdem relativamente
importância económica. Criam-se novas indústrias, seja
pela modernização de sectores tradicionais (os têxteis, por
exemplo), seja através da instalação de novas produções:
indústrias mecânicas, eléctricas, químicas, etc. Em
bastantes casos, trata-se de indústrias dependentes:
componentes, produtos inacabados para exportação,
montagem, tecnologia importada, investimentos externos,
etc. As empresas estrangeiras, muitas vezes
multinacionais, são atraídas pelos baixos níveis de salários,
comparados com os praticados na Europa.
Portugal não terá conhecido uma verdadeira revolução
industrial, tal como ela se terá realizado, no tempo e no
ritmo, noutros países europeus. Apesar disso, viveu uma
industrialização lenta, irregular e desequilibrada. Nesse
processo sobressaem dois períodos: o fim do século XIX e
os anos 50 e 60 do século XX. O último, em particular,
mudou a paisagem. Nunca o produto nacional tinha
aumentado a ritmos semelhantes, nunca o êxodo rural
tinha tomado tais proporções. É verdade que toda a Europa
conhecia uma expansão idêntica, mas em Portugal nunca
como agora um processo de transformação rápida se tinha
organizado à volta da indústria. Um novo proletariado
surge na sociedade: formam-se operários rapidamente,
nas próprias fábricas. Camponeses e assalariados rurais
transformam-se, em poucos meses ou semanas, em
operários especializados nas fábricas de montagem de
automóveis, nos estaleiros navais, na siderurgia e noutras.
A urbanização desenvolve-se ainda mais rapidamente,
mas também caoticamente. Crescem os tristes e
desordenados arredores de Lisboa, Porto e Setúbal,
nascem as primeiras cidades-dormitórios, mas também os
bairros-de-lata. Em 1960, Lisboa e Porto concentram 70%
da população urbana de todo o País17. Era essa a parte de
Lisboa sozinha no princípio do século.
Na construção e na indústria há trabalho para toda a
gente. Enfim, quase. Com efeito, o número de emigrantes
cresce aceleradamente desde 1961. Em 1965, o número
de emigrantes ultrapassa o saldo demográfico da
população. Quer dizer, a partir de então, Portugal perde
anualmente população.
Desde o século XIX e até aos anos 30, e de novo depois
de 1950, a emigração dirigia-se sobretudo para a América,
o Brasil em primeiro lugar, mas também os Estados
Unidos. Agora, os emigrantes vão preferir a Europa, a
França em particular. Será pois mais fácil partir, mesmo
clandestinamente. Sem soluções económicas capazes, o
Governo organiza a emigração legal e tolera a clandestina.
Na Europa, os emigrantes ficam bem mais perto de casa.
Será mais fácil chamar os parentes ou visitá-los durante as
férias. As ligações familiares mantêm-se melhor do que no
caso da emigração transatlântica. As remessas monetárias
são testemunho dessa permanência.
As partidas para o estrangeiro tinham sido constantes
desde o princípio do século, mesmo antes. Apenas a
grande crise económica e a Segunda Grande Guerra
tinham aberto algumas excepções. Todavia, nada era
comparável com a verdadeira «sangria» dos anos 6018.
Saldos migratórios
(em milhares)

1900-1911 – 212,5

1911-1920 – 352,7

1920-1930 – 17,5

1930-1940 + 64,6

1940-1950 – 128,7

1950-1960 – 680,9

1960-1970 – 1355,8

Entre 1950 e 1970, mais de meio milhão de camponeses


e assalariados rurais (e respectivas famílias) abandonaram
o País, enquanto muitos outros deixaram simplesmente o
sector primário Em 1950, 51% da população activa
trabalhava na agricultura; em 1970, menos de 32%.
Noutras palavras, registou-se nestas duas décadas o
mais formidável êxodo rural da história. Aldeias inteiras,
primeiro do Norte, do Centro e do Algarve, do Alentejo
depois, esvaziam-se em Lisboa, em Setúbal, no Barreiro e
no Porto, ou no estrangeiro. Nestes 10 a 20 anos, a quase
totalidade dos municípios e a maioria dos distritos
perderam população em números absolutos. Vila Real,
Viseu, Évora e Beja perderam até 5% dos seus habitantes,
enquanto Lisboa e Porto ganharam 13% e 17%.
Os habitualmente lentos processos de mudança das
estruturas demográficas dão agora sinais bem visíveis
duma aceleração19.
População
População agrícola em percentagem da
Anos total
população activa total
(em milhões)

1900 5,0 65

1910 5,5 59

1920 5,6 —

1930 6,4 55

1940 7,2 52

1950 7,9 51

1960 8,3 47

1970 8,1 32

Esta população está muito desigualmente repartida no


território: nos distritos do Norte, a densidade média atinge
valores próximos dos 150 habitantes por quilómetro
quadrado, enquanto nos do Sul não chega a 28 (a média
nacional é de 92). A emigração começou obviamente pelas
regiões mais densamente povoadas, mas, no fim do
período observado, os emigrantes vêm de todo o País,
litoral e interior, cidades e campos. Mesmo os
despovoados distritos do Sul perderão população.
Apenas as regiões litorais à volta de Lisboa e do Porto
estão em franco crescimento. Em 1960, estes dois distritos
concentram 31% da população total, 46% do produto
interno e 58% do produto industrial20. As classes médias
urbanas e a pequena burguesia estão em plena ascensão.
Profissões liberais, técnicos de toda a espécie, contabilistas
e guarda-livros, funcionários públicos, secretárias,
comerciantes, hoteleiros, estudantes, vendedores,
«viajantes» e professores multiplicam-se e conferem a
Lisboa uma relativa impressão de modernidade. Dado o
crescimento muito desequilibrado, esta nova tendência
parece só beneficiar Lisboa. Na capital, onde vivem 17%
dos Portugueses, encontram-se 53% das sociedades
comerciais e industriais, 48% dos seus empregados e 62%
das suas remunerações. Em conjunto, Lisboa e Porto
acaparam 45% dos estudantes do ensino superior, 58%
das profissões liberais, 47% das escolas secundárias e 70%
das sociedades21. Além desta concentração em termos
quantitativos, os indicadores sociais reflectem também as
clivagens existentes. A média nacional dos salários
agrícolas é, em 1960, de 27$; mas Lisboa oferece 37$ e
Évora apenas 23$; no conjunto do País, há 0,9 médicos por
1000 habitantes, mas 2,7 em Lisboa e 0,3 em Vila Real; o
consumo nacional de energia eléctrica é de 71 kWh por
habitante, mas é de 191 kWh no Porto e apenas 5 kWh em
Bragança. Em resumo, fora das duas grandes
aglomerações, uma espécie de deserto demográfico
avança lentamente e as condições de vida não melhoram.
Deste desequilíbrio, mas também desta rápida mudança,
os principais responsáveis, talvez em partes iguais, são a
indústria e a emigração.
Os poucos grandes grupos industriais e financeiros
portugueses nascem ou desenvolvem-se nesta época. Em
Lisboa, em 1970, pela primeira vez desde há longas
décadas, fazem-se negócios, investe-se, especula-se.
Surge até uma espécie de febre da Bolsa, na qual
participam as classes médias. A mitologia do dinheiro fácil
e do «génio financeiro» improvisado floresce e o respeito
pela legalidade das operações não parece ser a primeira
preocupação dos novos adeptos do jogo financeiro. Tudo
isto é tão rápido que em 1972-1973 se sentem já ameaças
de inflação e consequências da facilidade. As causas deste
estado de coisas não residem apenas na economia
portuguesa. Além das despesas militares e das remessas
dos emigrantes, factores externos exercem as suas
influências. Os primeiros sinais da crise económica
ocidental, em particular da inflação, fazem-se também
sentir em Portugal, cuja economia está agora bem ligada
às dos países europeus. Apesar dos atrasos e dos
desequilíbrios, mau grado o império e a guerra, não
obstante o carácter anacrónico do regime de ditadura,
Portugal está, de modo definitivo, social e
economicamente integrado na Europa. É uma periferia
fraca e frágil, atrasada e subalterna, mas é a Europa.
Outros factos ilustram esta evolução social através da
qual a modernidade parece finalmente introduzir-se. O
analfabetismo, por exemplo, diminui sensivelmente.
Taxas de analfabetismo
(em percentagem)

1920 68

1930 66

1940 56

1950 45

1960 32

1970 27
As taxas relativas aos meados do século são impensáveis
na Europa, na mesma época. São parecidas com as da
Inglaterra do século XVIII22. Todavia, apesar de elevados,
estes índices mostram, na sua evolução, uma mudança.
Também na administração se assiste a uma certa
transformação. O planeamento faz os seus primeiros
passos, no meio de lutas políticas internas ao regime e
contra notórios obstáculos culturais. Os Planos de Fomento
são elaborados e o «industrialismo» está na moda.
Durante os anos 60 são elaborados ou inicia-se a
realização de quase todos os grandes projectos de que
hoje se fala, ou que ainda hoje estão em construção: auto-
estradas, regadio, celulose, portos, estaleiros navais,
siderurgia, energia hidroeléctrica, petroquímica, etc. Estas
obras são parcialmente financiadas pelas receitas que,
nesta época, mais crescem: os rendimentos do turismo e
as remessas dos emigrantes. A ambos se ficará a dever o
equilíbrio ou o excedente da balança de pagamentos
durante vários anos.
Entretanto, o mundo rural não vive os anos fastos da
indústria e das grandes cidades. Centenas de milhares de
camponeses e de assalariados tiveram de deixar a
agricultura, sem que isso represente uma verdadeira
melhoria da produtividade. A sua partida forçada não é
aliás o resultado de um pujante processo de modernização
da agricultura. Desde o fim da guerra, com efeito, o
crescimento do sector é mais lento do que os outros, até
que a estagnação se impõe23.
Taxas de crescimento anuais
(em percentagem)

1940-1950 1950-1960 1960-1970 1970-1973

Sector primário 2,1 1,3 0,9 0,2

Sector secundário 3,5 6,2 7,5 11,3

Nos finais do século XIX, o crescimento agrícola tinha


ficado a dever-se às exportações, mas não fora
acompanhado por uma industrialização suficiente: esta
distorção criou sem dúvida obstáculos ao desenvolvimento
ulterior. No terceiro quarto do século XX, a situação parece
de certo modo inversa: o crescimento industrial (que
também ficou em parte a dever-se às exportações) não foi
acompanhado pelo desenvolvimento agrícola, nem por
uma reforma agrária, ou transformação das estruturas
agrárias24.
No conjunto, a industrialização que se foi processando
durante a última centena de anos foi-o sempre com um
grande atraso em relação à Europa. Até aos anos 50, a
distância aumentou sempre. Só a partir de então é que as
taxas de desenvolvimento económico ou de crescimento
foram semelhantes às que se verificavam nos países
europeus.
Produto nacional bruto por habitante em percentagem do PNB
por habitante dos países desenvolvidos e em percentagem
do PNB por habitante da Itália25

Anos Portugal/Europa Portugal/Itália

1860 86 92

1913 45 66

1950 37 65

1975 38 59

Na esfera social e económica, três características


marcam a década de 60: o crescimento industrial, a
emigração e a estagnação agrícola. Dois acontecimentos
políticos maiores dominam o mesmo período: a guerra
colonial e o afastamento (sucessão e morte) de Salazar.
No princípio de 1961, centenas de mortos, na população
civil e nas forças armadas portuguesas, assim como entre
as populações locais e os grupos revoltados, marcam o
início das guerras coloniais. No fim do ano, a União Indiana
apropria-se de Goa e outros domínios portugueses do
subcontinente. Três anos depois, também a Guiné e
Moçambique estão em guerra. Os movimentos
independentistas e a descolonização tinham já feito
desaparecer quase todos os impérios e chegavam também
ao ultramar português. Salazar e o seu Governo não
transigem nem negociam. O regime endurece, mas a
verdade é que esta «causa nacional» o vai reforçar durante
alguns anos. O esforço militar e financeiro é colossal,
atingirá, em certos anos, 45% do orçamento e mais de
10% do produto nacional. Quase 200 000 homens estarão
em armas na metrópole e em África26.
O País nunca conhecerá um estado de guerra
propriamente dito. Os combates desenrolam-se a milhares
de quilómetros e a actividade económica colhe alguns
benefícios das despesas militares. Por outro lado, a guerra
coincide com o período de mais forte crescimento
económico, tanto europeu como português. O desemprego
desapareceu quase por completo devido à emigração. As
classes dirigentes apoiam em princípio o esforço militar. As
classes médias nem sempre revelam o apoio e a
mobilização necessários: estão bem mais atraídas pelas
carreiras profissionais, pelos negócios e pelas novas
perspectivas económicas. No início da guerra, o regime
parece receber um capital suplementar de legitimidade:
para muita gente, o império faz parte da Nação e não é
possível conceber facilmente o seu fim. Com o tempo, sem
que a oposição tenha para isso muito contribuído, a
indiferença cresce. Pouco a pouco, os candidatos a oficial
vão faltar e a Academia Militar conhece graves problemas
de recrutamento. Os sacrifícios de guerra vão pesar sobre
um número cada vez mais reduzido de quadros militares e
de oficiais. Por outro lado, desertores, mas sobretudo
refractários e faltosos, partem para o estrangeiro em
números crescentes. O poder político não consegue criar
ou manter um espírito de mobilização nacional. Os
Portugueses, a começar pelos jovens oficiais, esperam
uma solução política para a guerra. Na década de 60, mais
de meio milhão de portugueses passaram pelas forças
armadas (e a maior parte por África) e mais de um milhão
emigrou para a Europa.
O isolamento internacional é considerável: a maior parte
dos países do terceiro mundo e os países socialistas
exprimem frequentemente a sua hostilidade. Mesmo
alguns países ocidentais fazem saber que não estão
dispostos a apoiar uma guerra que lhes parece anacrónica
e que sensibiliza a opinião pública. Mas também é verdade
que o apoio discreto mas eficaz dos antigos aliados e dos
membros da NATO nunca faltou ao Governo.
A doença afasta Salazar do poder em 1968. Até à sua
morte, em 1970, não terá mais influência na vida política.
O que poderia ser um trauma, o afastamento e a sucessão
do responsável por mais de 40 anos de regime autoritário,
acabou por se passar sem grandes perturbações
imediatas. O sucessor, Marcelo Caetano, goza à partida de
um forte capital de expectativa. É um homem do regime,
um dos seus mais antigos «barões», mas muitos pensam
que ele vai mudar alguma coisa. Outros, certamente em
minoria, pensam que se trata de «um homem de
transição» e que os problemas em aberto não poderão ser
resolvidos por ele27. As questões centrais, e motivo de
muitas esperanças, são a guerra e as liberdades. Tudo se
vai decidir na dosagem entre a continuidade e a mudança.
Mas M. Caetano perde-se nas hesitações. Não consegue,
se alguma vez o desejou, liberalizar o regime, nem sequer
manter a sua unidade. Às forças armadas, que entretanto
tinham conseguido uma posição militarmente mais
confortável em Angola e em Moçambique, não consegue
explicar como concebe a condução da guerra ou o seu fim.
Aos que a queriam prosseguir, não lhes dá a garantia da
sua firmeza. Os opositores, não os conquista. Irritou a
«velha guarda» do regime, fazendo neles crescer a
intranquilidade ou a dúvida; frustrou os democratas, não
concretizando praticamente nenhuma medida de real
liberalização.
Dentro das forças armadas, a agitação e o mal-estar
atingem níveis insuportáveis para um país em guerra. A
crise da instituição militar desenvolve-se durante os
últimos anos do regime. O Governo é incapaz de encontrar
a solução política que muitos esperam. Rivalidades
profissionais entre milicianos e oficiais do quadro criam
tensões difíceis de resolver e com as quais o Governo não
sabe ou não consegue lidar. As práticas seguidas para as
promoções e as remunerações eram discutidas e
contestadas. Os oficiais do quadro sentiam-se francamente
prejudicados: além das várias comissões de serviço,
tinham agora de suportar uma concorrência «desleal» por
parte dos milicianos.
A crise era todavia mais vasta, não se limitava aos
aspectos profissionais, mesmo se foram estes o fio da
meada por onde tudo começou. O que é certo é que
milhares de famílias das classes médias estavam
separadas durante longos anos. Por outro lado, era imensa
a clivagem cultural e geracional entre os comandantes e
os soldados e jovens oficiais. A maior parte dos generais
eram jovens oficiais dos anos 30: a sua vida activa era a
do regime de Salazar. Não eram sempre bem vistos pelos
tenentes, capitães e majores, do quadro ou milicianos: com
alguma fortuna, vivendo sobretudo em Lisboa, tendo
poucos contactos com o campo de guerra, tinham pouca
experiência de África, mas comandavam e tinham
interesses económicos em empresas do Estado ou
privadas. Os milicianos, pelo seu lado, estavam desejosos
de retomar o mais depressa possível os seus estudos
interrompidos ou a sua vida profissional. Perder «os
melhores anos da sua vida», só por uma causa e uma
recompensa: uma e outra pareciam insuficientes.
Influenciados pelos movimentos estudantis dos anos 60,
pelas ideias socialistas e pelo espírito anticolonialista, não
eram muitos os que acreditavam na guerra, no império, ou
mesmo no regime. Ora, os milicianos eram indispensáveis
à guerra, dada a crise do recrutamento profissional. A sua
importância era crescente, mas não viam a compensação
em dinheiro, em poder ou em posição social28. Mas os
milicianos desempenhavam ainda outro papel: o de ligação
entre os oficiais do quadro e o «mundo», a sociedade, a
universidade, a cultura e as ideias. Contribuíam assim para
uma espécie de abertura das estruturas militares à
sociedade.
Por este ou outros modos, as forças armadas estavam
condicionadas pela sociedade. Não havia praticamente
família onde não se contasse um soldado e um emigrante.
Por vezes, um ferido de guerra ou um soldado morto. Para
várias gerações, dois a seis anos de interrupção das suas
vidas eram as perspectivas de futuro imediato.
Entretanto, a evolução da sociedade durante os últimos
anos tinha conduzido ao crescimento considerável das
classes médias. Com elas e com alguma animação
económica, cresciam as aspirações de promoção social, de
cultura e de consumo. Mais perigosas ainda, as aspirações
de liberdade. Ora, o regime estava incapaz de absorver ou
satisfazer estas novas aspirações. Do ponto de vista
político, era impossível o regime liberalizar-se por causa da
guerra. Economicamente, também o crescimento e a
expansão tinham limites internos e internacionais. Os
limites não eram todavia sentidos, todos queriam
aproveitar.
Os novos modos de vida das classes médias urbanas
estavam a mudar rapidamente os padrões de
comportamento. As novas gerações de universitários, os
oficiais milicianos, os próprios jovens oficiais de carreira, os
técnicos, as profissões liberais e mesmo empregados
bancários entravam em choque com as estruturas rígidas
da sociedade e com o conservadorismo do regime. Nas
grandes cidades, mas sobretudo em Lisboa, vivia-se já um
ambiente de liberalização que não correspondia de todo às
tendências do regime e do sistema político. Os empregos
no sector terciário multiplicavam-se, subiam os salários e o
consumo aumentava significativamente. Ecos dos
acontecimentos de Maio de 1968 em Paris, dos novos
movimentos culturais americanos, do feminismo em
ascensão na Europa e de novos valores da sociedade
permissiva chegavam a Lisboa com facilidade. As
campanhas contra a guerra no Vietname e de
solidariedade com os movimentos de independência do
terceiro mundo encontravam rápidas simpatias em Lisboa,
tanto mais que o paralelo com as guerras de África era
imediato. As crises estudantis e o crescimento dos
movimentos estudantis, quase ininterruptos entre 1962 e
1970, estavam ligados aos movimentos sociais europeus e
aceleravam a mudança em Portugal. Nas Universidades de
Lisboa criaram-se «guetos» de liberdade, debatia-se a
guerra colonial e o socialismo, circulava toda a espécie de
literatura e imprimiam-se textos políticos e revolucionários,
actividades inimagináveis no resto do País, mas que viriam
a ter inegáveis consequências. Ideias e valores, filmes e
livros, novos usos e costumes, encontravam fáceis
adeptos, penetravam a sociedade e até nas forças
armadas encontravam eco, dada a sua particular
constituição. Mais grave ainda, entravam em conflito e em
contradição com uma longínqua e anacrónica guerra em
África.
O próprio aparelho de Estado conhecia irreversíveis
mudanças, que, embora localizadas, viriam a ter influência
no futuro. Começavam a aplicar-se técnicas de
planeamento económico e social, multiplicavam-se os
gabinetes de estudo e planeamento nos ministérios e
departamentos oficiais: nesses locais, novas gerações de
profissionais interrogavam-se sobre a sociedade, o que não
é seguramente pacífico num sistema fechado. Intelectuais
de esquerda, tecnocratas liberais e universitários
portadores de um novo espírito ingressavam nos gabinetes
de estudos, nos bancos, em agências de publicidade, nos
jornais e na rádio. A sociologia e a psicologia social, sem
falar nas diversas disciplinas do marxismo, apesar de
proibidas oficialmente, ensinavam-se nalgumas escolas,
incluindo na Academia Militar. Era difícil fechar as portas
que se abriam numa sociedade fechada, como não era
fácil conter a interrogação e a dúvida que cresciam em
diversos sectores sociais.
A emigração teve efeitos paralelos e contribuiu para esta
evolução. A questão social estava temporária e
precariamente resolvida, do que resultavam as carências
de mão-de-obra, a alta de salários e alguns esforços de
modernização tecnológica. Aumentavam a animação
económica e o consumo duma parte da sociedade. Mas
sobretudo a emigração contribuía para a abertura da
sociedade, tal como o turismo, que se desenvolvia também
rapidamente e trazia a Portugal alguns milhões de
estrangeiros por ano. Nos anos 60, os Portugueses
começaram a viajar, por Portugal e pela Europa. A abertura
cultural era imparável.
Nada disto leva directamente ao golpe de Estado. Mas é
também por causa disto que os oficiais não querem
continuar a guerra. Até porque o primeiro-ministro, Marcelo
Caetano, tinha dito aos generais Costa Gomes e Spínola e
a todos os militares: não quero negociações, não quero
separar as questões das diversas colónias, uma derrota
militar na Guiné é preferível a uma negociação.
Os militares não queriam ser mais uma vez os culpados
de uma derrota militar, como já tinham sido os bodes
expiatórios no caso de Goa. Já não estavam
ideologicamente convencidos dos fundamentos políticos
da guerra. Não queriam ser excluídos dos anos de fartura,
de crescimento económico e de mudança de costumes que
se viviam em Lisboa. Para os generais e para as velhas
gerações de oficiais, a situação vigente era excelente. Para
os jovens oficiais era frustrante, corriam o risco de passar
ao lado da sorte e do bem-estar. As suas razões não eram
só materiais. Os seus contactos com os sectores sociais em
crise de mudança e de contestação tinham contribuído
para criar uma relativa disponibilidade para as ideias
socialistas e anticolonialistas, ou pelo menos para a
democracia e para a mudança. Os oficiais não tinham um
plano político, mas tinham desejos de transformação e
pretendiam que a sociedade e o regime satisfizessem as
suas aspirações, o que o regime não conseguia e a guerra
impedia.
As influências políticas directas, por via de organização,
sobre os oficiais do quadro não eram importantes. Alguns
haveria que tinham tido contactos ou mantinham relações
com o Partido Comunista, como sempre no passado e
geralmente sem grande eficácia. Mas as outras tradições
políticas, do socialismo democrático, da democracia cristã
ou do liberalismo, estavam muito pouco presentes, dada a
ausência das respectivas organizações. Também era muito
reduzida a influência do movimento operário e sindical,
cuja herança era magra e longínqua. Eram eventualmente
um pouco mais vivas certas correntes republicanas ligadas
ou herdeiras da tradição maçónica, mas não tinham
programa nem organização. Em resumo, as influências
externas sobre as forças armadas não tinham carácter
orgânico, dependiam muito mais das transformações em
curso na sociedade, dos movimentos sociais europeus
contemporâneos e das correntes culturais em voga.
Aspirações e solicitações sociais e culturais encontram na
guerra e no regime autoritário obstáculos intransponíveis.
Motivos de carácter profissional, em particular as
promoções e os regimes de comissões de serviço, serão o
ponto de partida para a contestação. Todavia, dada a
situação social e política geral, a evolução ulterior é muito
rápida e politizada. O livro publicado em Fevereiro de 1974
pelo general Spínola, que é mais a consequência do que a
causa de uma situação, assim como a atitude tomada por
ele e pelo general Costa Gomes (as duas primeiras figuras
da hierarquia militar), abrem as forças armadas à
discussão política e trazem para a sociedade o debate
militar sobre a guerra e sobre a capacidade do Governo
para a conduzir29. Tornava-se impossível conter a
indisciplina e a insubordinação.
Um grande número de militares, jovens oficiais em
maioria, organiza-se durante os últimos meses de 1973.
Depois de vários episódios, revoltam-se e derrubam o
regime. Este cai com uma facilidade surpreendente: quase
todas as unidades militares se passam para o lado dos
revoltosos. O golpe de Estado é imediatamente apoiado
por larguíssimas camadas da população em constantes
manifestações. As ruas das grandes cidades, nos dias
seguintes, lembram mais os dias de uma gigantesca
romaria popular do que os de uma verdadeira revolução
social e política.
Em duas semanas, os pilares jurídicos e políticos do
regime são destruídos: a Assembleia Nacional e a Câmara
Corporativa são dissolvidas; demitidos o presidente da
República e o Governo; parcialmente revogada e suspensa
a Constituição. O partido único (Acção Nacional Popular), a
polícia política (Direcção-Geral de Segurança, ex-PIDE) e a
censura são desmantelados. Um poder provisório e
improvisado é criado, sob a tutela da Junta de Salvação
Nacional. Oficiais das forças armadas ocupam a quase
totalidade dos postos de comando político. As chefias das
forças armadas são rapidamente mudadas. O movimento
militar que derrubou o regime (MFA, Movimento das Forças
Armadas) surge às claras na vida pública, constitui-se em
organização dentro das forças armadas e dirige-as.
Surgem também instantaneamente os partidos políticos.
Organizam-se uns, enquanto outros se limitam a
reivindicar uma existência que ainda não está assegurada.
Entre os primeiros, o Partido Comunista e o Partido
Socialista. O PC existia clandestinamente desde há 50 anos
e era apoiado pela União Soviética e respectivos aliados. O
PS, pequeno grupo de dirigentes políticos sem reais bases
nem organização, tinha anunciado oficialmente a sua
constituição no ano anterior e era apoiado pela
Internacional Socialista. Os principais líderes de um e outro
regressam do estrangeiro poucos dias depois do golpe.
Todavia, os militantes comunistas vivendo no País são mais
numerosos e estão mais bem organizados do que os
socialistas.
Entre as dezenas de novos partidos que proclamam a sua
fundação, distinguem-se dois pela importância de que se
revestem quase imediatamente: o Partido Popular
Democrático (hoje Partido Social-Democrata) e o Centro
Democrático e Social, próximo das correntes da
democracia cristã.
O poder que se instala ao fim de poucas semanas
autoqualifica-se de provisório e fica nas mãos do MFA e de
alguns partidos (PC, PS e PPD). Na realidade, pertence
sobretudo aos organismos militares, nos quais as forças de
esquerda e os oficiais mais radicais se tornam rapidamente
predominantes. Grupos e personalidades de direita, ligados
ou não ao antigo regime, são geralmente excluídos das
primeiras partilhas.
A solidez do poder é pura aparência. Num clima de
instabilidade crescente, onde dominam o provisório e o
precário, toda a gente se procura politicamente e todos
procuram o poder. A revolução vai começar.

8 Orlando Ribeiro, Ensaios de Geografia Humana e Regional, Lisboa, 1970;


Manuel Vilaverde Cabral, Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no
Século XX, Lisboa, 1976; Vitorino Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga
Sociedade Portuguesa, Lisboa, 1975; e Albert Silbert, Do Portugal do Antigo
Regime ao Portugal Oitocentista, Lisboa, [1972].

9 Para este período e até aos anos 1910-1912, ver em particular Vasco Pulido
Valente, O Poder e o Povo, Lisboa, 1975.

10 A. H. Oliveira Marques, História da Primeira República: Estruturas de Base,


Lisboa, 1979; António Barreto e Maria Filomena Mónica, Retrato de Lisboa
Popular — 1900, Lisboa, 1982; e V. P. Valente, op. cit.

11 Jaime Reis, O Atraso Económico Português em Perspectiva Histórica, Working


Papers, Universidade Nova de Lisboa, 1984.

12 José Pacheco Pereira, Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal,


Lisboa, 1983.

13 J. P. Pereira, op. cit., e M. V. Cabral, op. cit.

14 Manuel de Lucena, O Salazarismo, Lisboa, 1975, e O Marcelismo, Lisboa,


1976.

15 Carlos Almeida e António Barreto, Capitalismo e Emigração em Portugal,


Lisboa, 1969.

16 Adérito Sedas Nunes, Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa,


1968.

17 Adérito Sedas Nunes, Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa,


1968.

18 C. Almeida e A. Barreto, op. cit., e Eugénio Castro Caldas, A Agricultura


Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária, Oeiras, 1978.

19 Instituto Nacional de Estatística (publicações diversas) e E. C. Caldas, op. cit.

20 M. Santos Loureiro, Assimetrias Espaciais de Crescimento no Continente


Português, Lisboa, 1965.

21 A. S. Nunes, op. cit.

22 Cario Cippola, Litteracy and Development in the West, Londres, 1969; Maria
Filomena Mónica, Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, Lisboa, 1978; e
E. C. Caldas, op. cit.

23 António Monteiro Alves e Fernando Gomes da Silva, A Contribuição do Sector


Agrícola para o Desenvolvimento Económico em Portugal, Lisboa, 1965; Afonso
de Barros, A Reforma Agrária em Portugal, Oeiras, 1979; A. S. Nunes, op. cit.; C.
Almeida e A. Barreto, op. cit.; E. C. Caldas, op. cit.; e IFADAP, Relatório e Contas.
Gerência de 1979, Lisboa, 1980. Ver ainda Ministério do Plano, Plano de Médio
Prazo, Lisboa, 1977.

24 Miriam Halpern Pereira, Assimetrias do Crescimento e Dependência Externa,


Lisboa, 1974, e, da mesma autora, Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico,
Lisboa, 1972.

25 Jaime Reis, op. cit., e Paul Bairoch, «Europe’s Gross National Product 1800-
1975», in Journal of European Economic History (1976), vol. 5.

26 Em 1974, os efectivos das forças armadas portuguesas eram cerca de 200


000 homens, assim distribuídos: exército, 170 000, dos quais 120 000 a 130 000
em África; aviação, 16 000; marinha, 18 000. As duas principais polícias, a
Guarda Republicana e a Polícia de Segurança Pública, mantinham no activo 10
000 e 16 000 homens, respectivamente.
Um pouco menos de 3% da população prestava serviço militar efectivo. Na
mesma época, só três países ultrapassavam esta proporção: o Vietname do Sul,
5,5%; Israel, 4%; e o Vietname do Norte, 3,2%.
Os orçamentos militares portugueses oscilavam entre os 7% e os 10% do
produto nacional bruto. Sobre esta matéria, ver Kenneth Maxwell, «The Hidden
Revolution in Portugal», in The New York Review of Books (Nova Iorque), Abril de
1975 e Maio de 1975.

27 António Barreto, «O estádio fascista de desenvolvimento do capitalismo», in


Polémica (Genebra), n.º 1, 1970.

28 Kenneth Maxwell, op. cit.

29 António de Spínola, Portugal e o Futuro, Lisboa, 1974.


CAPÍTULO II

A AGRICULTURA E A SOCIEDADE RURAL

Desde os meados do século XIX e até à época


contemporânea, ocorreu na agricultura portuguesa um
número considerável de mudanças, nomeadamente
tecnológicas. Mencionem-se a mecanização, a introdução
de produtos químicos, o melhoramento de plantas, a
generalização das culturas comerciais e a difusão de novas
produções. Estas mudanças foram acompanhadas pela
expansão das empresas capitalistas e do salariado.
Trata-se, sem dúvida, de uma evolução parecida com a
que se verificou noutros países, no quadro geral da
industrialização, do crescimento da economia de mercado
e da integração nacional dos sectores produtivos. Todavia,
algumas singularidades ilustram a evolução da agricultura
portuguesa.
A mais saliente destas características reside no atraso
geral do processo de desenvolvimento, comparado com os
outros países europeus. Caminhos semelhantes foram
percorridos, mas, no caso português, com décadas de
atraso e ritmos mais lentos. Em meados do século XX, por
exemplo, a população agrícola representa ainda metade da
população activa, o que não tem quase equivalentes. Hoje
mesmo, em meados dos anos 80, uma população agrícola
de cerca de 26% é ainda excepção.
Os atrasos são igualmente tecnológicos: todos os
indicadores, como o consumo de adubos ou a utilização de
máquinas, o demonstram. Um muito fraco
desenvolvimento do regadio é também testemunho do
atraso: apenas 14% das terras são beneficiadas com obras
de rega. Esta taxa é bem mais elevada no Norte (32%),
onde os sistemas de água são eficientes, apesar de
artesanais. No Sul, menos de 5% das terras são irrigadas.
A «revolução forrageira», tão importante nas agriculturas
dos países industrializados, está praticamente ausente de
Portugal. No decurso dos últimos cem anos, as pastagens
naturais foram desaparecendo, ou sendo abandonadas,
tendo raramente sido substituídas por prados artificiais. A
alimentação do gado faz-se hoje, por uma muito
significativa parte, com rações e alimentos compostos.
Assim se explica o crescente recurso às importações de
milho e outras matérias-primas. A pecuária industrial, sem
terra, é hoje dominante, o que tem graves consequências
na balança de pagamentos.
O alargamento das superfícies cultivadas e florestais
constitui outra mudança importante ocorrida durante o
último século, tal como ilustra o quadro seguinte30.
Superfícies cultivadas
(em milhares de hectares)

1875 1956-1963

Superfície nacional 8894

Superfície cultivada 2526 7512

Agrícola 1886 4762

Florestal 640 3234

Superfície produtiva não cultivada 2116 72

Superfície não produtiva 4252 1310

O País está quase inteiramente utilizado pela agricultura


e a floresta. Mais de metade da superfície só no último
século passou a ser aproveitada. Este fenómeno pode ser
considerado um progresso, do ponto de vista da utilização
imediata dos recursos naturais. Não deixa todavia de
levantar graves problemas, na medida em que as
capacidades de uso das terras e as suas potencialidades
nem sempre foram tidas em conta. Vastas áreas são hoje
vítimas de erosão. Os critérios de conservação dos solos,
de renovação da fertilidade e de adequação dos solos às
culturas nem sempre foram respeitados.
No conjunto do País, a agricultura não se intensificou
suficientemente, e muitas vezes, em particular no Sul,
tirou sobretudo partido da extensão. Por consequência, as
produtividades e os rendimentos aumentaram pouco. A
floresta eliminou uma boa parte da criação pecuária,
deixando largas áreas para as espécies industriais de
crescimento rápido (o eucalipto). Estas e a expansão
cerealífera excessiva são hoje os primeiros responsáveis
pela erosão e pela degradação de solos que, em certas
regiões, tornaram já a agricultura impossível ou
economicamente inviável.
Em vez de corrigir graves desequilíbrios das estruturas
agrárias e fundiárias, a evolução agrícola acentuou-os e
consolidou-os. Sendo embora verdade que o número de
agricultores e proprietários aumentou durante os últimos
cem anos, é também certo que no Sul a distribuição da
propriedade ficou ainda mais desigual, enquanto no Norte
aumentou a extrema divisão das parcelas e das
explorações.
Apesar de uma inegável evolução, a questão agrária
manteve-se viva e inquietante. Sinal de
subdesenvolvimento, espelho da subordinação, o sector
agrícola não teve forças suficientes para influenciar as
políticas, impor uma dinâmica de desenvolvimento ou
conduzir as reformas. Vejamos, um pouco mais em
pormenor, os aspectos dominantes da evolução agrária31.
Durante a segunda metade do século XIX, os campos
conheceram uma relativa animação económica. Existiam
mais perspectivas de exportações rendosas: o vinho, a
carne e os cereais tinham compradores na Europa. Os
agricultores, especialmente os de dimensão razoável,
beneficiaram de alguma prosperidade. Fazem-se
arroteamentos, nomeadamente no Sul, e novas terras são
semeadas de cereais. No seguimento das lutas liberais,
vendem-se terras da coroa, de alguns nobres, das ordens
religiosas e mesmo de algumas instituições públicas.
Todavia, as propriedades não são divididas. Os
compradores são, em grande maioria, nobres liberais,
burgueses, comerciantes e gente da cidade. A reforma
agrária perde uma boa oportunidade.
Ao mesmo tempo, vastas áreas de terras comunais e
baldias são gradualmente compradas, apropriadas ou
simplesmente acaparradas por agricultores privados e
proprietários que para isso têm os meios necessários ou as
influências políticas. O «montado» consolida-se nesta
época. Sendo uma forma razoavelmente adequada de
aproveitamento dos recursos pobres de certas zonas do
Sul, o montado confirma no entanto o carácter extensivo
da produção, agravado, nas terras vizinhas, pela simples
rotação cereal-pousio, podendo este durar vários anos. No
Norte e no Centro, as pequenas explorações mantêm-se
abaixo dos níveis de subsistência, socorrendo-se das
receitas da emigração. Anualmente, milhares ou dezenas
de milhares de camponeses partem para o Brasil e as
Américas.
Este período coincide com o lançamento de grandes
obras públicas, caminhos-de-ferro e estradas, decisivas
para a criação e o alargamento do mercado nacional. As
economias locais são atingidas, por vezes destruídas. A
horticultura algarvia nasce neste momento, virada para os
mercados urbanos. Surgem os primeiros indícios de
mecanização na produção de vinhos, aguardentes, azeite e
mesmo cereais.
Embora modesto, o desenvolvimento agrícola teve algum
significado. Todavia, chega ao seu termo antes do fim do
século. A instauração do regime proteccionista do trigo
(1889-1899) revela a mudança de perspectivas
económicas. Sem industrialização notória nem
desenvolvimento da economia global, o crescimento
agrícola do século XIX foi sobretudo a consequência da
expansão dos mercados de exportação e talvez do
proteccionismo cerealífero. A crescente emigração é um
dos sintomas flagrantes da fragilidade deste crescimento.
Com o abrandamento dos mercados externos e mesmo a
concorrência de produções estrangeiras, a crise agrícola
recomeçou32. A produção alimentar volta a ser insuficiente
e os défices externos aumentam.
No princípio do século XX, o sistema de subsistência
domina no Norte, mesmo se nalgumas zonas se assiste ao
desenvolvimento do comércio e das empresas capitalistas,
como por exemplo nas regiões vinícolas. No Sul, à volta de
Lisboa, nas planícies alentejanas e no Ribatejo, a grande
propriedade e a empresa capitalista predominam num
sistema agrário comercial. Apesar disso, os atrasos
tecnológicos são evidentes, em comparação com os países
europeus do Norte. Também é verdade que as condições
naturais não são muito favoráveis à agricultura.
A par do desenvolvimento das empresas capitalistas, são
mais evidentes as manifestações de miséria rural e de
ruína dos pequenos camponeses. Para muitos, a emigração
é a única solução. As novas indústrias não oferecem
empregos suficientes. É verdade que, desde os anos 1860,
aquando da venda dos bens comunais, um certo número
de camponeses tinha podido adquirir algumas parcelas de
terra. Mas estas eram de pequenas dimensões ou pouco
férteis. Ou então o seu cultivo exigia capitais que os
camponeses ou antigos assalariados e pequenos
comerciantes não possuíam. Por causa destas
insuficiências e graças aos efeitos da concentração e ao
aparecimento de novos empresários ricos ou médios, estes
camponeses perderam em pouco tempo as suas terras,
emigraram para a cidade e para o estrangeiro, ou
regressaram à sua condição anterior33.
Ao mesmo tempo, no Norte, prossegue a divisão da
pequena propriedade. As décadas do fim do século XIX e do
princípio do século XX são particularmente difíceis para os
camponeses. O aprovisionamento alimentar nacional é
insuficiente e conhece estrangulamentos. O desemprego e
o descontentamento das populações citadinas aumentam
e não são estranhos às revoltas urbanas que conduzem ao
derrube da Monarquia e à implantação da República.
Os grandes proprietários fundiários organizam uma
oposição eficaz a qualquer tentativa de reforma agrária,
tanto durante a Monarquia como após a República. Esta,
aliás, não estará na origem da mudança das políticas
agrárias. O proteccionismo do trigo mantém-se. A
indústria, que poderia mudar indirectamente a situação na
agricultura, não regista crescimento notável. As principais
indústrias criadas nesta altura (têxteis, tabacos, óleos,
sabões e adubos) servem-se de matérias-primas
importadas, o que em nada contribui para o progresso
agrícola. Apenas a viticultura se desenvolve
razoavelmente.
A segunda década deste século é marcada por crises de
«subsistência» e de aprovisionamento. A instabilidade
política dos princípios do novo regime é acompanhada por
agitação e conflitos sociais, tanto nas cidades como nos
campos do Sul. Entre 1910 e 1913, o desenvolvimento do
sindicalismo rural (facto novo) e a eclosão de numerosas
greves permitem aos trabalhadores rurais do Alentejo e do
Ribatejo obter apreciáveis aumentos de salários. Todavia,
mantendo-se a crise geral e o desemprego, perdê-los-ão
durante e após a Primeira Grande Guerra. Os salários
rurais estão, aliás, no fundo da escala, duas a três vezes
inferiores aos dos outros sectores34.
Salários em alguns sectores, 1914
(índices)
Agricultura 100 Vidro 195

Têxteis 135 Transportes 203

Minas 151 Tabacos 216

Construção 168 Construção eléctrica 243

A condição social e económica dos assalariados rurais do


Sul é das mais desfavoráveis de todo o País. O império da
grande propriedade é indiscutível. Os sistemas agrários
extensivos do cereal e do montado não permitem a
flexibilidade da agricultura intensiva do Norte. Constituíam,
no entanto, a solução «natural» para as condições da
época. No Alentejo, com excepção de algumas pequenas
regiões bem demarcadas, o campesinato é pouco
numeroso e não tem poder. Quem deseja comer deve
trabalhar; quem quer trabalhar deve ser assalariado nas
médias e grandes propriedades.
Os padrões de cultura só criam emprego durante alguns
períodos do ano. Nesta época, é frequente trabalhar 120 a
150 dias por ano (o que vai durar, com poucas alterações,
até aos anos 1950). As mulheres trabalham ainda menos.
Os rendimentos são claramente insuficientes para uma
família. O assalariado não tem nenhuma garantia de
trabalho: todos os dias, ou todas as semanas, terá de
procurar emprego nos «montes» ou nas «praças de jorna».
A época «alta» situa-se na Primavera, no princípio do
Verão e num curto período do Inverno, durante a apanha
da azeitona. Nesses momentos pode mesmo acontecer
que a mão-de-obra falte e os salários sejam o dobro dos
outros meses.
Os assalariados podem trabalhar até dezenas de
quilómetros da residência, o que os obriga a verdadeiras
migrações entre as aldeias e os «montes». Nos períodos
mortos, é frequente ver os trabalhadores correr de
«monte» em «monte», tanto à procura de emprego como a
mendigar. Autênticos «bandos de fome», deslocam-se em
grupo. Miseráveis, têm pouca força reivindicativa. Dum
lado, o desemprego e a «reserva de força de trabalho»; do
outro, a concorrência dos «ratinhos» das Beiras e outros.
Entre migrantes temporários e assalariados alentejanos, a
coexistência nunca foi fácil e os conflitos foram numerosos.
Mesmo com os exageros próprios do neo-realismo e da
propaganda política, a condição social destes homens e
mulheres ficará gravada nas memórias colectivas. O
trabalhador alentejano será personagem da literatura, da
história e da mitologia política. A sua situação não
conhecerá real melhoria antes de 30 ou 40 anos. A
mudança só virá a partir dos anos 1960. Mas, aquando da
revolução de 1974, os assalariados lembrar-se-ão do que
viveram antes, eles ou os seus pais.
A República liberal, de 1910 a 1926, não conseguiu
introduzir a mudança, não foi capaz de imaginar novas
políticas económicas e agrícolas. O regime não conseguiu
a estabilidade. Nenhuma nova acção política pode ser
prosseguida ou consolidada. Subsistiam as dificuldades
económicas, as carências do aprovisionamento e os
conflitos sociais e políticos. Sucediam-se os governos. O
golpe de Estado de 1926 produzirá um regime autoritário e
um governo forte. Nasce uma nova situação.
Desde o início da ditadura militar que certos
acontecimentos importantes afectam os campos do Sul. O
Governo e o seu ministro da Agricultura, o coronel Linhares
de Lima, lançam a «Campanha do Trigo», com dois
objectivos prioritários: a auto-suficiência cerealífera e a
plena utilização dos solos. Os mecanismos essenciais eram
os subsídios à produção, os preços de garantia e o
escoamento. Muitos proprietários aderiram, ajudados pelas
condições aliciantes e a intensa publicidade. Alguns
escolheram a exploração directa, mas a maioria preferiu o
sistema tradicional da «seara». A «campanha» teve
resultados apreciáveis35.
Produções médias de trigo, 1915-1949
(em milhares de toneladas)

Anos Média anual

1915-1919 217

1920-1924 295

1925-1929 280

1930-1934 507

1935-1939 438

1940-1944 381

1945-1949 386

Os preços garantidos a níveis elevados permitiram a


muitos pequenos agricultores semear e obter rendimentos
apreciáveis. Tendo em conta a sua tecnologia atrasada e a
medíocre qualidade dos solos, só com esta política
sobreviviam no mercado. Contudo, em menos de duas
décadas, os resultados desta «campanha» revelaram-se
bem mais negativos do que se imaginava. Em primeiro
lugar, levou a cultura do trigo a solos pobres e marginais.
As produtividades mantiveram-se baixas, vindo mesmo a
descrever ulteriormente. A consequente erosão foi grande
e ainda hoje vastas superfícies não foram recuperadas
para outras produções vantajosas, pastagem e floresta em
particular.
Em seguida, esta «campanha» está na origem de uma
certa decepção dos seareiros que depositaram esperanças
na perspectiva de acesso à propriedade ou à exploração
plena e durável. Tarde ou cedo eles vão abandonar as
terras que cultivaram. Não tanto por causa dos
proprietários, mas sobretudo porque aqueles solos,
passados poucos anos, não garantiam a subsistência.
Em conclusão, os resultados da «campanha» são
mitigados. Por um lado, a produção aumentou; os
pequenos agricultores tiveram benefícios durante alguns
anos; novas terras foram arroteadas; os grandes
proprietários tiveram proventos consideráveis; a balança
alimentar melhorou; a indústria nacional de adubos
conheceu uma grande expansão. Por outro lado, os solos
erosionaram-se; os seareiros mal viram os seus esforços
recompensados, perdendo esperanças na fixação; os
rendimentos das novas terras revelaram-se medíocres e
marginais; o trigo não estava adequado a muitos solos
onde foi semeado; os custos de produção do trigo
mantiveram-se altos; as modalidades de produção
subsidiada e de proteccionismo cerealífero travaram a
evolução tecnológica e a modernização dos processos
produtivos; e, finalmente, não se aproveitou a
oportunidade para transformar, mesmo modestamente, a
estrutura fundiária.
Durante os anos 1930, outras iniciativas foram tomadas
na tentativa de dar novos horizontes à agricultura, entre
elas a Lei de Reconstrução Económica e diversos
programas sectoriais, tais como a «colonização interna», a
florestação e a hidráulica agrícola.
Foi criado um organismo especial para traduzir na prática
os objectivos da «colonização»: distribuir a população rural
de modo mais equilibrado e realizar investimentos
fundiários. Várias leis foram aprovadas e meios
consideráveis foram postos à disposição. Nada que fizesse
pensar numa reforma agrária. É mesmo legítimo pensar
que alguns queriam evitá-la, apesar de ser notório que um
certo esforço estava em curso. No papel, tratou-se de um
compromisso entre os interesses estabelecidos e os que
pretendiam «fazer qualquer coisa» pela agricultura. Na
prática, do ponto de vista da reforma agrária, foi um fiasco.
Menos de 10 000 ha foram objecto de intervenção na
estrutura fundiária36. Destes, a maior parte pertencia já ao
Estado, que tinha recebido em testamento as herdades de
Pegões. Cerca de 200 «colonos» foram aqui instalados, os
seus descendentes ainda lá se mantêm. Também é
verdade que a «colonização interna» trouxe benefícios a
um número razoável de proprietários e agricultores já
instalados, sob a forma de créditos baratos para
investimento.
A acção dos serviços florestais também merece menção.
As suas intervenções eram de duas espécies: experiências
de colonização, sobretudo em regiões montanhosas, e
obras de florestação intensiva. As primeiras foram raras, as
segundas numerosas. Para todos os efeitos, centenas de
milhares de hectares foram retirados aos baldios
comunais. Plantou-se pinheiro e eucalipto, vindo este
último a expandir-se fortemente, servindo a crescente
procura da indústria da celulose. Pastagens e rebanhos
foram expulsos de vastas áreas em muitas regiões.
Numerosos autores denunciam ainda hoje o espírito e a
prática de tais processos. Frequentemente, os camponeses
reagiam, e, não raramente, os fogos de floresta foram o
seu modo de agir. De toda a maneira, a floresta contribuiu
para a integração das agriculturas de subsistência e das
comunidades rurais no mercado e no sistema económico.
Quanto à hidráulica agrícola, os ministérios competentes
(Obras Públicas e Economia) lançaram, durante três ou
quatro décadas, vários projectos. Sobretudo no Sul,
construiu-se um número apreciável de barragens agrícolas
ou de utilização múltipla. Grandes obras de engenharia
civil foram fonte de prestígio político, mas também
permitiram regar muitos milhares de hectares, em
particular no Alentejo. Novos métodos e novos produtos
foram introduzidos, nomeadamente o tomate industrial, já
nos anos 1960; e, antes disso, a cultura do arroz nos vales
e nos estuários. Nas regiões mais favorecidas pela rega, o
emprego e os salários aumentaram e muitas mulheres
encontravam trabalho sazonal como nunca antes.
No entanto, também as obras de hidráulica não estavam
isentas de críticas e de erros. Uma vez mais, o poder
político não entendeu intervir na estrutura agrária.
Aumentou a proletarização, assim como a agricultura
errante dos seareiros. As novas e vantajosas condições da
cultura regada não favoreceram a fixação dos camponeses
ou de novos agricultores. Apesar do carácter público dos
investimentos, foram sobretudo os grandes proprietários
que beneficiaram dos empreendimentos, com relevo para
os absentistas, que assim puderam aumentar as rendas
sem esforço próprio. Mesmo um ministro de Salazar se
elevou, em 1962, contra esta flagrante discriminação37.
Por outro lado, nem sempre se tirou o melhor partido das
instalações hidráulicas. Os solos regados não eram sempre
os mais apropriados. Por vezes, nem sequer suportavam a
rega. Ainda nos anos 1970 e 1980 se tentam recuperar
barragens e perímetros regados, cuja produtividade se
manteve medíocre. Obras de engenheiros civis e de
políticos, os planos de rega foram por vezes feitos à
margem dos agrónomos e dos economistas, quase sempre
longe dos agricultores. Finalmente, a cultura do tomate, a
que mais lucrou com o regadio, feita intensivamente em
sistema de monocultura sem rotação, apresenta inegáveis
perigos agrológicos38.
Quanto ao enquadramento institucional da agricultura e
do mundo rural, os responsáveis do Estado Novo tiveram
as suas próprias ideias, mais ou menos originais. Por
prudência e inteligência, ou porque as novas organizações
não tinham genuínas raízes e tradições, ou porque era
necessário estabelecer previamente as bases do poder
político, nada se fez com precipitação. Até porque tudo foi
feito de cima para baixo e do Governo para a sociedade
civil. Os grémios são criados em 1939 e, como
organizações obrigatórias, devem representar os
proprietários. São dirigidos pelos «20 maiores produtores»
do concelho e por alguns outros periodicamente
designados pelos sócios. As eleições e as nomeações
devem ser explicitamente aceites pelo Governo. Acima dos
grémios, as federações regionais, por sua vez
representadas na «corporação nacional».
Nas freguesias e nos concelhos, as Casas do Povo
agrupavam os trabalhadores rurais e pequenos
camponeses, mas os proprietários e agricultores eram
também membros contribuintes. Submetidas a estreito
controlo político, as Casas do Povo tinham um organismo
nacional, a Junta Central, e estavam também
representadas na «corporação».
Além destas instituições socioprofissionais obrigatórias e
tuteladas pelo Estado, os «organismos de coordenação
económica» exerciam importantes funções reguladoras do
comércio: fixação de preços, escoamentos e intervenções
no mercado, distribuição de subsídios, estabelecimento de
normas técnicas, armazenamento, etc. Mais estatais do
que corporativos, estes organismos não tinham uma
política muito autónoma: faziam o que o Governo lhes
dizia, sendo todavia objecto de jogos de influência e de
pressões dos lobbies.
A evolução económica geral do sector conheceu altos e
baixos. À animação dos anos 30 sucedeu um período de
estagnação. Os grandes agricultores tinham lucrado com
as novas políticas e a inflação. No Sul, a mecanização dava
sinais de desenvolvimento, mas, paralelamente, o
desemprego aumentava de novo. Fazia-se sentir uma forte
tendência para a estabilização dos preços. Os salários dos
trabalhadores rurais ficaram praticamente inalterados
durante duas a três décadas39.
Depois da guerra são introduzidas mudanças nas
políticas agrícolas, como por exemplo a «lei de
melhoramentos» e os novos sistemas de crédito agrícola
com baixas taxas de juro, donde decorrerá um razoável
aumento do investimento. Este fica todavia bem longe da
grande massa dos camponeses, pequenos proprietários,
rendeiros e parceiros. O crédito mútuo e o crédito
supervisado são marginais. A extensão rural é medíocre. A
assistência técnica limita-se em geral aos melhores
empresários40.
Nos anos 50 e sobretudo 60 regista-se um mais rápido
desenvolvimento da tecnologia, da mecanização, de
alguns cultivos e da pecuária industrial. Os produtos
químicos (adubos, pesticidas e herbicidas) conhecem o seu
período de maior expansão. São os anos de mutação do
Alentejo. Crescem ou consolidam-se as novas empresas
capitalistas. Os proprietários absentistas e os
latifundiários, se bem que ainda presentes e talvez
maioritariamente, começam a ceder o lugar aos
empresários e às sociedades agrícolas e comerciais. Certos
trabalhos manuais e os animais de trabalho quase
desaparecem. Os tractores, que há muito tinham
aparecido, mas se quedavam em número reduzido, vão
generalizar-se. Em 1953 contavam-se 2962 tractores em
todo o País; 14 086 em 1964 e 18 000 em 196641. Um
aumento de 600% em 15 anos, eis a dimensão desta
mudança rápida, embora tardia. Nos distritos do Sul, o
coeficiente de tractores por superfície cultivada é 10 a 30
vezes superior ao que se verifica no Norte. A modernização
agrícola caminha mais rapidamente nos distritos do
Alentejo, do Ribatejo e do Oeste.
A mecanização coincide com um período de novo
desemprego, logo seguido da emigração. Os anos 60 serão
de sangria demográfica. Em poucos anos assistir-se-á a
fenómenos sazonais de falta de mão-de-obra. Quem pode
parte para as cidades e o estrangeiro. Vivem-se tempos de
«industrialismo». O sector secundário é definitivamente
predominante: cresce mais rapidamente, atrai mais
investimentos e força de trabalho, tem os favores da
política económica, do planeamento e do crédito.
As forças do mercado impõem-se. A urbanização avança,
os sectores do turismo e dos serviços crescem
rapidamente. A emigração faz partir anualmente dezenas
de milhares de pessoas. Os «planos de fomento» tentam
ordenar o crescimento. Mais do que pelos seus resultados,
valem pelo novo espírito da administração que revelam.
Para a agricultura, estes planos têm valor desigual. Só o
segundo parece prestar particular atenção ao sector
primário. São anunciadas reformas, tomam-se alguns
compromissos. Novas leis de enquadramento são
aprovadas: mais uma vez a «colonização interna»; o
«parcelamento» no Sul e o «emparcelamento» no Norte
são contemplados com mais vigor. Os resultados
continuam, todavia, a ser medíocres. Sabe-se hoje que
numerosos técnicos, agrónomos e economistas tentaram ir
mais longe. No calor dos escritórios dos ministérios,
fizeram propostas mais ousadas de intervenção do Estado,
nomeadamente na estrutura fundiária. Mas os grupos de
pressão dos proprietários foram mais fortes na Assembleia
Nacional e na Câmara Corporativa. Os resultados
resumiram-se a decisões razoavelmente conservadoras e
boas intenções sem meios práticos42.
Os outros planos, sobretudo o último, revelam quase
desprezo pelo sector primário. Que as responsabilidades
pertençam à evolução económica global ou às autoridades,
o que é certo é que as performances agrícolas, ao longo de
duas décadas, são fraquíssimas. O produto agrícola bruto,
a preços constantes de 1953, é o retrato desse insucesso43.
Produto agrícola bruto, 1953-1973
(em milhões de contos)

1953 16,1

1958 15,3

1963 17,3

1968 18,4

1973 18,3

Noutros termos, 14% de crescimento em 20 anos, a uma


taxa anual pouco acima de 0,5% ao ano. Este resultado
esconde ainda a estagnação e o decréscimo do produto
vegetal, dado que a pecuária e a floresta cresceram a
taxas situadas entre 1% e 2%.
Apesar de tudo, não se pode concluir que apenas houve
imobilismo. Com efeito, os fracos resultados económicos e
produtivos coexistem com mudanças por assim dizer
dramáticas. Metade da população agrícola dos anos 40
deixou o sector. De 1950 a 1970, os activos rurais
passaram de 51% a 32% da população total, devendo este
último número ser excessivo, dada a existência crescente
de casos de dupla profissão. A economia monetária e
mercantil, assim como a agricultura comercial, penetraram
toda a sociedade, apesar de o autoconsumo se manter a
níveis razoáveis, acima dos 20%. Mau grado os
desequilíbrios evidentes, cresceu o capitalismo agrícola,
recorrendo, especialmente no Sul, às técnicas mais
modernas de produção, à maquinaria, aos produtos
químicos e às sementes melhoradas.
Nestas circunstâncias, onde se revela a estagnação? Na
produtividade, que aumenta muito pouco; na capacidade
decrescente de satisfazer as necessidades alimentares da
população; nos rendimentos reais dos agricultores; nos
atrasos acumulados relativamente ao conjunto da
economia; finalmente, nas estruturas agrárias.
Em 1929-1933 produziam-se 8,3 q de trigo por hectare;
7,5 q em 1939-1943; 7,8 q em 1959-1963; e 11,2 q em
1969-197344. É pouco, se se tiverem em conta
simultaneamente as potencialidades tecnológicas e o
aumento da procura.
Na década que termina em 1973, as produções médias
da maior parte dos alimentos (com a notável excepção do
arroz) situam-se a longa distância das europeias45:
Produções médias de alguns cereais,
1964-1973
(em quintais por hectare)

Portugal Espanha França Itália Grécia


Trigo 7,6 10,8 30,8 21,4 17,9

Milho 11,2 23,7 36,1 34,9 19,5

Cevada 4,7 14,3 29,1 14,1 17,1

Os anos que precedem a revolução confirmam a


estagnação da agricultura46.
Evolução dos produtos, 1969 a 1973
(índices; preços constantes)

Anos Produto bruto agrícola Produto bruto não agrícola

1969 100 100

1970 103 108

1971 98 118

1972 98 131

1973 102 147

Também no comércio externo se encontram sinais da


estagnação agrícola. Até 1973, o valor das importações
alimentares e agrícolas cresceu mais depressa do que o
das exportações. Em 1973, as importações representam já
88% das exportações, enquanto em 1968 eram só 70%.
Em 1974 inverte-se o coeficiente: as exportações já são
apenas 83% das importações. Desde então, Portugal passa
a ser um importador líquido de produtos agro-alimentares.
Outra maneira de ver este fenómeno, através da relação
entre importações agrícolas e o produto bruto agrícola,
revela a mesma situação, numa óptica mais significativa47.
Importações agrícolas em percentagem do produto
agrícola bruto, 1969-1974

1969 35

1970 34

1971 37

1972 43
1973 46

1974 61

Contrastando com a estagnação do sector, algumas


indústrias alimentares ou utilizadoras de matérias-primas
agrícolas registaram uma notável expansão. Desde
meados dos anos 60, certas produções agrícolas
destinadas à indústria, entre as quais o tomate, a madeira
e a celulose, crescem significativamente. Certos vinhos,
como o porto e os rosés, conhecem também uma
expansão constante. A adesão de Portugal à AELE/EFTA,
assim como os acordos assinados com a CEE, traduzem
um movimento mais geral de abertura da economia à
Europa e outros países da OCDE. Desenvolvem-se as
exportações. A modernização tecnológica e comercial toca
alguns sectores e empresas agrícolas do Ribatejo e mesmo
do Alentejo. Instalam-se em Portugal umas poucas
empresas multinacionais especializadas em produtos
agrícolas e alimentares, trazendo técnicas modernas e
novos métodos de trabalho. Estes sectores, espécie de
ilhas tecnológicas, contrastam com as indústrias
tradicionais48.
(Valores de 1973)

Número de Produção
estabelecimentos (milhares de contos)

Sector «moderno»:

Celulose 6 2779

Açúcar 4 1417

Contraplacados 15 869

Rações para animais 78 2604

Produtos lácteos 45 1017

Sector «tradicional»:
(Valores de 1973)

Número de Produção
estabelecimentos (milhares de contos)

Pão e moagem 2233 3141

Lagares de azeite 3204 1242

Carpintaria 1152 1036

Serração de madeira 874 2412

Curtumes 153 1214

Conservas de carnes 319 993

Esta dualidade não é exclusiva do sector agro-industrial:


está presente em toda a sociedade onde as fontes de
inovação e os capitais disponíveis são insuficientes49.
A produção agro-industrial traduz a coexistência da
mudança e do imobilismo. Neste sector, tal como na
agricultura em geral, os factores dinâmicos são exteriores.
Os investimentos, os elementos de inovação, as
tecnologias e até os empresários têm origem no mundo
urbano: na indústria, no comércio, na finança ou mesmo
nas sociedades estrangeiras e multinacionais. A mudança
na sociedade rural provém de investimentos exteriores e
do mercado, ou de mutações globais do sistema, tais como
a industrialização, a urbanização e a emigração. Ora, a
rendibilidade do capital é, na agricultura, menor do que na
generalidade dos outros sectores. Além disso, as
transformações da agricultura foram menos profundas e
menos rápidas por outras razões: porque as estruturas
sociais e fundiárias constituíram um obstáculo ao
desenvolvimento; porque os capitais disponíveis eram
reduzidos; e finalmente porque as autoridades, ou o poder
político, não consideraram o sector prioritário ou
merecedor de um muito particular esforço.
O carácter imobilista está particularmente presente na
inércia e no desequilíbrio das estruturas fundiárias50.
Distribuição da propriedade, 1970

Dimensão das explorações


Número Percentagem Superfície Percentagem
agrícolas

628
Menos de 4 ha 77,5 742 517 14,9
630

170 1 685
De 4 a 50 ha 21,2 33,9
941 866

2 545
Mais de 50 ha 9 233 1,3 51,2
773

Estes números escondem realidades ainda mais


reveladoras. As maiores 488 explorações, com dimensões
situadas entre os 1000 ha e os 20 000 ha, ocupavam 1 065
000 ha, isto é, 21,4% da superfície cultivada, que estava
assim nas mãos de menos de 0,06% dos proprietários. No
outro extremo, cerca de 300 000 explorações, se tal se
lhes pode chamar, têm menos de 1 ha, o que é
manifestamente insuficiente como fonte de rendimento de
qualquer família de produtores autónomos. Quem se
encontra nesta última situação deve trabalhar como
assalariado noutras empresas agrícolas ou na indústria,
contar com as remessas de parentes emigrados ou
simplesmente abandonar a actividade agrícola. Ou todas
estas hipóteses em conjunto, como acontece
frequentemente.
A distribuição da propriedade revela ainda muito
marcadas diferenças regionais. Ao domínio do latifúndio,
no Sul, corresponde, no Norte, o minifúndio como realidade
predominante51.
Distribuição da propriedade: diferenças regionais, 1968

Explorações agrícolas Número Percentagem Superfície Percentagem

Norte e Centro-Norte:

Menos de 4 ha 492 975 60,9 561 527 11,3

De 4 a 50 ha 115 746 14,3 1 075 899 21,6


Mais de 50 ha 2 880 0,4 476 099 9,6

Sul e Centro-Sul:

Menos de 4 ha 135 655 16,8 180 990 3,6

De 4 a 50 ha 55 195 6,8 609 967 12,3

Mais de 50 ha 6 353 0,8 2 069 674 41,6

Outros factores agravam esta estrutura fundiária, causa


e resultado de desigualdades sociais. O parcelamento de
propriedades é um forte constrangimento económico. Por
outro lado, a medíocre qualidade dos solos está na origem
de baixas produtividades e diminui o valor económico
potencial das explorações de pequena dimensão. Com
efeito, só 28% da superfície podem ser considerados
agrícolas: apesar disso, 54% são efectivamente cultivados,
sem contar as matas, as florestas e os prados naturais
(cerca de 39%). Fazem finalmente falta os grandes
trabalhos de infra-estrutura (regadio e drenagem, por
exemplo), que poderiam atenuar as dificuldades
ecológicas. Mas nem os governos nem os agricultores
contribuíram eficazmente para alterar esta situação.
A grande frequência do arrendamento rural pode ainda
agravar as dificuldades, na medida em que constitui um
relativo desincentivo ao investimento.
Tudo isto revela o desequilíbrio, a desigualdade e o
arcaísmo das estruturas agrárias. O seu atraso económico
e social tem ainda outras manifestações. Em 1970, nas
explorações com menos de 0,5 ha, 90% da produção era
autoconsumida, 67% nas que se situavam entre 0,5 ha e
20 ha e 28% nas restantes, o que mostra bem a extensão
desta espécie de economia camponesa. Acrescenta-se,
todavia, que este tipo de organização produtiva não pode
ser apenas encarado como um obstáculo ao
desenvolvimento económico. Com efeito, certas
modalidades de subsistência, em particular as que
resultam da agricultura a tempo parcial, constituem um
meio de defesa ou uma estratégia de segurança contra as
crises económicas, a inflação, a queda do poder de compra
ou as ameaças de desemprego.
Paradoxalmente, durante as últimas décadas, à inércia
ou à rigidez das estruturas fundiárias correspondem
notáveis mudanças demográficas e sociais. Estas devem-
se à evolução do conjunto da sociedade, bem mais do que
ao desenvolvimento da agricultura. A população activa
agrícola passou de cerca de metade para um terço da
população activa total. Entre 1950 e 1960, a própria
composição social da população agrícola teve importantes
alterações. Os «patrões» passaram de 10% a 6%; os
agricultores autónomos de 30% a 35% e os assalariados de
60% a 58%52. Até 1970, as mudanças foram ainda mais
pronunciadas: patrões 2%, autónomos 48% e assalariados
50%. A «taxa de proletarização», número de assalariados
por empregados, teria passado de 6,2 em 1950 a 10 em
1960 e a 26 em 1970. As diferenças regionais são
evidentemente grandes: entre 50 e 85 em distritos do Sul;
entre 4 e 10 nos do Norte.
Em 1970, os assalariados representam cerca de um terço
dos activos agrícolas do Norte, mas 70% no Sul. No
conjunto do País, o seu número vinha diminuindo, em
termos absolutos, desde 1960.
Número de assalariados agrícolas,
1940-1970

1940 627 000

1950 678 100

1960 702 200

1970 363 500

No mesmo período, o número de patrões diminuiu em


números absolutos, fortemente em percentagem; o dos
agricultores autónomos aumentou em unidades e em
percentagem, sendo de cerca de metade da população
activa agrícola.
Esta evolução revela um efeito de concentração, mas
sobretudo a perda da qualidade de «patrão» por parte de
bom número de agricultores. O crescimento da agricultura
capitalista tem exigências que muitos antigos agricultores,
sem capitais próprios, tecnologia nem dimensão, não
conseguem satisfazer. Frequentemente, deixar de ser
«patrão» para ser «agricultor autónomo» ou «camponês» é
simplesmente deixar de ser agricultor a tempo inteiro e
fazer coexistir a exploração de pequenas parcelas com um
emprego permanente noutros sectores. Para outros, ex-
patrões ou ex-camponeses, a emigração foi o caminho.
Nestas transformações, o envelhecimento da população
agrícola foi característica dominante. No princípio dos anos
1970, metade dos dirigentes das explorações agrícolas
têm mais de 55 anos; e cerca de 80% têm mais de 45
anos. Além de que quase metade são analfabetos.
A emigração é a principal responsável por esta evolução.
Foi um autêntico êxodo que marcou profundamente o
panorama rural. Esvaziam-se aldeias inteiras: primeiro os
homens e os jovens, depois as mulheres e as crianças.
Desde o fim dos anos 60 que falta força de trabalho nos
campos, sobretudo durante as grandes operações
agrícolas: vindimas, ceifas, apanha do tomate e da
azeitona, trabalhos de Primavera, etc. Nestas condições, os
salários rurais aumentaram de modo como nunca se tinha
visto antes no Alentejo53.
Salários diários médios do trabalhador rural no Alentejo
e preço por quilo de trigo, 1945-1972

Preço do trigo Salário diário


Anos
(escudos/quilo) (escudos)

1945 2$56 17$03

1950  3$01 17$05


1955  3$03 17$89

1960  2$97 20$87

1965  3$31 28$79

1970  3$26 54$07

1971  3$55 63$17

1972  3$55 70$13

No fim da década de 60 começou a fazer-se sentir a


inflação, que se ficou a dever, entre outros, ao aumento
dos rendimentos e de moeda disponível, como resultado
das remessas dos emigrantes e das despesas militares
com as guerras de África. Na agricultura, é a emigração
para o estrangeiro e a transferência do emprego para a
construção, a indústria e o turismo que provocam o
aumento de salários. Nunca, desde o princípio do século,
os salários rurais tinham aumentado nestas proporções.
Nem sequer durante os períodos de maiores agitações
sociais, como em 1911-1913, em 1944-1948 e em 1961-
1962.
Deixando de lado as singularidades conjunturais,
regionais e políticas, as lutas sociais no Sul revelam ciclos
ou modalidades relativamente permanentes. O «ciclo
defensivo»: concentrações de trabalhadores e procura de
trabalho no Inverno; e o «ciclo ofensivo»: greves,
paralisações e exigências de melhores salários na
Primavera e na época das ceifas54. A explicação é simples:
nos períodos de trabalhos intensos aumenta o poder de
negociação ou de reivindicação dos trabalhadores. Mas
todas estas lutas são condicionadas pelo clima geral de
repressão policial e pela proibição de actividades sindicais.
Em certos períodos, os conflitos podem multiplicar-se, a
quilómetros de distância uns dos outros, por vezes sem
ligações orgânicas, outras vezes com uma coordenação,
um enquadramento ou um simples sistema de informação
assegurados sobretudo pelos funcionários clandestinos do
Partido Comunista.
Numerosas lutas são localizadas e bruscas. Do ponto de
vista dos trabalhadores, trata-se de vencer rapidamente, a
fim de evitar o entendimento entre empresários e
sobretudo a intervenção das autoridades e da polícia.
Tentam ainda vencer enquanto a situação lhes é favorável,
isto é, enquanto os proprietários precisam deles. Vitórias e
derrotas sucedem-se sem regra. Entre 1950 e 1960, por
exemplo, a capacidade reivindicativa e ofensiva dos
trabalhadores é reduzida. A repressão policial tinha mais
ou menos desmantelado as organizações comunistas
locais. A mecanização crescente, neste período, tinha
criado um grande desemprego, o que enfraqueceu o
movimento operário. Nem sequer as ceifas eram já um
argumento favorável aos trabalhadores. Todavia, os anos
de 1961 e 1962 revelaram um novo fôlego de lutas:
dezenas de conflitos locais e de greves ocorrem durante o
mês de Maio e um pouco por todo o lado na região. Em
regra, os trabalhadores obtiveram vitórias apreciáveis,
dado que o momento era de intensa procura de mão-de-
obra. Na maior parte dos casos conhecidos, as greves não
duram mais do que algumas horas ou um dia. Os patrões
cedem rapidamente. Nesta altura, no entanto, os
trabalhadores não lutam só por aumentos salariais:
reivindicam também as oito horas de trabalho diárias, o
que geralmente conseguem.
Apesar destas vitórias, o movimento está prestes a
esgotar as suas forças: a mecanização, o uso crescente de
produtos químicos e a emigração são impagáveis. Até
1974, é um longo silêncio. Os trabalhadores mais jovens e
activos partem para as cidades, as fábricas e o
estrangeiro. As operações agrícolas são cada vez menos
labour intensive. O crescimento industrial e a construção
civil surgem como alternativas atraentes. O recrutamento
militar maciço e as guerras de África contribuem para a
desmobilização política.
O golpe de Estado de 1974, o derrube do regime e a
revolução vão mudar tudo isso e provocar uma agitação
social inédita. Como em 1911-1912, tudo começará com
uma mudança brusca do poder central. Como então, os
sindicatos organizar-se-ão e um forte movimento social
desenvolver-se-á. Mas, desta vez, tudo será diferente. 

30 Eugénio Castro Caldas, A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma


Agrária, Oeiras/Lisboa, 1973.

31 A propósito do século XIX e princípios do século XX, nos parágrafos que se


seguem utilizo frequentemente os resultados das análises de dois autores:
Manuel Vilaverde Cabral, Materiais para a História da Questão Agrária em
Portugal, Lisboa, 1974, e Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa, 1981; e
Miriam Halpern Pereira, Assimetrias de Crescimento e Dependência Externa,
Lisboa, 1974, e Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico, Lisboa, 1972.

32 M. H. Pereira, Assimetrias […], op. cit., e António Barreto, Independência para


o Socialismo, Lisboa, 1975.

33 José Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo, Lisboa, 1976, e M. V. Cabral,


Materiais […], op. cit.

34 M. V. Cabral, Portugal […], op. cit., e José Pacheco Pereira, Conflitos Sociais
nos Campos do Sul de Portugal, Lisboa, 1983.

35 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.

36 Idem, ibidem.

37 Antunes Varela, antigo ministro da Justiça, in Joaquim Barros Mouro e Manuel


Barros Mouro, Reforma Agrária. Legislação, Notas, Comentários, Lisboa, 1976.

38 René Dumont, Révolution dans les campagnes chinoises, Paris, 1966; OCDE,
L’agriculture dans les pays d’Europe méditerranéenne, Paris, 1968; e World
Bank, Portugal. Agricultural Sector Survey, Washington, 1977.

39 M. V. Cabral, Materiais […], op. cit.

40 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.

41 Carlos Almeida e António Barreto, Capitalismo e Emigração em Portugal,


Lisboa, 1969. As estatísticas nacionais relativas a tractores nem sempre
merecem muito crédito. Com efeito, registam-se os tractores segundo o local de
venda e não o destino. Lisboa estaria assim sobrestimada.

42 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.

43 Idem, ibidem.

44 OCDE, L’agriculture […], op. cit.; Carlos Portas, «O Alentejo», in Análise


Social, 18, Lisboa, 1967; e Estatísticas Agrícolas, INE, Lisboa.

45 Ministério da Agricultura e Pescas, Rapport de la Commission Nationale de la


FAO, Lisboa, 1977, e OCDE, L’agriculture […], op. cit.

46 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit., e Ministério da Agricultura e Pescas,


op. cit.

47 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.

48 E. C. Caldas, ibidem, e Armando Rego Ribeiro Santos, A Agricultura no


Alentejo e no Ribatejo. Aspectos da Sua Evolução de 1950 a 1970, Gabinete de
Estudos Rurais, Lisboa, 1980.

49 Adérito Sedas Nunes, Sociologia e Ideologia do Desenvolvimento, Lisboa,


1968.

50 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.; Ministério da Agricultura e Pescas,


Rapport […], op. cit.; e M. V. Cabral, Portugal […], op. cit.

51 E. C. Caldas, A Agricultura […], op. cit.; Júlio Martins, Estruturas Agrárias em


Portugal Continental, Lisboa, 1973; e Manuel Vilaverde Cabral, «Agrarian
Structures and Rural Movements in Portugal», in Journal of Peasant Studies,
Londres, 1978.

52 A. S. Nunes, Sociologia […], op. cit.; António Barreto, Terra de Revolução,


Lisboa, 1981; Maria João da Costa Macedo, As Estruturas Agrárias e o Sector
Agrícola no Continente e na ZIRA, Lisboa, 1981; e A. R. R. Santos, A Agricultura
[…], op. cit.

53 A. Barreto, Terra […], op. cit.; Instituto Nacional de Estatística (publicações


diversas); Federação Nacional dos Produtores de Trigo (publicações diversas); e
José Hipólito Raposo, Dos Princípios à Chamada Reforma Agrária, Lisboa, 1977.

54 José Pacheco Pereira, Conflitos […], op. cit.


CAPÍTULO III

A REGIÃO

A região de que aqui se fala inclui o Alentejo e uma parte


do Ribatejo. Desde 1976 que esta região é designada por
Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA), cujos
limites marcaram o âmbito de aplicação das leis fundiárias.
A ZIRA compreende a totalidade dos quatro distritos
alentejanos (Beja, Évora, Portalegre e Setúbal), assim
como vários concelhos dos distritos de Lisboa, Santarém e
Castelo Branco, além de umas poucas freguesias do
distrito de Faro. Pelo seu significado histórico, são
frequentes as referências à ZIRA como se apenas do
Alentejo se tratasse55.
A região é pouco acidentada, com planícies e
peneplanícies geralmente abaixo dos 300 m a 400 m.
Raras altitudes ultrapassam os 600 m. Apesar da presença
do Tejo e do Guadiana (além de outros rios de menor
caudal, como o Sado, o Caia e o Sorraia), os cursos de
água não são numerosos.
O clima mediterrânico, em associação com influências
atlânticas, é dominante: grande irregularidade, seca no
Verão e chuvas no Inverno (por vezes torrenciais), mas
sobretudo chuvas irregulares. Os solos são geralmente
pobres e por vezes muito arenosos. Os rios têm também
regimes irregulares56.
Apesar dum certo número de características comuns, a
região (ou mesmo o Alentejo) não é ecologicamente
homogénea. Tanto as curvas de temperatura e de
precipitação como a composição dos solos são bastante
variáveis. Poder-se-iam mesmo distinguir quatro regiões
naturais específicas, além de microrregiões particulares.
Todavia, a história tem feito um todo desta variedade. As
condições agrárias e agrícolas, assim como as produções,
foram-se aproximando ao longo dos tempos. Para além do
clima e da geologia, os homens e as suas técnicas
unificaram a região57.
Do ponto de vista da fertilidade e da aptidão, a qualidade
média dos solos é medíocre. A classificação das
capacidades revela que apenas 31% se situam nas três
primeiras categorias (excelentes, bons e médios). Os
restantes 69% são medíocres ou impróprios para a
agricultura. Os esforços destinados a melhorar esta
situação não têm sido, até hoje, muito produtivos: apenas
5% dos solos são irrigados e uma ínfima parte deles foram
submetidos a trabalhos de drenagem. Os trabalhos do
«Plano de Rega do Alentejo», desde os anos 1950, foram
lentos e nem sempre bem adaptados às condições locais.
As grandes obras de engenharia tiveram resultados
agrícolas e sociais bem modestos.
A pobreza dos recursos naturais e o fraco
desenvolvimento económico contribuíram para a
sobreexploração dos solos. No princípio dos anos 70, as
superfícies agrícolas são muito mais vastas do que aquelas
com uma real capacidade agrícola, facto que está na
origem de más produtividades58.
Solos com aptidão
Superfícies agrícolas
agrícola, em
efectivamente cultivadas, em
Distritos percentagem das
percentagem das superfícies
superfícies produtivas do
produtivas do distrito
distrito

Beja 14 82

Évora 10 68

Portalegre 22 68
Setúbal 12 58

Apesar de nem tudo poder ser mudado ou totalmente


transformado, a verdade é que o regadio poderia modificar
consideravelmente os níveis de fertilidade e de
produtividade. Ora, os solos regados em cada distrito são
de reduzida dimensão: 2,5% em Beja; 2,7% em Évora;
4,2% em Portalegre. Santarém, com 11,3%, faz figura de
excepção. No seu conjunto, a região tem os mais baixos
índices do País, cuja média nacional é de cerca de 14%59.
Além do regadio, outros processos e culturas poderiam
melhorar a utilização e a conservação de recursos: a
drenagem, os prados permanentes, o desenvolvimento das
forragens e mesmo certos desenvolvimentos adequados
da silvicultura. Mas estas orientações não têm merecido,
até hoje, atenção ou esforços suficientes. Até o estudo das
condições locais e a investigação experimental foram
insuficientes.
A região partilha com o resto do País, e exceptuando as
grandes áreas metropolitanas, o estado geral de fraco
desenvolvimento. Em certo sentido, o pólo industrial de
Setúbal não pertence à região, antes está ligado a Lisboa,
constituindo uma das duas mais fortes concentrações
industriais do País. Todavia, desde o século passado,
desempenhou um importante papel regional, ao assegurar
o emprego para os muitos que durante décadas foram
abandonando a agricultura.
Na restante área da região encontram-se
esporadicamente algumas unidades industriais modernas
que para lá foram à procura de mão-de-obra barata, como
por exemplo a montagem de automóveis em Vendas Novas
ou os electrodomésticos em Évora. Também algumas
unidades, relativamente modernas, utilizam matérias-
primas locais: concentrado de tomate, óleos, fruta e pasta
para papel, por exemplo. Entre as actividades industriais
mais tradicionais, mencionem-se os tapetes, o azeite e as
conservas de alimentos. Os mármores são, na zona de
Estremoz e Vila Viçosa, uma importante fonte de
rendimento e de emprego. Outros recursos, mineiros, como
as pirites de Aljustrel, prometem um desenvolvimento
razoável, mas a sua exploração intensa apenas começa
agora.
O produto industrial representa apenas 36% do produto
bruto regional e ainda por cima é gerado essencialmente
em Setúbal. Sem este, o produto industrial da região não
ultrapassa os 10% do produto bruto.
A região é, portanto, essencialmente agrícola. O
«montado», de sobro ou de azinho, constitui um dos seus
traços mais característicos, visível na paisagem e bem
presente na economia. O sobreiro domina a oeste,
enquanto a leste reinam a azinheira e a oliveira. O pinheiro
não está muito presente, mas já o eucalipto se tem
expandido rapidamente, durante as duas últimas décadas,
graças ao aumento da procura industrial.
A vinha encontra-se sobretudo no Ribatejo, mas ainda,
bem delimitada, em Palmela, Borba, Vidigueira, Redondo e
Reguengos, além de outras manchas, como em Évora,
Granja ou Ourique. As condições ecológicas são favoráveis
à vinha, que se encontra agora em franco crescimento,
mas razões históricas limitaram o seu desenvolvimento. O
milho, por seu lado, só com os regadios modernos
começou a ser cultivado na região em áreas e volumes
significativos.
Ao lado do «montado», o outro fenómeno marcante da
região é a monocultura cerealífera extensiva e de sequeiro:
trigo à cabeça, mas também as aveias e as cevadas. O
arroz, cuja expansão é moderna, é muito estimado pelos
agricultores, dado o seu rendimento, mas a sua superfície
cultivada é reduzida, encontrando-se condicionada pelos
regadios e pelos estuários.
Se o «montado» e o cereal, associados na grande
propriedade, predominam no que se poderia chamar o
«coração do Alentejo», a sua área central e mais vasta,
outras regiões, com algumas características próprias,
merecem ser mencionadas. A península de Setúbal está
dividida em duas partes: uma industrial e urbana, outra
ocupada com a vinha e a horticultura. O Ribatejo (ou o que
dele está incluído na ZIRA), com uma agricultura mais
intensiva e regada, onde não é raro encontrar, além da
vinha, da horticultura e das forragens, muito gado e fruta.
A pequena e média agricultura, também intensiva, apoiada
na vinha e no olival, está bem presente a nordeste,
próximo de Elvas, mas também no litoral oeste.
Finalmente, as regiões montanhosas das serras do Algarve
e de Mértola, em condições ecológicas e agrícolas bem
desfavoráveis.
Com uma superfície de 3,6 milhões de hectares, ou seja,
42% do País, a região é apenas habitada por 1,3 milhões
de pessoas, ou seja 16% da população nacional. A sua
densidade demográfica, 36 pessoas, é muito inferior à
média nacional, que é de 93.
Há 30 anos que o Alentejo perde população, o que traduz
bem o fraco desenvolvimento económico e a forte
dependência da agricultura. Sem contar a parte
industrializada de Setúbal, a região perdeu, entre 1951 e
1970, perto de 200 000 habitantes. Poucas vilas ou
cidades com população superior a 10 000 habitantes
podem ser mencionadas: Évora, Beja, Portalegre, Elvas e,
já nas margens, Castelo Branco e Santarém. Setúbal, a
maior de todas, é caso à parte; enquanto a cintura
industrial de Almada, Barreiro e Seixal, sendo embora da
margem esquerda, pertencem a Lisboa.
Do ponto de vista das características demográficas, no
princípio dos anos 70, a região não difere muito das
médias nacionais: 35% têm mais de 45 anos, o que é só
um ligeiro envelhecimento relativo.
Já o índice de ruralidade, 85% do total, está muito acima
da média de Portugal.
A população activa é de cerca de 520 000 pessoas, seja
40% do total. A sua distribuição é a seguinte: indústria,
28%; agricultura, 40%; serviços, 32%. Mas nos distritos de
Évora, Beja e Portalegre os índices de população activa
agrícola são de 49%, 62% e 57%, respectivamente, o que
revela bem a preponderância rural.
Quanto à situação na profissão e nas classes sociais,
podiam distinguir-se, nas mesmas datas, os seguintes
grupos: patrões, 2%; agricultores autónomos ou
camponeses, 13%; classes médias urbanas, 5%;
assalariados industriais e rurais, 80%. A forte clivagem
social é ainda mais visível na população agrícola: 2% de
patrões; 15% a 25% de agricultores; 75% a 83% de
assalariados. Autores há que consideram mais vasto o
grupo dos camponeses e autónomos, cerca de 40% do
total60. De qualquer modo, a preponderância dos
assalariados, em termos quantitativos, é inequívoca.
O habitat é concentrado em aldeias fechadas, compactas
e distantes umas das outras. Os «montes» esvaziam-se ao
longo dos últimos 20 a 30 anos: tanto os proprietários
como os trabalhadores preferem ou são forçados a viver
nas aldeias e nas vilas ou cidades. Com estas
características, é previsível que a rede de comunicações
não seja muito densa, o que está conforme ao habitat
concentrado, aos sistemas agrícolas extensivos e às
estruturas agrárias da grande propriedade.
A região, com 41% da superfície nacional, 52% da
superfície cultivável e 45% da área cultivada nacional,
apenas contribui com 29% do produto agrícola nacional.
Sem grande capacidade industrial, o peso económico da
região é igualmente fraco: apenas 19% do produto interno.
Por volta de 1970, a região fornece ao País 30% dos seus
produtos vegetais, 32% da madeira e produtos da floresta,
26% do gado e 14% dos vinhos. Para alguns produtos, a
parte regional é todavia bem mais significativa: 94% da
cortiça, 79% do arroz, 71% da aveia e da cevada, 68% do
trigo e 61% do azeite.
Os rendimentos monetários (em milhares de escudos de
1970) por hectare de terra cultivada confirmam as
debilidades económicas da região: Beja, 1,7; Évora, 2,0;
Portalegre, 2,1; Setúbal, 3,0; Santarém, 4,1; enquanto
Lisboa regista 9,0 e a média nacional é de 3,5.
Já os rendimentos monetários por unidade de trabalho
(ano/homem) revelam uma situação inversa, quer dizer,
todos os distritos da região registam valores (entre 43
000$ e 51 000$) superiores aos nacionais (37 000$).
Noutras palavras, a agricultura regional revela, no contexto
nacional, um sistema menos intensivo, mas
tecnologicamente mais evoluído, quer dizer, no caso
presente, mais mecanizado61.
Tradicionalmente, o produto por activo situa-se, no
Alentejo, acima de quase todos os outros distritos. Mas tal
não é o caso dos salários: os rendimentos do trabalho
desta região são, juntamente com os quatro distritos do
Norte, os mais baixos do País.
Em termos absolutos, os rendimentos físicos das culturas
da região, assim como do País inteiro, são geralmente
medíocres, com as notórias excepções do arroz e do
tomate. A produtividade do trigo é uma ilustração
adequada62:
Quintais/hectare

Séculos XIV a XVI 6

Fim do século XIX 7a8

1920-1924 8,7

1920-1950 9,2

1952-1956 8,1

1964-1966 7,6

1970-1972 10,2
Estes valores traduzem mudança e acréscimos de
produtividade. Mas é difícil considerar que se trata de reais
progressos. Num período tão longo e tendo em conta a
evolução geral da agricultura e das técnicas, os aumentos
ficam aquém das possibilidades e são insuficientes para
satisfazer as necessidades nacionais, dos agricultores, das
empresas ou dos assalariados. E se é certo que as
condições naturais da região não são as mais favoráveis
para a cultura do trigo, também é verdade que aquelas
baixas produtividades revelam uma utilização reduzida das
sementes melhoradas, dos adubos e outros agro-químicos.
Uma certa estagnação, ou uma evolução excessivamente
lenta, parece ter sido a característica marcante. Não se
efectuou a necessária reconversão agrária. As causas são
diversas: o clima desfavorável, a pobreza de recursos e de
meios de investimento, as estruturas sociais e agrárias, o
sistema político, a ausência de conhecimentos técnicos e
de investigação, a deficiente formação do empresário e
dos técnicos e as políticas agrícolas e económicas. É na
conjunção destes factores que se devem encontrar as
causas da situação social e económica que se vivia no
Alentejo de 1974.
O sistema tinha, obviamente, os seus privilegiados. À
cabeça, a grande propriedade, o «latifúndio» da linguagem
corrente, directamente ligado à agricultura extensiva e
gerador da proletarização. Associando métodos
tradicionais e contributos tecnológicos modernos, a grande
exploração alentejana tinha iniciado, desde os anos 50, um
processo de mudança, no qual avulta a mecanização. Esta
era uma realidade na província desde os fins do século XIX,
mas limitada às empresas de vanguarda. Em meados do
século actual, este tipo de modernização generalizou-se,
ou, antes, acelerou o ritmo. Entre 1950 e 1974, o número
de tractores passou de 2600 a mais de 16 000. Já a
utilização de adubos, de pesticidas e de herbicidas ficou
muito aquém das médias europeias.
Esta evolução tecnológica recente inscreveu-se no
quadro de um crescimento económico geral, tanto nacional
como europeu. O crescimento nacional conheceu mesmo,
durante os anos 60, taxas da ordem dos 5% a 7% (e 9% a
10% para a indústria), superiores às dos países vizinhos.
Mesmo sem dinâmica própria de desenvolvimento, a
agricultura foi arrastada, só conhecendo todavia taxas
anuais da ordem dos 0,5% a 0,9%.
A mudança na agricultura alentejana foi real, mas
efectuou-se sem pôr em causa as estruturas sociais e
agrárias, nem os sistemas de produção. Por causa da
mecanização, muitos trabalhadores abandonaram os
campos e boa parte deles dirigiu-se para o estrangeiro. A
industrialização, a construção e as obras públicas
contribuíram para o êxodo rural, de modo que se assistiu
mesmo a um declínio da população. Por outro lado, os
regadios e algumas novas culturas, como o tomate,
aumentaram os períodos de ocupação da força de
trabalho. Deste conjunto de factores resultou um aumento
de salários rurais como a região nunca tinha conhecido
antes.
Nas vésperas da revolução, o Alentejo não gozava
certamente de uma situação de prosperidade e
desenvolvimento. Mas o desemprego e a miséria
tradicionais tinham-se consideravelmente esbatido. As
carências de mão-de-obra nos períodos de ponta eram já
uma realidade e constituíam o principal problema dos
empresários. Nesta situação, os salários aumentaram mais
do que qualquer outro factor de produção. O período que
vai de 1965 a 1974 é certamente aquele que, na história
moderna do Alentejo, mais benefícios trouxe aos
trabalhadores alentejanos.
Mantinham-se todavia as estruturas sociais, fundiárias e
empresariais. A distribuição da propriedade continuava a
ser a principal fonte de clivagem social. Portugal, e muito
particularmente o Alentejo, registava a mais forte
concentração de terra de toda a Europa mediterrânica63.
Em 1960-1970, o panorama da distribuição desequilibrada
da terra era o seguinte (em percentagem):
Portugal Alentejo
Explorações agrícolas
Número Superfície Número Superfície

Menos de 20 ha 96,6 38,7 86,2 8,0

De 20 a 100 ha 2,8 16,1 8,3 9,5

Mais de 100 ha 0,6 45,2 5,5 82,5

Cerca de 95% das explorações com mais de 200 ha estão


situadas na região. Nalguns distritos, metade dos solos
agrícolas pertencem a poucas dezenas de proprietários
possuindo herdades com mais de 1000 ha64.
Número de herdades com Percentagem da superfície
Distritos
mais de 1000 ha agrícola do distrito

Beja 117 29

Évora 138 64

Portalegre 95 43

Setúbal 47 41

A grande exploração domina também a produção:


segundo os distritos, a pequena agricultura só representa
15% a 30% da produção.
Quanto aos sistemas de uso e posse da terra, note-se a
particular importância do arrendamento65. Em 1970, este
tocava quase metade das terras agrícolas de Beja (46%),
Portalegre (44%) e Évora (40%), enquanto esse valor para
o conjunto do País era de 29%. Acrescente-se que, no Sul,
o arrendamento se pratica sobretudo na grande
propriedade. No Noroeste, pelo contrário, é o recurso da
pequena agricultura.
No princípio dos anos 1970, existiam de certo modo dois
sectores de grande propriedade. Um, moderno, formado
por verdadeiras empresas capitalistas que recorriam aos
inputs tecnológicos modernos, possuíam frequentemente
as suas próprias estruturas de comercialização e incluíam
por vezes até instalações industriais de transformação dos
produtos alimentares. A diversificação da produção era
crescente: além dos cereais tradicionais, tinham cada vez
mais importância o arroz, a horticultura, o gado, a
fruticultura e a vinha. Este sector não era dominante, do
ponto de vista da superfície, mas vinha-o sendo pelo peso
económico, pelo seu papel inovador e pela sua influência
política e social.
O outro sector, o do «latifúndio» tradicional, produzia
também para o mercado e recorria a trabalho assalariado,
não sendo por isso menos capitalista. Mas confiava mais
na extensão do que no investimento. A integração
comercial e industrial era praticamente nula. Continuava a
preferir-se a cultura cerealífera extensiva e a exploração
do «montado». Este último fornecia lucros atraentes, com
custos relativamente baixos. Uma boa parte destes
proprietários alugavam as suas terras, guardando por
vezes apenas para si o produto do sobreiro.
A grande maioria dos proprietários, latifundiários ou
empresários não vivia nas explorações, nos «montes», mas
sim nas vilas e cidades. Um número razoável vivia em
Lisboa e fazia visitas esporádicas às propriedades, onde os
«feitores» e «encarregados» tratavam da gestão
quotidiana e detinham o saber técnico.
O estado de desenvolvimento das explorações era muito
diverso, desequilibrado mesmo. A modernização tinha
tocado sobretudo as terras regadas e as de melhor
qualidade; havia herdades muito bem cultivadas, outras
francamente subaproveitadas; umas utilizando as técnicas
mais modernas, outras trabalhando com os métodos de há
30 ou 50 anos66.
O subaproveitamento geral não era apenas o resultado
de uma atitude irracional do proprietário, «conservador e
preguiçoso, pouco consciente dos seus interesses».
Estudos recentes desmentem esta imagem tradicional do
«latifundiário»: desde o século XIX que os proprietários
tomavam as suas decisões económicas e técnicas de
acordo com os seus interesses e os da sua empresa67. A
mecanização, por exemplo, foi tardia porque não se
impunha como economicamente necessária, no contexto
dos preços dos factores de produção e do regime de
preços do produto. O problema não é, todavia, o da
racionalidade dos empresários, é antes o sistema
produtivo e social que deve ser interrogado. O nível de
salários, por exemplo, não é um dado «natural», depende
da acção sindical, inexistente durante quase 50 anos.
De toda a maneira, as «culpas» dos empresários e dos
proprietários não são aqui objecto de análise nem de juízo.
E a racionalidade do seu comportamento económico é bem
menos interessante do que as condições gerais em que as
suas decisões eram tomadas: dimensão do mercado,
preços das máquinas e dos adubos, regimes de preços e
de subsídios para os cereais e níveis de produtividade das
culturas.
As grandes obras de infra-estrutura, o regadio, a
drenagem e as vias de comunicação, cujo
desenvolvimento abriria as portas à intensificação agrícola
e à alteração das condições gerais do cálculo económico
empresarial, não poderiam estar a cargo apenas ou
sobretudo dos proprietários. O seu principal promotor
deveria ser o Estado. Será pois nas suas políticas que se
deverá procurar detectar boa parte da lógica do sistema
de produção.
O regime político (e, num sentido mais lato, o sistema
social) foi a garantia da estabilidade da propriedade e da
extensão da terra, assim como da abundância e da
«docilidade» do trabalho. O acesso aos dois factores de
produção, nestas condições de facilidade e de
tranquilidade, constituiu um dos pilares do sistema agrário.
Também é verdade que os empresários e os proprietários
procuraram frequentemente lucros rápidos com custos
sociais mínimos. Foi, por exemplo, o que aconteceu com a
introdução do tomate industrial: as características do
produto e do mercado eram uma boa oportunidade para
uma amortização pronta e para benefícios rápidos. Com a
nacionalidade adaptada às circunstâncias, os agricultores
reagiram favoravelmente, aproveitando especialmente os
salários baixos.
Finalmente, a rede social dos proprietários desempenhou
certamente um papel importante. Próxima do Alentejo,
Lisboa era um ponto de referência permanente. O poder
político era-lhes acessível e mostrava-se dócil. A maioria
dos proprietários de razoável dimensão tinha outras
profissões e outras fontes de rendimento, na finança, na
indústria e no comércio. Era socialmente gratificante ter
residências em Lisboa, parentes que trabalhavam na
capital e filhos que lá faziam os seus estudos. A classe dos
proprietários alentejanos, cuja maioria não era certamente
composta de ociosos que apenas viviam de rendimentos,
pertencia pouco ao Alentejo. Retirava de lá uma parte dos
seus benefícios, por vezes nem sequer a maior parte, e
procurava oportunidades para investimentos mais
lucrativos do que na agricultura. Estas iam aparecendo, e
mais rapidamente a partir dos anos 50, no imobiliário, na
indústria, nos seguros, na banca e na bolsa. Curiosamente,
os grandes investimentos feitos na agricultura durante os
últimos 20 anos foram de origem urbana, industrial ou
comercial, ou mesmo estrangeira. Algumas das sociedades
agrícolas importantes criadas ou desenvolvidas
recentemente, e que foram as pioneiras do moderno
capitalismo agrícola, não pertenciam a velhos agricultores
ou a famílias tradicionais do Alentejo. Foram investimentos
novos na região, que começavam, aliás, pela compra de
propriedades ou pelo arrendamento de grandes extensões.
E certos casos de projectos modernos de velhas famílias
alentejanas eram ainda uma espécie de regresso à terra,
raramente uma presença continuada.
Do outro lado, os assalariados, a maior parte da
população activa da região. Os temporários, cerca de dois
terços do total, eram mais do que os permanentes. Estes
últimos, com a garantia de trabalho, eram uma espécie de
privilegiados. Com efeito, o desemprego e o subemprego
foram sempre o mais importante elemento da «questão
agrária», talvez mais do que a terra propriamente dita. O
sistema de culturas obrigava a fortes procuras de trabalho
sazonais. A maior parte dos trabalhadores, até à década de
1950, não conseguia mais do que 150 a 180 dias de
emprego por ano, as mulheres ainda menos. Mesmo o
Governo salazarista se preocupou com esta situação e
criou uma «comissão de obras públicas rurais». O seu
objectivo era coordenar esforços oficiais, a fim de criar
postos de trabalho para os desempregados68. Em 1956, por
exemplo, a comissão terá assegurado 2500 empregos por
dia, só no distrito de Beja. Apesar destes resultados, a
própria comissão avaliava em 800 000 homens/dia de
trabalho por ano o desemprego não absorvido no distrito.
No seu relatório, vai ao ponto de afirmar que o
desemprego sazonal se agravou e corre o risco de se
transformar em desemprego permanente.
Era assim o emprego a principal preocupação dos
trabalhadores alentejanos. Tanto a estabilidade como a
quantidade. Uma e outra, a partir dos anos 60, foram mais
fáceis de encontrar nas cidades, no estrangeiro, nas
«obras» ou na indústria.
Este sistema social e agrário, caracterizado por
comunidades rurais distantes, pela presença diminuta de
camponeses e de explorações familiares, por uma
agricultura errante e com pouca segurança, criou um
proletariado rural fragilmente enraizado nas aldeias, nas
comunidades ou nas empresas. O objectivo de uma vida
era o emprego, não a terra e a sua divisão. Com excepção
de dois episódios localizados (em Barbacena e em Vale de
Santiago, no princípio do século), a reivindicação de terra é
tradição desconhecida na região. Desde os princípios do
século que o movimento anarco-sindicalista, bem
implantado no Alentejo, reclamava o emprego e o
salariado, criticando ferozmente os que alimentavam
sonhos pequeno-burgueses sobre a divisão de terras e as
delícias da exploração camponesa. Mais tarde, nos anos
50, não se pode dizer que tenham tido grande sucesso os
projectos de reforma agrária do Partido Comunista, que
previam a divisão de todas as terras em parcelas de 20 ha.
Tais projectos não ficaram na memória de ninguém, nem
sequer do PC.
A verdade é que a população do Alentejo nunca teve
grandes tradições camponesas, não foi desapossada das
suas terras (como aconteceu noutras paragens, por
exemplo na América Latina e mesmo em certas áreas de
Espanha). A memória camponesa e a tradição milenária
estão ausentes69. Aliás, quando as terras foram apropriadas
por privados, durante o século XIX e mesmo na primeira
metade do século XX, não se tratava de terras camponesas,
mas sim de bens comuns e baldios, explorados de modo
privado e servindo sobretudo à pastagem e à floresta.
Para além destas razões históricas, os assalariados
alentejanos parecem ter tido consciência das dificuldades
da agricultura na região e das condições ecológicas
desfavoráveis. Sem meios de intensificação, sem obras de
infra-estrutura e de regadio, a pequena agricultura
camponesa é um risco de ruína tão rápida ou mais do que
o salariado.
Por outro lado, o proletário rural é um homem
especializado em algumas tarefas (conduzir um tractor,
arrancar cortiça, por exemplo), ou um operário de serviços
gerais e indiferenciados disponível para todas as
operações próprias ao sistema extensivo. Ora, as funções
de um camponês ou de um agricultor autónomo exigem
conhecimentos diversificados e seguros. Deve ser um
pouco de tudo: agricultor, contabilista, artesão,
comerciante e veterinário; sem contar as múltiplas
exigências técnicas de uma agricultura diversificada: o
gado, a fruta, os cereais, o vinho, o azeite, o queijo, a
horta, o fumeiro…
Os pequenos agricultores alentejanos eram homens
deste género, só que não eram muitos neste Alentejo que
conhecia sobretudo os ricos e os pobres e muito pouco os
remediados. Proprietários, rendeiros ou seareiros, eram
uns poucos milhares que faziam pela vida, que não
queriam emprego, mas terra, e que também eles ficavam
na dependência dos grandes proprietários.

55 Nem sempre é possível dispor de estatísticas para a ZIRA, dado que esta não
corresponde a uma divisão administrativa. Segundo os dados disponíveis,
referir-me-ei à ZIRA, ao Alentejo ou aos distritos que deles fazem parte.

56 Para este capítulo utilizo numerosas fontes primárias e secundárias. Além


das publicações do Instituto Nacional de Estatística, devo citar: Afonso de
Barros, A Reforma Agrária em Portugal, Oeiras, 1979; Júlio Silva Martins, As
Estruturas Agrárias em Portugal Continental, Lisboa, 1973 e 1975; Eugénio
Castro Caldas, A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária, Oeiras,
1978; Armando Rego Ribeiro dos Santos, A Agricultura no Ribatejo e no Alentejo,
Lisboa, 1980; Michel Drain, Occupations de terres et expropriations dans les
campagnes portugaises, Paris, 1982; Carlos Portas, «O Alentejo: situação e
perspectivas socioeconómicas», in Análise Social, n.º 18, Lisboa, 1967; Carlos
Almeida e António Barreto, Capitalismo e Emigração em Portugal, Lisboa, 1969;
Almeida Alves, O Problema da Fertilidade na Agricultura do Sul, vol. 1, Lisboa,
1961, e vol. 2, Lisboa, 1979; e, finalmente, as obras indispensáveis de Maria
João Costa Macedo, do Gabinete de Estudos Rurais: As Estruturas Agrárias e o
Sector Agrícola no Continente e na ZIRA, Lisboa, 1981, e Produções, Áreas
Semeadas e Rendimentos dos Principais Produtos Agrícolas nos Concelhos e
Distritos da ZIRA, Lisboa, 1980. As principais obras geográficas de carácter geral
que utilizei são: Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa,
1968, e Mariano Feio, Le Bas Alentejo et l’Algarve, Lisboa, 1949.

57 C. Portas, op. cit.

58 Ministério da Agricultura, Rapport de la Commission Nationale de la FAO,


Lisboa, 1977, e C. Portas, op. cit.

59 A. R. R. Santos, op. cit., e INE, Recenseamento Agrícola, 1979, Lisboa, 1984.


60 A. Barros, op. cit.

61 Mário Pereira, A Estrutura Agrária Portuguesa (1968-1970), Oeiras, 1979.

62 C. Portas, op. cit., e OCDE, L’agriculture dans les pays de l’Europe


méditerranéenne, Paris, 1968.

63 OCDE, op. cit.

64 Ministério da Agricultura, op. cit.

65 A. Barros, op. cit.

66 A. Barros, op. cit., e M. Drain, op. cit.

67 Jaime Reis, «Latifúndio e progresso técnico no Alentejo», in Análise Social, n.º


71, Lisboa, 1982; Maria da Conceição Andrade Martins et al., Os Senhores da
Terra. Diário de Um Agricultor Alentejano no Século XIX, Lisboa, 1982; A. Barros,
op. cit.; e M. Drain, op. cit.

68 Comissão Coordenadora de Obras Públicas no Alentejo, Relatório da CCOPA,


Lisboa, 1957.

69 Sobre a situação dos assalariados rurais alentejanos, ver em particular: Mário


de Castro, Alentejo, Terra de Promissão, Lisboa, 1933; J. A. C. de Vasconcelos, A
Colonização do Alentejo, Elvas, 1884; Paulo de Morais, «Inquérito agrícola:
estudo geral da economia da sétima região agronómica», in Boletim da
Direcção-Geral de Agricultura, Lisboa, 1889-1890; e José Pacheco Pereira,
«Atitudes do trabalhador rural alentejano face à posse de terra e ao latifúndio»,
in A Agricultura Latifundiária na Península Ibérica, Oeiras, 1981.
CONCLUSÕES DA PRIMEIRA PARTE

A literatura neo-realista e a mitologia política fizeram do


Alentejo a «terra de promissão» e a «planície heróica».
Durante muito tempo, e ainda hoje, quase não foi possível
pensar ou falar do Alentejo sem paixão. Até o nome é
frequentemente tido como sinónimo de sofrimento e de
opressão e, por isso mesmo, de epopeia e de redenção.
Apesar dos excessos e dos maniqueísmos romanescos,
autores e militantes tiveram algumas razões, ou, antes,
motivos. À maior parte dos seus habitantes, a região não
ofereceu segurança nem bem-estar suficientes. Ao longo
dos anos, os que iam triunfando eram, em geral, os que
iam partindo.
A pobreza relativa de recursos naturais, o domínio
indiscutível da grande propriedade e um nível muito
elevado de proletarização são os traços mais salientes
desta região. Durante as últimas décadas, um fenómeno
se impõe como característica permanente numa longa
evolução do sector agrícola: a estagnação económica e um
crescimento da produtividade demasiado lento. Uma e
outro tocam tanto a agricultura nacional como regional.
Ambos continuam evidentes, mesmo se outras mudanças
importantes (emigração, industrialização e urbanização)
ocorreram na sociedade.
Várias causas, coincidentes no tempo ou sucessivas,
explicam o medíocre progresso técnico e económico.
Todavia, nem todas são exclusivas da região e das suas
estruturas agrárias. Com efeito, a mediocridade dos
resultados é de carácter nacional. É o sistema agrícola de
conjunto que é fonte da subutilização dos recursos naturais
e humanos: a pequena agricultura minifundiária e
camponesa do Norte, a grande agricultura capitalista do
Sul, ambas estreitamente ligadas pelas estruturas sociais
do País, pelas políticas económicas e agrícolas e pela
situação de Portugal no conjunto económico europeu.
Entre os factores de estagnação, a pobreza de recursos
naturais não é dos menores: por isso os obstáculos ao
melhoramento de produtividade são reais. No entanto, as
potencialidades estão longe de estar esgotadas, mas a sua
exploração exige fortes intervenções de conjunto e
exteriores à economia agrícola. Noutros termos, são
necessários os grandes trabalhos de infra-estrutura, as
obras públicas e os investimentos de carácter social. Quer
isto dizer: projectos e investimentos estatais. Ora, o Estado
tem feito muito pouco. Durante anos, as suas prioridades
foram outras: ora a austeridade monetária, ora o
desenvolvimento industrial, ora ainda as comunicações. As
suas intervenções agrárias favoreceram geralmente
grupos restritos já privilegiados. Também é verdade que,
durante os primeiros anos do anterior regime, os recursos
financeiros eram insuficientes. Mas, logo que estes
aumentaram, as opções políticas não foram favoráveis ao
desenvolvimento agrícola.
As estruturas agrárias e fundiárias revelaram um grande
imobilismo. No Sul, a grande propriedade domina desde
sempre. O capitalismo agrário desenvolveu-se, a partir do
século XIX, com base na grande propriedade. Nem a
empresa (em oposição a propriedade), nem a média
exploração, desempenharam um papel importante no
crescimento da economia agrária mercantil. Os bens da
coroa, das ordens religiosas e de uma boa parte da antiga
aristocracia foram directamente adquiridos pelas novas
burguesias rurais e urbanas. Em certo sentido, o monopólio
social da terra manteve-se.
Na posse de dois factores de produção abundante, a área
e a força de trabalho barata, os proprietários investiram
lentamente e só muito tardiamente modernizaram as suas
empresas. Aliás, neste último caso, fizeram-no em geral
sob a pressão da emigração e da urbanização, isto é, do
encarecimento e da rarefacção da mão-de-obra. E, mesmo
nestas condições, a modernização não se generalizou.
Antes do investimento e do desenvolvimento das suas
empresas, os proprietários tinham ainda duas preferências:
a cortiça e o arrendamento.
Durante a segunda metade do século XIX, a agricultura
tinha conhecido um período de crescimento graças a boas
oportunidades de exportação. Mas, na ausência da
industrialização, o crescimento esgotou-se rapidamente e
pouco contribuiu para o desenvolvimento geral. As
deficiências da industrialização tiveram várias
consequências negativas para a agricultura: no
fornecimento de factores de produção a preços acessíveis;
no alargamento do mercado; no fomento de um eficiente
sistema de transportes; e na redução da pressão
demográfica através do emprego nas indústrias.
Mais tarde, desde o princípio dos anos 1960, verificou-se
um notável crescimento industrial, ligado às perspectivas
de exportação para os países europeus. Esta evolução, em
conjugação com a emigração, provocou importantes
mudanças no mundo rural, em particular de carácter
demográfico. Estas foram todavia limitadas, dado o
imobilismo das estruturas agrárias, sociais e fundiárias. Por
outro lado, a industrialização extrovertida repousava pouco
no alargamento do mercado interno, tanto de factores de
produção como de produtos alimentares diversificados e
industrializados.
O nível médio de educação e de formação técnica e
profissional dos agricultores e dos proprietários é muito
baixo e constitui outro obstáculo ao desenvolvimento.
Também é verdade, no entanto, que pequenos grupos de
empresários mais modernos e educados souberam inovar
e investir, especialmente nos últimos 20 anos antes da
revolução de 1974. Assim se criou um sector de
capitalismo agrícola moderno, coexistindo com o sector
latifundiário e extensivo mais tradicional. Os factores
genéticos deste sector moderno são geralmente exteriores
ao mundo rural: capitais financeiros ou comerciais, novos
empresários urbanos, investimentos estrangeiros e
perspectivas rendíveis de exportação.
Noutros termos, e de modo mais geral, as fontes de
mudança na agricultura e no mundo rural foram sobretudo
exteriores: emigração, industrialização, urbanização e
investimento agro-comercial. Esta é uma das causas da
coincidência da mudança (particularmente demográfica)
com a estagnação (da produção e da produtividade). Como
também está na origem do agravamento do dualismo da
economia e da agricultura: um reduzido sector de
vanguarda e de modernidade cada vez mais afastado de
um arcaico sector tradicional.
O capitalismo agrícola (comercialização e salariado)
desenvolveu-se cedo e depressa, mas sem crescimento
notório do sector agrícola. Eis uma das origens do mal-
estar agrícola e rural de Portugal e do Alentejo. Eis
também uma das causas da insegurança e do desemprego
sazonal, os dois mais graves desequilíbrios da sociedade
alentejana.
Até aos anos 60, o desemprego ameaçava quase toda a
população rural. Só a emigração lhe pôs termo, por via do
emprego noutros sectores. A insegurança diminuiu
também, por causa das carências de mão-de-obra, do
desaparecimento do «exército de reserva» e dos aumentos
de salários. Por volta de 1974, mesmo se a prosperidade
não era grande, os assalariados do Alentejo acabavam de
viver, durante uma década, o período de maior bem-estar
de todo o século. Durante esse mesmo lapso de tempo, os
conflitos sociais são praticamente inexistentes.
Na maior parte dos trabalhadores, todavia, estava ainda
viva a memória colectiva de uma grande insegurança,
ancestral e recente. Como não tinham desaparecido nem a
certeza da sua condição, nem a percepção da profunda
clivagem social, ou da polarização da região. Em plena
revolução, estas perenes certezas vão contrastar com a
fragilidade dos benefícios colhidos durante os últimos
anos.
Segunda Parte

OS ACONTECIMENTOS
CAPÍTULO IV

A REVOLUÇÃO POLÍTICA
E A SITUAÇÃO SOCIAL

É verdade que os riscos eram enormes, mas o derrube do


regime foi fácil. As primeiras unidades rebeldes tiveram o
apoio de quase todas as outras nas primeiras 24 horas. Os
hesitantes telefonavam, na esperança de serem ajudados
a tomar uma decisão. A PIDE-DGS resistiu dois dias, sem
sucesso, mas provocou os mais graves incidentes do golpe
de Estado: dois mortos.
Os membros do Governo e outros dirigentes nacionais,
na sua maioria, abandonaram os seus postos e fugiram.
Alguns ficaram simplesmente em casa. Dois ou três
acompanharam Marcelo Caetano, primeiro na prisão,
depois na cortês deportação, finalmente no exílio.
Noutros termos, quase ninguém resistiu ou quis fazer
frente aos revolucionários. Os apoiantes do regime não
estavam disponíveis para o defender. As adesões às forças
rebeldes e ao curso democrático que se anunciava foram
maciças, pareciam unânimes, como se viu nas festas que,
durante dias, encheram as ruas.
O desejo de liberdade e a vontade de mudança vinham
de longe, apesar de impotentes ou ineficazes. Uma relativa
modernização da sociedade desde os anos 60, a morte de
Salazar e a frustração das expectativas que a abertura de
M. Caetano tinha suscitado tornavam populares as ideias
de mudança e de liberalização.
A guerra colonial arrastava-se. Parecia não acabar nunca,
o que descontentava civis e militares. As despesas
públicas estavam hipotecadas pela guerra. Até a abertura
política e cultural, prometida em 1969, desmentida em
1970, foi impedida pela guerra.
Nas forças armadas, o mal-estar era enorme. O Governo
não encontrava as soluções políticas que os militares
desejavam. Estes, além dos sacrifícios pessoais que
deviam fazer com a guerra, estavam excluídos do
crescimento económico que se registava na metrópole e
dos benefícios de uma relativa modernização. Além disso,
sentiam que os preparavam para ser, um dia, os bodes
expiatórios de soluções inevitáveis, o que poderia incluir
derrotas militares ou mesmo a perda de colónias.
Finalmente, em crise de recrutamento, o Governo cometeu
todos os erros possíveis no tratamento de várias questões
internas, como sejam as relações entre milicianos e oficiais
do quadro, ou entre oficiais superiores e jovens. Problemas
de geração e questões profissionais ou de corpo
misturaram-se com outros, de carácter político e cultural.
Milicianos, jovens das classes médias e universitários
estavam cada vez mais sensíveis, sobretudo a partir dos
finais dos anos 60, aos valores da democracia e do
socialismo, assim como aos movimentos de
descolonização e às lutas do terceiro mundo.
Qualquer tensão nas forças armadas tomava uma
importância excepcional. Não só porque se tratava de
militares e porque estes eram, há quatro décadas, o apoio
essencial do regime, mas também porque na própria
oposição política se tinha frequentemente o sentimento de
que, sem uma iniciativa dos militares, jamais o regime
seria derrubado. Em poucos meses, de meados de 1973 a
princípios de 1974, o descontentamento militar alastrou-se
a vastas áreas e atraiu diversos contributos, desde
prestigiados generais do regime (como os generais Spínola
e Costa Gomes) até aos jovens milicianos esquerdistas.
O livro do general Spínola (Portugal e o Futuro) teve
larguíssimas repercussões. Mais pela qualidade do seu
autor do que pelo valor intrínseco da obra. As suas
propostas políticas têm interesse muito desigual. Mas a
abordagem de um tema fará escândalo: a guerra. O autor
dá a entender, preto no branco, que não será possível
ganhar a guerra militarmente. Na boca de um chefe
militar, esta afirmação é evidentemente explosiva. E foi-o.
Em certo sentido, a guerra colonial separava os
partidários do regime e a oposição. Todavia, preocupados
com a guerra, os Portugueses não estavam muito
sensibilizados para a questão colonial. A população que lá
vivia estava longe e não era numerosa. Os emigrados na
Europa, mais de um milhão, viviam mais perto, faziam
visitas regulares, enviavam as «remessas» e talvez
viessem a ajudar os parentes a emigrar, eles também. Para
a opinião pública, as vantagens do império não eram tão
evidentes como a propaganda tentava fazer acreditar. As
classes médias viam com mais interesse o crescimento
económico na metrópole. Os jovens rurais procuravam
emprego na cidade, na indústria ou na emigração. Mesmo
nos círculos militares e políticos afectos ao regime havia
momentos de inquietação, logo denunciados pelos «ultras»
como sinais de derrotismo. O número de desertores e de
refractários crescia lentamente, enquanto nas escolas
militares os lugares vazios se iam sobrepondo aos novos
alunos.
Para conseguir o golpe, bastou ao Movimento das Forças
Armadas exibir as suas forças nas ruas e ocupar os pontos
estratégicos. Organizar a conspiração tinha sido mais difícil
e mais arriscado do que realizá-la.
O «Programa do MFA» respeita, em diversos aspectos, a
tradição das proclamações dos autores de golpes de
Estado: vago, impreciso e consensual, capaz de atrair o
maior número possível de pessoas e bem delimitar o
«inimigo». Ulteriormente, muitas serão as «leituras» do
«Programa», o modo como foram designadas as diversas
interpretações. Cada um foi capaz, com efeito, de legitimar
as suas próprias ideias com a fidelidade ao texto.
Mas o «Programa» continha mais do que isso. Dois
pontos vieram a revelar-se de enorme importância. Um
deixava a porta aberta a uma solução política para a
guerra, nomeadamente com o objectivo da
autodeterminação. Outro prometia eleições para uma
Assembleia Constituinte. Parece pouco, mas tratava-se do
princípio das soluções para os dois problemas essenciais: a
descolonização e a instauração de um regime democrático.
Poucas semanas depois, o programa do primeiro Governo
provisório confirma as duas opções iniciais, mas
acrescenta algo de novo: a preocupação com as questões
sociais e económicas, fazendo prova de uma tensão
reformadora e moderadamente socializante. Fala-se já de
«estratégia antimonopolista» e de «reformas graduais das
estruturas agrárias», tendo particularmente em conta as
«classes mais desfavorecidas».
Estas expressões tiveram a vida longa e, durante mais de
dois anos, foram referências obrigatórias. Eram
insuficientes, do ponto de vista doutrinário e programático,
mas bastaram para marcar uma inclinação à esquerda. No
futuro, os debates políticos e as acções concretas terão
esta base comum e este ponto de partida, radicalizando-se
dia após dia. Em poucas semanas, todos queriam ter
alguém à sua direita e o menos possível à sua esquerda.
Em Maio, a população vem para a rua. Muitos vão lá ficar
quase dois anos. Organizadas ou espontâneas, as massas
e as multidões nunca faltarão à revolução, como não
faltarão, em 1975 e 1976, aos que lutarão contra a
revolução, a favor de uma democracia constitucional.
Dois partidos surgem na primeira fila: o Comunista e o
Socialista. Outros se organizam. Todos sabem que
começou um autêntico «contra-relógio». Todos sabem
também que o Partido Comunista tem muitos metros de
avanço. As vantagens do Partido Socialista, embora reais,
são bem menores.
Ainda em Maio, a Junta de Salvação Nacional (JSN) e o
Governo estão em funções. São heterogéneos, não têm um
real programa comum. Como não têm líder indiscutível.
Nem uma ideia sólida ou um consenso sobre o modo de
organização política do País ou as políticas a seguir. O
poder político essencial está entre mãos de um MFA que
não tem estruturas nem direcção, que não se reconhece
num programa e que não possui qualquer experiência
política ou da administração pública. Tudo se vai jogar e
tudo será ganho na luta, numa luta ainda desprovida de
regras. Nenhuma autoridade pessoal ou de grupo se
estabelece: o poder pertencerá a quem melhor o souber
tomar. Os bastidores, os quartéis e a rua vão decidir.
Desencadeiam-se greves por todo o lado: os
trabalhadores, os empregados e os funcionários sentem
que é chegado o momento em que o que não for ganho
hoje talvez nunca mais o venha a ser. Muitas destas greves
são conduzidas pelo PC e pela sua central sindical (CGTP-
Intersindical), mas numerosas serão ainda as espontâneas
ou as conduzidas por pequenos grupos de extrema-
esquerda. Nestes últimos casos, raramente faltará a
condenação pelo PC.
No conjunto do País, mas sobretudo em Lisboa e nos
principais centros urbanos, desenha-se um deslizar geral
para a esquerda socialista, comunista e revolucionária. As
estruturas paralelas do MFA e alguns dos seus porta-vozes
mais faladores reforçam esta tendência. O antigo regime e
o fascismo são identificados com o capitalismo. Daí resulta
que o socialismo será o equivalente da democracia.
Nos órgãos do poder, as divergências surgem
rapidamente à luz do dia. Duas questões sobressaem: as
colónias e o calendário de fundação do novo regime.
Quanto à guerra, duas posições se definem. De um lado,
o MFA, o PC, a extrema-esquerda e o PS defendem a
independência pura e simples para as colónias e a partida
dos militares portugueses. Do outro lado, os mais
moderados e aqueles que procuram manter ou defender
interesses em África pretendem estabelecer um processo
de negociação com todos os interlocutores possíveis,
podendo conduzir a soluções diferentes segundo os
territórios. Para os primeiros era claro que o poder só
deveria ser entregue aos movimentos de libertação e,
entre estes, aos que tinham o apoio da maior parte dos
Estados africanos, da União Soviética e dos países
socialistas. Para os segundos tratava-se de privilegiar os
seus amigos políticos ou, no quadro de uma solução mais
vasta, de contar com todos os grupos mais ou menos
representativos, incluindo os brancos residentes ou
naturais. Entre os grupos moderados alimentava-se ainda
a esperança da criação de uma espécie de «comunidade»
lusófona. Angola era, evidentemente, o centro de todos
estes interesses. Não se poderá finalmente negar a
existência de uma terceira corrente, a dos que queriam
manter a relação colonial, ou o que fosse possível. Mas
estes não se conseguiam fazer ouvir, o que se devia ao
facto de não serem muito numerosos, ou de não estarem
adequados ao espírito do tempo. De qualquer modo, um
certo clima de intimidação impunha limites à expressão da
direita.
A segunda grande questão, a fundação do novo regime,
era bem mais complexa, punha tudo em causa. As forças
radicais, com o PC e o MFA à cabeça, mas com o
consentimento do PS, pretendiam manter o poder
provisório por um tempo razoável; realizar algumas
reformas económicas e sociais; «sanear» e mudar o
aparelho de Estado; deixar desenvolver o processo social e
político. Para estes projectos de reforma social e
económica, a «legitimidade revolucionária» era suficiente.
O PS não levantou inicialmente obstáculos a este desígnio,
mas distinguia-se pela firmeza com que anunciava um
limite temporal e político para o poder provisório: a
realização de eleições constituintes ao fim de um ano.
Sobre este ponto, comunistas, esquerdistas e MFA eram
mais vagos e imprecisos.
Os grupos mais moderados e as forças de direita
consideravam que o poder provisório não tinha plenos
poderes, nomeadamente em matéria de reformas. Na sua
argumentação, as eleições ocupavam um lugar de primeira
importância: antes da sua realização, nenhuma medida de
fundo seria aceitável. E se os problemas a resolver eram
importantes e urgentes, então que se realizassem eleições
imediatamente, em particular para a Presidência da
República, cargo para o qual se pensava haver um
candidato indiscutível, o general Spínola.
A própria independência das colónias estava em causa. A
esquerda considerava que aquela deveria ser acordada
desde logo, pelo poder provisório. A direita queria, também
neste caso, eleições prévias. Os socialistas tinham a sua
posição particular: aceitavam as independências e as
reformas sociais antes das eleições; queriam eleições
constituintes rapidamente; mas não desejavam eleições
presidenciais, até porque não depositavam inteira
confiança política no general Spínola.
Em poucas palavras, a esquerda era favorável ao
movimento, à prossecução de um processo social que se
anunciava revolucionário e a um poder provisório com
poderes. A direita procurava uma fixação política rápida,
com eleições presidenciais, logo seguidas das constituintes
e parlamentares. Os socialistas preferiam o movimento,
desde que o comandassem, a fim de conquistar posições
que lhes permitissem chegar às eleições com alguns
trunfos.
Os comunistas e o MFA sabiam que a legitimidade
revolucionária lhes dava vantagens e lhes permitia mais
conquistas do que as eleições. Tanto a organização
partidária e sindical do PC como a militar do MFA eram
trunfos de peso, tanto mais que os outros não tinham
organização digna desse nome. Apesar do entusiasmo e da
forte adesão popular, era evidente que as eleições dariam
ao MFA e aos comunistas um lugar na vida política bem
menos importante. As eleições fazem quase sempre perder
aqueles que fazem as revoluções. Por outro dado, o poder
provisório permitiria aos revolucionários e aos seus aliados
(o MPLA) resolver expeditamente o problema de Angola.
Foi aliás preciso ajudar a armar o MPLA, o que o MFA fez,
assim como fomentar a colaboração directa de Cubanos e
Soviéticos, o que se conseguiu.
Ao contrário, as forças moderadas e da direita, por falta
de organização e de apoio militar e debaixo de fortes
pressões e intimidações, viam nas eleições a sua salvação.
Por fé democrática ou por táctica, pensavam que só as
eleições seriam um real obstáculo à revolução. Perdiam
quotidianamente posições no aparelho de Estado, na
administração, nas forças armadas e até na imprensa. Não
tinham o apoio activo e aberto dos militares, até porque
muitos destes não tinham a certeza de que os sectores
mais moderados ou a direita também queriam pôr termo à
guerra. Uma coisa parecia certa: os resultados das eleições
seriam de qualquer modo mais vantajosos do que os
acontecimentos que, dia a dia, levavam o Governo e o País
cada vez mais para a esquerda.
O PS, no que a princípio foi a sua fraqueza, mas
ulteriormente a sua força, fazia coexistir uma política
moderada e um programa revolucionário. Queria a
legalidade democrática e a legitimidade revolucionária.
Pretendia conciliar a democracia política com a revolução
social, as instituições representativas com o poder das
bases. Esta ambivalência poder-lhe-ia ter sido fatal ou
preciosa. Não seria preciso esperar muito para saber.
Os restantes meses de 1974 e os primeiros do ano
seguinte foram de uma constante aceleração da vida
política e de um progressivo deslize para a esquerda. Por
sua própria iniciativa, ou empurrado pelo PC, o MFA toma
cada vez mais poder e assume crescentes
responsabilidades. Em Setembro, a direita e algumas
forças moderadas tentam a sua sorte, fazendo apelo à
«maioria silenciosa». Silenciosa esta se manterá, a maioria
não se fez ver e a tentativa falha. Em contra-ataque, os
comunistas e o MFA vencem, com a cumplicidade do PS.
Isolado, o presidente Spínola demite-se. O seu chefe de
estado-maior-general das forças armadas, o general Costa
Gomes, substitui-o. A vida para as independências
africanas está aberta. Moçambique e Guiné serão Estados
ainda em 1974. Para Angola e para que o MPLA se
transforme em força dominante será preciso esperar um
ano.
No «crescendo» da esquerda e dos militares, Vasco
Gonçalves tinha sido nomeado primeiro-ministro em Julho.
Até ao fim do ano sucedem-se múltiplos episódios, sérios
ou rocambolescos, nas ruas, nos quartéis e nos corredores
dos palácios de Estado. A preponderância dos comunistas
e do MFA reforça-se. O País vive em permanente agitação,
correm boatos incríveis e rumores verdadeiros, espera-se a
todo o momento um golpe de Estado ou uma acção
espectacular.
É o tempo das ocupações. Casas ou empregos, cargos na
administração ou empresas, tudo pode ser ocupado. As
vereações de todos os municípios são demitidas,
substituídas por comissões ad hoc, ditas comissões
administrativas. Estas são formadas por eleição, nomeação
ou ocupação, depende das circunstâncias. Um balanço
global das comissões municipais e de freguesia dá
vantagem aos socialistas e aos comunistas. Nos
ministérios e nas empresas públicas prossegue igualmente
a ocupação institucional, da base até às administrações e
direcções-gerais. Recrutam-se milhares de novos
funcionários. Em muitos casos, conversões oportunas
permitem encontrar substitutos nos próprios serviços. O
«saneamento», autêntica palavra de ordem, é por vezes
obra do Governo, por vezes dos trabalhadores e dos
funcionários. O crescimento dos partidos, em particular do
PS e do PC, faz-se nesta altura graças à distribuição de
empregos e de responsabilidades institucionais.
Distribuição ou assalto, conforme os casos.
Vive-se em tom geral de propaganda: em comícios,
manifestações e cortejos; nas ruas, na rádio e na televisão.
Os jornais estão quase todos entre as mãos de comunistas,
esquerdistas ou simpatizantes do MFA. A vida quotidiana,
especialmente nas cidades, está submergida pela política,
pelos conflitos de toda a espécie, pela competição, pela
vingança e até por velhos ajustes de contas. O «fascista»
torna-se o lugar geométrico de todos os vícios e defeitos
do homem, na escola, na empresa e na via pública; será
também o pretexto para mudanças de responsabilidades,
de pessoas e de empregos. As hierarquias quebram. Toda a
gente tem o direito à palavra e muita gente decide exercê-
lo. Instala-se a desorganização da vida institucional e
económica própria dos momentos de revolução ou de
mutação social. Ninguém, pessoa, grupo ou partido,
conduz de facto a vida política; ninguém orienta a
mudança. O MFA, parte interessada, já não consegue
sequer ser o árbitro. No meio da desordem, todavia,
algumas estratégias vão tomando corpo. Como se verá.
O último trimestre de 1974 é marcado por uma nova
escalada: a contestação do poder económico. Capitalistas
e empresários sentem-se em sérias dificuldades desde
Setembro. Muitos reduzem as suas actividades produtivas;
há mesmo alguns que se vão simplesmente embora, para
Espanha ou para o Brasil. O poder económico é
duplamente posto em causa: por ter sido um pilar da
ditadura; por querer sabotar a economia e impedir a
revolução. Em fins de Setembro, alguns empresários são
presos e partidos políticos da direita são proibidos. O medo
instala-se na direita e em círculos moderados, assim como
nas empresas, onde o poder patronal e da administração é
constantemente posto em causa.
Por seu lado, o Governo aprova medidas legais que lhe
permitem proceder a «intervenções» do Estado nas
empresas privadas e combater a «sabotagem económica»,
um conceito que começa a ter largo curso. Antes do fim do
ano, estes dispositivos serão utilizados várias vezes, por
diversos motivos ou pretextos: fuga de capitais, pressão
dos trabalhadores, dificuldades económicas, fuga do
empresário, redução dos investimentos ou descoberta de
relações entre os patrões e a antiga polícia política.
Em meados de Dezembro verifica-se uma segunda acção
concertada contra os meios empresariais: algumas
dezenas de pessoas são presas ou procuradas pelas forças
armadas. Frequentemente, militantes civis acompanham
os grupos de militares que efectuam as prisões e as buscas
ou controlam as estradas.
O «poder popular» e as «bases» conhecem os seus dias
de glória. Louva-se a acção dos trabalhadores,
empregados, estudantes, funcionários e moderadores, que
é aliás encorajada pelo Governo e pelos militares e
popularizada pelos jornais e pela televisão.
As fugas de empresários para o estrangeiro não
desagradam inteiramente à esquerda: fornecem motivos
reais para a demonstração da «sabotagem» económica e
para a ulterior intervenção do Estado. A direita e o poder
económico reagem pouco. Aliás, se quisessem, talvez não
soubessem como. Sem a polícia política nem o poder de
Estado, tendo contra si quase todos os partidos, os jornais
e a televisão, sentem-se impotentes, inexperientes e
cercados.
Entretanto, no seio do Governo, multiplicam-se os
impasses. Faltam direcção e unidade. Falta interesse
comum e há concorrência a mais. O poder político não
reside no Governo. Ninguém tem ilusões: o poder e o
Governo dependem das forças armadas, das suas decisões
e dos seus humores. Aí, os mais influentes, sem todavia
serem os únicos, são os comunistas. Estes adoptam a
estratégia de conquista do poder através das forças
armadas ou por intermediário das estruturas e instituições
oficiais. A «Aliança Povo-MFA» torna-se oficial, é o nec plus
ultra da revolução. Esta última é oficialmente classificada
de libertadora e socialista; o MFA é considerado um
«movimento de libertação». No Governo, militares e
ministros civis controlam-se e vigiam-se.
O «Programa de Política Social e Económica», mais
conhecido como «plano Melo Antunes», é encomendado a
vários ministros, que levarão algumas semanas a redigi-lo.
É a primeira tentativa de dar coerência à acção do
Governo, mas também será a sua derradeira tarefa. Trata-
se de um programa moderado, de inspiração socialista e
social-democrata. Aprovado em Janeiro de 1975, é tornado
público pouco depois, quando a temperatura política
começa a aquecer. Preparam-se as eleições para Março.
Aplicam-se os partidos que nelas depositam todas as
esperanças, o PS, o PPD e o CDS. Os que pouco acreditam,
ou que as receiam, agitam-se por outros lados.
Nas forças armadas, as mudanças sucedem-se, as
direcções políticas também. O MFA tem cada vez mais
veleidades políticas. Discute-se publicamente a
«institucionalização do MFA» no futuro desenho
constitucional, assim como o seu contributo para a
elaboração da Constituição propriamente dita. Todos têm
pressa em resolver a questão. Os próprios moderados
estão prontos a fazer concessões: para eles, o importante
são as eleições. Praticamente ninguém se elevará contra a
transformação do MFA em poder constituído.
Para dar mais força aos seus argumentos, o MFA inicia as
suas «campanhas de dinamização cultural». Regimentos
inteiros, militantes comunistas e de extrema-esquerda,
grupos de teatro e cantores, médicos e economistas
partem para o campo, sobretudo para o Norte e o Centro,
animar e dinamizar as populações rurais. Discutem-se
problemas, faz-se o inventário das necessidades e
carências, propõem-se soluções. Nada lhes escapa: a
saúde, a habitação, a agricultura, a educação e a reforma
agrária. As «sessões de esclarecimento» são os locais
ideais para a agitação e a propaganda.
O acolhimento dispensado às campanhas e a estes
emissários varia muito com as regiões. Houve casos de
entendimento perfeito, houve casos de hostilidade
agressiva. Globalmente, esta iniciativa do MFA provocou
mais protestos do que apoios. Entre estes, só se
encontravam comunistas e esquerdistas, que
desempenhavam, aliás, funções nas campanhas
propriamente ditas. Contrariando com mais ou menos
veemência, ouviam-se o PS, o PPD e o CDS.
Durante o primeiro trimestre do ano, as forças radicais
aceleram as suas acções e consolidam posições. A 17 de
Janeiro, o Governo e o MFA aprovam a lei da «unicidade
sindical», o que vai marear uma autêntica viragem na vida
política. O PS opõe vigorosamente, sendo seguido pelos
outros partidos de centro e direita. A opinião pública
parece desfavorável à lei.
Apesar de participar no Governo, o Partido Socialista
afirma-se nesta altura como a força dirigente da oposição
anticomunista. Não se distancia dos processos em curso
porque não quer ser excluído, mas sobretudo quer chegar
às eleições. Os revolucionários, pelo seu lado, não se
sentem suficientemente seguros, receiam o isolamento e
preferem manter as aparências da colaboração com os
socialistas e os moderados.
Pertencendo à esquerda, o PS não tem problemas de
«legitimidade revolucionária». A sua crítica ao MFA e aos
comunistas nunca será identificada com o antigo regime e
com a direita, apesar das tentativas feitas, nesse sentido,
por militares e comunistas. A partir de Janeiro, também o
PS mostrará uma forte capacidade para ocupar a rua,
mobilizar manifestações e chamar a si o apoio de
multidões. Os moderados e a direita vão segui-lo durante
meses, vendo nele a bandeira democrática e a protecção
necessária.
Foi neste quadro de agitação que ocorreram, no Alentejo
e no Ribatejo, as duas primeiras ocupações de terras. Uma
realizou-se numa herdade do Estado, outra numa privada
que já estava sob intervenção, «intervencionada», como se
dizia.
O «11 de Março» vem coroar este período de confusão e
de lutas, mas também vem dar um novo rumo, mais
radical, mais crispado. A direita conspirava
desajeitadamente e o próprio general Spínola se envolveu
em intrigas frustres. Uma tentativa de golpe é esmagada
pela esquerda militar e pelos comunistas, que, com um
bom pretexto, fazem o seu próprio golpe político e
constitucional. O Governo vira à esquerda, mantendo-se
todavia o PPD, por exigência do PS. O Conselho da
Revolução é criado, transformando-se no centro de decisão
política. As eleições de Março são adiadas para Abril, no
que terá sido a principal intervenção moderadora do
presidente Costa Gomes, já que havia quem as quisesse
adiar sine die.
Durante os dias seguintes, todos os grandes grupos
económicos são nacionalizados, incluindo vários jornais.
Um grande número de oficiais das forças armadas são
expulsos, alguns fogem para o estrangeiro, outros são
presos. São detidos empresários e figuras de direita, por
um lado; militantes esquerdistas adversários do PC, por
outro. Algumas semanas mais tarde, pouco antes das
eleições, é assinado o «Pacto MFA-Partidos», que uns
assinam com vontade, outros com incómodo, outros ainda
com medo. Só o Partido Popular Monárquico, sem grandes
responsabilidades, mas com alguma coragem, recusa.
Neste pacto, o MFA reserva-se um lugar no futuro
constitucional e um direito de tutela sobre certos capítulos
da Constituição a redigir.
A relação de forças mudou uma vez mais. Trata-se de um
real golpe de Estado, uma revolução dentro da revolução.
Era talvez inevitável, mas a direita, com as suas
conspirações e tentativas, forneceu pretextos. Quanto ao
PS, com singular instinto de sobrevivência, deixou-se ir na
onda, fez a crítica do método e lançou algumas
advertências. A sua prioridade eram as eleições. Tudo fez
para não se excluir, recordando as «técnicas do salame»,
nas democracias populares dos finais dos anos 40.
A campanha eleitoral, em fins de Março e em Abril,
desenrola-se num ambiente de agitação, temores e
boatos. As críticas do PS e do PPD contra os comunistas e
os militares são agora abertas e agressivas. PC e MFA
respondem violentamente. Só o CDS, à beira da interdição,
faz uma campanha discreta. O PDC é simplesmente
proibido de concorrer.
Sem nunca atingir o verdadeiro terror, o clima é de
intimidação. Poucas herdades foram ocupadas, mas muitas
foram as casas. Espontâneas, organizadas por partidos de
extrema-esquerda ou recomendadas pelos serviços
públicos, as acções populares de ocupação, tanto no
centro como na periferia de Lisboa e de outras cidades,
foram numerosas.
Fazem-se buscas nocturnas e prisões, por vezes sem
mandado. O comandante do COPCON assina mandados em
branco, que os seus oficiais utilizarão conforme as
conveniências. São numerosos os presos políticos sem
culpa formada.
A revolução está na ordem do dia. Discute-se política de
manhã à noite. O socialismo está em construção. Duas
semanas antes das eleições, o primeiro-ministro, Vasco
Gonçalves, apresenta ao País um «Programa económico de
transição para o socialismo», mais radical do que tudo
quanto se tinha feito antes. As suas palavras, na televisão,
não deixam dúvidas: «Não poderemos perder pela via
eleitoral o que foi tão difícil a ganhar pelo nosso povo.» Ou
quer fazer, antes das eleições, tudo o que pode, com
receio de que depois já não seja possível; ou pretende,
com argumentos fortes, conquistar votos. Ou as duas
coisas. A verdade é que mais nacionalizações são
anunciadas, entre as quais as dos cimentos, do petróleo,
do aço e da química.
Realizam-se milhares de comícios em todo o País. Toda a
gente sabe que apenas se vai eleger uma Assembleia
Constituinte, sem poder legislativo. Mas ninguém duvida
de que se vai fazer a primeira medida concreta, uma
autêntica prova real. O MFA apela ao voto em branco. Com
excepção da extrema-esquerda e do PC, todos os partidos
criticam esta manobra, a Igreja também.
O MFA conhecerá uma grande derrota: a participação
eleitoral é enorme, o número de boletins brancos é
ridículo. O PC também perde claramente: tem 12%, a que
se podem acrescentar os 4% do MDP. O PS é o vencedor,
com 39%; o PPD vem em segundo lugar, com 26%. Pela
sua grandeza, os resultados destes dois partidos
surpreendem a opinião pública, que, apesar de tudo,
esperava ou receava melhores resultados do PC. Em
quarto lugar vem o CDS, com 8%.
As forças não comunistas ganham um novo fôlego. A
todos recordam os resultados eleitorais e proclamam aos
quatro ventos a sua vitória. Tudo vai mudar, mas não
imediatamente. Os revolucionários, para fazer esquecer a
derrota, tomam novas iniciativas e relançam a agitação. A
«legitimidade revolucionária» ainda vai durar e exprime-se
logo na festa do 1.º de Maio, quando são criadas
dificuldades aos socialistas para nela participar.
Começa o «Verão quente». O Governo pressiona, efectua
novas nacionalizações (tabacos, celulose), prossegue o
saneamento da administração e aprova em primeira leitura
as leis de reforma agrária. Continuam muito lentamente as
ocupações de terras no Alentejo, mas aumentam as de
casas nas cidades. Em Julho, no meio de grande tensão, o
PS deixa o Governo, dando como pretexto imediato a
ocupação seguida de fecho do jornal República. Dias
depois, o PPD sai igualmente do executivo. Os socialistas
organizam então uma autêntica campanha nacional de
comícios e manifestações onde se critica ferozmente o
MFA, os comunistas e o Governo de Vasco Gonçalves. Tudo
culmina na Alameda, em Lisboa, onde talvez meio milhão
de pessoas exige a demissão do Governo e sobretudo do
primeiro-ministro.
Nas forças armadas e no MFA assiste-se a nova
radicalização. Mas dois fenómenos novos e importantes
surgem. Por um lado, divergências entre os militares
favoráveis ao PC e os grupos esquerdistas. Por outro,
desenha-se um bloco moderado que se reconhece no
«Grupo dos Nove». Neste último, o PS acredita finalmente
ter encontrado um interlocutor militar, sem o qual a sua
acção corria o risco da ineficácia.
Entre Julho e Setembro, nos campos alentejanos, as
ocupações aumentam em número e ritmo. A aprovação
das leis de expropriação e de nacionalização de terras e
dos perímetros de rega deu novo alento aos sindicatos e a
outros ocupantes seus aliados. Entretanto, no Norte e no
Centro do País, várias centenas de atentados à bomba e de
incêndios são dirigidos contra as sedes dos partidos de
extrema-esquerda e do PC, assim como contra indivíduos e
instalações militares.
O Governo está nas mãos dos militares radicais e dos
comunistas, que apenas obtiveram 12% dos votos. Os
sectores moderados das forças armadas exploram esta
anomalia e aproximam-se dos socialistas. Os oficiais
revolucionários não tiram as mesmas conclusões:
aceleram o movimento, prosseguem na mesma linha, até à
crispação. Forma-se um novo Governo, o quinto provisório,
formado exclusivamente por simpatizantes e
independentes favoráveis aos comunistas, chefiado ainda
por Vasco Gonçalves. O presidente da República dá posse,
formula uma cândida reticência, mas apoia. Louva o
«espírito de sacrifício» dos ministros empossados,
reconhecendo embora que se trata de um Governo «por
alguns dias».
A situação é equívoca. Aparentemente, não se espera
grande coisa do Governo. Na realidade, o executivo vai
fazer o máximo que pode em dois meses: decretos,
medidas, intervenções nas empresas, saneamentos e
nomeações. Não perderá o seu tempo.
As negociações para a formação do sexto Governo
tinham já começado. Pode mesmo dizer-se que tinham
começado antes de o quinto tomar posse. Estão
interessados o PS, o PPD e o Grupo dos Nove. A
independência de Angola está à vista. Em Portugal, os
comunistas têm cada vez mais dificuldades em circular, a
intimidação voltou-se contra eles. Mais ou menos à
vontade no Sul, correm autênticos perigos de vida no
Norte. Percebem rapidamente que o MFA não consegue
sequer garantir-lhes a integridade física nem os
movimentos.
Alguns feridos e meia dúzia de mortos são os resultados,
apesar de tudo surpreendentes, de várias centenas de
atentados, bombas e incêndios. O Governo denuncia a
«escalada reaccionária» e as «redes bombistas fascistas»,
mas quase ninguém ouve, ou acredita. E sobretudo mostra
a sua fraqueza ao revelar que não consegue evitar os
incidentes. O PS condena os atentados, mas não deixa de
sugerir que os principais responsáveis são os próprios
comunistas e os seus excessos.
Apesar das dificuldades, o Governo não cessa de adoptar
medidas. Conta com a oposição da maioria dos partidos e
certamente da opinião pública, sem esquecer largos
sectores nas próprias forças armadas. O PC deixa no
proscénio o MFA e Vasco Gonçalves. Este teoriza o
momento: é a transição para o socialismo, período durante
o qual «coexistem os sectores público e privado, mas este
último será progressivamente absorvido pelo primeiro». A
síntese é brutal: «Revolução ou reacção.»
O isolamento de Vasco Gonçalves é-lhe fatal. O PC
começa a agir prudentemente, tentando descartar-se do
quinto Governo, não sem deixar de integrar o sexto. No
MFA e nas forças armadas, a divisão é agora total:
esquerdistas de vários bordos, comunistas, socialistas ou
simplesmente democratas procuram, com alianças ou
golpes de mão, assegurar a direcção político-militar. Vasco
Gonçalves é definitivamente batido, à esquerda por Otelo
Saraiva de Carvalho, à direita pelos «Nove» de Melo
Antunes e seus amigos.
Forma-se o sexto Governo, chefiado pelo almirante
Pinheiro de Azevedo. O PS e o PPD regressam. O PC
continua, mas apenas com um ministro. A relação de
forças mudou, mas ainda não totalmente. Com efeito, a
pressão revolucionária e esquerdista continua a fazer-se
sentir «no terreno»: nas empresas, nos quartéis e
sobretudo no Conselho da Revolução, que se mantém
intacto. O PC justifica com moderação a sua permanência
no Governo, apesar de, na sociedade, reforçar a sua linha
de contestação.
Os dois primeiros meses do novo Governo são difíceis. A
sua vitória está longe de ser completa. No essencial, o
poder militar é-lhe desfavorável, o que se traduz
principalmente na composição do Conselho da Revolução.
Além disso, na rua e nas empresas, a agitação continua
intensa. No Governo é perceptível uma certa fragilidade,
que lhe advém da sua heterogeneidade, do seu carácter
federativo. Não há nenhuma razão para que os grupos de
interesses não se manifestem e não tentem obter
benefícios e parcelas de poder.
Adivinham-se mudanças, que aliás só poderão ser
contrárias aos comunistas e aos militares mais radicais. Se
assim não fosse, não se teria formado o sexto Governo. A
presença maciça dos socialistas no executivo é uma
indicação de que as mudanças, sendo de vulto, não irão no
sentido de um improvável regresso ao anterior regime. O
PS mantém com efeito o seu programa revolucionário. Será
nomeadamente o caso da reforma agrária: os socialistas
são francamente favoráveis às expropriações e a várias
formas de cooperativismo e mesmo de colectivismo. Em
consequência, até pelo menos Outubro ou Novembro de
1975, não se mostram críticos do que se tinha desenrolado
no Alentejo e no Ribatejo.
Com efeito, durante os primeiros 60 dias de Governo,
realizou-se uma autêntica avalanche de ocupações de
terras e de herdades, atingindo um total, relativo a todo o
ano, de mais de 700 000 ha, sem contar as terras
nacionalizadas. Esses dois meses de Governo moderado
constituem o período de maior intensidade de ocupações.
A razão do paradoxo reside principalmente numa medida
tomada pelos ministros das Finanças e da Agricultura
(Salgado Zenha e Lopes Cardoso) e que abre os créditos
públicos, com aval ou garantia do Estado, ao pagamento
de salários nas herdades ocupadas, quer dizer, nas
unidades colectivas de produção que se começam a
organizar. Tal dispositivo é a promessa de uma relativa
tranquilidade económica e é sobretudo um encorajamento
à ocupação de mais herdades.
Mas não são só as dificuldades políticas que afligem o
Governo. A situação social e económica é com efeito muito
delicada. E a situação financeira é quase desesperada.
Desde fins de 1974 que a produção, especialmente
industrial, não parou de baixar. A balança comercial
agrava-se dia a dia. As empresas enfrentam enormes
dificuldades, seja porque os salários aumentaram
consideravelmente, graças às vitórias sindicais dos últimos
meses, seja porque o clima de autoridade empresarial ou
de disciplina desapareceu completamente. Por outro lado,
muitos empresários deixaram de investir, outros fugiram,
outros ainda deixaram de obter créditos na banca
nacionalizada. Finalmente, as nacionalizações
desequilibraram o sistema económico, tal como estava
organizado, sem que um novo arranjo se estabelecesse. As
administrações nomeadas pelos governos são geralmente
inexperientes, dependentes dos ministros, eles também
sem prática. Entretanto, as empresas «intervencionadas»,
mais de 900, constituíam um sector estranho, deficitário,
desorganizado, onde tudo podia acontecer.
Olhando para trás, a diferença é considerável. Em
princípio de 1974 não havia crise económica séria, com
excepção das primeiras dificuldades internacionais e do
início da crise energética. O desemprego era reduzido e os
primeiros sintomas de inflação não bastavam para pôr em
causa o crescimento permanente do nível de vida desde há
15 anos.
Em fins de 1975, a crise económica e social é geral.
Provocada e fomentada pela crise política, a crise
económica encontrará ainda alimento em razões que
ultrapassam o País: a paragem da emigração, as
dificuldades económicas dos países ocidentais e o «choque
petrolífero». Mas a situação interna, incluindo as
consequências da descolonização, é a principal
responsável pela deterioração social. Num clima geral de
insegurança, sem novos investimentos e sem garantias de
gestão empresarial pública ou privada, o desemprego
começou rapidamente a subir nas cidades e nos campos.
Após a nacionalização, quase todo o sector público entrou
imediatamente em situação económica difícil. Finalmente,
problema maior da economia e da sociedade, 700 000
«retornados», sem meios, nem recursos, nem empregos,
regressaram de África em menos de um ano, provocando,
só por si, um aumento brusco da população de quase 8%!
A dívida externa aumenta, o Estado perdeu parte do seu
crédito, inclusive por razões políticas. Vai ser preciso
recorrer às reservas de ouro e divisas, assim como aos
empréstimos internacionais. Para estes, vindos sobretudo
da Alemanha e dos Estados Unidos, o papel do Partido
Socialista será crucial.
A tudo isto acrescente-se o resultado da descolonização
do ponto de vista estrutural: perda do mercado e das
matérias-primas coloniais. No conjunto, a vida económica
está degradada, as consequências sociais são já visíveis.
Coincidência feliz: a revalorização permanente do ouro e
a libertação do seu mercado quintuplicaram a capacidade
de endividamento do Estado.
Apesar das ajudas do destino, tudo tem um limite. E o
pior problema ainda era a ausência de condições políticas
para tratar da crise económica e financeira. Iria talvez ser
necessário hipotecar ou vender ouro, com todas as
consequências políticas imprevisíveis de tal acto.
O mês de Novembro é decisivo. A começar por Angola,
cuja independência é declarada na primeira quinzena, com
a supremacia absoluta do MPLA. É um novo problema
político africano e internacional, mas, com ou sem razão,
deixa de ter influência na vida política portuguesa. Até
porque os comunistas e os militares começaram a exercer
menor pressão em Lisboa. Também é verdade que tinham
sido derrotados e sê-lo-ão uma vez mais antes do fim do
mês. Mas a coincidência pede alguma reflexão.
Entretanto, a Assembleia Constituinte, que se tinha
começado a reunir durante o Verão, é alvo de críticas
esquerdistas e será mesmo objecto de um «cerco» em
forma. Os deputados lá iam redigindo laboriosamente os
artigos da «lei fundamental», num ambiente
razoavelmente desligado do que se passava cá fora, mas
num clima geral bem à esquerda. Nesta altura, já estão
aprovados: a transição para o socialismo, a apropriação
colectiva dos meios de produção, o controlo de gestão das
empresas públicas ou privadas, a autogestão e a reforma
agrária, incluindo a colectivização dos campos, ou de parte
deles. A representação socialista «faz os votos». Levados
ou constrangidos, todos os partidos votam mais à
esquerda do que permitiriam os seus programas ou as
suas ideologias.
O cerco da Constituinte foi apenas mais um episódio,
mais grave e mais simbólico, é certo, numa série de lutas e
de acontecimentos que, entre 10 e 25 de Novembro,
levaram o País ao rubro e o terão aproximado da
eventualidade de uma guerra civil. Várias greves se
verificaram, em particular a da construção civil, que se
atacou ao Governo e à Assembleia Constituinte e deu
mesmo lugar a preparativos para ocupação de pontos
estratégicos de Lisboa e das vias de comunicação. A
desordem é completa. O Governo, além de se sentir
impotente, não tem sequer armas para fornecer à polícia.
A tal ponto é caricata a sua situação que exige do
presidente da República autoridade, clarificação política e
espingardas para a PSP. Para bem vincar as suas
exigências, o Governo entra em greve!
Não será por iniciativa do presidente da República que o
Governo obtém o que deseja e precisa. O presidente
encarna pessoalmente a dualidade do poder. Depois de ter
dado saída a Vasco Gonçalves e posse a Pinheiro de
Azevedo, o general Costa Gomes recebe os manifestantes
revolucionários a 20 de Novembro, a quem afirma «que em
Portugal não haverá jamais uma social-democracia».
Quando o Governo entra em greve, o presidente não
deixará de o censurar, em nome próprio e do Conselho da
Revolução, de que é o presidente também.
Poucos dias antes de 25 de Novembro, dir-se-ia que os
revolucionários estão a levar a melhor, conquistando
posições em diversos quartéis. Mas os adversários estão
atentos e organizam-se em diversas frentes. Entre 20 e 23,
os socialistas realizam comícios e manifestações por todo o
País. Pela primeira vez, criticam abertamente o presidente
da República. Por outro lado, discretamente, oficiais
preparam a resposta e várias unidades se aprontam.
Ramalho Eanes, Garcia dos Santos, Loureiro dos Santos,
Pires Veloso, Jaime Neves e o «Grupo dos Nove», entre
outros, conduzem uma operação cuidadosamente
estudada. Em jeito de contragolpe, os revolucionários são
derrotados. Tinham alguma força, mas faltava-lhes
organização, disciplina, unidade e apoio. O estado de sítio
dura poucos dias. A relação de forças mudou
completamente. O Governo retoma funções. Alguns oficiais
esquerdistas fogem para o estrangeiro, alguns são presos
por pouco tempo, outros são licenciados. Nos postos de
comando militar, oficiais moderados substituem os mais
radicais. As mudanças no Conselho da Revolução
consolidam os novos equilíbrios.
Dezembro e Janeiro são passados em ajustamentos
decorrentes da nova situação. Toda a gente está
consciente de ter poisado à beira do desastre. Todos
marcam encontro para o próximo momento decisivo: as
eleições legislativas e presidenciais. Com a sua última
intervenção forte, os militares permitem que o primeiro
factor de decisão passe das espingardas para as urnas. Os
conflitos decrescem rapidamente. Os salários e os preços
são congelados por algum tempo. Na administração e nas
forças armadas, os dirigentes e os chefes mais radicais,
esquerdistas e comunistas vão sendo gradualmente
substituídos, a ponto que em breve o PC começará
novamente a falar em saneamento, mas desta vez a
denunciá-lo. Socialistas e militares da esquerda moderada
fazem que o PC se mantenha no Governo e fazem esforços
por evitar uma nova «caça às bruxas» anticomunista, que,
de qualquer maneira, não era seguro que se preparasse.
Com efeito, os atentados contra as sedes partidárias
diminuem rapidamente.
Um segundo «Pacto MFA-Partidos» é assinado, no qual os
militares perdem inúmeras das suas prerrogativas,
particularmente o direito de interferir na redacção da
Constituição. Reservam-se, é certo, algumas posições na
futura Constituição, como por exemplo um lugar para o
Conselho da Revolução, mas nada que se compare com o
que estava anteriormente previsto. Tomam-se finalmente
decisões definitivas sobre a realização de eleições.
A campanha eleitoral será a principal preocupação dos
partidos durante os primeiros meses de 1976.
Paralelamente, na esfera do Governo, vários acordos
políticos são feitos, com a colaboração do presidente da
República, entre os quais uma espécie de «plataforma» de
acordo interpartidário sobre matérias relativas à reforma
agrária, da qual sairão vários decretos e correcções às leis
em vigor até ao início do período constitucional. Neste
contexto, além de outras medidas importantes, é criada a
Zona de Intervenção da Reforma Agrária, através da qual
se limitam ao Alentejo e a parte do Ribatejo as leis de
expropriação e de nacionalização das terras e herdades.
Os partidos moderados vêem, nesta demarcação legal,
uma vitória e uma vantagem, já que as regiões do Centro e
do Norte, além do Algarve, serão poupadas às medidas de
reforma agrária. Para o PC, mais do que um limite, estas
«fronteiras» são uma protecção e uma defesa para as suas
conquistas já efectuadas.
Mantendo alguma pressão «no terreno», os comunistas
estão relativamente calmos e moderados. Álvaro Cunhal
reconhecera que as «forças revolucionárias tinham sofrido
algumas derrotas», isto em Dezembro de 1975. Semanas
depois, defende mesmo o sexto Governo, cuja queda
eventual seria, nas suas palavras, «mais um passo a favor
da direita».
Os socialistas comportam-se como os principais
responsáveis do Governo, que são na realidade. Além
disso, consideram que serão provavelmente chamados a
formar o primeiro Governo constitucional, depois das
eleições. Internamente, o partido mantém as
sensibilidades e contradições, da social-democracia ao
socialismo revolucionário. Tem um programa radical de
reforma agrária, mas denunciou os métodos do PC e dos
militares. Não quer o regresso ao passado, quer alguma
revolução, mas não quer os seus excessos, nem quer que
se atente contra as regras básicas da democracia
representativa. De toda esta situação bem difícil, Mário
Soares extirpará uma teoria original. Para o País, a
coexistência concorrencial dos dois sistemas sociais, o
socialismo e o capitalismo, o privado e o público. Para o
partido, o papel de «charneira», de mediador de
antagonismos sociais e de moderador de divergências
políticas. Apesar das dificuldades evidentes, esta
estratégia vai render, pelo menos até às eleições.
O PPD e o CDS estão mais à vontade, sobretudo o
segundo, que vivia em quase clandestinidade. Podem
agora fazer a sua propaganda em paz, correr o País,
realizar comícios. Já não precisam do «guarda-chuva»
socialista para expor as suas ideias e abrir as suas sedes.
Criticam abertamente todo o curso da revolução. O CDS
votará mesmo contra a Constituição, em fins de Março. O
PPD, que, desde o «Verão quente», votou todos os seus
artigos, votará ainda favoravelmente o conjunto. Vive
todavia em crise, durante o primeiro semestre do ano, por
razões doutrinárias, políticas e pessoais.
Os conflitos militares conhecem uma pausa, talvez uma
trégua. Os quatro partidos aproveitam para se consagrar a
lutas mais importantes e imediatas: a Constituição e as
eleições. Até Março, sem incómodos exteriores, os
deputados terminam a redacção da lei fundamental. De
certo modo, tudo se passa como se os acontecimentos de
Novembro não tivessem ocorrido: os 300 artigos aprovados
formam uma Constituição nitidamente à esquerda e
consagram a génese revolucionária do novo Estado e a sua
vocação socialista.
A Constituição não procura estabelecer um consenso
nacional, nem traduzir os maiores denominadores comuns,
é outrossim um esforço de preservação das conquistas da
revolução. As esquerdas parecem recear uma qualquer
reviravolta e não revelam muita confiança no eleitorado: a
Constituição fixa limites «definitivos» às revisões ulteriores
e restabelece orientações programáticas para a acção dos
governos. O texto é promulgado pelo presidente da
República a 2 de Abril e entra em vigor no fim do mês.
Desenha-se um novo período na vida política e social. As
sequelas de 1975 são ainda numerosas, há imensos
problemas a resolver; a sociedade está dividida, o discurso
dos partidos permanece agressivo, por vezes violento. Mas
ninguém quer novos conflitos antes das eleições. Há
mesmo quem queira esquecer.
O PPD e o CDS, em plena campanha, tentam capitalizar
criticando os erros e os excessos da revolução. O PS
sublinha o seu papel pacificador. O PC defende as
conquistas de Abril e denuncia a recuperação capitalista.
Os esquerdistas tentam organizar-se à volta de Otelo
Saraiva de Carvalho. Este caiu em desgraça, desde o 25 de
Novembro, junto da maior parte dos partidos e dos
militares. Preso em Janeiro, será libertado em Março. Não é
só uma relíquia da revolução: activo, ainda voltará a fazer
falar de si.
O papel dos militares na política e no Estado não
provocará muita controvérsia nos próximos tempos. O
segundo «Pacto», assinado a 26 de Fevereiro, dá satisfação
ao PS, ao PPD e ao CDS. O PC também assina,
reconhecendo com realismo, como é hábito, as novas
relações de forças. Os próprios militares parecem
satisfeitos: ficam com um lugar honroso. Conservam uma
larga autonomia política e jurisdicional, além de
assegurarem as funções de «tribunal constitucional». Em
certo sentido, os militares conseguiram o essencial: não
serão julgados pelo apoio ao antigo regime e à guerra
colonial, nem pela descolonização ou pelos excessos da
revolução.
A calma é evidente. O cansaço também. Os militares
ocupam-se deles próprios e da sua instituição. Os partidos
pensam nas eleições. Também nos campos do Sul a
agitação decresce, mesmo se alguns conflitos se
prolongaram além do 25 de Novembro. Até Março, ainda se
conhecerão algumas ocupações e greves, um ou outro
incidente. Mas as unidades colectivas de produção estão
mais interessadas em legalizar-se, pelo que fazem publicar
os seus estatutos. Procuram agora consolidar a sua
existência. Já as associações de agricultores, com a CAP à
cabeça, reforçadas ou renascidas desde Novembro de
1975, parecem mais agitadas. Criticam fortemente o
ministro Lopes Cardoso, que já era, aliás, alvo dos ataques
do PC. Depois de criar uma «comissão de análise» dos
problemas decorrentes da reforma agrária, o Ministério
mandou entregar terra a umas centenas de seareiros e
outros pequenos agricultores. Para a CAP não chegou; para
os comunistas foi de mais. Pondo em prática estratégias
parecidas, os dois blocos não vão desarmar tão cedo.
Na verdade, a reforma agrária é algo mais do que uma
relação de forças: é um património de 1 200 000 ha, mais
as máquinas, as instalações e o gado. São quase 15% do
território nacional, um terço das províncias do Sul, um
verdadeiro santuário, onde trabalham 70 000 assalariados,
bem enquadrados pelos sindicatos e pelo PC. Os antigos
proprietários estão longe de ter perdido a esperança de
recuperar grande parte ou tudo. Os comunistas, pelo
contrário, depositam neste património as esperanças de
um novo modo de produção, de um sistema social limitado
mas controlado e de uma fortaleza política.
Fins de Abril: os resultados das eleições não constituem
surpresa. O PS mantém-se à frente (35%), tendo perdido
quatro pontos; o PPD confirma os seus 24%; o PC parece
subir dois pontos (14%), mas na verdade perde dois dos
quatro que tinha o MDP, que desta vez não concorre. O
CDS regista a mais forte mudança, sobe oito pontos, passa
para 16%, mas sobretudo coloca-se agora em terceiro
lugar, à frente dos comunistas. No essencial, o panorama
eleitoral fica parecido e nenhum partido pode governar
sozinho.
Logo a seguir, o PS remete aos militares os nomes dos
três oficiais que está disposto a apoiar para as eleições
presidenciais. Quase sem opinião contrária, os socialistas
entendem que não estão em condições de ter candidato
próprio, nem sequer um civil. Os militares escolhem
Ramalho Eanes. O PPD e o CDS apoiam-no também,
enquanto os comunistas se distanciam e apresentam
Octávio Pato. Pinheiro de Azevedo decide concorrer
também, não se conformando com a falta de apoio dos
partidos que tinham composto o seu sexto Governo
provisório. Otelo Saraiva de Carvalho apresenta-se em
nome de um vasto leque de esquerdistas. Mais ainda do
que nas eleições legislativas, é o 25 de Novembro que é
submetido a sufrágio. Eanes vence à primeira volta com
mais de 60%. Uma grande surpresa: os 16% de Otelo, o
dobro de Pato, que apenas consegue metade do eleitorado
do seu partido. Em terceiro ficou Pinheiro de Azevedo, com
14%, notável para um candidato sem apoios organizados e
que além do mais se encontra hospitalizado com um
ataque cardíaco.
A revolução terminou. As bases do Estado constitucional
e democrático representativo estão criadas. Em fins de
Julho, Mário Soares, secretário-geral do PS, é nomeado
primeiro-ministro. Tem diante de si a herança de 48 anos
de ditadura e de dois de revolução.
CAPÍTULO V

REFORMA E REVOLUÇÃO
NOS CAMPOS DO SUL

No Alentejo, nos campos do Sul, a revolução foi diferente.


No Norte e no Centro rurais esteve praticamente ausente.
Mesmo nas cidades, produziu menos resultados a acção
directa dos revolucionários e das suas organizações. Estes,
no Alentejo, apesar de apoiados pelo Estado, foram mais
longe do que em todo o resto do País, mobilizando dezenas
de milhares de pessoas e transformando em profundidade
as estruturas de propriedade70.
A história da região era diferente. As suas estruturas
sociais e agrárias são singulares. As forças políticas mais
activas, o MFA e o PC, interessaram-se particularmente
pela região. Através da revolução, o seu destino foi único.
O calendário revolucionário da região está desfasado do
processo político nacional. Por exemplo, em 1974, a
situação está na região mais calma e estável do que nas
cidades. Em certos momentos de 1975 é o contrário: a
agitação agrária prosseguirá muito para além dos
equilíbrios ou das pausas da capital. Quando a esquerda se
consolida no Centro, uma relativa tranquilidade é visível no
Alentejo. Mas quando a esquerda perde no Governo, os
conflitos aumentam e endurecem na periferia. O melhor
exemplo da disparidade de ritmos é o 25 de Novembro:
ainda haverá ocupações de terras dois meses depois.
Os acontecimentos concretos que marcam as grandes
viragens políticas no Alentejo não são sempre, nem são
exactamente, os mesmos que constituem os marcos da
política nacional. O 28 de Setembro tem pouca
importância; o 11 de Março só tem um impacte imediato
relativo. Ao contrário, os momentos decisivos no Alentejo
quase passam despercebidos no resto do País. São os
casos das primeiras ocupações (Janeiro de 1975), da
aprovação das leis de expropriação (Julho de 1975), dos
créditos do Governo para pagamento de salários das
unidades colectivas (Setembro de 1975) e da «plataforma»
dos partidos sobre a reforma agrária (Janeiro de 1976).
Os desfasamentos não são o resultado de uma
autonomia completa da revolução rural, são a
consequência das estratégias políticas e da evidente
particularidade de algumas situações. Há com efeito
estreitas relações entre a revolução política nacional e a
revolução agrária alentejana. Antes de mais, a primeira
explica e constitui a génese da segunda. Ao ponto de que,
sem aquela, não seriam sequer de prever conflitos sérios
na região. Em segundo lugar, ao longo do processo, as leis
precederam quase sempre as acções locais e os
movimentos sociais. Finalmente, como é natural, as
mudanças de poder e de relação de forças tiveram
sempre, tarde ou cedo, repercussões locais, regionais e
agrárias.
Quatro grandes fases se desenham na evolução da
revolução agrária71. A primeira vai de 25 de Abril de 1974
até ao fim do ano: é a abertura da questão agrária. Com as
ocupações de terra, em Janeiro de 1975, inicia-se a
segunda etapa, a das conquistas à margem da lei. A
aprovação das leis de expropriação e de nacionalização,
em Julho, marca o princípio da terceira fase, a do processo
revolucionário com cobertura legal. A quarta, de
consolidação e de contestação, começa em Janeiro de
1976 e termina em Outubro, com a demissão do ministro
da Agricultura, Lopes Cardoso.
Noutra perspectiva, a primeira fase é a da ocupação das
instituições, da preparação estratégica e do
desenvolvimento das tensões sociais (que não existiam em
Abril). A segunda e a terceira são as da conquista territorial
e da apropriação do poder económico. A quarta fase é,
para os revolucionários, de organização e defesa do poder
conquistado e, para os proprietários, de lançamento da sua
ofensiva contestatária.
O quadro seguinte ilustra estas quatro etapas com
algumas das suas características principais72.
As etapas da revolução agrária

1 2 3 4

Janeiro Janeiro
Abril a Agosto a
a Julho a Julho
Dezembro Dezembro
de de
de 1974 de 1975
1975 1976

Demissões, nomeações e
substituições em vereações e 350 121 — —
freguesias da ZIRA

Convenções colectivas de trabalho


rural e portarias de regulamentação 52 7 3 —
do trabalho aplicáveis à ZIRA

Nomeações de comissões
liquidatárias de federações e de
4 77 18 —
grémios da lavoura do Ribatejo, do
Alentejo e do Algarve

Intervenções do Estado em herdades


— 26 1 11
e empresas agrícolas privadas

Arrendamentos compulsivos — 18 2 —

Terras ocupadas, em percentagem da


superfície total ocupada no fim do — 13% 85% 2%
processo

Terras ocupadas (milhares de


— 156 1009 18
hectares)

Número de herdades ocupadas nos


— 256 3311 59
distritos de Beja e Évora
As etapas da revolução agrária

1 2 3 4

Janeiro Janeiro
Abril a Agosto a
a Julho a Julho
Dezembro Dezembro
de de
de 1974 de 1975
1975 1976

Número de unidades colectivas


— 25 146 —
constituídas no distrito de Évora

Número de unidades colectivas


reconhecidas pelo Ministério da — — 348 89
Agricultura

Número de unidades colectivas do


distrito de Évora legalizadas no — — 149 10
Diário da República

Número de herdades legalmente


— — 865 1261
expropriadas

Número de proprietários
— — 311 398
expropriados

Superfícies expropriadas
— — 344 302
(em milhares de hectares)

A abertura da questão agrária:


Abril a Dezembro de 1974

Só muito gradualmente é que, depois da revolta militar e


do golpe de Estado, os problemas agrários surgem na cena
política. São sinais dos tempos, quer dizer, da
subordinação da agricultura à economia industrial e à
civilização urbana, mas também da mais fraca disposição
dos agricultores, camponeses e assalariados rurais para a
intervenção política. Também são indícios de não haver
crise social e económica na agricultura.
O «Programa do MFA» não faz referências precisas à
agricultura, mas o programa do primeiro Governo
provisório já menciona a «reforma gradual das estruturas
agrárias». Esta indicação não terá consequências práticas
durante inúmeros meses. Todavia, do programa, uma outra
opção será bem mais eficaz, a da «estratégia
antimonopolista». Esta ideia será reivindicada como
legitimação das medidas mais radicais de carácter
económico, entre as quais as leis antilatifundiárias.
Ao longo do ano debate-se a questão agrária, de modo
disperso e confuso, mas sempre num crescendo político.
De início, os temas mais abordados são a modernização, a
melhor utilização dos recursos e a introdução de novas
culturas. Lentamente surgem os problemas mais
controversos: o emprego, a contratação colectiva, os
salários, o abandono das terras e o absentismo. A eventual
penalização do subaproveitamento parece ser aceite em
vastos sectores de opinião.
No fim do ano, a realidade já mudou. A palavra de ordem
de reforma agrária está um pouco por todo o lado.
Sindicatos, militantes, intelectuais, militares e até cantores
reclamam a expropriação das grandes herdades e quintas.
Entretanto, durante as últimas semanas do ano, o
secretário de Estado da Agricultura (ainda não foi criado o
Ministério) toma várias iniciativas, visita a região agrícola
do Sul, contacta os agricultores e os sindicatos e anuncia
medidas para breve. Reúne a maioria dos técnicos
superiores dos serviços, sobretudo os jovens agrónomos e
veterinários. São assim criadas as «comissões de
intensificação cultural», cuja primeira tarefa seria a de
proceder a um levantamento das condições e dos meios
para melhorar a produção no Alentejo e no Ribatejo. Os
técnicos dão provas de entusiasmo. Muitos acabam de
terminar a Universidade e crêem ter diante de si uma
oportunidade única. Visitam centenas de explorações,
discutem com os agricultores, fazem relatórios para o
secretário de Estado e tentam estabelecer regras de
utilização dos solos, assim como níveis de aproveitamento
a respeitar. A ideia de penalização do abandono e do
insuficiente aproveitamento está bem presente, mas a
preferência é dada ao diálogo com os proprietários e
agricultores.
Os diplomas legais aprovados nesta altura reflectem um
espírito moderado e reformista: a lei dos baldios; um
decreto sobre o arrendamento compulsivo das terras
abandonadas ou mal aproveitadas cujos proprietários
recusem tomar medidas para aumentar os níveis de
rendimento; e o decreto sobre os foros e as terras
arroteadas por rendeiros.
Um outro decreto, de carácter geral, terá todavia mais
importância prática, até porque traduz um espírito mais
duro: o Decreto-Lei n.º 660/74, que autoriza o Estado a
«intervir» nas empresas privadas. Perante certas
situações, como as dificuldades financeiras, a «sabotagem
económica», a má orientação dos dirigentes, etc., o
Governo fica autorizado a demitir a administração de uma
empresa e nomear uma comissão administrativa. Não é
uma nacionalização, mas é uma ameaça. Esta medida não
será aplicada muitas vezes em 1974. Mas em 1975 o
Governo recorrerá a ela em múltiplas situações.
No capítulo das medidas práticas, o secretário de Estado
propõe-se mudar os serviços, sobretudo os de extensão
rural. Os antigos organismos são considerados arcaicos,
pouco produtivos e comprometidos com o antigo regime e
os grandes proprietários. Anuncia-se a criação do Instituto
Nacional de Investigação Agronómica (INIA) e do Instituto
de Reorganização Agrária (IRA), a que uns chamam de
Reforma Agrária e outros ainda de Reestruturação Agrária.
Pelo seu lado, o Ministério do Trabalho determina, por via
administrativa, o limite de 45 horas de trabalho por
semana na agricultura. Ao mesmo tempo, o Governo
encarrega alguns dos seus ministros de redigir um
«programa de política social e económica».
O executivo avança às apalpadelas. Conhece mal a
situação real, tem pouca experiência e nenhuma unidade
de pensamento. Os seus membros nunca desempenharam
cargos de importância governamental ou administrativa. O
equilíbrio político é só aparente. Os centros de decisão
estão dispersos e por vezes não se encontram onde se
espera. Ninguém considera a situação estável. Uns
esperam eleições, outros a revolução. Mas todos se
procuram e se vigiam.
Os partidos fazem prova de um certo empirismo.
Navegam à vista. A estratégia faz-se todos os dias. Sobre a
reforma agrária, o pensamento e os programas são vagos
e imprecisos. Só o PC tem uma espécie de programa,
formulado dez anos antes, que sublinha a necessidade de
uma reforma agrária e da divisão das terras. Mas é preciso
sobre um tema: a reforma agrária é uma das tarefas da
«revolução nacional e democrática», deve ser feita o mais
depressa possível, sem esperar pela Constituição73. O
programa do PS, aprovado no exílio em 1973, é favorável à
reforma agrária, na generalidade. Preocupa-se bem mais
com as eleições, a democratização das instituições e a
garantia dos direitos e liberdades fundamentais74. Os
outros partidos, que ainda não completaram um ano de
vida, não apresentam ideias próprias sobre a reforma
agrária. As suas principais atenções vão para a
organização partidária, a liberdade de movimentos e as
eventuais eleições.
No último trimestre, os partidos realizam os seus
congressos: o PC a 20 de Outubro, o PPD a 23 de
Novembro e o PS a 13 de Dezembro. O CDS só fará o seu a
26 de Janeiro. Depois dos congressos, os partidos terão
todos os seus programas agrários, geralmente moderados
e reformistas. Formalmente, o do PS será o mais radical de
todos.
Mas os programas não são tudo. Em períodos instáveis e
revolucionários, são mesmo bem menos importantes do
que a acção e a estratégia. O que mais parece preocupar
os partidos, além do poder militar, é a ocupação
institucional, a tomada de posições na administração
central e local. O recrutamento maciço de funcionários
públicos data desta época. Todos os partidos lhe devem
uma parte importante do seu começo de vida. Até ao fim
do ano, 74% dos cargos das vereações municipais e das
freguesias são assim ocupados por delegados dos partidos.
Nas regiões do Sul, os militantes e simpatizantes do PC e
do MDP ocupam a maioria dos lugares nestas comissões
administrativas.
O PC, mais rápido do que os outros, organiza e abre os
seus «centros de trabalho» em todos os municípios e
bastantes freguesias da região: 126 ao todo. No mesmo
período, até Dezembro, o PS não chega a 30, o PPD menos
de uma dezena e o CDS nenhuma sede local ou regional.
Nos dois últimos casos, são as residências dos militantes
que vão servindo de pontos de contacto. O MDP também
organiza e abre as suas secções locais, geralmente em
instalações tendo pertencido à União Nacional/Acção
Nacional Popular, à Censura ou outros organismos
governamentais, sem todavia exagerar o seu esforço:
perceber-se-á rapidamente que não quer ou não pode
fazer concorrência ao PC. Em certo sentido, especializa-se,
sob o lema da «unidade democrática», na formação de
comissões administrativas para as câmaras e freguesias,
assim como na criação de organismos de carácter
socioprofissional, sindicatos, ligas e associações.
Os sindicatos têm neste período a sua fase de
crescimento rápido, estreitamente ligada a uma acção
imediata e eficaz de contratação colectiva. Ainda em Maio
de 1974, as suas primeiras reuniões efectuam-se, muitas
vezes, nas sedes do MDP, outras nas Casas do Povo. Mas
depressa terão a sua autonomia.
A contratação colectiva será um dos fenómenos mais
marcantes do ano. Até Dezembro, mais de meia centena
de convenções colectivas entram em vigor, umas
resultantes de reais contratos, outras aprovadas por
portaria de regulamentação. De âmbito reduzido
inicialmente à freguesia ou ao concelho, acabam por ser
válidos para distritos inteiros, ou mesmo para toda a
região, altura em que uma só portaria bastará. Os
benefícios são consideráveis: salários, férias, horas
extraordinárias, segurança social, etc. Os trabalhadores
reconhecem-se nos sindicatos, até porque são obviamente
os interlocutores privilegiados do Governo.
A evolução dos contratos colectivos ou das portarias de
regulamentação mostra uma outra tendência bem
significativa: a esfera de competências dos sindicatos
aumenta gradualmente. No fim do ano, estes têm funções
de avaliação do aproveitamento das terras, de distribuição
dos trabalhadores pelas explorações agrícolas privadas e
de interlocutor único dos empresários: uma espécie de
monopólio da força de trabalho. Através destas funções,
exercidas em comissões tripartidas (Estado, sindicatos e
associações patronais) ou simplesmente bipartidas (Estado
e sindicatos), começa a exercer-se uma forte pressão sobre
as explorações agrícolas privadas, utilizando os
mecanismos económicos, nomeadamente o emprego
compulsivo.
A estas pressões juntam-se os partidos políticos, o MFA e
a comunicação social. Em Novembro, o PS afirma que é
tempo de se tomarem medidas de reforma agrária, a
começar «pela expropriação das grandes sociedades
agrícolas latifundiárias pouco produtivas ou situadas nos
perímetros de rega construídos com fundos públicos».
No fim do ano de 1974, no Alentejo, o poder económico
dos proprietários e capitalistas está ainda intacto, mas a
relação de forças institucionais é quase inversa da que era
há menos de um ano. O Governo, que não é muito
favorável à propriedade, faz a lei, os sindicatos aplicam-na,
apoiados pelas autarquias locais. Em Dezembro, a agitação
estende-se a toda a região, com os primeiros sinais de
desemprego a aparecerem. Os proprietários falharam a
sua primeira tentativa de organização, através das ALA
(associações livres dos agricultores), e não conseguem
recuperar para si os grémios da lavoura. Para estes, que
representam um imenso património e uma invejável rede
institucional, o Governo nomeia comissões liquidatárias.
O Governo não é o único culpado pelo fiasco das ALA.
Além das responsabilidades dos interessados, há que
contar com a ausência dos pequenos e médios
agricultores. Estes teriam sido essenciais para o
lançamento das novas associações. Ora, em vez de se
juntarem aos proprietários e aos grandes empresários,
preferem (os que se exprimem e manifestam) a
organização autónoma, em concreto as ligas de pequenos
e médios agricultores, que começam a nascer em Beja,
Évora, Portalegre, Santarém e Setúbal. Apesar de pouco
numerosos, estes agricultores e as suas ligas
desempenharão um importantíssimo papel político.
Do lado dos militares, novas iniciativas surgem nos finais
do ano. Por enquanto localizadas e de âmbito reduzido, as
primeiras «campanhas de dinamização cultural» são
lançadas, por exemplo em Alpiarça, Constância, Montemor-
o-Novo, etc. Mas os militares já intervêm fortemente no
«terreno», em conflitos que se sucedem entre proprietários
e trabalhadores, ou entre grupos de diferentes tendências
políticas. Toda a gente chama os militares em 1974: os
proprietários, para se defenderem; os assalariados, para se
protegerem; todos, com vista à arbitragem. A ambiguidade
é evidente. Pouco a pouco, as intervenções militares serão
mais favoráveis aos trabalhadores e aos sindicatos. O
órgão oficial do MFA (Boletim do Movimento das Forças
Armadas) levanta progressivamente a questão agrária
desde Outubro. Em Novembro faz já propostas concretas
de intervenção, segundo as quais seria preciso «obrigar os
proprietários a atingir níveis mínimos de produção e
substituir os proprietários absentistas por organismos
especializados da administração».
No fim desta primeira etapa, os sinais de crise social e
económica são evidentes. Vai começar o Inverno e, com
ele, um mau período para o emprego. Um número
considerável de empresários começam a prever alguns
riscos excessivos ou para os quais não estão preparados.
Na construção e nas obras públicas, a crise é mais séria,
mas a mão-de-obra que fica disponível vem em parte para
as áreas rurais. De modo convergente, as perspectivas de
emigração praticamente desaparecem, devido à crise
económica ocidental. O desemprego surge lentamente.
Do ponto de vista ideológico, todo o País parece
preparado para a reforma agrária, uns com entusiasmo,
outros na resignação. A imprensa, a televisão, os partidos,
os militares e grupos de toda a espécie não cessam de
abordar o tema. Uma ideia se generaliza: a de que existem
centenas de milhares de hectares de terras agrícolas
abandonadas e incultas no Alentejo. Os factos não são
evidentes, mas a crença é forte. Outra ideia é indiscutível:
a da sabotagem económica pelos grandes proprietários,
que não investem, que não colhem, que tentam vender
«às escondidas» o gado, as máquinas, os produtos e
mesmo as terras. Quase tudo está pronto: a organização,
as forças, a ideia, o mal-estar e o culpado.

As conquistas à margem da lei:


Janeiro a Julho de 1975

O início desta segunda fase é marcado pelo fim das


iniciativas reformistas, pelo desencadear das primeiras
acções revolucionárias e pela forte intervenção do Estado
no sector agrícola.
O «Programa de política social e económica» é
sucessivamente aprovado, até Fevereiro, pelas instâncias
militares (especialmente a assembleia do MFA) e pelo
Governo. Será rapidamente ultrapassado pelos
acontecimentos políticos do mês de Março. Foi a primeira e
última tentativa de definição de uma orientação política e
económica global moderada. Consagra a primeira versão
de um projecto de reforma agrária, prevendo a
nacionalização das explorações agrícolas situadas dentro
dos perímetros de rega construídos pelo Estado, assim
como determina a intervenção nas herdades privadas
cujas terras sejam consideradas subaproveitadas. No seu
conjunto, o «Programa» não será mais retomado, discutido
ou revogado. Simplesmente não se falará mais nele.
Também as «comissões de intensificação cultural»
chegam a seu termo sem ter produzido resultados.
Reúnem-se cada vez menos. Os seus relatórios ficam nas
gavetas dos governantes. Os técnicos sentem que o seu
trabalho é inútil e percebem que são ultrapassados pelas
primeiras ocupações de terras dos meses de Janeiro e
Fevereiro. Gradualmente, as comissões deixam de existir75.
O seu espírito e os seus métodos estavam já fora do tempo
político. Com efeito, depois de terem examinado algumas
centenas de herdades, para um total de 430 000 ha,
consideram que apenas 5% poderiam ser considerados
abandonados ou subaproveitados.
A 22 de Janeiro de 1975, o Governo decreta a sua
primeira intervenção numa herdade privada, o «Monte do
Outeiro». Poucas semanas antes, uma outra herdade, o
«Mouchão do Inglês», tinha sido ocupada pelos
trabalhadores. Mas, neste último caso, tratava-se de uma
herdade do Estado: a sua ocupação tinha mesmo resultado
de um acordo entre os assalariados e os funcionários do
Ministério. Neste primeiro semestre haverá ainda 26
intervenções do Estado.
É todavia o movimento de ocupações que cresce
gradualmente e que melhor caracteriza o período. Entre as
primeiras herdades contam-se: «Pombal» (distrito de
Évora), «Alpendres» (Beja), «Defesa», «Picote»,
«Raimundo», «Padrões», «Água Derramada» e outras nas
semanas seguintes. Até fins de Julho serão 156 300 ha,
assim distribuídos: Janeiro, 1000 ha; Fevereiro, 7300 ha;
Março, 6000 ha; Abril, 14 000 ha; Maio, 26 000 ha; Junho,
32 000 ha; Julho, 70 000 ha. O total representa cerca de
13% da superfície que virá a ser ocupada até 1976. A
distribuição geográfica, por distritos, é a seguinte: Beja, 53
500 ha; Portalegre, 40 200 ha; Beja, 30 900 ha; Santarém,
16 100 ha; Setúbal, 7800 ha; e Castelo Branco, 3000 ha
(mais 4800 ha não localizados).
Entre os primeiros ocupantes contam-se alguns
pequenos agricultores (seareiros, rendeiros e alugadores
de máquinas) apoiados pelas ligas. Mas rapidamente os
sindicatos e os assalariados tomam a cabeça do
movimento e conduzem os acontecimentos, até que os
pequenos agricultores não estarão mais presentes.
Durante os primeiros meses, as ocupações estão
geralmente relacionadas com conflitos locais,
reivindicações não satisfeitas ou tensões de diversa
ordem. Com o tempo, os motivos simplificam-se. A partir
da Primavera, ocupa-se porque «é a lei» ou porque «é a
reforma agrária».
Os proprietários reagem pouco ou nada. Alguns fazem
apelo ao Governo ou chamam as forças armadas, mas em
vão. O Governo cala-se até ao 11 de Março. A partir do
golpe, apoia explicitamente e incita. Não há uma
verdadeira ruptura, pois que as ocupações já tinham
começado; mas, com aquela data, há uma real aceleração
e um conteúdo político mais explícito.
Com efeito, a acção do Governo muda de forma decisiva.
A Secretaria de Estado transforma-se em Ministério. O
novo ministro, Fernando Oliveira Baptista, é um agrónomo
cujas posições políticas o situam próximo dos esquerdistas
e dos comunistas. O novo Governo, além das
nacionalizações na indústria, na banca e nos serviços,
aprova o Decreto-Lei n.º 203-C/75, que define as novas
prioridades sociais e económicas. Uma será a reforma
agrária: as explorações com mais de 500 ha em sequeiro,
ou mais de 50 ha em regadio, serão expropriadas.
Começa a criar-se o dispositivo legal e administrativo
para encorajar e controlar a reforma agrária. Pouco antes,
uma nova lei do arrendamento rural (n.º 201/75) tinha
dado certas vantagens aos rendeiros. Um despacho do
ministro ordena medidas de controlo do gado. A 17 de
Abril, o Decreto-Lei n.º 207-B/75 define os «crimes de
sabotagem económica» e prevê sanções, entre as quais o
confisco, a expropriação e a prisão. Normas sobre o crédito
agrícola para a banca, entretanto nacionalizada, são
igualmente publicadas. Os preços e os salários são
temporariamente bloqueados. Várias medidas orgânicas
vêm aumentar a capacidade de acção dos responsáveis
locais do Ministério. Estes podem, por exemplo, requisitar
máquinas agrícolas aos proprietários, o que mais tarde se
alargará ao gado, aos créditos e à cortiça.
Começa uma profunda transformação dos serviços do
Ministério. Entre Abril e Julho são criados vários
organismos, muito flexíveis, dependentes do ministro, com
meios abundantes e cujos funcionários são politicamente
seleccionados. São criados os «centros de reforma
agrária», com vastos poderes descentralizados, assim
como o Serviço de Apoio e Desenvolvimento Agrário
(SADA), devendo aqueles ocupar-se dos distritos do Sul e
este das regiões de campesinato do Norte e do Centro.
Outros novos organismos são instalados nos serviços
centrais: são os «grupos de trabalho permanentes» para
coordenação dos centros de reforma agrária, para o crédito
agrícola, para o associativismo rural, para as indústrias
agrícolas e para a coordenação das «comissões de gestão
provisória dos perímetros de rega», também criadas no
Verão.
Surgem ainda os «conselhos regionais de reforma
agrária», um em cada distrito do Sul, reunindo delegados
dos ministérios, dos sindicatos, das associações de
agricultores e das forças armadas; as «comissões distritais
rurais» (CDR) e as «comissões técnicas municipais» (CTC),
formadas por funcionários e sindicalistas, por vezes
incluindo também pequenos agricultores ou empresários.
Finalmente, em Julho, um decreto-lei obriga todas as
cooperativas a realizar eleições dentro de 90 dias,
considerando que os antigos dirigentes associativos e
todas as pessoas ligadas ao antigo regime são inelegíveis.
Este dispositivo está montado quando, em princípios de
Agosto, as verdadeiras leis de reforma agrária (de
expropriação e de nacionalização) são publicadas. Estas
leis são mais radicais do que os projectos de Abril. Com
efeito, não se tem conta dos níveis de utilização e
aproveitamento das terras; os limites das explorações
regadas são baixados para 30 ha; o «direito de reserva» só
será atribuído ao proprietário mais tarde, na sua herdade
ou noutro sítio, e ainda com a condição de se tratar de
alguém que retira os rendimentos exclusiva ou
predominantemente da agricultura.
Previsivelmente, os meses de Abril a Julho são de grande
actividade do ministro e dos seus mais próximos
colaboradores. Sucedem-se as visitas e as sessões de
diálogo e esclarecimento. Por vezes, o ministro sente
necessidade de tranquilizar: «Não se tocará nem num
milímetro de terra dos pequenos agricultores.» Outras
vezes é mais directivo: «A reforma agrária deve começar
pelas melhores terras; se se ocupam primeiro as piores,
haverá depois problemas de que será difícil sair.»
São frequentes as acções de esclarecimento e
sensibilização, a cargo, sobretudo, do Governo, dos
serviços do Ministério, do MFA e do PC. Este organiza, aliás,
«encontros» e «conferências» distritais de pequenos
agricultores, de camponeses ou de trabalhadores rurais,
mudando a terminologia conforme os casos. Ao mesmo
tempo, prossegue o esforço de implantação partidária: até
Julho abre mais 90 «centros de trabalho». O essencial da
estrutura está montado. Até ao fim do ano só abrirá mais
15 centros.
Os outros partidos vão-se dando conta de que perderam
o controlo dos acontecimentos. O PS e o PPD percebem
que não tiraram proveitos reais dos resultados das
eleições. Mesmo no Sul, no conjunto de freguesias e
municípios que virá a ser a Zona de Intervenção da
Reforma Agrária, o PS é o primeiro partido, com 41%.
Também é verdade que o PC, aqui, vem logo em segundo
lugar, com 38%, o que contrasta com a sua média
nacional, de 12%. O PPD e o CDS protestam sem grande
eficácia contra os acontecimentos no «terreno», mas
ninguém os ouve. O PS está dividido: defende a reforma
agrária, mas não exactamente estes métodos, nem se
mostra muito disponível para apoiar o que lhe parece ser a
ausência de legalidade. De qualquer maneira, o que
realmente preocupa os partidos não comunistas é a
situação geral, que dia a dia lhes é mais desfavorável. Em
Julho, PS e PPD saem do Governo e tentam, na oposição e
na «rua», fazer o que não lhes era possível no executivo:
contrariar o MFA e o PC.
Pelo seu lado, os militares aumentam as suas
intervenções. São lançadas as grandes «campanhas de
dinamização cultural», sobretudo no Norte e nas Beiras.
Logo a seguir ao 11 de Março, dezenas de prisões são
efectuadas, tanto de civis como de militares. Desde o
princípio das ocupações que estão especialmente
sensibilizados e activos em tudo o que diz respeito à
reforma agrária. Fazem inquéritos, informam-se e
procuram influenciar as decisões. «Os proprietários são os
responsáveis pelo desemprego», anuncia-se oficialmente
no seu boletim. Em fins de Abril, numa espécie de artigo-
programa, afirmam a necessidade da reforma agrária,
especificando que «1 milhão de hectares passarão para as
mãos do Estado». Finalmente, no terreno, colaboram
frequentemente nas ocupações, protegem os
trabalhadores e intimidam os proprietários. Algumas
unidades, como a Escola Prática de Artilharia, de Vendas
Novas, participam em centenas de ocupações.
Estabelece-se uma espécie de «soberania» sindical na
região. Um regime de trabalho, preparado pelos sindicatos
e imposto pelo Governo, substitui todas as convenções
locais e regionais. Desde Fevereiro que os sindicatos
participam nas ocupações, e em breve serão eles a
coordenar as operações. A certa altura, o Sindicato de Beja
chega a anunciar que trabalhadores armados ocupariam as
terras subaproveitadas e avançariam «contra a sabotagem
económica dos grandes proprietários», o que fariam,
evidentemente, «com o acordo do MFA».
Os sindicatos estão em todo o sítio, nas mais diversas
instituições: nas comissões municipais e distritais do
emprego; nos conselhos regionais de reforma agrária; são
os interlocutores privilegiados do Governo e dos militares;
fixam os salários e detêm, na prática, o monopólio da
oferta de trabalho; avaliam o estado das culturas. Chegam
mesmo a desempenhar, por despacho oficial, funções de
inquérito, fiscalização, controlo do gado, vigilância contra
os incêndios, policiamento do tráfego rodoviário de
mercadorias e aval de créditos agrícolas.
As associações de proprietários e agricultores não dão
sinais de vida, quase levam uma existência clandestina. As
ALA passaram à história, combatidas pelo Governo e pelos
militares, pelo PC e mesmo pelo PS. Sobretudo, não tinham
conseguido mobilizar os pequenos agricultores. Destes,
muitos ficam passivos, mas um número razoável empenha-
se nas ligas e mantém estreitas relações com o MDP, o PC
e o MFA, assim como com os sindicatos. Nalgumas ligas, os
principais responsáveis são militantes comunistas ou
simpatizantes reconhecidos, como M. Tibério e J. Carita,
em Beja e Portalegre. A todos, o secretário-geral do PC
declarou com ênfase: «Nos pequenos agricultores não se
tocará nem com um dedo.»
A situação geral é tensa. A agitação é grande. A
superioridade das forças sindicais, comunistas, militares e
governamentais é tal que os incidentes são reduzidos, em
todo o caso, no Sul. Fazem-se centenas de comícios,
manifestações e sessões de esclarecimento por mês. As
ocupações de herdades são frequentemente preparadas
por comícios ou manifestações na região. Muito poucas
provocam incidentes violentos. Um dos mais graves
acontece em Sousa da Sé, perto de Évora. Durante a
tentativa da ocupação, em Julho, há troca de tiros entre
proprietários e trabalhadores, de que resultam dois feridos.
O facto é trazido com força para a imprensa e a opinião
pública. A ocupação é depois confirmada pelos militares e
pelo ministro, que lá se desloca pessoalmente. Será um
caso exemplar e um precedente. A relação de forças é
realmente dissuasora. No conjunto das ocupações, não
haverá um único morto. Houve intimidação, um pouco de
violência, mas não houve terror.
Na economia, há crise e desorganização. Durante o
primeiro semestre de 1975 cresce o desemprego e os
empresários reduzem as suas actividades. Os sindicatos
agrícolas estimam o número de desempregados a 5000 em
Évora, 3800 em Beja, 3500 em Portalegre, 2000 em
Setúbal e 1000 em Santarém. Na região, cerca de 14% da
população estaria sem trabalho. Todavia, desde o fim da
Primavera que um fenómeno contraria a tendência: as
unidades ocupadas procedem imediatamente a
recrutamento maciço de trabalhadores, não só rurais,
como também os que foram despedidos das obras, da
construção civil ou mesmo das indústrias das cidades.
O balanço desta fase é favorável aos sindicatos, aos
comunistas e aos militares mais radicais. Já o era no plano
nacional, mesmo tendo em conta que a contestação
socialista começou em cheio. Também o é, ainda mais, na
região da reforma agrária. A conquista institucional está
consolidada, a conquista territorial está lançada. A relação
de forças é favorável aos revolucionários, tanto mais que
agora têm mesmo algumas bases de poder económico: as
terras, as herdades, as máquinas e o gado.
As resoluções políticas, nomeadamente as do Governo,
orientaram a acção. As leis vêm depois legalizar todas as
operações conquistadoras. Raramente se levanta, com
eficácia, a questão da legalidade das ocupações,
politicamente protegidas como foram.
Deste período ficam ainda dois legados doutrinários. Em
primeiro lugar, a vocação política da reforma agrária. Esta
visa a propriedade privada e o capitalismo, não mais as
terras abandonadas e subaproveitadas. Reforma agrária e
socialismo tornam-se indissociáveis.
Em segundo lugar, o espírito colectivista elimina
definitivamente qualquer veleidade de divisão camponesa
das terras. As herdades serão ocupadas, em seguida
expropriadas legalmente; passam assim para a
propriedade do Estado, que reconhece as unidades
colectivas que nelas se formarão. O ministro não tem
dúvidas: «A divisão das terras não resolveria o problema
de ninguém. Nós queremos acabar com o latifúndio e com
o pequeno agricultor. Não se pode permitir que a reforma
agrária faça novos pequenos patrões.»
Quando as leis de Julho são anunciadas oficialmente,
afirma-se que «o uso colectivo da terra tem carácter
permanente, irredutível à pequena propriedade». Com a
reforma agrária passa também um programa político e um
modelo de sociedade.

O processo revolucionário com cobertura legal:


Agosto a Dezembro de 1975

Nesta terceira fase assiste-se com mais nitidez ao


desfasamento entre a evolução política geral e o processo
agrário. O quinto Governo provisório revela o apogeu das
forças revolucionárias, mas também o seu isolamento. A
verdadeira ruptura política e social far-se-á não com a
formação do sexto Governo, mas com o 25 de Novembro.
Será nesta altura que os socialistas e outros democratas
confirmam a sua predominância, que a descolonização
será completada e a revolução conhecerá o princípio do
fim.
Durante a curta vida do quinto Governo, o ministro da
Agricultura é reconduzido e prossegue a sua política,
apesar das oposições crescentes de socialistas, de
militares moderados e dos agricultores em geral. No Sul, a
questão agrária não sofrerá alterações importantes, nem
sequer na passagem do quinto para o sexto Governo. No
resto do País, é o «Verão quente» dos atentados e dos
incêndios.
No conjunto, esta fase revela o maior número de
ocupações. O mês de Outubro é, aliás, em todo o ano,
aquele em que se ocuparam mais vastas superfícies76.
Superfícies ocupadas
(em milhares de hectares)

Janeiro a Julho — 156,3

Agosto 169,2

Setembro 153,7

Outubro 411,6

Novembro 231,6

Dezembro 43,3

Agosto a Dezembro — 1009,4

Total em 1975 — 1165,7

De todas as terras ocupadas, 85% são-no neste período


de cinco meses. Durante os dois meses de predominância
dos comunistas e dos militares no Governo, cerca de 323
000 ha são ocupados. Em Outubro e Novembro, com um
Governo bem mais moderado, quase 687 000 ha são
ocupados. Na verdade, o poder político não reside ainda no
Governo, nem nos vencedores das eleições: é ainda
disputado e os militares detêm uma parte razoável.
Os sindicatos reforçam o seu poder. Aceleram as
ocupações. Mantêm-se activos nas instituições. Começam
a organizar as unidades colectivas de produção. Os
trabalhadores alentejanos sabem que, na região pelo
menos, o seu emprego depende dos sindicatos. Estes têm
permanentes contactos com o MFA e as unidades militares
da região mais favoráveis. Em Agosto, sindicatos e
militares chegam a apelar para que os trabalhadores
«contactem o sindicato e os centros de reforma agrária
antes de proceder a ocupações»77. Tal é o seu poder.
As instituições e os serviços do Ministério continuam
activos. O dispositivo legal e administrativo está instalado.
Com a mudança do quinto para o sexto Governo, sai F. O.
Baptista, entra António Lopes Cardoso, dirigente do PS.
Com este entram vários secretários de Estado, entre os
quais Joaquim Lourenço, do PPD, e António Bica, do PC. A
falta de unidade é evidente. Os conflitos prosseguirão. O
novo ministro é favorável à reforma agrária. Ao que está
em curso, no terreno e nas leis, ele dirige algumas críticas,
duras é certo, mas que não sugerem ruptura. Vai tentar
apoiar os pequenos agricultores, na acção prática, sem
procurar mudar a lei geral. As suas intenções são
resumidas por ele próprio: «O Estado deve enquadrar a
reforma agrária, mas não deve limitar a iniciativa dos
trabalhadores.»78
Esta dualidade marca os primeiros meses de actividade
do novo Ministério, o que não se passa sem conflitos,
incluindo no seio da equipa governamental. A ponto que o
ministro chegará mesmo a retirar competências ao
secretário de Estado comunista.
Além das ocupações, outro sinal revelador de uma certa
continuidade entre governos é dado pelas expropriações
legais. Tornando irreversíveis as ocupações, aquelas
começam a ser publicadas oficialmente em Setembro: 389
herdades, ou 221 000 ha. No fim do ano, 865 herdades
estão expropriadas, num total de 342 000 ha. Todas estas
expropriações são feitas rapidamente, dando a impressão
de uma corrida contra-relógio. Torna-se necessário
consolidar, mas também resolver problemas práticos, dos
créditos à responsabilidade jurídica e a outras capacidades
administrativas. Assim vão surgindo as unidades colectivas
de produção e as cooperativas, com nomes evocadores:
«Primeiro de Maio», «Catarina Eufémia», «Muralha de
Aço», «Margem Esquerda», «Estrela Vermelha»,
«Companheiro Vasco», «Che Guevara», «A Esquerda
Vencerá», «Alentejo Vermelho», etc. Ninguém sabe muito
bem o que é, juridicamente, uma unidade colectiva de
produção, nem em que difere de uma cooperativa. Mas,
para os primeiros actos administrativos e comerciais, as
expropriações são o primeiro passo, o segundo é o
reconhecimento legal da unidade colectiva ou da
cooperativa pelo Ministério.
Até ao fim do ano, 348 unidades colectivas e
cooperativas são assim reconhecidas e começam a sua
vida «normal» na sociedade e na economia alentejanas.
Esta legalização é vital: ficam acessíveis créditos e
subsídios, pagamentos de colheitas e actos de compra,
venda e contratação. Apesar de precárias e dependentes
do Ministério, as UCP passam a ter uma vida para todos os
efeitos legal.
Para tudo isto, aceleração das ocupações e legalização
das UCP, uma medida do Governo é decisiva: o Decreto-Lei
n.º 541-B/75, do sexto Governo, publicado pelo Diário do
Governo de 27 de Setembro, permite que o «crédito
agrícola de emergência» seja atribuído às UCP para
pagamento de salários. Não só se resolve grande parte dos
problemas das UCP já constituídas e das herdades já
ocupadas, como sobretudo se dá um autêntico impulso a
novas ocupações. Com efeito, depois de aprovado o
decreto, mais 412 000 ha são ocupados só em Outubro. Ao
todo, 60% das terras ocupadas durante o ano são-no
depois de publicado o «decreto dos salários».
Do ponto de vista laboral, o sexto Governo segue as
mesmas orientações que os anteriores: um só regime de
contratação é estabelecido para toda a região, por
portaria.
No entanto, mesmo se as políticas ainda não são muito
diferentes, sindicatos e comunistas não vêem com bons
olhos o sexto Governo, e muito menos o ministro Lopes
Cardoso. Esta atitude não se limita a uma tomada de
posição sobre a pessoa. O PC nota e percebe uma
mudança da situação geral, no País e na região. As críticas
contra a reforma agrária, ou contra o modo como ela foi
conduzida, são agora fáceis. Pequenos agricultores
prejudicados não têm receio de falar. Os partidos não
comunistas apontam com veemência erros e ilegalidades.
Os proprietários retomam algumas iniciativas, aqui e acolá.
Nas ligas surgem pontos de vista muito críticos e pequenos
agricultores movimentam-se. A CAP começa a afirmar-se e
a conduzir uma estratégia de massas e de rua, com
manifestações e cortejos aos quais assistem milhares de
agricultores. Entre estes, muitos grandes proprietários e
muita gente de direita; mas a maioria é formada por reais
pequenos agricultores, rendeiros e seareiros, homens do
povo que, por boas ou más razões, se mobilizam. O
ministro dá-se conta desta situação e exprime os seus
receios de que a reforma agrária deixe de lado milhares de
pequenos agricultores, que, em todo o País, são talvez a
maioria. Se forem marginalizados, acabarão por se voltar
contra a reforma agrária. Apesar disso, o Ministério ficará
«entalado» entre comunistas e CAP, atacado dos dois
lados, sem apoio próprio.
Em poucos meses, os agricultores e os proprietários
ocupam a ribalta, ou, antes, partilham-na. Fizeram uma
hábil escalada, começando por exigir o respeito pelas leis e
denunciar as ocupações selvagens, acabando, ainda em
Dezembro, por exigir a revogação das leis de expropriação
e nacionalização. O próprio Conselho da Revolução, já
depois do 25 de Novembro, vem exprimir-se sobre a
situação: «Não cederemos a nenhuma pressão destinada a
fazer voltar para trás a reforma agrária.» Com isto, apoia
como pode o ministro, que parece em dificuldades.
A questão da legalidade das ocupações será agora várias
vezes retomada. Para os comunistas, como A. Bica, são
legais e as únicas que poderão ser classificadas de
selvagens são umas poucas que foram levadas a cabo
«por negociantes de gado». Para os agricultores, para o
PPD e mesmo para muitos socialistas, como o próprio
Mário Soares, as ocupações são geralmente selvagens.
Para o Ministério, todavia, parecem ser iniciativas dos
trabalhadores mais ou menos cobertas pelas leis. Para o
MFA, subtilmente equívoco, são selvagens as ocupações
«que não resultem da aplicação da lei»79.
Num ponto, pelo menos, Governo, ministro, socialistas,
agricultores e partidos não comunistas estavam de acordo:
as ocupações são manifestamente ilegais se incidem sobre
terras de pequenos agricultores ou sobre herdades cujas
dimensões se situam abaixo dos limites definidos pela lei.
E será em relação a estes casos que o ministro tomará
algumas decisões significativas, mandando efectuar
devoluções de terras ou atribuindo parcelas para
exploração a seareiros. Ainda antes do fim do ano, L.
Cardoso começará também a substituir alguns dos
dirigentes dos centros de reforma agrária. Contra todas
estas medidas se eleva logo o PC, verificando que as suas
linhas de orientação e posições de relevo no Estado
começam a ser postas em causa.
Com o chegar do fim do ano, os socialistas vão ficando
mais à vontade relativamente à reforma agrária.
Defendem os seus princípios, mas criticam mais facilmente
o que consideram ser erros e excessos, quando não
autênticas «perversões totalitárias», o que lhes vale
continuar a ser um alvo favorito do PC, mas também, de
modo igualmente agressivo, dos partidos à sua direita e da
CAP. Apesar disso, não se pode dizer que haja unidade de
pensamento no partido. Enquanto o ministro procura
sobretudo corrigir erros e rectificar desvios, especialmente
no que toca aos pequenos agricultores, o secretário-geral,
M. Soares, denuncia o que entende ter sido «uma pura
colectivização», criticando em particular «as ocupações
selvagens». Também o ministro das Finanças, Salgado
Zenha, se refere ao problema: «É tempo de afirmar que se
devolverão aos pequenos e médios proprietários agrícolas
as terras de que foram desapossados em certas regiões.»80
Pressente-se a mudança. Anuncia-se um ambiente
diferente, um novo clima. No fim do ano começam as
negociações entre os partidos do Governo, que levarão à
aprovação da «plataforma» com os «princípios a respeitar
na aplicação da reforma agrária na zona de intervenção».
O delicado equilíbrio desta «plataforma» é imposto pelas
necessidades, pelas sequelas do 25 de Novembro e
mesmo pela nova campanha eleitoral que se avizinha.
Também traduz as novas relações de força e resulta da
nova atitude dos comunistas, que, para não perderem
tudo, procuram salvar o que podem.
Mas este acordo é ainda favorecido por um dos
acontecimentos mais importantes desta fase: a aprovação,
entre fins de Outubro e princípios de Novembro, dos nove
artigos da futura Constituição que consagram o princípio
da reforma agrária e fixam os seus contornos. Apesar de
revelarem uma orientação bastante à esquerda, os
diferentes artigos e parágrafos são aprovados ora por
unanimidade, ora com esmagadoras maiorias. PS e PPD
votam sempre favoravelmente, o PC quase sempre e o
CDS a maior parte das vezes. A hipótese de distribuição de
terras em plena propriedade a famílias de agricultores é
posta de parte. Mesmo as indemnizações, por motivos de
expropriação, são consideradas apenas facultativas. Um
dirigente comunista dirá mesmo que esse é o «aspecto
conservador» do articulado constitucional81.
De qualquer modo, a Constituição ainda não está pronta.
Ainda faltam muitos meses para que entre em vigor. Mas o
que ficou adquirido e é favorável aos revolucionários é
relevante e politicamente significativo.

A consolidação e a contestação:
Janeiro a Julho de 1976

A quarta e última etapa do ciclo revolucionário é a do


restabelecimento de certos equilíbrios. Uma parte das
realizações e das «conquistas» da reforma agrária será
legal e politicamente consolidada e relativamente
institucionalizada. Mesmo o aparecimento da contestação
com toda a sua pujança faz parte do novo equilíbrio, que
aliás corresponde melhor ao estado das relações sociais e
políticas do País.
Durante os primeiros meses do novo ano assistem-se a
reajustamentos políticos que traduzem a relação de forças
decorrente do 25 de Novembro. A «plataforma», negociada
sob a égide do presidente da República, do primeiro-
ministro e dos militares do Conselho da Revolução, é
assinada após algumas semanas de debates difíceis. Os
partidos representados no Governo (PS, PPD e PC)
comprometem-se a apoiar as orientações definidas. O PPD
dá sinais de reticências: «Não é exactamente o nosso
programa, mas o acordo é útil.» O PC não se mostra
entusiasta, está consciente do recuo, mas não tem outra
solução. O CDS, que não assina nem está no Governo,
critica frontalmente a plataforma e exprime doravante,
como nunca tinha feito, a sua oposição à reforma agrária.
Aliás, no princípio de 1976, quase dois anos depois da
revolução, o CDS abre a sua primeira sede do Alentejo.
A «plataforma» é uma tentativa de moderação e de
respeito pelas leis. Prevê a publicação ulterior de vários
decretos e regulamentos, o que acontecerá até Abril. É
demarcada legalmente uma «zona de intervenção da
reforma agrária»; são definidas regras muito gerais para a
legalização das UCP, o alargamento dos direitos de reserva
e a protecção dos direitos dos seareiros. É afirmado com
força o respeito pelas explorações dos pequenos e médios
agricultores. Trata-se claramente de uma vitória dos
partidos não comunistas, assim como dos movimentos
desencadeados ou participados por pequenos agricultores.
Entretanto, ainda em Janeiro, são feitas as últimas
ocupações: apenas 17 600 ha. O balanço final é o
seguinte:
Superfícies ocupadas
(em milhares de hectares)

Superfície Percentagem

1.ª fase — Abril a Dezembro de 1974 — —

2.ª fase — Janeiro a Julho de 1975 156,3 13

3.ª fase — Agosto a Dezembro de 1975 1009,4 85

4.ª fase — Janeiro a Julho de 1976 17,6 2

Total 1183,3

O património é importante. Se se acrescentarem as


terras nacionalizadas dos perímetros de rega, a superfície
total representa o equivalente a 13% do território nacional,
24% da superfície dos sete distritos do Sul, 31% da zona
de intervenção ou 34% da superfície cultivada da região.
O Ministério prossegue as expropriações legais: 300 700
ha durante o período e ainda mais 290 000 ha depois de
Julho. Às 348 UCP legalmente reconhecidas vêm
acrescentar-se mais 89.
O Governo e o Ministério tentam tomar as coisas em
mão. Conflitos entre o ministro socialista e o secretário de
Estado comunista levam à demissão deste. Após
discussões duras, o PC obtém que o substituto seja outro
comunista, Vítor Louro.
As mudanças de responsáveis de serviços são agora mais
numerosas: governos civis, centros de reforma agrária,
conselhos de reforma agrária, delegados locais dos
Ministérios do Trabalho, da Administração Interna e outros.
Também nas forças armadas mudam os responsáveis de
grande parte das unidades locais. A 2 de Fevereiro, uma
directiva do Estado-Maior determina que os militares não
devem mais ocupar-se de questões agrárias, devem
remetê-las para as polícias e para o Ministério.
Nomeada em meados de Janeiro, a «comissão de
análise» de problemas decorrentes da reforma agrária
estuda numerosos casos que lhe são submetidos. Algumas
dezenas de parcelas e de pequenas explorações agrícolas
serão devolvidas aos respectivos agricultores.
O PC, apesar de uma aparente e nova moderação,
protesta, defende-se e defende as suas conquistas. A CAP,
ajudada pelo PPD e pelo CDS, quer mais, multiplica
reuniões e manifestações. Por vezes há incidentes, como
em Marvão, a 4 de Abril.
Encorajados pelos primeiros sucessos, os pequenos
agricultores desenvolvem as suas acções, reivindicam
terras, contestam os directores dos centros de reforma
agrária e exigem o acesso aos perímetros de rega. Em
certos casos, como em Évora e Beja, agem
autonomamente; noutros, sobretudo no Ribatejo, juntam-
se à CAP.
Por seu turno, os sindicatos opõem-se violentamente aos
seareiros e às devoluções de terras aos pequenos
agricultores. Contestam a legalidade de tais actos, mas
sobretudo receiam o modelo alternativo ao colectivismo.
De salientar que não lutam mais para fazer avançar a
reforma agrária, mas para a «defender».
Apesar de tudo, e porque todos têm os olhos postos nas
eleições, a pacificação faz progressos. Os actos violentos e
os atentados são agora raros.
Entre Abril e Julho, o Governo aprova e faz publicar vários
decretos, sobretudo o que define a «zona de intervenção»;
o que regula o processo de expropriação e os direitos de
reserva; o que atribui aos proprietários ocupados e
expropriados, mas sem rendimentos, um subsídio mensal a
deduzir de futuras indemnizações.
A 2 de Abril, a Constituição é finalmente aprovada na
globalidade, com os votos do PS, do PPD e do PC. O CDS
abstém-se, invocando o carácter socialista do texto. Este
entra em vigor no fim do mês. Ainda a 25, efectuam-se as
eleições legislativas. Na «zona» de reforma agrária, o PS
cede ao PC o primeiro lugar (39%), conservando o segundo
(35%). O PPD consegue agora 12% e surge o CDS com 5%.
No conjunto, os partidos de esquerda perdem seis pontos a
favor da direita, mas é o PS o mais tocado.
Poucas semanas depois, nas eleições presidenciais, o
grande derrotado no Alentejo é o comunista Octávio Pato,
apesar de obter percentagens superiores à sua média
nacional. Em Setúbal vence Otelo, com 42%. Nos restantes
distritos, Ramalho Eanes vem sempre à cabeça, mas com
resultados bastante inferiores aos que obtém para o
conjunto do País.
Eleições presidenciais, 1976
(em percentagem)

Octávio
Ramalho Eanes Otelo S. Carvalho Pinheiro de Azevedo
Pato

Portugal 62 16 14 8

Beja 34 32 7 25

Évora 36 34 9 19

Portalegre 55 16 13 14

Setúbal 30 42 10 19

Termina a revolução, começa o regime constitucional. O


Parlamento entra em funções, o presidente da República
toma posse, é investido o primeiro Governo constitucional,
dirigido por Mário Soares. Pouco dispostos a fazer aliança,
os socialistas formam governo minoritário, que as
oposições deixam passar, em observação. Pela primeira
vez, desde 25 de Abril de 1974, o PC não participa no
Governo. Plenamente na oposição, fará da Constituição a
sua principal bandeira. Os militares saem do Governo, mas
fica o Conselho da Revolução.
Com o nascimento da vida constitucional, os episódios
revolucionários cessam. A questão agrária não está
resolvida, nem sequer um ponto de equilíbrio estável e
durável foi atingido. A controvérsia vai continuar, mas as
lutas, os objectivos e os meios vão mudar.
A história da reforma agrária não se esgota em 1976.
Mas o seu primeiro processo revolucionário está encerrado.
O novo regime parece institucionalmente estável, mas
politicamente frágil, dada sobretudo a ausência de
maiorias. A legitimidade revolucionária desapareceu quase
totalmente dos costumes políticos e cedeu lugar à nova
legitimidade eleitoral e à legalidade democrática. A
revolução fez pouquíssimos mortos, pouca violência e
nenhum terror. O regime democrático, na sua luta contra a
revolução, ainda menos.

70 Mencionarei sobretudo os acontecimentos e situações que interessam


directamente a região. Falarei de «região», «Alentejo», «ZIRA» ou «zona de
intervenção», conforme as necessidades e os dados disponíveis. A principal
fonte deste capítulo é o Diário da Reforma Agrária, de Teresa Almada
(orientação de António Barreto), Publicações Europa-América, Lisboa, 1984.

71 As características de cada etapa têm raízes na precedente e prolongam-se


na ulterior. Mas a natureza de conjunto de cada uma torna-a diferente das
outras. A última etapa prolonga-se para lá de Julho de 1976, irá até à demissão
de Lopes Cardoso, em Outubro. Mas o período constitucional está integralmente
fora do estudo.

72 Certas séries estão incompletas, pois que na verdade se prolongam para


além de Julho. As fontes são: Afonso de Barros, A Reforma […], op. cit.; Maria
José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983; Teresa Almada, Diário […],
op. cit.; Maria João Costa Macedo, A Reforma Agrária em Números, Lisboa, 1981;
António Barreto, Terra […], op. cit.; e informações estatísticas do Instituto de
Gestão e Estruturação Fundiária, do Ministério da Agricultura.

73 Cf. Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória, Edições do PCP, 1964.

74 Cf. Declaração de Princípios e Programa do Partido Socialista Português,


Edições do PS, 1973.

75 Cf. testemunhos de F. Borba e G. dos Santos in A. Barreto, Memória […], op.


cit.

76 Para todos os dados relativos a ocupações, cf. M. J. Costa Macedo, A Reforma


[…], op. cit., e A. Barreto, Terra […], op. cit.

77 Cf. Teresa Almada, Diário […], op. cit.

78 In A Luta, Lisboa, 3/10/1975.

79 Comunicado do COPCON (Comando Operacional do Continente), 11/8/1975.

80 Declaração de 11 de Novembro de 1975, in T. Almada, Diário […], op. cit.

81 Cf. B. H. Fernandes, in Diário de Notícias, Lisboa, 13/12/1975.


Terceira Parte

A REFORMA AGRÁRIA, 1974/1976


CAPÍTULO VI

A OCUPAÇÃO INSTITUCIONAL

A 1.ª série do Diário do Governo de 25 de Abril de 1974


só tem duas páginas. Quando o jornal é distribuído, os
militares ocupam a capital e o primeiro-ministro já se
refugiou na GNR do quartel do Carmo. Nesse dia são
publicados poucos diplomas legais. Um decreto do
Ministério das Finanças autoriza a importação de veículos
pesados, em contingentes limitados, até 1979. É a
tranquilidade.
O último decreto do ministro da Agricultura e Comércio
fixa os preços e as margens de lucro de alguns produtos,
entre os quais o azeite e as matérias-primas para o fabrico
de desodorizantes e de champôs. A rotina.
Em poucas horas, esta aparente serenidade transforma-
se numa reviravolta completa, rápida e eufórica.
A revolta dos capitães não é o produto de uma crise
social e económica. No dia do «golpe», o aparelho de
Estado e as instituições estão intactos. Os militares que
acabam de tomar o poder têm uma ideia na cabeça:
acabar com a guerra em África. Parece também quererem
fundar uma democracia, mas nem têm o projecto preciso,
nem constituem um centro de poder alternativo.
Desde o início, proliferam os centros de decisão. Os
partidos políticos, quase todos criados a partir de Maio,
lançam-se na conquista do poder. Ao mesmo tempo que
recrutam e se organizam. Tudo deve ser feito em
simultâneo. A sua fundação, sem preparação, parece mais
uma proclamação improvisada. Em menos de seis meses,
meia centena de partidos faz conhecer o seu nome e os
seus dirigentes. Menos de dez sobrevivem.
Marcado pela ideologia e pelas clientelas do regime de
Salazar, o aparelho de Estado estava bastante politizado. A
organização dos serviços traduzia o carácter ditatorial do
regime. É verdade que, na última década, aparecem
algumas zonas de modernidade na administração pública,
onde tecnocratas aparentemente liberais fazem carreira e
ganham prestígio. Tratava-se no entanto de evidente
minoria. A maior parte dos responsáveis devem a sua
nomeação à fidelidade política, ao comércio de influências
e a empenhos de família ou tribo social.
Graças ao corporativismo, muitas instituições dependem
directamente do Estado central e do poder político, como
os presidentes das câmaras e as vereações, por exemplo.
Mas também estão na mesma situação os dirigentes das
associações socioprofissionais, patronais ou sindicais, das
corporações e dos organismos de carácter económico.
Os novos titulares do poder, militares e dirigentes
políticos, põem imediatamente o problema do domínio ou
da transformação do aparelho de Estado. Logo a seguir ao
golpe, substituem os primeiros responsáveis políticos:
governantes, governadores civis, presidentes de câmaras e
vereadores e alguns quadros da organização corporativa,
enquanto deputados à Assembleia Nacional e procuradores
à Câmara Corporativa são pura e simplesmente demitidos,
sendo os órgãos dissolvidos.
Depressa se fazem sentir pressões para uma mudança
mais vasta e mais profunda na administração. Por um lado,
os partidos, com o PC e o PS à cabeça, não querem correr
o risco de deixar em postos de comando os antigos
responsáveis. Por outro, os próprios militares dão o
exemplo, levando a cabo uma operação de substituições
de grande envergadura. Finalmente, de modo mais ou
menos espontâneo, desenvolve-se uma vaga de
saneamentos.
Trata-se de uma verdadeira ocupação institucional,
gradual, tocando todos os sectores da vida colectiva
(forças armadas, administração, autarquias, escolas,
hospitais, serviços públicos, empresas privadas, televisão,
rádio, jornais, etc.), que começa logo em fins de Abril, sob
a orientação do Governo e dos militares, sob a pressão dos
partidos políticos e do MFA, ou em consequência da acção
das «bases».
Neste movimento de saneamento, muitas iniciativas são
espontâneas. Tomam-se decisões em assembleias
improvisadas, onde grupos de trabalhadores, de
funcionários e de estudantes se arrogam vastos direitos,
demitem e nomeiam. Mas estes actos dispersos, às
centenas, são eles próprios o resultado de uma visão
estratégica: a de remeter para as «bases» uma boa parte
da tarefa. Por outro lado, tanto o MFA como o PS e o PC
completam, por via do Estado, o trabalho de demissão e de
nomeação. Até o PPD, aparentemente pouco empenhado
no saneamento, aproveita, mesmo se, por vezes, são
simpatizantes seus que são vítimas.
Quase sem violência, a ocupação institucional precede e
prepara a luta de classes, a conquista económica e a
ocupação territorial. O novo poder político e militar tomou
ele próprio a iniciativa da ocupação, após a realização do
golpe; mas também deu a sua cobertura política e legal às
transformações e às substituições que se efectuavam sob
pressão das «bases». Os partidos políticos estavam
directamente interessados neste processo, pois que se
formaram ou cresceram e organizaram na luta
institucional.

A estratégia

Nunca se assistiu, entre Abril de 1974 e Julho de 1976, a


um real afrontamento social e político com a violência
própria das revoluções. E, no entanto, foi uma revolução.
Os que ganharam não destruíram nem eliminaram os
vencidos: antes ocuparam progressivamente as suas
instituições, mudaram as suas orientações e
desempenharam as suas funções. Os que perderam foram-
se retirando, pela força de um decreto, pela intimidação
das multidões ou de grupos organizados ou por causa dos
seus próprios receios. Por vezes, depois de terem levado a
melhor, os vencedores seduziram e recrutaram os
vencidos.
Mau grado a participação de civis, os confrontos de 28 de
Setembro, de 11 de Março e de 25 de Novembro foram
episódios militares estáticos. As barricadas populares, as
barragens nas estradas e o controlo das bombas de
gasolina, sendo embora gestos inequívocos de
intimidação, tiveram sobretudo como objectivo o
estabelecimento de relações de forças entre grupos
militares, mas sem afrontamentos directos. A colaboração
dos civis em autoproclamadas milícias serviu para
demonstrar a capacidade de mobilização dos militares com
vista às negociações que depois se efectivavam nos
quartéis.
A revolta militar precedeu os movimentos sociais. Quer
isto dizer que aqueles que pretendiam orientar a evolução
política subsequente se prepararam para utilizar os
instrumentos do poder político: instituições, legalidade,
administração e controlo da repressão. Porque a revolução
começou por cima, este poder político não tem, de início,
bases nem estruturas, limita-se ao Governo e aos postos
de comando militar.
Assegurando o sucesso técnico e militar do golpe, a
primeira tarefa consistiu na construção, de cima para
baixo, dos alicerces do novo poder político, das suas bases
sociais e administrativas. Todavia, o Governo não tem
unidade política: o centro do poder será assim objecto de
disputas e de conflitos de interesses. Os diferentes grupos,
partidos e tendências irão buscar à sociedade as forças
necessárias à sua afirmação.
À medida que os meses vão passando, o novo poder
procura consolidar-se e simultaneamente radicaliza-se, não
só por efeito da pressão dos movimentos sociais que
entretanto se desenvolvem, mas também graças à
orientação impressa por parte do poder político, ou, antes,
através dos órgãos do poder político, pelo PC e pelo MFA,
pelo PS em menor grau.
Os principais actos revolucionários nascem no Governo,
nos ministérios, nas assembleias militares e nos quartéis,
por intermédio de leis, proclamações, programas e ordens
de serviço. Os movimentos que se seguem, como a
ocupação de empresas, casas e herdades, o saneamento
de instituições e de empresas, ou a ocupação dos órgãos
autárquicos, são geralmente a tradução de orientações
prévias do poder ou de quem ocupa cargos de poder,
mesmo quando comportam uma dimensão de autonomia
ou improviso. Mais ainda: iniciativas de base e movimentos
sociais são quase sempre cobertos pela lei, organizados
por instituições e protegidos por funcionários ou militares.
Entre as principais excepções a este padrão, contam-se
os acontecimentos ocorridos imediatamente após o 25 de
Abril, tais como ocupações de casas em Lisboa, greves em
certas empresas e movimentos de estudantes.
Enquanto algumas realizações revolucionárias, como a
nacionalização dos grandes grupos financeiros e
industriais, são simples decisões do poder, outras só são
possíveis com a participação intensa de trabalhadores,
militantes, sindicatos e outras organizações. Desta
segunda categoria, o mais importante exemplo é a reforma
agrária. Ainda neste caso, e apesar do considerável
envolvimento popular, a iniciativa pertence ao Estado e ao
poder, através de programas, leis, orientações,
regulamentos e despachos. As leis de reforma agrária de
1975, por exemplo, são verdadeiros panfletos políticos nos
quais se faz apelo à população e aos trabalhadores para
que tomem iniciativas.
Do golpe de Estado à realização de eleições decorrem
dois anos, melhor descritos por três ciclos ou momentos.
No primeiro sobressaem a ocupação institucional, o
recrutamento partidário e a emergência de uma força
dominante, ou de uma linha política saliente. No segundo,
de Março a Setembro de 1975, assiste-se ao domínio dos
militares mais radicais e dos comunistas e em particular ao
derrube do poder económico. O terceiro, até ao início do
período constitucional, em Julho de 1976, é o da contenção
da revolução, dos comunistas e dos militares
vanguardistas. Também se detecta, neste período, uma
nova vaga de ocupação institucional por duas vias. Uma, a
substituição de responsáveis nomeados para as
instituições. A outra, a instituição representativa, isto é, a
tradução prática dos resultados eleitorais.
No primeiro e no segundo períodos, as principais forças
são o Partido Comunista (e organizações vizinhas, como a
CGTP) e as forças armadas, estando estas sob a orientação
e liderança do MFA mais radical e de esquerda. No terceiro
salientam-se o Partido Socialista (e o Partido Popular
Democrático em menor grau) e de novo as forças armadas,
agora sob a liderança de oficiais mais moderados, mas de
esquerda, e de parte da hierarquia profissional.
A estratégia de ocupação ganha todo o seu sentido numa
revolução que começa por um golpe militar brusco e
rápido82. Derrubado o poder, trata-se de organizar as
classes e os grupos, agitar as massas e estruturar a
organização partidária. O ambiente geral é favorável, o
entusiasmo aflora a unanimidade. O golpe de Estado
permite a economia de longas lutas violentas e de duras
repressões. Os militares têm o apoio da opinião pública.
Toda a gente quer tudo ao mesmo tempo. O poder está
aberto e disponível.
Tudo é possível. Ou tudo parece possível. A estratégia
revolucionária procura impedir a fixação do poder. As
eleições são adiadas o mais possível. Entretanto, as
prioridades são: conquistar posições, realizar reformas
irreversíveis, bater as classes dominantes, multiplicar os
processos de lutas, dispersar o adversário, organizar-se.
Com estes objectivos, os esforços dos revolucionários
tomam três direcções: a ocupação institucional; a aliança
com os militares; e a luta de classes e o movimento de
massas.
Em menos de 12 meses, até Fevereiro de 1975,
numerosos centros de poder e decisão são ocupados,
permitindo o acesso aos instrumentos e ingredientes
necessários à revolução: a força, o dinheiro, a legalidade, a
hierarquia administrativa, os meios de comunicação e a
mobilidade.
A ocupação das instituições, realizada rapidamente e sob
o signo de um vasto movimento de democratas, permite
um atalho histórico. Em poucos meses obtêm-se resultados
que normalmente levariam anos: organização de um
partido, desenvolvimento dos sindicatos, nascimento de
toda a espécie de associações, criação de redes nacionais
de informação e de comunicação social, etc. Com efeito,
quem ocupa funções oficiais colhe benefícios
consideráveis: detém algum poder, está nas primeiras
linhas para favorecer o recrutamento partidário e sindical.
O exercício de funções permite aos militantes tornar-se
conhecidos e conhecer os problemas, ajudar as
populações, conquistar uma base social e seduzir uma
clientela. E a promessa de empregos do Estado não é um
argumento menor.
Relativamente à ocupação institucional, o PC distingue-se
nas zonas industrializadas e no Alentejo do latifúndio.
Nestes sítios, só o PS lhe faz alguma concorrência, aliás
sem grandes resultados. No resto do País, todos os
partidos ocupam e beneficiam. No Norte, o PS e o PPD
conseguem guardar para si a maioria dos cargos e das
responsabilidades. Destes farão trunfos para o seu
recrutamento e para futuras eleições. Tal como o PC,
hegemónico no Alentejo.
No conjunto, as instituições cuja ocupação se revela útil
para a reforma agrária são os municípios, as freguesias, as
Casas do Povo, os grémios da lavoura, os serviços do
Ministério da Agricultura e de outros ministérios, as
cooperativas existentes, os organismos de coordenação
económica, algumas empresas industriais e comerciais do
sector alimentar, a rede bancária e as comissões de
emprego e de mão-de-obra.
De início, a posse destas instituições parece traduzir
sobretudo a mudança de regime, a democratização, não a
revolução social. Em certo sentido, a ocupação
institucional funda e legitima o novo regime, não é
necessariamente um prelúdio preconcebido à reforma
agrária e à revolução. Mas torna-as possíveis e mais fáceis.

As câmaras e as freguesias

Uma das primeiras medidas da Junta de Salvação


Nacional (JSN) é a demissão dos governadores civis, dos
presidentes de câmara e das vereações. Provisoriamente,
os secretários asseguram as funções dos governadores.
Para as câmaras, o caso é diferente. São muito mais
numerosos: 305 presidentes e mais de 2000 vereadores.
Ainda não há critérios de avaliação nem estruturas de
selecção do pessoal político do novo regime. Por outro
lado, para marcar uma diferença com a situação anterior, a
simples nomeação de autarcas não será o melhor método.
Finalmente, partidos, grupos e mesmo a opinião pública
locais desejam pronunciar-se, talvez mesmo escolher.
Todos estes argumentos são válidos para as freguesias.
Com mais forte razão: são 3878 em todo o País (e 395 na
região).
Assim é que «comissões administrativas» municipais são
rapidamente nomeadas em substituição das vereações
dissolvidas. Formalmente, o procedimento é o seguinte: os
concelhos indicam nomes de candidatos ao Governo, que,
por intermédio do Ministério da Administração Interna, faz
as nomeações. Neste circuito simples exercem-se pressões
de diversa ordem. Para as juntas de freguesia, cujas
nomeações começam um pouco mais tarde, o processo é
ligeiramente diferente. São com efeito as câmaras,
entretanto nomeadas, que desempenham o principal
papel: seleccionam nomes, fazem a proposta ao Governo e
ulteriormente dão posse aos novos membros.
O calendário das nomeações, incluindo segundas
substituições, é o seguinte83:
Câmaras Freguesias

Maio 18 —

Junho 16 —

Julho 24 17

Agosto 19 9
1974
Setembro 1 20

Outubro 7 37

Novembro 7 28

Dezembro 2 145

Janeiro 2 39

Fevereiro 4 33

Março 4 29
1975
Abril 2 3

Maio 3 1

Junho 1 —

Total 110 361

Nestas nomeações, a principal iniciativa pertence ao


Movimento Democrático Português (MDP ou MDP/CDE),
organização que, vinda de antes de 1974, agrupa os
compagnons de route do PC e outros democratas
independentes. Depois de 25 de Abril, o MDP aparece
imediatamente à luz do dia, com grande actividade. De
início, privilegia a sua qualidade de «movimento», onde o
PS e o PPD também têm lugar. Antes do fim do ano, estes
partidos separam-se do movimento, considerando que este
não é mais do que uma agência do PC. Em Dezembro, o
MDP transforma-se formalmente em partido político.
Logo a seguir à queda do regime corporativo, o MDP
tenta impor-se com uma espécie de legitimidade
democrática, a exemplo do MFA. Os dois trabalham em
estreitas relações. Fazem em conjunto sessões de
propaganda e esclarecimento, nas quais participam outros
partidos, do PPD ao PC, sem esquecer sindicatos e outras
organizações. A acção mais eficaz do MDP reside na
conquista de posições nas câmaras e nas freguesias.
Princípios de Maio. O delegado das forças armadas no
distrito de Beja, coronel R. Loureiro, agindo como
governador civil, «convoca a comissão distrital do MDP
para uma reunião no seu gabinete»84. Informa que a JSN
decidiu dissolver as câmaras, «devendo estas instituições
ser dirigidas provisoriamente por comissões eleitas,
segundo os princípios democráticos, em comícios
organizados pelas comissões distritais do MDP». Esta
determinação, e outras semelhantes, eleva o MDP a um
estatuto suprapartidário que produzirá alguns resultados.
Já há partidos políticos, pelo menos com esse nome, mas
só o MDP é considerado interlocutor para a questão das
autarquias. Em Lisboa, o MFA e o Governo consideram o
MDP como mais um partido, mas na província aquela
característica de movimento vai subsistir algum tempo.
Até porque outros partidos contribuem para o equívoco. O
PPD, por exemplo, crê-se obrigado a afirmar um dia que
«está integrado no MDP»85.
O «movimento» sabe aproveitar esta situação e lidera de
facto a tomada de posições na administração local. Em
Évora, o seu porta-voz afirma que «só em três das 14
câmaras do distrito é que a escolha das comissões
administrativas não foi o resultado da acção do MDP»86.
Esta escolha, em quase toda a região, faz-se
formalmente em reuniões ou comícios do MDP. Nestes
intervêm responsáveis do movimento, representantes do
MFA e o governador, o que confere ao acto todo o valor
oficial necessário. No fim da sessão, o dirigente do MDP
apresenta uma lista única de cerca de uma dezena de
nomes. Os eleitores presentes votam. As seis ou sete
pessoas mais votadas são consideradas eleitas. O
Governo, mais tarde, formalizará. Assim aconteceu em
Aljustrel, Avis, Beja, Elvas, Portalegre, Sousel, Portel,
Santiago de Cacém, Barreiro, Abrantes, Alvito, Évora, Ponte
de Sor, etc.87.
Estas eleições desenrolam-se quase sempre sem
incidentes. As pessoas são eleitas por unanimidade, ou
simplesmente por aclamação, sem voto. Quase não há
traços de uma qualquer oposição a estes processos. Em
Portalegre, por exemplo, um grupo de direita acabado de
criar (ligado ao Partido Federalista, de curta vida) protesta
porque a sua lista, apresentada na sede do MDP dias
antes, não foi simplesmente aceite88. Contestações como
esta foram raras.
O número de pessoas presentes nestes comícios-eleição
é variável: entre algumas centenas e dois ou três milhares.
Mas trata-se sempre de uma parte muito reduzida da
população ou do eleitorado potencial. Em Aljustrel, por
exemplo, para um futuro eleitorado de 9238 pessoas, 613
votaram no comício89. Estes desequilíbrios são geralmente
grandes, como ainda em Santiago de Cacém (19 269 e
2638), Castro Verde (6110 e 1201) ou Ponte de Sor (11 920
e 653). Na maioria dos casos, todavia, não há sequer
contagem, as votações são feitas por aclamação, como em
Moura, Almodôvar, Mourão e Sousel90. Há mesmo casos em
que o MDP, em reunião na sua sede, comunica aos
presentes os nomes das pessoas designadas91.
São raros os casos de verdadeiras eleições, precedidas
de um recenseamento, como em Elvas e Vila Viçosa. É
verdade que é preciso uma vontade política muito
particular, além de um esforço considerável, para levar a
cabo recenseamento e eleições na situação em que se
vivia. Não há hábitos, nem sequer meios administrativos.
Mesmo os cadernos eleitorais fazem falta.
De qualquer modo, em dois concelhos fizeram-se
eleições e recenseamento. Este, em Vila Viçosa, foi
organizado por uma comissão local criada pelo governador
civil. A eleição ocorreu a 16 de Junho de 1974. Havia várias
listas de candidatos elegíveis que deviam ser propostas
por 25 eleitores. Mais tarde, a comissão anuncia que
«todas as pessoas são elegíveis», incluindo as que não
constavam de nenhuma lista. O resultado é singular.
Dezenas de nomes são votados, só os sete primeiros são
eleitos. Quem são eles? Um futuro vereador do PPD; um
oficial do MFA; um agricultor ligado ao MDP e ao PC; o
futuro dirigente local do PS; um presidente de câmara do
anterior regime; um agricultor que mais tarde se ligará à
CAP. Este exemplo de pluralismo completo provém de uma
das raras câmaras onde houve recenseamento e eleição e
não apenas comício eleitoral92.
A grande maioria das «comissões administrativas»
municipais será de membros e simpatizantes do PC e do
MDP. Raras são aquelas em que predominam pessoas
afastadas ou hostis ao PC. Quando tal acontece, os
vereadores nomeados conhecerão toda a espécie de
dificuldades. Alguns serão obrigados a demitir-se. O
presidente eleito em Ourique, por exemplo, vê a sua
eleição logo contestada pelos comunistas e pelo Ministério
da Administração Interna. Censuram-lhe o facto «de não
residir no concelho», o que em muitos outros casos na
região não teve importância93.
Nos conflitos que vão surgir ao longo de 1974 e 1975, as
vereações estarão quase sempre ao lado do PC e do MDP,
contra o PS e o PPD. Quando o PC e o MDP exigem a
demissão do governador civil de Évora, logo as comissões
administrativas acorrem a ajudar94.
Nas freguesias, do ponto de vista prático, o procedimento
é parecido. As comissões são designadas, nomeadas ou
eleitas em reuniões ou comícios do MDP, por vezes com a
presença de delegados do MFA95. Noutros casos, como em
todas as freguesias do concelho de Setúbal, o MDP passa
por cima da formalidade do comício: elabora a lista dos
seus candidatos e remete-a à Câmara. Alguns dias mais
tarde, «as novas juntas de freguesia propostas pelo MDP
de Setúbal tomam posse oficialmente»96. Finalmente, há
também exemplos de reuniões feitas em edifícios públicos,
com vista à designação da futura junta, na presença de
delegados das câmaras.
Em 1974, o papel do MDP é realmente importante, chega
a confundir-se com as estruturas do Estado. Pode por
exemplo ler-se no Diário do Alentejo, na rubrica intitulada
«Actividades do MDP», que «a comissão administrativa de
Castro Verde deu posse a todas as juntas de freguesia do
concelho»97. A partir do fim do ano, todavia, a situação
começa a mudar, sobretudo com a fractura entre, por um
lado, o PS e o PPD, por outro o MDP e o PC. A natureza das
relações existentes entre estes dois vai-se tornando
evidente. Em muitas freguesias, onde é clara a hegemonia
do PC, o MDP abstém-se de se candidatar98. Noutras, onde
a posição do PC parece mais frágil, o MDP tenta cativar o
eleitorado de esquerda não comunista99. O necessário é
sempre feito para evitar a concorrência entre MDP e PC.
As eleições constituintes de Abril de 1975 serão a última
ocasião de aparecimento autónomo do MDP, mas apenas
obtém 4% dos votos. Desde então, ou está ausente das
eleições ou concorre a coberto da FEPU (Frente Eleitoral
Povo Unido) primeiro, da APU (Aliança Povo Unido) depois.
No poder local alentejano, a supremacia do PC e do MDP
foi indiscutível. Conquistaram posições que guardaram até
fins de 1976, data em que se realizaram finalmente as
eleições autárquicas. Mas, pelo menos parcialmente, foi
graças às funções assim assumidas que o PC multiplicou
os seus meios de controlo social, adquiriu experiência da
gestão pública e sobretudo alargou o recrutamento e a sua
influência.

As Casas do Povo

Enquadrando corporativamente assalariados rurais e


pequenos agricultores e desempenhando funções diversas,
da contratação colectiva à segurança social, as Casas do
Povo constituíam uma rede institucional bem assente no
mundo rural. Não tinham certamente grande vitalidade,
mas representavam um património interessante: centenas
de edifícios, funcionários, mobiliário, meios de
comunicação e de controlo social, ficheiros e alguma
experiência administrativa100.
Ao contrário do que aconteceu com os grémios da
lavoura, cuja extinção foi decretada, o Governo decidiu não
dissolver as Casas do Povo. Antes nomeou responsáveis
nacionais para estudar e orientar eventuais reformas. Mas,
ao longo de 1974 e 1975, o Governo revela não saber
exactamente que futuro pretende dar a estes organismos.
Apenas se percebe, através de várias medidas, que os
quer poupar ao processo geral de extinção das
organizações corporativas.
Também na vida local, contudo, se fizeram sentir as
pressões para a mudança. Desde Maio de 1974 que várias
Casas do Povo são ocupadas: Ciborro, Escoural, Montemor-
o-Novo, Alcáçovas, etc.101. Todas as primeiras ocupações se
fazem com o objectivo explícito de criar sindicatos de
trabalhadores agrícolas. Mais uma vez, o MDP desempenha
um papel decisivo: é o pioneiro das ocupações e das
tentativas de transformação institucional. Toma a iniciativa
de criar uma «comissão de trabalhadores democráticos
para as Casas do Povo», cuja sede fica nas instalações do
MDP em Évora. Esta comissão organiza as ocupações e dá-
lhes publicidade. A 3 de Maio, por exemplo, publica um
comunicado anunciando que «hoje, 3 de Maio, serão
ocupados os sindicatos de trabalhadores agrícolas (antigas
Casas do Povo) de Évora-Canaviais (às 21 horas) e
amanhã, 4 de Maio, o de Nossa Senhora de Machede».
Antes mesmo da aprovação de medidas oficiais, o MDP
promoverá ainda, em reuniões suas, eleições para diversas
Casas do Povo, como em Sabóia (Odemira), São Matias
(Beja), Benavila (Avis), Castro Verde e Sobral da Adiça
(Moura)102.
O movimento de ocupação e de eleições nas Casas do
Povo generaliza-se a todo o País, mas é mais rápido e mais
expedito no Alentejo. Uma vez mais, PC e MDP ganharam
posições interessantes, mesmo se o PS e o PPD, sobretudo
no Centro e no Norte, também colheram benefícios.
No entanto, a transformação destes organismos em
sindicatos é travada. Os governos vão impedi-la. PS e PPD
fazem pressões, receiam que o PC se aproprie de tão
importante rede institucional. Mas a verdade é que o PC
não insiste muito. Com efeito, se a ocupação lhes parece
vantajosa, já o mesmo não acontece com a sua
transformação em sindicatos. Por todo o País, sobretudo
fora do Alentejo, um número elevado de pequenos
agricultores e mesmo de trabalhadores rurais estará pouco
inclinado para colaborar com os comunistas. A existência
de centenas de funcionários corporativos não deixa de
levantar problemas. Os encargos salariais e sociais podem
ser excessivos. Finalmente, se as Casas do Povo são
simplesmente remetidas às populações, há fortes
possibilidades de ver os partidos à sua direita vencerem
eventuais eleições, na maioria dos casos, no Norte e no
Centro. O PC ganhará talvez as do Alentejo, mas perderá
seguramente as outras. Ora, na esfera do Estado, ficarão
mais acessíveis ao trabalho político. Será esta a sua
estratégia, no que será acompanhado pelos outros
partidos, que igualmente alimentam esperanças.
Entretanto, na vida real, inúmeras dificuldades tinham
surgido. Com excepção das eleições organizadas pelo MDP,
as assembleias eleitorais levantavam toda a espécie de
problemas. Não há regras processuais estabelecidas.
Muitas vezes, no Norte, são eleitas pessoas estreitamente
ligadas ao antigo regime. A tal ponto que, em Agosto de
1974, o Governo publica o Decreto n.º 490/74, pelo qual
encarrega o ministro dos Assuntos Sociais de definir regras
e determinar as direcções para as Casas do Povo. Mais
tarde, todos os que tiveram responsabilidades nacionais,
regionais ou locais no anterior regime são considerados
inelegíveis para as Casas do Povo, tanto, aliás, como para
as cooperativas.
O Decreto n.º 702/74, de Dezembro, estabelece as
normas para o saneamento, enquanto o n.º 737/74
dissolve as federações regionais de Casas do Povo. Ficam
de pé os organismos locais e a Junta Central em Lisboa.
Esta mesma lei estabelece que as funções de
representação social das federações e das «Casas» devem
ser assumidas por associações livres de agricultores. Nesta
altura, começa a ser clara a vontade de manter as Casas
do Povo na esfera do Estado.
Durante os primeiros meses de 1975, ainda os sindicatos
de trabalhadores agrícolas do distrito de Beja reclamam as
instalações das «Casas», mas a Junta Central e o ministro
respondem secamente. A Junta afirma «não compreender
a atitude dos sindicatos», uma vez que a maioria das
Casas do Povo foi saneada e que as respectivas direcções
foram livremente eleitas pelos agricultores e pelas
populações locais103. Esta tendência será reforçada várias
vezes, especialmente em Julho de 1975, quando o Governo
aprova o Decreto n.º 391/75, através do qual um certo
número de competências do Instituto Nacional do Trabalho
e Previdência (INTP) é atribuído à Junta Central.
Em conclusão, a rede das Casas do Povo, após hesitações
dos partidos e do Governo, ficou entre as mãos do Estado.
Os sindicatos exigiram-nas de início, mas abandonaram
depois a ideia. Os agricultores, não vendo nelas um
interesse real, nem sequer as reclamaram. O seu carácter
interclassista constituiu certamente matéria para reflexão
dos que sonharam em apropriar-se delas. Todos finalmente
preferiram que ficassem no sector público, em particular
com competências em matéria de segurança social.
Do ponto de vista da ocupação institucional, os
benefícios foram partilhados entre os três principais
partidos (PS, PPD e PC) de um modo mais diversificado do
que nas autarquias. No Alentejo, todavia, o PC e o MDP
levam francamente a melhor, vencendo a maior parte das
reuniões eleitorais preparadas para formar novas
direcções.
De qualquer mudo, a rede institucional das Casas do
Povo não desempenhou um papel singular na reforma
agrária, apesar de ter sido um útil instrumento de controlo
social e de estabelecimento de clientelas políticas.

Os grémios da lavoura

Pouco depois de 25 de Abril de 1974, os grémios


industriais e comerciais foram extintos. Os seus membros
mais activos, na maior parte dos casos, fundaram
associações livres, que herdaram funções, património e
funcionários dos grémios. Novas direcções foram eleitas,
integrando muitas vezes antigos dirigentes. Na verdade,
tratou-se de uma transformação de estatuto: o grémio
corporativo deu lugar à associação livre.
Na agricultura, tudo foi diferente, mais demorado e mais
complexo. Pela natureza da sua actividade, a rede dos
grémios da lavoura era mais densa, representava muito
mais associados (centenas de milhares) e desempenhava
funções mais diversificadas.
Logo em Maio de 1974 são feitas várias tentativas de
transformar os grémios em associações livres de
agricultores (ALA), sobretudo no Ribatejo e no Alentejo. Os
primeiros esforços vêm de Beja, Évora e Santarém e serão
combatidos politicamente pelos comunistas, socialistas,
sindicatos e militares do MFA. Os próprios interessados,
aliás, não revelam boas capacidades de organização e, nas
circunstâncias da época, preocupam-se mais com a
política. Também é verdade que o Governo tudo fará para
que as ALA não vinguem. Nem sequer as considerará
interlocutores válidos.
Um outro factor pesará no falhanço das ALA: por todo o
Sul, os pequenos e médios agricultores, ou grande parte
deles, procuram organizar-se autonomamente. Assim
nascem as «ligas», com sucessos reais em Évora, Beja e
Portalegre, mais aleatórios em Lisboa, Setúbal e Santarém.
Ora, as ALA não tinham peso, sem a massa humana dos
pequenos agricultores. Estes não alimentavam grandes
simpatias pelos proprietários do Sul, de quem tinham
dificuldades em obter terra para cultivar.
A ninguém escapou a importância dos grémios. Em
teoria, estes organismos poderiam desempenhar um papel
importante em tudo o que interessava aos agricultores: as
políticas agrícolas, os contratos colectivos, a fixação dos
preços, os serviços aos associados, a distribuição de
subsídios, a concessão de créditos, etc. Na prática, a
situação variava com as regiões. Numas, grémios activos e
representativos; noutras, instituições moribundas. Tudo
dependia de inúmeros factores: riqueza da região,
personalidade dos dirigentes, adesão dos agricultores,
qualidade dos serviços prestados, estrutura social local,
etc.104.
O que é certo é que se tratava de organizações
indispensáveis à defesa de interesses. Por isso foram
objecto e alvo de lutas entre grupos sociais, classes e
partidos. Era evidente que quem conseguisse assegurar o
domínio dos grémios teria ao seu dispor uma rede de
poder e de serviços de grande valor105.
O segundo Governo provisório, a 25 de Setembro de
1974, aprova o Decreto n.º 482/74, que dissolve os
grémios. Um período de três meses é concedido para que
tudo seja consumado. O prazo será alargado várias vezes.
Na verdade, o processo durará mais de seis anos.
De acordo com as disposições legais, é criada uma
«comissão coordenadora central para a liquidação dos
grémios», na dependência dos Ministérios do Trabalho, da
Agricultura e do Comércio. A seguir, as «comissões
liquidatárias das federações de grémios» devem ocupar-se
da dissolução dos organismos intermédios e da
coordenação das instâncias locais. Nestas últimas,
finalmente, as «comissões liquidatárias» são encarregadas
da extinção definitiva dos grémios propriamente ditos106.
Este conjunto de comissões emprega, no País inteiro,
milhares de funcionários e é responsável por importantes
negócios agrícolas, do comércio à transformação de
produtos, do crédito à representação social.
Este universo é poderoso, vasto e enraizado na
sociedade. De tal modo que de todos os lados os
interessados se manifestam rapidamente, antes mesmo
das organizações (ligas, ALA ou sindicatos), dos partidos
ou do Governo. Os agricultores tentaram fazer deles as
suas associações, mas as forças de esquerda tinham
outros objectivos: aproximá-los do sector público, talvez
mesmo transformá-los em serviços do Estado. Será esta
orientação que, durante dois anos e de modo geral, levará
a melhor, sem que nunca se chegue a consolidar. Depois
disso, as soluções definitivas afastar-se-ão desta inspiração
inicial. De qualquer modo, no plano local, assistiu-se a uma
diversidade de situações e de casos, de acordo com as
condições concretas.
Após o 28 de Setembro de 1974, as comissões
liquidatárias são nomeadas pelos três ministérios
responsáveis. Até 11 de Março de 1975, as ocupações de
grémios, por via legal, multiplicam-se, sobretudo no
distrito de Beja. Nas comissões dominam as pessoas
ligadas ao PC e ao MDP, sem todavia terem a
exclusividade. Há grémios que ficam nas mãos de
moderados, ou mesmo de direita, como em Ourique. Em
Évora e Portalegre, os comunistas partilham menos e
comandam mais.
Sob proposta das câmaras, dos partidos, de associações
ou de grupos informais, os nomes das pessoas que vão
integrar uma comissão liquidatária são aceites pela
«comissão de coordenação» e seguidamente pelo
Governo. À medida que os conflitos vão surgindo, estas
comissões conhecem problemas. Lutas desenvolvem-se,
nomes são substituídos. Nem tudo é «branco e preto»:
mesmo se no Governo a esquerda e os comunistas são
mais influentes, localmente tudo é mais complicado.
Agricultores, famílias, notáveis locais, comerciantes, todos
têm uma palavra a dizer e os resultados nem sempre são
os previstos pela comissão de coordenação.
Quem ocupa estas comissões liquidatárias? Do ponto de
vista político, no Alentejo, a esquerda, claramente:
socialistas, comunistas, independentes de esquerda e
esquerdistas. Entre eles, os comunistas têm vantagem,
como em Mora, Avis, Beja, Évora, Sousel, Cuba, Montemor,
Arraiolos e Ponte de Sor, embora raramente fiquem sós.
Existe um certo pluralismo, apesar de limitado às correntes
de esquerda na maior parte dos casos. Mas há situações
em que esse pluralismo é completo.
Do ponto de vista socioprofissional, a composição das
comissões é muito diversa. Há casos em que os
agricultores são a maioria, mas também os há em que os
funcionários, os técnicos e os comerciantes fazem a lei.
Nas comissões liquidatárias federais, os agricultores estão
pura e simplesmente ausentes. Nas comissões locais, o
número de agricultores oscila entre 40% (Évora) e 50%
(Beja e Portalegre). Na comissão central só há funcionários,
técnicos e políticos. Nesta última, de início, dominam os
comunistas, entre os quais se conta António Bica, futuro
secretário de Estado. Depois de 25 de Novembro, são
geralmente substituídos.
Em geral, as comissões são pouco estáveis. Ao longo dos
meses há várias substituições. Toda a espécie de
acontecimentos as modificam: conflitos locais ou
nacionais, mudanças de governo, etc. Na primeira série de
nomeações contam-se 130 agricultores em 220 membros.
Entre aqueles, cerca de 30 têm como principal profissão
uma actividade não agrícola.
As comissões liquidatárias locais dependem
evidentemente das intermédias e estas da central. Na
prática, a autonomia das comissões de base é razoável. As
orientações gerais são aplicadas na medida do possível e
das circunstâncias. Em cada grémio, em cada comissão
liquidatária, exercem-se pressões de toda a espécie, há
conflitos e entendimentos que, muitas vezes, só
localmente fazem sentido. Clientelas, solidariedades,
animosidades e famílias compõem um jogo político que
deixa assim de ser exclusivamente partidário, apesar de o
ser em grau considerável.
Até ao Verão de 1975, nenhuma orientação leva a
melhor. Comunistas pensam em serviços do Estado,
socialistas em cooperativas protegidas pelo Estado. O
sexto Governo, em Outubro, continua a hesitar. António
Bica deixa a comissão central e ocupa a Secretaria de
Estado para a Estruturação Agrária. Entre a comissão e o
ministro socialista o desentendimento é grande. Aquela
demite-se. As UCP, os sindicatos e numerosas comissões
liquidatárias criticam os socialistas e Lopes Cardoso, que
acusam, com fundamento, de quererem mandar realizar
novas eleições em todas as comissões e de se prepararem
para promover a formação de cooperativas. Convocam
uma assembleia plenária das comissões liquidatárias para
27 de Novembro de 1975. A reunião não se fará. Dois dias
antes, tudo tinha mudado.
A partir de Janeiro de 1976 desenha-se uma nova
tendência destinada a pôr em prática as ideias do ministro
e dos socialistas. A esquerda comunista perderá algumas
posições. De facto, é uma espécie de saneamento, em
menor escala que o precedente. O ministro manda
substituir vários membros de comissões liquidatárias,
determinações que só por vezes são seguidas. Nalguns
casos mais renitentes, o ministro nomeia comissões
administrativas em substituição das liquidatárias, contra o
que o PC reage. Haverá mesmo, na região, eleições em
oito grémios (num total de 44). Mas a situação legal, no
conjunto, mantém-se.
Vive-se ainda e sempre em clima de transição. O período
da conquista terminou. Só sete comissões liquidatárias
(três em Portalegre e quatro em Beja) liquidaram de facto
os antigos organismos e encontraram soluções
alternativas. Na verdade, durante este período de mais de
dois anos, as comissões liquidatárias administraram os
assuntos correntes, asseguraram a transição e chegaram
mesmo a alargar as actividades dos grémios. Só uma
função tradicional foi realmente abandonada: a de
representação social ou de organização de classe. O longo
período de transição, que acabou por durar bem mais de
dois anos, deve-se à inexistência de uma visão política do
futuro destes organismos, das suas actividades, do seu
património, do seu pessoal e das suas funções.
Deve dizer-se que a transição foi bem aproveitada por
alguns grémios, isto é, pelos dirigentes das comissões
liquidatárias ou pelos funcionários. Com efeito, em muitos
casos, assistiu-se a um real desenvolvimento das suas
actividades e à criação de um indiscutível poder
económico. Com o aumento da prestação de serviços e
com o fomento das actividades de compra e venda, alguns
grémios resolveram os seus problemas internos (como o
de pagamento de salários) e deram apoio eficaz a
agricultores, a cooperativas ou a unidades colectivas,
conforme os casos. Também o seu papel de intermediários
no crédito agrícola de emergência (pelo que arrecadavam
uma comissão equivalente a um ponto na taxa de juro)
permitiu ganhos interessantes.
Talvez mais do que os membros das comissões
liquidatárias, os pilares dos grémios, nesta fase de
transição, foram os seus funcionários. Já antes de 1974 o
seu contributo era de peso. As direcções estavam então,
geralmente, nas mãos de grandes proprietários ou de
comerciantes, em princípio fiéis ao Governo, mas que
pouco esforço dedicavam às suas organizações. A gestão
competia finalmente aos funcionários. Foram estes que
asseguraram a continuidade, depois de decretada a
extinção.
Durante o período revolucionário, alguns funcionários
tentaram apoiar as ALA a partir dos grémios, outros
fizeram o mesmo a favor das UCP e dos sindicatos. Mas a
maior parte pensavam sem dúvida nos seus interesses e
na sua posição, o que quer dizer que «apostavam» no
Estado: assim fizeram oposição à transformação dos
grémios seja em sindicatos, seja em empresas ou em
associações privadas. Queriam ser funcionários de Estado,
o que aliás lhes chegou a ser sugerido por vários
governantes.
Obrigados a um constante esforço à procura de
rendimentos, os funcionários foram certamente os
principais responsáveis pelo desenvolvimento comercial
dos grémios. A evolução das vendas anuais de produtos e
de factores de produção revela bem este desenvolvimento
em bastantes grémios, como demonstra que havia espaço
para estas actividades107.
Vendas anuais dos grémios
(em milhares de contos)

Grémios 1973 1974 1975 1976

Montemor 8,7 19,4 35,9 85,2

Beja 15,2 17,5 30,6 84,6

Aljustrel 9,8 15,0 18,3 43,4

Moura e Barrancos 9,6 16,1 28,3 38,2

Redondo 1,7 3,5 15,7 29,7

Ferreira 11,2 13,4 23,9 27,8

Serpa 8,0 9,6 16,8 25,7

Elvas 4,1 9,2 9,9 23,1

Alter do Chão 0,6 0,9 7,1 20,4

Grândola 11,2 12,7 15,2 18,5

Estremoz 1,9 2,6 12,1 18,3

Portalegre 5,3 7,8 9,6 16,9

Ponte de Sor 2,2 3,2 5,1 16,9

Vidigueira 1,5 3,9 8,1 15,7

Arraiolos 4,2 4,6 12,6 13,2

[…]

Mourão 0,6 1,0 3,0 6,7

Campo Maior 1,6 3,9 6,0 5,8

Marvão 1,4 2,2 3,1 4,4

Nisa 2,1 3,0 3,5 3,5

Évora 1,1 2,0 0,9 2,1

Gavião 0,6 0,5 0,5 1,0

É verdade que, na maior parte dos casos, as vendas


elevadas se verificam nos grémios que, antes de 1974,
eram os mais activos comercialmente. Mas as taxas de
crescimento dão a medida real da evolução: nalguns
casos, as vendas chegaram a aumentar 10 a 20 vezes.
Toda a informação disponível confirma a diversidade de
situações. Os balanços económicos mostram alguns
grémios confortavelmente excedentários (Alter, Estremoz,
Vidigueira ou Aljustrel), enquanto outros sofrem as
inquietações dos défices (Serpa, Fronteira, Évora e Elvas).
Neste período incerto, a grande novidade é a distribuição
de crédito agrícola de emergência, como entidade
intermediária. Esta actividade traz aos grémios alguns
rendimentos e nova importância, tanto mais que o Alentejo
(76%) e a «zona de intervenção» (90%) recebem, em
1976, a maior parte dos créditos distribuídos. Assim é que,
em termos monetários, o montante de crédito distribuído
ultrapassa rapidamente o valor de vendas108.
Grémios: valor de vendas em 1976
e créditos distribuídos até 1977
(em milhares de contos)

Grémios Créditos Vendas

Montemor 488,2 85,2

Beja 456,3 84,6

Serpa 270,6 25,7

Aljustrel 267,8 43,3

Ferreira 200,3 27,9

Arraiolos 146,6 13,2

Portel 137,8 12,6

Vidigueira 137,6 15,7

Redondo 125,0 29,7

Ponte de Sor 111,9 16,9

Castro Verde 99,6 11,2

Elvas 95,4 23,1


Grémios: valor de vendas em 1976
e créditos distribuídos até 1977
(em milhares de contos)

Grémios Créditos Vendas

Estremoz 90,9 18,4

[…]

Grândola 18,5

Crato 2,9

Almodôvar 4,4 6,3

Durante anos, a liquidação transformou-se em


desenvolvimento. Compreende-se que os partidos políticos
se tenham interessado pelos grémios. Agem em
conformidade com os arranjos locais possíveis, mas a sua
atitude global decorre da sua estratégia política. Assim, o
PC favorece a estatização; o PS oscila entre a
transformação em cooperativas e a absorção pelo
Ministério da Agricultura, desde que sob o seu controlo
político; o PPD tanto aceita a cooperativa como a da
associação patronal ou de agricultores; o CDS prefere a
associação de agricultores.
Debates e opções ficam a cargo do Governo e das
direcções partidárias109. Na prática, durante estes anos,
vinga a inércia do sistema, tentando os partidos, no plano
local, colocar os seus amigos e militantes. O que faz que
seja frequente encontrar casos de colaboração entre todos
os partidos numa mesma comissão liquidatária ou num
mesmo grémio.
A verdade é que os grémios escaparam ao domínio
institucional do PC. Tal facto ficar-se-á a dever à natureza
social dos grémios e à diversidade de interesses em
presença. Não são simples agências administrativas sem
base social. Também não são organizações sindicais, nem
organizações de classe homogéneas. Nos grémios estão
agricultores de toda a espécie, proprietários, agricultores,
grandes e pequenos, rendeiros e até comerciantes.
Desempenham funções necessárias às economias locais.
Ocupam milhares de funcionários com interesses próprios
e real influência. Finalmente, ninguém está interessado em
arcar com os encargos salariais. Em resumo, ninguém está
apostado em fazer desaparecer os grémios, que assim
sobrevivem aos vendavais.

Os serviços oficiais

Desde o seu nascimento que o novo poder tem diante de


si a questão da administração pública e dos serviços
oficiais. O problema é de todos os regimes políticos que
tentam transformar-se ou consolidar-se, mas tem em
Portugal aspectos bem particulares: um aparelho de
Estado fortemente politizado por 50 anos de regime
ditatorial. Ora, com a revolta de 1974 e os primeiros actos
do Governo e das forças vitoriosas, todos os órgãos (e
pessoas) de comando político foram eliminados ou
substituídos, ficando intacta a administração. A partir
daqui, todas as lutas pelo poder institucional são
imagináveis. Nuns casos mantêm-se as estruturas, mas
novos dirigentes imprimem políticas e orientações.
Noutros, são os próprios funcionários ou responsáveis que
aparecem à luz do dia como defensores de uma
determinada ideia política e alteram a organização e o
funcionamento dos serviços. Noutros ainda, dirigentes
resistem e estruturas mantêm-se. Por outro lado, à
sucessão de governos e governantes correspondem vagas
de novos funcionários de Estado recrutados por todos os
motivos, familiares ou económicos, profissionais ou
políticos, mas em boa parte pela euforia de reformas que a
todos toca. Pelas garantias e pela segurança que
oferecem, os lugares no Estado têm valor muito especial. A
sua multiplicação e o seu preenchimento fazem-se em
paralelo com o crescimento dos partidos. Sendo embora
muito vasto o saneamento de antigos funcionários e
dirigentes, o mais importante ainda é o maciço
recrutamento de novos.
Os militares, bem presentes nos órgãos de poder político
(JSN, Conselho da Revolução, Governo, Assembleia do
MFA), ainda tentarão participar mais directamente nos
organismos da administração110. Assim, durante alguns
meses, após Abril de 1974, existiram «delegados do MFA»
junto dos departamentos ministeriais, mas em breve
desapareceram111. Alguns oficiais foram nomeados
governadores civis, como em Évora e Beja. Em certos
casos, muito particularmente na reforma agrária, as forças
armadas ficaram representadas directamente em
organismos locais e regionais da administração. A regra
geral não foi todavia esta. Os militares ficaram largamente
ausentes dos serviços públicos e as lutas institucionais
ocuparam sobretudo civis, nomeadamente os partidos
políticos.
No conjunto do aparelho de Estado, a principal tendência
é a da manutenção das estruturas administrativas, com
substituição dos dirigentes e alargamento do número de
funcionários. Isto é verdade até em alguns organismos
corporativos (grémios da lavoura, Casas do Povo e
organismos de coordenação económica). Alguns sectores
foram no entanto excepção, e apareceram, aqui e ali,
organismos novos, com vocações e concepções bem
diferentes das que anteriormente caracterizavam os
serviços. É muito particularmente o caso do Ministério da
Agricultura.
Ao princípio, este é simplesmente uma Secretaria de
Estado na dependência do Ministério da Economia, o que é
bem a tradição portuguesa. Até Março de 1975, Esteves
Belo é o secretário de Estado. Neste período, a vida política
e militar decorre com agitação e conhece permanentes
reviravoltas112. Mas a questão agrária vai-se abrindo sem
afrontamentos e no departamento não se verificam crises
significativas.
No mundo rural, duas realidades se impõem: por um
lado, o crescimento das novas organizações
socioprofissionais, com relevo para os sindicatos e as ligas;
por outro, os avanços da contratação colectiva de
trabalho113.
A Secretaria de Estado parece estar a ser gerida
calmamente. Os problemas graves da agricultura
portuguesa são detectados: baixa produtividade,
desequilíbrio das estruturas fundiárias, população activa
em excesso e condições de vida bastante rudimentares.
Noutras palavras, problemas estruturais de uma
agricultura arcaica cuja reforma necessita de estudo,
preparação e anos de acção. No imediato não se detectam
tensões sociais importantes.
Assim é que as primeiras acções de Secretaria de Estado
são viradas para as questões económicas e técnicas. Em
Julho são lançados os «programas de desenvolvimento». O
«Programa autónomo de desenvolvimento da agricultura e
da pecuária» (PADAP) e o «Programa pecuário e agrícola
dos Açores» (PPA) são criados a 30 de Agosto. O
«Programa agrícola de Trás-os-Montes» (PTM) é anunciado
a 2 de Novembro.
Em Agosto e Setembro é aprovado o novo regime
cerealífero e anunciada a criação de dois novos
organismos: o IRA (Instituto de Reestruturação Agrária) e o
INIA (Instituto Nacional de Investigação Agrária). Só em
Novembro e Dezembro é que estes programas e
organismos começam actividades, aquando da nomeação
dos seus primeiros responsáveis. Algumas destas
realizações não constituem completas novidades, visto que
representam uma reorganização de serviços anteriores.
Mas trata-se, sem dúvida, de uma nova perspectiva e de
um novo instrumento de trabalho.
O secretário de Estado e a sua equipa imprimem um
estilo de trabalho aberto. Recebem associações e grupos
de pressão, viajam pela província e participam em
reuniões de informação. As realizações não são muitas,
mas vive-se um certo espírito de reforma. Todos os
directores-gerais e equiparados e directores de serviços
importantes são substituídos. Em Agosto, por exemplo, são
nomeados os responsáveis da Direcção-Geral dos Serviços
Agrícolas, do Gabinete de Planeamento, dos Serviços
Florestais, do Instituto dos Cereais e outros. Estas
nomeações são frequentemente seguidas ou precedidas
de inquéritos ou sindicâncias aos anteriores serviços, como
foi o caso da Junta de Colonização Interna (2 de Outubro),
do Serviço do Plantio da Vinha (30 de Janeiro de 1975), do
Instituto dos Cereais e da Junta Nacional dos Produtos
Pecuários, a 5 de Fevereiro de 1975. Os inquéritos dão
poucos resultados, ou estes são mal conhecidos. Às vezes,
nem sequer chegam ao fim, mas criam um clima, suscitam
tensões e contribuem para justificar a necessidade de
mudança. Por vezes também, tais inquéritos têm razão de
ser, pelas irregularidades e favoritismos próprios do regime
anterior ou do período imediatamente a seguir ao 25 de
Abril.
Até fins de Março de 1975, todos os organismos do
departamento têm novos responsáveis, escolhidos por
vezes em função das suas qualificações técnicas e sempre
conforme a critérios políticos. Mas desde os fins de 1974,
princípios de 1975, que as mudanças nos serviços se
fazem mais em profundidade, já nas estruturas regionais e
a nível dos quadros intermédios. Novos responsáveis das
«brigadas» são nomeados, e, a 21 de Janeiro, são
designados os «coordenadores de agricultura» para todas
as regiões e sub-regiões. A 22 de Fevereiro toma posse o
novo presidente do poderoso Fundo de Fomento Florestal.
A 22 de Março é criado o Serviço do Associativismo Rural e
nomeado o seu director. Isto sem esquecer as múltiplas
nomeações e demissões numa segunda área de serviços:
os antigos organismos corporativos; as associações de
regantes; as cooperativas de diverso tipo; empresas e
cooperativas ligadas aos grémios e suas federações; as
empresas privadas «intervencionadas»; e, finalmente, as
comissões liquidatárias dos grémios ou, como se dizia, dos
ex-grémios.
Entretanto, desenvolvia-se a via paralela: a da criação de
grupos de trabalho e comissões. Foram criadas dezenas,
por sector de actividade, segundo os grandes problemas,
para inquérito, para redacção de textos legais e de apoio
ao secretário de Estado.
Aos olhos dos responsáveis políticos, os antigos serviços
não eram capazes de cumprir as novas tarefas nem de pôr
em prática um grande esforço de reforma. Os funcionários
idosos, rotinados pela burocracia e cultivando
eventualmente ideias pouco favoráveis ao novo regime,
deveriam ser substituídos. Com estas comissões e grupos
de trabalho vai-se criando um novo departamento
governamental e vão-se definindo as novas políticas.
Situa-se neste contexto a mais interessante iniciativa
tomada neste período: a da criação das «comissões de
intensificação cultural» (CIC), em fins do Verão de 1974,
formadas por jovens técnicos pessoalmente escolhidos114.
As CIC deveriam preparar acções e medidas tendentes a
melhorar a produção. Foi uma primeira via reformista
relativamente coerente115. Apesar dos resultados
medíocres, esta iniciativa criou um novo espírito e suscitou
entusiasmos.
A via estava preparada, mas não desbloqueada. Para a
agricultura, como para a política em geral, o 11 de Março
foi o sinal da reviravolta. Quinze dias mais tarde, F. O.
Baptista, o novo ministro, toma posse, assim como os seus
secretários de Estado. Com eles começa um processo de
radicalização que conduz à promoção, nos serviços, dos
funcionários e técnicos mais esquerdistas ou chegados ao
PC. O MAP (Ministério da Agricultura e Pescas) torna-se
mais activo. Os métodos de trabalho mudam. Os novos
serviços, criados na fase anterior e a criar nos meses
seguintes, constituem um verdadeiro novo ministério
maduro para a revolução.
Esta nova vida coincide com as grandes mudanças
políticas e legislativas. A primeira lei-programa sobre a
reforma agrária é publicada a 15 de Abril (Decreto-Lei n.º
203-C/75), assim como o decreto sobre o arrendamento
rural (n.º 201/75). As ocupações de terras conhecem a sua
primeira aceleração. Há mudanças nos governos civis, nas
unidades militares do Alentejo e nas delegações locais dos
restantes ministérios. Nos serviços do MAP assiste-se mais
uma vez ao recrutamento de funcionários e à nomeação
de novos responsáveis, como por exemplo no Instituto dos
Cereais (12 de Abril), na comissão de coordenação de
extinção dos grémios (28 de Abril), no INIA (4 de Maio) e
na JNPP (30 de Maio)116.
Mas é a criação dos serviços paralelos que caracteriza
mais adequadamente a gestão ministerial nesta época.
Procura-se sanear o Ministério117 e construir um
instrumento adaptado a uma nova política118. «Criar um
novo ministério», dirá o seu titular. A estratégia dos
serviços paralelos, das comissões e dos grupos de trabalho
vai fazer confluir para o gabinete do ministro e para os
altos funcionários da sua confiança os recursos financeiros,
o poder de decisão e os circuitos administrativos. Sem
serem abolidos, os serviços tradicionais passam a
subalternos.
Nesta estratégia, as peças mais importantes são os
«centros regionais de reforma agrária» (CRRA). Entre Abril
e Julho são criados seis, em Évora, Beja, Elvas, Alcácer do
Sal, Santarém e Lisboa, cobrindo o Alentejo e o Ribatejo.
Estes organismos concentram, regionalmente, o essencial
dos poderes, recursos e autoridade do Ministério. Estão
formalmente ligados ao IRA, mas na prática dependem
directamente do gabinete do ministro. A decisão é central,
mas a execução é descentralizada. Este princípio é
tacticamente vantajoso: a acção é rápida, os executantes
têm a confiança do ministro, tudo fica um pouco à margem
dos jogos políticos da capital, que podem atrasar a acção.
Em Junho de 1975, diante da «necessidade imperiosa de
organizar imediatamente os centros», o MAP decide criar
um «grupo de trabalho permanente para a coordenação
dos centros regionais de reforma agrária», que «funcionará
no quadro do IRA, ao qual compete organizar, orientar e
dirigir os centros»119. A partir de agora, o IRA será uma
espécie de intermediário permanente entre o ministro, por
um lado, os serviços e os interessados, por outro. Em toda
a reforma agrária, o seu papel será capital.
O método dos grupos de trabalho permanentes, posto
em prática noutros sectores algumas semanas antes, é o
privilegiado para os grandes problemas políticos e sociais.
Método expedito, passa por cima das exigências
burocráticas dos Ministérios das Finanças e da
Administração. Assim, em Abril, é criado o SADA (Serviço
de Apoio ao Desenvolvimento Agrário), especialmente
destinado aos pequenos agricultores, e o «grupo de
trabalho permanente para o crédito agrícola»; em fins de
Maio é a vez do «grupo de trabalho permanente para o
associativismo rural», em Junho o «grupo de trabalho
permanente para as indústrias agrícolas» e em Julho o
«grupo de trabalho permanente para a coordenação das
comissões de gestão transitórias dos perímetros de rega».
Estas últimas comissões tinham previamente sido criadas
para se ocupar, em nome do Estado, dos regadios e das
respectivas empresas nacionalizadas.
Estes novos serviços têm acesso fácil aos recursos
humanos e financeiros, em particular aos «fundos» do
IRA120. Os centros oferecem aos seus funcionários condições
de trabalho excepcionais, como sejam ajudas de custo de
20 a 30 dias por mês, o que se traduz quase em salários
duplos. A aquisição, pelos centros, de equipamento e de
automóveis é mais fácil. Dotados de meios e de poderes
para distribuir subsídios e garantir créditos, sem controlo
burocrático ou financeiro, os CRRA têm argumentos para
reforçar a sua acção junto de agricultores, trabalhadores e
unidades colectivas.
Sem orgânica definida em Conselho de Ministros, os
centros regem-se por um despacho do ministro. Não têm
orçamento próprio, mas servem-se à vontade dos fundos
do IRA, que lhes permitem, por exemplo, ter uma generosa
política de recrutamento. Diz um funcionário: «De repente,
em poucos dias, chegaram ao Centro de Elvas 70 novos
funcionários.»121 O funcionamento destes serviços foi posto
em causa por um ou outro técnico, mas a sua legalidade,
assegurada por despacho ministerial, não foi contestada.
No exterior do Ministério, mas na sua dependência (por
vezes indirecta), outros novos organismos completam este
dispositivo institucional. As «comissões distritais rurais»
(CDR) e as «comissões técnicas concelhias» (CTC) ocupam-
se das questões do emprego e da avaliação do
aproveitamento das terras122. Em várias empresas,
cooperativas e explorações agrícolas, as «comissões
administrativas» respectivas levam até à produção o longo
braço do Ministério.
Com estes meios, o Estado alargou consideravelmente os
domínios de intervenção e aumentou os seus poderes de
controlo social e político, o que aliás não deixará de, muito
rapidamente, criar problemas de gestão. Mas, no sentido
inverso, este tipo de organização permitiu aos sindicatos e
outros grupos aumentar a sua influência na administração,
penetrar as estruturas oficiais e até assumir funções
estatais123.

Os conselhos regionais de reforma agrária

Os conselhos correspondem a este desígnio de fusão ou


de inter-relação entre organismos oficiais e organizações
sindicais e políticas. Constituem uma das criações
institucionais mais originais da revolução. Curiosamente,
não representam uma ruptura total com a tradição: o
corporativismo já se tinha notabilizado pela criação de
laços particulares entre serviços do Estado e organizações
socioprofissionais. O conteúdo é agora bem diferente: são
os sindicatos os privilegiados e não mais os proprietários.
Por outro lado, a presença dos militares é uma inovação.
Circunstancial, é certo, mas de forte significado político.
Referidos em Março, anunciados em Abril, os conselhos
são criados a 5 de Julho de 1975124. Segundo os termos
legais, estes organismos serão chamados a desempenhar
funções em todo o País, mas, para começar, estabelecem-
se nos oito distritos da reforma agrária. Quatro arrancam
logo: Beja, Évora, Portalegre e Setúbal/ /Alcácer do Sal.
Lisboa, Santarém e Faro virão mais tarde.
Os conselhos incluem delegados e representantes do
MFA, dos Ministérios do Trabalho, da Agricultura e da
Administração Interna, do Sindicato de Trabalhadores
Agrícolas e da Liga dos Pequenos e Médios Agricultores.
Mais do que um órgão consultivo e de concertação social,
tem competências deliberativas. Mais ainda, podem-se-lhe
apresentar recursos das decisões ministeriais125. São, além
disso, órgãos de consulta do ministro, de informação e até
de policiamento, inquérito e fiscalização. Na prática, os
conselhos arrogar-se-ão ainda mais competências,
tomando decisões sobre a intervenção do Estado nas
empresas, as expropriações e a requisição de
equipamentos agrícolas. Em vários momentos, pedem às
autoridades financeiras e policiais que procedam a prisões,
confisco de bens e congelamento de contas bancárias.
A origem imediata dos conselhos reside no PC. A ideia é
sugerida ao Governo em memorando assinado por cinco
dirigentes a 12 de Junho de 1975. Estes elevam-se contra
o facto de, «três meses depois do anúncio da reforma
agrária, o primeiro passo estratégico, quer dizer, a
instalação de órgãos de controlo eficazes, ainda não está
assegurado»126. Segundo aqueles autores, estes órgãos,
explicitamente designados como «conselhos regionais de
reforma agrária», devem ser dotados de poderes alargados
e entrar imediatamente em funções. Devem ser
acompanhados «de uma legislação severa contra a
sabotagem da reforma agrária». O controlo da região deve
preceder a aprovação de leis de expropriação e de outras
medidas.
Neste memorando faz-se uma referência bem particular
à composição dos conselhos e aos métodos de selecção
dos seus membros: «A escolha das pessoas e das normas
de trabalho deve implicar a devoção à causa dos
trabalhadores, a um firme espírito de unidade e à prática
unitária à volta da aliança revolucionária Povo-MFA.» Não
era preciso ser mais claro.
Três semanas depois da data do memorando, os
conselhos são oficialmente criados. Na mesma altura,
princípios de Julho, são aprovados em Conselho de
Ministros os decretos de expropriação e de nacionalização,
mas que só serão publicados quatro semanas mais tarde.
O Governo atribui grande importância a estes conselhos.
Os seus membros, de acordo com o decreto-lei, devem ser
designados conjuntamente pelo primeiro-ministro e pelo
ministro da Agricultura, processo até então reservado aos
directores-gerais. Apesar disso, nunca as nomeações foram
publicadas no Diário do Governo, o que significa que se
está perante um dos raros casos em que a legalidade não
foi respeitada nesta revolução tão atenta às formas
jurídicas e tão prolixa em decretos.
Curiosamente, os conselhos e os centros serão
conhecidos indiferentemente pela sua abreviatura comum:
CRRA. O director do centro é também presidente do
conselho. A confusão será permanente, de que aliás
testemunham os jornais da época. Ainda por cima, existe
uma terceira organização (CRARA, comissão revolucionária
de apoio à reforma agrária), fundada pelo PC e animada
por técnicos e funcionários do Ministério da Agricultura
ligados ao partido. Calculado ou não, o resultado é o
mesmo: aos olhos da população, o CRRA (centro) e o CRRA
(conselho) e eventualmente a CRARA (comissão) são uma
e a mesma coisa. Possuem uma só autoridade e a mesma
legitimidade. Governo, serviços públicos, técnicos,
sindicatos, polícias e forças armadas estão unidos e
convergentes num só organismo. A estratégia da ocupação
institucional teve, nestes conselhos, uma das suas mais
flagrantes e mais curiosas aplicações.
Uma das ideias fortes que inspiram estes conselhos é a
descentralização. Apesar de dependentes do ministro, os
conselhos têm vastas competências. Trata-se de facto de
uma descentralização da execução, deixando os conselhos
ao abrigo dos obstáculos burocráticos e da intriga política
da capital127. Em Maio de 1975, numa sua deslocação a
Santiago de Cacém, o ministro toma parte numa sessão
oficial na qual participam ainda o capitão Chumbinho, do
MFA, e Américo Leal, do comité central do PC. Aí anuncia a
criação dos conselhos, acrescentando: «O que nós
esperamos destes conselhos regionais é o máximo de
eficácia revolucionária.»128
A actividade dos conselhos conhece dois períodos bem
distintos: de Julho a Dezembro de 1975 e de Janeiro a
Novembro de 1976, altura em que são oficialmente
extintos129. Durante o primeiro período, os conselhos,
sobretudo os de Beja e Évora, servem a revolução.
Funcionários, militares e sindicalistas são geralmente
militantes de extrema-esquerda, a maior parte militantes
ou simpatizantes do PC. Apoiam as ocupações de herdades
e denunciam as actividades dos proprietários. Antes
mesmo da aprovação das leis, fazem listas das
propriedades a expropriar. Preparam, para o Governo, as
medidas de repressão contra os proprietários e de controlo
das máquinas, do gado e das colheitas. Em Beja chegam
mesmo a decidir «intervir em 82 herdades e empresas
agrícolas». Metade das suas decisões são tomadas antes
da publicação das leis. Vinte e duas herdades são
ocupadas depois de o conselho de Beja ter decidido.
Outras deliberações dizem respeito a inquéritos, missões
de vigilância, apoio material a herdades ocupadas,
organização das unidades colectivas, requisição de
máquinas e medidas repressivas contra os proprietários.
Em geral, estas decisões são transmitidas à imprensa
local, que as divulga. O tom dos comunicados oficiais é
combativo. Denunciam-se a «escalada reaccionária dos
latifundiários»130, e a «sabotagem económica»131; ameaçam-
se os proprietários de «confisco», de «requisição» ou
mesmo de «prisão»132; e sobretudo anunciam-se
intervenções e expropriações, tenham ou não já sido
decididas pelo ministro.
Em 1975, o conselho de Beja reúne-se 22 vezes. Há
meses em que se realizam três sessões. A Liga dos
Pequenos Agricultores do distrito, que muito cedo se
distanciou do PC, nunca participou, durante o período
revolucionário, nas reuniões que assim se desenrolam em
clima «familiar».
A situação muda com o 25 de Novembro, tendo antes
havido sinais com a formação do sexto Governo e a
possível nova política de Lopes Cardoso. Quase todos os
representantes nos conselhos mudam, comunistas e
esquerdistas são substituídos por socialistas, sociais-
democratas e outros. Entre Dezembro de 1975 e Janeiro de
1976, todos os responsáveis dos centros (e presidentes
dos conselhos) são substituídos, o que acontecerá também
com os representantes das forças armadas e dos outros
ministérios. Em Beja, só o delegado do Sindicato se
mantém, isolado.
O conselho de Beja reúne-se ainda 17 vezes, mais
espaçadas e menos importantes. O sindicalista protesta
contra o Governo. O delegado das forças armadas observa
e tenta distanciar-se. Os funcionários do MAP justificam e
defendem a nova actuação do Governo. A Liga, que a
partir de agora estará sempre presente, reivindica medidas
favoráveis aos pequenos agricultores.
Mas o conselho já não tem utilidade. As suas discussões
e as suas decisões não têm eco na imprensa. O Governo
tenta esvaziar estes organismos do seu conteúdo e
devolver poderes e competências aos serviços dos
ministérios. O Ministério quer um órgão consultivo, não
quer um conselho deliberativo. Como a revolução termina
sem ruptura brusca e total, certas instituições, como estes
conselhos, prolongam a sua existência. Mas as suas
funções e composição já não estão adequadas ao
momento que se vive. Os socialistas querem fazer de outra
maneira. A ideologia mudou. O País passa a viver em
regime constitucional.

Um balanço

A ocupação institucional era inevitável. Houve verdadeira


solução de continuidade, os militares abriram as portas,
partidos e grupos civis entraram tanto quanto foi possível.
O carácter autoritário e corporativo do regime anterior
tinha politizado todas as instituições públicas. Estas, com a
queda da ditadura, ficaram privadas do seu princípio
genético e de orientação. O vazio criado vai sendo
ocupado pelas forças de oposição, que assim tentam
chegar aos centros de decisão. A ocupação institucional
aproveitou aos comunistas, aos socialistas e aos sociais-
democratas.
Os órgãos de soberania, os comandos militares e as
chefias das unidades constituíram os primeiros objectos de
ocupação institucional. Com a formação do Governo, quase
todos os organismos viram os seus responsáveis
substituídos. Em certos casos, como na agricultura, foram
mesmo criados novos serviços.
A ocupação institucional tem um fim em si: ocupar
responsabilidades é também tomar o poder. Mas também
era uma estratégia, um instrumento para subsequentes
reformas e transformações. Na ausência de organizações
políticas e sindicais fortes e enraizadas na sociedade,
foram as instituições públicas utilizadas na condução das
mudanças sociais, assim como no próprio desenvolvimento
dos partidos e das organizações socioprofissionais. A via foi
aberta pela revolta militar e graças a um considerável
apoio popular. Os instrumentos de repressão foram seja
neutralizados, seja colocados ao serviço do novo poder
político. A ocupação institucional seguiu-se ao golpe
militar, não o precedeu; não foi a preparação do derrube
do regime anterior, foi o seu resultado.
Esta evolução (ou esta estratégia) distingue-se de outras
situações revolucionárias porque permitiu a economia de
grandes afrontamentos sociais violentos. As hipóteses de
guerra civil, apesar de reais, foram reduzidas. Não houve
«batalhas campais», nem terror, típicos de outras
revoluções, se bem que a violência verbal e a intimidação
tivessem estado sempre presentes.
A estratégia institucional privilegiou as substituições de
responsáveis, em detrimento dos esforços de criação de
um novo aparelho de Estado. Todavia, no sector agrário, a
criação de novos serviços sobrepôs-se, pela eficácia e
pelos resultados, à simples substituição de responsáveis.
Sem enquadramento jurídico e técnico, a ocupação
institucional teve cobertura legal nas orientações e nos
decretos sobre o saneamento, assim como nos actos
administrativos dos governantes. Sem princípio
constitucional, nem sequer parlamentar, ficava a
legitimidade revolucionária proclamada, a autoridade
militar e as relações de força: foram estes os princípios que
regeram o domínio público.
Estes valores beneficiaram sobretudo o Partido
Comunista, a mais antiga e mais eficaz organização
política em 1974. Este gozou de uma espécie de
«precedência democrática», ou, antes, «antifascista»,
confirmada pela acção do MFA e parcialmente traduzida na
actuação do MDP.
Apesar de as relações de força serem favoráveis, a
ocupação institucional e a realização de alguns actos
políticos irreversíveis necessitavam de tempo suficiente e
sobretudo de um tempo pré-constitucional. Esta
necessidade foi satisfeita pelo adiamento das eleições
constitucionais e legislativas. Comunistas, militares e
grupos de extrema-esquerda foram os principais
partidários do adiamento das eleições.
Sem que tenham sido os únicos beneficiados (os
socialistas e mesmo os sociais-democratas também
ganharam algumas posições), os comunistas conseguiram
montar um dispositivo geral de poder político e
administrativo que se estendeu até vastos sectores
produtivos. Construído pela via de largos recrutamentos de
funcionários, este dispositivo permitiu desencadear e
apoiar acções revolucionárias, nomeadamente a reforma
agrária.
No sector agrário, as novas instituições desempenharam
um papel singular com especial eficácia. Traduziram um
princípio de abertura da administração às organizações
sindicais, que chegaram mesmo a ver-se atribuir funções
estatais.
A estratégia de ocupação, em tempos de grande
instabilidade e agitação, revelou maleabilidade e
empirismo. As relações entre o centro e a periferia
variaram com os acontecimentos, e as iniciativas ora
competiam a um, ora a outra.
Por outro lado, as estratégias dos comunistas e dos
militares fizeram largamente apelo à participação de
massas: trabalhadores, empregados, funcionários e classes
médias. Foi mesmo um ponto forte da estratégia: a
participação popular apoiava os saneamentos, podendo
mesmo tomar iniciativas.
A ocupação das instituições por comunistas e seus
simpatizantes não teve sucesso em todo o País, nem foi a
mesma em todos os casos. Com excepções, conseguiram
melhor nas zonas de capitalismo agrário desenvolvido e
nas regiões de latifúndio tradicional, assim como nas
cidades industriais do Sul. Nas regiões de pequena
agricultura, ou onde são numerosas as médias explorações
agrícolas, e globalmente no Norte, no Centro e no Algarve,
os socialistas e os sociais-democratas levaram a melhor.
Nas instituições directamente dependentes do Estado,
como os serviços ministeriais e as câmaras municipais, o
êxito dos comunistas e do MDP foi geralmente maior e
mais fácil do que nas instituições mais próximas da
sociedade civil, como os grémios, ou nas organizações
socioprofissionais interclassistas. Os revolucionários
moviam-se melhor nos corredores do Estado do que no
campo aberto das instituições nacionais e locais.
Os acontecimentos revolucionários de 1975, em
particular a ocupação de terras, foram possíveis graças a
este dispositivo institucional. Este não se limitava aos
serviços técnicos e administrativos: garantia ainda a força
militar, a repressão, a legalidade, os recursos financeiros e
os meios de comunicação e de mobilidade.
Esta preparação institucional fazia parte de um plano
preconcebido? Como plano concreto e pormenorizado,
certamente que não. Mas seguramente que sim como
ideia-força e como princípio estratégico. Desde os anos 60
que os dois principais textos programáticos do PC
encaravam explicitamente a questão do período pós-
revolucionário e pré-constitucional133. O cenário que aí é
examinado é o do derrube do regime por intermédio de
uma revolta militar, de um levantamento nacional ou «de
outros acontecimentos imprevisíveis». Os autores tomam
partido pelo estabelecimento de um período considerável,
durante o qual uma Assembleia Constituinte deveria ser
eleita, reunir e redigir a Constituição, sem se ocupar de
política. Entretanto, o poder provisório teria como tarefa
sanear a administração, levar a cabo a reforma agrária,
«nacionalizar os monopólios», etc.
A estratégia de ocupação não foi pensada e posta em
prática apenas com o desígnio calculado de desembocar
na reforma agrária. As instituições não foram ocupadas
apenas com o objectivo de ulteriormente tomar as terras.
Foram ocupadas pelo que valiam, que não era pouco, e
pelo que podiam valer, que era incerto, mas podia ser
muito. Os comunistas e seus aliados queriam o mais e o
menos, o todo e a parte, o fim e a via. Queriam a reforma
agrária, mas antes precisavam dos meios de acção e das
instituições que estavam disponíveis. Sem organismos de
controlo, sem meios financeiros nem poder político, sem
leis nem instrumentos de coerção, a reforma agrária e as
ocupações não teriam sido possíveis. E se os objectivos
finais não fossem conseguidos, os meios assim obtidos
seriam já uma vantagem.
A revolução partiu geralmente do Estado para a
sociedade, não o inverso. Houve, é certo, movimentos
sociais, acções espontâneas e autonomia. Para ocupar
uma herdade, os trabalhadores têm também razões
próprias e existenciais, sociais ou sindicais, não estão
necessariamente a pôr em prática, e só isso, um plano do
Governo ou uma ordem do Ministério. Mas, fazendo-o,
sabem que têm a protecção legal, política e militar, o que
é decisivo. O sindicato organizava, o partido orientava e os
governos ajudavam ou, pelo menos, não estavam contra.
Desde os fins de 1975, e sobretudo depois das eleições
legislativas de Abril de 1976, os comunistas e seus aliados
perdem a sua preeminência. De facto, perdem o poder
político e serão progressivamente afastados das
instituições pelas outras formações políticas. Os
socialistas, em particular, que em termos eleitorais vêm
muito à frente do PC, desforram-se. O que não será difícil
nem violento. A ocupação institucional era o reflexo parcial
de uma relação de forças que não correspondia à real
balança social e política. Desde que esta se revelou mais
completamente, a maioria das instituições foi desocupada.
O princípio eleitoral representativo tinha levado a melhor,
incluindo, aliás, a favor dos comunistas, que asseguraram
a sua vitória eleitoral em quase todas as câmaras da zona
de reforma agrária.

82 Há alguns meses que o golpe «andava no ar», desde que tinham surgido os
problemas militares. Mas não se poderá dizer que era previsível. Aliás, depois do
estranho golpe falhado das Caldas, a 16 de Março de 1974, previsões e
esperanças eram bem menores. É possível que os dirigentes comunistas
tenham estado informados sobre os preparativos militares do golpe. Alguns
autores dão informações nesse sentido, como Otelo Saraiva de Carvalho,
Alvorada em Abril, Lisboa, 1977, e A. Rodrigues, C. Borga e M. Cardoso, O
Movimento dos Capitães — 229 Dias para Derrubar o Fascismo, Lisboa, 1974.
De qualquer modo, o facto de estar informado de preparativos clandestinos, que
aliás podiam falhar, como tantas outras vezes no passado, não permitia ao
partido preparar os seus militantes.

83 A fonte é o Diário do Governo. O número de municípios na ZIRA é de 72. O


total do quadro, 110, explica-se pela inclusão de segundas substituições. No
caso das freguesias é o contrário: faltam aquelas em que as nomeações só se
fizeram depois de Julho de 1976.

84 Diário do Alentejo, 13/5/1974.

85 O Sorraia, 22/6/1974.

86 Diário do Sul, 21/7/1974.

87 Diário do Alentejo, 13/5/1974, 5/6/1974, 15/6/1974, 18/6/1974, 19/6/1974,


1/7/1974, 3/7/1974 e 4/7/1974; Diário do Sul, 26/6/1974; O Primeiro de Janeiro,
22/6/1974; Jornal do Sul, 30/5/1974; O Distrito de Setúbal, 14/5/1974; Boletim
da Liga dos Amigos de Abrantes, Maio de 1974.

88 Diário do Alentejo, 15/6/1974.

89 Para o eleitorado, os valores são os do recenseamento de 1975; a fonte dos


resultados eleitorais é o Diário do Alentejo, 13/5/1974, 21/5/1974, 18/6/1974 e
4/7/1974.

90 Diário do Alentejo 13/5/1974 e 21/5/1974, e Diário do Sul, 6/6/1974 e


18/6/1974.
91 Em Abrantes e Alvito. Cf. Boletim da Liga dos Amigos de Abrantes, Maio de
1974, e Diário do Alentejo, 6/6/1974.

92 Comunicado da comissão eleitoral de Vila Viçosa, 14/6/1974.

93 Jornal do Sul, 3/7/1974.

94 O Primeiro de Janeiro, 29/8/1974 e 23/9/1974.

95 São, por exemplo, os casos de Castro Verde, Avis e Moura. Diário do Alentejo,
21/5/1974 e 29/5/1974.

96 O Primeiro de Janeiro, 6/6/1974 e 8/6/1974.

97 Diário do Alentejo, 1/7/1974.

98 As freguesias do concelho de Serpa, por exemplo: em Pias, em Santa


Margarida e em Ficalho, o PC elege os três membros; o PS e o PPD também se
candidataram, sem sucesso. Em São Salvador, dois eleitos para o PS e um para
o PC. No conjunto do município, o PC obtém 11 mandatos, o PS 3 e o PPD 1. O
MDP nunca se apresentou. Diário do Alentejo, 9/12/1974.

99 Em Ponte de Sor. Diário do Alentejo, 1/8/1974.

100 Cf. Manuel Lucena, O Marcelismo, Lisboa, 1975.

101 Diário do Sul, 4/5/1974.

102 Diário do Alentejo, 27/5/1974, 29/5/1974, 1/6/1974, 3/6/1974 e 5/6/1974, e


Diário do Sul, 29/5/1974.

103 A Capital, 19/4/1975.

104 Cf. Manuel Lucena, Revolução e Instituições — A Extinção dos Grémios da


Lavoura e a Reforma Agrária, Lisboa, 1984. Este excelente trabalho contém
monografias sobre a maior parte dos grémios alentejanos e mostra bem como,
no interior da mesma região, a diversidade de situações é flagrante. Ver ainda:
Relatório sobre a Extinção dos Grémios da Lavoura e Suas Federações, relatório
encomendado pelo Ministério da Agricultura (1977) a Manuel Lucena, Carlos
Costa, António Fragata, Maria Inês Mansinho e Margarida Néri Pereira; Manuel
Lucena, «Transformações do Estado Português nas suas relações com a
sociedade civil», in Análise Social, n.º 72 a 74, Lisboa, 1983; e, também, do
mesmo autor, «Sobre a evolução dos organismos de coordenação económica
ligados à lavoura», in Análise Social, n.º 56 a 58, Lisboa, 1980; e «Sobre as
Federações dos Grémios da Lavoura», in Análise Social, n.º 62, Lisboa, 1981. Os
trabalhos de Manuel Lucena constituem a principal fonte de informações para
esta secção.
105 No período aqui estudado, 1974 a 1976, o processo de liquidação ou de
transformação fica muito incompleto. As últimas medidas oficiais relativas aos
grémios datam de 1981.

106 A partir de 1975, os grémios tornam-se oficialmente «ex-grémios».

107 M. Lucena, Revolução […], op. cit.

108 M. Lucena, Revolução, […], op. cit.

109 Foi o que aconteceu. Depois da dissolução definitiva, a maioria dos grémios
deu nascimento a cooperativas de serviços e de comercialização.

110 Ver adiante o capítulo sobre a intervenção das forças armadas.

111 É o contrário do que acontece geralmente nos Estados pós-revolucionários,


onde, junto das unidades militares, existem «comissários políticos».

112 Ver a Segunda Parte, «Os acontecimentos».

113 Ver, no Capítulo VIII, a secção «Uma vida institucional pré-revolucionária».

114 Ver os testemunhos de dois responsáveis das CIC in A. Barreto, Memória


[…], op. cit.

115 Ver, no Capítulo VIII, a secção «Uma tentativa reformista».

116 Alguns dos organismos de coordenação económica, como o Instituto dos


Cereais, pertenciam ao Ministério do Comércio ou dependiam simultaneamente
deste e do Ministério da Agricultura. A sua acção junto dos agricultores podia ser
decisiva: fixação dos preços, intervenção nos mercados, escoamento,
importação, fornecimento de sementes, armazenamento, transporte de
excedentes, pagamentos, etc.

117 O presidente do IRA declarou: «A legislação sobre o saneamento está já


publicada, existe no IRA uma comissão eleita pelos trabalhadores e que trabalha
activamente com esse fim e que tem todo o apoio do presidente», in A Capital,
9/1/1975.

118 Ver, a este propósito, Fernando Oliveira Baptista, Portugal 1975: Os


Campos, Lisboa, 1978. O autor era o ministro nesta altura. Pode ler-se no seu
testemunho: «A acção dos militares e dos técnicos progressistas — a quem foi
confiada a direcção dos serviços regionais do Ministério com a criação dos
centros regionais de reforma agrária — foi decisiva onde as relações de força
regionais não eram susceptíveis de impedir o processo de reforma agrária.»

119 Diário do Alentejo, 23/6/1974.


120 Estes fundos (melhoramentos agrícolas, mecanização, etc.) podiam ser
facilmente mobilizados, com poucas regras burocráticas e financeiras. As taxas
de juro eram muito favoráveis, da ordem de 1% a 3%, quando outros créditos
eram já pagos a 12% e 14%.

121 Testemunho inédito do engenheiro-agrónomo J. Dordio, membro das


brigadas técnicas (arquivos do GER, Gabinete de Estudos Rurais, da
Universidade Católica).

122 Ver, no Capítulo VIII, a secção «Os primeiros problemas agrários». Ver ainda
Maria José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983.

123 Ver o Capítulo XI.

124 Decreto-Lei n.º 351/75.

125 O Decreto-Lei n.º 406-A/75, verdadeira lei de expropriações, prevê que


estas devem ser decretadas pelo ministro, sob proposta dos conselhos. O
mesmo decreto, no seu artigo 14.º, prevê que das decisões tomadas em
aplicação deste diploma cabe recurso junto dos conselhos. É um autêntico
circuito fechado. Outros decretos alargarão ainda as competências dos
conselhos, em especial os Decretos n.os 470-A/75, 407-B/75 e 493/76.

126 Uma cópia deste longo memorando está depositada nos arquivos do
Gabinete de Estudos Rurais. O documento é assinado, a título individual, por
Dinis Miranda, António Gervásio, Joaquim Diogo Velês e Amílcar Lázaro Leão: na
verdade, são membros do comité central do partido e os principais responsáveis
pelas questões agrárias. O memorando, além de uma introdução geral,
compreende quatro capítulos: «A importante questão das indemnizações»; «A
condução das expropriações dos latifúndios e a instalação das novas unidades
de produção»; «A questão vital do controlo das colheitas e dos meios de
produção»; e «A importância da reforma agrária para o desenvolvimento do
País». O documento tem data de 12 de Junho de 1975.

127 A inspiração que está na origem destes conselhos pode bem ir buscar-se à
experiência chilena. Um documento redigido por Jacques Chonchol, ministro da
Agricultura da Unidad Popular e do presidente Salvador Allende (1971), e cujo
título era «As oito condições fundamentais para uma reforma agrária na
América Latina», foi distribuído em 1975 aos funcionários dos centros regionais
alentejanos e dos serviços centrais em Lisboa. Pode aí ler-se, nomeadamente:
«A fórmula operacional mais adequada seria a seguinte: concentração das
principais funções complementares sob responsabilidade única, um só
organismo, e sua descentralização regional, na base dos chefes locais ou dos
conselhos, que deveriam ter muita autonomia e poder, a fim de agir na procura
de soluções para os milhares de problemas específicos.»

128 O Século, 12/5/1974.


129 Conhece-se bem a sua actividade por intermédio da imprensa e dos
testemunhos de alguns participantes. Por outro lado, as «Actas» das sessões do
conselho regional de Beja constituem um documento exaustivo que permite
acompanhar a acção passo a passo. Uma cópia deste documento está
depositada nos arquivos do GER. Cf. António Barreto, O Conselho Regional de
Reforma Agrária do Distrito de Beja, Lisboa, 1980.

130 Diário do Alentejo, 4/8/1975.

131 Ibidem, 11/8/1975.

132 Ibidem, 22/7/1975.

133 Cf. Álvaro Cunhal, Rumo […], op. cit., assim como o seu Relatório de
Actividades do Comité Central ao VI Congresso do Partido Comunista Português,
Edições do PCP (clandestinas), 1965.
CAPÍTULO VII

A ACTIVIDADE POLÍTICA

Logo após o golpe de Abril de 1974, os partidos políticos


multiplicam-se. Ou, antes, anunciam a sua existência. Mais
de 70. A maioria não passará deste anúncio. Não havendo
ainda regras jurídicas, basta a um grupo de indivíduos
proclamar-se partido, na tentativa de ocupar espaços
vazios134.
No fim do ano, quando o Governo aprova regras de
legalização (mais de 5000 assinaturas, inscrição junto do
Supremo Tribunal de Justiça, etc.), o número de partidos
reduz-se bem depressa, não ficando mais de 12, entre os
quais os quatro grandes.
Todas as ideologias possíveis estão presentes no início,
até grupos declaradamente favoráveis ao antigo regime,
que todavia desaparecerão rapidamente. Só quatro
partidos podem realmente invocar uma existência prévia
ao 25 de Abril135. Primeiro o Partido Comunista, fundado em
1921, na clandestinidade desde 1926. Conheceu altos e
baixos, mas, graças à existência de um núcleo «duro» de
algumas dezenas de funcionários, sobreviveu à incessante
repressão das polícias políticas. A direcção vivia no
estrangeiro, desde os anos 60, entre Moscovo, Praga e
Paris; mas mantinha sempre, em Portugal, um certo
número de dirigentes. No quadro do movimento comunista
internacional, e segundo a terminologia corrente, era um
partido pró-soviético, distinguindo-se na condenação dos
«desvios» jugoslavo, chinês e italiano e na aprovação da
invasão da Checoslováquia, em 1968. O seu secretário-
geral, Álvaro Cunhal, estava em funções há cerca de duas
dezenas de anos.
O Partido Socialista foi fundado em 1973. Era um
pequeno grupo de personalidades e de militantes de
oposição, na área socialista e social-democrata, que então
decidiram assumir uma identidade própria. Alguns tinham
colaborado com o PC em «movimentos de unidade». Era o
caso do seu secretário-geral, Mário Soares. Em 1973, estes
socialistas dotam-se de um programa, de um jornal
impresso no estrangeiro e de uma organização
embrionária. Alguns dos seus dirigentes vivem no exílio,
em países da Europa ocidental, mas a maioria vive em
Portugal. Desde a sua criação, o PS adere à Internacional
Socialista. O número dos seus militantes não deveria
atingir a centena. Considera-se que o PS está mais próximo
das correntes ditas do «socialismo democrático» do que
das da «social-democracia».
O Movimento Democrático Português/Comissão
Democrática Eleitoral (MDP/CDE, ou mais simplesmente,
MDP) era a última versão dos movimentos unitários que,
sob o impulso predominante dos comunistas e com a
colaboração de outras forças ou individualidades, tentava
conduzir a luta contra o regime de Salazar e Caetano. As
origens imediatas do MDP situam-se nas campanhas
eleitorais de 1969 e 1973. O MDP era principalmente,
como os seus antecessores, o «braço legal» do PC, o que
não impedia que muitos não comunistas dessem a sua
colaboração.
Finalmente, o Movimento para a Reconstrução do Partido
do Proletariado (MRPP) esquerdista, maoísta, criado no
princípio dos anos 70, muito activo em meio estudantil,
com dificuldade em ultrapassar os limites da universidade
e de Lisboa. A sua existência era todavia real antes de
1974.
Após o derrube do regime, todos se apresentam a
público. O MDP garante continuar como «movimento», o
que explica que três partidos o integrem: o PC, o PS e o
recém-formado PPD136.
Muitos outros partidos anunciam rapidamente a sua
fundação. Entre todos, virão a salientar-se o Partido
Popular Democrático (PPD), liderado por Francisco Sá
Carneiro e formado a partir das franjas liberais do anterior
regime, e o Centro Democrático e Social (CDS),
conservador e democrata-cristão, chefiado por Diogo
Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa e que nasce
nas camadas jovens dos que poderiam ter sido os
herdeiros do regime corporativo.
O MDP nunca virá a ter significado autónomo na vida
política. O MRPP não terá peso. Entre todos os outros
partidos, dois ou três farão mais falar de si, mas não
conseguirão adquirir dimensão: o MES, a UDP e o PPM.
Durante a revolução (e depois), quatro partidos vão
absorver os votos e as energias militantes: o PS, o PPD, o
PC e o CDS.

A implantação dos partidos

Tudo se passou relativamente depressa, num país que


não conhecia os partidos políticos há 50 anos. Dois anos
depois do golpe de Abril, mais de 300 000 pessoas
estariam inscritas num qualquer partido político137.
Com vantagens à partida, o PC faz imediatamente um
grande esforço de organização138. Colabora no MDP, mas as
suas preocupações essenciais vão para a organização. Os
seus esforços conseguem reais sucessos: primeiro nas
regiões urbanas e industriais de Lisboa; depois, no Alentejo
rural; a seguir nas outras regiões urbanas do País; e
finalmente nas restantes áreas rurais, onde aliás a sua
implantação demora anos a concretizar-se.
No Alentejo e no Ribatejo, as primeiras manifestações
públicas, em fins de Abril e princípios de Maio, são
organizadas pelo MDP e organizações anexas, como o
MDM, Movimento Democrático das Mulheres. Logo em
meados de Maio, uma grande homenagem a Catarina
Eufémia é notada. As reuniões começam a multiplicar-se139.
Umas para grandes assistências, outras mais discretas,
mas públicas, sobretudo nas Casas do Povo. Estas últimas
têm várias designações: «colóquio sobre política»,
«comício» ou «sessão de esclarecimento». Esta última será
a terminologia adoptada depois por toda a gente. A partir
de fins de Maio, o MDP é a força mais activa em todo o Sul:
começou a luta pela conquista das autarquias140.
Paralelamente, realizam centenas de reuniões de
trabalhadores rurais: as «comissões pró-sindicato»
organizam-se rapidamente.
Enquanto as intervenções do PS e do PPD só muito
gradualmente é que se desenvolvem, o PC desdobra-se em
várias frentes. Participa nas reuniões do MDP, nas sessões
do IMA e nas comissões sindicais. Os seus verdadeiros
comícios autónomos começam em Junho e Julho141. Neste
momento há já numerosos «centros de trabalho» na região
de Lisboa. No Alentejo, estes vão surgindo mais
lentamente. Em Maio há dois no distrito de Beja, um em
Évora, um em Avis (Portalegre) e um em Alpiarça
(Santarém). Já são mais numerosos no distrito de Setúbal,
na região industrial. Apesar de muito à frente dos outros
partidos, parece que o PC não tem organização preparada
nas áreas rurais, mas sim nalgumas zonas urbanas. Em
fins de Agosto, o panorama é o seguinte: em Portalegre,
quatro centros concelhios, num total de 14 concelhos; em
Évora, oito em 13; em Beja, quatro em 14; em Setúbal,
dois nas zonas rurais (Grândola e Santiago de Cacém); dois
no concelho de Vila Franca de Xira; e cinco centros no
distrito de Santarém.
A partir do Outono de 1974, o movimento acelera. No fim
do ano há centros de trabalho em quase todos os
concelhos do que virá a ser a zona da reforma agrária.
Falta cobrir dez concelhos. Ao todo, estão inaugurados e
abertos 126 centros de trabalho, o que não é comparável
com qualquer outro partido142. Em fins de 1975, 108 novos
centros vêm acrescentar-se aos 126 mencionados143. Do
ponto de vista da organização, até 1976, a zona da
reforma agrária (menos de 20% da população nacional)
representa metade dos esforços do partido na criação de
centros de trabalho: 220 em 450144. No conjunto do País, o
número de centros de trabalho evolui do seguinte modo:
até 28 de Setembro de 1974, 148; de então até 11 de
Março de 1975, 232; de Março a 25 de Novembro do
mesmo ano, 126; depois, até finais de 1976, 22145.
A informação sobre os outros partidos é rara, o que é
sinal de fraqueza e de menor organização, mas também de
uma concepção política do partido bem diferente.
Em 1974 e 1975, na zona da reforma agrária, não há
praticamente traços do CDS. A ausência de base social e a
intimidação de que este partido é vítima explicam esta
situação.
Já o PPD abre algumas sedes entre Julho e Dezembro de
1974, nomeadamente em Castro Verde, Beja e Coruche,
em Julho, e em Serpa, Alcácer do Sal e Grândola, nos
meses seguintes146.
A rede de sedes do PS é ligeiramente mais densa do que
a do PPD. Desde Junho de 1974 que está presente nas
capitais de distrito: Évora, Beja, Portalegre, Santarém e
Setúbal. Até ao fim do ano, estará nos concelhos mais
importantes, como por exemplo em Coruche, Alcácer do
Sal, Vila Franca de Xira, Elvas, etc.147.
Quanto às sessões de esclarecimento, o PS leva a melhor
sobre o PPD, mas não conseguirá estar tão activo quanto o
PC. Está em Avis no fim de Maio, no distrito de Beja em
Julho, um pouco por todo o Alentejo em Agosto e
Setembro148. Grande parte destas sessões alentejanas
realiza-se nas Casas do Povo e é presidida por um dos
socialistas mais em vista, Lopes Cardoso.
O PPD organiza as suas primeiras sessões em Maio e
Junho. Até ao fim do ano, o seu número aumenta
lentamente, acelerando desde o momento em que o
partido toma as suas distâncias relativamente ao MDP.
Previamente, os seus militantes participam
frequentemente em iniciativas do MDP . 149

Antes de todos os outros, o PC orienta grande parte dos


seus esforços para a organização sindical e
socioprofissional dos trabalhadores rurais e dos pequenos
agricultores. Em Maio há já várias comissões «pró-
sindicato» e os primeiros núcleos das ligas estão activos. A
grande maioria dos quadros sindicais são comunistas. Em
Évora, trabalhadores socialistas estão também
mobilizados, mas perdem as eleições sindicais. Nas ligas,
entre os primeiros activistas, há de tudo, militantes de
todos os partidos, democratas de centro, independentes
de esquerda. Pluralistas no início, as ligas serão
essencialmente influenciadas pelos comunistas antes do
fim do ano. O PC oferece a imagem de ser, entre todos, o
que mais depressa e mais activamente se preocupa com
os assalariados agrícolas e com os agricultores, de modo
diferenciado. Um dos seus métodos de trabalho favoritos
consiste na organização, sobretudo em 1975, de
conferências regionais e sectoriais, em vários pontos da
região. Antecipadamente preparadas, bem publicitadas na
imprensa, estas reuniões permitir-lhes-ão retirar benefícios
palpáveis e darão a nítida impressão da multiplicidade de
iniciativas150.

Aliados, adversários e inimigos

1974 e 1975: são os anos loucos das reuniões políticas.


Fazem-se dezenas de milhares de sessões de
esclarecimento, comícios, manifestações, cortejos,
marchas e concentrações. Para convocar uma
manifestação, um colóquio ou uma sessão, todos os
motivos são bons: o apoio ao MFA, a denúncia dos
fascistas, as greves, as reivindicações salariais, o
recrutamento político, a chegada de soldados de África, o
protesto dos retornados e três campanhas eleitorais.
Os locais de reunião são os «barómetros» da capacidade
de mobilização. O Pavilhão dos Desportos, em Lisboa,
«vale» 15 000 pessoas, o Campo Pequeno 25 000, o Rossio
100 000, o Estádio 1.º de Maio 250 000, o Terreiro do Paço
400 000 e a Alameda 600 000! Todos estes locais foram
preenchidos por uma ou outra força política, sozinha ou em
aliança. Na convocação de uma manifestação, o sítio pode
ser tão importante como o motivo, dado que é uma
indicação das intenções e da força. A guerra dos números
é permanente. Conforme a fonte, jornal ou rádio, a mesma
manifestação pode ter reunido entre 50 000 e 500 000
pessoas. A verdade é que a «rua» desempenhou papel
importante, tanto na aceitação do MFA e na ascensão do
PC como, mais tarde, na contra-ofensiva dos socialistas e
na derrota dos comunistas. Não é a rua que decide, mas
ajuda a inclinar os pratos da balança. Não se tratava de
pura exibição: os militares no poder eram sensíveis às
performances de mobilização e de enquadramento das
populações. Era aliás para eles e por causa deles que se
faziam muitas das grandes manifestações.
Curiosamente, com tanta gente na rua, os conflitos
violentos são raros, mesmo se os incidentes são
numerosos. Após dois anos de lutas vivas e intensas, de
movimentos sociais vastos e enérgicos e de efectivas
medidas revolucionárias, contam-se, no Alentejo, três
mortos.
No primeiro ano, pelo número dos seus membros, pelas
manifestações de rua, pela organização e pela presença
nos corredores do Governo e dos quartéis, o PC é o
vencedor incontestado. A partir de Janeiro de 1975, sem
que ainda tenha rival, surge o que será o seu principal
adversário: o PS, que se revela na batalha da unicidade
sindical. Com a vitória eleitoral de Abril, o PS passa a ter
trunfos tão poderosos quanto os do PC, embora por vezes
de natureza diferente. Os antagonismos entre PS e PC
instalam-se de modo durável: tão cedo não será possível
nenhuma colaboração. No segundo ano, do Verão de 1975
às eleições de Abril de 1976, o PS será o grande vencedor.
As relações entre estes dois partidos estarão no centro
da vida política neste período. Logo após o golpe de
Estado, apesar das ambiguidades e das tensões, são
múltiplos os sinais de colaboração dados pelos dois
partidos (e até, secundariamente, por um terceiro, o PPD).
Com a formação dos governos provisórios, a colaboração é
forçada pelas circunstâncias, mais do que desejada; e é
sobretudo um modo fácil de vigilância mútua. Ao longo dos
episódios revolucionários, PS e PPD acompanham o PC e o
MFA tão longe quanto eles forem, muito além do que
permitiriam os seus próprios programas. Colaboram por
fraqueza, talvez por intimidação, por incapacidade de
orientar o movimento a seu favor e por medo de serem
expulsos do sistema político151.
No entanto, a colaboração inicial contribuiu fortemente
para os sucessos rápidos do PC, para a sua aceitação como
força democrática. Além das vantagens próprias, o PC
gozou deste inestimável capital político, fornecido pelos
adversários, aliados de circunstância e futuros rivais.
No Alentejo, nenhum outro partido tem raízes, tradição
ou memória. O PC, pelo contrário, apresenta-se como
depositário da herança democrática e da resistência. Não
insiste no seu programa comunista, publicita a sua
plataforma democrática. Não fala de luta de classes, mas
sim do povo do Alentejo. Fá-lo sem rivais, mas com o apoio
ou a caução dos órgãos de soberania, dos militares e dos
outros partidos. Em 1974 são numerosos os comícios
organizados conjuntamente pelo PC, PS, MDP e PPD152. Por
vezes, o PS está ausente e só o PC, MDP e PC estão
presentes153. Noutras, PC e PS colaboram sozinhos154.
Mesmo depois de 11 de Março de 1975 ainda haverá
reuniões conjuntas155.
O principal pretexto para todas estas manifestações é o
apoio ao MFA e a algumas das mais importantes medidas
políticas: as nacionalizações, a independência das
colónias, as vitórias nos contragolpes de 28 de Setembro e
de 11 de Março, etc.156. Muitas vezes, além dos partidos e
dos sindicatos, membros do Governo e sobretudo oficiais
das forças armadas participam activamente nestas
reuniões públicas157. A medida que se avança no tempo, as
reuniões vão sendo cada vez mais radicais e o PS e o PPD
estarão menos presentes. Ou são marginalizados ou se
auto-excluem. Em Julho de 1975, em Beja, uma
manifestação reúne o PC e o MDP, os sindicatos, o
presidente da Câmara, o adjunto do governador civil e o
comandante do regimento local158. A base social da
revolução definiu aqui as suas mais estreitas fronteiras,
mas o poder institucional ainda está presente.
A força dinâmica da revolução reside no PC e no MFA.
Este comanda as forças armadas, última instância do
poder, na Assembleia do MFA, no Conselho da Revolução e
na Presidência da República. Antes das eleições de 1975
não há verdadeira competição partidária: a concorrência,
entre os partidos, faz-se pelos favores militares. Nesta
competição, o PC vence durante mais de um ano. Em
conjunto, PC e MFA arrastam para a esquerda os outros
partidos, sobretudo o PS e o PPD. Este processo foi a forma
que tomou a colaboração, mais ou menos forçada, que os
dois partidos não comunistas deram ao poder
revolucionário.
Várias vezes estes dois partidos assinaram e deram a sua
caução a medidas do PC e do MFA com as quais não
estavam de acordo. Por exemplo, quando em Maio e Junho
aprovam as medidas de «saneamento» das cooperativas.
Mas é a 7 de Julho que o talento do PC em obter a
cumplicidade dos adversários consegue o seu maior
triunfo: o Governo dos três partidos ratifica e aprova os
decretos de expropriação e nacionalização das explorações
agrícolas. Pelo PPD assina o ministro Magalhães Mota. É
verdade que a ausência da assinatura do ministro Mário
Soares é significativa, traduz as reservas que o seu partido
formula à política agrícola do Governo. Todavia, este acto
não é assumido como uma recusa do partido, o que revela
ambiguidades e fraqueza: com efeito, afirmam que não
assinaram porque não tiveram tempo de ler os projectos159.
Uma recusa que pede desculpa não é um gesto político
forte.
Mas a oposição socialista vai-se organizando, sobretudo
depois dos resultadas das eleições de Abril. Estes não dão
ao PS o direito de governar, mas são um argumento eficaz
e conferem-lhe uma legitimidade indiscutível. O PS arroga-
se o direito, doravante, de conduzir o protesto quase
nacional contra o MFA e o PC. Por todo o País, os actos de
violência contra os comunistas multiplicam-se160. O PS não
participa nessas actividades, nem de tal é acusado pelo
PC. A verdade é que os atentados contra as sedes do PC
coincidem, no tempo, com a campanha de oposição
liderada pelo PS. Fica uma certeza: a de que em todo o
País, em todos os sectores sociais e por todas as formas
está generalizada a rejeição da política radical do PC e do
MFA.
A 10 de Julho de 1975, o PS abandona o Governo e dá a
esse gesto um forte conteúdo político. O PPD segue-o dias
depois. Convocadas pelos socialistas, enormes
manifestações se sucedem por todo o lado. Os comunistas
respondem: em Lisboa e no Alentejo, as suas
manifestações suportam a comparação, mas não no Norte
nem no Centro.
Algo quebrou definitivamente. Nos meios militares,
exprimem-se finalmente grupos moderados,
especialmente o «Grupo dos Nove», que reúne socialistas
moderados desejosos de se distanciarem dos
revolucionários. Defendem o consenso sobre pelo menos
um ponto capital: o funcionamento democrático das
instituições. A sua iniciativa tem sucesso, é assinada por
centenas de oficiais. Tudo se precipita161. Sucedem-se os
episódios rocambolescos ou dramáticos. Cria-se a
consciência de que é possível derrubar os comunistas e os
militares radicais. É o que acontecerá quatro meses mais
tarde.

Os programas dos partidos

Abril de 1974: o programa político do PC, aprovado em


1964, inclui um capítulo consagrado ao sector agrícola e à
reforma agrária162. O PS tem igualmente o seu programa,
aprovado em 1973163. Mais recente, mas mais vago do que
o do PC. Como programas políticos, é o que há.
Entre Maio e Dezembro de 1974, todos os outros partidos
vão publicar os seus programas e os seus pontos de vista
sobre a questão agrária. O PS, no seu congresso de
Dezembro, aprova um extenso novo programa, incluindo
um pormenorizado plano de reforma agrária. O PC, que
reúne o congresso a 20 de Outubro, não modifica o seu
programa de 1964.
Abril de 1975: durante a campanha eleitoral para a
Assembleia Constituinte, todos os partidos apresentam
programas e definem opções sobre a questão agrária. Mas,
no essencial, todos se referem aos programas aprovados
em 1974.
Verão de 1975: os partidos que elegeram deputados à
Constituinte entregam os seus projectos de Constituição.
Todos incluem importantes capítulos sobre a agricultura e
a reforma agrária. Nota-se uma evolução geral para a
esquerda.
Novembro de 1975: os trabalhos da Constituinte
avançam lentamente. Os deputados votam os artigos 96.º
a 104.º definindo uma orientação constitucional para a
reforma agrária, o que se faz em situação social e política
inteiramente nova: com efeito, estão já ocupados milhares
de herdades, num total de mais de 1 milhão de hectares.
Ao votar, cada partido revela diferenças significativas
relativamente ao seu pensamento anterior.
Abril de 1976: ocorre a campanha eleitoral para o
primeiro parlamento. A Constituição está já aprovada, as
acções revolucionárias no Alentejo pertencem ao passado.
Ao apresentarem-se de novo ao eleitorado, os partidos
publicam novos programas agrários, bem diferentes dos
anteriores e do que votaram na Constituição, mantendo
embora inalterados os seus programas de partido.
Toda esta evolução merece ser revista em mais
pormenor.
Nos programas de 1974, os partidos de esquerda (PS, PC
e MDP) consideram a reforma agrária como objectivo
essencial. Para o PC não é possível fundar o regime
democrático sem «distribuir uma grande parte da terra
cultivável a quem a trabalha»164. Também o PS exige «a
transformação das estruturas de propriedade e a
transferência dos direitos de posse útil da terra aos que a
trabalham». O PPD defende uma «reestruturação
fundiária» e a transformação das estruturas de apoio ao
sector agrícola. O CDS propõe uma «agricultura renovada»
e o equilíbrio de rendimentos entre o sector agrícola e os
outros sectores.
Em resumo, dois reclamam reformas estruturais, talvez
mesmo revolucionárias; outros dois preferem a
modernização e a mudança moderada.
O PC pretende expropriar «os grandes latifúndios e as
grandes empresas capitalistas». As terras assim obtidas
seriam entregues aos «assalariados rurais e aos
camponeses pobres», tendo em vista a sua utilização
«individual, em cooperativas ou directamente pelo
Estado». A distribuição de terras deve obedecer «à
vontade das massas camponesas». Para resolver a questão
do absentismo, o PC preconiza «a requisição das terras
incultas pelo Estado». É um programa radical e
estatizante. Só receberão indemnizações os rendeiros que
tiverem melhorado a terra. O Estado ficará proprietário de
toda a terra expropriada, salvo quando se trate de terra de
agricultores-parceiros. Os critérios e as dimensões das
explorações expropriáveis não estão definidos. Não existe
uma escolha definitiva quanto aos modelos de exploração:
da empresa familiar ao colectivismo de Estado, tudo
parece possível.
O programa do PS, completo e pormenorizado, contrasta
com a vaguidão do de 1973. Também se trata de um
programa mais radical. Propõe-se privilegiar os direitos de
exploração, em detrimento dos direitos de propriedade.
Preconiza a «propriedade colectiva dos meios de
produção», sistema que se deve sobrepor ao uso individual
da terra. Proclama o respeito pela propriedade do pequeno
agricultor, mas submete-o a normas precisas sobre os
direitos de sucessão. O absentismo deve ser penalizado,
geralmente pela expropriação. O mercado de terras e o
arrendamento serão estreitamente controlados, devendo o
Estado ter sempre um direito de preferência. Nas regiões
de latifúndio, a maior parte das terras será expropriada
pelo Estado, que «dará os direitos de exploração a quem
as trabalhe», devendo no entanto reter a propriedade. Os
antigos proprietários receberiam indemnizações calculadas
em função das necessidades de subsistência e não dos
valores do mercado. Finalmente, o PS propõe um vasto
programa de apoio e desenvolvimento das cooperativas.
Apesar do pormenor, este programa deixa por definir
alguns aspectos decisivos, como por exemplo os limites de
propriedade privada aceitáveis.
O programa do PPD, muito mais moderado do que os
precedentes, insiste nas diferenças ecológicas entre as
diversas regiões. Propõe que se garanta simultaneamente
«o direito à propriedade privada» e «o predomínio dos
interesses públicos sobre os privados». Prevê a
intervenção do Estado através de programas agrários de
desenvolvimento, incluindo as compras no mercado
fundiário, deixando a porta aberta ao «arrendamento
compulsivo» e à expropriação. O desenvolvimento
cooperativo é considerado prioritário. Sobre algumas
questões candentes, o PPD é mudo: critérios de
intervenção do Estado, destino das terras expropriadas ou
compulsivamente arrendadas ao Estado, situações que
levariam seja à expropriação, seja ao arrendamento
compulsivo, etc.
O CDS, enfim, sugere «uma reforma gradual da estrutura
agrária», utilizando curiosamente a mesma expressão que
o primeiro Governo provisório. A reforma agrária passaria
«pelo parcelamento e emparcelamento das explorações e,
apenas em casos especiais, das propriedades». Defende a
grande propriedade, à qual reconhece vantagens
produtivas, e preconiza que a sua gestão deve ser confiada
a sociedades. Também é favorável às grandes empresas
agro-industriais, dada «a sua alta produtividade» e o «seu
nível técnico». Sublinha que a «agricultura familiar é a
base da agricultura do futuro» e que deve, por
conseguinte, ser técnica e financeiramente apoiada.
Conclui que a «correcção da estrutura agrária» só pode
resultar de «um regime fiscal adequado». Trata-se de um
programa aparentemente modernizador, inspirado em
orientação claramente capitalista. Como os outros, deixa
na escuridão algumas opções fundamentais. Neste caso:
os mecanismos e critérios correctores do regime fiscal; os
«casos especiais» justificando a intervenção do Estado,
etc.
Com a campanha eleitoral de Abril de 1976 aparecem
programas políticos bem diferentes. O contexto mudou. Os
programas têm agora diante de si novas realidades: terras
ocupadas, um sector colectivo, a Constituição aprovada,
leis de reforma agrária em vigor, etc. Mas também a
balança de poderes mudou.
O PC proclama-se «o partido da reforma agrária e dos
pequenos agricultores». Ainda mais do que no passado,
parece interessar-se pelos camponeses, em cuja terra «não
se deve tocar nem com um dedo»165. O programa defende
vigorosamente a legislação em vigor. A prioridade vai para
as unidades colectivas de produção e para todas as
medidas sociais, técnicas, jurídicas e económicas
necessárias ao seu desenvolvimento. Insiste em que os
«latifúndios devem ser entregues aos assalariados
agrícolas e aos pequenos agricultores». As empresas
«intervencionadas» deveriam ser nacionalizadas. O partido
opõe-se com energia ao pagamento de indemnizações aos
antigos proprietários. Quanto às reservas de propriedade,
apesar de previstas nas leis em vigor e mau grado
constituírem, nessa altura, uma das questões mais
controversas, o programa do PC nada diz.
Todas as inovações deste programa constituem, em certo
sentido, a teorização do que aconteceu no ano anterior. O
primeiro programa era vago, permitia várias acções
possíveis. O segundo é concreto, destina-se a consolidar a
acção, a defender as conquistas já efectuadas. Por outro
lado, é também nova a insistência nos pequenos
agricultores. Estes, com efeito, estão inquietos, ou são
mesmo adversários da reforma agrária, que, até essa
altura, ainda não lhes trouxe benefícios, mas já provocou
ansiedades e prejuízos. Apesar das suas preferências pelo
colectivismo de Estado, bem expressas na prática, não
deixa de tentar mostrar a sua política favorável aos
camponeses, expressa nos textos.
O PS dirige críticas à maneira como a reforma agrária foi
conduzida até então. Mas não põe em causa nem o
essencial nem a legislação em vigor. Para a região do
latifúndio, «o ponto de partida é a expropriação e a
nacionalização dos solos», enquanto o «emparcelamento e
o cooperativismo» são as soluções preconizadas para a
região do minifúndio. Acentua a necessidade de «garantir
de maneira inequívoca a propriedade dos pequenos e
médios agricultores» e exige «a devolução rápida das
terras indevidamente ocupadas aos seus legítimos
proprietários». Mantém a sua vontade de completar o
processo legal de expropriação, conforme as leis em vigor,
mas é favorável à concessão das reservas e ao pagamento
de indemnizações aos antigos proprietários. Remete para
um futuro «programa de acção» a definição dos destinos
das terras expropriadas, com o qual se procuraria o
estabelecimento de um novo modo de produção. Este
evitaria ao mesmo tempo a «burocratização» e a
«substituição do patrão privado pelo Estado-patrão».
Propõe-se ainda combater a criação «de uma nova classe
de pequenos proprietários agrícolas». Critica
moderadamente as formas colectivistas praticadas pelas
UCP, mantendo-se partidário da propriedade estatal do
solo, mas com exploração em cooperativas.
Vasto e preciso quanto a questões técnicas e jurídicas, o
programa evita alguns dos problemas políticos e sociais
mais «quentes». Ao remeter opções essenciais para
futuros programas, dá a entender que espera formar
governo em breve. Enquanto o não faz, tenta demonstrar a
coexistência de todas as formas de empresas e dos vários
modelos de sociedade. Mais do que uma política própria,
parece um programa de coordenação e de contenção.
Pelo seu lado, o PPD faz agora a crítica severa das leis e
dos acontecimentos do ano anterior. Tenta propor uma
política de conjunto, económica, social, técnica e fundiária.
Admite a «expropriação progressiva dos latifúndios», mas
exige a revisão dos decretos de 1975, em particular a fim
de aumentar os limites de propriedades legalmente
aceites. É preciso quanto ao destino das terras
expropriadas: os beneficiados deverão ser «as explorações
familiares e as verdadeiras cooperativas». O colectivismo
parece excluído. Parte das terras expropriadas serão
objecto de contrato de arrendamento com o Estado,
enquanto outras poderiam ser adquiridas, em plena
propriedade, pelos agricultores, através de uma
amortização gradual. Criticando as unidades colectivas, o
PPD propõe-se «transformá-las em verdadeiras
cooperativas», de que se reclama defensor.
Trata-se de um programa bem mais pormenorizado do
que o de 1975 e talvez mais próximo dos modelos sociais-
democratas, de que o partido se diz ser a expressão. Mais
do que o PS, o PPD põe em causa as leis em vigor, mas
não sugere a devolução das terras expropriadas, antes
propõe métodos para uma melhor distribuição. Quanto às
unidades colectivas, enquanto o PS as admite, o PPD
recusa-as claramente, defendendo as cooperativas em seu
lugar. Finalmente, fica silencioso quanto aos limites
exactos das reservas e da propriedade legalmente aceite.
Acrescente-se que, alguns meses mais tarde, na oposição
parlamentar ao Governo do PS, o PPD terá propostas bem
mais concretas e mais hostis às expropriações.
Já o CDS rejeita tudo o que se fez até então e faz uma
crítica coerente de conjunto. Recusa a «chamada reforma
agrária, que não foi mais do que a promoção de ocupações
selvagens e de expropriações desadequadas e injustas».
Exige «a suspensão imediata das leis em vigor», «a
devolução das terras ilegalmente ocupadas aos seus
proprietários» e o pagamento de indemnizações por danos
provocados. Propõe que o Parlamento aprove novas leis
agrárias que, em particular, limitem as medidas de
expropriação às explorações abandonadas ou
subaproveitadas. E se for necessário proceder a
expropriações, então que as terras sejam distribuídas a
agricultores dotados de experiência e de formação
profissional suficientes, que, após três anos de prova,
poderão tornar-se proprietários.
Em comparação com o programa de 1975, o CDS já não
defende tão explicitamente a grande propriedade e a
empresa capitalista. Mas é, de longe, mais crítico das leis e
da reforma agrária. Sendo o mais firme defensor da
agricultura liberal e capitalista, aceita agora mecanismos
de expropriação. No conjunto, as suas propostas são
claramente opostas ao articulado constitucional: não
admira, o partido votou contra a Constituição.
Meses depois das eleições de 1975, mas bem antes das
de 1976, os partidos tinham publicado os seus projectos de
Constituição. Entre o que propuseram então e os
programas de 1976 há evidentemente diferenças, mas
cada um, nesses projectos, se tinha definido mais
claramente.
O PC defendia o colectivismo de Estado e a destruição do
capitalismo agrário. O PS, combatendo embora o
capitalismo, promove modelos mais cooperativos e
autogestionários. O PPD defende uma agricultura mista e
polivalente, apesar de, no preâmbulo do seu projecto,
afirmar que a organização social e económica deve visar a
construção do socialismo. O CDS era partidário da livre
empresa, da exploração familiar e da agricultura
capitalista.
Os nove artigos da Constituição relativos à reforma
agrária são aprovados entre 6 e 11 de Novembro de 1975.
Curiosamente, a independência de Angola é proclamada
no dia 11; e a 12 começa o que ficou conhecido como «o
cerco da Constituinte». Os nove artigos e parágrafos
deram lugar a 14 votações diferentes. São integralmente
aprovados pelo PS e PPD; o PC abstém-se uma vez e vota
favoravelmente 13; o CDS abstém-se quatro vezes; o MDP
abstém-se três. Só a UDP (um deputado) vota contra
quatro artigos, além de se abster três vezes e ter aceitado
sete outros parágrafos166.
Estes artigos constitucionais, aos quais se devem
acrescentar os que definem os quadros gerais e os
objectivos do sistema económico167, consagram a vitória da
esquerda menos moderada, dos comunistas à ala
esquerda dos socialistas. O mais inesperado é o voto
favorável do PPD a todos os artigos e parágrafos. Poucos
meses depois, este partido criticará as leis, a reforma
agrária e o próprio articulado da Constituição.
Mais tarde, a partir de Abril de 1976, a Constituição será
a grande bandeira do PC. Nela encontra o partido
argumento legal para algumas das suas teses mais
importantes: propriedade estatal da terra expropriada,
nacionalização de todas as grandes empresas capitalistas
e latifúndios e apoio às unidades colectivas de produção.
Outras matérias, como os direitos de reserva, as
indemnizações e a distribuição de terras aos pequenos
agricultores, porque desfavoráveis às teses, não são
invocadas.
Tanto no pormenor como na «filosofia», a Constituição
representa em grande parte o triunfo da acção prévia do
PC: consolida e legaliza as suas conquistas. Mais ainda: fá-
lo com o contributo do PS e do PPD e parcialmente do CDS.
Note-se que um dos temas do capítulo agrário, o que
introduz a noção de unidade colectiva de produção, não
estava presente em nenhum projecto dos partidos e nem
sequer foi aprovado, em Novembro, aquando da votação
artigo por artigo. Muito mais tarde, em vésperas de
aprovação final global, já em comissão de redacção, a
expressão foi acrescentada a pedido de um deputado
comunista168.
Este episódio ilustra bem a evolução política dos
partidos, dos seus programas e da sua acção durante os
dois anos de revolução. Cada partido fez a experiência de
uma real evolução, tanto na prática como no pensamento,
não estando sempre uma de acordo com o outro. A
comparação entre os programas de 1974, 1975 e 1976 é
elucidativa. Todos agiram com boa dose de empirismo,
nem sempre sabendo bem que pensar, como agir ou até
onde ir. A dinâmica geral de esquerda sobrepunha-se
frequentemente à opinião e aos interesses previsíveis ou
explícitos de um partido. A esta dinâmica não faltava,
evidentemente, a intimidação. Por outro lado, a existência
de uma forte pressão extrapartidária (militares sobretudo,
mas também movimentos sociais, sindicatos e outras
instituições) obrigava os partidos a constantes revisões.
O poder militar exercia grande influência sobre os
partidos. O poder político não era o resultado do livre jogo
dos partidos ou da expressão popular. Durante um tempo,
o poder político resulta da relação com as forças armadas
e o MFA. Neste aspecto, a posição do PC foi privilegiada ao
longo de 18 meses. Assim, as influências dos militares
sobre os outros partidos, por vezes, eram apenas o
resultado das suas relações com os comunistas. Enquanto
os militares radicais dominaram o MFA e as forças
armadas, os comunistas levaram a melhor sobre os outros
partidos em quase todos os domínios: administração,
legislação, imprensa, etc. Mas, logo que os militares
moderados, certamente ajudados pelos de direita,
derrubaram a relação de forças no seio das unidades e dos
comandos militares, o PS viu-se imediatamente elevado à
posição dominante. Com uma diferença: o seu poder não
residia exclusivamente na relação com os militares,
provinha também dos resultados eleitorais.
Apesar de ter estado «em surdina» em 1974, a questão
agrária não foi marginal na luta entre os partidos. Pelo
contrário, a partir de 1975, todo o País viveu um pouco sob
o signo da reforma agrária. Foi tópico central de
manifestações, greves, crises e mesmo actos de violência.
Todas as campanhas eleitorais se lhe referiram com
insistência. Todas as instituições significativas julgaram
necessário exprimir-se, como chegou a ser o caso da Igreja
católica, de associações culturais e profissionais. Apesar
desta larga participação e do contributo dos mais diversos
interesses, foi a relação com os militares que fez a
diferença. Apesar de os apoios populares terem
desempenhado papel de relevo, foi a aliança com a força
militar que decidiu, nos momentos mais importantes, a
evolução e as orientações que levaram a melhor. Noutras
palavras, a estratégia revelou-se mais importante e mais
eficaz do que os programas.
Os partidos eram certamente identificados com alguns
grandes valores e com algumas palavras-chave, como
«revolução socialista», «democracia» ou «socialismo em
liberdade». Mas, no essencial, o poder dependia da
estratégia. Sobre muitas das questões agrárias essenciais
(reservas, indemnizações, limites de propriedade, destino
das terras) os partidos preferiam esperar por depois,
quando a situação política estivesse resolvida. Antes disso,
o importante era a tomada de poder.
Já em fins de 1974 esta relação entre estratégia e
programas era visível. Apesar de se reclamar de um
programa vago e velho de dez anos, o PC dominava os
acontecimentos, adaptava facilmente as suas estratégias
às novas situações, fazia e desfazia alianças, deixando
sempre intacto o seu atemporal programa de 1964. O PS,
pelo contrário, em pleno período revolucionário,
encontrava tempo para redigir um programa de política
agrícola bem pormenorizado. Na prática, não tinha aliados
poderosos, não dominou os acontecimentos agrários de
1975 e limitou-se a seguir o PC e a sua reforma agrária.
Inversamente, a partir do Verão de 1975, o PS manteve o
seu programa revolucionário e complexo, mas o que lhe
permitiu ganhar «a segunda volta» foi a sua estratégia de
massas e a sua aliança com os militares moderados. A
prática politicamente moderada sobrepôs-se ao programa
ideologicamente radical.
Nos partidos conservadores ou reformistas moderados,
os programas eram mais pormenorizados do que
coerentes. Os partidos deixaram-se ir progressivamente
para a esquerda, sem se preocuparem demasiadamente
com a consistência ideológica. Primeiro a necessidade de
sobrevivência. Depois, a espera por eleições valia bem
alguns desvios programáticos. Nos seus manifestos
eleitorais e nos seus projectos de Constituição, assim como
nos seus votos na Assembleia Constituinte, propuseram e
aceitaram o que antes e mais tarde combateram
vigorosamente.
Os programas foram pois relativamente secundários e
pouco influenciaram as acções partidárias. Destinavam-se
sobretudo a mostrar ao eleitorado uma eventual
capacidade de governo e a criar uma imagem pública que
não correspondia exactamente aos projectos políticos e à
estratégia. Vencer era mais importante do que convencer.
O PC fez a revolução com um programa moderado; o PS
contrariou a revolução com um programa radical; o PSD
opôs-se ao socialismo com um programa socialista. Todos
agiram de modo diferente do que estava previsto nos
programas.

As eleições

Ao fazer o golpe de Estado, os militares prometeram


realizar eleições. Cumprem a palavra e, um ano depois,
efectuam-se as eleições constituintes. Curiosamente,
muitos dos que contribuíram significativamente para
garantir as eleições não estavam nas primeiras filas da
revolta do ano anterior.
Todos os partidos são em princípio favoráveis às eleições.
Todavia, mais interessados nas conquistas revolucionárias,
comunistas e esquerdistas não insistem muito na defesa
da realização de eleições. Os outros, dos socialistas ao
centro e à direita, depositam nelas todas as esperanças. O
PPD e forças mais à direita tentaram mesmo fazer
rapidamente não só eleições constituintes, mas também
presidenciais e legislativas.
Chegou a haver debate e afrontamento sobre a questão.
A queda do Governo Palma Carlos e a saída de Sá Carneiro
do Governo têm origem nessa polémica. A posse do
primeiro Governo de Vasco Gonçalves, em Julho de 1974,
revela bem a diferença de planos. Afirma o presidente
Spínola: «Até que o povo exprima democraticamente a sua
vontade sobre opções fundamentais que só ele deve
tomar, nenhum governo, sob pena de faltar ao seu
mandato, poderá realizar reformas de fundo que afectem
as estruturas da Nação ou o foro íntimo dos cidadãos.» Na
sua resposta, o primeiro-ministro declara «que não se pode
concluir, nem da letra nem do espírito do programa do
MFA, que não seja preciso tomar imediatamente as
medidas necessárias para acelerar o progresso económico
e social, melhorar as condições de vida do povo português
e aproximá-lo dos níveis dos outros povos europeus». Foi
este ponto de vista que levou a melhor.
Mas esta polémica não se refere apenas às reformas
económicas e sociais. Neste Verão de 1974, a questão
mais importante é a guerra em África e o futuro das
colónias. Esse é o pensamento do general Spínola quando
refere «as estruturas da Nação». Ele e alguns dos seus
apoiantes pensam que é possível separar as soluções,
desde a manutenção de certos vínculos, nuns casos, à
autonomia noutros, ou mesmo à independência noutros
ainda. Não é essa a opinião do MFA nem do PC. Não parece
ser também a do PS. E as posições equívocas de outros
partidos não denotam em todo o caso vontade de
contrariar o que acabou por ser a solução: independência
para todas as colónias antes mesmo de se estabelecer o
regime constitucional e sem prévia consulta eleitoral ou
referendária, na metrópole ou nas colónias. O Conselho de
Estado (composto por personalidades que vão da direita à
extrema-esquerda), os órgãos do MFA e das forças
armadas e o Governo (composto por militares,
independentes e três partidos) não só não se opõem como
apoiam os planos de descolonização.
O presidente Spínola perde o apoio do MFA, dos
comandos militares, dos comunistas e dos socialistas; e
nem sequer terá o de grupos e personalidades mais à
direita em quem depositava confiança. Demite-se a 29 de
Setembro. Substitui-o o general Costa Gomes, até então
chefe de estado-maior-general das forças armadas (cargo
que, curiosamente, já tinha ocupado, durante alguns
meses, sob Marcelo Caetano). Ficará em funções até à
aprovação da Constituição. Será partidário das
independências imediatas e das reformas sociais e
estruturais em profundidade; mas também das eleições,
que, à sua maneira, ajudará a garantir.
As eleições realizaram-se no último dia do prazo de um
ano que o programa do MFA tinha fixado169. Após múltiplas
vicissitudes, tinham sido marcadas para Março. O golpe e o
contragolpe de 11 de Março adiaram-nas para 25 de Abril
de 1975. Nesse espaço de tempo foram tomadas as mais
revolucionárias de todas as medidas de carácter político e
económico. Do ponto de vista da esquerda radical e
comunista, o País ficou então pronto para eleições.
A campanha desenrola-se por entre fortes tensões.
Quase não se fala de Constituição, nenhum projecto é
apresentado ao público e largamente explicitado ou
discutido. O que parece estar em causa é simplesmente o
poder político. Para uns «as liberdades», para outros «a
revolução».
Alguns dias antes da votação, o MFA recomenda o voto
branco. A manobra contraria os esforços dos partidos não
comunistas, que lutam contra a abstenção. Mas os
conselhos do MFA não são ouvidos: a participação eleitoral
é de cerca de 85%170.
Com 39%, vence o PS. O PC, o partido da revolução,
perde, obtendo apenas 12%, aos quais se poderão
acrescentar os 4% do MDP171. De todos os grupos
esquerdistas que concorrem, só a UDP consegue eleger um
deputado. As vanguardas e os extremistas são derrotados.
O total dos partidos que se opõem aos comunistas e aos
militares radicais eleva-se a quase quatro quintos do
eleitorado.
Nas regiões onde a reforma agrária está na ordem do dia,
o PC vence confortavelmente em Beja, mas é o PS que
vem à frente em todos os outros distritos, assim como,
globalmente, no que virá a ser mais tarde a Zona de
Intervenção da Reforma Agrária.
Alguns resultados das eleições para a Assembleia Constituinte —
1975

PS PPD PC CDS MDP

Total 38,6 26,3 12,4 7,5 4,1

ZIRA 41,3 8,3 32,6 3,1 5,1

Beja 35,5 5,3 39,0 2,2 5,5

Castelo Branco* 47,4 19,7 8,0 5,1 3,1

Évora 37,8 6,9 37,1 2,8 7,8

Lisboa* 45,2 7,2 30,1 1,5 5,1

Portalegre 52,4 9,9 17,5 3,9 4,5

Santarém* 47,1 9,3 24,1 3,2 4,1

Setúbal 38,1 5,7 37,8 1,6 6,0


* Nestes distritos só estão incluídos os concelhos que fazem parte da ZIRA.
Nota: Estão excluídos os partidos que obtiveram menos de 1%. Entre estes, só a UDP conseguiu
eleger um deputado (pelo distrito de Lisboa), num total de 256.

O PS vence em 42 concelhos da ZIRA, o PC em 30.


Nenhum outro partido chega em primeiro lugar em
qualquer concelho. Nos quatro distritos do Alentejo
propriamente dito, o PS e o PC elegem sete deputados
cada um, só deixando um para o PPD172. A região vota
claramente à esquerda.
O PS é o partido com distribuição eleitoral mais
equilibrada em todo o País, enquanto o PPD (no Norte) e o
PC (no Sul) tiram a sua força de regiões bem limitadas.
Para o PPD e o CDS, a região da reforma agrária representa
apenas 5% do seu eleitorado. Para o PS, cerca de 20%, o
que é outro sinal de equilíbrio, dado que é mais ou menos
essa a parte da população nacional. Para o PC, a região é
uma espécie de santuário: quase 40% dos seus votos vêm
daqui.
No PS e no PPD, depois das eleições, é a euforia. O
combate tem agora argumentos sólidos e qualificáveis.
Publicamente, o PS parece investido do título de líder da
oposição aos comunistas, além de ser o primeiro partido
nacional.
Mas a luta continuará difícil. MFA e comunistas reservam
à vitória dos socialistas o tratamento do que se não gosta:
mostrar que a ignoram. Advertem rapidamente a
população de que as eleições não têm importância política,
dado que se trata apenas de redigir uma Constituição.
Quando a Assembleia inicia as suas sessões, tentam
impedir que se reserve uma hora, «antes da ordem do
dia», para discutir assuntos de interesse geral. Não
prescindindo desta tribuna, o PS e o PPD aprovam-na com
forte maioria173. Os comunistas e o MDP, não podendo
impedir a votação, decidem não estar presentes durante a
hora de discussão prévia. Mas depois do 25 de Novembro,
tendo mudado a relação de forças, participarão também.
Logo a seguir às eleições, todos os motivos e todos os
meios foram bons para mostrar que o poder não residia
nas urnas: conflitos sindicais, incidentes do 1.º de Maio,
manifestações, saneamentos, legislação e medidas do
Governo. Para o PC, «em Portugal, é uma revolução que
está em marcha e as forças revolucionárias não aceitarão
que as suas vitórias sejam contestadas por aqueles que
obtiveram votos afirmando que estavam com a revolução
e que reivindicam agora os mesmos votos contra a
revolução»174. O destinatário da mensagem é o PS; o seu
autor, o secretário-geral do PC, que dirá ainda mais tarde:
«Querer pôr em causa a reforma agrária por intermédio
das eleições não é querer assegurar um regime
democrático.»175
Apesar de tudo, os resultados eleitorais não são
esquecidos. Lentamente, transformam-se na base mais
segura da legitimidade. Quando o PS e o PPD deixam o
Governo, em Julho, o picaresco da situação não escapa a
ninguém: o PC, o MDP e o MFA formam um governo que,
em eleições constituintes, teve menos de 20% dos votos e
menos de 50 deputados num total de 256.
A campanha de massas que o PS conduz, a revolta que
se alarga a todo o País e uma primeira reviravolta militar
levam ao sexto Governo provisório e ao apagamento do
general Vasco Gonçalves, símbolo indiscutível do poder
militar e da revolução176. Mas nem tudo muda, nem tudo
ficará esclarecido. Serão necessários novos afrontamentos,
até à derrota militar dos radicais em 25 de Novembro,
seguida de saneamentos militares e civis, para que se
estabeleça uma nova relação de poderes.
Da parte de alguns, o desejo de desforra, política ou
física, é evidente. Continuam a cometer-se atentados
contra as sedes do PC e, na direita, há quem proponha a
ilegalização dos comunistas. O PPD só exige a sua saída do
Governo. O PS e os militares moderados, mas de esquerda,
exigem a sua permanência. Um ministro comunista ficará
no Governo.
No Alentejo, os comunistas passam à defensiva. A
agitação prossegue, há conflitos um pouco por todo o lado,
mas a iniciativa pertence agora aos simpatizantes do PS,
do PPD e da direita. Todos se sentem agora livres de
defender os seus pontos de vista e os seus interesses, o
que fazem por vezes com vivacidade.
Em Janeiro de 1976 efectuam-se difíceis negociações
entre o PS, o PPD e o PC, sob a égide do presidente da
República. Chega-se a um acordo sobre a questão agrária
que adia os principais problemas, mas que define um
consenso relativo sobre alguns temas urgentes177. As
consequências são significativas. Os agricultores e os
proprietários diminuem a sua pressão. Os incidentes
violentos são agora raros. As ocupações de terras, em
queda acelerada desde Dezembro, cessam. Algumas
centenas de seareiros vêem os seus problemas resolvidos
ao ser-lhes entregue terra para as culturas de Primavera.
A plataforma interpartidária sobre a reforma agrária
previa com efeito que se fizessem esforços para instalar
agricultores sem terra. Outras cláusulas importantes eram:
a demarcação da Zona de Intervenção da Reforma Agrária;
a devolução de terras indevidamente ocupadas178; a
concessão de reservas aos antigos proprietários e também
aos antigos rendeiros. No Ministério da Agricultura tentam
agora corrigir-se erros, excessos e abusos. Deste acordo,
uma conclusão será retirada: os princípios da reforma
agrária não foram contestados, mas tão-só alguns dos
seus mecanismos, dos métodos seguidos ou dos desvios
praticados. As leis de 1975 mantêm-se em vigor. O
essencial foi, uma vez mais, adiado179.
Neste primeiro trimestre de 1976, o importante são as
eleições legislativas. Realizam-se a 25 de Abril, semanas
depois de se ter aprovado a Constituição. A campanha
eleitoral volta a desenrolar-se sem grandes incidentes. O
MDP desiste, o que favorece o PC. O CDS está mais activo,
desde que tem liberdade de movimentos.
O PS volta a ganhar, apesar de perder três pontos. Será
ele a formar governo, como aliás era previsível. O PPD
consolida o seu segundo lugar, enquanto o CDS se torna o
terceiro partido, ultrapassando o PC. Este parece ganhar
um ponto, mas de facto perde os três do MDP, que não
recupera.
Na ZIRA, o PC é agora o primeiro partido, enquanto o PS
perde seis pontos. O PPD e o CDS progridem ambos,
aumentando os seus votos quase 50%.
Alguns resultados das eleições para a Assembleia
Constituinte — 1976

PS PPD CDS PC
Total 34,9 24,4 16,0 14,4

ZIRA 35,0 10,4 6,8 37,9

Beja 31,8 8,2 4,2 45,3

Castelo Branco* 40,2 21,1 18,0 6,9

Évora 30,3 9,2 8,0 44,3

Lisboa* 40,3 8,7 4,8 35,6

Portalegre 42,0 10,1 13,9 23,1

Santarém* 42,3 13,0 7,1 26,8

Setúbal 32,1 8,4 4,4 45,3


* Nestes distritos só estão incluídos os concelhos que fazem parte da ZIRA.
Ver nota do quadro anterior.

Esta segunda eleição parece consagrar a estabilidade.


Em números absolutos, na zona de reforma agrária, o PC
perde 16 000 votos e o PS 78 000; o CDS e o PPD ganham
cerca de 60 000. Isto num eleitorado de aproximadamente
900 000. Apesar da revolução e das circunstâncias
diferentes das duas eleições, o eleitorado prefere a
fidelidade.
Já as eleições presidenciais, que se realizam dois meses
depois, trazem novidades e surpresas. A vitória do general
Ramalho Eanes era previsível, tendo embora obtido bem
menos votos (61%) do que a soma dos três partidos que o
apoiavam (76%). O primeiro-ministro cessante, o almirante
Pinheiro de Azevedo, sozinho e doente, alcança os 14%.
Octávio Pato, destacado dirigente do PC, fica em último
lugar, com 7,5%, menos de metade do eleitorado
comunista. A grande surpresa é o segundo lugar de Otelo
Saraiva de Carvalho, uma das glórias da revolução de
Abril, apoiado apenas por grupos esquerdistas, mas que
obtém 16%. Na zona da reforma agrária, Ramalho Eanes
chega sempre em primeiro, seguido de Otelo, com
excepção de Setúbal, onde a ordem é inversa. Octávio Pato
não consegue melhor, mesmo em pleno Alentejo, do que o
terceiro lugar.

As conquistas e a derrota do Partido Comunista

Em 1974 e 1975, o PC é o principal animador da reforma


agrária e da política que lhe está ligada, tanto no poder
central como «no terreno». A sua vitória é rápida e fácil, as
suas conquistas são consideráveis. Mas a oposição que vai
suscitar é generalizada e a sua derrota será igualmente
rápida.
Durante dois anos, o PC conseguiu orientar grande parte
das transformações sociais, económicas e políticas, seja
discretamente, através de aliados e influências, seja
abertamente, de maneira autónoma e visível. Exerceu uma
influência preponderante em várias realizações capitais,
como sejam a descolonização e a nacionalização dos
grupos e sectores económicos. Foi o primeiro responsável
pela reforma agrária de 1975. O seu peso político e a sua
eficácia, durante mais de um ano, não são proporcionais à
sua dimensão eleitoral. Agindo através das instituições,
civis ou militares, conseguiu amplificar a sua voz e a sua
força.
No Sul, a sua influência é imensa. Os sindicatos rurais e
as unidades colectivas são simplesmente a sua obra, as
suas criaturas. O seu papel é preponderante nas
autarquias, nos serviços do Ministério da Agricultura,
nalgumas unidades militares, nos governos civis e mesmo,
até 1976, nas ligas de pequenos agricultores. Tem ainda
influência, embora menor, nos grémios, nas cooperativas
de serviços e nas empresas intervencionadas.
Toda esta construção foi rápida, tanto quanto veio a ser a
queda. Apesar de regionalmente poderoso, a fraqueza
nacional do PC, depois de um período de grande influência
sobre as forças armadas, cedo se tornará evidente. Por isso
mesmo, necessitou de uma grande audácia militante, de
uma estratégia bem definida (ou pelo menos mais
determinada do que definida), da ausência de adversário à
altura e da protecção cúmplice das forças armadas para
que a sua força nacionalmente bem minoritária leve a
melhor.
Em vésperas da revolução, a sua organização está
praticamente ausente da região. Um antigo funcionário,
dos tempos da clandestinidade, declara: «Desde o meio da
década de 1960 que o Alentejo deixou de ser o grande
bastião do PC e se transformou num deserto.»180 Com
efeito, a partir dessa época, após uma presença tradicional
e significativa, a organização do partido é praticamente
liquidada. As causas são a guerra colonial, a emigração, o
êxodo rural, a mecanização da agricultura e o emprego
crescente de alentejanos na construção civil e nas novas
indústrias criadas pela expansão económica dos anos 60.
De todos estes fenómenos resultaram a diminuição da
pressão da força de trabalho, a partida de muitos
trabalhadores para outras regiões, a redução do
desemprego e do subemprego e o aumento geral dos
salários. Em 1974, o partido não tem força nem
organização no Alentejo181.
Os seus militantes e simpatizantes mais activos
envelheceram, emigraram para as cidades ou para o
estrangeiro. Entretanto, um novo tipo de empresas
agrícolas e agro-industriais vinha aparecendo, onde os
assalariados eram mais bem pagos e mais bem tratados
do que nos tradicionais latifúndios. As lutas rurais tinham
tendência a desaparecer. Nos anos que precedem 1974, só
muito esporadicamente é que o Avante! publica notícias do
Alentejo. O jornal comunista especializado, O Camponês,
quase não se publica. Em 1974, a organização do partido é
composta essencialmente por velhos militantes,
localmente bem conhecidos e tendo passado várias vezes
pela prisão, mas pouco activos. Uns são comerciantes,
outros reformados.
Durante as primeiras semanas que se seguem ao 25 de
Abril, o PC tem algumas dificuldades em aparecer
publicamente de modo autónomo. A sua tendência é para
se apresentar flanqueado por outros partidos. É uma
medida de defesa e precaução, antes de ter mais
esclarecimentos sobre as intenções militares, mas trata-se
também da necessidade de ganhar algum tempo para
«acordar» a organização e trazer para o Alentejo militantes
das zonas urbanas e industriais, antigos assalariados rurais
agora na construção e até antigos emigrantes. A abertura
de centros de trabalho na região vai seguir um ritmo mais
lento do que nas áreas industriais e urbanas.
A ascensão do PC no Alentejo não se deve a uma prévia
organização forte, mas sim a uma perene memória
colectiva e a um indiscutível trunfo: a ausência de outros
partidos.
Em termos nacionais, a sua implantação situa-se
historicamente num ponto fraco, mas a sua organização,
realidade bem diferente, mantém-se a única experiente, a
mais antiga e a mais rodada. Tem apoios externos,
nomeadamente materiais, que lhe permitem encarar com
à-vontade as primeiras tarefas. Tem umas poucas dezenas
de funcionários com experiência e fidelidade; uma
ideologia tipificada, que não é preciso improvisar; um
programa conhecido, capaz de influenciar os militares de
esquerda; e um número razoável de antigos militantes e
simpatizantes cujas memória e disponibilidade podem ser
estimuladas em momentos gloriosos.
A sua estratégia, fiel a uma parte do legado leninista,
revelou-se adequada durante o primeiro período:
democrática à partida, vai evoluindo para o socialismo e
depois para o comunismo, tornando-se revolucionária à
medida que o partido vai acedendo ao poder e vai
conquistando posições importantes no Estado e nas forças
armadas. Mais do que o movimento de massas, é a
ascensão no poder institucional e militar que radicaliza a
sua estratégia.
Este processo foi-lhe facilitado pela fraqueza inicial dos
seus adversários e também por se ter apresentado, com
algum sucesso, como o herdeiro do antifascismo. Única
organização que durou tanto quanto a ditadura, tem
pergaminhos indiscutíveis. Sublinha constantemente o
facto de ter, entre as suas fileiras, as principais vítimas da
repressão (mortos, presos, torturados), provando, tantas
vezes quantas forem necessárias, que é «o mais antigo»,
«o mais consequente» e «o único partido organizado
durante mais de 40 anos».
Com o seu aparelho de funcionários e alguma
experiência «unitária», vai poder dedicar-se, muito antes
de todos os outros, às organizações socioprofissionais e
unitárias ou sectoriais, que aliás cria: sindicatos e
Intersindical, o MDP, o Movimento Democrático das
Mulheres, as ligas de pequenos agricultores, o Conselho
para a Paz e outras associações. Não se trata de táctica
original: é, pelo contrário, a mais ortodoxa das tradições
comunistas. Acontece que foi posta em prática de maneira
oportuna e particularmente hábil; que durante muitos
meses não teve rival; e que teve, nos militares, um aliado
excepcional.
Em vários domínios soube suscitar apoios populares
consideráveis, para além da mobilização de classe. Foi o
que aconteceu muito em especial com a reforma agrária,
para a qual conseguiu recrutar apoios individuais e
colectivos, organizados ou espontâneos, nas mais variadas
camadas sociais, nomeadamente nas classes médias
urbanas e com especial relevo na comunicação social.
No seu trabalho político age por etapas, mais atento à
estratégia do que aos programas complexos e exaustivos.
Vai ao encontro das necessidades sentidas, para depois ir
criando e desenvolvendo novas aspirações. Primeiro, os
contratos colectivos de trabalho, logo seguidos da
penalização dos proprietários que mantinham terras
incultas ou subaproveitadas. Depois, a luta contra o
desemprego e a garantia de emprego, precedendo a
distribuição forçada de trabalhadores pelas herdades.
Finalmente, a expropriação das terras e das empresas,
incluindo gados e equipamentos, qualquer que seja o
estado de aproveitamento. Uma boa parte dos
assalariados rurais da região seguem ou exprimem o
conteúdo destas lutas e identificam-se com o PC. Este não
se limita obviamente às palavras de ordem: assegura a
sua realização prática, apoia e orienta as ocupações
(chegando mesmo a planeá-las regionalmente), organiza
as unidades colectivas e garante o salário dos seus
membros.
Mas, acima de tudo, a primeira condição para o seu
sucesso é a sua aliança com o MFA. A palavra de ordem
comunista «aliança Povo-MFA» foi retomada pelos
militares, pelo Governo e até pelos socialistas. O espírito
«unitário» e a despolitização semântica permitiram uma
razoável intimidade entre o PC e o MFA. Este último, no
comando das forças armadas, garantiu o controlo sobre a
força e a repressão, nos momentos de maior radicalismo
do poder político.
O principal interesse comum ao MFA e ao PC, a
descolonização, deu lugar a uma intensa colaboração,
complexa e arriscada, que, depois de criada confiança
entre os dois parceiros, se alargou à política interna.
«Aprofundar a revolução» antes das eleições e da
institucionalização da democracia representativa foi outro
ponto de acordo entre as estratégias comunista e militar
que conduziu ao adiamento do regime constitucional e ao
prolongamento do poder provisório.
O destino reservado ao «Programa de política social e
económica» («programa Melo Antunes») é uma boa
ilustração dos esforços despendidos contra a estabilidade
e contra uma relativa fixação das relações de força. Este
plano propunha-se criar um certo consenso sobre as
políticas imediatas, incluindo mesmo algumas orientações
moderadas para o futuro. Aprovado em Janeiro, foi
imediatamente criticado pelo MFA nas suas publicações,
assim como pelo PC, apesar de ambos lhe terem dado
apoio. Esquecido pelo Governo, afastado pelos militares, é
pura e simplesmente varrido da cena pelos
acontecimentos de Março. Este episódio interessa
particularmente à questão agrária. Com efeito, no
programa estava presente pela primeira vez uma
concepção de reforma agrária, embora numa versão
politicamente mais equilibrada. Ora, a aceleração
revolucionária que se segue ao 11 de Março tem muito
especial impacte na agricultura: o secretário de Estado é
despedido, é criado um Ministério e nomeado alguém de
muito mais à esquerda; é aprovado um programa de
transição para o socialismo, do qual faz parte um
programa de reforma agrária bem mais radical do que o
anterior e coincidente com as teses comunistas sobre o
sector182. Dois meses mais tarde, quando se aprontam as
leis de expropriação e de nacionalização, novamente o PC
se preocupa com o grau de institucionalização da política
agrária183. Ao primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, os
comunistas expõem clara e confidencialmente o seu ponto
de vista: «É de toda a justiça que não haja compromissos
com as classes exploradoras a propósito das colheitas e
das indemnizações; e sobretudo que não se traduzam
esses compromissos em leis.»184
A experiência política dos comunistas é-lhes muitíssimo
útil. Experiência organizativa e ideológica; experiência
portuguesa, mas também experiência alheia, de outros
partidos comunistas, de outros tempos e outras latitudes.
Perante grupos sem organização, sem teoria de partido,
sem experiência colectiva e com uma doutrina nascente e
balbuciante, a sua superioridade é flagrante. No PC, os
passos iniciais parecem traduzir na prática uma teoria
geral das tarefas e das etapas da revolução: é a velha
ideia leninista da transformação da luta democrática em
luta socialista, acompanhada pela mutação progressiva
das alianças democráticas em movimento dirigido pelas
vanguardas comunistas. O secretário-geral dos comunistas
não escondeu nunca a sua fidelidade leninista e nunca
deixou de exprimir a sua ortodoxia: «A conquista do poder
só será possível se o Estado fascista começar a ser
destruído antes da conquista do poder, no decurso da
revolução democrática.»185
Não é certamente junto das massas que estes factores
revelam toda a sua eficácia. Com efeito, o PC chegou
mesmo, a partir de certo momento, a mostrar uma real
incapacidade para ultrapassar níveis relativamente baixos
de adesão e de eleitorado. É junto dos quadros políticos,
dos responsáveis militantes e sindicalistas que tais
factores se mostraram convincentes. E sobretudo junto dos
militares. Estes não tinham a preparação política nem a
formação cultural suficientes, mas tinham a
responsabilidade do poder; tinham um mandato, sem a
capacidade técnica de o cumprir. A doutrina, a técnica e a
experiência dos comunistas, simples, dogmáticas e
sistematizadas, foram os primeiros instrumentos postos ao
seu alcance.
A criatividade teórica do PC é inexistente ou pobre, mas
a sua habilidade táctica, a sua capacidade de adaptação e
a percepção das relações de força valeram-lhe inegáveis
sucessos. Com grande sentido da oportunidade, tira
partido da fraqueza política e orgânica das classes
patronais e proprietárias, tornadas órfãs sem o Estado de
Salazar. Aproveita a inexistência de uma classe média
rural. Adapta-se bem ao baixo nível de instrução e de
formação da população em geral. Compreende
rapidamente que os primeiros meses de poder provisório
são decisivos e que importava não dar tempo aos outros
partidos e grupos para se organizarem.
No caso particular da reforma agrária, o PC aproveitou
bem as cumplicidades e a cobertura dos outros partidos,
em especial do PS. Nunca quis a sua colaboração efectiva
e partidária (até porque com isso poderia reforçar o partido
rival), mas serviu-se sempre da sua caução, enquanto o
não denunciou como partido não empenhado na revolução.
De uma maneira geral, o PC contou com uma vaga de
adesões à ideia da reforma agrária e da sua necessidade.
O PPD colaborou, assinou os decretos e votou os artigos da
Constituição. O CDS pareceu menos generoso, mas votou,
apesar de tudo, a maioria dos parágrafos constitucionais.
O PS não só apoiou como esteve frequentemente na
primeira linha. Pelo seu lado, o PC acreditava na reforma
agrária em geral (o que nem sempre é o caso dos outros
partidos) e naquela em particular. Durante um tempo,
conseguiu fazer coincidir este seu plano com o ambiente
geral. No início de 1975, com raras excepções individuais,
quase ninguém ousa exprimir-se contra o princípio da
reforma agrária, nem sequer os proprietários186. A isto deve
acrescentar-se a inexistência de projectos alternativos de
reforma ou de reorganização da agricultura, sejam eles
capitalistas, cooperativos ou socialistas. Ao PC, que tem
um plano, meios e poder, só lhe resta impedir que os
outros tenham tempo de também os ter.
Também é verdade que o projecto agrário do PC não foi
sempre o mesmo. Há décadas que reclama a reforma
agrária, mas não o fez sempre nos mesmos termos187. Nos
anos 50, o partido preconizava a distribuição das terras
expropriadas em explorações familiares. Na década
seguinte, a divisão das terras mantinha-se como o
objectivo principal, com vista «à exploração individual ou
em cooperativa», mas outra modalidade era encarada, a
da «exploração directa pelo Estado»188. Ora, desde 1975, o
partido apenas defende e aplica as soluções do
colectivismo de Estado, excluindo todas as variantes
individuais, familiares e camponesas. Mais ainda, colabora
na ocupação de explorações de pequenos agricultores, ou
apoia as unidades colectivas na sua recusa de continuar a
permitir que seareiros tenham terras nas herdades
ocupadas. O modelo da UCP, espécie de kolkhoz corrigido
pela prática salarial do sovkhoz, impõe-se.
Houve assim mudança quanto ao destino das terras e ao
seu uso social. Mas houve fidelidade quanto à ideia
essencial: a da expropriação dos latifúndios e das
empresas capitalistas. Aproveitando bem as
oportunidades, tendo em conta as características próprias
do proletariado alentejano, o partido deu finalmente a
prioridade, ou, antes, a exclusividade, ao colectivismo,
modelo mais aceitável ideologicamente, mais próximo da
experiência soviética de que o partido se reclama
frequentemente189.
Esta adaptação programática é um bom exemplo do
carácter empirista da estratégia dos comunistas que
concede um importante lugar à noção de etapas ou de
fases, no decurso das quais vão corrigindo ou rectificando.
Com uma constante: os fins últimos, os princípios
fundamentais, os objectivos, não são alteráveis, enquanto
os meios e os caminhos podem variar. A cada passo, vão o
mais longe possível, vão até onde podem ir, até onde os
deixam ir. O importante é a relação de forças, sempre
mutável em teoria. Eis porque é útil impedir que as
relações de poder se fixem, que as instituições estabilizem.
Eis porque era indispensável prolongar e aprofundar a crise
política e o vazio de poder que sucedem ao golpe de
Estado, a fim de tomarem os contornos de crise social e
económica. Crise geral, multiplicação dos centros de
decisão e aparente vazio de poder: eis as condições
favoráveis para a conquista de poder e de poderes e de
posições nas instituições. Para isso, usando apenas de
legitimidade revolucionária, dispensado da legalidade
democrática, o PC está mais bem preparado do que
qualquer outro.
Estando os fins últimos definidos, a estratégia é mais
importante do que os programas e do que os objectivos
intermédios. São os sucessos estratégicos que definem os
objectivos seguintes. Por exemplo, as unidades colectivas
de produção não são, de início, objectivos que seja preciso
atingir a qualquer preço. Foram antes as vitórias
estratégicas, fáceis e generalizadas, que as tornaram
possíveis. Tal como a aliança com os militares,
prudentemente esboçada no começo, abertamente
praticada e propagandeada depois. É provável que os
dirigentes do PC não tenham, à partida, imaginado tanto
sucesso. Mas a facilidade das conquistas acelerou o ritmo
e alargou o âmbito.
Toda a estratégia tem um fim último e todo o partido
político tem uma questão a considerar, acima de todas: o
poder. Assumidamente ou não, é a sua razão de ser. Um
partido comunista tem, além disso, uma vocação
totalizante que constitui o seu principal carácter. Será a
vocação que explica a estratégia? Saber se, a cada
momento, nesse momento, o partido pretende todo o
poder ou somente partilhá-lo, é pelo menos uma questão
especulativa. Na prática, é indiferente que a resposta seja
negativa ou positiva. O objectivo final é todo o poder, para
sempre, tendo como parâmetro a identificação entre
partido e Estado, tal como está claramente explícito em
toda a literatura partidária e na teoria. O PC não quer
exercer o poder, quer conquistá-lo. Em consequência, a
cada momento, mesmo se os objectivos são limitados e
graduais, a mobilização ideológica e a orientação da acção
fazem-se sob o signo da totalidade, da missão histórica e
da sua inevitabilidade. Querendo todo o poder, o PC quer
também os poderes. Ao conquistar poderes, o PC constrói
o poder. A reforma agrária é uma conquista e uma
transformação que só toma o seu verdadeiro sentido
quando os seus autores exercerem o poder. Se o perderem,
todas as conquistas correrão perigo. Inversamente, a
preservação das conquistas permitirá voltar à carga.
Há todavia uma característica do comportamento do PC
(e dos militares) que merece atenção e permite pensar
que, na prática e nos seus cálculos imediatos, o partido
não procura todo o poder imediatamente, ou pelo menos
não julga que tal seja possível. Com efeito, apesar das
tentações, não exerce terror revolucionário: raptos, reféns,
prisões maciças, execuções e outros actos indispensáveis à
revolução. A intimidação não falta: prisões nocturnas,
mandados de captura assinados em branco, buscas a
domicílio, etc. No entanto, a fronteira do terror apenas foi
aflorada ou ligeiramente ultrapassada190.
Apesar da violência esporádica, a intimidação não
degenerou em terror. Viveu-se um tempo de despotismo
legal191. Aliás, historicamente, os movimentos sociais
tomam raramente a iniciativa de operações violentas.
Estas surgem, em geral, como reacção contra a força
organizada das polícias, dos militares ou do aparelho de
Estado, qualquer que seja a sua ideologia. Ora, em 1975,
as polícias estão neutralizadas e desarmadas, enquanto as
forças militares estão passivas ou do lado dos
revolucionários, factos que talvez tenham contribuído para
evitar a violência.
Por outro lado, a conquista do poder absoluto teria
igualmente implicado a demonstração dos meios
adequados e a realização das operações técnicas típicas e
necessárias aos golpes de Estado: são, além da desordem,
o controlo e o domínio dos pontos estratégicos das
sociedades modernas, tais como as centrais eléctricas, os
caminhos-de-ferro, os portos, os telefones, os arsenais e
depósitos de munições, os nós rodoviários, etc. Houve
aproximações e tentativas foram feitas que pareciam
ensaios, mas a mecânica geral não foi desencadeada, nem
sequer no 25 de Novembro de 1975 (altura em que, aliás,
as dificuldades surgidas entre o PC e largos sectores
esquerdistas do MFA tornavam improvável o golpe, ou pelo
menos de resultados muito duvidosos). Espera, fraqueza
ou cálculo? Interrogar a história, neste caso, não leva
muito longe.
De todas as maneiras, múltiplos objectivos
intermediários foram atingidos, vários poderes foram
conquistados. Entre aqueles e estes, muitos de primeira
importância, como por exemplo a descolonização.
Interessado no fim último, o PC não deixa de estar
interessado nos meios e nos objectivos intermédios. A
revolução é o seu interesse, mas a democracia é-lhe útil,
mesmo indispensável à sua acção. Eis porque em vários
momentos mostrou ter um pé na insurreição, outro na
legalidade. Eis porque, a 25 de Novembro, saiu a tempo de
um caminho perigoso e foi poupado. Eis, finalmente,
porque, tendo perdido nesse dia, se mantém no Governo
até à aprovação da Constituição. Com efeito, a sua derrota
foi apenas parcial.
Que perdeu o PC? O predomínio no poder político, no
Governo e na administração; a sua posição de interlocutor
privilegiado das forças armadas e de aliado do MFA; a sua
capacidade de orientar tanto a política geral como um bom
número de acções particulares. Perdendo o seu acesso ao
poder central, perdeu a sua posição determinante em
muitos sectores e regiões. As suas políticas foram postas
em causa, nomeadamente a intervenção do Estado, a
pressão sobre as empresas privadas, a expropriação dos
meios de produção, a promoção de um sindicato único e a
estatização da comunicação social. Muitos dos seus
militantes, colocados oportunamente em instituições,
organismos e serviços públicos, são substituídos ou apenas
manterão posições subalternas.
Que conservou o PC? As suas estruturas partidárias,
organizadas e desenvolvidas como nunca antes na sua
história. A sua influência sobre um certo número de
organizações que criou, especialmente no mundo sindical.
Um eleitorado oscilando entre 14% e 20%. Notáveis
posições em várias dezenas de autarquias do Alentejo e da
cintura industrial de Lisboa. Algumas disposições
constitucionais relativas à organização social e económica,
como as nacionalizações e a reforma agrária. Sobretudo a
reforma agrária. Neste caso, com efeito, a sua influência
exerce-se directamente, por intermédio dos seus sindicatos
e das suas unidades colectivas de produção, não através
do Estado. Em 1976, isto representava um importante
património de cerca de 1 milhão de hectares, uma
significativa produção de bens, interessantes recursos e
úteis empregos192.
O espólio não é magro. Todavia, comparado com a
capacidade geral que o PC teve antes de determinar a
marcha dos acontecimentos, as perdas são imensas. Tanto
mais que, reduzido a um eleitorado relativamente fraco e
por todos remetido à oposição, não interessa aos restantes
partidos para uma eventual aliança. Os seus adversários
vão tentar, uns, restaurar a ordem anterior; outros,
reformar e reconverter as suas conquistas; outros, ainda,
passar por cima, fazer novo. Neste contexto, o PC fica na
defensiva. A defesa da Constituição e do statu quo será, a
partir de 1976, a sua prioridade.
Que acontecimentos, que forças superiores, travaram a
revolução em tão pouco tempo e com a mesma relativa
facilidade com que tinha sido feita? O isolamento do PC e
do MFA é uma primeira explicação. Gradualmente
começaram a ameaçar, em vez de convencer, dividiam em
vez de unir. Em vez de alargar, reduziam a base de apoio,
de que resultava uma típica «fuga» para a frente, no verbo
e na acção. Estreitavam-se as vias da revolução e
limitavam-se às da revolução socialista e da ideologia
proletária. A vontade de evitar os equilíbrios sociais e de
impor o modelo colectivista criava cada vez mais inimigos.
O exercício do poder conduzia inevitavelmente a uma
limitação sensível das liberdades, talvez mesmo à sua
abolição, isto num país que tinha vivido mais de quatro
décadas em regime autocrático. Havia de novo presos
políticos, as liberdades de expressão e de associação já
não estavam inteiramente garantidas. A partir de certa
altura, já não eram só capitalistas e proprietários que viam
comprometidos os seus interesses e as suas crenças, eram
também trabalhadores, camponeses, técnicos e em geral
as classes médias. Os que perderiam com a revolução
tornavam-se mais numerosos do que os que poderiam
ganhar algo. Passado o período de intimidação e receio, a
adesão aos partidos não comunistas, em particular ao PS,
crescia dia após dia. A luta pelas liberdades foi o primeiro
obstáculo contra a revolução e o principal responsável pela
queda do PC e do MFA.
O PS tomou a cabeça da luta anti-revolucionária, sob o
signo da defesa das liberdades, mas outros grupos se
associaram, provenientes de todas as classes e de todas
as regiões. Os camponeses do Norte e do Centro sentiram
bem que não se tratava só, ou já não se tratava, de uma
luta entre ricos e pobres: também as suas terras e a sua
segurança (bem relativa, mas talvez superior à incerteza)
corriam perigo. Os meios religiosos, de início passivos ou
silenciosos, movimentaram-se e contribuíram certamente
para a mobilização das energias anti-revolucionárias193.
Sobre a reforma agrária, em particular, exprimiu-se a
Igreja com firmeza, considerando as ocupações
«selvagens» e «à margem da lei», ao «serviço da
especulação partidária»194.
Quase todos os partidos políticos, incluindo o PS (o maior
partido da esquerda…), lutaram contra esta revolução. No
combate encontravam-se trabalhadores e agricultores em
grande número, o que lhe conferia carácter popular e
nacional. As eleições de 1975 foram alfaias para o PC e
para o MFA: todos se contaram e os que eram contra
aquela revolução ultrapassavam os 80%. É verdade que os
revolucionários são geralmente minoritários e que, se não
podem evitar a prova das urnas, não será isso que os fará
desviar do seu caminho. Mas aqui a diferença era
excessiva. Mesmo entre os trabalhadores alentejanos,
múltiplos conflitos e peripécias revelavam o crescimento
de divergências e o desenvolvimento da oposição.
Camponeses que ficaram sem terra, pois tinham sido
ocupados ou impedidos de fazer searas nas UCP;
trabalhadores que, por razões diversas, preferiam o
emprego nas empresas privadas; trabalhadores que,
depois de terem aderido, quiseram ou foram forçados a
abandonar as UCP: também os assalariados abriam uma
frente contra a reforma agrária do PC.
A ruptura com os pequenos agricultores alentejanos,
proprietários, rendeiros, seareiros e mesmo alugadores de
máquinas foi um dos principais falhanços do PC que se
virou contra ele próprio. Ameaçados, banidos e sem ter
recebido reais benefícios, aqueles que a princípio tinham
aderido ao movimento de reforma agrária separaram-se
ruidosamente. Constituíram a primeira massa humana que
se opôs à reforma agrária e que se revoltou. Com os seus
iguais do Norte e do Centro, formaram a base social sobre
a qual a CAP cresceu e a partir da qual animou grandes
movimentos de massas. Foram eles um dos mais
importantes factores de legitimação dos argumentos dos
proprietários.
A ruptura com os militares moderados, incluindo de
esquerda democrática, e o regresso à cena política e
nacional do «exército» regular, contra a noção
revolucionária de «movimento», foram outros factores
singulares decisivos. Depois das eleições de 1975 e
sobretudo desde o Verão, o renascimento das forças
armadas vinha prosseguindo mais ou menos
secretamente. A vitória do 25 de Novembro, fácil do ponto
de vista militar, apesar das dificuldades políticas, marcou o
momento em que as forças armadas levaram a melhor
sobre o MFA.
Esta reviravolta militar, apoiada pelo PS, pelo PPD e por
outros grupos, foi essencialmente inspirada por razões
políticas de ordem geral, a começar pela questão das
liberdades. A reforma agrária não foi seguramente o seu
primeiro fundamento. Mas os contactos entre socialistas,
oficiais, «populares democráticos» e agricultores eram
estreitos e frequentes. Aliás, o 25 de Novembro começou a
24, em Rio Maior e noutras localidades rurais, nas
barragens de estrada organizadas por agricultores.

134 Cf. António Barreto e Maria Paula Vidal, Os Partidos Políticos e a Reforma
Agrária, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1980.

135 Existiam outros pequenos grupos, antes de 1974, mas não prosseguiram
actividades com os mesmos nomes ou dirigentes.

136 Até o Partido Popular Monárquico «se integra no MDP e apoia sem reservas
o Programa do Movimento das Forças Armadas», in O Sorraia, 22/6/1974.

137 Os partidos mantêm algum segredo e um certo mistério relativamente ao


número de militantes. Como alguns dados divulgados são frequentemente
fantasistas, mesmo os valores aqui referidos devem ser olhados com cuidado.
Durante a campanha eleitoral de 1976, tanto o PS como o PC reivindicavam,
cada um, mais de 100 000 militantes inscritos; o PPD, um pouco menos.

138 O maior número de informações públicas e disponíveis diz respeito ao PC.


Este partido publicou regularmente, nos seus órgãos de imprensa, dados e
notícias sobre a abertura de sedes e «centros de trabalho». Os outros partidos,
além de serem de natureza diferente, abriram menos sedes e informaram
menos sobre estes aspectos da organização.

139 Por exemplo em Beja, Moura, Alter do Chão, Évora e Serpa. Cf. Diário do
Alentejo de 7/5/1974 a 30/5/1974.

140 Beja (1/6/1974), Arraiolos (7/6/1974), Portel (12/6/1974), Cuba (20/6/1974),


Alvalade do Sado (29/6/1974), Alandroal (2/7/1974), Aljustrel (12/7/1974), Castro
Verde (12/7/1974), Montargil (21/8/1974) e muitas outras. Cf. Diário do Alentejo
nas datas referidas.

141 Montemor, Évora, Santarém, Elvas, Portalegre e Setúbal. Cf. Teresa Almada,
Diário da Reforma Agrária, Lisboa, 1984.

142 Estes 126 estão assim distribuídos: Beja, 23; Castelo Branco, 2; Évora, 32;
Faro, 7; Lisboa, 4 (somente em zonas rurais); Portalegre, 15; Santarém, 10;
Setúbal, 33 (incluindo as sedes urbanas). Acrescentaram-se as sedes distritais.
Fontes: O Militante, Avante! e Diário do Alentejo.

143 Beja, 30; Castelo Branco, 10; Évora, 9; Lisboa, 9; Portalegre, 10; Santarém,
11; Setúbal, 29 (incluindo as sedes urbanas). Cf. as fontes da nota anterior.

144 O Militante, Setembro e Novembro de 1975.

145 Cf. Relatório do Comité Central ao VIII Congresso, Lisboa, 1977.

146 Diário do Alentejo, 1/7/1974 e 2/7/1974; O Povo Livre, 20/8/1974 e


3/9/1974; O Sorraia, 13/7/1974; e Diário do Sul, 23/10/1974.

147 Diário do Alentejo, 8/6/1974 e 22/7/1974; Diário do Sul, 8/1/1975; e O


Sorraia, 12/8/1974.

148 Diário do Alentejo, 22/5/1974, 6/6/1974 e 15/6/1974; Diário do Sul e Diário


do Alentejo dos meses de Julho a Setembro de 1974. Realizam-se reuniões do PS
nomeadamente em Aljustrel (6/8/1974), Beja (8/8/1974), Aldeia Nova de São
Bento (9/8/1974), Moura (20/8/1974), Ourique (21/8/1974), Alvito e Beja
(20/8/1974), Serpa e Moura (27/8/1974), Setúbal, Nisa e Monforte, em
Setembro.

149 Beja, Coruche e Alcácer do Sal, em Julho; Serpa, Castro Verde e Ourique, em
Agosto; Montemor, em Setembro; Castelo de Vide e Grândola, em Outubro;
Évora, Montemor e Beja, em Novembro; etc. Cf. Diário do Alentejo, O Sorraia,
Jornal de Alcácer e Diário do Sul.

150 Conferências de camponeses ou conferências de pequenos e médios


agricultores, ou encontros de trabalhadores agrícolas e camponeses, etc. Houve
exemplos em Santarém (5/1/1975), Castelo Branco (26/1/1975), Portalegre
(26/2/1975), Beja, Évora, etc. Cf. T. Almada, Diário […], op. cit.

151 A expressão «técnica do salame» e a referência aos métodos seguidos pelos


PC nas democracias populares no após-guerra eram correntes e faziam parte
dos debates públicos. Tinha-se assistido sucessivamente à eliminação de
partidos de direita (Partido Liberal e Partido do Progresso), à proibição de uma
candidatura às eleições de 1975 (Partido da Democracia Cristã), à
marginalização de um partido (Centro Democrático e Social) e à tentativa de
afastamento do PPD do Governo, que o PS conseguiu evitar, pois não queria ser
«o próximo».

152 Por exemplo em Évora (30/7/1974), em Alcácer do Sal (2/8/1974), em Beja


(30/9/1974) e em Elvas (princípio de Outubro). Cf. Diário do Alentejo, Diário do
Sul e Jornal de Alcácer.

153 Em Alcácer do Sal (16/11/1974), em Coruche (5/10/1974), etc. Cf. Jornal de


Alcácer e O Sorraia.

154 Em Beja (Diário do Alentejo, 11/7/1974), em Torres Novas (Diário do Sul,


22/9/1974), no Barreiro (Outubro de 1974), em Évora (Março de 1975), etc. Cf.
Diário do Alentejo e Diário Popular, 27/10/1974.
155 Em Évora, Pias, Grândola, Fronteira, Moura, Sobral da Adiça, etc. Cf. Diário
do Alentejo, de 13/3/1975 a 1/4/1975.

156 A participação do PPD nas manifestações do após-11 de Março é tanto mais


significativa quanto o PC exige a sua exclusão do Governo.

157 Em Alcácer do Sal (16/11/1974), Évora (Março de 1975), etc.

158 Diário do Alentejo, 16/7/1975.

159 Cf. Diário de Notícias e A Capital de 7/7/1975 a 10/7/1975.

160 Ver uma longa lista de atentados in T. Almada, Diário […], op cit.

161 Ver o Capítulo IV.

162 Cf. A. Cunhal, Rumo […], op. cit., e Relatório […], op. cit.; PCP, Programa do
Partido Comunista Português, Edições Avante, Lisboa, 1974; e sobretudo José
Pacheco Pereira, Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal, Lisboa, 1983.

163 Cf. Programa do Partido Socialista Português e Declaração de Princípios,


1973.

164 Salvo menção em contrário, as citações referem-se às publicações oficiais


dos partidos e aos seus «projectos de Constituição» publicados no Diário da
Assembleia Constituinte.

165 Afirmações do secretário-geral em campanha eleitoral, in Avante!,


16/3/1976.

166 O texto declara nomeadamente que «a reforma agrária é um dos


instrumentos fundamentais da construção da sociedade socialista». O artigo
97.º define: «1. A transferência da posse útil da terra e dos meios de produção
directamente utilizados na sua exploração para aqueles que a trabalham será
obtida através da expropriação dos latifúndios e das grandes explorações
capitalistas. 2. As propriedades expropriadas serão entregues, para exploração,
a pequenos agricultores, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos
agricultores ou a outras unidades de exploração colectiva por trabalhadores.»

167 Entre os artigos da Constituição que têm uma influência geral sobre a
orientação da reforma agrária, podem citar-se: um dos objectivos do Estado é o
de «assegurar a transição para o socialismo mediante a criação das condições
do exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras» (artigo 2.º);
uma das tarefas fundamentais do Estado consiste na «socialização dos meios de
produção» (artigo 9.º). Segundo o artigo 10.º, «o desenvolvimento do processo
revolucionário implica, no plano económico, a apropriação colectiva dos
principais meios de produção». Os fundamentos da organização social e
económica estão resumidos no artigo 80.º: «A organização económico-social da
República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção
socialistas, mediante a apropriação colectiva dos meios de produção e solos,
bem como dos recursos naturais, e no exercício do poder democrático das
classes trabalhadoras.»

168 Ver os textos oficiais do Diário da Assembleia Constituinte, assim como os


documentos diariamente distribuídos aos deputados e que relatavam os
trabalhos de véspera e os artigos aprovados. A comparação entre os textos de
Novembro de 1975 e os de Março de 1976 revela a metamorfose.

169 O «Programa do MFA» refere as eleições nos seguintes termos: as medidas


de dissolução dos órgãos da soberania serão «acompanhadas do anúncio
público da convocação, no prazo de 12 meses, de uma Assembleia Nacional
Constituinte, eleita pelo sufrágio universal, directo e secreto […]».

170 Todos os dados eleitorais são extraídos de Maria João Costa Macedo,
Resultados das Eleições na ZIRA, Lisboa, 1980.

171 Nas legislativas de 1976, o MDP desiste de se apresentar. Nas autárquicas


do mesmo ano, MDP e PC fazem uma frente eleitoral (Frente Eleitoral Povo
Unido, FEPU).

172 Este cálculo só pode ser feito para os distritos inteiramente integrados na
ZIRA.

173 A composição da Assembleia foi a seguinte: PS, 116 mandatos; PPD, 81; PC,
30; CDS, 16; MDP, 5; UDP, 1.

174 Discurso de A. Cunhal, em Montemor-o-Novo, em Junho de 1975.

175 O Primeiro de Janeiro, 19/1/1975.

176 A propósito do «Verão quente», ver os Capítulos IV e V.

177 «Princípios fundamentais a respeitar na prossecução da reforma agrária na


zona de intervenção», aprovado em Janeiro de 1976.

178 Rigorosamente, e segundo a lei, não há «boas» e «más» ocupações,


«legais» ou «selvagens». Todas seriam à margem da lei. Na prática, os
regulamentos legais e os serviços do Ministério legalizavam a posteriori as
terras ocupadas, considerando «boas ocupações» as que se verificassem em
prédios cujas dimensões ultrapassassem os limites da lei.

179 O PS estava dividido sobre esta questão. O seu secretário-geral, Mário


Soares, tinha ideias bem diferentes das do seu ministro. Afirmou, por exemplo,
que «não houve verdadeira reforma agrária, mas somente ocupação de terras.
[…] Não é uma lei de reforma agrária, mas uma lei de colectivização de terras.
[…] As terras foram todas ocupadas independentemente da lei ou mesmo contra
a lei», in Comércio do Porto, 1/3/1976.

180 José Silva Marques, Relatos da Clandestinidade, Lisboa, 1977.

181 Cf. José Pacheco Pereira, Conflitos […], op. cit.

182 Decreto-Lei n.º 203-C/75, de 15 de Abril de 1975.

183 Decretos-Leis n.os 406-A/75, 406-B/75, 407-A/75, 407-B/75 e 407-C/75, de 29


e 30 de Julho.

184 Trata-se do memorando, já citado, dos quatro dirigentes do PC.

185 Cf. A. Cunhal, Rumo […], op. cit., particularmente os Capítulos 8 e 9, assim
como a p. 101.

186 Entre as excepções, um caso notório é o de J. Pequito Rebelo, proprietário,


escritor, político, militante integralista e de extrema-direita desde os anos 1930.
Tinha escrito, há 40 anos, Os Desastres da Reforma Agrária, Lisboa, 1932; em
1975 e 1976 escreveu, entre outros, Boas e Más Reformas Agrárias, As Falsas
Ideias Claras em Economia Agrária e A Soberania Soviética em Portugal.

187 Cf. J. P. Pereira, Conflitos […], op cit., assim como certas publicações
clandestinas do PC: O Camponês, de 1947 a 1965; O Que É a Reforma Agrária?,
1955; Por Uma Agricultura Florescente! Por Uma Vida Desafogada nos Campos!,
1954; e A. Cunhal, Unidade, Garantia da Vitória, 1947.

188 Cf. A. Cunhal, A Questão […], op. cit.

189 Cf. o memorando dos dirigentes comunistas. São previstos três tipos de
explorações agrícolas. As cooperativas seriam formadas por camponeses que já
fossem proprietários mas que ainda não estivessem convencidos da
superioridade dos sistemas colectivos; as explorações colectivas nas terras
expropriadas e que correspondem às unidades colectivas efectivamente criadas;
e, finalmente, as herdades de Estado, destinadas às melhores empresas e aos
«trabalhadores de vanguarda». São os modelos em vigor na União Soviética e
nas democracias populares.

190 Por exemplo, a seguir ao 25 de Novembro, descobriu-se que se torturava


nas caves do regimento da Polícia Militar. No Alentejo, alguns proprietários e
mesmo trabalhadores socialistas foram fechados em casas privadas e
interrogados durante várias horas ou até dias, sob ameaça e intimidação. Ver
ainda o Relatório sobre as Sevícias, Lisboa, 1976.

191 Nunca foram realmente criados os «tribunais populares», mais ou menos ad


hoc, tão típicos das revoluções violentas. Nesse sentido algumas pressões foram
exercidas, mas sem grande resultado, além de um ou outro incidente (como o
«caso José Diogo»). O poder militar chegou a exprimir a ideia da criação de um
«tribunal revolucionário». Tudo começou com a discussão legal e um projecto de
diploma foi elaborado por oficiais e juristas. A 7 de Abril de 1975, o «tribunal
revolucionário» chegou a ser pública e oficialmente anunciado, mas não se foi
mais longe.

192 Um pouco mais de 500 UCP empregavam nesta altura entre 50 000 e 70
000 trabalhadores permanentes e eventuais. Em 1982, o número de UCP era de
cerca de 250, explorando uma superfície de mais ou menos 500 000 ha e
empregando 10 000 assalariados permanentes e talvez outros tantos eventuais.

193 Paradela de Abreu, Do 25 de Abril ao 25 de Novembro, Lisboa, 1983.

194 Ver em particular a moção do clero da arquidiocese de Évora, Janeiro de


1976.
CAPÍTULO VIII

DA REFORMA À REVOLUÇÃO

A questão agrária não está na génese da revolta militar


nem da revolução política. Todavia, em 1974, são visíveis
alguns sinais de mal-estar rural. Com efeito, o crescimento
medíocre da produção agrícola, durante duas décadas, ou
mesmo a estagnação, começa a criar problemas. A
balança agrícola e alimentar tinha começado a perder os
excedentes, os défices apareciam. A distribuição da
propriedade mantinha-se desigual e inalterada. O
minifúndio, em dois terços do território, constituía um real
obstáculo ao desenvolvimento, ao mesmo tempo que não
permitia uma melhoria do nível de vida das populações. No
Sul, o latifúndio domina e constitui a base de uma
acentuada bipolarização social. Apesar da modernização
de umas quantas empresas agro-industriais e agrícolas, os
medíocres níveis de produtividade e rendimento mantêm-
se.
No entanto, nos anos 60, o crescimento industrial e a
emigração tinham modificado o panorama rural. Partiram
centenas de milhares de camponeses, o desemprego tinha
diminuído e os salários aumentaram sensivelmente. Nos
regadios, nas zonas do litoral e nas cinturas verdes das
grandes metrópoles, uma nova agricultura intensiva
crescia gradualmente.
Mas a evolução é demasiado lenta. Não acompanha a
expansão industrial nem o crescimento demográfico. Do
ponto de vista social, apesar de progressos reais,
sobretudo relativos ao nível de emprego, os salários e as
condições de vida dos assalariados rurais e dos pequenos
agricultores continuam muito inferiores às médias urbanas
e nacionais. Sem sindicatos, sem contratos colectivos de
trabalho e sem regimes de protecção legal suficientes, os
trabalhadores sofrem de real insegurança e de um bem
precário estatuto social. Isto tudo, sublinhe-se, num país
que começa a conhecer os efeitos da urbanização rápida e
da abertura de horizontes causada pela emigração (e pelos
modernos meios de comunicação), fenómenos que estão
na origem do desenvolvimento das aspirações e do
consumo.
Por todas estas razões, as reformas impõem-se aos olhos
de todos, ou de muitos. Para a oposição ao regime há
ainda outras razões: os «latifundiários» e os grandes
capitalistas da agricultura, sem serem o grupo social
dominante, constituem todavia um dos pilares do
corporativismo e da ditadura. Exercem real influência
sobre o poder central. No plano local, o seu forte controlo
social, ressentido como opressivo, baseia-se no monopólio
da terra, dos recursos e do emprego. O conjunto da
esquerda sempre considerou que, para mudar o regime, a
reforma agrária era indispensável. O PC desde sempre, o
PS desde a sua criação, em 1973, e todos os outros grupos
de oposição fizeram da reforma agrária um capítulo
significativo das suas proclamações e dos seus
programas195.
Depois do golpe de Estado, esta tradição produziu os
seus efeitos. Nos partidos, nas instituições e na opinião
pública, o ambiente geral é favorável à reforma da
agricultura. Pelas boas e más razões. Uma certa má
consciência urbana alimenta-se com a ignorância das
realidades rurais e com um eventual sentimento de
culpabilidade por causa dos «privilégios» das cidades. Há
momentos em que as classes médias urbanas estão
inteiramente disponíveis para a solidariedade com os
camponeses, «que fazem o nosso pão, mas que o
crescimento marginaliza». Os anos de 1974 e 1975, em
Portugal, terão sido um desses momentos. A propaganda a
favor da reforma agrária encontra uma grande
receptividade. Praticamente, todos os partidos aceitam a
ideia. Até proprietários parecem dispostos a encarar a
hipótese, pelo menos verbalmente e nos jornais.
Os responsáveis comunistas, alguns socialistas e um
número reduzido de técnicos ou de especialistas têm
ideias mais ou menos claras da situação e dos projectos
necessários. Mas, de modo geral, as élites políticas, apesar
de apoiarem a noção de reforma agrária, ignoram as
implicações. A justiça em meio rural e o desenvolvimento
da agricultura parecem não ser questões difíceis para os
citadinos. A história agrária portuguesa, entre a pobreza e
a desigualdade, suscitou sempre, junto dos dirigentes
políticos e das classes médias, os melhores sentimentos. O
ano de 1974 só cria esperanças.
Levar a cabo uma reforma, especialmente agrária, supõe
um poder político forte, a existência de programas
complexos ou, em alternativa ou conjuntamente, pressões
sociais eficazes e amplas. Ora, em Abril de 1974, nada
disso existe. Apesar do acolhimento favorável, a questão
agrária evolui gradualmente. Mas, no fim do ano, a
situação estará radicalmente diferente, tanto na esfera do
poder como nas condições sociais e económicas.

Os primeiros problemas agrários

Depois da revolta militar, os problemas políticos,


militares e coloniais levam a melhor sobre todos os outros
e exigem mais atenção. Um novo regime vai começar,
mas, sem democracia prévia, os recém-chegados na classe
política não estão preparados. O poder é partilhado de
improviso entre os antigos oposicionistas. Os órgãos
provisórios de soberania são compósitos e contraditórios.
Os programas ainda mais. O MFA, heterogéneo e recheado
de lutas internas, não constitui um factor durável de
unidade, nem uma força orientadora indiscutível. Pelo
contrário, mudará de «linha política» várias vezes e em
diversos momentos será ele próprio fonte de perturbações.
Comanda a evolução, o ritmo e a mudança, mas não dirige
nem governa. Ao longo dos primeiros 12 meses, a crise
política estará em constante aceleração. Daí resultará a
crise económica e social.
É neste contexto que o secretário de Estado da
Agricultura tenta atacar os problemas. Ou, antes, gerir o
que pode, estudar, preparar ideias e programas. Será esse
o conteúdo essencial da sua acção, enquanto se preparam
os vendavais.
As mudanças na administração têm um lugar importante
na sua actividade oficial. Para uma nova política, serão em
princípio precisos novos homens196. A 5 de Julho, o
secretário de Estado anuncia a reorganização dos serviços
na sua dependência. Por outro lado, ocupa-se com
pequenas questões de administração corrente: fixação de
preços e outras exigências de rotina.
Recebe muito: grupos, comissões e delegações sindicais.
Recebe grupos que querem ser reconhecidos como os
novos interlocutores das autoridades, mas também recebe
herdeiros das instituições corporativas197. Desloca-se
frequentemente, visita feiras, participa em reuniões
públicas.
Na vida prática, o problema mais importante e actual é o
da negociação colectiva. Será este o primeiro objecto de
luta social e política. Teoricamente, diz respeito ao
Ministério do Trabalho, mas terá enormes consequências
para a agricultura. Outra questão, difícil e delicada, ocupa
os dois ministérios: a extinção dos grémios da lavoura e a
sua substituição. Também constituirão objecto de
importantes lutas sociais e partidárias198.
No Alentejo, o debate vai aumentando de vivacidade. A
imprensa nacional, rapidamente controlada pela esquerda,
faz-se eco e intervém. Por vezes o tom sobe. Os jornais
ligados ao PC, sobretudo o Avante!, acusam os «agrários»
de actuações condenáveis: abandono das terras,
absentismo, atraso nas colheitas, subaproveitamento das
terras, vendas precipitadas de gado e despedimentos
colectivos199. Aqueles também são acusados de não
respeitar os contratos colectivos: uns porque tentam pagar
abaixo da tabela, outras porque pagam acima, procurando
convencer os trabalhadores a não fazerem semana-
inglesa200.
Aqui e ali ocorrem greves, sobretudo com o fim de forçar
a assinatura de um contrato colectivo. Praticamente, todas
as greves são locais e curtas. O Verão é propício: a cortiça
está pronta, o tomate e os cereais devem ser colhidos, os
proprietários cedem e os trabalhadores obtêm
rapidamente o que querem . 201

Fala-se frequentemente de reforma agrária, mas os seus


contornos, os seus objectivos e os seus mecanismos não
estão definidos nem são claros. Um trabalhador afirma a
um jornal que «é preciso fazer a reforma agrária,
distribuindo os trabalhadores pelas herdades e obrigando
os proprietários a aceitá-los». Um outro, igualmente
partidário da reforma agrária, considera que esta deveria
ser «a distribuição das terras, tomadas aos proprietários,
pelos trabalhadores». São, na verdade, dois programas
diferentes. Uma coisa é certa, as opiniões hostis à reforma
agrária não se ouvem: ou são raras ou não são corajosas.
Nos serviços oficiais, pouco a pouco, um certo espírito
reformista parece vingar e traduzir-se em medidas
concretas. Estas são geralmente de carácter técnico e
económico e não traduzem a evolução política. Aparecem
os «programas autónomos de desenvolvimento»;
preparam-se os regulamentos para os mercados de certos
produtos. Um ar de novidade vem com a legislação sobre
os foros e os arroteamentos feitos pelos rendeiros, o
regime legal dos contratos colectivos de trabalho e o
desenvolvimento dos adubos202. Em Outubro, preparando-
se para um passo mais firme, o Governo anuncia a sua
intenção de alterar as leis do arrendamento rural que
interessam a mais de 300 000 agricultores. Um projecto é
divulgado e será a base de debates públicos. Mas só
muitos meses mais tarde é que o novo decreto será
aprovado. Na verdade, começa a tocar-se no fundo dos
problemas e na estrutura social e agrária203.
A 31 de Outubro de 1974, o Decreto-Lei n.º 573/74
congela as rendas rurais, com o objectivo explícito de
defender a situação dos rendeiros. A 22 de Novembro, o
Decreto n.º 653/74 é mais um gesto de intervenção do
Estado na vida económica: fixa normas de cultura de
aproveitamento das terras e confere ao Estado o poder
para tomar em arrendamento compulsivo, por intermédio
do IRA, as terras abandonadas e subaproveitadas.
Outras medidas são aprovadas neste último trimestre do
ano. Mas a situação geral é já tensa e exercem-se pressões
sobre o Governo para que medidas de carácter estrutural
sejam tomadas. O problema é que não há estudos nem
projectos. Além do arrendamento rural, também os baldios
são motivo de atenção e é mandado preparar um projecto
de lei, desde logo submetido a debate público.
O Inverno aproxima-se. A luta pelo poder está cada vez
mais agitada, as tensões sociais em crescimento. Em
matéria de emprego, a situação é difícil para alguns
trabalhadores. Os sindicatos, já bem organizados,
recolhem os frutos de um intenso trabalho sobre os
contratos colectivos assinados antes do Verão (para o resto
do ano agrícola de 1973-1974) e no princípio do Outono
(para o ano agrícola de 1974-1975). O PC já lançou a sua
ofensiva rural. O PS reclama com veemência uma reforma
agrária. O PPD adere à ideia. Entre Outubro e Dezembro,
moderada ou obstinadamente, os três partidos exprimem-
se a favor das expropriações, dos arrendamentos
compulsivos e da intervenção do Estado. Na televisão,
numerosas emissões e os mais variados testemunhos
apelam à reforma agrária.
Os militares distinguem-se pela atenção que prestam aos
assuntos agrícolas. Na televisão, na imprensa e em
reuniões públicas. Entre Novembro de 1974 e Janeiro de
1975 tomam posições firmes. Em quase todos os números
do jornal do MFA são publicados artigos sobre a reforma
agrária e mesmo sobre as modalidades que pode
revestir204.
São visíveis sinais de desemprego. Por outro lado, há
mudanças de mentalidade: já não se aceita facilmente a
ideia de emprego sazonal. Os sindicatos lutam pelo
emprego garantido e anual. Entretanto, a situação política
quase paralisou as obras públicas. Na construção, por
precaução, medo ou interesse, as empresas privadas
reduziram estaleiros e investimentos. Atitudes
semelhantes são tomadas nalgumas empresas agrícolas.
As consequências da descolonização agravam a
conjuntura. Fazem-se sentir os primeiros efeitos da crise
internacional (recessão e primeiro «choque» petrolífero). A
emigração, válvula de segurança tradicional, está
praticamente impedida pelos países ocidentais. Tudo isto
faz que a situação do emprego não esteja muito favorável
para os trabalhadores, do ponto de vista económico. Mas
está bem melhor politicamente. Com efeito, desde o fim do
Verão que se tinham começado a fazer «distribuições de
trabalhadores» por herdades e empresas agrícolas. Entre
estas, algumas dizem ter dificuldades em pagar os salários
ou em arranjar trabalhos.
Por outro lado, desde Setembro que a desconfiança
alastrava nos meios de proprietários. Alguns tinham sido
presos, sem motivos nem culpa formada. As hostilidades
pessoais tinham também começado. O consenso vai sendo
impossível. Ninguém deseja negociar seja o que for.
O Governo é arrastado pelo populismo radical do seu
primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, apesar de os
comunistas e militares não serem ainda predominantes
nos órgãos do poder. Noutras palavras, há ainda, no
Governo, quem alimente a ideia de projectos e de reformas
de carácter moderado. Foi o caso do «Programa de política
social e económica», aprovado em Janeiro de 1975 pelo
Conselho de Ministros e pela Assembleia do MFA205.
Este programa propõe uma reforma agrária moderada,
mas tocando já em certos aspectos da estrutura fundiária.
Em particular, prevê a nacionalização dos perímetros
regados construídos com fundos públicos mas que
beneficiaram sobretudo os proprietários. São igualmente
previstas: a penalização das grandes propriedades incultas
ou subaproveitadas, assim como medidas de carácter
técnico e económico favoráveis ao desenvolvimento das
cooperativas.
De inspiração reformista, socialista ou social-democrata,
este plano não entusiasma os comunistas, nem os
esquerdistas, nem os militares. Alguns meses antes, o
«Programa» estaria certamente em avanço sobre o seu
tempo. Em Fevereiro está atrasado e os seus promotores já
não têm os meios políticos da sua realização. Quando é
aprovado pelo Governo e pelo MFA, já só os seus autores
acreditam. Ou talvez nem isso. Na mesma altura verificam-
se as primeiras ocupações.

Uma tentativa reformista

Este «Programa» era uma experiência. Tratava-se de um


plano concebido quase em laboratório. Não correspondeu
ao poder político real, não passou ao estádio experimental
e não produziu nenhum fruto, a não ser a demonstração da
sua inutilidade. A viragem revolucionária de 11 de Março
envia para os saldos ou para os alfarrabistas os milhares
de exemplares do «Programa», já envelhecido quando é
apresentado ao público em conferência de imprensa de 24
de Fevereiro.
Ao contrário, a experiência das «comissões de
intensificação cultural» (CIC) teve mais hipóteses, contou
com o empenho de muito mais gente; agricultores houve
que se sentiram interessados e envolvidos.
Estas comissões foram criadas a 14 de Outubro de 1974,
por despacho, no seguimento das «reuniões de Oeiras»206,
às quais assistiam o secretário de Estado (que tomou a
iniciativa), membros do seu gabinete, conselheiros, altos
funcionários e um grande número de jovens agrónomos,
veterinários, economistas e outros escolhidos pelos
responsáveis dos serviços207. A escolha de técnicos jovens
corresponde a uma exigência do secretário de Estado.
Nestas reuniões discute-se de tudo, mas o tema principal
é o da modernização da agricultura. Procura definir-se uma
nova política agrícola. «Trabalhava-se com entusiasmo, o
clima era bom, a maior parte dos técnicos sentiam-se
mobilizados», recorda J. Dordio, um dos participantes.
A primeira série de reuniões decorre entre fins de
Setembro e meados de Outubro. Está igualmente presente
o secretário de Estado dos Preços e Abastecimentos. São
abordados os problemas técnicos e económicos de todos
os sectores agrícolas e alimentares. O tom é sereno, as
conclusões moderadas. O vigor revolucionário só parece
estar muito marginalmente presente no «apoio que é
necessário dar, em modalidades ainda indefinidas, à
campanha de dinamização cultural e de esclarecimento
sociopolítico que o Movimento das Forças Armadas vai
empreender brevemente em todo o País»208.
As preocupações essenciais são o aumento da produção,
a intensificação das culturas e a melhor utilização dos
recursos. Anuncia-se que as herdades do Estado serão
transformadas em herdades-piloto e que aí se realizarão
experiências a fim de dar o exemplo aos agricultores209.
A principal missão prática das CIC consiste na definição
de critérios de base que permitam a avaliação das
explorações e das suas performances. As comissões
deverão igualmente seleccionar as empresas susceptíveis
de intensificação e encontrar as modalidades adequadas
para pôr em prática novos projectos. A comissão central
fica na dependência administrativa do IRA, mas trabalha
directamente com o secretário de Estado, cada vez que
seja necessário. Esta comissão conta com a colaboração
de vários técnicos de formação universitária, com o apoio
das «brigadas técnicas» distribuídas pelos distritos do
Alentejo e do Ribatejo.
A comissão vai trabalhar activamente. O seu
funcionamento é simples. De sua própria iniciativa, ou a
pedido das ligas e dos sindicatos, visita herdades
consideradas subaproveitadas. Na base do seu «critério
mínimo de intensificação cultural», procede à avaliação. Os
resultados, sob a forma de relatórios, são enviados ao
núcleo central da CIC, que os aprecia, dá parecer e remete
instruções ao IRA. Reuniões, entrevistas com agricultores e
organizações, visitas às herdades e redacção de relatórios
e pareceres: o trabalho é intenso, sobretudo feito em
pouco tempo. Por outro lado, a CIC prepara os planos de
exploração para algumas herdades do Estado consideradas
elas próprias subaproveitadas210. Também elabora listas de
explorações onde o Estado poderá vir a intervir a fim de
impedir vendas ilegais de cortiça. Elabora esquemas de
organização para os serviços regionais de agricultura,
assim como normas de aluguer de máquinas agrícolas.
Ocupa-se da definição de regras para o transporte e a
circulação de gado, dado que surgem sinais de actuações
ilegais. Tenta ainda resolver problemas que são detectados
em nove grandes explorações agrícolas onde o Estado tem
responsabilidades211.
Os técnicos visitam centenas de herdades privadas.
Algumas, designadas pelos sindicatos, revelam reais
possibilidades de intensificação, pelo que a comissão inicia
conversações com os proprietários a fim de melhorar as
culturas. «Alguns dos proprietários mostram-se
entusiasmados e começam a investir, enquanto outros se
mostraram apenas receptivos», afirma um dos técnicos. A
um certo momento, a comissão visita, segundo o seu
relatório, «uma herdade ocupada, ou em vias de o ser».
Finalmente, numerosas herdades visitadas são
consideradas em estado satisfatório . 212

Após uma primeira inspecção, a CIC elabora igualmente


um relatório sobre o conjunto dos distritos de Évora e
Portalegre. Conclui que, nos dois casos, «não há muitas
propriedades incultas, mas algumas apenas mal
cultivadas», mencionando uma lista de «casas agrícolas»
nestas condições213.
Esta opinião não agrada a muita gente. Habitualmente, a
esquerda e os sindicatos proclamam que há centenas de
milhares de hectares abandonados e incultos. A visão dos
proprietários é oposta: nas circunstâncias naturais do
Alentejo, não é possível fazer melhor. Sem serem
exaustivos, os relatórios das CIC tentam resolver a questão
e vão, aliás, ao encontro de opiniões de quem não tem
interesse directo na região: por um lado, o abandono puro
e simples é muito raro; mas, por outro, é possível fazer
muito melhor, com investimentos, trabalhos de infra-
estrutura e mudanças progressivas nos sistemas agrários e
nos padrões de cultura. Tudo isso supõe planos técnicos e
económicos, reformas graduais da estrutura agrária e
fundiária e novas políticas agrícolas. Para tudo isso é
preciso tempo, meios financeiros e poder político.
Apesar de superficial, o balanço das CIC é sem dúvida o
mais independente e o mais actualizado. Não agrada aos
proprietários, porque lhes comete mudanças e
investimentos. Não agrada aos sindicatos, nem aos
técnicos de esquerda, porque destrói o mito do Alentejo
abandonado, sobre o qual repousam os argumentos
favoráveis à reforma agrária e à nacionalização. Neste
contexto, as CIC não vão durar.
Um dos principais responsáveis das CIC mostra como os
seus trabalhos foram ultrapassados214. Em três ou quatro
meses de trabalho fizeram o inventário de praticamente
quase todo o distrito de Évora (738 783 ha de superfície
total e 724 487 ha de superfície cultivada, agrícola ou
florestal). Chegaram à conclusão de que havia um pouco
mais de 80 000 ha de solos realmente mal cultivados.
«Curiosamente», afirma o testemunho, «estas terras
pertenciam quase sempre a senhores da cidade, uns
empreiteiros ou comerciantes que não cuidavam delas.
Mas não havia nada que se parecesse com centenas de
milhares de hectares nesta situação: no máximo, 80 000
ha em Évora, e os nossos critérios eram apertados. À
medida que o nosso trabalho avançava, mandávamos os
relatórios ao secretário de Estado, mas nada acontecia.
Chegámos a pensar que não queriam mudar nada. Mas, de
repente, o novo responsável do IRA, o engenheiro
Silvestre, apareceu: queria expropriar tudo, nacionalizar as
herdades. E as coisas começaram a mudar rapidamente a
partir do mês de Dezembro de 1974. Os três responsáveis
do IRA e do gabinete do secretário de Estado, Sítima,
Silvestre e Alves da Silva, metiam-se em tudo.
Compreendemos que já não estávamos na jogada, que o
que fazíamos não servia para nada, que estávamos
ultrapassados. Havia constantemente reuniões de
pequenos grupos e de subcomissões e as decisões não nos
eram comunicadas.»
Uma nova dinâmica impunha-se pouco a pouco. A 18 de
Fevereiro de 1975, os membros da CIC fazem um relatório
no qual se confessam ultrapassados pelos acontecimentos,
«pelos factos consumados: as ocupações, a sabotagem
económica e o abandono de herdades».
Depois de 11 de Março, com o novo Governo (o quarto),
a acção das CIC perde o seu sentido. Em Abril, os
responsáveis preparam uma reunião com o novo ministro
da Agricultura e sugerem uma ordem de trabalhos
reveladora: «a) Que fazer no Alentejo?; b) As ocupações; c)
A promoção discriminatória de funcionários e técnicos.» A
reunião não se realizará. Alguns dias depois, vários
membros das CIC pedem a demissão, outros são
transferidos. A tentativa reformista chegava a seu termo e
a via revolucionária estava já bem avançada.

Uma via institucional pré-revolucionária

Tendo começado antes, a acção dos sindicatos agrícolas


ultrapassou as tentativas reformistas do Estado. Depois do
seu apogeu, no Verão de 1975, o movimento sindical rural
do Sul perdeu grande parte da sua influência, mas ficou a
constituir uma realidade durável na sociedade.
De um papel inicial de parceiros sociais, os sindicatos
chegaram a uma posição predominante nas relações de
trabalho que lhes permitiu praticamente impor a sua
vontade na região. Conseguiram aceder a funções
institucionais e estatais. Ao mesmo tempo, o Estado,
tomando a defesa e adoptando os pontos de vista dos
sindicatos, assumiu a responsabilidade de determinar as
condições de trabalho, substituindo-se assim às
negociações colectivas.
Os sindicatos desempenharam ainda um papel decisivo
nas ocupações de terras e na organização das unidades
colectivas. Depois do 25 de Novembro, perderam
rapidamente todas as funções institucionais e, com estas,
uma espécie de «soberania sindical» que exerceram
conjuntamente com o aparelho de Estado. Desde então,
limitaram-se às funções tradicionais das organizações
sindicais.
Voltemos ao princípio. A 25 de Abril de 1974 não há
organizações sindicais no Alentejo e no Ribatejo. O PC
mantém uma rede de simpatizantes, de antigos militantes
e de funcionários. A esta «matéria-prima», reduzida,
embora real, acrescentar-se-ão vários funcionários e
militantes que, vindos da cidade ou mesmo do estrangeiro,
formam o núcleo inicial. Já em Maio aparecem as primeiras
comissões «pró-sindicato», que conhecem sucessos
rápidos. No distrito de Beja, de onde a iniciativa mais forte,
os sindicatos estão desde logo estreitamente ligados ao
partido. Em Évora, pelo contrário, os primeiros esforços são
resultado da acção unitária de militantes do PC, do PS e do
MDP. Só um ano mais tarde, com as eleições sindicais, é
que os comunistas asseguram em Évora o controlo total
sobre o sindicato, tal como já tinham feito em Portalegre,
Santarém, Lisboa e Setúbal.
Os sindicatos crescem paralelamente ao
desenvolvimento das negociações colectivas e à obtenção
dos respectivos contratos. Neste domínio, cada vitória é
um trunfo de prestígio e um instrumento de recrutamento.
As condições de trabalho, os salários, os horários e a
segurança melhoram rapidamente, no interesse e para
benefício dos trabalhadores.
Em Agosto de 1974 há contratos colectivos de trabalho
(CCT) em vários concelhos do distrito de Beja215, num de
Setúbal216, nenhum em Évora, em duas freguesias de
Portalegre e uma de Santarém217. Foi esta a primeira série
de negociações colectivas válidas ainda para o resto do
ano agrícola de 1973-1974218.
A segunda série começa em Setembro e aplicar-se-á ao
ano agrícola de 1974-1975. São assinados contratos em
vários concelhos do distrito de Santarém219, de Portalegre220
e de Lisboa221. Dois CCT de novo tipo entram em vigor em
Beja (Setembro) e em Évora (Outubro): cada um aplica-se
ao conjunto do distrito. Até ao fim do ano, vários CCT de
âmbito concelhio são ainda assinados em Portalegre,
Santarém e Setúbal. Em meados de 1975, quatro distritos
têm já um CCT unificado: Beja, Évora, Portalegre e
Santarém. Em Setúbal, oito novos contratos «concelhios»
vêm acrescentar-se aos precedentes.
No fim do Verão, um só regime de trabalho vigora em
todos os distritos do Sul, incluindo Faro. Substitui-se a
todos os CCT de menor âmbito territorial.
Esta unificação é paralela à crescente intervenção do
Estado. Com efeito, em 1974, os primeiros contratos
tinham sido assinados pelos parceiros sociais, ou, antes,
por representantes mais ou menos qualificados, mais ou
menos conhecidos222. Ora, tal vai deixando de acontecer
depois. Invocando argumentos legais ou sob pretexto de
que a representatividade dos signatários não é indiscutível,
o Ministério do Trabalho manda publicar os textos dos
acordos de trabalho no seu boletim oficial, mas fá-los
acompanhar de uma portaria (PRT, portaria de
regulamentação do trabalho) que lhe confere força de lei e
obriga a todos dentro da freguesia, do concelho ou do
distrito. Este método substitui-se progressivamente à
negociação entre parceiros. Alguns contratos, por exemplo,
vêem o seu âmbito de aplicação alargado ao conjunto do
distrito, por força de uma «portaria de alargamento de
âmbito» (PAA). Outras vezes, a PRT não inclui sequer um
contrato: é simplesmente a imposição de uma
regulamentação de trabalho, o que, por exemplo, acontece
com as últimas portarias válidas para toda a região.
Esta intervenção estatal faz-se seja por iniciativa do
Ministério, seja a pedido dos sindicatos. No primeiro caso,
trata-se de manter o controlo social. A unificação das
condições de trabalho é útil, pois impede a diversificação
desfavorável ao movimento sindical. É também uma
maneira de obrigar todos os agricultores à mesma
disciplina, forçando-os mesmo a sentirem-se representados
pelos signatários. Finalmente, o Ministério procura dar real
valor aos CCT, pois que surgem dúvidas quando as
assinaturas não são as de verdadeiros empresários. Em
última análise, o Ministério assegura também um certo
controlo sobre o movimento sindical, nomeadamente
impedindo que outros sindicatos venham a organizar-se.
Do ponto de vista dos sindicatos, a intervenção estatal é
uma protecção e uma segurança. Quando não há
organização de patrões, ou quando estes não querem
assinar nem ceder às reivindicações, os sindicatos passam
por cima do obstáculo, o Ministério assina a PRT e a
regulamentação fica legalizada. Muitas vezes a portaria
retoma simplesmente as propostas dos sindicatos para
negociação. Assim é que, depois de terem exigido do
Ministério a publicação dos CCT, os sindicatos remetem-se
à disciplina protectora do Governo, sem terem de seguir o
caminho da negociação223.
Nesta evolução, o PC desempenha, uma vez mais, um
papel importante. Não só controla os sindicatos, dirigidos
por militantes seus, mas sobretudo reservou-se o
Ministério do Trabalho durante os primeiros cinco governos
provisórios. O ministro é um militante civil ou um militar
simpatizante; os secretários de Estado são geralmente
militantes seus, assim como numerosos altos funcionários.
Aliás, o partido não o esconde: exibe mesmo a sua
excelente folha de serviços224.
Quanto ao conteúdo dos CCT e das portarias, três traços
caracterizam a sua evolução. Primeiro, a passagem da
negociação à via administrativa. Segundo, o alargamento
do âmbito de aplicação. Terceiro, a melhoria constante das
condições de trabalho dos assalariados. A este propósito, o
Governo contribui também com a fixação de um salário
mínimo rural e a criação de novos esquemas de segurança
social.
Os primeiros contratos dizem respeito sobretudo aos
níveis de salários e às remunerações complementares. Os
sindicatos obtêm aumentos significativos, além de férias,
melhores horários de trabalho e pagamento de horas
extraordinárias. Os benefícios são grandes, as condições
em que os trabalhadores se encontravam previamente
eram consideravelmente desfavoráveis.
Com o tempo, as reivindicações sindicais aumentam. Por
cedência dos patrões ou por portaria do ministro, o
resultado é que os regulamentos ficam cada vez mais
vantajosos para os trabalhadores: alimentação, subsídios
de fim de ano e de férias, regime especial de sábado e
fins-de-semana, transporte para o local de trabalho, etc. O
que importa notar, mais do que o montante de benefícios,
que não chegam a ser privilégios, é a progressão rápida.
Alguns contratos ou portarias retomam velhas
reivindicações dos sindicatos do princípio do século: a
prioridade de emprego aos trabalhadores da região, só
podendo os patrões ir buscar mão-de-obra fora da região
depois de assegurado o pleno emprego local.
São substanciais os benefícios obtidos em tão pouco
tempo. E são benefícios bem sentidos, pois que a situação
dos assalariados antes de 1974 era relativamente precária.
Em certo sentido, mais ainda do que as vantagens
materiais, os contratos colectivos trazem aos
trabalhadores agrícolas a consciência de um estatuto
social mais digno e de uma força que nunca tinham
conhecido até então.
A segurança e as garantias são os elementos mais
frequentes nos textos dos contratos, tanto como nos
documentos sindicais. A conquista de um estatuto menos
precário e menos aleatório não é uma magra vitória. Os
trabalhadores têm essa percepção e os sindicatos saberão
aproveitar. Os sindicatos serão verdadeiros «alfobres» de
militantes e de dirigentes locais chamados a desempenhar,
no Verão de 1975, um papel decisivo nas ocupações.
Mas uma vantagem sindical, obtida em negociações, e
confirmada por legislação ministerial, ultrapassa todas as
outras, pelas consequências políticas, sociais e
institucionais. Trata-se do emprego compulsivo, da
distribuição de trabalhadores e das comissões de avaliação
de herdades e do aproveitamento das terras.
Estas comissões são criadas pelos contratos colectivos
ou pelas portarias. São geralmente paritárias (sindicatos e
patrões) ou tripartidas (Estado, sindicatos e patrões), mas
podem até ser simplesmente sindicais. Têm diversos
nomes, segundo a data e o local, mas constituem os
embriões das futuras «comissões distritais rurais» (CDR) e
das «comissões técnicas concelhias» (CTC)225.
Segundo os casos, estas comissões têm poderes mais ou
menos vagos e diversos, mas serão concretizados e
unificados com o tempo. Umas devem «acompanhar a
execução da PRT»226; outras têm como missão «verificar e
distribuir o pessoal»227; ou ainda «controlar os
despedimentos e garantir o trabalho» . Num caso, a
228

comissão deve proceder à «repartição dos trabalhadores


abrangidos por esta convenção» por entre as herdades que
ultrapassem os 150 ha229. As comissões previstas na
portaria relativa ao distrito de Beja são nomeadas pelo
governador civil e «procedem à avaliação das
propriedades, em prioridade das que estão
subaproveitadas, e efectuam a colocação da mão-de-
obra»230. Finalmente, as comissões criadas pela portaria de
10 de Setembro de 1975, a que se aplica a toda a região,
devem «efectuar a colocação de trabalhadores nas
propriedades em regime de subaproveitamento total ou
parcial»231.
A composição destas comissões é variável. Algumas
incluem representantes dos sindicatos e dos agricultores
(Cuba, Aljustrel, Almeirim e Benavente); a maior parte
integra também delegados do Ministério do Trabalho
(Évora, Vidigueira e Serpa); outras excluem a
representação dos patrões, integrando apenas dois
delegados do sindicato e dois representantes dos
Ministérios da Agricultura e do Trabalho. Neste último caso,
encontra-se a mais importante de todas as portarias, a que
se aplicou à região inteira.
Pelo seu poder e pela composição, estas comissões
consagram a ascensão dos sindicatos até às funções
institucionais. Consolidam o seu poder, em detrimento do
dos agricultores e proprietários, que aliás faltam
frequentemente às comissões em que têm o direito de
estar presentes.
É em Setúbal que estas comissões atingem o seu estado
mais organizado. Apesar de a portaria de 10 de Setembro
ter criado comissões semelhantes para todos os distritos, a
CDR de Setúbal é uma realidade um pouco diferente. Foi
criada antes, a 28 de Fevereiro de 1975, por despacho
conjunto dos secretários de Estado da Agricultura, do
Trabalho e do Emprego. Inclui três representantes dos
sindicatos, três da associação de agricultores (ALA), três da
liga dos pequenos agricultores, quatro da Secretaria de
Estado da Agricultura, um da Secretaria de Estado do
Trabalho e um do Serviço Nacional de Emprego.
Formalmente, a sua principal função consiste na
coordenação e apreciação do trabalho das comissões
técnicas concelhias (CTC).
Estas últimas tinham sido previstas na portaria de 21 de
Janeiro, que se aplicava apenas aos concelhos de Alcácer
do Sal, Grândola, Santiago de Cacém e Sines, assim como
à freguesia da Marateca. A 15 de Fevereiro, o ministro
ordena o alargamento de âmbito a todo o distrito. Nesta
altura, as funções das comissões concelhias consistiam na
avaliação das explorações agrícolas e na formulação de
recomendações. A sua composição incluía apenas dois
delegados dos patrões e dois dos trabalhadores.
Todas estas competências foram ainda alargadas pela
portaria de 10 de Setembro de 1975. Esta não só unifica o
regime aos cinco distritos como ainda consagra legalmente
o poder das comissões para avaliar globalmente o estado
das explorações. Após exame prévio, as comissões podem
impor directamente a colocação de trabalhadores. A partir
desta data, as comissões só integram representantes dos
sindicatos e dos ministérios. Recurso das suas decisões
pode ser apresentado junto das comissões distritais (CDR),
cujo parecer é executório, definitivo e retroactivo.
Acrescente-se que a composição das comissões será ainda
modificada, em novas condições políticas: a 4 de Março e a
28 de Maio de 1976, o ministro ordena que os
representantes dos patrões façam parte também.
As CDR e as CTC tiveram uma existência bem diversa,
segundo as localidades e as condições políticas. Não
previstas na convenção colectiva de 21 de Janeiro, são
impostas pela portaria de 28 de Fevereiro. Apesar de
cobertas por decisão ministerial, a sua legalidade não é
indiscutível. Em Junho de 1976 será a CDR de Setúbal, ela
própria, que suspenderá funções, considerando que o seu
funcionamento é ilegal. Na realidade, continuará a reunir-
se e deliberar, afirmando mesmo que «é a única em todo o
País que se mantém em funções»232. Esta CDR considera ter
cumprido os seus objectivos, mesmo se os três
representantes da ALA e da liga «se distanciaram sempre»
das sessões.
A composição da CDR de Setúbal conhecerá, aliás,
mudanças constantes, decididas pelo governador civil,
pelo Ministério ou pelos seus membros. O problema é
geralmente o da representação dos empregadores, que
vêm raramente às reuniões.
Os poderes da CDR são amplos: recurso das decisões das
CPC; avaliação das herdades; colocação de trabalhadores.
Das suas decisões não há apelo: o despacho do ministro
diz que «a violação das deliberações da CDR será
considerada como violação das leis de trabalho».
A portaria que cria a CDR de Setúbal só é publicada a 28
de Fevereiro, mas o governador convoca a primeira
reunião para 14 do mesmo mês. A 19 realiza-se a primeira
sessão formal, na Câmara de Alcácer do Sal: estão
também presentes o governador, um delegado do MFA e o
vice-presidente do IRA233. Na segunda reunião, a 26 de
Fevereiro, procede-se à composição nominal da comissão,
que será legalmente reconhecida pelo ministro da
Economia a 14 de Março.
Esta CDR reuniu-se 56 vezes, entre Fevereiro de 1975 e
Outubro de 1976. Até Novembro de 1975 reúne-se
regularmente quatro a cinco vezes por mês. Segue-se uma
interrupção de dois meses, motivada certamente pelos
acontecimentos políticos. Retoma as suas sessões, mas já
só se reunirá uma a três vezes por mês. Os dois períodos
de vida são bem diferentes. No primeiro, decide
febrilmente; a aliança entre sindicatos e funcionários do
Ministério impõe-se e inspira os trabalhos. No segundo, a
comissão discute, mas não decide: os representantes dos
ministérios foram todos mudados.
A primeira preocupação da CDR é o desemprego. Em
todas as sessões, as principais decisões dizem respeito à
distribuição e à colocação de trabalhadores. Na segunda
fase, a preocupação parece manter-se, mas mudam os
métodos. Por exemplo, dirige-se ao governador civil e aos
presidentes das câmaras pedindo colaboração para
encontrar emprego fora da agricultura em Grândola,
Alcácer e Santiago234.
Centenas de cartas são enviadas à CDR por agricultores
e empregadores. Estes expõem os seus pontos de vista,
mas só um quinto se mostra disposto a recusar os
trabalhadores que lhe foram distribuídos.
Todos os conflitos são submetidos à CDR, especialmente
os que opõem empregadores e sindicatos. Os diferentes
assuntos são levados à CDR pelas comissões concelhias,
pelos sindicatos ou pelos agricultores. São quase sempre
questões relativas à distribuição de trabalhadores e ao
pagamento de salários. Por vezes, outras entidades
recorrem para a CDR, como por exemplo o regimento de
Setúbal, que denuncia, a 5 de Março de 1975, uma série
de herdades «que não estão cultivadas». Este processo,
como outros de carácter geral, é remetido para a comissão
de intensificação cultural (CIC).
Quando há diferendos, a CDR adia geralmente o assunto
para a reunião seguinte e convoca os patrões e os
trabalhadores. Mas, na maioria dos casos, decide
imediatamente o número de trabalhadores que devem ser
colocados nas explorações agrícolas ou mesmo nas
fábricas de tomate industrial, numerosas na região.
Militares do MFA assistem a certas reuniões. Pedem
explicações sobre a situação de umas herdades ou tentam
acelerar processos de avaliação ou de ocupação.
Aos proprietários que se dirigem directamente à CDR é
sempre dito que os problemas concretos devem ser
tratados a nível concelhio pelas CPC. Problemas relativos a
ocupações são geralmente transmitidos ao IRA ou ao
CRRA, afirmando a CDR que estes assuntos não são da sua
competência. Todavia, quase todas as herdades de que a
CDR se ocupou foram mais tarde ou mais cedo ocupadas.
No Outono de 1975, a CDR toma algumas decisões
relativas a unidades colectivas, em particular ordena
transferências de assalariados. Assim se afirma a vocação
essencial da CDR: depois do desemprego, a planificação
integral da força de trabalho. Como, em paralelo, o
sindicato centraliza razoavelmente a oferta de mão-de-
obra junto dos agricultores privados, o controlo do trabalho
fica quase assegurado.
Apesar de, na prática, a CDR e as CTC não terem
cumprido todas as missões que o Governo lhes atribuiu,
foram todavia eficazes nalgumas funções, em especial no
«emprego compulsivo». O que não é nada pouco: com
efeito, esta distribuição de trabalhadores preparou as
ocupações de terras e herdades. Segundo os testemunhos,
a maior parte dos ocupantes activos eram trabalhadores
temporários previamente colocados nas herdades.
As decisões da CDR são quase sempre favoráveis aos
sindicatos e aos grupos de trabalhadores, assim como,
mais tarde, às unidades colectivas. As necessidades gerais
de promoção do emprego, na perspectiva da CDR, tudo
justificavam. Chegou a oficiar ao Centro Regional de
Reforma Agrária sugerindo um faseamento «das áreas
expropriáveis […] e de ocupação de terras»235.
Ao contrário dos conselhos regionais, que
frequentemente ultrapassavam as suas competências, a
CDR limita-se geralmente aos seus poderes legais. Mesmo
quando convoca agricultores através da polícia, não pode
deixar de se admitir que tinha poderes para isso e que
assim procurava utilizar todos os meios adequados ao
cumprimento das funções legais. Estas eram bem mais
institucionais e estatais do que consultivas. Teriam mesmo,
curiosamente, um certo carácter corporativo, na medida
em que havia fusão de entidades públicas e privadas no
exercício de poderes administrativos. Por razões políticas,
mas também por causa da composição das comissões,
esta fusão aproveitou exclusivamente aos sindicatos.
Assim é que, do ponto de vista dos trabalhadores
temporários, dos desempregados e dos sindicatos, a acção
da CDR e das CTC foi socialmente positiva e eficaz:
garantiu empregos e salários; pressionou e cercou os
proprietários, levando-os por vezes à insolvência; e abriu a
porta às ocupações.
Na óptica dos agricultores e dos proprietários, é
evidentemente o contrário: estas comissões destruíram
empresas privadas. Consideram que os critérios de
avaliação e de distribuição de mão-de-obra eram errados.
E queixam-se de terem sido obrigados a ficar com
trabalhadores sem que houvesse trabalho nas herdades ou
de terem recebido pessoal a mais.
Não é possível julgar rigorosamente o bem fundado dos
critérios técnicos e económicos invocados pelos sindicatos
e pela CDR, nem o dos argumentos avançados pelos
proprietários. Com efeito, as decisões eram tomadas a
partir de informações rápidas, ou mesmo verbais, na
sequência de visitas individuais às herdades. Algumas
informações superficiais bastavam: superfícies, tipo de
cultivos e número de trabalhadores já ocupados. (Para
cada decisão, o processo é demasiado simples e não
permite uma avaliação rigorosa. As opiniões dos
agricultores, relativamente à realização de novas tarefas e
à ocupação de mais pessoal, são sempre negativas.
Todavia, a argumentação não esclarece sobre as questões
técnicas.
Um proprietário, J. B. Núncio, invoca as más condições
económicas em que se encontra e afirma simplesmente
que não pode empregar mais ninguém236. A proprietária da
herdade «Brunheira do Meio» pede à CDR que não coloque
mais ninguém, visto que «não tem mais meios para pagar»
e que a sua outra herdade, o «Monte da Vinha», já está
ocupada237. O proprietário da «Barradas» e da «Fonte do
Cortiço» afirma que não pode empregar mais nove
trabalhadores, «além dos cinco permanentes que já lá
estão»; requer uma nova inspecção, acrescentando que a
sua exploração ultrapassa os níveis máximos de
intensificação238. Como estes, os exemplos são às centenas.
São muito poucos os casos em que os proprietários
aceitam explicitamente as decisões das comissões. O da
«Freixeira», por exemplo, diz que aceita receber mais 14
mulheres que foram colocadas, «mas só para evitar
conflitos», dado que não são necessárias239. Muito
raramente, menos de uma dezena de vezes, a CDR aceita
os argumentos dos proprietários. Na herdade de «Vale do
Orgo» reconhece as dificuldades económicas invocadas e
manda suspender os trabalhos em curso, «apesar de a
herdade exigir obras de beneficiação»240. Na herdade
«Veiga de Baixo», a CDR suspende também os trabalhos,
dado que o proprietário se encontra numa situação
financeira grave241.
Inversamente, em carta dirigida à CTC de Alcácer do Sal,
a CDR afirma peremptoriamente que «a fraqueza
económica invocada pelo proprietário não deve fazer
obstáculo à continuação dos trabalhos, dado que estes se
justificam tecnicamente»242. À sociedade «Barrosinha», a
CDR comunica que os trabalhadores que lá são
considerados excedentários só poderão ser despedidos
depois de terem encontrado trabalho noutro sítio243. E ao
proprietário de «Vale do Carmo», a CDR escreve: «[…] não
compete à CDR pronunciar-se sobre as dificuldades
económicas dos empresários agrícolas, mas só justificar
tecnicamente os trabalhos que é preciso efectuar e que,
por consequência, o pessoal colocado pela CTC de
Santiago de Cacém deve ficar.»244
Estas polémicas são previsíveis. Apesar dos argumentos
técnicos e económicos, o diferendo é social e político. Os
proprietários entendem que as suas herdades estão bem
cultivadas. Os sindicatos não cessam de repetir que as
herdades estão geralmente subaproveitadas, que há
milhares de hectares a cultivar e que se podem criar
numerosos novos empregos.
Os sindicatos estavam, evidentemente, interessados em
defender os direitos e as aspirações dos seus membros e
em garantir os empregos a qualquer preço. Queriam
avançar até à reforma agrária e alterar a estrutura da
propriedade. Com este fim em vista, todos os meios eram
bons e legítimos, tanto mais que não faltava protecção
legal. Tratava-se de uma relação de forças, não de um
exame técnico e económico. Não havia consenso sobre as
estruturas de propriedade e de produção. O argumento da
viabilidade económica das empresas privadas só fazia
sentido para os proprietários. Os da garantia dos salários e
da continuidade do emprego só interessavam aos
trabalhadores.
A batalha era política. O que estava em causa era o
poder económico, a propriedade e a sobrevivência dos
proprietários. Depois da legislação sobre as expropriações,
os sindicatos não se deram mais ao trabalho de invocar a
situação agrícola de uma herdade: se tinha as dimensões
determinadas pela lei, era ocupada. Por vezes, mesmo
algumas que se encontravam abaixo desses limites não
escapavam.
A CDR e as CTC desempenharam-se eficazmente das
suas funções na via que conduziu à reforma agrária e às
ocupações. Institucionais e estatais pela sua origem e
pelos seus poderes, estas comissões tinham uma actuação
revolucionária pelos seus métodos, objectivos e regras, de
comportamento. Elemento de fusão de interesses entre
sindicatos e administração pública, contribuíram para a
realização da revolução através do Estado.
Na ausência de um poder político unitário e estável, os
reformismos tinham falhado. No aparelho de Estado
infiltrava-se um novo poder, colocando a seu proveito as
engrenagens da administração245. Mas este mesmo poder,
ou convergência de poderes, do PC e do MFA, não contava
exclusivamente com o Estado. A pressão das «bases», os
movimentos sociais, os sindicatos e grupos de toda a
espécie, colaboravam igualmente na conquista política. A
junção das várias dinâmicas, do centro e da periferia, das
cúpulas e das bases, ou das organizações e dos
movimentos, efectuou-se em certos organismos públicos
onde colaboravam as instituições civis, as forças armadas,
o partido e os sindicatos.
A luta pelo poder político sobrepunha-se aos esforços de
reformas sociais, aos programas de mudança gradual e aos
consensos necessários à concretização de uma política
social e económica. As dificuldades económicas,
crescentes desde Abril de 1974, a multiplicação dos
conflitos sociais, institucionais e políticos, contribuíram
para uma certa paralisia do Estado. Neste contexto,
comunistas e militares não estavam muito interessados em
reformas, pois que perceberam que podiam ir muito mais
longe. O reformismo era impossível ou foi tornado
impossível. Em seu lugar houve a revolução.

195 Ver, por exemplo, o «Programa para a democratização da República»


(1961); o «Programa eleitoral da CDE» (1968); além dos programas do PC e do
PS.

196 Ver o Capítulo VI, «A ocupação institucional».


197 Por exemplo: o MOLA, movimento livre dos agricultores das regiões de
pequena e média exploração a Norte do Tejo, a 5 de Junho de 1974; a União dos
Produtores de Fruta de Portugal, a 6 de Junho; a direcção da Federação dos
Grémios de Braga, a 12; os representantes dos produtores de tomate do Caia, a
17; e ainda as ligas dos pequenos e médios agricultores, as comissões «pró-
sindicato», representantes de proprietários, etc.

198 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os prémios da lavoura»; assim como Manuel
Lucena, Instituições […], op. cit.

199 Ver, por exemplo, o Avante! de 16 de Agosto de 1974. Apesar de com


menos frequência, também os socialistas divulgam os seus pontos de vista e
denunciam, como fez a Federação de Beja, «as manobras da reacção fascista-
capitalista de alguns agricultores que pretendem fazer despedimentos em vez
de cultivar as terras […]» (moção de 17 de Setembro).

200 Avante!, 12/7/1974.

201 Houve greves ou pequenas paragens de trabalho, por exemplo, em


Montemor (Junho), Azambuja e Benfica do Ribatejo (Agosto), Almeirim,
Salvaterra de Magos e Chamusca (Setembro), etc. As greves duravam poucos
dias, por vezes horas.

202 Decretos n.os 547/74, de 22/10/1974; 573/74, de 31/10/1974; 580/74, de


5/11/1974; e 699/74, de 6/12/1974.

203 Decreto-Lei n.º 201/75, de 15/4/1975.

204 Ver o Boletim do Movimento das Forças Armadas de 26/11/1974. Um artigo


intitulado «É urgente começar o processo de reforma das estruturas agrárias»
conclui: é preciso «obrigar os proprietários a obter níveis mínimos de produção e
substituir os proprietários absentistas por organismos especializados da
administração pública». O número do Boletim de 14/1/1975 retoma a questão e
explicita melhor os critérios e os objectivos da expropriação. O Boletim de
11/2/1975 descreve elogiosamente a reforma agrária argelina e cita-a como
exemplo para Portugal.

205 A equipa responsável era composta pelo ministro de Estado (major Melo
Antunes) e pelos ministros Emílio Rui Vilar e José Silva Lopes e secretário de
Estado Vítor Constâncio. O programa é aprovado pelo MFA a 4 de Janeiro e pelo
Governo a 5 de Fevereiro.

206 Em Oeiras está sediada a Estação Agronómica Nacional.

207 Os arquivos do Gabinete de Estudos Rurais, da Universidade Católica,


conservam um grande lote de documentação relativa às CIC, assim como
transcrições de entrevistas inéditas com vários técnicos, como por exemplo J.
Dordio, G. dos Santos e F. Borba. Ver ainda A. Barreto, Memória […], op. cit.
208 O Século, 19/10/1974. A segunda série de reuniões realiza-se em fins de
Novembro, de novo em Oeiras. As sessões são muito mais politizadas. Além dos
secretários de Estado, o primeiro-ministro também está presente. O seu longo
discurso, típico do seu estilo populista muito peculiar, e sucessivamente
moderado, emotivo e revolucionário: «É preciso que sejamos todos militantes
nos locais de trabalho. […] Aquele que não estiver disposto a seguir os novos
caminhos deve dar o seu lugar aos mais novos. […] Um novo regime está
instalado e ou vai ou racha!», in O Século, 30/11/1974.

209 São várias, espalhadas por todo o País, num total de cerca de 10 000 ha.
Tinham em geral bons recursos, mas a sua gestão era medíocre.

210 «Couto da Várzea», «Abóbada», «Comenda», «Alfarófia», «Revilheira» e


«Lameirões».

211 «Pontal», «Judia», «Meliça», «Girvaz», «Carrapatal», «Mouchão do Inglês»,


«Caveira», «Ervideira de Baixo» e «Lamaçais».

212 Por exemplo, a 12 de Outubro de 1974, o Sindicato de Beja remete uma


lista de herdades que considera subaproveitadas: «Monte da Serra», «Rosas»,
«Marquesa», «Estacas», «Sobral», «Delicada», «Trolão», «Apariça», «Assentos»,
«Miranda», «Lameiras» e mais duas dezenas. Só duas, «Apariça» e «Assentos»,
foram consideradas mal cultivadas; para estas, a CIC propôs o arrendamento
compulsivo ao Estado.

213 Eram nomeadas as «casas agrícolas» de J. B. Núncio, A. Murteira, M. B. e


Silva, A. L. V. Lobos e C. Sabino.

214 Testemunho inédito do engenheiro J. Dordio.

215 Alvito, Cuba, Ferreira, Aljustrel, Beja, Vidigueira, Moura, Serpa, Mértola e
Castro Verde.

216 Alcácer do Sal.

217 Benavente.

218 Cf. M. J. Nogueira Pinto, O Direito […], op. cit.; do mesmo autor, O Processo
de Contratação Colectiva Rural e o Emprego Compulsivo, 1974/76: Elementos
para o Seu Estudo Jurídico, GER, Lisboa, 1981; Margarida Moura, Contribuição
para a História da Contratação Colectiva, do Trabalho Rural na ZIRA, 1974/76,
GER, Lisboa, 1981; e António Barreto, «Classe e Estado: os sindicatos de
trabalhadores rurais e a reforma agrária, 1974/76», in Análise Social, Lisboa, n.º
80, 1984.

219 Almeirim, Coruche, Cartaxo, Chamusca, Santarém e Golegã.

220 Fronteira e Castelo de Vide.


221 Azambuja.

222 Do lado dos sindicatos há várias espécies de assinaturas: «Comissão pró-


sindicato», «Sindicato», «Comissão de trabalhadores» e mesmo «Casa do Povo».
A situação é idêntica no caso do patronato: «Associação de agricultores»,
«Associação livre de agricultores», «ALA», «Comissão de agricultores», «Grupo
de agricultores» e também «Grémio». Todos os contratos estão publicados no
Boletim do Ministério do Trabalho, Lisboa. A maior parte das assinaturas são
«ilegíveis», no dizer do Boletim.

223 Ver outros exemplos no Avante! de 5/7/1974 e A Capital de 10/8/1974 e de


16/1/1975.

224 Ver artigos do Avante! de 2/8/1974 e de 22/11/1974.

225 Alguns dos muitos nomes utilizados são: «comissão paritária», «comissão
de verificação», «comissão de colocação», «comissão concelhia» e «comissão
local de agricultores».

226 Aljustrel, Alvito, Beja e Cuba, in B. M. T. (Boletim do Ministério do Trabalho),


n.º 32, 29/8/1974.

227 Cuba, ibidem.

228 Vidigueira, ibidem.

229 Castro Verde, in B. M. T., n.º 35, 22/9/1974.

230 In B. M. T., n.º 43, 22/11/1974.

231 In B. M. T., n.º 36, 22/9/1975.

232 Carta dirigida ao secretário de Estado do Trabalho pela CDR, 31/5/1976.

233 Capitão Chumbinho e advogado Sítima, respectivamente. Ver as actas da


CDR de Setúbal, de que o Gabinete de Estudos Rurais (GER) possui uma cópia.

234 Carta de 29/4/1976 dirigida ao governador civil.

235 Carta de 2/9/1975 (D. 579 dos arquivos do GER).

236 Carta de 4/3/1975 (D. 688, GER).

237 Carta de 24/2/1975 (D. 700, GER).

238 Carta de Abril de 1975 (D. 701, GER).

239 Carta de 5/4/1975 (D. 689, GER).


240 Resolução de 27/3/1975 (D. 745, GER).

241 Resolução e carta de 1/4/1975 (D. 687, GER).

242 Carta de 9/4/1975 (D. 776, GER).

243 Carta de 5/3/1975 (D. 748, GER).

244 Carta de 3/4/1975 (D. 771, GER).

245 Durante o primeiro ano, a relativa passividade do Governo em matéria


agrária pode parecer surpreendente. A este propósito, Salgado Zenha, ministro
de vários governos provisórios e presidente do grupo parlamentar do PS na
primeira legislatura, afirmava na Assembleia da República: «Um dos mistérios
aparentes da revolução de 25 de Abril reside no facto de ser somente a 29 de
Julho de 1975, isto é, mais de um ano após o derrube do fascismo, que as leis
agrárias gonçalvistas conheceram a luz do dia. Isto é tanto mais estranho
quanto é certo que, desde o princípio, todas as correntes democráticas e
progressistas as reclamavam perante o consenso geral das forças militares e
políticas então hegemónicas. Um facto é no entanto evidente: Vasco Gonçalves
e Álvaro Cunhal, verdadeiro co-presidente dos governos provisórios desde Julho
de 1974, a isso se opuseram sempre prontamente», in Diário da Assembleia da
República de 19/7/1977.
CAPÍTULO IX

A CONQUISTA DA TERRA

No início de 1975, o poder político da esquerda e da


extrema-esquerda é incomparavelmente maior do que o
seu poder social e económico. Os comunistas, os
sindicatos, os militares do MFA e, em menor escala, os
socialistas controlam uma boa parte das instituições, do
aparelho de Estado e da imprensa. O Governo de aliança
ou de composição está praticamente paralisado e hesita
perante as reformas e a acção. A presença do PS, do PPD e
de outros moderados impede o «núcleo radical», composto
pelo primeiro-ministro, os comunistas e os militares, de
dispor à vontade do Governo. O MFA e o PC não se
desinteressam do Governo, mas prestam mais atenção aos
sindicatos e às forças armadas, assim como a movimentos
sociais que se desenvolvem. As comissões de
«moradores», de trabalhadores e de empresa e toda a
espécie de grupos proliferam.
A direita está derrotada. Os empresários estão cercados
e sentem-se ameaçados. Uns deixam de correr riscos
económicos, outros vão-se embora para o estrangeiro. Os
partidos de centro e de direita não têm força nem
organização. O PS, com um pé na revolução e outro na
democracia, não consegue orientar o movimento.
Com o 11 de Março, o PC, os esquerdistas e o MFA
consolidam a sua preeminência política, no Governo e nas
forças armadas, e nacionalizam os grupos económicos. A
revolução encontrou a sua base económica.
Na rua, a agitação é intensa. As manifestações sucedem-
se às manifestações, os cortejos às concentrações, uns
sempre mais à esquerda do que outros. Multiplicam-se os
comícios e as sessões de esclarecimento convocados pelos
partidos e pelo MFA. Nas empresas, nos serviços públicos e
nas escolas, o clima é semelhante. Um pouco por todo o
lado, as «bases», ou os que usam o nome, tomam poderes,
saneiam, nomeiam e exigem. A agitação acompanha o
medo, a euforia e a inquietação misturam-se.
No Alentejo, a ascensão dos sindicatos parece irresistível.
Apoiados pelos militares e enquadrados pelos comunistas,
tomam posições cada vez mais importantes no aparelho
de Estado. Ganham os contratos colectivos de trabalho.
Impõem-se aos proprietários. Os seus aliados nas câmaras
e nos serviços públicos reforçam-nos.
Os proprietários têm medo, mas as suas reacções são
diversas. Uns conseguem «actualizar-se», aumentam os
salários, melhoram as condições de trabalho e de
alojamento dos trabalhadores e esperam assim ser
reconhecidos. Há quem cultive mais terras do que
habitualmente, na esperança de não ser apontado ou
penalizado. Outros escolhem a passividade: não
abandonam, agem pouco, não correm riscos nem
investem. Alguns, mais nervosos ou mais calculistas,
tentam vender o cereal e o gado, talvez mesmo máquinas
e terras. Outros vão para o Brasil ou para Espanha.
Nada disto é bom para o emprego, tanto mais que é
Inverno. O clima político e a desorganização do Estado
também fazem reduzir as obras públicas e a construção.
Os desempregados regressam às aldeias e olham para as
herdades.
Em Lisboa, nas cidades, nas indústrias e na
administração, tanto como nos serviços e no comércio,
toda a gente ganha mais do que há um ano. Não é
propriamente a prosperidade, mas os aumentos salariais
concedidos pelo Estado e pelas empresas ultrapassam por
vezes os 30%. As classes médias e os operários gozam de
condições de vida e de níveis de consumo que nunca
conheceram antes.
Para esta realidade olham os camponeses de todo o País,
os assalariados do Alentejo, os trabalhadores temporários
e os desempregados. Por que razões não terão a mesma
sorte?
Os camponeses do Norte, resignados ou voluntaristas,
viram-se para si próprios: dependem do seu trabalho, que
é muito, e das suas terras, que são pequenas. Talvez o
mercado e os preços tragam alguns benefícios…
Os assalariados do Alentejo não têm motivos para olhar
para si próprios. Não têm terras suas, apenas vendem o
trabalho, desde que haja comprador, o que, neste Janeiro
de 1975, não acontece frequentemente.
Os trabalhadores alentejanos olham para as terras dos
proprietários. Nunca tinham pensado nisso. As suas lutas,
há 10, 20 ou 30 anos, tinham outros motivos: os salários,
os horários, a alimentação… Numa palavra, o emprego.
Nunca a terra. Nunca tinham ousado e, aliás, não a
saberiam cultivar sozinhos. Os mais idosos lembravam-se
talvez dos seus pais, em 1911, logo a seguir à fundação da
República: milhares de trabalhadores em luta, centenas de
greves e dezenas de sindicatos formados. Antes de tudo
perderem, tinham então obtido melhores salários e
melhores condições de vida. Mas não a terra, que aliás não
tinham perdido, nem talvez desejado.
Os trabalhadores olham para as terras e para as
herdades. É ali que é possível encontrar emprego. Na
emigração já não é possível. Nas cidades já não há para
todos, pois que alguns até voltam à aldeia. Os assalariados
alentejanos sabem que muito dificilmente conseguirão os
mesmos benefícios que os operários da indústria ou os
funcionários públicos. Mas, bem pior, correm o risco de vir
agora a perder o que ganharam desde o princípio dos anos
60: emprego mais seguro e melhores salários.
Os tempos da fome e da mendicidade já passaram, mas
não estão assim tão longe. Recordam-se ainda dos anos 40
e 50, quando era preciso andar a pedir trabalho em
Novembro, pão em Janeiro e esmola em Agosto… E
obedecer sempre. Diante da insegurança do presente, a
memória crispa-os.
Olham para as terras e as herdades, mas também para
os sindicatos, novos em folha, e para o Partido Comunista,
o único de que se lembram. O partido e os sindicatos já
conseguiram para eles, desde Abril de 1974, contratos
colectivos que nunca tinham tido, melhores salários, um
pouco mais de segurança, força negocial e sobretudo um
estatuto mais digno. Só que essas regalias não chegam
para toda a gente. A todos, o partido e os sindicatos
mostram o caminho e dizem onde se encontra a solução:
as herdades dos capitalistas e as terras dos latifundiários.
Os funcionários, que os trabalhadores sempre tinham
visto distantes e burocratas, dizem-lhes desta vez que é
preciso fazer a reforma agrária, dividir as terras, ocupar as
herdades. É também o que o Governo diz: que há terras
incultas e que a terra deve ser para quem a trabalha.
A polícia e a Guarda Republicana, que os trabalhadores
se habituaram a ver sempre do outro lado das
manifestações, não fazem nada agora, ficam nas
esquadras e nos quartéis. Consta mesmo que foram
desarmados.
Os militares, enfim, último sinal de poder e de ordem,
última forma da autoridade do Estado, só têm uma coisa
para lhes dizer: é preciso acabar com os capitalistas e os
latifundiários, vamos fazer o socialismo, é preciso ocupar
as terras e fazer a reforma agrária.
É o que os trabalhadores fazem. Ocupam as terras e as
herdades.

As ocupações
A preparação não faltou. Entre Setembro de 1974 e
Março de 1975 foi intensa a actividade no terreno:
sindicalistas, militares, militantes, funcionários e técnicos
dão o seu contributo. Gente da cidade, ao serviço do
Estado ou do partido, ou dos dois, colabora também. Em
milhares de reuniões nocturnas, nas aldeias e nos montes,
preparam-se planos e trabalham-se as consciências. Numa
actividade que lembra os tempos da clandestinidade,
grupos de duas a cinco pessoas vão de aldeia em aldeia,
de herdade em herdade, ao encontro dos trabalhadores.
Anunciam-se os contratos colectivos, sublinham-se as
regalias obtidas e discutem-se os direitos dos
trabalhadores. Faz-se o inventário dos problemas locais,
mas também o das herdades e das máquinas. Mede-se a
adesão e o entusiasmo dos trabalhadores, mas avalia-se
também o estado das culturas e o grau de utilização das
terras.
As primeiras ocupações não definem exactamente o
modelo do que vai seguir. Com efeito, algumas fazem-se
em herdades que já pertencem ao Estado. Outras são o
fruto da colaboração entre assalariados e pequenos
agricultores, o que não voltará a acontecer dois meses
depois.
Os proprietários «ocupados» entendem que se tratou
sempre de «gente de fora», dos serviços públicos e das
forças armadas246. Esta opinião só reflecte uma pequena
parte da verdade. Nas ocupações há gente de fora (da
administração, do exército e de outros sectores de
actividade, até das universidades), mas também gente de
dentro: trabalhadores permanentes e sobretudo
temporários e desempregados. A dinâmica da ocupação é
geral, estende-se a toda a região, pouco depende dos
méritos ou das culpas de um empresário individual.
Para esta dinâmica contribuem as pressões exercidas
pelos militares, sindicatos, militantes comunistas e
esquerdistas, no plano tanto local como nacional. É uma
autêntica vaga que pode tomar a forma de influência e de
arrastamento. Mas também de contágio ou de intimidação.
Por exemplo, um membro do comité central do PC, Dinis
Miranda, num comício de Montoito, a 7 de Setembro de
1975, «ameaçou os trabalhadores, no caso de eles não
ocuparem as herdades, de trazer homens de Montemor
que o fariam»247. Na sequência desta reunião, dez herdades
são ocupadas na localidade248. Outro responsável do PC,
Joaquim Diogo Velês, parece ter agido do mesmo modo nos
concelhos de Alter do Chão, Avis e Ponte de Sor249. Outro
exemplo, em Cabeção, distrito de Évora, onde «12 grandes
e médias herdades são ocupadas por trabalhadores e por
forças militares da Escola Prática de Artilharia de Vendas
Novas»250.
Quando começaram as ocupações? Em Novembro de
1974, um conflito está na origem da primeira exploração
colectiva de uma herdade por trabalhadores. Mas não se
pode ainda dizer que se trata de uma verdadeira
ocupação. Com efeito, o «Mouchão do Inglês», em
Alpiarça, é propriedade do Estado: uma parte da herdade
foi entregue aos técnicos e aos trabalhadores.
A primeira ocupação será a da herdade do «Outeiro» ou
«Herdade do Zé da Palma», no concelho de Beja. É a única
que se verificou ainda em 1974. Com uma superfície de
775 ha, teria apenas 200 ha cultivados251. O proprietário
recusou dois trabalhadores colocados pelo sindicato e
pretende despedir outros 12. Os trabalhadores ocupam
parte das terras e apelam para o Governo. Este, a 25 de
Janeiro de 1975, declara a intervenção do Estado e nomeia
uma comissão administrativa. Imediatamente são
admitidos 34 trabalhadores permanentes e 20 eventuais252.
A 8 de Janeiro, em Évora, a herdade do «Pombal» é
temporariamente ocupada (a 3 de Fevereiro sê-lo-á
definitivamente) por alugadores de máquinas. Ainda em
Janeiro, a 27, é tomada a herdade dos «Alpendres», em
Beja.
O ritmo aumenta muito lentamente. Até ao fim de
Janeiro, menos de um milhar de hectares são ocupados.
Em Fevereiro, mais 7343 ha, particularmente as seguintes
herdades: «Defesa», em Évora; «Picote», em Montemor;
«Sousa da Sé», «Almendras», «Raimunda», «Botaréus»,
«Aldeia de Cima», todas em Évora; «Quinta da Ferraria»,
em Alcoentre; os restos do «Mouchão do Inglês», em
Alpiarça; e outras nos distritos de Beja, Portalegre e
Lisboa253.
Até Janeiro de 1976, serão ocupados 1 182 924 ha. Esta
superfície pertence a cerca de 4000 herdades, na posse de
aproximadamente 1000 famílias254.
Ocupações: distribuição mensal
(superfícies em hectares)

1975:

Janeiro 907

7
Fevereiro
343

5
Março
233

10
Abril
353

8
Maio
226 Mais 28 698 ha nos distritos de Lisboa, Santarém e Setúbal,
30 mas cujas datas exactas de ocupação não são conhecidas.
Junho
933

64
Julho
303

169
Agosto
236

153
Setembro
643

230
Outubro
222
Novembro 230
222

37
Dezembro
000

1976:

17
Janeiro
635

Uma «periodização» das ocupações põe em relevo a


importância decisiva das mudanças políticas a nível
central, assim como a das medidas legislativas do
Governo.
Os seis períodos de ocupação de temas

Números
Períodos de Hectares Percentagem
meses

Desde 25 de Abril de 1974 até à primeira


medida preparando a reforma agrária, o 8 0 0
«Programa de política social e económica»

Desde a aprovação do PPSE até à


ratificação das leis de reforma agrária n.os
3 13 483 1
203/75 e 207/75, na sequência do 11 de
Março

Desde as leis-programa até à aprovação


das leis de expropriação e de 4 142 513 12
nacionalização dos perímetros regados

Desde as leis de expropriação até à


criação de um sistema de crédito para o
2 322 879 27
pagamento de salários das herdades
ocupadas e das UCP

Desde a entrada em vigor do sistema de


2 649 414 55
crédito até ao 25 de Novembro

Desde o 25 de Novembro até ao acordo


entre os partidos sobre a reforma agrária, 2 54 635 5
em Janeiro de 1976

Total 1 182
21 100
924
As primeiras ocupações, apenas 1%, verificam-se depois
da aprovação do «Programa de política social e
económica», no qual são consagrados os princípios da
reforma agrária e da eventual expropriação. A seguir ao 11
de Março, criado o Conselho da Revolução e formado o
novo Governo, bem mais à esquerda, é aprovado um
programa de reforma agrária, que toma a forma do
Decreto-Lei n.º 203-C/75. Aí estão previstas as
expropriações, mas ainda não os mecanismos adequados.
Os resultados são todavia visíveis: 12% das ocupações.
Após a aprovação das leis de expropriação e de
nacionalização, que incluem a definição dos limites de
propriedade, as ocupações multiplicam-se (27% em dois
meses), mesmo se ainda não estão legalmente definidos
os critérios de avaliação e os processos de exploração.
As ocupações levantam problemas aos trabalhadores.
Como subsistir imediatamente? Quem paga os salários e
fornece o fundo de maneio? Os sistemas de agricultura
alentejanos não criam entradas regulares e constantes de
fundos. Conforme as herdades e as suas produções, há
momentos privilegiados para recebimento pelas colheitas:
os cereais, a cortiça e, quando os há, o azeite, o tomate e
as oleaginosas; além do gado, do vinho, da madeira e do
carvão, sendo estes bem mais raros. Para as herdades
ocupadas, as grandes fontes de receitas são os cereais e a
cortiça. Alguns, que ocuparam as herdades antes das
colheitas, obtiveram ainda a liquidez necessária para
prosseguir os cultivos. Outros, tendo ocupado depois,
conseguiram ainda que o Instituto dos Cereais pagasse a
eles e não aos antigos proprietários. Mas a maior parte
corre o risco de não ter rendimentos, o que quer dizer não
pagar salários nem suportar os encargos dos trabalhos de
Outono e de Inverno, em especial alqueives e sementeiras.
Esta situação pode ter constituído um dissuasor de
ocupações, já em Setembro.
No fim desse mês, o quinto Governo é demitido. O seu
sucessor, de maioria socialista, inclui Lopes Cardoso na
Agricultura, um partidário da reforma agrária. Com ele,
dois secretários de Estado socialistas e um comunista. No
dia 27, os Ministérios da Agricultura e das Finanças fazem
publicar o Decreto-Lei n.º 541-B/75, que permite que o
crédito agrícola de emergência (CAE) seja utilizado para o
pagamento de salários das UCP e das herdades ocupadas.
Foi um autêntico detonador. Imediatamente as ocupações
se multiplicam a um ritmo até então desconhecido: cerca
de 420 000 ha em Outubro e 230 000 ha em Novembro.
Fins de Novembro: o MFA radical e os esquerdistas são
vencidos. O PC também e corre o risco de perder o seu
lugar no Governo, mas é «salvo» pelos militares
moderados e pelos socialistas. Os comunistas ficam na
defensiva. Os militares radicais são progressivamente
substituídos, tanto nos comandos nacionais como nas
unidades, incluindo alentejanas. Tudo isso demora um
certo tempo. As ocupações decrescem rapidamente: 5%
em dois meses. Cessam inteiramente quando os partidos
do Governo (PS, PPD e PC) e o MFA assinam o acordo sobre
a reforma agrária. Ainda há, todavia, centenas de
herdades que ultrapassam os limites estabelecidos na lei e
que não foram ocupadas. Paradoxalmente, a maior
herdade do País, «Rio Frio», com perto de 15 000 ha, não é
ocupada. Algumas das maiores e mais modernas empresas
agro-industriais, como a «Alorna», «Caia-Sagrep» e
«Sugal», não são tocadas. Mas as relações de força estão
mudadas. O PC prepara-se para uma longa e agressiva
defesa das suas conquistas territoriais e económicas,
protegidas agora por uma muito legal «zona de
intervenção». A direita começa a sua ofensiva. Os
socialistas, pela sua parte, vão tentar conservar e mudar
ao mesmo tempo, tarefa árdua, por vezes impossível.
Do ponto de vista regional, as ocupações distribuem-se
do seguinte modo:
Distribuição distrital das superfícies ocupadas
e sua parte nas superfícies cultivadas de cada distrito (a)

Superfícies
Percentagem da superfície
Distritos ocupadas Percentagem
cultivada do distrito (b)
(em hectares)

Beja 328 699 27,8 33,0

Castelo
10 877 0,9 3,7
Branco

Évora 431 183 36,5 59,5

Lisboa 6 583 0,6 13,9

Portalegre* 233 910 19,7 40,4

Santarém 76 571 6,5 21,0

Setúbal* 95 101 8,0 20,7

Total ZIRA 1 182 924 100,0 34,1


(a) A superfície nacionalizada dos perímetros regados, ou seja, 210 415 ha, não está incluída.
(b) Para os distritos de Castelo Branco, Santarém e Lisboa apenas se considera a superfície cultivada
incluída na ZIRA.
* Números aproximados; o total exacto nunca foi encontrado.

Cerca de um terço da superfície cultivada da região foi


ocupada. Acrescentando as superfícies nacionalizadas dos
perímetros de rega, obtêm-se 1 393 339 ha, seja 40,2% da
superfície cultivada da «zona de intervenção». Em termos
nacionais, trata-se de um património fundiário
considerável: 16% do território nacional e 19% da sua
superfície cultivada.
Com os regadios e a Companhia das Lezírias (igualmente
nacionalizada), a parte da superfície cultivada de cada
distrito ainda aumenta, sobretudo em Santarém e Setúbal,
onde os regadios têm mais significado: Beja, 37,7%;
Castelo Branco, 7,1%; Évora, 60,7%; Lisboa, 32,3%;
Portalegre, 42,9%; Santarém, 31,6%; Setúbal, 38,6%255.
Pelo número de ocupações e pela importância da
superfície cultivada, três distritos se evidenciam: Évora,
Beja e Portalegre. É o coração da região da grande
propriedade, quase todo o Alentejo se encontra aí.
Do ponto de vista cronológico, as ocupações foram mais
rápidas em Évora: quase dois terços antes de Setembro.
Beja aparece com certo atraso: 20% em Agosto e
Setembro, 66% em Outubro e Novembro. Portalegre
regista 23% até Setembro e mais 77% entre Outubro e
Dezembro. Em Castelo Branco, a maioria das ocupações
ocorrem em fins de Dezembro, o que é caso especial.
Lisboa parece ser o distrito onde as ocupações foram mais
rápidas, 68% até Julho, mas esta rapidez não é
significativa, pois a superfície ocupada é restrita (6583 ha)
e limitada aos concelhos de Azambuja e Vila Franca de
Xira. Em Santarém e Setúbal, o movimento é tardio:
respectivamente 64% e 71% das terras ocupadas são-no
durante o último trimestre do ano.
Não há uma ocupação-tipo. A variedade das
circunstâncias e dos participantes é grande. Nas primeiras,
cerca de duas dezenas, encontram-se pequenos
agricultores e alugadores de máquinas, definitivamente
ausentes nas seguintes. Trabalhadores e sindicalistas estão
sempre presentes. Na maior parte dos casos participam
assalariados permanentes, temporários ou eventuais e
desempregados da região. Os mais frequentes serão os
trabalhadores temporários. Em bastantes casos, longe no
entanto de serem a maioria, estão presentes trabalhadores
da construção ou vindos da cidade e da fábrica. A
participação das mulheres é muito elevada. Militares e
funcionários acorrem também: por vezes, antes da
ocupação, para discutir com os trabalhadores; muitas
vezes, durante a ocupação, armados ou não, em pequeno
ou grande número; sempre, depois da ocupação, a fim de
fazer inventário, aconselhar os ocupantes e apoiar a
criação de uma unidade colectiva. O número de ocupantes,
entre trabalhadores, funcionários e militares, pode
igualmente variar muito: entre uma dezena e várias
centenas.
Houve ocupações sem incidentes nem altercações, como
naquele caso, perto de Elvas, em que o proprietário conduz
de carrinha uma dezena de trabalhadores à herdade e,
quando se vai retirar, ouve: «Escusa de vir buscar-nos esta
tarde: nós ocupamos», após o que parte sem discussão256.
Algumas são decididas de «comum acordo» entre
proprietários e trabalhadores. Há casos em que o
proprietário, de boa-fé ou na esperança de ulterior
devolução, diz aos «seus» trabalhadores para ocuparem,
antes que venham «os de fora».
Há situações bem menos pacíficas. Em certos casos, os
agricultores resistem e conseguem mesmo impedir que a
ocupação se efectue. Os exemplos mais frequentes deste
tipo de comportamento são rendeiros, seareiros ou
pequenos proprietários257.
Quando, em grandes empresas, se verifica alguma
resistência, os acontecimentos podem revestir várias
modalidades. Os ocupantes cercam a propriedade, vêm
cada vez mais numerosos e, após uns dias, o proprietário
abandona. Ou então, muito mais simplesmente, os
ocupantes chamam as forças armadas. Os militares
apresentam-se, geralmente com o objectivo explícito «de
impedir conflitos e violência», o que aliás conseguem. O
resultado da operação é sempre a confirmação da
ocupação. Ou porque são essas as instruções superiores;
ou porque o oficial que comanda o destacamento está
convencido do direito dos ocupantes e está solidário com
eles; ou, finalmente, porque parece a melhor maneira de
evitar conflitos, isto é, entregar a propriedade aos mais
numerosos. Convencer o proprietário a partir, com a
promessa de um exame ulterior do caso, e enviar o
processo aos superiores e ao Ministério da Agricultura, eis
a solução que permitiu, com menores desgastes para os
militares, sair de múltiplos impasses.
Poucas situações deram lugar a reais violências físicas,
mais frequentes nas manifestações urbanas e nos comícios
do que nas ocupações258.
O caso da herdade de «Sousa da Sé» marcou uma data.
O Governo e as forças armadas intervieram
energicamente, foi uma autêntica advertência aos
proprietários e um encorajamento aos trabalhadores. A 15
de Julho de 1975, de manhã cedo, um grupo de
trabalhadores procede ao alargamento de uma ocupação
iniciada em Março, com o acordo do Centro Regional de
Reforma Agrária259. Os proprietários estão armados,
ajudados por alguns trabalhadores permanentes que
ficaram «fiéis» e por algumas pessoas do exterior. Há tiros
de parte a parte e um ferido grave de cada lado. Chegam
destacamentos militares e impedem a continuação da luta.
Oito pessoas, do lado dos proprietários, são presas. Após
rápido inquérito, os militares dão razão aos trabalhadores
e confirmam a ocupação. No dia seguinte, o ministro da
Agricultura desloca-se expressamente à «Sousa da Sé»,
trazendo aos trabalhadores a solidariedade do Governo e a
autoridade. As forças armadas, o Ministério e o Conselho
Regional de Reforma Agrária tomam posições firmes e
condenam «os reaccionários da pior espécie» e as
manobras dos que pretendem criar obstáculos «à justa luta
dos trabalhadores e às decisões dos órgãos do Governo»260.
O caso da «Sousa da Sé» serviu de exemplo e de aviso.
Os proprietários eventualmente dispostos a resistir pela
força sabem agora com o que podem contar. O ministro
ameaça tomar medidas legais contra os que pretendam
opor-se às ocupações, mesmo se estas, em princípio, são
ilegais261. Quem o fizer perderá o direito a futuras
indemnizações e a reservas de propriedade. De qualquer
modo, a presença das forças armadas é suficientemente
dissuasora. Esta realidade será talvez uma das principais
causas da ausência de violência, habitual nos processos de
reforma agrária ou de revoltas camponesas.
Houve também iniciativas estritamente militares. Na
Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas, por exemplo,
chegou a constituir-se uma «brigada de ocupações», ou
«brigada da reforma agrária», na qual se distinguiu o
capitão Andrade e Silva. Formava-se «um pequeno
destacamento com jipes que deixava de manhã cedo o
quartel e ia correr as herdades. Eram verdadeiros
revolucionários: levavam boinas ‘à Che Guevara’ e
cartucheiras à volta do corpo. Pegavam nuns
trabalhadores, dirigiam-se para uma herdade, deixavam-
nos lá e declaravam a herdade ocupada. Num só dia,
chegaram a ocupar 12 herdades desta maneira»262.
No entanto, a principal iniciativa pertence aos sindicatos
e às suas «comissões de ocupação», ou «comissões de
trabalhadores». Apesar de alguns improvisos, a maior
parte das ocupações foi precedida de uma preparação
mais ou menos minuciosa, chegando mesmo a haver uma
espécie de planeamento regional. Sendo verdade que
muitas ocupações se fizeram isoladamente, o certo é que
são numerosas as ocupações de herdades vizinhas no
mesmo dia ou na mesma semana.
Os dirigentes da unidade colectiva «Muralha de Aço»,
composta de várias herdades do concelho da Vidigueira,
contam como prepararam as ocupações. Escreveram
previamente ao Centro de Reforma Agrária. O sindicato
acompanhou a ocupação e fez os inventários. Um oficial
das forças armadas veio a seguir. Tudo se passou sem
problemas. Depois de organizada a UCP com as primeiras
herdades, planearam a segunda série de ocupações, mais
tarde, em Outubro, no mesmo dia. «Fizemos um estudo de
todas as herdades que ultrapassavam os limites definidos
pela lei», diz um dos responsáveis263.
Outro exemplo vem de Campo Maior. A acção foi
rigorosamente preparada. Na manhã de 20 de Agosto de
1975, o sindicato organiza grupos de quatro trabalhadores
cada um. Armados com caçadeiras, dirigem-se para as
várias herdades, que serão ocupadas simultaneamente:
«Castros», «Xévora», «Poço de Cima», «Poço de Baixo»,
«Ronquilha», «Vale de Albuquerque», «Salvador»,
«Mourinha» e Serrinha» . 264

Um responsável da CGTP confirma esta ideia de


preparação: «As ocupações não foram selvagens, sem
coordenação. Há evidentemente excepções, aquelas em
que os ocupantes não são trabalhadores, mas filhos de
proprietários que se divertem às revoluções. No essencial
dos 300 000 ha já ocupados, as acções decorreram de um
estudo detalhado das condições de produção e das
possibilidades de aumentar as taxas de utilização da
terra.»265
Além da intervenção dos sindicatos e dos militares, a do
PC, como tal, é também significativa. Conhece-se a
actuação dos membros do comité central em várias séries
de ocupações266. Longas listas de responsáveis partidários
vêm regularmente referidas nos relatórios que as unidades
militares deviam elaborar para os seus superiores, que
vêm aliás organizadas em secção autónoma: «Elementos
do PC intervenientes nas ocupações»267. Na ausência de
serviços de polícia e de informação, tais tarefas eram
desempenhadas pelas forças armadas. Em Julho, por
exemplo, os serviços de escuta militares interceptam um
telefonema da sede do PC em Évora para a sede do PC em
Lisboa pelo qual se transmite a lista de propriedades da
região que vão ser ocupadas268.
De qualquer maneira, as relações entre militantes
comunistas e sindicalistas são tão estreitas e intensas que
não é possível distinguir a génese partidária ou sindical
das ocupações. A maior parte dos dirigentes sindicais são
membros do partido e é como tal que se apresentam em
reuniões públicas e em eleições locais. Na acção dos
militantes J. Soeiro, J. Luís, M. Vicente ou Tibério não é
possível distinguir o que é partidário, o que é sindical ou o
que é cooperativo.
Sendo embora fortes e organizados, os sindicatos nunca
tiveram real autonomia em relação ao partido.
Curiosamente, não há líderes regionais ou nacionais vindos
dos meios camponeses e de assalariados. A revolução
alentejana não produziu os seus dirigentes. Os «heróis» da
reforma agrária são velhos funcionários do PC (D. Miranda,
A. Gervásio, D. Velês), um advogado e secretário-geral do
partido, dois generais (Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de
Carvalho) e alguns funcionários públicos.
Quando as ocupações se terminam, em Janeiro de 1976,
quase metade das terras e da produção agrícola do
Alentejo está nas mãos das unidades colectivas. Em certos
sítios, vastas extensões não são ocupadas: Almodôvar,
Castro Verde, Mértola, Odemira e Serpa. Estas herdades
não atraem a atenção de ocupantes: são solos geralmente
muito pobres, de capacidade agrícola nula ou reduzida. Só
uma dispendiosa reconversão permitiria que dali se
retirassem rendimentos, o que não está ao alcance dos
trabalhadores.
Pelo contrário, a maior parte das grandes herdades e
empresas modernas e produtivas foram prontamente
ocupadas. A ideia de penalizar o subaproveitamento e o
abandono, presente no espírito de todos em 1974, está
muito longe dos objectivos dos ocupantes de 1975. Estes
querem atingir a propriedade e a empresa capitalista. Os
poucos casos de grandes empresas que não foram
ocupadas explicam-se por razões circunstanciais. Nuns, os
trabalhadores permanentes aliaram-se aos empresários e
defenderam o statu quo269; noutros, as herdades estavam
situadas em regiões onde grande número de pequenos
agricultores constituíram uma verdadeira protecção ou
barreira dissuasora270. Estes casos, frequentes no Ribatejo,
são mais raros no Alentejo.
Também ocorreram situações excepcionais. Um
proprietário foi poupado porque tinha boas relações, no
antigo regime, com a oposição; outro, porque um oficial do
MFA lhe ficou a «dever a vida» no decurso de incidentes
num comício; outros, finalmente, porque, apesar de serem
notáveis do antigo regime, tinham relações familiares
estreitas com dirigentes de partidos de esquerda. Mas
estes casos são a «pequena história».
A paragem das ocupações não se ficou a dever a razões
particulares, agrárias ou regionais, mas sim gerais e
políticas. Há, todavia, fenómenos específicos e singulares
que influenciaram os acontecimentos. O meio camponês, a
densidade de pequenos agricultores, de rendeiros e
seareiros, travou, aqui e ali, a progressão dos ocupantes.
Conflitos locais entre trabalhadores e camponeses ou
pequenos agricultores marcaram uma espécie de limites
ou marcos. A verdade é que a «zona de intervenção»
legalmente definida parece ter fronteiras numa linha que
liga os locais de conflitos: Rio Maior, Almeirim, Alpiarça e
Gavião, a norte; Odemira, Ourique e Monchique, no Sul271.
Apesar destas particularidades, a principal razão para o
fim das ocupações é a mudança das relações de força em
finais de 1975. A assinatura da «plataforma» dos partidos
sobre a reforma agrária é o acto representativo da nova
situação. É o fim das ocupações e a demonstração das
estreitas relações existentes entre estas e o poder político.

As nacionalizações

As principais nacionalizações, actos política e


juridicamente diferentes das expropriações, foram as dos
perímetros regados. O seu instrumento legal é o Decreto-
Lei n.º 407-A/75, de 30 de Julho.
Estes perímetros são compostos por vários conjuntos de
prédios rurais, de dimensões muito diversas, beneficiando
em grande parte do acesso à rega. As obras foram feitas
depois dos anos 60, pelo Estado, e faziam parte do «Plano
de rega do Alentejo», que aliás ficou aquém dos seus
objectivos.
Constituem um total de 186 638 ha, assim distribuídos:
Campilhas e Alto Sado, 16 833 ha; Caia, 8597 ha; Idanha,
10 050 ha; Divor, 2225 ha; Loures, 77 ha; Mira, 12 208 ha;
Odivelas, 24 239 ha; Roxo, 8001 ha; Vale do Sado, 68 400
ha; Vale do Sorraia, 36 008 ha.
A esta superfície pode acrescentar-se a Companhia das
Lezírias, sociedade privada por acções, o maior conjunto
agrícola do País (23 777 ha) e um dos mais vastos da
Europa ocidental. Compreende uma extensa área regada,
além de grande parte em sequeiro. A sua nacionalização
foi decidida por Lopes Cardoso, já durante o sexto Governo
provisório. A Companhia está situada nos distritos de
Lisboa (8611 ha) e de Santarém (15 166 ha).
Trata-se de um património considerável, mais de 200 000
ha. Mas o seu valor económico, graças à água e à
qualidade dos solos, é muitíssimo maior do que superfícies
equivalentes em sequeiro: superior intensificação,
produção e produtividade mais elevadas, mais emprego e
maiores rendimentos.
A maior parte das terras regadas pertencem aos distritos
de Setúbal (82 609 ha), Beja (47 069 ha) e Santarém (38
650 ha). Portalegre (14 835 ha), Castelo Branco (10 050
ha), Lisboa (8688 ha) e Évora (8511 ha) vêm a seguir.
Uma parte muito importante destas superfícies
concentra-se em poucos concelhos: Alcácer do Sal (68 000
ha), Ferreira (23 000 ha), Coruche (18 000 ha), Odemira
(14 000 ha), Santiago de Cacém (12 000 ha) e Idanha-a-
Nova (10 000 ha).
As nacionalizações foram, por excelência, o meio estatal
de conquista da terra. As decisões foram políticas,
tomadas em laboratório, não implicaram nem tiveram
relações com movimentos sociais. Todavia, diversas forças
políticas encaravam favoravelmente a intervenção do
Estado nos regadios. Mesmo o moderado «Programa de
política social e económica» previa a expropriação da
maior parte das terras regadas com obras feitas pelo
Estado.
Trata-se, com efeito, de terras beneficiadas por grandes
obras de infra-estrutura, muito dispendiosas, financiadas
por dinheiros públicos. Ora, uma minoria de proprietários e
de grandes empresários teve, com estas realizações,
desproporcionadas vantagens e significativos lucros.
Enquanto uns aumentaram as suas produções com poucos
investimentos próprios, outros aumentaram os preços que
fizeram pagar aos rendeiros pelas suas terras272.
Do ponto de vista jurídico, a intervenção do Estado é
fácil: as barragens, as infra-estruturas e os equipamentos
pesados pertencem ao Estado. A superfície bonificada é
conhecida e medida. Nacionaliza-se o conjunto da área e
das explorações agrícolas abrangidas, deixando aos
agricultores com áreas inferiores a 30 ha os direitos de que
gozavam antes273.
Nestes perímetros não há praticamente ocupações de
terras até Agosto de 1975, data de promulgação do
decreto-lei. Tudo aqui é diferente do sequeiro. Não que
haja menos assalariados, bem pelo contrário. Mas é uma
agricultura diversificada que ocupa grande número de
pequenos agricultores, proprietários, rendeiros e seareiros
e que dá trabalho durante períodos mais longos. A
diversidade social e uma superior densidade de população
e de explorações agrícolas tornaram praticamente
impossíveis as ocupações, ou pelo menos mais difíceis.
Aliás, dois anos depois das nacionalizações (e mesmo dez
anos depois…), centenas de proprietários e de agricultores
não tinham deixado de trabalhar as suas terras, mesmo os
que possuíam muitas mais do que permitia a lei.

As expropriações

Para os prédios abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 406-A/75,


de 29 de Julho, é preciso agir de modo diferente, isto é,
caso a caso. Serão necessários inventários, medidas e
avaliações; e em seguida, por portaria, decretar as
expropriações individualmente.
Outro traço distingue estas explorações, por comparação
com as que foram nacionalizadas: estão quase todas
ocupadas, já estando mesmo criadas dezenas de unidades
colectivas de produção.
As primeiras expropriações acontecem em Setembro de
1975. Já há 400 000 ha ocupados. O quinto Governo
provisório chega ao fim. Receando o futuro e
desconhecendo o sucessor, o ministro da Agricultura
manda publicar no Diário do Governo portarias de
expropriação representando uma superfície de mais de
220 000 ha. O Governo seguinte não contraria esta
orientação, que aliás estava consignada na lei. As
expropriações prosseguem, a ritmos diversos, até Outubro
de 1976, havendo mesmo algumas em 1977 e 1978274. Ao
todo, foram legalmente expropriados 931 827 ha. Na sua
quase totalidade, trata-se de herdades previamente
ocupadas.
Evolução mensal das expropriações
(superfícies, número e dimensões médias das herdades)

Superfície Número Dimensão


Data
(em hectares) de herdades média

1975:

Setembro 221 099 389 568

Outubro — — —

Novembro 41 169 201 205

Dezembro 80 585 275 293

1976:

Janeiro 67 792 166 408

Fevereiro 6 665 14 476

Março 20 117 152 132

Abril 1 075 2 537

Maio 49 564 216 230


Junho 86 206 259 333

Julho 68 680 452 152

Agosto 262 177 1226 214

Setembro — — —

Outubro 1 589 73 22

1977 23 642 184 129

1978 1 467 14 105

Total 931 827 3623 257

O interesse desta evolução é mais político e


administrativo do que social. Não traduz o ritmo de
ocupações, é apenas o reflexo do trabalho e das
prioridades do Ministério.
As dimensões médias decrescem desde o início, sendo
finalmente bem reduzidas. As últimas são já parcelas ou
prédios pertencendo a proprietários que já foram
expropriados de áreas mais vastas.
O número de prédios expropriados atinge os 3623, mas o
de proprietários situa-se ligeiramente abaixo de 1000.
Nestas condições, o número de herdades por proprietário é
de quase quatro275. A dimensão média de terra possuída
por um proprietário, individual ou familiar, é de 950 ha a
1050 ha.
O total de 931 827 ha expropriados não atinge o de
terras ocupadas, que é de 1 182 924 ha. Com efeito,
muitas herdades ocupadas não chegaram a ser
expropriadas. A sua situação legal não virá a ser corrigida
tão cedo.
A superfície expropriada total inclui o conjunto de
propriedades visadas pela lei, abrangendo ainda a parte
que o proprietário poderia guardar: são as reservas,
previstas em termos restritos pela lei de 1975, mas
alargados pelas alterações de Janeiro de 1976. Com efeito,
as reservas não são conferidas em plena propriedade, mas
apenas como direito de posse e uso.
A distribuição regional das expropriações confirma as
observações feitas a propósito das ocupações. Évora, Beja
e Portalegre distinguem-se pelo número de herdades
expropriadas (1153, 1034 e 947, respectivamente), assim
como pelas superfícies: 425 290 ha, 164 910 ha e 179 062
ha.
Em certos concelhos, a superfície expropriada e
nacionalizada representa mais de metade da superfície
cultivada. No distrito de Beja: Barrancos (59,8%) e Ferreira
(58,7%); em Évora: Évora (72,9%), Mora (75,7%), Viana
(72,9%), Portel (71,3%), Montemor e Vendas Novas
(71,1%), Arraiolos (69%) e Redondo (59,6%); em
Portalegre: Avis (65,6%), Sousel (61,7%), Ponte de Sor
(59,6%) e Alter do Chão (53,7%); em Santarém: Coruche
(57%) e Chamusca (53,9%); e, finalmente, no distrito de
Setúbal: Alcácer do Sal (79,3%).
Na maior parte dos concelhos, as expropriações e as
nacionalizações representam entre 10% e 50% da
superfície cultivada. Na base da escala, com menos de
10%, encontram-se os concelhos seguintes: Almodôvar
(0,3%), Castro Verde (10%) e Mértola (7,9%), no distrito de
Beja; Castelo Branco (2,2%) e Vila Velha de Ródão (valor
insignificante), em Castelo Branco; nenhum no distrito de
Évora; Marvão (v.i.), Nisa (1,7%) e Portalegre (9,7%), em
Portalegre; Almeirim (2,5%), Constância (v.i.), Golegã (v.i.),
Rio Maior (3,7%), Salvaterra de Magos (2,6%) e Vila Nova
da Barquinha (v.i.), em Santarém; e, enfim, Sesimbra (v.i.)
e Setúbal (7,7%), no distrito de Setúbal, donde foram
excluídos os concelhos essencialmente urbanos, como
Almada e Barreiro.
Esta grande disparidade revela a diversidade de
situações sociais, económicas e naturais. Os concelhos
onde aquele valor é superior a 50% são os que registam as
mais altas percentagens de assalariados na população
activa agrícola, acima dos 85%276. Pelo contrário, nos
concelhos com taxas de expropriação mais reduzidas, a
população activa surge mais equilibrada, representando os
assalariados valores próximos dos 60%277. Há,
evidentemente, excepções, mas esta é a tendência geral
bem nítida.
Paralelamente, nos concelhos onde é maior o número de
agricultores autónomos, da ordem dos 20% a 40%, é
menor o número de ocupações e de expropriações. As
excepções, que também as há, são devidas à existência de
regadios, onde, por um lado, é superior o número de
pequenos agricultores, mas também são mais vastas as
superfícies nacionalizadas.
Do ponto de vista da sua distribuição geográfica, os
seguintes factores exerceram uma forte influência na
intensidade de ocupações e expropriações:

a) Percentagens mais elevadas de solos com boas


capacidades agrícolas;
b) Predominância da agricultura extensiva de sequeiro;
c) Maiores dimensões médias das herdades;
d) Taxas de proletarização elevadas;
e) Taxas de concentração de terras cultivadas;
f) Intensidade da produção de trigo.

Existe finalmente, como seria de esperar, uma forte


correlação entre as ocupações e os resultados eleitorais do
PC278.
Inversamente, os seguintes factores são desfavoráveis,
ou coexistem nos concelhos que registaram os mais baixos
índices de ocupação de terras:

a) Número de pequenos agricultores mais elevado;


b) Existência de regadios;
c) A má qualidade dos solos;
d) Maiores dimensões de terras incultas, subaproveitadas
ou não cultiváveis;
e) A baixa produtividade da terra;
f) As elevadas densidades de população;
g) A diversificação agrícola e a intensidade das culturas.

As unidades colectivas de produção

Uma coisa é ocupar terras e herdades. Outra, bem mais


complexa, é organizar a produção. No começo não há
modelos conhecidos. As disposições legais são vagas,
apenas mencionam o apoio às cooperativas. Os programas
divulgados pelo PC e pelo PS contentam-se com
generalidades. Tudo parece possível, da divisão de terras à
constituição de herdades do Estado.
Não haverá então nenhum plano? O PC tem um. Discreto,
confidencial mesmo, mas relativamente concreto e
pormenorizado: está contido no memorando enviado ao
primeiro-ministro, assinado por quatro responsáveis do
comité central que se intitulam, a abrir o texto, «nós, filhos
das classes trabalhadoras»…279 Além das cooperativas
tradicionais, previstas como «mais frequentes nos distritos
do Norte», os signatários propõem, para as regiões do Sul
e nas terras a expropriar, dois novos tipos de empresas: as
«herdades colectivas» e as «herdades de Estado». Os
trabalhadores recrutados para as primeiras «deverão ser
trabalhadores de vanguarda», serão «remunerados com
um salário e terão as regalias e as condições de trabalho
fixadas pelo estatuto dos trabalhadores do Estado». Estas
herdades deverão «funcionar como herdades-modelo e
serão instaladas nas zonas nevrálgicas e nos sistemas de
regadio». Pelo seu lado, as herdades colectivas destinar-se-
ão às vastas extensões de agricultura de sequeiro, às
quais parecem melhor adaptadas. Precisam de uma
organização mais maleável, não pertencendo os
trabalhadores às vanguardas. As remunerações também
seriam exclusivamente os salários.
Foi o princípio das herdades colectivas que inspirou o
modelo das unidades colectivas de produção, as UCP. O
Governo não assumiu a responsabilidade de definir o
estatuto, preferiu esperar por desenvolvimentos futuros. O
PC defendia com insistência que o Governo não tomasse
excessivos compromissos legais. O Governo nada adiantou
juridicamente, mas na prática tomou várias decisões
favoráveis às UCP. Assim, o Decreto n.º 406-B/75
estabelece regras de reconhecimento legal das «novas
unidades de produção». Isto com vista a facilitar a
concessão de créditos e a fim de fazer beneficiar as UCP
«da assistência técnica e financeira do Estado, mesmo
antes da sua regularização estatutária e legal definitiva,
desde que sejam reconhecidas como unidades colectivas
de produção». O preâmbulo deste diploma esclarece as
razões desta aparente passividade: «Seria altamente
prejudicial fazer depender a concessão de crédito […] de
regulamentos estatutários e do reconhecimento legal de
unidades que podem ser a diversos títulos consideradas
como experiências de vanguarda. O certo é que o seu
regime jurídico poderá ser definido com base no
amadurecimento e no desenvolvimento das experiências
sociais em curso.» Sincera e táctica, esta atitude permitiu
aceitar as UCP de facto, sem compromissos jurídicos ou
políticos, mas, também de jure para os fins práticos, isto é,
para o crédito, as operações comerciais e a assistência do
Estado.
O mais importante era, com efeito, o desenvolvimento
das ocupações e o crescimento das UCP no quadro de um
dispositivo suficiente para garantir a orientação
colectivista. Esta teria sido bem mais difícil se tivesse de
ser objecto de negociações em Conselho de Ministros,
onde o PS e o PPD estavam representados.
A criação de UCP seguiu de perto as ocupações. Em fins
de 1976 contavam-se cerca de 610 unidades colectivas,
numa superfície total de 1 182 736 ha280. A área média de
cada uma é de 1939 ha. Também em média, cada UCP é
constituída por seis herdades diferentes281.
O sector colectivo em 1976: número e superfície das UCP

Área Superfície média


Distritos Número de UCP
total (em hectares)

Beja 192 347 238 1808,5

Castelo Branco 7 10 306 1472,3

Évora 178 439 449 2468,8

Lisboa 4 4 366 1091,5

Portalegre 70 205 998 2942,8

Santarém 81 79 617 982,9

Setúbal 78 95 762 1227,7

Total 610 1 182 736 (1938,9)

Tendo em conta as deficiências do aparelho estatístico e


as incertezas do momento, é possível que o número de
UCP tenha sido menor. Teríamos, nesse caso, que a área
média das UCP ultrapassaria os 2000 ha282.
Os distritos de Beja e Évora distinguem-se uma vez mais:
pelo número de UCP, pela área do sector colectivo e,
juntamente com Portalegre, pela dimensão média das UCP.
Esta última, que varia bastante de distrito para distrito,
depende de vários factores: situação geográfica, tipo de
culturas, número de herdades, existência de instalações e
de equipamentos, presença de regadio, etc. Só uma
tendência aparece: as maiores unidades colectivas estão
instaladas em zonas de agricultura de sequeiro.
Um certo número de UCP ultrapassa claramente os 10
000 ha, como por exemplo: «12 de Maio», em Ponte de Sor
(12 700 ha); «1.º de Maio», em Avis (12 200 ha); «Aguiar»,
em Viana (14 300 ha); «Salvador Joaquim do Pomar», em
Montemor (13 900 ha); «Margem Esquerda», em Serpa (15
700 ha); «Estrela do Guadiana», em Mértola (11 900 ha);
«Terra de Catarina», em Beja (10 500 ha); e «Esquerda
Vencerá», em Serpa (10 200 ha). Pelo menos 35 UCP têm
áreas situadas entre 5000 ha e 10 000 ha. Apesar das
diferentes circunstâncias sociais e económicas, os
primeiros efeitos das ocupações e das expropriações vão
no sentido da concentração fundiária, o que aliás está na
tradição colectivista.
Com maior número de UCP distinguem-se os concelhos
de Beja (53), Coruche (51), Alcácer do Sal (31), Évora (30),
Montemor (25), Mora (24), Arraiolos (23), Santiago de
Cacém (22) e Ferreira (20). Note-se que quase todos estes
concelhos têm vastas áreas regadas. Entre os concelhos
com menor número de UCP contam-se Almodôvar,
Barrancos, Sesimbra e Sines, com uma só unidade283.
Para se constituir formalmente e possuir personalidade
jurídica, as UCP deviam elaborar e fazer publicar os seus
estatutos. Este procedimento será generalizado, como
medida de defesa, a partir de Janeiro de 1976, depois das
derrotas de Novembro anterior. Terminada a revolução,
tornava-se necessário consolidar as conquistas e organizá-
las. O maior número de legalizações formais de UCP
verifica-se na transição entre o regime provisório e o
regime constitucional, o que é significativo. Em Évora, 143
UCP fazem publicar os seus estatutos, assumindo-se como
«cooperativas» para todos os efeitos legais, entre Agosto e
Outubro de 1976.
Todavia, na busca de assistência oficial e de créditos, as
UCP tinham-se feito reconhecer antes, em processos bem
mais sumários, mas igualmente legais. Desde Outubro de
1975, ainda decorriam as ocupações, o secretário de
Estado A. Bica fazia publicar no Diário do Governo (2.ª
série) listas de UCP «reconhecidas». Até Julho de 1976 são
assim legalizadas 473, das quais 160 em Évora e 86 em
Beja.
Quanto à população das unidades colectivas, a repartição
dos trabalhadores permanentes de UCP, por distrito, é a
seguinte284:
Trabalhadores permanentes nas UCP, 1976

Beja 8 069

Castelo Branco 227

Évora 17 103

Lisboa 158

Portalegre 8 598

Santarém 2 510

Setúbal 3 387

Total 40 052

Évora destaca-se uma vez mais, seguido de Beja e de


Portalegre. As razões entre o número de assalariados, as
superfícies do sector colectivo e o número de unidades
colectivas evidenciam as grandes dimensões das
empresas e confirmamos sistemas agrários extensivos285.
Trabalhadores permanentes por UCP e hectares
por trabalhador no sector colectivo, 1976
(por distrito)

Trabalhadores Hectares
Distrito
por UCP por trabalhador

Beja 73,4 43,0

Castelo Branco 22,7 45,4

Évora 101,2 25,7

Lisboa 17,6 27,6

Portalegre 136,5 24,0

Santarém 34,4 31,7

Setúbal 48,4 28,3

Os vários distritos não estão muito longe uns dos outros.


As diferenças são o reflexo das condições naturais e das
culturas, nomeadamente a presença de regadio e de
cultivos labour intensive, como o tomate, a vinha e o
azeite. De qualquer modo, os índices de área por
trabalhador revelam, ou, antes, confirmam, os métodos
agrícolas em vigor na região há muito tempo.

A produção agrícola

Energicamente defendidas pelos seus partidários e


vigorosamente criticadas pelos adversários, as unidades
colectivas transformaram-se numa realidade e num
símbolo bem controversos. Os seus membros estão
geralmente satisfeitos e querem preservar o que
consideram serem vantagens materiais e subjectivas. Os
trabalhadores do sector privado estão partilhados entre a
simpatia e a animosidade. A maioria dos pequenos
agricultores denuncia-as com veemência. Os proprietários
declaram-se seus inimigos absolutos, estimando que são
apenas o resultado de um roubo286.
Nestas circunstâncias, aliás previsíveis, o teste e a
avaliação dos resultados das UCP poderiam ser as suas
produções. O problema é que tal estudo ainda não foi
possível. Os meios oficiais sabem muito pouco e por vezes
nem sequer se interessam em saber. As UCP, os sindicatos
e o PC reivindicam produções prodigiosas, «as melhores do
século», assim como melhoramentos técnicos constantes:
regadios, mecanização, aumento dos gados, alargamento
das superfícies cultivadas e introdução de novas culturas287.
Os adversários, antigos proprietários, responsáveis da
Confederação dos Agricultores de Portugal e círculos
próximos do PM e do CDS afirmam exactamente o
contrário: as UCP obtiveram os piores resultados
produtivos das últimas décadas, destruíram infra-
estruturas e não sabem tratar das culturas nem dos
gados288.
Uma arbitragem rigorosa é impossível. São
absolutamente insuficientes os dados credíveis sobre o
sector colectivo e sobre as herdades que o constituem,
mas na altura em que eram explorações privadas. Por
outro lado, o sector colectivo não ficou estável durante um
período bastante para permitir uma análise. Com efeito,
formado ao longo de 1975, atingiu um máximo (em áreas
e número de trabalhadores) em 1976 e começou a
diminuir desde então por causa da demarcação de
reservas, das devoluções e dos abandonos de unidades
colectivas. Em cinco anos, depois de ter chegado a 1 100
000 ha, foi reduzido de cerca de 650 000 ha, dos quais 500
000 ha entregues aos proprietários e 150 000 ha
distribuídos a pequenos agricultores.
É todavia possível sondar alguns aspectos da produção.
O ano agrícola de 1974-1975 foi bom, do ponto de vista
das condições naturais e dos rendimentos agrícolas.
Prepararam-se os alqueives para o ano seguinte. No
Outono de 1974 fizeram-se as sementeiras. Com boas
condições e algum optimismo dos agricultores, as
superfícies semeadas foram alargadas relativamente ao
ano anterior. Trata-se de uma situação normal no sistema
de rotações do Alentejo e que acontece periodicamente,
como por exemplo em 1970. Entre Setembro e Novembro
de 1974 fazem-se as sementeiras para 1975 e os alqueives
para 1976. As condições psicológicas ainda não são muito
desfavoráveis para os proprietários e os agricultores. As
primeiras pressões sindicais no sentido do aumento do
emprego tiveram talvez como consequência fazerem-se
mais trabalhos de Outono, até porque o clima ajudava. As
colheitas de 1974, sem serem excelentes, tinham sido
boas, os rendimentos razoáveis. Os agricultores estavam
portanto em condições de encarar, sem dificuldades
excessivas, os consideráveis aumentos salariais do ano de
1974, 30% a 45% relativamente ao ano anterior.
São estes os principais factores que estão na origem da
boa colheita de 1975, que nada deve às ocupações nem à
reforma agrária. As colheitas fizeram-se entre Junho e
Setembro de 1975, em parte já sob a responsabilidade dos
ocupantes, mas a maioria ainda sob a orientação dos
agricultores. Estes não verão, aliás, uma boa parte das
receitas, dado que o Instituto dos Cereais reteve avultadas
somas, seja para liquidar dívidas dos agricultores, seja
simplesmente para as entregar aos ocupantes.
O ano agrícola de 1975-1976 (colheitas de 1976) dá
resultados excelentes para o trigo, a aveia e a cevada. As
produções são superiores a quase todos os anos
precedentes e às médias 1960-1963 e 1970-1973289. Só o
arroz tem uma queda considerável.
Zona de Intervenção da Reforma Agrária:
produção de cereais
(em milhares de toneladas)

Média Média
1974 1975 1976 1977
1960-1963 1970-1973

Trigo 359 458 432 494 578 175

Arroz 131 136 99 98 67 78

Aveia 64 69 78 97 103 46

Cevada 38 45 57 69 99 29

Ora, as produções de 1976 são da responsabilidade dos


ocupantes e das UCP, que fizeram as sementeiras no
Outono de 1975 e talvez tenham aproveitado os alqueives
feitos no ano anterior, ainda pelos proprietários. Em 1976,
estes aumentos de produção bem evidentes são devidos
ao alargamento das superfícies semeadas e a excelentes
condições naturais.
Zona de Intervenção da Reforma Agrária:
superfícies semeadas com cereais
(em milhares de toneladas)

Média Média
1974 1975 1976 1977
1960-1963 1970-1973

Trigo 491 386 356 394 431 198


Arroz 26 31 24 21 15 24

Aveia 240 141 132 165 175 117

Cevada 87 68 68 74 116 49

Nota-se ainda uma ligeira melhoria dos rendimentos do


trigo (em quintais por hectare):
1970-1973 11,87

1974 12,13

1975 12,54

1976 13,41

Todavia, este aumento, pouco significativo porque num


período muito reduzido, inscreve-se no crescimento da
produtividade que, apesar de muito lento, data de há já
alguns anos. Os outros cereais, durante os mesmos
períodos, revelam uma certa estagnação da produtividade
ou mesmo uma pequena redução. A aveia passa de 4,9
q/ha em 1970-1973 a 5,9 q/ha nos anos de 1974 a 1976. A
cevada cresce até 1975, mais baixa em 1976 (6,6 q/ha, 8,6
q/ha, 9,3 q/ha e 8,5 q/ha).
Já o arroz conhece uma diminuição muito significativa,
tanto na produção como nas superfícies semeadas,
enquanto os rendimentos por hectare são erráticos, mas
sem oscilações excessivas: 43,87 q, 41,25 q, 46,67 q e
44,67 q.
Até 1976, os dados são insuficientes para demonstrar a
«superioridade da produção colectiva», como o são para
confirmar o «desastre da reforma agrária». Se as
estatísticas revelam alguma coisa, ainda é uma certa
continuidade de resultados, de técnicas e de métodos.
Uma coisa é certa também: nestes três anos, o clima
manteve-se o elemento decisivo, o que é próprio das
agriculturas tradicionais, extensivas, em sequeiro.
O factor singular, na origem dos aumentos de produção,
é o alargamento de superfícies semeadas. Este é evidente
em 1975-1976, sob a responsabilidade das UCP; mas tinha
sido já iniciado ou preparado pelos proprietários em 1974-
1975. Com efeito, nos principais distritos produtores de
cereais, o crescimento das superfícies semeadas com
todos os cereais é muito significativo relativamente à
média da década precedente, mas menos importante em
relação ao ano anterior.
Crescimento das superfícies semeadas:
Cereais, 1975-1976
(em percentagem)

Em relação
Em relação à média da década de 1966-1975
a 1974-1975

Beja 27 13

Évora 83 41

Portalegre 24 11

Setúbal 28 14

Mesmo a grande colheita de 1976 (685 000 t de trigo em


todo o País, das quais 578 000 t na zona de intervenção),
anunciada pelas unidades colectivas como a demonstração
da sua eficácia produtiva e económica, não vale como
argumento de peso. Com efeito, ainda fica abaixo de
algumas colheitas excepcionais durante o século,
nomeadamente a de 1971: 794 000 t de trigo em todo o
País e cerca de 700 000 t na zona de intervenção290. Outros
anos em que a produção ultrapassa a de 1976 são os de
1968, 1958, 1957, 1954 e 1953.
O ano agrícola de 1976-1977 pode eventualmente
esclarecer um pouco mais esta questão291. Tanto no sector
privado como no colectivo, as colheitas são feitas por
quem preparou os alqueives e semeou. Neste período, é
mesmo o único ano em que tal acontece. As devoluções e
sobretudo as demarcações de reservas ainda não
começaram. Assim, 1976-1977 poderia ser um ano
testemunho. O problema é que as condições climáticas
foram muito más, excepcionalmente desfavoráveis para os
cereais. As superfícies semeadas de trigo e cevada foram
reduzidas mais de metade e a de aveia um terço. A
produção é quase um desastre. Relativamente ao ano
anterior, obtêm-se 30% do trigo, 45% da aveia e 29% da
cevada. Os rendimentos também baixam: o trigo para 8,83
q/ha, a aveia a 3,9 q/ha e a cevada a 5,9 q/ha. É
simplesmente um dos piores anos do século. Só o arroz
resiste: de 1976 para 1977, a superfície semeada passou
de 15 000 ha a 24 000 ha e as produções aumentam de 67
000 t para 78 000 t292. Mesmo assim, a produção de arroz
fica a 57% da média de 1970 a 1973; além de que os
rendimentos revelam significativa queda: de 44,67 q/ha
para 32,50 q/ha.
Trata-se de um ano agrícola que põe em causa as
capacidades das unidades colectivas, mas apesar de tudo
não permite retirar conclusões definitivas. As tensões
políticas e sociais na região, assim como as incertezas
quanto à situação fundiária, tiveram certamente
influências negativas na produção, tanto do sector
colectivo como dos empresários privados. Mas múltiplas
observações e vários testemunhos confirmam a falta da
capacidade técnica e de experiência de muitas unidades
colectivas. Os seus métodos de trabalho, nomeadamente
os seus horários inspirados na realidade industrial e
burocrática, não estão adaptados às condições particulares
da agricultura. Por exemplo, durante os meses de Outubro
e Novembro, mesmo quando faz bom tempo e seco, as
sementeiras fazem-se, como todos os outros trabalhos, até
às 17 horas e respeitam-se integralmente os fins-de-
semana e os dias feriados. Ora, em 1976 e 1977, as
chuvas chegaram com abundância em Novembro,
tornando impossíveis os trabalhos de sementeira e de
preparação dos alqueives. Os que não aproveitaram antes
todos os dias secos tiveram resultados ainda piores. Foi o
que aconteceu com as UCP, cujos esquemas de
organização eram demasiado rígidos. Por outro lado, a
falta de estímulos, assim como o facto de os
trabalhadores, apesar de serem nominalmente
«cooperadores», apenas receberem salários, contribuem
para um real desinteresse e uma falta de disponibilidade
para trabalhar fora de horas ou em quaisquer
circunstâncias.
O facto é que as condições climáticas foram tão más que
qualquer juízo definitivo seria prematuro. Por outro lado, a
evolução da produção durante os anos de 1975 a 1977,
comparando o conjunto do País com a zona de reforma
agrária, mostra que globalmente os resultados não se
afastam muito, o que sugere uma semelhança de
situações. Mais em pormenor, os resultados são
desfavoráveis à zona de intervenção nos casos do trigo, da
cevada e da aveia, mas favoráveis em relação ao arroz. Na
produção deste, todavia, intervêm proporcionalmente mais
pequenos agricultores do que unidades colectivas. Noutras
palavras, é mais um sinal da eventual inferior eficiência
económica das UCP.
Índices da produção de cereais no conjunto do País
e na Zona de Intervenção da Reforma Agrária
(1970-1973 = 100)

1975 1976 1977

Trigo:

Produção nacional 95 108 36

Zona de intervenção 108 126 38

Arroz:

Produção nacional 77 56 59

Zona de intervenção 72 49 57

Aveia:

Produção nacional 133 140 66


Zona de intervenção 141 149 67

Cevada:

Produção nacional 134 183 61

Zona de intervenção 153 220 64

Na agricultura, mais do que em qualquer outro sector


económico, um ou dois anos têm pouco valor como
testemunho dos resultados produtivos. As primeiras
sondagens são relativamente desfavoráveis às unidades
colectivas, mas não são dados suficientes e conclusivos.
Ainda não é possível distinguir com rigor as
responsabilidades que pertencem às condições naturais e
à organização dos homens.
Do ponto de vista social, os assalariados das unidades
colectivas consideram que estas novas empresas lhes
trouxeram vantagens reais e palpáveis. Dos 40 000
trabalhadores permanentes do sector colectivo (em 1976),
um pouco mais de metade eram, três anos antes,
trabalhadores eventuais, sem garantia de emprego nem
rendimento estável. Para estes homens e mulheres, é um
benefício significativo. As condições gerais de alimentação
melhoraram também, até porque muitas UCP forneciam
géneros a baixos preços. Equipamentos e serviços sociais,
como os transportes e as creches organizados pelas UCP,
favorecem igualmente os assalariados. Tendo desaparecido
os lucros patronais e a renda fundiária, houve uma real
transferência de recursos. Finalmente, os membros das
UCP apreciam o seu novo estatuto, que consideram mais
digno, mais solidário e menos opressivo, exprimindo até o
sentimento de trabalharem para si próprios e não para os
proprietários293.
A imensa maioria dos trabalhadores das UCP considera
satisfatória a sua situação, sublinhando as que reputam
ser as mais interessantes vantagens: a segurança do
emprego e a garantia do salário294. A este sentimento de
maior justiça acrescenta-se um tom quase heróico, uma
visão épica do seu esforço e do que conseguiram, numa
manifestação de real coesão. As palavras do dirigente de
uma UCP resumem esta atitude: «Nós lutamos para que
esta terra, que roubou as forças, o suor e a energia dos
nossos pais, nos alimente, a nós e aos nossos filhos, sem
que haja fome, miséria ou opressão.»295
As opiniões dos trabalhadores das herdades privadas não
são as mesmas. Maiorias significativas acusam as UCP de
pagarem pior do que os proprietários, de não terem as
necessárias competências técnicas e de serem dirigidos
pelos «novos patrões» e pelo «partido». Tudo isto sem
animosidade particular, independentemente de
pertencerem ao mesmo sindicato ou até de votarem
comunista.
A verdade é que as UCP só pagam salários e recusam-se
definitivamente a distribuir lucros ou dividendos. Por outro
lado, a maioria só paga o salário mínimo rural, não tendo
capacidade para competir com os agricultores privados. E
também é verdade que não se têm distinguido pelas suas
performances técnicas. Recebendo pouca assistência,
tendo expulsado a maioria dos feitores, desconfiando de
toda e qualquer intervenção técnica exterior, as unidades
colectivas pouco mais fazem do que continuar a fazer o
que se fazia antes, sobreviver e garantir aos seus
assalariados a subsistência mínima (o que para alguns é
um progresso). As UCP são uma espécie de «corpo
estranho» na sociedade global, no mundo rural português
e na economia de mercado. São vistas com hostilidade por
uma boa parte da população, pelos serviços de Estado e
por quase todas as forças políticas não comunistas.
Outra crítica que lhes é frequentemente endereçada:
entre 1975 e 1977, as UCP só sobreviveram graças a
injecções maciças de crédito garantido pelo Estado, de que
uma grande parte não foi nem será talvez nunca
reembolsada. A carga excessiva de força de trabalho,
recrutada por solidariedade, por motivos sociais e como
trunfo de clientela partidária, foi quase fatal para as UCP,
sobretudo quando não há mudanças significativas dos
métodos culturais e nas infra-estruturas. Com um número
bem superior de assalariados, a mediocridade dos
resultados produtivos é ainda mais evidente. Submersas
por estes problemas, isoladas na opinião pública nacional,
politizadas e inteiramente identificadas com os
comunistas, as unidades colectivas são uma espécie de
relicário da revolução com o destino incerto e improvável.

O estatuto das unidades colectivas de produção

Peças de um conjunto, momentos numa transição e


elementos de uma revolução inacabada ou de uma
passageira conquista do poder, as UCP nunca tiveram um
estatuto bem definido. Apesar do meio jurídico e
económico hostil, as UCP reivindicam, desde 1976, a sua
existência de facto e de direito. Pretendem-se uma nova
realidade institucional emergindo do quadro anterior, tal
como as cooperativas ao nascerem no capitalismo.
São, na realidade, instituições compósitas. Das
cooperativas retiram vários princípios, como sejam a
ausência de capital societário e a auto-organização, mas já
não a abolição do salariado. Dos kolkhozes adoptam a
autonomia perante o Estado (mesmo se esta, nos países
comunistas, é mais teórica do que real) e a propriedade
estatal da terra; mas não a distribuição de dividendos ao
pro rata do trabalho fornecido, nem a possibilidade de
exploração individual de parcelas ao lado da exploração
em comum296. Dos sovkhozes retiram o princípio do salário
como único meio de remuneração e única ligação ao
trabalho colectivo.
O que daqui resulta é uma realidade híbrida,
contraditória e talvez impossível. Como conciliar a
autonomia total (que as UCP e os comunistas recusam
categoricamente identificar com a autogestão) com a
garantia de pagamento de salários? Quem, se não for o
Estado, pode assumir esta garantia? Dificilmente teórica,
talvez ultrapassável, mas contradição política
provavelmente irresolúvel num Estado e numa sociedade
hostis, ou que em todo o caso se regem por outros
princípios.
As UCP pressupunham um desígnio mais vasto e um
sistema de organização social completo. Não se esperava
que fossem «ilhas» colectivistas em meio capitalista, o que
de facto são, antes se pensava na sua capacidade de
alargamento a todo o País. Poderiam teoricamente
coexistir com pequenas explorações camponesas e
familiares, mas tal parece mais difícil com empresas
capitalistas e mais ainda cercadas por estas, como
aconteceu. A sua existência e a sua viabilidade implicavam
finalmente que o Estado e o poder político fossem de
inspiração predominante colectivista, o que está longe de
se ter verificado.
A UCP é o resultado de dois processos convergentes e
complementares: o do direito e o dos feitos
revolucionários. O primeiro é da responsabilidade do
Estado e do poder político, nos quais o PC desempenhou
papel de relevo. O segundo tem origem no sindicato e
directamente no PC. A partir de certo momento,
ultrapassada a preponderância comunista no Governo, a
dinâmica estatal muda de natureza: as UCP perdem uma
parte importante do seu suporte de existência. Tornam-se
realidades defensivas e cercadas.
Depois das ocupações, o património passa para as mãos
de «grupos», «comissões» ou «colectivos de
trabalhadores», que o Estado reconhece, sem definir o
estatuto nem as responsabilidades. Em seguida, o Estado
efectua as expropriações legais, mas não define as «regras
do jogo» relativamente a uma multiplicidade de questões,
como por exemplo a disponibilidade da terra para futuras
divisões, vendas ou alienações. As capacidades jurídicas e
económicas das UCP são o que há de mais vago. Que
podem adquirir ou alienar? A que título? Quem assume, em
última instância, as responsabilidades contratuais,
nomeadamente em casos de créditos, compras, dissolução
ou falência?
As UCP tinham um devir, não eram supostas ficar a meio
caminho. Por enquanto, transformaram-se em fortalezas
defendendo conquistas. Fazem lembrar o que as
convenções chamavam «zonas libertadas» de um
movimento de resistência anticolonial, onde nasciam
novas relações sociais e económicas, sob o signo da
necessidade e do constrangimento, e onde se construía
uma economia paralela, ou de guerra. Há todavia, entre
outras, uma diferença de peso: o território não está fora do
alcance da administração, as UCP não são clandestinas e o
Estado tolera-as e até lhes suporta alguns custos.
Aos olhos dos trabalhadores que nelas obtiveram
emprego, as UCP não são censuráveis pelas suas
insuficiências. Esperavam emprego e salários, garantias e
segurança, tiveram-nos. Vivendo em condições ecológicas
que tornam difícil a agricultura camponesa, não querem ou
não podem correr os riscos da exploração individual ou
familiar nem os das incertezas climáticas. Habituados ao
salariado, sem conhecimentos técnicos suficientes nem
capital inicial, acomodaram-se ao novo sistema, que
parece só ter vantagens. Tanto mais quanto o próprio
Estado os convidava a ocupar e garantia os salários, desde
que se criassem unidades colectivas. Finalmente, o
colectivismo parecia adequado à euforia e à
desorganização de uma revolução. Mais tarde, na aflição
da derrota, aquele garante uma espécie de protecção
solidária. Se uma «cultura operária» existe, ele será, como
a ideologia sindical, colectivista.
O legislador, pelo seu lado, admite gradualmente as
unidades colectivas. De início, o seu estatuto aproxima-as
das cooperativas, como acontece no Decreto-Lei n.º
203/75, mas destacam-se progressivamente. As leis e as
portarias relativas às expropriações, o crédito e o controlo
dos gados e das máquinas aumentam as diferenças. A
Constituição, finalmente, sem as definir com precisão,
fazia delas uma realidade diferente das cooperativas.
O Governo adiou explicitamente a definição das UCP,
considerando que era preciso apoiá-las, mas não limitá-las.
Aos serviços dos ministérios foram dadas instruções para
apoiar as UCP sem lhes fazer as exigências processuais
habituais.
A partir de 1976, a situação política passa a ser bem
diferente da que esteve na génese das UCP. Com a
plataforma dos partidos, pela primeira vez se diz que as
terras expropriadas integram desde logo o património
nacional: é a partir daqui que toda a apropriação individual
fica excluída. Mais se estabelece que as «unidades
instaladas (nas terras expropriadas) só terão o direito ao
uso da terra», ficando de novo afastada a livre disposição.
Outro esclarecimento importante: o direito de uso é
concedido com contrapartida, isto é, as unidades
instaladas deverão pagar ao Estado uma renda ou um
imposto fundiário.
Paralelamente, com outras medidas administrativas, o
Estado tenta ter algum controlo sobre as UCP. O poder
mudou, são agora sobretudo os socialistas que têm a
responsabilidade da agricultura. O Ministério mostra a sua
vontade de impedir que se criem «herdades de Estado» e
revela a sua intenção de procurar determinar as
dimensões racionais para as novas explorações. Pela
primeira vez também, o Governo mostra-se empenhado
em distribuir parcelas de terra aos pequenos agricultores
que queiram alargar as suas explorações. O PS tenta ainda
distinguir bem o colectivismo do cooperativismo,
preparando-se para apoiar o último.
A Constituição entra em vigor em Abril de 1976. Um novo
passo é dado: as UCP fazem definitivamente parte do
sector público, enquanto para as cooperativas é reservado
um sector especial. As terras são propriedade do Estado,
os bens pertencerão aos colectivos de trabalhadores ou às
cooperativas. Aos trabalhadores competirá decidir e
escolher em qual dos sectores desejam ficar integrados.
Os equívocos não desaparecem. As UCP pretendem o
melhor dos dois mundos: o estatuto cooperativo para a
autonomia e a independência; o estatuto colectivo para o
salariado e as responsabilidades financeiras do Estado.
Inscrevem-se no notário e no Diário da República como
«cooperativas de produção», autónomas e soberanas, até
com capacidade para adquirir, em plena propriedade,
terras e herdades (o que aliás concretizam). Mas persistem
na recusa de aceitar a generalidade das regras e dos
princípios do movimento cooperativo. Uma vez mais, as
UCP instalam-se no provisório e na transição. A sua
identidade e o seu estatuto definitivo dependem da
evolução política geral. Esperam pelo regresso de um
poder político inspirado na mesma fonte colectivista.
Mas há outros problemas que as UCP têm dificuldade em
resolver. O PC e os sindicatos são obrigados a viver com
uma difícil contradição, ao tentar conciliar interesses bem
diferentes: defender os interesses do sector privado contra
os patrões, mas também os que trabalham no sector
colectivo e que constituem uma das suas principais bases
de recrutamento; defender os membros das cooperativas
como assalariados, mas também as UCP, como empresas,
o que equivale a dizer como patronato.
Quando, em 1975, pagavam salários superiores aos das
UCP, os proprietários foram acusados pelos conselhos
regionais de «sabotagem económica». Em 1976, a
assembleia de militantes comunistas afirmava nas
conclusões do seu encontro que «a reacção e os
esquerdistas procuram hoje excitar o interesse material
dos trabalhadores por salários cada vez mais elevados, isto
no momento em que os trabalhadores deram golpes
mortais no latifúndio, controlam a terra e a produção e
libertaram-se da exploração capitalista»297.
Na sua forma combativa, esta afirmação não consegue
esconder a realidade delicada e a posição equívoca do PC
e das UCP. Não é, aliás, uma questão nova: desde o início
das ocupações que os sindicatos e mesmo os serviços do
Ministério da Agricultura alertavam energicamente contra
os «altos salários» pagos pelos proprietários, isto depois de
terem denunciado, durante as negociações colectivas, os
«baixos salários e a exploração»298.
Há UCP ricas e pobres, conforme os recursos, a gestão e
o número de trabalhadores. Mas o PC e os sindicatos são
hostis à diversificação das condições de trabalho, pois não
querem dar o flanco a ideias de participação e distribuição
de dividendos e de benefícios. Por outro lado, a
comparação entre os níveis de salários das UCP e das
herdades privadas é muitas vezes desfavorável às UCP.
Finalmente, a diferenciação de remunerações entre UCP e
entre especialidades profissionais pode abrir brechas na
rígida coesão existente. Perante tais tendências, a resposta
do PC tem sido sempre no sentido da unificação e da
uniformização: «A assembleia convidou [as unidades
colectivas] a respeitar tanto quanto possível as tabelas de
salários das convenções colectivas de trabalho.» Ora, estas
regulam as relações entre assalariados e patronato, nas
empresas capitalistas. Para os comunistas, esta dificuldade
é só aparente: «A distribuição da riqueza produzida [nas
unidades colectivas] pelos trabalhadores não pode ser
feita com base na luta de classes ou na luta reivindicativa.
A sua distribuição deve ser feita de modo científico. Agora,
os trabalhadores são donos da produção, são os
proprietários da sua riqueza. A diferença de salários entre
várias unidades colectivas, para serviços iguais, é a causa
da divisão dos trabalhadores e da guerra entre as
unidades.»299
É pois preciso que os contratos típicos do sistema
capitalista regulem as relações de trabalho que
supostamente já o não são. Como não é fácil compreender,
é necessário «que as células do partido desempenhem um
grande papel na educação dos trabalhadores quanto à
distribuição científica da riqueza produzida por eles». O
sistema é, uma vez mais, híbrido e provisório. Tem no
entanto um objectivo: impedir o cooperativismo, a
empresa familiar ou camponesa e a economia de mercado.
O que importa é preservar o salariado.

O desígnio e a estratégia

Tudo foi feito na prática, e quase tudo na lei, com vista a


uma expropriação geral da terra, ou da sua maior parte,
com excepção de alguns pequenos agricultores,
eventualmente de umas poucas médias empresas. Na
legislação, as questões das reservas e das indemnizações
foram muito insuficientemente tratadas e ainda menos
regulamentadas. A definição dos seus mecanismos foi
adiada para leis ulteriores, ou para as calendas. Ora, a sua
resolução prévia, em simultâneo com as expropriações, era
essencial para definir o modelo social e o «centro de
gravidade» político da reforma agrária.
As leis não previam apenas a expropriação das áreas
excedendo os limites definidos pela lei, mas sim a
superfície integral300. O direito de reserva podia ser
concedido ou não. Nas leis de 1975, critérios muito
restritos tornavam este direito praticamente inacessível.
Os autores da reforma reservavam-se o privilégio de, após
expropriação integral, ajuizar do direito dos proprietários a
receber uma parcela, demarcada nas suas antigas
herdades ou noutras, na mesma região ou noutra.
Colocados os obstáculos, os eventuais candidatos ao
direito de reserva seriam levados a renunciar ou deixar-se-
iam arrastar para actos puníveis. As adequadas medidas
legislativas e administrativas visavam os que se
opusessem às ocupações e às expropriações301.
Por outro lado, as possibilidades de manutenção ou de
exploração de uma reserva seriam reduzidas. Tratava-se
de um direito precário e o seu titular não teria a plena
propriedade da terra. Do ponto de vista prático, ser-lhe-ia
difícil prosseguir a sua actividade económica e agrícola, no
meio predominantemente colectivista e com previsíveis
dificuldades no recrutamento de mão-de-obra. Além disso,
à maioria dos proprietários e dos empresários não seria
atribuída nenhuma indemnização, o que implicaria um
sério desequilíbrio económico. A exploração intensiva da
reserva, exigindo consideráveis fundos de reconversão,
seria difícil ou impossível.
Esta intenção de conquista geral da terra está ainda bem
visível nos métodos de determinação dos limites de
propriedade (os 50 000 pontos). Com efeito, estes
favorecem a dimensão (e relativamente o absentismo) e
penalizam o investimento. Tomemos como exemplo duas
herdades em condições idênticas de dimensão, localização
e qualidade dos solos. Ambas têm 40 000 pontos, se se
consideram unicamente a superfície e a natureza do
terreno. No entanto, se um dos empresários fez
benfeitorias, tais como o regadio, a drenagem, a plantação
de árvores de fruto e de vinha, a instalação de prados e de
vedações para o gado, a sua herdade ultrapassará
largamente os 50 000 pontos e deverá, pois, ser
expropriada. Pelo contrário, o proprietário vizinho, que
nunca investiu e se limita à cultura extensiva, pode
guardar as suas terras. O desígnio de conquista, nestas
disposições, sobrepôs-se a uma qualquer preocupação de
desenvolvimento e de encorajamento da produção302.
Este animus está ainda presente nos critérios que
levaram à definição do limite de 50 000 pontos303.
Bloqueadas no seu crescimento a níveis muito baixos, as
explorações agrícolas resultantes das reservas tinham
possibilidades de sobreviver, mas estavam na
impossibilidade de se desenvolver ou de obter
melhoramentos produtivos importantes. A prazo, estes
empresários ver-se-iam na obrigação de vender as suas
terras (obrigatoriamente ao Estado) ou de as abandonar.
Limites demasiado restritos ao desenvolvimento e à
intensificação das culturas são tão nefastos quanto a
ausência total de limites de superfície e de propriedade.
Até 1976, um ano depois das ocupações e das primeiras
leis de reforma agrária, nenhuma reserva tinha sido
concedida, apesar de terem sido expropriadas mais de
3600 herdades. Os dirigentes políticos e sindicais
partidários da reforma agrária afirmavam em 1975 que
não se podia «esperar por estudos e pela burocracia» e
que era preciso prosseguir as ocupações. Mas, quanto às
reservas, seria necessário «esperar por estudos ulteriores»
e por «planos de ordenamento agrícola». Entretanto, neste
vazio administrativo, tudo dependia do arbitrário do poder
político.
É verdade que, do ponto de vista estratégico, se impunha
uma acção rápida dos serviços, uma autêntica corrida
contra-relógio. Com efeito, não havia, em 1974, uma
administração capaz de conduzir uma reforma agrária.
Ora, o PC, os sindicatos e o MFA não queriam esperar por
eleições. O essencial deveria estar consumado antes da
aprovação da Constituição e da entrada em funcionamento
do Parlamento.
Para os comunistas e os militares, e certamente que
também para alguns socialistas, a reforma agrária decorria
da legitimidade revolucionária e não da legalidade
democrática. É verdade que, durante os primeiros meses,
não forçaram os acontecimentos. Havia outras prioridades:
a independência das colónias, o trabalho político nas
forças armadas e a organização partidária e sindical. Os
dirigentes comunistas não sentiam ter a força suficiente e
consideravam que as condições não estavam maduras.
Procurando, antes de mais, consolidar a sua influência no
poder político e militar, não incitaram os conflitos. Não
mostraram muito entusiasmo com os primeiros episódios
de agitação, que poderiam talvez ultrapassá-los. Entre
Maio e Julho, na área de Lisboa, várias vezes contestaram
e criticaram acções de massas e greves que não
controlavam. Em Junho de 1974, num comício rural em
Mora, os grupos comunistas locais criticaram algumas
iniciativas esquerdistas que criavam problemas no trabalho
do tomate. Os cartazes e bandeirolas que exibiam eram
reveladores: «Os trabalhadores agrícolas dizem NÃO à
greve.»304
Em princípios de 1975, as condições gerais da vida
política e as circunstâncias particulares do mundo rural
tinham-se tornado favoráveis. A partir de Janeiro, a
aceleração é notória. Depois de Março, a revolução leva
tudo à sua frente. O PC organizou e apoiou toda a espécie
de movimentos reivindicativos, greves e ocupações. As
reservas que tinha formulado relativamente aos
esquerdistas, em 1974, estavam agora ultrapassadas, pois
o PC tinha uma estrutura de controlo que lhe permitia, em
última instância, aproveitar as consequências das
iniciativas dos outros.
Tendo em mente tanto o governo e a administração como
os trabalhadores e os sindicatos, foi necessário fazer a
pedagogia da ocupação: que ninguém alimentasse a ilusão
de que a transferência da propriedade das terras se faria
em aplicação de uma lei e de um processo regulamentar
de expropriação. Nesta actuação, o método poderia valer
mais do que o conteúdo ou o objectivo.
Era preciso agir depressa, com dois prazos no espírito.
Por um lado, o calendário político: as eleições, a redacção
da Constituição e todo o processo de fundação do regime
parlamentar e democrático. Por outro, o calendário
agrícola: as colheitas de 1975. Qualquer que fosse o
método escolhido, era preciso evitar a todo o preço que os
ocupantes viessem a possuir apenas a terra nua, sem
instalações, equipamentos, gados e capitais de exploração.
Tratava-se, por consequência, de impedir o proprietário de
colher os cereais (ou de embolsar as receitas), de arrancar
a cortiça ou de vender o gado e as máquinas.
O memorando dos dirigentes comunistas dirigido ao
primeiro-ministro insistia singularmente neste ponto: o
melhor dote que se pode dar aos ocupantes e às futuras
unidades colectivas consiste em dar-lhes a possibilidade de
arrecadar o fruto pendente e as colheitas do ano e de reter
as máquinas. O secretário de Estado A. Bica confirmou
esta ideia: «Os trabalhadores sentiram a necessidade de
garantir uma reserva mínima de dinheiro que lhes
garantisse a subsistência, mesmo com salários reduzidos,
até à próxima colheita.»305
Em muitos casos, tal não foi possível directamente: as
ocupações foram feitas já no fim do Verão e no Outono.
Para resolver o problema, foram encontrados expedientes
legais e administrativos. Os funcionários do Instituto dos
Cereais retinham as receitas dos proprietários e esperaram
pela formação das UCP. Se estas tardavam, a formalização
de uma «comissão de trabalhadores» bastava. Em último
caso, responsáveis do sindicato assinavam em nome das
múltiplas unidades colectivas em formação.
Quando os revolucionários começaram a perder as
batalhas de rua e nos quartéis, no Governo e nas eleições,
a batalha das ocupações estava, no essencial, ganha e
acabada. Tudo o que viesse a seguir teria de ter em conta
este facto novo que já tinha mudado a sociedade
alentejana: mais de 1 milhão de hectares ocupados, 200
000 ha nacionalizados, cerca de 600 unidades colectivas
em funcionamento e uma classe de proprietários
derrotada. Qualquer restauração parecia impossível e uma
tentativa de reforma seria bem difícil.

246 Cf. Margarida Moura, Terra Ocupada, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa,
1981.

247 Cf. o relatório do Estado-Maior do Exército «Elementos do PCP directamente


intervenientes em ocupações», Estado-Maior do Exército, Quartel-General da
Região Militar Sul, Outubro, 1975.

248 «Alpendres», «Azinheira», «S. Domingos da Ordem», «Passanha»,


«Misericórdia», «Grou», «Capitoa», «Cabide», «Casa Alta» e «Fragosas». Ver
fonte na nota anterior.

249 Entre outras, são-lhe atribuídas as ocupações das seguintes herdades:


«Condado da Torre», «Monte Padrão», «Vale de Paio», «Vale do Arneiro», «Vale
Bom», «Monte Branco», «Formiga», «Parreira», «Vale d’Alerta», «Contados»,
«Monte Frades», «Comenda», «Pegos», «Cujancas de Cima», «Cujancas de
Baixo», in correspondência entre a Região Militar Sul e o Estado-Maior do
Exército, 10/9/1975, arquivos do EME.

250 Jornal Novo, 1/10/1975.

251 Declaração do engenheiro Romana Martins, administrador-delegado, in O


Século, 16/5/1975.

252 A intervenção do Estado, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 660/74, foi publicada


no Diário do Governo de 15/2/1975.

253 As fontes são numerosas e bastante contraditórias: a imprensa em geral; os


jornais do PC, Avante! e O Militante; as obras já citadas de Blasco Hugo
Fernandes, Afonso de Barros, Fernando Oliveira Baptista, Michel Drain, Bernard
Roux e Vítor Ferreira; A. Cautela, in O Século, 17/6/1975: e, finalmente, o
Almanaque Popular, 1978, Lisboa, 1978. Apesar de incompletos, os arquivos do
Ministério da Agricultura, dos Serviços Regionais do Agricultura do Alentejo e do
Instituto de Gestão e Estruturação Fundiária (IGEF) são as melhores fontes. O
tratamento mais exaustivo destes problemas é o de Maria João Costa Macedo, A
Reforma Agrária em Números, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1981, assim
como, da mesma autora, Geografia da Reforma Agrária, Lisboa, 1985. Não
havendo outra menção, é esta autora e as suas obras que aqui são utilizadas
como fontes.

254 Acrescente-se que as relações económicas e familiares entre estas 1000


famílias são frequentes e estreitas. A tradição diz que na verdade se trata de
200 famílias… mais ou menos aparentadas!

255 Nos distritos de Lisboa, Santarém e Castelo Branco só se considera a


superfície cultivada efectivamente integrada na zona de intervenção.

256 Cf. A. Barreto, Memória […], op. cit.

257 Cf. os testemunhos dos agricultores Mendes Dias, Brotas e Lourenço in A.


Barreto, Memória […], op. cit.

258 Na região, e a propósito da reforma agrária, houve manifestações e


comícios que estiveram na origem de alguns incidentes com relativa gravidade,
como por exemplo: Rio Maior (Agosto de 1975), Almeirim (Setembro de 1975),
Gavião (Setembro de 1975), Elvas (Outubro de 1975), Odemira (Novembro de
1975), São Brás e Monchique (Novembro de 1975), Rio Maior (Novembro de
1975), Coruche (Março de 1976) e Marvão (Abril de 1976). Em Coruche
registaram-se dois mortos, um do lado dos sindicatos, outro nas fileiras dos
agricultores.

259 São estes os termos do comunicado do Quartel-General da Região Militar


Sul, in O Primeiro de Janeiro, 16/7/1975.

260 Comunicado do Conselho Regional de Reforma Agrária e da Região Militar


Sul, 16/7/1975.

261 Ver as declarações do ministro da Agricultura, que afirma a sua


determinação de prosseguir a reforma agrária, recorrendo a todos os meios,
incluindo a força das armas.

262 Testemunho inédito de J. Dordio, ex-membro das CIC, in arquivos do GER.

263 O Diário, 10/4/1976.

264 In «INF., RIELVAS para RMS, 22/8/1975», relatório de informação do


Regimento de Infantaria de Elvas para o Quartel-General da Região Militar Sul,
arquivos do EME, Lisboa.

265 Zillah Branco, «A reforma agrária em perigo», in O Século, 23/9/1975.

266 Ver notas 2 a 4 deste capítulo.

267 Arquivos do Estado-Maior do Exército (EME), Lisboa.

268 Ibidem.

269 Os motivos para estas «alianças» podiam ser simplesmente relações


cordiais entre proprietários e trabalhadores; mas em geral eram benefícios reais
(salários, alojamento, conforto, segurança) que os trabalhadores receavam
perder. Por vezes, estes benefícios eram bem recentes, tinham sido concedidos
logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Dizem por exemplo as assalariadas da
«Quinta da Morna», grande propriedade em Almeirim: «É quase o paraíso!
Ganhávamos 64$ e agora 125$!», in A Capital, 16/1/1975.

270 Em Pegões, há um pouco mais de 30 anos, foram instaladas umas centenas


de famílias camponesas, a quem distribuíram parcelas de terra. Foi a única
experiência de parcelamento levada a cabo pelo regime anterior. Curiosamente,
as quatro grandes herdades da região, entre as quais o maior latifúndio
português, «Rio Frio», não foram ocupadas. Tudo leva a crer que foram
«protegidas» pelo meio social, pela presença de numerosos pequenos
agricultores. É também esta a opinião expressa pelo Prof. Carlos Portas
(testemunho inédito, arquivos do GER).

271 Fora da zona de intervenção, o número de ocupações não ultrapassa a meia


dúzia: em Mirandela, perto de Coimbra e a alguns quilómetros da Covilhã. Em
Mirandela tratava-se de uma propriedade do Estado; em Coimbra foram
ocupações episódicas, talvez só simbólicas.

272 Mesmo um ministro de Salazar, o Prof. Antunes Varela, ministro da Justiça


nos anos 60, sublinhou esta desigualdade: «Trata-se de obras que valorizam
propriedades privadas, mas que são pagas com fundos públicos. […] À luz dos
bons princípios da justiça distributiva, não é aceitável que o acréscimo de
rendimentos do conjunto das propriedades seja sensivelmente superior à taxa
que cada titular deve pagar: haveria aí um enriquecimento injusto, a expensas
de outrem, traduzido num sacrifício imposto à massa dos contribuintes, a
proveito de uma minoria restrita de proprietários privilegiados», in Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 165, 1967.

273 Ver, no Capítulo X, a secção «A legislação».

274 Ultrapassam-se ligeiramente os limites cronológicos deste trabalho. Com


rigor, teríamos 642 950 ha expropriados no período em estudo e 288 875 ha
depois, dos quais 262 177 ha dizem respeito a expropriações preparadas
administrativamente pelo sexto Governo, ainda em Julho de 1976 ou antes. Os
prazos de publicação no Diário da República explicam este aparente
desfasamento.

275 Algumas imprecisões são motivadas pelas variações dos próprios dados
oficiais. O cadastro, além de atrasado e mal organizado, é uma autêntica
floresta de subterfúgios e de anacronismos, incluindo partilhas adiadas por
décadas, partilhas e doações inter vivos para fugir aos impostos, sucessões e
heranças não registadas, vendas simuladas, etc.

276 Barrancos, 88%: Ferreira, 93%; Arraiolos, 95%; Évora, 89%; Mora, 93%;
Montemor, 91%; Viana, 88%; Portel, 94%; Redondo, 95%; Avis, 92%; Alter do
Chão, 90%; Ponte de Sor, 88%; Chamusca, 92%; Coruche, 88%; Alcácer do Sal,
96%.

277 Almodôvar, 63%; Castro Verde, 71%; Mértola, 60%; Castelo Branco, 68%;
Vila Velha de Ródão, 60%; Marvão, 60%.

278 Ver os trabalhos do GER, em particular M. J. Costa Macedo, Geografia […],


op. cit., e A. Barreto, Terra […], op. cit.

279 Ver a nota 45 do Capítulo VI. Quando o documento foi entregue, estavam
ocupados menos de 30 000 ha.

280 Desde 1976 que este número não parou de diminuir. São muitas as causas:
falência ou dissolução; divisão em várias empresas; devolução voluntária das
terras aos antigos proprietários; fusão de várias; mudança de nome; entrega
compulsiva das terras aos proprietários. Algumas eram mesmo fictícias,
servindo apenas para ter acesso ao crédito. Os dados utilizados aqui são os que
se obtiveram com as investigações do Gabinete de Estudos Rurais, para o que
foi possível consultar praticamente todas as fontes oficiais que interessavam.

281 As surpresas e as incertezas da revolução; a desorganização de alguns


serviços do Ministério da Agricultura, ou por vezes a incompetência; o segredo e
o sectarismo das organizações ligadas às UCP; fraudes e ficções diversas; a
utilização política e demagógica dos dados e das estatísticas; as frequentes
mudanças de responsáveis, de critérios e de métodos de trabalho: são tantas as
razões que explicam a grande disparidade de valores citados por diferentes
origens. Dois dos estudos mais sérios citam números diferentes dos que aqui se
retêm: A. Barros (A Reforma […], op. cit.) menciona 504 UCP e 1 180 858 ha,
enquanto o Banco Mundial (Survey of the Agricultural Sector in Portugal,
Washington, 1978) refere 472 UCP e 1 253 079 ha.

282 Apesar de muito próximos, os valores relativos ao sector colectivo (1 182


736 ha) e às ocupações (1 182 924 ha) não cobrem exactamente a mesma
realidade. As terras expropriadas ou nacionalizadas mas que não foram
ocupadas previamente estão incluídas no primeiro grupo, e não no segundo.
Com as terras ocupadas que ou não foram expropriadas depois ou não foram
integradas em unidades colectivas passa-se o contrário.

283 Não se consideraram as múltiplas situações de UCP tendo terras em vários


concelhos. Nestes casos reteve-se como critério o da sede da exploração.

284 A este propósito, as diferentes fontes são ainda mais controversas e


díspares. As exigências da luta política e da propaganda, favorável ou contrária
às UCP, conduzem a autênticas fantasias estatísticas. Uma vez mais, os valores
retidos são os que resultaram das investigações do GER, após verificação e
controlo de todas as outras fontes. Duas publicações já mencionadas referem
números ligeiramente diferentes: relativamente aos nossos valores, A. Barros
situa-se acima (42 097) e o Banco Mundial abaixo (36 200). Nas nossas contas,
apenas considerámos os trabalhadores permanentes. Os eventuais são
numerosos, entre 30 000 e 50 000, mas o número de dias de trabalho que
fornecem é muito variável, podendo oscilar entre 1 e 200. Não é possível fazer
uma ponderação, nem tão-pouco converter em homens/ano, dado que as
próprias UCP, nas suas informações ao público, se limitam a adicionar os totais
de permanentes e eventuais. Acrescente-se, como referência, que em 1985 o
número de permanentes é estimado entre 10 000 e 12 000.

285 Dado que o número de trabalhadores se refere ao fim de 1976, utilizou-se


também o número de reconhecimentos efectivos de UCP válido à mesma data.
286 O Gabinete de Estudos Rurais conduziu um inquérito junto de 1200 pessoas
em 12 freguesias da zona de intervenção. A amostragem foi estratificada em
vários grupos sociais, incluindo assalariados do sector privado e das UCP. Ver
José Júlio Carvalho Ribeiro, Inquérito à Reforma Agrária, Lisboa, 1981.

287 Ver, por exemplo: Eugénio Rosa, Portugal. Dois Anos de Revolução na
Economia, Lisboa, 1976; Miguel Urbano Rodrigues, in O Diário, 5/4/1976; Dinis
Miranda, in O Século, 24/10/1975; obra colectiva, A Reforma Agrária Acusa,
Lisboa, 1980; Partido Comunista, O Livro Negro do MAP, Lisboa, 1977; assim
como os documentos das seis «conferências da reforma agrária» que o PC, as
UCP e os sindicatos organizam anualmente no Alentejo.

288 Ver, por exemplo: José Hipólito Raposo, Dos Princípios à Chamada Reforma
Agrária, Lisboa, 1977; A. Vacas de Carvalho, O Fracasso de Um Processo: a
Reforma Agrária no Alentejo, Lisboa, 1978; João Garin, Reforma Agrária: Seara
de Ódio, Lisboa, 1978; M. Silveira da Costa, «A César o que é de César», in
Jornal do Agricultor, Lisboa, 21/5/1980; e Mariano Feio, «Reforma agrária:
balanço provisório dos aspectos económicos», in Expresso, 20/1/1979.

289 Cf. anuários do Instituto Nacional de Estatística e M. J. Costa Macedo,


Produções […], op. cit.

290 Uma vez mais, é forçoso referir a insuficiência e a má qualidade dos dados,
que nos impedirão, talvez para sempre, de ter um conhecimento rigoroso destes
problemas. Não é possível, por exemplo, determinar a parte com que cada
sector, privado e colectivo, contribuiu para a produção total em 1976. Para 1977
já se consegue saber que o sector colectivo entregou na EPAC 71 000 t,
enquanto o sector privado da zona de intervenção remeteu 97 000 t. Dois anos
mais tarde, em 1979, o sector colectivo e as empresas privadas entregavam,
respectivamente, 67 000 t e 115 000 t. Note-se, todavia, que, em 1978 e 1979,
com as devoluções e as entregas de reservas, o sector colectivo perdeu
vastíssimas áreas.

291 Este ano agrícola está fora dos limites cronológicos deste trabalho. Fica feita
a referência, não só porque ajuda a compreender a situação, mas também
porque os alqueives foram feitos desde 1975-1976.

292 Um mau ano para cereais, por excesso de chuvas e de calor, pode ser um
ano bom ou mesmo excelente para o arroz, cuja sementeira se faz na
Primavera.

293 J. J. Carvalho Ribeiro, Inquérito […], op. cit., e A. Barreto, Memória […], op.
cit.

294 Cerca de 90% da amostragem.

295 J. J. Carvalho Ribeiro, Inquérito […] op. cit.


296 Nas UCP, só muito excepcionalmente se autoriza a exploração de pequenas
parcelas individuais; trata-se, aliás, de minúsculas hortas.

297 O Militante, n.º 8, 1976.

298 Pode ler-se no comunicado de uma reunião do Conselho Regional de


Reforma Agrária de Beja: «O Conselho preocupou-se com outro problema
considerado altamente significativo da reacção contra o processo revolucionário
em curso na agricultura: os altos salários pagos por alguns proprietários, com
vista a provocar dificuldades às acções de reforma agrária», in Diário do
Alentejo, 26/7/1975.

299 O Militante, n.º 8, 1976.

300 Os limites são de 50 000 pontos. O «ponto» foi uma unidade de medida de
cálculo do rendimento e da dimensão da terra segundo as capacidades.

301 Por exemplo, os jornais publicam as resoluções do Conselho Regional de


Portalegre, ameaçando de punição, prisão e expropriação sem direito de reserva
todos aqueles que «incitem, mobilizem ou participem em actos contra a reforma
agrária», in Jornal do Comércio, 2/8/1975.

302 Uma das mais pertinentes críticas a estes aspectos foi feita pelo Prof.
Henrique de Barros. Afirmou nomeadamente que «não se devia contar de modo
nenhum, tendo em vista o cálculo do rendimento fundiário, as benfeitorias de
curta duração (digamos, inferiores à esperança média de vida humana), tais
como plantações de árvores de fruto e de vinha; nem as benfeitorias de longa
duração quando são efectuadas pelo actual proprietário», «Lei controversa e
controvertida», in É Indispensável Consolidar a Reforma Agrária, Lisboa, 1977.

303 Foram muitas as discussões sobre este limite. Não houve conclusões
unânimes, mas ninguém pretende que esta dimensão permite o
enriquecimento. O Prof. Henrique de Barros também se exprimiu sobre o
assunto: «Poder-se-á considerar como latifundiário, ou como um senhor da terra
mais ou menos feudal, ou ainda como um impiedoso explorador do trabalho de
outrem, um agricultor autónomo que, além da remuneração do seu trabalho e
dos seus familiares e do juro do capital de exploração próprio, pode guardar
para si uma soma de algumas dezenas de milhares de escudos, no fim de um
ano agrícola, depois de ter vencido múltiplas vicissitudes? […] Foram abrangidos
pela lei numerosos médios agricultores autónomos, dos quais alguns eram
apenas empresários familiares que nada tinham de um latifundiário, cuja
sobrevivência não contribuía para a injustiça social e cuja preservação como
empresários era não só justificável sob todos os pontos de vista, mas também
socialmente útil», ibidem.

304 Testemunho inédito do Prof. Carlos Portas, in arquivos do GER.

305 A Capital, 3/1/1976.


CAPÍTULO X

A INTERVENÇÃO DO ESTADO

Ao contrário de outros casos conhecidos, o Estado não


sofreu ataques repetidos e derrotas sucessivas. Não se
entrincheirou atrás de políticas cada vez mais defensivas e
isoladas, a não ser relativamente às questões militares e
coloniais. O poder político não se agarrou
desesperadamente ao Estado tentando conter as vagas
revolucionárias, pela simples razão de que estas não
existiram. O Estado foi atingido e conquistado antes da
sociedade. Foi-o rapidamente, num só golpe. As
reviravoltas e perturbações sociais vieram depois.
Seguidamente, o Estado foi chamado a desempenhar um
papel preponderante. Foi a partir desta situação que os
revolucionários se multiplicaram e se dispersaram no
território e nas instituições.
A conquista do Estado, tanto do seu aparelho civil e
administrativo como das suas forças policiais e militares,
foi o ponto de partida do processo revolucionário e não a
sua conclusão nem o ponto de chegada. Os principais
autores do derrube do regime, os militares, agiram no
interior do Estado, não a partir do exterior ou da sociedade
civil. Os primeiros representantes do novo regime e a
maior parte dos seus dirigentes mais preeminentes eram
militares que nunca tinham assumido responsabilidades
civis ou sociais, ou então civis que se revelaram, aos olhos
da população, nas suas novas responsabilidades de
Estado. Nem uns nem outros tinham previamente dirigido
ou representado forças sociais ou civis. Alguns eram
conhecidos, sob a ditadura, graças ao seu papel na
oposição clandestina, mas o âmbito limitava-se a
pequenos círculos urbanos e politizados. A sua ascensão
nos órgãos de poder político provisório foi o ponto de
partida da maioria das organizações políticas. De certo
modo, o Estado esteve na origem da revolução social que
se seguiu ao golpe de Estado.
Todavia, não tomou, como tal, a iniciativa de todos os
movimentos sociais e de todas as acções revolucionárias.
Não tinha, para tal, a coesão suficiente. As forças políticas
dirigentes eram demasiado heterogéneas e concorrentes;
estavam interessadas em crescer, alargar o recrutamento
e aumentar a sua influência no Estado e na sociedade. Na
lógica de luta política, cada uma procurava ser
preponderante e eliminar todas as outras do poder. Isto
não seria mais do que a normalidade da vida política, não
fora o facto singular de as principais forças políticas
estarem conjuntamente envolvidas no poder,
supostamente em plena colaboração.
Sem organização nem base social (o PC tinha, no
entanto, uma situação mais favorável), os partidos
procuraram as suas clientelas, no que a acção do Estado
ou através do Estado lhes foi utilíssima. Mas também era
necessário agir fora do Estado, pelo que foram criadas, sob
a condução dos partidos, importantes dinâmicas sociais.
Mas outras provinham mais ou menos espontaneamente
dos grupos e das origens mais diversos. Tendo as
liberdades públicas sido repentinamente instauradas, toda
a gente procurava lutar pelos seus interesses. Os partidos
prestaram atenção a todos estes movimentos. Apesar de
nem sempre os terem iniciado ou conduzido, os partidos
conseguiram frequentemente atraí-los ou recuperá-los. No
entanto, sem controlo político, os movimentos sociais
evoluíam mais depressa do que os partidos se
organizavam. Ora, preocupados com o recrutamento,
receando perder o controlo dos acontecimentos e
desejosos de enquadrar os movimentos reivindicativos
dispersos, os partidos acentuaram todos a sua «linha de
massas»: adaptaram-se, para melhor controlar.
Na acção dos partidos houve complementaridade entre
as suas posições estatais e as suas iniciativas sociais.
Durante o período mais marcadamente revolucionário, o
PC foi o que melhor conseguiu desencadear ou tomar a
liderança de uma grande variedade de movimentos
sociais, mas também, convergentemente, reforçar as suas
posições e a sua influência no Estado. Este, graças à lei e à
coerção, permitiu-lhe proteger as suas bases sociais,
recompensar os revolucionários e punir os seus
adversários.
O outro detentor do poder político, o MFA, só
aparentemente estava à altura de realizar um certo
consenso ou de dar ao Governo estabilidade e coesão. No
seio das forças armadas, era uma minoria organizada,
embora a maioria, durante certo tempo, não o tenha
activamente hostilizado e se tenha mesmo submetido ao
seu comando político e hierárquico. O MFA repousou sobre
uma política de corpo e uma solidariedade de
circunstância. As suas ideias políticas eram as mais
variadas. Com o tempo, as diferenças tornaram-se mais
nítidas e originaram lutas internas. O MFA ia-se mantendo,
mas a sua direcção e a sua orientação iam mudando no
decurso dos meses. O que se manteve foi sobretudo o seu
carácter de emanação das forças armadas. A direcção
política do Estado foi assegurada, segundo os momentos,
por tal ou tal outra fracção do MFA e das forças armadas
em aliança com partidos políticos.
Dominado pelas forças da mudança e do novo regime, o
Estado tomou frequentemente a iniciativa das
transformações sociais, económicas e políticas. Forneceu à
revolução as leis e as decisões, os homens e a
administração, a força e o dinheiro.
Após a suspensão da Constituição de 1933 (que foi a
primeira medida jurídica da Junta de Salvação Nacional), as
antigas leis iam sendo substituídas, revogadas,
modificadas ou mantidas em vigor, segundo as
circunstâncias políticas e as exigências da nova ordem. Por
vezes, estas medidas eram a resposta a solicitações ou
reivindicações sociais. Mas, geralmente, foram iniciativas
do Estado e resultavam da influência de um ou vários
partidos, ou do MFA. Traduziam as relações de força no
centro do poder e só marginalmente eram o reflexo de
relações de forças sociais no conjunto do País.
Não obstante, as estratégias revolucionárias do PC e do
MFA fizeram frequentemente apelo «às massas», seja em
apoio da sua acção no Governo, seja na tentativa de
contrariar os seus adversários, que aliás eram, em grande
parte, seus parceiros de Governo. Do mesmo modo, o PS,
batido em 1975, fez apelo à mais vasta participação de
«massas» e conseguiu conquistar uma posição de
influência predominante no poder político.
Na iniciativa das mudanças e na aplicação, o papel
desempenhado pelos serviços da administração pública
teve muito particular relevo. Falou-se mesmo da
«revolução dos serviços»306. Por um lado, aplicavam as
novas leis e traduziam na prática as novas disposições.
Mas, por outro, multiplicavam iniciativas e acções de
intervenção. Subordinados a um poder instável, heteróclito
e mutável, agiam mais de acordo com as fidelidades
partidárias dos funcionários do que com as orientações
estatais, que aliás ou não existiam ou eram contraditórias,
à imagem do Governo.
Os poderes e os centros de decisão eram múltiplos. As
medidas legais contribuíam elas próprias para
descentralizar poderes e dispersar responsabilidades. O
poder político e o poder de Estado não coincidiam. Nesta
situação, a acção dos serviços e dos funcionários, segundo
as suas simpatias políticas, desenvolveu-se largamente.
Foi mesmo decisiva na maior parte das grandes
transformações radicais, como por exemplo as ocupações
de terra e o emprego compulsivo. Para o desempenho
deste papel, por parte dos serviços públicos, vários
princípios de acção ou estratégicos revelaram-se
particularmente eficazes e adequados ao cumprimento de
tarefas revolucionárias. A ocupação institucional assegurou
a penetração da administração por milhares de novos
funcionários recrutados segundo regras de clientelismo
partidário; e permitiu o exercício de responsabilidades
públicas por militantes fiéis aos seus partidos.
A mestiçagem da administração com o MFA e com
organizações civis (sindicatos, associações, comissões de
toda a espécie) permitiu a politização do aparelho de
Estado e a sua colocação ao serviço dos grupos activistas
e militantes mais bem organizados. Combinado com a
multiplicidade dos centros de decisão e com a
descentralização dos poderes executivos, aquele factor
esteve particularmente em evidência no caso da reforma
agrária. Os serviços públicos estavam parcialmente nas
mãos de grupos de interesses. Estes, os sindicatos, as
diversas comissões, as comissões administrativas
autárquicas, os conselhos regionais e outros agiam de
acordo com uma centralidade, uma orientação comum e
uma coordenação: não as do Estado, mas as do Partido
Comunista.
O alargamento tentacular dos poderes de decisão e das
competências dos organismos públicos completava este
dispositivo, ao mesmo tempo que estatizava a maior parte
dos assuntos correntes, sociais ou económicos. Isto fazia-
se através do aumento de funções dos organismos
existentes; ou pela criação de novos; ou por intermédio da
absorção, pelo Estado, de instituições e de empresas,
como os grémios da lavoura, as Casas do Povo, as
câmaras, cooperativas, empresas e associações privadas.
Através de medidas legais, eram colocadas sob a
responsabilidade do Estado: saneadas, «intervencionadas»
ou nacionalizadas.
De modo convergente, os sindicatos associaram-se às
instituições públicas, tendo-lhes mesmo sido confiadas
funções geralmente estatais. Os sindicatos agrícolas
tiveram poderes de denúncia, vigilância, fiscalização,
controlo económico, inquérito oficial, avaliação do estado
das culturas e distribuição compulsiva de trabalhadores.
Um novo aparelho de Estado encontrava-se em
formação, embora desordenadamente. Não havendo
coincidência entre o poder político e o aparelho de Estado,
esta espécie de «caos» institucional aproveitava aqueles
que conseguiam um certo grau de centralização e de
disciplina que permitiam uma visão de conjunto: o PC e
parcialmente o MFA. Sobretudo o primeiro. Com efeito, se é
verdade que o poder pertencia, em última instância, às
forças armadas, também é certo que a instabilidade e a
mobilidade da liderança lhe destruíam a capacidade
política.
Paradoxalmente, a estatização e a politização das
questões correntes coexistiam com uma espécie de «vazio
de Estado», ou «vazio de poder». A mutação fazia viver
simultaneamente aqueles dois fenómenos contraditórios. A
abundância de legislação, de portarias e de despachos
revelavam os vazios, jurídicos, mais do que consagravam
uma autoridade clara. Sem Constituição, sem leis-quadro,
sem orientações gerais, as questões particulares só
podiam resolver-se com leis particulares, por vezes
promulgadas ou publicadas depois dos factos consumados.
Concebidas precipitadamente, as leis eram geralmente
incompletas e não resistiam ao menor confronto com a
vida: eram rapidamente corrigidas, modificadas, revogadas
ou substituídas. Aprovadas nas vagas dos acontecimentos
políticos, traduziam a precariedade dos equilíbrios e eram
de âmbito cada vez mais restrito e particular. Aqui se
situava uma das fontes do arbitrário, ou mesmo da
desigualdade perante a lei.
Mas, formalmente, a legalidade quase nunca faltou.
Estava presente seja através das leis particulares, seja por
intermédio da «legalidade sem lei», isto é, os actos das
agências de Estado, dos organismos públicos, dos
funcionários e dos militares no exercício das suas funções.
As leis permitiam-lhes agir. Descentralizadoras, conferiam
vastos poderes. Sem regulamentos específicos,
consagravam a capacidade de juízo e a força de decisão
dos organismos locais e dos funcionários. Estes
multiplicavam as suas intervenções. Do ponto de vista do
público, era fácil confundir a lei com toda e qualquer acção
do agente do Estado, sobretudo em tempos de incerteza,
do direito. No decurso de uma ocupação, no processo de
concessão de um crédito, ou numa disputa acerca de um
problema de propriedade, a palavra do funcionário fazia de
lei.

A legislação

«A reforma fez-se na 1.ª série do Diário do Governo, a


revolução na 2.ª»307 As leis gerais, que não foram muito
numerosas, reflectiam mais um certo espírito reformista,
criando mecanismos geralmente moderados com vista à
mudança ou à reforma de certos aspectos das estruturas
agrárias. Só excepcionalmente a sua inspiração era
extremista. O alcance das suas medidas podia ser mais ou
menos moderado, mas os seus objectivos eram
publicamente definidos, além de serem o resultado de
acordos entre partidos no Conselho de Ministros.
Ora, foi através de decisões particulares que a revolução
foi mais bem servida. Foram recrutados funcionários
politicamente seleccionados; os serviços foram
reorganizados; foram criados serviços paralelos e
comissões ad hoc. Não previstas na lei, as ocupações de
terras foram administrativamente legalizadas, tal como as
herdades foram expropriadas e reconhecidas as unidades
colectivas. Foram atribuídos fundos, concedidos créditos e
distribuídos subsídios segundo os critérios discricionários
do ministro ou do secretário de Estado.
O excesso de legislação tem origem no vazio jurídico308. A
ausência de Constituição e de leis-quadro torna necessária
uma plétora de normas, regras e decisões. Age no mesmo
sentido a rápida evolução política. Com as mudanças no
Governo são necessárias novas medidas. A
heterogeneidade política dos ministros contribui também
para a inflação de leis e de regulamentos. Todos, segundo
as suas filiações partidárias, agem mais ou menos à
vontade e contraditoriamente. O número crescente de
membros do Governo (o sexto chegou a 60) é outra causa
da proliferação legislativa e regulamentar.
No entanto, o Ministério da Agricultura regista uma
relativa continuidade política. Durante os cinco primeiros
Governos, esteve nas mãos de militantes e simpatizantes
comunistas e de extrema-esquerda. Com o sexto Governo,
a pasta é atribuída a um dirigente da esquerda socialista,
mas que teve de aceitar um secretário de Estado
comunista.
Apesar do seu volume, o conjunto legislativo e
regulamentar de 1974 não é muito significativo do ponto
de vista das inovações. A maior parte das leis importantes
visa a supressão de instituições do antigo regime e a
revogação de normas anteriores. Todo o regime de
liberdades, direitos e garantias fica liberalizado, apesar de
insuficientemente regulamentado, até por ausência de
quadro constitucional. O sistema corporativo é
globalmente desmantelado, mesmo se em alguns dos seus
aspectos, como o dos grémios da lavoura, vários anos
serão necessários para proceder à efectiva extinção e à
consequente transformação ou substituição. As Casas do
Povo são saneadas pelo Decreto-Lei n.º 702/74 e
legalmente dissolvidas pelo n.º 737, do mesmo ano. Os
grémios são dissolvidos pelo Decreto-Lei n.º 482/74, de 25
de Setembro.
Para o sector agrícola, as primeiras e mais importantes
medidas estatais são as relativas à disciplina do trabalho309.
Primeiro, as convenções colectivas; depois, a sua
homologação pelo Ministério do Trabalho; em seguida, as
«portarias de alargamento de âmbito»; e, finalmente, as
«portarias de regulamentação do trabalho rural», que se
substituem às negociações.
As normas do emprego compulsivo começam por ser
estabelecidas pelos contratos colectivos, sendo mais tarde
legalizadas por despachos ministeriais, nomeadamente
pelo despacho conjunto dos secretários de Estado do
Trabalho e da Estruturação Agrária310. Este último, que dá
força de lei à colocação compulsiva de trabalhadores e à
primeira «comissão distrital rural», não é publicado no
Diário do Governo, mas, sim no Boletim do Ministério do
Trabalho (a 28 de Fevereiro de 1975), inadvertência ou
erro que os revolucionários não cometeram
frequentemente.
Entre as iniciativas inovadoras de 1974, citem-se as que
visavam o subaproveitamento dos solos agrícolas e os
arrendamentos compulsivos como medida punitiva. Estão
neste caso os Decretos-Leis n.os 547/74 e 653/74, de
Outubro e Novembro, assim como o despacho do
secretário de Estado da Agricultura de 22 de Novembro de
1974. São a tradução de um certo espírito reformista e de
uma preocupação produtivista, apesar de uma relativa
inspiração estatal. O Decreto-Lei n.º 547/74 revela, além
do mais, uma vontade de justiça social ao permitir aos
rendeiros e foreiros o acesso à propriedade nas terras que
arrotearam e valorizaram durante anos.
Mas é o Decreto-Lei n.º 660/74, de 25 de Novembro, que,
entre todos, será o mais radical e traz mais pesadas
consequências. Não visa particularmente a questão
agrária, dirige-se às empresas privadas de qualquer sector,
permitindo a «intervenção do Estado», que se traduz na
demissão dos seus órgãos sociais e na nomeação de uma
«comissão administrativa». Quase um milhar de empresas
serão assim «intervencionadas» em 1975, entre as quais
algumas dezenas de explorações agrícolas311.
Estas intervenções marcam uma viragem na economia.
Sob a ameaça da intervenção, durante um conflito ou em
processo de negociação, os empresários podem escolher
entre o abandono, a resistência ou a cedência. Nos dois
primeiros casos, a intervenção segue-se automaticamente.
No terceiro, a empresa fica rapidamente em desequilíbrio e
a sua sorte é semelhante. Com esta lei instaura-se o
controlo directo e imediato do poder económico pelo poder
político; e fica selada uma primeira aliança entre o
Governo e os sindicatos. Depois da aprovação deste
decreto-lei, os conflitos empresariais terminam-se
invariavelmente pela vitória do sindicato ou pela
intervenção estatal. Para os empresários, é a primeira
grande derrota depois do 25 de Abril. Para os
revolucionários, é o primeiro grande passo na luta pelo
poder económico.
Só 39 empresas agrícolas foram «intervencionadas» e,
nalguns casos, entregues aos trabalhadores. Este decreto
teve pouca aplicação no sector agrícola. Mas a sua
importância não foi menor. Com efeito, as primeiras
transferências de propriedade, antes das ocupações e das
expropriações, foram feitas por via de «intervenções do
Estado».
Durante o ano de 1975, o legislador será bem mais
prolixo e radical. A produção e o conteúdo das leis vão
acompanhar de perto a evolução da balança política
favorável à esquerda.
Em Janeiro é a primeira tentativa de elaboração de um
plano orientador, o «Programa de política social e
económica». Até Abril, a agitação crescente, a preparação
das eleições constituintes e os golpe e contragolpe de 11
de Março ocupam os espíritos e as energias. A partir de
Abril, com o novo Governo, o Conselho da Revolução e a
nova situação política, as leis vão suceder-se. Datam de
Abril, entre outros: o Decreto-Lei n.º 201/75, sobre o
arrendamento rural, prevendo novas vantagens para os
rendeiros; o Decreto n.º 203-C/75, de importância crucial,
incluindo o programa económico do Governo e um novo
projecto de reforma agrária; o Decreto n.º 207-B/75, sobre
a «sabotagem económica», prolongamento radical do
decreto sobre as intervenções do Estado nas empresas
privadas; o Decreto n.º 213/74, dando poder ao ministro
para nomear comissões administrativas para as Casas do
Povo; e, finalmente, os Decretos n.os 215-A/75, 215-B/75 e
215-C/75, estabelecendo a liberdade de associação para o
patronato e para os sindicatos, mas só reconhecendo uma
única central, a CGTP-Intersindical312.
Estes decretos, que, directa e indirectamente, dizem
respeito à questão agrária, são acompanhados por outros,
de carácter mais geral, mas que marcam fortemente o
novo curso: criação do Conselho da Revolução; o «pacto»
entre o MFA e os partidos; a atribuição ao Conselho da
Revolução de competências para realizar reformas
estruturais na sociedade e na economia; e as sucessivas
nacionalizações de empresas, grupos e sectores
económicos.
Nos campos do Sul, desde Março, redobra a agitação e
multiplicam-se as provas de força. Ainda há muito poucas
ocupações de terras, mas o Decreto-Lei n.º 203-C/75 dá-
lhes legitimidade suficiente. Todavia, o que tem mais
impacte é a promessa, feita pelo ministro, da próxima
aprovação das leis de expropriação. Entre Maio e Agosto,
os sindicatos e os próprios serviços públicos não cessam
de reclamar a sua publicação313. Fazem-se ocupações e
tomam-se decisões oficiais invocando explicitamente «a
legislação cuja publicação se espera»314.
Esta, no entanto, demora. Discretamente preparadas, as
leis são discutidas em Conselho de Ministros, no princípio
de Julho. O PC, o MFA e os independentes mais radicais
conhecem os projectos do ministro da Agricultura. Os
socialistas são apanhados de surpresa: dizendo-se
chocados, não assinam. Apesar de a data oficial ser a de
29 de Julho, as leis só são publicadas a 11 de Agosto315.
Este longo prazo, de quatro meses, desde os primeiros
anúncios até à publicação, é o resultado de divergências
entre os ministros, incluindo entre os comunistas e o
ministro da Agricultura, mas também da necessidade
ressentida por todos de preparar antes as condições e os
instrumentos favoráveis à aplicação das leis.
Na prática, a urgência é só relativa. Sindicatos, unidades
do MFA e outros revolucionários prosseguem a sua acção
no terreno. Todavia, do ponto de vista político, algumas
medidas prévias são julgadas necessárias. Assim, a
Portaria n.º 299/75 estabelece níveis de intensificação que
os agricultores devem respeitar. O despacho ministerial de
23 de Junho institui o controlo do gado: o número de
cabeças, o abate e a deslocação de animais devem ser
declarados, autorizados e fiscalizados. Receia-se que os
proprietários, na previsão das expropriações, vendam o
seu gado aos comerciantes ou mesmo em Espanha, o que
aliás acontecerá algumas vezes.
O Decreto-Lei n.º 351/75, de 5 de Julho, cria os
«conselhos regionais de reforma agrária»316, aos quais se
acrescentam os diversos «grupos de trabalho
permanentes» . Estes últimos são geralmente criados por
317

despachos simples, que não necessitam de discussão e


aprovação em Conselho de Ministros. São estes os
principais instrumentos de criação do «novo Ministério» e
do saneamento do antigo318.
O despacho de 7 de Julho dá orientações sobre o
financiamento das unidades colectivas pelos serviços
oficiais e pelos centros regionais. Isto antes que as leis de
expropriação e as normas de reconhecimento das UCP
sejam aprovadas. Uma vez mais, a legislação precede a
acção e os serviços adiantam-se ao Governo.
Em princípios de Agosto, a legislação-quadro é
finalmente publicada. Parece estar em atraso sobre os
acontecimentos, mas na verdade é a confirmação das
medidas precedentes, em particular o Decreto-Lei n.º 203-
C/75. A verdadeira lei de expropriações é o Decreto n.º
406-A/75, peça mestra do pacote legislativo. Expropria o
conjunto das terras pertencendo a um mesmo proprietário
e cujo total ultrapasse os 50 000 pontos, e não apenas as
superfícies em excesso daquele limite319. Aos proprietários
expropriados é concedido um «direito de reserva» numa
superfície equivalente a 50 000 pontos, desde que sejam
agricultores directos e que retirem os seus rendimentos, de
modo exclusivo ou predominante, da actividade agrícola.
Será ainda necessário que as terras não estejam incultas
nem abaixo dos níveis de produtividade estabelecidos pelo
Despacho n.º 299 e que os proprietários não se encontrem
em nenhuma das situações puníveis previstas pela
legislação sobre a intervenção do Estado e sobre a
sabotagem económica. Além dos proprietários, os
rendeiros que se encontrem em situações equivalentes de
dimensão económica serão também expropriados.
Do ponto de vista do seu conteúdo social, é uma lei
relativamente radical, visando os grandes proprietários e
absentistas, mas também empresários de média
dimensão. Os agricultores que mais investiram serão os
mais penalizados, dado que o resultado do investimento,
as benfeitorias, é contado na pontuação.
O Decreto-Lei n.º 406-B/75 prevê mecanismos de crédito
para as terras ocupadas, mas sobretudo as regras de
reconhecimento legal das unidades colectivas, com vista à
concessão de créditos.
O Decreto-Lei n.º 407-A/75 nacionaliza integralmente os
perímetros de regadio, cerca de 186 000 ha no Alentejo e
no Ribatejo. Os direitos de reserva são atribuídos em
condições semelhantes às do Decreto n.º 406-A/75.
O Decreto-Lei n.º 407-B/75 estabelece o controlo sobre a
cortiça. Toda a cortiça produzida pelos proprietários
susceptíveis de expropriação (ou por aqueles que
produziram mais de 375 t durante um ciclo de dez anos) é
declarada indisponível e submetida ao controlo do Estado.
As infracções cometidas pelo proprietário serão punidas
com a perda do direito de reserva. O proprietário é todavia
obrigado a proceder a todas as operações de arranque,
como em tempo normal, excepto o transporte e a venda.
Como no caso do gado, trata-se de impedir que os
proprietários realizem capitais e de proteger a viabilidade
económica das futuras unidades colectivas.
Este aparelho legal consolida os avanços já feitos
anteriormente em matéria de reforma agrária, mas marca
uma grande viragem: a partir daqui, as ocupações
aceleram. Estas leis, todavia, não revelam um projecto
preciso de reforma agrária, nem um desígnio social
explícito quanto aos modelos futuros. As suas principais
preocupações parecem ser a destruição das bases
materiais da burguesia fundiária e proteger os meios de
produção colocados à disposição dos sindicatos e dos
trabalhadores. As leis não pretendem controlar e orientar
os processos assim desencadeados: criam um novo quadro
geral e legal dentro do qual os grupos mais activos agirão
e porão em prática os seus projectos. Esta aparente
«dialéctica» deve ficar em vigor, enquanto o Estado não
pertence inteiramente a uma só força política.
É certo que os movimentos sociais, as acções
reivindicativas, os protestos e as ocupações de terras têm
uma indiscutível importância e conferem a todo este
processo uma dimensão de revolta social ou de
levantamento. Mas quase todos vivem à sombra da lei e
do Estado. O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 406-A/75 é uma
boa demonstração desta relação e do interesse que têm os
comunistas, os militares, os sindicatos e seus
simpatizantes em que o Estado passe a mão à
«imaginação dos operários agrícolas e dos pequenos
agricultores». É a própria lei a pretender que «este
processo de reforma agrária não constitui, no que tem de
essencial e de profundo, uma iniciativa ou um facto do
poder de Estado». O legislador convida a ver neste decreto
«um apelo e um quadro, a fim de que a iniciativa popular
se desenrole, na base de múltiplas assembleias locais, às
quais competirá dar o impulso à reforma». Modesto, o
texto de lei apenas pretende ser «o quadro geral de
ataque contra a grande propriedade e contra a grande
exploração da terra»…
As leis apenas se pretendem políticas e protectoras dos
movimentos dos trabalhadores. São deixados para
definição ulterior os novos regimes de propriedade e de
aproveitamento das terras e das águas, os futuros
sistemas de produção e os novos estatutos e modelos de
organização das empresas. «Esses regimes e esses
estatutos não podem, nem devem, brotar unilateralmente
do Estado: devem nascer, numa larga medida, das
iniciativas e das lutas sociais, assim como da vontade das
assembleias que, através dos campos, de aldeia em aldeia,
marquem o controlo do processo produtivo pelas classes
trabalhadoras». A verdade é que, depois de aprovada a lei,
se verificam 90% das ocupações de terras e herdades.
E é ainda outra medida legal que dá a este processo uma
grande velocidade e um carácter de autêntico «movimento
de massas». O Decreto-Lei n.º 541-B/75 permite que o
crédito avalizado pelo Estado seja utilizado para o
pagamento de salários das unidades colectivas em
simplificadas e expeditivas condições processuais. Depois
da entrada em vigor desta medida, nova viragem e nova
aceleração: dois terços da área ocupada sê-lo-á depois do
«decreto dos salários».
Até à entrada em vigor da Constituição, em fins de Abril
de 1976, a produção legislativa conhece ainda um
momento importante. No rescaldo do 25 de Novembro de
1975, partidos e militares chegam a um acordo sobre a
reforma agrária. Este prevê várias correcções na legislação
e na prática seguida pelo Ministério. O essencial das leis
mantém-se em vigor, mas as emendas são significativas.
Serão publicados, em conformidade, vários decretos-leis,
entre os quais os n.os 236-A/76, 236-B/76 e 248/76. As
correcções consagram algumas das teses moderadas
defendidas pelo PS e pelo PPD, mas, dado que as leis ficam
em vigor na sua generalidade, o PC não hesita em assinar
também. Com isso garante a sua permanência no sexto
Governo.
As correcções traduzem um abrandamento geral das
disposições em vigor. As expropriações ficam limitadas à
zona de intervenção. São reforçadas as garantias de
respeito pelas explorações dos pequenos agricultores,
sejam eles proprietários, rendeiros ou seareiros. É criada a
«reserva de exploração», ou «reserva de rendeiro», ao lado
da reserva de propriedade. É finalmente prevista a
devolução de todas as terras ocupadas ou expropriadas
«indevidamente», o que quer dizer com menos de 50 000
pontos.
Com o fim de examinar todas as situações complexas
entretanto criadas e que tinham sido motivo de queixas
formais junto do Ministério da Agricultura, é criada a
«comissão de análise». Durante os seus dez meses de
funcionamento, examina 1103 casos. Entre as suas
recomendações contam-se devoluções de terras e
herdades, concessões de reservas e instalação de
rendeiros e seareiros320.
Os proprietários não agricultores ou os que têm outras
profissões e outros rendimentos recebem igualmente
alguns benefícios com a nova legislação, nomeadamente o
direito de demarcar reserva, que não tinham
anteriormente. Aos proprietários que são também
agricultores directos, quer dizer, que trabalham eles
próprios a terra, reconhece-se o direito à plena
propriedade, não expropriável qualquer que seja a
dimensão.
Outras modificações menores traduzem as mesmas
intenções: moderação e preocupação de conceder
algumas vantagens aos camponeses e aos pequenos
agricultores e proprietários. Mais tarde, em Junho de 1976,
dois novos decretos confirmam esta política. O primeiro,
n.º 489/76, institui o pagamento de mesadas, a título de
adiantamento sobre indemnizações, aos proprietários
expropriados que se encontrem em situação de
necessidade. É a primeira aceitação legal e prática do
princípio das compensações monetárias pela expropriação.
Paralelamente, outras mudanças vêm esclarecer
questões relacionadas com as unidades colectivas.
Procuram inculcar-se alguns princípios cooperativistas
numa realidade predominantemente colectivista. Várias
disposições são aprovadas: uma reforça a autonomia de
gestão, retirando às UCP as características próprias às
herdades de Estado; outra concede às UCP o direito de
preferência em caso de venda ou arrendamento de uma
reserva; outra ainda protege certos direitos adquiridos,
procurando impedir que a demarcação de uma reserva de
propriedade cause prejuízo ao equilíbrio ou à viabilidade
económica de uma unidade colectiva.
Apesar de todas estas modificações, alguns dos
principais pontos de fricção e de conflito político, tanto nas
esferas do Governo como na sociedade, mantêm-se
intactos. Na verdade, os modos capitalista, camponês,
cooperativo, colectivista e estatal são todos possíveis e
concorrentes, mas também contraditórios e fontes de
tensões. Tanto mais que o Governo e o Ministério da
Agricultura não conseguem pôr em prática a maior parte
das correcções legalmente admitidas e que parecem ficar
letra morta. Várias dezenas de seareiros e de rendeiros são
instalados na Primavera de 1976, mas as mudanças
práticas não são numerosas. Muito em particular, toda a
questão das reservas é adiada. Ora, este é um ponto
crucial. Sem a concessão das reservas, tudo fica a meio
caminho, nada é irreversível. As unidades colectivas
querem guardar as superfícies inteiras, enquanto os
antigos proprietários, perante a hesitação, acabam por
tudo querer recuperar. Em Novembro de 1976, o ministro
da Agricultura, isolado, é forçado a demitir-se. Atacado
pelos comunistas, cercado pelos proprietários, não
conseguiu sequer fazer-se apoiar pelos camponeses e
pelos pequenos agricultores.
A intervenção legislativa do Estado, durante o período
provisório e revolucionário, é coroada pela Constituição
que entra em vigor em Abril de 1976. Os artigos
consagrados à reforma agrária definem um modelo de
certa maneira radical. Outros, sobre o sistema económico
e social, confirmam o modelo, conferindo-lhe um sentido
socialista, revolucionário e colectivista321. Tanto a
Constituição, na sua globalidade, como os artigos relativos
à reforma agrária são aprovados por uma fortíssima
maioria: mais de 230 votos contra os 17 do CDS. Era
imaginável que a questão agrária tivesse encontrado um
ponto de equilíbrio e que a legislação revolucionária,
entretanto corrigida e moderada, proporcionasse um certo
consenso. Nada de semelhante aconteceu. O que estava
votado não constituía compromisso. Uma grande parte da
Constituição, nomeadamente os artigos sobre a reforma
agrária, tinha sido redigida e votada noutros tempos, antes
mesmo do 25 de Novembro, numa altura em que muitos
se esforçavam por ver pouca gente à sua esquerda. Aliás,
os deputados constituintes tinham todos sido eleitos em
pleno período revolucionário.
Sem grande mal-estar, os três partidos não comunistas
contradizem, meses depois, o que votaram na Constituição
e nas leis agrárias. Os comunistas, pelo seu lado, dão
mostras de não quererem respeitar as novas leis, incluindo
as correcções que eles próprios aprovaram.
Se é verdade que a Constituição marca o fim do
provisório e fecha definitivamente a era revolucionária,
não é menos verdade que traz consigo uma nova
contradição capital: entre o modelo político constitucional
e os equilíbrios sociais322.
Por outro lado, a legislação revista não tem base social:
demasiado à esquerda para uns, insuficientemente para
outros. Não seria talvez um problema grave, se o poder
político fosse forte. Mas não é o caso. Em certa medida, é
mesmo mais fraco do que durante o período
revolucionário, dado que agora existem limites
constitucionais e políticos ao poder. Ao arbitrário das
vanguardas sucedeu uma democracia representativa, mas
sem consenso nem hegemonia. Nem sequer uma maioria
parlamentar.

A intervenção nas empresas

Graças ao Decreto-Lei n.º 660/74 e à legislação sobre a


«sabotagem económica», o Estado procedeu à
«intervenção» em cerca de um milhar de empresas . 323

Apenas 39 são agrícolas, ou agro-alimentares, situadas nos


distritos do Alentejo e do Ribatejo e assim distribuídas
cronologicamente. Em 1975: Fevereiro, 1; Março, 4; Abril,
3; Maio, 6; Junho, 12; Julho, 10; Agosto, 1; e em 1976, em
Janeiro, 2.
Há três grupos de empresas a distinguir: explorações
agrícolas, 18; cooperativas e uniões cooperativas de
transformação, 15; empresas agro-industriais, 6.
Do ponto de vista do número e das superfícies, esta
intervenção no mundo rural é sobretudo estrategicamente
significativa. Com efeito, precedeu as ocupações e mostrou
aos sindicatos e aos empresários as intenções do Governo.
Em certo sentido, as intervenções abrem a via para as
expropriações: quando estas começam, aquelas acabam.
Este mecanismo legal permitia ao Estado controlar
empresas, sem agitar o «espantalho» da nacionalização.
Constituía também um recurso do Governo em caso de
graves problemas económicos ou conflitos sociais numa
empresa.
Na agricultura, este dispositivo legal facilitou a
intervenção do Estado em áreas delicadas, como sejam as
cooperativas e as grandes empresas capitalistas de
transformação de produtos agrícolas. Umas e outras são
indispensáveis à produção agrícola, garantem a
comercialização, estabelecem com os produtores contratos
que dão uma certa estabilidade e oferecem mesmo
emprego significativo em algumas regiões. Podendo
embora também haver razões técnicas ou económicas, as
principais intervenções neste tipo de empresas têm
motivos marcadamente políticos. À volta das empresas
ECA e Grisul, colocadas sob intervenção e transformadas
em «centro agro-industrial», houve dezenas de ocupações
e criaram-se várias unidades colectivas. Depois de muita
agitação, a união de cooperativas «Com a União,
Venceremos» é legalmente reconhecida. Esta agrupa as
duas empresas industriais, o antigo grémio e quase todas
as unidades colectivas de Santiago de Cacém324. O espírito
de kombinat agrícola, desenvolvido pelo capitalismo
agrícola e generalizado nos países socialistas, inspira esta
instituição.
O Governo apoia e põe em prática a política de
integração estatal da economia. Além das unidades
colectivas, dos grémios dependentes da administração,
das cooperativas e das agro-indústrias sob intervenção, o
Governo reforça ainda as competências e os poderes dos
organismos de coordenação económica325. São-lhes
cometidos alguns monopólios legais, nomeadamente na
importação de matérias-primas e de produtos alimentares
(açúcar, álcool, cereais, carnes, etc.). Os seus empregados
são equiparados a funcionários públicos. Para todos os
efeitos, os organismos passam a ser serviços dos
ministérios.
Quanto às explorações agrícolas, a primeira intervenção
do Estado (ao abrigo do Decreto n.º 660/74) é de 5 de
Fevereiro de 1975. Trata-se de uma decisão do Conselho
de Ministros, que todavia só será oficialmente publicada a
15 do mesmo mês. São visadas as herdades do «Zé da
Palma», ou «Monte do Outeiro», no concelho de Beja. No
entanto, são os jornais de 23 de Janeiro que, duas a três
semanas antes, anunciam a intervenção, dando todos os
pormenores, incluindo o nome do administrador de Estado
que vai ser nomeado326. É também a imprensa que informa
sobre os motivos da intervenção: «perda de produção,
venda de gado não justificada, falta de trabalhos
essenciais à produtividade e à conservação das
explorações, despedimentos injustificados e outras
violações das convenções colectivas de trabalho»327. A
imprensa afirma ainda que o administrador nomeado pelo
Estado, o engenheiro Romana Martins, deverá propor ao
Governo as medidas adequadas, incluindo «o
arrendamento compulsivo ou a expropriação».
A 3 de Março de 1975, o Diário do Governo publica outra
resolução do Conselho de Ministros, datada de 19 de
Fevereiro, sobre a intervenção nas herdades «Donas
Marias» e «Cavacedo», no concelho de Mora. O motivo
invocado é a «necessidade de atingir níveis de
intensificação cultural adequados e de garantir o
emprego».
A 8 de Abril, são as herdades «Padrões» e «Padrões
Novos» que são intervencionadas, por despacho do
ministro, não mais por resolução do Conselho de Ministros.
Motivo invocado: «Não funcionam de maneira a contribuir
normalmente para o desenvolvimento económico do País.»
Este despacho traz outra inovação: o ministro ordena ao
IRA que pague os salários dos trabalhadores através do
Fundo de Melhoramentos Agrícolas.
Num outro caso, um despacho do ministro de 17 de
Junho de 1975, publicado a 25 do mesmo mês, ordena a
intervenção na herdade «Forninho». A justificação legal
apresentada é a «situação de sabotagem, que não afecta
somente a economia, a produção agrícola e, por
consequência, a reforma agrária, mas também a própria
revolução socialista».
Sobe o tom. A revolução também.

O Movimento das Forças Armadas

No regime corporativo, a ditadura não era militar. Os


soldados tinham estado na sua génese, mas o poder
político civil conseguira impor-se, gozando, evidentemente,
do apoio militar indispensável.
Nos anos 60, os militares são de novo chamados a
desempenhar um papel determinante na vida nacional: a
condução das guerras de África e a defesa do «pacto
colonial». Em consequência, o seu peso na sociedade e na
vida política aumentou. Tiveram mesmo uma palavra a
dizer na sucessão de Salazar e na escolha, em 1972, do
presidente da República328.
Mas também o seu descontentamento aumentava, à
medida que os anos passavam e que eram cada vez
maiores os seus «sacrifícios», sem que o Governo
encontrasse as soluções para a guerra e para as colónias.
Nos primeiros anos da década de 70, desenvolve-se nos
círculos militares um mal-estar ao qual vêm acrescentar-se
os conflitos profissionais que o Governo não conseguiu
evitar e que desajeitadamente provocou.
Conseguida a conspiração de 1974, o poder militar que
dela sai não é unitário, não tem ideologia nem desígnio
político ou programa; não está preparado para se atacar à
questão do estabelecimento de um novo regime, nem
elaborou um plano para a descolonização. Dentro do MFA,
e ainda mais nas forças armadas, encontram-se todas as
opiniões e tendências imagináveis. A luta pela liderança
vai ser viva, tanto mais que certos grupos se associam
mais ou menos abertamente com os partidos políticos que
vão surgindo.
O primeiro reflexo dos militares consistiu em manter-se a
alguma distância dos assuntos políticos e do Governo. Nem
totalmente dentro, nem absolutamente fora. Esta foi a
atitude prevalecente, no imediato, mesmo se já oficiais e
grupos mais radicais se batiam por um envolvimento
político superior.
No entanto, as lutas políticas que se seguem, o vazio de
poder e a desorganização do Estado, as ambições de
alguns militares e a estratégia dos comunistas vão criar
uma dinâmica de empenhamento progressivo dos militares
nos assuntos políticos e civis.
Isto principalmente por causa da guerra. Os oficiais
querem acabar com ela, rapidamente e a qualquer preço.
A simples palavra «negociação» provoca a desconfiança.
Mas também por causa do socialismo e da revolução.
Alguns militares do MFA consideram-se os «motores da
revolução», papel em que são confirmados pelos
esquerdistas, pelos comunistas e até por alguns
socialistas. Finalmente, por causa das profundas clivagens
que apareceram na sociedade e que terão criado a
necessidade de um mediador ou de uma orientação
superior. O MFA propõe-se desempenhar este papel, no
que aliás é apoiado por várias forças políticas.
Depois da vitória da esquerda mais radical dentro do
MFA, sobretudo após 28 de Setembro de 1974, o MFA
impõe-se lentamente às forças armadas. Identifica-se com
elas e pretende dominá-las. Os seus dirigentes, na boa
tradição africana, concebem o MFA como um «movimento
de libertação». A fórmula é desajeitadamente copiada dos
seus inimigos da véspera, em Angola e Moçambique.
A Aliança Povo-MFA transforma-se no símbolo do regime
que os militares de esquerda querem fundar, ideia que
conta com o apoio entusiasmado dos comunistas. Na
verdade, a aliança verdadeira é entre o MFA e o PC. A sua
radicalização conduzirá ao isolamento do MFA nas forças
armadas e do PC no País. Mas, antes de serem derrotados
em Novembro de 1975, comunistas e militares conseguem
realizar alguns projectos do programa comunista, em
particular a descolonização, a nacionalização dos grupos
económicos e a reforma agrária329.
No seio do MFA e das forças armadas, durante dois anos,
várias facções surgem e desaparecem, lutam, levam a
melhor ou são batidas. Apesar dos seus contornos
mutáveis e pouco nítidos, alguns grupos influentes podem
ser identificados, utilizando como referência as
personalidades mais em vista.
Entre os «aliados» ou «próximos» do PC, ou entre
aqueles que mantiveram sempre uma actuação política
razoavelmente convergente com este partido, contam-se:
Vasco Gonçalves, primeiro-ministro de 18 de Julho de 1974
a 19 de Setembro de 1975, certamente a mais controversa
personalidade de toda a revolução e figura de proa de todo
o ciclo esquerdista do MFA e do Governo; Costa Gomes,
presidente da República de 30 de Setembro de 1974 a 14
de Julho de 1976; Martins Guerreiro, membro de todos os
órgãos superiores do MFA e de todos os Conselhos da
Revolução; Costa Martins, ministro do Trabalho até
Setembro de 1975. Mais ou menos em ruptura, em
concorrência ou em aliança com o PC, revelaram-se
também Varela Gomes e Rosa Coutinho330.
Os esquerdistas populistas (e que se identificavam
nomeadamente por defenderem o «poder popular») deram
à revolução uma dimensão imprevista. A sua ruptura com
os comunistas foi uma das causas imediatas do fim da
revolução. Otelo Saraiva de Carvalho é o seu mais
conhecido símbolo e dirigente.
Socialistas de esquerda, mas partidários de um certo
pluralismo político, manifestaram-se em vários momentos
e constituíram talvez o elemento mais durável do MFA. São
conhecidos, durante o Verão de 1975, como o «Grupo dos
Nove». É graças a eles que esquerdistas e comunistas são
travados a 25 de Novembro. Todavia, além do seu próprio
poder, procuravam facilitar a coexistência, ou mesmo um
entendimento, entre o PS e o PC. Melo Antunes e Vasco
Lourenço são os seus membros preeminentes. Pezarat
Correia, comandante da Região Militar do Sul em 1975-
1976, pertence a este grupo. Defensor de uma reforma
agrária «legal» em 1975, será fortemente contestado pelos
comunistas. A partir de 1976, quando deixa a Região
Militar para se limitar ao Conselho da Revolução, as suas
tomadas de posição são geralmente favoráveis às
unidades colectivas e aos sindicatos comunistas, que daí
em diante lhe mostram as suas simpatias.
Em vários momentos, outras personalidades militares
manifestam a sua preocupação pela defesa das liberdades,
ou surgem mesmo como adversários dos esquerdistas e
dos comunistas. Desempenharão, no futuro, papéis
importantes, mas, até 1976, não são bem definidas as
suas posições políticas. Entre eles, Ramalho Eanes, Firmino
Miguel, Loureiro dos Santos e Pires Veloso331.
E há ainda oficiais, em geral politicamente ao centro ou à
direita, que se identificam mais com as forças armadas e
as suas tradições e que, por razões diversas, surgem
menos abertamente na cena política e militar. Depois do
afastamento do general Spínola, deixam de desempenhar
qualquer papel no MFA, mantendo todavia peso como
dirigentes militares. Entre eles poderão mencionar-se os
então coronéis Durão, Soares Carneiro, Tomé Pinto e Rocha
Vieira.
Durante dois anos, a evolução do poder político é
marcada pelas lutas entre estas facções, assim como pelas
suas alianças com os partidos políticos, forças civis, os
sindicatos, a Igreja, etc. Noutras palavras, o MFA e as
forças armadas não se mantêm como forças estáveis, nem
fiéis a um programa ou uma ideia. Tanto é possível dizer
que o MFA se opôs à fundação de uma democracia
representativa, durante um período, como afirmar que o
MFA, em fins de 1975, defendeu tal regime e garantiu as
eleições.
Na verdade, MFA e forças armadas eram aquilo que
faziam as fracções dominantes ou os oficiais que
conseguiam impor-se durante um certo tempo,
aproveitando, aliás, da organização militar e de alguma
disciplina, do que restava de hierarquia e do espírito de
corpo. Em dois anos, o MFA teve pelo menos seis
estruturas diferentes de poder e de organização, assim
como vários modos de associação ao poder político e aos
órgãos de soberania, os quais, por sua vez, também iam
mudando, por obra e graça tanto dos civis como dos
militares. Até Novembro de 1975, o núcleo vitorioso é o
dos simpatizantes do PC, estando os esquerdistas em lugar
de destaque. Depois daquela data, o grupo predominante
é o dos socialistas de esquerda, apoiados inicialmente pelo
PS, reunidos seguidamente à volta do general Eanes.
A mobilidade ideológica e política da maior parte destes
grupos é uma característica importante do MFA. Militares
que, em 1974, se declaram «sociais-democratas», como
Otelo Saraiva de Carvalho e outros, defendem em 1975 a
«revolução socialista e o poder popular» e desprezam a
«democracia formal, parlamentar e burguesa». Oficiais
liberais ou conservadores, como A. Spínola, procuram um
entendimento governamental com os comunistas em Maio
de 1974, criticam-nos em Agosto, declaram-se
simpatizantes do socialismo democrático em Fevereiro de
1975 e tentam um golpe marcadamente direitista em
Março. Socialistas de esquerda, como M. Antunes,
partidários de uma síntese entre revolução e democracia,
atacam frontalmente os comunistas no Verão de 1975,
mas prestam-lhes inestimável ajuda após o 25 de
Novembro. Militares comunistas, fiéis à teoria das fases da
revolução, passam facilmente da «revolução democrática»
de 1974 à «revolução proletária» de 1975; e, em 1976,
fiéis desta vez ao princípio das relações de força, tornam-
se legalistas e defendem a Constituição.
E tudo isto, sempre, em nome do MFA e do 25 de Abril,
dos seus «princípios», da sua «pureza» e do regresso ao
seu espírito autêntico. Quem os define? Os que têm o
poder.
No Verão de 1975, a desorganização das forças armadas
atinge o seu ponto alto. Grupos mais tradicionalistas ou
unidades mais disciplinadas, como o eficaz Regimento de
Comandos, estão atentos, esperam por uma ocasião para
intervir, o que farão em Novembro. Outros, adeptos do
método conspirativo ou ligados às estruturas mais ou
menos discretas do PC, mantêm-se organizados, certos de
que o caos militar é a melhor maneira de destruir as
antigas forças armadas. Um número considerável de
regimentos e de unidades das regiões metropolitanas de
Lisboa e Porto, assim como no Alentejo, estão fortemente
politizados e francamente indisciplinados. Centenas ou
milhares de militares, soldados ou oficiais, em uniforme ou
«à civil», participam em manifestações políticas e em
comícios da sua escolha, em geral na extrema-esquerda.
Oficiais encapuçados e em uniforme, armados de
espingarda-metralhadora, dão conferências de imprensa,
anunciam na rádio e na televisão que acabam de criar,
dentro do exército, uma organização clandestina
revolucionária332. A Polícia Militar, um dos núcleos mais
duros da extrema-esquerda, intimida nas ruas e prende
mais ou menos arbitrariamente soldados e civis. A 26 de
Novembro de 1975, várias pessoas serão encontradas nas
caves da P. M., onde terão sido vítimas de torturas.
Nas ruas desfilam militares, acompanhados ou não de
civis, mostrando o punho fechado e a bandeira vermelha.
Exigem aumento de vencimentos, o derrube do Governo, o
saneamento dos oficiais «reaccionários» ou a revolução
socialista. Os blindados, sobretudo os famosos Chaimite,
fazem parte do mobiliário urbano, como também intervêm
numa ocupação de herdades no Alentejo. Em todos os
conflitos políticos ou sociais, nas praças dos mercados, nos
campos ou nas empresas, aparecem destacamentos
militares, metem-se nas discussões, acabam geralmente
por dar razão a tudo o que está à esquerda.
Em várias ocasiões, todas as estradas conduzindo a
Lisboa ou ao Porto, assim como certos «nós» rodoviários,
são fechados e ocupados por militares, apoiados por
grupos de civis ostentando imprevisíveis braçadeiras333. Os
carros são controlados, os passageiros revistados.
Ninguém sabe ao certo porquê, a não ser que se procuram
«armas e reaccionários». Na verdade, os militares
procuram o que encontram. Garrafas, varapaus, mocas, de
vez em quando uma faca, raramente uma pistola: o
espólio é magro.
Por todo o País, a todo o momento, procura descortinar-
se a disposição e a evolução dos regimentos e das
unidades militares: há os revolucionários e os operacionais.
Com este último eufemismo designam-se os regimentos
eventualmente anti-revolucionários que ainda não estão
desorganizados. O número de quartéis revolucionários
parece crescer, as suas manifestações também. No fim do
Verão de 1975, os recrutas do R.A.L. 1 prestam juramento
com o punho fechado e garantem defender os
trabalhadores e a revolução socialista. Os operacionais
parecem minoritários e cercados. Fazem falar pouco de si,
mas os seus nomes são murmurados, com esperança ou
receio. Há quem não esqueça que as intervenções
operacionais tiveram já maus resultados: quando certas
unidades tentaram resolver conflitos, como aconteceu com
os pára-quedistas em Março e Outubro, há grandes
possibilidades de ver os soldados «virados» pelos
militantes activistas. Para os chamados operacionais só há
uma saída: intervir uma só e última vez, vencer e mudar o
curso dos acontecimentos. É o que será feito no 25 de
Novembro de 1975.
Sem história própria nem doutrina, sem raízes sociais, o
MFA é uma instituição, um corpo de Estado, mais uma
força militar. Isto na medida em que se confunde com as
próprias forças armadas. Mas também é uma minoria
organizada dentro das forças armadas. Começa por apoiar
os projectos comunistas, isto é, a intervenção militar na
vida política e constitucional, assim como a ideia de um
poder militar próprio e autónomo, não submetido ao
Governo. Partilha com o PC o objectivo de revolução
socialista, permite-lhe realizar as reformas estruturais
prévias às eleições e concede-lhe mesmo um apoio
relativo para os seus projectos de organização do Estado,
na qual o princípio da representação não teria o primado.
Depois, mudando de direcção, o MFA transforma-se no
garante da realização de eleições e do nascimento de um
regime baseado no sufrágio popular. Antes disso, foi ainda
um factor decisivo para a realização de vários aspectos
marcantes da revolução, do ponto de vista social e
económico. A reforma agrária foi um deles.
Os militares radicais, esquerdistas ou comunistas, não
tiveram força suficiente para impor um regime autoritário.
Nestas condições, acolheram a democracia como um mal
menor. Não podiam correr o risco de uma restauração: as
forças de direita, as classes capitalistas e os militares do
antigo regime não lhes teriam perdoado o golpe de Estado,
nem as nacionalizações, nem a descolonização. Assim se
mantém o espírito de corpo, entre militares com ideologias
e pontos de vista tão diferentes, durante dois e mais anos.
A instituição militar não podia deixar transformar-se no
alvo ou no objecto de um processo histórico, no processo
de quanto foi feito depois do golpe e do levantamento.
Mesmo depois de 1976, quando os oficiais mais radicais
foram afastados das chefias militares, de postos de
responsabilidade ou passados à reserva (punição
relativamente doce), perdões e amnistias acabaram por
apagar rivalidades que os tinham feito passar bem perto
do conflito armado, ou mesmo da guerra civil, segundo
alguns. A instituição militar recusava ser politicamente
julgada tanto pela guerra colonial como pela
descolonização.

Os militares na reforma agrária

As ocupações são movimento subversivo, revolução


organizada e levantamento popular. É diverso o seu
carácter. Mas o seu sucesso e a sua rapidez devem tudo à
intervenção privilegiada das forças armadas. O seu
contributo traduziu-se na protecção dos ocupantes, na
ausência de repressão e na intimidação dos proprietários.
Os próprios soldados diziam frequentemente aos
trabalhadores e aos proprietários: «Antigamente, a Guarda
Republicana estava sempre ao lado dos patrões. Hoje, as
forças armadas estão ao lado dos trabalhadores.»334 Quase
não há resistência ou oposição física aos ocupantes. Para
os proprietários, a situação era clara: «Como era possível
resistir? Não só os trabalhadores eram mais numerosos,
como vinham acompanhados de destacamentos militares
armados, comandados por oficiais. E até o Governo os
protegia.»335
Esta força dá aos trabalhadores e aos sindicatos uma
confiança tal que lhes permite qualquer audácia. Além de
que têm um forte sentimento da legitimidade, ou mesmo
da legalidade da ocupação. A impunidade é total, o acto
revolucionário é valorizado, o difícil talvez seja não ousar.
Para os proprietários, as forças armadas tinham sido
sempre o último bastião da legalidade. Isso ainda é
verdade durante os primeiros meses de 1975, no meio da
desorganização crescente da administração e mesmo das
polícias. O Alentejo parece ter sido atingido pelo «vazio do
poder». A quem recorrer, quando ameaças pairavam sobre
as suas herdades? Às forças armadas, com certeza. Foi o
que fizeram, até perceberem que era relativamente inútil.
«Os proprietários estavam habituados a servir-se das
polícias ao menor conflito. Ora, a partir de um momento,
tratava-se de obedecer aos militares, muitas vezes
chamados a intervir pelos próprios agricultores, que não
sabiam o que fazer.»336
Mas, no Alentejo, a acção do MFA não se limitou ao apoio
directo às ocupações. Manifesta-se e está presente em
várias frentes: nos órgãos de poder do Estado, nas
instituições, em acções conjuntas com os partidos e os
sindicatos e directamente junto das populações. Além da
força e da legitimidade, a eficácia da contribuição das
forças armadas reside no facto de serem os únicos a fazer
a «quadrícula» do território. Também têm os meios de
comunicação e de mobilidade. São vantagens palpáveis se
comparadas com a desorganização administrativa e com a
fragilidade relativa dos partidos recém-nascidos. Todas
estas razões fazem do MFA um aliado desejado: todos os
partidos colaboram com ele, todos procuram os seus
favores, mas é o PC que leva a melhor.
A mais espectacular das acções do MFA em meio rural é
a sua «campanha de dinamização cultural». Regimentos
inteiros, com meios materiais e recursos humanos
excepcionais, vão-se pelos montes, de aldeia em aldeia,
semear a boa palavra, despertar as populações e
sensibilizá-las para a nova situação política. Partidos e
sindicatos, grupos culturais e animadores, imprensa e
televisão, dão a sua colaboração. Além da política, os
militares ocupam-se de tudo: assuntos locais,
desenvolvimento e saúde, escola e agricultura. Estas
campanhas não deixam de fazer recordar outras para as
quais os militares tinham sido treinados: as acções de
«psico» que faziam em África junto das populações.
No Norte e no Centro são campanhas de grandes
dimensões, envolvendo centenas de pessoas durante
vários dias337. Nas regiões rurais do Sul e no Alentejo, onde
os partidos de esquerda e os sindicatos são bem mais
fortes, as campanhas são mais modestas: dispensam os
blindados, não têm o mesmo cenário guerreiro que tinham
no Norte e traduzem-se geralmente em «sessões de
esclarecimento» efectuadas conjuntamente com civis.
Como seria de esperar, as campanhas radicalizam-se
rapidamente. Os partidos não comunistas distanciam-se
depressa. O PS e o PPD criticam-nas em termos violentos.
Paralelamente, o MFA instala militares em cargos de
responsabilidade institucional. Fá-lo por vontade dos
militares, mas também sob proposta ou por incitamento de
civis, especialmente dos comunistas. É verdade que o
regime não é militar, mas há militares um pouco por todo o
lado. Há governadores civis, como em Évora e em Beja.
Há-os em comissões administrativas de autarquias, de
cooperativas ou de empresas «intervencionadas». E há-os
sobretudo nos «conselhos regionais de reforma agrária» e
nas reuniões das «comissões distritais rurais»338.
Os soldados agem também quotidianamente junto das
populações e em meio rural. Intervêm em centenas e
centenas de casos, geralmente a meio de um conflito.
Quase todos os incidentes lhes são apresentados, ou para
quase todos eles são chamados. Arbitram ou resolvem,
como podem. Segundo as situações, aparecem em
pequeno ou grande número, pacificamente ou em cima de
blindados.
Podem vir por várias razões. Por exemplo, a pedido dos
proprietários em dificuldade, ameaçados de ocupação339.
Ou, pelo contrário, chamados pelos trabalhadores, quando
o proprietário faz oposição ou não quer deixar a herdade
ocupada340. Também podem tomar as suas iniciativas, que
muitas vezes se traduzem por ocupações. A este propósito,
a Escola Prática de Vendas Novas distingue-se pela sua
enorme actividade341. Umas vezes são os ministérios que
apelam para os militares342. Noutras, ainda, são os militares
que alertam o Governo para situações de conflito que
consideram graves343.
As intervenções do MFA no Alentejo não são apenas
relativas a questões agrárias. Depositários da autoridade e
da força, encarregados da repressão e da vigilância geral,
os militares ocupam-se de toda a espécie de assuntos
públicos e o que fazem não deixa de ter consequências
para o clima social da região. Nos dias seguintes ao 11 de
Março de 1975 efectuam importantes missões de controlo.
Assim, são presos «vários fascistas do distrito de Évora,
entre os quais G. G., grande latifundiário de Reguengos; J.
C. R., também latifundiário em Reguengos; J. M. M. G.,
grande latifundiário, proprietário da herdade da ‘Galeana’,
e outros»344. Alguns dias depois, o MFA de Beja faz um
apelo para a vigilância popular e manda publicar um
comunicado nos jornais: «MFA — Telefones contra boatos!
A 5.ª Divisão do Estado-Maior-General das Forças Armadas
dispõe de três linhas de telefone pelas quais pode
confirmar os boatos que circulam no País e receber
informações que a população julgue necessário fornecer a
este serviço.» Seguem os números de telefone345. As
intervenções dos militares são geralmente favoráveis aos
trabalhadores e aos ocupantes. Há, todavia, excepções.
Com efeito, tomam algumas vezes o partido dos
proprietários ou dos rendeiros, em especial se são de
pequena dimensão. O comandante do regimento de
Setúbal, por exemplo, a 24 de Julho de 1975, dirige-se ao
ministro da Agricultura dando-lhe parte da sua
inquietação: as ocupações arbitrárias começam a atingir
os pequenos e médios agricultores, assim como herdades
bem exploradas. E acrescenta que «se suspeita da
presença, atrás destas ocupações mais ou menos
selvagens, de uma certa organização partidária. […] Tudo
isto pode ter consequências negativas, incluindo a perda
da pequena burguesia para o processo revolucionário em
curso e a sua rejeição para a oposição»346.
Este género de atitudes depende, evidentemente, da
conjuntura, mas também da personalidade dos
comandantes e dos oficiais das unidades. Entre os
inúmeros relatórios, inquéritos e informações conservados
nos arquivos militares, uns revelam-se abertamente
favoráveis à revolução; outros adoptam uma posição
«legalista», limitando-se aos factos e às missões para que
foram escalados, sem comentários; outros, ainda, dão a
prioridade ao inquérito sobre as actividades dos
revolucionários, tanto civis como militares.
Em certos casos, além do inquérito, os militares podem
passar à acção. Em Outubro de 1975, por exemplo,
unidades da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém,
efectuam várias operações de polícia nas zonas de
Cartaxo, Almeirim, Alpiarça e Azambuja e prendem vários
militantes da organização esquerdista LUAR. Armas e
munições são apreendidas. O regimento publica um
comunicado sobre estas acções e denuncia elementos «da
5.ª Divisão do Estado-Maior» que teriam andado a agitar
os oficiais locais com referência a questões de reforma
agrária347.
Depois de 25 de Novembro de 1975, a acção das
unidades militares está menos presente no terreno, mas
mais nos gabinetes. Com efeito, elaboram estudos,
relatórios periódicos sobre a reforma agrária, listas de
militantes comunistas envolvidos em acontecimentos ou
incidentes, levantamentos das regiões e das UCP segundo
as simpatias políticas e as influências partidárias, etc.
Parece haver, em cada unidade, um autêntico serviço de
informações. Directivas do Estado-Maior, de Janeiro de
1976, mandam as unidades fazer relatórios regulares,
assim como dão instruções precisas sobre o
comportamento dos militares relativamente a questões de
reforma agrária. A ideia geral é simples: devem os
militares manter-se tão afastados quanto possível. Se há
problemas, devem ser os serviços do Ministério da
Agricultura e resolvê-los. Se a ordem pública for
perturbada, compete às polícias intervir. No caso de estas
serem ultrapassadas pelos acontecimentos, e só nesses
casos, as unidades militares podem mostrar-se. Na prática,
não voltam a intervir348.
Politicamente, o MFA ocupou-se dos assuntos de toda a
sociedade. Mas, se for possível distinguir entre as suas
várias intervenções sectoriais, a da reforma agrária foi a
mais significativa de todas pela sua duração, pelo seu
âmbito e pelos seus resultados. As condições geográficas e
sociais da agricultura favoreceram esta intervenção. A
dispersão das aldeias, das explorações agrícolas e das
populações impôs modalidades de acção diferentes nos
campos e nas regiões urbanas ou de concentração
industrial. Os problemas e os conflitos agrários eram por
definição disseminados, era preciso ocupar-se deles caso a
caso.
A convicção de que os camponeses do Norte e do Centro
não se sentiam muito atraídos pelas ideias revolucionárias
foi também um encorajamento para os militares. Os seus
aliados de esquerda rejubilaram: uma aproximação política
directa, nessas regiões, teria sido talvez mais difícil. No
Sul, o caso era bem diferente e o MFA esteve politicamente
menos presente, isto é, menos activo em «campanhas de
dinamização». Mas, sendo aí mais evidente o afrontamento
de classes, os riscos de incidentes também eram maiores:
daí que o MFA estivesse militarmente mais presente.
Último reduto da soberania, guardião da ordem pública, o
MFA foi solicitado por todos, na esperança de uma decisão
favorável.
Até à viragem do 25 de Novembro de 1975, a
intervenção militar na reforma agrária seguiu o curso geral
do MFA, cada vez mais socialista e radical, até ao
isolamento. Sem doutrina sobre a questão agrária, o MFA
partiu de ideias vagas e gerais, para chegar a projectos
radicais e ameaçadores, autênticas «fugas para a frente».
Fórmulas moderadas e sem conteúdo preciso, tais como «a
reforma gradual das estruturas agrárias», tinham sido as
escolhidas para os primeiros programas do MFA e do
Governo349. Em fins de 1974, já o «Programa de política
social e económica» propõe uma reforma agrária mais
concreta. No fim do Verão de 1975, os últimos números do
Boletim ameaçavam com arrogância e excesso. Só o
colectivismo era agora encarado como solução, enquanto
os inimigos eram cada vez mais numerosos: «A burguesia
capitalista […], seus agentes e beneficiários locais, os
caciques, os intermediários parasitas, os provocadores
fascistas […], os seus agentes que se escondem nos
partidos pseudoprogressistas com tons sociais-democratas
[…].»350
Estas proclamações não eram ainda o resultado da
derrota: com efeito, mais de 850 000 ha iam ainda ser
ocupados. Mas já revelam a solidão. Dois meses mais
tarde, o MFA tinha desaparecido do mundo rural. Presentes
por todo o lado durante ano e meio, nos comícios dos
partidos e nas ocupações, nos órgãos da administração e
nas reuniões das ligas de pequenos agricultores, os
militares passarão a interessar-se sobretudo ou apenas
pelos regimentos, pelos órgãos de soberania e pela
fundação do regime democrático. Abandonaram a acção,
tendo ficado no poder por pouco tempo mais.

O crédito agrícola e o financiamento da revolução

Legalidade, autoridade e poder militar: três ingredientes


essenciais fornecidos pelo Estado. Só faltava o dinheiro.
Também veio do Estado.
Logo a seguir às ocupações, os problemas económicos
dos trabalhadores apareciam sob uma nova luz: era
preciso organizar a produção, investir e sobretudo pagar
salários. Em cada unidade colectiva, ou em cada herdade
ocupada, aumentou o número de trabalhadores: aos que já
lá estavam acrescentaram-se novos permanentes e
eventuais.
Em certas herdades ocupadas antes das colheitas, alguns
recursos ficaram disponíveis. Noutras, os ocupantes
conseguem, com a ajuda dos serviços competentes,
receber os pagamentos por cereais anteriormente
entregues pelos proprietários. Todavia, na maioria não há
produto da colheita nem pagamento a receber. Para todas
as UCP, qualquer que seja a situação concreta em que se
encontram, os trabalhos do Outono e o período do Inverno
levantam problemas difíceis. Mesmo os antigos
empresários recorriam ao crédito.
Há ainda problemas novos. Em muitos casos, os
proprietários conseguiram levar com eles gado e
máquinas. Em consequência, os trabalhadores deverão
fazer novos investimentos.
Finalmente, muitos proprietários deixaram dívidas nos
bancos ou nos fornecedores. A maior parte resulta da
actividade normal da empresa e dos créditos utilizados,
seja em despesas anuais, seja em investimentos a prazo.
Prevendo o que lhes pode acontecer, os proprietários
abstêm-se de reembolsar ou amortizar. Depois das
ocupações, ainda pensam menos nisso. Instala-se a
incerteza. As UCP não se sentem na obrigação de pagar
dívidas dos proprietários; estes, privados das suas
empresas e mesmo das colheitas, não se consideram
comprometidos.
Tudo isto aumenta as necessidades de dinheiro por parte
das UCP. Os comerciantes têm dificuldades em continuar a
vender a crédito, sem terem sido reembolsados antes. Os
bancos já não sabem quem lhes deve e ainda não sabem a
quem podem emprestar. O Governo toma algumas
medidas para tentar resolver uma ou outra situação.
Decreta a suspensão das dívidas à banca (entretanto
nacionalizada) e autoriza os organismos de Estado a
deduzir das somas que servirão para pagar os cereais e a
cortiça os montantes necessários ao reembolso de dívidas
de antigos proprietários. No meio de uma autêntica
floresta jurídica, financeira e administrativa, algumas
soluções provisórias vão sendo encontradas.
Mas o problema mais importante continua a ser o das
necessidades financeiras das UCP, em permanente
aumento devido ao recrutamento maciço de novos
trabalhadores. A solução encontrada chama-se «crédito
agrícola de emergência» (CAE).
Os seus primeiros mecanismos foram criados pelo
Decreto-Lei n.º 251 /75, de 23 de Maio351. Começa por ser
um crédito de campanha destinado à compra de adubos,
sementes e outros factores de produção. O acesso é
reservado aos pequenos agricultores. A grande vantagem
deste crédito, além das reduzidas taxas de juro, reside na
simplificação de processos. A decisão sobre um pedido de
crédito pode ser tomada localmente e sem garantias reais
ou hipotecárias. Espera-se assim que os camponeses
aumentem o uso do crédito. Com efeito, para os pequenos
proprietários, a hipoteca é um obstáculo psicológico e
económico. Quanto aos rendeiros, parceiros e seareiros,
nada tinham para hipotecar.
A criação do CAE foi justificada por estas razões de
ordem geral, mas também por motivos conjunturais. O
ministro considerou que, tendo em conta as perturbações
provocadas pelas transformações sociais em curso, era
preciso apoiar os pequenos agricultores352.
O novo sistema não é aplicado facilmente. Surgem
dificuldades burocráticas. A falta de experiência dos
agricultores, dos funcionários e da banca complica os
processos. Os responsáveis bancários nem sempre vêem
com bons olhos o novo sistema. Vários protestos se fazem
ouvir. Por exemplo, os pequenos agricultores que
empregam um ou dois assalariados permanentes ou
eventuais sentem-se marginalizados. As UCP também
pretendem ter acesso. Pouco a pouco, até fins de
Setembro, o Governo vai procedendo a ajustamentos. O
Decreto n.º 406-B/75 alarga o crédito às cooperativas. A 18
de Agosto, o Governo admite que os beneficiários possam
ser pequenos agricultores com um assalariado (no Norte)
ou dois (no Sul). Finalmente, o Decreto-Lei n.º 541-B/75, de
27 de Setembro, já da autoria do sexto Governo, torna o
crédito disponível para o pagamento de salários das UCP353.
É depois deste decreto que se faz a maior parte das
ocupações354.
Antes disso, já as UCP tinham conseguido obter alguma
liquidez. Os centros de reforma agrária tinham sido
autorizados a apoiar financeiramente as novas unidades,
mas só o fazem com montantes reduzidos, utilizando para
isso os fundos do IRA ou mesmo créditos bancários
limitados.
Uma outra maneira de ajudar as UCP exigia a
colaboração das ligas. Em certas herdades ocupadas, os
trabalhadores não anunciavam a criação de uma UCP, mas
manifestavam a sua intenção de trabalhar em grupo, como
pequenos agricultores. Os seus pedidos de crédito são
acompanhados de uma carta da liga que certifica a sua
qualidade de pequenos agricultores. Com este processo, a
banca concedia o crédito355.
Os empréstimos do CAE, para os quais o Governo fixa um
plafond global, são concedidos pela banca e garantidos
pelo Estado, que assim cobre os riscos dos credores e dos
devedores. Entre a banca e os agricultores ou as unidades
colectivas, as «entidades intermediárias» analisam os
pedidos e, na realidade, concedem o crédito. Estas
entidades são geralmente as «comissões liquidatárias dos
grémios», cuja rede cobre todo o País356. Foi essa a sua
mais importante contribuição para a reforma agrária. Além
destas comissões, em certas localidades, também as
cooperativas podem exercer as mesmas funções. Estas
entidades amealham uma taxa (1%) a reter nos juros a
pagar.
Rapidamente o Alentejo e as UCP se transformam nos
principais clientes e beneficiários deste sistema de crédito,
o que não se explica só por razões políticas. Com efeito, no
Norte, o uso de crédito pelo campesinato encontra reais
barreiras culturais e sociais. No Sul, o hábito está muito
mais generalizado. Além disso, há esta nova realidade, que
são as UCP e dezenas de milhares de trabalhadores, que,
sem esse crédito, não têm literalmente com que viver e
trabalhar. Finalmente, a acção de informação e assistência
levada a cabo por funcionários do Ministério, empregados
da banca (geralmente simpatizantes com as UCP) e
dirigentes sindicalistas contribui para a divulgação do
crédito.
Todas as UCP pedem e utilizam prontamente o CAE. O
dinheiro está disponível, o Estado garante, não há
nenhuma razão para se privarem. Também prontamente,
os trabalhadores multiplicam as ocupações, sabendo de
antemão que os seus salários estarão mais garantidos
numa herdade ocupada ou numa UCP do que numa
empresa privada. Os empresários, aliás, não têm qualquer
espécie de interesse em investir ou pagar salários,
sobretudo se as suas herdades ultrapassam os 50 000
pontos: para eles, a expropriação é só uma questão de
tempo. Pelo mesmo motivo, os bancos, em previsão da
aplicação da lei, deixaram de lhes emprestar dinheiro.
Seja por razões políticas, estruturais ou conjunturais (ou
todas ao mesmo tempo), a verdade é que o Alentejo, a
zona de intervenção e as UCP recebem as maiores fatias
de crédito, sem o qual a reforma agrária teria certamente
sido diferente do que foi.
Crédito CAE distribuído*

Até 30-9-1975 Até 30-9-1976

Milhares de Milhares de
Percentagem Percentagem
contos contos

Total nacional 70,6 100,0 3689,5 100,0


Zona de
45,8 64,9 3330,1 90,3
intervenção

Beja 0,5 0,7 1044,5 28,3

Évora 11,7 16,6 1006,0 27,3

Portalegre 6,3 8,9 434,3 11,8

Setúbal 11,0 15,6 376,9 10,2

Santarém 9,8 13,9 270,3 7,3


* Em milhares de contos; valores acumulados.
Fonte: Manuel Lucena, op. cit., e Maria Inês Mansinho, op. cit.

Em Setembro de 1975, a zona de intervenção recebe já


65% do crédito. Um ano mais tarde, a região atinge os
90%. O desequilíbrio é notório, qualquer que seja o motivo,
quando se compara com o peso real da região: um quarto
a um quinto da produção agrícola, da superfície cultivada,
da população e do número de explorações agrícolas do
País. O que pode ser considerado como uma discriminação
regional é reforçado com uma discriminação social e
política. Com efeito, as unidades colectivas arrecadam
cerca de dois terços do crédito357.
Crédito CAE distribuído aos sectores colectivo
e privado em quatro distritos da ZIRA*
(em milhares de contos)

Sector colectivo Sector privado


Distritos
Total Por hectare Total Por hectare

Beja 1322,2 5,3 242,7 0,3

Évora 1114,6 2,7 164,5 0,5

Portalegre 528,6 2,7 60,2 0,2

Setúbal 269,4 2,5 338,2 1,0

* Total dos créditos concedidos até 30 de Dezembro de 1976.


Fonte: IGEF, Ministério da Agricultura.

O sector colectivo parece marcadamente privilegiado.


Esta situação provoca, desde fins de 1975, violentas
polémicas na imprensa e nos meios políticos, sem falar dos
meios agrícolas. Perante isso, a Governo tenta controlar os
mecanismos de crédito, o que não consegue. Os serviços e
a banca, sem rotina nem experiência, não acompanham o
ritmo de crescimento dos créditos pedidos e concedidos.
Pela direita, o Governo é acusado de favorecer as UCP, os
sindicatos e o PC, marginalizando os pequenos agricultores
e os empresários, além das regiões do Norte e do Centro.
Pela esquerda, é criticado por não dispor de fundos
suficientes e por apertar o plafond, por não prestar
assistência técnica e por tentar ingerir-se na vida das
unidades colectivas. Estas opõem-se fortemente a que o
Governo interfira na gestão. Para tentar controlá-las, ou,
antes, para controlar a utilização dos créditos, o Ministério
imagina mecanismos de vigilância e de acompanhamento,
mas não é capaz de os pôr em prática. As UCP exigem
também que os créditos de campanha, mais caros e a
curto prazo, sejam transformados em créditos de
investimento, mais baratos e com prazos longos. Afirmam
que uma grande parte dos empréstimos serviu para
comprar gado e máquinas, ou para trabalhos de infra-
estrutura, e que é impossível amortizar ou reembolsar
rapidamente. Ora, o CAE é um crédito de campanha, a
curto prazo.
Na verdade, está criado um caos financeiro onde nada
falta: créditos não pagos, fraudes, favoritismo, fundos
desviados do seu destino, grandes investimentos
financiados com créditos a curto prazo, devedores
insolventes, créditos irrecuperáveis… Oscilando entre a
passividade e a sobrerregulamentação, o Governo
precisará de vários anos para pôr um pouco de ordem358.
Criado precipitadamente, forçado pelos acontecimentos,
inspirado em motivos tanto políticos como sociais e
económicos, este sistema de crédito desempenhou
diversas funções. Acelerou as ocupações em 1975.
Garantiu a sobrevivência das UCP. Serviu como uma
espécie de fundo social ou subsídio de desemprego.
Permitiu às UCP recrutar maciçamente pessoal, muito além
do que era economicamente razoável. Foi uma condição
indispensável para que a produção agrícola se mantivesse
a níveis aceitáveis num momento particularmente agitado
de mutação social.
O crédito foi indispensável à revolução e,
paradoxalmente, talvez tenha contribuído para amortecer
as suas consequências, dado que a produção se manteve.
Não faltaram a alimentação, o emprego e os salários. Que
se teria passado sem este crédito? Se a produção não
tivesse logo retomado em 1976? Se faltassem
significativamente os salários e a alimentação? Teria
havido mais ou menos ocupações? Mais ou menos
perturbações?
Assegurando o seu financiamento, o Estado foi o suporte
material da revolução, tal como tinha sido, no passado, o
pilar da agricultura latifundiária.

Revolução pelo Estado e revolução legal

Se não constituiu uma verdadeira revolução, a reforma


agrária foi pelo menos revolucionária, pela sua rapidez,
pela sua amplitude e pela participação dos trabalhadores.
Mas também pelos seus resultados. As classes de
proprietários perderam uma parte substancial do seu
poder económico; foi-lhes retirada parcialmente o seu
poder no Estado; foram consideravelmente enfraquecidas.
Outrora poderosas, devem agora negociar. Já não têm a
capacidade para influenciar o Estado à sua vontade. Local
e regionalmente, outros grupos e classes aumentaram o
seu poder económico e institucional: as unidades
colectivas, os sindicatos, as cooperativas e os pequenos e
médios agricultores. Em resumo, houve uma mudança
brusca e radical das relações sociais e uma redistribuição
dos poderes políticos e económicos. Alteraram-se
instituições, mudaram comportamentos.
Revolução, pois, mas como consequência de um golpe de
Estado militar cujos primeiros motivos eram coloniais e
militares e que não decorriam de lutas sociais internas
nem das estruturas económicas.
Os autores do golpe apropriaram-se dos órgãos de
soberania e das fontes de legalidade. Esta, apesar de
imposta pela força, foi consagrada por uma dupla
legitimidade: não só os militares gozaram imediatamente
de um inegável apoio popular explícito, como tinham
derrubado um regime ditatorial de discutível legitimidade.
A revolução não tinha inicialmente as suas bases sociais:
foi preciso conquistá-las. O MFA distanciou-se o mais
possível das classes e grupos até então dirigentes. Tendo
ousado abolir a Constituição e os órgãos de soberania,
tinha como objectivo descolonizar e terminar com a
guerra. Não havia hipóteses de aliança entre o MFA e as
classes possidentes ou os grupos profundamente
atingidos: o fim do império anunciava-se como uma
viragem histórica. O MFA procurou aliados capazes de
construir um regime diferente.
O corpo militar dirigente não provinha das classes
economicamente superiores. Os oficiais vinham em
maioria da pequena burguesia e das classes médias. Ao
lutar contra as classes possuidoras, os militares não
estavam a lutar contra os seus iguais. O poder político e
institucional poderia ser para eles, mais do que o poder
económico privado que não possuíam, a via de acesso ao
reconhecimento social.
Procurando alicerces populares para um novo regime, os
militares encontraram naturalmente os partidos de
esquerda que tinham sido excluídos da vida política
durante cinco décadas e que defendiam uma
descolonização rápida e incondicional. Outros partidos,
como o PPD e o CDS, preferiam soluções moderadas ou
mitigadas, lentas e negociadas, alguns encarando mesmo
a hipótese de criação de uma «comunidade» com as
colónias. Nenhuma dessas ideias interessava aos militares,
pelo menos aos mais activos e representativos do MFA,
pois que esses projectos não garantiam suficientemente o
fim rápido dos envolvimentos militares em África. O MFA
liga-se assim mais estreitamente aos partidos de esquerda,
em particular ao PC, o mais bem organizado e o único a ter
estabelecido, em poucos meses, uma base sindical e
meios de controlo social.
A «tomada do Palácio de Inverno» (ou o assalto ao
«quartel-general», ou simplesmente a conquista dos
órgãos superiores do Estado) precedeu a revolução e
desencadeou-a. Tudo começou pelo topo, pelo Estado e
pelas leis. Mas os militares e os seus aliados não se
ficaram por aí. Procuraram as bases sociais capazes de
legitimar a descolonização. Abriram a revolução tanto
quanto puderam, até perder parcialmente o controlo.
Nesse desígnio, as doutrinas socialistas e comunistas
levaram a melhor sobre outras correntes políticas.
As forças políticas de esquerda, com relevo para o PC,
desenvolveram imediatamente a sua acção em duas
direcções: a sua própria organização e a penetração do
aparelho de Estado ou ocupação institucional. Esta,
beneficiando da natureza do golpe de Estado, foi rápida e
fácil. Do Estado partiram, seguidamente, as iniciativas de
mudança social e económica.
A conquista das instituições foi tanto mais fácil quanto a
revolução pelo Estado, através do Estado, encontrou um
Estado feito para a revolução, quer dizer, centralizado,
corporativo e fortemente hierarquizado. No Estado e nas
suas instituições, a administração, a política, a economia e
o militar encontravam-se intrinsecamente ligados. O
regime de ditadura impedia a associação e a expressão; o
regime corporativo evitava a separação dos problemas. A
fraqueza da sociedade civil, do seu tecido associativo,
autárquico, regional e empresarial tornava inúteis as
tentativas de mudança «por baixo». A concentração e
centralização do poder indicaram a única via para a
mudança: a decapitação. As tentativas precedentes,
reformistas, vindas do interior e das franjas do regime,
tinham todas sido travadas pelo mesmo obstáculo: a
guerra colonial. Esta fazia parte integrante do regime,
sabiam-no os partidários e os adversários. Apoiar a guerra
era apoiar o regime. Para acabar com a guerra era preciso
derrubar o regime.
Todas as grandes iniciativas foram tomadas, depois de
Abril de 1974, por um poder político provisório, que não se
identificava com o aparelho de Estado preexistente, mas
que dele se serviu como instrumento de acção, de
legalidade e de coerção. Dominando as instituições e os
serviços, o novo poder político procurou criar a sua própria
legalidade a fim de se fazer respeitar. Não a procurou na
instauração rápida de uma nova legitimidade, baseada no
sufrágio universal, contentou-se com a legitimidade
revolucionária, equívoca, mas real. Para isso, multiplicou-
se em produção legislativa.
O adiamento da institucionalização da democracia, isto é,
das eleições e da aprovação da Constituição, não significa
que as autoridades tenham pensado dispensar as leis e o
direito. Pelo contrário, aproveitaram este período para
produzir abundante legislação. No decurso da sua
redacção, que durou quase um ano, a Constituição foi
assimilando a nova situação social e económica, ou, antes,
as transformações estruturais, entre as quais a reforma
agrária. Até lá, o poder procurou apoios populares e sociais
e agiu por sua própria iniciativa. Não recorreu ao terror,
mas ao despotismo, na sua temível variedade que é o
despotismo legal. O direito não serviu para moderar a
força do poder, mas foi utilizado para impor a vontade do
«príncipe». Era o «primado da lei sobre o direito»359.
Assim foram tomadas as principais iniciativas de reforma
agrária e de controlo social e económico. A decisão política
vinha de cima e do centro, mas a execução era em grande
parte deixada ao movimento social e à periferia. As leis da
capital precederam a prática descentralizada.
O ministro anunciava leis e decisões, assinava despachos
e decretos, publicava o conteúdo de futuras medidas,
preparava a acção, afirmava a sua intenção de criar
instituições onde os militares, os funcionários e os
sindicatos se encontrariam e tomariam iniciativas360.
Anunciou até a criação de serviços de Estado dotados de
largas e vastas competências, entre as quais a de
«promover a criação de ligas e sindicatos» e a de
«trabalhar em conjunto com os militares do MFA»361. As
próprias leis continham apelos explícitos à acção das
massas, à participação dos trabalhadores e dos sindicatos
e insurgiam-se contra o «formalismo» e o «legalismo».
O Estado não orientou explicitamente a acção de
reforma, nem definiu o desígnio e os horizontes; não
traçou as vias de realização, não teorizou os objectivos,
nem formulou os modelos sociais. Abriu a via, mas
interessou-se mais pela destruição do statu quo e pela luta
contra as classes dominantes. No decreto-lei da
nacionalização das terras regadas, por exemplo, o Governo
entendeu afirmar que «a reforma agrária tem por objectivo
fundamental abater o poder social e económico dos
grandes proprietários»362. Ao Estado, como tal, a destruição
da ordem estabelecida; ao PC, principal força sindical na
região e principal aliado do MFA, o desígnio, os objectivos
sociais e os modelos de organização. O modelo
colectivista, definido por este partido, foi imposto pelo
Estado, não directa e explicitamente, mas por intermédio
dos créditos, do financiamento, do apoio dos funcionários e
da assistência. Acrescente-se que este modelo era uma
resposta possível e prática às exigências sociais imediatas.
O Estado não impôs cegamente uma solução ou um
modelo: impôs a solução dos sindicatos comunistas.
A acção do Estado seguiu assim duas vias principais:
uma, a da destruição do poder das classes dominantes; a
outra, a da organização dos meios, dos serviços, do
financiamento, isto é, dos apoios à acção sindical e
partidária.
As leis anticapitalistas eram fortemente restritivas e
punitivas. As leis de ordenamento e regulamento eram
permissivas e vagas, serviam sobretudo para deixar campo
livre aos revolucionários, legalizar os factos consumados,
como as ocupações, e consolidar as posições
conquistadas. As leis gerais não diziam como se faria uma
expropriação, nem previam os mecanismos de demarcação
de uma reserva ou de eventual pagamento de uma
indemnização. Marcavam simplesmente os limites da
propriedade aceitáveis, apelavam à acção das massas e
seduziam os sindicatos. Ao mesmo tempo, o ministro
ameaçava com sanções «todos os que criassem obstáculos
à reforma agrária».
Fizeram-se as ocupações. Várias vezes, o Governo e os
militares falaram de «ocupações ilegais» ou «selvagens».
Na verdade, apenas pensavam nas ocupações de herdades
cujas dimensões não atingiam os 50 000 pontos. Ora, a
partir de 1976, todas as ocupações foram consideradas
ilegais, quaisquer que fossem as suas dimensões. As
ocupações cessaram. Não foi a lei que mudou, foi a
balança política e a relação de forças.
De qualquer maneira, a ocupação era apenas um gesto.
O que o Estado legalizava era o seu resultado. O Ministério
reconhecia rapidamente o facto consumado e criava-se a
unidade colectiva. No princípio de Julho de 1975, em
Casebres, um mês antes da publicação das leis, o ministro
admitia já a existência de 120 000 ha ocupados, «dos
quais 80% tinham recebido ajuda do Ministério»363.
Alguns participantes tinham uma ideia mais definitiva
sobre a contribuição oficial, em particular das forças
armadas. Otelo Saraiva de Carvalho, então comandante do
COPCON, afirmava que «a reforma agrária, reivindicada
por certos partidos políticos, foi iniciada pelo COPCON». As
primeiras ocupações ter-se-iam verificado depois de os
trabalhadores se terem queixado dos proprietários: «e o
COPCON disse-lhes simplesmente para ocuparem as
terras. Dei-lhes a minha palavra de honra de que o exército
não os iria tirar de lá e que até os ajudaria a ocupar»364.
A ocupação não era uma acção explicitamente
reconhecida pela lei, embora fosse politicamente
recomendada nos próprios textos legais. Mas, enquanto a
montante as leis limitavam a propriedade, a jusante as
mesmas leis permitiam o apoio financeiro e técnico. Por
outro lado, o Governo e os serviços da administração
reconheciam de jure as unidades colectivas. Finalmente, a
ocupação tinha-se tornado o único meio de obter crédito e
de pagar salários. Para os trabalhadores, era mais do que
suficiente.

306 Cf. Maria José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983.

307 Cf. Maria José Nogueira Pinto, O Direito da Terra, Lisboa, 1983.

308 Ver também Maria José Nogueira Pinto (coordenação), Agricultura e


Reforma Agrária: Legislação 1974/76, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1981.

309 Ver a primeira secção do Capítulo VIII.

310 Na dependência, respectivamente, dos ministros do Trabalho e da


Agricultura.

311 Ver a próxima secção, neste capítulo.

312 Estes decretos datam de meados de Abril. Geralmente, referem-se as datas


de publicação, que ocorre uma a três semanas depois da aprovação em
Conselho de Ministros.

313 Os «conselhos regionais» fizeram-no várias vezes. Ver a secção respectiva.

314 Um outro caso interessante é o do despacho ministerial que instaura o


controlo do Governo e do sindicato sobre a deslocação de gado (23 de Junho de
1975). As infracções cometidas pelos proprietários são consideradas crimes de
sabotagem económica, tendo em conta «a legislação a publicar» sobre a
reforma agrária. Definem-se crimes e sanções antes de a lei existir: é um dos
raros casos de ilegalidade flagrante.

315 Leis publicadas a 11 de Agosto, num suplemento ao Diário do Governo com


data de 29 de Julho.

316 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os conselhos regionais da reforma agrária».

317 Ver, no capítulo VI, a secção «Os serviços oficiais».

318 Em Janeiro, o presidente do IRA afirma a sua disponibilidade «para apoiar os


funcionários» na tarefa de saneamento; cf. A Capital, 9/1/1975.

319 Foi a unidade de cálculo criada pelo Ministério. Entra-se em linha de conta
com a dimensão, a qualidade dos solos e das águas, a localização, as
capacidades produtivas e os rendimentos, para os quais contribuem também as
benfeitorias e as plantações. Em sequeiro, os 50 000 pontos podem representar,
segundo as condições específicas, entre 150 ha e 700 ha de terra. Em regadio,
os limites oscilam entre 25 ha e 35 ha.

320 Cf. Relatório da Comissão de Análise, Ministério da Agricultura, Lisboa,


1976. Esta Comissão só analisava os casos que lhe eram submetidos pelos
interessados.

321 Ver a nota 33 do Capítulo VII.

322 Na revisão de 1982, os artigos constitucionais sobre a reforma agrária


mantiveram-se iguais, com excepção de pormenores de redacção. O PPD e o
CDS tentaram fazer uma revisão mais profunda, mas o PS e o PC fizeram
oposição. Ora, eram necessários dois terços dos votos. Todavia, o PS, em Julho
de 1977, tinha tomado a iniciativa de uma nova legislação agrária de conjunto,
fazendo aprovar no Parlamento a «Lei de Bases Gerais da Reforma Agrária», Lei
n.º 77/77.

323 A expressão «intervenção do Estado» tinha sido utilizada pela República


Espanhola nos anos 30. Todavia, a origem imediata deve ter sido a legislação
chilena da Unidad Popular, de Salvador Allende. O Chile socialista de 1970 a
1973 parece ter sido fonte de várias inspirações, nomeadamente em matéria
agrícola. As experiências do ministro Jacques Chonchol, os seus escritos e os dos
seus colaboradores foram largamente difundidos em Portugal e entre os
funcionários do Ministério da Agricultura em 1974 e 1975. Vários antigos altos
funcionários da reforma agrária chilena visitaram Portugal a título de
conselheiros e peritos.

324 Entre as UCP contavam-se: «Estrela Vermelha», «Fidel Castro», «Passos de


Lenine», «Che Guevara», «Humberto Delgado», «Ou Vai ou Racha», «Salvador
Allende», «Unidos Venceremos» e «Estrela da Liberdade». Cf. A Capital,
28/10/1975.
325 Instituto dos Cereais, Junta Nacional das Frutas, Junta Nacional dos Produtos
Pecuários, Junta Nacional do Vinho, Administração-Geral do Açúcar e do Álcool,
Instituto dos Produtos Florestais e Instituto do Azeite e dos Produtos
Oleaginosos.

326 Diário de Notícias, 23/1/1975.

327 Ver M. J. Nogueira Pinto, O Direito […], op. cit.

328 Foi escolhido Américo Tomás, presidente desde 1958.

329 O programa foi desenvolvido em duas publicações do PC: Rumo […], op.
cit., e Relatório […], op. cit.

330 Este último foi o responsável pelo Governo provisório e de transição em


Angola. Foi demitido do Conselho da Revolução após o 25 de Novembro de
1975.

331 Do ponto de vista militar, as operações foram coordenadas pelo então


coronel Ramalho Eanes, logo a seguir nomeado chefe de Estado-Maior do
Exército. Em Julho será eleito presidente da República.

332 A mais célebre tinha por nome «Soldados Unidos Vencerão», SUV.

333 Fizeram-se barragens deste tipo em Setembro de 1974, em Março, Junho e


Julho de 1975.

334 Testemunho de M. Projecto, dirigente da Liga de Évora, in A. Barreto,


Memória […], op. cit.

335 Testemunho inédito de M. Mira da Silva, grande proprietário e empresário,


in arquivos do GER.

336 Testemunho inédito do Prof. Carlos Portas, in arquivos do GER.

337 Em especial as campanhas «Nortada» e «Maio Nordeste».

338 Ver, no Capítulo VI, a secção respectiva.

339 O rendeiro da «Courela do Sorraia», em Coruche, chamou os militares.


Segundo estes, «o sindicato queria obrigá-lo a aceitar trabalhadores que ele não
podia pagar. Ora, só os que não eram membros do PC estavam obrigados», in
arquivos do EME, Janeiro de 1976.
Em Alter do Chão, a 12 de Agosto de 1975, o agricultor da «Selada» pretende
impedir a ocupação e pede protecção da unidade militar de Elvas, in arquivos do
EME.
Em Avis, a 14 de Agosto de 1975, os proprietários das «Padrão e Anexas»
pedem a intervenção militar dois dias antes da ocupação, in arquivos do EME.
340 Por exemplo, na herdade da «Gâmbia», transformada em UCP «1.º de
Maio», em Setúbal; ou no famoso conflito de «Cujancas», no Gavião. Cf. arquivos
do EME; A. Barreto, Memória […], op. cit., e Vacas de Carvalho, O Fracasso […],
op. cit.

341 Neste regimento havia uma «Brigada da reforma agrária», também


conhecida como «Brigada das ocupações»; cf. arquivos do EME. Este regimento
é frequentemente mencionado pela imprensa como responsável por múltiplas
ocupações, como por exemplo as herdades «Barroca», «Chaminé», «Poço de
Cima», «Poço de Baixo», «Franzina», «Água Boa» e 12 outras no concelho de
Moura. (In Diário do Alentejo, 6/8/1975 e 20/8/1975.) Outro exemplo: «Em
Cabeção, distrito de Évora, 12 grandes propriedades rurais foram ocupadas por
trabalhadores e soldados da Escola Prática de Vendas Novas», in Jornal Novo,
1/10/1975. Vejam-se ainda as declarações do coronel A. Ribeiro, comandante da
Escola Prática de Santarém: «Elementos das forças armadas juntaram-se a
funcionários do IRA e a sindicalistas para fazerem a reforma agrária por sua
própria conta», in A Capital, 29/10/1975.

342 A carta do secretário de Estado da Estruturação Agrária de 22/12/ 1975


dirigida ao comandante da Região Militar do Sul solicita «a intervenção firme e
organizada das forças armadas não somente na prevenção de casos
semelhantes, mas também na necessária repressão de actividades contra-
revolucionárias que põem em causa a acção dos assalariados rurais», in
arquivos do EME e arquivos do Ministério da Agricultura.

343 Aconteceu, por exemplo, a propósito das herdades «Sousa da Sé»,


Cujancas», «Torre Bela» e «Brotas», in arquivos do EME. Nas actas da CDR de
Setúbal encontram-se várias cartas do Regimento de Infantaria n.º 11, de
Setúbal, denunciando proprietários, in arquivos do EME e arquivos do GER. Este
mesmo regimento dirigiu-se directamente aos Ministérios do Trabalho e da
Agricultura pedindo instruções e a intervenção do Governo, in arquivos do EME.

344 Diário do Sul, 15/3/1975. Semanas depois, todos serão libertos sem
acusação formal.

345 Diário do Alentejo, 17/3/1975.

346 In arquivos do EME e arquivos do GER (D. 449).

347 A Capital, 27/10/1975.

348 Directiva do Estado-Maior do Exército n.º 2/76, Janeiro de 1976; despacho


9/76 do CEME, de 27/1/1976; directiva do Estado-Maior do Exército de
30/1/1976; nota da Região Militar Sul n.º 92/76, de 16/2/1976; etc. In arquivos
do EME.

349 Ver o «Programa do MFA» de Abril de 1974 e o «Programa do Governo


provisório» de Maio de 1975.
350 Ver o Boletim do Movimento das Forças Armadas de 14/8/1975.

351 A este propósito, ver: Manuel Lucena, Revolução […], op. cit.: Inês
Mansinho, «O crédito agrícola de emergência. Balanço de uma inovação»,
Análise Social, n.º 63, 1983, Lisboa; e Inês Mansinho, O Crédito Agrícola de
Emergência no Alto e Baixo Alentejo, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa, 1981.

352 A Capital, 7/5/1975.

353 O decreto é assinado pelos ministros socialistas das Finanças e da


Agricultura do sexto Governo (Salgado Zenha e Lopes Cardoso). Os ministros
tinham tomado posse uma semana antes, a 19 de Setembro. Sabe-se hoje que
se começou a preparar esta medida durante o quinto Governo, mas foi o sexto
que a terminou e aprovou.

354 Ver, no Capítulo IX, a secção «As ocupações».

355 Ver, no Capítulo XI, a secção consagrada às ligas.

356 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os grémios da lavoura».

357 Segundo Barros Mouro (A Reforma Agrária, Coimbra, 1976), as UCP tinham
recebido, até 31/12/1975, cerca de 64% do CAE. Segundo o Ministério da
Agricultura, no fim de 1976, a repartição era a seguinte: unidades colectivas,
71,3%; explorações privadas, 28,7%.

358 Ainda em 1984, Governo e unidades colectivas acusam-se mutuamente de


dívidas de milhões de contos, de roubo e de fraudes diversas.

359 Cf. M. J. Nogueira Pinto, O Direito […], op. cit.

360 Cf. A Capital, 7/5/1975.

361 Cf. a conferência de imprensa de lançamento do SADA, em Abril de 1975.


Veja-se ainda o comunicado do Ministério da Agricultura de 15 de Abril de 1975.

362 Decreto-Lei n.º 407-A/75, de 30 de Julho.

363 A Capital, 7/7/1975.

364 Cf. a sua entrevista à agência AP, Associated Press, em Junho de 1976.
CAPÍTULO XI

ASPIRAÇÕES E PODER
NA REFORMA AGRÁRIA

A luta política, militar e institucional impôs-se durante


dois anos e dominou a vida pública. Mas não se pode dizer
que as questões sociais e económicas e as lutas de classe
tenham sido secundárias. A questão agrária, em particular,
revelou um complexo processo de lutas sociais, durante o
qual os assalariados, os camponeses, pequenos e médios
agricultores, proprietários e grandes empresários se
organizaram e mobilizaram energicamente para defender
os seus interesses.
Todos lutaram pelo poder e pelos poderes, procuraram
influenciar o Governo e tentaram conquistar posições
institucionais dominantes. No centro dos combates, além
da luta pelo poder, estavam objectivos económicos
concretos. Os assalariados começaram por tentar melhorar
substancialmente as suas condições de trabalho e reforçar
o seu estatuto na sociedade. Atacarão de seguida a
propriedade, num esforço de realização das suas principais
aspirações, a garantia do emprego e a estabilidade do
salário.
Os pequenos agricultores do Sul, proprietários, rendeiros
e seareiros, oscilaram inicialmente entre uma espécie de
neutralidade e uma relativa disponibilidade para a reforma
agrária. Uns queriam ter acesso à propriedade, outros
esperavam alargar as suas explorações, outros, enfim,
pretendiam melhorar as condições de arrendamento. Em
comum, queriam mais flexibilidade no mercado fundiário e
acesso mais fácil à terra cultivável. No princípio, não
parecem ter muitas simpatias pelos grandes proprietários.
Mais tarde, dois anos depois do golpe de Estado,
mostraram-se bem mais dispostos a aliar-se com eles e a
contrariar os sindicatos e as unidades colectivas.
Defendiam a propriedade privada e a exploração familiar.
Ora, a reforma agrária não lhes trouxe reais benefícios e as
unidades colectivas tinham mesmo tornado a terra mais
rara.
Os grandes agricultores e os proprietários fundiários são
visados desde o início do processo político. Depois de
algumas tentativas falhadas de se organizarem em novos
moldes, vivem mais de um ano na defensiva. O
subaproveitamento da terra e dos recursos é a primeira
acusação que lhes é feita. São apontados o absentismo e o
abandono das herdades. Mais tarde, estes aspectos serão
ultrapassados: passarão a estar em causa a empresa
capitalista e a propriedade privada. Tendo a iniciativa
pertencido sobretudo às forças de esquerda, que utilizam
as vias legais e os canais de Estado, os proprietários não
conseguem defender eficazmente os seus interesses. Mais
tarde, aproveitando a derrota dos elementos mais radicais
no Governo e nas forças armadas, organizam-se e passam
à ofensiva, tirando partido do apoio dos pequenos
agricultores do País inteiro.
As lutas políticas não são simplesmente o reflexo dos
antagonismos económicos. Na verdade, a luta política
precedeu e desencadeou as lutas sociais. Estas
desenrolaram-se nas particulares condições históricas e
estruturais de cada região ou sector, com relevo para o
Alentejo rural, sociedade marcada pela polarização, e pela
forte clivagem de interesses. Noutras palavras, as
características específicas da região marcaram o
desenvolvimento das lutas sociais. Estas não eram apenas
o prolongamento das lutas políticas nacionais, nem o seu
simples resultado.
Durante este período de dois anos, o grupo social que
mais se distinguiu, que mais rapidamente se organizou e
que mais iniciativas de mudança social tomou foi sem
dúvida o dos assalariados agrícolas.

Os sindicatos dos trabalhadores agrícolas

Em Abril de 1974 não há uma organização sindical no


Alentejo. Apenas há velhos militantes, simpatizantes e
alguns funcionários comunistas. Adquiridas as liberdades,
o PC e o MDP vão prestar muito particular atenção ao
sindicalismo e à região. Antigas tradições justificam esta
prioridade, assim como as características locais: os
trabalhadores constituem o mais numeroso grupo social e
a região revela as mais altas taxas de proletarização.
Em Maio formam-se em Beja e Évora «comissões pró-
sindicato». Logo a seguir, Setúbal, Portalegre e Santarém.
O recrutamento começa imediatamente. Cada sindicato é
organizado com base no distrito365.
A primeira fase de organização é virada para o exterior e
acompanhada por uma viva campanha de reivindicações
profissionais e sindicais: aumentos de salários, férias,
segurança social, horários, pagamento de horas
extraordinárias, alimentação, transportes, etc. As
reivindicações e a acção sindical são canalizadas para a
negociação dos contratos colectivos que são obtidos ainda
para o resto do ano agrícola de 1973-1974, que se termina
em Setembro. A progressão é constante e rápida: de uma
dispersão de contratos limitados a freguesias ou a
concelhos passa-se, um ano depois, a um só contrato
válido para toda a região366.
Paralelamente, passa-se de uma negociação «liberal»,
envolvendo patronato e sindicatos, a uma completa
intervenção do Estado, que por intermédio do Ministério do
Trabalho impõe a regulamentação do trabalho. Desta
primeira fase resultam vantagens quantitativas e
profissionais inegáveis para os trabalhadores367. Estes
conseguem, em particular, garantir mais dias de trabalho
por ano e aumentar relativamente o número de
trabalhadores permanentes.
Nos meses seguintes, os sindicatos conquistam
vantagens cada vez mais importantes. Participam, com o
Estado ou com o Estado e o patronato, em comissões de
controlo da aplicação dos contratos colectivos; nas
comissões de avaliação do estado das culturas e do
aproveitamento das herdades; nas comissões de
repartição de trabalhadores pelas herdades; e nos
conselhos regionais de reforma agrária. Obtêm a garantia
de que os empregadores não procurarão força de trabalho
noutros sítios antes de atingir o pleno emprego em cada
região. Em resumo, os sindicatos realizam uma velha
aspiração do movimento operário: o controlo da oferta de
trabalho. Um dos seus instrumentos, o emprego
compulsivo, é quase uma forma unilateral de poder: os
proprietários ficam dependentes da resposta do sindicato
quanto ao fornecimento de trabalhadores, mas ficam ainda
obrigados a seguir as decisões sindicais, incluindo sobre a
oportunidade das operações agrícolas.
Um pouco mais de um ano basta aos sindicatos para
mudar a seu favor as relações de força e poder na região.
Foram esta acção e estes sucessos que contribuíram para
a organização rápida e o recrutamento maciço. As reais
vantagens já obtidas e a defesa visível de interesses dos
assalariados são argumentos fortes. Quando os sindicatos
se legalizam, em Janeiro de 1975, formam já a mais forte
organização profissional do Alentejo e do Ribatejo.
Este progresso não se fez sem incidentes. Múltiplas
greves, cuja duração é muitas vezes de algumas horas ou
de um e dois dias, apoiam as reivindicações e forçam a
assinatura dos contratos colectivos. Em várias ocasiões, os
sindicatos acusam os proprietários de «sabotagem
económica», isto é, de não investir, de não respeitar os
contratos colectivos e descapitalizar as empresas368.
A situação económica agrava-se desde o Outono de
1974. Com as tensões políticas e o Inverno, os agricultores
não querem ter demasiados compromissos permanentes.
Sentem uma inédita insegurança. Diante deles, pela
primeira vez, elevam-se os sindicatos como interlocutores
fortes e organizados, capazes de impor a sua vontade.
Mais ainda: o apoio que o Governo, os militares e a
administração oferecem aos sindicatos é insólito e
ameaçador. O patronato não está habituado a negociar.
Entre o Outono de 1974 e a Primavera de 1975, a
situação muda profundamente. O poder político e militar
desliza para a esquerda. A nacionalização dos grupos
económicos e o anúncio oficial da reforma agrária são
ressentidos como ataques efectivos contra os
proprietários. O desemprego cresce: porque é o Inverno;
porque os empresários não querem ou não podem tomar
mais riscos; porque os desempregados da indústria, dos
serviços e da construção afluem aos campos; e porque a
banca quase não concede mais crédito aos proprietários.
Por outro lado, os trabalhadores e os sindicatos já não
aceitam como antes o emprego sazonal. A sua resignação
e a sua completa subordinação estão ultrapassadas. Com a
força da organização, do apoio governamental e da
situação política favorável, os trabalhadores são agora
capazes de ousar e de impor.
Mais ainda do que as vitórias das reivindicações, as
vantagens gerais dos contratos colectivos criam nos
trabalhadores a consciência de um estatuto social mais
digno, de uma capacidade contratual que nunca tinham
conhecido e sobretudo de uma força incontestável. Esta
força, não a vão buscar apenas ao partido, ao sindicato e
ao apoio militar. Retiram-na também das instituições e dos
novos organismos criados para enquadrar o sector
agrícola. As comissões bipartidas ou tripartidas, onde os
sindicatos desempenham o principal papel, têm vastos
poderes sobre o emprego e a actividade económica.
Directamente ou por intermédio do PC, têm acesso aos
serviços locais da administração, aos ministérios, aos
bancos, um pouco por todo o lado.
Os sindicatos exercem ainda inesperadas funções de
vigilância, de polícia e de inquérito oficial. Não cumprem
apenas as funções próprias de uma organização
profissional, mas aproximam-se das estruturas do Estado,
com este partilham funções e exercem a sua autoridade.
Algumas destas competências são conquistadas, outras
são-lhes conferidas pelo Governo. Por exemplo, as medidas
legais sobre o controlo da circulação e transporte do gado
conferem as respectivas responsabilidades «às autoridades
administrativas e sindicais da região»369. Em Beja, é o
próprio sindicato que comunica aos seus associados que
não devem permitir a saída de máquinas ou de gado das
herdades sem a sua autorização escrita e sem o seu selo
branco370. Nalguns sectores, o sindicato é quase uma
entidade pública.
É neste contexto, reforçado pela incerteza e pelas
ameaças de desemprego, que avança a ideia de reforma
agrária. A partir de Janeiro de 1975, multiplicam-se as
«conferências» de camponeses e trabalhadores agrícolas,
organizadas pelos sindicatos e pelo PC. A 26 de Janeiro, o
Sindicato de Beja decide «começar imediatamente a
reforma agrária por sua própria iniciativa»371. Citam-se
números e casos de desemprego: «15 000 em Beja, 5000
em Évora, 3000 a 4000 em Portalegre, alguns milhares em
Setúbal»372. De Janeiro para Fevereiro ocorrem as primeiras
ocupações. O número é reduzido, mas foi dado o sinal.
Pequenos agricultores deram a sua colaboração, mas
rapidamente o sindicato assume a direcção. Depois de 11
de Março, realizam-se manifestações em todo o Alentejo e
a reforma agrária transforma-se na principal palavra de
ordem. A 17 de Abril, no seguimento e em apoio à
publicação do decreto-programa sobre a reforma agrária
(Decreto-Lei n.º 203-C/75), 20 000 a 30 000 trabalhadores
manifestam-se em Beja e Évora. A 20 de Abril, o jornal
oficial do MFA considera que há 938 000 ha de terras
expropriáveis.
As ocupações aumentam lentamente, a agitação sindical
cresce rapidamente. O Governo, por incapacidade ou
estratégia, atrasa a publicação das leis e dos regulamentos
de expropriação, apesar de tanto o ministro da Agricultura
como o secretário-geral do PC apoiarem as ocupações373.
No terreno, a propaganda sindical tem agora uma
excelente bandeira: a publicação das leis prometidas. Em
Julho, a Intersindical publica um comunicado, «apela ao
empenhamento na política antimonopolista e
antilatifundiária do MFA» e convida os trabalhadores «a
aplicar as medidas de reforma agrária e a criar uma
dinâmica revolucionária capaz de ultrapassar a esclerose
do aparelho de Estado»374. As leis, já aprovadas pelo
Conselho de Ministros, só serão publicadas um mês mais
tarde. A 8 de Julho, em Beja e Évora, reúnem-se plenários
sindicais em que participam cerca de 15 000
trabalhadores. Denuncia-se a sabotagem económica,
exige-se a publicação da lei prometida e proclama-se a
intenção de prosseguir as ocupações375.
No Verão e no Outono de 1975, os sindicatos dedicam-se
a duas tarefas essenciais: ocupar herdades e organizar as
unidades colectivas de produção. Já fizeram uma longa
caminhada. Pelo seu próprio itinerário e graças à evolução
da situação geral, os sindicatos passaram da negociação
colectiva ao monopólio da força de trabalho; da
penalização do subaproveitamento das herdades à
expropriação generalizada da grande propriedade.
A verdade é que a garantia completa de emprego e a
estabilidade salarial não eram possíveis sem o acesso à
propriedade. Um certo controlo, apesar de vantajoso, não
bastaria. O sindicato seria obrigado a um desgaste
permanente, em toda a região, na defesa dos seus
associados e na procura de soluções concretas para os
inúmeros conflitos. As suas decisões seriam sempre
consideradas como ingerências na administração da
empresa e como limite do direito de propriedade privada.
Uma situação desse tipo seria, a curto prazo, insuportável
e transformar-se-ia talvez na sua derrota. Finalmente, os
factores ideológicos, estratégicos e políticos indicavam o
mesmo caminho: o da expropriação e da socialização dos
meios de produção.
No processo de ocupação da terra, o papel do sindicato é
determinante376. Na preparação, na mobilização e nas
diligências junto dos serviços oficiais e dos regimentos
militares377. As situações e as circunstâncias podem variar,
mas o sindicato, em estreita ligação com o PC, é o
elemento indispensável de coordenação e de controlo da
execução. Até depois da ocupação. Com efeito, os
acontecimentos tomam um tal ritmo a partir do fim do
Verão, que se instala uma certa espontaneidade. Quem
pode ocupar ocupa. Depois vai ao sindicato e aos serviços
regularizar o caso.
Alguns assuntos são complexos e revelam dificuldades
imprevistas. Por vezes, é preciso tratar com os
proprietários, com os advogados e com a administração.
Outras, é necessário proceder a inventários completos. Há
ainda o problema financeiro: os sindicatos constituem-se
em procuradores de ocupantes e habilitam-se a receber os
pagamentos devidos pelo Instituto dos Cereais aos antigos
agricultores. O sindicato também pode certificar junto do
Ministério e da banca uma ocupação ou a constituição de
uma UCP: fica assim aberto o acesso ao crédito e a
possibilidade de assistência técnica e de reconhecimento
legal. Em certo sentido, o sindicato faz de procurador dos
ocupantes e de estafeta entre UCP, serviços oficiais,
banco, militares e comerciantes.
Mas o sindicato tem também, como organização de
massas ligada ao PC e representando ainda trabalhadores
do sector privado, outras tarefas que não ficam esquecidas
por causa do apoio às ocupações e às UCP. Em primeiro
lugar, o recrutamento sindical, partidário e eleitoral. O
sindicato é seguramente a primeira agência na região, no
que está bem credenciado pelas vantagens reais que
conseguiu para os trabalhadores. Em seguida, o controlo
social e político. Procura não se fazer ultrapassar por
outras organizações de esquerda e esquerdistas, ainda
menos pela espontaneidade de algumas acções. A certa
altura, o Sindicato de Évora vê-se obrigado a emitir um
comunicado no qual adverte os trabalhadores: «devem
contactar o sindicato e os serviços do Ministério antes de
ocupar herdades»378. Noutro momento, o Centro de
Reforma Agrária informa que, sob proposta do sindicato,
tomou a decisão «de não legalizar as ocupações
efectuadas sem audição prévia do Centro»379.
Finalmente, o sindicato não cessa a sua actividade no
domínio do emprego nas explorações privadas. Fornece
mão-de-obra aos agricultores que subsistem e encarrega-
se da distribuição de trabalhadores eventuais pelas
empresas, ao abrigo das normas do emprego compulsivo,
e também pelas unidades colectivas. Mantém-se ligado às
UCP, mas não se desinteressa dos milhares de
trabalhadores que, em cada distrito, não obtiveram lugar
nas UCP.
Além destes aspectos sociais e económicos, os sindicatos
continuam atentos às questões políticas. Os seus fiéis e
simpatizantes encontrarão emprego e responsabilidades.
Por vezes, nas UCP ou no emprego compulsivo, socialistas
e trabalhadores sem partido, mas notoriamente não
comunistas, não obtêm lugar ou perdem os que têm380.
Será essa, aliás, uma das principais críticas que se farão às
UCP.
Apesar desta situação geral extremamente favorável, os
sindicatos não deixam de encontrar dificuldades de peso.
Defendem interesses por vezes contraditórios, que, neste
quadro, adquirem especial relevo: os dos eventuais e dos
permanentes; dos assalariados e das UCP como
empregadores; dos trabalhadores do sector colectivo e dos
do sector privado. Tanto o sindicato como o PC denunciam
os «esquerdistas» que incitam os trabalhadores a exigir
aumentos de salários e os «proprietários reaccionários»
que pagam salários mais elevados do que os do contrato
colectivo, a fim de «criar dificuldades à reforma agrária»381.
Lentamente, sem que a separação seja jamais total, as
unidades colectivas criam a sua própria estrutura de
coordenação paralela ao sindicato: as uniões, os
secretariados concelhios e distritais. O que está em
construção é a organização de um verdadeiro poder
económico que convém não misturar com a força sindical e
reivindicativa. De qualquer maneira, o partido assegura as
relações de coordenação.
A partir dos fins de 1975, com a situação geral menos
favorável ao PC, é inegável o interesse em separar
estrategicamente UCP e sindicatos: a cada um a sua
especialidade. Ora, a batalha das UCP é agora, acima de
tudo, económica: trata-se de mostrar a superioridade
produtiva do colectivismo, de investir e de alimentar
trabalhadores que até então têm estado em excesso.
Os sindicatos vão limitar-se ao sindicalismo. Percebendo
as mudanças e detectando as ameaças futuras, organizam
a sua defesa. Curiosamente, é nesta fase que parecem
mais aguerridos e agressivos e que têm menos dificuldade
em desrespeitar as normas legais e as decisões
administrativas ou governamentais. Mostram-se o mais
«intratáveis» possível, atacam verbalmente e organizam
manifestações e greves contra o Governo, nomeadamente
contra Lopes Cardoso, embora se trate de um socialista de
esquerda382.
Perdem quase todas as suas posições importantes nos
ministérios e nos serviços; perdem os seus aliados
militares383; passam a ter de contar com a hostilidade dos
governos. No futuro, a um esforço de conciliação, por
exemplo com os socialistas, preferirão sempre um
isolamento relativo a uma determinação sectária384. A sua
intransigência revela uma estratégia destinada a preservar
o mais possível das suas conquistas, terras e herdades.
Desse ponto de vista, o poder económico e o controlo
social têm-se imposto à acção sindical. Na verdade, esta
situação sugere a eventual emergência de novas formas
económicas e de novas organizações sociais e
empresariais no interior de um sistema que lhes é em
princípio hostil.

As ligas de pequenos e médios agricultores

Os camponeses nunca foram muito numerosos no


Alentejo. A propriedade e a exploração agrícola sempre
foram concentradas e a sociedade muito polarizada. No
entanto, desde há duas ou três décadas, com a redução do
número de patrões e a baixa considerável dos
assalariados, a importância relativa dos pequenos
agricultores parece estar em crescimento. Em certos
casos, têm funções especialmente importantes, como
acontece com os regadios, nas regiões onde se pratica o
sistema da «seara» ou arrendamento de campanha, e nos
grandes latifúndios que os proprietários não cultivam
directamente.
No princípio de tudo, em 1974, os pequenos agricultores
não são hostis à reforma agrária. Alguns, pelo contrário,
esperam obter terra. Cedo se encontram, alguns deles, em
tentativas de organização. Nascem as ligas, com o distrito
como base territorial. Dão os seus primeiros passos
algumas semanas após o 25 de Abril de 1974, mas vão
demorar mais tempo do que os sindicatos a estruturar-se e
a tornar-se publicamente activas.
Na origem estão pequenos agricultores, mas também
alugadores de máquinas e técnicos. Do ponto de vista
político, os pioneiros são comunistas, socialistas, militantes
do MDP e alguns independentes. As primeiras reuniões
efectuam-se em Maio e Junho de 1974, em Évora, na sede
do MDP. Alguns meses depois, a liga distrital será
fundada385.
Durante o período que precede a criação das ligas
desenrola-se um interessante debate nos meios agrícolas e
políticos locais. Alguns independentes defendem a ideia da
organização autónoma dos pequenos e médios
agricultores, à parte dos grandes empresários e
proprietários. Outros, mais ligados à propriedade e à
empresa agrícola, são de opinião que todos os agricultores
se devem juntar na mesma organização. Os partidários
desta segunda ideia estarão na origem, em 1974, das
associações livres de agricultores (ALA) e, mais tarde, da
Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP).
Os primeiros levarão a sua ideia à frente. Haverá ligas
em cinco distritos: Beja, Évora, Portalegre, Setúbal e
Santarém, assim como em alguns concelhos do Norte e do
Centro, mas com menor expressão.
Os primeiros vestígios e ecos são das reuniões de Évora,
ainda em Maio. Mas a primeira liga de que exista menção
formal parece ser a de Beja, criada em reunião de Junho.
Em Setembro, esta última reivindica já cerca de 4000
sócios, o que talvez possa ter sido conseguido graças à
transferência do ficheiro do antigo Grémio. O programa
desta primeira liga é vasto, na defesa dos interesses da
classe. Pretende-se «democrático, sem filiação
partidária» .
386

Em Elvas, uma «comissão provisória» organiza-se no


plano concelhio e separa-se explicitamente dos que
querem criar uma ALA387. Será dado em Elvas o primeiro
passo para a organização da Liga do distrito de Portalegre,
cuja direcção é constituída em Janeiro de 1975.
A Liga de Évora constrói-se lentamente a partir de Junho.
Existe de facto em Setembro, mas só em fins de Dezembro
de 1974 estará razoavelmente estruturada.
No distrito de Santarém, várias iniciativas locais
conduzem à criação de ligas concelhias, como as de
Coruche e Alpiarça, lutando contra a fusão com os grandes
agricultores. A partir de Janeiro de 1975, a Liga existe
efectivamente no plano distrital388.
A Liga de Setúbal existe formalmente desde Dezembro
de 1974, mas terá pouca importância.
Em todas as ligas, a luta pela liderança é viva.
Lentamente, o PC vence em quase todas, sem nunca
conseguir, aliás, instrumentalizá-las completamente.
Mesmo nos momentos em que os seus militantes ou
simpatizantes ocupam quase todos os cargos dirigentes, a
realidade interna será sempre diversificada e controversa.
Em Novembro de 1974, sob a influência do PS, um
secretariado nacional provisório das ligas anuncia a sua
fundação. Defende-se de toda e qualquer ligação com os
interesses dos grandes proprietários389. Mas a sua
existência terminará praticamente com a sua
autoproclamação.
Em Fevereiro de 1975, o PC organiza o primeiro
«Encontro de pequenos e médios agricultores do Baixo
Alentejo», com o que espera dar um sinal da sua
influência. Aí já se reivindicam algumas expropriações390.
Poucas semanas depois, a 9 de Março, é a vez do primeiro
«Encontro de pequenos e médios agricultores do distrito
de Évora»391. A organização é notoriamente comunista.
Membros do comité central e dos órgãos regionais do
partido dirigem-se aos agricultores presentes e aos
dirigentes das ligas. A de Évora deve ter três mil membros,
ou talvez apenas inscritos, mas só algumas centenas
assistem à reunião. Os outros não se querem identificar
excessivamente com o PC392. Não obstante, é mesmo o
partido que orienta e anima a Liga em aspectos essenciais.
Agricultores da Liga de Évora participam em ocupações
durante os meses de Fevereiro e Março de 1975393. Apesar
das esperanças de alguns, a Liga não encara a hipótese de
distribuição de terras. Aceitará ou não contestará o
colectivismo, enquanto os comunistas detêm uma posição
influente na organização. Mais tarde, em Setembro,
quando 12 agricultores pretendem formar uma cooperativa
numa herdade ocupada e distribuir uma parte das terras, a
direcção da Liga declarará secamente «não aceitar o
oportunismo de 12 elementos que querem tudo para eles e
não querem colaborar com o Sindicato»394. Diga-se que os
sindicatos se fazem representar e são aceites em quase
todas as reuniões da direcção da Liga de Évora e que,
noutros distritos, mantêm boas relações com os dirigentes
locais das ligas.
A actividade das ligas ficará muito aquém da dos
sindicatos: a participação e a mobilização dos seus
membros é menor. As direcções multiplicam-se em
telegramas, cartas e comunicados, na esperança de obter
vantagens ou de influenciar decisões, como no caso da
revisão da lei do arrendamento. Mas uma boa parte da sua
actividade parece dirigida especialmente para a opinião
pública e a comunicação social.
Na Primavera e no Verão de 1975, a Liga de Évora está
assim politicamente activa. Felicita o Governo e o MFA
pelas «suas vitórias», saúda o Conselho da Revolução e
associa-se aos festejos públicos395. Estas tomadas de
posição parecem justificar-se sobretudo pelas
necessidades da imagem pública da revolução. Mas são o
resultado da decisão de um pequeno grupo de dirigentes.
Em fim de Abril de 1975, a Liga felicita o Governo e o
MFA pela lei-programa de reforma agrária. No seu
comunicado, afirma que «as ocupações se justificavam
antes da aprovação destas leis […]. Agora, perderam o
sentido […]. Pedimos aos nossos membros, a bem do
processo revolucionário, que não ocupem mais herdades».
Esta orientação agrada aos dois interessados: aos
sindicatos, que querem liderar o processo e pensam que
uma participação excessiva dos camponeses poderia criar
obstáculos ao colectivismo; aos camponeses, porque as
ocupações começam já a preocupar alguns.
Em meados de Junho, a Liga publica novo comunicado,
elevando-se energicamente contra «as ocupações
selvagens», e apela aos seus membros para que advirtam
a direcção antes de proceder a uma ocupação, caso esta
se justifique por abandono do empresário.
Ao longo de 1975 e parte de 1976, as principais
repercussões públicas da actividade da Liga decorrem da
divulgação de comunicados e telegramas. Prosseguem
todavia outras actividades, mais discretamente. Em
particular, avalizam os pedidos de crédito de pequenos
agricultores e de assalariados que ocuparam herdades.
Entre Abril e Setembro de 1975, a Liga de Évora passa
dezenas de certidões e envia centenas de cartas aos
bancos, aos grémios e aos serviços oficiais, pedindo apoio,
dando a sua caução e defendendo os rendeiros contra os
proprietários-senhorios396.
As ligas parecem mais dotadas para a acção institucional
do que para a acção de massas. O PC ainda tenta,
aparentemente, que a sua actividade seja mais intensa ou
mais consistente. Não só destaca vários militantes e
funcionários como organiza os «Encontros», com os quais
toma compromissos públicos. Várias vezes os membros do
comité central se dirigem explicitamente às ligas,
sublinhando o que lhes parece ser o essencial: «É preciso
organizar os pequenos e médios agricultores e impedir que
os grandes proprietários os explorem por intermédio das
ALA.»397 Uma relação particular se estabelece entre as ligas
e o PC, a ponto de ser publicamente reconhecida por
membros do secretariado da Liga de Évora, que afirmam
que a criação desta última se ficou a dever ao MDP e ao
PC398.
Mas a verdade é que, no interior das ligas, outras
tendências existem e se exprimem nas direcções e nas
assembleias de delegados, apesar da presença de
elementos do sindicato e do MFA. Agricultores
politicamente independentes, não comunistas, socialistas e
simpatizantes do PPD, apoiados por técnicos agrícolas,
tentam fazer valer os seus pontos de vista e não
comprometer demasiado a Liga do lado dos comunistas,
em detrimento dos interesses dos pequenos agricultores.
Com o PC, estes sectores de opinião partilham sobretudo
ou apenas uma ideia: a da organização separada dos
pequenos e médios agricultores. Quanto ao resto, têm
interesses e opiniões razoavelmente diferentes.
Estas tendências, que virão a ter importância numérica,
começam lentamente a levar a melhor quando, a partir do
fim do Verão de 1975, os agricultores se começam a
queixar seriamente399. Motivos não faltam. Agricultores,
vizinhos e até membros da Liga foram obrigados a
empregar trabalhadores. Alguns houve que viram as suas
terras ocupadas. Outros ficaram sem terras ou sem
contratos de arrendamento, porque ocupantes e UCP não
quiseram manter os contratos anteriormente existentes
com os proprietários. Quer isto dizer que não somente não
receberam as terras e os benefícios económicos
esperados, como também se sentem eles próprios
ameaçados pela reforma agrária. O ministro Lopes Cardoso
confirma esta situação: «Os erros cometidos no passado
recente atiraram para os braços da direita camadas
importantes da população, particularmente sectores
ligados à agricultura, ou tornaram-nos manipuláveis por
ela.» Afirma ainda que «se ignorou muito um factor
fundamental da nossa realidade agrícola, o pequeno e
médio agricultor […]. Este facto teve uma consequência
extremamente negativa junto dos camponeses do Norte e
do Sul. Fala-se muito dos assalariados agrícolas do Sul,
mas esquece-se de que só são uma minoria. Temos perto
de 150 000 assalariados rurais, ao lado de 600 000
agricultores dispersos por todo o País»400.
No Outono de 1975, o descontentamento dos pequenos
agricultores é crescente e já se tornou evidente. Os
socialistas aproveitam a ocasião para apoiar as suas
reivindicações contra a hegemonia comunista.
Acompanham-nos, por exemplo, numa manifestação em
Beja, em Outubro, onde se reúnem mais de 2000
agricultores401. O PPD também acorre, assim como antigos
animadores das ALA. Por toda a região se repetem
incidentes, conflitos e manifestações, reunindo os
pequenos agricultores e um número crescente de aliados,
contra os serviços do Ministério e mesmo contra as ligas
ou as suas direcções, como por exemplo em Portalegre,
Santiago de Cacém, Coruche, Rio Maior e Marvão402.
O PS e o PPD tentam integrar o movimento o mais
possível. Procuram dividendos e um espaço político que
tinham perdido. Mais importante ainda, o que tinha
sobrado das ALA surge de novo: proprietários e
agricultores preparam-se para relançar o seu movimento e
organizar a Confederação dos Agricultores de Portugal
(CAP). Em todo o País são desencadeadas verdadeiras
acções de massas. Sem nunca conseguir conquistar as
ligas do Alentejo, a CAP organiza os pequenos agricultores
do Ribatejo e mesmo de Portalegre, além dos de outras
regiões do Norte e do Centro. A sua acção contribui
eficazmente para a criação de um clima geral e de um
ambiente de protesto contra a reforma agrária.
Nas regiões onde a CAP penetra bem, Santarém,
Portalegre, Castelo Branco e Lisboa, as ligas estiolam e
morrem rapidamente. Mas em Beja e sobretudo em Évora
há obstáculos reais contra uma aliança entre pequenos
agricultores e proprietários ou grandes empresários. A CAP
mal consegue instalar-se nesses dois distritos. Os
camponeses, especialmente os de Évora, conseguem,
pelos seus próprios meios e no interior da Liga, derrubar as
tendências pró-comunistas. A partir do segundo semestre
de 1976, a Liga de Évora é de novo uma realidade viva,
com orientações bem diferentes. Curiosamente, um
grande número dos seus dirigentes eleitos, aqueles mesmo
que desde o princípio tinham tentado contrariar a linha
dominante, conservam as suas posições de influência e
direcção. Os conflitos internos e a diversidade nunca foram
completamente eliminados: a Liga é conquistada pelo
interior.
Só a Liga de Évora consegue realmente escapar à
dinâmica de bipolarização social. Relativamente à terra e à
agricultura, toda a lógica do processo revolucionário
parece basear-se apenas na existência de duas classes: o
proletariado rural e os grandes proprietários. Do lado dos
militares, dos governos e dos comunistas, querem
concretizar um difícil e tradicional objectivo do
pensamento socialista e revolucionário, a aliança entre
camponeses e assalariados. Mas esta tentativa esboça-se
de maneira desigual e em detrimento dos camponeses.
Todas as referências, feitas por quase todas as esquerdas,
ao campesinato têm carácter acessório, ideológico e
táctico. Comunistas e militares não deixam, aliás, de
especificar que a aliança deve ser dirigida pelos
proletários, senhores «de um nível de consciência mais
elevado»403. Esta aliança é forçada, imposta. Durou curto
período, talvez por nem sequer ter sido aliança real de
interesses. A divergência acabou por se revelar de modo
flagrante e com demasiada força404.
No entanto, com a excepção do distrito de Évora, onde a
Liga reivindica 10 000 membros inscritos, a oportunidade
da organização autónoma dos camponeses falhou ou foi
adiada. Com efeito, o movimento nascente dos
agricultores e dos proprietários, sem distinção de estatuto
ou de dimensão económica, quase não deixou espaço
próprio para os camponeses. Destes, os mais activos
juntaram-se em maioria à CAP.
As associações de agricultores e proprietários

Os agricultores e os proprietários não estavam


habituados à livre associação. Os grémios, da organização
corporativa, eram de inscrição obrigatória. Neles se
desenrolava certamente uma vida associativa com algum
significado, mas a situação geral, social e política, não
exigia nem motivava a experiência tradicional da defesa
de interesses. Os grandes conflitos, quando os havia, eram
mais encarados como casos de polícia. As negociações
colectivas não existiam verdadeiramente. O sindicalismo
livre era proibido.
Os grémios, cuja rede cobria todo o País, tinham em
princípio base concelhia e agrupavam-se em federações
regionais. Associações de produtores, como a Federação
Nacional dos Produtores de Trigo, cruzavam-se com as
organizações verticais. A Corporação de Agricultura
representava nacionalmente todos estes níveis, incluindo
as Casas do Povo e suas federações.
O novo poder ordena o desmantelamento da organização
corporativa405. Aqui e acolá, os agricultores ainda tentam
conservar ou recuperar a estrutura dos grémios. Será esse
o objectivo dos seus primeiros movimentos desordenados
e sem grande eficácia. Ao contrário do que se passou com
a maior parte dos sectores industriais e comerciais, o
Governo e os partidos políticos que dele fazem parte
decidem que deve ser o Estado a encarregar-se da
dissolução e da reconversão destes organismos. Por causa
da importância da rede nacional dos grémios, ou porque
têm funções práticas e económicas ligadas à produção, ou
finalmente por razões ideológicas e estratégicas, a
verdade é que os grémios da lavoura são imediatamente
objecto de tratamento diferente. Esta situação vai criar
reais dificuldades à fundação de novas associações
profissionais, até porque, sem sedes e sem património,
nem sequer ficheiros, tudo será mais complicado.
Apesar de tudo, alguns agricultores tomam iniciativas em
várias frentes: na Associação Central de Agricultura
(ACAP), nalguns grémios, em certas federações e no
terreno, junto dos agricultores406.
Em poucas semanas, as bases das primeiras ALA estão
lançadas.
Em Beja nomeadamente, donde vem um primeiro
«Esboço de programa para uma reestruturação agrícola».
Apesar de ser ainda um rascunho, este é um projecto
ambicioso, não se preocupa apenas com questões técnicas
e económicas, mas também propõe uma organização
nacional para todos os agricultores, quaisquer que sejam
os seus estatutos e dimensões.
Organizam-se núcleos locais que tentam conquistar os
grémios, como esta «comissão de agricultores» de
Grândola, que, entre Maio e Junho de 1974, se considera
como a «comissão administrativa do Grémio»407. Ocupa-se
dos assuntos correntes e encara imediatamente o seu
alargamento aos concelhos vizinhos de Alcácer do Sal,
Santiago de Cacém e Sines. Em Julho toma uma nova
designação: «comissão municipal da ALA».
Paralelamente, outras comissões se criam em Évora e
Beja e rapidamente se pensa na coordenação de
actividades, ou mesmo numa federação. As várias
comissões trabalham activamente, promovem reuniões
públicas, ocupam-se de assuntos do dia-a-dia (taxas,
subsídios, etc.) e publicam manifestos e comunicados.
No entanto, em fins de Julho já circulam também
documentos e panfletos das ligas. A vida das novas
associações conhece as primeiras sérias dificuldades. As
ALA e as ligas acusam-se mutuamente de falta de
representatividade. A ALA denuncia a «divisão de classe»
provocada pela Liga. Esta censura as ALA, acusando-as de
estarem dominadas pelos grandes proprietários e
capitalistas. Entre ALA e ligas, a divisão é real e definitiva.
Aquando das negociações pelos contratos colectivos de
trabalho, as ALA são razoavelmente ultrapassadas. Em
alguns concelhos, é verdade que os agricultores assinam
em seu nome408. Mas, na maior parte, são simplesmente
«grupos de agricultores» que tomam a responsabilidade409.
Multiplicam-se os desacordos. Não há entendimento entre
agricultores de diferentes regiões, por vezes nem sequer
entre os de um mesmo concelho. Pelo seu lado, o Governo
ocupa-se de modo crescente com a regulamentação do
trabalho, substituindo-se aos parceiros sociais, não só por
razões políticas e estratégicas, mas também por motivo e
pretexto da falta de organização e de representatividade
dos patrões ou dos agricultores. O facto é que, no último
trimestre de 1974, os sindicatos estão organizados em
todo o Sul, muito mais e muito melhor do que os
agricultores.
A estes falta um plano, uma orientação geral e meios de
acção (meios que os próprios empresários não põem à
disposição dos esforços associativos). É verdade que, na
Associação Central, um pequeno grupo de agricultores, de
proprietários e de técnicos tenta assegurar uma qualquer
coordenação do movimento e definir uma orientação. Mas
não conseguem. Pelo menos para já410.
As ALA perdem ainda uma batalha importante. Os seus
mais preeminentes membros ocupam-se muito de política.
Alguns estão ligados aos partidos de direita que são
proibidos (Liberal e do Progresso). Muitos apoiam o
presidente Spínola, obrigado a renunciar a 29 de Setembro
de 1974. A ALA de Grândola, por exemplo, tentou mesmo
convocar manifestações de apoio ao general Spínola,
incluindo a 28 de Setembro, dia da sua derrota.
As dificuldades das ALA são imensas. As ligas fazem-lhes
concorrência, no Alentejo, com razoável eficácia. As ALA
perdem os grémios, pois que entretanto o Governo
começou a nomear comissões liquidatárias. A
administração pública, os governantes e os partidos não
lhes facilitam a vida: as ALA não obtêm o direito ao
diálogo, não são ouvidas nem consideradas como
interlocutores válidos. Já relativamente aos contratos
colectivos as ALA tinham mostrado a sua incompetência e
a sua desorganização. Em fins de 1974, a sua decadência
é notória. No ano seguinte, as suas estruturas
desaparecem quase completamente, com muito poucas
excepções, entre as quais a ALA de Santarém. O 11 de
Março de 1975 e a radicalização da política do Governo
aceleram o declínio das ALA.
O fim não será definitivo. Morre a ALA, mas ficam os seus
activistas e os sectores sociais interessados. Pequenos
grupos mantêm-se em contacto. No fim de Julho de 1975,
uma tentativa aponta para a renovação: em Portalegre,
agricultores pretendem criar uma Associação dos
Produtores Agrícolas, imediatamente denunciada em
termos violentos pelo Ministério, pelos serviços locais e
pelo MDP411. Esta iniciativa tem a vida curta, mas
demonstra que existe uma necessidade e que o problema
não está resolvido.
Uma rede de contactos mais ou menos orgânicos existe,
é animada por alguns activistas e será energicamente
despertada no fim do «Verão quente». Desta vez, é um
sucesso, ajudado por condições gerais favoráveis. Surge a
CAP. Encontram-se à sua frente alguns dos agricultores que
tinham fundado as primeiras ALA. Em comum com estas, a
Confederação tem o seu carácter anti-revolucionário e
anticolectivista, uma parte dos seus promotores, o seu
papel político412. Mas as diferenças são significativas: o
contexto geral, o apoio social e o método de organização.
A ALA nasce no Alentejo dos grandes proprietários,
penetra mal no Ribatejo e não chega sequer às regiões do
Norte e do Centro. Os mais importantes partidos não
comunistas (PS e PPD) fogem ao seu contacto. Tem pouco
apoio militar e político. E sobretudo não tem a larga base
dos pequenos e médios agricultores. Além disso, a sua
ideologia e o seu programa são confusos e variam de
região para região.
Com a CAP, quase tudo é diferente. Em primeiro lugar, o
contexto. Quando nasce, a esquerda comunista e a
extrema-esquerda estão em nítido recuo. O capital de
reacção e protesto contra as ocupações é grande, pode ser
canalizado. Para muitos dos interessados, é agora mais
fácil correr riscos do que um ano antes: os apoios parecem
surgir mais generosamente. O ambiente é propício: já não
se trata de montar fria e racionalmente uma organização,
mas de mobilizar emoções e energias reais contra o
comunismo e a favor da propriedade, com a ajuda do
movimento de defesa das liberdades. O método seguido
não exclui as negociações de «cúpula» e as intrigas
políticas de bastidores, mas insiste sobretudo na
mobilização de massas e na maneira populista. A CAP
procura as multidões, efectua centenas de reuniões e de
manifestações e convoca dezenas de comícios. Demonstra
a sua força e ameaça Lisboa e as grandes cidades com
barragens nas estradas e corte de víveres. O centro das
iniciativas já não é o Alentejo da grande propriedade, mas
o Ribatejo da agricultura intensiva, das empresas
capitalistas de média dimensão e dos pequenos
agricultores. Também os agricultores do Norte e do Centro
são desde logo chamados a dar o seu contributo.
Curiosamente, a massa humana que se põe é a dos
proprietários ocupados do Alentejo, mas a dos agricultores
que receiam que a reforma agrária acabe por chegar às
suas terras. É neste momento que o que foi feito em nome
da reforma agrária, as ocupações e as unidades colectivas,
une o que parecia inconciliável em 1974: os pequenos
agricultores e os grandes proprietários, os rendeiros e os
empresários capitalistas.
A CAP é denunciada pelos comunistas e mesmo por
alguns socialistas de esquerda, assim como por
funcionários do Ministério, mas desta vez os ataques
vindos da esquerda fazem-lhe mais bem do que mal413.
Recebe colaboração de alguns socialistas, do PPD e do
CDS, assim como de militares414. A Igreja contribui à sua
maneira: seja oficialmente, através de declarações e de
tomadas de posição gerais, mas inequívocas, por parte dos
bispos, seja discreta e informalmente, por intermédio da
acção prática e por vezes conspirativa de membros do
clero415.
Antes de 25 de Novembro, a CAP não é muito hostil aos
socialistas, nem sequer ao ministro Lopes Cardoso. Eleva-
se contra «as ocupações selvagens», sem pôr inteiramente
em causa a ideia de reforma agrária. Os acontecimentos
de Rio Maior de 24 de Novembro, que constituem aliás
uma valiosa contribuição para a vitória militar do dia
seguinte, mostram a sua força e a sua capacidade de
mobilização. Até um dirigente socialista afirmará que «é
uma explosão popular»416. Mais de 30 000 pessoas
participam em reuniões, manifestações e correrias, nesses
dias agitados, chegando ao ponto de cometerem actos
violentos e de cortarem estradas e caminhos-de-ferro. No
meio daquela gente estão inúmeros pequenos agricultores,
cuja presença é reconhecida por todos, incluindo pelo PC e
pelo MDP, que, todavia, denunciam a manipulação de que
seriam vítimas417.
A seguir, é um crescendo permanente que vai durar mais
de um ano. Os dirigentes da Confederação, em particular o
seu secretário-geral, José Manuel Casqueiro, multiplicam-
se, em reuniões, comícios e deslocações em todo o País.
Mudam facilmente de posição, de acordo com a evolução
dos acontecimentos, o que lhes permite alargar a sua
audiência e acompanhar as oscilações de opinião.
Organizam as suas bases locais, as associações de
agricultores concelhias e distritais, mas fazem-no
prosseguindo uma estratégia muito aberta e pública,
atraindo multidões. Entre Novembro de 1975 e Março de
1976, convocam dezenas de plenários, autênticas
assembleias regionais que chegam a agrupar 50 000
pessoas418.
Do ponto de vista político, a estratégia da CAP parece-se
estranhamente com a dos revolucionários: massas em
permanência nas ruas, reuniões, sessões de
esclarecimento e comícios, mas também conspirações,
pressões sobre o Governo e contactos estreitos com os
militares.
Socialmente, estas acções públicas têm algo de
particular: também mostram o povo, os rostos duros de
agricultores, gente de trabalho e filas de tractores.
Ninguém poderá dizer que se trata dos proprietários, nem
sequer que estes são numerosos.
Com o tempo, ao longo de 1976, a CAP consegue alargar
o seu recrutamento e ganhar algumas das suas causas. A
plataforma dos partidos, de Janeiro de 1976, dá-lhe
relativamente satisfação. Os seareiros que apoiou acabam
por receber terra. A cada vitória aumenta as suas
reivindicações e sabe mostrar-se habilmente impaciente.
Em Março de 1976 critica violentamente o ministro
socialista Lopes Cardoso, acusando-o de não querer ir até
ao fim. O ministro já reconheceu os prejuízos causados aos
pequenos agricultores, mas não está disposto a ceder nem
a atacar as unidades colectivas. Algumas restituições de
terra a pequenos agricultores são anunciadas e cerca de
duas centenas de seareiros recebem courelas para os seus
cultivos. Mas, para a CAP, isto não basta. Na Primavera,
tenta suspender as leis em vigor e chega a reivindicar a
mera devolução de numerosas terras e o pagamento de
indemnizações pelas outras.
Os seus ataques contra o ministro continuam durante
alguns meses419. A um ponto tal que o PC modera as suas
críticas, bem mais duras em Setembro de 1975. O que não
quer dizer que o PC tenha mudado significativamente a
sua oposição e a sua hostilidade. A verdade é que o
ministro tem dificuldade em encontrar uma via. A maior
parte das decisões relativas a devoluções e a demarcações
de reservas não são aplicadas. Entre dois fogos, é obrigado
a demitir-se em Outubro de 1976, estando o primeiro
Governo constitucional em funções há cerca de três
meses.
Para a CAP, o Verão de 1976 é em certo sentido o apogeu
da sua luta. Reconhecida pelos partidos, organizada em
quase todo o País (menos em Évora, onde a Liga parece
inamovível), conhecida do público, tendo acesso aos
jornais, assídua na rádio e na televisão, prestigiada por
algumas vitórias, a CAP é um interlocutor necessário. Mais
do que isso: tem uma existência autónoma e independente
do Estado e dos partidos. Os agricultores e os proprietários
têm finalmente uma organização que se prepara para agir
no novo quadro legal e político, no regime constitucional. O
seu último empenhamento político do período provisório é
o apoio à candidatura do general Ramalho Eanes à
presidência da República, em conjunto com os partidos não
comunistas. Ganhará, mais uma vez.
Dois anos antes, agricultores e proprietários tinham
falhado de modo espectacular. Tinham perdido influência,
não conseguiram organizar-se, perderam apoio popular e
ficaram mesmo sem uma boa parte dos seus bens e das
suas propriedades. Para tudo isto contribuíram alguns
factores externos, como a natureza da revolução e a
hostilidade dos militares. Mas outros elementos
constituíram condições intrínsecas de derrota: falta de
coesão, falta de experiência orgânica e de hábitos de luta.
Em 1974, as primeiras reacções de empresários e de
proprietários são dispersas e variadas, para não dizer
contraditórias, desde a fuga para o estrangeiro até à
procura de entendimento com os sindicatos420. No conjunto,
demonstraram inicialmente pouca facilidade de adaptação
ao sistema democrático e às regras de negociação social.
Revelaram ainda que, no antigo regime, o seu poder e o
seu controlo social indisputados provinham mais do
Estado, do Governo e das polícias do que das suas próprias
posições locais e regionais na sociedade civil. Perdidos os
seus apoios, os proprietários tiveram dificuldade em
mobilizar-se e organizar-se. Quando o conseguiram, com
sucesso, também contaram, além do seu próprio esforço,
com o contributo de factores externos, nomeadamente
apoios militares e de partidos não comunistas. Mas
beneficiaram sobretudo do apoio e da mobilização de
pequenos agricultores, indispensáveis não só pelo número
como também pelo carácter popular que trouxeram ao
movimento.

A reforma agrária contra os camponeses

A ruptura com os camponeses foi o factor determinante


na inversão de tendência da reforma agrária. Os que se
tinham mantido afastados, talvez na expectativa,
sentiram-se ameaçados e reagiram. Os que a princípio
tinham colaborado, ao ponto de participar em ocupações,
arrependeram-se e mudaram de campo. No seu conjunto,
os camponeses foram rejeitados para as forças anti-
revolucionárias.
Comunistas, militares e alguns socialistas tinham agido
com esperança na «aliança natural entre assalariados e
camponeses»421. Rapidamente se tornou evidente que a
aliança não seria paritária e que a hegemonia sindical e
colectivista seria imposta pela força. No final de contas, as
questões vitais que separam assalariados e camponeses,
isto é, a terra e os benefícios imediatos da reforma agrária,
não foram ultrapassados.
Os camponeses esperavam melhores preços, facilidades
de comercialização para os seus produtos, assistência
técnica, subsídios e crédito fácil. Com ou sem reforma
agrária, tal seria indiferente para muitos. Ora, a política
agrícola revelou-se pouco vantajosa. Pior ainda, tiveram
alguns prejuízos, nomeadamente os aumentos de salários.
Boa parte de pequenos agricultores recorre
esporadicamente a trabalho exterior. Com o acréscimo
geral de salários previsto pelo Governo (que instaurou
também o salário mínimo rural) e pelos contratos
colectivos de trabalho, pequenos e médios agricultores
começaram a medir os inconvenientes do novo curso
político, sem sentirem as vantagens.
Outra consequência nefasta da reforma agrária, para os
agricultores, foi o emprego compulsivo de trabalhadores a
quem deviam pagar salários e eventualmente encontrar
trabalho. Isto não aconteceu com muita frequência a
pequenos agricultores e nunca fora da zona de
intervenção. Mas alguns casos foram suficientes para criar
a desconfiança e a ameaça.
Problema era também o dos limites: onde pararia a
noção de pequeno agricultor, protegido em princípio pela
reforma agrária, e onde começaria a de patrão ou mesmo
de capitalista? Uma definição rigorosa de limites teria
podido eventualmente tranquilizar uma parte dos
camponeses, mas as dificuldades técnicas, económicas e
sociais de tal operação tornaram-na impossível.
Por outro lado, muitos agricultores de média dimensão,
ou até mesmo grande, devem o que têm, herdades, gado e
fortuna, ao seu próprio trabalho, muitas vezes até manual.
Como era possível simpatizar com a reforma agrária,
sendo um pequeno agricultor, quando aquela inclui
cláusulas e mecanismos que penalizam o investimento e
castigam o trabalho?
Foi a terra que constituiu o mais sério elemento de
divisão entre pequenos agricultores e assalariados. Os
seareiros e os rendeiros não obtiveram as superfícies
desejadas. Os pequenos proprietários não puderam alargar
as suas courelas. Alguns camponeses, ainda por cima,
foram ocupados; outros perderam os seus contratos e não
conseguiram arrendar noutro sítio. Foram estes os
problemas e os factos que afastaram os camponeses do
Sul e fizeram recear os do Norte e do Centro.
As precauções dos militares e dos comunistas não
convenceram, porque não passaram do verbo. O
secretário-geral do PC bem podia declarar que «nos
pequenos agricultores não se tocará nem com um dedo»,
mas bastavam uns poucos casos concretos de ocupação
ou de perda de terra de renda ou de seara para
demonstrar quanto as garantias eram teóricas. Para um
pequeno agricultor da Chamusca, F. Oliveira, assalariado e
proprietário de 1 ha, não havia dúvidas: «Isto não é uma
reforma agrária, é roubo! Querem roubar o milho que nós
cultivámos.»422 Um outro, M. Grazina, proprietário de 8 ha,
tem medo de semear, «porque eles esperam o momento
das colheitas para vir apanhar tudo»423.
Agricultores de dimensões um pouco maiores
queixavam-se também, mesmo sabendo que a lei os
protegia. Por exemplo, A. Alegria, 48 anos, cultivava
directamente nove parcelas herdadas de seu pai e cujo
total se elevava a cerca de 300 ha. Foi ocupado em fins de
Outubro, tendo mesmo perdido a casa: «Seis trabalhadores
ocuparam as minhas terras, alguns dos quais trabalhavam
para mim antes. O Centro de Reforma Agrária tinha-se
assegurado que nada aconteceria, dado que as minhas
explorações só atingiam 30 215 pontos. Apesar disso,
apanharam tudo, e as forças armadas e a Guarda
Republicana confirmaram.»424
A despeito de algumas precauções de governantes e
dirigentes partidários, a opção colectivista impôs-se desde
o início. E quando de aliança entre assalariados e
camponeses se falava, o entendimento e a mensagem
explícita era de que os camponeses não tinham mais do
que se submeter. Os sindicatos defendiam esta visão das
coisas, o que parecia previsível: a maioria dos assalariados
talvez não quisesse transformar-se em pequeno agricultor.
Mas a força que imprimia esta orientação vinha do
Governo e das instituições. Numa reunião pública em
Portalegre, onde veio anunciar a criação dos conselhos
regionais, o ministro F. O. Baptista era explícito: «Nós
queremos acabar com o latifúndio e com o pequeno
agricultor. Nós não podemos permitir que a reforma agrária
faça novos pequenos patrões. Nós queremos fazer
unidades onde se possa trabalhar conjuntamente a
terra.»425
Também o secretário de Estado A. Bica, no seu mais
completo documento de orientação, abordava a questão
camponesa em termos pouco equívocos: «Os camponeses
não têm nem nunca tiveram o mesmo grau de consciência
social e política, nem o mesmo nível de organização que os
operários agrícolas.» E acrescentava: «Os agricultores
abandonarão dificilmente as suas pequenas explorações
individuais. Isso provocará naturalmente contradição entre
a forma de produção colectiva e a forma de produção
individual. É um custo que será preciso suportar durante
uma ou duas gerações até que o nível de cultura e de
consciência social das novas gerações, assim como o
crescimento progressivo da produção, criem as condições
de abolição das explorações individuais.»426
É verdade que os assalariados, em todo o caso a maioria,
não reivindicaram terra. Mas os pequenos agricultores
pediam-na. Talvez o não tenham feito com a veemência
nem com a mesma força que mostrou o movimento
sindical. Mas o mais importante foi o ataque sofrido por
alguns e a perda efectiva de terras e de direitos. E, mais
ainda do que no Alentejo, foi a ameaça ressentida pelos
camponeses do resto do País que fez inclinar os pratos da
balança e reforçou a hostilidade à reforma agrária.
O ministro L. Cardoso apercebeu-se desta situação, mas
era demasiado tarde. Tinha com efeito afirmado que «se o
trabalhador rural do Alentejo, em regra geral, não
reivindica a propriedade da terra nem o seu uso individual,
pelo contrário, o seareiro, o rendeiro e o pequeno
agricultor fazem-no. Pretender, como aconteceu até agora,
integrá-los nas unidades colectivas pela força de pressões
locais é uma via completamente errada que privará a
reforma agrária do apoio de toda a gente»427.
Quando os seareiros foram reinstalados nas suas
parcelas, em Coruche, em Abril de 1976, os sindicatos
reagiram imediatamente: em tom de advertência e de
ameaça, sustentaram que assim nada se resolveria e que
se «iam criar zonas de conflitos entre seareiros e
trabalhadores»428.
Os pequenos agricultores, como disse S. Lourenço,
pequeno proprietário em Mora, perceberam que não se
visava somente, nem sequer sobretudo, as terras
abandonadas ou subaproveitadas: «Se ocupam as terras
bem trabalhadas, as nossas também serão.»429 Ora, o
ministro F. O. Baptista tinha-o afirmado publicamente:
«Deve-se começar pelas melhores terras. Não devem
apenas ocupar as terras, mas também apropriarem-se das
árvores e meios de produção, todo o equipamento que
estiver lá.»430
O número de camponeses vítimas de ocupação nunca foi
revelado. É mesmo possível que ninguém o conheça, até
porque é difícil contar as superfícies dos pequenos
rendeiros e dos seareiros. Mas, tendo em conta todas as
situações, o total oscila entre 600 e 1000 agricultores. A
superfície assim abrangida situar-se-á entre 25 000 ha e
35 000 ha. Este total parece reduzido, cerca de 3% da
superfície ocupada431. Todavia, do ponto de vista político e
psicológico, é sem dúvida demasiado, suficiente para que
a insegurança se generalize rapidamente. É esse o
sentimento que traduzem as interrogações de A. Mata,
rendeiro em Alcáçovas: «Até onde irão as ocupações?
Quais são os limites? Quais são as garantias? Onde é que
isto vai parar?»432
O Governo, os comunistas e os militares pretenderam, é
certo, oferecer garantias verbais em diversas ocasiões.
Mas, no terreno, ou faziam o contrário ou deixavam fazer.
E as medidas oficiais também não traduziam as promessas
de tranquilidade. As leis de expropriação e nacionalização,
publicadas em Agosto de 1975, tinham sido anunciadas
um mês antes. Ora, o comunicado oficial do Ministério era
categórico: «A afectação da terra nacionalizada far-se-á de
maneira a tornar possível e permanente a sua utilização
colectiva fora dos quadros da propriedade privada.»433 Na
verdade, os camponeses nada tinham a ganhar com esta
reforma agrária. E tiveram mesmo o pressentimento de
que podiam tudo perder. Eis porque contribuíram para o
derrube do poder da esquerda radical.
Foram seguramente os militares e os partidos não
comunistas que alteraram o curso político e afastaram a
maior parte dos militares esquerdistas dos órgãos de
poder: mas a atenção que prestaram à opinião e aos
sentimentos dos agricultores, tanto a norte como a sul, foi
um dos seus principais estímulos. E no terreno, nos meios
rurais, sem esperar por uma nova situação, nem pela
chegada dos militares, foram os camponeses, rendeiros,
pequenos proprietários e mesmo médios empresários
cultivando directamente as suas terras que reagiram em
primeiro lugar contra as ocupações. A quase totalidade dos
casos conhecidos de resistência física oposta aos
ocupantes, por vezes com armas na mão, são feitos de
pequenos agricultores434. Defendiam qualquer coisa mais
do que títulos de propriedade, empresas anónimas ou
herdades dirigidas à distância pelo telefone. Queriam
conservar o que tinham feito com as suas mãos e que era
a sua única maneira de viver.

A terra e o colectivismo

Durante os dois anos de revolução detectaram-se


manifestações do que é habitual chamar-se «fome de
terra», isto é, a necessidade e a vontade de obter parcelas
de terra adicionais, ou de conseguir acesso à terra para
exploração individual ou familiar, ou de distribuir por
camponeses terras tomadas aos grandes proprietários.
Com esse fim, foram tomadas várias iniciativas e houve
mesmo camponeses que participaram em ocupações.
Todavia, a acção mais enérgica dos pequenos agricultores
da região, incluindo dos que antes tinham ocupado
herdades privadas, concretizou-se mais tarde, não na
procura de novas terras, mas na defesa das que possuíam
e dos direitos de exploração de que ainda usufruíam ou
que tinham perdido.
No entanto, na região, foi um outro fenómeno que teve
mais importância e que melhor caracterizou o movimento
revolucionário dos anos 1974 a 1976: a ocupação de terras
e de herdades por assalariados com vista à manutenção
dos empregos e dos salários. Para assegurar estes
objectivos, os trabalhadores, apoiados pelos seus
sindicatos, organizaram unidades colectivas de produção,
não mostrando vontade de dividir terras e prédios
tomados. Note-se que as terras ocupadas não eram
públicas, nem baldias, nem estavam abandonadas: eram
terras privadas geralmente cultivadas.
No princípio deste processo registaram-se episódios de
uma certa comunidade de interesses entre assalariados e
camponeses. Tinham condições de vida e níveis de
rendimento relativamente próximos (em geral baixos) e
que aparentemente podiam traduzir uma solidariedade
social mais profunda, nomeadamente numa relativa
hostilidade aos grandes proprietários, que detinham uma
espécie de monopólio da terra e do emprego rural. Mas
esta comunidade eventual desapareceu rapidamente,
desde que surgiram à luz do dia e tomaram corpo as
verdadeiras aspirações dos dois grupos. Uns queriam terra,
outros queriam emprego.
Pelo seu lado, as autoridades e o partido mais activo
neste movimento inculcaram uma orientação colectivista e
criaram toda a espécie de mecanismos legais e financeiros
destinados a desencorajar soluções camponesas, mesmo
parciais ou episódicas. Apesar de proclamações tácticas e
precauções tranquilizadoras dirigidas aos camponeses de
todo o País, o modelo colectivista estatal e o salariado
eram as únicas soluções práticas possíveis.
A preparação vinha de trás. Antes mesmo do início das
ocupações, o presidente do recém-criado IRA tinha
afirmado: «O futuro das herdades pertencendo ao Estado
consistirá na experimentação no domínio das explorações
colectivas.»435 O Partido Comunista justificava esta situação
de maneira simples: os trabalhadores não querem dividir
as terras. A reforma agrária prometia mesmo ser uma
realização muito mais avançada do que noutros países,
dado que «os assalariados recusaram a propriedade da
terra». Nos círculos políticos ligados a este partido
sublinhava-se «o altruísmo dos trabalhadores que só
reservam para si o uso da terra e entregam a propriedade
ao Estado»436.
Esta recusa e estas decisões nunca se exprimiram
realmente. Não houve escolha explícita, nem voto, nem
concurso, nem consulta. Não havia sequer a faculdade de,
em grupo ou individualmente, serem tomadas decisões
diferentes. Tudo se passou de outro modo e em certa
medida naturalmente. A escolha foi uma e a possibilidade
era também só uma. Tudo se passou, por parte dos
trabalhadores, com um misto de espontaneidade e de
disciplina sindical, fruto da necessidade. Por parte das
autoridades, com premeditação.
A ideologia comunista, eficazmente veiculada pelos
sindicatos, deu tons gloriosos à opção colectivista. Tendo
sempre sido proletários, os assalariados nunca tinham
supostamente querido terra, até porque o seu nível de
consciência era, dizia-se, superior ao dos camponeses. Não
somente desejavam rejeitar o modo capitalista e
recusavam voltar a trabalhar para os patrões, como
sabiam que o modo colectivista e estatal era superior a
todas as formas de organização da produção. Nesta lógica,
a transformação da pequena exploração camponesa em
grandes herdades de Estado era uma forma de
concentração da produção, processo objectiva e
historicamente necessário. O capitalismo tê-lo-ia feito, em
benefício dos proprietários; o socialismo deveria fazê-lo
também, até às últimas consequências, não em proveito
dos capitalistas, mas dos trabalhadores. Quanto aos
camponeses, pequenos e médios agricultores, pequenos e
médios empresários, deveriam evoluir e integrar-se nas
superiores formas de produção colectiva.
As posições do PC, retomadas pelas autoridades e pelos
militares em 1975, eram mais ou menos tradicionais na
história dos movimentos comunistas; mas, em Portugal,
constituíam uma novidade relativa. Com efeito, entre 1930
e 1960, este partido defendia com ardor a ideia de divisão
das terras437. Nessa altura estava empenhado politicamente
na «via unitária» e na estratégia das «frentes
democráticas». Mais tarde, numa situação que lhe era ou
parecia bem mais favorável, impôs uma linha política
puramente proletária e estatal.
Logo em 1976, tendo-se apercebido das suas próprias
derrotas, o partido tentará activamente recuperar parte
dos pequenos agricultores e fará esforços nesse sentido
tanto no Norte como no Centro do País438. Sem grandes
resultados, nem continuidade. De qualquer maneira, o tom
teórico e a filosofia da história estavam presentes há
muito: «Nós, comunistas, temos razões para nos regozijar
com o peso económico dominante do proletariado rural
nos campos portugueses. O proletariado rural alarga nos
campos a base social da revolução democrática e cria
condições favoráveis para o socialismo.»439
Nesta linha ideológica, também o secretário de Estado A.
Bica tinha sido peremptório: «Exclui-se quase inteiramente
a conjunção da produção colectiva e da produção privada
em parcelas familiares […]. Os trabalhadores não aspiram
à distribuição de saldos positivos no fim do ano económico;
eles só desejam receber o seu salário.» Realista,
reconhecia todavia que, «cada vez que um trabalhador de
uma unidade colectiva mantém uma pequena exploração
familiar, terá tendência a faltar ao trabalho da UCP […] e
será incitado a faltar ao respeito da propriedade colectiva
a favor da exploração individual»440.
O colectivismo, a coberto de um governo favorável, era o
meio de assegurar o controlo social e a administração
económica das terras e das herdades. A divisão das terras
e a economia camponesa, ou mesmo cooperativa, não
teriam permitido nem um nem outro.
Por outro lado, havia reais dificuldades técnicas e
económicas para a divisão imediata das terras e para o
estabelecimento de empresas familiares. Faltavam os
agricultores experientes, os conhecimentos, as máquinas,
as alfaias e os sistemas culturais. Não havia suficientes
capitais disponíveis, nem serviços de apoio competentes
para uma reconversão rápida dos modelos agrários. O
equipamento adaptado às explorações de pequena e
média dimensão faltava ou era raro. Os assalariados que
ocuparam as grandes herdades não possuíam os
conhecimentos técnicos, nem a capacidade de gestão,
nem o capital necessário à multiplicação de empresas de
reduzidas dimensões441. Os sistemas de transporte, as vias
de circulação, os esquemas de utilização da água e as
facilidades de armazenamento estavam adaptados à
grande empresa e constituíam reais obstáculos a uma
transformação estrutural imediata.
Por razões políticas, os feitores e caseiros, assim como
técnicos especializados e operários qualificados, foram
quase todos afastados no momento das ocupações.
Considerados agentes dos patrões, eram indesejáveis nas
unidades colectivas. Sem eles, as UCP perderam
capacidades e quadros técnicos indispensáveis.
Os assalariados queriam um salário garantido e um
emprego permanente. A ocupação de terras e herdades
tinha sido o primeiro instrumento de realização dessa
aspiração. A gestão colectiva era ou parecia o único meio
ao seu alcance para assegurar uma qualquer estabilidade.
Tanto mais que o Governo era favorável, avalizava os
créditos e garantia os salários. Pela mesma via do grupo
ou do colectivo, ficavam ao abrigo de eventuais represálias
dos antigos patrões e proprietários: a hipótese de
depender novamente do seu arbítrio despertava
recordações por vezes dolorosas. Finalmente, na agitação
revolucionária e com os riscos que aquela supõe, a
solidariedade colectiva, no interior das UCP ou entre elas,
era ou parecia a melhor arma de protecção e autodefesa.
De qualquer modo, era já difícil ser-se camponês ou
agricultor autónomo. Transformar-se num camponês é
ainda mais difícil. Os assalariados da região nunca o
tinham sido. Seus pais e antepassados também não. Não
descendiam de uma tradição de camponeses despojados
ou destituídos das suas terras, como acontece
frequentemente noutras partes do mundo. Só conheciam o
salariado, eventualmente a servidão, e tinham plena
consciência das dificuldades vividas por um pequeno
agricultor.
Este último, para começar uma exploração própria e
autónoma, precisa de muito mais do que terra. São-lhe
necessários capital, fundo de maneio para vários meses,
máquinas, sementes, adubos, animais e talvez uma
residência. Precisa de créditos e de relações. Mais ainda,
necessita de conhecimentos técnicos muito diversificados,
bem mais complexos do que os de um assalariado. Deve
dominar dezenas de operações técnicas no cereal, na
fruta, nas árvores, no gado, no regadio, na horta, sem falar
de mecânica, da comercialização, da contabilidade e dos
cuidados veterinários. Tudo isso exige formação,
experiência e tradição. Para isso, os assalariados não
estavam preparados. Além de que viam os pequenos
agricultores com quem partilhavam tantas vezes a
pobreza; apercebiam-se da insegurança dos
arrendamentos e da instabilidade do sistema de searas;
conheciam as irregularidades do clima e sabiam as
consequências de uma má colheita. A agricultura
camponesa só tentava os que já a praticavam e queriam
melhorar; e talvez alguns feitores que se sentiam mais
capazes e experientes.
O colectivismo parecia a solução, a única, desde que se
afastassem todos os pequenos agricultores e seareiros, ou
os abrigassem a transformar-se em assalariados, como
algumas UCP tentaram, mas sem sucesso. Apesar de tudo,
os problemas surgiram logo em 1976 e desenvolveram-se
mais tarde. As primeiras dificuldades provinham do
enquadramento económico hostil ou contraditório, da
opinião pública relativamente desfavorável, assim como
das políticas governamentais que não partilhavam os
princípios e os valores do colectivismo. O PC ficou
marcadamente minoritário do ponto de vista eleitoral e
nunca mais teve acesso ao Governo. Todos os outros
partidos se esforçaram por contrariar os projectos
comunistas e as consequências visíveis dos seus gestos
passados. Aos comunistas e à revolução foram imputadas
as responsabilidades pelas dificuldades económicas e
sociais que o País conheceu depois. Ora, o colectivismo
não podia dispensar o apoio do Estado: assistência,
créditos, protecção legal e orientação futura, incluindo
planos de desenvolvimento e investimento. Não só o
Estado não apoiou como também se revelou mais
favorável às outras formas de organização económica:
empresas familiares, cooperativas e capitalistas.
Novas leis, assim como a aplicação estrita das anteriores,
obrigavam o Estado a devolver algumas herdades aos
proprietários e sobretudo a demarcar reservas de
propriedade e de exploração a empresários e rendeiros. Na
defensiva, as UCP transformaram em derrotas difíceis de
digerir o que, em última análise, decorria directamente das
leis e dos mecanismos em vigor. Opuseram-se à
demarcação de reservas, invocando todos os argumentos,
políticos, ilegais, sociais e económicos. Tentaram defender-
se com a viabilidade das UCP, que seriam inexoravelmente
condenadas se fossem retiradas as áreas necessárias à
demarcação das reservas. A verdade é que as UCP
estavam todas sobredimensionadas, do ponto de vista do
emprego. Qualquer reserva implicaria imediatamente que
trabalhadores fossem dispensados ou despedidos.
A carga salarial excessiva, alguns desperdícios e
incapacidades técnicas obrigavam ao recurso sistemático
ao crédito oficial. Ora, as taxas de juro e as cargas
financeiras estavam em fase de rápido crescimento, tendo
atingido níveis insuportáveis. As dívidas das UCP
resultavam, em maioria, de empréstimos a curto prazo,
caros portanto, tendo muitos sido utilizados em
investimentos a longo prazo ou na aquisição de máquinas
e de gado. Sem a «compreensão» do Estado, a situação
económica das UCP, ou, antes, da maior parte das UCP,
ameaçava, em fins de 1976, transformar-se em catástrofe.
Más colheitas nos anos seguintes, devidas a condições
naturais excepcionalmente desfavoráveis, mas também a
má gestão, contribuíram para criar um clima difícil à volta
e no interior das UCP.
Problemas não tardaram. Grupos de trabalhadores que
queriam «desanexar», isto é, organizar cooperativas mais
pequenas e independentes, foram violentamente criticados
e atacados. Em muitos casos surgiram aspirações que
punham em causa a organização da UCP e contestavam a
autoridade: uns reivindicavam o voto secreto, outros
queriam participar nos benefícios; uns desejavam poder
cultivar hortas familiares, outros queriam ter os seus
próprios gados; uns queriam ter salários diferentes, outros
pretendiam que as melhores UCP, ou as mais produtivas,
tivessem níveis de salários e de benefícios
correspondentes. A insegurança, a disciplina sectária, o
igualitarismo estrito, as dificuldades económicas, a entrega
de reservas, as quebras de produção e o permanente
conflito com os governos são alguns dos factores que
pesam negativamente na vida das UCP e que contribuíram
para o afastamento de bom número de trabalhadores,
muitas vezes os mais novos e mais qualificados:
mecânicos, tractoristas, trabalhadores da cortiça, do vinho
e do gado. Além disso, por estratégia ou simplesmente por
interesse económico, muitos empresários privados
começaram a pagar melhores salários, enquanto as UCP se
limitavam ao salário mínimo rural.
Cinco anos depois, o número de unidades colectivas era
de cerca de 200. Exploravam um pouco menos de 500 000
ha e empregavam perto de 10 000 trabalhadores
permanentes. À semelhança dos antigos proprietários,
recorriam o mais possível a trabalho eventual. A situação
em que se encontravam as UCP variava muito, desde a
falência e a difícil sobrevivência à prosperidade (há UCP
que compraram herdades com centenas ou milhares de
hectares). O futuro das unidades colectivas continuava
incerto. Conquistadoras em 1975, passaram a viver
cercadas desde 1976442.

Patrícios e servos

As dificuldades de sobrevivência das UCP contrastam


com a facilidade com que foram criadas. Na origem desta
facilidade estão as circunstâncias políticas e os apoios do
Estado e dos militares. Mas está também a natureza
particular da sociedade e das relações entre proprietários e
trabalhadores.
Sob o regime corporativo, graças à ditadura, os
proprietários fundiários gozavam plenamente dos seus
direitos e poderes, quase dispensados de obrigações e
deveres para com as classes subordinadas. O seu estatuto
social era indiscutível e indisputado. Nem estava
submetido a uma qualquer necessidade de concertação. O
patrão podia proteger o seu trabalhador (e muitos faziam-
no), mas não precisava de o respeitar e muito menos de
negociar.
Na ausência de discussão, afrontamento ou negociação,
os proprietários ostentavam uma calma de patrícios e não
se preocupavam particularmente com os seus adversários
sociais. Talvez muitos não tivessem sequer imaginado que,
em sociedade, os subordinados podem ser adversários.
Nestas condições, não tinham real necessidade de se
organizar, nem sequer de se associar. Os grandes
proprietários viviam como senhores da terra, mesmo
quando a fortuna não era muito grande. Raramente podia
sê-lo, naquelas terras, mas o estatuto e o privilégio eram
fortes, mais fortes do que o poder económico. A força dos
proprietários era a força das coisas, o apoio indefectível do
Estado e a contestação interdita.
Situação jurídica da terra em 1983
(em milhares de hectares)

Agricultores Não afectado pela reforma


Distritos UCP Reservas
individuais agrária

Évora 199,2 31,8 255,1 136,6

Beja 133,0 32,0 154,2 436,5

Portalegre 71,0 24,5 133,3 257,5

Setúbal 50,1 9,1 57,7 367,7

Total 453,3 97,4 600,3 1198,3

Não tinham real necessidade de se mostrar, de estar


presentes na sociedade e nas empresas. Viviam com os
olhos virados para a capital. Os seus interesses estavam
no Alentejo, mas era em Lisboa que se defendiam. No
Alentejo mesmo, tinham poucas organizações
profissionais, culturais, técnicas, políticas ou mesmo
recreativas e mundanas: não tinham simplesmente
necessidade e pouco uso teriam.
As suas relações com o poder central pareciam mais
cumplicidade do que outra coisa. Perante a cidade, a
indústria e a finança, impunha-se o mimetismo social,
talvez a inveja. Uma grande parte dos grandes
proprietários alentejanos já eram citadinos, gente da
capital. Perante as comunidades locais, vilas e aldeias, o
seu caciquismo vivia de complexa mistura de
paternalismo, de tutela autoritária e de delegação do
poder central ou do Governo. Em face dos trabalhadores,
privados de liberdades e de sindicatos, podiam revelar
humanidade e até caridade, mas, no essencial, era uma
relação leonina, sem contrapesos. O seu poder não
conhecia praticamente factores moderadores.
A facilidade acabou por criar a fraqueza. O tecido ou o
corpo social dos proprietários não tinha uma forte
existência real. Mais do que uma classe, os proprietários
do Alentejo formavam uma espécie de casta. Quanto aos
empresários mais modernos, apesar de viverem ainda em
fase de desenvolvimento, eram gente de fora, ou citadinos
de regresso ao campo, quando se tratava de descendentes
de alentejanos que se interessavam de novo pela terra, ou
pelo investimento fundiário. Em geral, habitavam a cidade.
Tinham poucas raízes no campo. Há duas ou três décadas
que os «montes» se esvaziavam. As suas relações com o
Alentejo não eram pessoais, culturais ou sociais. Podiam
administrar pelo telefone, visitar esporadicamente as
explorações, ou mais simplesmente as propriedades,
receber rendas anuais ou ocupar-se da tiragem da cortiça
todos os nove anos.
Durante as últimas décadas, os proprietários alentejanos
iam-se deixando ultrapassar por outras fontes de inovação:
o Estado, com os seus projectos de regadio; os rendeiros e
os agricultores de média dimensão; os empresários
citadinos, que por vezes eram sociedades capitalistas e
multinacionais ligadas à agro-indústria. Para os
proprietários, era útil que o Alentejo se mantivesse
estático. Mais do que no investimento agrícola, pensam e
interessam-se na prospecção de negócios mais rendíveis
na indústria, na finança, no imobiliário e na bolsa. Mais do
que com as relações de trabalho, preocupavam-se com os
preços e os subsídios, que eram da competência do
Governo central. De qualquer maneira, as relações laborais
mais se pareciam com questões de ordem pública.
Havia mutações em curso, mas eram lentas. Desde o
início do século que a base da propriedade se tinha
alargado, mas insuficientemente. O número de agricultores
médios, de novos empresários e de agricultores
autónomos tinha aumentado e o de assalariados estava
em regressão. Mas a transformação estava longe de se
generalizar. Há já dez anos que os salários aumentavam
regularmente, mas a memória dos trabalhadores, dos
rendeiros e dos agricultores com poucos recursos estava
ainda viva.
Sentindo as ameaças do desemprego, os assalariados
não revelaram disposições para a negociação. Tanto mais
quanto sabiam ter o apoio e o incitamento do PC, dos
militares e do Governo. Quiseram ousar, impor e
conquistar, não procuraram compor. Aproveitaram a
desorientação de uma classe de proprietários que estavam
habituados a resolver, no Alentejo, os problemas do
Alentejo. Como sempre, os proprietários olhavam para os
ministérios, os governos civis, as esquadras das polícias e
os quartéis das unidades militares: em vez dos amigos
tradicionais, encontraram adversários e gente de esquerda
que tinha entretanto ocupado as instituições; e quando
encontravam as mesmas pessoas, já não eram o que
tinham sido antes.
Este vazio serviu aos sindicatos e aos trabalhadores, que
se comportaram não tanto como assalariados
reivindicativos, mas como servos libertados. A sua
soberana audácia aproximou-se do despotismo. Para isso,
havia motivos puramente políticos e estratégicos, que
conduziram a uma actuação militante e disciplinada; mas
também havia razões mais profundas e ressentidas. Em
primeiro lugar, a necessidade: os trabalhadores
procuravam garantir emprego e salário numa época de
crise e de instabilidade. Depois, foram ajudados pelos
elementos formadores da opinião pública (partidos, jornais
e televisão) que não escondiam simpatias pela reforma
agrária. Esta atitude, que tinha fortes raízes urbanas,
acompanhava um sentimento generalizado de
agressividade contra o proprietário ou o «latifundiário»
alentejano: depois das polícias, era talvez a mais
detestada personagem social.
O PC, os funcionários sindicais, os militares e os governos
orientaram facilmente o movimento dos trabalhadores.
Mas tal não constituiu apenas uma consciência exterior ou
uma pura manipulação. Eram reais os sentimentos latentes
e as predisposições capazes de fornecer a energia social.
Poder-se-á falar de vontade popular e de «ódio de classe»,
feitos de memória recente, de humilhações ancestrais e de
opressões herdadas? Não faltavam emoção e sentido
dramático no tom reivindicativo e agressivo dos
trabalhadores durante as ocupações e nas diversas
manifestações que não podem ser exclusivamente
atribuídos ao controlo partidário.
Os trabalhadores mais velhos e antigos militantes
lembravam-se ainda dos «bandos da fome», aqueles
grupos de mendigos que andavam de herdade em
herdade, de aldeia em aldeia, a pedir trabalho, comida ou
esmola. Só uma combinação de ameaças, de riscos e de
perigos presentes, de um lado, e de ansiedades e
sofrimentos passados, do outro, pode explicar aquela
disposição revolucionária rapidamente traduzida em
energia e audácia.
Os poucos meses de ameaças de desemprego não
parecem suficientes para explicar o nascimento de um
fenómeno revolucionário tão vasto, exigindo tanta energia,
tensão e temeridade. O passado social e económico teve
pelo menos tanta influência quanto o presente político.

A difícil reforma

Os serviços do Estado, as forças armadas e os partidos


desempenharam seguramente um papel determinante.
Mas, qualquer que seja a sua importância, que foi grande,
o facto é que milhares de assalariados rurais se
mobilizaram, se apropriaram de mais de 1 milhão de
hectares de terras privadas, ocuparam herdades e
organizaram as unidades colectivas de produção. Foi
preciso tocar um ponto sensível para que os trabalhadores
rurais ousassem abandonar os seus pudores atávicos, os
seus receios de toda a ordem, e se decidissem a realizar
acções revolucionárias de tal envergadura. É certo que não
havia Estado capaz de reprimir, que cresciam os riscos de
desemprego e que as forças armadas incitavam ao
levantamento. Mas havia qualquer coisa mais.
Há qualquer coisa de «natural» no espírito revoltado dos
trabalhadores alentejanos, na sua audácia, no seu
radicalismo duro e aparentemente violento. Não
acreditavam nas transformações graduais trazidas pela lei
e pelo Estado, na ordem e no rigor administrativo. Há
muito que tinham perdido essa esperança. Só muito
raramente tinham ganhado ou recebido benefícios da
acção do Governo e dos planos oficiais. As principais
melhorias da sua vida deviam-nas ao êxodo rural e à
emigração. Não estavam prontos a canalizar para as
instituições as suas aspirações e as suas reivindicações.
Sem sindicatos, sem experiência de organizações, sem
defensores nem representantes, frequentemente sem
instrução, não tinham muitos motivos para confiar. A sua
história não lhes permitia ter a paciência e a força serena
necessária às reformas e às mudanças sociais controladas.
O reformismo (o espírito de reforma, diria Tocqueville)
procede por reflexões particulares e aplicadas, interessa-se
no melhoramento constante de situações particulares,
decorre da possibilidade que têm as populações de
exprimir os seus pontos de vista e de sugerir ou encontrar
soluções para os seus problemas. Por sua vez, a revolução
alimenta-se de ideias gerais e decorre de um pensamento
global sobre a sociedade; preocupa-se com o derrube da
ordem estabelecida e procede por mudanças gerais e
bruscas. A ideia revolucionária decorre da impossibilidade
de melhorar ou mudar as situações particulares. A
revolução não procura resolver problemas, tenta construir
uma sociedade preconcebida. No Alentejo, a cólera e a
audácia tinham raízes fundas no passado, na ausência de
diálogo, na dificuldade da mudança e no abismo cultural
entre as classes. Era uma questão longínqua, ressentida
como opressão, descrita por escritores e militantes,
artistas ou sociólogos. Não há estudo, crónica ou memória
sobre o Alentejo que não mencione a desigualdade das
estruturas agrárias, o desequilíbrio da propriedade e dos
rendimentos, o desenraizamento dos trabalhadores e o
comportamento dos proprietários opulentos, déspotas e
indiferentes.
Nem todos os proprietários eram, evidentemente, iguais,
nem todos correspondiam ao mesmo cliché. Era frequente
o paternalismo protector, por parte de «senhores» que se
ocupavam da educação dos filhos dos trabalhadores e que
eram seus padrinhos; que davam esmola aos mendigos e
desempregados, ou que legavam os seus bens «à terra».
Tudo isso é verdade, mas também não é mais do que a
confirmação de uma sociedade desigual marcada pelos
laços pessoais. E a caridade, se alivia, também agrava
feridas ancestrais da dignidade.
Se a ideia de reforma acompanha os valores de
liberdade, confiança e concertação social, os assalariados
do Alentejo não estavam para ela preparados. Tem-se a
sensação de que não combatiam, em 1975, um regime
particular ou um governo em especial, ainda menos uma
família ou um proprietário. Pareciam lutar contra um
sistema composto de cidades e de governos, de polícias e
de políticos, de banqueiros e de comerciantes, de patrões
e de proprietários. Simultaneamente, não pareciam
defender uma causa precisa, politicamente identificada,
para além da garantia dos empregos e dos salários. Nesta
via, muitos seguiram o Partido Comunista, mais próximo
deles do que qualquer outro.
O vazio de poder que se cria depois do golpe de Estado
permitirá tudo desejar, tudo crer possível, incluindo a
prosperidade e as vantagens a que se tinha provado gosto
no fim do regime anterior. Não era a ocasião para reflectir
em reformas. Nem de esperar muito tempo, calmamente.
E ainda menos de arriscar perder o pouco que se tinha
obtido. A «memória da fome» é a referência ameaçadora
dos trabalhadores rurais que não vivem mas saem de um
processo de empobrecimento.
A euforia geral dos dias que se seguem à revolta militar e
a unanimidade que parece fazer-se nas ruas são bem os
sinais de que não se sai de uma crise social e económica,
mas política e institucional. Talvez por causa disso, a
revolução faz-se em superfície, sem vaga de fundo, mas
com uma longínqua memória gradualmente desperta, à
medida que surgem as novas dificuldades. Revolução
muito política e ideológica, menos social e económica.
Revolução que destrói antigos laços de obediências
habituais e humilhantes, mas que é finalmente pouco
libertadora: deseja uma vida nova, sem a anunciar; é rica
em motivos e em pulsões, mas pobre em razões e em
pensamento.
Depois do golpe de Estado, na ausência de um real novo
poder, as iniciativas sociais e políticas multiplicam-se. Os
centros de decisão proliferam. E, enquanto os militares e
os comunistas se preparam para uma revolução, os
factores de crise agravam-se. Uns, pela força das coisas: a
recessão económica internacional, a crise energética, a
impossibilidade de emigrar, o regresso de 600 000 pessoas
de África e as independências das colónias. Outros, pela
força dos homens: a paragem do investimento, os
saneamentos, o desaparecimento da confiança económica,
as lutas políticas, a ocupação de casas e de empresas, as
prisões e as barragens das estradas. E muita intimidação.
Em princípios de 1975, o País vive já uma situação de crise
que interessa aos revolucionários.
Tendo em conta a sua inexperiência institucional, política
e sindical, a expectativa reformista dos trabalhadores
rurais no Alentejo é praticamente nula. Mas é grande a sua
disponibilidade. Respondendo aos apelos militares e aos do
Governo e dos partidos, mas também tomando as suas
próprias iniciativas, os trabalhadores passaram à ofensiva
contra as classes de proprietários e de empresários, tendo
em vista assegurar o emprego. A via estava aberta: não
encontraram resistência nem obstáculos.

365 Ver António Barreto, «Classe e Estado: os sindicatos de trabalhadores


agrícolas e a reforma agrária, 1974/76», in Análise Social, n.º 80, 1984, Lisboa.

366 Ver a secção «Uma via institucional pré-revolucionária», no Capítulo VIII.

367 A evolução dos salários agrícolas nesses anos foi a seguinte. Salário
nominal: 1973 = 100; 1974 = 172; 1975 = 197. Salário real: 1973 = 100; 1974
= = 106; 1975 = 112. Cf. A Economia Portuguesa em Números, Banco de
Fomento Nacional, Lisboa, 1984. Todavia, os aumentos salariais no Alentejo
foram bem mais significativos, até 30% mais elevados, segundo os dados do
Instituto Nacional de Estatística.

368 Avante!, 5/7/1974; A Capital, 10/8/1974, 16/1/1975 (reportagem de Edith


Esteves) e 18/1/1975; Diário do Alentejo, 2/7/1975; e A Reforma Agrária Acusa,
op. cit.

369 Despacho ministerial de 23 de Junho de 1975.

370 A Capital, 29/4/1975.

371 A Capital, 27/1/1975.


372 Estimativa de A. Gervásio, membro do comité central do PC, retomada pelos
sindicatos. (In A Capital, 5/2/1975.)

373 A Capital, 20/4/1975 e 6/5/1975.

374 O Primeiro de Janeiro, 7/7/1975.

375 O Século, 9/7/1975.

376 Ver, no Capítulo IX, a secção «As ocupações».

377 A documentação militar e política do Estado-Maior do Exército (EME) sobre


as ocupações é muito vasta e refere-se a centenas de casos. É muito precisa,
citando profusamente datas, nomes e locais.

378 Diário do Alentejo, 6/8/1975.

379 A Capital, 4/10/1975.

380 Ver as declarações de J. Penderlico, trabalhador rural da região de Évora,


militante socialista e pioneiro do sindicato distrital: «Onde vou trabalhar? […] Só
porque não era comunista, trataram-me de reaccionário, acusaram-me de agir
contra os trabalhadores e de ser um traidor», in A Luta, 7/11/1975. Ver também
as declarações de um outro socialista, Florêncio Matias, dirigente de uma
cooperativa de produção e deputado à Assembleia da República, in Diário da
Assembleia da República, 26/7/1977.

381 O Militante, n.º 8, 1976, e Diário do Alentejo, 26/7/1975.

382 Ver, por exemplo, Avante!, 18/10/1975 e 25/12/1975; O Século, 4/11/1975;


e A Capital, 14/11/1975. Os sindicatos chegaram a acusar Salgado Zenha e
Lopes Cardoso de «sabotagem económica», in Diário de Notícias, 3/1/1976.

383 Ainda antes do 25 de Novembro, os sindicatos davam já sinais de um


radicalismo acrescido, desde o fim do quinto Governo. Chegaram, por exemplo,
a apoiar as duríssimas manifestações do grupo clandestino «SUV — Soldados
Unidos Vencerão», como em Évora, a 15 de Outubro de 1975, in A Capital,
16/10/1975.

384 O tom dos comícios e dos comunicados sindicais é revelador da


intransigência sectária e do isolamento. O PS é acusado de pactuar com os
latifundiários; o PPD é tratado de reaccionário e fascista. Todos os jornais não
comunistas são denunciados como agentes imperialistas. Ver, por exemplo, O
Diário, 16/3/1976.

385 Testemunho inédito do Prof. Carlos Portas, um dos primeiros animadores da


Liga e mais tarde nomeado formalmente como um dos seus «técnicos», sob
proposta do grupo de agricultores não comunistas, in arquivos do GER; ver
também a entrevista com o agricultor Sebastião Lourenço, in A. Barreto,
Memória […], op. cit., assim como as «Actas» das reuniões da direcção da Liga
de Évora, in arquivos da Liga, Évora.

386 Diário do Alentejo, 20/7/1974.

387 Avante!, 20/9/1974.

388 A Capital, 4/1/1975.

389 Portugal Socialista, 5/12/1974.

390 Avante!, 20/2/1975.

391 Diário de Lisboa, 10/3/1975.

392 Ibidem.

393 Por exemplo, as herdades «Picote» e «Charrascal», em Montemor; «Entre as


Matas», em Alcáçovas; e «Chaminé», em Vendas Novas. Cf. «Actas», op. cit.

394 Cf. «Actas», op. cit.

395 Diário do Alentejo, 2/4/1975 e 14/4/1975, assim como as «Actas», op. cit.

396 Cf. a documentação das ligas in arquivos do GER e nos arquivos da Liga de
Évora.

397 Declarações de Dinis Miranda in Avante!, 20/2/1975, e de Joaquim Velês in


Diário de Notícias, 6/3/1975.

398 Declarações de A. M. Grelha in A Capital, 6/3/1975.

399 As «Actas» relatam numerosos casos de pequenos agricultores tendo


sofrido prejuízos com a reforma agrária. Com o tempo, as actas deixam
aperceber claramente a crescente tensão entre os membros e dirigentes da
Liga.

400 Jornal Novo, 2/10/1975 e 22/12/1975.

401 Diário de Notícias, 25/10/1975 e 1/11/1975. São desta altura as declarações


de Salgado Zenha, então ministro das Finanças: «É tempo de afirmar que se vão
devolver aos pequenos e médios proprietários agrícolas as terras de que foram
desapossados», in arquivos da RTP, 10/11/1975, e O Século, 11/11/1975.

402 A Luta, 24/10/1975; A Capital, 5/11/1975, 11/2/1976, 12/3/1976 e


16/3/1976; e Portugal Socialista, 12/11/1975.

403 Ver a carta do secretário de Estado A. Bica, militante comunista, aos


comandantes das unidades militares da Região Militar Sul e aos directores dos
centros regionais de reforma agrária. A carta, de 22/12/1975, acompanha um
importante documento oficial cujo título é «Orientações sobre as principais
questões decorrentes da execução da reforma agrária»; in arquivos do EME e
arquivos do MAP; cópia in arquivos do GER.

404 A história da Liga de Évora é contada in A. Barreto, Terra […], op. cit.

405 Ver, no Capítulo VI, a secção «Os grémios da lavoura».

406 A Associação Central da Agricultura de Portugal (ACAP), antiga Real


Associação […], nascida há mais de um século, tinha sido tolerada pelo Estado e
pela organização corporativa, mas não representava os agricultores. Associação
facultativa, exercia sobretudo actividades técnicas, científicas, de informação e
divulgação. Era tradicionalmente dominada pelos grandes proprietários do Sul,
com relevo para os empresários e agricultores, não os absentistas.

407 Ver as «Actas», op. cit.

408 Por exemplo, em Aljustrel, Alvito, Cuba, Serpa, Évora e Chamusca, entre
Julho e Outubro de 1974.

409 Por exemplo, em Beja, Castro Verde, Benavente, Crato e Sousel, entre Julho
e Outubro de 1974.

410 Entre outros, faziam parte: Raul Miguel Rosado Fernandes, José Manuel
Casqueiro, Francisco Lino e A. Gonçalves Ferreira, futuros fundadores e
dirigentes da CAP.

411 Diário de Notícias, 21/7/1975 e 23/7/1975, e Jornal Novo, 1/10/1975. Os


seus promotores são tratados de «lacaios dos latifundiários»…

412 Tal como a ALA se envolveu no 28 de Setembro, também a CAP participou


no 25 de Novembro. Só que a ALA perdeu e a CAP ganhou.

413 O Diário, 30/3/1975. A CAP é aí descrita como o instrumento de penetração


da CIA em Portugal.

414 Recorte de Uma Luta, edição da CAP, Lisboa, 1978; José M. Burguete, O
Caso Rio Maior, Lisboa, 1978; entrevista de José M. Burguete in Diário de
Notícias, 12/4/1976.

415 Paradela de Abreu, Do 25 de Abril […], op. cit.; J. M. Burguete, O Caso […],
op. cit.; assim como múltiplas declarações da hierarquia católica, como por
exemplo a moção aprovada pelo clero da arquidiocese de Évora, aquando da
assembleia geral do ano pastoral, Évora, Janeiro de 1976.

416 Mário Sottomayor Cardia, in O Primeiro de Janeiro, 25/11/1975. A grande


reunião de 24 de Novembro tinha sido convocada pela ALA de Santarém. No seu
panfleto apela «a todos os agricultores a reunir-se em Rio Maior, contra os
ditadores», in arquivos da CAP e arquivos do GER.

417 O Primeiro de Janeiro, 26/11/1975.

418 Rio Maior, 14/12/1975; Santiago de Cacém, 3/1/1976; Loulé, 4/1/1976;


Braga, 11/1/1976; Torres Vedras, 14/1/1976; Cabeceiras, 14/1/1976; Rio Maior,
22/1/1976; Alcobaça, 26/1/1976; Viseu, 1/2/1976; Bombarral, 1/2/1976; etc.

419 Declarações de J. M. Casqueiro: «Não confiamos mais. O ministro só


defende a sua ideologia e não a agricultura», in O Século, 12/4/1976.

420 Pode citar-se, nesta última situação, a «Quinta da Alorna», uma das maiores
empresas agrícolas do País, situada no Ribatejo, dentro da zona de intervenção.
Os proprietários, empresários modernos que administram directamente,
tomaram medidas imediatamente após o 25 de Abril. A opinião dos
trabalhadores não permite dúvidas: «Agora, dir-se-ia o paraíso», afirma A.
Trocata, assalariada na «Alorna» há mais de 30 anos. «Antes, ganhávamos 64$
por dia e agora 125$ […]. Antes, éramos obrigados a andar sempre com as
crianças atrás. À noite, nem podíamos ficar direitos, por causa do reumatismo.
Agora, os carros vêm-nos buscar e levar a nossas casas todos os dias», in A
Capital, 16/1/1975. Apesar da sua localização e das suas dimensões, a «Quinta
da Alorna» nunca foi ocupada.

421 Toda a literatura comunista e sindical é disso reflexo. Ver também a carta da
Liga de Évora, dirigida ao Sindicato do mesmo distrito, onde a mesma posição é
assumida, in arquivos da Liga e arquivos do GER, carta de 30/12/1974.

422 A Luta, 21/11/1975.

423 Ibidem.

424 Jornal Novo, 12/11/1975 (reportagem de A. Oliveira).

425 Jornal do Comércio, 20/5/1975.

426 Ver nota 39.

427 Jornal do Comércio, 19/2/1976.

428 Ibidem, 5/4/1976.

429 A. Barreto, Memória […], op. cit.

430 Jornal do Comércio, 20/5/1976.

431 Números oficiais do Ministério da Agricultura. Ver também A. Barros, A


Reforma […], op. cit.

432 António Barreto, Palavra de Rendeiro, Gabinete de Estudos Rurais, Lisboa,


1980.

433 Jornal do Comércio, 8/7/1975, e arquivos do MAP.

434 A. Barreto, Memória […], op. cit., e A Luta, 24/10/1975.

435 A Capital, 9/1/1975.

436 Ver, entre outros, Zillah Branco, in O Diário, 18/2/1976 e 10/3/1976; A


Reforma Agrária Acusa, op. cit., e o prefácio a A Questão Agrária, edições
Avante, Lisboa e Moscovo, 1975.

437 Ver, no Capítulo VII, a secção «As conquistas e a derrota do Partido


Comunista».

438 Ver, no exemplo, as intervenções do secretário-geral nos comícios do Porto


e outras regiões do Norte, in Diário Popular, 16/1/1976 e 18/1/1976.

439 A. Cunhal, Rumo […], op. cit.

440 Ver a nota 39.

441 Earl O. Heady, Análise do Desenvolvimento Agrícola e da Reforma Agrária


em Portugal, Lisboa, 1977.

442 Em fins de 1983, um pouco mais de metade das terras ocupadas tinham
sido devolvidas aos seus antigos proprietários a título de reservas. Quase 100
000 ha tinham também sido retirados às UCP e distribuídos a agricultores
individuais, ou a candidatos a agricultores. Só se conhece com relativa
exactidão a situação em quatro distritos, o que de qualquer maneira é
representativo, pois constitui cerca de quatro quintos das superfícies
abrangidas. No conjunto, cerca de 23% das terras da região pertencem agora ao
Estado, das quais 19% estão nas mãos das UCP e 4% nas de agricultores
individuais, 26% foram devolvidos aos proprietários a título de reservas e 51%
não foram afectados pela reforma agrária. Estas informações foram obtidas
junto da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo e da Direcção de
Crédito Agrícola do Banco Pinto & Sotto Mayor.
CONCLUSÕES

O sucesso do golpe de Estado ficou a dever-se à adesão


do povo e do aparelho de Estado. A sua indiferença teria
eventualmente conduzido à manutenção dos militares no
poder, como frequentemente acontece. Mas, em Portugal,
o apoio popular e das instituições públicas deu à revolta
militar uma larga dinâmica social, cultural e política e
modificou-lhe consideravelmente o carácter. É um exemplo
raro de golpe de Estado puramente militar que não
conduziu à implantação de um regime militar. É também
um exemplo, pouco frequente, de derrube de uma ditadura
pela força, mas sem violência e sem intervenção de
potências externas.
É certo que os militares ficaram algum tempo no poder.
Mas partilharam-no com vários partidos políticos. E, apesar
de alguns grupos militares se terem batido por um lugar
mais importante no futuro regime, o facto é que a estada
das forças armadas nos órgãos de direcção do Estado foi,
desde o início, claramente qualificada de provisória.
A mudança de regime não podia ser conduzida por uma
instituição depositária da legitimidade, pela simples razão
de que tal instituição não existia. Nenhum partido político,
nenhuma aposição institucional, nenhum líder nacional, se
afirmaram com suficiente autoridade para dominar e
orientar a mudança. Foram o Movimento das Forças
Armadas e as forças armadas que desempenharam
parcialmente este papel. Mas o exército, ele próprio,
encontrava-se atravessado por conflitos, seja puramente
internos, seja provocados pela sua exposição às lutas
sociais. Acrescente-se que também as forças armadas
viviam uma certa crise de legitimidade, ou, antes, tinham
quebrado com a sua legitimidade, pois que derrubaram o
poder estabelecido, o poder que elas apoiavam, e
revogaram a Constituição, que tinham jurado, com um
acto de força.
Noutras palavras, a mudança de regime decorreu das
relações de força na sociedade e dos afrontamentos em
pleno dia e, globalmente, não foi sendo conduzido por uma
força política, uma pessoa ou uma instituição.
Não foi a economia que esteve na origem da revolução,
foi a política e a guerra colonial. As dificuldades
económicas dos últimos anos do anterior regime eram
crises de crescimento e de transformação gradual ligadas
à expansão económica e a uma certa modernização. Pelo
contrário, era bem mais grave a crise política e militar,
nomeadamente a guerra de África.
Por outro lado, por causa do carácter autoritário e arcaico
do regime, tinham-se criado predisposições para uma
mudança profunda da vida pública. A liberalização
frustrada de M. Caetano tinha fechado as portas às
reformas. Ideias socialistas e revolucionárias tinham
sensibilizado largas camadas da população e das classes
médias em particular contra o regime politicamente
bloqueado. No dia seguinte ao golpe de Estado, muita
gente se revelou disponível para correr os riscos de uma
revolução, enquanto outros a desejavam explicitamente.
Ninguém apareceu a defender o regime e poucos o
justificaram.
Desenvolveram-se rapidamente aspirações
revolucionárias e projectos socialistas, ao mesmo tempo
que o Estado se desintegrava e se abria às manifestações
da sociedade. A crise social e económica que se seguiu
criou raízes nesta crise de mutação e no consequente
vazio de poder. A primeira causa da luta de classes que se
desenvolveu foi a mudança do poder político e militar e
não o confronto ou as contradições sociais e económicas.
Antes da propriedade, foi o Estado o objecto das lutas.
O processo revolucionário teve pois um primeiro sujeito,
a instituição militar, e um primeiro campo de acção
privilegiado, a esfera do político. O apoio popular e as
intenções de certos protagonistas militares abriram o
processo de mudança ao conjunto da sociedade.
Dispersos, mas muito activos, os movimentos sociais
surgiram um pouco por todo o País, mas sobretudo nas
grandes aglomerações e na capital.
Partidos políticos de esquerda, forças revolucionárias e
militares radicais apropriaram-se dos postos de direcção
política e de comando da administração. Foi através do
Estado que se tomaram múltiplas iniciativas no sentido da
transformação mais radical da sociedade e da economia,
visando em particular um processo global de transferência
da propriedade. A consequência foi o desenvolvimento de
movimentos sociais mais bem enquadrados, politicamente
encorajados e legalmente protegidos. Estes, aliás, também
influenciaram o universo político: contribuíram para o
radicalismo dos líderes, impediram o restabelecimento de
equilíbrios considerados prematuros e deslocaram para a
esquerda o centro de gravidade da política e da sociedade.
Os militares e os órgãos de Estado forneceram a sectores
do proletariado e a grupos muito activos das classes
médias uma legitimidade política e jurídica que lhes
faltava; mas receberam em troca uma legitimidade social e
revolucionária que não tinham. Os militares procuravam
uma base social suficiente para legitimar o derrube do
regime anterior e a descolonização. Por sua vez, os
sindicalistas, trabalhadores e empregados procuravam
uma protecção legal para defender os seus interesses e
conquistar poderes. Obtiveram-na dos militares. Foi esta
protecção legal que explicou a transgressão que os
trabalhadores cometeram, com audácia, contra a
propriedade e contra as normas jurídicas tradicionais.
Ao mesmo tempo, os partidos políticos, e mais
particularmente o Partido Comunista, lutavam por posições
de poder a fim de conquistarem o apoio popular. A
situação revolucionária, sem regras de comportamento
político estabelecidas ou aceites, impunha esta estratégia,
ao contrário do que habitualmente se verifica nas lutas
políticas institucionais, em que os partidos procuram o
apoio popular como meio de acesso aos poderes.
Foi assim que o Estado (incluindo as forças armadas) se
revelou simultaneamente um lugar de exercício do poder e
um instrumento de acção. As forças políticas e em certa
medida as forças sociais agiram através do Estado
utilizando os recursos que este lhes fornecia: a legalidade,
a força, a organização e os meios materiais. Dependendo
todavia das forças sociais e políticas, o Estado seguiu a sua
evolução e transformou-se. Mas, como sede e local de
poder, com as suas instituições e os seus corpos de
funcionários, o Estado revelou também os seus próprios
interesses e a sua força autónoma. O Estado não foi
independente das classes e das forças sociais e políticas,
mas também não esteve simplesmente ao seu serviço,
muito menos ao serviço de uma só classe.
A propriedade não é a única fonte de poder, e ainda são
precisos o direito e a força para a proteger. Sem falar da
cultura e da ideologia, há outras fontes de poder, entre as
quais a organização política e sindical, a força militar e o
aparelho de Estado. A apropriação deste último pelas
forças políticas de esquerda, nomeadamente pelos
comunistas e pelos militares radicais, permitiu o
estabelecimento de um novo poder, mesmo se instável.
Sem a propriedade, o poder político e sindical lutava pelo
poder económico: só o Estado lho poderia fornecer. À
prossecução deste objectivo não se depararam
imediatamente muitos obstáculos: numa sociedade com
graves insuficiências económicas, o Estado, melhor do que
a iniciativa privada, era fonte de segurança, como
revelavam as vastas dimensões da administração pública.
Uma pobreza relativa e a emigração estrutural também
não eram o indicador de uma economia poderosa. Nestas
condições, as ideias socialistas e o princípio de uma
intervenção acrescida do Estado na economia e na
sociedade encontraram facilmente adeptos nas classes
médias e junto dos trabalhadores assalariados, sem falar
dos funcionários.
A súbita queda do regime e a desorientação generalizada
das instituições fizeram imediatamente aparecer o
problema do poder político. Antes mesmo ou melhor do
que a organização das forças sociais em partidos,
associações ou sindicatos, o controlo do Estado poderia
significar o controlo e a condução das mudanças que
inevitavelmente acabariam por surgir, até porque
pareciam desejadas. Esta situação foi eficazmente
utilizada por um partido de revolucionários profissionais
para quem os principais objectivos estratégicos eram o
poder de Estado e a força militar. Também é verdade que,
em apoio dessa estratégia, o Partido Comunista não
desprezou os movimentos de massas nem as acções
colectivas que servem para consolidar as posições
conquistadas no aparelho de Estado, no Governo, nas
instituições e nas forças armadas. Nos países
industrializados, os revolucionários modernos lutam pelo
Estado e, tanto quanto possível, no interior do Estado.
Foi através do Estado e das instituições nacionais e locais
que foram tomadas as principais iniciativas de
transformação das estruturas sociais e económicas. Essas
medidas tiveram algum eco favorável ou foram ao
encontro de aspirações expressas por movimentos sociais,
nomeadamente reivindicações de trabalhadores e de
certas camadas das classes médias.
A região da agricultura latifundiária e o poder económico
dos proprietários e empresários agrícolas transformaram-
se em alvos privilegiados da revolução social. A reforma
agrária decorreu da revolução política de carácter geral,
mas introduziu-lhe uma dimensão específica. As origens da
revolução agrária do Sul (a sempre designada «reforma
agrária») foram exteriores à agricultura e ao capitalismo
rural. Foram políticas e resultaram da balança de poderes
políticos nacionais e da crise de mutação do Estado.
Todavia, as características das lutas e dos movimentos
sociais ligados à reforma agrária revelaram causas
remotas nas estruturas sociais e económicas da região.
Ao contrário das revoltas camponesas, a reforma agrária
no Alentejo não visava apenas nem sequer sobretudo a
terra, mas sim o conjunto das estruturas de produção, de
comércio e de administração da região. Os sindicatos de
trabalhadores rurais não exibiram os traços dos
movimentos milenários tradicionais, antes se mostraram
muitíssimo politizados e enquadrados por formas de
organização próprias das sociedades modernas. Ao
contrário das revoltas camponesas, a revolução alentejana
decorreu de uma centralidade política.
Contrastando ainda com as revoltas camponesas, que
geralmente produzem os seus próprios líderes
carismáticos, a revolução agrária do Alentejo apenas teve
por dirigentes funcionários do Partido Comunista, militares,
intelectuais e funcionários públicos.
A revolução do Alentejo não foi uma revolta contra o
Estado e seus agentes, como são frequentemente as
revoltas camponesas, antes contava com a protecção
activa do Estado e tinha o apoio de muitos dos seus
agentes. Enfim, o factor comunitário, geralmente
importante nas rebeliões camponesas, teve pouca
importância nesta região, onde a organização sindical
levou a melhor sobre as outras formas de estruturação
social.
No entanto, os sucessos das estratégias comunistas e
militares no Alentejo não podem ser apenas atribuídos às
suas virtudes, nem somente aos mecanismos de
manipulação de massas. Com efeito, os trabalhadores
rurais, parcialmente apoiados pelas classes médias locais e
urbanas, reagiram favoravelmente às solicitações do
Partido Comunista, dos militares e do Governo porque
aquelas correspondiam a algumas das suas necessidades e
das suas aspirações.
Mais ainda do que a desigualdade, patente em todo o
País, os traços dominantes do Alentejo eram a
proletarização e a polarização excessivas. As expectativas
dos assalariados rurais e a crescente ansiedade perante a
crise foram mais bem acolhidas pelo Partido Comunista,
que lhes oferecia sindicatos, cumplicidades no aparelho de
Estado, um emprego permanente e eventualmente
empresas para gerir. Em resumo: um estatuto social e a
segurança. Quanto aos outros partidos, pareciam apenas
ter para oferecer promessas de democracia. Era pouco e,
na região, o seu sucesso ressentia-se disso. A democracia
política não era a mais premente das necessidades dos
assalariados rurais. Aliás, já gozavam das liberdades
públicas desde o golpe de Abril.
A iniciativa revolucionária adaptou-se bem a esta região
polarizada do latifúndio. Privados do apoio do Estado, os
proprietários e as classes capitalistas reagiram pouco e
foram facilmente derrotados. Já não tinham a legalidade
para proteger a sua propriedade. Pelo contrário, os
trabalhadores tinham a força e uma certa legitimidade
para atacar a propriedade. Foi o que fizeram.
Apesar de ter sido provocada pelas mudanças políticas
nacionais, a reforma agrária alentejana adquiriu pouco a
pouco uma certa autonomia, acabando por se revelar uma
verdadeira conquista territorial com real poder económico.
As transformações sociais e económicas na região
transformaram-se numa espécie de revolução dentro da
revolução. Em paralelo com a descolonização, foi
certamente a mais profunda mudança provocada pelo
processo revolucionário dos anos 1974 a 1976.
Na região nasceu uma nova organização social e
económica, inspirada nos princípios do colectivismo e
consagrando a propriedade estatal dos meios de produção
e da terra. É certo que estes modelos foram impostos pelo
poder político, pela legislação e pela administração. Mas
também é certo que, na região, não encontraram
obstáculos à altura. Os camponeses e os pequenos e
médios agricultores, minoritários no Alentejo, não tiveram
força suficiente para reivindicar a divisão das terras. Para
os sindicatos e para os trabalhadores que tinham ocupado
herdades, o colectivismo apresentava-se ou era entendido
como a única maneira possível de organizar a produção.
Era sobretudo considerado como o meio mais seguro de
garantir a sua principal aspiração, a de um salário
permanente.
Todavia, a reforma agrária revolucionária e algumas das
suas conquistas mais marcantes não resistiram à derrota
política do plano nacional. Na tormenta, a fraqueza do
movimento de reforma agrária apareceu em plena luz.
Aquela resultava em primeiro lugar do seu carácter
essencialmente regional. A maior parte do mundo rural,
cerca de três quartos da população, que forneciam uma
proporção ainda mais elevada da produção agrícola
nacional, não se identificou com esta reforma agrária. Fora
do Alentejo, as populações receavam-na e foram sensíveis
aos argumentos das forças políticas que a combatiam.
Em segundo lugar, tanto no Alentejo como no resto do
País, a reforma agrária alienou os camponeses e os
pequenos e médios agricultores. Mesmo quando são
pobres, os camponeses respeitam a propriedade dos
outros porque querem que se respeite a deles. Quando se
lançam ou atacam a propriedade privada, na Europa ou
noutros continentes, trata-se geralmente de terra
usurpada, terra que foi deles ou dos seus antepassados, da
comunidade ou de todos; e, quando o fazem, a primeira
intenção é dividi-la ou ter o seu usufruto como camponês,
não como assalariado ou membro de um colectivo. Ora,
para os trabalhadores do Alentejo, a propriedade não tinha
valores «morais» nem simbólicos e não tinha outro
interesse que não fosse a garantia do salário. Tanto mais
que não sabiam servir-se individualmente da terra e que as
condições agrícolas e a ecologia regionais não se prestam
imediatamente à reconversão baseada na empresa
familiar.
Finalmente, o movimento revolucionário e a nova
organização colectivista dependiam da existência de um
governo favorável e de políticas sociais e económicas
adaptadas às novas circunstâncias. Ora, quando as
eleições alteraram o poder político e os militares radicais
foram substituídos por uma corrente mais moderada, a
reforma agrária, tal como tinha sido conduzida até então,
foi contrariada por projectos bem diferentes ou mesmo
hostis. As concepções sectárias que tinham prevalecido
não só limitaram consideravelmente as bases sociais da
reforma agrária como tomaram impossíveis revisões e
novos acordos.
O curso da revolução começou por atingir, com sucesso,
os interesses dos proprietários e das classes capitalistas,
sem suscitar muitas oposições. Depois ameaçou as classes
médias, a pequena burguesia e os camponeses. Foi aqui
que a revolução foi travada. Os modelos colectivistas e as
respectivas formas de organização social e política
ameaçaram os fundamentos da democracia pluralista e os
interesses de parte importante da população. Os partidos
políticos e os militares moderados reagiram e encontraram
facilmente o apoio popular necessário. As classes médias,
que tinham sido decisivas para a revolução, foram-no
igualmente para a contra-revolução, desde que sentiram
ameaçados os seus próprios interesses. Não se tratou,
aliás, de uma verdadeira contra-revolução: numerosas
medidas tomadas anteriormente e algumas das novas
situações criadas mantiveram-se e não foi exercida
repressão contra os revolucionários.
A oposição à revolução foi buscar à reforma agrária
alguns dos seus argumentos. Mas não foi essa a sua
principal motivação, que decorreu da evolução política
geral. Com efeito, todos os partidos não comunistas e uma
parte importante da sociedade, largamente maioritária do
ponto de vista eleitoral, sentiram-se ameaçados e
consideraram que as liberdades públicas estavam em
perigo.
A verdade é que estava em causa a fundação do regime
democrático. Durante um ano, militares e seus aliados
civis fizeram as leis, interpretaram-nas e aplicaram-nas
sem outra legitimidade que não fosse a da própria
revolução. Esta acumulação era uma das fontes de
despotismo. Nunca ao poder revolucionário faltaram as
formas legais, mas aquele era frequentemente arbitrário
na medida em que o direito era incerto e imprevisto. Não
estava cabalmente garantida a segurança dos cidadãos
porque o poder não era sempre exercido em conformidade
com leis conhecidas. O direito dependia de relações de
força quotidianas e não institucionalizadas. A princípio
ganharam os mais ousados, finalmente os mais fortes
levaram a melhor. Comunistas, militares radicais e outros
grupos de extrema-esquerda confrontaram-se com a
reacção relativamente limitada dos proprietários e dos
empresários, mas sobretudo com a reacção maciça dos
partidos políticos, dos militares moderados, dos
camponeses, da pequena burguesia e das classes médias,
não tendo faltado um muito forte contributo do mundo do
trabalho. Minoritária e sem apoio externo, a revolução das
vanguardas falhou.
O Movimento das Forças Armadas e o Partido Comunista
percorreram sucessivamente caminhos coincidentes,
concorrentes e opostos. Enquanto caminharam juntos, a
revolução triunfou. A sua separação foi a primeira derrota
dos revolucionários. A segunda foi a oposição de uma real
maioria popular, descontente com as tendências sectárias
prevalecentes. Finalmente, na prova eleitoral, a revolução
perdeu, como acontece quase sempre. Deixou todavia na
sociedade traços indeléveis. Os Portugueses descobriram a
diferença política e a conflitualidade; compararam os riscos
da revolução com os do arcaísmo e os riscos da liberdade
com os da ditadura.
ANEXO
AGRADECIMENTOS

As investigações que deram origem a este livro (e à tese


de doutoramento) foram efectuadas no Gabinete de
Estudos Rurais, da Universidade Católica de Lisboa, entre
1979 e 1982. A duração do projecto e a diversidade dos
estudos realizados tornaram-me devedor de colaborações,
apoios e informações cujo inventário é considerável.
A Faculdade de Ciências Humanas, da Universidade
Católica de Lisboa, o seu director de então, o Prof. Mário
Pinto, e a Fundação Friedrich Naumann, que apoiou a
Universidade, permitiram-me estudar e fazer os
necessários inquéritos durante quase três anos, em toda a
liberdade, assim como dirigir o improvisado Gabinete de
Estudos.
A Universidade Nova de Lisboa, pela Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas, concedeu-me um ano de
equiparação a bolseiro e outro de licença sem vencimento.
O Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de
Lisboa, e o seu director, o Prof. Adérito Sedas Nunes,
deram-me tempo e coragem.
Dos membros do Gabinete de Estudos Rurais (e
especialmente Maria José Nogueira Pinto, Ana Barros,
Teresa Almada, Maria João Costa Macedo, Francisco
Azevedo e Silva e Margarida Moura) apenas tive
colaboração da melhor.
Dos professores da Universidade de Genebra e dos
membros do júri de doutoramento tive apoio e confiança,
mas também crítica e severidade, além de uma lição de
hospitalidade académica. Devo distinguir os Profs. Roger
Girod, Christian Lalive D’Epinay, Paul Guichonnet e Elimane
Kane.
Vários amigos ajudaram-me com comentários, discussões
e a leitura de alguns capítulos: Maria Filomena Mónica,
Vasco Pulido Valente, Adérito Sedas Nunes, Manuel Lucena,
Fernando Gomes da Silva, Carlos Portas, Luís Filipe Salgado
Matos, Manuela Nogueira e Joëlle Kuntz.
Algumas pessoas abriram portas difíceis ou forneceram-
me informações úteis: o então presidente da República,
general Ramalho Eanes, o antigo primeiro-ministro, Dr.
Francisco Sá Carneiro, o general Pedro Cardoso, na altura
chefe de estado-maior do Exército, o Prof. Montalvão
Marques, os engenheiros Sevinate Pinto, Fernando Gomes
da Silva, Oliveira e Silva, João Cabral, Joaquim Dordio,
Francisco Borba, Manuel Figueiredo e Alberto Guerreiro dos
Santos; os agricultores Sebastião Lourenço, Mendes Dias,
António Mata e Projecto.
Também certas instituições, como tal, merecem
agradecimento por colaborações de diversa ordem: o
Estado-Maior do Exército, o Ministério da Agricultura, a
EPAC, o Instituto Nacional de Estatística, a Direcção
Regional de Agricultura do Alentejo, a Direcção de Crédito
Agrícola do Banco Pinto & Sotto Mayor, o Instituto de
Gestão e Estruturação Fundiária, a Liga dos Pequenos e
Médios Agricultores do Distrito de Évora, a Confederação
dos Agricultores de Portugal, os secretariados distritais das
unidades colectivas de produção, os Sindicatos dos
Trabalhadores Agrícolas dos Distritos de Évora, Beja e
Portalegre, o Partido Socialista e o Partido Social-
Democrata.
Agradeço finalmente as pessoas que colaboraram comigo
e com o Gabinete de Estudos Rurais através da publicação
de trabalhos autónomos mas por mim encomendados: José
Pacheco Pereira, Manuel de Lucena, Maria João Costa
Macedo, Maria José Nogueira Pinto e Teresa Almada.
SOBRE AS FONTES E OS MÉTODOS

O tema deste projecto era: «O processo de reforma


agrária em Portugal durante o período revolucionário de 25
de Abril de 1974 a 30 de Julho de 1976». Foi indispensável
proceder a uma análise de antecedentes imediatos, assim
como das estruturas sociais e agrárias. Mas o acento
tónico do trabalho está no processo concreto e datado, nas
suas causas e no desenrolar dos acontecimentos. Isto foi
feito em detrimento de outros aspectos, tais como as
consequências económicas ou os efeitos sociais e políticos
mais duráveis da reforma agrária.
Dada a natureza do objecto de investigação, o trabalho
está geograficamente limitado às regiões do Ribatejo e do
Alentejo que constituem a Zona de Intervenção da
Reforma Agrária. No entanto, são feitas numerosas
referências a acontecimentos de carácter nacional. Era
com efeito necessário, não sendo possível separar a
reforma agrária da revolução política. Trata-se, aliás, de
uma evidência deste trabalho: a revolução política
desencadeou a reforma agrária e os movimentos sociais
que lhe são próprios. Sem o golpe de Estado de Abril de
1974 não teria havido reforma agrária.
Os limites cronológicos do trabalho estão claramente
definidos e foram impostos pela realidade dos fenómenos
estudados. O 25 de Abril de 1974 não precisa de
justificação. O mês de Julho de 1976 é em certo sentido o
fim da transição para o regime democrático. Com efeito,
entre Abril e Julho desse ano o País dotou-se dos atributos
de um sistema constitucional: uma Constituição, um
Parlamento eleito, um presidente da República eleito, um
Governo constitucional responsável perante o Parlamento
e um regime de garantias, direitos e liberdades dos
cidadãos. A partir de Julho de 1976, o Estado de direito
leva a melhor definitivamente sobre a «legitimidade
revolucionária» que tinha prevalecido até então.
A escolha da narrativa como método de exposição não se
deve apenas às preferências pessoais, mas também à
natureza do objecto. Trata-se de um processo social e
político, tanto regional como nacional, com
desenvolvimentos múltiplos e rápidos. É um período muito
vivo e muito rico em acontecimentos e mudanças, cuja
evolução tem ela própria um significado. É um pouco de
história social global, mas concentrada num lapso de
tempo reduzido.
Foi todavia necessário recortar a realidade segundo
certos temas e instituições, a fim de analisar as
componentes do processo global. Foi o que se tentou,
sobretudo nos capítulos que tratam de organizações.
Dado que houve ruptura política, não foi difícil marcar o
princípio do período a estudar. Todavia, uma boa parte do
que aconteceu supõe, evidentemente, uma história
anterior, estruturas sociais e um «caldo de cultura». Por
essa razão, a primeira parte tenta passar em revista esses
antecedentes. Privilegiaram-se os factos e os
acontecimentos que tinham relações directas e indirectas,
mas efectivas, com o objecto de investigação. Não é pois
um «resumo» exaustivo da história de Portugal no século
XX.
Pelo método e pelo objecto, este livro constitui uma
espécie de história contemporânea. Mais: um pouco de
história do presente. Daqui resultam vários problemas. Em
primeiro lugar, não vale a pena escondê-lo, perde-se a
distância histórica que permite maior sedimentação dos
factos. Esta questão, milhares de vezes mencionada na
literatura de ciências sociais, não é um obstáculo absoluto.
Mas é uma dificuldade com a qual se deve viver. A
proximidade tem todavia a vantagem de permitir o
contacto directo com os vivos e com as testemunhas dos
acontecimentos. Isto, do ponto de vista das fontes, tem um
valor inestimável, embora nunca suficiente.
O facto de muitos dos protagonistas estarem vivos tem
no entanto outras consequências e cria novas dificuldades.
Com efeito, ficam por resolver necessidades contraditórias.
Por um lado, não atentar contra a discrição obrigatória
num trabalho académico, evitar causar prejuízos às
pessoas interessadas e não divulgar certas fontes
voluntariamente discretas. Por outro lado, identificar, datar
e localizar factos e acontecimentos históricos. Não parece
desejável disfarçar as identidades, nem é aconselhável que
um estudo como este aprofunde excessivamente os
itinerários políticos pessoais tão próximos de nós. O leitor
verá que se tentou uma solução com peso e medida, não
sei se conseguida.
Os nomes das instituições, das organizações e das
pessoas constituem referências necessárias porque
identificam frequentemente a natureza das acções. Por
outro lado, nos grandes movimentos colectivos, os papéis
individuais surgem, talvez paradoxalmente, com
extraordinária força e rara dimensão. Os movimentos ditos
de massas forçam muitos indivíduos a sair do anonimato.
Assim é que a maior parte das referências pessoais feitas
neste livro têm fontes públicas, isto é, jornais, documentos
filmes e livros conhecidos ou detectáveis. De tudo isto
decorre a necessidade do rigor na interpretação e da
fidelidade na narração: é, finalmente, uma dificuldade que
tem vantagens.
Tomei frequentemente o ponto de vista institucional. Isto
não quer dizer que despreze ou subestime as «pressões da
base», a influência dos movimentos sociais difusos ou dos
movimentos de massas não organizados. Mas a verdade é
que a acção mais eficaz se desenrolou nas organizações e
através das instituições. Foram pois estes «sujeitos» e
estes «meios» que foram objecto de muito particular
atenção: organismos administrativos, unidades militares,
partidos políticos, associações e outros. O trabalho mostra,
aliás, como a actividade organizada dos indivíduos e dos
grupos se sobrepôs claramente à acção espontânea ou
anónima dos indivíduos e das massas.
Talvez seja útil esclarecer que as instituições do Estado
não revelaram uma coesão permanente, e ainda menos
pensamento monolítico ou conduta inequívoca. Com efeito,
a revolução, as mutações e a mudança atravessaram as
instituições e várias vezes as transformaram.
A primeira preocupação deste trabalho é a interpretação.
Não tentei reconstruir exaustivamente a história, nem
encontrar a verdade quantificada. Procurei conhecer o
maior número possível de acontecimentos e factos;
encontrar-lhes um sentido, mais do que uma finalidade, e
dar deles uma interpretação plausível.
Do ponto de vista dos métodos e das vias de inquérito,
adoptei uma aproximação múltipla combinando várias
técnicas e todas as fontes acessíveis: documentos,
arquivos, imprensa, questionários individuais directivos,
entrevistas abertas, questionários institucionais,
sondagens e análise estatística. Todavia, nenhum inquérito
em particular é objecto, nesta exposição, de um relato
pormenorizado dos procedimentos e dos resultados. A
narrativa apoia-se sobre todas as fontes e todos os
inquéritos ao mesmo tempo. Os trabalhos sectoriais e
temáticos estão disponíveis ao público, seja em livraria,
seja na Universidade Católica.
Além da literatura existente, as diferentes fontes e os
vários inquéritos de que me servi são os seguintes:

a) A legislação e os actos administrativos, incluindo os


debates da Assembleia Constituinte. As fontes são os
diversos diários oficiais e compilações várias. Em plena
revolução, o número de decretos, portarias e despachos
governamentais é impressionante. O seu estudo
permite seguir a evolução política de maneira precisa;
b) Documentos de toda a espécie, públicos ou privados,
em particular: os arquivos de vários serviços do
Ministério da Agricultura; arquivos de correspondência e
de informações do Estado-Maior do Exército, da Região
Militar Sul e de algumas bases militares da região;
arquivos e correspondência de algumas associações,
nomeadamente a Liga de Pequenos e Médios
Agricultores de Évora, certas associações livres de
agricultores e a Confederação dos Agricultores de
Portugal; actas de reuniões dos corpos dirigentes de
várias associações e de organismos oficiais,
designadamente: a Liga dos Pequenos e Médios
Agricultores do Distrito de Évora, o Conselho Regional
de Reforma Agrária de Beja, a comissão distrital rural
do distrito de Setúbal, a comissão de intensificação
cultural; documentação e propaganda de partidos;
documentação, manifestos e propaganda dos sindicatos
agrícolas; publicações do Instituto Nacional de
Estatística; levantamentos de contabilidade e
movimento de vários organismos, especialmente da
Empresa Pública de Abastecimento de Cereais (EPAC);
c) Ficheiros de vários organismos oficiais relativos a
herdades, empresários, reservas e unidades colectivas
de produção ou cooperativas;
d) Análise da imprensa quotidiana e semanal, nacional,
regional e local, de 1974 a 1976 (33 títulos);
e) Inquérito por questionário fechado junto de 500
proprietários e empresários cujas herdades tinham sido
ocupadas. Os questionários incluíam três grupos de
perguntas: situação pessoal do proprietário;
características e estado das herdades antes da
ocupação e da expropriação; circunstâncias da
ocupação;
f) Inquérito por questionário fechado às cooperativas e
unidades colectivas de produção: num total de 600
entidades, 500 questionários enviados, cerca de 300
recebidos. Solicitava-se aos responsáveis a resposta a
questões de facto: áreas, dimensões, produções, etc.;
g) Entrevistas não directivas de 51 pessoas
seleccionadas entre dirigentes formais, estudiosos,
líderes informais, «informadores» qualificados e
especialistas da região: proprietários, sindicalistas
rendeiros, seareiros, técnicos, dirigentes associativos e
dirigentes de unidades colectivas;
h) Inquérito por questionário junto de 1462 pessoas
residentes em 12 freguesias da zona de intervenção e
representativas da região. A amostra foi dividida em
seis categorias socioprofissionais, das quais cinco
ligadas à agricultura.

A utilização de diversas fontes documentais permitiu


verificar numerosos factos, em particular os relatados na
imprensa. Os acontecimentos revolucionários, pela
importância do que está em causa e pela emoção com que
são vividos, são vistos e relatados nas mais variadas e até
opostas versões pelos que neles estão envolvidos. Não se
trata apenas de uma questão de interesses. Não há sequer
consenso quanto às noções de legalidade e legitimidade.
Em grande parte, prevalecem as relações de força em
detrimento de regras ou normas codificadas. Aliás, o
próprio golpe de Estado, na génese dos acontecimentos
supervenientes, é uma derrogação das leis em vigor e
conduz à revogação imediata da Constituição. A
instauração de uma nova legalidade demorou muito
tempo, tanto mais que os critérios de legitimidade
revolucionária se sobrepunham claramente à lei escrita.
Foi em grande parte com estes critérios que se avaliaram e
relataram factos e comportamentos. Estes eram julgados
mais em função do estatuto social ou da posição política
dos seus autores do que dos seus méritos próprios. Os
fenómenos de rejeição ou identificação de grupo
presidiram à apreciação dos factos e à formação da
opinião mais do que em condições de estabilidade. Nestas
circunstâncias, a verificação das fontes impôs-se a todos
os estádios da investigação.
A utilização da imprensa revelou-se muitíssimo útil. Era
impressionante a massa de informações veiculadas pelos
jornais, pela rádio e pela televisão. Todos os grupos que
desejavam ter uma intervenção, contra ou a favor da
revolução, ou simplesmente na defesa dos seus interesses
e ideias, faziam-no também por intermédio da imprensa.
Jornais foram ocupados, tomados, comprados ou fundados.
Partidos, sindicatos, associações e grupos de pressão
tinham os seus jornais. Estes relatavam tudo. Parecia não
haver segredos nem imprevistos. Chegaram a anunciar-se,
com antecedência razoável, golpes de Estado, ocupações
de terras e «assaltos» a instituições. A imprensa de Estado
desempenhou um papel de relevo, não só pelo número de
títulos e pela importância das tiragens, como pelo facto de
traduzirem os pontos de vista dos grupos que mais força
tinham nos órgãos políticos em determinado momento.
Não eram, todavia, apenas oficiosos: com efeito, a
instabilidade e a heterogeneidade do Governo e das forças
armadas repercutiam-se na linha editorial e no conteúdo
dos jornais.
A imprensa publicava, evidentemente, proclamações e
tomadas de posição, debates lógicos e artigos de opinião.
Mas o mais importante era a informação. Todos os meios
de comunicação modernos foram utilizados e
aproveitados. Que tal se deva a uma qualquer
singularidade, ou simplesmente ao estado de
desenvolvimento das tecnologias e da organização da
informação, o facto é que a imprensa esteve
extremamente activa e interveniente nesta revolução. Mais
ainda: houve uma batalha pela informação, neste sentido
de que todos os grupos tudo tentaram para conquistar os
meios de comunicação e informação.
Esta situação exigiu precauções especiais sobre a
validade e a confiança que mereciam as informações. Com
efeito, estas eram frequentemente o espelho dos seus
autores e reflectiam os seus desejos e interesses de modo
pouco razoável. Foram assim feitas verificações a
propósito dos factos significativos. Uma coisa é certa:
apesar da ideologia, das deformações deliberadas e de
eventuais manipulações, a imprensa revelou-se fonte
inestimável e inesgotável para o estudo da sociedade e do
processo de mudança. Está lá quase tudo.
No entanto, as fontes públicas e divulgadas pelos media
podem privilegiar os porta-vozes e os dirigentes. São
igualmente significativos, na medida em que aqueles
orientaram a acção e modelaram as transformações. Mas
tais fontes não constituem toda a realidade. Eis a razão por
que se levaram a cabo vários inquéritos (por questionário e
entrevista) com o objectivo de detectar percepções,
avaliações e comportamentos mais generalizados. Note-se
que existe uma vasta zona de coincidência entre a
expressão pública e a imagem generalizada dentro de um
mesmo grupo social. O que estava em causa era público e
transparente; as opções eram bem demarcadas; a
oposição de interesses era frontal. Forças e aspirações
estavam polarizadas, as consciências individuais e
colectivas estavam frequentemente em sintonia. É
verdade que as percepções de situações vividas ou
contemporâneas mais ou menos estáveis parecem mais
diversificadas do que as relativas a momentos
revolucionários e respectivas lutas. Dir-se-ia que, durante
uma revolução ou no decurso de transformações
fundamentais, nem sempre se pensa o que se quer, mas o
que se pode.
PERIÓDICOS CONSULTADOS

Diários
A Capital (Lisboa).
A Luta (Lisboa).
O Diário (Lisboa).
Diário do Alentejo (Beja)
Diário da Assembleia Constituinte.
Diário da Assembleia da República.
Diário do Governo.
Diário de Lisboa.
Diário de Notícias.
Diário Popular.
Diário da República.
Diário do Sul (Évora).
Jornal do Comércio (Lisboa).
Jornal Novo (Lisboa).
O Comércio do Porto (Porto).
O Primeiro de Janeiro (Porto).
O Século (Lisboa).

Semanários e outros
Análise Social (Lisboa).
Avante! (Lisboa).
Boletim da Liga dos Amigos de Abrantes (Abrantes).
Boletim do Ministério da Justiça (Lisboa).
Boletim do Ministério do Trabalho (Lisboa).
Boletim do Movimento das Forças Armadas (Lisboa).
Jornal do Agricultor (Lisboa).
Jornal de Alcácer (Alcácer do Sal).
Jornal do Sul (Setúbal).
O Camponês (clandestino).
O Distrito de Setúbal (Setúbal).
O Expresso (Lisboa).
O Militante (Lisboa).
O Povo Livre (Lisboa).
O Sorraia (Coruche).
Portugal Socialista (Lisboa).
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