Você está na página 1de 107

DADOS DE ODINRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e


seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer
conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da
obra, com o fim exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda,


aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Sobre nós:

O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de


dominio publico e propriedade intelectual de forma
totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a
educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer
pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site:
eLivros.

Como posso contribuir?

Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras, enviando


livros para gente postar Envie um livro ;)

Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo de


servidores e obras que compramos para postar, faça uma
doação aqui :)

"Quando o mundo estiver unido na busca do


conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
um novo nível."

eLivros .love

Converted by ePubtoPDF
Socialismo e suas histórias peculiares
Experiências de um jovem brasileiro em Cuba
Maikel Ramthun
 
 
Copyright – Direitos autorais
Essa obra não deverá ser reproduzida ou comercializada,
total ou parcialmente sem a autorização do autor.
Disclaimer
 
Antes que comece o mimimi, quero deixar claro que o
objetivo desse livro não é levantar bandeira política nem
corroborar ou refutar fatos históricos. Tampouco tenho como
objetivo julgar ou incriminar quem quer que seja. Esta obra
não é um livro de história ou de geografia, sendo as datas e
locais exatos dos acontecimentos pouco importantes neste
contexto.
Alguns avisos antes de começar: se você pretende ler este
livro pensando em discutir política, procure outra leitura.
Aqui apenas conto experiências que vivi quando era
adolescente, e as faço de acordo com o meu ponto de vista
da época. Tentar argumentar e discutir ideologias e posições
políticas e partidárias contando “causos”, seria
demasiadamente raso. Antes que interpretem de forma
errônea achando que estou sendo ingrato e que estou
cuspindo no prato que comi, deixo claro que ter vivido em
Cuba foi uma das experiências mais enriquecedoras e que
me trouxe mais crescimento em toda a minha vida. Faria
tudo de novo.
Aos mais sensíveis, aviso que irei utilizar linguagem
extremamente coloquial, e por vezes chula. Palavras de
baixo calão estarão presentes, assim como gírias. O objetivo
de ter escrito dessa forma foi o de incorporar o jovem
imaturo que eu era na época que esses relatos foram
vividos. Caso você se incomode com este tipo de linguajar,
posso recomendar meu outro livro: “O médico que fingia ser
fotógrafo”. Neste, utilizo palavreado mais formal.
A primeira parte do livro pode ser um pouco maçante, mas
foi necessária para contextualizar minha ida para Cuba e
como cheguei lá. Caso esteja entediado, não desista da
leitura, pule para o capítulo 2 onde começo a contar
algumas histórias. Penso que você irá gostar.
Por último, todas as histórias aqui contadas são reais e
vividas por mim nos cinco anos que morei em Cuba, porém,
tomei a liberdade de modificar e omitir alguns nomes,
lugares e situações, já que a exposição exata dos eventos e
das pessoas poderia trazer um grande prejuízo a vários
amigos.
Quem já viveu em Cuba sabe do que estou falando. Segue o
jogo. 
Sumário
Disclaimer

Propaganda

Mexendo os pauzinhos

Me deixa ficar aqui

CAPÍTULO 2 – Histórias diversas

Cozinheiro fora da lei

Pessoas enjoadas para comer são suas melhores amigas

Salão de beleza caseiro

Os bagos de Fidel

Propaganda enganosa já de manhã

Os eufemismos

E-mail bisbilhotado

Velozes e furiosos

Puxando ferro (ou ferrugem)

Minha conversão

A Odebrecht é aqui

Jeitinho brasileiro... ou libanês


Alô, sou eu, tchau

Não vai ter golpe, mas teve

Pablo, o contrabandista

Os eventos de fachada

Amigo é amigo

Cliente inconveniente

O papelzinho

Deixa crescer!

Os leões em cima da carne

Saudade do Brasil?

Nossa vã filosofia

Corra Lola, corra!!

Medicina por amor

A advertência

Hans, o marido da mulher do Pepe

Dá-me uma televisão, e eu te levarei para onde queiras

A lei foi feita pra se cumprir

Ronc Ronc

Verdades inconvenientes
Voldemort

Melhor matar do que discordar

Salvando vidas

Criatividade

Hello darkness my old friend

Paraíso proibido

Prisão ao ar livre

Complexo de inferioridade

Taxista amigo da família

Não força, vai

Unanimidade

É penta!!

As motos “doadas”

Instrumento de trabalho

Complemento de renda

Nem tudo era ruim

Considerações finais

Sobre o autor

Me segue lá
 
 
 
Propaganda
 
Lá estava eu com dezoito anos recém-completados, gol
bolinha na garagem, namorada gatinha, festa com os
amigos todo final de semana. O que mais eu poderia
querer? Queria começar logo a faculdade de medicina.
Acontece que eu só fui decidir que queria fazer medicina lá
nos 48 do segundo tempo. Aí, meu amigo, você pode ser o
cara mais gênio do mundo, mas se não sentou a bunda na
cadeira e comeu os livros durante pelo menos um ano, não
tem chances de passar. E foi o que aconteceu no final do
terceirão. Decidi tarde, e tomei nabo nas provas de
vestibular. Em algumas (provas de vestibular) fiz média para
passar nos outros cursos. Grande porcaria, todo mundo que
não passa em medicina fala a mesma coisa: “ah, se fosse
engenharia de não sei o que eu passava”.
Bom, desde moleque eu tinha o sonho de morar fora do
Brasil. Como meus pais não tinham grana para me bancar
um intercâmbio, esse sonho ficou ali guardado durante um
bom tempo. Eis que quando eu ia começar o cursinho pra
valer, dessa vez sabendo o que queria da vida, surge uma
reportagem no Globo Repórter falando sobre a maravilhosa
medicina de Cuba. Cara, que negócio fenomenal! Um país
daquele tamanho, oprimido pelos EUA, conseguindo
encontrar a cura de uma porrada de doenças fodas que
castigavam muita gente. Pensei comigo. Eu quero estudar
nesse lugar.
Mexendo os pauzinhos
 
Fui conversar com meu velho sobre esse sonho de estudar
fora. Na real, só comentei com ele sobre a reportagem que
tinha visto na TV, mas na época nem imaginava que
estudantes estrangeiros podiam estudar lá. Aí sabe aqueles
negócios que parecem que eram pra ser? Aquelas paradas
de destino, sei lá. A filha de um amigo do meu pai já estava
no segundo ano de medicina em Cuba. Na hora implorei pra
ele conversar com esse amigo e descobrir como funcionava
toda a burocracia para que eu também pudesse meter o pé
na estrada e vazar do Brasil.
Talvez você me pergunte: por que você resolveu largar uma
vida mansa no Brasil para ir embora para aquela porcaria de
país?
Bom, primeiramente, como eu havia dito, era um sonho
estudar fora. Segundo, na época do cursinho, uns dois caras
me procuraram na porta daquelas empresas que organizam
viagem para vestibular, me oferecendo vagas em diversas
universidades do País.
Cheguei a conversar com um dos malucos, e ele tinha um
baita esquema. Um dos esquemas consistia em escutas
eletrônicas sofisticadas, (os dois filhos desse cara
estudavam medicina e passaram no vestibular desse
jeitinho bacana), outro método era através de laranja, que
falsificava uma identidade e se passava por você para fazer
a prova. Fiquei com raiva de tudo aquilo e no final das
contas falei que não tinha interesse. Lembro até hoje de ter
dito ao meu pai o seguinte: “pai, se eu fizer um negócio
desses, nunca vou me sentir feliz, vou sempre ter a
sensação de que sou uma fraude”.
Não tô contando isso pra que você pense que eu era um
bastião da ética. No meio do livro, até vou mostrar que já fiz
um monte de cagadas! Mas, quando se tratava de estudo,
eu era cabreiro até na hora de passar cola.
Por essas e outras, resolvi que não queria mesmo saber de
estudar um ano inteiro para o vestibular, com aquela
sensação de estar sendo trouxa e passado para trás
naqueles esquemas mirabolantes.
Para os que já estão de mimimi: eu sei que esses esquemas
são a minoria dos casos. Inclusive, hoje sou professor de
medicina de uma universidade pública bem-conceituada, e
conheço meus alunos e o tanto que ralaram para passar na
prova. Então, larga o mimimi e vamos que vamos.
Voltando ao assunto de mexer os pauzinhos para que eu
fosse para Cuba, fui atrás dos requisitos, curso de espanhol,
papelada e todas as demais burocracias.
Tenho uma relativa facilidade para idiomas, aliás, acredito
que isso se deva ao fato de ser tagarela. Preciso falar rápido
e falar muito sempre.
Fiz um intensivão no espanhol, fazia aulas duas vezes por
dia, cinco dias por semana. Nesse meio tempo ia mexendo
com a papelada (na época não existia esse negócio que tem
hoje em dia de precisar ser de algum movimento social ou
de algum partido de esquerda).
Até que um dia chegou uma carta lá em casa dizendo que
eu havia sido aprovado e que começaria a estudar medicina
no tão sonhado país. Show de “buela”!
Dá pra voltar?
 
Chegou o dia de ir embora. Meu pai foi até Guarulhos
comigo e confesso que foi bem foda me despedir. O voo da
Cubana de Aviación era famoso pelos aviões velhos, pelo
atendimento ruim, pelas comissárias de bordo mal-
educadas e por ostentar o título de segunda companhia
aérea mais perigosa do mundo. Que orgulho. Passei a
viagem pensando que eu poderia entrar para a história
como um dos que participaram da conquista do título de
primeira companhia aérea mais perigosa. É tetra!!
Quando cheguei no aeroporto de Havana, o primeiro choque
que tomei foi com o calor infernal que fazia, a despeito do
ar-condicionado. O segundo choque foi com o espanhol
rápido e difícil de entender dos caras. Na minha cabeça
mandei meu professor de espanhol “praquele” lugar, já que
o dissimulado vivia me elogiando nas aulas, dizendo que
meu espanhol era fantástico.
Ao sair da zona de desembarque, fui abordado por uma
penca de cubanos, cada um me pedindo uma coisa, e outros
me oferecendo transporte. Lembro que um dos caras me
pediu um sabonete. Nessa hora eu olhei para trás e tive
vontade de voltar correndo. O que não adiantaria já que os
voos da Cubana de Aviación para o Brasil só aconteciam
uma vez por semana. Se um parente fosse morrer no Brasil,
você tinha que avisar o cara pra não fazer isso de sábado a
quarta. Já que só tinha voo de volta na sexta.
Bom, fui devidamente instruído a procurar uma cubana que
era meio que chefona dos estrangeiros que estudavam em
Cuba. Seu nome era Carmen Maria. Não foi muito difícil de
encontrá-la, já que se destacava no aeroporto como uma
senhora negra, acima do peso, com um batom vermelho
bem forte, rodeada de estrangeiros que lhe entregavam
presentes.
Desconfiei daquela galera toda entregando mimos para ela,
enquanto o idiota aqui estava de mãos vazias. Foi ali que
percebi que mesmo no país socialista, o esquema de
propina e agrados funciona de forma até mais forte do que
no Brasil. Quando me apresentei sem nenhum presente na
mão, ela me olhou com uma cara feia, procurou meu nome
na lista e me deu uma má notícia: o carro que me levaria
para a cidade onde eu iria morar, já tinha saído.
Beleza, né? Eu lá naquele calor dos infernos, sem conhecer
ninguém, com uma porrada de gente me pedindo coisas,
descubro que fui abandonado no aeroporto.
Bom, não podiam me deixar ali plantado, então me
colocaram em um “ônibus” e me mandaram para outro
estado junto com uma galera de vários países. Escrevi
ônibus entre aspas porque o negócio era feio. Era um ônibus
velho, com um furo no piso que dava pra ver o asfalto, com
bancos de plástico e metal bem piores do que os ônibus
urbanos que temos nas cidades brasileiras. Pior, o
desgraçado não passava de 50km/h e estragou três vezes
durante a viagem. O trecho de 281 quilômetros que
percorremos, durou umas 10 horas.
Enquanto percorríamos a estrada, eu só via outdoors com
propaganda socialista enaltecendo os heróis nacionais e
mato, muito mato. As poucas construções avistadas
estavam caindo aos pedaços. Era tudo tão diferente daquela
reportagem do Globo Repórter que eu só conseguia repetir
uma frase na minha cabeça: o que é que estou fazendo
aqui?
Me deixa ficar aqui
 
Cheguei na universidade, que não era aquela em que eu iria
ficar.
Dividi o quarto com dois caras. Um deles se chamava
Adolfo, e foi com quem eu me identifiquei logo de cara. O
outro se chamava Ricardo, era um caipirão metido a besta
daqueles que tem papai fazendeiro e adora meter uma
marra. Não preciso dizer que com ele eu não fiz muita
questão de puxar assunto.
O quarto da universidade era parecido com uma cela de
presídio. Tinha duas camas beliches, um chuveiro (melhor
dizendo, um cano na parede) e duas paredes finas que te
cobriam até o peito. Privacidade zero. Mas vou confessar
uma coisa, apesar de ser um quarto meio ruim, eu estava
numa vibe revolucionária e no fundo achava tudo
maravilhoso.
No outro dia, conhecemos um pouco da universidade, então
fui falar com uma das chefonas para que conversasse com a
Carmen Maria pedindo uma autorização para poder ficar por
lá mesmo, já que eu havia me enturmado e havia gostado
do lugar. Lembra do único estrangeiro que não levou
presente pra ela? Pois é, esse imbecil sou eu. Óbvio que a
Carmen, madrinha de todos os estrangeiros (que pagavam
“pedágio”) cagou para o meu pedido, e naquela mesma
manhã um carro russo da década de 70 veio me pegar na
faculdade.
Lá vou eu para mais uma viagem interminável.
CAPÍTULO 2 – Histórias diversas
 
Depois de tanto blábláblá introdutório, afinal, eu precisava
pelo menos dar uma pincelada para explicar como fui parar
lá, aqui começo com as histórias que pude viver e
presenciar durante os cinco anos que morei em Cuba.
Mais uma vez reforço que alguns nomes serão mudados,
assim como os lugares que ocorreram. Os dados políticos
históricos e geográficos oficiais vocês podem ler na
Wikipédia ou em qualquer outro veículo de comunicação.
Aqui começarei a relatar as coisas engraçadas, tristes,
vergonhosas e peculiares que eu pude presenciar, e a
narrativa baseia-se no meu ponto de vista unicamente.
Vamos comigo!
Cozinheiro fora da lei
 
Quando eu vinha de férias para o Brasil, uma das coisas que
eu fazia era encher duas malas com comida para levar para
Cuba. Lá a comida era escassa mesmo para nós,
estrangeiros, que pagávamos pela nossa estadia e
alimentação.
Jantávamos lá pelas seis horas da tarde, que era o horário
em que a gente voltava do hospital ou da faculdade
morrendo de fome, e lá pelas dez da noite, enquanto a
gente estudava, o estômago já reclamava.
Aí você tinha algumas opções: pegar a bicicleta e ir até um
posto de gasolina, em uma loja de conveniências, e pagar
um valor absurdo por um pão borrachudo, esquentado no
micro-ondas (só lembrando que na época essas lojas de
conveniência só vendiam a dólar americano, e nosso real
não valia grande coisa), ou você podia passar fome. O que
eu fazia? Além de sonhar com a maravilha da comida
delivery existente nos melhores países capitalistas, eu
cozinhava um dos trocentos pacotes de miojo que eu levava
na mala.
Tínhamos um daqueles “rabo quente” para ferver a água, e
cozinhávamos no chão do quarto mesmo. Esse tipo de
dispositivo altamente tecnológico era proibido em Cuba, já
que a energia lá era racionada. Mas a fome me transformou
em um gângster, e eu cometia essa ilegalidade com muita
frequência.
Cuba me transformou em criminoso.
Pessoas enjoadas para comer são suas
melhores amigas     
 
Saca só como funcionava o esquema de comida lá na casa
dos estudantes estrangeiros: de manhã, serviam um pão
minúsculo (e ruim, nada nem perto do pãozinho francês da
potência capitalista chamada Brasil), com um pouco de
manteiga, e uma xícara de café com leite. O leite utilizado
nesse café era em pó. Só que eles diluíam pouquíssimo leite
para um caminhão pipa de água. Com o café era a mesma
coisa. Então o que você tinha na verdade era quase um
“café homeopatia”. O bagulho vinha tão diluído que dava
pra ver o fundo da xícara. O café da manhã era esse e
ponto final, não dava pra repetir o pão, nem o café com
leite. Dose única por pessoa.
Aí, depois desse banquete, pedalava então, né? Lá no
hospital, evoluíamos os pacientes, passávamos visita com o
professor, tudo normal como manda o figurino de uma
faculdade de medicina. Ao meio dia, a gente pegava a bike
outra vez, e mandava mais quatro quilômetros até a casa
dos estudantes estrangeiros para almoçar. O nível de fome
era do tipo “se mexer comigo te mato esfaqueado”. Aí o
almoço era mais ou menos assim: um prato com feijão sem
tempero, arroz duro com pedaços de pedra, um ovo frito. Às
vezes o ovo frito era substituído por um pedaço de
presunto. Ou às vezes por um pequeno pedaço de frango.
Cara, aquilo ali para um jovem de dezoito anos que já tinha
pedalado de manhã e já tinha trampado, era só um
aperitivo. Saíamos da mesa com fome. Depois do almoço o
esquema se repetia: bike até o hospital, aula a tarde toda, e
às seis da tarde bike de novo até a casa para jantar. A
janta? Igualzinha o almoço. Não à toa, no meu primeiro ano
de faculdade, eu voltei para o Brasil com 13 quilos a menos.
Conforme foi passando o tempo, eu descobri uma coisa
importantíssima: tinha umas gurias lá na casa que eram
enjoadas para comer. Então o esquema era simples, você
sentava do lado delas e ficava igual um abutre. Assim que
elas davam umas garfadas na comida, e faziam cara feia,
você tinha alguns centésimos de segundo para perguntar:
– Você não vai comer essa ervilha?
Bingo, era a forma de você ao menos ingerir um pouco mais
de calorias.
Eu já tinha até minha fornecedora oficial de comida, uma
menina gente finíssima (e bem magrela) chamada Jane.
Minha maior tristeza foi quando a Jane começou a namorar
um dos caras da casa, e aí a comida acabava indo pra ele.
Quem mandou eu ter sido lerdo! Se eu soubesse que meu
esquema de comida iria acabar de uma hora pra outra,
tinha pedido ela em casamento já no primeiro ano. Vacilei!
Salão de beleza caseiro
 
Um belo dia, eu estava chegando da faculdade um pouco
mais cedo do que o habitual, quando entrei no meu quarto e
vi uma das funcionárias da casa dos estudantes lavando o
cabelo na minha pia.
Na hora, ela ficou toda sem jeito, e me deu um migué
dizendo que estava lavando o cabelo ali, pois o
administrador da casa não permitia que ninguém lavasse o
cabelo no banheiro dos funcionários.
Sorri pra ela, falei que não tinha problema nenhum, e que
ela podia lavar o cabelo lá numa boa. Inclusive saí do quarto
para que ela ficasse à vontade.
Na minha ingenuidade eu não me toquei do que acabava de
presenciar.
Um tempo depois, percebi que meu xampu estava bastante
“aguado”. Sacou qual foi? Os coitados dos cubanos não
tinham grana para comprar xampu, já que estes só eram
vendidos em dólar nas lojas.
Um adendo: mas qual é a moral dessas lojas vendendo tudo
caro e em dólar, já que os cubanos não podiam pagar pelos
produtos? Bom, Cuba fica pertinho da Flórida, o que fez com
que milhares e milhares de cubanos se arriscassem nas
águas perigosas e infestadas de tubarões para morar em
solo americano. Cada um desses desertores visita a família
regularmente, e traz o bolso recheado de dólares para
gastar com eles na ilha. Essas lojas funcionam mais ou
menos como uma forma de trazer dólares (dinheiro sujo
ianque capitalista) de volta a Cuba desses malditos
traidores da revolução que foram embora do melhor país do
mundo.
Bom, voltando ao assunto do xampu, a pobre funcionária
que não tinha condições de comprar seu próprio xampu
furtava o meu e lavava o cabelo escondida. Triste, mas o
sistema de lá acabou transformando grande parte da
população em contraventora. A única coisa que eu pude
fazer depois dessa foi dar um xampu de presente para a
mulher. Eu nem tinha muito cabelo mesmo.
Os bagos de Fidel
 
Essa para mim é uma das histórias mais icônicas que eu
pude vivenciar lá em Cuba. E olha que vi muita bizarrice por
lá. Acontece que essa história que irei contar reflete mais ou
menos a hipocrisia generalizada que assola o país.
Era uma tarde quente e ensolarada, e lá estávamos os
alunos da faculdade em um dos muitos eventos políticos
que éramos obrigados a participar (contarei mais sobre essa
obrigação em outras histórias do livro). O mimimi era
sempre o mesmo. Povo metendo o pau nos Estados Unidos,
exaltando a ilha maravilhosa de Cuba, e falando sobre mil e
uma teorias da conspiração, sobre como Fidel escapava de
todas as tentativas de assassinato, e como ele era fodão.
Naquele dia, uma amiga da minha turma, que era uma
menina sempre envolvida com as coisas do partido e muito
socialista e revolucionária, estava com o microfone no alto
do palanque discursando. Seu nome era desses comuns
entre os cubanos de sua idade, nomes começados com “Y”.
Para quem não conhece, fica a dica do blog “Generacion Y”
da escritora e blogueira Yoani Sanchez.
Voltando ao assunto, lá estava minha amiga “Y” proferindo
um monte de baixarias contra os imperialistas
estadunidenses, e exaltando o homem da barba (e não era
o Papai Noel). Nunca esqueço da frase que ela soltou aos
berros, chamando os americanos pra porrada, que quase se
ouvia em Miami:
– Pueden venir, pues a nuestro comandante, le roncan los
cojones!
Pra quem não manja muito desse palavreado chulo, ela
falou algo que no Brasil significaria mais ou menos o
seguinte: que os americanos podiam cair pra dentro, porque
nosso comandante Fidel era um cara macho que botava o
pinto na mesa.
Aplausos se ouviram, gritaria. A menina era um mito dentre
os jovens comunistas de Cuba.
Tá bom, mas por que você disse que essa história era uma
das mais icônicas? Simples, porque hoje em dia essa minha
amiga “Y”, mora em Miami com a família. Se rendeu ao
império maldito. Inclusive está no Facebook e adora postar
fotos dos filhos participando das tradições ianques como
thanksgiving e halloween.
Vejam, não estou recriminando a menina. Acho que a
melhor coisa que ela fez na vida foi ter caído fora daquele
inferno cubano.
O ponto onde quero chegar aqui é o da hipocrisia que a
grande maioria vivia. Assim como ela, conheci vários
“comunistas” que fugiram de lá na primeira oportunidade.
Saíram debaixo dos cojones de Fidel e correram para as
terras do tio Sam.   
Propaganda enganosa já de manhã
 
Durante a faculdade, ficamos conhecendo um tal de
“matutino”, que basicamente consistia em uma pequena
reunião rápida com os alunos daquela turma, para que um
deles comentasse sobre as principais notícias do dia.
Então o negócio funcionava assim: chegávamos ao hospital,
nos reuníamos primeiro com o professor para assinar a lista
de presença, organizar as tarefas do dia e discutir
inicialmente os casos da enfermaria, antes de irmos
examinar, evoluir, prescrever e fazer as discussões de caso
à beira do leito. Assim que terminávamos essa parte
importante, vinha o lazarento do matutino.
Ah, mas por que você está falando mal de uma coisa boa?
Afinal, informação é algo importante. Então, tô falando mal
porque aquela droga daquele matutino nada mais era do
que uma lavagem cerebral. Assim como o noticiário na TV
cubana parecia um passeio na Disney, já que tudo o que se
falava era das maravilhas do país e de como o governo era
foda, o matutino seguia a mesma linha. Notícias distorcidas,
falava-se mal dos EUA, e lambia-se as botas de Fidel Castro.
Aquilo me irritava profundamente, já que eu conseguia
acesso a um e-mail diário com as principais manchetes da
CNN, e via que aquela porcaria toda era a maior balela. E
olha que a CNN ainda tem uma fama de ser simpatizante
dos regimes de esquerda.
Bom, um dia foi a minha vez de dar as notícias, e eu fiz
questão de mandar umas três manchetes da CNN que não
foram muito bem vistas pelos X9 da turma (falarei sobre os
X9 em outras histórias). Resultado? O X9 principal encerrou
o matutino abruptamente, ficou vermelho de raiva, e me
proibiu de participar novamente desse importantíssimo
evento matinal.
Fiquei com raiva do cara, e tive vontade de sair na mão com
ele. Mas no final das contas, depois de muito tempo eu
entendi que ele não fez aquilo por amor à revolução, nem
porque ele acreditava naquela baboseira, mas sim porque
ele se cagou nas calças de medo. Lá em Cuba, é melhor
matar alguém do que falar mal do governo. Aí se coloca no
lugar do maluco que foi incumbido de ser o X9 da turma.
Chega um estrangeiro engraçadão e começa a cometer uma
das maiores atrocidades que poderiam ser cometidas lá
naquele país: usar a liberdade de expressão. O maluco vai
deixar quieto? Claro que não, era o pescoço dele e não o
meu que tava em jogo.
Fiquei sabendo que esse cara também vazou de Cuba. E
para minha surpresa ele não foi para a Venezuela e nem
para a Coreia do Norte. Quem diria.
Os eufemismos
 
Cuba é um país de eufemismos. Lá palavras como ditadura,
liberdade e capitalismo têm significados bem diferentes do
resto do mundo, e muitas expressões são mudadas para
formas mais agradáveis aos “ouvidos da revolução”.
Uma das vezes que isso mais me deixou com embrulho no
estômago, foi no episódio dos cinco agentes de inteligência
cubanos que estavam nos Estados Unidos tentando se
infiltrar em grupos anticastristas e foram descobertos. Long
story short, os caras estavam espionando lá no EUA a
mando de Fidel Castro, e quando foram pegos, os
julgamentos acabaram sendo muito duros, inclusive
gerando críticas internacionais. A despeito de tudo isso, os
caras eram espiões e ponto final. Acontece que, em Cuba,
ficou proibido utilizar a palavra espião para este caso.
“Espia”, que é a palavra em espanhol para esta situação,
transformou-se em “los héroes prisioneros del império”. Só
que, convenhamos, é bem mais fácil falar espião do que “os
heróis prisioneiros do império”. Eis que o idiota aqui, que
não tem lobo frontal funcionante muitas vezes, e que
costuma perder o amigo mas não a piada, fala um dia na
frente dos X9 da sala:
– Ah, vocês viram as notícias dos espiões... eh... quer dizer...
dos heróis prisioneiros do império ontem?
Cara, bastou essa brincadeirinha sossegada, que não fez
mal a ninguém, pra merda tomar proporções maiores do
que eu imaginava.
Na hora eu nem percebi a baita da cagada que eu tinha
feito, mas uns dias depois, voltando pra casa de bicicleta,
vejo no sentido contrário, também em sua bicicleta, um dos
X9 do grupo (o mais bonzinho deles).
O cara atravessou a pista com a bike e me fez parar. Eu não
entendi direito do que se tratava aquilo, mas o que
aconteceu em seguida foi um negócio surreal.
De forma rápida e discreta, ele chegou do meu lado, no
meio do canteiro central da rodovia onde ninguém podia
ouvir o que estávamos conversando, olhou para os dois
lados rapidamente e me interrompeu enquanto eu o estava
cumprimentando:
– Cara!! Eu estou voltando agora de uma reunião na
faculdade que foi convocada para te deportar do país. Por
causa do teu bom histórico acadêmico, resolveram te dar
mais uma chance, mas tá todo mundo de olho. Veja bem, eu
entendo tua frustração e vou te dizer uma coisa. Eu
também odeio esse país, e acho esse sistema uma merda,
mas eu sei que a única forma de sair daqui é ficando quieto
e obedecendo. Então vou te pedir uma coisa, CALA A PORRA
DA TUA BOCA e para de falar bosta por aí, se você quiser se
formar médico!
Fiquei estarrecido por dois motivos. Um pela rapidez com
que eles organizaram uma reunião para me banir, devido a
uma simples brincadeira idiota, e o segundo motivo foi por
ver mais um dos caras que eu jurava que defendiam aquela
hipocrisia toda confessar, na minha frente, que odiava o
sistema e só se fazia de revolucionário para um dia fugir de
lá.
A partir desse dia eu me transformei um pouco mais em
cubano. Engoli minha liberdade de expressão com farinha, e
calei a minha boca.
E-mail bisbilhotado
 
Logo que cheguei à ilha, uma das coisas que tentei
desenrolar foi um e-mail para falar com a minha família, já
que as ligações telefônicas eram caríssimas, não existia
smartphone nem WhatsApp, e mesmo que existissem eu
nunca teria acesso já que em Cuba era proibido ao cidadão
comum ter internet em casa. Lógico que isso era uma coisa
muito boa, que o governo fazia pensando no bem-estar de
seus cidadãos, já que ao ter acesso à internet, estes
poderiam entrar em sites e veículos de notícias que
mostrariam a desgraça do mundo capitalista, e isso os
deixariam tristes. Melhor ficar com os dois canais de TV
estatais que passavam só contos de fadas no noticiário.
Bom, conseguimos um e-mail coletivo para todos os
estudantes estrangeiros que viviam lá na época. Para
acessá-lo precisávamos pegar a bike e ir até um tal centro
de informações que era possivelmente o único lugar da
cidade onde havia internet. Para que vocês tenham uma
ideia, nem na faculdade tínhamos internet. Aliás, não existia
nem máquina de xerox na faculdade. Mas isso é história pra
daqui a pouco.
Então íamos a esse centro de informações sempre que
queríamos ver se algum familiar havia mandado e-mail. Lá,
você acessava aquela caixa de e-mail coletiva, e pulava os
que não eram pra você. Se quisesse podia até ler sobre as
juras de amor que seu colega tinha mandado para a
namorada lá em outro país, mas não fazíamos isso.
Aliás, nós não fazíamos, mas o pessoal do centro de
informações, sim. Depois de um tempo morando lá, fomos
informados de que todos os e-mails que recebíamos eram
lidos pelo pessoal, para ver se não havia nada suspeito ou
antirrevolucionário. Lá a coisa funcionava assim, onde quer
que você fosse, tinha alguém de olho. Hoje penso que
deveria ter existido, naquela época, uma versão para e-mail
do “gemidão do WhatsApp”. Pelo menos eu ia fazer aqueles
caras passarem vergonha.
Velozes e furiosos
 
Teve uma vez em que eu me senti meio rico lá na ilha. Foi
quando minha tia e minha irmã foram me visitar. Foi na
semana de férias de janeiro. Aluguei um Fiat Uno azul, mas
sem escada no teto, afinal, não queria voar, né? A estrada
que corta o país é bem grande, tem três pistas na maior
parte do tempo, segundo os cubanos foi construída dessa
forma para que aviões possam pousar em tempos de
guerra. O negócio, apesar de largo, é bem esburacado, mas
mesmo assim dava pra usar a potência daquela máquina
chamada Uno Mille.
Foi naquela viagem que eu virei fugitivo da polícia pela
primeira vez (sim, teve mais de uma, vai vendo que lá pra
frente eu conto). Estava metendo o pau no Uno, a uns
145km/h, quando passei por um policial. Só que o esquema
lá é diferente daqui. Os caras não tinham radar, não tinham
uma forma de me parar em um posto de polícia mais pra
frente, e a moto que o cara tinha era velha e possivelmente
estava com pouca gasolina. Resultado? Os caras tentam te
parar no apito! Sim, o maluco fica lá escondido, quando
você passa a 140 por hora ele fica soprando o apito
achando que você vai parar, e voltar lá pra tomar uma
multa. Brother, naquela velocidade da luz que eu tava
(entendam minha empolgação, eu só andava de bike), a
única coisa que eu via era o vulto do policial e ouvia o apito
perdendo força. Ali, malandro, era pé na tábua e os caras
nunca mais me viam! Me senti um verdadeiro criminoso.
Agora, na real, tirando a parte de ser criminoso de lado,
parar para um policial cubano é ter a certeza do cara te
esvaziar a carteira. Ele vai te botar um terror danado, a hora
que souber que é estrangeiro vai fazer de tudo para
conseguir alguns doletas. Até parece um outro lugar que eu
conheço bem. 
Puxando ferro (ou ferrugem)
 
Teve uma época em que eu decidi deixar de ser frango, e
resolvi puxar ferro pra ver se colocava um pouco de
músculo na minha carcaça. Imaginem um cara nada
atlético, com um corpo ridículo, braços finos iguais dois
canudos, pancinha saliente e peitinhos de cadela prenha.
Era eu.
Através dos meus contatos, conheci um dos caras que
posteriormente se tornaria um dos meus melhores amigos
de toda a vida. Esse cara empreendedor tinha conseguido
uns pedaços de ferro, algumas anilhas, e acabou projetando
e montando sua própria academia clandestina nos fundos
de casa. Era uma casa extremamente simples, onde viviam
ele, a irmã e a mãe. Os quartos eram divididos por folhas de
compensado. Casa bem pequena, mas tinha a vantagem de
possuir um pátio nos fundos.
Bom, na academia, apelidada carinhosamente por nós de
“No genetics Gym”, já que a galera que treinava ali tinha
uma péssima genética para fisiculturista, tínhamos alguns
aparelhos rudimentares transmissores de tétano, alguns
pesos, um chiqueiro com uma porquinha preta (sim,
dividíamos espaço com ela) que conseguia feder mais que a
gente, e o mais legal é que não tínhamos teto. Sim,
treinávamos sob a luz do sol, ou sob a chuva dependendo
do dia. Pagávamos 2 dólares por mês para treinar lá.
Aquilo sim era dedicação: todo mundo com comida
racionada, sem suplementos, sem telhado na academia,
sem espelho nas paredes pra ficar se olhando, sentindo
fedor de bosta de porco no ar. O dono da academia, que
também fazia o papel de personal trainer, dizia na época
que se o empresário e fisiculturista Joe Weider nos visse
treinando, possivelmente iria nos resgatar de helicóptero
pois ficaria impressionado com nossa garra.
Esse meu amigo manjava tudo de treinos. Seu maior
arrependimento na vida foi o de ter amarelado quando
tinham planejado fugir para os Estados Unidos de balsa. Os
amigos que foram conseguiram atravessar o mar e chegar à
Flórida. E todos eles, até os de Q.I. menos avantajado, se
deram bem por lá. O que lhe consolava era que os amigos
mandavam algumas revistas de fisiculturismo para que ele
pudesse ficar por dentro do esporte.
O grito de guerra mais pronunciado lá no ginásio era: “Vai!!
Sem comida!!” Tínhamos a capacidade de transformar a
desgraça em piada e até mesmo motivação.
Anos depois, já pude treinar em várias academias bacanas,
cheias de equipamentos sofisticados, e sem a Peppa Pig
para dividir o espaço. Mas até hoje nunca me senti tão bem
e tão empolgado para treinar como naquele lugar sem teto. 
Aqueles dois dólares mensais que eu pagava lá foram muito
bem gastos. 
Minha conversão
 
Lembro-me bem dos fatos que fizeram com que eu me
convertesse. Não estou falando de religião (apesar que,
para algumas pessoas, política é mais forte do que crença
religiosa). Bom, deixa eu me explicar. Fui criado em uma
educação de esquerda. Não à toa, escolhi morar em cuba.
Nos dois primeiros anos eu era socialista. Fã do Che
Guevara. Amante da esquerda e a porra toda. Fazia parte
inclusive de uma brigada estrangeira que levava o nome do
Che. Vai vendo.
O que acontece é que os caras conseguem esconder bem,
durante um bom tempo, todo o lixo que rola por lá. Vejam,
eu fui me decepcionar com o socialismo e passar a não
acreditar mais nele apenas no terceiro ano vivendo em
Cuba.
Entre as coisas que me fizeram sentir uma profunda
decepção pelo sistema, as quais já descrevi em outras
histórias desse livro, há uma que foi, talvez, a gota d’água,
e que vou tentar descrever.
No terceiro ano de faculdade, passamos todas as manhãs
do ano na enfermaria de medicina interna do hospital, cada
um com seus pacientes. Precisávamos chegar cedo,
conversar com os pacientes que cada um tinha ficado
responsável, examinar, revisar a prescrição com o médico
residente, escrever no prontuário, checar os exames, etc.
Quando era um paciente novo, era um Deus nos acuda, pois
tínhamos que tirar toda a história, e precisávamos formular
pelo menos uma hipótese diagnóstica por escrito com no
mínimo três diagnósticos diferenciais, que tinham que ser
detalhados também por escrito. No meio da manhã, o
professor chefe da enfermaria passava visita e discutia, um
a um, os casos na beira do leito do paciente. Foi naquele
ano que eu me inclinei para a área clínica, pois achava
aquela arte de fazer diagnóstico algo muito bacana.
Todo esse blábláblá é apenas para apresentar a você a
minha colega de turma, Marcela (modifiquei o nome por
motivos que já citei anteriormente). Marcela era uma
menina bonitinha, que me chamava a atenção. Tinha uns
traços meio árabes, e umas pernas fantásticas.
Pronto, já voltei ao foco do que estava escrevendo. Marcela
era uma menina meio negligente com a faculdade. Chegava
atrasada na enfermaria, fingia que estava trabalhando (essa
era a parte que mais me irritava), correndo pra lá e pra cá
com uma pilha de prontuários debaixo do braço, e sempre,
na hora das discussões à beira do leito, ela não tinha feito
nem metade do trabalho que precisava. Ela era preguiçosa,
só que sempre tinha uma desculpa pra tudo, nunca assumia
a culpa e nunca tentava melhorar.
Dentre as minhas colegas daquele ano, Marcela era a mais
comunista e amante do regime, o que era motivo de riso às
vezes, até mesmo entre as amigas cubanas. Lembro da vez
em que ela disse que Hugo Chávez era lindo, e uma das
amigas falou:
– Lindo? Ah, não, Marcela! Não força a barra.
Lembro dela me falando, uma vez, de um evento das
mulheres comunistas, com aquelas frases clichês e batidas
que a gente costumava ouvir na TV todos os dias. E numa
de nossas conversas, ela me contou que a mãe trabalhava
para o partido comunista (eu não lembro que cargo ela
tinha na época). Até aí, beleza. Mas o que foi que a Marcela
disse ou fez, que me levou a perder a crença no socialismo?
Bom, na verdade ela não fez nada, mas uma vez eu precisei
ir até sua casa para pegar um livro, e foi aí que eu me
converti. Vejam, eu costumava frequentar a casa de vários
amigos cubanos, e o que eu via é que a maioria deles
morava muito, muito mal. Salvo os que tinham parente em
Miami, ou os que viviam na ilegalidade, a maioria morava
em casebres e tinha uma TV de tubo em preto e branco. A
mãe da Marcela não tinha parente em Miami, mas ela “era
do partido”. Cara, a casa da menina dava de dez a zero em
qualquer residência dos meus outros amigos. Geladeira
bacana, TV a cores, móveis legais, e pasmem, carro na
garagem. Pode parecer besteira, mas aquilo me pareceu tão
hipócrita que fiquei com nojo. As mesmas pessoas que
defendiam o comunismo com unhas e dentes, e que
falavam da igualdade, eram as que se beneficiavam por
trabalhar para o partido. E nesse embalo ia Marcela,
cagando para a medicina, fazendo a faculdade só por fazer,
cada vez mais envolvida nas coisas do partido comunista
para poder mamar nas tetas do governo e tirar vantagem
assim como a mãe fazia. Uma irresponsável, preguiçosa,
que não assumia a culpa nunca e só tinha um objetivo na
vida: continuar recebendo as benesses que uma pequena
elite recebia. Nesse ponto, Cuba se parecia bastante à atual
bananolândia em que vivemos.
E esse foi o tiro de misericórdia no último suspiro que eu
tinha de admiração pelo socialismo.
A Odebrecht é aqui      
 
Com o passar dos anos, fui cada vez mais percebendo que
as coisas em Cuba só funcionavam na base da propina e da
ilegalidade. Só que eu era um cara turrão. No fundo, eu era
sim um revolucionário, porque eu não conseguia
compactuar com aquilo e não conseguia ficar calado. Mas
deixa eu confessar um negócio, lá no meu último ano eu
entrei no jogo.
Apesar de morarmos na mesma casa, alguns estudantes
tinham privilégios que eu não tinha. Travesseiro nos quartos
(passei um ano sem travesseiro, dormindo com uma blusa
enrolada), chuveiro elétrico no banheiro (era proibido em
Cuba, mas os caras tinham) enquanto eu tinha só um cano
na parede que saía um fio de água gelada. 
Esses caras que conseguiam as coisas, viviam
“emprestando” grana para o administrador da casa, traziam
presentes de seus respectivos países, davam garrafas de
bebida para o cara.
Eu, como me recusava a entrar nesse jogo, e era muito
orgulhoso, só ficava me fodendo e dando murro em ponta
de faca.
Já no quinto ano em que eu estava lá, desisti e resolvi me
render ao esquema. Trouxe alguns presentes para o chefe
da casa quando voltei de férias do Brasil. Tudo coisa
simples, mas que já fez todo o jogo mudar. Em menos de
duas semanas depois de levar as propinas, digo, os
presentes, eu consegui chuveiro elétrico no quarto,
consegui travesseiro, e algumas outras regalias. Fora que o
cara começou a me tratar superbem (antes ele só me
olhava com cara de bunda).
É duro admitir, mas aquele ano foi bem mais suave para
mim. Aí você vê que não importa qual sistema está
implementado, o ser humano é um filho da puta. A
diferença é que uns são filhos da puta de direita e outros
filhos da puta de esquerda. No final, todo esgoto vai pro
mesmo ralo.
Jeitinho brasileiro... ou libanês
 
Tinha uma época em que entrar em Cuba virou um
tormento lá no aeroporto. Os caras estavam fazendo
marcação cerrada em cima das malas que vinham de fora, e
confiscavam praticamente todos os aparelhos eletrônicos ou
elétricos que os turistas tentavam botar pra dentro.
As questões aqui eram duas principais: não deixar passar
equipamentos que consumissem muita energia elétrica, já
que era uma coisa escassa e racionada lá no país, e
também não deixar passar aparelhos de DVD ou de vídeo
cassete (sim, tinha disso ainda na época). Motivo de
confiscar os aparelhos de DVD juntamente com os discos
que eram trazidos de fora? Não permitir que a população
tivesse acesso a conteúdo antirrevolucionário. O governo
sabia que ao restringir internet, e ao ter apenas dois canais
de TV estatais com toda a programação controlada, era um
pouco mais fácil enganar o povo e fazer lavagem cerebral
para se manter no poder. Se o cara tivesse um aparelho de
DVD, poderia ter acesso àquele conteúdo maldito do
capitalismo opressor, e aí já viu, né?
Bom, lembra que eu contei que trazia duas malas cheias de
comida? Com trocentos pacotes de miojo, e tal? Pois é,
minha mãe arrumava minha mala de um jeito que cabia tipo
um universo numa casca de noz. Até os pacotinhos de suco
instantâneo ela dobrava ao meio pra economizar espaço. A
mala era praticamente uma mina terrestre, uma vez que eu
encostasse nela pra abrir, explodia aquela porra toda de
coisas lá de dentro, e nunca mais eu colocava de volta. Pois
bem, minha mala recebeu uma marcação na etiqueta para
ser inspecionada. Tudo isso graças a uma sanduicheira
elétrica velha que eu estava trazendo. Meu, eu tava
realmente cagando “praquela” sanduicheira velha. Meu
desespero foi ter visto como os caras inspecionavam a mala
da galera. Neguinho pegava as coisas e ia jogando em cima
do balcão. Fuçavam até dentro dos sapatos, iam fazendo
aquela montanha de coisas e, no final, você tinha que se
virar pra botar tudo de novo na mala e cair fora. Eu tava
ferrado!
Só que eu não contava com a astúcia de um carinha que
morava lá na mesma casa em que eu. O bicho era brasileiro
de família Libanesa, que conseguia dar nó até em pingo
d’água. O cara percebeu que conseguia sair do aeroporto só
com uma das malas sem a etiqueta marcada. Assim,
quando passava pelos guardas, eles olhavam a etiqueta
normal, e deixavam seguir. Acontece que não tinha uma
fiscalização rigorosa para quem voltava ao salão de
desembarque. Então esse cara bolou um esquema que para
ele era óbvio, mas que para o burrão aqui foi uma baita
jogada de cinema. Ele saía com a mala de etiqueta sem
marcação. Lá fora deixava a mala com um amigo, arrancava
essa etiqueta e colocava no bolso. Uma vez de volta ao
saguão, tirava a etiqueta marcada da mala que seria
inspecionada, e colava aquela limpa para passar com a
mala suspeita livremente pelos guardas.
E assim dei meu jeitinho brasileiro, ou melhor, libanês, para
entrar com a sanduicheira velha no país sem que
revirassem todas as minhas coisas. Cuba me transformava
cada vez mais em criminoso.
 Alô, sou eu, tchau   
 
Alguns itens básicos de consumo lá em Cuba tinham preços
exorbitantes, assim como alguns serviços. Some-se a isso o
fato do preço ser em dólar, em uma época em que o real
desvalorizou a ponto de um doleta chegar a custar 4
realitos. Um dos negócios que caía nessa categoria “valor
de um rim”, eram os cartões telefônicos para ligações
internacionais. Tínhamos um de dez dólares, o que te
permitia falar durante a eternidade de dois minutos e
quarenta segundos com o Brasil. Além disso, a ligação tinha
um delay importante, então você falava, a pessoa só ouvia
depois de alguns segundos, ficava mudo, e depois de mais
uns segundos você ouvia a resposta.
Eu comprava um cartão desses de vez em quando para ligar
pra namorada no Brasil. Você deve imaginar que com dois
minutos e uns quebrados, não dava pra entrar em nenhum
assunto mais aprofundado, então a ligação era sempre
aquele negócio esquisito:
– Oi, tudo bem, como está, tô com saudade, tô aqui fazendo
não sei o quê, o cartão tá acabando, beijos, te amo, tchau.
Aí, uma época lá, um brasileiro (tinha que ser, né?)
descobriu que se você solicitasse uma ligação internacional,
de um telefone fixo a cobrar para um celular pré-pago no
Brasil, a ligação completava e nem você nem a pessoa do
outro lado pagavam a conta. Velho, o passatempo da galera
na casa dos estudantes era ficar falando no telefone o dia
inteiro! Fazia fila no negócio. A qualquer hora do dia que
você passasse lá, tinha alguém fazendo juras de amor pra
namorada ou pro namorado lá do outro lado do mundo. Teve
um sem noção, uma vez, que até ficou no telefone tocando
violão para a namorada. Me recuso a contar que esse sem
noção fui eu.
Como alegria de pobre dura pouco, o pessoal da companhia
telefônica cubana descobriu o esquema e então começaram
a recusar as ligações para celulares pré-pagos. Acabou a
brincadeira, e todos voltamos a vender as córneas para
poder comprar um cartão e ter aquele papo cabeça de dois
minutos de vez em quando. Pelo menos, até outro brasileiro
descobrir um esquema alternativo. Era só malandragem!
Não vai ter golpe, mas teve
 
Falei de um monte de falcatruas que a galera aprontava lá,
né? Mas, quando o quesito era “dar o golpe”, os cubanos
também eram criativos.
Lembra do Uno Mille que eu aluguei? Pois é, eu paguei com
dólares que havia comprado no Banco do Brasil na época,
tudo certinho como manda o figurino. Alguns dias depois de
ter devolvido o carro na locadora, dois funcionários de lá
aparecem no portão da casa dos estudantes querendo falar
comigo. Um deles tirou uma folha de papel do bolso, com
uma fotocópia de uma nota de cem dólares, e um carimbo
meio migué escrito “falsa”. O cara com todo seu ar teatral
me disse que, infelizmente, uma das notas que eu havia
usado pra pagar o carro era falsificada, e que caso eu
quisesse poderia resolver ali mesmo com eles. Velho, até
hoje não me conformo o quanto fui burro! Engoli a história
dos estelionatários, catei uma nota de cem conto no meu
armário, e entreguei na mão dos caras.
Quando contei pro meu velho sobre o ocorrido, ele falou,
inconformado:
– Filho, os caras te passaram a perna!
Mas, nada como um dia após o outro, né? Uns meses
depois, fiquei sabendo que os mesmos caras foram presos
em um esquema de estelionato e se ferraram na cadeia.
Mentira, nenhum dos dois se ferrou e cada um aproveitou a
grana que me roubaram. Só achei que os dois na cadeia
seria uma forma mais legal de terminar essa história, com
uma baita lição. No fundo, a única lição que ficou é que eu
fui trouxa pra cacete.
Pablo, o contrabandista
 
Não, não era o Pablo Escobar. Esse era um gordinho
bochechudo com bigode ruivo que parecia com aqueles
personagens de desenho animado. Conheci o Pablo na
igreja. Ele era alguma coisa importante lá dentro. Ministro,
diácono ou sei lá como chamava aquilo.
No final da missa, o cara veio lá puxar papo com a gente (os
cubanos adoravam fazer um networking com os
estrangeiros), e usando de todo aquele ambiente santo, o
“irmão” Pablo me ofereceu seus serviços. O gordinho vendia
camarão e lagosta a preços bem acessíveis.
A primeira vez em que fui em sua casa comprar a iguaria,
estranhei toda a discrição com a qual ele me atendeu.
Inclusive estava preocupado para que os vizinhos não
sentissem cheiro de camarão. Lembro que ele disse
sorrindo, daquele jeito bonachão, para que eu não
espalhasse que ele vendia frutos do mar. Segundo ele, não
queria ficar conhecido como “Pablo do camarão”.
Com um tempo morando lá em Cuba, descobri que boa
parte dos cubanos fazia a vida desviando comida dos hotéis.
E era o que Pablo fazia. Ele retirava o “dízimo” do hotel em
camarões, e vendia para os estrangeiros.
Aqui eu me tornava um receptador de produtos roubados.
Cuba me transformou em um verdadeiro gângster. Mas o
camarão ficou uma delícia.
Os eventos de fachada
 
Uma das coisas que descobri sendo um “insider” lá no
governo comunista, foram os eventos de fachada. Tá ligado
naqueles discursos de Fidel, que reúnem caralhadas de
milhares de pessoas em uma praça, e todo mundo vai lá
apoiar e balançar a bandeirinha? Tudo fake. Como assim?
Na verdade, tinha mesmo toda aquela galera lá balançando
bandeiras, não eram efeitos especiais de Hollywood. Mas o
negócio é que, todos que estavam lá, eram obrigados a
estar.
Lembro de uma vez em que o próprio Fidel ia até a cidade
onde eu morava dar um discurso. Nas semanas antes do
evento, todos os dias éramos lembrados na faculdade de
que tínhamos a obrigação de ir. Até lista de chamada tinha,
e aquilo ali contava como atividade curricular obrigatória.
Nas empresas era a mesma coisa. Todos os funcionários
eram obrigados a ir, sob pena de represália e punição.
O esquema que se armava era um negócio gigantesco. Uma
porrada de ônibus e caminhões passava nas escolas,
faculdades, empresas e bairros para pegar a galera e levar
para a praça. Vinha gente até das cidades vizinhas. Uma
das queixas dos cubanos, na época, é que faltava
combustível para alimentar a rede elétrica e mesmo o
transporte público e privado, em consequência disso
passávamos por apagões de 12 a 14 horas. Mas
combustível para armar toda aquela lambança não faltava.
Era o governo socialista mais preocupado com a sua
propaganda do que com a população.
Uma coisa curiosa: todo mundo ganhava uma bandeirinha
de Cuba para ficar balançando na praça, mas lembro de
uma orientação que me deram, que eu não devia balançar a
bandeira de lado como é o normal de se fazer, e sim para
frente e para trás. Motivo? Segundo eles, balançar de lado
poderia dar a impressão de que eu estava fazendo sinal de
“negativo” para o discurso do homem da barba.  Balançar
de frente por outro lado, dava uma impressão de que eu
estava concordando. Tá bom de lavagem cerebral pra você
ou quer mais?
Amigo é amigo
 
Uma coisa muito bacana de Cuba é que eu fiz alguns dos
melhores amigos da minha vida por lá. Obviamente, com
toda a escassez que havia, você tinha que diferenciar quem
queria ser seu amigo de verdade, e quem só queria se
aproveitar da sua situação de estrangeiro para descolar
algum benefício.
Dentre os bons amigos que fiz, posso citar alguns: Evelio,
Michel, Salinas, Abraham, Coello.
Abraham, ou Abe, como costumávamos chamá-lo, era um
cara peculiar. Inteligentíssimo, introvertido, de poucas
palavras, mas quando abria a boca pra falar era algo
sempre extremamente válido. Coisa pra se anotar. 
Lembro de um episódio em que passamos juntos e que ficou
marcado em minha vida. Eu estava atrás de uns livros com
o conteúdo programático da faculdade. Só que esses livros
eram tipo cabeça de bacalhau. Ninguém nunca viu. Na
verdade, eu já tinha conseguido alguns, e precisava de mais
dois ainda. Pegamos nossas bikes e saímos bater nas casas
dos professores tentando encontrar os benditos livros que
faltavam. Em cada porta que batíamos, recebíamos a
informação de que poderíamos encontrar os livros com
fulano, ou no lugar tal. Virou quase que uma caça ao
tesouro, e percorremos a cidade inteira de bicicleta naquele
dia. Abe, que não tinha obrigação nenhuma de me ajudar
com aquilo, fez questão de me acompanhar.
Um dos últimos destinos que nos encaminharam foi para
uma livraria pública em um recanto da cidade, só que para
nosso azar (ou melhor, para meu azar), ela estava fechada.
Subimos na janela para bisbilhotar lá dentro, e para minha
surpresa, lá no fundo das prateleiras, estavam os livros. Só
tinha um pequeno porém: eu não sabia se lá no meio deles
realmente estavam aqueles que eu precisava, já que, pela
distância, apenas conseguia reconhecer a capa, mas era
impossível identificar quais volumes estavam lá.
Eu já estava desanimado e me programando para voltar
outro dia até lá, quando a livraria estivesse aberta. Mas Abe
não era um cara que desistia fácil, e teve uma ideia genial.
Fomos até sua casa, catamos um par de binóculos velhos
que ele tinha guardado, e voltamos até a livraria.
Lá da janela, como se fossemos dois malucos, ficamos
olhando de binóculos para dentro da livraria para tentar ler
e identificar se entre aqueles livros que estavam expostos,
lá no fundo, encontravam-se os que eu tanto almejava.
Infelizmente, não estavam lá.
Mandei um e-mail para meu velho dizendo que não tinha
conseguido os livros (era ele quem estava me cobrando
aquele material), e acabei levando uma baita de uma
bronca. Meio triste e desolado, me sobrou apenas ficar
conformado com toda aquela situação e agradecer ao Abe
por ter me acompanhado.
Com todo o cansaço, ele ainda foi capaz de proferir algumas
palavras e conselhos para me encher de ânimo, e fez
questão de dizer que havia curtido nossa aventura.
No final do dia nos despedimos, e ele foi de volta para sua
casa levando os binóculos. Até hoje considero o cara um dos
meus maiores Brothers. Afinal, amigo é amigo.
Cliente inconveniente
 
Se tem uma coisa que o socialismo sabe fazer como
ninguém, é acabar com a cultura de satisfação do cliente e
bom atendimento. Era incrível como, lá em Cuba, mesmo
nas lojas em que se comprava em dólar, e mesmo você
sendo estrangeiro, o tratamento era semelhante ao das
repartições públicas brasileiras daquelas onde o cara tá lá
batendo ponto há 30 anos sem ter tesão nenhum pelo
trabalho. Parecia que estavam fazendo um favor em te
atender.
Lembro de uma vez em que fomos a uma lanchonete, que
era péssima e só servia porcaria, mas que era o que tinha
de melhor por lá, chamada “el rápido”. Não preciso dizer
que o nome não fazia jus ao atendimento.
Meu amigo chegou no balcão e pediu alguma coisa que eu
não lembro, e em seguida pediu um chocolate que estava a
uns dois passos de onde estava a moça que atendia. Ela
entregou a comida para ele, e então chegou a minha vez na
fila. Eu falei que queria um chocolate também. O que se
passou aí foi algo surreal. Cheguei a pensar que estava
sendo filmado e tratava-se de alguma pegadinha. A moça
do balcão gritou comigo me dando a maior bronca:
– Se você viu que teu amigo pediu um chocolate, por que
não mandou eu pegar dois de uma vez? Vai me fazer ir até
lá pegar outro!!
Sério, esse “ir até lá”, era os dois passos que ela precisava
dar para alcançar o outro chocolate. Eu fechei a cara e
avisei que neste caso não iria querer nada.
A moça até se sentiu mal e acabou tentando remediar a
situação, mas fui irredutível e não comprei nada.
No final das contas, mantive o orgulho intacto, e também a
fome, já que fiquei sem comer. Como eu era burro!
O papelzinho
 
Certa vez, fomos a um restaurante chinês. Assim, lá em
Cuba tinham alguns estabelecimentos estatais que vendiam
coisas na moeda local, mas que na maior parte do tempo
estavam fechados por escassez de produtos. Quando, por
algum milagre do universo eles abriam, a galera ia em peso
lá e em poucos dias acabava tudo. Aí era mais alguns
meses fechado.
Bom, o restaurante chinês abriu. Não que tivesse grande
coisa, mas pelo menos dava pra comer algo diferente.
Fomos em seis amigos, e quem nos atendeu foi uma
tiazinha com uma baita cara de ódio. Você podia sentir o
quanto ela estava puta da vida por ter que trabalhar, já que,
possivelmente, nas últimas semanas (como não havia
comida no restaurante) ela pode ficar de boa.
Bom, ela chegou com uma caneta e um pedacinho de papel
e anotou nossos pedidos ali. Esse papelzinho cabia na
palma da mão dela. Todos nós pedimos suco de laranja, e
assim que tomei meu primeiro copo de suco, chamei a tia
para pedir mais um.
Quando ela começou a anotar meu pedido naquele papel,
outro amigo pediu um repeteco do suco, e já na sequência
um terceiro amigo também disse que queria mais um.
Nessa hora a tiazinha parou de escrever e deu uma baita
bronca na gente:
– Vocês ficam pedindo muita coisa e agora não cabe no
papel! Não vou trazer nada!
Cara, juro pra você. A tia simplesmente virou as costas e
deixou todo mundo sem suco.
Acabamos rindo da situação e fomos comer no restaurante
concorrente da esquina. Lógico que não, né? Lá não existia
outro restaurante, nem concorrência, nem papelzinho extra.
Saímos de lá com sede.
Deixa crescer!
 
A primeira vez que fui cortar o cabelo em Cuba foi um
desastre. Não há explicação para tamanha falta de senso
estético daquele barbeiro. Parecia que ele tinha sido
contratado como responsável pelo meu trote de vestibular.
Passado esse episódio fatídico, conheci um carinha que
mandava muito bem na tesoura. O salão dele era repleto de
caras do gueto, que falavam um espanhol praticamente
ininteligível e que gostavam de desenhar o símbolo da Nike
no cabelo. Lembro que só comecei a entender de verdade
as conversas daqueles malucos depois de mais de um ano
morando lá.
Certa vez eu estava na capital, e resolvi que iria cortar o
cabelo em um lugar mais foda. Tinha um hotel chique lá, e
eu decidi morrer em uma grana mais alta para que um dos
profissionais do local desse um trato na minha juba. Vale
lembrar que na época eu tinha mais cabelo e deixava ele
mais comprido.
Quando sentei na cadeira do cara, ele olhou meu cabelo,
olhou de novo, analisou, e me disse: por que você não deixa
crescer mais? Falei que não queria, que preferia cortar mais
curto. Pois o cara sem a mínima vontade de trabalhar, deu
duas tesouradas no meu cabelo, cortando um milímetro da
ponta dele, olhou pra mim e disse: pronto!
Foi o corte de cabelo mais rápido e mais caro da minha
vida. Precisei chegar em casa e aparar mais umas pontas
sozinho com uma tesoura dessas de cortar papel.
Reclamar? Não. Em Cuba o cliente nunca tem razão.
Os leões em cima da carne
 
Logo que cheguei em Cuba, o pessoal de lá me contou que
era proibido matar vacas no país. A justificativa? O leite era
muito mais importante do que a carne. Sendo assim,
raramente comíamos carne bovina, e quando comíamos,
era tão dura que certamente não tinham mesmo matado a
vaca, ela provavelmente havia morrido de velha. Uma vez
um cubano chegou a me dizer que se você atropelasse uma
vaca, pegaria mais anos de cadeia do que se atropelasse
uma pessoa. Cuba parecia a Índia. Lá as vacas eram
sagradas.
Mas, de vez em quando, descolávamos uma carninha, e em
raríssimas ocasiões fizemos algo que lembrava vagamente
um churrasco brasileiro.
Cara, lembro que a fome era tanta, que ficávamos como
leões em cima da carne, esperando assar, e assim que ela
era tirada da grelha e ia para a mesa, queimávamos a ponta
dos dedos, a boca e o esôfago, já que se você esperasse
esfriar, comia menos. Parecia que havíamos saído da
cadeia, ou que tínhamos ficado em uma ilha deserta sem
carne por muito tempo. Quer dizer, essa última parte,
tirando o “deserta”, era verdade.
Uma vez estávamos lá curtindo um desses churrasquinhos,
quando um estudante maconheiro (meio maluco que estava
começando o primeiro semestre) chegou bêbado onde
estávamos. O cara era tão pirado, que a impressão que eu
tinha era de que os pais tinham mandado ele embora do
Brasil para ter uma folga. Bom, voltando ao assunto, o
maluco apareceu lá no churrasco bêbado, viu que o negócio
já tinha começado, e não sei por que cargas d’água se
sentiu ofendido, pois não havíamos esperado ele. Velho, o
cara sabia o horário que o negócio ia começar, e foi o único
que atrasou. Além disso, ainda tinha comida o suficiente
para que ele pudesse aproveitar.
Mas ele não quis aproveitar, sabe o que ele fez? Virou a
mesa de carne no chão. Existem algumas coisas que você
não pode fazer na vida. Por exemplo: mexer com a
namorada do chefe do morro, enfiar o dedo na tomada,
pular do avião sem paraquedas, e, jogar no chão a comida
de um grupo de caras esfomeados. 
Nosso amigo mais gordinho tomou aquilo como uma ofensa
pessoal, e deu uma surra no cara, que saiu de lá
esbravejando e com o nariz sangrando. Nós, nessa situação,
fizemos o que era mais prudente, e o que qualquer pessoa
faria: juntamos a carne do chão, demos uma limpada na
bermuda, e comemos. Assim agem os leões.
Saudade do Brasil?
 
Uma coisa que notei nos meus anos morando em Cuba é
que o nepotismo é disseminado. Nas casas de estudante
que eu morei e conheci, os funcionários eram sempre
parentes de alguém importante do partido ou da
universidade. Na primeira casa, o administrador era marido
da reitora, a cozinheira era cunhada dela, o motorista era
irmão de uma das chefonas lá da faculdade, e assim
caminhava o esquema.
Certa vez, numa das inúmeras vezes em que faltou água no
meu quarto, eu saí cedinho, umas 6h da manhã, para
escovar os dentes na pia lá de fora. Quando eu estava
escovando os dentes, olhei pelo canto da parede da casa e
enxerguei o administrador enchendo de carne o porta-malas
do carro do motorista (aquele que era irmão da chefona da
faculdade). Mas enchendo mesmo! Lembra que eu comentei
sobre a escassez de alimentos na casa dos estudantes, e de
como nos serviam mínimas porções de comida? Ali eu
enxergava um dos motivos disso acontecer.
Mas é lógico que eles não estavam roubando, né? Afinal, ali
era todo mundo socialista. Provavelmente eles só iam levar
aquela carne toda para distribuir entre os mais pobres. Se
bem que me disseram que em Cuba não tem pobre. Então,
pode ser que eu tenha apenas delirado. Sabe como é, né?
Muito estudo faz a gente ver coisas.
Nossa vã filosofia
Uma das matérias que tínhamos nos primeiros anos de
faculdade, era filosofia. Na época, eu ainda era um ferrenho
defensor do sistema socialista e acreditava em tudo aquilo.
As aulas eram basicamente um ensaio para lavar o cérebro
da moçada e fazer com que eles defendessem e acatassem
todas as decisões do governo. Aprendíamos que a criança
na barriga da mãe ainda não era um ser humano pois não
havia iniciado seu processo de socialização (para justificar o
aborto livre e indiscriminado em Cuba). Aprendíamos que
era, sim, possível chegar a um socialismo utópico, onde
tudo era de todos, e todos éramos iguais. Aprendíamos que
Cuba era o melhor lugar do mundo para se viver, e que o
império ianque era uma droga.
Sinceramente, apesar de ainda ser socialista nessa época,
achava aquelas aulas um tanto quanto maçantes, e não
concordava com tudo o que a professora dizia. Só que
aprendi muito rápido uma coisa: se você não concordasse,
era melhor fingir do que argumentar. Vi amigos cubanos
levarem notas baixas por discordarem de alguns absurdos
que eram falados em sala. E, veja, quando eles
discordavam, o faziam com argumentos muito inteligentes e
bem fundamentados. Não interessava. Ou você dizia amém
cegamente para tudo o que te enfiavam goela abaixo, ou ia
mal na matéria.
Eu era um aluno estrelinha. Tinha notas altas na faculdade,
e não queria de forma alguma manchar minha média com
uma nota baixa naquela matéria que eu nem considerava
assim tão fundamental. O que eu fiz? Criei um algoritmo
pessoal que me fazia ir bem em todas as aulas e avaliações
de filosofia, independentemente do tema, mesmo sem
estudar. O algoritmo consistia em começar elogiando e
corroborando tudo o que a professora falou, em seguida
meter o pau no Brasil (que na época tinha um presidente
tucano) e nos EUA. E finalizar exaltando o governo e o país
de Cuba, como se fosse a terra dos sonhos de qualquer
pessoa. Era infalível. Funcionava para qualquer tema, e
assim eu não precisava estudar filosofia, e usava o tempo
para matérias que considerava mais interessantes como
fisiologia e anatomia.
Ainda bem que essas aulas aconteceram nos primeiros dois
anos de faculdade, enquanto eu ainda não tinha me
decepcionado com o socialismo. Se tivesse sido depois,
possivelmente eu teria reprovado.
Corra Lola, corra!!  
 
Uma noite, estava voltando pra casa de bicicleta, junto com
meu amigo e colega de quarto Japa, e íamos batendo papo
pelo caminho. A rua que nos levava até a casa era, na
verdade, uma rodovia bastante escura.
Logo depois que passamos por uma ponte, em uma curva
fechada, dois caras mal-encarados saíram de trás de uns
arbustos e correram em nossa direção. Em Cuba, era
extremamente comum os roubos de bicicleta, e nós que
trabalhávamos no hospital e víamos com muita frequência
pessoas com ferimentos graves de facão, já sabíamos até
as armas que os bandidos costumavam usar.
No calor do momento e pensando em salvar a minha vida,
pulei da bicicleta ao mesmo tempo que a joguei em direção
ao ladrão. Gritei pro Japa:
– Larga a bicicleta e corre!!
Quando eu comecei a correr em fuga desesperada, vi que o
cara correu atrás de mim. Eu podia ser péssimo para
esportes com bola, mas eu corria rápido como um demônio
na época de faculdade.
Meti sebo nas canelas e corri como se não houvesse
amanhã. O Japa era um cara baixinho de pernas curtas e
acabou ficando pra trás. Tive a certeza de que o segundo
bandido já o havia matado.  Apesar da profunda tristeza que
senti, decidi que eu devia continuar correndo para salvar
minha vida, já que não havia mais nada a ser feito pelo
pobre falecido Japonês. Acontece que o desgraçado do
bandido não desistia, e por mais que eu corresse ele
continuava atrás de mim.
Já fiquei imaginando como seria ruim ser esquartejado, ou
estuprado, sei lá. Alguns passos à frente, vejo o quartel da
polícia. Não tive dúvidas, comecei a gritar por socorro em
espanhol:
– Auxiliooooooooo policiaaaaaaa!!! – Gritava e corria,
gritava e corria, até perceber que a gritaria estava
prejudicando meu fôlego, então decidi apenas correr.
Mais um tempinho de corrida e um carro de polícia vem na
direção contrária com a sirene ligada. Pensei: é a minha
salvação.
Para minha surpresa, o carro parou na minha frente, e dele
saiu um policial brutamontes, que também começou a
correr atrás de mim. Só nesse momento pensei que algo
estava estranho e decidi parar. Quando parei, tanto o
bandido quanto o policial me agarraram e me dominaram.
Resulta que o tal bandido não era tão bandido assim. Era
um policial à paisana. Quando olho para trás, vi que o Japa
ainda estava vivo. Tomei uma bronca federal do policial, que
me xingou por eu ter corrido. Eu ainda tentei argumentar
dizendo que eu corri pois ele não havia se identificado. Ele,
de forma muito gentil, só pediu para que eu calasse a boca
e não tentasse ensinar como deveria fazer seu trabalho.
Desfeito o mal-entendido, fomos liberados. Minhas pernas
quase não obedeciam. Foi um dos maiores sustos que tomei
na vida.
Acredito que hoje, mais de dez anos após o ocorrido, o cara
ainda é zoado no quartel da polícia por ter tomado um baita
de um couro na corrida para o Usain Bolt brasileiro.
Medicina por amor
 
Um dos maiores mitos do mundo é o tal do: “medicina por
amor”. Ninguém exerce a medicina ou qualquer outra
profissão “por” amor. No máximo o fazemos “com” amor, já
que, como todos nós sabemos, amor não paga as contas.
Cuba é muito famosa por exportar médicos em missões
solidárias para diversos países. Só que o que a maioria não
sabe, é que os médicos que topam ir nessas missões não o
fazem por amor à profissão, mas sim porque vão receber no
mínimo dez vezes mais do que receberiam caso ficassem
trabalhando na ilha. Fora isso, havia um programa de
incentivo do governo para os médicos que iam a outros
países trabalharem nessas missões, não só do ponto de
vista financeiro.
Por exemplo, o médico que fosse a uma missão
internacional, ao retornar teria prioridade para escolher a
área em que iria fazer especialização. Além disso, durante
essas missões, muitos recebiam presentes dos cidadãos
locais, e na hora de voltar pra casa era feita uma certa
“vista grossa” no aeroporto para que pudessem entrar com
seus gadgets e presentes. Quem aqui não lembra da
seleção brasileira de futebol em 1994, em seu retorno dos
Estados Unidos? Os jogadores vieram carregados de
muamba, e a aduana liberou numa boa pelo simples fato de
serem celebridades. Acontece um pouco parecido nesses
casos dos médicos de Cuba.
Muitos acabam usando essas missões como uma ponte para
pular fora de Cuba para sempre. É só ver que vários dos
cubanos que vieram pelo programa “Mais Médicos”, fugiram
do Brasil para os EUA. Outros casaram com brasileiras para
tentar ficar por aqui. Outros pediram asilo político.
Lembro de uma reportagem na TV, de uma médica cubana
metendo o pau nos médicos do Brasil, dizendo que aqui só
queriam saber de dinheiro e não queriam trabalhar por
amor. Pois bem, vamos a algumas continhas básicas para
calcular esse “amor”. Os cubanos especialistas na época
que eu morava lá, ganhavam vinte e cinco dólares de
salário mensal. Aqui no Brasil, o programa “mais médicos”
pagava dez mil reais de salário, porém, dessa grana, apenas
dois mil reais iam para o médico, enquanto oito mil reais
iam para Cuba (dizem as más línguas que parte desses oito
contos aí, voltava para os nossos queridos políticos, mas
são apenas teorias da conspiração e não irei entrar nesse
mérito). Então, ao invés de ganhar vinte e cinco dólares por
mês, nossa amiga muito amorosa passava a ganhar dois mil
realitos. Convertendo isso para valores atuais de cotação do
dólar, a nossa amiga que só trabalha por amor e que
indiretamente chamou os médicos brasileiros de
mercenários, estava ganhando 20 vezes mais no Brasil.
É muito amor, né? Some-se a isso àqueles benefícios que
comentei anteriormente, os presentes, e mesmo a
possibilidade de comprar produtos mais baratos no Brasil
para levar de volta a Cuba, e conseguimos explicar esse
amor tão grande. All we need is love.
A advertência
 
Certa vez, em uma aula de microbiologia, estávamos lá
entretidos com bactérias e afins, quando no meio da classe
um dos alunos se levantou, pediu licença ao professor e foi
até a frente. Todo mundo ficou olhando sem entender muito
bem o que acontecia. Lá da frente da sala, esse colega de
turma anuncia que iria fazer um comunicado importante.
Em seguida, chama pelo nome a um dos meus amigos
cubanos, e pede:
– Fulano, venha até aqui.
Todos os olhares se dirigiram até o pobre coitado, que
atravessou a sala de cabeça baixa. Quando chegou lá, o
outro aluno, que era nosso amigo de turma, falou em tom
agressivo que nosso colega estava sendo advertido na
frente de todos os alunos, por ter cometido uma infração
muito grave. Sabem o que foi que o cara fez? Ele não
compareceu em um daqueles comícios fakes obrigatórios
que eu havia mencionado anteriormente aqui no livro.
Aquilo foi um show de humilhação pública. Escracharam o
moleque lá na frente, e ainda exigiam que ele se
desculpasse com a turma por não ter ido (como mero
expectador diga-se de passagem) a um ato político. O cara
pediu desculpas morrendo de vergonha. Não bastando,
pediram para que ele se justificasse diante da turma, e
contasse a todos o motivo de não ter ido. Cara, o negócio
aconteceu em um final de semana, e o moleque preferiu
ficar com a namorada em casa sem fazer nada do que ir até
lá escutar meia dúzia de baboseiras. Justo, não? Pois lá isso
não era permitido. O cara com os olhos marejados (de pura
raiva), disse que não tinha justificativa e que simplesmente
não havia conseguido comparecer. Terminaram aquela
sessão de tortura psicológica com um ultimato:
– Caso você falte em mais algum evento, estará
automaticamente expulso da faculdade.
O governo de Cuba era realmente um queridão, né?
Hans, o marido da mulher do Pepe  
 
Título confuso, não? Deixa eu tentar explicar. Com aquela
crise eterna lá no país, jovens que sonhavam com bens de
consumo, e que não tinham muita esperança de conquistar
os seus sonhos, acabavam terceirizando as namoradas. Era
praticamente uma forma mais refinada de ser cafetão.
Funcionava assim: Pepe, um jovem cubano descolado, que
adorava roupas da moda e novas tecnologias, namorava
Maria, uma menina com um rosto lindo de traços delicados
e um corpo escultural. Maria era o sonho de qualquer cara
da cidade. Para conseguir manter suas roupinhas da moda,
Pepe fazia um trato com Maria, que era deveras peculiar.
Ele a apresentava a algum turista estrangeiro, na maioria
das vezes um senhor de meia idade de etnia alemã. O
senhorzinho obviamente se encantava por Maria, e os dois
se casavam. Maria ia morar na Alemanha, mas continuava
sendo oficialmente a namorada de Pepe, afinal, os dois se
amavam. Durante sua estadia na Alemanha, Maria usava a
grana que o tiozinho lhe fornecia, para comprar roupas
novas, tênis e presentes para Pepe. Normalmente, nas
férias ela vinha para Cuba uma semana antes do marido, e
naqueles dias ela e Pepe viviam uma verdadeira lua de mel.
Pepe, feliz com suas roupas da moda, e com seu novo
aparelho CD player, desfilava pelas ruas da cidade de mãos
dadas com Maria.
Com todo esse esquema, vinha aquela frase estranha:
– Ei, Juan, vamos chamar o Pepe e a Maria para tomar uma
cerveja hoje?
– Puts, Pedro, a Maria não vem. Falei com o Pepe e ele vem
sozinho, porque o marido da mulher dele está chegando
hoje da Alemanha. 
O importante é andar na moda, não é?
Dá-me uma televisão, e eu te levarei para
onde queiras
 
Lembram do cara libanês que dava nó até em pingo d’água?
Pois dessa vez o cara descolou um esquema forte.
Com toda sua lábia e habilidade, conseguiu ficar amigo da
Carmen Maria. Sim, aquela mesma dos presentinhos no
aeroporto. Mas, agora, o buraco era mais embaixo. O cara
queria porque queria ser transferido para a capital do país.
Normalmente, tinha que rolar uma influência muito grande
para conseguir tal façanha, pois as vagas eram
extremamente limitadas e frequentemente reservadas aos
caras com influência política forte.
Pois bem, numa bela tarde de sol do Caribe, o rapaz
aparece com um pequeno agrado na casa da dona Carmen
Maria. Nada mais, nada menos do que uma TV a cores
novinha, com controle remoto e tudo. Rapaz, a partir daí o
céu era o limite. Não só ele foi transferido para Havana,
como começou a exercer sua influência por lá para levar
mais gente. Só que ele não levava de graça. Quem quisesse
ir tinha que pagar um “pedágio”. Não era barato, e ainda
era em dólar.
Tá aí uma mentalidade empreendedora e com visão de
futuro. O cara investiu em uma TV, e virou um agente de
transferências para a capital. Tem meu respeito.
A lei foi feita pra se cumprir 
 
Uma coisa que me impressionou uma vez foi o quão ágil os
caras eram para seguir as ordens do comandante em chefe
Fidel Castro.
Certa vez, cansado de tanto carinha vagabundo sem
estudar nem trabalhar, que ficava perambulando pelas
praças pedindo grana ou tentando fazer negócios com os
turistas (negócios = prostituição, venda de charutos
roubados, etc.), Fidel apareceu em rede nacional e avisou,
que todos aqueles que estivessem pela cidade no outro dia
sem fazer nada, ou aqueles que estivessem sem
documentos, seriam presos. Cara, no outro dia passei pelo
centro de bicicleta e não tinha nenhum dos malucos que
costumavam ficar por lá. Foi um negócio quase que
automático. Paguei pau.
Alguns meses depois, encontrei um dos meninos com quem
eu costumava conversar lá na praça. Comentei que ele
nunca mais tinha aparecido, e ele me contou que foi preso
por estar em um parque sem fazer nada, na manhã
seguinte ao pronunciamento de Fidel. Havia passado
aqueles meses preso no campo cortando cana.
Percebi que a palavra “cana” se aplicava de forma literal
para os presos de Cuba.
Viva la revolución.
Ronc Ronc
 
Sabe quando você tem aquela coceira lá na garganta, que
dá vontade de fazer aquele barulho parecido com o que a
Peppa Pig faz no desenho, pra parar de coçar? Então, coçar
a garganta com ruídos suínos estranhos na frente dos
outros não é problema para os cubanos. Eles fazem isso de
forma rotineira e natural. Pode ser dentro da sala de aula,
no ônibus, no cinema, qualquer hora é hora.
Uma vez uma amiga minha começou a fazer esses ruídos
nada agradáveis do meu lado. Eu lancei um olhar torto pra
ela e reclamei. Ela estranhou e me deu de ombros. Fui
obrigado a falar que não entendia aquela mania de ficar
fazendo ruídos estranhos com a garganta em público. A
resposta da menina foi simples e direta:
– A garganta tá coçando, aí eu coço, ué?
Não tive argumentos para rebatê-la. Só torci para que o
mesmo conceito não se aplicasse para coceira em outros
lugares menos apropriados.
Verdades inconvenientes
 
Lembra lá no começo do livro quando eu comentei sobre a
reportagem na TV que contava das maravilhas da medicina
cubana, e de como eles haviam achado a cura para várias
doenças? Além disso, as taxas de mortalidade infantil são
baixíssimas. Pois bem, muita propaganda.
A realidade era bem mais nua e crua. Nos hospitais, faltava
de tudo. Reaproveitávamos luvas que deveriam ser
descartáveis, utilizávamos seringas e agulhas também
reaproveitáveis que eram esterilizadas inúmeras vezes, nos
virávamos com o que tínhamos na mão. Com muita
frequência, nas visitas e discussões de caso à beira de leito,
ouvíamos coisas como:
– O tratamento dessa doença é feito com tal medicamento,
mas nós não temos, então damos esse outro que não tem
tanta eficácia.
Sobre o milagre das “curas” das doenças diversas com os
medicamentos exclusivos de Cuba, novamente uma falácia.
Tratavam-se de doenças autoimunes que, com muita
frequência, têm remissões espontâneas.
Tudo o que se falava era baseado em “experiência”.
Infelizmente, quando falamos de uma intervenção
terapêutica, experiência é o pior nível de evidência possível.
Qualquer um que saiba um pouquinho sobre medicina
baseada em evidências, descobre que não há nenhum
trabalho de qualidade que confirme a tal cura que eles tanto
propagam. Ao procurar nos periódicos científicos
internacionais, nada se encontra. E os poucos estudos
disponíveis, que foram feitos e publicados em Cuba mesmo,
têm um desenho e metodologia completamente falhos
(estudos sem grupo controle, sem randomização, não
cegos). Conversa pra boi dormir.
Sobre a mortalidade infantil, não querendo tirar o mérito
dos caras, mas o que eu via lá, pessoalmente, eram muitas
indicações de abortamento. Qualquer intercorrência na
gestação, lá vinham eles recomendando que se
interrompesse. Parece óbvio, né, que se você só levar até o
fim as gestações selecionadas e sem nenhum risco ou
intercorrência, a sua estatística de mortalidade infantil
ficará excelente, já que os fetos abortados não entram nela.
Em pouco tempo de estágio na obstetrícia, presenciei
dezenas de abortamentos provocados, muitos deles em
meninas menores de 14 anos. E aos “mimizentos” de
plantão, não emiti qualquer opinião aqui contra ou a favor
do aborto, estou apenas relatando o que vivenciei.
Nos plantões de ortopedia, lembro que tínhamos exames de
raio-X “pré-fixados”. Que diabos isso significava? Tínhamos
direito a fazer um número limitado de radiografias no
plantão, por isso tínhamos que decidir muito bem em quem
iríamos utilizar. A vantagem disso é que os médicos
examinavam de forma mais detalhada antes de pedir um
exame. A desvantagem é que todos sabemos que mesmo
um exame físico bem feito, quando não aliado a um exame
de imagem, pode deixar passar batido várias fraturas. Mas
não se preocupem, não se tratava de crise. Era apenas o
governo protegendo a população da radiação.
Voldemort
Quem já leu algum livro do pequeno bruxo chamado Harry
Potter, ou já assistiu a pelo menos algum de seus filmes, já
pode ver que as pessoas tinham medo de pronunciar o
nome do vilão da história. Muitos personagens, durante a
trama, se referiam ao bruxo do mal como “aquele que não
deve ser nomeado”.
Pois bem, Cuba tinha um verdadeiro Voldemort, só que ao
invés de careca e de cara chata, ele tinha barba e fumava
charuto.
Os cubanos aparentemente já nasciam com o medo
impregnado na alma. Cada vez que iriam mencionar o nome
de Fidel, em um reflexo inconsciente, olhavam para ambos
os lados. Boa parte das vezes não tinham coragem de
proferir o nome Fidel em voz alta, e apenas faziam um gesto
com a mão sobre o queixo imitando uma longa barba.
Pra piorar esse medo todo, as casas tinham paredes finas,
que eram fáceis de se bisbilhotar e ouvir do outro lado.
Além disso, como já contei aqui outras vezes, havia X9
espalhados por todos os lugares.
Lá em 2003, lembro do dia em que o governo prendeu 75
pessoas que eram dissidentes do regime. Qual crime eles
cometeram? Reuniam-se em suas casas para criticar o
governo, e estavam coletando assinaturas para pedir mais
democracia na ilha. Esses caras foram condenados a até 28
anos de prisão. Nessa época, até José Saramago, comunista
de carteirinha, repudiou a atitude do governo cubano.
Agora, sabem como esses grupos foram descobertos? Sim,
os X9. Em cada grupo desses, havia um infiltrado do
governo acompanhando cada movimentação.
Não era à toa que as pessoas tinham medo de falar o nome
do homem em voz alta.
Melhor matar do que discordar
 
Me contava um dia um grande amigo cubano, sobre a vez
em que seu sobrinho havia sido preso. Era um moleque de
menos de vinte anos de idade, que frustrado com todos os
perrengues que passava lá na ilha, resolveu protestar.
O que ele fez? Colou uma cartolina com os dizeres: “Abajo
Fidel” em um poste. Se você não manja de espanhol e não
sabe o que isso significa (toma vergonha na sua cara e vai
estudar), é “Abaixo Fidel”. Tendo em vista que Cuba é o
maior produtor de X9 da face da Terra, alguém dedurou o
menino e ele foi pra cadeia. Passou um inferno lá dentro,
contraiu varicela, quase morreu. Tudo por causa da porra de
um cartaz inofensivo.
Esse meu amigo, que era tio do menino, disse que nessas
situações o advogado sempre fala ao juiz que o réu estava
fora de si, ou bêbado, ou em um momento de insanidade,
qualquer coisa do tipo. Caso o advogado de defesa resolva
argumentar que o réu estava apenas exercendo sua
liberdade de expressão, e que não deveria ser punido por
isso, ele acaba indo preso junto, só que pega um tempo
maior de cadeia.
Foi assim que eu aprendi que Cuba Libre só existia no nome
da bebida.
 Salvando vidas
 
Minha flora intestinal em Cuba tornou-se mutante com
superpoderes. Lá, nós comíamos em cada buraco sem
higiene que só vendo para crer.
Tinha uma pizzaria que funcionava da seguinte maneira:
ficávamos em uma fila na calçada esperando nossa vez de
entrar no estabelecimento. Quando chegava a hora,
sentávamos umas 12 pessoas em um balcão de madeira
velho, e a atendente passava perguntando:
– Pizza? Pizza? Pizza? – A cada uma das doze pessoas
sentadas.
As opções de pizza eram apenas duas: sim ou não. Afinal,
em Cuba pizza era pizza, sabor único, não existia essa
confusão de ingredientes que você vê em outros países.
A iguaria era composta por massa, molho de tomate, e um
negócio estranho que, segundo eles, era queijo. Aliás, os
cubanos contam que durante o período especial (falarei
sobre ele mais pra frente), como faltava queijo, os
vendedores de pizza costumavam colocar pedaços de
camisinha nas pizzas para que desse aquele efeito
“esticadinho” após ter sido levada ao forno. Quando todos
confirmavam que queriam pizza, a moça gritava para a
cozinha:
– Doze pizzas!!!
Já na sequência, ela passava com uma jarra de plástico toda
manchada, com um líquido de aspecto estranho,
perguntando novamente a cada um dos indivíduos:
– Suco? Suco? Suco? – E ia despejando nos nossos copos de
plástico (iguais àqueles que servem merenda em escola
pública).
Poucos minutos depois, o cara da cozinha colocava sobre o
balcão doze pizzas dispostas em uns pratos de metal
oxidado, uma sobre a outra.
Entenda o detalhe, o fundo do prato da pizza de cima ficava
encostado na pizza debaixo, e esses mesmos pratos
estavam, até poucos segundos atrás, com o fundo
encostado naquele balcão de madeira sujo. Aí a moça
pegava aquela pilha de pratos e ia jogando um a um na
frente de cada cliente, sempre com o cuidado de pegar com
a mão e com as unhas compridas em cada uma das pizzas.
Para comer, você dobrava a pizza no meio (sem ter lavado
as mãos já que não havia pia nem banheiro para os clientes
no local), e comia com a mão como se fosse um pastel.
Quando você estava com as duas mãos engorduradas
segurando a pizza, a moça passava cobrando. Então você
pegava a carteira com a mão cheia de gordura, pegava no
dinheiro, entregava, pegava o troco, e metia a mão ainda
mais suja na pizza e seguia comendo. Era como se
estivéssemos na Itália, né?
Outra coisa meio anti-higiênica que ingeríamos lá eram
umas vitaminas na frente do hospital. Ali, o esquema de
lavagem dos copos plásticos era do tipo “mergulhão”. Você
tomava a vitamina, entregava o copo ao carinha que
vendia, e ele mergulhava esse copo em uma bacia de água
extremamente suja que ficava lá apodrecendo o dia todo.
Após um ou dois mergulhos, o copo estava novinho em
folha para servir o próximo cliente.
A água que bebíamos era de torneira mesmo. Aliás, esqueci
de contar aqui, mas uma das coisas que me deram
desespero nos primeiros dias na ilha foi o sabor da água.
Esqueçam aquele negócio de que água é insípida, lá a água
tinha um sabor terrível, salobra, descia meio quadrada pela
garganta, e parecia que nunca matava a sede. Mas, depois
de um tempo, a gente acostumava.
Bom, costumávamos tomar bastante água na torneira do
banheiro do quarto, já que o calor era infernal. Uma vez,
ficamos sem água, e aparentemente o problema era no
reservatório que ficava na laje em cima do nosso quarto. Os
caras responsáveis pela manutenção da casa subiram na
laje para ver o que estava acontecendo. Na hora que eles
abriram a tampa do reservatório, uma dezena de sapos
pulou lá de dentro. O carinha então entrou no reservatório
(sim, ele mergulhou lá dentro) e voltou com um sapo morto
na mão, que segundo ele tinha entrado no cano que levava
água até nosso quarto, e por isso havíamos ficado sem.
Problema resolvido, já podíamos voltar a tomar água
normalmente, e agora já sabíamos que estávamos de certa
forma engolindo sapos, quase que literalmente.
Todas essas coisas fizeram meu trato gastrointestinal criar
uma resistência absurda. Eu podia comer pedras que ficava
de boa. Certa vez, já morando no Brasil, comi um salgado
na barraquinha da frente do hospital. Logo que comi vi que
não tinha me caído bem. Em menos de meia hora, eu
estava no banheiro com fortes dores abdominais, diarreia e
vômito (tudo ao mesmo tempo). Depois que melhorei, fiquei
pensando que se fosse qualquer outro ser humano sem a
minha flora intestinal mutante, teria morrido ao ter comido
aquele salgado. Fiquei feliz, pois certamente eu havia salvo
uma vida.
Criatividade
 
Se tinha uma coisa que dava para elogiar nos cubanos, era
a criatividade. A escassez fazia os caras se virarem nos
trinta.
Quebrou uma peça do Lada velho? Os caras faziam uma
peça nova. Queriam fugir do país pelo mar até a Flórida?
Carcaças de carros, pedaços de madeira e latão faziam
excelentes balsas.
Já vi cubano montar um aquário e fazer o sistema de
oxigenação da água com equipo de soro usado retirado do
lixo hospitalar.
Já vi brinquedos feitos com pedaços de radiografia e
seringas.
Dizem que na época do período especial, não havia mais
rum para beber (era a bebida preferida dos cubanos). Aí
começaram a desviar álcool dos hospitais, misturar com mel
e outras cositas más, e tomar. Esse esquema de desvio de
álcool ficou tão crítico que começaram a colocar iodo no
álcool hospitalar para evitar que usassem como bebida. Não
adiantou, algum maluco descobriu que se colocasse uma
ampola de vitamina C naquela solução, o iodo precipitava.
Aí era só mandar pra dentro. Essa bebida era tão forte, que
era conhecida por dois nomes: osso de tigre, ou warfarina.
Olha só que curioso, warfarina é um medicamento
anticoagulante. Não consegui descobrir o motivo de terem
apelidado a bebida com o nome do remédio, mas sei que o
nome era tão consagrado que até os alcoólatras eram
chamados de “warfarineros” pelos cubanos.
Já comentei também das academias clandestinas, com
aparelhos construídos pelos próprios caras.
Toda essa criatividade (e empreendedorismo forçado) me
faz entender o motivo dos cubanos se darem tão bem nos
Estados Unidos. Veja bem, um cara que resolve desafiar o
governo, a polícia, se mete no mar em condições precárias,
navega sobre tubarões, e arrisca a vida para seguir um
sonho, mostra que tem garra, disposição, coragem e
atitude. Uma pessoa assim tem tudo para deslanchar em
um país que te dá liberdade e oportunidade.
Hello darkness my old friend
 
Uma das coisas que davam no saco lá em Cuba, eram os
apagões. Você estava lá numa boa estudando, com o
ventilador ligado, e de repente “buummm”, a luz ia embora.
Às vezes em pleno verão, com um calor dos infernos,
ficávamos até 14 horas sem luz.
Uma das primeiras experiências que tive com isso, foi no dia
anterior a uma das primeiras provas de anatomia. Tivemos
que nos juntar em volta de alguns lampiões e ficamos
estudando até madrugada naquela luz fraquinha. Dizem que
na época do período especial era piora ainda. Mas que
droga é essa de período especial que toda hora eu falo?
Bom, houve uma época em que devido ao posicionamento
militar estratégico de Cuba, bem do ladinho dos EUA, a
antiga União Soviética “adotou” Cuba. Os cubanos
costumavam dizer que Cuba virou o filho bobo da Rússia.
Nessa época, havia uma fartura absurda na ilha. As relações
comerciais eram extremamente favoráveis, a ponto da
União Soviética trocar petróleo por açúcar molhado. Diziam
meus amigos, que a geladeira estava sempre cheia, a ilha
era repleta de carros Lada novinhos, tudo era festa. Nesse
período, quando algum cidadão decidia desertar para os
EUA, os cubanos iam até a casa da família e tacavam ovos
nas paredes. Mal sabiam que algum tempo depois, aqueles
ovos fariam falta, pois a escassez se instalaria de forma
rápida.
Da noite para o dia, acabou o milho, acabou a pipoca. Foi
decretado o “período especial”. Ao invés de jogarem ovos
nas casas, agora os cubanos tinham que enfrentar filas, que
começavam na madrugada, para poder comprar um pão
com pepino e tentar matar a fome. Não havia mais luz, não
havia mais combustível, o apocalipse zumbi estava
instalado.
No fundo, essa é a história natural de qualquer economia
que se baseie nesse assistencialismo e não no crescimento
e aumento da produtividade. Havia um saudosismo enorme
da época da mãe Rússia alimentando todo mundo. Me
lembra um pouco uma época de ouro no Brasil, onde o
preço das commodities estava nas alturas, a economia
estava estável, e o crédito rolava solto. Era muito bom,
porém, insustentável.  
Paraíso proibido
Cuba era um paraíso natural. As praias do Caribe eram
simplesmente sensacionais, e os resorts lá instalados eram
de cair o queixo. Mas todo esse luxo e beleza era proibido
aos moradores da ilha. Quando você viajava até os Cayos,
onde se encontravam os melhores resorts das províncias
centrais, havia um ponto da estrada que funcionava quase
como uma área de fronteira. Ali, você só podia seguir
viagem caso comprovasse a nacionalidade estrangeira, ou
se estivesse especificamente a trabalho devidamente
registrado. Se fosse cubano, e quisesse passar uns dias lá
no hotel, você era barrado. Aquilo era um turismo
extremamente elitizado. Aquela história de que no
socialismo tudo é de todos, e de que somos iguais, não valia
naquele lugar.
Lá nos resorts você só encontrava cubanos trabalhando. O
mais curioso é que, possivelmente, tínhamos ali os
funcionários de hotel mais intelectuais do mundo. O carinha
que cuidava dos passeios de catamarã era bioquímico. A
moça que servia as bebidas no bar da piscina tinha largado
a faculdade de medicina no quarto ano para ser bartender.
Perguntei a ela o que sua família achava daquilo. Me disse
que, no começo, foram contra e ficaram escandalizados,
mas que hoje ela ganhava, em um dia, só de gorjetas, mais
do que o salário mensal de um médico especialista, então a
família agradecia pela decisão que havia tomado.
Havia uma única forma de um cubano conseguir viajar a
passeio para esses hotéis, que era um esquema de lua de
mel. Mas adivinha quem conseguia isso? Sim, a galera que,
ou trabalhava no partido, ou tinha um parente influente lá
dentro.
Viva o socialismo!
Prisão ao ar livre
 
Cuba era a maior prisão ao ar livre que eu já havia
conhecido. O cidadão cubano não tinha direito de viajar
para o exterior quando bem entendesse. Havia um monte
de entraves e proibições, que tornava uma viagem
internacional algo muito difícil de ser consumado. Não é à
toa que os caras se lançavam no mar em busca de
liberdade.
Um grande amigo meu, médico cubano, casou com uma
médica panamenha. Eles casaram enquanto ainda eram
estudantes de medicina, depois de alguns anos namorando.
Algum tempo depois do casamento, tiveram uma filha.
O tempo passou, e a esposa desse amigo terminou a
faculdade. Decidiu voltar para seu país natal, juntamente
com seu marido. Tranquilo, né? De forma alguma. O governo
não permitiu que esse amigo saísse do país. Obrigaram a
que renunciasse o título de médico, e o mantiveram durante
dois anos em Cuba, sem poder trabalhar, sem fazer
absolutamente nada, apenas esperando seu castigo
terminar para ir embora. Vejam a sinuca de bico: a esposa
não podia ficar em Cuba pois seu período de estudos havia
acabado, e o marido não podia sair do país. Acompanhei a
angústia dele, ex-médico, sem poder ver a filha e a esposa,
vivendo em um lugar onde a comunicação era
extremamente difícil (nada de internet, WhatsApp, Skype).
Essas coisas sempre me fizeram pensar que o homem pode
ter tudo, mas se lhe tirarem a liberdade, nada mais faz
sentido.
Complexo de inferioridade
 
(Atenção. Antes de começar a ler este capítulo, saiba que eu
fiquei em um tremendo dilema aqui. Cheguei a apagar o
capítulo e a escrever novamente umas duas vezes. Fiquei
com muito medo de parecer arrogante, ou metido. Não é
essa a intenção. Apenas tento aqui quebrar um mito
bastante difundido de que todos que estudam fora do Brasil
são profissionais ruins. Já estava pronto para excluir mais
uma vez essa parte do livro, mas pensei comigo: tô na
chuva, então vou me molhar. Segue o jogo!)
Uma coisa que sempre me perseguiu, foi um sentimento de
inferioridade por ter ido estudar medicina em Cuba. Há um
consenso entre os brasileiros de que, o cara que vai estudar
fora do país, é burro e incompetente. Durante a faculdade
sempre estudei igual um filho da puta, justamente por
carregar comigo a necessidade de quebrar esse paradigma.
Lá, as notas seguem mais ou menos o padrão dos EUA, mas
ao invés de letras (A, B, C, F) eles usam números. A
comparação com as notas no Brasil não segue um padrão
estritamente linear, mas digamos que era mais ou menos
assim: nota 5 era máxima, equivalia a uma nota 9 ou 10 no
Brasil. Nota 4 era algo entre 8 e 9, nota 3 (6 a 7, passou
raspando), e nota 2 (abaixo de 6, reprovado). Na época
tínhamos muitas dificuldades.
Não havia internet, a faculdade não possuía uma máquina
de xerox, e quando precisávamos de resumos de livros,
capítulos etc., tínhamos que ir até a biblioteca e copiar tudo
à mão. Quando faltava luz, estudávamos ou em alguma
lanchonete no centro, ou usávamos lampião. Até na praça já
fui estudar à noite por falta de energia elétrica em casa.
Algumas coisas contribuíam para que fôssemos estimulados
a estudar. Provas todas as semanas eram uma delas. O fato
de que um estrangeiro era automaticamente desligado do
curso caso reprovasse era outra. Tive um colega que
reprovou em inglês, e foi simplesmente chutado da
faculdade de volta a seu país de origem.
Lá tinha um negócio chamado exame de prêmio. Se você
tivesse tirado nota máxima em uma matéria, e no mínimo
nota quatro em todas as demais, podia candidatar-se a tal
exame. Esse exame consistia em preparar uma
apresentação sobre algum tema da matéria. Normalmente
eram selecionados dois ou três temas, que você deveria
estudar, e no dia do exame era sorteado qual deles iria
apresentar. Caso você qualificasse nesse exame, ganhava
uns pontinhos extras na média global. O primeiro lugar
ganhava 0,3 pontos, segundo lugar 0,2 e o terceiro 0,1. No
terceiro ano de faculdade, tirei nota máxima em todas as
matérias, e me candidatei a exame de prêmio em
farmacologia. Fiquei em primeiro lugar, e minha média
global daquele ano foi de 5,3. Acima da nota máxima. Foi a
melhor média da faculdade entre os estrangeiros do meu
ano.
Outra coisa bacana era que os alunos com média global
acima de 4,78 eram considerados alunos de excepcional
rendimento discente. Vulgarmente conhecido como “aluno
talento” (nomezinho pretensioso, né?). Os estudantes que
faziam parte desse grupo (“é nozes!”), recebiam aulas
especiais, com professores renomados, e normalmente
eram esses caras que depois abocanhavam as melhores
vagas de especialidade e os melhores cargos na medicina.
Conversei recentemente com um dos meus amigos de
turma que fazia também parte desse grupo. Ele foi embora
de Cuba e está dando aula em uma faculdade de medicina
em outro país.
Ainda assim, mesmo me esforçando e conseguindo bons
resultados, sempre achava que, ao chegar no Brasil, me
depararia apenas com gênios superdotados fora da curva, e
que teria que ralar muito para conseguir me equiparar a
eles. Acredito que isso me ajudou bastante, pois era sempre
um combustível para seguir em frente e tentar melhorar.
Já de volta ao Brasil, percebi que eu tinha uma visão
distorcida da realidade. O burrão aqui, incompetente, que
tinha ido estudar em Cuba por pura falta de capacidade
(opinião de muita gente no Brasil) ficou em primeiro lugar
da faculdade na prova do ENADE (o que era antigamente
chamado de provão do MEC) e entre as 25% melhores notas
do Brasil. Passei nas provas de residência em vários
serviços, sempre entre os primeiros lugares. Fiquei em
primeiro lugar em um concurso público para médico
nefrologista quando ainda estava no meu primeiro ano de
residência de nefrologia. Passei em primeiro lugar em três
testes seletivos para professor colaborador da faculdade de
medicina, e também em primeiro lugar para professor
efetivo em medicina intensiva. Tenho hoje três títulos de
especialista, todos devidamente registrados, tendo ficado
entre as primeiras colocações tanto na prova de título de
nefrologia quanto na de medicina intensiva.
Tá bom, tá bom, que metido, né? Você deve estar achando
que sou um baita de um prepotente por falar todas essas
coisas. Na verdade, isso só reflete o quanto eu sou inseguro
e me sinto inferior em relação ao fato de ter estudado em
Cuba, percebe?
E, para que você não ache que isso é paranoia da minha
parte, só para ter uma ideia, em duas bancas de entrevista
para residência, mesmo tendo passado entre os primeiros
lugares, mesmo tendo tirado uma nota boa, mesmo tendo
ido muito bem na prova prática, fui humilhado e o carinha
da banca afirmou, sem papas na língua, que se eu fui
estudar em Cuba era porque não tinha capacidade para
fazer medicina no Brasil. É mole?
Acho que hoje não devo mais nada a ninguém e nem
preciso provar nada. Mesmo assim, esse fantasma vai me
perseguir durante muito tempo.
Taxista amigo da família
 
Lá em Cuba havia muito serviço informal, assim como existe
no Brasil. A diferença é que aqui, no máximo o cara vai ter
as coisas confiscadas e levar uma multa. Em Cuba, se o
cara era pego, ia preso e passaria alguns meses no campo
cortando cana (e a cana aqui é no sentido literal mesmo).
Uma vez, eu e uma amiga contratamos um cubano para que
nos levasse até o aeroporto de Havana. Ele tinha um carro
Lada bordô, e fazia uns bicos de taxista ilegal. Se esses
caras são pegos transportando estrangeiros e cobrando por
isso, é uma treta que vocês não fazem ideia. Por isso, antes
de nos levar foi combinado todo um roteiro. Caso a polícia
nos parasse, diríamos que éramos amigos dele, e que
estava nos levando de favor. Até pagamos o cara adiantado
para não ter que mexer com dinheiro lá no aeroporto.
A viagem foi tranquila, a 70 quilômetros por hora, com o
carro russo soltando os parafusos, e com aquele aroma
delicioso de gasolina nas nossas roupas e cabelos. Para azar
nosso, assim que chegamos ao aeroporto, tinha um
guardinha ali perto da área de estacionamento, onde
iríamos descer.
A forma como saímos do carro foi cômica. O cara tirou
nossas malas do porta-malas, e em seguida me deu um
abraço bem apertado, como se fosse meu brother. Falou em
voz alta que ia sentir saudade, pediu para eu entregar um
abraço para meus pais e para meu irmão (detalhe, eu não
tenho irmão, só irmã), e eu também entrei no jogo: falei pra
ele se cuidar, pra dar um beijão na mãe dele e dizer que
logo eu voltava.
O guardinha ali do lado só olhou, mas não deu muita moral.
Assim conseguimos chegar ao destino, ninguém foi preso
nem questionado.
O único detalhe é que eu nunca mais na vida vi aquele
taxista. Sacanagem, né? A gente era tão amigo!
Não força, vai
 
Tinha umas coisas bem forçadas lá em Cuba. Muitas vezes,
para poder enfiar goela abaixo a ideologia socialista, os
caras inventavam cada uma que chegava a dar vergonha
alheia.
Lembro de quando o menino Elian foi encontrado boiando
agarrado a uma câmara de pneu, e resgatado nos Estados
Unidos. A mãe do menino tinha tentado fugir para a Flórida,
mas sua embarcação afundou e ela acabou morrendo. O
garoto quase que por um milagre conseguiu se salvar.
O que veio depois disso foi uma verdadeira guerra política.
A família americana do moleque queria que ele ficasse nos
EUA, enquanto o governo cubano fazia uma baita
propaganda emotiva para que Elian voltasse aos braços de
seu pai. Engraçado que o mesmo governo que não permitia
que os cubanos saíssem do país, e que por conta disso
mantinha famílias separadas (assim como na história do
meu amigo que contei lá atrás), agora era um ferrenho
defensor da união familiar. Tudo política.
Agora, a parte onde eles forçavam a barra, era na hora de
comparar Cuba com os Estados Unidos, para dizer que o
menino teria um futuro muito melhor na ilha do que no
império ianque. Sei que só essa parte já é uma piada
pronta, mas mesmo assim, o negócio ficava ainda mais
vergonhoso.
Na TV, imagens de crianças felizes brincando em Cuba,
seguida de crianças nas ruas, sujas e malvestidas nos EUA.
Imagens de um desenho animado fofinho, que segundo a TV
era o herói nacional cubano, seguida de imagens de
Silvester Stallone no filme Rambo sentando o dedo no
gatilho e matando uma penca de gente. Aí o repórter falava
horrorizado: vejam o herói nacional dos Estados Unidos, e
comparem com o de Cuba. Não era fácil. Outra coisa que
eles falavam, é que o animal símbolo dos EUA era uma
águia, e aí metiam o pau na águia, dizendo que é uma ave
de rapina, traiçoeira, assassina, e por aí vai.
A única coisa que eu não entendia muito bem, era a
seguinte: se Cuba era tão boa, e os EUA tão ruim, por que o
governo cubano não deixava a população viajar livremente
para lá, com medo de que não voltassem? Outra coisa: por
que tanta gente se arriscava no mar para fugir da ilha?
Vai entender, né?
Unanimidade
 
Em 2002, houve um plebiscito para que a população
escolhesse se gostaria de manter o socialismo e o atual
governo e regime, ou se gostariam de mudanças na
constituição. Esse plebiscito foi meio que uma resposta aos
Estados Unidos, para mostrar que lá não existia ditadura, e
era o povo quem mandava. Até hoje, em veículos de
imprensa de esquerda, cita-se essa votação como
argumento para defender a hipótese de que Cuba é um
regime livre, e não uma ditadura.
Acontece, amiguinho, que quando esse plebiscito
aconteceu, eu morava lá. Sabe como era o esquema?
Cada bairro tinha um CDR. O que era isso? Um comitê de
defesa da revolução. Os CDRs basicamente eram compostos
de X9 que monitoravam a vida das pessoas em troca de
benesses que já comentei anteriormente nesse livro. Nos
dias do plebiscito, cada CDR ficou responsável por
comandar a votação de suas respectivas áreas. Quando eles
percebiam que determinada família ainda não tinha ido
votar, mandavam um dos X9 bater à porta e convocar os
cidadãos de forma gentil e voluntária, para que
comparecessem à votação.
Lembro de um amigo meu, que estava puto de raiva com
tudo isso. Ele me contou que os caras do CDR foram até a
casa dele, e o fizeram ir votar. Lá na mesa de votação havia
uma ficha. Nessa ficha o cidadão colocava o nome, o
número da carteira de identidade, e do lado colocava seu
voto. Tudo isso diante dos olhos de dois X9 do comitê (não,
o voto não era secreto). Agora me diz aí, quem em sã
consciência, sabendo que em Cuba você era preso
simplesmente por tentar debater suas ideias, iria votar
contra o governo? Ninguém, obviamente. Tanto é que
diziam por lá que se alcançou a unanimidade na votação.
Muitos, mas muitos amigos mesmo, que eram
completamente contra o regime cubano, haviam votado a
favor.
Para a imprensa mundial de esquerda, aquilo tudo foi um
deleite. Para quem morava lá e pode ver tudo de perto
como funcionava, foi só mais uma das manipulações tão
comuns na ilha.
Agora, tenta falar para algum religioso fanático de esquerda
sobre esses fatos, sabe o que ele te responde? Diz que você
não sabe nada, e quem tem razão é ele.
Essa talvez seja uma das coisas que mais me irrita quando
se trata desse assunto. Pessoas que nunca viveram e
conheceram de fato o regime, que só foram passear alguns
dias por lá, naquele tour maravilhoso promovido e
manipulado pelo próprio governo, no qual só mostram
coisas boas e escondem todo o resto, adoram bater de
frente e falar asneiras.
Mas, quem sou eu pra falar, né?
 É penta!!
Uma experiência muito legal que eu tive foi a de poder
assistir aos jogos da Copa do Mundo pela TV, em outro país,
especificamente em uma casa de estudantes estrangeiros
onde morava gente de uma porrada de nacionalidades. Por
que isso foi tão legal? Porque você tinha um monte de gente
pra zoar, e porque a maioria dos caras das outras
nacionalidades torcia contra o Brasil.
Lá na casa onde morávamos, que era composta unicamente
por estudantes de medicina, tínhamos gente do Brasil,
México, Argentina, Paraguai, Peru, Colômbia, Equador,
Estados Unidos, Uruguai, Noruega, Suíça, Suécia, Portugal,
Bahamas, Cabo Verde, Jordânia, Espanha, e alguns outros
países do Oriente Médio que agora eu não lembro. Bom,
com toda essa diversidade, era divertidíssimo assistir aos
jogos, fazer baderna, gritaria, bater na porta do cara que
tava torcendo contra. Uma festa.
Eis que o Brasil vai para a final contra a Alemanha. Eu e
meu amigo Fernando (mais conhecido como Nego),
estávamos passando na enfermaria da pediatria. Enquanto
vários outros professores liberaram o povo do Brasil aquele
dia para assistir à final da Copa, o chefe da pediatria não
nos liberou.
Mas, cara, a gente é brasileiro, né? Combinamos com a
residente da pediatria que ela ficaria responsável pelos
casos, e que nós só apareceríamos lá no intervalo do jogo
para dar as caras. Termina o primeiro tempo, metemos um
jaleco por cima da camisa canarinho, e corremos pro
hospital. Fizemos questão de aparecer onde o chefe estava,
e ele, cheio de orgulho nos elogiou um monte, já que
mesmo na final da Copa estávamos lá trabalhando (mal
sabia ele que éramos duas fraudes).
Fizemos aquela poker face clássica, e falamos:
– Bom chefe, vamos dar uma volta aí pela enfermaria pra
ver se tudo continua bem.
Falamos novamente com a residente que nos liberou, e
voltamos correndo pro segundo tempo. Cara, que emoção,
Brasil campeão, aquela festa absurda, e nós tínhamos que
voltar pro hospital. Para nossa alegria, a diretora da
faculdade que estava na casa acompanhando o jogo ligou
pessoalmente para o chefe da pediatria e solicitou nossa
liberação. Obrigado, diretora!!
Depois disso, só festa, fizemos uma carreata (sem carro)
pelas ruas da cidade, gritando e balançando bandeiras do
Brasil, cantando gritos de torcida. Nas janelas das casas
todo mundo assustado olhando, sem saber o que estava
acontecendo. Lembro de uma canadense que estava
hospedada na casa de um amigo, que ao ver aquela nossa
festa, chorou de emoção (canadenses são educados e
discretos e não estão acostumados com toda essa emoção e
baderna). É penta!!
As motos “doadas”
Lá pelo quarto ano de faculdade, começaram a vender
umas motos em algumas lojas de Havana. Na verdade,
eram tipo umas mobiletes de duas marchas. Obviamente,
eu não tinha dinheiro pra comprar uma daquelas, mas
vários amigos compraram. Não lembro exatamente quanto
elas custavam, mas sei que não eram nada baratas, ainda
mais considerando o valor do dólar. A minha sorte é que
meu amigo e colega de estágio na faculdade tinha uma
dessas, e eu podia pegar carona.
Cuba era uma ilha pequena, mas com uma enorme
capacidade para caber burocracia.
Sair do país era um negócio bem complicado. Lembro de um
cara que tinha desistido da faculdade e voltado para o
Brasil.
Alguns meses depois, voltou para a ilha como turista, para
visitar a namorada. Quando estava indo embora de novo, foi
barrado no aeroporto, pois precisava de uma carta da
faculdade autorizando sua saída. Não adiantou nada ter
explicado que não era mais aluno, que já tinha ido embora e
que estava lá como turista. Teve que voltar para a cidade
onde havia estudado, e pegar a autorização.
Problema de tudo isso? Além da dor de cabeça, lembra que
eu comentei que os voos da Cubana de Aviación para o
Brasil só aconteciam uma vez por semana? Pois é. O cara
teve que ficar mais uma semana na ilha, sem grana, sem
reserva de hotel, enfim, ferrado. Ah, mas bastava ele ficar
na casa de algum amigo cubano, diria um inocente. Essa
era outra burocracia lá de Cuba. Estrangeiros eram
proibidos de ficar na casa de cubanos, mesmo que fossem
melhores amigos. Para que pudessem ficar, precisavam ir
até um escritório do Ministério de Turismo, pegar uma
autorização do governo, e pagar a bagatela de 80 dólares
por dia só de taxa.
Outra burocracia lá de Cuba: quando você ia embora,
precisava pegar um papel na delegacia dizendo que você
não era dono de nenhum veículo automotor. Eu lembro de
ter descoberto isso aos 48 do segundo tempo e quase fui
barrado também. Na verdade, só consegui porque dei piti
na delegacia e resolveram datilografar o papel na hora (sim,
datilografado, nada de computadores).
Bom, aí o que aconteceu com essa galera que tinha as
motos? Primeiro aconteceu uma situação inusitada. Da noite
para o dia alguém decidiu que as motos dos estrangeiros
deveriam ser confiscadas. A polícia entrou na casa e levou
todas, sem conversa, sem dó. Foram meses que os caras
ficaram com as motos paradas no pátio da polícia, sem
satisfação, e obviamente sem qualquer tipo de
ressarcimento.
Passado algum tempo, eles reouveram suas motos. Mas o
pior foi na hora de ir embora. Cada um dos que tinham
veículo automotor, não poderiam sair do país, já que não
teria como apresentar aquele papel da polícia que
confirmava isso. Solução? Vender a moto? Não, era proibido.
Dar a moto para algum amigo? Não, proibido. Tacar fogo na
moto? Tá maluco, era proibido também. Então o que fazer?
O estado socialista, muito bondoso, se ofereceu para ficar
com as motos, em forma de doação, e assim liberaria os
caras para voltarem a seus países de origem. Todos eles
então “doaram” as motocas, não receberam nem um
centavo de ressarcimento, e todos foram felizes.
Por isso eu amo o estado. São tão bonzinhos!
Instrumento de trabalho
 
Me contava seu Oscar, um senhor de idade, que quando
Fidel triunfou e os revolucionários tomaram o poder, muita
gente comemorou nas ruas e em suas casas. Sua mãe,
nesse clima de comemoração, colou um cartaz na porta de
casa com os dizeres: “Minha casa é sua casa”. Pelo que ele
me relatou, levaram isso ao pé da letra, e confiscaram
aquela casa deles.
Nessa época eles eram de família abastada, tinham casas e
inclusive terras. Apesar de terem comemorado a vitória dos
revolucionários, aquela alegria durou até o momento em
que suas casas e terras foram tomadas.
Para mim, a parte da história que ele me contou, que mais
me marcou, foi quando no ato do confisco de uma fazenda,
com todo o material e bens que havia lá dentro, já sem ter
mais o que surrupiar, o agente do governo aponta para os
pés do pai do seu Oscar e fala: “me dê também essas botas,
afinal, isso é instrumento de trabalho da fazenda e deve
ficar conosco”.
Eu adorava me sentar com os cubanos e bater papo.
Sempre me contavam histórias surreais, mas, culturalmente
enriquecedoras. Era melhor que qualquer aula de história
dada por um cara que nunca conheceu a fundo aquele
lugar, isso posso garantir.
Lembro que cada vez que me contavam essas histórias, eu
dizia que um dia iria escrever um livro sobre tudo aquilo.
Pois é, demorei mas tá aí.
Complemento de renda
 
Sempre que voltava de férias do Brasil, trazia, além dos 8
quilos a mais na carcaça que eu ganhava naqueles 30 dias
(comida faz isso), presentes para meus amigos cubanos.
Vejam só como esses pequenos presentes faziam muita
diferença: um sapato em uma loja de Cuba, na época,
custava em torno de 60 dólares, um litro de leite de
caixinha, dependendo do lugar, chegava a custar 4 dólares.
Levando em conta que um médico ganhava, de salário
mensal, 25 dólares (se fosse especialista), já dá pra
imaginar como esses presentes eram bem-vindos.
Não era incomum ver os professores da faculdade de
medicina, após saírem do hospital, andando de bicicleta
com dois baldes de lavagem para os porcos que criavam em
casa. Não, não eram esses porquinhos fofos que agora
estão na moda. Eram porcos daqueles fedorentos mesmo,
que eles criavam para poder vender e complementar a
renda.
Lembram que eu contei do evento que me fez parar de
acreditar no socialismo? Pois bem, eu pude ver o mesmo
acontecer com um professor de medicina, Doutor Rodriguez,
um médico brilhante que tinha na época seus 60 anos de
idade. Ele também deixou de acreditar, mas o fato que o fez
se “converter” foi bem mais dramático que o meu.
Seu filho era médico também, cardiologista, e tinha uma
viagem programada para Santiago de Cuba. O professor
Rodriguez lhe deu um endereço e pediu para que, quando
estivesse em Santiago de Cuba, fosse até a casa do mais
famoso e respeitado professor de medicina interna do país,
Doutor Roca, autor de um dos principais livros-texto que era
utilizado em todas as faculdades de medicina da ilha, para
que lhe mandasse saudações de parte do seu ex-aluno.
Quando seu filho chegou ao endereço, decidiu pedir
informações para confirmar onde era a casa do Doutor
Roca. Avistou um senhor muito idoso, sentado em uma
banca na calçada, vendendo cocadas caseiras, e se
aproximou. Perguntou ao pobre senhor, que com a idade tão
avançada ainda trabalhava vendendo cocadas para
complementar a renda, se ele sabia onde morava o Doutor
Roca. O velhinho estendeu a mão e disse: Prazer, Doutor
Roca.
E assim, mais uma pessoa deixava de acreditar naquele
sistema.
Nem tudo era ruim
Talvez eu tenha passado uma impressão de que tudo era
péssimo lá em Cuba. De forma alguma. Existiam, sim,
muitas bizarrices, mas se formos pensar, no Brasil também
tem tanta coisa ruim, que chega a dar náusea. Nos anos
que passei lá, pude conhecer um povo gente boa demais,
hospitaleiro, amigo, criativo, perseverante, que conseguia
sorrir mesmo na escassez. Não via crianças pedindo
esmolas na rua, e sempre via no final da tarde toda a
criançada uniformizada voltando da escola, aparentemente
felizes (crianças têm essa capacidade de serem felizes com
pouco).
Nunca vi ninguém morrer por falta de atendimento médico
(mas já vi sofrerem por falta de recursos). Não havia gente
viciada em crack andando como zumbis pelas ruas como
vemos em algumas cidades. Não havia guerras civis entre
traficantes e policiais. Conheci excelentes profissionais, que
tinham sede de conhecimento, muito dedicados e que
poderiam fazer sucesso em suas carreiras em qualquer
lugar do mundo.
Lembro até de um fato altruísta do governo, quando um dos
meus veteranos, por dificuldades financeiras não tinha mais
como permanecer no país. Esse cara mandou uma carta
escrita de próprio punho para Fidel Castro. Por ser um aluno
excelente e dedicado, e estar envolvido com as questões
políticas, recebeu uma bolsa integral do governo e pode
permanecer até o final de sua graduação.
Então explico isso para que não pensem que eu odeio o país
de Cuba. Na verdade, eu amo o país e seu povo.
Certamente, a experiência de ter morado lá durante tantos
anos me tornou um ser humano muito mais evoluído. O que
eu odiava era apenas toda a hipocrisia e tirania que fazia o
povo sofrer. É como eu disse lá atrás. O ser humano pode
ter tudo, mas se lhe tirarem a liberdade, nada mais faz
sentido.
Considerações finais
 
Há 48 horas, eu decidi que iria escrever mais um livro.
Pensei em alguns temas, até que me veio à mente aquele
projeto antigo, lá da época da faculdade, de escrever sobre
as experiências que vivi e presenciei enquanto morei em
Cuba. Fiz um brainstorming e comecei a anotar em tópicos
todas as histórias das quais fui lembrando. Consegui anotar
aproximadamente 80 tópicos em poucos minutos. Iria
escrever sobre todos eles, mas depois, pensando melhor,
achei que muitos acabariam expondo demais algumas
pessoas, e outros eram demasiado pessoais e talvez não
despertassem o interesse do público.
Já tinha escrito outro livro, “O médico que fingia ser
fotógrafo”, e aquele tinha um significado todo especial para
mim, já que eram histórias e fotografias das minhas filhas.
Só que o primeiro livro me tomou meses de trabalho para
ser concluído. Este, no entanto, foi tão delicioso de escrever,
tão fluido, tão divertido, que acabei terminando em dois
dias. Apesar do pouco tempo para a conclusão desse
projeto, gostaria de deixar claro que escrevi com bastante
dedicação e coloquei a alma nele. Meu objetivo, além de
mostrar muitas curiosidades vividas, era que o leitor tivesse
uma leitura agradável, quase como um bate papo.
Como eu disse anteriormente, esse livro era um sonho
antigo, mas que até hoje não tinha sido colocado em prática
por um certo medo das repercussões que poderia trazer.
Veja, esse sentimento de medo infelizmente é algo que você
acaba incorporando ao viver em um regime totalitário. Não
tem como escapar.
Como a grande maioria dos meus amigos cubanos foi
embora da ilha, me sinto mais seguro para escrever todas
essas histórias. Mas também tenho em mente que depois
de publicar esse livro, dificilmente poderei voltar até a ilha
sem me sentir inseguro.
Se você acha que estou sendo paranóico, fica morando lá
uns cinco anos e depois me conta, valeu?
Sobre o autor
 
Maikel Ramthun é médico, finge ser fotógrafo e sonha em
ser escritor. Especialista em Clínica Médica, Nefrologia e
Medicina Intensiva é com muito orgulho professor do curso
de medicina da UEPG.
Amante de boas histórias, é autor do livro “O médico que
fingia ser fotógrafo”, e criador da página com o mesmo
nome.
Define-se como um pai apaixonado.
Me segue lá
Caso queira conhecer um pouco mais sobre meu trabalho
(ou melhor, sobre meu hobby), me segue nas redes sociais
e dá uma olhada no meu site. Caso tenha gostado do livro,
divulgue para mais pessoas, e se possível deixe um review
lá na Amazon. Isso vai me ajudar muito!
Caso queira conversar diretamente comigo, pode mandar
mensagem lá na página do médico que fingia ser fotógrafo,
ou manda e-mail pra mim: maikelramthun@gmail.com
Instagram: http://instagram.com/maikelmd/
Facebook: www.facebook.com/medicofotografo/
 
 
 
 
“Um homem pode ter tudo,
mas se tiram sua liberdade,
nada mais fará sentido”
Maikel Ramthun
 

Você também pode gostar