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ALIENS.
de Dan Rosseto.

VERUSKA
RUI
MARTHA
VALÉRIO
JEAN PAUL
SÔNIA

“O mais assustador não é a ideia de aliens em planetas desconhecidos,


mas saber que em todo este imenso universo nós estamos sozinhos”.
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NOTA DO AUTOR

Este é um texto ABSURDO!

Portanto, deve ser encenado de maneira grotesca, quase


farsesca, surreal. A linguagem ácida e os diálogos
cortantes são inspirados em pesquisas sobre violência nos
colégios onde o ensino aplicado está praticamente falido e
não funciona como ferramenta para uma educação
funcional. O sistema (podemos chamar assim, já que no
texto usarei este termo inúmeras vezes), é determinado por
quem está em “cima” e aplicado por aqueles que estão
“embaixo”. Ou seria “em baixa”? Educar virou uma tarefa
árdua e os professores, antes chamados de mestres, nada
podem fazer a não ser repetir um padrão estabelecido e
caduco. As personagens desta trama cruel e sanguinolenta
(sim, haverá sangue) agem como alunos – selvagens –
quando acuados e impedidos de ter opiniões. Seus
impulsos afloram e são determinantes para desmascarar
um a um: sem dó, sem redenção. Somos ALIENS,
alienados! Estamos, aos poucos, sendo proibidos de
pensar. Cada vez mais agimos de forma lógica, exata,
calculada. Estamos caminhando para a evolução, em
busca da tecnologia, do imediato. Pensar, hoje, é sinônimo
de perigo. Uma arma poderosíssima. Um medo para
alguns. E um assombro para muitos.

Repetindo, este é um texto completamente absurdo, de


ideias absurdas! Eu espero, mesmo, que continue a ser!

INSPIRADO NUMA REALIDADE POSSÍVEL.


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A CHEGADA
14h40

O pano está aberto. Ouvimos o som de uma música clássica. A luz acende em
resistência revelando a sala de aula de uma instituição de ensino: seis cadeiras
estilo escolar em semicírculo, uma mesa com a cadeira do professor, um
armário de aço, uma lata de lixo, um mimeógrafo velho, pastas amontoadas,
uma maçã com uma faca espetada de cima para baixo, um bebedouro no
canto com suporte para copos plásticos, um cesto de lixo, um relógio e um
quadro negro. Nele há uma frase escrita: POR UMA EDUCAÇÃO QUE NOS
AJUDE A PENSAR E NÃO NOS ENSINE A OBEDECER. Uma legenda
informa o horário e o título da cena. Câmeras de segurança estão posicionadas
na sala. Nos cantos, no chão, percebemos pequenos montes de terra,
parecendo formigueiros. Dentro de vinte minutos, seis professores darão início
a uma reunião brutal. Os convocados para este grupo são os docentes das
disciplinas: VERUSKA (Filosofia), RUI (Geografia), MARTHA (História),
VALÉRIO (Artes), JEAN PAUL (Sociologia) e SÔNIA (Literatura / Língua
Portuguesa). Os seis aparecem em cena e se colocam embaixo de refletores e
a forte incidência da luz sobre cada um deles, nos faz parecer que todos estão
abduzidos, como se estivessem em estado de alienação. VERUSKA é a
primeira a se movimentar. Ela segura um bolo e caminha pelo espaço. Ao
colocar o prato sobre a mesa, escolhe uma das cadeiras, senta-se. Em seguida
abre a bolsa e separa três comprimidos de um frasco. Depois segue em
direção ao bebedouro e tenta puxar um copo de plástico do suporte para
copos, mas os copos ficam presos e não saem. RUI se move com sua cadeira
de rodas. Ele vê a mulher, mas ela não o vê. Depois de travar uma batalha com
o suporte de copos, VERUSKA consegue retirar, mas vários vem em sua mão.

VERUSKA– Que invenção brilhante!

VERUSKA coloca água em seu copo, enquanto toma os comprimidos.

VERUSKA– Para beber um copo de água eu precisei travar uma disputa


com o suporte. E quando eu consegui, ele despejou três copos, sendo
que o primeiro rachou. Se eu colocar a boca aqui, me corto na hora.
RUI– Duzentos e cinquenta anos depois eles ainda estarão aqui.
VERUSKA– Os suportes?
RUI– Os copos! Mesmo o defeituoso.
VERUSKA– E eu com mais de um... que vergonha!
RUI– Vamos ver quanto tempo você ficará em posse do descartável.
VERUSKA– Era só para tomar os remédios. Eu já vou jogar na lixeira.
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Ao jogar os copos no lixo VERUSKA está aliviada.

VERUSKA– A partir de agora, duzentos e cinquenta anos e adeus.


RUI– Do suporte para o lixo em menos de vinte segundos.
VERUSKA– Você acha que? Claro! Eu deveria ter preservado o copo
para utilizar mais vezes.
RUI– Gerações passarão e ele ainda existirá. Você já pensou nisso?
VERUSKA– Na vida útil de um copo descartável?
RUI– O que estamos fazendo com o planeta.
VERUSKA– Eu vou me lembrar da próxima vez.
RUI– As lições precisam ser aprendidas na prática, até as dolorosas.

RUI tenta remover uma cadeira para reposicionar a sua. VERUSKA, muito
prestativa, segue em direção ao homem para ajudá-lo.

VERUSKA– Eu removo uma cadeira e coloco a sua.


RUI– Eu posso fazer sozinho. Aliás, eu devo tentar. Recomendações!
VERUSKA– Mas você é...
RUI– Ah, não! Eu não sou.
VERUSKA– É que eu fico sem jeito de tocar em assuntos como este.
RUI– Que assunto?
VERUSKA– Eu acho extremamente importante, em casos como o seu,
permitir que a pessoa trabalhe, normalmente.
RUI– Caso como o meu?
VERUSKA– Inclusivo.
RUI– Foi um acidente. Minha situação é temporária.
VERUSKA– Eu trouxe um bolo para quando sentirmos fome.
RUI– Espero sair daqui o mais rápido possível.
VERUSKA– Você quer um pedaço?
RUI– As boas coisas da vida são ilegais, imorais ou engordam.
VERUSKA– Eu mesma fiz.
RUI– Me lembre de colar uma estrelinha de louvor no seu caderninho.
VERUSKA– Você está sendo irônico?
RUI– Eu aqui, cheio de dificuldades para tentar um lugar para acomodar
a minha cadeira, sou a ironia em pessoa.
VERUSKA– Melhor eu te ajudar, antes que os outros apareçam. Por
isso eu vim depressa, correndo!
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RUI– Eu também tentei correr, mas as minhas pernas não obedeceram.

VERUSKA encaixa a cadeira de rodas de RUI ao lado da sua.

VERUSKA– Aqui parece um ótimo lugar, você não acha?


RUI– Tudo depende de quem ficará ao lado.
VERUSKA– Eu ficarei no meio. Você na parte de dentro, encostadinho
na mesa, assim você pode apoiar as suas coisas.
RUI– Muito obrigado. Daqui por diante eu consigo sozinho.

VERUSKA abre a bolsa e pega mais uma pílula. Ela segue em direção ao
bebedouro e chega a colocar a mão no display de copos para pegar um novo
descartável, mas recolhe o que estava no lixo. Ela levanta o copo e dispara.

VERUSKA– Duzentos e cinquenta anos. Eu vou usar o mesmo.


RUI– Sustentabilidade. Aproveite e anote o seu nome.

RUI arremessa uma caneta para VERUSKA. Ela pega o objeto e começa a
escrever no copo. Ao anotar ela soletra o seu nome em voz alta.

VERUSKA– Ve-rus-ka!
RUI– Rui... meu nome. Prazer.

A mulher tenta explicar as cápsulas que toma constantemente.

VERUSKA– São ansiolíticos. Tudo natural!


RUI– Hoje em dia todo mundo precisa de uma cápsula para aliviar a dor.
VERUSKA– Eu sou muito ansiosa e os remédios me salvam.
RUI– Pertencemos a uma sociedade de pessoas infelizes: solidão,
depressão, dependência... ansiedade.
VERUSKA– Eu fico ansiosa só de esperar o efeito do remédio que faz
ansiedade passar.

VERUSKA toma mais uma cápsula. MARTHA aparece em cena ostentando


uma imensa barriga de grávida. Ela se move pelo espaço observando tudo que
foi alterado. Ela observa o relógio, repara nas câmeras de segurança e por fim,
se aproxima da maçã sobre a mesa com a faca espetada e conclui com fé.
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MARTHA– Foram eles, não foram?


VERUSKA– Eles quem?
MARTHA– (APONTANDO PARA AS CÂMERAS) Os vermes!
RUI– É legal instalarem câmeras?
MARTHA– Como se isso fosse um problema.

As câmeras movem. MARTHA fala para uma delas mostrando o dedo do meio.

MARTHA– Vocês não são melhores que eu. Vocês são feitos da mesma
matéria orgânica em decomposição como tudo neste mundo. Vermes!
VERUSKA– Que vermes são esses?
MARTHA– Os que passeiam no poder. O mundo é controlado por
repteis humanoides e são eles que estão nos vigiando.
RUI– Vermes no poder?
MARTHA– Em que mundo você vive, meu senhor? O sistema! Eles
instalaram as câmeras, eles nos transportaram até aqui.
VERUSKA– Eu trouxe um bolo para quando o estômago roncar.
MARTHA– Eu vivo faminta, como por dois.
RUI– Me conta mais.
MARTHA– Que bom que vocês vieram, devemos enfrentar! Não fugir.
RUI– Eu odeio desconfiar de algo, porque geralmente eu acerto.
MARTHA– Nós saberemos quando for a hora.
VERUSKA– Você está?
MARTHA– Grávida! Você já viu a minha barriga?
VERUSKA– Não! Grávida?
MARTHA– Sim! Que tocar?
VERUSKA– Puxa! Grávida?
MARTHA– De alguns meses.
VERUSKA– Mas é grávida mesmo?
MARTHA– De doze.
VERUSKA– O que?
MARTHA– Meses! Mas ainda falta um tempo.
VERUSKA– Jura que você está?
MARTHA– Eu já disse, mais de uma vez. Grávida!
RUI– Eu acho bebê a coisa mais linda. Até aprender a falar.
VERUSKA– Meu Deus, que ótima notícia.
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MARTHA– Eu não acredito em Deus! A humanidade precisa se libertar


do conceito de Deus e Diabo, e admitir que ela promove o bem e o mal.

MARTHA abaixa-se ficando na altura de RUI.

MARTHA– Tudo que é imperfeito deve ser destruído. Esse é o lema.


RUI– Lema de quem, que lema é esse?
MARTHA– Dos vermes! Nós precisamos agir.
VERUSKA– Eu vou partir o bolo!
MARTHA– Quem fez isso com você?
RUI– “Você não tem coração, vai me deixar com um, vírgula nove? Você
sabe quem é meu pai”?
MARTHA– Aquele riquinho que trata os professores como empregados.
RUI– O próprio. Mandado pelo progenitor!
MARTHA– As relações humanas estão esquecidas. Os adultos estão
resolvendo seus problemas aos berros.
VERUSKA– E sem gentileza. O conteúdo passou a ser mais importante
do que o aluno, a disciplina voltou a ser imposta como forma de coerção.
MARTHA– Eles querem ajuda mas acabam retribuindo com violência.
RUI– Eu respondi sem pensar: “Que eu saiba coração, é para bombear
sangue e não para arredondar nota de aluno”.
VERUSKA– Excelente resposta!
RUI– Ele me pegou desprevenido e me empurrou da escada. Eu desci
rolando e batendo as costas, pernas, braços... Eu tive uma lesão na
medula – mas é reversível – eu só preciso ter paciência.
VERUSKA– O adolescente infrator será sempre resultado de uma
sociedade que descuida das crianças e dos jovens. É preciso terminar
com esse ciclo de vitimização. A sociedade abandona, cria uma vítima
que é a criança e essa mesma criança cria outras vítimas quando
começa a furtar, roubar, violentar.
MARTHA– Pais separados que cagam para os filhos, mães que
precisam trabalhar fora para ajudar em casa... Ausência total!
RUI– A escola apenas reflete a falência da educação familiar.
VERUSKA– A escola e a família precisam fazer as pazes.
MARTHA– O aluno que agride é extremamente mimado ou foi
abandonado... Larvas, nojentas, mesquinhas, podres!
RUI– Mas eu vou sair dessa.
MARTHA– O caminho da educação é muito bonito. Não desista!
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VERUSKA vai partir o bolo que está sobre a mesa. Ela oferece para MARTHA.

VERUSKA– Você precisa se alimentar.


MARTHA– Eu não quero, não me force.
VERUSKA– Quem foi que disse que vive faminta?
MARTHA– É verdade, eu disse... realmente.
VERUSKA– (PARA MARTHA) Essa criança precisa ganhar peso.
(PARA IAN) E você precisa ficar forte para voltar a andar.

VERUSKA vai tirar a faca da maçã, MARTHA intervém certeira.

MARTHA– Não tira!


VERUSKA– Eu preciso da faca para cortar o bolo.
MARTHA– Pode ser um aviso.
VERUSKA– Algum aluno deixou para nos pregar uma peça.

VERUSKA tira a faca da maçã. As luzes piscam freneticamente e ao mesmo


tempo ouvimos um sinal sonoro como uma ameaça de guerra.

MARTHA– Eu disse para não mexer!

Ela espeta a faca na maçã. As luzes param de piscar e o sinal é desligado.

MARTHA– Essa sala é minha. E acreditem, “coisas” acontecem aqui.


VERUSKA– Como eu nunca vi você?
MARTHA– Somos professores, pessoas que quase ninguém enxerga.

VERUSKA corta o bolo com a mão e tenta colocar na boca de MARTHA.

VERUSKA– Abre a boca e coma tudo! Seu bebê precisa engordar.


MARTHA– Eu já disse que não, inferno!

VERUSKA desfaz a máscara de simpática dando lugar a um ódio latente.

VERUSKA– Não se desperdiça comida dessa maneira!


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Imediatamente ela volta a ser prestativa e insistente enquanto fala com a


barriga de MARTHA, estabelecendo contato com o bebê.

VERUSKA– E você também precisa comer para nascer forte e saudável.


MARTHA– Eu só posso me alimentar quando eu recebo ordens.
VERUSKA– Ordens de quem?
MARTHA– (APONTANDO PARA CIMA) Deles!

Todos olham para cima. VALÉRIO entra em cena carregando vários livros de
capa dura, empilhados. Ele está afobado e se limpa com um lenço de pano.

VALÉRIO– Boa tarde! Espero não ter me atrasado para a reunião...

Ninguém dá atenção. Eles ainda continuam olhando para o alto a procura de


uma resposta. VALÉRIO começa a citar Shakespeare, imediatamente.

VALÉRIO– “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã


filosofia”.

Todos olham para VALÉRIO. Ele começa a distribuir os livros para as pessoas.

VALÉRIO– Esta fala é de “Hamlet”, de William Shakespeare. Ato um,


cena cinco.

Ao abrirem os livros, cai terra de dentro deles. Ninguém estranha!

VALÉRIO– Hamlet diz essa frase a Horácio, revelando o espanto dele


diante do fantasma do pai que surge do reino dos mortos.
VERUSKA– Você quer um pedaço de bolo?
RUI– Ela não desiste dessa merda.
VALÉRIO– Obrigado!
VERUSKA– Isso é um “sim” ou um “não”?
VALÉRIO– Eu acabei de almoçar.
VERUSKA– Quer que eu te ajude a escolher um lugar para sentar?
VALÉRIO– Eu estou bem de pé.
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VALÉRIO apoia os livros sobre a mesa. Os professores vão deixando os livros


em qualquer lugar, sem dar importância ao material.

VALÉRIO– Eu estou ensaiando essa peça com os meus alunos.


VERUSKA– Que graça! É tipo jogral?
VALÉRIO– Uma peça de teatro.
RUI– E você faz o que?
VALÉRIO– Sou o diretor.
VERUSKA– Impossível. Eu conheço o diretor daqui.
VALÉRIO– Eu não estou falando deste “diretor”, mas sim da minha
função ao ensaiar uma peça.

VERUSKA ri, debochando.

MARTHA– Do que você está rindo?


VERUSKA– Eu não estou rindo, eu estou sorrindo. Continue!
VALÉRIO– Eu venho tentando ensaiar esta peça de Shakespeare, mas
confesso, está muito difícil... impossível eu diria.
RUI– Quem se interessa por artes nos dias de hoje?
VALÉRIO– Pouca gente! Acredita que da semana passada para cá,
houve uma queda significativa no elenco.
VERUSKA– Desistiram?
VALÉRIO– Pior, desapareceram.
MARTHA– Os seus atores sumiram?
VALÉRIO– Sem deixar rastro. Banidos por tentar dizer a verdade!
MARTHA– Desde quando quem fala a verdade merece castigo?

Um breve silêncio. Brevíssimo!

VALÉRIO– Vocês também são professores desta instituição?


VERUSKA– Sim, somos.
RUI– Eu não me lembro de ver você pelos corredores.
VALÉRIO– Eu não dou aula em salas como esta.
RUI– Ensino a distância?
VALÉRIO– Muito engraçado. Pelo visto temos um cômico na turma.
RUI– Eu não podia perder a piada.
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VALÉRIO– É o que eu sempre digo: o tambor faz muito barulho, mas é


vazio por dentro.
MARTHA– Você continua ensaiando no auditório?
VALÉRIO– Me removeram de lá.
MARTHA– Malditos vermes!
VALÉRIO– Me colocaram na sala de química desativada, aquela
próxima à biblioteca. Imaginem vocês o cheiro que exala naquele lugar.
RUI– Existe um auditório, aqui?
VALÉRIO– Sim! É lá que nós costumávamos colocar as peças em
cartaz, sempre nos apresentando para meia dúzia de gatos pingados.
VERUSKA– Gozado, eu não consigo me lembrar.
VALÉRIO– Do auditório?
VERUSKA– Onde fica a biblioteca.
MARTHA– Na área proibida.
RUI– Que área proibida?
MARTHA– Pouca gente se atreve a tentar atravessar o muro.
VERUSKA– Eu não me arrisco, obedeço.
VALÉRIO– Enquanto eu estiver vivo, ninguém vai me calar.
RUI– Do que vocês estão falando?
MARTHA– Desde que construíram o muro dividindo o colégio, as
pessoas foram proibidas de frequentar as áreas isoladas.
RUI– Como é que eu nunca soube?
VERUSKA– Talvez porque a sua limitação não te permita ir longe.
MARTHA– Como você tem conseguido atravessar de um lado para o
outro sem ser visto?
VALÉRIO– Geralmente a noite, quando tem menos vigias.
MARTHA– É um risco, tenha cuidado irmão.
VALÉRIO– Nós estamos construindo uma passagem subterrânea.
VERUSKA– Tipo um túnel secreto?
VALÉRIO– Demos início assim que a área foi isolada. Não podemos
deixar todo aquele conhecimento confiscado, preso. Até que a
passagem fique pronta, eu vou pular o muro todas as noites.

VALÉRIO pega um livro sobre a mesa e abre. O livro está oco, sem as
páginas, como se fosse um objeto utilizado para guardar coisas. De dentro do
livro cai um monte de terra (exatamente o tanto que couber).
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VALÉRIO– Todos os dias enchemos vários livros com terra da


escavação e desovamos nos cantos das salas.
VERUSKA– Eu jurava que eram formigas construindo formigueiros no
subsolo, para dominar essa escola.
VALÉRIO– Não são formigas! Somos nós.
VERUSKA– Que alívio!
VALÉRIO– Mas eles querem dominar tudo.
MARTHA– Como está o trabalho?
VALÉRIO– Não paramos um só instante. Sem tréguas, sem descanso.
RUI– E vocês escavam com...

VALÉRIO mostra uma pequena colher de metal.

VALÉRIO– Com esta colher de café!


RUI– Vocês não vão conseguir, sinto dizer.
MARTHA– Intenção sem ação é igual a nada.
VERUSKA– A força mais potente do universo é a fé.
RUI– Eles não fiscalizam os livros que vocês enchem com terra?
VALÉRIO– Eles não enxergam, é como se estivessem cegos. Vai ver
estão mesmo, obcecados no seu propósito conservador.
MARTHA– Só não se esqueça que as larvas estão nos vigiando.
VALÉRIO– Será que eles também podem nos escutar?
MARTHA– É possível que tenham instalado microfones pela sala.
VALÉRIO– Eles escutaram sobre o túnel que estamos cavando?

Eles estão levemente apreensivos. MARTHA começa a falar num dialeto


particular, tentando contato com extraterrestres. VERUSKA rompe o clima.

VERUSKA– Estamos esperando mais duas pessoas.


RUI– Como você sabe?
MARTHA– Pelo número de lugares: seis.
VALÉRIO– Por hora somos nós quatro.
MARTHA– Praticamente todas as cadeiras foram retiradas, eles
deixaram o número exato. Eu leciono aqui para quarenta e dois alunos.
RUI– Qual é a sua disciplina?
MARTHA– História.
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A sirene volta a soar. Eles ficam em silêncio até ela parar.

VALÉRIO– Que merda, que merda!


VERUSKA– Eles podem nos ouvir.
VALÉRIO– Eu preciso voltar no túnel, agora.
MARTHA– Eles vão desconfiar... melhor ficar. Fique!
VALÉRIO– Tem pelo menos uns doze atores escavando. Eu deixei eles
lá para atender o chamado do sistema. Eu vou!
MARTHA– Você não pode retornar. Fique!
VALÉRIO– Eu temo pela vida deles.
MARTHA– Muita gente se sacrificou até agora. Fique!
VALÉRIO– Isso não está certo!
VERUSKA– Ninguém está aqui para julgar o certo e o errado. Vivemos a
lei do mais forte! E a civilização foi criada por líderes que se destacaram
da massa. A Filosofia explica... eu sou professora.

A sirene volta a soar. VALÉRIO resolve atacar VERUSKA.

VALÉRIO– Um filósofo não pode agradar as massas. Desde Nietzsche


se é conhecido que os verdadeiros filósofos são seres terríveis.
VERUSKA– No desespero você vem e me ataca?
VALÉRIO– Seus heróis não passam de um modelo burguês vestidos
com terno e gravata. Eu vou voltar lá e salvar meu o elenco.
RUI– A merda da sirene não vai cessar enquanto vocês não pararem.

Eles ficam em silêncio até a sirene parar.

RUI– Nós não podemos falar sobre as nossas disciplinas! Nas duas
vezes que falamos a sirene tocou.
MARTHA– Precisamos esperar as ordens.

JEAN PAUL e SÔNIA aparecem. A mulher entra fumando, feroz, levemente


tensa. O homem segura um copo de café cheio da bebida quente.

SÔNIA– Se você não tivesse entrado no meio daquela manifestação –


aquela bosta – a gente já estaria aqui.
JEAN PAUL– Como eu vou saber quando vão marcar protesto!
MARTHA– O que estavam manifestando?
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SÔNIA– Olá, boa tarde!


JEAN PAUL– E quem sabe? Todo dia é uma coisa diferente.
SÔNIA– Reforma da previdência. Um horror, um amontoado de gente
gritando, atrapalhando o trânsito, aqui do lado, sabe aqui?
JEAN PAUL– Toma um gole desse café.
SÔNIA– Para de me oferecer essa merda!
JEAN PAUL– Você está com um bafo horroroso de cigarro.
SÔNIA– Café, jamais. Eu prometi a mim mesma que não começaria a
usar drogas.
JEAN PAUL– Então apague!

Ela apaga o cigarro no bolo de VERUSKA. A mulher percebe e fica possessa.

SÔNIA– Prontinho. Está a-pa-ga-do!


VERUSKA– Você apagou o seu cigarro no bolo que eu trouxe?
SÔNIA– A gente joga fora a parte nicotinada para sempre. E depois foi
só em um pedaço querida!
VERUSKA– Não me chame de querida.
SÔNIA– Que gente chata, socorro!
VERUSKA– Você queimou o meu bolo com cigarro!
SÔNIA– Queimei anjo, mas foi sem querer. Anjo pode?
VERUSKA– Você não vai comer, está decidido.
SÔNIA– Mas quem disse que eu quero uma merda de um bolo
esfarelado, feio, parecendo um vômito.

SÔNIA percebe a faca espetada na maçã e rapidamente tem uma ideia.

SÔNIA– Uma faca! Eu vou descartar essa parte com o cigarro.

A mulher tenta retirar a faca. Todos falam juntos, como um coro de alunos.

TODOS– Não tira / Não toque nessa faca / Não mexa!


SÔNIA– Então fica assim mesmo! É só ninguém comer esse lado que
está com a bituca. Gente estranha, senhor, me acuda!
VERUSKA– Eu trago comigo um bolo para matar a fome e você faz...
SÔNIA– O certo é: eu trouxe um bolo.
VERUSKA– Eu trouxe um bolo para matar a fome e você...
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SÔNIA– Muito melhor. Não assassine a língua florzinha.


VERUSKA– Mas eu não posso comer.
SÔNIA– A gente tem que engolir cada coisa nessa vida!
VERUSKA– É que eu sou alérgica a glúten.
SÔNIA– Não me diga?
VERUSKA– Descobri outro dia.
SÔNIA– Esse lance de intolerância começou com a lactose, depois
passou para o glúten e agora já está nessa situação.
VERUSKA– Eu morro só de pensar.
SÔNIA– Tem quatro dias que eu não defeco, eu não sei mais o que
comer. Tudo me faz mal, peixe, carne... carne principalmente.
JEAN PAUL– Quem são vocês?
VALÉRIO– Somos como vocês.
MARTHA– E estávamos esperando os dois para começarmos.
SÔNIA– Qual a urgência para uma assembleia no meio da tarde?
RUI– Eu atendi um chamado sobre uma reunião que aconteceria nesta
sala, às quinze horas, pontualmente.
VALÉRIO– Muito bem, eu acho que devemos tentar entender o motivo
do porquê nos chamaram aqui, o que para mim parece óbvio.
MARTHA– O nosso pensamento está nos matando.
JEAN PAUL– É subjetivo. Melhore isso!
MARTHA– Eles querem controlar a nossa mente. Pensar, nos dias de
hoje, é uma arma poderosa.

Ouvimos um barulho de porta batendo, seguido de uma chave fechando-a.


Logo após colocam uma barra de ferro, uma corrente e um cadeado. Eles
percebem no ato que foram trancados dentro da sala.

MARTHA– Nós vamos ficar aqui mais tempo do que prevíamos.


VERUSKA– E se alguém precisar de um banheiro?
SÔNIA– Bendita prisão de ventre.
RUI– Pensando bem, o bolo será de grande valia.
SÔNIA– Eu preciso fumar!
JEAN PAUL– Não acende esta merda!
SÔNIA– Vai começar com a baixaria?
JEAN PAUL– Quem está fazendo baixaria é você.
SÔNIA– Meu amor, de graça eu não dou nem escândalo.
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MARTHA– Por favor, se acalmem.


JEAN PAUL– Fuma! Mas faça isso longe.
SÔNIA– Filhinho, o meu desejo é manter distância suficiente para não
respirar o mesmo ar que você.
JEAN PAUL– Me faz um favor: não fala mais comigo!
SÔNIA– Amado, eu só vou gastar saliva se for para cuspir na sua cara.
VALÉRIO– Vocês deviam parar com essa discussão. Chega!
SÔNIA– A conversa é entre A e B! Você não foi chamado.
VALÉRIO– Até sabermos o que querem, precisamos nos manter unidos.
MARTHA– Isso é parte de um plano, uma conspiração de quem está no
poder, os canalhas!
VERUSKA– Eu vou tomar mais um remédio.
SÔNIA– Um pouco exagerado da sua parte.
VERUKSA– Da minha?
SÔNIA– Não, da grávida esquisita.
MARTHA– Não sabemos quanto tempo nos manterão presos.
JEAN PAUL– Presos por que?
SÔNIA– Somos apenas professores... mal pagos, fodidos!
VALÉRIO– Temos água para dois dias, se não exagerarmos.
SÔNIA– Isso é um cativeiro?
RUI– Alguém trouxe mais comida?
VERUSKA– Eu vou recolher as partes que servem para comer.
SÔNIA– Aproveita e me devolve aquela bituca para eu guardar. Não se
sabe quanto tempo eu vou viver no racionamento.
JEAN PAUL– Isso só pode ser uma brincadeira.
MARTHA– Descarte essa possibilidade.
RUI– Quem sabe um treinamento.
VERUSKA– Uma gincana, adoro jogos.
MARTHA– Um jogo é possível.
VALÉRIO– Há muito tempo que eles vêm nos ameaçando.
MARTHA– E agora eles estão cumprindo o que prometeram.
SÔNIA– Ameaça de que?
MARTHA– São os vermes! Mas eu só serei dominada por vermes,
quando eu estiver morta.
VALÉRIO– O desejo deles vai além de nos trancar em uma sala. Eles
querem nos exterminar.
RUI– Por que?
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MARTHA– A nossa existência é uma intimidação para eles.


JEAN PAUL– Eles quem?
SÔNIA– Os vermes, ela falou.
MARTHA– Não brinque com isso, por favor.
VALÉRIO– O sistema.
RUI– Você também sabe!
JEAN PAUL– O que é que ele sabe?
RUI– Tem um tal de “sistema” na jogada.
SÔNIA– Sistema nervoso? Agora não foi brincadeira.
VERUSKA– Eu nunca ouvi falar.
RUI– Que cheiro é esse?
SÔNIA– É meu cigarro, cacete.
MARTHA– Nós precisamos verificar se há ventilação nesta sala.
RUI– Você não acha que isso pode ser como uma câmara...
VALÉRIO– Câmara de gás?
MARTHA– Nada que venha deles me espantaria.
RUI– Eles querem nos matar?
MARTHA– Ninguém disse isso.
SÔNIA– Disse sim, ele disse, eu ouvi.
JEAN PAUL– Fica quieta porra!
SÔNIA– Ele falou: eles querem nos exterminar.
VERUSKA– Talvez seja uma demissão em massa.
MARTHA– As massas são como porcos vestidos de humanos
domesticados pelo sistema.
VERUSKA– Eu falo da massa como quantidade, volume.
VALÉRIO– Eles não trancariam seis pessoas em uma sala para apenas
nos dispensar. Eu já teria sido demitido quando me tiraram do auditório.
RUI– Isso pode estar acontecendo em toda a instituição.
SÔNIA– Uma reunião de professores a portas fechadas?
VERUSKA– Será que outros também foram convocados?
MARTHA– Sim! Todos os professores de humanas.
RUI– Nós saberemos em pouco tempo o que eles querem de nós.
MARTHA– Quinze horas! É o horário marcado para a reunião começar.
VALÉRIO– Falta um minuto.
RUI– Um minuto e nós saberemos o que viemos fazer.
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Um longo e incômodo silêncio se estabelece.

VERUSKA– Eu odeio ficar em silêncio.


VALÉRIO– É o primeiro idioma que devemos dominar.
MARTHA– Trate de ficar fluente nele.
RUI– Só mais trinta segundos.
VERUSKA– Eu sofro de Fronemofobia.
SÔNIA– Tem mais essa agora?
JEAN PAUL– Fica quieta fumante.
SÔNIA– Vai se lascar, demônio.
MARTHA– Vinte segundos.
VERUSKA– Fobia de silêncio.
JEAN PAUL– Dezoito.
VERUSKA– Eu não consigo ficar quieta. Eu preciso falar...
RUI– Quinze segundos.
VERUSKA– Eu prefiro ser torturada do que ficar sem falar, sem me
mexer. Eu tomo medicações fortíssimas para aliviar.
RUI– Não eram remédios naturais?
VERUSKA– Foco na contagem.
MARTHA– Dez.
RUI– Nove.
JEAN PAUL– Oito.
VERUSKA– Sete.
VALÉRIO– Seis.
JEAN PAUL / SÔNIA– Cinco.
MARTHA– Quatro.
RUI– Três.
VALÉRIO– Dois.
MARTHA– Um.

Ao final da contagem as luzes se apagam. Breu! No escuro ouvimos VALÉRIO.

VALÉRIO– Ninguém solta a mão de ninguém.

Uma luz vermelha acende abruptamente. Os professores balbuciam frases sem


nexo, baixíssimo, uns para os outros, incrédulos.
19

O CONFLITO
15h15

Passaram-se quinze minutos desde que as luzes se apagaram. Uma legenda


nos dá a ideia do horário e da cena em que estamos. A luz vermelha está
acesa e os professores em silêncio. MARTHA usa o seu dialeto particular para
se comunicar com os extraterrestes procurando evidências. JEAN PAUL vai
até o quadro negro e apaga parte da frase que estava escrita e no lugar
registra: NOS TIREM DAQUI! VERUSKA está inquieta. A mulher toma
algumas pílulas a seco para se acalmar. SÔNIA fuma espaçando o tempo
entre uma tragada e outra. RUI verifica o aparelho celular e percebe algo.

RUI– Estranho... o meu celular estava com a bateria completa.


VERUSKA– O meu também descarregou!

Todos verificam os telefones, MARTHA não. Os aparelhos estão desligados.

MARTHA– Eles começaram a agir. (PARA A CÂMERA) Ratos!


JEAN PAUL– Precisamos saber qual é o próximo passo.
RUI– Eles sabem de nós, mas nós não sabemos nada sobre eles.
MARTHA– São os repteis do sistema. Eles evoluíram aqui na Terra
após uma viagem intergaláctica. Depois se disfarçaram, começaram a
se reproduzir com os seres humanos, alterando o seu DNA.

Sem muito afeto MARTHA alisa a própria barriga.

VERUSKA– Doze meses... foram eles?


MARTHA– O último procedimento para me controlar. Primeiro eles
tentaram diminuir a minha capacidade intelectual instalando um chip que
limita a minha consciência. Em seguida me fertilizaram para que eu
gerasse um deles. Eu seguro esse bebê, para que ele nunca nasça.
RUI– Isso é teoria da conspiração!
MARTHA– Eu luto contra esses vermes há muito tempo. Eles criaram
uma prisão global para capturar e prender as pessoas... e elas nem
sequer percebem.
SÔNIA– No caso, nós.
MARTHA– Eles se instalaram na maioria dos líderes mundiais ao longo
da história fundando as famílias que contribuíram para grandes eventos
históricos. E há milhares de anos eles tem envenenado os humanos.
20

JEAN PAUL– Você quer que a gente acredite nessa baboseira?


MARTHA– Está em Gênesis... Adão e Eva foram expulsos do Jardim do
Éden quando Eva foi tentada pela serpente, um réptil.
VERUSKA– Você me disse que não acreditava em Deus.
MARTHA– Eu reafirmo. Deus é fruto da sua dor, uma resposta para as
suas angústias. Eu acredito em ufologia! E para nós, os reptilianos são a
raça mais temida... desgraçados!
SÔNIA– Não tem uma teoria que afirma que a Rainha da Inglaterra é...
MARTHA– Não só ela... George Bush, Abraham Lincoln, Obama, Brad
Pitt, Marylin Monroe, Pocahontas.
SÔNIA– A Pocahontas?
VERUSKA– Amo!
RUI– A índia da Disney?
MARTHA– Você pode ser um reptiliano e não saber.
JEAN PAUL– O eles querem de nós?
MARTHA– Nossa cabeça! Eles nos consideram uma fonte de alimento:
comem a nossa carne, nosso cérebro e chupam o nosso sangue.

Todos notam que estão com chips instalados atrás do pescoço, na nuca.

MARTHA– Precisamos aguardar eles fazerem contato.


JEAN PAUL– Eles quem?
RUI– A Pocahontas!
VERUSKA– Os lagartos humanos.
JEAN PAUL– Eles nos trancaram aqui?
MARTHA– Quem está no poder quer nos tirar de circulação.
RUI– O governo?
VALÉRIO– O sistema.
RUI– Oquei! Mas quem responde pelo sistema?
MARTHA– Eles querem bloquear o nosso pensamento e nos dizimar.
SÔNIA– Tipo... vão estar nos matando?
MARTHA– Vocês não viram o que fizeram com nosso amigo artista? Foi
impedido de exercer a sua função e está numa sala desativada.
JEAN PAUL– Foi um caso isolado.
VALÉRIO– Em tantos outros que não damos importância.
RUI– Será que nós somos objeto de um “estudo”?
SÔNIA– Nos trancar para realizar um experimento. De que tipo?
21

MARTHA– Como nos comportamos em grupo. Ver quem fala mais.


VERUSKA– Eu! Sem dúvidas.
JEAN PAUL– Eles querem observar como agimos em sociedade?
MARTHA– Como reagimos sobre o comando deles. Mas não é de hoje
que eles fazem isso, só não percebeu quem não quis.
VERUSKA– Os militares estão por trás do sistema, será?
SÔNIA– Um regime ditatorial, talvez.
JEAN PAUL– Nos dias de hoje?
MARTHA– Quando tudo começa a dar errado, eles nomeiam líderes
para defender governos autocráticos.
JEAN PAUL– Eu não me relaciono com nada nesse país, escolhi não
viver esse mundo. Eu não tenho nada a ver com isso.
VALÉRIO– Em momentos de crise a nossa responsabilidade aumenta.
JEAN PAUL– As pessoas mais felizes são as alienadas! Para elas tanto
faz, não precisam pensar... questionar.
MARTHA– Vivemos a destruição do saber, não podemos argumentar.
VALÉRIO– Questionou é de esquerda.
MARTHA– A alienação é o maior controle das massas. E o mais
assustador não é a ideia de aliens em planetas desconhecidos, mas
saber que em todo este universo, nós estamos sozinhos.
RUI– Você está vendo muito seriado americano, isso sim.
MARTHA– Viramos ratos presos em laboratórios criados por eles.

SÔNIA começa a usar a linguagem de sinais (surdo e mudo).

SÔNIA– Nós estamos prontos e podemos começar. Estamos de acordo


mesmo sem saber as regras. Só queremos que sejam específicos.

Imediatamente uma música é ouvida. Sugestão para “STARSHIP” do MC5.


Todos se assustam! VALÉRIO corta a mão em alguma mobília. O homem
reclama de dor. Aos poucos, as luzes são acesas e o vermelho é retirado
totalmente. A música vai baixando até sumir por completo.

VALÉRIO– Puta merda, eu cortei a minha mão.


MARTHA– Tem uma caixa de primeiros socorros no armário.
VERUSKA– Eu vou buscar!
VALÉRIO– Eu não posso ver sangue, eu passo mal.
JEAN PAUL– Cuidado para não desmunhecar na frente de todo mundo.
22

RUI ri. VERUSKA mexe no armário. MARTHA se aproxima de SÔNIA.

MARTHA– Nós vamos precisar de você para fazer contato.


SÔNIA– Pelo visto teremos que tomar decisões difíceis.
MARTHA– Eu vim preparada para lutar até a morte.

RUI e JEAN PAUL conversam em outro canto da cena.

RUI– Você acha que isso é um processo de eliminação?


JEAN PAUL– De que tipo?
RUI– A gente vai eliminando uns aos outros e quem sobrar, vence.

VERUSKA que está no armário, fala de lá mesmo para todos ouvirem.

VERUSKA– Eu não estou achando a caixa de primeiros socorros.


MARTHA– Na segunda gaveta.
VERUSKA– Achei a danada.

VERUSKA coloca sobre a mesa. Ela abre na tentativa de achar uma gaze para
cobrir o ferimento de VALÉRIO. Ao se deparar com o conteúdo, ela estranha.

VERUSKA– Santa Teresa! (COMEÇA A REZAR) “Nada te perturbe,


nada te espante. Tudo passa, Deus não muda. Quem tem a Deus,
mesmo que passe por momentos difíceis, nada lhe falta”.

Um a um, se aproximam da caixa de primeiros socorros e tiram de dentro uma


arma. Nesta ordem: VERUSKA (soco inglês), SÔNIA (spray de pimenta),
JEAN PAUL (tesoura), VALÉRIO (frasco de veneno) e RUI (martelo). Para
MARTHA não sobrou nada. Quem está com arma, sente o poder de segurá-la.

RUI– Foi a grávida abduzida, com a pá de lixo, na sala dos professores.


(TEMPO BREVE) É um jogo! Vocês não tiveram infância?
JEAN PAUL– Cada um sabe como usar a arma, eu espero!
VALÉRIO– Usar contra quem?
SÔNIA– Contra o outro, otário!
JEAN PAUL– Puxa! Alguém ficou sem nada, que péssimo dia!
23

VALÉRIO– E se nós fizéssemos um sorteio para distribuir novamente.


Isso tornaria o processo mais democrático.
VERUSKA– Eu não concordo.
VALÉRIO– A vida adulta é cheia de negociações e acordos.
RUI– Cada um chegou e pegou a sua – ela ficou sem – problema dela.
JEAN PAUL– Chegou por último.
RUI– Começou em desvantagem!
VALÉRIO– Vocês percebem o que uma arma na mão é capaz de fazer?
Em pouco tempo vocês viraram monstros.
MARTHA– Sobrou a faca espetada na maçã, talvez seja para mim.
JEAN PAUL– Estar em posse de uma arma pode ser regra do processo.
VERUSKA– Precisamos obedecer.
MARTHA– Que regra? As armas só foram encontradas porque
precisamos da caixa de primeiros socorros.
JEAN PAUL– Você disse que essa sala é sua, certo? Quem garante
que não foi você que escondeu as armas no armário!
MARTHA– Comeu merda?
SÔNIA– Ela pode estar falando a verdade, mas ele não!
VALÉRIO– O que eu tenho a ver com isso?
SÔNIA– Você se machucou de propósito para precisarmos da caixa e
com isso encontrar as armas.

JEAN PAUL pressiona VALÉRIO apontando a tesoura em sua direção.

JEAN PAUL– Acho melhor você abrir o bico e contar tudo!


VALÉRIO– Eu não sei de nada, eu juro!
MARTHA– Espera! Tudo isso foi plantado nesta sala para fazer com que
a gente brigue uns com os outros. E está surtindo efeito! A vida é curta,
que ela não seja também pequena. (TEMPO) Larguem as armas, agora!

Com calma, um a um, eles colocam as armas no chão. A sirene dispara!

VERUSKA– Sinal dos infernos!


RUI– Toda hora essa merda dispara.
MARTHA– Eles querem que cada um fique com uma arma.
SÔNIA– Talvez a gente tenha que se defender um do outro.
24

Cada um pega a sua arma. A sirene para.

RUI– Você precisa da sua, melhor retirar a faca da maçã.


JEAN PAUL– Quer saber, fique com a minha que eu pego a sua.

JEAN PAUL deixa sua tesoura perto de MARTHA e segue firme em direção a
maçã. Ele segura a fruta com uma mão e com a outra se prepara para tirar a
faca. Todos pedem para ele não fazer, com frases improvisadas.

RUI– Espera! Acho que eu comecei a entender algo sobre o processo.


Os sinais! Eles estão se comunicando através de estímulos sonoros e
luminosos. (EXPLICA) Luz vermelha: aguardem as instruções.
SÔNIA– Pode ser também: procurem por evidências.
VALÉRIO– Ficamos um tempo com a luz vermelha acesa até a nossa
amiga se comunicar com a linguagem de sinal.
VERUSKA– O que significa as luzes piscando?
MARTHA– Chamar atenção, algo como: vocês estão sendo observados.
RUI– Sirene é algo negativo, como se estivéssemos respondendo errado
ao que eles desejam que cada um faça individualmente ou no coletivo.
MARTHA– Aconteceu quando eu falei da minha disciplina.
VERUSKA– Comigo também, quando eu retirei a faca da maçã.
SÔNIA– Mas nós ainda não temos um código para entender quando
agimos de acordo com as intenções deles.
RUI– Um “sim”, você quer dizer.
VALÉRIO– Melhor você tentar tirar a faca espetada, se for a sua arma a
sirene não será acionada e teremos o sinal positivo do sistema.

MARTHA decide testar para ver o que acontece. Ela tira a faca da maçã e
imediatamente o sistema aciona uma música, dessa vez “ALIENS EXIST” do
Blink 182. JEAN PAUL, pega a sua tesoura. Agora todos estão com suas
armas em punho. O volume da música diminui até sumir.

VERUSKA– Ufa! Agora podemos fatiar o bolo.


RUI– Que bom gosto musical senhor sistema!
SÔNIA– Preferia ouvir o funk sobre a Terceira Guerra Mundial.
JEAN PAUL– É Blink 182.
SÔNIA– Ele adora!
JEAN PAUL– Vai cagar!
SÔNIA– Adora sim, tem até pôster autografado.
25

JEAN PAUL– O som deles é de engajamento político-social. O grupo se


conheceu no ensino médio e formou a banda.
VERUSKA– Pelo menos esses jovens fizeram alguma coisa.
JEAN PAUL– “Espero que não seja uma criatura lá de cima”.
Perceberam a letra? “Eu recebi uma injeção de medo, de abdução”.
RUI– Temos mais um item: a música.
MARTHA– Eles não vão fazer contato sempre, nós é que temos que
descobrir a próxima etapa, como um tabuleiro.
VERUSKA– Espertinhos!
JEAN PAUL– Eu tive uma ideia! Vamos nos espalhar e procurar por
pistas, algo que nos leve adiante no jogo.

A luz vermelha acende. Eles se espalham e separados começam a procurar


novas evidências, interessados em descobrir o que está por vir. MARTHA é a
única que se mantém parada, de pé, olhando para a câmera com ódio latente.

RUI– Estou me sentindo no filme dos Goonies.


VALÉRIO– (IMITA O PERSONAGEM DO FILME) Sloth quer chocolate.

As luzes começam a piscar.

SÔNIA– Já sabemos que vocês estão nos observando. Toma uma teta!

SÔNIA levanta a blusa e mostra um peito para as câmeras. Todos param e


olham o seio da mulher que foi reconstruído recentemente após um câncer.

JEAN PAUL– Vai começar o showzinho?


SÔNIA– Fica quietinho e continua procurando!
JEAN PAUL– Você devia ter vergonha...
SÔNIA– De mostrar um peito reconstruído depois de um câncer?
JEAN PAUL– Menos!
SÔNIA– Menos você! Acreditam que ele deixou de me procurar como
mulher depois que eu tive a doença?
VERUSKA– Vocês são casados?
JEAN PAUL– Somos.
SÔNIA– Ser ou não ser, não faz a menor diferença.
RUI– Logo vi! Casal é composto por uma que surta do nada e outro que
fala “vai começar”?
26

SÔNIA– Mas ele tem nojo de mim, um nojo gigantesco.


VALÉRIO– Eu acho o seio feminino uma coisa linda, sagrada.
JEAN PAUL– Tarado dos infernos!
VALÉRIO– Delacroix em seu quadro mais famoso exprime sua crença
na liberdade através de uma mulher com os seios nus.

A sirene toca. MARTHA conclui certeira.

MARTHA– Precisamos nos unir. Separados, os sinais ficam confusos e


não dá para saber quem está perto de encontrar alguma coisa. Se
procurarmos juntos os sinais ficarão precisos.

A sirene para, mas as luzes continuam piscando, assim como a iluminação


vermelha. Quando chegam próximos ao mimeógrafo as luzes param de piscar.

MARTHA– Deve ter algo no mimeógrafo velho.


JEAN PAUL– Cadê a música, senhor sistema?
VALÉRIO– Manda uma decente dessa vez. Pela atenção, obrigado.
MARTHA– O que será que temos aqui?

MARTHA encosta na manivela do mimeógrafo. Ouvimos um fragmento da


abertura da ópera “La Gazza Ladra” de Rossini. Ela gira! Uma folha
(memorando) com instruções para os professores é lida por MARTHA.

MARTHA– (LENDO) Processo de eliminação número quarenta mil.


Vocês – professores desta instituição de ensino nome tal, endereço tal...
– foram escolhidos para um processo seletivo, serão submetidos a
provas e deverão eliminar-se uns aos outros. O sistema decidiu focar em
áreas que gerem retorno imediato, estamos cerceando o pensamento. A
partir de hoje é proibido questionar e o homem deverá pensar e agir de
forma lógica, racional. Livros serão queimados, teatros fechados,
bibliotecas isoladas, artistas e pensadores serão destruídos. Vocês
foram trancados nesta sala e não sairão até que reste apenas um.
JEAN PAUL– Vamos ter que nos matar?
MARTHA– (LENDO) Defendam-se! Nós estamos observando e através
dos sinais iremos nos comunicar, porém quem está no comando do
processo a partir de agora são vocês. Isso pode levar horas ou dias,
vocês não serão alimentados e utilizem o restante da água com
sabedoria. Atenção: não tentem escapar. Boa sorte!

Todos permanecem em silêncio, pensativos. Neste clima a cena termina.


27

A APRESENTAÇÃO
17h33

Um tempo passou desde que eles descobriram o memorando do sistema. Uma


legenda nos dá a ideia do horário e da cena em que estamos. SÔNIA lê o
papel. JEAN PAUL, empurra o armário de lugar deixando um espaço atrás do
móvel para servir de banheiro. VERUSKA que está próxima ao bebedouro
improvisa uma bandeja com uma pasta plástica enchendo seis copos. Em
seguida, serve para todos os professores. JEAN PAUL termina de fazer xixi.

JEAN PAUL– Eu improvisei um banheiro atrás do armário. Difícil vai ser


aguentar o cheiro, mas não tem outro jeito.
VALÉRIO– Vamos formar uma roda e fazer como num primeiro dia
numa aula de teatro. Geralmente nós começamos nos apresentando.
Cada um fala o nome, sua disciplina. Nem todo mundo se conhece. Se
for um processo de eliminação precisamos saber quem é o adversário.
MARTHA– Precisamos começar, por pior que possa ser o desfecho.

Eles se olham para decidir quem começa. VALÉRIO inicia a apresentação.

VALÉRIO– Meu nome é Valério...


VERUSKA– Oi Valério!
RUI– Isso vai virar uma reunião de autoajuda?
VALÉRIO– Seriedade pessoal! Não podemos adiar para depois.
SÔNIA– Não se adia nada para depois. Diga apenas “adiar”.
MARTHA– Precisamos encarar de frente, com honra.
SÔNIA– Diga apenas encarar, você já estará de frente fisicamente. Meu
Deus, essa gente destrói meus ouvidos com esse linguajar chulo.
JEAN PAUL– Bastou nos trancarem para os líderes emergirem.
VALÉRIO– Estamos nos organizando para tentar vencer o sistema.
JEAN PAUL– Então trate de encarar isso como um homem.
VERUSKA– Vocês prestaram atenção nos pequenos detalhes?
SÔNIA– Cacete! É um pior que o outro? Cuidado com os pleonasmos.
MARTHA– O que está acontecendo não é brincadeira.
SÔNIA– Não deve ser mesmo, porque eu não estou achando a mínima
graça. É para se apresentar? Ótimo! E depois acontece o que? O último
que restar sai daqui? Quero! Eu serei essa pessoa. Eu começo!
VERUSKA– Mas ele estava fazendo isso antes...
28

SÔNIA– Foda-se!
VALÉRIO– Tudo bem ela começar, eu não me importo.
VERUSKA– Eu me importaria, se ela fizesse isso comigo, nem sei.
SÔNIA– O que foi que você falou cara de merda? Repete se for mulher!
VERUSKA– Cara de merda é você, mutilada!

SÔNIA espirra spray de pimenta nos olhos de VERUSKA, que revida xingando.

SÔNIA– E se falar mais, eu te pego lá fora!

JEAN PAUL pega a mulher pelo braço e leva para longe da confusão. RUI
aplaude, incentivando a briga. VERUSKA não enxerga e reclama de dor.

JEAN PAUL– Você passou dos limites!


SÔNIA– Viram o que ele fez? Ele é agressivo, escroto... ele me bate!
RUI– Revida mulher! Não deixa ela cantar de galo para cima de você.
VERUSKA– Eu não consigo enxergar, que merda.
SÔNIA– E se falar mais vou espirrar no teu cu.
RUI– Aproveita para usar o teu soco inglês, eu te direciono até ela.
SÔNIA– Cala a boca paraplégico de bosta!

VALÉRIO tem um surto. Ele fica muito irado, mesmo!

VALÉRIO– Se o conhecimento pode criar problemas, não é através da


ignorância que podemos solucioná-los. Selvagens!

Depois do berro de VALÉRIO, todos se acalmam.

VALÉRIO– Será possível que nós vamos descer a um nível tão baixo?
Desde que comecei a lecionar, eu descobri que poucos alunos
realmente fazem diferença no futuro. O restante servirá apenas para
fazer volume, passarão pela vida sem fazer nada de útil. O mesmo vale
para nós, professores! Se eu pudesse, ficaria nesta sala apenas com os
que valem a pena duelar, os melhores. Mas vocês estão se mostrando
como a maioria... vivem uma existência inteira só para fazer volume.
MARTHA– Mas é isso que nós somos, massa de manobra, volume. Não
que eu concorde, aliás eu luto contra, todos os dias. Estou exausta... e
ainda carrego comigo essa aberração, esse bebê de Rosemary.
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RUI– Vocês querem um palanque?


VALÉRIO– Eu quero que você cale essa sua boca miserável e me deixe
terminar. Eu estou farto de aguentar a suas indiretas!
JEAN PAUL– Você está assim só porque fecharam uma biblioteca?
RUI– Elas já vivem as moscas, vazias...
VALÉRIO– Um retrato de uma sociedade rasa. Mas não são apenas as
bibliotecas que estão vazias, os teatros também estão.
JEAN PAUL– Quem precisa de arte para viver?
VALÉRIO– Conhecimento não é aquilo que você sabe, mas o que você
faz com aquilo que sabe. Eu não nasci para ser gado.
RUI– Pois eu sou um gado felicíssimo.
MARTHA– Lembrando que existe gado nos dois terrenos.
RUI– Exato!
JEAN PAUL– Esse pensamento é muito bonito e eu já ouvi uma porção
de gente como vocês berrando por direitos. Não adianta mais abraçar
engajamentos e levantar a cartolina na rua. Desistam!
VALÉRIO– Eu consegui convencer meus atores a cavar um túnel que dá
acesso ao aprendizado porque é a única coisa que pode mudar o
mundo. Está cheio de gente trocando os livros por armas. A ignorância
que reina é fruto de quem se conforma!
MARTHA– Este é o processo número quarenta mil. Já pensaram
quantos professores estão neste exato momento, presos, tendo que
defender sua existência. Isso está acontecendo!

A luz vermelha acende e eles logo entendem o recado.

VALÉRIO– Precisamos prosseguir com a apresentação.

Eles voltam para a roda. SÔNIA que está mais calma começa a se apresentar.

SÔNIA– Meu nome é Sonia, eu tenho 41 anos, heterossexual, ariana,


sobrevivi a um câncer no seio...

MARTHA abre uma das pastas, encontra etiquetas e se prepara para


preencher com os nomes das pessoas; para colarem em alguma parte do
corpo para que cada um se identifique facilmente. SÔNIA se irrita rapidamente.

SÔNIA– O que você está fazendo?


MARTHA– Anotando o nome de cada um para facilitar a identificação.
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VALÉRIO– Nós estamos criando um novo modelo de convivência e


precisamos estabelecer as nossas regras.
SÔNIA– Meu nome é Sônia, o resto eu já falei, não vou repetir.
VERUSKA– Veruska! E o dele é Rui... viu como eu guardei.
RUI– Obrigado por me representar.
VALÉRIO– Valério!
MARTHA– Calma, eu sou uma só para anotar.
JEAN PAUL– Posso falar? O meu nome é Jean Paul.
MARTHA– Como o Jean Paul Sartre?
VALÉRIO– (CITANDO SARTRE) “Nunca se é homem enquanto não se
encontra alguma coisa pela qual estaria disposto a morrer”.

MARTHA termina de escrever e começa a distribuir as etiquetas.

VALÉRIO– Podemos voltar a apresentação?


SÔNIA– O que mais vocês querem saber?
MARTHA– Você é professora de qual disciplina?
SÔNIA– Língua Portuguesa. Mas a maioria aqui sabe, precisa falar?

MARTHA aponta para as câmeras. SÔNIA prossegue ironizando.

SÔNIA– Literatura também. (TEMPO) Próximo!


VERUSKA– Eu posso? Eu fico ansiosa nessas dinâmicas de
apresentação, então eu prefiro ser uma das primeiras, assim acaba logo.
VALÉRIO– Diga o seu nome e a sua disciplina.
VERUSKA– Mas ela falou mais do que isso. Não é justo!
MARTHA– Fale o que quiser minha filha, mas comece logo.
VERUSKA– Eu sou a Veruska, professora de Filosofia, estou solteira... a
idade eu não revelo nem sob tortura. Sou geminiana, tenho alergia a
glúten – morro só de pensar – e tenho mania de organização.
MARTHA– Seja bem-vinda Veruska! Nós já te amamos. Só que não!
JEAN PAUL– Eu sou professor de Sociologia e isso é tudo.
MARTHA– A minha missão é ensinar História e essa tem sido a minha
vida desde que eu me conheço por gente. Meus irmãos, a partir de
agora vocês são como uma família para mim. Martha!
RUI– Meu nome é Rui. Eu dou aulas de Geografia, quer dizer, eu tento,
porque ninguém mais se importa em saber sobre mapas e localizações.
Territórios não são para ser aprendidos, mas para serem conquistados.
31

A sirene dispara por um tempo e logo cessa.

MARTHA– Vermes malditos que adoram atrapalhar tudo!


VALÉRIO– Não podemos tecer críticas a matéria que ensinamos.
MARTHA– Primeiro nos apresentamos, em seguida começamos a
defender nossa existência como educadores. Só falta você!
VALÉRIO– Eu sou professor de artes, para aqueles que não me
conhecem. Outros já me viram pelos corredores, mas nunca notaram a
minha presença. Afinal porque devemos nos preocupar com um artista?

A sirene dispara e não cessa. VALÉRIO não desiste de falar.

VALÉRIO– “Todo homem é um artista”. Sim! Nós manifestamos o


pensamento humano através das nossas obras porque somos inquietos.
E não é preciso produzir um objeto de arte para mostrar que todos
temos questionamentos. A diferença é que nós temos sensibilidade para
perceber o que acontece a nossa volta... e nada passa desapercebido.
Nós encaramos a faca rasgando o peito e fazemos poesia – com a
nossa desgraça – porque é mais difícil o entendimento! Vocês não veem
beleza na dor, mas nós sim! Mais do que uma profissão, ser artista é
uma identidade. “O que mais você faz além de ser artista”? E eu
respondo: eu respiro! E eu só vou parar quando eu morrer.

VALÉRIO, alterado, joga uma ou duas cadeiras para o alto. Embaixo delas há
envelopes presos. MARTHA se apressa, pega um deles e abre.

VALÉRIO– A porra de cadeira que os alunos sentam a bunda enquanto


tentam aprender, foi feita por alguém: um marceneiro... um artista!

A sirene cessa. A luz vermelha acende. MARTHA lê o papel do envelope.

MARTHA– É uma certidão de óbito. Em nome de Rui Conceição de


Oliveira. A causa mortis: morreu por saber demais.
JEAN PAUL– Tem mais envelopes debaixo das outras cadeiras.
MARTHA– Vermes miseráveis! Eles decretaram a nossa morte!

A cena termina com cada professor procurando o envelope com o seu nome. O
clima é de apreensão, a partir daquele instante eles tem a certeza que
morreram e que defender a sobrevivência será a única saída.
32

O PROCESSO
18h01

A luz vermelha é acesa. Uma legenda nos dá a ideia do horário e da cena em


que estamos. Os professores encontram seus envelopes embaixo das
cadeiras. Com os documentos em mãos eles leem as informações. VALÉRIO
procura por pistas embaixo de outros móveis.

VALÉRIO– Sem mais surpresas embaixo dos móveis.


SÔNIA– Você acha que seria tão óbvio?

JEAN PAUL percebe um detalhe importante.

JEAN PAUL– A minha certidão não tem data e hora.


RUI– A minha também não.
VERUSKA– Só tem a causa da morte.
SÔNIA– Morremos por que “pensamos”?
VALÉRIO– Num modo mais amplo, porque todo homem é ser pensante.
SÔNIA– E vai sobrar o que... os ignorantes?
MARTHA– Vivendo sem questionar, que ódio!
RUI– O sistema não quer nos manter vivos. A conta é cara!
MARTHA– Os ratos querem focar em áreas que gerem retorno imediato.
VALÉRIO– Qual profissão tem retorno a curto prazo?
SÔNIA– Meus alunos acham que os livros têm muita coisa escrita. Mas
eu ensino o que: Língua Portuguesa, caralho. O que o sistema quer?
Que eu eduque em cartilhas antigas? Ainda por cima eu fui denunciada
naquele canal que abriram para ouvir os alunos, sabe?
VALÉRIO– O objetivo é acabar com a prática da doutrina ideológica.
MARTHA– A constituição assegura a liberdade de ensinar, aprender.
JEAN PAUL– E quem respeita a constituição?
VALÉRIO– Nós não podemos ser censurados!
MARTHA– Cortes nas humanas é uma tradição de sistema de
organização de pensamento retrógrado.
JEAN PAUL– Vivemos num país com miséria, fome, luta pelo mínimo.
Porque investir em algo que não dá retorno?

VERUSKA que estava quieta analisando o documento dispara com fé.


33

VERUSKA– Nós é que devemos preencher nas certidões a data e a


hora da nossa morte.
SÔNIA– Virei escrivã? Deve ganhar mais que professora, certeza.
VERUSKA– O memorando é claro: devemos eliminar uns aos outros
porque o sistema não nos quer ensinando.
RUI– Então o sistema é a “educação”?
MARTHA– Neste momento somos nós!
SÔNIA– Mas disseram que faríamos provas. Cadê as provas?
VALÉRIO– Talvez nós devemos criar.
MARTHA– Acho coerentíssimo. As provas e as regras das provas!
RUI– Se ficarmos aqui discutindo, não saberemos como termina.
VALÉRIO– Podemos morrer de inanição.
MARTHA– Nós precisamos começar a nos eliminar.

A luz vermelha é apagada. Uma música clássica é ouvida.

RUI– Primeiro vamos entender o que é “eliminar”.


SÔNIA– Eliminar é um verbo transitivo direto que também significa
retirar, cortar, excluir, matar. Ou até mesmo fazer sair, expulsar.
MARTHA– Até restar o último! Se nós vamos preencher a data e hora
da morte de cada um, vai ter que sobrar alguém.
RUI– Em vez de averiguar a verdade, eu sempre imagino o pior.
JEAN PAUL– Precisamos criar as nossas regras.
VALÉRIO– Cada um poderia sugerir uma regra.
MARTHA– Seria democrático, gosto demais!
VERUSKA– Se o sistema rejeitar, saberemos pela sirene.
VALÉRIO– Lembrando que o diálogo vence a violência. (TEMPO) Posso
começar? Minha sugestão é fazer embates duplos e cada professor
defende a sua disciplina e porque ela é importante para a educação.
RUI– E como escolhemos as duplas?
JEAN PAUL– Por votos da maioria, escrevemos em papéis!
VERUSKA– Eu providencio os papéis e a urna.
SÔNIA– Maravilhosa ela, impressionante.

Ela pega papéis nos livros de VALÉRIO, além da caixa de primeiros socorros.
34

SÔNIA– Quem sobreviver ao embate escolhe com quem quer duelar.


JEAN PAUL– Eu já tinha sugerido uma regra para a escolha das duplas.
MARTHA– Para a primeira formação!
RUI– Podemos usar as armas, se necessário. Essa é a minha regra.
VALÉRIO– Vocês concordam?
VERUSKA– Como eu disse, vivemos a lei do mais forte.
MARTHA– E qual é a sua regra?
VERUSKA– É para o sistema! Quando restar um, a pessoa tem o direito
de sair daqui e seguir ensinando o que ela bem entender.

Tempo. A sirene não é acionada.

RUI– O gênio da lâmpada atendeu o seu desejo.


JEAN PAUL– Só falta você.
MARTHA– A minha regra é que a gente duele até a morte.
VALÉRIO– Todos de acordo?

As pessoas balançam a cabeça positivamente. VERUSKA distribui os papéis.


Eles votam e depositam na urna. Ela começa a abrir e ler o resultado.

VERUSKA– Primeiro voto: Sônia.


SÔNIA– Quem foi?
VERUSKA– (LENDO) Um voto para: Jean Paul. (LENDO) Veruska.
SÔNIA– Fui eu que votei em você.
MARTHA– Meu anjo, o voto é secreto.
VERUSKA– (LENDO) Mais um voto para mim. (LENDO) Jean Paul.
VALÉRIO– Vocês dois estão empatados... abre o último.
RUI– Teremos um embate triplo? Ninguém criou regra para desempate.
VERUSKA– (LENDO) Jean Paul.
MARTHA– O primeiro embate é entre a Sociologia e a Filosofia.

Dois focos fixos são acesos no chão. VERUSKA e JEAN PAUL entendem o
sinal e se posicionam um de frente para o outro dentro do foco.

VERUSKA– Eu começo ou você começa?


JEAN PAUL– Por favor, introduza.
35

VERUSKA– Qual o sentido da sua vida? Não é fácil olhar para si. Até o
mais miserável tem que ter direito de pensar o sentido da própria vida.
JEAN PAUL– Eu só estou pensando no que dizer, eu tenho dúvidas.
VERUSKA– Ter dúvidas é positivo! Se você não duvida, você não é
capaz de inovar, de reinventar... só sabe repetir padrões.
JEAN PAUL– Vai filosofar agora?
VERUSKA– É para isso que eu estou aqui.
JEAN PAUL– E o que é a filosofia para você?
VERUSKA– É o ato de interrogar, refletir e buscar respostas. Kant já
dizia: “não se aprende a filosofia, se aprende a filosofar”.
JEAN PAUL– E como se aprende? Observando! Sendo assim, eu sou
mais importante que você! A filosofia coloca um imenso ponto de
interrogação em tudo.
VERUSKA– Necessária para o exercício da razão.
JEAN PAUL– Vocês só sabem questionar, além de provocar a crítica.
VERUSKA– Nós procuramos argumentar, sem autoritarismos.
JEAN PAUL– E o que você me diz da quantidade de filósofos inseridos
nas ditaduras e até mesmo no nazismo!
VERUSKA– Assim como no direito, na física... A base do pensamento
está em muitas áreas e pode ser usado para o bem e para o mal.
JEAN PAUL– Então você concorda que a filosofia não é positiva?
VERUSKA– Ela é ótima quando ajuda a humanizar. Quando ela tenta
domesticar, é terrível! Assim como o estudo sociológico fez com você.
JEAN PAUL– Filosofia é pensar em ficar pensando em como a gente
pensa sobre as coisas.
MARTHA– Nunca tinha pensado nisso! Brilhante!
JEAN PAUL– Precisamos oferecer conteúdo que dê sentido à vida do
aluno. Durkheim dizia que a sociedade determina o indivíduo, que ele
está à mercê da sociedade e deve se moldar a ela. Marx acreditava na
reciprocidade. E para Weber, o indivíduo determina a sociedade.
VERUSKA– E qual deles te representa?
JEAN PAUL– Eu estou de acordo com o sistema, e assim como
Durkheim, eu aceito me submeter as regras e obedecer.
VERUSKA– A tal da crença no progresso! É nisso que você acredita?
JEAN PAUL– É como um corpo humano, quando um órgão falha a
sociedade adoece. Nós somos coagidos há tempos! Lutar mais?
VERUSKA– A educação não precisa funcionar a partir da coerção.
JEAN PAUL– “Você estuda para ser alguém na vida”. Esse é o
pensamento predominante, do sistema.
36

VERUSKA– Sem dinheiro não se vive, mas só com dinheiro também


não se vive. As pessoas estão começando a fazer uma distinção
necessária entre o que é essencial e o que é fundamental.
JEAN PAUL– Toda utopia termina em distopia.
VERUSKA– Eu posso te contar uma história? (TEMPO) Eu perdi meu
marido – meses depois de me casar – num acidente de carro.
JEAN PAUL– Só falta tocar uma musiquinha dramática ao fundo.
VERUSKA– Eu era recém-formada e já dava aulas. A duras penas eu
consegui passar num concurso. Então eu me vi sozinha, viúva, com um
monte de sonhos interrompidos. Eu nunca mais fui a mesma. A religião
me acolheu, mas foi a filosofia que me ajudou a entender os porquês.
JEAN PAUL– Então você viveu o luto depois que tudo aconteceu?
VERUSKA– Sim.
JEAN PAUL– Teve depressão, se afundou em remédios...
VERUSKA– Por que isso agora?
JEAN PAUL– Você trouxe a discussão para esse campo.
VERUSKA– Eu quis dar um exemplo.
JEAN PAUL– Nossa sociedade não entende as próprias dores. O
número de pessoas sozinhas, isoladas em si mesmo é assustador. Os
remédios para a depressão e ansiedade crescem a cada dia. E com isso
ninguém aproveita o potencial que tem. Com tanta dor acumulada você
jamais poderá ser uma excelente profissional. Você é fraca Veruska!
VERUSKA– Que horas são?
JEAN PAUL– É só olhar para o relógio.
VALÉRIO– Dezoito horas e vinte e dois minutos.
VERUSKA– O que é o “tempo” para você?
SÔNIA– Eu não entendi.
VERUSKA– Eu perguntei as horas e bastou alguém olhar para o relógio
e dizer. Agora saber o que é o tempo é uma questão para a física, mas
também para a filosofia. Ela convida todo mundo a perceber outros
pontos de vista. Você me julgou, foi cruel, sem me conhecer.
JEAN PAUL– O pensamento provoca o questionamento. O sistema
deixou claro que eles não concordam com isso. Nem os próprios
filósofos chegaram a uma conclusão; uma definição fechada de filosofia.
VERUSKA– Eu aprendi com Russel que o questionamento enriquece a
nossa imaginação intelectual e diminui a nossa arrogância dogmática.
JEAN PAUL– E Platão dizia que a filosofia existe para nos ensinar a
morrer. Desista, você está em desvantagem.
VERUSKA– A sua ciência leva o nada a lugar nenhum e possui um
prazer enorme em enunciar os problemas da sociedade, mas que não se
coça para resolvê-los.
37

JEAN PAUL– Filosofia forma pensadores. Sociologia, cidadãos. Do que


o mundo mais precisa?
VERUSKA– De seres humanos!
JEAN PAUL– A história se inspirou na sociologia. Ela estuda não
apenas a sociedade, mas o sujeito inserido nela. Questões raciais, os
gêneros – pertencem a nós – o combate à violência contra as mulheres.
SÔNIA– Você defende um monte de coisa que não pratica!
JEAN PAUL– É a sua hora de falar? Não, não é! Cala boca!
SÔNIA– Não venha gritar por direitos às minorias quando você é o maior
escroto de todos. Vocês viram como ele me trata? Feito lixo, nada!
JEAN PAUL– Exatamente! Você é um amontoado de merda!

SÔNIA se aproxima do foco de luz em que JEAN PAUL está de pé e tenta


ultrapassar, mas ao entrar no espaço iluminado, ela sofre um choque, caindo
fora da área demarcada. A mulher tem espasmos leves.

SÔNIA– Filhos da puta, isso é um campo magnético?


RUI– Eu não entendo nada, sou professor de geografia.
JEAN PAUL– Aqui dentro eu estou protegido de você!
SÔNIA– É bom bancar o machão? Então aproveita e fala para o Valério
que você organizou o abaixo assinado tirando ele do auditório!
VALÉRIO– Você fez o que..?
SÔNIA– Colheu assinatura por assinatura, só para te expulsar de lá!

VALÉRIO fica possesso. Percebendo o perigo JEAN PAUL, tira a tesoura de


dentro da calça e ergue para se proteger. Sem pensar, VALÉRIO invade o foco
empurrando ele para fora do campo magnético soltando um berro, um urro.

VALÉRIO– “Vilão traidor, invocas quem te odeia”.

Ao sair do foco de luz, JEAN PAUL toma um choque violento e morre, como se
desligassem seu “sistema”. Todos paralisam! Os dois focos são apagados e
VERUSKA sai ilesa. SÔNIA fica atônita! VALÉRIO surta, assustado.

SÔNIA– Você matou o meu marido?


VALÉRIO– “Recebi uma ferida senhora! Jogai fora este vilão sem...”

SÔNIA dá um tabefe na cara de VALÉRIO que desperta do transe. O homem


tenta se desculpar, mas a mulher lhe abraça como forma de agradecimento.
38

SÔNIA– Obrigada! Ele era um merda, não valia para porra nenhuma.
MARTHA– Desligaram o chip dele.
VERUSKA– Essa batalha eu venci!
RUI– Nós vamos nos eliminar por questões pessoais?
MARTHA– Claro que não, mas elas contam... contam muito.
VALÉRIO– Mais alguém assinou o maldito documento para me exilar?

Ninguém responde. Ele insiste!

VALÉRIO– Antes tão corajosos, agora covardes?


VERUSKA– Eu assinei. Mas eu não sabia que era para te prejudicar.
SÔNIA– O meu marido me forçou. Segurou a minha mão e falou:
“assina essa merda de uma vez sua puta arrombada”.
VALÉRIO– Quem mais foi responsável por me foder?
RUI– Eu assinaria quantas vezes fosse necessário.
VALÉRIO– Vocês são desprezíveis! Querem calar os artistas, mas nós
existimos e não seremos invisíveis para sempre.
MARTHA– (PARA VALÉRIO) Viver é para profissionais! Chega de
frescura e vem ajudar a tirar o corpo desse verme daqui.

VERUSKA pega a maçã sobre a mesa e faminta dá algumas mordidas. Os


professores comem migalhas do bolo e bebem água. Em seguida se unem
para tirar o corpo de JEAN PAUL do lugar. SÔNIA não consegue tocar no
corpo do marido, mesmo assim ela preenche a certidão de óbito. Eles
posicionam o corpo do homem ao lado, encostando na parede.

MARTHA– Que cheiro é esse, vocês estão sentindo?


RUI– Puta cheiro de merda dos infernos!
SÔNIA– Eu me caguei! Eu fiquei nervosa e soltei, me desculpem.
MARTHA– Fica tranquila minha irmã, a merda é algo muito humano.
RUI– Segundo as regras, você que venceu a batalha deve escolher com
quem deseja duelar.
VERUSKA– Eu escolho você professor Rui.
MARTHA– (PARA CAMERA) Round dois: Filosofia versus Geografia.

Os focos marcam o chão. Os dois se encaminham para o centro e VERUSKA


ajuda o homem levando a sua cadeira de rodas. Ela está em posse da maçã.
39

RUI– Eu posso ir sozinho!


VERUSKA– Dessa vez eu faço questão de te levar.

Eles se posicionam. VERUSKA começa a falar com firmeza, segurando a fruta.

VERUSKA– Há um ditado que diz que, se dois homens vêm...


RUI– Lá vem ela com mais uma anedota.
VERUSKA– Dois homens vem andando, cada um carregando um pão,
ao se encontrarem, eles trocam os pães; e cada um vai embora com um.
Porém, se dois homens vêm andando por uma estrada, cada um
carregando uma ideia, ao se encontrarem trocam as ideias, cada um vai
embora com duas ideias. Eu promovo o pensamento e a troca.
RUI– E como eles se encontraram? Eles carregavam uma bússola, um
mapa... ou talvez pelo senso de direção?
VERUSKA– Você está sendo racional! A sua disciplina serve para o
mundo de fora, a minha serve para o mundo interno.
RUI– E quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?
VERUSKA– O ovo! Pronto, respondida sua dúvida.
RUI– E por que é tão difícil simplificar?
VERUSKA– Simplificar é mais complicado que desenvolver. A minha
disciplina interroga a razão.
RUI– E o que você acha da geografia? Seja sucinta!
VERUSKA– Eu acho dispensável. Primeiro: qualquer lugar onde eu vá,
posso me guiar através de placas. Segundo: a geografia política não é
interessante para o sistema. Eles não querem falar de guerras!
RUI– Se me permite, eu vou lançar três perguntas. Você me responde?

VERUSKA ri ironizando.

RUI– O que significa o “bem-estar”?


VERUSKA– É um estado de satisfação plena do corpo e do espírito.
RUI– Perfeito! E o que é “viver bem”?
VERSUKA– É uma busca individual, um encontro consigo mesmo. Um
jeito de entender as próprias emoções. É o mesmo que acreditar.
RUI– Agora a última. O que é “ser feliz”?

Silêncio. VERUSKA está pensativa.


40

RUI– Difícil, não é?


VERUSKA– Eu vou responder. Felicidade é um estado durável de
plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico.
RUI– Tudo o que você não tem, o que você não é! Ou sim – claro –
fazendo uso de medicamentos controlados.
VERUSKA– Nós devemos nos concentrar nas disciplinas!
RUI– Eu não vou gastar meu tempo discutindo porquê a geografia é
mais importante que a filosofia. Cada um deve refletir a reputação do
conhecimento, não cabe a mim ficar elaborando teses. Nós somos
humanos e temos necessidades diferentes.
VERUSKA– Mas você tem medo de morrer?
RUI– Eu não temo o que vem pela frente. Se você quer uma imagem do
futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre.
VERUSKA– Discurso de um derrotado! Para mim é o suficiente.
RUI– Você gosta de historinhas, não é professora?
VERUSKA– Sim, eu aprecio.
RUI– Então eu vou contar uma que eu soube há pouco. Era uma vez
uma linda professora, vamos chamá-la de... Veruska!
VERUSKA– Que patético.
RUI– Ouve! Eu não vou demorar, eu prometo. Era uma vez uma mulher,
que perdeu o marido num trágico acidente de carro. Sozinha, deprimida
e cheia de dívidas ela finalmente conseguiu um emprego para dar aulas
em uma pequena escola da periferia. Sempre elogiada pelos alunos,
com uma ótima didática, a professora começou a comercializar drogas...
até que descobriram o negócio ilegal.

VERUSKA começa a passar mal, a perder o ar e os sentidos.

VERUSKA– Isso é mentira!


RUI– Você foi denunciada, mas conseguiu provar inocência.
VERUSKA– Eu não estou me sentindo bem.
MARTHA– O que você tem?
RUI– Mesmo assim não parou de comercializar as drogas sintéticas...
VERUSKA– Eu estou sufocada!
RUI– Meta anfetamina, era assim que ela complementava a renda!
VERUSKA– Eu não consigo respirar, me ajuda...
SÔNIA– Eu não quero levar outro choque. Se vira jacaré!
VERUSKA– Alguém envenenou a maçã.
41

VERUSKA cai desmaiada soltando a maçã que rola pela sala. Ela está morta,
envenenada. Seu foco é apagado, mas o de RUI não, o que faz ele perceber
que deve agilizar a escolha do próximo duelo. Ele não demora para escolher.

RUI– Quando eliminamos alguém estamos dizendo que algo está


errado. Vem professora Sônia, eu quero você no próximo embate.

VALÉRIO e MARTHA arrastam o corpo de VERUSKA para um canto.


VALÉRIO está transtornado e se esconde atrás do armário. SÔNIA, antes de ir
para o foco encurta a roupa e prende o cabelo dando a intenção de que quer
seduzir o professor. Ela para dentro do foco ficando de frente para RUI.

RUI– Que comece o duelo entre a Língua Portuguesa com a Geografia.


SÔNIA– Espera! Eu acho que devíamos encher a cara, depois a gente
fala mal dos inúteis que se acham superimportantes.
RUI– Você está me convidando para um drink?
SÔNIA– Cheguei tarde demais, não é?
RUI– Antes tarde do que mais tarde.
MARTHA– Meus senhores, comecem a defender as disciplinas sim.
SÔNIA– Dá um tempo minha filha, deixa eu flertar com o inválido.
RUI– Você é loucona... eu gosto.
SÔNIA– Gosta é?
RUI– Bastante!
SÔNIA– Sabia que eu estou com muito fogo, agora.
RUI– Jura?
SÔNIA– Ele ainda sobe... o seu brinquedinho?
RUI– Quer testar?
SÔNIA– Adoraria!
RUI– Você gostaria de brincar com ele?
SÔNIA– Aham!
RUI– Como?
SÔNIA– Diga você!
RUI– Lambendo!
SÔNIA– E você me lamberia?
RUI– Onde?
SÔNIA– (TOCANDO A VAGINA) Aqui!
42

A sirene dispara. VALÉRIO sai de trás do armário com a braguilha aberta.

SÔNIA– Caralho velho, sistema empata foda da porra.


MARTHA– Você está excitado meu colega?
RUI– Eu?
MARTHA– (PARA VALÉRIO) Ele!
VALÉRIO– Não, eu só estava urinando!
SÔNIA– Ele estava batendo um bolo ouvindo o nosso papo, safado.
RUI– Resta saber se ele ficou de pau duro por mim ou por você.
VALÉRIO– Engraçadinhos!
SÔNIA– Esse professorzinho de artes é tarado, da pior espécie.
VALÉRIO– Que papo é esse, minha senhora, me respeita.
SÔNIA– Eu estou falando da acusação de pedofilia. O abaixo assinado
que foi feito para tirar você do auditório, era para te banir daqui. Para
quem não sabe, ele foi acusado de abusar sexualmente da molecada,
tudo menor de idade. E ainda gravava no celular, putaria pesada.

VALÉRIO começa a chora feito criança.

VALÉRIO– É mentira, é tudo mentira!


MARTHA– Por isso te enfiaram no laboratório?
SÔNIA– Seu abusador dos infernos, comedor de criancinhas!
VALÉRIO– Ela não sabe o que diz.
RUI– Se eu pudesse sair daqui eu te matava, seu filho da puta!
VALÉRIO– Eu peço clemência ao sistema!

O sistema aciona a sirene mais uma vez.

VALÉRIO– Obrigado, obrigado, obrigado...


SÔNIA– Vão deixar o escroto se safar? Parabéns sistema de merda!
MARTHA– Vamos falar sobre isso quando for a hora.
SÔNIA– Já eu perdi totalmente o tesão, vamos ao que interessa! Eu não
preciso explicar, vocês sabem para que serve o português, a literatura.
RUI– Lembrando que você se expressa mal e massacra a língua.
43

SÔNIA– O português é extremamente maltratado, a começar pela


linguagem virtual! Experimenta dar um livro para uma criança... ela vai
perguntar: “onde liga”?
RUI– Isso é um “pobrema” do mundo globalizado.
SÔNIA– Realmente é um “pobrema” quando alguém totalmente sem
“célebro” como você, “estrupa” a língua portuguesa.
RUI– Você não alfabetiza com mãos de ferro, essa é a verdade.
SÔNIA– Ninguém quer aprender! Eu incentivo à leitura, mas adianta?
MARTHA– Eles estão fechando bibliotecas, confiscando livros.
SÔNIA– O caos está instaurado. Nós fomos colocados dentro de um
território, um mapa! O seu espaço, o meu espaço... o espaço deles.
RUI– Vai me ensinar geografia?
SÔNIA– Eu só quero que você perceba que tudo isso foi planejado
como as guerras são. A geografia estabelece fronteiras, delimita
territórios, em função de proteger uma área demarcada. Mas vocês não
têm feito isso com as terras indígenas, por exemplo.
RUI– Eu estou a serviço dos interesses estatais e político-estratégico
das relações internacionais.
SÔNIA– Lindo o que você falou, mas o problema é anterior a esse.
RUI– Desde que invadiram esse país nós temos um sistema corrupto.
SÔNIA– Você só sabe falar de guerra, a história também.
MARTHA– Minha senhora, concentre-se na geografia.
SÔNIA– Minha senhora é a puta que te pariu! Você abre qualquer livro
de história só fala disso: guerra, massacre, massacre, guerra.
RUI– Você precisa defender a sua disciplina se quiser viver.
SÔNIA– Porque você não fica de pé, assim ficamos no mesmo nível.
RUI– Para ficar no mesmo nível que você eu teria que descer mais.
SÔNIA– Você não consegue, não é? (TEMPO) Aquele garoto também já
aprontou comigo na quinta série. Ele é uma peste problemática que
agride verbalmente os professores... mas o pai dele consegue ser pior.

RUI aos poucos se entrega a história e revela seu drama pessoal.

RUI– Quando ele soube da reprovação do filho, entrou na escola


completamente desequilibrado, dizendo que eu tinha que aprovar o
moleque. E não foi só uma vez, na primeira eu chamei a polícia. O
menino alegou que eu tinha agredido ele jogando um apagador em
direção a sua testa. O desgraçado forjou a marca e tudo!
MARTHA– As câmeras companheiro, elas não registraram?
44

RUI– O sistema estava quebrado. (TEMPO) Antes de me empurrar da


escada, o filho da puta me disse: “hoje você vai morrer”. Fiz quatro
perícias, tentando reembolso sobre o prejuízo que eu tive.

Ele tira de sua cadeira de rodas uma pasta com documentos e joga no chão.

RUI– Eu guardo toda a documentação, mas o Estado continua dizendo


que eu devo dez mil. Eles não consideraram minhas licenças, é como se
eu tivesse faltado no trabalho. Eu não estou cadeirante, eu sou.

Silêncio. MARTHA decide interceder.

MARTHA– Vocês precisam continuar, o embate não foi decidido.

SÔNIA se vira para falar com as câmeras, esquecendo RUI.

SÔNIA– O que realmente importa para vocês, senhores do sistema: o


correto ou o certo? Tem gente de terno e gravata que escreve, fala
errado; botando a cara na televisão para todo mundo ver. E um monte
de imbecil aplaudindo de pé discursos misóginos, fascistas, machistas.
Para que ler? E não é uma questão apenas da língua portuguesa! As
pessoas não leem placas, porque o aplicativo de celular está lá para
guiar o caminho. A geografia também não é necessária! Quem vai
querer saber quem foi Camões, Gil Vicente, Bernardo Guimarães,
Machado de Assis, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves,
Joaquim Manuel de Macedo, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro
Lobato, Mário de Andrade, Clarice Lispector, José Saramago!

A professora leva um choque enquanto cita os autores e morre, subitamente.


Em seguida, RUI também leva um choque e cai desfalecido sobre a cadeira.

MARTHA– Esse duelo não teve um vencedor?


VALÉRIO– Eles se entregaram, desistiram... talvez por cansaço.

Tempo. VALÉRIO e MARTHA se encaram.

VALÉRIO– Restamos eu e você. Precisamos terminar esse jogo.


MARTHA– A História contra a Arte.

A cena termina com os dois professores na sala esperando a morte.


45

O SOBREVIVENTE
23h58

Uma legenda nos dá a ideia do horário e da cena em que estamos. Os dois


caminham sobre os corpos dos professores. VALÉRIO tira os sapatos,
desabotoa botões da camisa e bebe água. Em seguida o homem começa a
preencher as certidões de óbito dos mortos. MARTHA enche a boca com o
bolo trazido por VERUSKA. Ela come, faminta, enquanto fala com as câmeras.

MARTHA– Não é a morte que me importa, seus répteis, porque ela é um


fato. O que me importa é o que eu faço da minha vida enquanto minha
morte não acontece, para que essa vida não seja superficial!

VALÉRIO apaga algumas palavras que estão escritas no quadro negro


deixando a frase: POR UMA EDUCAÇÃO QUE NOS ENSINE A OBEDECER.

VALÉRIO– Eles conseguiram o que queriam.


MARTHA– Não se renda meu amigo! Não vamos deixar os vermes
consumirem o que restou do nosso cérebro.
VALÉRIO– Somos apenas professores... (TEMPO) Tem uma cena do
filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, você viu? Na cena o professor fala
para os seus alunos que tem muitas coisas o homem faz para viver, mas
a arte, ele vive para fazer. Eu não tenho mais espaço, eu estou cansado.
MARTHA– Erga a cabeça!
VALÉRIO– Depois de tudo você ainda tem forças para pensar?
MARTHA– Se os pensamentos já foram pensados, é preciso tentar
repensá-los. Nós precisamos ir até o fim.
VALÉRIO– Lutamos amanhã as lutas de amanhã. A gente não faz nada
e espera o resultado, como todo mundo, de braços cruzados.
MARTHA– O sistema não permitiria.
VALÉRIO– O sistema está cagando para gente como nós! E a gente
aqui se matando só para conquistar uma vaga... Onde? Junto deles?
MARTHA– Está com medo professor... ou quer mudar de lado?
VALÉRIO– Eu já apanhei muito na cara para temer qualquer que seja a
ameaça. (PARA CÂMERAS) Querem me bater mais? Só venham!
MARTHA– Para mim e para você só existe a sobrevivência.
VALÉRIO– Se você quer nadar entre os tubarões, não sangre.
MARTHA– O crime de pensar não implica a morte. O crime de pensar é
a própria morte. Mas eu não me rendo ao sistema, nunca!
46

VALÉRIO olha para o relógio.

VALÉRIO– São vinte três e cinquenta e oito, nós estamos aqui a horas.
MARTHA– Não se trata de derrotar alguém, mas acabar com tudo isso.
VALÉRIO– Eu não queria travar essa disputa com você.
MARTHA– Acontece.
VALÉRIO– Você está pronta?
MARTHA– Sim, não. (TEMPO) Antes eu posso te perguntar uma coisa?
VALÉRIO– É o sobre o motivo do meu exílio? É, não é?
MARTHA– É!
VALÉRIO– Eu tenho um vício que eu não consigo controlar, uma
compulsão. Eu não sou um criminoso, eu tenho uma doença, é diferente.
Eu nunca toquei uma criança, eu só gravava... escondido. Não foi nada
demais, apenas uns vídeos inocentes. E foi só uma vez! Uma única vez.
MARTHA– Numa época de mentiras universais, dizer a verdade é um
ato revolucionário. Que bom, agora eu sei com quem eu vou duelar.
VALÉRIO– Você pretende usar essa informação em seu favor?
MARTHA– É necessário cuidar da ética para não anestesiarmos a
nossa consciência e começarmos a achar que tudo é normal.
VALÉRIO– Quem nunca errou que atire a primeira pedra.
MARTHA– Mas se precisar eu vou usar, óbvio, seu verme estúpido!
VALÉRIO– “Também há vermes nos sepulcros de mármore”.
MARTHA– Só que os vermes jamais tocarão a lua.

Os focos são acesos no chão. Eles estão sedentos pela disputa final.

MARTHA– A última batalha é da História contra as Artes.

MARTHA e VALÉRIO entram no foco.

MARTHA– Eu queria começar falando sobre a educação e o quanto ela


tem sido maltratada nos últimos anos.
VALÉRIO– Deveríamos defender as disciplinas, cara colega!
MARTHA– A arte está em ruínas, basta olhar para você! Vamos refletir
sobre um pensamento universal: o conhecimento.
VALÉRIO– Você se defende voltando a origem do problema?
47

MARTHA– É lá que está enraizado o câncer da burrice, da ignorância.


Para mim, uma educação funcional tem que ser libertadora. Uma
educação que não é libertadora faz o oprimido desejar ser opressor.
VALÉRIO– Eu concordo, não pense que não! Eu sempre acreditei que
educação, não transforma o mundo, ela muda as pessoas e as pessoas
transformam o mundo ao redor.
MARTHA– Então você concorda com o meu pensamento...
VALÉRIO– Nós estamos em uma guerra. Vamos demorar uma
eternidade para que decretem um vencedor se ficarmos nesse mi-mi-mi.
MARTHA– Uma das coisas mais perigosas da vida é gente que
concorda com você o tempo todo.
VALÉRIO– Por isso que alguém precisa ceder... e perder.
MARTHA– Quem concorda contigo o tempo todo, ou não gosta de você,
ou está se preparando para te derrubar.
VALÉRIO– Bem-vinda ao sistema, minha querida!

VALÉRIO olha mais uma vez para o relógio.

VALÉRIO– O relógio parou faltando dois minutos para a meia noite.


MARTHA– A hora do juízo final.
VALÉRIO– Você conhece?
MARTHA– Eu sou professora de história, eu sei de muitas coisas.
VALÉRIO– O horário do apocalipse... a hora marcada para destruição
do mundo por uma guerra nuclear!
MARTHA– O ponteiro dessa merda foi alterado para frente ou para trás
em vários testes nucleares, guerras, a queda do muro de Berlim, no
teste da bomba atômica. Até na posse do Trump, verme maior!

Ouvimos um barulho de uma chave abrindo um cadeado, seguido de uma


corrente sendo retirada junto com uma barra de ferro. A porta foi enfim,
destrancada. MARTHA e VALÉRIO estranham, ficam aliviados, preocupados,
tensos, tudo junto. A mulher começa a sentir leves contrações de parto.

VALÉRIO– Abriram a porta!


MARTHA– Mas nós continuamos aprisionados dentro do campo
magnético. Não podemos sair daqui senão desligam o nosso chip.

VALÉRIO grita na tentativa de ser ouvido. Ouvimos a música “ALSO SPRACH


ZARATHUSTRA” de Richard Strauss.
48

VALÉRIO– Nós estamos aqui, por favor, dentro da sala. Tem gente aqui
dentro! Hei...

Silêncio. VALÉRIO pede por socorro, MARTHA é enfática.

MARTHA– Não vai adiantar! Eles estão fazendo isso para apressar a
nossa morte. Só estão esperando para esvaziar essa sala e começar um
novo processo. A história é sempre a mesma.
VALÉRIO– Foda-se! Eu quero sair, proteger o que me resta de vida.
MARTHA– Eu acho que a minha bolsa estourou...

VALÉRIO tira o frasco de veneno do bolso e em tom apoteótico fala com as


câmeras. MARTHA sente dores mais intensas, mas ela tenta resistir.

VALÉRIO– Eu envenenei a professora de Filosofia, empurrei a merda do


professor de Sociologia para fora do campo magnético... posso dar o
nome de todos os atores que estão cavando o túnel para abrir um
caminho que leva ao saber. Eu estou do lado de vocês e me rendo a
tudo o que quiserem. Me deixem sair daqui e eu passo para o lado de
vocês. Eu fiz tudo em nome da moral. A partir de hoje a minha arte será
heroica, nacional... vinculada as aspirações do nosso povo.
MARTHA– Você vai trair a sua classe passando para o outro lado?
VALÉRIO– Não existe classe nenhuma, sempre foi cada um por si.
MARTHA– Lembre-se que sem história, não tem história! Essa merda
será escrita, vão estudar e me perguntar: o que eles fizeram?
VALÉRIO– Você vai responder: fizeram o que podiam!

MARTHA sente dores mais intensas, VALÉRIO surta em sua loucura.

MARTHA– Então é assim que morre a liberdade?


VALÉRIO– A maneira mais rápida de acabar com uma guerra é perdê-
la! Eles virão me buscar assim que eu acabar com a sua vida.
MARTHA– Traidor, verme!
VALÉRIO– Eu aproveitei e preenchi a sua certidão de óbito. Para o
sistema você não é mais um problema.

VALÉRIO mostra que está em posse das armas: faca, tesoura e soco inglês.

VALÉRIO– Com qual delas vocês irá morrer?


49

MARTHA– A arte nunca será violenta. Não no meu mundo!


VALÉRIO– O seu mundo não existe mais. Acabou!
MARTHA– Eu, você... nós seremos sempre a minoria.
VALÉRIO– E sempre teremos que nos calar e se curvar para a maioria.
Do outro lado eu sou parte da maioria e gente como você me respeita.
MARTHA– Alienado! Eu não vou deixar você vencer, por mais que me
doa ver a arte morrer... Mas é preciso que a história seja escrita.
VALÉRIO– Escrever a história por que? Para quem?
MARTHA– Porque é mais importante preservar a história que o seu
teatrinho fascista! As pessoas precisam saber que um dia houve um
sistema imundo que proibia as pessoas de pensarem, de questionarem.
VALÉRIO– Parece que alguém vai dar à luz. Você precisa de uma
ajudinha para cortar o cordão umbilical do seu bebê et?

VALÉRIO ergue a faca e faz brincadeiras, como um garoto violento. MARTHA


sente mais dores, tanto que a mulher já nem consegue ficar de pé.

MARTHA– A morte parece menos terrível quando se está cansada. Eu


espero que você tenha preenchido a sua certidão.
VALÉRIO– Claro que não... eu vou sair vivo daqui.
MARTHA– Então se prepare para ser enterrado como indigente, alguém
que nunca existiu. (COM MUITA DOR) Um homem não está acabado
quando enfrenta a derrota. Ele está acabado quando desiste.

VALÉRIO ri debochando da mulher. MARTHA começa a usar seu dialeto para


se comunicar com os extraterrestres. Aos poucos ela ganha uma força fora do
comum, levanta-se e como uma paranormal faz com que o homem se suicide
cortando o próprio pescoço num movimento involuntário. Ele cai, morto. Ela
desabada no chão, fraca, voltando a sentir as dores do parto.

MARTHA– Me levem daqui... me tirem daqui. Eu não quero ser


encontrada por eles! Não me deixem sozinha vivendo neste planeta com
essa raça de humanos predadores.

Uma luz intensa ilumina a mulher de cima. Ela sorri, exausta, mas feliz e aos
poucos é puxada para o alto por um cabo invisível. Acredita-se que MARTHA,
foi levada por uma nave espacial para ser preservada em outro planeta e ser
devolvida à Terra quando as coisas estiverem mais calmas e o ser humano
possa pensar e questionar sem medo de sofrer ameaças. Fim!

SÃO PAULO, MARÇO DE 2020.

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