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Expressão de fé

CASO PADRE HENRIQUE


Henrique era um jovem padre que se dirigiu à terapia para se questionar. Ao
contrário de muitos clientes, veio não para mudar algo específico que o incomodava, mas para
lidar com o incómodo que era ele próprio. De família com forte formação religiosa, foi
preparado, desde menino, para ser padre, um condutor das verdades divinas. Sua infância
era resumida em visitas a igrejas e a leituras religiosas. O pai, frustrado quanto às suas
escolhas, acreditava que seu filho pudesse ocupar um lugar protegido e de destaque na
ordem religiosa. Segundo suas palavras, sua mãe, uma "carola", apelidada, inclusive, de
"banco de igreja", desconhecia qualquer realidade que se distanciasse da fé escolhida.
- Era curioso como eu fui sendo embalado pelos ideais dos meus pais. Eles queriam
muito que eu fosse padre; não um padre comum, mas um padre especial.. Sentia
tranquilidade nas orações que eles me ensinaram. Não percebia que essa era a minha
válvula de escape.
Filho único, Henrique aprendeu a estimar os santos e esperar merecer sua proteções.
Frequentou colégios de padres e optou por ser um deles. Questionador, pretendia ser um
padre de ideias modernas, que acompanhasse mais a juventude a que pertencia. Sua
estada no seminário foi bastante enriquecedora. Desprendendo-se da rigidez dos pais,
descobrira que podia desenvolver ideias próprias e compartilhar com os demais. Queria
mais do que passar verbalmente as verdades que acreditava; queria ser um militante, alguém
que, em contato com o povo, pudesse viver as ideias e ajudar os menos afortunados a
encontrar um caminho.
- Sabia que buscava a paz na minha escolha. Contudo, sabia também que gostava
muito do que eu mesmo havia compreendido das expressões religiosas. Era um mundo de
respeito, de amor. Precisava dele e queria compartilhá-lo com os demais.
Henrique não suportava a pressão de ter que ser alguém importante, mas a
expressão de fé coincidia com os seus sentimentos. Não se sentia compreendido ou
aceito. Queria encontrar pessoas iguais a ele e que pudesse doar o pouco que havia guardado
em sua busca interior.
Após sua ordenação, foi designado a trabalhar no interior. Tal escolha se ajustava
como uma luva. Trabalhava na Igreja ora como orientador de fiéis, ora como professor de
crianças semi-analfabetas. Levava a palavra de Deus ao povo não apenas pelo jeito simples
e carismático de se expressar, mas também pelo exemplo de postura amigável que possuía.
Vivia a fé não como algo mágico, curativo ou escapista, mas como parte de si; como instru-
mento de questionamento e de descoberta de um mundo interior mais rico. O sangue
jovem o fazia vencer, com relativa facilidade, as barreiras do conservadorismo. Lia a Bíblia
como quem contava uma história, facilitando o contato com a sua simbologia. Parecia
conhecer o problema real das pessoas e, muitas vezes, servia de amparo e alívio para os
seus sofrimentos. Sua forma de levar a fé o fazia depositar toda a crença no ser humano.
H. - Você precisava ver como no interior desse país existem pessoas carentes. Gente
humilde que precisa ser iluminada. Alguém que dê a elas atenção e respeito é capaz de
conseguir milagres!
T. - Ao mesmo tempo que você pode dar a essas pessoas carentes a sua ajuda,
encontra um modo de se preencher. Sendo alguém importante, pode ser amado e
respeitado pelas pessoas.
H. - É uma espécie de inversão da minha história. Antes me impunham ideias,
comportamentos, normas. Depois, senti-me livre para ajudar pessoas iguais a mim a se
libertarem.
T. - E você se viu liberto?
H. - Achava que sim.
Numa das festas populares que frequentava, conheceu uma mulher. A paixão não
tinha sido, até então, um sentimento que lhe fizesse falta. Distribuía seu afeto para muitos
e recebia na mesma proporção. Era uma troca equilibrada. Contudo, uma sensação
diferente parecia ocupar seu ser. Procurava explicar pra si mesmo possíveis "quedas", mas
não se livrava da forte emoção que lhe invadia. A jovem, por quem se apaixonara,
também era militante das ideias que propagava. Partilhavam do mesmo mundo
fortalecendo ainda mais os laços.
Henrique "temeu e tremeu". Não fazia parte dos seus planos. Precisava dar foco a algo
que se antagonizava com o purismo da fé, com a busca do infinito. Mas negar seus
sentimentos era desacreditar no homem e pôr, terra abaixo, a questão mais importante de
sua militância.
- Questionar a mim mesmo nunca foi difícil após a minha aprendizagem no
seminário. Tive sorte de ter conselheiros sábios e generosos. Eram grandes amigos, além de
mestres. Mas esse contato novo me trouxe uma nova indagação. Será uma prova que preciso
passar para verificar até onde vai a minha fé, ou é realmente algo importante em minha
vida? Se esta for a verdade, como poderei dar continuidade àquilo que construí até hoje?
Como poderei optar por duas coisas tão anuladoras entre si?
Henrique, vivendo a sua fé, vivia, também, as regras a ela pertencentes. Por mais
questionador que fosse, suas questões pertenciam ao domínio religioso. Tratavam-se de
questões inteligentes, mas a serviço da fé. Seu maior problema agora era incluir uma
nova questão oriunda de um mundo adverso do que estava incluso.
Ao falar da sua paixão, Henrique despia o padre e encarnava o homem.
H. - Ela é uma mulher comum considerando o aspecto externo. Mas é uma pessoa tão
completa! Ela é afetiva, sedutora, inteligente, amiga, lutadora, crente na mesma fé que
eu... Penso nela como um complemento, mas me culpo pelo meu trabalho.
T. - Henrique, algo novo está acontecendo com você. Algo que não era incluído em seu
diário. Algo que despertou outras necessidades, que o fez questionar os seus valores, e
você está assustado...
H. - É. Mas se eu tinha essa necessidade. Como não a via? E as outras necessidades
que tenho? Por que eu vivo o conflito do antagonismo? Sei que sou homem também.
Compreendo que isso possa acontecer com qualquer um, mas estou questionando mais do
que uma simples escolha. Estou questionando os meus valores. Sei que jamais perderei a fé
que cultivo em Deus, mas acho que me transformei em um deus também. Penso se o meu
trabalho é algo em que acredito realmente ou se é o modo como me ensinaram a ser:
alguém venerado. Abomino a ideia, mas minha exigência me obriga a examiná-la. Antes de
conhecer Sofia, eu ligeiramente já indagava essas coisas. Mas estou certo de minha fé,
do que eu acredito; não estou seguro da forma.
T. - Você está questionando se esse é o caminho certo. Escolhendo ser um deus,
essa seria uma atitude contraditória de crer em Deus, não é verdade?! Sua mili-tância não
seria um ideal baseado na fé nesse Deus, mas na busca de fé em você. E o amor por Sofia
destruiria essa imagem divinizada que você quis cultivar.
H. - É terrível. Meus conselheiros têm me ajudado, mas acreditam que Sofia seja
apenas um instrumento de Deus para me fazer ver a minha vaidade. Eu não concordo. Já
havia em mim essa sensação.
T. - Você está conseguindo separar as coisas e está querendo realmente descobrir o
que de fato sente. O conflito quanto à vaidade versas humildade; o conflito quanto ao
amor dirigido a uma mulher versas amor exclusivamente dirigido a Deus na identidade
que lhe foi imposta.
Seu lado vaidoso e carente se apegara às vestes da fé para extrair-lhe o sumo. Precisava
ser um deus daquela gente empobrecida, mas não percebia as origens dessa necessidade.
Ter uma importância papal lhe garantia o curativo da ferida. Entretanto, o lado homem
tinha sido abandonado desde cedo, e, quando relaxou a guarda, percebeu-se fortemente
invadido.
Parece razoável imaginar que o motivo provável pelo qual Henrique se apaixonara
tinha sido o mecanismo através do qual podia se rebelar contra a identidade que aceitara
passivamente. Não escolheu ser padre livremente. Vestia a identidade que lhe haviam
oferecido. A paixão foi um caminho para pôr em questão a necessidade do sacerdócio. Era
a oposição da imagem do homem -magoado em seus princípios e restrito em sua
liberdade -que precisava resgatar, com a do homem querendo estar coerente com a
escolha imposta, lucrando com ela a garantia da atenção, da afetividade.
Henrique percebeu que Sofia representava a chance da oposição, mas, ao mesmo
tempo, gostava do que havia cultivado. Sabia que a escolha não seria entre o sacerdócio ou
Sofia, mas entre os dois homens que habitara nele.
Auto-análises eram frequentes. Procurava com elas derrubar a estátua esculpida,
fazendo com que o homem - ainda que homem de fé - surgisse.
H. - Essa vaidade abominável eu devo ter cultivado desde pequeno. Queria me igualar
a Deus e estar livre dos sofrimentos. Conduzir a palavra de Deus era o meu lema, mas me
esbarrei na incoerência dos meus atos. Vingança? Retalhação? Autopiedade? O que eu
estava querendo provar a mim ou aos meus pais?
T. - Você queria reafirmar a sua presença. Você usou a única escolha à sua frente
e pôs em prática o seu objetivo. Contudo, Henrique, você se percebeu gostando do que
fazia...
H. - Ah, muito! Gosto do que faço. T. - E para fazer o que você gosta não há necessidade de
ser perfeito, de ser o maior, há?
H. - Não. Eu sei disso. Mas foi dessa forma que eu aprendi.
T. - Sinto como se você estivesse jogando toda a responsabilidade na sua
educação. Ela foi importante, sem dúvida, mas e a sua participação?
H. - É. Eu aceitei claramente as regras. E agora estou conflitado.
T. - Agora você é quem vai dar sentido à sua escolha; ao que é melhor pra você. É ter
ou não fé em você.
Henrique se mostrava aberto e diante dos meus questionamentos. Queria realmente
se despir e encontrar o elo perdido.
H. - Estou percebendo a minha culpa, mas não é nada que eu não possa me redimir.
Prego o ser humano e não posso esquecer que sou um deles, sujeito, portanto, a falhas. É
por isso que não posso ser deus. Meu Deus é mais do que isso e está cada vez mais vivo
ern minha pessoa. A questão da minha fé já foi revisada. A questão sobre Sofia é outro
ponto. Ela está bastante presente em mim. Preciso ajudar-me nessa contradição.
T. - Agora que você está derrubando o ser perfeito que precisava desempenhar, está
querendo resolver o outro conflito que lhe resta...
H. - Se eu optar por Sofia terei que abrir mão do sacerdócio e do meu trabalho; se
optar pelo sacerdócio, terei que abrir mão do homem. Tendo mais por Sofia porque
percebo que o sacerdócio é a opção daqueles que o escolheram sem medo.
T. - Mas concretizar a sua escolha está sendo muito difícil.
H. - Está. Penso nas pessoas da comunidade. Penso na minha família...
T. - E se preocupa com o que eles possam pensar de você?
H. - Será uma decepção.
T. - Mas se você sempre foi condutor de ideias novas, se sempre estimulou as
pessoas a se encontrarem, não acha que apontar sua presente escolha reafirmaria ainda
mais isso?
H. - É. Essa é a contradição. Prego e não faço. Sei que posso continuar meu
trabalho de uma outra forma. Perderei um lugar, mas encontrarei outros.
A perda do lugar seguro, dos valores antes cultivados, do cultivo mesmo de sua vaidade
abominada também retirariam uma grande parte de si. Sofia era uma esperança que não se
chocava com a continuidade da fé, apenas transformava o padre em um dos assistentes
do púlpito. Henrique pôde descobrir que a importância da sua fé, no novo homem livre
da revolta da opressão, transcendia à roupagem. Poderia continuar seu trabalho de uma
outra forma. Amar e ser amado por Sofia fazia parte de sua expressão de fé em Deus e
no ser humano.
- Sei que vou ser entendido pelos amigos. Minha famüiajamais irá tolerar a minha
nova decisão. Certamente vão me achar um louco que se "misturou" ao povo. Pedirei
consentimento aos meus superiores para abrir mão do sacerdócio. Ficarei um tempo comigo
para pensar na minha vida daqui para frente. Tenho planos, mas preciso saber se esses
projetos são coerentes com o que eu posso dar de mim na sua execução.
Tão logo pôde se despir do padre, decidiu dar uma chance ao homem. Sofia ajudou
Henrique na sua busca e juntos puderam continuar pregando a fé, através das atitudes
que desenvolveram na vida.

COMENTÁRIOS
O caso de Henrique nos leva a refletir sobre questões morais. Amoral sempre foi
imposta de uma forma normativa numa cultura. As regras de uma sociedade, exempli-
ficadas em microgrupos, correspondem à moralidade vigente. Questioná-las implica em
se afastar da norma e, em consequência, ficar à margem da maioria. Está "misturado aos
muitos" nos faz dizimar as responsabilidades pessoais. Decidir com a maioria é um
decidir de "nós". Diluímo-nos e, portanto, não podemos aparecer ou arcar com as
consequências dos nossos atos.

A moral tradicional pretende-se eterna e estável. Aceitamos essa moral provisoriamente,


mas acabamos por nos identificar com ela. Contudo, a normatividade é falsificadora da
liberdade humana. Se na estética não há normatividade, na moral isso já é mais complicado.
Picas-so, por exemplo, não se repete, reinventa-se em todos os seus quadros. Mas, em
relação à moral, como pensar sem "dever ser"? O indivíduo, sendo artífice de si mesmo,
precisa se inventar a cada instante e, nesse caso, o "dever ser" deixa de ser urna regra
objetiva e generalizada, transformando-se em moral subjetiva. Ele não apenas segue certos
princípios de conduta, mas sabe realmente deles. Está distanciado do ato em si.
Identifïcando-se, deixa de conhecê-lo.
Henrique aprendeu sobre si dentro de um referencial religioso. Misturando-se a ele,
não se apercebeu de suas contradições. O conhecimento destas o fez questionar seus
próprios valores e as normas onde estavam inseridos.
Seu Deus não precisava ser "morto" para obter o lucro da vida. Nem mesmo
precisava ser homem-deus para se igualar ao Deus maior. Na confusão do mergulho se deu
conta da separação. Reconstruir sua vida seria reconstruir uma imagem. Percebeu que sua
fé era soberana, mas nem um pouco esmagadora. O Deus que amava podia compreender
seu homem. Inventou uma saída e pôde reconduzir sua fé de uma forma humanizada.

ERTHAL, Tereza Cristina S. Contas e contos na terapia vivencial. Petrópolis/RJ: Vozes, 1992.

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