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Disciplina e Responsabilidade: o Ascetismo de Weber e suas contribuições

para a Educação

ZEVIANI, Rodrigo Udo. Licenciando em Pedagogia no Centro Universitário Internacional


Uninter

RESUMO

Em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” Max Weber afirma o


impacto econômico e social do protestantismo na sociedade moderna. A ideia de que
o trabalho duro, a disciplina, o foco, o empenho são centrais para o desenvolvimento
econômico de um país, está no cerne do pensamento weberiano expresso nessa
obra. Denominado por Weber como ascetismo, essa perspectiva de autodisciplina
pode contribuir para pensar a educação, não apenas no mundo, mas também no
Brasil. Sendo assim, deve-se tomar Sérgio Buarque de Holanda como referência do
pensamento de Weber no Brasil. No que diz respeito ao ascetismo na educação em
diversos países, é possível, através da revisão bibliográfica, perceber que o ascetismo
é um importante diferencial na atenção e produção acadêmica. No Brasil, porém,
apesar de ser notória a eficácia do ascetismo, nota-se não ser um elemento cultural,
familiar aos brasileiros dentro do cenário escolar. A introdução da perspectiva
ascética na dinâmica escolar proporciona o desenvolvimento de virtudes como
criatividade e inovação.

Palavras-chave: Educação, Ascetismo, Max Weber.

1. Introdução

Os últimos exames do PISA, sigla para Programme for International Student


Assessment – Programa Internacional para Avaliação do Estudante em português,
apontam uma realidade que, para quem acompanha a educação brasileira
cotidianamente, não chegam a ser uma grande novidade. A escola brasileira é, no geral,
fraca. Nossos alunos têm sofrido com a incapacidade de interpretar textos simples. Na
matemática o desempenho é pífio e nas ciências, fraco para dizer o mínimo. O último
relatório publicado pela OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico, coloca a educação brasileira como uma das piores do mundo.

1
Em contrapartida, países que enfrentaram dificuldades como guerras civis e
ditaduras em seus passados recentes, têm apresentado resultados excepcionais nas
provas internacionais. Tais desempenhos acabam refletidos na capacidade de inovação,
criatividade e, por conseguinte, na geração de empregos. Podemos citar aqui casos como
o da Coreia do Sul, da Finlândia e da Polônia. Como poderia haver tal discrepância? É
preciso pensar então em que medida poderíamos desenvolver em nossos alunos a
capacidade de se empenharem, dedicarem-se mais nos estudos. Qual a importância do
empenho nos estudos? O avanço acadêmico não seria peculiar aos ditos indivíduos com
Quociente Inteligente alto?
Max Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” destaca que
países de matriz protestante conseguiram realizar a Revolução Industrial com menor
sofrimento e esforço do que aqueles que rejeitaram tal perspectiva religiosa. Ora, Weber
não estava fazendo um trabalho de apologia religiosa. Mas ele queria entender a relação
entre a perspectiva protestante e o fato de países como Alemanha, Inglaterra e até
mesmo os Estados Unidos haverem realizado a Revolução Industrial. A resposta de
Weber seria o que ele denomina de “Ascetismo”, ou seja, a disciplina. Na teologia
protestante, a justificação, ou seja, a salvação, só pode ocorrer através do sacrifício de
Cristo. No entanto, após ser salvo, o indivíduo vive um processo de mudança, de
conversão espiritual no qual ele abandona velhos hábitos, tornando-se, assim, mais
semelhante a Cristo. Esse processo pode ser denominado de santificação. E é aqui que
Weber entende que está um diferencial importante na chamada ética protestante. A
disciplina de produzir, de negar a si mesmo por um objetivo maior teria se infiltrado na
cultura de tais países, levando-os a desenvolver uma lógica de disciplina pessoal capaz de
promover foco, concentração em determinadas tarefas. Essa disciplina seria, então,
responsável por levar tais países ao sucesso econômico.
No Brasil, porém, a realidade seria muito diferente. Sendo um país católico, a
riqueza poderia ser vista como sinal de luxúria e avareza, pecados capitais. Além disso,
segundo Sérgio Buarque de Holanda, o brasileiro teria a tendência, herdada de Portugal,
de depender do Estado para conquistar seus objetivos. Mas, como essas perspectivas
poderiam estar relacionadas à educação?

2
Precisamos analisar o quanto a disciplina, o ascetismo, estaria relacionado ao
desempenho acadêmico para constatar se é factível associar a teoria de Weber ao
contexto educacional. Trata-se, portanto, a partir de um processo qualitativo de revisão
bibliográfica, relacionar as perspectivas de Max Weber com o contexto educacional.

2. Metodologia

O PISA oferece dados muito importantes sobre o perfil da educação em cada


país do mundo. Esse retrato permite inferir sobre a qualidade da educação brasileira,
desde como pensamos a educação em nosso país, mas especialmente o que temos
praticado em sala de aula com nossos alunos. O relatório do PISA apresenta dados,
portanto, sobre os quais se debruçam muitos intelectuais ao redor do mundo. A
variedade de interesses no assunto é grande, por isso, utilizamos em nossa pesquisa
alguns pensadores que procuram analisar o impacto das políticas educacionais de
diversos países em seu sistema educacional. Essas análises oferecem material que
nos elucida perspectivas e caminhos para o avanço e a melhoria das práticas
pedagógicas no Brasil.
Sendo assim, nossa pesquisa cruza informações publicadas em pesquisas,
livros, artigos indexados com o objetivo de refletir sobre o papel do ascetismo no
desenvolvimento do educando. A partir do uso de Max Weber como cunho teórico
do trabalho, podemos transportar a perspectiva das políticas educacionais para a
própria cultura dos países que utilizaremos com a finalidade de comparação com o
Brasil. Para análise do perfil do educando brasileiro, além dos resultados do PISA,
pretendemos utilizar a perspectiva sociológica de Sérgio Buarque de Holanda como
fundamentação teórica.
Na bibliografia utilizamos vários pensadores da educação como Ken Robinson,
conhecido educador e um dos maiores especialistas em criatividade e inovação
dentro das escolas até sua morte recente. Paul Tough, que estuda e publica na The
New York Times Magazine textos sobre política e educação há décadas contribui com
análises feitas a partir de observação de vários alunos e escolas no Canadá e Estados
Unidos. Professor do MIT – Massachussets Institute of Technology – Mitchel Resnik
oferece reflexões relevantes para a prática pedagógica em sala de aula e para a
3
gestão do espaço escolar que nos possibilitam entender as perspectivas de alunos
em sala de aula no século XXI. Utilizaremos ainda outros autores que abordam temas
como criatividade, estímulo, organização cerebral, com a finalidade de compor um
cenário que nos possibilite pensar como o ascetismo se aplica ao contexto
educacional no presente.

3. Revisão bibliográfica/ Estado da arte

É um dia qualquer e um professor, em algum lugar do Brasil está tentando ensinar


seu conteúdo para uma classe de adolescentes. Como todo lugar, há os alunos que
aprendem rapidamente o conteúdo, conseguem tirar boas notas e estão seguros do que
aprenderam, talvez até capazes de aprofundar o assunto a partir de perguntas para o
professor. No mundo real da sala de aula, esse perfil de aluno é parte de uma minoria.
Enquanto professor nos últimos vinte anos, observei que o perfil do adolescente que
temos em sala de aula é, normalmente, desinteressado nas aulas, dependendo de
estímulos constantes e, normalmente, sofre para interpretar textos e aplicar matemática
básica ao cotidiano. Há, inclusive, um número crescente de alunos com necessidades
especiais fazendo parte do contexto escolar. No entanto, o perfil de aluno que chama
atenção não é o aluno especial nem aquele que tem facilidade para aprender
determinado conteúdo de uma determinada disciplina. É justamente a camada
intermediária, aquela composta por alunos satisfeitos com a mediocridade da média que
mais incomoda. Incomoda por sabermos que podem oferecer muito mais, mas
descobriram uma forma de manipular todo o sistema avaliativo, pedagógico, para
poderem manter-se no nível do suficiente para a sobrevivência acadêmica. Alguns,
inclusive, nem pela sobrevivência acadêmica lutam. A talvez apareça alguém tentando
arrumar milhares de sugestões, desculpas ou explicações para justificar a postura do
aluno. O que, porém, um professor experiente sabe só de olhar para sua classe, é que
seus alunos poderiam ter desempenhos acadêmicos muito melhores se, e tão somente
se, houvesse maior empenho, dedicação, esforço. A escola deixou de ser atraente,
interessante, motivadora e a facilidade de se adentrar ao Ensino Superior dirimiu a
pressão para que um indivíduo se esforçasse mais em nome de uma vaga para uma
Universidade pública através do concurso vestibular. A atitude desse aluno pouco
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interessado é, com pouca margem para dúvidas, provavelmente o elemento que mais
incomoda a um professor empenhado e interessado em oferecer seu conteúdo
atualmente.
Max Weber, pensador alemão, publicou em 1905 “A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo”. Weber, entre outras coisas, desejava saber o motivo de o capitalismo
haver se desenvolvido de maneira mais intensa em países protestantes. Vale ressaltar que
países protestantes lideraram o processo conhecido como Revolução Industrial. Quando
estudamos as ideias de Weber, algumas questões referentes à educação começam a ficar
mais claras em nossa mente.
Ora, para Max Weber, a religiosidade protestante demanda um reconhecimento
da malignidade da natureza humana e, portanto, da necessidade constante de vigilância
de si próprio para não incorrer em pecado, ou seja, más escolhas que, eventualmente,
afastariam o ser humano de Deus. Essa vigilância de si próprio, esse autocontrole ou
domínio próprio é denominado por Weber de Ascetismo, um tipo de disciplina pessoal
que apontaria a necessidade de negação de si mesmo. Nos países em que o
protestantismo prosperou essa mentalidade de disciplina pessoal passou,
paulatinamente, a ser parte da cultura popular. Em termos de trabalho e produtividade,
portanto, determinados povos tenderiam a conquistar bons resultados por serem
disciplinados, organizados. Weber observa que
O ascetismo cristão, que de início se retirava do
mundo para a solidão, já tinha regrado o mundo ao qual
renunciara a partir do mosteiro e por meio da Igreja.
Mas no geral, tinha deixado intacto o caráter
naturalmente espontâneo da vida laica no mundo.
Agora avançava para o mercado da vida, fechando atrás
de si a porta do mosteiro; tentou penetrar justamente
naquela rotina de vida diária com sua metodicidade,
para amoldá-la a uma vida laica, embora não para e nem
deste mundo.”1
Para Este pensador, apesar de o protestantismo ser avesso à luxúria e à avareza,
acabou proporcionando o desenvolvimento de uma cultura de liberdade de pensamento
1
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Editora Martin Claret, pág. 116.
5
que, associada à disciplina pessoal, culminaria num cenário mais produtivo. Vale ressaltar
que Weber estava consciente de que o protestantismo visa a salvação da alma de cada
indivíduo e que, a perspectiva ascética aplicada ao contexto educacional, cultural,
empresarial seria, portanto, apenas um desdobramento dessa perspectiva para outros
segmentos da sociedade. Segundo Weber “O processo de santificação da vida poderia,
pois, assumir quase o caráter de uma empresa de negócios.”2
Com esse entendimento de que haveria então uma aplicabilidade do pensamento
ascético para a vida cotidiana laica, poderíamos, portanto, imaginar se existiria alguma
aplicabilidade no contexto escolar. Seria possível que alunos mais dedicados tivessem
resultados melhores? Seria possível que alunos disciplinados pudessem alcançar
resultados mais expressivos do que alunos que se arvoram ter mais habilidades
intelectuais?
Em seu livro “As crianças mais inteligentes do mundo”, Amanda Ripley, que
desenvolveu um estudo extenso sobre o desenvolvimento da educação em diferentes
países diz que o verdadeiro mistério na educação é “por que alguns estudantes estavam
aprendendo tanto e outros, não”. Citando o caso da Coreia do Sul, que nem seria, na
opinião de Ripley, o modelo ideal de prática pedagógica, o desenvolvimento do próprio
país passou por um incrível desempenho educacional. Dinheiro? Não seria o essencial.
Rigor, disciplina, metodicidade seria o fundamento que teria levado os sul coreanos a
uma melhoria da educação e, por conseguinte, do próprio país como um todo.
Obviamente Ripley não deposita todas as fichas da qualidade do ensino no ascetismo. Há
muitos personagens envolvidos para que a educação possa alcançar o objetivo de ensinar
ciência, reflexão e levar os alunos a terem condições de darem o próximo passo na
carreira, seja no setor técnico ou na academia. Os dois personagens sobre os quais Ripley
mais dedica energia para abordar são os professores e os pais. Os professores, sem
sombra de dúvida, devem ser bons. Ou seja, devem dominar os conteúdos e ter
condições e habilidade para transmitir tais conteúdos. Quanto aos pais, é necessária a
criação de uma consciência sobre o valor da educação – tal como ocorreu na Coreia do Sul
– no sentido de levar os pais não apenas a investir na educação de seus filhos, mas
também dedicar tempo e respeito à mesma. Isso significa, por exemplo, que nos dias de
exames nacionais, um tipo de vestibular na Coreia do Sul, as pessoas têm a consciência de
2
Ibidem, p. 96.
6
parar o trânsito para que os alunos cheguem a tempo na escola. Se na Coreia do Sul o
sistema educacional chegou inclusive a despertar estresse em muitos alunos, como bem
se sabe, na Finlândia, país com frequência posicionado entre os melhores do mundo na
educação, existe cobrança sobre professores e alunos, porém a cultura do foco e da
disciplina na realização de projetos é tão levada a sério que as escolas estão sendo
proibidas de enviar tarefa de casa para os alunos. Isso porque na escola a dedicação é
máxima. Segundo Ripley
Em meados dos anos 1970, um pequeno grupo
de economistas e sociólogos começou a notar que as
habilidades escolares não eram tão importantes. (...) o
papel das habilidades cognitivas era limitado e contava
até certo ponto. (...) havia outra coisa importante, e às
vezes até mais importante, para as oportunidades de
uma vida de uma criança. (...) Em um estudo com alunos
americanos do oitavo ano do ensino fundamental, por
exemplo, o fator que melhor servia como indicador do
futuro desempenho acadêmico não eram os pontos dos
testes de QI, mas a autodisciplina dos estudantes. 3
Ripley menciona que a ideia de tenacidade, dedicação mesmo que todos já hajam
desistido é resumida em uma expressão em finlandês: SI-SU. Como podemos perceber,
tal como sugerido por Weber, o ascetismo pode culminar num processo de
estabelecimento cultural.
Em “Como ajudar as crianças a aprenderem”, Paul Tough toca no tema da
motivação que os alunos precisam ter para estudar. Nem sempre a motivação é
intrínseca. Então os professores, por exemplo, podem criar mecanismos para que o aluno
se sinta motivado sem que haja alguém chamando sua atenção constantemente. Toough
menciona que os alunos podem ser motivados quando os professores potencializam
escolhas, lhes dando autonomia. Além disso, devem ser conferidas tarefas realizáveis mas
com grau crescente de dificuldade a fim de que o aluno se sinta crescentemente
competente além, é claro, de o professor procurar criar um vínculo positivo com os
alunos. Essa observação é importante pois mostra que a disciplina pode ser desenvolvida,
3
RIPLEY, Amanda. As crianças mais inteligentes do mundo. Ed. Três Estrelas, pág. 188.
7
mesmo em ambientes ou por pessoas que estão num contexto hostil aos estudos. Não
há, portanto, determinismo.
Em “Uma questão de Caráter” Tough menciona, ainda sobre o assunto da força de
vontade que
Na Universidade da Pensilvânia, Duckworth
(Angela Duckworth é pós-doutora em Psicologia e
atualmente atua como professora na Universidade da
Pensilvânia) estudou autodisciplina. Para seu projeto de
primeiro ano, ela reuniu 164 alunos de oitavo ano de
uma escola pública da Filadélfia e os submeteu a testes
tradicionais de QI e a avaliações de autodisciplina. (...)
No fim do ano, para surpresa de muitos, constatou que
o resultado de autodisciplina dos alunos no começo era
o indicador mais preciso da média final do que o de QI.4
Tough vai além e chega a expor um lado pouco convencional sobre aqueles que
têm facilidade acadêmica. Para esses que tiram boas notas, pode parecer que estão
fazendo algo de positivo ou que estão corretos em suas atitudes. Sendo assim, acabam
não exercitando o ascetismo, a dedicação, a autodisciplina e podem, inclusive, fracassar a
longo prazo.
Ainda sobre o estímulo à autodisciplina, Mitchell Resnick, em seu magistral
“Lifelong Kindergarden” afirma que um dos motivos de a escola perder a graça,
especialmente se comparada com o ensino infantil, é o fato de editores, diretores,
sistemas nacionais de educação, professores, quererem simplificar demais as coisas de
maneira que se rouba o desafio do conhecimento, um ponto essencial para estimular o
aluno a desejar aprender. Na visão de Resnick, o aluno desenvolverá o foco e a disciplina
em algo que seja desafiador para ele.
A maioria das crianças está desejando trabalhar
duro – ansiosas para trabalhar duro – desde que
estejam empolgadas com o que estão estudando.5

4
TOUGH, Paul. Uma questão de Caráter. Ed. Intrínseca, pág. 92.
5
RESNICK, Mitchell. Lifelong Kindergarten. Pág. 70.
8
Não desejo ampliar muito o assunto. Afinal, a questão da estrutura da escola,
como funciona e a dinâmica de cada aula são temas muito abrangentes. Então basta, por
hora, entender que os alunos não só podem, como precisam e querem desenvolver o
ascetismo. Resnick ainda faz importantes perguntas como: O que motiva tanto as
crianças na escola e o que leva o adolescente a estar desmotivado?
Resnick sugere que a utilização de brinquedos pedagógicos – e faz referências
constantes à própria LEGO – engajaria os alunos ao desenvolvimento de atividades
estimulantes que demandam tempo, atenção e são academicamente instrutivas.
Mas, ainda permanece uma questão importante. Enquanto Coreia do Sul,
Finlândia, Polônia, Cingapura, Japão, conseguem desenvolver projetos educacionais nos
quais trabalha-se com a autodisciplina dos indivíduos, como poderíamos entender o lugar
em que o Brasil se encontra nessa perspectiva?
Sérgio Buarque de Holanda retrata um cenário interessante. Tendo em vista o fato
de o Brasil ser colonizado por uma nação ibérica, para Holanda há uma tendência cultural
pouco inclinada ao exercício da autodisciplina. Afeitos ao lucro fácil e ao escalonamento
imediato de cargos por exemplo, os ibéricos legaram à América uma cultura de
resistência ao lucro e ao trabalho árduo. Segundo Holanda
É compreensível, assim, que jamais se tenha
naturalizado entre gente hispânica a moderna religião
do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna
ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais
nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do
que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos
admiram como ideal é uma vida de grande senhor,
exclusiva de qualquer esforço, de qualquer
preocupação.6
Para Holanda, os ibéricos carregavam um conceito clássico de trabalho, ou seja,
aquele em que o trabalho mental é superior ao trabalho braçal. Por isso, o trabalho
intenso e duro era visto, costumeiramente, como algo inferior. Por outro lado, Holanda
ainda aponta que os ibéricos costumam depender do Estado. Como se o Estado fosse a
solução para todos os problemas. Essa condição geraria certo acomodamento em torno
6
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Pág. 38.
9
do trabalho. Isso não significa, porém, que o ascetismo seja ausente ou, no caso dos
países de colonização ibérica não tenha qualquer eficácia. Tomo como exemplo os
colégios militares, nos quais a autodisciplina é requisito básico.
De acordo com Benevides e Soares, estudiosos das escolas militares
Embora não seja óbvia a relação entre
indisciplina e baixo desempenho acadêmico, no Brasil,
estudos sugerem que há não somente um impacto
sobre profi- ciência média, mas também sobre outros
resultados educacionais, como a repetência escolar.
Para esses pesquisadores, o background oferecido pelas famílias na formação da
autodisciplina dos estudantes é fundamental para sua postura em sala de aula.
No best-seller “O cérebro da criança”, Siegel e Bryson apontam que é
imprescindível que a família desenvolva e incentive a reflexão em seus filhos. Ou seja, é
importante entender que os pais precisam criar a ideia de autodisciplina em seus filhos e
que as crianças aprenderão muito mais pelo exemplo do que pela imposição.
A escola militar, com seu apurado sistema de seleção também proporcionaria a
seleção de um grupo já expectante de um sistema pedagógico mais rígido. A escola,
porém, seria absolutamente essencial na potencialização da proficiência do aluno em
português e matemática.
É notório o destaque dos alunos das escolas
públicas militares nas avaliações padronizadas
brasileiras. A maioria desses alunos pertence à rede
pública estadual de ensino e possui desempenhos
médios bem superiores (até 50 pontos), que os deixam
em outro nível de performance quando comparados
aos seus colegas de rede e, em alguns casos, até da
rede privada de ensino.7
É claro que existem muitos fatores que influenciam o desempenho acadêmico e
não queremos reduzir ou simplificar a questão e transformar a tal autodisciplina como o
único elemento capaz de corresponder a uma mudança total da educação brasileira. É, no

7
BENEVIDES, Alessandra de Araújo & SOARES, Ricardo Brito. Diferencial de desempenho de alunos das escolas
militares: o caso das escolas públicas do Ceará, in.: Revista Nova Economia, volume 30, n.1, 2020.
10
entanto, notório que sistemas educacionais que estimulam o exercício do ascetismo têm
melhores desempenhos em vários segmentos. Nota-se ainda que mesmo no Brasil, onde
supostamente poderia haver menor inclinação a uma dedicação e foco de viés cultural,
podem surtir grandes resultados da prática do ascetismo, da responsabilidade, do foco
voltado para os estudos.
Mas, talvez toda essa discussão sobre ascetismo pareça estar incentivando o
surgimento de autômatos, máquinas centradas na realização de testes padronizados. E
nada pode estar mais longe da verdade. O PISA, por exemplo, se debruça na capacidade
de atrelar os conhecimentos acadêmicos ao mundo comum. Isso implica inclusive numa
proximidade entre a escola e a própria realidade social. Ken Robinson, um dos maiores
intelectuais recentes em educação, costumava sugerir que as escolas deveriam perguntar
quais os interesses dos alunos antes de apresentar-lhes as matérias convencionais. Isso
porque, inclusive em consonância com o modelo finlandês, a ideia seria o
desenvolvimento de projetos dentro da escola. Na medida em que o aluno tem interesse
pelo que está produzindo, isso facilitaria muito o foco no desenvolvimento de suas
atividades.
Não se trata, portanto, de estabelecer um foco apenas. Não se trata de ascetismo
como um fim em si mesmo. A condução de professores, o conhecimento de si mesmo e a
capacidade de saber o que lhe apraz, são elementos importantes para estabelecer aquilo
que é importante e como seve ser estudado. Para tanto, ter professores qualificados,
família envolvida com o processo educacional e um ambiente com estrutura que
permitam a dedicação aos estudos facilitam muito o estabelecimento dessa disciplina
pessoal.
Sem dúvida há muitas pessoas que são desafiadas a não apenas ter a disciplina
com os estudos mas também a estabelecer a disciplina de não se permitirem afetar pelos
apelos contrários a uma vida acadêmica. Para muitos brasileiros, entre a escola e a
necessidade de estudar estarão a necessidade de se alimentar, a família desestruturada, o
transporte, a falta de infraestrutura escolar, o valor dos livros, má formação de
professores, dentre outros problemas.
A sala de aula invertida tem sido apregoada como um modelo de prática
pedagógica. Há o risco de ser apenas mais uma moda. Não nego o valor do método, mas

11
o mesmo não prosperará a menos que os alunos entendam que está em suas mãos a
responsabilidade do próprio conhecimento. A curiosidade, o estímulo, portanto,
precisam, de alguma forma, partir daqueles que pretendem que as crianças sejam
interessadas. É preciso que pais e professores criem esse estímulo, sugiram esse prazer.
Nem mesmo o aclamado sistema educacional finlandês teria sucesso sem a ideia de
perseverança, disciplina. As escolas têm autonomia sem abdicar dos conteúdos. Ou seja, a
partir do momento em que cada escola pode decidir como abordar os temas, a
criatividade flui, o trabalho passa a ser voltado para o cumprimento de uma meta. O
ascetismo está implícito, portanto.

4. Considerações finais

Thomas Rudmik, em seu livro “Imaginal” diz que a ideia de que podemos
tratar dos problemas sem dor não resolve, de fato os problemas, apenas os empurra
para frente para que alguém possa tratar deles mais tarde. Ainda nesse livro, Rudmik
menciona Tim Brown em seu livro Change by Design. Segue parte da citação:
O mito da inovação é achar que ideias brilhantes
saltam completamente elaboradas das mentes dos
gênios. Na verdade, a maioria das inovações nasce do
rigor e da disciplina.
Esse é o ponto central na discussão sobre ascetismo. A questão essencial é que a
disciplina, conduzida para a direção correta, pode proporcionar o desenvolvimento da
inovação e da criatividade.
A partir da perspectiva de Max Weber, quando cita a importância do ascetismo
para nações que realizaram a Revolução Industrial, por exemplo, nota-se que as
conveniências que esses países usufruem não é fruto do acaso, mas resultado de uma
cultura de disciplina pessoal carregada em cada cidadão. Países como Coreia do Sul,
Finlandia e Polônia, por exemplo, enfrentaram cenários adversos nos últimos cinquenta
ou sessenta anos. A reconstrução das instituições e da própria sociedade só foi possível
graças a um compromisso de toda a sociedade com o desenvolvimento do país. Houve,
portanto, um preço a ser pago. Compromisso e responsabilidade não são, exatamente,
palavras que soam motivacionais a princípio. Lembram muito mais a privação, a
12
resiliência, a paciência, o altruísmo e a empatia. Foi, no entanto, dentro dessa perspectiva
que tais países alcançaram patamares de desenvolvimento capazes de trazer maior
conforto para as gerações mais jovens dos mesmos países. Qual o caminho que eles
escolheram para transformar suas realidades? A educação.
Não se trata de ser conivente com o Brasil e dizer que tratamos apenas de países
perfeitos. Entretanto reconheceram na educação o valor de transformação social que a
educação pode promover. Tiveram a paciência para esperar pelos resultados.
No que diz respeito ao Brasil, a considerar as análises de Sérgio Buarque de
Holanda, o Brasil teve sua cultura forjada sob o patrimonialismo, a dependência do
Estado, a ideia de que o trabalho árduo era uma atividade inferior. A educação brasileira,
por sua vez, tem desempenhos muito ruins em exames internacionais que revelam uma
dura realidade sobre o trabalho que vem sendo feito dentro das escolas. Muitas vezes
lidamos com professores e pedagogos cuja formação não foi idealmente construída, com
infraestrutura sofrível, um currículo engessado, sem autonomia e com pouco espaço para
o desenvolvimento de habilidades inovadoras. O Brasil estaria então determinado ao
fracasso? Claro que não.
Apenas à guisa de exemplo, tomamos o caso das escolas militares nas quais,
institucionalmente se adota como prática o exercício constante do ascetismo em
diferentes aspectos do cotidiano e não apenas na perspectiva pedagógica. Como
pudemos perceber, as escolas brasileiras em que se adota a autodisciplina como método
de estudo, o desempenho é, normalmente, muito superior quando comparado aos
desempenhos de escolas civis. Após vinte anos em sala de aula, lecionando disciplinas
como História, História da Arte, Sociologia e Filosofia, pudemos perceber que essa
perspectiva teórica não se aplica apenas a instituições, mas sobretudo a indivíduos. O
talento pode, então, ser superado pela dedicação, foco, disciplina.
Por fim, não se trata apenas de haver foco e disciplina, pois, foco na direção errada
pode ser também uma tragédia. É preciso acompanhamento e os professores devem
receber formação adequada para desenvolverem aulas multi e interdisciplinares. Afinal,
os conhecimentos no mundo fora da sala de aula não são repartidos, antes, estão
concatenados. O sistema de projetos desenvolvido na Finlândia, por exemplo, demanda
tempo, esforço, dedicação de cada aluno. A disciplina anda, nesse momento, de mãos

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dadas com a criatividade e a inovação, sempre amparadas pelo trabalho assessorado do
professor.
Seria importante, portanto, que as escolas pudessem desenvolver um trabalho de
conscientização constante sobre o valor da disciplina e da responsabilidade para cada
aluno. Afinal, não é de conteúdo cognitivo apenas que vive uma escola. Trata-se, antes de
mais nada, de uma atitude de caráter que será útil ao cidadão por toda a sua vida.

Referências

BENEVIDES, Alessandra de Araújo & SOARES, Ricardo Brito. Diferencial de desempenho


de alunos das escolas militares: o caso das escolas públicas do Ceará, in.: Revista Nova
Economia, volume 30, n.1, 2020.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Companhia das Letras, 2014.

RESNICK, Mitchel. Lifelong Kidergarten. MIT Press, 2017.

RIPLEY, Amanda. As Crianças Mais Inteligentes do Mundo. Edit. Três Estrelas, 2014.

ROBINSON, Ken. Escolas Criativas. Edit. Penso, 2019.

RUDMIK, Thomas. Tornando-se Imaginal. Senai Editora, 2015.

SIEGEL, Daniel J. O cérebro da criança: 12 estratégias revolucionárias para nutrir a mente


em desenvolvimento do seu filho e ajudar sua família a prosperar. Edit. nVersos, 2015.

TOUGH, Paul. Como ajudar as crianças a aprenderem. Edit. Intrínseca, 2017.

TOUGH, Paul. Uma questão de caráter. Edit. Intrínseca, 2014.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Editora Martin Claret ,

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