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AGRIS MAGAZINE
umoutra proposta

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Movimento Litteragris

AGRIS MAGAZINE
umoutra proposta

2ª Edição

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@ Copyright: Movimento Litteragris, 2017
Título: Agris Magazine

Capa e designer: Oivando Carlos


Impressão e acabamento:

1.ª edição: Outubro de 2015


2.ª edição: Maio de 2017
Deposito Legal: xxxx/17

Edição:
Movimento Litteragris

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Email: litteragris2015@gmail.com
Facebook: Movimento Litteragris
+244 937303954/+244 917233001
Luanda – Angola

Qualquer Parte deste livro poderá ser reproduzida e divulgada, desde


que fora do território angolano, sejam quais forem os meios com a
devida permissão, por escrito dos autores.

Agradecimentos

Sinceros agradecimentos a todos os


humanos e aos astros que nos deram luz e aos
astros que nos deram a luz, e aos astros que nos
deram à luz; há luz, por acreditarem que em ermas

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terras pudesse desabrochar poetas com poesia.

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Editorial ou mais um manifesto?

Vivemos uma era de decadência total. Época


de crise alargada em todos os sectores da vida
humana. Importa-se-nos mais a crise económica
porque nos acostumamos a pensar com os
intestinos. Dir-se-ia, se tiver de se hierarquizar, que
a crise política é a mais gritante.

Não se pode negar que o homem novo terá


perdido em algum momento cataclísmico toda a
sensibilidade e educação. Diversas razões
histórico-culturais justificariam o seu estado. No
entanto, acreditamos que a inexistência dum
pensamento filosófico africano, contemporâneo e

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autónomo, que se adequasse às circunstâncias
impostas, terá comprometido todo um projecto de
reorganização político-cultural. Tínhamos de
admitir que, em razão do processo de colonização,
éramos outros, a seguir as independências.

Uma palavra de extrema importância e


fundamental para a formação do homem novo:
FAMÍLIA. Entendendo o seu conceito, evitar-se-ia
um conjunto de situações desagradáveis que hoje
se revelam como o espelho de África, reflectindo as
propostas de vida do homem novo. O homem novo
é o africano que, em pleno século XXI, ainda luta
pela sua dignidade. E tendo tudo, nada ou quase
nada faz para a sua afirmação.

O homem novo é um homem bruto, é


arrogante, indisciplinado; a corrupção lhe é

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congénita. O homem novo é pai, é polícia, é
professor, é político, é médico, é pastor, é padre, é
angolano, é africano, está em toda parte, é cidadão
do mundo, desempenhando estes e outros papéis
sem ética e moral. Logo, a grande crise mundial
resume-se permanentemente na falta de princípios
éticos e morais; para nós, na escassez de modelos
cívicos africanos, uma vez que todos os modelos
civilizacionais ocidentais falharam. A moral é a
chave e mudaria os políticos. E os políticos
mudariam o mundo. Mas que moral, quando o
Cristianismo não é eficiente?

A decadência é geral. Esse mundo, hoje


apartamento global, parece estar em via de colisão.
Vivemos sob a ameaça das potências mundiais.
Economias dependem das suas guerras cada vez

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mais frias e perigosas. O homem novo precisa
surgir em todo o mundo. É urgente que o
resgatemos.

Porém, já que melhorias se nos afiguram


como utopias, resta-nos sonhar. Apenas sonhar. Há
algemas invisíveis mais do que visíveis a atar-nos
os braços. Por isso, partimos
agrissurrealisticamente para algum lugar. Um lugar
de eleição, onde podemos sonhar acordados e
exercitar voandando livre mente a liberdade que o
chão nos não dá. Não é cobardia viver na lua
quando se inventam paisagens para assuntos
terrestres. No entanto, por mais dura que a
realidade se nos afigure, essa decadência não pode
afectar a nossa arte. A grande Literatura, sem
afastar nenhuma categoria modal (lírico, narrativo e

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dramático), é a arte da palavra transfigurada. Ela
exige um certo trabalho e estudo. Por isso, nessa
luta entre o estético e o utilitário surgimos
simultaneamente: por um lado, vanguardistas,
porque apresentamos uma nova metalinguagem no
sistema semiótico literário angolano; por outro,
conservadores, porque estamos à margem dessa
proposta de marginalização da arte, apresentada
pela nova vaga de super poetas-declamadores que
demonstram uma clara despreocupação
estético-literária. Ali, são os declamadores que
escrevem os textos quilométricos e demasiados
denotativos. Aqui continuam a ser os poetas que
escrevem os textos para declamar quando convier.
A arte deve reunir o estético e o utilitário na medida
certa. No entanto, não se pode negar que a primeira

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dimensão da Literatura seja a estética. Fosse outra,
não seria arte.

Agris Magazine sai pela segunda vez à rua.


Com mais clarezas e certezas. Eliminaram-se e
acrescentaram-se textos. A poesia ressurge com
um rosto algo diferente e a agrisprosa surge pela
primeira vez.

A nossa poesia é a nossa poesia. A base é


surrealista, mas existe entre o simbolismo, o
concretismo e o experimentalismo. É a mesma
agrispoesia da Tunda Vala. Agora com o fenómeno
da desfixação (Mabanza Kambaca, 2017) ou
desmembramento (Alfredo Kalala, 2017): técnica
estilística que consiste na separação morfológica
de radicais e de afixos que, isolados, conseguem se
constituir como unidades semânticas plenas. Ex.:

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(Felizmente= feliz mente). Ela eleva o grau de
ambiguidade, impondo ao leitor várias formas de
leitura.

A desfixação ou desmembramento não é


uma opção estilístico-literária nova. No entanto, ela
atinge o seu auge e fundamentação teórica com o
Movimento Litteragris. Por vezes, podemos assistir
a uma radicalização da desfixação e a construção
do significado decorre do jogo
semiótico-fonológico dos significantes. Os afixos
podem não se constituir como lexemas ou
unidades semânticas plenas. A semântica do seu
conteúdo decorre da combinação de fonemas
isolados, apresentando-se a combinação de sons
de palavras diferentes como um factor de semiose.

A nossa prosa é bela. É fantástica. Surge da

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azia pelo vulgar. Arte é sinónima de abstracção
desde a época Aristotélica. Por quê contar os
factos tal como eles ocorrem e designar esses
registos por Literaturastrictu sensu ? Não estariam
a roubar a função dos historiadores? A Literatura
resume-se na ficção e na literariedade.
Helder Simbad

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POEMAS

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AGOSTINHO GONÇALVES JOÃO, Luanda, 6
de Junho de 1995. Estudante da Faculdade de
Letras, curso de Língua e Literaturas em Língua
Francesa.

Z do árduo
Z ninguém

dos santos que ouvi


na terra um vi

em pé lá
em pé cá
em contínua luta
em certas vitórias
no ventre da palanca
um deus mortal

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POEMA Z

um pé no alto
outro no baixo
no igual caminho
caminham desiguais

entre eles
um só Deus
mediador do alto
mediador do baixo
mediador do céu e da terra

na terra…
a sola seca
sobre o solo seco

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no céu…
o solo seca
sobre a sola seca

E NO FINAL?

ALFREDINA VENTURA, Luanda, 1983.


Licenciada em Gestão de Recursos Humanos.
Pós-graduada em Psicopedagogia Clínica
Empresarial. Autora do livro Insaciável Desejo.

naufrago no mar do amor


preencho o vazio
com as verdes algas do ego

reluzentes conchas invadem

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as cristalinas águas do mais profundo
sorriso
rasgado
no semblante dàlma

cantam os golfinhos
o assobio vermelho do amor
silenciosas cegonhas a voarem

ilusão do mar
de amor

AMOR A MAR

Pai violão
Ngombidi

Três emudecidas meninas


No silêncio da casa
Aos gritos

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Denúncias do alheio
Mortes na boca
Caso encerrado
Acabaram-se as virgens

MAKAS

ALFREDO GUILHERME KALALA nasceu a 11 de


Novembro de 1991. Estudante do ISCED de Luanda, do
curso de Ensino do Português.

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com junção
casal - C parado

In coordenação adâmica
In subordinação evâmica
por com sequência
locos sons
locos são

LOCUÇÕES

aí do coito
lá dàjuda

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qual herói salvando
glória deslogrando
com toda candura
ânsia sem anseio

CANDURA

CÍNTIA ELIANE, Luanda, 4 de Outubro de

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1995. Estudante do 2º ano do curso de
Comunicação Social.

quando te vi
fui teu voar
e desci Deus
para me encontrar
voei-me sobre pontes de marfim
aureolei-me de oiro em sombra fria
e voos caíram destruídos

foram dedos de Deus meus sentidos


meu corpo andou ao colo de Maria
agora durmo Cristo em véus pagãos
são tapetes de Deus minhas mãos

regresso na ânsia de alcançar os céus


ergo-me mais
sou perfil da dor
sobre os ombros de Deus
olho ao redor
e Deus não sabe qual de nós é Deus

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ANTE O DIVINO

embalar cores
palavras plenas
no des campado
vale elo quente

nada pintar
covil de instantes

caminho do sol
bordado de pétalas

de vagar
sonhos in finitos
reduzem
princípio imaginado

escrelinhar àlma
céu embrulhado na terra
onde lâmina do tempo fere luz

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degolando alfa betos

VÁ LI DAR CONTRÁRIOS

EDSON MAYENE TOMÁS NUNO, de


pseudónimo literário Edy Lobo, professor de
profissão, Licenciado em Língua e Literatura
Inglesa, nasceu a 6 de Fevereiro de 1983

púrpura
de genes raros
manancial de alimentos
caro, líquido necessário para a
sobre vivência. fazes ciúmes à água
que com sapiência a gula aniquila desde a
essência.

cada
lauda dos meus
opúsculos que a ti e para ti
são redigidos esclarece o mais
puro

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do sentimento humano antes dito e
proferido
por qualquer ser normal sedente que pensa e
respira.

VI NHUM

do ouvido inocente (eloquente)


alheias a mim,
lamúrias culpadas
palavras sem água
levaram o limpo da torga.

qual quê eloquente (inconsequente)


demente
quiseste tentar a semente.

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coitada!

pariu-se o amor latente


na boca do coração de um delinquente.
premeditado.
conseguistes!

agora vai…
vencestes!
que chovam os meninos inocentes
cada um ao seu momento.
bloqueiam os sentimentos.
com vossa licença: pedem às lágrimas.

PARE O AMOR LATENTE


ERNESTO DANIEL, Luanda, 24 de Agosto de
1986. Estudante do curso de Língua e Literatura em
Língua Inglesa na Universidade Técnica de Angola.

o caminho é uma metáfora


de atalhos nas mãos do criador

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um trigo nas mãos do joio
sombra conotada no texto da insónia

houve deserto
saciado por nenhuma água
no meio do caminho
antes dos dedos madrugada
tocarem o céu de Adão

CAMINHOS

na veia do silêncio
uma navalha

corvos em rios de pedras

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debicam a cicatriz

há ventos de flechas
que sopram para o coração da morte

fundi solitária em Kalomboloca


uma lua pública
espelho e mar
reflexos de uma medonha sombra
pegadas de verdes madrugadas
no amanhecer da canoa

o limão segue o seu curso amargo


na boca estigmatizada da chávena

um torto direito que rastejanda


parado no cérebro das ilusões

NAVALHA, MORTE,CANOA E ILUSÕES

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FILIPE OKONDAPITA???????

subscrevo eu a minha época


eh! época minha
congelada num princípio sem fim
no desabafo do incorrigível erro

esta é a minha época

vivenciada nos erros por cima dos berros


onde o imediatismo fala baixo
e cantam o canto da eka e da cuca

infinitos lacrimejos torturam o olhar


clínicos que indagam as razões dos porquês
as linguagens arcaicas ainda gerem
a minha época

MINHA ÉPOCA

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ÍPSON SÉRGIO JOÃO, Luanda, 30 de Maio de
1994. Estudante do segundo Ciclo do ensino
regular.

há um caminho voando
cedo se estende
desfila virtudes
pinta olhares

nasce sonho
noite alongada
sussurra gemidos
dois anjos na lua

desanima dor sol


cedo se estende
real idade negada
distante da aurora

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pássaro cantor

SAUDADES

Estudar transcender
sol e lua e nova lenda
orgulho de gente

rio Nilo em minha terra

pum, pum, pum


jorra sangue
paira guerra
em vão os infactos
sorrisos profundos
valeu a pena
ansiedade e lágrimas e suores

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factua-se nova realidade
liberdade
obrigado minha gente
de lágrimas e suores
de sonhos revogados

OLHAR ANGOLA

JÚLIO QUILUANGE nasceu a 22 de Outubro


de 1999.É estudante da Décima Primeira do Curso
de Ciências Económicas e Jurídicas.

Cara alho
cara cebola
cara jindungo
cara feia

Desaparece quando aparece


o aborto eléctrico de laúca
descem secas lágrimas

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secos olhos
escrevem poemas
nos fomeados lábios

ESCURIDÃO É NOSSA LUZ!

Nesta folha de videira


vi de ira
fome sepultando lugares
tripas e lombrigas e satisfações
derramando nada na via
Crise nos corações

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FOME

JM (JESUINA MANUEL DE CRESPO) nasceu


a 6 de Julho de 1997. Terminou o curso de Ciência
Económica E Jurídica

caminhei pisando vazios

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na procura do incompreendido

dei-me ao nada
intensamente perdido
nessa estrada sem direcção
rumo ao ser solitário

do ventre de uma flor saí


transformada

em semente sem terra


caminhandando por essa estrada
sem saber onde ir
sem ter a certeza de quem ser
sabendo uma única coisa

EU SOU EU

natureza de um infinito ser perdido


mundo devastado de ironia

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natureza de um anjodemónio testemunhandando
santidade gloriosa

natureza de um deus pagão


com ira e mulheres insaciáveis
... 

natureza de um diabo com uniforme de homens


sepultados num vazio concreto

natureza do cego contente por ver a sua


imaginação

natureza do mudo que ouve sua voz ressuscitando 


seres imperfeitamente santos

natureza de terra mar


natureza do céu de homem

do oásis encarnado
na lágrima de uma criança

NATUREZA DO TUDO E DO NADA!

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KALEWA SALVADOR nasceu em Luanda a 14
de Julho de 1997. Terminou o ensino médio,
estudando Ciências Económicas e Jurídicas e
trabalha como pasteleiro.

do roto rosto
se desbrava o mar
de suas salinas

incolor é a mágoa
de águas friccionadas
do poço

catarolandado
inóspito olhar da vida facada

o rosto liga dura


vida vivida entre caos

LIGADURA DO CAOS

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caiu o estrume
caralhos e caravalhos
rolandam e emanam
sina serpentina

vai dade morta de idade


gorgomilhos grilos sem milongos

fendas a venda
estendidas a contendas
dos feitiços dos postiços
dos trocos rotos dos irmãos
da geração do sim distante
do não sei mais quem
do sim as tetas do não

GERAÇÃO DA MINHA MÃE

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KWONONOKA (JÓ RAFAEL), Lunda Norte, 19
de Junho de 1993. Estudante do 1º ano do curso de
Sociologia do ISCED.

nasço num dia de hoje


sinto fortes sintomas
de saudades
por isso nasço num dia de hoje

caminho perto de mim


buscando forças onde não tenho
encaro os meus confrades

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no calendário das ausências
flutuo numa única poesia
declaro a mim mesmo
o regresso de uma paragem

TEMPO VAZIO

Alcanço em mim
uma repleta volta

Parto para mim


esboçando versos que ainda fiz
no troço da vida

Abarco o horizonte dàlma


descobrindo as mãos de meus versos

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Esboço sem receio sorrisos
Que eu diga quantas
vezes acordo
O véu da aurora

FIZ VERSOS DIVERSOS

LOURENÇO MUSSANGO nasceu na província


de Luanda em 1986. É finalista do curso de
Comunicação Social pela Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Agostinho Neto.

vejo cães no palco camões de palha


putas expressivas bem falantes

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fiéis evangélicos boçais
engravatados mestres de cerimónias
ventos lúdicos dèventos e fanfarras
vejo pénis vaginas dalgas
veados de pés descalços
sem almas
sem estética
filósofos ingénuos

cães!? não!
são poetas
modernos monangambas
união brigadas movimentos cívicos
politizados
sem belo
advogados partido prostituído

EQUÍVOCO

Cantam ainda a tua imagem


os violinos da Lua Cheia

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sob o espumoso manto
um céu de linho

Emerge do breu dàlma


a súbita vontade de ser
teu rio vital
e seguirá o seu curso
a dor

SUBLIME DESEJO

49
LUCIANO ALFREDO nasceu ao 11 de
Novembro de 2001.

sei que não posso à marte


sem nos vénus

nas calemas
calma mente me ditas

seja tu nda vala entre círculos génios


com templo me teoritos
teorificando sem nos vénus morrer

sem à marte sem nos vénus


nos veremos

IREI À MARTE

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LUZIMERY DE CIANA nasceu em Luanda, a
22 de Setembro de 1992 e faleceu na mesma
cidade, Luanda, Maio de 2017. Formada em
Línguas, Tradução e Administração.

o dócil bater de asas


ou o serpentil rastejar do teu corpo
faz o murmurar rasteiro
da mata da perdição

tento agarrar sorrisos com os olhos


o sussurrar das tuas árvores
combinado com o cantarolar das aves
que repousam nos teus troncos
fazem do nascer do dia

o mais contrastante fenómeno


a divisão silábica dos teus caminhos sombrios
mostram verdades escondidas
entre montanhas aéreas. ..

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a tua natureza é um mistério
indescritível! !

A TUA NATUREZA

malambandando com a vida


encontramos alvorecer sem luz
em almas sem corpos
cansados de sorrir motivos
sem motivos...
o riso perde seu brilho em terras
sem terreno para flores querendo
desabrochar ideias! !
ideias vivas mortas no ventre
da imperceptível verdade
por reis
reis?
que reis?
são demónios que comandam pensares
de quem quer voar!

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VERDADES MORTAS

MABANZA KAMBACA, Uíge, 18 de Dezembro


de 1991. Licenciado em Direito.

e engulo as famas e as falas e as fáceis faces


arrasto savanas para uma mata de inexistente luz

e faço parte dos problemas


e retiro a tiros todas as vidas
e em qualquer bairro eu Zango
miséria que me arruma desde a ilha

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fundo a própria página
pátria que me rodeia é missão de cada homem
topo sempre em busca da nação
ninguém veria da mesma maneira

e ralho-me por desilusão


traindo toda uma geração em delírios
tantas vezes calo imparável como a fé
e ninguém vê o caminho
por que passo a segredos segregando-me
para o que é misterioso

há aqui no advérbio um nome


que me traz toda inquietação

imagino ser uma propaganda


o discurso que abre o sonho dos jovens
mesmo antes do sono
violência dentro de cada um

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é mesmo essa palavra
que só nos passa agora
ou de quatro em quatro anos.
a lei.
e aqui a guerra é uma festa
e falta a desordem para que se confirme
o ataque de nervos
e eu já estou armado
e só me falta a arma
e mirar os vossos rostos
e com o silêncio que é o mestre
e o futuro onde a paz será

SERÁ

MANGABI (GABRIEL ROSA), Luanda, 13 de


Abril de 1994.estudante da 12ª classe no Instituto
Médio Comercial de Luanda.

que negro paraíso


bebe da suàlma
destilando luz pisada?

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não ma(i)s creio
na veracidade dos rios
penteados por um céu camaleão
até pinto sobre a mentira de deus
uma verdade gorda

quanto me descortinas a razão


nos aposentos do sonho
onde exibes do riso uma dança
ocultando a poeira do seu rosto

suàlma canta majestosa


na pedra enterrada ao mar
canta sobre a pauta
a transcendência carnal
do sonho embarcado
em noites esgalgadas

UM PARAÍSO POR GERMINAR

É o lírio da voz
na traseira da canoa
do sonho que com àlma saboreio

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quando o céu risca
das estrelas a fumaça
e sobre pés de pedra
um frágil Deus
ante o poderio da forca

SUICÍDIO

MILÍMETRO ADÃO nasceu a 9 de Junho de

57
1995 no Município do Cazenga. Terminou o 2º ciclo
do Ensino Secundário.

toma o cu um
riomar
nas ondas metálicas
desce crepitar
desilusão
fusão dùniverso
denso fica o
sol azul
ao cintilar
demo
grafia

DESILUSÃO

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um
dois
e três
aos quadrados
e aos recantos

busco poesis
numa terra
de espasmos
meus cabelos
hasteiam o
beijo à Judas
um Cristo
programado

desço
mais
um
pouco
o Kwanza
ao encontro…
com o senhor

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da terra

etu mudietu!
etu mudietu!
e voandando
libero minhàlma
num portal infinito

MARCIANO

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MUSSUNGO MOKO, Benguela, 1 de Junho de
1982. Estudante do curso de Direito da
Universidade Agostinho Neto. Autor do livro EM
CADA SÍLABA, UMA CICATRIZ.

Nua na tua
rua a nau
partiu
na l
u
a

BECO DOS ENIGMAS

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Lua anda
se dá de bem
linda tipo estilo
angolarrrr cidade
fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiina
achada na inteligência

vestida de arranha-céus
pintada de não me toques

62
e nada no futuro
com os meus olhos…!
L ú a a a a a n d a!
uma limpa cidade
outras a p e n a s
Luàndando
na m o n t r a
da i l h a

MEIA LUA ANDA

OTHIS MBEMBAI NDOMBAXI

Sobre pousos
de emergências
repousar em teus lábios

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Arder de infernos
desejos abismais

Fumar dos teus seios


embriagantes maruvus

Extrair com a língua


os sucos da maçã
no éden dos lençóis

Vencer por um grito


a última batalha hercúlea

PROMETO

Esfregas entre os dentes


esponjosos lábios
qual maçã carnal espalhando

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10 obediência

Com olhos trazes o sol,


a névoa e as brisas primaverais...

Ó Eva das ruas de Luanda!


diz-me quais pecados
o espírito não refuta
contra vontades carnais?

TENTAÇÃO

65
PAULO JOHN

Circuandantes círculos de peixes imaginários


recolhem beijos
beijam a etapa dos ventos agramaticais

No dorso fustigado da sombra


a noite mutilada
de vez a vez a vez
reboca ex-curidão de mornas lembranças

Abraçados de faróis azuis


entoamos contornos de lábios caídos
inalamos silêncios em pó das inércias!

Asas leitosas dançam no imaginário do realismo


realidades mergulhamos na fantasia

Assim
de passos mansos
arrastamos faunas cintilantes nos ombros
roncantes

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10 CONFORTO

PAULO MORALES DA COSTA nasceu a 02 de


Agosto 2000. Estudante da 9ºclasse.

viver ou morrer?

sol melancólico
de infinitas lágrimas

homem vestido de azul


caminha
pela direita da raiva

pobre Zungueira!

INFINITAS LÁGRIMAS

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vagueio nas sombras
da eternidade

teu sorriso é estrela


brilha no céu da minha cabeça

a escuridão eterna marca paixão


vi nascer luz dos teus olhos

LUA AR

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PEDRO MAYAMONA nasceu a 23 de
Fevereiro de 1992. É estudante de Ciências da
Educação, especialidade em Ensino da Língua
Portuguesa. Membro do Círculo de Estudos
Literários e Linguísticos Litteragris.

As buzinas do respeito
Morreram nu
Esquecimento

HOJE
Vi vemos
A ordem da pútrida ordem
E a moral das leis
Imoralidade das leis…

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Arreda
Verme...
Basta o esfolado útero das mães sem a tua
vagem!

DE(U)SUMANOS

Fé...
Li
Cidade
Nus escombros
Decadentistas
(10)governado
Saara mais árido
Que seco...

Ricos tachos
Pobres
Podres
Dê (s) =idade
Às enxurradas dos rios!

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Éter ânsia
Mórbida espera
Nas(ci)(da)de lá
Das fissuras secas!

COMPÓNIO DE PALABRAS

PEDRO JOAQUIM SANDALA FRANCISCO


nasceu a 7 de Novembro de 1995. Estudante do 1º
ano do curso Ensino da Língua Portuguesa ISCED.

Pensavandando
Escuridão dàlma
mártir afogado
terra sem água

Corpos flutuam
num sol gelado
sombra da lua
E esta alma negra
presa num corpo branco

71
caminhandava
entre lembranças esculpidas
embrulhadas em ventos eróticos

No rugir dum novo céu


espreitava um desesperado amanhecer

PREMONIÇÃO

Táxi
violento
teso
tenso
com pés na cabeça
avuna
nas tranças de gente apressada

Táxi do tempo
leva pela estrada meu suor
enfurece a terra humilhada

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onde há vida
dá vida
à vida
de quem adormece
à luz do alcatrão

Duas caras
é o preço da minha solidão

TÁXI DO TEMPO
SATCHONGA TCHIWALE nasceu no Kuito,
província do Bié, ao 12 de Novembro de 1992. É
técnico médio de contabilidade.

Desato
corpo a corpo

ama-se àlma
vestem-se olhares
muros penduram saga de sonhos
não grita não liberta
« ui, seu cão!»

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Fisgas-me com os olhos
Não tires o pé da verdade
Verga a monodocência
Retira de mim esta coisa
Dura de se esquecer
Entra e cospe a doçura do feitiço
Mina em mim o sonho surrealista
Retira dos ares o além dos deuses
Dois pingos de sonhos
OPOSTA VIBRA AÇÕES
Des gosto quando gosto
Entre milhares de rebentos
Um verde escravo sem sonhos

Parte para onde vão as magoas


Cala-se o interior da morte

Enriquecem-se os ouvidos
No sabor da dor negra

Voam os mares sobre as ondas

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Morrem sonhos saudáveis
Onde corre a guerrilha tomba o sol dado

Ó admiráveis fantasmas de África


Liberdade impostora
Vive-se o insulto da semente plantada
É livre a escravidão germinada

SEMENTES DA LÍNGUA

SONJAMBA CARMONA, pseudónimo de


Eurico Nachiocola Carmona, nascido no coração de
Angola-Bié- aos 18/08/1992. Estudante do 4ª Ano
frequentando o curso de Línguas e Literaturas
Africanas, na Faculdade de Letras da Universidade
Agostinho Neto.

r d
i e
s
b c

75
u e
s r

s
e cada
per
fumada
marlboro alienígena
mini saia
«Max, sai, yá!»
homogeneidade metropolitana
«táqui agwè é com chê»
luandandando com biólogos biolos
sociólogos sócios

DURA A SINA AND DURA A CENA


Abominável desejo
pobre riqueza
Palavras
geneticamente
(en)gravidantes
trocas de olhares

76
l an
o d
r o
e rolando
pensamento
marca ante
sorriso
sorriso
chorrante
/àcábà/ de
me /mátàr/
Acabam de me mortar...

REDES SÓCIAS

TALENO CAMBOLOMBOLO, Kwanza Sul, 22


de Maio. Estudante do segundo ciclo do ensino
regular.

77
o que serei eu
quando chorarem as madrugadas?

amarrar virgindade no pescoço da sede


queimando rios no capim fresco
do rosto da terra?

cuspir no fogo frio da caneta


e aguçar a minha técnica de urinar
no seco paladar de ferver áfrica?
serei angola sem espinhos
fervendo as lágrimas do ndengue yame
quando não mais houver água
beberei do seco fogo de angústia
quando o corpo precisar banhar
as noites que calçam dias
num olhar de lacrimejar saudades

O QUE SEREI EU?

78
carrego pé daços
es
ca
das de lágrimas
ca idas

lavro sonho no caderno dàlma

quão palpável é o silêncio da tua voz


ó Nzinga

teu sorriso onduloso


saudade batendo

amargo é musica escorrendo


música doutros tempos

SAUDADE

79
TOMÁS SOLO nasceu em Nambuangongo,
Província do Bengo a 1 de Janeiro de 1984.
Estudante da 12ª classe do curso de Ciência
Económica e Jurídica.

Cerram-se portas
no ventre a atmosfera

quatorze sopros de verão


punhos encerrados na terra
medalhas chumbadas na face
sangue na terra
gritos nas lágrimas
madrugadas mestruadas
no ventre da atmosfera

VENTRE DA ATMOSFERA

80
imortal vício escorre
álcool é sangue nas veias
Ser mil i tar
ser ku
papá tá
é o preço do sonho
Oco futuro mara tonas pró longadas
lápis enferrujados
ondas de desemprego ki lápis estendidos no céu.

ÁLCOOL NAS VEIAS

81
VATA MORAIS nasceu no Uige no dia 12 de
Agosto de 1992. Concluiu o curso médio em
Ciência Física e Biológica.

no convívio silábico
uma língua afiada
derrama sangue
saboreando versos quentes
sabedoria santa
invoca perfeição imperfeita
no sorriso da noite
oh!

manifesto a crónica

82
depravando gotas de morte
entre sombras escondidas 
compartilho o mesmo sabor
com lábios dispersos 
sons soprados
danças onduladas  
segurança insegura 
espectáculo de lâminas
no palco cá ido
agonizando vozes entoadas
fogueira de raciocino
vivendo fim de passado
na cor de amanhecer

SÍLABAS CANINA
de forma incógnita
caminho, andando
de este
caminho encerrado
com sílabas flutuantes
criada numa poética sinalagmática
que olhos tesos
mirando entre mabubas
escondendo jing(u)enga

83
ressuscito num jardim

HABITADO PELO ÉDEN

VUNGE FUTA nasceu em Malanje a 22 de


Novembro de 1994.

irmão
parto do mundo leso
sobre dorso levo
cal vários de todas as eras

84
adeus carne minha
adeus alma das estações
e a cor darei onde morrer

oh alma de intenso júbilo


diz a mãe partida
na partida ingloriosa
cri ar cri ar fiel
inventar diabo
inventar deus

sentado na concha da lua


sobre cauda cometa
na boca de todas as noites

GUARDA DOR DESTAÇÕES

ó mãe de exilo
mãe de arco ires
fonte vi tal

85
é vida
é morte

hemos de erguer
um ceu
uma noite
uma terra
um homem novo

céu há de ser seu


cântico de serão trajado de folhas vivas

RECADO

86
WALTER AMBRIZ nasceu em Luanda a 24 de Julho
de 1992. É estudante do 2º ciclo do Ensino
Secundário.

mulher palavra
terna caprichosa
violenta

suave
de mel
há cá dá si lêncio
rios de
areia.
escoam o rosto
100 alegria
no pulsar.
do sangue
no teu ventre
só sei dizer
amar.

87
MAR NA LÍNGUA DA SEMENTE

dá-me teu rosto


e fica com o
meu
ser infeliz
longe da
vista depois de
partir
repousas e
vens
tens
tu alegria de
pocilga e
foges do olhar
que
nos
regressa
à viagem

88
disseste à
vida da pátria
dorme o andar da fome
100 MORTES NO FIM DO NORTE

WAXYACULU (FERNANDO FRANCISCO) nasceu a 2


de Fevereiro de 1995.

um olhar torrencial
subjacente nas rosas
víboras entre orquídeas

mortíferas palavras
beijam um silêncio
levam um amor
as profundezas da morte

amargo abraço
que partiu sem deixar rastos

AMARGO ABRAÇO

89
um sangue derramado
na esfera artificial
trilha um caminho de esperança

a lua fustiga o sol num silêncio


clamam as plantas
‘‘pelo menos um raio de sol’’
‘‘pelo menos uma lágrima’’

um sangue reside
num rosto inocente

90
e uma planta recebe
outra inspiração
na ignorância
esse sangue é meu!
aquela planta sou eu
quem?

O AGRICULTOR

YBYNDA KAYAMBU ou talvez HÉLDER


SIMBAD nasceu a 13 de Agosto de 1987 na
província de Cabinda. Técnico Superior em Línguas
Tradução e Administração. Professor de Literatura
e de Língua Portuguesa.

pãopagaio cinzento
leva poema correio intemporal
à vindoura gera acção

91
fome é poética ilusão
ou surreal real idade

FOTOGRAFIA DE HOJE

Aleluia
ei-lo aí
o súbito sujeito
subentendido na sintaxe da pátria

92
verbo de poente
substantivo concreto
complemento circunstancial
narratário implícito
duma história arranjada

ó deus
tu que te ocultas
em orações elípticas
tu que nos ensinas sobre viver
conjugai o nosso viver
em nome dos que subvertem
a gramática do medo
amém

«MORFOSSINTAXE DA PÁTRIA

93
ZIKIDI (Miguel António) nasceu em Luanda a 25 de
Setembro de 1994. É técnico médio de Enfermagem
Geral, Hospitalar, no Instituto Médio Técnico de
Saúde, VISAMAC, em Luanda.

nego a mim
nego a Deus

10 faço
minha existência
1 X + aniversário do Diabo

recusar ia um ateu
arrumar as barbas do Diabo?
pintar as unhas
acomodar-se sobre a barriga gorda?
existo

94
quando 10 creio +

EXISTÊNCIA

vivo
indo

tempo

meu ano
minha idade
meu dia a dia
minha vindade.

o ano em que nasci


nunca mais voltou
o dia sempre volta
me leva consigo.

95
morro
sempre que me não conheço
sinto raquitismo das pedra
num estático tempo
sem inverno sem verão.

VIVO INDO

Helder Simbad

Construção colectiva do Eu

O Eu lírico pode revelar a subjectividade dum


sujeito uno que exterioriza os seus sentimentos, ou
expressa um pensamento; podendo revelar também
a subjectividade de um sujeito que encarna uma
colectividade, ou ainda, uma colectividade que
encarna um sujeito.

O poeta, quando movido pelo impulso


criativo, cria ou é possuído por um sujeito com
existência abstracta que se concretiza através do

96
efeito catarse: processo infeccioso, transmitido ao
leitor com sensibilidade apurada.

Se o sujeito poético é independente do autor


empírico, então a construção de um poema pode
ser um processo colectivo. Ademais, não existem
poemas acabados. Por um lado, poesia que é
poesia manifesta-se aberta na sua dimensão
ontológica; por outro, a relação entre o autor e a
obra não é directa, por este facto deixamos voar um
conjunto de textos por se acabar. Em vista disso,
podemos dizer que é possível a construção
colectiva de um ‘‘Eu’’, através de diferentes
subjectividades.

A escrita processa-se de forma espontânea.


Um poeta, do nada, salta-se-lhe uma estrofe que
será, sequencialmente, desenvolvida pelos seus
companheiros. Terminada a experiência,
eliminam-se os versos ou as estrofes desconexas.
Assim procedemos a construção colectiva de um
eu.

97
Hoje o mundo senta-se
aos pés de mim

98
Não me sinto

Os olhos dormem e nascem


no piscar das pestanas
um ver impaciente

Sou este sem mocidade


e se sou…
Alguém que me diga
Sou eu do nada ao nada

E do nada teus dedos dedilham

o ventre de uma guitarra


soltando andorinhas
que debicam a luz da alma
num norte de tambores em convulsões

Com veias
com silêncios
com intimidações
nas ideias das palavras folhadas
andei com as palmas das mãos

No tempo tão lento e veloz

99
sou um ser camaleão
camuflado na semente do homem


Há uma cidade perdida
entre os escombros
Luanda babilónica

Há um carro avariado
na estrada da mente

Vivendo de imbuidades terrenas


no cimo olhar ambíguo

Lá, lá…
Onde o choro negro é profundo
onde asas tenebrosas
tempestades vegetam

Lá…
Onde o perfume das algas
arrasta a boca do mundo
dançam minhas pálpebras
nas notas perdidas

100
No cantinho da guitarra
lá dançam tristes ou alegres
e a cidade lentamente morre
asfixiada no tronco da madrugada

Madrugada grávida de silêncio


sobre o comboio duma terra enferrujada
nas mãos negras da mente verde
entre mistérios a olho nu

Sigo esse ser poemário


Onde se ergue a palavra
com terras cultivadas por humanos?

101
O sol renascendo
trevas em mil dimensões
amor morte do meu mundo
treva, treva

Que bom sentir


o que não sinto

Trevas nas estrelas


ressentimento no sentimento

Sou um bebedor de rios


e no ventre da lagoa
uma taça maléfica

102
brindando o deus que não sou
sobre a magràlma do diabo
que se me desabrocha
ante o troto da poesia

gatafunhado papeis
no ventre dángústia
um silencio vazio
afogando-se no ataque de quem crê

Renascendo no meu nascimento


vou palavreando sonhos
sonhados no ventre do pensar

Pensamentos em trevas
luzes em mentes
mentes iluminam trevas apagadas
no florir das memorias fatigadas
palavras sangrentas
paridas na maternidade
rebuscam o som ritmado das cordas
até o findar dos campos lavrados

103
104
Prosa

Cíntia Eliane

105
AGRISPROSA: O MANIFESTO

Enfio na agulha o que muitos chamam de


tempo: uma linha de linho fino que costura as
diferenças que nos fazem iguais. Um ponto seguido
doutro ponto… e, em cada ponto, um recomeço.
Somos eternos princípios, cri ar, cri ar, cri ar...

A nossa arte é pura e eternamente


experimental. Vivemos onde saímos, na era doutra
proposta, era das dez cobertas. Mesmo solo,
mesma raiz, mesmo adubo e fruto diferente.
Trilhamos o mesmo caminho, o da divindade e
espiritualidade do homem e dàrte.

Entendemos que um
Movimento Literário
deve-se definir como uma
associação formada por
autores, mais ou menos
da mesma época que,

106
compartilhando
analogamente o mesmo
conceito de humanidade e
de arte, estabelecem uma
ideo-estética comum.

Sonho, ponto de partida para a excelsa


escrita onde, para além da exaltação à beleza, se
evidenciam sentimentos, tanto de desejo como de
pesar. Nossa arte é o nosso mundo, nossa mais
bela criação. Com o agris-carimbo deixamos claro o
que entendemos por literatura e essencialmente
por poesia. Para a prosa o trajecto é o mesmo:
CABEÇA NA LUA, PÉS NA TERRA.

Depois da poesia berrada em uníssono, há


palavras a sentir e a brotar nos dedos suplicando a
corrente serena da prosa. Curvam-se ligeiras como
se curvam os girassóis ante a quentura do sol. Não
lhes podemos negar essa vontade, mas não as
aceitamos terrestres, voapulamos com elas e as

107
polvilhamos com pó de lua.

Narrativa insípida?! Não! Ela vai a andar,


meiga e suave como a merda. Não nos oferece um
percurso provocador de emoções, como o
despertar da vida do corpo fora dele. São muito
amorosas, supérfluas, ocas e vaidosas, trabalhadas
com uma habilidosa ternurice, deixando de fora a
arte, o caos. São filtradas, tiram-lhes a sujidade, a
alma, as rugas, o áspero e deixam apenas o limpo
seco, o que não nos leva a nossa origem. Essa
literatura não leva ao orgasmo, não há sexo entre
as letras, é um simples e real monte de palavras
sábias, em perfeita harmonia.

As etapas do ser, o conjunto de fenómenos


que o acompanham e a sociedade em si,
valorizadas e embelezadas nas nossas letras são
as grandes responsáveis da nossa produção
prosaica, assim como os gritos além das nossas
vozes.

108
Na nossa visão a prosa deve deslizar das
mãos do seu escultor real e de forma fantástica.
Enquanto a poesia vem-nos instantânea, a prosa
resulta da avaliação e reflexão em torno dos
fenómenos que nos norteiam. Geralmente, essa
construção segue um roteiro que parte desde a
documentação até à prática; o que implica uma
soma de leituras para a sustentabilidade da
produção e do perfil do prosador. Por fim, vem a
avaliação da nossa própria produção, primeiro por
uma auto análise e depois a análise de terceiros.

Para a prosa, desprezamos textos


simplistas, mais informativos que literários.
Apressados, fazem-nos comê-los crus, o que se vê
principalmente numa grande parte dos romances,
produzidos hoje e ontem.

Para nós, é indispensável o mistério e a


tensão narrativa à medida certa. A Agrisprosa faz
reflectir, educa e entretém.

109
Outra vez CABEÇA NA LUA, PÉS NA TERRA.
Apresentamos este paradigma como o princípio da
trajectória para a construção da agrisprosa.
Promovemos o fantástico, sim, mas não nos
desfazemos totalmente do que se entende por
realidade. Para nós, literatura é ARTE da
transfiguração da palavra, arte do não simples, arte
do não óbvio.

As narrativas literárias não têm o


compromisso de total ou parcialmente reflectir a
realidade, mas pela função social do escritor e pelo
poder da própria literatura é necessário que as
usemos como atalho para desempoeirar olhos.
Assim, com a nossa cabeça na lua, criamos uma
realidade irreal, por meio da estruturação dos
factos. E com os pés na terra, dentro do enredo,
usamos estratagemas para pintar a existência
como a vimos sem extrapolar a coerência interna
da obra. Não seguimos uma tendência. Somos a
nossa própria TENDÊNCIA. Facto que provoca,

110
muitas vezes, eternas e profundas renovações
estéticas no nosso Movimento.

No entanto, a nossa narrativa é ficcional,


mas composta de enunciados que representam
uma linha fina de factos reais. Assim, os assuntos
são contados de acordo com estratégias
discursivas que mantêm ou não uma ligação de
adjacência com a realidade.

Pensamos que de acordo a intenção do


escritor, ainda que a narrativa ficcional tenha
propositadamente caracteres que nos remetam ao
mundo real com propósitos, sociológicos,
didácticos ou moralistas, não devemos deixar de ter
em conta a comparência de um narrador, o
procedimento estético do texto e a sua função
poética devem transpor-nos para uma leitura que
deverá deslocar-nos a uma análise que tenha em
vista as coordenadas que fazem uma narrativa ser
considerada ficcional.

111
A nossa narrativa tem um conteúdo
minuciosamente seleccionado, e o discurso é
narrado de forma inovadora e de acordo com a
intensidade da própria história, visto que temos
romances narrados na 2ª pessoa o que constitui
uma novidade dentro do mercado literário
angolano. A narração é assim feita pela intenção do
narrador em acusar o herói da história.

Pensamos que a história seja o conjunto dos


acontecimentos narrados, e que englobe, em sua
significação geral durante a narração, outros
elementos ou conceitos
que fazem parte da estrutura da narrativa enquanto
unidade orgânica. Dessa feita, para ocorrer a
história, é necessário primordialmente:
personagens que vivenciem a história e uma
sequência de acções que desenvolvam o enredo.

A sucessão de acções, as relações entre as


personagens, localização dos eventos num
contexto espácio-temporal, são aspectos que

112
encaramos de forma diferente na medida em que
utilizamos vários recursos durante a composição.
Por exemplo, muitas vezes a história narrada não
segue uma ordem cronológica nem uma sequência
logicamente ordenada dos eventos. Desse modo,
podemos dizer que a história corresponde ao
conteúdo da narração, ou seja, ao seu significado,
enquanto o discurso que veicula a história é o seu
significante.

Porém, consideramos que não é possível


existir uma divisão dicotómica entre história e
discurso, sendo que a narrativa é o resultado de
uma profunda interacção entre o que se conta e o
discurso narrativo.

Estamos na era da decadência das


personagens e do enredo. Nota-se nos textos um
enredo de contornos indefiníveis, muitas vezes
ambíguos, e personagens com crises de
identificação e dissolução do eu. As personagens,
na maior parte da nossa narrativa de ficção, são

113
susceptíveis a mudanças, transformações sociais,
estéticas e ideológicas, em cada momento
histórico, são dotadas de uma forte caracterização,
e apresentam características individuais sólidas e
muito marcantes. Propagam hesitação, não
morrem na primeira leitura, despertam perguntas
resolvidas decisivamente durante a leitura. Em
termos de descrições nada se compara a plenitude
delas.

Em luta contra os deuses ou os elementos


da natureza, em luta contra as adversidades ou
simplesmente em luta solitária contra a sociedade
ou consigo mesmo, encontrarmos escritores ou
talvez irmão de alma, com os quais nos
identificamos, Adriano Mixinge, João Tala, entre
outros pouquíssimos. Esses apresentam qualidade
que os destacam de outros profissionais da escrita,
não correm o percurso da busca pela aprovação, as
suas artes falam por eles. Descobrimos nelas o
trunfo da superação, porém, fazem-nos ir ao
encontro de um epílogo fantástico.

114
A nossa narrativa é desenvolvida nos termos
da sequência, linear ou não, e das acções das
personagens entre si. Essas acções, algumas
vezes, são influenciadas pelo ambiente que
contextualiza a história em termos espaciais e
temporais. Trazemos todos os encontros e
embates possíveis no decorrer da trama.

Nos contos, modelamos o conceito de


enredo. A narrativa dá-se em torno de um enigma, e
apresenta, geralmente, uma curta mas explosiva
tensão, em termos da complexidade do
desenvolvimento do texto com desfecho
surpreendente, e conclui ou desenlaça a densa
elaboração de todos os embates de acções entre
as personagens que são a própria matéria do
enredo.

Em um pensamento, para nós, um acto


narrativo assume diversas particularidades. A prosa

115
tem afinidades com a poesia; tem de trazer uma
abordagem social, filosófica e estética.
Vómito! É assim que olhamos para a
narrativa sem conteúdo, sem sintonia com os
valores humanistas e a afirmação do homem,
aquelas que desvalorizam profundamente o
conceito concomitante de escritor ao promover a
decadência dos valores humanistas e a ter o amor
nojento como centro do enredo. Nessa prosa, o
homem surge como um ser que perdeu o sentido
num mundo mutilado pelo pensamento oco, pelo
feroz avanço do capitalismo selvagem e pelo
aperfeiçoamento e crescimento das máquinas na
produção do capital. O mundo torna-se um lugar
absurdo, fragmentado e sem esperança. Fazem do
amor e erotismo baratos os acontecimentos mais
importantes.
Cabeça na Lua, pés na terra!

116
Ernesto Daniel

ISSUNJE

Há nomes que são fogos pendurados na


pata da gente. Queimam-nos a cada passo que
marcamos. É uma praga, um carma, um estigma no
corpo, como os seios siameses dum texto que li.

Os dedos do relógio infringem de dor a


empanturrada barriga de Capombo. É o sufoco da
idade quarenta a torturar-lhe de cansaço o corpo, os

117
gemidos de parto da gravidez de quinze meses e o
bebé preso na jaula do ventre a negar-lhe o mundo,
que a enlouquecem cada vez mais. Toda
calamidade do universo nos lábios de Capombo,
rugindo feroz como uma leoa ferida, e soltando
estridentes gritos na boca da rua como uma criança
faminta. Um rio dágua quente invade de
preocupações o rosto do bairro. Uma corda
misteriosa prende a lua. O tempo é uma bicicleta
sem rodas, estagnada no meio da noite. Tudo é
medo, susto, assombros, fugidelas, como bagre
astuto que escapa do anzol sufocante da morte.
Nem a Kimbandeira Guida, de marca ancestral,
bisneta da avó Umba, conseguia trazer ao mundo o
misterioso bebé escondido no palácio umbilical da
mãe. Parece que conhecia de perto, pelos sentidos,

118
os martelos do mundo, a cairem a dois metros de
cólera no esferovite corpo da humanidade.

Dona Capombo estendida no chão da velha


varanda, com todas as orações gastas e súplicas,
comidas pelas longas horas de espera, pedia a
qualquer anjo, a qualquer deus, que milagrasse ao
mundo, a vinda de seu filho. Don Carvalho por sua
vez, prometia a todos os santos e estátuas que, se
sua esposa nascesse, daria quinteto de sua riqueza
aos mais favorecidos e, como pior dos sacrifícios,
cortaria um pé de suas pernas e daria de comer aos
famintos porcos da vizinha Albertina.

De repente, o bebé chutou os dedos das


mãos para fora, e a pequena vizinhança que
acompanhava de ouvidos o desfile dos
acontecimentos, qual cachorros vadios, puseram-se

119
a correr para destinos incertos. Alguns vizinhos até
abandonaram o bairro para se escapar da
ineditagem.

- Isso é praga! Qual é o crime que ela crimou?


– Indagou a velha Ingo.

Nunca nos olhos de Issunje ou da


humanidade sob jugo de uma colónia, um bebé
juntaria todas as ferramentas de guerra e mudasse
o curso da história, proclamando a independência
da nascença. É uma ruptura, um novo rótulo de
nascença, um bebe a nascer com os dedos das
mãos?

Velha Ingo, parteira de varias estacões, com


53 sóis a morrem como praga nos seus chineses
olhos, pediu que as curiosas jovens com idades de
chamas acesas no labirinto das pernas,

120
abandonassem o local. Mal as suas pegadas foram
cobertas pela areia arrastada pelo vento, os dedos
das mãos no formato de uma asa, saíam para fora.
Aliás, afinal não eram dedos das mãos, nem
formatos de uma asa. Como as luzes incendiavam
de escuridão, quase que nada se via. Viu-se depois,
quando no enraivecido expulso de Capombo, uma
coisa meio estranha foi parar às mãos da velha
Ingo: Cabeça humana, tronco meio peixe, meio
humano. Na verdade, era um bebé peixe, um peixe
bebé ou bepeixe a pedir água apontando as
barbatanas das mãos para o rosto do pai. Com
espanto e admiração, Don Carvalho desmaiou e
levantou. Capombo, com o corpo no embalo da
fadiga gritou-lhe:

- Ché Carvalho, caralho! Acorda, porras! Por

121
quê que você desmaiou? Foi eu que nasci, ouviste?

O bebé pediu água quando tomou logo


consciência, e gritou:

- ham!

- O bebé pediu água.

- Qual bebé? O nosso? Ai meu deus! -


Desmaiou e acordou com os olhos de sentimentos
distorcidos.

Era mesmo um bepeixe falante a chorar e a


questionar se os filhos eram obras da natureza ou
de Deus afinal?

Os vizinhos, com os olhos apontados na


curiosidade, num piscar de lábios, já tinham
espalhado a notícia pela rua a fora. Velha Ingo, com
as experiências no dorso do tempo, manteve a
situação calma e controlada, mas com a agulha do

122
medo profundamente a picar-lhe o coração.
Devolveu o bebé à mãe e, com desculpas para se
desfazer da ensanguentada roupa, desapareceu a
vapor, esquecendo-se da crise da idade e, depois, a
noite correu como uma lebre na meta do
amanhecer.

Tão logo os olhos do sol espreitavam no


morro do amanhecer, um mar salgado de tumultos
invadia a boca do bairro, num mistério que o
comandava.

Os conselheiros de Issunje decidiram


estender sobre a esteira da mesa, o problema da
família Carvalho. Afinal, Issunje não era qualquer
local. Era uma cidade, embora no interior do país,
tivesse a cabeça erguida na Europa. São 24 casas
com suas fazendas, estábulos, armazéns e celeiros

123
deixados pelos portugueses em meados de 74.
Tinha mesmo classe, uma classe europeizada que
até quase não se falava a nativa língua. Todos
foram arrastados pelas correntes linguísticas do
português, a não ser a palavra isunji (azar), em
memória da morte do pastor Kalupeteka. Um
devoto cristão e percursor de Issunje, que foi
engolido por um camaleão. Narra-se que o pastor
Kalupeteka ofendera um camaleão que imitara a
cor preta da sua Bíblia e o camaleão enfurecido
com o palavrão, engoliu-o e depois abriu as asas e
voou. Dizem que nunca mais apareceu. Era um
camaleão voador da terra dos meninos gigantes.
Um reino algures entre marte e alguma coisa,
habitado por camaleões de todas as espécies,
desde camaleões meninos a camaleões gigantes.

124
Com a permissão da família Carvalho, tinham
de livrar a cidade de uma praga vindoura.
Entretanto, o conselho decidiu pôr fim a estranha e
sofrível vida do bebé. Qual espanto a invadir o
quarto para o premeditado acto. O bebé, qual
remoinho evaporou da cama.

Um pânico dominou a área. O bairro


ajoelhou-se em perdão rezando dois mil Pai Nosso
e quinhentas Ave-Maria. Vizinha Albertinha com a
dispensa roída pela miséria, foi cobrar do Don
Carvalho a sua perna para alimentar os porcos.
Afinal, a promessa é uma corda de sisal pendurada
no pescoço. Para cumprir a cadeia da promessa e
não perder a perna, Don Carvalho doou terras à
vizinha Albertina para que cultivasse.

O relógio é uma carruagem. Puxou o tempo

125
para vinte e três anos mais tarde, quando Issunje é
atacada pelos camaleões da terra dos meninos
gigantes pela força da seca e da fome. Famintos e
sedentos disparavam acesas línguas e destruíam
com o peso dos seus corpos as casas, as coisas,
como quem quisesse deixar em cinzas uma aldeia
no tempo da guerra. Carregavam no estômago uma
fome antiga e, o povo com o fôlego da morte na
ponta do coração, clamava por socorro, metendo-se
em fuga para escapar da morte.

Como Cristo a ressuscitar dos mortos com


uma manta branca a cobrir-lhe o corpo, vinha
confuso entre o céu e a terra, uma bela jovem de
cabelos lisos a banhar-lhe as costas, com uma
metralhadora de águas entre as mãos. Era a
bepeixe, agora moçapeixe a entornar os rios dágua

126
fria e a congelar os camaleões voadores. Com o
golpe de um rio, afugentou com o seu tempestuoso
sopro os gigantes camaleões, e com as suas
poderosas mãos, reuniu o vento e lançou-o para a
vulcânica montanha na margem esquerda de
Issunje. Capombo reconheceu pelas mãos de
barbatanas já adultas e pelos olhos de nuvens que
era sua filha, à qual reservara o nome de Dália antes
da nascença.

A cidade ajoelhou-se diante de Dália, pedindo


bué de perdão a rainha do rio Kusonhi: rio mais
fundo que o rio Kwanza e mais largo que a
Praia-dos-Generais. Dália, de pé, entre as águas que
trazia consigo, beijou os pais num vulto e
desapareceu, deixando nas memórias que todos
filhos são importantes.

127
Ybynda Kayambu ou talvez Hélder
Simbad

KIANDA, O MONSTRO DÀGUA,

E A DEUSA GREGA

A vida é uma morte contínua. Uma proposta


surrealista. Não é estranho, é surreal ou magia a
nascer dos mágicos dedos de um sonhador.
Acredito em encarnação. Por exemplo: Ngola

128
sempre existiu, existe e existirá, sempre. Era hebo
na arrendada barriga de Lusitana. Por séculos,
entranhado viveu amarfanhado dentro duma
barriga. Antes de conhecer as cólicas do universo
telúrico, disse bramindo:

– Chega! Sei que sou filho do acaso. Fruto


ocasional. Primeiro fui esperma, em seguida, feto.
Não posso morrer embrião, preciso nascer! Quero
ser independente e livrar-me desse cordão umbilical
que me faz dependente. Eu posso renascer qual
fénix das cinzas e andar sozinho como o irmão
Samora e o irmão Cabral. – Reclamou por muitos
anos como qualquer filho. Era legítimo que
reclamasse. Vejamos: era uma estranha criança.
Diferente. Outro caso surreal: tinha dentes de
diamante, urinava petróleo bruto, defecava ouro e

129
tinha densas florestas na cabeça. Só por isso, era o
preferido. Era daquele tipo de filho que faz os pais
crescer. Mas o pai era demasiado preguiçoso.

Ngola esquecera-se que o ser humano, ao


nascer, precisa de quem o oriente. Seu nascimento
foi explosivo. Outro evento surreal: Ngola nascera e
trazia filhos por dentro. Filhos da ganância que o
fizeram refém. Mas era Ngola homem ou mulher?
Ngola era assexuado. Podia fecundar-se como a
sua mãe Lusitana.

A ganância dos filhos cresceu de forma


surreal e os mesmos tinham mais idade que o
progenitor-progenitora. Ngola continuava uma
estranha criança. Demorava crescer. Uma criança
de gestos, porque pela superfície desavergonhada
da face, caminhava a velhice precoce do

130
subdesenvolvimento. Uma criança abandonada,
cujo pai seguia qual um mendigo esfarrapado pela
Europa fora. Uma criança com fezes a ferver dentro
da descartável há décadas. Uma criança adulta ou
um adulto que teimava em crescer. Fedia a merda
que comera: corrupção, nepotismo, desvio de
fundos, falta de solidariedade, ganância e outras
merdas que saem pelo cu, porque organismo que é
organismo, seja fisiológico ou político, apenas devia
aproveitar aquilo que nutre o ser.

No meio de tantos conflitos, quando só


restava já um dos manos mais velhos, os filhos
decidiram entender-se. Todos conseguiam alcançar
o horizonte e construir utopias: mares, rios,
diamantes, petróleos, madeira e outras coisas que
só a eles diz respeito; seria igual a peixes, água

131
para todos, energia, escola e pão para todos. Mas
viu-se nascer outras fomes num tempo em que na
terra de Ngola caía neve. E de que cor seria essa
neve? Admiro os artistas plásticos. Tudo surreal!
Onde é que já se viu neve de cor vermelha ou de cor
preta?

– Agora vámu sê lívri de verdádi! – Exclamou


o Porco com mais idade que a República. O homem
que assistira a todas as mudanças sócio-políticas
sempre com rosto quase beijando o chão, um
homem com saudade do colonialismo. Tivesse uma
cabeça tão enorme quanto a tua, certamente, cairia,
com frequência, o homem que acompanhava o país
com cara baixa.

– Não! Não há espaços para enganos, pá! A


queda do preço do barril de petróleo transformou

132
deuses em ricos mendigos. – Retorquiu o Corvo, o
mesmo homem que parecia ver o país a partir do
céu!

Verdade seja dita, o coelho estava com toda


a razão. A República afogava-se no mar da crise.
Deuses-cobras, mordendo as próprias caudas.
Ricos mendigos… como dizia, o Corvo, o coelho.
Pedia-se dinheiro em tudo quanto é canto. Pessoas
e cães morriam de doenças. Uma estranha
epidemia que não media o extracto social
alastrava-se com o vento; as pessoas, com toda a
inflação do mercado, e com o dólar a descansar na
Estátua da Liberdade, conseguiam comprar comida,
viajar em festivais de extraterrestres e comprar
relógios capazes de controlar o tempo; mas os
cães morriam de fome. Os cães eram a maioria e

133
sabíamos que deus já escolhera um conjunto de
pessoas que herdariam o seu reino. Bastava-lhes
um papel com fotografia e estrelas celestiais com
manchas solares. Deus não se importava com os
cães. Mas também seguiu mendigando pelo
universo fora.

Mas o que todos temiam foi o que


acontecera. Avisava-se-lhes para que controlassem
melhor os homens habituados a ambientes hostis.
Homens do mato com armas no ombro. Homens
habituados a beber sangue. Não se pode dizer que
eram totalmente culpados. Eles não sabiam outra
coisa, senão guerrear. Precisavam de novos
inimigos. Todo aquele que vivesse na zona
fronteiriça entre o rural e o urbano era o inimigo.
Pessoas viveram toda uma vida nesses lugares de

134
sangue. Desterravam-se camponeses. Todos
olhavam impávidos. Os políticos afiavam as línguas
nos debates e resmungavam nos cantos. Os
militares criavam organizações clandestinas.
Acendiam fogueiras, e os políticos chamavam-nos
para apagar. Certo dia, a chama alastrou-se até ao
palácio real. Os militares criaram raízes em suas
bases. Os telefones emudeceram. Não se via
nenhuma ave de ferro a voar sobre o rugoso e
putrificado chão da pátria que pariu. Vergonhoso.
Ajoelharam-se deuses diante de homens decididos,
pequenos davids partindo estátuas Golias.
Rasgavam-se meio século de ideologias, em
panfletos. Nada pior que um bando de idólatras a
negar ex. deuses com violência. Ouviam-se
cânticos de guerrilheiros. Pareciam eram os

135
salvadores da República, mas empurraram a
República para um precipício sem fim. Bancos
faliram, mas ainda assim todos trabalhavam. Quem
teria testículos para fazer greve? Quem? Afinal os
outros, ainda que utópica, nos davam alguma
liberdade.

O medo instala o maior dos silêncios. As


ruas faziam lembrar filmes de terror com ruas
desabitadas e monstros surgindo de todos os
lugares e de lugar nenhum. O rosto da República
nas mãos da junta militar ficou negro, roxo e
fedorento. Todas as formas de caos se instalaram.
Diante da impotência humana, como um vulto,
como um raio do cacimbo, como a voz de Deus, de
súbito, eis que das águas do rio Cunene, ergueu-se
uma Kianda Macho.

136
Enquanto esse evento ocorria, Namibe fervia
num dilúvio. O general governador mandou foder
categoricamente as «Festas do Mar». Calemas
ergueram-se à altura do desrespeito à tradição e
inundaram toda a cidade. Surreal é saber que nem
todos morreram. Todos os poucos honestos vivem
com pequenas Kiandas na cidade dilúvio sem as
arcas de Noé.

O general-governador-de-Cunene foi as
europas da vida e trouxe uma carta na manga.
Arrogantou-se:

– Se políticos caíram, um monstrinho de


água é que me vai derrotar?

O general provocava. Mandou desviar o rio


para outro lugar e o rio voltou. Derramou petróleo
bruto sobre o rio para intoxicar Kianda. Morreram

137
peixes em centenas de milhares. O povo passava
fome e Kianda gerou outros peixes para alimentar o
povo.

Não entendera que o povo de Cunene foi o


último a resistir contra o colono. Que as europas e
américas das áfricas não haviam corrompido
aquele povo. Kianda não castiga inocentes. Foi
então que Kianda se fez monstro de água, levantou
do rio e dirigiu-se ao palácio real. Eis que da janela o
aguardava uma bela mulher. Uma deusa grega a
proteger um grego. Era mesmo uma deusa. Com
uma beleza de deixar cair um reino ou provocar
outras lutas entre gregos e troianos. A deusa
enfeitiçava o monstro de água com toda a sua
beleza. Saiu da janela voandando. Com os pés
beijou o chão e, a cada passo, Kianda recuava.

138
Recuava e o povo perdia a esperança. Quando
chegaram à foz do rio, eis que o poder da bruxa
desfez-se e Kianda a levou nas profundezas do rio.
Naquele lugar oculto onde repousam seres de água.
Quando todos acreditavam que Kianda não mais
regressaria, eis que de rompante, saiu dágua e num
segundo passou pelo palácio arrastando toda
aquela fortaleza.

O povo começou a acreditar e os militares


eram familiares do povo. Os militares depuseram
os generais e entregaram o poder aos civis.

139
Pedro Mayamona

ZENGI E A SEREIA

Um dia trôpego, ferozmente, avizinhava-se


no município do Bembe. As nuvens acordaram
magras, desgrenhadas, enrugadas e feias,
ameaçando espremer os excitados seios, cujo leite
desembocaria numa boa chuvada.

140
A sereia surgiu de um ovo que tentava fazer
travessia dum incerto lugar para o sistema
interplanetário, onde seria fecundado por um
mitológico deus com reinado de pedra. Mas, as
colisões sísmicas entre os seres alados do espaço
amorteceram-na ao ponto de cair naquele maldito
espaço – Nkixi. Talvez tenha sido este o motivo da
sua beleza que ardia, esfarelando os homens de
alucinação.

Lulendo provinha do mar. Era um deus


ressuscitado do eterno esquecimento para
governar Nkixi. Poderoso e forte que nem Hércules,
arrastava tudo e todos ao longo da sua passagem.
No seu percurso, seu corpo disparava pesado
chumbo, matando as crianças que se aproximavam;
as casas caíam de medo, porque, segundo a lenda,
ele vinha com terrenos do ventre da sua mãe, por
isso, só estes poderiam existir e eram, para ele,
dejectos exclusivamente seus. Os homens para não

141
morrerem, adulavam, pintando-o de honra e glórias,
até certo ponto desmesuradas, mas convinha,
porque era uma das mendicâncias para que se
ganhasse a vida e o pão.

Certo dia, a sereia banhava-se despida por


cima da água, e Zengi atingiu-a com a flecha da sua
beleza. Daí, nasceu o amor e a guerrilha, que
entrelaçaria ambos e mais um terceiro, o deus do
mar, que considerava Makyese, a sereia, ser
propriedade sua por ter a vida anfíbia, apesar de ter
vindo de outro planeta. Zengi confluía na mesma
alegação, dizendo que a beldade tinha alma terrena,
mas Lulendo altercava, inflamando-se de furor
porque os terrenos também o pertenciam. Nisto, o
caos estava instalado!

Na noite em que a lua lacrimejou de prazer,


devido o coito conjugal, Zengi e Makyese bebiam-se
com profundo olhar, apaixonados. E eis que à porta,
um murmúrio fez-se corpóreo, dando entrada, em

142
remoinho, ao possesso ser de Lulendo até o quarto
onde o casal se enrolava em beijos. Do pano de
sonho, Makyese despertou-se e bradou para o
homem:

“Cuidado, Zengi!”

Zengi caiu em espiral, escapando do


fulminado olhar de Lulendo. Sem poder nem magia,
invadido na sua propriedade própria, o coitado
tentava encontrar o corpo no próprio corpo,
enquanto a beldade travava uma moção de forças
com o opositor.

Mais valente, pois a sua força, à dimensão


cósmica, derivava da cosmogonia, pela qual se
debatia e pelo povo que defendia, Makyese
conseguiu reduzir Lulendo ao tamanho de migalhas
de pão, mas este recompôs-se, entre tanto, já
esvaziado de forças. Ele chorava amargamente
debaixo da potente perna da mulher, percebendo

143
que não deixaria a terra por herança a seus filhos e
familiares.

Coração de humano, coração de manteiga.


Zengi, visceralmente recomposto, empurrou a
mulher pelos ombros, salvando o coitadinho que se
esvaía debaixo do pé.

O pobre deus, sem um fio de dignidade,


esqueceu-se do buraco por onde entrara e acasalou
a humilde bola com a parede, onde os
pensamentos choviam em turbilhão.

À beira mar, Lulendo bateu as palmas, jogou


três ovos de rajada à extensão da água, e o barco
que o conduziria ao meio do mar apareceu, mas o
condutor estava ultrapassado em doses de
estucadas mágoas, porque o deus perdera a guerra
e a terra, sendo substituído por outro mais carrasco
que ele, porém, débil.

144
Depois do pesadelo com Lulendo, a paz
voltaria a reinar no ninho do casal, se Zengi não se
tivesse derretido pelo olhar flor de uma humana
igual, o que causou a sua loucura, emanada das leis
matrimoniais entre uma sereia e um ser humano. E
Makyese voltou ao seu primeiro berço para
rejuvenescer, porque era uma mitológica criatura
em constante vir a ser.

Agostinho Gonçalves João

A LINGUAGEM DO SILÊNCIO

145
Naquelas bandas de Canjinji, apareceu
misteriosamente a verdadeira poesia carnal: rosto
deusificado, olhos multicolores, cabelos negros de
Kianda e um corpo todo esponjoso. Era a Kayeye,
um fogo de mulher, uma criatura perfeita aos olhos
humanos. Mas como a perfeição não é coisa do ser
humano, faltava-lhe uma voz, uma voz que ficou
presa nas garras do silêncio, desde que veio ao
feroz mundo. Mas a mudez não anulava a sua
abundante beleza, pois simplesmente com o seu
olhar virginal hipnotizava uma infinidade de
homens, cujo desejo maior era comer a maçã da
reincarnada Eva.
Em sua benevolente alma, Kayeye carregava
uma maldita maldição que lhe rasgava o desejo
excitante da vida. De tão bela que era, de tão
sensual que era, de tão afável que era; ninguém lhe
podia proferir palavras ofensivas, imundas ou
desrespeitosas, se não a maldição erguer-se-ia e
estender-se-ia para todos os que ali viviam.
Um dia desses em que a lua decidiu não

146
aparecer, Kayeye saíu em passos camaleónicos,
transbordando a beleza do seu maragnífico corpo
por toda aquela região. Numa esquina chamada
"Cinquintinha", passou por um grupinho de jovens
curtindo um banzelo e a mandarem umas cucas pro
peito. Um deles chamado Kwangwangwa,
masturbado num simples olhar, resolveu chamá-la
e fê-lo de todas as formas possíveis, mas Kayeye
continuou sua trajectória que não tinha começo
nem fim. Kwangwanga por sua vez, irritado por ser
ignorado diante dos kambas, já consumido pelo
que consumia gritou em alta voz:
- Hum, tipo num caga! Puta de merda!
De repente tudo parou, o céu escureceu-se e
o silêncio reinou. Nesse instante Kayeye desapareu
e com ela todas as vozes. Todos perderam a fala e
começaram a comunicar-se através de gestos.
Na noite deste mesmo tenebroso dia, Kayeye
apareceu no centro de Canjinji sob a forma de uma
gigante pedra de cristal, cravada com a seguinte
mensagem: «Quem não fala também comunica».

147
Em seguida, reapareceu a Kwangwangwa,
enquanto este estendia as bolas no seu quartinho
de chapa, tentando buscar as vozes que se tinham
evaporado com a misteriosa beleza de Kayeye.
Desta vez sob forma de uma pena de galinha,
Kayeye pincelou no teto, onde justamente olhava
Kwangwangwa, deixando mais uma mensagem: «A
salvação está em tuas mãos».
Kwangwangwa levantou-se assustado, já
com uma faca na mão, procurava a misteriosa
pena, mas encontrou apenas um nada, um vazio
que o engolia. Desesperado, arrojou-se no chão e
logo lembrou-se da mensagem que Kayeye o
deixou. Rapidamente abriu as mãos, onde
encontrou mais uma mensagem: «Vá agora ao
cemitério, desenterra a cova de um daqueles que
andou a estigar os que não falam e queime o seu
esqueleto. Aproveite o pó, jogue-o ao cair da
madrugada com o cantar do galo e tudo se
restituirá».
Então, mesmo vibrando de medo,

148
Kwangwangwa saíu e fez tudo o que Kayeye lhe
tinha orientado. Mas nenhum galo cantou, pois o
silêncio encarregou-se de levar consigo tudo o que
era som. Portanto, a maldição do silêncio ali se
instalou e tudo virou um vazio, restando apenas
Kayeye sob a forma daquela gigante pedra de
cristal com a sua pedagógica mensagem: «Quem
não fala também comunica».

Mussungo Moko

O PASSO DA SOLA DE FERRO

Na era da proibição das queimaduras da


fauna, estavam os bichos e os animais tradicionais
iluminados pela inovação do bolo das convivências.
Criavam a paixão de ler livros de todo o universo
para decifrar o mundo e entender a forma de abrir o
fósforo das conflagrações da terra. Enfeitaram a

149
cidade com as longínquas árvores da
independência.
Com a chuva, os bichos cresciam e
rasgavam a boca. Mesmo assim, o fogo
esquentou-se na floresta. Enquanto os bichinhos,
com a sua urina, apagavam o fogo, os animais
selvagens sopravam para com ele confeccionar os
seus alimentos.
– Porquê as fachadas e não as
concórdias? – Rematou o Camaleão.
Antes de responder, o Jacaré-de-parede
questionou a dúvida, e em seguida, abertamente
respondeu:
– Arrastas a santidade à pátria. Minha
resposta pode não ser satisfatória.
Enquanto o Camaleão e o Jacaré-de-parede
afiavam a retórica na pedra, em forma de sardão, o
pirilampo limitava-se a acenar a cabeça.
_ Sim, sim, sim meus camaradas. Suplico o
rosto da chuva para apagar o fogo, e no final o
sorriso florir!

150
– Aqui não há camaradas pá! Na floresta,
só existem bichos. - Replicou o Camaleão.
A menina Benguela encontrava-se nua e
devorada pelas fornificações das pólvoras. Seu
namorado Pirilampo, para não sofrer a humiliação,
teve que namorar a Dona Luanda. Linda Luanda!
Era a única prostituta dos deuses. Até os
estrangeiros queriam engravidá-la. Tomado o
caminho, o seu companheiro de viagem (o
Tapete-asfáltico), disse-lhe que os camponeses da
mesma planície semeavam minas. As árvores já se
tornavam ferozes, devido às curvas descidas e as
feridas timbradas no seu útero.
Sem a hipérbole, a Senhora Canjala era a
chefe do Estado Maoir, sem piedade. Para o
Pirilampo beijar os pés da Dona Luanda, teve que
nadar todo mar do sul, até ao Senhor
Porto-Amboim.
– Os mergulhos me fatigaram. Dei tantas
goladas que salgaram-me as tripas, e até o papeu
na barriga se estragou. Mazé a dioba que vai me

151
bondar!
– Ó seu bicho! Aqui não há padres, nem
vincula a Bíblia pá! Levanta e vai-te embora.
Conquistou o asfalto despenteado que
conhecia a casa da Dona Luanda e ambos partiram.
O Jato em que eles se plantaram era um camaleão
no andar. Seguia o seu curso num espacio-temporal
de 1,5 a 1,0 km por hora.
Era a força maior, e ele queria um dia contar
essa contenda a outrem. Separou a sua mão da
dela. Em seguida, leu as lágrimas pretas nos olhos
dela, mas não podia recuar. O coração já estava no
quintal da Dona Luanda. O Asfalto ainda
mostrou-lhe o Museu da Escravatura. Já estava
fora da forja e respirava levemente.
Habilitava-se espiando toda ela paisana.
Poucos quilómetros depois, o Tapete Asfáltico
também virou numa pessoa de verdade: bem
vestida, de um facto engraxado e duas barras
brancas em cada faixa. Foi o dia em que ele
conheceu a Dona Luanda. Diziam que ainda era

152
miúda, linda, média e negra. Apesar de ter mais de
XVIII séculos, tinha um passado de ferro, e
precisava da veste interior para caminhar.
O Pirilampo inalou o socialismo, e em sinal
de boa educação retribuiu:
– Estou na Luanda, na Nguimbi!
– Na Luanda! Exclamou a Árvore barbada
de inteligência.
Antes do Pirilampo ter contado alguns
passos leves, a Árvore falou baixinho:
– Esse wi é sulano. Fala mbora o rascunho
do português.
O Pirilampo arriscou-se e chegou. Encontrou
os inquilinos que viviam num comboio pronto para
uma boa sobrevivência. Apontaram-lhe um carro
com as pernas separadas do tronco: um antebraço
perdido, enrugado de feridas e velho por lhe terem
batido duas estações chuvosas. Então, o Carro
disse-lhe que sua cama era o teto de casa, para
fazer peso e proteger as chapas das ventanias.
Pirilampo por sua vez, arrogou-lhe e

153
aprontou-o bem com pregos e martelo. No dia
seguinte, visitou o mercado do Roque Santeiro com
o seu companheiro Carro, cujas traseiras, em
andamento, agradeciam pulando os muros com o
pneu bem calibrado, enquanto o escarro do
Pirilampo estava sendo pintado a vermelho pelos
seus pulmões.
_ Agora todos nós estamos numa só palma,
esticando a língua materna para o português.
Foi assim que começou o uniforme do ódio...
Mangaby (Gabriel Rosa)

O NEGRO CANTO DA TERRA

Era uma vez, há anos incalculáveis, que se


confundiam com a memória tão velha do senhor
Deus, nascera algures, num sítio, a que se veio
chamar universo, de espantosa beleza, uma menina
que era deusa, de formoso e perfumado nome
Terra.

154
Tinha àlma cristalina, a mais linda em toda
deusa vida. Era tão vaidosa e gostava de os cabelos
enfeitar, com as lindas flores que sorriam aromas
fantásticos.
Possuía um arco-íris de bondade.
Estimavam-na todos os amigos a quem, a nossa
deusa terra, abrigo, carinho, e amizade
profundamente ofertara!
Dentre todos os amigos, havia um que a
nossa deusa terra dedicava carinho e confiança na
plenitude e perfeito estado de ser. Amava-o sem os
truques das amizades dos nossos tempos de hoje!
O amigo, que a menina deusa terra o tinha como o
melhor, chamava-se homem. Em todo Abril, mês
que lhes nascera a amizade que se adivinhava bela
nos anos da eternidade, a menina deusa terra exibia
todo o seu poder alegre.
Convidativo, sentia-se o poente, enroscado
num horizonte que bocejava harmonia sobre a
orquestra do mar, cujas ondas maestravam
lindamente. Que festinha bela e fresca acarinhava a

155
face do universo!
Os anos morriam vagarosamente na
enraizada velhice do tempo e a amizade estendia
os braços além universo. Até que um dia, enquanto
a nossa querida menina deusa terra reflectia
lindamente, os deuses anos da vida, focado nos
olhos brilhantes e firmes de diamantes, o amigo
homem alimentava no seu coração, que se pintava
de negro maldoso, sentimentos que se veio a
chamar: ódio, inveja e ambição.
O homem, não aceitando a sua vida de
mortal, ambicionou os longos anos e invejou a
eterna e pura felicidade da nossa querida menina e
deusa Terra. Assim, o maldoso amigo traiu a deusa
terra. No seu orgulho de igualdade, o homem
inventou a guerra para a divina beleza da nossa
querida menina deusa terra acabar e a sua infinita
riqueza, que são os recursos minerais se apoderar.
Restou todo um coração de palha à menina
terra. Dias e noites, ela tem chorado maremoto,
soluçando terramoto, tosse vulcões, por essa

156
amizade que fotografava linda e eterna no seu peito
dourado, atropelada pelo amigo que nunca, em
todos os milhares de anos de sua majestade deusa
terra, imaginara tão grande desfeito.

157
Lourenço Mussango

MARIA VAICOMTODOS DE PERNAS ABERTAS


 

À noite, uma clareza miúda rasgava o breu


do céu. A lua, tímida, sorria levemente sob as
nuvens negras. Era a aurora mais triste e o anúncio
estava feito: o curso dos acontecimentos não era
animador. 
Gritos ensurdecedores preenchiam o pátio
do hospital. No portão de acesso à maternidade,
uma jovem mulher com o seu kimbundu
atabalhoado, dizia repetidas vezes - songa dya
mam’etu» - Maria VaiComTodos, a mandongo do
Bairro Malanjino, já não se aguentava de tanta dor.
As suas pernas grossas de imbondeiro perderam o
gingado e o bronzeado daquele corpo soberbo que
ostentava; nem um passo conseguia marcar. Da

158
sua intimidade, uma vida espreitava a existência.
VizinhaNzala, a anciã que acompanhava Maria
VaiComTodos, vislumbrava um futuro ácido para a
jovem grávida.
A expressão facial do rosto esbelto da Maria
VaiComTodos ganhava metamorfoses coléricas. O
assombro instalou-se e ninguém conseguia
acalmá-la. Choro e dizeres compunham a canção
que dos lábios da mandongo emergia.
Filhadaputava-os a todos.
— Nzambi ya mbungu, matuba dye — olhando
para o céu negro, ofendia freneticamente o «Deus»
por quem, quando criança, um dia fora baptizada e
crismada na Igreja do Carmo. Para ela, Deus era um
ser injusto por ter dado a Eva a dor de parto como
consequência do pecado mortal.
Maria VaiComTodos ganhou consciência da
sua liberdade, adoptou o feminismo como a sua
religião e via na figura de Jeová um ser confuso,
que sempre alienou a emancipação e o
empoderamento das mulheres. Postergara o nome

159
TeresaDeCalcutá, seu nome de baptismo, e
adoptara o Maria VaiComTodos para romper com a
educação religiosa que o seu pai, um católico
devoto, lhe transmitiu. Deus mazé era um frouxo
ciumento que invejava a Eva por ter devorado Adão
sem o partilhar. Só o papá e os seus irmãos
dogmatizados não enxergam isso, pensava entre
suspiros.
— O prazer às vezes produz frutos amargos
— do outro lado do hospital, o afamado maluco
OndjakiTransparente gargalhava aos berros
enquanto olhava levemente para Maria
VaiComTodos. Insólito. Acomodado debaixo da
casuarina, no escuro, OndjakiTransparente folheava
distraidamente um romance histórico acabado de
ser publicado no Auditório Pepetela, do Centro
Cultural Português.
No coração da maternidade, a negrura da
noite acomodava-se entre uma gravidez e outra.
Por alguns instantes houve silêncio. Absorta nos
seus pensamentos, Maria VaiComTodos sorria com

160
ternura. A dor de parto parecia evaporar-se. O
sorriso era sincero e poético. Depois de respirar
com sofreguidão, caminhou em direcção a
OndjakiTransparente e abraçou-o com brandura.
— Serás o pai da minha filha. Disse, troçando.
— Não há nada mais poético do que estar
com o amor da nossa vida — OndjakiTransparente
sussurrou-lhe ao ouvido e com a cabeça acenou
positivamente à ordem dela. A luz da ambulância
que saía da maternidade iluminou o rosto do
maluco. Maria VaiComTodos, entregue ao abraço
reconfortante e ao inclinar-se um pouco, conheceu
o rosto do maluco perfumado que a confortava
silencioso. Este maluco poeta deve ser filho de um
mundele lindo, pensou enquanto observava os
detalhes da figura impoluta que abandonara os
seus olhos aquosos sobre o seu corpo disforme
pela gravidez.
— Como te chamas?
— OndjakiTransparente! — a um palmo de
distância, respondeu um senhor com cerca de 57

161
anos de idade, que os observava atentamente.
ÁguaLustro era um prosador angolano que, vindo
de Portugal, estudava cuidadosamente
OndjakiTransparente para o seu novo romance cujo
protagonista seria uma cópia do jovem maluco.
— O que é que um exímio escritor está fazer
com um bloco de notas no escuro? — indagou
Maria VaiComTodos sorridente e curiosa.
— Ondjaki é o único amigo transparente que
a minha terra me deu. Sabe, a pretensa democracia
que paira no nosso musseque fez-nos artistas.
— Sei muito bem o que dizes. Afinal, és dos
poucos escritores que o poder político ainda não
conseguiu corromper.  Mas o embaixador diz que
és um tuga invejoso que sem fundamentos
contesta o partido que nos governa.
— Estás a falar do
EmbaixadorGanhosIntangíveisDaPaz?
— Sim, esse mesmo — desataram a rir.
— ...este é o nosso futuro, a ditadura da
ganância? — enfeitiçado, OndjakiTransparente, que

162
por alguns minutos esteve silencioso,
encontrava-se agora de pé a reflectir em voz alta
Se o Passado Não
sobre a última frase do romance 
Tivesse Asas , que acabava de folhear.
A pergunta parecia fazer sentido para
ÁguaLustro, observador atento que captava
momentos fugazes e dava-lhes intemporalidade
nos seus romances. A quase quinhentos metros de
distância, do lado de lá, gente importante a passos
ensaiados riscavam o chão de mármores de um
salão adornado. Ao longe, inacreditavelmente
ouvia-se o sembaBajú , animando a festa milionária
que OndjakiTransparente fingia não ter lucidez para
dizer quem era o aniversariante.
Do lado de lá, ao contrário do da
maternidade, o céu do dia 28 de Agosto era outro. O
tempo não parecia negro nem tempestuoso. Havia
nuvens multicolores em perfeita harmonia com a
Superlua dançante. Os homens de lá compravam
tudo, até a vontade de Deus. O seu maior eleitorado
estava nas igrejas dos líderes que no preciso

163
instante saboreavam champanhe francês. O gosto
do champanhe tinha duplo sabor: o da idade
avançada do aniversariante e o da vitória nas urnas.
VizinhaNzala cuspia olhares vorazes,
ameaçadores. Maria VaiComTodos estava entretida
de mais para perceber os olhares reprovadores.
Deus foi infeliz quando planeou o mundo, pensou a
anciã. Gotas de sangue caíam sobre os pés
inflamados da Maria VaiComTodos. A prosa estava
boa e o sangue e as dores já não a incomodavam.
Os três, sentados debaixo da casuarina, falavam
sobre o século das luzes e a escuridão que teimava
em cantar nos salões da África do século XXI.
— Como se vai chamar a nossa filha?
— Langidila! — respondeu com a emoção
marulhando-lhe os olhos.
OndjakiTransparente e ÁguaLustro
entreolharam-se surpresos. Umdéjà vu intenso fez
com que o maluco poeta a olhasse pasmado. O
chão estava manchado com sangue coagulado.
Maria VaiComTodos manteve-se altiva, indomável e

164
lúcida. «Só depois de recuperar a nossa dignidade é
que podemos decidir se viramos ou não cristãos.»
Distraída, pensava na frase que lera noDiário de
Um Exílio Sem Regresso quando mais jovem. A
leitura despertou-a para a independência. Desde
então mudara de nome e personalidade, já não era
aquela rapariga meiga e frágil que fazia silêncio
perante as injustiças e confiava tudo ao Senhor.
Tornou-se anarquista e passou a devorar livros
proibidos.
Ao redor dos três, um grupo de mulheres
onde a VizinhaNzala se encontrava, sussurrava
palavras de contestação. OndjakiTransparente
olhava para Maria VaiComTodos com desejo, a
maluquice cedeu um pouco, quando recordou que
já fora um homem de família num passado
glorioso. Num ápice, o seu falo com algum
despudor rompera o fecho da calça. Algumas
mulheres desandaram assombradas, as mais
jovens observavam sorridentes.
Imaginou-a em casa, encostada ao sofá,

165
despindo-se diante da televisão ligada. De pé, de
lingerie, com um copo de vinho tinto junto aos
lábios carnudos. Os pensamentos fluíam na cabeça
de OndjakiTransparente. ÁguaLustro, calado,
apontava cada detalhe no bloco de notas que trazia
as mãos.
Os faróis dos carros iluminavam a entrada
do hospital. Apesar do frio penetrante, grave e
cortante, rostos pálidos e ensonados faziam a
festa. A neblina e a escuridão pareciam mais
carregadas, densas. Do céu fúnebre nevoeiro solto
espraiava-se intenso. No portão da maternidade,
enquanto Maria VaiComTodos de pernas abertas
sonhava acordada, ficcionando
OndjakiTransparente e ÁguaLustro, a anciã
VizinhaNzala com a ajuda de duas enfermeiras
limpava a recém-nascida.
Ouviu-se o primeiro choro de Langidila. A
existência passou a fazer sentido, e Maria
VaiComTodos sorria, indomável.

166
Ensaios Manifestos

167
e Crónicas

168
Pedro Mayamona

FRAGILIDADE DA ANÁFORA

Da semântica da palavra texto, ocorre-nos a


confluência de linguagens, se nos alicerçarmos ao
étimo latino“textu - texere”, acto de encadeamento
de várias peças.

169
Com esta abordagem, fazemos transcurso
sobre a Semântica, delimitando a “Fragilidade da
Anáfora” na esfera do significado associativo,
decorrente dos valores social, afectivo e conotativo
desta figura de estilo que tem servido de arrimo,
“muleta” , para se fincar a intensidade ou
intencionalidade“extra ordinária” de um vocábulo,
uma palavra, ou expressão repetida.

O significado conotativo opõe-se ao


conceptual. O primeiro baseia-se na associação de
sinónimos, pela realidade que as palavras ou
vocábulos inter(a)pelam. Sendo, o segundo, mais
literal, mais denotativo.

Num período caracterizado como novo


nascimento, “Renascimento – do século XV ao XVI,
despoleta, em Flandres – Itália, o Movimento com
esta designação e cujo percurso foi doseado com
bastante animação e agitação cultural. Por isso,
aquele período ficou também conhecido como
“Florescimento , Florescência”. Foi, exactamente,

170
naqueles meandros em que surgiu a poesia de
forma fixa, adstrita às reminiscências da
Antiguidade Clássica Greco-Romana, que atribuía
cariz descritiva e normativa aos géneros literários,
opondo-se à poesia integral, ou melhor, ao verso
livre, datado, segundo Tunda Vala – Revista Agris
Magazine, de “1885, e foi apresentado, pela
primeira vez, numa obra publicada por um
norte-americano, Walt Whitman” (vv. 2016, p14).

A anáfora surge, com frequência, na poesia


de forma fixa, como a qualidade para se aferir o
efeito de uma literária, género lírico, lembrando-nos
as teorias de Aristóteles e Horácio, que, numa visão
universal das artes cénicas, o primeiro
apresenta-nos a poesia como resquício de actos
vivenciais ostentados no palco, e que devia
contribuir para o crescimento dos cidadãos “a
beneplácito” com o desenvolvimento da cidade
ideal“polis”, daí a anáfora adveniente do tom oral
dos encenadores na passarela. Do outro lado deste
pragmatismo, encontramos Horácio, com uma

171
abordagem historiográfica que eleva a questão da
poética sob o prisma da praxe universal e uniforme,
conferindo valor no conteúdo dos textos só quando
regulados por padrões clássicos, o que, do nosso
ponto de vista, e concordando com Aristóteles ao
dissociar a poética dos princípios morais e
históricos, inibe a capacidade criativa do artista em
geral, e do poeta em particular, apesar de os poetas
daquela época buscarem inspiração no recôndito
esmero dos “monstros ou deuses da Literatura
Áurea”, como forma de aproximação mútua, e estar
à altura da imponência da Cidade de Roma.

Todo texto poético tem merecido


conseguimento, até certo ponto, sob a perspectiva
do seu autor, mas nós trazemos à baila o facto de
um texto poético ser corolário de um trabalho
aturado com a linguagem, a que transpõe a simples
lingueta naturalista, e com recurso a diversas
figuras estilísticas.

A Língua, particularmente a Portuguesa, é

172
rica em recursos. Plasmada no texto poético,
potencia-o do ponto de vista expressivo e
lógico-formal, não havendo necessidade para o uso
“desenfreado” da anáfora, como fonte única para
obtenção dos efeitos estético-estilísticos que “a
intuição não soube controlar no momento da
concepção do texto” (idem). Uma dilucidação que
se limita nos trâmites deste postulado, uso
indiscriminado da anáfora, revela-se inoperante,
ineficaz e infundado!

Umberto Eco apresenta-nos “O signo [de


duas faces, e entre as quais encontramos as
unidades mínimas que, combinadas entre si,
resultam em morfema – capaz de ocorrer como
anáfora],como uma entidade vasta” (1984, p. 28).
Concorrendo para o mesmo ponto nevrálgico, Dias
pronuncia-se assim:“a poesia é fundamentalmente
linguagem, um certo jogo de linguagem, ou, melhor,
uma linguagem nova criada por cada poeta na
linguagem dada” (2008, p. 8).

173
À guisa de exemplo, aduzimos o texto
“Morto”, na sua forma reduzida. O mesmo é da
autoria de Kinguzo, e, aqui, encontramos um
verdadeiro campo de anáforas. Num universo de 62
(sessenta e dois) textos poéticos, em versos, 7
(sete) são os desprovidos de anáforas.

“Morto na mente
De quem me rejeita,
Perto e distante
Da escolha certa.
(…)

Morto nos braços


De quem me detesta,
Inerte no espaço
De tudo que desfalece e resta .
(…)

Morto e algemado
Na escuridão das auroras” (2007, p. 15)

174
De acordo com as estrofes acima, numa
realidade naturalista e contrastiva o sujeito poético
exterioriza o seu dó pela evidente extinção, no
sentido de “morto” ou apagamento, do seu valor
social e afectivo, daí a fastidiosa recorrência à
anáfora para enraizar o sentimentalismo que povoa
no texto.

Do ponto de vista social e também afectivo,


a figura de estilo até aqui retratada vigora na
linguagem familiar, saliente nas formas de
expressão no texto narrativo, prosaico, e é usada
pelas personagens que se refugiam nela,
assegurando o princípio do menor esforço para
expor as suas ideias.

Para além dos trechos acima citados,


reiteramos que existem outros tantos, dos quais,
extraímos “Hino ao Silêncio” (ibidem, p. 19), e
adiantamos que, também, reveste-se de muitas
anáforas para manifestar os diferentes matizes do
silêncio.

175
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ECO, Umberto.“Semiótica e Filosofia da Linguagem” .


Lisboa. Giulio Eunadi Editori. 1984.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. “Teoria e


Metodologia Literárias” . Lisboa. Universidade Aberta. s/d.

DIAS, Sousa.“O que É Poesia?” Coimbra. Pé de Página


Editores. 2008.

DIAS, Sousa. “Questão de Estilo – Arte e Filosofia”.


Coimbra. Pé de Página Editores. 2004.

PIRES, Ana Raquel et all.“Nova Enciclopédia Temática


– Literatura e Arte”. Lisboa. Nova Editora. s/d.

CADEMARTORI, Lígia. “Períodos Literários” . São


Paulo. Editora Ática. 1997.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley.“Nova Gramática do


Português Contemporâneo”. Lisboa. JSC – Edições João Sá
da Costa. 2013.

176
“Gramática Moderna da Língua Portuguesa”. Lisboa.
Escolar Editora. 2010.

“Universal – Dicionário Integral da Língua


Portuguesa” . Luanda. Texto Editores. 2015.

Vv. “Tunda Vala – Agris Magazine”. Luanda.


Litteragris. 2016.

KINGUZO, Orlando. “A Arte de Sentir”. Luanda.


Editorial Nzila. 2007.

Mabanza Kambaca

O Fenómeno da Desfixação
Antes de mais, gostávamos de alertar o leitor
no sentido de que este nosso artigo não é já um
trabalho acabado ou estudo terminado, pelo que é
possível de uma modificação ou acréscimo de
alguns argumentos da nossa parte, no futuro.
.
Desde os tempos muito ancestrais que
homem sempre pretendeu moldar a humanidade

177
com a sua arte. Tendo assim crescido, da parte dos
artistas, a vontade de mudar também a forma das
artes no sentido de evolução. Uma inovação é
sempre um vanguardismo.
.
""O Fenómeno da Desfixação""
.
O fenômeno da Desfixação é um esquema
figurativo de desvernaculização (da palavra) que
consiste na separação ou junção de palavras com
uma finalidade artístico-expressiva.
.
A figura de estilo tem como objectivo, de um
lado, fornecer ao leitor mais informações do que
aquela que a palavra lhe daria numa sua forma
primária ou, no seu sentido semântico original ou
denotativo e, do outro lado, surpreender o leitor
com um sentido diverso daquele que ele
pretendesse obter. Por ex.: (Dez/esperanças). (me
des/louco ou vdez/loucos). Cá alma mente. No
primeiro ex., temos um desvio do sentido que se
tem da palavra (esperança) tendo agora o

178
entendimento de um nome contável. Ou como
seria: (des/esperanças), para significar desespero.
No Segundo, desvernaculizou-se o sentido de
LOUCO para o de deslocação. Já no terceiro, esta
figura surge já no âmbito do processo ortográfico,
tendo como base, além da simples separação da
palavra, a acentuação que, de forma estética, vai
mudar o sentido primário da palavra. (Cá alma
mente ou càlma mente). na primeira visualização o
acento dá o sentido de lugar à sílaba (ca) passa a
significar, agora, no campo morfológico, um
advérbio. Assim, a palavra passa também a ser
constituída pelo processo da
parassíntese-processo de formação das palavras
que consiste na junção simultânea de um prefixo e
um sufixo à uma palavra base; o tal processo é uma
das formas de como ocorre a Derivação,
(Gramática Moderna da Língua Portuguesa,
pág.143).
.
É desta feita que podemos, ainda, definir a
Desfixação como sendo o dúplo sentido que uma

179
ou mais palavras proporcionam em função da
intenção do poeta. Por isso, deverá, agora, dar-se
vários destinos a interpretação da palavra em
análise, porque a mudança do processo da sua
formação arrasta consigo várias intenções
polissémicas.
.
Ainda sobre a outra forma da desfixação da
mesma palavra, (càlma mente) aqui o sentido
original, o de advérbio de modo, parece continuar e,
é verdade que assim seja mas, a desjunção do afixo
(mente) traz consigo outro significado da primeira
parte, se quisermos, temos, agora,um nome
(calma)ou adjectivo (calma) dependentemente do
caso.
.
Não se devia confundir esta forma de
manifestação da desfixação, a de provocar um
acento que altere o sentido da palavra, com o traço
da poética do alargamento do acento grave nas
situações de crase induzida. Este último traço está
mais para a doutrina poética do grupo e diz respeito

180
às transgressões ortográficas do poeta e, o
primeiro traço já tem as suas motivações na
polissemia das palavras.
.
A desfixação pode, ainda, ocorrer sob o
simples processo de aglutinação. Por.: Filosolouco.
Esta palavra forma-se das palavras Filósofo e
Louco. Assim, parece, o último exemplo da figura,
não se tratar do fenômeno da desfixação, porque
parece que o entendimento que se daria a este
fenômeno é o de ser amálgama _ processo irregular
de formação das palavras que consiste na junção
aleatória de palavras sem motivação morfológica
Gramática Moderna da Língua Portuguesa, pág.
148) por este se tratar de um processo de
derivações irregulares e aqui estarmos a falar sobre
uma figura de estilo e, que desfixar quereria dizer,
tão somente, separar as palavras. Não é este o
exclusivo enquadramento que se devia dar à figura.
.
Significa mais, também, que, se desfixa o
sentido original de cada palavra para formar outro

181
significado. Por ex.: Filosolouco, aqui, desfixou-se
os sentidos originais das palavras Folósofo e Louco
para formar outro sentido que corresponde, agora, à
filosolouco.
.
Portanto, vai-se poder notar em certos textos
não só a desfixação do primeiro tipo mas, também
deste último caso: comboiandando,
caminhandando, loucoescrever, esferográbraços,
etc.. Este fenómeno da desfixação, do ponto de
vista da historiografia literária, surge,
necessarimente, com o advento dos poetas do
Litterágris porque, é uma grande verdade afirmar
que, é com este Movimento, sobretudo, nos
poemas do Poeta Helder Simbad ou Talvez Ybinda
Kayambu que a figura ganha uma enorme variedade
de forma e formação, como se pode verificar no
poema que abre o livro Tunda Vala.
.
Talvez, anteriormente a estes, os que
escreviam à desfixação eram ínfimos ou senão,
mesmo, dizer que só se verifica o primeiro tipo da

182
desfixação e do primeiro exemplo, e foi utilizada de
forma inconsciente. Poetas como Lopito Feijoó e
Maria Pombal têm alguns versos das suas obras de
mantém como que uma intertextualidade com este
fenómeno. Não é totalmente gratuito o argumento
segundo o qual a desfixação era já um figura
precedente e regente das poéticas do passado.
.
Assim, podemos afirmar uma opinião de
maior razão que, do ponto de vista socio-cultural, o
fenômeno é produto de uma indústria literária mais
refinada do Movimento Litterágris, fazendo parte
dos seus rasgos poético-artísticos. A figura é uma
variante de dois tipos e de duas formas: desfixação
semântica: é aquela que consiste na variação dos
sentidos no âmbito da morfologia e corresponde a
primeira forma. Estão aqui como exemplo as
desfixações dos primeiros exemplos. E a
desfixação gráfica: corresponde a segunda forma e
consiste na junção de duas ou mais palavras para
fundir e fundar outros significados. Como exemplo
tomemos as últimas desfixações... Toda a

183
desfixação é gráfica e se torna semântica a partir
do momento em que dá origem a outros sentidos
por este meio.
.
Portanto, o uso deste fenómeno por muitos
escritores tem esta razão de ser e o tempo é
oportuno e pontual, e tem um grande propósito na
literatura, particularmente, para a poesia, esta
figura.
.
Assim, nem tudo é desfixação. A
combinação de palavras sem a justa ideia de
multiplicidade de sentidos, a falta de intenções
artísticas, a colocação do acento grave sem
mestria, não são desfixações.

184
Ernesto Daniel

UM NÓ DE SUICÍDIO
NO PESCOÇO LITERÁRIO JUVENIL

Sempre houve uma luta de punhos cerrados


no florir de uma nova geração: pedras nos sapatos
de cada época. Os conflitos inter-geracionais fazem
parte da gastronomia literária. Houve e haverá
sempre novas tendências literárias. A literatura não

185
se conforma; está em cortantes questionamentos,
daí, o surgimento de várias correntes ou escolas
literárias, como o romantismo, naturalismo,
simbolismo, barroco, surrealismo entre outras
correntes que dinamizaram a literatura.
Toda arte é condenada à história.
Há um nó de suicídio no pescoço literário
juvenil. Oiço, cada vez que me deparo com os meus
contemporâneos, as mesmas reclamações:
LEGADO, como se de uma empresa familiar se
tratasse. O legado deve ser o conjunto de
experiências adquiridas, obras lidas a todos os
níveis, pesquisas no campo académico etc.

A constante reclamação sobre o legado, que


se não fez passar a nossa geração, não revela o
fraco grau de instrução? Falta ousadia literária,
beber de outros rios, e não sermos
interdependentes; caso contrário, a nossa arte
estará condenada ao fracasso. A teoria da evolução
das espécies de Darwin seria aqui chamada para
demonstrar que, tal como os animais, a literatura

186
também não é estática. Há valores, que, devemos
pesca-los como peixes. Conhecer o velho, estudar o
presente, para que o advento do novo esteja
sentado num banco de equilíbrio e seja conhecedor
do lugar que se senta. As transgressões literárias
ou rupturas, só são possíveis quando se tem
domínio das ferramentas literárias. É necessário
que desatemos o nó com mais leituras, mais
estudos, mais pesquisas e menos conformismo; o
resto fica nas mãos do tempo. A constante
reclamação sobre o legado, que se não fez passar à
nossa geração.

187
MANIFESTO I
AOS POETAS

Tiramos os pés da terra, voamos. Com as


letras nos distúrbios das palavras, a vida deu-nos
esta arte universal com a qual nos distanciamos
dos outros. Descemos pequenos deuses sobre a
terra que ousamos designar por Agris-pátria.
Encontramos deuses feitos, com os quais
dialogamos em silêncios. Todos os caminhos já
pareciam traçados: MINIA, BJL, Ohandanji e
Kixímbula (Archote). Embebedamo-nos até nos
fartarmos. Então, ou nos perdemos, ou inventamos
caminhos sobre os caminhos já trilhados (?). Qual
Cristo, ressuscitámos André Breton do seu túmulo
de letras e subvertemos, ou trouxemos o
super-realismo ou o neo-surrealismo em MASSA,

188
num simbolismo equilibrado, ou a agris-estética.

Contra a Geração do Conformismo e os seus


homos scriptoris do segundo milénio que, não
aguentando o peso da herança e da crítica literária
da geração de 80, utopicamente, acreditando que
não fosse possível subverter o sistema semiótico
dominador e consequentemente estabelecer uma
nova ordem estética, como se a literatura, esta arte
de transfigurações, não fosse um espaço infinito de
transgressões, ou sendo mesmo de uma fragilidade
criativa, não só emigraram para uma forma de
literatura muito delicada e por vezes marginalizada,
visto que nem mesmo os teóricos da nossa
literatura se ocupam dela nas longas horas vagas,
como a infectaram de grandes males. Depois de
muitos projectos poéticos mal conseguidos, num
repente, eis que começou a surgir muita literatura,
‘‘infantil’’ na múltipla dimensão do termo, na medida
em que dentre as obras dignas de serem,
emergiram obras que tratavam o tema da Criança
numa linguagem e por vezes enredos impróprios.

189
Contra esse arsenal de regras dogmáticas, inibidora
de voos, inimiga da imaginação e
consequentemente da criação, a qual designam por
razão. Contra os actores sociais, escritores e outros
rostos bonitos, moralistas, da imprensa cor-de-rosa
que nos acusam de perder valores que nunca
obtivemos. Não contra moral Cristã, mas contra as
pessoas que aspiram a utopia da perfeição e vivem
condenando os neutros como se melhores pessoas
fossem; contra os líderes religiosos que a dada
altura, não só confundem os bolsos dos fiéis, como
também fazem carreiras em outras assembleias.
Nestes contras e noutros, implícitos, em nossos
textos artísticos, por razões plausíveis, sob o manto
de uma paisagem irracional, nasce o Movimento
Litteragris.

Não recriminamos a nova vaga de poetas


que caminha na margem oposta do rio, não os
recriminamos por chamarem poesia in strictu
sensu a todo um conjunto de contos sem
imaginação, não os recriminamos por

190
transformarem o campus literário num círculo de
risos, provocado por um humanismo, sub(traído) de
lemas utópicos, que os leva a publicar em livros a
sua poesia empática de catarse instantânea, não!
Até porque merecem o meu elogio porque, ao
contrário dos Conformistas, contestaram e
negaram a super poesia da geração de 80, como
aconselham os teóricos que defendem afirmações
de gerações em contraposição a geração
dominante, mas negar que a linguagem literária é
um subsistema da língua natural, na medida em
que aquela subverte esta, num magistral processo
de recriação linguística, e defenderem uma
linguagem direita na esfera da corrente, como
proposta literária, não, não, não, não! Subverter uma
norma para se plantar o caos e exibirem a sua
poesia denotativa? Fiquemos com os
neo-brigadistas e alguns conformistas, que
continuam a proporcionar uma metalinguagem,
embora incomparável, idêntica, a da super-geração.

Não se trata de culto, nem de respeito

191
exacerbado para que a agrisarte seja legitimada.
Trata-se de respeito e de reconhecimento, daquela
que é a maior geração, em termos de propostas
estéticas. E como prova de que não há cultos, sem
receios, falemos agora da confusão que se faz em
torno da poética pré-estabelecida, recomendável e
aceitável, consubstanciada na máxima “10%,
INSPIRAÇÃO e 90%, TRABALHO”. Eis a grande
questão: Teremos de ser simbolistas a cultivar
textos até exceder o extremo do enigma à luz do
dogmatizado? Deste princípio não resultaria um
niilismo conceptual de correntes como o Realismo?
Então não haveria poesia na Mensagem?! O que é a
poesia afinal? Um trabalho exacerbado sobre a
linguagem?! Expressão de sentimentos, emoções e
pensamentos, através de uma linguagem
encantadora? Toda a poesia em que há um trabalho
exacerbado sobre a linguagem que, ultrapassando
o teto do enigma, anula completamente o efeito
catarse no leitor, é vazia. Pois, a poesia, é no nosso
entender, o sentimento, a emoção, que se pode
depreender duma obra que se autonomiza pelo

192
grau de singularização que o seu autor a confere.
Reconhecemos, na devida medida, o relativismo
implícito do conceito de hermeticidade, no entanto,
reafirmamos, em tom alto, a existência de textos
vazios, em sentimentos, em emoções,
proporcionados por caprichos técnicos dos seus
cultores. Que fique bem claro que não somos
padrinhos de poéticas mal conseguidas. O que não
queremos é que se trace dogmaticamente uma
escala de valor de excelência que leva o leitor a
afastar-se das livrarias porque, na verdade, “ o autor
de um texto literário, mesmo quando escreve sob o
domínio de um impulso confessional, ou movido
por um anseio de auto-catarse, ou buscando efeitos
de auto-renumeração psicológica, não ignora que o
seu texto, sob pena de se negar como texto
literário, tem de entrar num circuito de
comunicação em que a derradeira estância é o
leitor.” (In a estética da recepção, Teoria da
Literatura, pag. 300, Aguiar e Silva). Arte é intuição;
a intuição é a soma das experiências despejadas
sobre a obra; a poesia pinta-se de mistérios e

193
paradoxos, com a soma de materiais que
magicamente transitam do consciente para o
subconsciente e deste para o inconsciente, o lugar
de origem.

A proposta é a Agris-estética ou um
neo-surrealismo como paisagem oculista para
enxergar o ‘‘invisível’’, ou para desempoeirar olhos,
através de um simbolismo (linguagem) equilibrado
sob a nossa ideo-estética.

Cíntia Eliane

Manifesto
Aos Declamadores

194
A declamação desdobra o sentimento,
resgata pedaços de memórias e acalenta emoções.
Seus acordes permeiam a sensação que aflora,
bailam sobre as nesgas do silêncio e depois de
dialogarem entre si repousam na aba do
sentimento.
Não importa o timbre da voz, nem o alcance
da palavra. A declamação ultrapassa o
entendimento; ela é o grito da poesia. Uma boa voz
não é impreterivelmente o fundamental, ainda que
ajude e seja um item de importância. Para o
declamador, o mais importante é transmitir a
afecção do texto, ao funcionar em uníssono com o
mesmo.
Deve despertar o sentimento que brota quando
desistimos de sonhar mas o sonho não vai embora.
Uma boa dicção valoriza o texto e não
confunde o ouvinte. Por isso, o declamador deve
articular bem as palavras, sem comer letras ou
sílabas inteiras, nem deixar cair o tom de voz no
final das frases, atrapalhando o ritmo da leitura. Ao
estruturarmos frases que venham directamente do

195
nosso pensamento, o cérebro é muito mais veloz
do que o nosso aparelho fono-articulatório ao
expressá-las. Assim, antes do acto de declamar, o
declamador deve construir toda a ideia do texto,
para que a sua verbalização seja equilibrada.
Assistimos muitos recitadores que constroem suas
frases no momento da declamação, que acaba por
ficar carregada de entrecortes, cambaleio,
transmitindo insegurança e falta de preparação,
bem como uma relação de distância com o texto.
A declamação mutilada morre à míngua,
antes mesmo que o poema ganhe forma. Por
conseguinte, a declamação suprema não se
constrói de pedaços de corpo, mas de sonhos
inteiros, vestidos de uma miscelânea de
sentimentos.
A poesia, enquanto arte verbal e auditiva,
aproxima-nos de nós, ou seja, a transferência do
poema para o universo físico aproxima a poesia ao
nosso corpo. Assim, a realidade palpável do poema
é uma parte fundamental no seu trato, e a
experiência auditiva estética é sempre carregada de

196
significado.
Essa dimensão física do poema, fora do
papel, é indispensável para a compreensão do
fenómeno literário, pois a partir daí é possível
explicar diversos e outros fenómenos. É importante
mostrar que o poema, antes de ser um texto no
papel, tem uma realidade física intrínseca a si. A
possibilidade de diversas interpretações na
declamação reflecte directamente a orientação dos
artistas.
Na maior parte das vezes, não se
compreende o poema na primeira leitura. Assim, o
declamador deve estar dotado de capacidades para
analisar e interpretar o conteúdo do texto de acordo
com o contexto, afim de melhor construir a sua
musicalidade. Além disso, normalmente, ouvir um
poema bem declamado ajuda a melhor perceber
seus efeitos e o próprio conteúdo. A declamação
que prospera é aquela que, para além do requinte,
acarreta em si uma ligação com a alma que a canta
e mesmo longe, exilada e esquecida, guarda a
verdade com o esplendor do diamante.

197
O declamador que floresce é seiva viva que
não se dobra ao inverno e ao vendaval. É água pura
que garante a foz do rio.
Declamar é arte que dispensa adjectivos. É
pérola que tem brilho cativo. Mas requer cuidado,
como a flor do ninho que desamparada clama por
carinho. Ela é o mesmo fogo que ilumina a noite
escura quando os olhos buscam a chama da
aventura, é a insegurança toda da paixão que
flameja e arde à entrada do coração, quando a
saudade invoca a luz do bem-querer, e o que se
espera é a emoção do entardecer.
Por esse palco a que chamamos arte de
Declamar, desfilam diversos declamadores,
GRANDES e pequenos. Uns cantam o que nos
afecta, desde o êxtase a dor, outros nem se ouvem
porque enquanto declamadores não têm alma.
Visto que a declamação é o brilho que incita e
acalma tem de ser inteiro e vir da alma. Aos sem
alma: desfaçam-se dos borrões que vos limitam e
sugam a voz dos versos, libertem-se e dissolvam o
elo para alcançar a melodia. Pois o declamador não

198
tem escolha. Tem de mergulhar na poesia e na
beleza de seus traços, e só assim vencerá o desafio
de mirar o horizonte e perceber que é preciso
proteger os olhos para namorar o sol.
Numa palavra, declamar é tocar versos com
a ternura dos lábios. E o declamador, mais que
tudo, é a pedra que se equilibra no fio de seda. Se
cair, é como que evaporasse o elo entre ele e o
poema por não mais ter onde pousar. Se se
mantiver firme alcança a luz de sonhos e
esperanças num canto azul levemente dourado, e a
canção que resulta desse instante faz o sol perder a
hora de dormir.

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Mabanza Kambaca
SONORO SILÊNCIO

Simplesmente, por isso, não sou nada. Estou


nesta dita dura luta em que me inscrevo com todos
os instantes e, tocando a terra, o mar e os céus,
dou-me por circular aqui enforcando as páginas,
letra por letra, ou preciso dizer o que na língua é um

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som que o leva. Ando com a próxima distância de
revelar-me compreendido com a alternativa paz que
busco nas frases, nos duros encontros e nesta
alegre tristeza que me salva o ânimo.

"Sim" é não quando se me faz lembrar a


resposta de cada pergunta de erguer a educação, a
partir da véspera a vossa excelência noite, eleitoral
a África com os seus sonhos para dizer sobre tudo,
ter uma ideia que começa por indicar a certeza, o
sol de nascer último e único, aprender com o lápis
na vida, estas assindéticas de diversão que guardo
primeiro para, no lugar do grupo, colocar vãs
incompreensões. Estou por exemplo convicto de
que cá vou eu pelo sinal de luta entre a paradoxal
dicotomia entre a vontade de vida e morte. Neste
portal tenho uma noção de excesso devir por isso
reparto o norte das coisas para ir onde vou mesmo
com uma vela acesa. Este meu rei desejo de
inventar a história dos lugares e oceanos é a arte
que me resta e a partir daqui sonho pertencer a
ninguém menos a terra que me parece inversão

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imerecida ou escrevo esquecido atravessando ruas
e casas, passo fundo pelos campos florais ou
discretos futuros e puxo-me súbito acabado de ser
poesia com a cultura de revelar o novo. Por
inerência dos Santos dias escrevi uma carta aberta
e mal humorada a partir dos motivos e para este
passado que passa dou por arquivado todo o País e
mais tarde vou dizer o nome de cada acta
porquanto permaneço neste "SONORO SILÊNCIO"
que me adita as palavras.

Angola, acontece-me segurar-te no corpo


com a mão de amizade e entrar no teu quotidiano
com amiudardes na língua, ou o teu olhar resta na
memória como sabor da falta. Todavia, eu poderia
cantar os teus desejos e corresponder a vontade
apetecível.

Sigo-te, neste curso eventual, e aprendo ser o


homem de sinónimos ou natureza de estreia.
Percebo anterioridades e curvo-me a cada
imaginação.

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Coragem:

A última versão é a melhor forma de afirmar


uma produção artística com um futuro de Estar
aqui. Houvesse paz e a minha tranquilidade seria
equívoca por isso dou-me também a esta viagem
que me deste, sem contar com o teu nome de
bronze, ou não vês que eu te amo sem destino
como quem perde os poemas e, depois, escrevo a
vida nestas páginas largas mas não encontro o céu
azul.

A contracção dos desígnios para ser uma


felicidade impõe a prova dos tempos. É assim que
neste topónimo de nome agris ou em qualquer
sonho de viragem e amar a silenciosa fala com que
desafia a poesia dos dedos porque o íntimo
parágrafo ainda ninguém vivenciou, ou o único topo
foi durante o caminho.
Aliás, pergunto-me sobressaltado, com o encontro
em mim, se o seguinte ideário é a préstima vontade
de vão ser? Não. O diálogo com a intenção de não

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cair está erguido desde sempre, mediante este
louco passo, alegre tumulto com a parte de passeio
e chego mesmo assim ao destino de nada ou de
dano. Pouco de curioso tem o som da música
porque depois se enlaça por confundidas águas e a
vaidade toma o elo com que sirvo o mundo de
todos os homens, para lhes habitar as luzes. Só que
aqui já não há mais espaço que me mantém a
leitura das coisas. Por isso ponho o lume nas
marcas e nas palavras que deixam a boca e caem
como folhas secas depois nutrem o vento e o
propósito é um desconhecido paraíso com a razão
de ser. Preciso de um sinal que me enuncie esta
chegada abordada ou abortada com as etapas nos
pés.

A literatura é a primeira expressão autónoma


e unitária com que se acolhe a intenção de uma
pátria, por isso, é um som com todo o silêncio e o
segredo da nação é isso mesmo e tudo como
ensaios para se achar a human-a-idade neste lugar
do mundo e não no mundo. A verdade é que eu lhe

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abro como duas per-nas castidades e doo-me como
sem(entes) do campo e vou na posição da luz com
larguras no fundo do Ku-ra-são depois com a
estética carrego esta voz como primeira lição de
vida. Aprendi, desde de sempre dizer a vida com
contando o tempo e desenho-me nesta seara com a
arte ou me envio no tamanho das gerações. Em
causa à razão: falo já da culpa dos homens por
serem imutáveis a correcções ou, simplesmente,
aos gestos de avanço com que se identificam,
quando chega a primeira e a última chance da
mudança e com o dó, reparto este desejo com
todos os irreformistas do cancioneiro porque
bem-aventurados que são, hão de me encontrar
neste lugar solene que chamo (canção de luta),
mas cruzo-me neste ensaio de vida sem morrer de
ti, ligo-te a este texto com fios sem rede. O teu
vocábulo de étimo é um lugar de nenhuma parte ou
sonoro silêncio a resposta que digo só a mim
quando me pergunto sobre a coragem e nesta
busca a raiva é o poder em que todos mandam. O
País é tudo isso e outros hábitos artesanais com a

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superior vontade de ser poema feito com os dons e
assim sumo com todo o teu ouvido de ouvir. A
minha fé é um bárbaro som com que me ateio com
sangue nos olhos e vozes na mão e sonhos nos pés
e a decisão no texto, o mais enigmático ponto de
aterrar com as imagens nas palavras e expressões
ou o olhar do tempo deixa saudades que me trazem
sabedoria que as marcas levam porque, mesmo
assim, quando insisto encontro satisfação onde
ninguém pôde ser...

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