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Ética, cidadania e

sustentabilidade
Paulo Niccoli Ramirez
Material para uso exclusivo de aluno matriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o compartilhamento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo.
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(Simone M. P. Vieira - CRB 8a/4771)

Ramirez, Paulo Niccoli


Ética, cidadania e sustentabilidade / Paulo Niccoli Ramirez. – São
Paulo : Editora Senac São Paulo, 2021. (Série Universitária)

Bibliografia.
e-ISBN 978-65-5536-777-5 (Epub/2021)
e-ISBN 978-65-5536-778-2 (PDF/2021)

1. Ética 2. Direitos humanos 3. Democracia – Brasil 4.


Relações étnico-raciais – Brasil 5. Gênero e sexualidade : Ética 6.
Desenvolvimento sustentável I. Título. II. Série.

21-1340t CDD – 170


BISAC PHI005000

Índice para catálogo sistemático:


1. Ética 170
ÉTICA, CIDADANIA E
SUSTENTABILIDADE

Paulo Niccoli Ramirez


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Sumário
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Capítulo 1 Capítulo 4
Ética no Ocidente, 7 Cidadania: bases históricas
1 Definição de ética, 8 e princípios, 75
2 Percurso histórico da ética no 1 Bases históricas da cidadania, 76
Ocidente, 12 2 Concepções de cidadania, 88
3 Liberdade, igualdade e 3 A cidadania no Brasil, 92
responsabilidade como questões
Considerações finais, 95
da ética, 21
Referências, 96
Considerações finais, 26
Referências, 27 Capítulo 5
Relações étnico-raciais
Capítulo 2
no Brasil, 99
Direitos humanos, 29
1 Formação da cultura brasileira: uma
1 O que são os direitos humanos, 30 visão histórico-crítica, 100
2 Afirmação histórica dos direitos 2 O processo de escravização de
humanos, 42 indígenas e africanos e seus
3 As gerações dos direitos reflexos na formação da cultura
humanos, 44 brasileira, 111
Considerações finais, 49 3 Aspectos políticos e sociais da
Referências, 50 cultura afro-brasileira, 115
Considerações finais, 118
Capítulo 3 Referências, 119
Democracria no Brasil e grupos
minorizados, 51 Capítulo 6
1 Princípios da democracia, 52 Relações de gênero, 121
2 Marcos históricos que contribuíram 1 Fundamentos das questões de
para a construção da democracia gênero, 122
no Brasil, 62 2 Questões de gênero no cenário
3 Afirmação política de grupos internacional, 129
minorizados e movimentos sociais 3 Questões de gênero no Brasil, 136
e formação da democracia no
Considerações finais, 140
Brasil, 68
Referências, 141
Considerações finais, 71
Referências, 72
Capítulo 7 Capítulo 8

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Sustentabilidade: fundamentos Desenvolvimento
e definições, 143 sustentável, 161
1 A formação da sustentabilidade 1 Concepções de desenvolvimento
como questão política e sustentável, 162
socioambiental, 144 2 As possibilidades e os limites do
2 Concepções de sustentabilidade, 151 desenvolvimento sustentável, 170
Considerações finais, 158 Considerações finais, 178
Referências, 158 Referências, 178

Sobre o autor, 181

6 Ética, cidadania e sustentabilidade


Capítulo 1
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Ética no Ocidente

Neste capítulo estudaremos e compreenderemos os conceitos de


ética e moral, quais as suas diferenças e sua relevância para a vida em
sociedade. Em seguida, realizaremos um percurso histórico e filosófi-
co em torno das transformações da concepção de ética no Ocidente.
Veremos como essa noção varia de acordo com o período histórico e
as escolas de pensamento. É importante destacar que o estudo da ética
permite o entendimento da conduta humana na modernidade, que deve
buscar agir de forma responsável, em nome da igualdade jurídica-social
e das liberdades políticas.

7
1 Definição de ética

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Do grego ethos, a palavra “ética” surgiu na Grécia antiga com a filoso-
fia de Aristóteles (século IV a.C.). Ética significa conduta que envolve a
ação racional, ou a ciência que estuda o comportamento dos indivíduos.
Seu objetivo é promover a felicidade coletiva, a excelência humana ou
o bem comum. Na obra Ética a Nicômaco, Aristóteles define o conceito
com os seguintes termos:

[...] Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida
como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mes-
ma, e nunca por causa de algo mais; mas as honrarias, o prazer,
a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as
escolhamos por si mesmas [...], escolhemo-las por causa da feli-
cidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário,
ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de exce-
lência, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela
mesma. (ARISTÓTELES, 1992, p. 23)

A ética exige o uso da racionalidade ou a presença de senso crítico e


da reflexão, antes mesmo que qualquer ação seja tomada, pois sempre
objetiva o que é melhor, ou a atitude mais equilibrada, para a coletivi-
dade. A ética está relacionada à reflexão e ao uso da razão, ou seja, é
expressa pela capacidade de cada indivíduo de especular e mensurar
os prós e contras de cada atitude diante dos outros. Leva em considera-
ção, portanto, quais as melhores formas de agir, os procedimentos e as
virtudes que são necessários para a realização do bem comum. É nesse
sentido que devemos entender a ética como uma possível direção para
o estabelecimento da felicidade coletiva.

É comum a confusão entre as palavras “ética” e “moral”. Elas pos-


suem significados diferentes e é necessário que compreendamos o que
exatamente permite distinguir um comportamento ou valor moral dos
princípios que permeiam o conceito de ética. “Moral” (em latim, moris)
é uma palavra cuja origem está relacionada aos seguintes significados:

8 Ética, cidadania e sustentabilidade


costume, tradição ou hábitos. Diferentemente da ética, a moral não exi-
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ge do indivíduo reflexões de teor mais filosófico, em que se analisam


os prós e contras de uma ação ou um comportamento. A moral está,
sim, carregada de juízos e justificativas fundamentadas em tradições e
temporalidades históricas específicas de uma sociedade, sem com isso
ter um caráter universal, uma vez que é composta essencialmente por
normas e regras que muitas vezes não passam por análises ou ques-
tionamentos, pois são transmitidas de geração a geração. Cada indiví-
duo é introduzido nesse conjunto de costumes como se estes fossem
normais ou como se sempre tivessem existido da mesma forma, com
poucas variações, sem que isso implique em nenhum estranhamento
ou questionamento sobre como esses padrões comportamentais, es-
sas visões de mundo e esses valores foram adquiridos ou como e por
quais motivos foram criados e devem ser seguidos.

Um exemplo interessante para observarmos como a moral está pre-


sente na vida dos indivíduos é o dado histórico de que, até meados da
década de 1960, as sociedades ocidentais percebiam as funções das
mulheres como restritas aos cuidados do lar. Embora hoje, em pleno sé-
culo XXI, ainda vejamos alguns grupos sociais defendo tal postura, com
o desenvolvimento do mercado de trabalho e dos movimentos feminis-
tas, as mulheres foram ocupando lugares estratégicos no mercado de
trabalho, na política e nos meios de comunicação, a ponto de ter se
tornado impossível imaginar empresas, universidades e emissoras de
rádio e TV, por exemplo, sem elas. O que deve ser destacado com esse
exemplo é que a moral sempre é modificada de tempos em tempos ou
de sociedade para sociedade, constituindo um conjunto de valores que,
embora particulares a um grupo, a uma sociedade ou a épocas especí-
ficas, é naturalizado por esses grupos.

[...] O que vem a ser a moral? Um conjunto de valores e de regras


de comportamento, um código de conduta que coletividades ado-
tam, quer sejam uma nação, uma categoria social, uma comunida-
de religiosa ou uma organização. Enquanto a ética diz respeito à

Ética no Ocidente 9
disciplina teórica, ao estudo sistemático, a moral corresponde às

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representações imaginárias que dizem aos agentes sociais o que
se espera deles, quais comportamentos são bem-vindos e quais
não. (SROUR, 2000, p. 29)

A ética é representada por condutas de alcance universal ou co-


letivo, na medida em que procura produzir, por meio da reflexão e da
razão, o bem e a felicidade coletiva, medindo os elementos favoráveis
e desfavoráveis da conduta. A ética procura estabelecer condições de
convivência entre grupos diversos e com morais distintas. Por isso,
estuda a moral, ou seja, os hábitos e costumes humanos a fim de pro-
duzir a melhor ação possível, considerando a presença de grupos e
moralidades heterogêneas que devem se relacionar entre si a partir de
condutas comuns para promover o bem coletivo. A moral é relativa,
porque suas regras e normas muitas vezes são inconscientes aos que
a praticam; podem valer para uma cultura ou sociedade, mas não ne-
cessariamente para outras. Além disso, pode se transformar ao longo
da história sem que os indivíduos que a compartilham tenham percep-
ção disso, levando à crença de que seus hábitos e costumes sempre
foram os mesmos ou são os mais verdadeiros, quando na verdade
estão em permanente modificação. A moral é expressa por meio de
valores (ou juízos morais) que permitem que o indivíduo seja norteado
pelas noções do que é justo ou injusto, certo ou errado, bom ou mau,
virtuoso e/ou que promove vícios.

Devemos ter em mente que a vida humana é formada sempre por


ações morais e éticas. Governos, empresas, relações familiares, jogos,
guerras, acordos de paz, enfim, todas as práticas humanas apresentam
as características que acabamos de expor. Por isso, o estudo da ética
deve ser aplicado ao cenário moderno e ocidental, considerando a teia
de relações que são estabelecidas entre indivíduos, grupos humanos,
nações, religiões e posicionamentos políticos. Cada ação ética deve
pressupor impactos sobre diferentes grupos e comunidades humanas
e levar em consideração o comportamento moral desses grupos para

10 Ética, cidadania e sustentabilidade


que os resultados sejam os mais racionais possíveis e capazes de origi-
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nar benefícios ou ganhos coletivos.

Agora que diferenciamos a ética da moral, é preciso compreender


mais a fundo a forma como os indivíduos agem moralmente. Todos nós
temos, certas vezes, um forte sentimento, vontade ou impulso diante
de situações que nos fazem agir imediatamente. Às vezes, com indig-
nação, levantamos o tom de voz quando uma pergunta ou um aconteci-
mento chocante está diante de nós. Outras vezes, tecemos juízos sobre
determinadas ações que observamos; simplesmente julgamos ou co-
mentamos o acontecimento que atraiu a nossa atenção. Isso aconte-
ce, por exemplo, quando vemos uma criança com fome ou vivendo de
maneira precária e decidimos fornecer algum apoio. A isso chamamos
de senso moral. O senso moral representa nossos gestos positivos ou
negativos, percepções e expressões que legitimam ou criam oposições
a determinadas ações que se manifestam diante de nossos olhos. Não
há exigência de justificativa imediata quando se pratica o senso mo-
ral. Ele está relacionado à nossa formação moral, ou seja, a tradições e
costumes que fornecem atitudes imediatas perante situações que nem
sempre compreendemos totalmente ou que ocorrem de tal forma que
passam a influenciar nossos gestos mais impulsivos.

[...] Em uma de suas obras capitais para a introdução ao pensa-


mento filosófico, intitulada “Convite à filosofia”, Chaui (2000) escre-
ve que esse sentimento prova que nós somos seres morais, do-
tados de um senso de moralidade. O sentimento despertado em
nós prova a existência de um universo moral e nos leva a pensar
sobre o que é certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mau diante
de situações de sofrimento e dor, principalmente quando envolvem
crianças, seres inocentes que nos comovem por conta de sua fra-
gilidade. (BRAGA JUNIOR; MONTEIRO, 2016, p. 42)

No entanto, todos os nossos atos e posicionamentos, sejam eles con-


tra ou a favor do que pensa a maioria das pessoas, exigem de nós uma
justificativa. A essa justificativa damos o nome de consciência moral;

Ética no Ocidente 11
são as explicações que são dadas para fundamentar o senso moral. A

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consciência moral é, portanto, a justificativa baseada na própria moral
que permite dar sentido a todos os nossos atos e visões de mundo. Ao
impulsivamente ajudar a criança faminta ou o idoso que atravessa a
rua, exerço o meu senso moral. Quando penso e justifico a mim mesmo
e aos demais essa minha ação, exerço a consciência moral.

Portanto, diante de um senso moral, temos emoções e sentimentos


que são suscitados pelos acontecimentos com base em nossa cren-
ça nos padrões morais que adotamos e que nos orientam. Mas é a
nossa consciência moral que nos leva a agir e a assumir a responsa-
bilidade por nossos atos. (BRAGA JUNIOR; MONTEIRO, 2016, p. 44)

2 Percurso histórico da ética no Ocidente


Vimos, no tópico anterior, elementos que caracterizam, num sen-
tido geral, o que é a ética. Cabe agora observar que o entendimento
da expressão “ética” varia conforme o período histórico e a escola de
pensamento. Vejamos a seguir como o pensamento grego clássico e
depois o moderno e contemporâneo interpretaram a ética e os limites
da conduta humana.

Aristóteles (384-322 a.C.) teria sido o inventor da palavra "ética". Mas


o próprio filósofo considera que seus mestres e antecessores Sócrates
(469-399 a.C.) e Platão (428-348 a.C.), mesmo não sendo os criadores
da palavra, já haviam buscado compreender a importância da ética para
a felicidade e o bem da vida em sociedade. A preocupação que surge na
filosofia da Grécia antiga, sobretudo com Sócrates, é a de como deve-
mos viver nossa vida de forma justa e em sociedade. Como promover
o bem comum? Como estabelecer o que é verdadeiro e o que é falso
para a conduta humana? Todas essas questões podem ser sintetizadas
na conhecida alegoria da caverna, do livro VII de A República, de Platão.
São questões que não se limitam mais apenas à filosofia, mas atingem

12 Ética, cidadania e sustentabilidade


também as preocupações de sociólogos, economistas, psicólogos, bió-
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logos, entre outros profissionais.

PARA SABER MAIS

Na obra A política, Aristóteles define o homem como um “animal político


por natureza” (Zoon Politikon). A política diferencia a humanidade dos
demais animais, representa o agir, o pensar e o aprimorar a vida em
sociedade. É a capacidade de criar, discernir, construir, refazer e viver
intensamente em sociedade o que se entende como justo e injusto, o
bem e o mal, normas e regras, por meio do uso da razão e das palavras
(léxico). Zoon Politikon é o fundamento da vida moral e ética dos su-
jeitos, sempre em sociedade, o que lhes permite a invenção de juízos,
costumes, tradições, regras e leis.

A filosofia antiga tem como preocupação o conhecimento das virtu-


des dos indivíduos, de seu espírito e de sua capacidade para conhecer a
verdade. Sócrates debatia a igualdade de todos os homens e mulheres
perante as leis, a importância e os problemas do direito de todos os ci-
dadãos de participarem diretamente do governo da cidade ateniense,
por meio de um modelo que permitisse o acesso de todos à política.
Nasciam, dessa forma, os questionamentos éticos. Esse período se
destacou por ter sido o primeiro na história da cultura ocidental em que
houve preocupações com questões morais e políticas. Baseou-se na
confiança no pensamento ou no homem como ser racional, capaz de co-
nhecer-se a si mesmo e, portanto, capaz de produzir reflexões e decidir o
destino, a felicidade e o bem da sociedade. Para tanto, tornou-se neces-
sário pensar sobre padrões de educação e formação do bom cidadão,
capaz de agir em público e convencer aos outros nos debates políticos.

Na Idade Média, os debates éticos estiveram nas mãos dos teólo-


gos da Igreja católica, que procuravam relacionar a conduta humana
com os textos bíblicos, considerando a salvação da alma. Destacam-se
Santo Agostinho (354-430 d.C.) e São Tomás de Aquino (1255-1274 d.C.).

Ética no Ocidente 13
O primeiro foi pioneiro na compreensão da liberdade humana e da capaci-

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dade do homem de produzir de maneira autônoma escolhas e responsa-
bilidades, isto é, de exercer o livre-arbítrio. Compreendendo racionalmente
que as ações virtuosas e o cultivo da fé conduziriam à salvação da alma
após a morte e que o pecado, com o cultivo dos vícios carnais, conduziria
ao distanciamento de Deus, Agostinho traça a relação entre a ética e a fé.
Aquino, por sua vez, elabora tratados morais em que busca estabelecer
quais virtudes (entre elas a temperança e a fé) devem acompanhar o com-
portamento humano a fim de aperfeiçoá-lo e guiá-lo em direção a Deus.

Com o surgimento do pensamento moderno, por volta dos séculos


XVI e XVII, as preocupações éticas passaram a ser outras, sobretudo
com a figura de Maquiavel (1469-1527), na obra O príncipe. Enquanto
os pensadores gregos da Antiguidade procuravam pelas virtudes e um
estilo de ética em que todos encontrariam a felicidade por meio da ra-
zão, o pensamento moderno, a partir de Maquiavel, passa a observar o
ser humano como naturalmente dotado de avareza, individualismo e ne-
nhum verdadeiro interesse pelo bem comum, de modo que na primeira
oportunidade trai seu semelhante.

Partindo desse ponto de vista negativo sobre a natureza humana, os


questionamentos de Maquiavel giravam em torno de como o príncipe
(expressão que se refere a qualquer governante) pode manter a sobera-
nia e o domínio sobre os súditos, como é possível persuadir os subor-
dinados à autoridade de um governo e como o príncipe deve agir para
conter permanentes conflitos internos e com outros governos. Embora
Maquiavel nunca tenha escrito a conhecida frase “os fins justificam os
meios”, sua obra permite tecer relações com ela, pois o filósofo julga
que, para manter o poder, o príncipe tudo pode e deve fazer, mesmo
matar, mentir, agir com hipocrisia, demitir e distorcer informações; ele
deve ser amado pelo povo e temido pelos inimigos; tornar velhos inimi-
gos novos amigos e vice-versa; usar a força quando julgar necessário
ou enveredar pelo caminho da paz; tudo conforme as necessidades e
circunstâncias.

14 Ética, cidadania e sustentabilidade


É interessante notar que os filósofos se referem à existência de uma
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ética maquiavélica. Nesse caso, devemos primeiro desmistificar o ter-


mo "maquiavélico", geralmente associado a fazer ou realizar o mal. Na
realidade, ser maquiavélico significa ser calculista, saber medir racio-
nalmente os prós e contras de uma ação; diz respeito à capacidade
de o príncipe perceber os jogos de forças políticas e se antecipar aos
inimigos. Maquiavel afirma que só é possível um príncipe se sustentar
no poder caso tenha como objetivo realizar tudo que lhe for possível
para manter o seu domínio, zelando pelo apoio e felicidade dos súditos,
pois sem esse apoio popular qualquer governo pode ser sabotado e até
derrubado. Isso significa que todo príncipe deve agir visando dois fins:
garantir a perpetuação de seu poder político e o bem-estar dos súditos.
A promoção do bem comum seria então apenas aparente, pois o verda-
deiro interesse seria manter o poder político. A ética maquiavélica reve-
la-se como uma forma de governo na qual o príncipe deve estar sempre
alerta e aparentar fazer o bem, mesmo quando suas ações possam ser
consideradas moralmente reprováveis.

Fica evidente que a ética maquiavélica está direcionada aos fins


(manter o poder e garantir o apoio popular), independentemente dos
meios empregados. A partir de Maquiavel, nos referimos a toda ação
ética que visa aos fins com a palavra "teleologia" (do grego telos, fim,
finalidade, objetivo; e logos, discurso, razão ou racionalidade). Teleologia
designa o estudo dos fins ou das finalidades. Trata-se, portanto, de um
modelo ético no qual os fins, os resultados ou as consequências são
sempre medidos e calculados pelo indivíduo.

PARA SABER MAIS

Para Maquiavel, o sucesso do príncipe se sustenta em dois princípios:


virtú (deriva de vir, que quer dizer virilidade em latim), que não possui
relação com as virtudes (sabedoria, honestidade, religiosidade, etc.) e
vincula-se à expressão “maquiavélico”, dizendo respeito a ser calculista,
dissimulado, à capacidade de agir e se antecipar aos inimigos conforme

Ética no Ocidente 15
as circunstâncias; e fortuna (originalmente, a deusa romana que repre-

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senta a sorte ou o acaso), que fundamenta a contingência e imprevi-
sibilidade histórica, escapando à racionalidade humana, a exemplo de
catástrofes naturais ou declarações de guerra de outros reinos.

O desenvolvimento do capitalismo e da sociedade burguesa a partir


dos séculos XVIII e XIX produziu modificações a respeito do que vem a
ser a ética, vinculando-a com uma nova noção de trabalho. Adam Smith
(1723-1790) é considerado o precursor da ética voltada ao trabalho e à
economia. A palavra "economia", até antes do surgimento do capitalis-
mo, estava restrita à administração privada do lar (envolvendo a família,
a produção de alimentos e os escravos ou servos). Foi a partir da teoria
econômica de Adam Smith que a noção de economia foi posta de pon-
ta-cabeça, tornando-se um assunto público e, portanto, uma ética.

No século XVII, Adam Smith conseguiu demonstrar, na sua A rique-


za das nações, que o lucro não é um acréscimo indevido, mas um
vetor de distribuição de renda e de promoção do bem-estar social.
Com isso, logrou expor pela primeira vez a compatibilidade entre
ética e atividade lucrativa. (MOREIRA, 1999, p. 28)

PARA SABER MAIS

A palavra "economia", na Antiguidade e na Idade Média (oikos, em gre-


go), apenas designava cuidados ou a administração do próprio lar. Ou
seja, a economia significava, para um proprietário de terras, somente o
controle da produção de alimentos (geralmente com produção autossu-
ficiente), de seus escravos ou servos e de sua família. O trabalho, antes
do surgimento do capitalismo, sempre era visto como uma atividade de-
gradante restrita aos homens de pouco intelecto e reflexão. Escravos,
servos e comerciantes, por dedicarem sua vida ao trabalho, foram mar-
ginalizados da vida política, não eram dotados de privilégios e viviam à
mercê das decisões tomadas pelos legítimos cidadãos, nobres ou reis,
que podiam ser somente os proprietários das terras. Estes, dados ao
ócio, tinham tempo livre para discernir sobre as questões mais elevadas,

16 Ética, cidadania e sustentabilidade


como a política, os destinos da cidade ou de seu povo ou feudo. Assim,
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até o século XVII não existia vínculo algum entre a noção de economia
e comércio, uma vez que se entendia por economia apenas o cuidado
com a vida privada. A grande inovação do homem moderno, ou melhor,
do burguês ou do comerciante, foi a conquista do poder político. Se em
outros períodos da história ocidental os comerciantes estiveram ligeira
ou drasticamente afastados das decisões políticas, as revoluções bur-
guesas (1688 – Revolução Gloriosa, na Inglaterra; e 1789 – Revolução
Francesa) foram responsáveis por alocarem definitivamente os comer-
ciantes no poder dos Estados e de toda a burocracia oficial. Obviamente,
o trabalho, antes visto como função não nobre, foi dignificado. A econo-
mia, antes uma noção privada, passou a ser assunto coletivo e público.
A economia enquanto uma questão pública e o trabalho racional, am-
plamente difundido hoje como mãe de todas as relações sociais, são in-
venções humanas recentes e se constituíram como porta-vozes da ética
burguesa, a qual fundamenta a ética empresarial e enaltece o negócio,
termo cuja etimologia em latim significa negar o ócio (negotium).

Para Smith, o mercado deveria funcionar segundo princípios éticos


individualistas, o que ele designou de “mão invisível”. Esse conceito se
fundamenta em interesses econômicos privados ou individuais, compe-
titividade e uma sociedade guiada pela livre iniciativa, concorrência e lei
da oferta e da procura:

[...] cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu


capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira
essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível [...].
Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse
público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir
fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vis-
ta apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal
maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a
seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado
como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia
parte de suas intenções. (SMITH, 1996, p. 438)

Ética no Ocidente 17
Smith cria a percepção de que a economia é uma esfera ética, na

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medida em que o mercado, aparentemente caótico, é, na realidade, or-
ganizado e produz as espécies e quantidades dos bens mais desejados
pela população. Quanto mais egoísta e competitivo for um indivíduo
e quanto mais obtiver riquezas através de seu trabalho, indiretamente
mais contribuirá com o progresso de outros indivíduos competitivos,
por meio da compra de outros serviços ou mercadorias, de modo a ge-
rar o progresso coletivo. Surge uma modalidade de ética que tem, como
fim último, o progresso social a partir do individualismo exacerbado.

Outra interpretação sobre a ética presente nas relações mercantis


modernas está na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo,
escrita por Max Weber nos primeiros anos do século XX. O pensador
procura compreender qual é a origem da racionalidade e da burocracia
presentes no capitalismo.

PARA SABER MAIS

Weber (1864-1920) é um dos principais intelectuais da passagem do


século XIX ao XX. Seus estudos se concentram na origem da raciona-
lidade moderna, a qual se desdobra não apenas no capitalismo, mas
também na burocracia e, portanto, em um maior controle sobre as rela-
ções sociais. Isso faz de Weber um dos precursores da teoria geral da
administração e da sociologia.

A Reforma Protestante (iniciada entre os séculos XVI e XVII), segun-


do Weber, deu origem à ascese, entendida como a busca constante do
domínio e controle do próprio corpo, disciplina rígida diante das paixões,
visando finalmente ao controle da natureza por meio da ação metódica,
racional e calculada. Diferentemente do catolicismo medieval (que nega
o trabalho, o juro e o lucro como fontes de riquezas), a conduta de vida
protestante, sobretudo a calvinista, desenvolveu uma ética que prevê a
racionalização da atividade mundana e, portanto, que se realiza através
do trabalho rígido e do negócio (negação do ócio) enquanto formas de

18 Ética, cidadania e sustentabilidade


demonstração de que se é um escolhido por Deus, ou seja, um predesti-
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nado à salvação. Trata-se de uma forma de religiosidade eminentemen-


te moderna, uma vez que a fé não se reduz à contemplação de Deus,
mas também prevê ação e dominação do mundo.

O que está em jogo é a relação entre a prosperidade econômica, a


ética protestante e a origem da racionalidade presente no capitalismo.
Weber designou esse estilo de vida como ética do trabalho, que pos-
sivelmente criou a crença de que o “trabalho dignifica o homem” ou o
“enobrece”. A principal característica da ética do trabalho é o controle
e a racionalização sobre todos os processos da vida e do trabalho. O
lucro e a cobrança dos juros, atividades vistas historicamente como de-
gradantes e realizadas por espíritos gananciosos, passaram a ser tidas
como benéficas e dignas, de acordo com a análise de Weber. Noções
antes presentes apenas no vocabulário do catolicismo, como missão,
visão e vocação, foram transferidas à esfera do trabalho racional e gra-
dativamente incorporadas ao vocabulário do universo gerencial da ad-
ministração. O ponto central da análise que Weber realiza sobre a ética
do trabalho é o de que indiretamente, ou seja, sem exatamente saber, os
protestantes inventaram as práticas racionalizadoras que foram incor-
poradas pelo capitalismo. Certamente, indivíduos de outras religiões e
até mesmo ateus teriam percebido o rápido progresso econômico dos
fiéis puritanos e começaram a imitar a ética do trabalho, mas sem a sua
religiosidade original. Pode-se dizer que as práticas econômicas que
vieram depois adotaram essa ética do trabalho, mas o vínculo entre a
religiosidade e a racionalidade evaporou.

É interessante notar que a ética do trabalho e o individualismo pro-


posto por Adam Smith contribuíram para consolidar a ética no cenário
econômico capitalista.

Na passagem do século XVIII ao XIX, após a legitimação da ciên-


cia moderna e da ética econômica liberal burguesa e durante as revo-
luções políticas burguesas, surgiram novas reflexões éticas, voltadas a

Ética no Ocidente 19
princípios morais que regulamentam o comportamento do bom cida-

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dão e as boas práticas de administração pública. As superstições e as
interpretações medievais religiosas de mundo que guiavam a conduta
humana estavam sendo substituídas pela racionalidade da ciência mo-
derna, com métodos experimentais e matemáticos aplicados também
na indústria. Diante da nova ordem política burguesa, fundamentada na
igualdade jurídica e nas liberdades políticas, o poder dos reis absolutis-
tas estava prestes a sucumbir definitivamente, e as relações sociais não
seriam mais guiadas pelos humores dos tiranos e pela rivalidade entre
eles, mas pela racionalidade jurídica.

Kant (1724-1804), por exemplo, foi um pensador alemão contempo-


râneo à Revolução Francesa e otimista em relação às conquistas de seu
tempo. Com a obra Fundamentação da metafísica dos costumes, partirá
da visão contempladora da razão moderna aplicada ao direito, à indús-
tria e à ciência como fundamento para uma nova modalidade de ética,
que se opõe à tradição maquiavélica, baseada na teleologia (nos fins).
Kant concebe a deontologia (do grego deon, que significa obrigação ou
dever moral) como uma ciência do dever, uma obrigação racional que
deve ser realizada a todo custo, sem que as consequências sejam me-
didas, afinal de contas estabelece que tudo o que surge ou emana da
razão é necessariamente benéfico à humanidade, não devendo haver
suspeitas ou inquietações em relação à própria racionalidade.

Kant se considerava iluminista. Os iluministas têm forte crença nos


benefícios da razão humana, e por isso Kant compreendeu que não se-
ria necessário medir as consequências da ética baseada na deontolo-
gia, pois importam os meios racionais, ou mesmo os meios passam a
se confundir com os fins, tendo em vista que a razão sempre conduziria
o homem ao bem e à verdade, não podendo ser questionada jamais.
Foi por meio da deontologia que Kant estabeleceu o imperativo cate-
górico e a máxima muito conhecida que sintetiza sua nova ética: “Age
como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vonta-
de, uma lei universal” (KANT, 2009, p. 245). Isso significa tornar a ação

20 Ética, cidadania e sustentabilidade


inquestionável e universal, ou seja, difundir e aplicar toda ação racional,
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sendo sua validade aplicável em qualquer lugar ou tempo, o que revela


a visão profundamente otimista de Kant diante da razão.

3 Liberdade, igualdade e responsabilidade


como questões da ética
Vimos que Kant foi herdeiro da filosofia francesa e iluminista do sé-
culo XVIII. Diderot, Voltaire e Rousseau defendiam a razão e a ciência
como instrumentos de interpretação e organização do mundo, portan-
to manifestavam animosidades contra a religiosidade. Rousseau, na
França, e Locke, pai do liberalismo político, na Inglaterra, muito apre-
ciados por Kant no século seguinte, afirmavam que a igualdade e a
liberdade são naturais, devendo ser elementos fundamentais na vida
política e na organização do Estado. A ética burguesa prezava agora pe-
las liberdades individuais, que, conforme veremos no próximo capítulo,
influenciarão a composição dos direitos humanos no século XX. Todos
esses elementos oriundos da ética liberal e iluminista inspiravam Kant
na concepção de que a humanidade estava prestes a alcançar o que ele
designou “paz perpétua” (denominação que se tornou também título de
um de seus livros, publicado em 1795). A igualdade jurídica, somada à
liberdade de expressão e à liberdade política, seria um indício de um ver-
dadeiro império da razão, e dela resultariam necessariamente benesses
à humanidade.

No século XX, no entanto, diferentes pensadores se opuseram à de-


ontologia de Kant, alertando para os riscos de ações irresponsáveis e
inconsequentes quando há uma confiança exagerada ou cega na racio-
nalidade. Max Weber produziu um ensaio em 1919 intitulado “A política
como vocação” (WEBER, 2004), em que estabelece a oposição entre os
conceitos nomeados como ética da convicção (vinculada à deontolo-
gia) e ética da responsabilidade (vinculada à teleologia).

Ética no Ocidente 21
A ética da convicção compreende um dever moral e racional que

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deve ser realizado a todo custo, sem que se leve em consideração as
consequências desse ato. Weber remete à deontologia criada por Kant
para definir esse conceito. Podemos tomar como exemplo dessa ética
um indivíduo que exerce a profissão de médico e cria o valor moral e ra-
cional de jamais mentir. Caso o seu paciente em estado terminal lhe per-
gunte qual é a sua situação, certamente receberá a resposta mais desa-
gradável possível, pois esse médico tem como dever moral não mentir.

Weber considera que a ética da convicção é um tanto perigosa, na


medida em que os fins ou resultados são coadjuvantes diante da con-
fiança no exercício ético da razão. Suponhamos uma empresa que pro-
duza alimentos transgênicos e queira obter lucros cada vez maiores,
sem realizar estudos sobre os impactos de seus produtos sobre a saúde
de seus consumidores. Nesse caso, ao não medir as consequências,
observamos a ética da convicção, um indício de um ato irresponsável.

A ética da responsabilidade, como o próprio termo indica, é responsá-


vel, porque mede as consequências, calcula e reflete sobre todos os re-
sultados possíveis de uma ação. A ética da responsabilidade tem como
principal característica valorizar os fins, e não os meios. Por isso, Weber
se inspira no padrão teleológico no interior da ética da responsabilidade.

Voltemos ao exemplo anterior, em que o médico prometeu jamais


mentir. Numa perspectiva weberiana, e caso concordássemos com
esse pensador, poderíamos considerar a ideia de falar a verdade a todo
custo um ato irresponsável e, portanto, relacioná-lo à ética da convic-
ção. É possível dizer que o médico teria sido responsável se tivesse
mentido, se tivesse dito ao seu paciente quão valente e corajoso ele é
e que tem o surpreendido. Como na ética da responsabilidade os fins
são mais relevantes que os meios, a mentira poderia ser considerada,
nesse caso, responsável. Um defensor da ética da convicção não con-
cordaria com a ideia de que se deve mentir. Caso julgássemos falar a
verdade sempre como um princípio moral inquestionável, veríamos a

22 Ética, cidadania e sustentabilidade


ética da responsabilidade negativamente. É importante perceber aqui
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como ambas as éticas, da convicção e responsabilidade, podem ter va-


lores positivos ou negativos de acordo com pontos de vista distintos e
justificados a partir de nossa consciência moral.

A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) produziu uma impor-


tante crítica à ética kantiana por meio do conceito de banalidade do
mal, apresentado na obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a
banalidade do mal (1963). Adolf Eichmann foi um oficial da Gestapo na-
zista, responsável pela logística de extermínio de milhões de indivíduos
durante a Segunda Guerra Mundial, capturado na Argentina e julgado
em Jerusalém no ano de 1961. Hannah Arendt foi enviada pela revista
The New Yorker para cobrir o julgamento realizado pelo governo isra-
elense. Um dos aspectos mais polêmicos da obra é o modo como a
filósofa descreve o comportamento de Eichmann, pois não aparentava
ser um monstro, alguém com um espírito demoníaco e antissemita. Era,
na verdade, um burocrata obediente às leis do seu país; as seguia por
considerar racional a obediência a elas. Era, portanto, um sujeito medío­
cre, que de certa forma renunciou a pensar nas consequências que os
seus atos poderiam ter. Eichmann demonstrou ser pouco reflexivo e foi
conduzido por um comportamento ético fundamentado na deontologia.

Segundo Arendt (1999), a banalidade do mal é o fenômeno que se


caracteriza pela renúncia da humanidade, negando a reflexão e produ-
zindo a tendência de não se assumir a iniciativa dos próprios atos, ou
seja, caracteriza-se pela ausência de responsabilidade sobre as conse-
quências das ações. A banalidade do mal demonstra que muitas vezes
o emprego da razão, ainda que pela via da obediência mais fiel às leis,
pode se voltar contra a própria humanidade, afastando o indivíduo de
sua conexão e responsabilidade com os outros humanos e tornando-o
praticante de atitudes bárbaras. Os campos de concentração expressa-
vam uma forma racional e sistemática de organização do trabalho e ex-
termínio em massa dos prisioneiros. A banalização do mal ocorre quan-
do transformamos nossos semelhantes em meros números, indivíduos

Ética no Ocidente 23
desumanizados por uma ordem racional cega. Portanto, o conceito é

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fruto de uma sociedade inspirada na defesa da racionalidade, seja ela
moral ou jurídica, sem que se façam reflexões ou críticas em relação a
essa mesma racionalidade.

O filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), por sua vez, procu-


rará definir o que podemos designar como ética existencialista. Sartre
relaciona a conduta humana com as noções de liberdade e responsa-
bilidade. Segundo Sartre, nas obras O Ser e o nada (1943) e O existen-
cialismo é um humanismo (1946), a existência precede a essência. Isso
significa dizer que não há nada de inato no ser humano, nem essência
nem natureza humana, ou seja, ninguém nasce definido ou predestina-
do a ser e agir de alguma forma, muito menos a ocupar uma posição
social. O ser humano, nas palavras de Sartre, nasce condenado a ser
livre, de forma que suas escolhas o tornam livre para, a todo instante,
modificar o seu ser.

Sartre opõe-se à noção de natureza humana (vista como um ele-


mento determinista e fatalista), pois limita a liberdade humana e con-
dena os indivíduos a justificarem sua passividade perante a realidade,
que está sempre em movimento. Contra a noção de natureza humana,
Sartre defende a concepção de condição humana, caracterizada por ser
flexível, plástica e em permanente transformação, ou seja, o conceito é
sinônimo ao mesmo tempo de liberdade e responsabilidade. A huma-
nidade vive condenada à liberdade. Ser livre expressa a possibilidade
de se fazerem escolhas ou projetar a subjetividade no mundo. Porém a
liberdade causa o que Sartre classifica como náusea ou angústia, por
dois motivos:

• Toda escolha (liberdade) implica o abandono ou a anulação de


todas as outras possibilidades de ação.

• Toda escolha (projeto) não irá se realizar no futuro tal como pla-
nejada originalmente. Isso porque “meu ser” se encontra numa re-
lação de conflito com a realidade e com as infinitas subjetividades

24 Ética, cidadania e sustentabilidade


dos outros. Por isso, o filósofo considera que o inferno são os
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outros.

Portanto, angústia e náusea correspondem ao fenômeno da nadifi-


cação, segundo o qual o “meu ser” é resultado de todos os fracassos
e as escolhas que não se realizaram, ou mesmo dos desvios que mi-
nha liberdade operou sobre a realidade na qual estou inserido, trans-
formando-a. Cada escolha, ou seja, cada manifestação da liberdade de
um indivíduo está em relação de tensão com a realidade, pois nesta
estão presentes todas as demais subjetividades e formas de pensar,
que podem ser diferentes do seu pensamento e estar em contradição
com suas escolhas. Ao perceber que somos livres e que a liberdade se
exerce a partir da relação conflituosa (dialética) com todas as demais
subjetividades, Sartre considera que cada ato ou escolha, cada passo
de nossa liberdade tem ressonância universal, de forma que sempre
somos responsáveis pelos outros. Nesse ponto Sartre demonstra que a
responsabilidade perante o mundo é permanente – cada ato nosso está
interligado com o universal.

O existencialismo é um humanismo é um pequeno ensaio escrito


pelo filósofo para se opor a seus críticos, que o acusavam de ser dema-
siadamente pessimista. Para Sartre, o existencialismo é um humanis-
mo, de modo que, na verdade, ele apresenta um caráter otimista, pois
embora considere o movimento de nadificação, que produz angústia e
náusea sobre o ser, considera que este ser é suficientemente livre para,
permanentemente, se construir e reconstruir ou projetar, sempre de no-
vas formas e dialeticamente, a sua liberdade no mundo. Ser livre signi-
fica driblar as nadificações, resultando em consequências imprevisíveis
e talvez superiores às que orginalmente foram concebidas pela própria
subjetividade. Sartre considera que age de má-fé o sujeito que afirma
não escolher ou não ser livre. Para ele, a condição humana é ser livre ou
fazer escolhas, ainda que essas escolhas signifiquem não escolher ou
mesmo escolher a submissão. Cada escolha tem ressonância no mun-
do, tornando cada ato responsável pela ordem e desordem da realidade.

Ética no Ocidente 25
Considerações finais

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Percorremos, no primeiro capítulo, conceitos fundamentais em torno
da ética. Iniciamos com a distinção entre os termos “ética” e “moral”. Em
seguida, verificamos os significados das concepções de senso moral
e consciência moral. Nesse ponto, seria importante você refletir sobre
como podemos aplicar esses conceitos em nosso cotidiano, perceben-
do como a concepção filosófica de ética nos permite refletir e analisar as
atitudes em nosso convívio social – no trabalho, na faculdade ou mesmo
quando especulamos sobre nossa participação na vida política e social.

No segundo tópico, delineamos um breve histórico das diferentes


concepções filosóficas de ética na cultura ocidental. Partindo das no-
ções éticas dos pensadores gregos da Antiguidade, verificamos que a
preocupação central girava em torno da possibilidade da construção de
um bem coletivo estabelecido pela razão. Com o surgimento do pen-
samento moderno, as perspectivas éticas se modificaram. Maquiavel
relaciona a ética com uma concepção negativa do comportamento
humano, fundamentado nos jogos de interesses pessoais, na avareza
e em permanentes conspirações e traições. Distante da busca da vir-
tude, Maquiavel procurou estabelecer parâmetros para compreender
como um governo se mantém no poder, ainda que usando estratégias
moralmente reprováveis e dissimuladas. Nos séculos seguintes, com a
ascensão do pensamento político e econômico burguês, promoveu-se
a defesa das liberdades individuais e da ética do trabalho. A confiança
exacerbada na ciência e na razão moderna fez com que Kant elabo-
rasse sobre um tipo de ética designado como deontologia, criticada no
século XX por diferentes pensadores.

No último tópico, analisamos algumas das críticas realizadas à de-


ontologia kantiana. Weber procurou opor a ética da responsabilidade
à ética da convicção (deontologia), e Hannah Arendt associou o con-
ceito kantiano à banalidade do mal. Sartre, por sua vez, relacionou o

26 Ética, cidadania e sustentabilidade


comportamento humano à liberdade e à responsabilidade, demonstran-
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do a relação de conflito entre as diferentes subjetividades dispersas na


realidade e como cada escolha ou liberdade individual promove influên-
cias ou apresenta consequências no funcionamento do universo, isto é,
no comportamento dos demais e na vida coletiva.

Referências
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do
mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Editora UnB, 1992.

BRAGA JUNIOR, Antonio Djalma; MONTEIRO, Ivan Luiz. Fundamentos da ética.


Curitiba: Intersaberes, 2016. (Série Estudos de Filosofia).

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo:


Barcarolla: Discurso Editorial, 2009.

MOREIRA, Joaquim Manhães. A ética empresarial no Brasil. São Paulo:


Pioneira Cengage, 1999.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril,


1984. (Coleção Os Pensadores).   

SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:


Pioneira, 1999.

WEBER, Max. A política como vocação. In: WEBER, Max. Ciência e política:
duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2004.

Ética no Ocidente 27
Capítulo 2
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Direitos humanos

Estudaremos, no capítulo 2, o processo de construção dos direitos


humanos e seus dilemas na sociedade contemporânea. Observaremos
que, antes mesmo da afirmação, em 1948, da Declaração Universal dos
Direitos Humanos na Organização das Nações Unidas, houve uma série
de construções filosóficas e eventos históricos políticos inaugurados
no século XVII que passaram a formular os chamados “direitos naturais
e individuais”, envolvendo liberdades, direitos políticos e o que hoje é
chamado de Estado democrático de direito. Para isso, primeiro veremos
as influências e heranças dos autores contratualistas dos séculos XVII
e XVIII, elaboradores do direito natural e base para a compreensão dos
direitos humanos no século XX. Selecionamos artigos da Declaração

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Universal dos Direitos Humanos que permitam tecer essas relações,

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isto é, estabelecer quais vínculos e influências existem entre as con-
cepções jurídicas dos filósofos contratualistas-iluministas e os direitos
humanos. Com base nessas comparações, poderemos compreender
melhor no que consistem e o que são os direitos humanos.

Em seguida, será abordado o processo de afirmação histórica e for-


malização dos direitos humanos por meio da análise das lutas políticas
nos últimos três séculos, partindo das revoluções burguesas e norte-a-
mericana até as conquistas políticas femininas a partir do século XIX e
outras lutas por direitos sociais durante o século XX. Também abordare-
mos as perspectivas para o século XXI e finalizaremos o capítulo com o
estudo das gerações dos direitos humanos, ou seja, do modo como gra-
dualmente, ao longo dos últimos três séculos, houve a ampliação e con-
solidação do debate acerca do que se entende por, de quais são, para
quem são e como aplicar de fato universalmente os direitos humanos.

1 O que são os direitos humanos


Quando buscamos a resposta para a questão “o que são os direi-
tos humanos?”, devemos ter em mente suas definições jurídicas e sua
problematização a partir da análise filosófica sob a perspectiva ética.
Começaremos nossa investigação a partir da definição jurídica des-
ses direitos, a qual demonstra que sua consolidação se deu em 1948,
logo depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e das atrocida-
des e crimes cometidos contra a humanidade, entre eles o holocausto.
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, buscou-
-se fortalecer o entendimento sobre uma ordem jurídica internacional
ou universal para a proteção das liberdades individuais e do direito à
vida e à igualdade jurídica de qualquer sujeito. Apesar da existência de
amplo debate conceitual, por vezes repleto de múltiplas interpretações
e abstrações, o que há de consensual entre os juristas é a noção de
que os direitos humanos devem zelar de forma universal pela dignidade

30 Ética, cidadania e sustentabilidade


da pessoa humana. Isso significa dizer que todos os seres humanos,
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independentemente de sua origem cultural ou territorial, de seu gêne-


ro ou temporalidade histórica, são providos, desde o nascimento (e de
forma inalienável), de direitos fundamentais que devem ser protegidos
necessariamente pela ordem jurídica formal, seja ela no nível nacional
ou internacional.

A proteção do ser humano contra todas as formas de dominação


ou do poder arbitrário é da essência do Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Orientado essencialmente à proteção das víti-
mas, reais (diretas e indiretas) e potenciais, regula as relações entre
desiguais, para os fins de proteção, e é dotado de autonomia e es-
pecificidade própria. (TRINDADE, 2007, p. 210)

A definição dada a partir de uma base jurídica revela-se abstrata,


constituindo-se muito mais como um discurso do que necessariamente
um conceito, porque há um amplo debate e contraposições no interior
das ciências jurídicas com o objetivo de definir literalmente o que são os
direitos humanos. No entanto, é reconhecido o caráter abstrato do de-
bate quando, por exemplo, se procura definir o que seria a dignidade da
pessoa humana. No primeiro artigo da declaração de 1948 da ONU, lê-se:

Artigo 1o Todos os seres humanos nascem livres e iguais em digni-


dade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir
uns para com os outros em espírito de fraternidade. (ONU, 1948)

A formulação do conceito de dignidade humana tem sua origem


no final do século XVIII, na filosofia de Kant, e está presente na obra
Fundamentação da metafísica dos costumes (1785). Essa formulação é,
na realidade, uma sintetização dos preceitos anteriores e herdados dos
liberais ingleses e dos iluministas na França, que desenvolveram primei-
ro as noções de liberdade e igualdade, conforme veremos em detalhes
mais adiante. Segundo Kant, a dignidade está relacionada ao problema
do que é um valor. Nesse caso, a dignidade não poderia ser negociada
ou mesmo trocada por qualquer outra coisa. Essa concepção, baseada

Direitos humanos 31
na moralidade kantiana e que inspirou o primeiro artigo da Declaração

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da ONU tem um valor em si mesmo e, portanto, diz respeito à autono-
mia do sujeito. Considera-se que esse sujeito é dotado de consciência,
liberdade, e deve-se zelar pela igualdade jurídica, de modo que estes
elementos compõem a dignidade humana.

A dignidade humana representa a capacidade e o direito de viver e


pensar livremente e o dever de respeitar a liberdade alheia. Por ser um
fim em si mesmo, a dignidade permite a autonomia e a vida em socieda-
de, consolidando uma forma de comportamento universal e de respeito,
portanto fraterna, entre iguais, os quais exercem também a sua dignida-
de em público ou politicamente.

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando


uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra
como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o
preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignida-
de. (KANT, 2011, p. 82)

No entanto, o exame da formulação de Kant poderia conduzir a uma


série de questionamentos, entre eles: afinal de contas, o que se enten-
de como dignidade seria igualmente válido em todas as sociedades e
períodos históricos? É possível dizer que há um valor universal quando
ele parte, por exemplo, de um ponto de vista europeu, como o de Kant?
Na obra O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela
dignidade, Santos e Martins (2019) promovem uma análise crítica a
respeito desse tipo de abordagem meramente jurídica sobre os direitos
humanos. Os autores estabelecem, para isso, a distinção entre os direi-
tos humanos convencionais (ou hegemônicos) e os direitos humanos
que pertencem a uma “ecologia de dignidades pós-abissais” (SANTOS;
MARTINS, 2019).

Os direitos humanos convencionais são ambições universalistas oci-


dentais e modernas, isto é, expressam a imposição hegemônica euro-
cêntrica ou mesmo da chamada epistemologia do Norte sobre países

32 Ética, cidadania e sustentabilidade


econômica e culturalmente dominados por essa cultura. São caracteri-
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zados pela difusão do que se entende como a universalidade da digni-


dade humana a partir de uma visão do Norte. Trata-se de um ponto de
vista que julga ser universal, quando na verdade se revela particular, sem
levar em consideração as concepções de dignidade de outras socieda-
des distribuídas no Sul do globo, sobretudo as nações mais pobres,
em desenvolvimento e que são ainda exploradas pelas sociedades do
Norte. Dessa forma, os direitos humanos convencionais professam al-
guns valores como se fossem universais, porém são princípios próprios
de determinadas dinâmicas e especificidades históricas e culturais;
além disso, as conquistas políticas do Norte não possuem contextos
que necessariamente se repetiram ou se repetiriam da mesma forma
em outras sociedades, sobretudo as marginalizadas pelo processo de
dominação do Norte. Devemos reconhecer, contudo, “[...] o protagonis-
mo que os direitos humanos convencionais, eurocêntricos, assumiram,
e ainda assumem, como linguagem hegemônica de dignidade humana
[...]” (SANTOS; MARTINS, 2019, p. 8).

É preciso destacar que a posição de Santos e Martins (2019) não se


dirige contra os direitos humanos. Os autores defendem, na realidade,
a sua ampliação, levando em consideração as reivindicações de outras
comunidades humanas que possuem seu próprio entendimento do que
vem a ser a dignidade. Por exemplo, podemos mencionar as diferentes
comunidades indígenas que habitam a Bolívia. De modo democrático e
representativo, essas comunidades elegeram, nas últimas duas déca-
das, representantes e lideranças indígenas que aprovaram os Derechos
de La Madre Tierra (2010). Nesse caso, houve, na Bolívia, a implementa-
ção jurídica da defesa da proteção ambiental segundo as tradições mí-
ticas e religiosas dos povos indígenas andinos, que consideram a Mãe
Terra uma divindade, a partir da qual floresce todo o ciclo da vida, de
modo que deve ser também juridicamente respeitada.

Portanto, de modo diferente dos direitos humanos convencionais,


que acabam por reduzir “[...] o mundo ao entendimento que o Ocidente
tem dele, ignorando ou trivializando deste modo experiências culturais

Direitos humanos 33
e políticas decisivas em países do Sul global” (SANTOS; MARTINS, 2019,

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p. 53), os autores propõem pensar os direitos humanos a partir de uma
perspectiva da ecologia de dignidades pós-abissais, por isso referem-se
à superação de abismos entre diferentes culturas e às suas múltiplas
formas de conhecimento do mundo e de interpretação da realidade.
Essa concepção permite que se compreendam e se estabeleçam juri-
dicamente as concepções de dignidade humana dos diversos povos do
Sul a partir de seus contextos políticos, culturais e econômicos especí-
ficos. Esse argumento justifica o nome da obra de Santos e Martins: O
pluriverso dos direitos humanos, ou seja, considera-se a existência de
múltiplos universos que fundamentam, ao seu modo, o que vem a ser
a dignidade humana, antes marginalizados e silenciados pelas concep-
ções hegemônicas de direitos humanos do Norte.

Santos e Martins (2019) observam a necessidade de que outras co-


munidades humanas possam ter voz e de que suas reivindicações pela
dignidade sejam institucionalizadas e protegidas juridicamente no âm-
bito nacional e internacional. Trata-se, portanto, de uma concepção jurí-
dica vinculada às chamadas epistemologias do Sul. A intenção dos au-
tores parece ser pensar além da ideia dos direitos humanos universais,
ou seja, procurar a pluriversalidade dos direitos humanos, considerando
a heterogeneidade das comunidades humanas que habitam a Terra.

PARA SABER MAIS

Santos e Martins (2019) discutem a noção de epistemologias do Sul a


partir do que definem como pensamento pós-abissal. A epistemologia
refere-se ao conhecimento, à ciência e ao discurso. A epistemologia do
Norte se caracteriza por produzir exclusões, lacunas e a destruição das
colonizadas epistemologias do Sul. O conhecimento pós-abissal busca
construir pontes que permitam compreender, respeitar e dialogar com a
ecologia dos saberes de outros povos que alcançaram a modernidade,
reconhecendo suas lutas, saberes e ideias para o futuro.

34 Ética, cidadania e sustentabilidade


Vimos até aqui como a busca por uma definição jurídica ou um
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conceito mais preciso do que vêm a ser os direitos humanos ilustra a


dificuldade de se determinar o que é universalmente a dignidade hu-
mana. Hannah Arendt foi precursora dessa modalidade de abordagem
crítica à concepção universal, abstrata e imaginária de direitos huma-
nos construída pelos próprios europeus. No final da década de 1940,
a filósofa, na obra As origens do totalitarismo (ARENDT, 1989), prefere
observar os direitos humanos não como um conceito definido ou defini-
tivo, mas como um movimento, isto é, um processo de construção em
permanente transformação e que se modifica conforme lutas políticas
específicas.

Norberto Bobbio, no final do século XX, publica a obra A era dos di-
reitos (BOBBIO, 1992), em que corrobora as interpretações de Hannah
Arendt. Ambos compartilham as críticas às contradições de se buscar
uma concepção universal de direitos humanos. Concordam com o fato
de que os direitos humanos não envolvem um conceito claramente de-
limitado, devendo ser compreendido por meio dos contextos históricos,
políticos e culturais de cada época.

Enquanto reivindicação moral, os direitos humanos nascem quan-


do devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, não nas-
cem todos de uma vez, e nem de uma vez por todas. Para Hannah
Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um constructo,
uma invenção humana, em constante processo de construção e
reconstrução. Considerando a historicidade desses direitos, pode-
-se afirmar que a definição de direitos humanos aponta para uma
pluralidade de significados. Entre estes, destaca-se a chamada
concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida com
a Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Di-
reitos Humanos de Viena, de 1993. (PIOVESAN, 2004, p. 21)

Sob essa perspectiva, devemos compreender as construções con-


ceituais e os contextos históricos que modelaram, ao longo dos últi-
mos três séculos, as discussões em torno do que hoje conhecemos

Direitos humanos 35
como direitos humanos. Geralmente, procura-se estabelecer a relação

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entre os direitos humanos com a corrente da filosofia política conhe-
cida como jusnaturalismo e desenvolvida entre os séculos XVII e XVIII
na França e Inglaterra, principalmente. Tais concepções jusnaturalistas
contribuíram para a construção do conceito de dignidade humana ela-
borado por Kant no final do século XVIII e que influenciou a Declaração
da ONU no século XX. O jusnaturalismo está relacionado àqueles que
designamos direitos naturais e ao contratualismo. Thomas Hobbes
(1588-1679), John Locke (1632-1704), Spinoza (1632-1677) e Rousseau
(1712-1778) são os principais pensadores contratualistas.

O ponto de partida da teoria jusnaturalista é a distinção entre direito


e lei. A origem dos direitos é a natureza, por isso, falamos de direitos
naturais. Direitos são elementos presentes e arraigados universalmente
aos indivíduos, à sua natureza, a exemplo da liberdade, da igualdade, do
desejo de segurança ou do direito à vida, ao pensamento. Os direitos
estão presentes no estado de natureza, portanto, não têm origem na so-
ciedade ou nas convenções humanas. Por serem naturais, não podem
ser usurpados ou infringidos. As leis, segundo esta mesma perspectiva
filosófica, dizem respeito às convenções artificiais, ou seja, são criadas
pelos indivíduos com o intuito de produzir a sociabilidade, a segurança
e a paz. As leis existem no estado civil ou sociedade civil, isto é, a par-
tir da existência de um Estado que regulamenta a vida social humana.
Portanto, o direito é natural; a lei é humana.

PARA SABER MAIS

Direitos naturais (ou jusnaturalismo) têm origem na natureza, e não na


sociedade, sendo anteriores a ela. Por serem anteriores e independen-
tes do surgimento da sociedade, do Estado ou de qualquer organização
social, são tidos como inalienáveis e irrevogáveis.

36 Ética, cidadania e sustentabilidade


É importante destacar que o debate em torno dos direitos naturais foi
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promovido pela corrente da filosofia política denominada contratualis-


mo, fundamento teórico principal para a construção das Constituições
modernas no mundo ocidental, igualmente presente na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.

PARA SABER MAIS

O termo “contratualismo”, quando aplicado à filosofia política, indica que


o Estado, a sociedade e as instituições não são naturais, mas convenções
resultantes do engenho humano, isto é, são criados mediante o estabele-
cimento de contratos, acordos, pactos, legislações e convenções sociais,
permitindo a passagem do estado de natureza para o estado civil.

Cabe destacar também que a referência do documento da ONU de


1948 ao termo “direitos humanos” está diretamente amparada na prer-
rogativa jusnaturalista de que, por serem naturais, esses direitos são
irrevogáveis ou invioláveis por qualquer decisão humana ou por qual-
quer governo. O primeiro parágrafo do documento considera que “[...] o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento
da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ONU, 1948).

Os pensadores contratualistas apresentam muitas divergências


a respeito de como passamos do estado de natureza (sem leis, reis,
Estados, governos ou sociedade) para o estado civil, ou seja, de como
exatamente deu-se o pacto, a convenção ou o contrato que permitiu à
humanidade passar a viver em sociedade e sob a égide de um governo
e um Estado. No capítulo 4, veremos essa discussão em detalhes, quan-
do estudarmos o tema da cidadania e a influência dos autores contratu-
alistas no entendimento das leis e dos deveres de um indivíduo perante
a sociedade da qual faz parte. Agora demonstraremos os vínculos entre

Direitos humanos 37
os chamados direitos naturais elaborados pelos filósofos jusnaturalis-

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tas e os direitos humanos presentes na Declaração da ONU.

Hobbes, na obra O Leviatã, por exemplo, afirma que o direito natural


que deve se manter permanentemente inviolável é o direito à vida e à
segurança pessoal. O 3o artigo da Declaração da ONU faz, assim, alu-
são a Hobbes ao afirmar: “Artigo 3o Todo indivíduo tem direito à vida,
à liberdade e à segurança pessoal” (ONU, 1948). Hobbes não incluía a
liberdade como um direito natural a ser protegido no estado civil por
considerá-la um ato deliberado de poder realizar qualquer coisa, como
matar ou usurpar objetos de outros indivíduos. Hobbes afirma que o
direito natural à liberdade deve ser limitado pelo Estado e, portanto, ape-
nas o direito natural à vida e à segurança pessoal devem ser mantidos.

Locke (em Dois tratados sobre os governos civis) e Rousseau (em


Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os ho-
mens) defenderão como direitos naturais (e com otimismo) a liberdade
e a igualdade, afirmando que esses direitos devem ser preservados no
estado civil. Os autores consideram que todos os seres humanos nas-
cem livres e iguais.1 Além do artigo 3o da Declaração, há outros que
fazem referência à concepção de liberdade, além da igualdade, como
direito natural e, portanto, direito humano:

Artigo 2o Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as


liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção al-
guma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de reli-
gião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de
fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. [...]

1 No pensamento de Locke há uma grave contradição. Ao mesmo tempo que ele considera que todos os
indivíduos nascem livres e iguais, nunca se opôs à escravidão nas colônias. Esse aspecto reforça a crítica de
Arendt (1989) e Santos e Martins (2019) a respeito dos problemas que surgem quando se busca estabelecer
os direitos universais e os princípios do que se entende como dignidade humana também de um ponto de
vista universal.

38 Ética, cidadania e sustentabilidade


Artigo 7o Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito
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a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra


qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra
qualquer incitamento a tal discriminação.

[...]

Artigo 10o Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a


sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal
independente e imparcial que decida dos seus direitos e obriga-
ções ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que
contra ela seja deduzida.

[...]

Artigo 18o Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de


consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar
de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar
a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público
como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
(ONU, 1948, grifos nossos)

Rousseau rivalizava com o pensamento de Hobbes e Locke. Para


Hobbes, o estado de natureza é negativo, pois é uma condição de guerra
de todos contra todos. Nesse estado, gozando de liberdade (a possibili-
dade de tudo poder fazer, mesmo de usar a violência deliberadamente)
– a qual deve ser limitada no estado civil pelo Estado, em nome do direito
à vida ou à segurança –, os indivíduos se caracterizariam pela expressão
“o homem é lobo do próprio homem”. Enquanto em Hobbes o estado de
natureza é negativo, em Rousseau é considerado um estágio positivo
da história da humanidade. Positivo porque Rousseau concebe o bom
selvagem, que se revela na máxima “o homem nasce bom, a sociedade
o corrompe”, uma formulação que é a antítese da concepção de Hobbes.

Para Rousseau, os indivíduos nascem livres, iguais e vivem felizes


no estado de natureza. Ao refletir sobre o que retirou os seres humanos

Direitos humanos 39
do estado de natureza em direção ao estado civil, visto por Rousseau

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como um processo de decadência, o filósofo dirá que foi a invenção da
propriedade privada, inaugurando as desigualdades entre os indivíduos,
entre ricos e pobres. No entanto, antes, e pensando de forma diferente
de Rousseau, Locke considera a propriedade privada um direito natural,
ao lado da igualdade e da liberdade. Se para Rousseau a propriedade
privada é a origem da desigualdade, em Locke ela será um direito fun-
damental, anterior ao surgimento do Estado, das leis e da sociedade. Na
visão de Locke, a propriedade privada deve ser mantida e protegida pelo
Estado quando ocorre a passagem do estado de natureza para o estado
civil. A Declaração da ONU de 1948, em seu artigo 17, revela a concep-
ção de Locke sobre a propriedade privada: “Toda a pessoa, individual ou
coletiva, tem direito à propriedade [...] Ninguém pode ser arbitrariamente
privado da sua propriedade” (ONU, 1948).

PARA SABER MAIS

Locke é o pai do liberalismo político. Compreende que o direito natural à


liberdade está presente na liberdade de expressão (política e religiosa)
e na autoridade que cada indivíduo tem sobre seu corpo (propriedade
privada). O liberalismo impõe limites à atuação do Estado contra as li-
berdades individuais e a propriedade por considerá-las direitos naturais.
Dessa forma, constituem direitos invioláveis.

Spinoza (em Ética e tratado teológico-político) observa a existência


de continuidade entre o estado de natureza e o estado civil. No estado
de natureza predomina a noção de conatus, conceito que permite identi-
ficar que os indivíduos promovem naturalmente interações, encontros e
conflitos baseados em relações de afetos, portanto, empatia e aversão.
Por natureza, potencialmente os sujeitos são impelidos a viver segundo
esses encontros. Deve-se perceber aqui que surge com Spinoza uma
concepção na qual o conatus confunde-se com a democracia, sendo
esta última um tipo específico de direito natural. Com o aumento do

40 Ética, cidadania e sustentabilidade


número de indivíduos interagindo entre si e formando-se cada vez mais
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as multidões (potentia multitudo – potência da multidão), exige-se a ela-


boração de um contrato que garanta a liberdade inerente ao conatus.
Contratos ou pactos sociais (passagem para o estado civil) devem es-
tabelecer regimes democráticos para estarem de acordo com a nature-
za. Portanto, a democracia equivaleria a um direito natural, e qualquer
regime que não seja democrático será contrário a ele, ou seja, opressor
ao direito natural.

Rousseau, por sua vez, na obra O contrato social, afirma como di-
reitos naturais a liberdade e a igualdade. Eles somente seriam manti-
dos verdadeiramente no estado civil por meio do que designou como
vontade geral. Rousseau dirá que o direito natural apenas se exerce no
estado civil quando o povo está reunido em assembleia, de modo que
este deve constituir o poder soberano. O corpo político soberano deve
realizar as deliberações, assumir a forma de Estado, fazendo com que
o povo cumpra o que ele mesmo estabeleceu. No século XVIII, e pela
primeira vez na história do pensamento político, se estabelece a ideia de
que um governo apenas é legítimo quando o povo exerce sua vontade
geral, por isso, quando se torna ao mesmo tempo soberano e súdito, de
forma que o Estado deve ser reflexo da vontade popular, permitindo que
o povo ao mesmo tempo referende as leis e se submeta a elas.

As concepções de Spinoza e Rousseau se fazem presentes na


Declaração Universal dos Direitos Humanos por meio do conceito de
vontade do povo e também com a noção explicitada pela ONU segundo
a qual os governos são e se tornam legítimos quando suas respectivas
sociedades referendam a existência e a manutenção de seus governos
e modelos políticos. No artigo 21o do documento, lê-se: “[...] A vontade
do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve
exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por
sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equi-
valente que salvaguarde a liberdade de voto” (ONU, 1948).

Direitos humanos 41
Estes aspectos presentes nos pensadores contratualistas funda-

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mentam o que hoje designamos como Estado democrático de direito,
responsável pela preservação dos direitos fundamentais que garantem
a dignidade humana. Além disso, a Declaração da ONU entende como
direitos fundamentais o acesso à educação, saúde, moradia e informa-
ção. Todas as nações signatárias do documento se comprometeram a
proteger os direitos humanos no âmbito nacional e internacional.

IMPORTANTE

Para ler a íntegra da Declaração Universal dos Direitos Humanos da


ONU, busque por “Universal Declaration of Human Rights”.

2 Afirmação histórica dos direitos humanos


O século XVIII, chamado de Século das Luzes devido ao movimento
filosófico iluminista e à Revolução Francesa, pode ser considerado um
momento crucial na história da humanidade, em que os direitos civis e
políticos – baseados na concepção de direitos naturais – foram disse-
minados pela burguesia revolucionária, de forma que perante a lei todos
os indivíduos teriam adquirido os mesmos direitos, levando ao fim os
privilégios do clero e da nobreza feudais. Após a Revolução Gloriosa
(1688) na Inglaterra, que permitiu a ascensão da burguesia ao poder
por meio do fortalecimento do parlamento e da redução dos poderes
monárquicos, a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa
(1789) foram responsáveis por instituir o que no período eram conside-
rados os direitos fundamentais. Estas últimas incorporam os princípios
contratualistas e liberais, formalizando os direitos naturais nas suas le-
gislações. A independência norte-americana consolidou a Constituição
(a Declaração de Direitos, de 1787), que entrou em vigor em 1791 e li-
mitou o poder do governo federal, sendo o seu papel garantir e proteger

42 Ética, cidadania e sustentabilidade


direitos como igualdade jurídica, liberdades políticas, propriedade e pro-
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teção à privacidade de todos os seus cidadãos. Na França, a revolução


deu origem à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que
definiu como universais os direitos individuais inspirados na geração de
pensadores contratualistas.

IMPORTANTE

Você pode ler na íntegra a Declaração Universal dos Direitos Humanos


na internet. O documento está disponível no site da ONU.

No entanto, nesse período a igualdade jurídica não significou igualda-


de econômica ou social, muito menos direitos políticos universalmente
distribuídos entre todos os indivíduos que habitam a Terra. O cientista
político Thomas Marshall (MARSHALL, 1967) afirma que apenas no sé-
culo XIX as classes operárias reivindicaram direitos à participação polí-
tica por meio de lutas armadas e revoltas, até que conseguiram formar
seus partidos e sindicados, alcançando a eleição de seus representan-
tes na esfera pública. Isso significa que a ampliação dos direitos políti-
cos representou a possibilidade de os mais pobres, ao lado da classe
trabalhadora, votarem e elegerem os seus representantes. Ainda assim,
os direitos políticos não são sinônimo de igualdade social, pois no capi-
talismo as fábricas e os interesses da burguesia promoviam a explora-
ção da força de trabalho e com ela uma série de desigualdades sociais.
As lutas operárias por direitos políticos conduziram, no final do século
XIX, às primeiras lutas feministas em nome do sufrágio universal e do
direito à representação política.

No século XX foi possível verificar uma evolução mais nítida dos


direitos. Houve a acumulação de direitos dos cidadãos: civis, políticos
e agora sociais. Mas o que eles significam? Para Marshall, trata-se do
direito à cidadania, ou seja, de acesso a escolas públicas de qualidade,
saúde, lazer, emprego, previdência, saneamento básico, elementos que

Direitos humanos 43
se somam à igualdade jurídica e liberdade política. Portanto, vivemos a

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partir do século XX (e é o que se espera do século XXI) a era da cidada-
nia, das conquistas sociais que podem levar à distribuição de renda e à
redução das desigualdades sociais.

Segundo Bobbio (1992), após o holocausto e a perseguição aos ju-


deus, ciganos, homossexuais e comunistas ocorrida durante a Segunda
Guerra Mundial (encerrada no ano de 1945), as minorias sociais passa-
ram gradualmente a adquirir direitos. A generalizada perseguição às mi-
norias promoveu a revisão e ampliação dos direitos. É o que vemos hoje
no caso de deficientes, indígenas, dos movimentos negro e feminista e
de outros grupos que nos últimos anos têm adquirido destaque por bus-
carem o reconhecimento de sua cidadania, o que ocorre de forma gradu-
al e com dificuldades, pois ainda é preciso superar uma série de precon-
ceitos presentes na sociedade. Trata-se de uma luta por respeito e pela
dignidade humana, que visa obter possibilidades de ascensão social e
econômica. A expansão do terceiro setor e da responsabilidade social e
ambiental está diretamente relacionada com a expansão dos direitos so-
ciais e humanos a partir da segunda metade do século XX, permitindo e
propondo a redução das desigualdades sociais, a criação de legislações
ambientais e o respeito à biodiversidade e às comunidades tradicionais.
A questão ambiental tornou-se uma das mais relevantes hoje, sobretudo
porque as mudanças climáticas têm produzido efeitos preocupantes so-
bre o desenvolvimento econômico e social nas últimas décadas.

3 As gerações dos direitos humanos


Na obra O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas
pela dignidade, Santos e Martins (2019) expõem a maneira como hoje
classificamos as chamadas “gerações” dos direitos humanos. Estas ge-
rações demonstram como os direitos humanos devem ser compreendi-
dos. Não devem ser tomados como um conceito estático, senão como
um movimento, ou seja, os direitos humanos estão em permanente

44 Ética, cidadania e sustentabilidade


transformação e incorporando reivindicações sociais que ganham força
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conforme pressões da sociedade, variando de acordo com problemas


vivenciados em cada época. O estudo das gerações de direitos huma-
nos permite identificar como o que se entende por dignidade humana
muda conforme os contextos históricos, as lutas políticas e as deman-
das sociais.

• A primeira geração está relacionada aos séculos XVII e XVIII,


desperta com o pensamento jusnaturalista-contratualista e com
afirmação dos direitos naturais e universais, os direitos polí-
ticos que promovem também a igualdade jurídica e liberdade.
As revoluções burguesas na Europa agiram contra os privilégios
feudais da nobreza, e a independência dos Estados Unidos foi
também inspirada no liberalismo, iluminismo e jusnaturalismo.
Introduziram sistemas políticos inéditos cujas noções jurídicas
estavam “[...] vinculadas à sua matriz liberal, individualista e oci-
dental e ao predomínio das liberdades de primeira geração (di-
reitos cívicos e políticos) [...]” (SANTOS; MARTINS, 2019, p. 17).
Portanto, “direitos humanos de primeira geração são os conside-
rados [...] políticos [...]” (SANTOS; MARTINS, 2019, p. 135). Seus
principais documentos são a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão e a Declaração de Direitos, fundamentadas nos di-
reitos às liberdades individuais e na igual­dade jurídica.

• A segunda geração dos direitos humanos é representada pela


expansão dos direitos políticos (sobretudo para a classe traba-
lhadora e para as mulheres) e criação de direitos sociais, também
conhecidos como direitos prestacionais. Tratou de expandir os di-
reitos políticos porque as revoluções foram apenas burguesas e
não necessariamente universais, na medida em que até a segun-
da metade do século XIX os trabalhadores possuíam restrições
quanto à organização de partidos políticos e sindicatos e as mu-
lheres não estavam autorizadas a votar. No século XX, após a ex-
pansão da participação política popular, houve conquistas sociais

Direitos humanos 45
com as políticas de bem-estar social, que tornam o Estado res-

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ponsável e principal ator no processo de desenvolvimento social,
por meio de políticas que envolvem educação e saúde públicas e
direitos trabalhistas, à moradia, saneamento básico e lazer.

• A terceira geração, conhecida também como a dos direitos da so-


lidariedade ou fraternidade, está contextualizada no período pos-
terior à Segunda Guerra Mundial. Após a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948) e com a passagem do século XX para o
XXI, os direitos humanos passam a ser entendidos também como
proteção das sociedades tradicionais, como os povos indígenas,
e proteção ao meio ambiente. Surgiram movimentos ambienta-
listas a partir da década de 1970 (entre eles o Greenpeace) que
passaram a denunciar os efeitos colaterais da indústria sobre o
clima do planeta, além do risco de extinção de animais. A partir
do final do século XX, a globalização e as novas tecnologias de
comunicação, como a internet, permitiram maior acesso à infor-
mação e conscientização sobre os riscos da expansão predató-
ria capitalista, responsável por promover alterações drásticas ao
meio ambiente e por subjugar populações tradicionais. Estas po-
pulações se encontram em condição vulnerável e correm o risco
de ver sua memória, conhecimentos milenares e outros aspectos
de suas culturas desaparecerem diante da presença do consumo
desenfreado e das modificações climáticas. À medida que estas
questões foram sensibilizando a opinião pública e os governos
foram sendo pressionados a tomar atitudes em defesa da expan-
são dos direitos humanos e ambientais, houve a criação de legis-
lações que incorporam as novas demandas da sociedade.

Além disso, na terceira geração estão presentes as políticas abar-


cadas pelo multiculturalismo, que são políticas promovidas por gover-
nos que visam integrar as sociedades multiculturais, alavancar novas
demandas sociais e reduzir as desigualdades sociais. O multicultura-
lismo envolve tanto sociedades que possuem povos de origens cultu-
rais distintas convivendo num mesmo território quanto sociedades que

46 Ética, cidadania e sustentabilidade


apresentam diversificação de comportamentos e reivindicações, que
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surgem por exemplo nos meios urbanos modernos, caracterizados pela


heterogeneidade. Verifica-se com isso a expansão dos movimentos
feministas e a necessidade de leis de proteção às mulheres e grupos
LGBTQIA+; da luta contra o preconceito envolvendo gêneros; de políti-
cas de promoção de cotas aos grupos considerados minoritários, como
indígenas e negros, a fim de promover inclusão, aceitação, tolerância e
combate ao racismo.

A Conferência de Direitos Humanos da ONU, que ocorreu em Viena


no ano de 1993, buscou consolidar as concepções de desenvolvimento
humano, resultando na percepção da indivisibilidade entre os direitos
humanos, civis e políticos, econômicos, sociais e culturais. A Declaração
de Viena destaca os direitos de solidariedade, paz, desenvolvimento e
os direitos ambientais.

A respeito da terceira geração de direitos humanos, Santos e Martins


(2019) utilizam os seguintes exemplos:

[...] a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o


Tribunal Interamericano de Direitos Humanos (TIDH) – tradicional-
mente centrados nos direitos de primeira geração e com incursões
apenas preliminares nos de segunda – abordaram de forma deci-
dida as disputas relativas aos direitos de terceira geração [...]; o Tri-
bunal emitiu decisões que especificam e reforçam a proteção dos
direitos territoriais e culturais indígenas, numa tendência que con-
duziu ao mais recente julgamento [...] no qual está em jogo o futuro
da Amazônia equatoriana. Nesta decisão, o Tribunal declarou que
o direito à consulta é uma parte essencial do direito internacional e,
portanto, aplicável a todos os Estados que ratificaram a Convenção
Interamericana. (SANTOS; MARTINS, 2019, p. 348)

Direitos humanos 47
O quadro a seguir apresenta um resumo das gerações de direitos

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humanos.

Quadro 1 – As gerações de direitos humanos

GERAÇÃO CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS CONQUISTAS

Declaração dos Direitos do Homem e do


1a GERAÇÃO Direitos políticos: liberdades Cidadão (1789); Declaração de Direitos
(século XVIII) individuais e igualdade jurídica (Constituição dos Estados Unidos da
América, 1787)

Sindicatos e associações de trabalhadores


2a GERAÇÃO Direitos sociais e direitos
adquirem direito ao voto; mulheres
(século XIX até a primeira prestacionais: universalização
adquirem, no Ocidente, o direito de votar e
década do século XX) dos direitos políticos
eleger representantes

Declaração Universal dos Direitos


3a GERAÇÃO Direitos da solidariedade ou Humanos; direito ambiental;
(final do século XX até hoje) fraternidade multiculturalismo (ou políticas
multiculturais)

Há ainda debates que questionam se as recentes inovações tecnoló-


gicas criariam ou não novas gerações de direitos humanos. Trata-se, por-
tanto, ainda de classificações que merecem maior discussão. O debate
ético em torno da manipulação genética, ou seja, dos limites da ciência
genética aplicada aos seres humanos e das restrições que governos e
convenções internacionais devem adotar constituiriam a quarta geração.

A validade da existência de uma quinta geração está também em


discussão e gira em torno da percepção da rápida inovação envolvendo
tecnologias de informação nos últimos anos. Elas têm exigido que dife-
rentes governos construam a implementação dos direitos virtuais. Suas
questões principais são expressas na preservação de dados pessoais e
da privacidade dos internautas; na segurança de banco de dados de em-
presas e cidadãos; na criação de documentos eletrônicos; nos controles
e nas possíveis violações de direitos individuais envolvendo aplicativos
de celular. A legislação brasileira tem sido objeto de estudo a respeito
da quinta geração. Temos como exemplo, em 2014, a criação do Marco

48 Ética, cidadania e sustentabilidade


Civil da Internet (MCI), considerado por muitos especialistas uma das
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leis mais avançadas e uma referência mundial para a manutenção de


direitos à privacidade e liberdade de expressão nas redes promovidas
por meio da internet.

O MCI tem como principais fundamentos: sigilo e inviolabilidade de


dados e registros pessoais, salvo se houver ordem judicial e o direito
de acesso à informação e liberdade de expressão. Em 2018 foram fei-
tas complementações na legislação por meio da chamada Lei Geral de
Proteção de Dados, regulamentando os dados que envolvem compras,
publicidade e serviços públicos on-line.

Considerações finais
Estudamos, neste capítulo, a noção de direitos humanos. No pri-
meiro tópico destacamos duas abordagens sobre os direitos huma-
nos. A interpretação jurídica sobre o que são os direitos humanos está
embasada no conceito kantiano de dignidade humana. A dificuldade,
conforme vimos, é dada quando buscamos determinar o que significa
exatamente a dignidade humana num sentindo universal. Essa dificul-
dade é examinada por Arendt (1989), Bobbio (1992) e Santos e Martins
(2019), o que leva estes pensadores políticos a preferirem tomar os di-
reitos humanos não como um conceito, um elemento fixo ou estático,
senão como um movimento em permanente transformação que intro-
duz novas pautas e reivindicações políticas de acordo com os proble-
mas, vivências e demandas sociais que surgem ao longo dos processos
históricos que constituem nossa civilização. Ainda no primeiro tópico,
analisamos a relação que é estabelecida entre a Declaração Universal
dos Direitos Humanos e a teoria contratualista dos séculos XVII e XVIII.
Princípios como igualdade, liberdade e propriedade privada passaram a
ser tomados como universalmente válidos e irrevogáveis, isto é, como
direitos naturais.

Direitos humanos 49
No segundo tópico verificamos a afirmação histórica dos direitos hu-

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manos e as transformações históricas dos últimos três séculos que per-
mitiram a consolidação dos direitos civis, políticos e sociais. No terceiro
tópico destacamos a classificação das gerações dos direitos humanos,
demonstrando como a concepção de dignidade humana modifica-se
segundo vivências, problemas e lutas sociais.

Referências
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

KANT, Immanuel. A fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa:


Edições 70, 2011.

MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1967.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos


Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/udhr/
documents/udhr_translations/por.pdf. Acesso em: 7 abr. 2021.

PIOVESAN, Flávia. Direitos sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos.


SUR Revista Internacional de Direitos Humanos, n. 1, p. 21-48, 2004. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/sur/a/vv3p3pQXYPv5dhH3sCLN46F/?lang=pt. Acesso
em: 7 abr. 2021.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MARTINS, Bruno Sena (org.). O pluriverso


dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 2019.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito inter-


nacional dos direitos humanos no início do século XXI. In: MEDEIROS, Antônio
Paulo Cachapuz de (org.). Desafios do direito internacional contemporâneo.
Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007. p. 207-321.

50 Ética, cidadania e sustentabilidade


Capítulo 3
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Democracria no
Brasil e grupos
minorizados

O objetivo do capítulo é discutir o conceito de democracia e sua ori-


gem. Veremos como o regime democrático foi uma elaboração origi-
nal da cidade de Atenas, isto é, nasceu entre os gregos na Antiguidade.
Verificaremos que, embora pressuponha a participação popular, a de-
mocracia, tal qual praticada pelos atenienses, possuía algumas limita-
ções, como a proibição da participação de mulheres e escravos, sendo
considerados cidadãos apenas os homens proprietários de terras. Até
alcançar sua forma mais contemporânea, a noção de democracia foi
passando por uma série de transformações, recebendo influências de
autores contratualistas, iluministas, liberais e utilitaristas, conforme ve-
remos no primeiro tópico.

51
O segundo tópico do capítulo tem a intenção de apresentar as eta-

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pas históricas de construção da democracia no Brasil. Estudaremos
que, desde o século XIX, ainda nos reinados dos imperadores D. Pedro I
e D. Pedro II, havia uma série de barreiras para a participação popular na
escolha de alguns cargos eletivos. Após a proclamação da República,
em 1889, permanecia o abismo entre representantes eleitos, represen-
tatividade, direito ao voto e participação popular. A partir da década de
1930, com Getúlio Vargas e a criação da Justiça Eleitoral, houve uma
gradual ampliação do direito ao voto, por exemplo, com o voto das mu-
lheres. Porém, limitada pela ditadura varguista, entre 1930 e 1945, a ex-
pansão da participação política no Brasil apenas ganhará força entre
1945 e 1964, quando foi liquidada pelos militares por meio de um golpe
de Estado, que reduziu e eliminou opositores políticos. Veremos que foi
com o fim da ditadura, no final da década de 1980, e a construção de
uma nova Constituição que se tornou possível a consolidação de insti-
tuições que ampliaram o direito à participação e à representatividade
dos grupos considerados minorizados e excluídos no país.

No último tópico do capítulo, procuraremos destacar as conquis-


tas políticas de minorias no Brasil, a partir da redemocratização e da
Constituição de 1988. Avaliaremos as novas demandas sociais que sur-
giram a partir de então, como a necessidade de reconhecimento dos di-
reitos de participação política das sociedades indígenas e quilombolas,
questões pela primeira vez abordadas politicamente no Brasil, os proble-
mas ambientais, além de lutas em nome do reconhecimento dos direi-
tos das mulheres, da diversidade de gênero, dos sem-teto e sem-terra.

1 Princípios da democracia
A primeira experiência democrática da história ocorreu na cidade
(pólis) de Atenas, na Grécia antiga, no século VI a. C., quando Clístenes,
tido como o pai da democracia, liderou uma rebelião popular contra o
tirano Hípias, em 510 a. C. Desde o início do século VI a. C., a sociedade

52 Ética, cidadania e sustentabilidade


ateniense vinha passando por uma série de transformações sociais, en-
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tre elas, crescimento demográfico, enriquecimento de comerciantes e


aumento de escravizados por dívidas, todos eles exigindo maior par-
ticipação política. Antecedidas por reformas elaboradas por Dracon e
Solón, que foram ampliando gradualmente a participação desses gru-
pos, as reivindicações dos atenienses tiveram seu ponto culminante
quando Clístenes consolidou a luta pelo direito de todos os cidadãos
atenienses de participação direta na democracia.

A etimologia do termo “democracia” expressa o poder do povo: de-


mos (povo) e kratos (poder ou hierarquia). A novidade política, segundo
Vernant (1981, p. 34), “marca um começo, uma verdadeira invenção”;
cria-se um princípio civilizatório cujo regime está baseado no governo
de origem popular e de decisões coletivas, e não mais fundamentado
nos caprichos pessoais de tiranos ou de oligarquias. Interesses públi-
cos e privados foram distanciados, a fim de produzir o bem coletivo e
livrar a sociedade ateniense de decisões pessoais. Além disso, o regime
de Atenas caracterizou-se por ser uma democracia direta.

Por democracia direta entende-se a participação ativa, aberta e per-


manente dos cidadãos, sem a intermediação de representantes eleitos,
como vemos hoje nas democracias modernas. Ao ter participação po-
lítica direta na ágora (espaço ou praça pública), todos os cidadãos ate-
nienses passaram a ter o direito de falar e propor publicamente leis ou
ações que seriam ou não adotadas, com base na decisão da maioria.
Para evitar riscos de ruptura com o regime e a ascensão de novos tira-
nos, Clístenes estabeleceu o chamado “ostracismo”, proibindo a parti-
cipação dos cidadãos que ameaçassem o regime, de modo que estes
deveriam permanecer no exílio por dez anos.

Embora muitos estudiosos da democracia ateniense a vejam com


nostalgia devido ao seu caráter inédito, é importante destacar que ela
é considerada limitada. As limitações do regime derivam do fato de
que apenas eram considerados cidadãos com direito à participação

Democracria no Brasil e grupos minorizados 53


democrática os homens livres, acima de 18 anos, o que incluía pobres,

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pequenos, médios e grandes proprietários e comerciantes, excluindo
assim todas as mulheres, todos os escravos (geralmente prisioneiros
de guerras) e estrangeiros até a terceira geração. Compreende-se o re-
gime democrático ateniense como limitado porque a noção de cidadão
não é universal, e sim restrita aos homens livres. Contemporâneo à de-
mocracia ateniense, o filósofo Sócrates (470-399 a.C.), apresentado na
obra A República, de Platão, se opunha à não participação das mulheres,
observava a necessidade de extinção da escravidão na cidade e pro-
punha o fim da própria democracia, devendo esta ser substituída por
uma monarquia governada por filósofos. A crítica de Sócrates e Platão à
democracia se devia à constatação de que os cidadãos aptos a partici-
par eram, na verdade, manipulados pelos chamados sofistas (PLATÃO,
1999), demagogos que dominavam a ágora com discursos eloquentes,
mas não racionais, e comoviam os demais cidadãos.

Depois da experiência ateniense na Antiguidade, o tema da demo-


cracia voltou a ser resgatado na obra do filósofo Spinoza, no século
XVII, relacionado ao direito natural. Mas foi na obra O contrato social,
de Rousseau (1712-1778), no século XVIII, que o assunto foi mais bem
enfatizado. Conforme vimos no capítulo anterior, defensor dos direitos
naturais à liberdade e igualdade, Rousseau procurará restabeler esses
direitos por meio do projeto político do que designou como vontade ge-
ral. Inspirado no modelo ateniense de participação direta na democra-
cia, Rousseau foi inovador e avançou em relação à concepção grega de
democracia ao ressaltar em seu modelo de governo a universalidade da
participação política. Para isso, seria necessário o fim da escravidão e a
inclusão das mulheres no regime. A vontade geral, enquanto participa-
ção democrática direta, representaria a decisão coletiva e soberana, na
qual o próprio corpo político, ou seja, o povo, é o responsável por elabo-
rar e obedecer às leis. As decisões teriam como resultado consensos
coletivos que surgiriam a partir do debate, em que todos devem propor,
opor e ceder alguns pontos, a fim de que o interesse coletivo predomine.

54 Ética, cidadania e sustentabilidade


No entanto, Rousseau (1973) se dava conta de que seu modelo ideali-
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zado apenas seria possível em cidades com dimensões territoriais res-


tritas e com número limitado de habitantes; caso contrário, a vontade
geral não teria êxito, dissipando-se nas mãos de um grande contingente
de cidadãos.

O problema posto por Rousseau em torno da universalização da par-


ticipação política direta e dos limites populacionais e territoriais para o
sucesso de seu regime democrático influenciou o processo de cons-
trução e mesmo de concretização dos princípios democráticos na mo-
dernidade. Os pensadores norte-americanos conhecidos como federa-
listas e que contribuíram para a construção da Declaração de Direitos
(1787) e para a independência dos EUA, como Hamilton (1755-1804),
James Madison (1751-1836) e John Jay (1745-1829), se depararam
com a questão de como expandir o direito à participação política em so-
ciedades com grande extensão territorial e grande número de habitan-
tes. Além disso, outro problema encontrado pelos federalistas era como
garantir a manutenção dos direitos individuais (liberdade de expressão,
igualdade jurídica e propriedade privada) sem que houvesse o risco de
sua usurpação ou supressão por um governo de tendências tirânicas.

NA PRÁTICA

A partir do pensamento federalista e das discussões presentes na cons-


trução das democracias modernas, elabore uma reflexão considerando
as seguintes questões:

• Como organizar um sistema político democrático que permita a


ampla participação popular no regime?

• É possível conciliar o bem comum com a manutenção dos direitos


individuais?

A solução do problema encontrada pelos federalistas foi reconhecer


e promover uma série de transformações nas concepções de Rousseau,

Democracria no Brasil e grupos minorizados 55


John Locke e Montesquieu, estabelecendo a invenção do primeiro re-

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gime político da história capaz de incorporar princípios democráticos,
iluministas e liberais ao mesmo tempo. Os princípios incorporados,
que veremos a seguir, fizeram com que os federalistas consolidassem
o regime democrático republicano representativo presidencialista nos
Estados Unidos – republicano (do latim res publica, coisa pública) por-
que as instituições são públicas e não pertencentes a um único sobe-
rano ou rei.

De Rousseau reconheciam que o governo é legítimo quando ema-


na da soberania popular. Dos liberais, como John Locke (1632-1704),
percebiam a necessidade de limitar a ação do Estado contra direitos
individuais. De Montesquieu (1689-1755), herdaram o princípio de freios
e contrapesos na composição de um governo tripartite, ou seja, dividido
em três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Como vimos, Rousseau defendia a democracia direta com o seu prin-


cípio de vontade geral. Observando a impossibilidade de promover con-
sensos entre regiões distantes e um elevado número de habitantes na
nova nação, o que impedia a realização da democracia direta, os federa-
listas encontraram como solução a representação política, ou seja, a elei-
ção de políticos nos cargos representativos de presidente, deputados, se-
nadores e juízes (para estes últimos nos níveis dos condados e Estados
da federação), além da manutenção da autonomia jurídica de cada um
dos então treze Estados que compunham originalmente os EUA.

Enquanto se distanciavam de Rousseau e da democracia direta e


formulavam a democracia representativa americana, os federalistas
se aproximavam de Locke, impondo limites à ação do Estado, devendo
este defender os direitos naturais, como vimos. Locke, na Inglaterra, ins-
pirava-se na Revolução Gloriosa (1688) e na consolidação da monarquia
constitucional, regime este em que há o monarca hereditário, a Câmara
dos Nobres (perpétuo e hereditário) e a Câmara dos Comuns, constituí-
da pela burguesia eleita democraticamente. Ainda que não demonstre a

56 Ética, cidadania e sustentabilidade


predileção por um regime político específico, Locke, na obra Dois trata-
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dos do governo civil (1689), demonstra que todo governo deve se afas-
tar da tirania e necessariamente procurar defender a propriedade priva-
da, a liberdade e a igualdade (LOCKE, 2001). A monarquia constitucional
inglesa havia reduzido o poder do rei e fornecido maior poder à Câmara
dos Comuns, premissa essencial do pensamento liberal político inglês.

Montesquieu, representante do iluminismo francês e igualmente ins-


pirado na Revolução Gloriosa, estabeleceu, na obra O espírito das leis
(1748), a necessidade de divisão da soberania do Estado nos três pode-
res, a fim de garantir as liberdades individuais (MONTESQUIEU, 1996).
O poder Executivo, nessa interpretação, é o órgão responsável pela ad-
ministração do território e está concentrado nas mãos do monarca ou
regente; o poder Legislativo é responsável pela elaboração das leis e é
representado pelas câmaras de parlamentares, podendo estes ser elei-
tos ou receber o poder hereditariamente; já o poder Judiciário é uma
inovação do pensador francês, é o órgão responsável pela fiscalização
do cumprimento das leis e exercido por juízes e magistrados. A ideia é
produzir um sistema de freios e contrapesos, cujo objetivo é permitir
que um poder controle e limite o outro, de modo a proteger os indivíduos
e suas liberdades contra eventuais ameaças ou a ascensão de gover-
nos tirânicos.

Locke e Montesquieu procuram limites à ação do Estado, porém nos


falam de monarcas, ainda que com poderes reduzidos. Os federalistas
norte-americanos se depararam com sua nova nação desprovida da
tradição monárquica encontrada nas nações europeias. Além dos pro-
blemas de como expandir e universalizar a participação política, manter
as liberdades individuais e garantir o regime democrático, os federalis-
tas, pela primeira vez na história e conjugando as influências liberais,
iluministas e democráticas, elaboraram um regime representativo pre-
sidencialista, ou o chamado presidencialismo. Diferentemente de um
monarca perpétuo e hereditário, aquele que ocupa o cargo executivo é o
presidente, eleito democraticamente por todos os cidadãos – porém, na

Democracria no Brasil e grupos minorizados 57


visão dos federalistas, somente homens. O presidente tem mandato li-

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mitado a quatro anos e poderá ser deposto em caso de improbidade ou
incapacidade administrativa por meio de um processo de impedimento
do exercício do cargo conhecido como impeachment. Consolidava-se
dessa forma um regime que foi considerado amplamente democráti-
co e representativo. Na Inglaterra, a representatividade limitava-se à
Câmara dos Comuns. A nova nação dava aos EUA as novidades da elei-
ção do presidente para a ocupação do poder Executivo e dos senadores
e deputados para a ocupação de todos os cargos legislativos.

A democracia norte-americana ainda teria que resolver, no século


seguinte, a concessão de direitos políticos à população negra e a abo-
lição da escravidão. A Guerra Civil Americana (1861-1865) opôs os es-
tados do Norte, abolicionistas e interessados na Revolução Industrial,
e os estados do Sul, escravocratas e baseados no latifúndio. Embora
a vitória dos estados do Norte tenha extinguido a escravidão e forne-
cido direitos políticos à população negra, os estados do Sul criaram ra-
pidamente legislações que inibiam a eleição de representantes negros
e limitavam seu acesso às universidades e outros espaços públicos.
Somente na década de 1960 o movimento negro norte-americano, com
as pressões principalmente do movimento dos Panteras Negras e do
ativismo de Martin Luther King (1929-1968), conseguiu a aprovação da
Lei dos Direitos Civis (1964), que reconheceu, em todo o território nor-
te-americano, os direitos à igualdade da população negra para eleger
seus representantes. Em relação à participação das mulheres, somente
a partir do ano de 1920 o movimento sufragista consolidou nos EUA o
direito feminino de votar e eleger representantes, depois de muitos pro-
testos e lutas políticas.

No século XIX na Europa e à medida que a Revolução Industrial pro-


vocava a expansão dos centros urbanos e o aumento vertiginoso de sua
população, a democracia passou a sofrer pressões de novas demandas
sociais, entre elas as das classes trabalhadoras e da reivindicação do
direito ao voto das mulheres. Sindicatos, trabalhadores e mulheres não

58 Ética, cidadania e sustentabilidade


poderiam possuir organizações políticas e deviam se submeter à or-
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dem jurídica burguesa, que se apresentava democrática apenas entre


os membros dessa classe, não abrangendo a classe trabalhadora. As
lutas também envolviam o direito ao voto secreto, com o objetivo de
evitar pressões e repressões aos eleitores. Surgiu a necessidade de se
reconhecer o direito ao sufrágio universal, compreendido como o pleno
direito ao voto secreto e a representação de todos os cidadãos adultos,
não importando nível de alfabetização, classe, renda, sexo.

Diante desse contexto, foi desenvolvida a teoria utilitarista de John


Stuart Mill (1806-1873), que permitiu a compreensão e aplicação da
democracia representativa, levando em consideração as demandas de
novos grupos sociais na participação política e a expansão do direito
ao voto, representação e governabilidade. A questão que surge com
John Stuart Mill gira em torno de como é possível exercer a democra-
cia representativa e ser capaz de governar considerando a coexistência
crescente de políticos heterogêneos eleitos para o poder Legislativo,
sendo estes oriundos de diferentes segmentos da sociedade, como
movimentos feministas, sindicatos, burgueses, entre outros que pode-
riam vir a surgir a partir de novas transformações da sociedade (MILL,
1981). John Stuart Mill, no conjunto de sua obra, especialmente no li-
vro Considerações sobre o governo representativo (1861), estabeleceu
o princípio ético utilitarista aplicado à democracia representativa a par-
tir da concepção de que deve-se visar destinar o maior benefício – e,
quando necessário, o menor sofrimento – ao maior número de pessoas
possível. Trata-se de um cálculo utilitário que pode ser visualizado hoje,
por exemplo, nas políticas de alianças entre diferentes partidos para a
obtenção de maioria num determinado parlamento. A finalidade moral
deve ser a de produzir o maior bem ao maior número possível de in-
divíduos, evitando (mas não abolindo) a existência de prejuízos a um
menor número de insatisfeitos. Nesse caso, é possível dizer que o in-
teresse da maioria deve ser estabelecido, ainda que produza algum pe-
queno malefício ou descontentamento para uma minoria. Nos regimes

Democracria no Brasil e grupos minorizados 59


parlamentaristas, como o britânico, o utilitarismo contribuiu para trazer

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proporcionalidade (número de cadeiras no parlamento) aos partidos e
atender a demandas da sociedade, obrigando os próprios partidos a
consolidarem e desfazerem alianças, com a finalidade de zelar pelo in-
teresse da maioria.

Com o utilitarismo, a democracia representativa passou a ser mode-


lada no sentido de incorporar as atuais e futuras demandas da socie-
dade. Tal princípio contribuiu para que diferentes interesses políticos e
sociais adquirissem voz nos diferentes parlamentos eleitos no mundo,
promovendo a conquista de direitos sociais no século XX.

PARA SABER MAIS

Parlamentarismo é um sistema de governo democrático indireto, em que


o poder Executivo (o primeiro-ministro) é eleito pelo parlamento ou con-
gresso, sendo este último eleito de forma direta pelos cidadãos. Portan-
to, o regime parlamentarista tem sua legitimidade no poder Legislativo.

Na década de 1970, o cientista político norte-americano Robert Dahl


desenvolveu o conceito e a obra Poliarquia (1972) para compreender
as diferenças de composição das democracias contemporâneas. Como
vimos, na Inglaterra opera uma monarquia constitucional com represen-
tantes eleitos para o Legislativo, incluindo um primeiro-ministro eleito
indiretamente pelo parlamento; já os EUA e o Brasil possuem cargos
eletivos para os poderes Executivo e Legislativo. Há ainda uma porção
de variações de composição de regimes democráticos. Na Alemanha e
na França, por exemplo, há presidente e primeiro-ministro. Diante de to-
das essas variações, Dahl procurou mensurar, entre os diferentes países
com regimes democráticos, os níveis de defesa dos direitos individuais
e de suas próprias instituições democráticas, usando para isso o con-
ceito de poliarquia, que deve ser compreendido a partir do estabeleci-
mento, em maior ou menor grau, dos seguintes aspectos:

60 Ética, cidadania e sustentabilidade


1) Liberdade de formar e aderir a organizações. 2) Liberdade de
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expressão. 3) Direito de voto. 4) Elegibilidade para cargos públicos.


5) Direito de líderes políticos disputarem apoio e votos. 6) Fontes
alternativas de informação. 7) Eleições livres e idôneas. 8) Institui-
ções para fazer com que as políticas governamentais dependam
de eleições e de outras manifestações de preferências. (DAHL,
1997, p. 27)

Muitas vezes nos perguntamos por quais motivos nações de diferen-


tes países organizam as suas respectivas democracias de formas tão
variadas. Devemos compreender que as sociedades possuem ritmos e
fatos históricos distintos, que acabam por promover diferentes mode-
los de constituições democráticas.

A partir do final do século XX, a intensificação da globalização, das


novas tecnologias de informação, do uso de computadores e celula-
res com acesso à internet, levou autores como Manuel Castells (1942-
), no livro A sociedade em rede (1996), e Boaventura de Sousa Santos
(1940-), em Reinventar a democracia (1998), a destacarem que essas
ferramentas permitirão cada vez mais o aprimoramento de direitos e
conquistas democráticas no século XXI, além de possibilitarem a reali-
zação de utopias políticas por meio do seu uso. As últimas décadas têm
demonstrado a incorporação de recursos comunicacionais inovadores
às lutas políticas, como as redes sociais. Elas permitiram a proliferação
de bandeiras sociais, dando voz a grupos antes silenciados ou margi-
nalizados, como negros, mulheres, povos tradicionais, movimentos am-
bientalistas, pessoas com necessidades especiais, idosos, LGBTQIA+,
entre outros. Porém, essas conquistas são ameaçadas por notícias fal-
sas, as chamadas fake news, que são disseminadas por meio dessas
mesmas redes sociais, consolidando o que se conhece como guerra
de narrativas nas redes sociais, opondo progressistas e conservadores.
Essas falsas notícias têm facilitado o negacionismo histórico e científi-
co, deslegitimando as demandas políticas desses grupos e fortalecen-
do discursos preconceituosos e a ascensão de governos autoritários.

Democracria no Brasil e grupos minorizados 61


PARA SABER MAIS

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No ano de 2016, o Dicionário Oxford de Filosofia incluiu o termo “pós-ver-
dade” em seus verbetes: “Post-truth (pós-verdade): relativo ou referente
a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na
opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”. A noção de
pós-verdade diz respeito ao processo de deslegitimação das ciências,
de certezas racionais em nome de opiniões falsas, passionais e gera-
doras de fake news.

2 Marcos históricos que contribuíram para a


construção da democracia no Brasil
No Brasil, nem sempre o sistema eleitoral esteve acompanhado por
regimes democráticos. Em 1822, com a independência em relação à
metrópole portuguesa, constitui-se um novo império, cujo líder foi D.
Pedro I, que em 1824 outorgou a primeira Constituição. Apesar de o
monarca ter cargo hereditário e vitalício, permitia a eleição para o poder
Legislativo. No entanto, o voto era censitário, pois levava em considera-
ção a renda, sobretudo oriunda da terra, excluindo assim praticamente
todos os habitantes do Brasil, a não ser uma pequena elite. Além dis-
so, estavam aptos a votar os cidadãos do sexo masculino acima de 25
anos. A regra da idade mínima não era aplicada no caso de indivíduos
casados, membros da Igreja, militares e bacharéis. Os analfabetos tam-
bém poderiam votar e ser eleitos. Ainda, a Constituição concedia ao im-
perador o direito de exercer o poder Moderador, além do Executivo. Na
prática, havia um sistema liberal apenas aparente baseado na divisão
dos três poderes, a qual acabava por se desfazer quando o imperador,
no exercício do poder Moderador (o quarto poder, uma inovação genui-
namente do Brasil), concedia a si mesmo o direito de dissolver seu gabi-
nete. O imperador poderia também dissolver os poderes parlamentares
quando se visse ameaçado ou quando estes praticassem com excesso

62 Ética, cidadania e sustentabilidade


o direito à oposição ao chefe de Estado. Tratava-se de um misto de insti-
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tuições políticas incorporadas do liberalismo com a manutenção do ab-


solutismo monárquico. É importante destacar que os jornais impressos
da época possuíam ampla margem para a liberdade de expressão, mui-
tas vezes tecendo críticas e comentários jocosos contra o imperador.

Com a proclamação da República, em 1889, e o fim da monarquia no


Brasil, a segunda Constituição (primeira republicana) foi aprovada em
1891. Afirmava o sistema presidencialista, além do federalismo; conce-
dia autonomia legislativa e policial aos Estados e municípios, fortalecen-
do o poder local de proprietários de terras, os coronéis, e das oligarquias,
ao passo que enfraquecia o poder da União. Inspirada na Constituição
dos EUA e no seu federalismo, a Constituição de 1891 garantia a sepa-
ração dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), os princípios
de defesa das liberdades individuais, como as liberdades de expressão,
religião, reunião e associação política; a propriedade privada; e o direi-
to ao habeas corpus. Permitiu também o Estado laico (separação entre
Estado e Igreja) e estabeleceu eleições à presidência e a cargos legislati-
vos de forma democrática a cada quatro anos, pondo fim ao voto censi-
tário. No entanto, estavam aptos a votar apenas os homens, e não havia
garantias de voto secreto, cujo efeito negativo era o voto de cabresto,
sujeito à compra e a repressões violentas dos opositores.

Além das mulheres, estavam impedidos de votar os analfabetos


(a maioria da população brasileira do período), soldados, miseráveis e
membros de ordens religiosas. Com essas restrições, as eleições se
restringiam a uma pequena elite que perpetuava o poder político oli-
gárquico. Na obra Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que
não foi, José Murilo de Carvalho aponta que, com essas medidas, a
quantidade de eleitores foi reduzida se comparada ao período monár-
quico (CARVALHO, 1987). Durante o Império, aproximadamente 10%
dos cidadãos estavam aptos a votar para os cargos legislativos. Com a
Constituição republicana, o autor calcula que, na primeira eleição presi-
dencial, em 1894, apenas cerca de 1,3% da população tenha participado,

Democracria no Brasil e grupos minorizados 63


revelando o analfabetismo presente entre brancos e negros (estes liber-

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tos da escravidão apenas em 1888).

Após a crise de 1929 e com o crescente descontentamento com


o modelo federativo, que basicamente tornava São Paulo e Minas
Gerais os estados mais importantes, as elites oligárquicas brasileiras
dos demais estados decidiram apoiar Getúlio Vargas em um golpe de
Estado em 1930, que resultou na instituição, em 1934, da terceira das
Constituições (a segunda republicana), conhecida como Constituição
de 1934. O documento trouxe importantes inovações ao processo de-
mocrático eleitoral para os cargos legislativos, porém Getúlio Vargas se
mantinha como ditador, promovendo a censura e o controle de partidos.
Entre as inovações eleitorais, destacam-se a implementação do voto
feminino, o voto secreto e a criação da Justiça Eleitoral, com o objetivo
de investigar e punir violações aos votos secretos ou a compra deles.

Ao menos no documento, Getúlio Vargas procurou demonstrar ares


mais democráticos, pois a Constituição de 1934 concedeu maior au-
tonomia ao poder Judiciário, garantiu o direito à propriedade privada
e à liberdade individual, instituiu direitos trabalhistas e afirmou o direi-
to de expressão e associação política. Entre os direitos trabalhistas, a
Constituição de 1934 consolidou o salário mínimo, a jornada de 8 horas
diárias e a proibição do trabalho infantil. Porém, apenas abrangia os tra-
balhadores urbanos e não rurais.

Em 1937, Getúlio Vargas operou uma nova Constituição, dando ori-


gem ao período chamado Estado Novo. A quarta Constituição da história
do Brasil (terceira republicana) inovou ao estipular o direito à educação
pública, decretou o fechamento do Congresso Nacional e tornou o po-
der Judiciário submisso ao Executivo, ocupado de forma ditatorial por
Vargas. Manteve os direitos trabalhistas estabelecidos em 1934, com
exceção do direito à greve, escancarando o perfil autoritário do governo.
Ao mesmo tempo, a nova Constituição afirmava ser responsabilidade do
Estado a assistência social às famílias desamparadas. Partidos políticos

64 Ética, cidadania e sustentabilidade


foram proibidos e conduzidos à clandestinidade, eleições aos cargos pú-
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blicos foram suspensas, a censura aos meios de comunicação era recor-


rente e considerada legal. Promoveram-se ainda expurgos aos opositores
e funcionários públicos opositores.

Com o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e a expansão


dos ideais democráticos, o governo autoritário de Vargas foi compa-
rado ao poder dos ditadores nazifascistas derrotados com a guerra.
Pressionado, Vargas retira-se do poder, eleições são convocadas, com
a vitória do General Dutra, em 1945, e no ano seguinte é aprovada a
Constituição de 1946, que promoveu o retorno ao regime democrático,
garantiu a organização livre de partidos políticos e ampliou o direito ao
voto e efetivamente a quantidade de eleitores, porém manteve excluídos
ainda os analfabetos e não concedeu direitos trabalhistas aos trabalha-
dores rurais. Além disso, a Constituição de 1946 fornecia maior autono-
mia aos poderes Legislativo e Judiciário e limitou o mandato presiden-
cial a 5 anos.

Em 1954, agora democraticamente, Getúlio Vargas volta ao poder,


porém acaba se suicidando devido a pressões oligárquicas. Depois,
Juscelino Kubitschek, no poder de 1956 a 1961, foi constantemen-
te pressionado e por vezes ameaçado por tentativas de golpe; Jânio
Quadros foi eleito em 1961, porém abdicou da presidência; e seu vice,
João Goulart, foi deposto pelo golpe militar, operado pelo General Castelo
Branco no ano de 1964 e que levou ao fim o breve período democrático.

Segundo Fausto (2013), o golpe tratou rapidamente de limitar os di-


reitos individuais, com a decretação dos chamados Atos Institucionais
(AI), sendo o mais conhecido o AI-5. Os AI representam instrumentos
legais impostos pelo poder Executivo, que era exercido por um ditador
e subordinava os poderes Legislativo e Judiciário. O Ato Institucional 1
(1964) permitiu a alteração deliberada da Constituição de 1946, con-
forme os interesses dos militares. O AI-2 (1965) estabeleceu eleições
indiretas para presidente, dissolveu os partidos políticos e os reduziu

Democracria no Brasil e grupos minorizados 65


a apenas dois (MBD e Arena – na prática, ambos com congressistas

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apoiadores dos militares), além de ter aumentado o número de minis-
tros do STF, a fim de manipular decisões judiciais, e permitido que o pre-
sidente determinasse estado de sítio sem a aprovação do Congresso
Nacional. O Ato ainda autorizava os militares a demitirem opositores
funcionários públicos. O AI-3 (1966) limitou as eleições para governa-
dor, sendo estas realizadas de forma indireta por candidatos previa-
mente selecionados pelos militares. O AI-4 (1966) convocava compul-
soriamente o Congresso, selecionado a dedo, a votar a favor da nova
Constituição imposta pelos militares, conhecida como Constituição de
1967. Seu principal objetivo era incorporar os Atos Institucionais ao tex-
to constitucional, formalizando o caráter autoritário do regime ditatorial.

O AI-5 (1968) escancarou o período mais violento do século XX no


Brasil, consolidando a ditadura. Decretou o fechamento do Congresso
Nacional e a censura aos meios de comunicação e permitiu ao presi-
dente decretar estado de sítio por tempo indeterminado quando bem en-
tendesse. Proibiu o habeas corpus para presos que cometessem crimes
considerados políticos. Autorizou a sumária demissão de funcionários
públicos opositores ao governo, assim como ampliou a cassação de
mandatos de políticos que ousassem se manifestar contra o governo. O
AI-5 ainda autorizava o governo a intervir sobre os estados e municípios
e a confiscar bens privados de presos políticos e reforçava o controle
sobre todos os cidadãos, proibidos de se reunirem em aglomerações,
sobretudo para tratar de assuntos políticos. O regime militar no Brasil ca-
racterizou-se por ser ditatorial e por liquidar as instituições democráticas.

O Brasil foi afetado pelas duas crises do petróleo na década de 1970,


levando ao fim o chamado milagre econômico operado pelos militares.
A crise econômica da década de 1980 contrastava com a elevada ex-
pansão econômica industrial da década anterior, que contraditoriamen-
te acentuou as desigualdades sociais e elevou a miséria entre os bra-
sileiros. A crise levou a opinião pública e os meios de comunicação a
pressionarem o governo militar por uma transição pacífica em retorno à

66 Ética, cidadania e sustentabilidade


democracia, inaugurando o período conhecido como redemocratização.
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O presidente militar João Figueiredo, em 1979, decretou o fim dos parti-


dos Arena e MDB, autorizou a volta do multipartidarismo, aprovou a Lei
da Anistia, comprometeu-se com a abertura do regime e a transição para
a democracia. Os partidos autorizados e criados (PMDB, PT, PDT, PTB e
PDS) puderam disputar eleições em 1982 para os governos estaduais,
para o Congresso Nacional (deputados) e as assembleias estaduais.

O processo de redemocratização ocorreu de modo lento e gradual,


restabelecendo direitos individuais e a liberdade de imprensa. Com baixa
popularidade e criticados pela opinião pública, os militares procurararam
restabelecer a democracia, porém de maneira rigorosamente controla-
da, não permitindo de maneira imediata a eleição direta à presidência,
apenas de forma indireta, por meio do Congresso Nacional. Partidos po-
líticos e movimentos da sociedade civil criaram uma frente de apoio às
eleições diretas, conhecida como Diretas Já. No entanto, no ano de 1985,
Tancredo Neves (PMDB) foi eleito de maneira indireta pelo Congresso
como primeiro presidente após a ditadura militar. Morreu pouco antes de
assumir, levando ao cargo o seu vice, José Sarney, que governou o Brasil
até 1990. Coube ao Congresso Nacional, reunido na forma de Assembleia
Constituinte, redigir a nova Constituição, a fim de estabelecer um novo
contrato social, de maneira democrática, e a fim de preservar os direitos
humanos. Foi nesse contexto que surgiu a atual Constituição, conhecida
como Constituição de 1988, ou Constituição Cidadã.

Cabe destacar que o documento restabeleceu os direitos individuais


(igualdade, liberdade e propriedade), concedeu o direito à greve, proibiu
a censura e expandiu os direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais.
A nova Constituição declara a independência e a separação e o mú-
tuo controle entre os três poderes (Judiciário, Executivo e Legislativo).
Há ainda outras novidades, dadas pela afirmação da igualdade de gê-
nero, criminalização do racismo, proibição da tortura e declaração do
trabalho, da educação, moradia e saúde como direitos sociais. O docu-
mento também inclui direitos como transporte, lazer, previdência social,

Democracria no Brasil e grupos minorizados 67


assistência social, proteção à maternidade e à infância. Além disso,

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as eleições passaram a ser universais, com dois turnos a cada quatro
anos, e incluem de maneira facultativa analfabetos, sendo o direito ao
voto secreto e obrigatório dos 18 aos 70 anos.

3 Afirmação política de grupos minorizados


e movimentos sociais e formação da
democracia no Brasil
A Constituição de 1988 instituiu o Estado democrático de direito e
assegura direitos individuais. É conhecida como Constituição Cidadã
porque tem como prerrogativa a promoção da justiça social, da dignida-
de da pessoa humana e dos direitos individuais.

Neste contexto, o Estado Democrático de Direito tem como alguns


dos seus objetivos fundamentais a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, e a promoção de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri-
minação. Entretanto, os grupos sociais considerados distintos do
grupo social dominante nem sempre logram o respeito e o trata-
mento da sociedade brasileira plural e democrática, pois, apesar de
os mandamentos constitucionais consagrarem o direito das mino-
rias étnicas no Brasil, ainda são marcantes os atos de preconceito
racial e de discriminação [...]. (ALBUQUERQUE, 2013, p. 13)

O atual texto constitucional reconhece as falhas históricas dos go-


vernos brasileiros passados no que diz respeito às minorias. Isso se
deve ao fato de a elaboração da Constituição ter contado com ampla
participação popular, isto é, associações, comitês pró-participação po-
pular, plenários de ativistas e sindicatos trabalharam ao lado dos de-
putados constituintes. Sendo assim, foram incoporadas ao texto de-
mandas e reivindicações históricas da população antes apartada das
decisões políticas. Pode-se dizer que até antes da Constituição de 1988,
conforme aponta o historiador e sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de
Holanda, em Raízes do Brasil (1936), “a democracia no Brasil sempre

68 Ética, cidadania e sustentabilidade


foi um grande mal-entendido” (HOLANDA, 1995, p. 160). Isso porque as
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demais Constituições excluíam de fato o direito universal ao voto, além


de limitarem o espaço de atuação dos segmentos não pertencentes às
elites econômicas e políticas. A Constituição de 1988 abriu um gran-
de campo de diálogo com grupos antes marginalizados da sociedade,
como sociedades tradicionais, a população indígena e negra, sobretudo
comunidades quilombolas. Inseriu pela primeira vez a necessidade de
proteção ao meio ambiente e às comunidades que vivem em função de
habitats naturais. Além disso, procurou expandir os direitos das mulhe-
res na sociedade. A Constituição abre margem também para que gru-
pos desprovidos de moradia, como os sem-teto e os sem-terra, adqui-
ram direitos, conforme veremos adiante.

Por minorias entendem-se os segmentos sociais que são subjugados


pelos detentores de privilégios políticos, econômicos e sociais. As mino-
rias representam a ausência, limitação ou restrição de direitos políticos e
sociais por conta de seu gênero, origem étnica ou condição social.

Reconhecendo as graves consequências de mais de três sécu-


los de escravidão da população negra, o Estado brasileiro, a partir da
Constituição de 1988, observa a necessidade de promoção de políticas
de redução de desigualdades sociais. Em 2010, no governo de Lula, ins-
titui-se o Estatuto da Igualdade Racial, que visa efetivar para a popula-
ção negra a igualdade de oportunidades, “a defesa dos direitos étnicos
individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às de-
mais formas de intolerância étnica” (BRASIL, 2010). O documento fun-
damenta o direito à preservação das tradições e memória, a construção
de materiais didáticos para o ensino e políticas afirmativas de inclusão
do negro nas instituições brasileiras.

Quanto às populações indígenas, a Constituição concede ao Estado


o direito de legislar sobre elas com o objetivo de proteger suas culturas
tradicionais (os chamados direitos originários), os seus territórios e as
riquezas naturais neles presentes. A Constituição elimina intenções de
outros governos e interesses econômicos no processo de assimilação

Democracria no Brasil e grupos minorizados 69


dessas culturas, reconhecendo nelas a pluralidade étnica como direito

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e a possibilidade de organização civil dos indígenas. Aliada à proteção
da cultura indígena, a Carta Constitucional estabelece a necessidade de
políticas ambientais por meio do artigo 23 – “proteger o meio ambiente
e combater a poluição em qualquer de suas formas” (BRASIL, 1988) –,
fortalecendo a permanente construção da legislação ambiental brasilei-
ra contra os crimes contra a flora e fauna nativas.

A Constituição de 1988 fornece também respaldo à consolidação da


universalização do direito à educação, que veio a ser referendada por
meio da Lei de Cotas, criada em 2012, que decreta a obrigatoriedade
de reserva de 50% das vagas nas instituições federais para estudantes
de escolas públicas. Reconhece ainda a igualdade de gêneros, abrindo
caminho para a ampliação da participação das mulheres e de outros
gêneros nos processos decisórios e cargos profissionais, e promove a
defesa contra assédio e violência física, culminando na aprovação, em
2018, do Estatuto da Igualdade Sexual e de Gênero.

Esta Lei dispõe sobre o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero


e visa a promover a inclusão de todos, combater e criminalizar a
discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade
de gênero, de modo a garantir a efetivação da igualdade de opor-
tunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos das
minorias sexuais e de gênero. (BRASIL, 2018)

Na Constituição, o direito à propriedade privada é um direito funda-


mental, porém consta no documento a necessidade de a propriedade
cumprir uma função social, o que significa dizer que ela deve ser utili-
zada para moradia ou trabalho. Considerando esse fato e ainda que a
moradia é um direito social nesse mesmo documento, possibilitou-se a
consolidação de movimentos sociais como os sem-teto e sem-terra, que
reivindicam o direito à dignidade humana. Desde a redemocratização, a
reforma agrária tornou-se juridicamente possível e um assunto cons-
tante nos meios de comunicação, pois quando os donos de proprieda-
des e de terras não cumprem suas funções sociais e devem impostos

70 Ética, cidadania e sustentabilidade


ao governo, encontram-se numa condição inconstitucional, de modo
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que suas propriedades podem ser direcionadas aos menos favorecidos


mediante pagamento de indenizações aos antigos proprietários.

Considerações finais
Vimos neste capítulo o processo de construção dos princípios da
democracia na cultura ocidental, a partir de concepções filosóficas e
aplicações históricas, como o desenvolvimento da democracia repre-
sentativa na Europa e nos Estados Unidos. No segundo tópico, inves-
tigamos o processo de construção do direito ao voto e as instâncias
democráticas no Brasil. Apesar das dificuldades de universalização dos
direitos políticos, desde a independência, em 1822, até hoje, vimos, no
terceiro tópico, como a atual Constituição (1988) permitiu a criação de
instrumentos jurídicos para a inclusão de minorias na sociedade brasi-
leira. Trata-se ainda de um longo processo a ser construído e percorrido,
exigindo também a consolidação de instâncias de democracia partici-
pativa, em que as demandas populares e dos diferentes segmentos so-
ciais possam ser ouvidas e propostas de transformação da sociedade
possam ser debatidas.

Nos últimos anos, as redes sociais e a internet têm contribuído bas-


tante para o processo de publicização de reivindicações sociais e con-
quistas de direitos por grupos sociais antes marginalizados. No entanto,
devemos ficar atentos, pois as instâncias democráticas podem se tornar
frágeis diante de ameaças autoritárias que têm se proliferado a partir das
próprias redes sociais, criando instabilidade institucional. Donald Trump,
por exemplo, liderou, no início de 2021, um comício em que seus admi-
radores seguiram armados até o congresso americano para tomá-lo e
derrubá-lo, a fim de manter seu líder na presidência, mesmo derrotado
nas urnas. Cabe defender a democracia e o direito de todos à dignidade
humana contra tendências autoritárias que têm se difundido no mundo.

Democracria no Brasil e grupos minorizados 71


Referências

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72 Ética, cidadania e sustentabilidade


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Democracria no Brasil e grupos minorizados 73


Capítulo 4
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Cidadania: bases
históricas e
princípios

O presente capítulo tem como objetivo destacar a concepção de ci-


dadania, tomando por base a noção de que se trata de um conceito em
permanente transformação, acompanhando processos históricos e de-
mandas sociais específicas de cada época. Por isso, veremos como se
dava a construção da cidadania na Antiguidade entre hebreus, atenien-
ses e romanos; depois, no Renascimento, até as elaborações modernas
e contemporâneas. Veremos que, de alguma forma, as diferentes épo-
cas contribuíram para a construção do que hoje entendemos como as
atividades e os deveres dos cidadãos.

75
No segundo tópico, destacaremos conceitos relacionados à cidada-

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nia a partir do debate sobre o que se deve entender como a sua plena
obtenção e realização. Veremos que diferentes correntes da ciência e da
filosofia política apontam que, ao longo do desenvolvimento da cultura
no Ocidente, foram sendo criadas distintas formas de aplicação da cida-
dania, havendo, por isso, a necessidade de diferenciá-las e classificá-las.

Estudaremos, no último tópico, como a noção de cidadania foi apli-


cada e compreendida no Brasil. É importante avaliar algumas das aná-
lises da ciência política brasileira das últimas décadas, que procurou
observar as limitações do conceito em nosso país, uma vez que, como
sabemos, nem todos os brasileiros acabam por usufruir da condição
de cidadão, seja pelas desigualdades sociais, seja pelo distanciamento
entre as instituições políticas e boa parte da população.

1 Bases históricas da cidadania


Quando nos perguntamos o que é cidadania, devemos ficar atentos
a dois aspectos. O primeiro deles refere-se ao fato de que a cidadania
remete à noção de cidadão, definida pela relação entre indivíduos per-
tencentes a uma mesma comunidade, que se torna política, conforme
aponta Strauss (2006), à medida que esses indivíduos passam a decidir
em comum, de forma planejada e a partir de organizações políticas (ou
instituições), a condução de seu destino. Os cidadãos compartilham al-
gum grau de pertencimento a uma comunidade, “cuja tarefa primordial e
mais urgente é a autopreservação e cuja tarefa mais importante é o me-
lhoramento de si” (STRAUSS, 2006, p. 17). Preservar, garantir e aperfeiço-
ar são os objetivos da comunidade política constituída por cidadãos que
compartilham entre si essas intenções. Chegamos assim a uma con-
cepção mais ampla de cidadão, independentemente do período histórico
que estejamos investigando, seja na Antiguidade, seja na modernidade.

76 Ética, cidadania e sustentabilidade


Enquanto Strauss apresenta uma concepção mais geral ou universal
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de cidadão, Pinsky (2010a), na introdução do livro História da cidadania,


nos apresenta uma concepção mais próxima do que hoje entendemos
como cidadão, a partir das transformações históricas modernas. A in-
terpretação de Pinsky trata, portanto, de uma visão com base nas con-
quistas de direitos recentes. Por isso, seguindo a sua reflexão, compre-
endemos que cidadão refere-se ao que hoje associamos a “ter direito à
vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo,
ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser
votado, ter direitos políticos” (PINSKY, 2010a, p. 9).

Porém, nem sempre, ao longo da história da cultura ocidental, os


sujeitos considerados cidadãos apresentavam essas características.
Nessa direção, é importante lembrar de Marshall (1967) em Cidadania,
classe social e status, que procurou definir a cidadania sob uma pers-
pectiva liberal moderna. Sua análise também é limitada, pois nem sem-
pre a cidadania significou a mesma coisa em outras épocas:

Para Marshall, a cidadania política na sociedade industrial moderna


ou contemporânea (nós diríamos, sociedade burguesa ou capitalis-
ta) designa a participação do Povo [...]. Tal participação concretiza-
-se, segundo Marshall, como exercício efetivo, por parte do Povo,
do direito de escolher os seus governantes [...] implica, de um lado,
a existência de um processo eleitoral autêntico, supervisionado
por instituições judiciárias independentes, que garantam a corres-
pondência entre os resultados das eleições e a vontade eleitoral
da maioria social; de outro lado, [...] supõe a presença de um Par-
lamento forte, efetivamente participante na tomada das grandes
decisões nacionais. (SAES, 2001, p. 380)

Tendo em vista que a concepção de cidadão não é a mesma em


diferentes momentos históricos, é possível agora destacar o segundo
aspecto relevante ao buscarmos a definição de cidadania. Em sua com-
preensão do que é cidadania no Renascimento, entre o século XIV e
início do XVII, Zeron (2010) afirma que “[...] o conceito de cidadania é
uma construção fundamentalmente histórica que comporta dimensões

Cidadania: bases históricas e princípios 77


simultaneamente sociais, políticas e culturais” (ZERON, 2010, p. 106),

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portanto, variando de sociedade para sociedade e de acordo com cada
período histórico. Nessa direção,

cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histó-


rico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço
[...]. Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor
do estatuto de cidadão para sua população (por exemplo, pela
maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau
de participação política de diferentes grupos (o voto da mulher, do
analfabeto). (PINSKY, 2010a, p. 9)

Diante da dificuldade de estabelecer uma concepção universal de ci-


dadania, que abarque todas as diferentes sociedades no Ocidente e em
todos os tempos, Hannah Arendt, em sua obra Origens do totalitarismo,
prefere definir cidadania como “[...] o direito a ter direitos, ou o direito de
cada indivíduo de pertencer à humanidade [...].” (ARENDT, 1989, p. 332).
Ainda que a filósofa reconheça a fragilidade dessa concepção devido à
abstração do que se entende como “humanidade”, devemos compre-
ender o significado expresso em “direito a ter direitos”. O sentido está
na possibilidade de reivindicar o reconhecimento à participação política
no processo de decidir os rumos de uma comunidade, assim como de
promover garantias que mantenham os cidadãos vivendo em paz e sob
o bem comum. Cada época promove lutas, demandas e exigências es-
pecíficas para aquisição dessa participação.

Fica evidente que a cidadania não é um conceito estático ou único,


está em permanente metamorfose, pois envolve o direito a ter e con-
quistar direitos de decisão sobre a vida coletiva. É interessante notar a
relação entre cidadania e humanidade estabelecida por Arendt. A huma-
nidade, segundo a pensadora, expressa a pluralidade humana, que deve
ser organizada na forma de comunidade política sob uma ordem jurídi-
ca. A finalidade é proteger os cidadãos portadores de direitos e deveres.
A humanidade se exerce quando se reconhece, aos diferentes cidadãos,
ou a uma parte deles, o direito de viver sob laços de pertencimento, em

78 Ética, cidadania e sustentabilidade


segurança e compartilhando decisões relevantes à vida em sociedade.
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Portanto, pertencer à humanidade atravessa a aquisição ou preserva-


ção da cidadania.

Começaremos agora a estudar as variações históricas da noção de


cidadania. Na Antiguidade, entre os hebreus, na visão de Pinsky (2010b,
p. 17), inaugura-se o que o autor designa como pré-história da cidadania,
a partir das condições específicas históricas do surgimento do monote-
ísmo ético. Baseados na crença comum no monoteísmo, elemento que
estabelece o pertencimento a uma comunidade e a identidade cultural,
os hebreus consolidaram, nos últimos três milênios, a manutenção de
valores religiosos em torno da crença de que são o povo eleito. Por volta
do ano 1010 a.C., foi fundado o reino de Israel por Saul, responsável
por unificar as doze tribos, antes relativamente autônomas e despro-
vidas de organizações políticas. Diferentes profetas hebreus, a partir
de então, passaram a atuar realizando as primeiras manifestações do
que entendemos como cidadania, estabelecendo limites ao poder do
Estado, exigindo a redução de impostos abusivos e melhorias ao povo
empobrecido.

Considera-se a primeira construção mais elaborada de cidadania a


praticada nas cidades-Estados gregas, as chamadas pólis, sobretudo
em Atenas, onde se estabeleceu a democracia no século V a.C. Surgidas
entre os séculos IX e VIII a.C., as pólis foram incorporando legislações
que visavam promover o que os gregos denominavam como dikê (jus-
tiça). A cidadania na pólis derivava de um elemento étnico, ou seja, do
fato de que eram considerados cidadãos os indivíduos nascidos nessas
cidades, que compartilhavam o mesmo idioma e a crença nos mesmos
deuses gregos. Além disso, eram considerados cidadãos apenas ho-
mens e proprietários de terras. Mulheres, estrangeiros (metecos) e es-
cravos eram destituídos da cidadania. Especificamente em Atenas, não
somente o regime democrático é tido como limitado, mas também a
concepção de cidadania, pois restringe a participação dos habitantes. A
democracia e a cidadania ateniense são limitadas porque os cidadãos

Cidadania: bases históricas e princípios 79


considerados livres gozavam do ócio, isto é, de tempo livre para legislar,

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enquanto seus escravos destinavam seus esforços unicamente ao tra-
balho braçal e as mulheres cuidavam das atividades domésticas.

[...] a Polis encarnava uma realidade política, um programa social


e religioso, que agrupava de maneira indissolúvel os homens, os
deuses e o Estado em uma religião cívica. Nesse sentido, constituía
uma entidade de natureza totalitária, na qual o pertencimento e a
participação no corpo político eram a própria essência da cidada-
nia. Da Polis surgiam todos os direitos e obrigações dos cidadãos,
sua autoridade cobria todas as esferas do comportamento huma-
no [...] como se vê na própria descrição de Aristóteles: “a Polis é o
espaço de debate e de reflexão onde os homens podem desenvol-
ver suas virtudes essenciais”. (GOBBI, 2001, p. 156)

Aristóteles (384-322 a.C.), em sua obra Política, caracterizou a liber-


dade e a igualdade como elementos essenciais da cidadania ateniense.
A liberdade pública significava governar e ser governado, de forma que
as decisões coletivas eram tomadas a partir do debate e da negocia-
ção entre os cidadãos. Caberia a eles a ocupação do espaço público.
Escravos e mulheres possuíam atividades restritas à esfera privada. A
democracia ateniense era direta, portanto, sem representantes eleitos,
o que permitia a cada cidadão participar do governo e propor leis com
validade coletiva. A igualdade era dada pelo princípio da isonomia, ex-
pressando o direito dos cidadãos de realizar pronunciamentos na ágo-
ra (praça pública). As leis também tornavam todos os cidadãos iguais,
pois deveriam obedecê-las, cabendo sanções públicas decididas demo-
craticamente em caso de infrações. Em Atenas, portanto, consolida-
ram-se de forma mais nítida os direitos do cidadão. A interação entre
esses indivíduos garantia a existência da cidadania, cujo objetivo era o
de garantir a manutenção da existência de seus direitos e aprimorar a
vida em sociedade.

Na Roma antiga, principalmente durante os períodos monárquico


(753-509 a.C.) e republicano (509-31 a.C.), a sociedade estava dividida

80 Ética, cidadania e sustentabilidade


em: a) patrícios: classe politicamente dominante e descendente dos
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fundadores dessa civilização, cujos membros eram considerados cida-


dãos e possuíam direitos políticos, civis e religiosos, podendo ocupar
postos da administração pública, sobretudo os legislativos (cônsules e
senado constituído por anciões) e militares, garantindo o confisco dos
espólios de guerra; b) plebeus: embora livres, não eram considerados
cidadãos, pois correspondiam aos descendentes de estrangeiros, tendo
como origem as colônias itálicas ou nobrezas destituídas e dominadas
pelas conquistas romanas; não eram portadores de direitos, havendo
assim desigualdades em Roma; c) escravos: correspondiam aos prisio-
neiros de guerra ou romanos plebeus endividados.

Podemos evidenciar o conflito entre patrícios e plebeus. Embora es-


tes últimos fossem livres, o direito à cidadania restringia-se apenas aos
primeiros, sendo inclusive proibido o matrimônio entre membros des-
sas duas classes. Trata-se na verdade de uma oligarquia de patrícios,
ou seja, governo de poucos que gozavam de privilégios, produzindo de-
sigualdades políticas, civis e econômicas em relação aos plebeus, cada
vez mais empobrecidos. Havia, portanto, discriminações que acabavam
por separar a sociedade romana. Não eram raras rebeliões e revoltas
dos plebeus contra os patrícios.

O rei romano Sérvio Túlio (514-510 a.C.) iniciou algumas flexibiliza-


ções e concedeu direitos civis aos plebeus, entre eles a permissão de
que ocupassem postos militares e de que fossem eleitos tribunos (re-
presentantes da plebe). Foi no período republicano que Roma fez refor-
mas civis e políticas graduais que conduziram à expansão da cidadania.
O plebeu Terentílio propôs, em 462 a.C., a afixação pública, no fórum
romano, de um código civil que permitisse à sua classe conhecer as leis
e identificar abusos dos patrícios, substituindo leis antes transmitidas
oralmente por leis escritas. Deu-se origem, assim, ao código civil roma-
no, conhecido como Lei das 12 Tábuas, instituído apenas no ano de 451
a.C. após pressões dos plebeus.

Cidadania: bases históricas e princípios 81


Compreendidas pelos historiadores como o fundamento do direito

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romano, as tábuas tratavam dos direitos públicos e religiosos, das puni-
ções por delitos, de propriedade e herança, dos deveres do poder pátrio
sobre sua família e escravos. As tábuas eliminaram a escravidão por dí-
vidas e permitiam que os tribunos eleitos representassem os interesses
da plebe contra ações que pudessem ser consideradas ruins para essa
classe. No ano de 445 a.C., foi permitido o casamento entre plebeus e
patrícios; em 367 a.C., concedeu-se aos plebeus o direito de partilhar
terras e foi permitido que fossem escolhidos como cônsules, cargos an-
tes ocupados exclusivamente pelos patrícios. Em 287 a.C., as decisões
das assembleias e dos tribunos plebeus passaram a se tornar leis, por
meio da realização de plebiscitos (designação relacionada a “plebeus”).

Para o Direito romano, direito era algo como um patrimônio que


se possuía. A partir desta forma de compreender o direito, estabe-
lecia-se então o que constituía em última instância as fontes dos
direitos do homem: “três são, pois, as coisas que temos: a liberda-
de, a cidade, a família”. A liberdade era tida como a fonte radical
dos direitos do homem; a “posse de uma família” e a “posse de
uma cidade” (a cidadania) requeriam, para cumprir a finalidade de
outorgar direitos ao homem, a [...] liberdade. (ZERON, 2010, p. 97)

No entanto, permaneciam as desigualdades sociais gritantes, princi-


palmente entre os plebeus que não tinham cargos públicos. No século
II a.C., os irmãos Graco, Tibério e Caio foram eleitos tribunos da plebe
e passaram a pressionar os patrícios em nome de reformas que pu-
dessem beneficiar os mais pobres de sua classe. Foram perseguidos e
mortos porque defendiam a reforma agrária; a distribuição de riquezas
e alimentos (ou a redução dos seus valores); a proibição do envio de me-
nores de 17 anos às guerras; o direito à reeleição dos tribunos plebeus.

A título de comparação, é importante destacar diferenças entre as


concepções de cidadania na Grécia e na Roma antigas. Uma das di-
ferenças consiste no fato de que o critério de cidadania na Grécia era
étnico, ou seja, restringia-se aos homens livres que nasciam nas pólis,

82 Ética, cidadania e sustentabilidade


e lhes eram concedidos direitos de igualdade e liberdade. Em Roma, a
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cidadania estava relacionada aos direitos civis e políticos, em boa medi-


da restritos aos patrícios e gradualmente conquistados pelos plebeus.
Outra distinção importante diz respeito à ampla participação das mu-
lheres em Roma na vida pública, enquanto as mulheres gregas estavam
relegadas à vida privada. De acordo com Funari (2010):

[...] A grande participação social das mulheres de elite [...] foi im-
portante para que as romanas alcançassem um destaque pouco
comum em sociedades mediterrâneas antigas [...] podiam assistir
aos espetáculos, às representações e aos jogos, e nunca viviam
isoladas no gineceu, como ocorria na Grécia. (FUNARI, 2010, p. 50)

A respeito da Idade Média ou do feudalismo (473 a.C. ao século XVI),


argumenta-se que houve, na Europa, a extinção do direito à cidadania,
considerando que compôs-se uma sociedade fomentada por privilé-
gios que se revelavam nos estamentos, constituídos por uma minoria
formada pelo clero e pela nobreza, e a esmagadora maioria era cons-
tituída por servos. Nas sociedades estamentárias, não há mobilidade
social, a condição social é inerte, fazendo com que não exista ascensão
social ou reivindicação de direitos, de forma que servos permanecerão
sempre servos e assim será com todos os seus descendentes. O direito
está inspirado em princípios religiosos do cristianismo. Dessa forma, as
posições sociais eram justificadas por uma decisão divina, garantindo
ao clero e à nobreza o direito à herança e a manutenção de suas pro-
priedades. Além disso, os feudos eram unidades econômicas autossufi-
cientes, o que significa dizer que tudo o que produziam era consumido,
evitando-se contatos comerciais com outros feudos. Os senhores de
terra eram responsáveis pela guerra contra invasores e a administração
econômica do feudo. Seus servos destinavam-se ao trabalho braçal, de-
vendo ao seu senhor a proteção, paga por meio de seu trabalho, da pro-
dução de alimentos e outros impostos abusivos, como a destinação da
produção ao senhor devido ao uso das ferramentas ou mesmo o impos-
to referente à morte do patriarca servo, devendo este ser substituído por

Cidadania: bases históricas e princípios 83


seus filhos. Esse modelo extinguiu também a existência de interesses

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coletivos, a liberdade ou a igualdade.

Em relação à cidadania durante o Renascimento (século XIV ao XVI),


Zeron (2010) destaca o resgate da cultura clássica, realizado sobretudo
na cidade de Florença. Houve a incorporação das tradições do direito ro-
mano. Cabe aqui enfatizar que durante o Renascimento as cidades que
hoje constituem a Itália não estavam unificadas, o que ocorreu apenas
no século XIX. Diante disso, cada cidade possuía governantes próprios
e regimes políticos independentes, que rivalizavam produzindo cons-
tantes conflitos bélicos e diplomáticos. Somam-se a esses aspectos a
influência da Igreja católica e as riquezas adquiridas pelas cidades da
Península Itálica, destacando-se Florença, devido ao comércio mercan-
tilista marítimo que abastecia a Europa no período por meio da venda de
mercadorias vindas do Oriente.

Com o comércio, surgiam as primeiras práticas burguesas, que


vieram a ser responsáveis por drásticas transformações políticas e
sociais futuras, resultando, na Inglaterra e na França, nas revoluções
burguesas entre os séculos XVII e XVIII. Zeron (2010) afirma, por isso,
que o Renascimento é um período de transição entre a Idade Média e
a Moderna. Essa transição foi expressa na própria arte e literatura de
Michelangelo, Da Vinci, Rafael, Dante Alighieri e Petrarca, estabelecendo
o princípio do homem como medida de todas as coisas. Florença dife-
renciava-se por ter adotado e se aproximado de formas republicanas de
governo, cuja inspiração era a Roma antiga. Os florentinos fomentaram
a cultura clássica por meio de seus estudos humanistas e criaram inter-
pretações políticas com valores antropocêntricos, que revelavam a va-
lorização do desenvolvimento do indivíduo. Estabeleceram o exercício
da cidadania com a ideia de que o cidadão deve possuir liberdade para
agir nas instituições do governo, sejam elas políticas ou econômicas,
com o objetivo de zelar pelo bem comum. Ainda que Florença fosse
dominada econômica e politicamente por famílias nobres, havia a per-
cepção de que o bom funcionamento das instituições da cidade depen-
dia das ações dos seus cidadãos. Entre essas instituições florentinas,

84 Ética, cidadania e sustentabilidade


destacavam-se corporações de financistas, da burocracia comercial, de
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diplomatas e juízes. Com o fomento da participação dos cidadãos nos


negócios do governo, tornou-se possível alimentar críticas ao sistema
e aos senhores feudais, assim como enaltecer o individualismo como
elemento constitutivo das decisões políticas e econômicas.

Maquiavel (1469-1527), pensador florentino, destacou-se por definir


a política como uma esfera autônoma em relação à religião ou a virtu-
des consideradas naturais na Antiguidade. Na sua visão, a política tem
dinâmica própria a partir das ações dos sujeitos. Ou seja, os cargos po-
líticos não são ocupados através de determinações naturais ou divinas,
mas a partir das decisões, disputas e ações dos indivíduos, de modo
que a política é uma arte genuinamente humana. Maquiavel, em sua
obra O príncipe, fornece um dos primeiros passos para a compreensão
do Estado moderno. A novidade do pensamento florentino está na visão
otimista da política e do exercício da cidadania, pois apenas as ações
humanas dotadas de liberdade poderão configurar novas ou desfazer
velhas configurações políticas e societárias.

As concepções renascentistas influenciaram as construções políti-


cas, econômicas e culturais da modernidade que se opuseram à ordem
religiosa e política. A burguesia expandia seus interesses comerciais na
Europa, porém a substituição dos feudos pelos Estados absolutistas
entre os séculos XV e XVII dificultava a liberdade econômica. Os reis
europeus associados à nobreza e ao clero detinham poder político e
jurídico, colocando em risco as riquezas adquiridas pelos burgueses.
Confiscos de bens, cobranças de impostos abusivas e a expulsão dos
comerciantes em diferentes territórios tornavam as atividades comer-
ciais inseguras. A burguesia encontrava-se desprovida de direitos políti-
cos e tinha direitos civis limitados, salvo quando participava dos negó-
cios mercantilistas dos Estados absolutistas. Não havia uma separação
explícita entre interesses privados ou públicos, posto que todas as ati-
vidades comerciais e instituições do governo pertenciam aos sobera-
nos e eram hereditárias. O rei francês Luís XIV (1638-1715) expressa
a concentração de poderes em suas mãos ao declarar “o Estado sou

Cidadania: bases históricas e princípios 85


eu”. Diante dessas dificuldades, a burguesia europeia inicia sucessivas

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contestações ao modelo monárquico absolutista.

A Revolução Inglesa (Revolução Gloriosa, de 1640 a 1688) foi precedi-


da pelos abusos de autoridade do rei Carlos I, com cobranças de impos-
tos em meio à grave crise econômica, além de perseguições religiosas
aos puritanos, sendo a maioria constituída de burgueses. A solução en-
contrada foi limitar os poderes do monarca e fortalecer o sistema par-
lamentarista (parlamento eleito pelo povo, a Câmara dos Comuns) por
meio da Declaração de Direitos (Bill of Rights), que, ao fim do processo
político, tornou o príncipe de Orange rei da Inglaterra, com poderes redu-
zidos. O parlamento foi fortalecido, formalizando a monarquia constitu-
cional. Sem derramamento de sangue, deu-se fim ao absolutismo. Foi
permitida a liberdade individual, a liberdade de imprensa e de expressão
e concedido aos burgueses o direito à propriedade privada e à liberdade
econômica, motivo pelo qual a Revolução Gloriosa ocorreu ao mesmo
tempo que o capitalismo se originava com a Revolução Industrial.

A Revolução Americana (1776), ou a Independência dos Estados


Unidos, produziu a separação das Treze Colônias e culminou na
Declaração de Direitos (1791), liquidando os seus vínculos de submis-
são com a metrópole, a Inglaterra. Instituiu-se o regime federalista, re-
publicano e democrático que fundamentou as liberdades políticas e
econômicas, a igualdade jurídica, a divisão dos três poderes (Legislativo,
Executivo e Judiciário) e as eleições livres, com a novidade da criação e
eleição popular para o cargo de presidente da República. Tratava-se do
regime ideal para a expansão dos interesses comerciais burgueses.

A Revolução Francesa (1789) pôs fim ao absolutismo monárquico,


levando à guilhotina o rei Luís XVI (1793), e impôs o regime republicano.
A burguesia instituiu princípios de liberdade econômica e política com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

Essas três revoluções burguesas trouxeram à tona formas modernas


de cidadania, inspiradas nos ideais contratualistas, iluministas e liberais.

86 Ética, cidadania e sustentabilidade


Esses ideais são a base dos direitos civis e políticos que fortaleciam os
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princípios em torno do individualismo – igualdade e liberdade.

Embora a burguesia afirmasse suas revoluções como universais, a


partir do século XIX tornou-se claro que as transformações ocorridas
não haviam favorecido todos os segmentos sociais, principalmente os
trabalhadores livres e as mulheres, que se encontravam sem direitos po-
líticos, ou seja, estavam impedidos de eleger representantes e promover
organizações políticas. A miséria e as contradições sociais nos grandes
centros urbanos europeus, causadas pela Revolução Industrial, promo-
veram lutas pela ampliação da cidadania, que estiveram associadas à
conquista do sufrágio universal e dos chamados direitos sociais.

No final do século XX, tornou-se pública a luta por direitos com as


novas tecnologias de informação, como a internet, promovendo novas
concepções de cidadania, envolvendo, por exemplo, uma maior cons-
cientização a respeito dos problemas ambientais. Surgiram também
reivindicações em torno da diversidade cultural e do multiculturalismo,
evidenciando o direito à diferença e a necessidade de se promoverem
políticas de inclusão social e aquisição de direitos civis e políticos das po-
pulações negra, LGBTQIA+, deficientes, indígenas, entre outros grupos.

Como vimos, é difícil conceber uma única definição de cidadania


quando nos deparamos com os estudos das transformações históricas
e sociais. Há, sim, inúmeras concepções de cidadania. Já menciona-
mos que Hannah Arendt prefere definir a cidadania como o direito a ter
direitos, ou seja, a possibilidade de elaborar novas demandas sociais
que passam por conquistas de direitos pelos cidadãos. A filósofa alemã
relaciona a ação política ao imprevisível, à capacidade de construir solu-
ções novas, surpreendentes e que revelam a necessidade de aprimorar
a condição humana em relação à sociedade.

Cidadania: bases históricas e princípios 87


2 Concepções de cidadania

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Filósofos e cientistas políticos procuram classificar e conceituar as
diferentes formas de construção da cidadania estabelecidas ao longo da
história no Ocidente. Nesse âmbito, destaca-se o pensador franco-suíço
Benjamin Constant (1767-1830), que procurou estabelecer as diferenças
entre a cidadania dos antigos e modernos. No ensaio “A liberdade dos
antigos comparada à dos modernos” (1985), Constant define a liberda-
de dos antigos, presente sobretudo em Atenas, com base na noção de
que ser livre, ou seja, exercer a cidadania, estava relacionado ao exercí-
cio ativo da participação política. A liberdade representava a ação políti-
ca, coletiva e pública, por meio da qual o cidadão deveria participar e a
cujas decisões deveria se submeter, sem exceção, inexistindo por isso a
liberdade individual. Assim, não era possível se opor à religião e às deci-
sões políticas da cidade, como a guerra ou a paz, tampouco era possível
promover a liberdade de expressão. Sócrates, por exemplo, foi punido
e morto em 399 a.C. por decisão democrática dos atenienses, pois se
opunha ao regime democrático, às tradições e às crenças ali presentes.

Já a liberdade dos modernos diferencia-se da antiga porque um dos


seus pressupostos diz respeito à proteção das liberdades individuais.
Nesse caso, a cidadania é entendida como direito de não se submeter
à opinião alheia e pública, muito menos a uma religião específica ou
à violação da privacidade. Na modernidade, o indivíduo deve obedecer
apenas às leis, enquanto a propriedade privada, o direito de ir e vir ou
mesmo de discordar dos demais e opinar de forma deliberada acabam
sendo preservados e garantidos pelos Estados. Portanto, na visão de
Constant (1985), a liberdade dos antigos é apenas coletiva e a liberdade
dos modernos é individual.

O filósofo letão Isaiah Berlin (1909-1977), na obra Quatro ensaios


sobre a liberdade (1981), toma por base as definições de Benjamin
Constant e emprega uma nova terminologia para diferenciar a liberdade

88 Ética, cidadania e sustentabilidade


antiga e moderna. A liberdade positiva, atribuída aos antigos, expressa
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uma forma de cidadania na qual a liberdade é apenas política, reduzin-


do-se a liberdade individual, mas produzindo governos autônomos com
autogoverno, isto é, a capacidade dos cidadãos de criarem vínculos e
decidirem coletivamente os rumos de sua sociedade. A liberdade ne-
gativa, equivalente à liberdade dos modernos, relaciona-se aos direitos
naturais presentes nas teorias contratualistas. Isso significa dizer que,
por natureza e antes mesmo da criação do Estado ou da sociedade, o
indivíduo já era livre e não estava originalmente submetido a nenhuma
lei ou autoridade.

Dessa concepção negativa de liberdade resultará a limitação ou redu-


ção do poder do Estado na modernidade em relação às liberdades indi-
viduais. Os indivíduos não devem se submeter à autoridade abusiva dos
governantes, muito menos concordar com as opiniões coletivas. Nem
mesmo são obrigados a ter vínculos políticos diretos com outros cida-
dãos, pois elegem representantes por meio de eleições, caracterizando
a participação indireta e a defesa da liberdade individual, ainda que o de-
sejo do cidadão seja o seu distanciamento das decisões legais tomadas.

Essas reflexões permitem a compreensão de outras duas concep-


ções de cidadania: ativa e passiva. Esses conceitos são usados hoje
para classificar a participação dos cidadãos nas atividades políticas, po-
dendo ser aplicados na análise de diferentes períodos históricos. A cida-
dania ativa é conhecida também como cidadania política, mais presen-
te na Atenas antiga, porém deve-se considerar sua existência também
nas instituições modernas. É caracterizada quando “[...] o cidadão, além
de ser alguém que exerce direitos, cumpre deveres ou goza de liberda-
des em relação ao Estado, é também titular, ainda que parcialmente, de
uma função ou poder público” (BENEVIDES, 1994, p. 9-10). O cidadão
ativo está comprometido e integrado aos assuntos de sua sociedade
e interesses coletivos; torna-se responsável e adquire a prerrogativa de
decidir os rumos da coletividade (ou parte dela) por meio de alguma
atividade política: “[...] cidadania ativa está no compromisso cívico e na

Cidadania: bases históricas e princípios 89


deliberação coletiva acerca de todos os temas que afetam a comunida-

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de política [...]”, dizendo respeito a “[...] responsabilidades que os sujeitos
têm com a comunidade política à qual pertencem” (SOARES, 2002, p.
101). A cidadania passiva expressa a ausência ou um menor grau de
participação política dos cidadãos. Está mais presente em sociedades
liberais, com eleição e instituições que exercem a função de representa-
ção política. O cidadão passivo é tido como omisso porque volta-se aos
seus interesses individuais, o que não o impede de reagir ou contestar
eventualmente algumas situações que considera prejudiciais apenas
aos seus direitos individuais, podendo, por exemplo, exercer a sua par-
ticipação em manifestações públicas ou votar contrariamente a certos
grupos quando da prática de eleições.

PARA PENSAR

Elabore uma reflexão a partir da análise de reportagens em jornais, re-


vistas e sites e identifique se nelas é possível observar a aplicação dos
conceitos de cidadania ativa e passiva na política brasileira. Pesquise
assuntos políticos recentes, manifestações públicas ou instituições.

Deve-se considerar ainda a existência da cidadania nacional, com-


preendida como aquela que exerce função normativa sobre cidadãos
nascidos num determinado território ou a partir do grau de parentes-
co. Por exemplo, é considerado brasileiro quem nasceu no território na-
cional. A ordem normativa, ou seja, a legislação abrange obrigações e
punições aos seus cidadãos. Já a cidadania social está inspirada na
promoção da igualdade direcionada às melhorias de condições de vida
da população. Os países capitalistas, entre as décadas de 1930 e 1970,
adotaram as chamadas políticas de bem-estar social com o objetivo
de reduzir as desigualdades sociais, fornecendo direitos trabalhistas e
acesso a benefícios sociais como educação, saúde e moradia. Os pres-
supostos marxistas de uma revolução socialista foram aplicados pelo

90 Ética, cidadania e sustentabilidade


bloco soviético no século passado. A cidadania socialista é caracteri-
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zada por promover os direitos ao trabalho e a gratuidade do acesso à


moradia, lazer, transporte, saúde e educação, ainda que sob a forma de
uma ditadura de trabalhadores, com a exclusão do direito à propriedade
privada e a liberdade de expressão limitada.

A partir da década de 1990, com o fim da União Soviética, a ascen-


são da globalização, do neoliberalismo e dos blocos econômicos, como
é o caso da União Europeia, passou-se a promover o que se conven-
cionou designar como cidadania pós-moderna, ou nova cidadania1
(DAGNINO, 1994), que abrange um leque de novas demandas sociais
por direitos, entre eles ampliação e exercício da cidadania por meio de
recursos eletrônicos e da inclusão digital, garantindo-se a preserva-
ção da privacidade nas redes; representatividade e inclusão social de
segmentos historicamente marginalizados (indígenas, quilombolas,
LGBTQIA+, deficientes), incluindo o conceito de cidadania intercultural
(reconhecimento de direitos e resgate de tradições e memória de gru-
pos étnicos); legislações ambientais; direito à cidade; direitos relativos
aos cidadãos pertencentes a países comunitários, como ocorre com a
União Europeia; direitos aos imigrantes refugiados.

O filósofo francês Edgar Morin (1921-) propôs a cidadania planetária


(MORIN, 2000), considerando a relevância da educação na formação
social e humana. A educação é vista como uma possibilidade ou um ca-
minho para a ampliação da atuação dos cidadãos, pois, ao sensibilizar e
produzir reflexão, aprimora as potencialidades individuais em nome do
interesse coletivo. Trata-se de uma cidadania transformadora da reali-
dade social a partir de uma educação transdisciplinar, que deve articular
a relação entre as diferentes culturas e entre os diferentes saberes e
ciências, promovendo o compartilhamento de tecnologias sociais, cui-
dados com o meio ambiente e desenvolvimento social.

1 Outras referências à cidadania pós-moderna são: cidadania pós-nacional e cidadania universal.

Cidadania: bases históricas e princípios 91


3 A cidadania no Brasil

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O cientista político José Murilo de Carvalho (1939-) publicou, no ano
de 2001, a obra Cidadania no Brasil: longo caminho. O ponto de parti-
da de sua investigação é o ano da independência (1822), herdeira da
colonização fundamentada na escravidão, no latifúndio, mantendo a
maioria da população analfabeta e sem tradição cívica. Carvalho (2004)
afirma que, na época da independência, não havia a ideia de cidadão
brasileiro e muito menos de pátria brasileira; estas não passavam de
meras abstrações. Segundo o autor, essa situação permaneceria prati-
camente inalterada até 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas à pre-
sidência. Nem mesmo a proclamação da República, em 1889, alterou
esse quadro. Em 1888, foi decretada a abolição dos escravizados, e,
embora estes tenham adquirido o direito à liberdade, foram os brancos
livres que tutelaram o processo de abolição, sem que houvesse lutas
sociais amplas e organizadas num nível nacional. A liberdade, portanto,
não significou a inserção dos negros na sociedade, e essa população
acabou se tornando marginalizada, sem acesso a empregos, à educa-
ção, à propriedade e às instituições públicas.

Carvalho (2004) afirma que, até 1930, não havia povo organizado,
tampouco a consolidação de um sentimento nacional, caracterizando o
que chama de cidadania negativa (ou em negativo), porque o povo não
possuía lugar no sistema político, que ficava restrito às elites latifundiá-
rias. Nesse período, houve muitas rebeliões dispersas no Brasil, a maio-
ria delas promovida por elites locais (e raramente pelo povo) desconten-
tes com políticas e cobranças de impostos do Império, sendo todas elas
derrotadas (Confederação do Equador –1824; Cabanagem – 1833 a
1839; Revolução Farroupilha – 1835 a 1845; Sabinada – 1837; Balaiada
– 1838 a 1841; Revolução Praieira – 1848; destacando-se a revolta de
escravos de origem mulçumana, a Revolta dos Malês, em 1835).

92 Ética, cidadania e sustentabilidade


Segundo Carvalho (2004), com a era Vargas (1930-1945), os direi-
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tos civis avançaram a uma parte da população, principalmente com a


legislação trabalhista consolidada em 1943 (CLT). Porém esta não era
destinada aos trabalhadores rurais, o que acabou por preservar o do-
mínio de coronéis e senhores de terras sobre a população na maioria
dos municípios. Nos centros urbanos, o domínio era dado pelo Estado,
que controlava e regulava os sindicatos, fechava associações conside-
radas clandestinas, expulsava estrangeiros considerados comunistas,
anarquistas ou subversivos, deixando o movimento operário desprovido
de autonomia política. Tratava-se de um Estado centralizador que doa-
va benefícios à população trabalhadora das cidades, porém cooptava e
controlava de maneira vertical a sociedade, seus interesses e demandas.

Além da doação de direitos trabalhistas, atribui-se a Vargas a expan-


são da justiça eleitoral, o voto feminino e a privacidade do voto. Carvalho
(2004) se dá conta de um paradoxo: com Vargas, houve a doação de
direitos sociais antes mesmo que houvesse a construção e organização
de demandas populares que reivindicassem direitos à liberdade política
e igualdade jurídica.

É importante destacar que em outras nações, historicamente, os di-


reitos foram conquistados por meio de conflitos entre classes sociais.
No Brasil, tratou-se de uma imposição do Estado para mediar os con-
flitos antes que eles ocorressem em nível amplo e nacional. Da inde-
pendência, passando pela República, até a ditatura varguista, nenhuma
grande transformação política foi realizada pela população, mas pelas
próprias elites econômicas e políticas. Tratava-se de mudar os sistemas
políticos para preservar os próprios privilégios. Ficava clara a intenção
oligárquica do Estado, vinculado ao patrimonialismo e, consequente-
mente, ao coronelismo, mandonismo e clientelismo.

Cidadania: bases históricas e princípios 93


PARA PENSAR

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Pesquise mais sobre os conceitos de patrimonialismo, coronelismo,
mandonismo e clientelismo e investigue se essas concepções (comuns
no Brasil entre os séculos XVIII e XX) permanecem ainda hoje na políti-
ca brasileira. Investigue se há notícias e matérias em jornais, revistas e
sites em que seja possível identificar esses conceitos.

Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) utiliza o termo “cida-


dania regulada”, em sua obra Cidadania e justiça: a política social na or-
dem brasileira (1979), para definir esse padrão vertical de construção
promovido pelo Estado, principalmente na era Vargas. A cidadania pas-
sa a estar relacionada às ocupações reconhecidas e definidas em lei
pelo próprio governo. Não se trata de uma cidadania com direitos uni-
versais, e sim restritos a alguns segmentos profissionais regulados pelo
Estado. Essas ocupações representam as profissões reguladas por lei e
os direitos sociais que derivam delas.

Vale destacar que a carteira de trabalho, no passado, e em alguns


casos até hoje, é usada no imaginário popular brasileiro como um ele-
mento constitutivo da cidadania. Por isso às vezes vemos, em aborda-
gens policiais, muitas delas violentas, indivíduos revistados declarando
serem “trabalhadores”, e não “bandidos”. Nesse caso, o trabalho e a car-
teira de trabalho se confundem com a cidadania. Dizer “sou trabalhador”
representa a noção de que se é um cidadão portador de direitos.

Carvalho (2004) indica que, com a queda de Getúlio Vargas, em 1945,


estabeleceu-se, até 1964, a democracia no Brasil e com ela o fortaleci-
mento de partidos políticos autônomos (embora o Partido Comunista
tenha sido proibido em 1947), assim como maior liberdade de expres-
são, de associação política e sindical. Nesse período, surgiram propos-
tas de expansão de direitos sociais, lutas pela ampliação da cidadania,
como as reformas de base, que nunca foram muito adiante. Entre as
propostas e os movimentos que se fortaleceram nesse período, devem

94 Ética, cidadania e sustentabilidade


ser destacados: UNE (União Nacional dos Estudantes); MEB (Movimento
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de Educação de Base); as reformas agrária, urbana, fiscal, bancária e


educacional.

Em 1964, com o golpe que estabeleceu o regime militar, os direi-


tos políticos e civis foram suprimidos pelo uso da violência, censura
e tortura, conforme vimos no capítulo anterior. Os militares preserva-
ram e expandiram direitos sociais, principalmente os trabalhistas, po-
rém reduziram os direitos civis e políticos da população. A democracia
e a cidadania foram substituídas pelas armas dos militares. Contra a
violência militar, instauraram-se as guerrilhas socialistas urbana e ru-
ral, que lutavam pelo retorno dos direitos políticos e civis, mas foram
suprimidas violentamente pelo Estado golpista. Foi com a Constituição
de 1988, alcançada pela pressão do movimento Diretas Já, que se res-
tabeleceu a democracia, a expansão da cidadania e a reivindicação de
direitos no Brasil.

Movimentos como o negro, ambientalista, dos sem-terra, sem-teto,


LGBTQIA+ e indígena vêm lutando desde então contra o preconceito e
buscam a aquisição de direitos e maior inclusão social. Na passagem
do século XX para o XXI, houve gradual expansão de conquistas sociais,
hoje ameaçadas por ações autoritárias que põem em risco a democra-
cia e o processo ainda inacabado de conquistas da cidadania.

Considerações finais
Neste capítulo, estudamos importantes elementos que permi-
tem a compreensão da cidadania em diferentes contextos históricos.
Iniciamos discutindo a cidadania na Antiguidade entre hebreus, atenien-
ses e romanos. Na sequência, estudamos as construções modernas de
cidadania, com o Renascimento e sua influência sobre as revoluções
burguesas, incentivando o individualismo, a liberdade e os direitos cívi-
cos e políticos.

Cidadania: bases históricas e princípios 95


Em seguida, analisamos as classificações de cidadania amplamente

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debatidas pela filosofia e pela ciência política. Vimos que a cidadania na
Antiguidade é designada como ativa, isto é, os cidadãos exercem a liber-
dade positiva, porque participam diretamente das questões públicas. Já
a modernidade se caracterizaria pela predominância da cidadania pas-
siva, com o exercício de uma liberdade negativa, pois os regimes torna-
ram-se representativos e há o domínio do individualismo em oposição
aos interesses coletivos. No último tópico, estudamos o processo de
construção da cidadania no Brasil, considerando as contradições que
acompanharam a nossa formação histórica.

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96 Ética, cidadania e sustentabilidade


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Cidadania: bases históricas e princípios 97


Capítulo 5
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Relações étnico-
-raciais no Brasil

O capítulo busca compreender, no primeiro tópico, as diferentes in-


terpretações a respeito da formação étnica e social no Brasil, destacan-
do-se, na geração de 1930, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda,
por buscarem explicações que se distanciam dos estereótipos e visões
preconceituosas predominantes desde o final do século XIX. Veremos
que há contradições no pensamento de Gilberto Freyre, porque, apesar
de combater teorias alheias às explicações de cunho cultural da for-
mação da sociedade brasileira, acaba por criar o que se convencionou
chamar de democracia racial, como se no Brasil não houvesse racismo.
Sérgio Buarque irá se opor a Gilberto Freyre, cunhando o conceito de cor-
dialidade, espécie de hipocrisia repleta de afetuosidade que mascara as

99
relações de conflito no Brasil, entre elas o racismo. Florestan Fernandes,

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Darcy Ribeiro, Oracy Nogueira, Abdias Nascimento e Clóvis Moura são
autores que contribuíram também, no século XX, para a compreensão
da formação da cultura brasileira e crítica ao mito da democracia racial
no Brasil.

Em seguida, estudaremos o processo de escravização de indígenas


e negros no Brasil, desde o período colonial, e qual foi o seu reflexo na
composição social contemporânea brasileira. Trata-se de um tema im-
portante para observarmos aspectos que nos permitirão estudar, no úl-
timo tópico, a presença do racismo estrutural, tema hoje presente nas
análises políticas e sociais do movimento negro ao avaliar de maneira
crítica o racismo à brasileira e reivindicar a aquisição de direitos e con-
quistas voltados à cidadania.

1 Formação da cultura brasileira: uma visão


histórico-crítica
Na segunda metade do século XIX, a literatura foi pioneira no Brasil
na tentativa de compreender a identidade, a constituição étnica e social
nacional. Repleto de distorções históricas, o romance indianista atribuía
aos indígenas a concepção do bom selvagem de Rousseau. José de
Alencar (1829-1877), maior expressão dessa fase da literatura românti-
ca no Brasil, na obra O guarani (1857), relaciona os indígenas ao estado
de natureza, vendo nos índios virtudes como bravura, coragem, pureza
e bondade naturais. O índio tornou-se o símbolo do homem brasileiro.
Tratava-se de uma visão idílica, advinda de interpretações que vinham
da Europa e apenas lá tinham significado, não correspondendo à reali-
dade dos indígenas.

Na passagem do século XIX para o XX e contra essas relações for-


çosas elaboradas pelo romance indianista, Silvio Romero (1851-1914)
escreveu, entre 1888 e 1902, a obra História da literatura brasileira (1901),

100 Ética, cidadania e sustentabilidade


primeiro compêndio reunindo análises e classificações da literatura des-
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de a colonização, passando pela crítica aos autores românticos, e tam-


bém primeira coleta de narrações, contos, folclore e histórias da cultura
popular, muitas delas de origem indígena e africana. No entanto, a obra de
Romero está repleta de análises evolucionistas e positivistas. Segundo
o autor, o Brasil é constituído por três raças: negros, europeus brancos
e indígenas, e observa-se entre negros e indígenas certa inferioridade,
devendo haver o predomínio branco no processo de miscigenação.

PARA SABER MAIS

Do século XIX até a primeira metade do século XX, predominavam vi-


sões etnocêntricas positivistas e evolucionistas. Comte (1798-1857),
autor da frase “ordem e progresso”, afirma a superioridade europeia de-
vido às revoluções industriais, científicas e políticas, de modo que os
demais povos seriam atrasados. O evolucionismo estava inspirado no
darwinismo social, concebia que os europeus e brancos eram biologica-
mente superiores, devido também às condições climáticas de seu con-
tinente, e os outros povos eram considerados primitivos, selvagens ou
bárbaros, todos intelectualmente inferiores.

Essas visões preconceituosas eram comuns no mundo e no Brasil


dos séculos XIX e XX. Estiveram também presentes, por exemplo, nas
interpretações da formação de nossa sociedade por Nina Rodrigues
(1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951). Rodrigues, médica e antro-
póloga, na obra As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil
(1894), apresenta uma visão racista e eugenista, considerando os seg-
mentos negros e indígenas da sociedade biologicamente inferiores e
propensos à criminalidade. Concebe a necessidade de dois sistemas
penais, um para brancos, outro para negros, em virtude da inferioridade
intelectual dos últimos. Além disso, tomava como principal motivo do
atraso social brasileiro o excessivo número de negros e indígenas, defen-
dendo que houvesse um processo ou uma política de branqueamento do

Relações étnico-raciais no Brasil 101


povo, leitura compartilhada na obra Evolução do povo brasileiro (1923),

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de Oliveira Viana. É importante atentar para o fato de que, quando procu-
ramos classificar o comportamento humano, as hierarquias sociais e o
papel ou a ocupação de cada indivíduo na sociedade com justificativas
apenas biológicas, há o risco de incorrermos em visões preconceituo-
sas, racistas, reducionistas e tomadas hoje como anticientíficas.

A obra Os sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909), repre-


senta no Brasil a primeira oposição às visões positivistas e evolucionis-
tas. O livro está repleto de contradições, pois suas análises têm como
ponto de partida concepções que o autor depois irá criticar, sobretudo
no final do próprio livro. Euclides descreve primeiro como as condições
geográficas e climáticas determinam o grau de inferioridade do serta-
nejo, relegado à seca. No entanto, o autor presenciou, como jornalista, o
genocídio de sertanejos em Canudos cometido pelo Exército brasileiro.

A Guerra de Canudos ocorreu entre 1896 e 1897, quando os serta-


nejos seguiam o líder espiritual Antônio Conselheiro, favorável ao re-
torno da monarquia e contrário à República, defendida pelo Exército.
Conselheiro atraía seguidores que buscavam se afastar da miséria e
do desalento. Euclides descreve os sertanejos como resultado da mis-
cigenação entre indígenas e negros, estes últimos recém-libertos; todos
eles viviam à mercê do poder de coronéis e senhores de terra, que domi-
navam diferentes municípios nordestinos. Militares e a opinião pública
viam nos sertanejos o reflexo de segmentos sociais primitivos, atrasa-
dos e contra a República, o que servia de álibi para a intervenção militar.
Euclides, antes de presenciar o conflito e viajar para Canudos, concor-
dava com essas visões ditas “civilizadas”. Mas em Os sertões acaba por
reverter essas concepções racistas quando, diante do extermínio, se dá
conta de que na verdade quem se apresentava como a barbárie eram os
militares, passando a enxergar o sertanejo como “um forte”, resistente
às condições climáticas e capaz de organizar uma cultura própria e re-
pleta de significados apesar do meio em que vive.

102 Ética, cidadania e sustentabilidade


O movimento artístico modernista brasileiro ganhou maior destaque
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na Semana de 1922 e buscou a construção da identidade nacional. Na


pintura, destacam-se Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral
(1886-1973). Na literatura, Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de
Andrade (1890-1954). Macunaíma, de Mário, e o Manifesto antropófa-
go, de Oswald, ambos publicados em 1928, procuravam representar o
Brasil a partir da combinação entre o moderno e o rural, o branco, o índio
e o negro, valorizando o sincretismo que constitui a cultura nacional e
que lhe dá um caráter único. Por isso, Oswald (ANDRADE, 2017) anun-
cia uma antropofagia, que na sua obra significa incorporar ou devorar
elementos de outras culturas e gentes, principalmente a europeia, a in-
dígena e a africana, dando origem a uma cultura nova.

Atribui-se a Gilberto Freyre (1900-1987) a primeira tentativa genui-


namente sociológica de interpretação da formação social brasileira,
porque ele abandona definitivamente as visões evolucionistas e positi-
vistas, ou seja, não busca analisar a constituição da sociedade a partir
de critérios naturalistas. Casa-grande & senzala (1933) é uma obra que
trouxe uma série de inovações. Freyre é um dos pioneiros no mundo
na realização de estudos sobre a vida privada e empregou em sua obra
uma linguagem dotada de regionalismos do Nordeste, rompendo com o
linguajar mais científico e acadêmico de seus antecessores positivistas.

Freyre negava a noção de que um povo seria biologicamente supe-


rior ao outro, devendo cada sociedade ser estudada a partir de suas
especificidades culturais e da sua relação com o ambiente à sua volta.
O autor incorpora o relativismo cultural de Boas, traduzido não apenas
na suspensão dos juízos morais (não há sociedade superior ou inferior,
pois esses são valores etnocêntricos), mas também na sua atitude deli-
berada de não criticar a escravidão no Brasil. É nesse ponto que encon-
tramos a oposição que diferentes autores (Sérgio Buarque, Florestan
Fernandes, Abdias Nascimento e Clóvis Moura) farão ao pensamento
de Freyre, posto que ele apresenta uma explicação nostálgica do em-
preendimento colonial português desde a descoberta do Brasil. O autor

Relações étnico-raciais no Brasil 103


procura demonstrar que a colonização acabaria por ser um sucesso,

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julgando que a escravidão no Brasil teria sido, nas suas palavras, “ado-
cicada”, capaz de “apaziguar conflitos”, de modo que consolidou a “de-
mocratização social” (FREYRE, 1998, p. 46) por meio das relações afe-
tuosas entre a casa-grande (habitação dos senhores) e a senzala (onde
viviam aprisionados e amontados seus escravos). É a partir da moral
das senzalas que se cunhou a noção de democracia racial, concepção
segundo a qual inexiste o racismo no Brasil.

Casa-grande & senzala inicia o seu percurso afirmando a existência


da plasticidade portuguesa ainda na Europa pré-colonial. Portugal era
visto como a porta de entrada da Europa, um país habituado ao contato
com diferentes culturas e civilizações. Quando os portugueses iniciam
as Grandes Navegações, principalmente por volta de 1400 d.C. e após
expulsar os mouros de parte da Península Ibérica, procuram explorar a
costa do continente africano. Acostumados com o contato cultural com
outros povos, facilmente habituam-se à cultura dos indígenas, havendo
casamentos, as primeiras miscigenações e o entrelaçamento de ele-
mentos culturais. Com a expansão da produção do açúcar no Nordeste
no final do século XVI, os engenhos passaram a empregar mão de obra
escrava negra sequestrada da África. A vida colonial fundamentava-se
no latifúndio, na escravidão e no patriarcado. Os senhores de terra ti-
nham poder absoluto em suas propriedades, podendo julgar, castigar
ou absolver todos os seus subordinados, conforme seus caprichos
pessoais. Paradoxalmente a tudo isso, Freyre apresenta argumentos
hoje considerados sádicos e racistas, considerando que a miscigena-
ção entre brancos e negros foi pacífica e harmoniosa. Promove, ain-
da, a sexualização e objetificação da mulher negra no imaginário social
elitista, relativizando inclusive, com um discurso afetuoso, a violência
contra os escravos, além de parecer lamentar o fim da vida colonial e
da escravidão.

[...] trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava


ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos

104 Ética, cidadania e sustentabilidade


deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida.
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Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de


mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-do-pé
de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos
transmitiu, ao ranger da cama do vento, a primeira completa sensa-
ção de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro
de brinquedo. (FREYRE, 1998, p. 343)

Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) publicou a obra


Raízes do Brasil, livro dedicado a analisar o processo de formação
da sociedade brasileira. De forma distinta de Gilberto Freyre, buscou
uma interpretação crítica do processo colonial e pós-proclamação da
República, renunciando à postura nostálgica ou otimista sobre as bases
coloniais e rompendo com as teorias positivistas e evolucionistas.

O autor procura demonstrar que, apesar da plasticidade portuguesa,


o processo de dominação de índios e depois de negros escravos foi
violento e marcado pelo personalismo, ou seja, pela supervalorização
de traços autoritários individuais e ao mesmo tempo afetuosos dos se-
nhores de terras. A vida no engenho garantia o total domínio do senhor
sobre suas terras e escravos.

Quando houve a independência (1822) e, depois, a proclamação da


República (1889), o Estado brasileiro mostrou-se uma mera extensão da
vida privada e dos interesses pessoais dos grandes proprietários rurais,
evidenciando uma diferença gritante em relação aos processos históri-
cos de outras nações, que procuraram separar os interesses públicos
dos privados, além de enaltecer leis que criassem igualdade jurídica ou
mesmo a sobreposição do meio urbano sobre o rural. No Brasil, ocorreu o
inverso; o Estado e as instituições públicas mantiveram os privilégios co-
loniais dos senhores, pouco atendendo aos interesses do povo. O Estado
mantém a tradição colonial na qual todas as ações giram em torno de
interesses e caprichos pessoais dos proprietários de terras. Quando o
Estado se organiza e opera sem distinguir a esfera privada (ou familiar)
dos interesses públicos, falamos em patrimonialismo. Sérgio Buarque

Relações étnico-raciais no Brasil 105


percebe a manutenção de uma ordem social arcaica com familiares das

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elites rurais perpetuando-se no aparelho estatal e longe de produzir o
bem comum. Soma-se a esses aspectos o que o autor denomina ho-
mem cordial, ou cordialidade, fruto das relações afetuosas, personalis-
tas, mas ao mesmo tempo violentas, que têm origem no poder patriarcal
dos fazendeiros. Há um caráter de hipocrisia social na cordialidade.

O principal argumento de Sérgio Buarque é o de que o brasileiro se


diferencia de outros povos devido à sua cordialidade. Ser cordial não
significa ser bondoso, caridoso ou sempre amável. O termo “cordial”
vem do latim cordis e significa “aquilo que vem do coração” ou “agir com
o coração”, isto é, pertence à ordem dos afetos. Isso quer dizer que é
possível ser cordial com o inimigo, ou seja, agir de modo disfarçado ou
mascarado, camuflando relações de oposição social por meio de um
comportamento mais afetuoso ou simplesmente cordial.

O conceito de cordialidade implica na crítica à obra de Gilberto Freyre,


que observou a colonização brasileira como harmoniosa, democrati-
zante, a partir do personalismo do senhor de terras. Freyre apresenta
um documento da barbárie ao amenizar o escravagismo, mascara rela-
ções violentas inerentes à escravidão de negros no Brasil com discurso
afetuoso, cordial.

Para Sérgio Buarque, embora as relações mais afetuosas pareçam


ser mais dóceis e amigáveis, são elas também que permitem o masca-
ramento de relações sociais como o racismo, os preconceitos sociais e
até mesmo a aceitação passiva da corrupção, combinação de interesses
públicos e privados, ou de atos que restrinjam os direitos individuais dos
cidadãos. A cordialidade cria relações mais pessoais, torna o brasileiro
avesso ao excesso de formalidades e hierarquias sociais, mais adepto
às relações mais pessoais, familiares e íntimas, que acabam camuflan-
do violências ou atitudes que criam exceções para as regras coletivas.

Por isso, inspirado no conceito de cordialidade, Roberto da Matta


(1936-), em Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema

106 Ética, cidadania e sustentabilidade


brasileiro, obra publicada em 1979, reflete sobre o jeitinho brasileiro, a
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malandragem e mesmo as chamadas “carteiradas”. Da Matta compa-


ra, por exemplo, uma eventual desavença que aconteça entre indivídu-
os em nações como Inglaterra e Estados Unidos (onde há princípios e
construções históricas em torno da igualdade jurídica e maior tradição
do exercício da cidadania) e no Brasil (onde predomina o personalismo,
relações mais familiares e pouco formais).

No primeiro caso, nos Estados Unidos e na Inglaterra, Da Matta


(1997) afirma que um indivíduo provavelmente diria ao outro: “Quem é
você para falar assim comigo?”, ou seja, diante de leis que tornam todos
os indivíduos iguais, por qual motivo um deveria tirar vantagem sobre
o outro ou desrespeitar algum princípio coletivo? Esse espírito cívico,
descrito por Alexis de Tocqueville (1805-1859) na obra A democracia na
América (1835), revela o grau de organização política dos povos saxões
em torno de sua cidadania. No Brasil, ao contrário, no caso de alguma
discussão, um sujeito provavelmente diria ao outro: “Você sabe com
quem está falando?”. Perceba que nessa frase há a ideia de que o indi-
víduo é superior às leis ou instituições, dando a entender que, pelo fato
de ter relações próximas, familiares ou de amizade, com pessoas con-
sideradas importantes, como delegados, políticos, juízes, policiais, etc.,
seria possível transgredir a lei ou tirar vantagem de qualquer situação,
evidenciando-se assim o personalismo. Revela-se dessa forma como
muitos no Brasil buscam as exceções às regras, o que permite relacio-
nar a cordialidade com o jeitinho e a malandragem brasileiros.

PARA PENSAR

Procure em reportagens de revistas, jornais e sites situações na política


ou na vida social que permitam identificar o conceito de cordialidade
relacionado ao que se entende por jeitinho e malandragem.

Relações étnico-raciais no Brasil 107


Críticas à obra de Gilberto Freyre foram também realizadas pelo soci-

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ólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Florestan, na obra A integração
do negro na sociedade de classes (1965), afirma que Freyre elaborou o
mito da democracia racial brasileira. Trata-se de um mero discurso in-
compatível com a realidade vivida pela população negra (FERNANDES;
BASTIDES, 2008). Freyre é acusado de ter observado a senzala do con-
forto e do alto janela da casa-grande, desconsiderando, portanto, as
reais condições de exploração da população negra escravizada e a vio-
lência que lhe foi imposta. Ignora também os castigos, as condições de
humilhação e insalubridade da vida das senzalas.

Abdias Nascimento (1914-2011) publica, em 1978, a obra O genocídio


do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, na qual afirma
que a tese da democracia racial no Brasil expressa um racismo velado,
apresentando caráter genocida, cujo pano de fundo é o processo de bran-
queamento da população. Clóvis Moura (1925-2003), na obra O negro: de
bom escravo a mau cidadão? (1977), considera o mito da democracia ra-
cial um instrumento ideológico que procura apaziguar a população negra
para limitar sua ação política e luta por direitos e cidadania. Assim como
Abdias Nascimento, Clóvis Moura relaciona o mito criado por Freyre com
o discurso que procura estabelecer, no Brasil, o branqueamento progres-
sivo operado pela miscigenação da sociedade brasileira. Vê-se a existên-
cia, nesses autores, de uma oposição à crença de que a formação da
sociedade brasileira teria culminado numa espécie de paraíso racial.

Em 1942, Caio Prado Jr. (1907-1990) publica Formação do Brasil con-


temporâneo, obra com ênfase em aspectos econômicos. É considerada
a primeira interpretação marxista da formação do Brasil, procurando
compreender as suas especificidades em relação a outras sociedades.
Caio Prado destaca que, mesmo com a independência e após a procla-
mação da República, o Brasil manteve aspectos econômicos e sociais
arcaicos e coloniais, ou seja, estava atrelado ao fornecimento de produ-
tos agrícolas para o mercado estrangeiro, com uma produção baseada
no latifúndio, na monocultura e no emprego de mão de obra escrava e,

108 Ética, cidadania e sustentabilidade


depois, no início do século XX, de mão de obra livre, porém miserável
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(PRADO JR., 1973). O autor compreende que o fim da escravidão aca-


bou por produzir uma população não integrada à economia e aos direi-
tos, desarticulada, constituindo o que denomina como setor inorgânico.
Este vive à mercê dos senhores oligárquicos, clã patriarcal e patrimonia-
lista, que se consideram donos dos espaços públicos, correspondendo
ao chamado setor orgânico.

Raymundo Faoro (1925-2003) apresenta, no livro Os donos do poder:


formação do patronato político brasileiro (FAORO, 1975), as heranças do
Estado patrimonialista português colonial na formação de instituições
políticas no Brasil. Identifica a existência do estamento burocrático, eli-
tes políticas e econômicas que historicamente se perpetuam nas ins-
tituições públicas por meio de laços familiares, de amizade e troca de
favores, que levam essas instituições a manterem interesses privados.
Esse estamento burocrático, verdadeiro dono do poder, goza de privilé-
gios sociais e econômicos quase sempre hereditários, fornecidos pelo
próprio Estado, enquanto a maioria da população encontra-se margina-
lizada. Parentes das elites se perpetuam nos cargos públicos, geração
após geração, tornando o Estado brasileiro promotor de privilégios a um
pequeno grupo oligárquico.

A revolução burguesa no Brasil, texto publicado em 1975 por Florestan


Fernandes, apresenta as contradições da formação social brasileira.
Sobre a base da monocultura e do latifúndio voltado para exportação
e da mão de obra escrava no período colonial, Fernandes (1975) tam-
bém se depara com o patrimonialismo, percebendo que nossas elites
impulsionaram modificações políticas com a intenção de manter seus
privilégios, o que corresponde a um “progresso dentro da velha ordem”
(FERNANDES, 1975). As reformas políticas, como a independência, a
abolição da escravidão, a proclamação da República, a ditadura varguis-
ta ou mesmo o golpe de 1964, foram instituídas de cima para baixo
pelos segmentos privilegiados, que acabaram por fomentar uma mo-
dernização conservadora.

Relações étnico-raciais no Brasil 109


No século XX, a industrialização brasileira teve como base econômi-

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ca recursos oriundos da acumulação de riquezas da produção de café
no estado de São Paulo. A formação do nosso capitalismo seguiu uma
direção diferente do caminho traçado pelas burguesias europeias e nor-
te-americanas, pois estas procuraram o desenvolvimento econômico
ao valorizar a competitividade do setor privado e a negação da interven-
ção do Estado na economia. No Brasil, nossa burguesia foi dependente
do Estado, pouco afeita a promover de modo independente o processo
de industrialização ou o crescimento econômico, e Fernandes (1975)
indica a necessidade de mudança de mentalidade de nossa burguesia
para produzir desenvolvimento econômico e social. Essa mudança cor-
responderia não somente à criação de uma burguesia madura e autô-
noma, mas também ao abandono de traços conservadores e arcaicos
que acabam por atrelar aos trabalhadores assalariados no século XX
condições de subsistência próximas à da escravidão.

Darcy Ribeiro (1922-1997) escreveu a última das grandes interpre-


tações da formação social com o livro O povo brasileiro, publicado em
1995. Ribeiro (2013) enfatiza os intercâmbios culturais desde a coloni-
zação – primeiro entre indígenas e portugueses, depois entre negros
escravizados e portugueses, sem negligenciar que consistiram em um
processo marcado pela violência e pelo genocídio dos escravizados.
Procura analisar a contribuição das três culturas (indígena, negra e euro-
peia) em diversos âmbitos da vida social, como a alimentação, a lingua-
gem, as vestimentas e a organização política e social. Por se tratar de
uma obra escrita no final do século XX, apresenta um teor um tanto es-
perançoso ou otimista, mostrando que, apesar das contradições sociais
e do histórico de arbitrariedades contra escravos e demais trabalhado-
res, o Brasil, em termos de convívio entre as culturas, poderia servir de
exemplo ao mundo. Ribeiro considera a necessidade de superação do
racismo e a urgência de transformações sociais, julgando haver, por
meio do intercâmbio cultural entre diferentes povos no Brasil, uma nova
civilização em fase de germinação, que nomeia como Nova Roma – o

110 Ética, cidadania e sustentabilidade


império romano foi longevo justamente porque soube incorporar outros
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povos, produzindo sincretismos e servindo como base de formação cul-


tural para outras sociedades até hoje.

2 O processo de escravização de indígenas


e africanos e seus reflexos na formação da
cultura brasileira
A colonização portuguesa no Brasil efetivamente estabeleceu-se a
partir de 1534, quando colonos passaram a ocupar as capitanias here-
ditárias, com a exploração de açúcar e a retirada da árvore pau-brasil,
principalmente nas regiões litorâneas. Foi instituído o uso de mão de
obra escrava indígena, geralmente aprisionada por meio de alianças en-
tre os colonos e algumas sociedades indígenas que rivalizavam com
outras. No século seguinte, bandeirantes promoviam expedições autô-
nomas, isto é, sem apoio da Coroa portuguesa, em direção ao interior
do Brasil atrás de pedras preciosas e escravos índios. Os portugueses
expulsavam os nativos de suas terras e capturavam indígenas, vítimas
de violências e genocídio.

Os colonos portugueses contestavam a presença das missões jesu-


ítas, que tinham o objetivo de catequizar os indígenas. Os missionários,
presentes no Brasil a partir de 1549, embora fossem contra a escravi-
dão dos índios, promoviam a aculturação destes, ou seja, exigiam que
abandonassem suas crenças tradicionais e os levavam a se converter,
aprender o idioma do colonizador e aceitar a introjeção de valores cris-
tãos e europeus. Quando não escravizados pelos colonos ou catequiza-
dos pelos missionários, os povos indígenas eram dizimados com vírus e
doenças vindas da Europa, como o sarampo, a varíola e a gripe.

Na passagem do século XVII para o XVIII e pressionados pelos jesu-


ítas, que afirmavam a humanidade e a boa alma dos indígenas, a Coroa
e os colonos se submeteram às exigências da Igreja, de modo que a

Relações étnico-raciais no Brasil 111


escravidão e a morte de índios passaram a ser permitidas apenas em si-

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tuações que caracterizavam as chamadas guerras justas, ou seja, na hi-
pótese de ataques deliberados dos indígenas aos colonizadores. Muitos
desses conflitos eram forjados com o objetivo de aumentar o número
de escravos, que eram distribuídos nas lavouras de cana-de-açúcar no
litoral e na mineração no interior do território. Em 1755, foi proibida a
escravidão dos indígenas. Vencia o argumento dos missionários, expul-
sos do Brasil pouco tempo depois, em 1759, pelo Marquês de Pombal,
responsável por confiscar os bens das missões na América portuguesa.

Longe de representar caridade ou respeito aos povos indígenas, a


afirmação de sua boa alma e o fim de sua escravidão traziam consigo
um argumento econômico, que considerava mais vantajosa a compra
de escravos negros traficados do continente africano. Vistas pelos co-
lonizadores como hereges, sem alma e desumanizadas, as populações
negras foram sequestradas e trazidas ao Brasil para servirem à escra-
vidão, em substituição à mão de obra indígena. A captura, o trajeto da
África até o Brasil pelo Oceano Atlântico, a distribuição, a revenda, a vida
precária dentro das senzalas e o trabalho escravo, braçal e desgastan-
te (repleto de castigos e torturas aos que tentassem fugir ou demons-
trassem cansaço), eram etapas que constituíam de ponta a ponta um
sistema muito mais lucrativo do que a escravização indígena. A transi-
ção do uso dos trabalhos forçados dos indígenas para o emprego de
mão de obra escrava negra ocorreu entre os séculos XVII e XVIII. Na
mineração e nos engenhos de açúcar, a exploração da população negra
constituiu no Brasil a mais deplorável forma de escravidão, atrelada ao
mercantilismo.

A lucratividade do tráfico negreiro era imensa, assim como a desu-


manização dos escravos. Os navios negreiros eram insalubres, os es-
cravos eram acorrentados nos seus porões, muitos morriam de fome
ou por doenças. Populações e etnias africanas eram desmembradas,
misturadas a outras com tradições e idiomas diferentes, com o obje-
tivo de evitar a comunicação, afinidades culturais ou mesmo qualquer

112 Ética, cidadania e sustentabilidade


possibilidade de rebelião contra os colonos. Nas senzalas, centenas de
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escravos se amontoavam sem privacidade, eram tratados como ani-


mais. Os que tentavam fugir sem sucesso eram capturados, castigados
e mutilados sob os olhos dos demais para servirem de exemplo. Aqueles
que obtinham sucesso na fuga constituíam os quilombos, comunida-
des de negros fugidos dos engenhos e das regiões de mineração.

Os quilombos apresentavam elevado grau de organização política e


econômica, buscavam reproduzir o sistema comunitário no qual viviam
muitas etnias ainda no continente africano. Eram comunidades que se
estabeleciam em locais distantes dos colonizadores, com produção
agrícola e pecuária autossuficiente. Muitos quilombos praticavam mi-
neração e comércio com cidades coloniais. O dinheiro arrecadado era
utilizado para promover novas fugas ou comprar a alforria de outros
escravos. Os quilombos promoviam o resgate de tradições culturais e
políticas africanas. A maioria deles foi estabelecida onde hoje se situ-
am os estados da Bahia, de Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas
Gerais e Alagoas. O quilombo de Palmares, localizado no atual estado
de Alagoas, destacou-se. No ano de 1670, possuía cerca de 50 mil ex-
-escravos, liderados por Zumbi, que foram combatidos pelos coloniza-
dores europeus porque representavam a possibilidade de liberdade e
inspiravam a rebelião e a fuga de outros escravizados. Os quilombos fo-
ram importantes para consolidar a construção de uma cultura afro-bra-
sileira a partir de diferentes tradições incorporadas de diferentes etnias.

O processo de abolição da escravatura da população negra foi lento,


gradual e de cima para baixo, ou seja, organizado pelas elites latifundiá-
rias brasileiras. A ideia era evitar uma rebelião popular escrava, de forma
que a abolição foi operada segundo interesses dessas elites. No sécu-
lo XIX, ainda durante o Império, foi aprovada a Lei Eusébio de Queirós
(1850), que proibia o tráfico internacional negreiro. Na prática, foi resul-
tado de pressões políticas inglesas, pois a mão de obra assalariada tra-
ria mais vantagens ao desenvolvimento industrial europeu. Essa lei não
inibiu o tráfico interno, que, com a expansão cafeeira no Vale do Paraíba,

Relações étnico-raciais no Brasil 113


produziu compras de contingentes de escravos do Nordeste em direção

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ao Sudeste.

Em 1871, foi sancionada a Lei do Ventre Livre, estabelecendo a li-


berdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquele ano.
No entanto, é difícil imaginar uma criança nascida livre permanecer in-
dependente da mãe escravizada, o que assegurava aos proprietários
de escravos alguns anos a mais com crianças semiescravizadas em
suas terras. Em 1855, promulgou-se a Lei dos Sexagenários, responsá-
vel por libertar todos os escravos que haviam alcançado os 60 anos. No
entanto, considerando o trabalho braçal, árduo e desgastante ao longo
dos anos, eram raros os escravos que chegavam a essa idade, e os
que chegavam já não estavam mais aptos ao trabalho após anos de
subjugação.

Em 13 de maio 1888, foi publicada a Lei Áurea, decretada pela regen-


te Princesa Isabel. A regente, antes da abolição, procurou estabelecer
uma espécie de reforma agrária para atender à população liberta, pro-
posta refutada pelas elites rurais. O resultado é que, após a abolição, os
ex-escravos não foram inseridos na sociedade ou contemplados pelos
direitos dos cidadãos. Impedida de votar devido ao analfabetismo, sem
propriedades, moradia, emprego ou acesso à educação, a população ne-
gra não foi incorporada às instituições sociais e políticas. Proprietários
de terras, antes mesmo da abolição, já operavam o processo de substi-
tuição dos escravos por trabalhadores europeus, principalmente italia-
nos. Com a abolição, os negros estavam na condição de marginalização
e pauperismo.

Em virtude dessa marginalização, perpetuada no século XX pela tra-


dição do Estado patrimonialista, a população negra do Brasil foi relega-
da às favelas e ao desemprego (quando muito, ao subemprego, com sa-
lários irrisórios), com baixos índices de instrução e expectativa de vida e
níveis elevados de mortalidade infantil. O preconceito racial é uma das
consequências do período escravocrata.

114 Ética, cidadania e sustentabilidade


Juliana Borges, no livro Encarceramento em massa (2019), destaca
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que a maioria da população presidiária no Brasil é constituída por ne-


gros. O preconceito policial e judiciário muitas vezes condiciona penas
mais pesadas a negros e mais brandas a brancos de segmentos abas-
tados. Em razão do preconceito e da exclusão social, muitos jovens
negros acabam procurando recursos com atividades consideradas ilí-
citas. São comuns prisões e mortes de negros cometidas por policiais
de forma arbitrária e sem provas, incluindo crianças. Além disso, vemos
poucos negros e negras nos mais elevados postos de trabalhos, raros
são os professores universitários negros, assim como os apresentado-
res de TV, juízes, protagonistas de filmes, novelas e séries. No Brasil,
há elevadores de serviço com o objetivo de distinguir patrões brancos
de empregados domésticos negros; babás, geralmente negras, estão
uniformizadas de branco e cuidando de crianças ricas, o que reproduz
a cor das vestimentas e as dinâmicas entre a casa-grande e a senzala
no período colonial.

3 Aspectos políticos e sociais da cultura


afro-brasileira
Diferentes pensadores se deram conta das especificidades do racis-
mo à brasileira. Guerreiro Ramos, por exemplo, na década de 1950, rela-
ciona o preconceito racial às classes sociais. Cria-se no senso comum
uma visão racista que se baseia nas condições econômicas, de modo
que a pobreza passa a estar relacionada aos negros. Ramos (1950) atri-
bui às desigualdades sociais o critério que estabelece o racismo. A aná-
lise de Ramos pode ser identificada, por exemplo, quando comparamos
os registros de nascimento e óbito de dois importantes literatos negros
brasileiros, Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922).
No registro de nascimento de Machado, de origem pobre, consta que
nasceu negro. Criador da Academia Brasileira de Letras em 1897 e
consagrado com seus textos em jornais e livros, seu registro de óbito

Relações étnico-raciais no Brasil 115


declara o autor como branco. Lima Barreto, por sua vez, filho de funcio-

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nário público no Rio de Janeiro, tem no seu registro de nascimento a cor
branca. Morreu no ostracismo e internado num manicômio, vítima do al-
coolismo. No seu registro de óbito, é declarado como um homem negro.

Como se vê, a reflexão de Ramos (1950) gira em torno do fato de


que a condição de classe ou o pertencimento a postos relevantes da
sociedade estabelecem padrões racistas na sociedade brasileira. Oracy
Nogueira, contemporâneo de Ramos, apresenta a comparação do racis-
mo no Brasil e nos Estados Unidos. No primeiro caso, há o predomínio
do que designa como preconceito racial de marca, o que significa dizer
que o negro está socialmente relacionado às ocupações que exerce na
sociedade. Quanto maior sua fama, grau de instrução, riqueza ou cargo,
mais ele será considerado branco, produzindo uma espécie de apaga-
mento da cor negra. Nos Estados Unidos, predomina o que Nogueira
define como preconceito racial de origem, ou seja, aquele relacionado à
ascendência, de modo que ser negro tem relação com a origem étnica.
Paradoxalmente, ainda que uma criança nasça branca, mas tenha um
avô negro, nos Estados Unidos ela é socialmente considerada negra de-
vido à origem (NOGUEIRA, 2006).

No século XXI, no Brasil, ganhou destaque também o debate em torno


do conceito de colorismo. Trata-se de uma ideologia de branqueamento
que, a partir da miscigenação e do fenótipo, categoriza e hierarquiza os
indivíduos de acordo com o tom de pele, tendendo à condição europei-
zante quanto mais clara for a cor ou à africanidade quanto mais distan-
te da construção social do que é ser branco. Nesse ponto, por exemplo,
podemos discutir a questão do cabelo, entre outras características físi-
cas que acabam por produzir estereótipos e construções sociais que
culminam na determinação da posição que um indivíduo deve ocupar
na sociedade e no mercado de trabalho. Silvio Almeida (1976-), na obra
O que é racismo estrutural? (2018), responde à questão percebendo que
o racismo no Brasil é uma forma de violência histórica e transversal, pre-
sente em diferentes instituições, reproduzido de diversas formas (nas

116 Ética, cidadania e sustentabilidade


empresas, na educação, nos esportes, etc.), portanto, está presente na
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cultura e no funcionamento das instituições.

Devemos destacar duas intelectuais contemporâneas, Djamila Ribeiro


(1980-) e Preta Rara (1985-), que tratam do tema do racismo brasileiro,
respectivamente em Pequeno manual antirracista (2019) e Eu, emprega-
da doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada (2019).
Essas obras revelam a maneira dissimulada como o racismo ocorre no
país em diferentes relações sociais; sobretudo refletem a respeito das
condições sociais da mulher negra e do lugar que ela ocupa na socieda-
de. Djamila e Preta Rara promovem, ao lado da crítica ao racismo, a críti-
ca ao machismo e ao patriarcado que se estabeleceram no Brasil desde
o período colonial e seguem persistentes, devendo ser combatidos.

Nascimento (2019) observa o racismo à brasileira como sútil, hipó-


crita e dissimulado. Enquanto o discurso predominante (poderíamos
dizer “cordial”) é o de que não há racismo no Brasil, as práticas sociais
acabam sendo outras, promovendo, na sua visão, o genocídio da popu-
lação e da cultura negra no Brasil, além de representar a ideologia do
branqueamento. Isso ocorre porque as formas tradicionais de convivên-
cia e religiosidade, a alimentação, as crenças, as manifestações artísti-
cas, os conhecimentos milenares e os padrões de beleza da população
negra foram historicamente foram reprimidos, eliminados e, mais re-
centemente, acabaram por ser desvalorizados pelos padrões estéticos
veiculados nos meios de comunicação. Quando muito, elementos cultu-
rais de origem africana foram diluídos sob uma sociedade e instituições
dominadas por brancos.

Nascimento (2019) anuncia o conceito de quilombismo como a luta


social dos negros no Brasil pela obtenção de direitos políticos, econômi-
cos e sociais e de reconhecimento da importância de sua cultura para a
construção do Brasil e da humanidade. Sua inspiração é o modo como
no período colonial os quilombos mantiveram tradições africanas e con-
solidaram formas de resistência e organização. A partir do exemplo dos

Relações étnico-raciais no Brasil 117


quilombos, Nascimento propõe o quilombismo como movimento político

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e social da população negra no Brasil em direção às conquistas de direi-
tos e à valorização do ser humano, devendo ser reconhecida com suas
tradições e a busca pelo equilíbrio com a natureza, fomentando a produ-
ção econômica sustentável. O quilombismo tem como objetivo principal
extinguir o racismo por meio de uma educação que consolide a cultura
afro-brasileira. Diz respeito a um anseio que permeia a necessidade de
refundação do Brasil, em que brancos e negros possam viver sob con-
dições de igualdade, liberdade, respeito, intercâmbio cultural e científico.

Moura (2014), na obra Dialética radical do Brasil negro (1994), empre-


ga o conceito de quilombagem, identificando nos próprios quilombos
do Brasil colonial a primeira e ampla resistência de explorados contra
dominadores e de luta pela liberdade e igualdade, antes mesmo que
a burguesia na Europa iniciasse suas revoluções em nome dos direi-
tos individuais, entre os séculos XVII e XVIII, e muito antes da classe
trabalhadora, no século XIX. Embora oprimida e marginalizada, a po-
pulação negra no Brasil soube sobreviver e resistir ao esquecimento e
à negligência da organização social dos brancos nos últimos séculos.
A quilombagem é expressa justamente nessa resistência e capacidade
de sobrevivência, presente em favelas e no espírito colaborativo nas co-
munidades. Ela se expressa também nas tradições religiosas, nas ma-
nifestações estéticas, na linguagem, entre outros hábitos e costumes
que foram preservados e devem ser, na visão do autor, os alicerces para
a organização política da população negra, a fim de que ela mesma se
torne protagonista na construção da história do Brasil.

Considerações finais
Este capítulo tratou das obras dos principais intérpretes da forma-
ção da cultura e da sociedade brasileiras. Vimos, no primeiro tópico, os
principais ensaios que procuraram compreender os processos históri-
cos que deram origem à cultura nacional, destacando-se as críticas às

118 Ética, cidadania e sustentabilidade


concepções de Gilberto Freyre, que deram margem ao que Florestan
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Fernandes definiu como mito da democracia racial e que Sérgio Buarque


de Holanda concebeu como uma das características da cordialidade.
No segundo tópico, estudamos as condições da escravatura de índios e
negros e observamos como resultaram nas desigualdades sociais pre-
sentes até hoje no país. Em seguida, finalizamos o capítulo com o estu-
do de interpretações acerca das lutas políticas e sociais do movimento
negro em direção à valorização de uma cultura afro-brasileira e suas
críticas ao racismo à brasileira.

Referências
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Relações étnico-raciais no Brasil 119


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empregada. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

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RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das


Letras, 2019.

120 Ética, cidadania e sustentabilidade


Capítulo 6
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Relações de gênero

No presente capítulo, discutiremos relações de gênero. Para tanto,


iniciaremos pela análise e diferenciação das concepções de gênero e
sexo, bem como de cultura e natureza. Trata-se de diferenciar o campo
das ações e construções humanas do campo biológico. Investigaremos
importantes intelectuais, como Simone de Beauvoir (1908-1986) e Judith
Butler (1956-), essenciais para o debate. Por meio do conceito de gêne-
ro, poderemos compreender a sigla LGBTQIA+. Observaremos ainda os
conceitos de diferença e desigualdade, que nos permitirão compreen-
der a importância de políticas públicas que promovam a diversidade

121
cultural e a inclusão desses diferentes segmentos nos direitos humanos

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e à cidadania. Tais políticas estão abarcadas na denominação multicul-
turalismo. No segundo tópico do capítulo, investigaremos a evolução do
debate das questões de gênero no cenário internacional e, em seguida,
no Brasil, com a análise de fatos históricos e conquistas relevantes.

1 Fundamentos das questões de gênero


Durante o século XX, a filosofia, a antropologia e a sociologia estabele-
ceram distinções entre natureza e cultura. Enquanto a cultura é constituí-
da por símbolos e teias de significados que são construções resultantes
das relações sociais, a natureza está relacionada a aspectos biológicos
e intrínsecos à constituição genética. O antropólogo francês Claude Lévi-
Strauss (1908-2009), no ano de 1952, escreveu o ensaio “Raça e história”
(LÉVI-STRAUSS, 1976), em que demonstra a autonomia da cultura sobre a
natureza. Deve-se considerar a cultura e todos os seus comportamentos
não como reflexo da natureza, mas como criações originadas a partir das
relações sociais. Por isso, o indivíduo é considerado produto e ao mesmo
tempo produtor de sua cultura. Se a cultura possui certa autonomia sobre
a natureza e os indivíduos imersos nas relações sociais são responsáveis
por todas as construções e símbolos presentes nela, isso significa dizer
que a cultura não é estática, está em permanente transformação, permitin-
do a diferenciação e diversificação dos modos de ser e agir dos indivíduos
e das distintas gerações.

Com base nesse pensamento, Lévi-Strauss condena a concepção de


raças humanas e afirma a existência de apenas uma espécie humana,
demonstrando que, do ponto de vista biológico, não existem humanos
ou culturas superiores ou inferiores devido a suas disposições genéti-
cas, posto que esses adjetivos são construções culturais. A natureza e
a genética constituem todos os seres humanos, dotados das mesmas
faculdades cognitivas e sensoriais.

122 Ética, cidadania e sustentabilidade


No final da década de 1990 e início do século XXI, biólogos geneti-
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cistas vieram a comprovar a tese antropológica por meio da análise do


genoma humano. Ao codificar os genes e compará-los entre negros,
brancos, asiáticos e outras etnias, constataram que as diferenças ge-
néticas são mínimas (ainda assim, por vezes maiores entre brancos do
que comparando um branco e um negro) e insuficientes para afirmar a
existência de raças (no plural) diferentes. Nesse sentido, o conceito de
raças humanas não pertence ao campo natural ou biológico. “Raças”
são construções culturais ou símbolos sociais, não há fundamento bio-
lógico nelas, sendo hoje utilizadas num sentido simbólico, como expres-
são das lutas políticas dos movimentos negros, por exemplo. Porém, no
século XIX e até metade do século XX, predominavam teses racistas e
evolucionistas que atribuíam à cultura determinações biológicas. Nesse
período, os conceitos de raça e a concepção de gênero eram tomados
como elementos biológicos, que acabaram servindo de álibi para o pre-
conceito contra povos africanos, asiáticos e indígenas, buscando tam-
bém demonstrar, de forma machista, a superioridade dos homens so-
bre as mulheres. Raça e gênero, portanto, não têm origem na natureza,
senão na cultura.

A filósofa francesa Simone de Beauvoir, na obra O segundo sexo


(BEAUVOIR, 1980), publicada em 1949, nos permite compreender a
distinção entre gênero e sexo, sendo o primeiro conceito relacionado à
cultura, à historicidade e às relações sociais, e o segundo termo relacio-
nado a aspectos biológicos. Beauvoir toma como base o pensamento
existencialista de Sartre, o qual, na obra O ser e o nada (escrita em 1943),
opõe a condição humana e a natureza humana. A condição humana é
resultado da liberdade e das escolhas dos sujeitos. Sartre (2001) afirma
que nascemos condenados à liberdade, de modo que tudo o que somos
ou poderemos ser no futuro é resultado de nossa ação humana. O au-
tor nega a noção de natureza humana porque a considera uma forma
de fatalismo ou determinismo, como se, por exemplo, uma profissão,
a honestidade, a maldade, a riqueza ou a pobreza tivessem origem em
aspectos naturais ou biológicos, quando na realidade são resultado das

Relações de gênero 123


contradições sociais. Sartre sintetiza sua crítica à noção de natureza

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humana por meio da célebre expressão “a existência precede a essên-
cia”, o que significa dizer que não há nada de inato (na essência) no
indivíduo – suas ideias e comportamentos são dados primeiro histori-
camente e em contradição com sua subjetividade, constituindo a condi-
ção humana. Esta última é plástica e está em transformação constante,
influenciando as transformações sociais.

Beauvoir, concordando com essas premissas existencialistas de


Sartre, afirma em sua obra que “Ninguém nasce mulher: torna-se mu-
lher”. Verifica-se que o que se entende hoje como mulher é uma cons-
trução histórica, de forma que talvez essa noção não seja exatamente
compreendida como era no passado ou como será no futuro. Ninguém
do sexo feminino nasce naturalmente com o desejo de ser mãe, ou mais
doce ou delicada, muito menos apta a se submeter ao domínio mascu-
lino, pois com a noção de condição humana entendemos que todos os
comportamentos têm origem na cultura e nas relações sociais dadas
historicamente. Da mesma forma, o machismo é uma construção social,
e não uma relação natural, e é possível atacá-lo e destituí-lo, construindo
uma outra e nova sociedade com relações mais equânimes de gênero.

Portanto, o sexo tem origem na natureza, sendo caracterizado pela


determinação biológica – nasce-se do sexo masculino ou feminino, ou
simplesmente macho ou fêmea. Já o gênero é uma construção social,
tem origem na cultura e nas relações sociais, e suas características po-
dem variar de época para época, de indivíduo para indivíduo e de socie-
dade para sociedade. Pedro Jaime e Fred Lucio (JAIME; LUCIO, 2017)
nos apresentam um importante panorama das discussões em torno da
distinção dos conceitos de gênero e sexo durante o século XX, desta-
cando a filósofa e socióloga norte-americana Judith Butler:

De um lado, nós temos um corpo, que é dado pela natureza, que


estabelece, por exemplo, a diferença entre macho e fêmea. Entre-
tanto, do outro, se analisarmos as sociedades do mundo (como
fazem antropólogos, sociólogos e historiadores, por exemplo), va-

124 Ética, cidadania e sustentabilidade


mos observar uma infinidade nada semelhante de modos de existir
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como “homem” e como “mulher” [...] Segundo a socióloga Bila Sorj


[...] “O equipamento biológico inato não dá conta da explicação do
comportamento masculino e feminino observado na sociedade.
Para a historiadora Joan Scott, uma das maiores especialistas de
estudos de gênero na atualidade, “gênero é a organização social da
diferença sexual percebida. O que não significa que gênero reflita
ou implemente diferenças físicas e naturais entre homens e mu-
lheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados
para as diferenças corporais” [...]. Propondo uma ruptura do bina-
rismo sexo/natural e gênero/social, a filósofa e uma das principais
referências de gênero na atualidade Judith Butler também recusa
a ideia de que exista um corpo natural, preexistente. Para ela, uma
vez que todo corpo é produzido pela linguagem e pelas práticas
sociais, da mesma forma que gênero, o sexo (um dado suposta-
mente natural) [...] é repleto de significados construídos pela cultu-
ra. (JAIME; LUCIO, 2017, p. 331-333)

Assim como os gêneros homem e mulher são construções sociais,


as ciências humanas no século XX compreenderam que outros gêneros
que constituem a sigla hoje conhecida como LGBTQIA+ (veja o quadro
a seguir com os detalhes dessa sigla) são igualmente resultados da cul-
tura, e não da natureza. A própria sexualidade é diferente do sexo, pois a
primeira corresponde a aspectos culturais, ou seja, ao modo como cada
indivíduo expressa seus sentimentos, desejos, comportamentos e iden-
tidades relacionados ao sexo. A noção de identidade é constituída pelo
autorreconhecimento, pela falta dele ou pelo reconhecimento que nos
é imposto pelos outros. Dessa forma, os gêneros não necessariamente
se resumem a dois (homem e mulher) numa mesma sociedade, poden-
do haver diversidade de identidades de gênero. No século XXI, a popu-
larização das redes sociais virtuais e o acesso à internet deram mais
notoriedade aos diferentes gêneros, que lutam pelo reconhecimento de
suas identidades e contra a discriminação. Produziu-se a visibilidade
das lutas políticas contra os preconceitos e por conquistas de direitos
de cidadania.

Relações de gênero 125


Quadro 1 – Significado da sigla LGBTQIA+

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ELEMENTO DA
SIGNIFICADO CARACTERÍSTICAS
SIGLA

Mulheres que sentem atração e se envolvem afetiva e sexualmente


L Lésbicas
com indivíduos do mesmo gênero.

Homens que sentem atração e se envolvem afetiva e sexualmente


G Gays
com indivíduos do mesmo gênero.

Homens e mulheres que sentem atração e se envolvem afetiva e


B Bissexuais
sexualmente com os gêneros masculino e feminino.

Correspondem aos indivíduos que não se identificam com o gênero


atribuído desde o seu nascimento e pela sua cultura. Travestis são
T Transexuais
incluídas na sigla, porém se identificam com a condição feminina e
são consideradas um terceiro gênero. 

Migram ou transitam entre diferentes gêneros, caso das drag


Q Queer
queens.

Limiar entre o masculino e feminino, podendo estar relacionado


I Intersexo com questões biológicas, como genitálias, gônadas, cromossomos
e hormônios.

Indivíduo com escassez ou ausência de atração sexual por outros


A Assexual gêneros ou indivíduos; não tomam as relações sexuais como
prioridade para a vida.

Inclui outros grupos Diz respeito às variações de outras formas de sexualidade


+ e variações de e gênero, incluindo pansexuais, que se relacionam afetiva e
sexualidade e gênero sexualmente com indivíduos de qualquer gênero.

A cisgeneridade (ou simplesmente homens e mulheres cis) pressu-


põe a correspondência entre o sexo biológico e a identificação de gêne-
ro estabelecida desde o nascimento – por exemplo, o sexo masculino
identifica-se com o gênero masculino. É o oposto do transgênero, o qual
se identifica com o gênero oposto ao seu sexo.

A falta de entendimento no que se refere às construções sociais de


diferentes gêneros acaba produzindo preconceitos em indivíduos con-
servadores. O termo “misoginia” (do grego miseo, ódio; e gyne, mulher)

126 Ética, cidadania e sustentabilidade


é utilizado para definir a aversão e o desprezo por valores e característi-
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cas tidos como femininos, representando, portanto, atitudes machistas


que supõem a superioridade natural dos homens sobre as mulheres.

Há ainda outras formas de preconceitos de gênero. Mulheres e seg-


mentos LGBTQIA+ sofrem restrições em termos de ocupação de cargos
superiores no mercado de trabalho ou tornam-se relegados aos subem-
pregos ou à marginalização. Esses grupos sofrem com violência, assé-
dio e discriminação porque há construções sociais equivocadas, que
associam ao gênero masculino a capacidade de elaboração de bons
trabalhos e uma vida honesta, enquanto os demais gêneros são vistos
como instáveis ou incompetentes devido a características biológicas
ou em virtude de visões distorcidas sobre os próprios gêneros. Enfim,
a confusão entre sexo e gênero produz preconceitos diversos. Isso
também ocorre porque é comum confundir as noções de diferença e
desigualdade.

Segundo Barros (2006), as diferenças são inerentes à cultura e à na-


tureza, não podem ser evitadas por meio da ação humana. Diferenças
naturais podem ser o sexo, a cor da pele, a altura ou o formato do cor-
po. Diferenças culturais correspondem, por exemplo, a crenças, gestos,
gêneros, nacionalidade, formas de se expressar, arquitetura, etc., ou
seja, são construções sociais. Portanto, podemos considerar normais
as diferenças, visto que há diversidade humana. O problema consiste
em transformar diferenças em desigualdades. As desigualdades são
circunstanciais, construídas devido a elementos históricos, políticos,
econômicos e jurídicos. Podem ser criadas desigualdades por renda,
exercício de liberdades, acesso a serviços. As desigualdades, por exem-
plo, transformam diferenças étnicas em atos de racismo. Diferenças de
gênero transformam-se em desigualdades entre, por exemplo, homens
e mulheres no mercado de trabalho ou na exclusão de outros gêneros
desse cenário. A desigualdade não deve ser considerada normal, ela sur-
ge das contradições sociais, é resultado da exclusão ou de preconceitos.

Relações de gênero 127


Para combater diversas formas de desigualdade social (gênero, et-

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nia e raça), no final do século XIX, nos Estados Unidos (contra o racis-
mo) e na Europa, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e com
a intenção de expandir direitos às mulheres, fortaleceu-se o conceito
de multiculturalismo. É importante diferenciar esse conceito e o termo
“multicultural”. Quando afirmamos que uma sociedade é multicultural,
estamos nos referindo às características culturalmente diversificadas
(gêneros e etnias) presentes nela. Há sociedades com diversidade de
gêneros, nacionalidades, etnias ou religiões. Essas sociedades apresen-
tam problemas em termos de representatividade política e de acesso
aos direitos pelos grupos heterogêneos presentes nelas. De acordo
com Stuart Hall,

[...] multicultural é uma sociedade na qual em seu interior convivem


comunidades culturais distintas, e os problemas governacionais
que por esta convivência aparecem. Ou seja, o termo multicultural
significa que certa sociedade é culturalmente heterogênea, o que
vai totalmente de encontro com o denominado Estado-nação mo-
derno. (HALL, 2008, p. 53)

O multiculturalismo, por sua vez, representa estratégias promovidas


por governos, ou seja, políticas públicas que têm como objetivo reduzir
desigualdades e inserir grupos sociais diversificados, antes socialmen-
te excluídos dos direitos políticos, sociais e civis. Temos como exemplo
leis que promovem políticas de cotas em concursos públicos ou elei-
ções; equiparação salarial, independentemente de raça ou gênero; di-
reitos ao casamento, herança e liberdade religiosa. O multiculturalismo
promove a pluralidade de identidades culturais e combate hierarquias e
padronizações preconceituosas. Trata-se do direito à diferença, que visa
ampliar direitos aos segmentos que são marginalizados da sociedade
devido às suas diferenças culturais, além de garantir a liberdade para
que diversas formas de identidade possam coexistir de maneira pacífi-
ca, respeitando-se os comportamentos uns dos outros.

128 Ética, cidadania e sustentabilidade


2 Questões de gênero no cenário
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internacional
O feminismo não deve ser considerado a antítese do machismo,
mas a superação deste último. Ou seja, o feminismo não é uma espécie
de vingança contra o machismo. É um movimento social que busca a
igualdade entre gêneros e a eliminação das disparidades em termos
de direitos políticos, econômicos e sociais, além de lutar pelo respeito
às mulheres e se opor às subjugações e violências historicamente im-
postas pelo machismo. Portanto, trata-se da conquista de direitos e de
igualdade de condições entre homens e mulheres.

Céli Regina Pinto, em seu artigo “Feminismo, história e poder” (PINTO,


2010), destaca três “ondas” ou fases do feminismo na cultura ocidental.
Quando falamos em “onda”, referimo-nos à forma como o movimento
feminista pressionou governos em diferentes países com o objetivo de
ampliar direitos e consolidar a igualdade entre gêneros, com base em
reivindicações políticas estabelecidas segundo determinados contex-
tos históricos, que veremos a seguir.

A primeira onda feminista consolidou-se no final do século XIX até a


quarta década do século XX. Esse período caracterizou-se pela expan-
são da industrialização, da urbanização e dos movimentos sindicalistas,
que lutavam pela expansão da participação política. A principal pauta fe-
minista dessa fase girou em torno do caráter sufragista (ou do sufrágio
universal), isto é, do direito de votar, eleger representantes mulheres e ter
participação na vida política da sociedade. Essa fase questionou o papel
de submissão das mulheres em relação aos homens, pois estavam res-
tritas à vida privada, aos cuidados com o lar e a família. Fez-se um mo-
vimento de dar voz às mulheres no que diz respeito ao espaço público.

A segunda onda feminista é iniciada na década de 1950, porém foi


nas décadas de 1960 e 1970 que ganhou mais força. Nessa fase, as
pautas políticas eram dadas pelas lutas relacionadas ao direito ao corpo

Relações de gênero 129


e ao prazer e contra o patriarcado, ou seja, fazia-se oposição à condição

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de submissão das mulheres em relação aos homens nas esferas pública
e privada. Surgiram questionamentos sobre as limitações das funções
das mulheres na sociedade, sua objetificação e sexualização (sobretudo
por meio da indústria da propaganda). As mulheres estavam relegadas
a um papel reprodutivo e sexual, deviam subserviência a seus maridos e
outros homens e viviam à mercê da violência praticada por estes.

Na década de 1960, a pílula anticoncepcional foi vista como uma


invenção revolucionária, pois concedia às mulheres o direito de querer
ou não ser mãe, e quando. Essa geração é também conhecida como a
do feminismo radical e promoveu reflexões e reivindicações políticas
em torno do direito reprodutivo, da sexualidade e de políticas de saúde.
Questionou, ainda, diferenças salariais e de postos no mercado de tra-
balho em relação aos homens. Foi um movimento que abrangeu princi-
palmente mulheres brancas de classe média e com acesso à educação,
sobretudo à universidade. A pensadora norte-americana Angela Davis
(1944-) foi pioneira ao questionar que, ao lado das desigualdades de
gênero, deve-se problematizar a questão das mulheres negras, cujas
ocupações sociais são inferiores (e por isso piores) em relação às das
mulheres brancas. Além disso, a segunda onda, gradualmente, deu voz
também às lutas do movimento de lésbicas contra o preconceito.

A organização das lutas feministas na segunda onda buscou pro-


mover o empoderamento feminino por meio de movimentos coletivos
que demonstravam que a condição de exploração das mulheres era um
problema universal. Por isso, vislumbrava-se a necessidade de um mo-
vimento feminista unificado e universal contra o patriarcado, presente
em todas as sociedades e suas instituições.

Essas pautas foram introduzidas no mundo acadêmico, fomentando


várias gerações de mulheres intelectuais que passaram a ganhar des-
taque na sociedade por observarem a importância da criação de uma
epistemologia feminista, ou seja, um campo científico promovido por
mulheres, a partir de suas críticas, com metodologias e vivências que

130 Ética, cidadania e sustentabilidade


pudessem conceber uma visão que representasse um contraponto às
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visões machistas disseminadas na sociedade.

Figura 1 – Símbolo do movimento feminista

Enquanto a segunda onda se caracterizou pelo entendimento da uni-


versalidade e crítica às estruturas, instituições e relações sociais ma-
chistas opressoras, enxergando a necessidade de um movimento femi-
nista coletivo, amplo e em todas as nações, a terceira onda rompeu com
esses paradigmas. Isso porque sua origem remonta à década de 1990,
ou seja, ao contexto de colapso da União Soviética, fim da Guerra de Fria
e ascensão da globalização e do neoliberalismo. O maior acesso às tec-
nologias de informação produziu a fragmentação e diferenciação das
pautas feministas, dissolvendo seu caráter padronizado em nome de
narrativas que dão conta de descrições que desconstroem um sentido
único e universal da categoria mulher como um sujeito único e coletivo.

A terceira onda procurou demonstrar que nem todas as mulheres


passam exatamente pelas mesmas opressões, pois estas variam con-
forme as condições de raça, religião, região, gênero e classe social,
constituindo o que se designa como interseccionalidade. Esse con-
ceito emerge a fim de que mulheres possam analisar e criar distintas

Relações de gênero 131


estratégias de luta contra formas variadas de opressão do patriarcado.

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Assim, as mulheres passaram a ser inseridas em novas e diversificadas
militâncias, que atendem a necessidades específicas interseccionadas.
Trata-se de reconhecer a variedade de identidades, de formas de ser e
de experiências feministas.

As críticas à terceira onda referem-se ao fato de que ela poderia criar


a individualização, a separação e o enfraquecimento da luta das mulhe-
res; há também o risco de sua capitalização pelo mercado, quando, por
exemplo, a imagem da mulher empoderada e batalhadora é emprega-
da como estratégia para a venda em massa de mercadorias. Contra o
risco de dissipação das lutas feministas diante da fragmentação das
pautas sobre as diferentes formas de ser mulher, criou-se o conceito de
transversalismo, o qual considera que deve haver união dos diferentes
movimentos, resguardando, contudo, suas particularidades. As políti-
cas transversais representam o diálogo e a compreensão entre as dife-
rentes condições em que as mulheres se encontram; visam combater
problemas comuns: machismo, preconceitos e desigualdades.

NA PRÁTICA

Pesquise em jornais, revistas e sites dados estatísticos que comparem


a situação da mulher no Brasil e no resto do mundo (principalmente em
outros países da América do Sul, na Europa, além dos Estados Unidos),
considerando os seguintes elementos:

• ocupação de cargos e profissões no mercado de trabalho;

• comparação de faixas salariais de homens e mulheres;

• índices de violência;

• índices de escolaridade.

Há ainda o debate contemporâneo a respeito da existência ou não


de uma quarta onda do feminismo. A terceira onda surgiu na década

132 Ética, cidadania e sustentabilidade


de 1990, ao lado da globalização e do maior acesso à informação. No
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entanto, a quarta onda estaria mais relacionada à popularização das re-


des sociais, a partir da década de 2010, com os celulares smartphones
conectados à internet e a possibilidade de produção de conteúdo nes-
sas redes por qualquer indivíduo. Isso teria posto fim ao monopólio de
sindicatos, universidades e, por vezes, meios de comunicação tradicio-
nais (como TV, rádio, jornais e cinema) na divulgação dos diferentes pro-
blemas enfrentados pelas mulheres. No Chile, por exemplo, em 2019,
mulheres organizadas nas redes sociais tomaram as ruas em diferentes
cidades do país contra as práticas machistas.

As redes democratizaram e deram voz às novas pautas, como tam-


bém permitiram crescentes denúncias à cultura do estupro, aos papéis
secundários ocupados principalmente por mulheres negras nos meios
de comunicação, aos abusos no mercado de trabalho e nas universi-
dades e ao silenciamento praticado por homens em atitudes como
mansplaining (quando homens explicam elementos óbvios a uma mu-
lher) e manterrupting (interrupções bruscas e permanentes de homens
quando as mulheres exercem a fala). Essa fase teria também como
uma de suas características uma maior crítica (se comparada à tercei-
ra onda) à forma como os meios de comunicação têm incorporado o
discurso feminista com a intenção de vender produtos, colocando em
dúvida as reais intenções do mercado ao veicular pautas de gênero e
progressistas em suas programações ou publicidades.

Ferreira e Aguinsky (2013) apresentam o histórico de conquistas so-


ciais LGBTQIA+. O movimento foi construído para reivindicar o direito
e a aceitação da diversidade de identidades de gênero na sociedade,
buscando a conquista da cidadania. Visa combater o preconceito e o
discurso de ódio, materializados em atitudes sobretudo homofóbicas
e transfóbicas. Outro elemento importante do movimento é ampliar a
representatividade política e social (em empresas, universidades, mer-
cado de trabalho, meios de comunicação, etc.) desses segmentos.

Relações de gênero 133


É importante ressaltar que, na cultura ocidental, houve diversas for-

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mas de perseguição aos indivíduos que não correspondiam ao que hoje
designamos como gêneros masculino e feminino. Na Idade Média, de-
vido a preceitos religiosos, era comum a condenação desses indivíduos
à morte, geralmente na fogueira. Mesmo as sociedades capitalistas do
século passado tendiam a reprimir comportamentos então considera-
dos pervertidos. Os segmentos denominados hoje como LGBTQIA+ ti-
nham seus comportamentos considerados como distúrbios, doenças
mentais que deveriam passar por uma cura científica.

Foucault (1985), no primeiro volume de A história da sexualidade, re-


flete sobre a passagem, a partir do século XIX, da condenação religiosa
para os tratamentos médicos/científicos que procuravam corrigir o que
se supunha serem comportamentos sexualmente indecentes. Médicos
nazistas, ingleses, franceses e norte-americanos, para tanto, promoviam
torturas, castrações químicas, estupros corretivos, lobotomias e trata-
mentos invasivos. Do ponto de vista jurídico, qualquer comportamento
considerado pervertido era visto como crime, havendo condenações e
prisões. Ainda hoje, em pleno século XXI no Ocidente, religiões conser-
vadoras e distantes do conhecimento científico sobre o tema condenam
a homo, bi e transexualidade, considerando-as doenças ou incorporação
de espíritos malignos. Países islâmicos radicais punem e matam.

Além desse discurso de ódio e do genocídio do grupo LGBTQIA+,


há ainda a segregação social e preconceitos. Sem acesso a estudos e
bons postos profissionais, esses segmentos são submetidos à violência
e sofrem com desigualdades econômicas e políticas, que geralmente
os conduzem ao subemprego, às ruas, à prostituição e à criminalidade,
sobretudo nos países mais pobres, como o Brasil, conforme veremos
mais adiante.

No ano de 1969, ocorreu a primeira importante rebelião promovida


por gays, lésbicas, travestis e drag queens pela conquista de direitos
civis, conhecida como Rebelião de Stonewall, em Nova York. Além de

134 Ética, cidadania e sustentabilidade


ter servido como inspiração para a criação do movimento, então co-
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nhecido como LGBT, a rebelião se caracterizou por representar a opo-


sição ao preconceito e às arbitrariedades sofridas por esses indivídu-
os, amplamente difundidas na sociedade norte-americana (e que em
certa medida permanecem até hoje em todo o mundo), principalmente
na forma de violência policial, colocando esses segmentos em situa-
ções humilhantes e degradantes. A partir dessa rebelião, surgiram, nos
Estados Unidos, três relevantes grupos: Gay Liberation Front (GLF), Gay
Liberation Movement e Gay Activists Alliance (GAA), os quais deram vi-
sibilidade às suas lutas políticas.

Como já mencionamos, a segunda onda do feminismo veio acompa-


nhada do fortalecimento do movimento de lésbicas entre as décadas de
1960 e 1980, que acabou por promover pautas independentes.

Figura 2 – Bandeira do movimento LGBTQIA+

A partir de então houve a disseminação de movimentos LGBTQIA+


pelo mundo. Em 1989, ocorreu, na Dinamarca, o primeiro casamento
gay e, portanto, a concessão de direitos civis a esses grupos sociais.
Depois disso, diferentes países europeus passaram a conceder direitos

Relações de gênero 135


civis aos LGBTQIA+, como Holanda, Suécia, entre outros, contribuindo

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para que a presença e a inserção desses indivíduos na sociedade não
fossem mais consideradas um tabu.

As principais pautas que envolvem os diferentes movimentos ao re-


dor do mundo hoje são: criminalização da LGBTfobia; luta para que a
medicina, a psicologia e o direito não considerem mais esses gêneros
doenças ou crimes, eliminando o discurso de “cura” do vocabulário cien-
tífico; reconhecimento dos governos a respeito da identidade de gênero,
permitindo legalmente que cada indivíduo escolha livremente a qual gê-
nero quer pertencer; Estado laico, direitos civis, políticos e econômicos
(casamento, mercado de trabalho, organização de partidos e eleição de
representantes, direito à herança, adoção de crianças e afins); e políticas
educacionais de conscientização, respeito e combate ao preconceito.

PARA SABER MAIS

O movimento LGBTQIA+ é representado pela bandeira com as cores do


arco-íris. O símbolo foi criado em 1978 pelo artista norte-americano Gil-
bert Baker.

3 Questões de gênero no Brasil


No Brasil, a primeira onda do feminismo se fez presente principal-
mente entre as décadas de 1930 e 1940, com as reivindicações para
obtenção do sufrágio universal. Além disso, a educação para mulheres
não era ampla ou pública no período, sendo restrita aos conventos, às
poucas escolas privadas ou ao ensino particular residencial. Ainda as-
sim, a ênfase dessa educação escassa era nas atividades domésticas, a
fim de que as mulheres fossem ensinadas a ser obedientes e úteis aos
seus maridos.

136 Ética, cidadania e sustentabilidade


As lutas feministas buscaram retirar as mulheres da esfera privada,
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conduzindo o movimento, no Brasil, à luta pela presença da mulher no


mercado de trabalho, nas universidades e na política. Nesse período,
destacou-se a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que foi
criada em 1922 por Bertha Luz e veio a ter papel importante no ano de
1932, no governo de Getúlio Vargas, para a consolidação do direito ao
voto no país. Mulheres ligadas aos movimentos operários no período
foram relevantes para denunciar a dominação masculina, alavancando
o debate em torno do direito ao divórcio, da equiparação salarial, da se-
gurança no trabalho, das liberdades sexuais e da participação política.
Apesar de o voto feminino ter sido liberado em 1932, havia restrições,
pois apenas mulheres com renda própria poderiam votar, portanto, esta-
vam excluídas mulheres pobres e separadas. Em 1934, os direitos polí-
ticos das mulheres foram ampliados, sendo permitido o voto para todas
acima de 18 anos.

A segunda onda do feminismo no Brasil, a partir da década de 1960,


trouxe questões em torno do direito reprodutivo e da sexualidade da
mulher. Havia o debate sobre as vestimentas femininas, num período
em que até mulheres grávidas eram constrangidas caso expusessem
suas barrigas em público. Contemporâneo à ditadura militar (1968-
1985), o movimento feminista do período opôs-se à opressão, censura
e pobreza e contribuiu para a luta em nome do retorno da democracia e
da anistia de presos políticos.

A terceira onda no Brasil foi introduzida a partir da década de 1980


e trouxe à tona problemas que relacionavam gênero feminino e raça
(conceito utilizado no sentido cultural e político, não biológico, conforme
vimos), evidenciando as condições às quais as mulheres negras estão
submetidas no país, discutidas no capítulo anterior. O olhar estava vol-
tado para as especificidades da realidade da mulher brasileira, sobre-
tudo a negra, por meio do conceito de interseccionalidade, tornando o
debate feminista no país menos dependente do norte-americano e eu-
ropeu. Fundamentava-se, no Brasil, o feminismo negro e a luta contra a

Relações de gênero 137


discriminação racial. Passaram a ser debatidos o genocídio da popula-

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ção negra, a condição de inferioridade política, econômica e social da
mulher negra e pobre em relação às opressões cometidas por homens
contra mulheres brancas e de classe média; surgem reflexões a res-
peito da solidão da mulher negra, sua sexualização pela mídia e pela
mentalidade machista; é reivindicado o direito à representatividade e à
visibilidade das mulheres negras na sociedade e nas instituições, como
nas universidades.

Especula-se que a quarta onda do feminismo no país ocorreu com a


popularização das redes sociais virtuais a partir da década de 2010. Os
novos mecanismos digitais de comunicação permitiram denúncias e o
combate contra assédios e violências (estupros, feminicídio e discrimi-
nações). Essas redes permitiram a expansão de debates em torno da
liberdade sexual e o questionamento de padrões corporais impostos pe-
los meios de comunicação. Embora esses movimentos tenham surgido
nas redes sociais, acabaram ganhando as ruas com protestos contra a
submissão feminina. Em 2018, durante as eleições presidenciais, mul-
tidões de mulheres promoveram oposição às visões conservadoras e
que se colocam contra o gênero feminino no país.

No que diz respeito ao movimento LGBTQIA+ no Brasil, a primeira


conquista relevante ocorreu na década de 1980, quando o denominado
Grupo Gay da Bahia condenou o termo “homossexualismo” (utilizado
para relacionar a condição gay a uma doença), promovendo campanha
nacional contra o uso da expressão, inclusive empregada e compreen-
dida como transtorno mental no Código de Saúde do Instituto Nacional
de Assistência Médica da Previdência Social. O objetivo foi promover
a despatologização da condição homossexual. Em 1985, o Conselho
Federal de Medicina atendeu à reivindicação do movimento.

É importante destacar o pioneirismo do Grupo Gay da Bahia quando


observamos que a Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo,
apenas no ano de 1990 retirou a homossexualidade da lista de doenças

138 Ética, cidadania e sustentabilidade


e distúrbios conhecidos, o que demonstra a revisão do perfil antes
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preconceituoso dessa instituição. Outro movimento relevante foi o do


Grupo Triângulo Rosa, que obteve êxito ao exigir de autoridades, em le-
gislações, nos meios educacionais e de comunicação, o emprego do ter-
mo “orientação sexual”, e não mais “opção sexual” ou qualquer outro ad-
jetivo preconceituoso quando houver referências às causas de gênero.

Em 1997, a primeira Parada LGBT na cidade de São Paulo foi um


marco que deu visibilidade à luta pela cidadania desses grupos. Reuniu
milhares de pessoas e tem crescido a cada ano, destacando o combate
ao preconceito e a necessidade de políticas inclusivas. A partir dela, no
Brasil ganhou força o tema da união civil entre indivíduos do mesmo
sexo. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça passou a permitir que
esses casais declarem em cartório a união civil estável. Hoje há amplo
debate no Congresso, com alguns retrocessos, sobre a legalização des-
sa modalidade de matrimônio.

No ano de 2018, foi concedido aos indivíduos transgêneros o direito


de modificação do nome social junto aos registros civis. Em 2008, o
SUS passou a oferecer o procedimento de redesignação sexual, mais
conhecido como “mudança de sexo”. Embora pouco aplicada devido ao
elevado conservadorismo no Brasil, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional), aprovada em 1996, prevê a educação para a igual-
dade racial, orientação e identidade de gênero. Infelizmente, o discurso
LGBTfóbico é bastante difundido nas instituições e entre autoridades
públicas, sendo comum também em lideranças religiosas antiprogres-
sistas, que tendem a perpetuar variadas formas de preconceitos contra
essa população, sem que haja conhecimento científico e respeito.

Há ainda muitas conquistas a serem alcançadas, a começar pelo


fim da violência e preconceito contra a população LGBTQIA+. Pesquisas
apontam que a expectativa de vida da população transgênero no Brasil
é uma das mais baixas do mundo. Ocorrem no país espancamentos
e práticas de intolerância deliberadas pelo simples fato de não haver

Relações de gênero 139


respeito à liberdade de expressão de gênero. No mercado de trabalho,

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nos meios acadêmicos e nos meios de comunicação, são raros os pro-
fissionais que têm liberdade para afirmar seu gênero, e a situação pio-
ra com os transgêneros, sendo boa parte marginalizada e sem acesso
à cidadania. Diante desse cenário, têm ganhado destaque no Brasil os
chamados mandatos coletivos, caracterizados quando um cargo legis-
lativo tem um ocupante eleito, porém é compartilhado com um grupo
de cidadãos que apresenta bandeiras e lutas semelhantes. Dessa for-
ma, as decisões são tomadas e debatidas coletivamente e em nome de
uma causa comum. Devido ao pequeno número de candidatos e políti-
cos que assumem a condição e a luta LGBTQIA+, nas últimas eleições
tem crescido a eleição de candidatos com mandatos coletivos, a fim
promover a representatividade política nas esferas públicas nacionais.

PARA SABER MAIS

Pesquise em jornais, revistas e sites dados estatísticos que analisem no


Brasil, em relação à população LGBTQIA+:

• taxas de mortalidade e expectativa de vida;

• taxas de escolaridade e ocupação profissional;

• taxas de ocupação em presídios;

• políticas públicas em torno de questões como moradia e assistên-


cia médica.

Considerações finais
Estudamos, no primeiro tópico do capítulo, os conceitos de gênero e
sexo e observamos as suas respectivas relações com outros dois con-
ceitos: cultura e natureza. A distinção desses termos nos permitiu verifi-
car que o gênero é resultado da autonomia da cultura sobre a natureza,

140 Ética, cidadania e sustentabilidade


de forma que nem a sexualidade nem os gêneros são determinados
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biologicamente; são, na realidade, construções sociais e culturais que


podem ser modificadas ao longo dos séculos, variam de indivíduo para
indivíduo ou de sociedade para sociedade. Analisamos também o signi-
ficado da sigla LGBTQIA+.

No segundo tópico, abordamos o histórico das principais lutas e con-


quistas que acompanharam as denominadas quatro ondas do feminis-
mo no mundo ocidental, desde o final do século XIX até o período que
corresponde ao século XXI, e analisamos as conquistas políticas dos
segmentos LGBTQIA+, cujas lutas e reivindicações tornaram-se mais
efetivas principalmente a partir da segunda metade do século XX. Em
seguida, no terceiro tópico, avaliamos como as questões de gênero fo-
ram construídas no Brasil, destacando os dilemas em nosso território e
as conquistas que ainda precisam ser realizadas.

Referências
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ções para uma abordagem semiótica das três noções. Revista de Ciências
Humanas, Florianópolis, n. 39, p. 199-218, abr. 2006.

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ciais de sexualidade e gênero: análise do acesso às políticas públicas. Revista
Katálysis, v. 16, p. 223-232, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rk/
v16n2/08.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 1985.

Relações de gênero 141


HALL, Stuart. A questão multicultural. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades

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JAIME, Pedro; LUCIO, Fred. Sociologia das organizações: conceitos, relatos e


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SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica (1943).


Petrópolis: Vozes, 2001.

142 Ética, cidadania e sustentabilidade


Capítulo 7
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Sustentabilidade:
fundamentos e
definições

Neste capítulo estudaremos o debate em torno do conceito de sus-


tentabilidade. É importante destacar que o primeiro passo para a com-
preensão desse conceito é estudar a sua origem, a partir de questões
e problemas sociais e ambientais resultantes do modelo de produção
capitalista, que, desde seu surgimento, entre os séculos XVIII e XIX,
mostrou-se predatório. Veremos que foi na segunda metade do século
XX que passaram a ser debatidas as questões ambientais sem desvin-
culá-las dos problemas sociais históricos. Foi nesse período que inicia-
ram-se projetos que poderiam contribuir para o que é designado como
desenvolvimento sustentável.

Na segunda parte deste capítulo, investigaremos as concepções


e aplicações da sustentabilidade nas áreas ambiental, social, cultural,

143
política e econômica e como elas podem contribuir para reduzir as desi-

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gualdades sociais e promover direitos de cidadania.

1 A formação da sustentabilidade como


questão política e socioambiental
Ao falarmos de sustentabilidade de forma mais ampla, devemos en-
tender que o termo expressa qualquer forma de equilíbrio entre a pro-
dução, o consumo, o bem-estar social e a preservação do meio em que
vive determinada comunidade. A sustentabilidade pode estar presente
em qualquer sociedade que contemple o referido equilíbrio, a exemplo
das indígenas. Ao desmatarem um pequeno pedaço da floresta para
construir suas habitações ou ao caçarem e cultivarem produtos agrí-
colas, essas sociedades não produzem efeitos devastadores sobre o
meio em que vivem. Elas produzem, dessa forma, a qualidade de vida
dos seus membros. Há equilíbrio entre os recursos obtidos e o habitat.
A questão é saber se seria possível tornar sustentável uma sociedade
como a nossa, historicamente caracterizada por um modo de produção
industrial predatório. O debate gira em torno da possibilidade ou impos-
sibilidade de sociedades com alto nível de desenvolvimento industrial
praticarem a sustentabilidade.

Leonardo Boff, no livro Sustentabilidade: o que é – o que não é (BOFF,


2012), antes de definir o conceito de sustentabilidade, nos indica a ne-
cessidade de tomar conhecimento das questões sociais e ambientais
que envolvem o passado e o presente do modo de produção capitalista.
O autor expõe alguns dados: em 2008, havia 860 milhões de famintos
no mundo, demonstrando o parco interesse político internacional pela
eliminação da miséria. Além disso, China e Estados Unidos, num pas-
sado recente, não se comprometeram com metas ousadas para a redu-
ção de gases poluentes causadores do aquecimento global – 7% dos
países mais ricos são responsáveis por metade da poluição produzida
no planeta (BOFF, 2012). As atuais taxas de crescimento econômico e

144 Ética, cidadania e sustentabilidade


consumo levam a projeções dramáticas: especula-se que, até o final
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desse século, caso mantenhamos nossas matrizes energéticas e for-


mas pouco ecológicas de produção, três planetas equivalentes à Terra
serão necessários para suprir as demandas apenas dos Estados Unidos.

Ao buscarmos a sustentabilidade, torna-se necessário considerar


a existência da dívida social, ou seja, a existência de desigualdades so-
ciais e formas predatórias de ação sobre o meio ambiente, a fim de
compreendermos os motivos que fazem com que haja certa urgência
de atitudes e práticas responsáveis por parte das organizações que en-
volvem os setores públicos e privados. O conceito de dívida social é
muito amplo. Representa primeiramente uma longa e duradoura dívida
histórica das autoridades ou governos em relação à ausência de po-
líticas sociais eficientes para combater a miséria e a pobreza de seu
povo. No Brasil, por exemplo, estudamos a exploração da mão de obra
escrava e indígena durante a colonização. A escravidão deu origem a
muitos de nossos problemas sociais atuais, como a expansão de fave-
las, o aumento da criminalidade, questões de saúde devido ao fato de
não haver investimentos adequados na área de saneamento básico, o
aumento da pobreza, o êxodo rural, entre outros que são resultado da
falta de investimentos no setor social.

As grandes potências industriais europeias e os Estados Unidos fo-


ram responsáveis, nos últimos séculos, pelo crescimento e expansão de
fábricas e cidades, o que provocou grandes transformações paisagísti-
cas e, consequentemente, danos ambientais e sociais. Promoveu-se o
desequilíbrio entre a produção e o consumo, houve o aumento da pobre-
za e negligenciou-se a preservação do meio em que a humanidade vive.
Os efeitos ambientais disso foram desastrosos e trouxeram uma série
de problemas sem precedentes na história e que impactam a qualidade
de vida dos cidadãos, como o aquecimento global, o aumento do nível
dos oceanos, o uso de produtos químicos (como agrotóxicos) prejudi-
ciais à saúde e a pobreza.

Sustentabilidade: fundamentos e definições 145


Boff (2012) usa o termo “antropoceno” para se referir à nossa época.

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Em 1995, o prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, caracterizou o eco-
cídio, ou seja, a ação predatória do atual sistema de produção, inaugu-
rador de uma nova era geológica, denominada antropoceno. Essa nova
era é marcada por grandes catástrofes e pela dizimação e extinção de
várias espécies, inclusive de populações humanas. Esse período, avalia-
do como sendo de obscuridade, é a expressão da irracionalidade huma-
na ao lado da ganância, que visa a lucros cada vez maiores, obtidos de
maneira irresponsável.

Reconhecer a dívida social é o primeiro movimento para a promoção


da sustentabilidade em nossa sociedade. Em seguida, essa dívida deve
ser convertida em retorno, retratação ou compensação dos Estados
e empresas à sociedade, através de programas sociais e ambientais.
Elevados lucros foram obtidos historicamente mediante o emprego de
métodos que deram origem a desigualdades, diluíram culturas tradicio-
nais e provocaram danos ambientais.

Em 1972, a ONU promoveu o primeiro grande encontro com empre-


sários, governantes e ONGs para debater questões em torno do meio
ambiente, evento que ficou conhecido como Conferência de Estocolmo,
na Suécia. Considera-se a reunião um fracasso, pois nenhuma ação in-
ternacional de curto prazo foi tomada. Alguns estudiosos tomam a reu-
nião como um importante marco para as questões ecológicas, já que
foi a primeira vez que se estipularam internacionalmente princípios rela-
cionados à necessidade de preservação do meio ambiente e da espécie
humana. Os críticos afirmavam a não existência do que é chamado hoje
de aquecimento global, pois visavam apenas aos próprios interesses
econômicos, pouco importando as questões ambientais. Outros grupos
de empresários mais radicais, o chamado Clube de Roma, preocupados
com as mudanças climáticas e ações contra o meio ambiente, sugeri-
ram o “desenvolvimento zero”, ou seja, o congelamento ou a paralisação
imediata de todo e qualquer desenvolvimento econômico como única
forma de interromper a destruição do meio ambiente. Ainda outros

146 Ética, cidadania e sustentabilidade


grupos, menos radicais, propunham que apenas o desenvolvimento tec-
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nológico poderia salvar o planeta. É evidente que nenhuma solução foi


tomada. Havia pouco conhecimento científico dos verdadeiros impac-
tos da ação humana sobre a natureza na década de 1970.

A ONU, desde então, vem dando atenção especial ao debate rela-


cionado ao meio ambiente, ao lado do desenvolvimento social e da
produção mais limpa. Uma das comissões que tratam desse assun-
to no âmbito da ONU é a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento. No ano de 1987, foi publicado o relatório Nosso Futuro
Comum, mais conhecido como Relatório Brundtland. Ele determinou,
pela primeira vez, o conceito de desenvolvimento sustentável, definido
como o desenvolvimento que “satisfaz as necessidades presentes, sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas pró-
prias necessidades” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE
E DESENVOLVIMENTO, 1988). A elaboração do relatório contou com a
participação de governantes, de empresários do setor agrícola e indus-
trial, além de movimentos ambientalistas e sociais. Apontava-se pela
primeira vez a incompatibilidade entre o até então processo de indus-
trialização e a preservação do meio ambiente.

Mais conhecido como Nosso Futuro Comum, esse documento


apresentou o conceito de Desenvolvimento Sustentável, convidan-
do as pessoas a mudarem seus modos de vida para evitar desi-
gualdades sociais e degradação ambiental. Um dos principais re-
sultados dessa iniciativa foi a realização de uma nova Conferência
Internacional no Rio de Janeiro. (SERRÃO; ALMEIDA; CARESTIATO,
2012, p. 10)

No próximo capítulo, daremos maior ênfase ao histórico de confe-


rências da ONU e à aplicação do conceito de desenvolvimento susten-
tável. Por ora, é importante frisar que o desenvolvimento sustentável
é uma forma específica de sustentabilidade, mais precisamente que
deve estar presente em sociedades (como a nossa ou que possuem
relações econômicas com ela) com elevados patamares de produção

Sustentabilidade: fundamentos e definições 147


e consumo. O equilíbrio entre produção, consumo e desenvolvimento

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pode ocorrer na medida em que são realizados grandes esforços polí-
ticos e empresariais para a preservação do meio ambiente e melhorias
no campo social.

Dito de outro modo, o desenvolvimento sustentável representa a


relação de equilíbrio entre altos índices de consumo e produção em
sociedades que, com rigor, procuram posturas e atitudes eficazes em
nome da preservação do meio ambiente e do progresso social. Com
o Relatório Brundtland, a ONU solicitou um novo modelo de desenvol-
vimento e cooperação entre as nações, que aliasse desenvolvimento
tecnológico e industrial e preservação do meio ambiente e melhorias no
campo social. Isso implica o uso de fontes de energia renováveis (como
a eólica, a solar, entre outras), programas de reciclagem de lixo, controle
do consumo de energia e de matérias-primas dentro das empresas e
na sociedade. No final do século XX e início do XXI, o desenvolvimento
sustentável se tornou o tema mais importante e norteador dos debates
da ONU e das relações internacionais.

Figura 1 – O desenvolvimento sustentável

148 Ética, cidadania e sustentabilidade


Boff (2012) destaca que muitas vezes a noção de sustentabilidade
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é utilizada de forma rasa ou falsa, como uma espécie de modismo, ao


passo que há ainda um grande contingente de famélicos no mundo e
muitas empresas continuam provocando impactos sobre o meio am-
biente em sua cadeia de produção e consumo, da retirada da matéria-
-prima da natureza até o descarte. O autor considera que um conceito
legítimo de sustentabilidade deve estar relacionado com a elaboração
de um novo paradigma civilizacional, baseado no que denomina como
ecozoico, isto é, tendo a ecologia como o centro das preocupações.

Segundo Boff (2012), a sustentabilidade ecozoica deve promover o


desenvolvimento de tal forma que seja possível garantir a permanência
e perpetuidade do ser humano no planeta Terra. Na visão do autor, o pon-
to de partida deve ser a educação que direcione o estudante ao contato
com o meio ambiente. É necessário unir a ciência ocidental com o co-
nhecimento de sociedades tradicionais, como as indígenas da América
Latina, que desenvolveram técnicas e formas de cultivo com maior taxa
de produtividade e capacidade de controle de pestes se comparadas
aos métodos utilizados por nossa civilização contemporânea. Nesse
sentido, a sustentabilidade deve ser um novo começo, porém sem des-
cartar o progresso técnico e científico que se volte à capacidade de ge-
rar desenvolvimento social e proteção ao meio ambiente.

Michel Löwy, na obra O que é o ecossocialismo? (LÖWY, 2014), apon-


ta que o modelo de desenvolvimento sustentável vigente é financiado e
gerido pelas grandes organizações e empresas, produzindo a contradi-
ção que consiste no fato de que as grandes indústrias declaram desejar
a sustentabilidade, ao mesmo tempo que são as principais fomentado-
ras de desequilíbrios ambientais e desigualdades sociais. Löwy (2014)
compreende que o ecossocialismo exigiria a reorganização da cadeia,
que começa com a produção sustentável, passa pelo consumo e culmi-
na na defesa do meio ambiente. O equilíbrio ecológico deve ser resulta-
do da mudança estrutural do modo de produção, que deve abandonar
as imposições publicitárias que o mercado exerce sobre os consumido-
res a respeito do que deve ser adquirido ou comprado sem necessidade,

Sustentabilidade: fundamentos e definições 149


pois este modelo gera desperdício de energia, contradições sociais e

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excesso de poluentes. É necessária a criação de uma nova civilização,
mais democrática e solidária, que não seja vista primeiro como consu-
midora, mas como cidadã, e que possa de forma igualitária participar
das decisões econômicas e políticas, contribuindo para resolver tanto
problemas locais como questões globais.

Além disso, Löwy (2014) entende que o ecossocialismo representa a


defesa da terra, dos rios e das florestas contra a ação predatória de in-
dústrias e do agronegócio, que atuam em nome da obtenção de lucros,
desconsiderando os impactos ambientais e culturais. O autor cita como
exemplo a participação importante de indígenas na Conferência de
Cochabamba em Defesa da Mãe Terra e contra a Mudança Climática,
em 2010. Ele afirma que os indígenas produzem o ecossocialismo há
séculos, porque seu modelo de produção apresenta altos níveis de pro-
dutividade conciliados com o equilíbrio ambiental. Na Conferência de
Cochabamba, os indígenas conseguiram barrar, na Bolívia, o avanço de
multinacionais que colocavam em risco rios, a vegetação e a manuten-
ção das culturas tradicionais locais. Assim fica evidente que a noção de
sustentabilidade não deve estar restrita a uma visão ocidental e merca-
dológica, mas levar em consideração a integração com perspectivas de
outros povos e culturas, principalmente as tradicionais.

PARA SABER MAIS

Pesquise sobre movimentos sociais indígenas na América Latina que


lutam pela preservação do meio ambiente e de suas culturas. Analise
as pautas desses grupos, sua história e a forma como buscam maior
participação política, articulados ao desenvolvimento econômico.

Edson Passetti (PASSETTI, 2019) apresenta o conceito de ecopolítica


como alternativa ao modelo de monopólio de empresas e nações que
controlam e manipulam o meio ambiente em proveito próprio, ora cau-
sando devastação, ora produzindo proteção ambiental até o limite de

150 Ética, cidadania e sustentabilidade


seus interesses financeiros, caracterizando o que é denominado como
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ecocentrismo. A ecopolítica promove o desenvolvimento econômico de


forma social e autossustentável, levando em consideração o equilíbrio
entre a humanidade e o ambiente. Portanto, entende a sustentabilidade
não apenas em sua dimensão ambiental, mas também cultural, política
e econômica, tendo em vista a preocupação com a consciência ecoló-
gica para a preservação do planeta; a redução das disputas partidárias
sobre questões ambientais em nome da geração de consensos para
preservação da natureza; a valorização e o respeito à diversidade et-
nocultural; e a autonomia e capacidade decisória econômica e política
para a solução de necessidades locais (PASSETTI, 2019). A ecopolítica
corresponde a uma nova ética planetária que busca ampliar e articular
os cuidados das dimensões humanas com os cuidados com à vida e as
questões planetárias.

[...] podemos ampliar a problematização da governamentalidade


moderna ao sugerir que os problemas da “vida”, do “ambiente” e
do “governo” coincidem agora com a emergência da “ecopolítica”,
cristalizando, assim, uma relação de poder/saber que reorganiza
profundamente de maneira relacional os três movimentos cons-
titutivos da governamentalidade moderna: governo, população e
economia política. (MALETTE, 2011, p. 16)

No próximo tópico, estudaremos concepções de sustentabilida-


de aplicadas à economia, à cultura, à política e a aspectos sociais e
ambientais.

2 Concepções de sustentabilidade
Serrão, Almeida e Carestiato (2012), no livro Sustentabilidade: uma
questão de todos nós, apontam que o termo “sustentabilidade” tem ori-
gem na biologia, sendo empregado às sociedades humanas para se
referir ao desenvolvimento que se preocupa com o equilíbrio do meio
ambiente e com a qualidade de vida dos indivíduos. Na visão dessas
autoras, em nossa sociedade a sustentabilidade deve planejar o futuro

Sustentabilidade: fundamentos e definições 151


para que as próximas gerações tenham acesso a recursos e qualidade

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de vida, protegendo o meio ambiente. Sobre o conceito de sustentabili-
dade, afirmam:

[...] é usado para medir o quanto certo ambiente ou ecossistema


suporta mudanças sem ser totalmente destruído. Por exemplo,
quanto tempo uma floresta aguenta sem chuva ou o que acontece
com ela se uma determinada espécie deixar de existir [...] a ecologia
[...] criou esse termo para poder estudar a natureza e os processos
naturais e aplicar esses conhecimentos na conservação e preser-
vação desses ambientes naturais. Com isto, fica mais fácil saber
que ambientes são mais frágeis, suportam menos as mudanças
do ambiente, e assim podemos criar parques e reservas naturais
para conservá-los para o futuro, evitando que sejam destruídos.
(SERRÃO; ALMEIDA; CARESTIATO, 2012, p. 19)

A sustentabilidade social, segundo Serrão, Almeida e Carestiato


(2012), está vinculada à intenção de construir uma civilização capaz de
reduzir desigualdades sociais e promover equilíbrio entre a geração e a
distribuição de riquezas. É necessário eliminar a exclusão social e for-
necer condições de igualdade a partir de políticas de distribuição de ren-
da; promover direitos e a igualdade de gênero e raça, a fim de eliminar
disparidades no mercado de trabalho; estimular a universalização dos
direitos sociais, como o acesso à saúde, educação, moradia e aparelhos
culturais públicos (SERRÃO; ALMEIDA; CARESTIATO, 2012).

A respeito da sustentabilidade social, Boff (2012) analisa critica-


mente a situação brasileira, apresentando o dado de que 5 mil famílias
controlam 46% do PIB nacional. Além disso, em nosso país os gastos
com o pagamento de juros da dívida pública são maiores do que os
investimentos em programas sociais que permitiriam a redução das
desigualdades. Segundo Boff (2012), essas condições dificultam a re-
alização do desenvolvimento social no país de maneira ampla e justa.
Por isso, é preciso que ações em torno da sustentabilidade social não
surjam de modo vertical, de cima para baixo, a partir de projetos promo-
vidos apenas por governos e empresas. É preciso considerar e dar voz

152 Ética, cidadania e sustentabilidade


à percepção de problemas e possíveis soluções elaboradas pelos pró-
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prios segmentos que sofrem com as disparidades sociais. A reflexão de


Boff se direciona à conclusão de que os projetos sociais sustentáveis
devem estar articulados com a democratização do acesso à cidada-
nia, ou seja, aos direitos sociais, políticos e econômicos da população
mais pobre. Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, coexistem
o crescimento econômico e condições degradantes de vida da popula-
ção. Na imagem, vemos indivíduos em um lixão em busca de alimentos
ou de qualquer objeto que possa ser comercializado.

Figura 2 – A ausência de combate às desigualdades sociais

A sustentabilidade ambiental (ou ecológica) parte do princípio de que


a intervenção humana sobre os ecossistemas da Terra deve consolidar
o equilíbrio entre a utilização de recursos, o consumo e a recomposição
do meio ambiente, por exemplo, com a preservação de mananciais ou
o uso de fontes de energia renováveis. Ao lado do crescimento econô-
mico e do progresso industrial e tecnológico, deve-se buscar minimizar
tanto quanto possível os impactos sobre a natureza. De acordo com
Serrão, Almeida e Carestiato:

Sustentabilidade: fundamentos e definições 153


Esta dimensão propõe o uso dos ecossistemas com sua mínima

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destruição. Dessa forma, permite que a natureza encontre novos
equilíbrios de recomposição, por meio de uma utilização que obede-
ça ao seu ciclo natural de vida e renovação [...]. Para alcançar essa
dimensão, é essencial a promoção de mudanças no padrão de pro-
dução e consumo da sociedade, com a valorização dos produtos
gerados em processos socialmente justos, pautados no equilíbrio
ambiental. (SERRÃO; ALMEIDA; CARESTIATO, 2012, p. 21)

Boff (2012) avança no debate ao expor dados da ONU, divulgados


em 2010, que indicam que a biodiversidade na Terra sofreu queda de
cerca de 30% e as emissões de gases poluentes e responsáveis pelo
aquecimento global aumentaram cerca de 35% desde 1998, quando
essas medições começaram a ser feitas. O pensador aponta que a
destruição do meio ambiente, principalmente no final do século XX e
início do XXI, tem como origem a exploração autorizada por governos
mediante a privatização de recursos naturais (água, solo, energia, miné-
rios e vegetação), aliada ao aprofundamento das desigualdades sociais,
com a terceirização de serviços públicos como a educação e a saúde.
Mais uma vez, Boff alerta que ações individualizadas ou segmentadas
realizadas por empresas e governos em alguns setores ambientais são
poucos eficazes para a solução dos problemas ambientais no nível glo-
bal. Na realidade, deve haver políticas ambientais e o fortalecimento dos
direitos ambientais de maneira ampla, aliando processos universais de
educação e integração entre populações tradicionais, inovações tecno-
lógicas e promoção da cidadania.

PARA SABER MAIS

Colete dados de grupos sociais, empresas ou governos (no Brasil ou


em outros países) que promovem práticas de sustentabilidade social.
Apresente: a) quais grupos são auxiliados; b) quais os projetos e seus
impactos sobre esses grupos; c) uma comparação das condições des-
ses grupos antes e depois das intervenções.

154 Ética, cidadania e sustentabilidade


Serrão, Almeida e Carestiato (2012) apresentam a importância da
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sustentabilidade política. Ela é vista como essencial para a promoção


das demais formas de sustentabilidade, pois é entendida como o forta-
lecimento das instituições democráticas ao lado da ampliação de direi-
tos de cidadania, sobretudo das liberdades de expressão e organização
política e do livre acesso à informação e às tecnologias para que se pos-
sa produzir o bem comum e individual. Assim como Boff (2012), Serrão,
Almeida e Carestiato (2012) observam que o sucesso de projetos de
sustentabilidade está diretamente relacionado à participação política e
direta de segmentos vulneráveis da sociedade. Suas demandas devem
ser ouvidas e suas percepções devem ser levadas em consideração
para que os direitos humanos, a democracia, a proteção do meio am-
biente e a superação de desigualdades possam ser efetivadas.

Vale ressaltar também que a construção de projetos alternativos


de desenvolvimento deve envolver governos e a sociedade, daí
a necessidade de assegurar os canais e formas de participação
efetivas de todos os segmentos e grupos sociais, principalmente
daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade
social. As formas de participação vão desde as eleições, passando
pelo acompanhamento das ações que os nossos representantes
nos governos fazem quando são eleitos. A participação em con-
selhos, colegiados e em manifestações de rua também são exem-
plos de formas democráticas de participação. (SERRÃO; ALMEIDA;
CARESTIATO, 2012, p. 22)

A sustentabilidade cultural expressa duas dimensões. A primeira


delas é observada nos grandes centros urbanos modernos, quando
se verifica a diversidade cultural, ou seja, a heterogeneidade de etnias,
identidades e comunidades (como em favelas e periferias) hoje exis-
tentes nas metrópoles. A segunda dimensão diz respeito às culturas
tradicionais, sobretudo às comunidades locais, como as indígenas na
América Latina, que detêm conhecimentos e formas de equilíbrio mile-
nares em relação à flora e fauna que compõem o seu meio ambiente.
Nos dois casos, isto é, tanto quanto à diversidade cultural presente nos

Sustentabilidade: fundamentos e definições 155


centros urbanos como fora deles, com as sociedades tradicionais, há a

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necessidade de consolidação dos direitos de cidadania das minorias,
além do respeito à memória, aos símbolos, às crenças, aos valores e à
identidade e da preservação dos modos de ser e existir desses grupos.
Deve-se conciliar o desenvolvimento tecnológico de maneira equilibra-
da com a diversidade cultural. Nessa direção, observa-se novamente a
importância da participação ativa dessas culturas e etnias num projeto
que permita o desenvolvimento local e global com menos impactos so-
bre a natureza e a redução das desigualdades sociais.

Na atual sociedade, os vínculos entre as comunidades são mais


fracos, as pessoas mantêm relações mais distanciadas. Uma for-
ma de melhorar isso são as associações e cooperativas, formas
de organização comunitária que costumam ser eficientes. Elas po-
dem ocorrer tanto no meio rural (onde a ação do Estado é menos
visível), visando à preservação do meio ambiente, das nascentes de
rios, criando programas de plantios para geração de renda, quanto
nos meios urbanos (onde a ação do Estado é ineficaz), com vistas
a melhorias no transporte, educação, saneamento, tratamento de
lixo, reciclagem e ocupação ordenada dos espaços, dentre outros.
As iniciativas devem partir das próprias pessoas, sejam mulheres,
jovens, crianças e idosos. Todos devem ter voz, pois podem contri-
buir com suas experiências e sabem os problemas e dificuldades
que enfrentam. O essencial é que as decisões sejam tomadas em
grupo, com a participação de todos. (SERRÃO; ALMEIDA; CARES-
TIATO, 2012, p. 23)

A sustentabilidade econômica, segundo Serrão, Almeida e Carestiato


(2012), é dada pela administração responsável dos recursos econômi-
cos (impostos ou investimentos, por exemplo) e naturais. Essa moda-
lidade de sustentabilidade deve garantir a integração entre o desenvol-
vimento das comunidades locais e da sociedade como um todo, por
meio de projetos que permitam alternativas econômicas para a geração
de valor e distribuição de riqueza. O objetivo é propiciar qualidade de
vida e redução de desigualdades. Comunidades carentes podem ser
beneficiadas com práticas econômicas que permitam a autogestão da

156 Ética, cidadania e sustentabilidade


produção, distribuição, consumo, poupança e crédito, fortalecendo la-
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ços sociais e comerciais. Dentre as alternativas econômicas no interior


da sustentabilidade econômica, destacam-se:

- Desenvolvimento econômico equilibrado entre as regiões do país


e do planeta, entre os diferentes setores econômicos;

- Segurança alimentar: garantia de produção de alimentos seguros


e saudáveis, com acesso por parte de todos os cidadãos;

- Capacidade de modernização contínua dos instrumentos de pro-


dução com acesso dos pequenos produtores;

- Economia solidária: fortalecimento das redes sociais produtoras.


(SERRÃO; ALMEIDA; CARESTIATO, 2012, p. 24)

Boff (2012) adverte que a busca incondicional pelo lucro e pelo


crescimento econômico historicamente foi responsável pelo processo
predatório de exploração do meio ambiente. O paradigma do desen-
volvimento na cultura ocidental está baseado no seu caráter industrial,
capitalista e consumista, de forma que a natureza é vista como objeto
a ser dominado e controlado pelo ser humano. Portanto, há uma contra-
dição desse modelo produtivo com a noção de sustentabilidade, pois a
natureza deve ser vista como protagonista, e não de forma passiva no
que diz respeito à nossa existência. Para que haja verdadeiramente a
sustentabilidade, é preciso, segundo Boff (2012), que ela seja inclusiva e
produza cooperação e desenvolvimento equilibrado coletivo em termos
políticos, econômicos, culturais, sociais e ambientais.

É necessário perceber que a construção de uma sociedade susten-


tável na cultura ocidental deve considerar as cinco dimensões da sus-
tentabilidade estudadas. Elas devem ser articuladas e não devem ser
tomadas de forma independente ou limitar-se a aplicações ou interven-
ções isoladas e distantes umas das outras. É fundamental que comu-
nidades, etnias, governos, instituições políticas e os produtores tenham

Sustentabilidade: fundamentos e definições 157


projetos democráticos que possam estabelecer a sustentabilidade da

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vida humana no planeta Terra.

Considerações finais
Investigamos, neste capítulo, o conceito de sustentabilidade.
Observamos que outras sociedades e civilizações diferentes da nos-
sa, como as comunidades indígenas da América Latina, desenvolvem
formas de produção milenares e em equilíbrio com o meio ambiente.
Nas últimas décadas, na cultura ocidental moderna, caracterizada pelo
seu modo de produção industrial e pelo elevado consumo, despertou-
-se uma maior consciência sobre os desequilíbrios sociais e ambien-
tais causados pelo progresso econômico, conduzindo-nos à revisão de
nosso modelo econômico e à criação do conceito de desenvolvimento
sustentável como alternativa para a organização da sociedade.

Assim, no primeiro tópico, estudamos os conceitos de ecossocialis-


mo e ecopolítica como alternativas para a articulação da sustentabili-
dade em nossa civilização. São noções que expressam a importância
de colocar o desenvolvimento econômico e social ao lado da proteção
do meio ambiente. E, no segundo, abordamos os debates e tipificações
no mundo contemporâneo que envolvem as sustentabilidades social,
ambiental, cultural, política e econômica.

Referências
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não é. Rio de Janeiro: Vozes,
2012.

COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso


Futuro Comum. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1988.

LÖWY, Michel. O que é o ecossocialismo? São Paulo: Cortez, 2014.

158 Ética, cidadania e sustentabilidade


MALETTE, Sébastien. Foucault para o próximo século: ecogovernamentalidade.
Material para uso exclusivo de aluno matriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o compartilhamento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo.

Ecopolítica, São Paulo, n. 1, p. 4-25, 2011. Disponível em: https://revistas.pucsp.


br/index.php/ecopolitica/article/view/7654/5602. Acesso em: 5 maio 2021.

PASSETTI, Edson (org). Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019.

SERRÃO, Mônica; ALMEIDA, Aline; CARESTIATO, Andréa. Sustentabilidade:


uma questão de todos nós. Rio de Janeiro: Senac, 2012.

Sustentabilidade: fundamentos e definições 159


Capítulo 8
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Desenvolvimento
sustentável

Este capítulo tem como objetivo a análise da concepção de desen-


volvimento sustentável e os processos históricos que conduziram à
construção desse conceito. Estudaremos, no primeiro tópico, os deba-
tes promovidos pela ONU que procuraram aliar de forma global o de-
senvolvimento econômico com a sustentabilidade. O segundo tópico
promove a discussão em torno dos limites e das potencialidades do
desenvolvimento sustentável, por meio da compreensão das relações
entre Estado, mercado, terceiro setor e cidadãos diante do desenvolvi-
mento sustentável.

161
1 Concepções de desenvolvimento

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sustentável
Apenas na segunda metade do século XX começou-se a falar gra-
dualmente na preservação do meio ambiente e o assunto tornou-se de
interesse das nações. A humanidade deu-se conta de que a produção
de energia e de armas nucleares e o uso de produtos químicos para
diversos fins poderiam simplesmente prejudicar a existência dos seres
humanos e de outras espécies no planeta. Isso significa que o período
de internacionalização do debate sobre a preservação do meio ambien-
te está diretamente relacionado com a consciência que a humanidade
começa a adquirir sobre os avanços destruidores de sua tecnologia.

A década de 1970 caracterizou-se pelo fortalecimento de ONGs e


entidades ambientalistas (caso do Greenpeace, surgido em 1971, e
da WWF, criada em 1961) preocupadas com a preservação do meio
ambiente e o combate à destruição da natureza. A Terra passou a dar
alertas sobre a ação predatória exercida principalmente pelo modelo
de industrialização disseminado por países da Europa e pelos Estados
Unidos. Verificou-se o aumento da temperatura, a redução das cama-
das de gelo nos polos, a extinção de animais, a redução das florestas.
Iniciou-se uma longa e intensa campanha para a preservação do meio
ambiente e em busca de novas formas de desenvolvimento, o que, com
o passar dos anos, atraiu a atenção de toda a sociedade. Na Conferência
de Estocolmo (1972), na Suécia, primeira reunião organizada pela ONU
para debater o meio ambiente, como já mencionado, utilizava-se o con-
ceito de ecodesenvolvimento. Como a própria denominação indica, a
ênfase dos debates estava na questão dos impactos do desenvolvimen-
to industrial sobre o meio ambiente. Segundo Dias (2006):

Na segunda metade do século XX, com a intensificação do cres-


cimento econômico mundial, os problemas ambientais se agrava-
ram e começaram a aparecer com maior visibilidade para ambos
os setores da população, particularmente dos países desenvolvi-

162 Ética, cidadania e sustentabilidade


dos, os primeiros a serem afetados pelos impactos provocados
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pela Revolução Industrial. (DIAS, 2006, p. 12)

Vimos, no capítulo anterior, que, em 1987, a ONU elaborou o Relatório


Brundtland (conhecido também como o documento Nosso Futuro
Comum). Nesse relatório, evidenciou-se a necessidade de articulação e
coexistência da sustentabilidade ambiental com medidas econômicas,
políticas, sociais e culturais, fomentando o conceito de desenvolvimen-
to sustentável e ampliando o debate em relação ao meio ambiente e
para além dele. A definição de desenvolvimento sustentável foi compre-
endida como a maneira de as gerações atuais conseguirem satisfazer
as suas necessidades de consumo sem comprometerem as gerações
futuras e de obterem recursos para garantirem a sobrevivência.

O ano de 1992 é considerado relevante para a construção do con-


ceito de desenvolvimento sustentável. No Rio de Janeiro, foi realizada
pela ONU a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (CNUMAD), reunião conhecida como ECO-92 (ou sim-
plesmente Cúpula da Terra). Essa conferência foi um marco, pois os
países resolveram dialogar e assumiram a existência de uma situação
urgente em torno do tema do meio ambiente.

Cento e setenta e nove países assinaram um importante documen-


to, a Agenda 21, que estabeleceu um programa extenso baseado em
40 capítulos em que se institui a necessidade do desenvolvimento sus-
tentável numa escala planetária. A Agenda 21 pode ser lida como um
dos mais importantes documentos internacionais publicados no século
XX. Na realidade, é o resultado de um intenso debate e de uma maior
consciência dos problemas ambientais. O nome “Agenda 21” é utiliza-
do em virtude da intenção de modificar, para o século XXI, o padrão
de desenvolvimento econômico dos países. Trata-se de um documento
que estabelece planetariamente o desenvolvimento sustentável. É um
instrumento que avalia e planeja ações que direcionam as nações a
esse desenvolvimento, tendo em vista as peculiaridades geográficas e

Desenvolvimento sustentável 163


culturais de cada nação e das localidades, por meio do emprego de mé-

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todos que visam à preservação do meio ambiente, à igualdade social,
ao respeito à diversidade cultural e à busca pela eficiência na produção.

O livro Desenvolvimento sustentável: dimensões e desafios, de Ana


Luiza Camargo, publicado em 2005, apresenta uma importante compi-
lação dos múltiplos significados e entendimentos de desenvolvimento
sustentável. A autora, a partir de seus estudos, indica as variações desse
conceito, que, como vimos, surgiu primeiro com o Relatório Brundtland
e depois consolidou-se com a ECO-92.

Desenvolvimento sustentável é um conceito normativo que envolve


compromissos entre objetivos sociais, ecológicos e econômicos.
Abrange perspectivas econômicas, sociais e ecológicas de conser-
vação e mudança. [...] nova maneira de perceber as soluções para
os problemas globais, que não se reduzem apenas à degradação
ambiental, mas que incorporam dimensões sociais, políticas e cul-
turais, como a pobreza e a exclusão social. [...] é um processo de
desenvolvimento econômico em que se procura preservar o meio
ambiente levando em consideração os interesses das futuras ge-
rações, isto é, promovendo o desenvolvimento sem deteriorar ou
prejudicar a base de recursos que lhe dá sustentação. [...] é o mais
recente conceito que relaciona as coletivas aspirações de paz, li-
berdade, melhoria das condições de vida e de um meio ambien-
te saudável. Seu mérito reside na tentativa de reconciliar os reais
conflitos entre economia e meio ambiente e entre o presente e o
futuro. [...] pode ser também definido como um vetor no tempo de
objetivos sociais desejáveis, tais como: incrementos da renda per
capita, melhorias no estado de saúde, níveis educacionais aceitá-
veis, acesso aos recursos, distribuição mais equitativa de renda e
garantia de maiores liberdades fundamentais. [...] deve apresentar
uma perspectiva de desenvolvimento além do crescimento econô-
mico, reconhecer as múltiplas tradições culturais e crenças, trans-
cender o consumismo e fornecer uma estrutura de estilo de vida
mais desejável, enfatizar reformas estruturais para equidade inter-
na e global e delinear efetivos planos legais e institucionais para a
manutenção ambiental [...]. O desenvolvimento sustentável é uma
estratégia através da qual comunidades buscam um desenvolvi-
mento econômico que também beneficie o meio ambiente local e

164 Ética, cidadania e sustentabilidade


a qualidade de vida [...], na tentativa de conciliar eficiência econô-
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mica, justiça social e prudência ecológica [...]. O termo desenvolvi-


mento sustentável é uma combinação profética de duas palavras
que unem ambos os aspectos, progresso econômico e qualidade
ambiental, em uma só visão [...], é uma ideologia, um valor, uma éti-
ca [...] uma declaração moral sobre como deveríamos viver sobre o
planeta e uma descrição de características físicas e sociais que de-
veriam existir no mundo. [...] apesar da diversidade de abordagens,
todas parecem buscar traduzir o espírito de responsabilidade. (CA-
MARGO, 2020, p. 72-74)

Com base nas múltiplas características do desenvolvimento sustentá-


vel destacadas por Camargo (2020), pode-se perceber que todas conver-
gem para dois aspectos centrais. Primeiro, a necessidade global de adotar
estratégias conjuntas entre governos, mercado e sociedade civil para a re-
alização de ações igualmente interdependentes, que envolvam a proteção
ambiental e de culturas tradicionais, o progresso econômico, a redução da
desigualdade social e a ampliação da participação política. Como consequ-
ência (e este é o segundo aspecto), deve-se considerar o desenvolvimento
sustentável um novo pacto social, de forma inédita global, que visa conso-
lidar e inaugurar princípios civilizatórios, constituindo por isso uma nova
ética e um compromisso moral. O objetivo dessas novas práticas civiliza-
tórias é garantir a responsabilidade perante as gerações futuras a partir da
racionalização, no presente, da forma como garantimos nosso sustento,
além de consolidar a sustentabilidade na cadeia de produção, trabalho,
consumo e descarte de mercadorias.

O desenvolvimento sustentável surge como alternativa e solução


para o modelo de produção predatório vigente. No lugar deste, procu-
ram-se novas estratégias, sustentáveis, considerando a existência de
altos níveis de progresso tecnológico, a necessidade do consumo de
formas de energia renováveis, a conscientização da população, a pre-
servação do meio ambiente e de outras sociedades ou culturas.

Consolidado o conceito, a ONU promoveu, nos anos seguintes, uma sé-


rie de conferências, cuja intenção foi delinear ações globais efetivas em

Desenvolvimento sustentável 165


direção ao desenvolvimento sustentável. No ano de 1997, foi realizada, na

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cidade de Kyoto (Japão), uma das reuniões mais relevantes sobre o de-
senvolvimento sustentável. Pela primeira vez, buscaram-se efetivamente
alternativas para a redução de gases poluentes e nocivos ao planeta.

O chamado Protocolo de Kyoto corresponde a um extenso com-


promisso ambiental, social e econômico entre praticamente todas as
nações do mundo que entrou em vigor no mesmo ano da reunião. O
protocolo estabeleceu metas de redução de gases que contribuem ne-
gativamente para o efeito estufa, liberados na atmosfera principalmen-
te pelas nações mais desenvolvidas. Além disso, promoveu políticas
econômicas inéditas de práticas limpas e ecologicamente corretas ao
incentivar a substituição de produtos e fontes de energia (por exemplo,
o petróleo) por outras menos poluentes (por exemplo, a energia solar, a
eólica e o biodiesel). Também instituiu que se reduzissem em torno de
5,2% os gases poluentes entre os anos de 2008 e 2012. Essa meta de
redução dos gases não foi idêntica para todos os países, variando de
acordo com o grau de desenvolvimento industrial e da poluição emitida.
A União Europeia ficaria responsável por uma redução por volta de 8%.
Os Estados Unidos deveriam ficar responsáveis por uma redução de
7%, enquanto o Japão, de 6%. Países em processo de desenvolvimento
econômico e industrial teriam metas menores, como é o caso de Brasil,
Índia, China, México e África do Sul, até pelo menos alcançarem seu
progresso e índices melhores de qualidade de vida para sua população.

Oitenta e quatro nações assinaram incondicionalmente o protoco-


lo, inclusive aceitando criar legislações em seus países para barrar o
intenso processo de destruição do meio ambiente. Já Estados Unidos
(responsável por 35% das emissões), Canadá, Rússia e Austrália, que,
juntos, representam mais de 50% das emissões de poluentes, se recu-
saram a concordar com o documento, julgando-o injusto por não insti-
tuir o mesmo percentual a todos os países. Os norte-americanos encer-
raram as negociações no ano de 2001, conduzindo o plano ao fracasso,
pois eram os maiores responsáveis pela emissão de gases poluentes.
O argumento das autoridades dos Estados Unidos era o de que não

166 Ética, cidadania e sustentabilidade


havia provas científicas suficientes para afirmar que a ação da huma-
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nidade seria verdadeiramente a principal responsável pelas mudanças


climáticas. A Rússia, segundo maior responsável pela emissão de ga-
ses poluentes, decidiu aderir ao protocolo apenas em 2004, já que este
era um pré-requisito para a sua inserção na Organização Mundial do
Comércio (OMC).

A participação do Brasil no Protocolo de Kyoto foi muito importante.


Uma de suas maiores contribuições foi a criação da proposta chamada
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Com esse mecanismo,
criou-se uma espécie de aporte aos países desenvolvidos que não con-
seguem praticar as metas estabelecidas pelo protocolo. A ideia é que os
países já desenvolvidos financiem ou custeiem políticas de preservação
do meio ambiente nos países em desenvolvimento ou mais pobres. Essa
prática ficou conhecida como créditos de carbono. Os países mais ricos
passam a compensar a poluição por eles produzida com a preservação
ambiental em países mais pobres, com a troca de recursos financeiros
ou bônus. Empresas que poluem mais podem obter, junto ao governo
de seu país, concessões para poluir (certificados chamados de Redução
Certificada de Emissões – RCE) desde que financiem políticas de preser-
vação em outras regiões ou países. Os créditos financiam políticas de re-
florestamento, a utilização de fontes de energia alternativas, a exploração
sustentável da biodiversidade, a preservação de culturas tradicionais, a
conservação de florestas, programas de reciclagem, entre outros aliados
da sustentabilidade econômica, ambiental, social e cultural.

O primeiro projeto de MDL (ou créditos de carbono) autorizado pela


ONU destinou-se ao aterro sanitário ou lixão de Nova Iguaçu, no Rio de
Janeiro. Os bônus foram trocados com um conjunto de empresas dos
Países Baixos. Essa ideia é muito aplicada em todo o mundo, ainda que
os Estados Unidos tenham se recusado a participar desse protocolo. O
projeto sustentável do lixão de Nova Iguaçu foi responsável por trans-
formar o gás metano, resultado da decomposição do lixo, em fonte de
energia elétrica, capaz de abastecer cerca de 60 mil residências.

Desenvolvimento sustentável 167


Em 2002, novamente a ONU buscou um novo acordo, agora em

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Joanesburgo, na África do Sul, num evento chamado Rio+10, em alu-
são aos dez anos decorridos desde a conferência realizada no Rio de
Janeiro, a ECO-92. ONGs, governos e empresários fizeram um balanço
dos últimos dez anos do texto da Agenda 21 e constataram que pouco
havia sido feito para preservar o meio ambiente e, pior que isto, a situa-
ção havia se agravado. Novos compromissos foram assinados, porém
os norte-americanos insistiam em defender a posição de que não há
comprovações científicas suficientes para provar que a responsabilida-
de pelas mudanças climáticas é humana.

No final de 2007, foi realizada em Bali (Indonésia) uma nova confe-


rência, dez anos após o Protocolo de Kyoto. A reunião é tida como his-
tórica. Nela, a Austrália assinou o protocolo, de modo que faltava ape-
nas os Estados Unidos assumirem um compromisso ambiental global.
Houve pressão da opinião pública internacional e, inclusive, de todas as
nações contra os americanos, e o país foi ameaçado de sofrer boicotes
e sanções econômicas internacionais. Devido a essas pressões, os nor-
te-americanos acabaram firmando o compromisso e, pela primeira vez,
reconheceram a relação entre os danos ambientais e a ação humana.
Em 2012 foi realizada a Rio+20, título em referência aos vinte anos da
ECO-92. Serrão, Almeida e Carestiato (2012) apresentam os prinicipais
pontos da Rio+20:

Dessa Conferência participaram 188 países. O objetivo era reforçar


o compromisso para com o desenvolvimento sustentável a partir
da formulação de um plano que possibilite que a população de
todo o mundo possa se desenvolver de modo digno, com o cui-
dado para que os recursos naturais sejam preservados para as
gerações futuras. Assim sendo, uma das mais altas expectativas
era a de que a Rio+20 conseguisse determinar metas concretas
e definitivas para um desenvolvimento sustentável, em diferentes
áreas, a serem oferecidas como uma solução aos países partici-
pantes [...]. Dois temas principais pontuaram a Conferência: 1) a
economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da
erradicação da pobreza; e 2) a estrutura institucional para o desen-

168 Ética, cidadania e sustentabilidade


volvimento sustentável [...]. O primeiro é considerado como uma
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forma alternativa de aplicar políticas e programas relacionados


com os compromissos do desenvolvimento sustentável em todos
os países da ONU. O segundo trata das discussões sobre a estru-
tura institucional na busca por melhorar a coordenação e a eficácia
das atividades desenvolvidas pelas diversas instituições do siste-
ma ONU que se dedicam aos principais pilares do desenvolvimento
sustentável (econômico, social e ambiental) [...]. Os países debate-
ram, principalmente, maneiras pelas quais os programas voltados
ao desenvolvimento econômico, ao bem-estar social e à proteção
ambiental podem ser organizados em esforços conjuntos, que re-
almente correspondam às aspirações do desenvolvimento susten-
tável. (SERRÃO; ALMEIDA; CARESTIATO, 2012, p. 185)

No ano de 2015, a ONU promoveu o Acordo de Paris. A conferência


é considerada sucessora do Protocolo de Kyoto, assim como foi tam-
bém responsável por aperfeiçoá-lo, pois os Estados Unidos, à época
presididos por Barack Obama, haviam se comprometido com políticas
voltadas ao desenvolvimento sustentável, sobretudo com a revisão das
práticas predatórias ambientais da produção norte-americana. O Brasil,
por sua vez, se comprometeu a diminuir o desmatamento e queimadas
de florestas. Portanto, o objetivo principal do Acordo de Paris era reduzir
as emissões de gases poluentes e expandir práticas sustentáveis so-
ciais e econômicas.

Em 2017, no entanto, os Estados Unidos deixaram de ser signatários


do acordo com a vitória de Donald Trump à presidência. No Brasil, com
a vitória de Bolsonaro, que assumiu o cargo de presidente em 2019,
houve desrespeito ao acordo, com índices de desmatamento e queima-
das recordes. Além disso, o governo brasileiro cancelou uma nova cúpu-
la da ONU sobre o clima que viria a ocorrer no Brasil em 2019. Em 2021,
a Cúpula do Clima foi realizada por videoconferência devido à pandemia
de Covid-19. Seu principal ponto foi tornar os Estados Unidos protago-
nista dos debates ambientais, após a postura negacionista característi-
ca do governo Trump. A principal meta anunciada pelo novo presidente
norte-americano, Biden, organizador do evento, foi a redução de 50%

Desenvolvimento sustentável 169


das emissões de gases de efeito estufa até 2030, o que estimulou a

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União Europeia e outras nações a buscarem metas mais ousadas.

PARA SABER MAIS

Elabore uma pesquisa investigando em jornais, revistas e artigos aca-


dêmicos o processo de evolução das propostas e metas dos países a
partir das conferências da ONU sobre o desenvolvimento sustentável.
Compare as práticas do bloco europeu, dos Estados Unidos e do Brasil.

2 As possibilidades e os limites do
desenvolvimento sustentável
Há intensos debates a respeito das práticas de desenvolvimento
sustentável. Suas possibilidades e limites giram em torno da capacida-
de ou não de Estados, governos e instituições privadas realizarem com
sucesso ações que promovam inclusão social, cuidados com o meio
ambiente e progresso econômico. Diante disso, na década de 1980,
com a ascensão do neoliberalismo, surgiram diversas práticas que leva-
ram a uma maior atuação do mercado e do chamado terceiro setor no
que diz respeito ao desenvolvimento sustentável.

PARA SABER MAIS

O neoliberalismo passou a vigorar nos anos 1980. Suas principais carac-


terísticas são a redução da participação do Estado na economia (o cha-
mado Estado mínimo, com privatizações e terceirizações) e drásticas
reduções de gastos públicos nas políticas de bem-estar social (educa-
ção, saúde, moradia, direitos trabalhistas), tendendo a transferir essas
ações ao mercado e ao terceiro setor.

170 Ética, cidadania e sustentabilidade


Para compreender o debate, é necessário investigar primeiro as
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dimensões que representam o Estado, o mercado e a sociedade civil


organizada (conhecida também como terceiro setor). O Estado é enten-
dido como um bem público e, enquanto tal, deve necessariamente agir
em nome de toda a sociedade, ou seja, do bem comum e dos direitos
à cidadania, conforme vimos anteriormente nos primeiros capítulos. O
mercado é dominado por grandes corporações particulares, médias e
pequenas empresas que contribuem para o movimento e desenvolvi-
mento da economia, geram empregos, pagam impostos e agem em
conformidade com as leis vigentes e criadas pelo Estado. O mercado
representa os interesses privados, ou seja, as expectativas de cresci-
mento e conquista de maiores fatias de consumidores e lucros, por isso
empresas privadas buscam a todo instante maximizar a venda de seus
produtos e serviços como garantia de sucesso individual (seja da em-
presa, seja do sujeito inserido no mercado). A sociedade civil organi-
zada, ou terceiro setor, expressa-se quando um ou mais cidadãos ou
empresas (ou seja, membros do mercado) se organizam e unem inte-
resses, por meio de instituições que passam a atuar ativamente no ce-
nário político, social, econômico e cultural, com o objetivo de reivindicar
direitos de grupos particulares ou interesses públicos (são exemplos:
sindicatos, academias de artes e letras, associações de moradores, em-
presas, movimentos populares). O terceiro setor refere-se ao que conhe-
cemos como organizações não governamentais, as chamadas ONGs.

Até a década de 1970, os Estados foram os grandes responsáveis


pelas políticas que promovem benefícios à sociedade, o que foi cha-
mado de política de bem-estar social. Ao promoverem a qualidade dos
serviços públicos, os Estados obtiveram como resultado a piora das
condições de seus orçamentos, pois não havia mais verba suficiente,
tampouco mão de obra capacitada e adequada em número e eficiência,
para conceder benefícios e suprir as necessidades de todos os cida-
dãos. Na década de 1980, as grandes potências econômicas e os pa-
íses subdesenvolvidos estavam endividados e assistiam à inoperância

Desenvolvimento sustentável 171


da administração pública frente aos interesses de seus cidadãos.

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Nesse contexto, emergiu o neoliberalismo e com ele o chamado tercei-
ro setor, como forma de suprir as demandas não atendidas pelo Estado.
Segundo Froes e Melo Neto,

Intelectuais, políticos, empresários e pesquisadores sociais apon-


tam distorções, culpam o governo, criticam as políticas públicas
e identificam gestores e instituições corruptas, ineficientes e ine-
ficazes. Muito se fala e pouco se faz de concreto e efetivo. Muitas
vezes, o que se fala esconde a inércia, o conformismo, a visão ba-
nalizada dos problemas, o ceticismo diante das questões sociais.
(FROES; MELO NETO, 2002, p. 15)

Esse cenário favoreceu a expansão do mercado e da iniciativa pri-


vada, de maneira que estes se tornaram gradativamente responsáveis
pela adoção de ações e projetos que fossem capazes de promover me-
lhorias sociais. Ao Estado restava apenas o auxílio com recursos es-
cassos à sociedade civil organizada para buscar reduzir os problemas
sociais. Foi assim que surgiu o chamado terceiro setor e a responsabi-
lidade social e ambiental. Portanto, o terceiro setor representa a socie-
dade civil organizada, que atua publicamente, sem fins lucrativos, no
cenário social e ambiental devido à ineficiência e ao processo de deca-
dência do Estado no gerenciamento das políticas de bem-estar social e
de cuidados com o meio ambiente.

Nesse ponto residem as críticas ao terceiro setor, pois verifica-se


uma nova dinâmica na sociedade, em que as organizações da socieda-
de civil passam a agir em nome do interesse público. Para alguns, isso
consiste na terceirização dos deveres fundamentais do Estado perante
os seus cidadãos e o meio ambiente. O terceiro setor recebe repasses
escassos do Estado ou elevadas quantias de empresas privadas que
obtêm em troca vantagens fiscais junto aos governos, como a redu-
ção de impostos. Dessa forma, as empresas e o terceiro setor promo-
vem ações e assumem responsabilidades que deveriam pertencer ao
Estado, afinal de contas os cidadãos pagam impostos para promover

172 Ética, cidadania e sustentabilidade


justiça social e proteção ambiental. Além disso, o terceiro setor possui
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elementos administrativos que são empregados pelo mercado, já que


as organizações que o compõem possuem administração próxima à da
iniciativa privada, sendo a principal diferença a não obtenção de lucros,
já que capta recursos e doações de empresas privadas ou recebe ver-
bas dos governos.

Questiona-se também se as empresas privadas promovem essas


contribuições à sociedade apenas com o objetivo de reforçar sua ima-
gem no mercado e ampliar a divulgação de seus negócios até o limite
de seus interesses lucrativos, de modo que muitos segmentos e regiões
de um país, quando desprovidos de mercado consumidor ou com pou-
ca atenção da mídia, acabam sendo descartados como alvo das ações
dessas organizações. A crítica, por isso, refere-se à transformação de
direitos políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais em mer-
cadorias com visibilidade midiática, com fins direcionados primeiro ao
consumo e só depois ao exercício da cidadania e da proteção ambiental.

Os defensores do terceiro setor avaliam as potencialidades a partir


das oportunidades que as práticas sociais e ambientais podem produzir
para a imagem das organizações privadas ao participarem ou contribu-
írem com os projetos do terceiro setor. Froes e Melo Neto elencam os
seguintes elementos favoráveis a essas ações:

Capacidade de improvisar, inovar e enfrentar os seus problemas;


aptidão para buscar novas alternativas de desenvolvimento; com-
petência para inovar em busca de novas formas de inserção social;
competência para gerar por si só renda e emprego; acessibilidade
(a serviços públicos essenciais e informações básicas para o exer-
cício da cidadania); capacidade de mobilizar-se em defesa de seus
interesses; aplicação de alto investimento no fator humano; ten-
dência à inversão e ao reinvestimento; dotada de vontade política
forte e com um projeto próprio de desenvolvimento; dotada de alta
mobilização e conscientização de seus membros; capacidade de
criar novas e diversas organizações sociais. (FROES; MELO NETO,
2002, p. 104)

Desenvolvimento sustentável 173


Essas oportunidades promovidas pelo mercado e pelo terceiro setor

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levaram à ascensão de conceitos como a responsabilidade social e am-
biental (RSA), ou seja, a uma forma de conduzir os negócios da empresa
de tal modo que ela se torne parceira e corresponsável pelo desenvol-
vimento sustentável. Assim, defende-se o compromisso empreendedor
das organizações privadas com o comportamento ético, que promova o
progresso econômico, político e social dos locais onde estão inseridas.

A RSA, também conhecida como empreendedorismo social e am-


biental, visa promover ações cidadãs da organização tanto no âmbito
interno (público interno), com a conscientização e educação responsá-
vel de seus colaboradores e a revisão de seus processos produtivos,
tornando-os ecologicamente corretos e apoiando causas sociais; quan-
to no âmbito externo (público externo), com práticas que auxiliem a im-
plementação dos direitos sociais e políticas que visem ao bem-estar da
sociedade, sobretudo contribuindo para suprir as demandas sociais de
populações excluídas ou carentes. Segundo Tachizawa (2005, p. 86):

Esse conceito deve expressar compromisso com a adoção e a di-


fusão de valores, conduta e procedimentos que induzam e estimu-
lem o contínuo aperfeiçoamento dos processos empresariais, para
que também resultem em preservação e melhoria da qualidade de
vida da sociedade do ponto de vista ético, social e ambiental. (TA-
CHIZAWA, 2005, p. 86)

Um dos temas que estão em pauta no gerenciamento das empre-


sas diz respeito às oportunidades de promover a visibilidade de marcas,
produtos e serviços através de condutas sustentáveis e empreendedo-
ras, que proporcionem benefícios às comunidades carentes. O empre-
endedorismo social e ambiental surge como um conceito fundamen-
tal tanto para promover a imagem de uma organização quanto para a
realização de programas sociais. Nesse sentido, procura-se diferenciar
o empreendedorismo empresarial do empreendedorismo social. O pri-
meiro visa à maximização e obtenção de lucros das empresas; o segun-
do representa a busca do retorno ou a aplicação de parte dos lucros de

174 Ética, cidadania e sustentabilidade


uma organização na sociedade, por meio de projetos socioambientais.
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Defensores do empreendedorismo social afirmam que promove-se,


com essas ações, a tomada de consciência dos cidadãos, dos cola-
boradores das organizações e do próprio Estado, por meio de práticas
que se comprometem com o desenvolvimento de uma sociedade mais
justa, reduzindo as desigualdades nos cenários econômicos, políticos
e sociais.

Cabe enfatizar que o empreendedorismo social e ambiental desponta


no século XXI como ferramenta gerencial relevante para as organizações
que procuram promover uma imagem responsável e positiva diante dos
cidadãos, consumidores e investidores. Criou-se uma nova oportunidade
de negócios, uma vez que o empreendedorismo aplicado à sociedade e ao
meio ambiente contribui para o desenvolvimento humano de segmentos
sociais que até então se encontravam excluídos e marginalizados.

PARA SABER MAIS

Pesquise em jornais, revistas e artigos acadêmicos práticas bem-su-


cedidas de empreendedorismo social e ambiental do lado do terceiro
setor. Investigue quais problemas foram solucionados, quais foram os
impactos sobre segmentos sociais e quais benefícios surgiram a partir
dessas ações.

De acordo com Froes e Melo Neto (2002), ao realizarem ações em


benefício da sociedade, as empresas produzem propostas de redução
dos problemas socioeconômicos, o que promove também a aprovação
de seus produtos e serviços pelos consumidores. Sob um ponto de vista
gerencial, o empreendedorismo social pode ser visto não apenas como
uma ferramenta útil para a promoção da solidariedade e conscientiza-
ção da sociedade, mas também como uma estratégia que pode atrair
novos lucros e investimentos. Froes e Melo Neto (2002) apontam nove
aspectos essenciais do empreendedorismo social e ambiental:

Desenvolvimento sustentável 175


a) cria novas interações entre as pessoas, fortalecendo laços de

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amizade, familiares e novas opções de trabalho e recreação; b) aju-
da a moldar as práticas e valores individuais, grupais e coletivos,
aguçando a percepção e a visão social das pessoas; c) conecta in-
divíduos, grupos, regiões e organizações; d) ajuda a construir novas
formas de convivência; e) contribui para a superação de problemas
sociais através da definição coletiva de objetivos, articulação de
pessoas e instituições; f) disponibiliza “saberes distintos” e os colo-
ca a serviço do interesse coletivo; g) constrói vínculos mais fortes
e consistentes entre as pessoas, grupos e instituições; h) promove
acordos de cooperação e alianças; i) cria e amplia alternativas de
ação. (FROES; MELO NETO, 2002, p. 41)

Os autores destacam ainda que o sucesso dos projetos realizados


pelo empreendedorismo social e ambiental depende de exigências fun-
damentais, dentre as quais destacam-se:

[...] mudanças de comportamento da população; preservação das


culturas locais; desenvolvimento de processos de participação;
introdução e prática de novas formas de inserção social; engaja-
mento das pessoas no processo; incentivo à iniciativa de autossus-
tentação; incentivo à adoção de comportamentos responsáveis e
éticos; garantia do uso sustentável de áreas naturais e da proteção
das culturas locais; e autogeração de renda e emprego. (FROES;
MELO NETO, 2002, p. 36)

O empreendedorismo social e ambiental gera debates em torno da


perda ou não da autonomia e das obrigações do Estado na realização de
projetos sociais e ambientais. Os defensores afirmam haver parcerias
entre os setores público e privado. Os críticos afirmam haver a terceiri-
zação ou privatização das responsabilidades elementares do Estado.

O comprometimento das empresas com as comunidades atingidas


pelas suas ações responsáveis requer o rigor dos projetos. Mais do que
o mero interesse estratégico no retorno financeiro à empresa, obtido
através da credibilidade alcançada perante a sociedade, os defensores
dessas práticas destacam que é preciso ter em mente que o projeto

176 Ética, cidadania e sustentabilidade


social e ambiental deve planejar e gerir muito bem qual o público-alvo
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e qual o retorno esperado em relação aos grupos sociais a serem auxi-


liados. Essas ações não se reduzem a um mero assistencialismo nem
a uma contribuição que não agregue valor à comunidade. O projeto so-
cial deve sempre visar à independência política, social e econômica dos
grupos auxiliados, para que possam gozar plenamente de seus direitos
sociais. Froes e Melo Neto afirmam que:

Num projeto de empreendedorismo social, o propósito não é o de


solucionar um problema social específico, mas o de “empoderar”
a comunidade local para que esta se mobilize e se fortaleça na
busca de soluções para os seus problemas prioritários [...]. Ao con-
trário dos projetos sociais tradicionais, cujo sucesso depende dos
seus gestores e dos beneficiários, os projetos do empreendedoris-
mo social baseiam-se fundamentalmente na ação e desempenho
dos atores sociais como sujeitos do seu próprio desenvolvimento.
(FROES; MELO NETO, 2002, p. 129)

Diante dessa perspectiva, considera-se que é preciso que a gestão


dos projetos sociais e ambientais promova e transmita conhecimentos
a respeito de estratégias de gerenciamento e administração, para que
a população aprenda a gerenciar seus recursos culturais, naturais e de-
mais potenciais locais, já que o objetivo é torná-las autônomas ou au-
tossuficientes. Os críticos dessas práticas apontam que é preciso ouvir
as demandas sociais e respeitar suas tradições culturais, a fim de que
o ponto de vista das empresas não subjugue e desmereça tais grupos.
Já os defensores afirmam que há a possibilidade de conciliação entre
geração de renda e preservação de traços culturais e do meio ambiente,
o que é essencial para obtenção de sucesso no gerenciamento desse
tipo de empreendedorismo.

A questão fundamental desse debate é que devemos sempre buscar


o respeito às diferenças culturais e, ao mesmo tempo, possibilidades
de inserção econômica dessas populações. Esse é um modo racional e
ético de combater as desigualdades sociais. As organizações passam a

Desenvolvimento sustentável 177


ser consideradas cidadãs e agentes de transformação social e ambien-

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tal à medida que realizam seus projetos nessas áreas, fortalecendo sua
imagem como entidades que assumem atitudes responsáveis.

Considerações finais
Estudamos, no capítulo, os significados de desenvolvimento susten-
tável e sua evolução, a partir das conferências da ONU, instituição que
passou, a partir da década de 1970, a promover a cooperação global em
torno de ações em prol das sustentabilidades política, econômica, cul-
tural, ambiental e social. No primeiro tópico, conhecemos importantes
conferências e documentos da ONU sobre o desenvolvimento susten-
tável, destacando-se a ECO-92, o Protocolo de Kyoto, a Agenda 21 e o
Acordo de Paris. Por fim, no segundo tópico, investigamos as poten-
cialidades e limites, ou seja, os argumentos favoráveis e contrários à
participação do mercado e do terceiro setor na promoção de práticas
ambientais e sociais.

Referências
CAMARGO, Ana Luiza de Brasil. Desenvolvimento sustentável: dimensões e de-
safios. Campinas: Papirus, 2020. (Coleção Papirus Educação).

DIAS, Reinaldo. Gestão ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade.


São Paulo: Atlas, 2006.

FROES, César; MELO NETO, Francisco Paulo de. Empreendedorismo social: a


transição para a sociedade sustentável. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2002.

SERRÃO, Mônica; ALMEIDA, Aline; CARESTIATO, Andréa. Sustentabilidade:


uma questão de todos nós. Rio de Janeiro: Senac, 2012.

TACHIZAWA, Takeshy. Gestão ambiental e responsabilidade social corpora-


tiva: estratégias de negócios focadas na realidade brasileira. São Paulo: Atlas,
2005.

178 Ética, cidadania e sustentabilidade


Sobre o autor
Material para uso exclusivo de aluno matriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o compartilhamento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo.

Paulo Niccoli Ramirez é professor de filosofia, sociologia, antro-


pologia e ciência política. Leciona na Escola Superior de Propaganda
e Marketing (ESPM), na Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo (FESPSP), na Casa do Saber e no Colégio São Luís.
Possui doutorado (2014) e mestrado (2007) em ciências sociais pela
PUC-SP (respectivamente nas áreas de concentração antropologia
e sociologia) e também bacharelado em ciências sociais (PUC-SP
– 2004) e filosofia (USP – 2007). É autor do livro Sérgio Buarque de
Holanda e a dialética da cordialidade.

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