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TIGAR
M A D E L E I N E R. LEVY
O DIREITO
E A ASCENSAO
DO
CAPITALISMO
Tradução de
RllY JUN^MANN
ZAHAR EDITORES
RIO l)E J A N E I R O
Título ortgtnal
Law and lha teixo «>/ Crtpifa2ls»i
P r o i b i d a a r e p r o d u ç ã o lotai o u p a r d a l d e s t e livro,
a alvo a s c i t a ç õ e s no» v e í c u l o s d e comunlcaç&o.
<iap/i dê
J A N R
107»
I m p r t t i m n o Brasil
índice
PREFACIO P O R T H O M A S I. E M E R S O N 7
AGRADECIMENTOS 11
INTRODUÇÃO 13
PRIMEIRA PARTE
O Direito e a Ascensão
do Capitalismo ao Poder:
V ma Visão Geral
SEGUNDA PARTE
Os Mercadores
rt Procura de um Lugar
na Ordem, Feudal
(ÍOOO-ISOO)
3. Introdução 87
4. As Cruzadas:
A C a p t u r a d a s R o t a s de C o m é r c i o
e a Disseminação da Ideologia B u r g u e s a 70
5. Veneza e Amalfi:
E n t r e o Oriento e o Ocidente 87
6. Algumas Origens da Cultura Urbana 91
7. Transporte por Terra e Mar 106
8. Papas e Mercadores 111
0. A B u r g u e s i a no Século X I I I 119
6 ÍNDICE
TERCEIRA PARTE
Os Advogados Burgueses:
O Poder Real e o
Desenvolvimento Urbano
(iSOO-UOO)
QUARTA PARTE
A Ascendência
da Burguesia
(1$00~1600)
QUINTA PARTE
A Vitória Burguesa
(leoo-iMiJ
SEXTA PARTE
Insurreição e
Jurisprudência
T H O M A S I. E M E R S O N
N e s t e livro, M i c h a e l T i g a r e M a d e l e i n e L e v y pro-
p õ e m - s e remontar às o r i g e n s e a o d e s e n v o l v i m e n t o d e n o s s a
atua] o r d e m jurídica em termos da luta h a v i d a entre uma so-
c i e d a d e capitalista em a s c e n s ã o e u m a estrutura feudal em de-
clínio. A história s e inicia em é p o c a remota, o século X I , com os
primórdios da v i d a mercantil nas c i d a d e s , p r o s s e g u i n d o até o
triunfo da jurisprudência b u r g u e s a , n o s é c u l o X V I I I . A ê n f a s e
é c o l o c a d a n o m o d o c o m o o direito e a s instituições jurídicas
r e f l e t e m o s interesses da c l a s s e d o m i n a n t e e c o m o e le s são mo-
d i f i c a d o s à medida que u m a n o v a c l a s s e social gradualmente
substitui a anterior. C o m o história, trata-se de u m a descrição
absorvente. Ampliará o s h o r i z o n t e s de t o d o s o s a d v o g a d o s e es-
t u d a n t e s de direito, e eles farão muito b e m em s e familiarizar
com o assunto.
O livro, porém, r e v e s t e - s e também d e implicações mais
amplas. A q u e l e s entre n ó s que s e interessam pela m u d a n ç a
social n o s E s t a d o s U n i d o s , e a maioria d o s membros da classe
d o s cultores d o direito, têm ignorado, d e um m o d o geral, al-
g u m a s q u e s t õ e s f u n d a m e n t a i s . Indubitavelmente, o s E s t a d o s
U n i d o s , c o m o aliás a maior parte d o M u n d o O c i d e n t a l indus-
trializado. e n c o n t r a m - s e n u m período de transição. O s proble-
mas s e a g r a v a m dia a dia e s o l u ç õ e s não parecem possíveis den-
tro da estrutura das instituições capitalistas tradicionais. Seja
o u n ã o a n o v a ordem socialista marxista, c o m o acreditam Tigar
e Levy, ela será sem d ú v i d a mais coletiva, repousará em uma
n o v a consciência e, temos esperança, incluirá um sistema de li-
b e r d a d e individual. E s s e p r o c e s s o de m u d a n ç a social e a mode-
8 O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO
N e w Haven, Connecticut
Janeiro de 1 9 7 7
I
I
Agradecimentos
i
natam a o f r a c a s s o o m o v i m e n t o d o s f r a d e s , q u e rotularam o s
salteadores d e n a d a mais que meros b a n d i d o s e q u e levaram
o s revolucionários b u r g u e s e s à vitória final.
A c r e d i t a m o s q u e o e s t u d o da revolta b u r g u e s a contra a s
instituições f e u d a i s seja essencial p a r a c o m p r e e n d e r m o s o di-
reito d e hoje, e n ã o a p e n a s para a d v o g a d o s , juizes e e s t u d a n t e s
d e direito. A c r e d i t a m o s igualmente, e a S e x t a P a r t e d e s t e livro
r e f l e t e e s s a c o n v i c ç ã o , q u e a s lutas de n o s s o s dias s ã o i g u a l -
m e n t e de caráter revolucionário e q u e s ó p o d e m ser c o m p r e e n -
d i d a s pela a p l i c a ç ã o d o s m e s m o s princípios e m é t o d o s de análise
que adotamos no estudo da revolução burguesa.
C o m e ç a m o s , n a Primeira Parte, com uma v i s ã o geral d a
a s c e n s ã o b u r g u e s a a o p o d e r e d o s principais a s p e c t o s d o direito
burguês. N a S e g u n d a Parte, e até a Q u i n t a , e s t u d a m o s a s ori-
g e n s da luta entre a s i d e o l o g i a s jurídicas f e u d a l e b u r g u e s a ,
c o m e ç a n d o com o s l e v a n t e s de m o r a d o r e s d e c i d a d e s n o sé-
culo X I , o s quais continuaram até a s r e v o l u ç õ e s f r a n c e s a e in-
g l e s a . N a S e x t a Parte, a r g u m e n t a m o s q u e o reflexo da Juta
social nas n o rm a s jurídicas s ó p o d e ser e x p l i c a d o e a n a l i s a d o
pela "jurisprudência da insurreição .
PRIMEIRA P A R T E
O Direito e a Ascensão
do Capitalismo ao P o d e r :
Uma Visão Geral
1
O Mercador
como Rebelde
E m 1184 d . C . , na c i d a d e f r a n c e s a de C h â t e a u n e u f ,
revolucionários assumiram o controle d o s principais edifícios,
a n u n c i a n d o q u e protestavam contra impostos, e x t o r s õ e s e res-
trições à s u a liberdade de trabalhar e comerciar. Instados a
renunciar à "comuna o u conjura. . . q u e construíram", recusa-
ram-se. P a s s o u - s e um ano antes que a o r d e m f o s s e inteira-
m e n t e restabelecida e, m e s m o assim, persistiram o s b o a t o s sobre
conspirações, tramas e s o c i e d a d e s secretas. O s revolucionários
eram, nas palavras d o P a p a , "os c h a m a d o s burgueses", ou. nas
palavras d o arcebispo, " potentiore bucgenses", ou p o d e r o s o s bur-
gueses.
E s s a história circulou amplamente n o s s é c u l o s X I e X I I
n a E u r o p a , à s v e r e s com a queixa adicional d e q u e o s rebel-
d e s haviam i n v a d i d o a casa d o s e n h o r o u d o bispo, bebido
t o d o o vinho, molestado membros da família e roubado carnei-
ros e v a c a s . P o u c o espanta que Philippe de Beaumanoir, um
culto e m e s m o s u a v e historiador jurídico d o s é c u l o X I I , a o re-
ferir-se a tais levantes, e s c r e v e s s e que "entre o s mais g r a v e s
crimes, q u e d e v e m ser punidos e v i n g a d o s , d e s t a c a - s e o de se
formarem a s s o c i a ç õ e s contra o bem comum".
P a r a nós, atualmente, p o d e ser surpreendente essa imagem
d o burguês medieval como revolucionário. N o que interessa a o
leitor m o d e r n o do O c i d e n t e , é axiomática a respeitabilidade
da c l a s s e mercantil. A palavra t o r n o u - s e comum e usamo-la
automaticamente, sem levar em c o n t a a ordem jurídica que,
n o correr dos séculos, c o l o c o u e s s e s indivíduos 110 centro da
atividade econômica.
20 UMA VISÃO GERAI,
2 - l;
22 UMA VISÃO GERAL
jurídicos, sobretudo r o m a n o s , i n v e s t i n d o - o s d e um n o v o c o n -
t e ú d o comercial.
H s s e s e l e m e n t o s da relação b u r g u e s a c o m o direito, n o en-
tanto, não c o r r e s p o n d e m a p e r í o d o s históricos b e m d e f i n i d o s .
E r a m e n c o n t r a d o s e m t o d o s o s p a í s e s da E u r o p a O c i d e n t a l
d e s d e o século X I até a conquista d o p o d e r pela burguesia, entre
o s s é c u l o s X V I I e X I X . A q u e d a d o sistema f e u d a l foi um
p r o c e s s o gradual, a s s i n a l a d o por i n e s p e r a d a s e v i o l e n t a s s u b l e -
v a ç õ e s . O u , t o m a n d o de e m p r é s t i m o a m e t á f o r a d e D i d e r o t :
A norma d a N a t u r e z a e de m i n h a Trindade, contra a qual não
prevalecerão os p o r t õ e s do I n f e r n o . . . estabelece-se de m o d o
sumamente tranqüilo. O deus estranho instala-se humildemente
n o altar, a o lado do deus do país. P o u c o a pouco, consolida s u a
posição. Então, n u m a bela m a n h ã , d á u m a cotovelada no vizinho
e — b a h ! — o Ídolo t o m b a a o chão.
Os Antecedentes
das Novas Instituições Jurídicas
O Direito R o m a n o
N o a n o 1000 d . C . , o Império R o m a n o d o O c i d e n t e já
deixara de existir há seiscentos anos. muito embora na Europa
O c i d e n t a l o homem ainda palmilhasse estradas que datavam
da época de A u g u s t o — o primeiro século d a era cristã. Ruínas
de cidades, portos e igrejas romanas pontilhavam a paisagem.
O mercador e d u c a d o •— e seu a d v o g a d o —• sabiam que as con-
quistas haviam sido a c o m p a n h a d a s pela lei e pelo comércio
romano, incluindo a liberdade de comprar e vender mediante
contratos executórios. A t é mesmo senhores feudais que ale-
g a v a m aplicar antigos costumes locais no g o v e r n o d e seus sú-
ditos utilizavam, às vezes sem saber, princípios derivados dos
trabalhos d e jurisconsultos romanos. N o que interessava à
Igreja e a o s senhores temporais que aspiravam também ao do-
mínio total, o Império R o m a n o proporcionava um conhecido
modelo d e organização. A fim de compreender o mercador
medieval, precisamos estudar em detalhes a l g u m a s instituições
romanas.
N ã o queremos dizer que a sociedade romana tenha sido
a primeira a ser regulada por lei, n o sentido d e um sistema de
preceitos apoiados pelo poder d o Estado. O s a d v o g a d o s medie-
vais sabiam que tal n ã o era o caso e tinham a c e s s o a descrições
escritas de sociedades mais antigas, incluindo a ateniense. Roma,
porém, ao contrário d e s o c i e d a d e s mais velhas, deixara uma
rica e diversificada herança de literatura jurídica. O comércio
romano deu origem a leis que negociantes medievais e seus
a d v o g a d o s consideravam relevantes. E o direito romano, con-
forme veremos adiante, veio a ser investido d o poder temporal
e espiritual do Papado.
A ordem jurídica romana foi criada entre o século V a . C .
e o século II d . C . C o m a finalidade de envolver em mistério as
origens d o direito e dotá-lo d a sanção d a tradição, sustentavam
os jurisconsultos romanos que o mesmo derivava das D o z e
T á b u a s todos o s seus princípios jurídicos importantes. E s s a con-
cisa coletânea d e leis. difícil d e reconstituir, mas de autentici-
dade inegável, foi elaborada por volta d o a n o 4 5 0 a . C . , durante
a vigência da República, apocrificamente com base em princí-
pios axiomáticos, mas na realidade após o estudo das Consti-
26 UMA VISÃO G E R A L
t u i ç õ e s de certo n ú m e r o d e c i d a d e s g r e g a s . A s T á b u a s e s b o ç a m
a p e n a s o s princípios jurídicos mais s i m p l e s c o n c e r n e n t e s à pro-
priedade, a o direito de família e à c i d a d a n i a e s e caracterizam
pela d e p e n d ê n c i a sobre a magia e o ritual c o m o partes integrais
d o p r o c e s s o e c o m o m e i o para criação d e o b r i g a ç õ e s . E s s a
"lei pré-clássica" garantia certos direitos a o s r o m a n o s — em
especial a o s m e m b r o s d o s clãs q u e h a v i a m f u n d a d o a R e p ú -
blica.
N a s D o z e T á b u a s v e m o s , pela primeira v e z , a emergência
de idéias jurídicas sobre dividas, c o n t r a t o s e d a n o s civis. E s s a s
n o ç õ e s ressurgiram mais t a r d e em inumeráveis cartas constitu-
cionais e c o m p i l a ç õ e s jurisprudenciais ( c o l e t â n e a s d e c o s t u m e s
reduzidos à f o r m a e s c r i t a ) . O s a n t i g o s romanos, c o m o outros
indivíduos q u e f a z i a m parte de s o c i e d a d e s o r g a n i z a d a s na b a s e
d e clãs, reagiam a o a s s a s s i n a t o o u ferimento d e um parente
c o m v i n g a n ç a s o b r e um parente d o a s s a s s i n o o u agressor. U r a
a n t i g o d e s v i o d e s s a s o l u ç ã o violenta foi a d e n o m i n a d a "com-
pensação", o u p a g a m e n t o em dinheiro o u b e n s aos parentes da
vitima, a c o m p a n h a d o de uma cerimônia solene, o n d e s e reco-
nhecia a o b r i g a ç ã o d e reparar o d a n o . P a r e c e provável que a s
mais a n t i g a s c o m p e n s a ç õ e s r o m a n a s t e n h a m a s s u m i d o a forma
descrita c o m o nexum nas D o z e T á b u a s . O nexutn era a obri-
g a ç ã o criada entre d e v e d o r e credor pela p r o m e s s a d o primeiro
d e servir a o s e g u n d o até q u e a dívida f o s s e s a l d a d a . N a é p o c a
em que foram b a i x a d a s a s D o z e T á b u a s , o e x p e d i e n t e era u s a d o
para criar u m a o b r i g a ç ã o entre credor e qualquer d e v e d o r , n ã o
importando qual a origem da dívida.
A s o b r i g a ç õ e s persistiram c o m t o d o o seu v i g o r inicial muito
t e m p o d e p o i s de terem o s d e v e d o r e s — nexi — e s q u e c i d o as
origens d a lei q u e o s sujeitava a s e u s credores. O s c o s t u m e s
caracteristicamente r o m a n o s d o S u l da F r a n ç a foram r e s p o n -
s á v e i s por contratos c o m o Um de 1362, n o qual Jaciel de G r a s s e ,
um agiota, exigiu que s e u d e v e d o r , na e v e n t u a l i d a d e d e falta
d e p a g a m e n t o , s e m u d a s s e de N i c e ( s i t u a d a a c i n q ü e n t a quilô-
m e t r o s d e distância) e v i e s s e residir e trabalhar em G r a s s e s o b
s u a s o r d e n s até que a dívida f o s s e s a l d a d a . R e g i s t r o s munici-
pais atestam que Jaciel na v e r d a d e f e z cumprir e s s a cláusula d e
hostagium e q u e o b t e v e um m a n d a d o judicial determinando que
o d e v e d o r residisse na prisão d e G r a s s e .
A v e n d a o u permuta v á l i d a d e propriedades exigia, s e -
g u n d o a s D o z e T á b u a s , estrito cumprimento de uma fórmula
precisa de palavras e conduta, c o n h e c i d a c o m o mancipatio:
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 27
N a p r e s e n ç a de náo m e n o s de cinco c i d a d ã o s r o m a n o s de m a i o r
Idade, e t a m b é m d e u m a s e x t a p e s s o a c o m a s m e s m a s quali-
f i c a ç õ e s , c o n h e c i d a s c o m o libripens, e com o e m p r e g o de u m a
b a l a n ç a d e b r o n z e , a p a r t e q u e e s t a v a r e c e b e n d o o manoipatio,
t e n d o n a m ã o u m lingote de bronze, dizia: " D e c l a r o que este
e s c r a v o é m e u ex jure (Jtiiriítwm e q u e ele é p o r m i m c o m p r a d o
c o m este lingote e e s t a b a l a n ç a d e b r o n z e " . E m seguida, ele
tocava n a balança com o lingote e o entregava, como preço
s i m b ó l i c o , à q u e l e d e q u e m e s t a v a r e c e b e n d o o mancipatio.. .
promessa. D a n d o p r o s s e g u i m e n t o a o e x e m p l o , s e A u l u s A u -
gerius ( o John D o e r o m a n o ) n ã o entrega a prometida peça
de tecido e, por c o n s e g u i n t e , N u m e r i u s N e g i d i u s { o Richard
R o e r o m a n o ) n ã o paga, têm a m b o s o direito de propor uma
a ç ã o v á l i d a um contra o outro, p o r q u a n t o a o r d e m jurídica
i n t e r e s s a - s e a p e n a s em saber s e u m a obrigação foi cumprida
ou não. P a r a compradores e v e n d e d o r e s , n o entanto, a "razão
natural" d o comércio a p a r e n t e m e n t e exigiria um sistema de
p r o m e s s a s mútuas, de m o d o que, n a e v e n t u a l i d a d e de inadim-
plência, o E s t a d o interviria a t r a v é s de s e u s tribunais e o r d e -
naria a c a d a parte que e n t r e g a s s e à outra o que f o s s e devido,
c o m p a r a n d o , s e necessário, a s q u e i x a s de ambas. E s s e con-
ceito f i g u r o u entre a s g r a n d e s r e f o r m a s e x e c u t a d a s pelo
praetor peregrinus.
A l é m disso, o s praetors ampliaram enormemente o alcance
de s u a autoridade, e l e v a n d o o número de t r a n s a ç õ e s pelo des-
c u m p r i m e n t o d a s quais propiciariam o remédio, a d a p t a n d o as
f o r m a s de contrato à s n e c e s s i d a d e s d o comércio e a d o t a n d o
m é t o d o s racionais d e a l e g a ç õ e s ( a r r a z o a d o s ) e prova.
E s s e s a s p e c t o s processuais, na m e d i d a em q u e diziam
respeito a contratos e trocas, foram e s t e n d i d o s ao cumprimento
de contratos bonae fidei, ou, literalmente, de "boa fé". O con-
trato bonae fidei era a categoria contratual mais elástica d o
direito romano, e limitava-se inicialmente a a l g u m a s relações
b a s e a d a s em b o a fé e c o n f i a n ç a , tais c o m o a s de tutor e tute-
lado, e n v o l v e n d o acordos bilaterais c o m a aceitação mútua de
obrigações. O s praetors, n o entanto, passaram a reconhecer
s o b o título bonae fidei g r a n d e v a r i e d a d e de arranjos comer-
ciais a l e g a d a m e n t e b a s e a d o s também em boa fé, tais c o m o s o -
c i e d a d e s o u parcerias, permitindo a c o m b i n a ç ã o d e recursos
para um fim c o m u m e a d i s s e m i n a ç ã o d o risco. A s relações fidu-
ciárias podiam ser incluídas também num contrato bonae fidei.
C o m o e x e m p l o , A u l u s A u g e r i u s , d i s p o n d o de certa quanti-
d a d e d e dinheiro, uias n ã o t e n d o a c e s s o a o mercado, entre-
g a v a - o a N u m e r i u s N e g i d i u s para e m p r e g á - l o em seu nome.
S e uma d a s partes no contrato bonae fidei não o cumpria, ou
s e A u l u s d e s e j a v a uma p r e s t a ç ã o de contas, a forma proces-
sual ante o praetor peregrinus admitia o cumprimento da obri-
gação, a avaliação dos danos, o u um m a n d a d o oficial para
liquidação de contas. E s s e s remédios b a s e a v a m - s e na formula,
que era um sistema de arrazoar extraordinariamente parecido
com o que hoje vigora nas cortes de justiça d o O c i d e n t e .
32 XIMA V I S Ã O G E R A L
O s a d v o g a d o s m e d i e v a i s deviam aos r o m a n o s o c o n c e i t o
— q u e persiste até hoje — d e p e s s o a jurídica c o m o p e s s o a ar-
tificial, fictícia, com direito a comprar, v e n d e r e pleitear direi-
tos n o s tribunais. A o r g a n i z a ç ã o s o b e s s a forma permitia uma
c o m b i n a ç ã o de interesses e, por c o n s e g u i n t e , u m a a c u m u l a ç ã o
muito maior de capitais d o que na empresa o u s o c i e d a d e indivi-
duais. N o caso, f a z i a - s e a s e g u i n t e distinção: uma s o c i e d a d e ,
f o r m a d a mediante a c o r d o d e s e u s membros, era c o n s i d e r a d a a o s
o l h o s da lei um a m á l g a m a de direitos e d e v e r e s individuais.
P a r a processar uma s o c i e d a d e e c o n s e g u i r um j u l g a m e n t o e x e -
cutório contra o patrimônio de seus membros, o autor era obri-
g a d o a levar t o d o s o s s ó c i o s perante o tribunal. S e a própria
s o c i e d a d e era julgada, teria em geral que ser p r o c e s s a d a em
n o m e de todos o s s e u s membros. A pessoa jurídica, contudo, apa-
g a v a a identidade de seus acionistas-proprietários na sua per-
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 33
O Direito Feudal
N o dia 11 de a g o s t o de 1789, a A s s e m b l é i a N a c i o n a l
F r a n c e s a , n o primeiro ardor da vitória revolucionária, d e c r e -
tou que "abolia t o t a l m e n t e o regime f e u d a l " . Q u a t o r z e a n o s
depois, o s redatores d o C ó d i g o d e N a p o l e ã o f a l a v a m d o s "nu-
m e r o s o s v e s t í g i o s d o regime f e u d a l q u e a i n d a cobrem a s u p e r -
fície da F r a n ç a " , e que o C ó d i g o e x p u n g i a . N ã o obstante, por
cerca de oitocentos anos, um b o m n ú m e r o de c o m e r c i a n t e s h a v i a
v i v i d o e mesmo p r o s p e r a d o n o seio d o regime feudal. P o r que,
subitamente, foi j u l g a d o n e c e s s á r i o r e v o g á - l o a t o d o custo? É
importante analisar a l g u n s a s p e c t o s da s o c i e d a d e f e u d a l a
fim de c o m p r e e n d e r m o s a h e s i t a ç ã o , v e l h a de s é c u l o s , d o s
comerciantes entre a c o m o d a ç ã o e rebelião.
M e s m o n o seu a u g e , n o s três primeiros s é c u l o s d e p o i s d e
Cristo, lavravam n o império comercial e militar r o m a n o a s c o n -
tradições que f i n a l m e n t e o derrubariam. O trabalho e s c r a v o
s o l a p a v a o trabalho livre, l a n ç a n d o n o d e s e m p r e g o a r t e s ã o s
e p e q u e n o s agricultores, que p a s s a v a m a v a g u e a r p e l a s c i d a d e s e
a criar f o c o s de inquietação. A s doutrinas revolucionárias
d a j o v e m igreja cristã d i s s e m i n a v a m o d e s c o n t e n t a m e n t o entre
a s c l a s s e s inferiores e estimulavam a s a u t o r i d a d e s a uma re-
p r e s s ã o brutal de seus fiéis. N a s fronteiras d o Império, g r u p o s
e x p u l s o s da E u r o p a Central p e l o s h u n o s em marcha a g r a v a -
ram o s problemas administrativos de uma burocracia c a d a v e z
mais sobrecarregada e dispendiosa. A s c o m u n i c a ç õ e s , a c a p a -
c i d a d e de d e f e n d e r o s ricos e a s e g u r a n ç a d o comércio c o m e -
çaram a diminuir n o s é c u l o III d . C . e, c o m elas, d e s a p a r e c e u
a prosperidade d o Império.
N o caso d o s g r a n d e s l a t i f ú n d i o s situados n a área mais
próxima a R o m a , uma das s o l u ç õ e s d o problema trabalhista
consistiu em arrendar parte d a s g r a n d e s propriedades a c i d a d ã o s
o u escravos, c o b r a n d o - s e aluguel em e s p é c i e s o b a forma da
o b r i g a ç ã o de cultivar a parte da terra reservada a o u s o e lucro
p e s s o a l do latifundiário. N a s fronteiras d o Império, com a fina-
l i d a d e de manter a o largo o s invasores, c i d a d ã o s r o m a n o s re-
ceberam terras e o status de coloni. s o b a s u p e r v i s ã o d e um
senhorio investido de prerrogativas legais. O s c o l o n o s p a g a v a m
o aluguel em espécie e trabalho e eram o b r i g a d o s a participar
da d e f e s a das fronteiras. E m t o d o s o s c a s o s possíveis, o s inva-
sores eram c o m p r a d o s p e l o co n v ite de entrarem em f e d e r a ç ã o
com o Império. O s federati recebiam terras para cultivar, pres-
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 37
3 - D.A.C.
42 UMA VISÃO GERAL
mercadorias d e p o u c o p e s o , de m o d o que p e q u e n a s c a r a v a n a s
p u d e s s e m trazer por terra, d o Oriente, p e ç a s d e g r a n d e valor.
S o b p r e s s ã o d e a r t e s ã o s e p e q u e n o s n e g o c i a n t e s incluídos
n a hierarquia f e u d a l , e d e m e r c a d o r e s a m b u l a n t e s que n e n h u m a
o b r i g a ç ã o f e u d a l direta reconheciam, o s s e n h o r e s foram f o r ç a -
d o s a iniciar, n o s é c u l o X I I , a c o d i f i c a ç ã o e r e g u l a m e n t a ç ã o d o
c a ó t i c o e v a g o c o r p o de c o s t u m e s q u e administravam. N a P r o -
v e n ç a , n o S u l d o q u e h o j e é a F r a n ç a , e q u e na o c a s i ã o era um
c a m p o d e b a t a l h a p e l o d o m í n i o d o M e d i t e r r â n e o , foi p u b l i c a d o
um livro d e preceitos l e g a i s d e s t i n a d o a m a g i s t r a d o s . E m
1 1 5 0 , um jurisconsulto, p r o v a v e l m e n t e d e A r i e s , d i v u l g o u traba-
l h o s e m e l h a n t e , n o t á v e l por s u a q u a l i d a d e prática, n o dialeto
provençal. E m 1 2 8 3 . um servidor real de e s p a n t o s a s a g a c i d a d e
escreveu o Coutumes de Beauvaisis, a primeira d e n u m e r o s a s
c o m p i l a ç õ e s d e d e z e n a s d e s i s t e m a s d e direito c o s t u m e i r o e n t ã o
v i g e n t e s n a c o l c h a de retalhos d e s o b e r a n i a s f e u d a i s f r a n c e s a s .
O autor, P h i l i p p e d e B e a u m a n o i r , advertia q u e f u n d a m e n t a v a
a a u t o r i d a d e d e s e u s escritos, e m primeiro lugar, n o s c o s t u m e s
d e s u a r e g i ã o e, depois, s e t u d o mais f a l h a s s e , n o c o s t u m e que
prevalecia n o p a y s du dcoit coutumier, ou N o r t e da França.
B e a u m a n o i r jamais abraçou abertamente o direito romano, muito
embora em s u a s d i s c u s s õ e s d e contratos, d a n o s civis e p o d e r
real e n c o n t r e m o s eco de t e x t o s r o m a n o s .
S i m u l t a n e a m e n t e , a nobreza c o m e ç o u , de forma relutante, a
aceitar a l g u m a s práticas o b s e r v a d a s p e l o s mercadores, pelo
m e n o s s e o s e n h o r p o d i a lucrar com a c o b r a n ç a d e i m p o s t o s e
tributos. E m n u m e r o s a s c o m p i l a ç õ e s d e c o s t u m e s locais são e n -
c o n t r a d a s c l á u s u l a s r e g u l a m e n t a n d o a s t r a n s a ç õ e s entre c o m e r -
ciantes, e s t a b e l e c e n d o áreas d e mercado e instituindo u m a o c a -
s i o n a l feira, na qual a s t r a n s a ç õ e s p o d i a m ocorrer regularmente,
s o b f i s c a l i z a ç ã o d o s servidores d o senhor. E m 1283, em B e a u -
vais, c o b r a v a - s e u m a multa d e c i n c o sous pelo e s p a n c a m e n t o
d e um c i d a d ã o por outro, multa e s s a que subia a s e s s e n t a sous
s e a vitima s e e n c o n t r a v a n o mercado o u a caminho dele.
A c o d i f i c a ç ã o d o s coutumes, inicialmente autorizada por
u m a ordonnance de S ã o Luís n o s é c u l o X I I I , m a s s ó muito mais
tarde e m p r e e n d i d a sistematicamente, constituía um sinal da c o n -
s o l i d a ç ã o d o r e g i m e feudal e da e m e r g ê n c i a d e um rei ou prín-
cipe à testa d a hierarquia d e uma d a d a região. O e s t u d o d o s
coutumes a s s i n a l o u a a s c e n s ã o , n o sistema feudal, de um e s -
trato social d e a d v o g a d o s , cuja principal tarefa consistia e m
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 43
E m s e g u n d o lugar, a Igreja, i d e o l ó g i c a e o r g a n i z a c i o n a l -
m e n t e , refletia a s o c i e d a d e e a o m e s m o t e m p o e x i g i a a l e a l d a d e
de sua miriade de soberanias e p r o p o r c i o n a v a - l h e s o s f u n d a m e n -
t o s ideológicos. B a r r o w s D u n h a m cita John d e S a l i s b u r y c o m o
f e n d o escrito que
os a g r i c u l t o r e s c o n s t i t u e m oa p é s d o c o r p o político — m a i s
próximos d a t e r r a e necessitando de orientação, m a s igual-
m e n t e essenciais p a r a o m o v i m e n t o e o r e p o u s o . . . B preciso
compreender que, quando John de Salisbury descrevia os
agricultores [dessa m a n e i r a ] . . . pensava que realmente havia
tal corpo, c o m e x a t a m e n t e tais pés. D e idêntica m a n e i r a , a
a s s e r ç ã o d e q u e a I g r e j a c o n s t i t u í a o corpo de Cristo era
para ser literalmente aceita.
"direito", no s e n t i d o de r e g r a s a l t a m e n t e e s t r u t u r a d a s p a r a
aplicação p o r um rígido sistema de c o r t e s s e c u l a r e s e eclesiás-
ticas. S ã o P a u l o , n a primeira E p i s t o l a a o s Coríntios, pregara
c a r i d a d e , e n ã o justiça, e r e c o m e n d a r a o r e c u r s o à arbitragem
de um p a s t o r ou amigos como s e n d o p r e f e r í v e l a litígios. S a n t o
A g o s t i n h o d i s s e r a a mesma coisa. O dilema s o m e n t e foi resol-
vido n o século X I I . P o r essa época, a revivescência d o direito
r o m a n o t o r n a r a - s e aspecto i m p o r t a n t e d a consolidação d o poder
secular e a u t o r i d a d e d a I g r e j a , q u e a b a n d o n a r a t o d a e qualquer
p r e t e n s ã o d e criar uma c o m u n i d a d e apostólica d e fiéis. C o u b e
a São T o m á s de Aquino defender essa decisão: argumentou
ele q u e o direito romano, c o m o os t r a b a l h o s d e Aristóteles e
o u t r a s o b r a s pré-cristãs, b a s e a v a - s e n a r a z ã o , s e n d o por con-
s e g u i n t e i n d e p e n d e n t e d a crença religiosa.
S u s t e n t a v a a I g r e j a q u e lhe i n t e r e s s a v a s o m e n t e a alma
e d e f i n i a s u a s reivindicações d e p o d e r temporal, bem como
s u a s decisões em casos particulares, com b a s e em tal inte-
resse. N o direito criminal, p o r exemplo, r e s t a u r o u o e x t e n s o
e, p a r a o s t e m p o s , esclarecido direito r o m a n o sobre a q u e s t ã o
d a i n t e n ç ã o : o indivíduo n ã o p o d i a ser p u n i d o por um crime,
a m e n o s q u e tivesse c a p a c i d a d e d e escolher e n t r e o bem e o
mal e. de fato, escolhesse o mal. N ã o e r a m puníveis a s crian-
ças, os d o i d o s ( p u n i d o s já pelo f a t o de serem loucos, di2ia
o t e x t o r o m a n o ) e aqueles que p r a t i c a v a m o mal por acidente.
A p e n a d e prisão, e n s i n a v a a I g r e j a , p o d e r i a ser preferível à
p e n a capital, d e vez que d a v a ao t r a n s g r e s s o r o p o r t u n i d a d e
d e m e d i t a r s o b r e o mal que p r a t i c a r a . E n t r e o r d e n s jurídicas
d o m i n a d a s p e l a s práticas costumeiras de v i n g a n ç a e inimizade
s a n g r e n t a , isso constituía d e f a t o um espírito inovador.
O r i t o processual n a s cortes de direito canónico era mais
r e g u l a r e previsível que n o s a r b i t r á r i o s t r i b u n a i s feudais.
C o n s t i t u í a m p r á t i c a normal a c u s a ç õ e s e d e f e s a s p o r escrito,
e e r a m i g u a l m e n t e mais c o m u n s registros escritos de depoi-
m e n t o s e julgamentos. A s petições iniciais t e n d i a m a pôr em
foco a m a t é r i a em litígio, especialmente em casos comerciais,
a o p a s s o que a t o m a d a de d e p o i m e n t o s permitia a análise d a s
v e r s õ e s a p r e s e n t a d a s por t e s t e m u n h a s d i f e r e n t e s . O s tribunais
c r i s t ã o s a d m i t i a m mesmo a r e p e r g u n t a com a f i n a l i d a d e de
u m a p a r t e i m p u g n a r depoimentos f a v o r á v e i s à o u t r a .
O rito n o j u l g a m e n t o eclesiástico, c o n t u d o , n ã o era uni-
v e r s a l m e n t e aceito. A l g u n s críticos c o n s i d e r a v a m - n o perigoso.
" Q u a l q u e r p e n a servirá p a r a c o n t a r o que quer q u e se deseje",
48 UMA VISÃO G E R A L
A I g r e j a d i s p u n h a do p o d e r n ã o só d e e x c o m u n g a r , m a s t a m -
b é m de q u e i m a r no poste de sacrifício, embora este último
c a s t i g o f o s s e r e s e r v a d o p a r a os h e r e g e s ; o s desvios d o u t r i n á -
rios dos m e r c a d o r e s e r a m t r a t a d o s com muito mais b o n d a d e .
A s c o r t e s d e direito canónico, p o r conseguinte, f r e q ü e n -
t e m e n t e resolviam Iitigios sobre ofícios e comércio, b e m como
a s s u n t o s mais o b v i a m e n t e relacionados com a salvação d a a l m a .
C o m o d e s a p a r e c i m e n t o d a s leis d e a p l i c a ç ã o pessoal, t o d o s o s
f o r o s •— f e u d a l , religioso, real — p a s s a r a m a aplicar s u a s p r ó -
p r i a s n o r m a s . N o q u e n ã o era r a r o , u m a lei mais f a v o r á v e l e
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 51
dívida. Q u e r o um j u l g a m e n t o n o t o c a n t e à s m i n h a s v i n t e libras.
Se q u e r receber s u a s v i n t e libras, t e r á que p r o c e s s a r - m e p e r a n t e
meu seigneur m o n á s t i c o em um tribunal eclesiástico. C o n t i n u a
o relato;
Nós, perante quem essas alegações são contestadas, dizemos
a o s a c e r d o t e q u e se ele n ã o r e s p o n d e à a l e g a ç ã o do leigo, d e
q u e lhe e m p r e s t o u a l g o depois de t e r i n c o r r i d o n a d í v i d a de v i n t e
libras, nós não obrigaremos o leigo a pagá-las, pois ele
não estava fazendo uma alegação em contrário quando
disse que havia e m p r e s t a d o o dinheiro com a intenção de
s a l d a r a d í v i d a ; m a s se ele e x i g e d o s a c e r d o t e a l g o d e v i d o
e m u m a ocasião e m q u e a dívida foi c o n t r a í d a , ou se r e c l a m a
dele cavalos ou outros animais, ou cereal e vinho, ou o u t r a s
coisas que não têm ligação com as vinte libras, nós o
obrigaremos a p a g a r essa quantia e a p r e s e n t a r s u a queixa
p e r a n t e a jurisdição do sacerdote.
N e s s a curta d e s c r i ç ã o p o d e m o s e n t r e v e r um g r a n d e v o l u -
m e d a história jurídica medieval. E m primeiro lugar, a p a r e n t e -
m e n t e diz o s a c e r d o t e que a divida de q u e é c r e d o r n ã o pode -
ser s a l d a d a pelo empréstimo que em troca lhe foi feito pelo
d e v e d o r , tendo este, a o q u e t u d o indica, a i n t e n ç ã o d e c l a r a d a
de c o m p e n s a r u m a dívida com o u t r a . O leigo p r o m e t e r a pagar
e o s a c e r d o te l o u v a - s e o s t e n s i v a m e n t e n a r e g r a d e direito
c a n ó n i c o que diz que u m a p r o m e s s a d e v e ser c u m p r i d a d e
a c o r d o com s u a letra. E s s a casuística n ã o f u n c i o n a , todavia,
p o r q u e o que quer q u e as cortes de direito c a n ó n i c o pensem
a respeito, a s cortes seculares n ã o atribuem, como a I g r e j a , a
m e s m a importância à letra d a p r o m e s s a . O s a c e r d o t e o b s e r v a
que, n a realidade, o a c u s a d o leigo fez uma c o n t r a - r e c l a m a -
ção, q u e os tribunais seculares, n u m a região o n d e vigia o direito
costumeiro, n ã o admitiam. D e f a t o , u m a ou d u a s p á g i n a s antes,
havia-nos informado Beaumanoir que "contra-alegações não
são aceitas n a s cortes seculares, c o m o a c o n t e c e n a s c o r t e s
c r is tã s ". N a s seculares, a r e g r a era que A teria q u e p r o c e s s a r
B n a c o r t e do s e n h o r d e B •— o n d e B "couchans" e "levens"
— d o r m e e a c o r d a . N e m A n e m o seigneur d e A tolerariam
q u e o s e n h o r de B j u l g a s s e u m a querela contra A que B
p u d e s s e incluir n o m e s m o processo.
N a s cortes cristãs, por o u t r o lado, a reivindicação d a
I g r e j a d e jurisdição sobre todos os fiéis, pelo m e n o s em c e r t a s
questões, t o r n a v a possível alegações em contrário, e m b o r a n ã o
sem alguma oposição d o s s e n h o r e s seculares. O s a c e r d o t e , em
ANTECEDENTES DAS N O V A S INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 53
a b o a fé e a e q ü i d a d e que o m e r c a d o r d e m o n s t r a d e a c o r d o
com o s c o s t u m e s d o m e r c a d o . S e a " h o n r a e n t r e h o m e n s " é a
m á x i m a , m a s o s ladrões estabelecem as regras, e n t ã o a " h o n r a
e n t r e l a d r õ e s " constitui, n a prática, a r e g r a . A I g r e j a t o l e r a v a
a p e n a s o "preço j u s t o " e exigia o p a g a m e n t o d e " s a l á r i o s
j u s t o s " , mas, s e o s laços f e u d a i s fossem d e s t r u í d o s ou debili-
t a d o s e e n t r a s s e m em a ç ã o a s f o r ç a s d o m e r c a d o , " j u s t o "
p o d e r i a f a c i l m e n t e significar "aquilo que o m e r c a d o t o l e r a r á " .
O Direito Real
Pois cada rei é u m a espécie de fonte, d a qual u m a chuva
constante de benefícios ou prejuízos jorra sobre toda a
população.
i - r> A.c.
58 UMA VISÃO GERAL
sidentes. O mutiicipium, a r g u m e n t a v a m os a d v o g a d o s , c i t a n d o
a p a s s a g e m s o b r e p e s s o a s jurídicas e n c o n t r a d a n o s t r a b a l h o s
do jurisconsulto r o m a n o U l p i a n o . é u m a e n t i d a d e legal com
o p o d e r de f i r m a r contratos, v e n d e r s u a s t e r r a s em beneficio
d o governo local e p r o m u l g a r s u a s p r ó p r i a s leis.
E n q u a n t o o " d i r e i t o c o s t u m e i r o " inglês, a p l i c a d o p e l a s
c o r t e s reais, p r o p o r c i o n a v a a p e n a s e s c a s s a e t o r t u o s a assis-
tência a o m e r c a d o r envolvido em q u e r e l a s s o b r e contratos,
o u t r a s cortes, q u e iam b u s c a r s u a s leis n o s c o s t u m e s mercantis,
e r a m criadas com a s b ê n ç ã o s d a C o r o a . Q u a n d o , p o r exemplo,
a C o r o a a u t o r i z a v a u m a f e i r a comercial, a t r a i n d o m e r c a d o r e s
d e n u m e r o s o s países, a u t o r i z a v a i g u a l m e n t e a c r i a ç ã o de uma
c o r t e d a f e i r a " p a r a solucionar litígios q u e p o r v e n t u r a viessem
a surgir e n t r e os m e r c a d o r e s d u r a n t e o acontecimento. N a s
g r a n d e s c i d a d e s do C a n a l , inicialmente cinco e c h a m a d a s no
século X I d e C i n q u e Pocts — D o v e r , H a s t i n g s , H y t h e , R o m n e y
e S a n d w i c h — f o r a m criadas, p o r servidores p o r t u á r i o s e s o b
auspícios reais, cortes de direito marítimo e mercantil.
E m 1361, em um p r o c e s s o j u l g a d o n u m a c i d a d e p o r t u á r i a ,
o a c u s a d o t e n t o u d e f e n d e r - s e d e u m direito a l e g a d o c o n t r a ele
i n v o c a n d o a s f o r m a s de j u l g a m e n t o do direito costumeiro. A
c o r t e rejeitou as r a z õ e s do réu, " d e vez que esta corte, que é
p a r t e do c a r g o d o almirante, n ã o s e r á t ã o e s t r i t a m e n t e g o v e r -
n a d a , como a s d e m a i s cortes d o r e i n o o são, pelo direito c o s t u -
m e i r o d a t e r r a , m a s g o v e r n a d a p e l a e q ü i d a d e e pelo direito
marítimo, s e g u n d o o q u a l todos o s h o m e n s p o d e m c o n t a r sua
h i s t ó r i a . . . e c o n t á - l a d a melhor f o r m a que p u d e r e m " em
sua defesa.
O s princípios básicos do direito marítimo e comercial —
o q u e equivalia à m e s m a coisa em um pais tão d e p e n d e n t e d o
comércio por m a r —• r e p r e s e n t a r a m g r a n d e s invasões n o s d o -
mínios d o direito costumeiro, embora a o c u p a ç ã o n ã o se comple-
t a s s e até os s a n g r e n t o s e t u m u l t u o s o s l e v a n t e s d o século X V I I .
C o m a l g u m a s variações, o m o d e l o inglês foi imitado p o r
o u t r o s p a í s e s : estabelecia-se u m a aliança e n t r e a C o r o a e o s
m e r c a d o r e s , a p o i a n d o estes últimos o p o d e r legislativo e j u d i -
ciário da primeira com a f i n a l i d a d e de o b t e r a p r o m u l g a ç ã o d e
leis favoráveis ao comércio em u m a g r a n d e á r e a . O s m e r c a -
d o r e s s a l d a r a m a dívida m e d i a n t e p a g a m e n t o d e impostos e
direitos a d u a n e i r o s e, em n u m e r o s o s casos, f a z e n d o imensos
empréstimos à C o r o a p a r a que esta desse p r o s s e g u i m e n t o à
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDIC-AS 59
O Direito Comercial
D i f e r e n t e s o r d e n s jurídicas p a r a classes d i f e r e n t e s n a d a
tinham de e s t r a n h o n a I d a d e M é d i a —• o u n ã o mais que os
d i f e r e n t e s sistemas i m p l a n t a d o s em d i f e r e n t e s b a s e s territoriais.
O s nobres tinham direitos extras; o s religiosos possuíam seu
p r ó p r i o c o n j u n t o de privilégios. A p a l a v r a "privilégio" a p a r e c e
com g r a n d e f r e q ü ê n c i a n a s compilações jurisprudenciais, em
constituições e textos legais, e em geral d e n o t a v a a c e s s o a uma
c o r t e especial ou direito à aplicação d e um preceito especial
f a v o r á v e l da lei. A s compilações d e A m i e n s u s a v a m - n a p a r a
descrever aqueles que t i n h a m o "privilégio" d e i n t e n t a r e m ação
e serem p r o c e s s a d o s em c o r t e real, o n d e os a g u a r d a v a uma
justiça mais sistemática e m e n o s s u j e i t a a a t r a s o s .
Assim, n ã o n o s d e v e c a u s a r s u r p r e s a descobrir que os mer-
c a d o r e s d i s p u n h a m de uma lei própria, t r a z i d a de volta à E u -
ropa com o r e n a s c i m e n t o do comércio. O "direito comercial"
constituía uma f o r m a de direito internacional, c u j o s elementos
f u n d a m e n t a i s eram a facilidade com que permitia que a s p a r t e s
e n t r a s s e m em c o n t r a t o s executórios, a ê n f a s e n a s e g u r a n ç a d o s
c o n t r a t o s e a v a r i e d a d e de e x p e d i e n t e s que c o n t i n h a p a r a o
estabelecimento, t r a n s m i s s ã o e recebimento de créditos.
D u r a n t e t oda a I d a d e M é d i a , a aplicação do direito comer-
cial a querelas sobre comércio disseminou-se p e l a s cortes real,
eclesiástica e mesmo p e l a s feudais. N o que i n t e r e s s a v a ao
m e r c a d o r e comerciante internacional, era i n d i s p e n s á v e l . E r a .
pelo menos em teoria, u n i f o r m e m e n t e aplicada a t r a n s a ç õ e s
e n t r e h o m e n s de negócio de todas a s nações. C o m o tal, conso-
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 61
O Direito N a t u r a l
O "direito n a t u r a l " , n a f o r m a como essa e x p r e s s ã o veio
a ser u s a d a pela burguesia, significava s a n ç ã o divina p a r a o
uso, de certa maneira, d a força e d a violência. A idéia d e que
direito n a t u r a l poderia significar a l g o d i f e r e n t e d a reivindica-
ção d a I g r e j a Católica R o m a n a à s a n ç ã o divina p a r a s u a s pró-
prias leis r e t r o a g i a a o s levantes c o m u n a i s u r b a n o s dos séculos
X I e X I I , q u a n d o certo n ú m e r o de revolucionários, em g r a n d e
n ú m e r o de c i d a d e s em t oda a E u r o p a , uniu-se p a r a estabelecer
o direito de negociar d e n t r o d e certa á r e a , ocasião em que sc
vincularam entre si p o r um j u r a m e n t o comum. I n v o c a n d o o
nome d e D e u s , p r o m e t e r a m que p e r m a n e c e r i a m juntos, como
um único corpo. E s s a elementar reivindicação à sanção divina
62 UMA VISÃO GERAL
l i b e r d a d e de c o n t r a t o e n a p r o p r i e d a d e . P u s e r a m era movi-
m e n t o a o n d a d e legislação que se seguiu p a r a a s s e g u r a r esses
fins, que a c o m p a n h a r a m , e eram necessários p a r a p r o m o v e r a s
revoluções b u r g u e s a s .
E r a e v i d e n t e e poderosa a c o m b i n a ç ã o de história e ideo-
logia. A classe cujos interesses esses a u t o r e s r e p r e s e n t a v a m
queria assumir o poder e jâ estava c o n v e n c i d a —' ou logo
depois o seria — d a n e c e s s i d a d e histórica de fazê-lo. A i n d a
assim, tal mistura c o n f i r m a a v e r d a d e de q u e a s revoluções n ã o
eliminam t o d a s a s velhas instituições, mas c o n s e r v a m dois tipos
de n o r m a s d e r i v a d a s do p a s s a d o : a s q u e r e f l e t e m concessões
a r r a n c a d a s d o velho regime pela n o v a classe vitoriosa e aquelas
que — como n o c a s o d o s c o s t u m e s matrimoniais n a F r a n ç a •—
tranqüilizam o povo, d i z e n d o q u e n a d a d e d e m a s i a d o drástico
foi feito. D e p o i s de ter o p o v o feito seu t r a b a l h o na e x p u l s ã o
d o velho regime pela f o r ç a d a s armas, a n o v a o r d e m necessita
d e preceitos p a r a obrigar a m a s s a a voltar a seus lares e cessar
a luta a n t e s que a revolução p o n h a em risco o s interesses d a
n o v a classe d o m i n a n t e . A r e a ç ã o cromweiliana c o n t r a os nive-
l a d o r e s e o T e r r o r B r a n c o d a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a constituem
dois e x e m p l o s d e tal situação. T e r e m o s mais t a r d e ocasião de
a n a l i s a r a p r o c l a m a ç ã o do C ó d i g o de N a p o l e ã o , que habilmente
combinou n a retórica de um Conseil d ' E t a t s o l i d a m e n t e b o n a -
p a r t i s t a os ideais d o direito n a t u r a l d a Revolução, com g a r a n t i a s
d e que. e m b o r a t u d o h o u v e s s e m u d a d o , t u d o permaneceria
n a mesma.
SEGUNDA PARTE
Os M e r c a d o r e s
à P r o c u r a de u m L u g a r
na Ordem Feudal
(1000-1200)
3
Introdução
C o r t a r a história em f a t i a s é a r r i s c a d o . Se dissésse-
mos que, d e um m o d o geral, n o a n o 1000 a economia d a E u r o p a
O c i d e n t a l era agrícola e pastoril, p r e c i s a r í a m o s a c r e s c e n t a r que,
no m e s m o ano, cidades como V e n e z a e A m a l f i e m p e n h a v a m - s e
em ativo comércio com Bizâncio e o u t r o s países, c r u z a n d o seus
navios o M e d i t e r r â n e o e n t r e C o n s t a n t i n o p l a e A l e x a n d r i a ,
v e n d e n d o escravos e outros artigos e c o m p r a n d o p r o d u t o s de
f a b r i c a ç ã o bizantina e m e r c a d o r i a s de luxo t r a z i d a s do O r i e n t e
a t r a v é s de r o t a s terrestres. H o u v e uma p r o f u n d a m u d a n ç a no
tipo de comércio e, por conseguinte, n a v i d a b u r g u e s a n a E u -
r o p a O c i d e n t a l e n t r e os a n o s 1000 e 1200. P o d e m o s sem difi-
c u l d a d e e n u m e r a r tais m u d a n ç a s : a a b e r t u r a de r o t a s de comér-
cio d o O r i e n t e p a r a a Itália, e d a Itália p a r a o O c i d e n t e , por
t o d a a E u r o p a : o direito comercial f a v o r á v e l , que continuou a
e x p a n d i r - s e ; a r e o r g a n i z a ç ã o da p r o d u ç ã o agrícola p a r a a u m e n -
tar a p r o d u t i v i d a d e : e os l e v a n t e s b u r g u e s e s em d e z e n a s de
c e n t r o s u r b a n o s com o objetivo de o b t e r a l i b e r d a d e de p a r t i -
l h a r d o s lucros d o comércio.
A s C r u z a d a s , b e n e f i c i a d a s pelo p o d e r marítimo d a s cida-
d e s - e s t a d o s italianas, abriram uma nova f a s e n o comércio euro-
peu ocidental. O s italianos substituíram os á r a b e s e bizantinos
como principais n a v e g a d o r e s no M e d i t e r r â n e o O r i e n t a l . A Itália
t r a n s f o r m o u - s e n u m elo de ligação: e n t r e p o s t o p a r a b e n s orien-
tais que e r a m t r a n s p o r t a d o s p a r a o O c i d e n t e e p a r a bens oci-
d e n t a i s que se e n c a m i n h a v a m p a r a o O r i e n t e , bem como b a n -
queira d e m e r c a d o r e s , seigneurs, príncipes e n u m e r o s a s o u t r a s
p e r s o n a l i d a d e s i n t e r e s s a d a s no comércio. N a F r a n ç a , I n g l a -
terra, P a í s e s - B a i x o s e região bãltica, surgiram novos sistemas
68 À PROCURA DE UM I.LIGAR NA ORDEM FEUDAL
5 - l> A . C .
74 À PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL
cm t e r r a e mar, a s s e g u r a r um m e r c a d o p r o t e g i d o a o s m e r c a -
dores que movimentassem e providenciassem a distribuição das
m e r c a d o r i a s v i n d a s d o Leste em troca d a s p r o d u z i d a s n o O c i -
dente.
P o u c o s s ã o os d o c u m e n t o s e x i s t e n t e s q u e n o s p o s s a m d a r
u m a indicação d e como a v i d a h u m a n a foi a f e t a d a p o r t a i s
m u d a n ç a s n o direito e n a s instituições jurídicas. S o m e n t e G ê -
n o v a n o s legou u m a rica coleção de c o n t r a t o s concluídos e n t r e
m e r c a d o r e s d e m e a d o s d o século X I I , pelos quais p o d e m o s
s a b e r a l g o d a v i d a d e u m g r u p o e t e n t a r inferir o q u e d e v e
t e r sido a d e o u t r o s .
E m 1099. e x a t a m e n t e n a é p o c a em q u e a s C r u z a d a s h a -
v i a m a b e r t o a s r o t a s p a r a o O r i e n t e e G ê n o v a iniciava um
p e r í o d o d e f e n o m e n a l c r e s c i m e n t o econômico, o s principais
m e r c a d o r e s e c a pi t a l i st a s d a c i d a d e f o r m a r a m u m a o r g a n i z a ç ã o ,
a Compagna, s o b a direção de u m líder eleito. A Compagna
n ã o era u m a e m p r e s a comercial, a s s e m e l h a n d o - s e mais. a o que
t u d o indica, a u m a s o c i e d a d e a n ô n i m a , p o s s u i d o r a d e u m a
" p e r s o n a l i d a d e " fictícia. S e u s m e m b r o s l i g a v a m - s e à o r g a n i z a -
ç ã o por um p e r í o d o curto, talvez d e um ano. P o d e t e r sido d e
n a t u r e z a secreta. C o m o c o r r e r d o s t e m p o s , o s m e m b r o s vieram
a a c r e d i t a r , se é q u e isso a c a s o n ã o ocorreu logo n o início, q u e
constituíam a v a n g u a r d a d e u m a n o v a classe. P o u c o depois,
a Compagna a s s u m i u o p o d e r político e ins talou-s e como co-
m u n a .— o g r u p o l i d e r a n t e c i m e n t a d o p o r um j u r a m e n t o —
d a c i d a d e d e G ê n o v a . O p a r t i d o se h a v i a t r a n s f o r m a d o em
governo; o g o v e r n o e r a o p a r t i d o .
E n c o n t r a m o s t a m b é m m e n ç ã o à existência d e um n o v o
g r u p o d e p r o f i s s i o n a i s liberais, i d e n t i f i c a d o s p r i n c i p a l m e n t e com
o s g r a n d e s m e r c a d o r e s , m a s que t r a b a l h a v a m t a m b é m p a r a e
com e m p r e s á r i o s d e m e n o r i m p o r t â n c i a e mesmo, à s vezes, com
o campesinato. R e f e r i m o - n o s a o s a d v o g a d o s . H a v i a distinções
em seus títulos f o r m a i s : os tabeliães ( n o t a r i i ) em geral redigiam
c o n t r a t o s e o u t r o s d o c u m e n t o s comerciais, e n q u a n t o os a d v o g a -
d o s litigavam n a s cortes. O u t r o s títulos e r a m t a m b é m u s a d o s ,
como magister, " m e s t r e " em latim, q u e era um servidor público,
e scribus. escrivão, ou a m a n u e n s e . Q u a l q u e r que f o s s e o n o m e ,
c o m e ç a r a m a surgir de súbito, em n ú m e r o s crescentes, a uti-
lizar técnicas a d a p t a d a s à s n o v a s n e c e s s i d a d e s econômicas e
a m o s t r a r sinais d e u m a n o v a c u l t u r a jurídica. P o r v o l t a de
1100, a maioria d o s c o n t r a t o s f i r m a d o s n a região N o r t e d a
Itália e r a r e d i g i d a p o r a d v o g a d o s t r e i n a d o s .
AS CRUZADAS 75
A p r e s e n ç a de a d v o g a d o s e o uso c r e s c e n t e de f r a s e s pa-
d r o n i z a d a s n a r e d a ç ã o d o s v á r i o s tipos de a c o r d o s indicavam
a existência d e u m a ordem jurídica — preceitos legais e cortes
d e justiça p a r a aplicã-los .— que d a r i a m um previsível efeito
legal a certos tipos de p r o m e s s a s c o n t r a t u a i s . N o caso d o s
q u e c u m p r i a m d e bom g r a d o e sem criar p r o b l e m a s os termos
d o pacto, a v e r s ã o escrita e r a necessária a p e n a s como um lem-
b r e t e d a s o b r i g a ç õ e s a s s u m i d a s por a m b a s as partes. M a s
q u a n d o u m a p e s s o a cedia u m a g r a n d e s o m a a o u t r a a fim de
a p e t r e c h a r um navio sob a c o n d i ç ã o d e q u e este último fizesse
incursões pela c o s t a m a o m e t a n a e voltasse p a r a dividir o botim,
o t e x t o escrito devia t o r n a r possível ao m e r c a d o r receber sua
p a r t e n o s a q u e e a o m a r u j o limitar a p e r c e n t a g e m do comer-
ciante a o q u e q u e r que h o u v e s s e sido combinado.
S e g u e - s e . p o r conseguinte, que, se n u m e r o s o s contratos
f i r m a d o s em c e r t o período utilizavam n o v o s termos legais e
f a l a v a m d e n o v o s tipos de associação comercial, o sistema de
p o d e r estatal h a v i a reconhecido ou e s t a v a p r e s t e s a reconhecer
e s s e s t e r m o s e formas. O a d v o g a d o bem v e r s a d o n a matéria
n ã o poria no contrato t o d o seu s a b e r se juízes continuassem
a desconhecer tais refinamentos.
S u r g i n d o em Gênova- p o r ocasião d a s C r u z a d a s e e s p a -
l h a n d o - s e pelo litoral d o M e d i t e r r â n e o e em direção N o r t e ,
a o l o n g o d a s r o t a s d e comércio, entrou g r a d u a l m e n t e em vigor
u m n o v o direito, especialmente a d a p t a d o à s necessidades dos
m e r c a d o r e s . R e q u e r i a esse direito a p r e s e n ç a de pessoas hábeis
n a r e d a ç ã o de c o n t r a t o s e, assim, s u r g i r a m os a d v o g a d o s , que
se i d e n t i f i c a r a m como tais. A n t e s , c a r t a s e c o n t r a t o s haviam
sido e l a b o r a d a s p o r indivíduos d e s t i t u í d o s d e t r e i n a m e n t o ju-
rídico formal, m u i t a s vezes p o r e m p r e g a d o s d e a l g u m a ordem
religiosa ou m o d e s t o s servidores públicos. E m época a i n d a mais
distante, a p a l a v r a tabelião r e f e r i a - s e a e m p r e g a d o s d o s antigos
reis f r a n c o s , os indivíduos q u e redigiam a legislação, os editos
e o s a l v a r á s e t r a b a l h a v a m sob a direção do C h a n c e l e r , que era
s e m p r e um religioso. C o m o evidência d o melhor treinamento
f o r m a l d o s n o v o s tabeliães, seus c o n t r a t o s eram redigidos em
latim, uma língua mais r e f i n a d a , e x a t a e coerente. ( O s pri-
meiros c o n t r a t o s redigidos n a l i n g u a g e m diária d o povo d a t a m
i g u a l m e n t e desse período — em especial n o Sul da F r a n ç a —
m a s m o s t r a v a m - s e em geral mal i n f o r m a d o s sobre idéias e ca-
tegorias jurídicas.)
76 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL
O u t r a s e mais significativas m u d a n ç a s s u r g i r a m t a m b é m
por essa época: f o r m a s de associação que permitiam a r e u n i ã o
de capitais de dois, três, q u a t r o e, p o u c o depois, d e z e n a s de
capitalistas; m é t o d o s p a r a t r a n s f e r i r créditos de um p o r t o p a r a
outro, os precursores d a s c a r t a s d e crédito e letras de câmbio
do comércio internacional; o r e f i n a m e n t o d a lei c o n t r a t u a l e.
a elaboração de m é t o d o s de v e n d a e troca; a s técnicas b a n c á -
rias, que permitiam a c o m b i n a ç ã o de m i l h a r e s d e p e q u e n a s
s o m a s de capital n a s m ã os de um único investidor, o b a n q u e i r o
comercial.
M e r e c e m estudo, em primeiro lugar, os e x p e d i e n t e s u s a d o s
p a r a l e v a n t a r capitais n u m a economia em e x p a n s ã o . N o s sé-
culos X I e X I I , G ê n o v a criou a societas maris, s e m e l h a n t e a
artifícios u s a d o s em o u t r a s cidades, s o b o u t r o s n o m e s , mais ou
m e n o s n a mesma ocasião (commenda, colleganza). U m sócio
fornecia de dois t e r ç o s a t o d o o capital p a r a u m a v i a g e m marí-
tima circular, com volta a G ê n o v a . Se a v i a g e m f r a c a s s a s s e ,
c a d a sócio a r c a v a com seu prejuízo. Se tivesse êxito, o s lucros
eram divididos s e g u n d o uma p r o p o r ç ã o c o m b i n a d a e com g a -
r a n t i a de uma t a x a de r e t o r n o a t é 150 p o r cento. E s s e tipo
de contrato era. n a realidade, u m a f o r m a d i s f a r ç a d a d e e m -
préstimo, ou depósito. M o s t r a v a sinais claros de suas o r i g e n s
r o m a n a s , em especial o c o n t r a t o de m a n d a d o , embora se a s s e -
melhasse mais à c o n c e p ç ã o b i z a n t i n a desse tipo de acordo.
E m 1163, um m e r c a d o r c h a m a d o Stabile delegou um
m a n d a d o a A n s a l d o G a r r a t o n em uma societas maris:
S t a b i l e e A n s a l d o G a r r a t o n f o r m a m u m a socieUis n a qual,
s e g u n d o d e c l a r a m , S t a b i l e c o n t r i b u i c o m u m c a p i t a l d e 8S l i r a s
e A n s a l d o c o m 44 l i r a s . A n s a l d o l e v a e a s e c a p i t a l , o u f a z c o m
que a u m e n t e , p a r a T ú n i s ou q u a l q u e r o u t r o local p a r a o n d e
s i g a o n s v i o q u e t o m a r á — i s t o é, o n a v i o d e B a l d i z z o n e G r a s s o
e Girardo. P o r ocasião d e s u a volta, e n v i a r á os lucros a
Stabile ou a seu representante, p a r a serem divididos. F e i t a s
a s d e d u ç õ e s pelo capital, dividirão os lucros p e l a m e t a d e ,
P a s s a d o n a C a s a d o C a p i t u l o , e m 29 d e s e t e m b r o d e 1163.
E mais, Stabile a u t o r i z a Ansaldo a enviar seu dinheiro p a r a
Gênova pelo navio que escolher.
P o u c o t e m p o depois, s u r g i r a m dois r e f i n a m e n t o s n e s s a
associação simples d e dois p a r c e i r o s : a associação de loci e o
b a n c o mercantil. A s loci eram ações em um navio. C o m a c o n s -
t r u ç ã o de g r a n d e s b a r c o s e a n e c e s s i d a d e simultânea d e a t r a i r
p a r a o comércio a p o u p a n ç a líquida de n u m e r o s a s pessoas, a
AS CRUZADAS 77
b e m o s que o s a d v o g a d o s e s t a v a m c o m e ç a n d o a d e s c o b r i r a s
disposições d o direito r o m a n o que p r o t e g i a m os direitos d a s
p a r t e s mais f r a c a s , u m a vez que, em 1100, e s s a s c l á u s u l a s co-
m e ç a r a m a a p a r e c e r nos c o n t r a t o s . A e n u m e r a ç ã o d o s direitos
d a p a r t e mais f r a c a , no e n t a n t o , era s e m p r e o prelúdio d e u m a
r e s s a l v a no c o n t r a t o , pela qual ela r e n u n c i a v a — desistia .—
d e s s e s direitos: desistia-se d a p r o t e ç ã o a m e n o r e s d e i d a d e ,
r e n u n c i a v a - s e a todos os direitos b a s e a d o s n o sexo, p r o m e t i a - s e
n ã o dificultar a e n t r e g a da coisa v e n d i d a sob o f u n d a m e n t o
d e que n ã o se recebera t o d o o p r e ç o a j u s t a d o , ou p o r q u e o preço
p a g o f o r a inteiramente insuficiente, ou a i n d a d e c l a r a v a - s e que,
se o valor d a terra f o s s e maior do que o preço p a g o , v o l u n t a -
r i a m e n t e se f a z i a d o n a t i v o d a d i f e r e n ç a a o c o m p r a d o r .
D e v e ter havido motivos p a r a que se inserissem tais c l á u -
sulas nos c o n t r a t o s . P a r a redigi-los, o s a d v o g a d o s •— com maior
f r e q ü ê n c i a , os tabeliães do século X I I —• precisariam s a b e r que
existia a legislação r o m a n a e t e r a l g u m a idéia d e q u e a s
cortes d e justiça, n a s q u a i s o c o n t r a t o p o d i a ser c o n t e s t a d o ,
p o d e r i a m aplicar tais princípios p a r a d e c l a r a r n u l a a v e n d a .
A a t e n ç ã o d o s a d v o g a d o s à possibilidade d e litígio é d e m o n s -
t r a d a pelo f a t o de a s p a r t e s r e n u n c i a r e m a o s p r a z o s p r o c e s s u a i s
— q u e o direito r o m a n o lhes f a c u l t a v a . P o r último, em q u a s e
t o d o s os casos q u e conhecemos, os c o n t r a t o s e r a m redigidos em
latim, n u m a o u t r a indicação d o d i s t a n c i a m e n t o d a lei em relação
ao controle e à c o m p r e e n s ã o d o i n d i v í d u o comum.
P o d e m o s , p o r t a n t o , à vista d e c o n t r a t o s e registros a i n d a
existentes, reconstituir t r ê s efeitos d a s C r u z a d a s . E m primeiro
l u g a r , o s m e r c a d o r e s d a s c i d a d e s - e s t a d o s italianas começa-
r a m a lutar p a r a assumir o p o d e r g o v e r n a m e n t a l ou o b t e r uma
p r o t e ç ã o que lhes permitisse comerciar livremente. E m s e g u n d o
lugar, esse p o d e r foi u s a d o p a r a s a n c i o n a r artifícios, como a
societas maris de G ê n o v a , que permitiam a e x p l o r a ç ã o d a s
o p o r t u n i d a d e s financeiras a b e r t a s pelo a u m e n t o d o comércio
com o O r i e n t e . E m terceiro lugar, os princípios de c o n t r a t o
e p r o p r i e d a d e d o direito r o m a n o r e a p a r e c e r a m a fim d e prover
um c o n t e x t o legal à s relações d o comércio em e x p a n s ã o .
E s s e s f e n ô m e n o s ocorreram em primeiro l u g a r e de m o d o mais
claro n a Itália, mas logo depois se d i s s e m i n a r a m , ao longo d a s
r o t a s de comércio, por o u t r a s regiões do M e d i t e r r â n e o . P r o -
c u r a r e m o s inicialmente descrever e em s e g u i d a t e n t a r e m o s
explicar a ligação e n t r e o direito r o m a n o r e s t a u r a d o e a e x -
p a n s ã o do comércio.
AS CRUZADAS 81
foi n e s s a c i d a d e que R i c a r d o C o r a ç ã o de L e ã o e m b a r c o u p a r a
as Cruzadas.
Aries, u m a cidade jamais inteiramente a b a n d o n a d a durante
o início d a I d a d e M é d i a , p a s s o u p o r c r e s c i m e n t o d a p o p u l a ç ã o ,
e x p a n s ã o d o comércio e r e s t a u r a ç ã o d o direito r o m a n o cerca
d e d o z e a n o s d e p o i s d a r e g i ã o de M a r s e l h a - A i x . O u t r a s c i d a -
d e s d a P r o v e n ç a e C a t a l u n h a s e g u i r a m - l h e o exemplo, r e f l e t i n d o
a e x p a n s ã o d o comércio p o r á r e a s que f o r a m as p r i m e i r a s a
e n t r a r em c o n t a t o com o s c r u z a d o s e com o s comerciantes q u e
os a c o m p a n h a v a m , n a t u r a i s d e c i d a d e s italianas e d e M a r s e -
l h a . E x p a n d i n d o - s e a p a r t i r d o Sul d a F r a n ç a , o direito r o m a n o
fez seu a p a r e c i m e n t o a intervalos a t é b e m d e n t r o d o século
X I I I a o longo d a s r o t a s q u e s e i r r a d i a v a m do litoral do M e -
d i t e r r â n e o O c i d e n t a l a t é F l a n d r e s , a p ô s a a s c e n s ã o de c i d a -
d e s c u j a s c a r t a s d e f u n d a ç ã o , e s t a t u t o s e constituições n ã o se
f u n d a m e n t a v a m em princípios r e c o n h e c i v e l m e n t e r o m a n o s . O
d i r e i t o r o m a n o surgiu m a i s t a r d e , com a e x p a n s ã o d o comércio
sistemático e d e l o n g a d i s t â n c i a . C h e g o u como r e a ç ã o a u m a
c l a r a n e c e s s i d a d e d e s u a s cláusulas s o b r e l e v a n t a m e n t o d e c a -
pitais e criação d e condições f a v o r á v e i s a o comércio e sob o
p a t r o c í n i o d e g r u p o s políticos e econômicos p o s s u i d o r e s d e re-
c u r s o s p a r a f i n a n c i a r - l h e o e s t u d o e t r e i n a r acólitos era s e u s
mistérios.
R e s t a m a i n d a milhares d e c o n t r a t o s desse período, que
n o s d ã o u m a idéia muito clara d o que foi a d i s s e m i n a ç ã o d a s
i d é i a s jurídicas r o m a n a s . O b s e r v a m o s n e l e s o a p a r e c i m e n t o de
especialistas que t r a b a l h a v a m p a r a u m a n o v a classe — o s
'mercadores — e seus aliados n o sistema f e u d a l •— o s seigneucs,
eclesiásticos o u n ã o . q u e d i s p u n h a m d e m o e d a s o n a n t e e d e -
s e j a v a m a u m e n t a r s u a s riquezas n o comércio. ( E r a c o m u m
n e s s a época a p a r t i c i p a ç ã o n o comércio d e famílias n o b r e s ita-
lianas; as f r a n c e s a s , p o r o u t r o lado, a c h a v a m que e s s a p a r t i -
c i p a ç ã o era incompatível com a n o b r e z a e o n o b r e que assim
p r o c e d i a p e r d i a status. Isso, c o n t u d o , n ã o a s impedia d e in-
vestir n a q u a l i d a d e de sócios c o m a n d í t á r i o s . ) P o d e m o s t a m b é m
i m a g i n a r a l g u n s d o s efeitos do r e s s u r g i m e n t o d o comércio sobre
a p o p u l a ç ã o r u r a l ativa. N e m s e m p r e p o d e m o s d e s c o b r i r q u a i s
o s p r e ç o s e x a t o s c o b r a d o s n e s s e s dias, o s d e s t i n o s e a n a t u r e z a
d o s b e n s t r a n s p o r t a d o s , c o n t u d o , p o r q u a n t o u m a d a s princi-
pais convicções d o s m e r c a d o r e s d a é p o c a e r a que deviam, a
t o d o custo, e s c o n d e r d o s c o n c o r r e n t e s o s d e t a l h e s d e seus n e -
AS CRUZADAS 83
O s comerciantes q u e v o l t a v a m do O r i e n t e t r o u x e r a m t a m -
b é m o direito r o m a n o ou, pelo menos, u m a v e r s ã o mais siste-
mática e comercialmente usável d o m e s m o d o que a que havia
sobrevivido no O c i d e n t e . H á , aliás, g r a n d e volume d e p r o v a s
em a p o i o desta a f i r m a ç ã o . C o m exceção d e V e n e z a e, um
p o u c o depois, A m a l f i . n ã o h o u v e comércio c o n t i n u o e n t r e a s
regiões oriental e ocidental do M e d i t e r r â n e o e n t r e os a n o s 500
e 1000 d . C . N a v i o s t o c a v a m em M a r s e l h a e em o u t r o s p o r t o s
e m e r c a d o r i a s eram t r o c a d a s , m a s a a t i v i d a d e n o O c i d e n t e
nem r e q u e r i a meios p a r a l e v a n t a r g r a n d e s capitais e p a r a m a n t e r
um comércio p e r m a n e n t e e t a m p o u c o o u t r a s disposições legais,
q u e o envolvem, p r o t e g e m e ampliam. A s coisas, n o e n t a n t o ,
e r a m d i f e r e n t e s n o O r i e n t e . C o n t i n u o u a h a v e r comércio b e m
a t i v o depois de ter C o n s t a n t i n o t r a n s f e r i d o sua capital a n t e a
a m e a ç a d e perigos i n t e r n o s e externos. N o M e d i t e r r â n e o O r i e n -
tal. a ordem jurídica r o m a n a c ont i nuou a refletir os t e m a s d o -
m i n a n t e s da p r á t i c a comercial, incluindo a s v i g e n t e s no litoral
egípcio-palestino. E s s a lei comercial, uma jus gentium n o sen-
tido romano, e s t a v a em v i g o r q u a n d o os m e r c a d o r e s do O c i -
dente chegaram ao Oriente no rastro das Cruzadas.
O direito, q u e r a p i d a m e n t e começou a a d q u i r i r curso no
século X I I , c o n t i n h a n ã o só elementos d o direito comercial ro-
m a n o n a forma em q u e existia q u a n d o C o n s t a n t i n o t r a n s f e r i u - s e
d e R o m a , mas t a m b é m r e f e r ê n c i a s explícitas a disposições legais
p r o m u l g a d a s p o r Justiniano em C o n s t a n t i n o p l a , d e r r o g a n d o o
a n t i g o direito r o m a n o .
N a s d é c a d a s iniciais d a s C r u z a d a s , n ã o se ferira a i n d a o
at r ito e n t r e Bizâncio e o O c i d e n t e .— que mais t a r d e se t r a n s -
f o r m o u em g u e r r a p o r motivo de comércio e m o e d a , e m b o r a
t r a v a d a em n o m e d a religião. Bizâncio foi um d o s primeiros e
úteis, a i n d a que n ã o entusiástico, aliados d o s c r u z a d o s e n ã o
h o u v e resistência ocidental à cultura d e origem bizantina.
Q u a n d o o r o m p i m e n t o e n t r e as d u a s m e t a d e s do I m p é r i o R o -
m a n o foi clara e i n e q u i v o c a m e n t e c o n s u m a d o , no século X I I I ,
o crescimento econômico d o O c i d e n t e já permitia o estabeleci-
m e n t o d e instituições d e s t i n a d a s a c o n s e r v a r e ampliar a base
jurídica d a o r d e m econômica.
N ã o que os h o m e n s de negócios, d i v e r g i n d o d a s opiniões
d o s senhores f e u d a i s e, a p a r e n t e m e n t e , d o P a p a d o , fossem c o n t r á -
rios à a d o ç ã o de idéias heréticas e m e s m o infiéis. O vigoroso
comércio que logo depois se estabeleceu, n ã o s ó com cristãos,
mas também com m u ç u l m a n o s , constitui uma b o a p r o v a nesse
AS CRUZADAS 85
Veneza e Amalfi:
Entre o Oriente e o Ocidente
D e s s a m a n e i r a um h i s t o r i a d o r b i z a n t i n o d a época
ridicularizou a coroação d e C a r l o s M a g n o como I m p e r a d o r
d o I m p é r i o R o m a n o d o O c i d e n t e , n o a n o 800. O bizantino
p o d i a z o m b a r d o s f r a n c o s . M e s m o q u a t r o c e n t o s a n o s mais
t a r d e , q u a n d o o Império Bizantino n a d a mais era que u m a mera
c a s c a , o O c i d e n t e a i n d a n ã o h a v i a c o n s t r u í d o u m a c i d a d e que
m e s m o r e m o t a m e n t e p u d e s s e c o m p a r a r - s e com C o n s t a n t i n o p l a .
V i l l e h a r d o u i n d e C h a m p a g n e , líder da I V C r u z a d a , que viu do
m a r a c i d a d e pela primeira vez n o dia 24 d e j u n h o d e 1203,
descreve-a nestas palavras:
Ora, podeis saber que aqueles q u e j a m a i s h a v i a m visto antes
Constantinopla o l h a r a m - n a com g r a n d e Interesse, pois n u n c a
p e n s a r a m que pudesse haver e m todo o m u n d o cidade tão
rica; n o t a r a m as altas m u r a l h a s e a s f o r t e s torres que a
c e r c a m p o r todos os lados, os r i c o s palácios, a s a l t a n e i r a s
igrejas — das quais h á t a n t a s que n a existência delas não
a c r e d i t a r i a q u e m n ã o a s h o u v e s s e visto c o m os p r ó p r i o s olhos
— e a altura e comprimento daquela cidade sobre todas as
o u t r a s e r a s o b e r a n a . E sabei a i n d a q u e n e n h u m h o m e m foi
suficientemente duro para que suas carnes não tremessem. E
tal n ã o e r a d e espantar, pois j a m a i s h o u v e m a i o r e m p r e s a
c r i a d a p o r q u a l q u e r povo d e s d e a f o r m a ç ã o do m u n d o .
E , note-se. V i l l e h a r d o u i n r e f e r i a - s e à c a s c a a p o d r e c i d a e de-
c a d e n t e d a g r a n d e cidade, a n t e s c o r t e j a d a por V e n e z a . E l e
88 À PROCURA DE UM LUGAR N A ORDEM FEUDAL
ti - D . A . C
90 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL
q u a n t o a s técnicas b a n c á r i a s e x a t a s d o s séculos X e X I n ã o
estejam claras n a s f o n t e s q u e n o s r e s t a m , p o d e m o s reconstitui-
l a s a t r a v é s de f a t o s conhecidos. N ã o teria sido prático, p o r
exemplo, t r a n s p o r t a r g r a n d e s q u a n t i d a d e s d e o u r o a m o e d a d o
o u em b a r r a s p a r a liquidar c o n t a s d e g a l e r a s a b a r r o t a d a s d e
m e r c a d o r i a s e é a i n d a mais difícil i m a g i n a r c a r a v a n a s d e mer-
c a d o r e s c a r r e g a n d o g r a n d e s volumes d e dinheiro. E s s a situação
p r e s s u p u n h a instituições d e crédito, pelo m e n o s no c a s o dns
m a i o r e s c o m p r a s e n t r e o s mercatores •— o s que g a n h a v a m a v i d a
c o m p r a n d o e v e n d e n d o . A ú n i c a possível hipótese é que a
a t i v i d a d e b a n c á r i a em V e n e z a , A m a l f i e r e d o n d e z a s fosse a n -
terior à s notícias mais a n t i g a s que d e l a temos.
R e s t a , por conseguinte, o q u a d r o d e V e n e z a e A m a l f i
como c a b e ç a s - d e - p o n t e d a p e n e t r a ç ã o econômica n a E u r o p a
O c i d e n t a l , u m a p e n e t r a ç ã o que s i m u l t a n e a m e n t e e n c o r a j o u e
mais t a r d e influenciou p r o f u n d a m e n t e o movimento revolu-
cionário u r b a n o local. D e V e n e z a e A m a l f i e, mais t a r d e , dc
G ê n o v a e P i s a , e s u a s r e d e s d e aliados, vieram a s técnicas
jurídicas e comerciais e l a b o r a d a s pelo comércio internacional
r o m a n o , d e s e n v o l v i d a s em Bizâncio e r e t r a n s m i t i d a s ao O c i -
d e n t e logo q u e a s c i d a d e s italianas a s s u m i r a m a s a t i v i d a d e s
d e a r m a z e n a m e n t o , de n a v e g a ç ã o e b a n c á r i a d o s m e r c a d o r e s
bizantinos.
6
Algumas Origens
da Cultura Urbana
N o clima de a g i t a ç ã o d o século X I c o m e ç a r a m a e n -
f r a q u e c e r os laços de família com d e t e r m i n a d a s mansões feu-
dais. U m a história da época f a l a d e G o d r i c , um servo inglês
que s i s t e m a t i c a m e n t e a p a n h a v a o b j e t o s l a n ç a d o s à s praias pelo
m a r a t é r e u n i r o suficiente p a r a j u n t a r - s e a u m a c a r a v a n a de
m e r c a d o r e s . V i a j a n d o e v e n d e n d o s u a s m e r c a d o r i a s . Godric
conseguiu a o s poucos j u n t a r g r a n d e f o r t u n a . S a b e m o s de sua
existência p o r q u e a história d e s u a v i d a foi escrita em a s s e n -
t a m e n t o s eclesiásticos que o l o u v a v a m p o r ter t e r m i n a d o seus
dias como devoto.
D e s e n v o l v e n d o - s e o comércio, com a e x p a n s ã o d e s p o n t a -
ram idéias d i s t i n t a m e n t e " a n t i f e u d a i s " . P e r e g r i n o s , viajantes,
m e r c a d o r e s e fugitivos v o l t a v a m c o n t a n d o histórias sobre ci-
d a d e s italianas, e mesmo s o b r e Bizâncio e A l e x a n d r i a . T o d a s
ns seigneury. qualquer que f o s s e seu t a m a n h o , possuíam um
g r u p o d e a r t e s ã o s e comerciantes que t r a b a l h a v a m sob a dire-
ção do s e n h o r e p o r sua conta. N a s c i d a d e s eclesiásticas, onde
os b i s p o s tinham as sedes de s u a s dioceses, servidores educa-
dos. e n c a r r e g a d o s de c o m p r a s e v e n d a s , c o m e ç a r a m a negociar
por c o n t a própria. N ã o h á d ú v i d a q u e a m e n s a g e m foi rece-
b i d a d e modos diferentes, p r o v o c a n d o reações d i f e r e n t e s em
d i f e r e n t e s locais, mas s e m p r e com idêntico r e s u l t a d o : p r o d u -
tores e comerciantes c o m p r e e n d e r a m q u e o processo d e pro-
duzir e v e n d e r podia ser a r r a n c a d o d a economia f e u d a l e
t r a n s f o r m a d o em atividade s e p a r a d a , centralizada n a s cidades.
92 X PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL
N u m e r o s a s c i d a d e s e r a m fortificações d e s m o r o n a d a s , h e r -
d a d a s d o s tempos r o m a n o s e que a i n d a p r o p o r c i o n a v a m a b r i g o
em caso de g u e r r a . N ã o raro esses restos h a v i a m sido con-
s e r v a d o s n o s tempos f e u d a i s como c e n t r o s d e n e g ó c i o s d o
s e n h o r com seus vassalos. N a P r o v e n ç a , o s p r ó p r i o s s e n h o r e s
haviam c o n s t r u í d o aldeias f o r t i f i c a d a s no alto d e colinas, de
o n d e saíam todos os dias os vassalos p a r a cultivar os c a m p o s
n a s encostas mais baixas, c o n t r a s t a n d o esse costume com o
que v ig o r a v a e n t r e os s e n h o r e s fe uda i s d o N o r t e . A s c i d a d e s
diocesanas, g e r a l m e n t e a q u e l a s q u e o s r o m a n o s h a v i a m u s a d o
como subcapitais a d m i n i s t r a t i v a s , e r a m t a m b é m c e n t r o s d e ativa
v i d a u r b a n a e n u m e r o s a s c i d a d e s medievais d e s e n v o l v e r a m - s e
na sede da seigneury d o bispo. O m o v i m e n t o u r b a n o d o s sé-
culos X I e X I I e n c o r a j o u fugitivos do sistema f e u d a l , que se
h a v i a m estabelecido no território de v e l h a s cidades, a criar
n o v a s instituições jurídicas que lhes p r o t e g e s s e m a f u n ç ã o eco-
nômica.
F o r a m c o n s t r u í d a s t a m b é m n o v a s cidades, à s vezes em
torno de uma m a n s ã o f e u d a l ou igreja. A maioria delas, con-
tudo, surgiu mais t a r d e e p o r motivos especiais recebeu o p a -
trocínio de senhores ou m o n a r c a s , O Rei Luís I X , p o r exemplo,
a n t e s de e m b a r c a r p a r a a C r u z a d a , p e r c e b e n d o a n e c e s s i d a d e
de um porto marítimo no M e d i t e r r â n e o , o r d e n o u a c o n s t r u -
ção d e um d e l e s em A i g u e s - M o r t e s , de vez que M a r s e l h a n ã o
estava, n a ocasião, em m ã o s f r a n c e s a s .
D e um m o d o geral, a s instituições u r b a n a s d o s séculos
X I e X I I surgitam nas Jutas contra as restrições da vida feudal.
A r t e s ã o s e a g e n t e s c o m p r a d o r e s , que faziam p a r t e d a " c a s a "
de todos os senhores, exigiram o direito d e negociar a dinheiro
em proveito próprio. A g r i c u l t o r e s p r o c u r a r a m obter o direito
de v e n d e r p a r t e de sua p r o d u ç ã o a dinheiro a fim d e com-
p r a r e m a s mercadorias e s u p r i m e n t o s inexistentes n a m a n s ã o
ou que estavam s e n d o v e n d i d o s por m e r c a d o r e s e a r t e s ã o s que
h a v i a m conseguido libertar-se do sistema f e u d a l . A g r i c u l t o -
res, a r t e s ã o s e m e r c a d o r e s p r o c u r a r a m p o r igual r e e s t r u t u r a r
ou abolir os impostos sobre m e r c a d o r i a s v e n d i d a s em m e r c a d o s
s i t u a d o s n o s domínios d e seus senhores.
M e r c a d o r e s a m b u l a n t e s , que v i a j a v a m de feira em feira
e de c i d a d e em cidade, n u m a d e t e r m i n a d a região, m u i t a s vezes
p r e c i s a v a m b u s c a r p r o t e ç ã o em d i f e r e n t e s fontes. A s vezes, a
I g r e j a intervinha p a r a discutir o a s s u n t o com o senhor, o que
A L G U M A S O R I G E N S DA C U L T U R A URBANA 93
e x a ç õ e s f e u d a i s e e s t a b e l e c e n d o limites à s m u l t a s por i n f r a -
ções criminais j u l g a d a s pelo seigneur. O s tributos eram " f i x o s
e m o d e r a d o s " . O s m e r c a d o r e s d a c i d a d e t i n h a m direito à pro-
t e ç ã o d e uma corte especial d e direito comercial. T o d a s as
p e s s o a s que residissem n a c i d a d e d u r a n t e um a n o e um dia
f i c a v a m p r o t e g i d a s c o n t r a processos i n t e n t a d o s por seu a n t i g o
s e n h o r feudal. E . e m b o r a os r e c é m - c h e g a d o s precisassem d o
c o n s e n t i m e n t o u n â n i m e d o s b u r g u e s e s p a r a p e r m a n e c e r n a ci-
d a d e , tal c o n s e n t i m e n t o era p r e s u m i d o se estes n ã o formali-
z a s s e m um p r o t e s t o d u r a n t e um a n o e u m dia, N u m a e x p r e s -
s ã o d e solidariedade e n t r e os b u r g u e s e s e do d e s e j o d e
c o n s e r v a r bom o crédito d a cidade, a C l á u s u l a 33 d i s p u n h a
que, se algum d e l e s d e i x a s s e d e s a l d a r u m a dívida, a c i d a d e
a p a g a r i a e r e c u p e r a r i a a d e s p e s a com os b e n s do d e v e d o r .
E s s a disposição evitava a possibilidade de q u a l q u e r c r e d o r
e s t r a n g e i r o (incluindo algum seigneur invejoso da l i b e r d a d e
d a c i d a d e ) reivindicar o direito d e a p r e e n d e r m e r c a d o r i a s ou
confiscar propriedades dentro de suas muralhas. N ã o parece
que Preston tenha possuído uma comuna.
O u t r a c a r t a sobrevivente ê a de Saint-Quentin, na França,
a m p l a m e n t e u s a d a c o m o modelo. D i s p u n h a ela que o a l d e ã o
ficava isento d a s obrigações f e u d a i s n o exato m o m e n t o em que
e n t r a v a na cidade, embora todos os semoventes d e i x a d o s a t r á s
p e r m a n e c e s s e m d e p r o p r i e d a d e do a n t i g o seigneur. A pessoa
p o d i a t o r n a r - s e m e m b r o d a c o m u n a p o r ocasião cia e n t r a d a , e
d a í em d i a n t e ficaria sob a o b r i g a ç ã o de respeitar o j u r a m e n t o
m ú t u o e de p e r m a n e c e r nela a m e n o s q u e f o s s e c h a m a d o por
motivo de negócios ou sua p r e s e n ç a se t o r n a s s e necessária
n a s estações d e s e m e a d u r a e colheita em p r o p r i e d a d e s f o r a
d a cidade. R e a l m e n t e , a v i d a d u p l a d o s m o r a d o r e s d a c i d a d e
— em residências u r b a n a s e como c a m p o n e s e s — contribuiu
p a r a o e n f r a q u e c i m e n t o geral d o s laços d a s obrigações feudais,
p o r q u a n t o agricultores que m a n t i n h a m laços com uma comuna
n ã o ficavam mais p r e s o s à t e r r a . A " m a n s ã o " começou a p e r d e r
a importância g e o g r á f i c a q u e p o r v e n t u r a p u d e s s e ter tido e
m e s m o certas á r e a s rurais podiam e s t a r sob o domínio de di-
f e r e n t e s senhores. O s c a m p o n e s e s ligavam-se a seus vizinhos
pela p r o x i m i d a d e e participação em f a i n a s agrícolas comuns; n a
cidade, a r t e s ã o s e comerciantes t o m a v a m p a r t e n a vida coletiva
d a burguesia. N o e sque m a de deveres feudais, podiam d e v e r
l e a l d a d e a vários senhores, mas d e s a p a r e c e r a todo o sentido de
d e v e r pessoal,
A L G U M A S O R I G E N S DA C U L T U R A URBANA 97
O a s p e c t o f u n d a m e n t a ] d a c a r t a de f u n d a ç ã o d a comuna,
p o r conseguinte, era o reconhecimento, pelo s e n h o r , d a cidade
como u n i d a d e , um vassalo coletivo. O r e c o n h e c i m e n t o concedia
à c o m u n a s u a s características b á s i c a s : a u n i d a d e e i g u a l d a d e de
seus m e m b r o s e o direito de a u t o g o v e r n o interno. Implicitamente,
admitia que e s s a classe d e b u r g u e s e s , c o m o acontecia com ca-
valeiros. meirinhos, monges, a b a d e s , a r c e b i s p o s e t o d o s os d e ;
mais m e m b r o s d e g r u p o s sociais bem d e f i n i d o s , possuía lei e
status próprio.
A concessão d a carta, c o n t u d o , n ã o implicava o fim da
luta. A s vezes, ela era c o n c e d i d a p o r um seigneur leigo ou um
soberano, d e i x a n d o a p a r t e eclesiástica d a cidade, muitas vezes
a m p l a m e n t e d i s p e r s a , sob a a u t o r i d a d e d a I g r e j a . E m M a r s e l h a ,
p o r exemplo, a burguesia conseguiu aos poucos e amigavel-
m e n t e o direito de comerciar e a d m i n i s t r a r o p o r t o d a cidade
baixa. C o b i ç a v a , n o entanto, a s u z e r a n i a d o a r c e b i s p o na co-
lina, e isso deu origem a uma série d e violentos choques.
E m o u t r a s áreas, p e r m a n e c e r a m sem s o l u ç ã o d u r a n t e anos
q u e s t õ e s sobre impostos, p r o p r i e d a d e s e jurisdição —• em es-
pecial e s t a última — e a citação de um m e m b r o d a comuna
p a r a c o m p a r e c e r p e r a n t e o t r i b u n a l d o s e n h o r , com ostensiva
ignorância d a carta, podia p r o v o c a r incidentes. Q u a n d o um
jovem de C e l l e s foi e n c a r c e r a d o n a A b a d i a de St. Crespin,
d u r a n t e u m a luta e n t r e a i g r e j a local e a b u r g u e s i a , e s t a última
a r m o u f o g u e i r a s d o lado d e f o r a d o p r é d i o e m a n t e v e - s e vi-
gilante p a r a evitar que o prisioneiro f o s s e t r a n s f e r i d o p a r a jul-
g a m e n t o f o r a d a s cortes b u r g u e s a s . A fim d e m a n t e r acesas
a s fogueiras, c o r t a r a m á r v o r e s n a s v i z i n h a n ç a s d a abadia.
C e r t o domingo, o curé c o n d e n o u do púlpito a d e r r u b a d a d a s
árvores, d i z e n d o que elas p e r t e n c i a m a o s m o n g e s d a abadia.
U m b u r g u ê s , Jean )e V a c h e r , l e v a n t o u - s e e disse que as ár-
vores localizavam-se em território d a c o m u n a e que podiam
ser c o r t a d a s . N a v e r d a d e , a c r e s c e n t o u ele, se h o u v e s s e monges
n o território d a comuna, j u l g a v a certo a b a t ê - l o s também. A
fim d e solucionar a c o n t e n d a , a R a i n h a B l a n c h e de Castille,
em c u j o território se localizava a c i d a d e de Celles. nomeou
uni a b a d e vizinho p a r a realizar uma "investigação", ou um.?
espécie d e inquérito de c u m p r i m e n t o obrigatório, ao qual pes-
soas podiam ser citadas a c o m p a r e c e r e receber o r d e n s de
p r o v e r evidência. A c o m u n a r e u n i u - s e e jurou que todos os
b u r g u e s e s citados a comparecer p e r a n t e a comissão jurariam
98 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL
a v e r a c i d a d e d e d e p o i m e n t o s em inquéritos. E i n v á r i a s co-
munas, como, por exemplo, n a s de C a m b r a i , A v i g n o n , Aries,
Digne, St. O m e r , LiUe e A r r a s , s a b e m o s que o g r u p o domi-
n a n t e n a c a p t u r a do poder municipal foi uma i r m a n d a d e reli-
giosa v i n c u l a d a por j u r a m e n t o m ú t u o e que a g i a eiu sigilo.
E s s e s g r u p o s n ã o s ó subscreviam d o u t r i n a s c o n s i d e r a d a s p e -
rigosas. m a s sua f o r m a d e o r g a n i z a ç ã o c o n t e s t a v a o domínio
d a I g r e j a c o m o única instituição a m e d i a r e n t r e a T r i n d a d e
e a massa de pecadores n a terra.
N e m t o d a s a s cidades, no e n t a n t o , n a s c e r a m d a violência.
N a P r o v e n ç a , o s seigneurs n ã o r a r o n e l a s residiram, concede-
ram c a r t a s d e autonomia sem p r o t e s t o e c o n t i n u a r a m a desem-
p e n h a r um ativo papel n o s negócios u r b a n o s . M a i s ao N o r t e ,
os s e n h o r e s leigos e os b i s p o s c o n t r i b u í r a m p a r a a f u n d a ç ã o
de n o v a s cidades, e s t a b e l e c e n d o - l h e s o s limites e supervisio-
n a n d o - l h e s a construção. F o r a m e n c o r a j a d o s a f a z ê - l o pela
possibilidade d e participarem d a receita municipal e pelo desejo
de evitar uma c o n f r o n t a ç ã o com seus v a s s a l o s . N o a n o d e 1175,
o C o n d e H e n r y de T r o y e s c o n c e d e u u m a c a r t a a " V i l l e N e u v e .
n a s p r o x i m i d a d e s d e P o n t - s u r - S e i n e " , estabelecendo um aluguel
a n u a l f i x o pelo direito de m e r c a d o r e s e a r t e s ã o s residirem n a
c i d a d e e cultivarem a t e r r a d a s vizinhanças, b e m c o m o de
v e n d e r sem empecilhos c a s a s e v i n h e d o s e negociar a r r e n d a -
mentos. Seis êchevins deveriam ser escolhidos pelos m o r a d o r e s
"a fim d e a j u d a r meu preboste no j u l g a m e n t o d e s u a s queixas"
e p a r a dirigir o s negócios d a cidade. O s c i d a d ã o s recebiam
p r o t e ç ã o c o n t r a p r i s ã o e remoção pelos s e u s a n t i g o s seigneurs.
A c o o p e r a ç ã o d a I g r e j a n a f u n d a ç ã o de n o v a s cidades
fez-se a c o m p a n h a r muitas vezes d a criação, pelas a u t o r i d a d e s
eclesiásticas, de uma zona d e t r é g u a ou paz n o território ur-
bano, retirando-o d a e s f e r a d a s guerras feudais.
N a I n g l a t e r r a , a conquista n o r m a n d a t r o u x e .— ao menos
em teoria — um sistema de g o v e r n o eficiente e centralizado.
E m b o r a os senhores n o r m a n d o s concedessem inicialmente pri-
vilégios a n u m e r o s a s comunas, t o d a s a s c i d a d e s p o u c o depois
eram p o s t a s sob governo direto d o rei, a n t e c e d e n d o em um
século f e n ô m e n o semelhante na F r a n ç a . A d e s a p r o v a ç ã o pela
C o r o a d a existência de s e n h o r e s f e u d a i s de status inferior, o
que permitia o a p a r e c i m e n t o de novos níveis de obrigações,
foi f o r m a l i z a d a pelo e s t a t u t o Q u i a Emptores em 1290.
E m 1130, a mais a n t i g a concessão real de que se tem
notícia d e c l a r a que os c i d a d ã o s de Lincoln haviam solicitado
100 À PROCURA DB U M LUGAR N A ORDEM FEUDAL
f o r m a r e m um g o v e r n o comunal. F o r a m o r g a n i z a d o s os métiers,
p r o m u l g a d o s e s t a t u t o s municipais e r e g u l a m e n t a d a a vida
comunal. P o u c o mais de cem a n o s depois, no e n t a n t o , C a m b r a i
p e r d e r a t o d o o espirito de u n i d a d e e e n c o n t r a v a - s e dividida em
c a m p o s hostis, como descreve a b a i x o L a m b e r t de ^ V a t e r l o o ,
um h i s t o r i a d o r d a é p o c a :
N o Início, e l a t a c o m u n a ] foi r e c e b i d a c o m s a t i s f a ç ã o p o r q u e
fora instituída por homens tidos em alta estima, homens cuja
v i d a e r a justa, simples, h o n r a d a , e n ã o a v a r e n t a . Todos e s t a v a m
contentes com o que possuíam; a justiça e concórdia reinavam
e n t r e eles; a a v a r e z a era r a r a . C i d a d ã o r e s p e i t a v a cidadão;
o rico não desprezava o pobre; todos evitavam os atritos, a
discórdia, a s d e m a n d a s j u d i c i a i s . . . M a s que m u d a n ç a ocorreu!
Tornou-se de súbito desonrosa e seus belos primórdios acaba-
r a m n u m estado de vergonha e perversidades por razões claras
demais. Os cidadãos deixaram-se embotar pela prosperidade;
ergueram-se uns contra os outros; d e i x a r a m sem castigo o
pecado e o crime, e n i n g u é m pensa e m o u t r a coisa senão enri-
q u e c e r p o r m e i o s ilícitos. A p o u c o e pouco, os g r a n d e s c o m e ç a -
r a m a o p r i m i r os p o b r e s c o m m e n t i r a s , p e r j ú r i o e f o r ç a b r u t a .
O direito, a eqüidade e a h o n r a d e s a p a r e c e r a m . . .
G r a n d e n ú m e r o de tais c o n d e n a ç õ e s a p a r e c e u mais ou
m e n o s p o r essa época e. embora sua v e r a c i d a d e possa ser posta
em d ú v i d a até c e r t o ponto, p o r q u a n t o e r a m p r o f e r i d a s em igrejas
e mosteiros, f o c o s de hostilidade ao comércio, era inegável a
v e r d a d e básica que c o n t i n h a m . A s instituições jurídicas muni-
cipais. como aliás o s cargos municipais, a c a b a r a m indo p a r a r
n a s mã o s d o s ricos. E as p r ó p r i a s instituições que no início
a s s e g u r a v a m o respeito pelos objetivos e interesses c o m u n s —
a utilização de échevins para g o v e r n a r e j u l g a r as d e m a n d a s
judiciais •— t r a n s f o r m a r a m - s e em i n s t r u m e n t o s de o p r e s s ã o n o s
casos em que a f u n ç ã o de n o m e a r servidores e i n t e r p r e t a r o
costume v i g e n t e caiu n a s m ã os de um p e q u e n o g r u p o .
N a s c i d a d e s o r g a n i z a d a s p o r o c u p a ç ã o , ou métier, os
s e n h o r e s mais ricos vieram a d o m i n a r a v i d a d a guilda e n -
q u a n t o seus c o n c o r r e n t e s mais p o b r e s eram o b r i g a d o s a fechar
a s portas, t o r n a n d o - s e t r a b a l h a d o r e s a s s a l a r i a d o s . P o u c o depois,
a eleição de servidores locais por métier n ã o significava mais
eleição por to d a a comunidade. Q u a n d o não. uma o r g a n i z a ç ã o
municipal f r o u x a caía n a s mãos de umas 1 p o u c a s famílias a t r a v é s
d o processo de cooptação. R e t o m a r e m o s ess« linha de e s t u d o
n o capítulo seguinte, mas por ora vale dizer que. ao fim do
século X I , seus primeiros sinais já se faziam claros na t e n s ã o
existente e n t r e ricos e pobres.
7 - Ti.A.O.
7
Transporte por
Terra e Mar
d a s r i q u e z a s d o s rivais e a p r o t e ç ã o de s u a s p r ó p r i a s exigia a
segunda.
F o i t a m b é m a m p l a m e n t e u s a d o o sistema fluvial no t r a n s -
porte d e b e n s . O s g r a n d e s sistemas p o t a m o g r á f i c o s — o R e n o -
D a n ú b i o , o P ó . os rios f l a m e n g o s e os canais q u e a p a r t i r do
século X I I f o r a m c o n s t i u i d o s p a r a ampliá-los •—1 constituíam
instrumentos i m p o r t a n t e s d e comércio. O R e n o , p o r exemplo,
t r a n s p o r t a v a vinho f r a n c ê s . Localizar-se p e r t o d e um deles cons-
tituía c a m i n h o s e g u r o p a r a a p r o s p e r i d a d e u r b a n a . U m a série
de c o n t r a t o s a s s i n a d o s por um homem d e negócios piacenzano
em N i c e no século X I I I d e m o n s t r a c l a r a m e n t e o papel d o s rios
n a f o r m a ç ã o d o modelo econômico d e uma r e g i ã o inteira. E s s e
empresário, A u b e r t u s R u p h u s , vendia lã e tecidos, que recebia
de C h a m p a g n e , Itália e F l a n d r e s . A s m e r c a d o r i a s eram sem
d ú v i d a t r a n s p o r t a d a s por t e r r a d e C h a m p a g n e a P i a c e n z a , um
entreposto i n t e r i o r a n o aliado a G ê n o v a e i m p o r t a n t e c e n t r o b a n -
cário. Daí, os tecidos eram ou t r a n s f e r i d o s via G ê n o v a p a r a
M a r s e l h a e em seguida p a r a Nice, ou levados d i r e t a m e n t e a
N i c e em um navio que lá a n c o r a v a à noite na linha G ê n o v a -
M a r s e l h a . ( D e M a r s e l h a , n a t u r a l m e n t e , o navio podia subir
o rio p a r a a s c i d a d e s d o interior. H á a i n d a c o n t r a t o s que tratam
d a f o r m a ç ã o d e sociedades p a r a e x p l o r a ç ã o desse tipo de co-
mércio costeiro, E s t a v a m em u s o r e g u l a r n a v i o s costeiros com
c a p a c i d a d e p a r a cinqüenta t o n e l a d a s . )
R u p h u s v e n d i a a crédito a o s h a b i t a n t e s da r e g i ã o de Nice,
d e v e n d o o p a g a m e n t o ser e f e t u a d o por o c a s i ã o da s a f r a se-
guinte. A d q u i r i a também a dinheiro o p r o d u t o de f u t u r a s s a f r a s .
A l g u m a s d e s s a s " c o m p r a s " eram sem d ú v i d a empréstimos aos
c a m p o n e s e s . U m a vez que v e n d i a também trigo na região e em
o u t r o s locais, p a r t e de suas c o m p r a s r e p r e s e n t a v a uma f o r m a
de comércio a t e r m o . F a z i a t a m b é m empréstimos, identificados
como tais. A s u a r e d e de comércio utilizava o s rios V a r e
Paillon, s u b i n d o í n g r e m e s v a l e s a t é o s c o n t r a f o r t e s d o s Alpes,
n a s p r o x i m i d a d e s e acima d e Nice. R u p h u s e o u t r o s mercado-
res de s u a grei contribuíram p a r a o envolvimento crescente
dos c a m p o n e s e s na economia monetária.
Assim, e n q u a n t o a s g r a n d e s r o t a s t e r r e s t r e s de comércio
eram a b e r t a s , m e l h o r a d a s e p r o t e g i d a s por alianças politicas
e n t r e mercadores, governos u r b a n o s e seigneurs que d e f e n d i a m
interesses próprios, os rios e m a r e s eram o c a m p o de ação dos
g r a n d e s capitalistas, T o d a s as á r e a s u r b a n a s , que se t r a n s f o r -
110 À PROCURA DE U M LUGAR N A O R D E M FEUDAL
Papas
e Mercadores
D e s d e a s primeiras m a n i f e s t a ç õ e s de i n q u i e t a ç ã o d a
burguesia, sempre houve na Igreja Católica R o m a n a grupos
influentes f a v o r á v e i s ao comércio. E m b o r a p r o c l a m a s s e em altas
vozes sua u n i d a d e e universalidade, a I g r e j a a b r i g a v a em seu
seio u m a e s p a n t o s a d i v e r s i d a d e d e i n t e r e s s e s econômicos e
1 p o n t o s d e vista sociais. N ã o é v e r d a d e , como c o s t u m a m dizer
a u t o r e s m o d e r n o s , que f o s s e m i n e s p e r a d a s a s cisões ocorridas
n a c r i s t a n d a d e no século X V I ; t a m p o u c o é v e r d a d e q u e a p e n a s
i o e m e r g e n t e p r o t e s t a n t i s m o p u d e s s e a c e i t a r o espírito aquisitivo
d e n t r o d o s limites d e u m a teologia m o r a l coerente. P o r t u d o
isso, m e r e c e ser e x a m i n a d o o p a p e l d a I g r e j a C a t ó l i c a n a f o r -
m a ç ã o d a ideologia jurídica d o s m e r c a d o r e s .
A v i d a n a E u r o p a O c i d e n t a l n o século X I t r a n s c o r r i a à
sombra d a I g r e j a . E m aldeias e cidades, b e m como n a s m a n s õ e s
senhoriais, a I g r e j a era o c e n t r o d a v i d a social; u n i a a s pessoas
c o n t a n d o - I h e s velhas histórias e p r o m e t e n d o m e l h o r e s condições
n a v i d a f u t u r a . N ã o d e v e s u r p r e e n d e r , p o r conseguinte, que
I s o c i e d a d e s s e c r e t a s de m e r c a d o r e s e b u r g u e s e s assumissem a
j f o r m a d e i r m a n d a d e s religiosas. A d ú v i d a q u e m e s m o b u r g u e s e s
j ricos a l i m e n t a v a m sobre a m o r a l i d a d e do comércio a g r a v a v a a
| p r e o c u p a ç ã o religiosa da n o v a classe. N o a n o de 1065, um merca-
I dor a m a l f i t a n o m a n d o u f o r j a r , em C o n s t a n t i n o p l a , d u a s enormes
i p o r t a s d e b r o n z e p a r a o palácio episcopal, que fez t r a n s p o r t a r
em navio. A b u n d a r a histórias d e ticos m e r c a d o r e s q u e r e n u n -
ciaram à s s u a s f o r t u n a s e p a s s a r a m o r e s t o d e seus dias em
mosteiros. P o d e r - s e - i a d e s e j a r a morte d o P a p a d a época, ou
112 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL
temporal. A b u r o c r a c i a p a p a l a u m e n t o u em n ú m e r o e a u t o r i d a d e .
S u r g i u uma aliança e n t r e o P a p a d o e o s g r a n d e s comerciantes.
O r d e n s de m o n g e s , como a d o s cístercianos, e de c o m b a t e n t e s ,
c o m o os t e m p l á r i o s e hospitalares, d a P a l e s t i n a , (oram c r i a d a s
f o r a d a h i e r a r q u i a eclesiástica de bispos e arcebispos. O P a p a d o
conseguiu a r r e c a d a r d i r e t a m e n t e uma receita d o s g r a n d e s d o m í -
nios cistercianos e p a r t i c i p a r d a r e n d a d o s t e m p l á r i o s à m e d i d a
q u e estes s e t r a n s f o r m a v a m em b a n q u e i r o s i n t e r n a c i o n a i s e
a g i o t a s n a P a l e s t i n a . D u r a n t e cecto t e m p o , e x p l o r o u o m o n o -
pólio d a m i n e r a ç ã o e v e n d a d e a l ú m e n em g r a n d e p a r t e d a
r e g i ã o p r o d u t o r a d e s e d a d a E u r o p a O c i d e n t a l , que foi mais
t a r d e cedido a m e r c a d o r e s - n a v e g a d o r e s italianos em troca de
um pagamento anual.
O s recursos l e v a n t a d o s com essas e m p r e s a s comerciais t o r -
n a r a m possível a d o t a ç ã o de c o n g r e g a ç õ e s d e u n i v e r s i d a d e s p a r a
o e s t u d o d o s direitos c a n ó n i c o e r o m a n o . F i z e r a m t a m b é m o
P a p a d o a l i a d o d o s g r a n d e s interesses mercantis. O P a p a I n o -
cêncio I V , eleito em 1243, e r a m e m b r o d a família Fieschi, d e
G ê n o v a , u m a d a s mais ricas dinastias de m e r c a d o r e s d a cidade.
A ideologia d a s u p r e m a c i a p a p a l previa u m n o v o I m p é r i o
R o m a n o , com a s f u n ç õ e s de i m p e r a d o r d i v i d i d a s e n t r e o P a p a
e, em menor extensão, o S a c r o I m p e r a d o r R o m a n o . O s a s p e c -
t o s f u n d a m e n t a i s d o direito r o m a n o f o r a m t r a n q ü i l a m e n t e in-
cluídos n a legislação canónica, e m b o r a a r e c u s a d e s o b e r a n o s
leigos de p r e s t a r j u r a m e n t o de v a s s a l a g e m ao I m p e r a d o r d e s s e
o r i g e m à concessão d e q u e c a d a rei p o d i a ser " i m p e r a d o r d e n t r o
d e seus próprios d o m í n i o s " . F o i i m p o s t o à I g r e j a o sistema
administrativo e fiscal c e n t r a l i z a d o do Império R o m a n o , a u m e n -
t a n d o assim t a n t o a receita como a a u t o r i d a d e d o P a p a d o .
N o C ó d i g o T e o d o s i a n o e n a s r e d e s c o b e r t a s compilações
d e Justiniano, os " d o u t o r e s " do direito canónico e n c o n t r a r a m a s
r e s p o s t a s que q u e r i a m p a r a a s q u e s t õ e s d a a u t o r i d a d e p a p a l .
P r o c u r a r a m racionalizar e c o n s o l i d a r a a u t o r i d a d e i n t e r n a d e
u m a I g r e j a b u r o c r á t i c a , h á muito t e m p o d i s t a n t e de seus p r i -
m ó r d i o s d e revolução e martírio. E s s e s e s f o r ç o s f o r a m c o r o a d o s
c o m a publicação, em 1140, d o Concórdia Discordantium Cano-
num, g e r a l m e n t e a t r i b u í d o a u m c e r t o G r a c i a n o , p r o f e s s o r d e
Bolonha. T r a t a - s e de uma c o l e t â n e a de 3.500 f r a g m e n t o s , o u
e x c e r t o s , d o direito civil r o m a n o , d a legislação canónica d o s
concílios d a I g r e j a , de d o c u m e n t o s f o r j a d o s s o b r e a a u t o r i d a d e
p a p a l , aceitos pelo povo, e d e legislação imperial d o p e r í o d o
PAPAS E MERCADORES 115
A Burguesia
no Século XIII
cais, f u n d a m e n t a d o s no q u e e n t e n d i a m por c o n s e n t i m e n t o
comum e c o s t u m e s d o lugar.
N ã o era i n t r i n s e c a m e n t e i m p o r t a n t e a a u t o n o m i a i n t e r n a
c o n c e d i d a a um corpo coletivo •— a universitas. Numerosas
o r d e n s monásticas tinham o direito, que r e t r o a g i a ao a n o 1000,
de e l a b o r a r s u a s p r ó p r i a s n o r m a s . E s s a s r e g r a s , como a s c o m -
pilações jurisprudenciais d e direito costumeiro d a s cidades,
p a u t a v a m o ritmo interno de t r a b a l h o e a d o r a ç ã o d e uma co-
m u n i d a d e b e m d e f i n i d a , m a s s ã o a p e n a s relíquias históricas,
t e n d o pouco mais i m p o r t â n c i a m o d e r n a que a s m u r a l h a s d e s -
m o r o n a d a s d o s g r u p o s q u e g o v e r n a v a m . A q u e s t ã o m u d a in-
t e i r a m e n t e com a s c a r t a s d e a u t o n o m i a d a s cidades.
O sistema de relações sociais estabelecido n a s c o m u n a s ,
e por sua iniciativa, disseminou-se p o r t o d a p a r t e e começou
a destruir a economia f e u d a l n o campo.
D e que m o d o p o d e r i a o a t o a p a r e n t e m e n t e simples de c o n -
c e d e r uma c a r t a de a u t o n o m i a , o a u t o g o v e r n o , o direito de
o r g a n i z a r u m a feira e um m e r c a d o p r o d u z i r esses p r o f u n d o s
resultados? A f i n a l de contas, os b u r g u e s e s h a v i a m inicialmente
p e d i d o a p e n a s direitos iguais no sistema f e u d a l . C o m o r e -
conhecimento de seu status, porém, veio a a p r o v a ç ã o tácita
de relações inteiramente d i f e r e n t e s e n t r e p e s s o a s •— relações
q u e se b a s e a v a m na c o m p r a e v e n d a e eram incompatíveis com
a idéia f e u d a l f u n d a m e n t a l de laços de v a s s a l a g e m .
O s líderes d o s isolados e i n d e p e n d e n t e s levantes u r b a n o s
n ã o c o m p r e e n d e r a m de início o p o d e r inerente a essa n o v a
f o r m a de o r g a n i z a ç ã o social. N o curso da luta pela i n d e p e n -
dência da h e g e m o n i a f e u d a l , criaram artifícios legais intrinse-
c a m e n t e contraditórios e que, n o fim, dissolveram m e s m o o s
laços de s o l i d a r i e d a d e em n o m e da qual h a v i a m sido f o r j a d o s .
A o c o m p r e e n d e r e m t a r d i a m e n t e esse fato, l u t a r a m c o n t r a al-
g u m a s d a s conseqüências do sistema que eles mesmos h a v i a m
estabelecido. T r a t a - s e d e um elemento decisivo no período
t r a n s c o r r i d o e n t r e 1200 e MOO, e teremos o p o r t u n i d a d e de es-
t u d á - l o na T e r c e i r a P a r t e .
E n q u a n t o a vida econômica d a c i d a d e se o r i e n t a v a p a r a
a p r o d u ç ã o em p e q u e n a escala e o comércio de curta distância,
e s t a v a legalmente p r o t e g i d a a idéia jurídica de um e s t o q u e de
b e n s e m ã o - d e - o b r a , e s f o r ç o s e objetivos comuns. N a s cidades
comunais, o dinheiro era um meio de troca, simplesmente um
meio de a p u r a r o valor d a s coisas, o equivalente universal.
A B U R G U E S I A N O S É C U L O XIII 121
D e n t r o d a e s t r u t u r a d a s m e t a s c o m u n a i s e r a útil c o m o e x p e -
diente contábil. A m o e d a , como b e m a b s t r a t o , jamais se a f a s -
tava muito d a p r o d u ç ã o e troca de b e n s p a r a uso e c o n s u m o .
E n q u a n t o q u e fora d a c o m u n i d a d e a a d o ç ã o d a moeda podia
s u b v e r t e r p r o f u n d a m e n t e v e l h a s relações, u m a vez que o c a m -
ponês, a o c o n t r á r i o do m o r a d o r de cidade, n ã o tinha voz n o
processo d e comércio d o qual participava, isso n ã o aconteceu
inicialmente d e n t r o d a s c o m u n i d a d e s .
N ã o o b s t a n t e , tecnologia e e s t a b i l i d a d e social c o m b i n a -
r a m - s e com a s f o r ç a s p o s t a s em m o v i m e n t o p e l a b u r g u e s i a
e t o r n a r a m possível o comércio n o seu sentido c o m p l e t o — ou
a realização c o n t i n u a d e negócios com a f i n a l i d a d e d e multiplicar
o e s t o q u e de m o e d a , inicialmente pela c o m p r a t depois pela
v e n d a . E s s e tipo de comércio u l t r a p a s s a v a o s limites d a cidade.
S e u s f i n a n c i a d o r e s estavam i n t e r e s s a d o s em dinheiro p a r a fazer
f o r t u n a ; a p r o d u ç ã o de bens desviou a a t e n ç ã o d o s p r o d u t o r e s
d e um m e r c a d o identificável, n a maior p a r t e local, p a r a um
g r u p o a n ó n i m o e a m p l a m e n t e d i s p e r s o d e u s u á r i o s que o p r o -
d u t o r conhecia a p e n a s pela s o m a em dinheiro oferecida pelo
retalhista o u grossista. H a v i a c o m e ç a d o n a s c i d a d e s a alie-
nação entre produtor e produto.
A e s t r u t u r a legal criada n o c u r s o d e s s e f e n ô m e n o r e s t a -
beleceu o s princípios d o comércio m e d i t e r r â n e o r o m a n o - b i z a n -
tino. E n q u a n t o os c o r p o s coletivos se c a r a c t e r i z a v a m inicial-
m e n t e p o r compilações jurisprudenciais e x t r e m a m e n t e v a r i a d a s
e p o r c o m p e t ê n c i a s i n t e r n a s q u e m u i t a s vezes n ã o admitiam
a p el aç ã o , o n o v o direito comercial possuía um c o n t e ú d o mais
estável, coerente e u n i f o r m e . C o r t e s c o n s u l a r e s estabelecidas
por concessões de senhores f e u d a i s ou s o b e r a n o s , e c o m p o s t a s
de juristas a serviço d o s g r a n d e s i n t e r e s s e s comerciais, cortes
j u s t a s c r i a d a s p a r a e s t u d a r t r a n s a ç õ e s em g r a n d e escala e de
d u r a ç ã o transitória, tais f o r a m a s instituições d a s maiores uni-
d a d e s de a t i v i d a d e econômica, que v i e r a m a s u p e r a r , ou sim-
p l e s m e n t e i g n o r a r , os tribunais locais.
A m e d i d a q u e a moeda se t o r n a v a um o b j e t o em si e por
sl •— u m a a b s t r a ç ã o d e t o d a s a s m e r c a d o r i a s , incluindo o t r a -
b a l h o h u m a n o ~ o corpo u r b a n o a b s t r a i u - s e de seus membros.
A c o r p o r a ç ã o •— universitas — t o r n o u - s e m e n o s e menos re-
p r e s e n t a t i v a de todos os m o r a d o r e s d a cidade, o meio a t r a v é s
do q u a l e x p r e s s a v a m sua u n i d a d e , e veio a ser c o n s i d e r a d a
como p e s s o a s e p a r a d a , fictícia, d o t a d a d o s atributos d e p e r -
s o n a l i d a d e q u e os jurisconsultos r o m a n o s lhe h a v i a m atribuído.
8 -T> A.C.
122 À P R O C U R A DB U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL
Os Advogados B urgueses:
O P o d e r Real e o
Desenvolvimento U r b a n o
(1200-1400)
10
Introdução
s e p a r a d o d a o r d e m f e u d a l constituíra o mais n o t á v e l f e n ô m e n o
jurídico e social d o s a n o s p r e c e d e n t e s <— a t e n d i a m à s neces-
sidades d o comércio d e g r a n d e escala e longa distância. À s
cidades, n a q u a l i d a d e de centros d o p o d e r b u r g u ê s , t r a n s f o r -
m a r a m - s e em i n s t r u m e n t o s do e s f a c e l a m e n t o d e u n i d a d e s d e
p r o d u ç ã o agrícola intensivas em t r a b a l h o e ineficientes. O co-
mércio d e l o n g a distância, p o r o u t r o lado, orientou e contri-
buiu p a r a f o r m a r instituições j u r í d i c a s e políticas nacionais,
o u quase c onsc i e nt e m e nt e nacionais, que l u c r a r a m coin seu su-
cesso e p r o p o r c i o n a r a m a e s t r u t u r a d e n t r o d a qual elas podiam
desenvolver-se. D a s u n i v e r s i d a d e s , d a s n o v a s e p o d e r o s a s mo-
n a r q u i a s n a c i o n a i s de f o r m a ç ã o r e c e n t e ( n a I n g l a t e r r a e
F r a n ç a ) , d a s c i d a d e s italianas ( V e n e z a e G ê n o v a ) e d a Liga
H a n s e á t i c a d a s c i d a d e s a l e m ã s jorrou u m a literatura jurídica
que descrevia e c o m e n t a v a o s c o m u m e n t e aceitos direitos co-
mercial e marítimo. A s a u t o r i d a d e s civis (incluindo a juris-
dição civil d o s tribunais eclesiásticos) e s t a b e l e c e r a m c o r t e s d c
justiça p a r a aplicar esse direito d a f o r m a d e s e j a d a pelos m e r -
cadores. T o r n a n d o esses tribunais u n i v o c a m e n t e c o m p e t e n t e s
em certos tipos de casos, e c a n a l i z a n d o a s a p e l a ç õ e s p a r a cortes
reais, d u c a i s ou municipais de última instância, o s p o d e r e s tem-
porais, com o objetivo de p r o t e g e r o comércio, c o r t a r a m d e
cima a b a i x o a jurisdição f e u d a l .
À r r o g a n d o - s e o p o d e r d e legislar, o s m o n a r c a s f r a n c e s e s
e ingleses a p l i c a r a m ou c r i a r a m m é t o d o s mais simples e racio-
n a i s de litigar e a p r e s e n t a r p r o v a em a s s u n t o s comerciais. A
p a r t i r d a época d e S ã o Luís e, em especial, s o b o r e i n a d o d e
seus sucessores, F e l i p e III ( 1 2 7 0 / 8 5 ) e F e l i p e I V ( 1 2 8 5 / 1 3 1 4 ) ,
os a d v o g a d o s reunidos em t o r n o d o s o b e r a n o f o r m u l a r a m teo-
rias jurídicas s o b r e a s e p a r a ç ã o e n t r e a I g r e j a e o E s t a d o e
sobre a d e s c e n t r a l i z a ç ã o d o p o d e r , t u d o isso em d e t r i m e n t o d a
a u t o r i d a d e f e u d a l . Se o p e r í o d o e n t r e os a n o s 1000 e 1200 f o r a
de crescente importância d o direito comercial r o m a n o n a v i d a
econômica d a E u r o p a , o p e r í o d o e n t r e 1200 e 1400 presenciou
o desenvolvimento e a d a p t a ç ã o d o direito público r o m a n o com
a f i n a l i d a d e d e r e f o r ç a r a a u t o r i d a d e do p o d e r temporal. ( E n t r e
a s teses do p o d e r temporal, h a v i a a do c r é d i t o e f i n a n ç a s p ú -
blicas, que t e n d i a m a colocar a s f i g u r a s e c o n o m i c a m e n t e mais
p o d e r o s a s no g o v e r n o d a s g r a n d e s u n i d a d e s territoriais.) P e l a
primeira vez ocorria o f a t o d e a a u t o r i d a d e pública jurisdi-
cionar u n i d a d e s cada vez maiores d e território, a u t o r i d a d e e s t a
que, em úítima instância, r e p o u s a v a n a violência a r m a d a , m a s
INTRODUÇÃO 127
Beaumanoir e Outros:
Os Teóricos
de u m a Nova Ordem
U m servidor d o p o d e r real
E s t u d a n d o a v i d a e a o b r a d e Philippe de B e a u m a -
n o i r em seu c o n t e x t o histórico, p o d e m o s reconstituir a c o n -
tribuição d o s juristas p a r a a u n i f i c a ç ã o do p o d e r real e b u r g u ê s .
A s s i m , discutiremos seu t r a b a l h o , t e n d o como p a n o d e f u n d o
o século X I I I , e lhe c o m p a r a r e m o s os escritos com o s d e dois
jurisconsultos que n a época t r a b a l h a v a m a t i v a m e n t e em o u t r o s
locais.
O principal t r a b a l h o sobrevivente de B e a u m a n o i r , Les
Coutames de Beatwaisis, constitui a p a r e n t e m e n t e uma c o l e t â -
n e a d e leis c o s t u m e i r a s d e Beauvaisis, o n d e d u r a n t e a l g u m
t e m p o ele foi bailli — ou o a g e n t e d a C o r o a f r a n c e s a e n c a r -
r e g a d o d e d e v e r e s fiscais, a d m i n i s t r a t i v o s e judiciais. N a v e r -
d a d e , o Coutumes é u m a s o b e r b a reconstituição de c o s t u m e s
locais, unificados, r e f o r m u l a d o s e i n t e r p r e t a d o s à luz d o di-
reito costumeiro d o m u n d o d e fala f r a n c e s a . A s q u a l i d a d e s
literárias e politicas d o t r a b a l h o de B e a u m a n o i r a s s e g u r a r a m -
lhe t a n t o a influência p e r m a n e n t e como o r e g i s t r o a p a r e n t e -
m e n t e fiel d o direito que ele ministrava. M e s m o p a r a leitores
m o d e r n o s , d e s a c o s t u m a d o s aos maneirismos literários medie-
vais, é notável s u a clareza de expressão. O s e r u d i t o s c o m e n -
t a d o r e s d o direito r o m a n o t i n h a m o consolo e a a j u d a n o s seus
c o m e n t á r i o s de um sistema p r o n t o p a r a uso: o Corpus Jtiris,
O S TEÓRtCOS D E U M A NOVA ORDEM 129
d e J u s t i n i a n o . Ern contraste, B e a u m a n o i r e n f r e n t o u a t a r e f a de
e x p o r s i s t e m a t i c a m e n t e uma t r a d i ç ã o oral e m a r a n h a d a , a m -
b í g u a e incompleta d e c o s t u m e s e p r e c e d e n t e s . S u a finalidade,
disse, e r a c o m p r e e n d e r e r e g i s t r a r esses c o s t u m e s p o r q u e "a
m e m ó r i a do h o m e m — a escouloujante memória — f r a q u e j a ,
sua v i d a é c u r t a e aquilo que n ã o é escrito logo d e p o i s é es-
q u e c i d o " . S e u objetivo politico, no e n t a n t o , foi o de r e a f i r m a r
a s p r e r r o g a t i v a s d o p o d e r real n o interesse d o comércio.
P o u c o s a b e m o s sobre a v i d a de B e a u m a n o i r , e x c e t o q u e
n a s c e u n a P i c a r d i a e q u e recebeu a l g u m a e d u c a ç ã o jurídica.
I g n o r a m o s se n a s c e u c a v a l e i r o ou s e foi e l e v a d o à nobreza
p o r decisão real, embora s e j a mais provável esta última possi-
bilidade. O e s t u d o do direito se h a v i a t r a n s f o r m a d o em meio
d e a d m i s s ã o a u m a casta p r o f i s s i o n a l , d e n t r o d a qual o indi-
v í d u o p o d i a subir, t o r n a r - s e conselheiro real e receber uma
d i g n i d a d e especial de cavaleiro, o chevalier-ès-tois. Desde o
r e i n a d o d e F e l i p e A u g u s t o ( 1 1 8 0 / 1 2 2 3 ) , certo n ú m e r o de f a -
mílias b u r g u e s a s começara a enviar seus filhos para e s t u d a r
direito em B o l o n h a ou n u m a escola d e direito associada, situa-
d a em M o n t p e l l i e r . O e s t u d o d o direito civil, como aliás o do
direito canónico, d a medicina e d a teologia, e r a feito sob a orien-
t a ç ã o d e m e s t r e s que i n s t r u í a m seus a l u n o s e lhes conferiam
g r a u s . O prestígio d a escola e d e seus p r o f e s s o r e s d a v a vali-
d a d e a esses g r a u s em t o d o o m u n d o cristão r o m a n o . Individuos
f o r m a d o s p o r e s s a s instituições c o m e ç a r a m a a s s u m i r cargos
d e conselheiros e servidores civis n a s c i d a d e s do Sul d a F r a n ç a .
P a r i s e O x f o r d , pouco depois, a d q u i r i a m o status d e centros
d e e s t u d o d o direito civil. V a c a r i u s , um d o s comentaristas,
t r a n s f e r i u - s e d a Itália p a r a O x f o r d em m e a d o s d o século X I I
a fim d e lecionar e escrever p a r a os e s t u d a n t e s ingleses um
livro s o b r e direito r o m a n o .
E m P a r i s , o n d e B e a u m a n o i r p r o v a v e l m e n t e estudou, a
u n i v e r s i d a d e foi f u n d a d a n o a n o de 1200 p o r uma c a r t a real de
a u t o n o m i a , a primeira c o n c e d i d a p a r a uma a c a d e m i a p o r um
príncipe secular. A carta codificava o preceito d o direito roma-
n o q u e dizia q u e um g r a u c o n f e r i a ao i n d i v i d u o o direito de
exercer certa profissão. N o v a s u n i v e r s i d a d e s logo depois s u r -
g i r a m em T o u l o u s e , Poitiers, C a h o r s e Grenoble. ( M u i t o
mais t a r d e , em 1312, talvez s o b a influência de livros como
o s d e autoria de Beaumanoir, F e l i p e I V f u n d o u uma escola de
direito em O r l e a n s , dedicada primariamente ao e s t u d o do di-
reito costumeiro n a s d i f e r e n t e s regiões d a F r a n ç a . ) E v i d e n t e -
130 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S
E s s e s conflitos refletiam-se n a s u n i v e r s i d a d e s , e n ã o e r a
r a r o q u e os p r ó p r i o s e s t u d a n t e s lutassem e n t r e si n o s c l a u s t r o s
e n a s ruas p róxi m a s. O e s t u d o d o direito civil, n o e n t a n t o ,
constituía uma influência u n i f i c a d o r a , c o m o aliás se d e s t i n a v a
a ser. A u n i v e r s i d a d e c h e g a v a m p a r t i d á r i o s d e s t a ou d a q u e l a
c o r r e n t e no conflito social: d a u n i v e r s i d a d e , ou assim d e s e j a v a
a m o n a r q u i a , s a i a m a d v o g a d o s t r e i n a d o s em direito civil e
convencidos de q u e a C o r o a erguia-se, c o m o a u t o r i d a d e públi-
ca, acima d a s f a c ç õ e s em luta. A fim d e p ô r em vigor essa i n t e r -
p r e t a ç ã o do p o d e r real, o s m o n a r c a s r e c r u t a v a m p a r a seus
q u a d r o s a d mi ni st ra t i vos i n d i v í d u o s f o r m a d o s p e l a s u n i v e r s i -
dades.
B e a u m a n o i r ingressou n o serviço civil como bailli. r e p r e -
s e n t a n d o o rei em u m a p a r t e d o domínio real e e x e r c e n d o
d e v e r e s judiciários, a d m i n i s t r a t i v o s e fiscais. A o c o n t r á r i o d o s
demais servidores, os baillis e r a m r e m u n e r a d o s em dinheiro —•
n ã o em t e r r a s o u p e l o t r a b a l h o d e s e u s o c u p a n t e s , n e m t a m -
p o u c o p o r u m a p e r c e n t a g e m d a receita q u e p o r v e n t u r a a r r e -
c a d a s s e m . A fira d e impedir q u e f o r m a s s e m ligações d e n t r o de
seus territórios, e r a m eles t r a n s f e r i d o s d e local a c a d a três
a n o s . T a m p o u c o p o d i a m servir n a s u a r e g i ã o n a t a l . O bailli
m u i t a s vezes e n t r a v a em conflito com o s s e n h o r e s f e u d a i s
locais, vassalos d o rei, m a s d e s a c o s t u m a d o s à i n t e r f e r ê n c i a em
seus negócios.
A posição d e B e a u m a n o i r como bailli serve de exemplo d a
p r o m o ç ã o de u m a d a s classes d a b u r g u e s i a — a d o s a d v o g a -
dos — p a r a posições a serviço d o p o d e r central. Serviu
t a m b é m aos interesses do comércio, a j u d a n d o a f o r m u l a r uma
o r d e m jurídica q u e l h e e r a f a v o r á v e l . A C o r o a c o m e ç a v a a
perceber o v a l o r d e a g i r de m o d o previsível, d e a c o r d o com
u m a certa r a c i o n a l i d a d e que veio a m a n i f e s t a r - s e num sistema
d e r e g r a s e m á x i m a s jurídicas, u m a vez que a previsibilidade
é essencial ao comércio. B e a u m a n o i r e n t e n d e u bem esse p a p e l
d o a d v o g a d o e, em seus trabalhos, d e s c r e v e simples e a u t o -
cizadamente tal t a r e f a . Justifica-se talvez a a u t o c o n f i a n ç a q u e
vislumbramos em s u a p r o s a : d u r a n t e t o d a s u a vida gozou d o
f a v o r real e serviu c o m o m e m b r o do Parlement (corte real)
em P a r i s , d e s e m p e n h a n d o mesmo, certa vez, lima missão di-
plomática em R o m a .
A s q u a l i d a d e s pessoais e x a l t a d a s p o r B e a u m a n o i r e r a m
típicas d e u m a c e r t a p o s t u r a m o r a l b u r g u e s a — e m b o r a n ã o
O S TEÓRICOS DE U M A NOVA ORDEM 133
B e a u m a n o i r e v i d e n t e m e n t e p r o c u r o u justificar e ampliar
o poder real e fez uma n o t á v e l d e f e s a d o controle a b s o l u t o
sobre o p r o c e s s o judiciário. O p o d e r d e j u l g a r •— de e x p e d i r
decisões executórias •— era o p r ó p r i o â m a g o d a c o n t e n d a m e -
dieval sobre os p o d e r e s feudais, reais, eclesiásticos e comunais.
B e a u m a n o i r elaborou sua a r g u m e n t a ç ã o c o m b i n a n d o uma hábil
i n t e r p r e t a ç ã o d a lógica jurídica f e u d a l , de princípios c l a r a -
m e n t e d e r i v a d o s d o direito r o m a n o , e d a evidência empírica
d a ineficiência e d e s o n e s t i d a d e d a justiça à m a r g e m do p o d e r
real.
Iniciou sua a r g u m e n t a ç ã o com o e n u n c i a d o de um princí-
pio f e u d a l : t oda a jurisdição leiga do reino d e F r a n ç a era do
rei, como s e n h o r f e u d a l s u p r e m o . O p o d e r d a c o r t e d e a p e l a -
ç ã o do rei e r a em seguida d e d u z i d o d a r e l a ç ã o s e n h o r - v a s s a l o ,
daí s e g u i n d o - s e o princípio d e que n e n h u m v a s s a l o o u s u b v a s -
salo d o rei e s t a v a isento d a o b r i g a ç ã o de c o m p a r e c e r p e r a n t e
u m a corte real, n a q u a l seus j u l g a m e n t o s p o d i a m ser q u e s -
t i o n a d o s . O bailli, além de decidir q u e s t õ e s de competência
d i r e t a do rei, p o d i a f a z e r com que q u a l q u e r seigrteur ou seus
OS TEÓHICOS DE UMA NOVA OHDEM 135
casos d e cavalaria, h o n r a e d i s p u t a s e n t r e m e m b r o s d e s s a
classe. A s cortes d o s s e n h o r e s j u l g a v a m q u e r e l a s r e s u l t a n t e s
d a a d m i n i s t r a ç ã o de s e u s domínios — ou o s respectivos d e v e -
res d o s servidores d o s e n h o r e d o s c a m p o n e s e s . ( U m a d a s
c o n s e q ü ê n c i a s d o a u m e n t o d o p o d e r d o rei foi a c e n t r a l i z a ç ã o
d o p o d e r de polícia, o q u e se t r a d u z i u n a ampliação d a juris-
dição real n a e s f e r a criminal.)
N e s s a situação, introduziu B e a u m a n o i r a tese d o rei como
s o b e r a n o , e n ã o m e r a m e n t e como c a b e ç a d a h i e r a r q u i a f e u d a l .
A c o r t e real t i n h a n ã o a p e n a s a u t o r i d a d e de d e c i d i r q u a l e r a
o costume, m a s t a m b é m d e legislar. " T o d o s os n o b r e s d e s t e
r e i n o d e p e n d e m de mim", disse S ã o Luís, "e eu n ã o d e p e n d o
d e n in g u é m, salvo d e D e u s e d e minha e s p a d a . " O u , n a s p a l a -
v r a s de B e a u m a n o i r :
V ê e m , pois, q u e o s rela s ã o s o b e r a n o s s o b r e t o d o s e t ê m , p o r
direito próprio, & g u a r d a de seus reinos, e p a r a isso p o d e m
e l a b o r a r a s leis q u e q u i s e r e m e m beneficio c o m u m de seu reino,
e o que p r o m u l g a r e m deve ser cumprido.
r> - n . A . c •
138 OS A D V O G A D O S UUHGUESES
A Burguesia e a s C i d a d e s n a F r a n ç a e Inglaterra:
D a Autonomia a o Controle Real
A p r e o c u p a ç ã o de B e a u m a n o i r com a b u r g u e s i a e a a m e a ç a
que ela r e p r e s e n t a v a p a r a o p o d e r real s ã o r e p e t i d a m e n t e
m e n c i o n a d a s n o Coutumes e n q u a n t o ele p r o c u r a v a conciliar o
d e s e j o d e estimular o desenvolvimento comercial d a s c i d a d e s
com o e m p e n h o em s u b o r d i n a r a o r d e m jurídica de t o d o o país
a o controle final d a C o r o a .
O mais i m p o r t a n t e n o p a r t i c u l a r foi sua teoria de que o
status de "boa c i d a d e " — bonne ville •— e " b u r g u ê s " era con-
OS TEÓRICOS Ulí UMA NOVA OIÍUEM
Q u e havia a c o n t e c i d o às c i d a d e s p a r a t o r n á - l o t ã o pes-
simista? P e l o m e n o s por uma coisa, a lógica do m e r c a d o p r e -
valecera entre a s e m p r e s a s comerciais. Isso foi c l a r a m e n t e
p e r c e b i d o lias p r i m e i r a s c i d a d e s a t r a í d a s p a r a o comércio de
l o n g a distância, ou a s c i d a d e s p r o d u t o r a s de tecidos de F l a n -
dres e d o N o r t e d a F r a n ç a . F i n a n c i a d o s por b a n q u e i r o s lom-
b a r d o s , m e r c a d o r e s a t a c a d i s t a s de tecidos c o m e ç a r a m a o p e r a r
n e s s a s cidades n o s séculos X I e X I I . P o r volta d o século X I I ,
já era b e m visível o modelo d o comércio. O s m e r c a d o r e s im-
p o r t a v a m lã b r u t a d a I n g l a t e r r a e Escócia e e n t r e g a v a m - n a
a m e s t r e s - a r t e s ã o s , q u e t r a b a l h a v a m d e n t r o de um sistema
municipal de guildas. N o s ateliers desses p e q u e n o s fabricantes,
a lã era t r a n s f o r m a d a em tecidos finos e devolvida ao e m p r e -
s á r i o - f i n a n c i a d o r . E s t e , p o r seu lado, v e n d i a - a no m e r c a d o local,
p a r a posterior e x p o r t a ç ã o , ou l e v a v a - a a uma feira. E m a m b o s
os casos, a lã era v e n d i d a a o u t r o a t a c a d i s t a .
A intensa concorrência pelo controle d a s r o t a s de comér-
cio — entre famílias, e n t r e este ou a q u e l e interesse b a n c á r i o
l o m b a r d o , e n t r e r e p r e s e n t a n t e s e a g e n t e s d e s t a ou d a q u e l a
c i d a d e italiana •— p o u c o efeito p r o d u z i a , n o e n t a n t o , sobre a
v i d a econômica d o s m e s t r e s - a r t e s ã o s . Recebiam a lã e b e n e f i -
ciavam-na ao p r e ç o em vigor, d i t a d o p o r f o r ç a s econômicas
além do controle d a r e g u l a m e n t a ç ã o municipal. Q u a n d o p r e s -
s i o n a d o s por lucros em q u e d a e preços em alta — i n d i c a n d o
t o d a a evidência disponível um p e r í o d o d e g r a n d e i n f l a ç ã o n o
século X I I I — eles, por seu turno, p r e s s i o n a v a m os t r a b a l h a -
dores. O g r a n d e m e r c a d o r , n a opinião d o s a r t e s ã o s e de seus
e m p r e g a d o s , n ã o t r a b a l h a v a p a r a g a n h a r o p ã o : ele era sim-
plesmente um compsore, um changeur. um a g i o t a . A fim de
e s c a p a r desse sistema de vida, o m e s t r e - a r t e s ã o era solicitado
a aliar-se a i n t e r e s s e s mais amplos, ou lutar por um c a r g o n o
g o v e r n o municipal, o n d e poderia obter a c e s s o à receita d a
OS TEÓRICOS DE U M A NOVA O R D E M H l
n h e c e r um s e n h o r e, a o u t r a m e t a d e , outro. O s e n h o r d e meia
r u a p o d i a , por seu t u r n o , ser v a s s a l o de um s e n h o r mais im-
p o r t a n t e , e assim sucessivamente. E m geral, era o s u z e r a n o d e
nível mais i n f e r i o r n e s s a e s c a d a que c o b r a v a o aluguel a o
o c u p a n t e d a casa. T r a n s f o r m a n d o - s e e s s a s vills em boroitghs,
as a l u g u e r e s a s s u m i r a m c r e s c e n t e m e n t e a f o r m a de p a g a m e n t o s
em dinheiro. O s serviços q u e o primeiro s u z e r a n o devia a o s
d e m a i s acima dele c o n t i n u a v a m a ser exigidos, serviços estes
que, p o r seu t u r n o , f o r a m t a m b é m c o n v e r t i d o s em p a g a m e n t o s
em dinheiro.
F o i imenso o i m p a c t o d e s s a hierarquia de d e v e r e s e serviços
f e u d a i s sobre a p r o p r i e d a d e . S e A a l u g a v a a c a s a de B, q u e e r a
o s u z e r a n o local, e B por seu t u r n o era d o n o d a casa o c u p a d a
p o r C . a morte d e B sem d e i x a r h e r d e i r o s colocava C em seu
l u g a r . D a í em diante, ele receberia todos os p a g a m e n t o s feitos
p o r A . A fim de obter tal privilégio, no e n t a n t o , C t i n h a que
c o n v o c a r uma corte f e u d a l e d e c l a r a r seus direitos, m a s se p o s -
suísse a p e n a s t r ê s ou q u a t r o c a s a s em um borough, c a d a u m a
d e l a s r e n d e n d o u m a s o m a irrisória, pouca o p o r t u n i d a d e teria
d e p e d i r a convocação d e uma corte. O s s e n h o r e s f e u d a i s m e n o -
res, p o r conseguinte, careciam t a n t o d o s meios como d o s incen-
tivos p a r a fazer valer sua jurisdição sobre a p r o p r i e d a d e d e n t r o
dos boroughs, o q u e d a v a ao p o d e r real a o p o r t u n i d a d e de in-
tervir. O s b u r g u e s e s n ã o q u e r i a m i n c o m o d a r - s e com o elenco
d e e x a ç õ e s . serviços, o b r i g a ç õ e s e p e d á g i o s medievais; o
borough o n d e uma dúzia de s e n h o r e s intermediários t i n h a di-
reitos era uma c o n f u s ã o ingovernável, uma vez que n e n h u m d o s
seignenrs d i s p u n h a do p o d e r de fazer a l g u m a coisa d e m o d o
oficial. Além disso, era inevitável a t r i b u t a ç ã o real, em e s p e -
cial n o inicio do século X I I I , q u a n d o a s C r u z a d a s constituíram
u m g r a n d e peso sobre a p o p u l a ç ã o e a vill, esta como u n i d a d e
contábil; n i n g u é m queria p a g a r impostos a m a i s de u m s e n h o r .
A C o r o a , por seu lado. d e s e j a v a d a r p r o s s e g u i m e n t o à c e n t r a -
lização n o r m a n d a , q u e era a mais completa e eficiente d a
E u r o p a . O resultado de t u d o isso foi a aliança e n t r e m e r c a d o -
res e reis às e x p e n s a s d o s p e q u e n o s nobres.
F . W . M a i t l a n d e s t u d o u esse processo no borough de
C a m b r i d g e . O Rei João concedeu à c i d a d e uma carta que d a v a
à c o r p o r a ç ã o municipal .— a universitas — autonomia em t r o c a
de certas obrigações, incluindo 60 libras a n u a i s e um p a g a -
m e n t o único ao s u z e r a n o local, um conde. M a i s t a r d e , inter-
p r e t a ç õ e s judiciais da carta s u s t e n t a r a m que fora intenção de
O S TEÓRICOS D E UMA NOVA O R D E M 145
i r r o m p e r a m com t o n t a f r e q ü ê n c i a n o s séculos X I e X I I f o r a m
c o n s i d e r a d o s crimes, e como tal punidos. B e a u m a n o i r n ã o
d e i x a dúvida sobre a a t i t u d e do rei f r a n c ê s em relação a e s s a s
conjurationes e s u a s o b s e r v a ç õ e s teriam sido e n d o s s a d a s pela
maioria d o s s o b e r a n o s e seigneucs d a E u r o p a O c i d e n t a l :
£ u m a b o a c o i s a q u e os m a l f e i t o r e s s e j a m p r e s o s e c a s t i g a d o s ,
c a d a u m deles de acordo com s e u crime, de m o d o que o u t r o s
se s i n t a m e s c a r m e n t a d o s e e v i t e m c o m e t e r delitos. E e n t r e
os d e m a i s c r i m e s a q u e a c i m a n o s r e f e r i m o s , u m d o s m a i s
g r a v e s , e a q u e l e q u e o s seigneurs precisam punir e vingar, é o
de associação f o r m a d a c o n t r a «ei^neurs e c o n t r a o b e m c o m u m .
Propriedade e Contrato:
T r a n s f o r m a ç ã o da
Ordem Feudal
U m a vez que a s categorias f e u d a i s de s f a f u s social conti-
n u a v a m d o m i n a n t e s , B e a u m a n o i r d e u - s e a o t r a b a l h o de des-
crevê-las e suas relações com o direito d e p r o p r i e d a d e e
obrigações. Diz ele que eram r e c o n h e c i d a s t r ê s classes sociais:
nobres, c i d a d ã o s e s e r v o s da g l e b a :
O s n o b r e s s ã o de l i n h a g e m livre, t a i s c o m o reis, duques, c o n d e s
ou cavaleiros, e esaa n o b r e z a é a e m p r e t r a n s m i t i d a a t r a v é s do
pai, e n ã o d a m ã e . A c o n t e c e o u t r a c o i s a c o m os privilégios dos
c i d a d ã o s , poia, n o c a s o d a q u e l e s q u e s ã o d e l i n h a g e m livre,
ela é t r a n s m i t i d a pelas mães, e q u e m quer que n a s ç a de u m a
m ã e livre é livre, e t e m livre p o d e r de f a z e r o q u e lhe a g r a d a r . . .
o a u t o r d a a ç ã o precisava p r o v a r o a c o t d o , "mais" um d o s
capotes. D e a c o r d o com o direito r o m a n o . A z o e n u m e r a v a seis
"capotes":
1. A coisa t r a n s f e r i d a ( r e s ) n u m " c o n t r a t o autêntico".
O s c o n t r a t o s autênticos no direito civil n ã o têm necessaria-
m e n t e a ver com a p r o p r i e d a d e imobiliária. S ã o c o n t r a t o s nos
q u a i s um o b j e t o é e n t r e g u e a algucm como p e n h o r , depósito
ou e m p r é s t i m o paca uso o u a l g u m a o u t r a Finalidade, a ser devol-
vido àquele que o d á ao fim de um p e r í o d o especificado. V i m o s
e x e m p l o s de tais c o n t r a t o s n o e s t u d o d a s p r á t i c a s comerciais no
C a p i t u l o 4 . U m a vez e n t r e g u e o objeto, h a v i a p r o v a d e que
a l g u m tipo de a c o r d o fora feito. O c o n t r a t o era assim " e n c a p o -
t a d o " , e seus t e r m o s podiam ser p r o v a d o s .
2 . A s p a l a v r a s (verba) de u m a estipulação, que levavam
à s u a conclusão o ritual stipulatio. N e s t e caso, as p a r t e s p r o -
n u n c i a v a m , ao concluírem a b a r g a n h a , a s p a l a v r a s rituais spon-
des-ne? e a r e s p o s t a spondeo, a s quais, e n ã o a fala comum, em-
p r e s t a v a m força legal ao acordo.
3. A r e d a ç ã o (litterae) de um c o n t r a t o .
4. O a c o r d o (consensus) em c o n t r a t o s consensuais. O
a p a r e c i m e n t o do c o n t r a t o consensual, que n ã o exigia r e d a ç ã o
f o r m a l especial e t a m p o u c o precisava ser escrito, ocorreu no
direito r o m a n o s o b a influência d o comércio internacional em
e x p a n s ã o d o império. S u a a p l i c a ç ã o limitava-se ao comércio, era
c o n s i d e r a d o p a r t e d a jus gentiurn e d a v a origem a uma ação
p r e t o r i a n a em b o a fé. D e n t r o d o âmbito permissivo do contrato
consensual, s e g u n d o a lógica de A z o , p o d e r í a m o s dizer que
n e n h u m c a p o t e era necessário.
5. N o s casos de c o n t r a t o s s u p l e m e n t a r e s a um anterior
( p a e f e s adjoints) a causa inicial do primeiro seria suficiente.
6. F i n a l m e n t e , o c o n t r a t o e x e c u t a d o t i n h a causa p o r q u e
a realização d e um a t o (rei interven(us) levava à p r e s u n ç ã o de
que h o u v e r a a c o r d o anterior.
A d i s c u s s ã o de B e a u m a n o i r incluiu q u a s e todos esses ele-
mentos, d e i x a n d o d e fora, no e n t a n t o , n o m e s latinos e r e f e r ê n -
cias a f o n t e s r o m a n a s . Parece, n o e n t a n t o , que ele c o n f u n d i u
a idéia d e causa como categoria legal com sua t r a d u ç ã o literal
como " r a z ã o " ou "motivo", insistindo em que c o n t r a t o s por
" c a u s a s m á s " e r a m nulos. O s e x e m p l o s que deu incluíam con-
152 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S
t r a t o s p a r a p a g a r p r e j u í z o s incorridos n o j o g o de d a d o s , c o n t r a -
t o s usurários, o u t r o s contre bonnes meurs, ou c o n t r a t o s p a r a
c o m e t e r crimes. D e m o n s t r o u t a m b é m a influência do d i r e i t o
c a n ó n i c o e dos c o m e n t á r i o s d e Accursius, um s e g u i d o r de A z o ,
n o reconhecimento do j u r a m e n t o como causa. N a v e r d a d e ,
a d o t o u o ponto d e vista d o c a n o n i s t a de que c o n t r a t o s feitos
sob j u r a m e n t o d e v i a m ser especialmente m a n t i d o s , p o r q u a n t o
" n a c o n t r a t a ç ã o e n t r e D e u s e si mesmo, a q u e l e que n ã o c u m p r e
a p r o m e s s a ao máximo de s u a c a p a c i d a d e comete p e r j ú r i o a o s
olhos de D e u s " .
A discussão d o s c o n t r a t o s p o r B e a u m a n o i r indica q u e uma
a v a l i a ç ã o crítica d o s elementos d a relação f e u d a l , p r e f i g u r a n d o
o E s t a d o burguês, c o m e ç a r a n a F r a n ç a do século X I I I . A cres-
cente centralização d a a u t o r i d a d e n a s mãos do rei retirava d o s
s e n h o r e s o p o d e r judiciário, policial e militar. C o n q u a n t o e s s a s
a l t e r a ç õ e s na teoria jurídica n ã o tivessem que significar q u a l -
q u e r m u d a n ç a n a prática •— a c o r t e do s e n h o r f e u d a l p o d i a ter
c o n t i n u a d o a existir, s u j e i t a a um n o v o direito d e a p e l a ç ã o ao
rei, ou o senhor poderia ter sido i n f o r m a d o de que tinha direito
de p r o f e r i r j u l g a m e n t o s em " n o m e do rei" — o p o d e r d e j u l g a r
n ã o e s t a v a mais vinculado à relação pessoal e n t r e v a s s a l o e
s e n h o r , mas era p a r t e d a a u t o r i d a d e s o b e r a n a r e c l a m a d a pelo
rei. E m outras p a l a v r a s , os preceitos jurídicos n ã o e r a m mais,
n e m mesmo r e m o t a m e n t e , c o n s i d e r a d o s p r o d u t o de a c o r d o cos-
t u m e i r o imemorial: s e n h o r e v a s s a l o e s p e r a v a m p o r igual que
o rei determinasse o c o n t e ú d o d a relação f e u d a l e n t r e ambos.
R e p e t i d a m e n t e , insistiu B e a u m a n o i r em q u e v a s s a l a g e m ,
l e a l d a d e e serviços f e u d a i s e r a m elementos de u m a b a r g a n h a
que, teoricamente, n ã o diferia de q u a l q u e r o u t r o c o n t r a t o . S e
o c o n t r a t o implicava o e n c o n t r o de v o n t a d e s , um a c o r d o , o con-
s e n t i m e n t o válido n ã o p o d i a ser p r o d u t o d a força ou d o medo.
D e i x o u ele claro q u e tinha em m e n t e a c o r d o s e x t o r q u i d o s pelos
seigneurs e o u t r o s indivíduos poderosos. R e a l m e n t e ,
Se digo q u e fiz u m c o n t r a t o p o r q u e a l g u é m m e a m e a ç o u . . . e
o a u t o r d a a m e a ç a não é o m e u senhor, ou u m h o m e m
poderoso, o q u e m e i m p e d i r i a de d e f e n d e r m e u d i r e i t o c o n t r a
ele, e n t ã o t i v e m e d o s e m r a z ã o , p o i s e u c e r t a m e n t e p o d e r i a
intentar processo contra essa pessoa e assim impedir que me
c a u s a s s e d a n o e e v i t a r u m c o n t r a t o tolo.
vezes era a p r o v e i t a d a a o p o r t u n i d a d e d e s u b m e t e r a p r a v a o
laço f e u d a l e, d e f a t o . nos séculos X I I I e X I V , h o u v e um pro-
digioso u s o d e cortes reais p a r a c o n t e s t a r direitos senhoriais.
E m suma, a tese jurídica do c o n t r a t o p e n e t r o u n a s institui-
ções politicas f e u d a i s , mais o u m e n o s d a m e s m a f o r m a q u e o
c o n t r a t o se i n f i l t r a r a n a economia d a é p o c a . O s a n t i g o s prin-
cípios comerciais r o m a n o s , a p l i c a d o s a um comércio crescente-
m e n t e r o b u s t o e tecnologicamente m e l h o r a d o , haviam, à época
em que B e a u m a n o i r escrevia, p a s s a d o a f a z e r p a r t e d a lingua-
g e m comum do direito, pelo m e n o s n a F r a n ç a .
T r i n t a a n o s a n t e s de B e a u m a n o i r , B r a c t o n compilou um
t r a t a d o sobre direito inglês, s e m e l h a n t e em escopo ao d o a u t o r
francês e d a mesma forma claramente influenciado, no estudo
d o s contratos, pelos estudiosos c o n t e m p o r â n e o s do direito roma-
no. N a Itália, o direito r o m a n o f o r a aceito como "direito costu-
meiro", de c u m p r i m e n t o obrigatório em t o d o s o s tribunais e em
t o d a s a s soberanias, a menos que s u b s t i t u í d o por uma jus pro-
prium •— uma lei do lugar, tais como a s p o s t u r a s u r b a n a s n a s
c i d a d e s - e s t a d o s , os estatutos d a legislação marítima d a s cida-
d e s p o r t u á r i a s e a s ordonrtartces m o n á r q u i c a s d a Sicília, S a r d e -
n h a e S a v ó i a . N a E s p a n h a , i g u a l m e n t e , s o b a influência d a s
c i d a d e s ( f i t e r o s ) , h a v i a m - s e c o n s o l i d a d o a s idéias r o m a n a s sobre
c o n t r a t o e rito processual. U m a compilação j u r i s p r u d e n c i a l de
direito costumeiro d e Barcelona, d a t a d a d e 1068, b a s e a v a - s e
e x t e n s a m e n t e n o Exceptiones Petri• Lo Codi foi t r a d u z i d o p a r a
o catalão. A p ó s 1215, a n o em que foi f u n d a d a u m a universi-
d a d e em S a l a m a n c a , r o m a n i s t a s localmente t r e i n a d o s come-
ç a r a m a litigar n o s tribunais. T e s e s t o m a d a s de e m p r é s t i m o ao
direito r o m a n o s u r g i r a m nos reinos de L e ã o e C a s t e l a , em
m e a d o s do século X I I I , no Las siete partidas, u m a reexposi-
ç ã o geral do direito, atribuída ao Rei A l f o n s o , o Sábio.
N a A l e m a n h a , ocorreu mais t a r d e a a d o ç ã o em m a s s a do
direito r o m a n o : só em 1495 foi ele aceito pela c o r t e imperial
central g e r m â n i c a .— o Reichskammergericht — c o m o direito
costumeiro e geral do império. N o século I V , n o entanto, à
medida q u e a Liga H a n s e á t i c a c o n s t r u í a seu p o d e r comercial,
preceitos d o direito r o m a n o fizeram seu a p a r e c i m e n t o em textos
e t r a t a d o s p r á t i c o s e n a s u n i v e r s i d a d e s d a região. A l g u n s de
seus princípios h a v i a m sido a d o t a d o s a i n d a a n t e s : t a n t o F r e -
derico B a r b a r r o x a como F r e d e r i c o II. c o n s i d e r a n d o - s e como
h e r d e i r o s ocidentais d e C o n s t a n t i n o e Justiniano, p r o m u l g a r a m
norW/ae como apêndices à codificação justiniana.
10 -Tt.A.C.
154 OS ADVOGADOS BUKGUESES
A d v o g a d o s e Processos: E n t r a m os Juristas
E n u n c i a d o s e aitifícios técnicos c o m e ç a r a m a contribuir
p a r a um senso de alienação p o p u l a r em relação aos institutos
jurídicos. O p a p e l legislativo do povo começou a ser reduzido
e, finalmente, foi eliminado no meio u r b a n o onde, por breves
m o m e n t o s , floresceu. A lei em si. como c o n j u n t o de r e g r a s e
m á x i m a s e um rito complexo p a r a aplicá-las, t r a n s f o r m o u - s e
em especialização de uma classe de iniciados. Dizia B e a u m a -
noir que a fala e m p o l a d a era o métiec do a d v o g a d o . Descreveu
uma p r o f i s s ã o e um sistema judiciário aos q u a i s n ã o faltava
trabalho. Já f a l a m o s d o s notários, q u e redigiam contratos. A
p r o l i f e r a ç ã o de loiers. c h a m a d o s t a m b é m de avocais ou p r o -
ciweurs, assinalou uma nova f a s e n a evolução d a profissão.
( À m e d i d a que eram substituídos n a e s f e r a dos c o n t r a t o s e do
direito comercial, os costumes f e u d a i s t e n d i a m a sobreviver
a p e n a s n a e s f e r a d a s relações familiares. A t é m e s m o a s leis
municipais c o m u n a i s foram, c o n f o r m e vimos acima, substituídas
pela n o v a cultura jurídica.)
O n o t á r i o — que p o d i a r e p r e s e n t a r a s d u a s partes, redi-
gindo o d o c u m e n t o de a c o r d o com o d e s e j o de a m b a s — diferia
do a d v o g a d o , q u e era um a d v e r s á r i o parcial. A g e n t e d e
d o s litigantes, t i n h a p o d e r e s p a r a a g i r e f a l a r em seu nome e
p r e s t a r assistência no p r o f e r i m e n t o d e decisões e julgamentos
que a f e t a s s e m d i r e t a m e n t e o cliente. E s s a idéia de r e p r e s e n -
t a ç ã o constituiu um passo necessário n o desenvolvimento do
sistema judiciário e do p r ó p r i o comércio. A n t e s do século X I I I ,
o a g e n t e n ã o p o d i a agir em n o m e d o m e r c a d o r sem t o r n a r - s e
p e s s o a l m e n t e responsável. B e a u m a n o i r , no entanto, p a r e c e ter
r e c o n h e c i d o o princípio mais n o v o de que, q u a n d o o a g e n t e era
n o m e a d o , sua a s s i n a t u r a n u m c o n t r a t o criava responsabilidade
a p e n a s p a r a o cliente.
A r e l a ç ã o e n t r e os princípios gerais d a r e p r e s e n t a ç ã o e
a q u e l e s aplicáveis a o s a d v o g a d o s é vista i\o u s o d a mesma p a l a -
vra — p r o c u r c u r —• p a r a descrever a m b o s os tipos de r e p r e -
s e n t a n t e s . A n o v i d a d e do conceito é d e m o n s t r a d a pela elabo-
r a d a e específica procuração que, p a r a ter validade, linha que
160 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S
U m a r e a ç ã o revolucionária a e s s a c o n f u s ã o n o r m a t i v a teria
nivelado a e s t r u t u r a judiciária e erigido o u t r a em seu lugar. O s
m e r c a d o r e s , b u r g u e s e s e a v e n t u r e i r o s marítimos, contudo, n ã o
julgavam ter p o d e r p a r a tanto. E m vez disso, em certas que-
relas, o sistema judiciário tradicional era simplesmente l a d e a d o
e c o n s t r u í d a s a o seu lado instituições paralelas, mais u m a vez
com a a j u d a de a d v o g a d o s . E m N e w c a s t l e . por exemplo, foi
a p r o v a d a pelo rei a criação de um tribunal marítimo, c o n s t a n d o
na sua carta que devia julgar t o d o s os processos a n t e s d a ter-
ceira maré, a p ó s lhe ter sido s u b m e t i d o o processo. A s cortes
de feiras a b r i a m e f e c h a v a m com elas e c o n t a s deviam ser
s a l d a d a s e c o n t e n d a s dirimidas d e n t r o desse período. ( H á ,
c o n t u d o , evidência de que litígios iniciados n a s feiras poderiam
a c a b a r em cortes reais. S e g u n d o o ccfetume comercial, tim
saldo a d e s c o b e r t o p o r m e r c a d o r i a s v e n d i d a s d a v a ao v e n d e -
dor o direito de retenção — direito de p r o p r i e d a d e n ã o posses-
sório — sobre a s mercadorias, que p o d e r i a ser e x e c u t a d o por
arresto em caso de falta de p a g a m e n t o . O b s e r v a v a B e a u m a n o i r
que no reino d e F r a n ç a uma p r o m e s s a oral de g a r a n t i a era
válida se feita n a s feiras de C h a m p a g n e — isto é, uma terceira
p a r l e podia o r a l m e n t e g a r a n t i r o crédito ao c o m p r a d o r e con-
c o r d a r que. se ele se recusasse a p a g a r ou deixasse de p a g a r ,
assumiria a dívida. E s s a s p r o m e s s a s t i n h a m c a r á t e r executó-
rio n a s cortes reais, indicando que pelo m e n o s a l g u m a s querelas
podiam sobreviver a o e n c e r r a m e n t o d a feira.)
166 OS ADVOGADOS BURGUESES
A Capital Comercial
de Grasse
N ã o está claro, n a s p a l a v r a s de B e a u m a n o i r e de
o u t r o s juristas, a maneira como a g i a m h o m e n s e mulheres a f e -
t a d o s p e l a s n o r m a s legais. A fim de medir o impacto d e trans-
f o r m a ç õ e s jurídicas c o n q u i s t a d a s pela insurreição b u r g u e s a e
m o d i f i c a d a s pela a ç ã o senhorial e real. precisamos e x a m i n a r
de p e r t o a v i d a de uma c i d a d e qualquer. G r a s s e , no Sul d a
F r a n ç a , a t r i n t a quilômetros do M e d i t e r r â n e o , foi um centro
m a n u f a t u r e i r o e comercial d e s e g u n d a linha que dominou e
impôs o n e x o monetário à s regiões agrícolas e pastoris circun-
vizinhas, b e m como a e n t i d a d e s u r b a n a s menores. V i s t o de perto,
o movimento de compra, v e n d a , t o m a d a d e empréstimos e for-
m a ç ã o d e capital n a c i d a d e revela o papel f u n d a m e n t a l dos
princípios jurídicos b u r g u e s e s no desenvolvimento do comércio.
C o n q u a n t o os arquivos de G r a s s e n ã o n o s ofereçam coisa al-
g u m a p a r e c i d a com a o b r a d e Beaumanoir.- podemos, a p e s a r
disso, perceber a crescente i n t e r p e n e t r a ç ã o dos direitos capita-
lista e f e u d a l , e n o t a r a c a p a c i d a d e d e s t e último de r e t o m a r a
primazia q u a n d o se e n f r a q u e c i a a e x p a n s ã o econômica. P o r
sorte n o s s a . G r a s s e , em v i r t u d e d o clima a m e n o e de uma his-
tória r e l a t i v a m e n t e pacífica, conseguiu p r e s e r v a r volumoso
a c e r v o d e contratos, d o c u m e n t o s e registros oficiais que retroa-
g e m ao século X I V . Q u a n d o e x a m i n a m o s o s a n a i s de o u t r a s
cidades, v e m o s que os f a t o s econômicos e jurídicos ocorridos
em G r a s s e g u a r d a r a m estreita s e m e l h a n ç a com outros havidos
em o u t r o s locais.
E m b o r a o desenvolvimento d a teoria jurídica b u r g u e s a
nesse p e r í o d o s e j a melhor c o m p r e e n d i d o a t r a v é s d o s olhos de
168 OS ADVOGADOS BURGUESES
juristas t r e i n a d o s em u n i v e r s i d a d e s , o d i a - a - d i a em G r a s s e p o d e
ser v i s t o com maior c l a r e z a por intermédio d o s olhos de alguém
c o m o Leonet D a y o t , um judeu c u j o n o m e a p a r e c e n u m a lista
oficial d e 1305 e em um d o c u m e n t o de tabelião em 1309 como
c o m p r a d o r de certa q u a n t i d a d e d e tecidos, ou a t r a v é s d o s olhos
d e agricultores, p a r a o s q u a i s G r a s s e era o c e n t r o d a v i d a eco-
nômica.
G r a s s e situa-se n u m local o n d e a p e q u e n a e l e v a ç ã o d a
f e r r a a partir do M e d i t e r r â n e o cede J u g a r a o b r u s c o relevo
calcário d a zona que p r e c e d e o s A l p e s . F o i f u n d a d a no século
X s o b a suzerania de u m bispo e de u m a família n o b r e , que
a d o t o u o nome de G r a s s e . A c o m u n a fez seu a p a r e c i m e n t o em
1155, elegendo dois cônsules, indivíduos que d e s e m p e n h a v a m
o m e s m o papel que o d o p r e f e i t o em c i d a d e s mais ao N o r t e .
G u e r r a s de classe n a c i d a d e p r o p o r c i o n a r a m justificativa p a r a
a s u p r e s s ã o d a c o m u n a pelo C o n d e d e P r o v e n ç a em 1227.
A p e s a r disso, a c i d a d e c o n t i n u o u a d e s f r u t a r de seus privilégios
d e c o m p r a e v e n d a , l i b e r d a d e econômica, f e i r a s e m e r c a d o s .
E r a m consideráveis e s s e s privilégios comerciais. G r a s s e
era uma das c i d a d e s p r o v e n ç a i s aliadas p o r t r a t a d o d e c o m é r -
cio, a m i z a d e e p r o t e ç ã o m ú t u a com G ê n o v a , d e p e n d e n d o
d e s t a p a r a a compra de seus principais p r o d u t o s , c o u r o s curti-
d o s e p r o d u t o s agrícolas. A l é m disso, s i t u a d a à m a r g e m d a
principal c i d a d e que b o r d e j a v a o litoral do M e d i t e r r â n e o , ligada
a A i x - e n - P r o v e n c e , M a r s e l h a e cidades mais a oeste, G r a s s e
era o terminal d o comércio terrestre na P r o v e n ç a . E s t r a d a s
vicinais e n l a ç a v a m - n a com a s p e q u e n a s c i d a d e s p r o v e n ç a i s de
C a s t e l l a n e e D i g n e , c u j o s h a b i t a n t e s se a b a s t e c i a m em G r a s s e
d e tecidos e implementos agrícolas, e nela v e n d i a m seus p r o -
dutos.
A situação d o s j u d e u s no século X I V reflete em igual
m e d i d a o fanatismo, a hipocrisia e o espírito conciliador do
capitalismo cristão. A s c o m u n i d a d e s j u d a i c a s e r a m m a i s o u
m e n o s t o l e r a d a s em t o d a s a s principais c i d a d e s do M e d i t e r r â n e o .
N ã o sabemos de o n d e veio a família d e L e o n e t D a y o t . T a l v e z
c h e g a s s e ao Sul p r o c e d e n t e d e P a r i s , em fins d o século X I I I .
E m 130'6, Felipe I V de F r a n ç a b a n i u os j u d e u s de seu reino,
t o r n a n d o oficial e final um pogrom iniciado a n o s antes. A c o m u -
n i d a d e judaica d e P a r i s , n o entanto, c o m e ç a r a muito tempo
a n t e s a a b a n d o n a r a cidade. E m 1292, o c a d a s t r o fiscal da
c i d a d e continha os n o m e s de 125 j u d e u s ; em 1296 e 1297, esse
x.c
.O)'
M
<<P
A C A P I T A L C O M E R C I A L DE GRASSE 169
ii -n.A.c.
170 OS ADVOGADOS BURGUESES
ou o p r o p r i e t á r i o concordar em f o r n e c e r c e r t o e q u i p a m e n t o
ou e n c a r r e g a r - s e de certas t a r e f a s . U m notaire d e G r a s s e , pos-
suidor de um v i n h e d o na planície a b a i x o d a cidade, a r r e n -
d o u - o a um f a z e n d e i r o , mas d i s p ô s que u m a vez por a n o tiraria
s u a beca, d e i x a r i a seus manuais d e direito e o e s t u d o e, pes-
soalmente, p o d a r i a o v i n h e d o p a r a estimular o crescimento
certo d a colheita n o a n o seguinte. E s s a cláusula n ã o n o s d e v e
surpreender; o ato de podar as vinhas para melhorar-lhes o
r e n d i m e n t o e a q u a l i d a d e constituía um p r o g r e s s o técnico d e
considerável i m p o r t â n c i a e o nofaire l o g i c a m e n t e queria ver
um serviço b e m feito.
U m e x p e d i e n t e correlato e m p r e g a d o p e l o s comerciantes
d e G r a s s e e r a s u b l o c a r pastos. N u m e r o s o s c o n t r a t o s falam de
b u r g u e s e s d a c i d a d e a s s i n a n d o um acapt p o r d e t e r m i n a d a e x -
t e n s ã o d e p a s t o s d e p r o p r i e d a d e d e um n o b r e e, em seguida,
s u b l o c a n d o p a r t e s d o mesmo p o r períodos c u r t o s p a r a a cria-
ç ã o d e ovelhas, g a d o vacum e caprinos. E s s a v a r i a ç ã o d a me-
tayage era c o n h e c i d a n a p r á t i c a n o t a r i a l como mègerie, e se
c a r a c t e r i z a v a p o r igual partilha d o s lucros e n t r e o comerciante
e o sublocador, u s a n d o o primeiro p a r t e d e s u a cota p a r a p a g a r
o cens d e c o r r e n t e d o acapt. ( E m b o r a a metayage permitisse ao
d o n o d a t e r r a p r o t e g e r - s e c o n t r a a inflação, n ã o foi g r a n d e o
n ú m e r o de n o b r e s que t e n t a r a m c o n v e r t e r seus beaux à acapt
em p r o p r i e d a d e s d e metayage. S e u s motivos f o r a m sem dúvida
lógicos: a t r a d i ç ã o de artifícios como o acapt e a r e p u g n â n c i a
pelo comercialismo t r i u n f a r a m s o b r e o a u t o - i n t e r e s s e econômico.)
O a r r e n d a t á r i o em regime d e acapt ou metayage financiava
com a t o m a d a d e p e q u e n o s empréstimos a c o m p r a d o s artigos
de que necessitava. A fim d e c o m p r a r sementes, f e r r a m e n t a s
ou artigos p a r a o lar, ia a G r a s s e l e v a n d o u m copo de p r a t a
d e h e r a n ç a d e família, ou u m a peça d e tecido, q u a n d o n ã o
um m a n t o , que utilizava como p e n h o r . Se f o s s e p o b r e demais
p a r a possuir tais tesouros, p o d e r i a e m p e n h a r p a r t e d a colheita
d o a n o seguinte. O s c o n t r a t o s revelam q u e o p r e s t a m i s t a exigia
que a família ou amigos do f a z e n d e i r o viessem t a m b é m à cidade
e a s s i n a s s e m o c o n t r a t o como g a r a n t i a d a dívida. Se esta n ã o
era s a l d a d a , o p r e s t a m i s t a tinha o direito c o n t r a t u a l de con-
fiscar o s b e n s d o fazendeiro ou exigir que ele (ou os demais
f i a d o r e s ) viessem p a r a G r a s s e e p a g a s s e m a dívida em serviço.
A a g i o t a g e m n ã o constituía a t i v i d a d e a r r i s c a d a d e m a i s : o s
c o n t r a t o s m o s t r a m que n u m e r o s a s p e s s o a s c a r e n t e s d e recur-
174 OS ADVOGADOS BURGUESES
i
s
l
13
A Rebelião Camponesa
e o Direito à Terra
A luta d o s c a m p o n e s e s no c a m p o visava t a m b é m os
"juízes d o s t r a b a l h a d o r e s " ( m a i s t a r d e , juízes d e p a z ) , q u e
t i n h a m o d e v e r d e aplicar o s v á r i o s e s t a t u t o s d e c o n g e l a m e n t o
d e salários, e o s coletores reais d e impostos. E s t e s últimos
h a v i a m sido d e s p a c h a d o s em 1380 p a r a a r r e c a d a r um "imposto
per capita", l a n ç a d o n ã o s ó p a r a l e v a n t a r receita, m a s p a r a
f o r ç a r h o m e n s e m u l h e r e s a t r a b a l h a r . S e g u n d o diz a tradição,
o insulto de um coletor à filha de W a t T y l e r d e f l a g r o u a
m a r c h a sobre L o n d r e s , n a qual 100.000 c a m p o n e s e s e m o r a -
d o r e s humildes d a c i d a d e c a p t u r a r a m e d e c a p i t a r a m o L o r d e
C h a n c e l e r , o P r e s i d e n t e do S u p r e m o T r i b u n a l d o Rei e o
L o r d e T e s o u r e i r o . M a i s uma vez, c o n s i d e r a d o s como f o r a m
i n s t r u m e n t o s úteis n a p r o p o s i t u r a e n o c u m p r i m e n t o d a lei d o
imposto, o s a d v o g a d o s constituíram alvos especiais d a violên-
cia revolucionária.
O u , como disse S h a k e s p e a r e a respeito d e u m a l u t a d e
foreiros ocorrida um p o u c o depois d a época de que e s t a m o s
tratando:
D I C K : II a p r i m e i r a c o i s a & f a z e r , V a m o s m a t a i ' o s a d v o g a d o s ,
CADB: N ã o . I s s o e u m e s m o q u e r o f a z e r . N ã o é l a m e n t á v e l q u e
a p e l e d e u m c o r d e i r o i n o c e n t e s e j a t r a n s f o r m a d a era p e r g a -
m i n h o ? E que o pergaminho, sendo escrito, desgrace a vida de
u m h o m e m ? Alguns dizem que a abelha dá ferroadas, m a s eu
digo que é cera que ela dá. P o i s a s s i n e i e selei u m a vez certa
coisa, e n u n c a mais fui dono de m i m m e s m o .
A Ascendência
da Burguesia
(1400-1600)
14
Introdução
12 - D . A . C .
186 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA
v e n d a eram i s o l a d a s e sem c a r á t e r d e c o n t i n u i d a d e , t r a n s f o r -
m a n d o - s e , n a m e d i d a em que o permitia o crescimento das
c i d a d e s e a s r e d e s de comunicação, em comércio p r o p r i a m e n t e
dito •— ou b u s c a sistemática d o lucro a t r a v é s d a troca. N o
período t r a n s c o r r i d o entre 1400 e 1600, o c o r r e u um novo fenô-
m e n o : o desenvolvimento e predomínio final d a s atividades
m a n u f a t u r e i r a s , e n v o l v e n d o a c o o r d e n a ç ã o e sistematização da
produção artesanal.
O s primeiros mercadores m a n t i n h a m u m a relação p u r a -
m e n t e " e x t e r n a " com o inodo de p r o d u ç ã o , c o m p r a n d o do pro-
d u t o r e t r a n s p o r t a n d o a s m e r c a d o r i a s p a r a o p o n t o o n d e elas
seriam v e n d i d a s a o mais alto preço. G r a d u a l m e n t e , começaram
a investir d i r e t a m e n t e n a p r o d u ç ã o , i n t e g r a n d o o s processos
s e p a r a d o s que resultavam na criação do p r o d u t o a c a b a d o . P a r a -
lelamente, p a r t e d o s p r o d u t o r e s acumulou capitais e começou a
o r g a n i z a r a p r o d u ç ã o em b a s e capitalista, i s e n t a d a s restrições
d a s guildas.
U m a f o r m a política m o s t r a v a - s e especialmente a p r o p r i a d a
a esse f e n ô m e n o , a n a ç ã o - e s t a d o . P o r volta do século X V
c o m e ç a m o s a e n t r e v e r a e m e r g ê n c i a d e s s a instituição peculiar-
m e n t e b u r g u e s a , n a qual, d e n t r o d a s f r o n t e i r a s políticas de um
território d o m i n a d o por um único s o b e r a n o , e r a m removidos
t o d o s o s impedimentos à livre m o v i m e n t a ç ã o de bens. O u , como
escreveu M a u r i c e D o b b :
A rápida ascensão dos industriais, em especial n a Inglaterra,
a b s o r v e u a o s p o u c o s ob v a g a b u n d o s e o s s e m t e r r a . C o m o
advento do processo manufatureiro, ingressaram as várias
nações n u m a relagão competitiva. A luta pelo comércio fazia-so
a t r a v é s d e g u e r r a s , d i r e i t o s a d u a n e i r o s p r o t e c i o n i s t a s e proibi-
ções, ao passo que nações anteriores, n a m e d i d a e m que man-
t i n h a m q u a l q u e r r e l a ç ã o e n t r e si, h a v i a m p a r t i c i p a d o a p e n a s d e
c o n t a t o s I n o f e n s i v o s . D a í e m d i a n t e , o c o m é r c i o a d q u i r i u itrvpov-
tância politica.
a m o d e r n i d a d e , n ã o t i n h a m tal a s p e c t o em 1500. M u i t o s se
o p u n h a m , e ficavam m e s m o c h o c a d o s , com a d e s t r u i ç ã o d e
v e l h o s valores e instituições que a c o m p a n h a v a m esses f e n ô m e -
nos políticos e econômicos. A vida e o b r a de T h o m a s M o r e .
que se opôs à política social e econômica d o s T u d o r s com sátiras,
r e c o m e n d a ç õ e s e. por último, a p r ó p r i a vida, p r o p o r c i o n a - n o s
uma idéia sobre o que f o r a m esses eventos.
15
Thomas More
e a Destruição
da Visão Medieval
P r o s s e g u e o p e r s o n a g e m dizendo q u e n u m e r o s o s tecelões f o r a m
expulsos do m e r c a d o pelos altos preços, o c a s i o n a d o s pela i n f l a -
ção, d a lã b r u t a , c u j a v e n d a era c o n t r o l a d a p o r u n s poucos
ricos.
C o n d e n s a d a n e s s a s p o u c a s linhas, temos a história e c o n ô -
mica d o s cem a n o s precedentes, bem como a s c o n s e q ü ê n c i a s
d a política econômica d o s T u d o r s s o b H e n r i q u e V I I I e seus
sucessores. F i c a m o s curiosos sobre o que H e n r i q u e deve ter
p e n s a d o q u a n d o , a p e s a r de t e r lido o e x e m p l a r d e A Utopia
q u e lhe fora o f e r e c i d o p o r M o r e , n o m e o u - o p a r a seu serviço
e c o n t i n u a m e n t e o prom ove u, a t é q u e e!e veio a o c u p a r o
s e g u n d o mais a l t o p o s t o d o reino.
M a s o que n o s diz essa história? D u r a n t e séculos, a lã
inglesa fora e x p o r t a d a p a r a a s tecelagens de F l a n d r e s e do
N o r t e d a Itália. A e s c r i t u r a ç ã o de b a n q u e i r o s e comerciantes
p r o p o r c i o n a - n o s uma clara idéia sobre o que era esse comércio
do p o n t o de vista d e c o m p r a d o r e s f l a m e n g o s e italianos, d o s
b a n q u e i r o s d a L o m b a r d i a e d o s m e r c a d o r e s de S t a p l e . O S t a p l e
era o nome d a d o ao g r u p o que detinha um monopólio real d e
p r o d u t o s primários e que, d u r a n t e a maior p a r t e d o século X V ,
teve sua sede em C a l a i s ( q u e p e r m a n e c e u em m ã o s i n g l e s a s
até 1558) e exercia uma a u t o r i d a d e que lhe fora c o n c e d i d a pela
THOMAS MORE E A D E S T R U I Ç Ã O DA VISÃO M E D I E V A L 193
n i z a d a a p r o d u ç ã o a fiin de g a r a n t i r o s u p r i m e n t o de lã, t o r -
n o u - s e impossível a vida r u r a l . S u r g i u uma classe o p e r á r i a
potencial, constituída d o s v a g a b u n d o s a que s e referia M o r e e
q u e n ã o d i s p u n h a de meios de v i d a até que p u d e s s e ser
a b s o r v i d a pelo p r o c e s s o de produção. U m a p e r s p e c t i v a social
d e s s e s fatos é e n c o n t r a d a em um p o e m a q u e circulou em C a m -
b r i d g e em m e a d o s de 1500 a fim de justificar a d e r r u b a d a d o s
c u r r a i s de c a r n e i r o s :
Syr I thinke that thls wyrke
Is as g o o d as to byld a k y r k e
For Cambridge bayles truly
Give yll e x a m p l e to t h e c o w n t r y e
Ther comones lykewiees for to engrose
A n d f r o m poor m e n it to e n c l o s e . . .
Therefore it is g o u d consciens I w e n e
T o m a k e that c o m m o n that ever hathe bene *
A ação c o n t r a s e r v i d o r e s u r b a n o s , o b j e t o d a s q u e i x a s d o s
v e r s o s acima, e n c o n t r a - s e r e g i s t r a d a n o s a n a i s d a C i d a d e de
C a m b r i d g e , em m e a d o s do século X V I :
U m trecho de t e r r a é t o m a d o dos c o m u a s e c e r c a d o por u m
muro ao f i m da trilha de Jesus, por cuja incorporação a
cidade é compensada, m a s não todos o s moradores da cidade,
que são prejudicados.
E m o u t r a s p a l a v r a s , e s t a v a m o r r e n d o a idéia medieval d e c i d a d e
c o m o posse c o m u m d e seus h a b i t a n t e s , d e s c e n d e n t e s d a q u e l e s
q u e se h a v i a m u n i d o em s e g u i d a a j u r a m e n t o s solenes. A "cor-
p o r a ç ã o " veio a significar o s s e r v i d o r e s municipais, os mais
ricos e poderosos d o s h a b i t a n t e s , q u e c o n s i d e r a v a m a s p r o -
p r i e d a d e s u r b a n a s como s u a s , v e n d e n d o - a s e e m b o l s a n d o o preço
recebido.
A fim d e ser i m p l a n t a d a racionalização n a p r o d u ç ã o , pre-
c i s a v a m ser c e r c a d o s o s c a m p o s e s u s p e n s o s o s privilégios d a s
guildas por c a r t a s régias c o n c e d i d a s a c o m p a n h i a s de e m p r e -
sários e e x p o r t a d o r e s , b e m como reescritas a s leis q u e regiam
a p o s s e d a t e r r a . E s s a t a r e f a exigia u m a p o d e r o s a e centrali-
z a d a a u t o r i d a d e e os b u r g u e s e s f o r a m , de fato, o s primeiros
• S e n h o r , p e n s o q u e e s t a o b r a / 35 t ã o b o a q u a n t o c o n s t r u i r u m a
igreja / Pois o bailio de Cambridge verdadeiramente I dará exemplo
a o pais. / S e u s c o m u n s e n r i q u e c e r ã o do m e s m o m o d o / E d a g e n t e
pobre tlravão p r o v e i t o . . . / Portanto, ê de b o a consciência que eu
c o n s i g a / fazer c o m que o c o m u m s e j a Bempre o que foi.
THOMAS MOKE E A DESTRUIÇÃO DA V1SÃÜ MEDIEVA). 195
p a l a d i n o s de uma p o d e r o s a m á q u i n a estatal. N a ç õ e s - e s t a d o s
como a I n g l a t e r r a e a F r a n ç a , que c o n s e g u i r a m unificar-se em
v o h a d e um forte poder central, sobreviveram e f o r a m f o r t a -
lecidas pelo caos econômico.
C o n t r a esses f a t o s investiram h o m e n s como M o r e . E m
A Utopia, s e a c h a m o s q u e ele r e a l m e n t e f a l a v a a sério, encon-
t r a m o s a s c h a v e s p a r a c o m p r e e n d e r s u a vida e m o r t e . M o r r e u
ele p o r um principio: " B o m servidor d o Rei, m a s D e u s pri-
meiro." O p ô s - s e f i r m e m e n t e ao divórcio e n t r e H e n r i q u e V I I I
e C a t a r i n a de A r a g ã o , a d v e r t i n d o ao rei que esse p r o c e d i m e n t o
era contrário ao direito c a n ó n i c o e ao divino. Q u a n d o , no res-
caldo d o divórcio, H e n r i q u e conseguiu do P a r l a m e n t o seu
r e c o n h e c i m e n t o como C h e f e S u p r e m o d a I g r e j a d a Inglaterra,
r e c u s o u - s e a p r e s t a r o j u r a m e n t o d e teste, pelo q u a l se reco-
nhecia a H e n r i q u e o direito d e u s a r esse título. S e u ponto de
vista era o m e s m o q u e s u s t e n t a r a n o s a t a q u e s q u e l a n ç a r a
contra a h e r e s i a : o indivíduo p o d i a a c r e d i t a r n o que quisesse,
e e n q u a n t o n ã o desse p u b l i c a m e n t e "ocasião p a r a calúnia,
t u m u l t o e sedição contra seu príncipe", n e n h u m motivo p a t a
punição haveria.
F o i a c u s a d o e j u l g a d o por traição, pelo " d e s e j o d e privar
o R e i de sua d i g n i d a d e , titulo o u n o m e à s s u a s p r o p r i e d a d e s
r e a i s " . C o n q u a n t o a q u e s t ã o em q u e se b a s e o u seu julgamento
fosse limitada à recusa em p r e s t a r o j u r a m e n t o , n a v e r d a d e
t i n h a u m a b a s e muito mais a m p l a : d e c l a r a v a M o r e que o
P a r l a m e n t o n ã o podia d e c l a r a r que um leigo e r a s u p r e m o em
q u e s t õ e s de fé, p o r q u a n t o tal p r e t e n s ã o contribuía p a r a f r a g -
m e n t a r a f r á g i l u n i d a d e d a f é cristã, d e t e r m i n a d a pelo E v a n g e -
lho. T a l p o d e r contribuiria p a r a o a u m e n t o do n ú m e r o d e g u e r r a s
e d a d e s t r u i ç ã o e, irremediavelmente, impediria a criação d e
uma c o m u n i d a d e cooperativa. M o r e e E r a s m o coincidiam ao
verem n a s f r o n t e i r a s d o s E s t a d o s " u m p a d r ã o r a b i s c a d o p a r a
divertir a m a l d a d e infantil d o s p r í n c i p e s " . M o r e , o católico de-
voto, n ã o p o d i a mais a s s e n t i r à s reivindicações religiosas de
H e n r i q u e do q u e M o r e . o h u m a n i s t a , p o d i a presenciar o sacri-
fício d e t o d o s o s laços pessoais a o s n e x o s d o dinheiro e do con-
trato. T a m p o u c o podia c o n c o r d a r q u e princípios devessem ser
s u f i c i e n t e m e n t e flexíveis p a r a a t e n d e r a q u a l q u e r razão de
E s t a d o ou v a n t a g e m econômica q u e p u d e s s e m ser plausivamente
a r g u m e n t a d a s . V e m o s em A Utopia que M o r e alimentava essas
idéias h a v i a algum tempo. H a v i a ele igualmente, n u m a inaca-
b a d a história de R i c a r d o III. d e s c r i t o o c a r á t e r desse príncipe
196 A ASCENDÊNCIA DA B U R G U E S I A
em t e r m o s q u e r e j e i t a v a m a " a r t e de g o v e r n a r a m o r a l " . E s c r e -
v e u q u e " a a c u m u l a ç ã o d e f o r t u n a " era a "única coisa que a f a s -
t a v a o P r í n c i p e d o c o r a ç ã o d o s ingleses".
A visão de M o r e n ã o foi a d e um místico, n e m foi ele um
apologista da selvageria f e u d a l ou d a política d o P a p a d a é p o c a .
C o m o a d v o g a d o , percebia c l a r a m e n t e a s c o n s e q ü ê n c i a s institu-
cionais d a s decisões e f o r ç a s a q u e s e o p u n h a . Q u a n d o T h o m a s
C r o m w e l l , que seria seu principal a c u s a d o r , veio visitã-Io, a p ó s
M o r e ter-se demitido d o c a r g o d e C h a n c e l e r , este aconselhou-o,
s e g u n d o n o s c o n t a seu genro, n a s s e g u i n t e s p a l a v r a s :
Mestre Cromwell, acabais de entrar para o serviço de uni dos
m a i s nobres, sábios e liberais príncipes. S e quiserdes a c e i t a r
m e u pobre conselho, no aconselhamento a Sua Graça sempre
l h e d i g a o q u e ele d e v e f a z e r , m a s nurvca o q u e e l e p o d e
f a z e r . . . Pois se o leão conhecesse s u a própria força, difícil
seria ao h o m e m domá-lo.
C r o m w e l l , n o entanto, i g n o r o u o conselho de M o r e . M a -
q u i a v e l escrevera em O Príncipe que "o h o m e m que deixa o q u e
é feito pelo q u e d e v e ser f e i t o a p r e n d e mais cedo sua ruína d o
q u e s u a c o n s e r v a ç ã o " . C r o m w e l l talvez n ã o h o u v e s s e lido M a -
quiavel, mas r e s p e i t a v a os ideais f u n d a m e n t a i s da m a n e i r a d e
g o v e r n a r dos T u d o r s . O discurso que p r o n u n c i o u no patíbulo,
q u a n d o , por sua vez, d e s a g r a d o u t a m b é m a H e n r i q u e , m o s t r a tal
r e s p e i t o : " P u i pela lei c o n d e n a d o a m o r r e r ; o f e n d i o meu
P r í n c i p e . . ."
M o r e e n g a n o u - s e ao a c r e d i t a r q u e a razão, o discurso ou
a f é p o d i a m m u d a r p r o f u n d a m e n t e o curso d o s f a t o s postos em
m o v i m e n t o pelos s o b e r a n o s T u d o r . M a s sua clara visão d a s
f o r ç a s em ação t o r n o u s u a v i d a e o b r a t e m a d e e s t u d o d e a u t o -
res t ã o d i f e r e n t e s e n t r e si como G . K. C h e s t e r t o n e K a r l
fíautslcy. E s c r e v e u este último: " O s objetivos que M o r e s e
p r o p ô s n ã o f o r a m as f a n t a s i a s d e uma h o r a ociosa, mas resul-
t a d o de p r o f u n d a introvisão d a s t e n d ê n c i a s econômicas reais
de s u a época." E m n o s s o p r ó p r i o estudo, p o d e m o s v e r e s s a s
t e n d ê n c i a s refletidas no direito d a terra b u r g u ê s .
16
A Reformulação
da Lei de Propriedade Imobiliária
E s s a idéia f a z i a - s e a c o m p a n h a r d a de n ã o e x c l u s i v i d a d e —
isto é, a t e r r a podia ser p o s s u í d a em comum, ou u m a gleba
p o d i a ser utilizada em d i f e r e n t e s estações p o r d i f e r e n t e s pes-
soas em benefício d a c o m u n i d a d e .
A opinião d a b u r g u e s i a m o d e r n a s o b r e a terra r e p r e s e n t a
u m n o t á v e l c o n t r a s t e em r e l a ç ã o a esse p o n t o de v i s t a . O u ,
c o m o diz K a r l R e n n e r , a u t o r de uma o b r a f u n d a m e n t a l sobre
o direito b u r g u ê s :
O direito de propriedade, dominium, constitui poder legal
a b r a n g e n t e s o b r e u m o b j e t o t a n g í v e l . N o q u e i n t e r e s s a ao
objeto, a posse é u m a instituição u n i v e r s a l : t o d a s a s c o i s a s
corpóreas, m e s m o a terra, p o d e m s e r o b j e t o de p o s s e s e
s ã o r e c o n h e c i d a s c o m o t a i s p e l a l e i e n ã o s ã o c o l o c a d a s extra
commercíum por disposição especial. A posse é igualmente
universal no tocante ao sujeito. Todoa t ê m igual capacidade de
posse e p o d e m possuir p r o p r i e d a d e s de t o d o s os tipos. E s s a s
são a s n o r m a s características deste instituto.
O s f e u d a l i s t a s d e s f r u t a r a m d a v a n t a g e m inicial. A s cortes
d e direito costumeiro t i n h a m jurisdição sobre a maioria d a s
q u e s t õ e s relativas às p r o p r i e d a d e s imobiliárias e e s t a v a m fir-
m e m e n t e v i n c u l a d a s à C o r o a . P o r "direito costumeiro" refe-
r i m o - n o s a o direito aplicado pelos t r i b u n a i s reais, em oposição
aos direitos locais d a s cortes senhoriais r e m a n e s c e n t e s , o direito
comercial e o direito marítimo feito cumprir pelos tribunais
b u r g u e s e s , o direito canónico e o p o d e r do C h a n c e l e r de julgar
q u e s t õ e s d e eqüidade, d o qual Jogo falaremos. A C â m a r a
d o s C o m u n s p o d e t e r c o n t a d o e n t r e seus p a r e s com r e p r e s e n -
t a n t e s d e municípios, m a s d u r a n t e esse p e r í o d o era c o n t r o l a d a
p o r p r o p r i e t á r i o s rurais q u e n ã o t i n h a m interesse em reformular
a lei d a t e r r a . A t é que a t r i b u t a ç ã o d i r e t a assumisse importân-
cia decisiva, muito mais tarde, g r a n d e p a r t e da receita d a Coroa
era o r i g i n á r i a de serviços feudais. N a I n g l a t e r r a e F r a n ç a
d o século X V I , a b u r g u e s i a .— q u e c o n t r o l a v a a riqueza móvel
{dinheiro e ativos facilmente conversíveis em m o e d a ) , a qual
p o d i a ser u s a d a p a r a p a g a r à vista impostos diretos — con-
c o r d o u com a t a x a ç ã o d i r e t a em troca de crescente participação-
no g o v e r n o e concessões d a C o r o a n a r e f o r m a d a lei. d a f o r m a
a p l i c a d a p e l a s cortes reais. A lei v i g e n t e n o s municípios reais
n a I n g l a t e r r a já era e l a b o r a d a p e l a s cortes de justiça d e s s a s
u n i d a d e s políticas e a t e r r a de p r o p r i e d a d e d o s " b u r g o s " era
a q u e mais e x p r e s s a v a o ideal b u r g u ê s . S ó em 1660, com a
r a t i f i c a ç ã o legislativa da R e v o l u ç ã o Inglesa, toda a terra a d q u i -
riu u m g r a u semelhante d e transmissibilidade por testamento
e compra.
A s c o m p l e x i d a d e s d a Jei no t o c a n t e a terras f o r a d a s
c i d a d e s constituíam a principal f o n t e d e r e n d a d o s a d v o g a d o s
q u e litigavam sob a égide do direito costumeiro. A carreira
d e a d v o g a d o nesses tribunais, p o r conseguinte, n ã o era neces-
s a r i a m e n t e a ocupação p r e f e r i d a do filho do mercador, por-
q u a n t o a b u r g u e s i a n ã o era. em 1500, o cliente p r e f e r i d o desses
causídicos. A burguesia, c o m o vimos acima, possuía seus pró-
prios tribunais municipais e comerciais. S ó em princípios do
século X V I I e l a b o r a r a m a s cortes d e direito costumeiro um
sistema de n o r m a s legais que f o r a m a p l i c a d a s f a v o r a v e l m e n t e
ao comércio.
T o d o s os preceitos legais t e n d e m a sobreviver à s u a r a z ã o
de ser. É por isso que os a d v o g a d o s s ã o algumas vezes leva-
d o s a t o l e r a r a revolução, e t a m b é m a r a z ã o por que em t o d a s
a s épocas tiveram a r e p u t a ç ã o de torcer e d a r n o v a s f o r m a s a
200 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA
v e l h a s r e g r a s . A f o r m a a s s u m i d a pela lei d a t e r r a t e n d e u a
persistir muito t e m p o d e p o i s d e t e r e m d e s a p a r e c i d o a s relações
sociais q u e lhes h a v i a m justificado a criação, p a r c i a l m e n t e
p o r q u e a aquisição de interesses em p r o p r i e d a d e s imobiliárias,
a m e n o s que a t e r r a f o s s e d e i x a d a em pousio ou em seu e s t a d o
n a t u r a l , n e c e s s a r i a m e n t e implicava i n v e s t i m e n t o s que n ã o e r a m
fáceis d e retirar e criava t a m b é m interesses que t a m p o u c o
podiam ser facilmente d e s l i n d a d o s .
A tensão e n t r e a s f o r ç a s f e u d a i s e b u r g u e s a s r e a p a r e c i a
c o n t i n u a m e n t e , à m e d i d a que a s cortes d e direito costumeiro
e l a b o r a v a m a lei d a t e r r a . T e n t a t i v a s de evitar o p a g a m e n t o
d e o b r i g a ç õ e s f e u d a i s e r a m a m i ú d e o b j e t o d e litígios n o s tri-
bunais. A i n d a em 1581. p o r exemplo, a Justiça R e a l anunciou
c o m o lei, no que é conhecido como decisão do C a s o Shelley,
um princípio q u e t i n h a a d e c l a r a d a i n t e n ç ã o d e p r e s e r v a r o
direito d e tutela e substituição. I m a g i n e - s e u m a s i t u a ç ã o em
que A e n t r e g a a B c e r t o lote d e t e r r a . Se a n o r m a b u r g u e s a
s o b r e p r o p r i e d a d e f o s s e inteiramente seguida, a q u e s t ã o t e r -
minaria aí: B a d q u i r i r i a a t e r r a e a única r e l a ç ã o legal seria
e n t r e B, persona, e res, t e r r a . A situação, porém, n ã o era t ã o
simples assim em 1500. A podia t r a n s f e r i r t e r r a a B, mas, ao
fazê-lo, B a p e n a s o substituía n a h i e r a r q u i a f e u d a l , d e v e n d o
p r e s t a r serviços a a l g u m senhor, L. E n t r e os direitos d o s e n h o r ,
e d e s u m a importância p a r a a q u e l e s que se e n c o n t r a v a m em
sérias d i f i c u l d a d e s econômicas, h a v i a o p a g a m e n t o a ser rece-
bido q u a n d o B m o r r e s s e e seu h e r d e i r o ( e m geral, n a I n g l a -
t e r r a , o filho mais v e l h o ) lhe h e r d a s s e os interesses.
E s s e a n a c r o n i s m o e r a um convite à s o n e g a ç ã o , e a l g u n s
a d v o g a d o s a c e i t a v a m - n o . A substituição era d e v i d a q u a n d o
a l g u é m e n t r a v a d e posse d a terra por h e r a n ç a , m a s n ã o q u a n d o
o f a z i a p o r escritura ( p o r " c o m p r a " , como dizia a f r a s e t é c -
n i c a ) . Q u a n d o B recebia a t e r r a de A, em nosso exemplo, ele
n e l a i n g r e s s a v a por c o m p r a e, p o r conseguinte, n ã o p a g a v a a
substituição. M a s se A t r a n s f e r i s s e a terra "a B em p e r p e -
t u i d a d e e, por ocasião d a m o r t e de B, a C e seus h e r d e i r o s " .
C n ã o p a g a r i a a s u b s t i t u i ç ã o p o r q u a n t o era i n d i c a d o n a escri-
t u r a e assumia a posse d a terra em v i r t u d e de tal d o c u m e n t o .
N o j a r g ã o d a lei d a p r o p r i e d a d e imobiliária, B possuía u m a
p r o p r i e d a d e em p e r p e t u i d a d e e a C caberia o domínio pleno
dos b e n s h e r d a d o s ,
C o m o seria simples, então, substituir C por e s t r a n h o s , o s
h e r d e i r o s de B. A escritura de t r a n s f e r ê n c i a diria: a B por
A REFORMULAÇÃO DA LEI DE PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA 201
ia -
202 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA
O s foreiros q u e p e r m a n e c e r a m tiveram s u a s e n f i t e u s e s
t r a n s f o r m a d a s em m e r a posse, s e g u n d o a v o n t a d e d o s n o v o s
s e n h o r e s — isto é, sem p r a z o d e f i n i d o — q u e r e c l a m a v a m t a m -
b é m o direito d e elevar o s a l u g u e r e s o q u a n t o quisessem, era
a l g u n s casos d u p l i c a n d o - o s , ou m e s m o triplicando-os. O s que
d i s p u n h a m de meios f o r a m a o s tribunais e m u i t a s d a s a l e g a -
ções de e n f i t e u s e r e c e b e r a m a g a r a n t i a d a lei. D e m o d o geral,
c o n t u d o , a idéia b u r g u e s a s o b r e a t e r r a •— a relação e n t r e p e r -
sona e res, sem o u t r a o b r i g a ç ã o q u e a posse e uso p a r a lucro
p e s s o a l — começou a ser a p l i c a d a d u r a m e n t e .
O s p o b r e s t i n h a m t a m b é m seus p a l a d i n o s , que consegui-
r a m a p r o v a r leis c r i a n d o comissões p a r l a m e n t a r e s d e i n q u é r i t o
e m e s m o p e r d o a n d o a q u e l e s q u e d e r r u b a v a m a s cercas. A f i n a l de
c o n t a s , a lei p r o m u l g a d a pelo P a r l a m e n t o d i s p u n h a c l a r a m e n t e
q u e a terra a r á v e l n ã o devia ser c o n v e r t i d a em p a s t a g e n s . E s s a
limitação sobre o c a r á t e r a b s o l u t o d a relação d e p r o p r i e d a d e ,
n o e n t a n t o , r a r a m e n t e e r a o b s e r v a d a , c o n f o r m e observou u m a
série de comissões d e inquérito. A propósito, cita T a w n e y as
p a l a v r a s d e um religioso:
N o f e c h a m e n t o d a s abadias, claustros, colégios e capelas, a
intenção de S u a M a j e s t a d e f a l e c i d a foi, e a d e n o s s o rei atual
é, o f i m , o u m e l h o r , o p r e t e x t o p a r a o u t r a s m a r a v i l h o s a s a ç õ e s :
que por essas m e d i d a s a q u e l a a b u n d â n c i a de b e n s a n t e s despen-
dida e m vãs cerimônias ou voluptuosamente para alimentar
ociosos estômagos, pudesse chegar à s m ã o s do Rei para finan-
ciamento de suas grandes responsabilidades, necessariamente
desempenhadas e m benefício do h o m e m comum, ou parcialmente
a outros homens, para m a i o r a j u d a aos pobres, a m a n u t e n ç ã o
A REFORMULAÇÃO DA LEI DE P R O P R I E D A D E IMOBILIÁRIA 207
Contrato — Um Estudo
do Direito e da Realidade Social
O desenvolvimento d o direito c o n t r a t u a l n a I n g l a -
terra e n a E u r o p a revela a s limitações d a r e f o r m a jurídica
como meio p a r a s e conseguir u m a m u d a n ç a social completa.
Jurisconsultos b u r g u e s e s , aliás, sentiam g r a n d e p r a z e r em dizer
que a e v o l u ç ã o d o feudalismo p a r a o capitalismo f o r a reali-
zada a t r a v é s do artifício do contrato. Sir H e n r i M a i n e , escre-
v e n d o no século X I X , dizia que a história do p r o g r e s s o h u m a -
no é a d a libertação de o b r i g a ç õ e s b a s e a d a s em status e sua
substituição p o r a q u e l a s b a s e a d a s n o c o n t r a t o , ou livre b a r -
g a n h a , E m o u t r a s palavras, o instituto jurídico do contrato
fora a mola p r o p u l s o r a d a r e v o l u ç ã o b u r g u e s a .
E s s a a f i r m a ç ã o , e n c o n t r a d a n o s t r a b a l h o s d e todos os
juristas filósofos b u r g u e s e s d e s s e periodo, contém uma impor-
t a n t e v e r d a d e histórica e u m a séria f a l s i d a d e analítica. A ver-
d a d e histórica é q u e um sistema d e relações sociais b u r g u e s a s
bem desenvolvido, como o q u e atingiu a m a t u r i d a d e por volta
de 1800 n a I n g l a t e r r a e na F r a n ç a , possuía u m a b a s e contra-
tual b e m desenvolvida. O s laços que uniam os d i f e r e n t e s elemen-
tos d e s s a s o c i e d a d e eram q u a s e e x c l u s i v a m e n t e bilaterais e
a p e n a s n o m i n a l m e n t e c o n s e n s u a i s — isto é, contratuais. A
p r o p r i e d a d e d a terra, sua e x p l o r a ç ã o e d e f e s a n ã o podiam mais,
como no p e r í o d o feudal, m e d i a r a s relações jurídicas entre
pessoas. A p r o p r i e d a d e t r a n s f o r m a r a - s e n a r e l a ç ã o e n t r e p e r -
sona e res. O c o n t r a t o — p a r a t r a b a l h a r , vender, mesmo casar
— subiu a primeiro plano.
A f a l s i d a d e analítica é a a f i r m a ç ã o de que a s relações so-
ciais b u r g u e s a s surgirão, q u a i s q u e r que s e j a m a s condições
212 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA
14 - Tl.A C-
218 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA
h á , e m a c r é s c i m o a o e s t u d o d o direito, u m a espécie de a c a d e m i a
d e t o d a a a s b o a s m a n e i r a s q u e oa n o b r e s a p r e n d e m . D e v e m o s
alunos a p r e n d e r a c a n t a r e a praticar todos os tipos de harmonia.
S ã o e n s i n a d o s t a m b é m a d a n ç a r e a p a r t i c i p a r d e t o d o s oa
passatempos apropriados aos nobres.
d a p r o f i s s ã o , à s e x p e n s a s d o s litigantes, c u j o s negócios e s t a v a m
em jogo. d u r o u até o século X V I I .
A assimilação g r a d u a l do direito b u r g u ê s pelos a d v o g a d o s
constituiu u m a c o n d i ç ã o necessária d e s u a aliança com a bur-
guesia. que atingiu seu ponto culminante n a R e v o l u ç ã o Inglesa
d e m e a d o s d o século X V I I . E s s a aliança n ã o p o d i a ter êxito,
a m e n o s que a g u e r r a de papel, sob a f o r m a de citações e em-
b a r g o s . p u d e s s e ser resolvida em f a v o r d o s a d v o g a d o s , fosse
a t r a v é s de i n t e r v e n ç ã o real ou. como se tornou necessário, por
meios mais violentos.
A aliança e n t r e a b u r g u e s i a e os a d v o g a d o s especializados
em direito costumeiro teve t a m b é m uma d i m e n s ã o constitucio-
nal. pois as cortes o n d e estes litigavam n ã o e r a m criações da
p r e r r o g a t i v a real, como as de c o m e r c i a n t e s e marítimas, e o u t r a s
jurisdições "especiais". C o n f o r m e t e r e m o s o p o r t u n i d a d e de ex-
plicar com mais d e t a l h e s em n o s s a d i s c u s s ã o d a Revolução In-
glesa, Sir E d w a r d C o k e foi um d o s principais a r q u i t e t o s dn
ideologia da aliança. A u t o r i t a r i a m e n t e , p a r a n ã o dizer violen-
tamente. r e f o r m o u a história e a j u r i s p r u d ê n c i a inglesas. O s ve-
lhos c a m p o s e r a m os j u l g a m e n t o s d a s cortes de direito costu-
meiro e, talvez, a M a g n a C a r t a , c o n s i d e r a d a n ã o como um
elenco de concessões e x t r a í d a s p o r a l g u n s barões, mas como
u m a carta de l i b e r d a d e s . C o m b a s e n a M a g n a C a r t a p o d i a ser
d e d u z i d a a tese d e que o rei era limitado pela "lei da t e r r a " ,
f r a s e e s t a u s a d a com maior p r o b a b i l i d a d e n a q u e l e documento
c o m o r e f e r e n t e à proteção d o s privilégios d o s barões, mas sus-
ceptível a uma i n t e r p r e t a ç ã o mais ampla. D a s v e l h a s s e n t e n ç a s
d o s tribunais d e direito costumeiro surgiu uma o r d e m jurídica
r e f o r m a d a , a c e i t a n d o novos princípios, mas r e p o u s a n d o sobre
velhas tradições. E s s a história revista de concessões reais e de-
cisões judiciais, c o n f o r m e o b s e r v o u T . F . T . P l u c k n e t t , "limita-
va p o r igual a C o r o a e o P a r l a m e n t o " .
A b u r g u e s i a n ã o teve p o u c a r e s p o n s a b i l i d a d e n a criação
de u m a m o n a r q u i a com reivindicações ao p o d e r absoluto, pois
seus interesses f o r a m bem servidos pelas e n é r g i c a s políticas dos
T u d o r . M a s . t e n d o conseguido a redistribuição d a terra e lu-
c r a d o com o e s f a c e l a m e n t o d a v i d a aldeã, p r o c u r o u aliados em
uma n o v a luta a fim d e limitar o p o d e r da C o r o a d e interferir
no comércio. O s a d v o g a d o s especializados em direito costumei-
ro e s t a v a m p r o n t o s p a r a p a r t i c i p a r de tal aliança.
f
QUINTA PARTE
A Vitória Burguesa
(1600-1804)
18
França: O Triunfo
do Terceiro Estado
O C ó d i g o de N a p o l e ã o foi p r o m u l g a d o no dia 29 de
V e n t o s e , n o décimo s e g u n d o a n o d a república — 20 de março
de 1804. M a i s de um a n o a n t e s , s u a s linhas m e s t r a s haviam
sido a p r e s e n t a d a s ao Conseil d ' E t a t p o r um d e seus membros,
Jean Portalis, e seus principais c o l a b o r a d o r e s , B i g o t - P r e m é n e u ,
T r e i l h a r d e T r o n c h e t . U m a v e r s ã o anterior, sobre a qual tra-
b a l h a r a m os q u a t r o , fora p r e p a r a d a p o r J e a n - J a c q u e s C a m b a -
ceres, S e g u n d o C ô n s u l de N a p o l e ã o .
E m d i s c u r s o p e r a n t e o Conseil, Portalis alinhou uma série
de r e f l e x õ e s sobre o t r a b a l h o r e a l i z a d o n a eleboração do Códi-
go e n a t r a n s f o r m a ç ã o d e s u a s disposições em lei, u m a s poucas
de c a d a vez, d u r a n t e u m ano. C o m a u t o r i z a ç ã o de N a p o l e ã o ,
seu discurso t o r n o u - s e a v e r s ã o oficial d a história do C ó d i g o .
I n i c i a n d o s u a exposição com uma r e f e r ê n c i a à primeira legis-
lação de C a r l o s M a g n o , c ont i nuou P o r t a l i s c o m e n t a n d o a s
établissemens e ordonnances d e Luis X I , mencionou estudos
sobre direito r o m a n o e chamou a a t e n ç ã o p a r a a falta de su-
cesso d e t o d a s as tentativas p a r a unificar e simplificar o direi-
to v i g e n t e n a F r a n ç a . ( E m relatório a p r e s e n t a d o um a n o antes,
ele t a m b é m p r e s t a r a h o m e n a g e m aos que haviam reduzido à
f o r m a escrita o direito costumeiro, p e r m i t i n d o que o mesmo pu-
desse ser e s t u d a d o , )
N a p e r o r a ç ã o , deu a v e r s ã o oficial d a luta da burguesia
f r a n c e s a p a r a subir ao p o d e r :
" F o r a m as n o s s a s d e s c o b e r t a s n a s artes, nossos primeiros
sucessos na n a v e g a ç ã o , e o f e r m e n t o por sorte nascido de nos-
230 A VITÓRIA DA BURGUESIA
A n t e c e d e n t e s Legais e Históricos
da R e v o l u ç ã o
A n a ç ã o f r a n c e s a surgiu como tal em 1600. P a r a a s f i n a -
lidades d e r e p r e s e n t a ç ã o n o s r a r o s E s t a t e s - G e n e r a l c o n v o c a d o s
pela C o r o a p a r a a p r o v a r impostos e p r o v e r a c o n s e l h a m e n t o ,
a n a ç ã o consistia em t r ê s E s t a d o s : o clero, a n o b r e z a e 09 co-
m u n s (roturiers), E s t e s últimos incluíam b u r g u e s e s ricos, a d -
v o g a d o s , p r o f e s s o r e s , m e s t r e s - a r t e s ã o s , a r t e s ã o s comuns, a s -
s a l a r i a d o s e p e q u e n o s proprietários •— em suma, um g r u p o he-
t e r o g ê n e o de p e s s o a s e interesses.
E m 1800, a b u r g u e s i a •— como aliás o fizera d u r a n t e
oitocentos a n o s —• reconhecia f r a n c a m e n t e a existência de con-
flitos de classe d e n t r o de s u a s fileiras. O s mais a n t i g o s rebel-
d e s u r b a n o s h a v i a m p r o c u r a d o r e c o n h e c i m e n t o de sua situação
excepcional d e n t r o d o sistema f e u d a l , p r e e n c h e n d o uma f u n ç ã o
d i f e r e n t e d a q u e l a que cabia a o u t r o s indivíduos livres, mas n ã o
nobres, tais como p e q u e n o s vassalos, m o d e s t o s proprietários e
u n s p o u c o s diaristas rurais. A g u ç a n d o - s e a s d i v e r g ê n c i a s e n t r e
p a t r õ e s e t r a b a l h a d o r e s , a b u r g u e s i a rica começou a insistir em
um status s e p a r a d o . N a F r a n ç a , é claro, insistir n e s s e status
s e p a r a d o n ã o t o r n a v a necessário p e r m a n e c e r nele — como era
evidenciado p e l a t e n d ê n c i a da b u r g u e s i a de a s c e n d e r à n o b r e -
za, s e m p r e que possível. Só mais t a r d e percebeu ela a s v a n t a -
g e n s de se u n i r e liderar o T e r c e i r o E s t a d o na d e r r u b a d a d a s
instituições feudais.
O T R I U N F O DO TERCEIRO ESTADO 233
is -P.A.C.
234 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A
lisados. satirizados, c o n s i d e r a d o s e s c a n d a l o s o s e d e v i d a m e n t e
classificados todos os elementos d o ancien regime. Voltaire.
D i d e r o t , M o n t e s q u i e u e o u t r o s h a v i a m indicado o caminho. A
p a r t i r do r e i n a d o de Luís X I V ou, mais e x a t a m e n t e , d u r a n t e o
t e m p o de seu ministro Colbert, t o r n a r a m - s e claros os delinea-
m e n t o s ideológicos d a revolução iminente. S e u s arquitetos f o r a m
os advogados.
J o s e p h - R o b e r t P o t h i e r e Jean D o m a t , s e g u i n d o a t r a d i ç ã o
p r á t i c a d e D u m o u l i n . e s c r e v e r a m c o p i o s a m e n t e sobre o direi-
t o b u r g u ê s d o s séculos X V I e X V I I I . a i n d a limitado p o r r e s -
trições f e u d a i s , d o g m a s religiosos e princípio d a s u p r e m a c i a
real. E n t r e m e n t e s , n a F r a n ç a e o u t r o s p a í s e s d a E u r o p a , r e -
p r e s e n t a n t e s d o s g r a n d e s interesses comerciais e m a n u f a t u r e i -
ros — tais como M o n t e s q u i e u n a F r a n ç a e G r o t i u s n a H o l a n d a
—• c o n t e s t a v a m a s objeções f e u d a i s , canónicas e p o p u l a r e s a
um sistema b a s e a d o n o s princípios d o livre c o n t r a t o e n a liber-
d a d e de possuir p r o p r i e d a d e .
A d e m a i s , c o n f o r m e teremos o p o r t u n i d a d e de ver, a lide-
r a n ç a d a s f o r ç a s que sucessivamente a s s u m i r a m o controle d a
A s s e m b l é i a N a c i o n a l a p ô s 1789 recaiu p r i n c i p a l m e n t e n a s mãos
d e a d v o g a d o s , c u j a radicalização se p o d i a medir pela e x t e n s ã o
em q u e a c r e d i t a v a m que a vitória r e c é m - a d q u i r i d a d a b u r g u e -
sia podia ser e n q u a d r a d a d e n t r o d a s v e l h a s instituições ou. em
c a s o c o n t r á r i o que essas instituições inevitavelmente trairiam
a R e v o l u ç ã o e deviam, por conseguinte, ser e s m a g a d a s . N e s t e
capitulo, e s t u d a r e m o s a crescente autoconsciência da b u r g u e s i a
c o m o classe, e n ã o simplesmente como um g r u p o e n t r e os mui-
t o s q u e se o p u n h a m e e r a m s e p a r a d o s d o s s e n h o r e s t e m p o r a i s
e espirituais, c u j a s f u n ç õ e s sociais v i a m - s e c a d a vez mais a t e -
n u a d a s e c u j a s exigências financeiras eram, por isso mesmo,
j u l g a d a s c a d a vez mais p r e d a t ó r i a s .
Jean Baptiste Colbert, M i n i s t r o d a s F i n a n ç a s de Luís X I V
d e 1661 a 1683, d e s e m p e n h o u um p a p e l relevante nesses e v e n -
tos. F i l h o de uma família r e l a t i v a m e n t e rica de comerciantes,
e n t r o u ele a o serviço de M a z a r i n o , conselheiro de Luís X I V e
que, até sua morte, em 1661, foi o homem mais p o d e r o s o do
reino. A propósito de C o l b e r t . diz seu b i ó g r a f o Pierre G o u b e r t :
Escolhido bem moço por Mazarino, a pegou-se a ele c o m o
Mazarino se h a v i a apegado a Richelieu, e serviu-o infatigavel-
mente, até mesmo em tarefas subalternas, como supervisionar-
lhe o j a n t a r . E n c o n t r a v a - s e e m u m a s i t u a ç ã o a d m i r á v e l p a r a
O T R I U N F O DO T E R C E I R O ESTADO 235
c o n h e c e r todos os Interesses de M a z a r l n o e do E s t a d o e p r o m o v e r
os seus. E r a d o t a d o de g r a n d e p e r s e v e r a n ç a , i m e n s a c a p a c i d a d e
de t r a b a l h o , a m o r à ordem, e x p e r i ê n c i a a d m i n i s t r a t i v a , idéias
claras, embora ocasionalmente errôneas, e u m a cobiça sem íim.
S o m e n t e este último traço e r a tipico de s u a época.
C o i b e r t n ã o precisava ser i n o v a d o r . B a s t a v a - l h e a p e n a s
i n s p i r a r - s e n a I n g l a t e r r a e H o l a n d a como modelos de p r o g r e s -
so econômico e p r o c u r a r e n t e n d e r p o r que a F r a n ç a se atrasava
em relação a esses países. S u a solução, e l a b o r a d a p a r a servir
à situação fiscal, política e e x t e r n a d a C o r o a , a o mesmo tempo
em que b e n e f i c i a v a a burguesia, foi o capitalismo mercantil pa-
t r o c i n a d o pelo E s t a d o , de a c o r d o com o m o d e l o inglês.
A fim d e desenvolver um sistema interno de p r o d u ç ã o e
criar um comércio de e x p o r t a ç ã o de m a n u f a t u r a d o s e p r o d u t o s
desenvolvidos com base n a e x p l o r a ç ã o comercial d e plantações
de c a n a - d e - a ç ú c a r e café, C o i b e r t estimulou a criação de cor-
porações instituídas por c a r t a s régias e c o m monopólio a s s e g u -
r a d o — p e lo s q u a i s a C o r o a c o b r a v a um p e s a d o tributo —
sobre a l g u m r a m o do comércio. O patrocínio real e a s inovações
no direito f a v o r á v e i s aos n o v o s sistemas d e comércio e m a n u -
f a t u r a c o m b i n a r a m - s e p a r a a t r a i r f i n a n c i s t a s e b u r g u e s e s ricos
p a r a esses campos. Começou a m u d a r o v e l h o p a d r ã o de for-
mação de f o r t u n a s b u r g u e s a s —• do comércio p a r a a posse de
terras e dai p a r a a nobreza em t r ê s g e r a ç õ e s . O s financistas
q u e p r e f e r i a m n ã o investir, m a s e m p r e s t a r dinheiro à C o r o a
em troca do direito de "colher" p a r t e d o s impostos nacionais,
f o r a m induzidos a m u d a r s u a s p r e f e r ê n c i a s . O s comerciantes e
a b u r g u e s i a m a n u f a t u r e i r a , b e n e f i c i a d o s d u r a n t e os a n o s do
ministério d e Coibert. c o n t i n u a r a m a p r o s p e r a r no século
X V I I I , t r a n s f o r m a n d o - s e em f o r ç a s p o d e r o s a s n a vida política
f r a n c e s a . M o n t e s q u i e u nasceu nesse g r u p o e V o l t a i r e foi g r a n -
d e m e n t e i n f l u e n c i a d o por ele. D e uma p o s i ç ã o de p o d e r , esses
f i n a n c i s t a s d a i ndúst ri a i n t e r n a e d o comércio colonial p a s s a r a m ,
com e s p o r á d i c a a j u d a real, a a t a c a r a s g u i l d a s de a r t e s ã o s e
m e s t r e s - a r t e s ã o s que, no c o n t e x t o d a sociedade feudal, haviam
sido f o r m a d a s como enclaves b u r g u e s e s .
O movimento d e cerco de t e r r a s na F r a n ç a e a luta p a r a
estabelecer o s direitos de p r o p r i e d a d e b u r g u e s e s no c a m p o
ocorreram cem a n o s depois de f a t o s idênticos na I n g l a t e r r a e
sem c o n f i s c a em g r a n d e escala. M u i t o ao contrário, os finan-
cistas b u r g u e s e s , que h a v i a m a d q u i r i d o p r o p r i e d a d e s feudais,
tiveram permissão para nelas construírem estabelecimentos f a -
236 A VITÓRIA DA BURGUESIA
A persistência de f o r m a s f e u d a i s d e p r o p r i e d a d e e status
é visível em Les Loix ctviles e indicativa d a p r e o c u p a ç ã o de
D o m a t d e conciliar velhas n o r m a s com n o v o s sistemas d e pro-
p r i e d a d e e comércio. D a n d o u m exemplo, m e s m o que os em-
préstimos a j u r o s houvessem sido r e c o n h e c i d o s pelo p a r l a m e n t o
inglês mais de cem a n o s a n t e s e fosse permitido pelo menos
em b a s e l i m i t a d a p o r q u a s e t o d a s a s compilações j u r i s p r u d e n -
ciais e sistemas legislativos d a E u r o p a O c i d e n t a l , D o m a t atacou
com eclesiástico f e r v o r esse costume. Les Loix civiíes, n o en-
tanto, d e s c r e v e em d e t a l h e s t o d o s os artifícios clássicos p a r a
ladear a proibição: o credor n ã o p a g o a o fim do p r a z o tem di-
reito a juros; n o c o n t e x t o d e u m a s o c i e d a d e comercial -— socíé-
té en commandité •— o sócio que f o r n e c e o capital tem direito
a e s p e r a r uma p a r c e l a d o s lucros, e assim p o r diante, a t r a v é s
de uma lista conhecida h a v i a c e n t e n a s d e a n o s .
J o s e p h - R o b e r t Pothier, um p r o f e s s o r d e O r l e a n s , publicou
u m longo c o m e n t á r i o sobre a s P a n r f e c f a s d e J u s t i n i a n o e uma
série de t r a b a l h o s sobre a l g u n s a s p e c t o s do direito p r i v a d o
obrigações ( c o n t r a t o s e d a n o s ) , espólios, d i r e i t o d e p r o p r i e d a -
de e direito de familia. O t r a b a l h o de P o t h i e r , d i g a - s e de p a s -
sagem, n ã o era original; sobrevive p o r q u e seu Traité des obliga-
tions foi a d o t a d o pelos r e d a t o r e s d o C ó d i g o d e N a p o l e ã o como
uma d e s u a s diretrizes técnicas ( j u n t a m e n t e com o b r a de D o m a t ,
de B o u r j o n , a u t o r de Droit commun de le Ftance, e d e Loisel,
a u t o r d e Les í n s f i f u t e s C o u í u m t ê r e s ) . O Traité foi t r a d u z i d o
p a r a o inglês e d u r a n t e algum tempo, em princípios d o século
X I X , gozou d e p o p u l a r i d a d e , t e n d o sem d ú v i d a auxiliado os
t r a b a l h o s d e juízes, a d v o g a d o s e r e f o r m a d o r e s jurídicos ame-
ricanos. como o M i n i s t r o Joseph S t o r e y , o C h a n c e l e r Kent,
de N o v a Y o r k . e D a v i d D u d l e y Field — p a r a introduzir o s
conceitos de prática mercantil d o direito civil e. talvez, do pró-
prio direito comercial, n o direito a m e r i c a n o .
A A l i a n ç a entre a
Filosofia e a Finança
U m a coisa era r e e s t u d a r os t e x t o s legais d o a n t i g o regime,
ir à s o r i g e n s de elementos c a l c a d o s em ordonnances reais e n o s
direitos costumeiro, romano, c a n ó n i c o e comercial. O u t r o tipo
de espírito, p o r é m , movia-se n a s á r e a s mais altas do direito.
C h a r l e s d e S e c o n d a t M o n t e s q u i e u ( 1 6 8 9 - 1 7 5 5 ) , c u j o livro O
Espírito das Leis foi e s t u d a d o a f u n d o pelos líderes da R e v o l u ç ã o
238 A VITÓRIA DA BURGUESIA
R e v o l u ç ã o de Quem?
N o que nos interessa aqui, p o d e m o s a c o m p a n h a r o desen-
v o l v i m e n t o d a Revolução F r a n c e s a d e s d e o s p r i m e i r o s decretos
d a A s s e m b l é i a N a c i o n a l a t é a p r o m u l g a ç ã o d o C ó d i g o de N a -
poleão m e d i a n t e e x a m e d a s p r o p o s t a s d a o r d e m jurídica vigen-
te. N a e l a b o r a ç ã o e c u m p r i m e n t o d a s leis d a R e v o l u ç ã o come-
ç a m o s a identificar quem lhes dirigia a s políticas e em cujos
interesses lutavam e morriam os c i d a d ã o s franceses.
E m 1789, a m e a ç a d o o pais de falência após vários anos de
más colheitas e crises agrícolas, Luís X V I convocou o s E s t a t e s -
G e n e r a l com a finalidade de v o t a r n o v o s impostos. H á todas as
indicações de que os d e p u t a d o s b u r g u e s e s eleitos pelo campo
— o n d e residiam 89 por cento d a p o p u l a ç ã o •— estavam dis-
postos, l o u v a d o s n o s sentimentos r e i n a n t e s em seus distritos, a
utilizar a o p o r t u n i d a d e p a r a c o r t a r as p r e r r o g a t i v a s d o s nobres,
em especial as relativas à t r i b u t a ç ã o e a o s direitos senhoriais.
N o dia 12 de j u l h o de 1789, u m a p o b r e mulher disse a um
v i a j a n t e inglês: " A l g u m a coisa p r e c i s a ser feita pelos g r a n d e s
em f a v o r d o s pobres, e m b o r a eu n ã o saiba por q u e m ou como.
mas que D e u s n o s a j u d e , p o r q u e os impostos e serviços feudais
nos e s t ã o e s m a g a n d o " .
240 A VITÓRIA DA BURGUESIA
A r t i g o s s u b s e q ü e n t e s aboliam o direito d o s n o b r e s d e p e s c a r
e c a ç a r à sua livre v o n t a d e em cursos d ' á g u a e f l o r e s t a s e o
direito d e m a n t e r e m cortes d e justiça.
A f r a s e inicial do d e c r e t o g a r a n t i a a o s c a m p o n e s e s que o
"sistema f e u d a l " f o r a abolido. A p r ó p r i a p a l a v r a " f e u d a l " f o r a
a p a r e n t e m e n t e c u n h a d a pe l os revolucionários. M a s o que era
esse sistema e em benefício de q u e m seria d e s m a n t e l a d o ? A
servidão pessoal p r a t i c a m e n t e n ã o existia mais em 1789 e. no
particular, o decreto a p e n a s c o n f i r m a v a u m a situação d e f a t o .
O s direitos dos s e n h o r e s d e pescar, c a ç a r e f a z e r justiça c o n s -
tituíam um i n c ô m o d o a n a c r o n i s m o e s u a abolição final simples-
m e n t e facilitava a r e o r g a n i z a ç ã o d a teoria d a lei d a t e r r a . O s
tributos feudais, que p e s a v a m tão f o r t e m e n t e sobre os c a m p o -
neses — o s alugueres, a p a r t e d a colheita d e v i d a ao seipneur,
os p a g a m e n t o s em dinheiro por v e n d a d a terra — f o r a m decla-
r a d o s s u j e i t o s a r e c o m p r a , e n ã o abolidos. A Assembléia N a -
cional p r o m e t e u estabelecer em a l g u m a d a t a f u t u r a um p r e ç o
j u s t o d e modo que, com um único p a g a m e n t o , o c a m p o n ê s p u -
d e s s e t o r n a r - s e p r o p r i e t á r i o d a terra q u e ele e sua família
haviam cultivado d u r a n t e gerações. Q u a n d o a comissão de
direitos f e u d a is f i n a l m e n t e a p r e s e n t o u seu parecer, no dia 4 de
setembro, t o r n o u - s e mais clara a i n t e n ç ã o d o decreto. A A s s e m -
bléia, r e c o m e n d o u a comissão, devia d e i x a r claro que estava
abolindo a s p r e r r o g a t i v a s ilegítimas d a n o b r e z a e c r i a n d o um
u n i f o r m e e indivisível "direito de p r o p r i e d a d e " — o direito de
usar e a b u s a r daquilo que se possuía. E s s e direito devia ser uma
O T R I U N F O DO TERCEIRO ESTADO 24!
o c u p a ç õ e s . D a m e s m a f o r m a que na I n g l a t e r r a , m u l t i p h c a r a m - s e
a s autorizações p a r a c o n s t r u ç ã o d e f o r j a s e f á b r i c a s f o r a d a s ci-
d a d e s , o n d e o s privilégios d a s guildas existiam por concessões
históricas. N a s n o v a s fábricas, o p e r á r i o s e p r o p r i e t á r i o s d e f r o n -
t a v a m - s e diretamente, e n ã o a t r a v é s d a m e d i a ç ã o d a guilda. e
f a z i a m acordos que. em teoria, r e f l e t i a m - l h e s a s n e c e s s i d a d e s
m ú t u a s , isentas d e q u a i s q u e r limitações r e f e r e n t e s a h o r a s ou
condições de t r a b a l h o . Leis f i x a n d o salários mínimos e exigindo
q u e t o d o s t r a b a l h a s s e m contribuíram p a r a induzir indivíduos
e r r a d i c a d o s d e a t i v i d a d e s p a s t o r i s e agrícolas a i n g r e s s a r n a in-
dústria. P a r a o s f i n a n c i s t a s , revestia-se de e v i d e n t e s v a n t a g e n s
a instalação d e s s a s f á b r i c a s . Isso constituía um e x e m p l o p e r f e i -
t o do u s o d o comércio, como escrevera M o n t e s q u i e u , p a r a
criar u m a ordem social b a s e a d a no direito n a t u r a l .
V o l t a i r e d e s c r e v e r a as guildas como uma c o n s p i r a ç ã o
d e s t i n a d a a oprimir o s t r a b a l h a d o r e s : " T o d a s e s s a s guildas de
mestres, todas e s s a s s o c i e d a d e s c i m e n t a d a s p o r j u r a m e n t o s , f o -
r a m criadas p a r a a r r a n c a r dinheiro d o s p o b r e s t r a b a l h a d o r e s ,
enriquecer seus m e m b r o s , e e s m a g a r a n a ç ã o " . P o r t a - v o z e s d a s
guildas, h o m e n s como M a r a t , p o r o u t r o lado, m o s t r a v a m - s e
um t a n t o a m b í g u o s :
N a d a h á d e m e l h o r do q u a l i b e r t a r t o d o s os c i d a d ã o s dos
grilhões que i m p e d e m o desenvolvimento do talento e d e i x a m
oa i n f e l i z e s n a m i s é r i a . M a s n ã o s e i s e é p r u d e n t e e s s a l i b e r d a d e
plena, essa abolição de t o d a a p r e n d i z a g e m , ou de u m período
d e t r e i n a m e n t o e m t o d a s a s o c u p a ç õ e s . Se, n a â n s i a d e l o g o
enriquecer, o indivíduo põe de lado o desejo de f o r m a r u m a
reputação, então, a d e u s boa fé. P o u c o depois, todos os ofícios
poderão degenerar em intriga e patifaria. U m a vez que tudo o
que 6 necessário p a r a vender o próprio trabalho é dar-lhe certa
capacidade de a t r a i r a vista e u m preço baixo, s e m m e n o r
preocupação com a solidez e a perícia, todo o a r t e s a n a t o d e s c e r á
a o nível de r e f u g o . . . Isso s e r á a r u í n a do c o n s u m i d o r pobre.
c o n t r a os q u a i s h a v i a m - s e l e v a n t a d o em c e r t o n ú m e r o de oca-
siões. A teoria da l i b e r d a d e c o n t r a t u a l d o direito n a t u r a l , no
e n t a n t o , que se refletia n a abolição d a s guildas, juntamente
cora u m a fé i n q u e b r a n t á v e l no p r i m a d o d o comércio, r e s u l t a r a
em mais d o q u e a p e n a s o fim d o privilégio d o s mestres.
N e n h u m a legislação social a b o r d o u , e muito m e n o s r e g u l a -
m e n t o u , os t e r m o s d o contrato locatio c o n d u c t i o operarum —
literalmente, a c o n t r a t a ç ã o d o t e m p o d e t r a b a l h o . U m p r o j e t o
d e lei e l a b o r a d o em j u n h o d e 1791 p o r Le C h a p e l i e r , a d -
v o g a d o de g r a n d e s interesses coloniais em a ç ú c a r e café, retomou
o tema d a legislação d e março. Inicialmente, a lei c o n f i r m o u que
t o d o s os r e g u l a m e n t o s c o n c e r n e n t e s a t r a b a l h o infantil e femi-
nino, h o r a s de t r a b a l h o e t a x a s d e p a g a m e n t o , deviam ser revo-
g a d o s . E m seguida, r e a f i r m o u , n o c o n t e x t o revolucionário, o
q u e uma série de a t o s reais h a v i a p r o v i d o sob o f u n d a m e n t o de.
n e c e s s i d a d e e o r d e m pública; o s t r a b a l h a d o r e s e s t a v a m proibi-
d o s d e se o r g a n i z a r e m . T r a b a l h a d o r e s individuais deviam
p r o c u r a r seus e m p r e g a d o r e s e n e g o c i a r por c o n t a p r ó p r i a :
Sendo u m dos f u n d a m e n t o s d a Constituição a eliminação de
t o j o s os t i p o s de o r g a n i z a ç õ e s c o r p o r a t i v a s d a mesma classe
ou profissão, f i c a proibido seu restabelecimento sob q u a l q u e r
p r e t e x t o . . . O s c i d a d ã o s d o m e s m o status o u p r o f i s s ã o , os a u x i -
liares ou t r a b a l h a d o r e s , q u a l q u e r q u e s e j a o oficio, n ã o p o d e m ,
q u a n d o se r e u n i r e m , n o m e a r u m presidente, secretário, ou
r e p r e s e n t a n t e e m negociações, m a n t e r registros ou listas de
filiação, a p r o v a r estatutos ou f o r m u l a r d e m a n d a s a respeito
de seus supostos interesses comuns.
O Código de Napoleão
O s ideais de c o n t r a t o e p r o p r i e d a d e p e r p a s s a m de uma
m i r í a d e de m a n e i r a s pela legislação d a A s s e m b l é i a N a c i o n a l e
pelo t r a b a l h o p r e p a r a t ó r i o d o q u e se t r a n s f o r m a r i a no C ó d i g o
d e N a p o l e ã o . V e r s õ e s sucessivas de um C ó d i g o Civil f o r a m
a p r e s e n t a d a s à Assembléia d u r a n t e t o d a a d é c a d a de 1790 e
a b a n d o n a d a s ou devolvidas à s comissões p a r a e m e n d a s . A
v e r s ã o mais a n t i g a era e m b a r a ç o s a demais, s o b r e c a r r e g a d a de
vestígios do velho direito. A s e g u n d a , u n s meros 297 artigos,
p a r e c i a r e s u m i d a demais, l e m b r a n d o uma simples d e c l a r a ç ã o
246 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A
O o r a d o r d e s c r e v i a n e s s a ocasião as n o r m a s instituídas
p o r D e u s e pela r a z ã o n a t u r a l . " N o s a s s u n t o s d a vida, o direito
n ã o p o d e d e s t r u i r a r a z ã o n a t u r a l " , lia-se n o relatório prelimi-
n a r . A comissão e n c a r r e g a d a d e redigir a s disposições sobre
c o n t r a t o e o b r i g a ç õ e s convencionais e n f a t i z o u q u e n ã o lhe
c u m p r i a fazer a lei. m a s simplesmente reenunciar um princípio
axiomático:
N a s p a r t e s do Código j á p r o m u l g a d a s , o legislador d e u f o r m a
à sua vontade, e sua v o n t a d e • - que poderia ter sido o u t r a --
t r a n s f o r m o u - s e e m lei g e r a l . . . í N o c a m p o d o s c o n t r a t o s , n o
e n t a n t o , ] t u d o o q u e ele e x p õ e d e v e c o n s t i t u i r a e x p r e s s ã o d e
v e r d a d e s e t e r n a s , s o b r e a s q u a i s r e p o u s a a lei m o r a l d e t o d o s
o s p o v o s . O l i v r o d e o n d e ele r e t i r a s u a s leis d e v e s e r a q u e l e
d a consciência, onde todos os h o m e n s e n c o n t r a m as m e s m a s
palavras quando a emoção n ã o os cega.
A tese do c o n t r a t o livre s a t u r a t o d o o C ó d i g o . O c a s a m e n -
t o é um contrato civil c r i a d o pelo direito n a t u r a l e s a n t i f i c a d o
pela religião.
O respeito m ú t u o , os d e v e r e s e o b r i g a ç õ e s r e c i p r o c a s n a s c i d a s
d a u n i ã o , u m a v e z f o r m a d a , e q u e se e s t a b e l e c e e n t r e s e r e s
racionais, sensíveis, t u d o isso f a z p a r t e do d i r e i t o n a t u r a l . D a i
e m d i a n t e , n ã o é m a i s s i m p l e s m e n t e d e u m e n c o n t r o q u e falei-
mos; é u m autêntico contrato.
O TRIUNFO DO TERCEIRO ESTADO 247
C o n f o r m e o b s e r v o u um d o s o r a d o r e s d u r a n t e o s debates
sobre o código, o t e m a c o n t r a t o i n t e r e s s a v a a t o d a s a s famílias,
a t o d o s o s indivíduos: " A s s i m , o c a s a m e n t o é considerado, em
si e em seus efeitos naturais, i n d e p e n d e n t e d e t o d a lei positiva.
O f e r e c e - n o s a idéia f u n d a m e n t a l d o c o n t r a t o p r o p r i a m e n t e
dito e, em s u a f o r m a , c o n t r a t o p e r p é t u o " . A s p a r t e s interve-
n i e n t e s nesse c o n t r a t o d e n o m i n a d o c a s a m e n t o p o d e r i a m , a p ó s
ter o E s t a d o r a t i f i c a d o a b a r g a n h a e n t r e a m b a s , b u s c a r as
b ê n ç ã o s d a I g r e j a . M a s era e c o n t i n u a a ser um crime a t é hoje
q u a l q u e r p a d r e ou pastor realizar ou a b e n ç o a r um c a s a m e n t o
a n t e s que o E s t a d o declarasse u n i d o o casal e ratificada a
barganha.
A l i b e r d a d e c o n t r a t u a l foi l e v a d a a o u t r a s e s f e r a s , à s
v e z e s com e s t r a n h o s resultados. Se o c a s a m e n t o é um contrato,
é dissolvido pela morte d e um d o s c ô n j u g e s e isso implica tam-
b é m a dissolução d a família. O C ó d i g o n ã o reconhecia o con-
ceito d e p a t r i m ô n i o que p o d i a ser t r a n s m i t i d o sem divisão. P o r
ocasião d a morte de um d o s pais, a p r o p r i e d a d e d a família era
p a r t i l h a d a e n t r e o s filhos, r e c e b e n d o o c ô n j u g e sobrevivente
u m a p a r t e , de a c o r d o com o a j u s t e matrimonial feito sobre a
p r o p r i e d a d e comum por ocasião do c a s a m e n t o . E s s a legislação
revestia-se de sérias conseqüências p a r a a s famílias camponesas,
que j u l g a v a m impossível m a n t e r í n t e g r a s s u a s terras em partes
economicamente rentáveis. O i m p a c t o p o d i a ser evitado, n a q u e -
la época como a g o r a , a p e n a s m e d i a n t e e m p r e g o de artifícios
legais muito c a r o s ou pela posse de p r o p r i e d a d e s suficientes
p a r a a s s e g u r a r que a necessária partilha n ã o criaria dificuldades.
E m b o r a o C ó d i g o considerasse a s condições de trabalho
como a s s u n t o d e negociação, deixou bem c l a r o q u e t r a t a v a de
direitos d o s homens, e n ã o dos seres h u m a n o s . A a u t o r i d a d e
de m a r i d o s e pais teria que ser mantida. N a p o l e ã o , que parti-
cipou e x t e n s a m e n t e das discussões s o b r e o Código, estava bem
i n f o r m a d o d o s rigores do direito r o m a n o a esse respeito. O
C ó d i g o concedia liberdade c o n t r a t u a l a p e n a s à q u e l e s que tinham
" c a p a c i d a d e " p a r a c o n t r a t a r . Resolvemos, i n f o r m o u uma co-
missão ao corpo consultivo, aceitar a opinião d e Pothier e clas-
sificar a s mulheres c a s a d a s j u n t a m e n t e com os menores e os
loucos. N ã o t i n h a m elas competência p a r a c o n t r a t a r sem a u t o -
r i z a ç ã o de seus maridos.
E s s a "incompetência s a l u t a r " , p a r a citar uma expressão
d e B o u r j o n , levou a d i a n t e e f o r t a l e c e u uma n o r m a do ancien
régime. H o u v e um momento, r e l a t a R e g i n e P e r n o u g , em que
248 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A
m u l h e r e s radicais u n i r a m - s e p a r a p e d i r a e x p u l s ã o d a s f o r ç a s
c o n s e r v a d o r a s d a A s s e m b l é i a N a c i o n a l . N o dia 10 d e m a i o de
1793, foi f o r m a d a a S o c i e d a d e d a s M u l h e r e s R e p u b l i c a n a s R e -
volucionárias. U m indivíduo i n f l u e n t e , F a b r e d ' E g l a n t i n e ,
escreveu a propósito:
Observei que essas sociedades n ã o são compostas de mães, de
moças de boa educação, de i r m ã s que cuidam de seus irmãos
menores, m a s daquele tipo de aventureiras, de moças emanci-
padas, lançadoras de bombas.
N a d a h a v i a de s u r p r e e n d e n t e n e s s a a t i t u d e . Q u a n d o M i -
t a b e a u , o mais b a r r o c o d o s o r a d o r e s d a Assembléia, quis f a z e r
um g r a n d e c u m p r i m e n t o a M a r i a A n t o n i e t a p o r sua c o r a g e m e
c a p a c i d a d e , disse: " E l a é o único h o m e m d a corte".
A Q u e s t ã o d a Escravidão: a Propriedade
T r i u n f a sobre o Contrato
H á mais evidência, n o trabalho legislativo que p r o c e d e u
o C ó d i g o , de q u e a s idéias mais radicais e a intenção dos mo-
v i m e n t o s a r m a d o s que se combatiam n a s r u a s s e m p r e sucum-
biam à v o n t a d e d a q u e l e s que d e s e j a v a m e x p r e s s a r , codificar e
ampliar a visão burguesa. O tratamento dado à escravidão
constitui a p e n a s um e x e m p l o no particular. N o dia 29 d e a g o s t o
d e 1793, em seguida a um levante de escravos em São D o m i n -
gos, u m a Assembléia N a c i o n a l radical aboliu a escravidão e o
t r á f i c o d e escravos. O decreto, porém, jamais foi cumprido.
M o n t e s q u i e u . n u m a t e n t a t i v a de conciliar a visão d e di-
reitos n a t u r a i s com o evidente sucesso d a C o m p a n h i a d a s
í n d i a s , d a qual era acionista, havia escrito:
B preciso dizer que a escravidão é c o n t r a a natureza, embora,
e m certos países, f u n d a m e n t e - s e n a vazão n a t u r a l . E preciso
distinguir entre esses países e aqueles onde a razão n a t u r a l
a rejeita. Devemos, por conseguinte, limitar a escravidão a
certas partes da terra.
O T R I U N F O DO T E R C E I R O ESTADO 249
N a p o l e ã o p r o m u l g o u em 1802 um e s t a t u t o de trinta e q u a t r o
p a l a v r a s , r e s t a b e l e c e n d o todas a s leis relativas ao tráfico de es-
cravos " d e c o n f o r m i d a d e com a s leis. . . vigentes a n t e s d e 1789".
O C ó d i g o como Clímax da R e v o l u ç ã o
A R e v o l u ç ã o F r a n c e s a deixou uma h e r a n ç a d e leis e teoria
jurídica, especialmente n o c a m p o do direito público, que inega-
16 - D . A . C
250 A VITÓRIA DA BURGUESIA
v e l m e n t e p r o m o v e u a c a u s a da l i b e r d a d e h u m a n a . Seu t r a b a l h o
legislativo, a p l i c a d o pelo p o d e r a r m a d o d e u m a r e c é m - o r g a n i z a -
d a m á q u i n a estatal, constituiu um e s f o r ç o f o r m i d á v e l p a r a re-
e n u n c i a r a l g u n s d o s principais t e m a s d a Revolução. S e u s mais
ilustres r e d a t o r e s ( e beneficiários) j a m a i s p e r d e r a m de vista, no
e n t a n t o , o sistema d e relações sociais que, n o f u n d o , a legisla-
ç ã o devia p r o t e g e r . A p r o m o ç ã o e j u s t i f i c a ç ã o desse o b j e t i v o s ã o
a i n d a mais i m p o r t a n t e s do q u e o r e l a t o a c u r a d o d a história d a
burguesia. O u , n a s p a l a v r a s do D i s c u r s o P r e l i m i n a r d o s r e d a t o r e s
do Código:
T ê m todos que c o n c o r d a r que, o u t r o r a , os vários povos do
i n u n d o c o m u n i c a v a m - s e m u i t o p o u c o e n t r e sl, n ã o h a v i a r e l a -
ções e n t r e E s t a d o s , p e s s o a s s e r e u n i a m a p e n a s p a r a f a z e r a
g u e r r a , i s t o é, p a r a s e e x t e r m i n a r e m m u t u a m e n t e , fi a e s s e s
a n t i g o s t e m p o s q u e o a u t o r d e O Espirito das Leia a t r i b u i o s
"insensatos direitos de reversão de t e r r a s aos senhores feudais
e d e s a l v a d o s d e n a u f r á g i o " . " O s h o m e n s " , e s c r e v e u ole, " p e n -
s a v a m q u e os e s t r a n g e i r o s n ã o e s t a v a m l i g a d o s % eles poc
q u a l q u e r e l o d o d i r e i t o c i v i l ; n a d a l h e s d e v i a m , p o r u m 3a<fo, n o
q u e t o c a v a à j u s t i ç a ; e, p o r o u t r o , n a d a d e c o m p a i x ã o p a r a
com eles". O comércio, no entanto, em seu desenvolvimento,
c u r o u - r o s desses preconceitos b á r b a r o s e nocivos. U n i u e apro-
ximou h o m e n s d e todos os países. A bússola abriu o universo.
O c o m é r c i o civilizou-o.
Inglaterra:
A Técnica do
Direito Costumeiro
ao papel de d e f e n s o r d a l i b e r d a d e e c o n ô m i c a e política. S o b
C r o m w e l l , a b u r g u e s i a , q u e d e v i a ao absolutismo dos T u d o r
s e u s interesses em terras e c e r t a m e d i d a d e p o d e r econômico,
d e s m a n t e l o u a m á q u i n a de p o d e r m o n á r q u i c o . Q u a n d o , por
ocasião d a R e s t a u r a ç ã o , os reis S t u a r t p r o c u r a r a m reimplantar
o direito público d o período a n t e r i o r , a s g r a n d e s p o t ê n c i a s f i n a n -
ceiras c o n s e g u i r a m a r á p i d a i n t e r v e n ç ã o d e G u i l h e r m e d e O r a n -
ge, que a s c e n d e u a o trono com b a s e no direito dinástico de sua
e s p o s a e com a a j u d a efetiva d e seu p r ó p r i o exército-
P o d e m o s o b s e r v a r com g r a n d e clareza o uso do p r e c e d e n t e
e a r e f o r m a d e l i b e r a d a d a ideologia jurídica à luz de t r ê s princí-
pios f o r m u l a d o s n o s séculos X V I I e X V I I I : o direito contra a
auto-incriminação, o direito de c o n f r o n t a r e f a z e r o c o n t r a - i n t e r -
r o g a t ó r i o d a q u e l e s q u e tinham evidência c o n t r a a p e s s o a e o
direito de j u l g a m e n t o p o r júri.
E m s u a f o r m a moderna, o direito c o n t r a a a u t o i n c r i m i n a ç ã o
é o elemento mais discutido d a n o r m a p r o c e s s u a l do direito cos-
tumeiro. Seu d o g m a f u n d a m e n t a l é que n i n g u é m p o d e ser obriga-
d o a t e s t e m u n h a r c o n t r a si mesmo. E s t e principio r a m i f i c a - s e em
o u t r o s . C i t a d o pela a u t o r i d a d e ou i n t e r r o g a d o p e l a Polícia, a
p e s s o a tem o direito de p e r m a n e c e r c a l a d a . N o s processos crimi-
nais, esse direito serve de b a s e a um tipo especial de n o r m a
o p o s t a : o g o v e r n o precisa p r o v a r a c u l p a do acusado, b a s e a n d o -
se n o t e s t e m u n h o d e outros, e o a c u s a d o n ã o precisa a p r e s e n t a r
p r o v a a l g u m a , p o r iniciativa p r ó p r i a , q u e p o s s a ser u s a d a contra
ele, ou m e s m o p r e s t a r d e p o i m e n t o .
A luta p a r a i n t r o d u z i r e s s e princípio n o direito inglês re-
t r o a g e a a n t i g o s códigos. M e s m o h o j e , a o b r i g a ç ã o de p r e s t a r
d e p o i m e n t o — sob a a m e a ç a de s a n ç õ e s — e d e i n f o r m a r à polí-
cia e à s a u t o r i d a d e s judiciais constitui um a s p e c t o d e s u m a im-
p o r t â n c i a n o rito criminal e u r o p e u . A s o r i g e n s d e s s e s sistemas
"inquisitoriais", c o n f o r m e vimos n a T e r c e i r a P a r t e , e n c o n t r a m -
se em e n x e r t o s r o m a n o s e canónicos em n o r m a s processuais mais
a n t i g a s . O "inquérito", com i n t e r r o g a t ó r i o d a p a r t e possivelmen-
te culpada, constituiu uma v i g a m e s t r a d o rito processual
criminal na F r a n ç a d e s d e o século X I I I , b e m como d a s inquisi-
ções c a n ó n i c a s s o b r e suspeitas de heresia.
A inquisição n a I n g l a t e r r a foi r e a l i z a d a d e acordo com
m é t o d o s canónicos, iniciando-se no século X I V e incluindo o
e m p r e g o de t o r t u r a p a r a o b r i g a r os suspeitos a falar. E m H 0 1 ,
como r e a ç ã o à s h e r e s i a s Lollard, de John W y c l i f f , o P a r l a -
m e n t o colocou a inquisição sob auspícios oficiais com o e s t a t u t o
254 A VITÓRIA DA BURGUESIA
cortes d e s t i n a d a s a j u l g a r c a s o s especiais e q u e h a v i a m s u r g i d o
n o r e s c a l d o d a d e s t r u i ç ã o d o s mosteiros, m a s t a m b é m t r i b u n a i s
tais c o m o a A l t a C o m i s s ã o e a C â m a r a E s t r e l a d a . O s e m b a r -
g o s e habeas corpus m u l t i p l i c a r a m - s e em princípios do século
X V I I , diminuíram um p o u c o a p ó s 1610 e a u m e n t a r a m n o v a -
m e n t e em n ú m e r o . D e vez q u e a C â m a r a E s t r e l a d a e a A l t a
C o m i s s ã o eram u s a d a s como i n s t r u m e n t o d e p o d e r p e s s o a l p o r
J a i m e I e C a r l o s I, a m b o s o s m o n a r c a s , em v á r i a s ocasiões,
o r d e n a r a m aos juízes q u e i g n o r a s s e m os e m b a r g o s emitidos
p e l a s cortes d e direito costumeiro. C o m o exemplo d e s u a d e -
t e r m i n a ç ã o , Jaime I presidiu p e s s o a l m e n t e à C â m a r a E s t r e l a d a
pelo m e n o s em u m a ocasião .— n u m a l e g a d o c a s o d e sedição.
O e x e m p l o d a jurisdição d a C â m a r a E s t r e l a d a e d a A l t a
C o m i s s ã o mais citado c o m o t e n d o mobilizado a opinião pública
foi o caso de John Lilburn, u m d o s lideres d o M o v i m e n t o d o s
N i v e l a d o r e s . C i t a d o pelo P r o c u r a d o r - G e r a l em 1637 p a r a s u b -
m e t e r - s e a i n t e r r o g a t ó r i o a respeito d a a l e g a d a i m p o r t a ç ã o de
livros sediciosos, como m e d i d a preliminar ao j u l g a m e n t o do
caso p e l a C â m a r a E s t r e l a d a , Lilburn r e c u s o u - s e a r e s p o n d e r .
L e v a d o p e r a n t e a corte d a C â m a r a E s t r e l a d a , n e g o u - s e a p r o -
f e r i r o j u r a m e n t o ex officio-, " O u t r o direito f u n d a m e n t a l que
d e f e n d o é que a consciência d e homem a l g u m d e v e ser t o r t u r a -
d a p o r j u r a m e n t o s impostos p a r a r e s p o n d e r a questões a r e s -
p e i t o de si mesmo em a s s u n t o s criminais ou s u p o s t a m e n t e cri-
minais".
O C a s o Lilburn é d e s c r i t o n a s seguintes p a l a v r a s por Sir
James Stephen:
A e x t r e m a I m p o p u l a r i d a d e d o j u r a m e n t o d e officio foi colocada
s o b c l a r a luz n o c a s o d e J o h n L i l b u r n . . . F o i e l e r e c o l h i d o a
G a t e h o u s e p o r " i m p o r t a r d a H o l a n d a p a r a a I n g l a t e r r a lite-
ratura sediciosa e facciosa"- Posteriormente, determinou o
C o n s e l h o P r i v a d o q u e ele f o s s e i n t e r r o g a d o p o r SIr J o h n B a n k s ,
P r o c u r a d o r - G e r a l . E m c o n s e q ü ê n c i a , f o i l e v a d o ele à s c â m a r a s
d o proc.uradov-Geral p a r a sev i n t e r r o g a d o p e i o Sr. C o c k s h e y ,
seu principal a m a n u e n s e . N a primeira reunião, e l e . . . iniciou o
i n t e r r o g a t ó r i o d a s e g u i n t e m a n e i r a : "Sr. L i l b u r n , qual é s e u
n o m e de b a t i s m o ? " S e g u i r a m - s e v á r i a s p e r g u n t a s , c u l m i n a n d o
gradualmente no assunto objeto da queixa. Lilburn respondeu
a m u i t a s delas, m a s , f i n a l m e n t e , r e c u s o u - s e a c o n t i n u a r a
respondê-las, dizendo: "Sei que é justificado pela lei de Deua,
e p e n s o q u e t a m b é m p e l a lei d a t e r r a , q u e e u p o s s a f a z e r
m i n h a própria d e f e s a e que não t e n h a que responder a o inter-
rogatório, e que m e u s acusadores s e j a m trazidos à m i n h a
p r e s e n ç a a f i m de j u s t i f i c a r e m a q u i l o d e q u e m e a c u s a m . . . "
D i a s depois, f o i l e v a d o à C â m a r a E s t r e l a d a , o n d e d e v i a c o m -
A T É C N I C A DO DIREITO C O S T U M E I R O 257
p a r e c e r . . . P e n s o u L i l b u r n q u e o o b j e t i v o do i n t e r r o g a t ó r i o
f o s s e o b t e r m a t e r i a l p a r a u m p r o j e t o d e lei e, e m c o n s e q ü ê n c i a ,
q u a n d o o p r e s i d e n t e d a c o m i s s ã o l h e p e d i u q u e f i z e s s e o jura-
m e n t o "de q u e r e s p o n d e r á c o m v e r a c i d a d e a t o d a s a s p e r g u n t a s
que lhe f o r e m feitas", recusou-se a fazê-lo, dizendo de inicio:
" E u sou apenas u m jovem e não sei b e m a que se refere a
natureza de u m juramento." Posteriormente, disse não estar
c o n v e n c i d o d a l e g a l i d a d e d o j u r a m e n t o e, d-epois d e m u i t a
discussão, recusou-se a b s o l u t a m e n t e a prestá-lo. A p ó s m a i s ou
m e n o s u m atraso de u m a quinzena, fot n o v a m e n t e levado à
C â m a r a E s t r e l a d a , onde m a i s u m a v e z l h e s o l i c i t a r a m q u e
jurasse, o que m a i s uma vez recusou a fazer sob o f u n d a m e n t o
de q u e aquilo era u m j u r a m e n t o d e inquérito, de c u j a legali-
dade n ã o e s t a v a c o n v e n c i d o . . . N o dia seguinte, eles [Lilburn e
u m outro prisioneiro, W h a r t o n ] f o r a m obrigados a comparecer
m a i s u m a vez. L i l b u r n d e c l a r o u , e m s u a s p r ó p r i a s p a l a v r a s e
longamente, que a s acusações feitas contra s u a pessoa eram
inteiramente f a l s a s e que o s livros censurados h a v i a m sido
importados por outra pessoa, c o m a qual não t i n h a ligação.
" N e s t e c a s o " , d i s s e o L o r d e G u a r d i ã o , "o s e n h o r n ã o f a r á o
juramento e responderá v e r a z m e n t e ? " Lilburn repetiu que se
t r a t a v a de u m j u l g a m e n t o d e i n q u é r i t o e que, e m n o m e d e
D e u s , n ã o e n c o n t r a v a j u s t i f i c a t i v a p a r a ÍSBO... D e v e z q u e
a m b o s o s a c u s a d o s se r e c u s a r a m c a t e g o r i c a m e n t e a f a z e r o
juramento, foram ambos condenados a serem amarrados ao
p e l o u r i n h o e a p a g a r u m a m u l t a d e 500 l i b r a s , e L i l b u r n a ser
açoitado d a F l e e t até o pelourinho, que se s i t u a v a entre
W e s t m i n s t e r H a l l Gate e a C â m a r a E s t r e l a d a . L i l b u r n f o i d e v i -
d a m e n t e a ç o i t a d o , r e c e b e n d o , s e g u n d o s e disse, m a i s d e 500
açoites, e amarrado ao pelourinho durante duas horas após o
c a s t i g o . E m m a i o d e 1641, a C â m a r a d o s C o m u n s d e c i d i u q u e " a
s e n t e n ç a da Câmara Estrelada, pronunciada contra John
L i l b u r n , f o i ilegal e c o n t r a a l i b e r d a d e do s ú d i t o e, a l é m disso,
s a n g r e n t a , cruel, b á r b a r a e t i r â n i c a " .
e r a p e l o rol; a p e n a a v e n d e d o r e s e p e q u e n o s p r o p r i e t á r i o s p e l o
Parlamento. E m Essex, os trabalhadores em tecidos, "sendo
pobres e numerosos" eram "naturalmente sediciosos e ousados".
Seus e m p r e g a d o r e s erain indivíduos sórdidos que, t a m b é m e
naturalmente, a p o i a v a m o Parlamento, "cujo estilo constante
era o f a v o r e c i m e n t o do c o m é r c i o . . . E m todo o reino, os fabri-
c a n t e s <íe t e c i d o s e r a m r e b e l d e s e m f u n ç ã o d e Beus p r ó p r i o s
o f í c i o s . " " P o i s é n o t ó r i o " , e s c r e v e u u m b i s p o a p ó s 1660, " q u e
n ã o h á tipo de g e n t e m a i s i n c l i n a d a a p r á t i c a s s e d i c i o s a s q u e a
parte comercial da nação."
se a l g u m a . . . c d e t e r m i n a que o júri se r e ú n a p r i v a d a m e n t e .
Ern s e g u i d a , s ã o o s j u r a d o s l e v a d o s p o r u m m e i r i n h o , q u e s o b r e
o júri deve m o n t a r guarda, para u m a c â m a r a próxima, onde
ficarão s e m pão, bebida, luz ou f o g o até c h e g a r a u m a c o n c l u s ã o . ..
o que não acontece na maioria dos casos, m a s ê preciso que
todos c h e g u e m a um acordo.
e n c a r c e r a d o s p o r terem p r o n u n c i a d o um v e r e d i c t o c o n t r a evi-
dência p l e n a e m a n i f e s t a . Bushel, p r e s i d e n t e d o tribunal do júri,
emitiu um m a n d a d o de habeas corpus, e x i g i n d o a i n d a que 3
a u t o r i d a d e c o a t o r a justificasse a d e t e n ç ã o . O J u i z - C h e f e V a u g -
h a n , a p ó s ter e s t u d a d o a c o n d u t a do júri e a s r a z õ e s d e seu en-
c a r c e r a m e n t o . o r d e n o u que os j u r a d o s f o s s e m soltos, s u s t e n t a n -
do que um júri, n ã o importa como fosse motivado, p o d i a absol-
ver o a c u s a d o b a s e a n d o - s e v i r t u a l m e n t e em q u a l q u e r r a z ã o que
j u l g a s s e conveniente. Assim, o Caso Bushel ratificou a i n d a mais
o d e s m a n t e l a m e n t o d a s instituições T u d o r .— uma d a s ativida-
d e s f r e q ü e n t e s d a C â m a r a E s t r e l a d a f o r a p u n i r j u r a d o s em
casos políticos q u a n d o p r o n u n c i a v a m v e r e d i c t o s d e s a g r a d á v e i s
à C o r o a . E m 1594, dizia um t r a t a d o :
N o t e - s e q u e o júri de I x m d r e s q u e a b s o l v e u Sir Nlcholfts
Throckmorton [um conspirador contra a Rainha Maria]... da
a c u s a ç ã o de alta traição, foi citado a c o m p a r e c e r perante a
C â m a r a E s t r e l a d a . . . u m a v e z que se c o n s i d e r a v a que a a c u s a ç ã o
f o r a suficientemente provada contra ele; e oito deles f o r a m
m u l t a d o s e m g r a n d e s s o m a s , pelo m e n o s q u i n h e n t a s libraa cada,
e e n v i a d o s à prisão, o n d e f i c a r i a m a t é que providencias ulterio-
res f o s s e m t o m a d a s para punição dos mesmos. Os quatro outros
foram soltos porque se acovardaram e confessaram haver
c o m e t i d o u m a t r a n s g r e s s ã o e m n ã o c o n s i d e r a r e m a v e r d a d e do
caso.
I g u a l m e n t e , o n z e j u r a d o s q u e a b s o l v e r a m u m c e r t o H o d i e de
u m a a c u s a ç ã o d e delito g r a v e , e m j u l g a m e n t o p r e s i d i d o por Sir
R o g e r M a n w o o d . . . contra evidência óbvia, f o r a m m u l t a d o s pela
Câmara Estrelada e a sentença foi afixada em Westminster
H a l l e m 1580; e u c o n h e c i o s j u r a d o s .
17 • d . a c.
266 A VITUKIA DA BURGUESIA
Insurreição c
Jurisprudência
20
O Desenvolvimento da
Ideologia Jurídica
N o s capítulos p r e c e d e n t e s e s t u d a m o s oitocentos
a n o s de história jurídica na E u r o p a O c i d e n t a l a fim de d e m o n s -
t r a r o papel d e s e m p e n h a d o pelo direito e pela ideologia jurí-
dica na a s c e n s ã o d a burguesia ao p o d e r . V i m o s que a s relações
sociais, d a f o r m a e x p r e s s a pelas r e g r a s formais e o r d e n s jurí-
dicas, r e p r e s e n t a r a m — e c o n t i n u a m a r e p r e s e n t a r .— uma
f u n ç ã o básica em todos os movimentos que a s p i r a m a assumir
e c o n s e r v a r o p o d e r estatal.
D e s e j a m o s aqui r e a f i r m a r de f o r m a sistemática essas asser-
ções sobre o direito, r e f u t a r a l g u m a s explicações correntes
sobre a s r a z õ e s d a elaboração de leis, e a l i n h a r a l g u m a s refle-
xões sobre a atitude, em relação ao direito, de c a m p a n h a s
c o n t e m p o r â n e a s em prol da m u d a n ç a social no O c i d e n t e . N a
discussão d e s s a s questões, s a l i e n t a r e m o s a forte tendência de
ideólogos — pelo m e n o s na E u r o p a e E s t a d o s U n i d o s — no
sentido de e x p r e s s a r e m idéias sobre teoria social e política sob
a f o r m a d e editos, proclamações e o r d e n s jurídicas formais.
E s s a tendência r e f l e t e - s e na importância a t r i b u í d a a a d v o g a -
dos e à e d u c a ç ã o jurídica em t o d a s as e s t r u t u r a s g o v e r n a m e n -
tais ocidentais e em todos os movimentos em prol da mudança
social que a s p i r a m a assumir o p o d e r do E s t a d o .
A s r e g r a s jurídicas são, p o r necessidade, v i n c u l a d a s ao
tempo; s ã o c o n s t r u ç õ e s de um g r u p o de p e s s o a s em um d a d o
estágio de desenvolvimento d a sociedade. F o r m a s jurídicas
peculiares não são condições " n a t u r a i s " ou " b á s i c a s " da exis-
tência h u m a n a , N a verdade, o "direito" no sentido de r e g r a s
270 INSllURE1ÇÃO F, J U R I S P R U D Ê N C I A
f o r m u l a d a s com b a s e cm um c o n j u n t o a c o r d a d o de j u l g a m e n t o s
normativos sobre c o n d u t a , constitui — n a s s o c i e d a d e s ocidentais
•— um f e n ô m e n o r e l a t i v a m e n t e recente. E s s e conceito de direito,
c o n f o r m e d e m o n s t r o u G e o r g e T h o m p s o n , surgiu j u n t a m e n t e
com o u t r o s conceitos a b s t r a t o s q u a n d o a s a n t i g a s civilizações
do M e d i t e r r â n e o p r o g r e d i r a m a um p o n t o em que a moeda
p a s s o u a ser u s a d a como meio de troca e constituía, por isso
mesmo, uma a b s t r a ç ã o de m e r c a d o r i a s ou b e n s . A n t e s d e s s a
época, sociedades havia sem d ú v i d a q u e c o n c o r d a v a m sobre
princípios de c o n d u t a socialmente necessários, c u j a violação
r e s u l t a r i a em castigo. E s s e tipo d e "direito" serve de ilustração
p a r a o princípio e x p r e s s a d o p o r C í c e r o como ubi socictas, ibi
jus — o n d e h á u m a c o m u n i d a d e , h á uma lei. T r a t a - s e de um
princípio m e r a m e n t e descritivo de relações sociais reais de
p r o p r i e d a d e e n ã o p r o p r i e d a d e . O direito c o n c e b i d o como tal,
n o entanto, s u r g i u mais tarde, n o p o n t o em que os p r o g r e s s o s
tecnológicos m o s t r a m a distinção e n t r e o concreto e o a b s t r a t o ,
a n a t u r e z a e a nornia, o physis e o nomos. C o m a distinção
e n t r e a ' n a t u r e z a " e a " n o r m a " f o r a m p r o p o s t a s justificativas
d e c o n d u t a q u e n ã o mais a " v o n t a d e d o s d e u s e s " . E s s a justifi-
cativa impede t oda e q u a l q u e r distinção e n t r e o que acontece
e o que, p o r motivos morais, devia acontecer.
A justiça divina, imprevisível, vingativa, s a n g u i n á r i a , foi
característica d a s o b r a s dos primeiros d r a m a t u r g o s gregos. A
m u d a n ç a p a r a u m a p o s t u r a mais jurídica, em que mesmo a s
r e g r a s e editos b a i x a d o s pelos d e u s e s ficavam sujeitos a uma
a v a l i a ç ã o crítica " d e f o r a " , é i l u s t r a d a pelo ciclo de Édipo, de
Sófocles. E m Édipo Rei, a primeira peça, o rei é p r i v a d o da
visão e banido por atos de c u j a importância n ã o e s t a v a cons-
ciente. N a s e g u n d a , Antígona, a r a c i o n a l i d a d e faz seu a p a r e -
cimento na irreligiosidade de C r e o n t e , mais t a r d e d e s t r u í d o .
F i n a l m e n t e , em Édipo em Colona, escrita muitos a n o s depois,
o v e l h o e cego É d i p o declara " E u n ã o pequei", c ingressa na
sociedade h u m a n a .
E s s a distinção e n t r e n a t u r e z a como de iniciativa d o s d e u s e s
e a regra como p r o d u t o de considerações racionais que podeni
j u l g a r a primeira, ou pelo m e n o s modificar-lhe as c o n s e q ü ê n -
cias h u m a n a s , constitui a b a s e d a existência do direito como
h o j e e n t e n d e m o s essa p a l a v r a e, com ele. surgiu n ã o só a p o s -
sibilidade de uma a t i t u d e crítica em relação a f a t o s e insti-
tuições, mas t a m b é m a possibilidade de contradições e n t r e
n o r m a s jurídicas e o sistema de controle social e distribuição
O DESENVOLVIMENTO DA IDEOLOGIA JURÍDICA 271
do colapso do Império R o m a n o , os s e n h o r e s f e u d a i s c o n t i n u a -
rara a fazer vénias aos símbolos do Império a fim de justificar
seu próprio poder. Bibliotecas e c a s a s senhoriais, a b a r r o t a d a s
de c a r t a s a t e s t a n d o o ingresso voluntário n a s condições de ser-
v i d ã o dos a n t e p a s s a d o s d o s agricultores, constituem um r e f l e x o
de tal preocupação. A s contestações d a legitimidade d o s
atos de d e t e r m i n a d o s s o b e r a n o s eram v a z a d a s em termos res-
p i g a d o s em existentes sistemas de a u t o r i d a d e — n a I g r e j a , no
direito romano, ou em t e x t o s bíblicos.
U m dos mais i m p o r t a n t e s elementos constituintes d a legi-
timidade é que o p o d e r precisa ser exercido de m o d o previsível.
E s s a previsibilidade o c o r r e com a c o n s t r u ç ã o d e uma e s t r u t u r a
d e r e g r a s jurídicas f o r m a i s e rito processual, q u e s e r ã o u t i l i z a d a s
a n t e s de ser e m p r e g a d a a violência. A previsibilidade n ã o é axio-
m a t i c a m e n t e necessária e p r u d e n t e e o g r u p o que detém o poder
e s t a t a l em um d a d o país p o d e ter a p e n a s u m a lei, "a n o r m a de
reconhecimento de situações de f a t o " . D a n d o um exemplo, se
um g r u p o de b a n d o l e i r o s o c u p a s s e um vale pacífico, seu c h e f e
poderia p r o c l a m a r que o que quer que ele decidisse em d e t e r -
m i n a d o dia seria c u m p r i d o como lei d u r a n t e a q u e l e p e r í o d o de
vinte e q u a t r o h o r a s . E s s e sistema eliminaria os hiatos e n t r e o
sistema concreto de relações sociais vigente n o vale e a s r e g r a s
q u e a s pessoas seriam e n t ã o o b r i g a d a s a obedecer, sob p e n a de
s o f r e r e m violência, A r e e l a b o r a ç ã o a n u a l do edito p r e t o r i a n o na
R o m a antiga, a n t e s de ser r e g u l a m e n t a d o e a s s u m i r n a t u r e z a
q u a s e p e r m a n e n t e , lembra tal situação.
É possível t a m b é m l a d e a r o sistema de n o r m a s com a deci-
s ã o deliberada d e atribuir g r a n d e discrição a níveis inferiores
de administração, ou mesmo a g r u p o s r e l a t i v a m e n t e a u t ô n o m o s
que elaboram t a n t o a substância como o s meios de aplicação de
r e g r a s d e t a l h a d a s d e c o n d u t a , b a s e a d o s em princípios muito
gerais. E s s e p a r e c e ser o caso a t ua l da C h i n a e de C u b a .
O modelo ocidental, m e s m o em épocas de g r a n d e suble-
v a ç ã o social, tem sido muito diferente. D u r a n t e a R e v o l u ç ã o
F r a n c e s a , a legislação d a Assembléia N a c i o n a l foi caótica e
m u i t a s vezes m u d o u , mas o n ú m e r o de decretos que b a i x o u indi-
cava o desejo d e que, à medida que a Revolução p r o g r e d i a , o
sistema de relações sociais em cada d a d o m o m e n t o fosse crista-
lizado em uma e s t r u t u r a f o r m a l de n o r m a s constitucionais e
legais, d e f i n i n d o os meios a p r o p r i a d o s a t r a v é s d o s quais deviam
agir os ó r g ã o s d o E s t a d o . N ã o se contentou ela simplesmente
em a c o m p a n h a r o desenvolvimento da Revolução, ou mesmo
O DESENVOLVIMENTO DA IDEOLOGIA JURÍDICA 273
em b a i x a r decretos justificando ou a u t o r i z a n d o o d e s m a n t e l a -
m e n t o d a v e l h a o r d e m , pois queria construir um sistema lógico
de n o r m a s jurídicas.
P r o c e s s o semelhante de cristalização, e m b o r a e s t e n d i d o
por um p e r í o d o muito mais longo, ocorreu n a I n g l a t e r r a no século
X V I I , c o m e ç a n d o com a c a m p a n h a de L o r d e C o k e em prol do
direito costumeiro e c o n t i n u a n d o a t r a v é s d a legislação do P r o -
t e t o r a d o até a s proclamações, p r e c e d e n t e s jurídicos e legislação
atinentes à Gloriosa Revolução de 1689.
U m pouco mais p r ó x i m a s d a sensibilidade americana são
a C o n s t i t u i ç ã o d e 1789 e a C a r t a de D i r e i t o s de 1791. A teoria
social d a Constituição, r a d i c a d a em Locke e M o n t e s q u i e u , f u n -
d a m e n t a v a - s e n a defesa da p r o p r i e d a d e p r i v a d a , no estabeleci-
m e n t o de uma f o r m a r e p r e s e n t a t i v a f e d e r a l d e governo e na
instituição de um c o n j u n t o de proibições ao g o v e r n o nacional,
d e s t i n a d a s a p r e s e r v a r g a r a n t i a s s u b s t a n t i v a s e processuais de
liberdade. E s s a s g a r a n t i a s f o r a m j u s t i f i c a d a s em termos de "jus-
tiça n a t u r a l " , e m b o r a tivessem o r i g e n s m e n o s misteriosas: n a s -
ceram de específicos eventos revolucionários e p r é - r e v o l u c i o n á -
rios. A g a r a n t i a contra a busca arbitrária e c o a v a a experiência
dos colonos com os m a n d a d o s que d a v a m aos servidores b r i t â -
nicos o p o d e r de d a r b u s c a s de c a s a em casa p a r a confiscar chá
e o u t r a s m e r c a d o r i a s sobre a s quais n ã o h a v i a m sido p a g o s
direitos a d u a n e i r o s , e o processo inglês c o n h e c i d o como Entick
u. Carrington, no qual foi p r o f e r i d a s e n t e n ç a contra Lorde
H a l i f a x por ter a u t o r i z a d o a a p r e e n s ã o de um jornal dito sub-
versivo. A g a r a n t i a de h o n e s t i d a d e no j u l g a m e n t o de casos cri-
minais teve origem n a s lutas sociais o c o r r i d a s n a I n g l a t e r r a mais
de um século antes, nas quais o t r a t a m e n t o d a d o aos criminosos
políticos constituía g r a v e motivo de p r e o c u p a ç ã o . A opinião de
rjue a l i b e r d a d e de expressão devia ser p r o t e g i d a f u n d a m e n t o u -
se igualmente no reconhecimento d a utilidade d a livre m a n i f e s -
t a çã o d o p e n s a m e n t o e da imprensa livre n a consecução da
m u d a n ç a social.
V i m o s a n t e r i o r m e n t e a m e s m a ê n f a s e n a e l a b o r a ç ã o da
ideologia jurídica em cidade a p ó s c i d a d e n o s séculos X I e X I I ,
à medida que a b u r g u e s i a subia de posição e, em seguida, con-
solidava seu acesso ao poder com a e l a b o r a ç ã o de um c o n j u n t o
local de costumes. E m c o n t r a s t e com sistemas de p e n s a m e n t o
n ã o ocidentais, os antigos b u r g u e s e s a c h a v a m que o d e t a l h a -
m e n t o d a m a n e i r a como a lei seria a p l i c a d a era a essência d a
eqüidade, da s e g u r a n ç a pessoal e da liberdade. O d e s e j o de pre-
274 INSURREIÇÃO Ti J U R I S P R U D Ê N C I A
Principais Escolas de
Pensamento Jurídico
Positivismo
O positivismo jurídico floresceu à época do positivismo cien-
tífico de A u g u s t o C o m t e . Seu principal e x p o e n t e no século X I X .
John Austin, sentia o m á x i m o interesse em distinguir e n t r e
o " a p r o p r i a d a m e n t e d e n o m i n a d o " direito temporal, a lei de
D e u s e os valores morais que possuíam força executória mesmo
sem imposição de um p o d e r s o b e r a n o . P a r a os positivistas, a
missão d a j u r i s p r u d ê n c i a era simplesmente identificar quais a s
leis que são previsivelmente aplicadas pelo p o d e r do E s t a d o .
A teoria d e A u s t i n foi c a r a c t e r i s t i c a m e n t e inglesa do
século X I X . A r g u m e n t a v a ele que se podia criticar determi-
n a d a lei como boa ou má, moral ou imoral, m a s que a e s f e r a
a p r o p r i a d a d a j u r i s p r u d ê n c i a era e s t u d a r o sistema de i n j u n -
ções geralmente e n d e r e ç a d a s e a p l i c a d a s •— n a f o r m a de in-
junções individualmente e n d e r e ç a d a s — p o r um soberano identi-
ficável. Q u e m detém o poder 110 E s t a d o e o que essa pessoa faz
com o mesmo s ã o p e r g u n t a s feitas em todos os períodos da
PRINCIPAIS ESCOLAS DF. P E N S A M E N T O JURÍDICO 281
lü - t>.a o.
282 INSURREIÇÃO H JURISPRUDÊNCIA
A s T e o r i a s do Direito N a t u r a l
c o n s t r u ç ã o de sistemas. D e D o m a t , P u f e n d o r f , G r o t i u s e M o n -
tesquieu no século X V I I até M a i n e e A u s t i n no X I X , a ideo-
logia jurídica d a burguesia, q u a n d o f o r m a l m e n t e e l a b o r a d a , era
e n u n c i a d a como um sistema c o e r e n t e de princípios legais inter-
relacionados. O sistema era, p a r a cada um d e s s e s a u t o r e s . "A
Lei", e a t a r e f a de unia corte d e justiça n a f o r m u l a ç ã o de uma
i n j u n ç ã o i n d i v i d u a l m e n t e e n d e r e ç a d a era simplesmente desco-
brir algum princípio relevante n e s s e corpus e apJicá-Jo ao lití-
gio em j u l g a m e n t o . O s realistas r e b e l a r a m - s e contra essa idéia
de direito, como u m a espécie de " p o n d e r a d a o n i p r e s e n ç a " .
O s realistas p r o c u r a v a m identificar a lei n o s j u l g a m e n t o s
d o s tribunais. " A s profecias sobre o que, n a realidade, as cortes
farão, e n a d a mais pretensioso, s ã o aquilo que e n t e n d o p o r lei",
escreveu H o l m e s . E s s a c o n s t r u ç ã o da i m a g e m d a lei com b a s e
em i n j u n ç õ e s individualmente e n d e r e ç a d a s aos litigantes tinha
a v a n t a g e m de desmistificar, a t é certo p o n t o , a lei. ao i g n o r a r
os d e c l a r a d o s f u n d a m e n t o s lógicos e a ostensiva d e f e r ê n c i a judi-
ciária à teoria jurídica n a prática. E m vez de e s t u d a r e m as gene-
ralizações d a literatura jurisprudencial, de uma constituição,
ou os e n u n c i a d o s tersos — ou verbosos, mas s e m p r e incompletos
— dos legisladores, os realistas e s t a v a m ansiosos p a r a ver como
a lei f u n c i o n a v a q u a n d o aplicada contra p e s s o a s em processos
judiciais.
A escola realista simplesmente n ã o aceitaria nem mesmo a s
declarações d o s juízes sobre os motivos de s u a s decisões. P a r a
saber o q u e a s cortes farão, o indivíduo d e v e p r o c u r a r a " n o r m a
v e r d a d e i r a " , escreveu Llewellyn, e n q u a n t o F r a n k . p r o c u r a v a
introduzir insights psiquiátricos no processo de descoberta
dessa r e g r a .
E m b o r a essa a b o r d a g e m p r á t i c a a p a r e n t e m e n t e permita que
a j u r i s p r u d ê n c i a realista analise o s interesses por t r á s d a s regras,
como s ã o a p l i c a d a s em casos isolados — e assim, talvez, d e s -
cubra os princípios condicionadores d a o r d e m jurídica .— a s
a t i t u d e s sociais dos próprios realistas c o n s e r v a v a m d e n t r o d e
estreitos limites s u a s análises de política social. A literatura
realista instruía a s decisões judiciais e, p o r conseguinte, era
prisioneira d a m e n t e dos juízes.
O s realistas g o s t a m de c h a m a r a a t e n ç ã o p a r a os hiatos
entre os e n u n c i a d o s oficiais d a ideologia jurídica e o sistema
concreto da lei. c o n f o r m e é aplicada, sob p r e s s ã o de f o r ç a s
sociais que t e n t a m dobrá-la de d i f e r e n t e s maneiras. O realismo
jurídico contribuiu p a r a o d e s m o r o n a m e n t o d a s teorias f o r m a -
288 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
A o d e c l a r a r q u e o s i n d i v í d u o s s ã o livres, o c ó d i g o b u r g u ê s diz
a p e n a s q u e o s d e t e n t o r e s d e p r o p r i e d a d e s ã o livres p a r a o r g a -
n i z a r o s s i s t e m a s d e p r o d u ç ã o e t r o c a típicos d a s o c i e d a d e c a p i -
t a l i s t a em u m d a d o e s t á g i o d e d e s e n v o l v i m e n t o e q u e utilizam
o poder que a propriedade lhes confere para organizar o resto
d a p o p u l a ç ã o e integrá-la no sistema de p r o d u ç ã o .
N ã o é a lei o u u m p r i v i l é g i o l e g a l q u e d o t a a p r o p r i e d a t f e d a
f u n ç ã o de. r e g u l a i ' a d i s t r i b u i ç ã o , ma.» a. s i m p l e s f o r ç a d o s f a t o s .
A i n d a a s s i m , n á o se t r a t a de uni p r o c e s s o c o n t r a ou f o r a d a
lei. m a s u m p r o c e s s o q u e o c o r r e n a b a s e d a s p r ó p r i a s n o r m a s
que, no passado, c o r r e s p o n d e r a m ao período de p r o d u ç ã o simples
de b e n s . O c o n t e ú d o l e g a l do d i r e i t o de p r o p r i e d a d e n ã o é
ampliado num restringido. E tampouco é objeto de abuso. N ã o
é nem m e s m o necessário inventar um novo instituto comple-
m e n t a r para suplementar o instituto da propriedade. Nade. há
294 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
p c o m o se m o d i f i c a m ? D a d o q u e s u a s o r i g e n s se e n c o n t r a m n a s
condições de vida da raça h u m a n a , de que elas n a d a maia são
do que m e i o s de p r e s e r v a r a sociedade, q u e papel desempe-
n h a m elas r e a l m e n t e n a existência e desenvolvimento de nossa
geração?
19 - D.A.C.
22
A Jurisprudência
da Insurreição
E m b o r a , a o ler e s s e p a r á g r a f o , p o s s a m o s f i c a r c o m a i m -
pressão d e q u e M a r x p e n s a v a que a ideologia jurídica de um
d a d o s i s t e m a d e r e l a ç õ e s sociais s e m p r e s u s t e n t a v a , e m t o d o s
o s d e t a l h e s , e s s e s i s t e m a , o e s t u d o c o n c e n t r a d o q u e f a z d a legis-
lação de r e f o r m a n a Inglaterra d o século X I X , no primeiro
v o l u m e d e O Capital, d e v e d i s s i p a r q u a l q u e r idéia n e s s e s e n -
tido. D e q u a l q u e r modo, vimos q u e a c o n t r a d i ç ã o e n t r e v e l h a s
f o r m a s e n o v a s f o r ç a s sociais n ã o a t i n g e u m e s t á g i o crítico .—
o d a r e v o l u ç ã o social .— d e m o d o s ú b i t o . D e s d e o s a l b o r e s
do p o d e r u r b a n o inglês até a Revolução F r a n c e s a , transcorreu
um p e r í o d o de oitocentos anos. N e s s e período, será justo dizer
q u e a s i d e o l o g i a s j u r i d i c a s d o m i n a n t e s f o r a m p r o d u t o s d e sis-
t e m a s d e r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s e qtie o s p a l a d i n o s d e s t a o u
daquela ideologia estiveram a serviço de interesses econômicos?
A c h a m o s q u e sim.
300 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
V i m o s o b s e r v a n d o a b u r g u e s i a c o n s o l i d a r seu p o d e r em
c a d a p e r í o d o e, a t r a v é s d e m u d a n ç a na d i r e i t o , p ô r e l e m e n t o s
d e sua ideologia jurídica sob a égide d o E s t a d o . À m e d i d a que
isso a c o n t e c i a , m u d a v a a d e f i n i ç ã o l e g a l d a s r e l a ç õ e s s o c i a i s :
t e r r a s que h a v i a m sido p o s s u í d a s d e a c o r d o com o sistema
feudal tornaram-se a s s u n t o de contrato; terras que haviam sido
possuídas e m c o m u m f o r a m c e r c a d a s e os antigos p e q u e n o s
proprietários p a s s a r a m a cultivá-las o u p o r salários ou se t r a n s -
feriram para as cidades. O agricultor ou t r a b a l h a d o r pouca
o p ç ã o tinha q u a n t o ao tipo de relação social em que ingressava.
Podia trabalhar p a r a um ou outro proprietário, mas a forma da
b a r g a n h a •— c o n t r a t o o u n ã o . f e u d a l o u n ã o — e r a d e t e r m i -
n a d a pelo d o n o d a t e r r a .
A s idéias b u r g u e s a s sobre c o n t r a t o e p r o p r i e d a d e d a terra
n ã o se disseminaram s o b r e á r e a s mais e x t e n s a s por serem neces-
sariamente melhores do que outras; espalharam-se a partir dos
núcleos urbanos d o p o d e r b u r g u ê s p o r q u e r e p r e s e n t a v a m um
sistema de relações econômicas excepcionalmente a d a p t a d o ao
nível d a t e c n o l o g i a e c u l t u r a d e u m a d a d a é p o c a , e e r a i m p l a -
cável em sua tendência p a r a dissolver velhas relações de pro-
dução e troca. O u , como escreveu M a r x : " A agricultura vem a
ser, mais e mais. a p e n a s um r a m o da indústria, e é inteira-
mente dominada pelo c a p i t a l . . . O capital é o poder todo-
poderoso da sociedade burguesa."
Nesse processo, m u d a r a m continuamente as atitudes e
objetivos d a b u r g u e s i a , e n q u a n t o q u e se a m p l i a v a m os hori-
zontes de seus m e m b r o s . S u a s exigências m u d a r a m t a m b é m
e a burguesia esteve muito longe de ser um corpo unificado
n a maioria dos estágios d e seu desenvolvimento. O comércio
a r t e s a n a l u r b a n o c e d e u l u g a r à s trading companies internacio-
n a i s , e as i d e o l o g i a s d e g r u p o s b u r g u e s e s locais e n t r a r a m e m
c o n f l i t o com a s d o s m a i s p o d e r o s o s c o m e r c i a n t e s q u e a t u a v a m
a l o n g a d i s t â n c i a . O e s c u d o p r o t e t o r d a s g u i l d a s resistiu
apenas p o r p o u c o t e m p o à f o r ç a d a s n o v a s t é c n i c a s d e p r o -
d u ç ã o e a o s n o v o s m e i o s d e o r g a n i z a ç ã o legal, t r o c a e d i s -
tribuição.
T o d a s e s s a s m u d a n ç a s o c o r r e r a m n o seio d a u m a e s t r u t u r a
d e o r g a n i z a ç ã o p o l í t i c a q u e , pelo m e n o s e x t e r n a m e n t e , m a n -
tivera imutáveis seus elementos essenciais d e s d e o século X I .
O s monarcas, p a r a sermos exatos, haviam a u m e n t a d o seu p o d e r
e a f u n ç ã o militar d o sistema feudal caíra, n a maior parte, em
desuso. Príncipes f o r m a r a m alianças de v a n t a g e m mútua com
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 301
s e g m e n t o s d a b u r g u e s i a , e x t o r q u i n d o a p o i o f i n a n c e i r o em t r o c a
d c c o n c e s s õ e s legais. N a v e l h a i d e o l o g i a j u r í d i c a , e n c o n t r o u - s e
lugar p a r a inovações favoráveis ao crescimento e m a n u t e n ç ã o
d o comércio.
Q u a l a m e l h o r m a n e i r a d e d e s c r e v e r e s s e p r o c e s s o de
m u d a n ç a ? I n d i c a m o s já e s t á g i o s n a e x p a n s ã o d a c o n s c i ê n c i a
b u r g u e s a e na g r a d u a l formulação d e uma jurisprudência de
insurreição n a luta contra ideologias hostis. N o s s a t a r e f a agora
c o n s i s t i r á em f o r m u l a r u m a t e o r i a , u m a i d e o l o g i a j u r í d i c a e d c
j u r i s p r u d ê n c i a que descreva c o r r e t a m e n t e tais m u d a n ç a s , p o n h a
a n u a s l i g a ç õ e s e n t r e a i d e o l o g i a e o s i s t e m a d e r e l a ç õ e s sociais
e p e r m i t a - n o s a n a l i s a r m o v i m e n t o s era p r o l d a m u d a n ç a social
à luz d e s e u p o t e n c i a l r e v o l u c i o n á r i o .
Precisamos, porém, estabelecer u m a distinção entre oposi-
ç ã o a p a r t e s e s p e c í f i c a s da i d e o l o g i a d e u m E s t a d o , p r o c u r a n d o ,
por um lado, a m u d a n ç a a t r a v é s dos ó r g ã o s existentes e domi-
n a n t e s d o p o d e r e s t a t a l e, p o r o u t r o , a r e j e i ç ã o d e t o d o o sis-
t e m a c o m o ilegítimo. E s s a d i s t i n ç ã o é o t e m a d e d o i s d i á l o g o s
d e P l a t ã o , Apologia e Crito. E m Apologia. S ó c r a t e s c e n s u r a os
a t e n i e n s e s , d e f e n d e s e u direito d e t e r e n s i n a d o e f a l a d o c o m o
fez e c o n s i d e r a i n d i g n a d e r e s p e i t o t o d a e q u a l q u e r i d e o l o g i a
j u r í d i c a q u e n ã o p e r m i t a um c o m p o r t a m e n t o c o m o o seu, e m b o r a
s e d i s s e s s e q u e ele h a v i a c o r r o m p i d o a j u v e n t u d e e p r o f a n a d o
os d e u s e s . A o m e s m o t e m p o , t a l v e z p r e n u n c i a n d o a a t i t u d e q u e
t o m a r á e m Crito, d e f e n d e s u a c o n d u t a c o m o l e g i t i m a s o b a s
leis d e A t e n a s e n e g a a s a c u s a ç õ e s e s p e c í f i c a s q u e lhe s ã o f e i t a s .
A p e s a r disso, é c o n d e n a d o à m o r t e .
M a i s t a r d e , C r i t o vai v i s i t a r o c o n d e n a d o S ó c r a t e s em s u a
cela e lhe diz q u e s e u s a m i g o s t ê m u m p l a n o p a r a t i r á - l o dali.
Sócrates recusa a a j u d a e discursa sobre a importância do Esta-
d o . O E s t a d o o e d u c o u e lhe d e u u m l u g a r n o m u n d o , d e f i n i u
em a l g u m s e n t i d o os t e r m o s d e s u a e x i s t ê n c i a e ele lhe d e v e o b e -
diência, e m b o r a o t e n h a c o n d e n a d o à morte i n j u s t a m e n t e . P o d e -
se p r o c u r a r m u d a r a o r d e m e x i s t e n t e , m a s o i n d i v i d u o d e v e
aceitar a derrota às suas mãos a o reconhecer-lhe a legitimidade
da reivindicação a governar. Sócrates, por conseguinte, assumiu
u m a a t i t u d e m u i t o l o n g e d e i n s u r g e n t e , a o m e s m o t e m p o em q u e
p r o c u r a v a m u d a r a ideologia do E s t a d o , cujo p o d e r reconhecia.
C o n s i d e r e m o s m a i s u m a vez o c a s o a n t e r i o r m e n t e d e s -
crito d e um p a c í f i c o v a l e o c u p a d o p o r b a n d o l e i r o s . O c h e f e e
s e u s c a p a n g a s i m p õ e m a o p o v o um s i s t e m a d e r e g r a s g a r a n t i n d o
direitos e estabelecendo certos deveres. T o d o s compreendem cia-
302 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
p r o i b i d a , os d i s s i d e n t e s s e r e l a c i o n a m e n t r e si d e m a n e i r a s q u e .
como grupo, estabelecem. Possuem uma ideologia interna e
discutem e vivem os princípios jurídicos de uma organização
s o c i a l a l t e r n a t i v a à q u e l a o n d e se e n c a r t a m . T a l a t i v i d a d e p o d e
lançar os f u n d a m e n t o s d o s princípios d a ideologia jurídica do
E s t a d o , que será aplicada se os bandoleiros forem d e r r u b a d o s .
O estabelecimento pelos m e m b r o s d a resistência da e x t e n s ã o
em q u e as reivindicações d e justiça p o d e m ser conciliadas
d e n t r o das r e g r a s dos bandoleiros, as m a n e i r a s como os m e m -
b r o s d a r e s i s t ê n c i a s e c o m p o r t a m e n t r e si e a s f o r m a s a l t e r n a t i -
v a s d e o r g a n i z a ç ã o social p r e n u n c i a d a s p o r s u a c o n d u t a — t u d o
isso difere, e m princípio, d a o p e r a ç ã o d a s organizações volun-
tárias que reconhecem a supremacia dos bandoleiros. E é dife-
r e n t e d o s a g r e g a d o s c o m u n s de criminosos tanto no c o n t e ú d o de
s u a s p r o p o s t a s d e o r g a n i z a ç ã o social — a i d e o l o g i a j u r í d i c a —•
como n a f u n ç ã o revolucionária que sua resistência a s s u m e e no
papel que representa historicamente.
A o a n a l i s a r d e f o r a a a t i v i d a d e d e r e s i s t ê n c i a 110 vale, p o d e -
mos fazê-lo de várias perspectivas. P o d e m o s questionar os valo-
res dos rebeldes. P o d e m o s contestar-lhes o julgamento sobre
a e x t e n s ã o e m q u e a s n o r m a s d o s b a n d o l e i r o s p o d e m ser c u r v a -
d a s às suas exigências. P o d e m o s considerar o apelo à revolução
como f a d a d o a o fracasso. M a s se reconhecermos que a resistên-
cia t e m p e l o m e n o s p o s s i b i l i d a d e d e s u c e s s o e. e m e s p e c i a l , s e
estamos e s t u d a n d o a história antiga de um movimento de resis-
tência q u e subiu ao poder, teremos que reconhecer que é errado
descrever como "lei" a p e n a s as injunções p r o f e r i d a s pelos b a n -
doleiros e aplicadas n u m determinado tempo. Muito embora tais
i n j u n ç õ e s p r e s s u p o n h a m um monopólio de violência de p a r t e
dos bandoleiros, o poder da resistência, em virtude de sua força
n u m é r i c a e tenacidade, é i g u a l m e n t e p a r t e d o processo de elabo-
r a ç ã o d a lei — c o m o q u e t e m o s e m m e n t e a s n o r m a s p e l a s
quais a s pessoas vivem na sociedade organizada, e que são
a p o i a d a s pelo p o d e r d o E s t a d o . O q u e c h a m a m o s d e "lei" n ã o
é, e m s u m a , u m s i s t e m a , m a s u m p r o c e s s o . D e s c r e v e r a lei c o m o
s i s t e m a é útil a p e n a s se r e c o r d a m o s q u e e s t a m o s d e s c r e v e n d o
u m a f o t o g r a f i a d e p o s e . útil p a r a r e g i s t r a r o e s t a d o d o s f a t o s
n u m d a d o m o m e n t o , m a s q u e n e d a n o s diz s o b r e a d i r e ç ã o ou
velocidade da mudança.
U m a vez t e n h a m o s reconhecido o caráter provisório de
q u a l q u e r descrição de u m a ideologia, m e s m o que s u s t e n t a d a
pelo poder do E s t a d o , teremos que fazer mais uma pergunta.
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 305
E m toclos o s s i s t e m a s s o c i a i s h à r e b e l d e s e b a n d i d o s sociais,
todos os quais exercem p r e s s ã o sobre a ideologia do E s t a d o
e t o d o s o s q u a i s f o r m u l a m , m a i s o u m e n o s e x p r e s s a m e n t e , ideo-
l o g i a s p r ó p r i a s . A c a s o d e v e m o s , c o m o W e b e r , c o l o c á - l o s em
u m ú n i c o g r u p o p a r a o fim d e a n á l i s e e c h a m a r t o d a s a s s u a s
ideologias de "convenções"?
Se quisermos compreender a dinâmica da jurisprudência
ou m u d a n ç a s na i d e o l o g i a j u r í d i c a , e se q u i s e r m o s a p r e e n d e r o
significado essencial da jurisprudência da insurreição, então a
resposta deve ser não. D u r a n t e o período que vimos estudando,
um n ú m e r o i n c o n t á v e l d e a s p i r a n t e s a o p o d e r p r o c u r o u i n f l u e n -
c i a r a i d e o l o g i a d o m i n a n t e e m e s m o s e c o n s i d e r a r a m em c o n -
flito f u n d a m e n t a l c o m o E s t a d o . L e m b r e m - s e , p o r e x e m p l o , d o s
movimentos comunais que ocasionalmente irromperam no cam-
p o na E u r o p a Ocidental, ou dos b a n d o s de bandoleiros que
seguiam as p e g a d a s da peste no Sul d a F r a n ç a , e que conse-
guiram durante algum tempo deter a marcha da burguesia para
a d o m i n a ç ã o e c o n ô m i c a da r e g i ã o . T o d o s eles f a l h a r a m , nu
e n t a n t o , e n q u a n t o os b u r g u e s e s t i v e r a m ê x i t o ; c o m e f e i t o , a
b u r g u e s i a p ô d e à s vezes i n v o c a r a a j u d a d o E s t a d o e x i s t e n t e
para destruir esses próprios grupos. O que então devemos estu-
d a r , a l é m d o c o n t e ú d o e c o n t r a d i ç õ e s d a i d e o l o g i a , a fim d e
classificar esses diferentes tipos de dissidência?
Precisamos descobrir que ideologia, n u m a determinada
é p o c a , e x p r e s s a a s a s p i r a ç õ e s d a c l a s s e ou g r u p o q u e f i n a l m e n t e
assume o poder e que representa a contradição fundamental
e n t r e o s i s t e m a d e r e l a ç õ e s sociais e x i s t e n t e e a q u e l e q u e o
substiiui. E m retrospecto, p o d e m o s ver o triunfo da o r g a n i -
z a ç ã o c a p i t a l i s t a d a p r o d u ç ã o . Isso, e apenas isso, s e p a r a a
burguesia dos bandidos e comunalistas.
À m e d i d a q u e crescia a c o n s c i ê n c i a d a s c o n t r a d i ç õ e s
f u n d a m e n t a i s , a ideologia c o n s t r u í d a 110 seio d a b u r g u e s i a
dissidente tornou-se sujeita a numerosas variações. O b r i g a d a
pelas situações tecnológicas e econômicas, pelas influências exer-
c i d a s d u r a n t e s é c u l o s pela i d e o l o g i a e n t ã o d o m i n a n t e , p o r seus
conflitos internos e pela f o r m u l a ç ã o de s u a s próprias metas, n
b u r g u e s i a fez o p ç õ e s em t o d o s o s p a í s e s . A s d i f e r e n t e s t r a j e t ó -
rias t o m a d a s pelas burguesias f r a n c e s a e inglesa deixam bem
claro este ponto, e a incapacidade d a s tentativas das burguesias
i t a l i a n a e a l e m ã d e u n i f i c a r s e u s p a í s e s até r e l a t i v a m e n t e t a r d e
constitui a p e n a s uma evidência adicional no particular.
306 I N S U l i l H - l r à O II J U R I S P R U D Ê N C I A
N ã o e r a q u e m e i o s n ã o p u d e s s e m s e r e n c o n t r a d o s , e m 1789,
para mediar as diferenças entre a nobreza francesa e a burgue-
sia, m a s o p r e ç o d a a c o m o d a ç ã o s e t o r n a r a t ã o a l t o q u e e s t e ú l t i -
m o g r u p o decidiu a s s u m i r u m a p o s t u r a i n s u r r e c i o n a l . E s s e p o n t o
é bem esclarecido p o r Louis B o u d i n :
De acordo com a filosofia marxista, u m sistema de produção
pode d u r a r a p e n a s e n q u a n t o a j u d a r , ou pelo m e n o s n ã o Impedir,
o desdobramento e plena exploração das forças produtivas da
s o c i e d a d e e d e v e c e d e r a o u t r o s i s t e m a q u a n d o se t r a n s f o r m a
e m o b s t á c u l o , e m grilhão, à produção. Dispensa dizer que
u m sistema torna-se u m obstáculo, u m grilhão n a produção,
q u a n d o p o d e e x i s t i r a p e n a s I m p e d i n d o a p r o d u ç ã o e desperdi-
çando o q u e J á f o i p r o d u z i d o . T a l s i s t e m a n ã o p o d e , p o r c o n s e -
guinte, d u r a r m u i t o , n ã o c o n s i d e r a n d o e m a b s o l u t o a possibili-
dade ou impossibilidade p u r a m e n t e mecânicas de s u a continuação.
T a l s i s t e m a t o r n a - s e historicamente impossível m e s m o que
m e c a n i c a m e n t e isso p o s s a a i n d a ser possível.
— e s c n ã o m u d a d a , l a d e a d a , e se n ã o l a d e á v e l , c o m b a t i d a —•
então, o quê? N u m e r o s o s a d v o g a d o s resolveram a contradição
n a d a f a z e n d o e, a s s i m , l a n ç a n d o s u a s o r t e c o m o status quo.
I s s o n ã o s u r p r e e n d e •— b u r g u e s e s q u e n ã o e r a m a d v o g a d o s
p o d i a m ser e n c o n t r a d o s também d e s f r u t a n d o d o s privilégios do
patrocínio real.
O u t r o s a d v o g a d o s a serviço d e outros b u r g u e s e s , porém,
t r a b a l h a r a m p a r a elaborar princípios de ideologia a serviço da
insurreição. P o d e - s e sempre e n c o n t r a r um a d v o g a d o p a r a resol-
v e r c o n t r a d i ç õ e s p a r a s a t i s f a ç ã o d o cliente. S e a c o n t e s t a ç ã o
f e i t a a o E s t a d o p o r a d v o g a d o e c l i e n t e s e r e v e l a s s e séria
d e m a i s , a m b o s se a r r i s c a v a m a u m a p u n i ç ã o . N ã o h á d ú v i d a
d e q u e esse t i p o d e a d v o c a c i a foi útil n a a s c e n s ã o d a b u r g u e s i a
ao poder, nem tampouco a m e n o r dúvida d e q u e um rompi-
m e n t o declarado e n t r e os a d v o g a d o s b u r g u e s e s e os sistemas
f e u d a l e r e a l q u e l h e s d e u esse t i t u l o c e r t a m e n t e o c o r r e r i a .
o u t r o s f o r a m a c r e s c e n t a d o s e m s e g u i d a à g u e r r a civil, q u a n d o
foi d e s m a n t e l a d o o s i s t e m a d a e s c r a v i d ã o .
P o d e m o s falar com a l g u m a certeza sobre a s origens dessas
liberdades e d a s razões por que se desenvolveram. O s ideais
de propriedade e contrato eram fundamentais para a ascensão
ao poder. O u . como escreveu Engels:
Todos as revoluções, ató agora, t ê m sido revoluções p a r a defen-
d e r u m tipo de p r o p r i e d a d e c o n t r a outro. N ã o p o d e m d e f e n d e r
uni sem violar o outro. N a grande Revolução Francesa, a
propriedade feudal foi sacrificada p a r a salvar a propriedade
burguesa.
A o abolir o f e u d a l i s m o , a A s s e m b l é i a N a c i o n a l t e v e t o d o
o c u i d a d o em l a n ç a r a s p r o p r i e d a d e s f e u d a i s n a s m ã o s d o s c r e -
d o r e s d a n o b r e z a . I s s o foi c o n s e g u i d o a o c o n s i d e r a r - s e q u e o s
d e c r e t o s d e e x p r o p r i a ç ã o n ã o a f e t a v a m o s i n t e r e s s e s ein p r o -
p r i e d a d e feudal q u e haviam sido criados pela burguesia como
meios para g arantir seus empréstimos à nobreza. O triunfo d a
b u r g u e s i a a s s i n a l o u - s e . n o e n t a n t o , p o r u m a série d e c h o q u e s
c o m o E s t a d o f e u d a l , a r r a n c a n d o a q u i e ali p e d a ç o s o n d e s e u s
i n t e r e s s e s d o m i n a r i a m . N ã o foi a penas no instante revolucio-
nário da expropriação por uma Assembléia N a c i o n a l vitoriosa
q u e a burguesia ampliou o escopo de ação de ideologias jurídi-
c a s c o n v e n i e n t e s d e p r o p r i e d a d e e d e t é c n i c a s .— c o n t r a t u a i s —•
de t r a t a r tais interesses.
A parcela da burguesia que esteve em revolta — muitas
v e z e s c o n t r a u m a c o a l i s ã o q u e incluía b u r g u e s e s q u e h a v i a m f e i t o
a s p a z e s c o m a i d e o l o g i a d o m i n a n t e •— f o r m u l o u p r i n c í p i o s n o
interesse de sua própria c a m p a n h a em prol da liberdade de
propriedade e contrato. Exigiu liberdade de expressão e culto
p a r a melhor o r g a n i z a r e m a n t e r a solidariedade n u m a época
em q u e a I g r e j a o f i c i a l s e r v i a c o m o m e i o d e c o n t r o l e social.
U m a vez que foram bem cedo considerados como conspiradores
e, p o r t a n t o , p e r i g o s o s —• b a s t a l e m b r a r o s t r a b a l h o s d e B e a u -
m a n o i r em 1 2 8 3 e o s i n q u é r i t o s s o b r e a s r e v o l t a s u r b a n a s inicia-
d a s n o século X I I — os b u r g u e s e s insurgentes resistiram aos
r i g o r o s o s e f r e q ü e n t e m e n t e b á r b a r o s s i s t e m a s d e j u s t i ç a crimi-
n a l . a s s u m i n d o e m r e l a ç ã o a e l e s u m a p o s t u r a crítica.
D u a s conclusões emergem do estudo da ascensão da bur-
guesia: a primeira é que a ideologia jurídica é a expressão da
l u t a social, e q u e e l e m e n t o s e s p e c í f i c o s d a i d e o l o g i a d e um
g r u p o são r e s u l t a d o s d e l u t a s n a s q u a i s ele s e e m p e n h a e se
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 309
e m p e n h o u . A s e g u n d a , e d e vital i m p o r t â n c i a p a r a a j u r i s p r u -
dência dos dias presentes e sua contestação da ideologia, é
que o sistema de liberdade burguesa, em seus grandes dimen-
s i o n a m e n t o s , s e p a r a - s e ein d u a s p a r t e s b e m c l a r a s . A p r i m e i r a
trata como matéria concreta e i n t e g r a d a na ideologia os prin-
c í p i o s d e p r o p r i e d a d e e c o n t r a t o s o b r e o s q u a i s r e p o u s a o sis-
t e m a c a p i t a l i s t a , e. p r e v i s i v e l m e n t e , a d m i t e o e m p r e g o d o
p o d e r d o E s t a d o p a r a d e f e n d e r e s s a s l i b e r d a d e s . A segund.»
consiste nos princípios legais que a burguesia promoveu como
e s s e n c i a i s à s u a c a m p a n h a politica p a r a c o n q u i s t a r o p o d e r .
A m b o s os c o n j u n t o s d e p r i n c í p i o s f o r a m j u s t i f i c a d o s com invo-
c a ç ã o d a i d e o l o g i a d o direito n a t u r a l , q u e c o n s t i t u i u o emblein.i
e s p e c i a l d a b u r g u e s i a à é p o c a d e s u a c a m p a n h a f i n a l p a r a con-
quista do poder.
Poderíamos esperar encontrar atitudes jurisprudenciais
m u i t o d i f e r e n t e s e m r e l a ç ã o a e s s a s d u a s t e n d ê n c i a s e isso, d e
fato, ocorre. T e o r i a s de p r o p r i e d a d e e contrato foram reformu-
l a d a s e e l a b o r a d a s d e a c o r d o c o m a s n e c e s s i d a d e s d e u m sis-
tema crescentemente centralizado e monopolizado de produção.
O s princípios de liberdade pessoal e de tratamento justo para
com o i n d i v í d u o e s t ã o s o f r e n d o a t a q u e s c a d a v e z m a i s v i o l e n t o s
p o r p a r t e d e e l e m e n t o s d a c l a s s e d o m i n a n t e , e n q u a n t o ela se
d e s v e n c i l h a d e s e u s s e n t i m e n t o s r e v o l u c i o n á r i o s e é e m si
mesma desafiada. Dispensa dizer que a burguesia nenhum
d e s e j o tem d e s e r s u b s t i t u í d a p o r u m g r u p o q u e se a p r o v e i t e
d a s m e s m a s l i b e r d a d e s s o b r e a s q u a i s ela se a p o i o u e d e f e n d e u .
O s c o n t e s t a d o r e s d o p o d e r b u r g u ê s têm s i d o m u i t o s , m a s é claro
agora que, entre os muitos p r e t e n d e n t e s , o socialismo marxista,
q u e e s t a b e l e c e u o m o d e l o d e r e v o l u ç ã o m u n d i a l n e s t e século, é
o que tem maior probabilidade de conseguir substituí-lo. Q u a n d o
M a r x descreveu as tendências imanentes do capitalismo para a
irracionalidade e o colapso, sua tese talvez tenha provocado
dúvidas. Isso n ã o mais acontece.
N a s páginas seguintes, discutiremos brevemente alguns dos
contestatários d a ideologia jurídica b u r g u e s a e os problemas de
que trata a nova jurisprudência da insurreição. ( U m estudo
d e t a l h a d o d e s s a s q u e s t õ e s f o g e a o e s c o p o d e s t e livro.)
P r e s e n c i a m o s h o j e e m d i a u m p r o c e s s o p a r a l e l o a o que
esboçamos em nosso estudo da ascensão da burguesia ao poder.
R e i v i n d i c a ç õ e s d e justiça e s t ã o s e n d o v a z a d a s , p o r g r u p o s d i s -
s i d e n t e s , sob a f o r m a d a e x i g ê n c i a d e q u e a i d e o l o g i a d o m i n a n t e
seja interpretada de maneiras diferentes. N a esfera do contrato
310 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
C i t a K i n o y os d o i s e n v o l v i m e n t o s d e F i d e l C a s t r o coin a
j u s t i ç a c u b a n a e m 1952 e 1953. D u a s s e m a n a s a n t e s d o g o l p e
d e e s t a d o d e F u l g ê n c i o B a t i s t a , e m 1952, C a s t r o , n a q u a l i d a d e
de advogado, fez u m a petição a uma corte de H a v a n a , exigindo
q u e Batista e seus cúmplices fossem presos e a c u s a d o s de vio-
lações d o C ó d i g o de D e f e s a Social, por p r e p a r a r e m u m a insur-
r e i ç ã o a r m a d a . A p e t i ç ã o foi i g n o r a d a . U m a n o m a i s t a r d e ,
a p ó s o g o l p e d e B a t i s t a , C a s t r o foi p r e s o e m seu f r a c a s s a d o
a t a q u e a o q u a r t e l d e M o n c a d a . E m s e u j u l g a m e n t o , ele f a l o u
em d e f e s a do direito de revolução e recordou que t e n t a r a levar
à a t e n ç ã o das autoridades, d e m o d o legal, as queixas que haviam
m o t i v a d o o s a t a c a n t e s d e M o n c a d a . D i s s e ele:
Os senhores r e s p o n d e r ã o que, n a p r i m e i r a ocasião, a corte não
pôde agir porque a força a Impediu de assim proceder, Bem,
e n t ã o c o n f e s s e m : d e s t a vez a f o r ç a os o b r i g a r á a c o n d e n a r - s e .
N a p r i m e i r a vez, os s e n h o r e s f o r a m i n c a p a z e s d e p u n i r os
c u l p a d o s ' A g o r a s e r ã o o b r i g a d o s a p u n i r o I n o c e n t e . A fllhu.
v i r g e m d a justiça foi d u a s vezes violentada!
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 311
A s u b s e q ü e n t e c o n d e n a ç ã o d e C a s t r o p e l o t r i b u n a l militar
constituiu uma dramática confirmação de que o sistema de
p o d e r estatal havia posto de l a d o p a r t e de s u a própria ideologia
jurídica. A s reivindicações de justiça d a parcela d a p o p u l a ç ã o
c u b a n a que compartilhava das idéias de C a s t r o n ã o podiam ser
mais a c o m o d a d a s d e n t r o da ideologia jurídica oficial. O período
d e atividade revolucionária subseqüente presenciou a formação
n ã o só de u m a força a r m a d a revolucionária, m a s a implantação,
em á r e a s sucessivamente maiores d o país, de uma ideologia
alternativa apoiada nessa força.
P o d e m o s e n c o n t r a r a mesma evolução d e conciliação para
u m a ideologia d o m i n a n t e , para u m a luta com a finalidade de
elaborar uma ideologia no sentido de atender às exigências dos
dissidentes e p a r a u m a atitude de revolta d e c l a r a d a em um certo
n ú m e r o de países d o T e r c e i r o M u n d o e, mais recentemente,
em Portugal.
N o s Estados Unidos, a esquerda — negra, morena e
também de outras tonalidades d o Terceiro M u n d o , bem como
b r a n c a — aplicou g r a n d e energia nas últimas d é c a d a s p a r a
forçar as instituições encarregadas d a interpretação e aplicação
d a i d e o l o g i a j u r í d i c a a h o n r a r e m a s g a r a n t i a s b á s i c a s d e liber-
d a d e e e q ü i d a d e . A ação judicial, muitas ve2es sob a f o r m a de
" c a s o d e t e s t e " , c o n s t i t u i u o p r i n c i p a l meio d e l u t a . R e d u z i n d o -
se a o s p o u c o s a s p o s s i b i l i d a d e s d e a t e n d e r p o r e s s e s m e i o s à s
suas reivindicações de justiça, e i g n o r a n d o a m á q u i n a d e r e p r e s -
s ã o d o E s t a d o a t é m e s m o a s n o r m a s q u e e r a m f o r m a l e explici-
t a m e n t e p a r t e s d a ideologia b u r g u e s a , a e s q u e r d a a m e r i c a n a
d e i x o u d e f a z e r u r n a crítica à i d e o l o g i a e d e e l a b o r a r - l h e u m a
alternativa.
A s exigências d a esquerda têm sido dirigidas aos d e t e n -
tores públicos e privados do poder, e esse fato é básico para
u m a análise critica d a ideologia b u r g u e s a . O s d e t e n t o r e s do
p o d e r p o l í t i c o e s t ã o , n a t u r a l m e n t e , s u j e i t o s , a o q u e se p r e s u m e ,
às injunções constitucionais relativas à, por exemplo, não dis-
c r i m i n a ç ã o p o r m o t i v o d e r a ç a e, e m a l g u m a s c i r c u n s t â n c i a s ,
f o r a m c o n s i d e r a d o s obrigados a remediar o impacto d a discrimi-
n a ç ã o passada. E s s a obrigação, porém, n ã o a b r a n g e em geral
o d e v e r de recorrer à bolsa pública p a r a financiar p r o g r a m a s
d e a s s i s t ê n c i a . A i n j u n ç ã o c o n s t i t u c i o n a l d e p r o t e ç ã o i g u a l em
g e r a l n ã o se a p l i c a à c o n d u t a d e p e s s o a s p r i v a d a s , e o " d e v e r "
de e m p r e g a d o r e s , m e s m o de sociedades a n ô n i m a s , limita-se h a -
bitualmente a obedecer às injunções dos institutos de n ã o dis-
312 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
P o d e r í a m o s c i t a r n u m e r o s o s e x e m p l o s cie c o n f r o n t a ç ã o
e n t r e a i d e o l o g i a b u r g u e s a d a f o r m a h o j e a d m i n i s t r a d a e a insis-
t e n t e e x i g ê n c i a d e v á r i o s g r u p o s dissidentes-, g v u p o s d e e s t u -
d a n t e s e moços, jovens t r a b a l h a d o r e s n a s á r e a s u r b a n a s , e assim
por diante. O s pormenores podem variar, mas o q u a d r o per-
manece o mesmo: o sistema de organização da produção para
o lucro p r i v a d o não pode a t e n d e r às necessidades d o povo e a
i d e o l o g i a jurídica d o g r u p o d o m i n a n t e t a m p o u c o p o d e a t e n d e c -
l h e a s e x i g ê n c i a s d e l i b e r d a d e e e q ü i d a d e . P o u c o s d e s s e s movi-
m e n t o s e m p r o l d a m u d a n ç a t ê m c o n s c i ê n c i a d e c l a s s e ou n e l a
estão b a s e a d o s , e não sugerimos que s u a s lutas s e j a m mais do
que precursoras do conflito de classe. D a mesma f o n n a que
aconteceu com a contestação do f e u d a l i s m o pela burguesia,
p o d e - s e e s p e r a r q u e a c o n s c i ê n c i a se d e s e n v o l v a l e n t a m e n t e
no processo de c o n f r o n t a r a ideologia d a classe d o m i n a n t e .
O r i t m o e a n a t u r e z a d a m u d a n ç a lios E s t a d o s U n i d o s
s ã o p r o f u n d a m e n t e influenciados por fatos que ocorrem f o r a do
p a í s . em e s p e c i a l 110 T e r c e i r o M u n d o . C o m e ç a n d o a s a n t i g a s
possessões coloniais a controlar a e x p o r t a ç ã o de s u a s matérias-
p r i m a s , a a m e a ç a d e crise e c o n ô m i c a a u m e n t a n o s p a í s e s mais
" a v a n ç a d o s " . N e s s e s p a í s e s , o s p r o b l e m a s e c o n ô m i c o s —' d e -
s e m p r e g o e i n f l a ç ã o — t o r n a m m a i s difícil a o s d e t e n t o r e s d o
p o d e r e s t a t a l a t e n d e r —• c o m p r a r — a s e x i g ê n c i a s d o s dissi-
dentes. Ê nesse sentido que a lula contra o imperialismo ameri-
c a n o — e contra o domínio econômico que exerce sobre os
p a í s e s d o T e r c e i r o M u n d o —• é c r u c i a l p a r a u l u t a i n t e r n a .
E s s a a g u ç a d a t e n s ã o cria p a r a o s j u r i s c o n s u l t o s m o d e r n o s
a s contradições a n t e s discutidas e com a s quais se viram a
b r a ç o s o s a n t i g o s j u r i s c o n s u l t o s b u r g u e s e s . A d v o g a d o s dá
partes opostas — jurisconsultos em uniforme de combate —
começam a traçar cuidadosas distinções. C o n q u a n t o as obriga-
ções legais de trabalhadores e proprietários sejam definidas
pela ideologia dominante, os a d v o g a d o s tentam m u d á - l a s o
adaptá-las para ajustar diferenças sem perturbar a integridade
d o si.stema i d e o l ó g i c o c o m o uni t o d o . M e l h o r a m e n t o s r e a i s 11a
vida de pessoas comuns ocorrem através dessas mudanças:
l e g i s l a ç ã o d e c r é d i t o ao c o n s u m i d o r , a fim d e i m p e d i r a e x p l o -
ração c a s práticas desleais, legislação sobre boas habitações,
iguais p r o j e t o s de emprego, d e t e r m i n a n d o t r a t a m e n t o compen-
s a t ó r i o p a r a n e g r o s , chicãiios e mulheres. S u r g e m porque os
j u r i s c o n s u l t o s p e n e t r a m 11a i d e o l o g i a j u r í d i c a e e m s u a s n o r m a s
e d e n u n c i a m o s i n t e r e s s e s q u e elas p r o t e g e m , e s c l a r e c e n d o a s s i m
20 - 13.A.C.
314 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA
R e s o l v e m o s n ã o usai- n e s t e v o l u m e n o t a s d e r o d a p é ,
p r e f e r i n d o d e i x a r c l a r a 110 t e x t o n o s s a d í v i d a p a r a c o m o u t r o s
autores, e colocar no final d o trabalho a bibliografia completa
das o b r a s que consultamos ou que r e c o m e n d a m o s . Incluímos
a p e n a s a s f o n t e s p r i m á r i a s em q u e e s p e c i a l m e n t e b e b e m o s e
f o n t e s s e c u n d á r i a s em g e r a l d i s p o n í v e i s . A s e d i ç õ e s e m b r o c h u r a
são indicadas por asterisco. A citação dos trabalhos consulta-
d o s é f e i t a d a f o r m a p r e s c r i t a p o r A Uniform System of Cita-
tion, l l . a e d i ç ã o , livro p u b l i c a d o pelos e d i t o r e s d a s r e v i s t a s d e
direito d a s Universidades de Colúmbia, H a r v a r d , Pensilvânia
e Yale. A s datas mencionadas são das edições consultadas.
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