Você está na página 1de 313

M1CHAEL E.

TIGAR
M A D E L E I N E R. LEVY

O DIREITO
E A ASCENSAO
DO
CAPITALISMO
Tradução de
RllY JUN^MANN

ZAHAR EDITORES
RIO l)E J A N E I R O
Título ortgtnal
Law and lha teixo «>/ Crtpifa2ls»i

T r B d « ' t í o d a p r i m e i r a «}<1l<;ôo, p u b l i c a d a e m 1077


p e l a M O N T I I I . Y REV1EVV P R E S S ,
d e N o v a Y o r k , E**udo« U n i d o s d a A m é r i c a

Copyright © 1977 bij Mtrhael E. Tigar

P r o i b i d a a r e p r o d u ç ã o lotai o u p a r d a l d e s t e livro,
a alvo a s c i t a ç õ e s no» v e í c u l o s d e comunlcaç&o.

<iap/i dê
J A N R

107»

Diroituy p a r a a l í n g u a p o r t u g u e s a üdquiiklos por


ZAHA.lt E D I T O R E S
C a i x a P.-.fttnl 207. ZC-M, R i o
i|«ie ae r e f e r v a m a p r o p r i e d a d e dwsta v e r s ã o

I m p r t t i m n o Brasil
índice

PREFACIO P O R T H O M A S I. E M E R S O N 7

AGRADECIMENTOS 11

INTRODUÇÃO 13

PRIMEIRA PARTE

O Direito e a Ascensão
do Capitalismo ao Poder:
V ma Visão Geral

1. O Mercador como Rebelde 19


2. Os A n t e c e d e n t e s das Novas Instituições Jurídicas 23

SEGUNDA PARTE

Os Mercadores
rt Procura de um Lugar
na Ordem, Feudal
(ÍOOO-ISOO)

3. Introdução 87
4. As Cruzadas:
A C a p t u r a d a s R o t a s de C o m é r c i o
e a Disseminação da Ideologia B u r g u e s a 70
5. Veneza e Amalfi:
E n t r e o Oriento e o Ocidente 87
6. Algumas Origens da Cultura Urbana 91
7. Transporte por Terra e Mar 106
8. Papas e Mercadores 111
0. A B u r g u e s i a no Século X I I I 119
6 ÍNDICE

TERCEIRA PARTE

Os Advogados Burgueses:
O Poder Real e o
Desenvolvimento Urbano
(iSOO-UOO)

10. Introdução 125


11. Beaumanoir e Outros:
Os Teóricos de u m a N o v a Ordem 128
12. A Capital Comercial de Grasse 167
13. A Rebelião Camponesa c o Direito à Terra 178

QUARTA PARTE

A Ascendência
da Burguesia
(1$00~1600)

14. Introdução 185


15. Thomas More e a Destruição d a Visão Medieval 189
16. A Reformulação d a Lei de Propriedade Imobiliária 197
17. Contrato — U m Estudo
do Direito e da Realidade Social 211

QUINTA PARTE

A Vitória Burguesa
(leoo-iMiJ

18. França: O Triunfo do Terceiro Estado 229


19. Inglaterra: A Técnica do Direito C o s t u m e i r o 251

SEXTA PARTE

Insurreição e
Jurisprudência

20. O Desenvolvimento da Ideologia Jurídica 269


21. Principais Escolas de P e n s a m e n t o Jurídico 280
22. A Jurisprudência da Insurreição 298

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 317


Prefácio

T H O M A S I. E M E R S O N

N e s t e livro, M i c h a e l T i g a r e M a d e l e i n e L e v y pro-
p õ e m - s e remontar às o r i g e n s e a o d e s e n v o l v i m e n t o d e n o s s a
atua] o r d e m jurídica em termos da luta h a v i d a entre uma so-
c i e d a d e capitalista em a s c e n s ã o e u m a estrutura feudal em de-
clínio. A história s e inicia em é p o c a remota, o século X I , com os
primórdios da v i d a mercantil nas c i d a d e s , p r o s s e g u i n d o até o
triunfo da jurisprudência b u r g u e s a , n o s é c u l o X V I I I . A ê n f a s e
é c o l o c a d a n o m o d o c o m o o direito e a s instituições jurídicas
r e f l e t e m o s interesses da c l a s s e d o m i n a n t e e c o m o e le s são mo-
d i f i c a d o s à medida que u m a n o v a c l a s s e social gradualmente
substitui a anterior. C o m o história, trata-se de u m a descrição
absorvente. Ampliará o s h o r i z o n t e s de t o d o s o s a d v o g a d o s e es-
t u d a n t e s de direito, e eles farão muito b e m em s e familiarizar
com o assunto.
O livro, porém, r e v e s t e - s e também d e implicações mais
amplas. A q u e l e s entre n ó s que s e interessam pela m u d a n ç a
social n o s E s t a d o s U n i d o s , e a maioria d o s membros da classe
d o s cultores d o direito, têm ignorado, d e um m o d o geral, al-
g u m a s q u e s t õ e s f u n d a m e n t a i s . Indubitavelmente, o s E s t a d o s
U n i d o s , c o m o aliás a maior parte d o M u n d o O c i d e n t a l indus-
trializado. e n c o n t r a m - s e n u m período de transição. O s proble-
mas s e a g r a v a m dia a dia e s o l u ç õ e s não parecem possíveis den-
tro da estrutura das instituições capitalistas tradicionais. Seja
o u n ã o a n o v a ordem socialista marxista, c o m o acreditam Tigar
e Levy, ela será sem d ú v i d a mais coletiva, repousará em uma
n o v a consciência e, temos esperança, incluirá um sistema de li-
b e r d a d e individual. E s s e p r o c e s s o de m u d a n ç a social e a mode-
8 O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO

l a ç ã o d e n o s s o d e s t i n o final e s t ã o na raiz d o s problemas cruciais


d e n o s s o s dias.
Q u e papel p o d e m o s preceitos d o direito e a s instituições
jurídicas d e s e m p e n h a r n o período de transição e que lugar lhes
caberá n o n o v o e s q u e m a d e coisas? N ã o há dúvida de que n o s s a
ordem jurídica constitui um d o s a s p e c t o s mais n o t á v e i s da s o -
c i e d a d e ocidental. E, c o n f o r m e o b s e r v a m T i g a r e L e v y , a i d e o -
logia jurídica n ã o é propriedade e x c l u s i v a d o s g r u p o s d o m i n a n -
t e s da s o c i e d a d e . M u i t o a o contrário, g r u p o s q u e aspiram a
assumir o poder n o E s t a d o formulam seu a t a q u e e m termos
de conjuntos de r e g r a s e princípios jurídicos. N ã o é provável
que m u d e e s s a situação. A n o v a o r d e m não p o d e representar
um rompimento total c o m o p a s s a d o . F o r ç o s a m e n t e s e d e s e n -
v o l v e r á a partir d a s f o r m a s e x i s t e n t e s e, n o fim, m u i t a s v e l h a s
idéias, atitudes e instituições s e a g l u t i n a r ã o na futura ordem.
P o d e m o s , por c o n s e g u i n t e , esperar que a n o v a o r d e m seja ini-
l u d i v e l m e n t e ocidental e n ã o , d i g a m o s , chinesa, n a sua d e p e n -
d ê n c i a d o direito c o m o m e i o vital de controle social.
C o m o , então, p o d e ser o direito utilizado n o atual sistema
a fim de promover a m u d a n ç a social? T i g a r e L e v y n ã o d e i x a m
d ú v i d a d e que n o s s a o r d e m jurídica p r e s t a - s e a e s s e uso. O s
direitos a s s e g u r a d o s s o b a ordem p r e v a l e c e n t e , t a n t o c o m res-
peito à propriedade e a o s direitos c o n t r a t u a i s c o m o n o tocante
a o s direitos individuais, s ã o f o r m u l a d o s em t e r m o s universais,
e p o d e m ser reivindicados por todos o s e l e m e n t o s da s o c i e d a d e .
N e c e s s a r i a m e n t e , há h i a t o s e incertezas n o sistema q u e indi-
c a m certa flexibilidade. À m e d i d a que muda a f a s e factual
original d o direito, este s e descontrola e gera c o n t r a d i ç õ e s que
e x i g e m s o l u ç ã o p e l a m u d a n ç a . A s regras jurídicas são inter-
p r e t a d a s por u m a c l a s s e e s p e c i a l m e n t e treinada de juristas,
que t e n d e m a d e s e n v o l v e r seu próprio momentum. U m grupo
em a s c e n s ã o p o d e aproveitar e s s e s a s p e c t o s da o r d e m jurídica
e formular o que T i g a r e L e v y c h a m a m d e "jurisprudência da
insurreição". M a s . e x a t a m e n t e , de q u e maneira p o d e isso ser
feito? O que promoverá o p r o c e s s o de m u d a n ç a social e o que
s i m p l e s m e n t e reforçará a s instituições e x i s t e n t e s e superadas?
Q u a l a s i t u a ç ã o d o a d v o g a d o i s o l a d o que participa de tal
p r o c e s s o ? É certamente ambígua. P o r um lado, ele d e v e forço-
s a m e n t e atuar dentro d o sistema e x i s t e n t e o u perderá t o d a a
i n f l u ê n c i a que p o s s a porventura exercer e. talvez, o próprio
status de a d v o g a d o . P o r outro lado, ele a s s u m e um s o l e n e c o m -
p r o m i s s o com uma séria m u d a n ç a social. N u m e r o s o s a d v o g a -
PREFÁCIO 9

d o s t ê m q u e b r a d o a cabeça c o m e s s e p r o b l e m a que, apesar de


tudo, continua a constituir um sério dilema.
D e que m o d o um grupo q u e c o n t e s t a a v e l h a ordem começa
a formular sua própria jurisprudência? É claro q u e d e v e fazê-lo,
d a d o o papel f u n d a m e n t a l d o direito n a s o c i e d a d e ocidental.
E, mais uma vez, c o n f o r m e o b s e r v a m T i g a r e L e v y . a ideolo-
gia de um m o v i m e n t o d i s s i d e n t e em a s c e n s ã o influenciará
p r o f u n d a m e n t e a o r d e m jurídica que será p o s t a em vigor quando
conquistar o p o d e r estatal. P o r que meios, então, p o d e começar
a introduzir n o sistema v i g e n t e s u a s idéias sobre o m o d o c o m o
d e v e m ser o r d e n a d a s a s f o r ç a s p r o d u t i v a s da s o c i e d a d e , de
que m o d o um sistema de direitos individuais p o d e ser man-
tido numa s o c i e d a d e coletivísta e de que maneira p o d e ser
d e s e n v o l v i d o o s e n s o de c o m u n i d a d e ?
Q u e dizer d a c o n v e n i ê n c i a de pressionar o s tribunais,
p e d i n d o uma diferenciação n o p a p e l d o judiciário entre direi-
t o s d e propriedade e contratuais, por um lado, e direitos in-
dividuais. por outro? A i d e o l o g i a jurídica da c l a s s e capitalista
em a s c e n s ã o deu ê n f a s e à m a n u t e n ç ã o d o s i n t e r e s s e s burgue-
s e s em ambas a s esferas; na primeira, a fim d e a s s e g u r a r - l h e a
supremacia material; n a s e g u n d a , c o m o e s s e n c i a l à o b t e n ç ã o
d o p o d e r n o E s t a d o . A t u a l m e n t e , é o s i s t e m a capitalista que
procura restringir o sistema de direitos individuais, e o s grupos
d i s s i d e n t e s o s que têm interesse em m a n t ê - l o s e expandi-los.
S e r á isso f u n d a m e n t a l para s e interpretar o p a p e l dos tribunais
n e s t e periodo c o m o i n t e r e s s a d o primordialmente n o sistema
d e direitos individuais? S e r ã o o s tribunais impotentes para
introduzir m u d a n ç a s n o s sistemas d e p r o p r i e d a d e e direitos con-
tratuais? O u p o d e r ã o eles reagir a reivindicações, e x t r a p o l a d a s
d a ideologia b u r g u e s a , à i g u a l d a d e material e a uma participa-
ção na riqueza nacional?
F i n a l m e n t e , será suficiente pedir aos tribunais que prote-
jam o s c i d a d ã o s n o s seus direitos tradicionais contra a inter-
ferência d o s ó r g ã o s públicos em s u a liberdade de e x p r e s s ã o
e religião, contra a injustiça em s e u s c o n t a c t o s com o g o v e r n o e
contra o tratamento desigual perante a lei? O u deverá a ordem
jurídica ser a c i o n a d a para adotar uma a ç ã o positiva, caso se
d e s e j e que se transformem em realidade o s ideais d o sistema
de direitos individuais?
O Direito e a Ascensão do Capitalismo n ã o responde a
t o d a s e s s a s q u e s t õ e s . N o e s t u d o d o papel d e s e m p e n h a d o peio
10 O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO

direito e p e l o s a d v o g a d o s na transição d o f e u d a l i s m o para o


capitalismo, c o n t u d o , o livro, na v e r d a d e , lança muita luz sobre
o p a p e l de ambos. T o d a s as p e s s o a s s e r i a m e n t e i n t e r e s s a d a s
na m u d a n ç a social, sejam elas e s t u d a n t e s , praticantes d o di-
reito o u c i d a d ã o s c o m u n s , acharão n e s t a s p á g i n a s matéria esti-
mulante e sugestiva.

N e w Haven, Connecticut
Janeiro de 1 9 7 7
I
I

Agradecimentos
i

N o s s a gratidão é tão g r a n d e q u a n t o n o s s a dívida


para com T h e Louís R a b i n o w i t z F o u n d a t i o n , Carol U . Berns-
tein e S t a n l e y Sheinbaum por d o a ç õ e s que nos possibilitaram
iniciar e s s e trabalho. A assistência que nos forneceram per-
mitiu que r e a l i z á s s e m o s p e s q u i s a s em O x f o r d , B o l o n h a , Grasse.
N i c e . A i x - e n - P r o v e n c e , G e n e b r a , Londres, Paris, V e n e z a ,
C a n n e s , D u b l i n , Berkeley, Los A n g e l e s e outras cidades.
O m a n u s c r i t o foi datilografado, corrigido e as p r o v a s ti-
p o g r á f i c a s revistas ( d i s s o resultando n u m e r o s a s s u g e s t õ e s e
c o m e n t á r i o s v a l i o s o s ) por P a m e l a A v i s , em Le T i g n e t , França,
e Carol W i t k o w s k i , M a u r a J. F l a h e r t y , R u t h W a l i c k i e Leo-
n o r e M a n n e s , em W a s h i n g t o n , D . C . H a r r y B r a v e r m a n acre-
d i t a v a n e s t e livro e p r o p o r c i o n o u - n o s s á b i o e paciente acon-
selhamento. S u s a n L o w e s merece a g r a d e c i m e n t o s especiais pela
assistência editorial.
M e n c i o n a r todas a s p e s s o a s e instituições que n o s auxi-
liaram exigiria d e z e n a s de p á g i n a s e não q u e r e m o s correr o
risco de m e n o s p r e z a r n e n h u m a d e l a s por o m i s s ã o involuntária.
N o s s o s a g r a d e c i m e n t o s a todas.
Introdução

E s c r e v e n d o sobre r e v o l u ç ã o e direito, procuramos


evitar f a t o s e s p e c í f i c o s e c o n c e n t r a r - n o s em princípios e ten-
d ê n c i a s gerais. S a b e m o s q u e "tal é a u n i d a d e d a história que
t o d o a q u e l e que s e d i s p õ e a relatar parte dela d e v e , forçosa-
mente. sentir que sua primeira s e n t e n ç a r o m p e u m a teia i n c o n .
sútil." À s c a u t e l o s a s palavras de P o l l o c k e M a i t l a n d n ã o s ó nos
orientaram, c o m o n o s serviram de advertência. E s t e livro des-
creve a a s c e n s ã o da b u r g u e s i a européia a o p o d e r e estuda as
o r i g e n s d e sua luta contra o r d e n s jurídicas hostis. E m termos
mais gerais, a r g u m e n t a m o s que a m u d a n ç a jurídica constitui
p r o d u t o d o c o n f l i t o entte c l a s s e s s o c i a i s q u e procuram adequar
a s instituições de controle social a o s seus fins e impor e manter
um sistema e s p e c í f i c o de r e l a ç õ e s sociais.
P a r a nós, a tarefa mais importante n o e s t u d o da história
— ou, mais e x a t a m e n t e , da jurisprudência n a história *— consis-
tiu em c o m p r e e n d e r o c o n t e ú d o d e i d e o l o g i a s jurídicas con-
flitantes e o s interesses o n d e elas têm s u a s origens, identificar
o s g r u p o s cujo conflito com a i d e o l o g i a p r e f i g u r a a mudança
revolucionária e descrever o d e s e n v o l v i m e n t o , n a vida diária
d e h o m e n s e mulheres, de tal conflito.
A r g u m e n t a m o s que a m i s s ã o apropriada d a jurisprudência
consiste em explicar o m e c a n i s m o d e m u d a n ç a fundamental nas
n o r m a s jurídicas que, a p o i a d a s pelo p o d e r d o E s t a d o , gover-
nam n o s s a vida. S e tivermos s u c e s s o n e s s a tarefa, compreen-
d e r e m o s a atual o r d e m jurídica e de que m o d o a mesma d e v e ser,
e será, m u d a d a p e l o s d e s a f i o s revolucionários que hoje enfrenta.
P a r t e de tal c o m p r e e n s ã o d e v e constituir o reconhecimento de
que as no r m a s ora v i g e n t e s tiveram origem nas lutas sociais re-
volucionárias de uma classe a cujos interesses elas servem.
14 O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO

A s o r i g e n s d e s t e livro p o d e m ser facilmente traçadas. U m


d e n ó s escreveu há a l g u n s a n o s uma r e s e n h a sobre certo livro,
o n d e discutiu o s d e s a f i o s revolucionários l a n ç a d o s à atual e s -
trutura de poder estatal, e na qual foi c u n h a d a a f r a s e "juris-
prudência da insurreição". E s s a r e s e n h a t r a n s f o r m o u - s e n a b a s e
de u m a a n á l i s e mais e x t e n s a d o atual m o v i m e n t o e m prol da
m u d a n ç a social, a p r e s e n t a d a s o b o título "Jurisprudência da In-
surreição" n o C e n t e r for the S t u d y of D e m o c r a t i c Institutions,
em S a n t a Barbara, Califórnia. A a n á l i s e foi s e g u i d a por um
e n s a i o intitulado "Direito S o c i a l i s t a e Instituições Jurídicas",
o n d e s e discutiam u s o s muito d i f e r e n t e s da i d e o l o g i a jurídica
por revolucionários na U n i ã o S o v i é t i c a , C h i n a e Cuba.
A l g u m a experiência n o e n s i n o d o direito, n o entanto, l e v o u -
n o s a c o m p r e e n d e r que e s s e s trabalhos e p e n s a m e n t o s haviam
i g n o r a d o a l g u m a s q u e s t õ e s f u n d a m e n t a i s s o b r e a o r d e m jurídica.
U m d e nós, n u m e n s a i o escrito em 1965, h a v i a e s t u d a d o b r e v e -
m e n t e s u b l e v a ç õ e s ocorridas na E u r o p a O c i d e n t a l e s u a s c o n -
tribuições para a s m u d a n ç a s i n t r o d u z i d a s 110 direito. D e s e j á v a -
mos, n o entanto, submeter a teste n o s s a teoria d e jurisprudência
d a insurreição com o e s t u d o d a s r e v o l u ç õ e s b u r g u e s a s na E u -
ropa O c i d e n t a l e d e m o n s t r a r que as regras s o b a s q u a i s h o j e
v i v e m o s p o d e m ter s u a s o r i g e n s atribuídas a lutas sociais e s p e -
c í f i c a s na a s c e n s ã o d a b u r g u e s i a a o poder. N e n h u m a história
jurídica de tal tipo fora escrita em inglês e, com a a j u d a das
p e s s o a s e instituições m e n c i o n a d a s n o s A g r a d e c i m e n t o s , dispo»
m o - n o s a escrevê-la.
Inicialmente, p e n s á v a m o s que o s principais e l e m e n t o s da
ideologia jurídica b u r g u e s a h o u v e s s e m e m e r g i d o n a s r e v o l u ç õ e s
i n g l e s a e f r a n c e s a e q u e n o s s a principal ê n f a s e d e v i a ser c o l o -
c a d a nos s é c u l o s X V I I e X V I I I . D e s c o b r i m o s , n o entanto, à
m e d i d a que p a s s a m o s a c o n s u l t a r f o n t e s primárias e s e c u n d á r i a s
na Europa e E s t a d o s U n i d o s , que a luta da burguesia até a vitória
final de f a t o começara s é c u l o s antes, n o s l e v a n t e s u r b a n o s d o
s é c u l o X I . A história d e s s e s l e v a n t e s n ã o s ó constitui um e m o -
c i o n a n t e capítulo n a luta pela liberdade h u m a n a , m a s m o d i f i c o u
n o s s o s p o n t o s de vista sobre a relação entre direito e revolução.
E m trabalhos mais antigos, h a v í a m o s atribuído importância
primordial à f a s e a b e r t a m e n t e revolucionária d o s d e s a f i o s à
o r d e m jurídica vigente. N o e s t u d o das o r i g e n s da luta, v e l h a
d e séculos, da burguesia, c o m e ç a m o s a c o m p r e e n d e r melhor o
p a p e l de iniciativas e s s e n c i a l m e n t e r e f o r m i s t a s para, tempora-
riamente, melhorar a s i t u a ç ã o de um g r u p o dissidente, identi-
INTRODUÇÃO 15

ficar o s c o n f l i t o s f u n d a m e n t a i s e distingui-los d a q u e l e s menos


i m p o r t a n t e s e, finalmente, delinear melhor a arena d a luta entre
o e x i s t e n t e d e t e n t o r do p o d e r estatal e o g r u p o q u e o derrubaria.
N ã o pretendemos, c o n t u d o , provar que a m u d a n ç a jurídica,
o u m u d a n ç a s na i d e o l o g i a jurídica, ocasionou a transição d o
f e u d a l i s m o para o capitalismo. T o d o s o s sistemas sociais s e
p r e s e r v a m e s e mantêm contra s e u s inimigos, e regulamentam
s e u s a s s u n t o s internos, m e d i a n t e o u s o d o p o d e r e, assim, em
última análise, mediante o u s o da força e da a m e a ç a da f o i ç a .
S u a s no r m a s formais r e p o u s a m s o b r e a premissa d e q u e s e o
indivíduo n ã o o b e d e c e r à s injunções d o E s t a d o •— a instituição
d o t a d a de uma força pública e s p e c i a l m e n t e criada para aplicar
l e i s e i n j u n ç õ e s — mais c e d o o u mais tarde será o u obrigado
pela f o r ç a a obedecer, o u c a s t i g a d o por n ã o fa2ê-lo. T o d o s o s
g r u p o s q u e d e s e j a m introduzir u m a m u d a n ç a radical n u m a so-
c i e d a d e — e o s primeiros e m p r e s á r i o s d e s e j a v a m e x a t a m e n t e
i s s o — inicialmente s u b m e t e m a teste a s instituições v i g e n t e s
d e p o d e r a fim d e verificar até que p o n t o elas s e curvam e, em
s e g u i d a , atacam diretamente 05 ó r g ã o s d o p o d e r estatal, criando
s e u próprio a p a r a t o de f o r ç a pública, c o m n o v a s l e i s e injun-
ç õ e s d e s t i n a d a s a garantir s e u s próprios interesses.
U m a d a s maneiras de c o m p r e e n d e r a história, por c o n s e -
guinte, consiste em estudar a s o r i g e n s da a s c e n s ã o , m a n u t e n ç ã o
e m u d a n ç a das ordens jurídicas e sua posterior derrubada,
j u n t a m e n t e c o m s e u s instrumentos d e violência. P r e c i s a m o s ter
cuidado, n o entanto, para n ã o tirar c o n c l u s õ e s a p r e s s a d a s de
um e s t u d o d e s s a natureza. N o s é c u l o X I I I , parecia à alta no-
breza detentora d o poder político, à Igreja e à realeza que o
m u n d o s e e nco n tra v a n u m e s t a d o d e rebelião geral e contínua.
F r a d e s eremitas, d e s c a l ç o s e p o b r e m e n t e v e s t i d o s , a b a n d o n a v a m
igrejas e mosteiros ricamente d o t a d o s para agitar o laicato e o
clero contra a Igreja R o m a n a . C a v a l e i r o s d e s e m p r e g a d o s dedi-
c a v a m - s e a e l e g a n t e s assaltos e s e r v o s f u g i d o s a e le s s e reuniam
para formar b a n d o s d e s a ltea d o res . C a m p o n e s e s s a q u e a v a m as
c a s a s d e s e u s senhores. E mercadores, residentes citadinos, o u
b u r g u e s e s —• o que quer que s e queira c h a m á - l o s —• progrediam
m e d i a n t e o e m p r e g o de r e v o l u ç ã o declarada, s u b v e r s ã o e chi-
cana econômica, mal c o m p r e e n d i d a s por s e u s "superiores".
T o d o s e s s e s g r u p o s e s t a v a m fora da lei o u contra ela.
D e n t r o d e uma perspectiva de oito séculos, alimentamos a
e s p e r a n ç a de identificar as forças e a c o n t e c i m e n t o s que c o n d e -
16 O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO

natam a o f r a c a s s o o m o v i m e n t o d o s f r a d e s , q u e rotularam o s
salteadores d e n a d a mais que meros b a n d i d o s e q u e levaram
o s revolucionários b u r g u e s e s à vitória final.
A c r e d i t a m o s q u e o e s t u d o da revolta b u r g u e s a contra a s
instituições f e u d a i s seja essencial p a r a c o m p r e e n d e r m o s o di-
reito d e hoje, e n ã o a p e n a s para a d v o g a d o s , juizes e e s t u d a n t e s
d e direito. A c r e d i t a m o s igualmente, e a S e x t a P a r t e d e s t e livro
r e f l e t e e s s a c o n v i c ç ã o , q u e a s lutas de n o s s o s dias s ã o i g u a l -
m e n t e de caráter revolucionário e q u e s ó p o d e m ser c o m p r e e n -
d i d a s pela a p l i c a ç ã o d o s m e s m o s princípios e m é t o d o s de análise
que adotamos no estudo da revolução burguesa.
C o m e ç a m o s , n a Primeira Parte, com uma v i s ã o geral d a
a s c e n s ã o b u r g u e s a a o p o d e r e d o s principais a s p e c t o s d o direito
burguês. N a S e g u n d a Parte, e até a Q u i n t a , e s t u d a m o s a s ori-
g e n s da luta entre a s i d e o l o g i a s jurídicas f e u d a l e b u r g u e s a ,
c o m e ç a n d o com o s l e v a n t e s de m o r a d o r e s d e c i d a d e s n o sé-
culo X I , o s quais continuaram até a s r e v o l u ç õ e s f r a n c e s a e in-
g l e s a . N a S e x t a Parte, a r g u m e n t a m o s q u e o reflexo da Juta
social nas n o rm a s jurídicas s ó p o d e ser e x p l i c a d o e a n a l i s a d o
pela "jurisprudência da insurreição .
PRIMEIRA P A R T E

O Direito e a Ascensão
do Capitalismo ao P o d e r :
Uma Visão Geral
1

O Mercador
como Rebelde

E m 1184 d . C . , na c i d a d e f r a n c e s a de C h â t e a u n e u f ,
revolucionários assumiram o controle d o s principais edifícios,
a n u n c i a n d o q u e protestavam contra impostos, e x t o r s õ e s e res-
trições à s u a liberdade de trabalhar e comerciar. Instados a
renunciar à "comuna o u conjura. . . q u e construíram", recusa-
ram-se. P a s s o u - s e um ano antes que a o r d e m f o s s e inteira-
m e n t e restabelecida e, m e s m o assim, persistiram o s b o a t o s sobre
conspirações, tramas e s o c i e d a d e s secretas. O s revolucionários
eram, nas palavras d o P a p a , "os c h a m a d o s burgueses", ou. nas
palavras d o arcebispo, " potentiore bucgenses", ou p o d e r o s o s bur-
gueses.
E s s a história circulou amplamente n o s s é c u l o s X I e X I I
n a E u r o p a , à s v e r e s com a queixa adicional d e q u e o s rebel-
d e s haviam i n v a d i d o a casa d o s e n h o r o u d o bispo, bebido
t o d o o vinho, molestado membros da família e roubado carnei-
ros e v a c a s . P o u c o espanta que Philippe de Beaumanoir, um
culto e m e s m o s u a v e historiador jurídico d o s é c u l o X I I , a o re-
ferir-se a tais levantes, e s c r e v e s s e que "entre o s mais g r a v e s
crimes, q u e d e v e m ser punidos e v i n g a d o s , d e s t a c a - s e o de se
formarem a s s o c i a ç õ e s contra o bem comum".
P a r a nós, atualmente, p o d e ser surpreendente essa imagem
d o burguês medieval como revolucionário. N o que interessa a o
leitor m o d e r n o do O c i d e n t e , é axiomática a respeitabilidade
da c l a s s e mercantil. A palavra t o r n o u - s e comum e usamo-la
automaticamente, sem levar em c o n t a a ordem jurídica que,
n o correr dos séculos, c o l o c o u e s s e s indivíduos 110 centro da
atividade econômica.
20 UMA VISÃO GERAI,

M a s , a o surgir na E u r o p a O c i d e n t a l , por volta de 1000


d . C . , o mercador a p r e s e n t a v a u m a i m a g e m a l g o diferente.
Pies poudreitx, "pés sujos", a s s i m era c h a m a d o p o r q u a n t o le-
v a v a s u a s mercadorias d e c i d a d e em cidade, de íeira em feira,
de mercado em m e r c a d o , a pé o u a cavalo, v e n d e n d o à medida
que viajava. N a s g r a n d e s m a n s õ e s d o s s e n h o r e s feudais, o
mercador era o b j e t o de ridículo, d e s p r e z o e m e s m o ódio. C a n -
ç õ e s líricas celebravam o s a s s a l t o s p e r p e t r a d o s p e l o s c a v a -
leiros contra tropas d e mercadores, b e m c o m o o valor d o s c a v a -
leiros n a batalha e em a v e n t u r a s e x t r a c o n j u g a i s . O lucro, o u
a d i f e r e n ç a entre o p r e ç o a o qual o mercador c o m p r a v a e o
p r e ç o a o qual v e n d i a , era c o n s i d e r a d o d e s o n r o s o numa s o c i e -
d a d e q u e e x a l t a v a a s n o b r e s v i r t u d e s d o a s s a s s i n a t o e reve-
renciava aqueles q u e viviam " g r a ç a s a o c a n s a ç o e à labuta"
~ n a s palavras d e u m a carta constitucional da é p o c a •— d o s
c a m p o n e s e s . O a u f e r i m e n t o de lucro era c o n s i d e r a d o uma forma
de usura e j u l g a v a - s e que corria sério risco a alma d o mercador.
O ó d i o surgiu mais tarde q u a n d o a nobreza, p r e c i s a n d o de di-
n h e i r o para financiar suas guerras e o estilo d e v i d a a q u e
e s t a v a acostumada, descobriu que o s mercadores o p o s s u í a m
mais d o que ela.
D e um m o d o geral, n o entanto, o aumento da fortuna e
d o p o d e r dos mercadores foi feito através de c o n f l i t o armado
e p e l o que parecia à s c l a s s e s tradicionais q u a s e uma revolução,
punível •— c o n f o r m e sugeriu B e a u m a n o i r — com l o n g a s p e n a s
d e p r i s ã o e m e s m o a morte. À fim d e s e protegerem, e a s e u s
b e n s . d a s arbitrárias p i l h a g e n s da nobreza, o s m e r c a d o r e s foram
o b r i g a d o s a criar c o n d i ç õ e s que lhes permitissem negociar. U m
único homem, o u vários, bem e q u i p a d o e hábil n o m a n e j o de
armas, podia cruzar a E u r o p a , v e n d e n d o p e q u e n o s artigos •—
tais c o m o especiarias e s e d a s — que eram simultaneamente v a -
l i o s o s e fáceis de transportar e v e n d e r . I s s o seria a venda. M a s ,
n o que interessava a um comérc/o o r g a n i z a d o e contínuo, teria
q u e h a v e r um sistema que garantisse a s e g u r a n ç a física e tor-
n a s s e possível o crédito, o s e g u r o e a transferência de f u n d o s .
A manufatura, a o contrário d o comércio de b e n s importados,
e x i g i a um sistema ainda mais socialmente protegido, bem c o m o
um nível mais e l e v a d o de t e c n o l o g i a .
F o r a m três o s a s p e c t o s da relação entre a b u r g u e s i a n a s -
c e n t e e o direito. E m primeiro lugar, na e x t e n s ã o em q u e se
p o d e faJar em direito' na s e l v a da vida feudal, ele o u silenciava
sobre o comércio o u lhe era hostil, N e s s e s termos, por c o n s e -
O MERCADOR COMO REBELDE 21

guinte, o mercador era um pária, que c o n s i d e r a v a a o r d e m


jurídica — o sistema que b a i x a v a ordens, a p o i a d o pela força
institucional •— c o m o inimiga, estranha. O mercador, o comer-
ciante, o bufarinheiro, no e n t a n t o , procuraram c h e g a r a b o n s
termos com o sistema, d e m o d o a p o d e r e m auferir lucro. A
medida que aumentava o número, e o poder, d o s comerciantes,
o s i d e ó l o g o s jurídicos desta classe fizeram um e s f o r ç o para jus-
tificar o l u g a r d o comércio na simetria da v i d a feudal, B u s c a -
ram também uma a c o m o d a ç ã o c o m o direito f e u d a l e procuraram
expl o r a r - l he o s p o n t o s fracos.
E m s e g u n d o lugar, à m e d i d a q u e o comerciante ampliava
s e u c a m p o de a t i v i d a d e s e criava a s instituições de comércio —
c i d a d e s , portos, ancoradouros, a rma zén s , b a n c o s , fábricas, e
assim por diante —• entrava e m c h o q u e direto c o m o s interesses
e c o n ô m i c o s e políticos dos s e n h o r e s f e u d a i s de uma ou outra
parte d o território. A c l a s s e mercantil v i v i a e m um e s t a d o de
irritação contínua contra leis e c o s t u m e s m a n t i d o s c o m a fina-
l i d a d e de p r o t e g e r o s detentores d o p o d e r feudal. D e regras
proibindo a v e n d a de terras f o r a d a família .— o que e f i c a z m e n t e
impedia q u e elas se transformassem em o b j e t o de comércio —
até a proibição da maioria d a s f o r m a s de a s s o c i a ç ã o b u r g u e s a ,
tanto politicas c o m o econômicas, o c o n f l i t o i n t e n s i f i c o u - s e e
a m p l i o u - s e até que o s b u r g u e s e s g r a d u a l m e n t e descobriram o s
p o n t o s n o s quais a ordem jurídica n ã o mais p o d i a ser dobrada
à sua v o n t a d e , conciliada a um preço tolerável, o u evitada.
P o r último, havia as leis que o s próprios m e r c a d o r e s elabo-
raram, a o r d e m jurídica que conceberam para servir a s e u s
próprios interesses. E m primeiro lugar, criaram tribunais para
julgar litígios entre si, em s e g u i d a arrancaram pela f o r ç a o u
pela lisonja c o n c e s s õ e s dos príncipes temporais e espirituais para
criar z o n a s francas e, finalmente •— a o l o n g o de um período
de s é c u l o s •— assumiram o p o d e r n a s nações. O p r o c e s s o le-
g i s l a t i v o b u r g u ê s foi o r e s p o n s á v e l pela c r i a ç ã o e aplicação
d e n o r m a s legais específicas referentes a contratos, propriedade
e rito processual. O s h o m e n s e mulheres q u e lutavam pela ins-
tituição de preceitos jurídicos compatíveis c o m o comércio mais
livre n ã o a l e g a v a m haver i n v e n t a d o o s princípios que procura-
v a m aplicar. O respeito pela tradição v e t a v a tal alegação.
B e a u m a n o i r , e s c r e v e n d o a serviço de F e l i p e III, advertia que
eram proibidas n o v i d a d e s n ã o autorizadas p e l o soberano. E m
v e z disso, o s b u r g u e s e s v a l e r a m - s e de v e l h a s formas e princípios

2 - l;
22 UMA VISÃO GERAL

jurídicos, sobretudo r o m a n o s , i n v e s t i n d o - o s d e um n o v o c o n -
t e ú d o comercial.
H s s e s e l e m e n t o s da relação b u r g u e s a c o m o direito, n o en-
tanto, não c o r r e s p o n d e m a p e r í o d o s históricos b e m d e f i n i d o s .
E r a m e n c o n t r a d o s e m t o d o s o s p a í s e s da E u r o p a O c i d e n t a l
d e s d e o século X I até a conquista d o p o d e r pela burguesia, entre
o s s é c u l o s X V I I e X I X . A q u e d a d o sistema f e u d a l foi um
p r o c e s s o gradual, a s s i n a l a d o por i n e s p e r a d a s e v i o l e n t a s s u b l e -
v a ç õ e s . O u , t o m a n d o de e m p r é s t i m o a m e t á f o r a d e D i d e r o t :
A norma d a N a t u r e z a e de m i n h a Trindade, contra a qual não
prevalecerão os p o r t õ e s do I n f e r n o . . . estabelece-se de m o d o
sumamente tranqüilo. O deus estranho instala-se humildemente
n o altar, a o lado do deus do país. P o u c o a pouco, consolida s u a
posição. Então, n u m a bela m a n h ã , d á u m a cotovelada no vizinho
e — b a h ! — o Ídolo t o m b a a o chão.

U m detalhe, n o entanto, precisa ser n o t a d o aqui. N e s t e


e s t u d o , c o m o o leitor alerta já d e v e ter percebido, "direito" n ã o
t e m um ú n i c o s i g n i f i c a d o . D a forma u s a d a p e l o s p r o t a g o n i s t a s
da luta que e s t a m o s d e s c r e v e n d o , s i g n i f i c o u , e m d i f e r e n t e s
o c a s i õ e s : a ) o s preceitos e l a b o r a d o s p e l o s p o d e r o s o s para g o -
vernar seus súditos, a p o i a d o s em violência o r g a n i z a d a ; b ) o s
preceitos que a l g u n s g r u p o s o u c l a s s e s p e n s a v a m que, por im-
p e r a t i v o moral, deviam ser c o n c e b i d o s numa sociedade
d e v o t a , ou, pelo m e n o s , melhor; c ) o s c o s t u m e s e h á b i t o s de
um p o v o , o b s e r v a d o s d e s d e t e m p o s imemoriais; d ) o m a n i -
f e s t o d e um grupo revolucionário; e e ) a s regras formuladas por
a l g u m grupo para seu g o v e r n o interno. N o linguajar diário,
porém, direito s i g n i f i c a v a t u d o isso, e s ó p o d e m o s esperar
tornar claro pelo c o n t e x t o o q u e t e m o s em mente. N a parte
final, tentaremos discorrer mais l o n g a m e n t e sobre o s i g n i f i -
c a d o d o direito em uma é p o c a c o m o a n o s s a , e m que a s rela-
ç õ e s de p o d e r p a s s a m por t r a n s f o r m a ç õ e s revolucionárias.
2

Os Antecedentes
das Novas Instituições Jurídicas

A s o r d e n s jurídicas d o s é c u l o X V I I I , elaboradas pela


b u r g u e s i a e para a burguesia, foram buscar e l e m e n t o s e auto-
ridade em seis diferentes corpos d e p e n s a m e n t o legal:

1. O Direito Romano, r e s t a u r a d o s o b várias formas e


i n v e s t i d o d a autoridade de u m a civilização cuja e x p a n s ã o mi-
litar imperial deixara marcas em t o d o o M u n d o O c i d e n t a l . O
p e n s a m e n t o jurídico romano criou formas d e r e l a ç õ e s legais
d e s t i n a d a s a conciliar e p r o m o v e r o comércio c o m t o d o s o s re-
c a n t o s d o império.

2. O Direito Feudal, ou Senhorial, o u nor mas que d e f i -


niam a s relações de respeito, d o m i n a ç ã o , e x p l o r a ç ã o e proteção
que caracterizavam o n e x o p e s s o a l entre s e n h o r e vassalos.
3. O Direito Canónico, o u r e g r a s jurídicas d a Igreja
Católica R o m a n a d o O c i d e n t e , que reivindicava variável, mas
sempre grande, controle sobre o s n e g ó c i o s b e m seculares d o
comércio.
4. O Direito Real. o u o s preceitos que traduziam a in-
fluência consolidadora d a q u e l e s que, pela força, criaram o s
primeiros E s t a d o s m o d e r n o s e dos quais o s b u r g u e s e s foram
o s primeiros, a i n d a que volúveis, aliados.

5. O Direito Comercial, o u normas derivadas d o direito


romano, mas a d a p t a d a s ao l o n g o d o s s é c u l o s à s n e c e s s i d a d e s
d a q u e l e s cujo n e g ó c i o era o n e g ó c i o . A idéia de um conjunto
24 UMA VISÃO G E R A L

especial de preceitos para a q u e l e s que p o s s u í a m certo status


era m e n o s inquietante para a era feudal d o que para a n o s s a .
O f a t o é que o s mercadores lutaram por leis c o n c e b i d a s por
el e s e a eles e s p e c i a l m e n t e aplicáveis em c i d a d e s g r a n d e s e
p e q u e n a s e n a s feiras a n u a i s o u s a z o n a i s realizadas em v á r i o s
l u g a r e s durante a I d a d e M é d i a .

6. O Direito Natural, ou a alegação burguesa, desen-


v o l v i d a plenamente n o s é c u l o X V I I , embora anteriormente
prefigurada, de que a c o m b i n a ç ã o das r e g r a s q u e melhor s e r -
viam a o comércio livre era e t e r n a m e n t e verdadeira, e s t a v a d e
a c o r d o com o p l a n o divino e era a x i o m a t i c a m e n t e sábia.
E s s a s seis c a t e g o r i a s refletem p a d r õ e s reais de poder. A s
relações de p o d e r feudais eram f r a g m e n t a d a s , careciam de
u n i d a d e e n u m e r o s o s senhores, temporais e espirituais, s e a c o -
t o v e l a v a m e lutavam p e l o direito de explorar c a d a p e d a ç o de
terra arável o u habitável — e a q u e l e s q u e n e l a residiam. A
c o n t e n d a era e s p e c i a l m e n t e acirrada n o tocante a q u e m tinha
o direito de proferir d e c i s õ e s judiciais e criar c o r t e s de justiça,
porquanto a s m u l t a s e c u s t a s da aplicação d a lei figuravam
entre a s mais lucrativas f o n t e s de renda. P o r isso m e s m o ,
q u a n d o um mercador d o p e r í o d o medieval firmava um contrato,
l e v a v a em c o n t a vários tipos de direito e se m o s t r a v a a n s i o s o
para saber que corte d i s p u n h a de p o d e r s u f i c i e n t e para fazer
com que a parte adversária p a g a s s e , ou e n t r e g a s s e , o s b e n s
adquiridos.
E m 1448, um certo H u g u e t A u g i e r , um bufarinheiro d e
G r a s s e ( n o q u e é hoje S u l da F r a n ç a ) , p r o f u n d a m e n t e inte-
r e s s a d o em comprar certa quantidade d e mercadorias d e um
h o m e m de n e g ó c i o s de N i c e , concordou, n a e v e n t u a l i d a d e de
uma querela judicial sobre o contrato, em s u b m e t e r - s e à ju-
risdição dos s e g u i n t e s ó r g ã o s : a C â m a r a de C o n t a s de A i x
( u m a corte r e a l ) ; o tribunal real d o Chátelet, de Paris:
u m a corte municipal de Grasse; a corte comercial de M a r s e l h a ;
o tribunal d o P a p a e a C â m a r a A p o s t ó l i c a ; e o tribunal da
c i d a d e ducal d e N i c e . E m t o d o s e s s e s tribunais, a transação
poderia ser julgada s e g u n d o leis diferentes. O a d v o g a d o que
redigiu o contrato de A u g i e r teria que providenciar para que a
transação f o s s e legal, isto é. protegida por todas e s s a s leis.
D a mesma forma que o mercador H u g u e t A u g i e r não podia
realizar n e g ó c i o s importantes sem c o m p r e e n d e r a l g o d e s s e s
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 25

corpos de jurisprudência, iniciaremos n o s s o estudo com uma


b r e v e d i s c u s s ã o de c a d a um deles.

O Direito R o m a n o
N o a n o 1000 d . C . , o Império R o m a n o d o O c i d e n t e já
deixara de existir há seiscentos anos. muito embora na Europa
O c i d e n t a l o homem ainda palmilhasse estradas que datavam
da época de A u g u s t o — o primeiro século d a era cristã. Ruínas
de cidades, portos e igrejas romanas pontilhavam a paisagem.
O mercador e d u c a d o •— e seu a d v o g a d o —• sabiam que as con-
quistas haviam sido a c o m p a n h a d a s pela lei e pelo comércio
romano, incluindo a liberdade de comprar e vender mediante
contratos executórios. A t é mesmo senhores feudais que ale-
g a v a m aplicar antigos costumes locais no g o v e r n o d e seus sú-
ditos utilizavam, às vezes sem saber, princípios derivados dos
trabalhos d e jurisconsultos romanos. N o que interessava à
Igreja e a o s senhores temporais que aspiravam também ao do-
mínio total, o Império R o m a n o proporcionava um conhecido
modelo d e organização. A fim de compreender o mercador
medieval, precisamos estudar em detalhes a l g u m a s instituições
romanas.
N ã o queremos dizer que a sociedade romana tenha sido
a primeira a ser regulada por lei, n o sentido d e um sistema de
preceitos apoiados pelo poder d o Estado. O s a d v o g a d o s medie-
vais sabiam que tal n ã o era o caso e tinham a c e s s o a descrições
escritas de sociedades mais antigas, incluindo a ateniense. Roma,
porém, ao contrário d e s o c i e d a d e s mais velhas, deixara uma
rica e diversificada herança de literatura jurídica. O comércio
romano deu origem a leis que negociantes medievais e seus
a d v o g a d o s consideravam relevantes. E o direito romano, con-
forme veremos adiante, veio a ser investido d o poder temporal
e espiritual do Papado.
A ordem jurídica romana foi criada entre o século V a . C .
e o século II d . C . C o m a finalidade de envolver em mistério as
origens d o direito e dotá-lo d a sanção d a tradição, sustentavam
os jurisconsultos romanos que o mesmo derivava das D o z e
T á b u a s todos o s seus princípios jurídicos importantes. E s s a con-
cisa coletânea d e leis. difícil d e reconstituir, mas de autentici-
dade inegável, foi elaborada por volta d o a n o 4 5 0 a . C . , durante
a vigência da República, apocrificamente com base em princí-
pios axiomáticos, mas na realidade após o estudo das Consti-
26 UMA VISÃO G E R A L

t u i ç õ e s de certo n ú m e r o d e c i d a d e s g r e g a s . A s T á b u a s e s b o ç a m
a p e n a s o s princípios jurídicos mais s i m p l e s c o n c e r n e n t e s à pro-
priedade, a o direito de família e à c i d a d a n i a e s e caracterizam
pela d e p e n d ê n c i a sobre a magia e o ritual c o m o partes integrais
d o p r o c e s s o e c o m o m e i o para criação d e o b r i g a ç õ e s . E s s a
"lei pré-clássica" garantia certos direitos a o s r o m a n o s — em
especial a o s m e m b r o s d o s clãs q u e h a v i a m f u n d a d o a R e p ú -
blica.
N a s D o z e T á b u a s v e m o s , pela primeira v e z , a emergência
de idéias jurídicas sobre dividas, c o n t r a t o s e d a n o s civis. E s s a s
n o ç õ e s ressurgiram mais t a r d e em inumeráveis cartas constitu-
cionais e c o m p i l a ç õ e s jurisprudenciais ( c o l e t â n e a s d e c o s t u m e s
reduzidos à f o r m a e s c r i t a ) . O s a n t i g o s romanos, c o m o outros
indivíduos q u e f a z i a m parte de s o c i e d a d e s o r g a n i z a d a s na b a s e
d e clãs, reagiam a o a s s a s s i n a t o o u ferimento d e um parente
c o m v i n g a n ç a s o b r e um parente d o a s s a s s i n o o u agressor. U r a
a n t i g o d e s v i o d e s s a s o l u ç ã o violenta foi a d e n o m i n a d a "com-
pensação", o u p a g a m e n t o em dinheiro o u b e n s aos parentes da
vitima, a c o m p a n h a d o de uma cerimônia solene, o n d e s e reco-
nhecia a o b r i g a ç ã o d e reparar o d a n o . P a r e c e provável que a s
mais a n t i g a s c o m p e n s a ç õ e s r o m a n a s t e n h a m a s s u m i d o a forma
descrita c o m o nexum nas D o z e T á b u a s . O nexutn era a obri-
g a ç ã o criada entre d e v e d o r e credor pela p r o m e s s a d o primeiro
d e servir a o s e g u n d o até q u e a dívida f o s s e s a l d a d a . N a é p o c a
em que foram b a i x a d a s a s D o z e T á b u a s , o e x p e d i e n t e era u s a d o
para criar u m a o b r i g a ç ã o entre credor e qualquer d e v e d o r , n ã o
importando qual a origem da dívida.
A s o b r i g a ç õ e s persistiram c o m t o d o o seu v i g o r inicial muito
t e m p o d e p o i s de terem o s d e v e d o r e s — nexi — e s q u e c i d o as
origens d a lei q u e o s sujeitava a s e u s credores. O s c o s t u m e s
caracteristicamente r o m a n o s d o S u l da F r a n ç a foram r e s p o n -
s á v e i s por contratos c o m o Um de 1362, n o qual Jaciel de G r a s s e ,
um agiota, exigiu que s e u d e v e d o r , na e v e n t u a l i d a d e d e falta
d e p a g a m e n t o , s e m u d a s s e de N i c e ( s i t u a d a a c i n q ü e n t a quilô-
m e t r o s d e distância) e v i e s s e residir e trabalhar em G r a s s e s o b
s u a s o r d e n s até que a dívida f o s s e s a l d a d a . R e g i s t r o s munici-
pais atestam que Jaciel na v e r d a d e f e z cumprir e s s a cláusula d e
hostagium e q u e o b t e v e um m a n d a d o judicial determinando que
o d e v e d o r residisse na prisão d e G r a s s e .
A v e n d a o u permuta v á l i d a d e propriedades exigia, s e -
g u n d o a s D o z e T á b u a s , estrito cumprimento de uma fórmula
precisa de palavras e conduta, c o n h e c i d a c o m o mancipatio:
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 27

N a p r e s e n ç a de náo m e n o s de cinco c i d a d ã o s r o m a n o s de m a i o r
Idade, e t a m b é m d e u m a s e x t a p e s s o a c o m a s m e s m a s quali-
f i c a ç õ e s , c o n h e c i d a s c o m o libripens, e com o e m p r e g o de u m a
b a l a n ç a d e b r o n z e , a p a r t e q u e e s t a v a r e c e b e n d o o manoipatio,
t e n d o n a m ã o u m lingote de bronze, dizia: " D e c l a r o que este
e s c r a v o é m e u ex jure (Jtiiriítwm e q u e ele é p o r m i m c o m p r a d o
c o m este lingote e e s t a b a l a n ç a d e b r o n z e " . E m seguida, ele
tocava n a balança com o lingote e o entregava, como preço
s i m b ó l i c o , à q u e l e d e q u e m e s t a v a r e c e b e n d o o mancipatio.. .

O l i n g o t e e a balança eram u s a d o s , c o m o explicou um juriscon-


sulto d o s é c u l o I d . C . , porque, a n t i g a m e n t e , u s a v a m - s e a p e n a s
m o e d a s de bro n ze e o valor d e l a s era c a l c u l a d o por pesagem.
E r a i g u a l m e n t e revestido de f o r m a l i s m o o a n t i g o processo
romano para cumprimento d e o b r i g a ç õ e s . O q u e i x o s o d e v i a
v a z a r sua r e c l a m a ç ã o em forma precisa e dizer e x a t a m e n t e a o
m a g i s t r a d o a s palavras obrigatórias. S e a queixa, por exemplo,
dizia r e s p e i t o a dinheiro, e o m a g i s t r a d o s e s a t i s f a z i a com a
forma ritual de apresentação da queixa, transferia ele a questão
a um juiz auxiliar, ou índex, para proferir a decisão. O julga-
m e n t o pelo index dependia também d a i n v o c a ç ã o p e l o queixoso
e a c u s a d o d e fórmulas de a l e g a ç ã o e d e f e s a . M u i t o t e m p o depois
d e o s clãs terem perdido toda importância, o q u e i x o s o num
p r o c e s s o ainda d e v i a jurar q u e a e x i g ê n c i a que fazia de di-
n h e i r o o u propriedades f u n d a m e n t a v a - s e ex jure Quiritium, ba-
s e a d a em seu direito c o m o membro de um clã romano. D e
a c o r d o com a s D o z e T á b u a s , os n ã o r o m a n o s n ã o tinham di-
reitos o u c a p a c i d a d e para firmar contratos, possuir propriedades
ou m e s m o iniciar ações para e x i g i r o p a g a m e n t o d e dívidas ou
o cumprimento d e obrigações.
O s rituais d o processo e da permuta de propriedades con-
servaram a o l o n g o do t e m p o o mito de uma s o c i e d a d e de clãs
e dos primeiros dias da República. A s instituições republicanas
entraram em declínio durante a s guerras de conquista e e x -
p a n s ã o d o s s é c u l o s III e II a.C. e d e i x a r a m d e vigir oficial-
m e n t e q u a n d o A u g u s t o o r g a n i z o u o Império, de 4 4 a . C . a
15 d . C .
C o m a colonização das praias d o M e d i t e r r â n e o nos sé-
culos III e II a . C . , ocorreu u m a g r a n d e e x p a n s ã o d o comércio
e. com ela. a n e c e s s i d a d e de u m a o r d e m jurídica mais abran-
gente. U m sistema que s ó a s s e g u r a s s e direitos a o s cidadãos
romanos, todavia, não podia a t e n d e r a um comércio com
não romanos. E, m e s m o em transações locais, preceitos elabo-
28 UMA VISÃO GERAL

r a d o s para uma e c o n o m i a agrícola n ã o p o d i a m levar em conta


o s interesses dos g r a n d e s mercadores, cuja riqueza crescia à s
e x p e n s a s de p e q u e n o s c a m p o n e s e s e artesãos.
U m a nova magistratura, a pretoria, foi criada para o s mer-
c a d o r e s e m 3 6 7 a . C . , c o m o p o d e r de emitir um e d i t o anual,
e n u n c i a n d o a s a l e g a ç õ e s que o s tribunais acolheriam em pro-
c e s s o s entre romanos. M a i s o u m e n o s na mesma é p o c a , trata-
d o s concederam direitos comerciais a n ã o r o m a n o s e foram
introduzidas alterações n o ritual d o s p r o c e s s o s . P e r m i t i u - s e
que n ã o romanos, a o submeterem s e u s c a s o s a o praetor, ale-
g a s s e m q u e eram romanos. S e u s a d v e r s á r i o s n ã o p o d i a m c o n -
testar tal a l e g a ç ã o . ( Q u i n z e s é c u l o s mais tarde, cortes i n g l e s a s
u s a v a m d o m e s m o e x p e d i e n t e para obter jurisdição sobre q u e -
relas fora da Inglaterra, permitindo q u e uma parte a l e g a s s e ,
mais uma v e z sem direito à c o n t e s t a ç ã o , a i n d a que ficticiamente,
que localidades n o exterior s i t u a v a m - s e n a I n g l a t e r r a . )
E m 2 4 3 a . C . , foi n o m e a d o um praetor peregrinus paro
supervisionar o j u l g a m e n t o de c a s o s e n v o l v e n d o n ã o r o m a n o s .
G r a ç a s a essa medida, o direito r o m a n o deu um p a s s o que é
repetida e romanticamente m e n c i o n a d o na i d e o l o g i a d o s mer-
c a d o r e s n o s dois mil a n o s s e g u i n t e s . O a n t i g o praetor assumiu
o título de praetor urbanus, e s e u s editos f u n d a m e n t a v a m - s e
na lei vigente, a jus civile. S e g u n d o G a i u s , o maior juriscon-
sulto romano d o s é c u l o I d . C . , a jus civile era "a lei que o p o v o
e s t a b e l e c e para si m e s m o [ c o m o ] peculiar a si m e s m o . . . c o m o
s e n d o a lei peculiar da civitas". O praetor peregrinus, por outro
lado, aplicava a jus gentium — ou, nas palavras de G a i u s , "a lei
que a razão natural e s t a b e l e c e entre t o d a a h u m a n i d a d e [a
q u a l ] é seguida d a m e s m a forma por t o d o s o s p o v o s .
C o n s i d e r a r o s c o n c e i t o s jurídicos r o m a n o s aplicáveis a
" t o d o s o s povos" n ã o era vima p r e t e n s ã o tão absurda assim.
E n t r e 2 8 0 a . C . e a d e s t r u i ç ã o de C a r t a g o na T e r c e i r a Guerra
P ú n i c a , em 146 a . C . , R o m a conquistara pela força a maior
parte das terras que circundavam o M e d i t e r r â n e o . U m a e c o n o -
mia agrícola b a s e a d a na aldeia e s t a v a s e n d o rapidamente s u b s -
tituída pela estrutura de c l a s s e d o Império, n o qual a s figuras
d o m i n a n t e s eram o s n e g o c i a n t e s , banqueiros, mercadores, lati-
fundiários e o poder militar, qtie lhes d e f e n d i a o s interesses. A
f o r ç a de trabalho que alimentava o sistema era escrava ou se-
milivre, recrutada principalmente entre o s p o v o s c o n q u i s t a d o s
ou colonizados. O p o d e r da classe d o m i n a n t e podia obrigar o
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 29

E s t a d o romano a aplicar uma lei q u e facilitasse o comércio. A s


práticas q u e haviam d e s e n v o l v i d o na c o n d u t a d o comércio me-
diterrâneo constituíam o s f u n d a m e n t o s l ó g i c o s da lei. A a d o ç ã o
da e x p r e s s ã o jus gentium refletia a vitória da n o v a classe ro-
m a n a d o m i n a n t e sobre seus inimigos, e x t e r n o s e internos.
E s s a "lei de t o d o s os p o v o s " n ã o foi. c o n t u d o , uma criação
e x c l u s i v a d o s jurisconsultos r o m a n o s , imposta pelo p o d e r ro-
mano. C o n s e r v a v a traços de civilizações d o O c i d e n t e com as
quais o s r o m a n o s inicialmente n e g o c i a r a m e q u e foram a s pri-
meiras a colonizar. A jus gentium, por e x e m p l o , reconhecia um
contrato n o qual a b a r g a n h a era c o n f i r m a d a pela "moeda de
penhor", uma p e q u e n a m o e d a ou outro o b j e t o q u e mudava
d e m ã o s c o m o evidência d o acordo. A palavra latina referente a
e s s a m o e d a era aerhoe, o u arroe, d e r i v a d a d o g r e g o arrfiafcon.
Já a e x p r e s s ã o "razão natural", u s a d a por Gaius. é mais
difícil d e entender. A u t o r e s da I d a d e M é d i a e d e é p o c a s p o s -
teriores aproveitaram-na. E n c o n t r a r a m - n a na filosofia d o di-
reito natural d o capitalismo de m e r c a d o e democracia constitu-
cional. I d e n t i f i c a n d o "razão natural" com "direito natural", ou
"direito d e inspiração divina", o s i d e ó l o g o s jurídicos d o s sé-
c u l o s X V I e X V I I alegaram a u n i v e r s a l i d a d e das idéias roma-
n a s sobre o livre contrato. O s a u t o r e s d o C ó d i g o de N a p o l e ã o
diziam h a v e r redescoberto na jus gentium o s autênticos prin-
cípios d o direito natural à liberdade. U m f a m o s o ministro da
S u p r e m a C o r t e d o s E s t a d o s U n i d o s n o s é c u l o X I X , Joseph
S t o r e y , s u s t e n t a v a que os tribunais d o país p o d i a m aplicá-la
para formular um direito "natural" interestadual e internacional.
Gaius, c o m t o d a probabilidade, n ã o alime ntava idéias tão
e x a g e r a d a s assim. P a r a ele, r a z ã o natural significava, p r o v a v e l -
mente, c o s t u m e s praticados por n u m e r o s o s p o v o s a o l o n g o d o
t e m p o e q u e h a v i a m sido j u l g a d o s r a z o á v e i s à s c l a s s e s d e le-
g i s l a d o r e s e mercadores.
A s m o d i f i c a ç õ e s introduzidas p e l o praetor peregrinus rati-
ficaram e permitiram a e x p a n s ã o da e m e r g e n t e h e g e m o n i a co-
mercia] romana, a o m e s m o t e m p o que a c o e x i s t ê n c i a da jus
civile e da jus gentium dava origem a sutis e gerais m u d a n ç a s
na primeira n o tocante às leis que regiam contratos, v e n d a s ,
propriedades e rito processual.
A é p o c a em que já e s t a v a b e m consolidada a f u n ç ã o d o
praetor peregrinus, o direito romano já reconhecia compro-
m i s s o s unilaterais obrigatórios: X p o d i a prometer ( s t i p u l a t i o )
30 UMA VISÃO GERAL

entregar a Y certos b e n s em certo dia e, por quebra d e s s a


promessa, a lei proporcionaria o necessário remédio. U m c o n -
trato para praticar certa a ç ã o n o futuro era d e n o m i n a d o e x e -
cutório, e serviu de b a s e a t o d a s as m o d e r n a s t r a n s a ç õ e s c o -
merciais. A n t e r i o r m e n t e , o direito romano, c o m o o a n t i g o
direito a n g l o - s a x ô n i c o e o u t r a s o r d e n s jurídicas mais antigas,
h a v i a r e c o n h e c i d o a p e n a s o s contratos e x e c u t a d o s , isto é, o s
que envolviam t r a n s a ç õ e s f a c e a f a c e com a m u d a n ç a d a pro-
p r i e d a d e em c a u s a n o m o m e n t o em que a transação era c o n -
cluída, de a c o r d o com u m a f o r m a prescrita. ( I s s o , n o direito
r o m a n o , era o ritual d o mancipatio.) N ã o havia n e c e s s i d a d e
de tal direito levar em conta p r o m e s s a s incumpridas. A s únicas
regras n e c e s s á r i a s eram a s q u e diziam respeito a b e n s furtados
c, talvez, a s r e f e r e n t e s à q u a l i d a d e d a s mercadorias v e n d i d a s .
O r e c o n h e c i m e n t o de p r o m e s s a s unilaterais, obrigatórias, e x e -
cutórias, constituía um p a s s o em direção à liberdade de co-
mércio, porquanto d a v a aos m e r c a d o r e s maior fle xibilidade em
s u a s transações.
O passo s e g u i n t e t o m o u a forma d o r e c o n h e c i m e n t o dc
contratos e x e c u t ó r i o s bilaterais, incluindo o s q u e a b r a n g i a m
a s s o c i a ç õ e s c o m p l e x a s , d e l o n g o prazo. A jus gentium ratificou
e r e f i n o u o s contratos bilaterais n o tocante à v e n d a , contrata-
ção, depósitos e s o c i e d a d e s , b e m c o m o os conceitos comerciais
d e relações fiduciárias — o u de c o n f i a n ç a e fé especiais. É da
m a i s alta importância a distinção entre p r o m e s s a unilateral de
cumprimento obrigatório e contrato bilateral c o m o b r i g a ç õ e s
d e a m b a s a s partes. A primeira era criada pela p e s s o a q u e
assumia a o b r i g a ç ã o — entregar bens, fazer p a g a m e n t o s em
dinheiro, e assim por diante — mediante recitação de um dis-
curso imutável, q u e era c o n s i d e r a d o e s s e n c i a l para a v a l i d a d e
e cumprimento da promessa. S e o indivíduo que fazia a pro-
m e s s a deixava d e cumpri-la, o beneficiário da m e s m a podia
p r o c e s s á - l o para que a cumprisse ou para receber uma inde-
n i z a ç ã o por inadimplência. U m contrato d e s s a natureza rara-
m e n t e reflete a realidade até m e s m o da t r a n s a ç ã o comercial
mais simples, pois, em geral, uma parte promete entregar mer-
c a d o r i a s e a outra p a g á - l a s . c o m a c o n d i ç ã o de que o s b e n s
s e j a m entregues e estejam em condição satisfatória. S e urna
o r d e m jurídica admite a p e n a s p r o m e s s a s unilaterais, e s t a s d u a s
o b r i g a ç õ e s d e v e m f o r ç o s a m e n t e ser a s s u m i d a s em s e p a r a d o e
s ã o necessários p r o c e s s o s distintos para cumprimento de c a d a
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 31

promessa. D a n d o p r o s s e g u i m e n t o a o e x e m p l o , s e A u l u s A u -
gerius ( o John D o e r o m a n o ) n ã o entrega a prometida peça
de tecido e, por c o n s e g u i n t e , N u m e r i u s N e g i d i u s { o Richard
R o e r o m a n o ) n ã o paga, têm a m b o s o direito de propor uma
a ç ã o v á l i d a um contra o outro, p o r q u a n t o a o r d e m jurídica
i n t e r e s s a - s e a p e n a s em saber s e u m a obrigação foi cumprida
ou não. P a r a compradores e v e n d e d o r e s , n o entanto, a "razão
natural" d o comércio a p a r e n t e m e n t e exigiria um sistema de
p r o m e s s a s mútuas, de m o d o que, n a e v e n t u a l i d a d e de inadim-
plência, o E s t a d o interviria a t r a v é s de s e u s tribunais e o r d e -
naria a c a d a parte que e n t r e g a s s e à outra o que f o s s e devido,
c o m p a r a n d o , s e necessário, a s q u e i x a s de ambas. E s s e con-
ceito f i g u r o u entre a s g r a n d e s r e f o r m a s e x e c u t a d a s pelo
praetor peregrinus.
A l é m disso, o s praetors ampliaram enormemente o alcance
de s u a autoridade, e l e v a n d o o número de t r a n s a ç õ e s pelo des-
c u m p r i m e n t o d a s quais propiciariam o remédio, a d a p t a n d o as
f o r m a s de contrato à s n e c e s s i d a d e s d o comércio e a d o t a n d o
m é t o d o s racionais d e a l e g a ç õ e s ( a r r a z o a d o s ) e prova.
E s s e s a s p e c t o s processuais, na m e d i d a em q u e diziam
respeito a contratos e trocas, foram e s t e n d i d o s ao cumprimento
de contratos bonae fidei, ou, literalmente, de "boa fé". O con-
trato bonae fidei era a categoria contratual mais elástica d o
direito romano, e limitava-se inicialmente a a l g u m a s relações
b a s e a d a s em b o a fé e c o n f i a n ç a , tais c o m o a s de tutor e tute-
lado, e n v o l v e n d o acordos bilaterais c o m a aceitação mútua de
obrigações. O s praetors, n o entanto, passaram a reconhecer
s o b o título bonae fidei g r a n d e v a r i e d a d e de arranjos comer-
ciais a l e g a d a m e n t e b a s e a d o s também em boa fé, tais c o m o s o -
c i e d a d e s o u parcerias, permitindo a c o m b i n a ç ã o d e recursos
para um fim c o m u m e a d i s s e m i n a ç ã o d o risco. A s relações fidu-
ciárias podiam ser incluídas também num contrato bonae fidei.
C o m o e x e m p l o , A u l u s A u g e r i u s , d i s p o n d o de certa quanti-
d a d e d e dinheiro, uias n ã o t e n d o a c e s s o a o mercado, entre-
g a v a - o a N u m e r i u s N e g i d i u s para e m p r e g á - l o em seu nome.
S e uma d a s partes no contrato bonae fidei não o cumpria, ou
s e A u l u s d e s e j a v a uma p r e s t a ç ã o de contas, a forma proces-
sual ante o praetor peregrinus admitia o cumprimento da obri-
gação, a avaliação dos danos, o u um m a n d a d o oficial para
liquidação de contas. E s s e s remédios b a s e a v a m - s e na formula,
que era um sistema de arrazoar extraordinariamente parecido
com o que hoje vigora nas cortes de justiça d o O c i d e n t e .
32 XIMA V I S Ã O G E R A L

A formula era uma descrição d o c a s o feita p e l o praetor.


b a s e a d a nas a l e g a ç õ e s d a s partes, numa forma que, embora
rígida e revestida d e ritual, a d a p t a v a - s e muito m a i s à i n v e s -
t i g a ç ã o d o s f a t o s d o que tudo que a precedera. E s s e sumário
constituía também a forma mediante a qual o praetor submetia
o c a s o a o juiz, ou index, q u e iria julgar a querela. O p r o c e s s o
iniciava-se com a n o m e a ç ã o d o index e era s e g u i d o por um
sumário da controvérsia (demonstratio). uma d e c l a r a ç ã o d e
i n t e n ç õ e s ( i n t e n t i o ) e u m a instrução a o index p a r a que d e -
c i d i s s e a p ó s c o n h e c e r a p r o v a (condemnatio), o u e n t ã o uma
o r d e m para conciliar a s a l e g a ç õ e s c o n f l i t a n t e s , v e r i f i c a n d o a
justeza de cada u m a d e l a s e p r o f e r i n d o u m a s e n t e n ç a ( a d j i t d i -
crafío). Entre a intentio e a o r d e m d e proferir j u l g a m e n t o ( c o n -
demnatio ou adjudicatio), o praetor sumariava as a l e g a ç õ e s pró
e contra •— a exceptio, replicatio, duplicatio. e a s s i m por diante.
G a i u s p r o p o r c i o n a - n o s um e x e m p l o s i m p l e s da formula em um
c a s o e n v o l v e n d o a v e n d a de um escravo, f i g u r a n d o c o m o q u e -
relantes A u l u s A u g e r i u s e N u m e r i u s N e g i d i u s . E s s e p r o c e s s o
implicava um c o n t r a t o de v e n d a , o emptio venditio, o mais im-
portante e f u n d a m e n t a l dos contratos bonac fidei.
3T é n o m e a d o index. Demonstratio: considerando que Aulus
A u g e r i u s v e n d e u o e s c r a v o a N u m e r i u s N e g i d i u s . Intentio: se
p a r e c e q u e N . N . d e v e p a g a r 10.0CK) s e s t é r c i o s a A . A . Condemna-
tio: Index, se f o r o caso, c o n d e n a N . N . a p a g a r 10.000 s e s t é r c i o s
a A . A . Se a evidência n ã o o justificar, absolve-o.

O s a d v o g a d o s m e d i e v a i s deviam aos r o m a n o s o c o n c e i t o
— q u e persiste até hoje — d e p e s s o a jurídica c o m o p e s s o a ar-
tificial, fictícia, com direito a comprar, v e n d e r e pleitear direi-
tos n o s tribunais. A o r g a n i z a ç ã o s o b e s s a forma permitia uma
c o m b i n a ç ã o de interesses e, por c o n s e g u i n t e , u m a a c u m u l a ç ã o
muito maior de capitais d o que na empresa o u s o c i e d a d e indivi-
duais. N o caso, f a z i a - s e a s e g u i n t e distinção: uma s o c i e d a d e ,
f o r m a d a mediante a c o r d o d e s e u s membros, era c o n s i d e r a d a a o s
o l h o s da lei um a m á l g a m a de direitos e d e v e r e s individuais.
P a r a processar uma s o c i e d a d e e c o n s e g u i r um j u l g a m e n t o e x e -
cutório contra o patrimônio de seus membros, o autor era obri-
g a d o a levar t o d o s o s s ó c i o s perante o tribunal. S e a própria
s o c i e d a d e era julgada, teria em geral que ser p r o c e s s a d a em
n o m e de todos o s s e u s membros. A pessoa jurídica, contudo, apa-
g a v a a identidade de seus acionistas-proprietários na sua per-
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 33

s o n a l i d a d e c o m u m , artificial, e era p r o c e s s a d a e processava,


tinha direitos e o b r i g a ç õ e s por c o n t a "própria".
O u t r o a s p e c t o notável da p e s s o a jurídica, na forma que
c o m e ç o u a assumir n o período m e d i e v a l , era que o s acionistas
o u m e m b r o s n ã o tinham o b r i g a ç õ e s além d o v o l u m e que haviam
p a g o por s u a s a ç õ e s — o u seja, a n o ç ã o d e "responsabilidade
limitada". U m individuo rico p o d i a investir parte de sua riqueza
na p e s s o a jurídica s e m pôr e m risco — c a s o ela f o s s e à f a -
lência — o restante de sua f o r t u n a p e s s o a l para p a g a r a s dívi-
d a s da empresa insolvente. É d u v i d o s o q u e a p e s s o a jurídica
tivesse e x i s t i d o d e s s a forma em R o m a , e muitos s é c u l o s d e p o i s
era g r a n d e a resistência na E u r o p a O c i d e n t a l a o princípio de
r e s p o n s a b i l i d a d e limitada. O s i d e ó l o g o s b u r g u e s e s medievais,
n o entanto, p o d i a m louvar-se n a s p a l a v r a s d e um eminente ju-
risconsulto r o m a n o d o s é c u l o III, U l p i a n o , e e s q u e c e r que ele,
c o m toda probabilidade, referira-se a p e n a s a uma c l a s s e peculiar
d e s o c i e d a d e s anônimas, criadas pelo E s t a d o r o m a n o para servir
a fins peculiares. E s c r e v e u U l p i a n o : "Si quid univecsitati de-
betur, singalis non debetur; nec quod debeí universitatis singali
debet" •— ou, a p r o x i m a d a m e n t e , a p r o p r i e d a d e e a s dívidas
de uma p e s s o a jurídica não c o n s t i t u e m propriedade e dividas de
c a d a ura de s e u s membros individuais. U l p i a n o e n f a t i z o u ainda
mais o a r g u m e n t o d i z e n d o que, m e s m o q u e a p e s s o a jurídica
c o n s i s t i s s e em um único membro, era u m a e n t i d a d e legal dis-
tinta dele.
O caráter corporativo de s o c i e d a d e s tão d i f e r e n t e s entre si
c o m o uma c o m p a n h i a de mercadores, u m a c i d a d e medieval e
t o d a a Igreja C a t ó l i c a R o m a n a f e z c o m q u e a s palavras de
U l p i a n o s e t o r n a s s e m talvez a s mais c o m e n t a d a s d e t o d a a
jurisprudência romana.
A jus gentium d a v a também aos tribunais r o m a n o s e, e s p e -
cificamente, a o praetor peregrinus a u t o r i d a d e para resolver c o n -
t e n d a s de m o d o racional, o r d e n a n d o o j u l g a m e n t o de a l e g a ç õ e s
em contrário na m e s m a ação. A s s i m , s e A . A . e N . N . manti-
n h a m uma série de transações a crédito, com compras e v e n d a s
reciprocas, e A . A . q u e i x a v a - s e da falta d e p a g a m e n t o de d e -
terminada compra, N . N . p o d i a incluir na m e s m a a ç ã o um
p e d i d o de p a g a m e n t o de importâncias que lhe eram d e v i d a s
por outras t r a n s a ç õ e s na m e s m a série de n e g ó c i o s . O u , s e
N . N . n ã o havia p a g o a l g u m a s mercadorias, a l e g a n d o que
eram de qualidade inferior, e A . A . o p r o c e s s a s s e r e c l a m a n d o
34 UMA VISÃO GERAL

p a g a m e n t o , o praetor podia determinar q u e a importância d a


dívida e a q u a l i d a d e d o s b e n s f o s s e m a p u r a d a s na m e s m a a ç ã o
e u m a s e n t e n ç a ser p r o f e r i d a contra N . N . a p e n a s pelo q u e
d e v i a j u s t a m e n t e pagar. Isso s e a f i g u r a elementar b o m s e n s o ,
pois seria difícil c o n c e b e r uma o r d e m jurídica racional que
e x i g i s s e dois p r o c e s s o s em qualquer d o s c a s o s m e n c i o n a d o s
acima. A i n d a assim, o s tribunais d e direito costumeiro i n g l e s e s
até o século X V I I I , e a maioria d a s c o r t e s de justiça s e c u l a r e s
f r a n c e s a s talvez até o século X V I I , n ã o admitiam o j u l g a m e n t o
d e a l e g a ç õ e s contrárias. S ó com a restauração d o direito ro-
mano, p r o c l a m a d o em alto e b o m s o m c o m o a "eqüidade n a t u -
ral" e a "consciência", r e v i v e u - s e o direito d o a c u s a d o d e fazer
a l e g a ç õ e s e m contrário.
A n o m e a ç ã o d o praetor peregrinus constitui u m a d e s s a s
maneiras m e d i a n t e a s quais uma c l a s s e e m a s c e n d ê n c i a , mas
destituída d e p o d e r para derrubar v e l h a s instituições, p o d e
criar n o v o s o r g a n i s m o s ao l a d o d o s a n t i g o s a fim de servir-lhe
o s interesses. A v e l h a forma, criada p a r a servir a um anterior
e diferente c o n j u n t o d e relações sociais, é a s s i m e s v a z i a d a c o m
maior rapidez d a s u b s t â n c i a que outrora continha. A s regras
que ministra s ã o infiltradas por empréstimos d o n o v o instituto,
retendo, simultaneamente, o respeito popular c o n f e r i d o por sua
antiguidade. A jus civile romana, assim, c o n s e r v o u a ficção de
manter o s princípios das D o z e T á b u a s e da l e g i s l a ç ã o da R e -
pública, e n q u a n t o era g r a d u a l m e n t e s u p e r a d a p e l a jus gerttium.
o instrumento d o s n o v o s , ricos e p o d e r o s o s mercadores. P o r
v o l t a d o a n o 150 a . C . , o rito p r o c e s s u a l a n t e o praetor utbantis
s e h a v i a tornado idêntico ao o b s e r v a d o na corte d o praetor
peregrinas.
Por v o l t a d o a n o 150 d . C . , iniciou-se uma a b u n d a n t e
p r o d u ç ã o d e obras jurídicas, que forneceriam a b a s e a o c o n h e -
cimento m e d i e v a l d o direito romano. E s s e s trabalhos, d e auto-
ria de imperadores e jurisconsultos, t o r n a r a m - s e p r o g r e s s i v a -
m e n t e mais áridos e d e c a d e n t e s à m e d i d a que o Império
R o m a n o d o O c i d e n t e s e a p r o x i m a v a d o fim. Periodicamente,
e s s a g r a n d e p r o d u ç ã o era c o d i f i c a d a , e x t r a t a d a e organizada
por assunto. O Imperador G r e g ó r i o fez u m a d e s s a s c o d i f i c a -
ç õ e s n o a n o 2 9 4 d . C . , a b r a n g e n d o d e s d e o p e r í o d o de A d r i a n o
( 1 1 7 - 1 3 8 d. C . ) até seu próprio reinado. O s Imperadores C o n s -
tantino e T e o d ó s i o II o r d e n a r a m i g u a l m e n t e que s e f i z e s s e m
a s c o d i f i c a ç õ e s que levam s e u s nomes.
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 35

A mais conhecida, mais c o m p l e t a c, para a burguesia me-


dieval, a mais influente foi o Corpus furis Civilis, compilado
s o b a o r i e n t a ç ã o d o Imperador R o m a n o Oriental Justiniano,
n o s é c u l o V I d. C. Consistia em três partes: o C ó d i g o em si,
uma c o l e t â n e a de editos imperiais d e s d e o t e m p o de A d r i a n o
em 5 3 3 d . C . ; o D i g e s t o , u m a obra s e m e l h a n t e , mas consis-
t i n d o em pareceres dos principais juristas e jurisconsultos ro-
m a n o s , t o d o s o s quais viveram d o primeiro a o terceiro século
d e p o i s de Cristo; e os Institutos, u m a s i n o p s e d o C ó d i g o e d o
D i g e s t o p a r a e s t u d a n t e s de direito. E m b o r a n e n h u m dos editos
e pareceres extraídos d o C ó d i g o e d o D i g e s t o seja anterior
ao s é c u l o I d . C . , muitos deles retroagiam a conceitos jurídicos
r o m a n o s c l á s s i c o s a i n d a mais antigos, com a f i n a l i d a d e de citar
a velhice de determinada norma o u c o s t u m e legal. I s s o acon-
tecia e s p e c i a l m e n t e no c a s o de jurisconsultos mais antigos,
c o m o Gaius, cujos trabalhos s ã o citados n o D i g e s t o .
A c o d i f i c a ç ã o de Justiniano não foi, por conseguinte, ino-
v a d o r a , m a s prestou o relevante serviço de selecionar a ma-
téria entre milhares de e d i t o s imperiais e tratados jurídicos,
e l i m i n a n d o contradições m e d i a n t e a e s c o l h a d a prática o u regra
corrente e m 5 3 3 e sistematizando o t o d o s o b títulos corres-
p o n d e n t e s à s e s f e r a s d o direito: propriedade, família, direito
processual, crimes, e assim por diante. P e r d e u - s e a maioria das
f o n t e s de o n d e foi extraído o Corpus Júris. T o m a m o s c o n h e -
c i m e nt o delas a p e n a s através d e s u a s p á g i n a s .
Justiniano, contudo, era um imperador oriental, c o m seu
trono em Constantinopla. N ã o p a r e c e q u e seu trabalho tenha
i n f l u e n c i a d o o s c o s t u m e s comerciais da E u r o p a O c i d e n t a l até
o s é c u l o X I . N ã o implica i s s o dizer que o s conceitos jurídicos
r o m a n o s n ã o sobrevivessem, embora h o u v e s s e muito p o u c a vida
comercial n a maior parte da E u r o p a O c i d e n t a l que lhes justi-
f i c a s s e o emprego; subsistiram em costumes locais, na prá-
tica canónica e em trabalhos c o m o a c o d i f i c a ç ã o parcial, a
Lex Romana Visigothorum. de cerca de 5 0 6 d . C . , atribuída
a o rei v i s i g o d o A l a r i c o U . que tinha na E s p a n h a sua b a s e de
po de r . O s mosteiros continuaram a ser c e n t r o s de direito ro-
m a n o e cultura latina. A o m e s m o tempo, n ã o p a d e c e dúvida
que. com a e x t i n ç ã o da vida comercial que s e seguiu à queda
d o Império d o O c i d e n t e em 4 7 6 d . C . , o s preceitos técnicos,
habilmente formulados, d o direito romano clássico e a estru-
tura para aplicá-los caíram em desuso.
36 UMA VISÃO GERAL

O Direito Feudal

N o dia 11 de a g o s t o de 1789, a A s s e m b l é i a N a c i o n a l
F r a n c e s a , n o primeiro ardor da vitória revolucionária, d e c r e -
tou que "abolia t o t a l m e n t e o regime f e u d a l " . Q u a t o r z e a n o s
depois, o s redatores d o C ó d i g o d e N a p o l e ã o f a l a v a m d o s "nu-
m e r o s o s v e s t í g i o s d o regime f e u d a l q u e a i n d a cobrem a s u p e r -
fície da F r a n ç a " , e que o C ó d i g o e x p u n g i a . N ã o obstante, por
cerca de oitocentos anos, um b o m n ú m e r o de c o m e r c i a n t e s h a v i a
v i v i d o e mesmo p r o s p e r a d o n o seio d o regime feudal. P o r que,
subitamente, foi j u l g a d o n e c e s s á r i o r e v o g á - l o a t o d o custo? É
importante analisar a l g u n s a s p e c t o s da s o c i e d a d e f e u d a l a
fim de c o m p r e e n d e r m o s a h e s i t a ç ã o , v e l h a de s é c u l o s , d o s
comerciantes entre a c o m o d a ç ã o e rebelião.
M e s m o n o seu a u g e , n o s três primeiros s é c u l o s d e p o i s d e
Cristo, lavravam n o império comercial e militar r o m a n o a s c o n -
tradições que f i n a l m e n t e o derrubariam. O trabalho e s c r a v o
s o l a p a v a o trabalho livre, l a n ç a n d o n o d e s e m p r e g o a r t e s ã o s
e p e q u e n o s agricultores, que p a s s a v a m a v a g u e a r p e l a s c i d a d e s e
a criar f o c o s de inquietação. A s doutrinas revolucionárias
d a j o v e m igreja cristã d i s s e m i n a v a m o d e s c o n t e n t a m e n t o entre
a s c l a s s e s inferiores e estimulavam a s a u t o r i d a d e s a uma re-
p r e s s ã o brutal de seus fiéis. N a s fronteiras d o Império, g r u p o s
e x p u l s o s da E u r o p a Central p e l o s h u n o s em marcha a g r a v a -
ram o s problemas administrativos de uma burocracia c a d a v e z
mais sobrecarregada e dispendiosa. A s c o m u n i c a ç õ e s , a c a p a -
c i d a d e de d e f e n d e r o s ricos e a s e g u r a n ç a d o comércio c o m e -
çaram a diminuir n o s é c u l o III d . C . e, c o m elas, d e s a p a r e c e u
a prosperidade d o Império.
N o caso d o s g r a n d e s l a t i f ú n d i o s situados n a área mais
próxima a R o m a , uma das s o l u ç õ e s d o problema trabalhista
consistiu em arrendar parte d a s g r a n d e s propriedades a c i d a d ã o s
o u escravos, c o b r a n d o - s e aluguel em e s p é c i e s o b a forma da
o b r i g a ç ã o de cultivar a parte da terra reservada a o u s o e lucro
p e s s o a l do latifundiário. N a s fronteiras d o Império, com a fina-
l i d a d e de manter a o largo o s invasores, c i d a d ã o s r o m a n o s re-
ceberam terras e o status de coloni. s o b a s u p e r v i s ã o d e um
senhorio investido de prerrogativas legais. O s c o l o n o s p a g a v a m
o aluguel em espécie e trabalho e eram o b r i g a d o s a participar
da d e f e s a das fronteiras. E m t o d o s o s c a s o s possíveis, o s inva-
sores eram c o m p r a d o s p e l o co n v ite de entrarem em f e d e r a ç ã o
com o Império. O s federati recebiam terras para cultivar, pres-
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 37

t a v a m o juramento de d e f e n d e r o Império e a d a p t a v a m sua orga-


n i z a ç ã o social a o sistema praticado p e l o s latifundiários e coloni,
embora tivessem permissão para c o n s e r v a r suas próprias leis era
c o n t e n d a s d e n t r o d o grupo.
A "queda" d o Império d o O c i d e n t e , e m 4 7 6 , constituiu
a p e n a s o ultimo p a s s o no p r o c e s s o d e d e s i n t e g r a ç ã o . ( A essa
altura, o s imperadores romanos haviam a b r a ç a d o o catolicismo.
C o n s t a n t i n o fora o primeiro a converter-se, e m 3 1 3 d . C . ) S o -
b r e v i v e r a m a s c i d a d e s episcopais e arcebispais. G r a n d e s regiões
o c u p a d a s por latifundiários, coloni e federati, n o entanto, tor-
n a r a m - s e a u t ô n o m a s , p r o f e s s a n d o a p e n a s u m a l e a l d a d e nomi-
nal a o distante imperador oriental, q u e g o v e r n a v a d e C o n s t a n -
tinopla. A n e c e s s i d a d e de s o b r e v i v ê n c i a e d e f e s a militar e a
a u s ê n c i a d o g o v e r n o e das l e g i õ e s r o m a n a s tornaram possível
e n e c e s s á r i a a instituição d e um sistema senhorial, n o qual en-
c o n t r a m o s a s o r i g e n s d o que m a i s tarde v e i o a ser c h a m a d o de
feudalismo.
E m locais n ã o s u b m e t i d o s a o g o v e r n o romano, tais c o m o a
E s c ó c i a , a Irlanda, a E s c a n d i n á v i a e a A l e m a n h a , registros
a i n d a e x i s t e n t e s indicam que f o r m a s f e u d a i s também s e d e s e n -
volviam, adaptando as necessidades de alimentação e defesa à
o r g a n i z a ç ã o social local.
N e s s e período, em toda a E u r o p a , em especial na A l e -
m a n h a e Sul da França, h a v i a agricultores e c a m p o n e s e s que
n e m e r a m r o m a n o s n e m coíoni o u fedtrati, m a s que n o p a s s a d o
haviam c o n s i d e r a d o o s funcionários r o m a n o s c o m o s e u s g o v e r -
nadores. Proprietários d e g l e b a s de t a m a n h o variado, c h a m a d a s
de allods, foram absorvidos n o sistema f e u d a l pela n e c e s s i d a d e de
proteção, o u p e l a força. A E u r o p a era u m c a m p o d e batalha,
o cenário d e s u c e s s i v a s i n v a s õ e s — d o s h ú n g a r o s n o Leste, dos
m o u r o s n o Sul e d o s e s c a n d i n a v o s n o N o r t e .
N a parte da E u r o p a outrora g o v e r n a d a por R o m a . por con-
s e g u i n t e , o f e u d a l i s m o representou a retirada, para a c a s a s e n h o -
rial e a aldeia, de uma c l a s s e g o v e r n a n t e p r i v a d a da proteção
de um d e c a d e n t e e moribundo g o v e r n o imperial. E m outras
regiões, constituiu a mudança de uma e x i s t ê n c i a pastoril, n ô m a d e
e v o l t a d a para a guerra, para u m a v i d a a g r í c o l a mais estável
( e m b o r a ainda bastante g u e r r e i r a ) . A s terras de superfície
variável constituíam um d o s t e s t e m u n h o s d o principal interesse
e c o n ô m i c o da casa senhorial, pois o padrão, f o s s e o mansío da
38 UMA VISÃO G E R A L

G á l i a o u o hide da Inglaterra, era a q u e l e que p o d i a sustentar


uma família, v a r i a n d o seu t a m a n h o s e g u n d o a r e g i ã o e a fer-
tilidade d o solo.
N a raiz da relação feudal havia o ato de v a s s a l a g e m , s u -
p l e m e n t a d o d e s d e a é p o c a de C a r l o s M a g n o ( s é c u l o I X ) pelo
juramento d e lealdade. D o i s indivíduos, o mais forte ( o s e n h o r )
e o mais f r a c o ( o v a s s a l o ) , c o l o c a v a m - s e frente a frente. S e -
g u n d o a descrição d o historiador francês M a r e Bloch, este
último
j u n t a a s m ã o s e coloca-as. j u n t a s assim, e n t r e a s m ã o s do o u t r o
h o m e m — u m gesto simples de submissão, c u j a significação
e r a à s vezes e n f a t i z a d a p o n d o - s e ele d e joelhos. S i m u l t a n e a m e n t e ,
a pessoa que oferecia a s mãos proferia u m a s poucas palavras
— u m a declaração multo curta — reconhecendo ser o " h o m e m "
da pessoa q u e se e n c o n t r a v a à s u a frente, E m seguida, chefe
e s u b o r d i n a d o beijavam-se n a boca, simbolizando isso a c o r d o
e amizade. T a i s e r a m os gestos, m u i t o simples — e m i n e n t e m e n t e
apropriados p a r a causar u m a forte impressão em mentes tão
sensíveis a coisas visíveis — que serviam p a r a c i m e n t a r u m
dos m a i s fortes laços sociais d a e r a feudal.

A e s s ê n c i a d a relação feudal era e s s e n e x o p e s s o a l , inicial-


m e n t e com duração a p e n a s da vida d o v a s s a l o e, mais tarde,
e s t e n d i d o a o s s e u s herdeiros masculinos. Isso porque o v a s s a l o
detinha a p o s s e da terra que cultivava e virtualmente de t o d o s
o s s e m o v e n t e s "do" seu senhor. A relação c o n s a g r a d a pelo ju-
ramento d e d o m i n a ç ã o e subordinação, d o agricultor com seu
senhor, e através" da p r o m e s s a d e v a s s a l a g e m d e s t e último a
a l g u m seigneur m a i s p o d e r o s o , constituía um sistema muitas
v e z e s descrito por s e u s i d e ó l o g o s c o m o piramidal, o u simétrico.
M o r t e s e l e s õ e s corporais d o l o s a s eram muito c o m u n s na
s o c i e d a d e feudal, h a v e n d o desforra rápida e vingativa. A vio-
lência praticada contra o senhor, n o entanto, era um tipo n e -
f a n d o de crime. V e j a m - s e a s palavras abaixo, extraídas de The
Murder of Charles the Good:
"A q u e m m a t a s t e , e por que, e quando, e onde, e como, perverso
Borsiard?", pergunta W a l t e r de Therouanne ao homem, já
morto, c u j a espada assassinara o Conde Charles no m o m e n t o
e m q u e e l e , a j o e l h a d o , r e z a v a n o d i a 2 d e m a r ç o d e 1127.
Segue-se a p r ó p r i a c u r t a r e s p o s t a de T h e r o u a n n e : " S e n h o r ,
devido à preocupação dele com a justiça, a Q u a r e s m a e a
Igreja, e pela violação da reverência que lhe era devida, teu
crime foi m a i s g r a v e do que o cometido pelos j u d e u s ! "
ANTECEDENTES DAS N O V A S INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 39

P o u c a s p e s s o a s viviam à m a r g e e i d o sistema. A Igreja dele


participava c o m o senhor feudal. S a c e r d o t e s locais eram vin-
c u l a d o s à aldeia o u à m a n s ã o senhorial. E r a m p o u c o s o s que
n ã o v i v i a m em v a s s a l a g e m de mão e boca —• c o n t a n d o - s e entre
ele s a p e n a s o s peregrinos, o s f r a d e s ambulantes, o s mercadores
itinerantes, o s trovadores e a l g u n s párias sociais.
S e e x a m i n a r m o s o m a p a da E u r o p a O c i d e n t a l n o a n o 800,
v e r i f i c a r e m o s q u e p r e d o m i n a v a a s o c i e d a d e senhorial. O co-
mércio r e d u z i a - s e a um mero fio de m e r c a d o r i a s de luxo. A s
m a n s õ e s f e u d a i s eram e n t i d a d e s a u t o - s u f i c i e n t e s e o comércio
era principalmente local. N a s m a n s õ e s , a q u a l i d a d e da vida era
r e g u l a d a pelos administradores a serviço d o senhor e pela corte
senhorial. O p o d e r do s e n h o r e de sua corte incluía tudo que
dizia respeito a o s vassalos.
A lei aplicada nos tribunais f e u d a i s r e p o u s a v a , na maior
parte, s o b r e dois princípios, n ã o raro i n c o e r e n t e s : a s leis de
a p l i c a ç ã o p e s s o a l e o direito costumeiro v i g e n t e s o b r e um dado
território. O primeiro principio surgiu porque a n t i g o s súditos
r o m a n o s e g r u p o s que haviam, n o s últimos dias d o Império R o -
m a n o d o O c i d e n t e , a d o t a d o o direito r o m a n o e s t a v a m acostu-
m a d o s a ser g o v e r n a d o s por princípios jurídicos r o m a n o s , muito
embora c a d a grupo c o n s e r v a s s e t a m b é m s e u direito costumeiro.
O sistema d e conquista n ã o raro d a v a a o g r u p o vitorioso, com
u m a o r d e m jurídica própria, controle d e terras o c u p a d a s por
agricultores que viviam s o b outro sistema. O s últimos impera-
d o r e s e s t a b e l e c e r a m o princípio jurídico d e "lei de aplicação
p e s s o a l " . N o s tribunais, e em t r a n s a ç õ e s entre si, o membro de
c a d a g r u p o tinha, em teoria, direito à s u a própria "lei", isto é,
à aplicação da lei de seu g r u p o : romano, b o r g o n h ê s , visigodo,
e a s s i m por diante. C o n f o r m e o b s e r v o u o A r c e b i s p o de Lyons,
n ã o era raro que entre cinco p e s s o a s reunidas a o a c a s o cada
uma d e l a s reivindicasse o direito d e ser julgada s e g u n d o lei
diferente.
N ã o sobreviveu, porém, o princípio de leis d e aplicação
p e s s o a l , e x c e t o em c a s o s isolados, c e d e n d o lugar à aplicação uni-
f o r m e da mesma lei a t o d a s as p e s s o a s residentes numa dada
área, lei esta b a i x a d a pelo seigneuc e calcada, na maior parte,
e m u s o s e c o s t u m e s imemoriais. A relação feudal era conside-
rada c o m o justificando o cumprimento d a s mesmas normas por
t o d o s o s v a s s a l o s d e um d a d o senhor em um d a d o território. O
tribunal c o m autoridade para decidir e proferir sentença, dizia
40 UMA VISÃO GERAL

Philippe de B e a u m a n o i r em 1283, é "aquele e x i s t e n t e n o local


o n d e dorme e acorda" o a c u s a d o .
H a v i a , além d i s s o , i m p e d i m e n t o s práticos à s leis de apli-
c a ç ã o p e s s o a l : c a s a m e n t o s entre g r u p o s é t n i c o s e religiosos
d i f e r e n t e s tornavam d i f í c e i s a s i n v e s t i g a ç õ e s sobre origens: e r a m
incompletas as o r d e n s jurídicas de d i f e r e n t e s g r u p o s e a m a i o -
ria n ã o incluía referência a r e l a ç õ e s feudais; a maior parte d o s
juízes d e s c o n h e c i a , o u conhecia mal, a s leis que d e v i a m aplicar,
q u a n d o não eram a n a l f a b e t o s .
A n o ç ã o de lei "pessoal" s o b r e v i v e u a p e n a s n o c a s o d a -
q u e l e s —• c o m o o s m e r c a d o r e s — q u e p o s s u í a m um status es-
pecial e que lutavam para tê-lo reconhecido.
A substituição d e leis de c u n h o pessoal, que ocorreu por
volta d o século X I , d e i x o u a E u r o p a O c i d e n t a l s o b o império
d e um sistema f r a g m e n t a d o de c o s t u m e s locais, i n f l u e n c i a d o s
em graus variáveis p e l o direito romano. N a A l e m a n h a , n o s
P a í s e s - B a i x o s e nos d o i s terços setentrionais d o que hoje é a
França, v e l h o s c o s t u m e s forneciam b a s e à lei, embora a l g u n s
d e c r e t o s legislativos de s e n h o r e s territoriais p o s s a m ter sido
reconhecidos. A Inglaterra, a d e s p e i t o da o c u p a ç ã o , jamais
entrou n a órbita jurídica romana. E s t a v a em v i g o r um sistema
feudal d e p o s s e da terra à é p o c a da C o n q u i s t a N o r m a n d a ,
muito embora o direito inglês, a p ó s 1066, t e n h a sido p r o f u n d a -
m e n t e infiltrado pelo direito costumeiro d o N o r t e da F r a n ç a , ou,
mais precisamente, p e l o direito normando,
O Sul da F r a n ç a , a Itália e a P e n í n s u l a Ibérica n ã o o c u p a -
da p e l o s mouros mantinham f i d e l i d a d e nominal a o direito ro-
mano. A compilação v i s i g o d a determinada por Alarico, a Liber
Judiciovum de 6 5 4 , e uns p o u c o s trabalhos locais eram c o p i a d o s
e estudados, muito embora o s contratos e outros d o c u m e n t o s
escritos d e s s e p e r í o d o revelem d e s c o n h e c i m e n t o dos princípios
jurídicos romanos. E a relação feudal não era, naturalmente,
regulada pelo direito romano.
E m todas e s s a s regiões, o rito p r o c e s s u a l n a s cortes f e u d a i s
seculares era u n i f o r m e m e n t e lento, arbitrário e injusto para
com as c a m a d a s mais b a i x a s da s o c i e d a d e . C a r a c t e r i z a v a - s e
pela d e p e n d ê n c i a da tradição oral d o costume, mantida p e l o
s e n h o r e por seus servidores e juízes. U m inquérito poderia ser
realizado com a f i n a l i d a d e de determinar o c o n t e ú d o d o direito
costumeiro, n o m e a n d o - s c uma e s p é c i e de júri, cujos membros
eram c h a m a d o s de "investigadores", coutumiers o u ( p o r postura
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 41

f r a n c e s a de 1 2 7 0 ) turbiers. A p r e s e n ç a d e tais p e s s o a s p o d e ter


p r o p o r c i o n a d o a l g u m a proteção, m a s multiplicava também as
o p o r t u n i d a d e s de f r a u d e e suborno. A p e l a ç õ e s p o r recusa de
j u l g a m e n t o o u f a l s o j u l g a m e n t o eram possíveis, em teoria, em-
bora a hierarquia d a a p e l a ç ã o f o s s e indistinta até o estabeleci-
mento. m u i t o t e m p o depois, de fortes monarquias. A o b s e r v â n -
c i a c u i d a d o s a d o s c o s t u m e s , a d e m a i s , n ã o constituía garantia de
justiça. O P a p a U r b a n o II, por e x e m p l o , e s c r e v e u a o C o n d e
d e F l a n d r e s em 1 0 9 2 : " A l e g a s ter feito até a g o r a a p e n a s o que
s e c o n f o r m a com o a n t i g o c o s t u m e d a terra? D e v e s saber, não
o b s t a n t e , que o C r i a d o r d i s s e : ' M e u n o m e é V e r d a d e . ' E l e
n ã o disse: ' M e u nome é Costume.'" Beaumanoir lamentava os
i n c i d e n t e s q u e h a v i a presenciado, n o s q u a i s p e s s o a s dignas, mas
d e p o u c o s meios, h a v i a m perdido, d e v i d o à demora, t u d o o que
p o d e r i a m ter g a n h o s e h o u v e s s e m v e n c i d o a q u e s t ã o nas cortes
d e justiça.
N e s s e ambiente, a vida d o agricultor era r e g u l a d a pelo c o n -
j u n t o d e o b r i g a ç õ e s feudais. A família trabalhava n o s domínios
d o senhor, cultivava s u a própria gleba, obtinha o s artigos ne-
c e s s á r i o s na m a n s ã o senhorial e tinha o direito de usar terra
c o m u m d e v o l u t a . ( E s t e último direito assumiria grande impor-
tância nos séculos seguintes.) Era obrigada a fornecer soldados
o u p r o v i s õ e s a o s é q u i t o a r m a d o d o senhor. V i v i a p r e s a à terra
e n ã o p o d i a vendê~la, nem a maioria d o s s e m o v e n t e s , o u d á - l a
em h e r a n ç a à futura geração, c a s a r o u comerciar s e m o c o n s e n -
t i m e n t o d o s e n h o r e, à s v e z e s , o p a g a m e n t o d e um imposto. O s
s e n h o r e s tinham i g u a l m e n t e o b r i g a ç õ e s e n o s a n o s de más co-
lheitas s e u s a r m a z é n s deviam ser a b e r t o s para que s e u s v a s s a -
los n ã o p a s s a s s e m f o m e . A o r d e m jurídica era um m u n d o à
parte, dirigido por h o m e n s que f a l a v a m "Moult belle: le Latin"
e q u e c o n h e c i a m p a l a v r a s , c o m o diz u m cronista f r a n c ê s antigo,
q u e o h o m e m c o m u m desconhecia, embora f o s s e m pronunciadas
e m francês.
U m sistema social d e s s a n a t u r e z a n ã o n e c e s s i t a v a de um
direito comercial. A s "grandes c i d a d e s " p o u c o mais eram d o
q u e g r a n d e s a l d e i a s fortificadas, g r a n d e s n o S u l da Europa
a p e n a s porque um senhor mais i m p o r t a n t e que o s d e m a i s na
r e g i ã o nela residia, e grandes n o N o r t e — o n d e o s senhores
v i v i a m n o c a m p o — porque n e l a s um b i s p o o u arcebispo tinha
s u a sé. O comércio entre os a n o s 5 0 0 e 1 0 0 0 consistia em artigos
d e s t i n a d o s à c l a s s e d o m i n a n t e : s e d a s , especiarias, jóias e outras

3 - D.A.C.
42 UMA VISÃO GERAL

mercadorias d e p o u c o p e s o , de m o d o que p e q u e n a s c a r a v a n a s
p u d e s s e m trazer por terra, d o Oriente, p e ç a s d e g r a n d e valor.
S o b p r e s s ã o d e a r t e s ã o s e p e q u e n o s n e g o c i a n t e s incluídos
n a hierarquia f e u d a l , e d e m e r c a d o r e s a m b u l a n t e s que n e n h u m a
o b r i g a ç ã o f e u d a l direta reconheciam, o s s e n h o r e s foram f o r ç a -
d o s a iniciar, n o s é c u l o X I I , a c o d i f i c a ç ã o e r e g u l a m e n t a ç ã o d o
c a ó t i c o e v a g o c o r p o de c o s t u m e s q u e administravam. N a P r o -
v e n ç a , n o S u l d o q u e h o j e é a F r a n ç a , e q u e na o c a s i ã o era um
c a m p o d e b a t a l h a p e l o d o m í n i o d o M e d i t e r r â n e o , foi p u b l i c a d o
um livro d e preceitos l e g a i s d e s t i n a d o a m a g i s t r a d o s . E m
1 1 5 0 , um jurisconsulto, p r o v a v e l m e n t e d e A r i e s , d i v u l g o u traba-
l h o s e m e l h a n t e , n o t á v e l por s u a q u a l i d a d e prática, n o dialeto
provençal. E m 1 2 8 3 . um servidor real de e s p a n t o s a s a g a c i d a d e
escreveu o Coutumes de Beauvaisis, a primeira d e n u m e r o s a s
c o m p i l a ç õ e s d e d e z e n a s d e s i s t e m a s d e direito c o s t u m e i r o e n t ã o
v i g e n t e s n a c o l c h a de retalhos d e s o b e r a n i a s f e u d a i s f r a n c e s a s .
O autor, P h i l i p p e d e B e a u m a n o i r , advertia q u e f u n d a m e n t a v a
a a u t o r i d a d e d e s e u s escritos, e m primeiro lugar, n o s c o s t u m e s
d e s u a r e g i ã o e, depois, s e t u d o mais f a l h a s s e , n o c o s t u m e que
prevalecia n o p a y s du dcoit coutumier, ou N o r t e da França.
B e a u m a n o i r jamais abraçou abertamente o direito romano, muito
embora em s u a s d i s c u s s õ e s d e contratos, d a n o s civis e p o d e r
real e n c o n t r e m o s eco de t e x t o s r o m a n o s .
S i m u l t a n e a m e n t e , a nobreza c o m e ç o u , de forma relutante, a
aceitar a l g u m a s práticas o b s e r v a d a s p e l o s mercadores, pelo
m e n o s s e o s e n h o r p o d i a lucrar com a c o b r a n ç a d e i m p o s t o s e
tributos. E m n u m e r o s a s c o m p i l a ç õ e s d e c o s t u m e s locais são e n -
c o n t r a d a s c l á u s u l a s r e g u l a m e n t a n d o a s t r a n s a ç õ e s entre c o m e r -
ciantes, e s t a b e l e c e n d o áreas d e mercado e instituindo u m a o c a -
s i o n a l feira, na qual a s t r a n s a ç õ e s p o d i a m ocorrer regularmente,
s o b f i s c a l i z a ç ã o d o s servidores d o senhor. E m 1283, em B e a u -
vais, c o b r a v a - s e u m a multa d e c i n c o sous pelo e s p a n c a m e n t o
d e um c i d a d ã o por outro, multa e s s a que subia a s e s s e n t a sous
s e a vitima s e e n c o n t r a v a n o mercado o u a caminho dele.
A c o d i f i c a ç ã o d o s coutumes, inicialmente autorizada por
u m a ordonnance de S ã o Luís n o s é c u l o X I I I , m a s s ó muito mais
tarde e m p r e e n d i d a sistematicamente, constituía um sinal da c o n -
s o l i d a ç ã o d o r e g i m e feudal e da e m e r g ê n c i a d e um rei ou prín-
cipe à testa d a hierarquia d e uma d a d a região. O e s t u d o d o s
coutumes a s s i n a l o u a a s c e n s ã o , n o sistema feudal, de um e s -
trato social d e a d v o g a d o s , cuja principal tarefa consistia e m
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 43

descobrir, estudar e interpretar a lei. T r a b a l h o s escritos poste-


riormente sobre couíumes foram p a t r o c i n a d o s por dois grupos
que possuíam tanto os recursos para custear tais e s t u d o s como
interesse em pôr um p o n t o final n o bairrismo feudal: a Igreja
e a realeza.

O Direito Canónico e a Igreja Católica Romana


P o i s Be u m h o m e m e s t u d a r a o r i g e m d e s s e g r a n d e d o m í n i o
eclesiástico, facilmente perceberá que o P a p a d o n a d a mais é
d o q u e o fantasma d o e x t i n t o Império Romano, ocupando, coroado,
o t ú m u l o do m e s m o . P o i s foi a s s i m que, de fato, surgiu o
Papado, das ruinaa daquele poder pagão.

T i n h a razão T h o m a s H o b b e s n o Leviatã: por volta dos


primórdios do s é c u l o V , o P a p a d o e n f e i x a v a n a s m ã o s o que
restava d o desmembrado Império. O primado d e R o m a na Igreja
d o O c i d e n t e foi estabelecido pelo P a p a Inocêncio I ( 4 0 2 - 4 1 7 ) .
Por volta de 440, com a ascensão d e L e ã o I ( o G r a n d e ) , havia-
se tornado considerável a autoridade temporal sobre as terras
em volta de Roma. P o u c o mais de cem anos haviam transcorrido
d e s d e a legalização do catolicismo p e l o Império n o E d i t o de
Milão (313).
A reivindicarão da Igreja à h e g e m o n i a temporal foi pre-
nunciada pela coroação, pelo Papa Leão, no dia d e N a t a l do
ano 800, de Carlos M a g n o como Imperador d o S a c r o Império
Romano. O Império, formado pela v a s s a l a g e m forçada de se-
nhores menores, pouco direito tinha d e ser julgado sacro, e
nenhum em a b s o l u t o de ser romano. P o u c o s anos após a morte
de Carlos M a g n o , em 814, deixou também d e ser império.
A justificação d o P a p a para ter c o l o c a d o Carlos M a g n o
na linhagem d o s imperadores romanos repousava sobre duas
idéias d o m i n a n t e s na Igreja. O primeiro d e s s e s mitos era que
o Império R o m a n o fora profetizado nas S a g r a d a s Escrituras
como o último d o s quatro reinos, antes da conquista Éitial pelos
exércitos d e D e u s e do Julgamento Final. " O m u n d o está enve-
lhecendo", escreveu um erudito d a época, "e v i v e m o s o fim
d o s tempos". S e assim era, então a Igreja temporal era lógica,
histórica e tão verazmente como n a s Escrituras a sucessora do
Império R o m a n o , opinião sustentada por h o m e n s t ã o diferentes
em termos d e época e temperamento c o m o o P a p a Leão III e
Dante.
44 UMA VISÃO GERAL

E m s e g u n d o lugar, a Igreja, i d e o l ó g i c a e o r g a n i z a c i o n a l -
m e n t e , refletia a s o c i e d a d e e a o m e s m o t e m p o e x i g i a a l e a l d a d e
de sua miriade de soberanias e p r o p o r c i o n a v a - l h e s o s f u n d a m e n -
t o s ideológicos. B a r r o w s D u n h a m cita John d e S a l i s b u r y c o m o
f e n d o escrito que
os a g r i c u l t o r e s c o n s t i t u e m oa p é s d o c o r p o político — m a i s
próximos d a t e r r a e necessitando de orientação, m a s igual-
m e n t e essenciais p a r a o m o v i m e n t o e o r e p o u s o . . . B preciso
compreender que, quando John de Salisbury descrevia os
agricultores [dessa m a n e i r a ] . . . pensava que realmente havia
tal corpo, c o m e x a t a m e n t e tais pés. D e idêntica m a n e i r a , a
a s s e r ç ã o d e q u e a I g r e j a c o n s t i t u í a o corpo de Cristo era
para ser literalmente aceita.

À medida que se expandia em p o d e r têmpora! e fazia n o v a s


c o n v e r s õ e s , a Igreja e l a b o r a v a u m a i d e o l o g i a q u e via na pirâ-
m i d e d a s o b r i g a ç õ e s f e u d a i s , c o m o s agricultores na b a s e , um
paralelo com sua própria organização piramidal, d e s e m p e n h a n d o
a m a s s a de fiéis o papel d o s l a v r a d o r e s .
A lei eclesiástica a l e g a v a u m a jurisdição c o e x t e n s i v a c o m
o s interesses da Igreja. O s tribunais c a n ó n i c o s c o b i ç a v a m o
p o d e r d e decidir t o d a s as querelas e n v o l v e n d o o b e m - e s t a r d a s
a l m a s e pressionava a s cortes seculares para aplicar t a m b é m
o direito canónico a t o d a s a s disputas. A s reivindicações c o n f l i -
t a n t e s de tribunais seculares e c a n ó n i c o s constituíram c a s o s
repetitivos d o s é c u l o X I ao X I V . P o r acordo, i g u a l m e n t e , c o n -
f o r m e tivemos o p o r t u n i d a d e d e v e r acima, a s cortes d a Igreja
p o d i a m ser e s c o l h i d a s c o m o f o r o s de c o n t e n d a s puramentle
seculares. A s bibliotecas e mosteiros da Igreja eram c e n t r o s de
cultura e estudo d e t e x t o s jurídicos r o m a n o s . N a v e r d a d e , t o d a s
as d i o c e s e s reivindicavam o direito •— e a p l i c a v a m - n o •— d e
licenciar t o d o s o s m e s t r e s em artes liberais.
A p ó s a q u e d a d e R o m a , a Igreja caíra vítima d a s m e s m a s
f o r ç a s centrífugas que a g i a m s o b r e outras instituições e u r o p é i a s :
o primado da s é d e R o m a era metafórico, e i n e x i s t e n t e s a s
comunicações com o s b i s p a d o s distantes. A i n d a assim, cortes
e c l e s i á s t i c a s d e f a t o s e reuniam, e a Igreja possuía c e n t r o s de
p o d e r sem l i g a ç õ e s com R o m a . E m S a l z b u r g o , por e x e m p l o , foi
f u n d a d o um bispado em 7 3 9 . i n i c i a n d o - s e a s obras da catedral
e m 767. M o s t e i r o s e residências episcopais publicavam m a -
n u a i s d e direito eclesiástico, p r o v a v e l m e n t e b a s e a d o s n o C ó d i g o
T e o d o s i a n o d e 4 3 8 , em r e s u m o s d o C ó d i g o , e em r e c o r d a ç õ e s
d o direito e c o s t u m e s romanos. Sir P a u l V i n o g r a d o f f , h i s t o -
r

ANTECEDENTES DAS N O V A S INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 45

r i a d o r inglês, f a l a d e uma " f i n a . a i n d a que c o n s t a n t e , corrente


d e c u l t u r a jurídica f l u i n d o a t r a v é s d o s séculos mais sombrios
d a I d a d e M é d i a , isso d e s d e o q u i n t o até o décimo". E s s e fio
t i n h a origem e corria a t r a v é s d o s c e n t r o s de c u l t u r a eclesiástica.
E a I g r e j a t i n h a p o d e r , mesmo q u e n ã o dispusesse
d e t r o p a s p a r a impor s u a v o n t a d e . E r a um s e n h o r f e u d a l : d e s d e
o s p r i m ó r d i o s d o sistema, p r e l a d o s h a v i a m aceito a v a s s a l a g e m
d e agricultores, cavaleiros e p e q u e n a n o b r e z a e a u m e n t a d o sua
r i q u e z a com a s p r o p r i e d a d e s q u e l h e s e r a m d e i x a d a s em t e s t a -
m e n t o p e lo s ricos e piedosos. A s c o r t e s seculares podiam sen-
t e n c i a r à morte, m a s o tribunal eclesiástico p o d i a e x c o m u n g a r
e, p o r t a n t o , c o n d e n a r almas. A c e n t r a l i z a ç ã o e a u t o r i d a d e tem-
p o r a l d a I g r e j a a l c a n ç a r a m o a p o g e u d u r a n t e as C r u z a d a s . À
revivescência d o e s t u d o do direito n e s s e período, os estudiosos
d o direito r o m a n o d a posterior revolução b u r g u e s a devem q u a s e
t o d o o seu conhecimento e x a t o d o s a n t i g o s t e x t o s . O r e c r u d e s -
c i m e n t o d o interesse pela cultura jurídica r o m a n a p r o g r e d i a de
a c o r d o com a s f o r t u n a s d a I g r e j a , d a n d o um passo qualitativo
no reinado do P a p a Gregório V I I (1073-85), o " P a p a mer-
c a d o r " . A I g r e j a Católica era a i g r e j a oficial d o s emergentes
m o n a r c a s e o u t r o s senhores f e u d a i s e u r o p e u s , e x c e t u a n d o - s e
a p e n a s o s r e s t a n t e s enclaves m o u r o s n a P e n í n s u l a Ibérica.
O início d a centralização real e a reativação d o comércio
e s t i m u l a r a m o crescimento econômico. U m a entourage real e
u m a i g r e j a c e n t r a l i z a d a à " c a b e ç a " do c o r p o f e u d a l precisavam
a p e n a s que a s p a r t e s inferiores lhes p r o p o r c i o n a s s e m sustento.
P a r a n ã o levar l o n g e demais a a n a l o g i a , a g r i c u l t o r e s e arte-
s ã o s p r o d u z i a m mais d o q u e o suficiente p a r a s u s t e n t a r a eco-
nomia s e n h o r i a l e a s cidades r e n a s c e n t e s , e s e u s s e n h o r e s tem-
p o r a i s e espirituais podiam e s p e r a r mais e x c e d e n t e s a fim d e
financiar suas p r ó p r i a s atividades.
U m a p a r t e do e x c e d e n t e econômico foi c a n a l i z a d a p a r a
a d v o g a d o s e p e s q u i s a d o r e s jurídicos. O P a p a G r e g ó r i o V I I ,
com o apoio de mercadores, c u j o f a v o r c o r t e j a v a , f u n d o u uma
escola de direito em Bolonha, que começou a reunir o s textos
d e Justiniano, g r a n d e p a r t e d o s q u a i s h a v i a sido redescoberta
em um m a n u s c r i t o florentino. A s p a l a v r a s d e J u s t i n i a n o foram
i n v e s t i d a s de a u t o r i d a d e p a p a l e sobre e s s a s " r u í n a s do poder
p a g ã o " começou a ser erigida a e s t r u t u r a do direito canónico. O s
" Q u a t r o D o u t o r e s " •— Bulgarus, M a r t i n u s . U g o e Jacobus —•
o p r o f e s s o r d e s t e último, I r n e r i u s ( 1 1 3 5 d . C . ) , A z o e V a c a r i u s
( q u e c h e g o u m e s m o a lecionar em O x f o r d ) redigiram copiosos
46 UMA VISÃO G E R A L

glossários, ou notas, b a s e a d o s n a s p a l a v r a s de Justiniano. F o i


d a d o a esse movimento o n o m e de " c o m e n t á r i o s " , f i g u r a n d o
A c c u r s i u s como seu corifeu. N o século X I I I , coube-lhe r e u n i r
t o d o o t r a b a l h o d a escola n u m a l e n t a d o comentário.
Simultaneamente, e s t u d i o s o s d a o r g a n i z a ç ã o i n t e r n a d a
I g r e j a compilavam leis, d e c r e t o s , p a r e c e r e s e decisões d a s a u t o -
r i d a d e s eclesiásticas. E m 1140, mais ou menos, G r a c i a n o publi-
cou seu Concotdantia Discocdantium Canonum ( " A Concor-
d â n c i a d o s C â n o n e s D i s c o r d a n t e s " ) , o n d e tentou sistematizar
e racionalizar a legislação eclesiástica a t é a q u e l a época.
F o r m o u esse t r a b a l h o a primeira seção do C o r p u s Júris C a no-
nici. publicado em 1528 e q u e a t é o século X I X constituiu o
d o c u m e n t o b á s i c o d o direito c a n ó n i c o e. de fato, o f u n d a m e n t o
d e to d a a c o d i f i c a ç ã o f u t u r a d o direito eclesiástico. A p a r t i r daí,
o direito canónico d e s e n v o l v e u - s e p o r d e c r e t o p a p a l , i n t e r p r e -
t a ç ã o oficial e j u l g a m e n t o de litígios n a s cortes eclesiásticas.
A I g r e j a , no e n t a n t o , t e n d o s a l v o o s t e x t o s d o velho direito
r o m a n o e reivindicado o direito de h e r d a r o m a n t o d o velho
Império, verificou q u e lhe c a u s a v a m sérios e m b a r a ç o s a s in-
t e r p r e t a ç õ e s d o primeiro à s m ã o s d e hábeis a d v o g a d o s , a s e r -
viço d e m e r c a d o r e s ou do E s t a d o secular. O s t e x t o s r o m a n o s ,
d a f o r m a i n t e r p r e t a d a por c a n o n i s t a s e pelos próprios decretos,
t e x t o s e p a r e c e r e s d a I g r e j a , o b t i v e r a m primazia p o r legislação:
e m 1180, foi proibido o e s t u d o d o direito civil ( i s t o é, r o m a n o )
a o s m o n g e s e, em 1219, a o s s a c e r d o t e s ; em 1234, H e n r i q u e III
o r d e n o u a o s xerifes d e L o n d r e s q u e f e c h a s s e m a s escolas de
direito civil.
D u r a n t e t o d a a I d a d e M é d i a , a d v o g a d o s canónicos l u t a -
r a m com o p r o b l e m a d e um comércio em florescência. V i m o s
j á q u e o direito r o m a n o , que f o r n e c i a a b a s e ao direito c a n ó -
nico, era simpático a o s interesses d o s m e r c a d o r e s . P a r a os
canonistas, contudo, o p r o b l e m a f u n d a m e n t a l consistia n a c o m -
patibilização d o s t e x t o s r o m a n o s com os e n s i n a m e n t o s morais
d a I g r e j a . U m a religião que s e iniciara como f é d a s vítimas d a
civilização comercial r o m a n a m a n t i v e r a d u r a n t e séculos q u e
ser m e r c a d o r era algo suspeito, se n ã o imoral. O f a t o d e que e s s a
m e s m a I g r e j a a l e g a s s e t a m b é m o direito d e h e r d a r o direito
r o m a n o foi, d u r a n t e t o d a a a s c e n s ã o do capitalismo, o p o n t o
mais f r a c o d e sua a r m a d u r a intelectual.
U m d o s aspectos d o problema era a d i f i c u l d a d e d a I g r e j a
p a r a s a n c i o n a r u m a o r d e m jurídica construída s o b r e o ideal de
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S JURÍDICAS 47

"direito", no s e n t i d o de r e g r a s a l t a m e n t e e s t r u t u r a d a s p a r a
aplicação p o r um rígido sistema de c o r t e s s e c u l a r e s e eclesiás-
ticas. S ã o P a u l o , n a primeira E p i s t o l a a o s Coríntios, pregara
c a r i d a d e , e n ã o justiça, e r e c o m e n d a r a o r e c u r s o à arbitragem
de um p a s t o r ou amigos como s e n d o p r e f e r í v e l a litígios. S a n t o
A g o s t i n h o d i s s e r a a mesma coisa. O dilema s o m e n t e foi resol-
vido n o século X I I . P o r essa época, a revivescência d o direito
r o m a n o t o r n a r a - s e aspecto i m p o r t a n t e d a consolidação d o poder
secular e a u t o r i d a d e d a I g r e j a , q u e a b a n d o n a r a t o d a e qualquer
p r e t e n s ã o d e criar uma c o m u n i d a d e apostólica d e fiéis. C o u b e
a São T o m á s de Aquino defender essa decisão: argumentou
ele q u e o direito romano, c o m o os t r a b a l h o s d e Aristóteles e
o u t r a s o b r a s pré-cristãs, b a s e a v a - s e n a r a z ã o , s e n d o por con-
s e g u i n t e i n d e p e n d e n t e d a crença religiosa.
S u s t e n t a v a a I g r e j a q u e lhe i n t e r e s s a v a s o m e n t e a alma
e d e f i n i a s u a s reivindicações d e p o d e r temporal, bem como
s u a s decisões em casos particulares, com b a s e em tal inte-
resse. N o direito criminal, p o r exemplo, r e s t a u r o u o e x t e n s o
e, p a r a o s t e m p o s , esclarecido direito r o m a n o sobre a q u e s t ã o
d a i n t e n ç ã o : o indivíduo n ã o p o d i a ser p u n i d o por um crime,
a m e n o s q u e tivesse c a p a c i d a d e d e escolher e n t r e o bem e o
mal e. de fato, escolhesse o mal. N ã o e r a m puníveis a s crian-
ças, os d o i d o s ( p u n i d o s já pelo f a t o de serem loucos, di2ia
o t e x t o r o m a n o ) e aqueles que p r a t i c a v a m o mal por acidente.
A p e n a d e prisão, e n s i n a v a a I g r e j a , p o d e r i a ser preferível à
p e n a capital, d e vez que d a v a ao t r a n s g r e s s o r o p o r t u n i d a d e
d e m e d i t a r s o b r e o mal que p r a t i c a r a . E n t r e o r d e n s jurídicas
d o m i n a d a s p e l a s práticas costumeiras de v i n g a n ç a e inimizade
s a n g r e n t a , isso constituía d e f a t o um espírito inovador.
O r i t o processual n a s cortes de direito canónico era mais
r e g u l a r e previsível que n o s a r b i t r á r i o s t r i b u n a i s feudais.
C o n s t i t u í a m p r á t i c a normal a c u s a ç õ e s e d e f e s a s p o r escrito,
e e r a m i g u a l m e n t e mais c o m u n s registros escritos de depoi-
m e n t o s e julgamentos. A s petições iniciais t e n d i a m a pôr em
foco a m a t é r i a em litígio, especialmente em casos comerciais,
a o p a s s o que a t o m a d a de d e p o i m e n t o s permitia a análise d a s
v e r s õ e s a p r e s e n t a d a s por t e s t e m u n h a s d i f e r e n t e s . O s tribunais
c r i s t ã o s a d m i t i a m mesmo a r e p e r g u n t a com a f i n a l i d a d e de
u m a p a r t e i m p u g n a r depoimentos f a v o r á v e i s à o u t r a .
O rito n o j u l g a m e n t o eclesiástico, c o n t u d o , n ã o era uni-
v e r s a l m e n t e aceito. A l g u n s críticos c o n s i d e r a v a m - n o perigoso.
" Q u a l q u e r p e n a servirá p a r a c o n t a r o que quer q u e se deseje",
48 UMA VISÃO G E R A L

observou um n o b r e alemão d u r a n t e um processo. A b u n d a v a m


d o c u m e n t o s , c a r t a s e d o n a t i v o s f o r j a d o s , e a c u s a ç õ e s de f r a u d e
e c h i c a n a eram n ã o r a r o a s s a c a d a s c o n t r a juízes eclesiásticos.
O s c o n t r a t o s d e t a l h a d o s e e x t e n s o s p r e f e r i d o s pelos m e r c a d o r e s ,
em especial n o Sul d a F r a n ç a e n a Itália, p o d e m t e r sido r e d i -
gidos como r e a ç ã o e receio de p e r j ú r i o ou f r a u d e n a s c o r t e s
d e justiça e p a r a evitar a m e n o r d ú v i d a sobre o que na v e r -
d a d e h a v i a sido c o m b i n a d o .
D e p o i s d e julgar d u r a n t e séculos q u e o j u r a m e n t o c o n s -
tituía um sacrilégio e u m a b l a s f ê m i a , a I g r e j a , n o século X I ,
aceitou a opinião d e q u e o d e p o i m e n t o p r e s t a d o s o b j u r a m e n t o
constituía a m a n e i r a mais s a t i s f a t ó r i a d e d e s c o b r i r a v e r d a d e .
O j u r a m e n t o g a r a n t i a a v i n g a n ç a divina c o n t r a o m e n d a z .
A s o l u ç ã o de c o n t e n d a s p o r meio d e d e p o i m e n t o p r e s t a d o s o b
j u r a m e n t o era sem d ú v i d a mais racional do que o j u l g a m e n t o
p o r combate ou por p r o v a ç ã o , que tivera apoio •— j u n t a m e n t e
com o u t r o s meios místicos de descobrir a v e r d a d e — no d i r e i t o
secular d e países inteiros, A I g r e j a estimulou t a m b é m a p e s -
quisa d e o u t r o s meios de a p u r a ç ã o d a v e r d a d e . E m casos cri-
minais. tal opinião conduziu, via g r o t e s c a lógica, à t o r t u r a c o m o
o melhor meio d e induzir o a c u s a d o a t u d o c o n f e s s a r .
E m seus c o n t r a t o s , os m e r c a d o r e s m u i t a s vezes d e s i g n a -
v a m um tribunal eclesiástico como f o r o d e q u a l q u e r e v e n t u a l
d i s p u t a . E , l o g o que a I g r e j a sancionou o j u r a m e n t o , foi o
m e s m o u s a d o t a m b é m p a r a s a c r a m e n t a r n e g ó c i o s e, assim, d e u
aos tribunais d e direito canónico jurisdição s o b r e q u e b r a d e
c o n t r a t o s , h o u v e s s e m o u n ã o o s litigantes resolvido s u b m e t e r
o caso a essa i n s t â n c i a .
O direito c a n ó n i c o a d o t o u em g r a n d e p a r t e a lei r o m a n a
sobre contratos, e m b o r a , mais uma vez, c o l o c a n d o u m a ê n f a s e
t o d a especial n o e l e m e n t o moral d a b a r g a n h a . P a r a o s a d v o -
g a d o s d a I g r e j a , o j u r a m e n t o d e l e a l d a d e constituía um e x e m -
plo ímpar do c o n t r a t o de c u m p r i m e n t o obrigatório e s a n t i f i c a d o .
P r o m e s s a s executórias unilaterais, m e s m o a q u e l a s pelas q u a i s
o p r o m i t e n t e n a d a recebia em troca e que e r a m , por isso m e s m o ,
ilegais d e a c o r d o com a maioria d a s o r d e n s jurídicas seculares,
podiam ter seu c u m p r i m e n t o exigido nos t e r m o s d o direito c a -
nónico. N a v e r d a d e , isso era t ã o comum que. se u m a p r o m e s s a
unilateral f o s s e feita s o b j u r a m e n t o e a q u e l e que a r e c e b e r a
i n t e n t a s s e ação. o p r o m i t e n t e n ã o podia d e f e n d e r - s e com u m a
a l e g a ç ã o contrária, p o r q u a n t o satisfazer a p r o m e s s a c a n c e l a n -
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 49

d o - a com u m a dívida reciproca d e s v i a v a - s e d a letra do jura-


mento do promitente.
O s mosteiros e c o r p o s clericais f o r n e c e r a m t a m b é m os pre-
c e d e n t e s p a r a o restabelecimento d a s s o c i e d a d e s d e mercadores,
o r g a n i z a d a s d e a c o r d o com a lei r o m a n a d e s o c i e d a d e s anôni-
mas. N o s casos em q u e os direitos d e s s e s o r g a n i s m o s eram con-
t e s t a d o s p o r a u t o r i d a d e s seculares, os m e r c a d o r e s recorriam ao
direito r o m a n o .
N u m e r o s o s h i s t o r i a d o r e s discutiram o direito canónico da
I d a d e M é d i a como se dissesse respeito e x c l u s i v a m e n t e ao pro-
blema d a u s u r a — ou empréstimo d e d i n h e i r o a juros . É infeliz
e mal i n f o r m a d a essa visão. O p r ó p r i o P a p a d o , p a r a n ã o m e n -
cionar os milhares d e senhores f e u d a i s eclesiásticos d e menor
e s t a t u r a , era s i m u l t a n e a m e n t e c r e d o r e d e v e d o r d a nascente
classe mercantil. E o direito r o m a n o , r e s s u s c i t a d o em r o u p a g e n s
f clericais, e s t a v a p r o n t o p a r a a b a n d o n a r posições anteriores
q u a n d o o r e c r u d e s c i m e n t o do comércio assim o exigiu. A
respeito d a a n t i g a atitude d a I g r e j a , e s c r e v e u T r a c y W e s t e n :
1 E m 325, o C o n c í l i o d e N i e é l a p r o i b i u a c o b r a n ç a d e j u r o s p o r
| sacerdotes. São Jerônimo e Santo Ambrósio p r e g a r a m contra
o j u r o . N o século V, o P a p a L e ã o a m p l i o u a p r o i b i ç ã o a o s
sacerdotes, utilizando-a para, sobre f u n d a m e n t o s morais, verberar
o s l e i g o s . N o a n o 850, o s l e i g o s q u e c o b r a s s e m u s u r a a r r i s c a -
vam-se à excomunhão. A s capitulares de Carlos M a g n o proibiam
i g u a l m e n t e a c o b r a n ç a d e j u r o s . F i n a l m e n t e , e m 1139, o s e g u n d o
Concílio L a t e r a n o proibiu universalmente a c o b r a n ç a de usura.

M a i s t a l e n t o jurídico foi d e s p e n d i d o n a e l a b o r a ç ã o de meios


p a r a l a d e a r e s s a s proibições, no e n t a n t o , d o q u e em lhes for-
mular o s termos, em especial à m e d i d a q u e crescia a posição d a
I g r e j a como c r e d o r a . E m capítulos seguintes, discutiremos
e s s a s s o n e g a ç õ e s , que ocorriam em n u m e r o s o s países e em
v a r i a d a s ocasiões. O m e r c a d o r n ã o tinha n e c e s s i d a d e d e d e s a f i a r
a s proibições d a I g r e j a e, com isso, a r r i s c a r a a l m a : h a v i a juris-
p r u d ê n c i a suficiente n o s a n a i s d a p r ó p r i a I g r e j a p a r a sugerir
meios d e b u r l a r a s proibições mais rigorosas. E r a muito provável
que a I g r e j a tolerasse a s o n e g a ç ã o p o r p a r t e d o s ricos, uma vez
que t i n h a a l g o a g a n h a r q u a n d o eles o b t i n h a m sucesso em seus
negócios. R . H . T a w n e y , em Religion and the Rise of Capital-
ism. c o m e n t a n o s t e r m o s a seguir a história d a proibição da
u s u r a n o direito canónico:
50 UMA VISÃO G E R A L

A engenhos idade com que a opinião profissional Interpretava


o c ó d i g o c o n s t i t u í a e n i ei p r o v a q u e u m v o l u m e c o n s i d e r á v e l
de negócios — e honorários — era resultado dos mesmos,
porquanto advogados não servem a Deus gratuitamente. Os
canonistas, que t i n h a m m á reputação Junto ao laicato, não
e r a m , p a r a dizer pouco, m a i s I n o c e n t e s q u e os d e m a i s a d v o -
gados n a suave a r t e de f a z e r negócios. O s italianos, e m especial,
como era natural n a capital financeira da Europa, estabeleciam
o r i t m o , e os c a n o n i s t a s d e s s a o r i g e m r e a l i z a r a m prodígios de
engenhosidade jurídica.

" N ã o e n u m e r a r e i os e x p e d i e n t e s u s a d o s pelos a g i o t a s " , e s c r e -


v e u B e a u m a n o i r , " p a r a n ã o d a r conselho a essa g e n t e sobre
c o m o b u r l a r a lei."
A casuística e r a essencial à i n t e r p r e t a ç ã o do direito c a n ó -
nico; o r o d e i o hábil era p r e f e r í v e l à d e s o b e d i ê n c i a direta, pois
e s t a última p u n h a em risco a a l m a d o t r a n s g r e s s o r . A n a s c e n t e
classe mercantil era f r a c a e vivia a t o r m e n t a d a d e m a i s p a r a
a r r i s c a r - s e t a m b é m à a m e a ç a de c o n d e n a ç ã o e t e r n a , que n a -
q u e l a época p a r e c i a b e m real. M a i s t a r d e , já h a v e n d o mais
c o n f i a n ç a n o m u n d o d o s negócios, r e c o r d o u D a n t e u m a d a s
v e r s õ e s s o b r e o destino q u e a g u a r d a v a a " l a m e n t á v e l c a m -
b a d a " de a g i o t a s :
Mais longe ainda fui, ao limite
externo do m e s m o Sétimo Circulo e, s o z i n h a ,
encontrei a lamentável cambada.

Nos seus olhos t r a n s p a r e c i a , visível,


s e u s o f r i m e n t o ; a q u i e ali, d e m ã o s c r u z a d a s ,
agoniavam em melo a chamas,
sobre o chão em brasa.

A I g r e j a d i s p u n h a do p o d e r n ã o só d e e x c o m u n g a r , m a s t a m -
b é m de q u e i m a r no poste de sacrifício, embora este último
c a s t i g o f o s s e r e s e r v a d o p a r a os h e r e g e s ; o s desvios d o u t r i n á -
rios dos m e r c a d o r e s e r a m t r a t a d o s com muito mais b o n d a d e .
A s c o r t e s d e direito canónico, p o r conseguinte, f r e q ü e n -
t e m e n t e resolviam Iitigios sobre ofícios e comércio, b e m como
a s s u n t o s mais o b v i a m e n t e relacionados com a salvação d a a l m a .
C o m o d e s a p a r e c i m e n t o d a s leis d e a p l i c a ç ã o pessoal, t o d o s o s
f o r o s •— f e u d a l , religioso, real — p a s s a r a m a aplicar s u a s p r ó -
p r i a s n o r m a s . N o q u e n ã o era r a r o , u m a lei mais f a v o r á v e l e
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 51

um rito p r o c e s s u a l mais propício p o d i a m a g u a r d a r o querelante


mais n u m a c o r t e do que n a o u t r a . Q u a n d o o comércio se d e s e n -
volveu a p o n t o d e serem realizadas " f e i r a s " em g r a n d e escala
p a r a t r o c a e v e n d a e a s cidades p o r t u á r i a s se t r a n s f o r m a r a m
em c e n t r o s internacionais de comércio, o p r o b l e m a foi solu-
c i o n a d o com a criação, pelos m e r c a d o r e s , d e tribunais priva-
dos. A n t e s , p o r é m , a escolha do f o r o e r a d e crucial impor-
tância e p e r m a n e c e u muito i m p o r t a n t e .
O motivo do conflito sobre " j u r i s d i ç ã o " , o u o p o d e r de
p r o f e r i r j u l g a m e n t o executório, jazia n a n a t u r e z a pessoal da
r e l a ç ã o f e u d a l . U m a decisão judicial d e t e r m i n a n d o que alguém
p a g u e a l g u m a coisa ou e n t r e g u e c e r t a s m e r c a d o r i a s n e n h u m
valor tem, a m e n o s que h a j a meios de a s s e g u r a r seu cumpri-
mento. O v e n c e d o r d a querela precisa t e r à sua disposição a
força d e a l g u é m com a a u t o r i d a d e de um s o b e r a n o a fim de
tomar, p e l a força, s e necessário, aquilo q u e a corte diz que
lhe é devido. O p r o b l e m a e r a q u e a p r o p r i e d a d e f e u d a l n ã o
era " p o s s u í d a " p o r pessoa a l g u m a n o s e n t i d o q u e prevalece
n a s s o c i e d a d e s b u r g u e s a s . T o d a s a s p o s s e s e direitos d e d e s f r u -
te d o vassalo e s t a v a m implicados n a r e l a ç ã o f e u d a l d e lealdade.
O s s e n h o r e s cobiçavam o p o d e r judiciário d o s t r i b u n a i s ecle-
siásticos em t o d a s a s c o n t e n d a s q u e envolviam s e u s v a s s a -
los. A c o n t e c i a isso porque q u a l q u e r o r d e m judicial contra o
réu, d e t e r m i n a n d o que p a g a s s e algutna s o m a ou fizesse algo,
imediata e d i r e t a m e n t e a m e a ç a v a o s direitos superiores do
s e n h o r n a s p o s s e s e serviços d o vassalo, f o s s e e s t e u m agri-
cultor c o m u m o u um p e q u e n o n o b r e q u e e s t a v a s e n d o p r o -
cessado.
E s s a inveja jurisdicional foi o principal motivo d o s con-
flitos e n t r e cortes eclesiásticas, senhoriais e reais d u r a n t e os
séculos t r a n s c o r r i d o s a n t e s q u e a b u r g u e s i a d e r r u b a s s e o s re-
gimes f e u d a i s - r e a i s e p u s e s s e fim a o s p o d e r e s d o s tribunais
canónicos. A atividade judicial significava t a m b é m h o n o r á r i o s
p a r a a classe d o s meirinhos, s u s t e n t a d a por uma classe do-
m i n a n t e c a d a vez mais p r ó s p e r a .
B e a u m a n o i r d á - n o s um e x e m p l o d a coincidência d a s juris-
dições secular e eclesiástica. O caso é simples: um sacerdote
p r o c e s s a u m leigo, v a s s a l o d o d u q u e , c o b r a n d o - l h e v i n t e libras.
O leigo a l e g a q u e já resgatou a dívida. O h , não. r e s p o n d e o
sacerdote, v o c ê p o d e t e r - m e e n t r e g u e vinte libras, mas isso
foi um empréstimo que me fez, e n ã o o p a g a m e n t o de sua
52 UMA VISÃO GERAL

dívida. Q u e r o um j u l g a m e n t o n o t o c a n t e à s m i n h a s v i n t e libras.
Se q u e r receber s u a s v i n t e libras, t e r á que p r o c e s s a r - m e p e r a n t e
meu seigneur m o n á s t i c o em um tribunal eclesiástico. C o n t i n u a
o relato;
Nós, perante quem essas alegações são contestadas, dizemos
a o s a c e r d o t e q u e se ele n ã o r e s p o n d e à a l e g a ç ã o do leigo, d e
q u e lhe e m p r e s t o u a l g o depois de t e r i n c o r r i d o n a d í v i d a de v i n t e
libras, nós não obrigaremos o leigo a pagá-las, pois ele
não estava fazendo uma alegação em contrário quando
disse que havia e m p r e s t a d o o dinheiro com a intenção de
s a l d a r a d í v i d a ; m a s se ele e x i g e d o s a c e r d o t e a l g o d e v i d o
e m u m a ocasião e m q u e a dívida foi c o n t r a í d a , ou se r e c l a m a
dele cavalos ou outros animais, ou cereal e vinho, ou o u t r a s
coisas que não têm ligação com as vinte libras, nós o
obrigaremos a p a g a r essa quantia e a p r e s e n t a r s u a queixa
p e r a n t e a jurisdição do sacerdote.

N e s s a curta d e s c r i ç ã o p o d e m o s e n t r e v e r um g r a n d e v o l u -
m e d a história jurídica medieval. E m primeiro lugar, a p a r e n t e -
m e n t e diz o s a c e r d o t e que a divida de q u e é c r e d o r n ã o pode -
ser s a l d a d a pelo empréstimo que em troca lhe foi feito pelo
d e v e d o r , tendo este, a o q u e t u d o indica, a i n t e n ç ã o d e c l a r a d a
de c o m p e n s a r u m a dívida com o u t r a . O leigo p r o m e t e r a pagar
e o s a c e r d o te l o u v a - s e o s t e n s i v a m e n t e n a r e g r a d e direito
c a n ó n i c o que diz que u m a p r o m e s s a d e v e ser c u m p r i d a d e
a c o r d o com s u a letra. E s s a casuística n ã o f u n c i o n a , todavia,
p o r q u e o que quer q u e as cortes de direito c a n ó n i c o pensem
a respeito, a s cortes seculares n ã o atribuem, como a I g r e j a , a
m e s m a importância à letra d a p r o m e s s a . O s a c e r d o t e o b s e r v a
que, n a realidade, o a c u s a d o leigo fez uma c o n t r a - r e c l a m a -
ção, q u e os tribunais seculares, n u m a região o n d e vigia o direito
costumeiro, n ã o admitiam. D e f a t o , u m a ou d u a s p á g i n a s antes,
havia-nos informado Beaumanoir que "contra-alegações não
são aceitas n a s cortes seculares, c o m o a c o n t e c e n a s c o r t e s
c r is tã s ". N a s seculares, a r e g r a era que A teria q u e p r o c e s s a r
B n a c o r t e do s e n h o r d e B •— o n d e B "couchans" e "levens"
— d o r m e e a c o r d a . N e m A n e m o seigneur d e A tolerariam
q u e o s e n h o r de B j u l g a s s e u m a querela contra A que B
p u d e s s e incluir n o m e s m o processo.
N a s cortes cristãs, por o u t r o lado, a reivindicação d a
I g r e j a d e jurisdição sobre todos os fiéis, pelo m e n o s em c e r t a s
questões, t o r n a v a possível alegações em contrário, e m b o r a n ã o
sem alguma oposição d o s s e n h o r e s seculares. O s a c e r d o t e , em
ANTECEDENTES DAS N O V A S INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 53

c o n s e q ü ê n c i a , c o n h e c e n d o a r e g r a prevalecente n a s cortes secula-


res. u s a - a em proveito próprio, d i z e n d o q u e o leigo d e v e p r o -
cessá-lo p a r a receber seu dinheiro em uma corte cristã, a d m i -
n i s t r a d a pelo seu s e n h o r f e u d a l , ou sob o q u a l e s t á jurisdicio-
n a d o . B e a u m a n o i r percebe b e m a situação, pois estabelece uma
d i s t i n ç ã o e n t r e u m a a l e g a ç ã o c o m p e n s a t ó r i a do q u e é um paga-
mento, t a n t o em efeito como em i n t e n ç ã o , e o u t r o s tipos de
a l e g a ç õ e s que p o d e m ser f e i t a s em sentido c o n t r á r i o .
A I g r e j a foi, c o n f o r m e p r o c u r a m o s sugerir, e corno pro-
v a r e m o s em d e z e n a s d e d i f e r e n t e s p a s s a g e n s abaixo, u m a força
o n i p r e s e n t e n o desenvolvimento f i n a n c e i r o e jurídico d a E u -
r o p a . C o m o m a i o r l a t i f u n d i á r i o , e s t a v a c o m p r o m e t i d a com a
d e f e s a do feudalismo, e com t o d a a sua a u t o r i d a d e auxiliou na
r e p r e s s ã o d a s r e v o l t a s de c a m p o n e s e s que v a r r e r a m o conti-
n e n t e . D e n u n c i a v a como h e r e g e s o u t r a n c a f i a v a em mosteiros
t o d o s a q u e l e s que d e s e j a v a m restabelecer a i m a g e m d e uma
i g r e j a comunal, apostólica.
P e n s a v a f r a n c a m e n t e a I g r e j a que o comércio livre, con-
d u z i d o p o r indivíduos que a n i n g u é m deviam v a s s a l a g e m , ou
q u e e r a m v a s s a l o s a p e n a s em s e n t i d o técnico, era p r o f u n d a -
m e n t e prejudicial à estabilidade social. Se a a n t i g a d o u t r i n a
e n s i n a v a q u e o comércio e r a p e c a d o , a n o v a r e a l i d a d e politica
a l e r t a v a q u e os comerciantes constituíam u m a a m e a ç a a o sistema
f e u d a l . A i n d a assim, a I g r e j a n ã o p o d i a i g n o r a r a g r a n d e riqueza
a c u m u l a d a pelo comércio, pois s o m e n t e e x p l o r a n d o - o podiam
os g o v e r n a n t e s eclesiásticos c o n s t r u i r c a t e d r a i s e u n i v e r s i d a d e s
e viver n o estilo a q u e se h a v i a m a c o s t u m a d o . O s potientores
burgenses p o d i a m ser intoleráveis em certos casos, m a s h á
e x e m p l o s de terem recebido a p o i o d a I g r e j a c o n t r a m o n a r c a s e
s e n h o r e s feudais. E p o r t u d o isso, como t e r e m o s o p o r t u n i d a d e
d e ver, p r o c u r o u ela i n t e g r a r o comércio em sua o r d e m uni-
v e r s a l d e teologia, moral e direito. N e s s e sistema, a p o i a v a - s e
a a l e g a ç ã o d a I g r e j a d e h a v e r r e s s u s c i t a d o o direito r o m a n o .
A I g r e j a t r a d u z i u a " r a z ã o n a t u r a l " r o m a n a como "direito
n a t u r a l " e erigiu D e u s , e n ã o o c o n s e n t i m e n t o comum d a h u -
m a n i d a d e , como á r b i t r o desse direito. D e u s , n o e n t a n t o , r a r a -
m e n t e c o n v e r s a v a em pessoa c o m seres h u m a n o s , o que levou
a casuística dos a d v o g a d o s c a n ó n i c o s a colocar em uso secular
prático esse direito d i v i n a m e n t e s a n c i o n a d o . A I g r e j a exigia
boa fé e e q ü i d a d e n a s t r a n s a ç õ e s ; o s capitalistas e m e r g e n t e s
a p o s s a r a m - s e d e s s e s termos e a l e g a r a m que eles significavam
54 UMA VISÃO GERAL

a b o a fé e a e q ü i d a d e que o m e r c a d o r d e m o n s t r a d e a c o r d o
com o s c o s t u m e s d o m e r c a d o . S e a " h o n r a e n t r e h o m e n s " é a
m á x i m a , m a s o s ladrões estabelecem as regras, e n t ã o a " h o n r a
e n t r e l a d r õ e s " constitui, n a prática, a r e g r a . A I g r e j a t o l e r a v a
a p e n a s o "preço j u s t o " e exigia o p a g a m e n t o d e " s a l á r i o s
j u s t o s " , mas, s e o s laços f e u d a i s fossem d e s t r u í d o s ou debili-
t a d o s e e n t r a s s e m em a ç ã o a s f o r ç a s d o m e r c a d o , " j u s t o "
p o d e r i a f a c i l m e n t e significar "aquilo que o m e r c a d o t o l e r a r á " .

O Direito Real
Pois cada rei é u m a espécie de fonte, d a qual u m a chuva
constante de benefícios ou prejuízos jorra sobre toda a
população.

E s s a c a r a c t e r i z a ç ã o d o p o d e r real, feita por T h o m a s M o r e ,


e m b o r a escrita em 1516, i n i c i a n d o um violento a t a q u e à r e a -
leza, e r a típica do p e n s a m e n t o r e i n a n t e em f i n s d a I d a d e M é d i a .
N o s q u i n h e n t o s a n o s a n t e r i o r e s n ã o h o u v e r a reis no s e n t i d o
m o d e r n o d e um s o b e r a n o d e um território inteiro. A idéia de
p o d e r real, e, em p a r t i c u l a r , de um p o d e r absoluto p a r a f a z e r
a s leis e aplicá-las, começou a d e s e n v o l v e r - s e no s é c u l o X I .
A t r a v é s d e t o d o esse p e r í o d o , a s relações e n t r e a m o n a r q u i a e
o s m e r c a d o r e s f o r a m n a maior p a r t e cordiais, p o r q u a n t o 05
objetivos d e a m b o s e r a m n ã o r a r o servidos pelas m e s m a s p o -
liticas de consolidação.
I m a g i n e m o s o m e r c a d o r de 1150, ou p o r aí, c r u z a n d o a E u -
r o p a em t o d a s a s direções, d a Itália aos P a í s e s - B a i x o s , c o m -
p r a n d o e v e n d e n d o . C o m o 110 caso de o u t r o s poucos comer-
ciantes, sua c a r a v a n a está e q u i p a d a p a r a a v i a g e m e o c o m b a t e .
G u e r r a s p r i v a d a s de v i n g a n ç a e c o n q u i s t a t o r n a m perigosa
a j o r n a d a , p e r i g o este a g r a v a d o pelos a t o s d e b a n d i t i s m o d o s
cavaleiros. N o s châteaux por onde passa, trovadores cantam
l o a s a G i r a r t d e Roussillon. E s s e cavaleiro proscrito v a g a v a
p e l o país em c o m p a n h i a d a e s p o s a q u a n d o e n c o n t r o u um g r u p o
d e mercadores. A e s p o s a de G i r a r t f a z u m a t e n t a t i v a d e d e s -
v i a r a suspeita d o s m e r c a d o r e s , q u e h a v i a m reconhecido a
ainbos. " G i r a r t m o r r e u " , diz ela. " V i q u a n d o foi e n t e r r a d o . "
" D e u s s e j a l o u v a d o " , r e s p o n d e m o s m e r c a d o r e s , " p o i s ele
e s t a v a s e m p r e f a z e n d o g u e r r a e, p o r c a u s a dele. s o f r e m o s
muito." G i r a r t n ã o levava consigo e s p a d a n a ocasião, pois
n e s s e caso tê-los-ia eliminado n a h o r a . A C a n p ã o de Girart
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 55

s u m a r i a a p r o v a ç ã o dos cavaleiros p o b r e s que, no rescaldo d a s


C r u z a d a s , n a d a tinham a f a z e r s e n ã o t r a v a r g u e r r a s p r i v a d a s
e, p o r conseguinte, r o u b a r os m e r c a d o r e s . Justificavam o s assal-
tos c h a m a n d o os m e r c a d o r e s de a g i o t a s e a ç a m b a r c a d o r e s .
A l é m d o s cavaleiros proscritos, os m e r c a d o r e s e n f r e n t a -
v a m c a m i n h o s em mau e s t a d o , t e n d o a s l a r g a s e s t r a d a s e p o n t e s
r o m a n a s muito t e m p o a n t e s caído em ruínas. E . a o c r u z a r o
país, era p r o v á v e l que lhes fossem e x t o r q u i d o s p e d á g i o e im-
p o s t o s por c e n t e n a s de p e q u e n o s seigneurs locais. N o inte-
resse d e s u a s e g u r a n ç a física e d e seus bens, t o d o s os mer-
cadores ambulantes eram também bons combatentes.
O s m e r c a d o r e s e a r t e s ã o s d a s c i d a d e s tiveram igualmente
de l u t a r pelo direito de p r a t i c a r seus ofícios e conduzir t r a n -
s a ç õ e s comerciais. Seus l e v a n t e s c o n t r a seigneurs locais derarn-
Ihes a r e p u t a ç ã o de "hábeis no m a n e j o d a s a r m a s " .
P o u c o s u r p r e e n d e , e n t ã o , que e s s a classe d e comerciante
viesse a d e p e n d e r de p o d e r o s o s s e n h o r e s e protetores. A s cida-
d e s italianas conseguiram a c u m u l a r f o r t u n a s e construir e s q u a -
d r a s s u f i c i e n t e m e n t e p o d e r o s a s p a r a a r r a n c a r d e mãos á r a b e s
o controle d a s r o t a s comerciais d o M e d i t e r r â n e o ; um príncipe,
d u q u e ou d u q u e z a de m e n o r i m p o r t â n c i a podiam conceder
privilégios comerciais a uma c i d a d e s i t u a d a d e n t r o d e seus
domínios: um arcebispo g o v e r n a n t e d e uma c i d a d e a n t i g a podia
p a t r o c i n a r o comércio n o interior d e s u a s m u r a l h a s . O s maio-
res s e n h o r e s "territoriais" — os reis —• e r a m o s amigos mais
d u r a d o u r o s , m a i s firmes e mais ricos d o s m e r c a d o r e s .
O s reis unificaram seus n o b r e s d e m e n o r c a t e g o r i a nas
C r u z a d a s e obtiveram controle de i m p o r t a n t e s c e n t r o s d e co-
mércio n a zona oriental d o M e d i t e r r â n e o . C o m e ç a r a m a insistir
em que s e mantivessem a b e r t a s as e s t r a d a s . O p o d e r de le-
gislar. caído em desuso d e s d e o século I X . ressurgiu a fim
de serem estabelecidos sistemas judiciários e cortes nacionais.
A legislação real proibia g u e r r a s p r i v a d a s , e m b o r a com sucesso
a p e n a s relativo, mas com invariável f i n a l i d a d e d e propósito.
A s cidades, q u e haviam sido inicialmente criações d a s revoltas
b u r g u e s a s e d e concessões d e nobres, f o r a m colocadas sob o
controle e o patrocínio real. R e g u l a m e n t a r a m - s e a s t r a n s a ç õ e s
com o objetivo de d e f e n d e r o s c i d a d ã o s d a concorrência de
e s t r a n g e i r o s e elevar a receita em m o e d a d e o u t r o s países; a
política e x t e r n a d o s m o n a r c a s incluía t a m b é m a n o m e a ç ã o
de cônsules no exterior a fim de p r o t e g e r seus mercadores.
56 UMA VISÃO GERAL

P a r a o m e r c a d o r , o rei p o d i a ser um aliado i m p o r t a n t e ; p a r a


o rei, o m e r c a d o r p o d i a constituir meio i m p o r t a n t e p a r a l e v a n -
tar recursos e a s s e g u r a r um e x c e d e n t e d e o u r o no b a l a n ç o de
p a g a m e n t o s internacionais. Isso p o r q u e , e m b o r a o mecanismo
d o comércio internacional n ã o f o s s e b e m c o m p r e e n d i d o a t é o
século X V I I , logo se c o m p r e e n d e u a i m p o r t â n c i a de um e x c e -
d e n t e líquido em o u r o .
H á uma distinção crucial e n t r e o p o d e r real u n i f i c a d o e
o sistema f e u d a l , que o primeiro inicialmente liderou e, mais
tarde, ajudou a derrubar. A relação feudal repousava na vas-
s a l a g e m pessoal e c o m b i n a v a n u m a ú n i c a p e s s o a ou instituição
os p a p é i s d e p r o p r i e t á r i o e s e n h o r , líder militar e legislador.
E s s a suzerania, com a posse p r ó x i m a e p e s s o a l d a terra, p o d e
ser c o n t r a s t a d a com a idéia d e E s t a d o c o m o u m a e n t i d a d e
s e p a r a d a , s o b e r a n a , com um interesse a p e n a s d i s t a n t e e r e g u l a -
m e n t a d o r sobre a t e r r a .
A s e p a r a ç ã o e n t r e a p r o p r i e d a d e d a t e r r a e o controle
politico direto constituiu um t e m a d o m i n a n t e n a I d a d e M é d i a .
P a r a d a r um e x e m p l o , o mosteiro d e L e r i n s era s e n h o r d e um
v a s t o território, q u e se e s t e n d i a t e r r a a d e n t r o a p a r t i r de
C a n n e s , n a costa Sul do que é h o j e a F r a n ç a . C a m p o n e s e s ,
pequenos nobres e mercadores prestavam vassalagem aos
a b a d e s , litigavam em s u a s cortes d e justiça, p a g a v a m s u a s t a x a s
em espécie e viviam n u m a sociedade p o s s u í d a , g o v e r n a d a c
d e f e n d i d a pelos m o n g e s e seu séquito a r m a d o . E m 1400, n o
e n t a n t o , começou a m u d a r a f u n ç ã o do mosteiro. C o n t r o l a v a
a i n d a g r a n d e e x t e n s ã o d e t e r r a , incluindo cerca d e m e t a d e d a
maior c i d a d e comercial d a região. G r a s s e . O s tribunais, a
f u n ç ã o d e policia e a d e f e s a militar, n o e n t a n t o , h a v i a m p a s -
s a d o p a r a a s m ã o s d e n o b r e s s e c u l a r e s e, a o fim d o século,
cairiam sob o controle d a C o r o a f r a n c e s a . O s m o n g e s t r a n s -
f o r m a r a m - s e em latifundiários, c o b r a n d o a l u g u e r e s em d i n h e i r o
e espécie de a g r i c u l t o r e s e m e r c a d o r e s , e n q u a n t o a l g u m a s f a -
mílias n o b r e s c o n t i n u a v a m a exercer t o d a s a s f u n ç õ e s histó-
r i c a s do direito de suzerania até a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a , c o n -
f i r m a n d o q u e a s reivindicações reais ao p o d e r h a v i a m sido
apenas incompletamente atendidas.
N o século X I I I , jurisconsultos c o m e ç a r a m a c h a m a r o s reis
de " s o b e r a n o s " e atribuir-lhes a a u t o r i d a d e o u t r o r a d e s f r u t a d a
pelos I m p e r a d o r e s , de a c o r d o com o direito r o m a n o . A m á x i m a
d e U l p i a n o , " O que a g r a d a ao rei d e v e ser aceito como lei",
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 57

r e a p a r e c e em B e a u m a n o i r como m á x i m a d o direito costumeiro


— sem m e n ç ã o d e f o n t e •— e a d i s c u s s ã o que faz d a soberania
constitui um d o s primeiros r e c o n h e c i m e n t o s n a F r a n ç a de uni
n o v o tipo d e p o d e r estatal.
É n a I n g l a t e r r a , no e n t a n t o , q u e v a m o s e n c o n t r a r a idéia
mais c l a r a d a tese do direito real e d e sua relação com as
exigências d a classe mercantil e m e r g e n t e . Guilherme, o Bas-
t a r d o . D u q u e d a N o r m a n d i a , l o u v a n d o - s e em uma reivindica-
ção dinástica a o t r o n o da I n g l a t e r r a , cruzou o C a n a l em 1066
e f u n d o u o primeiro E s t a d o m o d e r n o d a E u r o p a . P o r ocasião
d e sua morte, t o r n a r a m - s e m e n o s i m p o r t a n t e s suas possessões
f r a n c e s a s , m a s foi notável a consolidação d o poder central na
I n g l a t e r r a e sua e x t e n s ã o a G a l e s , E s c ó c i a e I r l a n d a n o s séculos
subseqüentes.
C o m o p o d e r d e g o v e r n a r r e f o r ç a d o i m e d i a t a m e n t e pela
exigência de que t o d o s os n o b r e s de m e n o r importância pres-
tassem j u r a m e n t o a c e i t a n d o o rei como seu s e n h o r f e u d a l , e
eles c o m o a r r e n d a t á r i o s d e s u a s t e r r a s — isto é, de toda a
I n g l a t e r r a — surgiu o poder d e p r o m u l g a r leis aplicáveis em
t o d o o reino. P a r a d a r - l h e s cumprimento, servidores reais
substituíram os a g e n t e s f e u d a i s locais, iniciando-se assim a
s e p a r a ç ã o e n t r e feudalismo e p o d e r estatal. A s cortes reais
d i s p u n h a m de a u t o r i d a d e d e ministrar a justiça do rei e come-
çaram por v a l i d a r o d e s p e j o f o r ç a d o de n u m e r o s o s n o b r e s que
h a v i a m a d e r i d o à c a u s a do rival de G u i l h e r m e .
C o m e s s a s m e d i d a s , f o r a m d e r r u b a d a s a s b a r r e i r a s feudais
ao comércio, e m b o r a diversos séculos tivessem a i n d a que trans-
correr a n t e s q u e as cortes r e a i s elaborassem e aplicassem leis
que lembrassem m e s m o de longe a s idéias d o século X V I I I
sobre c o n t r a t o s , p r o p r i e d a d e e rito processual.
Surgiu, principalmente n a s cidades, u m a classe de mer-
c a d o r e s e a r t e s ã o s que começou a d e s e n v o l v e r - s e s e p a r a d a -
m e n t e d a economia senhorial d u r a n t e o r e i n a d o do Rei João
( 1 1 9 9 - 1 2 1 6 ) . A o longo d e um p e r í o d o de séculos, b u r g u e s e s
u r b a n o s e s t a b e l e c e r a m - s e em t e r r a s n o m i n a l m e n t e de proprie-
d a d e de b a r õ e s feudais, mas, n a realidade, c a d a vez mais contro-
l a d a s pela C o r o a e seus servidores. N o século X I I I , a "cidade"
era c o n s i d e r a d a a soma d e t o d o s os seus habitantes de igual
status, muito e m b o r a mais t a r d e a centralização da riqueza e
d o p o d e r n a s mãos de uns poucos m e r c a d o r e s e e m p r e g a d o r e s
desse origem à s e p a r a ç ã o d a " c i d a d e " — a e n t i d a d e legal go-
v e r n a d a por esses ricos indivíduos .— d a totalidade de seus re-

i - r> A.c.
58 UMA VISÃO GERAL

sidentes. O mutiicipium, a r g u m e n t a v a m os a d v o g a d o s , c i t a n d o
a p a s s a g e m s o b r e p e s s o a s jurídicas e n c o n t r a d a n o s t r a b a l h o s
do jurisconsulto r o m a n o U l p i a n o . é u m a e n t i d a d e legal com
o p o d e r de f i r m a r contratos, v e n d e r s u a s t e r r a s em beneficio
d o governo local e p r o m u l g a r s u a s p r ó p r i a s leis.
E n q u a n t o o " d i r e i t o c o s t u m e i r o " inglês, a p l i c a d o p e l a s
c o r t e s reais, p r o p o r c i o n a v a a p e n a s e s c a s s a e t o r t u o s a assis-
tência a o m e r c a d o r envolvido em q u e r e l a s s o b r e contratos,
o u t r a s cortes, q u e iam b u s c a r s u a s leis n o s c o s t u m e s mercantis,
e r a m criadas com a s b ê n ç ã o s d a C o r o a . Q u a n d o , p o r exemplo,
a C o r o a a u t o r i z a v a u m a f e i r a comercial, a t r a i n d o m e r c a d o r e s
d e n u m e r o s o s países, a u t o r i z a v a i g u a l m e n t e a c r i a ç ã o de uma
c o r t e d a f e i r a " p a r a solucionar litígios q u e p o r v e n t u r a viessem
a surgir e n t r e os m e r c a d o r e s d u r a n t e o acontecimento. N a s
g r a n d e s c i d a d e s do C a n a l , inicialmente cinco e c h a m a d a s no
século X I d e C i n q u e Pocts — D o v e r , H a s t i n g s , H y t h e , R o m n e y
e S a n d w i c h — f o r a m criadas, p o r servidores p o r t u á r i o s e s o b
auspícios reais, cortes de direito marítimo e mercantil.
E m 1361, em um p r o c e s s o j u l g a d o n u m a c i d a d e p o r t u á r i a ,
o a c u s a d o t e n t o u d e f e n d e r - s e d e u m direito a l e g a d o c o n t r a ele
i n v o c a n d o a s f o r m a s de j u l g a m e n t o do direito costumeiro. A
c o r t e rejeitou as r a z õ e s do réu, " d e vez que esta corte, que é
p a r t e do c a r g o d o almirante, n ã o s e r á t ã o e s t r i t a m e n t e g o v e r -
n a d a , como a s d e m a i s cortes d o r e i n o o são, pelo direito c o s t u -
m e i r o d a t e r r a , m a s g o v e r n a d a p e l a e q ü i d a d e e pelo direito
marítimo, s e g u n d o o q u a l todos o s h o m e n s p o d e m c o n t a r sua
h i s t ó r i a . . . e c o n t á - l a d a melhor f o r m a que p u d e r e m " em
sua defesa.
O s princípios básicos do direito marítimo e comercial —
o q u e equivalia à m e s m a coisa em um pais tão d e p e n d e n t e d o
comércio por m a r —• r e p r e s e n t a r a m g r a n d e s invasões n o s d o -
mínios d o direito costumeiro, embora a o c u p a ç ã o n ã o se comple-
t a s s e até os s a n g r e n t o s e t u m u l t u o s o s l e v a n t e s d o século X V I I .
C o m a l g u m a s variações, o m o d e l o inglês foi imitado p o r
o u t r o s p a í s e s : estabelecia-se u m a aliança e n t r e a C o r o a e o s
m e r c a d o r e s , a p o i a n d o estes últimos o p o d e r legislativo e j u d i -
ciário da primeira com a f i n a l i d a d e de o b t e r a p r o m u l g a ç ã o d e
leis favoráveis ao comércio em u m a g r a n d e á r e a . O s m e r c a -
d o r e s s a l d a r a m a dívida m e d i a n t e p a g a m e n t o d e impostos e
direitos a d u a n e i r o s e, em n u m e r o s o s casos, f a z e n d o imensos
empréstimos à C o r o a p a r a que esta desse p r o s s e g u i m e n t o à
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDIC-AS 59

politica militar n o exterior. P o r seu turno, essas politicas


p o d i a m — e e m geral o faziam — b e n e f i c i a r os mercadores
do país.
A E s c ó c i a constitui um bom e x e m p l o d e s s e fenômeno,
de vez que a relativa riqueza d e s u a s c i d a d e s literalmente
sustentou a m o n a r q u i a d u r a n t e o s longos a n o s de luta com a
I n g l a t e r r a , e p o r q u e o direito escocês inspirou-se p r o f u n d a -
m e n t e em idéias r o m a n a s e inglesas. A E s c ó c i a era, com f r e -
qüência, vítima d e invasões p o r m a r , t o r n a n d o - s e i m p o r t a n t e s
suas c i d a d e s costeiras p o r volta do século X I , n u m exemplo
d e l o c a l i d a d e s que a d q u i r e m u m a situação especial devido à s
n e c e s s i d a d e s m o n á r q u i c a s de d e f e s a ou a m b i ç ã o territorial.
S i m u l t a n e a m e n t e , a m o n a r q u i a consolidou o controle sobre os
clãs e estabeleceu o princípio d e sucessão hereditária. A t r a v é s
d a s cidades, m u i t a s vezes servindo como intermediários merca-
dores f l a m e n g o s e ingleses, p a s s a v a m a s e x p o r t a ç õ e s de lã.
c o u r o s e p e i x e s d o pais, i m p o r t a n d o - s e b e n s d e c o n s u m o sim-
ples, p r i n c i p a l m e n t e d a H o l a n d a . A importância econômica d a s
c i d a d e s foi reconhecida em u m a série de leis reais, c o n c e d e n d o -
lhes a u t o g o v e r n o e poder monopolista sobre a s e x p o r t a ç õ e s t,
por o u t r o l a d o , estabelecendo a c o b r a n ç a de i m p o s t o s e direitos
a d u a n e i r o s . F o r a m elas igualmente r e c o n h e c i d a s pelo p a r l a -
m e n t o escocês e, p o r volta d o século X V , seus r e p r e s e n t a n t e s
d e s f r u t a v a m status igual ao d o s b a r õ e s feudais. A q u i l o que o
costume e s t a b e l e c e r a a C o r o a t r a n s f o r m o u em lei. E m 1504, a
legislação d i s p u n h a que só a q u e l e s que fossem mercadores
p o d e r i a m exercer c a r g o s n a s cidades.
A Escócia estabeleceu uma o r d e m jurídica s e p a r a d a da
vigente na I n g l a t e r r a , tendo m a n t i d o com a F r a n ç a uma aliança
d e s d e 1295. C o m essa c h a m a d a " A l i a n ç a A u l d " veio a erudição
jurídica f r a n c e s a , e em textos legais escoceses d e p a r a m o s , tanto
n a q u e l e s r e d i g i d o s p o r a u t o r e s locais como em a t o s d o parla-
m e n t o d o país. uma g r a n d e familiaridade com os direitos r o m a n o
e canónico. A n t e s d a união com a I n g l a t e r r a , e em g r a n d e p a r t e
até hoje, a E s c ó c i a aplicava r e g r a s d e r i v a d a s do direito romano.
P a r a os m e r c a d o r e s das cidades, p o r conseguinte, a aliança
com a C o r o a significava n ã o só privilégios especiais, mas leis
favoráveis, p r o m u l g a d a s e a p l i c a d a s sob patrocínio real.
O que v e m o s aqui é que a s aspirações d a C o r o a a con-
trole territorial coincidiam com a s necessidades s e n t i d a s pelos
m e r c a d o r e s de uma á r e a comercial u n i f i c a d a . A aliança aubse-
60 UMA VISÃO G E R A L

q u e n t e constituiu um f a t o r crucia) no p o d e r legislativo d a emer-


g e n t e classe b u r g u e s a e na evolução d a economia mercantil
p a r a a industrial- A aliança jamais foi invariavelmente pacífica,
pois com a a j u d a d a C o r o a v i n h a t a m b é m o controle, fosse
n a f o r m a de "capitalismo e s t a t a l " dos T u d o r s ingleses, fosse n a
f o r m a de p e s a d a t a x a ç ã o i m p o s t a pelos B o u r b o n s f r a n c e s e s .
T a i s m e d i d a s irritaram o s n ã o p r o t e g i d o s , que se a f a s t a r a m d a
e s f e r a real de p r o t e ç ã o e construíram posições de p o d e r , d a s
q u a i s p r o c u r a r a m d e r r u b a r o sistema d e privilégios p a t r o c i n a d o
p e l a C o r o a , ou p e s a r a m s o b r e a classe como um todo, f o m e n -
t a n d o o i r a d o d e s c o n t e n t a m e n t o e g e r a n d o o e n s i n a m e n t o de
que b o n s g o v e r n o s g o v e r n a m p o u c o na á r e a d o s a s s u n t o s
financeiros.

O Direito Comercial
D i f e r e n t e s o r d e n s jurídicas p a r a classes d i f e r e n t e s n a d a
tinham de e s t r a n h o n a I d a d e M é d i a —• o u n ã o mais que os
d i f e r e n t e s sistemas i m p l a n t a d o s em d i f e r e n t e s b a s e s territoriais.
O s nobres tinham direitos extras; o s religiosos possuíam seu
p r ó p r i o c o n j u n t o de privilégios. A p a l a v r a "privilégio" a p a r e c e
com g r a n d e f r e q ü ê n c i a n a s compilações jurisprudenciais, em
constituições e textos legais, e em geral d e n o t a v a a c e s s o a uma
c o r t e especial ou direito à aplicação d e um preceito especial
f a v o r á v e l da lei. A s compilações d e A m i e n s u s a v a m - n a p a r a
descrever aqueles que t i n h a m o "privilégio" d e i n t e n t a r e m ação
e serem p r o c e s s a d o s em c o r t e real, o n d e os a g u a r d a v a uma
justiça mais sistemática e m e n o s s u j e i t a a a t r a s o s .
Assim, n ã o n o s d e v e c a u s a r s u r p r e s a descobrir que os mer-
c a d o r e s d i s p u n h a m de uma lei própria, t r a z i d a de volta à E u -
ropa com o r e n a s c i m e n t o do comércio. O "direito comercial"
constituía uma f o r m a de direito internacional, c u j o s elementos
f u n d a m e n t a i s eram a facilidade com que permitia que a s p a r t e s
e n t r a s s e m em c o n t r a t o s executórios, a ê n f a s e n a s e g u r a n ç a d o s
c o n t r a t o s e a v a r i e d a d e de e x p e d i e n t e s que c o n t i n h a p a r a o
estabelecimento, t r a n s m i s s ã o e recebimento de créditos.
D u r a n t e t oda a I d a d e M é d i a , a aplicação do direito comer-
cial a querelas sobre comércio disseminou-se p e l a s cortes real,
eclesiástica e mesmo p e l a s feudais. N o que i n t e r e s s a v a ao
m e r c a d o r e comerciante internacional, era i n d i s p e n s á v e l . E r a .
pelo menos em teoria, u n i f o r m e m e n t e aplicada a t r a n s a ç õ e s
e n t r e h o m e n s de negócio de todas a s nações. C o m o tal, conso-
ANTECEDENTES DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 61

lidou a consciência d o b u r g u ê s d e que era m e m b r o de uma


classe. A t r a n s f o r m a ç ã o desse direito internacional em direito
nacional deve, por força, constituir um d o s principais t e m a s de
nossa discussão.
T a l v e z a mais próxima a n a l o g i a com e s s a situação seja a
do at u a l direito marítimo. Se n a v i o s h o l a n d e s e s e ingleses coli-
dem em a l t o m a r e daí resulta um processo, q u a l q u e r corte —
inglesa, h o l a n d e s a , ou outra q u a l q u e r — aplicará o direito m a -
rítimo, um corpo de direito i n t e r n a c i o n a l costumeiro n o s casos
em q u e n ã o foi m o d i f i c a d o p o r t r a t a d o s . D i r i m e a lei questões
que v a r i a m de r e g r a s que se aplicam à s r o t a s marítimas aos
direitos d a tripulação à p r o p r i e d a d e d a c a r g a e à s n o r m a s sobre
a l i j a m e n t o d e c a r g a n a e v e n t u a l i d a d e d e crise a b o r d o . A pró-
pria u n i v e r s a l i d a d e d e tal lei estimula a submissão de querelas
desses tipos a tribunais especiais d e a r b i t r a g e m , e n ã o a cortes
cujos juízes talvez n ã o sejam especialistas n a s c o m p l e x i d a d e s
do direito marítimo. A l g u n s países possuem tribunais especiais
de jurisdição marítima. O s mesmos a s p e c t o s caracterizaram o
direito comercial.
E m 1662, as cortes inglesas p a s s a r a m a citar m e r c a d o r e s
p a r a q u e p r e s t a s s e m d e p o i m e n t o s sobre seus costumes e, des-
tarte, a s auxiliassem a resolver c o n t e n d a s judiciais. E m fins do
século X V I I I , f a l a n d o em n o m e do T r i b u n a l Superior de Jus-
tiça, d i s s e L o r d e M a n s f i e l d que o direito comercial n ã o cons-
tituía um direito especial, costumeiro, ou inusitado, mas era
conhecido e seria aplicado p o r todos os juízes de S u a M a j e s -
t a d e : " O direito comercial é a lei d a t e r r a " .

O Direito N a t u r a l
O "direito n a t u r a l " , n a f o r m a como essa e x p r e s s ã o veio
a ser u s a d a pela burguesia, significava s a n ç ã o divina p a r a o
uso, de certa maneira, d a força e d a violência. A idéia d e que
direito n a t u r a l poderia significar a l g o d i f e r e n t e d a reivindica-
ção d a I g r e j a Católica R o m a n a à s a n ç ã o divina p a r a s u a s pró-
prias leis r e t r o a g i a a o s levantes c o m u n a i s u r b a n o s dos séculos
X I e X I I , q u a n d o certo n ú m e r o de revolucionários, em g r a n d e
n ú m e r o de c i d a d e s em t oda a E u r o p a , uniu-se p a r a estabelecer
o direito de negociar d e n t r o d e certa á r e a , ocasião em que sc
vincularam entre si p o r um j u r a m e n t o comum. I n v o c a n d o o
nome d e D e u s , p r o m e t e r a m que p e r m a n e c e r i a m juntos, como
um único corpo. E s s a elementar reivindicação à sanção divina
62 UMA VISÃO GERAL

constituiu o inicio d a b u r g u e s i a , a burgens, o ideai b u r g u ê s de


direito n a t u r a l , em oposição à q u e l e d a s h i e r a r q u i a s eclesiástica
e feudal.
O d e s e n v o l v i m e n t o d e l i b e r a d o d e um direito n a t u r a l se-
cularizado iniciou-se um p o u c o depois, no e n t a n t o . N o século
X V I . em B o u r g e s , um g r u p o sob a l i d e r a n ç a d e C u j a s começou
a r e i n t e r p r e t a r o s t e x t o s r o m a n o s à luz d o " h u m a n i s m o " e sob
a influência d a filosofia d a R e n a s c e n ç a . S i m u l t a n e a m e n t e , em
G e n e b r a , C a l v i n o e seus a d e p t o s t e n t a v a m f u n d a r um E s t a d o
eclesiástico que h a r m o n i z a s s e a V u l g a t a d o E v a n g e l h o com a
b u s c a d a riqueza. O s p r o t e s t a n t e s r a d i c a i s q u e em s e g u i d a s u r -
giram em G e n e b r a , n a F r a n ç a , nos P a í s e s - B a i x o s e n a I n g l a -
t e r r a r e f i n a r a m e d e s e n v o l v e r a m a idéia d e u m a o r d e m a x i o -
mática d o universo, d e t e r m i n a n d o a l i b e r d a d e d e c o n t r a t o e a
propriedade.
N o s séculos X V I I e X V I I I , u m a s u c e s s ã o d e escritores
f u n d i u essa f o r m a d e direito n a t u r a l com o s princípios do di-
reito comercial r o m a n o . D o m a t , c u j a o b r a Les Loix civiles dans
leur ordre naturel foi escrita e n t r e 1689 e 1697, p r o c l a m a v a que
o direito r o m a n o , d a f o r m a r e i n t e r p r e t a d a n a F r a n ç a , c o n t i n h a
" o direito n a t u r a l e a r a z ã o escrita".
N a Escócia do século X V I I . L o r d e S t a i r publicou The
Institutions of the Law of Scotland, um t r a t a d o b a s e a d a no
direito n a t u r a l e q u e se louvava no r e n a s c i d o direito r o m a n o .
Zeiller, um a u s t r í a c o n a s c i d o em 1754, publicou Das natucliche
Privat-Recht em princípios d o século X I X , r e l a t i v a m e n t e t a r d e
m a s a tempo de p r o d u z i r u m i m p a c t o sobre o C ó d i g o Civil
a u s t r í a c o de 1811. d o qual ele foi o principal r e d a t o r . O Law
of Nature and of Nations, de P u f e n d o r f . foi t r a d u z i d o em nu-
m e r o s a s línguas, v i n d o à luz na I n g l a t e r r a em 1722. O s t r a -
b a l h o s de H u g o G r o t i u s , p r o c l a m a n d o o c o n t r a t o social, a liber-
d a d e dos m a r e s a t o d a s a s nações marítimas e o s princípios do
livre comércio, s u r g i r a m n o s primeiros a n o s d o século X V I I .
E s s e c o n j u n t o de d a t a s e países r e f l e t e a e f u s ã o , a p a r t i r
do século X V I , d e prodigiosos e s f o r ç o s p a r a f o r m u l a r e justi-
f i c a r uma o r d e m jurídica que satisfizesse à s n e c e s s i d a d e s de
u m a p r ó s p e r a e p o d e r o s a classe mercantil. T a i s e s f o r ç o s a s s e n -
t a v a m - s e em velhos c o s t u m e s e, com maior f r e q ü ê n c i a , no
" r e d e s c o b e r t o " direito r o m a n o . P r e n u n c i a v a m a liquidação d a s
obrigações f e u d a i s e a criação de sociedades civis b a s e a d a s n a
A N T E C E D E N T E S DAS NOVAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS 63

l i b e r d a d e de c o n t r a t o e n a p r o p r i e d a d e . P u s e r a m era movi-
m e n t o a o n d a d e legislação que se seguiu p a r a a s s e g u r a r esses
fins, que a c o m p a n h a r a m , e eram necessários p a r a p r o m o v e r a s
revoluções b u r g u e s a s .
E r a e v i d e n t e e poderosa a c o m b i n a ç ã o de história e ideo-
logia. A classe cujos interesses esses a u t o r e s r e p r e s e n t a v a m
queria assumir o poder e jâ estava c o n v e n c i d a —' ou logo
depois o seria — d a n e c e s s i d a d e histórica de fazê-lo. A i n d a
assim, tal mistura c o n f i r m a a v e r d a d e de q u e a s revoluções n ã o
eliminam t o d a s a s velhas instituições, mas c o n s e r v a m dois tipos
de n o r m a s d e r i v a d a s do p a s s a d o : a s q u e r e f l e t e m concessões
a r r a n c a d a s d o velho regime pela n o v a classe vitoriosa e aquelas
que — como n o c a s o d o s c o s t u m e s matrimoniais n a F r a n ç a •—
tranqüilizam o povo, d i z e n d o q u e n a d a d e d e m a s i a d o drástico
foi feito. D e p o i s de ter o p o v o feito seu t r a b a l h o na e x p u l s ã o
d o velho regime pela f o r ç a d a s armas, a n o v a o r d e m necessita
d e preceitos p a r a obrigar a m a s s a a voltar a seus lares e cessar
a luta a n t e s que a revolução p o n h a em risco o s interesses d a
n o v a classe d o m i n a n t e . A r e a ç ã o cromweiliana c o n t r a os nive-
l a d o r e s e o T e r r o r B r a n c o d a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a constituem
dois e x e m p l o s d e tal situação. T e r e m o s mais t a r d e ocasião de
a n a l i s a r a p r o c l a m a ç ã o do C ó d i g o de N a p o l e ã o , que habilmente
combinou n a retórica de um Conseil d ' E t a t s o l i d a m e n t e b o n a -
p a r t i s t a os ideais d o direito n a t u r a l d a Revolução, com g a r a n t i a s
d e que. e m b o r a t u d o h o u v e s s e m u d a d o , t u d o permaneceria
n a mesma.
SEGUNDA PARTE

Os M e r c a d o r e s
à P r o c u r a de u m L u g a r
na Ordem Feudal
(1000-1200)
3

Introdução

C o r t a r a história em f a t i a s é a r r i s c a d o . Se dissésse-
mos que, d e um m o d o geral, n o a n o 1000 a economia d a E u r o p a
O c i d e n t a l era agrícola e pastoril, p r e c i s a r í a m o s a c r e s c e n t a r que,
no m e s m o ano, cidades como V e n e z a e A m a l f i e m p e n h a v a m - s e
em ativo comércio com Bizâncio e o u t r o s países, c r u z a n d o seus
navios o M e d i t e r r â n e o e n t r e C o n s t a n t i n o p l a e A l e x a n d r i a ,
v e n d e n d o escravos e outros artigos e c o m p r a n d o p r o d u t o s de
f a b r i c a ç ã o bizantina e m e r c a d o r i a s de luxo t r a z i d a s do O r i e n t e
a t r a v é s de r o t a s terrestres. H o u v e uma p r o f u n d a m u d a n ç a no
tipo de comércio e, por conseguinte, n a v i d a b u r g u e s a n a E u -
r o p a O c i d e n t a l e n t r e os a n o s 1000 e 1200. P o d e m o s sem difi-
c u l d a d e e n u m e r a r tais m u d a n ç a s : a a b e r t u r a de r o t a s de comér-
cio d o O r i e n t e p a r a a Itália, e d a Itália p a r a o O c i d e n t e , por
t o d a a E u r o p a : o direito comercial f a v o r á v e l , que continuou a
e x p a n d i r - s e ; a r e o r g a n i z a ç ã o da p r o d u ç ã o agrícola p a r a a u m e n -
tar a p r o d u t i v i d a d e : e os l e v a n t e s b u r g u e s e s em d e z e n a s de
c e n t r o s u r b a n o s com o objetivo de o b t e r a l i b e r d a d e de p a r t i -
l h a r d o s lucros d o comércio.
A s C r u z a d a s , b e n e f i c i a d a s pelo p o d e r marítimo d a s cida-
d e s - e s t a d o s italianas, abriram uma nova f a s e n o comércio euro-
peu ocidental. O s italianos substituíram os á r a b e s e bizantinos
como principais n a v e g a d o r e s no M e d i t e r r â n e o O r i e n t a l . A Itália
t r a n s f o r m o u - s e n u m elo de ligação: e n t r e p o s t o p a r a b e n s orien-
tais que e r a m t r a n s p o r t a d o s p a r a o O c i d e n t e e p a r a bens oci-
d e n t a i s que se e n c a m i n h a v a m p a r a o O r i e n t e , bem como b a n -
queira d e m e r c a d o r e s , seigneurs, príncipes e n u m e r o s a s o u t r a s
p e r s o n a l i d a d e s i n t e r e s s a d a s no comércio. N a F r a n ç a , I n g l a -
terra, P a í s e s - B a i x o s e região bãltica, surgiram novos sistemas
68 À PROCURA DE UM I.LIGAR NA ORDEM FEUDAL

de troca e distribuição. P r o c e d e n t e s d a Itália, b e n s eram leva-


d o s p a r a o N o r t e e t r o c a d o s por m e r c a d o r i a s originárias dessa
região. E s s e comércio era r e a l i z a d o em m e r c a d o s e feiras, a
mais imp o r ta n te d a s quais tinha lugar em C h a m p a g n e , a 2 0 0
quilômetros de Paris, Q u a t r o p e q u e n a s c i d a d e s — L a g n y , B a r -
s u r - A u b e , Provins e T r o y e s — p r o m o v i a m uma série d e f e i r a s
d u r a n t e todo o ano. T e c i d o s f l a m e n g o s , f a b r i c a d o s com lã esco-
cesa, trigo, vinho e p a n o s f r a n c e s e s , m a d e i r a , velas, f e r r o e
c o b r e e s c a n d i n a v o s e lã inglesa constituíam os principais b e n s
g e r a d o r e s de r e n d a na E u r o p a O c i d e n t a l . A r t i g o s de l u x o —
especiarias, sedas, o u r o e jóias — eram os principais a r t i g o s
i m p o r t a d o s do O r i e n t e .
C o m o desenvolvimento d a s t r a n s a ç õ e s ocorreu u m a re-
vitalização do direito comercial sob as f o r m a s do r e d e s c o b e r t o
direito r o m a n o e d o direito mercantil p r a t i c a d o em f e i r a s e
m e r c a d o s . V e r e m o s que essa r e s t a u r a ç ã o foi e s t i m u l a d a p e l a s
C r u z a d a s , p o r q u a n t o o I m p é r i o Bizantino e as civilizações
á r a b e s h a v i a m - s e constituído em repositórios d a e r u d i ç ã o jurí-
dica e da prática mercantil r o m a n a , que h a v i a m caído em d e s u s o
no O c i d e n t e . P o d e m o s t r a ç a r a s origens, a n o por a n o e, g r a ç a s
à sobrevivência de n u m e r o s o s d o c u m e n t o s valiosos, q u a s e q u e
c o n t r a t o por contrato, d a crescente sofisticação dos m e r c a d o r e s
e seus a d v o g a d o s n a institucionalização dos preceitos legais
essenciais a seu sucesso, O s p o n t o s focais de tal d e s e n v o l v i m e n t o
f o r a m a s c i d a d e s - e s t a d o s comerciais italianas e o u t r a s ao l o n g o
d o litoral do M e d i t e r r â n e o , as primeiras a serem b a f e j a d a s pelo
d e s e n v o l v i m e n t o d o comércio a p ó s as C r u z a d a s .
N a esfera da a g r i c u l t u r a e de o u t r a s atividades econômicas
" p r i m á r i a s " , ocorreram, e n t r e os a n o s 1000 e 1200, g r a n d e s
a u m e n t o s na p r o d u ç ã o a b s o l u t a e na p r o d u ç ã o individual. N ã o
a p e n a s a u m e n t o u a á r e a total s o b cultivo, mas os seigneurs —
principalmente eclesiásticos •— f o m e n t a r a m os novos m é t o d o s
agrícolas. M i n a s e florestas c o m e ç a r a m a ser sistematicamente
e x p l o r a d a s . D e d u a s m a n e i r a s i m p o r t a n t e s essas a t i v i d a d e s p r o -
d u z i r a m um e x c e d e n t e acima d a s necessidades do c o n s u m o local
e alimentaram o crescimento do comércio. E m primeiro l u g a r ,
já h a v i a nesse período algo mais do que a p e n a s ouro e p r a t a
p a r a trocar por b e n s p r o c e d e n t e s do O r i e n t e . E m s e g u n d o lugar,
o s lucros produzidos p e l a v e n d a desses b e n s eram a p l i c a d o s
pela Igreja, pela b u r g u e s i a e {em menor e x t e n s ã o ) pelos seig-
nettrs p a r a f o m e n t a r o desenvolvimento d a e d u c a ç ã o jurídica e
INTRODUÇÃO 69

s u s t e n t a r uma crescente classe de a d v o g a d o s e o u t r o s profissio-


nais liberais.
A e x p a n s ã o do comércio e a s e p a r a ç ã o d a s a t i v i d a d e s ar-
t e s a n a i s d a s agrícolas deu força à exigência de que a r t e s ã o s e
m e r c a d o r e s tivessem status legal s e p a r a d o ~ n e m s e n h o r nem
v a s s a l o . A p a l a v r a " b u r g u ê s " , como emblema de tal status.
surgiu em uma Constituição de 1007. A l g u n s seigneurs. perce-
b e n d o que podiam lucrar com a p r o m o ç ã o d o comércio, acede-
r a m a e s s a s exigências. A maioria, n o e n t a n t o , n ã o se mostrou
t ã o flexível e cedeu a p e n a s d e p o i s de c h o q u e s a r m a d o s com os
m o r a d o r e s d a s cidades. A s c i d a d e s n a s q u a i s a b u r g u e s i a havia
a d q u i r i d o c e r t o g r a u de i s e n ç ã o d a s restrições f e u d a i s t r a n s -
f o r m a r a m - s e em p o n t o s nodais ao longo d a s r o t a s de comércio.
E p e r m a n e c e r a m como focos d e d e s c o n t e n t a m e n t o em relação
a o direito feudal.
E s t u d a r e m o s abaixo esses q u a t r o temas — o crescimento
d o comércio, a d i f u s ã o do direito comercial, a sistematização
d a p r o d u ç ã o agrícola e os l e v a n t e s b u r g u e s e s — e d e m o n s t r a -
r e m o s o que foi a força u n i f i c a d o r a d a ideologia jurídica n a
luta da burguesia. E m n o s s a discussão, e n f a t i z a r e m o s o caráter
primitivo d a s relações sociais e ideologia b u r g u e s a . N e s s e está-
gio inicial, a ideologia era o b r i g a d a pela tecnologia de p r o d u ç ã o
a p r o c u r a r um l u g a r p a r a e m p r e s a s cooperativas, em p e q u e n a
escala, e p a r a expedientes r e l a t i v a m e n t e simples d e comércio.
O s b u r g u e s e s queriam que se r e c o n h e c e s s e uma classe teorica-
m e n t e h o m o g ê n e a d e t r a b a l h a d o r e s , proprietários, v e n d e d o r e s
e c o m p r a d o r e s — muitos d o s q u a i s e r a m a n t i g o s servos — que
d e s e j a v a m , de um m o d o geral, r e f o r m a r , e n ã o d e r r u b a r , a socie-
d a d e f e u d a l . O s p r o f u n d o s e violentos a n t a g o n i s m o s entre os
elementos dessa nova classe e a c o m p r e e n s ã o de seu conflito
irremediável com a e s t r u t u r a f e u d a l viriam depois.
As Cruzadas:
A Captura das Rotas de Comércio
e a Disseminação da
Ideologia Burguesa

E m b o r a s e j a m v a r i a d o s o s motivos e os meios que


inspiraram o s c r u z a d o s , s ã o b e m claros os r e s u l t a d o s de d u -
z e n t o s a n o s de l u t a s n a T e r r a S a n t a , visíveis todos eles n o
m a p a do M e d i t e r r â n e o , n a história d e m e r c a d o r e s , n a v e g a -
d o r e s e b a n q u e i r o s italianos, e n a revivescência d o direito co-
mercial n a Itália e Sul d a F r a n ç a e. a p a r t i r daí, no N o r t e e
O e s t e . E m s u m a . a s C r u z a d a s constituíram acontecimentos d e
importância crucial n a r e f o r m a d a E u r o p a O c i d e n t a l p o r mãos
burguesas.
P a r a d e s c r e v e r esses resultados, t e r e m o s f o r ç o s a m e n t e que
começar com um b r e v e r e s u m o d o s motivos d o s q u e p r e g a r a m
a participação n a s C r u z a d a s e d a s táticas d o s que f o r a m à luta.
O período a que n o s r e f e r i m o s iniciou-se em 1095, q u a n d o
o P a p a U r b a n o começou a p r e g a r a P r i m e i r a C r u z a d a , e ter-
minou em 1291, q u a n d o o últimcr p o s t o a v a n ç a d o cristão, si-
t u a d o em A c r e , caiu s o b a s a r m a s d o S u l t ã o Q a l a w u n . A s c a m -
p a n h a s d a s C r u z a d a s c o m b i n a v a m dois o b j e t i v o s i m p o r t a n t e s
tornar a T e r r a Santa segura para mercadores e peregrina-
ções, criando meios c a p a z e s d e promovê-las, e ao mesmo t e m p o
a f a s t a r do c a m i n h o u m a classe c a d a vez mais inquieta, violenta
e socialmente i m p r o d u t i v a d e soldados, cavaleiros e p e q u e n o s
nobres.
AS CRUZADAS 71

A T e r r a S a n t a precisava ser a b e r t a a o s mercadores do


O c i d e n t e . O exército b i z a n t i n o ( r o m a n o oriental) fora der-
r o t a d o em 1071, em M a n z i k e r t , pelo S u l t a n a t o S e l j ú c i d a . C a -
lifas f a t i m i d a s d o m i n a v a m o Egito. U m c e r t o n ú m e r o de outros
g r a n d e s e n t r e p o s t o s comerciais caiu em mãos m u ç u l m a n a s ,
e m b o r a C o n s t a n t i n o p l a c o n t i n u a s s e a ser i m p o r t a n t e c e n t r o co-
mercial s o b domínio cristão. E m escala c a d a vez maior, o poder
marítimo m u ç u l m a n o f u s t i g a v a a n a v e g a ç ã o ocidental. A p e s a r
disso, a u m e n t a v a a d e m a n d a de b e n s d e origem oriental, a
qual precisava ser a t e n d i d a .
H o u v e , igualmente, r a z õ e s religiosas p a r a a o r g a n i z a ç ã o
d a s C r u z a d a s , de vez q u e o controle pelos seljúcidas d o s san-
t u á r i o s c r i s t ã o s n a T e r r a S a n t a f a 2 i a - s e a c o m p a n h a r de intole-
rância p a r a com o cristianismo c com o s p e r e g r i n o s . Esses
piedosos motivos, aliás, n ã o e r a m i m p u r o s : a n t e r i o r m e n t e , a
I g r e j a c o m e ç a r a a p r e g a r o efeito p u r i f i c a d o r d a s peregrina-
ções, isso em contradição com textos mais a n t i g o s , m a s a p e n a s
d e p o i s de terem o s a m a l f i t a n o s c o n s t r u í d o uma h o s p e d a g e m
em Jerusalém e depois de t e r - s e v e r i f i c a d o que era bom ne-
gócio t r a n s p o r t a r , alimentar e a l o j a r p e r e g r i n o s .
O exército c r u z a d o foi r e c r u t a d o n a c a m a d a d a classe
f e u d a l d o m i n a n t e íjue se e m p e n h a v a em l u t a mais violenta com
os m e r c a d o r e s . A I g r e j a e a l g u n s d o s s e i g n e u r s mais poderosos,
auxiliados pela n a s c e n t e b u r g u e s i a , já h a v i a m iniciado a luta
p a r a limitar a s g u e r r a s f e u d a i s p r i v a d a s e o s impedimentos ao
comércio, q u e tomavam a f o r m a d e p e d á g i o , t a r i f a s e assaltos
p u r o s e simples. A p o s s a r - s e de b e n s d e m e r c a d o r e s itinerantes
se havia t r a n s f o r m a d o em c o s t u m e comum e n t r e a n o b r e z a :
o P a p a G r e g ó r i o V I I , p o r exemplo, a m e a ç o u e x c o m u n g a r o
Rei F e l i p e d a F r a n ç a se ele n ã o devolvesse m e r c a d o r i a s a p r e e n -
d i d a s p o r seus agentes. F e l i p e c e d e u : n ã o queria arriscar a
alma por tão pouco.
A s C r u z a d a s constituíram um meio d e t r a n s f e r i r g u e r r a s
p r i v a d a s p a r a território e s t r a n g e i r o , ao m e s m o t e m p o em que
a c e n a v a m com uma solução p a r a os p r o b l e m a s u r g e n t e s da no-
b r e z a m a i s p o b r e e seus servidores cavalheirescos. U m desses
p r o b l e m a s e r a o d a distribuição d a p r o p r i e d a d e s o b o regime
de p r i m o g e n i t u r a . A p r i m o g e n i t u r a — s o b a qual a terra era
h e r d a d a pelo filho mais velho •— havia, no direito f e u d a l , s u b s -
tituído o sistema de parcelar igualmente a p r o p r i e d a d e d a f a m í -
lia e n t r e t o d o s o s filhos p o r ocasião d a m o r t e d o s pais. L o g o
72 À PROCURA DF. U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

q u e instituído o sistema, os filhos mais j o v e n s ou e n t r a v a m


p a r a o serviço de o u t r o s e n h o r como cavaleiros-vassalos, ou
i n g r e s s a v a m em o r d e n s monásticas ou recebiam como p e n s ã o
u m a p e q u e n a p r o p r i e d a d e e u n s poucos c a m p o n e s e s p a r a culti-
v â - l a . U m p e q u e n o n o b r e desse tipo, v i v e n d o em uma m o d e s t a
p r o p r i e d a d e , a u f e r i a r e n d a q u a s e que exclusivamente em es-
pécie. o que era i n a d e q u a d o n u m a época de i n f l a ç ã o e uso
crescente d e moeda. U m a r e a ç ã o no p a r t i c u l a r consistiu em
e x p l o r a r a i n d a mais os camponeses. U m d o c u m e n t o d a época
r e f e r e - s e a " t o d o s os serviços c o m p u l s ó r i o s . . . e . . . a t o d a s
e s s a s coisas que. pela violência, os cavaleiros c o s t u m a m e x t o r -
quir d o s p o b r e s " . A classe d e p e q u e n o s n o b r e s - c a v a l e i r o s resol-
via s u a s q u e r e l a s r e c o r r e n d o à g u e r r a privada, n ã o raro d e f l a -
g r a d a por um insulto pessoal, m a s s e m p r e com o objetivo de
o b t e r terra ou botim. O u t r o meio d e enriquecimento era o
p e d á g i o c o b r a d o a o s m e r c a d o r e s pelo direito de c r u z a r a s t e r r a s
d o senhor, muitos d o s quais d e s c o b r i r a m t a m b é m que um cas-
telo p r o p o r c i o n a v a um útil q u a r t e l - g e n e r a l p a r a um b a n d o de
a s s a l t a n t e s cavalheirescos.
A s C r u z a d a s ofereciam a essa classe a salvação pessoal
e a o p o r t u n i d a d e de d e s e m p e n h a r o d e v e r cavalheiresco de
g u e r r e a r e, igualmente, conquistar um t e s o u r o e a d q u i r i r p r o -
p r i e d a d e n a T e r r a S a n t a . E r a uma o p o r t u n i d a d e d o mesmo tipo.
m a s d e n a t u r e z a muito d i f e r e n t e , d a q u e l a o f e r e c i d a em l u t a s
mais a n t i g a s c o n t r a o s mouros n a E s p a n h a e n a P r o v e n ç a . Seus
resultados p o d e m ser vistos no domínio completo exercido pelo
g o v e r n o f e u d a l estabelecido na P a l e s t i n a pelos filhos mais j o v e n s
d a nobreza, s e d e n t o s de terras. A cúpula desse g r u p o era
o c u p a d a p e l os s e n h o r e s fe uda i s e seus níveis inferiores pelos
cavaleiros •— a s t r o p a s m o n t a d a s . O s i n f a n t e s f o r a m a r r a s t a d o s
pelos seus n o b r e s s e n h o r e s ou pelas m e s m a s f o r ç a s d e m o g r á -
ficas e econômicas que havtam a b e r t o n o v a s t e r r a s ao cultivo
e elevado a p o p u l a ç ã o d o s c e n t r o s u r b a n o s . O controle polí-
tico d a s C r u z a d a s iniciou-se à s m ã os d a nobreza feudal, e m -
bora combatido pelos esforços do P a p a d o p a r a lançar um g r u p o
c o n t r a outro.
E m 1098, iniciou-se a i n t e r v e n ç ã o direta d o s m e r c a d o r e s
italianos na Palestina, três a n o s a p ó s h a v e r o P a p a U r b a n o
feito o apelo à s a r m a s . N e s s e ano, foi concedido a G ê n o v a um
mercado, uma i g r e j a e trinta c a s a s em Antioquia, c o n c o r d a n d o
em troca a c i d a d e em g a r a n t i r comunicações com a Itália e
a p o i a r o s e n h o r de A n t i o q u i a , B o h e m o n d .
AS CRUZADAS 73

A n t e s disso, a s cidades italianas haviam crescido por meio


de t r a t a d o s econômicos com p o t ê n c i a s cristãs e m u ç u l m a n a s ,
e n ã o pela conquista direta em g r a n d e escala, e assim sua
diplomacia n ã o f o r a alterada pelos reveses s o f r i d o s pelos bi-
zantinos. E m 1098, n o entanto, os c r u z a d o s h a v i a m conquis-
t a d o substanciais extensões d e t e r r a s n a P a l e s t i n a e Síria.
N e s s a ocasião, G ê n o v a procurou obter a concessão em A n t i o -
quia. E m s e g u i d a . V e n e z a fez e s f o r ç o s p a r a a m p l i a r seu poder
no M e d i t e r r â n e o O r i e n t a l , p o d e r este c o n s t r u í d o no d e c o r r e r
de uma longa associação com o I m p é r i o Bizantino. Pisa, por
seu lado. d e s d o b r o u - s e p a r a m a n t e r no O r i e n t e a posição com-
petitiva que invariavelmente h a v i a c a r a c t e r i z a d o s u a s relações
com G ê n o v a .
P o u c o depois. P i s a e G ê n o v a n e g o c i a v a m a t i v a m e n t e com
á r e a s cristãs, f a z e n d o negócio com v á r i o s s e n h o r e s feudais. O
comércio com o O r i e n t e , r e a l i z a d o q u a s e inteiramente p o r via
marítima, c o n c e n t r o u - s e nessas d u a s cidades. A s d e m a i s cida-
d e s italianas p r o c u r a v a m e n f r e n t a r a situação privilegiada de
V e n e z a em C o n s t a n t i n o p l a e d e s e n v o l v e r a m o comércio e n t r e
a Itália e o delta do Nilo, a s s e g u r a n d o a existência de f o n t e s
de p r o d u t o s p a r a o O c i d e n t e em t o d o s os t r ê s g r a n d e s escoa-
d o u r o s comerciais d o M e d i t e r r â n e o O r i e n t a l .
O s príncipes f e u d a i s cristãos ocidentais, n o e n t a n t o , n ã o
c o n s e g u i r a m m a n t e r seus domínios n a P a l e s t i n a , t e n d o o último
posto a v a n ç a d o caído em 1291. A s c i d a d e s - e s t a d o s italianas
p e r d e r a m navios e g e n t e no a p o i o à s c a m p a n h a s militares cristãá,
mas c o n s e g u i r a m c o n s e r v a r o direito d e negociar n a região. A s
o r d e n s de cavaleiros combatentes — T e m p l á r i o s e H o s p i t a l a -
res — s o f r e r a m b a i x a s era b a t a l h a , mas m a n t i v e r a m seu papel
de b a n q u e i r o s . H á evidência c o n v i n c e n t e d e q u e interesses m e r -
cantis e b a n c á r i o s na Palestina t r a n s a c i o n a v a m a t i v a m e n t e com
a m b o s os lados. T a l atividade era inevitável caso se quisesse
que prosseguisse o comércio em b e n s que desciam do O r i e n t e
em c a r a v a n a s . A l g u m a s associações d e m e r c a d o r e s italianos
l e v a r a m o a s s u n t o a i n d a mais longe, c o n t u d o , v e n d e n d o g r a n -
d e s q u a n t i d a d e s d e material de g u e r r a a príncipes maometanos.
A s C r u z a d a s , p o r conseguinte, constituíram uma oportu-
nidade econômica, inteiramente à p a r t e q u a l l a d o saía militar-
m e n t e vitorioso. A o p o r t u n i d a d e r e p r e s e n t a d a pelo a u m e n t o
d o comércio com o Oriente, no e n t a n t o , n ã o p o d i a ser explo-
r a d a sem a existência de f o r m a s legais e institucionais que per-
mitissem a reunião de capitais p a r a f i n a n c i a r g r a n d e s e m p r e s a s

5 - l> A . C .
74 À PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL

cm t e r r a e mar, a s s e g u r a r um m e r c a d o p r o t e g i d o a o s m e r c a -
dores que movimentassem e providenciassem a distribuição das
m e r c a d o r i a s v i n d a s d o Leste em troca d a s p r o d u z i d a s n o O c i -
dente.
P o u c o s s ã o os d o c u m e n t o s e x i s t e n t e s q u e n o s p o s s a m d a r
u m a indicação d e como a v i d a h u m a n a foi a f e t a d a p o r t a i s
m u d a n ç a s n o direito e n a s instituições jurídicas. S o m e n t e G ê -
n o v a n o s legou u m a rica coleção de c o n t r a t o s concluídos e n t r e
m e r c a d o r e s d e m e a d o s d o século X I I , pelos quais p o d e m o s
s a b e r a l g o d a v i d a d e u m g r u p o e t e n t a r inferir o q u e d e v e
t e r sido a d e o u t r o s .
E m 1099. e x a t a m e n t e n a é p o c a em q u e a s C r u z a d a s h a -
v i a m a b e r t o a s r o t a s p a r a o O r i e n t e e G ê n o v a iniciava um
p e r í o d o d e f e n o m e n a l c r e s c i m e n t o econômico, o s principais
m e r c a d o r e s e c a pi t a l i st a s d a c i d a d e f o r m a r a m u m a o r g a n i z a ç ã o ,
a Compagna, s o b a direção de u m líder eleito. A Compagna
n ã o era u m a e m p r e s a comercial, a s s e m e l h a n d o - s e mais. a o que
t u d o indica, a u m a s o c i e d a d e a n ô n i m a , p o s s u i d o r a d e u m a
" p e r s o n a l i d a d e " fictícia. S e u s m e m b r o s l i g a v a m - s e à o r g a n i z a -
ç ã o por um p e r í o d o curto, talvez d e um ano. P o d e t e r sido d e
n a t u r e z a secreta. C o m o c o r r e r d o s t e m p o s , o s m e m b r o s vieram
a a c r e d i t a r , se é q u e isso a c a s o n ã o ocorreu logo n o início, q u e
constituíam a v a n g u a r d a d e u m a n o v a classe. P o u c o depois,
a Compagna a s s u m i u o p o d e r político e ins talou-s e como co-
m u n a .— o g r u p o l i d e r a n t e c i m e n t a d o p o r um j u r a m e n t o —
d a c i d a d e d e G ê n o v a . O p a r t i d o se h a v i a t r a n s f o r m a d o em
governo; o g o v e r n o e r a o p a r t i d o .
E n c o n t r a m o s t a m b é m m e n ç ã o à existência d e um n o v o
g r u p o d e p r o f i s s i o n a i s liberais, i d e n t i f i c a d o s p r i n c i p a l m e n t e com
o s g r a n d e s m e r c a d o r e s , m a s que t r a b a l h a v a m t a m b é m p a r a e
com e m p r e s á r i o s d e m e n o r i m p o r t â n c i a e mesmo, à s vezes, com
o campesinato. R e f e r i m o - n o s a o s a d v o g a d o s . H a v i a distinções
em seus títulos f o r m a i s : os tabeliães ( n o t a r i i ) em geral redigiam
c o n t r a t o s e o u t r o s d o c u m e n t o s comerciais, e n q u a n t o os a d v o g a -
d o s litigavam n a s cortes. O u t r o s títulos e r a m t a m b é m u s a d o s ,
como magister, " m e s t r e " em latim, q u e era um servidor público,
e scribus. escrivão, ou a m a n u e n s e . Q u a l q u e r que f o s s e o n o m e ,
c o m e ç a r a m a surgir de súbito, em n ú m e r o s crescentes, a uti-
lizar técnicas a d a p t a d a s à s n o v a s n e c e s s i d a d e s econômicas e
a m o s t r a r sinais d e u m a n o v a c u l t u r a jurídica. P o r v o l t a de
1100, a maioria d o s c o n t r a t o s f i r m a d o s n a região N o r t e d a
Itália e r a r e d i g i d a p o r a d v o g a d o s t r e i n a d o s .
AS CRUZADAS 75

A p r e s e n ç a de a d v o g a d o s e o uso c r e s c e n t e de f r a s e s pa-
d r o n i z a d a s n a r e d a ç ã o d o s v á r i o s tipos de a c o r d o s indicavam
a existência d e u m a ordem jurídica — preceitos legais e cortes
d e justiça p a r a aplicã-los .— que d a r i a m um previsível efeito
legal a certos tipos de p r o m e s s a s c o n t r a t u a i s . N o caso d o s
q u e c u m p r i a m d e bom g r a d o e sem criar p r o b l e m a s os termos
d o pacto, a v e r s ã o escrita e r a necessária a p e n a s como um lem-
b r e t e d a s o b r i g a ç õ e s a s s u m i d a s por a m b a s as partes. M a s
q u a n d o u m a p e s s o a cedia u m a g r a n d e s o m a a o u t r a a fim de
a p e t r e c h a r um navio sob a c o n d i ç ã o d e q u e este último fizesse
incursões pela c o s t a m a o m e t a n a e voltasse p a r a dividir o botim,
o t e x t o escrito devia t o r n a r possível ao m e r c a d o r receber sua
p a r t e n o s a q u e e a o m a r u j o limitar a p e r c e n t a g e m do comer-
ciante a o q u e q u e r que h o u v e s s e sido combinado.
S e g u e - s e . p o r conseguinte, que, se n u m e r o s o s contratos
f i r m a d o s em c e r t o período utilizavam n o v o s termos legais e
f a l a v a m d e n o v o s tipos de associação comercial, o sistema de
p o d e r estatal h a v i a reconhecido ou e s t a v a p r e s t e s a reconhecer
e s s e s t e r m o s e formas. O a d v o g a d o bem v e r s a d o n a matéria
n ã o poria no contrato t o d o seu s a b e r se juízes continuassem
a desconhecer tais refinamentos.
S u r g i n d o em Gênova- p o r ocasião d a s C r u z a d a s e e s p a -
l h a n d o - s e pelo litoral d o M e d i t e r r â n e o e em direção N o r t e ,
a o l o n g o d a s r o t a s d e comércio, entrou g r a d u a l m e n t e em vigor
u m n o v o direito, especialmente a d a p t a d o à s necessidades dos
m e r c a d o r e s . R e q u e r i a esse direito a p r e s e n ç a de pessoas hábeis
n a r e d a ç ã o de c o n t r a t o s e, assim, s u r g i r a m os a d v o g a d o s , que
se i d e n t i f i c a r a m como tais. A n t e s , c a r t a s e c o n t r a t o s haviam
sido e l a b o r a d a s p o r indivíduos d e s t i t u í d o s d e t r e i n a m e n t o ju-
rídico formal, m u i t a s vezes p o r e m p r e g a d o s d e a l g u m a ordem
religiosa ou m o d e s t o s servidores públicos. E m época a i n d a mais
distante, a p a l a v r a tabelião r e f e r i a - s e a e m p r e g a d o s d o s antigos
reis f r a n c o s , os indivíduos q u e redigiam a legislação, os editos
e o s a l v a r á s e t r a b a l h a v a m sob a direção do C h a n c e l e r , que era
s e m p r e um religioso. C o m o evidência d o melhor treinamento
f o r m a l d o s n o v o s tabeliães, seus c o n t r a t o s eram redigidos em
latim, uma língua mais r e f i n a d a , e x a t a e coerente. ( O s pri-
meiros c o n t r a t o s redigidos n a l i n g u a g e m diária d o povo d a t a m
i g u a l m e n t e desse período — em especial n o Sul da F r a n ç a —
m a s m o s t r a v a m - s e em geral mal i n f o r m a d o s sobre idéias e ca-
tegorias jurídicas.)
76 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

O u t r a s e mais significativas m u d a n ç a s s u r g i r a m t a m b é m
por essa época: f o r m a s de associação que permitiam a r e u n i ã o
de capitais de dois, três, q u a t r o e, p o u c o depois, d e z e n a s de
capitalistas; m é t o d o s p a r a t r a n s f e r i r créditos de um p o r t o p a r a
outro, os precursores d a s c a r t a s d e crédito e letras de câmbio
do comércio internacional; o r e f i n a m e n t o d a lei c o n t r a t u a l e.
a elaboração de m é t o d o s de v e n d a e troca; a s técnicas b a n c á -
rias, que permitiam a c o m b i n a ç ã o de m i l h a r e s d e p e q u e n a s
s o m a s de capital n a s m ã os de um único investidor, o b a n q u e i r o
comercial.
M e r e c e m estudo, em primeiro lugar, os e x p e d i e n t e s u s a d o s
p a r a l e v a n t a r capitais n u m a economia em e x p a n s ã o . N o s sé-
culos X I e X I I , G ê n o v a criou a societas maris, s e m e l h a n t e a
artifícios u s a d o s em o u t r a s cidades, s o b o u t r o s n o m e s , mais ou
m e n o s n a mesma ocasião (commenda, colleganza). U m sócio
fornecia de dois t e r ç o s a t o d o o capital p a r a u m a v i a g e m marí-
tima circular, com volta a G ê n o v a . Se a v i a g e m f r a c a s s a s s e ,
c a d a sócio a r c a v a com seu prejuízo. Se tivesse êxito, o s lucros
eram divididos s e g u n d o uma p r o p o r ç ã o c o m b i n a d a e com g a -
r a n t i a de uma t a x a de r e t o r n o a t é 150 p o r cento. E s s e tipo
de contrato era. n a realidade, u m a f o r m a d i s f a r ç a d a d e e m -
préstimo, ou depósito. M o s t r a v a sinais claros de suas o r i g e n s
r o m a n a s , em especial o c o n t r a t o de m a n d a d o , embora se a s s e -
melhasse mais à c o n c e p ç ã o b i z a n t i n a desse tipo de acordo.
E m 1163, um m e r c a d o r c h a m a d o Stabile delegou um
m a n d a d o a A n s a l d o G a r r a t o n em uma societas maris:
S t a b i l e e A n s a l d o G a r r a t o n f o r m a m u m a socieUis n a qual,
s e g u n d o d e c l a r a m , S t a b i l e c o n t r i b u i c o m u m c a p i t a l d e 8S l i r a s
e A n s a l d o c o m 44 l i r a s . A n s a l d o l e v a e a s e c a p i t a l , o u f a z c o m
que a u m e n t e , p a r a T ú n i s ou q u a l q u e r o u t r o local p a r a o n d e
s i g a o n s v i o q u e t o m a r á — i s t o é, o n a v i o d e B a l d i z z o n e G r a s s o
e Girardo. P o r ocasião d e s u a volta, e n v i a r á os lucros a
Stabile ou a seu representante, p a r a serem divididos. F e i t a s
a s d e d u ç õ e s pelo capital, dividirão os lucros p e l a m e t a d e ,
P a s s a d o n a C a s a d o C a p i t u l o , e m 29 d e s e t e m b r o d e 1163.
E mais, Stabile a u t o r i z a Ansaldo a enviar seu dinheiro p a r a
Gênova pelo navio que escolher.

P o u c o t e m p o depois, s u r g i r a m dois r e f i n a m e n t o s n e s s a
associação simples d e dois p a r c e i r o s : a associação de loci e o
b a n c o mercantil. A s loci eram ações em um navio. C o m a c o n s -
t r u ç ã o de g r a n d e s b a r c o s e a n e c e s s i d a d e simultânea d e a t r a i r
p a r a o comércio a p o u p a n ç a líquida de n u m e r o s a s pessoas, a
AS CRUZADAS 77

divisão em ações constituía utn f e n ô m e n o lógico. E m essência,


n a s loci c e r t o n ú m e r o de acionistas d a v a a o c o m a n d a n t e do
navio um m a n d a d o p a r a e f e t u a r uma viagem. A s ações em si
constituíam p r o p r i e d a d e s mobiliárias e p o d i a m ser vendidas,
t r o c a d a s ou d a d a s como g a r a n t i a s de dividas. N ã o r a r o . n u m e -
r o s a s p e q u e n a s importâncias e r a m r e u n i d a s p a r a s e adquirir
u m a a ç ã o . O controle dos investidores sobre o e m p r e g o d o capi-
tal era típico d o s c o n t r a t o s de associação.
N a s c i d a d e s i n t e r i o i a n a s d a L o m b a r d i a — que se t r a n s -
f o r m a r a m em c â m a r a s de c o m p e n s a ç ã o d e m e r c a d o r i a s t r a z i d a s
p o r via marítima p a r a V e n e z a . P i s a e G ê n o v a — surgiram
f o r m a s mais gerais de l e v a n t a m e n t o de capitais. P e q u e n a s e
g r a n d e s s o m a s e r a m recolhidas e n t r e indivíduos d e t o d a s as
classes — de seigneurs, latifundiários, a r t e s ã o s que v e n d i a m à
vista, c a m p o n e s e s que tinham dinheiro g u a r d a d o e c u j a s terras
n ã o p e r t e n c i a m a seignevr a l g u m , à s p e q u e n a s q u a n t i a s que o
t r a b a l h a d o r ou o camponês p o d i a m o b t e r v e n d e n d o um objeto
valioso .— e e n t r e g u e s ao b a n q u e i r o comercial que, p o r seu lado,
f i n a n c i a v a v i a g e n s de compra e v e n d a a f e i r a s e mercados. Essa
f o r m a d e e n t r e g a de dinheiro em c o n f i a n ç a l e m b r a v a muito o
c o n t r a t o r o m a n o d e depósito.
N e s s e período, c o m e ç a r a m a m u d a r t a m b é m o s c o n t r a t o s
comerciais, r e f l e t i n d o a i n f u s ã o de n o v a s idéias jurídicas e o
p o d e r crescente de uma classe p o s s u i d o r a de capitais e de meios
p a r a a u m e n t á - l o s . O c o n t r a t o d e v e n d a t o r n o u - s e importante
c o m o f o n t e de direitos e n ã o mais como m e r o a d j u n t o d a posse.
N a incerteza d a sociedade f e u d a l , a posse constituía a essência
d a p r o p r i e d a d e ; direitos no papel n e n h u m valor teriam sem a
existência de um sistema p a r a lhes a s s e g u r a r o reconhecimento
r á p i d o e inquestionável. O f a z e n d e i r o em s u a gleba, o c a m p o -
n ê s com seu r e b a n h o de ovelhas, o p e q u e n o a r t e s ã o com seu
s u p r i m e n t o de lã —^ t o d o s eles c o n s i d e r a v a m a p o s s e como prin-
cipal sinal d e seus direitos. A n a l o g a m e n t e , o s c o n t r a t o s de venda
concluídos ao longo do litoral do M e d i t e r r â n e o a n t e s do a n o
1000 n a d a mais e r a m n a v e r d a d e d o que recibos d a d o s pelo
v e n d e d o r a o c o m p r a d o r p a r a r e c o n h e c e r o p a g a m e n t o e trans-
ferir a posse. C o m freqüência, esses que eram os mais curtos
de t o d o s os d o c u m e n t o s n ã o m e n c i o n a v a m a b s o l u t a m e n t e dis-
posições legais e a l g u n s s i m p l e s m e n t e a d v e r t i a m que t o d o s
a q u e l e s q u e p e r t u r b a s s e m a p o s s e d o a d q u i r e n t e "incorreria
n a ira de D e u s e sofreria com J u d a s os t o r m e n t o s do i n f e r n o
78 À PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL

e t e r n o " . O u t r o s m e n c i o n a v a m que o s "direitos r o m a n o e ecle-


siástico" exigiam q u e a t r a n s a ç ã o f o s s e escrita, como p r o v a d a
v e n d a . Esses d o c u m e n t o s primitivos p o u c o mais erani d o que
" r e s t o s fósseis" d a t r a d i ç ã o jurídica r o m a n a .
E m fins d o s é c u l o X I , c o n t u d o , no N o r o e s t e d a Itália e
mais t a r d e a o l o n g o d a s r o t a s de comércio q u e se dirigiam
para o Norte e Oeste, começaram a reaparecer nos contratos
idéias r o m a n a s s o b r e a v e n d a . A n o ç ã o jurídica i s o l a d a mais
i m p o r t a n t e s u r g i d a n e s s e p e r í o d o foi a d e c o n t r a t o como uma
u n i ã o de v o n t a d e s , r e f l e t i n d o p r o m e s s a s d e uma, d u a s o u mais
p e s s o a s que, devido à existência de uma ordem jurídica para
cumpri-lo, era d e c u m p r i m e n t o obrigatório, sem f o r m a l i d a d e s
ulteriores. E s p e c i f i c a m e n t e , o s c o n t r a t o s mais n o v o s n ã o r e q u e -
riam a tradição — a e n t r e g a •— d o o b j e t o v e n d i d o ou d e uma
parte qualquer do mesmo p a r a validar a venda. O contrato
d e v e n d a e r a feito e a s s u m i a f o r m a escrita. O b r i g a v a o v e n -
d e d o r a e n t r e g a r o item c o n t r a t a d o e o c o m p r a d o r a p a g a r o
preço. E s s a era a essência d o c o n t r a t o de v e n d a no direito
r o m a n o , de n a t u r e z a bilateral e f u n d a d o n a b o a fé. S e p a r a v a
inteiramente o c o n t r a t o d a e n t r e g a do item v e n d i d o e d o p a -
g a m e n t o d o preço, d e vez q u e o acordo de p r a t i c a r tais a t o s
constituía-lhes a essência.
T ã o n o t á v e l foi e s s a m u d a n ç a q u e a l g u n s d o s primeiros
c o n t r a t o s n ã o s e c o n t e n t a r a m em a d o t a r o l i n g u a j a r jurídico
r o m a n o n o emptio venditio. I a m mais além, e diziam, por e x e m -
plo, que " p e l a a u t o r i d a d e exclusiva d e s t e c o n t r a t o " o com-
p r a d o r podia e n t r a r n a posse d a coisa v e n d i d a .
S e a v e n d a era c o n c l u í d a a p e n a s d e p o i s d e o dinheiro,
t e r r a s ou b e n s terem sido p e r m u t a d o s , a s p a r t e s p r e c i s a v a m
a p e n a s p r o t e g e r seus direitos àquilo que h a v i a m a d q u i r i d o . A
conclusão, de b o m g r a d o , de uma v e n d a q u e criava, p o r con-
sentimento mútuo, a obrigação de se e n t r e g a r e m t e r r a s o u b e n s
e de p a g a r uma soma em d i n h e i r o p r e s s u p u n h a que v e n d e d o r e ? ,
c o m p r a d o r e s ou, com maior p r o b a b i l i d a d e , seus a d v o g a d o s
e s t a v a m conscientes d a existência d e algum sistema p a r a
exigir o c u m p r i m e n t o de obrigações recíprocas.
O c o n t r a t o d e v e n d a criava t a m b é m a possibilidade de
relações comerciais contínuas. U m a vez q u e o título n ã o pas-
sava a outrem q u a n d o o c o n t r a t o era a s s i n a d o , a s p a r t e s p o d i a m
c o n c o r d a r em v e n d e r m e r c a d o r i a s a t e r m o •— o s f r u t o s d a p r ó -
xima colheita ou a c a r g a d e um navio a i n d a em alto mar. A
AS CRUZADAS 79

v e n d a p o d i a envolver itens a i n d a mais intangíveis: o indivíduo


p o d i a c o n c o r d a r em v e n d e r a outro t o d a sua p r o d u ç ã o agrícola
d u r a n t e c e r t o p e r í o d o de tempo, ou c o m p r a r o e s t o q u e de bens
de um m e r c a d o r ou c o m p a n h i a de m e r c a d o r e s . H a v i a nisso um
perceptível desvio d a idéia f e u d a l d e p o d e r exclusivamente
pessoal e imediato, implicando a p r e s e n ç a a r m a d a d o senhor
o u d e s e u s s u b a l t e r n o s em t o d o s o s m o m e n t o s .
O u t r a indicação, a i n d a mais r e v e l a d o r a d a p r e s e n ç a de pre-
cedentes legais r o m a n o s n a s e m e r g e n t e s instituições b u r g u e s a s ,
foi a c o m p r e e n s ã o , p o r p a r t e d o s a d v o g a d o s , d a s possibilidades
de p r o t e ç ã o c o n t r a a f r a u d e e a coerção n a venda, t r o c a e do-
nativos. S e f ô s s e m o s e s t u d a r a p e n a s o s r e g i s t r o s d a s cortes de
justiça, d e s c o b r i n d o aqui e ali uma s u g e s t ã o d e como tais prin-
cípios e r a m a p l i c a d o s p a r a evitar a b u r l a , teríamos uma idéia
d i f e r e n t e d o que o s c o n t r a t o s m o s t r a m . E m muitos deles, e s p e -
cialmente n a s á r e a s d o Sul d a F r a n ç a e C a t a l u n h a associadas
a G ê n o v a e P i s a , vemos camponeses, a r t e s ã o s e g e n t e pobre
v e n d e n d o , t r o c a n d o o u e m p e n h a n d o a l g u m a p r o p r i e d a d e , era
geral terra. A l g u n s c o n t r a t o s mencionam que a s v e n d a s tinham
como f i n a l i d a d e o l e v a n t a m e n t o d e dinheiro s o n a n t e p a r a f i n a n -
ciar u m a v i a g e m à T e r r a S a n t a . E r a m registros do início d a s
p e r e g r i n a ç õ e s ou d e iniciativas de i n f a n t e s camponeses, que
s e g u i a m o e x e m p l o de a l g u m p o d e r o s o s e n h o r q u e residia nas
p r o x i m i d a d e s . N o caso d e um n ú m e r o incontável de c o n t r a t o s
de v e n d a , n e n h u m motivo era i d e n t i f i c a d o : n a s á r e a s que se
a b r i a m a o comércio n e s s a é p o c a p a r e c e ter h a v i d o u m a o n d a de
v e n d a s d e indivíduos mais p o b r e s a mais ricos, em especial a
o r g a n i s m o s eclesiásticos. T a l v e z a l g u n s d o s c o n t r a t o s fossem
empréstimos d i s f a r ç a d o s , p a s s a n d o o item v e n d i d o a o p r e s t a -
mista com a combinação implícita de restituí-lo logo que sal-
d a d o o empréstimo. A s p e q u e n a s s o m a s o b t i d a s em muitas
d e s s a s v e n d a s parecem c o n f i r m a r tal hipótese. O u talvez os
p e q u e n o s proprietários, o s últimos focos de resistência ao sis-
tema f e u d a l , estivessem s e n d o o b r i g a d o s a v e n d e r s u a s terras
e a a l u g á - l a s em seguida ao n o v o proprietário a fim d e levantar
capitais p a r a i n g r e s s a r n u m a economia c a d a vez mais aioneti-
z a d a . O crescimento i n i n t e r r u p t o d a s c i d a d e s como centros co-
merciais, a s t e n d ê n c i a s monopolistas d a cultura u r b a n a e a s
e x t e n s a s t r a n s f o r m a ç õ e s ^ o c o r r i d a s n a agricultura, sob inspira-
ção d a s o r d e n s eclesiásticas seculares, a d m i t e m tal possibilidade.
Indubitavelmente, porém, os f r a c o s faziam c o n t r a t o s com
os f o r t e s e os a d v o g a d o s t r a b a l h a v a m p a r a estes últimos. S a -
80 À PROCURA DE UM I.UGAR NA ORDEM FEUDAL

b e m o s que o s a d v o g a d o s e s t a v a m c o m e ç a n d o a d e s c o b r i r a s
disposições d o direito r o m a n o que p r o t e g i a m os direitos d a s
p a r t e s mais f r a c a s , u m a vez que, em 1100, e s s a s c l á u s u l a s co-
m e ç a r a m a a p a r e c e r nos c o n t r a t o s . A e n u m e r a ç ã o d o s direitos
d a p a r t e mais f r a c a , no e n t a n t o , era s e m p r e o prelúdio d e u m a
r e s s a l v a no c o n t r a t o , pela qual ela r e n u n c i a v a — desistia .—
d e s s e s direitos: desistia-se d a p r o t e ç ã o a m e n o r e s d e i d a d e ,
r e n u n c i a v a - s e a todos os direitos b a s e a d o s n o sexo, p r o m e t i a - s e
n ã o dificultar a e n t r e g a da coisa v e n d i d a sob o f u n d a m e n t o
d e que n ã o se recebera t o d o o p r e ç o a j u s t a d o , ou p o r q u e o preço
p a g o f o r a inteiramente insuficiente, ou a i n d a d e c l a r a v a - s e que,
se o valor d a terra f o s s e maior do que o preço p a g o , v o l u n t a -
r i a m e n t e se f a z i a d o n a t i v o d a d i f e r e n ç a a o c o m p r a d o r .
D e v e ter havido motivos p a r a que se inserissem tais c l á u -
sulas nos c o n t r a t o s . P a r a redigi-los, o s a d v o g a d o s •— com maior
f r e q ü ê n c i a , os tabeliães do século X I I —• precisariam s a b e r que
existia a legislação r o m a n a e t e r a l g u m a idéia d e q u e a s
cortes d e justiça, n a s q u a i s o c o n t r a t o p o d i a ser c o n t e s t a d o ,
p o d e r i a m aplicar tais princípios p a r a d e c l a r a r n u l a a v e n d a .
A a t e n ç ã o d o s a d v o g a d o s à possibilidade d e litígio é d e m o n s -
t r a d a pelo f a t o de a s p a r t e s r e n u n c i a r e m a o s p r a z o s p r o c e s s u a i s
— q u e o direito r o m a n o lhes f a c u l t a v a . P o r último, em q u a s e
t o d o s os casos q u e conhecemos, os c o n t r a t o s e r a m redigidos em
latim, n u m a o u t r a indicação d o d i s t a n c i a m e n t o d a lei em relação
ao controle e à c o m p r e e n s ã o d o i n d i v í d u o comum.
P o d e m o s , p o r t a n t o , à vista d e c o n t r a t o s e registros a i n d a
existentes, reconstituir t r ê s efeitos d a s C r u z a d a s . E m primeiro
l u g a r , o s m e r c a d o r e s d a s c i d a d e s - e s t a d o s italianas começa-
r a m a lutar p a r a assumir o p o d e r g o v e r n a m e n t a l ou o b t e r uma
p r o t e ç ã o que lhes permitisse comerciar livremente. E m s e g u n d o
lugar, esse p o d e r foi u s a d o p a r a s a n c i o n a r artifícios, como a
societas maris de G ê n o v a , que permitiam a e x p l o r a ç ã o d a s
o p o r t u n i d a d e s financeiras a b e r t a s pelo a u m e n t o d o comércio
com o O r i e n t e . E m terceiro lugar, os princípios de c o n t r a t o
e p r o p r i e d a d e d o direito r o m a n o r e a p a r e c e r a m a fim d e prover
um c o n t e x t o legal à s relações d o comércio em e x p a n s ã o .
E s s e s f e n ô m e n o s ocorreram em primeiro l u g a r e de m o d o mais
claro n a Itália, mas logo depois se d i s s e m i n a r a m , ao longo d a s
r o t a s de comércio, por o u t r a s regiões do M e d i t e r r â n e o . P r o -
c u r a r e m o s inicialmente descrever e em s e g u i d a t e n t a r e m o s
explicar a ligação e n t r e o direito r o m a n o r e s t a u r a d o e a e x -
p a n s ã o do comércio.
AS CRUZADAS 81

N o inicio do século X I I , ou talvez um pouco antes, foi


publicado u m livro intitulado Exceptiones Petri. F o r a escrito
n a P r o v e n ç a , em D a u p h i n e , ou talvez n a L o m b a r d i a . A a u -
sência d e i m p r e n s a n e s s e p e r í o d o implicava q u e t o d o s os livros
fossem c o p i a d o s à mão, de m o d o q u e se t o r n a p r o b l e m á t i c a a
d i s c u s s ã o d o que t e n h a sido o " o r i g i n a l " . O p l a n o d o Petri.
n o e n t a n t o , a s s e m e l h a v a - s e mais à c o d i f i c a ç ã o justiniana do
que à s compilações d e origem ocidental, como o C ó d i g o T e o -
dosiano. P a r e c e que o texto foi u s a d o p o r a d v o g a d o s na C a -
talunha, embora não na Provença.
N o século X I I surgiu t a m b é m n a P r o v e n ç a o manual
Lo Codi. Ê q u e s t ã o a b e r t a se o t r a b a l h o era u m a coletânea de
preceitos jurídicos ou uma iniciativa p r i v a d a . O importante
é que seus conselhos c o n c o r d a v a m n a maioria d o s d e t a l h e s com
os c o n t r a t o s sobreviventes d a é p o c a . N o s casos em q u e havia
divergência, Lo Codi p r e f e r i a a solução d a d a pelo direito
romano ao problema tal como o d a negociabilidade d a terra
— e i g n o r a v a a s restrições feudais.
À luz de livros como Lo Codi e Exceptiones Petri, e prin-
cipalmente a t r a v é s da leitura de c o n t r a t o s sobreviventes d a
época, p o d e m o s avaliar o p r o g r e s s o d o direito comercial ro-
m a n o à m e d i d a que o mesmo se e x p a n d i a a p a r t i r d a Itália
n a s direções Leste e N o r t e . E m inícios do século X I I , c o n f o r m e
tivemos o p o r t u n i d a d e de dizer acima, G ê n o v a e P i s a haviam
adquirido competência na i n t e r p r e t a ç ã o do direito r o m a n o e
c r i a d o u m a classe de indivíduos p a r a aplicá-lo. A legislação
r o m a n a , p o r é m , c h e g o u mais t a r d e à s cidades o n d e o ritmo
do comércio começou a a c e l e r a r - s e a p e n a s q u a n d o já ia bem
a d i a n t a d a a P r i m e i r a C r u z a d a . E m M a r s e l h a e A i x , o conhe-
cimento d a p r á t i c a jurídica r o m a n a surgiu n a s e g u n d a m e t a d e
d o século X l í . D u r a n t e um curto p e r í o d o nesse século, M a r -
selha d e s f r u t o u c e r t o poder f i n a n c e i r o i n d e p e n d e n t e na P a -
lestina, t e n d o obtido de F u l k d e A n j o u , em 1136, n a ocasião
Rei de Jerusalém, u m a c o n c e s s ã o comercial, t r a t a d o esse re-
n o v a d o em 1152. O s mercadores de M a r s e l h a , no entanto, em
c o m p a r a ç ã o com os italianos, que c o n t r o l a v a m o comércio com
a P a l e s t i n a , eram f i g u r a s d e s o m e n o s importância. E m 1160,
M a r s e l h a possuía entrepostos comerciais em q u a t r o cidades p a -
lestinas. a maioria portos, e n q u a n t o que, no mesmo período, o s
genoveses t i n h a m estabelecimentos em o n z e cidades, M a r s e l h a
possuía t a m b é m uma indústria de c o n s t r u ç ã o naval e, em 1190,
82 À PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL

foi n e s s a c i d a d e que R i c a r d o C o r a ç ã o de L e ã o e m b a r c o u p a r a
as Cruzadas.
Aries, u m a cidade jamais inteiramente a b a n d o n a d a durante
o início d a I d a d e M é d i a , p a s s o u p o r c r e s c i m e n t o d a p o p u l a ç ã o ,
e x p a n s ã o d o comércio e r e s t a u r a ç ã o d o direito r o m a n o cerca
d e d o z e a n o s d e p o i s d a r e g i ã o de M a r s e l h a - A i x . O u t r a s c i d a -
d e s d a P r o v e n ç a e C a t a l u n h a s e g u i r a m - l h e o exemplo, r e f l e t i n d o
a e x p a n s ã o d o comércio p o r á r e a s que f o r a m as p r i m e i r a s a
e n t r a r em c o n t a t o com o s c r u z a d o s e com o s comerciantes q u e
os a c o m p a n h a v a m , n a t u r a i s d e c i d a d e s italianas e d e M a r s e -
l h a . E x p a n d i n d o - s e a p a r t i r d o Sul d a F r a n ç a , o direito r o m a n o
fez seu a p a r e c i m e n t o a intervalos a t é b e m d e n t r o d o século
X I I I a o longo d a s r o t a s q u e s e i r r a d i a v a m do litoral do M e -
d i t e r r â n e o O c i d e n t a l a t é F l a n d r e s , a p ô s a a s c e n s ã o de c i d a -
d e s c u j a s c a r t a s d e f u n d a ç ã o , e s t a t u t o s e constituições n ã o se
f u n d a m e n t a v a m em princípios r e c o n h e c i v e l m e n t e r o m a n o s . O
d i r e i t o r o m a n o surgiu m a i s t a r d e , com a e x p a n s ã o d o comércio
sistemático e d e l o n g a d i s t â n c i a . C h e g o u como r e a ç ã o a u m a
c l a r a n e c e s s i d a d e d e s u a s cláusulas s o b r e l e v a n t a m e n t o d e c a -
pitais e criação d e condições f a v o r á v e i s a o comércio e sob o
p a t r o c í n i o d e g r u p o s políticos e econômicos p o s s u i d o r e s d e re-
c u r s o s p a r a f i n a n c i a r - l h e o e s t u d o e t r e i n a r acólitos era s e u s
mistérios.
R e s t a m a i n d a milhares d e c o n t r a t o s desse período, que
n o s d ã o u m a idéia muito clara d o que foi a d i s s e m i n a ç ã o d a s
i d é i a s jurídicas r o m a n a s . O b s e r v a m o s n e l e s o a p a r e c i m e n t o de
especialistas que t r a b a l h a v a m p a r a u m a n o v a classe — o s
'mercadores — e seus aliados n o sistema f e u d a l •— o s seigneucs,
eclesiásticos o u n ã o . q u e d i s p u n h a m d e m o e d a s o n a n t e e d e -
s e j a v a m a u m e n t a r s u a s riquezas n o comércio. ( E r a c o m u m
n e s s a época a p a r t i c i p a ç ã o n o comércio d e famílias n o b r e s ita-
lianas; as f r a n c e s a s , p o r o u t r o lado, a c h a v a m que e s s a p a r t i -
c i p a ç ã o era incompatível com a n o b r e z a e o n o b r e que assim
p r o c e d i a p e r d i a status. Isso, c o n t u d o , n ã o a s impedia d e in-
vestir n a q u a l i d a d e de sócios c o m a n d í t á r i o s . ) P o d e m o s t a m b é m
i m a g i n a r a l g u n s d o s efeitos do r e s s u r g i m e n t o d o comércio sobre
a p o p u l a ç ã o r u r a l ativa. N e m s e m p r e p o d e m o s d e s c o b r i r q u a i s
o s p r e ç o s e x a t o s c o b r a d o s n e s s e s dias, o s d e s t i n o s e a n a t u r e z a
d o s b e n s t r a n s p o r t a d o s , c o n t u d o , p o r q u a n t o u m a d a s princi-
pais convicções d o s m e r c a d o r e s d a é p o c a e r a que deviam, a
t o d o custo, e s c o n d e r d o s c o n c o r r e n t e s o s d e t a l h e s d e seus n e -
AS CRUZADAS 83

gócios. e isso incluía a i n t r o d u ç ã o de p e q u e n a s f a l s i d a d e s nos


contratos.
A l é m d o s milhares de c o n t r a t o s p r i v a d o s , temos a s c a r t a s
de f u n d a ç ã o e o s " e s t a t u t o s " de n u m e r o s a s c i d a d e s . E s s e s
d o c u m e n t o s f u n d a m e n t a i s m u i t a s vezes c o n t i n h a m t a m b é m dis-
posições d e direito privado, b e m como d e t a l h e s sobre adminis-
t r a ç ã o . A l é m disso, há diários, histórias e a n a i s de u n i v e r s i d a -
d e s italianas c u j o s corpos d o c e n t e s s e c o n s a g r a v a m ao e s t u d o
do direito.
É considerável o d e b a t e sobre o local o n d e começou o
r e s s u r g i m e n t o do direito r o m a n o no século X I . A c r e d i t a m o s
que ele — n ã o todo, mas t u d o aquilo q u e s e c o n s i d e r a v a con-
v e n i e n t e e n e c e s s á r i o ao comércio — foi b a s i c a m e n t e levado
ao longo d a s r o t a s d e comércio e que o e s t u d o a c a d ê m i c o d o s
textos s o b r e v i v e n t e s foi, em seguida, e s t i m u l a d o e f i n a n c i a d o
p o r p o d e r e s financeiros e políticos. R e j e i t a m o s a opinião de
que seu e s t u d o n a s u n i v e r s i d a d e s constituiu a f o n t e b á s i c a d a
m u d a n ç a d o u t r i n á r i a o c o r r i d a n o s estabelecimentos mercantis
e n o s escritórios d e advocacia. A s u n i v e r s i d a d e s e r a m instru-
m e n t o s d a politica papal ou secular e, c o m o tal, recebiam
apoio ou e r a m combatidas pelos p o d e r e s espirituais e temporais
n a m e d i d a em que seu e s t u d o seguia uma ou o u t r a direção
prática.
T a m p o u c o p o d e m o s d a r crédito à opinião de que o di-
reito evoluiu n u m a p r o g r e s s ã o " n a t u r a l " , com b a s e no comér-
cio e r e p r e s e n t a n d o essencialmente a r e d e s c o b e r t a d e esque-
cidos conceitos. Seria c o n v e n i e n t e m e n t e e t n o c ê n t r i c o a d o t a r
esse p o n t o d e vista, pois t r a n s f o r m a r i a em i n v e n ç ã o ocidental
a civilização comercial que se desenvolveu a p a r t i r do século X .
O mito d a s u p r e m a c i a ocidental, n o e n t a n t o , cai p o r t e r r a
q u a n d o lemos a s crônicas d a s C r u z a d a s . O s q u e v i a j a r a m pelo
O r i e n t e d e s c o b r i r a m uma civilização — n a v e r d a d e , civilizações
— muito m a i s a d i a n t a d a q u e a nossa. D e s c o b r i r a m a ciência
árabe, incluindo a cultura médica. C o n h e c e r a m , e s a b e m o s que
o t r o u x e r a m p a r a o O c i d e n t e , um sistema de m a t e m á t i c a b a -
seado em n o v e n ú m e r o s e n o zero. o qual substituiu o incômodo
sistema n u m e r a l r o m a n o . P o u c o depois, i n t r o d u z i r a m n o O c i -
dente uma forma elementar de lançamentos contábeis por par-
tidas d o b r a d a s . S ã o T o m á s d e A q u i n o , é preciso n ã o esquecer,
construiu seu sistema filosófico neo-aristotélico b a s e a n d o - s e
n u m a t r a d u ç ã o á r a b e dos t r a b a l h o s do sábio g r e g o .
84 À PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAI.

O s comerciantes q u e v o l t a v a m do O r i e n t e t r o u x e r a m t a m -
b é m o direito r o m a n o ou, pelo menos, u m a v e r s ã o mais siste-
mática e comercialmente usável d o m e s m o d o que a que havia
sobrevivido no O c i d e n t e . H á , aliás, g r a n d e volume d e p r o v a s
em a p o i o desta a f i r m a ç ã o . C o m exceção d e V e n e z a e, um
p o u c o depois, A m a l f i . n ã o h o u v e comércio c o n t i n u o e n t r e a s
regiões oriental e ocidental do M e d i t e r r â n e o e n t r e os a n o s 500
e 1000 d . C . N a v i o s t o c a v a m em M a r s e l h a e em o u t r o s p o r t o s
e m e r c a d o r i a s eram t r o c a d a s , m a s a a t i v i d a d e n o O c i d e n t e
nem r e q u e r i a meios p a r a l e v a n t a r g r a n d e s capitais e p a r a m a n t e r
um comércio p e r m a n e n t e e t a m p o u c o o u t r a s disposições legais,
q u e o envolvem, p r o t e g e m e ampliam. A s coisas, n o e n t a n t o ,
e r a m d i f e r e n t e s n o O r i e n t e . C o n t i n u o u a h a v e r comércio b e m
a t i v o depois de ter C o n s t a n t i n o t r a n s f e r i d o sua capital a n t e a
a m e a ç a d e perigos i n t e r n o s e externos. N o M e d i t e r r â n e o O r i e n -
tal. a ordem jurídica r o m a n a c ont i nuou a refletir os t e m a s d o -
m i n a n t e s da p r á t i c a comercial, incluindo a s v i g e n t e s no litoral
egípcio-palestino. E s s a lei comercial, uma jus gentium n o sen-
tido romano, e s t a v a em v i g o r q u a n d o os m e r c a d o r e s do O c i -
dente chegaram ao Oriente no rastro das Cruzadas.
O direito, q u e r a p i d a m e n t e começou a a d q u i r i r curso no
século X I I , c o n t i n h a n ã o só elementos d o direito comercial ro-
m a n o n a forma em q u e existia q u a n d o C o n s t a n t i n o t r a n s f e r i u - s e
d e R o m a , mas t a m b é m r e f e r ê n c i a s explícitas a disposições legais
p r o m u l g a d a s p o r Justiniano em C o n s t a n t i n o p l a , d e r r o g a n d o o
a n t i g o direito r o m a n o .
N a s d é c a d a s iniciais d a s C r u z a d a s , n ã o se ferira a i n d a o
at r ito e n t r e Bizâncio e o O c i d e n t e .— que mais t a r d e se t r a n s -
f o r m o u em g u e r r a p o r motivo de comércio e m o e d a , e m b o r a
t r a v a d a em n o m e d a religião. Bizâncio foi um d o s primeiros e
úteis, a i n d a que n ã o entusiástico, aliados d o s c r u z a d o s e n ã o
h o u v e resistência ocidental à cultura d e origem bizantina.
Q u a n d o o r o m p i m e n t o e n t r e as d u a s m e t a d e s do I m p é r i o R o -
m a n o foi clara e i n e q u i v o c a m e n t e c o n s u m a d o , no século X I I I ,
o crescimento econômico d o O c i d e n t e já permitia o estabeleci-
m e n t o d e instituições d e s t i n a d a s a c o n s e r v a r e ampliar a base
jurídica d a o r d e m econômica.
N ã o que os h o m e n s de negócios, d i v e r g i n d o d a s opiniões
d o s senhores f e u d a i s e, a p a r e n t e m e n t e , d o P a p a d o , fossem c o n t r á -
rios à a d o ç ã o de idéias heréticas e m e s m o infiéis. O vigoroso
comércio que logo depois se estabeleceu, n ã o s ó com cristãos,
mas também com m u ç u l m a n o s , constitui uma b o a p r o v a nesse
AS CRUZADAS 85

sentido. 6 provável, de fato, que g r a n d e p a r t e d a p r á t i c a comer-


cial oriental, e n ã o só os c o n h e c i m e n t o s científicos, t e n h a sido
a b s o r v i d a pelo O c i d e n t e . S a b e m o s que n o século X I I cidades
italianas c u n h a v a m m o e d a s d e o u r o b i z a n t i n a s e á r a b e s , pois
e r a m a s que t i n h a m curso r e c o n h e c i d o n o comércio do M e d i -
t e r r â n e o . O s m e r c a d o r e s italianos do século X I I e, talvez,
m e s m o os do século anterior c o n h e c i a m bem um livro de autoria
d o á r a b e A l D i m i s q u i intitulado O Livro Relativo à s Belezas
do Comércio e ao Conhecimento das Boas e Más Mercadorias e
às Falsificações que o s Trapaceiros com Elas Fazem. O s á r a b e s
e s t a v a m t a m b é m familiarizados, talvez a t r a v é s d e t r a d i ç õ e s me-
d i t e r r â n e a s que retroagiam ao a u g e do Império R o m a n o , com
a idéia de s o c i e d a d e comercial, e n v o l v e n d o a c o m b i n a ç ã o de
recursos financeiros, a s v e n d a s a crédito e a s letras de câmbio.
A l g u n s p e s q u i s a d o r e s e n c o n t r a r a m p a l a v r a s de inegável origem
á r a b e n o léxico d a prática comercial d o s séculos X I I e X I I I .
D e c e r t o n ã o e s t a m o s a l e g a n d o que as p r á t i c a s comerciais
e a o r d e m jurídica bizantina e á r a b e t e n h a m sido a s únicas e
exclusivas bases do renascimento do direito r o m a n o n o O c i d e n t e
em s e g u i d a à s C r u z a d a s : o capítulo seguinte p õ e em d e s t a q u e
o p a p e l de V e n e z a e A m a l f i n e s s e processo e, sem d ú v i d a a l g u -
ma, p a r t e s d o s e n s i n a m e n t o s e escritos jurídicos r o m a n o s eram
p o s t o s em u s o q u a n d o surgia a n e c e s s i d a d e . A influência do
O r i e n t e , n o entanto, foi muito maior do que em geral se supõe.
O irônico é que as C r u z a d a s , o s t e n s i v a m e n t e l a n ç a d a s
c o n t r a os "infiéis" e logo depois v o l t a d a s c o n t r a os cristãos bi-
zantinos, t e n h a m sido a ocasião p a r a u m a t o m a d a tão g r a n d e
d e empréstimos d a cultura jurídica e costumes comerciais d a s
civilizações á r a b e e bizantina. N a v e r d a d e , t o d o s o s fins de-
c l a r a d o s d a s C r u z a d a s p a r e c e m t e r - s e t o r n a d o insignificantes
q u a n d o c o m p a r a d o s com os reais e d u r a d o u r o s efeitos d a s ex-
pedições à P a l e s t i n a .
E m 1095, a C r u z a d a era d e n o m i n a d a G u e r r a S a n t a e rece-
bia o a p o i o de elementos d a n o b r e z a , de vez q u e era conside-
r a d a um meio p a r a solucionar os p e r s i s t e n t e s e violentos pro-
b l e m a s sociais existentes n o sistema feudal. O s cruzados, no
e n t a n t o , n ã o estabeleceram u m a d u r a d o u r a p r e s e n ç a militar n a
P a l e s t i n a n e m suas p r o p r i e d a d e s f e u d a i s no O r i e n t e lhes t r o u -
x e r a m g r a n d e s lucros ou glória. O s mais i m p o r t a n t e s e p e r m a -
n e n t e s beneficiários foram os m e r c a d o r e s do O c i d e n t e , que f u n -
d a r a m p o s t o s comerciais a v a n ç a d o s que p u d e r a m sobreviver, e
86 À PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL

sobreviveram, à s t r a n s f o r m a ç õ e s militares e politicas. E s s e s pos-


tos podiam ser lucrativos p a r a q u e m q u e r q u e g o v e r n a s s e a
região, p o r q u a n t o p a g a v a m direitos a d u a n e i r o s , impostos e pe-
dágio.
Mercadores e banqueiros lucraram financeiramente c
a p r e n d e r a m n o v a s técnicas d e comércio e n o v a s f o r m a s legais
e institucionais. O comércio em que s e e m p e n h a v a m continuou
a d a r lucro a t é que o M e d i t e r r â n e o foi s u b s t i t u í d o como princi-
p a l r o t a comercial p e l a s v i a g e n s em t o r n o d a Á f r i c a e p a r a o
c o n t i n e n t e a m e r i c a n o . E , c o n f o r m e t e r e m o s o p o r t u n i d a d e de ver,
as forças econômicas alimentadas pelas C r u z a d a s aceleraram
o d e s m o r o n a m e n t o d a s p r ó p r i a s instituições f e u d a i s que, se-
g u n d o a l g u n s h a v i a m p e n s a d o , elas p o d e r i a m t e r a j u d a d o a
salvar.
5

Veneza e Amalfi:
Entre o Oriente e o Ocidente

Neste a n o c P a p a coroou Carlos como Rei dos f r a n c o s . . .


n o t e m p l o do S a g r a d o A p ó s t o l o P e d r o , u n g i n d o - o c o m óleo
d a c a b e ç a aos pés, e c o l o c a n d o . . . nele u m a c o r o a . . .

D e s s a m a n e i r a um h i s t o r i a d o r b i z a n t i n o d a época
ridicularizou a coroação d e C a r l o s M a g n o como I m p e r a d o r
d o I m p é r i o R o m a n o d o O c i d e n t e , n o a n o 800. O bizantino
p o d i a z o m b a r d o s f r a n c o s . M e s m o q u a t r o c e n t o s a n o s mais
t a r d e , q u a n d o o Império Bizantino n a d a mais era que u m a mera
c a s c a , o O c i d e n t e a i n d a n ã o h a v i a c o n s t r u í d o u m a c i d a d e que
m e s m o r e m o t a m e n t e p u d e s s e c o m p a r a r - s e com C o n s t a n t i n o p l a .
V i l l e h a r d o u i n d e C h a m p a g n e , líder da I V C r u z a d a , que viu do
m a r a c i d a d e pela primeira vez n o dia 24 d e j u n h o d e 1203,
descreve-a nestas palavras:
Ora, podeis saber que aqueles q u e j a m a i s h a v i a m visto antes
Constantinopla o l h a r a m - n a com g r a n d e Interesse, pois n u n c a
p e n s a r a m que pudesse haver e m todo o m u n d o cidade tão
rica; n o t a r a m as altas m u r a l h a s e a s f o r t e s torres que a
c e r c a m p o r todos os lados, os r i c o s palácios, a s a l t a n e i r a s
igrejas — das quais h á t a n t a s que n a existência delas não
a c r e d i t a r i a q u e m n ã o a s h o u v e s s e visto c o m os p r ó p r i o s olhos
— e a altura e comprimento daquela cidade sobre todas as
o u t r a s e r a s o b e r a n a . E sabei a i n d a q u e n e n h u m h o m e m foi
suficientemente duro para que suas carnes não tremessem. E
tal n ã o e r a d e espantar, pois j a m a i s h o u v e m a i o r e m p r e s a
c r i a d a p o r q u a l q u e r povo d e s d e a f o r m a ç ã o do m u n d o .

E , note-se. V i l l e h a r d o u i n r e f e r i a - s e à c a s c a a p o d r e c i d a e de-
c a d e n t e d a g r a n d e cidade, a n t e s c o r t e j a d a por V e n e z a . E l e
88 À PROCURA DE UM LUGAR N A ORDEM FEUDAL

viera com a e s q u a d r a v e n e z i a n a s a q u e a r os últimos tesouros d e


Constantinopla.
M a s se e s t a m o s à p r o c u r a d a s o r i g e n s d a s idéias e c o n ô -
micas e jurídicas que i n s p i r a r a m os l e v a n t e s u r b a n o s d a b u r -
guesia, precisamos e s t u d a r a situação de V e n e z a e A m a l f i , ci-
d a d e s p o r t u á r i a s e mercantis, v a s s a l a s de Bizâncio, a t r a v é s d a s
q u a i s p a s s a v a m a s m e r c a d o r i a s , o d i n h e i r o e a cultura que se
i n f i l t r a r a m inicialmente e. mais t a r d e , c o m e ç a r a m a d e r r u b a r o
feudalismo na Europa Ocidental.
A situação g e o g r á f i c a de V e n e z a , aliás, contribuiu p a r a o
papel que a c i d a d e veio a d e s e m p e n h a r . L a g o a s e p â n t a n o s pro-
p o r c i o n a v a m - l h e p r o t e ç ã o c o n t r a i n v a s ã o p o r terra e o r i e n t a v a m
seus h a b i t a n t e s p a r a o mar. D o século V I em diante, a s crô-
nicas r e f e r e m - s e a V e n e z a como c i d a d e marítima e mercantil,
e m b o r a o comércio estivesse v i r t u a l m e n t e e s t a g n a d o no r e s t o
d a E u r o p a O c i d e n t a l . N o século seguinte, V e n e z a t r a n s f o r -
m o u - s e em i m p o r t a n t e elo n a r e d e comercial bizantina, s u p r i n d o
s u a s g a l e r a s o I m p é r i o com escravos, m a d e i r a , f e r r o e o u t r o s
" p r o d u t o s p r i m á r i o s " . N e m mesmo as interdições p a p a i s c o n -
seguiram a p a r e n t e m e n t e p ô r um p o n t o final ao t r á f i c o de e s -
cravos. O p r ó p r i o C a r l o s M a g n o reconheceu a s u z e r a n i a de
Bizâncio sobre V e n e z a .
A m a l f i , igualmente, lucrou com sua v a s s a l a g e m n o m i n a l a
Bizâncio. S i t i i a n d o - s e na costa ocidental d a Itália, c o m e r c i a v a
com o O c i d e n t e — com as c i d a d e s m u ç u l m a n a s da Á f r i c a e d a
P e n í n s u l a Ibérica — b e m como com o O r i e n t e . A o fim do século
era, n a s p a l a v r a s de um m e r c a d o r á r a b e da época, " a mais
p r ó s p e r a cidade da L o m b a r d i a , a mais n o b r e , a mais ilustre
d e v i d o à s s u a s condições, a mais rica e o p u l e n t a " .
À medida q u e a p o d r e c i a o Império B i z a n t i n o e seu p o d e r
c o m e ç a v a a c a m b a l e a r no M e d i t e r r â n e o , V e n e z a e A m a l f i es-
tabeleceram c o n t a t o direto com o s g o v e r n a n t e s m u ç u l m a n o s e
fatímidas, E m 992. V e n e z a concluiu um t r a t a d o comercial f a -
v o r á v e l com Bizâncio. N o a n o 1000, o comércio de longa d i s -
tância e a d e f e s a naval de Bizâncio e n c o n t r a v a m - s e n a s m ã o s
d a e s q u a d r a v e n e z i a n a . N o m e s m o ano, a D a l m á c i a p r e s t a v a
v a s s a l a g e m a V e n e z a , t r a n s f e r i n d o p a r a ela a lealdade n o m i n a l
a o I m p e r a d o r bizantino. E n t r a n d o em colapso sob o p e s o d o s
privilégios d a s guildas e d o s altos impostos, os m e r c a d o r e s bi-
z a n t i n o s a p a r e n t e m e n t e n ã o d i s p u n h a m mais d e recursos p a r a
f i n a n c i a r a v e n t u r a s comerciais por via marítima. D e f a t o . o
E N T R E O ORIENTE E O OCIDENTE 89

r e s s e n t i m e n t o d o s bizantinos c o n t r a a s i t u a ç ã o privilegiada dos


m e r c a d o r e s italianos chegou f i n a l m e n t e a tal p o n t o que, em
3 180, o c o r r e r a m distúrbios d e r u a e m a s s a c r e s de latinos
em C o n s t a n t i n o p l a .
E m 1030, A m a l f i possuía u m a p r ó s p e r a colônia de m e r c a -
dores n a Jerusalém fatímida. o n d e fora c o n s t r u í d a u m a esta-
lagem a m a l f i t a n a — o H o s p i t a l d e S ã o João. R e i v i n d i c a n d o
isenção d e impostos c o m o v a s s a l o d o I m p e r a d o r b i z a n t i n o e em-
p e n h a n d o - s e em comércio m u t u a m e n t e lucrativo com os muçul-
manos, esse e n c l a v e sobreviveu mesmo a o eclipse d a p r o s p e -
r i d a d e comercial d e A m a l f i . E m 1071, a c o n q u i s t a d e A m a l f i
pelos n o r m a n d o s p ô s fim ao seu papel como c e n t r o de comércio.
V e n e z a , n o e n t a n t o , c ont i nuou a m a n t e r sua posição de
força, e s t a b e l e c e n d o suzerania sobre p e q u e n o s p o s t o s a v a n ç a d o s
ao longo d o M e d i t e r r â n e o . Q u a n d o o p o d e r marítimo italiano
foi c h a m a d o a a j u d a r o s c r u z a d o s e começou a l u t a p e l o r e c r u -
descimento d o comércio no M e d i t e r r â n e o , foi V e n e z a contes-
t a d a pelas r e t a r d a t á r i a s Pisa e G ê n o v a , com s u a s ligações com
o crescente movimento u r b a n o a O e s t e .
V e n e z a e A m a l f i d e s e m p e n h a r a m p a p é i s d e s u m a impor-
tância no crescimento do capitalismo ocidental. A s societas maris
de G ê n o v a no século X I I constituíram, com toda probabilidade,
u m a a d a p t a ç ã o d a colleganza v e n e z i a n a muito a n t e r i o r . O di-
reito marítimo, essencial ao comércio n o M e d i t e r r â n e o e, mais
t a r d e , no Atlântico, r e t r o a g e a Bizâncio com p a s s a g e n s por V e -
neza e A m a l f i . E s t a última c i d a d e publicou suas n o r m a s marí-
timas em época t ã o r e c u a d a como 954 e c e r t a m e n t e n ã o depois
d e 1010. M a i s ou m e n o s no a n o 900, os velhos c o s t u m e s m a -
rítimos e p r é - r o m a n o haviam sido restabelecidos pelos impe-
r a d o r e s bizantinos e, com toda probabilidade, eram o b s e r v a d o s
no comércio veneziano. A s p a r t e s mais i m p o r t a n t e s desse di-
reito r a t e a v a m o p r e j u í z o q u a n d o u m a p a r t e d a c a r g a era p e r -
dida, r e g u l a v a m querelas e n t r e o p r o p r i e t á r i o d a s m e r c a d o -
rias e o a r m a d o r e, acima de tudo, forneciam um corpo comum
de r e g r a s p a r a uso em todos o s p o r t o s e entrepostos.
A s técnicas e atividades b a n c á r i a s devem ter desempe-
n h a d o t a m b é m um g r a n d e papel no desenvolvimento de V e -
neza e A m a l f i . B a n c o s sob a f o r m a de pessoas jurídicas s ó
surgiram a p a r t i r do século X I V , mas há sinais de e n o r m e s
f o r t u n a s p e s s o a i s e familiares n o s restos arquitetônicos e em
descrições c o n t e m p o r â n e a s d a vida em a m b a s a s cidades. C o n -

ti - D . A . C
90 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

q u a n t o a s técnicas b a n c á r i a s e x a t a s d o s séculos X e X I n ã o
estejam claras n a s f o n t e s q u e n o s r e s t a m , p o d e m o s reconstitui-
l a s a t r a v é s de f a t o s conhecidos. N ã o teria sido prático, p o r
exemplo, t r a n s p o r t a r g r a n d e s q u a n t i d a d e s d e o u r o a m o e d a d o
o u em b a r r a s p a r a liquidar c o n t a s d e g a l e r a s a b a r r o t a d a s d e
m e r c a d o r i a s e é a i n d a mais difícil i m a g i n a r c a r a v a n a s d e mer-
c a d o r e s c a r r e g a n d o g r a n d e s volumes d e dinheiro. E s s a situação
p r e s s u p u n h a instituições d e crédito, pelo m e n o s no c a s o dns
m a i o r e s c o m p r a s e n t r e o s mercatores •— o s que g a n h a v a m a v i d a
c o m p r a n d o e v e n d e n d o . A ú n i c a possível hipótese é que a
a t i v i d a d e b a n c á r i a em V e n e z a , A m a l f i e r e d o n d e z a s fosse a n -
terior à s notícias mais a n t i g a s que d e l a temos.
R e s t a , por conseguinte, o q u a d r o d e V e n e z a e A m a l f i
como c a b e ç a s - d e - p o n t e d a p e n e t r a ç ã o econômica n a E u r o p a
O c i d e n t a l , u m a p e n e t r a ç ã o que s i m u l t a n e a m e n t e e n c o r a j o u e
mais t a r d e influenciou p r o f u n d a m e n t e o movimento revolu-
cionário u r b a n o local. D e V e n e z a e A m a l f i e, mais t a r d e , dc
G ê n o v a e P i s a , e s u a s r e d e s d e aliados, vieram a s técnicas
jurídicas e comerciais e l a b o r a d a s pelo comércio internacional
r o m a n o , d e s e n v o l v i d a s em Bizâncio e r e t r a n s m i t i d a s ao O c i -
d e n t e logo q u e a s c i d a d e s italianas a s s u m i r a m a s a t i v i d a d e s
d e a r m a z e n a m e n t o , de n a v e g a ç ã o e b a n c á r i a d o s m e r c a d o r e s
bizantinos.
6

Algumas Origens
da Cultura Urbana

N o clima de a g i t a ç ã o d o século X I c o m e ç a r a m a e n -
f r a q u e c e r os laços de família com d e t e r m i n a d a s mansões feu-
dais. U m a história da época f a l a d e G o d r i c , um servo inglês
que s i s t e m a t i c a m e n t e a p a n h a v a o b j e t o s l a n ç a d o s à s praias pelo
m a r a t é r e u n i r o suficiente p a r a j u n t a r - s e a u m a c a r a v a n a de
m e r c a d o r e s . V i a j a n d o e v e n d e n d o s u a s m e r c a d o r i a s . Godric
conseguiu a o s poucos j u n t a r g r a n d e f o r t u n a . S a b e m o s de sua
existência p o r q u e a história d e s u a v i d a foi escrita em a s s e n -
t a m e n t o s eclesiásticos que o l o u v a v a m p o r ter t e r m i n a d o seus
dias como devoto.
D e s e n v o l v e n d o - s e o comércio, com a e x p a n s ã o d e s p o n t a -
ram idéias d i s t i n t a m e n t e " a n t i f e u d a i s " . P e r e g r i n o s , viajantes,
m e r c a d o r e s e fugitivos v o l t a v a m c o n t a n d o histórias sobre ci-
d a d e s italianas, e mesmo s o b r e Bizâncio e A l e x a n d r i a . T o d a s
ns seigneury. qualquer que f o s s e seu t a m a n h o , possuíam um
g r u p o d e a r t e s ã o s e comerciantes que t r a b a l h a v a m sob a dire-
ção do s e n h o r e p o r sua conta. N a s c i d a d e s eclesiásticas, onde
os b i s p o s tinham as sedes de s u a s dioceses, servidores educa-
dos. e n c a r r e g a d o s de c o m p r a s e v e n d a s , c o m e ç a r a m a negociar
por c o n t a própria. N ã o h á d ú v i d a q u e a m e n s a g e m foi rece-
b i d a d e modos diferentes, p r o v o c a n d o reações d i f e r e n t e s em
d i f e r e n t e s locais, mas s e m p r e com idêntico r e s u l t a d o : p r o d u -
tores e comerciantes c o m p r e e n d e r a m q u e o processo d e pro-
duzir e v e n d e r podia ser a r r a n c a d o d a economia f e u d a l e
t r a n s f o r m a d o em atividade s e p a r a d a , centralizada n a s cidades.
92 X PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

N u m e r o s a s c i d a d e s e r a m fortificações d e s m o r o n a d a s , h e r -
d a d a s d o s tempos r o m a n o s e que a i n d a p r o p o r c i o n a v a m a b r i g o
em caso de g u e r r a . N ã o raro esses restos h a v i a m sido con-
s e r v a d o s n o s tempos f e u d a i s como c e n t r o s d e n e g ó c i o s d o
s e n h o r com seus vassalos. N a P r o v e n ç a , o s p r ó p r i o s s e n h o r e s
haviam c o n s t r u í d o aldeias f o r t i f i c a d a s no alto d e colinas, de
o n d e saíam todos os dias os vassalos p a r a cultivar os c a m p o s
n a s encostas mais baixas, c o n t r a s t a n d o esse costume com o
que v ig o r a v a e n t r e os s e n h o r e s fe uda i s d o N o r t e . A s c i d a d e s
diocesanas, g e r a l m e n t e a q u e l a s q u e o s r o m a n o s h a v i a m u s a d o
como subcapitais a d m i n i s t r a t i v a s , e r a m t a m b é m c e n t r o s d e ativa
v i d a u r b a n a e n u m e r o s a s c i d a d e s medievais d e s e n v o l v e r a m - s e
na sede da seigneury d o bispo. O m o v i m e n t o u r b a n o d o s sé-
culos X I e X I I e n c o r a j o u fugitivos do sistema f e u d a l , que se
h a v i a m estabelecido no território de v e l h a s cidades, a criar
n o v a s instituições jurídicas que lhes p r o t e g e s s e m a f u n ç ã o eco-
nômica.
F o r a m c o n s t r u í d a s t a m b é m n o v a s cidades, à s vezes em
torno de uma m a n s ã o f e u d a l ou igreja. A maioria delas, con-
tudo, surgiu mais t a r d e e p o r motivos especiais recebeu o p a -
trocínio de senhores ou m o n a r c a s , O Rei Luís I X , p o r exemplo,
a n t e s de e m b a r c a r p a r a a C r u z a d a , p e r c e b e n d o a n e c e s s i d a d e
de um porto marítimo no M e d i t e r r â n e o , o r d e n o u a c o n s t r u -
ção d e um d e l e s em A i g u e s - M o r t e s , de vez que M a r s e l h a n ã o
estava, n a ocasião, em m ã o s f r a n c e s a s .
D e um m o d o geral, a s instituições u r b a n a s d o s séculos
X I e X I I surgitam nas Jutas contra as restrições da vida feudal.
A r t e s ã o s e a g e n t e s c o m p r a d o r e s , que faziam p a r t e d a " c a s a "
de todos os senhores, exigiram o direito d e negociar a dinheiro
em proveito próprio. A g r i c u l t o r e s p r o c u r a r a m obter o direito
de v e n d e r p a r t e de sua p r o d u ç ã o a dinheiro a fim d e com-
p r a r e m a s mercadorias e s u p r i m e n t o s inexistentes n a m a n s ã o
ou que estavam s e n d o v e n d i d o s por m e r c a d o r e s e a r t e s ã o s que
h a v i a m conseguido libertar-se do sistema f e u d a l . A g r i c u l t o -
res, a r t e s ã o s e m e r c a d o r e s p r o c u r a r a m p o r igual r e e s t r u t u r a r
ou abolir os impostos sobre m e r c a d o r i a s v e n d i d a s em m e r c a d o s
s i t u a d o s n o s domínios d e seus senhores.
M e r c a d o r e s a m b u l a n t e s , que v i a j a v a m de feira em feira
e de c i d a d e em cidade, n u m a d e t e r m i n a d a região, m u i t a s vezes
p r e c i s a v a m b u s c a r p r o t e ç ã o em d i f e r e n t e s fontes. A s vezes, a
I g r e j a intervinha p a r a discutir o a s s u n t o com o senhor, o que
A L G U M A S O R I G E N S DA C U L T U R A URBANA 93

r e s u l t a v a , em a l g u n s casos, em p e d i d o s de desculpas, como o


seguinte:
E u , L a n d r u , o Gordo, seduzido e t e n t a d o pela cobiça que
a m i ú d e se i n s i n u a no c o r a ç ã o d e h o m e n s m u n d a n o s , r e c o n h e ç o
que detive mercadores de Langrea que p a s s a r a m pelos meus
domínios. Tomei-lhes aa mercadorias e conservei-as até
que o bispo de L a n d r e s e o Abade de Cluny m e procuraram
parfl exigir reparação. E u havia conservado p a r a m i m uma
p a r t e d o q u e h a v i a t o m a d o e devolvido o resto. Os mercadores,
p a r a obter esse resto e p a r a poderem, n o f u t u r o , c r u z a r sem
m e d o m i n h a s terras, c o n s e n t i r a m e m p a g a r - m e certo tributo.
E s t e p r i m e i r o pecado s u g e r i u - m e a Idéia d e u m segundo, e
eu i m p u s e fiz com que fosse imposto pelos m e u s servidores
u m a exação c h a m a d a pedágio a todos aqueles que cruzassem
m e u território p a r a f i n s d e negócios ou p e r e g r i n a ç ã o . . .

L a n d r u r e n u n c i o u a seu direito ao p e d á g i o em troca de um


p a g a m e n t o único de t r e z e n t o s sous.
Q u a n d o a intercessão d a I g r e j a ou d a s a u t o r i d a d e s civis
n ã o p r o d u z i a resultados, porém, as queixas d a s classes de a r -
t e s ã o s e m e r c a d o r e s p e r m a n e c i a m sem remédio. O s mercado-
res italianos, mais h á b e i s n a s f o r m a s econômicas e políticas
d o s enclaves por eles dirigidos, devem t e r com certeza e s p a -
l h a d o e s s a s notícias pelo N o r t e . A s e s t r a d a s eram p o v o a d a s
por e s t r a n h o s g r u p o s de v i a j a n t e s , c u j a s f u n ç õ e s nem sempre
pareciam b e m d e f i n i d a s — peregrinos, e s t u d a n t e s a caminho
de universidades, servos f u g i d o s à p r o c u r a de um local onde
se estabelecerem •— grupos, sem exceção, m o l e s t a d o s pela im-
posição de pedágios, além de roubos e d a s g u e r r a s e n t r e senho-
res feudais.
A última linha de resistência de a r t e s ã o s e m e r c a d o r e s
n a s c i d a d e s consistiu em se o r g a n i z a r e m contra o inimigo co-
mum. A f o r m a d e o r g a n i z a ç ã o e s c o l h i d a refletiu um n o v o con-
ceito jurídico, ou pelo menos uma n o v a v e r s ã o d e um velho
conceito. F o r m a r a m g r u p o s d e n t r o d a s m u r a l h a s d a s antigas
c i d a d e s r o m a n a s e fe uda i s e se a g l u t i n a r a m c o m o c o n j u r a d o s
{conjurationes), iguais entre si, e p r o m e t e r a m - s e a j u d a mútua.
O j u r a m e n t o , a p e d r a f u n d a m e n t a l da relação feudal, trans-
f o r m o u - s e n u m a s p e c t o característico d a revolta contra o feu-
dalismo.
O s primeiros g r u p o s u n i r a m - s e em c a m p a n h a p a r a pôr
um fim à g u e r r a f e u d a l , a o b a n d i t i s m o e b cobrança ilegal de
pedágio. N ã o r a r o apoiados pela I g r e j a , ou pelo menos pelas
94 À PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL

o r d e n s monásticas, constituíam associações semimisticas e com


f r e q u ê n c i a d e m o n s t r a v a m u m a reverência especial pela V i r g e m
M a r i a •— símbolo d a I g r e j a pacificadora, e n ã o d a militante.
O s mais p o d e r o s o s e n t r e esses g r u p o s f o r a m a i n d a mais
Jonge. exigindo d o seigneur q u e todas a s a t i v i d a d e s de m a n u -
f a t u r a e comércio f o s s e m s e p a r a d a s d a v i d a f e u d a l e colocadas
à p a r t e d a s relações q u e a c a r a c t e r i z a v a m . O j u r a m e n t o d e
lutar pelo r o m p i m e n t o d o s laços f e u d a i s e r a c h a m a d o de " c o -
m u n a l " e o t e r m o " c o m u n a " descrevia s i m u l t a n e a m e n t e o ju-
r a m e n t o . o s c o n j u r a d o s e a á r e a o n d e se r e c l a m a v a o direito
d e t r a b a l h a r e comerciar.
T i p i c a m e n t e , a c o m u n a •— u m a associação d e v á r i a s d e -
z e n a s a v á r i a s c e n t e n a s de artesãos, s e r v i d o r e s do senhor,
m o d e s t o s a m a n u e n s e s , camponeses, s e r v o s f u g i d o s e v á r i a s
o u t r a s c a t e g o r i a s d e indivíduos — exigia direitos d e n t r o do
território d a cidade, i n c l u i n d o o de f a z e r a s leis e adminis-
t r á - l a s . R e q u e r i a o direito d e o r g a n i z a r um m e r c a d o r e g u l a r ,
isento de pedágio, e uma feira periódica p a r a a qual p u d e s s e m
vir sem impedimentos m e r c a d o r e s de locais d i s t a n t e s . Insistia
n o direito d e r e g u l a m e n t a r o t r a b a l h o d o s a r t e s ã o s d e n t r o
d a s m u r a l h a s d a cidade. E em geral d e s e j a v a que ficasse bem
e n t e n d i d o q u e os s e r v o s q u e conseguissem c h e g a r a o s seus
p o r t õ e s t o r n a v a m - s e livres q u a n d o p o r eles p a s s a s s e m , ou a p ó s
c e r t o p e r í o d o d e residência. M a i s d o q u e q u a l q u e r o u t r a coisa,
e s s a condição t r a d u z i a a dissolução geral d a s o b r i g a ç õ e s feu-
dais, em f a v o r d o s q u e residiam e t r a b a l h a v a m n a cidade.
O s m e m b r o s d a c o m u n a c o n c o r d a r a m t a m b é m em p a g a r
ao s e n h o r c e r t o tipo d e imposto r e g u l a r , c o n t a n t o que a p r ó -
p r i a c o m u n a f o s s e e n c a r r e g a d a d e seu l a n ç a m e n t o e c o b r a n ç a ,
e contanto a i n d a q u e n ã o f o s s e p e s a d o d e m a i s . O g r a u de in-
d e p e n d ê n c i a em r e l a ç ã o a o s e n h o r e s e u s servidores variava
m u i t o de local a local. A mais a n t i g a c a r t a d e f u n d a ç ã o sobre-
v i v e n t e de u m a c i d a d e f r a n c e s a , d a t a d a d e 967, simplesmente
c o n c e d e a o s h a b i t a n t e s isenção do instituto de servidão. O u t r a s
c a r t a s , limitadas, concediam a p e n a s a u t o r i z a ç ã o p a r a realiza-
ç ã o de feiras ou o r g a n i z a ç ã o de mercados. C a r t a s posteriores
c o n t i n h a m em geral m a i o r e s concessões à n o v a classe, que
s i m u l t a n e a m e n t e se t o r n a v a mais consciente d a "necessidade
d e uma sistemática jurídica que lhe definisse o status n a o r d e m
f e u d a l . A p a l a v r a b u r g u ê s —• do latim burgens •— surgiu pela
primeira vez n u m a c a r t a régia f r a n c e s a de 1007 e logo depois
A L G U M A S O R I G E N S DA CULTURA URBANA 95

p a s s o u a ter curso em o u t r a s línguas européias. A s "comunas"


eram realmente a u t ô n o m a s e a l e g a v a m substituir os antigos
seigneurs na escala feudal ou m e s m o n ã o dever obrigação a
pessoa a l g u m a . E m n u m e r o s o s casos, em especial n a P r o v e n ç a ,
a f i r m a v a m ser p e q u e n a s repúblicas s e g u n d o o m o d e l o d a s
c i d a d e s - e s t a d o s italianas. S e u s m e m b r o s eram com f r e q ü ê n c i a
isentos d e o b r i g a ç õ e s militares com o e x é r c i t o d e qualquer
senhor, e x e r c e n d o i n d e p e n d e n t e m e n t e o direito d e t r a v a r guerra
e m a n t e r relações e x t e r n a s . E m v á r i a s ocasiões, n u m e r o s a s co-
munas provençais aliaram-se a Gênova e Pisa.
A " c i d a d e livre", em c o n t r a s t e , e r a g o v e r n a d a p o r um
seigneuc ( q u e p o d i a ser um rei o u i m p e r a d o r ) e d e s f r u t a v a
de status e direitos especiais de comércio i n t e r n o e e x t e r n o e de
m a n u f a t u r a . A c a r t a d a c i d a d e p o d i a ser o b t i d a por compra
ou l e v a n t e p o p u l a r , mas n ã o d e i x a v a d ú v i d a sobre a con-
tinuação d e s u a submissão ao seigneur.
C a r t a s emitidas n o s séculos X I e X I I , n o N o r t e e Sul da
F r a n ç a , n a I n g l a t e r r a , P a í s e s - B a i x o s o u Escócia, a p r e s e n t a v a m
notáveis s e m e l h a n ç a s em f o r m a e m e s m o conteúdo. Isso ein
p a r t e ocorria p o r q u e seu t e x t o e a notícia d o s levantes que a s
h a v i a m p r o d u z i d o eram l e v a d o s a o l o n g o d a s r o t a s d e comér-
cio. E, a t é certo p o n l o , exprimia o d e s e n v o l v i m e n t o d e f o r m a s
paralelas d e o r g a n i z a ç ã o social n a s m e s m a s condições materiais.
D e q u a l q u e r m o d o , v e m o s em tal evidência a f o r m a ç ã o de
uma n o v a ciasse internacional d e m e r c a d o r e s , conscientes d e seu
status como tais.
E m todos os casos, n a s c a r t a s c o n s t a v a a e x t e n s ã o eui
que o seigneur e r a o b r i g a d o a a c e d e r à s e x i g ê n c i a s d o s novos
grupos. I n f o r m a m - n o s t a m b é m sobre a d i s s e m i n a ç ã o g e o g r á f i c a
da revolução b u r g u e s a . A c a r t a o b t i d a p e l a b u r g u e s i a de Lorrís
em 1155, por exemplo, foi imitada em t o d o o c e n t r o d a F r a n ç a ;
a de R o u e n foi copiada em t o d o s o s domínios f r a n c e s e s dos
reis p l a n t a g e n e t a s d a I n g l a t e r r a ; e a c o n c e d i d a a B e a u m o a t
pejo A r c e b i s p o de Reims serviu d e modelo a o que h o j e é a
zona L e s t e d a F r a n ç a .
A p ó s a conquista n o r m a n d a , n u m e r o s a s c i d a d e s inglesas,
galesas e i r l a n d e s a s receberam c a r t a s muito p a r e c i d a s com as
que v i g o r a v a m cm cidades f r a n c e s a s , s o b r e t u d o em Breteuil.
A s " l i b e r d a d e s " d e Breteuil s u r g i r a m n a I n g l a t e r r a em fins
do século X I n a c i d a d e d e P r e s t o n , o n d e f o r m a r a m uma cons-
tituição em miniatura, d i s p o n d o sobre a isenção d e n u m e r o s a s
96 À P R O C U R A DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL

e x a ç õ e s f e u d a i s e e s t a b e l e c e n d o limites à s m u l t a s por i n f r a -
ções criminais j u l g a d a s pelo seigneur. O s tributos eram " f i x o s
e m o d e r a d o s " . O s m e r c a d o r e s d a c i d a d e t i n h a m direito à pro-
t e ç ã o d e uma corte especial d e direito comercial. T o d a s as
p e s s o a s que residissem n a c i d a d e d u r a n t e um a n o e um dia
f i c a v a m p r o t e g i d a s c o n t r a processos i n t e n t a d o s por seu a n t i g o
s e n h o r feudal. E . e m b o r a os r e c é m - c h e g a d o s precisassem d o
c o n s e n t i m e n t o u n â n i m e d o s b u r g u e s e s p a r a p e r m a n e c e r n a ci-
d a d e , tal c o n s e n t i m e n t o era p r e s u m i d o se estes n ã o formali-
z a s s e m um p r o t e s t o d u r a n t e um a n o e u m dia, N u m a e x p r e s -
s ã o d e solidariedade e n t r e os b u r g u e s e s e do d e s e j o d e
c o n s e r v a r bom o crédito d a cidade, a C l á u s u l a 33 d i s p u n h a
que, se algum d e l e s d e i x a s s e d e s a l d a r u m a dívida, a c i d a d e
a p a g a r i a e r e c u p e r a r i a a d e s p e s a com os b e n s do d e v e d o r .
E s s a disposição evitava a possibilidade de q u a l q u e r c r e d o r
e s t r a n g e i r o (incluindo algum seigneur invejoso da l i b e r d a d e
d a c i d a d e ) reivindicar o direito d e a p r e e n d e r m e r c a d o r i a s ou
confiscar propriedades dentro de suas muralhas. N ã o parece
que Preston tenha possuído uma comuna.
O u t r a c a r t a sobrevivente ê a de Saint-Quentin, na França,
a m p l a m e n t e u s a d a c o m o modelo. D i s p u n h a ela que o a l d e ã o
ficava isento d a s obrigações f e u d a i s n o exato m o m e n t o em que
e n t r a v a na cidade, embora todos os semoventes d e i x a d o s a t r á s
p e r m a n e c e s s e m d e p r o p r i e d a d e do a n t i g o seigneur. A pessoa
p o d i a t o r n a r - s e m e m b r o d a c o m u n a p o r ocasião cia e n t r a d a , e
d a í em d i a n t e ficaria sob a o b r i g a ç ã o de respeitar o j u r a m e n t o
m ú t u o e de p e r m a n e c e r nela a m e n o s q u e f o s s e c h a m a d o por
motivo de negócios ou sua p r e s e n ç a se t o r n a s s e necessária
n a s estações d e s e m e a d u r a e colheita em p r o p r i e d a d e s f o r a
d a cidade. R e a l m e n t e , a v i d a d u p l a d o s m o r a d o r e s d a c i d a d e
— em residências u r b a n a s e como c a m p o n e s e s — contribuiu
p a r a o e n f r a q u e c i m e n t o geral d o s laços d a s obrigações feudais,
p o r q u a n t o agricultores que m a n t i n h a m laços com uma comuna
n ã o ficavam mais p r e s o s à t e r r a . A " m a n s ã o " começou a p e r d e r
a importância g e o g r á f i c a q u e p o r v e n t u r a p u d e s s e ter tido e
m e s m o certas á r e a s rurais podiam e s t a r sob o domínio de di-
f e r e n t e s senhores. O s c a m p o n e s e s ligavam-se a seus vizinhos
pela p r o x i m i d a d e e participação em f a i n a s agrícolas comuns; n a
cidade, a r t e s ã o s e comerciantes t o m a v a m p a r t e n a vida coletiva
d a burguesia. N o e sque m a de deveres feudais, podiam d e v e r
l e a l d a d e a vários senhores, mas d e s a p a r e c e r a todo o sentido de
d e v e r pessoal,
A L G U M A S O R I G E N S DA C U L T U R A URBANA 97

O a s p e c t o f u n d a m e n t a ] d a c a r t a de f u n d a ç ã o d a comuna,
p o r conseguinte, era o reconhecimento, pelo s e n h o r , d a cidade
como u n i d a d e , um vassalo coletivo. O r e c o n h e c i m e n t o concedia
à c o m u n a s u a s características b á s i c a s : a u n i d a d e e i g u a l d a d e de
seus m e m b r o s e o direito de a u t o g o v e r n o interno. Implicitamente,
admitia que e s s a classe d e b u r g u e s e s , c o m o acontecia com ca-
valeiros. meirinhos, monges, a b a d e s , a r c e b i s p o s e t o d o s os d e ;
mais m e m b r o s d e g r u p o s sociais bem d e f i n i d o s , possuía lei e
status próprio.
A concessão d a carta, c o n t u d o , n ã o implicava o fim da
luta. A s vezes, ela era c o n c e d i d a p o r um seigneur leigo ou um
soberano, d e i x a n d o a p a r t e eclesiástica d a cidade, muitas vezes
a m p l a m e n t e d i s p e r s a , sob a a u t o r i d a d e d a I g r e j a . E m M a r s e l h a ,
p o r exemplo, a burguesia conseguiu aos poucos e amigavel-
m e n t e o direito de comerciar e a d m i n i s t r a r o p o r t o d a cidade
baixa. C o b i ç a v a , n o entanto, a s u z e r a n i a d o a r c e b i s p o na co-
lina, e isso deu origem a uma série d e violentos choques.
E m o u t r a s áreas, p e r m a n e c e r a m sem s o l u ç ã o d u r a n t e anos
q u e s t õ e s sobre impostos, p r o p r i e d a d e s e jurisdição —• em es-
pecial e s t a última — e a citação de um m e m b r o d a comuna
p a r a c o m p a r e c e r p e r a n t e o t r i b u n a l d o s e n h o r , com ostensiva
ignorância d a carta, podia p r o v o c a r incidentes. Q u a n d o um
jovem de C e l l e s foi e n c a r c e r a d o n a A b a d i a de St. Crespin,
d u r a n t e u m a luta e n t r e a i g r e j a local e a b u r g u e s i a , e s t a última
a r m o u f o g u e i r a s d o lado d e f o r a d o p r é d i o e m a n t e v e - s e vi-
gilante p a r a evitar que o prisioneiro f o s s e t r a n s f e r i d o p a r a jul-
g a m e n t o f o r a d a s cortes b u r g u e s a s . A fim d e m a n t e r acesas
a s fogueiras, c o r t a r a m á r v o r e s n a s v i z i n h a n ç a s d a abadia.
C e r t o domingo, o curé c o n d e n o u do púlpito a d e r r u b a d a d a s
árvores, d i z e n d o que elas p e r t e n c i a m a o s m o n g e s d a abadia.
U m b u r g u ê s , Jean )e V a c h e r , l e v a n t o u - s e e disse que as ár-
vores localizavam-se em território d a c o m u n a e que podiam
ser c o r t a d a s . N a v e r d a d e , a c r e s c e n t o u ele, se h o u v e s s e monges
n o território d a comuna, j u l g a v a certo a b a t ê - l o s também. A
fim d e solucionar a c o n t e n d a , a R a i n h a B l a n c h e de Castille,
em c u j o território se localizava a c i d a d e de Celles. nomeou
uni a b a d e vizinho p a r a realizar uma "investigação", ou um.?
espécie d e inquérito de c u m p r i m e n t o obrigatório, ao qual pes-
soas podiam ser citadas a c o m p a r e c e r e receber o r d e n s de
p r o v e r evidência. A c o m u n a r e u n i u - s e e jurou que todos os
b u r g u e s e s citados a comparecer p e r a n t e a comissão jurariam
98 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

q u e n a d a s a b i a m e que sobre outros a s s u n t o s p e r m a n e c e r i a m


em silêncio.
E m Laon, em território d o Rei d a F r a n ç a , uma c o m u n a
recebeu certos poderes, concedidos pelo bispo 110 a n o de 1108,
o s q u a i s f o r a m supri m i dos q u a t r o a n o s depois pelo m e s m o
bispo e pelo R e i Luís V I . A o r d e m p r o v o c o u imediatos p r o -
testos n a s r u a s d a " c o m u n a " . O s b u r g u e s e s r e u n i r a m - s e e
q u a r e n t a deles j u r a r a m m a t a r o bispo. L i d e r a d o s p o r um a n -
tigo servo, c h a m a d o Y s e n g r i n , o Lobo, e n c o n t r a r a m o bispo
e s c o n d i d o em s u a a d e g a e c o r t a r a m - l h e a cabeça. P r o c u r a n d o
d e f e n d e r - s e d a ira d e Luís V I , os b u r g u e s e s e n t r a r a m em
a l i a n ç a com um b a n d o l e i r o n o b r e local. S o m e n t e em 1128 foi
f i r m a d o um a c o r d o , incluindo u m a n o v a c o n c e s s ã o real à co-
m u n a e a anistia geral.
A s lutas o c o r r i d a s em C e l l e s e L a o n c o m p r o v a r a m a exis-
tência de a l g o mais do que a m e r a militância comunal. D e -
monstraram a hostilidade d a Igreja às comunas. A malque-
r e n ç a surgia m u i t a s vezes p o r q u e a c i d a d e o n d e a c o m u n a se
localizava era a seigrteucy de algum bispo, o n d e se e r g u i a a
c a t e d r a l diocesana. O s seigneurs eclesiásticos f r e q ü e n t e m e n t e
insistiam na rigorosa m a n u t e n ç ã o d a s e x a ç õ e s f e u d a i s . A d e -
mais, a c o m u n a r e p r e s e n t a v a uma ameaça à s leis f u n d a m e n t a i s
d a I g r e j a e à s p r e r r o g a t i v a s eclesiásticas. Reclama a I g r e j a o
controle do sistema educacional, que s e m p r e considerou privi-
légio seu e temia viesse a ser i n f i l t r a d o por ideais leigos; pior
a i n d a , os communards e r a m n ã o r a r o c o n s i d e r a d o s hereges,
p o r q u a n t o , e m b o r a se e m p e n h a s s e m em ativa v i d a religiosa,
pouca atenção prestavam à hierarquia d a Igreja e pouca pa-
ciência d e m o n s t r a v a m p a r a com o p a g a m e n t o d e dízimos.
A p r ó p r i a n a t u r e z a d a c o m u n a colocava-a em conflito di-
reto com a e s t r u t u r a o r g a n i z a c i o n a l d a I g r e j a . A o c e n t r o d a
o r g a n i z a ç ã o comunal, em geral coexistente com ela, havia uma
f r a t e r n i d a d e religiosa u n i d a por j u r a m e n t o . E r a isso c o n h e c i d o
como i r m a n d a d e em t e r r a s latinas, e " g r ê m i o " ou g u i l d a n a s
alemãs, e incluía todos os m e m b r o s de um ofício ou t o d o s os
a r t e s ã o s e comerciantes de uma localidade. " T a n t o p a r a a
a m i z a d e como p a r a a v i n g a n ç a p e r m a n e c e r e m o s unidos, a c o n -
teça o q u e a c o n t e c e r " , dizia o e s t a t u t o d e u m a guilda de L o n -
d r e s n o século X . O j u r a m e n t o de f r a t e r n i d a d e a m i ú d e exigia
sigilo de seus m e m b r o s e e x p r e s s a m e n t e d i s p u n h a que o j u r a -
m e n t o comunal tinha primazia sobre t o d o s os demais — o q u e
p u n h a em q u e s t ã o n ã o s ó a l e a l d a d e ao seigneur, mas t a m b é m
A L G U M A S O R I G E N S DA CULTURA URBANA 99

a v e r a c i d a d e d e d e p o i m e n t o s em inquéritos. E i n v á r i a s co-
munas, como, por exemplo, n a s de C a m b r a i , A v i g n o n , Aries,
Digne, St. O m e r , LiUe e A r r a s , s a b e m o s que o g r u p o domi-
n a n t e n a c a p t u r a do poder municipal foi uma i r m a n d a d e reli-
giosa v i n c u l a d a por j u r a m e n t o m ú t u o e que a g i a eiu sigilo.
E s s e s g r u p o s n ã o s ó subscreviam d o u t r i n a s c o n s i d e r a d a s p e -
rigosas. m a s sua f o r m a d e o r g a n i z a ç ã o c o n t e s t a v a o domínio
d a I g r e j a c o m o única instituição a m e d i a r e n t r e a T r i n d a d e
e a massa de pecadores n a terra.
N e m t o d a s a s cidades, no e n t a n t o , n a s c e r a m d a violência.
N a P r o v e n ç a , o s seigneurs n ã o r a r o n e l a s residiram, concede-
ram c a r t a s d e autonomia sem p r o t e s t o e c o n t i n u a r a m a desem-
p e n h a r um ativo papel n o s negócios u r b a n o s . M a i s ao N o r t e ,
os s e n h o r e s leigos e os b i s p o s c o n t r i b u í r a m p a r a a f u n d a ç ã o
de n o v a s cidades, e s t a b e l e c e n d o - l h e s o s limites e supervisio-
n a n d o - l h e s a construção. F o r a m e n c o r a j a d o s a f a z ê - l o pela
possibilidade d e participarem d a receita municipal e pelo desejo
de evitar uma c o n f r o n t a ç ã o com seus v a s s a l o s . N o a n o d e 1175,
o C o n d e H e n r y de T r o y e s c o n c e d e u u m a c a r t a a " V i l l e N e u v e .
n a s p r o x i m i d a d e s d e P o n t - s u r - S e i n e " , estabelecendo um aluguel
a n u a l f i x o pelo direito de m e r c a d o r e s e a r t e s ã o s residirem n a
c i d a d e e cultivarem a t e r r a d a s vizinhanças, b e m c o m o de
v e n d e r sem empecilhos c a s a s e v i n h e d o s e negociar a r r e n d a -
mentos. Seis êchevins deveriam ser escolhidos pelos m o r a d o r e s
"a fim d e a j u d a r meu preboste no j u l g a m e n t o d e s u a s queixas"
e p a r a dirigir o s negócios d a cidade. O s c i d a d ã o s recebiam
p r o t e ç ã o c o n t r a p r i s ã o e remoção pelos s e u s a n t i g o s seigneurs.
A c o o p e r a ç ã o d a I g r e j a n a f u n d a ç ã o de n o v a s cidades
fez-se a c o m p a n h a r muitas vezes d a criação, pelas a u t o r i d a d e s
eclesiásticas, de uma zona d e t r é g u a ou paz n o território ur-
bano, retirando-o d a e s f e r a d a s guerras feudais.
N a I n g l a t e r r a , a conquista n o r m a n d a t r o u x e .— ao menos
em teoria — um sistema de g o v e r n o eficiente e centralizado.
E m b o r a os senhores n o r m a n d o s concedessem inicialmente pri-
vilégios a n u m e r o s a s comunas, t o d a s a s c i d a d e s p o u c o depois
eram p o s t a s sob governo direto d o rei, a n t e c e d e n d o em um
século f e n ô m e n o semelhante na F r a n ç a . A d e s a p r o v a ç ã o pela
C o r o a d a existência de s e n h o r e s f e u d a i s de status inferior, o
que permitia o a p a r e c i m e n t o de novos níveis de obrigações,
foi f o r m a l i z a d a pelo e s t a t u t o Q u i a Emptores em 1290.
E m 1130, a mais a n t i g a concessão real de que se tem
notícia d e c l a r a que os c i d a d ã o s de Lincoln haviam solicitado
100 À PROCURA DB U M LUGAR N A ORDEM FEUDAL

a o Rei H e n r i q u e I que c o n f i r m a s s e que o c u p a v a m uma c i d a d e


sua, sem obrigação a l g u m a p a r a com q u a l q u e r o u t r o senhor.
N e s s e mesmo ano, H e n r i q u e concedeu u m a c a r t a de a u t o n o m i a
à c i d a d e de L o n d r e s que, e n t r e o u t r a s coisas, dizia:
H e n r i q u e , p e l a g r a ç a d e D e u s rei doa i n g l e s e s . .. s a ú d a a todoa os
seua leais súditos, t a n t o f r a n c e s e s c o m o ingleses, e m t o d a a
Inglaterra. S a i b a m que concedi a m e u s cidadãos de Londres a
p o s s e d e M i d d l e s e x , p a r a c u l t i v o , p o r u m p a g a m e n t o d e £ 500
a n u a i s . . . com plenos poderes p a r a n o m e a r xerife quem quer
q u e e s c o l h a m e n t r e si, e c o m o J u i z q u a l q u e r p e s s o a o u a l g u é m
q u e d e s e j e m e n t r e si, c o m o f i m d e d e c i d i r q u e i x a s d e m i n h a
Coroa e o julgamento a que derem lugar; ninguém mais será
juiz sobre essa gente de Londres. E os cidadãos não litigarão
fora das muralhas da cidade em qualquer questão;... nem
qualquer u m deles será forçado a provar s u a inocência perante
a lei e m j u l g a m e n t o p o r c o m b a t e . E s e q u a l q u e r c i d a d ã o f o r
p a r t e e m u m a questão de interesse d a Coroa, que a f i r m e sua
situação de cidadão de Londres por j u r a m e n t o que será julgado
dentro d a c i d a d e . . . E que todos os h o m e n s de Londres e todos
os seus b e n s s e j a m livres e i s e n t o s do p a g a m e n t o d e q u a l q u e r
tributo, p o r t a g e m . . . e todos os demais direitos em toda a
Inglatera e em todos os seus portos m a r í t i m o s . . .

O desenvolvimento a n t e c i p a d o d o controle real n a I n g l a -


t e r r a foi t o r n a d o possível pela p r e s e n ç a de uma a u t o r i d a d e
central, a u s e n t e n a E u r o p a continental, o n d e durou por muito
mais t e m p o a colcha de r e t a l h o s d a s s u z e r a n i a s feudais. A s s u -
miam especial i m p o r t â n c i a as disposições relativas à isenção
d a a ç ã o da justiça senhorial. N e n h u m londrino podia ser c i t a d o
p e r a n t e uma corte s e n h o r i a l e mesmo a s reivindicações de
s / a f u s b u r g u ê s d e v i a m ser j u l g a d a s em Londres. O Rei F e l i p e
A u g u s t o da F r a n ç a , p r o v a v e l m e n t e e c o a n d o uma c a r t a mais
antiga, prometeu a o s c i d a d ã o s de S a i n t - Q u e n t i n que "nem n ó s
nem q u a l q u e r o u t r a p e s s o a p o d e r á julgar q u a l q u e r m e m b r o d a
comuna, exceto p e r a n t e seu tribunal de v e r e a d o r e s " .
A limitação dos d e v e r e s militares n ã o d e s e m p e n h o u papel
tão imp o r ta n t e n a s c a r t a s de a u t o n o m i a inglesas c o m o na
F r a n ç a , pois tais d e v e r e s eram r e g u l a m e n t a d o s n a I n g l a t e r r a
por uma legislação nacional uniforme. O Assize de A r r a s d e
1181 d i s p u n h a q u e :
T o d o a o s c i d a d ã o s q u e p o s s u í r e m J6 m a r c o s e m b e n s o u a l u g u e -
res terão u m a cota de malha, capacete, escudo e lança. Além
d i s s o , t o d o s o s c i d a d ã o s q u e p o s s u í r e m 10 m a r c o s e m b e n s o u
a l u g u e r e s t e r ã o u m a c o t a d e m a l h a , u m a p r o t e ç ã o d e f--nro
p a r a a c a b e ç a , e l a n ç a . Ademais, todos os b u r g u e s e s e h o m e n s
A L G U M A S O R I G E N S DA C U L T U R A URBANA 101

livres possuirão u m a túnica acolchoada, u m a peça de ferro p a r a


a cabeça, e u m a l a n ç a . . .

O s reis ingleses, porém, temiam a i n d a o l e v a n t e d a b u r g u e s i a ,


talvez devido à experiência q u e h a v i a m tido com seus domí-
nios f r a n c e s e s , pois a postura p r o s s e g u i a , d i s p o n d o q u e " q u a l -
quer b u r g u ê s q u e possuir mais a r m a s do q u e deve, d e a c o r d o
com e s t a p o s t u r a , a s d a r á ou t r a n s f e r i r á d e o u t r a m a n e i r a a
algum homem, q u e as c o n s e r v a r á p a r a u s o a serviço d o s e n h o r
rei d a I n g l a t e r r a . . . "
A s c i d a d e s escocesas d e s e n v o l v e r a m - s e s e g u n d o o modelo
inglês, m a s s o b o patrocínio d o rei d a E s c ó c i a . O s h a b i t a n t e s
a l i m e n t a v a m certo interesse pela a g r i c u l t u r a e a t i v i d a d e s pas-
toris, m a s se v o l t a v a m c a d a vez mais p a r a o comércio e a ati-
v i d a d e a r t e s a n a l . A s mais i m p o r t a n t e s cidades, c o n t e m p l a d a s
com c a r t a s d e " b u r g o s " reais e s i t u a d a s n a costa, t r a n s f o r m a -
r a m - s e em c e n t r o s e x p o r t a d o r e s de lã b r u t a n o c r e s c e n t e co-
mércio de m a n u f a t u r a d o s que tinha l u g a r n a s c i d a d e s fla-
mengas.
A s s i m , em inícios d o século X I a b u r g u e s i a c o n q u i s t a r a
á r e a s a u t ô n o m a s d e n t r o do sistema f e u d a l , enclaves d e n t r o
d o s q u a i s a s relações econômicas e jurídicas e r a m c o n d u z i d a s
de f o r m a d i f e r e n t e d a v i g e n t e n a s m a n s õ e s . M a s o que acon-
tecia n e s s e s enclaves?
N a s c i d a d e s menores, a f o r m a d e o r g a n i z a ç ã o municipal
era d e t e r m i n a d a pelas concessões q u e os commurtards haviam
a r r a n c a d o d e seus seigneur ou seigneurs. A mais importante
dizia respeito ao direito de a assembléia municipal, eleita de
g r a n d e n ú m e r o de maneiras, e l a b o r a r leis e m a n t e r cortes
de justiça que p o d i a m p r o f e r i r j u l g a m e n t o s d e c u m p r i m e n t o
obrigatório p o r todos o s m e m b r o s d a c o m u n i d a d e . N ã o raro,
como' n o s casos de M a r s e l h a e B r a b a n t , o conselho era esco-
lhido em p a r t e p e l a s guildas e em p a r t e s e g u n d o linhas geo-
g r á f i c a s . A s guildas reuniam m e m b r o s d a m e s m a ocupação,
o LI métie r, m u i t a s vezes d e c o m p o n d o o p r o c e s s o (tal como
a m a n u f a t u r a d e tecidos) em c e r t o n ú m e r o d e o p e r a ç õ e s dis-
tintas, c a d a u m a d a s quais seria e x e c u t a d a p o r um diferente
métier. A r e p r e s e n t a ç ã o g e o g r á f i c a era feita por " q u a r t e i r õ e s "
d a c i d a d e e podia, com freqüência, ser a m e s m a que a seleção
feita pelas guildas. pois p r a t i c a n t e s do m e s m o métier tendiam
a residir na mesma área. H a v i a , no e n t a n t o , n u m e r o s a s v a r i a -
ções: em Aries, b u r g u e s e s e n o b r e s escolhiam sessenta conse-
102 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

lheiros municipais c a d a e o conselho elegia o prefeito. E m E u .


um conselho localmente eleito indicava três c a n d i d a t o s a pre-
feito e o c o n d e — o seigneur d a c i d a d e —- escolhia um deles.
N a maioria d a s c i d a d e s h a v i a u m a assembléia municipal, e m -
b o r a variassem s e u s p o d e r e s . E m a l g u n s casos, como em A u r i l -
Iac, a assembléia e r a c o m p o s t a d e t o d o s os indivíduos d e mais
d e vinte a n o s d e i d a d e q u e h o u v e s s e m residido n a c i d a d e
d u r a n t e u m a n o e um dia. N a s u a reunião a n u a l , os m e m b r o s
d a assembléia r e n o v a v a m o j u r a m e n t o c o m u n a l d e apoio m ú t u o
e escolhiam o s s e r v i d o r e s municipais.
A s vezes o seigneur r e t i n h a o direito d e d e s i g n a r o s e r -
vidor que presidiria à c o r t e d e justiça local. N o caso d e c i d a d e
m a i s i n d e p e n d e n t e , o prefeito ou um servidor d e categoria
c o m p a r á v e l (cônsul, r e i t o r ) , ou, à s vezes, um v e r e a d o r , pre-
sidia a o s t r a b a l h o s . A f u n ç ã o j u d i c a n t e decisiva era em geral
exercida p o r v á r i o s indivíduos que c o m p u n h a m um colegiado
e e r a m d e s i g n a d o s por v á r i o s n o m e s — échevins ou scabirti,
p o r exemplo. T i n h a m por f u n ç ã o e x a m i n a r a evidência e in-
t e r p r e t a r a lei. E m a l g u n s locais, tais f u n ç õ e s eram s e p a r a d a s ,
e a p a r t e n u m processo trazia p e s s o a s à c o r t e p a r a a f i r m a r sob
j u r a m e n t o a existência de um costume q u e d a v a direito a o
q u e r e l a n t e . A l g u n s litígios p o d i a m sem d ú v i d a ser soluciona-
d o s por r e f e r ê n c i a a p o s t u r a s municipais. N o s séculos X I I e
X I I I , no e n t a n t o , tais d o c u m e n t o s v a r i a v a m de um m e r o esboço
d e i n d e p e n d ê n c i a municipal a um d e t a l h a d o código, e a maioria
d o s casos r e q u e r i a a invocação de c o s t u m e s —• d a cidade, d o
país, ou d o s m e r c a d o r e s em geral. A fim d e d e t e r m i n a r qual
o costume geral, h a v i a livros de direito — tais como Lo Codí
e Exceptiones Petri —• além d e s e c o n f i a r t a m b é m n a memória
e na tradição.
N o s casos em que eram s e p a r a d a s a s f u n ç õ e s de inves-
tigação e i n t e r p r e t a ç ã o , surgiu p e l a primeira vez o júri mo-
d e r n o e racionalizou o m é t o d o de j u l g a m e n t o . O duelo judicial
.— a l u t a a t é a m o r t e e n t r e litigantes a f i m d e se decidir o
r e s u l t a d o d o pleito — foi oficialmente abolido n a s c a r t a s d e
a u t o n o m i a de certo n ú m e r o d e cidades. S u b s t i t u i n d o - o , e r a m
utilizados j u r a d o s como i n v e s t i g a d o r e s d e situações d e f a t o .
N o início, eles e r a m trazidos pelos litigantes, e n ã o c o n v o c a d o s
p e l a corte, e f a l a v a m d o p o n t o d e vista pessoal, e n ã o sob
juramento, tomando conhecimento d a prova produzida pela
o u t r a p a r t e . N a s compilações j u r i s p r u d e n c i a i s d e direito cos-
A L G U M A S O R I G E N S DA C U L T U R A URBANA 103

tumeiro d e q u a t r o burgos escoceses n o t a m o s a confluência do


direito comercial e do a n t i g o rito p r o c e s s u a l d o júri:
Se u m b u r g u ê s f o r a c u s a d o p o r u m l a v r a d o r de t e r r o u b a d o
mercadorias, encontradas em sua c a s a . . . e negar o roubo como
burg-uês livre, d a r d o s u a p a l a v r a c o n t r a a do l a v r a d o r , e disser
que e m b o r a não possua recibo comprou legalmente as merca-
dorias contestadas no mercado do bairro, o burguês será julgado
Inocente pelo j u r a m e n t o de doze vizinhos e p e r d e r á a p e n a s as
m e r c a d o r i a s reclamadas. E irá j u r a r que não sabe onde se
a b r e ou f e c h a a p o r t a do h o m e m a q u e m c o m p r o u a s m e r c a -
dorias.

E s s a disposição diz respeito a uma s i t u a ç ã o n a q u a l a s mer-


c a d o r i a s f o r a m realmente r o u b a d a s , f a t o este que o c o m p r a d o r
desconhecia. O c o m p r a d o r e n t r e g a a s m e r c a d o r i a s a o seu ver-
d a d e i r o d o n o e n e n h u m a p e n a l i d a d e adicional s o f r e . A s u a
b o a fé a o c o m p r a r sem s a b e r que a s m e r c a d o r i a s eram r o u b a -
d a s é c o n v i n c e n t e m e n t e c o m p r o v a d a , se ele é b u r g u ê s , pelo seu
j u r a m e n t o e os de doze vizinhos.
Leis municipais e de bairros r e g u l a m e n t a v a m t a m b é m em
o u t r o s d e t a l h e s as feiras e o s m e r c a d o s locais. A feira era um
a c o n t e c i m e n t o semanal ou quinzenal ao q u a l compareciam cam-
p o n e s e s p a r a v e n d e r alimentos e o n d e a r t e s ã o s p o d i a m v e n d e r
t a m b é m m e r c a d o r i a s ao comércio local. H a b i t u a l m e n t e , o mer-
c a d o era isento d e t oda interferência d o seigneur, exceto, talvez,
p o r um imposto l a n ç a d o e a r r e c a d a d o pela municipalidade em
n o m e d o primeiro. N o s casos em que e s t a t u t o s municipais r e g u -
lavam o m e r c a d o , f a z i a m - n o com g r a n d e s d e t a l h e s , f i x a n d o o
preço d a s mercadorias, r e s t r i n g i n d o a p r o p a g a n d a ou o p r e g ã o
n a s ruas. p r o p o r c i o n a n d o p r o t e ç ã o aos m e r c a d o r e s a caminho
d o m e r c a d o e. d e um m o d o geral, p r o c u r a n d o controlar a s
f o r ç a s d e v e n d a e troca de b e n s em beneficio d a c o m u n i d a d e .
O espírito d e concorrência n ã o e s t a v a p r e s e n t e n a s dis-
posições d o s e s t a t u t o s sobre m e r c a d o s , mesmo n o s de lima
g r a n d e c i d a d e como M a r s e l h a . T o d o s o s m e m b r o s d a comuna
t i n h a m direito a igual proteção. A o p a s s o que o parentesco
p r o p o r c i o n a v a uma influência u n i f i c a d o r a sob o domínio dos
s e n h o r e s feudais, a c o m u n a f o r j a v a n o v o s elos contra inimigos
c o m u n s e em interesses comuns. N o s c o n t r a t o s firmados por
c a m p o n e s e s q u e t o m a v a m empréstimos em dinheiro, d a n d o
como g a r a n t i a s a f r a s f u t u r a s , a família m u i t a s vezes servia d e
p e n h o r d a dívida: n a s comunas, os c o n c i d a d ã o s a s s u m i a m o
10-1 A PROCURA DE UM LUGAR NA ORDEM FEUDAL

mesmo papel e até mesmo responsabilidade municipal coletiva


p e i a s d í v i d a s do t o d o s o s b u r g u e s e s .
O s a r t e s ã o s d i r i g i a m - s e p a r a as c i d a d e s p a r a t e r e m liber-
d a d e de vender e comprar as matérias-primas de que necessi-
t a v a m . M a s isso e r a u m a i s e n ç ã o d a s o b r i g a ç õ e s e e x a ç õ e s
f e u d a i s , e n ã o l i b e r d a d e p a r a c o n c o r r e r . A s leis m u n i c i p a i s em
g e r a l d i s p u n h a m q u e a s m a t é r i a s - p r i m a s n ã o p o d i a m ser c o m -
p r a d a s pelo a r t e s ã o e n q u a n t o a c a m i n h o d a c i d a d e , n a t e n t a -
t i v a d e o b t ê - l a s a p r e ç o mais b a i x o , e com v a n t a g e m s o b r e a
concorrência potencial. O mesmo princípio aplicava-se à m ã o -
d e - o b r a : os e s t a t u t o s e s t a b e l e c i a m q u e , se um m e s t r e - a r t e s ã o
t i n h a d o i s t r a b a l h a d o r e s e seu c o l e g a n e n h u m , o p r i m e i r o d e v i a
c o n s e n t i r q u e o colega c o n t r a t a s s e u m d e s e u s e m p r e g a d o s . O u ,
c o m o escreveu R é g i n e P e r n o u d : " C o n s i d e r a v a - s e a m a t é r i a -
p r i m a d a p r o d u ç ã o , ou s e j a , a m ã o - d e - o b r a d i s p o n í v e l , um
p o u c o c o m o se f o s s e u m a massa indivisível, à q u a l t o d o s
p o s s u í a m direito, e era d e i m p o r t â n c i a f u n d a m e n t a l a j u s t a
d i v i s ã o d e b e n s e s e r v i ç o s . " P e r s i s t i u d u r a n t e séculos a r e g u -
lamentação das condições de trabalho e venda, principalmente
n a s o c u p a ç õ e s l i m i t a d a s a o c o m é r c i o local •— t a i s c o m o a s d e
padeiro, açougueiro e outros fornecedores de alimentos —
o n d e e r a i m p o r t a n t e a p r o t e ç ã o d e u m a clientela local e r e l a t i -
v a m e n t e estável. N a s que produziam bens p a r a o crescente
c o m é r c i o i n t e r n a c i o n a l — como, p o r e x e m p l o , d e t e c i d o s —
e na profissão de mercador-comerciante n a s g r a n d e s cidades
p o r t u á r i a s e e n t r e p o s t o s l o c a l i z a d o s n o interior, a p r e s s ã o d o s
f a t o s econôniicGS d e r r u b o u e s s a s n o r m a s a n t i c o m p e t i t i v a s e
forçou uma reorganização contínua da produção.
O crescimento d o comércio inevitavelmente beneficiou
a l g u n s m e m b r o s d a c o m u n a à s e.vpensas d e outros. N a s c i d a -
des, a luta e n t r e a r t e s ã o s e m e s t r e s - a r t e s ã o s , ou e n t r e o s e l e -
m e n t o s p r o d u t i v o s d a p o p u l a ç ã o e o s e l e m e n t o s comerciais,
surgia constantemente. C o m o exemplo, temos Cambrai, a pri-
meira d a s comunas ao N o r t e dos Alpes, no que é h o j e a zona
mais setentrional da França, nas proximidades da fronteira
com a Bélgica. D e m a i s ou m e n o s o a n o 9 0 0 a t é 1100, C a m -
brai fez parte do Sacro Império R o m a n o na qualidade de
c i d a d e d i o c e s a n a q u e t i n h a c o m o seigneur um b i s p o . E m 9 5 8 .
s e u s m o r a d o r e s f o r m a r a m um eonjuratio, ou u m a o r g a n i -
zação regida por juramento mútuo, contra o bispo. Somente
em 1076, c o n t u d o , a p ó s um l e v a n t e b e m s u c e d i d o d u r a n t e a
a u s ê n c i a d o b i s p o , foi r e c o n h e c i d o o d i r e i t o d e c o n j u r a d o s
A L G U M A S O R I G E N S DA C U L T U R A URBANA 105

f o r m a r e m um g o v e r n o comunal. F o r a m o r g a n i z a d o s os métiers,
p r o m u l g a d o s e s t a t u t o s municipais e r e g u l a m e n t a d a a vida
comunal. P o u c o mais de cem a n o s depois, no e n t a n t o , C a m b r a i
p e r d e r a t o d o o espirito de u n i d a d e e e n c o n t r a v a - s e dividida em
c a m p o s hostis, como descreve a b a i x o L a m b e r t de ^ V a t e r l o o ,
um h i s t o r i a d o r d a é p o c a :
N o Início, e l a t a c o m u n a ] foi r e c e b i d a c o m s a t i s f a ç ã o p o r q u e
fora instituída por homens tidos em alta estima, homens cuja
v i d a e r a justa, simples, h o n r a d a , e n ã o a v a r e n t a . Todos e s t a v a m
contentes com o que possuíam; a justiça e concórdia reinavam
e n t r e eles; a a v a r e z a era r a r a . C i d a d ã o r e s p e i t a v a cidadão;
o rico não desprezava o pobre; todos evitavam os atritos, a
discórdia, a s d e m a n d a s j u d i c i a i s . . . M a s que m u d a n ç a ocorreu!
Tornou-se de súbito desonrosa e seus belos primórdios acaba-
r a m n u m estado de vergonha e perversidades por razões claras
demais. Os cidadãos deixaram-se embotar pela prosperidade;
ergueram-se uns contra os outros; d e i x a r a m sem castigo o
pecado e o crime, e n i n g u é m pensa e m o u t r a coisa senão enri-
q u e c e r p o r m e i o s ilícitos. A p o u c o e pouco, os g r a n d e s c o m e ç a -
r a m a o p r i m i r os p o b r e s c o m m e n t i r a s , p e r j ú r i o e f o r ç a b r u t a .
O direito, a eqüidade e a h o n r a d e s a p a r e c e r a m . . .

G r a n d e n ú m e r o de tais c o n d e n a ç õ e s a p a r e c e u mais ou
m e n o s p o r essa época e. embora sua v e r a c i d a d e possa ser posta
em d ú v i d a até c e r t o ponto, p o r q u a n t o e r a m p r o f e r i d a s em igrejas
e mosteiros, f o c o s de hostilidade ao comércio, era inegável a
v e r d a d e básica que c o n t i n h a m . A s instituições jurídicas muni-
cipais. como aliás o s cargos municipais, a c a b a r a m indo p a r a r
n a s mã o s d o s ricos. E as p r ó p r i a s instituições que no início
a s s e g u r a v a m o respeito pelos objetivos e interesses c o m u n s —
a utilização de échevins para g o v e r n a r e j u l g a r as d e m a n d a s
judiciais •— t r a n s f o r m a r a m - s e em i n s t r u m e n t o s de o p r e s s ã o n o s
casos em que a f u n ç ã o de n o m e a r servidores e i n t e r p r e t a r o
costume v i g e n t e caiu n a s m ã os de um p e q u e n o g r u p o .
N a s c i d a d e s o r g a n i z a d a s p o r o c u p a ç ã o , ou métier, os
s e n h o r e s mais ricos vieram a d o m i n a r a v i d a d a guilda e n -
q u a n t o seus c o n c o r r e n t e s mais p o b r e s eram o b r i g a d o s a fechar
a s portas, t o r n a n d o - s e t r a b a l h a d o r e s a s s a l a r i a d o s . P o u c o depois,
a eleição de servidores locais por métier n ã o significava mais
eleição por to d a a comunidade. Q u a n d o não. uma o r g a n i z a ç ã o
municipal f r o u x a caía n a s mãos de umas 1 p o u c a s famílias a t r a v é s
d o processo de cooptação. R e t o m a r e m o s ess« linha de e s t u d o
n o capítulo seguinte, mas por ora vale dizer que. ao fim do
século X I , seus primeiros sinais já se faziam claros na t e n s ã o
existente e n t r e ricos e pobres.

7 - Ti.A.O.
7

Transporte por
Terra e Mar

O t r a n s p o r t e de b e n s com eficiência e em g r a n d e es-


c a l a constituía condição i n d i s p e n s á v e l à sobrevivência e e x p a n -
s ã o do capitalismo mercantil. P e q u e n o s artigos d e l u x o •— ouro,
jóias, especiarias, m e s m o s e d a s — p o d i a m ser t r a n s p o r t a d o s , e
d e f a t o o eram, p o r t e r r a e em p e q u e n o s navios, m a s os p r o -
d u t o s que m a n t i n h a m a economia em movimento — trigo, v i n h o ,
la, madeira, sebo, c o u r o s e os exércitos d o s c r u z a d o s .— exigiam
a l g o em maior escala.
O s r o m a n o s h a v i a m d e i x a d o u m a malha d e e s t r a d a s mili-
tares, d e treze metros d e l a r g u r a , que c r u z a v a m a E u r o p a em
t o d a s a s direções. S ó n a P e n í n s u l a Ibérica, t r a b a l h a d o r e s r o m a -
n o s a b r i r a m d e z e n o v e mil quilômetros d e e s t r a d a s . A t é a difícil
t r a v e s s i a sobre a s m o n t a n h a s , de G ê n o v a a Nice, era feita p e l a
V i a Júlia, c o n s t r u í d a p o r m ã o - d e - o b r a f o r ç a d a sob o g o v e r n o
d e A u g u s t o . N o a n o 1000, e s s a s e s t r a d a s , porém, e s t a v a m p r a -
ticamente intransitáveis, especialmente em períodos d e mau
tempo. P e s a d a s c a r r u a g e n s d e q u a t r o r o d a s p u x a d a s p o r p a r e -
l h a s de cavalos ou bois t o r n a v a m - s e com f r e q ü ê n c i a inúteis, e
p o r isso o meio n o r m a l de t r a n s p o r t e e n t r e F l a n d r e s e a Itália
p a s s o u a ser carroças leves de d u a s r o d a s e t r o p a s d e alimárias.
E s s e meio de t r a n s p o r t e em p e q u e n a escala, no e n t a n t o , adicio-
n a v a 25 p o r cento ao preço d o s cereais, v i n h o e sal. O b a n d i -
tismo e os vários tipos de t r i b u t o s e e x a ç õ e s e l e v a v a m a i n d a
mais os custos.
E n c o n t r a m o s um d o s mais a n t i g o s e x e m p l o s d a aliança e n t r e
c a s a s reais e m e r c a d o r e s n a insistência c a d a vez maior d o s
TRANSPORTE POR TERRA E MAR 107

m o n a r c a s em que a s e s t r a d a s que c o r t a v a m a s terras d e seus


vassalos fossem r e p a r a d a s e m e l h o r a d a s . S ã o Luís, Rei de
F r a n ç a e n t r e 1226 e 1270, d e t e r m i n o u , s e g u n d o Beaumanoir,
que t o d a s a s e s t r a d a s d e mais d e q u a t r o m e t r o s de l a r g u r a
teriam que ser m a n t i d a s em b o a s condições pelos seus lugares-
tenentes, o s barões. E m 1285, n o E s t a t u t o d e W i n c h e s t e r ,
d e c r e t a v a E d u a r d o I:
Serão alargadas as estradas que ligam u m a cldade-mercado a
o u t r a . N o s casos e m que h o u v e r árvores, cercas o u valetaB n u m a
distância de sessenta m e t r o s de c a d a ladb do caminho, elas serão
r e m o v i d a s , d e m o d o q u e n i n g u é m poBsa u a á - l a s p a r a se e s c o n d e r
com Intento criminoso. Carvalhos e g r a n d e s árvores, porém, não
s e r ã o d e r r u b a d a s , c o n t a n t o q u e h a j a u m e s p a ç o l i v r e e n t r e elas.
Se u m senhor deixar de cumprir seu dever e teimosamente
recusar-se a aterrar as valetas ou m a n d a r capinar a vegetação
r a s t e i r a n c o r t a r a s m o i t a s , e r o u b o s f o r e m p o r isso cometidos,
ele s e r á m u l t a d o c o n f o r m e d e t e r m i n a r o r e i . . . S v o n t a d e do
rei que os caminhos a t r a v é s de s u a s próprias t e r r a s « bosques,
n o i n t e r i o r o u n ã o de florestas, s e j a m i g u a l m e n t e a l a r g a d o s . Se
o p a r q u e de u m lorde c h e g a r p e r t o d a e s t r a d a , ele r e c u a r á a s
fronteiras do parque até que as m e s m a s estejam afastadas da
e s t r a d a pelos especificados s e s s e n t a metros, ou c o n s t r u i r á u m
muro, ou f a r á u m a cerca ou valeta tão substancial que malfei-
tores n ã o p o s s a m f u g i r por elas ou c h e g a r por elas p a r a
cometer crimes.

I n i c i a n d o - s e no século X I I , u m a distinção veio a ser feita


e n t r e t r i b u t o s confiscatôrios c o b r a d o s pelo b a r ã o p a r a seu uso
p r i v a d o •— os e s t a t u t o s municipais os v e r b e r a v a m e P a p a s
b a i x a v a m decretos contra eles — e aqueles l a n ç a d o s sobre os
m e r c a d o r e s p a r a m e l h o r a m e n t o d a s e s t r a d a s . Seigneurs e reis
que c o m e ç a r a m a m e l h o r á - l a s e construi-las a c h a v a m que d e -
viam t r i b u t a r o m e r c a d o r pelos b e n e f i c i a m e n t o s .
D a d a s a s condições d a maioria d a s e s t r a d a s e o p e r i g o em
u s á - l a s , c o n t u d o , esse tipo d e v i a g e m n ã o era o mais popular.
E m todos os casos possíveis •— como, p o r exemplo, ao longo
d o s d u z e n t o s quilômetros d e t e r r e n o a c i d e n t a d o e m o n t a n h o s o
e n t r e G ê n o v a e N i c e — o comércio era feito p o r mar. E e m -
bora h o u v e s s e três r o t a s t e r r e s t r e s d a E u r o p a O c i d e n t a l à
Ásia, p a s s a n d o p o r Bizâncio, era t a m b é m p r e f e r i d a a rota m a -
rítima. E m n a v i o s com c a p a c i d a d e d e d u z e n t a s a q u i n h e n t a s
t o n e l a d a s , o s italianos — e, no início d o século X I I . comerciantes
p r o v e n ç a i s e catalães — circulavam e n t r e o M e d i t e r r â n e o
O r i e n t a l e Bizâncio, E g i t o e P a l e s t i n a . D e v i d o à f a l t a d e n a v e -
g a ç ã o e x a t a e m a p e a m e n t o — ciências e s s a s q u e os c r u z a d o s
108 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

a p r e n d e r i a m mais t a r d e com o s á r a b e s — a maioria dos navios


n a v e g a v a p e r t o d a p r a i a e a n c o r a v a à noite. N o inverno, e r a
impossível a v i a g e m marítima em virtude d a s terríveis t e m -
p e s t a d e s do M e d i t e r r â n e o . T a l v e z fossem necessários dois
a n o s p a r a se c o m p l e t a r um ciclo d e comércio e n q u a n t o b e n s
e r a m t r a n s p o r t a d o s de V e n e z a e G ê n o v a p a r a o O r i e n t e , de
volta à Itália, em d i r e ç ã o ao N o r t e p a r a troca e, uma vez mais.
p a r a V e n e z a . C o n t u d o , m e s m o d a d o o t e m p o envolvido e o
p e r i g o i n t e r n o de p i r a t a r i a , o custo de t r a n s p o r t a r b e n s por m a r
d e u m a e x t r e m i d a d e a o u t r a do M e d i t e r r â n e o era m e n o r do
que p o r terra — 2 p o r cento do valor d o s b e n s no caso de
lã ou seda, 15 por cento p a r a cereais e 33 p o r cento p a r a o
alúmen ( u s a d o n o b e n e í i c i a m e n t o da s e d a ) .
O uso d o m a r , por conseguinte, era a s s u n t o de f u n d a -
mental importância p a r a os mercadores. Hm c i d a d e s do M e d i -
t e r r â n e o . g r u p o s d e l e s a r m a v a m comboios d e navios; g o v e r n o s
c o m u n a i s p o r eles c o n t r o l a d o s escolhiam um a l m i r a n t e p a r a
d i s p u t a r aos s a r r a c e n o s o controle d o s m a r e s ou c o m b a t e r o u t r a s
c i d a d e s italianas, f i g u r a n d o como botim c e r t a s á r e a s de comér-
cio. A l g u n s deles e r a m m a r i n h e i r o s e n ã o só m e r c a d o r e s : uma
p o s t u r a veneziana, aliás, d i s p u n h a que, em t o d o s o s navios d e s s a
origem, todas a s decisões d e c o m a n d o deviam ser t o m a d a s por
uma comissão d e cinco m e m b r o s o c o m a n d a n t e , o piloto e
t r ê s pessoas eleitas pelos m e r c a d o r e s que se e n c o n t r a s s e m a
bordo.
O comércio marítimo r e g u l a r e n t r e o M e d i t e r r â n e o e os
p o r t o s atlânticos d e P o r t u g a l , F r a n ç a , I n g l a t e r r a e E s c a n d i n á -
via só foi estabelecido em 1300, tendo, porém, c o m e ç a d o muito
mais cedo o comércio local e n t r e a I n g l a t e r r a , Escócia e I r l a n d a
e o continente, e d a E s c a n d i n á v i a n a direção Sul. P o r volta
d o a n o 1200, o s n o r m a n d o s controlavam a maior p a r t e da I r -
l a n d a , e cidades p o r t u á r i a s como N e w R o s s e x p o r t a v a m p r o d u -
tos agrícolas p a r a a I n g l a t e r r a . N a Escócia, Berwick e R o x b u r g
e r a m centros e x p o r t a d o r e s de lã b r u t a p a r a F l a n d r e s . Já m e n -
c i o n a m o s o comércio que se desenvolvia no Báltico e M a r do
N o r t e . O s m e r c a d o r e s - m a r i n h e i r o s italianos eram e n c o n t r a d o s
i g u a l m e n t e ao N o r t e e s a b e m o s que o c a s i o n a l m e n t e p r e s t a v a m
serviços como a l m i r a n t e s a algum príncipe ou m o n a r c a .
É cabível dizer, então, que o s m e r c a d o r e s f o r a m em g r a n d e
p a r t e responsáveis pela disseminação d a s técnicas de n a v e g a ç ã o
e g u e r r a naval. S u a s riquezas d e p e n d i a m d a s primeiras: o r o u b o
T R A N S P O R T E POR TERRA E MAR 109

d a s r i q u e z a s d o s rivais e a p r o t e ç ã o de s u a s p r ó p r i a s exigia a
segunda.
F o i t a m b é m a m p l a m e n t e u s a d o o sistema fluvial no t r a n s -
porte d e b e n s . O s g r a n d e s sistemas p o t a m o g r á f i c o s — o R e n o -
D a n ú b i o , o P ó . os rios f l a m e n g o s e os canais q u e a p a r t i r do
século X I I f o r a m c o n s t i u i d o s p a r a ampliá-los •—1 constituíam
instrumentos i m p o r t a n t e s d e comércio. O R e n o , p o r exemplo,
t r a n s p o r t a v a vinho f r a n c ê s . Localizar-se p e r t o d e um deles cons-
tituía c a m i n h o s e g u r o p a r a a p r o s p e r i d a d e u r b a n a . U m a série
de c o n t r a t o s a s s i n a d o s por um homem d e negócios piacenzano
em N i c e no século X I I I d e m o n s t r a c l a r a m e n t e o papel d o s rios
n a f o r m a ç ã o d o modelo econômico d e uma r e g i ã o inteira. E s s e
empresário, A u b e r t u s R u p h u s , vendia lã e tecidos, que recebia
de C h a m p a g n e , Itália e F l a n d r e s . A s m e r c a d o r i a s eram sem
d ú v i d a t r a n s p o r t a d a s por t e r r a d e C h a m p a g n e a P i a c e n z a , um
entreposto i n t e r i o r a n o aliado a G ê n o v a e i m p o r t a n t e c e n t r o b a n -
cário. Daí, os tecidos eram ou t r a n s f e r i d o s via G ê n o v a p a r a
M a r s e l h a e em seguida p a r a Nice, ou levados d i r e t a m e n t e a
N i c e em um navio que lá a n c o r a v a à noite na linha G ê n o v a -
M a r s e l h a . ( D e M a r s e l h a , n a t u r a l m e n t e , o navio podia subir
o rio p a r a a s c i d a d e s d o interior. H á a i n d a c o n t r a t o s que tratam
d a f o r m a ç ã o d e sociedades p a r a e x p l o r a ç ã o desse tipo de co-
mércio costeiro, E s t a v a m em u s o r e g u l a r n a v i o s costeiros com
c a p a c i d a d e p a r a cinqüenta t o n e l a d a s . )
R u p h u s v e n d i a a crédito a o s h a b i t a n t e s da r e g i ã o de Nice,
d e v e n d o o p a g a m e n t o ser e f e t u a d o por o c a s i ã o da s a f r a se-
guinte. A d q u i r i a também a dinheiro o p r o d u t o de f u t u r a s s a f r a s .
A l g u m a s d e s s a s " c o m p r a s " eram sem d ú v i d a empréstimos aos
c a m p o n e s e s . U m a vez que v e n d i a também trigo na região e em
o u t r o s locais, p a r t e de suas c o m p r a s r e p r e s e n t a v a uma f o r m a
de comércio a t e r m o . F a z i a t a m b é m empréstimos, identificados
como tais. A s u a r e d e de comércio utilizava o s rios V a r e
Paillon, s u b i n d o í n g r e m e s v a l e s a t é o s c o n t r a f o r t e s d o s Alpes,
n a s p r o x i m i d a d e s e acima d e Nice. R u p h u s e o u t r o s mercado-
res de s u a grei contribuíram p a r a o envolvimento crescente
dos c a m p o n e s e s na economia monetária.
Assim, e n q u a n t o a s g r a n d e s r o t a s t e r r e s t r e s de comércio
eram a b e r t a s , m e l h o r a d a s e p r o t e g i d a s por alianças politicas
e n t r e mercadores, governos u r b a n o s e seigneurs que d e f e n d i a m
interesses próprios, os rios e m a r e s eram o c a m p o de ação dos
g r a n d e s capitalistas, T o d a s as á r e a s u r b a n a s , que se t r a n s f o r -
110 À PROCURA DE U M LUGAR N A O R D E M FEUDAL

mavam em c e n t r o s de comércio p a r a a economia m o n e t á r i a


q u e se d e s e n v o l v i a à sua volta, v i n c u l a v a m - s e à s s u a s á r e a s
d e p e n d e n t e s p o r u m a r e d e d e rios m e n o r e s o u e s t r a d a s , e à s
s u a s fontes d e a b a s t e c i m e n t o p o r sistemas m a i o r e s d e e s t r a d a s
e r o t a s fluviais e marítimas.
1

Papas
e Mercadores

D e s d e a s primeiras m a n i f e s t a ç õ e s de i n q u i e t a ç ã o d a
burguesia, sempre houve na Igreja Católica R o m a n a grupos
influentes f a v o r á v e i s ao comércio. E m b o r a p r o c l a m a s s e em altas
vozes sua u n i d a d e e universalidade, a I g r e j a a b r i g a v a em seu
seio u m a e s p a n t o s a d i v e r s i d a d e d e i n t e r e s s e s econômicos e
1 p o n t o s d e vista sociais. N ã o é v e r d a d e , como c o s t u m a m dizer
a u t o r e s m o d e r n o s , que f o s s e m i n e s p e r a d a s a s cisões ocorridas
n a c r i s t a n d a d e no século X V I ; t a m p o u c o é v e r d a d e q u e a p e n a s
i o e m e r g e n t e p r o t e s t a n t i s m o p u d e s s e a c e i t a r o espírito aquisitivo
d e n t r o d o s limites d e u m a teologia m o r a l coerente. P o r t u d o
isso, m e r e c e ser e x a m i n a d o o p a p e l d a I g r e j a C a t ó l i c a n a f o r -
m a ç ã o d a ideologia jurídica d o s m e r c a d o r e s .
A v i d a n a E u r o p a O c i d e n t a l n o século X I t r a n s c o r r i a à
sombra d a I g r e j a . E m aldeias e cidades, b e m como n a s m a n s õ e s
senhoriais, a I g r e j a era o c e n t r o d a v i d a social; u n i a a s pessoas
c o n t a n d o - I h e s velhas histórias e p r o m e t e n d o m e l h o r e s condições
n a v i d a f u t u r a . N ã o d e v e s u r p r e e n d e r , p o r conseguinte, que
I s o c i e d a d e s s e c r e t a s de m e r c a d o r e s e b u r g u e s e s assumissem a
j f o r m a d e i r m a n d a d e s religiosas. A d ú v i d a q u e m e s m o b u r g u e s e s
j ricos a l i m e n t a v a m sobre a m o r a l i d a d e do comércio a g r a v a v a a
| p r e o c u p a ç ã o religiosa da n o v a classe. N o a n o de 1065, um merca-
I dor a m a l f i t a n o m a n d o u f o r j a r , em C o n s t a n t i n o p l a , d u a s enormes
i p o r t a s d e b r o n z e p a r a o palácio episcopal, que fez t r a n s p o r t a r
em navio. A b u n d a r a histórias d e ticos m e r c a d o r e s q u e r e n u n -
ciaram à s s u a s f o r t u n a s e p a s s a r a m o r e s t o d e seus dias em
mosteiros. P o d e r - s e - i a d e s e j a r a morte d o P a p a d a época, ou
112 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

infligi-la ao bispo local, ou e s p a l h a r histórias p i c a n t e s sobre a


última a m a n t e do p a d r e , m a s o i n d i v í d u o c o n t i n u a v a a p e r t e n -
cer à I g r e j a .
A I g r e j a exercia virtual monopólio d a e d u c a ç ã o , em es-
pecial d a e d u c a ç ã o superior, que c o m p r e e n d i a a teologia e o
direito; e n t r e seus s a c e r d o t e s e servidores e n c o n t r a v a m - s e o s
mais letrados, p a r a n ã o dizer os mais cultos h o m e n s e m u l h e r e s
d a época. Sem a I g r e j a , a b u r g u e s i a e m e r g e n t e n ã o p o d i a
e l a b o r a r ou disseminar uma ideologia social formal.
P a r a o que n o s interessa, de q u a t r o m a n e i r a s a I g r e j a
a f e t o u o crescimento d a b u r g u e s i a : 1) p r o t e g e u os m e r c a d o r e s
itinerantes, c o n s i d e r a n d o - o s uma espécie d e p e r e g r i n o s ; 2 )
aplicou g r a n d e s recursos no e s t u d o do direito r o m a n o , incluindo
o direito comercial; 3) participou de discussões sobre a morali-
d a d e do comércio, com r e s u l t a d o s no longo p r a z o f a v o r á v e i s ã
b u r g u e s i a ; e 4 ) desenvolveu um sistema d e cortes de justiça e
ritos processuais.
C o m o p a r t e d o s movimentos em prol d a p a z que se inicia-
r a m n o século X , a I g r e j a começou a a p r e s e n t a r - s e como p r o -
t e t o r a d o s pobres. C o n s t e r n a d a com a impotência d a s a u t o r i -
d a d e s locais, a I g r e j a d e c l a r o u a p a z p o r legislação e criou uma
e s t r u t u r a legal p a r a impô-la. E m 989, p o r exemplo, o A r c e b i s p o
d e B o r d é u s d e c r e t o u que era c o n t r á r i o a o direito canónico c o m e -
t e r certos atos contra religiosos e b e n s d a I g r e j a , no c u r s o de
u m a g u e r r a p r i v a d a , e s a q u e a r os pobres. E m 990, a p r o t e ç ã o
d e s s a " P a z de D e u s " foi e s t e n d i d a a o s m e r c a d o r e s e a seus
b e n s . C o m a f i n a l i d a d e d e fortalecer a legislação, o s seigneurs
f o r a m induzidos a f a z e r um j u r a m e n t o pelo qual r e n u n c i a v a m
à violência, a violação d o q u a l era punível como crime eclesiás-
tico.
Rixas d e s a n g u e f o r a m de início proibidas aos domingos;
mais tarde, o princípio veio a ser a m p l i a d o p a r a incluir d a
q u a r t a - f e i r a até o s á b a d o , a fim d e " p r e p a r a r " o s fiéis p a r a o
domingo, E m seguida, aplicou-se p r e s s ã o nos seigneurs p a r a
que se abstivessem de violência nos g r a n d e s f e r i a d o s religiosos,
c o m e ç a n d o com a Q u a r e s m a . E m seguida, f o r a m incluídas as
estações de s e m e a d u r a e colheita: " A p a r t i r d o dia 1.° de maio
e a t é o dia d e T o d o s os S a n t o s , não c a p t u r a r e i cavalo, é g u a oit
p o l d r o . . . " , dizia um j u r a m e n t o feito em 1023 em B e a u v a i s .
E s t a b e l e c i d a inicialmente por legislação d e c a d a diocese e mais
t a r d e por concílios de toda a I g r e j a , a t r é g u a e a paz eram
PAPAS E MERCADORES 113

s u p e r v i s i o n a d a s p o r "juízes d e p a z " , a quem cabia d e n u n c i a r


os violadores e instituir a a ç ã o a p r o p r i a d a p e r a n t e cortes espe-
ciais. H a v i a t a m b é m outros meios de c u m p r i m e n t o d a legisla-
ção: em 1038, o Bispo de B o u r g e s alistou t o d o s os h o m e n s de
mais d e quinze a n o s n u m a milícia a fim d e d a r c u m p r i m e n t o aos
j u r a m e n t o s d e t r é g u a e paz, E s s e b a n d o de c a m p o n e s e s incen-
diou a t é r e d u z i r a cinzas o castelo de mais de um s e n h o r recal-
citrante. E m o u t r a s regiões, p o d e r o s o s seigneurs e r a m postos
sob j u r a m e n t o d e m a n t e r a paz e j u l g a r os t r a n s g r e s s o r e s em
suas p r ó p r i a s cortes, aplicando-se, assim, algo mais d o que pena-
lidades espirituais. O s servidores eclesiásticos, s a b e n d o que care-
ciam d e p o d e r p a r a impor s a n ç õ e s m o n e t á r i a s ou físicas, soli-
citavam aos s e n h o r e s , no m o m e n t o em q u e eles faziam o
j u r a m e n t o , que entregassem r e f é n s ou dinheiro em p e n h o r da
p a l a v r a d a d a . S e a p r o m e s s a era submetida a uma corte de
justiça .— secular ou eclesiástica — o j u r a m e n t o p a s s a v a a ser
conhecido como um a s s u r e m e n s . S o b esse nome foi incluído no
direito real f r a n c ê s à medida q u e os reis c a p e t o s c a d a vez mais
se investiam n a s f u n ç õ e s de m a n t e n e d o r e s d a paz. A s compila-
ções jurisprudenciais do direito costumeiro de a l g u m a s cidades
contêm u m a idéia mais desenvolvida do m e s m o e x p e d i e n t e : a
b u r g u e s i a , como p a r t e d e sua f u n ç ã o d e m a n t e r a p a z e n t r e seus
membros, f o r ç a v a t o d o s aqueles que p a r e c i a m inclinados a come-
ter atos de violência a fazer um depósito como g a r a n t i a d e bom
c o m p o r t a m e n t o . A v e l h a compilação d o direito costumeiro de
A m i e n s . p o r exemplo, inclui um d e t a l h a d o e i n t e r e s s a n t e exem-
plo de tal disposição legal. E s s e tipo d e assuremens persiste
até hoje, como " p e n h o r p a r a m a n t e r a p a z " , em a l g u n s E s t a d o s
americanos.
O s p e s q u i s a d o r e s da I g r e j a contribuíram p a r a a sistemati-
zação, legitimação e estudo o r g a n i z a d o d o direito r o m a n o . E m
g r a n d e parte, isso constituiu um s u b p r o d u t o d o movimento de
r e f o r m a iniciado por G r e g ó r i o V I I ( 1 0 7 3 / 1 0 8 5 ) , o P a p a que
procurou a s s e g u r a r a primazia do B i s p a d o de R o m a sobre toda
a I g r e j a . C o m esse fim, valeu-se de certo n ú m e r o de d o c u m e n t o s
f o r j a d o s , que a l e g a d a m e n t e d a t a v a m do r e i n a d o de C o n s -
tantino, t e n t a n d o investi-los d e l e g a l i d a d e com a convocação
de e r u d i t o s p a r a pesquisar bibliotecas e arquivos em b u s c a de
textos de apoio e a n t i g a legislação papal.
D o r e i n a d o de G r e g ó r i o V I I a t é o d e Inocêncio III
( 1 1 9 8 / 1 2 1 6 ) , f o r a m r e f i n a d a s e desenvolvidas a s alegações
p a p a i s de supremacia eclesiástica e uma boa parcela d e p o d e r
114 À PROCURA DE U M LUGAR N A ORDEM FEUDAL

temporal. A b u r o c r a c i a p a p a l a u m e n t o u em n ú m e r o e a u t o r i d a d e .
S u r g i u uma aliança e n t r e o P a p a d o e o s g r a n d e s comerciantes.
O r d e n s de m o n g e s , como a d o s cístercianos, e de c o m b a t e n t e s ,
c o m o os t e m p l á r i o s e hospitalares, d a P a l e s t i n a , (oram c r i a d a s
f o r a d a h i e r a r q u i a eclesiástica de bispos e arcebispos. O P a p a d o
conseguiu a r r e c a d a r d i r e t a m e n t e uma receita d o s g r a n d e s d o m í -
nios cistercianos e p a r t i c i p a r d a r e n d a d o s t e m p l á r i o s à m e d i d a
q u e estes s e t r a n s f o r m a v a m em b a n q u e i r o s i n t e r n a c i o n a i s e
a g i o t a s n a P a l e s t i n a . D u r a n t e cecto t e m p o , e x p l o r o u o m o n o -
pólio d a m i n e r a ç ã o e v e n d a d e a l ú m e n em g r a n d e p a r t e d a
r e g i ã o p r o d u t o r a d e s e d a d a E u r o p a O c i d e n t a l , que foi mais
t a r d e cedido a m e r c a d o r e s - n a v e g a d o r e s italianos em troca de
um pagamento anual.
O s recursos l e v a n t a d o s com essas e m p r e s a s comerciais t o r -
n a r a m possível a d o t a ç ã o de c o n g r e g a ç õ e s d e u n i v e r s i d a d e s p a r a
o e s t u d o d o s direitos c a n ó n i c o e r o m a n o . F i z e r a m t a m b é m o
P a p a d o a l i a d o d o s g r a n d e s interesses mercantis. O P a p a I n o -
cêncio I V , eleito em 1243, e r a m e m b r o d a família Fieschi, d e
G ê n o v a , u m a d a s mais ricas dinastias de m e r c a d o r e s d a cidade.
A ideologia d a s u p r e m a c i a p a p a l previa u m n o v o I m p é r i o
R o m a n o , com a s f u n ç õ e s de i m p e r a d o r d i v i d i d a s e n t r e o P a p a
e, em menor extensão, o S a c r o I m p e r a d o r R o m a n o . O s a s p e c -
t o s f u n d a m e n t a i s d o direito r o m a n o f o r a m t r a n q ü i l a m e n t e in-
cluídos n a legislação canónica, e m b o r a a r e c u s a d e s o b e r a n o s
leigos de p r e s t a r j u r a m e n t o de v a s s a l a g e m ao I m p e r a d o r d e s s e
o r i g e m à concessão d e q u e c a d a rei p o d i a ser " i m p e r a d o r d e n t r o
d e seus próprios d o m í n i o s " . F o i i m p o s t o à I g r e j a o sistema
administrativo e fiscal c e n t r a l i z a d o do Império R o m a n o , a u m e n -
t a n d o assim t a n t o a receita como a a u t o r i d a d e d o P a p a d o .
N o C ó d i g o T e o d o s i a n o e n a s r e d e s c o b e r t a s compilações
d e Justiniano, os " d o u t o r e s " do direito canónico e n c o n t r a r a m a s
r e s p o s t a s que q u e r i a m p a r a a s q u e s t õ e s d a a u t o r i d a d e p a p a l .
P r o c u r a r a m racionalizar e c o n s o l i d a r a a u t o r i d a d e i n t e r n a d e
u m a I g r e j a b u r o c r á t i c a , h á muito t e m p o d i s t a n t e de seus p r i -
m ó r d i o s d e revolução e martírio. E s s e s e s f o r ç o s f o r a m c o r o a d o s
c o m a publicação, em 1140, d o Concórdia Discordantium Cano-
num, g e r a l m e n t e a t r i b u í d o a u m c e r t o G r a c i a n o , p r o f e s s o r d e
Bolonha. T r a t a - s e de uma c o l e t â n e a de 3.500 f r a g m e n t o s , o u
e x c e r t o s , d o direito civil r o m a n o , d a legislação canónica d o s
concílios d a I g r e j a , de d o c u m e n t o s f o r j a d o s s o b r e a a u t o r i d a d e
p a p a l , aceitos pelo povo, e d e legislação imperial d o p e r í o d o
PAPAS E MERCADORES 115

carolíngio. O t r a b a l h o de G r a c i a n o n ã o constituiu legislação em


sentido algum; os f r a g m e n t o s f o r a m t ã o - s o m e n t e postos n u m a
f o r m a q u e lhes facilitava o e s t u d o e a aplicação. T r a n s f o r m o u -
se, no e n t a n t o , em m a n u a l p a r a e s t u d a n t e s e p r o f e s s o r e s em
universidades espalhadas por toda a E u r o p a Ocidental.
Iniciou-se a e l a b o r a ç ã o sistemática d o s princípios jurídicos
canónicos. E s t u d i o s o s d o direito canónico e civil p a l m i l h a r a m
c a m i n h o s s e p a r a d o s , no e n t a n t o , e f o r m a r a m c o n g r e g a ç õ e s uni-
versitárias s e p a r a d a s , t r a d u z i n d o s e u s e s t u d o s e teorias a cisão
e n t r e a s jurisdições secular e eclesiástica. O s e r u d i t o s canónicos
mesmo hoje, aliás, c o n s i d e r a m como s u a f o n t e b á s i c a um corpo
de material simultaneamente m a i s a m p l o ( p o r q u a n t o inclui legis-
lação, p a r e c e r e s e d o u t r i n a s e s t r i t a m e n t e eclesiásticas) e mais
limitado ( u m a vez que n ã o inclui t o d a a legislação secular
r o m a j i a ) d o q u e seus c o l e g a s d o direito civil, q u e utilizam
como t e x t o b á s i c o o C o r p u s Júris, d e Justiniano.
A i n d a mais i m p o r t a n t e q u e a escolha do material básico,
porém, era a d i f e r e n ç a em p o n t o s d e vista teóricos. O s intrin-
c a d o s a r g u m e n t o s canónicos v i s a v a m a criação d e u m a o r d e m
jurídica i n f i l t r a d a d e princípios divinos, p r e o c u p a ç ã o que os
levou p o r vezes a s e oporem a todos o s tipos de a t i v i d a d e mer-
cantil, q u a n d o n ã o a a p o i a r a legislação restritiva típica d a s
c o m u n a s m e n o r e s ou a d e f e n d e r d e f r e n t e o s g r a n d e s inte-
resses mercantis. A proibição d a u s u r a , p o r exemplo, já dis-
cutida a n t e r i o r m e n t e , foi f o c a l i z a d a de m o d o s diferentes, em
d i f e r e n t e s períodos, por esses teóricos.
A teoria d o preço " j u s t o " r e v e l o u - s e i g u a l m e n t e a d a p t á -
vel. E n q u a n t o o direito r o m a n o utilizava o princípio d o justo
preço como meio p a r a p r o t e g e r c o m p r a d o r e s e v e n d e d o r e s ,
t o r n o u - s e ele um imperativo m o r a l p a r a os a n t i g o s canonistas.
C o m p r a d o r e v e n d e d o r d e v i a m i g n o r a r o preço de m e r c a d o e
a lei de o f e r t a e procura e b u s c a r a q u e l e preço q u e refletisse
o v a l o r intrínseco do a r t i g o v e n d i d o , b e m como u m a r e m u n e -
r a ç ã o justa pelo trabalho •— stipendium laboris — d o v e n d e d o r .
E s s a p r e o c u p a ç ã o com a h o n e s t i d a d e e s t a v a d e a c o r d o com a
p r á t i c a c o m u m d a r e g u l a m e n t a ç ã o d o s p r e ç o s nos estatutos
comunais. C o m a dissolução d o feudalismo, c o n t u d o , e com
o s c o n t a t o s c a d a vez m a i o r e s do P a p a d o com g r a n d e s m e r c a -
d o r e s e b a n q u e i r o s , os princípios mais gerais de boa f é e livre
arbítrio s u p e r a r a m todos o s demais, s e n d o o s d o g m a s morais
s u b s t i t u í d o s pela casuística. O conceito d e j u s t o preço foi vira-
d o de cabeça p a r a baixo pelos teóricos canónicos e t r a n s f o r -
116 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

m a d o n o "preço p r e v a l e c e n t e 110 m e r c a d o " , fosse ele artificial-


m e n t e elevado d e v i d o à escassez ou a ç a m b a r c a m e n t o 011 arti-
ficialmente r e b a i x a d o p o r motivo de a b a r r o t a m e n t o .
O princípio d a " b o a f é " i m p r e g n o u a s d o u t r i n a s d o s c a n o -
n i s t a s sobre o título à terra, c o n s a g r a d o pelo uso. A pessoa que
residisse de b o a f é e sem c o n t e s t a ç ã o n a s t e r r a s d e alguém por
t r i n t a anos tinha direito à posse, mas t o d o a q u e l e que d u r a n t e
esse período d e s c o b r i s s e d e quem era a p r o p r i e d a d e e conti-
n u a s s e de posse dela era proibido de a d q u i r i r título à mesma.
O s r o m a n o s h a v i a m insistido n a b o a f é a p e n a s no início, mas
p a r a o s c a n o n i s t a s a má f é era p e c a d o e n ã o podia servir de
b a s e a direitos.
A p r e o c u p a ç ã o com o livre arbítrio revolucionou a legis-
la ç ã o que regia os c o n t r a t o s e finalmente a b s o r v e u todos os
demais princípios relativos ao comércio. P a r a os c a n o n i s t a s .
d e i x a r d e c u m p r i r u m a p r o m e s s a c o n t r a t u a l — e n v o l v e n d o ou
n ã o um j u r a m e n t o s a g r a d o — equivalia a ter mentido n a ocasião
d a promessa. F o i e n o r m e a importância teórica dessa tese.
A b a n d o n a r a m - s e a s f o r m a s do direito romano, c o n c e n t r a n d o - s e
a a t e n ç ã o n a vontade do promitente. E m b o r a h o u v e s s e uma
r a z ã o p a r a a p r o m e s s a , a cansa — fosse algo em troca, o d e s e j o
de cumprir um d e v e r moral ou o que quer que fosse — era
executável. E s t u d i o s o s e juízes, incluindo o p r ó p r i o P a p a , con-
t i n u a r a m a elevar o n ú m e r o de remédios jurídicos que a s
cortes eclesiásticas ministravam por q u e b r a d e p r o m e s s a .
E s s a i n t e r p r e t a ç ã o d o princípio do livre arbítrio teve seu
mais i m p o r t a n t e e f e i t o prático nos g r a n d e s e m p r e e n d i m e n t o s
mercantis, o n d e e r a m mais c o m u n s os c o n t r a t o s escritos. E n -
q u a n t o n a comercialização de b e n s essenciais a a l e g a d a preo-
c u p a ç ã o da I g r e j a com o homem comum e a v i t a l i d a d e contí-
n u a d a r e g u l a m e n t a ç ã o comunal m a n t i n h a m o controle dos
preços, da q u a l i d a d e e (em m e n o r g r a u ) d a s condições de
trabalho, no c o n t r a t o escrito — uma e x p r e s s ã o f o r m a l de v o n -
t a d e —• a d o u t r i n a d e l i b e r d a d e c o n t r a t u a l p o d i a ser levada
a e x t r e m o s : a p r e s e n ç a d a causa, se m e n c i o n a d a por escrito,
era presumida, e a p a r t e que lhe n e g a v a a existência era obri-
g a d a a p r o v a r essa asserção na e v e n t u a l i d a d e de um processo.
M a i s importante, a s disposições protetoras, incluindo a que
dizia respeito ao j u s t o preço, podiam — uma vez que se t r a t a v a
d e uma q u e s t ã o d e "livre arbítrio" .— ser eliminadas da b a r -
g a n h a . T o r n a n d o a r e d u ç ã o de um a c o r d o evidência prima
PAPAS E MERCADORES 117

facie d a n a t u r e z a n ã o coercitiva de seu c o n t e ú d o , o princípio


do livre arbítrio n ã o só devorou suas exceções, mas tornou-se
de f a t o uma burla. Isso era inevitável, de vez que a p a r t e mais
forte c o n t r a t a v a os serviços d o n o t á r i o público e ditava os
termos da r e d a ç ã o .
A s cortes eclesiásticas d e f i n i a m sua competência por
a s s u n t o e pela n a t u r e z a dasi p e s s o a s e n v o l v i d a s . J u l g a v a m ,
por e x e m p l o , c a s o s e n v o l v e n d o q u e s t õ e s m a t r i m o n i a i s e t e s t a -
mentárias, bem como a s que diziam respeito a j u l g a m e n t o s . S u a
jurisdição e s t e n d i a - s e n ã o s ó a religiosos, m a s t a m b é m àqueles
que se dizia e s t a r e m sob a p r o t e ç ã o especial d a I g r e j a , tais
como a s viúvas, os ó r f ã o s e o s pobres. A d e m a i s , as cortes
d a I g r e j a a c e i t a v a m t a m b é m casos no qual uma p a r t e havia
p r o m e t i d o s u b m e t e r - s e à sua jurisdição. E s s a opção, como era
c h a m a d a a escolha processual d o foro, era d e vital importância
n a relativa a n a r q u i a d a justiça f e u d a l . D e s d e o s t e m p o s d e
G r e g ó r i o V I I , a I g r e j a , com seu b e m d e f i n i d o sistema de cortes
de justiça, possuía um p o d e r de citação i n f i n i t a m e n t e superior
ao de q u a l q u e r tribunal feudal ou real. E s s e p o d e r diminuiu
de importância a p a r t i r do século X V , época em que a s cortes
nacionais se t o r n a r a m mais o r g a n i z a d a s .
B e a u m a n o i r , aliás, no capitulo em que t r a t a de jurisdições,
fornece evidência d o maior p o d e r d a s cortes eclesiásticas. N o
sistema secular, se o bailli d e C l e r m o n t fizesse u m a intimação
a alguém " q u e está s u j e i t o à justiça de o u t r o c o n d e ou seigneur,
e a q u e l e que é i n t i m a d o n a d a p o s s u i no c o n d a d o d e Clermont,
ele n ã o é o b r i g a d o a obedecer à intimação". E m suma, o quei-
x o s o que escolhesse a corte e r r a d a p a r a q u e r e l a r era a z a r a d o
— uma vez que o seigneur n ã o tinha p o d e r e s p a r a expedir uma
citação d e c u m p r i m e n t o obrigatório em o u t r o domínio. A l é m
disso, com a a m a l u c a d a colcha d e retalhos que eram a s cortes
f e u d a i s no fim d o período, a i d e n t i f i c a ç ã o d a corte senhorial
a p r o p r i a d a ao litígio podia t r a n s f o r m a r - s e em t a r e f a tão e x a u s -
tiva que n ã o justificava a p r o p o s i t u r a d a ação. N o sistema ecle-
siástico, por outro lado, os a c u s a d o s podiam, com certeza e
r a p i d a m e n t e , ser l e v a d o s às b a r r a s d o s tribunais. E s t e s ofere-
ciam a i n d a certas v a n t a g e n s no t o c a n t e ao rito processual, que
discutiremos em d e t a l h e s no capítulo seguinte.
A o contrário d a s cortes senhoriais, a s d a I g r e j a m a n t i n h a m
a t a s d o s processos e j u l g a m e n t o s e. pelo menos em teoria, b a s e a -
v a m - s e em um corpo de doutrina escrita como base de decisão.
O s resultados dos processos n e s s a s cortes eram, por conse-
118 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

guinte, mais previsíveis d o que n a s cortes senhoriais, o que p o d e


ter sido ura d o s motivos por q u e a s p a r t e s c o n t r a t u a i s d o
p e r í o d o c o n c o r d a v a m em geral em s u b m e t e r seus litígios a uma
c o r t e eclesiástica.
A s reivindicações d o s tribunais d a I g r e j a no t o c a n t e à
competência, n a t u r a l m e n t e , n ã o d e i x a r a m d e ser c o n t e s t a d a s .
B e a u m a n o i r reflete a s opiniões d o s p o d e r e s leigos f e u d a l e real
q u a n d o e s c r e v e : " U m a b o a coisa é, e v a n t a j o s a . . . q u a n d o
a q u e l e s q u e s ã o e n c a r r e g a d o s d a justiça espiritual p r e o c u p a n i -
se a p e n a s com o espírito e d e i x a m a justiça leiga ministrar
t u d o aquiio q u e diz respeito a coisas t e m p o r a i s . "
D e f e n s o r e s d o p o d e r real c o m o B e a u m a n o i r . no e n t a n t o ,
r e c o n h e c i a m q u e p a r a competir com a s cortes d a I g r e j a o s mo-
n a r c a s teriam que p r o v e r o s m e r c a d o r e s de justiça r á p i d a e
responsável, d e m o d o que " n ã o p e r d e s s e m p e l a d e m o r a t u d o
q u e podiam g a n h a r n u m p r o c e s s o " . N a v e r d a d e , a s cortes ecle-
siásticas e r a m o b j e t o d e u m a espécie d e respeito t i n g i d o de
reverência q u e e v o c a v a s i m u l t a n e a m e n t e ciúme e emulação. A
d o u t r i n a escrita era r e s p e i t a d a n ã o só p o r q u e e s t a v a l o n g e d e
g e r a l m e n t e aceitar a idéia d e q u e o s s o b e r a n o s p o d i a m legis-
lar, mas t a m b é m devido à p r e f e r ê n c i a d o s t r i b u n a i s eclesiás-
ticos p e l a p r o v a d o c u m e n t á r i a , "pois a memória d o h o m e m
f a l h a e d e s a p a r e c e , e sua v i d a é curta, e aquilo que n ã o é es-
crito logo d e p o i s é e s q u e c i d o " .
S a c e r d o t e e a d v o g a d o eram c o n s i d e r a d o s m e m b r o s d a
m e s m a classe. O latim d o s e g u n d o era em geral a p r e n d i d o
em escolas d a I g r e j a e seu t r e i n a m e n t o jurídico o b t i d o em
g r a n d e p a r t e p o r intermediação d e l a : o u ele f r e q ü e n t a v a u m a
u n i v e r s i d a d e f u n d a d a pela I g r e j a , e s t u d a v a com um sacerdote,
ou ia à s bibliotecas e s t u d a r m a n u s c r i t o s d o s jurisconsultos d a
Igreja.
C a r t a s de a u t o n o m i a em latim, c o m p l e x a s r e g r a s escritas,
contratos, d o c u m e n t o s v a r i a d o s — t u d o isso t e n d i a a colocad-
a s atividades d e consultoria, p r o p o s i t u r a de ação, c o n t r a t o s e
j u l g a m e n t o s n a s m ã os de u m a classe d e especialistas. A riqueza
necessária p a r a p r e p a r a r e m a n t e r tal classe só p o d i a ser
e n c o n t r a d a em g r a n d e s instituições, e n t r e a s q u a i s a I g r e j a
era a primeira.
9

A Burguesia
no Século XIII

A combinação do v e l h o e do novo, com a mediação


do direito e d o s a d v o g a d o s , é e v i d e n t e n o s l e v a n t e s b u r g u e s e s
n a s c i d a d e s e no sistema de comércio de l o n g a distância e n t r e
os a n o s d e 1200 e 1300.
A g r a n d e c o n q u i s t a d a b u r g u e s i a n e s s e p e r í o d o consistiu
em a r r a n c a r d o s senhores, em c e n t e n a s de localidades s e p a -
radas, o r e c o n h e c i m e n t o de um status i n d e p e n d e n t e d a hierar-
quia f e u d a l . O movimento u r b a n o iniciou-se n a s c a m a d a s mais
b a i x a s d a s o c i e d a d e e muitos de seus m e m b r o s eram servos
d a gleba. E x i g i a m eles u m a única c o n c e s s ã o do seigneur •. uma
c a r t a d e a u t o n o m i a , redigida d e a c o r d o c o m a lei local, reco-
n h e c e n d o q u e existia — como n ã o h a v i a existido a n t e s — o
status d e bouegeois, burghec, o u b u r g u ê s , e estabelecendo que
esse status implicava certos direitos e d e v e r e s .
A v i d a i n t e r n a d a s c i d a d e s era r e g u l a d a p o r colegiados
de cidadãos, d e a c o r d o com c a r t a s d e a u t o n o m i a redigidas por
juristas a serviço do grupo. O m u i t a s vezes r e p e t i d o "direito
de livremente corrigir dia a dia s u a s leis c o s t u m e i r a s e m u d á -
las p a r a melhor à medida que o exijam a s circunstâncias de
tempo e l u g a r ' era a p e d r a f u n d a m e n t a l d e s s e s documentos. A
e s t r u t u r a d e s s e s preceitos — a s disposições constitucionais bá-
sicas q u e contêm — constituem o a s p e c t o mais interessante d a s
compilações jurisprudenciais u r b a n a s . N o s primeiros a n o s
d a s c o m u n a s , e s s a s disposições a s s e g u r a v a m que decisões sob
a f o r m a d e sentenças, e n d e r e ç a d a s a a u t o r e s individuais de
ações, seriam b a s e a d a s em preceitos e l a b o r a d o s p o r juízes lo-
120 À PROCURA DE U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

cais, f u n d a m e n t a d o s no q u e e n t e n d i a m por c o n s e n t i m e n t o
comum e c o s t u m e s d o lugar.
N ã o era i n t r i n s e c a m e n t e i m p o r t a n t e a a u t o n o m i a i n t e r n a
c o n c e d i d a a um corpo coletivo •— a universitas. Numerosas
o r d e n s monásticas tinham o direito, que r e t r o a g i a ao a n o 1000,
de e l a b o r a r s u a s p r ó p r i a s n o r m a s . E s s a s r e g r a s , como a s c o m -
pilações jurisprudenciais d e direito costumeiro d a s cidades,
p a u t a v a m o ritmo interno de t r a b a l h o e a d o r a ç ã o d e uma co-
m u n i d a d e b e m d e f i n i d a , m a s s ã o a p e n a s relíquias históricas,
t e n d o pouco mais i m p o r t â n c i a m o d e r n a que a s m u r a l h a s d e s -
m o r o n a d a s d o s g r u p o s q u e g o v e r n a v a m . A q u e s t ã o m u d a in-
t e i r a m e n t e com a s c a r t a s d e a u t o n o m i a d a s cidades.
O sistema de relações sociais estabelecido n a s c o m u n a s ,
e por sua iniciativa, disseminou-se p o r t o d a p a r t e e começou
a destruir a economia f e u d a l n o campo.
D e que m o d o p o d e r i a o a t o a p a r e n t e m e n t e simples de c o n -
c e d e r uma c a r t a de a u t o n o m i a , o a u t o g o v e r n o , o direito de
o r g a n i z a r u m a feira e um m e r c a d o p r o d u z i r esses p r o f u n d o s
resultados? A f i n a l de contas, os b u r g u e s e s h a v i a m inicialmente
p e d i d o a p e n a s direitos iguais no sistema f e u d a l . C o m o r e -
conhecimento de seu status, porém, veio a a p r o v a ç ã o tácita
de relações inteiramente d i f e r e n t e s e n t r e p e s s o a s •— relações
q u e se b a s e a v a m na c o m p r a e v e n d a e eram incompatíveis com
a idéia f e u d a l f u n d a m e n t a l de laços de v a s s a l a g e m .
O s líderes d o s isolados e i n d e p e n d e n t e s levantes u r b a n o s
n ã o c o m p r e e n d e r a m de início o p o d e r inerente a essa n o v a
f o r m a de o r g a n i z a ç ã o social. N o curso da luta pela i n d e p e n -
dência da h e g e m o n i a f e u d a l , criaram artifícios legais intrinse-
c a m e n t e contraditórios e que, n o fim, dissolveram m e s m o o s
laços de s o l i d a r i e d a d e em n o m e da qual h a v i a m sido f o r j a d o s .
A o c o m p r e e n d e r e m t a r d i a m e n t e esse fato, l u t a r a m c o n t r a al-
g u m a s d a s conseqüências do sistema que eles mesmos h a v i a m
estabelecido. T r a t a - s e d e um elemento decisivo no período
t r a n s c o r r i d o e n t r e 1200 e MOO, e teremos o p o r t u n i d a d e de es-
t u d á - l o na T e r c e i r a P a r t e .
E n q u a n t o a vida econômica d a c i d a d e se o r i e n t a v a p a r a
a p r o d u ç ã o em p e q u e n a escala e o comércio de curta distância,
e s t a v a legalmente p r o t e g i d a a idéia jurídica de um e s t o q u e de
b e n s e m ã o - d e - o b r a , e s f o r ç o s e objetivos comuns. N a s cidades
comunais, o dinheiro era um meio de troca, simplesmente um
meio de a p u r a r o valor d a s coisas, o equivalente universal.
A B U R G U E S I A N O S É C U L O XIII 121

D e n t r o d a e s t r u t u r a d a s m e t a s c o m u n a i s e r a útil c o m o e x p e -
diente contábil. A m o e d a , como b e m a b s t r a t o , jamais se a f a s -
tava muito d a p r o d u ç ã o e troca de b e n s p a r a uso e c o n s u m o .
E n q u a n t o q u e fora d a c o m u n i d a d e a a d o ç ã o d a moeda podia
s u b v e r t e r p r o f u n d a m e n t e v e l h a s relações, u m a vez que o c a m -
ponês, a o c o n t r á r i o do m o r a d o r de cidade, n ã o tinha voz n o
processo d e comércio d o qual participava, isso n ã o aconteceu
inicialmente d e n t r o d a s c o m u n i d a d e s .
N ã o o b s t a n t e , tecnologia e e s t a b i l i d a d e social c o m b i n a -
r a m - s e com a s f o r ç a s p o s t a s em m o v i m e n t o p e l a b u r g u e s i a
e t o r n a r a m possível o comércio n o seu sentido c o m p l e t o — ou
a realização c o n t i n u a d e negócios com a f i n a l i d a d e d e multiplicar
o e s t o q u e de m o e d a , inicialmente pela c o m p r a t depois pela
v e n d a . E s s e tipo de comércio u l t r a p a s s a v a o s limites d a cidade.
S e u s f i n a n c i a d o r e s estavam i n t e r e s s a d o s em dinheiro p a r a fazer
f o r t u n a ; a p r o d u ç ã o de bens desviou a a t e n ç ã o d o s p r o d u t o r e s
d e um m e r c a d o identificável, n a maior p a r t e local, p a r a um
g r u p o a n ó n i m o e a m p l a m e n t e d i s p e r s o d e u s u á r i o s que o p r o -
d u t o r conhecia a p e n a s pela s o m a em dinheiro oferecida pelo
retalhista o u grossista. H a v i a c o m e ç a d o n a s c i d a d e s a alie-
nação entre produtor e produto.
A e s t r u t u r a legal criada n o c u r s o d e s s e f e n ô m e n o r e s t a -
beleceu o s princípios d o comércio m e d i t e r r â n e o r o m a n o - b i z a n -
tino. E n q u a n t o os c o r p o s coletivos se c a r a c t e r i z a v a m inicial-
m e n t e p o r compilações jurisprudenciais e x t r e m a m e n t e v a r i a d a s
e p o r c o m p e t ê n c i a s i n t e r n a s q u e m u i t a s vezes n ã o admitiam
a p el aç ã o , o n o v o direito comercial possuía um c o n t e ú d o mais
estável, coerente e u n i f o r m e . C o r t e s c o n s u l a r e s estabelecidas
por concessões de senhores f e u d a i s ou s o b e r a n o s , e c o m p o s t a s
de juristas a serviço d o s g r a n d e s i n t e r e s s e s comerciais, cortes
j u s t a s c r i a d a s p a r a e s t u d a r t r a n s a ç õ e s em g r a n d e escala e de
d u r a ç ã o transitória, tais f o r a m a s instituições d a s maiores uni-
d a d e s de a t i v i d a d e econômica, que v i e r a m a s u p e r a r , ou sim-
p l e s m e n t e i g n o r a r , os tribunais locais.
A m e d i d a q u e a moeda se t o r n a v a um o b j e t o em si e por
sl •— u m a a b s t r a ç ã o d e t o d a s a s m e r c a d o r i a s , incluindo o t r a -
b a l h o h u m a n o ~ o corpo u r b a n o a b s t r a i u - s e de seus membros.
A c o r p o r a ç ã o •— universitas — t o r n o u - s e m e n o s e menos re-
p r e s e n t a t i v a de todos os m o r a d o r e s d a cidade, o meio a t r a v é s
do q u a l e x p r e s s a v a m sua u n i d a d e , e veio a ser c o n s i d e r a d a
como p e s s o a s e p a r a d a , fictícia, d o t a d a d o s atributos d e p e r -
s o n a l i d a d e q u e os jurisconsultos r o m a n o s lhe h a v i a m atribuído.

8 -T> A.C.
122 À P R O C U R A DB U M LUGAR NA ORDEM FEUDAL

Possuia p r o p r i e d a d e s n a cidade, e l a b o r a v a leis, m a n t i n h a tribu-


nais, t r a t a v a com e s t r a n h o s . O controle de seu d e s t i n o r e p o u -
sava, n a s m ã os d a q u e l e s que t i n h a m a a u t o r i d a d e legal e o
direito de lhe a s s i n a r o n o m e e a f i x a r - l h e o selo. P o r seu lado,
essa a u t o r i d a d e e direito g r a d u a l m e n t e f o r a m e n f e i x a d o s n a s
m ã o s d o s ricos e p o d e r o s o s . F o s s e estabelecendo n o v a s limi-
tações à filiação n o c o r p o comunitário, fosse i n t r o d u z i n d o mu-
d a n ç a s n o s meios de lhe escolher a liderança, a c o r p o r a ç ã o
como p e r s o n a l i d a d e do p o d e r estatal s e p a r o u - s e d o s m o r a d o -
r e s da cidade, e iniciou-se uma n o v a era d e d e s e n v o l v i m e n t o
comercial e maritimo.
TERCEIRA PARTE

Os Advogados B urgueses:
O P o d e r Real e o
Desenvolvimento U r b a n o
(1200-1400)
10

Introdução

Iniciou-se por volta do a n o d e 1200 uma nova fase na


história d a b u r g u e s i a . N o s d u z e n t o s a n o s seguintes, as n o v a s
forças culminariam n a s revoluções b u r g u e s a s dos séculos
X V I I I e X I X , e a comunidade comercial d a E u r o p a O c i d e n -
tal adquiriu os atributos que a i n d a h o j e a definem.
O século X I I I presenciou a extinção d a s C r u z a d a s , a des-
truição final d o p o d e r bizantino e o estabelecimento d o con-
trole da E u r o p a O c i d e n t a l sobre o M e d i t e r r â n e o . A p r o d u ç ã o
de mercadorias n o O c i d e n t e assumiu importância suprema no
comércio L e s t e - O e s t e . A primeira c u n h a g e m extensa d e moe-
d a s d e ouro — mais tarde aceitas como m o e d a internacional
•— constituía evidência da posição econômica cada vez mais
importante d o O c i d e n t e . São Luis, Rei de F r a n ç a ( 1 2 2 6 / 7 0 ) .
equipou a última C r u z a d a e, q u a n d o foi c a p t u r a d o pelos
turcos, p a g o u seu resgate com empréstimos feitos por b a n -
queiros italianos, q u e deviam ser r e s g a t a d o s em m o e d a f r a n -
cesa. U m século e meio antes, u m a t r a n s a ç ã o financeira desse
vulto teria sido provavelmente negociada em besants d e Bi-
zâncio ou moedas árabes.
Prosseguiu o comércio de bens de luxo com o Oriente, em-
b o r a o O c i d e n t e comprasse cada vez menos produtos acabados.
A p a r t e especiarias e papel, as matérias-primas tornaram-se
os itens básicos d o comércio, em especial corantes e produtos
químicos necessários ao acabamento d e tecidos, madeira e cera
p a r a velas.
E n t r e 1200 e M 0 0 . as leis locais das cidades — que jun-
tamente com o reconhecimento da burguesia como elemento
126 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

s e p a r a d o d a o r d e m f e u d a l constituíra o mais n o t á v e l f e n ô m e n o
jurídico e social d o s a n o s p r e c e d e n t e s <— a t e n d i a m à s neces-
sidades d o comércio d e g r a n d e escala e longa distância. À s
cidades, n a q u a l i d a d e de centros d o p o d e r b u r g u ê s , t r a n s f o r -
m a r a m - s e em i n s t r u m e n t o s do e s f a c e l a m e n t o d e u n i d a d e s d e
p r o d u ç ã o agrícola intensivas em t r a b a l h o e ineficientes. O co-
mércio d e l o n g a distância, p o r o u t r o lado, orientou e contri-
buiu p a r a f o r m a r instituições j u r í d i c a s e políticas nacionais,
o u quase c onsc i e nt e m e nt e nacionais, que l u c r a r a m coin seu su-
cesso e p r o p o r c i o n a r a m a e s t r u t u r a d e n t r o d a qual elas podiam
desenvolver-se. D a s u n i v e r s i d a d e s , d a s n o v a s e p o d e r o s a s mo-
n a r q u i a s n a c i o n a i s de f o r m a ç ã o r e c e n t e ( n a I n g l a t e r r a e
F r a n ç a ) , d a s c i d a d e s italianas ( V e n e z a e G ê n o v a ) e d a Liga
H a n s e á t i c a d a s c i d a d e s a l e m ã s jorrou u m a literatura jurídica
que descrevia e c o m e n t a v a o s c o m u m e n t e aceitos direitos co-
mercial e marítimo. A s a u t o r i d a d e s civis (incluindo a juris-
dição civil d o s tribunais eclesiásticos) e s t a b e l e c e r a m c o r t e s d c
justiça p a r a aplicar esse direito d a f o r m a d e s e j a d a pelos m e r -
cadores. T o r n a n d o esses tribunais u n i v o c a m e n t e c o m p e t e n t e s
em certos tipos de casos, e c a n a l i z a n d o a s a p e l a ç õ e s p a r a cortes
reais, d u c a i s ou municipais de última instância, o s p o d e r e s tem-
porais, com o objetivo de p r o t e g e r o comércio, c o r t a r a m d e
cima a b a i x o a jurisdição f e u d a l .
À r r o g a n d o - s e o p o d e r d e legislar, o s m o n a r c a s f r a n c e s e s
e ingleses a p l i c a r a m ou c r i a r a m m é t o d o s mais simples e racio-
n a i s de litigar e a p r e s e n t a r p r o v a em a s s u n t o s comerciais. A
p a r t i r d a época d e S ã o Luís e, em especial, s o b o r e i n a d o d e
seus sucessores, F e l i p e III ( 1 2 7 0 / 8 5 ) e F e l i p e I V ( 1 2 8 5 / 1 3 1 4 ) ,
os a d v o g a d o s reunidos em t o r n o d o s o b e r a n o f o r m u l a r a m teo-
rias jurídicas s o b r e a s e p a r a ç ã o e n t r e a I g r e j a e o E s t a d o e
sobre a d e s c e n t r a l i z a ç ã o d o p o d e r , t u d o isso em d e t r i m e n t o d a
a u t o r i d a d e f e u d a l . Se o p e r í o d o e n t r e os a n o s 1000 e 1200 f o r a
de crescente importância d o direito comercial r o m a n o n a v i d a
econômica d a E u r o p a , o p e r í o d o e n t r e 1200 e 1400 presenciou
o desenvolvimento e a d a p t a ç ã o d o direito público r o m a n o com
a f i n a l i d a d e d e r e f o r ç a r a a u t o r i d a d e do p o d e r temporal. ( E n t r e
a s teses do p o d e r temporal, h a v i a a do c r é d i t o e f i n a n ç a s p ú -
blicas, que t e n d i a m a colocar a s f i g u r a s e c o n o m i c a m e n t e mais
p o d e r o s a s no g o v e r n o d a s g r a n d e s u n i d a d e s territoriais.) P e l a
primeira vez ocorria o f a t o d e a a u t o r i d a d e pública jurisdi-
cionar u n i d a d e s cada vez maiores d e território, a u t o r i d a d e e s t a
que, em úítima instância, r e p o u s a v a n a violência a r m a d a , m a s
INTRODUÇÃO 127

que era a d m i n i s t r a d a de maneira previsível por servidores no-


m e a d o s p a r a tal finalidade. A burguesia t r a n s f o r m o u - s e na
principal f i g u r a n e s s e m u n d o oficial e começou a ser reconhe-
cido seu p o d e r e t o l e r a d a sua presença. P a g a v a ela em impos-
tos, direitos a d u a n e i r o s ou empréstimos ao p r o t e t o r do comér-
cio essa e m b a r a ç o s a trégua com o poder real.
O s g r a n d e s t r a t a d o s jurídicos e teológicos d a época mos-
tram bem a s f o r ç a s dispares que se e n t r e c h o c a v a m n a socie-
d a d e d o tempo. N o m o m e n t o em que o feudalismo estava à
morte — ou melhor, p a r a ser m o r t o — sua f o r m a p ô d e ser
vista com maior clareza.
A fim d e avaliar a importância d a burguesia e de suas
relações com as n o v a s c o n c e n t r a ç õ e s de p o d e r real, e s t u d a r e -
mos u m c e n t r o comercial secundário. G r a s s e , localizado n o
Sul d a F r a n ç a . T e n t a r e m o s n a s p á g i n a s seguintes reconstituir
a vida n a cidade, como era vista pelos seus m o r a d o r e s bur-
gueses e pelos camponeses em sua volta, crescentemente de-
p e n d e n t e s d a economia u r b a n a . Iniciaremos n o s s a análise do
período 1200-1400, contudo, com uma discussão d a e s t r u t u r a
d a teoria jurídica com b qual a b u r g u e s i a vinha crescentemente
convivendo.
11

Beaumanoir e Outros:
Os Teóricos
de u m a Nova Ordem

U m servidor d o p o d e r real

E s t u d a n d o a v i d a e a o b r a d e Philippe de B e a u m a -
n o i r em seu c o n t e x t o histórico, p o d e m o s reconstituir a c o n -
tribuição d o s juristas p a r a a u n i f i c a ç ã o do p o d e r real e b u r g u ê s .
A s s i m , discutiremos seu t r a b a l h o , t e n d o como p a n o d e f u n d o
o século X I I I , e lhe c o m p a r a r e m o s os escritos com o s d e dois
jurisconsultos que n a época t r a b a l h a v a m a t i v a m e n t e em o u t r o s
locais.
O principal t r a b a l h o sobrevivente de B e a u m a n o i r , Les
Coutames de Beatwaisis, constitui a p a r e n t e m e n t e uma c o l e t â -
n e a d e leis c o s t u m e i r a s d e Beauvaisis, o n d e d u r a n t e a l g u m
t e m p o ele foi bailli — ou o a g e n t e d a C o r o a f r a n c e s a e n c a r -
r e g a d o d e d e v e r e s fiscais, a d m i n i s t r a t i v o s e judiciais. N a v e r -
d a d e , o Coutumes é u m a s o b e r b a reconstituição de c o s t u m e s
locais, unificados, r e f o r m u l a d o s e i n t e r p r e t a d o s à luz d o di-
reito costumeiro d o m u n d o d e fala f r a n c e s a . A s q u a l i d a d e s
literárias e politicas d o t r a b a l h o de B e a u m a n o i r a s s e g u r a r a m -
lhe t a n t o a influência p e r m a n e n t e como o r e g i s t r o a p a r e n t e -
m e n t e fiel d o direito que ele ministrava. M e s m o p a r a leitores
m o d e r n o s , d e s a c o s t u m a d o s aos maneirismos literários medie-
vais, é notável s u a clareza de expressão. O s e r u d i t o s c o m e n -
t a d o r e s d o direito r o m a n o t i n h a m o consolo e a a j u d a n o s seus
c o m e n t á r i o s de um sistema p r o n t o p a r a uso: o Corpus Jtiris,
O S TEÓRtCOS D E U M A NOVA ORDEM 129

d e J u s t i n i a n o . Ern contraste, B e a u m a n o i r e n f r e n t o u a t a r e f a de
e x p o r s i s t e m a t i c a m e n t e uma t r a d i ç ã o oral e m a r a n h a d a , a m -
b í g u a e incompleta d e c o s t u m e s e p r e c e d e n t e s . S u a finalidade,
disse, e r a c o m p r e e n d e r e r e g i s t r a r esses c o s t u m e s p o r q u e "a
m e m ó r i a do h o m e m — a escouloujante memória — f r a q u e j a ,
sua v i d a é c u r t a e aquilo que n ã o é escrito logo d e p o i s é es-
q u e c i d o " . S e u objetivo politico, no e n t a n t o , foi o de r e a f i r m a r
a s p r e r r o g a t i v a s d o p o d e r real n o interesse d o comércio.
P o u c o s a b e m o s sobre a v i d a de B e a u m a n o i r , e x c e t o q u e
n a s c e u n a P i c a r d i a e q u e recebeu a l g u m a e d u c a ç ã o jurídica.
I g n o r a m o s se n a s c e u c a v a l e i r o ou s e foi e l e v a d o à nobreza
p o r decisão real, embora s e j a mais provável esta última possi-
bilidade. O e s t u d o do direito se h a v i a t r a n s f o r m a d o em meio
d e a d m i s s ã o a u m a casta p r o f i s s i o n a l , d e n t r o d a qual o indi-
v í d u o p o d i a subir, t o r n a r - s e conselheiro real e receber uma
d i g n i d a d e especial de cavaleiro, o chevalier-ès-tois. Desde o
r e i n a d o d e F e l i p e A u g u s t o ( 1 1 8 0 / 1 2 2 3 ) , certo n ú m e r o de f a -
mílias b u r g u e s a s começara a enviar seus filhos para e s t u d a r
direito em B o l o n h a ou n u m a escola d e direito associada, situa-
d a em M o n t p e l l i e r . O e s t u d o d o direito civil, como aliás o do
direito canónico, d a medicina e d a teologia, e r a feito sob a orien-
t a ç ã o d e m e s t r e s que i n s t r u í a m seus a l u n o s e lhes conferiam
g r a u s . O prestígio d a escola e d e seus p r o f e s s o r e s d a v a vali-
d a d e a esses g r a u s em t o d o o m u n d o cristão r o m a n o . Individuos
f o r m a d o s p o r e s s a s instituições c o m e ç a r a m a a s s u m i r cargos
d e conselheiros e servidores civis n a s c i d a d e s do Sul d a F r a n ç a .
P a r i s e O x f o r d , pouco depois, a d q u i r i a m o status d e centros
d e e s t u d o d o direito civil. V a c a r i u s , um d o s comentaristas,
t r a n s f e r i u - s e d a Itália p a r a O x f o r d em m e a d o s d o século X I I
a fim d e lecionar e escrever p a r a os e s t u d a n t e s ingleses um
livro s o b r e direito r o m a n o .
E m P a r i s , o n d e B e a u m a n o i r p r o v a v e l m e n t e estudou, a
u n i v e r s i d a d e foi f u n d a d a n o a n o de 1200 p o r uma c a r t a real de
a u t o n o m i a , a primeira c o n c e d i d a p a r a uma a c a d e m i a p o r um
príncipe secular. A carta codificava o preceito d o direito roma-
n o q u e dizia q u e um g r a u c o n f e r i a ao i n d i v i d u o o direito de
exercer certa profissão. N o v a s u n i v e r s i d a d e s logo depois s u r -
g i r a m em T o u l o u s e , Poitiers, C a h o r s e Grenoble. ( M u i t o
mais t a r d e , em 1312, talvez s o b a influência de livros como
o s d e autoria de Beaumanoir, F e l i p e I V f u n d o u uma escola de
direito em O r l e a n s , dedicada primariamente ao e s t u d o do di-
reito costumeiro n a s d i f e r e n t e s regiões d a F r a n ç a . ) E v i d e n t e -
130 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

mente, a c o n s t r u ç ã o d e s s a s u n i v e r s i d a d e s era um dispêndio


a p e n a s possível a um p o d e r central — um rei ou um p a p a . N ã o
é d e s u r p r e e n d e r , p o r t a n t o , que a u n i v e r s i d a d e f o s s e um ele-
m e n t o crucial p a r a a p r o m o ç ã o de ambições reais.
A carta d a U n i v e r s i d a d e d e P a r i s descrevia o status legal
de e s t u d a n t e s e mestres. O e s t u d a n t e estava isento de o b r i g a -
ções f e u d a is e de prisão, a m e n o s q u e cometesse um crime
n e f a n d o ~ caso em q u e era e n t r e g u e à justiça eclesiástica, o
que constituía uma m o s t r a d o c a r á t e r essencialmente clerical
a t é mesmo d a e d u c a ç ã o secular. O s e s t u d a n t e s , no e n t a n t o ,
e r a m vistos com h o s t i l i d a d e pelos religiosos a n t i b u r g u e s e s . que
os julgavam r e s p o n s á v e i s pela d e t u r p a ç ã o do v e r d a d e i r o fim
d a cultura. J a c q u e s de V i t r y , a u t o r religioso e inimigo j u r a d o d a
b u r g u e s i a , e mais t a r d e u m a força de primeiro p l a n o na
c r u z a d a contra a s h e r e s i a s b a f e j a d a s pelos m e r c a d o r e s do Sul
da França, escreveu:
Quase todos... estrangeiros e nativos, n a d a faziam absoluta-
mente, salvo a p r e n d e r ou ouvir a l g u m a coisa nova. Alguns
estudavam m e r a m e n t e p a r a adquirir conhecimentos, o que é
curiosidade; outros, p a r a adquirir f a m a , o que é vaidade; e
outros a i n d a por motivo de ganho, o que é cupidez e vício de
simonia. Muitos poucos estudavam tendo em vista sua própria
educação ou a educação de terceiros.

E m b o r a criada p o r c a r t a real, a U n i v e r s i d a d e d e P a r i s re-


conhecia t a m b é m a a u t o r i d a d e eclesiástica, em c o n c o r d â n c i a
c o m a a d m i s s ã o real d e que a I g r e j a tinha interesse d i r e t o n a
e d u c a ç ã o . P o r sua p a r t e , a I g r e j a c o n t e n t a v a - s e em a f i r m a r uma
a u t o r i d a d e m e r a m e n t e nominal sobre os a s s u n t o s universitários.
À época em que B e a u m a n o i r d e v e ter-se matriculado, p o r volta
d e m e a d o s d o século X I I I , essa a u t o r i d a d e n ã o era mais e x e r -
cida pelo Bispo de P a r i s , m a s pelo P a p a , O título univeisitas
foi aplicado pela p r i m e i r a vez a m e s t r e s e e s t u d a n t e s p o r um
d e c r e t o papal de 1228. O u t r o d o c u m e n t o p a p a l de 1231 r e a -
f i r m a v a os privilégios d a u n i v e r s i d a d e e reconhecia a s reivin-
dicações jurisdicionais d o rei f r a n c ê s , n a ocasião S ã o Luís,
e n u m e r a n d o a s isenções d o s e s t u d a n t e s no tocante à p r i s ã o e
o u t r a s exações, mas c o n c l u i n d o : " D e s e j a m o s . . . c d e t e r m i -
n a m o s que, a p ó s terem sido o s privilégios concedidos a m e s t r e s
e a l u n o s pelo nosso muito q u e r i d o e a m a d o filho em Cristo,
o ilustre Rei de F r a n ç a . . . "
A o chegar a Paris, o candidato estudava na Faculdade
d e A r t e s e ingressava mais t a r d e n u m a especialidade — me-
OS TEÓHICOS DE UMA NOVA ORDEM 131

dicina. direito, ou teologia. E i a incluído, dc acordo com sua


região, ou país de origem, em uma d a s q u a t r o "nações" da
u n i v e r s i d a d e — F i a n ç a (incluindo a r e g i ã o d e P a r i s , a Itália
e a E s p a n h a ) , Picardia, N o r m a n d i a e I n g l a t e r r a . O s "pro-
c u r a d o r e s " d a s q u a t r o vnações elegiam o reitor d a F a c u l d a d e
de A r t e s ; as d e m a i s f a c u l d a d e s possuíam d e c a n o s .
A . a t m o s f e r a d a u n i v e r s i d a d e era um espelho d o intenso
conflito social o n d e se d e b a t i a m a s famílias b u r g u e s a s d a E u -
r o p a O c i d e n t a l , cujos filhos f o r m a v a m o g r o s s o d o corpo dis-
cente. U m desses conflitos t i n h a como foco o Sul d a F r a n ç a ,
ou a civilização u r b a n a que ali se d e s e n v o l v e r a s o b a liderança
d a s comunas, P o p u l a r i z a n d o - s e ao l o n g o d a s r o t a s d e comér-
cio, enraizou-se a idéia de que a "religião [ e r a ] primária e
q u a s e exclusivamente uma q u e s t ã o de ética p e s s o a l " . O s fiéis
e s t a v a m " i n t e r e s s a d o s em d e f e n d e r a p u r e z a d e s u a v i d a e
c a d a vez menos se i m p o r t a v a m com o destino d a I g r e j a como
o r g a n i z a ç ã o " , l i m a doutrina de tal f o r m a anticlerical era so-
b r e m o d o conveniente aos interesses d a c o m u n i d a d e mercantil.
Seu preconceito contra as organizações, a p o i a d o em evidência
empírica d a v e n a l i d a d e d e servidores d a Igreja, e m p r e s t a v a
credibilidade teológica à s s o c i e d a d e s s e c r e t a s u r b a n a s dirigidas
p o r leigos e a o s a t a q u e s à jurisdição eclesiástica d e n t r o d a s
c i d a d e s . U m a combinação d e p o d e r real e p a p a l finalmente
e r r a d i c o u tal heresia. F o i p r e g a d a uma C r u z a d a c o n t r a os cha-
m a d o s albigenses e. em 1209, F e l i p e A u g u s t o enviou à região
um exército que foi r e s p o n s á v e l pelo m a s s a c r e de cinqüenta
mi) homens, mulheres e c r i a n ç a s em Beziers, lias p r o x i m i d a d e s
de M a r s e l h a . " M a t e m t o d o s " , i n s t a v a o l e g a d o p a p a l , s e g u n d o
as crônicas. " D e u s reconhecerá os S e u s . " A p ó s o u t r a c a m p a -
n h a . em 1226. o c o n d a d o de T o u l o u s e , c e n t r o d a heresia, p a s s o u
a o domínio d o Rei de F r a n ç a , f o r t a l e c e n d o i m e n s a m e n t e a b a s e
territorial f r a n c e s a e a b r i n d o um e s c o a d o u r o p a r a o M e d i t e r -
râneo.
O s a l u n o s d a s universidades d e v e m ter p e r c e b i d o também
o s t r e m o r e s do conflito u r b a n o que sacudia o N o r t e d a F r a n ç a .
N u m e r o s o s governos municipais do N o r t e haviam caído em
mã o s d o s b u r g u e s e s mais ricos, c u j o poder era periodicamente
c o n t e s t a d o por levantes d o s pobres. E s s e s choques, e os p r o -
b l e m a s financeiros de numerosas cidades, liveram como resul-
t a d o a a b s o r ç ã o dos g o v e r n o s u r b a n o s pelo poder real. O
status de b u r g u ê s , em conseqüência, p a s s o u a ser conferido
pelo poder real. e n ã o por um pacto d o s próprios c o m n n t n a r d s .
132 O S ADVOGADOS B U R G U E S E S

E s s e s conflitos refletiam-se n a s u n i v e r s i d a d e s , e n ã o e r a
r a r o q u e os p r ó p r i o s e s t u d a n t e s lutassem e n t r e si n o s c l a u s t r o s
e n a s ruas p róxi m a s. O e s t u d o d o direito civil, n o e n t a n t o ,
constituía uma influência u n i f i c a d o r a , c o m o aliás se d e s t i n a v a
a ser. A u n i v e r s i d a d e c h e g a v a m p a r t i d á r i o s d e s t a ou d a q u e l a
c o r r e n t e no conflito social: d a u n i v e r s i d a d e , ou assim d e s e j a v a
a m o n a r q u i a , s a i a m a d v o g a d o s t r e i n a d o s em direito civil e
convencidos de q u e a C o r o a erguia-se, c o m o a u t o r i d a d e públi-
ca, acima d a s f a c ç õ e s em luta. A fim d e p ô r em vigor essa i n t e r -
p r e t a ç ã o do p o d e r real, o s m o n a r c a s r e c r u t a v a m p a r a seus
q u a d r o s a d mi ni st ra t i vos i n d i v í d u o s f o r m a d o s p e l a s u n i v e r s i -
dades.
B e a u m a n o i r ingressou n o serviço civil como bailli. r e p r e -
s e n t a n d o o rei em u m a p a r t e d o domínio real e e x e r c e n d o
d e v e r e s judiciários, a d m i n i s t r a t i v o s e fiscais. A o c o n t r á r i o d o s
demais servidores, os baillis e r a m r e m u n e r a d o s em dinheiro —•
n ã o em t e r r a s o u p e l o t r a b a l h o d e s e u s o c u p a n t e s , n e m t a m -
p o u c o p o r u m a p e r c e n t a g e m d a receita q u e p o r v e n t u r a a r r e -
c a d a s s e m . A fira d e impedir q u e f o r m a s s e m ligações d e n t r o de
seus territórios, e r a m eles t r a n s f e r i d o s d e local a c a d a três
a n o s . T a m p o u c o p o d i a m servir n a s u a r e g i ã o n a t a l . O bailli
m u i t a s vezes e n t r a v a em conflito com o s s e n h o r e s f e u d a i s
locais, vassalos d o rei, m a s d e s a c o s t u m a d o s à i n t e r f e r ê n c i a em
seus negócios.
A posição d e B e a u m a n o i r como bailli serve de exemplo d a
p r o m o ç ã o de u m a d a s classes d a b u r g u e s i a — a d o s a d v o g a -
dos — p a r a posições a serviço d o p o d e r central. Serviu
t a m b é m aos interesses do comércio, a j u d a n d o a f o r m u l a r uma
o r d e m jurídica q u e l h e e r a f a v o r á v e l . A C o r o a c o m e ç a v a a
perceber o v a l o r d e a g i r de m o d o previsível, d e a c o r d o com
u m a certa r a c i o n a l i d a d e que veio a m a n i f e s t a r - s e num sistema
d e r e g r a s e m á x i m a s jurídicas, u m a vez que a previsibilidade
é essencial ao comércio. B e a u m a n o i r e n t e n d e u bem esse p a p e l
d o a d v o g a d o e, em seus trabalhos, d e s c r e v e simples e a u t o -
cizadamente tal t a r e f a . Justifica-se talvez a a u t o c o n f i a n ç a q u e
vislumbramos em s u a p r o s a : d u r a n t e t o d a s u a vida gozou d o
f a v o r real e serviu c o m o m e m b r o do Parlement (corte real)
em P a r i s , d e s e m p e n h a n d o mesmo, certa vez, lima missão di-
plomática em R o m a .
A s q u a l i d a d e s pessoais e x a l t a d a s p o r B e a u m a n o i r e r a m
típicas d e u m a c e r t a p o s t u r a m o r a l b u r g u e s a — e m b o r a n ã o
O S TEÓRICOS DE U M A NOVA ORDEM 133

sem r e s e r v a s — n o t o c a n t e à s instituições secular e eclesiástica


vigentes. N o capítulo inicial d o Coutumes, e n u m e r a ele as res-
p o n s a b i l i d a d e s judiciais do bailli e f a z uma lista d a s virtudes
necessárias a u m juiz real •— literalmente, um " p r a t i c a n t e do
direito", drorftirier — i n d i c a n d o a n e c e s s i d a d e d e o bailli
possuir t a t o e f i r m e z a e p e r m a n e c e r a t e n t o à s m e t a s d o poder
real. As "senhoras e a m a n t e s " d e s s a s q u a l i d a d e s eram a s a g a -
cidade, s e g u i d a de c o m p a i x ã o ( a u s ê n c i a d e c r u e l d a d e ) , m a n -
sidão, paciência, c a p a c i d a d e d e e s c u t a r , b o a s a ú d e e g e n e r o -
sidade. " E l e d e v e distinguir o b e m d o mal, o certo d o e r r a d o ,
o legal d o traiçoeiro, o bom d o r u i m . " D e v e c u m p r i r a s o r d e n s
d e seu seigneur. A última v i r t u d e , " q u e ilumina t o d a s a s
d e m a i s " , é a lealdade.
O s baillis e o u t r o s s e r v i d o r e s deviam d e f e n d e r os direitos
e a l u g u e r e s d o rei, recusar de q u e r e l a n t e s donativos superio-
res a dez sous e n ã o d a r p r e s e n t e s a m e m b r o s do séquito real
e s u a s e s p o s a s . D e v i a m , outrossim, " r e f r e a r - s e d a b l a s f ê m i a "
e do " j o g o de d a d o s " e c o n s e r v a r - s e " l o n g e d a s t a v e r n a s " .
Insistia-se em que p e r m a n e c e s s e m em seus c a r g o s d u r a n t e q u a -
r e n t a e cinco dias a p ó s a extinção de seu m a n d a t o " p a r a que
se justifiquem p e r a n t e o n o v o bailli n o t o c a n t e a q u a l q u e r mal
que t e n h a m p r a t i c a d o e q u e possa d a r origem a uma queixa
contra eles".
B e a u m a n o i r , embora consciente d a o b r i g a ç ã o de obedecer,
a c e i t a v a - a com reservas. O juiz devia o b e d e c e r a seu seigneur,
" e x c e t o à s o r d e n s que, se s e g u i n d o - a s , p o d e p e r d e r a alma,
pois a obediência q u e deve e s t e n d e - s e a a g i r e p r o c e d e r b e m
e em leal e justo apoio ao seu s e n h o r ; m a s os baillis n ã o são
e x c u s a d o s d e seu dever p a r a com D e u s " . E a c r e s c e n t a : " P o i s
n ã o é b o m servir àqueles s e n h o r e s q u e s e i m p o r t a m mais em
impor s u a v o n t a d e d o que em m a n t e r o direito e a justiça."
O direito historiado p o r B e a u m a n o i r . e q u e cabia ao
bailli aplicar, foi e x p o s t o d e u m a m a n e i r a que indicava que
e s t a v a m em movimento m u d a n ç a s politicas d e suma impor-
tância. N ã o intentou ele m e r a m e n t e r e g i s t r a r usos e costumes
imemoriais, pois fazê-lo p o u c o espaço teria d i x a d o p a r a os
princípios em e v o l u ç ã o d o comércio o u d a teoria jurídica d a
s u p r e m a c i a real. M u i t o a o contrário, f u n d i u em um todo cos-
t u m e s locais, legislação real e preceitos d e direito costumeiro
q u e colheu em t o d a a F r a n ç a . F ê - l o d e um m o d o que n ã o
deixa d ú v i d a s o b r e seu invariável compromisso com o poder
c a d a vez maior d a C o r o a :
134 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

Concluímos a m a i o r p a r t e deste livro c o m j u l g a m e n t o s prófC-


ridos e m nossa época no condado de Beauvais, suplementados
p o r c o s t u m e s e u s o s a t é h o j e c o n s a g r a d o s e, n o a c a s n s e m q u e
padece dúvida sobre a r e g r a n o citado condado, jrir Julgamentos
d e d o m í n i o s f e u d a i s v i z i n h o s e a q u e l e s p r i n c i p os de j u s t i ç a
que são comuns a todas as compilações jurisprudenciais de
direito costumeiro.

N ã o foi feita ao acaso, diga-se. a seleção d e costumes


concorrentes. D e v i a ele ter tido em m e n t e a a d v e r t ê n c i a de
S ã o Luis d e que a o s baillis c u m p r i a " f a z e r j u s t i ç a . . . e . . .
o b s e r v a r o s usos e c o s t u m e s que s ã o b o n s e q u e f o r a m a p r o -
vados".
A injeção d e p o d e r e interesses reais em domínios o u t r o r a
f e u d a i s n ã o constitui, no e n t a n t o , o a s p e c t o mais i m p o r t a n t e
do t r a b a l h o d o bailli. O s baillis, escreveu um p r o f e s s o r f r a n c ê s ,
rcvelaram-se como os agentes mais eficazes d a ampliação do
p o d e r r e a l ; p a s s a v a m t o d o seu t e m p o u s u r p a n d o os direitos
d o s seigneurs e d a Igreja. O rei, e n q u a n t o se c o n g r a t u l a v a c o m
os r e s u l t a d o s a s s i m obtidos, n ã o h e s i t a v a e m desautorizá-los se
suas iniciativas, m u i t a s vezes ousadas, g e r a v a m u m n ú m e r o
excessivo de queixas. S i m u l t â n e a e reservadamente, porém,
e n c o r a j a v a m - n o s a t e n t a r m a i s u m a vez, e m o u t r a ocasião..

B e a u m a n o i r e v i d e n t e m e n t e p r o c u r o u justificar e ampliar
o poder real e fez uma n o t á v e l d e f e s a d o controle a b s o l u t o
sobre o p r o c e s s o judiciário. O p o d e r d e j u l g a r •— de e x p e d i r
decisões executórias •— era o p r ó p r i o â m a g o d a c o n t e n d a m e -
dieval sobre os p o d e r e s feudais, reais, eclesiásticos e comunais.
B e a u m a n o i r elaborou sua a r g u m e n t a ç ã o c o m b i n a n d o uma hábil
i n t e r p r e t a ç ã o d a lógica jurídica f e u d a l , de princípios c l a r a -
m e n t e d e r i v a d o s d o direito r o m a n o , e d a evidência empírica
d a ineficiência e d e s o n e s t i d a d e d a justiça à m a r g e m do p o d e r
real.
Iniciou sua a r g u m e n t a ç ã o com o e n u n c i a d o de um princí-
pio f e u d a l : t oda a jurisdição leiga do reino d e F r a n ç a era do
rei, como s e n h o r f e u d a l s u p r e m o . O p o d e r d a c o r t e d e a p e l a -
ç ã o do rei e r a em seguida d e d u z i d o d a r e l a ç ã o s e n h o r - v a s s a l o ,
daí s e g u i n d o - s e o princípio d e que n e n h u m v a s s a l o o u s u b v a s -
salo d o rei e s t a v a isento d a o b r i g a ç ã o de c o m p a r e c e r p e r a n t e
u m a corte real, n a q u a l seus j u l g a m e n t o s p o d i a m ser q u e s -
t i o n a d o s . O bailli, além de decidir q u e s t õ e s de competência
d i r e t a do rei, p o d i a f a z e r com que q u a l q u e r seigrteur ou seus
OS TEÓHICOS DE UMA NOVA OHDEM 135

d e l e g a d o s fossem citados a comparecer p e r a n t e o Pavlement


em Paris, "pois n ã o há n i n g u é m tão e x a l t a d o que n ã o possa
ser citado a comparecer à corte d o rei s o b a a c u s a ç ã o de n e -
g a ç ã o de justiça ou julgamento c o n t r a a p r o v a " . A extensão
desse p o d e r é s u g e r i d a pelo f a t o d e q u e o R e i d a I n g l a t e r r a
p r e s t a v a v a s s a l a g e m ao Rei d e F r a n ç a n o t o c a n t e a o s domínios
ingleses n a F r a n ç a .
E m princípio, os j u l g a m e n t o s n a s cortes f e u d a i s eram
revistos no Parlement, que se c o m p u n h a de a d v o g a d o s no-
m e a d o s pelo rei e que serviam como s e u s r e p r e s e n t a n t e s pes-
soais. N a decisão de tais casos. 110 e n t a n t o , o Parlement apli-
c a v a o costume local, pois. c o n f o r m e explicava Beaumanoir,
constituía d e v e r d o rei m a n t e r os c o s t u m e s sob o s quais
h a v i a m vivido o s diversos povos s o b seu domínio. E m teoria,
um costume era estabelecido q u a n d o n i n g u é m p o d i a citar uma
r e g r a c o n t r á r i a aplicável, ou q u a n d o se citava um julgamento
anterior, a l e g a n d o que tal ou qual r e g r a h a v i a sido o b s e r v a d a
d e s d e tempos imemoriais, Coutumiecs e r a m citados a compa-
recer p e r a n t e o Parlement a fim de a t e s t a r , sob j u r a m e n t o , a
existência do costume n a localidade o n d e tinha origem o f a t o .
O Parlement, n o entanto, e r a o á r b i t r o final, e facilmente t r a n s -
p u n h a a distância e n t r e descobrir q u a l a lei — jus dicere —>
e sua aplicação •— ;cis dace.
B e a u m a n o i r , porém, n ã o foi o primeiro a usar d e s s a ma-
neira a teoria jurídica f e u d a l . N a I n g l a t e r r a , o s n o r m a n d o s
aplicavam a teoria de que t oda t e r r a e r a possuída direta ou
i n d i r e t a m e n t e pelo rei. N o particular, o crescimento do poder
d o s reis f r a n c e s e s a t r a s o u - s e 150 a n o s em c o m p a r a ç ã o com o s
d a I n g l a t e r r a . À época em q u e B e a u m a n o i r escrevia, os b a r õ e s
a i n d a exigiam n a I n g l a t e r r a o c u m p r i m e n t o d a s concessões
contidas n a M a g n a C a r t a , b u s c a n d o g a r a n t i a s d e que seu
p a p e l no g o v e r n o do reino seria mantido. S ã o Luís e seu suces-
sor, Felipe, o O u s a d o , e m p e n h a r a m - s e em luta d i f e r e n t e : esta-
v a m c o n f i s c a n d o o poder e a a u t o r i d a d e d e seus barões, em
p a r t e a s s e n h o r e a n d o - s e d a jurisdição d a s cortes feudais.
N o t o c a n t e à alta n o b r e z a , o s laços feudais de d e p e n d ê n -
cia h a v i a m p e r d i d o a maior p a r t e de seu c a r á t e r inicial. A
medida que diminuía a importância d o s serviços feudais, como
o serviço militar, e se e n f r a q u e c i a o laço pessoal e n t r e s e n h o r
e vassalo, o s antigos serviços eram t r a n s f o r m a d o s em p a g a -
m e n t o s em dinheiro. Cortes compostas d e cavaleiros j u l g a v a m
136 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

casos d e cavalaria, h o n r a e d i s p u t a s e n t r e m e m b r o s d e s s a
classe. A s cortes d o s s e n h o r e s j u l g a v a m q u e r e l a s r e s u l t a n t e s
d a a d m i n i s t r a ç ã o de s e u s domínios — ou o s respectivos d e v e -
res d o s servidores d o s e n h o r e d o s c a m p o n e s e s . ( U m a d a s
c o n s e q ü ê n c i a s d o a u m e n t o d o p o d e r d o rei foi a c e n t r a l i z a ç ã o
d o p o d e r de polícia, o q u e se t r a d u z i u n a ampliação d a juris-
dição real n a e s f e r a criminal.)
N e s s a situação, introduziu B e a u m a n o i r a tese d o rei como
s o b e r a n o , e n ã o m e r a m e n t e como c a b e ç a d a h i e r a r q u i a f e u d a l .
A c o r t e real t i n h a n ã o a p e n a s a u t o r i d a d e de d e c i d i r q u a l e r a
o costume, m a s t a m b é m d e legislar. " T o d o s os n o b r e s d e s t e
r e i n o d e p e n d e m de mim", disse S ã o Luís, "e eu n ã o d e p e n d o
d e n in g u é m, salvo d e D e u s e d e minha e s p a d a . " O u , n a s p a l a -
v r a s de B e a u m a n o i r :
V ê e m , pois, q u e o s rela s ã o s o b e r a n o s s o b r e t o d o s e t ê m , p o r
direito próprio, & g u a r d a de seus reinos, e p a r a isso p o d e m
e l a b o r a r a s leis q u e q u i s e r e m e m beneficio c o m u m de seu reino,
e o que p r o m u l g a r e m deve ser cumprido.

E s s a s e n t e n ç a constitui uma clara p a r á f r a s e d e u m f a m o s o


e p i g r a m a d o j u r i s c o n s u l t o U l p i a n o s o b r e os p o d e r e s d o s im-
p e r a d o r e s r o m a n o s . T r a t a - s e d e u m a d e c l a r a ç ã o exploratória,
c e r c a d a da ressalva de q u e o s b a r õ e s p o d e m t a m b é m dispor
de a l g u m limitado p o d e r legislativo. N ã o o b s t a n t e , é claro que
B e a u m a n o i r t i n h a em m e n t e o conceito de s o b e r a n i a e q u e o
p o d e r d o rei — e d o s seus r e p r e s e n t a n t e s n o Parlement. ou
c o r t e s u p r e m a — d e s o b r e p o r - s e a o c o s t u m e local p o d e s e r
d e d u z i d o disso, e n ã o d e q u a l q u e r princípio f e u d a l . ( A d e f e s a
d e dois gumes q u e B e a u m a n o i r faz d o p o d e r real é mesmo
a n t e r i o r à de F l e t a , o a u t o r a n ô n i m o d e um t r a t a d o inglês
p u b l i c a d o e n t r e 1290 e 1292. A f i r m a v a F l e t a q u e n ã o s ó t o d o
p o d e r judiciário pertencia a o rei, m a s que até mesmo a s cortes
senhoriais eram cortes reais •— a r g u m e n t o e v i d e n t e m e n t e falso,
m a s igualmente e x p r e s s i v o d a s ambições d a C o r o a . )
E m o u t r a altura, B e a u m a n o i r coloca o p o d e r legislativo
d o rei sobre uma b a s e a l g o mais estreita, mas, a o mesmo tempo,
d e s c r e v e claramente um c a m p o mais a m p l o p a r a stia o p e r a ç ã o .
O costume, escrevia, em g e r a ! não pode ser mudado,
mas, em tempos de guerra, ou q u a n d o h á perigo de guerra, é
p e r m l s e í v e l a r e i s , p r í n c i p e s , b a r õ e s e s e n h o r e s f a z e r e m cols&s
q u e , se a s f i z e s s e m e m t e m p o de paz, I m p l i c a r i a m a g r a v o a
seus súditos, m u a s épocas de dificuldades as desculpara.
O S TEÓRICOS DE U M A NOVA O R D E M 137

E r a uma premissa a p a r e n t e m e n t e humilde, e c o a n d o o inter


arma silent leges •— em t e m p o d e g u e r r a silenciam as leis —
de Cicero. N u m século em que, como escreveu J a c q u e s de V i t r y ,
fora d a s c i d a d e s havia guerra e, d e n t r o delas, e t e r n o alarme,
o p o d e r "excepcional" de legislar a b r a n g i a uma m i r í a d e de
casos:
O r e i p o d e p r o m u l g a r n o v a s leis p a r a b e n e f í c i o c o m u m d e
seu reino, c o m o n o s casos e m que está a c o s t u m a d o a ordenar
a c o b r a n ç a de impostos p a r a d e f e n d e r seu território, ou a t a c a r
outro que o agravou, providenciar p a r a que nobres e cavaleiros
t e n h a m seus apropriados apetrechos de batalha, e que ricos e
pobres recebam armas, c a d a u m de acordo com s u a estação na
v i d a ; e q u e a s b o a s c i d a d e s r e a l i z e m os s e r v i ç o s q u e l h e s s ã o
solicitados e m a n t e n h a m suas fortalezas, e que todos estejam
prontos p a r a m a r c h a r q u a n d o o rei assim d e t e r m i n a r : todas
essas e outras medidas que lhe p a r e ç a m e aos seus conselheiros
sábias, o rei pode t o m a r e m t e m p o de g u e r r a ou q u a n d o há
a m e a ç a d e g u e r r a . Todos os b a r õ e s p o d e m t a m b é m b a i x a r leis
em seus territórios, m a s que n ã o se c h o q u e m com as promul-
g a d a s pelo rei ou com s u a v o n t a d e .

A descrição feita por B e a u m a n o i r d a s p r e r r o g a t i v a s reais


teria, com to d a probabilidade, d e o f e n d e r n ã o só os barões,
pois se o rei n ã o dependia d e n i n g u é m , s e n ã o de D e u s e de
sua e s p a d a , n ã o d e r i v a v a seu p o d e r do P a p a e t a m p o u c o do
Sacro I m p e r a d o r R o m a n o . Isso. c o n t u d o , n ã o constituía idéia
n o v a : em 1076, H e n r i q u e I V , I m p e r a d o r do Império R o m a n o
d o O c i d e n t e , alegou "ser rei n ã o p o r u s u r p a ç ã o , m a s pela
graça de D e u s " . O notário G a l b e r t , d a c i d a d e d e B r u g e s ,
f a z e n d o a crônica d a s violências em F l a n d r e s em 1127, c h a m a
o rei f r a n c ê s Luís {senhor f e u d a l d o s condes de F l a n d r e s ) de
" i m p e r a d o r " , significando isso que ele n ã o devia lealdade a
n e n h u m o u t r o s e n h o r feudal.
A fim de p r o v a r a i n d e p e n d ê n c i a d o rei em relação à
a u t o r i d a d e eclesiástica, B e a u m a n o i r reenunciou a politica de
S ã o Luís •— " s i m u l t a n e a m e n t e c r i s t ã o cheio d e h u m i l d a d e e
príncipe cioso de sua a u t o r i d a d e " — e d e s c r e v e u o s limites d a
jurisdição d a s cortes eclesiásticas. O p o d e r secular n ã o podia
n o e n t a n t o , s e g u n d o Beaumanoir, impor à ordem eclesiástica
uma corte de última instância, como acontecia com a s cortes
feudais. P o r isso mesmo, descrevia d u a s jurisdições competi-
tivas, i g u a l m e n t e respeitáveis, a secular e a eclesiástica. P r e -

r> - n . A . c •
138 OS A D V O G A D O S UUHGUESES

f i g u r a v a ele. contudo, uma linha i n i n t e r r u p t a de escritos jurí-


d i c o s f r a n c e s e s sobre o papel d a I g r e j a ;
B o a c a u s a é, e b e n é f i c a , d e a c o r d o c o m D e u s e o m u n d o a b a i x o ,
que aqueles a q u e m está a cargo a justiça espiritual preocupem-se
apenas c o m aquilo q u e diz respeito a o espirito, e d e i x e m a
j u s t i ç a l e i g a a d m i n i s t r a r a q u i l o q u e (Tlz r e s p e i t o à s c o i s a s t e m -
porais, de m o d o que, pelos t r i b u n a i s leigo e espiritual, justiça
peja feita a cada pessoa.

A I g r e j a , dizia B e a u m a n o i r , tinha j u r i s d i ç ã o s o b r e onze


a s s u n t o s : heresia, c a s a m e n t o s , d o n a t i v o s à I g r e j a , p r o p r i e d a d e s
religiosas, j u l g a m e n t o d e p e s s o a s q u e faziam p a r t e d e o r d e n s
s a n t a s , j u l g a m e n t o de v i ú v a s e ó r f ã o s , t e s t a m e n t o s , m a n u t e n -
ç ã o de lugares s a g r a d o s , b a s t a r d i a , feitiçaria e c o b r a n ç a d e
dízimos. M e s m o n e s s a s e s f e r a s , contudo, sua a u t o r i d a d e podin
ser limitada pelo costume ou concessões, p o r q u a n t o n u m e r o s a s
p r o p r i e d a d e s d a I g r e j a e n c o n t r a v a m - s e sob a p r o t e ç ã o d a a u t o -
r i d a d e civil. A l é m disso, l u g a r e s s a g r a d o s , c o m o a s igrejas,
p o d i a m ser d i s t i n g u i d o s d e t e r r a s que a I g r e j a ou p a r t e dela
possuía como q u a l q u e r seigneuc comum — incluindo-se e s t a s
n a jurisdição d o s tribunais leigos.
D e q u a l q u e r m o d o , a l e g a v a B e a u m a n o i r q u e a s cortes
leigas, em especial o Parlement, possuíam a u t o r i d a d e final
p a r a decidir a competência d o tribunal eclesiástico e, em certos
casos, podiam m e s m o d e t e r m i n a r q u e este último r e n u n -
ciasse à s u a jurisdição. A l é m disso, de vez q u e a I g r e j a n ã o
d i s p u n h a de p o d e r p a r a u s a r a força, precisava do apoio d a s
a u t o r i d a d e s seculares p a r a q u e seus j u l g a m e n t o s fossem
c u m p r i d o s ( c o n s t i t u i n d o as ú n i c a s exceções o s casos d e feiti-
çaria, nos q u a i s a corte eclesiástica p o d i a Impor e aplicar a
p e n a de m o r t e ) .

A Burguesia e a s C i d a d e s n a F r a n ç a e Inglaterra:
D a Autonomia a o Controle Real
A p r e o c u p a ç ã o de B e a u m a n o i r com a b u r g u e s i a e a a m e a ç a
que ela r e p r e s e n t a v a p a r a o p o d e r real s ã o r e p e t i d a m e n t e
m e n c i o n a d a s n o Coutumes e n q u a n t o ele p r o c u r a v a conciliar o
d e s e j o d e estimular o desenvolvimento comercial d a s c i d a d e s
com o e m p e n h o em s u b o r d i n a r a o r d e m jurídica de t o d o o país
a o controle final d a C o r o a .
O mais i m p o r t a n t e n o p a r t i c u l a r foi sua teoria de que o
status de "boa c i d a d e " — bonne ville •— e " b u r g u ê s " era con-
OS TEÓRICOS Ulí UMA NOVA OIÍUEM

ferido pelo rei ou, ocasionalmente, por um s e n h o r sujeito ao


rei. A idéia de que a lei d a c i d a d e — e n a v e r d a d e a própria
existência dela — derivava d a m a s s a de b u r g u e s e s , que se
h a v i a m l e v a n t a d o p a r a tornar o p o d e r , em p a r t e a l g u m a é
e n c o n t r a d a no Coutumes. C o n q u a n t o r e c o n h e ç a q u e cidades
com o u sem c o m u n a s p o d e m ter d i f e r e n t e s tipos de carta de
a u t o n o m i a , n i n g u é m p o d e r i a f u n d a r uina c i d a d e comunal sem
a u t o r i z a ç ã o real, uina vez que " t o d a s a s n o v i d a d e s são proi-
b i d a s " . S e o rei d e s e j a v a f u n d a r uma cidade, "o que deve ser
feito precisa c o n s t a r d a c a r t a régia de a u t o n o m i a " .
E s s e movimento p a r a t r a n s f o r m a r a f u n d a ç ã o de cidades
em p r e r r o g a t i v a do s o b e r a n o c h e g a r a t a m b é m à Inglaterra.
C o n c o r d a v a m o s juristas ingleses em que a criação de perso-
n a l i d a d e s jurídicas exigia um a t o do p o d e r s o b e r a n o , a con-
c e s s ã o f o r m a l de status de p e s s o a artificial — ou p e r s o n a fkla,
n a s p a l a v r a s d a declaração d e Inocêncio I V em 1243.
B e a u m a n o i r n ã o e s t a v a ociosamente t e c e n d o teorias de
existência d e pessoas jurídicas. S u a s conclusões h a v i a m emer-
gido d o conflito e n t r e a s c i d a d e s e o rei, e d e n t r o d a s próprias
cidades. A c r e d i t a v a ele h a v e r ampla r a z ã o p a r a a intervenção
real. S e m mencionar q u a l q u e r c i d a d e em p a r t i c u l a r , escreveu-.
N a s boas cidades, h o u v e n u m e r o s a s l u t a s de u m g r u p o c o n t r a
outro, c o m o de pobres c o n t r a ricos, o u u m g r u p o de pobres
contra outro, quando não conseguiam chegar a acordo sobre
o prefeito. u m representante ou o p r o c u r a d o r . . . Conhecemos
m u i t a s boas cidades onde pobres e cidadãos de classe média
n ã o têm voa n a administração, e onde todo o poder é açam-
b a r c a d o pelos ricos; e devido ao d i n h e i r o ou l i n h a g e m consti-
t u e m eles u m p o d e r f o r m i d á v e l . A c o n t e c e t a m b é m q u e c e r t o s
c i d a d ã o s s ã o p r e f e i t o » , o u v e r e a d o r e s , o u t e s o u r e i r o s e, n u
a n o seguinte, elegem seus irmãos, sobrinhos ou a l g u m parente
p r ó x i m o , d e m o d o q u e d e n t r o de dez ou doze a n o s o s ricos se
a s s e n h o r e i a m d a a d m i n i s t r a ç ã o ; o q u a n d o c h e g a a ocasião de
s e r e m e x a m i n a d o s os r e g i s t r o s d a c i d a d e d e f e n d e m - s e dizendo
q u e a l g u n s <fe s u a g r e i j á v e r i f i c a r a m a s c o n t a s d o s d e m a i s .
Tais coisas não devem ser toleradas, pois a s f i n a n ç a s comunais
não devem ser examinadas por aqueles que têm a seu cargo
administrá-las... Numerosas discórdias surgem nas comunas
devido a o s Impostos reais l a n ç a d o s s o b r e a cidade, pois a m i ú d e
a c o n t e c e q u e os ricos, e n c a r r e g a d o s d a c o b r a n ç a , p a g a m m e n o s
d o q u o d e v i a m e, a n a l o g a m e n t e . I s e n t a m s e u s p a r e n t e s e o u t r o s
r i c o s , . . c, a s s i m , t o d o o f a v d o da. t r i b u t a ç ã o sobre a comu-
n i d a d e pobre. P o r esse meio, u m a g r a v o é feito; os pobres
não d e s e j a m suportá-lo, m a s não conhecem bons meios de fazer
v a l e r seus direitos, salvo a t r a v é s d a força, motivo por que,
e m n u m e r o s a s ocasiões, h o u v e g r a n d e n ú m e r o de assassinatos.
HO OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

O u , se a percebida injustiça era d e v i d a à s condições d e t r a -


balho, a ação p o d i a assumir uma f o r m a d i f e r e n t e , a greve,
d e f i n i d a como
u m a aliança c o n t r a o b e m comum, quando os trabalhadores
p r o m e t e m , , , o u c o n c o r d a m e n t r e si, q u e n ã o t r a b a l h a r ã o m a i s
ao m e s m o b a i x o salário q u e a n t e s . . , e d e c i d e m e n t r e si os
castigos e a m e a ç a s que aplicarão aoa colegas de t r a b a l h o q u e
n ã o os a p o i a r e m .

Q u e havia a c o n t e c i d o às c i d a d e s p a r a t o r n á - l o t ã o pes-
simista? P e l o m e n o s por uma coisa, a lógica do m e r c a d o p r e -
valecera entre a s e m p r e s a s comerciais. Isso foi c l a r a m e n t e
p e r c e b i d o lias p r i m e i r a s c i d a d e s a t r a í d a s p a r a o comércio de
l o n g a distância, ou a s c i d a d e s p r o d u t o r a s de tecidos de F l a n -
dres e d o N o r t e d a F r a n ç a . F i n a n c i a d o s por b a n q u e i r o s lom-
b a r d o s , m e r c a d o r e s a t a c a d i s t a s de tecidos c o m e ç a r a m a o p e r a r
n e s s a s cidades n o s séculos X I e X I I . P o r volta d o século X I I ,
já era b e m visível o modelo d o comércio. O s m e r c a d o r e s im-
p o r t a v a m lã b r u t a d a I n g l a t e r r a e Escócia e e n t r e g a v a m - n a
a m e s t r e s - a r t e s ã o s , q u e t r a b a l h a v a m d e n t r o de um sistema
municipal de guildas. N o s ateliers desses p e q u e n o s fabricantes,
a lã era t r a n s f o r m a d a em tecidos finos e devolvida ao e m p r e -
s á r i o - f i n a n c i a d o r . E s t e , p o r seu lado, v e n d i a - a no m e r c a d o local,
p a r a posterior e x p o r t a ç ã o , ou l e v a v a - a a uma feira. E m a m b o s
os casos, a lã era v e n d i d a a o u t r o a t a c a d i s t a .
A intensa concorrência pelo controle d a s r o t a s de comér-
cio — entre famílias, e n t r e este ou a q u e l e interesse b a n c á r i o
l o m b a r d o , e n t r e r e p r e s e n t a n t e s e a g e n t e s d e s t a ou d a q u e l a
c i d a d e italiana •— p o u c o efeito p r o d u z i a , n o e n t a n t o , sobre a
v i d a econômica d o s m e s t r e s - a r t e s ã o s . Recebiam a lã e b e n e f i -
ciavam-na ao p r e ç o em vigor, d i t a d o p o r f o r ç a s econômicas
além do controle d a r e g u l a m e n t a ç ã o municipal. Q u a n d o p r e s -
s i o n a d o s por lucros em q u e d a e preços em alta — i n d i c a n d o
t o d a a evidência disponível um p e r í o d o d e g r a n d e i n f l a ç ã o n o
século X I I I — eles, por seu turno, p r e s s i o n a v a m os t r a b a l h a -
dores. O g r a n d e m e r c a d o r , n a opinião d o s a r t e s ã o s e de seus
e m p r e g a d o s , n ã o t r a b a l h a v a p a r a g a n h a r o p ã o : ele era sim-
plesmente um compsore, um changeur. um a g i o t a . A fim de
e s c a p a r desse sistema de vida, o m e s t r e - a r t e s ã o era solicitado
a aliar-se a i n t e r e s s e s mais amplos, ou lutar por um c a r g o n o
g o v e r n o municipal, o n d e poderia obter a c e s s o à receita d a
OS TEÓRICOS DE U M A NOVA O R D E M H l

cidade, a r r e c a d a d a a t r a v é s d e p e d á g i o s ou comissões sobre as


e x p o r t a ç õ e s , importações e v e n d a s n o m e r c a d o a t a c a d i s t a local.
A situação econômica d a s c i d a d e s foi a g r a v a d a pela
m u d a n ç a d o tipo d e p r o d u ç ã o agrícola que a c o m p a n h o u o
a u m e n t o d o desnível em r i q u e z a . O s b u r g u e s e s m a i s ricos
c o m e ç a r a m a c o m p r a r terras f o r a d a cidade, a t r a i n d o p a r a a
economia m o n e t á r i a a s relações sociais q u e a n t e s vigoravam
n o campo. O s r e g u l a m e n t o s municipais c o n c e r n e n t e s a preços
d e alimentos n ã o podiam f a z e r f r e n t e à e s p e c u l a ç ã o em g r a n d e
escala em víveres, especialmente no t o c a n t e a b e n s semidurá-
veis, como o trigo e o v i n h o :
O rico burguês, c o m o dinheiro de outrem,
F a z e n d o d o estômago» seu Deua,
Gosta de traficar em trigo,
Comprando barato e vendendo caro

escreveu um p o e t a d a época. O s ricos, l a m e n t a v a - s e um m o n g e


de F r o i d m o n t , s u g a m o s a n g u e d o s pobres.
A c o m u n h ã o d e interesses e n t r e os m e r c a d o r e s mais a b a s -
t a d o s g a n h a v a e x p r e s s ã o em s u a s guildas, que n ã o eram como
a s de astesãos. mas pontos de e n c o n t r o de ricos. E r a m altas as
jóias e a a d m i s s ã o limitava-se à q u e l e s que n ã o fossem obri-
g a d o s a t r a b a l h a r com a s mãos. E s s a classe e n d i n h e i r a d a e
r e l a t i v a m e n t e ociosa a s c e n d e u ao g o v e r n o d a s cidades. Com
f r e q ü ê n c i a , n e n h u m a m u d a n ç a na c a r t a de autonomia a n u n -
ciava o fato, e m b o r a fosse ele p o r vezes r a t i f i c a d o p o r lei
municipal depois de concretizado. E m 1240. o d e s e m p e n h o de
c a r g o municipal em B r u g e s e s t a v a v e t a d o a todo e qualquer
a r t e s ã o que, a n t e s de mais n a d a . n ã o r e n u n c i a s s e a seu ofício.
P o u c o e s p a n t a , p o r t a n t o , q u e l u t a s começassem a irrom-
per e n t r e os a r t e s ã o s e seus e m p r e g a d o r e s , c a d a vez mais pro-
letarizados, e e n t r e a r t e s ã o s e t r a b a l h a d o r e s , de um lado,
e as g r a n d e s famílias que c o n t r o l a v a m a s lideranças eco-
nômica e política, d o outro. E s s e s c h o q u e s proporcionaram
p r e t e x t o p a r a a intervenção d o p o d e r real. E m 1250, q u a n d o
o s t r a b a l h a d o r e s de P a r i s se l e v a n t a r a m contra os mestres-
a r t e s ã o s , S ã o Luís nomeou u m servidor civil real p a r a arbitrar
e c o n s u b s t a n c i a r por escrito, e d e f o r m a executória, os costu-
mes do ofício. E m 1233, n a c o m u n a de Beauvais. os p o b r e s
r e b e l a r a m - s e c o n t r a o s ricos. O Bispo M i l o n tomou o partido
d o s pobres, sem d ú v i d a n u m a a t i t u d e em g r a n d e p a r t e g e r a d a
142 OS ADVOGADOS BURGUESES

p e l a sua oposição à s operações f i n a n c e i r a s d o s ritos. Interveio


o rei, ostensivamente, p a r a restabelecer a ordem, e m b o r a s u a
p a r t i c i p a ç ã o f o s s e i n t e r p r e t a d a pelo bispo como de apoio aos
ricos, e p o r isso, em represália, interditou os domínios reais,
significando isto que serviços religiosos neles n ã o podiam ser
realizados. A vitória final, n o e n t a n t o , coube ao rei, pois a
q u e s t ã o terminou em litígio n o Pademcnt a r e s p e i t o d a s dispo-
sições d a c a r t a de f u n d a ç ã o d a c i d a d e no t o c a n t e a a s s u n t o s
d e a d m i n i s t r a ç ã o municipal. O Paclement r e v o g o u a carta, con-
s i d e r a n d o - a d e m a s i a d o aristocrática.
A m e s m a história repetiu-se n u m e r o s a s vezes, com p e -
q u e n a s variações, d u r a n t e t o d o esse p e r í o d o . E m D o u a i , em
1245, os t r a b a l h a d o r e s s e o r g a n i z a r a m c o n t r a seus s e n h o r e s .
E m F l a n d r e s , q u a s e n e n h u m a c i d a d e e s c a p o u d o s choques. O s
trabalhadores organizavam-se secretamente e assumiam mútuas
obrigações m e d i a n t e j u r a m e n t o (conjurado), levantando-se
c o n t r a as instituições do p o d e r .
A s crises f i n a n c e i r a s p r o p o r c i o n a r a m o u t r a s ocasiões p a r a
intervenção, u m a vez que c o m u n a s insolventes n ã o podiam p a g a r
n e m suas dívidas n e m os impostos d e v i d o s ao rei. U m a ordon-
nance ( e s t a t u t o ) d e 1260 consolidou o direito real d e verificar
as f i n a n ç a s municipais. U m a ordonnance de Felipe, o O u s a d o ,
d a t a d a de 1287, t r a n s f o r m o u t o d o s os b u r g u e s e s cm " b u r g u e -
ses do rei", com a o b r i g a ç ã o de residirem n a c i d a d e que esco-
lhessem. ( E s s e status de b u r g u ê s d o rei foi igualmente conce-
dido a certos r e p r e s e n t a n t e s de c a s a s b a n c á r i a s l o m b a r d a s , c u j a
p r e s e n ç a era necessária à e n t r e g a de f u n d o s e empréstimos
a monarcas necessitados.)
N e s s e c ont e xt o, p o u c o e s p a n t a q u e B e a u m a n o i r t e n h a
escrito: " E m c e r t a s ocasiões, h á g r a n d e n e c e s s i d a d e de a j u d a r
e s s a s c o m u n a s como se a j u d a r i a uma c r i a n ç a . " E s s e b o n d o s o
conselho, no e n t a n t o , f e z - s e seguir d a a d m o e s t a ç ã o de que
p o d e r i a ser necessário capturar o g o v e r n o d a c i d a d e e insta-
lar outro, m a n t e n d o a c i d a d e sob t u t e l a d u r a n t e um a n o ou
dois.
N o fim, o status legal d o s b u r g u e s e s foi d e f i n i d o pela a u -
t o r i d a d e s u p e r i o r e n ã o pela ação c o n j u n t a d o s mesmos. A
beneficiária em todos os casos foi a a u t o r i d a d e central, que
intervinha como força e x t e r n a e o s t e n s i v a m e n t e n e u t r a p a r a
restabelecer a o r d e m e o controle.
N o interesse d e quem e r a feita a i n t e r v e n ç ã o real? S ã o
Luís d e s p a c h o u certa vez uma comissão de inquérito com o r d e n s
OS TEÓRICOS DE UMA NOVA ORDEM 143

de " g a r a n t i r que os pobres possam g a n h a r seu p ã o em paz",


p e n s a m e n t o b a s t a n t e caridoso e que c e r t a m e n t e n ã o e n c o r a j a v a
q u a l q u e r g r a n d e s u b v e r s ã o d a e s t r u t u r a de p o d e r . O roubo, a
chicana e a oligarquia u r b a n a e r a m com f r e q ü ê n c i a alvos da
i n t e r v e n ç ã o real e a s s u n t o d e r e p e t i d a s decisões no Parlement.
N e s s e p r o c e s s o e com o auxílio de seus a d v o g a d o s , o s m o n a r c a s
f r a n c e s e s e s t u d a v a m meios de g a r a n t i r que a p o p u l a ç ã o t r a b a -
l h a d o r a f o s s e s u f i c i e n t e m e n t e b e m t r a t a d a p a r a q u e n ã o se
l e v a n t a s s e c o n t r a seus senhores, s e m e a n d o a d e s o r d e m interna
e e x p o n d o o reino a g r a v e s perigos e x t e r n o s . F u s t i g a d o s ao
N o r t e p e l a s ambições d o s c o n d e s d e F l a n d r e s e a O e s t e pelos
ingleses, o rei f r a n c ê s precisava d o apoio de suas bonnes vides.
O s f e n ô m e n o s que ocorriam n a F r a n ç a , além disso, repe-
tiam-se t a m b é m t a n t o n a I n g l a t e r r a como n o s domínios da
C o r o a inglesa d o o u t r o lado d o C a n a l d a M a n c h a . A interven-
ção real n o s a s s u n t o s d e c i d a d e s inglesas é f a t o histórico no
século X I I I , e m b o r a seja mais difícil n e l a s d o que n a F r a n ç a
s e p a r a r o s elementos d a i n t e r f e r ê n c i a real, d i t a d o s pelas mu-
d a n ç a s econômicas, do processo de centralização iniciado com a
C o n q u i s t a N o r m a n d a . N o scculo X I I . a I n g l a t e r r a era dividida
em vills, u n i d a d e s a d m i n i s t r a t i v a s q u e p o d i a m coincidir ou
n ã o com a m a n s ã o feudal — um s e n h o r p o d i a possuir várias
vills, ou u m a d e s t a s r e c o n h e c e r v á r i a s s u z e r a n i a s . A vill era.
p a r a os n o r m a n d o s , uma i m p o r t a n t e u n i d a d e administrativa
e a d q u i r i u certo papel em a r m a r o país, p a r c e l a r a tributação e
a p r e s e n t a r à justiça e c o n d e n a r criminosos. A vill típica do
século X I I I e r a centro de uma u n i d a d e agrícola comunal. C o n -
sistia em um g r u p o de casas, o n d e todas as famílias tinham o
direito de cultivar uma faixa de t e r r a .
A s primeiras cidades f o r a m simplesmente vills ampliadas.
À m e d i d a que seus m o r a d o r e s o b t i n h a m pela força, ou por
g e n e r o s i d a d e recebiam uma c a r t a de autonomia, as vills trans-
f o r m a v a m - s e em bocoughs, os lares d o s b u r g u e s e s . Já n a época
d o D o m e s d a y book. 1 0 8 1 / 8 6 , a l g u n s d e s s e s bocoughs desta-
c a v a m - s e d o s demais como shice-boroughs e traziam sob
seus n o m e s a inscrição Tetra Régis, indicando que n ã o eraui
p r o p r i e d a d e d e s e n h o r alguin, mas d i r e t a m e n t e do rei. N a
maior p a r t e , no entanto, persistiu o sistema de vills. Se a terra
era dividida como uma colcha de retalhos, os domínios do
s e n h o r f e u d a l podiam ser t a m b é m i r r e g u l a r m e n t e divididos.
M e s m o n u m simples a r r u a d o , m e t a d e de uma rua podia reco-
144 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

n h e c e r um s e n h o r e, a o u t r a m e t a d e , outro. O s e n h o r d e meia
r u a p o d i a , por seu t u r n o , ser v a s s a l o de um s e n h o r mais im-
p o r t a n t e , e assim sucessivamente. E m geral, era o s u z e r a n o d e
nível mais i n f e r i o r n e s s a e s c a d a que c o b r a v a o aluguel a o
o c u p a n t e d a casa. T r a n s f o r m a n d o - s e e s s a s vills em boroitghs,
as a l u g u e r e s a s s u m i r a m c r e s c e n t e m e n t e a f o r m a de p a g a m e n t o s
em dinheiro. O s serviços q u e o primeiro s u z e r a n o devia a o s
d e m a i s acima dele c o n t i n u a v a m a ser exigidos, serviços estes
que, p o r seu t u r n o , f o r a m t a m b é m c o n v e r t i d o s em p a g a m e n t o s
em dinheiro.
F o i imenso o i m p a c t o d e s s a hierarquia de d e v e r e s e serviços
f e u d a i s sobre a p r o p r i e d a d e . S e A a l u g a v a a c a s a de B, q u e e r a
o s u z e r a n o local, e B por seu t u r n o era d o n o d a casa o c u p a d a
p o r C . a morte d e B sem d e i x a r h e r d e i r o s colocava C em seu
l u g a r . D a í em diante, ele receberia todos os p a g a m e n t o s feitos
p o r A . A fim de obter tal privilégio, no e n t a n t o , C t i n h a que
c o n v o c a r uma corte f e u d a l e d e c l a r a r seus direitos, m a s se p o s -
suísse a p e n a s t r ê s ou q u a t r o c a s a s em um borough, c a d a u m a
d e l a s r e n d e n d o u m a s o m a irrisória, pouca o p o r t u n i d a d e teria
d e p e d i r a convocação d e uma corte. O s s e n h o r e s f e u d a i s m e n o -
res, p o r conseguinte, careciam t a n t o d o s meios como d o s incen-
tivos p a r a fazer valer sua jurisdição sobre a p r o p r i e d a d e d e n t r o
dos boroughs, o q u e d a v a ao p o d e r real a o p o r t u n i d a d e de in-
tervir. O s b u r g u e s e s n ã o q u e r i a m i n c o m o d a r - s e com o elenco
d e e x a ç õ e s . serviços, o b r i g a ç õ e s e p e d á g i o s medievais; o
borough o n d e uma dúzia de s e n h o r e s intermediários t i n h a di-
reitos era uma c o n f u s ã o ingovernável, uma vez que n e n h u m d o s
seignenrs d i s p u n h a do p o d e r de fazer a l g u m a coisa d e m o d o
oficial. Além disso, era inevitável a t r i b u t a ç ã o real, em e s p e -
cial n o inicio do século X I I I , q u a n d o a s C r u z a d a s constituíram
u m g r a n d e peso sobre a p o p u l a ç ã o e a vill, esta como u n i d a d e
contábil; n i n g u é m queria p a g a r impostos a m a i s de u m s e n h o r .
A C o r o a , por seu lado. d e s e j a v a d a r p r o s s e g u i m e n t o à c e n t r a -
lização n o r m a n d a , q u e era a mais completa e eficiente d a
E u r o p a . O resultado de t u d o isso foi a aliança e n t r e m e r c a d o -
res e reis às e x p e n s a s d o s p e q u e n o s nobres.
F . W . M a i t l a n d e s t u d o u esse processo no borough de
C a m b r i d g e . O Rei João concedeu à c i d a d e uma carta que d a v a
à c o r p o r a ç ã o municipal .— a universitas — autonomia em t r o c a
de certas obrigações, incluindo 60 libras a n u a i s e um p a g a -
m e n t o único ao s u z e r a n o local, um conde. M a i s t a r d e , inter-
p r e t a ç õ e s judiciais da carta s u s t e n t a r a m que fora intenção de
O S TEÓRICOS D E UMA NOVA O R D E M 145

J o ã o t o r n a r a c i d a d e mesne lord d e seu território, colocando-a


como s u z e r a n o jurídico i m e d i a t a m e n t e a b a i x o dele n a h i e r a r -
quia f e u d a l . A c i d a d e deteria a posse d e t o d a a t e r r a o c u p a d a ,
n a q u a l i d a d e de s e n h o r f e u d a l , e d e t o d a s a s t e r r a s devolutas
como p r o p r i e t á r i a . Hssa pessoa fictícia, p o r t a n t o , t o r n o u - s e o
" s e n h o r " d e a l g u n s n o b r e s que possuíam domínios d e n t r o do
borough, O s interesses desses s e n h o r e s f o r a m s u b s e q ü e n t e -
m e n t e esquecidos, c o m p r a d o s , ou i g n o r a d o s .
Logo q u e a c i d a d e se t r a n s f o r m a v a em " p e s s o a " , e nobre
a i n d a por cima, iniciava-se o m e s m o p r o c e s s o que e s t a v a em
a n d a m e n t o n a s c i d a d e s f r a n c e s a s e f l a m e n g a s . C o b r a v a aluguel
d a s casas, q u e e r a m c o n s i d e r a d a s como em regime d e a r r e n -
d a m e n t o e c o m o semovente. O s r e s i d e n t e s tinham direito de
levar seus animais p a r a p a s t a r n a s t e r r a s d e v o l u t a s . E r a o r g a -
n i z a d a u m a feira e os b u r g u e s e s nela a r m a v a m uma b a r r a c a
d a " c o r p o r a ç ã o " , q u e se fazia p r e s e n t e como seignear-propTie-
tária. A l u g u é i s e receitas g e r a d a s p e l a s f e i r a s constituíam
p r o p r i e d a d e d a c o r p o r a ç ã o e d e v i a m ser u s a d o s n o m e l h o r a -
m e n t o d a cidade.
A o s poucos, a c o r p o r a ç ã o d e s p r e n d i a - s e d o corpo d o povo
e t r a n s f o r m a v a - s e n u m a e n t i d a d e em si. S e u s lideres vieram a
se c o n s i d e r a r como s e n d o só eles a c o r p o r a ç ã o , e a s terras
comuns e d e v o lu ta s como suas p a r a cercar, a r r e n d a r , ou vender.
A c a r t a d o borough definia a jurisdição de sua corte de
justiça, q u e s e valia d a p r o t e ç ã o real p a r a e x p a n d i r sua a u t o -
r i d a d e à s e x p e n s a s d o s s e n h o r e s f e u d a i s . A o definir como
p r o p r i e d a d e móvel ( s e m o v e n t e ) o s interesses no a r r e n d a m e n t o
d a s c a s a s d o s b u r g u e s e s , a s cortes c o n s e g u i r a m estabelecer o
direito d e p r e e m p ç ã o sobre a c o m p e t ê n c i a d o s tribunais feudais.
O p o d e r real começou igualmente a c o n c e d e r licenças p a r a
a realização de f e i r a s ou a permitir a o s b u r g u e s e s q u e a s o r g a -
nizassem. A corte d a feira m u i t a s vezes se t o r n a v a a p e n a s
uma sessão especial d a corte do borough.
E s s a união e n t r e a C o r o a e a b u r g u e s i a —» n a Inglaterra.
F r a n ç a e o u t r o s países .— f o m e n t o u o comércio o r g a n i z a d o e
r e d u n d o u no interesse de ambos. T e n d o - s e t o r n a d o insufi-
ciente a receita p r o d u z i d a pelos domínios reais p a r a sustentar
a C a s a do rei. começou a C o r o a a a r r e c a d a r receita d o comér-
cio s o b a f o r m a de impostos. A " c o m u n a " era a i n d a reconhe-
cida como entidade, vinculada p o r j u r a m e n t o , e m b o r a esse
j u r a m e n t o se t o r n a s s e s u b o r d i n a d o em relação à l e a l d a d e p a r a
com a C o r o a . T o d o s os movimentos comunitários de massa que
146 OS ADVOGADOS BURGUlvSES

i r r o m p e r a m com t o n t a f r e q ü ê n c i a n o s séculos X I e X I I f o r a m
c o n s i d e r a d o s crimes, e como tal punidos. B e a u m a n o i r n ã o
d e i x a dúvida sobre a a t i t u d e do rei f r a n c ê s em relação a e s s a s
conjurationes e s u a s o b s e r v a ç õ e s teriam sido e n d o s s a d a s pela
maioria d o s s o b e r a n o s e seigneucs d a E u r o p a O c i d e n t a l :
£ u m a b o a c o i s a q u e os m a l f e i t o r e s s e j a m p r e s o s e c a s t i g a d o s ,
c a d a u m deles de acordo com s e u crime, de m o d o que o u t r o s
se s i n t a m e s c a r m e n t a d o s e e v i t e m c o m e t e r delitos. E e n t r e
os d e m a i s c r i m e s a q u e a c i m a n o s r e f e r i m o s , u m d o s m a i s
g r a v e s , e a q u e l e q u e o s seigneurs precisam punir e vingar, é o
de associação f o r m a d a c o n t r a «ei^neurs e c o n t r a o b e m c o m u m .

L e v a n t e s e rebeliões, escrevia ele, d e v i a m ser c a s t i g a d a s


com p e n a s d e prisão e m u l t a s :
Outro tipo de associação feita com freqüência é aquela e m quo
u m a cidade ou cidades são d e s t r u í d a s e é desonrado ou despejado
o seigneur, como no caso em que o povo c o m u m de u m a cidade
o u m u i t a s c i d a d e s f o r m a u m a a l i a n ç a c o n t r a s e u seigneur a
f i m d e a p l i c a r f o r ç a c o n t r a ele. P o r i s s o m e s m o , l o g o q u e o
seigneur perceber que tal aliança e s t á sendo organizada, deve
esmagá-la pela f o r ç a e condenar a longas p e n a s de prisão todos
os m e m b r o s da conspiração. Ê, de fato, u m c r i m e pelo qual o
seigneur teria toda razão em c o n d e n a r os conspiradores à morte,
pois se t r a t a de u m a espécie de t r a i ç ã o c o n t r a o s e n h o r .

A fim de exemplificar seu a r g u m e n t o , relembra B e a u m a -


noir, i n e x a t a m e n t e como s e verificou mais t a r d e , o l e v a n t e d a
Liga L o m b a r d a c o n t r a F r e d e r i c o B a r b a r r o x a em 1164:
Acontecia que todas a s boas cidades e castelanias d a L o m b a r -
dia pertenciam ao I m p e r a d o r de R o m a , situavam-se em seus
d o m í n i o s e e r a m d e s u a p r o p r i e d a d e ; e h a v i a s e u s baillis, p r e -
bostes e agentes em todas as cidades, que m i n i s t r a v a m a justiça
e p r e s e r v a v a m os d i r e i t o s d o I m p e r a d o r . E e l a s h a v i a m p r e s t a d o
v a s s a l a g e m a o I m p e r a d o r , c o n s i d e r a n d o - o c o m o s e u seigneur.
E aconteceu que, e m u m a d a s b o a s cidades, h a v i a t r ê s ricos
l o m b a r d o s q u e n ã o s e s u b m e t i a m a o g o v e r n o d o s baillis, u m d o s
quais h a v i a m a n d a d o e n f o r c a r o p a i de u m deles por deserção,
e com t o d a j u s t i ç a . Os l o m b a r d o s r e u n i r a m - s e de m á fé, lide-
rados por u m h o m e m que e r a ao m e s m o t e m p o astuto, maldoso
e bem falante. Esse homem, como agente dos demais, visitou
todas a s d e m a i s boas cidades d a L o m b a r d i a . Ao c h e g a r a u m a
boa cidade, p r o c u r a v a dez ou doze Homens de alta l i n h a g e m e
grande riqueza, falava-lhes p r i v a d a m e n t e e dizia que todas a s
outras boas cidades estavam sigilosamente em acordo que não
m a i s q u e r i a m o b e d e c e r a s e u seigneur, e que todas as cidades
que não e n t r a s s e m n a conspiração s e r i a m destruídas pelas
o u t r a s boas cidades. M a s que depois disso c a d a cidade seria
O S TEÓRICOS DE UMA NOVA OHUEM 147

d o n a de seu destino, e nãu propriedade de outrem. Após essas


m e n s a g e n s e viagens, que c o n s u m i r a m cinco anos, e ao fim
dos c i n c o a n o s , corto dia, t o d a s a s c i d a d e s d a L o m b a r d i a se
l e v a n t a r a m e a s s u m i r a m o controle de seus negócios, porquanto
o I m p e r a d o r não havia previsto tal deslealdade. E quando as
c i d a d e s f o r a m t o m a d a s . . . eles p u d e r a m f a z e r a s leia e c o s t u m e s
que desejavam... Por esse exemplo, pode-se c o m p r e e n d e r o
g l a n d e p e r i g o a q u e e s t ã o e x p o s t o s t o d o s o s seigtieurs que
p e r m i t e m q u e t a i s a l i a n ç a s se d e s e n v o l v a m e n t r e s e u s súditos.

N ã o foi, contudo, a hostilidade ao comércio ou à riqueza


q u e motivou a oposição à i n d e p e n d ê n c i a comunal, m a s sim o
r e c o n h e c i m e n t o de que, com o patrocínio real, a b u r g u e s i a po-
deria d e s e n v o l v e r s u a s relações econômicas além d o s limites de
q u a l q u e r única cidade. B e a u m a n o i r e m p e n h o u - s e em g a r a n t i r a
seus leitores que n ã o era inimigo do comércio, m a s d a desor-
dem. U m a o r g a n i z a ç ã o d e s t i n a d a a fazer negócios, uma com-
paignie, era e v i d e n t e m e n t e legal, mesmo q u a n d o i n t e r f e r i a n a s
p r e r r o g a t i v a s da guilda ou s e n h o r . D e v e o leitor l e m b r a r - s e de
que já n o s referimos a uma descrição em que B e a u m a n o i r c h a m a
as n o v a s c o m u n a s de " n o v i d a d e s " p r o i b i d a s :
Aquilo que dissemos sobre todas as comunidades serem proibidas
deve ser entendido como significando todas as novidades insti-
t u í d a s c o n t r a os direitos de o u t r e m ; pois q u e n ã o é proibido a
pessoa a l g u m a construir u m forno, u m moinho, u m a prensa de
vinho, u m t a n q u e p a r a peixes ou q u a i s q u e r o u t r a s coisas, e m
q u a l q u e r l u g a r que ela d e s e j a r , pois isso n ã o s e r i a c o n t r á r i o
aos direitos de n i n g u é m . . . P o r exemplo, se construo u m moinho
e m m i n h a propriedade, o n d e t e n h o o direito de fazê-lo, e o
m o i n h o d e m e u vizinho p o r isso r e n d e m e n o s , pois ele n ã o t e m
m a i s t a n t o s f r e g u e s e s c o m o c o s t u m a v a t e r ; ou p o r q u e c o b r o
m e l h o r p r e ç o d o q u e ele, p o r t a l p r e j u í z o n i n g u é m m e p o d e
obrigar a desmantelar m e u moinho, pois r e d u n d a e m benefício
c o m u m de cada pessoa que cada pessoa possa desempenhar
s u a ocupação ou m e l h o r a r s u a propriedade sem prejudicar a
ninguém.

E s s e t r e c h o mostra claramente a ideologia competitiva d a nova


burguesia, c h o c a n d o - s e com o espírito comunalista d a s primei-
r a s c i d a d e s e mesmo com o espírito f e u d a l . E m t o d a s as ge-
rações, p o r conseguinte, b u r g u e s e s mais v e l h o s eram e m p u r -
r a d o s p a r a os lados ou e s m a g a d o s pela concorrência, e n q u a n -
t o novos f e n ô m e n o s alçavam a o primeiro p l a n o n o v a s f a m í -
lias e n o v o s empresários.
E s s a n o v a ideologia, n o e n t a n t o , era exploratória e ambí-
gua, n ã o e x e r c e n d o firme controle sobre a s atitudes d a pró-
148 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

pria b u r g u e s i a . N e n h u m f e n ô m e n o m o s t r a mais claramente a


persistência d a ideologia f e u d a l n e s s e p e r í o d o d o que a deci-
s ã o d e b u r g u e s e s de s e g u n d a e terceira gerações, enriquecidos
n o comércio, d e r e n u n c i a r e m a t o d a a t i v i d a d e a r t e s a n a l e e m -
p r e s a r i a l e m u d a r - s e p a r a o campo. O seu objetivo e r a . muito
simplesmente, a d q u i r i r legitimidade e status n a o r d e m f e u d a l
e p o r p a d r õ e s f e u d a i s . C o m p r a v a m t e r r a s , r e t i r a n d o - a s do
sistema feudal, ou a d q u i r i a m os domínios j u n t a m e n t e com o s
serviços devidos a o s e n h o r , p r o c u r a n d o , p a s s o a passo, pel.i
compra ou o casamento, ingressar na nobreza.
S ó o rei e o i m p e r a d o r t i n h a m o direito d e conferir a
d i g n i d a d e de cavaleiro, o emblema d a categoria n o b r e . ( B e a u -
manoir relembra, no e n t a n t o , um exemplo d e três cavaleiros
que criaram um q u a r t o , m a s observa que eles a g i r a m ilegal-
m e n t e . ) N o Sul d a F r a n ç a a l e g a v a - s e , a i n d a em 1298, que
s e n h o r e s seculares e eclesiásticos, v a s s a l o s do rei, podiam con-
ferir a d i g n i d a d e de cavaleiro, B e a u m a n o i r , n o e n t a n t o , deixa
c l a r o que essas " n o v i d a d e s " só o rei p o d i a p a t r o c i n a r . N a p r á -
tica, a d i g n i d a d e de cavaleiro era c o n f e r i d a a o s b u r g u e s e s mais
ricos à m e d i d a que m i g r a v a m p a r a o campo. O s que n ã o eram
a r m a d o s cavaleiros c o n t i n u a v a m a i n d a assim a s p i r a n d o a
possuir domínios f e u d a i s . E m b o r a isso f o s s e proibido n a F r a n ç a
por u m a ordonnance real. B e a u m a n o i r d e m o n s t r o u como essas
c o m p r a s eram, a p e s a r de tudo, feitas n a p r á t i c a : n u m e r o s o s
seignetirs — f i n a n c e i r a m e n t e p r e s s i o n a d o s pela i n f l a ç ã o e pelos
tributos em f o r m a d e homens, dinheiro e material d e g u e r r a
p a r a a s Cru2adas — eram condicionados a v e n d e r suas t e r r a s
ou c a s a r as filhas, por um d a d o preço, em famílias b u r g u e s a s .
O status legal d o b u r g u ê s e s t a v a f i r m e m e n t e r e c o n h e -
cido n a E u r o p a O c i d e n t a l p o r volta d o século X I I I , embora
o s líderes do movimento p a r a criar tal condição, e seus a d v e r -
sários, a i n d a se e n c o n t r a s s e m p r e s o s à ideologia jurídica, eco-
nómica e religiosa de seu tempo. N ã o se c o n s i d e r a v a m instru-
m e n t o s d a d e r r u b a d a ou abolição d o s v e l h o s costumes. O livro
de B e a u m a n o i r c o n f i r m a a existência d e f o r t e p e n s a m e n t o jurí-
dico corrente, que p r o c u r a v a conciliar, e n ã o aniquilar, o s inte-
resses d a sociedade f e u d a l que fossem compatíveis com as aspi-
r a ç õ e s d a burguesia. O s teóricos b u r g u e s e s — ou pelo m e n o s
aqueles c u j o s t r a b a l h o s c h e g a r a m a t é n ó s .— j u l g a v a m h a v e r
c o n t r a d i ç õ e s e n t r e o p r o g r e s s o do comércio e certos privilégios
f e u d a i s , mas n ã o viam qualquer oposição f u n d a m e n t a l e n t r e
os dois.
O S TEÓRICOS DE U M A NOVA ORDEM 149

Propriedade e Contrato:
T r a n s f o r m a ç ã o da
Ordem Feudal
U m a vez que a s categorias f e u d a i s de s f a f u s social conti-
n u a v a m d o m i n a n t e s , B e a u m a n o i r d e u - s e a o t r a b a l h o de des-
crevê-las e suas relações com o direito d e p r o p r i e d a d e e
obrigações. Diz ele que eram r e c o n h e c i d a s t r ê s classes sociais:
nobres, c i d a d ã o s e s e r v o s da g l e b a :
O s n o b r e s s ã o de l i n h a g e m livre, t a i s c o m o reis, duques, c o n d e s
ou cavaleiros, e esaa n o b r e z a é a e m p r e t r a n s m i t i d a a t r a v é s do
pai, e n ã o d a m ã e . A c o n t e c e o u t r a c o i s a c o m os privilégios dos
c i d a d ã o s , poia, n o c a s o d a q u e l e s q u e s ã o d e l i n h a g e m livre,
ela é t r a n s m i t i d a pelas mães, e q u e m quer que n a s ç a de u m a
m ã e livre é livre, e t e m livre p o d e r de f a z e r o q u e lhe a g r a d a r . . .

A o discutir a servidão, e com ela o p o d e r do s e n h o r de, à sua


v o n t a d e , m a n d a r recolher à prisão o servo, reconhecia B e a u -
manoir que o direito n a t u r a l estipula q u e t o d a s a s p e s s o a s s ã o
p o r n a t u r e z a livres. A l e g a v a , no e n t a n t o , que a sociedade t e r -
r e n a é uma c o r r u p ç ã o d a n a t u r e z a e, cotno evidência de tal
c o r r u p ç ã o , admitia a legalidade d a e s c r a v i d ã o .
A o t r a t a r do direito de p r o p r i e d a d e , e n f a t i z a o s direitos
feudais, incluindo o direito d e m e m b r o s de u m a família de
recomprar, d e n t r o de certo tempo, em geral um ano, toda e
q u a l q u e r p r o p r i e d a d e v e n d i d a a um e s t r a n h o . E s s e direito,
c o n s e r v a d o por a q u e l e s que h a v i a m h e r d a d o o imóvel por oca-
sião d a m o r t e d o v e n d e d o r , restringia s e v e r a m e n t e o comércio
de b e n s imobiliários. P o r essa r a z ã o , n u m e r o s a s compilações
jurisprudenciais d e direito costumeiro do p e r í o d o aboliram esse
direito, c h a m a d o de resçousse, ou retrace lignager.
N a e s f e r a dos contratos, o Coutumes reconhecia certos pri-
vilégios à n o b r e z a . O credor devia d a r ao n o b r e um p r a z o de
quinze dias a p ó s o p e d i d o de p a g a m e n t o , a n t e s de processá-lo
p a r a receber a dívida; os demais t i n h a m direito a a p e n a s sete
dias. O s n o b r e s t i n h a m o direito de possuir sinetes e podiam,
p o r conseguinte, f i r m a r c o n t r a t o s sem intervenção de um t a b e -
lião ou servidor real.
P o d e m o s e n t r e v e r no Coutumes a penetração, no N o r t e
da F r a n ç a , de idéias essencialmente r o m a n a s de livre contrato.
B e a u m a n o i r h a v i a sem dúvida e s t u d a d o o direito d a s obrigações
r o m a n o e aqueles que quase n ã o n o t a r a m t r a ç o s de princípios
150 OS ADVOGADOS BURGUESES

r o m a n o s em sua o b r a devem por força ter p r e s t a d o a t e n ç ã o insu-


ficiente à s s u a s idéias sobte c o n t r a t o c i g n o r a d o a importância
atribuída ao direito de R o m a n a u n i v e r s i d a d e o n d e ele e s t u d o u .
T a n t o o c o n t e ú d o como a f o r m a de seu s u m á r i o lembram p r i n -
cípios r o m a n o s , A sua d i s c u s s ã o d e s o c i e d a d e s comerciais e
p e s s o a s jurídicas indica f a m i l i a r i d a d e com a p r á t i c a comercial
italiana, que se f u n d a m e n t a v a em princípios r o m a n o s . A o r i e n -
t a ç ã o de B e a u m a n o i r , e x p o n d o c o m o lei princípios c l a r a m e n t e
d e r i v a d o s d e idéias r o m a n a s , d e m o n s t r a t a n t o o curso d e s s a s
idéias como a e x t e n s ã o d e s u a d i f u s ã o . A o c o n t r á r i o de o u t r o s
a u t o r e s do período, descreveu o direito v i g e n t e e, em hipótese
alguma, imitou c o m o um p a p a g a i o , p o r q u e s t ã o de v a i d a d e , pac-
cialismo ou n e c e s s i d a d e de p r e e n c h e r claros em sua exposição.
A l é m disso, o t r a t a m e n t o q u e d e u a o direito d a s obrigações
d e m o n s t r a q u e eJe c o m p r e e n d i a b e m a e x t e n s ã o em que a idéia
d o contrato h a v i a - s e i n f i l t r a d o n a sociedade f e u d a l : a relação
f e u d a l de respeito e v a s s a l a g e m começava a ser assimilada ao
contrato.
N a d i s c u s s ã o do c o n t r a t o , e m b o r a e v i d e n c i a n d o familia-
r i d a d e com o d i r e i t o r o m a n o , B e a u m a n o i r salientou o aspecto
prático, comercial, do a s s u n t o . O c o n h e c i m e n t o d o s preceitos
e costumes comerciais r o m a n o s é c o m p r o v a d o lago n a s s u a s
primeiras p a l a v r a s . D e n o m i n a v a ele os c o n t r a t o s de coni>e-
nenes, palavra que, c o m a l g u m a s variações, t i n h a curso c o m e r -
cial geral n a é p o c a . A p a l a v r a d e r i v a v a de convenientia, forma
s u b s t a n t i v a d o conuenire d o latim v u l g a r —• isto è, estar d e
a c o r d o . " T o d o s os c o n t r a t o s devem ser c u m p r i d o s " , escreveu
ele, " p o r isso se diz q u e o ' c o n t r a t o f a z a lei', exceto os con-
tratos negociados p a r a fins i n d i g n o s . "
A o t r a ç a r e s s a distinção, seguia ele a classificação de
c o n t r a t o s e l a b o r a d a n o século X I I I , época em que a s g r a n d e s
escolas de direito caíram s o b a influência d o s comentaristas.
A z o , a u t o r de um c o m e n t á r i o célebre e c u j o s t r a b a l h o s devem
t e r sido conhecidos de B e a u m a n o i r , inicia seu e s t u d o c i t a n d o
a m á x i m a de l i l p i a n o , e^r nudo pacto, actio non nascituv —•
do contrato nu, nenhuma ação pode nascer. O "contrato nu"
era o simples a c o r d o d e p a g a r ou fazer, inaplicável a menos
q u e fosse " e n c a p o t a d o " . O c a p o t e era c h a m a d o de causa, cose
em f r a n c ê s medieval, cause em f r a n c ê s m o d e r n o . A l g o mais d o
q u e um simples a c o r d o , mesmo que o a c o r d o fosse p r o v a d o ,
era indispensável p a r a que o c o n t r a t o fosse r o m p i d o e a p a r t e
i n j u r i a d a p u d e s s e p r o c e s s a r o o f e n s o r . P a r a vencer o litigio,
OS TEÓRICOS D E UMA NOVA ORDIiM 151

o a u t o r d a a ç ã o precisava p r o v a r o a c o t d o , "mais" um d o s
capotes. D e a c o r d o com o direito r o m a n o . A z o e n u m e r a v a seis
"capotes":
1. A coisa t r a n s f e r i d a ( r e s ) n u m " c o n t r a t o autêntico".
O s c o n t r a t o s autênticos no direito civil n ã o têm necessaria-
m e n t e a ver com a p r o p r i e d a d e imobiliária. S ã o c o n t r a t o s nos
q u a i s um o b j e t o é e n t r e g u e a algucm como p e n h o r , depósito
ou e m p r é s t i m o paca uso o u a l g u m a o u t r a Finalidade, a ser devol-
vido àquele que o d á ao fim de um p e r í o d o especificado. V i m o s
e x e m p l o s de tais c o n t r a t o s n o e s t u d o d a s p r á t i c a s comerciais no
C a p i t u l o 4 . U m a vez e n t r e g u e o objeto, h a v i a p r o v a d e que
a l g u m tipo de a c o r d o fora feito. O c o n t r a t o era assim " e n c a p o -
t a d o " , e seus t e r m o s podiam ser p r o v a d o s .
2 . A s p a l a v r a s (verba) de u m a estipulação, que levavam
à s u a conclusão o ritual stipulatio. N e s t e caso, as p a r t e s p r o -
n u n c i a v a m , ao concluírem a b a r g a n h a , a s p a l a v r a s rituais spon-
des-ne? e a r e s p o s t a spondeo, a s quais, e n ã o a fala comum, em-
p r e s t a v a m força legal ao acordo.
3. A r e d a ç ã o (litterae) de um c o n t r a t o .
4. O a c o r d o (consensus) em c o n t r a t o s consensuais. O
a p a r e c i m e n t o do c o n t r a t o consensual, que n ã o exigia r e d a ç ã o
f o r m a l especial e t a m p o u c o precisava ser escrito, ocorreu no
direito r o m a n o s o b a influência d o comércio internacional em
e x p a n s ã o d o império. S u a a p l i c a ç ã o limitava-se ao comércio, era
c o n s i d e r a d o p a r t e d a jus gentiurn e d a v a origem a uma ação
p r e t o r i a n a em b o a fé. D e n t r o d o âmbito permissivo do contrato
consensual, s e g u n d o a lógica de A z o , p o d e r í a m o s dizer que
n e n h u m c a p o t e era necessário.
5. N o s casos de c o n t r a t o s s u p l e m e n t a r e s a um anterior
( p a e f e s adjoints) a causa inicial do primeiro seria suficiente.
6. F i n a l m e n t e , o c o n t r a t o e x e c u t a d o t i n h a causa p o r q u e
a realização d e um a t o (rei interven(us) levava à p r e s u n ç ã o de
que h o u v e r a a c o r d o anterior.
A d i s c u s s ã o de B e a u m a n o i r incluiu q u a s e todos esses ele-
mentos, d e i x a n d o d e fora, no e n t a n t o , n o m e s latinos e r e f e r ê n -
cias a f o n t e s r o m a n a s . Parece, n o e n t a n t o , que ele c o n f u n d i u
a idéia d e causa como categoria legal com sua t r a d u ç ã o literal
como " r a z ã o " ou "motivo", insistindo em que c o n t r a t o s por
" c a u s a s m á s " e r a m nulos. O s e x e m p l o s que deu incluíam con-
152 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

t r a t o s p a r a p a g a r p r e j u í z o s incorridos n o j o g o de d a d o s , c o n t r a -
t o s usurários, o u t r o s contre bonnes meurs, ou c o n t r a t o s p a r a
c o m e t e r crimes. D e m o n s t r o u t a m b é m a influência do d i r e i t o
c a n ó n i c o e dos c o m e n t á r i o s d e Accursius, um s e g u i d o r de A z o ,
n o reconhecimento do j u r a m e n t o como causa. N a v e r d a d e ,
a d o t o u o ponto d e vista d o c a n o n i s t a de que c o n t r a t o s feitos
sob j u r a m e n t o d e v i a m ser especialmente m a n t i d o s , p o r q u a n t o
" n a c o n t r a t a ç ã o e n t r e D e u s e si mesmo, a q u e l e que n ã o c u m p r e
a p r o m e s s a ao máximo de s u a c a p a c i d a d e comete p e r j ú r i o a o s
olhos de D e u s " .
A discussão d o s c o n t r a t o s p o r B e a u m a n o i r indica q u e uma
a v a l i a ç ã o crítica d o s elementos d a relação f e u d a l , p r e f i g u r a n d o
o E s t a d o burguês, c o m e ç a r a n a F r a n ç a do século X I I I . A cres-
cente centralização d a a u t o r i d a d e n a s mãos do rei retirava d o s
s e n h o r e s o p o d e r judiciário, policial e militar. C o n q u a n t o e s s a s
a l t e r a ç õ e s na teoria jurídica n ã o tivessem que significar q u a l -
q u e r m u d a n ç a n a prática •— a c o r t e do s e n h o r f e u d a l p o d i a ter
c o n t i n u a d o a existir, s u j e i t a a um n o v o direito d e a p e l a ç ã o ao
rei, ou o senhor poderia ter sido i n f o r m a d o de que tinha direito
de p r o f e r i r j u l g a m e n t o s em " n o m e do rei" — o p o d e r d e j u l g a r
n ã o e s t a v a mais vinculado à relação pessoal e n t r e v a s s a l o e
s e n h o r , mas era p a r t e d a a u t o r i d a d e s o b e r a n a r e c l a m a d a pelo
rei. E m outras p a l a v r a s , os preceitos jurídicos n ã o e r a m mais,
n e m mesmo r e m o t a m e n t e , c o n s i d e r a d o s p r o d u t o de a c o r d o cos-
t u m e i r o imemorial: s e n h o r e v a s s a l o e s p e r a v a m p o r igual que
o rei determinasse o c o n t e ú d o d a relação f e u d a l e n t r e ambos.
R e p e t i d a m e n t e , insistiu B e a u m a n o i r em q u e v a s s a l a g e m ,
l e a l d a d e e serviços f e u d a i s e r a m elementos de u m a b a r g a n h a
que, teoricamente, n ã o diferia de q u a l q u e r o u t r o c o n t r a t o . S e
o c o n t r a t o implicava o e n c o n t r o de v o n t a d e s , um a c o r d o , o con-
s e n t i m e n t o válido n ã o p o d i a ser p r o d u t o d a força ou d o medo.
D e i x o u ele claro q u e tinha em m e n t e a c o r d o s e x t o r q u i d o s pelos
seigneurs e o u t r o s indivíduos poderosos. R e a l m e n t e ,
Se digo q u e fiz u m c o n t r a t o p o r q u e a l g u é m m e a m e a ç o u . . . e
o a u t o r d a a m e a ç a não é o m e u senhor, ou u m h o m e m
poderoso, o q u e m e i m p e d i r i a de d e f e n d e r m e u d i r e i t o c o n t r a
ele, e n t ã o t i v e m e d o s e m r a z ã o , p o i s e u c e r t a m e n t e p o d e r i a
intentar processo contra essa pessoa e assim impedir que me
c a u s a s s e d a n o e e v i t a r u m c o n t r a t o tolo.

A essa discussão aduziu o t r e c h o a n t e r i o r m e n t e c i t a d o sobre a


u b i q ü i d a d e d a jurisdição real. Isso implica dizer q u e m u i t a s
OS TEÓRICOS DE U M A NOVA O R D E M 153

vezes era a p r o v e i t a d a a o p o r t u n i d a d e d e s u b m e t e r a p r a v a o
laço f e u d a l e, d e f a t o . nos séculos X I I I e X I V , h o u v e um pro-
digioso u s o d e cortes reais p a r a c o n t e s t a r direitos senhoriais.
E m suma, a tese jurídica do c o n t r a t o p e n e t r o u n a s institui-
ções politicas f e u d a i s , mais o u m e n o s d a m e s m a f o r m a q u e o
c o n t r a t o se i n f i l t r a r a n a economia d a é p o c a . O s a n t i g o s prin-
cípios comerciais r o m a n o s , a p l i c a d o s a um comércio crescente-
m e n t e r o b u s t o e tecnologicamente m e l h o r a d o , haviam, à época
em que B e a u m a n o i r escrevia, p a s s a d o a f a z e r p a r t e d a lingua-
g e m comum do direito, pelo m e n o s n a F r a n ç a .
T r i n t a a n o s a n t e s de B e a u m a n o i r , B r a c t o n compilou um
t r a t a d o sobre direito inglês, s e m e l h a n t e em escopo ao d o a u t o r
francês e d a mesma forma claramente influenciado, no estudo
d o s contratos, pelos estudiosos c o n t e m p o r â n e o s do direito roma-
no. N a Itália, o direito r o m a n o f o r a aceito como "direito costu-
meiro", de c u m p r i m e n t o obrigatório em t o d o s o s tribunais e em
t o d a s a s soberanias, a menos que s u b s t i t u í d o por uma jus pro-
prium •— uma lei do lugar, tais como a s p o s t u r a s u r b a n a s n a s
c i d a d e s - e s t a d o s , os estatutos d a legislação marítima d a s cida-
d e s p o r t u á r i a s e a s ordonrtartces m o n á r q u i c a s d a Sicília, S a r d e -
n h a e S a v ó i a . N a E s p a n h a , i g u a l m e n t e , s o b a influência d a s
c i d a d e s ( f i t e r o s ) , h a v i a m - s e c o n s o l i d a d o a s idéias r o m a n a s sobre
c o n t r a t o e rito processual. U m a compilação j u r i s p r u d e n c i a l de
direito costumeiro d e Barcelona, d a t a d a d e 1068, b a s e a v a - s e
e x t e n s a m e n t e n o Exceptiones Petri• Lo Codi foi t r a d u z i d o p a r a
o catalão. A p ó s 1215, a n o em que foi f u n d a d a u m a universi-
d a d e em S a l a m a n c a , r o m a n i s t a s localmente t r e i n a d o s come-
ç a r a m a litigar n o s tribunais. T e s e s t o m a d a s de e m p r é s t i m o ao
direito r o m a n o s u r g i r a m nos reinos de L e ã o e C a s t e l a , em
m e a d o s do século X I I I , no Las siete partidas, u m a reexposi-
ç ã o geral do direito, atribuída ao Rei A l f o n s o , o Sábio.
N a A l e m a n h a , ocorreu mais t a r d e a a d o ç ã o em m a s s a do
direito r o m a n o : só em 1495 foi ele aceito pela c o r t e imperial
central g e r m â n i c a .— o Reichskammergericht — c o m o direito
costumeiro e geral do império. N o século I V , n o entanto, à
medida q u e a Liga H a n s e á t i c a c o n s t r u í a seu p o d e r comercial,
preceitos d o direito r o m a n o fizeram seu a p a r e c i m e n t o em textos
e t r a t a d o s p r á t i c o s e n a s u n i v e r s i d a d e s d a região. A l g u n s de
seus princípios h a v i a m sido a d o t a d o s a i n d a a n t e s : t a n t o F r e -
derico B a r b a r r o x a como F r e d e r i c o II. c o n s i d e r a n d o - s e como
h e r d e i r o s ocidentais d e C o n s t a n t i n o e Justiniano, p r o m u l g a r a m
norW/ae como apêndices à codificação justiniana.

10 -Tt.A.C.
154 OS ADVOGADOS BUKGUESES

O direito r o m a n o d o s p r o f e s s o r e s d e d i r e i t o civil e canó-


nico, das cortes de justiça reais e d o s m e r c a d o s d a E u r o p a ,
variava amplamente, para sermos exatos. M a s indubitavel-
m e n t e impôs certa u n i f o r m i d a d e a o rito jurídico e insinuou-se.
p o r vezes d i s f a r ç a d a m e n t e , n o direito costumeiro d e todos os
l u g a r e s t o c a d o s p e l a s c o r r e n t e s comerciais q u e fluíam pelo
século X I I I . M e s m o 110 N o r t e d a F r a n ç a e n a I n g l a t e r r a , o n d e
n u n c a fora r e c o n h e c i d o como " d i r e i t o costumeiro e g e r a l " , o
direito r o m a n o foi aplicado, e m b o r a sem ser citado. U m a
ordonnance d e F e l i p e III, d a t a d a d e 1278, d e c l a r a v a : " Q u e os
a d v o g a d o s n ã o ousem citar o direito r o m a n o n a s e s f e r a s o n d e
prevalece o direito costumeiro." M a s eles n ã o p r e c i s a v a m o u s a r :
o direito r o m a n o já se i n f i l t r a r a n o s preceitos consuetudinários-
O livro de B e a u m a n o i r n ã o constitui, aliás, a única p r o v a
d a tendência d o direito r o m a n o de i n v a d i r o c a m p o do direito
d a s obrigações. O u t r a s o b r a s d a m e s m a época d e s c r e v e m um
q u a d r o s e m e l h a n t e de d e p e n d ê n c i a de princípios r o m a n o s —• e
d o s c o m e n t a r i s t a s — e m b o r a sem r e f e r ê n c i a d i r e t a a eles: o
Conseil à urt ami, d e P i e r r e d e F o n t a i n e , o fostice et Plet {Jus-
tiça e P l e i t o ) , o Três ancienne coutume de Bcétagne e o Livre
des droit et c o m m a n d è m e s constituem o u t r o s t a n t o s exemplos.
A n a l o g a m e n t e , n a p r á t i c a n o t a r i a l e n c o n t r a m o s u s o crescente d a
l i n g u a g e m técnica q u e o s c o m e n t a r i s t a s d i r i a m ser necessária
p a r a constituir um stipulatio e, em decorrência, d a r u m a causa
a o contrato. E v i d e n t e m e n t e , o nível mais b a i x o d a p r o f i s s ã o —
o d o s scriveners locais —• estava r e c e b e n d o a l g u m t r e i n a m e n t o
formal.
B e a u m a n o i r indicou a i n d a a influência do direito r o m a n o
ao t r a t a r d a v a l i d a d e d o s c o n t r a t o s como s e n d o p r i m a r i a m e n t e
u m a q u e s t ã o d e rito processual. H á certos c o n t r a t o s q u e são
ilegais e firmá-los talvez leve o i n d i v í d u o até a a r r i s c a r - s e a uma
punição. O principal a t r i b u t o d a causa, porém, n ã o era que vali-
d a s s e o a c o r d o d a s p a r t e s em q u a l q u e r s e n t i d o substancial, m a s
q u e desse origem a uma a ç ã o p e r a n t e o judiciário por q u e b r a
d e promessa.
À primeira vista, isso talvez p a r e ç a a c a d ê m i c o e teórico, m a s
constituía d e f a t o e x p r e s s ã o de um princípio essencial à e x p a n -
s ã o do comércio. A c r e d i t a v a m os c a n o n i s t a s q u e a p r o m e s s a
era s a g r a d a e d e boa fé e s p e r a v a m o c u m p r i m e n t o d a s intenções
íntimas d a s p a r t e s . P a r a os a d v o g a d o s civis, no e n t a n t o , a p r o -
m e s s a era nudutn pactum: podia constituir um peso sobre a c o n s -
ciência, m a s n ã o p o d i a ser c u m p r i d a sem um e l e m e n t o adicio-
OS TEÓRICOS DE UMA NOVA OKDEM 155

nal. E s s e " e l e m e n t o adicional" era, em q u a s e todos os casos,


objetivo e evidenciai, d e s t i n a d o a i n f o r m a r a terceiros sobre a
b a r g a n h a , registrá-la, ou n ã o d e i x a r d ú v i d a d e que f o r a con-
cluída. E s s a n o ç ã o objetiva d e c o n t r a t o era c o n v e n i e n t e ao mer-
cado, no qual só o contrato une a s partes, e n ã o o f a t o de ser
a p e n a s um elemento n u m a relação de família, aldeia, comuna
o u guilda.
D e a c o r d o com a jus gentium, os m e r c a d o r e s podiam re-
c o r r e r ao c o n t r a t o consensual, s u p e r a n d o a n e c e s s i d a d e de faci-
l i d a d e n a s t r a n s a ç õ e s o d e s e j o d e evidência o b j e t i v a d a b a r g a -
n h a . F i c a v a m eles a p e s a r disso p r o t e g i d o s por conhecerem a
r e p u t a ç ã o d a q u e l e s com q u e m t r a t a v a m , p e l a s leis de aval de
n u m e r o s a s comunidades, p o r o u t r o s artifícios n a e s f e r a do cré-
dito ou p o r a l g u m acordo simbólico. O s c o n t r a t o s e n t r e comer-
ciantes, por exemplo, e r a m r o t i n e i r a m e n t e c u m p r i d o s se o
" t o s t ã o de D e u s " fora d a d o como símbolo do a c o r d o , assumindo
d e s t a r t e o papel d a s " v e s t i m e n t a s ' formais d o s comentaristas.
O t o s t ã o d e D e u s era e n t r e g u e , d a d o depois talvez como esmola
ou, como era costume em A r i e s , levado à i g r e j a e usado na
c o m p r a d e uma vela.
O s canonistas, insistindo n a obrigação moral d e o individuo
cumprir a s promessas, e x e r c e r a m p r e s s ã o sobre os tribunais
civis, indo m u i t a s vezes b u s c a r o r i e n t a ç ã o teórica no direito
r o m a n o d a s obrigações n a t u r a i s •— isto é, m o r a l m e n t e obriga-
tórias, m a s em geral n ã o executórias. E s s a p r e s s ã o levou o
Parlement d a F r a n ç a a validar, p o r q u e s t ã o de e q ü i d a d e , con-
tratos ex causa e constituiu u m a força p o r t r á s d a a d o ç ã o pos-
terior d o princípio d e e q ü i d a d e n a I n g l a t e r r a .
T i n h a curso, n o século X I I , n o entanto, u m a máxima atri-
b u í d a a o s a d v o g a d o s , Dieu nous garde de iequité des Parle*
ments ( D e u s nos g u a r d e d a e q ü i d a d e d o s Patíements), que re-
fletia uma i m p o r t a n t e suposição sobre o p a p e l d o c o n t r a t o em
uma n o v a f o r m a de relações sociais. A s relações f e u d a i s desen-
volviam-se em t o r n o das idéias d e s u p e r i o r i d a d e e s u b o r d i n a -
ç ã o : a l g u n s eram mais f r a c o s que outros; o mais forte lutava
a c a v a l o e c o m a n d a v a o mais f r a c o —• a pé — n a b a t a l h a , e
assim por diante. A s primeiras c a r t a s de a u t o n o m i a d a s cidade?,
c o n f o r m e vimos acima, c o n s u b s t a n c i a v a m a mesma idéia: eram
p r o t e t o r a s e restritivas e t i n h a m p o r objetivo p r o m o v e r o inte-
resse comum de todos os m o r a d o r e s d a cidade, que haviam
c o n q u i s t a d o l i b e r d a d e parcial. M e s m o mais tarde, q u a n d o a s
156 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

g u i l d a s l u t a r a m p a r a m a n t e r seus privilégios c o n t r a o comércio


em g r a n d e escala, suas f u n ç õ e s p r o t e t o r a s e r a m a b e r t a m e n t e
reconhecidas, embora, n e s s a ocasião, u m a fatia mais fina d a
sociedade a r t e s ã o s e m e s t r e s - a r t e s ã o s •— fosse a p r o t e g i d a ,
com exclusão d o s t r a b a l h a d o r e s .
O direito d a s obrigações, em c o n t r a s t e , tendia a t r a t a r
t o d a s a s p a r t e s c o m o iguais. Q u a n t o mais complexo o sistema
de comércio, mais a n ô n i m a s se t o r n a v a m a s p a r t e s aos olhos da
lei. Se A vendia p e s s o a l m e n t e a B. p a r a imediato c o n s u m o deste,
poderia h a v e r nisso elementos d e b o a f é e c o n f i a n ç a pessoal
que t r a n s c e n d i a m a letra de q u a l q u e r b a r g a n h a q u e fizessem.
Isso simplesmente era impossível no comércio em g r a n d e escala.
T o m e m o s como exemplo a letra de câmbio. G h u g l i e l m o Barberi,
e x p o r t a d o r de tecidos f l a m e n g o s , n e g o c i a n d o p r i n c i p a l m e n t e
com o m e r c a d o de Barcelona e r e s i d i n d o em B r u g e s , toma um
e m p r é s t i m o em dinheiro, a c u r t o p r a z o , d o r e p r e s e n t a n t e nessa
c i d a d e d a casa b a n c á r i a f l o r e n t i n a A l b e r t i & C o m p a n h i a a
fim de c o m p r a r m e r c a d o r i a s . E n v i a os tecidos a B a r c e l o n a p o r
um a g e n t e que tem plenos p o d e r e s p a r a v e n d ê - l o s e lhe o r d e n a
que deposite o dinheiro recebido com a v e n d a n a c a s a b a n c á r i a
F r a n c i s c o di M a r c o D a t i n i d a P r a t o , em Barcelona, que por
seu l a d o providencia p a r a que a A l b e r t i s e j a p a g a pela t r a n s -
ferência d a soma pelo seu b a n q u e i r o . A i m p o r t â n c i a f o r a t o m a d a
de empréstimo em moeda f r a n c e s a ou f l a m e n g a ; a soma d e p o -
sitada em Barcelona o seria em m o e d a local.
Imagine-se a p a p e l a d a que seria necessária p a r a f e c h a r a
transação. As mercadorias viajavam acompanhadas de do-
c u m e n t o s e q u a n d o c h e g a v a m a Barcelona o c o n t r a t o d e v e n d a ,
f i r m a d o em B r u g e s , n ã o t i n h a significado pessoal p a r a o com-
p r a d o r : era a p e n a s um p e d a ç o de p a p e l o n d e se dizia que os
b e n s pertenciam a u m a certa pessoa. C o m o tal, r e p r e s e n t a v a ,
em s e n t i d o abstrato, p r o p r i e d a d e ou título à s m e r c a d o r i a s .
A o p e r a ç ã o de crédito e câmbio era a i n d a mais a b s t r a t a .
Hm B r u g e s , Barberi redigia uma letra de câmbio:
E m n o m e d e D e u s , n o d i a 18 d e d e z e m b r o d e 1399, o s e n h o r
p a g a r á por esta primeira letra, sujeita aoa r e t a r d a m e n t o s usuais
p a r a p a g a m e n t o , a B r u n a c c i o di Guido & C o . . . C C C C L X X U
l i b r e s X sons d e B a r c e l o n a , t e n d o o s c i t a d o s 472 livres e 1 0 aous
o v a l o r d e 900 ectiâ a 10 a o n s 6 deniers p o r eeu, a q u i a m i m
p a g o s p o r R i c c a r d o d e l ' A l b e r t t & Co. P a g u e - o s e m b o a e d e v i d a
f o r m a a crédito de m i n h a conta. Que Deus o proteja.
GHUGLISLMO BARBBRJ
Saudações de Bruges
OS TEÓRICOS DE U M A NOVA O R D E M 157

A letra d e câmbio, p o r conseguinte, envolvia q u a t r o p a r t e s : o


s a c a d o em Barcelona, D a t i n i d a P r a t o , q u e d e v e r i a e f e t u a r o
p a g a m e n t o : o s a c a d o r , Barberi: o p r e s t a m i s t a , Alberti, que f o r -
necera o dinheiro a Barberi em B r u g e s : e o credor, Brunaccio
di G u i d o , b a n q u e i r o ou a g e n t e d e A l b e r t i , q u e cobraria o
dinheiro em Barcelona e p r o v i d e n c i a r i a p a r a que Alberti fosse
pago.
E s s e e m p r e g o d a p a l a v r a escrita p a r a r e p r e s e n t a r um.i
s o m a em dinheiro o u um e s t o q u e de m e r c a d o r i a s começou a
a d q u i r i r importância n o século X I I I e d e s e n v o l v e u - s e s e g u n d o
a s n e c e s s i d a d e s d o comércio. M a s s ó no século X V .— por
exemplo, n a s c i d a d e s h a n s e á t i c a s •— e n o século X V I , n a área
d o M e d i t e r r â n e o , a letra de câmbio t o r n o u - s e inteiramente
d e s v i n c u l a d a d a s p e s s o a s que a emitiam e adquiriu, a t r a v é s da
técnica d o e n d o s s o , o c a r á t e r de i n s t r u m e n t o negociável.
A r e d a ç ã o d e contratos, t o r n a d a necessária pelo comércio
d e l o n g a distância, reforçou o a n o n i m a t o , n o sentido jurídico,
d a s p a r t e s c o n t r a t a n t e s . O q u e elas t i n h a m em m e n t e q u a n d o
f e c h a v a m a t r a n s a ç ã o era irrelevante, pois uma terceira p a r t e
a a l g u m a distância o u no f u t u r o avaliaria o a r r a n j o na base
d a evidência d e i x a d a sob a f o r m a d e d o c u m e n t o s escritos. O s
requisitos f o r m a i s d a c o n t r a t a ç ã o t o r n a r a m - s e mais i m p o r t a n -
tes do que n u n c a , e s e a s p a r t e s q u e r i a m que s e u s contratos
fossem reconhecidos como l e g a l m e n t e executórios •— isto é.
se queriam d e i x a r claro q u e t e n c i o n a v a m criar uma obrigação
— u s a v a m a s f o r m a s legais de a c o r d o com o que os a d v o g a d o s
diziam que produziria tal r e s u l t a d o .
Isso, por seu turno, fortaleceu a p o s i ç ã o d o s a d v o g a d o s e
exigiu o desenvolvimento, r e g i s t r o e e s t u d o de f ó r m u l a s legais
a p r o p r i a d a s à s t r a n s a ç õ e s que os m e r c a d o r e s d e s e j a v a m con-
cluir. O u t r a conseqüência da e x p a n s ã o d o comércio, por conse-
guinte, foi o a u m e n t o da p r e s s ã o sobre o s aliados políticos
dos interesses d o s g r a n d e s c o m e r c i a n t e s p a r a t o r n a r uniforme
a lei aplicável a o comércio, de m o d o que a fórmula que se em-
p r e g a v a p a r a redigir um c o n t r a t o em B r u g e s fosse aceita
em F l o r e n ç a como tendo atingido esse fim.
O movimento em prol d a evidência objetiva do acordo
levou i g u a l m e n t e ao emprego do talento jurídico p a r a anular
c o n t r a t o s t e c n i c a m e n t e falhos. S e u m a d a s p a r t e s n ã o dese-
j a v a c u m p r i r a b a r g a n h a , p o r q u e verificava p o s t e r i o r m e n t e que
f o r a i m p r u d e n t e m e n t e feita ou p o r seu p r o d u t o de uma d i s p a -
158 OS ADVOGADOS BURGUESES

r i d a d e de situações econômicas, o a d v o g a d o e x a m i n a v a o con-


t r a t o a fim de verificar se era d e n a t u r e z a executória. A r e d a -
ção, q u e constituía a p e n a s a evidência d o acordo, começou a
a d q u i r i r primazia sobre s u a s u b s t â n c i a .
A generalização d o s princípios que regiam os c o n t r a t o s ,
e a crescente p r e s s ã o de interesses econômicos mais r e c e n t e s
p a r a obter o r e c o n h e c i m e n t o da m á x i m a de que t o d o s o s con-
t r a t o s d e v i a m ser cumpridos, constituiu um e s f o r ç o d a b u r -
guesia p a r a eliminar d a e s f e r a d o s g o v e r n o s um c o n j u n t o
i m p o r t a n t e de relações sociais. A idéia de c o n t r a t o como d e
"legislação p r i v a d a " , feita à v o n t a d e d a s partes, c h o c a v a - s e
com a ideologia d a s instituições f e u d a i s . P a r a a l g u n s teóricos
canónicos, além disso, esses preceitos rígidos a p o u c a v a m o
e l e m e n t o moral d a p r o m e s s a e podiam ser u s a d o s p a r a oprimir
o s pobres. A s cortes reais de justiça, igualmente, resistiam a
levar a t é seus limites a teoria p u r a m e n t e o b j e t i v a de c o n t r a t o ,
s e g u n d o a q u a l a b a r g a n h a escrita era s u p r e m a , n ã o interes-
s a n d o se e r a justa ou qual a f o r ç a relativa d a s parles, o qtie
fez com que os a d v o g a d o s p r o t e s t a s s e m contra a " e q ü i d a d e "
d o s Parlements. C o m e ç a r a m a surgir os f u n d a m e n t o s teóricos
d o s códigos b u r g u e s e s : o p a p e l do g o v e r n o consistia em criac
um c o n j u n t o d e instituições que p u d e s s e m f o r ç a r as p a r t e s a
cumprirem seus c o n t r a t o s ou a p a g a r e m uma indenização por
n ã o fazê-lo.
B e a u m a n o i r n ã o comentou os costumes de centros comer-
ciais como B r u g e s e Barcelona, mas a p e s a r disso reconheceu
o valor do a c o r d o escrito "como m a n e i r a de p r o v a r " um con-
trato. Citou t r ê s métodos com o empreçio d o s quais as p a r t e s
em um c o n t r a t o escrito p o d e r i a m validá-lo: os n o b r e s p o d e r i a m
a f i x a r neles seus sinetes: os c o m u n s p o d e r i a m levá-los ao
seigneur d a localidade o n d e residissem ou p e r a n t e um servidor
real (bailli ou tabelião a u t o r i z a d o ) p a r a ser autenticado; e ser-
vidores judiciários eclesiásticos p o d e r i a m igualmente a u t e n t i -
cá-los, embora seu papel f o s s e g e r a l m e n t e limitado a a s s u n t o s
de jurisdição d a I g r e j a , tais como t e s t a m e n t o s . A s s u g e r i d a s
f o r m a s de v a l i d a ç ã o de c o n t r a t o s mais uma vez refletiam a
f o r m a ç ã o jurídica de B e a u m a n o i r , bem c o m o a s f o r ç a s que insis-
tiam n a e x p a n s ã o da influência do c o n t r a t o n a vida econômica.
A l i n h o u ele d e t a l h a d o s exemplos d e termos c o n t r a t u a i s que
r e n u n c i a v a m a o s benefícios d a s v á r i a s p r o t e ç õ e s concedidas a
m e n o r e s , d e v e d o r e s , e assim por diante, e citou f o r m a s de
renúncia dos benefícios " d a lei que diz que a renúncia geral é
OS TliÓKlCOS DE UMA NOVA ORDEM 159

n u l a " . ( O b s e r v o u também que u m a a l e g a ç ã o de consentimento


obtido pela força prevalecia contra a renúncia e que as cortes
reais p o d i a m i g n o r a r a renúncia p o r q u e " a q u i l o que a g r a d a ao
rei d e v e ser c o n s i d e r a d o como lei".)

A d v o g a d o s e Processos: E n t r a m os Juristas
E n u n c i a d o s e aitifícios técnicos c o m e ç a r a m a contribuir
p a r a um senso de alienação p o p u l a r em relação aos institutos
jurídicos. O p a p e l legislativo do povo começou a ser reduzido
e, finalmente, foi eliminado no meio u r b a n o onde, por breves
m o m e n t o s , floresceu. A lei em si. como c o n j u n t o de r e g r a s e
m á x i m a s e um rito complexo p a r a aplicá-las, t r a n s f o r m o u - s e
em especialização de uma classe de iniciados. Dizia B e a u m a -
noir que a fala e m p o l a d a era o métiec do a d v o g a d o . Descreveu
uma p r o f i s s ã o e um sistema judiciário aos q u a i s n ã o faltava
trabalho. Já f a l a m o s d o s notários, q u e redigiam contratos. A
p r o l i f e r a ç ã o de loiers. c h a m a d o s t a m b é m de avocais ou p r o -
ciweurs, assinalou uma nova f a s e n a evolução d a profissão.
( À m e d i d a que eram substituídos n a e s f e r a dos c o n t r a t o s e do
direito comercial, os costumes f e u d a i s t e n d i a m a sobreviver
a p e n a s n a e s f e r a d a s relações familiares. A t é m e s m o a s leis
municipais c o m u n a i s foram, c o n f o r m e vimos acima, substituídas
pela n o v a cultura jurídica.)
O n o t á r i o — que p o d i a r e p r e s e n t a r a s d u a s partes, redi-
gindo o d o c u m e n t o de a c o r d o com o d e s e j o de a m b a s — diferia
do a d v o g a d o , q u e era um a d v e r s á r i o parcial. A g e n t e d e
d o s litigantes, t i n h a p o d e r e s p a r a a g i r e f a l a r em seu nome e
p r e s t a r assistência no p r o f e r i m e n t o d e decisões e julgamentos
que a f e t a s s e m d i r e t a m e n t e o cliente. E s s a idéia de r e p r e s e n -
t a ç ã o constituiu um passo necessário n o desenvolvimento do
sistema judiciário e do p r ó p r i o comércio. A n t e s do século X I I I ,
o a g e n t e n ã o p o d i a agir em n o m e d o m e r c a d o r sem t o r n a r - s e
p e s s o a l m e n t e responsável. B e a u m a n o i r , no entanto, p a r e c e ter
r e c o n h e c i d o o princípio mais n o v o de que, q u a n d o o a g e n t e era
n o m e a d o , sua a s s i n a t u r a n u m c o n t r a t o criava responsabilidade
a p e n a s p a r a o cliente.
A r e l a ç ã o e n t r e os princípios gerais d a r e p r e s e n t a ç ã o e
a q u e l e s aplicáveis a o s a d v o g a d o s é vista i\o u s o d a mesma p a l a -
vra — p r o c u r c u r —• p a r a descrever a m b o s os tipos de r e p r e -
s e n t a n t e s . A n o v i d a d e do conceito é d e m o n s t r a d a pela elabo-
r a d a e específica procuração que, p a r a ter validade, linha que
160 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

ser r e d i g i d a e a p r e s e n t a d a à corte a n t e s que o a d v o g a d o p u d e s s e


t r a b a l h a r , bem como n a d e c l a r a ç ã o de B e a u m a n o i r d e q u e ele
d e v e f o r ç o s a m e n t e " a p r e s e n t a r - s e em nome d o cliente". C o m o
auxilio à prática f o r e n s e , ofereceu B e a u m a n o i r o seguinte
exemplo;
A todos aqueles que lerem ou ouvirem f a l a r d e s t a s cartas,
o baillt (Te C l e r m o n t e n v i a s u a s s a u d a ç õ e s . S a i b a m t o d o s q u e ,
em nossa presença, Pierres, de certo lugar, n o m e i a Jehans, de
c e r t o l u g a r , s e u procttreur geral e especial e m todas as causas
i n t e n t a d a s o u q u a v i e r e m a s e r I n t e n t a d a s , e m s e u n o m e ou
c o n t r a ele, c o n t r a t o d a s a s p e s s o a s , d e q u a l q u e r n a t u r e z a ,
eclesiásticas e seculares, como queixoso ou réu, a n t e q u a i s q u e r
ordinários, legados, delegados, subdelegados, árbitros, conserva-
d o r e s , a u d i t o r e s , i n v e s t i g a d o r e s , baillis, prebostes, prefeitos,
échevins e juízes de qualquer natureza, eclesiásticos e seculares,
e seus xerifes e aqueles que exercem seu poder. E concede ao
dito Jehans plenos e especiais poderes p a r a replicar, triplicar,
ser parte cm julgamentos Interlocutórios e finais, apelar, acom-
p a n h a r o a n d a m e n t o do apelo, j u r a r e fazer em n o m e d a a l m a
d e P i e r r e s t o d o s os tipos d e j u r a m e n t o , a s s u m i r posições, r e c e b e r
o que for adjudicado a seu favor, apresentar provas e citar
t e s t e m u n h a s c o m a s s o l e n i d a d e s d a lei, e f e t u a r a s d i t a s s o l e -
nidades, e p r a t i c a r p o r ele t o d a s a s coisas que o dito P i e r r e s
p r a t i c a r i a ou p o d e r i a p r a t i c a r se estivesse presente, e em casos
que envolvam semoventes, propriedades Imobiliárias, e naqueles
e m que e s t e j a m i m p l i c a d a s coisas que, e m b o r a p r o p r i e d a d e s
imobiliária*! p o r s u a n a t u r e z a , s ã o c o n s i d e r a d a s s e m o v e n t e s pela
lei. E c o n c e d e a i n d a p o d e r e s a o d i t o J e h a n s p a r a a s s i n a r p o r
ele e m t o d a s a s ocasiões e m que o r e p r e s e n t a r , e que t u d o
aquilo que a s s i n a r produzirá o m e s m o efeito como se o próprio
P i e r r e s estivesse presente. E, e m nossa presença, o dito P i e r r e s
disse q u e t u d o a q u i q u e f o r dito ou f e i t o pelo dito J e h a n s ou
s u b s c r i t o p e l o d i t o J e a h n s , ele h o n r a r á c o m t o d a s a s s u a s p r o p r i e -
d a d e s . E m a b o n o d o q u e , p o r s o l i c i t a ç ã o d o c i t a d o procureur,
f i r m o e s t a p r o c u r a ç ã o c o m o s i n e t e d o bailli de Clermont.
Passado no ano da graça d e . . .

O s termos dessa p r o c u r a ç ã o refletiam a influência d o s direitos


c a n ó n i c o e romano, e B e a u m a n o i r p o d e tê-la c o p i a d o d e a l g u m a
f o n t e eclesiástica. A p r o f i s s ã o d e a d v o g a d o , no sentido de um
g r u p o d e especialistas que h a v i a m recebido t r e i n a m e n t o formal,
s u r g i u em fins d o século X I I I . O s s o b e r a n o s inglês e f r a n c ê s
b a i x a r a m legislação sobre a p r o f i s s ã o , limitando a p r á t i c a do
direito àqueles que h a v i a m sido a p r o v a d o s p o r servidores judi-
ciários. E s s a legislação •— na I n g l a t e r r a em 1292 e n a F r a n ç a
em 1274 e 1278 — refletia um desenvolvimento g r a d u a l . O s
l a t i f u n d i á r i o s e h o m e n s de negócios h a b i t u a l m e n t e envolvidos
OS TEÓRICOS D E U M A NOVA O R D E M 161

em litígios f o r a m , com t o d a probabilidade, os primeiros a


n o m e a r a l g u é m p a r a r e p r e s e n t á - l o s , m a s s a b e - s e do caso d e
o u t r o s que c o m p a r e c e r a m p e r a n t e o s t r i b u n a i s a c o m p a n h a d o s
d e a m i g o s e conselheiros,
O curso c a d a vez maior d o direito r o m a n o , a nova legis-
l a çã o real e a crescente c o m p l e x i d a d e do comércio e d o direito
comercial d e r a m origem à n e c e s s i d a d e d o profissional treinado.
Se n o s s o hipotético Pierres, q u e c o n t r a t o u J e h a n s como a d v o -
g a d o , movesse uma a ç ã o contra R i c h a r d , teria que p e r c o r r e r um
c a m i n h o t o r t u o s o p a r a obter um j u l g a m e n t o em seu f a v o r .
E m primeiro lugar, teria q u e escolher a corte o n d e inten-
taria a ação. S e o a c u s a d o f o s s e um religioso, teria que pro-
c e s s á - l o n u m t r i b u n a l eclesiástico — " a n t e o o r d i n á r i o d o reli-
gioso", ou seu s u p e r i o r eclesiástico. N e s s e foro, e n f r e n t a r i a
um rito b a s t a n t e o r g a n i z a d o , e m b o r a complexo, e por escrito.
A s a l e g a ç õ e s de P i e r r e s seriam s u b m e t i d a s por escrito; R i c h a r d
c o n t e s t a r i a d a m e s m a forma, "com i m p u g n a ç õ e s " , ou a r g u -
m e n t o s legais, d e m o n s t r a n d o p o r que a c a u s a d e v i a ser a d i a d a
( i m p u g n a ç õ e s d i l a t ó r i a s ) , ou com a r g u m e n t o s jurídicos e factuais,
s o l a p a n d o ou n e g a n d o as a f i r m a ç õ e s de P i e r r e s ( i m p u g n a ç õ e s
p e r e m p t ó r i a s ) . P i e r r e s teria o direito de a p r e s e n t a r uma réplica,
a t a c a n d o a d e f e s a feita por i n t e r m é d i o d a s i m p u g n a ç õ e s . O reli-
gioso f a r i a c o n tr a -a l e ga ç õe s e reclamaria uma reconvenção ou
d e d u ç ã o de algum direito q u e tivesse contra Pierres. D a í em
diante, o rito se desenvolveria p o r escrito, t o m a n d o a a p r e s e n t a -
ção d a p r o v a a f o r m a d e d e c l a r a ç õ e s r e d u z i d a s ao papel.
S e R i c h a r d n ã o fosse um religioso, complicava-se o pro-
b l e m a . S e n d o b u r g u ê s , podia ser p r o c e s s a d o n a corte c o m u -
nitária e. provavelmente, só nela. Se f o s s e b u r g u ê s d o rei e
residisse n u m a c i d a d e real, e n t ã o a corte real de justiça poderia
ser c o m p e t e n t e . O conceito d e " p e s s o a p r i v i l e g i a d a " —• ou
a q u e l a que só p o d i a ser p r o c e s s a d a por corte real, e n ã o senho-
rial •— surgiu pela primeira vez n o século X I I , e vemo-lo insi-
n u a n d o - s e n a s compilações jurisprudenciais, em especial na
F r a n ç a . Burgueses, estudantes, servidores reais, mercadores iti-
n e r a n t e s q u e s e encontrassem s o b p r o t e ç ã o especial só podiam
ser j u l g a d o s p o r um servidor real. E m C l e r m o n t , seria o bailli,
o p r ó p r i o Philippe de B e a u m a n o i r .
Se, c o n t u d o , R i c h a r d e P i e r r e s litigassem sobre terras rurais
q u e n ã o s e localizassem nos territórios de q u a l q u e r c i d a d e ou
n ã o estivessem sob a jurisdição direta do rei, ou se n e n h u m
d o s dois fosse pessoa privilegiada, P i e r r e s podia d a r e n t r a d a
162 OS ADVOGADOS 13URGUESE5

à a ç ã o lia corte d o seigneuc a p r o p r i a d o . M a s que seigneuc? A


competência era " d o seigneur do l u g a r o n d e o a c u s a d o d o r m e
e a c o r d a " , ou, no caso de terras, d o seigneur em c u j o domínio
elas se situam, n ã o i m p o r t a n d o qual a p r o c e d ê n c i a dos litigantes.
O processo em si, j u l g a d o pelo bailli ou pela c o r t e s e n h o -
rial, podia assumir g r a n d e n ú m e r o de f o r m a s . O j u l g a m e n t o por
c o m b a t e fora f r e q ü e n t e no século X I I I ; S ã o Luís, em 1260, fe2
um esforço p a r a a c a b a r com o costume, pelo m e n o s n o s domí-
nios reais, e substituí-lo pelo sistema de i n s t r u ç ã o d o s a u t o s e
p r o v a testemunhal. D e c l a r a v a B e a u m a n o i r que o d u e l o judicial
era permitido a p e n a s n o caso d e crimes. N a s cortes real e f e u d a l ,
todavia, um caso comum de contrato p o d e r i a ser t r a n s f o r m a d o
em caso criminal se uma d a s p a r t e s a l e g a s s e que a o u t r a , ou
s u a s t e s t e m u n h a s , h a v i a mentido. O processo poderia, nesse
caso, ser i n t e r r o m p i d o p a r a que oc orres s e um duelo judicial,
t e n d o como motivo a q u e s t ã o d o p e r j ú r i o .
S e Pierres quisesse correr o risco de t r a v a r um duelo com
R i c h a r d , p u d e s s e a c h a r a corte o n d e processá-lo e estivesse
c o n f i a n t e em q u e p o d e r i a articular uma q u e i x a aceitável, e n f r e n -
taria a i n d a o u t r o obstáculo. N ã o p o d i a o b t e r um j u l g a m e n t o
contra R i c h a r d sem o b r i g á - l o primeiro a comparecer a uma corte
n u m a ocasião em q u e f o s s e legal um j u l g a m e n t o acaso p r o f e r i d o
c o n t r a ele. U m v o l u m e e s p a n t o s o de direito p r o c e s s u a l medie-
val é d e d i c a d o à q u e s t ã o d e por quem e c o m o o réu poderia ser
l e v a d o a c o m p a r e c e r e d e f e n d e r - s e de um processo. Se R i c h a r d
tivesse a d v o g a d o , citá-lo seria mais fácil, u m a vez que a pro-
c u r a ç ã o estaria a r q u i v a d a n o tribunal. Se a p r o c u r a ç ã o fosse
necessária em o u t r a c o r t e que n ã o a q u e l a o n d e f o r a inicial-
m e n t e a p r e s e n t a d a , teria que ser t r a n s c r i t a e e n v i a d a uma
cópia a u t e n t i c a d a . O d o c u m e n t o iiíicial em si servia como
f u n ç ã o de aviso, que se podia conciliar r e t i r a n d o - o d a posse do
tribunal que o h a v i a inicialmente recebido.
A idéia d e citação g u a r d a ligação estreita com a de juris-
dição .— R i c h a r d teria que ser p r o c e s s a d o no local o n d e resi-
dia p o r q u a n t o a p e n a s seu seigneuc t i n h a p o d e r e s p a r a exigir
que ele comparecesse a um tribunal. A idéia f e u d a l de que
R i c h a r d era " h o m e m " de seu seigneuc d i t a v a o rito judiciário.
B e a u m a n o i r t r a t o u d a citação n o mesmo capitulo o n d e dis-
cutiu a convocação p a r a combater n a s f o r ç a s do s e n h o r e prestar
serviços feudais. A n a l o g a m e n t e , t oda terra pertencia a o seigneur
e ele e r a a única p e s s o a competente p a r a julgar casos " c o n c e r -
n e n t e s " à terra.
OS TEÓRICOS DE UMA NOVA ORDEM 163

U m a f o r m a alternativa de citar R i c h a r d seria prendê-lo,


medida esta aceitável a p e n a s em certos tipos de casos e apenas
contra certos g r u p o s de pessoas. A s compilações j u r i s p r u d e n -
ciais de direito costumeiro de t o d a s a s c i d a d e s comerciais im-
p o r t a n t e s t r a t a v a m do direito de p r e n d e r , em geral limitando
ou abolindo esse costume no tocante aos b u r g u e s e s da cidade.
E m troca, os credores eram p r o t e g i d o s pela g a r a n t i a municipal
de solvência d o s b u r g u e s e s .
U m a vez citado, R i c h a r d tinha direito a certo número de
a d i a m e n t o s por períodos fixos e talvez a um a d i a m e n t o inde-
finido, o que p o d i a t o r n a r necessário q u e P i e r r e s o citasse
o u t r a vez. O ritual p a r a pleitear esses a d i a m e n t o s n a corte era
tão e x a t a m e n t e d e f i n i d o que q u a l q u e r lapso podia custar esse
direito. Se R i c h a r d enviasse alguém à corte p a r a a t e n d e r à
citação e seu r e p r e s e n t a n t e e s c o r r e g a s s e n u m detalhe, Richard
e n t r a v a em "revelia" e perdia a questão. L i v r o s - t e x t o do século
X I I I e s t ã o repletos d e sugestões aos a d v o g a d o s sobre as m a n e i r a s
de p r o l o n g a r os processos sem cair em revelia. Beaumanoir, no
entanto, p a r e c e ter alimentado a s opiniões do juiz, e n ã o do
a d v o g a d o , s o b r e essas táticas, pois n ã o a p e n a s declinou de
descrevê-las, m a s advertiu que " P e c a d o r e s são os juízes que
n ã o aceleram os j u l g a m e n t o s " . Isso r e c o r d a v a a diretriz de São
Luís, dirigida aos baillis no sentido de " j u l g a r e m o s assuntos
que lhes f o r e m levados ao c o n h e c i m e n t o . . . de modo que
N o s s o s súditos n ã o possam ser i n d u z i d o s a desistir de seus
justos direitos por receio de p r o b l e m a s e d e s p e s a s " .
C a b e r i a p e r g u n t a r os motivos desse rito processual extre-
m a m e n t e complexo. Pelo m e n o s por uma coisa as organizações
judiciárias descritas por B e a u m a n o i r f o r a m f o r m a d a s ao longo
do tempo e houve claramente uma r a z ã o inicial p a r a cada novo
ritual ou n o r m a a c r e s c e n t a d a . P a r e c e provável, por exemplo,
q u e os a d i a m e n t o s no rito d a citação f e u d a l fossem inicial-
m e n t e d e s t i n a d o s a satisfazer à s n e c e s s i d a d e s de uma socie-
d a d e agrícola, n u m a ocasião em que a citação p a t a comparecer
p e r a n t e a "corte" do s e n h o r constituía um meio de obter a
p r e s e n ç a do vassalo à relha do a r a d o , na d e b u l h a ou na guerra,
e o a d i a m e n t o era uma concessão às próprias necessidades do
vassalo. C o m a passagem do tempo, u p r o c e d i m e n t o ritual
p e r d e u todo o seu c o n t e ú d o e p a s s o u a ser u s a d o p a r a finali-
d a d e s o u t r a s do que p a r a a q u e l a s p a r a as quais fora inicial-
mente f o r m u l a d o .
164 OS ADVOGADOS B U R G U E S E S

P o r outro lado, os a d v o g a d o s d a classe mercantil,


a n s i o s o s por a c a b a r com ritos que interferissem n a solução
r á p i d a e eficiente d o s litígios, e s t a v a m p r o c u r a n d o obter, e
o b t e n d o , m u d a n ç a s n a o r d e m jurídica n o q u e interessava a
seus clientes. N a F r a n ç a , por exemplo, a r e g r a de que o liti-
g a n t e n ã o podia p r e s t a r d e p o i m e n t o em seu p r ó p r i o caso foi
r e l a x a d a em f a v o r d o s m e r c a d o r e s . U m v e n d e d o r de alimen-
tos p o d i a p r e s t a r d e p o i m e n t o s o b r e dividas d e clientes, pois n ã o
h a v i a o u t r a m a n e i r a de p r o v a r tais o b r i g a ç õ e s se o f r e g u ê s as
n e g a v a . U m c r e d o r podia igualmente d e p o r s o b r e um r e c o n h e -
c i m e n t o escrito d e dívida pelo d e v e d o r . O s preceitos, em e s p e -
cial os primeiros, f o r a m p r e l ú d i o s d o princípio contábil p o s t e -
rior d e que a escrita do c o m e r c i a n t e era aceitável como p r o v a
d e s o m a s d e v i d a s pelos f r e g u e s e s .
N a I n g l a t e r r a , em 1303, E d u a r d o I d i s p ô s que se quei-
x o s o e a c u s a d o fossem a m b o s comerciantes, e se tivesse sido
d a d o o tostão d e D e u s , n ã o era permitido r e c u r s o à letra d a
lei. A p a r t e com direito a d e f e s a n u m a a ç ã o p a r a c o b r a n ç a de
dívida — em geral o a c u s a d o o u a l e g a d o d e v e d o r — p r o m e t i a
que, em d e t e r m i n a d o dia, faria sua lei. N e s s e dia, j u r a v a em
corte pública q u e n ã o era d e v e d o r de coisa a l g u m a e a p r e s e n -
t a v a onze vizinhos q u e j u r a v a m que a c r e d i t a v a m que ele e s t a v a
d i z e n d o a v e r d a d e . N o que i n t e r e s s a v a à maioria d o s m e r c a -
d o r e s , esse tipo d e solução e r a uma espécie de p e r j ú r i o de
m a s s a institucionalizado.
O a d v o g a d o precisava d o m i n a r inteiramente as complexi-
d a d e s d o velho rito, bem como era c o n t r a t a d o pela b u r g u e s i a
p a r a elaborar n o v a processualística. N o século X I I I , a s i n f l u ê n -
cias subversivas d o comércio já h a v i a m l e v a d o cavaleiros e
religiosos a definir r i g i d a m e n t e seu status, a p r e s e r v a r seus pri-
vilégios e a m a n t e r à distância u s u r p a d o r e s e p r e t e n d e n t e s . U m
modelo semelhante d e definição de status assinalou o d e s e n v o l -
v i m e n to de g r u p o s mercantis. O s a d v o g a d o s reagiram de i d ê n -
tica maneira. E s t a v a m dispostos a aceitar que o j u l g a m e n t o
por c o m b a t e f o s s e substituído pela p r o v a o f e r e c i d a p o r t e s t e -
m u n h a s , documentos, registros oficiais e p r e s s u p o s t o s . Rece-
b e r a m com a g r a d o o e m p r e g o crescente de r e g i s t r o s escritos d o s
processos e a p r o v a r a m o conselho de B e a u m a n o i r de que o juiz
devia solicitar a r r a z o a d o s sobre a s q u e s t õ e s jurídicas em d e b a t e .
E s s a racionalização do direito, porém, o c o r r e n d o por m e d i a ç ã o
d o s a d v o g a d o s , teve também um preço: a fim de obter-lhes os
O S TEÓRICOS DE U M A NOVA ORDEM 165

benefícios, o i n d i v i d u o era o b r i g a d o a r e m u n e r a r - l h e s os servi-


ços. P i e r r e s talvez p u d e s s e c o n f i a r em que venceria ou p e r d e -
ria a q u e s t ã o d e a c o r d o com a s r e g r a s escritas, ou pelo menos
em geral c o n h e c i d a s , e s e g u n d o o d e p o i m e n t o d a s t e s t e m u n h a s
ou evidência d e documentos, q u e recriariam, p a r a conhecimento
do juiz, a s circunstâncias que h a v i a m d a d o origem à c o n t e n d a .
P o d i a obter tal resultado, n o e n t a n t o , a p e n a s a t r a v é s d a inter-
cessão de um a d v o g a d o , um indivíduo que manipulava esses
elementos jurídicos e factuais em um sistema d e ritos proces-
suais que P i e r r e s n ã o podia e s p e r a r d o m i n a r sem a n t e s se e n t r e -
g a r a um d e m o r a d o estudo. T a l c o n t r a d i ç ã o era f r e q ü e n t e m e n t e
percebida. U m a d v o g a d o excepcional, h o m e m que a j u d a v a os
p o b r e s n a B r e t a n h a , foi c a n o n i z a d o pela sua excepcionalidade.
U m p o e m a p o p u l a r a seu r e s p e i t o dizia:
St. Yves n a s c e u n a B r e t a n h a ,
Advogado, e não ladrão,
E acredite-se n u i r a coisa dessas!

U m a r e a ç ã o revolucionária a e s s a c o n f u s ã o n o r m a t i v a teria
nivelado a e s t r u t u r a judiciária e erigido o u t r a em seu lugar. O s
m e r c a d o r e s , b u r g u e s e s e a v e n t u r e i r o s marítimos, contudo, n ã o
julgavam ter p o d e r p a r a tanto. E m vez disso, em certas que-
relas, o sistema judiciário tradicional era simplesmente l a d e a d o
e c o n s t r u í d a s a o seu lado instituições paralelas, mais u m a vez
com a a j u d a de a d v o g a d o s . E m N e w c a s t l e . por exemplo, foi
a p r o v a d a pelo rei a criação de um tribunal marítimo, c o n s t a n d o
na sua carta que devia julgar t o d o s os processos a n t e s d a ter-
ceira maré, a p ó s lhe ter sido s u b m e t i d o o processo. A s cortes
de feiras a b r i a m e f e c h a v a m com elas e c o n t a s deviam ser
s a l d a d a s e c o n t e n d a s dirimidas d e n t r o desse período. ( H á ,
c o n t u d o , evidência de que litígios iniciados n a s feiras poderiam
a c a b a r em cortes reais. S e g u n d o o ccfetume comercial, tim
saldo a d e s c o b e r t o p o r m e r c a d o r i a s v e n d i d a s d a v a ao v e n d e -
dor o direito de retenção — direito de p r o p r i e d a d e n ã o posses-
sório — sobre a s mercadorias, que p o d e r i a ser e x e c u t a d o por
arresto em caso de falta de p a g a m e n t o . O b s e r v a v a B e a u m a n o i r
que no reino d e F r a n ç a uma p r o m e s s a oral de g a r a n t i a era
válida se feita n a s feiras de C h a m p a g n e — isto é, uma terceira
p a r l e podia o r a l m e n t e g a r a n t i r o crédito ao c o m p r a d o r e con-
c o r d a r que. se ele se recusasse a p a g a r ou deixasse de p a g a r ,
assumiria a dívida. E s s a s p r o m e s s a s t i n h a m c a r á t e r executó-
rio n a s cortes reais, indicando que pelo m e n o s a l g u m a s querelas
podiam sobreviver a o e n c e r r a m e n t o d a feira.)
166 OS ADVOGADOS BURGUESES

O s b u r g u e s e s recorriam i g u a l m e n t e a meios n ã o judiciais


de liquidação de contas. S e u s a d v o g a d o s podiam receber a u t o -
rização p a r a liquidar os processos f o r a d o s tribunais o u d u a s
p a r t e s n u m a c o n t e n d a p o d i a m c o n c o r d a r em s u b m e t ê - l a à arbi-
t r a g e m . A a r b i t r a g e m constituía prática comercial n o r m a l , mas
p o d i a ser t a m b é m u s a d a p a r a se evitarem os rigores e incer-
tezas de um processo. O s q u e r e l a n t e s podiam escolher árbi-
tros. d a n d o g a r a n t i a s sob a f o r m a de dinheiro ou p r o p r i e d a d e s
de q u e aceitariam o laudo. O s princípios c o n t r a t u a i s d e b o a fé
e i n t e n ç ã o p r e s u m i d a d a s p a r t e s , b e m como a idéia de que os
á r b i t r o s deviam a t u a r r a z o á v e l e i m p a r c i a l m e n t e —- como sc
s u p u n h a que o s juizes agissem t a m b é m — p o d i a m ser levados
aos tribunais se o l a u d o d e a r b i t r a g e m e r a c o n s i d e r a d o one-
r o s o por um d o s q u e r e l a n t e s .
N o dia em que, p a r a d a r um exemplo, um b u r g u ê s feriu
o u t r o em uma b r i g a em Beauvais, o a c u s a d o p r e f e r i u que a
q u e s t ã o f o s s e a r b i t r a d a p o r três p e s s o a s escolhidas pela vitima.
O s árbitros o r d e n a r a m q u e o c u l p a d o fizesse três d e m o r a d a s
p e r e g r i n a ç õ e s — à Itália, E s p a n h a e P r o v e n ç a — q u e fosse
m o r a r do o u t r o lado d o m a r d u r a n t e três a n o s e que a s s i n a s s e
u m a promessa de que p a g a r i a f i a n ç a à vítima "como s e f o s s e
seu primo em primeiro g r a u " . O a g r e s s o r insurgiu-se c o n t r a a
decisão e r e c u s o u - s e a cumpri-la, c l a s s i f i c a n d o - a de p l a n o
a d r e d e p r e p a r a d o , pois n e m c o r r e s p o n d i a à g r a v i d a d e d e seu
crime n e m f o r a t o m a d a i n d e p e n d e n t e m e n t e , de a c o r d o com
a evidência, n e m se incluíra no a c o r d o p a r a aceitar a arbi-
t r a g e m . A r g u m e n t o u B e a u m a n o i r que o a c o r d o n ã o precisava
ser c u m p r i d o e q u e a decisão era n u l a , c i t a n d o um j u l g a m e n t o
seu que d e m o n s t r a v a que p a d r õ e s d e justiça e e q ü i d a d e podiam
ser exigidos de tribunais d e a r b i t r a g e m .
E m s u m a , n a v i d a e o b r a d e B e a u m a n o i r p o d e ser v i s t a a
aliança, n o s séculos X I V e X V , e n t r e o s g r a n d e s interesses
mercantis, o s novos e p o d e r o s o s m o n a r c a s e a advocacia.
A p ó s o p e r í o d o revolucionário d o s d u z e n t o s a n o s a n t e r i o r e s ,
n o qual a elaboração de leis f o r a u m a a t i v i d a d e popular, r e a -
lizada como a d j u n t o e consolidação d a luta revolucionária, a
emergência d o a d v o g a d o - s e r v i d o r civil p r e n u n c i a v a um n o v o
e s t a d o de coisas. O direito t o r n o u - s e c r i a t u r a d o s economi-
c a m e n t e poderosos, e l a b o r a d o p o r uma classe c o n t r a t a d a por
eles e t r a b a l h a n d o em seu interesse. M a s v o l t a r e m o s a esse
t e m a mais t a r d e .
12

A Capital Comercial
de Grasse

N ã o está claro, n a s p a l a v r a s de B e a u m a n o i r e de
o u t r o s juristas, a maneira como a g i a m h o m e n s e mulheres a f e -
t a d o s p e l a s n o r m a s legais. A fim de medir o impacto d e trans-
f o r m a ç õ e s jurídicas c o n q u i s t a d a s pela insurreição b u r g u e s a e
m o d i f i c a d a s pela a ç ã o senhorial e real. precisamos e x a m i n a r
de p e r t o a v i d a de uma c i d a d e qualquer. G r a s s e , no Sul d a
F r a n ç a , a t r i n t a quilômetros do M e d i t e r r â n e o , foi um centro
m a n u f a t u r e i r o e comercial d e s e g u n d a linha que dominou e
impôs o n e x o monetário à s regiões agrícolas e pastoris circun-
vizinhas, b e m como a e n t i d a d e s u r b a n a s menores. V i s t o de perto,
o movimento de compra, v e n d a , t o m a d a d e empréstimos e for-
m a ç ã o d e capital n a c i d a d e revela o papel f u n d a m e n t a l dos
princípios jurídicos b u r g u e s e s no desenvolvimento do comércio.
C o n q u a n t o os arquivos de G r a s s e n ã o n o s ofereçam coisa al-
g u m a p a r e c i d a com a o b r a d e Beaumanoir.- podemos, a p e s a r
disso, perceber a crescente i n t e r p e n e t r a ç ã o dos direitos capita-
lista e f e u d a l , e n o t a r a c a p a c i d a d e d e s t e último de r e t o m a r a
primazia q u a n d o se e n f r a q u e c i a a e x p a n s ã o econômica. P o r
sorte n o s s a . G r a s s e , em v i r t u d e d o clima a m e n o e de uma his-
tória r e l a t i v a m e n t e pacífica, conseguiu p r e s e r v a r volumoso
a c e r v o d e contratos, d o c u m e n t o s e registros oficiais que retroa-
g e m ao século X I V . Q u a n d o e x a m i n a m o s o s a n a i s de o u t r a s
cidades, v e m o s que os f a t o s econômicos e jurídicos ocorridos
em G r a s s e g u a r d a r a m estreita s e m e l h a n ç a com outros havidos
em o u t r o s locais.
E m b o r a o desenvolvimento d a teoria jurídica b u r g u e s a
nesse p e r í o d o s e j a melhor c o m p r e e n d i d o a t r a v é s d o s olhos de
168 OS ADVOGADOS BURGUESES

juristas t r e i n a d o s em u n i v e r s i d a d e s , o d i a - a - d i a em G r a s s e p o d e
ser v i s t o com maior c l a r e z a por intermédio d o s olhos de alguém
c o m o Leonet D a y o t , um judeu c u j o n o m e a p a r e c e n u m a lista
oficial d e 1305 e em um d o c u m e n t o de tabelião em 1309 como
c o m p r a d o r de certa q u a n t i d a d e d e tecidos, ou a t r a v é s d o s olhos
d e agricultores, p a r a o s q u a i s G r a s s e era o c e n t r o d a v i d a eco-
nômica.
G r a s s e situa-se n u m local o n d e a p e q u e n a e l e v a ç ã o d a
f e r r a a partir do M e d i t e r r â n e o cede J u g a r a o b r u s c o relevo
calcário d a zona que p r e c e d e o s A l p e s . F o i f u n d a d a no século
X s o b a suzerania de u m bispo e de u m a família n o b r e , que
a d o t o u o nome de G r a s s e . A c o m u n a fez seu a p a r e c i m e n t o em
1155, elegendo dois cônsules, indivíduos que d e s e m p e n h a v a m
o m e s m o papel que o d o p r e f e i t o em c i d a d e s mais ao N o r t e .
G u e r r a s de classe n a c i d a d e p r o p o r c i o n a r a m justificativa p a r a
a s u p r e s s ã o d a c o m u n a pelo C o n d e d e P r o v e n ç a em 1227.
A p e s a r disso, a c i d a d e c o n t i n u o u a d e s f r u t a r de seus privilégios
d e c o m p r a e v e n d a , l i b e r d a d e econômica, f e i r a s e m e r c a d o s .
E r a m consideráveis e s s e s privilégios comerciais. G r a s s e
era uma das c i d a d e s p r o v e n ç a i s aliadas p o r t r a t a d o d e c o m é r -
cio, a m i z a d e e p r o t e ç ã o m ú t u a com G ê n o v a , d e p e n d e n d o
d e s t a p a r a a compra de seus principais p r o d u t o s , c o u r o s curti-
d o s e p r o d u t o s agrícolas. A l é m disso, s i t u a d a à m a r g e m d a
principal c i d a d e que b o r d e j a v a o litoral do M e d i t e r r â n e o , ligada
a A i x - e n - P r o v e n c e , M a r s e l h a e cidades mais a oeste, G r a s s e
era o terminal d o comércio terrestre na P r o v e n ç a . E s t r a d a s
vicinais e n l a ç a v a m - n a com a s p e q u e n a s c i d a d e s p r o v e n ç a i s de
C a s t e l l a n e e D i g n e , c u j o s h a b i t a n t e s se a b a s t e c i a m em G r a s s e
d e tecidos e implementos agrícolas, e nela v e n d i a m seus p r o -
dutos.
A situação d o s j u d e u s no século X I V reflete em igual
m e d i d a o fanatismo, a hipocrisia e o espírito conciliador do
capitalismo cristão. A s c o m u n i d a d e s j u d a i c a s e r a m m a i s o u
m e n o s t o l e r a d a s em t o d a s a s principais c i d a d e s do M e d i t e r r â n e o .
N ã o sabemos de o n d e veio a família d e L e o n e t D a y o t . T a l v e z
c h e g a s s e ao Sul p r o c e d e n t e d e P a r i s , em fins d o século X I I I .
E m 130'6, Felipe I V de F r a n ç a b a n i u os j u d e u s de seu reino,
t o r n a n d o oficial e final um pogrom iniciado a n o s antes. A c o m u -
n i d a d e judaica d e P a r i s , n o entanto, c o m e ç a r a muito tempo
a n t e s a a b a n d o n a r a cidade. E m 1292, o c a d a s t r o fiscal da
c i d a d e continha os n o m e s de 125 j u d e u s ; em 1296 e 1297, esse
x.c
.O)'
M

<<P
A C A P I T A L C O M E R C I A L DE GRASSE 169

n ú m e r o f o r a r e d u z i d o a oitenta e seis. A m b a s a s cifras repre-


s e n t a v a m talvez 10 p o r cento d a p o p u l a ç ã o j u d a i c a , u m a vez
que a p e n a s p e q u e n a p a r t e d e l a d i s p u n h a de meios econômicos
suficientes p a r a serem s u b m e t i d a s à t r i b u t a ç ã o . D e 1298 em
diante, c o n t u d o , n ã o s u r g e m mais n o m e s j u d e u s no c a d a s t r o .
S o b a p r o t e ç ã o d o C o n d e d e P r o v e n ç a , a s famílias judai-
cas que se estabeleceram em G r a s s e a c h a r a m o l u g a r razoavel-
m e n t e hospitaleiro. D e um m o d o geral, a s c o m u n i d a d e s j u d a i -
cas n a E u r o p a f e u d a l viviam s u j e i t a s a uma mutável proteção
senhoria). N o s domínios f e u d a i s , levavam uma v i d a à parte,
s e g u i n d o a lei mosaica, a o b s e r v â n c i a d a q u a l e r a tacitamente
g a r a n t i d a por t o d o s os seigneurs. N e s s e e s t a d o d e semiproteção
o u semi-servidão, como escreveu J a c q u e s Ellul, "o seigneur
c o n s i d e r a v a - s e mais ou m e n o s como p r o p r i e t á r i o d o s j u d e u s
que viviam em seu território". O s j u d e u s n ã o p o d i a m possuir
servos n e m e m p r e g a r t r a b a l h a d o r e s cristãos em a t i v i d a d e s a r t e -
sanais. F o r a m impelidos, em conseqüência, p a r a p r o f i s s õ e s como
a s d e a l f a i a t e e ourives, bem como a a g i o t a g e m , a t i v i d a d e esta
s u j e i t a à s sanções d a I g r e j a se p r a t i c a d a por cristãos. Assim,
o s j u d e u s e m p r e s t a v a m dinheiro p o r c o n t a p r ó p r i a ou como
" t e s t a s - d e - f e r r o " de gentios que n ã o d e s e j a v a m ser conhecidos
p o r e s s a s a t i v i d a d e s . Pogroms periódicos e x t e r m i n a r a m comu-
n i d a d e s j u d a i c a s inteiras o u f o r ç a r a m seus h a b i t a n t e s a f u g i r .
U m d o s mais f e r oz e s deles a c o m p a n h o u o inicio d a s C r u z a d a s .
A despeito d e s u a r e p u t a ç ã o como agiotas, os j u d e u s n ã o
p r o s p e r a r a m muito. U m a indicação de sua p o s i ç ã o financeira
relativa é que os 125 j u d e u s c o n s t a n t e s d o s c a d a s t r o s fiscais de
P a r i s em 1298 e r a m t a x a d o s em 126 livres; em contraste, os
200 l o m b a r d o s , a maioria dos q u a i s envolvidos em atividades co-
merciais e b a n c á r i a s , p a g a v a m 1 . 5 0 0 livres, r e f l e t i n d o essa dife-
r e n ç a uma riqueza p e r capita muito maior. E m c e n t r o s comer-
ciais secundários, como G r a s s e , n o e n t a n t o , s ã o p o u c o s os sinais,
n o século X I V , d e atividade econômica que r e q u e r e s s e g r a n d e s
v o l u m e s d e capitais, e a m o d e s t a f o r t u n a d o s j u d e u s era o
equivalente econômico d a de comerciantes e a r t e s ã o s locais.
S ó em 1396 foi t o m a d a pelos g o v e r n a n t e s d a P r o v e n ç a a
primeira medida oficial repressiva c o n t r a a c o m u n i d a d e judaica.
N e s s a ocasião, f o r a m os j u d e u s o b r i g a d o s a u s a r um distin-
tivo e a residir n u m a área específica d a cidade. O s estabeleci-
m e n t o s comerciais e a c o m u n i d a d e d e profissionais liberais
j u d e u s a g r u p a r a m - s e n a s p r o x i m i d a d e s da sinagoga, no centro

ii -n.A.c.
170 OS ADVOGADOS BURGUESES

d a c i d a d e m u r a d a . Ali viviam e t r a b a l h a v a m como a r t e s ã o s ,


clinicavam como médicos, c o m p r a v a m , v e n d i a m e e m p r e s t a -
v a m dinheiro. T ã o i m p o r t a n t e s e r a m s u a s a t i v i d a d e s que o cor-
d e i r o pascal veio a d e c o r a r o b r a s ã o de G r a s s e .
P e q u e n o s empréstimos a l i m e n t a v a m a e c o n o m i a local. O
e s t o q u e d e capital de o n d e p r o v i n h a m o s empréstimos era f o r -
m a d o por n u m e r o s a s fontes, a l g u m a s s u r p r e e n d e n t e s , p a r a dizer
o mínimo. E m certo caso, um p a d r e , a g i n d o em n o m e de uin
bispo, depositou a soma de c i n q ü e n t a e oito florins {moedas
d e 3,54 g r a m a s com um c o n t e ú d o d e mais ou m e n o s q u a t r o
onças de o u r o p u r o ) n a s m ã o s d e Robin M a y r , Jaciel e Jacob.
E m o u t r o s contratos, s ã o m e n c i o n a d o s j u d e u s como t e n d o rece-
b i d o de e m p r é s t i m o somas de dois comerciantes g e n o v e s e s e
d e um nobre local. L o u v a n d o - n o s em registros de n o t á r i o s d o
período, que d e m o n s t r a m o e m p r e g o f r e q ü e n t e d o sistema de
"sócio c o m a n d i t á r i o " e a proibição d a u s u r a pela I g r e j a , p o d e -
mos concluir q u e o bispo, os comerciantes e o n o b r e investiam
seu dinheiro em um f u n d o de empréstimos a j'uros. O s e m p r é s -
timos, como v i r t u a l m e n t e t o d a s a s t r a n s a ç õ e s desse tipo n a
época, eram c o n s i d e r a d o s no r e c o n h e c i m e n t o d a dívida como
feitos "por motivo de r e c i p r o c i d a d e e a m i z a d e " , sem juros. S e m
d ú v i d a , os j'uros e r a m de a l g u m a f o r m a escondidos n a t r a n -
sação.
E m princípios d o século X I V , G r a s s e e x p e r i m e n t o u outro
p a s s o no e s f a c e l a m e n t o d a s relações feudais e n a s u a s u b s -
tituição pelos laços d a economia monetária. C o m e ç a m o s a ver
o e m p r e g o de p a g a m e n t o s em dinheiro, à vista ou por meio d e
crédito, até m e s m o n o que interessava à s n e c e s s i d a d e s básicas
d a v i d a rural, b e m como a e r o s ã o d o s direitos feudais n a cidade,
f e n ô m e n o este q u e tivemos a o p o r t u n i d a d e de c o m e n t a r no
capítulo p r e c e d e n t e .
N a s cidades maiores — Paris, L o n d r e s . G ê n o v a , ou Bruges
— ou nos casos em que elas, como n a I n g l a t e r r a , d e s d e c e d o
f i c a r a m sob a firme proteção d e um m o n a r c a central, a t r a n s i -
ç ã o p a r a a n o v a f o r m a de vida econômica poderia exigir a p e n a s
d u a s ou três gerações. N u m a c i d a d e como G r a s s e , como etn
um incontável n ú m e r o de o u t r a s fora d a I n g l a t e r r a , d u r o u mais
a g u e r r a e n t r e a s instituições fe uda i s e capitalistas, e assumiu
n u m e r o s a s f o r m a s . A b u r g u e s i a p r e f e r i a conquistar o apoio d a s
instituições existentes p a r a p r o t e g e r o comércio, e n ã o t e n t a r
destrui-las. E m G r a s s e , isso significou o e m p r e g o do poder
econômico p a r a dissolver a s relações tradicionais em c a m p o e
A CAPITAI. COMERCIAL DE GRASSE 171

c i d a d e c substituí-las pelos laços do s u p o s t a m e n t e n e u t r o direito


d a s obrigações, que c o n f r o n t a v a h o m e n s c mulheres com seus
próprios atos voluntários, r e d u z i d o s à f o r m a escrita.
E s t u d a n d o u m a c i d a d e comercial d e s e g u n d a categoria
como G r a s s e , vemos, por conseguinte, a f o r m a ç ã o de milhares
de p e q u e n o s elos c o n t r a t u a i s n u m p r o c e s s o que p o d i a retirai'
a v i d a econômica d a cidade e do c a m p o d a á r e a de influência da
nobreza, que continuava a exercer o p o d e r político dominante.
E m princípios d o século X I V , f a z e n d e i r o s vinham d e distâncias
consideráveis f a z e r negócios em G r a s s e . A pé ou m o n t a d o s em
burricos, c h e g a v a m na p r i m a v e r a de uma distância de até q u a -
r e n t a quilômetros p a r a c o m p r a r implementos agrícolas. U m con-
t r a t o típico d e 1310 d i s p u n h a sobre o p a g a m e n t o a crédito d a s
m e r c a d o r i a s c o m p r a d a s e d a r e p a r a ç ã o e m a n u t e n ç ã o regular
d a s p a r t e s de f e r r o d u r a n t e um período de t r ê s a n o s . O ferreiro
era um a r t e s ã o i n d e p e n d e n t e , t r a b a l h a n d o contra p a g a m e n t o
à vista, e estabelecido em G r a s s e p a r a a t e n d e r à toda região. Se
a colheita e r a má, ou se a retida que p r o d u z i r a se e s g o t a v a
a n t e s do fim do ano, o f a z e n d e i r o n ã o podia, como fizera seit
pai, p r o c u r a r o s e n h o r e pedir a d i a n t a m e n t o de um p o u c o de
cereal, c a r n e seca, peixe e o u t r a s n e c e s s i d a d e s . A o que tudo
indica, o filho do senhor precisava t a n t o q u a n t o ele de dinheiro
ou, se o possuía, estava investindo-o sigilosamente em Grasse.
N a época f e u d a l , o sistema típico de posse rural d a terra
em 1 3 Í 0 era uma variação de dois artifícios essencialmente
contratuais, o acapí e a metayage. N a posse por acapt. também
d e n o m i n a d a ernphytéose ( d o latim ernphyteusis), o direito <!e
p r o p r i e d a d e d o s e n h o r era dividido em d u a s partes, o domaine
direcí e o d o m a i n e afife. E s t e último, ou o direito de usar a
terra, era concedido ao f a z e n d e i r o por toda a vida em troca de
um p a g a m e n t o único ( a c a p í ) q u a n d o ele e n t r a v a de posse d a
terra e d e um aluguel em dinheiro {cens). O acapt variava de
uma s o m a substancial em dinheiro em épocas p r ó s p e r a s a mu
p u r a m e n t e simbólico "par d e p e r d i z e s " em tempos ruins, d í
carência de m ã o - d e - o b r a , e q u a n d o havia necessidade de achar
alguém p a r a cultivar a terra. O s e n h o r ou outro proprietário
qualquer c o n s e r v a v a m a p e n a s o direito d e retomar a proprie-
d a d e se n ã o f o s s e p a g o o aluguel anual, de r e e n t r a r tia posse
d a gleba se o a r r e n d a t á r i o falecesse sem deixar herdeiros ou
a b a n d o n a s s e a p r o p r i e d a d e , ou d e c l a r a r n u l o o c o n t r a t o se a
terra n ã o fosse bem cuidada. ( E r a em geral por toda a vida a
d u r a ç ã o do acapt; daí ser um t a n t o impróprio usar a palavra
172 OS ADVOGADOS BURGUESES

emphytéose p a r a descrevê-la, uma vez que a emphyteusis d o di-


reito r o m a n o e r a p o r p e r í o d o limitado.)
O senhor, p o r conseguinte, o p t a v a p o r u m a desvinculação
d a t e r r a do sistema f e u d a l em troca d e um p a g a m e n t o f i x o em
d i n h e i r o q u a t r o vezes por a n o e p o r um p a g a m e n t o único, q u e
p o d e r i a ser feito e m d i n h e i r o ou em espécie. A d i s s e m i n a ç ã o
d o s c o n h e c i m e n t o s sobre a emphyteusis romana e sua conver-
s ã o n o acapt no Sul d a F r a n ç a f o r a m sem d ú v i d a e s t i m u l a d a s
pela c o m p r e e n s ã o d e q u e serviços f e u d a i s p o d i a m ser c o m p r a -
dos, d a mesma f o r m a q u e c o b r a d o s como p r e ç o d a posse d a
t e r r a , e talvez com economia. H á registros d e s s a s c o m p a r a ç õ e s
de c u s t o s n a s compilações j u r i s p r u d e n c i a i s do direito costu-
meiro vigente n a s m a n s õ e s feudais.
O acapt, c o n t u d o , era u m a f a c a de dois gumes. Se o
a r r e n d a t á r i o p e r p é t u o — e seus h e r d e i r o s •— r e a l m e n t e per-
manecessem p a r a s e m p r e n a terra, o a l u g u e l a n u a l logo depois
se t o r n a r i a insignificante, como aconteceria com o s a l u g u e r e s
fixos d a s casas, n a s c a r t a s d e a u t o n o m i a , p a r a os m o r a d o r e s
d a s cidades, u m a vez q u e a i n f l a ç ã o se instalava com o a u m e n t o
d a o f e r t a de m o e d a e a circulação mais rápida de m e r c a d o -
rias, O nobre c u j a única r e n d a era f o r m a d a pelo aluguel d a
t e r r a e s t a v a c o n d e n a d o à p e n ú r i a caso c o n t i n u a s s e o cresci-
m e n t o econômico; p a r a a b u r g u e s i a , b a s t a v a e s p e r a r que f a t o -
res econômicos se fizessem sentir p a r a c o m p r a r a s p r o p r i e d a d e s
d a n o b r e z a e m p o b r e c i d a . Isso a c o n t e c e u em n u m e r o s o s casos,
m a s n ã o fácil n e m pacificamente.
Q u a n d o comerciantes e o u t r o s que n ã o p e r t e n c i a m à n o b r e z a
d i s p u n h a m d e t e r r a s p a r a a r r e n d a r , ou q u a n d o o s n o b r e s d e s a -
f i a v a m a t r a d i ç ã o e desenvolviam espírito empresarial, i m i t a n d o
os italianos, e v i t a v a m a s d e s v a n t a g e n s d o acapf s u b s t i t u i n d o - o
por um a c o r d o c o n h e c i d o como metayage, ou facheria. Esse
meio inteiramente c o n t r a t u a l d e g a r a n t i r o cultivo d o solo e s p a -
l h o u - s e pelo N o r t e a p a r t i r d a Itália e P r o v e n ç a . C o n t r a t u a l -
mente, a metayage a s s e m e l h a v a - s e à société ou commenda da
v i d a comercial f r a n c e s a e italiana. O p r o p r i e t á r i o d a terra assi-
n a v a um c o n t r a t o — p o r três, q u a t r o ou mais a n o s — com
um agricultor, que c o n c o r d a v a em g a r a n t i r - l h e a exploração.
O f a z e n d e i r o c o n s e r v a v a dois terços ou mesmo três q u a r t o s
d a colheita ( n o primeiro a n o poderia tê-la só p a r a si) p a r a
c o n s u m o próprio e v e n d a . N o m e s m o c o n t r a t o , poderia receber
um empréstimo d o proprietário p a r a iniciar a s fainas agrícolas.
A CAPITAL COMERCIAL DE GRASSE 173

ou o p r o p r i e t á r i o concordar em f o r n e c e r c e r t o e q u i p a m e n t o
ou e n c a r r e g a r - s e de certas t a r e f a s . U m notaire d e G r a s s e , pos-
suidor de um v i n h e d o na planície a b a i x o d a cidade, a r r e n -
d o u - o a um f a z e n d e i r o , mas d i s p ô s que u m a vez por a n o tiraria
s u a beca, d e i x a r i a seus manuais d e direito e o e s t u d o e, pes-
soalmente, p o d a r i a o v i n h e d o p a r a estimular o crescimento
certo d a colheita n o a n o seguinte. E s s a cláusula n ã o n o s d e v e
surpreender; o ato de podar as vinhas para melhorar-lhes o
r e n d i m e n t o e a q u a l i d a d e constituía um p r o g r e s s o técnico d e
considerável i m p o r t â n c i a e o nofaire l o g i c a m e n t e queria ver
um serviço b e m feito.
U m e x p e d i e n t e correlato e m p r e g a d o p e l o s comerciantes
d e G r a s s e e r a s u b l o c a r pastos. N u m e r o s o s c o n t r a t o s falam de
b u r g u e s e s d a c i d a d e a s s i n a n d o um acapt p o r d e t e r m i n a d a e x -
t e n s ã o d e p a s t o s d e p r o p r i e d a d e d e um n o b r e e, em seguida,
s u b l o c a n d o p a r t e s d o mesmo p o r períodos c u r t o s p a r a a cria-
ç ã o d e ovelhas, g a d o vacum e caprinos. E s s a v a r i a ç ã o d a me-
tayage era c o n h e c i d a n a p r á t i c a n o t a r i a l como mègerie, e se
c a r a c t e r i z a v a p o r igual partilha d o s lucros e n t r e o comerciante
e o sublocador, u s a n d o o primeiro p a r t e d e s u a cota p a r a p a g a r
o cens d e c o r r e n t e d o acapt. ( E m b o r a a metayage permitisse ao
d o n o d a t e r r a p r o t e g e r - s e c o n t r a a inflação, n ã o foi g r a n d e o
n ú m e r o de n o b r e s que t e n t a r a m c o n v e r t e r seus beaux à acapt
em p r o p r i e d a d e s d e metayage. S e u s motivos f o r a m sem dúvida
lógicos: a t r a d i ç ã o de artifícios como o acapt e a r e p u g n â n c i a
pelo comercialismo t r i u n f a r a m s o b r e o a u t o - i n t e r e s s e econômico.)
O a r r e n d a t á r i o em regime d e acapt ou metayage financiava
com a t o m a d a d e p e q u e n o s empréstimos a c o m p r a d o s artigos
de que necessitava. A fim d e c o m p r a r sementes, f e r r a m e n t a s
ou artigos p a r a o lar, ia a G r a s s e l e v a n d o u m copo de p r a t a
d e h e r a n ç a d e família, ou u m a peça d e tecido, q u a n d o n ã o
um m a n t o , que utilizava como p e n h o r . Se f o s s e p o b r e demais
p a r a possuir tais tesouros, p o d e r i a e m p e n h a r p a r t e d a colheita
d o a n o seguinte. O s c o n t r a t o s revelam q u e o p r e s t a m i s t a exigia
que a família ou amigos do f a z e n d e i r o viessem t a m b é m à cidade
e a s s i n a s s e m o c o n t r a t o como g a r a n t i a d a dívida. Se esta n ã o
era s a l d a d a , o p r e s t a m i s t a tinha o direito c o n t r a t u a l de con-
fiscar o s b e n s d o fazendeiro ou exigir que ele (ou os demais
f i a d o r e s ) viessem p a r a G r a s s e e p a g a s s e m a dívida em serviço.
A a g i o t a g e m n ã o constituía a t i v i d a d e a r r i s c a d a d e m a i s : o s
c o n t r a t o s m o s t r a m que n u m e r o s a s p e s s o a s c a r e n t e s d e recur-
174 OS ADVOGADOS BURGUESES

sos estiveram direta ou i n d i r e t a m e n t e e n v o l v i d a s n e s s a s ope-


rações.
O contrato de dívida era redigido por um noíaíre. E s s e
escriba judiciário poderia ser c h a m a d o à casa do p r e s t a m i s t a ,
o u a o s portões d a cidade, a fim d e t o m a r n o t a s s o b r e os termos
d a b a r g a n h a . E m seguida, r e d i g i a um d o c u m e n t o formal, em
latim, que a m b a s a s p a r t e s a s s i n a v a m sob j u r a m e n t o . Sem
d ú v i d a , p a r a u m p e q u e n o e m p r é s t i m o feito a um m a u risco de
crédito, o p r e s t a m i s t a c o b r a r i a uma alta t a x a d e juros, e m b o r a
esta fosse d i s f a r ç a d a d e a l g u m a m a n e i r a e j a m a i s e x p r e s s a -
m e n t e d e c l a r a d a . O p r o c e d i m e n t o mais simples era f a z e r com
q u e o d e v e d o r a s s i n a s s e um d o c u m e n t o d e q u e havia recebido
c e r t a soma, q u a n d o , n a v e r d a d e , r e c e b e r a muito menos. C u i d a -
d o s a m e n t e , o notãire incluía uma cláusula p e l a qual o d e v e d o r
desistia d a o b j e ç ã o de q u e a s o m a e s t i p u l a d a n ã o fora re-
cebida.
Débeis t e n t a t i v a s f o r a m f e i t a s p a r a c o m b a t e r o costume
do j u r o d i s f a r ç a d o , m a s p o u c o efeito s u r t i r a m . M a i s tarde, os
Parlements insistiram em q u e os i n s t r u m e n t o s d e dívida d e -
clarassem a s o m a d e v i d a em n ú m e r o s r e d o n d o s , n u m a r e a ç ã o
à f r e q ü ê n c i a d e c o n t r a t o s q u e estabeleciam a dívida, como, por
exemplo, 952 livres, q u a n d o , n a v e r d a d e , a p e n a s 900 h a v i a m
sido tomados de empréstimo. O s notaires, imediatamente, p a s -
s a r a m a utilizar n ú m e r o s inteiros p a r a m a s c a r a r o s juros em
empréstimos de p e q u e n o valor. D a i em diante, um i n s t r u m e n t o
d e dívida d e 1 . 0 0 0 livres seria redigido, embora o m u t u á r i o
tivesse recebido a p e n a s , d i g a m o s , 941.
A proibição d a u s u r a só foi cumprida bem t a r d e n a P r o -
v e n ç a . T i v e s s e nosso f a z e n d e i r o vindo à cidade, como talvez
seu pai houvesse feito em 1295. o c o n t r a t o de dívida teria
m e n c i o n a d o s e p a r a d a m e n t e o principal e os juros. A p ó s o
século X I V , os r e s u l t a d o s d a c a m p a n h a contra a u s u r a lan-
ç a d a pela I g r e j a p o d e m ser vistos n a prática notarial. Daí em
diante, todos os empréstimos constavam n o s c o n t r a t o s como
s e n d o feitos " e n t r e a m i g o s " , "por c a u s a de a m i z a d e " , e cer-
t a m e n t e sem j uros.
O r e s g a t e devia ser feito nos f e r i a d o s religiosos m a r c a -
d o s p a r a c o m e m o r a r o t é r m i n o de uma ou o u t r a e t a p a d a f a i n a
rural. A o ser c o m p l e t a d a a colheita, o f a z e n d e i r o levava a
p r o d u ç ã o ao m e r c a d o e e n t r e g a v a a p a r c e l a d e v i d a ao sócio
comanditário, se a t e r r a era o c u p a d a n o regime de metayaye•
A CAPITAL COMEHCIAL DE GRASSE 175

C o m seus lucros, p a g a r i a os p e q u e n o s empréstimos anterior-


mente c o n t r a í d o s . V o l t a v a em seguida à terra p a r a recomeçar
o ciclo a n u a l de e n d i v i d a m e n t o e r e s g a t e .
O f a z e n d e i r o n ã o sabia ler n e m m e s m o as n o t a s em pro-
vençal d o c u r t o s u m á r i o d o notaire, q u a n t o mais o extenso
latim d o d o c u m e n t o oficial. O recurso à lei era p r o d u t o da
n e c e s s i d a d e e o direito d a s obrigações n ã o lhe p o d i a ter sido
mais e s t r a n h o . N ã o e s t a m o s e x a m i n a n d o a q u i c o n t r a t o s des-
t i n a d o s a constituir a b a s e de litígios; o a c o r d o c o n t r a t u a l d í
s u b m e t e r q u a l q u e r c o n t e n d a a uma g r a n d e v a r i e d a d e de alça-
d a s , leigas e eclesiásticas, e r a u m a c l á u s u l a d e estilo, um flo-
reio notarial. A importância f u n d a m e n t a l do c o n t r a t o residia
n o f a t o de q u e a s g a r a n t i a s d e p a g a m e n t o eram executáveis
sem q u a l q u e r i n t e r v e n ç ã o judicial — c o n f i s c o de bens, g a r a n -
tias, r e f é n s . P a r a o f a z e n d e i r o , o c o n t r a t o , d a m e s m a f o r m a
que a p r o m e s s a d e v a s s a l a g e m feita pelo seu avô, constituía
o r e c o n h e c i m e n t o d e que o u t r o h o m e m lhe c o n t r o l a v a a vida.
e a v i d a d e s u a família. E r a ilusória s u a l i b e r d a d e d e c o m p r a r
e v e n d e r , e m p e n h a r seu p a t r i m ô n i o e f i r m a r c o n t r a t o s sem a
a p r o v a ç ã o de a l g u m senhor.
E m o u t r a s e s f e r a s d a vida, c o n t u d o , o c o n t r a t o era um
e x p e d i e n t e consensual autêntico, e a s r e l a ç õ e s c o n t r a t u a i s de-
s e m p e n h a v a m um papel real n o s negócios de negociantes de
f a z e n d a s , alfaiates, tanoeiros, f a b r i c a n t e s de s a b ã o e outros
a r t e s ã o s b u r g u e s e s . P a r a eles, constituía um i n s t r u m e n t o de
crédito, u m a m a n e i r a de e n c o m e n d a r m e r c a d o r i a s e regular o
t r a b a l h o . I n d i c a v a u m a livre circulação d e bens.
O s laços d a b a r g a n h a colocavam o b u r g u ê s q u e conhecia
os t r u q u e s legais oferecidos pelo direito d a s o b r i g a ç õ e s 110
próprio c e n t r o d e u m a r e d e d e v a n t a j o s a s relações sociais. A
forma mègerie d a metayage constituía a esse respeito o melhor
exemplo. O m e r c a d o r , a r m a d o com capital que. em numerosos
casos, t o m a r a e m p r e s t a d o a b a n q u e i r o s l o m b a r d o s , a r r e n d a v a
por uma p e q u e n a soma u m a g r a n d e g l e b a a um n o b r e que
precisava d e dinheiro vivo, m a s n ã o queria s u j a r as mãos no
comércio ou ignorava a s possibilidades legais. E s s a gleba,
o c u p a d a contra o p a g a m e n t o d e um m o d e s t o cens, era u s a d a
p a r a criação d e animais em b a s e comercialmente lucrativa. O
b u r g u ê s lucrava com a m a n i p u l a ç ã o d a terra — a i n d a osten-
sivamente " p o s s u í d a " pelo seigneur — e com a a r r e c a d a ç ã o
d o lucro p r o d u z i d o pela a t i v i d a d e d o t r a b a l h a d o r rural, que
176 OS ADVOGADOS BURGUESES

era quem, na realidade, criava o s animais. P o d i a ser s u b s t a n -


cial u m a u s u r p a ç ã o d e s s a s d a a u t o r i d a d e f e u d a l , m a s t u d o d e -
p e n d i a d e o f a z e n d e i r o p o d e r vir a G r a s s e v e n d e r a colheita
ou levar os animais ao abattoir, de p o d e r cultivar em paz seus
c a m p o s e de o s b u r g u e s e s d e G r a s s e p o d e r e m v i a j a r livre-
m e n t e e n t r e a Itália e a z o n a o c i d e n t a l d a P r o v e n ç a a fim
d e f a z e r a c o r d o com o s b a n q u e i r o s l o m b a r d o s .
A paz e a o r d e m n e c e s s á r i a s p a r a p r o t e g e r esse c o m é r -
cio n a s c e n t e eram g a r a n t i d a s pelos g o v e r n a n t e s d a P r o v e n ç a ,
e n t ã o p a r t e d o s domínios do Rei d e N á p o l e s . N o s r e i n a d o s
d e C a r l o s I e R o b e r t o ( 1 3 0 9 / 1 3 4 3 ) . h o u v e a criação d e u m a
n o v a m á q u i n a judiciária p a r a facilitar o d e s e n v o l v i m e n t o d o
comércio, como a Chambre des Comptes, em A i x - e n - P r o v e n c e .
Q u a n d o , em 1350, o colapso político d a C a s a R e a l de
N á p o l e s coincidiu com a r e c e s s ã o econômica, o a l a s t r a m e n t o
da Peste Negra e a destruição executada por bandos de cava-
leiros d e s e m p r e g a d o s e p e q u e n o s n o b r e s empobrecidos, a P r o -
v e n ç a entrou n u m p e r í o d o d e cem a n o s d e recessão econômica.
O s f a z e n d e i r o s n ã o p o d i a m mais v i a j a r em s e g u r a n ç a a t é G r a s s e
e mal podiam c o n t i n u a r a l a v r a r seus c a m p o s . F a z e n d a s f o r a m
a b a n d o n a d a s e c i d a d e s s e e n c o l h e r a m p o r t r á s de s u a s m u r a -
lhas. A á r e a r u r a l em volta d e G r a s s e , por exemplo, foi a p a -
r e n t e m e n t e a b a n d o n a d a n a maior p a r t e em fins do século X I V ,
e n ã o recolonizada a t é 1496.
Situação q u a s e idêntica ocorria n a maioria d a s c i d a d e s
q u e n ã o eram g r a n d e s c e n t r o s industriais. A s instituições f e u -
d a i s f o r a m f o r t a l e c i d a s à m e d i d a q u e os s e n h o r e s r e t o m a v a m
a s t e r r a s a b a n d o n a d a s e p r o c u r a v a m g e n t e p a r a cultivá-las.
A economia m o n e t á r i a diminuiu um p o u c o em importância, pois
n ã o era suficientemente f o r t e ou tradicional p a r a sobreviver a o
colapso político. A s n e c e s s i d a d e s d e d e f e s a militar e / o u d e
g a r a n t i r a s n e c e s s i d a d e s econômicas b á s i c a s a t i n g i r a m d u r a -
m e n t e a s indústrias b u r g u e s a s nascentes.
A história d a extinção de G r a s s e c o m o c e n t r o de c o m é r -
cio, e a f r a q u e z a d a s instituições b u r g u e s a s c o n t r a a violência
g e r a d a p e l a g u e r r a civil e a s d e v a s t a ç õ e s de s e r v i d o r e s f e u d a i s
d e s e m p r e g a d o s , serve d e lição sobre u m a o r d e m jurídica
q u a n d o c o n f r o n t a uma classe revolucionária. A violência que
v a r r i a a P r o v e n ç a foi s i m u l t a n e a m e n t e um t r i b u t o ao s u c e s s o
econômico b u r g u ê s e u m a a c u s a ç ã o à s u a debilidade política.
O s d e s t r u i d o r e s eram a q u e l e s c u j a f u n ç ã o social d e s a p a r e c e r á
A CAPITAL COMERCIAL DE GRASSE 177

ou diminuíra devido ao a p a r e c i m e n t o d e uma nova rede d e


relações c o n t r a t u a i s e à ampliação d o p o d e r d o s o b e r a n o p a r a
g a r a n t i r a o r d e m pública e a d e f e s a militar. C o n c e s s õ e s a r r a n -
c a d a s d o s g o v e r n a n t e s permitiram o crescimento d e institui-
ções b u r g u e s a s em meio a o sistema f e u d a l . M a s e s s a s conces-
sões. m e s m o d a d a a melhor b o a fé d e a m b o s os lados, e r a m
provisórias e parciais; n ã o s e f i z e r a m a c o m p a n h a r p e l a t o m a -
d a d o p o d e r estatal sobre t o d o o território, no q u a l a nova
classe p o d i a prever a realização d e a t i v i d a d e s econômicas,
e pelo e m p r e g o d e força suficiente p a r a destruir os inimigos
i n t e r n o s e e x t e r n o s d a nova o r d e m .

i
s

l
13

A Rebelião Camponesa
e o Direito à Terra

A p e s t e e a crise econômica d e fins do século X I V


p r o d u z i r a m um p r o f u n d o i m p a c t o sobre a I n g l a t e r r a . N e s s e
pais, após 1260, ocorreu um g r a d u a l a b a n d o n o do serviço
p r e s t a d o por cavaleiros c o m o meio p a r a f o r m a r uma força
militar, substituindo-se o sistema p o r um e x é r c i t o p e r m a n e n t e ,
m a n t i d o pela C o r o a . O s e n h o r d o domínio foi t r a n s f o r m a d o de
ativo a g e n t e c o m b a t e n t e em beneficiário passivo de serviços
feudais. O s s e n h o r e s c u j o s trisavôs ha viam, a fim d e f o r n e c e r
ao rei dez cavaleiros, e n f e u d a d o dez h o m e n s e lhes d a d o p e q u e -
n o s domínios suficientes p a r a seu sustento, e s t a v a m n e s s a época
ansiosos p a r a r e c u p e r a r e s s a s p r o p r i e d a d e s e a u f e r i r a r e n d a e
os serviços de uma á r e a mais e x t e n s a . A s pressões f i n a n c e i r a s
s o b r e os domínios m e n o r e s l e v a r a m n u m e r o s o s cavaleiros d e s s a
categoria a p e g a r em a r m a s como salteadores. E m fins do século
X I I I e princípios d o X I V , n u m e r o s a s m e d i d a s legislativas f o r a m
t o m a d a s a fim de limitar esses a t a q u e s a r m a d o s c o n t r a mer-
c a d o r e s . A s g u e r r a s civis ( 1 3 0 7 / 1 3 2 7 ) e a luta n a Escócia
a u m e n t a r a m em muito o n ú m e r o de h o m e n s a r m a d o s que v a g a -
v a m pelo campo.
A peste provocou o u t r a crise ao esgotar a o f e r t a d e m ã o -
d e - o b r a e intensificar a d i f i c u l d a d e de f a z e r a terra p r o d u z i r o
suficiente p a r a s u s t e n t a r seus proprietários. F o i r á p i d a a r e a ç ã o
g o v e r n a m e n t a l à s u b v e r s ã o econômica. U m a série d e e s t a t u t o s
b a i x a d o s em 1349 e 1351 estabeleceu salários mínimos, exigiu
q u e t o d a s a s p e s s o a s válidas t r a b a l h a s s e m e proibiu aos t r a -
b a l h a d o r e s deixarem seus e m p r e g o s , e x c e t o em circunstâncias
A REBELIÃO CAMPONESA E O DiHUITO A T E R R A 179

excepcionais. N u m a t a q u e f r o n t a l às migrações p a r a as cida-


des, o e s t a t u t o de 1388 d i s p u n h a que " T o d o e qualquer homem
ou mulher que t r a b a l h o u r e g u l a r m e n t e como carroceiro, 110
a r a d o ou em a l g u m a o u t r a f a i n a ou serviço agrícola até os
doze a n o s de idade, t r a b a l h a r á nesse e m p r e g o dai em diante,
e n ã o s e r á colocado em ofício o u c o m é r c i o . . . "
N e m t o d o s os exércitos d o rei, no e n t a n t o , podiam deter
a s forças q u e se vinham d e s e n v o l v e n d o n o campo. C o m e ç a r a
a libertação d o s servos d a gleba, e o s próprios senhores de
terra p r e f e r i a m colocar a q u e s t ã o n u m a b a s e mais comercial.
A e x p l o s ã o ocorreu 11a R e v o l u ç ã o C a m p o n e s a de 1381.
S e r v o s e indivíduos p r e s o s ao solo p o r laços feudais quei-
m a r a m os arquivos senhoriais e e n f o r c a r a m os a d v o g a d o s que
os c o n s e r v a v a m . M u i t o s deles a r r a n c a r a m de seus senhores o
direito de o c u p a r a s terras o n d e viviam e cultivá-las por um
a l u g u e l razoável. E s s a s concessões f o r a m c o n f i r m a d a s por
c a r t a s f i r m a d a s , muitas vezes sob pressão, pelos senhores e,
em n u m e r o s a s á r e a s d a I n g l a t e r r a , criaram uma n o v a f o r m a de
posse costumeira d a terra —• o a f o r a m e n t o , ou a divisão da
terra em lotes individuais p a r a c a d a família, e uma á r e a comum
de b o s q u e s e p a s t o s , no q u e constituía uma idéia cooperativa,
p a r a n ã o dizer comunitária.
C o m o s registros da s e r v i d ã o à m a n s ã o r e d u z i d o s a cinzas,
e e n f o r c a d o n o p á t i o o feitor do senhor, o s aldeões podem
ter-se sentido c onfi a nt e s em q u e h a v i a m obtido u m a g r a n d e
vitória. O s q u e se haviam l e v a n t a d o e se " e m b r i a g a d o de
l i b e r d a d e " t i n h a m vencido. N o e n t a n t o , o s que p e r m a n e c e r a m
p a r a cultivar a t e r r a descobriram com f r e q ü ê n c i a que seu di-
reito d e posse era c o n t e s t a d o d e p o i s de a b a f a d a a rebelião e
iniciada a reação. A luta n o s tribunais em torno d o s a f o r a -
m e n t o s persistiu por mais d e d u z e n t o s a n o s e — c o n f o r m e
t e r e m o s o p o r t u n i d a d e de v e r n o capítulo seguinte — n ã o foi
resolvida em f a v o r dos foreiros até que a b u r g u e s i a u r b a n a
e o p o d e r real se uniram p o r t r á s d o ideal d o livre comércio
de t e r r a s . A essa altura, p o r é m , os beneficiários n ã o eram os
a r r e n d a t á r i o s , mas os donos d a t e r r a . ( A concessão de a f o r a -
m e n t o pelo s e n h o r mediante u m a c a r t a constituía, de fato, uma
criação, pela força, d e um direito costumeiro escrito, executá-
vel pela corte senhorial. O senhor, porém, era o juiz dessa
corte. D a í a luta em a n o s posteriores p a r a invocar o poder
j u d i c a n t e real a fim de forçá-lo, e a seus herdeiros, a h o n r a r
as cartas concedidas.)
180 O S ADVOGADOS B U R G U E S E S

A luta d o s c a m p o n e s e s no c a m p o visava t a m b é m os
"juízes d o s t r a b a l h a d o r e s " ( m a i s t a r d e , juízes d e p a z ) , q u e
t i n h a m o d e v e r d e aplicar o s v á r i o s e s t a t u t o s d e c o n g e l a m e n t o
d e salários, e o s coletores reais d e impostos. E s t e s últimos
h a v i a m sido d e s p a c h a d o s em 1380 p a r a a r r e c a d a r um "imposto
per capita", l a n ç a d o n ã o s ó p a r a l e v a n t a r receita, m a s p a r a
f o r ç a r h o m e n s e m u l h e r e s a t r a b a l h a r . S e g u n d o diz a tradição,
o insulto de um coletor à filha de W a t T y l e r d e f l a g r o u a
m a r c h a sobre L o n d r e s , n a qual 100.000 c a m p o n e s e s e m o r a -
d o r e s humildes d a c i d a d e c a p t u r a r a m e d e c a p i t a r a m o L o r d e
C h a n c e l e r , o P r e s i d e n t e do S u p r e m o T r i b u n a l d o Rei e o
L o r d e T e s o u r e i r o . M a i s uma vez, c o n s i d e r a d o s como f o r a m
i n s t r u m e n t o s úteis n a p r o p o s i t u r a e n o c u m p r i m e n t o d a lei d o
imposto, o s a d v o g a d o s constituíram alvos especiais d a violên-
cia revolucionária.
O u , como disse S h a k e s p e a r e a respeito d e u m a l u t a d e
foreiros ocorrida um p o u c o depois d a época de que e s t a m o s
tratando:
D I C K : II a p r i m e i r a c o i s a & f a z e r , V a m o s m a t a i ' o s a d v o g a d o s ,
CADB: N ã o . I s s o e u m e s m o q u e r o f a z e r . N ã o é l a m e n t á v e l q u e
a p e l e d e u m c o r d e i r o i n o c e n t e s e j a t r a n s f o r m a d a era p e r g a -
m i n h o ? E que o pergaminho, sendo escrito, desgrace a vida de
u m h o m e m ? Alguns dizem que a abelha dá ferroadas, m a s eu
digo que é cera que ela dá. P o i s a s s i n e i e selei u m a vez certa
coisa, e n u n c a mais fui dono de m i m m e s m o .

A revolta foi r e p r i m i d a e os r i g o r o s o s termos d o e s t a t u t o


de 1398 a c r e s c e n t a r a m a s restrições ao p o r t e d e a r m a s à s s u a s
disposiçpes sobre o d e v e r d e t r a b a l h a r com b a i x o salário.
N o c a m p o inglês, l a t i f u n d i á r i o s n o b r e s ( e c o m p r a d o r e s
p l e b e u s d e g r a n d e s p r o p r i e d a d e s ) recebiam a l u g u e r e s de f o -
reiros q u e c o n t i n u a v a m a o b s e r v a r o sistema d e a g r i c u l t u r a
familiar, e e m p r e g a v a m m ã o - d e - o b r a e s t r a n h a p a r a cultivar o
r e s t a n t e de suas terras. O f a t o decisivo d a história jurídica
inglesa, p o r conseguinte, n ã o foi a r e a f i r m a ç ã o d o p o d e r f e u d a l
d e v i d o à a d v e r s i d a d e , m a s a a s s e r ç ã o d o p o d e r de policia real
de g a r a n t i r a s e g u r a n ç a econômica d a classe p r o p r i e t á r i a d e
terras. D e sua fortalecida b a s e n o c a m p o , essa classe c o n s -
truiu um sistema de poder politico c u j o s últimos vestígios
sobreviveram a t é a d é c a d a de 1830.
D u a s conseqüências econômicas d a s crises, c o n t u d o , l a n -
çariam as bases p a r a a evolução precoce d a I n g l a t e r r a , do capi-
A REBELIÃO CAMPONESA E O DIREITO À TERRA 181

talismo mercantil p a r a o industrial. A primeira foi a criação


d e u m a g r a n d e r e s e r v a de m ã o - d e - o b r a a s s a l a r i a d a no campo,
i m p e d i d a d e t r a n s f e r i r - s e p a r a a s c i d a d e s p o r f a l t a d e oportu-
n i d a d e s e c o n ô m i c a s e pelas proibições legislativas de deixar
o t r a b a l h o r u r a l . A o m u d a r o q u a d r o econômico e q u a n d o os
capitalistas c o n s e g u i r a m reunir p o d e r político suficiente p a r a
m u d a r o e s t a t u t o d e 1388, o i m p o r t a n t e e l e m e n t o d a m ã o - d e -
o b r a a s s a l a r i a d a estava p r o n t o p a r a ser l a n ç a d o no processo
d e industrialização.
O s e g u n d o elemento i m p o r t a n t e foi constituído pelos forei-
ros. Debilitou-se p r o f u n d a m e n t e o regime d e s e r v i d ã o : um
p a s s o f o r a d a d o p a r a a posse geral de t o d a s a s t e r r a s isentas
de serviços f e u d a i s •— o " f e u d o f r a n c o " s u b s e q ü e n t e m e n t e
r a t i f i c a d o pelo P a r l a m e n t o em 1660. A existência de agricul-
t u r a a l d e ã em p e q u e n o s lotes e os g r a n d e s e s p a ç o s r e s e r v a d o s
à t e r r a comum e r a m barreiras à e x p l o r a ç ã o economicamente
v a n t a j o s a d a t e r r a por uma classe de rentiers. E m m e n o s de
d u z e n t o s a n o s . os d e s c e n d e n t e s d o s foreiros q u e h a v i a m quei-
m a d o os a s s e n t a m e n t o s d a s m a n s õ e s feudais, a s s a s s i n a d o os
a d v o g a d o s e g a n h o o direito d e o c u p a r a terra, l e v a n t a r - s e -
iam mais u m a vez p a r a d e f e n d e r o que seus a n t e p a s s a d o s
h a v i a m c o n q u i s t a d o . Com g r a n d e custo, os foreiros haviam
a b a l a d o a e s t r u t u r a d a posse f e u d a l d a t e r r a . M a s os bene-
ficiários finais de seu sacrifício seriam os n o v o s proprietários,
q u e c o n q u i s t a r a m o poder 150 a n o s depois.
QUARTA PARTE

A Ascendência
da Burguesia
(1400-1600)
14

Introdução

E n t r e 1400 e 1600, i n f l u e n c i a d a s pela e n t r a d a d e


ouro, p r a t a e p r o d u t o s primários p r o c e d e n t e s d o N o v o M u n d o
e pelo que R . H . T a w n e y c h a m a d e " d o m í n i o d o homem
sobre o meio", f o r a m p r o f u n d a m e n t e a f e t a d a s a s e c o n o m i a s da
E u r o p a O c i d e n t a l . N ã o importa o que s e j a c h a m a d o esse pe-
ríodo — R e n a s c e n ç a , R e f o r m a , E r a d a s D e s c o b e r t a s , R e v o -
lução d o s P r e ç o s do Século X V I , E r a d o H u m a n i s m o — por
volta d e 1600 o s princípios f u n d a m e n t a i s d o direito p r i v a d o
francês, a legislação que t r a t a v a d e t r a n s a ç õ e s interpessoais
e n v o l v e n d o contratos, p r o p r i e d a d e s , e assim p o r diante, havia
em teoria, se n ã o n a prática, em t o d a p a r t e , s u b s t i t u í d o a s rela-
ções pessoais feudais.
N o c a m p o d o comércio, surgiu u m a n o v a e s t r u t u r a d e rela-
ções econômicas. E m 1400, n ã o h a v i a b a n q u e i r o q u e n ã o fosse
m e m b r o d e uma guilda de b a n q u e i r o s ou c a m b i s t a s . N ã o havia
tecelão que vivesse à m a r g e m d e sua guilda, e n e n h u m comer-
ciante que n ã o participasse d a b u r g u e s i a d e u m a ou mesmo
v á r i a s cidades. E m b o r a a i g u a l d a d e formal, legal, de "filiação"
n ã o exercesse influência direta s o b r e a s d i f e r e n ç a s b e m reais d e
riqueza, p o d e r e influência e n t r e os d i f e r e n t e s membros, o
status de filiação definia a c a p a c i d a d e n a q u a l a g i a a p e s s o a e
a s conseqüências legais de seus atos. E m 1500, a s modificações
n a s relações econômicas haviam c o b r a d o um p e s a d o tributo, e
essa o r d e m jurídica começou a e s f a c e l a r - s e r a p i d a m e n t e p a r a
ser substituída p o r o u t r a que refletia mais facilmente a v e r d a -
deira distribuição d e p o d e r .

12 - D . A . C .
186 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA

E m escala mais ampla, e n t r a r a m em c o l a p s o certos p r e s s u -


p o s t o s institucionais básicos. P o r um lado, c i d a d e s isoladas, e
m e s m o ligas de cidades, d e s c o b r i r a m que n ã o p o d i a m mais so-
breviver; a d e f e s a militar e a g e r a ç ã o d e capitais suficientes
p a r a que p u d e s s e m p a r t i c i p a r d a e x p a n s ã o do comércio e d o
capitalismo industrial n a s c e n t e d i t a v a m que s o m e n t e a n a ç ã o -
e s t a d o constituía a f o r m a econômica, legal e politica a p r o p r i a d a
p a r a o período q u e se iniciava. P o r outro, a ilusão d a I g r e j a
Católica de u m a s ó c r i s t a n d a d e u n i f i c a d a foi d i s s i p a d a pela
R e f o r m a , b e m como, de f o r m a mais literal, p e l a d e s c o b e r t a d o
Novo Mundo.
A fim de b e m c o m p r e e n d e r m o s a v a l i d a d e essencial d e s s a s
a f i r m a ç õ e s , p r e c i s a m o s a p e n a s r e c o r d a r o s principais f a t o s h i s -
tóricos desse período. D e c l i n a v a a Liga H a n s e á t i c a , n ã o t e n d o
conseguido estabelecer a necessária u n i d a d e p a r a competir pelos
d e s p o j o s d o N o v o M u n d o e i n g r e s s a r na n o v a era do c a p i t a -
lismo mercantil. C o m a q u e d a de C o n s t a n t i n o p l a , a Itália per-
d e r a suas f o n t e s d e b e n s no O r i e n t e . O B a n c o M e d i c i faliu em
1494 e, com ele, g r a n d e p a r t e d o p o d e r d e s s a familia d e s a p a -
receu. E n t r e m e n t e s , a b u r g u e s i a italiana e a n o b r e z a rica n ã o
conseguiam i n s t a u r a r a u n i d a d e política necessária p a r a f o r m a r
u m a b u r g u e s i a e um m e r c a d o nacional de b e n s e m ã o - d e - o b r a .
O Príncipe, d e M a q u i a v e l , q u e foi essencialmente um apelo em
prol da u n i d a d e italiana sob o s Medíeis, veio à luz em 1500,
n u m a vã e s p e r a n ç a d e r e s t a u r a r o p o d e r d a família. E m b o r a
P o r t u g a l e E s p a n h a fossem os primeiros a e x p l o r a r os recursos
d o N o v o M u n d o , n e n h u m d o s dois conseguiu instituir uma
f o r m a de o r g a n i z a ç ã o social que permitisse o investimento sis-
temático d o s capitais obtidos n a s n o v a s terras. Já f r a n c e s e s e
ingleses c o n q u i s t a r a m u m a p a r c e l a d e s p r o p o r c i o n a d a m e n t e
g r a n d e a t r a v é s d o comércio, a u t o r i z a ç ã o de n a v e g a ç ã o de corso
e p u r a pirataria.
A criação, p e l a b u r g u e s i a , de uma o r d e m jurídica a p r o -
p r i a d a ao seu desenvolvimento, a p a r t i r de 1500, o c o r r e u q u a s e
q u e inteiramente na F r a n ç a e I n g l a t e r r a . U t i l i z a n d o meios d i f e -
r e n t e s e em ritmos a c e n t u a d a m e n t e distintos, a s d u a s nações
criaram modelos jurídicos que f o r a m copiados por o u t r o s E s -
t a d o s que t o m a r a m a e s t r a d a capitalista logo q u e obtida a
u n i d a d e política.
A n t e s de 1400. o m e r c a d o r era ou um a r t e s ã o com raizes
locais ou um a v e n t u r e i r o internacional. D e início, a compra c
INTRODUÇÃO 187

v e n d a eram i s o l a d a s e sem c a r á t e r d e c o n t i n u i d a d e , t r a n s f o r -
m a n d o - s e , n a m e d i d a em que o permitia o crescimento das
c i d a d e s e a s r e d e s de comunicação, em comércio p r o p r i a m e n t e
dito •— ou b u s c a sistemática d o lucro a t r a v é s d a troca. N o
período t r a n s c o r r i d o entre 1400 e 1600, o c o r r e u um novo fenô-
m e n o : o desenvolvimento e predomínio final d a s atividades
m a n u f a t u r e i r a s , e n v o l v e n d o a c o o r d e n a ç ã o e sistematização da
produção artesanal.
O s primeiros mercadores m a n t i n h a m u m a relação p u r a -
m e n t e " e x t e r n a " com o inodo de p r o d u ç ã o , c o m p r a n d o do pro-
d u t o r e t r a n s p o r t a n d o a s m e r c a d o r i a s p a r a o p o n t o o n d e elas
seriam v e n d i d a s a o mais alto preço. G r a d u a l m e n t e , começaram
a investir d i r e t a m e n t e n a p r o d u ç ã o , i n t e g r a n d o o s processos
s e p a r a d o s que resultavam na criação do p r o d u t o a c a b a d o . P a r a -
lelamente, p a r t e d o s p r o d u t o r e s acumulou capitais e começou a
o r g a n i z a r a p r o d u ç ã o em b a s e capitalista, i s e n t a d a s restrições
d a s guildas.
U m a f o r m a política m o s t r a v a - s e especialmente a p r o p r i a d a
a esse f e n ô m e n o , a n a ç ã o - e s t a d o . P o r volta do século X V
c o m e ç a m o s a e n t r e v e r a e m e r g ê n c i a d e s s a instituição peculiar-
m e n t e b u r g u e s a , n a qual, d e n t r o d a s f r o n t e i r a s políticas de um
território d o m i n a d o por um único s o b e r a n o , e r a m removidos
t o d o s o s impedimentos à livre m o v i m e n t a ç ã o de bens. O u , como
escreveu M a u r i c e D o b b :
A rápida ascensão dos industriais, em especial n a Inglaterra,
a b s o r v e u a o s p o u c o s ob v a g a b u n d o s e o s s e m t e r r a . C o m o
advento do processo manufatureiro, ingressaram as várias
nações n u m a relagão competitiva. A luta pelo comércio fazia-so
a t r a v é s d e g u e r r a s , d i r e i t o s a d u a n e i r o s p r o t e c i o n i s t a s e proibi-
ções, ao passo que nações anteriores, n a m e d i d a e m que man-
t i n h a m q u a l q u e r r e l a ç ã o e n t r e si, h a v i a m p a r t i c i p a d o a p e n a s d e
c o n t a t o s I n o f e n s i v o s . D a í e m d i a n t e , o c o m é r c i o a d q u i r i u itrvpov-
tância politica.

O início d a m a r c h a p a r a o capitalismo industrial, a impo-


sição de n o v a s f o r m a s econômicas, a divisão pelo direito, a con-
quista ou o r o u b o puro e simples d a riqueza do N o v o M u n d o ,
a m a n u t e n ç ã o d a balança comercial de m a n e i r a que mais
riqueza e n t r a s s e do que saísse — t u d o isso foi realizado a um
a l t o preço. O c o r r e r a m violentos c h o q u e s e c r u e n t a s lutas em
t o r n o d e c a d a um desses pontos. S e em retrospecto e s s a s situa-
ções s e nos a f i g u r a m como p a s s o s inevitáveis n a e s t r a d a p a r a
188 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

a m o d e r n i d a d e , n ã o t i n h a m tal a s p e c t o em 1500. M u i t o s se
o p u n h a m , e ficavam m e s m o c h o c a d o s , com a d e s t r u i ç ã o d e
v e l h o s valores e instituições que a c o m p a n h a v a m esses f e n ô m e -
nos políticos e econômicos. A vida e o b r a de T h o m a s M o r e .
que se opôs à política social e econômica d o s T u d o r s com sátiras,
r e c o m e n d a ç õ e s e. por último, a p r ó p r i a vida, p r o p o r c i o n a - n o s
uma idéia sobre o que f o r a m esses eventos.
15

Thomas More
e a Destruição
da Visão Medieval

T h o m a s M o r e ( M 7 8 / 1 5 3 5 ) figurou entre os homens


mais t a l e n t o s o s d e seu tempo. A d v o g a d o s o b e r b o e d o s mais
b e m p a g o s n a s cortes d e direito costumeiro, foi t a m b é m crítico
social brilhante, c u j a principal obra, A Utopia, p u b l i c a d a em
1516, contém a v i s ã o d e uma s o c i e d a d e ideal, v a z a d a em belís-
sima p r o v a e o r n a d a p o r u m a critica social m o r d a z . S e u s epi-
g r a m a s , p o e m a s e pilhérias, a d e n ú n c i a d a heresia, a a m i z a d e
d e u m a v i d a inteira com E r a s m o , o e s t u d o c o n s t a n t e d a s E s -
crituras, a p r e o c u p a ç ã o com q u e a f i l h a a p r e n d e s s e o latim e o
grego, s u a s c o n f e r ê n c i a s sobre A Cidade de Deus, d e S a n t o
A g o s t i n h o — t u d o isso o c o n f i r m a v a como líder incontestável
do m o v i m e n t o filosófico h u m a n i s t a europeu. E m s u m a , M o r e
combinava a s melhores q u a l i d a d e s do a d v o g a d o medieval com
a q u e l a s q u e viemos a associar ao " h o m e m d a R e n a s c e n ç a " .
S e M o r e r e p r e s e n t a v a a t r a d i ç ã o medieval, e r a . a p e s a r
disso, u m a t r a d i ç ã o ilustrada n ã o só pelo espírito h u m a n i s t a ,
m a s t a m b é m por uma experiência considerável em assuntos
práticos. O conflito e n t r e as t r a d i ç õ e s medievais e a e m e r g e n t e
b u r g u e s i a n ã o era simplesmente e n t r e a u n i f o r m i d a d e f o r ç a d a
de crença e l i b e r d a d e de consciência, n e m e n t r e o corporati-
vismo católico e a idéia a b s t r a t a de individualidade. A s raízes
do conflito m e r g u l h a v a m f u n d o n a sociedade d a época e p o d e m
ser e x e m p l i f i c a d a s , a t é certo p o n t o pelo menos, pelo e x a m e d a s
opções f e i t a s p e l o próprio M o r e — opções q u e culminariam
em c h o q u e d i r e t o com H e n r i q u e V I I I e. finalmente, em sua
e x e c u ç ã o como traidor.
190 A ASCENDÊNCIA DA D U R O U E S IA

A s opções p a r e c i a m ser e n t r e c o n s e q ü ê n c i a s econômicas


e h u m a n a s b e m reais, f e i t a s à luz d e u m a crença sincera, ina-
balável, n u m D e u s real que, s e g u n d o a c o n c e p ç ã o medieval,
exigia c o n f o r m a ç ã o a seus d e s e j o s s o b p e n a d e c o n d e n a ç ã o
e t e r n a e, n a s opiniões que e n t ã o c o m e ç a v a m a t o m a r f o r m a ,
e s p e r a v a b o a s o b r a s como meio de a s s e g u r a r a salvação.
N u m r á p i d o e s t u d o d a v i d a de M o r e , verificamos que ele
foi t a m b é m p r o d u t o de um período decisivo d a história jurí-
dica b u r g u e s a . F i l h o de um juiz d a S u p r e m a C o r t e Real, a
principal instância de direito c o n s u e t u d i n á r i o n a I n g l a t e r r a ,
e s t u d o u a f u n d o o direito v i g e n t e d a terra, e m b o r a se d e d i -
c a s s e t a m b é m a o direito civil e u r o p e u e tivesse conhecimentos
d e direito canónico. E v i d e n t e m e n t e , conhecia t a m b é m direito
comercial, o u p e l o m e n o s o s c o s t u m e s mercantis, pois recebeu
um título h o n o r á r i o d e m e m b r o d a C o m p a n h i a d o s N e g o c i a n -
tes de T e c i d o s , a m a i s i m p o r t a n t e a s s o c i a ç ã o d a n o v a g e r a ç ã o
d a b u r g u e s i a mercantil inglesa, e foi escolhido p o r vários g r u p o s
de comerciantes p a r a realizar certo n ú m e r o de missões diplo-
m á t i c a s em F l a n d r e s , c e n t r o m a n u f a t u r e i r o intimamente ligado
ao c r e s c e n t e comércio d a I n g l a t e r r a em tecidos. Serviu no P a r -
l a m e n t o d u r a n t e a l g u m t e m p o e foi P r e s i d e n t e d a C â m a r a
d o s C o m u n s n u m a época em que a i n d e p e n d ê n c i a e o papel
financeiro d e s t e ó r g ã o começavam a ser d e f i n i d o s . A p ó s o c u p a r
v á r i o s c a r g o s de c o n f i a n ç a s o b H e n r i q u e V I I I , foi n o m e a d o
L o r d e C h a n c e l e r , p o s t o e m geral p r e e n c h i d o a p e n a s por reli-
giosos. A escolha de M o r e constituiu u m a e x t r a o r d i n á r i a h o m e -
n a g e m aos seus conhecimentos de direito. N e s s a q u a l i d a d e ,
exercia jurisdição judiciária p a r a rever e corrigir, d e a c o r d o
com os princípios d e e q ü i d a d e , o s j u l g a m e n t o s p r o f e r i d o s p e l a s
c o r t e s de direito costumeiro, e m i n i s t r a r o r e m é d i o i n d i c a d o
q u a n d o estas n ã o o f a z i a m . N ã o o consideramos, porém, como
principal mola p r o p u l s o r a d a s o c i e d a d e inglesa d e sua época.
E m vez disso, em sua v i d a e m o r t e p o d e m o s ver em a ç ã o a s
c o n t r a d i ç õ e s que dilaceravam de alto a b a i x o a o r d e m f e u d a l .
N o a n o em q u e foi a d m i t i d o n a o r d e m d o s a d v o g a d o s —
isto é. depois de ter p a s s a d o t e m p o suficiente em Lincoln's
I n n . o c a m p o de t r e i n a m e n t o profissional d o s j o v e n s causídi-
cos, e a n t e s d e p r e s t a r e x a m e p a r a pleitear em juízo — M o r e
fez t a m b é m u m a série d e c o n f e r ê n c i a s sobre A Cidade de
Deus, de S a n t o A g o s t i n h o . N e s s a época, a cosmologia medieval
sobrevivia na c r e n ç a n a u n i d a d e d a Ú n i c a V e r d a d e i r a I g r e j a .
S a n t o A g o s t i n h o , p a r a citar a p e n a s o mais eminente d o s pri-
THOMAS MORE E A D E S T R U I Ç Ã O DA VISÃO M E D I E V A L 191

melros visionários, p r e g a r a q u e a u n i d a d e d a fé constituía o


único meio p a r a se f o r m a r n a terra uma sociedade s a g r a d a .
A persistência desse ideal foi r e p e t i d a m e n t e c o n f i r m a d a nas
lutas q u e a c o m p a n h a r a m a R e f o r m a . O próprio Calvino fez
um c u m p r i m e n t o indireto a esse ideal, pois n ã o tolerava mais
a heresia em r e l a ç ã o à única e v e r d a d e i r a fé — a P r o t e s t a n t e ,
s e g u n d o ele —• d o que a Inquisição.
E s s a u n i d a d e , n o e n t a n t o , n ã o existia e jamais existira,
exceto talvez n a s a n t i g a s c o m u n i d a d e s d e c r i s t ã o s perseguidos.
Lutero e C a l v i n o tiveram r a z ã o em d e c l a r a r q u e os compo-
n e n t e s espirituais d a I g r e j a e s t a v a m p o d r e s e i n f e s t a d o s de
bichos. A visão, n ã o obstante, persistia como um objetivo que
a sociedade h u m a n a devia e s f o r ç a r - s e p a r a atingir. A s virtudes
básicas a serem cultivadas e r a m b e m c l a r a s : o p r e ç o justo, a
v e r d a d e i r a religião, um l u g a r p a r a t o d o s e a suspeita em rela-
ção ao g a n h o pelo g a n h o . P a r a os q u e a c r e d i t a v a m nessa visão,
parecia que a q u e l e s que a r e f u t a v a m , p r e f e r i n d o uma sociedade
c o n s t r u í d a sobre os elementos mais c oncretos d a m a n u f a t u r a ,
comércio e o u r o em barra, e s t a v a m c o n d u z i n d o seus países
para o desastre moral e humano.
P a r a M o r e , os custos sociais d a e x p a n s ã o econômica da
I n g l a t e r r a e r a m altos demais, s o b r e t u d o p o r q u e ela implicava
o fim d o ideal h u m a n i s t a medieval. A Utopia constitui uma
recriação d a universalidade espiritual d a I g r e j a antiga, i n f o r -
maea por uma racionalidade que, no sécuto X V I , começara a
caracterizar o e s t u d o da filosofia e d a tecnologia. D e s c r e v e o
livro u m a s o c i e d a d e comunitária, o n d e a c o n f o r m i d a d e fora
obtida n ã o pela força, mas g r a ç a s à justiça evidente de suas
instituições. H á t r a b a l h o s p a r a t o d o s , e m b o r a n ã o de um tipo
industrial o r g a n i z a d o . N ã o h á n e c e s s i d a d e de p r o d u ç ã o em
g r a n d e escala. "Ficareis e s p a n t a d o s em d e s c o b r i r " , escreveu
ele, " c o m o poucas pessoas r e a l m e n t e p r o d u z e m o que a raça
h u m a n a c o n s o m e . " P o r isso mesmo, n ã o h a v i a estímulo ao
espírito e m p r e s a r i a l ou ao motivo d o lucro. N ã o h a v i a cobiça
em U t o p i a , pois os seres h u m a n o s n ã o são n a t u r a l m e n t e
cúpidos, n e m a d v o g a d o s , n e m n o b r e s .
O p e n s a m e n t o religioso d e M o r e e n t r e m e a v a - s e com
opiniões p r á t i c a s s o b r e a sociedade inglesa, d u r a m e n t e criticada
n a seção i n t r o d u t ó r i a pelo p e r s o n a g e m R a f a e l :
H á g r a n d e n ú m e r o de nobres que v i v e m c o m o parasitas, do
t r a b a l h o d e o u t r a s p e s s o a s ou, e m o u t r a s p a l a v r a s , d e s e u s
foreiroB... N ã o contentes e m p e r m a n e c e r e m ociosos, fazem-se
192 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA

acompanhar de vasto número de servidores Igualmente indo-


lentes.
L a d r õ e s d ã o s o l d a d o s m u i t o e f i c i e n t e s e s o l d a d o s cfão l a d r õ e s
multo empreendedores... Trata-se (a guerra, oa exércitos
permanentes) de u m a epidemia praticamente mundial. A França,
p o r e x e m p l o , s o f r e de u m a f o r m a a i n d a m a i s v i r u l e n t a d e s a a
doença...
As ovelhas... aquelas plácidas criaturas, que c o s t u m a v a m pedir
tão pouco c o m o alimento, desenvolveram agora, aparentemente,
um apetite voraz e se transformaram em comedoras <te
h o m e n s . . . Campos, casas, cidades, tudo lhes desce pelas gar-
gantas... Nobres e cavaleiros, para não mencionar vários
piedosos abades, n ã o se c o n t e n t a m m a i s e m levar vidas ociosas
e c o n f o r t á v e i s , q u e n ã o tre-zem n e n h u m b e m à s o c i e d a d e —
precisam a t i v a m e n t e prejudicá-la, f e c h a n d o c o m cercas e trans-
formando e m pastos todas as terras onde possam pôr as m ã o s
e nada d e i x a n d o p a r a o cultivo. T o d o s e s s e s c o b i ç o s o s Indiví-
duos allmentam-se de s u a terra nativa c o m o se foasem tumores
malignos, absorvendo campo após campo, e delimitando com
cercas milhares de hectares. Resultado: c e n t e n a s de fazen-
deiros são despejados.., Depois de terem v a g a d o ao léu
durante a l g u m t e m p o , . , o que podem fazer senão roubar
e s e r e m <Jevfda e j u s t a m e n t e e n f o r c a d o s p o r I s s o ?

P r o s s e g u e o p e r s o n a g e m dizendo q u e n u m e r o s o s tecelões f o r a m
expulsos do m e r c a d o pelos altos preços, o c a s i o n a d o s pela i n f l a -
ção, d a lã b r u t a , c u j a v e n d a era c o n t r o l a d a p o r u n s poucos
ricos.
C o n d e n s a d a n e s s a s p o u c a s linhas, temos a história e c o n ô -
mica d o s cem a n o s precedentes, bem como a s c o n s e q ü ê n c i a s
d a política econômica d o s T u d o r s s o b H e n r i q u e V I I I e seus
sucessores. F i c a m o s curiosos sobre o que H e n r i q u e deve ter
p e n s a d o q u a n d o , a p e s a r de t e r lido o e x e m p l a r d e A Utopia
q u e lhe fora o f e r e c i d o p o r M o r e , n o m e o u - o p a r a seu serviço
e c o n t i n u a m e n t e o prom ove u, a t é q u e e!e veio a o c u p a r o
s e g u n d o mais a l t o p o s t o d o reino.
M a s o que n o s diz essa história? D u r a n t e séculos, a lã
inglesa fora e x p o r t a d a p a r a a s tecelagens de F l a n d r e s e do
N o r t e d a Itália. A e s c r i t u r a ç ã o de b a n q u e i r o s e comerciantes
p r o p o r c i o n a - n o s uma clara idéia sobre o que era esse comércio
do p o n t o de vista d e c o m p r a d o r e s f l a m e n g o s e italianos, d o s
b a n q u e i r o s d a L o m b a r d i a e d o s m e r c a d o r e s de S t a p l e . O S t a p l e
era o nome d a d o ao g r u p o que detinha um monopólio real d e
p r o d u t o s primários e que, d u r a n t e a maior p a r t e d o século X V ,
teve sua sede em C a l a i s ( q u e p e r m a n e c e u em m ã o s i n g l e s a s
até 1558) e exercia uma a u t o r i d a d e que lhe fora c o n c e d i d a pela
THOMAS MORE E A D E S T R U I Ç Ã O DA VISÃO M E D I E V A L 193

C o r o a . O monopólio oficialmente estabelecido do S t a p l e e r a


ura meio tipicamente medieval d e negociar com uma impor-
t a n t e m a t é r i a - p r i m a nacional. ( G r a n d e p a r t e d a lã e x p o r t a d a
a t r a v é s d o S t a p l e era a p a r e n t e m e n t e t r a n s p o r t a d a em navios
italianos, embora, em a n o s anteriores, comerciantes d a Liga
Hanseática houvessem tomado parte no transporte para os
c e n t r o s m a n u f a t t i r e i r o s de B r u g e s . )
H a v i a , c o n t u d o , m a n e i r a s d e f r u s t r a r o monopólio d o
S t a p l e . A lã escocesa, por exemplo, p o d i a ser e n v i a d a d i r e t a -
m e n t e a F l a n d r e s ou. mais i m p o r t a n t e , o m e r c a d o r podia soli-
citar u m a licença real especial p a r a e x p o r t á - l a i n d e p e n d e n t e -
m e n t e . E n t r e 1455 e 1485, d u r a n t e a G u e r r a d a s Rosas, a C o r o a
britânica c o n c e d e u certo n ú m e r o d e l a s a b a n q u e i r o s italianos,
em troca de dinheiro s o n a n t e ou p a r a liquidar empréstimos a n t e -
r i o r m e n t e c o n t r a í d o s . A e s p e c u l a ç ã o violenta com esses e m p r é s -
timos constituiu a causa principal d o colapso financeiro d a
filial l o n d r i n a d o B a n c o M e d i c i .
P o r volta d e 1400, o comércio d e tecidos a c a b a d o s t o r n o u -
se s u f i c i e n t e m e n t e i m p o r t a n t e p a r a a d q u i r i r u m a b a s e o r g a n i -
zacional s e p a r a d a . " M e r c a d o r e s a v e n t u r e i r o s " em tecidos —•
n o m e d a d o à q u e l e s que v i a j a v a m ao exterior p a r a v e n d e r m e r -
c a d o r i a s •— c o m e ç a r a m a o r g a n i z a r uma c o r p o r a ç ã o p a r a con-
duzir e r e g u l a m e n t a r esse tipo d e comércio. T r a d i c i o n a l m e n t e ,
a I n g l a t e r r a h a v i a a p r e s e n t a d o saldo comercial n e g a t i v o com a
Itália, como conseqüência de g r a n d e s i m p o r t a ç õ e s de artigos de
l u x o p r o c e d e n t e s d o O r i e n t e . A s e x p o r t a ç õ e s de tecidos a c a b a -
d o s m e l h o r a r a m o s a l d o da b a l a n ç a . A l é m disso, q u a n d o a q u e d a
d e C o n s t a n t i n o p l a à s mãos t u r c a s em 1453 p ô s um ponto final
n o domínio italiano d o comércio com o Levante, a I n g l a t e r r a e
o u t r o s países d a E u r o p a O c i d e n t a l c o m e ç a r a m a desenvolver
seus m e r c a d o s internos. A e n t r a d a d e o u r o e p r a t a p r o c e d e n t e s
d o N o v o M u n d o forneceu o s capitais à e x p a n s ã o , e n q u a n t o
preços em alta, em especial a p ó s 1550, l e v a v a m à falência simul-
t a n e a m e n t e p e q u e n o s f a z e n d e i r o s e g r a n d e s nobres. A fabri-
c a ç ã o de tecidos, a n t e s dividida em g r a n d e n ú m e r o de ofícios
d i f e r e n t e s •— l a v a d o r e s , fiadores, tecelões, a s s e n t a d o r e s de cor,
tintureiros, e assim por d i a n t e •— p a s s o u crescentemente ao
controle do empresário, que a d q u i r i a a lã b r u t a e dirigia todo o
p r o c e s s o d e p r o d u ç ã o . A s guildas p e r d e r a m sua importância
prática.
Já vimos os custos h u m a n o s d e s s e desenvolvimento. A
m e d i d a q u e a s t e r r a s comuns d a s aldeias e r a m c e r c a d a s e o r g a -
194 A A S C E N D Ê N C I A DA B U R G U E S I A

n i z a d a a p r o d u ç ã o a fiin de g a r a n t i r o s u p r i m e n t o de lã, t o r -
n o u - s e impossível a vida r u r a l . S u r g i u uma classe o p e r á r i a
potencial, constituída d o s v a g a b u n d o s a que s e referia M o r e e
q u e n ã o d i s p u n h a de meios de v i d a até que p u d e s s e ser
a b s o r v i d a pelo p r o c e s s o de produção. U m a p e r s p e c t i v a social
d e s s e s fatos é e n c o n t r a d a em um p o e m a q u e circulou em C a m -
b r i d g e em m e a d o s de 1500 a fim de justificar a d e r r u b a d a d o s
c u r r a i s de c a r n e i r o s :
Syr I thinke that thls wyrke
Is as g o o d as to byld a k y r k e
For Cambridge bayles truly
Give yll e x a m p l e to t h e c o w n t r y e
Ther comones lykewiees for to engrose
A n d f r o m poor m e n it to e n c l o s e . . .
Therefore it is g o u d consciens I w e n e
T o m a k e that c o m m o n that ever hathe bene *

A ação c o n t r a s e r v i d o r e s u r b a n o s , o b j e t o d a s q u e i x a s d o s
v e r s o s acima, e n c o n t r a - s e r e g i s t r a d a n o s a n a i s d a C i d a d e de
C a m b r i d g e , em m e a d o s do século X V I :
U m trecho de t e r r a é t o m a d o dos c o m u a s e c e r c a d o por u m
muro ao f i m da trilha de Jesus, por cuja incorporação a
cidade é compensada, m a s não todos o s moradores da cidade,
que são prejudicados.

E m o u t r a s p a l a v r a s , e s t a v a m o r r e n d o a idéia medieval d e c i d a d e
c o m o posse c o m u m d e seus h a b i t a n t e s , d e s c e n d e n t e s d a q u e l e s
q u e se h a v i a m u n i d o em s e g u i d a a j u r a m e n t o s solenes. A "cor-
p o r a ç ã o " veio a significar o s s e r v i d o r e s municipais, os mais
ricos e poderosos d o s h a b i t a n t e s , q u e c o n s i d e r a v a m a s p r o -
p r i e d a d e s u r b a n a s como s u a s , v e n d e n d o - a s e e m b o l s a n d o o preço
recebido.
A fim d e ser i m p l a n t a d a racionalização n a p r o d u ç ã o , pre-
c i s a v a m ser c e r c a d o s o s c a m p o s e s u s p e n s o s o s privilégios d a s
guildas por c a r t a s régias c o n c e d i d a s a c o m p a n h i a s de e m p r e -
sários e e x p o r t a d o r e s , b e m como reescritas a s leis q u e regiam
a p o s s e d a t e r r a . E s s a t a r e f a exigia u m a p o d e r o s a e centrali-
z a d a a u t o r i d a d e e os b u r g u e s e s f o r a m , de fato, o s primeiros

• S e n h o r , p e n s o q u e e s t a o b r a / 35 t ã o b o a q u a n t o c o n s t r u i r u m a
igreja / Pois o bailio de Cambridge verdadeiramente I dará exemplo
a o pais. / S e u s c o m u n s e n r i q u e c e r ã o do m e s m o m o d o / E d a g e n t e
pobre tlravão p r o v e i t o . . . / Portanto, ê de b o a consciência que eu
c o n s i g a / fazer c o m que o c o m u m s e j a Bempre o que foi.
THOMAS MOKE E A DESTRUIÇÃO DA V1SÃÜ MEDIEVA). 195

p a l a d i n o s de uma p o d e r o s a m á q u i n a estatal. N a ç õ e s - e s t a d o s
como a I n g l a t e r r a e a F r a n ç a , que c o n s e g u i r a m unificar-se em
v o h a d e um forte poder central, sobreviveram e f o r a m f o r t a -
lecidas pelo caos econômico.
C o n t r a esses f a t o s investiram h o m e n s como M o r e . E m
A Utopia, s e a c h a m o s q u e ele r e a l m e n t e f a l a v a a sério, encon-
t r a m o s a s c h a v e s p a r a c o m p r e e n d e r s u a vida e m o r t e . M o r r e u
ele p o r um principio: " B o m servidor d o Rei, m a s D e u s pri-
meiro." O p ô s - s e f i r m e m e n t e ao divórcio e n t r e H e n r i q u e V I I I
e C a t a r i n a de A r a g ã o , a d v e r t i n d o ao rei que esse p r o c e d i m e n t o
era contrário ao direito c a n ó n i c o e ao divino. Q u a n d o , no res-
caldo d o divórcio, H e n r i q u e conseguiu do P a r l a m e n t o seu
r e c o n h e c i m e n t o como C h e f e S u p r e m o d a I g r e j a d a Inglaterra,
r e c u s o u - s e a p r e s t a r o j u r a m e n t o d e teste, pelo q u a l se reco-
nhecia a H e n r i q u e o direito d e u s a r esse título. S e u ponto de
vista era o m e s m o q u e s u s t e n t a r a n o s a t a q u e s q u e l a n ç a r a
contra a h e r e s i a : o indivíduo p o d i a a c r e d i t a r n o que quisesse,
e e n q u a n t o n ã o desse p u b l i c a m e n t e "ocasião p a r a calúnia,
t u m u l t o e sedição contra seu príncipe", n e n h u m motivo p a t a
punição haveria.
F o i a c u s a d o e j u l g a d o por traição, pelo " d e s e j o d e privar
o R e i de sua d i g n i d a d e , titulo o u n o m e à s s u a s p r o p r i e d a d e s
r e a i s " . C o n q u a n t o a q u e s t ã o em q u e se b a s e o u seu julgamento
fosse limitada à recusa em p r e s t a r o j u r a m e n t o , n a v e r d a d e
t i n h a u m a b a s e muito mais a m p l a : d e c l a r a v a M o r e que o
P a r l a m e n t o n ã o podia d e c l a r a r que um leigo e r a s u p r e m o em
q u e s t õ e s de fé, p o r q u a n t o tal p r e t e n s ã o contribuía p a r a f r a g -
m e n t a r a f r á g i l u n i d a d e d a f é cristã, d e t e r m i n a d a pelo E v a n g e -
lho. T a l p o d e r contribuiria p a r a o a u m e n t o do n ú m e r o d e g u e r r a s
e d a d e s t r u i ç ã o e, irremediavelmente, impediria a criação d e
uma c o m u n i d a d e cooperativa. M o r e e E r a s m o coincidiam ao
verem n a s f r o n t e i r a s d o s E s t a d o s " u m p a d r ã o r a b i s c a d o p a r a
divertir a m a l d a d e infantil d o s p r í n c i p e s " . M o r e , o católico de-
voto, n ã o p o d i a mais a s s e n t i r à s reivindicações religiosas de
H e n r i q u e do q u e M o r e . o h u m a n i s t a , p o d i a presenciar o sacri-
fício d e t o d o s o s laços pessoais a o s n e x o s d o dinheiro e do con-
trato. T a m p o u c o podia c o n c o r d a r q u e princípios devessem ser
s u f i c i e n t e m e n t e flexíveis p a r a a t e n d e r a q u a l q u e r razão de
E s t a d o ou v a n t a g e m econômica q u e p u d e s s e m ser plausivamente
a r g u m e n t a d a s . V e m o s em A Utopia que M o r e alimentava essas
idéias h a v i a algum tempo. H a v i a ele igualmente, n u m a inaca-
b a d a história de R i c a r d o III. d e s c r i t o o c a r á t e r desse príncipe
196 A ASCENDÊNCIA DA B U R G U E S I A

em t e r m o s q u e r e j e i t a v a m a " a r t e de g o v e r n a r a m o r a l " . E s c r e -
v e u q u e " a a c u m u l a ç ã o d e f o r t u n a " era a "única coisa que a f a s -
t a v a o P r í n c i p e d o c o r a ç ã o d o s ingleses".
A visão de M o r e n ã o foi a d e um místico, n e m foi ele um
apologista da selvageria f e u d a l ou d a política d o P a p a d a é p o c a .
C o m o a d v o g a d o , percebia c l a r a m e n t e a s c o n s e q ü ê n c i a s institu-
cionais d a s decisões e f o r ç a s a q u e s e o p u n h a . Q u a n d o T h o m a s
C r o m w e l l , que seria seu principal a c u s a d o r , veio visitã-Io, a p ó s
M o r e ter-se demitido d o c a r g o d e C h a n c e l e r , este aconselhou-o,
s e g u n d o n o s c o n t a seu genro, n a s s e g u i n t e s p a l a v r a s :
Mestre Cromwell, acabais de entrar para o serviço de uni dos
m a i s nobres, sábios e liberais príncipes. S e quiserdes a c e i t a r
m e u pobre conselho, no aconselhamento a Sua Graça sempre
l h e d i g a o q u e ele d e v e f a z e r , m a s nurvca o q u e e l e p o d e
f a z e r . . . Pois se o leão conhecesse s u a própria força, difícil
seria ao h o m e m domá-lo.

C r o m w e l l , n o entanto, i g n o r o u o conselho de M o r e . M a -
q u i a v e l escrevera em O Príncipe que "o h o m e m que deixa o q u e
é feito pelo q u e d e v e ser f e i t o a p r e n d e mais cedo sua ruína d o
q u e s u a c o n s e r v a ç ã o " . C r o m w e l l talvez n ã o h o u v e s s e lido M a -
quiavel, mas r e s p e i t a v a os ideais f u n d a m e n t a i s da m a n e i r a d e
g o v e r n a r dos T u d o r s . O discurso que p r o n u n c i o u no patíbulo,
q u a n d o , por sua vez, d e s a g r a d o u t a m b é m a H e n r i q u e , m o s t r a tal
r e s p e i t o : " P u i pela lei c o n d e n a d o a m o r r e r ; o f e n d i o meu
P r í n c i p e . . ."
M o r e e n g a n o u - s e ao a c r e d i t a r q u e a razão, o discurso ou
a f é p o d i a m m u d a r p r o f u n d a m e n t e o curso d o s f a t o s postos em
m o v i m e n t o pelos s o b e r a n o s T u d o r . M a s sua clara visão d a s
f o r ç a s em ação t o r n o u s u a v i d a e o b r a t e m a d e e s t u d o d e a u t o -
res t ã o d i f e r e n t e s e n t r e si como G . K. C h e s t e r t o n e K a r l
fíautslcy. E s c r e v e u este último: " O s objetivos que M o r e s e
p r o p ô s n ã o f o r a m as f a n t a s i a s d e uma h o r a ociosa, mas resul-
t a d o de p r o f u n d a introvisão d a s t e n d ê n c i a s econômicas reais
de s u a época." E m n o s s o p r ó p r i o estudo, p o d e m o s v e r e s s a s
t e n d ê n c i a s refletidas no direito d a terra b u r g u ê s .
16

A Reformulação
da Lei de Propriedade Imobiliária

O sistema de posse constituía u m a característica f u n -


d a m e n t a l d a lei f e u d a l que regia o u s o d a t e r r a . O o u t o r g a d o
t o m a v a p o s s e d a terra e a c o n s e r v a v a em n o m e d o o u t o r g a n t e .
P o d i a ela ser h e r d a d a pelos filhos do o u t o r g a d o , direito este
estabelecido d e s d e os primórdios d o sistema. O s e n h o r , n ã o
o b s t a n t e , t i n h a direito a c e r t o s serviços e benefícios: inicial-
mente, militares e, mais t a r d e , p r i n c i p a l m e n t e t r a b a l h o , p a r t e
d a colheita, u m p a g a m e n t o p e l a a s s u n ç ã o do herdeiro (substi-
t u i ç ã o ) e t u t e l a d o h e r d e i r o de m e n o r i d a d e . U m dos objetivos
d a lei era, p o r conseguinte, a s s e g u r a r que, em todos os níveis
da o r d e m f e u d a l , h a v e r i a a l g u é m c u j o s b e n s e pessoa podiam
ser a r r e s t a d o s a fim d e g a r a n t i r a p r e s t a ç ã o de serviços. D e
a c o r d o com a s disposições do direito costumeiro inglês mais
a n t i g o — a s c h a m a d a s ações reais —• um j u l g a m e n t o judicial
podia ser obtido, executável pelo p o d e r a r m a d o d a C o r o a ,
q u a n t o a o s serviços devidos, de q u e m e em q u e ocasiões; além
disso, o o u t o r g a d o podia ser r e i n s t a l a d o em uma p r o p r i e d a d e
<— um "imóvel" •— d o qual a l e g a s s e t e r sido d e s p e j a d o . D a í a
m á x i m a nulle terre sans seigneur, n ã o h á t e r r a sem um senhor.
A idéia f e u d a l de p r o p r i e d a d e c o n s i d e r a v a também a posse
d a t e r r a como implicando c e r t a s responsabilidades. O u , n a s
p a l a v r a s de T a w n e y :
A propriedade não é u m m e r o agregado de privilégios econômi-
c o s , m a s u m a p o s i ç ã o d e r e s p o n s a b i l i d a d e . S u a raí-son d'6tre
não é apenas a renda, m a s o serviço. D e v e assegurar ao seu
possuidor os meios, e n ã o m a i s do que tais meios, que p o s s a m
198 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA

capacitá-lo a desempenhar esses deveres, seja o trabalho n a


t e r r a , s e i a n o g o v e r n o , q u e e s t ã o i m p l í c i t o s n o status especial
que d e t é m no sistema. Aquele que busca m a i s rouba s e u s supe-
riores, s e u s d e p e n d e n t e s , o u a m b o s . A q u e l e que e x p l o r a s u a
propriedade vendo a p e n a s possibilidades econômicas simulta-
neamente perverte sua própria essência e destrói seu próprio
titulo m o r a l à terra, pois " t e m v i d a igual a de todos os h o m e n s ,
m a s n ã o c u m p r e o devou do h o m e m " .

E s s a idéia f a z i a - s e a c o m p a n h a r d a de n ã o e x c l u s i v i d a d e —
isto é, a t e r r a podia ser p o s s u í d a em comum, ou u m a gleba
p o d i a ser utilizada em d i f e r e n t e s estações p o r d i f e r e n t e s pes-
soas em benefício d a c o m u n i d a d e .
A opinião d a b u r g u e s i a m o d e r n a s o b r e a terra r e p r e s e n t a
u m n o t á v e l c o n t r a s t e em r e l a ç ã o a esse p o n t o de v i s t a . O u ,
c o m o diz K a r l R e n n e r , a u t o r de uma o b r a f u n d a m e n t a l sobre
o direito b u r g u ê s :
O direito de propriedade, dominium, constitui poder legal
a b r a n g e n t e s o b r e u m o b j e t o t a n g í v e l . N o q u e i n t e r e s s a ao
objeto, a posse é u m a instituição u n i v e r s a l : t o d a s a s c o i s a s
corpóreas, m e s m o a terra, p o d e m s e r o b j e t o de p o s s e s e
s ã o r e c o n h e c i d a s c o m o t a i s p e l a l e i e n ã o s ã o c o l o c a d a s extra
commercíum por disposição especial. A posse é igualmente
universal no tocante ao sujeito. Todoa t ê m igual capacidade de
posse e p o d e m possuir p r o p r i e d a d e s de t o d o s os tipos. E s s a s
são a s n o r m a s características deste instituto.

O instituto d a p r o p r i e d a d e , no s e n t i d o q u e veio a ter n a lei


b u r g u e s a , p o r conseguinte, p o s t u l a uma p e s s o a { p e e s o n a ) e
u m a coisa ( r e s ) , l i g a d a s por u m a n o r m a l e g a l c h a m a d a pro-
p r i e d a d e o u posse. A s o c i e d a d e h u m a n a compõe-se d e indi-
v í d u o s isolados e o m u n d o d o s b e n s é dividido em itens s e p a -
r a d o s . N ã o se p o d e mais f a l a r n u m d e v e r de u s a r a p r o p r i e -
d a d e ou c o m p o r t a r - s e d e certa m a n e i r a em relação aos d e m a i s :
t o d o s os d e v e r e s que p o d e m ser impostos pela lei são d e r r o -
g a ç ã o prima facie do f u n d a m e n t a l "direito d e p r o p r i e d a d e " .
E s s a s d u a s versões o p o s t a s d a lei q u e r e g e a t e r r a —
pois n ã o f a l a m o s a i n d a d e semoventes — r e p r e s e n t a v a m mais
t e n d ê n c i a s d o que situações reais. C o m e ç a r a m a adquirir o
c a r á t e r de n o r m a s jurídicas específicas à medida que se i n t e n -
sificava, n o s séculos X V e X V I , a luta sobre q u e m devia
possuir a t e r r a . P o r volta d e 1500, já p o d e m o s f a l a r de inte-
r e s s e s f e u d a i s e b u r g u e s e s em escala nacional n a F r a n ç a e
Inglaterra.
A REFORMULAÇÃO DA LEI DE PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA 199

O s f e u d a l i s t a s d e s f r u t a r a m d a v a n t a g e m inicial. A s cortes
d e direito costumeiro t i n h a m jurisdição sobre a maioria d a s
q u e s t õ e s relativas às p r o p r i e d a d e s imobiliárias e e s t a v a m fir-
m e m e n t e v i n c u l a d a s à C o r o a . P o r "direito costumeiro" refe-
r i m o - n o s a o direito aplicado pelos t r i b u n a i s reais, em oposição
aos direitos locais d a s cortes senhoriais r e m a n e s c e n t e s , o direito
comercial e o direito marítimo feito cumprir pelos tribunais
b u r g u e s e s , o direito canónico e o p o d e r do C h a n c e l e r de julgar
q u e s t õ e s d e eqüidade, d o qual Jogo falaremos. A C â m a r a
d o s C o m u n s p o d e t e r c o n t a d o e n t r e seus p a r e s com r e p r e s e n -
t a n t e s d e municípios, m a s d u r a n t e esse p e r í o d o era c o n t r o l a d a
p o r p r o p r i e t á r i o s rurais q u e n ã o t i n h a m interesse em reformular
a lei d a t e r r a . A t é que a t r i b u t a ç ã o d i r e t a assumisse importân-
cia decisiva, muito mais tarde, g r a n d e p a r t e da receita d a Coroa
era o r i g i n á r i a de serviços feudais. N a I n g l a t e r r a e F r a n ç a
d o século X V I , a b u r g u e s i a .— q u e c o n t r o l a v a a riqueza móvel
{dinheiro e ativos facilmente conversíveis em m o e d a ) , a qual
p o d i a ser u s a d a p a r a p a g a r à vista impostos diretos — con-
c o r d o u com a t a x a ç ã o d i r e t a em troca de crescente participação-
no g o v e r n o e concessões d a C o r o a n a r e f o r m a d a lei. d a f o r m a
a p l i c a d a p e l a s cortes reais. A lei v i g e n t e n o s municípios reais
n a I n g l a t e r r a já era e l a b o r a d a p e l a s cortes de justiça d e s s a s
u n i d a d e s políticas e a t e r r a de p r o p r i e d a d e d o s " b u r g o s " era
a q u e mais e x p r e s s a v a o ideal b u r g u ê s . S ó em 1660, com a
r a t i f i c a ç ã o legislativa da R e v o l u ç ã o Inglesa, toda a terra a d q u i -
riu u m g r a u semelhante d e transmissibilidade por testamento
e compra.
A s c o m p l e x i d a d e s d a Jei no t o c a n t e a terras f o r a d a s
c i d a d e s constituíam a principal f o n t e d e r e n d a d o s a d v o g a d o s
q u e litigavam sob a égide do direito costumeiro. A carreira
d e a d v o g a d o nesses tribunais, p o r conseguinte, n ã o era neces-
s a r i a m e n t e a ocupação p r e f e r i d a do filho do mercador, por-
q u a n t o a b u r g u e s i a n ã o era. em 1500, o cliente p r e f e r i d o desses
causídicos. A burguesia, c o m o vimos acima, possuía seus pró-
prios tribunais municipais e comerciais. S ó em princípios do
século X V I I e l a b o r a r a m a s cortes d e direito costumeiro um
sistema de n o r m a s legais que f o r a m a p l i c a d a s f a v o r a v e l m e n t e
ao comércio.
T o d o s os preceitos legais t e n d e m a sobreviver à s u a r a z ã o
de ser. É por isso que os a d v o g a d o s s ã o algumas vezes leva-
d o s a t o l e r a r a revolução, e t a m b é m a r a z ã o por que em t o d a s
a s épocas tiveram a r e p u t a ç ã o de torcer e d a r n o v a s f o r m a s a
200 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA

v e l h a s r e g r a s . A f o r m a a s s u m i d a pela lei d a t e r r a t e n d e u a
persistir muito t e m p o d e p o i s d e t e r e m d e s a p a r e c i d o a s relações
sociais q u e lhes h a v i a m justificado a criação, p a r c i a l m e n t e
p o r q u e a aquisição de interesses em p r o p r i e d a d e s imobiliárias,
a m e n o s que a t e r r a f o s s e d e i x a d a em pousio ou em seu e s t a d o
n a t u r a l , n e c e s s a r i a m e n t e implicava i n v e s t i m e n t o s que n ã o e r a m
fáceis d e retirar e criava t a m b é m interesses que t a m p o u c o
podiam ser facilmente d e s l i n d a d o s .
A tensão e n t r e a s f o r ç a s f e u d a i s e b u r g u e s a s r e a p a r e c i a
c o n t i n u a m e n t e , à m e d i d a que a s cortes d e direito costumeiro
e l a b o r a v a m a lei d a t e r r a . T e n t a t i v a s de evitar o p a g a m e n t o
d e o b r i g a ç õ e s f e u d a i s e r a m a m i ú d e o b j e t o d e litígios n o s tri-
bunais. A i n d a em 1581. p o r exemplo, a Justiça R e a l anunciou
c o m o lei, no que é conhecido como decisão do C a s o Shelley,
um princípio q u e t i n h a a d e c l a r a d a i n t e n ç ã o d e p r e s e r v a r o
direito d e tutela e substituição. I m a g i n e - s e u m a s i t u a ç ã o em
que A e n t r e g a a B c e r t o lote d e t e r r a . Se a n o r m a b u r g u e s a
s o b r e p r o p r i e d a d e f o s s e inteiramente seguida, a q u e s t ã o t e r -
minaria aí: B a d q u i r i r i a a t e r r a e a única r e l a ç ã o legal seria
e n t r e B, persona, e res, t e r r a . A situação, porém, n ã o era t ã o
simples assim em 1500. A podia t r a n s f e r i r t e r r a a B, mas, ao
fazê-lo, B a p e n a s o substituía n a h i e r a r q u i a f e u d a l , d e v e n d o
p r e s t a r serviços a a l g u m senhor, L. E n t r e os direitos d o s e n h o r ,
e d e s u m a importância p a r a a q u e l e s que se e n c o n t r a v a m em
sérias d i f i c u l d a d e s econômicas, h a v i a o p a g a m e n t o a ser rece-
bido q u a n d o B m o r r e s s e e seu h e r d e i r o ( e m geral, n a I n g l a -
t e r r a , o filho mais v e l h o ) lhe h e r d a s s e os interesses.
E s s e a n a c r o n i s m o e r a um convite à s o n e g a ç ã o , e a l g u n s
a d v o g a d o s a c e i t a v a m - n o . A substituição era d e v i d a q u a n d o
a l g u é m e n t r a v a d e posse d a terra por h e r a n ç a , m a s n ã o q u a n d o
o f a z i a p o r escritura ( p o r " c o m p r a " , como dizia a f r a s e t é c -
n i c a ) . Q u a n d o B recebia a t e r r a de A, em nosso exemplo, ele
n e l a i n g r e s s a v a por c o m p r a e, p o r conseguinte, n ã o p a g a v a a
substituição. M a s se A t r a n s f e r i s s e a terra "a B em p e r p e -
t u i d a d e e, por ocasião d a m o r t e de B, a C e seus h e r d e i r o s " .
C n ã o p a g a r i a a s u b s t i t u i ç ã o p o r q u a n t o era i n d i c a d o n a escri-
t u r a e assumia a posse d a terra em v i r t u d e de tal d o c u m e n t o .
N o j a r g ã o d a lei d a p r o p r i e d a d e imobiliária, B possuía u m a
p r o p r i e d a d e em p e r p e t u i d a d e e a C caberia o domínio pleno
dos b e n s h e r d a d o s ,
C o m o seria simples, então, substituir C por e s t r a n h o s , o s
h e r d e i r o s de B. A escritura de t r a n s f e r ê n c i a diria: a B por
A REFORMULAÇÃO DA LEI DE PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA 201

t o d a a v i d a e o r e s í d u o p a r a os seus herdeiros. N e s s e caso, o


herdeiro de B assumiria a p o s s e de a c o r d o com a escritura
( p o r c o m p r a ) e n ã o como seu sucessor s e g u n d o a lei. O her-
deiro de B. p o r t a n t o , n ã o p a g a r i a a t a x a de substituição. A s
cortes de direito costumeiro, no e n t a n t o , r e j e i t a r a m esse estra-
t a g e m a e s u s t e n t a r a m que a o u t o r g a era d e domínio p l e n o de
bens herdados.
O s a d v o g a d o s t e n t a r a m em s e g u i d a um r e f i n a m e n t o do
e s q u e m a , pelo qual A t r a n s f e r i a a p r o p r i e d a d e a B em p e r p e -
t u i d a d e . em s e g u i d a a D em p e r p e t u i d a d e , e p o s t e r i o r m e n t e a
B em domínio pleno d o s bens h e r d a d o s . O s juízes nem sempre
se d e i x a v a m e n g a n a r , contudo, como se p o d e ver no caso
a b a i x o em que se e n f r e n t a r a m o a d v o g a d o do s e n h o r , C a v e n -
dish, e o a d v o g a d o d o herdeiro, F i n c h d e n :
Cavendish: S e o a r r e n d a m e n t o foi f e i t o a seu pai e m perpe-
tuidade, com o resíduo para seus herdeiros legítimos, então seu
pai t i n h a d o m í n i o p l e n o . . . e se v o c ê f o s s e de m e n o r idade, o
selgneitr t e r i a d i r e i t o de t u t e l a e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , d e s u b s t i -
tuição.
Finchden: E l e não pode acionar-nos e pedir substituição como
herdeiros... porque não e s t a m o s aqui n e s s a qualidade.
Juiz Tkorpe; Entendo perfeitamente o que o senhor quer
dizer. O s e n h o r a l e g a que n ã o d e v e p a g a r a s u b s t i t u i ç ã o , d e v e z
que está aqui c o m o comprador, s e n d o o primeiro no qual produz
e f e i t o o r e s í d u o , s e g u n d o a l e t r a d a e s c r i t u r a ; m a s está. a q u i
de f a t o c o m o h e r d e i r o de s e u p a i . . . e o resíduo n ã o lhe
foi d u d o . . . e m s e u próprio n o m e , m a s n a s u a c o n d i ç ã o de
h e r d e i r o . E f o i d e c i d i d o p o r t o d o s o s j u i z e s q u e o aeigneur
deve ser c o m p e n s a d o pelo seu p r e j u í z o . . .

Isto é, o s e n h o r p o d i a c o n s e r v a r aquilo que t o m a r a pela força


como g a r a n t i a d o p a g a m e n t o d a t a x a de substituição, que
reclamava.
Persistiu d u r a n t e todo o século X V I , e m e s m o se intensi-
ficou, u m a forte insistência n a c o b r a n ç a d e t r i b u t o s feudais,
à medida que s e n h o r e s e cavaleiros, com s u a s r e n d a s limitadas
pela t e r r a e pelos costumes, e n f r e n t a v a m u m a i n f l a ç ã o cada
vez mais grave. A necessidade, se n ã o a p e n ú r i a , levou seig-
neurs de to d a a E u r o p a O c i d e n t a l a r e c l a m a r e m violentamente
seu? direitos. T i v e r a m , aliás, o apoio d e m o n a r c a s , que por
sua vez d e p e n d i a m d a r e n d a f e u d a l . F o r a m igualmente gerais
a s t e n t a t i v a s de s o n e g a ç ã o m e d i a n t e e m p r e g o d e n u m e r o s o s
artifícios legislativos. Com v a r i a d o sucesso, a b u r g u e s i a d o
c a m p o travou uma b a t a l h a d e g a n g o r r a em t o r n o dessa q u e s t ã o .

ia -
202 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

N a F r a n ç a , p o r exemplo, em princípios do século X V I ,


o s s o b e r a n o s mais u m a vez e n c a r r e g a r a m a d v o g a d o s d a t a r e f a
d e reduzir à f o r m a escrita o s c o s t u m e s v i g e n t e s em c a d a loca-
l i d a d e . U m a vez a p r o v a d o s pelos r e p r e s e n t a n t e s d o s t r ê s E s t á -
dios — clero, n o b r e z a e c o m u n s — o s c o s t u m e s e r a m r a t i f i c a d o s
pelo Parlement e o rei. T o d a s e s s a s compilações jurisprudenciais
refletiam c l a r a m e n t e a v o n t a d e real d e u n i f i c a r e ampliar seu
p o d e r judiciário, b e m como q u a i s q u e r i n t e r e s s e s locais s u f i -
cientemente p o d e r o s o s p a r a exigir r e c o n h e c i m e n t o . N a s c i d a -
des, essas compilações constituíram a s leis c o d i f i c a d a s d a b u r -
guesia e em g r a n d e m e d i d a d e n e g a v a m o u r i g o r o s a m e n t e limita-
v a m o s direitos senhoriais à t e r r a . F o r a d a s cidades, o n d e o t e r -
ceiro E s t a d o — a b u r g u e s i a , t r a b a l h a d o r e s e c a m p o n e s e s .— de-
c e r t o existia, s u a voz n ã o foi o u v i d a n a s compilações. O s direi-
tos senhoriais f o r a m reconhecidos m e s m o n o s casos em que a
r e l a ç ã o e n t r e s e n h o r e servo f o r a e s v a z i a d a d o a n t i g o c o n t e ú d o
de serviço militar e deveres pessoais recíprocos.
A s compilações de f a t o indicavam, n o e n t a n t o , uma cres-
cente p e r c e p ç ã o d a distinção e n t r e o s s e n h o r e s a t i v a m e n t e e m -
p e n h a d o s n a a d m i n i s t r a ç ã o de s u a s p r o p r i e d a d e s e aqueles que
o s b u r g u e s e s c h a m a v a m d e p a r a s i t a s e que viviam d o s t r i b u t o s
f e u d a i s , n a d a d a n d o em troca. E m 1567, a s compilações de di-
reito costumeiro d e A m i e n s , p o r exemplo, estabeleciam uma
distinção e n t r e o q u e c h a m a v a m d e f e u d o em t r a b a l h o e f e u d o
de simples v a s s a l a g e m . O primeiro c o n s e r v a v a g r a n d e p a r t e
d a s u b s t â n c i a d o feudalismo, embora n ã o n o tocante a d e v e r e s
militares. O s e g u n d o n ã o o fazia, m a s o s e n h o r c o b r a v a tribu-
tos d e q u a l q u e r maneira. E s s a d i s t i n ç ã o n ã o a p a r e c e na
compilação d a m e s m a c i d a d e d a t a d a d e 1507, i n d i c a n d o cres-
cente p e r c e p ç ã o de que. n o f e u d o p u r a m e n t e técnico, o senhor
era um p a s s i v o coletor d e tributos, os q u a i s reivindicava por
u s o imemorial, e n ã o p o r reconhecimento de q u a l q u e r f u n ç ã o
social.
O r e c o n h e c i m e n t o d e que certas relações f e u d a i s n ã o
serviam a q u a l q u e r f u n ç ã o social exigia que s e r e p e n s a s s e na
s e p a r a ç ã o , n a lei d a terra f r a n c e s a , e n t r e o domaine direct —
o direito s u p e r i o r d o o u t o r g a n t e a serviços ou o u t r a s f o r m a s de
p a g a m e n t o , e os direitos d a q u e l e s acima dele na pirâmide feu-
dal — d o domaine atile, ou o direito de cultivar a terra sob
q u a l q u e r f o r m a de p r o p r i e d a d e . Se a s compilações servem
d e q u a l q u e r o r i e n t a ç ã o no particular, o v o l u m e de t e r r a s aindn
s u j e i t a s a serviços f e u d a i s era a i n d a m u i t o g r a n d e no século X V
A R E F O R M U L A Ç Ã O DA LEI DE PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA 203

c princípios d o X V I . O s p a g a m e n t o s de serviços e substituições


d e v i d a s ao d e t e n t o r do domaine direct e r a m r e p e t i d a m e n t e espe-
cificados em g r a n d e s detalhes. N a r e g i ã o em volta de Amiens.
o d e t e n t o r d o domaine utile p o d i a vendê-lo, m a s um quinto do
preço cabia a o seigneur. O p a g a m e n t o d a t a x a de substituição
era d e v i d o q u a n d o o h e r d e i r o e n t r a v a n a posse d a terra. Em
a m b o s o s casos, o s e n h o r p o d i a i n t e n t a r a ç ã o n a c o r t e real re-
c l a m a n d o p a g a m e n t o , o que constituía uina ampliação d a juris-
dição real à s e x p e n s a s d a s c o r t e s senhoriais. ( N u m e r o s a s com-
pilações indicam que a I g r e j a e seus ó r g ã o s f i g u r a v a m e n t r e os
mais i m p o r t a n t e s p o s s u i d o r e s d e t e r r a s e d a i eram coletores de
g r a n d e p a r t e d o s tributos.)
A s c o m p r a s pelos b u r g u e s e s d e t e r r a s p e r t e n c e n t e s a
nobres, p r o c e s s o q u e se acelerou d u r a n t e t o d o o século X V I ,
eram d e dois tipos, o primeiro f e r i n d o d i r e t a m e n t e a divisão
e n t r e domaine direct e domaine utile e o s e g u n d o t e n d e n d o a
p r e s e r v á - l a como uma t a x a s o b r e a terra, implicando um ônus
p a r a 05 c a m p o n e s e s . N o primeiro caso, o c o m p r a d o r b u r g u ê s
adquiria a m b o s o s domaines, em dinheiro ou sob a f o r m a d e
aluguel p e r p é t u o d a terra. G r a ç a s a esse meio, a n t i g a s terras
senhoriais f o r a m r e t i r a d a s do sistema f e u d a l . N o s e g u n d o caso,
o b u r g u ê s c o m p r a v a a p e n a s o dornaine direct a dinheiro ou sob
a f o r m a d e aluguel perpétuo e, à s vezes, a d q u i r i a m e s m o o título
de n o b r e z a do senhor, o que o colocava em seu lugar no sis-
tema f e u d a l . E s s a última f o r m a d e c o m p r a satisfazia à s aspi-
rações d a b u r g u e s i a , cuja consciência d e classe r a d i c a v a - s e em
relações sociais fe uda i s e q u e c o n s i d e r a v a seu s u c e s s o material
como s i m p l e s m e n t e um meio de a d q u i r i r pela compra aquilo que
suas origens plebéias lhe n e g a v a m como direito de nascença.
P o r volta de 1600, três q u a r t o s d a s famílias n o b r e s da F r a n ç a
h a v i a m a d q u i r i d o d e s s a m a n e i r a o s seus títulos.
A s s i m , a i n v a s ã o d o c a m p o pela b u r g u e s i a , n a m e d i d a em
que os r e c é m - c h e g a d o s p a s s a v a m a o c u p a r o l u g a r d e seus ou-
t o r g a n t e s , n ã o modificou em muito o sistema de relações jurídi-
cas s o b r e o e s t a t u t o d a terra. F o i i m e n s a a t e n a c i d a d e desses
elementos f e u d a i s no direito imobiliário f r a n c ê s , p a r a n a d a dizer
sobre seu custo p a r a as c a m a d a s mais p r o d u t i v a s d a sociedade.
S ó f o r a m e x p u r g a d o s dos códigos com o a d v e n t o d a Revolu-
ção F r a n c e s a .
Já n a I n g l a t e r r a , foi mais d r a m á t i c a a m u d a n ç a n a s rela-
ções jurídicas p e r t i n e n t e s à t e r r a e o f e n ô m e n o constitui d a d o
i mp o r ta n te p a r a c o m p r e e n d e r m o s por que o capitalismo indus-
204 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

trial aí se desenvolveu a n t e s que n a F r a n ç a . E n q u a n t o os j u r i s -


c o n s u l t o s f r a n c e s e s e l a b o r a v a m a teoria d a m o n a r q u i a a b s o l u t a ,
os príncipes T u d o r já eram, de fato, reis desse tipo. H e n r i q u e
V I I I utilizou o p o d e r d o E s t a d o p a r a e s m a g a r t o d a s a s a m e a -
ças a seu governo. Ser o C h e f e S u p r e m o d a I g r e j a c e r t a m e n t e
a j u d a v a , pois a heresia a u t o m a t i c a m e n t e se t r a n s f o r m a v a em
traição e os p o d e r e s inquisitoriais o u t r o r a u s a d o s pelos tribunais
da I g r e j a p a r a e r r a d i c a r a heresia f o r a m assimilados p e l a s a u t o -
r i d a d e s seculares.
S o b os T u d o r s , foi realizada a unificação do país à s e x -
p e n s a s de s u z e r a n i a s locais do m e s m o tipo que c o n t i n u a v a a
irritar os reis franceses. A d e s t r u i ç ã o d o p o d e r d o s g o v e r n a n t e s
f e u d a i s necessariamente implicou m u d a n ç a s na lei d a terra, o
principal elemento do p o d e r feudal. O f a t o que exerceu o maior
efeito sobre a nova lei d e p r o p r i e d a d e real foi o confisco d o s
b e n s da I g r e j a p o r H e n r i q u e . A fim d e c o m p r e e n d e r m o s com
maior clareza o impacto dessa medida, p o d e r í a m o s t r a ç a r o se-
g u i n t e paralelo: se h a v i a um p e q u e n o centro de p r o d u ç ã o a r t e -
sanal dirigido s e g u n d o a s r e g r a s d a s guildas e alguém d e s e j a v a
c o n t e s t a r - l h e a posição n a e s f e r a d o direito e n o m e r c a d o , o
n o v o capitalismo indicava o caminho. U m a nova e m p r e s a , o r g a -
n i z a d a s e g u n d o princípios empresariais, podia surgir e a r r u i -
n a r o concorrente mais antigo, m a s m e n o s eficiente. A b ê n ç ã o
real e um monopólio d a distribuição d o p r o d u t o contribuiriam
p a r a acelerar o processo, m a s n ã o seriam indispensáveis. A
terra, c o n t u d o , p o r sua p r ó p r i a n a t u r e z a , n ã o se p r e s t a a t a l
processo. Em primeiro lugar, é um bem d e o f e r t a limitada. A
fim de m u d a r o s c o s t u m e s tradicionais de negociar com ela, o
indivíduo teria que e s p e r a r q u e n o v a s relações sociais infil-
t r a s s e m os velhos p a d r õ e s de distribuição e p e r m u t a . A única
m a n e i r a de l a d e a r essa limitação consistia no c o n f i s c o e redis-
tribuição em g r a n d e escala. H a v e n d o confisco de v u l t o s u f i -
ciente, o m e r c a d o d e t e r r a s p o d e r i a ser t ã o a f e t a d o que t o d o
o sistema de relações imobiliárias m u d a r i a . O c o n f i s c o o r d e -
n a d o por H e n r i q u e iniciou j u s t a m e n t e tal m u d a n ç a .
A p e n d ê n c i a com os mosteiros foi descrita t a n t a s vezes que
d i s p e n s a repisá-la aqui. É suficiente dizer que, no espaço de
três anos, H e n r i q u e conseguiu e n f e i x a r em suas mãos um s exto
de t o d a s as t e r r a s d a I n g l a t e r r a , p r o d u z i n d o elas u m a r e n d a
a n u a l igual ou maior que a que ele já auferia. M a s ele n ã o
agiu assim p a r a irritar o P a p a , que c o n d e n a r a seu divórcio de
C a t a r i n a de A r a g ã o , ou p a r a r e g u l a r i z a r a sucessão. T a m p o u c o
I

A REFORMULAÇÃO DA LEI DE •PROPRIEDADE «MOBILIÁRIA 205

agiu i m p e n s a d a m e n t e . N e m e s t a v a sozinho. H a v i a sentimén-


' tos p o p u l a r e s c o n t r a o s mosteiros.
i Inicialmente, obteve ele d o P a r l a m e n t o uma lei d a n d o - l h e
j 10 por cento d a r e n d a anual p r o d u z i d a p e l a s t e r r a s d a Igreja.
\ E m s e g u i d a , em 1536, sob a presidência do L o r d e C h a n c e l e r
T h o m a s A u d l e y ( q u e fora o a c u s a d o r d e M o r e ) , u m a comissão
de i n v e s t i g a ç ã o procedeu a o t o m b a m e n t o d a s p r o p r i e d a d e s
eclesiásticas. C o m u n i c o u ela n ã o só a r e n d a d a s c a s a s religiosas
— mais ou m e n o s 2 0 0 . 0 0 0 libras a n u a i s •— m a s t a m b é m escân-
dalos n a a d m i n i s t r a ç ã o de a l g u m a s delas.
E s s e s e s c â n d a l o s p r o p o r c i o n a r a m o f u n d a m e n t o ostensivo
p a r a a Lei d o P a r l a m e n t o d e 1536, c o n f i s c a n d o a s c a s a s meno-
res ( a q u e l a s com menos d e d o z e religiosos r e s i d e n t e s ) . F o r a m
elas descritas como centros d e " p e c a d o público, v i d a viciosa,
carnal, a b o m i n á v e l " , o n d e os r e s i d e n t e s "espoliavam, destruíam,
consumiam e d e s p e r d i ç a v a m s e m m e d i d a " . E r a difícil n ã o ser
contra p e c a d o s como esses. N o N o r t e d a I n g l a t e r r a , n o entanto,
f a z e n d e i r o s e t r a b a l h a d o r e s e m tecidos p e g a r a m em a r m a s
contra o c o n f i s c o d o s bens d a I g r e j a , m a s f o r a m reprimidos;
sua ira focalizou-se no confisco, m a s fora a l i m e n t a d a pelo cerco
d a s t e r r a s e pela destruição sistemática d a i n d e p e n d ê n c i a arte-
sanal n a i n d ú s t r i a de tecidos. A I g r e j a era c o n s i d e r a d a pelos
rebeldes como p r o t e t o r a d a v i d a a l d e ã c o n t r a a s incursões da
burguesia.
O c o n f i s c o d a s terras m o n á s t i c a s r e s t a n t e s ocorreu em
1539. O u t r a s glebas — de guildas e c a p e l a s •— f o r a m t o m a d a s
em 1547.
N o s seus a n o s de r e i n a d o re st a nt e s, H e n r i q u e vendeu a
maior p a r t e d e s s a s p r o p r i e d a d e s a favoritos d a c o r t e a fim
de f i n a n c i a r g u e r r a s n a Escócia e n a F r a n ç a . C o r t e s ã o s e
a m i g o s que a d q u i r i r a m essas ó t i m a s p r o p r i e d a d e s f o r m a v a m o
núcleo d e apoio político ao rei. Q u a n d o a b a d e s e o u t r o s religio-
sos d e i x a r a m a C â m a r a dos L o r d e s , com a b a s e de seu poder
e títulos f e u d a i s destruídos, criou o rei n o v a s d i g n i d a d e s de
p a r e s d o reino, escolhendo-os e n t r e esse n o v o g r u p o d e cor-
religionários. A l g u n s deles c o n s e g u i r a m e x p l o r a r a n o v a riqueza:
o u t r o s v e n d e r a m a s terras, s o b r e t u d o a interesses financeiros
l o n d r i n o s e d e o u t r a s g r a n d e s cidades^ L e m b r a T a v / n e y que um
d o s m a i o r e s contemplados foi Sir R i c h a r d G r e s h a m , o teórico
d a política m o n e t á r i a e comercial.
N a maioria d o s casos, a s t e r r a s , s i t u a v a m - s e fora d a s ci-
d a d e s . N ã o h a v i a m sido cultivadas pelos religiosos, seus pro-
206 A A S C E N D Ê N C I A DA B U R G U E S I A

prietários, m a s por foreiros r e s i d e n t e s em aldeias, que p a s t o -


r e a v a m u n s poucos a n i m a i s n a t e r r a comum. A e x p l o r a ç ã o efi-
ciente dessas p r o p r i e d a d e s p a r a fins mercantis, no e n t a n t o ,
implicava a f u s ã o d a p r o d u ç ã o de lã b r u t a com a f a b r i c a ç ã o
d o s tecidos. Isso, p o r seu t u r n o , a c a r r e t o u o cerco d a s t e r r a s
c o m u n s e a c o n v e r s ã o d o s a l d e õ e s em t r a b a l h a d o r e s a s s a l a r i a -
dos. S e o p o e m a sobre a d e s t r u i ç ã o d e cercas em C a m b r i d g e ,
transcrito acima, p a r e c e u violento ao leitor, leia a b a i x o a s p a -
l a v r a s de um concessionário de t e r r a s monásticas, f a l a n d o a
s e u s foreiros:
Sabeis que, p e l a G r a ç a do Rei, f o r a m d e s t r u í d a s t o d a s a s
casas de monges, frades e freiras? P o r conseguinte, c h e g o u a
hora de nós, cavaleiros, d e r r u b a r m o s as c a s a s de m i s e r á v e i s
velhacos como vós.

O s foreiros q u e p e r m a n e c e r a m tiveram s u a s e n f i t e u s e s
t r a n s f o r m a d a s em m e r a posse, s e g u n d o a v o n t a d e d o s n o v o s
s e n h o r e s — isto é, sem p r a z o d e f i n i d o — q u e r e c l a m a v a m t a m -
b é m o direito d e elevar o s a l u g u e r e s o q u a n t o quisessem, era
a l g u n s casos d u p l i c a n d o - o s , ou m e s m o triplicando-os. O s que
d i s p u n h a m de meios f o r a m a o s tribunais e m u i t a s d a s a l e g a -
ções de e n f i t e u s e r e c e b e r a m a g a r a n t i a d a lei. D e m o d o geral,
c o n t u d o , a idéia b u r g u e s a s o b r e a t e r r a •— a relação e n t r e p e r -
sona e res, sem o u t r a o b r i g a ç ã o q u e a posse e uso p a r a lucro
p e s s o a l — começou a ser a p l i c a d a d u r a m e n t e .
O s p o b r e s t i n h a m t a m b é m seus p a l a d i n o s , que consegui-
r a m a p r o v a r leis c r i a n d o comissões p a r l a m e n t a r e s d e i n q u é r i t o
e m e s m o p e r d o a n d o a q u e l e s q u e d e r r u b a v a m a s cercas. A f i n a l de
c o n t a s , a lei p r o m u l g a d a pelo P a r l a m e n t o d i s p u n h a c l a r a m e n t e
q u e a terra a r á v e l n ã o devia ser c o n v e r t i d a em p a s t a g e n s . E s s a
limitação sobre o c a r á t e r a b s o l u t o d a relação d e p r o p r i e d a d e ,
n o e n t a n t o , r a r a m e n t e e r a o b s e r v a d a , c o n f o r m e observou u m a
série de comissões d e inquérito. A propósito, cita T a w n e y as
p a l a v r a s d e um religioso:
N o f e c h a m e n t o d a s abadias, claustros, colégios e capelas, a
intenção de S u a M a j e s t a d e f a l e c i d a foi, e a d e n o s s o rei atual
é, o f i m , o u m e l h o r , o p r e t e x t o p a r a o u t r a s m a r a v i l h o s a s a ç õ e s :
que por essas m e d i d a s a q u e l a a b u n d â n c i a de b e n s a n t e s despen-
dida e m vãs cerimônias ou voluptuosamente para alimentar
ociosos estômagos, pudesse chegar à s m ã o s do Rei para finan-
ciamento de suas grandes responsabilidades, necessariamente
desempenhadas e m benefício do h o m e m comum, ou parcialmente
a outros homens, para m a i o r a j u d a aos pobres, a m a n u t e n ç ã o
A REFORMULAÇÃO DA LEI DE P R O P R I E D A D E IMOBILIÁRIA 207

da cultura, e a propagarão da palavra de Deus. N ã o obstante,


c o b i ç o s o s s e r v i d o r e s de tal m o d o u s a r a m e s s a s prerrogativas
que m e s m o aqueles bens que de fato serviram para ajudar aos
pobres, m a n t e r a c u l t u r a e prover a s necessidades da hospitali-
dade nas terras comuns, foram agora convertidos para a manu-
tenção de ambições mundanas, m á s e c ú p i d a s . . . Vós que tendes
a g o r a n a s m ã o s e s s e s b e n s , q u e u s a i s d e m a l a pior, e o u t r o s
b e n s m a i s para o m a l do que para o bem, t e n d e certeza de que
fostes vós que ofenderam a Deus, e n g a n a r a m o Rei, roubaram
o s ricos, r e d u z i r a m à m i s é r i a os pobres, e t r a n s f o r m a r a m a
riqueza c o m u m em mleérla comum.

M o r e faleceu em 1535. A n o s antes, m a n t i v e r a polêmica


com Simon F i s h . q u e i n s t a r a pelo c o n f i s c o de t o d a s as proprie-
d a d e s d a I g r e j a em um p a n f l e t o de 1529, intitulado A Suppli-
cation for the Beggars ( U m a P e t i ç ã o pelos M e n d i g o s ) . E m -
b o r a a c o n d e n a ç ã o de M o r e em A Utopia se h o u v e s s e esten-
dido aos " g o r d o s a b a d e s " , ein r e s p o s t a à o b s e r v a ç ã o d e F i s h
de q u e a I g r e j a possuia um t e r ç o da riqueza d o Reino, escreveu
as palavras abaixo:
Mas passando agora aos pobres mendigos: que remédio sugere
para eles seu protetor? Construir hospitais? Não, cuidado c o m
isso! Disso, coisa a l g u m a , pois n ã o seria prudente, u m a vez
que, q u a n t o m a i s m e n d i g o s pior, pois eles s e r i a m lucrativos para
os sacerdotes. Que remédio, então? Dar-lhes dinheiro! N ã o , n e m
u m t o s t ã o . O que, e n t ã o ? Q u e n ã o s e l h e s d ê n a d a , m a s que
se veja o que têm os religiosos e se lhes confisque tudo. N ã o
teremos aqui, c o m o remédio proposto, u m a brincadeira de m a u
g o s t o ? N ã o s e r á isso u m f e s t i m real: d e i x a r o s m e n d i g o s s e m
carne e enviar mais gente para jantar com eles?

 m e d i d a que s e t o m a v a m mais claras a s conseqüências do


confisco, a s opiniões de M o r e c o m e ç a r a m a ser repetidas pelos
firmes a d e p t o s d o s pontos d e vista d e F i s h . O s radicais anti-
católicos h a v i a m suposto q u e os hospitais, escolas e o u t r a s
instituições de c a r i d a d e s u s t e n t a d a s pela I g r e j a seriam m a n t i d a s
sob auspícios reais e que a s t e r r a s c o n f i s c a d a s seriam distribuí-
d a s ou c e d i d a s por aluguéis razoáveis. J u l g a r a m mal, n o entanto,
a s intenções ou os p o d e r e s de seus aliados n a C i t y de Londres.
A s t e r r a s , c o n f o r m e vimos, caíram n a s mãos d a burguesia. H o s -
pitais a o u t r a s instituições f o r a m substituídos p o r prisões e
c a s a s d e correção, estas d e s t i n a d a s a estimular camponeses,
e x p u l s o s d a terra, a ingressar n a força de t r a b a l h o como a s s a -
lariados.
208 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

H á nesse r e l a t o uma r e s p o s t a à q u e l e s que j u l g a r a m o u s a -


d a d e m a i s a f o r m u l a ç ã o por R e n n e r , a n t e r i o r m e n t e citada, d a s
n o r m a s sobre p r o p r i e d a d e subscritas p e l a b u r g u e s i a , isentas
c o m o e r a m d a ideologia do direito n a t t i r a l e liberdade, com
a qual a s h a v i a m investido os c o m e n t a r i s t a s dos séculos X V I I
e X V I I I . A legislação e x p r o p r i a t ó r i a d e H e n r i q u e V I I I tinha
s u a justificação: s u p r e s s ã o d a sedição e d a heresia, d e f e s a
d a C o r o a e p u r i f i c a ç ã o d a v i d a religiosa, s e p a r a n d o - a d a p e r -
seguição de riquezas. M a s foi. a p e s a r d e t u d o . uma e x p r o p r i a -
ção, seguida d e redistribuição. A idéia b u r g u e s a do século
X V I I I de íaissez-faire, f i g u r a n d o o E s t a d o como á r b i t r o n e u t r o ,
em p a r t e a l g u m a era e n c o n t r a d a n a I n g l a t e r r a d o s T u d o r á .
O E s t a d o era r e c o n h e c i d a m e n t e um i n s t r u m e n t o , c o m p a r t i -
l h a d o p e l a C o r o a e seus p o d e r o s o s aliados, p a r a e s m a g a r a
resistência a um n o v o sistema de relações sociais. A posterior
ideologia jurídica de p r o p r i e d a d e como direito n a t u r a l foi a ideo-
logia daqueles q u e já possuíam t e r r a s ou s e e m p e n h a v a m em
a d q u i r i - l a s no curso n o r m a l d o comércio. O u era o u t r a m a n e i r a
de dizer que quem quer qtie h o u v e s s e se a p o s s a d o de uma gleba
n o s t u r b u l e n t o s cem a n o s p r e c e d e n t e s devia p o d e r c o n s e r v á - l a .
F o r a m f o r m i d á v e i s p a r a o direito público a s c o n s e q ü ê n c i a s
d e s s a revolução n o direito p r i v a d o . O m e c a n i s m o de m u d a n ç a
u s a d o foi a lei e H e n r i q u e s ó p o r b r e v e s m o m e n t o s e x p e r i m e n -
tou a idéia de p r o m u l g a r p e s s o a l m e n t e leis sem c o n v o c a r o p a r -
lamento. V i v i a ele num e s t a d o d e n e c e s s i d a d e c o n t í n u a de
apoio político e d o s recursos financeiros d a b u r g u e s i a . E m
t o d a s a s difíceis c o n j u n t u r a s d a política d e H e n r i q u e , a b u r -
guesia sempre insistia em que as metas d u p l a s da política esta-
tal d o s T u d o r s e a s s u a s p r ó p r i a s v a n t a g e n s fossem servidas.
O controle pelo P a r l a m e n t o d a s receitas reais l e v a n t a d a s por
t r i b u t a ç ã o d i r e t a e a exigência de q u e esse o r g a n i s m o , e s ó
ele. p u d e s s e legislar f o r a m as d u a s principais concessões que
H e n r i q u e se viu o b r i g a d o a fazer. U m s o b e r a n o q u a s e absoluto,
por conseguinte, criou o mecanismo que seria e m p a l m a d o pela
b u r g u e s i a e u s a d o c o n t r a e x p e r i m e n t o s em absolutismo.
N a C â m a r a d o s Lordes. H e n r i q u e havia criado um n ú m e r o
suficiente de títulos d e p a r e s d o reino p a r a ter c e r t e z a de apoio.
S e u s c h o q u e s com o s C o m u n s f o r a m mais difíceis, pois a c â -
m a r a b a i x a consistia principalmente n a p e q u e n a n o b r e z a pos-
suidora de terras, cavaleiros que a s o c u p a v a m em regime d e
posse feudal e r e p r e s e n t a n t e s de cidades. E s s a c â m a r a c o n s -
tituía um foro p a r a a luta b u r g u e s a e nela o b a l a n ç o d o p o d e r
A REFORMULAÇÃO DA LEI DE PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA 209

politico p r o d u z i a um impacto no conflito e n t r e a s idéias feudal


e b u r g u e s a sobre o direito d a t e r r a . O E s t a t u t o d o s U s o s e o
Estatuto de Herança destacam-se no particular.
A t r a n s f e r ê n c i a d e t e r r a s p a r a u s o p r o p o r c i o n a v a um
meio p a r a evitar a tutela e o p a g a m e n t o d a t a x a de substitui-
ção. A t r a n s f e r i a t e r r a p a r a B e seus h e r d e i r o s . B r e t r a n s f e -
ria-a a um g r u p o d e pessoas, como foreiros associados, com a
condição, n a escritura, de q u e d e v i a m usar a t e r r a p a r a a fina-
lidade específica n e l a d e c l a r a d a , em um c o n t r a t o s e p a r a d o , ou
n o t e s t a m e n t o d e B . E s s a s associações d e foreiros estavam
isentas d o s institutos de tutela e substituição. A s instruções
contidas n a escritura, c o n t r a t o ou t e s t a m e n t o p o d i a m ser no
sentido d e c o n s e r v a r a terra, p o r ocasião d a m o r t e de B, p a r a
uso d e seus h e r d e i r o s — isto é, p a r a benefício d o h e r d e i r o :
a disposição d e conceder a terra p a r a u s o de o u t r e m por ocasião
d a morte d e B f u n c i o n a v a como u m a espécie d e d o a ç ã o de pro-
p r i e d a d e real, n ã o possível d e o u t r a m a n e i r a , s alvo p a r a um
n ú m e r o limitado d e p r o p r i e d a d e s , p r i n c i p a l m e n t e a q u e l a s de
p r o p r i e d a d e municipal, isto é. n a s cidades. D e m o d o geral, a
terra e r a h e r d a d a pelo filho mais velho. A l é m disso, os credo-
res d e B podiam ser e n g a n a d o s , pois B. a p a r e n t e m e n t e , não
tinha título de p o s s e da terra, q u e poderia ser e x p r o p r i a d a
p a r a s a l d a r suas dividas.
C r e d o r e s e s e n h o r e s q u e i x a r a m - s e d e s s a s i t u a ç ã o e a s quei-
x a s d o s primeiros receberam a t e n ç ã o n o s t r i b u n a i s e n o P a r -
lamento. A maioria d o s s e n h o r e s , n o e n t a n t o , contentava-s e
em d e i x a r que a s coisas continuassem a ser como eram, pois
podiam utilizar o instituto d a t r a n s f e r ê n c i a c o n t r a seus superio-
res, incluindo a C o r o a . Julgou H e n r i q u e que, com esse sistema,
e s t a v a p e r d e n d o r e n d a e, em 1529, p r o p ô s o registro obriga-
tório d e todos os usos e a abolição de c e r t o n ú m e r o de preceitos
complicados d a lei d a terra. C o m o consolo a o s s e n h o r e s , a pro-
posta d e H e n r i q u e lhes permitia c o n t i n u a r a f a z e r liquidações
especiais e b a s t a n t e complexas de s u a s p r o p r i e d a d e s . D e acordo
com a p r o p o s ta , contudo, os p a r e s d o r e i n o n ã o podiam v e n d e r
suas t e r r a s sem consentimento e x p r e s s o d a C o r o a . A proposta
g a r a n t i a direitos a o s p a r e s e receita ao rei, m a s a m e a ç a v a também
l a n ç a r a o d e s e m p r e g o um n ú m e r o incontável de a d v o g a d o s ,
uma vez que abolia a lucrativa prática d e t r a n s f e r ê n c i a de terras,
ao mesmo t e m p o que privava proprietários que n ã o eram p a r e s
do reino — a p e q u e n a nobreza — d o direito de fazer a c o r d o s
secretos n o tocante à s suas terras, t o r n a n d o - a s passíveis de uma
n o v a tributação em n o m e do rei.
210 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

O poder combinado d a pequena nobreza e dos advogados


plebeus n a C â m a r a dos Comuns resultou no veto à proposta
e n a o b t e n ç ã o d e concessões c o m o um preço pela concessão d o
p o d e r de t r i b u t a r . H e n r i q u e descobriu em s e g u i d a o u t r a m a n e i r a
d e r e f o r ç a r o controle s o b r e a r e n d a f e u d a l , m a s isso a c a r r e -
t a v a a livre g a r a n t i a d a transmissibilidade d a s p r o p r i e d a d e s .
S e g u n d o o E s t a t u t o dos U s o s , t o d o s o s usos e r a m " e x e c u t á -
veis" e a p e s s o a com direito a o s benefícios d a t e r r a ( c e s t u i qui
use) t o r n a v a - s e s u a p r o p r i e t á r i a legal. S o m e n t e os usos "ativos",
e n ã o m e r a m e n t e fictícios, p e r m a n e c i a m válidos. U m e s t a t u t o
c o r r e l a t o d e t e r m i n a v a o r e g i s t r o d a s t r a n s f e r ê n c i a s q u e envol-
v e s s e m uso.
O E s t a t u t o d o s U s o s p r e s e r v o u p a r a o s a d v o g a d o s plebeus
seu domínio místico sobre a s p r o p r i e d a d e s imobiliárias, bem
c o m o a s s a t i s f a ç õ e s técnicas e l u c r a t i v a s d a s e s c r i t u r a s de
t r a n s f e r ê n c i a . N ã o d i s p u n h a o E s t a t u t o , aliás, que a s t r a n s a -
ções em t e r r a s f o s s e m t o r n a d a s públicas. V i r t u a l m e n t e a c a b o u ,
contudo, com a t r a n s m i s s ã o d e t e r r a s p o r t e s t a m e n t o , que f o r a
u m a d a s principais v a n t a g e n s d a t r a n s m i s s ã o p a r a uso. E m 1540,
p o r conseguinte, como uma c o n c e s s ã o à p e q u e n a n o b r e z a , g r u p o s
d a qual se h a v i a m u n i d o com o s c a m p o n e s e s em rebelião
declarada contra as conseqüências d o confisco das terras da
I g r e j a , H e n r i q u e d e u seu apoio ao E s t a t u t o de H e r a n ç a , o que
t r a n s f o r m o u g r a n d e p a r t e d a terra inglesa t r a n s f e r í v e l por tes-
tamento 1 . Isso constituía mais u m a vitória d o ideal b u r g u ê s de
propriedade.
17

Contrato — Um Estudo
do Direito e da Realidade Social

O desenvolvimento d o direito c o n t r a t u a l n a I n g l a -
terra e n a E u r o p a revela a s limitações d a r e f o r m a jurídica
como meio p a r a s e conseguir u m a m u d a n ç a social completa.
Jurisconsultos b u r g u e s e s , aliás, sentiam g r a n d e p r a z e r em dizer
que a e v o l u ç ã o d o feudalismo p a r a o capitalismo f o r a reali-
zada a t r a v é s do artifício do contrato. Sir H e n r i M a i n e , escre-
v e n d o no século X I X , dizia que a história do p r o g r e s s o h u m a -
no é a d a libertação de o b r i g a ç õ e s b a s e a d a s em status e sua
substituição p o r a q u e l a s b a s e a d a s n o c o n t r a t o , ou livre b a r -
g a n h a , E m o u t r a s palavras, o instituto jurídico do contrato
fora a mola p r o p u l s o r a d a r e v o l u ç ã o b u r g u e s a .
E s s a a f i r m a ç ã o , e n c o n t r a d a n o s t r a b a l h o s d e todos os
juristas filósofos b u r g u e s e s d e s s e periodo, contém uma impor-
t a n t e v e r d a d e histórica e u m a séria f a l s i d a d e analítica. A ver-
d a d e histórica é q u e um sistema d e relações sociais b u r g u e s a s
bem desenvolvido, como o q u e atingiu a m a t u r i d a d e por volta
de 1800 n a I n g l a t e r r a e na F r a n ç a , possuía u m a b a s e contra-
tual b e m desenvolvida. O s laços que uniam os d i f e r e n t e s elemen-
tos d e s s a s o c i e d a d e eram q u a s e e x c l u s i v a m e n t e bilaterais e
a p e n a s n o m i n a l m e n t e c o n s e n s u a i s — isto é, contratuais. A
p r o p r i e d a d e d a terra, sua e x p l o r a ç ã o e d e f e s a n ã o podiam mais,
como no p e r í o d o feudal, m e d i a r a s relações jurídicas entre
pessoas. A p r o p r i e d a d e t r a n s f o r m a r a - s e n a r e l a ç ã o e n t r e p e r -
sona e res. O c o n t r a t o — p a r a t r a b a l h a r , vender, mesmo casar
— subiu a primeiro plano.
A f a l s i d a d e analítica é a a f i r m a ç ã o de que a s relações so-
ciais b u r g u e s a s surgirão, q u a i s q u e r que s e j a m a s condições
212 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

materiais, em todos os casos em que f o r s u f i c i e n t e m e n t e d e s e n -


volvida a idéia jurídica de livre c o n t r a t o . O direito c o n t r a t u a l
n ã o a p a r e c e u de r e p e n t e e se consolidou devido à justiça a x i o -
mática d e seus princípios. O c a m p o ein q u e o p e r a m o s c o n t r a -
tos é limitado pelo sistema d e relações econômicas, sistema
este, p o r seu t u r n o , d e t e r m i n a d o pelo nível de tecnologia, a
f o r ç a de classes o p o s t a s e, d e m o d o geral, pelo e s t a d o d e
desenvolvimento d o s meios de p r o d u ç ã o . T e r a c e s s o a uma
s o f i s t i c a d a teoria c o n t r a t u a l n ã o constitui g a r a n t i a da p r e s e n ç a
d o c o n j u n t o d e f o r ç a s n e c e s s á r i o p a r a colocá-la em vigor,
U m alto nível d e e r u d i ç ã o e ciência jurídica, por c o n s e -
guinte, n ã o constituía v a n t a g e m especial p a r a a b u r g u e s i a , por-
q u a n t o n ã o havia meio d e criar um " m e r c a d o c o m u m " nacional,
u n i f i c a d o e r e g u l a m e n t a d o por princípios coerentes de direito
comercial. A posse de u m a r e f i n a d a teoria de c o n t r a t o n ã o podia,
p o r si mesma, t r a n s f o r m a r a s r e l a ç õ e s sociais. A t r a n s f o r m a -
ç ã o é uma q u e s t ã o d e p o d e r , de a p o d e r a r - s e de um sistema de
p r o d u ç ã o e d e dirigi-lo.
A n a l i s a n d o a vida no Sul d a F r a n ç a nos séculos X I I I e
X I V , vimos que o d e s p o v o a m e n t o e a e s t a g n a ç ã o econômica
o c a s i o n a r a m o d e f i n h a m e n t o e a m o r t e da n a s c e n t e b u r g u e s i a .
E n t r e MOO e 1600, n a evolução p a r a u m a sociedade d o m i n a d a
pela classe b u r g u e s a e g o v e r n a d a em seu interesse, a F r a n ç a
e a s c i d a d e s - e s t a d o s d a Itália, com seu direito c o n t r a t u a l a l t a -
m e n t e desenvolvido e sofisticado, f o r a m d e i x a d a s p a r a trás pela
I n g l a t e r r a , q u e iniciara o p e r í o d o com um sistema relativa-
mente atrasado.
U m olhar d e relance n o s registros do B a n c o M e d i c i d u r a n t e
sua época d e maior s u c e s s o f i n a n c e i r o — por volta de 1450
—- revela uma c o m p r e e n s ã o r e f i n a d a d e t o d a s a s técnicas con-
t r a t u a i s que iriam p r e o c u p a r o s r e d a t o r e s do C ó d i g o de N a p o -
leão 3 5 0 anos mais t a r d e . A i n d a assim, o império b a n c á r i o d a
família Medici d e s m o r o n a r i a n o começo do século seguinte.
O s Medici, por exemplo, redigiam c o n t r a t o s sobre a a b e r t u r a
d e filiais — ou a c o r d o s sob a f o r m a q u e assumiria d u r a n t e certo
p e r í o d o de t e m p o u m a sociedade, especificando a s q u o t a s d e
capita] dos sócios, a r e m u n e r a ç ã o d o g e r e n t e d a filial, a e s f e r a
de o p e r a ç õ e s permissíveis e a s cortes de justiça que teriam
competência p a r a dirimir a s querelas em q u e elas p o r v e n t u r a
se envolvessem. C o n t r a t o s de e m p r é s t i m o s e c o n t r a t o s velados
p a r a evitar a s s a n ç õ e s d a lei de u s u r a d e m o n s t r a v a m igual-
m e n t e a l t o g r a u de competência técnica em sua r e d a ç ã o .
UM ESTUDO DO DIREITO E DA REALIDADE SOCIAL 213

N o s casos em que, como em F l o r e n ç a , a família Medici


possuía o u t r o s interesses além d o s b a n c á r i o s , era t a m b é m con-
t r a t u a l a f o r m a d a s relações sociais. C o m p r a v a ela lã b r u t a e
utilizava a g e n t e s p a r a c o o r d e n a r o p r o c e s s o d e s u a t r a n s f o r -
m a ç ã o em tecidos, p o r certo n ú m e r o d e a r t e s ã o s . E m b o r a p a r t e
d a s o p e r a ç õ e s iniciais de fabricação f o s s e e x e c u t a d a n o s oficinas
da familia, a fiação, tecelagem, tingimento e a c a b a m e n t o eram
feitas f o r a , num sistema comum em muitas p a r t e s d a E u r o p a
nessa época. F i a d o r e s e tecelões individuais, c u j o s serviços eram
c o n t r a t a d o s p o r um empreiteiro, t r a b a l h a v a m em casa, em suas
p r ó p r i a s m á q u i n a s . A s características de s u a s relações de t r a -
b a l h o com os Medici, proprietários d a f á b r i c a principal, eram
principalmente contratuais, com a p e n a s a l g u m a s conotações
de relações feudais, ou b a s e a d a s em s í a f u s . ( C a b e citar, como
contraste, a s relações industriais t r a b a l h i s t a s d o século X I X .
O o p e r á r i o industrial a l u g a v a seu t r a b a l h o p o r dia, s e m a n a
ou mês. O c o n t r a t o inspirava-se n o s termos u s a d o s pelos e s p e -
cialistas em direito civil, na t r a d i ç ã o e na terminologia do direito
romano, o locatio conduetio operarum: locatio conductio e r a o
termo geral a p l i c a d o a um c o n t r a t o bilateral d e aluguel d o
poder de t r a b a l h o , e x a t a m e n t e como emptio venditio •— lite-
ralmente, c o m p r a - v e n d a — era a d e s i g n a ç ã o geral de um
c o n t r a t o de venda, A c o n j u g a ç ã o de termos r e p r e s e n t a v a a
n a t u r e z a bilateral do acordo. O t e r m o operarum significa "do
t r a b a l h o " . O operário industrial do século X I X n ã o possuía
f e r r a m e n t a s , d i s p o n d o a p e n a s de seu t r a b a l h o , que " a l u g a v a "
a um preço c o m b i n a d o e de a c o r d o com condições a j u s t a d a s .
R e n u n c i a v a , em benefício d a s r e g r a s vigentes n a fábrica, à sua
l i b e r d a d e d u r a n t e o período p a r a o q u a l era c o n t r a t a d o . )
O p a g a m e n t o de a c o r d o com o sistema M e d i c i n ã o era por
" h o r a s t r a b a l h a d a s " , m a s por peça de lã tecida ou q u a n t i d a d e
de fio p r o d u z i d a . Simultaneamente, os b a t e d o r e s de lã e o s
cordoeiros podiam t r a b a l h a r a u f e r i n d o um s a l á r i o diário, ou
serem pagos, pelo menos em parte, em alimentos ou o u t r o s
bens. O s e m p r e s á r i o s Medici p o d i a m f a z e r empréstimos a um
t r a b a l h a d o r p a r a a compra de u m tear, mas com r e s e r v a de do-
mínio, a t é q u e a divida fosse t o t a l m e n t e l i q u i d a d a .
E m b o r a a l g u n s historiadores t e n h a m descrito a situação
da F r a n ç a nos séculos X V e X V I como de relativa e s t a g n a ç ã o ,
a teoria d o c o n t r a t o era objeto n o país d e considerável estudo,
em nível sofisticado. A t r a d i ç ã o do direito r o m a n o , dividida
entre os que se inspiravam n o s c a n o n i s t a s e aqueles que se louva-
214 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

v a m no direito civil secular, foi utilizada n a e l a b o r a ç ã o d c


compilações j u r i s p r u d e n c i a i s de direito costumeiro, sob s u p e r -
v i s ã o real. A fim de minimizar e h a r m o n i z a r a s d i f e r e n ç a s e n t r e
a lei escrita e as regiões o n d e vigia o direito costumeiro, e s t u -
diosos e a d v o g a d o s c o m e ç a r a m a escrever c o m e n t á r i o s e a f a z e r
comparações. E m 1608, A n t o i n e Loisel reuniu seu material n o
Les InstituCes Coutimières. título d e s t i n a d o a i n d i c a r a igual-
d a d e d o direito costumeiro e cr b a s e a d o no direito r o m a n o vigen-
te n a F r a n ç a . E n t r e o s a u t o r e s d e tais c o m e n t á r i o s e c o m p a r a -
ções d e s t a c o u - s e c l a r a m e n t e C h a r l e s D u m o u l i n ( 1 5 0 0 / 1 5 6 6 ) ,
conhecido t a m b é m como M o l i n a e u s . S u a s opiniões s o b r e as
compilações d o direito costumeiro de P a r i s e s u a s c o m p a r a -
ções e n t r e o direito civil e o costumeiro c o n t i n u a r a m a ser
c i t a d a s como a u t o r i z a d a s n o g r a n d e r e n a s c i m e n t o d a litera-
t u r a jurídica em princípios d o século X V I I I — como, p o r e x e m -
plo, no a u t o r i z a d o c o m e n t á r i o de C l a u d e F e r r e r i è r e sobre os
costumes d e P a r i s em 1714. Dumoulin, em estilo empolado,
combativo, discursivo e minucioso, em s u a s i m p r e s s i o n a n t e s
análises e r u d i t a s , a b o r d a v a s e m p r e p r o b l e m a s c o n t e m p o r â n e o s
concretos. A o t o m a r o p a r t i d o dos comerciantes n a q u e s t ã o do
direito c o n t r a t u a l , c o m p a r o u a s d o u t r i n a s canónica, r o m a n a e
c o n s u e t u d i n á r i a e insistiu em que o direito costumeiro f r a n c ê s
h a v i a e n d o s s a d o a r e g r a do direito c a n ó n i c o de que uma pro-
messa oral era de c u m p r i m e n t o obrigatório. C o n c l u i u d i z e n d o
q u e a l i b e r d a d e de c o n t r a t a r p e r m i t i d a pelos princípios do
direito r o m a n o n ã o devia ser limitada p o r n o r m a s relativas à
forma d a b a r g a n h a , n o r m a s que, a l e g a v a ele, n ã o haviam
sobrevivido a o p e r í o d o r o m a n o .
A riqueza c o n s e g u i d a pela C o r o a e pela b u r g u e s i a f r a n c e -
sas no comércio com a E s p a n h a , em s e g u i d a à a b e r t u r a d o N o v o
M u n d o , permitiu i n v e s t i m e n t o s em artes, ciências e universi-
d a d e s . N a U n i v e r s i d a d e de B o u r g e s , J a c q u e s C u j a s e seus
a l u n o s iniciaram o r e e s t u d o sistemático d o direito r o m a n o d e
uma perspectiva h u m a n i s t a , ou d a R e n a s c e n ç a . V o l t a n d o a
t e x t o s r o m a n o s q u e e r a m o b j e t o d e controvérsia ou h a v i a m sido
distorcidos pelos c o m e n t a r i s t a s e p o r gerações d e a d v o g a d o s
praticantes, C u j a s veio a ser um d o s corifeus d a escola d o
e s t u d o t e x t u a l científico. A s s u a s soluções b a s e a d a s no direito
r o m a n o p u r o . n o e n t a n t o , n ã o d e r a m mais contribuição ulte-
rior à u n i f o r m i d a d e p r á t i c a legal q u e o t r a b a l h o consultivo de
D u m o u l i n e o u t r o s jurisconsultos em q u e se l o u v a v a a p r o -
fissão.
UM ESTUDO DO DIREITO E DA REALIDADE SOCIAL 215

A r e d u ç ã o d o direito costumeiro à f o r m a escrita permitiu


a D u m o u l i n e seus c o n t e m p o r â n e o s o b s e r v a r a a d o ç ã o de r e g r a s
b a s e a d a s n o direito r o m a n o e c o n d u c e n t e s a o comércio (in-
cluindo uma sofisticada lei c o n t r a t u a l ) ; o s c o s t u m e s locais, por
s u a vez, ao receberem f o r m a escrita, f i c a r a m s u j e i t o s a pressões
d o p o d e r real, favorável à u n i f o r m i d a d e e à romanização.
S i m u l t a n e a m e n t e , a própria r e d u ç ã o à f o r m a escrita tendeu a
ossificar a q u e l e s princípios jurídicos arcaicos em que c o n t i n u a v a
a b a s e a r - s e o direito costumeiro. C o d i f i c a r implica anquilosar.
p o r q u a n t o análises e j u l g a m e n t o s daí em d i a n t e são limitados
pelos significados que p o d e m , lógica, permissível e plausivel-
mente, ser atribuídos às p a l a v r a s escritas.
A s compilações jurisprudenciais u r b a n a s do direito costu-
meiro p a r e c i a m - s e muito com as q u e eram s e g u i d a s em o u t r a s
áreas, s i t u a d a s d i r e t a m e n t e s o b controle d o p o d e r real. T i n h a m
elas u m a óbvia dívida p a r a com os c o s t u m e s vigentes em P a r i s
e continham u m a inpressionante s o m a de material t o m a d o d e
empréstimo a o direito r o m a n o n a s e s f e r a s de contratos, pro-
p r i e d a d e e direito processual. A s compilações de á r e a s o n d e
era mais a t e n u a d o o poder real m a n t i n h a m silêncio sobre prin-
cípios jurídicos q u e poderiam f a v o r e c e r o comércio ou rejeita-
v a m p l e n a m e n t e d e t e r m i n a d a s r e g r a s b a s e a d a s n o direito
r o m a n o . B s s a distinção n ã o p o d i a ser eliminada, a m e n o s que
os recursos intelectuais r e p r e s e n t a d o s pelos comentaristas
fossem a t r e l a d o s a uma m á q u i n a estatal s u f i c i e n t e m e n t e f o r t e
p a r a p ô r em vigor a s soluções q u e eles p r o p u n h a m . E nem os
b u r g u e s e s como classe n e m seus aliados n a m o n a r q u i a dis-
p u n h a m de tal p o d e r . E m b o r a a competência d o s tribunais
reais a u m e n t a s s e em d e t r i m e n t o d a s cortes senhoriais, e mesmo
que o s s e n h o r e s fe uda i s fossem proibidos, a começar d o século
X V I , de m a n t e r cortes de justiça e se vissem o b r i g a d o s a
c o n t r a t a r juizes profissionais, a s n o r m a s processuais o b s e r v a d a s
e a lei aplicada permaneciam em g r a n d e p a r t e p r e s a s às r e g r a s
d a s compilações do direito costumeiro.
A t e n a c i d a d e d o bairrismo e d o arcaísmo constituía igual
sintoma e c a u s a d a e s t a g n a ç ã o . A c o b r a n ç a de p e d á g i o e a
criação de b a r r e i r a s à circulação i n t e r n a d e b e n s indicavam o
p o d e r d o s s e n h o r e s fe uda i s f r e n t e à a u t o r i d a d e real e pro-
p o r c i o n a v a m meios p a r a s u a m a n u t e n ç ã o . O s s e n h o r e s n ã o
q u e r i a m r e n u n c i a r v o l u n t a r i a m e n t e à s c o b r a n ç a s de tributos,
e n q u a n t o s e g m e n t o s da b u r g u e s i a ou c o m p r a v a m o direito de
receber tais p a g a m e n t o s — e, p o r isso mesmo, n ã o podiam
216 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

tolerar-lhe a abolição —• o u faziam e m p r é s t i m o s aos s e n h o r e s


q u e se t o r n a r i a m incumpríveis se os d e v e d o r e s n ã o d i s p u s e s -
sem d e meios p a r a a u f e r i r ou e x t o r q u i r r e c u r s o s p a r a a m o r t i -
zá-los. N a I n g l a t e r r a , o e m p r e g o de um n ú m e r o c r e s c e n t e d e
servidores reais constituiu um dcrs meios p a r a p r o m o v e r a c e n -
tralização d o p o d e r ; n a F r a n ç a , não. U m c a r g o no serviço real
era a t r a e n t e p a r a j o v e n s b u r g u e s e s , como c o n t i n u o u a ser p e l a s
r a z õ e s discutidas n o capítulo anterior, m a s a C o r o a f r a n c e s a
n ã o podia c o n f i a r n a l e a l d a d e d e s s e s servidores.
O Treatise on Offíces, de C h a r l e s L o y s e a u , p u b l i c a d o em
1610, d o c u m e n t a a s d i f i c u l d a d e s que f o r a m e n c o n t r a d a s pela
burocracia real. O b s e r v a ele que, ao m e n o s a p a r t i r d o século
X I V , os c a r g o s judiciários — e n u m e r o s o s o u t r o s no serviço real
— h a v i a m sido v e n d i d o s pela C o r o a . Proibições c o n t r a esse
c o s t u m e h a v i a m sido b a i x a d a s pelos E s t a t e s - G e n e r a l no século
X V , m a s sem surtir efeito. E m 1493, C a r l o s V I I I b a i x o u uma
ordonnance e x i g i n d o que t o d o s os m a g i s t r a d o s jurassem, a n t e s
de assumir o cargo, "que n ã o haviam d a d o , nem p r o m e t i d o d a r ,
p e s s o a l m e n t e ou p o r i n t e r m é d i o de o u t r e m , ouro, p r a t a , o u
coisa e q u i v a l e n t e " pelo seu cargo. O b s e r v a L o y s e a u : " E r a
escandaloso que os juízes d e F r a n ç a iniciassem seus d e v e r e s
com um solene a t o de p e r j ú r i o , que ao assumirem o c a r g o c o m e -
tessem uma f a l s i d a d e pública." A n e c e s s i d a d e de dinheiro, no
e n t a n t o , era t ã o p r e m e n t e que. em 1522, F r a n c i s c o I criou d e
f a t o um d e p a r t a m e n t o p a r a v e n d a de c a r g o s , o u , n a s p a l a v r a s
d e Loyseau, " u m a loja p a r a v e n d e r esse n o v o tipo de m e r c a -
d o r i a " . Em 1567, a C o r o a admitiu e a p r o v o u a t r a n s f e r ê n c i a
de c a r g o s e n t r e pessoas, c o n t a n t o que o i m p o s t o a t i n e n t e f o s s e
p a g o . E r a m r e a l m e n t e g r a n d e s a s a t ra ções d o s c a r g o s judiciá-
rios p a r a aqueles que d i s p u n h a m de dinheiro p a r a comprá-los;
p o d i a - s e esperar t e r m i n a r a carreira com a c o n c e s s ã o pelo rei
de uma noblesse de robe, o n o v o tipo de n o b r e z a r e s e r v a d o
a o s juristas. O preço d o c a r g o de juiz podia ser. ao l o n g o d o s
anos, e x t o r q u i d o d o s litigantes. E m Montpellier, e n t r e 1547 e
1577, o s nobres d e t o g a eram s u p e r a d o s a p e n a s pelos f i n a n -
cistas n a compra de t e r r a s em volta d a cidade, q u e h a v i a m
e s t a d o em m ã o s de p e q u e n o s proprietários.
N ã o é de s u r p r e e n d e r que a criação d e u m a m á q u i n a a d m i -
n i s t r a t i v a real sem qualquer l e a l d a d e visível à C o r o a e cora
direito de vitaliciedade fizesse, à s vezes, o " t r o n o t r e m e r " ,
E q u a n d o esses juizes desleais o c u p a v a m c a r g o s n o s tribunais
UM ESTUDO DO DIREITO E DA REALIDADE SOCIAL 217

reais provinciais — os Parlements — s u a s conseqüências podiam


ser a i n d a maiores. P o r volta de 1550. e s s a s instituições h a v i a m -
se t r a n s f o r m a d o em focos d e a g i t a ç ã o anticentralista.
E m suma, a existência n a F r a n ç a e Itália d e g r u p o s p o n d e -
ráveis de h o m e n s e mulheres d e f o r m a ç ã o jurídica a serviço
d a b u r g u e s i a era inútil sem um m e r c a d o nacional u n i f i c a d o e
uma forte m á q u i n a estatal j u n g i d a a o s interesses b u r g u e s e s .
T a i s condições prevaleciam n a I n g l a t e r r a : lá, a ideologia jurí-
dica d a b u r g u e s i a t r a n s f o r m o u - s e em j u s t i f i c a ç ã o e x p r e s s a do
exercício do p o d e r p e l o E s t a d o , em seu interesse, O confisco
d a s terras da I g r e j a pelo Rei H e n r i q u e c o n c e d e u direitos legais
a um n o v o g r u p o d e latifundiários, r e f o r ç a n d o a posição que
eles já o c u p a v a m em v i r t u d e d e seu espírito e m p r e s a r i a l e
a t i v i d a d e comercial. N e s s e país, a lei p o d i a ser um aríete p a r a
d e r r u b a r a s c a s a s d o s " p o b r e s miseráveis". A lei, n o e n t a n t o
— os princípios que constituíam a ideologia jurídica d a velha
nobreza — e r a t a m b é m um e s c u d o p a r a e s s a classe e p a r a aque-
les que, p o s s u i n d o t e r r a s f o r a d a s cidades, c o m p a r t i l h a v a m de
seus problemas. Eles, igualmente, p r e c i s a v a m ser a t r a í d o s p a r a o
sistema de relações jurídicas b u r g u e s a s . P e l o m e n o s e s s a s rela-
ções deviam ser i n t e g r a d a s no velho direito costumeiro e apli-
c a d a s pelos tribunais reais, q u e h a v i a m sido criados p a r a servir
principalmente a o s interesses feudais.
O direito costumeiro, c o n f o r m e vimos, f o r a em s u a s ori-
gens a lei d a " t e r r a " •— isto é, d o s b e n s d e raiz. E n t r e a p r o -
x i m a d a m e n t e 1400 e 1600, t o r n o u - s e a lei " d a T e r r a " do país,
i n c o r p o r a n d o princípios e l a b o r a d o s n a s e s f e r a s mercantil e marí-
tima. E m 1400, os tribunais reais admitiam, relutantemente,
a p e n a s as idéias mais limitadas e r u d i m e n t a r e s sobre contrato.
P o u c o depois de 1600, Sir E d w a r d Coice •— que assumiu o
c a r g o de P r o c u r a d o r - G e r a l em 1594. d e P r e s i d e n t e do T r i b u -
nal R e a l em 1606 e q u e foi t a m b é m um prolífico c o m e n t a r i s t a
de direito — declarou que o direito mercantil era p a r t e do
direito costumeiro, q u e r e n d o com isso indicar que os a d v o g a d o s
que litigavam n a s cortes costumeiras, e e s t a s próprias cortes,
serviriam daí em d i a n t e aos interesses d o s comerciantes.
V a l e a p e n a descrever esse processo, pois foi l e v a d o a
cabo sem violência p a r a a classe proprietária de t e r r a s , c u j o s
interesses f o r a m n o m i n a l m e n t e protegidos, e que seria t r a t a d a
com mais rigor em d a t a f u t u r a . P o d i a ser m a n t i d a , com alguma
manipulação histórica, a ficção d e t r a d i ç ã o ininterrupta. " E s t u -

14 - Tl.A C-
218 A A S C E N D Ê N C I A DA BURGUESIA

d e m o s a t e n t a m e n t e os velhos a u t o r e s " , escreveu C o k e , " p o i s


de velhos c a m p o s d e v e f o r ç o s a m e n t e provir n o v o milho."
Coke, aliás, n ã o foi o primeiro a a t r e v e r - s e a o p i n a r q u e
o direito costumeiro precisava ser ampliado. T h o m a s M o r e ,
c o m o C h a n c e l e r , p r o c u r a r a coagir a s cortes de direito c o s t u -
meiro a m u d a r de orientação, m e d i a n t e uso libera! d e seu p o d e r
de emitir e m b a r g o s , d e c u m p r i m e n t o obrigatório. Q u a n d o
queixas de juízes c h e g a r a m a o s seus ouvidos, M o r e c o n v i d o u -
os p a r a um j a n t a r na C â m a r a d o C o n s e l h o , em W e s t m i n s t e r .
Seu e n t e a d o , W i l l i a m Roper, r e l a t a que,
a p ó s o j a n t a r , q u a n d o h a v i a d i s c u t i d o c o m elea a s q u e i x a s q u e
o u v i r a c o n t r a s e u s e m b a r g o s e, a l é m d i s s o , l h e s d e m o n s t r a d o
o n ú m e r o d e r a z õ e s d e c a d a u m deles, d e b a t e n d o e x a u s t i v a m e n t e
t a i s a s s u n t o s , t o d o s os j u í z e s f o r a m o b r i g a d o s a c o n f e s s a r q u e
eles, e m c a s o s s e m e l h a n t e s , n ã o p o d e r i a m t e r a g i d o d e o u t r a
f o r m a . E m seguida, propôs que se os juízes de todas as cortes
(aos quais, e m v i r t u d e de seus c a r g o s , a m i t i g a ç ã o do r i g o r
d a lei m a i s e s p e c i a l m e n t e d i z i a r e s p e i t o ) a l i v i a s s e m , p o r i n i c i a -
tiva própria após razoável estudo, e r e f o r m a s s e m pessoalmente os
r i g o r e s d a lei, d a i e m d i a n t e e l e n ã o m a i s e m i t i r i a e m b a r g o s .
Q u a n d o o s j u í z e s s e r e c u s a r a m a c o n d e s c e n d e r , ele l h e s d i s s e :
"Desde que os s e n h o r e s mesmos, m e u s lordes, c r i a m - m e a neces-
sidade de emitir m a i s embargos a fim de aliviar o sofrimento
do povo, os s e n h o r e s n ã o p o d e m , de a g o r a e m diante, h o n e s t a -
mente crlticar-me."

É uma g r a n d e p e n a que n ã o s a i b a m o s a e s f e r a precisa


s o b r e a q u a l h o u v e a controvérsia e n t r e M o r e e os a d v o g a d o s
costumeiros. M a s p o d e m o s s u p o r o que devem ter sido, pelo
menos, a l g u m a s razões.
A fim d e fazê-lo, precisamos, em primeiro lugar, r e c o r d a r
a l g o sobre o a m b i e n t e o n d e teve l u g a r a controvérsia. M o r e ,
t e n d o sido t r e i n a d o como a d v o g a d o n a Lincoln's I n n e d e s e m -
p e n h a d o a p r o f i s s ã o d u r a n t e c e r t o tempo, conhecia b e m seus
adversários. N a q u e l e tempo, o a d v o g a d o era f o r m a d o n ã o
n u m a universidade, mas n a s c h a m a d a s I n n s of C o u r t , residindo
n e l a s d u r a n t e três a n o s a fim de receber t r e i n a m e n t o f o r m a l
d o s m e m b r o s mais jovens d a classe e a a p r e n d e r pelo e x e m p l o
e discussão com m e m b r o s mais antigos. O s juízes d a s cortes
de direito costumeiro, aliás, eram r e c r u t a d o s e n t r e os a d v o -
g a d o s p r a t i c a n t e s . O De Laudibus Legum Anglie ( E m Louvor
d a s Leis d a I n g l a t e r r a ) , de Sir John F o r t e s c u e , escrito por
volta de 1470, o f e r e c e - n o s um vislumbre d o processo. N a s
Inns, escreveu ele.
UM E S T U D O DO DIREITO E DA REALIDADE SOCIAL 219

h á , e m a c r é s c i m o a o e s t u d o d o direito, u m a espécie de a c a d e m i a
d e t o d a a a s b o a s m a n e i r a s q u e oa n o b r e s a p r e n d e m . D e v e m o s
alunos a p r e n d e r a c a n t a r e a praticar todos os tipos de harmonia.
S ã o e n s i n a d o s t a m b é m a d a n ç a r e a p a r t i c i p a r d e t o d o s oa
passatempos apropriados aos nobres.

A d e s c r i ç ã o d e F o r t e s c u e é um t a n t o idíJica, mas n ã o h á dúvida


que a s I n n s receberam n u m e r o s o s filhos d e famílias nobres,
embora estes n ã o tivessem i n t e n ç ã o de exercer a advocacia.
A f o r m a ç ã o jurídica constituía-se n a leitura de sentenças
de juízes, descrições de casos j u l g a d o s e participação em julga-
mentos simulados. O t e m a mais i m p o r t a n t e d e estudo, no
entanto, e r a o direito p r o c e s s u a l e a a p r e s e n t a ç ã o de a r r a z o a -
dos. T h o m a s Littleton, a u t o r d e um i m p o r t a n t e t r a t a d o sobre
o direito d a t e r r a . Of Tenures, a c o n s e l h a v a ao filho:
Constitui u m a das virtudes m a i s honrosas, elogiáveis e lucra-
tivas e m nosso direito d o m i n a r a ciência de bem apresentar
u m arrazoado em ações envolvendo pessoas e propriedades. Por
conseguinte, aconselho-te especialmente a empregar toda tua
disposição e desvelo a f i m de isso a p r e n d e r .

E r a um bom conselho. O i n d i v í d u o n ã o podia f u n c i o n a r n a s


cortes d e direito costumeiro sem a n t e s d o m i n a r uma descon-
c e r t a n t e c o n f u s ã o de artifícios p r o c e s s u a i s , todos os quais exi-
giam a a p r e s e n t a ç ã o d e a r r a z o a d o escrito, de f o r m a precisa.
T o d o s os processos n e s s a s cortes e r a m iniciados com uma cita-
ção. A s ú n i c a s ações a d m i t i d a s e r a m a q u e l a s n a s q u a i s o s f a t o s
a l e g a d o s podiam ser a j u s t a d o s à s especificações de uma d a s
f o r m a s de citação disponíveis. A s p r i m e i r a s h a v i a m sido a u t o -
r i z a d a s p o u c o depois d a C o n q u i s t a n o r m a n d a como instruções
a um s e r v i d o r real p a r a " a p r e s e n t a r o a c u s a d o , de m o d o que
um inquérito p o s s a ser a b e r t o sobre seu direito de possuir d e t e r -
m i n a d o t r e c h o de t e r r a " . O sistema foi a m p l i a d o a fim de prover
r e m é d i o s p a r a u m a faixa m a i s a m p l a d e ações, mas conservou
um f o r m a t o rígido que exigia a o possível queixoso que a j u s -
t a s s e seu c a s o a um m o d e l o p a d r ã o . O desenvolvimento do
direito, p o r t a n t o , foi vinculado à i n t e r p r e t a ç ã o d a s p a l a v r a s de
f o r m a s p a d r o n i z a d a s d a a p r e s e n t a ç ã o inicial d a s razões. Se
n e n h u m a d a s f o r m a s a u t o r i z a d a s a j u s t a v a - s e a o s f a t o s do caso,
n ã o h a v i a r e m é d i o a ser b u s c a d o n o s tribunais. A fim de miti-
g a r o s rigores do sistema, o s a d v o g a d o s exerceram pressão,
p e d i n d o a criação de n o v a s f o r m a s de citação —• n o v a s " f o r m a s
d e p r o c e s s o " .— e p r a t i c a v a m à s vezes espetaculares f a ç a n h a s
220 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

de casuística a fim de a d a p t a r os f a t o s a u m a d a s f o r m a s exis-


tentes.
Se em 1500 um q u e i x o s o c o n s u l t a v a um a d v o g a d o , a l e -
g a n d o q u e um c o n t r a t o f o r a rompido, o a d v o g a d o , a n t e s d e mais
n a d a , e x a m i n a v a a citação r e f e r e n t e a a c o r d o s . A fim de d e '
f e n d e r u m a a ç ã o dessas, teria que a l e g a r e p r o v a r que h o u v e r a
um c o n t r a t o f o r m a l p o r escrito, r e g i s t r a d o . O simples a c o r d o
escrito sem registro em cartório, e muito m e n o s o a c o r d o oral,
n e n h u m a o p o r t u n i d a d e t i n h a d e ser cumprido. A fim d e s u p e r a r
tal dificuldade, n u m e r o s o s c o n t r a t o s e r a m redigidos sob a f o r m a
d e p r o m e s s a d e p a g a m e n t o . U m a d a s p a r t e s dizia q u e devia
d e t e r m i n a d a s o m a à o u t r a , m a s era e s t i p u l a d o que a p r o m e s s a
ficaria a n u l a d a com o c u m p r i m e n t o d e c e r t a s condições. Se
elas n ã o fossem c u m p r i d a s , a p a r t e p r e j u d i c a d a p o d i a pedir
u m a citação d e dívida a fim de r e c e b e r o que lhe era devido.
E s s a s f o r m a s i n d i r e t a s d e fazer c u m p r i r a c o r d o s n ã o a g r a -
d a v a m a o s comerciantes, individuos que t i n h a m g r a n d e s v o l u -
mes de negócios a realizar e que d e p e n d i a m de f o r m a s simples
de contrato. N o inicio, o s c o m e r c i a n t e s d e r a m a s c o s t a s à s
c o r t e s de direito costumeiro no t o c a n t e ao g r o s s o de s u a s
q u e s t õ e s legais e p r o c u r a r a m o b t e r assistência real n a criação
de instituições p a r a l e l a s que p u d e s s e m e l a b o r a r e a p l i c a r u m a
f o r m a mais aceitável de contrato. P o d i a m recorrer, p o r exem-
plo, à instância do L o r d e C h a n c e l e r — a M o r e e a seus p r e -
d e c e s s o r e s e sucessores — que h a v i a m d e s d e 1350 exercido
p o d e r e s judiciários, b a s e a n d o - s e , em teoria, n a o b r i g a ç ã o da
C o r o a _de ministrar " j u s t i ç a " , n ã o i m p o r t a n d o a s disposições
do direito costumeiro. E m 1500. já h a v i a um núcleo a l t a m e n t e
d e f i n i d o de tal d o u t r i n a de "direito d e e q ü i d a d e " , f u n d a d o n a
idéia de que o C h a n c e l e r p r o v e r i a o r e m é d i o p a r a a injustiça
q u a n d o o direito costumeiro n ã o o fizesse.
M a s quais a s f o n t e s d e tal d o u t r i n a ? D e s d e o início, a
instância de e q ü i d a d e foi i n t e r p r e t a d a p e l a C o r o a como d e v e n d o
ser utilizada em c a u s a s comerciais, como n o s casos em que o
s o b e r a n o era o b r i g a d o p o r t r a t a d o a p r o v i d e n c i a r p a r a que
comerciantes e s t r a n g e i r o s tivessem acesso a um tribunal eficaz,
É bem provável que a s c o r t e s m e r c a n t e s d a C i t y de L o n d r e s ,
com a l ç a d a sobre a s s u n t o s comerciais, fossem r e s p o n s á v e i s por
g r a n d e p a r t e d a d o u t r i n a jurídica a p l i c a d a pelos chanceleres.
Observa-se também na jurisprudência dos chanceleres a absor-
ç ã o c o n t i n u a d o direito r o m a n o e canónico. Idéias s o b r e " j u s -
tiça" e "consciência", p a l a v r a s - c h a v e d a teoria básica d a
U M ESTUDO DO DIREITO E DA REALIDADE SOCIAL 221

e q ü i d a d e , lembram t a n t o a p r e o c u p a ç ã o canónica com a alma


q u a n t o a s idéias r o m a n a s sobre b o a fé c o n t r a t u a l . Sob os T u d o r
foi a c e l e r a d a a a d o ç ã o de princípios r o m a n o - c a n ô n i c o s . A esse
respeito, T h o m a s M o r e constituiu-se n u m chanceler ideal, pois
foi, com to d a probabilidade, u m a f i g u r a excepcional, uma vez
que c o m b i n a v a experiência em direito costumeiro e conhecimento
d o s direitos canónico e r o m a n o com um p r o f u n d o senso pessoal
d e justiça e g r a n d e familiaridade com a s s u n t o s comerciais.
T e o r i c a m e n t e , o p o d e r de e q ü i d a d e era p u r a m e n t e pessoal no
sentido d e que a o litigante e r a o r d e n a d o que fizesse ou se
abstivesse de f a z e r certa coisa sob p e n a de p e r d e r sua alma.
Se isso n ã o fosse suficiente, o C h a n c e l e r p o d e r i a d e t e r m i n a r -
lhe a prisão. A n t e uma d e s s a s cortes, o réu p o d e r i a receber
o r d e m d e cumprir u m contrato p a r a o qual a s cortes d e direi-
to costumeiro n ã o p r o p o r c i o n a v a m r e m é d i o legal; ou receber
o r d e m d e desistir d e uma a ç ã o q u e havia p r o p o s t o em cortes
de d i r e i t o costumeiro se o C h a n c e l e r se convencesse de que a
a ç ã o r e s u l t a r i a num j u l g a m e n t o que. e m b o r a " l e g a l " , t r a n s -
grediria princípios d o direito mercantil que h a v i a m sido bási-
cos p a r a o a j u s t a m e n t o d a b a r g a n h a inicial, e motivo d a que-
rela e n t r e as p a r t e s . T a i s decisões d e r a m origem à hostili-
d a d e e n f r e n t a d a por M o r e n o j a n t a r em W e s t m i n s t e r H a l l .
b e m c o m o a certas pressões m e n o s sutis p a r a que a s cortes de
direito costumeiro modificassem suas d o u t r i n a s .
O s comerciantes t a m b é m t i n h a m acesso a tribunais es-
p e c i a l m e n t e criados p o r t r a t a d o s , c a r t a s régias, privilégios
municipais ou o u t r a s disposições p a r a a t e n d e r à s s u a s neces-
s i d a d e s . C o r t e s mercantis e m a r í t i m a s f u n c i o n a r a m d u r a n t e
t o d o o século X V I . N a v e r d a d e , t o r n a n d o - s e a M a r i n h a Real
mais i m p o r t a n t e p a r a o comércio e a c o n d u t a d a guerra, au-
mentou a jurisdição d o tribunal marítimo. V á r i a s cortes es-
peciais f o r a m criadas também p a r a julgar a s p e c t o s específi-
cos d a politica económica e d a terra, n o m e a n d o - s e p a r a elas
juízes t r e i n a d o s em direito civil. ( A l e g o u - s e mesmo, com
certa justiça, que a I n g l a t e r r a q u a s e a d o t o u o direito r o m a n o
como b a s e d e jurisprudência, como uma espécie d e o r n a m e n -
to final d a s m u d a n ç a s que e s t a v a m s e n d o p r o m o v i d a s pelos
monarcas Tudor.)
A s c a u s a s comerciais p o d i a m ser t a m b é m j u l g a d a s em
cortes c r i a d a s p o r c o r p o r a ç õ e s estabelecidas por c a r t a s régias,
e x e r c e n d o elas parcial ou total monopólio de d e t e r m i n a d o r a m o
d e comércio. O s n e g o c i a s t e s de tecidos constituem o s mais no-
222 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

t á v e i s exemplos no particular. N o século X V . um r a m o d e s s a


i r m a n d a d e — o i n t e r e s s a d o n a e x p o r t a ç ã o de tecidos, especial-
m e n t e p a r a os P a í s e s - B a i x o s — começou a r e u n i r - s e s e p a r a d a -
m e n t e , c o n f o r m e i n d i c a d o p e l a menção, n u m a c a r t a régia d e
1443. dos " d e s A v e n t u r e r s d e i M e r c e r y " . D e 1486 em diante,
os Merchant Adventurers assumiram, entre os negociantes de
tecidos, a liderança de t o d o s os e x p o r t a d o r e s n a o r g a n i z a ç ã o
e controle do comércio inglês com o s P a i s e s - B a i x o s .
Formalmente, os Adventurers formavam u m a corporação
criada por c a r t a régia. E r a m dirigidos p o r u m g o v e r n a d o r , a p a -
r e n t e m e n t e n o m e a d o pelo rei p o r i n d i c a ç ã o d o g r u p o . H e n r i q u e
V I I nomeou John P y k e r i n g g o v e r n a d o r d e " n o s s o s leais e
a m a d o s súditos, os m a r c h a u n t e s a d v e n t u r e r s " n o s P a í s e s - B a i x o s ,
" s e g u n d o o d e s e j o e i n d i c a ç ã o d a maioria d e vós. residentes
em nossa dita c i d a d e d e L o n d r e s " . O s A d v e n t u r e r s t i n h a m di-
reito. d e m a n t e r s u a s p r ó p r i a s cortes de justiça e impor s a n ç õ e s
a t o d o s aqueles q u e se e m p e n h a s s e m n o comércio de e x p o r t a -
ç ã o n a s regiões que lhes e r a m d e s i g n a d a s . E s s a s cortes aplica-
v a m o direito comercial. S u a competência era a s s e g u r a d a em
L o n d r e s p o r ato real e em o u t r a s t e r r a s p o r t r a t a d o s c o n f i r m a n -
d o - l h e o p o d e r s o b r e todos os m e r c a d o r e s ingleses em determi-
n a d o s países. D e s s a m a n e i r a , a c o m p a n h i a q u e recebia por
c a r t a régia um monopólio, modelo este u s a d o mais t a r d e n a s
e m p r e s a s coloniais, c o m b i n a v a - s e com o m o d e l o a n t e r i o r de
c o r t e consular, q u e existira d e s d e a s C r u z a d a s . A importância
a t r i b u í d a ao estímulo e à p r o t e ç ã o d o comércio d o s M e r c h a n t
A d v e n t u r e r s é visível n o óbvio e s f o r ç o diplomático feito em
seu benefício. É p r o v á v e l que a c o n c e s s ã o de u m a h o n r a r i a d e
"sócio h o n o r á r i o " a M o r e pelos C o m e r c i a n t e s d e T e c i d o s em
1509 constituísse r e c o m p e n s a por a l g u n s d e seus e s f o r ç o s .
E m suma, o b u r g u ê s rico d e m e a d o s d o século X V I tinha
g r a n d e s o p o r t u n i d a d e s n o comércio e em o u t r a s empresas, con-
t a n t o que estivesse d i s p o s t o a s u b m e t e r - s e à s r e g r a s d e um sis-
t e m a financeiro dirigido em L o n d r e s •— domínio esse que o c a -
s i o n a v a certas d i f i c u l d a d e s aos M e r c h a n t A d v e n t u r e r s d o
N o r t e . C o n t r a t o s r e d i g i d o s d e a c o r d o com o direito comercial
p o d i a m ser j u l g a d o s em cortes comerciais, n a c h a n c e l a r i a e no
tribunal marítimo. C a d a vez mais. esses princípios, d e origem
européia, e s t a v a m s e n d o e s t u d a d o s e aplicados. O s a d v o g a d o s
costumeiros, em c u j a s fileiras e r a m r e c r u t a d o s o s juízes d o T r i -
b u n a l Real e d a C o r t e de A p e l a ç ã o , s a b i a m q u e p a r t e d o siste-
ma jurídico o n d e a t u a v a m corria o risco de ser r e d u z i d a à insig-
U M ESTUDO DO DIREITO E DA REALIDADE SOCIAL 223

nificância à medida que sua clientela, os n o b r e s possuidores de


t e r r a e a p e q u e n a nobreza, declinava em poder financeiro re-
lativo. D e sua p a r t e , a b u r g u e s i a a p r o v e i t a v a com s a t i s f a ç ã o a
o p o r t u n i d a d e de acesso às c o r t e s d e direito costumeiro, que
e r a m mais i n d e p e n d e n t e s d a C o r o a d o que a l g u n s tribunais es-
peciais criados pelos T u d o r . A aliança com a C o r o a era uma
coisa: a d e p e n d ê n c i a dela, a l g o inteiramente d i f e r e n t e .
H a v i a o p o r t u n i d a d e , p o r conseguinte, p a r a u m a aliança
e n t r e o s a d v o g a d o s costumeiros e a b u r g u e s i a , d e s d e que os
primeiros conseguissem c o n v e n c e r a s c o r t e s o n d e litigavam a
se m o s t r a r e m receptivas a o s princípios jurídicos esposados pela
s e g u n d a . N o s a n o s finais d o século, a aliança começou a tomar
f o r m a , à medida que as cortes d e direito costumeiro evoluíam
p a r a a teoria b u r g u e s a d e c o n t r a t o . E m 1602, no Slades Case,
todos os juizes d e direito costumeiro, r e u n i n d o - s e n a C â m a r a
d o C h a n c e l e r d o Erário, resolveram que um c o n t r a t o de v e n d a
de bens, embora n ã o r e g i s t r a d o , podia ser s u b m e t i d o a julga-
m e n t o em suas cortes. T e r i a sido mais simples p a r a os juízes
a d o t a r a r e g r a comercial, e m b o r a o respeito pela t r a d i ç ã o exi-
gisse que s e t o m a s s e um c a m i n h o d i f e r e n t e .
A a ç ã o d e convenção, que podia ser s u b m e t i d a a julga-
m e n t o a p e n a s com a existência de um c o n t r a t o registrado, era
c l a r a m e n t e i m p r ó p r i a n o q u e i n t e r e s s a v a a o s comerciantes.
H a v i a t a m b é m a ação p o r dívida, ou p r o m e s s a p o r escrito de
p a g a r certa s o m a em dinheiro, mas esta t i n h a s u a s próprias li-
mitações. O Slade's Case gira, p o r conseguinte, em torno da
r e i n t e r p r e t a ç ã o de uma terceira f o r m a d e citação, a do assump-
sit, r a t i f i c a n d o e t o r n a n d o e x p r e s s o os juizes um processo de
evolução n o u s o dessa f o r m a de citação que se iniciara d é c a d a s
antes. H a v i a m os a d v o g a d o s costumeiros c o m e ç a d o a a r g u -
m e n t a r : s u p o n h a m o s que c o n c o r d o com um empreiteiro que ele
m e f a r á u m a c a s a e que esse a c o r d o é s e l a d o e registrado. Se
ele n ã o a constrói a b s o l u t a m e n t e ( " o m i s s ã o " ) t e n h o u m a ação
d e convenção. S e ele a constrói mal, e p r o m e t e u , mesmo oral-
mente, construi-la bem, f u i e n g a n a d o p o r q u e ele descumpriu
o que havia p r o m e t i d o ( u m a assumpsit que é d e s c u m p r i d a por
" t r a n s g r e s s ã o " ) . O a r g u m e n t o era que a violação d a p r o m e s -
sa d e u s a r d e c u i d a d o e habilidade, mesmo que n ã o r e g i s t r a d a
e selada, poderia dar origem a uma a ç ã o de assumpsit. Elas
c o m e ç a r a m a ser i n t e n t a d a s p o r volta de 1400 em ações contra
carpinteiros, veterinários q u e h a v i a m p r o m e t i d o c u r a r animais,
e o u t r o s colocados em circunstâncias s e m e l h a n t e s . E m vez de
224 A ASCENDÊNCIA DA BURGUESIA

a d o t a r simplesmente o princípio mercantil d e que u m a b a r g a -


n h a devia ser c u m p r i d a , os a d v o g a d o s c o m e ç a r a m a r e i n t e r p r e -
tar a s idéias de f r a u d e e burla. O m i s s ã o em um assumpsit era
burla. U m a vez c o n s o l i d a d a essa idéia, a b r i a - s e c a m i n h o p a r a
a a d o ç ã o dos e l e m e n t o s f u n d a m e n t a i s do direito c o n t r a t u a l .
N o século X V I , a a ç ã o d e a s s u m p s i t foi a m p l i a d a p a r a
a b r a n g e r certas dividas. Se h a v i a u m a dívida p e n d e n t e , e o
d e v e d o r dizia que a p a g a r i a em c e r t a d a t a , o credor, d e a c o r d o
com a d o u t r i n a em desenvolvimento, p o d e r i a processá-lo, em
caso d e inadimplência, pela dívida ou p e l a p r o m e s s a ( a s s u m p s i t )
de h o n r a r u m a o b r i g a ç ã o p r e e x i s t e n t e . D a i a indebitatus as-
sumpsit.
O Slade's C a s e unificou e refinou a d o u t r i n a . Se A c o n c o r -
d a v a em v e n d e r milho a B n u m certo dia, e B em p a g a r pela
mercadoria, t r a t a v a - s e de um c o n t r a t o executório, isto é, a ser
c u m p r i d o no f u t u r o . S e A n ã o fizesse a e n t r e g a , ou se B n ã o
p a g a s s e , a p a r t e c u l p a d a havia violado sua assumpsit. I s t o é,
resolveram os juizes, " t o d o s os c o n t r a t o s executórios impor-
t a m p o r si m e s m o s em u m a assumpsit". Velhos campos haviam
p r o d u z i d o milho novo.
U m a vez aceito o princípio, t o r n o u - s e mais fácil admitir a
idéia mercantil d e c o n t r a t o simples. O T r i b u n a l R e a l r e a f i r m o u
e e x p a n d i u a p r á t i c a d e admitir evidência d o s t r i b u n a i s costu-
meiros d o s m e r c a d o r e s e p a s s o u a n o m e a r um júri de comer-
ciantes p a r a a p u r á - l a , se necessário. A fim d e a t e n d e r à s quei-
x a s d e comerciantes internacionais, a s cortes de direito costu-
meiro e x p a n d i r a m sua jurisdição g e o g r á f i c a : permitiram que o
q u e i x o s o alegasse que A m s t e r d a m , ou a l g u m a o u t r a c i d a d e es-
t r a n g e i r a o n d e s u r g i r a a d i s p u t a , " s i t u a v a - s e n a p a r ó q u i a de
St. M a r y - l e - B o w , no B a i r r o d e C h e a p " , n a C i t y d e L o n d r e s e,
em seguida, r e c u s a r a m - s e a admitir que a p a r t e contrária n e -
g a s s e tal alegação.
A luta d o s a d v o g a d o s e juízes especializados eni direito
costumeiro a fim de a t r a i r o s h o n o r á r i o s e c u s t a s p r o p o r c i o n a -
d o s p e lo s comerciantes, a e s s a a l t u r a poderosos, intensificou-se
em fins d o século X V I e persistiu a t é o século X V I I . O s jui-
zes, p o r solicitação d o s réus. c o m e ç a r a m a emitir citações proi-
b i n d o q u e tribunais comerciais o u marítimos des s em prossegui-
m e n t o à s ações, o u o r d e n a n d o a o q u e i x o s o q u e desistisse da
a ç ã o ou a eles a s u b m e t e s s e m . O s tribunais comerciais, e e s p e -
cialmente o tribunal marítimo •— q u e d e s f r u t a v a o apoio f e a l
— reagiram com citações e e m b a r g o s próprios. E s s a l u t a d e n t r o
U M ESTUDO DO DIREITO E DA REALIDADE SOCIAL 225

d a p r o f i s s ã o , à s e x p e n s a s d o s litigantes, c u j o s negócios e s t a v a m
em jogo. d u r o u até o século X V I I .
A assimilação g r a d u a l do direito b u r g u ê s pelos a d v o g a d o s
constituiu u m a c o n d i ç ã o necessária d e s u a aliança com a bur-
guesia. que atingiu seu ponto culminante n a R e v o l u ç ã o Inglesa
d e m e a d o s d o século X V I I . E s s a aliança n ã o p o d i a ter êxito,
a m e n o s que a g u e r r a de papel, sob a f o r m a de citações e em-
b a r g o s . p u d e s s e ser resolvida em f a v o r d o s a d v o g a d o s , fosse
a t r a v é s de i n t e r v e n ç ã o real ou. como se tornou necessário, por
meios mais violentos.
A aliança e n t r e a b u r g u e s i a e os a d v o g a d o s especializados
em direito costumeiro teve t a m b é m uma d i m e n s ã o constitucio-
nal. pois as cortes o n d e estes litigavam n ã o e r a m criações da
p r e r r o g a t i v a real, como as de c o m e r c i a n t e s e marítimas, e o u t r a s
jurisdições "especiais". C o n f o r m e t e r e m o s o p o r t u n i d a d e de ex-
plicar com mais d e t a l h e s em n o s s a d i s c u s s ã o d a Revolução In-
glesa, Sir E d w a r d C o k e foi um d o s principais a r q u i t e t o s dn
ideologia da aliança. A u t o r i t a r i a m e n t e , p a r a n ã o dizer violen-
tamente. r e f o r m o u a história e a j u r i s p r u d ê n c i a inglesas. O s ve-
lhos c a m p o s e r a m os j u l g a m e n t o s d a s cortes de direito costu-
meiro e, talvez, a M a g n a C a r t a , c o n s i d e r a d a n ã o como um
elenco de concessões e x t r a í d a s p o r a l g u n s barões, mas como
u m a carta de l i b e r d a d e s . C o m b a s e n a M a g n a C a r t a p o d i a ser
d e d u z i d a a tese d e que o rei era limitado pela "lei da t e r r a " ,
f r a s e e s t a u s a d a com maior p r o b a b i l i d a d e n a q u e l e documento
c o m o r e f e r e n t e à proteção d o s privilégios d o s barões, mas sus-
ceptível a uma i n t e r p r e t a ç ã o mais ampla. D a s v e l h a s s e n t e n ç a s
d o s tribunais d e direito costumeiro surgiu uma o r d e m jurídica
r e f o r m a d a , a c e i t a n d o novos princípios, mas r e p o u s a n d o sobre
velhas tradições. E s s a história revista de concessões reais e de-
cisões judiciais, c o n f o r m e o b s e r v o u T . F . T . P l u c k n e t t , "limita-
va p o r igual a C o r o a e o P a r l a m e n t o " .
A b u r g u e s i a n ã o teve p o u c a r e s p o n s a b i l i d a d e n a criação
de u m a m o n a r q u i a com reivindicações ao p o d e r absoluto, pois
seus interesses f o r a m bem servidos pelas e n é r g i c a s políticas dos
T u d o r . M a s . t e n d o conseguido a redistribuição d a terra e lu-
c r a d o com o e s f a c e l a m e n t o d a v i d a aldeã, p r o c u r o u aliados em
uma n o v a luta a fim d e limitar o p o d e r da C o r o a d e interferir
no comércio. O s a d v o g a d o s especializados em direito costumei-
ro e s t a v a m p r o n t o s p a r a p a r t i c i p a r de tal aliança.
f

QUINTA PARTE

A Vitória Burguesa
(1600-1804)
18

França: O Triunfo
do Terceiro Estado

O C ó d i g o de N a p o l e ã o foi p r o m u l g a d o no dia 29 de
V e n t o s e , n o décimo s e g u n d o a n o d a república — 20 de março
de 1804. M a i s de um a n o a n t e s , s u a s linhas m e s t r a s haviam
sido a p r e s e n t a d a s ao Conseil d ' E t a t p o r um d e seus membros,
Jean Portalis, e seus principais c o l a b o r a d o r e s , B i g o t - P r e m é n e u ,
T r e i l h a r d e T r o n c h e t . U m a v e r s ã o anterior, sobre a qual tra-
b a l h a r a m os q u a t r o , fora p r e p a r a d a p o r J e a n - J a c q u e s C a m b a -
ceres, S e g u n d o C ô n s u l de N a p o l e ã o .
E m d i s c u r s o p e r a n t e o Conseil, Portalis alinhou uma série
de r e f l e x õ e s sobre o t r a b a l h o r e a l i z a d o n a eleboração do Códi-
go e n a t r a n s f o r m a ç ã o d e s u a s disposições em lei, u m a s poucas
de c a d a vez, d u r a n t e u m ano. C o m a u t o r i z a ç ã o de N a p o l e ã o ,
seu discurso t o r n o u - s e a v e r s ã o oficial d a história do C ó d i g o .
I n i c i a n d o s u a exposição com uma r e f e r ê n c i a à primeira legis-
lação de C a r l o s M a g n o , c ont i nuou P o r t a l i s c o m e n t a n d o a s
établissemens e ordonnances d e Luis X I , mencionou estudos
sobre direito r o m a n o e chamou a a t e n ç ã o p a r a a falta de su-
cesso d e t o d a s as tentativas p a r a unificar e simplificar o direi-
to v i g e n t e n a F r a n ç a . ( E m relatório a p r e s e n t a d o um a n o antes,
ele t a m b é m p r e s t a r a h o m e n a g e m aos que haviam reduzido à
f o r m a escrita o direito costumeiro, p e r m i t i n d o que o mesmo pu-
desse ser e s t u d a d o , )
N a p e r o r a ç ã o , deu a v e r s ã o oficial d a luta da burguesia
f r a n c e s a p a r a subir ao p o d e r :
" F o r a m as n o s s a s d e s c o b e r t a s n a s artes, nossos primeiros
sucessos na n a v e g a ç ã o , e o f e r m e n t o por sorte nascido de nos-
230 A VITÓRIA DA BURGUESIA

sos êxitos e d e s c o b e r t a s d e t o d o s os tipos q u e p r o d u z i r a m , s o b


Luís X I V , o s e s t a t u t o s d e C o l b e r t sobre m a n u f a t u r a d o s , a lei
d a s vias n a v e g á v e i s e florestas, e a r e g u l a m e n t a ç ã o d o comér-
cio interno e de e x p o r t a ç ã o p o r via marítima.
" O bom n a s c e d o b o m . Q u a n d o o legislador focaliza s u a
p r e o c u p a ç ã o e a t e n ç ã o em a l g u m a s p o u c a s m a t é r i a s i m p o r t a n -
tes, sente a n e c e s s i d a d e e o d e s e j o de a t u d o a b r a n g e r . H o u v e
r e f o r m a s judiciárias, o direito p r o c e s s u a l foi m e l h o r a d o , uma
n o v a ordem foi estabelecida n a justiça criminal e se c o n c e b e u
o p r o j e t o de d a r à F r a n ç a um código u n i f o r m e .
" [ A q u e l e s q u e t e n t a r a m redigir o C ó d i g o ] d e p a r a r a m - s e
com obstáculos insuperáveis na opinião publica, não suficiente-
m e n t e p r e p a r a d a , n a s r i v a l i d a d e s d o p o d e r , n o a p e g o d o povo
a o s costumes, a c o n s e r v a ç ã o d o s q u a i s c o n s i d e r a v a um direito
hereditário, n a resistência de cortes s o b e r a n a s , que c o n t i n u a v a m
a recear que seu p o d e r fosse r e d u z i d o , n a d e s c r e n ç a supersticio-
sa d e a d v o g a d o s n a utilidade de q u a l q u e r m u d a n ç a que a f e t a -
ria aquilo que h a v i a m laboriosamente a p r e n d i d o e p r a t i c a d o
d u r a n t e t o d a vida.
" N ã o o b s t a n t e , os ideais d e r e f o r m a e u n i f o r m i d a d e h a v i a m
sido soltos n o mundo. Sábios e philosophes a p o s s a r a m - s e deles,
a n a l i s a n d o a s p r o p o s t a s legislativas à luz d a r a z ã o e d a e x p e -
riência. Leis f o r a m c o m p a r a d a s e n t r e si e e s t u d a d a s em relação
a o s direitos do h o m e m e à s n e c e s s i d a d e s d a sociedade. O judi-
cioso D o m a t e vários de seus c o n t e m p o r â n e o s c o m e ç a r a m a d u -
v i d a r que a legislação f o s s e u m a v e r d a d e i r a ciência. E u c h a m o
d e ciência u m a série de v e r d a d e s ou n o r m a s l i g a d a s e n t r e si,
d e r i v a d a s de primeiros princípios, e n f e i x a d a s em um corpo de
d o u t r i n a sistemática, e i n t e r e s s a n d o a um d o s principais r a m o s
d o s .conhecimentos. . .
" N a s ciências, como n a s letras e n a s artes, m e s m o q u a n d o
t a l e n t o s incomuns l u t a m com d i f i c u l d a d e s e se e s g o t a m em es-
f o r ç o s vãos, a p a r e c e de súbito um h o m e m d e gênio que se le-
v a n t a e leva n o s s o p e n s a m e n t o além de suas a c o s t u m a d a s f r o n -
teiras.
" O f a m o s o a u t o r d o LEsprit des Lois [ M o n t e s q u i e u ] reali-
zou j u s t a m e n t e isso no último século. D e i x o u muito a t r á s d e
si todos os d e m a i s que h a v i a m escrito s o b r e j u r i s p r u d ê n c i a : foi
a b e b e r a r - s e n a f o n t e de t o d a a legislação; descobriu a f o r ç a
motriz de c a d a lei: e n s i n o u - n o s a j a m a i s s e p a r a r os d e t a l h e s d o
sistema completo, e a e s t u d a r s e m p r e a s leis à luz d a história,
q u e constitui o laboratório físico d a ciência legislativa.
O TRIUNFO DO TERCEIRO ESTADO 231

" T a l foi o espírito q u e c a m i n h o u e n t r e nós, tais f o r a m nos-


sos conhecimentos e recursos, q u a n d o i n e s p e r a d a m e n t e irrom-
peu uma g r a n d e revolução.
" T o d o s os a b u s o s f o r a m s i m u l t a n e a m e n t e a t a c a d o s e p o s t a s
em d ú v i d a t o d a s a s instituições. A o som d a voz d o o r a d o r ,
instituições a p a r e n t e m e n t e inabaláveis d e s m o r o n a r a m ; n ã o ti-
n h a m raízes n o s sentimentos do povo. L o g o depois, o p o d e r foi
c o n q u i s t a d o pela opinião pública.
" F o i , temos que admitir, um d e s s e s m o m e n t o s decisivos
que, à s vezes, ocorrem n a história d a s n a ç õ e s e q u e alteram a
posição e a s f o r t u n a s de um p o v o . . .
" E n t r e t o d a s a s r e f o r m a s p r o p o s t a s , a idéia de u m a legis-
l a ç ã o u n i f o r m e ocupou, em especial, a a t e n ç ã o de n o s s a s as-
sembléias legislativas.
" M a s como redigir um c ó d i g o d e leis civis em meio às di-
f i c u l d a d e s políticas que agitavam nosso país?
" O ódio do passado, o d e s e j o impaciente de viver p a r a o
presente, o m e d o d o f u t u r o levaram à a d o ç ã o d e m e d i d a s as
mais e x a g e r a d a s e violentas. A cautela e a p r u d ê n c i a , as ati-
t u d e s de conservantismo, f o r a m s u b s t i t u í d a s pelo d e s e j o de a
tudo destruir.
" C e r t o s privilégios i n j u s t o s e opressivos, d e s f r u t a d o s por
a l g u n s h o m e n s a p e n a s , h a v i a m subido à c a b e ç a de todos. A
fim d e r e c u p e r a r a s v a n t a g e n s da liberdade, d u r a n t e um breve
m o m e n t o o país caiu n a licença. A fim de suprimir o odioso
sistema de privilégio e p r e f e r ê n c i a , e evitar seu renascimento,
a l g u n s p r o c u r a v a m nivelar t o d a s as f o r t u n a s a p ó s terem nive-
lado t o d a s a s classes sociais. . .
" I d é i a s mais m o d e r a d a s , no entanto, s u b i r a m ao primeiro
plano; a s p r i m e i r a s leis f o r a m corrigidas e exigidos novos pla-
n o s : c o m p r e e n d e u - s e que um código civil d e v e ser p r e p a r a d o
com s a b e d o r i a e n ã o imposto com f u r o r e p r e s s a . "
É g r a n d e a diferença e n t r e o s t o n s c o n s e r v a d o r e s e p o n -
d e r a d o s de P o r t a l i s e a iconoclastia e n t u s i á s t i c a d o s decretos
revolucionários anteriores, tal como o d e c r e t o de 1789 da A s -
sembléia N a c i o n a l , abolindo o feudalismo e p r o m e t e n d o a re-
distribuição d a terra. O C ó d i g o foi revolucionário, p a r a sermos
exatos, pois p r o m u l g o u os ideais b u r g u e s e s de c o n t r a t o e pro-
p r i e d a d e e o s reconheceu como g e r a l m e n t e aplicáveis. C o m o có-
d i g o d e direito privado, n o entanto, íoi baixado exclusivamente
a serviço d a b u r g u e s i a e constituiu u m a visível t r a i ç ã o aos in-
232 A VITÓRIA DA BURGUESIA

teresses e aspirações d o s t r a b a l h a d o r e s e camponeses, que h a -


viam f o r m a d o a s t r o p a s de c h o q u e d a Revolução.
O p r o n u n c i a m e n t o d e P o r t a l i s d e i x a claro que a s m a n i -
f e s t a ç õ e s anteriores de d e s o r d e m , d e s t r u i ç ã o e n i v e l a m e n t o h a -
viam sido f i r m e m e n t e a b a f a d a s . A R e v o l u ç ã o f o r a " i n e s p e r a -
da", o "poder" fora "conquistado" não pelas armas, mas "pe-
la opinião"; " m e d i d a s e x a g e r a d a s e v i o l e n t a s " h a v i a m sido
t o m a d a s . C o n q u i s t a d o o p o d e r , essa i n e s p e r a d a revolução d e -
via ser c o n s i d e r a d a c o m o um f a t o descontinuo, ocorrido q u a s e
a o a c a s o , e n ã o como clímax de oitocentos a n o s de luta b u r g u e -
sa. O novo C ó d i g o reconheceria como p r o g e n i t o r n ã o b a n d i d o s
ou niveladores e dificilmente q u a l q u e r r e b e l d e a r m a d o . E m
vez disso, M o n t e s q u i e u , Colbert, D o m a t — a t é m e s m o Luís
X I V — f o r a m i n d i c a d o s como ancestrais d o d o c u m e n t o e x a l -
t a d o por Portalis.

A n t e c e d e n t e s Legais e Históricos
da R e v o l u ç ã o
A n a ç ã o f r a n c e s a surgiu como tal em 1600. P a r a a s f i n a -
lidades d e r e p r e s e n t a ç ã o n o s r a r o s E s t a t e s - G e n e r a l c o n v o c a d o s
pela C o r o a p a r a a p r o v a r impostos e p r o v e r a c o n s e l h a m e n t o ,
a n a ç ã o consistia em t r ê s E s t a d o s : o clero, a n o b r e z a e 09 co-
m u n s (roturiers), E s t e s últimos incluíam b u r g u e s e s ricos, a d -
v o g a d o s , p r o f e s s o r e s , m e s t r e s - a r t e s ã o s , a r t e s ã o s comuns, a s -
s a l a r i a d o s e p e q u e n o s proprietários •— em suma, um g r u p o he-
t e r o g ê n e o de p e s s o a s e interesses.
E m 1800, a b u r g u e s i a •— como aliás o fizera d u r a n t e
oitocentos a n o s —• reconhecia f r a n c a m e n t e a existência de con-
flitos de classe d e n t r o de s u a s fileiras. O s mais a n t i g o s rebel-
d e s u r b a n o s h a v i a m p r o c u r a d o r e c o n h e c i m e n t o de sua situação
excepcional d e n t r o d o sistema f e u d a l , p r e e n c h e n d o uma f u n ç ã o
d i f e r e n t e d a q u e l a que cabia a o u t r o s indivíduos livres, mas n ã o
nobres, tais como p e q u e n o s vassalos, m o d e s t o s proprietários e
u n s p o u c o s diaristas rurais. A g u ç a n d o - s e a s d i v e r g ê n c i a s e n t r e
p a t r õ e s e t r a b a l h a d o r e s , a b u r g u e s i a rica começou a insistir em
um status s e p a r a d o . N a F r a n ç a , é claro, insistir n e s s e status
s e p a r a d o n ã o t o r n a v a necessário p e r m a n e c e r nele — como era
evidenciado p e l a t e n d ê n c i a da b u r g u e s i a de a s c e n d e r à n o b r e -
za, s e m p r e que possível. Só mais t a r d e percebeu ela a s v a n t a -
g e n s de se u n i r e liderar o T e r c e i r o E s t a d o na d e r r u b a d a d a s
instituições feudais.
O T R I U N F O DO TERCEIRO ESTADO 233

O A b a d e Sieyès, num p a n f l e t o d e 1789, intitulado O Que


Ê o Terceiro Estado?, disse f r a n c a m e n t e q u e o termo designa-
va ora a b u r g u e s i a ora a massa do povo. A inclusão d e s t e últi-
m o era útil p a r a mobilizar a maioria c o n t r a a n o b r e z a . " E s s a
classe é . . . c e r t a m e n t e e s t r a n h a à n a ç ã o em v i r t u d e de seu
ócio". R e f e r i a - s e ele à p e q u e n a p a r t e d o T e r c e i r o E s t a d o que
o c u p a v a a s posições de liderança.
E m princípios do século X V I I . n e g o u L o y s e a u que o T e r -
ceiro E s t a d o como um todo p u d e s s e ser c h a m a d o d e " b u r g u ê s " ,
insistindo, sobre f u n d a m e n t o s etimológicos, que b u r g u ê s era o
indivíduo que residia em cidade. Dividia ele o T e r c e i r o E s t a d o
em h o m e n s d e letras (cultores d a teologia, direito, medicina e
a r t e s ) ; a q u e l e s q u e ocupavam c a r g o s que lhes d a v a m direito a
u m a p a r c e l a d a s f i n a n ç a s reais ( i n c l u i n d o muitos que n o j a r -
g ã o m o d e r n o seriam financistas ou b a n q u e i r o s ) ; juízes, a d v o g a -
dos e servidores d o s tribunais; e comerciantes. E a g r a n d e
maioria? A o s que t r a b a l h a v a m com a s m ã o s c h a m a v a ele de
"vis", " l a b r e g o s " , "beócios" e " d e s o n e s t o s e s ó r d i d o s " . L o y -
seau, porém, conhecia sua história e sabia b e m q u e n u m e r o s a s
f o r t u n a s de c o m e r c i a n t e s h a v i a m c o m e ç a d o em o f i c i n a s a r t e -
sanais s o b a égide d e sociedades c o m u n a i s . P o r conseguinte,
d e c l a r o u : " H á o c u p a ç õ e s que são s i m u l t a n e a m e n t e a r t e s a n a i s e
comerciais. . . ; n a e x t e n s ã o em que o indivíduo, em tal situação,
participa do comércio, seu ofício é r e s p e i t á v e l " .
Q u a n t o ao campo, "hoje chamamos de trabalhadores e
aldeões àqueles que c h a m á v a m o s d e camponeses, de pessoas
vis". E m s e g u i d a , c o m maior c a u t e l a : " E l e s s ã o g r a n d e s vítimas
d a t r i b u t a ç ã o , t a n t o que ficamos q u e r e n d o saber como conse-
guem sobreviver e como c o n t i n u a r e m o s a e n c o n t r a r t r a b a l h a d o -
res p a r a n o s a l i m e n t a r " . ( U m a a c u s a ç ã o t ã o f r a n c a e a r r o g a n -
te à s classes "vis" n ã o apareceu n o s volumes d e d e b a t e s sobre
o C ó d i g o de N a p o l e ã o ; neles, esses s e n t i m e n t o s s ã o d i s f a r ç a -
d o s p o r t r á s de receios de d e s o r d e m , rebelião e a m e a ç a s à pro-
priedade.)
O s princípios d o m i n a n t e s d a ideologia d a b u r g u e s i a f r a n -
cesa que culminaram em 1789 —• c o m e ç a n d o com a s acres
p a l a v r a s de L o y s e a u . p a s s a n d o pelo p a n f l e t o de Sieyès e d e s a -
g u a n d o n a s e s t r o f e s finais de P o r t a l i s —• f o r a m e l a b o r a d o s
com t o d o s os c u i d a d o s . A d i f e r e n c i a ç ã o e n t r e a b u r g u e s i a e a
m a s s a d o T e r c e i r o E s t a d o , e a c u i d a d o s a j u s t i f i c a ç ã o d o direi-
to d a primeira de liderar inicialmente o s i n s u r g e n t e s e, em se-
guida, a nação, p e r p a s s a por todos esses t r a b a l h o s . F o r a m a n a -

is -P.A.C.
234 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A

lisados. satirizados, c o n s i d e r a d o s e s c a n d a l o s o s e d e v i d a m e n t e
classificados todos os elementos d o ancien regime. Voltaire.
D i d e r o t , M o n t e s q u i e u e o u t r o s h a v i a m indicado o caminho. A
p a r t i r do r e i n a d o de Luís X I V ou, mais e x a t a m e n t e , d u r a n t e o
t e m p o de seu ministro Colbert, t o r n a r a m - s e claros os delinea-
m e n t o s ideológicos d a revolução iminente. S e u s arquitetos f o r a m
os advogados.
J o s e p h - R o b e r t P o t h i e r e Jean D o m a t , s e g u i n d o a t r a d i ç ã o
p r á t i c a d e D u m o u l i n . e s c r e v e r a m c o p i o s a m e n t e sobre o direi-
t o b u r g u ê s d o s séculos X V I e X V I I I . a i n d a limitado p o r r e s -
trições f e u d a i s , d o g m a s religiosos e princípio d a s u p r e m a c i a
real. E n t r e m e n t e s , n a F r a n ç a e o u t r o s p a í s e s d a E u r o p a , r e -
p r e s e n t a n t e s d o s g r a n d e s interesses comerciais e m a n u f a t u r e i -
ros — tais como M o n t e s q u i e u n a F r a n ç a e G r o t i u s n a H o l a n d a
—• c o n t e s t a v a m a s objeções f e u d a i s , canónicas e p o p u l a r e s a
um sistema b a s e a d o n o s princípios d o livre c o n t r a t o e n a liber-
d a d e de possuir p r o p r i e d a d e .
A d e m a i s , c o n f o r m e teremos o p o r t u n i d a d e de ver, a lide-
r a n ç a d a s f o r ç a s que sucessivamente a s s u m i r a m o controle d a
A s s e m b l é i a N a c i o n a l a p ô s 1789 recaiu p r i n c i p a l m e n t e n a s mãos
d e a d v o g a d o s , c u j a radicalização se p o d i a medir pela e x t e n s ã o
em q u e a c r e d i t a v a m que a vitória r e c é m - a d q u i r i d a d a b u r g u e -
sia podia ser e n q u a d r a d a d e n t r o d a s v e l h a s instituições ou. em
c a s o c o n t r á r i o que essas instituições inevitavelmente trairiam
a R e v o l u ç ã o e deviam, por conseguinte, ser e s m a g a d a s . N e s t e
capitulo, e s t u d a r e m o s a crescente autoconsciência da b u r g u e s i a
c o m o classe, e n ã o simplesmente como um g r u p o e n t r e os mui-
t o s q u e se o p u n h a m e e r a m s e p a r a d o s d o s s e n h o r e s t e m p o r a i s
e espirituais, c u j a s f u n ç õ e s sociais v i a m - s e c a d a vez mais a t e -
n u a d a s e c u j a s exigências financeiras eram, por isso mesmo,
j u l g a d a s c a d a vez mais p r e d a t ó r i a s .
Jean Baptiste Colbert, M i n i s t r o d a s F i n a n ç a s de Luís X I V
d e 1661 a 1683, d e s e m p e n h o u um p a p e l relevante nesses e v e n -
tos. F i l h o de uma família r e l a t i v a m e n t e rica de comerciantes,
e n t r o u ele a o serviço de M a z a r i n o , conselheiro de Luís X I V e
que, até sua morte, em 1661, foi o homem mais p o d e r o s o do
reino. A propósito de C o l b e r t . diz seu b i ó g r a f o Pierre G o u b e r t :
Escolhido bem moço por Mazarino, a pegou-se a ele c o m o
Mazarino se h a v i a apegado a Richelieu, e serviu-o infatigavel-
mente, até mesmo em tarefas subalternas, como supervisionar-
lhe o j a n t a r . E n c o n t r a v a - s e e m u m a s i t u a ç ã o a d m i r á v e l p a r a
O T R I U N F O DO T E R C E I R O ESTADO 235

c o n h e c e r todos os Interesses de M a z a r l n o e do E s t a d o e p r o m o v e r
os seus. E r a d o t a d o de g r a n d e p e r s e v e r a n ç a , i m e n s a c a p a c i d a d e
de t r a b a l h o , a m o r à ordem, e x p e r i ê n c i a a d m i n i s t r a t i v a , idéias
claras, embora ocasionalmente errôneas, e u m a cobiça sem íim.
S o m e n t e este último traço e r a tipico de s u a época.

C o i b e r t n ã o precisava ser i n o v a d o r . B a s t a v a - l h e a p e n a s
i n s p i r a r - s e n a I n g l a t e r r a e H o l a n d a como modelos de p r o g r e s -
so econômico e p r o c u r a r e n t e n d e r p o r que a F r a n ç a se atrasava
em relação a esses países. S u a solução, e l a b o r a d a p a r a servir
à situação fiscal, política e e x t e r n a d a C o r o a , a o mesmo tempo
em que b e n e f i c i a v a a burguesia, foi o capitalismo mercantil pa-
t r o c i n a d o pelo E s t a d o , de a c o r d o com o m o d e l o inglês.
A fim d e desenvolver um sistema interno de p r o d u ç ã o e
criar um comércio de e x p o r t a ç ã o de m a n u f a t u r a d o s e p r o d u t o s
desenvolvidos com base n a e x p l o r a ç ã o comercial d e plantações
de c a n a - d e - a ç ú c a r e café, C o i b e r t estimulou a criação de cor-
porações instituídas por c a r t a s régias e c o m monopólio a s s e g u -
r a d o — p e lo s q u a i s a C o r o a c o b r a v a um p e s a d o tributo —
sobre a l g u m r a m o do comércio. O patrocínio real e a s inovações
no direito f a v o r á v e i s aos n o v o s sistemas d e comércio e m a n u -
f a t u r a c o m b i n a r a m - s e p a r a a t r a i r f i n a n c i s t a s e b u r g u e s e s ricos
p a r a esses campos. Começou a m u d a r o v e l h o p a d r ã o de for-
mação de f o r t u n a s b u r g u e s a s —• do comércio p a r a a posse de
terras e dai p a r a a nobreza em t r ê s g e r a ç õ e s . O s financistas
q u e p r e f e r i a m n ã o investir, m a s e m p r e s t a r dinheiro à C o r o a
em troca do direito de "colher" p a r t e d o s impostos nacionais,
f o r a m induzidos a m u d a r s u a s p r e f e r ê n c i a s . O s comerciantes e
a b u r g u e s i a m a n u f a t u r e i r a , b e n e f i c i a d o s d u r a n t e os a n o s do
ministério d e Coibert. c o n t i n u a r a m a p r o s p e r a r no século
X V I I I , t r a n s f o r m a n d o - s e em f o r ç a s p o d e r o s a s n a vida política
f r a n c e s a . M o n t e s q u i e u nasceu nesse g r u p o e V o l t a i r e foi g r a n -
d e m e n t e i n f l u e n c i a d o por ele. D e uma p o s i ç ã o de p o d e r , esses
f i n a n c i s t a s d a i ndúst ri a i n t e r n a e d o comércio colonial p a s s a r a m ,
com e s p o r á d i c a a j u d a real, a a t a c a r a s g u i l d a s de a r t e s ã o s e
m e s t r e s - a r t e s ã o s que, no c o n t e x t o d a sociedade feudal, haviam
sido f o r m a d a s como enclaves b u r g u e s e s .
O movimento d e cerco de t e r r a s na F r a n ç a e a luta p a r a
estabelecer o s direitos de p r o p r i e d a d e b u r g u e s e s no c a m p o
ocorreram cem a n o s depois de f a t o s idênticos na I n g l a t e r r a e
sem c o n f i s c a em g r a n d e escala. M u i t o ao contrário, os finan-
cistas b u r g u e s e s , que h a v i a m a d q u i r i d o p r o p r i e d a d e s feudais,
tiveram permissão para nelas construírem estabelecimentos f a -
236 A VITÓRIA DA BURGUESIA

bris, isto em d e t r i m e n t o d a s guildas d a s c i d a d e e d o u s o comum


d a t e r r a pastoril, agrícola e silvícola.
P o d e m o s a c o m p a n h a r esses f a t o s n o s t r a b a l h o s d e a d v o -
g a d o s que r e m o d e l a r a m a s v e l h a s f o r m a s institucionais a fim de
acolher a s m u d a n ç a s que e n t ã o aconteciam. Luís X I V , a c e i t a n d o
conselhos de Colbert, o r d e n o u q u e c e r t o n ú m e r o d e p r á t i c a s
m e r c a n t i s fosse c o d i f i c a d o , p r o m u l g a n d o u m código de n o r m a s
processuais e o u t r o relativo à s vias n a v e g á v e i s e flores tas . E n -
t r e 1689 e 1697, vieram à luz p a r t e s d o Les Loix civiles dans
leur otdre naturel, de Jean D o m a t . E m b o r a publicado p r i v a d a -
mente, o t r a b a l h o de D o m a t mereceu a a p r o v a ç ã o de Luís X I V
e constituiu um s u m á r i o a u t o r i z a d o do direito existente. E r a uma
e s t r a n h a mistura d e princípios jurídicos b u r g u e s e s a p o i a d o s no
direito natural, j u n t a m e n t e com o r e c o n h e c i m e n t o e x p r e s s o de
prerrogativas feudais.
Dividia D o m a t a s leis e n t r e a s que e r a m i n s p i r a d a s p o r
D e u s e, por conseguinte, imutáveis, e a q u e l a s de a u t o r i a do
h o m e m e, em conseqüência, a r b i t r á r i a s :
A e leia I m u t á v e i s s ã o a s s i m c h a m a d a s p o r q u e s ã o n a t u r a i s e,
p o r c o n s e g u i n t e , j u s t a s s e m p r e e e m t o d a p a r t e , leis q u e a u t o -
r i d a d e a l g u m a p o d e m u d a r ou revogar. As leis a r b i t r á r i a s são
aquelas que u m a autoridade legitima pode promulgar, m u d a r
e revogar segundo a necessidade.

E quais eram e s s a s leis imutáveis? O direito à p r o p r i e d a -


de, pelo m e n o s : " O d o n o de u m a coisa c o n t i n u a como seu d o n o
a t é que v o l u n t a r i a m e n t e dela se d e s f a ç a ou ela lhe s e j a retirada
p o r meios justos e legítimos". E m b o r a r e c o n h e c e s s e a p r e r r o -
g a t i v a d e legislar d o s o b e r a n o , a c r e d i t a v a ele que o c o n t r a t o
era o f u n d a m e n t o d a s o c i e d a d e n o sentido em que, como legis-
l a ç ã o privada, devia d e t e r m i n a r p r i m a r i a m e n t e direitos e o b r i -
g a ç õ e s e n t r e súditos. A s necessidades m ú t u a s d e v i a m ser p r i n -
cipalmente satisfeitas p o r livre b a r g a n h a .
N o tocante à s mulheres, retomou D o m a t um tema do direi-
t o r o m a n o , que r e a p a r e c e r i a com rigor no C ó d i g o de N a p o l e ã o :
As "características sexuais" que distinguem homem e mulher
f a z e m e n t r e eles a d i f e r e n ç a s e g u i n t e n o t o c a n t e a s e u s r e s p e c -
tivos s t a t u s : q u e os h o m e n s s ã o c a p a z e s d e t o d o s os t i p o s d e
empresas c funções, se n ã o impedidos por certos obstáculos, e
que a s m u l h e r e s são incapazes, pela razão exclusiva de seu
sexo, de n u m e r o s o s tipos d e e m p r e s a s e f u n ç õ e s . . . S e g u n d o
nosso costume, as m u l h e r e s casadas encontram-se sob o poder
de seus maridos. Isto é direito n a t u r a l e divino.
O T R I U N F O DO TERCEIRO ESTADO 237

A persistência de f o r m a s f e u d a i s d e p r o p r i e d a d e e status
é visível em Les Loix ctviles e indicativa d a p r e o c u p a ç ã o de
D o m a t d e conciliar velhas n o r m a s com n o v o s sistemas d e pro-
p r i e d a d e e comércio. D a n d o u m exemplo, m e s m o que os em-
préstimos a j u r o s houvessem sido r e c o n h e c i d o s pelo p a r l a m e n t o
inglês mais de cem a n o s a n t e s e fosse permitido pelo menos
em b a s e l i m i t a d a p o r q u a s e t o d a s a s compilações j u r i s p r u d e n -
ciais e sistemas legislativos d a E u r o p a O c i d e n t a l , D o m a t atacou
com eclesiástico f e r v o r esse costume. Les Loix civiíes, n o en-
tanto, d e s c r e v e em d e t a l h e s t o d o s os artifícios clássicos p a r a
ladear a proibição: o credor n ã o p a g o a o fim do p r a z o tem di-
reito a juros; n o c o n t e x t o d e u m a s o c i e d a d e comercial -— socíé-
té en commandité •— o sócio que f o r n e c e o capital tem direito
a e s p e r a r uma p a r c e l a d o s lucros, e assim p o r diante, a t r a v é s
de uma lista conhecida h a v i a c e n t e n a s d e a n o s .
J o s e p h - R o b e r t Pothier, um p r o f e s s o r d e O r l e a n s , publicou
u m longo c o m e n t á r i o sobre a s P a n r f e c f a s d e J u s t i n i a n o e uma
série de t r a b a l h o s sobre a l g u n s a s p e c t o s do direito p r i v a d o
obrigações ( c o n t r a t o s e d a n o s ) , espólios, d i r e i t o d e p r o p r i e d a -
de e direito de familia. O t r a b a l h o de P o t h i e r , d i g a - s e de p a s -
sagem, n ã o era original; sobrevive p o r q u e seu Traité des obliga-
tions foi a d o t a d o pelos r e d a t o r e s d o C ó d i g o d e N a p o l e ã o como
uma d e s u a s diretrizes técnicas ( j u n t a m e n t e com o b r a de D o m a t ,
de B o u r j o n , a u t o r de Droit commun de le Ftance, e d e Loisel,
a u t o r d e Les í n s f i f u t e s C o u í u m t ê r e s ) . O Traité foi t r a d u z i d o
p a r a o inglês e d u r a n t e algum tempo, em princípios d o século
X I X , gozou d e p o p u l a r i d a d e , t e n d o sem d ú v i d a auxiliado os
t r a b a l h o s d e juízes, a d v o g a d o s e r e f o r m a d o r e s jurídicos ame-
ricanos. como o M i n i s t r o Joseph S t o r e y , o C h a n c e l e r Kent,
de N o v a Y o r k . e D a v i d D u d l e y Field — p a r a introduzir o s
conceitos de prática mercantil d o direito civil e. talvez, do pró-
prio direito comercial, n o direito a m e r i c a n o .

A A l i a n ç a entre a
Filosofia e a Finança
U m a coisa era r e e s t u d a r os t e x t o s legais d o a n t i g o regime,
ir à s o r i g e n s de elementos c a l c a d o s em ordonnances reais e n o s
direitos costumeiro, romano, c a n ó n i c o e comercial. O u t r o tipo
de espírito, p o r é m , movia-se n a s á r e a s mais altas do direito.
C h a r l e s d e S e c o n d a t M o n t e s q u i e u ( 1 6 8 9 - 1 7 5 5 ) , c u j o livro O
Espírito das Leis foi e s t u d a d o a f u n d o pelos líderes da R e v o l u ç ã o
238 A VITÓRIA DA BURGUESIA

A m e r i c a n a , era a d v o g a d o e publicista, P r e s i d e n t e d o Parlement


d ç B o u r d e a u x , era igualmente acionista d a C o m p a g n i e des
I n d e s , o monopólio real q u e e x p l o r a v a a s p l a n t a ç õ e s de c a n a -
d e - a ç ú c a r e c a f é n a z o n a f r a n c e s a do C a r i b e e a d m i n i s t r a v a
o t r á f i c o de escravos, n e c e s s á r i o p a r a f o r n e c e r - l h e a força de
trabalho.
M o n t e s q u i e u r e f e r i u - s e em p a l a v r a s de elogio e x a g e r a d o
à a n t i g a n o b r e z a que, s e g u n d o disse, h a v i a tirado a F r a n ç a d a
b a r b á r i e . N o m u n d o m o d e r n o , contudo, j u l g a v a p r e v a l e c e r di-
f e r e n t e força p r o p u l s o r a :
O efeito n a t u r a l do comércio é i n s t a u r a r a p a z . . . O espírito
do c o m é r c i o inicia-se c o m o d a f r u g a l l d a d e , e c o n o m i a , m o d e -
r a ç ã o , t r a b a l h o , p r u d ê n c i a , t r a n q ü i l i d a d e , lei e o r d e m . . , A f i m
de m a n t e r o espírito comercial, é necessário que os principais
c i d a d ã o s se e m p e n h e m p e s s o a l m e n t e n o c o m é r c i o e q u e o
espirito deste g o v e r n e sozinho, s e m n e n h u m impedimento, e
q u e t o d a s a s leis o b e n e f i c i e m .

M a s o q u e era e x a t a m e n t e esse e f e i t o n a t u r a l d o comércio,


que s e o p u n h a a o s privilégios f e u d a i s e à s restrições d a s guil-
das? S ã o conhecidos a l g u n s efeitos d o comércio livre, ocorridos
à época em q u e M o n t e s q u i e u escrevia. U m a f u n d i ç ã o estabele-
cida no interior c o n s u m i a m a d e i r a suficiente p a r a a q u e c e r a
c i d a d e de C h â l o n s . Q u e m , p e r g u n t a v a um c o n t e m p o r â n e o , le-
v a v a em c o n t a que " e s s a s f á b r i c a s n a d a deixam a t r á s q u a n d o
c o r t a m madeira p a r a a c i o n a r suas f o r n a l h a s ? " E m 1769, um
bispo deu queixa ao C o n t r o l a d o r - G e r a l sobre o d e s p o v o a m e n t o
d e seu bispado, criticando p r o p o s t a s de i m p l a n t a ç ã o de n o v a s
indústrias:
A agricultura precisa de gado p a r a enriquecer a t e r r a e de
braços f o r t e s p a r a cultivá-la. As m u d a n ç a s p r o p o s t a s r e d u z i r ã o
c o n s i d e r a v e l m e n t e e s s e s d o i s e l e m e n t o s . 15 p r e c i s o n o t a r q u e
talvez u m q u a r t o das pessoas residentes n a região n ã o dispõe
d e p a s t o s u f i c i e n t e p a r a o g-ado <3, a l g u n s , d e nenhum pasto. . .
Se aos c o m u n s isso l h e s f o r n e g a d o , e s s a s f a m í l i a s , r e d u z i d a s
à mais negra miséria, serão obrigadas ou a deixar a província
e procurar emprego e m indústrias de tipos não encontrados e m
n o s s a r e g i ã o ou, s e c o n t i n u a r e m a r e s i d i r a q u i , a c r i a r a p e n a s
as galinhas mais doentias...

A r e s p o s t a oficial foi q u e o b r i g a r o s agricultores a d e i x a r


a terra e a t r a b a l h a r na i n d ú s t r i a n ã o constituía em si, a b s o l u -
tamente, uma coisa má. O d e s e j o de possuir direitos d e p a s f a -
gem nas terras comuns, escreveu o s u b d e l e g a d o d a região, "é
O TRIUNFO DO TERCEIRO ESTADO 239

o d e s e j o de ser livre, construir uma c a b a n a em qualquer local,


a fira de tirar lucro d a s p a s t a g e n s de o u t r e m , algo que é contrá-
rio ao direito n a t u r a l " .
O direito n a t u r a l que d e f e n d i a e, n a v e r d a d e , exigia essa
f o r m a d e comércio livre n ã o era o direito rigoroso, e s t r u t u r a d o ,
de que f a l a r a S ã o T o m á s d e A q u i n o . E r a , isso sim, o direito
que 05 revolucionários a m e r i c a n o s c h a m a r a m mais t a r d e " d a
N a t u r e z a e do D e u s da N a t u r e z a " . A economia " n a t u r a l " era
aquela que se desenvolvia sem i n t e r f e r ê n c i a oficial, de acordo
com uma dinâmica própria, o p o n t o d e e n c o n t r o de filósofos c
financistas. A C o r o a precisava d o s s e g u n d o s e os auxiliava
com legislação favorável: os primeiros, por sua vez, d a v a m seu
aval a o s ideólogos d o direito n a t u r a l e d a justa razão. N o sé-
culo X V I I I . p a r e c i a possivel a f o r m a ç ã o d e uma enterite de
poder real e financeiro nos termos e s b o ç a d o s pelos juristas e
e x a l t a d o s pelos filósofos. E m d a t a tão r e c e n t e como 1790, tal
a c o m o d a ç ã o , condicionada à r e d u ç ã o d o séquito real, foi seria-
m e n t e discutida como meio de se evitar a revolução social,
c u j a s primeiras c h a m a s c o m e ç a v a m a crepitar.

R e v o l u ç ã o de Quem?
N o que nos interessa aqui, p o d e m o s a c o m p a n h a r o desen-
v o l v i m e n t o d a Revolução F r a n c e s a d e s d e o s p r i m e i r o s decretos
d a A s s e m b l é i a N a c i o n a l a t é a p r o m u l g a ç ã o d o C ó d i g o de N a -
poleão m e d i a n t e e x a m e d a s p r o p o s t a s d a o r d e m jurídica vigen-
te. N a e l a b o r a ç ã o e c u m p r i m e n t o d a s leis d a R e v o l u ç ã o come-
ç a m o s a identificar quem lhes dirigia a s políticas e em cujos
interesses lutavam e morriam os c i d a d ã o s franceses.
E m 1789, a m e a ç a d o o pais de falência após vários anos de
más colheitas e crises agrícolas, Luís X V I convocou o s E s t a t e s -
G e n e r a l com a finalidade de v o t a r n o v o s impostos. H á todas as
indicações de que os d e p u t a d o s b u r g u e s e s eleitos pelo campo
— o n d e residiam 89 por cento d a p o p u l a ç ã o •— estavam dis-
postos, l o u v a d o s n o s sentimentos r e i n a n t e s em seus distritos, a
utilizar a o p o r t u n i d a d e p a r a c o r t a r as p r e r r o g a t i v a s d o s nobres,
em especial as relativas à t r i b u t a ç ã o e a o s direitos senhoriais.
N o dia 12 de j u l h o de 1789, u m a p o b r e mulher disse a um
v i a j a n t e inglês: " A l g u m a coisa p r e c i s a ser feita pelos g r a n d e s
em f a v o r d o s pobres, e m b o r a eu n ã o saiba por q u e m ou como.
mas que D e u s n o s a j u d e , p o r q u e os impostos e serviços feudais
nos e s t ã o e s m a g a n d o " .
240 A VITÓRIA DA BURGUESIA

O q u e se fez é uma p á g i n a b e m c o n h e c i d a d a história.


D e n t r o d o contexto d o s E s t a t e s - G e n e r a l , o T e r c e i r o E s t a d o e
os elementos d a n o b r e z a t r a n s f o r m a r a m - s e em Assembléia N a -
cional com a d e c l a r a d a missão d e e l a b o r a r « m a constituição. N a
noite d e 4 de a g o s t o d e 1789, em d e c r e t o q u e a c a b a r i a p o r ser
b a i x a d o .— a p ó s d e m o r a d o s d e b a t e s e p u b l i c a ç ã o d e e m e n d a s
e c o m e n t á r i o s esclarecedores — n o dia 3 d e novembro, a A s -
sembléia m a n i f e s t o u - s e sobre a q u e s t ã o d o direito de p r o p r i e -
dade:
A Assembléia Nacional extingue por completo o regime feudal
e d e c r e t a q u e t o d o s os d i r e i t o s e deveres, f e u d a i s e pessoais,
que favoreçam a . . . servidão... são abolidas sem i n d e n i z a ç ã o e q u e
t o d o s os d e m a i s são d e c l a r a d o s s u j e i t o s a r e c o m p r a , e q u e o
p r e ç o e os m e i o s d e r e c o m p r a s e r ã o f i x a d o s p e l a A s s e m b l é i a
Nacional. Os direitos não ab-rogados p o r este decreto c o n t i n u a r ã o
aplicáveis até que sejam compensados.

A r t i g o s s u b s e q ü e n t e s aboliam o direito d o s n o b r e s d e p e s c a r
e c a ç a r à sua livre v o n t a d e em cursos d ' á g u a e f l o r e s t a s e o
direito d e m a n t e r e m cortes d e justiça.
A f r a s e inicial do d e c r e t o g a r a n t i a a o s c a m p o n e s e s que o
"sistema f e u d a l " f o r a abolido. A p r ó p r i a p a l a v r a " f e u d a l " f o r a
a p a r e n t e m e n t e c u n h a d a pe l os revolucionários. M a s o que era
esse sistema e em benefício de q u e m seria d e s m a n t e l a d o ? A
servidão pessoal p r a t i c a m e n t e n ã o existia mais em 1789 e. no
particular, o decreto a p e n a s c o n f i r m a v a u m a situação d e f a t o .
O s direitos dos s e n h o r e s d e pescar, c a ç a r e f a z e r justiça c o n s -
tituíam um i n c ô m o d o a n a c r o n i s m o e s u a abolição final simples-
m e n t e facilitava a r e o r g a n i z a ç ã o d a teoria d a lei d a t e r r a . O s
tributos feudais, que p e s a v a m tão f o r t e m e n t e sobre os c a m p o -
neses — o s alugueres, a p a r t e d a colheita d e v i d a ao seipneur,
os p a g a m e n t o s em dinheiro por v e n d a d a terra — f o r a m decla-
r a d o s s u j e i t o s a r e c o m p r a , e n ã o abolidos. A Assembléia N a -
cional p r o m e t e u estabelecer em a l g u m a d a t a f u t u r a um p r e ç o
j u s t o d e modo que, com um único p a g a m e n t o , o c a m p o n ê s p u -
d e s s e t o r n a r - s e p r o p r i e t á r i o d a terra q u e ele e sua família
haviam cultivado d u r a n t e gerações. Q u a n d o a comissão de
direitos f e u d a is f i n a l m e n t e a p r e s e n t o u seu parecer, no dia 4 de
setembro, t o r n o u - s e mais clara a i n t e n ç ã o d o decreto. A A s s e m -
bléia, r e c o m e n d o u a comissão, devia d e i x a r claro que estava
abolindo a s p r e r r o g a t i v a s ilegítimas d a n o b r e z a e c r i a n d o um
u n i f o r m e e indivisível "direito de p r o p r i e d a d e " — o direito de
usar e a b u s a r daquilo que se possuía. E s s e direito devia ser uma
O T R I U N F O DO TERCEIRO ESTADO 24!

relação e n t r e a p e s s o a e a coisa — persona e res; t o d a s a s


o b r i g a ç õ e s pessoais a s s o c i a d a s à p r o p r i e d a d e de uma coisa ou
d e t e r r a constituíam a p e n a s d e f o r m a ç õ e s d e s s a idéia jurídica.
S e esse p o n t o d e vista, q u e orientou a s u b s e q ü e n t e legisla-
ção d a Assembléia, tivesse p r e c e d i d o ou f o s s e s e g u i d o d a dis-
tribuição d a t e r r a a o s c a m p o n e s e s q u e e s t a v a m em s u a posse
•— c o m o foi aliás exigido em v á r i a s ocasiões n a s r u a s e n a p r ó -
p r i a A s s e m b l é i a — o impacto teria sido p r o f u n d o . M a s essa
j a m a i s f o r a a intenção da maioria d a A s s e m b l é i a . D o i s a n o s
a p ó s a p r o m u l g a ç ã o d o decreto, u m a aldeia no Sul q u e i x a v a - s e
de q u e n ã o h o u v e r a m u d a n ç a a l g u m a n a s condições reais. M a -
n i f e s t a v a m os a l d e õ e s receio d e q u e n ã o h o u v e s s e libertação
d o j u g o do " r e g i m e odioso" d o s direitos f e u d a i s a i n d a p o r "mil
anos".
A s r a z õ e s d o limitado i m p a c t o d o d e c r e t o de 4 de a g o s t o
d e v e m ser b u s c a d a s n a e s t r u t u r a d o sistema d e posse d a terra
e em c o n s i d e r a ç õ e s financeiras. O s seigneurs que possuíam la-
t i f ú n d i o s e exerciam sobre eles direitos f e u d a i s e s t a v a m ruino-
sa e i n e s c a p a v e l m e n t e em dívida com os f i n a n c i s t a s d a b u r g u e -
sia c r e s c e n t e . E s s e s financistas e r a m clientes d o s a d v o g a d o s
que c o m p u n h a m a Assembléia N a c i o n a l e d a n o b r e z a d e " t o g a "
e aliados ao T e r c e i r o E s t a d o . P o u c o lhes i m p o r t a v a o d i r e i t o
d e caçar, p e s c a r e ministrar justiça, m a s insistiam em q u e os tri-
b u t o s e x t o r q u i d o s d o s c a m p o n e s e s fossem m a n t i d o s e que as
d í v i d a s g a r a n t i d a s p o r eles f o s s e m r e s g a t á v e i s em dinheiro
sonante.
A s q u e s t õ e s em p a u t a — r e s g a t e d e dividas, recompra, t e r -
mos e condições c o n t i n u a r a m a ser d e b a t i d a s . E m seu dis-
curso à s v e s p e r a s d a p r o m u l g a ç ã o d o C ó d i g o d e N a p o l e ã o , P o r -
talis r e f e r i u - s e a elas como de importância corrente. E , e m b o r a
o C ó d i g o r a t i f i c a s s e a lei de 4 d e a g o s t o e t o r n a s s e r e s g a t á v e i s
todos o s alugueres, n a prática p o u c o s agricultores d i s p u n h a m d e
meios p a r a p a g a r o v a l o r capitalizado d e seus a n t i g o s tributos
f e u d a i s : d e i x a r a m a terra, t r a n s f o r m a r a m - s e em jornaleiros ou
a c e i t a r a m a r r e n d a m e n t o s em t r o c a de um p a g a m e n t o anual. E s t a
solução satisfez os codificadores d e 1804, como havia satisfeito
os revolucionários d e 1789. Julgava P o r t a l i s que num país d e -
senvolvido a a g r i c u l t u r a devia ser o u t r o r a m o d o comércio.
O c o n f i s c o d a s terras d a I g r e j a e d o rei proporcionava
o u t r a o p o r t u n i d a d e de redistribuição a o s c a m p o n e s e s e essa
possibilidade foi vigorosamente d e b a t i d a pelos m e m b r o s d a A s -
242 A VITÓRIA DA BURGUESIA

sembléia. Pouco, no entanto, foi feito ao l o n g o de tais princí-


pios e a maior p a r t e d e s s a s t e r r a s foi leiloada e a d q u i r i d a pelo
único g r u p o que d i s p u n h a de f u n d o s p a r a c o m p r á - l a s —• b u r -
guesia. É difícil calcular a e x t e n s ã o em que isso ocorreu n o s
a n o s t r a n s c o r r i d o s e n t r e 1789 e 1800. À s v é s p e r a s d a R e v o l u -
ção, a n o b r e z a possuía cerca d e 25 p o r c e n t o d a terra arável
d a F r a n ç a . À m e d i d a que e r a m e x e c u t a d a s a s h i p o t e c a s d o s
n o b r e s , ou eles e r a m exilados ou t i n h a m s u a s t e r r a s d e s a p r o -
p r i a d a s , a maior p a r t e d e l a s p a s s o u à s m ã o s d a b u r g u e s i a , que
já detinha 30 p o r cento do total. E s s a s p r o p r i e d a d e s f o r a m
a i n d a mais a u m e n t a d a s com o leilão d a s t e r r a s d a I g i e j a e d a
C o r o a . P o r o u t r o lado, em a l g u m a s á r e a s , os c a m p o n e s e s a p o s -
s a r a m - s e d e t e r r a s a que seus p r o p r i e t á r i o s h a v i a m r e n u n c i a -
d o . E m aldeias n a s colinas d o Sul d a F r a n ç a , o b s e r v a m o s uma
série d e p e q u e n o s lotes •— f r e q ü e n t e m e n t e de a p e n a s 9 metros
q u a d r a d o s •— q u e e s t a v a m de posse d e a l g u m a s famílias d e s d e
1790.
E m julho d e 1789, j u l g a n d o q u e o p o d e r já h a v i a sido
t r a n s f e r i d o p a r a o p o v o t a n t o q u a n t o a b u r g u e s i a podia tole-
r a r , escreveu o A b a d e S i e y è s :
Todos podem d e s f r u t a r as v a n t a g e n s da sociedade, m a s somente
aqueles que c o n t r i b u e m p a r a o b e m público são m e m b r o s
i m p o r t a n t e s d a g r a n d e e m p r e s a social. A p e n a s eles são os
c i d a d ã o s a t i v o s , o s m e m b r o s a u t ê n t i c o s <ía A s s o c i a ç ã o .

O u , como disse um d e p u t a d o : " N ã o h á c i d a d ã o s autênticos,


e x c e t o os p r o p r i e t á r i o s " . O u t r a s vozes, como a d e Jean M a r a t ,
f o r a m ouvidas a p e n a s por um breve m o m e n t o : " O que foi que
g a n h a m o s com a d e s t r u i ç ã o da aristocracia d o s n o b r e s e a sua
substituição p e l a d o s ricos?"
A b o l i n d o os interesses f e u d a i s n a s p r o p r i e d a d e s imobiliá-
rias, a b u r g u e s i a g a r a n t i u seus empréstimos à v e l h a n o b r e z a e
à C o r o a e lançou a s bases de seu p o d e r f u t u r o . E m retrospecto,
o economista b u r g u ê s J e a n - B a p t i s t e S a y concluiu que a inter-
v e n ç ã o dos f i n a n c i s t a s n a s E s t a t e s - G e n e r a l , a fim de f o r ç a r a
criação da A s s e m b l é i a N a c i o n a l , f o r a m o t i v a d a exclusivamente
p o r tais considerações:
Impulso decisivo foi dado a o m o v i m e n t o revolucionário no
m o m e n t o e m que o poder endinheirado, n o r m a l m e n t e t ã o con-
servador, levantou-se contra a velha ordem; o medo da falência
agitou financistas, banqueiros, homenB de negócios e transfor-
mou-os e m paladinos d a causa do Terceiro Estado. Como disse
M i r a b e a u , " o d é f i c i t é o t e s o u r o cTa n a ç ã o " .
O T R I U N F O DO TERCEIRO ESTADO 243

P e r m a n e c i a m sem solução, no entanto, a s questões d a s re-


lações sociais e d o s c o n t r a t o s . C o n f o r m e n o t a r a D o m a t cem
anos antes, o c o n t r a t o era uin tipo de d i r e i t o privado. D u a s
p e s s o a s c o n c o r d a v a m em f a z e r ou n ã o a l g u m a coisa, comprar
ou v e n d e r , e o p o d e r público p e r m a n e c i a a t e n t o p a r a que fosse
c u m p r i d o o t r a t o . A liberdade d e c o n t r a t a r era legitimamente
limitada pelo status dos c o n t r a t a n t e s , p e l a s disposições do di-
reito público, t a i s como a proibição d a u s u r a , e pelos privilé-
gios, como os d e s f r u t a d o s p e l a s guildas e monopólios. O decre-
to d e 4 de agosto, n o e n t a n t o , sancionou o l e v a n t a m e n t o gra-
dual d a s restrições à l i b e r d a d e c o n t r a t u a l de c a m p o n e s e s e pro-
prietários d e t e r r a . O p r o p r i e t á r i o t r a t a v a a g o r a o camponês
sem levar em c o n t a consideração a l g u m a , salvo seu direito de
f a z e r com a t e r r a o q u e b e m e n t e n d e s s e . N e s s a extensão,
c u m p r i a - s e o ideal do direito n a t u r a l .
R e s t a v a a ser solucionada t a m b é m a situação d a s guildas.
O d e b a t e em t o r n o dessa questão, que s e iniciara já no ancien
regime, colocou V o l t a i r e e os f i n a n c i s t a s c o n t r a os privilégios
d a s guildas, e g r a n d e s c a m a d a s d a p o p u l a ç ã o t r a b a l h a d o r a do
outro lado.
A fim d e t o r n a r - s e m e s t r e - f o r j a d o r ou tecelão, o individuo
precisava f a z e r uma longa a p r e n d i z a g e m . A o b r a - p r i m a requeri-
d a como qualificação final poderia consumir dois a n o s de tra-
balho. A p r o d u ç ã o d o m i n a d a p o r esses m e s t r e s era inspecionada
a fim d e se a s s e g u r a r q u a l i d a d e d o p r o d u t o e condições de
t r a b a l h o . ( E m a l g u n s ramos, como o de panificação, o sistema
de guildas persistiu em f o r m a m o d i f i c a d a a t é 1863, isto devido
a certo n ú m e r o de razões q u e tinham mais a ver com f a t o r e s
sociais do que com a n a t u r e z a do t r a b a l h o : o i m p o s t o p a g o pelos
me?tres-padeiros pelo privilégio do a l v a r á constituía uma fonte
d e receita importante; n ã o h a v i a incentivo econômico p a r a in-
dustrializar o r a m o ; o p ã o era, e é, um artigo básico n a dieta
f r a n c e s a , e controles d e q u a l i d a d e e preço eram necessários
p a r a evitar uma violenta r e a ç ã o popular.)
Já nos c a m p o s de a t i v i d a d e que a d q u i r i a m importância em
uma sociedade capitalista industrial —• tais como t r a b a l h o s
em metal e tecelagem — havia incentivos financeiros p a r a racio-
nalização d a p r o d u ç ã o e eliminação desses controles. Iniciando-
se o processo sob Coibert, n o século X V I I I , os C o n s e l h o s
Reais virtualmente impediram a criação d e novas categorias de
guildas. S i m u l t a n e a m e n t e , f o r a m s u s p e n s a s as limitações ao
n ú m e r o de t r a b a l h a d o r e s que um mestre podia e m p r e g a r nessas
244 A VITÓRIA DA BURGUESIA

o c u p a ç õ e s . D a m e s m a f o r m a que na I n g l a t e r r a , m u l t i p h c a r a m - s e
a s autorizações p a r a c o n s t r u ç ã o d e f o r j a s e f á b r i c a s f o r a d a s ci-
d a d e s , o n d e o s privilégios d a s guildas existiam por concessões
históricas. N a s n o v a s fábricas, o p e r á r i o s e p r o p r i e t á r i o s d e f r o n -
t a v a m - s e diretamente, e n ã o a t r a v é s d a m e d i a ç ã o d a guilda. e
f a z i a m acordos que. em teoria, r e f l e t i a m - l h e s a s n e c e s s i d a d e s
m ú t u a s , isentas d e q u a i s q u e r limitações r e f e r e n t e s a h o r a s ou
condições de t r a b a l h o . Leis f i x a n d o salários mínimos e exigindo
q u e t o d o s t r a b a l h a s s e m contribuíram p a r a induzir indivíduos
e r r a d i c a d o s d e a t i v i d a d e s p a s t o r i s e agrícolas a i n g r e s s a r n a in-
dústria. P a r a o s f i n a n c i s t a s , revestia-se de e v i d e n t e s v a n t a g e n s
a instalação d e s s a s f á b r i c a s . Isso constituía um e x e m p l o p e r f e i -
t o do u s o d o comércio, como escrevera M o n t e s q u i e u , p a r a
criar u m a ordem social b a s e a d a no direito n a t u r a l .
V o l t a i r e d e s c r e v e r a as guildas como uma c o n s p i r a ç ã o
d e s t i n a d a a oprimir o s t r a b a l h a d o r e s : " T o d a s e s s a s guildas de
mestres, todas e s s a s s o c i e d a d e s c i m e n t a d a s p o r j u r a m e n t o s , f o -
r a m criadas p a r a a r r a n c a r dinheiro d o s p o b r e s t r a b a l h a d o r e s ,
enriquecer seus m e m b r o s , e e s m a g a r a n a ç ã o " . P o r t a - v o z e s d a s
guildas, h o m e n s como M a r a t , p o r o u t r o lado, m o s t r a v a m - s e
um t a n t o a m b í g u o s :
N a d a h á d e m e l h o r do q u a l i b e r t a r t o d o s os c i d a d ã o s dos
grilhões que i m p e d e m o desenvolvimento do talento e d e i x a m
oa i n f e l i z e s n a m i s é r i a . M a s n ã o s e i s e é p r u d e n t e e s s a l i b e r d a d e
plena, essa abolição de t o d a a p r e n d i z a g e m , ou de u m período
d e t r e i n a m e n t o e m t o d a s a s o c u p a ç õ e s . Se, n a â n s i a d e l o g o
enriquecer, o indivíduo põe de lado o desejo de f o r m a r u m a
reputação, então, a d e u s boa fé. P o u c o depois, todos os ofícios
poderão degenerar em intriga e patifaria. U m a vez que tudo o
que 6 necessário p a r a vender o próprio trabalho é dar-lhe certa
capacidade de a t r a i r a vista e u m preço baixo, s e m m e n o r
preocupação com a solidez e a perícia, todo o a r t e s a n a t o d e s c e r á
a o nível de r e f u g o . . . Isso s e r á a r u í n a do c o n s u m i d o r pobre.

M a r a t escrevia como r e a ç ã o à a d o ç ã o pela A s s e m b l é i a


N a c i o n a l , em m a r ç o de 1791. d e u m a lei d i s p o n d o que " s ã o
sup r imid o s todos os privilégios d e profissão. A p a r t i r d e 1.° de
abril, t o d o s os c i d a d ã o s s e r ã o livres p a r a exercer q u a l q u e r
p r o f i s s ã o ou o c u p a ç ã o que d e s e j a r e m , a p ó s o b t e r e m e p a g a r e m
o respectivo a l v a r á " . A s guildas foram, em conseqüência, d e s -
t r u í d a s . A p e n a s o d i n h e i r o c o n t a v a — dinheiro suficiente p a i a
c o m p r a r o alvará ao E s t a d o e estabelecer-se por c o n t a própria.
E s s a medida foi recebida com a p l a u s o s por n u m e r o s o s
t r a b a l h a d o r e s , que nela viam um golpe a s s e s t a d o n o s m e s t r e s .
O T R I U N F O DO TERCEIRO ESTADO 245

c o n t r a os q u a i s h a v i a m - s e l e v a n t a d o em c e r t o n ú m e r o de oca-
siões. A teoria da l i b e r d a d e c o n t r a t u a l d o direito n a t u r a l , no
e n t a n t o , que se refletia n a abolição d a s guildas, juntamente
cora u m a fé i n q u e b r a n t á v e l no p r i m a d o d o comércio, r e s u l t a r a
em mais d o q u e a p e n a s o fim d o privilégio d o s mestres.
N e n h u m a legislação social a b o r d o u , e muito m e n o s r e g u l a -
m e n t o u , os t e r m o s d o contrato locatio c o n d u c t i o operarum —
literalmente, a c o n t r a t a ç ã o d o t e m p o d e t r a b a l h o . U m p r o j e t o
d e lei e l a b o r a d o em j u n h o d e 1791 p o r Le C h a p e l i e r , a d -
v o g a d o de g r a n d e s interesses coloniais em a ç ú c a r e café, retomou
o tema d a legislação d e março. Inicialmente, a lei c o n f i r m o u que
t o d o s os r e g u l a m e n t o s c o n c e r n e n t e s a t r a b a l h o infantil e femi-
nino, h o r a s de t r a b a l h o e t a x a s d e p a g a m e n t o , deviam ser revo-
g a d o s . E m seguida, r e a f i r m o u , n o c o n t e x t o revolucionário, o
q u e uma série de a t o s reais h a v i a p r o v i d o sob o f u n d a m e n t o de.
n e c e s s i d a d e e o r d e m pública; o s t r a b a l h a d o r e s e s t a v a m proibi-
d o s d e se o r g a n i z a r e m . T r a b a l h a d o r e s individuais deviam
p r o c u r a r seus e m p r e g a d o r e s e n e g o c i a r por c o n t a p r ó p r i a :
Sendo u m dos f u n d a m e n t o s d a Constituição a eliminação de
t o j o s os t i p o s de o r g a n i z a ç õ e s c o r p o r a t i v a s d a mesma classe
ou profissão, f i c a proibido seu restabelecimento sob q u a l q u e r
p r e t e x t o . . . O s c i d a d ã o s d o m e s m o status o u p r o f i s s ã o , os a u x i -
liares ou t r a b a l h a d o r e s , q u a l q u e r q u e s e j a o oficio, n ã o p o d e m ,
q u a n d o se r e u n i r e m , n o m e a r u m presidente, secretário, ou
r e p r e s e n t a n t e e m negociações, m a n t e r registros ou listas de
filiação, a p r o v a r estatutos ou f o r m u l a r d e m a n d a s a respeito
de seus supostos interesses comuns.

O que c o m e ç a r a como abolição d o s privilégios d a s guildas


e p e q u e n o s e m p r e g a d o r e s a s s u m i u f o r m a final como e x p r e s s ã o
d a teoria c o n t r a t u a l b u r g u e s a p u r a : que a e m p r e s a individual
n e g o c i a s s e com o t r a b a l h a d o r individual.

O Código de Napoleão
O s ideais de c o n t r a t o e p r o p r i e d a d e p e r p a s s a m de uma
m i r í a d e de m a n e i r a s pela legislação d a A s s e m b l é i a N a c i o n a l e
pelo t r a b a l h o p r e p a r a t ó r i o d o q u e se t r a n s f o r m a r i a no C ó d i g o
d e N a p o l e ã o . V e r s õ e s sucessivas de um C ó d i g o Civil f o r a m
a p r e s e n t a d a s à Assembléia d u r a n t e t o d a a d é c a d a de 1790 e
a b a n d o n a d a s ou devolvidas à s comissões p a r a e m e n d a s . A
v e r s ã o mais a n t i g a era e m b a r a ç o s a demais, s o b r e c a r r e g a d a de
vestígios do velho direito. A s e g u n d a , u n s meros 297 artigos,
p a r e c i a r e s u m i d a demais, l e m b r a n d o uma simples d e c l a r a ç ã o
246 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A

de princípios. E s s e s primeiros e s f o r ç o s d e m o n s t r a r a m , n a ver-


d a d e , que o s f a t o s revolucionários n ã o h a v i a m a i n d a concedido
uma vitória inegável à b u r g u e s i a .
O trabalho concreto — a s discussões, discursos, p a r e c e r e s
s o b r e a r e d a ç ã o final do C ó d i g o de N a p o l e ã o c o n s t a de um
s e m - n ú m e r o d e volumes. N o particular, é claro que a b u r g u e s i a
finalmente obtivera vitória. O velho regime, d i s p e n d i o s o d e -
mais, fora liquidado. H a v i a m sido corrigidos os excessos d a
d é c a d a de 1790. O s c o m e n t á r i o s de P o r t a l i s sobre a s circuns-
tâncias da e l a b o r a ç ã o d o C ó d i g o e a s a s p i r a ç õ e s d o s c o d i f i c a d o -
res, a n t e r i o r m e n t e citados, s ã o r e p e t i d o s em q u a s e todos os
d i s c u r s o s sobre a Revolução, incluindo o relatório preliminar d a
comissão de r e d a ç ã o :
Instituições sucediam-se u m a s às outras com grande rapidez, e
Bem p o s s i b i l i d a d e d e s e c o n s t r u i r a l g o s o b r e e l a s . O e s p i r i t o
revolucionário a tudo s a t u r a v a . C h a m a m o s "espírito revolucio-
nário" ao desejo a r d e n t e de sacrificar violentamente a u m f i m
político todos os direitos, e n ã o a d m i t i r q u a l q u e r ressalva, exceto
u m misterioso e mutável interesse do Estado.

O o r a d o r d e s c r e v i a n e s s a ocasião as n o r m a s instituídas
p o r D e u s e pela r a z ã o n a t u r a l . " N o s a s s u n t o s d a vida, o direito
n ã o p o d e d e s t r u i r a r a z ã o n a t u r a l " , lia-se n o relatório prelimi-
n a r . A comissão e n c a r r e g a d a d e redigir a s disposições sobre
c o n t r a t o e o b r i g a ç õ e s convencionais e n f a t i z o u q u e n ã o lhe
c u m p r i a fazer a lei. m a s simplesmente reenunciar um princípio
axiomático:
N a s p a r t e s do Código j á p r o m u l g a d a s , o legislador d e u f o r m a
à sua vontade, e sua v o n t a d e • - que poderia ter sido o u t r a --
t r a n s f o r m o u - s e e m lei g e r a l . . . í N o c a m p o d o s c o n t r a t o s , n o
e n t a n t o , ] t u d o o q u e ele e x p õ e d e v e c o n s t i t u i r a e x p r e s s ã o d e
v e r d a d e s e t e r n a s , s o b r e a s q u a i s r e p o u s a a lei m o r a l d e t o d o s
o s p o v o s . O l i v r o d e o n d e ele r e t i r a s u a s leis d e v e s e r a q u e l e
d a consciência, onde todos os h o m e n s e n c o n t r a m as m e s m a s
palavras quando a emoção n ã o os cega.

A tese do c o n t r a t o livre s a t u r a t o d o o C ó d i g o . O c a s a m e n -
t o é um contrato civil c r i a d o pelo direito n a t u r a l e s a n t i f i c a d o
pela religião.
O respeito m ú t u o , os d e v e r e s e o b r i g a ç õ e s r e c i p r o c a s n a s c i d a s
d a u n i ã o , u m a v e z f o r m a d a , e q u e se e s t a b e l e c e e n t r e s e r e s
racionais, sensíveis, t u d o isso f a z p a r t e do d i r e i t o n a t u r a l . D a i
e m d i a n t e , n ã o é m a i s s i m p l e s m e n t e d e u m e n c o n t r o q u e falei-
mos; é u m autêntico contrato.
O TRIUNFO DO TERCEIRO ESTADO 247

C o n f o r m e o b s e r v o u um d o s o r a d o r e s d u r a n t e o s debates
sobre o código, o t e m a c o n t r a t o i n t e r e s s a v a a t o d a s a s famílias,
a t o d o s o s indivíduos: " A s s i m , o c a s a m e n t o é considerado, em
si e em seus efeitos naturais, i n d e p e n d e n t e d e t o d a lei positiva.
O f e r e c e - n o s a idéia f u n d a m e n t a l d o c o n t r a t o p r o p r i a m e n t e
dito e, em s u a f o r m a , c o n t r a t o p e r p é t u o " . A s p a r t e s interve-
n i e n t e s nesse c o n t r a t o d e n o m i n a d o c a s a m e n t o p o d e r i a m , a p ó s
ter o E s t a d o r a t i f i c a d o a b a r g a n h a e n t r e a m b a s , b u s c a r as
b ê n ç ã o s d a I g r e j a . M a s era e c o n t i n u a a ser um crime a t é hoje
q u a l q u e r p a d r e ou pastor realizar ou a b e n ç o a r um c a s a m e n t o
a n t e s que o E s t a d o declarasse u n i d o o casal e ratificada a
barganha.
A l i b e r d a d e c o n t r a t u a l foi l e v a d a a o u t r a s e s f e r a s , à s
v e z e s com e s t r a n h o s resultados. Se o c a s a m e n t o é um contrato,
é dissolvido pela morte d e um d o s c ô n j u g e s e isso implica tam-
b é m a dissolução d a família. O C ó d i g o n ã o reconhecia o con-
ceito d e p a t r i m ô n i o que p o d i a ser t r a n s m i t i d o sem divisão. P o r
ocasião d a morte de um d o s pais, a p r o p r i e d a d e d a família era
p a r t i l h a d a e n t r e o s filhos, r e c e b e n d o o c ô n j u g e sobrevivente
u m a p a r t e , de a c o r d o com o a j u s t e matrimonial feito sobre a
p r o p r i e d a d e comum por ocasião do c a s a m e n t o . E s s a legislação
revestia-se de sérias conseqüências p a r a a s famílias camponesas,
que j u l g a v a m impossível m a n t e r í n t e g r a s s u a s terras em partes
economicamente rentáveis. O i m p a c t o p o d i a ser evitado, n a q u e -
la época como a g o r a , a p e n a s m e d i a n t e e m p r e g o de artifícios
legais muito c a r o s ou pela posse de p r o p r i e d a d e s suficientes
p a r a a s s e g u r a r que a necessária partilha n ã o criaria dificuldades.
E m b o r a o C ó d i g o considerasse a s condições de trabalho
como a s s u n t o d e negociação, deixou bem c l a r o q u e t r a t a v a de
direitos d o s homens, e n ã o dos seres h u m a n o s . A a u t o r i d a d e
de m a r i d o s e pais teria que ser mantida. N a p o l e ã o , que parti-
cipou e x t e n s a m e n t e das discussões s o b r e o Código, estava bem
i n f o r m a d o d o s rigores do direito r o m a n o a esse respeito. O
C ó d i g o concedia liberdade c o n t r a t u a l a p e n a s à q u e l e s que tinham
" c a p a c i d a d e " p a r a c o n t r a t a r . Resolvemos, i n f o r m o u uma co-
missão ao corpo consultivo, aceitar a opinião d e Pothier e clas-
sificar a s mulheres c a s a d a s j u n t a m e n t e com os menores e os
loucos. N ã o t i n h a m elas competência p a r a c o n t r a t a r sem a u t o -
r i z a ç ã o de seus maridos.
E s s a "incompetência s a l u t a r " , p a r a citar uma expressão
d e B o u r j o n , levou a d i a n t e e f o r t a l e c e u uma n o r m a do ancien
régime. H o u v e um momento, r e l a t a R e g i n e P e r n o u g , em que
248 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A

m u l h e r e s radicais u n i r a m - s e p a r a p e d i r a e x p u l s ã o d a s f o r ç a s
c o n s e r v a d o r a s d a A s s e m b l é i a N a c i o n a l . N o dia 10 d e m a i o de
1793, foi f o r m a d a a S o c i e d a d e d a s M u l h e r e s R e p u b l i c a n a s R e -
volucionárias. U m indivíduo i n f l u e n t e , F a b r e d ' E g l a n t i n e ,
escreveu a propósito:
Observei que essas sociedades n ã o são compostas de mães, de
moças de boa educação, de i r m ã s que cuidam de seus irmãos
menores, m a s daquele tipo de aventureiras, de moças emanci-
padas, lançadoras de bombas.

E m n o v e m b r o de 1793, a sociedade foi declarada ilegal


com a seguinte justificativa:
D e s d e q u a n d o se p e r m i t e q u e m u l h e r e s e s q u e ç a m seu sexo
e se t r a n s f o r m e m e m h o m e n s ? D e s d e q u a n d o é decoroso ver
m u l h e r e s a b a n d o n a r os p i e d o s o s c u i d a d o s do l a r e o b e r ç o d e
seus filhos, e v i r e m p a r a a p r a ç a pública, s u b i r e m à s t r i b u n a s
e p e r o r a r e m p a r a os transeuntes, assumindo deveres que a
Natureza confiou exclusivamente aos homens?

N a d a h a v i a de s u r p r e e n d e n t e n e s s a a t i t u d e . Q u a n d o M i -
t a b e a u , o mais b a r r o c o d o s o r a d o r e s d a Assembléia, quis f a z e r
um g r a n d e c u m p r i m e n t o a M a r i a A n t o n i e t a p o r sua c o r a g e m e
c a p a c i d a d e , disse: " E l a é o único h o m e m d a corte".

A Q u e s t ã o d a Escravidão: a Propriedade
T r i u n f a sobre o Contrato
H á mais evidência, n o trabalho legislativo que p r o c e d e u
o C ó d i g o , de q u e a s idéias mais radicais e a intenção dos mo-
v i m e n t o s a r m a d o s que se combatiam n a s r u a s s e m p r e sucum-
biam à v o n t a d e d a q u e l e s que d e s e j a v a m e x p r e s s a r , codificar e
ampliar a visão burguesa. O tratamento dado à escravidão
constitui a p e n a s um e x e m p l o no particular. N o dia 29 d e a g o s t o
d e 1793, em seguida a um levante de escravos em São D o m i n -
gos, u m a Assembléia N a c i o n a l radical aboliu a escravidão e o
t r á f i c o d e escravos. O decreto, porém, jamais foi cumprido.
M o n t e s q u i e u . n u m a t e n t a t i v a de conciliar a visão d e di-
reitos n a t u r a i s com o evidente sucesso d a C o m p a n h i a d a s
í n d i a s , d a qual era acionista, havia escrito:
B preciso dizer que a escravidão é c o n t r a a natureza, embora,
e m certos países, f u n d a m e n t e - s e n a vazão n a t u r a l . E preciso
distinguir entre esses países e aqueles onde a razão n a t u r a l
a rejeita. Devemos, por conseguinte, limitar a escravidão a
certas partes da terra.
O T R I U N F O DO T E R C E I R O ESTADO 249

E a c r e s c e n t o u : " O açúcar seria c a r o demais se n ã o u s á s s e m o s


mão-de-obra escrava."
V o l t a i r e cumulou d e elogios um livro intitulado Essai poli-
tique sur la commerce, que d e f e n d i a o t r á f i c o d e e s c r a v o s , em-
b o t a , em s u a b i o g r a f i a d e Luís X I V , elogiasse o s o b e r a n o por
ter b a i x a d o o C ó d i g o N e g r o , m e l h o r a n d o a s condições d e vida
d o s n e g r o s . N a Encyclopédie, de Diderot, "colônia" é definida
como "o t r a n s p o r t e de um povo, ou p a r t e de um povo, d e u m
país p a r a o u t r o . . . P o r isso m e s m o , foi necessário conquistar
certos territórios e e xpul sa r seus a n t i g o s h a b i t a n t e s a fim de
a b r i r e s p a ç o p a r a o u t r o s " . U m negreiro, i n f o r m o u P e r n o u d ,
deu a seus n a v i o s os n o m e s Voltaire, Rousseau e Contrato So-
cial. A hostilidade inglesa à e s c r a v i d ã o no século X V I I I b a -
s e o u - s e em g r a n d e p a r t e n a existência, n a s colônias inglesas, de
u m a f o r ç a d e t r a b a l h o n a t i v a q u e p o d i a ser u t i l i z a d a p a r a o s
mesmos fins que o s escravos n a s p o s s e s s õ e s f r a n c e s a s .
A n t e s d a abolição — n o p a p e l — em 1793, a Assembléia
( u m a vez mais, Le C h a p e l i e r participou d a r e d a ç ã o ) a d o t o u a
seguinte d e c l a r a ç ã o de política:
Considerando as colônias como partes do império francês, e
desejando torná-las partes d a obra salutar de renovação nacio-
nal, a Assembléia, a p e s a r disso, j a m a i s p e n s o u e m incluí-las n a
Constituição que decretou p a r a o reino, e assim torná-las
s u j e i t a s a leis q u e p o t f e r l a m s e r i n c o m p a t í v e i s c o m s u a s n e c e s -
sidades peculiares... A Assembléia Nacional declara que não
tenciona introduzir qualquer inovação em qualquer r a m o do
c o m é r c i o , , , c o m a s colônias. Coloca os súditos coloniais e s u a s
propriedades sob a s a l v a g u a r d a d a nagão e declara criminosos
t o d o s a q u e l e s q u e p r o c u r a r e m i n c i t a r l e v a n t e s c o n t r a eles.

A A s s e m b l é i a a t e n d e r a às solicitações da burguesia, como


a s e g u i n t e súplica, c h e g a d a de R o u e n :
E s c u t e m a s vozes de três mtlhõea de íranceses, que t r e m e m
pelas suas propriedades, sua subsistência, sua v i d a , . . Louvados
e m b o r a no n o b r e desejo de r e n d e r h o m e n a g e m à filosofia, n ã o
prejudiquem, de modo algum, a felicidade d a mãe-pátria.

N a p o l e ã o p r o m u l g o u em 1802 um e s t a t u t o de trinta e q u a t r o
p a l a v r a s , r e s t a b e l e c e n d o todas a s leis relativas ao tráfico de es-
cravos " d e c o n f o r m i d a d e com a s leis. . . vigentes a n t e s d e 1789".

O C ó d i g o como Clímax da R e v o l u ç ã o
A R e v o l u ç ã o F r a n c e s a deixou uma h e r a n ç a d e leis e teoria
jurídica, especialmente n o c a m p o do direito público, que inega-

16 - D . A . C
250 A VITÓRIA DA BURGUESIA

v e l m e n t e p r o m o v e u a c a u s a da l i b e r d a d e h u m a n a . Seu t r a b a l h o
legislativo, a p l i c a d o pelo p o d e r a r m a d o d e u m a r e c é m - o r g a n i z a -
d a m á q u i n a estatal, constituiu um e s f o r ç o f o r m i d á v e l p a r a re-
e n u n c i a r a l g u n s d o s principais t e m a s d a Revolução. S e u s mais
ilustres r e d a t o r e s ( e beneficiários) j a m a i s p e r d e r a m de vista, no
e n t a n t o , o sistema d e relações sociais que, n o f u n d o , a legisla-
ç ã o devia p r o t e g e r . A p r o m o ç ã o e j u s t i f i c a ç ã o desse o b j e t i v o s ã o
a i n d a mais i m p o r t a n t e s do q u e o r e l a t o a c u r a d o d a história d a
burguesia. O u , n a s p a l a v r a s do D i s c u r s o P r e l i m i n a r d o s r e d a t o r e s
do Código:
T ê m todos que c o n c o r d a r que, o u t r o r a , os vários povos do
i n u n d o c o m u n i c a v a m - s e m u i t o p o u c o e n t r e sl, n ã o h a v i a r e l a -
ções e n t r e E s t a d o s , p e s s o a s s e r e u n i a m a p e n a s p a r a f a z e r a
g u e r r a , i s t o é, p a r a s e e x t e r m i n a r e m m u t u a m e n t e , fi a e s s e s
a n t i g o s t e m p o s q u e o a u t o r d e O Espirito das Leia a t r i b u i o s
"insensatos direitos de reversão de t e r r a s aos senhores feudais
e d e s a l v a d o s d e n a u f r á g i o " . " O s h o m e n s " , e s c r e v e u ole, " p e n -
s a v a m q u e os e s t r a n g e i r o s n ã o e s t a v a m l i g a d o s % eles poc
q u a l q u e r e l o d o d i r e i t o c i v i l ; n a d a l h e s d e v i a m , p o r u m 3a<fo, n o
q u e t o c a v a à j u s t i ç a ; e, p o r o u t r o , n a d a d e c o m p a i x ã o p a r a
com eles". O comércio, no entanto, em seu desenvolvimento,
c u r o u - r o s desses preconceitos b á r b a r o s e nocivos. U n i u e apro-
ximou h o m e n s d e todos os países. A bússola abriu o universo.
O c o m é r c i o civilizou-o.

O C ó d i g o d e N a p o l e ã o coroou a obra d a Assembléia N a -


cional, r e f l e t i n d o o espírito que motivara a b u r g u e s i a d e s d e os
t e m p o s dos primeiros l e v a n t e s u r b a n o s . F o r a m a d o t a d a s — f r e -
q ü e n t e m e n t e erbatim •— a s idéias d o m i n a n t e s do C ó d i g o em
n u m e r o s o s p a í s e s que tiveram suas p r ó p r i a s revoluções b u r g u e -
s a s no século X I X . O C ó d i g o corporificava a opinião que velhas
instituições n ã o mais p o d i a m ser conciliadas. S u a s idéias f u n d a -
mentais eram simples .— e n g a n o s a m e n t e simples p a r a o s t r a b a -
l h a d o r e s e c a m p o n e s e s que h a v i a m f o r m a d o a s t r o p a s de c h o q u e
d a Revolução. O u como disse K a r l R e n n e r : " F u n d a m e n t a l m e n -
te, [ o C ó d i g o ] proclamou a p e n a s dois m a n d a m e n t o s : o pri-
meiro, material, q u e todos devem c o n s e r v a r o que têm o
s e g u n d o , pessoal, que cada um cuide de si .
19

Inglaterra:
A Técnica do
Direito Costumeiro

A revolução cromwelliana n ã o deixou um m o n u -


m e n t o de legislação b u r g u e s a que s e c o m p a r e d e m a n e i r a
a l g u m a com o d a b u r g u e s i a f r a n c e s a , mais autoconsciente,
150 a n o s depois. A legislação do P r o t e t o r a d o de Cromwell,
e m b o r a constituísse um p a s s o à f r e n t e no c a m i n h o d a bur-
guesia. n ã o foi nem mesmo r e u n i d a em um único volume até
m e a d o s do século X X , e mesmo h o j e dificilmente é reconheci-
d a como tal.
O s r e d a t o r e s d o C ó d i g o d e N a p o l e ã o , p o r o u t r o lado,
insistiam em que haviam h e r d a d o do direito r o m a n o a s idéias
de l i b e r d a d e contratual e p r o p r i e d a d e . F o r a m nisso menos
que honestos, p o r q u a n t o q u e r i a m s a l i e n t a r que o feudalismo
— p a l a v r a i n v e n t a d a pelos revolucionários d e 1789 — consti-
tuíra um episódio a b e r r a n t e , descontínuo, no direito e n a vida
da s o c i e d a d e f r a n c e s a . N ã o a p e n a s e s s a s alegações d a v a m peso
à s reivindicações de d e s t r u i ç ã o d o s privilégios f e u d a i s , mas
também l a n ç a v a n o descrédito as a c o m o d a ç õ e s feitas com a
ordem senhorial por uma b u r g u e s i a m a i s a n t i g a , mais fraca,
m e n o s desenvolvida a r t e s a n a l e comercialmente. E s s a s a c o m o d a -
ções p e r m a n e c e r a m .— a t é que f o r a m v a r r i d a s do m a p a em 1789
•— sob a f o r m a de privilégios de guildas, c a r t a s régias d e direitos
a c i d a d e s e compilações jurisprudenciais q u e concediam aos seus
h a b i t a n t e s o stâíus formal d e b u r g u ê s . P e r m a n e c e r a m também
n a s p e s s o a s d o s b u r g u e s e s mais velhos, que h a v i a m l u t a d o contra
o sistema f e u d a l p a r a nele o b t e r um l u g a r ; n o s n o b r e s de toga
252 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A

mais c o n s e r v a d o r e s ( n ã o nos juristas mais novos, c o m o M o n -


t e s q u i e u ) e nos b u r g u e s e s i n s t a l a d o s n o s châteaux c o m p r a d o s à
nobreza arruinada. Simultaneamente, numerosas regras que não
t i n h a m origem r o m a n a f o r a m i n t r o d u z i d a s no C ó d i g o : o direito
d e família e o direito d e sucessão, p o r exemplo, d e v e m t a n t o no
direito costumeiro q u a n t o a q u a l q u e r o u t r a f o n t e .
O m a r c a n t e c o n t r a s t e e n t r e a s revoluções b u r g u e s a s inglesa
e f r a n c e s a *— d e i x a n d o d e lado o f a t o notável d e a b u r g u e s i a
inglesa t e r podido, p o r uma g r a n d e v a r i e d a d e d e razões, iniciar
s u a revolução industrial um século mais c e d o — c i f r a - s e n a q u e s -
t ã o d o m é t o d o ideológico e m p r e g a d o . A r e v o l u ç ã o jurídica
b u r g u e s a n a I n g l a t e r r a , o c o r r i d a n o s séculos X V I I e X V I I I ,
a l e g a v a d e s c e n d ê n c i a d a q u e l e que é o mais f e u d a l d o s d o c u m e n -
tos, a M a g n a C a r t a . Instituições e conceitos n a e s f e r a do comér-
cio p o d e m ter sido a d o t a d o s , m a s f o r a m e x p u r g a d o s d a maior
p a r t e d a n o m e n c l a t u r a l a t i n a e c h a m a d o s de " d i r e i t o c o m e r c i a r ' ,
ao mesmo t e m p o em q u e o u t r o s institutos d o s direitos canónico
e r o m a n o eram e r r a d i c a d o s como c o n d u c e n t e s ou ao absolutis-
mo ou à n e g a ç ã o d e l i b e r d a d e s f u n d a m e n t a i s .
O direito inglês, a "lei comum d a I n g l a t e r r a " , exibia n a -
quela é p o c a , c o m o a i n d a hoje, uma firme d e v o ç ã o à c o n t i n u i d a -
de, ou pelo menos à ilusão de c o n t i n u i d a d e . N o século X V I I I ,
escreveu J o n a t h a n S w i f t :
Constitui u m a m á x i m a entre esses advogados que o que quer
que t e n h a sido feito antes pode ser legalmente feito mais u m a
v e z ; e, p o r c o n s e g u i n t e , t o m a m e l e s cuidado especial em anotar
t o d a s as decisões outrora t o m a d a s contra a justiça comum e
a razão geral da humanidade. São e s s a s que, c o m o n o m e de
precedentes, eles apresentam como fontes autorizadas.

M a i s recentemente, c o m e n t o u Eric H o b s b a w m : " E s s a recusa


a c o n f r o n t a ç õ e s drá st i c a s, essa p r e f e r ê n c i a p o r colocar velhos
rótulos em n o v a s g a r r a f a s , n ã o d e v e ser c o n f u n d i d a com
ausência de mudança".
N ã o h á d u v i d a que J o n a t h a n S w i f t teve r a z ã o p a r a e s p a n -
t a r - s e com a p a i x ã o d o s a d v o g a d o s ingleses pelo p r e c e d e n t e .
M a s se o relato acrítico d a história p o d e ser, como acreditava
S w i f t , u m a espécie de silêncio a n t e a injustiça p r e s e n t e , p o d e
servir t a m b é m p a r a legitimar n o v a s instituições como filhas n a -
turais de outras mais a n t i g a s .
O objetivo d a r e f o r m a da ideologia jurídica inglesa foi a
r e d u ç ã o d a s p r e r r o g a t i v a s do s o b e r a n o e a limitação do governo
A T É C N I C A DO DIREITO C O S T U M E I R O 253

ao papel de d e f e n s o r d a l i b e r d a d e e c o n ô m i c a e política. S o b
C r o m w e l l , a b u r g u e s i a , q u e d e v i a ao absolutismo dos T u d o r
s e u s interesses em terras e c e r t a m e d i d a d e p o d e r econômico,
d e s m a n t e l o u a m á q u i n a de p o d e r m o n á r q u i c o . Q u a n d o , por
ocasião d a R e s t a u r a ç ã o , os reis S t u a r t p r o c u r a r a m reimplantar
o direito público d o período a n t e r i o r , a s g r a n d e s p o t ê n c i a s f i n a n -
ceiras c o n s e g u i r a m a r á p i d a i n t e r v e n ç ã o d e G u i l h e r m e d e O r a n -
ge, que a s c e n d e u a o trono com b a s e no direito dinástico de sua
e s p o s a e com a a j u d a efetiva d e seu p r ó p r i o exército-
P o d e m o s o b s e r v a r com g r a n d e clareza o uso do p r e c e d e n t e
e a r e f o r m a d e l i b e r a d a d a ideologia jurídica à luz de t r ê s princí-
pios f o r m u l a d o s n o s séculos X V I I e X V I I I : o direito contra a
auto-incriminação, o direito de c o n f r o n t a r e f a z e r o c o n t r a - i n t e r -
r o g a t ó r i o d a q u e l e s q u e tinham evidência c o n t r a a p e s s o a e o
direito de j u l g a m e n t o p o r júri.
E m s u a f o r m a moderna, o direito c o n t r a a a u t o i n c r i m i n a ç ã o
é o elemento mais discutido d a n o r m a p r o c e s s u a l do direito cos-
tumeiro. Seu d o g m a f u n d a m e n t a l é que n i n g u é m p o d e ser obriga-
d o a t e s t e m u n h a r c o n t r a si mesmo. E s t e principio r a m i f i c a - s e em
o u t r o s . C i t a d o pela a u t o r i d a d e ou i n t e r r o g a d o p e l a Polícia, a
p e s s o a tem o direito de p e r m a n e c e r c a l a d a . N o s processos crimi-
nais, esse direito serve de b a s e a um tipo especial de n o r m a
o p o s t a : o g o v e r n o precisa p r o v a r a c u l p a do acusado, b a s e a n d o -
se n o t e s t e m u n h o d e outros, e o a c u s a d o n ã o precisa a p r e s e n t a r
p r o v a a l g u m a , p o r iniciativa p r ó p r i a , q u e p o s s a ser u s a d a contra
ele, ou m e s m o p r e s t a r d e p o i m e n t o .
A luta p a r a i n t r o d u z i r e s s e princípio n o direito inglês re-
t r o a g e a a n t i g o s códigos. M e s m o h o j e , a o b r i g a ç ã o de p r e s t a r
d e p o i m e n t o — sob a a m e a ç a de s a n ç õ e s — e d e i n f o r m a r à polí-
cia e à s a u t o r i d a d e s judiciais constitui um a s p e c t o d e s u m a im-
p o r t â n c i a n o rito criminal e u r o p e u . A s o r i g e n s d e s s e s sistemas
"inquisitoriais", c o n f o r m e vimos n a T e r c e i r a P a r t e , e n c o n t r a m -
se em e n x e r t o s r o m a n o s e canónicos em n o r m a s processuais mais
a n t i g a s . O "inquérito", com i n t e r r o g a t ó r i o d a p a r t e possivelmen-
te culpada, constituiu uma v i g a m e s t r a d o rito processual
criminal na F r a n ç a d e s d e o século X I I I , b e m como d a s inquisi-
ções c a n ó n i c a s s o b r e suspeitas de heresia.
A inquisição n a I n g l a t e r r a foi r e a l i z a d a d e acordo com
m é t o d o s canónicos, iniciando-se no século X I V e incluindo o
e m p r e g o de t o r t u r a p a r a o b r i g a r os suspeitos a falar. E m H 0 1 ,
como r e a ç ã o à s h e r e s i a s Lollard, de John W y c l i f f , o P a r l a -
m e n t o colocou a inquisição sob auspícios oficiais com o e s t a t u t o
254 A VITÓRIA DA BURGUESIA

c/e Haeretico Comburendo. D a í em diante, a justiça secular quei-


m a r i a o corpo p a r a a j u d a r a I g r e j a a p u r i f i c a r a a l m a . O s suspei-
tos de heresia d e v i a m f a z e r o j u r a m e n t o de veritate dicenda. a
dizer a v e r d a d e em r e s p o s t a a t u d o que lhe fosse p e r g u n t a d o pelo
inquisidor, c o n c e r n e n t e s à m a t é r i a de fé. O j u r a m e n t o era ex
officio mero — de iniciativa do inquisidor. S e a p e s s o a n ã o r e s -
p o n d i a , s u p u n h a - s e que c o n f e s s a r a o crime.
A n o r m a p r o c e s s u a l no j u l g a m e n t o de h e r e s i a s do e s t a t u t o
de Haeretico Comburendo foi abolida por H e n r i q u e V I I I , m a s
a p e n a s no nome. A e l e v a ç ã o do rei à situação d e c a b e ç a d a I g r e -
ja d a I n g l a t e r r a e, p o r conseguinte, da I g r e j a , colocou a heresia
e traição em pé d e i g u a l d a d e . O s dois crimes e r a m s e m e l h a n t e s
em conceito, especialmente n a t e n d ê n c i a de, em a m b o s , e q u i p a -
r a r idéia a ato, o d e s e j o à sua realização. A jurisdição e s p e -
cial d a A l t a C o m i s s ã o ( p r i n c i p a l m e n t e eclesiástica) e d a
C o r t e d a C â m a r a E s t r e l a d a ( p r i n c i p a l m e n t e política) estendia-se
a crimes mentais c o n t r a a i n t e g r i d a d e espiritual e secular do
Estado.
A A lta C o m i s s ã o devia seu n o m e à s "comissões" reais es-
peciais que, em vários períodos, c o m e ç a n d o no r e i n a d o de H e n -
rique V I I I , r a t i f i c a r a m - l h e os p o d e r e s . D a n d o seguimento à Lei
d a Supremacia, o r d e n o u H e n r i q u e à C o m i s s ã o q u e investigasse,
com e m p r e g o de m é t o d o s canónicos, os crimes c o n t r a a fé. D e
a c o r d o com a história inglesa e a r e i n t e r p r e t a ç ã o canónica d a
t r a d i ç ã o romana, o c o n t e ú d o d a m e n t e p o d i a ser extraído p o r
violentação do corpo.
A C â m a r a E s t r e l a d a constituía uma instância especial do
C o n s e l h o do Rei, c a b e n d o - l h e p o d e r e s judiciários. S u a o r g a n i z a -
ção e jurisdição f o r a m c o n f i r m a d a s por uma lei de 1487. T r a t a v a
ela de n u m e r o s o s casos. N o século X V I e em princípios do século
X V I I , contudo, a c a r g a d e t r a b a l h o de casos políticos cada
vez maior veio a c a r a c t e r i z á - l a assim a o s olhos de seus d e t r a -
tores. N ã o h á d ú v i d a d e que o o r g a n i s m o a l e g a v a o direito de
a t u a r s e g u n d o o rito p r o c e s s u a l r o m a n o - c a n ô n i c o p a r a e r r a d i -
car a sedição, e x a t a m e n t e d a m e s m a maneira que a A l t a
C o m i s s ã o agia c o n t r a a heresia.
N o s séculos X V e X V I , h o u v e e s p o r á d i c o s p r o t e s t o s contra
e s s a s atividades, previsivelmente de p a r t e d a q u e l e s que, em d e t e r -
m i n a d o momento, resistiam à a u t o r i d a d e d a C o r o a e da I g r e j a .
E m 1563, o Book o / Martyrs, de John F o x e , reuniu histórias de
p e s s o a s que se h a v i a m r e c u s a d o a f a z e r o j u r a m e n t o ex officio.
O s m á r t i r e s de F o x e , em suas p r ó p r i a s p a l a v r a s ou n a s de o b -
A T É C N I C A DO D I R E I T O C O S T U M E I R O 255

s e r v a d o r e s , justificavam sua recusa com apoio n a s g a r a n t i a s d a


M a g n a C a r t a d e que
homem algum será preso, encarcerado, despojado de s e u s
bens, declarado fora d a lei ou banido, o u de qualquer m o d o
destruído, n e m detido ou posto sob custódia, salvo por julga-
m e n t o legat de s e u s p a r e s o u pela lei da terra.

A "lei d a t e r r a " , a r g u m e n t a v a - s e , proibia o juramento e


exigia que a a u t o r i d a d e pública agisse c o n t r a o crime m e d i a n t e
a c u s a ç ã o p e r a n t e um júri e que a c o n d e n a ç ã o fosse feita t a m b é m
p o r um júri escolhido nas v i z i n h a n ç a s •— isto é, o n d e havia ocor-
rido a a l e g a d a o f e n s a . A "lei d a t e r r a " n ã o tinha um significado
t ã o preciso assim em 1215, m a s "de v e l h o s c a m p o s d e v e nascer
milho n o v o " .
Só em princípios do século X V I I , contudo, é q u e a q u e s t ã o
d o s m é t o d o s u s a d o s pela A l t a C o m i s s ã o e pela C â m a r a E s -
t r e l a d a deu origem à f o r m a ç ã o de um g r u p o d e a d v e r s á r i o s .—
p r i n c i p a l m e n t e originários d a b u r g u e s i a — s u f i c i e n t e m e n t e forte
p a r a l a n ç a r um a t a q u e f r o n t a l a o sistema. E m b o r a acreditassem
que o E s t a d o T u d o r devia ser forte o suficiente p a r a p r o t e g e r e
ampliar o comércio do reino e destruir os p a d r õ e s f e u d a i s de pos-
se d a terra e d e privilégios, o s crescentes i n t e r e s s e s comerciais
n e n h u m a inclinação sentiam, s e j a pela c o n f o r m i d a d e ideológica,
seja pela m a n u t e n ç ã o do p o d e r m o n á r q u i c o logo q u e as institui-
ções f e u d a i s f o r a m e s m a g a d a s . E n q u a n t o l u t a v a m p a r a t r a n s f o r -
m a r comerciantes em clientes, o s a d v o g a d o s l a n ç a r a m u m a cam-
p a n h a n ã o só contra a A l t a C o m i s s ã o e a C â m a r a E s t r e l a d a , mas
contra t o d a s as instituições judiciárias n ã o incluídas no âmbi-
to d a s cortes de direito costumeiro.
A a t i t u d e favorável d e s s a s cortes p a r a com a lei que servia
aos interesses d o s comerciantes, o a u t o - i n t e r e s s e d o s a d v o g a -
d o s e a hostilidade política à s p r e r r o g a t i v a s d a C o r o a consti-
tuíram o s principais alicerces ideológicos d e s s a aliança entre
causídicos e burguesia.
C o m o primeiro passo, a s cortes c o s t u m e i r a s reivindica-
ram o p o d e r de d e t e r m i n a r a s u s t a ç ã o de processos nos tribu-
nais eclesiásticos e de p r e r r o g a t i v a s . L o r d e C o k e elaborou a
tese de que " a lei d a t e r r a " era de c u m p r i m e n t o obrigatório
pelo Rei, p a r l a m e n t o e juízes. E m uma s u c e s s ã o de j u l g a m e n -
tos, o S u p r e m o T r i b u n a l Real, uma corte d e direito costumeiro,
emitiu uma série de e m b a r g o s e concedeu habeas corpus nessa
c o n f o r m i d a d e . E s s e s e m b a r g o s tinham como alvos n ã o só a s
256 A VITÓRIA DA B U R G U E S I A

cortes d e s t i n a d a s a j u l g a r c a s o s especiais e q u e h a v i a m s u r g i d o
n o r e s c a l d o d a d e s t r u i ç ã o d o s mosteiros, m a s t a m b é m t r i b u n a i s
tais c o m o a A l t a C o m i s s ã o e a C â m a r a E s t r e l a d a . O s e m b a r -
g o s e habeas corpus m u l t i p l i c a r a m - s e em princípios do século
X V I I , diminuíram um p o u c o a p ó s 1610 e a u m e n t a r a m n o v a -
m e n t e em n ú m e r o . D e vez q u e a C â m a r a E s t r e l a d a e a A l t a
C o m i s s ã o eram u s a d a s como i n s t r u m e n t o d e p o d e r p e s s o a l p o r
J a i m e I e C a r l o s I, a m b o s o s m o n a r c a s , em v á r i a s ocasiões,
o r d e n a r a m aos juízes q u e i g n o r a s s e m os e m b a r g o s emitidos
p e l a s cortes d e direito costumeiro. C o m o exemplo d e s u a d e -
t e r m i n a ç ã o , Jaime I presidiu p e s s o a l m e n t e à C â m a r a E s t r e l a d a
pelo m e n o s em u m a ocasião .— n u m a l e g a d o c a s o d e sedição.
O e x e m p l o d a jurisdição d a C â m a r a E s t r e l a d a e d a A l t a
C o m i s s ã o mais citado c o m o t e n d o mobilizado a opinião pública
foi o caso de John Lilburn, u m d o s lideres d o M o v i m e n t o d o s
N i v e l a d o r e s . C i t a d o pelo P r o c u r a d o r - G e r a l em 1637 p a r a s u b -
m e t e r - s e a i n t e r r o g a t ó r i o a respeito d a a l e g a d a i m p o r t a ç ã o de
livros sediciosos, como m e d i d a preliminar ao j u l g a m e n t o do
caso p e l a C â m a r a E s t r e l a d a , Lilburn r e c u s o u - s e a r e s p o n d e r .
L e v a d o p e r a n t e a corte d a C â m a r a E s t r e l a d a , n e g o u - s e a p r o -
f e r i r o j u r a m e n t o ex officio-, " O u t r o direito f u n d a m e n t a l que
d e f e n d o é que a consciência d e homem a l g u m d e v e ser t o r t u r a -
d a p o r j u r a m e n t o s impostos p a r a r e s p o n d e r a questões a r e s -
p e i t o de si mesmo em a s s u n t o s criminais ou s u p o s t a m e n t e cri-
minais".
O C a s o Lilburn é d e s c r i t o n a s seguintes p a l a v r a s por Sir
James Stephen:
A e x t r e m a I m p o p u l a r i d a d e d o j u r a m e n t o d e officio foi colocada
s o b c l a r a luz n o c a s o d e J o h n L i l b u r n . . . F o i e l e r e c o l h i d o a
G a t e h o u s e p o r " i m p o r t a r d a H o l a n d a p a r a a I n g l a t e r r a lite-
ratura sediciosa e facciosa"- Posteriormente, determinou o
C o n s e l h o P r i v a d o q u e ele f o s s e i n t e r r o g a d o p o r SIr J o h n B a n k s ,
P r o c u r a d o r - G e r a l . E m c o n s e q ü ê n c i a , f o i l e v a d o ele à s c â m a r a s
d o proc.uradov-Geral p a r a sev i n t e r r o g a d o p e i o Sr. C o c k s h e y ,
seu principal a m a n u e n s e . N a primeira reunião, e l e . . . iniciou o
i n t e r r o g a t ó r i o d a s e g u i n t e m a n e i r a : "Sr. L i l b u r n , qual é s e u
n o m e de b a t i s m o ? " S e g u i r a m - s e v á r i a s p e r g u n t a s , c u l m i n a n d o
gradualmente no assunto objeto da queixa. Lilburn respondeu
a m u i t a s delas, m a s , f i n a l m e n t e , r e c u s o u - s e a c o n t i n u a r a
respondê-las, dizendo: "Sei que é justificado pela lei de Deua,
e p e n s o q u e t a m b é m p e l a lei d a t e r r a , q u e e u p o s s a f a z e r
m i n h a própria d e f e s a e que não t e n h a que responder a o inter-
rogatório, e que m e u s acusadores s e j a m trazidos à m i n h a
p r e s e n ç a a f i m de j u s t i f i c a r e m a q u i l o d e q u e m e a c u s a m . . . "
D i a s depois, f o i l e v a d o à C â m a r a E s t r e l a d a , o n d e d e v i a c o m -
A T É C N I C A DO DIREITO C O S T U M E I R O 257

p a r e c e r . . . P e n s o u L i l b u r n q u e o o b j e t i v o do i n t e r r o g a t ó r i o
f o s s e o b t e r m a t e r i a l p a r a u m p r o j e t o d e lei e, e m c o n s e q ü ê n c i a ,
q u a n d o o p r e s i d e n t e d a c o m i s s ã o l h e p e d i u q u e f i z e s s e o jura-
m e n t o "de q u e r e s p o n d e r á c o m v e r a c i d a d e a t o d a s a s p e r g u n t a s
que lhe f o r e m feitas", recusou-se a fazê-lo, dizendo de inicio:
" E u sou apenas u m jovem e não sei b e m a que se refere a
natureza de u m juramento." Posteriormente, disse não estar
c o n v e n c i d o d a l e g a l i d a d e d o j u r a m e n t o e, d-epois d e m u i t a
discussão, recusou-se a b s o l u t a m e n t e a prestá-lo. A p ó s m a i s ou
m e n o s u m atraso de u m a quinzena, fot n o v a m e n t e levado à
C â m a r a E s t r e l a d a , onde m a i s u m a v e z l h e s o l i c i t a r a m q u e
jurasse, o que m a i s uma vez recusou a fazer sob o f u n d a m e n t o
de q u e aquilo era u m j u r a m e n t o d e inquérito, de c u j a legali-
dade n ã o e s t a v a c o n v e n c i d o . . . N o dia seguinte, eles [Lilburn e
u m outro prisioneiro, W h a r t o n ] f o r a m obrigados a comparecer
m a i s u m a vez. L i l b u r n d e c l a r o u , e m s u a s p r ó p r i a s p a l a v r a s e
longamente, que a s acusações feitas contra s u a pessoa eram
inteiramente f a l s a s e que o s livros censurados h a v i a m sido
importados por outra pessoa, c o m a qual não t i n h a ligação.
" N e s t e c a s o " , d i s s e o L o r d e G u a r d i ã o , "o s e n h o r n ã o f a r á o
juramento e responderá v e r a z m e n t e ? " Lilburn repetiu que se
t r a t a v a de u m j u l g a m e n t o d e i n q u é r i t o e que, e m n o m e d e
D e u s , n ã o e n c o n t r a v a j u s t i f i c a t i v a p a r a ÍSBO... D e v e z q u e
a m b o s o s a c u s a d o s se r e c u s a r a m c a t e g o r i c a m e n t e a f a z e r o
juramento, foram ambos condenados a serem amarrados ao
p e l o u r i n h o e a p a g a r u m a m u l t a d e 500 l i b r a s , e L i l b u r n a ser
açoitado d a F l e e t até o pelourinho, que se s i t u a v a entre
W e s t m i n s t e r H a l l Gate e a C â m a r a E s t r e l a d a . L i l b u r n f o i d e v i -
d a m e n t e a ç o i t a d o , r e c e b e n d o , s e g u n d o s e disse, m a i s d e 500
açoites, e amarrado ao pelourinho durante duas horas após o
c a s t i g o . E m m a i o d e 1641, a C â m a r a d o s C o m u n s d e c i d i u q u e " a
s e n t e n ç a da Câmara Estrelada, pronunciada contra John
L i l b u r n , f o i ilegal e c o n t r a a l i b e r d a d e do s ú d i t o e, a l é m disso,
s a n g r e n t a , cruel, b á r b a r a e t i r â n i c a " .

O caso Lilburn, no e n t a n t o , foi a p e n a s um e n t r e muitos.


C r e s c i a m o s clamores p a r a q u e um P a r l a m e n t o f o s s e c o n v o c a -
do a fim d e p ô r um fim ao g o v e r n o a u t o c r á t i c o d e Jaime I.
C h r i s t o p h e r Hill sumariou a s opiniões d a q u e l e s que pe-
diam a convocação do P a r l a m e n t o e a s motivações d o s mem-
bros d o P a r l a m e n t o Longo, a f i n a l r e u n i d o em n o v e m b r o de
1640:
N ã o foram, c o m o disse o D u q u e de N e w c a s t l e , "nem a Igreja
n e m a s leis q u e s u s t e n t a r a m p o r t a n t o t e m p o o rei, m a s p a r t e
d a n o b r e z a e a p e q u e n a f i d a l g u i a " . "A f o r ç a d e n o s s o partido",
escreveu u m panfletista parlamentar, "consiste principalmente
em comerciantes honestos; a pequena nobreza nada é e a gente
<lo c a m p o e s t á n a m a i o r p a r t e c e g a e é e n g a n a d a p e l o s s e u s
m a l d o s o s padres." E m Somerset. "a n a t a da pequena f i d a l g u i a "
258 A VITÓRIA DA BURGUESIA

e r a p e l o rol; a p e n a a v e n d e d o r e s e p e q u e n o s p r o p r i e t á r i o s p e l o
Parlamento. E m Essex, os trabalhadores em tecidos, "sendo
pobres e numerosos" eram "naturalmente sediciosos e ousados".
Seus e m p r e g a d o r e s erain indivíduos sórdidos que, t a m b é m e
naturalmente, a p o i a v a m o Parlamento, "cujo estilo constante
era o f a v o r e c i m e n t o do c o m é r c i o . . . E m todo o reino, os fabri-
c a n t e s <íe t e c i d o s e r a m r e b e l d e s e m f u n ç ã o d e Beus p r ó p r i o s
o f í c i o s . " " P o i s é n o t ó r i o " , e s c r e v e u u m b i s p o a p ó s 1660, " q u e
n ã o h á tipo de g e n t e m a i s i n c l i n a d a a p r á t i c a s s e d i c i o s a s q u e a
parte comercial da nação."

O P a r l a m e n t o L o n g o fez valer seu direito de ser f r e q ü e n -


t e m e n t e c o n v o c a d o e controlar a t r i b u t a ç ã o . E m 1641, aboliu
a corte da C â m a r a E s t r e l a d a e a A l t a C o m i s s ã o , b e m como
u m a série de cortes d e instância inferior d o m e s m o tipo e que
a d o t a v a m o mesmo r i t o processual.
A lei de abolição d e s s e s o r g a n i s m o s constitui um d o c u m e n -
to notável, s e n d o t a n t o u m a súmula de f a t o s como u m a p e ç a de
legislação. C o n t é m um a r g u m e n t o histórico q u e r e t r o a g e à
M a g n a Carta, aquela carta de garantias aos grandes nobres
q u e é uma i m p u t a ç ã o g e r a l m e n t e aceita como d e a u t e n t i c i d a d e
histórica fictícia, b e m como c o m e n t a idéias b e m m o d e r n a s sobre
j u l g a m e n t o j u s t o sob a lei, c o m e n t a n d o a história d a oposição
i n g l e s a à jurisdição especial do C o n s e l h o d o R e i e a i n t r u s ã o
d e n o r m a s e r e g r a s r o m a n a s . M a s , c o n q u a n t o fosse inegavel-
m e n t e v e r d a d e i r o que o P a r l a m e n t o e a s c o r t e s de direito cos-
tumeiro h a v iam , em c e r t o n ú m e r o d e ocasiões, p r o t e s t a d o con-
tra inovações p a t r o c i n a d a s pelo rei, g r a n d e p a r t e d o s protestos
d o s a d v o g a d o s , pelo m e n o s a n t e s d o século X V I , foi feita em
n o m e de seus a n t i g o s clientes, a n o b r e z a e a p e q u e n a fidalguia,
e c o n t r a o e m p r e g o d e instâncias e n o r m a s especiais p a r a p r o -
mover o comércio em n o m e d a b u r g u e s i a em a s c e n s ã o . A l é m
disso, e m b o r a f o s s e v e r d a d e que a resistência a o r o m a n t i s m o
possuía uma l o n g a história, os comerciantes se h a v i a m coloca-
do, n a maior p a r t e , do o u t r o lado, a p o i a n d o a criação, p o r i n t e r -
veniência d o p o d e r real, d e cortes que aplicariam n o r m a s b a -
s e a d a s no direito civil e relativas à p r á t i c a mercantil e à s e x -
portações.
A d u b i e d a d e d o raciocínio histórico d o P a r l a m e n t o , no
e n t a n t o , n ã o d e v e servir p a r a oc ul t a r a i m p o r t â n c i a d a lei. A
abolição do j u r a m e n t o e * officio e d a s n o r m a s p r o c e s s u a i s con-
t r a a sedição constituíram i m p o r t a n t e s a f i r m a ç õ e s d a liber-
d a d e h u m a n a . O direito contra a a u t o - i n c r i m i n a ç ã o conti-
n u a a ser, n a o r d e m jurídica a n g l o - a m e r i c a n a , uma g a r a n t i a
A T É C N I C A DO DIREITO COSTUMEIRO 259

s a l u t a r c o n t r a o p o d e r g o v e r n a m e n t a l , pelo menos nos casos em


que a s instituições criadas p a r a p r o t e g ê - l o f u n c i o n a m t o m o
devem.
A l é m disso, esse direito foi c o n s o l i d a d o em uma v e r d a d e i -
ra Juta e n t r e u m a classe que havia r e c e n t e m e n t e a s s u m i d o o
p o d e r e u m a o r d e m mais a n t i g a . N ã o se t r a t o u simplesmente
d e substituir um princípio p o r outro. A abolição d a s cortes de
p r e r r o g a t i v a s constituiu um longo p a s s o p a r a o d e s m a n t e l a m e n -
to do E s t a d o T u d o r , que n a s m ã os d o s S t u a r t se m o s t r a m
d i s p e n d i o s o e o b s t i n a d o n a s s u a s idéias sobre o desenvolvi-
menro d o comércio. A s instituições T u d o r h a v i a m servido como
um aríete d a b u r g u e s i a contra a resistência f e u d a l , m a s o fato
é que a d i s s e m i n a ç ã o de relações econômicas b a s e a d a s nos con-
t r a t o s e a p r o t e ç ã o d a s relações de p r o p r i e d a d e n a solução da
R e f o r m a significavam que n ã o havia mais n e c e s s i d a d e de t u d o -
rismo a p ó s 1600. D a mesma f o r m a q u e n a F r a n ç a , em d a t a
posterior, a b u r g u e s i a julgava que o governo devia abster-se,
em n o m e d a liberdade, de todas a s funções, salvo a d e f e s a mili-
tar, a m a n u t e n ç ã o d o sistema de comunicações i n t e r n a s e ex-
t e r n a s e o policiamento do país.
A abolição d a s cortes de p r e r r o g a t i v a s r e p r e s e n t o u uma
vitória d a n o v a aliança e n t r e a d v o g a d o s costumeiros e comer-
ciantes, a p o i a d o s pelos "sediciosos e o u s a d o s " t r a b a l h a d o r e s ,
m a s n ã o foi u m a vitória completa. O c a m i n h o f o r a aberto, no
entanto, p a r a a criação d e n o v a s f o r m a s p r o c e s s u a i s em. casos
criminais q u e institucionalizariam o controle, pelo povo, da
a c u s a ç ã o e j u l g a m e n t o e racionalizaria a sistemática d a a p r e s e n -
tação d a p r o v a . A institucionalização do g r a n d e júri, a r e a f i r m a -
ção da i n d e p e n d ê n c i a do júri o r d i n á r i o e a rigorosa insistên-
cia no direito de r e p e r g u n t a constituíram três r e f o r m a s impor-
tantes.
P a r a que o rito processual criminal fosse r e f o r m a d o , te-
riam q u e ser abolidos também o s corolários d a prática ex o f f i -
cio. O primeiro era q u e o a c u s a d o p o d i a ser i n t e r r o g a d o e con-
d e n a d o e x c l u s i v a m e n t e p o r s u a s p r ó p r i a s p a l a v r a s e por um
g r u p o de juízes reais: n ã o havia nem n e c e s s i d a d e nem ocasião
de citar a q u e l e s que poderiam ter d e n u n c i a d o o ilícito ou sub-
metê-los a interrogatório, sob j u r a m e n t o , a fim de d e t e r m i n a r
se h a v i a m dito ou n ã o a v e r d a d e . O u t r a , a p r e r r o g a t i v a da
corte d e a c u s a r o réu e, em seguida, julgá-lo e c o n d e n á - l o sem
maior f o r m a l i d a d e . A n o r m a p r o c e s s u a l o b s e r v a d a em t o d a s as
cortes que f u n d a m e n t a v a m sua sistemática no direito civil p a s -
260 A VITÓRIA DA BURGUESIA

sou a ser o depoimento, c o n s t i t u i n d o o r e g i s t r o escrito d a s res-


p o s t a s a necessária p r o v a .
N ã o havia júri preliminar de c i d a d ã o s a fim de d e t e r m i n a r
se a a c u s a ç ã o devia ser feita e s u b m e t i d o o réu a j u l g a m e n t o
p o r um júri ordinário, q u e s e p r o n u n c i a r i a p o r voz u n â n i m e
s o b r e a culpa o u inocência d o a c u s a d o . V i m o s que o júri p r e -
liminar, em casos criminais, f a z i a a a c u s a ç ã o p o r iniciativa p r ó -
p r i a , b a s e a d o n o s f a t o s que conhecia, c o n s t i t u i n d o isso um meio
d e c o m b a t e r o s crimes e levá-los a o c o n h e c i m e n t o d o s juizes
d o rei. O j ú r i o r d i n á r i o assumiu v á r i a s f o r m a s pelo m e n o s d u -
r a n t e um p e r í o d o d e q u i n h e n t o s a n o s : e r a em a l g u n s casos
um g r u p o d e c i d a d ã o s r e u n i d o s pela p a r t e q u e t i n h a o direito
de a p r e s e n t a r p r o v a em u m a c o n t e s t a d a p r o p o s i ç ã o d e f a t o .
Se o a c u s a d o c o n s e g u i a r e u n i r d o z e p e s s o a s que j u r a s s e m
q u a n t o ao fato, a c a u s a e s t a v a g a n h a . E s s e sistema, d e n o m i n a -
d o d e ilibação, foi descrito pelo P r o f e s s o r R i e s e n f e l d como
u m a f o r m a d e p e r j ú r i o institucionalizado. A idéia d e um júri
como um corpo d e indivíduos escolhidos em u m a d a d a c o m u n i -
d a d e p a r a decidir sobre fatos, b a s e a d o n o q u e s a b i a m deles,
persistiu até o século X V I . P o r isso mesmo, o s u m á r i o de um
c a s o j u l g a d o em 1550 c o n t i n h a a o b s e r v a ç ã o s e g u i n t e : " A l g u n s
d o s jurados s a b i a m q u e isso e r a v e r d a d e " .
A destruição d a s c o m u n i d a d e s a l d e ã s e a violenta r u p t u r a
com velhos estilos de v i d a t o r n a r a m c a d a vez m e n o s p r o v á v e l
q u e o s fatos d e u m a querela constituíssem conhecimento comum.
S e a p e n a s " a l g u n s " ou mesmo "um ú n i c o " d o s j u r a d o s c o n h e -
cessem o s fatos, q u e aconteceria? U m s u m á r i o de culpa em
1650 dizia o s e g u i n t e :
E m u m processo e m que e r a m p a r t e s os moradores de Hartford,
e Bennet, u m carregador, n u m a a ç ã o m o v i d a contra os primei-
r o s n o s t e r m o s do E s t a t u t o de W i n c h e s t e r , p o r u m r o u b o c o m e -
tido naquela localidade, decidiu a corte que se qualquer u m a
das partes desejasse que u m jurado f o r n e c e s s e evidência de
algo de seu c o n h e c i m e n t o ao resto dos jurados, a corte o inter-
r o g a r i a p u b l i c a m e n t e , s o b j u r a m e n t o , n ã o d e v e n d o ele ser
interrogado privadamente pelos seus colegas.

O júri, em conseqüência, p a s s o u a ser n ã o um g r u p o de


a m i g o s d a p a r t e q u e fazia o j u r a m e n t o , mas um corpo s u p o s t a -
m e n t e neutro, c h a m a d o a decidir s o b r e f a t o s . N o estágio se-
g u i n t e desse processo, a l c a n ç a d o em 1650. o júri n ã o mais co-
nhecia. o s (atos, m a s i n / o r m a o a - s e sobre eles. C o k e havia dito
q u e de velhos c a m p o s devia n a s c e r milho novo. D a pena de
A T É C N I C A DO D I R E I T O C O S T U M E I R O 261

Fortesctie, a u t o r d o século X V , temos a descrição seguinte


do rito p r o c e s s u a l que devia ser o b s e r v a d o :
Se perante u m juiz as partes e m u m litígio e n t r a m e m contro-
v é r s i a s o b r e u m a q u e s t ã o d e f a t o , a q u i l o q u e o s c u l t o r e s d a lei d a
I n g l a t e r r a c h a m a m d e p o n t o c o n t e s t a d o , a v e r d a d e q u a n t o a tal
ponto, s e g u n d o a s leis civis, d e v e ser p r o v a d a pelo d e p o i m e n t o
de testemunhas, para o que duas delas serão bastante. Mas,
s e g u n d o a s leis d a Inglaterra, a v e r d a d e n ã o pode apresentar-se
c l a r a a o Juiz e x c e t o pelo j u r a m e n t o d e d o z e h o m e n s r e s i d e n t e s
na v i z i n h a n ç a onde s u p o s t a m e n t e a c o n t e c e u o fato. P o d e m o s
perguntar, por conseguinte, qual d e s s e s dois métodos, tão dife-
r e n t e s e n t r e si, d e v e ser c o n s i d e r a d o o m a i s r a z o á v e l e e f i c a z . . .
S e g u n d o a s leis civis, a parte n o litígio que f a z a a c u s a ç ã o
deve indicar testemunhas, que n o m e a r á segundo sua v o n t a d e , . .
D e v e ser de f a t o c o n s i d e r a d o f r a c o e m p o d e r a q u e l e que, entre
todos os h o m e n s que conhece, n ã o pode encontrar dois tão
destituídos de consciência e espírito veraz que não se pronun-
c i e m c o n t r a t o d a v e r d a d e por r a z õ e s d e m e d o , a m o r o u lucro.
E se a outra parte deseja contestá-los, ou aos seus depoimentos,
n e m s e m p r e a c o n t e c e que o c a r á t e r e atos deles s e j a m conhe-
cidos daqueles que desejam refutá-los, i m p u g n a n d o a s teste-
m u n h a s pela sua baixeza e vícios. Quem, então, pode viver e m
s e g u r a n ç a pessoal, e de s e u s bens, s o b o i m p é r i o de u m a lei
c o m o essa, u m a vez que ela f o r n e c e tal a j u d a a todos aqueles que
desejam ser seu i n i m i g o ? , , . D o m e s m o modo, a maldosa Jezebel
apresentou duas testemunhas, filhas de Belial, contra N a b o t h
em u m julgamento e m que ele perdeu a vida e o Rei Ahab
apossou-se de s e u vinhedo.

T h o m a s Smith, ministro d e E l i z a b e t h , d e s c r e v e u d a ma-


neira seguinte o j u l g a m e n t o p o r j ú r i :
£ c h a m a d o de processo, ou ação, esse tipo de j u l g a m e n t o legal
por X I I h o m e n s . . . Q u a n d o a corte s e reúne, eles s ã o solici-
tados por juramento a contar a verdade dos fatos, de acordo
c o m a prova e s u a consciência. E m seguida, os meirinhos de
c a d a lado d e s c r e v e m o caso e c a d a u m dos clientes f a l a durante
o t e m p o que quiser, P r o v a s escritas são apresentadas, teste-
munhas prestam juramento e são ouvidas na presença dos
querelantes, de m o d o que n ã o a p e n a s o s X I I . m a s os juizes, a s
partes e tantos quantos estejam presentes, ou seus advogados,
p o s s a m ouvir o que a t e s t e m u n h a diz: a parte oposta, os seus
advogados, que c h a m a m o s de conselheiros o u meirinhos, inter-
rogam às vezes a s testemunhas, fazendo-as ocasionalmente perder
a c o m p o s t u r a . . . Quando se julga que houve apresentação sufi-
ciente de arrazoado, e as t e s t e m u n h a s c o n t a r a m o que sabiam,
um dos juízes faz u m sumário dos argumentos apresentados
pelos advogados de ambas as partes, daquilo que as testemunhas
declararam e dos principais aspectos da prova produzida por
uscrito, e x p o n d o a prova a p r e s e n t a d a por c a d a u m a d a s partes.
262 A VITÓRIA DA BURGUESIA

se a l g u m a . . . c d e t e r m i n a que o júri se r e ú n a p r i v a d a m e n t e .
Ern s e g u i d a , s ã o o s j u r a d o s l e v a d o s p o r u m m e i r i n h o , q u e s o b r e
o júri deve m o n t a r guarda, para u m a c â m a r a próxima, onde
ficarão s e m pão, bebida, luz ou f o g o até c h e g a r a u m a c o n c l u s ã o . ..
o que não acontece na maioria dos casos, m a s ê preciso que
todos c h e g u e m a um acordo.

Q u e p r o v a s seriam l e v a d a s ao conhecimento desses d o z e


jurados? C o k e falou d o " e s t r a n h o conceito d e que um homem
p o s s a ser a c u s a d o p o r ouvir d i z e r " . P o r esses e o u t r o s motivos,
p a s s a r a m a ser c i t a d o s com f r e q ü ê n c i a s e m p r e maior casos d e
f r a u d e ou erro no u s o d e d e p o i m e n t o s .
A n o r m a c o n t r a a evidência a u r i c u l a r iniciou-se como me-
d i d a de c a u t e l a c o n t r a o d a r o u v i d o s a "história de uma histó-
r i a " e culminou, no século X V I I , como e l e m e n t o aceito do rito
processual do direito costumeiro. A t e s t e m u n h a devia c o n t a r à
corte, publicamente e s o b j u r a m e n t o , aquilo que sabia. N ã o
deveria, s a l vo em c e r t a s c i r c u n s t â n c i a s •— a s "exceções d a n o r -
m a a u r i c u l a r " — r e p e t i r d e c l a r a ç õ e s d e outrem, feitas f o r a d a
corte. C o m e s s a p r o t e ç ã o c o n t r a a m e n d a c i d a d e e a i n f i d e l i d a -
d e à v e r d a d e , surgiu o direito d e e n f r e n t a r e r e p e r g u n t a r a fini
d e expor claros e e n g a n o s . O júri e s c u t a v a e decidia sobre o
a s s u n t o . Se devia decidir com b a s e em d e p o i m e n t o s p r e s t a d o s
em público, o conhecimento a n t e r i o r d o s f a t o s constituía motivo
d e d e s q u a l i f i c a ç ã o : p o d e r i a indicar p r e j u l g a m e n t o . E s s e siste-
m a constituiu a b a s e d e u m a n o v a e racional processualística.
E m casos criminais, a n o r m a d e q u e a decisão, por um júri
preliminar, d e acolher a a c u s a ç ã o e o veredicto u n â n i m e do júri
o r d i n á r i o e r a necessária p a r a c o n d e n a r o réu constituiu t a m -
b é m uma r e f o r m a salutar, e m b o r a f o s s e s e m p r e descrita como
s e n d o uma r e a f i r m a ç ã o de direitos velhos de séculos. M a s se o
júri r e c u s a v a - s e a c o n d e n a r , a despeito d a evidência, q u e m e -
d i d a s podia t o m a r a C o r o a ? E s s a q u e s t ã o foi s u b m e t i d a a teste
em um caso e n v o l v e n d o W i l l i a m P e n n , em 1670.
P e n n e o u t r o s q u a c r e s se h a v i a m r e u n i d o n a G r a c e c h u r c h
S tr e e t, em L o n d r e s , insistindo o P r o c u r a d o r d a C o r o a em que eles
h a v i a m p r o v o c a d o distúrbios, p e r t u r b a n d o a o r d e m pública. N o
j u l g a m e n t o , P e n n m o s t r o u - s e i n d i g n a d o , c h o c a d o e desordeiro.
S u s t e n t o u sua inocência e queixou-se c o n t i n u a m e n t e d e que nem
p o d i a e n t e n d e r a a c u s a ç ã o que lhe f a z i a m n e m i n t e l i g e n t e m e n t e
d e f e n d e r - s c dela. ( N a I n g l a t e r r a , a t é o século X I X , o s a d v o g a -
d o s n ã o eram a d m i t i d o s n o s j u l g a m e n t o s , m e s m o nos casos de
delitos graves.) O júri absolveu-o, j u n t a m e n t e com seu c o m -
p a n h e i r o , "William M e a d , em s e g u i d a ao que os j u r a d o s f o r a m
A T É C N I C A DO D I R E I T O C O S T U M E I R O 26}

e n c a r c e r a d o s p o r terem p r o n u n c i a d o um v e r e d i c t o c o n t r a evi-
dência p l e n a e m a n i f e s t a . Bushel, p r e s i d e n t e d o tribunal do júri,
emitiu um m a n d a d o de habeas corpus, e x i g i n d o a i n d a que 3
a u t o r i d a d e c o a t o r a justificasse a d e t e n ç ã o . O J u i z - C h e f e V a u g -
h a n , a p ó s ter e s t u d a d o a c o n d u t a do júri e a s r a z õ e s d e seu en-
c a r c e r a m e n t o . o r d e n o u que os j u r a d o s f o s s e m soltos, s u s t e n t a n -
do que um júri, n ã o importa como fosse motivado, p o d i a absol-
ver o a c u s a d o b a s e a n d o - s e v i r t u a l m e n t e em q u a l q u e r r a z ã o que
j u l g a s s e conveniente. Assim, o Caso Bushel ratificou a i n d a mais
o d e s m a n t e l a m e n t o d a s instituições T u d o r .— uma d a s ativida-
d e s f r e q ü e n t e s d a C â m a r a E s t r e l a d a f o r a p u n i r j u r a d o s em
casos políticos q u a n d o p r o n u n c i a v a m v e r e d i c t o s d e s a g r a d á v e i s
à C o r o a . E m 1594, dizia um t r a t a d o :
N o t e - s e q u e o júri de I x m d r e s q u e a b s o l v e u Sir Nlcholfts
Throckmorton [um conspirador contra a Rainha Maria]... da
a c u s a ç ã o de alta traição, foi citado a c o m p a r e c e r perante a
C â m a r a E s t r e l a d a . . . u m a v e z que se c o n s i d e r a v a que a a c u s a ç ã o
f o r a suficientemente provada contra ele; e oito deles f o r a m
m u l t a d o s e m g r a n d e s s o m a s , pelo m e n o s q u i n h e n t a s libraa cada,
e e n v i a d o s à prisão, o n d e f i c a r i a m a t é que providencias ulterio-
res f o s s e m t o m a d a s para punição dos mesmos. Os quatro outros
foram soltos porque se acovardaram e confessaram haver
c o m e t i d o u m a t r a n s g r e s s ã o e m n ã o c o n s i d e r a r e m a v e r d a d e do
caso.
I g u a l m e n t e , o n z e j u r a d o s q u e a b s o l v e r a m u m c e r t o H o d i e de
u m a a c u s a ç ã o d e delito g r a v e , e m j u l g a m e n t o p r e s i d i d o por Sir
R o g e r M a n w o o d . . . contra evidência óbvia, f o r a m m u l t a d o s pela
Câmara Estrelada e a sentença foi afixada em Westminster
H a l l e m 1580; e u c o n h e c i o s j u r a d o s .

O Caso Bushel implicou, assim, o t é r m i n o formal d a p r á -


tica p o u c o u s a d a que a C o r o a t e n t a r a restabelecer p o r ocasião
d a R e f o r m a , em 1660. A s e n t e n ç a de V a u g h a n constituiu tam-
b é m um p a s s o à f r e n t e p a r a esclarecer o u s o d o m a n d a d o de
habeas corpus a fim de s e o b t e r revisão judicial d e todos os
tipos d e d e t e n ç ã o .
E n t r e inovações, r e a f i r m a ç õ e s d e direitos e concessão de
p r o t e ç ã o judicial n o s séculos X V I I e X V I I I , desenvolveu-se
t a m b é m o direito p r i v a d o d a burguesia. E m 1660, os últimos
elementos f e u d a i s f o r a m e x p u r g a d o s d a lei que r e g u l a v a a pro-
p r i e d a d e imobiliária. A s cortes de direito costumeiro evoluí-
r a m d a disposição esporádica de julgar a p r o v a s e g u n d o o cos-
t u m e mercantil p a r a a incorporação completa do direito comer-
cial. " O direito comercial", escreveu L o r d e M a n s f i e l d em fins do
264 A VITÓRIA DA BURGUESIA

século X V I I I , "é a lei da t e r r a " . F l o r e s c e r a m c o m p a n h i a s por


a ç õ e s e outros tipos de f o r m a ç ã o de capitais. E m p r e s a s come-
ç a r a m a desenvolver-se f o r a d a s c i d a d e s tradicionais, longe dos
privilégios b u r g u e s e s locais e n a s p r o x i m i d a d e s de m i n a s de c a r -
vão, rios. portos ou do n o v o sistema d e canais. A s técnicas apli-
c a d a s pela burguesia, pelos a d v o g a d o s especializados em direi-
to costumeiro e pelo P a r l a m e n t o n a e s f e r a d o direito p r i v a d o
eram a s m e s m a s que h a v i a m sido u s a d a s n a r e f o r m a do rito
processual.
F a z e n d o um r e t r o s p e c t o , a p a r t i r de 1750, d a t a c o n v e n -
c i o n a l m e n t e a t r i b u í d a ao início d a R e v o l u ç ã o I n d u s t r i a l n a In-
g l a t e r r a , ficamos a t ô n i t o s com a e x t e n s ã o em q u e o direito cos-
t u m e i r o foi r e f o r m a d o em a p e n a s d u z e n t o s a n o s — sem d ú v i d a
a l g u m a , com t a n t o d e r r a m a m e n t o d e s a n g u e e com t a n t a vio-
lência como h a v e r i a n a o b t e n ç ã o d a vitória b u r g u e s a n a F r a n ç a .
E e m b o r a a r e v o l u ç ã o d a b u r g u e s i a n ã o estivesse completa •—
como concessão à p e q u e n a n o b r e z a e a o s a d v o g a d o s , a l g u m a s
r e g r a s arcaicas c o n c e r n e n t e s à s p r o p r i e d a d e s imobiliárias e a
i n c ô m o d a m a q u i n a r i a judiciária p e r m a n e c e r a m em v i g o r a t é o
século X I X — a s m u d a n ç a s f u n d a m e n t a i s n a e s t r u t u r a social
e a s n o v a s leis p a r a d e f i n i - l a s h a v i a m sido l e v a d a s a um p o n t o
tal q u e a b u r g u e s i a inglesa p o d i a a p r o v e i t a r a s inovações n a
técnica e revolucionar o p r o c e s s o de m a n u f a t u r a .
A s s i m , seria u m a f a l s i d a d e dizer, como a l e g a m a l g u n s his-
t o r i a d o r e s m o d e r n o s , q u e o a s p e c t o característico do direito
inglês foi seu d e s e n v o l v i m e n t o g r a d u a l e pacifico, em l i n h a inin-
t e r r u p t a , d e s d e a M a g n a C a r t a , ou m e s m o d e s d e 1066. H o u v e ,
muito ao contrário, m u d a n ç a s re vol uc ionárias e n t r e 1600 e
1800. S e obstáculos p e r m a n e c i a m que n ã o podiam s e r r e m o v i -
d o s pela lei ou s u p e r a d o s p o r um e m b a r g o , a b u r g u e s i a n ã o se
m o s t r a v a avessa a r e c o r r e r a táticas a b e r t a m e n t e revolucio-
n á r i a s . H a v i a pelo m e n o s u m a c o n e x ã o implícita e n t r e r a z ã o e
violência. "Imploro-vos, em n o m e de Cristo, que penseis p o d e r -
d e s e s t a r e r r a d o s " , suplicou C r o m w e l l . M a s n a q u e l a o c a s i ã o
ele t i n h a o a p o i o d e seu exército.
S e m e l h a n t e a o mito d a c o n t i n u i d a d e inglesa, e i g u a l m e n t e
f a l s a , é a insistência d e p a r t e d e a l g u n s estudiosos f r a n c e s e s
d e q u e houve u m a d e s c o n t i n u i d a d e f u n d a m e n t a l e n t r e a história
juridica gaulesa a n t e s e depois d e 1789 — como se a R e v o l u ç ã o
h o u v e s s e d e s t r u í d o o p a s s a d o , e t u d o o mais d e s d e e n t ã o h o u -
v e s s e sido reconstruído. N a v e r d a d e , t a n t o n a I n g l a t e r r a como
na F r a n ç a , uma classe vitoriosa impôs pela força u m a n o v a ideo-
A T É C N I C A DO D I R E I T O C O S T U M E I R O 265

logia jurídica, e, de vez que os interesses d a b u r g u e s i a em a m b o s


os países eram virtualmente idênticos, a sistemática do direito
p r i v a d o em a m b o s revelou-se n o t a v e l m e n t e parecida, A i n d a
assim, a s revoluções b u r g u e s a s em a m b o s o s p a í s e s tiveram histó-
rias muito d if e r e n te s. P o d e m o s identificar a diferença n a técnica
i n o v a d o r a e na retórica com que foi d e f e n d i d a a m u d a n ç a social.
H a v i a uma p r o f u n d a d i f e r e n ç a e n t r e a imagem de D i d e r o t .
sobre velhos ídolos que d e s m o r o n a v a m , e a m e t á f o r a de C o k e ,
d e uma nova colheita p r o d u z i d a por velhos campos. O s juízes
e a u t o r e s especializados em direito costumeiro n a I n g l a t e r r a e
A m é r i c a d o N o r t e p r e s e r v a r a m o e n f o q u e d e Coke. " A fim de
saber o que [a lei] é", escreveu o M i n i s t r o Holmes, "preci-
s a m o s s a b e r o que foi e aquilo em que t e n d e a t r a n s f o r m a r - s e . "
A imagem n ã o descreve o legislador m u d a n d o e construindo,
mas juízes e a d v o g a d o s criando d o u s o histórico n o v a s insti-
tuições p a r a a t e n d e r a n o v a s necessidades.
O b s e r v e - s e que n ã o e s t a m o s d e f e n d e n d o aqui a tese
de que m u d a n ç a s n a s n o r m a s jurídicas constituem r e s u l t a d o de
razão impessoal, intervenção divina ou d a n a t u r e z a , ou tendência
d a s coisas p a r a melhorarem. E s t a m o s nos r e f e r i n d o a o s meios
m e d i a n t e os quais tais mitos s ã o criados. O sistema que d e s e n -
volve, no c o n t e x t o d e uma c o n t i n u i d a d e i n i n t e r r u p t a de uso,
novas r e g r a s p a r a decidir litígios e n t r e p e s s o a s p r i v a d a s entre
si e com o E s t a d o p a r e c e digno de credibilidade e legítimo se
a l e g a que m a n t é m um nexo lógico com o p a s s a d o . T a l sistema
torna possível conciliar, r e f o r m a r e a d a p t a r . A existência desse
sistema p a r a resolver litígios produziu um g r a n d e impacto n a s
e s t r a t é g i a s de g r u p o s r e f o r m i s t a s n o s países o n d e vigia o di-
reito costumeiro, em c o m p a r a ç ã o com territórios p a u t a d o s por
instituições do direito civil, O e x e m p l o mais óbvio n o século X X
é o uso r e p e t i d o d a a ç ã o judicial n o s E s t a d o s U n i d o s p a r a pro-
t e g e r e ampliar os direitos d o povo. que faziam p a r t e do cerne
d a revolução ocorrida no direito público no século X V I I , e que
f o r a m mais t a r d e incluídos n a C o n s t i t u i ç ã o a m e r i c a n a .
Focalizamos aqui a s vitórias d a b u r g u e s i a n a I n g l a t e r r a e
F r a n ç a como os dois países c u j a s ideologias jurídicas produzi-
ram os efeitos mais p r o f u n d o s sobre n o s s a s próprias vidas. E
o f a t o de que a d v o g a d o s f o r m a d o s n a t r a d i ç ã o do direito civil,
e a c r e d i t a n d o na justeza axiomática d a codificação, t e n h a m sido
o s a u t o r e s d o s códigos civis d o s países socialistas d a E u r o p a
O r i e n t a l deixou u m a visível marca b u r g u e s a nas s u a s institui-
ções de direito privado.

17 • d . a c.
266 A VITUKIA DA BURGUESIA

D a s revoluções n a I n g l a t e r r a e F r a n ç a e dos levantes bur-


g u e s e s mais a n t i g o s em toda a E u r o p a surgiu o sistema jurídico
sob o qual h o j e vivemos. E m n o s s o s últimos capítulos, t e n t a -
r e m o s c h e g a r a a l g u m a s conclusões gerais sobrè a relação e n t r e
a ideologia jurídica e a m u d a n ç a social n o O c i d e n t e .
SEXTA PARTE

Insurreição c
Jurisprudência
20

O Desenvolvimento da
Ideologia Jurídica

N o s capítulos p r e c e d e n t e s e s t u d a m o s oitocentos
a n o s de história jurídica na E u r o p a O c i d e n t a l a fim de d e m o n s -
t r a r o papel d e s e m p e n h a d o pelo direito e pela ideologia jurí-
dica na a s c e n s ã o d a burguesia ao p o d e r . V i m o s que a s relações
sociais, d a f o r m a e x p r e s s a pelas r e g r a s formais e o r d e n s jurí-
dicas, r e p r e s e n t a r a m — e c o n t i n u a m a r e p r e s e n t a r .— uma
f u n ç ã o básica em todos os movimentos que a s p i r a m a assumir
e c o n s e r v a r o p o d e r estatal.
D e s e j a m o s aqui r e a f i r m a r de f o r m a sistemática essas asser-
ções sobre o direito, r e f u t a r a l g u m a s explicações correntes
sobre a s r a z õ e s d a elaboração de leis, e a l i n h a r a l g u m a s refle-
xões sobre a atitude, em relação ao direito, de c a m p a n h a s
c o n t e m p o r â n e a s em prol da m u d a n ç a social no O c i d e n t e . N a
discussão d e s s a s questões, s a l i e n t a r e m o s a forte tendência de
ideólogos — pelo m e n o s na E u r o p a e E s t a d o s U n i d o s — no
sentido de e x p r e s s a r e m idéias sobre teoria social e política sob
a f o r m a d e editos, proclamações e o r d e n s jurídicas formais.
E s s a tendência r e f l e t e - s e na importância a t r i b u í d a a a d v o g a -
dos e à e d u c a ç ã o jurídica em t o d a s as e s t r u t u r a s g o v e r n a m e n -
tais ocidentais e em todos os movimentos em prol da mudança
social que a s p i r a m a assumir o p o d e r do E s t a d o .
A s r e g r a s jurídicas são, p o r necessidade, v i n c u l a d a s ao
tempo; s ã o c o n s t r u ç õ e s de um g r u p o de p e s s o a s em um d a d o
estágio de desenvolvimento d a sociedade. F o r m a s jurídicas
peculiares não são condições " n a t u r a i s " ou " b á s i c a s " da exis-
tência h u m a n a , N a verdade, o "direito" no sentido de r e g r a s
270 INSllURE1ÇÃO F, J U R I S P R U D Ê N C I A

f o r m u l a d a s com b a s e cm um c o n j u n t o a c o r d a d o de j u l g a m e n t o s
normativos sobre c o n d u t a , constitui — n a s s o c i e d a d e s ocidentais
•— um f e n ô m e n o r e l a t i v a m e n t e recente. E s s e conceito de direito,
c o n f o r m e d e m o n s t r o u G e o r g e T h o m p s o n , surgiu j u n t a m e n t e
com o u t r o s conceitos a b s t r a t o s q u a n d o a s a n t i g a s civilizações
do M e d i t e r r â n e o p r o g r e d i r a m a um p o n t o em que a moeda
p a s s o u a ser u s a d a como meio de troca e constituía, por isso
mesmo, uma a b s t r a ç ã o de m e r c a d o r i a s ou b e n s . A n t e s d e s s a
época, sociedades havia sem d ú v i d a q u e c o n c o r d a v a m sobre
princípios de c o n d u t a socialmente necessários, c u j a violação
r e s u l t a r i a em castigo. E s s e tipo d e "direito" serve de ilustração
p a r a o princípio e x p r e s s a d o p o r C í c e r o como ubi socictas, ibi
jus — o n d e h á u m a c o m u n i d a d e , h á uma lei. T r a t a - s e de um
princípio m e r a m e n t e descritivo de relações sociais reais de
p r o p r i e d a d e e n ã o p r o p r i e d a d e . O direito c o n c e b i d o como tal,
n o entanto, s u r g i u mais tarde, n o p o n t o em que os p r o g r e s s o s
tecnológicos m o s t r a m a distinção e n t r e o concreto e o a b s t r a t o ,
a n a t u r e z a e a nornia, o physis e o nomos. C o m a distinção
e n t r e a ' n a t u r e z a " e a " n o r m a " f o r a m p r o p o s t a s justificativas
d e c o n d u t a q u e n ã o mais a " v o n t a d e d o s d e u s e s " . E s s a justifi-
cativa impede t oda e q u a l q u e r distinção e n t r e o que acontece
e o que, p o r motivos morais, devia acontecer.
A justiça divina, imprevisível, vingativa, s a n g u i n á r i a , foi
característica d a s o b r a s dos primeiros d r a m a t u r g o s gregos. A
m u d a n ç a p a r a u m a p o s t u r a mais jurídica, em que mesmo a s
r e g r a s e editos b a i x a d o s pelos d e u s e s ficavam sujeitos a uma
a v a l i a ç ã o crítica " d e f o r a " , é i l u s t r a d a pelo ciclo de Édipo, de
Sófocles. E m Édipo Rei, a primeira peça, o rei é p r i v a d o da
visão e banido por atos de c u j a importância n ã o e s t a v a cons-
ciente. N a s e g u n d a , Antígona, a r a c i o n a l i d a d e faz seu a p a r e -
cimento na irreligiosidade de C r e o n t e , mais t a r d e d e s t r u í d o .
F i n a l m e n t e , em Édipo em Colona, escrita muitos a n o s depois,
o v e l h o e cego É d i p o declara " E u n ã o pequei", c ingressa na
sociedade h u m a n a .
E s s a distinção e n t r e n a t u r e z a como de iniciativa d o s d e u s e s
e a regra como p r o d u t o de considerações racionais que podeni
j u l g a r a primeira, ou pelo m e n o s modificar-lhe as c o n s e q ü ê n -
cias h u m a n a s , constitui a b a s e d a existência do direito como
h o j e e n t e n d e m o s essa p a l a v r a e, com ele. surgiu n ã o só a p o s -
sibilidade de uma a t i t u d e crítica em relação a f a t o s e insti-
tuições, mas t a m b é m a possibilidade de contradições e n t r e
n o r m a s jurídicas e o sistema de controle social e distribuição
O DESENVOLVIMENTO DA IDEOLOGIA JURÍDICA 271

de poclcr, p o r eJas responsáveis. A crítica às r e g r a s p o d e ser


e s t e n d i d a e t r a n s f o r m a r - s e n a crítica à s relações sociais que
as sustentam.
D e s d e o fim d a era ateniense, as leis têm sido cristaliza-
ções de relações de poder em um d a d o g r u p o , ou sociedade.
A s leis e n c e r r a r a m em p a l a v r a s , e x p r e s s a s s o b a f o r m a de
injunções, os direitos ou d e v e r e s que um d e t e r m i n a d o g r u p o
d e f e n d e r á ou aplicará com o e m p r e g o do p o d e r de que dispõe,
e p r o p o r c i o n a m maneiras previsíveis de solucionar os litígios
que s u r g e m nesse contexto. O direito é uma s u p e r e s t r u t u r a
erigida sobre a base de r e l a ç õ e s de p o d e r . A e x t e n s ã o em
que e s s a s s u p e r e s t r u t u r a s v i n c u l a d a s no t e m p o são considera-
d a s i m p o r t a n t e s v a r i a de s o c i e d a d e a sociedade. N o tocante
aos chineses, escreveu R e n é D a v i d :
A filosofia marxista-leiimlsta c o n t é m e l e m e n t o s que concordam
com e s s a filosofia tradicional [chinesa]. O direito positivo
jamais pareceu aos chineses u m a condirão necessária ou m e s m o
lima condição normal de u m a sociedade b e m organizada. O
d i r e i t o p o s i t i v o é, ao c o n t r á r i o , s i n a l de u m a s o c i e d a d e i m p e r -
feita o há u m a conexão entre a idéia de direito positivo e a
de c o e r ç ã o . O c o m u n i s m o , p r e s s a g i a d o n o p e n s a m e n t o m a r x i s t a ,
ó q u a s e u m a sociedade ideal, d a f o r m a c o m o tal s o c i e d a d e é
imaginada pelos chineses.

C o n f o r m e tivemos o p o r t u n i d a d e de ver acima, o direito positivo


é c o n s i d e r a d o de modo inteiramente d i f e r e n t e no O c i d e n t e . A
evidência d o p a p e l f u n d a m e n t a l d a ideologia jurídica p o d e ser
vista em todos os períodos a q u i e x a m i n a d o s .
Isso n ã o quer dizer que g r u p o s revolucionários se tenham
abstido do e m p r e g o d a violência p a r a realizar seus fins ou que
p e r d e r a m d e vista o f a t o f u n d a m e n t a l dc que as leis em um
sistema d e p o d e r estatal r e p o u s a m , em última análise, na força.
A tese de que o p o d e r , e x e r c i d o sob a f o r m a de violência con-
trolada pelo E s t a d o , deve p o d e r ser justificado com rcferêncía
a algum sistema comumente aceito de a u t o r i d a d e é tão f u n d a -
mental p a r a o a r g u m e n t o d a q u e l e s que a burguesia d e r r u b o u
como p a r a a p r ó p r i a burguesia. E l a a p e n a s utilizou o velho cos-
tume de erigir, d a r forma c o n c r e t a e d o t a r de a u t o r i d a d e siste-
mas de legitimação p a r a o exercício d a violência.
N a a s c e n s ã o da burguesia ao poder vemos a preocupação
c o n s t a n t e com o problema da legitimidade. A I g r e j a tentou ir
b u s c a r seus a n t e c e d e n t e s em textos c u j a a u t e n t i c i d a d e indispu-
tável r e p o u s a v a n a s supostas p a l a v r a s de Cristo. P o u c o depois
272 INSURREIÇÃO V. J U R I S P R U D Ê N C I A

do colapso do Império R o m a n o , os s e n h o r e s f e u d a i s c o n t i n u a -
rara a fazer vénias aos símbolos do Império a fim de justificar
seu próprio poder. Bibliotecas e c a s a s senhoriais, a b a r r o t a d a s
de c a r t a s a t e s t a n d o o ingresso voluntário n a s condições de ser-
v i d ã o dos a n t e p a s s a d o s d o s agricultores, constituem um r e f l e x o
de tal preocupação. A s contestações d a legitimidade d o s
atos de d e t e r m i n a d o s s o b e r a n o s eram v a z a d a s em termos res-
p i g a d o s em existentes sistemas de a u t o r i d a d e — n a I g r e j a , no
direito romano, ou em t e x t o s bíblicos.
U m dos mais i m p o r t a n t e s elementos constituintes d a legi-
timidade é que o p o d e r precisa ser exercido de m o d o previsível.
E s s a previsibilidade o c o r r e com a c o n s t r u ç ã o d e uma e s t r u t u r a
d e r e g r a s jurídicas f o r m a i s e rito processual, q u e s e r ã o u t i l i z a d a s
a n t e s de ser e m p r e g a d a a violência. A previsibilidade n ã o é axio-
m a t i c a m e n t e necessária e p r u d e n t e e o g r u p o que detém o poder
e s t a t a l em um d a d o país p o d e ter a p e n a s u m a lei, "a n o r m a de
reconhecimento de situações de f a t o " . D a n d o um exemplo, se
um g r u p o de b a n d o l e i r o s o c u p a s s e um vale pacífico, seu c h e f e
poderia p r o c l a m a r que o que quer que ele decidisse em d e t e r -
m i n a d o dia seria c u m p r i d o como lei d u r a n t e a q u e l e p e r í o d o de
vinte e q u a t r o h o r a s . E s s e sistema eliminaria os hiatos e n t r e o
sistema concreto de relações sociais vigente n o vale e a s r e g r a s
q u e a s pessoas seriam e n t ã o o b r i g a d a s a obedecer, sob p e n a de
s o f r e r e m violência, A r e e l a b o r a ç ã o a n u a l do edito p r e t o r i a n o na
R o m a antiga, a n t e s de ser r e g u l a m e n t a d o e a s s u m i r n a t u r e z a
q u a s e p e r m a n e n t e , lembra tal situação.
É possível t a m b é m l a d e a r o sistema de n o r m a s com a deci-
s ã o deliberada d e atribuir g r a n d e discrição a níveis inferiores
de administração, ou mesmo a g r u p o s r e l a t i v a m e n t e a u t ô n o m o s
que elaboram t a n t o a substância como o s meios de aplicação de
r e g r a s d e t a l h a d a s d e c o n d u t a , b a s e a d o s em princípios muito
gerais. E s s e p a r e c e ser o caso a t ua l da C h i n a e de C u b a .
O modelo ocidental, m e s m o em épocas de g r a n d e suble-
v a ç ã o social, tem sido muito diferente. D u r a n t e a R e v o l u ç ã o
F r a n c e s a , a legislação d a Assembléia N a c i o n a l foi caótica e
m u i t a s vezes m u d o u , mas o n ú m e r o de decretos que b a i x o u indi-
cava o desejo d e que, à medida que a Revolução p r o g r e d i a , o
sistema de relações sociais em cada d a d o m o m e n t o fosse crista-
lizado em uma e s t r u t u r a f o r m a l de n o r m a s constitucionais e
legais, d e f i n i n d o os meios a p r o p r i a d o s a t r a v é s d o s quais deviam
agir os ó r g ã o s d o E s t a d o . N ã o se contentou ela simplesmente
em a c o m p a n h a r o desenvolvimento da Revolução, ou mesmo
O DESENVOLVIMENTO DA IDEOLOGIA JURÍDICA 273

em b a i x a r decretos justificando ou a u t o r i z a n d o o d e s m a n t e l a -
m e n t o d a v e l h a o r d e m , pois queria construir um sistema lógico
de n o r m a s jurídicas.
P r o c e s s o semelhante de cristalização, e m b o r a e s t e n d i d o
por um p e r í o d o muito mais longo, ocorreu n a I n g l a t e r r a no século
X V I I , c o m e ç a n d o com a c a m p a n h a de L o r d e C o k e em prol do
direito costumeiro e c o n t i n u a n d o a t r a v é s d a legislação do P r o -
t e t o r a d o até a s proclamações, p r e c e d e n t e s jurídicos e legislação
atinentes à Gloriosa Revolução de 1689.
U m pouco mais p r ó x i m a s d a sensibilidade americana são
a C o n s t i t u i ç ã o d e 1789 e a C a r t a de D i r e i t o s de 1791. A teoria
social d a Constituição, r a d i c a d a em Locke e M o n t e s q u i e u , f u n -
d a m e n t a v a - s e n a defesa da p r o p r i e d a d e p r i v a d a , no estabeleci-
m e n t o de uma f o r m a r e p r e s e n t a t i v a f e d e r a l d e governo e na
instituição de um c o n j u n t o de proibições ao g o v e r n o nacional,
d e s t i n a d a s a p r e s e r v a r g a r a n t i a s s u b s t a n t i v a s e processuais de
liberdade. E s s a s g a r a n t i a s f o r a m j u s t i f i c a d a s em termos de "jus-
tiça n a t u r a l " , e m b o r a tivessem o r i g e n s m e n o s misteriosas: n a s -
ceram de específicos eventos revolucionários e p r é - r e v o l u c i o n á -
rios. A g a r a n t i a contra a busca arbitrária e c o a v a a experiência
dos colonos com os m a n d a d o s que d a v a m aos servidores b r i t â -
nicos o p o d e r de d a r b u s c a s de c a s a em casa p a r a confiscar chá
e o u t r a s m e r c a d o r i a s sobre a s quais n ã o h a v i a m sido p a g o s
direitos a d u a n e i r o s , e o processo inglês c o n h e c i d o como Entick
u. Carrington, no qual foi p r o f e r i d a s e n t e n ç a contra Lorde
H a l i f a x por ter a u t o r i z a d o a a p r e e n s ã o de um jornal dito sub-
versivo. A g a r a n t i a de h o n e s t i d a d e no j u l g a m e n t o de casos cri-
minais teve origem n a s lutas sociais o c o r r i d a s n a I n g l a t e r r a mais
de um século antes, nas quais o t r a t a m e n t o d a d o aos criminosos
políticos constituía g r a v e motivo de p r e o c u p a ç ã o . A opinião de
rjue a l i b e r d a d e de expressão devia ser p r o t e g i d a f u n d a m e n t o u -
se igualmente no reconhecimento d a utilidade d a livre m a n i f e s -
t a çã o d o p e n s a m e n t o e da imprensa livre n a consecução da
m u d a n ç a social.
V i m o s a n t e r i o r m e n t e a m e s m a ê n f a s e n a e l a b o r a ç ã o da
ideologia jurídica em cidade a p ó s c i d a d e n o s séculos X I e X I I ,
à medida que a b u r g u e s i a subia de posição e, em seguida, con-
solidava seu acesso ao poder com a e l a b o r a ç ã o de um c o n j u n t o
local de costumes. E m c o n t r a s t e com sistemas de p e n s a m e n t o
n ã o ocidentais, os antigos b u r g u e s e s a c h a v a m que o d e t a l h a -
m e n t o d a m a n e i r a como a lei seria a p l i c a d a era a essência d a
eqüidade, da s e g u r a n ç a pessoal e da liberdade. O d e s e j o de pre-
274 INSURREIÇÃO Ti J U R I S P R U D Ê N C I A

visibilidade e de meios f o r m a i s p a r a a s s e g u r á - l a inclui uma c a r a c -


terística do direito r o m a n o , em v i g o r d e s d e o século II a . C . .
q u a n d o os editos d o praetor p a s s a r a m a ser v i r t u a l m e n t e i m u t á -
veis a n o após a n o e os p a r e c e r e s de jurisconsultos profissionais
e decisões escritas d o s i m p e r a d o r e s f o r a m e n f e i x a d o s n u m c o r p o
sistemático de d o u t r i n a . F o i esse o m o m e n t o em que a h e g e m o n i a
comercial de R o m a veio a ser finalmente a s s e g u r a d a , q u a n d o o
comércio do império exigiu estabilidade.
A construção de sistemas como meios p r o t e t o r e s a d a p t a v a -
se bem ao desenvolvimento d o s i n t e r e s s e s b u r g u e s e s , c o n f o r m e
tivemos o p o r t u n i d a d e d e v e r acima. U m d o s p o n t o s mais difíceis
n a d i s c u s s ã o do direito v i g e n t e em o u t r a s nações — como obser-
vou V i c t o r Li, num excelente e s t u d o d o direito p e n a l chinês —
é que a ereção dc sistemas desse tipo n ã o é essencial à çjarantia
d a liberdade pessoal, e x c e t o a f o r m a especifica d e l i b e r d a d e
c o r p o r i f i c a d a no direito comercial e c o n t r a t u a l da b u r g u e s i a
ocidental e n a s relações d e p r o p r i e d a d e .
E m todos os casos de c o n s t r u ç ã o de sistemas, r e g r a s e prin-
cípios jurídicos s ã o j u s t i f i c a d o s com r e c u r s o a fontes aceitas em
v i r t u d e de sua i d a d e p r o v e c t a e a u t e n t i c i d a d e e a princípios de
teoria social que se acredita serem a x í o m a t i c a m e n t e válidos,
e m b o r a isso. n a v e r d a d e , e x p r e s s e m e r a m e n t e a s a s p i r a ç õ e s do
g r u p o que, 110 m o m e n t o , exerce o p o d e r . D e s s a f o r m a , sistemas
de r e g r a s legais e x p r e s s a s como ideologias jurídicas f o r a m n ã o
a p e n a s previsões d e como o p o d e r estatal •— isto é, a violência
o r g a n i z a d a .— seria u s a d o no f u t u r o , mas incluíam, inerente-
mente. justificações d a legitimidade d o exercício desse poder.
U m a vez q u e a ideologia jurídica assim criada é s e p a r a d a
d a s relações sociais q u e regula, p a r e c e — t a n t o p a r a aqueles
p a r a quem é p r o m u l g a d a e, no tempo, p a r a aqueles que a elabo-
r a r a m — que a d q u i r e vida própria. A s c o n s e q ü ê n c i a s práticas
dessa situação logo se t o r n a m evidentes. F a c ç õ e s hostis são con-
v i d a d a s , na v e r d a d e , o b r i g a d a s a conter sua rivalidade e c h a m a -
d a s a interpretar r e g r a s e leis a fim de se d e t e r m i n a r como seriam
a p l i c a d a s em casos especiais. A guerra, por conseguinte, saia
d a s r u a s e c h e g a v a às b a r r a s dos tribunais. E s s e a s p e c t o da ideo-
logia jurídica foi d e s c r i t o por E n g e l s em A Origem da Famí-
lia. c/a Propriedade Privada e do Estado:
Pe posse do poder público e do direito de tributação, os
servidores públicos a p r e s e n t a m - s e a g o r a c o m o ó r g ã o s da socie-
d a d e aritiia tia s o c i e d a d e . O r e s p e i t o l i v r e e v o l u n t á r i o p r e s t a d o
a o s órgãos da c o n s t i t u i ç ã o g e n t i a n ã o é s u f i c i e n t e para eles,
O DESENVOLVIMENTO DA I D E O L O G I A JURÍDICA 275

m e s m o que pudessem merecè-lo. R e p r e s e n t a n t e s de u m poder


que os isola da sociedade p r e c i s a m adquirir prestigio por meio
de d e c r e t o s especiais, q u e os I n v e s t e m de e s p e c i a l s a n t i d a d e e
inviolabilidade. O mais h u m i l d e policial do E s t a d o civilizado
e x e r c e m a i s "autoridade" do que todos os ó r g ã o s da sociedade
gentia juntos. Mas o mais poderoso príncipe o o maior estadista
ou general dessa civilização têm motivos para invejar ao mais
humilde dos chefes gentios o respeito voluntário e inquestionável
q u e lhe é p r e s t a d o . U m p e r m a n e c e n o c e n t r o d a s o c i e d a d e ; o
o u t r o é f o r ç a d o a a p i e s e n t n r - s e c o m o a l g o f o r a e a c i m a dela.

A alegação de que a ideologia jurídica estatal coloca-se


fora e acima d a s classes sociais que g o v e r n a foi característica
de todos os a s p i r a n t e s bem sucedidos ao p o d e r estatal no
período q u e vimos e s t u d a n d o . A ideologia assumiu .— à medida
que a u m e n t a v a o poder da b u r g u e s i a — a f o r m a d e sistemas
crescentemente a b r a n g e n t e s e a l t a m e n t e e s t r u t u r a d o s de direito
positivo. E s s e s sistemas eram o p o s t o s à " a n a r q u i a " do direito
f e u d a l , a b e r t a m e n t e hostil ao comércio ou simplesmente incom-
pleto e caótico demais p a r a permitir r e s u l t a d o s previsíveis. O
próprio idealismo do laissez-faire da jovem n a ç ã o americana
constituiu a p e n a s uma superideologia n o seio d a qual o direito
comercial costumeiro, a l t a m e n t e r e f i n a d o e v e l h o de séculos,
foi recebido e c u i d a d o s a m e n t e aplicado.

Ideologia Jurídica, Jurisprudência e


Insurreição: Algumas D e f i n i ç õ e s
N ã o p o d e m o s expor com clareza nossa teoria de que a luta
social condiciona m u d a n ç a s na e s t r u t u r a jurídica nem com-
p a r á - l a com m a n e i r a s alternativas de interpretar a lei, a menos
que d e f i n a m o s nossos termos.
A ideologia jurídica constitui um enunciado, em termos de
sistema de r e g r a s legais, d a s aspirações, objetivos e valores
de um g r u p o social.
N ã o é, contudo, p r o p r i e d a d e exclusiva do g r u p o que exer-
ce o controle efetivo. M u i t o ao contrário, como tivemos oportu-
n i d a d e de ver acima, g r u p o s que aspiram ao poder formulam
também seu a t a q u e em termos d e sistemas de regras e princí-
pios jurídicos. M a s q u a n d o um g r u p o de f a t o exerce o poder
— d e f i n i d o como controle efetivo sobre d e t e r m i n a d o território
— sua ideologia é a "lei". N ã o precisa nos preocupar aqui a
q u e s t ã o de que e x t e n s ã o de território ou controle é necessária,
pois ê ela r e s p o n d i d a em t o d o s os períodos históricos pelas
276 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

u n i d a d e s efetivas de p r o d u ç ã o , troca e viabilidade politica: p o d e


ser uma cidade num p e r í o d o histórico c uma n a ç ã o em outro,
A ideologia legal p o d e consistir em d i f e r e n t e s tipos de
enunciados, explícitos e implícitos, e incluir " r e g r a s de r e c o n h e -
cimento", d e f i n i n d o a competência d e c e r t a s p e s s o a s p a r a exercer
f u n ç õ e s legislativas e judiciais. O t e r m o talvez inclua decla-
r a ç õ e s ideológicas de n a t u r e z a geral, como "o corpo legisla-
tivo da cidade deve r e p r e s e n t a r t o d o s os c i d a d ã o s " , ou a b r a n -
ger injunções individuais ou g e r a l m e n t e e n d e r e ç a d a s e a d o t a r
a distinção c o m u m e n t e u s a d a n a s o b r a s d o s positivistas jurí-
dicos. A s primeiras são, n a s p a l a v r a s d e J o h n A u s t i n , "ocasio-
nais ou específicas" no sentido em q u e " o b r i g a m . . . a um ato
ou abstenção, ou a atos ou abstenções, que d e t e r m i n a m espe-
cífica e individualmente", tais como os j u l g a m e n t o s judiciais.
O s últimos são i n j u n ç õ e s legislativas, v a z a d a s em termos
gerais e e n d e r e ç a d a s em geral a p e s s o a s n ã o m e n c i o n a d a s .
A ideologia geral p o d e assumir a f o r m a d e leis, r e g r a s e deci-
sões judiciais ou, como n o s casos d a s c o m u n i d a d e s u r b a n a s
mais antigas, consistir em u n s poucos preceitos simples e n a
disposição s u m a m e n t e i m p o r t a n t e sobre quem é competente
p a r a e l a b o r a r r e g r a s e b a i x a r ordens.
A distinção e n t r e os dois tipos d e i n j u n ç ã o n ã o segue,
necessariamente, n o desenvolvimento d o direito b u r g u ê s , a
linha e n t r e os r a m o s legislativo e judiciário, tão conhecida na
m o d e r n a teoria democrática b u r g u e s a . Decisões em casos indi-
viduais, c u l m i n a n d o em i n j u n ç õ e s i n d i v i d u a l m e n t e e n d e r e ç a d a s
p a r a q u e se p a g u e uma soma em dinheiro, d e v o l v a - s e certa
p r o p r i e d a d e ou s o f r a - s e certa punição t r a n s f o r m a m - s e em sis-
t e m a s de r e g r a s "legislativas" d e a p l i c a ç ã o geral. E s s e tipo de
direito costumeiro n ã o se baseia em uso a n t i g o ( g e r a l m e n t e
fictício), mas em decisões t o m a d a s em t e m p o relativamente
r e c e n t e e que tem a força d e p r e c e d e n t e . A b u r g u e s i a , em t o d a s
as regiões que e s t u d a m o s , revelou-se i n f a t i g á v e l no cultivo e
e l a b o r a ç ã o desse tipo de ideologia.
Utilizamos o t e r m o " j u r i s p r u d ê n c i a " p a r a descrever o pro-
cesso m e d i a n t e o qual a ideologia é criada e r e f i n a d a . A e x p r e s -
são " j u r i s p r u d ê n c i a da insurreição" descreve certo tipo de ati-
v i d a d e jurisprudencial, n a qual o g r u p o que c o n t e s t a o sistema
d o m i n a n t e de relações sociais n ã o mais procura r e f o r m á - l o ,
mas d e r r u b á - l o e substituí-lo por outro.
E s t u d a m o s o p r o c e s s o d a jurisprudência em ação nos
capítulos a n t e r i o r e s : q u a n d o os c o m e r c i a n t e s - m e r c a d o r e s dos
O DESENVOLVIMENTO DA IDEOLOGIA JURÍDICA 277

séculos X I e X I I resolveram colocar suas a t i v i d a d e s sobre firme


base legal, c o r p o r i f i c a r a m s u a s reivindicações e, mais tarde,
sua vitória, sob a f o r m a de c a r t a s de a u t o n o m i a e t r a t a d o s ,
criando d e f a t o p a r a si mesmos um l u g a r n a o r d e m jurídica
feudal, A t a r e f a d o s a d v o g a d o s desse g r u p o de arrivistas con-
sistiu em descobrir textos que parecessem a u t o r i z a d o s , até
mesmo aos mais recalcitrantes s e n h o r e s ou p r e l a d o s reacionários,
e usá-los como justificação da existência e f u n c i o n a m e n t o d a
atividade a r t e s a n a l e mercantil.
O s comerciantes queriam a p e n a s um p e q u e n o lugar no sis-
tema f e u d a l e a p e n a s a l g u n s deles, se é que alguns, c o m p r e e n -
deram os efeitos corrosivos que a f i n a l r e s u l t a r i a m d a concessão
a eles de tal lugar, Isso n ã o foi uma jurisprudência d a insurrei-
ção, mas um f a t o que se refletiu n a história d a vida de famí-
lias de comerciantes a o l o n g o de v á r i a s gerações •— as a s p i r a -
ções b u r g u e s a s ao status de n o b r e reconheciam que o sistema
da nobreza era d o m i n a n t e , ao p a s s o que o g r a n d e n ú m e r o de
comerciantes que fez votos de p o b r e z a e terminou seus dias em
mosteiros d e m o n s t r a v a a influência que a ideologia d a I g r e j a
o r g a n i z a d a a i n d a exercia sobre eles.
U m a vez que a ideologia é um sistema de p a l a v r a s vincula-
d a s ao t e m p o e d e f r a s e s cristalizadas e com o r i g e n s n o conflito
humano, e de vez que a ideologia d o g r u p o que detém o poder
estatal d e s t i n a - s e {conforme dito a c i m a ) a a b a f a r rivalidades e
desviar a a t e n ç ã o do p o v o p a r a a i n t e r p r e t a ç ã o do " s is tema"
de regras, s e m p r e h a v e r á o p o r t u n i d a d e d e i n t e r p r e t á - l o de modo
diferente, A m e d i d a que correm os dias. mais e mais c o n t r a -
dições p o d e m surgir e n t r e o sistema d o m i n a n t e de relações
sociais e o c o n t e ú d o d a s regras formais que s u p o s t a m e n t e o
governa. U m a d a s primeiras t a r e f a s d o g r u p o dissidente con-
siste em e x p l o r a r o s limites d a ideologia jurídica d o m i n a n t e
a fiin de verificar o q u a n t o pode ser realizado d e n t r o desses
limites.
Assim, em todos o s movimentos podemos identificar o
estágio no qual aceitam os p r e s s u p o s t o s d o m i n a n t e s d a classe
no p o d e r e p r o c u r a m usá-los em proveito próprio. A ricamente
variada e a l t a m e n t e desenvolvida ideologia jurídica do O c i d e n t e
após a r e d e s c o b e r t a — e reimportação •— do direito romano,
permitiu e e n c o r a j o u tal e n f o q u e .
Se a ideologia possui o c a r á t e r relativamente i n f o r m e
de g r a n d e p a r t e d o feudalismo europeu entre o a n o 1000 e
mais ou menos 1350, o processo é fácil — embora a l g u m a s
278 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

vezes a c a r r e t e certa d e s o r d e m . S i s t e m a s a b e r t o s e mal d e f i -


nidos de a u t o r i d a d e , com ê n f a s e n a p e s s o a que tein o direito
de e l a b o r a r a s r e g r a s e proferir j u l g a m e n t o s executórios, e uüo
110 c o n t e ú d o d a s própri a s regras, a b r e m muito mais espaço p a r a
m u d a n ç a s que n ã o p a r e c e m a f a s t a r - s e d a s n o r m a s básicas d a
ideologia vigente.
Isso n ã o é, contudo, uma " j u r i s p r u d ê n c i a d a insurreição"
como a definimos, embora, ao f a z e r e s s a distinção, n ã o queira-
mos n e g a r o efeito sobre a ideologia d o m i n a n t e d a j u r i s p r u d ê n -
cia p a t r o c i n a d a por g r u p o s que n ã o se opõem ao regime existente
e que n ã o aspiram a obter o p o d e r 110 E s t a d o . R e s t a e s t u d a r
a g o r a a m a n e i r a de distinguir g r u p o s i n s u r g e n t e s d a q u e l e s que
n ã o o são.

Ideologia Jurídica c Interesse E c o n ô m i c o


A o longo de todas e s t a s p á g i n a s , t e n t a m o s d e m o n s t r a r a
relação existente e n t r e a ideologia jurídica e o sistema d e r e l a -
ções sociais que lhe d á origem. A p r e s e n t a m o s p r o v a s d a opinião,
e x p o s t a n a s o b r a s de M a r x e E n g e l s , d e que o E s t a d o é im-
posto como i n s t r u m e n t o de u m a classe p a r a a d o m i n a ç ã o d e
outras, e que a m a n u t e n ç ã o e r e g u l a m e n t a ç ã o d a s relações
de p r o d u ç ã o n o interesse d a classe d o m i n a n t e constitui o ob-
jetivo f u n d a m e n t a l d a ideologia jurídica subscrita pelos d e t e n -
tores da p o d e r .
P o r que, então, se a raiz d a ideologia jurídica é o a u t o -
interesse econômico, colocar tal ê n f a s e 110 c o n t e ú d o e d e s e n -
volvimento d a p r ó p r i a ideologia? N o s s o interesse deve-se, em
p a r t e , ao papel decisivo d e s e m p e n h a d o p e l a ideologia n a justi-
f i c a ç ã o do exercício do p o d e r pelo s o b e r a n o e pelo r e c u r s o às
a r m a s pelos seus contestadores. A ideologia constituiu a j u s -
tificativa p o p u l a r p a r a o controle d a v i d a diária d e h o m e n s e
m u l h e r e s e p a r a a violência oficial de que f o r a m vítimas. A p e l o s
em prol d a m u d a n ç a social sempre f o r a m v a z a d o s em termos
de ideologias.
C o n t u d o , a f i r m a r que a origem e justificação final d a
ideologia jurídica é o auto-interesse econômico n ã o significa que
h a j a uma relação direta e imediata e n t r e cada 1.1111 de seus ele-
mentos ~ ou mesmo em c a d a i n j u n ç ã o individualmente e n d e r e -
ç a d a — e o auto-interesse econômico d e d e t e r m i n a d o grupo.
M u i t o ao contrário, é e x a t a m e n t e a c o n t r a d i ç ã o entre a ideologia
e o auto-interesse que permite a g r u p o s i n s u r g e n t e s obter vitó-
rias parciais e t e m p o r á r i a s d e n t r o dos p a r â m e t r o s da lei vigente.
O DESENVOLVIMENTO DA IDEOLOGIA JUMÍDICA 279

E s s a s contradições podem ter origem em várias fontes.


À m e d i d a q u e a ideologia a s s u m e v i d a própria, t o r n a - s e
s u j e i t a a i n t e r p r e t a ç ã o e aplicação, e a s decisões d a q u e l e s que a
põem em vigor devem g u a r d a r pelo m e n o s a l g u m a relação com
ela, d a f o r m a inicialmente e n u n c i a d a , q u a i s q u e r q u e s e j a m seus
interesses particulares, A possibilidade de contradições entre
a j u r i s p r u d ê n c i a oficial e o interesse d e classe a u m e n t a se a
t a r e f a de f o r m u l a r injunções individuais ou g e r a l m e n t e e n d e r e -
ç a d a s é atribuída a uma classe especialmenle t r e i n a d a de juris-
consultos, a c o s t u m a d o s a p e n s a r em termos d a própria ideologia,
e n ã o ein termos de interesses de classe.
O u t r a f o n t e de c o n t r a d i ç ã o reside no f a l o de a ideologia
ser f o r m u l a d a n u m d a d o momento, ao p a s s o que mudain cons-
tantemente as relações sociais que lhe s ã o s u b j a c e n t e s . O tesul-
tado c que ela t e n d e a t r a n s f o r m a r - s e n u m a f o r m a vazia — o
que aliás aconteceu aos aspectos d e m o c r á t i c o s de a n t i g a s c a r t a s
régias de criação de cidades. A d e m a i s , uma classe cm a s c e n s ã o
pode a p o s s a r - s e de uma velha ideologia e virá-la c o n t r a seus
formuladores, o que foi e x a t a m e n t e o que a c o n t e c e u q u a n d o a
burguesia européia usou o direito r o m a n o .— já semi-santificado
pela I g r e j a — p a r a demolir a s b a r r e i r a s legais ao comércio.
D e idêntica maneira, a classe d o m i n a n t e , c o n f r o n t a d a com ele-
mentos d e s a g r a d á v e i s de s u a p r ó p r i a ideologia, p o d e ignorá-los
e em vez disso c o n f i a r totalmente 110 auto-interesse.
A s ideologias podem igualmente conter claros ou ambigüi-
dades, que s ã o preenchidos e esclarecidos p a r a a d e q u a r - s e às
exigências insistentes d e forças p o d e r o s a s . O b s e r v a m o s tal fle-
xibilidade no direito costumeiro feudal, q u e n ã o se b a s e a v a num
c o n j u n t o d e t a l h a d o de costumes reduzidos à f o r m a escrita e era
em g r a n d e p a r t e aplicado p e s s o a l m e n t e pelo seigneur. O
mesmo tipo de exploração de espaços vazios n a lei ocorreu na
I n g l a t e r r a : q u a n d o as cartas seinifeudais de criação d e c i d a d e s
se revelaram d e m a s i a d o restritivas p a r a permitirem a i n t r o d u ç ã o
de nova tecnologia e maiores u n i d a d e s de p r o d u ç ã o pelos novos
empresários, estes últimos simplesmente a d q u i r i r a m t e r r a s fora
d a s c i d a d e s e obtiveram t r a t a m e n t o legislativo f a v o r á v e l p a r a
começar a edificar s u a s empresas.
21

Principais Escolas de
Pensamento Jurídico

A fim de s e p a r a r n o s s a teoria sobre a r e l a ç ã o entre


luta social e r e f o r m a jurídica de o u t r a s m a n e i r a s de i n t e r p r e t a i
o direito, precisamos e x a m i n a r criticamente a s principais esco-
las d a j u r i s p r u d ê n c i a ocidental: o positivismo, o direito n a t u r a l ,
a teoria sociológica e o realismo legal, bem como descrever a posi-
ç ã o assumida pelo jurista a u s t r í a c o Karl R e n n e r , c u j a t e n t a t i v a
d e sumariar os conceitos m a r x i s t a s de direito e E s t a d o cons-
tituiu um t r a b a l h o pioneiro nesse campo.

Positivismo
O positivismo jurídico floresceu à época do positivismo cien-
tífico de A u g u s t o C o m t e . Seu principal e x p o e n t e no século X I X .
John Austin, sentia o m á x i m o interesse em distinguir e n t r e
o " a p r o p r i a d a m e n t e d e n o m i n a d o " direito temporal, a lei de
D e u s e os valores morais que possuíam força executória mesmo
sem imposição de um p o d e r s o b e r a n o . P a r a os positivistas, a
missão d a j u r i s p r u d ê n c i a era simplesmente identificar quais a s
leis que são previsivelmente aplicadas pelo p o d e r do E s t a d o .
A teoria d e A u s t i n foi c a r a c t e r i s t i c a m e n t e inglesa do
século X I X . A r g u m e n t a v a ele que se podia criticar determi-
n a d a lei como boa ou má, moral ou imoral, m a s que a e s f e r a
a p r o p r i a d a d a j u r i s p r u d ê n c i a era e s t u d a r o sistema de i n j u n -
ções geralmente e n d e r e ç a d a s e a p l i c a d a s •— n a f o r m a de in-
junções individualmente e n d e r e ç a d a s — p o r um soberano identi-
ficável. Q u e m detém o poder 110 E s t a d o e o que essa pessoa faz
com o mesmo s ã o p e r g u n t a s feitas em todos os períodos da
PRINCIPAIS ESCOLAS DF. P E N S A M E N T O JURÍDICO 281

história, mas, p a r a f o r m u l á - l a s c o m o f e z A u s t i n , a s ú n i c a s in-


v e s t i g a ç õ e s l e g í t i m a s d a j u r i s p r u d ê n c i a r e v e l a m c o n f i a n ç a na
capacidade burguesa d e deter o poder e estabelecer sua reivin-
d i c a ç ã o à o r d e m j u r í d i c a . T o d o s os c o n t e s t a d o r e s .— o p e r á r i o s
em r e v o l t a , c a r t i s t a s , g r e v i s t a s e o u t r o s — f o r a m f i r m e m e n t e
r e p r i m i d o s . C h o q u e s políticos p o d i a m i r r o m p e r em t o r n o d o
melhoramento d a s condições d e trabalho nas cidades e no
c a m p o , m a s o p o d e r e u n i d a d e d a c l a s s e q u e p a t r o c i n o u a pri-
meira revolução industrial no m u n d o eram inegáveis. Assim,
a filosofia j u r í d i c a foi f o c a l i z a d a s o b r e a m e c â n i c a d o p o d e r .
M a i s t a r d e , p o s i t i v i s t a s j u r í d i c o s m o s t r a r a m - s e m e n o s rígi-
d o s . H a n s K e l s o n levou em c o n t a a m a n e i r a c o m a a i d e o l o g i a
p o d e d e i x a r d e ser "a lei" d e v i d o ou a o d e s u s o ou à i n d i f e r e n ç a
d o p ú b l i c o à s i n j u n ç õ e s do s o b e r a n o , e d e s c r e v e u a m a n e i r a
c o m o princípios m o r a i s v i g e n t e s n u m a d a d a s o c i e d a d e p o d e m
i n f l u e n c i a r a c o n c r e t i z a ç ã o d e i n j u n ç õ e s d e a p l i c a ç ã o geral. O
f o c o b á s i c o d o p o s i t i v i s m o jurídico, n o e n t a n t o , c o n c e n t r o u - s e
n u m s o b e r a n o i d e n tificáv el, q u e p o d e ser c o n h e c i d o p o r d i f e -
r e n t e s nome9, e n a c r i a ç ã o por ele d a ideologia c o m o j u s t i f i c a -
ç ã o e e x p l i c a ç ã o d o exercício d o p o d e r e s t a t a l .
A teoria j u r í d i c a p o s i t i v i s t a n ã o a l e g a d e s i n t e r e s s e p e l a
lei i n t e r n a d e o u t r o s g r u p o s q u e n ã o o E s t a d o n e m d e s c a s o p o r
m u d a n ç a s n a i d e o l o g i a jurídica. M a s a o d e s c r e v e r o q u e é e
n ã o é "lei", t a i s coisas d e v e m , p o r d e f i n i ç ã o , ser e x c l u í d a s , p o r -
q u a n t o a p r ó p r i a t a r e f a d a j u r i s p r u d ê n c i a c o n s i s t e e m isolar
n o r m a s l e g a i s d e o u t r o s tipos d e i n j u n ç õ e s e r e i v i n d i c a ç õ e s . T a l
a b o r d a g e m p o d e ser f a l h a em si, p o r q u a n t o n ã o p ç r m i t e s e q u e r
a c o m p r e e n s ã o d a ideologia j u r í d i c a d o s o b e r a n o e m u m d a d o
m o m e n t o , q u a n t o mais o m e c a n i s m o m e d i a n t e o q u a l ela m u d a .
A lei n ã o é, c o n f o r m e vimos, u m a coisa c o m o um tijolo,
u m a r o c h a ou um a n d a i m e . T a m p o u c o é o p o d e r e s t a t a l ( o u
p o d e r s o b e r a n o ) u m a s u b s t â n c i a ou o b j e t o . A f a l h a b á s i c a d a
a b o r d a g e m positivista é q u e t r a t a a lei e o p o d e r d o E s t a d o
c o m o c o i s a s t a n g í v e i s e o faz o s t e n s i v a m e n t e a fim d e descre-
v ê - l o s m e l h o r , m a s t e r m i n a com u m a d e s c r i ç ã o d i s t o r c i d a d a lei
p o r q u e o f a t o em si de t r a t a r c o m o c o n c r e t o o a b s t r a t o t o r n a - s e
i n t e g r a d o n a c o m p r e e n s ã o d a lei.
O poder do E s t a d o jamais é absoluto, no sentido de seus
a g e n t e s c a s t i g a r e m t o d a s as i n f r a ç õ e s . M a i s i m p o r t a n t e , e s t á
continuamente sujeito à contestação de grupos que querem que
a ideologia jurídica dominante seja interpretada d e outras
m a n e i r a s , ou m e s m o d e r r u b á - l a e substituí-la p o r o u t r a . N o

lü - t>.a o.
282 INSURREIÇÃO H JURISPRUDÊNCIA

primeiro caso, um g r u p o — a t r a v é s de moções legislativas, pro-


cessos ou o u t r a s m a n e i r a s — exige que a ideologia d o m i n a n t e
s e j a t o r n a d a c o n c r e t a de d e t e r m i n a d a m a n e i r a . M a s se a exi-
gência é r e c u s ada e o movimento e x p l o d e em r e v o l t a a b e r t a ,
n ã o p r o c u r a mais " i n f l u e n c i a r " ou mesmo " a p o s s a r - s e " do poder
estatal, mas o destrói a t r a v é s de sua p r ó p r i a violência o r g a n i -
zada, a fim de i m p l a n t a r uma nova ideologia e p o d e r estatal,
t a m b é m r e s p a l d a d o s n a violência. A teoria jurídica que trata o
a b s t r a t o como concreto n ã o p o d e descrever o p r o c e s s o de levan-
te p a r a obter o controle social n e m o i m p a c t o desse processo
sobre o conteúdo d a ideologia d o m i n a n t e .
T a m p o u c o ficam os revolucionários e s p e r a n d o a t é se ins-
t a l a r e m n a s casas do g o v e r n o p a r a p r o m u l g a r leis d e f i n i n d o sua
p r ó p r i a legitimidade e e n u n c i a n d o a s i n j u n ç õ e s que s e r ã o apli-
c a d a s no f u t u r o . V i m o s que t o d o s os movimentos revolucioná-
rios no O c i d e n t e e x p r e s s a r a m s u a s aspirações e exigências em
termos de ideologia jurídica e n q u a n t o c o n t i n u a v a m a i n d a sujei-
tos ao regime a que se o p u n h a m . A l é m desse p o n t o , tais movi-
m e n t o s •— das primeiras sociedades s e c r e t a s n a s a n t i g a s c o m u -
n a s aos p a r t i d o s políticos d a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a — regulam
seus a s s u n t o s a t r a v é s de r e g r a s de c o n d u t a . E s s a s r e g r a s inter-
n a s s ã o vitalmente i m p o r t a n t e s q u a n d o r e g u l a m a c o n d u t a de
um g r u p o que aspira a exercer o poder do E s t a d o . P r e s s a g i a m
a ideologia que o g r u p o imporá à sociedade em geral se conse-
guir o b t e r o p o d e r e f o r n e c e pistas p a r a o s interesses econô-
micos de o n d e b r o t a essa ideologia.
E s t a m o s dizendo, em suma, que a ideologia jurídica e o
poder do E s t a d o j a m a i s podem ser e s t u d a d o s "em si m e s m o s " ,
pois f a z ê - l o só p r o d u z u m a imagem falsa. A ideologia e o poder
e s t ã o sempre no processo d e vir a ser, de m u d a r , de serem
m u d a d o s e varridos p a r a longe, d e s a p a r e c e n d o . O s positivistas
e s t u d a m a p e n a s a estrutura d a s relações sociais, e n q u a n t o que
a i n d a g a ç ã o import a nt e é sobre seu movimento,
P o d e m o s ver a g o r a por que o positivismo jurídico foi uma
a t i t u d e tão conveniente p a r a a j u r i s p r u d ê n c i a d a b u r g u e s i a
d e s d e o século X I X . Lima classe social tão f i r m e m e n t e enrai-
zada, m a s ainda assim t ã o temerosa de seus contestadores, jul-
g a r á especialmente útil um sistema de p e n s a m e n t o que n e g a
seu p r ó p r i o p a s s a d o revolucionário e focaliza o c a r á t e r concreto,
no t e m p o presente, d e seu poder. C e r t a vez h o u v e história,
dizem os positivistas, mas a g o r a n ã o h á mais.
PRINCIPAIS ESCOLAS DC P E N S A M E N T O JURÍDICO 283

A s T e o r i a s do Direito N a t u r a l

A c o n f i a n ç a n a ordem n a t u r a l era típica d a j u r i s p r u d ê n c i a


d a b u r g u e s i a i n s u r g e n t e , e seus i d e ó l o g o s n ã o se p e j a v a m em
a l e g a r i n s p i r a ç ã o divina. A s t e o r i a s do direito n a t u r a l s ã o judi-
catórias, n o r m a t i v a s , no sentido d e atribuírem v a l i d a d e qu legi-
t i m i d a d e a ideologias jurídicas b a s e a d a s em " D e u s , N a t u r e z a ,
R a z ã o , Intuição e R e c o n h e c i m e n t o " . " A N a t u r e z a . . . e a n a -
tureza de D e u s " s ã o e x p r e s s õ e s que c o n s t a m da D e c l a r a ç ã o
de I n d e p e n d ê n c i a . A D e c l a r a ç ã o F r a n c e s a d o s Direitos do
H o m e m e C i d a d ã o s m o d e s t a m e n t e a f i r m a que a Assembléia
N a c i o n a l a t u a a p e n a s como publicista de D e u s na d i v u l g a ç ã o de
s u a lista de l i b e r d a d e s .
O direito natural tornou-se, assim, u m n o m e coletivo para
aquelas normas que devem sua legitimidade não à sua origem
às m ã o s de u m legislador legítimo, m a s à s s u a s qualidades
i m a n e n t e s e t e l e o l ó g i c a s . O d i r e i t o n a t u r a l t e m sido, d e s t a r t e ,
a f o r m a específica da legitimidade de u m a ordem revoluciona-
riamente criada. A invocação do direito natural tem sido repe-
tidamente o m é t o d o mediante o qual classes e m revolta legiti-
m a r a m suas aspirações, quando não basearam, ou não puíferam
basear, s u a s reivindicações sobre n o r m a s religiosas ou na reve-
l a ç ã o . N e m t o d a s a s leis n a t u r a i s , c o n t u d o , f o r a m " r e v o l u c i o n á -
vias" e m s u a s intenções, n o s e n t i d o de f o r n e c e r u m a justificação
p a r a a concretização, pela v i o l ê n c i a ou d e s o b e d i ê n c i a p a s s i v a , de
certas n o r m a s c o n t r a a o r d e m vigente. N a verdade, o direito
natural serviu t a m b é m para legitimar poderes autoritários dos
m a i s diversos tipos.

F o s s e u s a d a por uma classe revolucionária em busca do


p o d e r ou por o u t r a que o detinha, a ideologia d o direito n a t u r a l
p o s t u l a v a uma n o r m a justificadora — no sentido acima, ou pre-
existente — externa ao sistema. Q u a l q u e r q u e f o s s e a f o r m a que
assumisse, a norma era inerentemente inverificãvel, muito e m b o r a
os teóricos do direito natural h o u v e s s e m p r o c u r a d o vários meios
de s u p e r a r essa objeção. P r o p u n h a K a n t que cada pessoa agisse
como se o f u n d a m e n t o de suas ações fosse, por um ato d e v o n -
t a d e , lei geral. B e n t h a m tentou f a z e r um cálculo d o p r a z e r e d a
dor, e sugeriu a jurisprudência do maior bem p a r a o maior
n ú m e r o . N e n h u m desses esforços p a r e c e solução aceitável p a r a
o problema. K a n t e B e n t h a m e s c r e v e r a m em sua época e p a r a
sua época e em a b s o l u t o se p u s e r a m à p a r t e d o sistema social
d e q u e eram p a r t e . S u p o n h a m a v a l i d a d e dos p o s t u l a d o s f u n d a -
mentais da sociedade o n d e viviam e n e n h u m d o s dois conse-
284 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

guiu c o m p r e e n d e r o c a r á t e r evolutivo d a s n e c e s s i d a d e s e desejos


h u m a n o s . T a m p o u c o p e r c e b e r a m que a s necessidades e os dese-
jos, e a p e r c e p ç ã o que d e l e s se tem, s ã o condicionados pela
sociedade c o n t e m p o r â n e a e pela classe social.
A l g u n s m o d e r n o s especialistas em direito n a t u r a l p r o c u r a m
c o n f i r m a r sua escolha de uma ideologia jurídica f u n d a m e n t a l
r e c o r r e n d o a princípios primeiros, que alegam terem aceitação
t ã o geral que dispensam p r o v a . P o d e m igualmente, como Lon
Fuller, da F a c u l d a d e de Direito de H a r v a r d , r e f e r i r - s e ao
senso p o p u l a r d e justiça, que e n c o r a j a a obediência a p e n a s a
r e g r a s que se c o n f o r m a m a certos v a l o r e s f u n d a m e n t a i s . T a i s
teorias tendem a s u p o r um único s e n t i d o de justiça, i g n o r a n d o a
m a n e i r a como a posição social modela as opiniões, e c o n s i d e r a m a
ideologia jurídica como a substância, e n ã o o r e f l e x o d a luta
social.
A s similaridades e a crescente h a r m o n i a e n t r e o direito n a t u -
ral e a s escolas positivistas r e f l e t e m - l h e s a i d e n t i d a d e f u n d a -
mental de f i n a l i d a d e . O s teóricos do direito n a t u r a l do O c i -
d e n t e moderno, d a m e s m a f o r m a que o s positivistas, t r a b a l h a m
com o mesmo material — a ideologia jurídica d a b u r g u e s i a triun-
f a n t e . E n q u a n t o os positivistas salientam o sistema d e coerção
que aplica a ideologia, os d e f e n s o r e s do direito n a t u r a l f o c a -
lizam a s premissas d a l i b e r d a d e h u m a n a que a ideologia inevi-
tavelmente f o r m u l a . A b o r d a m a m b o s o inesmo problema, a i n d a
que d e direções d i f e r e n t e s . Situam-se dentro, e n ã o fora, dos
sistemas q u e e x a m i n a m .
P r e c i s a m o s n o t a r , c o n t u d o , um caso especial e n t r e os
jurisconsultos do direito n a t u r a l , como Sir H e n r y M a i n e , c u j o
Ancient Law é c o n s i d e r a d o um clássico sobre o desenvolvimento
do direito inglês. E m b o r a em geral se julgue que M a i n e repre-
s e n t a a escola histórica inglesa, c o m o os alemães que b u s c a -
r a m a essência d o direito no Volksgeist, o u espirito popular,
ele e v i d e n t e m e n t e se apóia em uma n o r m a j u s ü f i c a d o r a que
o coloca e n t r e os especialistas em direito n a t u r a l . ( N a v e r d a d e ,
a escola histórica em si e s t á mais b e m colocada n a t r a d i ç ã o
do direito n a t u r a l devido à característica n o r m a t i v a que
atribui ao direito costumeiro, p o p u l a r d a A l e m a n h a . )
O s interesses de M a i n e a b r a n g e r a m o r d e n s jurídicas primi-
tivas, o direito r o m a n o , o f e u d a l i s m o e o direito b u r g u ê s de sua
p r ó p r i a época. E m b o r a suas introvisões p r á t i c a s s e j a m n u m e -
r o s a s e extensa sua p e s q u i s a histórica, é ele melhor conhecido
por uma única linha do Ancient Law, que bem lhe e x p r e s s a a
PRINCIPAIS ESCOLAS DE PENSAMENTO JURÍDICO 285

a t i t u d e : " O movimento d a s s o c i e d a d e s progressistas tem sido até


a g o r a um movimento do status pata o contrato." Q u e r i a ele dizer
que o d e s e n v o l v i m e n t o g r a d u a l e inelutável d a o r d e m jurídica
mundial tem sido o de desvencilhnr-se de definições de obri-
gações legais b a s e a d a s em p o s i ç ã o social (e, em última análise,
em laços de família) e a substituí-la por b a r g a n h a s (contra-
t o s ) realmente livres, concluídos e n t r e indivíduos.
É inegável que a força c r e s c e n t e d a b u r g u e s i a produziu
a e x p a n s ã o g r a d u a l do domínio d o c o n t r a t o . P o r que. então,
classificamos M a i n e como especialista em direito natural? Em
primeiro lugar, acreditava ele que esse processo histórico era
inerentemente bom e certo. A o c o n s i d e r a r a sociedade contra-
tual. capitalista, como axiomaticamente boa, a d o t o u uma posição
tão idealista como a de John Locke ou a dos r e d a t o r e s da D e -
claração de I n d e p e n d ê n c i a . E m s e g u n d o lugar, com sua asser-
ção, M a i n e assumiu firmemente um l u g a r n o seu p r ó p r i o sistema
nacional. N ã o p o d i a imaginar s e n ã o que o capitalismo britânico
e suas leis fossem o u t r a coisa que n ã o a f o r m a mais alta e final,
e n ã o um estágio histórico que a l g u m dia p a s s a r i a .
F i n a l m e n t e , M a i n e a d o t o u a mitologia do c o n t r a t o livre,
tão p o p u l a r n a I n g l a t e r r a do século X I X , q u a n d o a mesma
muito tempo a n t e s deixara de ter q u a l q u e r relação com a reali-
d a d e . N a d a escreveu sobre c o n t r a t o s reais, históricos, concluídos
no século X I V e n t r e c a m p o n e s e s que a n d a v a m um dia inteiro
a t é a aldeia p a r a e n c o n t r a r o t a b e l i ã o do s e n h o r ausente, ou
mesmo os c o n t r a t o s do século X I X e n t r e os o p e r á r i o s de
M a n c h e s t e r e a s fábricas que os e m p r e g a v a m . P r e o c u p a v a - s e
com c o n t r a t o s idealizados e n t r e p e s s o a s hipotéticas, com igual
poder de b a r g a n h a e igual l i b e r d a d e de recusá-la.
Ê d e s c o n c e r t a n t e que um homem culto p u d e s s e ter esciito
tal livro no século X I X , n ã o muito d i s t a n t e d o t r o a r d a s lutas
sociais e d o s a m p l a m e n t e d i v u l g a d o s t r a b a l h o s d o s inspetores de
fabricas. É de f a t o s u r p r e e n d e n t e que Ancient Law continue
a ser um t r a b a l h o p a d r ã o n a s m o d e r n a s f a c u l d a d e s de direito.
O s a d v o g a d o s , no entanto, são p r e p a r a d o s p a r a lidar com con-
ceitos, e n ã o realidades, p a r a despir a s situações de seu ele-
m e n t o h u m a n o e c h e g a r à s situações legais n a s quais A e B com-
p r a m e v e n d e m em alguma situação a b s t r a t a . E s s e fascínio pela
a b s t r a ç ã o torna, aliás, os a d v o g a d o s ocidentais excelentes ideó-
logos. M a n t ê m viva a mitologia d o s velhos dias dos c r u z a d o s
do p o d e r b u r g u ê s , p o r q u a n t o c o n t i n u a m a e s t u d a r seriamente a
e s t r u t u r a conceituai desses tempos.
286 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

John Locke escreveu que a p r o p r i e d a d e era uma institui-


ç ã o h u m a n a j u s t i f i c a d a pelo direito n a t u r a l . N o e s t a d o de n a t u -
reza, o homem p e n e t r a v a n a floresta e começava a p l a n t a r .
M i s t u r a v a seu t r a b a l h o com a terra e produzia uma colheita.
O u t r o abatia um cervo e combinava seu t r a b a l h o com a c a r n e e
o c o u r o p a r a f a z e r alimentos e v e s t u á r i o . O s dois, g r a ç a s a seu
t r a b a l h o , criavam valores que n ã o h a v i a m existido a n t e s e, p o r
conseguinte, tinham direito n a t u r a l a seu p r o d u t o . O q u e poderia
ser mais n a t u r a l m e n t e certo d o que eles n e g o c i a r e m s u a s p r o -
p r i e d a d e s como iguais?
À época em que M a i n e escreveu, n o entanto, a maior p a r t e
d a in d ú s tr ia inglesa — rural e u r b a n a •— e n c o n t r a v a - s e nas
m ã o s d a burguesia, que possuía os meios de p r o d u ç ã o e con-
t r a t a v a o u t r a s p e s s o a s p a r a empregá-los. O s o p e r á r i o s que f a b r i -
c a v a m tecidos a i n d a m i s t u r a v a m seu t r a b a l h o com a s fibras, o
a l g o d ã o e a lã, mas nem p o r isso possuíam o p r o d u t o . H a v i a m
c o n t r a t a d o a v e n d a de seu p o d e r de t r a b a l h o , que era t u d o
o q u e tinham. O preço ao qual o v e n d i a m era d e t e r m i n a d o por
f o r ç a s d o mercado que n ã o controlavam, e a sua escolha de ofício
e o local de t r a b a l h o eram limitados pelas necessidades práticas.
C o n t e s t a ç õ e s a esse sistema p o r artesãos, p e q u e n o s f a z e n d e i r o s ,
a l d e õ e s e modestos agricultores haviam sido reprimidas uma a
uma, c o n f o r m e tivemos o p o r t u n i d a d e d e ver acima.
A contribuição de M a i n e à j u r i s p r u d ê n c i a britânica consis-
tiu em r e f i n a r e x a g e r a d a m e n t e esses a s p e c t o s h u m a n o s do con-
t r a t o d o direito n a t u r a l e d a p r o p r i e d a d e e a esboçar um jardim
d e s i n g u l a r i d a d e s históricas, n a s quais p o d i a c o n t i n u a r o p r o -
cesso de t o m a d a s de decisão conceptualistas.

O Realismo Jurídico e a s T e o r i a s Sociológicas


C o m o r e a ç ã o ao rigor positivista e à inverificabilidade
d o direito natural, os últimos dias d o século X I X e p r i n -
cípios do século X X p r o d u z i r a m d u a s escolas de p e n s a m e n t o
correlatas — o realismo jurídico e a escola sociológica.
O s realistas jurídicos são tipificados pelo ilustre M i n i s t r o
O l i v e r W e n d e l l H o l m e s , Jr., e, mais recentemente, pelo espe-
cialista em direito comercial Karl Llewellyn e pelo Juiz Jerome
F r a n k . A principal influência d o s realistas fez-se sentir no sis-
tema a n g l o - a m e r i c a n o , com sua e x p r e s s ã o c o n f i a n t e n a decisão
judicial e n o p r e c e d e n t e como meio de e l a b o r a r a ideologia.
O s realistas reagiam à tendência comum d a s escolas posi-
tivistas e d e direito n a t u r a l de se e m p e n h a r e m em uma a b s t r a t a
PRINCIPAIS ESCOLAS DE PENSAMENTO JURÍDICO 287

c o n s t r u ç ã o de sistemas. D e D o m a t , P u f e n d o r f , G r o t i u s e M o n -
tesquieu no século X V I I até M a i n e e A u s t i n no X I X , a ideo-
logia jurídica d a burguesia, q u a n d o f o r m a l m e n t e e l a b o r a d a , era
e n u n c i a d a como um sistema c o e r e n t e de princípios legais inter-
relacionados. O sistema era, p a r a cada um d e s s e s a u t o r e s . "A
Lei", e a t a r e f a de unia corte d e justiça n a f o r m u l a ç ã o de uma
i n j u n ç ã o i n d i v i d u a l m e n t e e n d e r e ç a d a era simplesmente desco-
brir algum princípio relevante n e s s e corpus e apJicá-Jo ao lití-
gio em j u l g a m e n t o . O s realistas r e b e l a r a m - s e contra essa idéia
de direito, como u m a espécie de " p o n d e r a d a o n i p r e s e n ç a " .
O s realistas p r o c u r a v a m identificar a lei n o s j u l g a m e n t o s
d o s tribunais. " A s profecias sobre o que, n a realidade, as cortes
farão, e n a d a mais pretensioso, s ã o aquilo que e n t e n d o p o r lei",
escreveu H o l m e s . E s s a c o n s t r u ç ã o da i m a g e m d a lei com b a s e
em i n j u n ç õ e s individualmente e n d e r e ç a d a s aos litigantes tinha
a v a n t a g e m de desmistificar, a t é certo p o n t o , a lei. ao i g n o r a r
os d e c l a r a d o s f u n d a m e n t o s lógicos e a ostensiva d e f e r ê n c i a judi-
ciária à teoria jurídica n a prática. E m vez de e s t u d a r e m as gene-
ralizações d a literatura jurisprudencial, de uma constituição,
ou os e n u n c i a d o s tersos — ou verbosos, mas s e m p r e incompletos
— dos legisladores, os realistas e s t a v a m ansiosos p a r a ver como
a lei f u n c i o n a v a q u a n d o aplicada contra p e s s o a s em processos
judiciais.
A escola realista simplesmente n ã o aceitaria nem mesmo a s
declarações d o s juízes sobre os motivos de s u a s decisões. P a r a
saber o q u e a s cortes farão, o indivíduo d e v e p r o c u r a r a " n o r m a
v e r d a d e i r a " , escreveu Llewellyn, e n q u a n t o F r a n k . p r o c u r a v a
introduzir insights psiquiátricos no processo de descoberta
dessa r e g r a .
E m b o r a essa a b o r d a g e m p r á t i c a a p a r e n t e m e n t e permita que
a j u r i s p r u d ê n c i a realista analise o s interesses por t r á s d a s regras,
como s ã o a p l i c a d a s em casos isolados — e assim, talvez, d e s -
cubra os princípios condicionadores d a o r d e m jurídica .— a s
a t i t u d e s sociais dos próprios realistas c o n s e r v a v a m d e n t r o d e
estreitos limites s u a s análises de política social. A literatura
realista instruía a s decisões judiciais e, p o r conseguinte, era
prisioneira d a m e n t e dos juízes.
O s realistas g o s t a m de c h a m a r a a t e n ç ã o p a r a os hiatos
entre os e n u n c i a d o s oficiais d a ideologia jurídica e o sistema
concreto da lei. c o n f o r m e é aplicada, sob p r e s s ã o de f o r ç a s
sociais que t e n t a m dobrá-la de d i f e r e n t e s maneiras. O realismo
jurídico contribuiu p a r a o d e s m o r o n a m e n t o d a s teorias f o r m a -
288 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

listas, mecanicistas, de c o n t r a t o c direitos de p r o p r i e d a d e que


culminaram, em fins d a d é c a d a d e 30 e princípios d a de 40,
em decisões da S u p r e m a C o r t e d o s E s t a d o s Unirios s u s t e n t a n d o
a legalidade d a legislação social d o N e w D e a l e o u t r a s da era
d a D e p r e s s ã o . O realismo jurídico e s t á p a r a a ideologia jurídica
como o k e y n e s i a n i s m o está p a r a a economia política.
H á claras limitações em b a s e a r a ideologia n o c a s o decidido.
O m u n d o do litígio n ã o é o m u n d o real. N e m todos os proble-
mas, nem todas a s discutíveis violações da lei c h e g a m à s b a r r a s
d o s tribunais. M u i t o a o c o n t r á r i o : n a s ruas, a polícia, por e x e m -
plo, aplica m u i t a s vezes, todos os dias, a força c o n t r a cidadãos,
e r a r a m e n t e é c h a m a d a a justificar-se. O u como observou E n -
g e l s : " O policial mais humilde do e s t a d o civilizado tem mais
' a u t o r i d a d e ' d o que todos o s ó r g ã o s . . . d a sociedade [primi-
t i v a ] r e u n i d o s . " A s decisões judiciais, m e s m o a s que e n u n -
ciam princípios f u n d a m e n t a i s , simplesmente resolvem p e n d ê n -
cias e n t r e a s d u a s p a r t e s envolvidas. E s t a b e l e c e m p r e c e d e n t e
a p e n a s n a e x t e n s ã o em que dizem que se d u a s p a r t e s e m p e n h a -
d a s no mesmo tipo de litigio c o n t r a t a r e m a d v o g a d o s e levarem
o p r o c e s s o a u m a c o r t e de a p e l a ç ã o s u f i c i e n t e m e n t e alta, as
possibilidades s ã o que r e c e b e r ã o o mesmo j u l g a m e n t o . D a n d o
um exemplo, depois d a decisão do S u p r e m o T r i b u n a l d o s E s t a -
d o s U n i d o s no p r o c e s s o Brown v. Board o[ Education, decla-
r a n d o inconstitucional a s e g r e g a ç ã o racial n a s escolas públicas,
ações de teste em um n ú m e r o incontável de distritos escolares
f o r a m necessárias p a r a a o b t e n ç ã o de s e n t e n ç a s contra c a d a
sistema escolar s e g r e g a d o . E m seguida, iniciou-se o longo e
m u i t a s vezes inútil processo de c u m p r i m e n t o d a decisão, mais
u m a vez em b a s e distrital. N a m e s m a veia, q u a n t o s foreiros do
século X V I , e x p u l s o s de s u a s t e r r a s , em c o m p a r a ç ã o com
a q u e l e s que tinham meios p a r a c o n t r a t a r um a d v o g a d o , che-
g a r a m a t é W e s t m i n s t e r e lá a j u d a r a m a fazer " a lei"?
O s realistas, n a t u r a l m e n t e , reconhecem o c a r á t e r limitado
do j u l g a m e n t o d e r i v a d o de um único caso. A d m i t e m que n ã o se
p o d e alegar que tais decisões regulem a c o n d u t a de p a r t e s que
n ã o i n t e n t a r a m ações n o s tribunais. O i m p o r t a n t e é que a inter-
p r e t a ç ã o da lei que se focaliza na previsão do r e s u l t a d o de
casos isolados, e em descobrir as r a z õ e s de tais decisões, p o d e
e n u n c i a r a p e n a s uma f r a ç ã o da v e r d a d e sobre a ideologia jurí-
dica d a sociedade. Constitui igualmente p a r t e da ideologia d e f i -
nir a s aplicações permitidas do p o d e r do E s t a d o em meios n ã o
judiciários. C o m p r e e n d e r sanções a d m i n i s t r a t i v a s i n f o r m a l m e n t e
ÍMÍINCIPAIS l i S C O l . A S DE PENSAMliNTO JURÍDICO 239

a p l i c a d a s ou decisões informal e. muitas vezes, inconsciente-


m e n t e t o m a d a s por servidores públicos que desconhecem deci-
sões judiciais sobre a c o n d u t a de o u t r o s servidores colocados
de f o r m a semelhante constitui n ã o raro lima t a r e f a muito mais
i m p o r t a n t e do que a análise de decisões judiciais e textos
oficiais.
A d e m a i s , todos os sistemas jurídicos que se focalizam
sobre aquilo que os juízes f a r ã o aplicam-se a p e n a s a uma única
sociedade, em um d o s seus períodos de desenvolvimento. A
r e f o r m a •— novas faces em velhos moldes, o acréscimo g r a d u a l
de novos princípios a velhas políticas — constitui o material
do p o n t o de vista social realista. A t é mesmo a incisiva e m o r d a z
crítica a s s a c a d a por Jerome F r a n k ao sistema do direito cos-
tumeiro dirigia-se a não mais do que a f o r m a à luz d e princí-
pios e n t ã o aceitos em n u m e r o s o s círculos políticos. O ponto
de vista realista n ã o se presta à d e s c r i ç ã o de m u d a n ç a social
f u n d a m e n t a l , m a s tem que t r a t a r tal m u d a n ç a como um fato
descontínuo, e n ã o como p a r t e dos interesses jurisprudenciais.
D i f e r e n c i a n d o - s e de positivistas e realistas, a escola socio-
lógica e m p e n h o u - s e em e s t u d a r o direito sob u m a perspectiva
mais a m p l a . E s s a tese r e m o n t a suas origens a M a x W e b e r .
M a x Rheinstein, o r g a n i z a d o r d o s t r a b a l h o s mais i m p o r t a n t e s
de W e b e r sobre a sociologia d o direito, sumariou-lhe os termos
f u n d a m e n t a i s nas seguintes p a l a v r a s :
O pont.o d e p a r t i d a , é o c o n c e i t o cte contrato social... definido
c o m o aquele tipo de c o n d u t a h u m a n a que se relaciona c o m a
c o n d u t a d e o u t r o s e no s e u c u r s o o r i e n t a d a p a r a e l a . A c o n d u t a
social pode ser orientada para a idéia de que existe a l g u m a
ordem legitima. T a l o r d e m , p o r s e u lado, r e a l m e n t e e x i s t e ou,
o que s i g n i f i c a a m e s m a coisa, possui validade e x a t a m e n t e n a
m e d i d a e m que a c o n d u t a social é r e a l m e n t e orientada para
e l a . U m a o r d e m é c h a m a d a ( p o r W e b e r ) d e convenção quando
sua validade é garantida pela possibilidade de que a conduta
que não se c o n f o r m a a ela desperte a d e s a p r o v a ç ã o (relativa-
m e n t e ) geral e c o n c r e t a de a l g u m d a d o g r u p o de p e s s o a s . U m a
o r t f e m s e r á c h a m a d a lei q u a n d o f o r g a r a n t i d a p e l a p r o b a b i l i d a d e
de q u e a c o e r ç ã o ( f í s i c a o u p s i c o l ó g i c a ) , o b j e t i v a n d o pôr a
c o n d u t a de c o n f o r m i d a d e c o m a o r d e m , ou v i n g a r s u a violação,
s e r á e x e r c i d a por um q u a d r o d e p e s s o a s que se m a n t ê m espe-
cialmente preparadas para esse fim.

A definição de lei oferecida por W e b e r é seguida mais ou


m e n o s r i g i d a m e n t e em sua obra, e ele n ã o p r o f e r e julgamento
sobre a justiça de uma ideologia jurídica ( q u e ele chamaria de
290 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

ordem legitima) como p r e c o n d i ç ã o p a r a ser c o n s i d e r a d a como


convenção, ou lei. O e s t u d o sociológico d o direito, pelo m e n o s
em seu trabalho descritivo, é isento de valores.
O u t r o s sociólogos d o direito d e r a m p r o s s e g u i m e n t o e com-
p l e m e n t a r a m a obra iniciada por ^Vebe^ em Economia e Socie-
dade, e m b o r a com m e n o s amplitude histórica e c o m p a r a t i v a . O
g r a n d e mérito desse e s t u d o está em revelar o impacto d a ideo-
logia sobre a v i d a d e p e s s o a s e pôr a nu os elementos que
e n t r a m n a s opções de se e como s a n ç õ e s e v i n g a n ç a s s e r ã o
a elas aplicadas. O s e x p o e n t e s d a escola sociológica e s t u d a r a m
em p r o f u n d i d a d e o i m p a c t o de interesses d e g r u p o s e indivíduos
sobre o exercício do p o d e r d o E s t a d o e o uso d a ideologia nn
e x p r e s s ã o e codificação de relações sociais.
T ã o diversos s ã o o s t r a b a l h o s que discutem a influência
d a escola sociológica que n ã o podemos, n e s t e c u r t o espaço,
resumi-los ou criticá-los. D e ^ V e b e r p o d e m o s dizer que sua
a l e g a ç ã o de ser isento de valores, vista à luz de seu t r a b a l h o ,
é falsa.
A b e m de uma terminologia u n i f o r m e e uma e s t r u t u r a con-
ceituai limpa, ele esboçou e c o m p a r o u idéias jurídicas divorcia-
d a s d a s sociedades que a s gerou, A ideologia t r a n s f o r m o u - s e
n u m a á r v o r e cortada n o t r o n c o p a r a melhor e s t u d a r c a d a ramo,
g a l h o e folha e c o m p a r á - l o s com o u t r a s á r v o r e s t r a z i d a s de
longe. E l e procurou, p o r t a n t o , isolar m é t o d o s de j u r i s p r u d ê n -
cia e elementos de ideologia jurídica em t e m p o s e l u g a r e s pro-
f u n d a m e n t e d if e r ent e s. E m uma subseção de cinco p á g i n a s , por
exemplo, ele c o m p a r o u o exercício d o poder legislativo pelos
príncipes medievais, a I g r e j a medieval, o s e n a d o r o m a n o e a
A l e m a n h a imperial. L a n ç o u um olhar sobre o u s o d a a c l a m a ç ã o
p o p u l a r como meio d e a p r o v a r j u l g a m e n t o s no direito cons uetu-
dinário alemão e observou que o popuhis r o m a n o n ã o d i s p u n h a
de tal p o d e r , salvo q u a n d o a sentença d o s m a g i s t r a d o s era a
morte. A diferença e n t r e a s n o r m a s r o m a n a e alemã sobre esse
assunto, p r o s s e g u e ele. p o d e ser a t r i b u í d a à relativa f a l t a de
disciplina militar d a s o c i e d a d e g e r m â n i c a . G r a ç a s a um impla-
cável ecletismo, situações incomparáveis f o r a m c o m p a r a d a s ,
c u l m i n a n d o na conclusão de que t u d o se relaciona com t u d o o
mais, m a s que coisa alguma ê causa ou e m e r g e de qualquer
o u t r a coisa,
O s insights de W e b e r n ã o p o d e m ser divorciados de sua
p r e o c u p a ç ã o f u n d a m e n t a l como sociólogo — ou seja, d e m o n s t r a r
a crescente racionalidade d a s sociedades ocidentais no c o n t e x t o
PRINCIPAIS ESCOLAS DE PENSAMENTO JURÍDICO 291

de um E s t a d o c r e s c e n t e m e n t e burocrático, com seu p o d e r de


cooptar, a b s o r v e r e m a n i p u l a r . A l é m disso, ele c o n s i d e r a v a todos
os interesses (com exceção d o s do E s t a d o ) como funcional-
mente e q u i v a l e n t e s e, p o r conseguinte, deixou de a n a l i s a r que
interesses, expressos em nome de que g r u p o s , p o d e r i a m c o n f i -
g u r a r mais d o q u e vim problema b u r o c r á t i c o de a c o m o d a ç ã o
p a r a o E s t a d o . P o u c a a t e n ç ã o dedicou a o s elementos insurre-
cionistas, combativos — incluindo a q u e l e s que h a v i a m começado
a surgir em sua p r ó p r i a sociedade.
D e v e m o s , no e n t a n t o , m o s t r a r - n o s g r a t o s p o r seu e s t u d o
d o direito, pois, como disse Loysel a r e s p e i t o de B e a u m a n o i r .
ele " q u e b r o u o espelho e abriu o c a m i n h o " . N ã o devemos, como
d e s e j a r i a m os positivistas, limitar n o s s a s p r o c u p a ç õ e s à q u e l a s
ideologias jurídicas q u e o E s t a d o investe com s u a s a n ç ã o e
t r a n s f o r m a em "lei". P r e c i s a m o s c o m p r e e n d e r os interesses
que aplicam p r e s s ã o n u m a ideologia d o m i n a n t e e e s t u d a r os
c o n j u n t o s de n o r m a s que "Weber c h a m a de convenção •— lei d a
turma, direito comercial, direito eclesiástico — d e d i c a n d o espe-
cial a t e n ç ã o àqueles que aspiram a substituir o existente sistema
jurídico.
M a s precisamos, simultaneamente, e x a m i n a r a relação
e n t r e o direito e o sistema social que i n t e n t a r e g u l a m e n t a r , e
descobrir qual e n t r e a s ideologias jurídicas concorrentes reflete
os i n t e r e s s e s de g r u p o s q u e d e s e j a m m u d a r de alto a baixo o
sistema. W e b e r e s t u d o u a lei como a d m i n i s t r a ç ã o e. por c o n -
s e g u i n t e •— a despeito d a sua riqueza de c o n h e c i m e n t o s c o m -
p a r a t i v o s e históricos — n ã o p ô d e t r a t a r d a possibilidade de
m u d a n ç a social f u n d a m e n t a l . P o d i a e s t u d a r o p a s s a d o como
coisa a c a b a d a , mas n ã o considerar o p r e s e n t e como história.

Karl Renner .— A s Instituições d o Direito


P r i v a d o e S u a s F u n ç õ e s Sociais
A obra d e Karl R e n n e r merece a t e n ç ã o c o n c e n t r a d a em
q u a l q u e r e s t u d o d a economia política e d o direito. R e n n e r
dispôs-se a d e m o n s t r a r a relação e n t r e a s f o r m a s jurídicas e o
que c h a m o u de " s u b s t r a t o econômico", q u e as investe de seu
c a r á t e r histórico especifico. E m b o r a fosse a d v o g a d o , era e x t e n s o
o conhecimento que possuía de economia. E m Instituições do
Direito Privado, p r o c u r o u "utilizar o sistema marxista d e socio-
logia n a c o n s t r u ç ã o de uma teoria do direito". E m b o r a discor-
demos de várias de s u a s principais premissas, sua obra s e alinha
292 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

(e deve ser lida em c o n j u n t o ) com a Teoria do Desenvolvi-


mento Capitalista,* de P a u l S w e e z y . como i n t r o d u ç ã o indispen-
sável à relação e n t r e direito e sociedade.
R e n n e r i n t e r e s s a v a - s e a p e n a s pelo "direito p r i v a d o " — ou
pelos princípios d a o r d e m jurídica q u e regulam a s relações
entre pessoas e e n t r e p e s s o a s e coisas. A l é m disso, focalizou
certas categorias do direito civil de p r o p r i e d a d e e contrato que
retroagiam a o fim do p e r í o d o r o m a n o e e s t a v a m a i n d a em uso
e n t r e os a d v o g a d o s e u r o p e u s . Incluiu o direito de família e de
sucessão, embora em menor e x t e n s ã o e a p e n a s em traços gerais.
A s variações n o direito imobiliário que a c o m p a n h a r a m o d e s e n -
volvimento capitalista e. em especial, a e l a b o r a ç ã o d a lei d a s
sociedades a n ô n i m a s , o direito comercial, os títulos e notas, o
s e g u r o e o s e x p e d i e n t e s p a r a f u n d i r riscos e capitais interes-
s a r a m - n o a p e n a s Jigeiramente. E s s a limitação constitui um d o s
principais pontos f o r t e s do livro, mas t a m b é m sua principal
fraqueza.
E l e escreveu s e g u n d o a t r a d i ç ã o positivista de aceitar como
"lei" a p e n a s a s i n j u n ç õ e s emitidas pelo s o b e r a n o . N u m a a r g u -
m e n t a ç ã o típica, ele seleciona um princípio do direito como, por
exemplo, a c o n t r a t a ç ã o de e m p r e g a d o s •— e lhe analisa a s mu-
d a n ç a s em f u n ç ã o d e v i d a s a circunstâncias econômicas. N a
teoria b u r g u e s a , c o n f o r m e tivemos o p o r t u n i d a d e de observar
ao discutir a obra de Sir H e n r y M a i n e . as d u a s p a r t e s num
c o n t r a t o dessa n a t u r e z a e n c o n t r a v a m - s e como iguais. N a ideo-
logia jurídica f e u d a l , em contraste, a o b r i g a ç ã o de t r a b a l h a r e
mesmo o c a r á t e r do t r a b a l h o que cada p a r t e devia d e s e m p e n h a r
e s t a v a m sujeitos à s r e g r a s legais mais d e t a l h a d a s possíveis.
E s s a lei era "direito público" no s e n t i d o em que o E s t a d o
exigia que cada p a r t e d e s e m p e n h a s s e s u a t a r e f a .
A ideologia b u r g u e s a t r a n s f o r m o u essa q u e s t ã o em um pro-
blema de o p ç ã o pessoal e chamou tal m u d a n ç a de um passo em
direção à l i b e r d a d e : n i n g u é m precisava t r a b a l h a r , e os que o
faziam aceitavam os termos da b a r g a n h a . R e n n e r procurou sola-
par essa ficção. C i t a n d o M a r x , e s c r e v e u :
A r e l a ç ã o jurídica, q u e s e e x p r e s s a e m u m c o n t r a t o , s e j a ele
p a r t e d e u m a o r d e m j u r í d i c a cTesen v o l v i d a o u n ã o , é u m a r e l a ç ã o
e n t r e d u a s v o n t a d e s e o r e f l e x o de u m a r e l a ç ã o e c o n ô m i c a real
e x i s t e n t e e n t r e elaa. E e s s a r e l a ç ã o e c o n ô m i c a que e s t a b e l e c e o
substrato compreendido em cada u m desses atos jurídicos.

" Publicado no Brasil por Zahar Editores. <N. d o E . )


PRINCIPAIS ESCOLAS DE PENSAMENTO JUHÍDICO 293

U m a vez que, o que quer que dissesse a ideologia, "a sociedade


precisa poder dispor da capacidade d e t r a b a l h o do indivíduo",
a f i c ç ã o d a livre o p ç ã o o c u l t a v a a r e a l i d a d e d e q u e a f a l t a d e
p r o p r i e d a d e pelo a s s a l a r i a d o o b r i g a v a - o a e m p r e g a r - s e c o m o tal.
O u , em o u t r a s palavras, a idéia d e q u e a propriedade nada
m a i s é q u e u m a r e l a ç ã o e n t r e u m a p e s s o a (persona) e uma
c o i s a ( r e s ) , e q u e , p o r c o n s e g u i n t e , n ã o implica d o m í n i o d e
u m a pessoa sobre outra, t mera ficção. O controle da proprie-
d a d e — q u a n d o ela c o n s i s t e n o s m e i o s d e p r o d u ç ã o — é c o n -
vertido no controle de pessoas através do contrato de trabalho.
D e s s a m a n e i r a , a idéia d e c o n t r a t o c o m o livre b a r g a n h a é
ilusória.
P r o s s e g u i n d o ein s u a a r g u m e n t a ç ã o , R e n n e r f a z mu d i s -
t i n ç ã o e n t r e o d i r e i t o imobiliário c a p i t a l i s t a e o f e u d a l :
A e s t a a l t u r a , é ú t i l c o m p r e e n d e r a s i m p l i c a ç õ e s i n i c i a i s <Ia
instituição d a p r o p r i e d a d e : não é m e i a o r d e m de bens. & justa-
m e n t e em deferência à deliberada distribuição social p l a n e j a d a
doti b e n s q u e e l a a b d i c a e m p r i m e i r o l u g a r . S ó p r o t e g e a q u e l e
q u e t e m posse e m virtude de u m titulo inatacável, m a s n ã o
d i s t r i b u i b e n a de acortlo c o m u m plano. Coinpave-se isso c o m
o direito de p r o p r i e d a d e n a é p o c a íeudal. C o m o e r a r i c a m e n t e
d i v e r s i f i c a d o o s e u c a t á l o g o d e jura in rem [direito n a s coisas,
usado aqui como significando o direito de usar u m a coisa em
u n i a m a n e i r a s o c i a l m e n t e p r e s c r i t a j . O d i r e i t o i m o b i l i á r i o ila
sociedade b u r g u e s a deixa a o r d e m dos bens aos p r ó p r i o s bens.
Só a s s i m se o r g a n i z a m e s e a c u m u l a m d e a c o r d o c o m a s leis
específicas da circulação capitalista. A esta altura, já perce-
bemos que essa a n ô n i m a e a n á r q u i c a regulamentação de "bens"
t r a n s f o r m a - s e e m controle de h o m e n s , e m s u a c a p a c i d a d e de
t r a b a l h o potencial.

A o d e c l a r a r q u e o s i n d i v í d u o s s ã o livres, o c ó d i g o b u r g u ê s diz
a p e n a s q u e o s d e t e n t o r e s d e p r o p r i e d a d e s ã o livres p a r a o r g a -
n i z a r o s s i s t e m a s d e p r o d u ç ã o e t r o c a típicos d a s o c i e d a d e c a p i -
t a l i s t a em u m d a d o e s t á g i o d e d e s e n v o l v i m e n t o e q u e utilizam
o poder que a propriedade lhes confere para organizar o resto
d a p o p u l a ç ã o e integrá-la no sistema de p r o d u ç ã o .
N ã o é a lei o u u m p r i v i l é g i o l e g a l q u e d o t a a p r o p r i e d a t f e d a
f u n ç ã o de. r e g u l a i ' a d i s t r i b u i ç ã o , ma.» a. s i m p l e s f o r ç a d o s f a t o s .
A i n d a a s s i m , n á o se t r a t a de uni p r o c e s s o c o n t r a ou f o r a d a
lei. m a s u m p r o c e s s o q u e o c o r r e n a b a s e d a s p r ó p r i a s n o r m a s
que, no passado, c o r r e s p o n d e r a m ao período de p r o d u ç ã o simples
de b e n s . O c o n t e ú d o l e g a l do d i r e i t o de p r o p r i e d a d e n ã o é
ampliado num restringido. E tampouco é objeto de abuso. N ã o
é nem m e s m o necessário inventar um novo instituto comple-
m e n t a r para suplementar o instituto da propriedade. Nade. há
294 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

de especial no poder de alienai' a s u a p r o p r i e d a d e e d e s p e n d e r


dinheiro como u m equivalente de mão-de-obra contratada, nem
tampouco é o poder de oferecer-se como assalariado u m exer-
cício a n o r m a l d a liberdade pessoal. N ã o h o u v e m u d a n ç a no
conteúdo de qualquer u m dos institutos.

A fim d e frisar a conexão entre economia e ideologia jurídica,


mais uma vez R e n n e r cita M a r x :
A conversão inicial de m o e d a e m capital, p o r conseguinte,
prossegue e m r i g o r o s a c o n c o r d â n c i a com a s leis e c o n ô m i c a s d a
p r o d u ç ã o d e m e r c a d o r i a s e c o m a s l e i s cie p r o p r i e d a d e d e l a s
d e r i v a d a s . N ã o o b s t a n t e , s e u r e s u l t a d o é q u e : 1) o p r o d u t o
p e r t e n c e a o c a p i t a l i s t a , e n ã o a o o p e r á r i o ; 2) o v a l o r d e s s e
p r o d u t o . . . inclui u m a mais-valia, n a qual o t r a b a l h a d o r despen-
deu esforço e o capitalista nada, absolutamente, m a s que,
a p e s a r de t u d o , se t o r n a s u a p r o p r i e d a d e l e g a l ; 3) o t r a b a l h a d o r
preserva seu poder de trabalho e pode vendê-lo o u t r a vez se
e n c o n t r a r c o m p r a d o r . . , E m o u t r a s p a l a v r a s , a lei n ã o é i n f r i n -
gida. Muito ao contrário, ganha oportunidade de vigência
perpétua.

O s elementos d a vida econômica associam-se d e a c o r d o com


f o r m a s p r e s c r i t a s p e l a lei, q u e é p a r t e d a i d e o l o g i a d e u m a
classe dominante. O u , nas palavras de R e n n e r : " E m sua ima-
g i n a ç ã o , eles s ã o a u t ô n o m o s , m a s n a r e a l i d a d e s ã o d o m i n a d o s
p o r um poder social."
E m seguida, R e n n e r procura d e m o n s t r a r em cuidadosos
d e t a l h e s que as forças legais constituíam a s u p e r e s t r u t u r a sob
a qual prosseguiram as relações reais d a p r o d u ç ã o capitalista
e q u e e s s a s f o r m a s f o r a m u s a d a s p a r a se rvir e p r o m o v e r t a i s
relações. Demonstra também que essas formas, a g r u p a d a s como
ideologia jurídica b u r g u e s a , ocultavam a restrição de fato e x e r -
cida pelos burgueses como empresários e financistas capita-
listas. E s s a d e s c r i ç ã o f a z eco a o s t e x t o s d o j o v e m M a r x , b e m
como à preocupação m o d e r n a d o s psiquiatras radicais com a
alienação. O u , n a s palavras de R. D. Laing:
Os h o m e n s f o r a m . . , s e m p r e pressionados, n ã o só pelo seu
sentido de s u b o r d i n a ç ã o ao destino, à casualidade, à s necessida-
des ou contingências externas que n ã o controlam, m a s t a m b é m
pelo senso de q u e s e u s p r ó p r i o s p e n s a m e n t o s e s e n t i m e n t o s , e m
seus interstícios m a i s íntimos, são a s conseqüências, os r e s u l t a n t e s
dos processos pelos quais passam.

A despeito da contribuição excepcional e importante de


R e n n e r ao e s t u d o d a ideologia jurídica burguesa, é falsa sua
PRINCIPAIS ESCOLAS DE PENSAMENTO JURÍDICO 295

opinião de que as n o r m a s legais p e r m a n e c e m as mesmas en-


q u a n t o seu c o n t e ú d o m u d a d e a c o r d o com a s c o n d i ç õ e s sociais.
M u i t o e m b o r a elas sejam de f a t o p r o d u t o — e m o d e l a d a s por
ele — d o s u b s t r a t o e c o n ô m i c o , a b u r g u e s i a a s m a n i p u l a e o
p o d e r d o E s t a d o a fim d e r e a l i z a r s e u s o b j e t i v o s . S e n o s c o n -
centramos apenas no contrato de trabalho e n o conceito de
posse de u m a propriedade, e se usamos, como faz R e n n e r ,
idéias do direito r o m a n o sobre essas relações, p o d e m o s dizer
que certas categorias jurídicas permaneceram imutáveis d u r a n t e
séculos. M a s isso cria u m a falsa i m p r e s s ã o : muito e m b o r a o
contrato de t r a b a l h o d o direito p r i v a d o n ã o t e n h a m u d a d o , o
direito público foi u s a d o p a r a e x p u l s a r t r a b a l h a d o r e s d e s u a s
terras e concentrá-los nas cidades e fazer cumprir a obriga-
ç ã o d e t r a b a l h a r . Isso, c o m o a d r á s t i c a r e f o r m u l a ç ã o d a s leis
dos pobres sob a influência b u r g u e s a , certamente implicou o
e m p r e g o d a ideologia jurídica p a r a influenciar o p r o g r e s s o d a s
relações econômicas. M a i s ainda, essas ações exigiram a cria-
ção e o cumprimento de formas legais. O contrato d e trabalhe
n ã o p o d e s e r v i s t o — c o m o f a z R e n n e r —• i s o l a d a m e n t e d e seu
c o n t e x t o social. A d e m a i s , R e n n e r d e d i c a a p e n a s e s c a s s a a t e n ç ã o
àqueles institutos auxiliares que f o r a m cruciais p a r a a ideologia
b u r g u e s a , d e i x a n d o implícito, a s s i m , q u e a d e f i n i ç ã o l e g a l b á s i c a
do direito de propriedade não mudou. M a s o fato é que. através
d a formulação deliberada d a ideologia, meios f o r a m e n c o n t r a -
dos p a r a erigir sistemas bancários, sociedade anônimas, e assim
por diante.
M a s h á outro aspecto inquietante na escolha das normas
l e g a i s p o r R e n n e r . S u a c o n c e n t r a ç ã o em c a t e g o r i a s d e n o r -
m a s r e t i r a d a s d o d i r e i t o r o m a n o isola o s p r i n c í p i o s d a i d e o l o g i a
g e r a l d a q u a l f o r a m p a r t e em c a d a p e r í o d o . E s s a s c a t e g o r i a s
tornam-se universais no sentido d e terem sobrevivido a idéias
j u r í d i c a s " p u r a s " , e x p r e s s a n d o , em u m a s p o u c a s p a l a v r a s l a t i -
nas, uma relação que de fato ocorre em numerosos contextos
sociais a o l o n g o d e u m p e r í o d o d e u m milênio. N a s a n t i g a s
cidades medievais, os códigos burgueses, c o n f o r m e tivemos opor-
tunidade d e ver acima, dispunham sobre o emprego da mão-
d e - o b r a e. a s s i m , s o b r e o Íocaíio c o n d u c í i o o p e r a r u m . E s t e
mesmo contrato forma o âmago também da relação de emprego
no século X I X . N o século XI, porém, o código municipal inves-
tia o c o n t r a t o d e t r a b a l h o , e x p r e s s a m e n t e c o m o q u e s t ã o d e
d i r e i t o , d e c e r t o c o n t e ú d o social — n ã o m a i s d o q u e u m t r a b a -
296 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

l h a d o r por mestre, e assim por diante. A ampliação permissível


do contrato de trabalho como expediente para a regulamenta-
ç ã o social c o n s t i t u i u q u e s t ã o d e i d e o l o g i a j u r í d i c a , u m a i d e o -
logia que continha pelo m e n o s u m mito: a suposição de qu2
restrições legais podiam deter o processo n a t u r a l d a a c u m u l a ç ã o
capitalista.
N o século X I X , a ideologia do capitalismo triunfante deu
praticamente liberdade ilimitada ao contrato de trabalho, embora
contivesse um mito diferente: o da liberdade, que Renner des-
mascara tão bem. S o m e n t e e x a m i n a n d o a ideologia como um
t o d o p o d e - s e i d e n t i f i c a r s u a v e r d a d e i r a f u n ç ã o social. R e n n e r ,
a l i á s , f a i a d e n o r m a s l e g a i s q u e p e r d e m s u a f u n ç ã o social s
m o r r e m . E s t e n ã o é, c o n t u d o , o d e s t i n o d o s e l e m e n t o s s e m
f u n ç ã o mais importantes d a ideologia. N a F r a n ç a , a burguesia
p o d e ter e n t r a d o a o s t r o p e ç õ e s n o século X I X , p a g a n d o à
nobreza tributos que eram definidos e exigidos de acordo com
u m a i d e o l o g i a j u r í d i c a q u e p e r d e r a s u a f u n ç ã o social e s e t r a n s -
f o r m a r a n u m o b s t á c u l o ao progresso. M a s , uma vez que se
apoiava no poder do E s t a d o e era sustentada pela força, a
velha ideologia não " m o r r e u " . Precisou ser assassinada.
F i n a l m e n t e , a c o n c e n t r a ç ã o d e R e n n e r no direito privado
t o r n o u s e u livro m e n o s útil d o q u e p o d e r i a ter s i d o . R e v e l a r
a f u n ç ã o social d e s e m p e n h a d a p e l o s i n s t i t u t o s d o d i r e i t o p r i v a d o
c o n s t i t u i tarefa valiosa; denunciar a realidade da coerção por
t r á s d a f a c h a d a l e g a l d a livre e s c o l h a e j u s t i ç a c o n s t i t u í p a r t e
indispensável daquilo que chamamos de jurisprudência da insur-
reição. U m d e t a l h a d o estudo da dependência crescente da b u r -
g u e s i a s o b r e o s i n s t i t u t o s d o d i r e i t o p r i v a d o p a r a lhe p r o t e g e r
os interesses e f o m e n t a r a crescente concentração de capital teria
desmentido convincentemente o fingimento de sua ideologia de
que o E s t a d o é o árbitro neutro de relações individuais entre
iguais. U m p o u c o de a t e n ç ã o ao direito público teria a p o n t a d o
o e r r o d e se insistir e m q u e a s f o r m a s l e g a i s d o d i r e i t o p r i v a d o
da burguesia permanecem relativamente imutáveis em períodos
h i s t ó r i c o s m u i t o d i f e r e n t e s 110 d e s e n v o l v i m e n t o d a s i n s t i t u i ç õ e s
capitalistas.
R e n n e r , n o e n t a n t o , e q u a c i o n o u u m a série d e q u e s t õ e s d e
s u m a i m p o r t â n c i a , q u e e n c o n t r a m o s n o s dois ú l t i m o s p a r á g r a f o s
d e s e u livro;
D a d o q u e , c o m o t u d o o m a i s s o b o sol, a s n o r m a s t ê m s u a s c a u s a s ,
o n d e se e n c o n t r a m e l a s ? D a d o q u e d e s f r u t a m u m a e x i s t ê n c i a real,
quais a s suas características, q u a l o m o d o de s u a existência.
PRINCIPAIS ESCOt.AS DE PENSAMENTO JURÍDICO 297

p c o m o se m o d i f i c a m ? D a d o q u e s u a s o r i g e n s se e n c o n t r a m n a s
condições de vida da raça h u m a n a , de que elas n a d a maia são
do que m e i o s de p r e s e r v a r a sociedade, q u e papel desempe-
n h a m elas r e a l m e n t e n a existência e desenvolvimento de nossa
geração?

T r a t a - s e de questões a b e r t a s de jurisprudência. É che-


g a d a a o p o r t u n i d a d e de e m p r e e n d e r u m a tentativa p a r a sua
solução.

19 - D.A.C.
22

A Jurisprudência
da Insurreição

N e m os rigores estéreis dos positivistas, nem os


sonhos dos entusiastas do direito natural e tampouco a visão
restrita de realistas e sociólogos servem p a r a descrever, e muito
m e n o s e x p l i c a r , o s m e i o s m e d i a n t e o s q u a i s a b u r g u e s i a inicial-
m e n t e c o n c i l i o u - s e c o m a i d e o l o g i a j u r í d i c a d o f e u d a l i s m o e,
mais tarde, abertamente, contestou-a e derrubou-a. E nenhuma
d e s s a s t e o r i a s e x p l i c a a s c o n t r a d i ç õ e s c a d a vez m a i s f l a g r a n t e s
que ora surgem n a s ordens jurídicas do Ocidente.
T o d a s essas escolas ou descrevem como instituição está-
tica a o r d e m j u r í d i c a c o n s t r u í d a p e l a b u r g u e s i a v i t o r i o s a , ou
d e a l g u m a m a n e i r a p r o c u r a m j u s t i f i c á - l a , ou t e n t a m e x p l i c a r a s
p a r t e s d e seu f u n c i o n a m e n t o i n t e r n o q u e d i z e m r e s p e i t o à s o l u -
ção de conflitos intestinos. N i n g u é m se p r e o c u p a em analisar
o s p r i m ó r d i o s r e v o l u c i o n á r i o s d a i d e o l o g i a ou e m i d e n t i f i c a r
a s f o r ç a s sociais q u e p o d e m g e r a r — t a m b é m p o r m e i o s r e v o l u -
cionários — uma n o v a ideologia jurídica dominante, baseada
em um d i f e r e n t e s i s t e m a d e r e l a ç õ e s sociais.
E m b o r a e s t e livro t r a t e d o s r e v o l u c i o n á r i o s b u r g u e s e s e m
si, t a m b é m e s t a m o s i n t e r e s s a d o s n o e m p r e g o d a i d e o l o g i a n a
l u t a p e l a m u d a n ç a social. A c h a m o s q u e u m a t e o r i a d e j u r i s p r u -
d ê n c i a d e v e t o r n a r tal e s t u d o s u a p r i n c i p a l p r e o c u p a ç ã o . N e s s a
conexão, podemos recordar as palavras de outro antigo estu-
d i o s o d o direito. K a r l M a r x . e s c r e v e n d o n o p r e f á c i o a Uma
Contribuição à Crítica da Economia Politica:
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 299

P u i levado por m e u s estudos à conclusão de que as relações


jurídicas, b e m c o m o a s f o r m a s do E s t a d o , n ã o p o d e m ser com-
p r e e n d i d a s p o r si m e s m a s n e m e x p l i c a d a s pelo c h a m a d o pro-
g r e s s o g e r a l d a m e n t e h u m a n a , m a s se r a d i c a m n a s c o n d i ç õ e s
m a t e r i a i s da vida, as quais são englobadas por Hegel, segundo
a m o d a dos ingleses e f r a n c e s e s do século X V I I I , sob o título
d e " s o c i e d a d e civil"; a a n a t o m i a d a s o c i e d a d e civil d e v e s e r
b u s c a d a n a e c o n o m i a politica. O e s t u d o d e s t a última, q u e iniciei
e m Paris, continuei em Bruxelas... A conclusão geral a que
cheguei e que, u m a vez a l c a n ç a d a , c o n t i n u o u a servir c o m o fio
condutor de m e u s estudos, pode ser brevemente r e s u m i d a da
s e g u i n t e m a n e i r a : n a p r o d u ç ã o s o c i a l e m q u e s e e m p e n h a m , os
h o m e n s e n t r a m e m relações d e f i n i d a s q u e s ã o i n d e p e n d e n t e s de
sua vontade; essas relações de produção correspondem a u m
estágio definido de desenvolvimento de seus poderes materiais
de p r o d u ç ã o . A s o m a total d e s s a s r e l a ç õ e s de p r o d u ç ã o constitui
a estrutura econômica da sociedade — o alicerce real sobre o
q u a l se e r i g e m a s s u p e r e s t r u t u r a s j u r í d i c a s e social, e à s q u a i s
c o r r e s p o n d e m f o r m a s d e f i n i d a s de consciência social. O modo
de p r o d u ç ã o n a vida m a t e r i a l d e t e r m i n a o c a r á t e r g e r a l dos
processos vitais sociais, políticos e espirituais. N ã o é a consciên-
cia dos h o m e n s que determina s u a existência, mas, ao contrário,
é a s u a existência social q u e lhes d e t e r m i n a a consciência. E m
certo estágio de seu desenvolvimento, a s forças materiais de
produção da sociedade e n t r a m em conflito com as existentes
relações de produção, ou — o que constitui apenas u m a expres-
são Jurídica da m e s m a coisa — c o m a s relações d e p r o p r i e d a d e
dentro das quais haviam trabalhado antes. D e f o r m a s de desen-
v o l v i m e n t o d a s f o r ç a s de p r o d u ç ã o , essas relações se t r a n s f o r -
m a m em grilhões. Chega em seguida o período da revolução
aocfal. C o m a m u d a n ç a do a l i c e r c e econômico, t o d a a i m e n s a
s u p e r e s t r u t u r a é m a i s ou m e n o s r a p i d a m e n t e t r a n s f o r m a d a .

E m b o r a , a o ler e s s e p a r á g r a f o , p o s s a m o s f i c a r c o m a i m -
pressão d e q u e M a r x p e n s a v a que a ideologia jurídica de um
d a d o s i s t e m a d e r e l a ç õ e s sociais s e m p r e s u s t e n t a v a , e m t o d o s
o s d e t a l h e s , e s s e s i s t e m a , o e s t u d o c o n c e n t r a d o q u e f a z d a legis-
lação de r e f o r m a n a Inglaterra d o século X I X , no primeiro
v o l u m e d e O Capital, d e v e d i s s i p a r q u a l q u e r idéia n e s s e s e n -
tido. D e q u a l q u e r modo, vimos q u e a c o n t r a d i ç ã o e n t r e v e l h a s
f o r m a s e n o v a s f o r ç a s sociais n ã o a t i n g e u m e s t á g i o crítico .—
o d a r e v o l u ç ã o social .— d e m o d o s ú b i t o . D e s d e o s a l b o r e s
do p o d e r u r b a n o inglês até a Revolução F r a n c e s a , transcorreu
um p e r í o d o de oitocentos anos. N e s s e período, será justo dizer
q u e a s i d e o l o g i a s j u r i d i c a s d o m i n a n t e s f o r a m p r o d u t o s d e sis-
t e m a s d e r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s e qtie o s p a l a d i n o s d e s t a o u
daquela ideologia estiveram a serviço de interesses econômicos?
A c h a m o s q u e sim.
300 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

V i m o s o b s e r v a n d o a b u r g u e s i a c o n s o l i d a r seu p o d e r em
c a d a p e r í o d o e, a t r a v é s d e m u d a n ç a na d i r e i t o , p ô r e l e m e n t o s
d e sua ideologia jurídica sob a égide d o E s t a d o . À m e d i d a que
isso a c o n t e c i a , m u d a v a a d e f i n i ç ã o l e g a l d a s r e l a ç õ e s s o c i a i s :
t e r r a s que h a v i a m sido p o s s u í d a s d e a c o r d o com o sistema
feudal tornaram-se a s s u n t o de contrato; terras que haviam sido
possuídas e m c o m u m f o r a m c e r c a d a s e os antigos p e q u e n o s
proprietários p a s s a r a m a cultivá-las o u p o r salários ou se t r a n s -
feriram para as cidades. O agricultor ou t r a b a l h a d o r pouca
o p ç ã o tinha q u a n t o ao tipo de relação social em que ingressava.
Podia trabalhar p a r a um ou outro proprietário, mas a forma da
b a r g a n h a •— c o n t r a t o o u n ã o . f e u d a l o u n ã o — e r a d e t e r m i -
n a d a pelo d o n o d a t e r r a .
A s idéias b u r g u e s a s sobre c o n t r a t o e p r o p r i e d a d e d a terra
n ã o se disseminaram s o b r e á r e a s mais e x t e n s a s por serem neces-
sariamente melhores do que outras; espalharam-se a partir dos
núcleos urbanos d o p o d e r b u r g u ê s p o r q u e r e p r e s e n t a v a m um
sistema de relações econômicas excepcionalmente a d a p t a d o ao
nível d a t e c n o l o g i a e c u l t u r a d e u m a d a d a é p o c a , e e r a i m p l a -
cável em sua tendência p a r a dissolver velhas relações de pro-
dução e troca. O u , como escreveu M a r x : " A agricultura vem a
ser, mais e mais. a p e n a s um r a m o da indústria, e é inteira-
mente dominada pelo c a p i t a l . . . O capital é o poder todo-
poderoso da sociedade burguesa."
Nesse processo, m u d a r a m continuamente as atitudes e
objetivos d a b u r g u e s i a , e n q u a n t o q u e se a m p l i a v a m os hori-
zontes de seus m e m b r o s . S u a s exigências m u d a r a m t a m b é m
e a burguesia esteve muito longe de ser um corpo unificado
n a maioria dos estágios d e seu desenvolvimento. O comércio
a r t e s a n a l u r b a n o c e d e u l u g a r à s trading companies internacio-
n a i s , e as i d e o l o g i a s d e g r u p o s b u r g u e s e s locais e n t r a r a m e m
c o n f l i t o com a s d o s m a i s p o d e r o s o s c o m e r c i a n t e s q u e a t u a v a m
a l o n g a d i s t â n c i a . O e s c u d o p r o t e t o r d a s g u i l d a s resistiu
apenas p o r p o u c o t e m p o à f o r ç a d a s n o v a s t é c n i c a s d e p r o -
d u ç ã o e a o s n o v o s m e i o s d e o r g a n i z a ç ã o legal, t r o c a e d i s -
tribuição.
T o d a s e s s a s m u d a n ç a s o c o r r e r a m n o seio d a u m a e s t r u t u r a
d e o r g a n i z a ç ã o p o l í t i c a q u e , pelo m e n o s e x t e r n a m e n t e , m a n -
tivera imutáveis seus elementos essenciais d e s d e o século X I .
O s monarcas, p a r a sermos exatos, haviam a u m e n t a d o seu p o d e r
e a f u n ç ã o militar d o sistema feudal caíra, n a maior parte, em
desuso. Príncipes f o r m a r a m alianças de v a n t a g e m mútua com
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 301

s e g m e n t o s d a b u r g u e s i a , e x t o r q u i n d o a p o i o f i n a n c e i r o em t r o c a
d c c o n c e s s õ e s legais. N a v e l h a i d e o l o g i a j u r í d i c a , e n c o n t r o u - s e
lugar p a r a inovações favoráveis ao crescimento e m a n u t e n ç ã o
d o comércio.
Q u a l a m e l h o r m a n e i r a d e d e s c r e v e r e s s e p r o c e s s o de
m u d a n ç a ? I n d i c a m o s já e s t á g i o s n a e x p a n s ã o d a c o n s c i ê n c i a
b u r g u e s a e na g r a d u a l formulação d e uma jurisprudência de
insurreição n a luta contra ideologias hostis. N o s s a t a r e f a agora
c o n s i s t i r á em f o r m u l a r u m a t e o r i a , u m a i d e o l o g i a j u r í d i c a e d c
j u r i s p r u d ê n c i a que descreva c o r r e t a m e n t e tais m u d a n ç a s , p o n h a
a n u a s l i g a ç õ e s e n t r e a i d e o l o g i a e o s i s t e m a d e r e l a ç õ e s sociais
e p e r m i t a - n o s a n a l i s a r m o v i m e n t o s era p r o l d a m u d a n ç a social
à luz d e s e u p o t e n c i a l r e v o l u c i o n á r i o .
Precisamos, porém, estabelecer u m a distinção entre oposi-
ç ã o a p a r t e s e s p e c í f i c a s da i d e o l o g i a d e u m E s t a d o , p r o c u r a n d o ,
por um lado, a m u d a n ç a a t r a v é s dos ó r g ã o s existentes e domi-
n a n t e s d o p o d e r e s t a t a l e, p o r o u t r o , a r e j e i ç ã o d e t o d o o sis-
t e m a c o m o ilegítimo. E s s a d i s t i n ç ã o é o t e m a d e d o i s d i á l o g o s
d e P l a t ã o , Apologia e Crito. E m Apologia. S ó c r a t e s c e n s u r a os
a t e n i e n s e s , d e f e n d e s e u direito d e t e r e n s i n a d o e f a l a d o c o m o
fez e c o n s i d e r a i n d i g n a d e r e s p e i t o t o d a e q u a l q u e r i d e o l o g i a
j u r í d i c a q u e n ã o p e r m i t a um c o m p o r t a m e n t o c o m o o seu, e m b o r a
s e d i s s e s s e q u e ele h a v i a c o r r o m p i d o a j u v e n t u d e e p r o f a n a d o
os d e u s e s . A o m e s m o t e m p o , t a l v e z p r e n u n c i a n d o a a t i t u d e q u e
t o m a r á e m Crito, d e f e n d e s u a c o n d u t a c o m o l e g i t i m a s o b a s
leis d e A t e n a s e n e g a a s a c u s a ç õ e s e s p e c í f i c a s q u e lhe s ã o f e i t a s .
A p e s a r disso, é c o n d e n a d o à m o r t e .
M a i s t a r d e , C r i t o vai v i s i t a r o c o n d e n a d o S ó c r a t e s em s u a
cela e lhe diz q u e s e u s a m i g o s t ê m u m p l a n o p a r a t i r á - l o dali.
Sócrates recusa a a j u d a e discursa sobre a importância do Esta-
d o . O E s t a d o o e d u c o u e lhe d e u u m l u g a r n o m u n d o , d e f i n i u
em a l g u m s e n t i d o os t e r m o s d e s u a e x i s t ê n c i a e ele lhe d e v e o b e -
diência, e m b o r a o t e n h a c o n d e n a d o à morte i n j u s t a m e n t e . P o d e -
se p r o c u r a r m u d a r a o r d e m e x i s t e n t e , m a s o i n d i v i d u o d e v e
aceitar a derrota às suas mãos a o reconhecer-lhe a legitimidade
da reivindicação a governar. Sócrates, por conseguinte, assumiu
u m a a t i t u d e m u i t o l o n g e d e i n s u r g e n t e , a o m e s m o t e m p o em q u e
p r o c u r a v a m u d a r a ideologia do E s t a d o , cujo p o d e r reconhecia.
C o n s i d e r e m o s m a i s u m a vez o c a s o a n t e r i o r m e n t e d e s -
crito d e um p a c í f i c o v a l e o c u p a d o p o r b a n d o l e i r o s . O c h e f e e
s e u s c a p a n g a s i m p õ e m a o p o v o um s i s t e m a d e r e g r a s g a r a n t i n d o
direitos e estabelecendo certos deveres. T o d o s compreendem cia-
302 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

r a m e n t e q u e as injunções, em que f o r m a tomarem, d e v e m ser


consideradas autorizadas tanto no caso de injunções generaliza-
d a s como as endereçadas a indivíduos isolados. O sistema d e
r e g r a s i m p l a n t a d o pelo b a n d o l e i r o - c h e f e , e feito c u m p r i r p o r
s e u s c a p a n g a s , seria, n u m a d e s c r i ç ã o p o s i t i v i s t a , c h a m a d o d e
" l e i " .— u m a o r d e m j u r í d i c a o u i d e o l o g i a j u r í d i c a a p o i a d a s p e l o
p o d e r d o E s t a d o — e isso s e r i a s u f i c i e n t e , p o i s s a b e r í a m o s
quem exercia o poder soberano e o monopólio da violência legí-
tima. E s s a análise, porém, n ã o n o s levaria muito longe, m e s m o
em s e n t i d o descritivo. P a r a o povo, que p o d e mais u m a vez,
após certo tempo, começar a d a r sinais de inquietação sob
o g o v e r n o do bandoleiro e a organizar resistência a o mesmo,
a c o n d u t a talvez n ã o seja p a u t a d a da maneira q u e parece ser
pelas r e g r a s do b a n d i d o , m e s m o n o s casos e m que a maioria
dos cidadãos parece acatá-la.
P o d e h a v e r , p o r exemplo, um p e r í o d o d u r a n t e o q u a l é
testada a flexibilidade da ideologia do bandoleiro. T e n t a t i v a s
serão feitas para modificar-lhe a substância ou aplicar seus
termos ( n a s ocasiões em que surgirem a m b i g ü i d a d e s ) de m o d o s
v a n t a j o s o s para o povo. M a i s ou menos o p o r t u n i d a d e será
e n c o n t r a d a n a ideologia d o m i n a n t e p a r a conciliar essas reivindi-
c a ç õ e s d e j u s t i ç a ; se m e n o s , a r e i v i n d i c a ç ã o d o s b a n d o l e i r o s
à obediência dos dominados começará a corroer-se na prática.
M a i s tarde, talvez, o povo, ou u m a p a r t e dissidente dele,
p o d e r e f o r m u l a r a s leis f o r m a i s c o m o " m á x i m a s d e p r u d ê n c i a " ,
d e s t i n a d a s a minimizar as conseqüências d a n o s a s da ilegalidade.
D a n d o u m exemplo, se a r e g r a é q u e "três ou mais pessoas
n ã o p o d e m realizar reuniões políticas sem o consentimento d o
bandoleiro-chefe", os dissidentes podem tomar precauções de
sigilo. A r e g r a é f o r m u l a d a c o m o m á x i m a d e p r u d ê n c i a , d i z e n d o
q u e "três ou mais pessoas n ã o p o d e r ã o realizar reuniões polí-
ticas q u e permitam às autoridades provar, mediante uso dos
m e i o s a c e i t o s d e p r o v a e u m quantum suficiente de evidência,
que a reunião ocorreu e q u e m esteve p r e s e n t e " . A i n d a assim,
os dissidentes e m p e n h a d o s n a o r g a n i z a ç ã o de tais reuniões
p o d e m e s t a r dispostos a aceitar a legitimidade d a p u n i ç ã o im-
posta pelo E s t a d o se s u a s atividades forem descobertas, embora
a r g u m e n t e m vigorosamente no tribunal que n ã o devem ser con-
d e n a d o s , p o r f a l t a d e p r o v a ou p o r q u e a r e g r a c o n t r a r e u n i õ e s
n ã o se c o a d u n a nem é essencial aos princípios básicos d a o r d e m
jurídica do bandoleiro. N e s s e processo, a ideologia jurídica
c o n f r o n t a a ideologia jurídica. A exposição d a s alegações con-
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 303

trárias nos tribunais, bem como a elaboração de máximas de


prudência inteligentes, cabe àqueles treinados n o estudo do
direito. P o d e mesmo acontecer q u e uma compartilhada e p r o f e s -
s a d a consideração poc u m a tradição jurídica comum u n a b a n -
doleiros e povo, e forme a base d a s exigências deste último d e
q u e o s p r i m e i r o s se c o m p o r t e m d e u m a c e r t a m a n e i r a .
O s advogados dos dissidentes estarão também procurando
d e m o n s t r a r a v e r d a d e i r a f u n ç ã o social — repressiva — d a s
injunções ostensivamente neutras dos bandoleiros. Jurisconsul-
tos e ideólogos jurídicos — que n e s t e caso p o d e m ser c h a m a d o s
de advogados — serão convocados pelos dissidentes para avaliar
a e x t e n s ã o em q u e a s n o r m a s d o s b a n d o l e i r o s p o d e m a c o l h e r
a s reivindicações de justiça do p o v o . N o fim, c o n t u d o , o p r o -
c e s s o d e a c o m o d a ç ã o p o d e v i r a s e r c o n s i d e r a d o inútil se a
ideologia jurídica dos bandoleiros n ã o puder m u d a r o suficiente
para a b r a n g e r as exigências f u n d a m e n t a i s da população.
Q u a n d o essa avaliação — de que não pode haver u m a aco-
m o d a ç ã o d u r a d o u r a — torna-se p a r t e d a ideologia dos dissi-
d e n t e s , s e r v e c o m o a r g u m e n t o p a r a a r e v o l u ç ã o social. V i m o s
a l g o p a r e c i d o c o m isso n o s d e b a t e s d o s E s t a t e s - G e n e r a l a n t e s
d e que eles se t r a n s f o r m a s s e m na Assembléia N a c i o n a l . O s
ideólogos jurídicos d o novo regime diziam, com efeito: " O velho
r e g i m e , c o m s e u s Parlements, cortesãos e parasitas, deu-nos
tudo que podia. Seus oferecimentos de acomodação constituem
ilusões; s u a i d e o l o g i a j u r í d i c a n o s diz q u e p r o g r e s s o u l t e r i o r é
p o s s í v e l , m a s i s s o c o n s t i t u i a p e n a s u m a i n d i c a ç ã o d e q u e a \ei
transformou-se na mentira que o regime conta ao povo". A
A s s e m b l é i a s i m p l e s m e n t e f o r m u l o u a q u i l o em q u e g r a n d e n ú m e r o
de pessoas viera a acreditar, e a agir nessa conformidade.
M a s h á o u t r a maneira pela qual a ideologia e os a d v o g a -
dos podem tornar-se importantes no processo de mudança revo-
l u c i o n á r i a : t r e i n a d o s em f o r m a ç ã o j u r í d i c a , e l e s a u x i l i a m o
g r u p o insurgente a construir sua própria ideologia interna. O s
d i s s i d e n t e s c r i a m e s t i l o s d e v i d a , t r a b a l h o e r e l a ç õ e s e n t r e si.
b a s e a d a s em confiança mútua e experiência compartilhada em
u m a e m p r e s a c o m u m . A l g u m a s d e s s a s r e l a ç õ e s e estilos d e t r a -
b a l h o p o d e m obter reconhecimento d a ideologia dominante
c o m o p a r t i d o s políticos, s o c i e d a d e s a n ô n i m a s , c o m u n i d a d e s f u n -
d a d a s p a r a u m fim e s p e c i f i c o — d a n d o a o s d i s s i d e n t e s u m a
esfera d e autonomia dentro da qual podem refinar e testar seus
p r i n c í p i o s . N o s c a s o s e m que t a l r e c o n h e c i m e n t o n ã o é c o n -
cedido. e até q u a n d o a contra-organização é expressamente
304 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

p r o i b i d a , os d i s s i d e n t e s s e r e l a c i o n a m e n t r e si d e m a n e i r a s q u e .
como grupo, estabelecem. Possuem uma ideologia interna e
discutem e vivem os princípios jurídicos de uma organização
s o c i a l a l t e r n a t i v a à q u e l a o n d e se e n c a r t a m . T a l a t i v i d a d e p o d e
lançar os f u n d a m e n t o s d o s princípios d a ideologia jurídica do
E s t a d o , que será aplicada se os bandoleiros forem d e r r u b a d o s .
O estabelecimento pelos m e m b r o s d a resistência da e x t e n s ã o
em q u e as reivindicações d e justiça p o d e m ser conciliadas
d e n t r o das r e g r a s dos bandoleiros, as m a n e i r a s como os m e m -
b r o s d a r e s i s t ê n c i a s e c o m p o r t a m e n t r e si e a s f o r m a s a l t e r n a t i -
v a s d e o r g a n i z a ç ã o social p r e n u n c i a d a s p o r s u a c o n d u t a — t u d o
isso difere, e m princípio, d a o p e r a ç ã o d a s organizações volun-
tárias que reconhecem a supremacia dos bandoleiros. E é dife-
r e n t e d o s a g r e g a d o s c o m u n s de criminosos tanto no c o n t e ú d o de
s u a s p r o p o s t a s d e o r g a n i z a ç ã o social — a i d e o l o g i a j u r í d i c a —•
como n a f u n ç ã o revolucionária que sua resistência a s s u m e e no
papel que representa historicamente.
A o a n a l i s a r d e f o r a a a t i v i d a d e d e r e s i s t ê n c i a 110 vale, p o d e -
mos fazê-lo de várias perspectivas. P o d e m o s questionar os valo-
res dos rebeldes. P o d e m o s contestar-lhes o julgamento sobre
a e x t e n s ã o e m q u e a s n o r m a s d o s b a n d o l e i r o s p o d e m ser c u r v a -
d a s às suas exigências. P o d e m o s considerar o apelo à revolução
como f a d a d o a o fracasso. M a s se reconhecermos que a resistên-
cia t e m p e l o m e n o s p o s s i b i l i d a d e d e s u c e s s o e. e m e s p e c i a l , s e
estamos e s t u d a n d o a história antiga de um movimento de resis-
tência q u e subiu ao poder, teremos que reconhecer que é errado
descrever como "lei" a p e n a s as injunções p r o f e r i d a s pelos b a n -
doleiros e aplicadas n u m determinado tempo. Muito embora tais
i n j u n ç õ e s p r e s s u p o n h a m um monopólio de violência de p a r t e
dos bandoleiros, o poder da resistência, em virtude de sua força
n u m é r i c a e tenacidade, é i g u a l m e n t e p a r t e d o processo de elabo-
r a ç ã o d a lei — c o m o q u e t e m o s e m m e n t e a s n o r m a s p e l a s
quais a s pessoas vivem na sociedade organizada, e que são
a p o i a d a s pelo p o d e r d o E s t a d o . O q u e c h a m a m o s d e "lei" n ã o
é, e m s u m a , u m s i s t e m a , m a s u m p r o c e s s o . D e s c r e v e r a lei c o m o
s i s t e m a é útil a p e n a s se r e c o r d a m o s q u e e s t a m o s d e s c r e v e n d o
u m a f o t o g r a f i a d e p o s e . útil p a r a r e g i s t r a r o e s t a d o d o s f a t o s
n u m d a d o m o m e n t o , m a s q u e n e d a n o s diz s o b r e a d i r e ç ã o ou
velocidade da mudança.
U m a vez t e n h a m o s reconhecido o caráter provisório de
q u a l q u e r descrição de u m a ideologia, m e s m o que s u s t e n t a d a
pelo poder do E s t a d o , teremos que fazer mais uma pergunta.
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 305

E m toclos o s s i s t e m a s s o c i a i s h à r e b e l d e s e b a n d i d o s sociais,
todos os quais exercem p r e s s ã o sobre a ideologia do E s t a d o
e t o d o s o s q u a i s f o r m u l a m , m a i s o u m e n o s e x p r e s s a m e n t e , ideo-
l o g i a s p r ó p r i a s . A c a s o d e v e m o s , c o m o W e b e r , c o l o c á - l o s em
u m ú n i c o g r u p o p a r a o fim d e a n á l i s e e c h a m a r t o d a s a s s u a s
ideologias de "convenções"?
Se quisermos compreender a dinâmica da jurisprudência
ou m u d a n ç a s na i d e o l o g i a j u r í d i c a , e se q u i s e r m o s a p r e e n d e r o
significado essencial da jurisprudência da insurreição, então a
resposta deve ser não. D u r a n t e o período que vimos estudando,
um n ú m e r o i n c o n t á v e l d e a s p i r a n t e s a o p o d e r p r o c u r o u i n f l u e n -
c i a r a i d e o l o g i a d o m i n a n t e e m e s m o s e c o n s i d e r a r a m em c o n -
flito f u n d a m e n t a l c o m o E s t a d o . L e m b r e m - s e , p o r e x e m p l o , d o s
movimentos comunais que ocasionalmente irromperam no cam-
p o na E u r o p a Ocidental, ou dos b a n d o s de bandoleiros que
seguiam as p e g a d a s da peste no Sul d a F r a n ç a , e que conse-
guiram durante algum tempo deter a marcha da burguesia para
a d o m i n a ç ã o e c o n ô m i c a da r e g i ã o . T o d o s eles f a l h a r a m , nu
e n t a n t o , e n q u a n t o os b u r g u e s e s t i v e r a m ê x i t o ; c o m e f e i t o , a
b u r g u e s i a p ô d e à s vezes i n v o c a r a a j u d a d o E s t a d o e x i s t e n t e
para destruir esses próprios grupos. O que então devemos estu-
d a r , a l é m d o c o n t e ú d o e c o n t r a d i ç õ e s d a i d e o l o g i a , a fim d e
classificar esses diferentes tipos de dissidência?
Precisamos descobrir que ideologia, n u m a determinada
é p o c a , e x p r e s s a a s a s p i r a ç õ e s d a c l a s s e ou g r u p o q u e f i n a l m e n t e
assume o poder e que representa a contradição fundamental
e n t r e o s i s t e m a d e r e l a ç õ e s sociais e x i s t e n t e e a q u e l e q u e o
substiiui. E m retrospecto, p o d e m o s ver o triunfo da o r g a n i -
z a ç ã o c a p i t a l i s t a d a p r o d u ç ã o . Isso, e apenas isso, s e p a r a a
burguesia dos bandidos e comunalistas.
À m e d i d a q u e crescia a c o n s c i ê n c i a d a s c o n t r a d i ç õ e s
f u n d a m e n t a i s , a ideologia c o n s t r u í d a 110 seio d a b u r g u e s i a
dissidente tornou-se sujeita a numerosas variações. O b r i g a d a
pelas situações tecnológicas e econômicas, pelas influências exer-
c i d a s d u r a n t e s é c u l o s pela i d e o l o g i a e n t ã o d o m i n a n t e , p o r seus
conflitos internos e pela f o r m u l a ç ã o de s u a s próprias metas, n
b u r g u e s i a fez o p ç õ e s em t o d o s o s p a í s e s . A s d i f e r e n t e s t r a j e t ó -
rias t o m a d a s pelas burguesias f r a n c e s a e inglesa deixam bem
claro este ponto, e a incapacidade d a s tentativas das burguesias
i t a l i a n a e a l e m ã d e u n i f i c a r s e u s p a í s e s até r e l a t i v a m e n t e t a r d e
constitui a p e n a s uma evidência adicional no particular.
306 I N S U l i l H - l r à O II J U R I S P R U D Ê N C I A

N ã o e r a q u e m e i o s n ã o p u d e s s e m s e r e n c o n t r a d o s , e m 1789,
para mediar as diferenças entre a nobreza francesa e a burgue-
sia, m a s o p r e ç o d a a c o m o d a ç ã o s e t o r n a r a t ã o a l t o q u e e s t e ú l t i -
m o g r u p o decidiu a s s u m i r u m a p o s t u r a i n s u r r e c i o n a l . E s s e p o n t o
é bem esclarecido p o r Louis B o u d i n :
De acordo com a filosofia marxista, u m sistema de produção
pode d u r a r a p e n a s e n q u a n t o a j u d a r , ou pelo m e n o s n ã o Impedir,
o desdobramento e plena exploração das forças produtivas da
s o c i e d a d e e d e v e c e d e r a o u t r o s i s t e m a q u a n d o se t r a n s f o r m a
e m o b s t á c u l o , e m grilhão, à produção. Dispensa dizer que
u m sistema torna-se u m obstáculo, u m grilhão n a produção,
q u a n d o p o d e e x i s t i r a p e n a s I m p e d i n d o a p r o d u ç ã o e desperdi-
çando o q u e J á f o i p r o d u z i d o . T a l s i s t e m a n ã o p o d e , p o r c o n s e -
guinte, d u r a r m u i t o , n ã o c o n s i d e r a n d o e m a b s o l u t o a possibili-
dade ou impossibilidade p u r a m e n t e mecânicas de s u a continuação.
T a l s i s t e m a t o r n a - s e historicamente impossível m e s m o que
m e c a n i c a m e n t e isso p o s s a a i n d a ser possível.

É insurgente a decisão de n ã o mais agir dentro d a velha ideo-


logia, d e realizar o " m e c a n i c a m e n t e " possível. T a l decisão, em-
b o r a t o m a d a p o r u m a classe, c r i s t a l i z a - s e e m t o r n o d o s p o u c o s
líderes que dão os primeiros passos. N ã o tem, p o r conseguinte,
um m o m e n t o histórico preciso.
M a s que pape] desempenha o advogado nesse processo?
F i g u r a mais contraditória dificilmente poderia ser encontrada.
D e s d e a criação da profissão ou sua nova f u n d a ç ã o em seguida
às C r u z a d a s , o papel dos a d v o g a d o s tem-se t o r n a d o crescen-
temente ambíguo. Eles sempre prestaram serviços àqueles que
p o d i a m p a g a r — os senhores, os príncipes, a Igreja, a burguesia.
T ê m por missão elaborar doutrina jurídica sob a égide d o poder
do Estado. Houve advogados que serviram habilmente seus
clientes. E r a m os tabeliães q u e d a v a m a f o r m a d e c o n t r a t o s
à q u i l o q u e i n t e r p r e t a v a m c o m o lei em n o m e d e t o d o s a q u e l e s
que podiam p a g a r - l h e s os honorários. E h o u v e outros que se
i d e n t i f i c a r a m com a c l a s s e em a s c e n s ã o e f i z e r a m p r e s s ã o p e l a
r e f o r m a . Q u a n d o t r a b a l h a v a m p a r a instituições b u r g u e s a s cria-
d a s pela revolta u r b a n a ou a r r a n c a d a s p o r u m a carta régia
d e l i b e r d a d e s , seu p a p e l e r a r a z o a v e l m e n t e d i r e t o , m a s q u a n d o ,
no g r a n d e movimento para o controle monárquico iniciado n o
século X I I I , foram crescentemente atraídos p a r a o "serviço
nacional" surgiram contradições.
S e o j u r a m e n t o d e l e a l d a d e d e u m a d v o g a d o a um p r í n c i p e
era posto em dúvida por sua opinião manifesta de que deter-
m i n a d a lei e r a t ã o m á p a r a o c o m é r c i o q u e d e v i a s e r m u d a d a
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇXo 307

— e s c n ã o m u d a d a , l a d e a d a , e se n ã o l a d e á v e l , c o m b a t i d a —•
então, o quê? N u m e r o s o s a d v o g a d o s resolveram a contradição
n a d a f a z e n d o e, a s s i m , l a n ç a n d o s u a s o r t e c o m o status quo.
I s s o n ã o s u r p r e e n d e •— b u r g u e s e s q u e n ã o e r a m a d v o g a d o s
p o d i a m ser e n c o n t r a d o s também d e s f r u t a n d o d o s privilégios do
patrocínio real.
O u t r o s a d v o g a d o s a serviço d e outros b u r g u e s e s , porém,
t r a b a l h a r a m p a r a elaborar princípios de ideologia a serviço da
insurreição. P o d e - s e sempre e n c o n t r a r um a d v o g a d o p a r a resol-
v e r c o n t r a d i ç õ e s p a r a s a t i s f a ç ã o d o cliente. S e a c o n t e s t a ç ã o
f e i t a a o E s t a d o p o r a d v o g a d o e c l i e n t e s e r e v e l a s s e séria
d e m a i s , a m b o s se a r r i s c a v a m a u m a p u n i ç ã o . N ã o h á d ú v i d a
d e q u e esse t i p o d e a d v o c a c i a foi útil n a a s c e n s ã o d a b u r g u e s i a
ao poder, nem tampouco a m e n o r dúvida d e q u e um rompi-
m e n t o declarado e n t r e os a d v o g a d o s b u r g u e s e s e os sistemas
f e u d a l e r e a l q u e l h e s d e u esse t i t u l o c e r t a m e n t e o c o r r e r i a .

A Insurreição em Roupagens Modernas

M o v i m e n t o s revolucionários contestam a g o r a os sistemas de


r e l a ç õ e s sociais c o n s t r u í d o s p e l a b u r g u e s i a i n s u r g e n t e , e p o d e -
mos observar em ação u m a nova jurisprudência da insurreição.
E s s e s movimentos têm u m a história q u e se a s s e m e l h a à ascensão
ao poder da burguesia e enfrentam os mesmos problemas de
acomodar suas exigências a aspectos da ideologia burguesa
a n t e s de d e c l a r a r - s e em conflito a b e r t o com ela.
A possibilidade de conciliação é a u m e n t a d a pela natureza
d u a l d a i d e o l o g i a b u r g u e s a —- a d e o s t e n s i v a m e n t e d e f e n d e r
os interesses relacionados com a p r o p r i e d a d e e u m a b s t r a t o
direito " h u m a n o " de proteção contra o p o d e r arbitrário, A luta
dos modernos movimentos revolucionários procura também,
c o m o fez a b u r g u e s i a , d o b r a r e l e m e n t o s d a i d e o l o g i a d o m i n a n t e
a fim d e s e r v i r a s e u s f i n s . N e s t a s e ç ã o , e x a m i n a r e m o s a d u a l i -
d a d e d a ideologia b u r g u e s a e a jurisprudência d e sua principal
contestatária e provável sucessora, a ideologia jurídica socia-
lista.
A s constituições americana, francesa e britânica declaram
que liberdade, lealdade e justiça devem ser p r o t e g i d a s pelo le-
gislativo do regime e por seus tribunais. Esses organismos esta-
belecem princípios, como liberdade de imprensa e expressão,
direito a julgamento justo e liberdade n a s esferas da proprie-
d a d e e do contrato. N o caso americano, alguns desses compro-
missos são p r o d u t o d e um p a s s a d o revolucionário, e n q u a n t o
308 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

o u t r o s f o r a m a c r e s c e n t a d o s e m s e g u i d a à g u e r r a civil, q u a n d o
foi d e s m a n t e l a d o o s i s t e m a d a e s c r a v i d ã o .
P o d e m o s falar com a l g u m a certeza sobre a s origens dessas
liberdades e d a s razões por que se desenvolveram. O s ideais
de propriedade e contrato eram fundamentais para a ascensão
ao poder. O u . como escreveu Engels:
Todos as revoluções, ató agora, t ê m sido revoluções p a r a defen-
d e r u m tipo de p r o p r i e d a d e c o n t r a outro. N ã o p o d e m d e f e n d e r
uni sem violar o outro. N a grande Revolução Francesa, a
propriedade feudal foi sacrificada p a r a salvar a propriedade
burguesa.

A o abolir o f e u d a l i s m o , a A s s e m b l é i a N a c i o n a l t e v e t o d o
o c u i d a d o em l a n ç a r a s p r o p r i e d a d e s f e u d a i s n a s m ã o s d o s c r e -
d o r e s d a n o b r e z a . I s s o foi c o n s e g u i d o a o c o n s i d e r a r - s e q u e o s
d e c r e t o s d e e x p r o p r i a ç ã o n ã o a f e t a v a m o s i n t e r e s s e s ein p r o -
p r i e d a d e feudal q u e haviam sido criados pela burguesia como
meios para g arantir seus empréstimos à nobreza. O triunfo d a
b u r g u e s i a a s s i n a l o u - s e . n o e n t a n t o , p o r u m a série d e c h o q u e s
c o m o E s t a d o f e u d a l , a r r a n c a n d o a q u i e ali p e d a ç o s o n d e s e u s
i n t e r e s s e s d o m i n a r i a m . N ã o foi a penas no instante revolucio-
nário da expropriação por uma Assembléia N a c i o n a l vitoriosa
q u e a burguesia ampliou o escopo de ação de ideologias jurídi-
c a s c o n v e n i e n t e s d e p r o p r i e d a d e e d e t é c n i c a s .— c o n t r a t u a i s —•
de t r a t a r tais interesses.
A parcela da burguesia que esteve em revolta — muitas
v e z e s c o n t r a u m a c o a l i s ã o q u e incluía b u r g u e s e s q u e h a v i a m f e i t o
a s p a z e s c o m a i d e o l o g i a d o m i n a n t e •— f o r m u l o u p r i n c í p i o s n o
interesse de sua própria c a m p a n h a em prol da liberdade de
propriedade e contrato. Exigiu liberdade de expressão e culto
p a r a melhor o r g a n i z a r e m a n t e r a solidariedade n u m a época
em q u e a I g r e j a o f i c i a l s e r v i a c o m o m e i o d e c o n t r o l e social.
U m a vez que foram bem cedo considerados como conspiradores
e, p o r t a n t o , p e r i g o s o s —• b a s t a l e m b r a r o s t r a b a l h o s d e B e a u -
m a n o i r em 1 2 8 3 e o s i n q u é r i t o s s o b r e a s r e v o l t a s u r b a n a s inicia-
d a s n o século X I I — os b u r g u e s e s insurgentes resistiram aos
r i g o r o s o s e f r e q ü e n t e m e n t e b á r b a r o s s i s t e m a s d e j u s t i ç a crimi-
n a l . a s s u m i n d o e m r e l a ç ã o a e l e s u m a p o s t u r a crítica.
D u a s conclusões emergem do estudo da ascensão da bur-
guesia: a primeira é que a ideologia jurídica é a expressão da
l u t a social, e q u e e l e m e n t o s e s p e c í f i c o s d a i d e o l o g i a d e um
g r u p o são r e s u l t a d o s d e l u t a s n a s q u a i s ele s e e m p e n h a e se
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 309

e m p e n h o u . A s e g u n d a , e d e vital i m p o r t â n c i a p a r a a j u r i s p r u -
dência dos dias presentes e sua contestação da ideologia, é
que o sistema de liberdade burguesa, em seus grandes dimen-
s i o n a m e n t o s , s e p a r a - s e ein d u a s p a r t e s b e m c l a r a s . A p r i m e i r a
trata como matéria concreta e i n t e g r a d a na ideologia os prin-
c í p i o s d e p r o p r i e d a d e e c o n t r a t o s o b r e o s q u a i s r e p o u s a o sis-
t e m a c a p i t a l i s t a , e. p r e v i s i v e l m e n t e , a d m i t e o e m p r e g o d o
p o d e r d o E s t a d o p a r a d e f e n d e r e s s a s l i b e r d a d e s . A segund.»
consiste nos princípios legais que a burguesia promoveu como
e s s e n c i a i s à s u a c a m p a n h a politica p a r a c o n q u i s t a r o p o d e r .
A m b o s os c o n j u n t o s d e p r i n c í p i o s f o r a m j u s t i f i c a d o s com invo-
c a ç ã o d a i d e o l o g i a d o direito n a t u r a l , q u e c o n s t i t u i u o emblein.i
e s p e c i a l d a b u r g u e s i a à é p o c a d e s u a c a m p a n h a f i n a l p a r a con-
quista do poder.
Poderíamos esperar encontrar atitudes jurisprudenciais
m u i t o d i f e r e n t e s e m r e l a ç ã o a e s s a s d u a s t e n d ê n c i a s e isso, d e
fato, ocorre. T e o r i a s de p r o p r i e d a d e e contrato foram reformu-
l a d a s e e l a b o r a d a s d e a c o r d o c o m a s n e c e s s i d a d e s d e u m sis-
tema crescentemente centralizado e monopolizado de produção.
O s princípios de liberdade pessoal e de tratamento justo para
com o i n d i v í d u o e s t ã o s o f r e n d o a t a q u e s c a d a v e z m a i s v i o l e n t o s
p o r p a r t e d e e l e m e n t o s d a c l a s s e d o m i n a n t e , e n q u a n t o ela se
d e s v e n c i l h a d e s e u s s e n t i m e n t o s r e v o l u c i o n á r i o s e é e m si
mesma desafiada. Dispensa dizer que a burguesia nenhum
d e s e j o tem d e s e r s u b s t i t u í d a p o r u m g r u p o q u e se a p r o v e i t e
d a s m e s m a s l i b e r d a d e s s o b r e a s q u a i s ela se a p o i o u e d e f e n d e u .
O s c o n t e s t a d o r e s d o p o d e r b u r g u ê s têm s i d o m u i t o s , m a s é claro
agora que, entre os muitos p r e t e n d e n t e s , o socialismo marxista,
q u e e s t a b e l e c e u o m o d e l o d e r e v o l u ç ã o m u n d i a l n e s t e século, é
o que tem maior probabilidade de conseguir substituí-lo. Q u a n d o
M a r x descreveu as tendências imanentes do capitalismo para a
irracionalidade e o colapso, sua tese talvez tenha provocado
dúvidas. Isso n ã o mais acontece.
N a s páginas seguintes, discutiremos brevemente alguns dos
contestatários d a ideologia jurídica b u r g u e s a e os problemas de
que trata a nova jurisprudência da insurreição. ( U m estudo
d e t a l h a d o d e s s a s q u e s t õ e s f o g e a o e s c o p o d e s t e livro.)
P r e s e n c i a m o s h o j e e m d i a u m p r o c e s s o p a r a l e l o a o que
esboçamos em nosso estudo da ascensão da burguesia ao poder.
R e i v i n d i c a ç õ e s d e justiça e s t ã o s e n d o v a z a d a s , p o r g r u p o s d i s -
s i d e n t e s , sob a f o r m a d a e x i g ê n c i a d e q u e a i d e o l o g i a d o m i n a n t e
seja interpretada de maneiras diferentes. N a esfera do contrato
310 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

e da propriedade, reivindicações a igual acesso à riqueza nacio-


nal estão sendo a p r e s e n t a d a s a tribunais e órgãos legislativos.
E s s a s exigências legislativas enfatizam os valores antimonopólio
e igualitários d a ideologia burguesa. N a esfera da liberdade
pessoal, os dissidentes citam as alegações d e liberdade de asso-
ciação e honestidade processual da ideologia dominante a fim
de p r o t e g e r seu direito de organizar, de fazer prosélitos e d e -
f e n d e r - s e contra os a t a q u e s d a s instituições do p o d e r d o E s t a d o .
O P r o f e s s o r A r t h u r K i n o y , n u m e n s a i o p u b l i c a d o e m 1972.
analisou o papel do advogado nesse processo:
O pape) especial do a d v o g a d o no s i s t e m a consiste em f a z e r
com que o m e s m o p a r e ç a bom, em d a r pelo m e n o s a a p a r ê n c i a
d e Justiça, c o m o u m a decisão d a S u p r e m a Corte tão f r a n c a m e n t e
colocou. M a s é esse próprio papel atribuído ao a d v o g a d o que
lhe d á meios de ser especialmente eficaz a t u a l m e n t e n a l u t a
p a r a garantir e preservar essas formas, e n q u a n t o a classe
d o m i n a n t e se dispõe, por m e d o ou desespero, a abandoná-las e
d e s t r u i - l a s . I s s o , p o r é m , e x i g e f l e x i b i l i d a d e , h a b i l i d a d e e, a c i m a
d e tudo, c o m p r e e n s ã o d e p a r t e d o a d v o g a d o r a d i c a l . D e v e ele
procurar todás as oportunidades p a r a denunciar, dentro do
contexto d a própria a r e n a judiciária, o fato extraordinário de
q u e os g o v e r n a n t e s e s e u s s e r v i d o r e s n o s i s t e m a judiciário, s e j a m
eles promotores, s e j a m juízes, estão virando-se contra seu
próprio sistema, estão abandonando suas próprias normas
p r o c l a m a d a s , d e s t i n a d a » c e r t a vez, e m u m a e r a p a s s a d a , a cor-
porificar os então revolucionários princípios de eqüidade,
igualdade, justiça e liberdade.

C i t a K i n o y os d o i s e n v o l v i m e n t o s d e F i d e l C a s t r o coin a
j u s t i ç a c u b a n a e m 1952 e 1953. D u a s s e m a n a s a n t e s d o g o l p e
d e e s t a d o d e F u l g ê n c i o B a t i s t a , e m 1952, C a s t r o , n a q u a l i d a d e
de advogado, fez u m a petição a uma corte de H a v a n a , exigindo
q u e Batista e seus cúmplices fossem presos e a c u s a d o s de vio-
lações d o C ó d i g o de D e f e s a Social, por p r e p a r a r e m u m a insur-
r e i ç ã o a r m a d a . A p e t i ç ã o foi i g n o r a d a . U m a n o m a i s t a r d e ,
a p ó s o g o l p e d e B a t i s t a , C a s t r o foi p r e s o e m seu f r a c a s s a d o
a t a q u e a o q u a r t e l d e M o n c a d a . E m s e u j u l g a m e n t o , ele f a l o u
em d e f e s a do direito de revolução e recordou que t e n t a r a levar
à a t e n ç ã o das autoridades, d e m o d o legal, as queixas que haviam
m o t i v a d o o s a t a c a n t e s d e M o n c a d a . D i s s e ele:
Os senhores r e s p o n d e r ã o que, n a p r i m e i r a ocasião, a corte não
pôde agir porque a força a Impediu de assim proceder, Bem,
e n t ã o c o n f e s s e m : d e s t a vez a f o r ç a os o b r i g a r á a c o n d e n a r - s e .
N a p r i m e i r a vez, os s e n h o r e s f o r a m i n c a p a z e s d e p u n i r os
c u l p a d o s ' A g o r a s e r ã o o b r i g a d o s a p u n i r o I n o c e n t e . A fllhu.
v i r g e m d a justiça foi d u a s vezes violentada!
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 311

A s u b s e q ü e n t e c o n d e n a ç ã o d e C a s t r o p e l o t r i b u n a l militar
constituiu uma dramática confirmação de que o sistema de
p o d e r estatal havia posto de l a d o p a r t e de s u a própria ideologia
jurídica. A s reivindicações de justiça d a parcela d a p o p u l a ç ã o
c u b a n a que compartilhava das idéias de C a s t r o n ã o podiam ser
mais a c o m o d a d a s d e n t r o da ideologia jurídica oficial. O período
d e atividade revolucionária subseqüente presenciou a formação
n ã o só de u m a força a r m a d a revolucionária, m a s a implantação,
em á r e a s sucessivamente maiores d o país, de uma ideologia
alternativa apoiada nessa força.
P o d e m o s e n c o n t r a r a mesma evolução d e conciliação para
u m a ideologia d o m i n a n t e , para u m a luta com a finalidade de
elaborar uma ideologia no sentido de atender às exigências dos
dissidentes e p a r a u m a atitude de revolta d e c l a r a d a em um certo
n ú m e r o de países d o T e r c e i r o M u n d o e, mais recentemente,
em Portugal.
N o s Estados Unidos, a esquerda — negra, morena e
também de outras tonalidades d o Terceiro M u n d o , bem como
b r a n c a — aplicou g r a n d e energia nas últimas d é c a d a s p a r a
forçar as instituições encarregadas d a interpretação e aplicação
d a i d e o l o g i a j u r í d i c a a h o n r a r e m a s g a r a n t i a s b á s i c a s d e liber-
d a d e e e q ü i d a d e . A ação judicial, muitas ve2es sob a f o r m a de
" c a s o d e t e s t e " , c o n s t i t u i u o p r i n c i p a l meio d e l u t a . R e d u z i n d o -
se a o s p o u c o s a s p o s s i b i l i d a d e s d e a t e n d e r p o r e s s e s m e i o s à s
suas reivindicações de justiça, e i g n o r a n d o a m á q u i n a d e r e p r e s -
s ã o d o E s t a d o a t é m e s m o a s n o r m a s q u e e r a m f o r m a l e explici-
t a m e n t e p a r t e s d a ideologia b u r g u e s a , a e s q u e r d a a m e r i c a n a
d e i x o u d e f a z e r u r n a crítica à i d e o l o g i a e d e e l a b o r a r - l h e u m a
alternativa.
A s exigências d a esquerda têm sido dirigidas aos d e t e n -
tores públicos e privados do poder, e esse fato é básico para
u m a análise critica d a ideologia b u r g u e s a . O s d e t e n t o r e s do
p o d e r p o l í t i c o e s t ã o , n a t u r a l m e n t e , s u j e i t o s , a o q u e se p r e s u m e ,
às injunções constitucionais relativas à, por exemplo, não dis-
c r i m i n a ç ã o p o r m o t i v o d e r a ç a e, e m a l g u m a s c i r c u n s t â n c i a s ,
f o r a m c o n s i d e r a d o s obrigados a remediar o impacto d a discrimi-
n a ç ã o passada. E s s a obrigação, porém, n ã o a b r a n g e em geral
o d e v e r de recorrer à bolsa pública p a r a financiar p r o g r a m a s
d e a s s i s t ê n c i a . A i n j u n ç ã o c o n s t i t u c i o n a l d e p r o t e ç ã o i g u a l em
g e r a l n ã o se a p l i c a à c o n d u t a d e p e s s o a s p r i v a d a s , e o " d e v e r "
de e m p r e g a d o r e s , m e s m o de sociedades a n ô n i m a s , limita-se h a -
bitualmente a obedecer às injunções dos institutos de n ã o dis-
312 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

criminação do E s t a d o e a d a r a contribuição ao bem-estar


público que possa ser feita pelo p a g a m e n t o dos impostos devi-
dos. O r g a n i z a ç õ e s n e g r a s c o n t e s t a r a m a idéia de que os d e t e n -
tores do poder privado não são responsáveis perante aqueles
c u j a v i d a a f e t a m . S u a critica à s o c i e d a d e a m e r i c a n a c o m o e s s e n -
cialmente racista pede que não só a s g r a n d e s e m p r e s a s mas
t a m b é m as a u t o r i d a d e s públicas c o m p e n s e m anos de discrimi-
n a ç ã o e criem n o v a s f o r m a s econômicas e políticas p a r a q u e
conglomerados públicos e privados de p o d e r sejam tornados
responsáveis p e r a n t e as vítimas do exercício do poder. E m
parte, essas exigências r e p o u s a m sobre a asserção de que as
i n s t i t u i ç õ e s e c o n ô m i c a s e sociais a m e r i c a n a s c o l h e r a m a s v a n t a -
g e n s do racismo nos últimos cem a n o s a t r a v é s d a s u p e r e x p l o r a -
ç ã o d o s negros, e que essa c o n d u t a criou u m a obrigação, em
sentido bem específico, d e reembolsar a atual geração de n e g r o s
pelo pedágio extorquido de gerações anteriores. A afirmação
de que os d e t e n t o r e s d a p r o p r i e d a d e p r i v a d a têm a obriga-
ção d e usá-la responsavelmente repousa, por conseguinte, s o m e
premissas implícitas qualitativamente d i f e r e n t e s d a a f i r m a ç ã o
de que o E s t a d o deve garantir, como questão de princípio cons-
titucional, que seu poder seja u s a d o de m o d o não discrimina-
t ó r i o q u a n d o i n f l u e n c i a ou a p ó i a o s a t o s d e p r o p r i e t á r i o s p r i -
vados.
A r e f e i ç ã o d a idéia d e q u e a " p r i v a c i d a d e " d a p r o p r i e d a d e
isola-a da reivindicação de que seja u s a d a responsavelmente
foi a c o m p a n h a d a p e l o r e c o n h e c i m e n t o d e q u e o p o d e r d o E s t a -
do coloca-se presumivelmente por trás d o s desejos de todos os
p r o p r i e t á r i o s p r i v a d o s d e f a z e r o q u e q u i s e r e m com a q u i l o q u e
é "seu", suposição s u p e r a d a a p e n a s por específicos e limitados
p r o n u n c i a m e n t o s legislativos e judiciais, r e s t r i n g i n d o a aliena-
ção ou o u s o d a propriedade d e alguém. O s capitalistas, con-
f o r m e vimos, exercem u m p o d e r e n o r m e . P o r t r á s d a reivindica-
ção à p r o p r i e d a d e p r i v a d a c o l o c a - s e u m a i m p r e s s i o n a n t e m a s s a
d e polícia e o u t r a s f o r ç a s p ú b l i c a s a fim d e g a r a n t i r - l h e s o q u e
é "deles". N e g r o s nortistas e sulistas, q u e militam no m o v i m e n t o
em prol d a m u d a n ç a social, d e s c r e v e m o E s t a d o , p o r c o n s e -
g u i n t e , n ã o c o m o u m á r b i t r o n e u t r o d a s f o r ç a s sociais o p o s t a s ,
m a s c o m o p r o t e t o r d a q u e l e s q u e p o s s u e m o s meios o s t e n s i v a -
m e n t e p r i v a d o s d e e x p l o r a ç ã o e r e p r e s s ã o . P o r e s s e motivo, s u a
l u t a r e v e l a d e início u m a a l i a n ç a c o m a s f o r ç a s d o " E s t a d o " ,
ou direito p o s i t i v o , e, e m s e g u i d a , a c r e s c e n t e c o m p r e e n s ã o q u e
a exigência de "justiça para os negros" é inerentemente revo-
lucionária n a A m é r i c a m o d e r n a .
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 313

P o d e r í a m o s c i t a r n u m e r o s o s e x e m p l o s cie c o n f r o n t a ç ã o
e n t r e a i d e o l o g i a b u r g u e s a d a f o r m a h o j e a d m i n i s t r a d a e a insis-
t e n t e e x i g ê n c i a d e v á r i o s g r u p o s dissidentes-, g v u p o s d e e s t u -
d a n t e s e moços, jovens t r a b a l h a d o r e s n a s á r e a s u r b a n a s , e assim
por diante. O s pormenores podem variar, mas o q u a d r o per-
manece o mesmo: o sistema de organização da produção para
o lucro p r i v a d o não pode a t e n d e r às necessidades d o povo e a
i d e o l o g i a jurídica d o g r u p o d o m i n a n t e t a m p o u c o p o d e a t e n d e c -
l h e a s e x i g ê n c i a s d e l i b e r d a d e e e q ü i d a d e . P o u c o s d e s s e s movi-
m e n t o s e m p r o l d a m u d a n ç a t ê m c o n s c i ê n c i a d e c l a s s e ou n e l a
estão b a s e a d o s , e não sugerimos que s u a s lutas s e j a m mais do
que precursoras do conflito de classe. D a mesma f o n n a que
aconteceu com a contestação do f e u d a l i s m o pela burguesia,
p o d e - s e e s p e r a r q u e a c o n s c i ê n c i a se d e s e n v o l v a l e n t a m e n t e
no processo de c o n f r o n t a r a ideologia d a classe d o m i n a n t e .
O r i t m o e a n a t u r e z a d a m u d a n ç a lios E s t a d o s U n i d o s
s ã o p r o f u n d a m e n t e influenciados por fatos que ocorrem f o r a do
p a í s . em e s p e c i a l 110 T e r c e i r o M u n d o . C o m e ç a n d o a s a n t i g a s
possessões coloniais a controlar a e x p o r t a ç ã o de s u a s matérias-
p r i m a s , a a m e a ç a d e crise e c o n ô m i c a a u m e n t a n o s p a í s e s mais
" a v a n ç a d o s " . N e s s e s p a í s e s , o s p r o b l e m a s e c o n ô m i c o s —' d e -
s e m p r e g o e i n f l a ç ã o — t o r n a m m a i s difícil a o s d e t e n t o r e s d o
p o d e r e s t a t a l a t e n d e r —• c o m p r a r — a s e x i g ê n c i a s d o s dissi-
dentes. Ê nesse sentido que a lula contra o imperialismo ameri-
c a n o — e contra o domínio econômico que exerce sobre os
p a í s e s d o T e r c e i r o M u n d o —• é c r u c i a l p a r a u l u t a i n t e r n a .
E s s a a g u ç a d a t e n s ã o cria p a r a o s j u r i s c o n s u l t o s m o d e r n o s
a s contradições a n t e s discutidas e com a s quais se viram a
b r a ç o s o s a n t i g o s j u r i s c o n s u l t o s b u r g u e s e s . A d v o g a d o s dá
partes opostas — jurisconsultos em uniforme de combate —
começam a traçar cuidadosas distinções. C o n q u a n t o as obriga-
ções legais de trabalhadores e proprietários sejam definidas
pela ideologia dominante, os a d v o g a d o s tentam m u d á - l a s o
adaptá-las para ajustar diferenças sem perturbar a integridade
d o si.stema i d e o l ó g i c o c o m o uni t o d o . M e l h o r a m e n t o s r e a i s 11a
vida de pessoas comuns ocorrem através dessas mudanças:
l e g i s l a ç ã o d e c r é d i t o ao c o n s u m i d o r , a fim d e i m p e d i r a e x p l o -
ração c a s práticas desleais, legislação sobre boas habitações,
iguais p r o j e t o s de emprego, d e t e r m i n a n d o t r a t a m e n t o compen-
s a t ó r i o p a r a n e g r o s , chicãiios e mulheres. S u r g e m porque os
j u r i s c o n s u l t o s p e n e t r a m 11a i d e o l o g i a j u r í d i c a e e m s u a s n o r m a s
e d e n u n c i a m o s i n t e r e s s e s q u e elas p r o t e g e m , e s c l a r e c e n d o a s s i m

20 - 13.A.C.
314 INSURREIÇÃO E JURISPRUDÊNCIA

e contribuindo p a r a justificar a exigência de que o direito pú-


blico s e j a m u d a d o p a r a q u e s e p o s s a c o n t r o l a r o d o m í n i o d a
" l i b e r d a d e " de contrato. N a luta pelas liberdades de e x p r e s s ã o
e a s s o c i a ç ã o e p e l o j u l g a m e n t o j u s t o s o b a lei, o a d v o g a d o
exige que o princípio constitucional seja o b s e r v a d o e cumpridas
as promessas constitucionais.
E m ambas as esferas, o jurisconsulto estuda atentamente
a ideologia jurídica d o grupo dominante, l e v a n d o em conta
s u a s o r i g e n s h i s t ó r i c a s a fim d e c o m p r e e n d e r o f u n d a m e n t o d e
determinadas regras e sistemas. Identifica contradições espe-
c í f i c a s e n t r e os i n t e r e s s e s d o g r u p o d o m i n a n t e e s u a i d e o l o g i a
e u s a - a s e m p r o v e i t o d a q u e l e s q u e e x i g e m a m u d a n ç a social.
Simultaneamente, c o n f o r m e observou Kinoy, p a r a n ã o se t o r n a r
m e r a m e n t e u m p o r t a - v o z d a i d e o l o g i a d o m i n a n t e •— m a n t e n d o
a f a c h a d a de que q u a l q u e r direito digno de se d e s f r u t a r p o d e
ser obtido dentro dela — o a d v o g a d o indica as f o r m a s pelas
quais o g r u p o d o m i n a n t e se desvia d e sua própria ideologia.
F a z m a i s d o q u e isso, p o r é m . A d v o g a d o s ou a d v o g a d a s
v e r d a d e i r a m e n t e c o m p r o m e t i d o s com a m u d a n ç a social seguirão
o exemplo de seus predecessores na revolução burguesa, e
adotarão uma posição francamente revolucionária. E s t u d a r ã o e
aconselharão a adoção de "máximas de prudência" no sentido
a n t e r i o r m e n t e d e s c r i t o , a fim d e a m o r t e c e r o i m p a c t o d o p o d e r
e s t a t a l e m p e d e r n i d o s o b r e a s a t i v i d a d e s p o l í t i c a s d e s e u s clien-
tes. M a i s i m p o r t a n t e a i n d a , t r a b a l h a r ã o com eles p a r a f o r m u -
lar uma ideologia alternativa.
A decisão d e fazer c a u s a comum com o movimento em prol
d a m u d a n ç a social p o d e s o l u c i o n a r c o n t r a d i ç õ e s n o i n t e r i o r
d o ser, m a s a q u e l a s e x i s t e n t e s n a e s f e r a d a a ç ã o social p e r m a -
necem e são, na v e r d a d e , intensificadas. Isso aplica-se espe-
cialmente aos jurisconsultos. A ideologia q u e os dissidentes
coletivamente elaboram e individualmente aceitam quando
adotam u m a posição insurgente é o que "Weber chamou de
"convenção", no sentido de pautar a conduta do grupo. É,
contudo, mais do que isso: corporifica as reivindicações de
j u s t i ç a q u e o g r u p o f a z à i d e o l o g i a jurídica d o m i n a n t e e c o m e ç a
a d e s c r e v e r o s p r i n c í p i o s d e d i r e i t o q u e c o l o c a r á em v i g o r
q u a n d o e se c o n s e g u i r o p o d e r e s t a t a l .
A s o c i e d a d e q u e se o b t é m a p ó s u m a r e v o l u ç ã o é d o t i p o
q u e s e m e r e c e , com s u a i d e o l o g i a c o n s t r u í d a s o b r e o s f u n d a -
m e n t o s daquela q u e a precedeu, e c o r p o r i f i c a n d o os princípios
p e l o s q u a i s vivia o g r u p o q u e q u e r i a a m u d a n ç a e n q u a n t o l u t a v a
A JURISPRUDÊNCIA DA INSURREIÇÃO 315

pelo poder. Assim, nos movimentos revolucionários d o Oci-


dente, o racismo, o sexismo, a burocratização, o estabelecimento
d o a m o r e confiança m ú t u a s — todos os p r o b l e m a s q u e um
movimento em prol d a m u d a n ç a tem que r e g u l a m e n t a r em seus
a s s u n t o s i n t e r n o s .— d e v e m s e r a b o r d a d o s c o m o s e o s p r i n c í -
p i o s d a s d e c i s õ e s d e v e s s e m s e r o s q u e g o v e r n a r ã o t o d a a socie-
d a d e em algum tempo futuro. Isso porque, na realidade, e
sujeito sempre à possibilidade da necessidade de m u d a n ç a e
correção d e erros, e s t e será de fato o caso. O s jurisconsultos
mais sábios e mais observadores saberão disso à medida que
s o l u c i o n a r e m , c a d a u m a em s e u s p r ó p r i o s t e r m o s , a s c o n t r a d i -
ções que a p r o f i s s ã o lhes impõe. A j u d a - l o s - á , talvez, saber que
esses mesmos problemas foram e n f r e n t a d o s por outros de sua
classe, a serviço de u m a revolução mais antiga, c u j o tempo,
confiamos, está prestes a esgotar-se. O u . como disse Shelley
n a i n t r o d u ç ã o a o s e u Proinetheus Unbourtd: " A nuvem da mente
d e s c a r r e g a seus r e l â m p a g o s coletivos e o equilíbrio entre ins-
tituições e opiniões está sendo a g o r a r e s t a u r a d o , ou prestes
a sê-lo".
Bibliografia Selecionada

R e s o l v e m o s n ã o usai- n e s t e v o l u m e n o t a s d e r o d a p é ,
p r e f e r i n d o d e i x a r c l a r a 110 t e x t o n o s s a d í v i d a p a r a c o m o u t r o s
autores, e colocar no final d o trabalho a bibliografia completa
das o b r a s que consultamos ou que r e c o m e n d a m o s . Incluímos
a p e n a s a s f o n t e s p r i m á r i a s em q u e e s p e c i a l m e n t e b e b e m o s e
f o n t e s s e c u n d á r i a s em g e r a l d i s p o n í v e i s . A s e d i ç õ e s e m b r o c h u r a
são indicadas por asterisco. A citação dos trabalhos consulta-
d o s é f e i t a d a f o r m a p r e s c r i t a p o r A Uniform System of Cita-
tion, l l . a e d i ç ã o , livro p u b l i c a d o pelos e d i t o r e s d a s r e v i s t a s d e
direito d a s Universidades de Colúmbia, H a r v a r d , Pensilvânia
e Yale. A s datas mencionadas são das edições consultadas.
H . A d a m s , Mont-Saint-Michel and Chartres (1961)*
C . L. A p p l e t o n , Histoire de la compensation en droit
romain (1895)
Assises du royatune dc feriisalcm ( V . F o u c h e r , o r g . , 2 . a ed.,
1839)
W . A t k i n s o n , A History 0 / Spain and Portugal (1960)*
J . A u s t i n , The Prorince 0 / furisprudence Determined and
the Lises 0/ the Studij of furisprudence (H.L.A.
H a r t , o r g . , 1954)
R . Baillet, L'Ancien Cabris et I'Actuei (1920)
Dasic Documents in Medieval History (N. Downs,
org., 1 9 5 9 ) *
M . B a t e s o n , Borough Customs ( 1 9 0 4 - 0 6 ) ( S e l d e n Soe.,
org.)
O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO

M. B a t e s o n , Laws of Breteuil, 15 E n g . H i s t . R e v . 7 6
(1901)
H. B a t t i f o l , Droit international privé ( 4 , a e d . , 1 9 6 7 )
J. B e a m e s , A translation of Glanville (1900)
P. B e a u m a n o i r , Les Couttimes de Beauvaisis ( P . Salmon,
o r g , , 1 8 9 9 - 1 9 0 1 e J. B e u g n o t , o r g . , 1 8 4 2 )
G. J . Bell, Commentaries on the Law of Scotland (5.a ed.,
1870)
J. B e r n a r d , Trade and Finance in the Middle Ages,
900-1500 (1971)*
W . B e w e s , The Romance of the Law Merchant (1923)
M . B l o c h , Feudal Society (L. M a n y o n , trad., 1961)*
M. B l o c h , French Rural History (J. Sondheimer, trad..
1966)
W . B o a k , A History of Rome to 565 A.D. ( 4 . a ed., 1955)
J . B o b é , Notes sur la coutume de Paris ( 1 6 8 3 )
R . Bolt, A Man For AU Seasons (1960) *
L. B . B o u d i n , The Theoretical System of Karl Marx
(1907)
B o u r d o t d e R i c h e b o u r g , Nouveau coutumier general
(1724)
F . B o u r j o n , Le Droit commun de La France ( 3 . a ed.,
1770)
F . B r a u d e l , Capitalism and Material Life 1400-1800 (M.
Kochan, trad,, 1973)
J . A . B r i l l a t - S a v a r i n , The Philosopher in the Kitchen (A.
Drayton, trad., 1970)*
J . B . B r i s s a u d , A History of French Private Law ( 1 9 1 2 )
W . B u c k l a n d , A Manual of Roman Private Law (2a
ed., 1 9 3 9 )
W . Buckland, A Text-Book of Roman Law ( 2 , a ed.,
3932)
W . B u c k l a n d e A . M c N a i r , Roman Law and Common
Law ( 2 a ed., 1 9 5 2 )
J . B u r c k h a r d t , The Age of Constantine the Great (M.
H a d a s , trad., 1 9 4 9 ) *
E . B u r k e , Selected Writings of Edmund Burke ( V / . B a t e ,
org., 1960)
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 319

R . B u s q u e t , V . - L . B o u r i l l y e M . A g u l h o n , Histoire de la
Provence ( 5 . a ed., 1 9 7 2 ) *
J . C a m p b e l i , The Lives of the Lord Chancellors (1845)
Capitalism and the Reformation ( M . J. K i t c h , o r g . , 1 9 6 7 ) *
M . - L . C a r l i n , La Pénétration du droit romain dans les actes
de la pratique piovençale (1967)*
E . C a r u s - W i l s o n , Medieval Merchant Venturers ( 2 . a ed.,
1967)*
R . C h a m b e r s , Thomas More (1935)
The Code Napoléon (B. S c h w a r t z , org., 1956)
C o n s e i l d ' E t a t F r a n ç a i s , Conference du Code Civil ( 1 8 0 5 )
C o n s e i l d ' E t a t F r a n ç a i s , Discussion du Code Civil ( 1 8 5 0 )
C o n s e i l d ' E t a t F r a n ç a i s , Discussion du Projet du Code
Civil ( 1 8 0 3 - 0 8 )
Corpus Júris Canonici ( A . Friedberg, org., 1879-81)
B. C r o c e , History of the Kingdom of Naples ( H . S. H u g -
hes, trad., 1965) *
R . D a v i d , Les Grands systèmes de droit contemporains (4.a
ed., 1 9 7 1 ) *
J. D a w s o n , The Oracles of the Law ( 1 9 6 8 ) *
G . d e B r u g e s , The Murder of Charles the Good, Count
of Flanders (J. Ross, trad., 1 9 5 9 ) *
L . d e H e r i c o u r t , Les Loix ecclesiastiques de France dans
leur ordre naturel ( 3 . a ed,, 1771)
F. A . D e S m i t h , The Prerogative V/rits, 11 C a m b r i d g e
L. J. 4 0 ( 1 9 5 1 )
J . D e s G r a v i e r s , Le Droit canonique ( 2 . a ed., 1 9 6 7 ) *
D . D i d e r o t , Rameaus Nephew a n d D'A}embert's Dream
(L. W . Tancock, trad., 1966)*
M . D o b b , Studies in the Development of Capitalism
(1963)
A Documentary History of England, 1066-1540 (J. Bagley
e P . B. R o w l e y , o r g s . , 1 9 6 6 ) *
P . D o l l i n g e r , The German Hansa ( D . Ault e S. Stein-
b e r g , t r a d s . , 1970)
J . D o m a t , Les Loix civiles dans leur ordre natitrel (nova
ed., 1 7 4 5 )
C . D u m o u l i n , 2 Omnia Quae Extant Opera (1681)
O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO

B. D u n h a m , fievoes and Heretics, A Social Histon/ o/


Dissent (1964)
A . E h r e n z w e i g , Private International Law ( 1 9 6 7 )
A . E h r e n z w e i g , Psychoanalytic Jurisprudence (1971)
a
J . Ellul, 3, 4 & 5 Histoire des Institutions ( 6 . ed., 1 9 6 9 ) *
F . E n g e l s , The Oxigin of the Family, Private Propertij
and the State ( E . Leacock, org., 1 9 7 2 ) *
A. E s n í e i n . C o t i r s clcincntairc d'histoire du droit [rançais
( l l . a ed., 1 9 1 2 )
A. E s m e i n , A Histocy of Continental Criminal Procedurc
(]. S i n i p s o n , t r a d . , 1 9 1 4 )
J. E v a n s , Life in Medieval France ( 3 . a ed., 1969)
P . F a u r e , La Renaissanc.e ( 5 . a ed., 1 9 6 9 ) *
C . F e r r i è r e , Corps et compilation de tons les commenta-
teurs ancicns et modernes snr la coutnmc c!e Paris ( 2 . a
ed., 1 7 2 4 )
C. F e r r i è r e , Dictionnaire analytique de la coutitme de Nor-
mandic (1780)
C. F e r r i è r e . Dictionnaire de droit et de pratique (nova
ed., 1 7 6 9 )
J. F o r t e s c u e , De Laudibus Legum Anglie ( S . B. C h r i m e s ,
org. e trad., 1942)
The Frcnch Revolntion: Conflicting Interprctations (F.
K a f k e r e J. L a u x , o r g s . , 1 9 6 8 ) *
G a i u s , Institutes ( F . de Zulueta, trad., 1946)
G. G i l b e r t , The History and Practice of the High Court
of Chancery (1758)
C. G i l l i a r d . Histoire de la Suissc ( 5 . a ed., 1 9 6 8 ) *
P. G o u b e r t , Lonis XIV and Tivent Million Frenchmcn
(A. Cárter, trad., 1970) *
M. G r a n d c l a u d e . Etude critique sitr les livres des assises
de Jerusalém (1923)
J . A . C . G r a n t , The Anglo-Amcrican Legal System (ed.
revista. 1947)*
J. e E . G r e e n . The Legal Profession and the Process of
Social Change: Legal Services in England and the
United States, 21 H a s t . L. J. 5 6 3 ( 1 9 7 0 )
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 321

F. G u i c c i a r d i n i , The History of Florence ( M . Domandi,


trad., 1970)*
P. G i i i c h o n n e t , Histoire de Ultalic (1969)*
R. H a i l e y , Comparative Development of Theories of Self-
Incrimination in England and France ( t r a b a l h o iné-
dito. 1971)
W. H a r p s f i e l d . The Life and Death of Sic Thomas More
( E v e r y m a n * s Library, org., 1963)
C . Hill, Reformation to Industrial Revolution (1967) *
F,. H o b s b a w m , Industry and Empire (1968)*
W . S. H o l d s w o r t h , A History of English Law (várias
datas. 1922-1938)
E. J e n k s . Laiv and Politics in the Middle Ages ( 2 . a ed.,
1913)
J. Joinville. History of St. Louis, in Memoirs of the Crusr-
des ( F . M a r z i a l s , t r a d . . 1 9 5 8 )
F. Jotion d e s L o n g r a i s , La Conception anglaise de la sai-
sine du XIIc au XIVe sièc.lc ( 1 9 2 4 )
M. K e e n . The Pclican History of Medieval Europe
(1969)*
A. K i n o y . The Radical Lawyer and Teacher of Law. in
Law Against the People ( R . Lefcourt, org., 1 9 7 1 ) *
P . K r o p o t k i n , The Great French Revolution, 1789-3793
( N . Dryhurst, trad.. 1971)*
R. D . L a i n g , The Politics of Expericnce (1967)*
G. L a n c e l l o t t i , Institutiones Júris Canonici (1704)
The Legaci/ of the Middle Ages ( C . C r u m p e E. Jacob
eds., 1 9 2 6 )
J. L c G o f f , Marchands et Batiquiers du Moijen Age (5.a
ed.. 1 9 7 2 ) *
J. L e G o f f , The Town as an Agent of Civilization,
1200-1500 (1971)*
W. Leslic. Siinilarities in Lord Man*field's and Joseph
Stori/'s View of Fundamental Law, 1 A m . J. L e g a l H i s t .
278 (1957)
E. L e v y , W c 5 f Roman Vulgar Law. The Law of Pto-
perty (1951)
L. L e v y , The Origins of the Fifth Amendinent (1969)*
O DIREITO E A ASCENSAO DO CAPITALISMO

Li Livres de jostice et de plet (P. Rapetti, ed., 1850)


A . Loisel, Les Irstitutes Cotitumières (1608)
J . D . M a c k i e , A History of Scotland (ed. revista, 1 9 6 9 ) *
H . M a i n e , Ancient Law (1861)
F . M a i t l a n d , Township and Borough (1898)
P . - L . M a l a u s s é n a , Comtnerce et ctêdit a Nice à la fin
dtt XlIIe siècle, Nice Historique. j u n h o , 1970, p . 1
P . - L . M a l a u s s é n a , Promissio Redemptionis: Le Rachat des
captifs chretiens en pays musulmans à Ia fin du XlVe
siècle, 8 0 Annales du Midi 2 5 5 ( 1 9 6 8 )
P . - L . M a l a u s s é n a , La V / e em Provence orientale attx
XlVe et XVe siècles (1969)*
C . M c E v e d y , The Penguin Atlas of Medieval History
(1961)*
W . M c G o v e r n , Materials on Legal History (mimeo,
1973)
B . M i t c h e l l , Statistical Appendix. 1700-1914 (1971)*
T . M o r e , Utopia ( P . T u r n e r , trad., 1965)*
}. M u n d y e P. Riesenherg, The Medieval Tourn
(1958)*
G . N o g e n t , Self and Society in Medieval France (J. Ben-
ton, org., C . Bland, trad., 1 9 7 0 ) *
P . O u r l i a c e J. M a l a f o s s e , Histoire du droit privé (2.a
ed.. 1 9 7 1 ) *
R . P e r n o u d , Histoire de la bourgeoisie en France
(1960-62) (2 vols.) *
C. P e t i t - D u t a i l l i s , Les Communes Françaises (1970)*
H. P i r e n n e , Early Democracies in the Low Countries (}.
S a u n d e r s , trad., 1963) *
H. P i r e n n e , Economic and Social History of Medieval
Europe (1936)
H. P i r e n n e , Medieval Cities: Their Origins and the Re-
viva! of Trade ( F . Halsey, trad., 1952)*
B. P i t t i e G . D a t i , Tu>o Memoirs of Renaissance Florence
(J. M a r t i n e s , trad., 1 9 6 7 ) *
T . F . T . P h i c k n e t t , Donham's Case and Judicial Revieiv,
4 0 H a r v . L. R e v . 50 ( 1 9 2 6 )
T . F . T . P l u c k n e t t , A Concise History of the Common
Law ( 5 . a e d . , 1 9 5 6 )
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 323

J . - R . P o t h i e r , Oeuvres (J. B e u g n o t , org., 1861)


D . P o w e l l , The Macxist-Leninist Notion of the W i t / i e -
ring Away of the State and Law (trabalho inédito
1971)
S . P u f e n d o r f . The Law of N a f u r e and of Naíions (B,
K e n n e t t , t r a d . . 4. a e d . , 1 7 2 9 )
M. R a d i n , The Myth of Magna Carta, 6 0 H a r v . L. R e v .
1061 ( 1 9 4 7 )
M. R a d i n , Roman Law ( 1 9 2 7 )
K. R e n n e r , The Institutions of Private Law and Their
Social Functions (1947)
Y. R c n o u a r d , Les Hommes d'affaires italiens du moyen
age ( e d i ç ã o r e v i s t a , 1 9 6 8 ) *
E . R i c e , Jr., The Foundations of Early Modem Europe,
1460-1559 (1970)*
M . R o b l i n , Les Juifs de Paris ( 1 9 5 2 ) *
E . R o l l , A History of Economic Thought ( 2 . a ed., 1 9 6 1 ) *
W . R o p e r , The Life of Sir Thomas More, Knight (Eve-
r y m a n ' s L i b r a r y ed., 1 9 6 3 )
C. R o t h , The History of the Jews in Italy ( 1 9 4 6 )
S . R u n c i t n a n , A History of the Crusades (1971)
C . S t . G e r m a i n . Doctor and Student (edição fac-sini'-
lar, 1 9 7 3 ) *
F. S a n b o r n , O r i p i n s of the Early English Maritime and
Ccmmercial Law (1930)
F . I . S c h e c t e r , Popular Law and Common Law in Me-
dieval England, 28 C o h i m . L . R e v . 2 6 9 ( 1 9 2 8 )
P . S e n e q u i e r , Cabris et Le Tignet (1900)
C . S h e r m a n , Roman Law in the Modem World ( 3 . a ed.,
1937)
P . - A . S i g a l a s , La Vie à Grasse en 1650 ( 1 9 6 4 )
J. J. Silke, Iieland and Europe 1559-1607 (1966)*
H . S i l v i n g , The Oath, 6 8 Y a l e L. J . 1329, 1527 ( 1 9 5 9 )
T . S m i t h , The Assiie of Jerusalém (1842)
T . S m i t h , De Republica Anglorum (1573)
R . S o h m , The Institutes-, A Textbook of the History and
System of Roman Private Law ( A . Ledlie, t r a d . , 3. a
ed.. 1 9 0 7 )
O DIREITO E A ASCENSÃO DO CAPITALISMO

J. S t a i r . The Institutions of the Law of Scotland ( 2 , a ed.,


3693)
J . S t e p h e n , Historij of the Criminal Law of England
(1883)
J. S t o r y , Cotnmcntacics on Equity furisptitdcncc ( 2 . a ed.,
1839)
P . Sweezy, The Theory of Capitalist Dcvelopment
( 1 9 4 2 ) * [ P u b l i c a d o n o Brasil por Z a h a r Editores sob
o título Teoria do Desenvolvimento Capitalista]
R. H. T a w n e y , Religion and the Rise of Capitalism
(1926)*
M . T i g a r , Automatic Extinction of Ccoss-Demands: Com-
pensatio from Rome to Califórnia. 53 C a l i f . L. R e v .
224 (1965)
M . T i g a r . Book Review, 6 7 M i c h , L. R e v . 6 1 2 ( 1 9 6 9 )
[Civil D i s o b e d i e n c e ]
M . T i g a r , Book Review, 7 8 Y a l e L. J. 8 9 2 ( 1 9 6 9 ) [ C i v i l
Libertiesj
M. T i g a r , Judicial Power, the "Politicai Question Doctri-
ne," and Foreingn Relations, 17 U . C . L . A . L . R e v .
1135 ( 1 9 7 0 ) , r e p r o d u z i d o e m 3The Vietnam Wac
and International Law ( R . F a l k , e d . , 1 9 7 2 )
M . T i g a r , Socialist Law and Legal Institutions, in Law
against the People ( R . Lefcourt, org,, 1 9 7 1 ) *
M . T i g a r , Book Review, 8 6 H a r v . L. R e v . 7 8 5 ( 1 9 7 3 )
[Psychoanalytic Jurisprudence]
P. T i m b a l , Histoire des institutions et des faits sociaux
(4.a ed.. 1970) *
] . T o u b e a u , Les Institutes de droit consttlaire, ou In
Jurisprudence des marchands (2.a ed.. 1700)
P . U r e , Justinian and His Age (1951)*
G . d e V i l l e h a r d o u i n . The Conquest of Constantinoplc. in
Memoirs of the Crtisades (F. Marzials, trad.. 1958)*
P . V i n o g r a d o f f , R o m a n Law in Medieval Europe (2.a ed..
1929)
P . V i n o g r a d o f f . Some Considcrations of the Method of
Ascertaining Legal Customs (1925)
V o l t a i r e . The Age of Louis XIV ( M . Pollnck. trad..
1926)*
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 325

V o l t a i r e , Oeuvres Historiques (1957)*


C . W a l f o r d . Fairs, Past and Present: A Chapter in the
History of Commeixe (1883)
M . W e b e r , The City ( D . M a r t i n d a l e e G . Neuwirtli,
trads., 1962)*
M . W e b e r , Fiom Max Weber: Essat/s in Soeiology (H.
G e r t h e C . W . M i l l s , orçjs., 1 9 4 6 ) * [ P u b l i c a d o n o
B r a s i l p o r Z a h a r E d i t o r e s s o b o titulo Ensaios de
Sociologia]
M . W e b e r , Max Weber ou Law in Economy and Societi/
( M . Rheinstein, org., 1 9 5 4 ) *
M . W e b e r , The Pvotestant Ethic and the Spirit of Capi-
talism ( T . Parsoiis, trad., 1930)*
T . W e s t e n . Llstiry in lhe Conflict of Laivs: The Doctrine
of the Lex Debitoris, 55 C a l i f . L. R e v . 123 ( 1 9 6 7 )
G. Woodward, The Dissolution of the Monasferies
(1966)*

Você também pode gostar