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Christophe?

Lasch

O mínimo eu
Sobrevivência psíquica em tempos difíceis

Tradução:
João Roberto Martins Filho

gem como em bondade,


:o
19 8 6 H enry V, IV. iii
Toda a moderna deificação da sobrevivência per se, da sobrevi­
vência que se volta sobre si própria, da sobrevivência nua e
abstrata, com a negação de qualquer excelência substantiva no
que sobrevive, exceto a capacidade para a ainda maior sobre­
vivência, é seguramente o mais estranho ponto de chegada inte­
lectual jamais proposto por um homem a outro.

William James
Indice

P re fác io ........................................................................ 9
Introdução: consumo, narcisismo e cultura de massa 15
A mentalidade da sobrevivência .............................. 51
O discurso sobre a morte em massa: as “lições” do
holocausto ........................................................... 89
A estética minimalista: arte e literatura em época
te rm in a l................................................................ 117
A história interna da individualidade..................... 149
A política da p s iq u e ................................................... 181
O assalto, ideológico ao ego .................................... 207
Agradecimentos e notas bibliográficas ................... 241
Copyright ® 1984 por Christopher Lasch, por contrato com W.W.
Norton & Company, Nova Iorque.
Título originai: The minimal self psychic survival in troubled times.
-

Copyright © da tradução: Editora Brasiliense S.A., para publicação


no Brasil.
Tradução das notas bibliográficas:
Ana Maria L. Ioriatti
Capa:
Ettore Bottini
Revisão:
José W.S. Moraes
Lúcio F.S. Mesquita Filho
\ v c

A Chris

Ele é tão rico em coragem como em bondade,


Em ambas é magnífico

H enry V, IV. iii


!
Prefácl®

Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana


passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de
cada vez. Raramente se olha para trás, por medo de sucumbir
a uma debilitante nostalgia; e quando se olha para a frente, é
para ver como se garantir contra os desastres que todos aguar­
dam. Em tais condições, a individualidade transforma-se numa
espécie de bem de luxo, fora de lugar em uma era de iminente
austeridade. A individualidade supõe uma história pessoal, ami­
gos, família, um sentido de situação. Sob assédio, o eu se contrai
num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O
equilíbrio emocional exige um eu mínimo, não o eu soberano
do passado.
Essa é a tese, em sua forma mais simples, que se propõe
nestas páginas, onde o leitor não encontrará, por conseguinte,
qualquer protesto indignado contra o “hedonismo”, o auto-inte-
resse, o egoísmo e a indiferença ao bem comum, no mundo con­
temporâneo — traços em geral associados ao “narcisismo”.
Neste ensaio, espero basicamente explicitar o que em A Cultura
do Narcisismo parece ter ficado obscuro ou ambíguo: a saber,
que a preocupação com o indivíduo, aparentemente tão carac­
terística de nossa época, assume a forma de uma preocupação
com a sobrevivência psíquica. Perdeu-se a confiança no futuro.
Face à escalada armamentista, à expansão da criminalidade e
10 O MÍNIMO EU

do terrorismo, à deterioração do meio ambiente e à perspectiva


de um prolongado declínio econômico, as pessoas passaram a
preparar-se para o pior, às vezes, construindo abrigos anti-radia­
tivos e armazenando provisões, outras vezes, o que é mais co­
mum, executando uma espécie de recuo emocional frente aos
compromissos a longo prazo, que pressupõem um mundo estável,
ordeiro e seguro. Desde o término da Segunda Guerra Mundial,
o fim do mundo assomou como uma possibilidade hipotética,
mas, nos últimos vinte anos, a sensação de perigo cresceu ainda
mais, não apenas porque as condições sociais e econômicas tor­
naram-se mais instáveis, mas porque a esperança em uma polí­
tica reparadora, em uma auto-reforma do sistema político, sofreu
uma rápida queda. A expectativa de que a ação política pudesse
humanizar gradualmente a sociedade industrial deu lugar a uma
determinação de sobreviver ao naufrágio geral ou, mais modes­
tamente, de manter intacta a própria vida, face às crescentes
pressões. O risco de desintegração individual estimula um sen­
tido de individualidade que não é “soberano” ou “narcisista” ,
mas simplesmente sitiado.
Os próprios movimentos de oposição — os movimentos
pacifista e preservacionista — fazem da sobrevivência o seu
lema. Evidentemente, eles se referem à sobrevivência do con­
junto da humanidade, e não à sobrevivência cotidiana dos indi­
víduos; mesmo assim, refletem e reforçam uma mentalidade de
sobrevivência. Apelam a um “compromisso moral com a sobre­
vivência” (como propõe Richard Falk em seu manifesto ecoló­
gico Este Planeta Ameaçado), não levando em consideração o
risco de que um tal compromisso, em vez de conduzir à ação
política construtiva, possa também, com a mesma facilidade,
levar a um esconderijo nas montanhas ou às políticas nacionais
destinadas a preparar o país para sobreviver à guerra atômica.
Os movimentos pacifista e preservacionista chamam a atenção
para a criminosa indiferença de nossa sociedade diante das ne­
cessidades das gerações futuras; porém, inadvertidamente, rea­
firmam tal atitude, ao insistir, por exemplo7"nos perigos da.
superpopulação“e na irresponsabilidade de sejrazer uma criança
a um mmh d o la ^ superlotãdo. Com freqüência, substituem um
interesse abstrato no futuro por uma espécie de interesse pal­
pável e emocional, que habilita as pessoas a fazerem sacrifícios
PREFACIO 11

em benefício próprio. Do mesmo modo, a ênfase nas dimensões


mundiais do tema da sobrevivência — na necessidade de con­
troles globais e de desenvolvimento de uma “mentalidade plane­
tária” — colabora, provavelmente, para minar a inserção em
uma situação particular, debilitando ainda mais a base emocio­
nal em que se fundamenta um real interesse no futuro. Homens
e mulheres desenraizados não depositam maior interesse no fu­
turo que no passado; mas, em lugar de lembrar-nos da impor­
tância das raízes, alguns defensores do desarmamento e da pre­
servação ambiental, compreensivelmente ansiosos por associar
sua causa à sobrevivência do planeta, deploram os vínculos e
associações locais, que impedem o desenvolvimento de uma
“consciência planetária” , mas também possibilitam às pessoas
pensar construtivamente sobre o futuro, em vez de mergulhar
num pânico cósmico e num desespero futurista.
Na era nuclear, a sobrevivência tornou-se um tema de
imensa importância; mas as tentativas de despertar o público
para suas implicações coletivas sempre tendem a reforçar a
inércia que procuram vencer. “O grande risco de um raciocínio
apocalíptico”x como o próprio Falk reconhece, “é que na megma
extensão em que ^ Indiferente à
sua própria advertência, insiste que, se os líderes mundiais não
criarem uma nova ordem no planeta, “há pouca esperança de
que nossas crianças escapem ao apocalipse”.
Não me entendam mal: a crescente oposição à corrida arma-
mentista nuclear, a crescente consciência ecológica, a crítica
cada vez maior ao consumismo e à alta tecnologia, bem como
à psicologia “masculina” da conquista e da empresa competitiva,
oferecem a melhor esperança no futuro. Ao dramatizar os peri­
gos à nossa frente, os movimentos de oposição reforçam, inad­
vertidamente, a mentalidade sitiada, mas fornecem, ao mesmo
tempo, o único antídoto efetivo contra esta: a determinação de
encetar um ataque conjunto às dificuldades que ameaçam so­
terrar-nos. A ação política continua a ser a única defesa efetiva
contra o desastre — ação política, vale dizer, a que incorpora a
nossa nova compreensão dos riscos do crescimento econômico
incontido, do desenvolvimento tecnológico sem limites e da irre-
freada exploração da natureza. Saber o que isso nos conta sobre
as raízes psicológicas da vontade de potência prometéica, para
12 O MÍNIMO EU

atribuir-lhe aqui uma obsessão meramente masculina, que pode


ser contraposta pelas qualidades “femininas” da cooperação e
do desvelo amoroso — eis uma importante questão sobre a qual
espero lançar alguma luz. Mas é bom lembrar, de início, que o
militarismo e a tecnologia descontrolada contam com raízes so­
ciais, econômicas e políticas, bem como psicológicas, e que a
oposição política a tais males, mesmo quando se baseia em
premissas psicológicas e filosóficas duvidosas, representa um
princípio indispensável na luta para fazer de nosso mundo um
lugar digno da existência humana.
As controvérsias recentes em torno da cultura contempo­
rânea do “narcisismo” trouxeram à tona duas fontes de confusão
totalmente diversas. A primeira, já anteriormente aludida e que
será examinada com certo cuidado no primeiro dos capítulos
seguintes, é a confusão de narcisismo com egoísmo e auto-inte-
resse. Uma análise da mentalidade sitiada e das estratégias de
sobrevivência psíquica por ela incentivadas (tema dos capítulos
2, 3 e 4) servirá não apenas para identificar certos traços carac­
terísticos de nossa cultura — nossa ironia defensiva e nosso
descompromisso emocional, nossa relutância em assumir com­
promissos emocionais de longo termo, nosso sentido de impo­
tência e sacrifício, nossa fascinação pelas situações extremas e
pela possibilidade de aplicação de suas lições à vida cotidiana,
nossa percepção das organizações de larga escala enquanto sis­
temas de controle total — , como também será útil para dife­
renciar o narcisismo do mero auto-interesse. Mostrará como as
condições sociais vigentes, especialmente as fantásticas imagens
da produção de massas que formam as nossas concepções do
mundo, não somente encorajam uma contração defensiva do eu
como colaboram para apagar as fronteiras entre o indivíduo e
seu meio. Como nos lembra a lenda grega, é esta confusão entre
o eu e o não-eu — e não o “egoísmo” — que distingue o apuro
de Narciso. O eu mínimo ou narcisista é, antes de tudo, um
eu inseguro de seus próprios limites, que ora almeja reconstruir
o mundo à sua própria imagem, ora anseia fundir-se em seu
ambiente numa extasiada união. A atual preocupação com a
“identidade” expressa em certa medida esse embaraço em se
definir as fronteiras da individualidade. E também_p faz o estilo
minimalista da arte e da literatura contemporâneas, que extrai
PREFACIO 13

grande parte de seus motivos da cultura popular, em particular


da invasão da experiência pelas imagens, e deste modo ajuda-nos
a ver gue a individualidade mínima não é só uma resposta de­
fensiva ao perigo mas se origina de uma transformação social
mais profunda: a substituição de um mundo confiável dej?bjetos
duráveis por um mundo de imagens oscilantes que torna cada
vez mais difícil a distinção entre a reáíidáde e a fantasia.
Isso nos conduz à segunda fonte de confusão sobre o nar­
cisismo: a equiparação do narcisismo, desta vez, não ao auto-
interesse ou ao egoísmo mas, precisamente, ao desejo “feminino”
de união com o mundo, que alguns consideram um corretivo
do egoísmo masculino. Os últimos três capítulos deste ensaio
procuram, entre outras coisas, explicar por que o desejo narci­
sista de união não pode ser atribuído a um sexo e por que,
acima de tudo, não pode ser concebido como um remédio contra
a vontade de potência faustiana. Tentarei argumentar que a
própria tecnologia faustiana e prometéica se origina — até onde
é possível traçar as suas raízes psicológicas — da tentativa de
restaurar as ilusões narcisistas de onipotência. Mas não tenho
nenhuma intenção de polemizar com a crescente influência da
mulher na política e nos locais de trabalho; tampouco a minha
análise dos elementos narcisistas da cultura contemporânea deve
ser mal-entendida como um ataque à “feminização da sociedade
americana”. O narcisismo não tem nada a ver com a feminili­
dade ou a masculinidade. Na verdade, este recusa qualquer co­
nhecimento das diferenças sexuais, bem como rejeita a dife­
rença entre o eu e o mundo que o circunda. Procura restaurar
a satisfação indiferenciada do útero materno. Busca tanto a auto-
suficiência como a auto-aniquilação: aspectos opostos da mesma
experiência arcaica de unicidade com o mundo.
A realização da individualidade, que a nossa cultura torna
tão difícil, pode ser definida como o conhecimento de nossa
separação da fonte original da vida, associada a uma luta con­
tínua para recuperar um sentido de união primitiva mediante
uma atividade que nos dá uma compreensão e um domínio pro­
visório do mundo sem rejeitar as nossas limitações e depen­
dência. A individualidade é a dolorosa consciência da tensão
entre as nossas aspirações ilimitadas e a nossa compreensão
limitada, entre nossas sugestões originais de imortalidade e o
14 O MÍNIMO EU \

nosso estado cativo, entre a unidade e a separação. Uma nova


cultura — uma cultura pós-industrial, se se gosta do termo —
deve se fundamentar num reconhecimento destas contradições
na experiência humana, não em uma tecnologia que tenta res­
taurar a ilusão da auto-suficiência; ou, por outro lado, em uma
recusa radical da individualidade que procura restaurar a ilusão
da unidade absoluta com a natureza. Nem Prometeu nem Nar­
ciso podem nos tirar de nosso apuro presente. Irmãos sob a
mesma pele, podem somente conduzir-nos mais longe na estrada
na qual já vamos bem avançados.

L
Introdução:
consumo, narcisismo
©cultura d© massa

Materialismo e cultura de massa

A denúncia do “materialismo” americano tem uma longa


história, mas os acontecimentos recentes conferiram-lhe uma
nova urgência. A crise energética, a derrota americana no Vietnã,
a crise dos reféns, a perda de mercados americanos para os
alemães ocidentais e os japoneses fizeram reviver antigos receios
quanto aos vínculos entre decadência cultural e falência na­
cional. Aparentemente, o know-how americano não mais do­
mina o mundo. A tecnologia americana deixou de ser a mais
avançada; o parque industrial do país está decrépito; as suas
malhas urbanas e os seus sistemas de transporte estão caindo
aos pedaços. Pergunta-se se os tropeços da economia americana
e o fracasso da política externa não refletiriam um fracasso
moral mais profundo, uma crise cultural de alguma forma asso­
ciada com o colapso dos “valores tradicionais” e a emergência
de uma nova ética da autogratificação.
Na versão direitista deste raciocínio, o paternalismo gover­
namental e o “humanismo secular” teriam sabotado os alicerces
morais do espírito americano, ao passo que o pacifismo, o “so-
brevivencialismo” e os movimentos em defesa dos desarmamento
unilateral teriam emasculado a política externa americana, fa­
zendo com que os americanos perdessem o desejo de lutar pela
16 O MÍNIMO EU

liberdade. Outra versão, mais aceitável para os liberais e os


neoconservadores, enfatiza os efeitos nocivos do consumismo.
Em julho de 1979, o presidente Cárter atribuiu o “mal” da
nação ao espírito egoísta e à busca de “coisas”. A crítica con­
vencional do narcisismo, como podemos chamá-la, equipara-o
ao auto-interesse e trata o consumismo como uma espécie de
deslize moral que pode ser corrigido com exortações ao valor
do trabalho árduo e da vida em família. Lamenta o colapso da
disciplina do trabalho e a popularização da “ética da diversão”
que, supostamente, mutilou a produtividade, minou o espírito
americano e, em conseqüência, debilitou a posição competitiva
do país na corrida em busca de novos mercados e da grandeza
nacional.
Uma terceira posição veio à luz recentemente em resposta
à crítica do “narcisismo”. Um grupo de jornalistas e críticos
sociais — Daniel Yankelovich, Peter Clecak, Paul Wachtel,
Alvin Toffler, Theodore Roszak, Philip Slater e Marilyn Fer-
guson, entre outros — passou a defender a opinião que o cres­
cimento aparente da autoconcentração é somente um subproduto
de transformações culturais mais estimulantes. Eles descartam
a idéia de um mal nacional ou de uma crise de confiança. A
sociedade industriai pode estar doente, em sua opinião, mas já
está dando lugar a uma sociedade pós-industrial que consolidará
as realizações do industrialismo em uma nova base. Os críticos
do consumismo, argumentam, não captam o movimento de aban­
dono da busca do status rumo à auto-suficiência, à auto-explo­
ração, ao crescimento pessoal e às formas não materialistas de
“auto-satisfação”.
Entre os que compartilham uma visão esperançosa das re­
centes transformações culturais existem discordâncias quanto à
dificuldade da “transição” a cumprir e quanto à natureza da
sociedade para a qual esta conduz. O único motivo que justi­
fica o seu tratamento como um grupo está no fato de rejeitarem
o diagnóstico de nossa sociedade como “narcisista”. Como pro­
põe Yankelovich, a “procura americana de auto-satisfação” não
pode ser reduzida à “patologia dos distúrbios da personalidade
narcisista”. O narcisismo “não constitui a essência da recente
busca americana por auto-satisfação”. “ Longe de ser a sua ca­
racterística definidora, o narcisismo é a sua traição.”
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 17

O debate sobre o narcisismo, que reaviva, sob nova forma,


as polêmicas anteriores sobre a cultura de massas e o caráter
nacional americano, levanta importantes questões e ajuda a cha­
mar a atenção para os vínculos entre as transformações sociais
e econômicas e as mudanças na vida pessoal e cultural. Não
obstante, grande parte dele está imersa em confusão. Com efeito,
uma coisa permanece evasiva e obscura: o conceito de narci­
sismo, ainda que pareça eminentemente acessível. Aqueles que
se opõem à descrição da cultura industrial avançada como cultu­
ra do narcisismo não compreendem com clareza o que está
implícito em tal definição, ao passo que os que a aceitam
consideram-na um lema jornalístico que simplesmente reafirma
alguns lugares-comuns moralistas no jargão da psicanálise. O
narcisismo é uma idéia difícil que parece fácil — um bom
recipiente para confusões.
Outra fonte de confusão é a persistência de certos precon­
ceitos derivados da polêmica que opôs os críticos da “cultura
de massa” aos que exaltavam a democracia e o pluralismo cultu­
rais, nas décadas de 50 e 60. As últimas tentativas de refor­
mular este debate — a fim de recuperar o que é útil na crítica
da cultura de massa separando-a de toda a defesa mal concebida
do modernismo cultural — foram mal entendidas como tenta­
tivas de reavivar as posições anteriores em sua forma original.
Já sugeri que o fenômeno da cultura de massa, com freqüência
abordada do ponto de vista de seu impacto nos padrões esté­
ticos, levanta questões importantes sobre a tecnologia e não
sobre o gosto do público. As avançadas técnicas de comunicação,
que parecem simplesmente facilitar a disseminação de informa­
ções em uma escala mais ampla que a anteriormente disponível,
demonstram, a um exame mais detido, impedir a circulação de
idéias e concentrar a informação num punhado de organizações
gigantescas. A moderna tecnologia tem sobre a cultura o mesmo
efeito que tem sobre a produção, onde serve para estabelecer o
controle administrativo sobre a força de trabalho. O estudo
sobre a cultura de massa conduz-nos, assim, à mesma conclusão
inspirada por um estudo da mecanização do trabalho: a tecno­
logia mais avançada compreende deliberadamente um sistema
unilateral de gestão e comunicação. Concentra o controle polí-
* tico e econômico — e, cada vez mais, o controle cultural —
18 O MÍNIMO EU

nas mãos de uma elite de planificadores das corporações, ana­


listas de mercado e engenheiros sociais. Acolhe a “entrada”
(input) e a “realimentação” (feedback) populares somente na
forma de caixas de sugestões, pesquisas de mercado e enquêtes
de opinião pública. Assim, a tecnologia passa a servir como um
instrumento efetivo de controle social — no caso dos meios de
comunicação de massa, interferindo no processo eleitoral atra­
vés das pesquisas de opinião, que ajudam a formar a opinião
mais que a registrá-la, ao reservar aos próprios meios de comu­
nicação o direito de selecionar os líderes políticos e “porta-
vozes” e ao apresentar a escolha de líderes e partidos como uma
escolha entre bens de consumo.
Essa interpretação sobre a cultura de massa e a tecnologia
avançada pode estar equivocada, mas constitui um argumento
diverso da velha acusação de que a cultura de massa rebaixa
o gosto do público, ou da versão marxista de tal acusação,
segundo a qual a cultura de massa realiza uma lavagem cerebral
nos trabalhadores e os mantém num estado de “falsa consciên­
cia”. Não obstante, os termos do antigo debate permanecem tão
coercitivos que os novos argumentos são imediatamente assimi­
lados aos velhos. A crítica dos elementos narcisistas na nossa
cultura impressiona alguns observadores como um lamento pelo
“indivíduo moralmente afinado e bem construído”, na expressão
de Peter Clecak. Não é minha, entretanto, a opinião que Herbert
Gans tenta sintetizar: “ Se a cultura popular comercial fosse eli­
minada, os trabalhadores poderiam tornar-se, e tornar-se-iam,
intelectuais”. Por que os trabalhadores deveriam tornar-se inte­
lectuais? Acho difícil encontrar uma perspectiva menos atraente
que a de uma sociedade constituída de intelectuais. O que real­
mente interessa é que os homens e as mulheres que trabalham
tenham um maior controle sobre o seu trabalho. É igualmente
importante para os intelectuais e os trabalhadores enxergar que
a questão do controle não é apenas uma questão política ou
econômica, como também uma questão cultural.

Produção em massa e consumo de massa

Uma fonte adicional de confusão, nas recentes polêmicas


sobre a cultura contemporânea, está na incapacidade de distin­
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 19

guir uma acusação moralista de consumismo” — tipicamente


exemplificada pela lamúria de Carter sobre a obsessão com a
“posse de coisas, o consumo de coisas” — de uma análise que
compreende o consumo de massa como parte de um padrão
maior de dependência, desorientação e perda de controle. Em
vez de pensar no consumo como a antítese do trabalho, como se
as duas atividades exigissem qualidades mentais e emocionais
completamente diferentes, devemos vê-los como dois aspectos de
um mesmo processo. Os arranjos sociais que sustentam um
sistema de produção em massa e consumo de massa tendem a
desencorajar a iniciativa e a autoconfiança e a incentivar a
dependência, a passividade e o estado de espírito do espectador,
tanto no trabalho com no lazer. O consumismo é apenas a
outra faceta da degradação do trabalho — a eliminação da
diversão e da habilidade artesanal do processo de produção.1
Nos Estados Unidos, uma cultura do consumo começa a
surgir nos anos 20, mas apenas posteriormente a transformação
das indústrias em corporações institucionalizou a divisão de tra­
balho que está presente em toda a sociedade industrial moderna,
a divisão entre o trabalho cerebral e o trabalho manual: entre
o projeto e a execução da produção. Sob o lema da gestão
científica, os capitalistas expropriaram o conhecimento técnico

(1) No livro As Contradições Culturais do Capitalismo, Daniel Bell


defende que a cultura do consumo estimula uma ética do hedonismo e
corrói, assim, a disciplina industrial. O capitalismo avançado está em
desavença consigo mesmo, na sua visão: necessita de consumidores que
procurem gratificação imediata e nada neguem a si próprios, mas precisa
também de produtores que se auto-sacrifiquem, desejosos de atirar-se aos
seus trabalhos, labutar por longas horas e seguir à risca as instruções.
O ponto forte dos argumentos de Bell situa-se em sua compreensão
do vínculo entre o capitalismo avançado e o comunismo, que tantos obser­
vadores atribuem meramente aos educadores e pais permissivos, à deca­
dência moral e à omissão das autoridades. O seu ponto frágil está na
equiparação tão estreita entre consumismo e hedonismo. O estado de
espírito prorpçrvido pelo consumismo é melhor descrito, como um , estadq.
dejúescohforto 1T deT ansiedade 'crônica. CTTançamento das mercadorias
âépéndg,"'"dC!lfTõ *á moderna produção em massa, de desestimular o indiví­
duo quanto à confiança em seus próprios recursos e julgamentos: neste
caso, o discernimento do que ele necessita para ser saudável e feliz. O
indivíduo vê-se sempre sob observação, quando não de chefes e superin­
tendentes, de pesquisadores de mercado e de opinião pública, que lhe
contam o que os outros preferem e o que ele também deve preferir, ou
de médicos e psiquiatras, que o examinam em busca de sintomas de
doenças não identificáveis por olhos destreinados.
20 O m ín im o eu

anteriormente exercido pelos trabalhadores, reformularam-no em


ciência e investiram em seu controle uma nova elite gerencial.
Os gerentes estenderam o seu poder, não às custas dos proprie­
tários das indústrias, como tantas vezes se afirmou, mas às
custas dos trabalhadores. Tampouco o triunfo do sindicalismo
industriai rompeu esse padrão de controle gerencial. Nos anos
30, mesmo os sindicatos mais ativos tinham aquiescido à divisão
do trabalho em planejamento e execução. Na realidade, o pró­
prio sucesso do movimento sindical foi atributo de um recuo
estratégico frente aos temas do controle operário. Além disso,
a sindicalização ajudou a estabilizar e racionalizar, o mercado
de trabalho, bem como a disciplinar a força de trabalho; não
alterou o arranjo através do qual o gerenciamento controla a
tecnologia de produção, o ritmo do trabalho e a localização das
fábricas (mesmo quando tais decisões afetam comunidades intei­
ras), deixando ao trabalhador apenas a tarefa de executar ordens.
Depois' de organizar a produção em massa sobre a base da
nova divisão de trabalho, que alcançou a sua forma mais aca­
bada na linha de montagem, os líderes da indústria americana
voltaram-se para a organização de um mercado de massa. A
mobilização da demanda por consumo, ao lado do recrutamento
de uma força de trabalho, requeria uma série de transformações
culturais de longo alcance. Era necessário desencorajar as pes­
soas de prover as suas próprias necessidades e ressocializar
estas mesmas pessoas enquanto consumidores. O industrialismo,
por sua própria natureza, tende a desencorajar a produção do­
méstica e a fazer com que as pessoas fiquem dependentes do
mercado; mas foi preciso um vasto esforço de reeducação, ini­
ciado nos anos 20, antes que os americanos aceitassem o con­
sumo como um modo de vida. Como mostrou Emma Rothschild,
em seu estudo sobre a indústria automobilística, as inovações
promovidas por Alfred Sloan nas técnicas de marketing — a
compra do modelo do ano, o constante aperfeiçoamento dos
produtos, os esforços para associá-los ao status social, a incul-
cação deliberada de um apetite ilimitado por mudanças — cons-
Jituíram a contraface necessária. das„inovações de Henry Ford
ma produção., A indústria moderna passou a se basear nos du­
plos pilares do fordismo e do síoanismo. Ambos tendiam a
desestimular o espírito empreendedor e independente e a fazer
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INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 21

com que o indivíduo desacreditasse em seu próprio julgamento,


mesmo em matéria de gostos pessoais. As suas próprias e in­
cultas preferências, ao que parecia, estariam em atraso diante
da moda vigente; elas também tinham que ser periodicamente
aperfeiçoadas.

O fantástico mundo das mercadorias

Só se pode apreender os efeitos psicológicos do consumis-


mo quando o consumo é entendido como uma outra fase da
rotina de trabalho industrial. O exercício repetido da autovigi-
lância constrangida, da submissão ao julgamento dos especia­
listas, da descrença em sua própria capacidade de tomar deci­
sões inteligentes, seja como produtores seja como consumidores,
falseia as percepções das pessoas tanto em relação a elas mes­
mas como ao mundo que as rodeia. Estimula um novo tipo de
autoconsciência que tem pouco a ver com a introspecção ou
a vaidade. Seja como trabalhador ou como consumidor, o indi­
víduo não apenas aprende a avaliar-se face aos outros mas a
ver a si próprio através dos olhos alheios; aprende que a auto-
imagem projetada conta mais que a experiência e as habilidades
adquiridas. Uma vez que será julgado (por seus colegas e supe­
riores no trabalho e pelos estranhos que encontra na rua) em
virtude de suas posses, suas roupas e sua “personalidade” —
e não, como ocorria no século XIX, por seu “caráter” — ele
adota uma visão teatral de sua própria performance, estando
ou não em atividade. Evidentemente, a incompetência completa
ainda pesa grandemente contra ele no trabalho, da mesmi for­
ma como suas ações como amigo e vizinho com frequência têm
mais valor que a sua habilidade em manipular impressões. Mas
as condições do relacionamento social cotidiano, nas sociedades
que se baseiam na produção em massa e no consumo de massa,
estimulam uma atenção sem precedentes nas imagens e impres­
sões superficiais, a um ponto em que o eu torna-se quase indis­
tinguível de sua superfície. A individualidade e a identidade
pessoal tornam-se problemáticas em tais sociedades, como se
pode facilmente perceber pela efusão de comentários psiquiá­
tricos e sociológicos sobre esses temas. Quando as pessoas recla-
22 O MÍNIMO EU

inam por se sentirem inautênticas ou se rebelam contra o “de­


sempenho de papéis”, dão testemunho da pressão predominante
no sentido de que se vejam com os olhos dos outros e moldem
o eu como mais uma mercadoria disponível para o consumo
no mercado aberto.
A produção de mercadorias e o consumismo alteram as
percepções não apenas do eu como do mundo exterior ao eu;
criam um mundo de espelhos, de imagens insubstanciais, de
ilusões cada vez mais indistinguíveis da realidade. O efeito es­
pecular faz do sujeito um objeto; ao mesmo tempo, transforma
o mundo dos objetos numa extensão ou projeção do eu. É enga­
noso caracterizar a cultura do consumo como uma cultura do­
minada por coisas. O consumidor vive rodeado não apenas por
coisas como por fantasias. Vive num mundo que não dispõe de
existência objetiva ou independente e que parece existir somente
para gratificar ou contrariar seus desejos.
Tal insubstancialidade do mundo externo nasce da pró­
pria natureza da produção de mercadorias e não de alguma
falha de caráter dos indivíduos, algum excesso de cobiça ou de
“materialismo”. As mercadorias são produzidas para o consumo
imediato. O seu valor não assenta em sua utilidade ou perma­
nência mas em sua negociabilidade. Elas se desgastam mesmo
quando não são utilizadas, uma vez que foram projetadas para
ser ultrapassadas por “ novos e aperfeiçoados” produtos, modas,
mutáveis e inovações tecnológicas. Assim, o “estado atual da
arte” em gravadores, toca-discos e aparelhos estereofônicos tor­
na inúteis os modelos passados (a não ser como antigüidades),
ainda que continuem a desempenhar as funções para as quais
foram projetados, tal como a mudança nas modas femininas
dita uma mudança completa nos guarda-roupas. Por outro lado,
os artigos produzidos para o uso, sem preocupação com a sua
negociabilidade, somente se desgastam depois de terem sido lite­
ralmente utilizados. “É a durabilidade”, já observou Hannah
Arendt, “que dá às coisas do mundo a sua relativa indepen­
dência diante dos homens que as produzem e as utilizam, a
sua ‘objetividade’, que as faz suportar, ‘resistir’ e durar, pelo
menos por algum tempo, diante das vorazes necessidades e de­
sejos de seus produtores e usuários vivos. Deste ponto de vista,
as coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 23

e sua objetividade reside no fato de que. . . os homens, a des­


peito de sua natureza mutante, podem recobrar a sua unifor­
midade através da relação com uma mesma cadeira e uma mes­
ma mesa”.
O significado mutante de “identidade” ilumina o vínculo
entre as percepções mutantes do eu e as percepções mutantes
do mundo exterior. Usada no discurso comum, identidade con­
serva ainda a sua primitiva conotação de uniformidade e con­
tinuidade: “a uniformidade de uma pessoa ou coisa em todas
as fases e circunstâncias”, na linguagem do Dicionário Oxford,
“ a condição ou fato pelos quais a pessoa ou a coisa é ela pró­
pria e não outra coisa; individualidade, personalidade”. Nos
anos 50, entretanto, o termo passou a ser utilizado por psi­
quiatras e sociólogos para se referir a um eu fluido, multiforme
e problemático, “socialmente outorgado e socialmente susten­
tado”, nas palavras de Peter L. Berger, e definido ou pelos
papéis sociais e desempenhos individuais, o “grupo de referên­
cia” ao qual ele pertence, ou, por outro lado, pelo manejo deli­
berado de impressões, a “apresentação do eu”, na frase de
Erving Goffman. O sentido psicológico de identidade, que pas­
sou ao uso comum, diminui ou elimina completamente a asso­
ciação entre identidade e “continuidade da personalidade” ; ex­
clui também a possibilidade de que a identidade seja definida
basicamente pelas ações da pessoa e pelo registro público de
tais ações. Em seu novo sentido, o termo se refere ao declínio
do antigo significado da vida como uma história de vida —
um modo de entender a identidade que dependia da crença em
um mundo público durável, tranqüilizador em sua solidez, que
sobrevive à vida individual e emite diante dela uma espécie de
julgamento. Note-se que o sentido anterior de identidade refe­
re-se tanto às pessoas como as coisas. Ambas perderam a sua
solidez na sociedade moderna, a sua definição e continuidade.
A identidade tornou-se incerta e problemática, não porque as
pessoas não ocupem mais posições sociais fixas — uma expli­
cação baseada no senso comum que incorpora inadvertidamente
a equação moderna entre identidade e papel social —, mas por­
que elas não mais habitam um mundo que exista independente­
mente delas.
2‘l o m ín im o eu

Agora, quando o mundo público ou comum retirou-se para


as sombras, pudemos ver, mais claramente que antes, a exten­
são em que necessitamos dele. Por um longo tempo, essa neces­
sidade foi esquecida pela satisfação que acompanhou a desco­
berta de uma vida interior plenamente desenvolvida, liberada
ao menos dos olhares curiosos dos vizinhos, dos preconceitos
do bairro, da presença inquisitorial dos mais velhos, de tudo
que fosse acanhado, asfixiante, insignificante e convencional.
Mas, agora, é possível ver que o colapso da nossa vida comum
empobreceu também a vida privada; libertou a imaginação dos
constrangimentos externos, mas, ao mesmo tempo, a expôs mais
diretamente à tirania das compulsões e ansiedades internas. A
fantasia deixa de ser liberadora quando ela se solta dos con­
troles impostos pela experiência prática do mundo. Em vez dis­
so, ela dá lugar às alucinações; e o progresso do conhecimento
científico, que deveria desestimular a projeção de nossos anseios
e receios interiores frente ao mundo que nos circunda, deixa
intocadas essas alucinações. A ciência não correspondeu às es­
peranças de que pudesse substituir as tradições metafísicas desa­
creditadas por uma explicação coerente do mundo e do lugar
que nele ocupa o homem. A ciência não pode dizer às pessoas
e, na melhor das hipóteses, não pretende dizer-lhes, como viver
ou como organizar corretamente a sociedade. Tampouco ofe­
rece o mesmo tipo de controle à imaginação irrestrita que a
experiência prática do mundo pode conferir. Não recria um
mundo público; na realidade, agrava o anterior sentido de irrea­
lidade ao dar ao homem o poder de realizar os seus voos mais
selvagens de fantasia. Ao oferecer uma visão das possibilidades
ilimitadas da tecnologia — viagens espaciais, engenharia bioló­
gica, destruição em massa —, remove o último obstáculo ao
pensamento veleitário; leva a realidade à conformidade com
nossos sonhos, ou melhor, com nossos pesadelos.
A cultura organizada em torno do consumo de massa esti­
mula o narcisismo — que podemos definir, para o momento,
como a disposição de ver o mundo como um espelho; mais par­
ticularmente, como uma projeção dos próprios medos e desejos
— não porque torna as pessoas gananciosas e agressivas mas
porque as torna frágeis e dependentes. Corrói a sua confiança
na capacidade de entender e formar o mundo e de prover as
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 25

suas próprias necessidades. O consumidor sente que vive num


mundo que desafia o entendimento e o controle práticos, um
mundo de imensas burocracias de “sobrecarga de informações”
e de complexos e interligados sistemas tecnológicos, vulneráveis
a súbitos colapsos, como a gigantesca queda de energia que es­
cureceu a região Nordeste, em 1965, ou o vazamento de radia­
ção de Three Mile Island, em 1979.
A completa dependência do consumidor diante desses sis­
temas intrincados e extremamente sofisticados de amparo à vida
e, de modo mais geral, diante dos bens e serviços fornecidos
externamente, recria alguns dos sentimentos infantis de despro­
teção. Se a cultura burguesa do século XIX reforçava os pa­
drões anais de comportamento — estocagem de dinheiro e man­
timentos, controle das funções fisiológicas, controle do afeto —
a cultura do consumo de massa no século XX recna os padrões
orais enraizados numa fase ainda mais anterior do desenvolvi­
mento emocional, quando a criança era completamente depen-.
dente do seio materno. O consumidor percebe o mundo circun­
dante como uma espécie de extensão do seio, alternadamente
gratificadora ou frustrante; reluta em conceber o mundo a não
ser em conexão com suas fantasias. Em parte porque a propa­
ganda que cerca as mercadorias apresenta-as tão sedutoramente
como a satisfação dos desejos, em parte, também, porque a
produção de mercadorias, por sua própra natureza, substitui o
mundo dos objetos duráveis com produtos destinados à ime­
diata obsolescência, o consumidor'enfrenta o mundo como um
reflexo de seus anseios e temores. Além disso, ele conhece o
mundo sobretudo através de imagens e símbolos insubstanciais,
que parecem referir-se hão tanto à realidade palpável, sólida e
durável, como à sua vida psíquica interior, ela própria expe­
rimentada não como um sentido válido do eu, mas como refle­
xos vislumbrados no espelho do meio circundante.

Consumo e cultura de massa

A defesa mais plausível do consumismo e da moderna cul­


tura de massa sempre foi a de tornarem disponível a todos um
conjunto de opções pessoais antes restritas aos riscos. “A nova
26 O MÍNIMO EU

sociedade é uma sociedade de massas”, escreveu Edward Shils,


“precisamente no sentido em que a massa da população foi in­
corporada à sociedade”. Pela primeira vez, as massas emergi­
ram de sua “existência imemorialmente antiga e estúpida” e
atingiram ao menos a “possibilidade de se tornarem membros
integrais de sua sociedade, de viverem uma existência humana
com algum exercício do gosto cultural”. Herbert Gans insiste
no mesmo ponto quando critica as propostas “que visam pôr
de lado a produção em massa e o consumo de massa, apenas
passada uma geração desde que um amplo número de ameri­
canos da classe trabalhadora e da classe média tiveram a opor­
tunidade de gozar os confortos, as conveniências e os prazeres
até agora limitados aos ricos e à haute bourgeoisie”. O argu­
mento mais contundente de Gans contra os críticos da cultura
de massa é que eles próprios, enquanto intelectuais liberados
das restrições provincianas, já cumpriram a árdua jornada que
leva da tradição à modernidade e agora esperam que todas as
outras pessoas compartilhem os seus próprios padrões de “cria­
tividade e auto-expressão” e a süa própria ética do “individua­
lismo e da resolução individual dos problemas” . Com não pouca
condescendência, sustenta que “muitos americanos da classe tra­
balhadora e da classe média ainda estão no processo de libe­
ração das culturas patriarcais tradicionais, aprendendo como
ser indivíduos com suas próprias necessidades e valores”. Em
outras palavras, estão começando a se aproximar dos elevados
padrões estabelecidos pela elite esclarecida; e os tão desdenha­
dos meios de comunicação de massa, de acordo com Gans,
desempenham um papel “progressista” ao derrubar a cultura
restritiva, patriarcal e “tradicional” da qual a gente comum
apenas começa a se aproximar. Assim, os meios de comunica­
ção de massa libertam a dona-de-casa da classe trabalhadora das
ordens patriarcais, tornando-a capaz de tomar as suas próprias
decisões e de agir de acordo com o seu próprio gosto e critério.
“ Para uma dona-de-casa que decidiu decorar a casa à sua pró­
pria maneira, em vez do modo como os seus pais e vizinhos
sempre fizeram”, os meios de comunicação “fornecem não ape­
nas uma legitimação para o seu esforço de auto-expressão indi­
vidual, mas um conjunto de soluções provenientes de várias
culturas e gostos a partir dos quais ela pode comecar a desen­
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 27

volver os seus próprios”. Além disso, a “enxurrada de artigos


sobre a liberação feminina nas revistas femininas de grande
circulação ajuda a mulher ainda profundamente imersa numa
sociedade dominada pelos homens a encontrar idéias e senti­
mentos que lhe permitem começar a lutar por sua própria li­
berdade”.
De acordo com essa visão do processo de “modernização”,
é justamente a abundância de opções à qual as pessoas estão
expostas que fundamenta o mal do homem moderno. “Aí onde
estão disponíveis alternativas complexas em uma sociedade”, nas
palavras de Fred Weinstein e Gerald Platt, “torna-se necessário
para o indivíduo dirigir a sua própria existência sem os supor­
tes tradicionais, isto é, sem os laços étnicos, de classe e de pa­
rentesco”. A necessidade de fazer escolhas entre uma gama
crescente de alternativas dá origem a “sentimentos persistentes
de descontentamento”.
Aqui, mais uma vez, encontramos uma explicação da mo­
derna “ crise de identidade” que confunde identidade com pa­
péis sociais e conclui, de modo bastante complacente, que “os
sentimentos persistentes de descontentamento” são o preço pago
pelas pessoas por sua liberdade. Em vez de atribuir aos indiví­
duos uma identidade ou posição social pré-ordenada, continua
o raciocínio, os modernos arranjos sociais deixam-no livre para
escolher um modo de vida que lhe agrade; e a escolha pode
tornar-se desconcertante e até mesmo dolorosa. Não obstante, os
mesmos analistas que celebram a “modernização” como uma
fartura crescente de opções pessoais roubam a escolha de seu
significado ao negar que o seu exercício leve a qualquer conse-
qüência importante. Reduzem a escolha a uma questão de es­
tilo e gosto, como o denota a sua preocupação com os “estilos
de vida”. A sua concepção gentil e inócua de pluralismo con­
sidera que todas as preferências, todos os “estilos de vida”,
todas as “culturas de gostos”, como as denomina Gans, são
igualmente válidas. Fazendo mau uso do preceito da antropolo­
gia cultural segundo o qual toda cultura deve ser julgada em
seus próprios termos, eles insistem em que ninguém tem o di­
reito de “impor” as suas próprias preferências ou julgamentos
morais a qualquer outro. Parecem considerar que os valores
mçrais não mais podem ser ensinados ou transmitidos através
28 O MÍNIMO EU

do exemplo e da persuasão, mas são sempre “impostos” a víti­


mas relutantes. Toda tentativa de conquistar alguma pessoa para
algum ponto de vista, ou mesmo de expô-la a um ponto de vista
diferente do seu, torna-se uma interferência intolerável na liber­
dade de escolha.
Tais pressupostos impedem obviamente qualquer debate
geral sobre valores. Transforma-se a escolha no teste da liber­
dade moral e política para depois reduzi-la ao nonsense. Assim,
Peter Clecak, cujo recente estudo America’s Quest for the Ideal
Self (A Busca da América pelo Eu Ideal) segue os passos de
Shils e Gans, saúda a diversidade da cultura americana, ao
passo que descarta a possibilidade que' esta possa intensificar
os conflitos étnicos e religiosos. A maioria dos americanos, de­
fende ele, não se acerca da religião com um espírito “sectário”
— uma afirmação nitidamente mal formulada, tendo em vista
a longa história do sectarismo americano, mas que se adapta
perfeitamente a "uma teoria do pluralismo, derivada não apenas
de Shils e Gans, como também de Louis Hartz, Daniel Boorstin
e Richard Hofstadter, que enfatiza o consenso cultural opondo-o
ao conflito e exalta o pragmatismo dos americanos e a sua ale­
gada indiferença à ideologia. A adesão a tais dogmas permite a
Clecak evitar a conclusão de que o atual renascimento das seitas
evangélicas, carismáticas e fundamentalistas assinala uma pro­
funda brecha entre a cultura do classe média americana e a
cultura esclarecida, secular e terapêutica das elites educadas,
uma brecha à qual alguns analistas se referem como uma “guer­
ra civil cultural”. A hipótese do conflito cultural deve ser rejei­
tada, de acordo com Clecak, pois “tais divisões não ameaçam
destruir a cultura ou dissolver o tecido social” (poucos confli­
tos na história sobreviveriam a um teste tão rigoroso); os valo­
res “tradicionais” permaneceram lado a lado com os novos va­
lores; a combinação leva não ao conflito mas a “opções cultu­
rais mais numerosas que antes: opções antigas nítidas, opções
novas nítidas e a uma fértil gama de sínteses ambíguas do
antigo e do novo”. Como outros pluralistas, Clecak minimiza
a permanência do conflito ideológico, ao supor que o exercício
das “opções” culturais não tem conseqüências, uma vez que uma
escolha nunca parece impedir uma outra. Infelizmente, para a
maior parte das pessoas, as coisas não parecem funcionar tão
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 29

suavemente. Àqueles que escolhem, por exemplo, educar seus


filhos como cristãos, reclamam que os meios de comunicação
de massa e as escolas subvertem os seus esforços ao propagar o
hedonismo e o “humanismo secular”, enquanto os modernistas
acreditam que as reivindicações de restauração da pena de mor­
te, de leis rigorosas contra o aborto e do ensino da “ciência
da criação” ameaçam todas as suas idéias. Na vida real, oposta
à fantasia pluralista, toda a escolha moral e cultural de alguma
conseqüência determina uma série de outras opções. Em uma
época de imagens e ideologia, entretanto, a diferença entre rea­
lidade e fantasia torna-se cada vez mais ilusória.
A concepção pluralista de liberdade baseia-se no mesmo
sentido multiforme do eu que encontra sua expressão popular
em panacéias tais como o “casamento aberto” e as “ligações
sem compromisso”, ambas originadas na cultura do consumo.
Uma sociedade de consumidores define a escolha não como a
liberdade de escolher uma linha de ação em vez de outra mas
como a liberdade de escolher todas as coisas simultaneamente.
“ Liberdade de escolha” significa “deixar suas opções em aberto” .
A idéia de que “você pode ser tudo o que quiser”, embora
preserve alguma coisa da antiga idéia da carreira aberta aos
talentos, passou a significar a possibilidade de as identidades
serem adotadas ou descartadas como se troca de roupa. Do pon­
to de vista ideal, as escolhas de amigos, amantes e carreiras
deviam todas estar sujeitas ao cancelamento: tal é a concepção
experimental e ilimitada da boa vida que sustenta a propaganda
de mercadorias, ao cercar o consumidor com imagens de possi­
bilidade ilimitada; Mas se a escolha não mais implica compro­
missos e conseqüências — tal como fazer amor acarretava im­
portantes “conseqüências”, por exemplo, especialmente para as
mulheres — a liberdade de escolha resulta, na prática, numa
abstenção da escolha. A menos que a idéia de escolha traga
com ela a possibilidade de fazer diferença, de mudar o curso
dos acontecimentos, de desencadear uma cadeia de eventos que
pode provar-se irreversível, ela nega a liberdade que pretende
sustentar. A liberdade passa a ser a liberdade de escolher entre
a marca “x” ou a marca “y”, entre amantes intercambiáveis,
entre trabalhos intercambiáveis, entre vizinhos intercambiáveis.
A ideologia pluralista oferece uma reflexão acurada sobre a
30 O MÍNIMO EU

troca de mercadorias, na qual produtos ostensivamente compe­


titivos tornam-se cada vez mais indistinguíveis e devem ser anun­
ciados, em conseqüência, com recursos de propaganda que bus­
cam criar a ilusão de variedade e apresentar tais objetos como
rupturas revolucionárias, como avanços surpreendentes da ciên­
cia e da técnica modernas ou, no caso dos produtos intelectuais,
como descobertas mentais cujo consumo trará perspicácia, su­
cesso e paz de espírito imediatos.

Tecnologia industrial, cultura de massa e democracia

Os críticos conservadores da educação e da cultura popu­


lares sempre defenderam a posição de que a “cultura superior”
somente pode ser apreciada pelas elites e que os esforços para
estendê-la às massas levam inevitavelmente ao rebaixamento dos
padrões. Mesmo críticos de esquerda da cultura de massa ado­
taram o ponto de vista segundo o qual “as grandes culturas do
passado sempre foram um assunto das elites”, como escrevia
Dwight Macdonald em 1960. Tendo abandonado a esperança
de que um dia as culturas de elite encontrassem uma audiência
popular, Macdonald e outros opositores da cultura de massa
passaram a defender uma política cultural que ao menos man­
tivesse separadas as “duas culturas” (a cultura superior e a cul­
tura de massa) e a encorajar o surgimento de “diversas audiên­
cias menores e mais especializadas”. Esta é em grande parte a
posição adotada posteriormente por Herbert Gans, que, no en­
tanto, a apresenta não como um ataque à masscult * mas como
uma arma contra o “elitismo” de Macdonald.
O debate em torno da cultura de massa — reavivado nos
anos 80 na forma de um debate sobre o “narcisismo”, o declí­
nio da “excelência” educacional e as raízes culturais da deca­
dência americana no mercado mundial — permanece atolado
em velhas rotinas porque os que rejeitam a crítica da cultura
de massa aceitam, não obstante, a sua premissa fundamental.
Eles também acreditam que “a cultura superior (perdeu) muito
de sua autoridade social”, como propõe Clecak; que “os pa-

(*) As expressões midculí e masscult são de Macdonald. (N. T.)


INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 31

drões autorizados de julgamento (estão) cada vez mais difíceis


de encontrar”; que a democracia traz uma certa “banalização
das idéias, um rebaixamento do gosto, um declínio da civili­
dade”; e que o “ideal burguês do viver afável e descansada­
mente não sobreviveu entre os muito privilegiados e tampouco
se expandiu por toda a sociedade”. Ao mesmo tempo, eles con­
cordam com Herbert Gans em que “os pobres têm tanto direito
à sua própria cultura como qualquer outro” e que os esforços
intelectuais para “impor” a cultura superior a outras pessoas
violam o seu direito a uma cultura “relacionada com a sua
própria experiência”.
Concordando ambos os lados deste debate em que a “mo­
dernização” leva à democratização da sociedade e da cultura,
a diferença entre eles reduz-se à questão de saber se o progresso
social e econômico compensa a diluição e vulgarização da cul­
tura superior. Para aqueles que vêem a si próprios enquanto
democratas culturais, o passado foi um tempo melhor apenas
para certos “grupos de elite”, na expressão de Clecak. A maior
parte das pessoas do passado, argumentam, levava uma vida
difícil e infeliz. O industrialismo trouxe à gente comum, pela
primeira vez, uma “vasta expansão das oportunidades de satis­
fação pessoal”. Se eles exploram essas possibilidades de maneira
que -ofende os intelectuais, o que importa é o fato de terem
o direito da escolha. Eles gozam de uma “gama de opções cul­
turais” anteriormente disponível apenas aos aristocratas; levam
uma vida “mais longa e saudável que a do passado”, de acordo
com Paul Wachtel, e dispõem de “maiores oportunidades de
educação e divertimento”. Os excessos deplorados tanto pelos
intelectuais conservadores quanto pelos “radicais tories”, como
os denomina Clecak, são os excessos da imaturidade e darão
lugar no devido tempo a alguma coisa melhor. As “espessas tex­
turas da cultura de semblante médio”, ao lado da “crescente
sofisticação política de uma cidadania melhor educada”, per­
suadiram Clecak de que a cultura popular já atingiu os primór­
dios de uma nova maturidade.
Quanto ao “narcisismo” e à “cultura do egoísmo” eles
podem ser descartados como “excessos”, “subprodutos inevitá­
veis”, “efeitos colaterais incômodos” do progresso social e eco­
nômico — “aspectos extremos de tendências mais salutares” .
52 O MÍNIMO EU

Os intelectuais que vêem apenas o lado negativo do progresso


encaram a sociedade americana através de um quadro de nos­
talgia. De acordo com VVachtel, os críticos do narcisismo con­
temporâneo obscurecem os “traços valiosos da busca pela sa­
tisfação pessoal“ ao “considerá-los como uma severa psicopato-
logia, como se fossem farinha do mesmo saco”. “Aferir o cará­
ter americano através de um índice de crescente egoísmo”, argu­
menta Clecak, “parece-me tão inútil como estimar os progres­
sos da cirurgia cardíaca durante os anos 60 e 70, através da
contagem do número de pacientes que morria nas salas de ope­
ração”.
Na forma como foi conduzido nos últimos quarenta anos,
o debate sobre o que se chamava de cultura de massa e agora
se chama narcisismo jamais poderá ser resolvido. A polêmica
passou a girar em torno da concepção fiscal da mudança cultu­
ral, vista como uma folha de balanço na qual os ganhos mate­
riais compensam as perdas culturais, em torno da questão de
saber se o progresso material cobra um preço muito alto na
perda da “excelência” cultural. Mas quem é capaz de dizer
se os ganhos da democracia econômica e social superam os seus
“efeitos colaterais” no plano da cultura?
Suponhamos que a questão esteja mal formulada. E se re­
jeitássemos a premissa subjacente a toda a discussão — que o
industrialismo fomenta o progresso político e econômico? E se
recusássemos a equação de industrialismo e democracia e par­
tíssemos da premissa de que uma produção industrial de larga
escala corrói as instituições locais de autogoverno, enfraquece
o sistema partidário e desestimula a iniciativa popular? Neste
caso, a análise cultural não pode mais se contentar com o ba­
lanço dos ganhos políticos e sociais, supostamente derivados do
progresso industrial, em contraposição às perdas culturais. Terá
que decidir, em vez disso, se a invasão da vida cultural e pessoal
pelo moderno sistema industrial gera os mesmos efeitos pro­
duzidos no campo social e político: a perda de autonomia e
de controle popular, a tendência à confusão entre a autodeter­
minação e o exercício das opções do consumidor, a crescente
ascendência das elites, a substituição das habilidades práticas
pela especialidade organizada.
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 33

A referência de Clecak à cirurgia cardíaca indica o que


está errado não apenas em seu próprio raciocínio mas em toda
a controvérsia sobre a cultura de massa e o “narcisismo”. Ele
iguala o progresso tecnológico ao progresso material e social,
quando, na verdade, não existe nenhuma ligação entre os dois.
Mais uma vez, não se trata de que as realizações materiais —
neste caso, o prolongamento da vida, erroneamente atribuído a
técnicas cirúrgicas sofisticadas — tenham efeitos colaterais in­
desejáveis: uma crescente população de idosos incapazes de
sustentar-se e confusos quanto ao significado moral da velhice.
Trata-se de que a cirurgia moderna, em seu conjunto, realizou
muito pouco, se é que o fez, para melhorar o padrão geral de
saúde e bem-estar físico ou mesmo prolongar a vida.2 Tudo o
que fez a tecnologia médica foi aumentar a dependência dos
pacientes em relação às máquinas e aos especialistas que ope­
ram tais “sistemas de apoio à vida”. O desenvolvimento da tec­
nologia moderna, não apenas na medicina como em outros
campos, somente melhorou o controle humano sobre o meio
físico de uma maneira superficial, ao capacitar os cientistas a
fazerem modificações de curto prazo na natureza, cujos efeitos
de longe prazo são incalculáveis. Enquanto isso, concentrou tal
controle nas mãos de uma restrita elite de técnicos e adminis­
tradores.
A tecnologia moderna e a produção em massa foram de­
fendidas, como a cultura de massa, com base no argumento de
que, se elas retiraram algum charme da vida, acrescentaram,
por outro lado, algo incomensurável aos confortos gozados pelos

(2) A elevação a longo prazo dos índices de expectativa de vida,


iniciada no século XVIII, derivou das melhorias nas dietas e no padrão
geral de vida. Quanto ao recente declínio nas mortes relacionadas a mo­
léstias cardiovasculares, nenhuma fonte confiável o atribui aos aperfeiçoa­
mentos na cirurgia cardíaca, cujo “progresso” é visto por Clecak e outros
defensores da modernização como um fato indiscutível. Mesmo os que
enfatizam as razões médicas para a queda das mortes por doenças do
coração, em comparação com os hábitos alimentares e de exercício mais
saudáveis, atribuem tal declínio aos aperfeiçoamentos no campo dos diag­
nósticos, não no da cirurgia. Segundo Eileen Crimmins: “Há uma con­
cordância geral de que o número de pessoas que sofreu efetivamente a
cirurgia (ponte de safena) é tão limitado que não poderia ter desempe­
nhado um papel muito importante na recente queda da mortalidade”.
Os efeitos das unidades de terapia intensiva para pacientes cardíacos
também “estão em debate”.
9
34 O MÍNIMO EU

homens e mulheres comuns. “Não tenho divergências com a


tradição”, escreve Gains. “Sou a favor das máquinas de lavar,
no lugar das tábuas de bater roupa e das barrancas dos rios,
no entanto”. Mas são justamente os efeitos democratizantes da
tecnologia industrial que não podem ser dados como garantidos,
Se essa tecnologia reduz parte da labuta doméstica, também faz
a dona-de-casa dependente das máquinas — não apenas a lava­
dora e a secadora automáticas mas o intrincado sistema energé­
tico necessário para mover esses e outros inumeráveis equipa­
mentos —, cuja pane faz parar o trabalho na casa. Como vi­
mos, a tecnologia moderna corrói a autoconfiança e a autono­
mia tanto dos trabalhadores como dos consumidores. Ela ex­
pande o controle coletivo do homem sobre o meio ambiente às
custas de seu controle pelos indivíduos; e mesmo tal controle
coletivo, como já apontaram inúmeras vezes os ecologistas, co­
meça a se revelar ilusório, na medida em que a intervenção
humana ameaça provocar respostas inesperadas da natureza, in­
cluindo alterações climáticas, o esgotamento da camada de ozô­
nio e a exaustão dos recursos naturais. Tampouco pode-se argu­
mentar que a tecnologia avançada amplia a gama de opções.
Seja qual for o seu poder de criar novas opções em teoria, na
prática, a tecnologia industrial desenvolveu-se segundo o prin­
cípio do monopólio radical, como o denominou Ivan Illich,
graças ao qual as novas tecnologias efetivamente eliminam as
antigas mesmo quando estas permanecem obviamente mais efi­
cientes para muitos propósitos. Assim, o automóvel não cons­
tituiu um mero acréscimo às formas de transporte anteriormente
existentes; adquiriu a sua preponderância às custas dos canais,
estradas de ferro, bondes urbanos e charretes, obrigando dessa
maneira a população a depender quase exclusivamente do trans­
porte automotivo, mesmo para aqueles propósitos para os quais
ele é comprovadamente inadequado, como a locomoção diária
para o trabalho.
A nossa crescente dependência frente à tecnologia que nin­
guém parece compreender ou controlar deu origem a um sen­
timento generalizado de impotência e vitimação. A proliferação
dos grupos de protesto, vista como uma afirmação da “persona­
lidade”, nos argumentos defendidos por Clecak, Gans e outros
pluralistas, origina-se, na realidade, do sentimento de que estra-
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 35

nhos controlam a nossa vida. O imaginário dominante associado


aò protesto político dos anos 60, 70 e 80 não é o imaginário
da “personalidade”, nem tampouco o imaginário terapêutico da
auto-atualização, mas o imaginário da vitimação e da paranóia,
de estar sendo manipulado, invadido, colonizado e ocupado por
forças estranhas. Os irados cidadãos que se descobrem morando
perto de depósitos de lixo químico venenoso ou instalações
nucleares perigosas, os vizinhos que se associam para manter
escolas destinadas a crianças deficientes mentais, moradias de
baixa renda ou creches, os irritados contribuintes, os militantes
contrários ao aborto e ao transporte escolar sem distinção de
raça, as minorias — todos esses grupos, por diferentes razões,
vêem-se como vítimas de polícias sobre as quais não têm controle.
Vêem-se como vítimas não apenas da burocracia, do alto go­
verno e das tecnologias imprevisíveis, como também, em muitos
casos, dos complôs e conspirações em alto nível no campo do
crime organizado, das agências de inteligência e dos políticos
dos escalões superiores. Lado a lado com o mito oficial de um
governo sitiado, sob ameaça de tumultos, manifestações e assas­
sinatos irracionais e sem motivo de personalidades políticas,
tomou corpo uma mitologia popular que vê o governo como
uma conspiração contra o povo.

O declínio da autoridade

O mito da modernização, que domina os debates sobre o


consumismo, a tecnologia, a cultura e a política de massa, pres­
supõe que “os movimentos pela autonomia”, nas palavras de
Weinstein e Platt, “separaram o indivíduo da autoridade”, oca­
sionaram um “relaxamento dos controles externos” e uma nova
“flexibilidade, dos preceitos sociais”, tornando possível ao ci­
dadão “escolher as suas metas pessoais a partir de um escopo
mais amplo de fins legítimos”. O declínio do respeito pela auto­
ridade, supostamente um efeito concomitante da ascensão dos
partidos de massas e do sufrágio universal, gera o mesmo tipo
de controvérsias suscitadas pela decadência do artesanato e da
“excelência” educacional. Os conservadores lamentam o colap­
so da liderança autoritária, enquanto os progressistas susten-
36 O MÍNIMO EU

tam, uma vez mais, que a democratização da política compensa


a estridente qualidade da cultura política moderna, a falta de
deferência frente aos oponentes e às autoridades e o irrefletido
desdém pela tradição. Conforme Ciecak, é uma “elite intelectual
fortificada” que se aflige com o colapso dos padrões e a “de­
mocratização da cultura americana”. Cegos à “força e varieda­
de” da vida americana, plenos de ansiedade e frustrações em
relação ao status, tomando o declínio de sua própría posição
bem-educada pelo declínio geral da política e da cultura, os
intelectuais assumem uma postura de superioridade moral e
denunciam os seus concidadãos como egocêntricos e narcisistas.
Seu “tom de derrota”, seu “pessimismo”, a “aura de nostalgia”
através da qual eles vêem o passado acusam um desprezo eli­
tista pela democracia, mesmo quando eles posam como radicais.
Com ar judicioso e imparcial, Ciecak nota que “ as dolorosas
tensões entre os valores culturais elitistas e os resultados ' da
participação democrática não admitem soluções fáceis”. Ele cita
Hofstadter, um dos fundadores da teoria pluralista, em apoio a
seu argumento de que a crítica da política e da cultura moder­
nas origina-se do “conflito insolúvel”, conforme Hofstadter, “en­
tre o caráter elitista da própria classe (dos intelectuais) e as suas
aspirações democráticas”, Como outros pluralistas, Ciecak con­
sidera essa fórmula banal tão atraente que simplesmente' fecha
o espírito a raciocínios que não se adaptam a ela — argumentos
críticos, por exemplo, da sociedade moderna, vista não como
demasiado democrática mas como portadora de uma democra­
tização da cultura e da política que permanece sobretudo ilusória.
O declínio da autoridade é um bom exemplo do tipo de
transformação que promove o aparecimento da democracia sem
substância. É parte da tendência a um estilo de disciplina social
manipulador, terapêutico, “pluralista” e “não-judicioso” que se
origina, como tantos outros processos, com a ascensão de uma
classe profissional e gerencial nos primeiros anos do século XX
e depois se irradia da corporação industriai, onde foi aperfei­
çoada, para o campo político em seu conjunto. Como vimos,
o controle gerencial da força de trabalho gerou uma força de
trabalho passiva, excluída das decisões sobre o planejamento e
a execução da produção. A passividade, no entanto, criou novos
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 37

problemas de disciplina no trabalho e de controle social — pro­


blemas de “morar’, de “motivação”, de “fator humano”, como
passaram a ser chamados pelos sociólogos e psicólogos indus­
triais, que começaram a surgir nos anos vinte. De acordo com
tais estudiosos profissionais das “ relações humanas”, a indus­
tria moderna criou um sentimento de inação, incerteza e ano-
mia: falta ao trabalhador o sentido de “pertinência”. Os pro­
blemas de disciplina no trabalho e de “recrutamento de mão-de-
obra” exigiram uma extensão das reformas culturais já inaugu­
radas pela ascensão do marketing de massa. Na verdade, a pro­
moção do consumo como um modo de vida passou a ser visto,
em si, como um meio de aliviar a inquietação industrial. Mas
a conversão do trabalhador em um consumidor de mercadorias
foi em breve seguida por sua conversão em ura consumidor de
terapias destinadas a facilitar o seu “ajustamento” às realidades
da vida industrial. Experiências realizadas na Western Electric
por Elton Mayo e seus colegas da Harvard Business School —
os célebres estudos Hawthorne — mostraram como as queixas
quanto aos baixos salários e a supervisão excessiva podiam
ser neutralizadas pelo aconselhamento e pela observação psi­
quiátrica. Mayo e seus colegas descobriram, ou anunciaram ter
descoberto, que as mudanças nas condições físicas de trabalho
e nos incentivos salariais e outras considerações de caráter ma­
terial tinham pouca influência na produtividade industrial. Os
trabalhadores sob observação elevaram a sua produção simples­
mente porque se tomaram objeto de atenção profissional e, pela
primeira vez, sentiram que alguém se preocupava com o seu
trabalho. Entrevistas elaboradas com o fim de trazer à tona as
queixas sobre a qualidade da supervisão, que por sua vez ser­
viriam à administração para o aperfeiçoamento das técnicas
supervisoras, apresentaram-se, pelo contrário, como reclamações
subjetivas e intensamente emocionais, com pouca relação com
as condições objetivas de trabalho. Ás queixas dos trabalhado­
res, de acordo com Mayo, não tinham nenhuma “referência
externa”, e o novo sentido de liberdade expresso pelos traba­
lhadores sob observação tinha que ser tomado, portanto, não
como uma descrição objetiva de uma mudança real nas condi­
ções de trabalho mas como “juízos preconceituosos”, como sin-
38 O MÍNIMO EU

tomas ou, em suma, como “simplesmente um tipo de afirmação


feita quase inevitavelmente quando um grupo não muito arti­
culado de trabalhadores procura expressar um Sentimento inde­
finível de liberação do constrangimento”. Como Mayo se esfor­
ça por salientar, “a sua opinião é, certamente, equivocada: em
certo sentido eles estão sob uma supervisão mais estreita do
que nunca, a mudança está apenas na qualidade da supervisão”.
Seria difícil encontrar uma afirmação que captasse de for­
ma tão nítida a passagem de um modo de controle social auto­
ritário para um modo terapêutico — uma guinada que trans­
formou não apenas a indústria mas a política, a escola e a
família. Apoiados em tais pesquisas, administradores sofistica­
dos passaram a encarar a exortação moral, ou mesmo os apelos
ao auto-interesse instruído na forma de incentivos salariais,
como técnicas obsoletas de gerência industrial. Eles visualiza­
vam uma mudança na “qualidade da supervisão”, descrita por
Douglas MacGregor, do MIT, em The Human Side of Enter­
prise (O Lado Humano da Empresa) (1957) — outro estudo
que teve um enorme impacto sobre as práticas e a teoria admi­
nistrativa — , como uma mudança de um estilo de controle
autoritário, baseado em advertências e punições, para um estilo
mais “ humanista” que tratava o trabalhador não como criança
rrias como sócio na empresa e procurava dar a ele um sentido
de pertencer àquela. Note-se a ironia deste discurso da “socie­
dade”, tão mal colocado como o tema das “opções crescentes”,
que também figurava com destaque na retórica do pluralismo.
O novo estilo de administração define o trabalhador (tal como
é definido pela indústria da propaganda) como uma criatura de
impulso: curto de visão, irracional, incapaz de entender as con­
dições de seu trabalho ou mesmo de formular uma defesa inte­
ligente de seus próprios interesses. Recorrendo não apenas a
seus próprios experimentos como também a um vasto corpo de
teoria sociológica e psicológica, os membros da nova elite admi­
nistrativa substituíram a supervisão direta da força de trabalho
por um sistema muito mais sutil de observação psiquiátrica.
A observação, inicialmente concebida como um meio para al­
cançar formas mais efetivas de supervisão e controle, tornou-se
um meio de controle por seus próprios méritos.
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 39

A política como consumo

A observação sistemática de dados sintomáticos, mesmo


antes de se tornar uma técnica de disciplina do trabalho e con­
trole social, já passara a servir de base a um novo sistema de
recrutamento industrial, cujo centro era a escola. O moderno
sistema de educação pública, remodelado de conformidade com
os mesmos princípios de gestão industrial anteriormente aper­
feiçoados na indústria, substituiu o aprendizado de um ofício
como agência principal no treinamento das pessoas para o tra­
balho. Neste treinamento, a transmissão de habilidades é cada
vez mais acidental. A escola habitua as crianças à disciplina
burocrática e à exigências da vida em grupo, gradua-as e as
classifica através de testes padronizados e seleciona algumas
para as carreiras profissionais e de gerência, enquanto destina
as restantes ao trabalho manual. A subordinação da instrução
acadêmica aos testes e à supervisão sugere que as agências de
“seleção de mão-de-obra” tornaram-se parte de um aparato maior
de supervisão e ressocialização que inclui não apenas a escola
como também os juizados de menores, as clínicas psiquiátricas
e os departamentos de assistência social — em suma, toda a
gama de instituições operadas pelos “profissionais de assistên­
cia”. Esse complexo tutelar, como já foi adequadamente deno­
minado, desestimula a transferência autônoma de autoridade e
poder de uma geração para outra, passa a mediar as relações
familiares e socializa a população para as exigências da buro­
cracia e da vida industrial.
Todas essas instituições operam de acordo com o princípio
subjacente segundo o qual o desejo de cooperar com as dignas
autoridades oferece a maior evidência do “ ajustamento” e a
melhor promessa de sucesso pessoal, ao passo que a recusa à
cooperação significa a presença de “problemas emocionais” que
requerem uma atenção terapêutica mais 'constante. Enquanto
agência de seleção de mão-de-obra, o sistema escolar, comple­
mentado por outras agências tutelares, funciona como um ins­
trumento efetivo para o racionamento dos privilégios de classe
em uma sociedade que se sente constrangida diante do tema
dos privilégios e busca acreditar que as pessoas sobem com
40 O MÍNIMO EU

base em seus próprios méritos. Como agência de disciplina so­


cial, a escola, ao lado de outros elementos do sistema tutelar,
reflete e fortalece ao mesmo tempo a guinada que leva das
sanções autoritárias para a manipulação e a vigilância psico­
lógicas — a redefinição da autoridade política em termos tera­
pêuticos — e para a ascensão de uma classe profissional e ge­
rencial que governa a sociedade não através da preservação de
padrões morais autoritários, mas com base na definição de um
comportamento normal e no recurso a sanções psiquiátricas
supostamente não punitivas diante dos desvios.
A extensão de tais técnicas ao campo político transforma
a política em administração e, finalmente, em mais um artigo
de consumo. A expansão do funcionalismo profissional, o sur­
gimento de comissões reguladoras, a proliferação de departa­
mentos governamentais e o predomínio das funções do executi­
vo sobre as do legislativo oferecem apenas os exemplos mais
óbvios da passagem do controle político para o controle admi­
nistrativo, onde os temas supostamente demasiado obscuros e
técnicos para, a compreensão popular passam ao controle de
especialistas profissionais. A regulamentação governamental da
economia tem sido amiúde defendida com o objetivo explícito
de isolar os negócios e o governo da ignorância popular —
como quando George W. Perkins, um dos fundadores do Par­
tido Progressista de Theodore Roosevelt e defensor das comis­
sões reguladoras, propugnava que os temas econômicos como
impostos e créditos deviam ser tratados “fora da política”; la­
mentava a “maneira escandalosamente incompetente pela qual
os nossos grandes problemas econômicos vêm sendo tratados”
e citava “o alarido em torno da Lei Sherman” *, como exemplo
da incompetência dos políticos e de seus eleitores. Mas mesmo
as reformas destinadas a incrementar a participação popular,
como a instituição das eleições primárias para presidente, tive­
ram o efeito oposto. A política do século XX passou a con­
sistir cada vez mais no estudo e no controle da opinião pública.
O estudo do “eleitor americano” incorpora técnicas anteriormen­
te aperfeiçoadas na pesquisa de mercado, onde serviam para

(*) Trata-se da Lei Antitruste de 1890. (N. T.)


T
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 44

identificar as fantasias do “consumidor soberano”. Tanto no


governo como na indústria, recursos originalmente. destinados
apenas ao registro das opiniões — pesquisas, amostras e a pró­
pria votação — servem agora também para manipular a opinião.
Definem uma norma estatística, cujos desvios passam a ser
automaticamente suspeitos. Tornam possível excluir as opiniões
impopulares do debate político (tal como os artigos impopula­
res são excluídos dos supermercados), sem nenhuma referência
a seus méritos, com base apenas em sua comprovada falta de
apelo. Ao confrontar o eleitorado com a estreita gama de opções
existentes, ratificam essas opções como as únicas capazes de
atrair apoio. Assim como as entrevistas realizadas em Hawthor-
ne trivializaram as reivindicações dos trabalhadores, as enquêtes
e pesquisas trivializam a política ao reduzir as opções políticas
a alternativas indistintas. Em ambos os casos, os detentores do
poder solicitam o input popular estritamente em seus próprios
termos, sob a capa da imparcialidade científica. O estudo do
“comportamento” eleitoral torna-se, ao mesmo tempo, urn de­
terminante fundamental desse comportamento.
Na indústria, a exclusão dos trabalhadores do controle so­
bre o destino do trabalho caminha passo a passo com a ascen­
são de uma instituição nova e profundamente não democrática,
a corporação, que centralizou o conhecimento técnico anterior-
mente gerido pelos artesãos. Na política, a exclusão do público
da participação política está inseparavelmente ligada ao declínio
de uma instituição democrática, o partido político, e à sua subs­
tituição por instituições menos receptivas ao controle popular.
A função política do partido foi apropriada pela burocracia
administrativa; a sua função educativa, pelos meios de comu­
nicação de massa. Os partidos políticos especializam-se hoje
em comercializar os políticos para o consumo público e mesmo
aqui a disciplina partidária desmoronou-se em notável extensão.
O eleitorado não “está mais vinculado ao partido pelos vene­
randos laços da clientela e da máquina”, como salientou Walter
Dean Burnham. Em decorrência, a política transformou-se em
um “item de consumo de lixo. . .. um esporte interno que en­
volve um exército de discretos jogadores, no lugar dos times
de antigamente”.
42 O MÍNIMO EU

Á nova “personalidade”

As mudanças sociais até aqui enumeradas — a substitui­


ção da observação e das medições no lugar dos tipos auto­
ritários e “sentenciosos” de sanções sociais; a transformação da
política em administração; a substituição do trabalho especiali­
zado pelas máquinas; a redefinição da educação como “seleção
de mão-de-obra”, destinada não a conferir habilidades mas a
classificar os trabalhadores e a destiná-los seja à restrita classe
dos administradores, técnicos e gerentes que tomam as decisões,
seja à classe mais ampla dos operários minimamente qualifica­
dos que apenas executam ordens — transformaram gradual­
mente um sistema produtivo baseado na produção artesanal e
nos intercâmbios regionais numa rede complexa e interligada
de tecnologias fundadas na produção em massa, no consumo de
massa, nos meios de comunicação de massa, na cultura de mas­
sa: na assimilação de todas as atividades, mesmo aquelas antes
associadas à vida privada, às exigências do mercado.
Esses processos criaram um novo tipo de individualidade,
caracterizado por alguns observadores como egoísta, hedonista,
competitiva e “antinomial” e por outros como cooperativa,
“auto-atualizada” e esclarecida. Nesta altura, deve estar claro
que nenhuma de tais descrições capta o significado predomi­
nante do eu. A primeira vê o consumismo apenas como um
convite à auto-indulgência; lamenta o “materialismo” e o desejo
de possuir “coisas” e perde os efeitos mais insidiosos da cul­
tura do consumo, que dissolve o mundo das coisas substanciais
(ao invés de reforçá-lo), substitui-o por um vago mundo de
imagens e, por conseguinte, apaga as fronteiras entre o indiví­
duo e os seus arredores. Os críticos do “hedonismo” atribuem
o seu crescente apelo ao colapso dos padrões educacionais, à
democratização de uma “cultura adversária” que anteriormente
apelava apenas à avant-garde intelectual e ao declínio da auto­
ridade e da liderança políticas. Eles se queixam de que as pes­
soas pensam demasiado em direitos, em vez de pensarem em
obrigações; lamentam o sentido difuso de “intitulação” e a rei­
vindicação de privilégios imerecidos. Todos esses argumentos
convidam à réplica de que, embora a cultura democrática possa
ofender os “defensores da ordem pública e da cultura superior”,
f.

INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 43

como os denomina Theodore Roszak, ela possibilita às pessoas


comuns o acesso a uma vida melhor e a uma gama mais ampla
de “opções”,
Nenhum dos lados deste debate parou para questionar a
realidade de opções que não têm conseqüências duráveis. Ne­
nhum deles questiona a concepção envilecida de democracia
que a reduz, com efeito, ao exercício das preferências do con­
sumidor. Nenhum se interroga sobre a equação entre indivi­
dualidade e a capacidade de desempenhar uma variedade de
papéis e de assumir uma infindável variedade de identidades
livremente escolhidas.
Uma vez que a exaltação da “personalidade” busca ape­
nas refutar as críticas de egoísmo e hedonismo, ela não pode
enfrentar uma argumentação que rejeite os termos predominan­
tes do debate. Pode apenas elaborar variações engenhosas sobre
o mesmo tema, construindo novas tipologias que expressam o
mesmo contraste cruamente concebido entre o antigo individua­
lismo e a “nova ética social”, como a chama Daniel Yanke-
lovich. A Consciência II e a Consciência III de Charles Reich,
o Saber II e o Saber III de Gregory Batenson e a Segunda Onda
e a Terceira Onda de Alvin Toffler servem todas para rotular
configurações culturais e traços de personalidade estilizados,
que têm pouca referência a tudo que não seja a sua própria
oposição. Por conseguinte, a nova consciência, de acordo com
Reich, afirma a “totalidade do indivíduo” e rejeita “a busca
agressiva, disciplinada e competitiva de metas definidas”. A
velha cultura, por sua vez, repousa — como explica Toffler — ,
numa atitude exploratória diante da natureza, num “modelo
atômico da realidade”, que vê somente as partes e perde o
conjunto, numa visão mecanicista de causalidade e num sentido
linear de tempo. Theodore Roszak, como muitos outros, insiste
em que a emergente ética da personalidade não deve ser con­
fundida com o narcisismo, a egocentria ou a auto-absorção.
Embora um “anseio de crescimento, de autenticidade, de lar­
gueza de experiências” assuma, às vezes, a forma de “ atrevi­
mento, vulgaridade e impetuosidade juvenil”, esses efeitos cola­
terais, tanto para Roszak como para Peter Clecak, Daniel Yan-
kelovich e Paul Wachtel, representam uma fase passageira no
desenvolvimento de uma sensibilidade que irá finalmente recon-

L_
44 O MÍNIMO EU

ciliar o indivíduo e a sociedade, a humanidade e a natureza


Os críticos da nova cultura, segundo Roszak, “interpretam erro­
neamente o novo ethos de autodescobrimento, tomando-o de
forma equívoca pelo velho vício do auto-engrandecimento” . Eles
confundem “a busca sensível por satisfação com o tumultuoso
hedonismo de nossa economia de alto consumo”. Vêern uma
outra “revolta das massas” no que é efetivamente urna “revolta
das pessoas contra a massificação, em benefício de sua encas­
telada personalidade” .
Na versão oferecida por Wachtel deste raciocínio, o declí­
nio do homem econômico e a ascensão do homem psicológico
pressagiam um bom futuro. Os que vêem este processo como
uma decadência, como Rieff, atribuem à psicologia em geral os
efeitos perniciosos que deviam ser atribuídos apenas à psicaná­
lise, que define o “egoísmo ganancioso” como a base da natu­
reza humana, que reflete, assim, a ética capitalista do individua­
lismo competitivo. As novas terapias de crescimento e as novas
terapias familiares, por outro lado, oferecem uma alternativa
“saudável” ao individualismo atomístico. Longe de estimular o
“narcisismo”, enfatizam as determinantes culturais da persona­
lidade e a importância, supostamente ignorada pela psicanálise,
das transações entre o indivíduo e o seu meio circundante.
Defendem um “ponto de vista 'psicoecológico’ “O problema
não está na psicologia, argumenta Wachtel, mas na psicologia
errada
Conforme Morris Berrnan, a nova “ cultura planetária” re­
jeita a “consciência do ego” em benefício de um “sentido eco­
lógico da realidade”. Recorrendo à “surpreendente síntese ofe­
recida pelo antropólogo cultural Gregory Batescn” — a “ única
ciência holística plenamente desenvolvida de que se dispõe atual­
mente” — Berrnan advoga a morte cartesiana da visão de
mundo e o surgimento de um novo sentido de “vinculação cós­
mica” . O conhecimento verbal-racional (Saber II, na denomi­
nação de Bateson) separa o indivíduo do meio circundante e
de seus semelhantes, enfatiza uma brecha entre a mente e o
corpo e entre fato e valor, e aferra-se a um sentido de tempo
linear. A consciência holística (Saber III) reúne fato e valor
e dissolve o ego, o “ indivíduo independente tão caro ao pensa­
mento ocidental”. O colapso da visão de mundo mecanicista,
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 45

acredita Berman, anuncia uma “sociedade holística”, mais “so­


nhadora e sensual que a nossa”, na qual “ o corpo será visto
como parte da cultura”, e não como uma “perigosa libido a ser
mantida sob controle”. A nova sociedade valorizará a comu­
nidade mais que a competição. Ela se fundará em famílias ex­
tensas e não na “família competitiva e nuclear que é hoje uma
sementeira de neuroses”. Tolerante, pluralista e descentralizada,
ela se preocupará em “ajustar-se à natureza em vez de procurar
dominá-la”. A nova consciência conduz a um “reencantamento
do mundo”.
A fim de confrontar a nova personalidade com o indivi­
dualismo aquisitivo, seus admiradores defendem que a revolu­
ção cultural, longe de estimular o narcisismo, coloca um fim
na “ ilusão de auto-suficiência” narcisista, como a chama Philip
Slater. Em passagens que lembram Morman O. Brown, Slater
sustenta que a ilusão “infantil da onipotência narcisista” fun­
damenta o individualismo competitivo, a ética do progresso e
a urgência prometéica de dominação da natureza e de “exten­
são de si mesmo numa forma linear frente ao meio ambiente” .
Agora que as “virtudes do desvinculamento” — as “mais esti­
madas virtudes do passado” — perderam o seu “valor de sobre­
vivência”, uma nova preocupação ecológica começa a tomar
forma, a qual compreende a inserção do homem num sistema
de vida mais amplo. A velha cultura funda-se “num pressu­
posto arrogante sobre a importância do indivíduo particular na
sociedade e a importância da humanidade no universo”. À nova
cultura, por outro lado, valoriza as “virtudes humildes” que
adotaram o “valor superior da sobrevivência” num mundo amea­
çado pela tecnologia desenfreada, o desastre ecológico e o holo­
causto nuclear-. “As condições que conferiram à competitividade
um valor de sobrevivência há muito se evaporaram.”
Na obra de Beíty Friedan, O Segundo Estágio, os mesmos
temas ganham um colorido feminista. De acordo com Friedan,
o movimento feminista combinou-se a um “movimento silen­
cioso dos homens americanos” para criar um tipo de persona­
lidade andrógina que já está “humanizando” tanto a família
como as grandes corporações. Ela cita estudos realizados pelo
Stanford Research Institute — berço das visões mais otimistas
sobre “a imagem do homem em transformação” — que supos­
46 O MÍNIMO EU

tamente atestam a transição de um estilo autoritário para um


estilo pluralista de liderança empresarial. O estilo Alfa — outra
variação das tipologias padronizadas — baseia-se no “pensa­
mento analítico, racional e quantitativo”, nas palavras de Frie-
dan. Tal estilo pressupõe, erroneamente, que toda escolha faz
de certos homens os vencedores e de outros os perdedores. É
possível que tenha existido um estilo apropriado para a “socie­
dade autoritária e homogênea” do passado recente; mas o sur­
gimento de um novo tipo de sociedade, na qual “os principais
problemas da sobrevivência econômica e mesmo física estão
relacionados com os complexos relacionamentos, comportamen­
tos e valores das pessoas e não das coisas”, exige um novo tipo
de liderança. “ Contextuai”, “ relacional”, flexível e tolerante,
mais preocupado com as “sutilezas da interação humana” que
com a imposição de valores uniformes, o estilo Beta é um estilo
feminino ou andrógino, cuja crescente importância assinala a
obsolescência do “pensamento masculino linear do vencer ou
perder e da somatória zero” . Sua emergência, juntamente com
o renascimento religioso, o movimento do potencial do homem
e a ânsia geral “por propósitos mais amplos que superem o eu”,
refuta os críticos sociais que especializaram-se em “arengar e
vociferar sobre a ‘geração do mim’ e a ‘cultura do narcisismo’ ”.
Num livro que se originou dos estudos de Stanford, Sim­
plicidade Voluntária, Duane Elgin resume a visão de mundo
industrial e a visão de mundo pós-industrial em colunas para­
lelas: “materialismo” oposto a “espiritualidade”, “competição
implacável” oposta a cooperação, consumo conspícuo oposto a
conservação. O industrialismo define o indivíduo como “sepa­
rado e só”; a nova perspectiva planetária o define como “ uma
parte do universo maior, ao mesmo tempo única e inseparável”.
De acordo com Elgin, o movimento conservacionista, o movi­
mento antinuclear, a contracultura, o movimento do potencial
do homem, o interesse pelas religiões orientais e a nova preo­
cupação com a saúde combinam-se para gerar uma “revolução
silenciosa”, um “estimulante interesse pelo aspecto interior da
vida”. Marilyn Ferguson faz as mesmas asserções em A Cons­
piração de Aquário, mais um livro dirigido contra “os críticos
sociais (que) falam a partir de sua própria desesperança ou de
uma espécie de chique cínico que desfigura (sic) o seu próprio
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 47

senso de impotência”. A crítica da nova consciência, sustenta


Ferguson, baseia-se em um “medo do eu” e em uma “tendên­
cia cultural contrária à introspecção”, segundo a qual esta é
“narcisista ou escapista”. Na verdade, no seu ponto de vista,
a nova cultura repudia o “egoísmo”; sabe que “o eu separado
é uma ilusão”; reúne o indivíduo e a sociedade, a mente e o
corpo, a ciência e o misticismo. Rejeita a concepção materia­
lista da realidade, por longo tempo sustentada pelo racionalis-
mo ocidental. A realidade é mais uma miragem racionalista,
segundo Ferguson. “Se a natureza da realidade é . .. holográ-
fica, e o cérebro opera holograficamente, então o mundo é,
efetivamente, como o disseram as religiões orientais, maya: um
espetáculo mágico. O seu caráter concreto é uma ilusão.”

“Egoísmo” ou sobrevivencialismo?

Com a sua utilização liberal dos rótulos, a sua inclinação


para as palavras de ordem, a sua redução da mudança cultural
a conjuntos simplificados de características opostas e sua con­
vicção de que a realidade é uma ilusão, esta demanda sim­
plória pela “revolução cultural” denuncia a afinidade com o
consumismo que pretende repudiar. A mais evidente debilidade
deste raciocínio, entretanto — e de todo o debate no qual está
envolvido —, é a equação de narcisismo com “o egoísmo em
uma forma extrema”, na expressão de Daniel Yankelovich. Os
termos têm pouco em comum. O narcisismo significa uma perda
da individualidade e não a auto-afirmação; refere-se a um eu
ameaçado com a desintegração e por um sentido de vazio inte­
rior. Para evitar confusão, o que denominei a cultura do nar­
cisismo seria melhor caracterizado, ao menos para o momento,
como a cultura do sobrevivencialismo. A vida cotidiana passou
a pautar-se pelas estratégias de sobrevivência impostas aos que
estão expostos à extrema adversidade. A apatia seletiva, o des-
compromisso emocional frente aos outros, a renúncia ao passado
e ao futuro, a determinação de viver um dia de cada vez —
tais técnicas de autogestão emocional, necessariamente levadas
ao extremo em condições extremas, passaram a configurar, em
formas mais moderadas, a vida das pessoas comuns em condi­
48 O MÍNIMO EU

ções normais de uma sociedade burocrática, amplamente perce­


bida como um vasto sistema de controle total.
Confrontadas a um meio ambiente aparentemente impla­
cável e ingovernável, as pessoas voltaram-se para a autogestão.
Com o auxílio de uma elaborada rede de profissões terapêu­
ticas, as quais, elas próprias, abandonaram as abordagens que
enfatizam as introvisões introspectivas em benefício da adapta­
ção e da modificação do comportamento, os homens e as mu­
lheres tentam atualmente reconstituir uma tecnologia do eu, a
única alternativa aparente ao colapso pessoal. Entre um grande
número de pessoas, o medo de que o homem seja escravizado
por suas máquinas deu lugar a uma esperança de que o homem
se transforme em algo parecido a uma máquina, por seus pró­
prios méritos, e atinja, assim, urn estado de espírito “além da
liberdade e da dignidade”, nas palavras de B. F. Skinner. Por
trás da injunção de “comunicar-se com seus próprios sentimen­
tos” — um remanescente de uma anterior psicologia “profunda”
— encontra-se a insistência ora familiar de que não há profun­
didade, não há mesmo desejo, e de que a personalidade humana
é apenas uma coleção de necessidades programadas, seja pela
biologia, seja pela cultura.
Não é provável que cheguemos a uma compreensão mais
exata da cultura contemporânea enquanto se definir os pólos
do debate como, por um lado, egoísmo e auto-absorção e, por
outro, auto-satisfação e introspecção. Conforme Peter Clecak,
o egoísmo é o “lado deficitário” da liberação cultural — um
“subproduto inevitável da busca da satisfação” . É uma parte
da cultura contemporânea que não pode ser confundida com
o todo. “Embora sejam até certo ponto plausíveis, as caracteri­
zações da América como uma cultura egoísta confundem, de
modo geral, os excessos com as normas, os subprodutos com os
resultados centrais e, no conjunto, salutares da busca” por auto-
satisfação. Mas a questão não é saber se os efeitos salutares da
“personalidade” superam o hedonismo e o auto-interesse. Tra­
ta-se de saber se qualquer um destes termos capta, seja os pa­
drões dominantes das relações psicológicas, seja a definição do­
minante de individualidade.
A concepção dominante de personalidade vê o eu como
uma vítima indefesa das circunstâncias externas. Essa é a visão
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA DE MASSA 49

estimulada tanto por nossa experiência de dominação do sé­


culo XX como pelas muitas variações do pensamento social
contemporâneo que atingiram o seu clímax com o behaviorismo.
Não é uma visão propícia a estimular, seja um renascimento
do antiquado individualismo aquisitivo (que pressupunha uma
confiança muito maior no futuro que a da maioria das pessoas
atualmente), seja a espécie de procura de auto-satisfação exal­
tada por Clecak, Yankelovich e outros otimistas. Uma afirma­
ção genuína do eu depende, acima de tudo, de um núcleo de
individualidade que não se encontre sujeito à determinação do
meio ambiente, mesmo sob condições extremas. A auto-afirma­
ção permanece como uma possibilidade precisamente na medida
em que a antiga concepção de personalidade, originária das
tradições judaico-cristãs, tenha persistido ao lado da concepção
comportamental ou terapêutica. Mas esta espécie de auto-afir­
mação, que permanece como uma fonte potencial de renovação
democrática, nada tem em comum com a busca atual pela so­
brevivência física — cujas variações examinaremos agora em
detalhe.
A mentalidade
da sobrevivência

A normalização da crise

Em uma época de inquietações, segura do desfrute de con­


fortos materiais desconhecidos em épocas passadas e todavia
obcecada por idéias de desastre, o problema da sobrevivência
faz sombra às mais altas considerações. A preocupação com a
sobrevivência, traço proeminente da cultura americana desde o
início dos anos 60, assume várias formas, graves ou triviais.
Encontra a sua expressão mais insidiosa e característica, a sua
expressão definitiva, na ilusão das guerras nucleares vencíveis;
mas, de forma alguma, se esgota na antecipação de calamidades
capazes de abalar a Terra. Ela entrou de forma tão profunda
na cultura popular e no debate político que todos os temas,
por mais efêmeros e sem importância, apresentam-se como uma
questão de vida ou de morte.
Uma revista de esquerda, Mother Jones, anuncia-se como
um “guia de sobrevivência” à “ Idade das Trevas política”
trazida pela eleição de Ronald Reagan. Uma estação de rádio
de Los Angeles, desejosa de espalhar “bondade, alegria, amor e
felicidade”, recomenda-se aos seus ouvintes como “ a sua estação
de sobrevivência nos anos oitenta”. A Samsonite, fabricante de
malas, faz propaganda de sua última maleta como “a sobre­
vivente”. Um título do New York Times alude a uma tentativa
93 O MÍNXMO EU

de limitar a substituição das músicas gravadas no lugar dos


músicos ao vivo, conduzida pela. Federação Americana dos Mú­
sicos, como uma “batalha pela sobrevivência”. Uma longa dia­
tribe antifeminista, publicada com a fanfarra habitual dos meios
de comunicação, apresenta-se como um guia de sobrevivência
para o homem' maltratado. Um treinador de basquete elogia um
de seus pupilos por sua capacidade de aprender com os erros
e de “ sobreviver” a eles. O mesmo cronista esportivo que relata
esse tributo medita sobre a “sobrevivência” do basquete univer­
sitário como grande esporte de espectadores.
Em Yale, um “Comitê Estudantil de Salvamento” exorta
os pais a enviar a seus filhos e filhas um “kit de sobrevivência”
(“alimentação rápida e nutritiva em embalagem bem humora­
da”) a fim de auxiliá-los a suportar o “período mais cruciai e
torturante (sic) de todo o ano acadêmico — os exames finais!”.
A Associação Americana de História publica um panfleto des­
tinado a auxiliar a mulher a enfrentar a discriminação: Um
Manual de Sobrevivência para a Mulher (e outros) Historiadora.
Um paciente de herpes explica como superou o medo da mo­
léstia ao confiar em seus companheiros de sofrimento: “ Quando
você se solidariza com os outros, é como se estivesse com sobre­
viventes de uma inundação ou de um campo de prisioneiros”.
Uma resenha sobre as memórias de Henry Kissinger traz o pro­
fético título, “Mestre da Arte da Sobrevivência”. Michael Sellers,
filho do ator Peter Sellers, diz aos repórteres: “Meu pai apegou-
se freneticamente — mesmo depois de um ataque cardíaco em
1964 — à idéia de que era um sobrevivente e . . . viveria até
os setenta e cinco”. Outro ator, George C. Scott, fala de si
próprio como um “sobrevivente” de uma profissão implacável.
Jason Robards Jr., após enfrentar o alcoolismo, um acidente de
automóvel quase fatal e um longo período de descaso da crítica,
maravilha-se com o “mistério” pelo qual “pessoas como George
(Scott) e eu tenhamos sobrevivido”. Um crítico teatral celebra
as reprises de Private Lives, de Noël Coward, e The Caine Mu-
tiny, de Herman Wouk, num artigo, “Sobreviventes” que tam­
bém saúda o retorno de Elizabeth Taylor e Richard Burton aos
palcos da Broadway.
Erma Bombeck apresenta a sua última coletânea de artigos
como um livro “que trata da sobrevivência”. Outro livro ende-
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 53

recado às donas-de-casa — Sobreviver como mulher, ou como


manter sua cabeça erguida, sua coragem alta e nunca ser pega
com o moral baixo — adota o mesmo tom, retratando a vida
cotidiana como uma sucessão de pequenas emergências. “ Sejam
elas antiquadas ou avançadas”, as mulheres têm “uma coisa
em comum”, segundo Betty Canary: “estão determinadas a so­
breviver”. Betty Friedan recorreu ao mesmo tipo de exagero
retórico em A Mística Feminina, mas sem nenhum intuito hu­
morista, quando denominou o lar de classe média “um confor­
tável campo de concentração”. Os que têm uma visão um pouco
mais amena das instituições domésticas perguntam-se, não obs­
tante, se a família sitiada e encolhida ainda fornece as condi­
ções “para a sobrevivência emocional do indivíduo em nossa
sociedade de massa”.
À trivialização da crise, ao mesmo tempo que testemunha
um difuso sentimento de perigo — uma percepção de que nada,
sequer um simples detalhe doméstico, pode ser visto como ga­
rantido — também serve como uma estratégia de sobrevivência
em si. Quando a impiedosa retórica da sobrevivência invade a
vida cotidiana, ela intensifica e libera, simultaneamente, o terror
do desastre. A vítima das circunstâncias enfrenta a crise prepa­
rando-se para o pior e convencendo-se de que o pior deve ficar
além das expectativas. Bertold Brecht já dissera que os que
riem ainda não escutaram as últimas más notícias. Mas, hoje,
o riso — o que ajuda a entender por que ele tem amiúde um
som cavernoso e por que boa parte do humor contemporâneo
tem a forma da paródia ou da autoparódia — vem de pessoas
que estão perfeitamente a par das más notícias e, no entanto,
fizeram um esforço determinado para continuar a sorrir. “Deixe
o sorriso ser o seu guarda-chuva”. Stanley Kubrick satirizou
esse dito encorajador no subtítulo de seu filme Dr. Strangelove:
Como Aprendi a Deixar as Preocupações e a Amar a Bomba.
Os editores de Mad também fazem sátira, mas defendem o oti­
mismo infundado como a única atitude lógica num mundo lou­
co, louco, louco, louco, ao estabelecer como seu porta-voz a
figura de Alfred E. Neumann com seu esgar idiota e seu “'O
quê? Eu, preocupado?”.
Nada se ganha, entretanto, insistindo nas más notícias. O
artista sobrevivente as toma como garantidas; está além do de­
54 O MÍNIMO EU

sespero. Ele se esquiva dos relatos de novos desastres, alertas


sobre a catástrofe ecológica, advertências sobre as possíveis con-
seqüências da corrida armamentista nuclear, recusando-se a dis­
criminar entre os eventos que ameaçam o futuro da humanidade
e os fatos que meramente põem em perigo a sua paz de espí­
rito. Ele brinca com a avalanche infindável de más notícias
na televisão e nos jornais, queixa-se de que estas o deprimem
e depois se exime da necessidade de distinguir entre os vários
tipos e graus de más notícias. -Ele se protege de seu impacto,
além disso, desprezando os que as divulgam como profetas da
ruína e do desalento — misantropos e desmancha-prazeres
amargurados por desilusões pessoais ou uma infância infeliz,
intelectuais de esquerda desiludidos pelo colapso de suas expec­
tativas revolucionárias, reacionários incapazes de se adaptar aos
tempos de mudança.
O risco da guerra nuclear, a ameaça da catástrofe ecoló­
gica, a lembrança do genocídio dos nazistas contra os judeus,
o possível colapso de toda a nossa civilização geraram um am­
plo e extenso sentimento de crise, e a retórica da crise penetra
agora as relações raciais, a reforma das prisões, a cultura de
massa, a administração fiscal e a “sobrevivência” pessoal coti­
diana. A lista de livros recentes sobre a sobrevivência deveria
incluir os que tratam da ecologia e da guerra nuclear, do holo­
causto, da tecnologia e da automação e uma torrente de “estu­
dos sobre o futuro”, para não mencionar a avalanche de ficção
científica que toma o apocalipse eminente como sua principal
premissa. Mas tal lista deveria também incluir a vasta litera­
tura psiquiátrica sobre a adaptação e a produção sociológica
igualmente enorme sobre as vítimas e a “vitimologia”. Deveria
abrigar livros que relatam “estratégias de sobrevivência para as
minorias oprimidas”, “sobrevivência na selva executiva” e “so­
brevivência no casamento”. Reforçada por outros meios —
cinema, rádio, televisão, jornais e revistas — tal propaganda do
desastre tem um efeito cumulativo quase exatamente oposto ao
efeito ostensivamente pretendido. A infiltração da retórica da
crise e da sobrevivência na vida cotidiana desvigora a idéia de
crise e deixa-nos indiferentes a apelos fundamentados na asser­
ção de que algum tipo de emergência exige nossa atenção. Nada
pode fazer nossa atenção desviar-se com mais rapidez que falar
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 55

sobre uma nova crise. Quando acumulam-se as crises públicas


não resolvidas, perde-se o interesse na possibilidade de que se
possa fazer alguma coisa frente a elas. Assim, também, as de­
núncias sobre as crises servem com freqüência apenas para jus­
tificar as reivindicações dos administradores de crises, atuem
eles na política, na guerra, na diplomacia ou simplesmente na
administração do stress emocional.
Uma réplica a essas afirmações insiste em que as questões
de genuína sobrevivência — política energética;* política ambien­
tal, corrida armamentista nuclear — devem ser decididas de
forma política, cooperativa e democrática, em vez de serem
tratadas como temas técnicos pertencentes apenas a um punha­
do .de especialistas. No entanto, é mais característico da menta­
lidade contemporânea da sobrevivência que ela se afaste das
questões públicas e preocupe-se com as crises previsíveis da
vida cotidiana, onde as ações individuais ainda parecem ter
algum impacto mínimo no curso dos acontecimentos. A vida
do dia-a-dia passou a apresentar-se como uma sucessão de crises
não necessariamente porque seja mais arriscada e competitiva
do que costumava ser, mas porque coloca as pessoas diante de
tensões passíveis de resolução, enquanto a esperança de prevenir
o desastre público parece tão remota, para a maior parte das
pessoas, que entra em seu pensamento apenas na forma de uma
melancólica súplica em favor da paz e da fraternidade.

À vida cotidiana reinterpretada à luz das situações extremas

A palavra “ sobrevivência” assumiu hoje tantos significados


diferentes — como “tradição”, “problema”, “nostalgia”, pala­
vras que sofreram uma expansão e uma degradação similares
— , que é necessário um esforço considerável apenas para sepa­
rá-las. O tema da sobrevivência pode descrever a dificuldade
de equilibrar o orçamento; pode aludir ao medo do envelheci­
mento, ao temor da morte por câncer, ao receio de sucumbir
às drogas, ao alcoolismo ou a outra forma de degradação pes­
soal; pode estar relacionado à dificuldade de se manter um
casamento. Pode transmitir um sentimento de espanto frente à
constatação de que nada durará, num mundo de bens disponí­
% O MÍNIMO EU

veis, ou uma identificação com os sobreviventes de Auschwitz


e Treblinka, do Arquipélago Gulag, de Hiroshima e Nagasaki.
Pode expressar a percepção de que somos todos sobreviventes,
no sentido em que atravessamos tempos negros e que emergi­
mos no lado mais remoto da grande linha divisória histórica,
marcada pela experiência de assassinato em massa do século XX,
que separa a nossa época das idades mais antigas e inocentes.
O último desses significados ajuda a explicar o temor do­
minante da nostalgia. Qualquer coisa que se diga contra ou a
favor de nossa época, ela está gravada com uma consciência
desconhecida, senão totalmente insuspeitada, nas fases anterio­
res: a consciência de que os chamados homens racionais levarão
a cabo o extermínio de populações inteiras se isso aprouver a
seus propósitos e de que numerosos bons cidadãos, em vez de
levantar um veemente protesto de ultraje e lamentação diante
desses atos, irão aceitá-los como um meio eminentemente sen­
sato de abreviar uma guerra, de estabelecer o socialismo em um
país ou de livrar-se de pessoas supérfluas. Visto sob o prisma
de nossa consciência contemporânea da maldade radical, como
a chamou Hannah Arendt — maldade tão profunda que soterra
qualquer categoria convencional de pecado e derrota as tenta­
tivas de fixar responsabilidades ou de imaginar uma punição
adequada — , o passado evoca nostalgia tão intensa que a emo­
ção tem que ser ferozmente negada, reprimida e denunciada.
À indagação de Hermam Kahn — “Os sobreviventes invejarão os
mortos?” — assombra o nosso tempo, não apenas porque des­
creve um futuro possível mas também porque descreve (embora
sem intencioná-lo) a nossa própria relação com o passado, sem­
pre que nos permitamos olhar para os horrores fartamente do­
cumentados já ocorridos no século XX, tão difíceis de suportar,
em última análise, como os horrores que poderão vir.3
(3) Muitas pessoas, é certo, simplesmente apagam tudo isso da lem­
brança. Quando as lembramos, dizem que os nossos tempos não são mais
violentos, sanguinários e cruéis que outras épocas. O assassinato em
massa não constitui nada de novo, insistem. Toda a tentativa de diferen­
ciar o assassinato em massa do século XX dos registros anteriores de
guerras e opressão — salientando-se, por exemplo, que ele é com. fre-
qüência dirigido não contra as nações inimigas ou os “hereges” religiosos
e opositores políticos, mas contra categorias inteiras de pessoas decla­
radas supérfluas, cujo único crime consiste na sua existência — provoca
a réplica automática de que se “romantiza” o passado..
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 57

A nossa percepção não apenas do passado e do futuro,


como do presente, coloriu-se com uma nova consciência dos
extremos. Pensamos em nós mesmos, simultaneamente, como so­
breviventes e como vítimas, ou vítimas em potencial. A crença
cada vez maior em que somos todos vítimas, de uma ou de
outra forma, de eventos que fogem de nosso controle deve muito
de sua força não somente ao pensamento geral de que. vivemos
num mundo perigoso dominado por grandes organizações, mas
à memória de eventos específicos da história do século XX nos
quais as pessoas foram vitimadas em escala maciça. Tal como
a idéia da sobrevivência, a idéia da vitimação, inapropriada-
mente aplicada aos infortúnios cotidianos, mantém acesa essa
lembrança e, ao mesmo tempo, amortece o seu impacto emocio­
nal. O uso indiscriminado estende de tal modo a idéia de viti­
mação que ela acaba por perder seu sentido. “Nos tempos em
que vivemos, todos estão expostos à possibilidade de um ataque
criminoso ou a um incidente desse tipo”, escreve um especia­
lista em vitimologia — matéria que ele recomenda como uma
“nova abordagem nas ciências sociais”. “A necessidade mais
profunda do homem”, continua, “é sobreviver, viver, trabalhar
e divertir-se em comum sem dor. . . O problema é que nos de­
frontamos em toda parte com a vitimação presente e possível,
vivemos no estado ou na condição de vítimas, de uma ou outra
espécie”. William Ryan propõe uma definição igualmente ex­
tensa de vitimação em seu conhecido livro Blaming the Victim
(A Culpa é da Vítima). No prefácio à edição revista, Ryan se
desculpa por dedicar a primeira edição, em sua maior parte,
aos apuros dos negros e dos pobres. Ele chegou à conclusão de
que quase todos são vulneráveis ao desastre: às “ doenças catas­
tróficas”; à “manipulação deliberada da inflação e do desem­

Encontra-se muitas vezes essa atitude panglossiana [o dr. Pangloss é


o otimista de Voltaire, no Cândido] entre os intelectuãis acadêmicos
ascendentes, que estão eternamente se congratulando por terem escapado
do tradicionalismo estreito das pequenas cidades, do gueto étnico, ou do
subúrbio de classe média. Aqui, a recusa a olhar para trás provém não do
temor da nostalgia mas da completa indiferença, combinada a uma fé
insensata no progresso. Tal otimismo absoluto e incondicional, entretanto,
está gradativamente em extinção, pois requer um nível de futilidade emo­
cional e de superficialidade intelectual, que a maioria das pessoas, mes­
mo os intelectuais acadêmicos, acha difícil sustentar por longos períodos
de tempo.
58 O MÍNIMO EU

prego”; aos “impostos flagrantemente iníquos” ; à poluição, às


condições inseguras de trabalho e à “cobiça das grandes com­
panhias petrolíferas”.
Como essas anotações sugerem, a vítima passou a gozar de
certa superioridade moral em nossa sociedade; tal elevação mo­
ral da vítima colabora para a inflação de retórica política que
caracteriza o discurso do sobrevivencialismo. Muitos escritores
adotaram uma “postura de testemunha de acusação pública”,
como Warner Berthoff nota em seu estudo sobre a poesia e a
ficção do pós-guerra. Identificando-se com os vilipendiados, es­
forçando-se por falar em nome das vítimas e dos sobreviventes
— “pessoas que vivem depois que os fatos decisivos acontece­
ram”, nas palavras de Berthoff — jovens mulheres e homens
irados expuseram as injustiças infligidas às minorias oprimidas
e exploradas. Os porta-vozes políticos desses grupos assumiram
o mesmo papel. Ao disputar a condição privilegiada de vítimas,
eles não apelam aos direitos universais do cidadão mas a uma
experiência especial de perseguição, que se supõe qualificar o
seu povo a falar sobre a injustiça com especial autoridade e a
exigir não somente os seus direitos como também a reparação
dos erros do passado. Eles se reivindicam — com boas razões,
em alguns casos — vítimas, ou sobreviventes, de genocídio. A
escalada retórica transforma o significado de injustiça; trans­
forma a causa das minorias oprimidas numa luta pela mera so­
brevivência. Nos anos 60, a passagem da luta pelos direitos civis
para o “poder negro” prenunciava o abandono dos esforços
para criar uma sociedade multi-racial, em benefício de uma
estratégia de sobrevivência negra. Os porta-vozes do poder negro
acusavam os brancos de estarem tramando a destruição da raça
negra através do controle da natalidade e dos casamentos inter-
raciais. Nos anos 70, as feministas radicais levantaram o grito
do “ginocídio”. Em lugar de enfocar os traços distintivos da
cultura negra ou os padrões característicos da feminilidade his­
toricamente condicionada como “marcas da opressão”, à manei­
ra de um radicalismo anterior, ou, por outro lado, como fontes
potenciais de um novo e florescente pluralismo cultural, os
porta-vozes das minorias sem direitos interpretaram a história
delas à luz da nova experiência do genocídio. Confrontadas
com uma sociedade dominada pelos homens, que planeja “a
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 59

eliminação tecnológica das mulheres” — uma “solução final


para o problema da Força Feminina” —, as feministas radicais,
de acordo com Mary Daly, “ desenvolveram novas estratégias e
táticas para. . . a sobrevivência econômica, física e psicológica.
Para fazê-lo, tivemos que entrar profundamente em nossos eus”.
De forma mais ou menos semelhante, a reinvestigação da histó­
ria judaica passou a centrar-se nas qualidades que permitiram
aos judeus sobreviverem a séculos de perseguição. Depois do
Holocausto, o nacionalismo judeu identificou-se não com uma
missão moral transcendente, mas com a sobrevivência física do
Estado de Israel. A pressão dos países vizinhos e da OLP, que
baseou seu programa no objetivo explícito de liquidar o Estado
judaico, intensificou, compreensivelmente, um compromisso com
a interpretação mais estreita possível do sionismo. Enquanto
isso, os palestinos e seus defensores na Europa ocidental e nos
Estados Unidos reivindicam que eles próprios são vítimas do
“genocídio” israelense.
Tais exageros acabam por derrotar os seus próprios objeti­
vos, com certeza. Acusações e contra-acusações de genocídio
tornam difícil situar os perigos que se colocam face à humani­
dade em seu conjunto, ou mesmo aliviar as injustiças sofridas
por grupos específicos. Um excesso de “soluções finais” deixou-
nos cada vez mais insensíveis a esse tipo de apelo, mesmo quan­
do eles merecem ser ouvidos. Entretanto, a história do genocí­
dio do século vinte toma inevitável que qualquer pretendente
ao honroso status de vítima copiará o seu empenho dos exem­
plos máximos de vitimação. Deixando a propaganda de lado,
não é mais possível pensar na vitimação sem pensar no exter­
mínio dos armênios, dos kulaks, dos judeus e do povo do
Camboja.

As grandes organizações como instituições totais

A competitiva rixa generalizada nas grandes instituições


oferece a muitos uma outra ocasião para a reavaliação da expe­
riência ordinária à luz das situações extremas. A busca do su­
cesso foi recompreendida como uma luta cotidiana pela sobre­
vivência. De acordo com um estudo efetuado pela Associação
60 O MÍNIMO EU

Americana de Administração, A Ética do Sucesso em Transfor­


mação, os americanos vêem, agora, o dinheiro não como uma
medida de sucesso, mas como um “meio de sobrevivência” .
Livros destinados a executivos, portando títulos como Sobrevi­
vência na Selva Executiva, enfatizam a importância do “ senso
comum” ou do “instinto de sobrevivência” e chamam a atenção
para a baixa “taxa de sobrevivência dos altos administradores”.
Manuais recentes sobre o sucesso comparam as grandes organi­
zações com o gueto negro, “onde a sobrevivência. . . depende,
em larga medida, do desenvolvimento de uma saudável para­
nóia cultural”. Os que se oferecem como guias na selva das
corporações, como Chester Burger e Michael Korda, recomen­
dam uma “estratégia de sobrevivência” baseada na vigilância,
na suspeita e na desconfiança. “Você precisa dispor de uma
estratégia de longo alcance, precisameníe como um plano de
batalha militar. Você precisa de uma análise de sua situação
e da de seus inimigos. . . Às vezes, é impossível sobreviver em
seu ofício de executivo, não importando o que você faz. , .
(Mas) em talvez nove casos em dez, a sobrevivência é possível.”
Segundo Melville Dalton: “O indivíduo, na sociedade móvel das
grandes organizações, como os incautos animais, é também uma
criatura indefesa que pratica a trapaça para se safar das ameaças
invisíveis que o cercam”.
O darwinismo social há muito acostumou as pessoas à
idéia de que apenas os mais aptos sobrevivem aos rigores da
moderna empresa de negócios; mas a consciência do século XX
de uma nova dimensão da brutalidade organizada — de campos
de extermínio e sistemas políticos totalitários — deu um novo
sentido ao medo do fracasso e forneceu um novo imaginário
capaz de elaborar a percepção subjacente da vida social como
uma selva.'1 As grandes corporações tomam a aparência de uma4

(4) Sob o governo Reagan, o darwinismo social gozou um certo re­


nascimento. A "tradição dominante da ideologia conservadora" sustenta
que “os menos aptos a sobreviver não devem ser protegidos pelo Estado”,
de acordo com o economista liberal Robert B. Reich; e esse tipo de con­
servadorismo, argumenta, recomenda-se aos americanos nos anos 80, “pois
as questões de sobrevivência assumiram, mais uma vez, um lugar central
na consciência da nação”. No entanto, Louise Kaegi destaca corretamente
que o “sobrevivencialismo não é uma ideologia ‘conservadora' e tampouco
‘liberal’”. A esquerda desenvolveu a sua própria versão do darwinismo
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 61

instituição totai, na qual desaparecem todos os traços de iden­


tidade individual. Conforme Erving Goffman, o sociólogo das
instituições totais -r—sistemas de controle total —, há uma “ten­
dência em direção das instituições totais” em “nossos grandes
sistemas comerciais, industriais e educacionais”. Durante os pro­
testos estudantis dos anos 60, os críticos radicais da universi­
dade compararam-na repetidamente com um campo de detenção
ou uma prisão. Historiadores e críticos que encetaram a revisão
do sistema educacional público insistiram nas características
presidiárias das escolas públicas. O interesse renovado pela his­
tória da escravidão negra, nos anos 60 e 70, surgiu, em parte,
da comparação do escravismo nas grandes plantações com os
campos de concentração nazistas, Os sociólogos submeteram a
prisão ao mesmo tipo de reinvestigação, trazendo à luz livros
com títulos como Sobrevivência Psicológica e A Ecologia da
Sobrevivência, enquanto o interesse popular peias prisões enco­
rajou reportagens sobre rebeliões carcerárias e movimentos pelos
direitos do preso, ao lado de uma torrente de filmes e programas
de televisão exaltando a falta de recursos do prisioneiro sobre­
vivente confrontado com um meio circundante aparentemente
irresistível.
A disposição de pensar nas organizações como instituições
totais e na- vida moderna em geral como uma sucessão de situa­
ções extremas pode remontar aos campos de concentração e
extermínio da Segunda Guerra Mundial, cuja consciência colo­
riu as percepções da vida social de forma muito mais profunda
do que em geral se entende. “Os testemunhos dos poucos que
sobreviveram a essa experiência com vida são virtualmente mar­
cos de referência pelos quais pode-se medir outras tentativas de
sobrevivência em nossos tempos”, escrevem Stanley Cohen e
Laurie Taylor em seu estudo sobre o encarceramento por longo

social, que exalta a sobrevivência das espécies acima do indivíduo, pro­


move uma ética de salva-vidas sob o lema "clarificação de valores” e
culmina num “coletivismo biológico da eugenia e da profilaxia social”,
na qual os cientistas e políticos iluminados reivindicam o direito de
alocar os recursos escassos e de manifestar-se sobre o valor de sobrevi­
vência das idéias, crenças e práticas sociais em conflito. “Uma tendência
sobrevivencialisía”, escreve Kaegi, “fundamenta igualmente o Estado vi­
gilante ‘partidário do livre-arbítrio’ econômico, o Estado ‘conservador’ de
segurança nacional e o Estado ‘liberal’ terapêutico”.
62 O MÍNIMO EU

prazo. Ao contrário da maioria dos estudiosos da sobrevivência,


Cohen e Taylor tomam cuidado em diferenciar as situações ex­
tremas das tensões cotidianas, que perturbam a nossa paz de
espírito mas podem ser resolvidas “sem afetar profundamente
outras partes de nossa vida”. Da mesma forma, Goffman chama
a atenção para as diferenças entre as instituições totais e as
organizações que requerem apenas uma parte da atenção do
indivíduo, em parte do dia. Ele também chama a atenção para
suas similaridades, no entanto; e o efeito de seu pensamento,
no conjunto, que combina um estudo das instituições totais, por
um lado, com um estudo da vida cotidiana, por outro, acaba
por enfraquecer, inevitavelmente, a distinção entre situações
extremas e emergências do dia-a-dia. Uma vez que o imaginário
do confinamento total tomou conta da imaginação contemporâ­
nea, a tentação de estender esse imaginário a formas menores
de tensão e adversidade e de reinterpretar todo tipo de agruras
à luz de Auschwitz revelou-se quase irresistível. Um estudo re­
cente sobre os campos de concentração anunciava em seu título
a questão que continua a absorver a imaginação no final do
século XX: “ Como eles sobreviveram?”. As respostas a essa
questão variam grandemente, como veremos no próximo capí­
tulo, mas, no momento, é a própria indagação que nos interessa.
É uma pergunta que perpassa todo o nosso pensamento sobre
os campos de extermínio nazistas; mas ela também está presente
nas investigações históricas de outras minorias sujeitas à perse­
guição e à discriminação, na literatura psiquiátrica sobre o stress
e os “mecanismos de adaptação e em grande parte dos escritos
populares sobre as tensões experimentadas no mundo dos negó­
cios. A exposição direta ou vicária às situações extremas cercou
não apenas a opressão e a adversidade mas a rivalidade e a
competição do dia-a-dia com um novo conjunto de imagens,
alterando assim a forma como são experimentadas a opressão,
a adversidade e a competição. A advertência assume novos sig­
nificados, em ura mundo no qual os campos de concentração
permanecem como uma metáfora obrigatória para a sociedade
como um todo.
A competição, por exemplo, centra-se agora não tanto no
desejo de levar vantagem, mas na luta para evitar uma derrota
arrasadora. A ânsia de arriscar tudo na busca da vitória dá lugar
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 63

a uma cautelosa acumulação de reservas necessárias a suportar


a vida diante das grandes pressões. O rebelde heróico, o guer­
reiro e o astuto magnata, antigos protótipos da competição bem-
sucedida, cedem o seu lugar na imaginação comum ao esperto
veterano determinado não tanto a superar os seus oponentes,
como a sobreviver a eles. O antigo código de combate, que
enfatizava a dignidade da morte a serviço de uma causa meri­
tória, perde a sua atração sob condições (a moderna tecnologia
da guerra e do extermínio coletivo) que fazem a morte nem
doce nem apropriada. O sobrevivencialismo leva a uma desva­
lorização do heroísmo. As situações extremas, escreveu Goffman,
iluminam os “pequenos atos da vida”, e não as “altas formas
da lealdade e da perfídia”. As instituições totais organizam
maciços “ assaltos ao eu”, mas ao mesmo tempo impedem a
resistência efetiva, forçando os reclusos a recorrer, em vez disso,
à “recalcitrância”, ao insulamento irônico ou à retirada, e à
combinação de conciliação e falta de cooperação que Goffman
chamou “fingimento”. As instituições totais fascinaram Goffman
porque, entre outras razões, forçam os reclusos a viver um dia
de cada vez, desde que a absorção no imediato oferece a melhor
esperança de sobrevivência a longo prazo. O trabalho de Goff­
man sobre as instituições totais baseava-se na mesma premissa
que fundamentava seus estudos sobre a “preservação do eu na
vida cotidiana” : as pessoas revelam-se de maneira plena, mesmo
sob as condições mais angustiantes, nos eventos sem heroísmo
do intercâmbio cotidiano e não nos feitos da inteligência e da
coragem. As instituições totais e, acima de tudo, os campos de
extermínio fizeram-nos conscientes da banalidade do mal, na
famosa frase de Hannah Arendt; mas elas também nos ensina­
ram algo sobre a banalidade da sobrevivência. Um sentimento
crescente de que os heróis não sobrevivem inspira o desencanto
com os códigos convencionais de masculinidade, aos quais já
aludimos no capítulo anterior. Não é apenas a masculinidade
que perdeu o seu valor de sobrevivência, no entanto, mas todo
o conjunto dos ideais supostamente antiquados de honra, desafio
heróico das circunstâncias e auto-superação. Como notou Vin-
cent Canby em sua crítica do filme de Lina Wertmüiler, Pas-
qualino Sete Belezas, o sobrevivente descobriu que “o idealismo
é a autoderrota”.
64 O MÍNIMO EU

A crítica do sobrevivencialísmo e a Guerra Fria

Essa pesquisa preliminar sobre os temas da sobrevivência


pode sugerir a conclusão de que nossa sociedade sofre de falta
de fibra, que ela precisa recuperar o seu senso de propósitos e
voltar' a dedicar-se aos ideais de liberdade nos quais se baseou.
A deterioração das relações soviético-americanas desde 1979, a
escalada da corrida arrnamentista e a retomada da Guerra Fria
forneceram a esse tipo de discurso uma certa plausibilidade.
Desse modo, Phyllis Schlafly condena os defensores do desar­
mamento nuclear como pessoas que não podem conceber um
objetivo mais alto que a mera sobrevivência. Norman Podhoretz
lastima a “cultura do apaziguamento” e a crescente ausência de
inclinação a defender os interesses' e a honra nacionais ameri­
canos. Sidney Hook, num ácido ataque à “estratégia da rendição
final”, supostamente defendida por Bertrand Russell e, em tem­
pos recentes, por George F. Kennan, afirma que esta se funda
na doutrina de que “a sobrevivência é a essência última da vida,
o valor supremo”. Em vez de se arriscar à guerra nuclear, Rus­
sell e Kennan “aceitariam a certeza da dominação comunista”,
na opinião de Hook. Citando Alexander Soljenitsin — “Para
se defender, é preciso estar disposto a morrer” — , Hook de­
fende que “se renovássemos a nossa coragem moral, a nossa
dedicação à liberdade, poderíamos evitar tanto a guerra quanto
a capitulação nos dias vindouros”. Por outro lado, “aqueles que
dizem que a vida merece ser vivida a qualquer custo sempre
escreveram para si próprios um epitáfio de infâmia, pois não
há causa ou pessoa que eles não trairiam para permanecer com
vida”.
O movimento pacifista viu-se recentemente alvo de ataque
não apenas da direita mas de alguns poucos críticos da esquerda
que apresentam a mesma objeção a uma concepção “zoológica”
da política, como a denomina Cornelius Castoriadis. “Se nada
vale a morte, . . .então por nada vale a pena viver”, escrevem
Ferenc Feher e Agnes Heller numa edição recente de Telos,
uma de uma série de edições dedicadas à crítica inesperada­
mente virulenta do movimento pró-desarmamento nuclear. Ainda
que a paz mundial se torne mais desejável que nunca, numa
época de armas nucleares, “há ainda uma contradição”, segundo
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 65

Feher e Heller, “entre uma vida boa e a vida, meramente”


Segue-se que “a violência e as guerras não podem ser total­
mente eliminadas de nossas ações se procuramos algo além da
sobrevivência”.
Tanto o conteúdo desses argumentos como o fervor moral
a eles subjacente lembram os ataques ao apaziguamento desfe­
ridos por Lewis Mumford e Reinhold Niebuhr, entre outros, no
curso da polêmica sobre a política externa, vinda à luz nas vés­
peras da Segunda Guerra Mundial. Niebuhr achava difícil enten­
der “em que sentido a paz de Munique deva ser comemorada,
porque ‘ao menos ela adiou a guerra’. É efetivamente verdadeiro
que postergar uma guerra seja aumentar as chances de impedi-la
de forma definitiva?”. O liberalismo pragmático, como o deno­
minava Mumford, perdera “o sentido trágico da vida”. Este se
recusava a defrontar-se com a realidade da morte, na esperança
de que “os rápidos avanços da ciência no campo da higiene e
da medicina pudessem adiar cada vez por mais tempo aquela
ocasião desagradável”. Em 1940, Mumford relatava um diálogo
com um liberal que lhe contou não poder apoiar uma decisão
política passível de levar à guerra de outros seres humanos.
“Quando objetei que o fracasso em tomar tal decisão, na situa­
ção internacional vigente, levaria certamente à morte menos
frutífera desses mesmos seres humanos no prazo de seis meses
ou de seis anos, confessou que, para ele, qualquer tempo adi­
cional poupado para o gozo privado da vida parecia um grande
ganho.” Esse homem “cessara de viver num mundo significa­
tivo”, concluía Mumford. “Um mundo significativo é aquele
que carrega um futuro que se estende além da incompleta vida
pessoal de um indivíduo; de tal modo, uma vida sacrificada no
momento correto é uma vida bem gasta, enquanto uma vida
cuidadosamente entesourada ou ignominiosamente preservada é
uma vida desperdiçada por completo.”
Atualmente, o movimento pacifista atrai um ataque seme­
lhante quando toma a sobrevivência como lema — Better red
than dead (Melhor vermelho que morto) — , ou associa a si
próprio com a oposição a qualquer forma de sacrifício pessoal.
Essa atitude reflete uma relutância generalizada não apenas a
morrer em uma guerra injusta mas a morrer por qualquer causa
que seja; reflete a recusa aos compromissos morais e emocionais
66 O MÍNIMO EU

que identifica a mentalidade da sobrevivência com a cultura do


narcisismo. “ Para o narcisista”, escreve Russell Jacoby, “o sa­
crifício é uma fraude, uma perda sem nenhum benefício”. A
política contemporânea, para estar seguro, fornece uma abun­
dância de razões realistas para encarar o sacrifício sob este
prisma. Quando as autoridades públicas exortam os cidadãos a
diminuir o consumo de combustível para aquecimento e as em­
presas de serviços públicos respondem com o aumento dos pre­
ços para compensar a menor demanda, a idéia de que o sacri­
fício é um embuste passa a fazer bastante sentido. Há uma
diferença, contudo, entre o tipo de descontentamento político
baseado numa consciência realista de que o sacrifício geralmente
recai sobre aqueles que menos podem suportá-lo e a perda da
própria capacidade do sacrifício, da lealdade e dos compromis­
sos pessoais. No filme de grande sucesso Amargo Regresso, com
Jane Fonda e Jon Voigt, que captava a reviravolta dos senti­
mentos populares contra a guerra, na esteira do Vietnã, um
veterano paraplégico faz uma preleção a uma assembléia de
estudantes de segundo grau sobre os males da guerra. O estri­
bilho de sua alocução é que aqueles que vão lutar no Vietnã
ali morrerão. Ainda que mais uma vez se possa argumentar,
corretamente, que a causa americana no Vietnã — e em todas
as ações policiais futuras incumbidas da defesa de interesses
corporativos ou de um equivocado ideal de grandeza da Nação
— não justificava o sacrifício de vidas americanas, a atitude
transmitida por esse filme ultrapassa a oposição ao imperialismo
para chegar a uma oposição a qualquer forma de sacrifício, com
base não em princípios morais ou políticos mas numa espécie
de recusa mais profunda que se apega à vida a todo custo.
É como se os realizadores de Amargo Regresso fossem incapazes
de imaginar alguma forma de lealdade que pudesse justificar o
sacrifício da vida. O personagem representado por Voigt voltou
para casa vindo do Vietnã, com ferimentos mais graves que os
imaginados por seus criadores, uma paralisia da vontade moral;
e esse exemplo mostra como, embora seja possível distinguir
analiticamente entre a recusa a fazer sacrifícios por uma causa
indigna e uma capacidade de sacrifício prejudicada, do ponto
de vista histórico, elas sempre se mostram inseparáveis. O tipo
de experiência histórica da qual o Vietnã representa o clímax
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 67

lógico — a disposição de nossas vidas por outros, sem o nosso


consentimento — acaba por privar-nos da própria capacidade
de assumir a responsabilidade por decisões que nos afetam ou
de adotar qualquer postura perante a vida, exceto a de vítimas
e sobreviventes. A experiência da vitimação, que justifica a
resistência, também pode destruir a capacidade para a resistên­
cia, ao aniquilar o sentido de responsabilidade pessoal. É esse,
precisamente, o maior dano infligido pela vitimação: a pessoa
aprende a enfrentar a vida não como um agente moral, mas
unicamente como uma vítima passiva, e o protesto político de­
genera em uma lamúria de autocomiseração. Testemunham isso
as inumeráveis variações do sempre popular tema esquerdista
da injustiça de se “ culpar a vítima”.5
O movimento antibélico e o movimento conservacionista
(estreitamente associados entre si, precisamente em sua crescente
insistência no tema da sobrevivência) apelam a alguns dos
piores impulsos da cultura contemporânea, quando proclamam
que “nada vale a morte”, na expressão de um cartaz exposto
numa manifestação contra o alistamento no início dos anos 70.
Quando Richard Falk recomenda um “compromisso moral com
a sobrevivência”, ou quando Paul Ehrlich e Richard Harriman
convocam um “movimento pela sobrevivência”, contra os con­
troles militares e das grandes corporações, eles dramatizam a
importância das questões ecológicas e tornam mais difícil que
antes desconsiderar-se a preservação como um tema caro apenas

(5) Na época do protesto contra o Vietnã, uma estudante da Univer­


sidade de lowa interrompeu um debate sobre a “nossa" política externa
para rejeitar a responsabilidade pela guerra do Vietnã que parecia estar
implícita no uso do pronome da primeira pessoa. “Não é a minha guerra",
disse ela, “é a guerra deles; é o país deles; e não tem nada a ver co­
migo”. Na ocasião, pareceu-me que este desabafo representava um corre­
tivo útil ao tipo de discussão conduzida pelos oponentes "responsáveis”
à guerra, com o pressuposto implícito de que tais debates deveriam con­
finar-se a um sistema de decisões políticas que incluía os intelectuais,
enquanto oposição leal. Ainda hoje penso assim. Entretanto, os aconteci­
mentos subseqüentes restringiram essa impressão, ao sugerir que muito
radicais que rejeitavam a guerra “deles”, com muita freqüência, rejeita­
vam qualquer tipo de lealdade. Muitos deles recusavam-se a assumir
responsabilidades por qualquer coisa, com o argumento de que não ti­
nham nenhum controle sobre as "decisões que afetam a nossa vida”. Ao
fazer esta afirmação, não quero dizer, evidentemente, que a oposição
atual à guerra do Vietnã ou à guerra nuclear possa ser reduzida a uma
patologia pessoal.
68 O MÍNIMO EU

aos amantes da natureza e aos fanáticos da vida selvagem.


Infelizmente, reforçam também a formação mental que encara
a preservação da vida como um fim em si, a mesma formação
mental que inspira a moderna tecnologia médica, por exemplo,
com seu zelo por estender a vida, sem preocupação com a sua
qualidade. “Vários fatos nos dão esperança”, escrevem Ehrlich
e Harriman na conclusão de seu manifesto preservacionista
Como Ser um Sobrevivente, um livro pleno de predições alar­
mantes sobre superpopulação, guerras globais e desastres ecoló­
gicos. “ O primeiro é que a própria sobrevivência é o tema.
Uma vez que as pessoas o entendam, lutarão furiosamente por
ela.” Ao contrário, o compromisso exclusivo com a sobrevivên­
cia parece mais passível de conduzir às montanhas. Se a sobre­
vivência é a questão preponderante, as pessoas concentrarão
mais interesse em sua segurança pessoal que na sobrevivência
de toda a humanidade. Os que baseiam a causa da preservação
da natureza e da paz na sobrevivência não somente apelam a
um sistema de valores degradado, como derrotam os seus pró­
prios objetivos.
Seria um grande equívoco, porém, ver nos movimentos so­
ciais contemporâneos apenas mais uma expressão de uma des­
prezível vontade de aferrar-se à vida a qualquer custo. A insis­
tência de Soljenitsin em que a autodefesa implica uma dispo­
sição a arriscar-se à morte, como veremos mais detidamente no
próximo capítulo, funda-se numa compreensão arduamente con­
seguida sobre a situação dos indivíduos confrontados com a
extrema adversidade; mas ela não se aplica necessariamente à
situação das nações confrontadas com a perspectiva da guerra
nuclear. Tampouco os enfoques morais de Niebuhr e Mumford
podem iluminar as condições internacionais de hoje, a menos
que se possa apreender o modo como estas diferem das exis­
tentes antes da Segunda Guerra Mundial. A crítica do pré-guerra
ao apaziguamento era dirigida diretamente contra o pensamento
veleitário de que um adiamento da guerra poderia, de alguma
forma, capacitar as democracias ocidentais a evitarem totalmente
a guerra. O argumento mais importante apresentado por Nie­
buhr e Mumford era o de que um adiamento do conflito levaria
meramente à “morte menos frutífera desses mesmos seres hu­
manos, no prazo de seis meses ou de seis anos”. As armas nu­
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 69

cleares, contudo, frustraram as intenções desse raciocínio. Elas


transformaram a prevenção de uma guerra total num imperativo
moral, não mais uma esperança zelosa. Mesmo aqueles que
defendem um maior desenvolvimento das armas nucleares de­
fendem essa política com o argumento de que ajudará a impedir
uma guerra mais ampla. Até há bem pouco tempo, pelo menos,
era de conhecimento geral que ninguém podia esperar vencer
uma guerra nuclear e que a utilização dos armamentos nuclea­
res, seja pelos russos, seja pelos americanos, equivaleria ao sui­
cídio nacional. Tal conclusão se fundamenta não em uma mora­
lidade “zoológica”, mas no simples realismo: numa consciência
de que essas armas não podem ser usadas para garantir nenhum
objetivo nacional.
Mumford baseou seu raciocínio contrário ao sobrevivencia-
lismo, é bom lembrar, na premissa de que este fracassava em
visualizar um “futuro que ultrapasse a incompleta vida pessoal
do indivíduo”. O advento das armas nucleares, como ele próprio
foi um dos primeiros a reconhecer, coloca um outro tipo de
ameaça ao futuro. Quando se trata da guerra nuclear, ninguém
pode argumentar que a disposição a arriscar-se à guerra, hoje,
poderá salvar vidas amanhã. Ninguém pode acusar os críticos
da guerra nuclear, como Mumford acusava os oponentes à
guerra em 1940, de esquecer que uma vida sacrificada no mo­
mento correto é uma vida bem vivida. O sacrifício deixa de ter
sentido, se ninguém sobrevive. É precisamente a experiência da
morte em massa e a possibilidade de aniquilação, entre outros
processos, que desacreditou a ética do sacrifício e estimulou a
expansão de uma ética da sobrevivência. O desejo de sobreviver
a todo custo deixa de ser completamente desprezível sob con­
dições que põem em xeque o futuro do conjunto da humanidade.
As mesmas condições tornaram a idéia do sacrifício temporário
insustentável. Convocar as pessoas a que entreguem as suas vi­
das numa guerra nuclear, com o argumento de que o futuro
“ultrapassa a incompleta vida pessoal do indivíduo”, constitui
um absurdo moral.
A crítica do sobrevivencialismo só tem um apelo moral à
nossa atenção, nos anos 80, se ela se identifica com o movi­
mento pelo desarmamento nuclear e a preservação ambiental.
De outro modo, a defesa de uma moralidade supostamente ele­
70 O MÍNIMO EU

vada — honra nacional, liberdade política, desejo de assumir


riscos e fazer sacrifícios por uma causa meritória — irá em
geral revelar-se, a um exame mais detido, como outra variante
da moral da sobrevivência, que aparentemente condena. Os que
se recusam a descartar o recurso às armas nucleares, argumen­
tando que um ataque soviético à Europa ocidental não poderia
ser rechaçado sem ele, tiveram que defender a possibilidade de
os Estados Unidos efetivarem uma guerra nuclear e “vencê-la”.
Em 1960, Herman Kahn foi um dos primeiros a sustentar que
os Estados Unidos poderiam fazer preparativos capazes de asse­
gurar não apenas a sobrevivência física da população, ou de
uma parcela significativa dela, mas os recursos materiais e cultu­
rais necessários à reconstrução do modo de vida americano.
Hoje em dia, esse tipo de raciocínio, que deixa de lado a coibi-
ção e procura assegurar a vitória num conflito nuclear, parece
ter-se tornado a política oficial americana. Os sobreviventes
invejarão os mortos, neste enfoque, apenas se os americanos
persistirem na crença equivocada de que uma guerra nuclear é
inconcebível e que seus esforços deveriam, por conseguinte, se
dirigir à prevenção do confronto e não à sobrevivência a ele.6
A crítica da Guerra Fria ao sobrevivencialismo, que perso­
naliza o movimento antibélico com uma condenação especial,
ignora as expressões muito mais marcantes da ética da sobrevi­
vência. Lamenta a compreensível falta de inclinação do indivíduo
comum a morrer por uma causa que tem pouco significado,
apenas para sustentar a possibilidade de que os indivíduos supe­

(6) Aparentemente, os Estados Unidos continuam comprometidos com


uma política de contenção das armas nucleares. Mas o secretário da De­
fesa, Harold Brown, anunciou ominosamente, em 1980, que “nós estamos
necessariamente conferindo maior atenção a como seria travada efetiva­
mente uma guerra nuclear por ambos os lados, caso a contenção fra­
casse". Em abril de 1982, o secretário de Estado Alexander Haig, num
discurso na Universidade de Georgetown, defendia que “a contenção nu­
clear depende de nossa capacidade de, mesmo após sofrer um maciço
ataque atômico, impedir o agressor de assegurar uma vantagem militar
e triunfar num conflito”. Até recentemente, a contenção era, em geral,
compreendida como dependente da destruição mutuamente assegurada,
e não da capacidade de lutar uma guerra nuclear ou de impedir o outro
lado de "triunfar". Ela depende apenas da capacidade para lançar um
maciço contra-ataque. Não exige a igualdade entre os Estados Unidos e
a União Soviética; tampouco requer qualquer programa de defesa civil.
Ao contrário, as políticas que visam fazer a nação invulnerável ao ataque
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 71

riores — os portadores da percepção de se prepararem para o


pior e da fibra moral para “ vencer” — manterão o mundo em
funcionamento, após o apocalipse, talvez mesmo para recons­
truí-lo sobre novas bases. Hoje, a ética da sobrevivência aparece
em sua forma mais desenvolvida não no movimento pela paz,
mas nos preparativos efetuados por aqueles que se orgulham
de sua capacidade de pensar o impensável — preparativos que
abrangem desde a pesquisa de alto nível para um sistema de­
fensivo impenetrável, que supostamente tornaria possível aos
Estados Unidos lançarem um ataque nuclear sem o temor de
uma retaliação, até a construção de abrigos privados, bem-pro-
vidos de espingardas alemãs de ar comprimido, bestas medie­
vais, trajes anti-radiativos, tanques de armazenamento para água
e combustíveis, alimentos desidratados e peças de automóveis,
com os quais alguns poucos indivíduos esperam tolamente pros­
seguir com vida, enquanto a civilização se despedaça em torno
deles.

Descartar-se de tudo: a disciplina espiritual da sobrevivência

Aqueles que acreditam em preparar-se para o pior e levam


tal posição a sua conclusão lógica condenam o “pensamento do
movimento pacifista”, como o denomina Doris Lessing, não
porque este valoriza tão alto a sobrevivência, mas porque supos-

nuclear ou prepará-la para sobreviver a um confronto atômico, e mesmo


“triunfar”, sabotam a contenção e tornam a guerra nuclear mais provável.
Em março de 1983, o presidente Reagan afastou-se consideravelmente da
contenção quando propôs um estudo tecnológico da “era espacial” que
tornaria desnecessário confiar no temor da retaliação para dissuadir um
ataque soviético. Ele apresentou a nova política como “uma visão do
futuro que oferece esperança", quando na verdade esta não oferece nada,
a não ser problemas: no mínimo, uma corrida armamentista nuclear inde­
finidamente prolongada.
A única maneira de “libertar o mundo da ameaça da guerra nuclear"
— o objetivo aparente de Reagan — é proibir os armamentos atômicos.
Mesmo a contenção é precária, precisamente por ser tão difícil para os
políticos aceitarem as suas limitações — conviver com uma estratégia que
torna as armas nucleares politicamente inúteis — e por ser tão atrativo,
portanto, o aguçamento de estratégias mais agressivas, ainda que anun­
ciadas como “contenção”, mas dirigidas a outra meta ilusória: a vitória,
invulnerabilidade e sobrevivência-
72 O MÍNIMO EU

tameníe corporifica um “desejo de morte“. Poucos escritores


articularam de modo tão claro como Lessing a moral que define
a sobrevivência como o bem supremo. Ex-defensora do desar­
mamento, passou a acreditar que um programa de defesa civil
adequado “protegeria as pessoas contra qualquer coisa, exceto
um ataque direto”. “A habilidade está aí”, defende em uma
entrevista recente. Uma “fria análise dos fatos” indica que “po­
demos sobreviver a tudo que se possa mencionar”. Ela assume
a posição de que os seres humanos “são suprem amente equipa­
dos para sobreviver, para adaptar-se e, mesmo, a longo prazo,
para começar a pensar”.
Esse pseudo-realismo fundamenta-se na convicção de que
a civilização européia chegou ao fim; que a sua morte deve ser
encarada, no geral, sem pesar; e que, de todo modo, a esperança
de revitalizá-la através da ação política é uma ilusão, “uma das
mais poderosas falsas idéias desta época” — a nossa época, o
Século da Destruição, visto agora na perspectiva extraterrestre
adotada na recente “ficção espacial” de Lessing, porque nos
habilita a enxergar “de fora este planeta... como se fossem
espécies totalmente enlouquecidas”. À medida que decai a espe­
rança na mudança política, a atenção se volta para o “negócio
da sobrevivência”, diz Lessing: aos “seus recursos e truques, e
pequenos expedientes”. A obra recente de Lessing, como a maio­
ria da ficção atual, dirige-se ao sentimento dominante de se
viver num mundo no qual as exigências da sobrevivência coti­
diana absorvem as energias, que poderiam ser dedicadas ante­
riormente a um ataque coletivo aos perigos comuns com que se
defronta a humanidade. Como outras fantasias antiutópicas, ge­
radas em crescente abundância por uma sociedade capaz de
destruir-se, os escritos de Lessing devem a sua força não tanto
à sua visão horripilante e ambígua do futuro (ambígua porque
pode ser tomada tanto como um alerta quanto como boas
vindas), mas à sua habilidade em captar o sentimento da vida
cotidiana como já experimentado por habitantes de impérios
setentrionais decadentes, pessoas imersas numa época árdua.
“Sim, tudo isso era impossível”, diz o narrador de Memórias de
um Sobrevivente. “Mas, depois de tudo, eu aceitei o impossível.”
Como Herman Kahn, Doris Lessing aprendeu a pensar sobre o
impensável.
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 73

Se os movimentos pacifista e conservacionista não detêm


o monopólio sobre o sobrevivencialismo, tampouco monopolizam
a visão de um colapso iminente. Os críticos da “subcultura do
milênio”, como a denomina Charles Krauthammer em um artigo
que lamenta a imaginação apocalíptica de nossos tempos, busca­
ram as suas origens no fundamentalismo religioso e na versão
secularizada do apocalipse supostamente pregada por alarmistas
como Bertrand Russell, Jonathan Schell, Paul Ehrlich, Robert
Jay Lifton e o Clube de Roma. Conforme Krauthammer, “os
profetas da ruína”, que predizem o holocausto nuclear ou uma
crise ambiental extrema, ignoram “a capacidade humana para
adaptar-se” —a “elasticidade da natureza humana e a adapta­
bilidade das sociedades humanas”. Aqui, mais um vez, o fogo
é mal-dirigido. A visão apocalíptica aparece em sua forma mais
pura não na asserção de que a corrida armamentista nuclear ou
o desenvolvimento tecnológico incontrolado possam levar ao fim
do mundo, mas na alegação de que um remanescente poupado
sobreviverá ao fim do mundo e construirá algo melhor. Não é
a predição da ruína que caracteriza a imaginação apocalíptica,
agora ou no passado, mas principalmente a crença de que uma
nova ordem nascerá das cinzas da conflagração vindoura, na
qual os seres humanos finalmente atingirão um estado de per­
feição.
Particularmente em sua forma secular moderna, a visão
apocalíptica do futuro afirma a possibilidade da sobrevivência e
da transformação humanas fundando-se precisamente no argu­
mento de que os homens e as mulheres são infinitamente adap­
táveis e plenos de recursos. Assim, na obra de Lessing, a espe­
rança de sobrevivência — humana ou meramente pessoal —
baseia-se na reconstrução do eu, no desenvolvimento de poderes
mentais mais elevados e nunca explorados e na transcendência
das limitações biológica e das emoções humanas ordinárias.
Martha Quest, a heroica de A Cidade das Quatro Portas, inicia
a “criação” de um novo eu acordando mais cedo de manhã,
abandonando o conhaque da noite e desvinculando-se de seu
amante. “Quando se trata da sobrevivência, o sexo, incontro-
lável, pode ser controlado.” O seu novo regime — o “mecanis­
mo” da sobrevivência pessoal, no “nível mais baixo” — prote­
74 O MÍNIMO EU

ge-a contra o “renascimento da mulher apaixonada”, essa “mu­


lher faminta, nunca saciada, jamais em paz, que necessita e
quer, e precisa ter” e a conduz aos maiores direitos da auto-
“programação”. Ela avança sem dormir, luta contra si mesma,
despoja e exaspera a si própria e, nesse caminho, prepara-se
para seguir a alienada mulher de seu amante, numa descida
controlada rumo à loucura. Essa “tarefa de reconhecimento do
novo território” dá a ela a consciência para “empregar seu corpo
como uma máquina para sair da pequena prisão sombria do
cotidiano”; fornece-lhe a mais alta tecnologia da percepção, com
a qual os sobreviventes da “catástrofe” iminente — como se
aprende no apêndice a esse romance, a primeira das visões apo­
calípticas de Lessing sobre o futuro próximo — iniciam a vida
outra vez e procriam uma raça superior de mutantes, crianças
sobrenaturalmente dotadas que “incluem (toda a recente) histó­
ria em si próprios e que a transcenderam”.
Os defensores da preservação ambiental e do desarmamento
nuclear pintam um retrato sombrio do futuro a fim de chamar
a atenção para a necessidade da transformação social e política.
Os verdadeiros milenários, por outro lado, separam-se de uma
ordem social fadada à destruição e combatem em proveito pró­
prio. “Os sobrevivencialistas não se envolvem, de forma alguma,
com a política nacional”, diz Kurt Saxon. “Eles têm consciência
de que, como parte de uma minoria inteligente, os seus votos
serão cancelados. . . pelos ignorantes.” Os principais expoentes
du sobrevivencialismo, como Saxon, Mel Tappan, e William Pier
não compartilham o misticismo sufista de Doris Lessing, mas
concordam com sua confiança na capacidade humana de adap­
tar-se à penúria extrema, com o seu desprezo pela política e sua
crença na necessidade de uma elite moral. “A sobrevivência é
atualmente o tema mais importante”, escreve Saxon em seu
jornal mensal, mas “apenas alguns o reconhecem”. As “ massas
ignorantes” estão “condenadas” e “os mais capazes estão encer­
rados em uma tecnologia interdependente”. Somente uns poucos
auto-selecionados construíram abrigos, armazenaram provisões e
fizeram-se auto-suficientes. A sua ampla visão faz deles os mem­
bros de uma elite que comanda não apenas o seu destino, como
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 75

o destino da humanidade. “Se você se prepara para sobreviver,


você é digno da sobrevivência.” Por outro lado, “aqueles que
podem, mas não se preparam, não merecem sobreviver e as
espécies serão aprimoradas sem eles”.
Arquiindividualistas, Saxon e os seus não teriam muito a
admirar na visão de Doris Lessing sobre uma nova ordem ba­
seada no entendimento de que o “indivíduo não conta”; mas
eles sustentam a mesma visão sobre a disciplina espiritual re­
querida para a sobrevivência. Corte os seu laços; simplifique
suas necessidades; volte ao essencial. “Você não pode perder
seu tempo com amigos que têm pouco potencial como aliados”,
escreve Saxon. “A sobrevivência procura o n.° 1.” Lessing acre­
dita, ao contrário, que a individualidade é uma ilusão sustentada
por criaturas que “ainda não chegaram a uma compreensão de
seus eus individuais como meras partes de um todo, .. .partes
da natureza”. Não obstante, essas atitudes opostas compartilham
uma insuspeitada afinidade. Ambas repudiam as emoções hu­
manas ordinárias e os laços de amor e amizade que distraem as
pessoas dos propósitos “mais elevados”. Ambas partem do prin­
cípio, com efeito, de que as exigências da sobrevivência não
deixam espaço para a vida pessoal ou a história individual.
Acima de tudo, os sobreviventes têm que aprender a viajar com
pouca bagagem. Não podem vergar-se ao peso de uma família,
de amigos ou vizinhos, exceto o tipo de amigos cuja morte não
requer mais que um encolher de ombros. A bagagem emocional
deve ser jogada pela amurada, se o navio precisa continuar flu­
tuando. “Quando se chega à meia-idade”, explica Doris Lessing
a um entrevistador, “ . . . é muito comum olhar para trás e pensar
que boa parte do som e da fúria com os quais nos envolvemos
não eram tão necessários. Há quase sempre uma sensação de
enorme alívio, por se ter emergido de um grande redemoinho de
emocionalismo”. A meia-idade trás a liberação não apenas do
desejo sexual e do torvelinho emocional mas da ilusão de que
“se se está em um violento estado de necessidade emocional,
este é a nossa única necessidade ou estado emocional”. Na
ótica de Lessing, que condensa a falsa maturidade e o pseudo-
realismo dos sobrevivencialistas, “realmente, a experiência mais
saudável e fascinante é ir até o fim, descartando-se de tudo” .
76 O MÍNIMO EU

Quem são os profetas da ruína?

O que define a mentalidade do Juízo Final, injustamente


atribuída aos conservacionistas e aos defensores do desarma­
mento, é a injunção de preparar-se para o pior, seja o aceitando
como a vontade de Deus ou o ponto culminante de algum
grande desígnio histórico, seja entrincheirando-se para uma árdua
mas revigorante estação de adversidade, seja escapando de um
planeta condenado, rumo a uma nova fronteira do espaço exte­
rior. Aqueles que planejam para o fim podem buscar a salvação
na religião antiga, nas tradições místicas importantes do Oriente,
numa revitalização da tecnologia e do individualismo do século
XIX, no repúdio ao individualismo ou na viagem espacial; mas
todos concordam não somente em que o fim se aproxima, como
também em que a previdência e o planejamento (tanto espiritual
como tecnológico) podem transformar o fim em um novo começo.
Os que defendem, por outro lado, que a humanidade não tem
chances de sobreviver ao fim, mas ainda tem uma oportunidade
de evitá-lo, desfazendo-se dos armamentos nucleares, desenvol­
vendo tecnologias menos dispendiosas e adotando um modo de
vida menos perdulário, recusam-se, corretamente, a consolar-se
com a fantasia de uma nova vida depois do apocalipse. Por
advertirem quanto às terríveis conseqüências que advirão do
fracasso em transformar os nossos modos de vida, os conserva­
cionistas vêem-se desconsiderados como profetas da ruína e vi­
sionários apocalípticos; enquanto isso, os verdadeiros visioná­
rios, exceto quando adotam ideologias direitistas inaceitáveis,
conquistam o reconhecimento por seu realismo e confiança.
É a fascinação de novas fronteiras, espirituais ou geográfi­
cas, que fundamenta o apelo desse tipo de pensamento. A pre­
servação é impopular, porque rejeita a psicologia da fronteira
e o sonho da expansão ilimitada. O sobrevivencialismo, por
outro lado, revive o velho sonho do império, a esperança de
uma civilização em declínio que pode revigorar-se através da
conquista, da expansão e da severa disciplina de um meio-am-
biente primitivo. Enquanto Kurt Saxon defende um retorno aos
fogões a lenha, às velas, à tração animal, aos arcabuzes e às
ervas medicinais, outros esperam utilizar a moderna tecnologia
em sua forma mais altamente desenvolvida — a viagem espacial
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 77

— a fim de atingir basicamente o mesmo resultado: “decretar


um paralelo com o que aconteceu na Europa, quando a Amé­
rica estava sendo colonizada”, como o coloca Stewart Brand,
quando “novas terras significavam novas possibilidades (e) no­
vas possibilidades significavam novas idéias”. Neófito inespe­
rado da campanha pela colonização espacial, Brand, como Doris
Lessing, gravitou de um compromisso anterior com a paz e a
ecologia para um entusiasmo pela conquista tecnológica do espa­
ço. Como editor do Whole Earth Catalogue, ele antes advogava
as tecnologias caseiras, na esperança de tornar as pessoas inde­
pendentes dos aparelhos dispendiosos, destrutivos e explorado­
res, que exaurem os recursos naturais, poluem a terra e sua
atmosfera, minam a iniciativa e fazem com que todos fiquem
cada vez mais dependentes dos especialistas. Em vez disso, o
Whole Earth Catalogue sempre exortava as pessoas a isolar-se
nas montanhas, não tanto com o intuito de demonstrar que
poderiam viver em harmonia com a natureza, mas com a inten­
ção de sobreviver ao fim do mundo. Brand continua a se opor
à espécie de sobrevivencialismo “paranóico”, como explicou em
uma entrevista de 1980, mas agora ele rejeita a “auto-suficiên­
cia” apenas para abraçar o escapismo mais insidioso da viagem
espacial, a última expressão da psicologia da fronteira tão pre­
sente na cultura ocidental.
Em um editorial que introduz a colonização espacial aos
leitores de CoEvolution Quarterly, um periódico anteriormente
dedicado à preservação, à simplicidade voluntária e às tecnolo­
gias de trabalho intensivo, Brand defende a idéia do “espaço
livre” numa linguagem remanescente das reivindicações do po-
pulismo do século XIX por “terra livre”. Mas onde Kurt Saxon
vê o desafio da extrema adversidade como uma oportunidade
de reviver a autoliberação individualista (“a melhor garantia
individual de sobrevivência”), Brand, como Doris Lessing, o
enfoca precisamente como um antídoto ao individualismo. “A
severidade do espaço obrigará à confiança de vida ou morte em
cada um.”
Outros entusiastas enfatizam que a viagem espacial pode
encorajar a consciência planetária, o rompimento das barreiras
nacionais e a superação do provincianismo de um mundo divi­
dido em “repúblicas insulares”. Argumentam também, obvia­
78 O MÍNIMO EU

mente, que as colônias espadais resolveriam o problema da


energia, aliviariam a pressão da superpopulação e forneceriam
novos mercados. “Todos os desastres com os quais nos defron­
tamos, da guerra nuclear ao colapso ecológico e à maré de
irracionalidade, têm um fator em comum: a pressão populacio­
nal”, escreve Ben Bova em The High Road (A Estrada Superior).
O movimento pró-colonização do espaço exterior representa
“uma luta crucial contra. . . a fome, a pobreza, a ignorância e
a morte. Precisamos vencer essa corrida, por uma razão brutal­
mente simples: a sobrevivência”. Mas é a promessa de um novo
começo que faz da idéia da viagem espacial um fato tão atrativo
às pessoas oprimidas pelo sentimento da exaustão da velha
ordem. Conforme concebidas pelo físico de Princeton, Gerard
O’Neill, e explicadas em depoimentos perante comissões parla­
mentares, em discursos na Sociedade do Futuro Mundial e outras
organizações similares, e em seu livro The High Frontier (.A
Fronteira Superior), as colônias espaciais reviveriam o espírito
de aventura. “A raça humana encontra-se agora no limiar de
uma nova fronteira de cinco séculos atrás.” O’Neill acrescenta
que “a humanidade poderia arrasar-se com a escassez de energia,
as pressões populacionais e o esgotamento das matérias-primas.
Tudo poderia tornar-se muito mais militarista e o mundo seria
cada vez mais um campo armado”. Outro defensor da coloniza­
ção espacial, Eric Drexler, cita a “profusão de perigos que se
colocam à sobrevivência das sociedades atrativas e à sobrevivên­
cia da própria civilização” e conclui que embora “o espaço
possa não nos salvar, ele parece oferecer uma grande esperança”.
O espaço “espera por nós”, de acordo com Drexler, “terras esté­
reis e luz solar semelhantes às dos continentes da Terra um
bilhão de anos atrás. Se existe um propósito de evolução, este
propósito diz vál”.
Quando Brand submeteu o projeto de O’Neill sobre as colô­
nias espaciais aos leitores e amigos de CoEvolution Quarterly e
solicitou críticas, deflagrou um debate que ajuda a diferenciar os
sobrevivencialistas, tanto no interior como fora do movimento
conservacionista, daqueles que ainda acreditam na possibilidade
da ação coletiva destinada a impedir o colapso da civilização, e
não apenas a preparar uns poucos sobreviventes para suportar a
tormenta. Lewis Mumford rejeitou as colônias espaciais como
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 79

“ disfarces tecnológicos de fantasias infantis”. John Holt defendeu


a posição de que “os grandes problemas da terra deverão ser
resolvidos na terra”. No mesmo filão, E. F. Schumacher chamou
a atenção para o “trabalho que realmente precisa ser feito, no­
meadamente, o desenvolvimento de tecnologias através das quais
a gente comum, decente, trabalhadora, modesta e sempre humi­
lhada pudesse melhorar sua sorte” . Dennis Meadows, um dos
autores do relatório do Clube de Roma, concordou que a espe­
rança de “uma outra fronteira” bloqueava “ a resposta construtiva
aos problemas aqui da Terra”. George Wald argumentou que
as colônias espaciais levariam a despersonalização ao seu “último
limite”. Wendell Berry as viu como um “renascimento da idéia
de progresso com toda a sua antiga ânsia pela expansão irres­
trita, as suas concentrações totalitárias de energia e riqueza, o
seu descaso pelas preocupações de personalidade e comunidade” .
“Tal como os utopistas que o antecederam”, escreveu ele a
Brand, “você imagina um nítido rompimento com todos os ante­
cedentes humanos”.
Os que defendiam a colonização do espaço argumentaram
que “a alternativa”, como escreveu um leitor, “é o Apocalipse” .
Paul e Anne Ehrlich acusaram os conservacionistas de estreiteza
de visão por “rejeitar prematuramente a idéia das colônias espa­
ciais”. Outros atribuíram o “ clamor” contra a viagem espacial
a um compromisso “ideológico” ou “teocrático” com as tecno­
logias de escala limitada, a uma crença doutrinária na “finitude”
como “requisito básico para um bom caráter” e a um pessimismo
“ingênuo”, “irresponsável” e “teológico” . “Numa época de de­
safio às fundações de nossa civilização industrial”, escreveu
T. A. Heppenheimer, do Centro de Ciência Espacial, em Foun-
tain Valley, Califórnia, “não nos cabe desconsiderar as tecnolo­
gias mais importantes à nossa disposição”. Paolo Soleri viu a
viagem espacial como um “novo passo imenso em direção ao
espírito”. Buckminster Fuller a enfocou como uma extensão na­
tural do crescimento humano, “tão normal como o fato de uma
criança sair do ventre materno, aprender aos poucos a ficar em
pé e depois correr ao redor, por suas próprias pernas” . Nume­
rosos leitores expressaram reservas sobre a viagem espacial mas
a viram como inevitável; a “ crítica construtiva” dos conserva­
cionistas. acreditavam, ajudaria a “ humanizar” o programa. Do
80 O MÍNIMO EU

total dos que responderam ao convite de Brand, apenas 49 se


opuseram completamente à proposta das colônias espaciais, en­
quanto 139 a aceitaram, com graus diversos de entusiasmo. Um
leitor chegou mesmo a procurar convencer-se de que a constru­
ção de colônias espaciais “estimularia a vida campestre e a
música rural, e a religião dos velhos tempos”.

Sobrevivencialismo apocalíptico e apatia comum

O debate sobre a viagem espacial e outras fantasias sobre-


vivencialistas é uma discussão entre pessoas alarmadas pela de­
terioração das condições físicas e sociais do planeta. Ela não
tem interesse para os eternos otimistas que não vêem motivo
para alarme, que fecham os ouvidos aos relatos perturbadores
ou que se aferram à esperança de que a humanidade conseguirá
se virar de qualquer jeito. Tampouco ela tem interesse para a
classe de pessoas, bem mais numerosa, que encara o futuro como
tão profundamente problemático que quase nunca suporta exa­
minar a questão, preferindo preocupar-se, coerentemente, com
temas mais imediatos e dóceis. As massas ignorantes, como as
denomina Kurt Saxon, permanecem indiferentes ao planejamento
de longo prazo para a sobrevivência. Elas nunca tiveram muito
interesse, igualmente, num programa governamental de defesa
civil ou na construção privada de abrigos para a sobrevivência,
em condomínios e coletivos de sobreviventes, ou em grupos como
o Posse Comitatus ou o Survival, Inc. Também não mostraram
interesse ativo pelo movimento conservacionista. Apoiam a le­
gislação do meio ambiente, mas somente até onde esta não
ameaça os seus assuntos. A sua “ apatia” constitui motivo de
desespero, tanto para os conservacionistas como para os adeptos
da sobrevivência. Eles se preocupam com a sobrevivência apenas
em seu sentido mais imediato. Entretanto, se comparada com
as fantasias apocalípticas postas em circulação pelos que se
preocupam com a sobrevivência de longo alcance, a sua “apatia”
parece bastante recomendável.
O contraste entre essas duas atitudes, o ativismo apocalíptico
de uma elite sobrevivencialista auto-selecionada e a indiferença
dos cidadãos comuns frente às ideologias, sobressai com clareza
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 81

de um filme recente de Louis Malle, Meu Jantar com André.


Dois amigos retomam suas relações num restaurante de Nova
Iorque e defendem as opções que os levaram a seguir rumos
divergentes. André viajou pelo mundo em busca de esclareci­
mento espiritual. Wally permaneceu em Nova Iorque, cavando
trabalho como escritor e ator e dividindo uma tediosa existência
doméstica com sua namorada. Ele defende os confortos e con­
veniências do dia-a-dia contra o desdém pelo insensato materia­
lismo e pela cultura de massa demonstrado por André. Quando
menciona que dorme sob um cobertor elétrico, provoca o escár­
nio de André. Segundo este, ligar um cobertor elétrico é “como
tomar um tranquilizante o u . . . sofrer a lobotomia de assistir à
televisão”. Wally responde: “a nossa vida já é bastante dura,
assim”. “Eu apenas tento sobreviver”, diz ele, “ ... ganhar a vida”.
Enquanto Wally se contenta com pequenos prazeres e obje­
tivos limitados e atingíveis, André busca a transcendência espi­
ritual, os estados mais elevados da consciência. Faz experiências
com religiões orientais, exercícios espirituais de transformação
da mente e retiros comunitários. Quer acordar o mundo ou, ao
menos, salvar o melhor de nossa civilização quando o restante
dela entrar em colapso. De volta a Nova Iorque, após uma
longa ausência, ele a vê como o “novo modelo dos campos de
concentração” — uma prisão habitada por “pessoas lobotomi-
zadas” e “robôs”. Ele e sua mulher “sentem-se como judeus na
Alemanha, no final dos anos 30”. “Tivemos, na verdade, a sen­
sação muito desagradável de que nós realmente precisamos sair”
— “escapar antes que seja demasiado tarde.” “O mundo, agora,
bem pode tornar-se uma forma inconsciente e auto-suficiente de
lavagem cerebral criada por um governo totalitário universal,
cuja base é o dinheiro.” Sob tais condições, a única esperança
é que pequenos grupos de eleitos se congreguem em “ilhas de
segurança onde a história possa ser lembrada e o ser humano
possa continuar a existir, a fim de manter a espécie durante a
Idade das Trevas.”
O encontro entre André e Wally justapõe dois tipos de so-
brevivencialismo, ambos baseados na premissa não mencionada
e não examinada de que a crise da sociedade do século XX não
apresenta solução coletiva ou política. Reúne a banalidade da
existência cotidiana à banalidade da crítica social refinada, que
1

82 O MÍNIMO EU

denuncia uma sociedade de sonâmbulos e procura “despertar


uma audiência sonolenta” com relatos alarmantes de catástrofe
iminente. “Vivemos em meio a uma praga”. O câncer (causado,
segundo André, pelo “que fazemos com o meio ambiente”)
atingiu “dimensões de verdadeira praga. . . Mas alguém o cha­
ma assim? Quero dizer, na época da Peste Negra, quando a
peste batia, as pessoas passavam o diabo”. Um tipo de sobre-
vivencialismo refugia-se no imediato; o outro, nas visões apoca­
lípticas do que está por vir. Ambos renunciaram à esperança,
mas, enquanto André anseia abandonar o barco que afunda,
Wally permanece na cidade onde cresceu, uma cidade saturada
de lembranças. “Não havia uma rua, não havia um edifício que
não estivesse ligado a alguma recordação em minha mente. Ali,
eu estava comprando um terno com meu pai. Lá, eu tomava
um sorvete com soda, depois das aulas.” Por sua vez, o des­
prezo de André pela vida ordinária deriva de um sentimento
terrificante de impermanência. “ Um bebê pega em sua mão;
então, subitamente, eis esse homem imenso que o levanta do
chão; depois, ele se vai. Onde foi seu filho?” As circunstâncias
contrastantes das vidas desses amigos sugerem que, embora um
sentido de lugar e um respeito pelos fatos comuns possam impe­
dir a imaginação de alçar vôo, eles também a impedem de consu­
mir-se em vôos de fantasia apocalíptica. O próprio André per­
cebe nos novos “mosteiros”, onde os sobreviventes se reunirão
para preservar o que restou da civilização, uma “espécie de
paranóia elitista auto-salisfeita e crescente, uma idéia de ‘eles’
e ‘nós’ bastante deslocada”, que leva a uma “forma de certeza
autocontida e auto-ratificada”. Com essas sensações, ele se vê
“com aversão por toda essa história” de sua própria busca pela
transcendência mística.
A mentalidade do Juízo Final faz do sobrevivencialismo
cotidiano e ordinário de Wally um modelo de senso comum e
decência democrática. Sejam quais forem as suas limitações, este
retém um senso de lugar, uma lealdade às circunvizinhanças
familiares e às suas ligações. Guarda algo daquilo que Hannah
Arendt denominou amor pelo mundo — vale dizer, as ligações
e os ofícios humanos, que conferem solidez e continuidade às
nossas vidas. Mas, embora acalente as lembranças pessoais, essa
atitude tem pouca utilidade para a história e a política, que,
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 83

para as pessoas como Wally, parecem servir meramente como


um teatro para a atuação de ideologias em conflito. O sobrevi-
vencialista do cotidiano baixou os olhos, deliberadamente, da
história para as imediações dos relacionamentos face a face.
Ele vive um dia de cada vez; paga um alto preço por sua ra­
dical restrição de perspectiva, que impossibilita o julgamento
moral e a atividade política independente de forma tão efetiva
quanto a atitude apocalíptica que corretamente rejeita. Permite-
lhe continuar humano — o que não é uma façanha fácil, nestes
tempos; mas o impede de exercer qualquer influência sobre o
curso dos acontecimentos públicos. A sua própria vida pessoal
é tristemente rarefeita. Ele pode recusar a fantasia da fuga para
a montanha, para uma ilha deserta ou para outro planeta, po­
rém ainda conduz a sua própria vida como se estivesse vivendo
num estado de sítio; pode recusar-se a ouvir sobre o tema do
fim do mundo, mas, inconscientemente, adota muitos dos im­
pulsos defensivos a este associados. Os compromissos de longo
prazo e as ligações emocionais trazem certos riscos, mesmo nas
melhores circunstâncias; num mundo instável e impredizível,
trazem riscos que as pessoas acham cada vez mais difícil aceitar.
Na medida em que os homens e mulheres comuns não tenham
confiança na possibilidade de uma ação política coletiva — não
tenham esperança de reduzir os perigos que as cercam —, eles
acharão custoso ir adiante, sem adotar algumas das táticas do
sobrevivencialismo de linha dura, numa forma mais branda. A
invasão da vida cotidiana pela retórica e pelo imaginário do
desastre terminal leva as pessoas a fazerem opções individuais
em geral indistinguíveis, no seu conteúdo emocional, das opções
realizadas por aqueles que orgulhosamente se referem a si mes­
mos como sobrevivencialistas e que se congratulam por sua
presciência superior do curso futuro da história.

As estratégias cotidianas de sobrevivência

Dessa maneira, o estilo mais ameno de sobrevivencialismo,


precisamente porque não é amparado por uma ideologia ou um
programa político, ou mesmo por uma rica vida fantasiosa
(quando as fantasias mais compulsivas de nossa época identifi-
84 O MÍNIMO EU

cam-se não com a descrição realista da vida cotidiana mas com


a visão da transformação apocalíptica), tende a dar lugar, em
momentos de tensão pessoal ou de exaltada percepção imagina­
tiva, a um estilo mais duro. A vida cotidiana passa a assumir
algumas das características mais indesejáveis e sinistras do com­
portamento em situações extremas: restrição das perspectivas
às exigências imediatas de sobrevivência; auto-observação irô­
nica; individualidade multiforme e anestesia emocional.
Enquanto o sobrevivencialista de primeira linha faz planos
para o desastre, muitos de nós conduzimos as nossas vidas coti­
dianas com se ele já tivesse ocorrido. Comportamo-nos como se
em presença das “circunstâncias impossíveis”, no “meio am­
biente aparentemente intolerável”, nas “condições extremas e
imutáveis” da prisão ou do campo de concentração. Comparti­
lhamos o desencanto dominante com a “visão romântica das
situações extremas”, como a denominam Cohen e Taylor, em
seu estudo sobre o longo aprisionamento, “no qual o homem
que resiste, que supera o seu meio circundante, que se recusa
a ser abatido, quaisquer que sejam as possibilidades, é um
herói”. Alguma coisa desse romantismo sobrevive no seio dos
sobrevivencialistas visionários, mas os restantes de nós ridicu­
larizamos o ideal John Wayne, sem que nos libertemos, entre­
tanto, das preocupações subjacentes ao estilo heróico de sobre-
vivencialismo. Deploramos ou rimos daqueles que se armam
contra o apocalipse, mas armamo-nos emocionalmente contra as
investidas da vida cotidiana.
E tal o fazemos numa variedade de maneiras: por exemplo,
concentrando nossa atenção nos obstáculos pequenos e imedia­
tos com os quais nos defrontamos todos os dias. “As pessoas
bem-sucedidas planejam suas vidas para os dias bem-sucedidos”,
diz Michael Korda. “Avalie o seu desempenho pelo que você
fez hoje, não pelo que fez ontem ou planeja fazer amanhã.”
Os recentes manuais de sucesso, fazendo eco inconsciente a estu­
dos sobre o comportamento em situações extremas, enfatizam a
importância dos objetivos limitados e claramente definidos ou
os riscos de repisar o passado ou de investigar demasiado longe
o futuro. “No treinamento sensorial, concentramo-nos no que
denominamos o ‘aqui e agora’.” Tal abordagem, de acordo com
um autor, promete “uma maior competência administrativa atra­
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 85

vés de uma autocompreensão mais profunda”. Os manuais de


sucesso não estão sós quando exortam as pessoas a diminuir as
suas visões e a confinar sua atenção ao momento imediato. O
movimento do potencial humano, a literatura psiquiátrica e mé­
dica sobre a resistência, a crescente produção sobre a morte
recomendam a mesma estratégia para enfrentar as “crises pre­
visíveis da vida adulta”. Centrar-se no presente serve não apenas
como pré-requisito para o “funcionamento” eficiente mas como
uma defesa contra a derrota. A primeira lição que os sobrevi­
ventes têm a aprender é a renúncia. Um jovem poeta descreve
seu primeiro livro, adequadamente intitulado Reservations (Re­
servas), como uma coleção de “elegias a tudo, inclusive a mim”.
Os seus poemas, diz ele, um tanto insinuamente, refletem um
eu “ com uma tênue ligação com seu meio circundante”; eles
tentam “apreender o momento bastante longo para se dizer
adeus, para deixar as coisas partirem, em vez de estar sujeito
ao seu desaparecimento”. O sobrevivente não pode se permitir
repisar por muito tempo o passado, para que não deseje a morte.
Ele conserva seus olhos fixos na estrada que está à sua frente.
Escora os fragmentos contra a sua ruína. Sua vida consiste em
atos e eventos isolados. Não tem história, não tem plano nem
estrutura, como uma narrativa aberta. O declínio do modo nar­
rativo, tanto na ficção como na literatura histórica — onde foi
substituída por uma abordagem sociológica que procura recons­
truir os detalhes da vida cotidiana em épocas anteriores — , re­
flete a fragmentação do eu. O tempo e o espaço recolheram-se
no presente imediato, no meio circundante imediato do escritó­
rio, da fábrica ou do lar.
Os sobreviventes devem aprender o truque de observar-se
como se os acontecimentos de suas vidas estivessem ocorrendo
com outros. Uma das razões pelas quais as pessoas não mais
se vêem como sujeitos de uma narrativa é que elas não mais se
vêem como sujeitos, de modo algum, mas como vítimas das
circunstâncias; e essa sensação de deixar-se guiar por forças
externas incontroláveis inspira um outro modo de armamento
moral, uma retirada do eu sitiado rumo à personalidade de um
observador irônico, separado e confuso. A sensação de que isto
não está acontecendo comigo ajuda a proteger-me contra a dor
e a controlar as expressões de ultraje ou rebelião que somente
86 O MÍNIMO EU

provocaria meus captores a torturas adicionais. Aqui, mais uma


vez, uma técnica de sobrevivência aprendida nos campos de
concentração reaparece nos manuais de sucesso, onde é reco­
mendada como um método seguro de tratar com os “tiranos” .
Chester Burger, autor de Os Executivos sob Ataque e Sobrevi­
vência na Selva Executiva, toma como suposto que a resistência
aos superiores despóticos está fora de questão; mas também
adverte seus leitores para não “bajular os tiranos”. Em vez
disso, exorta-os a “tentar uma qualidade de indiferença”.

Você não pode permitir-se tomar essas -situações (con­


flitos com superiores enciumados que procuram proteger
os seus ‘pequenos impérios’) de uma forma pessoal. Você
tem que recuar a fim de ver-se objetivamente como um
participante. . . Eu tento atuar como se eu fosse duas pes­
soas: o participante e também o observador da situação. . .
Tal técnica me possibilita a minimizar todo emocionalismo
de minha parte que poderia desencadear alguma coisa no
outro sujeito.

O desempenho de um papel, outra estratégia reiteradamente


recomendada pelos manuais de sobrevivência, serve não apenas
para projetar uma imagem adequada de energia e confiança,
como para proteger o eu contra os inimigos invisíveis, manter
os sentimentos sob controle e controlar as situações ameaçadoras.
“Você tem que se sentir autoconfiante para poder inspirar con­
fiança e manter o controle”, conforme Betty Harragan. “Uma
aparência de comando começa por representar um papel, uma
parte numa peça. . . A autoconfiança vem da prática, diante de
qualquer audiência disponível.” Nos “vastos sistemas atuais de
racionalidade”, de acordo com Melville Dalton, as pessoas têm
que recorrer ao que “os biólogos denominam ‘mimetismo pro-
tetivo’”. O sobrevivencialismo estimula um sentido multiforme
da individualidade, que se expressa na advertência rotineira
para adotar a coloração protetiva do meio circundante, mas
também, de forma mais ampla, em uma crescente rejeição dos
papéis sociais prescritos pelas normas culturais “tradicionais”.
Particularmente os papéis sexuais foram criticados como uma
restrição arbitrária à auto-expressão. O ataque aos estereótipos
sexuais, como tantos outros aspectos da revolução cultural con-
A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA 87

temporânea, contém ambigüidade insuspeitadas. Por um lado,


aponta para uma definição mais ampla do eu. Insiste correta­
mente na capacidade não desenvolvida de ternura no homem e
de iniciativa e autoconfiança na mulher. Por outro lado, reduz
o indivíduo, ao concebê-lo puramente como um produto do con­
dicionamento cultural. Levado à sua conclusão lógica, descon­
sidera a individualidade como uma ilusão. Reduz a identidade
pessoal aos papéis sexuais e sociais que são impostos às pessoas
por convenções que podem ser subvertidas, presumivelmente,
pelo simples ato de assumir uma nova identidade ou “estilo
de vida”.
Uma concepção de identidade infinitamente adaptável e
intercambiável pode ajudar a libertar os homens e as mulheres
de convenções sociais antiquadas, mas pode também estimular
as manobras defensivas e o “mimetismo protetivo”. Uma iden­
tidade estável permanece, entre outras coisas, como um lembrete
dos limites à adaptabilidade de cada um. Limites implicam vul­
nerabilidade, enquanto o sobrevivencialista procura tornar-se
invulnerável e proteger-se contra a dor e a perda. O desvincula-
mento emocional serve como mais um mecanismo de sobrevi­
vência. Uma tendência subjacente sempre presente nos recentes
manuais de sucesso, em muitos dos comentários sobre as situa­
ções extremas (como veremos, em mais detalhes, no capítulo
posterior) e nà poesia e na ficção atuais é o alerta insistente de
que a proximidade mata. Assim, John Barth escreve romances
povoados por “atores que não podem sentir as coisas”, como
Josephine Hendin apontou em seu estudo sobre a literatura de
ficção do pós-guerra — personagens guiados pela “ânsia de
matar qualquer proximidade em qualquer encontro”. Nos ro­
mances de Robert Stone, como notou Hendin, “os amantes e
os moralistas são os primeiros a partir”. Quando o protagonista
de Hall of Mirrors (A Sala dos Espelhos) identifica o corpo de
sua senhoria, que se enforcou, tudo que pode pensar é: “Eu
estou vivo, baby. . . Foi você que morreu, não eu. Não preciso
de você... Sou um sobrevivente”. No planeta imaginário de
Kurt Vonnégut, os habitantes conduzem “guerras tão horríveis
como qualquer das que você presenciou ou conheceu pela lei-
. tura. Nada podemos fazer frente a elas, por isso simplesmente
pãq as olhamos”. Quando alguém morre, os tralfamadorianos
I

88 O MÍNIMO EU

“simplesmente encolhem os ombros” e dizem: “Assim são as


coisas”. No livro de Robert Heinlein, Stranger in a Sírange
Land (Um Estrangeiro numa Terra Estranha), o herói, único
sobrevivente de uma missão terráquea a Marte, volta à Terra
e se assombra com as emoções apaixonadas que encontra por
toda parte. “ Como podem esses irmãos humanos sofrer intensa
emoção sem danos?” A questão, evidentemente, é que não po­
dem. A vida é melhor em Marte porque lá não há emoção, nem
sexo. Na mesma vertente, Richard Brautigan escreve sobre ho­
mens que ficam tão frios como uma truta, enquanto Wiiliam
Burroughs avidamente antecipa “toda uma geração. .. que (não
sentirá) nem prazer nem dor”,
O esgotamento da esperança em uma “ordem coletiva anti-
tética”, conforme o autor de outro estudo sobre a literatura do
pós-guerra, Warner Berthoff, gerou uma escrita da “compensação
pessoal e da indenização dos sobreviventes”, uma literatura “por,
para e, em grande parte, sobre os sobreviventes” . O mundo do
escritor do pós-guerra, salienta Berthoff, consiste em “um imen­
so sistema burocratizado e conspiratório ao qual os homens e
mulheres estão essencialmente escravizados, tenham ou não cons­
ciência disso, e do qual não é possível escapar, a não ser por
um retraimento tão absoluto da individualidade, que a sua efe­
tivação natural seria o suicídio”. O suicídio torna-se forma de
autodefesa num mundo percebido — não somente pelos escri­
tores como pelos homens e mulheres comuns ou, pelo menos,
por aqueles que instruem o homem comum na arte cotidiana da
sobrevivência — como um confortável campo de concentração.
O discurso sobre a morte
em massa i as “lições”
do holocausto

Um “ Holocausto” ou muitos?

A destruição dos judeus da Europa oriental não se tornou


um “ Holocausto” até meados da década de sessenta. Não está
claro quem propôs pela primeira vez o termo, mas este foi ado­
tado, com toda a probabilidade (e não apenas pelos judeus), na
esperança de que diferenciasse os atos de monumental desuma­
nidade das matanças e das guerras rotineiras, e mesmo de outros
incidentes de assassinato em massa. O rótulo carrega consigo a
implicação de que aquilo que os nazistas fizeram contra os
judeus permanece como fato único; registra um protesto (mesmo
quando contribui para isso) contra a degradação da retórica po­
lítica, que transforma toda injustiça em outro exemplo de “ge­
nocídio”. “ Eu sei o que é um holocausto”, dizia Menachem
Begin em 1982, em resposta aos que aplicavam o termo, de
forma demasiado fácil e previsível, aos bombardeios israelenses,
em Beirute ocidental, e aos massacres subseqüentes dos refugia­
dos palestinos por parte das milícias cristãs, no Líbano. A afir­
mativa de Begin visava, desafortunadamente, não apenas enfa­
tizar o horror peculiar do nazismo, mas absolver o seu próprio
governo da responsabilidade por ações deploráveis, sob qualquer
padrão de moralidade internacional. Não obstante, o impulso
por trás dela — mal orientado, como a prática provou — de­
90 O MÍNIMO EU

veria exigir respeito. A Solução Final registrou um ponto crucial


nas questões humanas, o cruzamento de uma barreira moral até
então inacessível; e a linguagem que busca descrever esse acon­
tecimento aterrador e captar a sua ferocidade a sangue-frio, sem
paralelos, não pode ser transformada em rotina, a menos que o
assassinato a sangue-frio se transforme ele próprio em rotina.
A verdade, evidentemente, é que as palavras fracassam em
face da perversidade em tal escala. Como o disseram- tantos so­
breviventes, o silêncio é o único tributo adequado aos três e
meio milhões que morreram nos campos de concentração e de
extermínio, aos dois milhões que foram exterminados pelas uni­
dades móveis de assassinato na frente oriental e aos outros qui­
nhentos mil mortos nos guetos da Europa oriental, pela fome,
pelas doenças, pelo terror e pelas represálias nazistas. As pala­
vras fracassam e, no entanto, é necessário falar. Quem pode
permanecer em silêncio, tendo presenciado tais fatos? Mas uma
linguagem terminal, a única linguagem apropriada para as si­
tuações extremas, logo perde a sua força às custas da repetição
e da extensão. Acaba por facilitar o que procura impedir, a
normalização da atrocidade. O massacre dos judeus tornou-se
holocausto porque a palavra “genocídio”, numa época genocida,
tinha já perdido a capacidade de evocar os sentimentos apro­
priados aos fatos que procurava caracterizar. Ao buscar uma
linguagem ainda mais extrema, os historiadores do holocausto
contribuíram para st degradação do “genocídio”. Assim, um de­
les, Yehuda Bauer, explicou recentemente que “genocídio” refe­
re-se apenas à “desnacionalização forçada”, em oposição ao
“assassinato absoluto de todos os membros de uma comunidade”.
Contra os poloneses e outros povos cativos da Europa oriental,
Hitler praticou o que pode ser denominado de genocídio, de
acordo com Bauer. “Suas instituições de ensino (foram) fecha­
das, dizimada a sua liderança política, abandonadas a sua língua
e cultura nacionais, privadas suas igrejas do livre exercício de
suas funções, saqueadas suas riquezas, e submetidos os polone­
ses aos assassinatos coletivos ou individuais, conforme aprou­
vesse aos nazistas.” Contudo, somente os judeus experimentaram
um holocausto.
Pode-se aceitar que tais distinções sejam fundamentais,
mesmo se retiram do termo “genocídio” o seu sentido aceito;
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES" D O ... 91

não obstante, será impossível aplicá-lo com algum rigor. Se os


números pesam, o holocausto não foi um fato único. As esti­
mativas sobre as mortes no processo de coletivização forçada
da agricultura soviética alcançam cifras próximas a vinte e dois
milhões. Se aí incluíssemos as vítimas de outras medidas do
regime stalinista — os expurgos políticos, o massacre das nacio­
nalidades, a perseguição de fiéis religiosos e outros dissidentes,
os campos de trabalho forçado —, a cifra atingiria sessenta mi­
lhões, numa estimativa modesta. Se prestássemos menos atenção
aos números, por outro lado, e enfatizássemos a destruição sis­
temática de toda uma classe ou nação, dificilmente poderíamc >
ignorar o holocausto infligido pelos turcos aos armênios durante
a Primeira Guerra Mundial, que forneceu o antegosto do geno­
cídio do século XX; ou o extermínio de toda a população urbana
do Camboja em 1975, que deixou dois milhões de mortos, se­
gundo a estimativa americana — três milhões, de acordo com
os vietnamitas — , de uma população total de sete milhões. O
assassinato em tal escala levou um especialista, Richard L. Ru-
benstein, a concluir que as convulsões sociais associadas ao
industrialismo, iniciadas com o movimento do cercamento de
terras no princípio da Idade Moderna inglesa, teriam criado
vastas quantidades de populações supérfluas e que o extermínio
sistemático representa apenas o ponto culminante de um longo
processo de remoção, deportação, fustigação e perseguição de
populações. Hannah Arendt, outra pensadora que enfocou o
problema das populações supérfluas como um fator endêmico
às sociedades modernas, via as “fábricas de aniquilação” cons­
truídas por Hitler e Stalin como um “atrativo (tanto) quanto
uma advertência”, uma vez que “demonstraram a solução mais
rápida para o problema da superpopulação, das massas humanas
economicamente supérfluas e socialmente desenraizadas”.
Mesmo a tentativa de diferenciar o genocídio das técnicas
bélicas ordinárias defronta-se com a dificuldade de que a guerra
não é mais ordinária, tendo ela própria assumido algumas das
características do genocídio. É importante trazer à mente que
os nazistas não tinham nenhuma razão militar ou política para
o extermínio dos judeus.; que o totalitarismo moderno se dife­
rencia das formas anteriores de tirania por dirigir a sua violên­
cia não apenas contra os inimigos externos mas também contra
92 O MÍNIMO EU

os seus próprios cidadãos; e que mesmo estes pereceram, em


sua maioria, não porque fossem inimigos políticos do Estado
mas, unicamente, porque estavam no caminho de algum pro­
grama de purificação racial, de industrialização forçada ou de
controle populacional — porque, como foi dito no Camboja
durante a ascendência do Khmer Vermelho: “Não há nada a
ganhar mantendo-os vivos, nada a perder por suprimi-los”. As
exigências da guerra não podem explicar esses fatos; tampouco
podem fornecer uma explicação satisfatória de Hiroshima e Na-
gasaki, do bombardeio de Dresden, ou dos bombardeios estra­
tégicos, de modo geral, que não fazem distinção entre os obje­
tivos militares e o extermínio de civis e servem mais como um
instrumento de terror que como um instrumento bélico, em
qualquer sentido convencional. Os historiadores do holocausto
têm razão ao insistir em que Auschwitz não pode ser comparado
a Dresden ou Hiroshima, seja em termos do número de mortes,
seja quanto aos motivos por trás deles. Mas se é imprudente e
mesmo moralmente obtuso empreender comparações fáceis, pa­
rece igualmente insensato ignorar a crescente destrutividade da
sociedade moderna, no seu conjunto, ou a possibilidade de que
todas essas atrocidades — por mais incomensuráveis em suas
origens e efeitos específicos — prefigurem atrocidades ainda
maiores, inclusive, talvez, a aniquilação da própria humanidade.
Ao situar o holocausto no passado, ao reservá-lo aos judeus e
ao associá-lo a políticas raciais insanas agora universalmente
condenadas (pelo menos no plano oficial), os mais sóbrios e
responsáveis historiadores do holocausto, buscando impedir a
rotinização da linguagem da atrocidade, obscurecem, inadverti­
damente, o fato de que os Estados Unidos e a União Soviética,
em busca de objetivos nacionais legítimos, sob a liderança não
de criminosos, mas de pessoas comuns, em plena posse de suas
faculdades mentais, preparam-se mesmo atualmente para come­
ter genocídio uns contra os outros, na eventualidade de uma
guerra nuclear. Como destaca Jonathan Schell, a guerra nuclear,
como o genocídio, representa um “crime contra o futuro”, que
fere não somente “os seres e as coisas existentes mas. . . a he­
rança cultural ou biológica que os seres humanos transmitem
de uma geração para outra”. A guerra de extermínio movida
por Hitler contra os judeus nos alerta que “os crimes insanos
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES” D O ... 93

e gigantescos não são impedidos de ocorrer meramente por serem


‘impensáveis’”. A advertência está perdida, contudo, sempre que
consideremos o “holocausto” — embora justamente — como
uma atrocidade única e sem paralelos cometida por um regime
singularmente monstruoso e assassino.

O “ totalitarismo” : da maldade radical


à tipologia política comparada

A tentativa de compreender a “Solução Final” de Hitler


contra os judeus nos coloca, portanto, diante da escolha entre
Unhas de explicação igualmente compulsórias e inadequadas. Se
insistirmos em sua singularidade, perderemos a capacidade de
colocá-la numa perspectiva mais ampla. Se por outro lado, pro­
curarmos usá-la como fundamento para generalizações mais
abrangentes sobre a cultura e a política modernas, acabaremos
por obscurecer o seu horror particular.
Consideremos o conceito de totalitarismo, cuja história ilus­
tra a dificuldade de se fazer justiça a ambas as partes desta
questão. Ele tomou forma, pela primeira vez, no final dos anos
30, nos escritos daqueles que começavam a questionar tanto
as credenciais socialistas do regime de Stalin como a interpreta­
ção marxista do fascismo como etapa final da decadência capi­
talista. Graças aos julgamentos de Moscou, à Guerra Civil Espa­
nhola (na qual a União Soviética ajudou a abortar a revolução
democrática liderada pelos anarquistas) e ao pacto nazi-sovié­
tico, George Orwell, Arthur Koestler, Franz Borkenau, James
Burnham e outros ex-marxistas passaram a ver o stalinismo como
uma nova forma de dominação: nem um retorno a um antigo
tipo de autocracia, nem o socialismo distorcido descrito por
Trotski como o coletivismo burocrático, mas um sistema de
controle total que buscava regular não apenas a vida pública
dos indivíduos, mas a sua própria vida íntima, abolindo, dessa
maneira, a própria distinção entre os campos público e privado
e entre a sociedade e o Estado. Enquanto isso, tornava-se cada
vez mais claro que o regime nazista na Alemanha não poderia
ser entendido, como o próprio Orwell o caracterizara até 1939,
durante o seu breve flerte com o trotskismo, como um “desen-
94 O MÍNIMO EU

volvímento do capitalismo” adiantado, ou mesmo como um re­


nascimento das antiquadas autocracias. “O mais terrível, no que
diz respeito às modernas ditaduras”, escrevia Orwell algumas
semanas depois, “é que elas são um fato totalmente sem prece­
dentes”. Elas não apenas gozaram de uma boa dose de apoio
popular, como a sua utilização do terror, culminando em pro­
gramas sistemáticos de assassinato em massa, parecia ir muito
além das exigências práticas da conquista ou manutenção do
poder. Um dos primeiros estudiosos do nacional-socialismo, Her­
mann Rauschning, descreveu o nazismo como uma “revolução
do niilismo”, um movimento sem “objetivos políticos fixos” e
baseado apenas no “impulso”. Essa percepção se cristalizou no
conceito de totalitarismo proposto, por exemplo, na obra 1984
de Orwell, que retrata um Estado cujo poder total é exercido
em seu próprio benefício, sem sequer a pretensão de que sirva
aos interesses do conjunto da humanidade.
Após publicar os relatos sobre os campos de concentração
nazistas escritos por Bruno Bettelheim e Hannah Arendt, em
1945, Dwight Macdonald afirmou em sua revista Politics que
“o extermínio dos judeus da Europa não era um meio para se
chegar a um fim que se pudesse considerar plausivelmente ra­
cional. . . Não se alcançou nenhum propósito militar com o seu
extermínio; a ‘teoria racial’ a ele subjacente é cientificamente
infundada e humanamente abominável e somente pode ser cha­
mada, no sentido estrito da palavra, de neurótica”. Um con­
junto crescente de informações sobre o terror stalinista possi­
bilitou uma série de conclusões similares. Em 1984, o terror
totalitário nem mesmo serve ao objetivo racional de intimidar
os oponentes, uma vez que continua a florescer quando a opo­
sição já foi efetivamente silenciada. Segundo John Strachey, os
romances de Orwell, 1984 e A Revolução dos Bichos, sugeriam
que o comunismo, com freqüência mal-interpretado como o
“apogeu do racionalismo”, tinha “perdido quase todo o contato
com a realidade objetiva e perseguia objetivos sociais psico-
patas”.
O livro de Hannah Arendt As Origens do Totalitarismo,
publicado pela primeira vez em 1951, deveu a sua considerável
influência sobre o pensamento do pós-guerra à visão, sustentada
em quinhentas páginas e apoiada em uma riqueza de detalhes
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS "LIÇÕES” DO. 95

horripilantes, de que crimes da escala dos que foram cometidos


por Stalin e Hitler marcaram um ponto crucial na história,
“rompendo todos os padrões conhecidos” e assinalando o adven­
to de um mundo para o qual as civilizações do passado não
mais podiam servir como guia ou como um critério moral con­
fiável para condená-lo.7 Sem se constituir numa explicação satis­
fatória do nascimento do nazismo e do stalinismo e tampouco
numa análise comparada capaz de fazer justiça à diferença entre
eles, o livro de Arendt extraía o seu valor da compreensão da
mentalidade do “tudo é possível”. O totalitarismo difere das
formas anteriores de autocracia, conforme Arendt, porque leva
ao seu limite a lógica que pode livrar-se de categorias inteiras
de pessoas como historicamente supérfluas. Dessa forma, os cam­
pos de concentração, a expressão mais acabada do totalitarismo,
buscam não tanto explorar o trabalho de uma população cativa
quanto fornecer a mais vívida demonstração de sua dispensabili-
dade. Com sua preocupação em identificar “o ônus de nosso
tempo” — como o livro foi denominado quando apareceu na
Inglaterra —, Arendt enfatizava reiteradamente o risco de que
“em toda parte, os acontecimentos políticos sociais e econômi­
cos estejam envolvidos numa silenciosa conspiração com os ins­
trumentos totalitários projetados para tornar os homens su­
pérfluos”.
Em um mundo de desemprego crônico, de automação e de
superpopulação, a sua advertência continua tão importante como
nunca. Contudo, foi justamente esse elemento na obra de Arendt
(sua insistência em que o totalitarismo representa uma solução,
ainda que irracional, para os problemas irresolvidos da socie­
dade industrial) o primeiro a ser esquecido, à medida que o
conceito de totalitarismo abria caminho no debate político da
década de 50. A própria Arendt contribuiu para a má interpre-
(7) Em uma resenha sobre a recente biografia de Hannah Arendt
escrita por Elisabeth Young-Bruehl, no New York Times, Alfred Kazin
afirmava: “O que transformou o nome de Hannah Arendt num fantasma
e num bicho-papão para muitas pessoas e num consolo permanente para
algumas outras foi o fato de que ela investiu sua expressividade... na
convicção de que houve uma ‘ruptura’ na história humana. Ela a viveu.
A ocorrência da ruptura, a nossa existência em tempos verdadeiramente
‘negros’ não pode ser posta em dúvida por ninguém. A grande importân­
cia de Arendt, o seu exemplo singular, está em que ela não podia aceitar
tal ruptura, como o fez a maioria de nós".
96 O MÍNIMO EU

tação de seu livro ao apresentá-lo como uma tipologia ou ana­


tomia do totalitarismo, compreendido como uma “nova forma
de governo”. Por conseguinte, os cientistas sociais fizeram uma
leitura equivocada de As Origens do Totalitarismo, tomando-o
como uma contribuição à análise política comparada, e procede­
ram, assim, à sua crítica com base em que fracassava em con­
seguir a comparação com rigor científico ou em estendê-la à
Itália fascista, à China comunista ou aos satélites soviéticos da
Europa oriental. Obra de uma escritora em profundo desacordo
com toda a tradição das ciências sociais, As Origens do Totali­
tarismo passou a integrar a corrente principal do discurso socio­
lógico, tornando-se, ao mesmo tempo, a inspiração e o desafio
para uma longa série de estudos que procuraram despir o con­
ceito de totalitarismo de suas implicações éticas e “normativas”,
bem como “operacionalizar” as “descobertas” de Arendt e dis­
secar as características gerais da “democracia totalitária”, como
a denominou J. L. Talmon.
Ao generalizar o conceito de totalitarismo, na expectativa
de torná-lo mais sistemático, os cientistas sociais obscureceram
a visão original que o iluminava. Fizeram do totalitarismo um
sinônimo de transformação revolucionária ou de “democracia
direta” e lhe atribuíram uma longa história. Talmon traçou os
seus antecedentes até Rousseau. Karl Popper identificou Platão
como o primeiro totalitário, com o argumento de que ele fun­
dara a tradição da “organização social utópica”. Em The Pur-
suit of the Millenium (A Busca do Milênio), Norman Cohn re­
montou a tradição do “quiliasmo * revolucionário” às revoltas
camponesas do final da Idade Média. “Apesar de toda a sua
exploração da mais moderna tecnologia”, defendia Cohn, Hitler
e Stalin reviveram uma “fé” revolucionária que tem suas ori­
gens do sonho medieval de um mundo de pernas para o ar e
que continuou a viver uma “sombria e subterrânea existência
através dos séculos, inflamando-se brevemente nas margens da
Guerra Civil Inglesa e da Revolução Francesa, até que, no
curso do século XIX, começou a tomar um novo e explosivo
vigor”.8

(*) Milenarismo. (N. T.)


(8) Arendt, por sua vez, afastou-se de sua rota a fim de salientar
que os pressupostos sociais do totalitarismo “não resultam da crescente
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES" D O ... 97

Esse tipo de trabalho conseguia apenas demonstrar que o


conceito de totalitarismo tinha-se tornado completamente inútil
para os propósitos da análise histórica ou para os estudos com­
parados das ditaduras. Até mesmo o conceito mais restrito de
fascismo não resiste a uma análise comparada rigorosa. A ten­
tativa de encontrar traços fascistas ou totalitários numa varie­
dade de regimes estende tais termos a tal ponto que eles passam
a ter pouco significado. Além disso, uma tipologia dos regimes
totalitários obscurece os próprios processos para os quais Arendt
queria chamar a atenção em primeiro plano: o desastroso colapso
da moralidade política, o crescimento do niilismo moral e polí­
tico e a corporificação desse niilismo, dessa indiferença até pelas
considerações elementares de utilidade e conveniência políticas,
nas “fábricas da morte”, estabelecidas sob os regimes nazista e

igualdade de condições, da difusão da educação elementar, com o inevi­


tável rebaixamento de padrões e popularização dos conteúdos". Também
Orwell defendeu a posição, de modo ainda mais enfático, de que a de­
fesa mais eficaz contra o totalitarismo continuava a ser o ideal igualitá­
rio, não realizado mas ainda reverenciado por “todo o mundo de língua
inglesa”. Tanto Orwell como Arendt dirigiram o seu ataque principal­
mente contra a cultura intelectual, não contra a cultura popular. O ponto
de vista de Orwell sobre o totalitarismo tomou forma num período de
sua vida em que ele passou a atribuir um maior significado ao senso
comum e à “decência comum” do inglês comum. “Minha esperança fun­
damental para o futuro”, escrevia em 1940, “é que o homem comum
nunca se separou de seu código moral”. A insistência em que os “inte­
lectuais são mais totalitários em suas perspectivas que o homem comum",
diferenciava a sua posição da de muitos de seus admiradores, inclusive
os intelectuais da Partisan Review, em Nova Iorque, que divulgavam a
obra de Orwell mas situavam o contrapeso ao autoritarismo não no
bom senso do homem comum mas na “tradição dos intelectuais" no
modernismo crítico. Para Orwell, o pensamento crítico do qual a intelli-
gentsia se orgulhava tornara-se um reflexo automático, uma expressão
de suas “perspectivas extraordinariamente negativas, de sua falta de
ideais firmes ou de objetivos positivos e de sua capacidade de acalentar
ilusões impossíveis às pessoas oriundas de situações menos protegidas”.
É possível encontrar pontos de vista similares em As Origens do Tota­
litarismo, de Arendt: por exemplo, na magistral abordagem da van­
guarda literária na República de Weimar, com seu “protesto contra a
sociedade", seu culto da violência, o seu deleite em desmascarar a
hipocrisia, a sua "paixão pelo anonimato e pela derrota em si", e por
sua .fútil tentativa de chocar uma burguesia que “não mais podia ser
chocada" e que aplaudia os ataques a ela dirigidos “porque estava
idiotizada por sua própria hipocrisia há tanto tempo que cansara-se de
tensão e encontrara grande sabedoria na expressão da banalidade em
que vivia”.
t

98 O MÍNIMO EU

stalinista. Os especialistas que procuraram localizar traços tota­


litários nos regimes fascista e comunista de qualquer tipo per­
deram de vista o frenesi genocida que define mais claramente
a ruptura radical entre o totalitarismo moderno e as antigas
autocracias. Na verdade, o conceito de genocídio não figura na
maior parte dos trabalhos comparados sobre o totalitraismo,
mesmo na obra de especialistas — como Cari Friedrich e Zbig-
niew Brzezinski, por exemplo — que pelo menos tentam reter
alguma coisa da percepção de Arendt do totalitarismo como
uma “inovação histórica”, para usar os seus termos. Se o tota­
litarismo tem o “propósito de assumir a forma de uma revolu­
ção social total”, como Brzezinski defende em uma de suas
formulações ambíguas, o terror totalitário deve ser visto mera­
mente como um meio de livrar-se da oposição. “ Onde se pre­
tende efetivar uma transformação total”, escreve Friedrich, “ a
resistência maciça aparece; para quebrá-la, os adversários do
regime devem sofrer o terror para se submeterem”. Essa espécie
de argumento conduz ao absurdo de que a campanha nazista
de extermínio contra os judeus, o mais estarrecedor e também
o mais importante e característico traço do nacional-socialismo,
acaba por ser minimizada como um acidente. Segundo Friedrich,
“o extermínio dos judeus não teve função para o regime”. De
tal modo, o estudo comparado do totalitarismo não consegue
explicar até mesmo o seu traço de irracionalidade, assinalado
com destaque por tantos analistas do nacional-socialismo. Ao
proceder a um amplo exagero do compromisso dos nazistas com
a “destruição da sociedade existente”, os cientistas políticos e
os sociólogos, com seus estudos comparados, reduzem a irracio­
nalidade daqueles ao seu fracasso em observar as regras da po­
lítica pluralista dos grupos de interesse — à sua determinação
de atingir a transformação total”.
Por volta da metade da década de sessenta, mesmo os mais
importantes cientistas sociais tiveram que reconhecer a inutili­
dade de sua tipologia comparada do totalitarismo. Entretanto,
as razões que os levaram a rejeitá-la não foram melhores que
os motivos de sua anterior aceitação. Eles objetavam que o
termo continha “implicações pejorativas e ideológicas”, como se
a paixão moral estivesse fora de lugar numa discussão sobre a
selvageria política sem precedentes. Propunham que o estudo do
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES" DO... 99

totalitarismo desse lugar à análise comparada da “moderniza­


ção”. Um crítico, Benjamin R. Barber, contrapunha-se mesmo
ao preconceito contra o “poder político centralizado”. Enquanto
isso, a esquerda fazia a sua contribuição própria à degradação
do debate. Ao mesmo tempo que os cientistas sociais mais in­
fluentes redefiniam o totalitarismo de forma a excluir os seus
traços definidores, até chegarem à completa rejeição do termo,
a esquerda o usava de forma tão inconseqüente, que ele perdeu
seu valor, mesmo como um ponto de referência moral. Justifi-
cavelmente incomodados com a equação cada vez mais corri­
queira entre fascismo e comunismo, os autores de esquerda não
hesitaram em caracterizar a própria “Amerika” como uma so­
ciedade totalitária ou em descrever o tratamento destinado aos
negros e a outras minorias como uma política de genocídio
calculado. “Graças à forma como organizou a sua base tecno­
lógica, a sociedade industrial contemporânea tende a ser totali­
tária”, escreveu Marcuse em A Ideologia da Sociedade Industrial
(One-Dimensional Man). “Desse modo, ela impede o surgimento
de uma oposição efetiva contra o todo.” Tal discurso nada fez
para iluminar a natureza dos sistemas políticos modernos; mera­
mente contribuiu para o clima geral de crise e para a impressão
de que o “sistema” é infinitamente perverso, mas, ao mesmo
tempo, infinitamente resistente à mudança. Nem mesmo desper­
tou a indignação moral, como pretendia fazer. Ao equiparar
toda instância de injustiça com o genocídio totalitário, ele efeti­
vamente anulava o horror dos acontecimentos cuja memória,
sem cessar, invocava.

Auschwitz como uma imagem do mal-estar moderno

A agonia dos judeus sob Hitler é demasiado significativa e


ultrajante para ser esquecida; todavia, ao que parece, ela só
pode ser lembrada de modo a distorcer o seu sentido e negar a
sua importância. Tanto a natureza do regime nazista como o
sofrimento infligido por Hitler às suas vítimas eludem uma des­
crição precisa. O termo “totalitarismo”, inventado porque ne­
nhuma das palavras do vocabulário existente sobre a opressão
política podia dar conta da brutalidade sistemática praticada
i

100 0 MÍNIMO eu

pelos regimes nazista e stalinista, mostrou-se incapaz de carregar


a carga moral pela qual estava marcada. A mesma dificuldade
persegue a tentativa de encontrar uma palavra (não apenas ge­
nocídio, como também “Holocausto”) com a qual descrever a
angústia suportada pelas vítimas do terror totalitário. O “inson­
dável horror” da morte em massa, como o denominou Bruno
Bettelheim, esgota a nossa capacidade de resposta emocional e
desafia toda tentativa de encontrar-lhe um sentido. A única
resposta apropriada, por fim, é um comprometimento coletivo
com a paz e a justiça, com um mundo no qual homens e mu­
lheres possam viver com dignidade. Contudo, nos anos recentes,
a vontade de construir um mundo assim enfraqueceu-se rapida­
mente, ainda que os horrores da Segunda Guerra Mundial e do
“Holocausto”, em particular, tenham-se tornado uma obsessão
pública. O holocausto passou a servir não como uma advertên­
cia ou como um incentivo à ação social, mas como um símbolo
conveniente à sensação dominante de desamparo. Tornou-se um
“slogan judeu válido para qualquer assunto sobre o qual se
converse”, na expressão de Jacob Neusner, “uma espécie de
palavra-chave judaica para o mal-estar comum”. Uma sociedade
formada por pessoas que se vêem como vítimas e sobreviventes
encontra em Auschwitz a mitologia consumada da vitimação e
da sobrevivência. Rejeitando a única lição que Auschwitz tem
para oferecer — a necessidade de uma renovação da fé religiosa,
a necessidade de um compromisso coletivo com condições sociais
decentes — , ela estuda minuciosamente os registros históricos
em busca de um ensinamento que Auschwitz provavelmente
não pode render: como sobreviver a um holocausto. A Solução
Final tornou-se uma obsessão particular dos judeus porque a
mitologia do holocausto ajuda a manter a identidade étnica ju­
daica, como apontou Neusner, num período no qual a identidade
dos judeus não é mais definida pela religião; mas ela se tornou
uma obsessão geral porque carrega a promessa falsa e sedutora
de ingressos na tecnologia da sobrevivência.
“No início, o testemunho dos sobreviventes inspirava es­
panto e humildade”, escreve Elie Wiesel. “Mas a popularização
e a exploração logo se lhes seguiram.” Os campos de concen­
tração perderam o seu “mistério”. “ O holocausto tornou-se um
‘vale-tudo’ literário. .. Romancistas fizeram livre uso do tema
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES” DO... 101

em suas obras, os especialistas o utilizaram para provar as suas


teorias.” Tal exploração do “holocausto” poder ser inserida na
crescente preocupação com as estratégias de sobrevivência, na
irresponsabilidade com a qual os analistas passaram a fazer
generalizações dos campos de concentração para a vida cotidiana
e na ânsia crescente de enfocar os campos como uma metáfora
da sociedade moderna. Os primeiros relatos dos sobrevi­
ventes continham, surpreendentemente, poucas especulações
nessa linha. O mais famoso deles, o ensaio de Bettelheim,
“Comportamento individual e de massa em situações extre­
mas”, propôs-se a examinar os métodos usados pelos nazistas
para “produzir mudanças nos prisioneiros, que os fariam
súditos úteis ao Estado nazista”. Bettelheim mostrava como o
terror sistemático pode forçar os homens e as mulheres a “viver,
como as crianças, apenas no presente imediato” e mesmo a
adotar alguns dos valores dos que os oprimem, mas ele nunca
levantou a “questão que obceca a todos os estudiosos dos cam­
pos de extermínio”, como ele próprio a descreveu, num livro
escrito quinze anos depois: a saber, a questão de por que “mi­
lhões de pessoas marcharam silenciosamente e sem resistência
para a própria morte”, por que “tão poucos dos milhões de
prisioneiros morreram como homens”. Tampouco Bettelheim
procurou generalizar, em seu artigo original, a situação dos pri­
sioneiros para a situação do homem moderno. “O campo de
concentração”, concluía, “tem um significado que vai muito
além de seu papel de local onde a Gestapo se vingava de seus
inimigos” — mas tão-somente porque o campo supostamente
dramatizava o que “ aconteceu de forma mais atenuada, aos
habitantes desse grande campo de concentração chamado Ale­
manha”. O campo de concentração “ deve ser estudado por toda
pessoa interessada em compreender o que ocorre a uma popula­
ção sujeita aos métodos do sistema nazista” .
Estando ou não com a razão em sua análise do campo de
concentração como um “laboratório” no qual os nazistas apren­
deram a aterrorizar a população inteira, Bettelheim, em sua pri­
meira tentativa de apreender o significado da Solução Final, ao
menos evitou a sedução de extrair lições morais e políticas da
experiência dos prisioneiros ou de especular sobre as qualidades
que poderiam tê-los capacitado a sobreviver àquela experiência
102 O MÍNIMO EU

ou, pelo menos, a suportá-la mais heroicamente. Em 1960, po­


rém, quando publicou O Coração Informado: a Autonomia numa
Época de Massas, uma guinada no ânimo público fizera dessas
questões temas centrais não só na obra de Bettelheim mas (como
veremos um pouco à frente) na de seus críticos. Os campos de
concentração ensinaram uma “lição” não apenas sobre a socie­
dade alemã sob os nazistas, como com relação à “ influência do
meio ambiente sobre o homem” e ao risco de que a “ sociedade
de massa” extinguisse o senso de individualidade. Se os nazis­
tas reduziram os indivíduos a uma massa amorfa, “tendências
similares estão presentes em qualquer sociedade de massa, po­
dendo ser detectadas, em certa medida, nos nossos tempos” .
Um estudo da sociedade de massa, da psicologia do conformismo,
levava aparentemente a importantes visões sobre a sobrevivência.
Lamentando a popularidade do Diário de Anne Frank, Bette­
lheim defendia que a tentativa de Frank de “levar as coisas
normalmente, como se não houvesse contratempos” não repre-*'
sentava “nem uma boa forma de vida, nem um bom modo de
sobrevivência”. A “privatização extrema” fracassava diante da
adversidade. “Mesmo todo o amor do sr. Frank não bastou para
manter (sua família) com vida.” Por outro lado, os que pro­
curaram fugir da Europa ou sobreviver aos campos de concentra­
ção entenderam que “quando um mundo se despedaça e a desu­
manidade reina suprema, o homem não pode continuar, como
se nada tivesse ocorrido”. Compreenderam, além disso, que
mesmo a morte é preferível à passividade com a qual tantas
vítimas do nazismo permitiram-se tratar como “unidades de um
sistema”. Os campos de concentração não podiam privar os
homens e as mulheres com coragem da liberdade de morrer
desafiadoramente, de “decidir como se deseja pensar e sentir
sobre as condições da própria vida”.

A “mera” sobrevivência criticada e defendida

Um outro psiquiatra, Victor Frankl, apresentou uma inter­


pretação algo semelhante da Solução Final — ainda não conhe­
cida como “Holocausto” — , num livro publicado em 1959,
Dos Campos de Concentração ao Existencialismo: o Percurso de
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES" DO... 103

um Psiquiatra Rumo a uma Nova Terapia. Como Bettelheim,


Frankl via a afirmação existencial da individualidade como a
única resposta adequada às situações extremas. Como Bettelheim,
procurou estabelecer vínculos entre o terror nazista e a “ socie­
dade de massa”. Mas enquanto aquele enfatizava o assalto da
sociedade de massa à individualidade, Frankl salientava o assalto
ao “significado”. A sociedade moderna, argumentava, frustra a
“busca de significado”. A automação priva as pessoas do tra­
balho útil e as torna entediadas e insatisfeitas. A erosão da
crença religiosa e o triunfo de uma visão de mundo científica
criam um “vazio existencial”. “ O homem médio atual parece
ser assaltado por um sentimento da falta de significado da vida.”
Os campos de concentração nazistas, de acordo com Frankl,
corporificam a crise de significado, em sua forma extrema. Ao
privar o prisioneiro de significado, eles ameaçam a sua própria
vontade de sobreviver.
Segundo Frankl, sem um “objetivo último na vida”, os
homens e as mulheres não têm qualquer razão para continuar
vivendo. Muitos prisioneiros dos campos sofriam uma “espécie
de morte emocional”. “Deixavam de viver para o futuro.” Um
“trabalhador desempregado”, notava Frankl, encontra-se “numa
posição semelhante”. “Sua existência tornou-se provisória e, em
certo sentido, ele não pode viver para o futuro ou ter em vista
uma meta.” Ao intensificar essa experiência, os campos de con­
centração atiram os prisioneiros de volta aos seus próprios re­
cursos. Apenas aqueles que procuram aceitar a prisão como um
teste da força interior, até mesmo como uma “oportunidade de
crescimento espiritual”, conseguem preservar sua “liberdade in­
terior”. A maior parte “perde todos os escrúpulos em sua luta
pela existência”, afirma Frankl. “Eles estavam prontos a recor­
rer a qualquer meio, honesto ou não, até mesmo à força bruta,
ao furto e à traição de seus amigos, a fim de salvar a si pró­
prios.” Alguns prisioneiros, porém, escolhem a liberdade exis­
tencial no lugar da sobrevivência. Em vez de se perguntar se a
sua sobrevivência daria sentido ao sofrimento imposto a si mes­
mos, eles se questionam se o seu sofrimento daria sentido à
sobrevivência, “pois uma vida cujo significado permanece ou
fracassa se o indivíduo escapa ou não. .. em última instância
não merece ser vivida”.
104 O MÍNIMO EU

A “logoterapia” de Frankl baseou-se explicitamente nas li­


ções de Auschwitz e procurou trazer as lições do campo de con­
centração para o consultório. Conforme Frankl, o homem mo­
derno tem que aprender, com o auxílio de seu psiquiatra, como
criar o seu próprio significado num mundo desprovido dele.
A psiquiatria transforma-se em um “ministério médico”, o mé­
dico passa a ser o substituto do padre. O logoterapeuta procura
curar a “frustração existencial, essa neurose coletiva de dimen­
sões mundiais”, sem recorrer — desnecessário dizer —, a ne­
nhuma “imposição dos valores pessoais do médico sobre o pa­
ciente”, mas através de tentativas cuidadosamente planejadas
para fazer o paciente descobrir por si próprio os seus “valores”
pessoais. Se esses valores valem a vida ou a morte, quando não
reivindicam representar o consenso moral da comunidade e nunca
podem ser “impostos” a qualquer pessoa, eis uma questão que
Frankl não responde. Em sua perspectiva, o indivíduo deve
encontrar a sua própria verdade pessoal, uma vez que “é impos­
sível definir o significado da vida de uma maneira geral”. Mas,
se a verdade e o significado são inteiramente pessoais e subje­
tivos, se não se referem a qualquer coisa externa à nossa pró­
pria experiência imediata, não está claro por que elas devem
dar-nos alguma força ou apoio quando as coisas não funcionam
bem. Como muitos observadores, Frankl nota que as pessoas
com fortes convicções religiosas — as Testemunhas de Jeová,
por exemplo —, superam melhor as agruras dos campos de
concentração; contudo, ele ignora a possibilidade de que essas
pessoas encontrem forças no mundo revelado de um criador
absoluto, objetivo e onipotente, na visão delas, e não nos “valo­
res” pessoais que têm significado para elas próprias. Se a sobre­
vivência não pode ser tomada como um fim em si, como sus­
tenta Frankl, então deve haver algum propósito externo a nós
mesmos que nos confira uma razão para viver ou morrer. O
existencialismo de Frankl não pode fornecer esse propósito. Ele
se contrapõe ao niilismo — o niilismo que procura apenas sobre­
viver, a qualquer custo — com afirmações vazias: liberdade, mo­
ral, “valores”, “humanismo”. Frankl insiste em que o homem é
um agente moral livre, não um “mero produto” ou “paralelogra­
mo de forças internas e externas”; mas não consegue explicar por
que uma opção moral ou uma ação particular são melhores que
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES” DO... 105

outras. É apenas capaz de afirmar a escolha em si, a “última


das liberdades humanas” — a liberdade, que mesmo os campos
de concentração não podem anular, de “escolher a atitude da
pessoa num dado conjunto de circunstâncias” não produzidas
por ela, até sob “terríveis condições de tensão psíquica e física” .
Uma vez que a crítica humanista e existencial da mera
sobrevivência funda-se em premissas inconsistentes, sustentando
a importância dos “valores” sem fornecer nenhuma razão para
a aceitação de sua validade, ela convida à réplica na forma de um
argumento que desconsidera os antiquados lemas humanistas e
todos os outros remanescentes metafísicos e exalta a sobrevivên­
cia em si como afirmação última da vida. Em 1976, no auge da
moda da sociobiologia. Terrance Des Pres publicou The survivor:
An Anatomy of Life in the Death Camps (O Sobrevivente: Uma
Anatomia da Vida nos Campos de Extermínio), no qual defende
que o impulso de preservação da vida impõe-se mesmo em face
de todas as razões para não continuar vivendo. O livro de Des
Pres propõe uma ética do sobrevivencialismo baseada no res­
peito à “vida em si”. Segundo ele, os campos de extermínio
privaram a morte da sua dignidade* minando, assim, a possibili­
dade de heroísmo, martírio, patriotismo e auto-sacrifício. Eles
tornaram dramática a obsolescência da moral fundamentada na
responsabilidade pessoal. Sob condições extremas, “as formas
honrosas de heroísmo fracassam como modelos de ação e de
amparo espiritual”. A moral convencional defende a vontade de
sacrifício da própria vida e condena o ato da ‘“mera’ sobrevi­
vência, como se a vida em si não valesse muito; como se sen­
tíssemos que a vida se justifica apenas por coisas que a negam”.
De acordo com De Pres, os sobreviventes do Holocausto nos
ensinaram algo sobre “o poder de sustentação que a própria
vida oferece quando tudo o mais foi retirado”. Eles nos mos­
traram como viver sem esperança e sem medo. Em outras pala­
vras, a sua experiência lança luz sobre as condições hoje vivi­
das por todos nós, que os campos de concentração levaram a
extremos. Sob extrema adversidade, o equilíbrio mental passa
a depender de “sempre se esperar o pior”. O sobrevivente re­
jeita a esperança e também o desespero. Ele se sente “feliz por
estar vivo”. Essa afirmação incondicional, “ilógica e irracional”
da vida passa a ser vista como a “graça especial do sobrevi-
106 O MÍNIMO EU

vente, . . . a sabedoria de Lear na charneca, privado de tudo,


exceto de sua dor”.
Des Pres não somente questiona o “preconceito contra a
‘mera sobrevivência’”, como procura refutar as críticas movidas
por Bettelheim e Arendt contra os judeus (esta última em seu
livro sobre Eichmann), por sua incapacidade de resistir à “So­
lução Final”. Fundamenta a sua argumentação parcialmente em
dados empíricos, citando exemplos de cooperação, ajuda mútua
e resistência por parte dos prisioneiros. Não obstante, o peso
principal de seu raciocínio recai sobre o aspecto filosófico. No
enfoque de Des Pres: “A crítica de Bettelheim ao comportamento
nos campos encontra suas raízes na antiga ética do heroísmo” .
Assim, aquele autor defenderia o suicídio como um ato isolado
de desafio; porta-voz de um humanismo antiquado, de um sis­
tema metafísico fora de uso, Bettelheim exaltaria o espírito mais
que o corpo; seu objetivo seria o de manter “fora da visão tudo
o que ‘está abaixo’”. Entretanto, para Des Pres, a experiência
dos campos de extermínio redime a “aflição do corpo, sem
glória e sem força dramática”, geralmente ignorada “em favor
do sofrimento ‘interior’”. Ela “ inverte os valores da civilização”;
mostra que a “existência física não pode ser desprezada como
indigna de consideração”. A “recalcitrância” dos sobreviventes
(a sua recusa a ceder ao desespero ou a aceitar o papel de víti­
mas impotentes das circunstâncias) reafirma as “ raízes biosso-
ciais” da existência humana”. Ela testemunha a “obstinação”
de uma “vontade impessoal e mais poderosa que a esperança”,
a vontade da “ própria vida”. Numa breve passagem do final de
seu livro, Des Pres assinala que a civilização, com todas as suas
conquistas, não

derrotou os rudes apelos do corpo. E é esta, mais uma


vez, a importância especial do sobrevivente. É ele o pri­
meiro homem civilizado a viver além das compulsões da
cultura; além do temor da morte que só pode ser mitigado
com a insistência em que a própria vida não tem valor.
O sobrevivente constitui uma evidência suficiente de que
os homens e as mulheres são agora fortes o bastante, ma­
duros e atentos o bastante, para que possam enfrentar a
morte sem mediações e, portanto, abraçar a vida sem re­
servas.
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS "LIÇÕES” DO.. . 107

Tal como Bettelheim e Frankl, Des Près rejeita a visão


comportamental da personalidade, o enfoque de que “ as forças
externas conformam o ser interior” e “o meio circudante é oni­
presente”. A experiência do sobrevivente, argumenta, contradiz
as “teorias dominantes do ser como vítima”. Os sobreviventes
recusam-se a aceitar a definição de si próprios como vítimas.
A sua “recalcitrância” baseia-se em sua “negação a serem deter­
minados por forças externas a eles”. Entretanto essa caracterís­
tica advém não do “espírito indomável do homem”, como de­
fendem os humanistas, mas da “sabedoria mais profunda” do
corpo, do “substrato da informação vital biologicamente insti­
lado”. Nos campos de extermínio, apenas a vontade biológica
de viver sustenta a vida, uma vez que as suas condições brutais
anulam, efetivamente, a possibilidade de que a existência tenha
algum significado mais elevado.
Evidentemente, Des Près reconhece que as ações apropria­
das num campo de concentração podem não ser adequadas à
vida comum, e rejeita as “comparações inválidas” entre os
campos de concentração e a “difícil situação do homem moderno
na ‘sociedade de massa”’. Não obstante, o conjunto de sua
análise reforça tais comparações. “ O sobrevivente é o homem
ou a mulher que superou a ‘crise da civilização’, de que tanto
falamos”, o colapso das “estruturas míticas” e a falência do
“simbolismo”. Os leitores de The Survivor, com boas razões,
tomaram-no por um livro sobre as vicissitudes modernas. Ana­
tole Broyard, num artigo sintomaticamente intitulado “A tecno­
logia da alma”, citou o livro como um exemplo da nova ten­
dência do pensamento social que enfatiza as forças do homem,
mais do que as suas fraquezas. “Estamos outra vez nos tornando
heróis”, escreve Broyard, “não os antigos heróis da lenda e da
fábula, não super-homens, mas heróis do mínimo, heróis da
sobrevivência”.

A culpa do sobrevivente, prós e contras

Bettelheim procurou assinalar em várias ocasiões (e “isso


nunca será enfatizado o bastante”, afirmava) que os prisioneiros
dos campos de concentração pouco podiam fazer para assegurar
108 O MÍNIMO EU

sua sobrevivência, exceto esperar pela vitória dos aliados sobre


Hitler. Tudo o que podiam fazer era agarrar-se à individuali­
dade (resistir à desintegração pessoal) de modo a preservar algum
núcleo interior de integridade, para a remota eventualidade de
qualquer deles conseguir escapar com vida. “O meu principal
problema”, escreve Bettelheim em O Coração Informado, “e ra .. .
proteger o meu eu interior de maneira tal que, se por alguma
fortuna reconquistasse a liberdade, eu voltasse a ser aproxima­
damente a mesma pessoa que era quando fui privado da liber­
dade”. Soljenitsin, outro sobrevivente de campos de concentra­
ção, observa de forma similar que um prisioneiro jamais deve
dizer a si mesmo: “Eu sobreviverei a qualquer custo”. O próprio
Des Pres reconhece a importância de se preservar o “senso
moral e a dignidade intactos”; na verdade, ele sugere em deter­
minado ponto que a “sobrevivência depende de se manter hu­
mano”. Admite, além disso, que “uma tessitura mínima de des­
velo, alguma margem de dar e receber é essencial na vida em
situações limites” — nesse sentido, o “sobrevivente deve sua
vida aos camaradas”.
Des Pres nega, porém, que esse “débito com a morte”
origine sentimentos de culpa. O tema da “culpa do sobrevi­
vente” aguça o conflito entre duas interpretações do Holocausto,
uma das quais o vê como uma fonte de presciência moral, a
outra como uma fonte de lições para a tecnologia da sobrevi­
vência. De acordo com Bettelheim, Robert Jay Lifton e Elie
Wiesel, muitos sobreviventes sentem-se emocionalmente indignos
da memória dos milhões que pereceram, como se as suas pró­
prias vidas tivessem sido salvas pelas mortes de inúmeros outros.
Esses estudiosos defendem que um reconhecimento de seu senti­
mento de culpa, que estabelece um laço entre o vivo e o morto,
possa ser o primeiro passo do sobrevivente em direção à recupe­
ração de sua humanidade e em direção à “sabedoria de quem
viu a morte, e mesmo à energia criativa” que tantos sobrevi­
ventes, segundo Lifton, conseguiram salvar de suas provações.
“Eu vivi e portanto sou culpado”, escreve Elie Wiesel. “Eu
ainda estou aqui porque um amigo, um camarada, um desco­
nhecido morreu em meu lugar”. Nesse enfoque, a gratidão do
sobrevivente pela vida deriva não somente de sua consciência de
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES" DO... 109

que a vida não mais pode ser vista como garantida, como res­
salta Des Pres, mas também de sua solidariedade com os mortos.

Não é possível sobreviver aos campos de concentração


(escreve Bettelheim) sem sentir a culpa por ser tão incri­
velmente afortunado quando milhões encontraram a morte,
muitos deles diante de nossos olhos. Lifton demonstrou que
o mesmo fenômeno existe para os sobreviventes de Hiro-
shima, e ali a catástrofe foi fugaz — embora as suas conse-
qüências devam durar toda uma vida. Mas nos campos
era-se forçado, dia após dia, durante anos e anos, a pre­
senciar a destruição dos outros, com a sensação — contrá­
ria a todo bom senso — de que se deveria ter intervindo,
sentindo-se culpado por não tê-lo feito e sentindo-se culpado
por se ter amiúde experimentado a alegria de não sermos
nós os que pereceram, uma vez que as pessoas sabiam que
não tinham o direito de contar com ser o poupado.
Para Des Pres, a culpa, tal como o heroísmo e o sacrifício,
é mais um remanescente da ética da responsabilidade pessoal
desacreditada pelos campos de extermínio, que mostraram o
quanto é absurdo pensar que alguém seja responsável pelo seu
destino. A idéia da “culpa do sobrevivente, defende ele, apenas
pode desmerecer o sobrevivente — distraindo, assim, a atenção
dos horrores aos quais ele esteve exposto —, ao supor que este
de alguma forma mereceu os fatos que lhe ocorreram. Quando
os responsáveis pelas maiores atrocidades carecem tão obvia­
mente do sentimento de culpa (escondendo-se, ao contrário, sob
o manto do anonimato burocrático, — como o fez Eichmann),
a sugestão de que os sobreviventes tenham qualquer razão para
se sentirem culpados ilustra bem a “síndrome da culpa-é-da-
vítima”. Representa a última “calúnia contra a decência dos
sobreviventes’’ perpetrada por aqueles que também defendem
que os prisioneiros caminharam passivamente para a morte,
identificaram-se com seus captores e regressaram a um estado
mental infantil. Segundo Des Pres, todas essas idéias “reforçam
a nossa sensação de impotência e desespero”; implicam que
“a luta pela sobrevivência... não tem valor”. “Não podemos
permitir-nos acreditar” nessas afirmações injuriosas, porque
“ reafirmam o sentimento dominante de vitimação”. Recorrendo
aos lemas humanistas que em outros pontos rejeita, Des Pres
110 O MÍNIMO EU

acusa Betíelheim (tal como Bettelheim acusa Des Pres) de “fo­


mentar o niilismo e a perda radical da fé em nossa própria
condição humana”. Não satisfeito com essa linha de ataque,
acrescenta o sarcasmo ad hominem de que Bettelheim não tem
o direito de falar pelos sobreviventes, uma vez que esteve con­
finado em Dachau e Buchenwald, e não nos campos de exter­
mínio poloneses, conseguindo, além disso, assegurar a sua liber­
tação depois de “apenas” um ano de prisão. Aqui, mais uma
vez, Des Pres procura fazer as coisas por dois métodos: desafia
as “teorias dominantes da vitimação” e defende, ao mesmo
tempo, que apenas aqueles que sofreram as mais extremas for­
mas de martírio têm o direito de ser ouvidos.

O sobrevivencialismo na sua forma


mais vil: Pasqualino Sete Belezas

A exaltação da condição de vítima por parte das vítimas


do “holocausto” e de seus porta-vozes (mesmo por aqueles que
se contrapõem, como Des Pres, às “tendências dominantes no
pensamento moderno que aceitaram a condição de ‘vitimação’
como final”); a indecorosa ânsia de explorar o sofrimento das
vítimas para tirar vantagem polêmica; a negação a conceder-lhes
o direito de descansar em paz; o interesse obsessivo em do­
cumentar as suas provações até o último detalhe; e a crescente
insistência de que tais fatos oferecem enfoques morais e socio­
lógicos exemplares fornecem um índice da rápida decadência do
discurso sobre a morte em massa. Nos anos imediatamente pos­
teriores à Segunda Guerra Mundial, ninguém mostrava inclina­
ção para extrair um capital moral da sina dos judeus da Europa.
Quase não havia “essa obsessão com o ‘Holocausto’”, como a
denominou Neusner, “que procura fazer da tragédia o tema
principal do discurso público dos judeus sobre o judaísmo”.
Mesmo aqueles que defendiam que os campos de concentração
tinham uma importância além deles próprios queriam dizer ape­
nas que os campos de concentração não eram somente uma pri­
são para inimigos políticos e deviam ser vistos como um expe­
rimento sistemático de desumanização. Não parece haver dúvi­
das: tal argumento abriu as portas ao contra-argumento de que
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS “LIÇÕES” DO.. . 111

“essa ‘experiência’ não foi bem-sucedida”, como coloca Des


Pres; mas essas posições não se cristalizaram em pólos de um
acirrado conflito de ideologias senão na década de 60, quando
os estudos de Bettelheim e Hannah Arendt sobre o totalitarismo
passaram a ser tomados por uma difamação das vítimas a exigir
um contra-ataque de seus defensores. Bettelheim e Arendt bus­
caram demonstrar o caráter novo do totalitarismo; que as víti­
mas deste fenômeno não conseguiam reconhecê-lo como tal; e
que tampouco conseguiam oferecer maior resistência, durante
o período inicial da consolidação do poder nazista, porque não
podiam acreditar que Hitler realmente pretendesse varrer toda
a população judia da Europa. Entretanto, ao colocar tanta ênfase
na questão da resistência, eles próprios introduziram no debate
um novo elemento de censura moral ou de censura aparente
que incitou uma longa série de réplicas amargas com o intuito
de reabilitar as vítimas, dignificar as suas lutas e, finalmente,
exaltar a sobrevivência como um fim em si.
Essas alegações contrárias, esses tratados morais em nome
da sobrevivência atingiram o seu ápice na exaltação da “força
vital” remanescente do próprio nazismo. Em 1976, no mesmo
ano em que Des Pres publicou The survivor, e um ano após
Elie Wiesel ter lamentado o modo pelo qual os romancistas e
estudiosos acadêmicos “depreciaram o Holocausto” e “retiraram-
lhe a substância”, Lina Wertmüller realizava o seu filme Pas-
qualino Sete Belezas, aparentemente uma glorificação do anti-
herói como um artista da sobrevivência.9 Explorando os campos
de concentração como uma fonte de humor negro, brincando
com uma audiência que estava além da indignação e do remorso,
Wertmüller parecia sugerir que os homens que se opuseram ao
fascismo pereceram ingloriamente na luta, enquanto Pasqualino,
gângster insignificante, violentador e oportunista, sobrevivia à
prisão pelo sacrifício de seus amigos, colaborando com os guar­
das e submetendo-se a relações sexuais com a chefe detestável

(9) Digo "aparentemente” porque Lina Wertmüller, apostando dos


dois lados, construiu no filme uma certa ambigüidade, que tomou possí­
vel a uma série de críticos interpretá-lo como uma condenação, e não
uma glorificação, do homem que tudo faria para permanecer vivo. O
que está além de toda ambigüidade, no entanto, é a premissa subjacente
de que apenas o impiedoso sobrevive.
112 O MÍNIMO EU

e brutal do campo de concentração no qual ele estava confinado.


“A sua sede de viver me enoja”, diz a mulher a Pasqualino.
“Você encontra forças para uma ereção. Por isso, você vai so­
breviver e vencer no final.” Pasqualino não apenas sobrevive
aos campos, como demonstra que sabe sobreviver no vale-tudo
predominante no mundo europeu do pós-guerra. À prostituta
com quem planeja casar, ele comunica: “Não há tempo a perder.
Eu quero crianças, aos montes, vinte e cinco, trinta. Temos que
nos defender” .
Aclamado pela crítica e pelos comentadores, Pasqualino
Sete Belezas mostrava que a “força da vida supera as idéias”,
na expressão de Vincent Canby. O próprio Des Près saudou o
filme como mais um ataque contra a superada moral do he­
roísmo, uma exaltação do novo homem — “não um herói, no
sentido tradicional” —, que “prefere viver e pagar o preço dessa
escolha, ao invés de continuar sem compromissos com tal opção”.
Pasqualino “não suporta sua sorte passivamente”, salienta Des
Près, “as suas provações são dolorosas e degradantes e, no en­
tanto, um pouco de dignidade se origina delas, no mínimo porque
ele vem a sofrer a consciência do pior da vida humana. . . Ao
término do filme, ele adquiriu um certo grau de consciência
moral. . . da qual estava totalmente privado no princípio”. Foi
somente tempos depois, após Bettelheim ter denunciado Pasqua­
lino Sete Belezas por sua falsa “lição de sobrevivência” — “tudo
o que importa', a única coisa que realmente pesa, é a vida em
sua forma mais crua e biológica” —, que Des Près decidiu que
o filme devia ser tomado como uma descrição, não um endosso,
de um “homem vil e detestável”.

A “pesquisa comparada da sobrevivência”:


situações extremas e tensão cotidiana

Uma vez que os campos de concentração passaram a ser


vistos como uma fonte de inspiração e de “ensinamentos” mo­
rais, mostrou-se cada vez mais difícil sustentar a distinção entre
as estratégias de sobrevivência e as ações destinadas a “dar sig­
nificado à sobrevivência”, como o colocou Bettelheim. Aquilo
que Frankl e Bettelheim viam como uma luta contra a corrupção
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS "LIÇÕES” DO... 113

pessoal transforma-se, aos olhos dos observadores mais distantes


da experiência direta dos campos de concentração, numa luta
por continuar vivo diante do stress. Dessa maneira, um conjunto
crescente de estudos comparados, nos quais o “holocausto” serve
apenas como um exemplo extremo de tensão psíquica, busca
compreender a psicologia da “vitimação” e da sobrevivência e
aplicar esse conhecimento à vida cotidiana. “Nosso objetivo
final”, escreve Henry Krystal na introdução de uma coletânea
de ensaios intitulada Trauma Psíquico Massivo, “é aprender,
com as situações extremas, um pouco mais sobre o tratamento e
os efeitos do trauma na vida cotidiana”. O “mau-trato massivo”
dos judeus pode ter superado tudo o mais em nossa experiência;
todavia, ele é comparável à perseguição dos negros e dos índios
nos Estados Unidos e até mesmo a acontecimento na história
de uma família específica, “onde o indivíduo assumirá um papel
indesejável inconscientemente atribuído a ele por seus pais, pela
sua família, pelos seus pares ou pela sociedade”. A “comparação
de vários grupos permite-nos isolar os efeitos particularmente
perniciosos” da “vitimação”. “A aplicabilidade de nossas obser­
vações (de situações extremas) ao tratamento e à prevenção coti­
dianos torna-se visível no fato de que, em todos os casos, encon­
tramos a realidade psíquica do paciente como determinante do
significado e dos efeitos subseqüentes” da perseguição e da “se­
veridade da patologia pós-persecutória”. Os extremos iluminam
a “psicopatologia da vida cotidiana”.
Uma coletânea recente de ensaios sobre o holocausto orga­
nizada por Joël E. Dimsdale, Sobreviventes, Vítimas e Executo­
res, ilustra a crescente confusão entre a luta pela preservação
da integridade pessoal e a luta pela sobrevivência. Ilustra tam­
bém a ânsia por fundamentar uma tecnologia de sobrevivência
psíquica em lições extraídas das situações extremas. Vários par­
ticipantes recorrem ao “conceito relativamente novo de adapta­
ção, que enfoca essencialmente a forma como a pessoa reage ao
stress”, a fim de explicar não apenas como os prisioneiros dos
campos buscaram defender sua dignidade e autonomia diante
de condições selvagens e brutalizantes, mas também como alguns
lutaram, em condições de inferioridade, por sua sobrevivência.
Tais psiquiatras alertam contra a conclusão de que os sobrevi­
ventes desenvolveram mecanismos mais aperfeiçoados de adap-
114 O MÍNIMO EU

íação que os executados. Eles procuram lembrar-se, ocasional­


mente, que a sobrevivência nos campos de concentração depen­
dia de circunstâncias sobre as quais os indivíduos, tinham pouco
controle. Não obstante, o conceito de adaptação, reforçado por
uma distinção entre mecanismos de adaptação “efetivos” e “não
efetivos” (contraproducentes), estimula inevitavelmente a con­
clusão de que “a adaptação efetiva pode positivamente influen­
ciar até mesmo os critérios mais severos de adaptação, especial­
mente, a própria sobrevivência”. Segundo Patrícia Benner, Ethel
Roskies e Richard S. Lazarus: “É provável que as pessoas que
se envolvem com a adaptação mais efetiva experimentem, com
efeito, menos stress que as engajadas na adaptação não efetiva,
tanto porque elas percebem menos situações como ameaçadoras,
como porque podem resolvê-las de forma muito mais rápida e
satisfatória”. Os mesmos autores reinterpretam o ensaio de Bette-
lheim, “ Comportamento individual e de massa em situações ex­
tremas”, como um manual para a sobrevivência. Conforme acre­
ditam, o testemunho de Bettelheim e outros sobreviventes nos
ensina que “a negação e a apatia eram fundamentais para a
sobrevivência” e as expectativas dos reclusos “tinham que se
adaptar às questões básicas de sobrevivência”. “À medida que
o tempo passava, a simples sobrevivência tornava-se um objetivo.
Lutar pela sobrevivência significava concentrar-se em metas
limitadas e restritas.” Mas “tal restrição de perspectiva pode
ocorrer em qualquer situação extrema ou quando estão presentes
reduzidas probabilidades de vida”.
Alguns dos participantes da coletânea de Dimsdale desafiam
expliciíamente a “crença amplamente difundida” de que um
prisioneiro nos campos de concentração “fosse completamente
impotente para influenciar seu próprio destino”, como coloca
Dimsdale. Outros questionam tal pressuposto apenas implicita­
mente, em parte, apagando a distinção entre situações extremas
e a vida cotidiana. Na prática psiquiátrica, conceitos como adap­
tação e “aptidão social” entraram em uso no tratamento de
esgotamentos emocionais resultantes de doenças, velhice, crises
profissionais e outras formas de stress. Quando estendidos a
situações extremas, dão a impressão de que mesmo um programa
de desumanização deliberada e sistemática possa ser enfrentado
com técnicas eficazes de autocontrole. O stress passa a abranger
O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA: AS "LIÇÕES" DO... 115

um continuum de acontecimentos que vai das torturas infligidas


pelos SS às “transações comuns envolvendo tensão, que ocorrem
entre o indivíduo e o meio circundante”. Até mesmo o “stress
de uma criança que chora por sofrer de cólicas” coloca uma
ameaça à “sobrevivência”, se dermos crédito a uma matéria que
resumia a última conquista da pesquisa medicinal. Segundo
Paul Chodoff, várias “situações de vida em nossa sociedade”
contêm “tensões encontradas nos campos de concentração” :
“desnutrição, maus-tratos físicos, anulação do indivíduo, desu-
manização” e, de modo mais geral, todas as tensões oriundas
da “incapacidade do indivíduo para dar conta do seu relaciona­
mento com o meio circundante, seja devido a graves conflitos
internos, seja por motivo de limitação de habilidades”. Aparen­
temente, não é apenas nas prisões que “as oportunidades de
atuação sobre o meio circundante são. . . limitadas”. Benner,
Roskies e Lazarus notam que “variantes das estratégias de adap­
tação utilizadas pelos internos dos campos de concentração são
visíveis na vida de pessoas defrontadas com as tensões e a exi­
gências da vida do dia-a-dia”. Afirmações desse tipo anulam a
ressalva eventual de que as estratégias de sobrevivência eficazes
num campo de concentração podem deixar de ser diretamente
apropriadas ao “controle da angústia” na vida cotidiana. Elas
deixam a impressão de que a vida do dia-a-dia teria assumido
muitas das características de uma luta pela sobrevivência, na
qual a melhor saída para os homens e mulheres situados é
“centrar-se naqueles segmentos da realidade que possam ser tra­
tados”, atingir um estado de “insensibilidade e resignação psí­
quicas diante das condições inevitáveis”, suprimir “ a capacidade
de auto-apreciação, a capacidade crítica, e de auto-reflexão”,
chegando, assim, à “robotização” ou “automatização das funções,
dedicadas única e exclusivamente à tarefa da sobrevivência”.
A recente “pesquisa sobre a sobrevivência” assume um
ponto de vista o mais restrito possível sobre o significado do
holocausto. Está mais ingenuamente absorta no problema da
sobrevivência que os relatos de primeira mão deixados pelos
próprios sobreviventes. O senso comum, deveria levar-nos a espe­
rar o oposto, um esvaziamento gradual da mentalidade da so­
brevivência, à medida que a memória dos campos de extermínio
recua no tempo. Como escreveu Neusner, deveriam, ser os pró­
116 O MÍNIMO EU

prios sobreviventes os portadores de uma “visão do mundo como


essencialmente hostil”, de uma desconfiança frente aos estranhos
e os primeiros a “exibir as características de habitantes de uma
cidade sitiada, constantemente ameaçados, sempre solitários,
sempre na defensiva”. A geração nascida após a Segunda Guerra
Mundial, por outro lado, deveria “ver o mundo como essencial­
mente neutro, quando não, amistoso, e deveria ter a capacidade
de confiar nos estranhos”. Na verdade, a mentalidade sitiada é
bem mais forte naqueles que conhecem Auschwitz indiretamente
que nos seus sobreviventes. São os sobreviventes que encaram
sua experiência como uma luta para permanecer humanos e não
para sobreviver. Embora eles registrem uma série de estratégias
para atenuar o impacto emocional da prisão — a separação do
eu observador do eu participante; a decisão de esquecer o pas­
sado e viver exclusivamente no presente; o rompimento dos
laços emocionais com os entes queridos que se encontravam fora
do campo; o cultivo de uma certa indiferença às súplicas das
vítimas — , eles também insistem em que o retraimento emocio­
nal não podia ser levado ao ponto da completa insensibilidade,
sem prejudicar a integridade moral do prisioneiro e, mesmo, a
sua vontade de viver. São os sobreviventes que procuram “con­
ferir significado à sobrevivência”, enquanto os que vieram de­
pois deles e vivem em condições visivelmente mais seguras en­
contram sentido apenas na sobrevivência em si. Um interesse
cada vez maior no “Holocausto” coincide com uma capacidade
cada vez menor de conceber uma ordem moral que o transcenda,
a única capaz de dar significado ao terrível sofrimento que aque­
la imagem procura reverenciar. No momento em que Auschwitz
tornou-se um mito social, uma metáfora da vida moderna, as
pessoas perderam de vista a única lição que daí talvez se possa
extrair: que ele não oferece, por si, nenhuma lição,
A estética minimalista:
art© ©literatura
em époea. terminal

O efeito Roth-Cunningham

Philip Roth já observara, antes de este tipo de afirmação


ter-se tornado um lugar comum, que a imaginação do escritor
vacila face à “realidade” contemporânea, a qual “está continua­
mente superando os nossos talentos”. Os jornais diários e os
noticiários de televisão relatam acontecimentos mais grotescos
e bizarros que os sonhos mais extravagantes de um escritor.
Nossa cultura “sorteia, quase diariamente, personagens que fa­
zem a inveja de qualquer romancista”. Ela “insensibiliza, pro­
voca náuseas, enfurece e, finalmente, constitui-se numa espécie
de constrangimento à nossa própria e escassa imaginação”. Em
seu desconcerto e desagrado, muitos escritores abandonam os
“grandes fenômenos sociais e políticos de nossos tempos” e,
segundo Roth, “tomam o eu como tema” : o “simples fato do
eu, a visão jdp eu^comoirmõràdo, poderoso e audaz, dõjêu como
a única coisa real num meio circundante onde predomina a
irrealidade”.
O desconcerto da imaginação moral diante de um evento
como o Holocausto ilustra a dificuldade com que se defronta a
pessoa que procura encontrar sentido na vida social contempo­
rânea. Quando a realidade social foge ao domínio da imagina­
ção, esta se refugia, como vimos, em estratégias autodefensivas
118 O MÍNIMO EU

de sobrevivência: precisamente o tipo de estratégias adotadas


pelo escritor e pelo artista contemporâneo, conforme anotou
Roth, na tentativa de manter vivo o empreendimento artístico,
em uma época terminal. Esmagado pela crueldade e desordem,
além da própria complexidade da história moderna, o artista
bate em retirada rumo a uma espécie de discurso solipsista que
não representa, na expressão de Roth, “uma tentativa de com­
preensão”, mas, principalmente, “de afirmação do eu”. Ele con­
duz a sua própria luta pela sobrevivência enquanto artista, sob
condições que tornaram cada vez mais difícil transcrever qual­
quer experiência compartilhada ou percepção comum do mundo,
solaparam as convenções do realismo artístico e deram origem
a um tipo de arte que não parece mais referir-se a nada que
lhe seja exterior. Em lugar de simplesmente relatá-la, a história
recente da arte e da literatura exemplifica a dificuldade já exa­
minada com relação a se escrever sobre a Solução Final, ou seja,
a de formular uma resposta criativa apropriada às citações ex­
tremas. A arte contemporânea é uma arte, íermiaaLnão porque
toma as* situações extremas como tema — embora boa parte
dela, o, faça — , mas porque a experiência termmal ameaça.so­
lapar a própria jpossibilidade de uma interpretação ^riativa da

Aparentemente, a única arte adequada a tal época, a julgar


pela história recente da experimentação artística, é a antiarte ou
a arte mínima, onde o minimalismo diz respeito não tanto a um
estilo particular numa indindável sucessão de estilos, mas a uma
convicção generalizada de que a arte somente pode sobreviver
através de uma drástica restrição de seu campo de visão: a ra­
dical “restrição de perspectivas” recomendada pelas autoridades
no tema como uma estratégia de sobrevivência par excellence.
Até mesmo o tipo de auto-afirmação bem guarnecida, que Roth
encarava como uma típica defesa artística contra um^“nieio
circundante onde predomina, a^ irreafíB^de7’,^ mostrou-se impossí­
vel de sustentar. Pelo menos nas artes visuais, a exaltação da
individualidade, exemplificada pelo expressionismo abstrato do
final dos anos quarenta e início dos cinqüenta — a afirmação
do artista como um rebelde e uma testemunha heróica do deses­
pero contemporâneo —, já estava sob o fogo da crítica, quando
Roth publicou o seu diagnóstico do mal-estar literário, em 1961,
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 119

Um diagnóstico ainda mais precoce, bastante semelhante ao de


Roth, em sua intuição das dificuldades que se colocavam à ima­
ginação criativa, mas muito diverso em suas conclusões, sugere
por que a arte mínima, e não a arte expressiva, impôs-se àqueles
que tinham perdido a esperança de expressar o inexprimível.
Em 1952, o bailarino Merce Cunningham exortou os artistas a
abandonar os efeitos baseados no “clímax”, na alternância de
tensão e de alívio. Uma sociedade em crise, defendia ele, não
requer, como podia parecer, uma arte comprometida com a
crise, uma arte dependente de um senso de clímax. “Uma vez
que nossas vidas, seja pela natureza, seja pela imprensa, estão
tão carregadas de crise que não mais nos damos conta disso,
então está claro que a vida continua de qualquer maneira e,
além do mais, que cada coisa pode existir e existe separada de
toda e qualquer outra, a saber: a continuidade das manchetes
da imprensa”. Sem se constituir num modelo de lucidez, essa
afirmativa permanece hoje em dia como uma previsão mais
aguda que a de Roth sobre a direção efetivamente tomada pela
arte nos anos subseqüentes: uma imersão no comum, uma des­
truição deliberada da personalidade do artista, uma recusa a
clarificar os contextos que mostram relações entre objetos ou
fatos, uma negação a encontrar padrões de qualquer tipo, uma
ênfase na qualidade aleatória da experiência e uma insistência
em que “cada coisa pode existir e existe separada de toda e
qualquer outra”.

Da auto-afirmação à autodestruição

A asserção segundo a qual a realidade supera a imaginação


criativa transmite apenas uma parte da verdade que é necessário
apreender a fim de captar a situação do artista contemporâneo.
A própria realidade não é real, no sentido de que nasça de uma
compreensão comum às pessoas, de um passado e valores co­
muns. Cada vez mais, as nossas impressões sobre o mundo de­
rivam não das observações que fazemos, tanto como indivíduos
quanto como membros de uma comunidade mais ampla, mas de
elaborados sistemas de comunicação, que vomitam informação,
a maior parte dela inacreditável, sobre acontecimentos dos quais
120 O MÍNIMO EU

raramente temos algum conhecimento direto. Quer essa infor­


mação descreva os atos dos ricos e dos poderosos, quer, por
outro lado, ela simule descrever as vidas dos homens e mulheres
médios, parece-nos difícil reconhecer a nossa própria experiên­
cia nessas representações curiosamente hipotéticas da “realida­
de”. A única evidência que poderia confirmar ou negar a nossa
própria experiência é o testemunho de pessoas como nós, pessoas
que compartilham um passado e um quadro de referência co­
muns. As imagens transmitidas pelos meios de comunicação
referem-se, por outro lado, seja a celebridades admiradas preci­
samente por sua habilidade em escapar às restrições da exis­
tência cotidiana (embora nos digam constantemente que elas
permanecem homens e mulheres médios, apesar de sua celebri­
dade), seja a uma norma ou média hipotética que não se ori­
gina de uma experiência compartilhada ou mesmo da experiên­
cia de “homens representativos”, mas de uma análise demo­
gráfica de uma população ou audiência estatística selecionada.
Os meios de comunicação fazem um zeloso esforço para contar-
nos quem e o que somos, e mesmo para gerar um espúrio sen­
tido de identidade nacional, mas eles o fazem dizendo-nos que
programas gostamos de assistir, que produtos gostamos de com­
prar, em que candidatos pretendemos votar, quantos de nós irão
se casar e quantos se divorciarão, quanto tempo viveremos,
quantos de nós morrerão de câncer, em acidentes automobilísti­
cos num fim de semana prolongado ou em uma guerra nuclear,
e quantos sobreviverão a uma guerra desse tipo se forem toma­
das as precauções adequadas. A análise demográfica é um subs­
tituto medíocre da realidade, mas desde que é a única realidade
que temos em comum, cada vez mais nos tornamos relutantes
em desafiá-la, citando as nossas próprias e singulares percepções
idiossincráticas do mundo, sem falar na esperança de que possa­
mos “impor” as nossas visões idiossincráticas aos outros.
Se o rádio, a câmara fotográfica e o aparelho de televisão
simplesmente usurparam a função representativa das artes, como
muitas vezes tem-se alegado, seria difícil encontrar a razão do
crescente sentimento de que mesmo uma arte abstrata e voltada
para dentro conta com poucas chances de sucesso num meio cir­
cundante já saturado de imagens e informação. Os modernos
equipamentos de gravação monopolizam a representação da reali­
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 121

dade, mas também contribuem para apagar a distinção entre


realidade e ilusão, entre o mundo subjetivo e o mundo dos
objetos e, dessa forma, tornam cada vez mais árduo aos artistas
encontrar refúgio mesmo no “simples fato do eu”, como o co­
loca Roth. O eu não é um fato mais simples que os seus arredo­
res. Na poesia e na prosa de ficção modernas, o eu “parece
crescentemente privado de segurança, no que tange à sua in­
fluência básica sobre a vida”, na expressão de Warner Berthoff.
Uma arte de egoísmo romântico mostrou-se tão insustentável
como uma arte baseada nas convenções do realismo.
Um escritor como Henry Miller situa-se de algum modo
na mesma posição transitória na história da prosa de ficção
que a ocupada pela escola de Nova Iorque na história da arte
— uma posição intermediária entre uma antiga tradição de
auto-afirmação literária e uma literatura recente de auto-abne­
gação do autor. Quando Miller endossa o apelo de Emerson
por uma literatura de “diários e autobiografias”, no lugar dos
romances, quando procura abrir-se a “toda a maldita corrente
da vida” e quando exorta o artista a “derrubar os valores vi­
gentes, a fazer do caos em volta dele uma ordem que seja a
sua”, ele se alinha com a longa tradição de antinomianismo *
na América, que afirma a luz interior da individualidade contra
um mundo de trevas e ilusões — um mundo caracterizado por
Miller como um “louco matadouro”, um “câncer que corrói
a si próprio”, um “deserto cinzento” e uma “nova idade gla­
cial”. Mas Miller faz soar uma nova nota, que não pode ser
encontrada em Emerson ou em Whitman, quando adota a voz
de um sobrevivente que nada fará para continuar vivo.

De algum modo, a compreensão de que eu nada de­


veria esperar teve um efeito salutar sobre mim . . . An­
dando na direção de Montparnasse, decidi deixar o barco
correr, não opor a menor resistência ao destino, não im­
porta de que forma ele se apresentasse. .. . Resolvi que
não me apegaria a nada, não contaria com nada; daí para
a frente viveria como um animal, uma ave de rapina, um
saqueador. Ainda que a guerra fosse declarada, e me cou­

(*) Doutrina luterana que afirmava ser a fé, e não os atos, a única
condição de salvação. (N.T.)
122 O MÍNIMO EU

besse partir, eu apanharia a baioneta e iria fundo, mergu­


lharia completamente. E se o estupro fosse a ordem do dia,
a ele eu me lançaria, vingativamente. . . . Se viver é a
coisa suprema, então eu viverei, ainda que precise tor­
nar-me um canibal.

Mesmo aqui, continua presente um certo núcleo biológico


de individualidade, despido das ilusões espirituais — falsamen­
te enfocada como a “melhor parcela da natureza (humana)” — ,
que tantas vezes traiu a humanidade no passado, de acordo com
Miller. “Eu estou morto apenas espiritualmente. Fisicamente,
estou vivo. Moralmente, sou livre”, insiste Miller — livre, vale
dizer, para recusar-se seja a assumir a responsabilidade moral
por qualquer coisa, seja a atribuir responsabilidade moral a
qualquer pessoa. Nos herdeiros de Miller, até mesmo a base
biológica da individualidade é posta em questão. Nas obras de
William Burroughs, um escritor que deve muito a Miller, as
metáforas da intoxicação cedem lugar às metáforas do vício.
O eu não mais está embriagado da vida; ele é controlado por
agentes externos que exploram a necessidade viciosa de drogas,
sexo e contato humano a fim de programar uma nova raça de
robôs. Miller exaltava o “ardor furioso”, como o denominava,
o “mistério que cerca os fenômenos rotulados como ‘obscenos’ ”.
Por sua vez, Burroughs vê os seres humanos como “viciados
terminais na droga do orgasmo”. É o seu mal de amor e neces­
sidade, ao lado de todas as outras drogas da qual eles depen­
dem, que os expõe às maquinações da Polícia Nova, a qual
primeiramente “ cria um problema dos tóxicos” e então “diz que
uma polícia especializada em narcóticos é agora necessária para
enfrentar o problema do vício”. As próprias palavras e imagens
são drogas, segundo Burroughs, por meio das quais poderes
invisíveis controlam uma população de viciados em imagens.
“ Imagens, milhões de imagens, eis o que eu devoro. . . . Já
procurou abandonar esse vício com apomorfina?” O artista ro­
mântico lançava palavras e imagens no vazio, na esperança de
colocar ordem no caos. O artista pós-moderno, pós-romântico,
as vê como “filmes da tela mental”, instrumentos de vigilância
e controle.
A ESTÉTICA MINIMALISTA: AETE E LITERATURA EM UMA. . . 123

O padrão rastreador que aceitamos como “realidade”


foi imposto pelo poder dominante neste planeta, um poder
basicamente orientado para o controle total. . . A qualquer
momento, os equipamentos de gravação fixam a natureza
da necessidade absoluta e ditam a utilização das armas
totais — Assim: tome dois grupos de pressão opostos —
grave as afirmativas mais violentas e ameaçadoras do grupo
um com relação ao grupo dois e toque-as para o grupo
dois — grave a resposta e leve-a de volta ao grupo um
— para diante e para trás entre grupos de pressão opostos
— este processo é conhecido como “realimentação” (feed
back).

Descrito por um amigo como um “escritor que atravessou


um longo período de vício e sobreviveu”, Burroughs toma como
tema não o eu soberano de uma tradição literária anterior, mas
o eu sitiado, programado e sob controle. “Eu estou basicamente
preocupado com a questão da sobrevivência”, dizia recentemen­
te, “— com as conspirações de Nova, os crimes de Nova e a
polícia de Nova”. A tremenda “amplitude em que as pessoas
podem ser programadas” colocam o conceito de natureza hu­
mana em questão. “O seu ‘eu’ é um conceito completamente
ilusório.” No prefácio que escreveu para a edição americana
do livro de J. G. Ballard Love and Napalm (Amor e Napalm),
Burroughs nota que “a linha entre as paisagens interiores e
exteriores está-se rompendo”. É acima de tudo a profusão de
imagens, acrescenta, que produziu tal efeito: em particular a
ampliação das imagens até o ponto em que estas se tornaram
“irreconhecíveis”. A obra de Ballard, segundo Burroughs, rea­
liza o mesmo efeito que Robert Rauschenberg atingiu no campo
da arte, “literalmente ampliando a imagem à exaustão”.

O eu soberano eclipsado pelas imagens

Por suas características, o romance de Ballard convida à


comparação não somente com Naked Lunch e Nova Express,
como também com a longa tradição de livros sobre a América
escritos por ingleses — uma tradição que inclui os Estudos
sobre a Literatura Clássica Norte-americana, de D. H. Lawrence,
124 O MÍNIMO EU

The New America: íhe New World (A Nova América: o Novo


Mundo), de H. G. Wells e Também os Cisnes Morrem, de Hux-
ley — onde a atrevida exuberância e vulgaridade da cena ame­
ricana evocam inveja, admiração e receio, a um só tempo. Escrito
no auge da guerra do Vietnã, Love and Napalm, oportunamente
subintitulado Export U.S.A., recorre a temas familiares ao anti-
americanismo literário: os sentimentos eróticos investidos nas
máquinas, especialmente os automóveis; a paixão nacional pelo
assassinato mecanizado; o automóvel como arma mortal; as co­
lisões em massa como suprema orgia americana; o risco de
americanização de todo o mundo. O que diferencia o livro de
Ballard das outras tentativas inglesas de captar a velocidade,
o frenesi e o perigo da vida norte-americana é a ausência com­
pleta do eu soberano, do conquistador e pioneiro em constante
aquisição, que outrora desempenhara um papel tão relevante
nesta história particular. Em Love and Napalm, os seres huma­
nos encolheram-se nté a invisibilidade, enquanto as imagens
que eles fizeram de si próprios, grotescamente ampliadas em
dimensões gigantescas e não mais identificáveis como imagens
humanas, ganham uma vida própria. “A face serena da viúva
do presidente, pintada sobre ripas de cento e vinte metros de
altura, move-se através dos telhados, desaparecendo nas brumas
dos arredores da cidade. Há centenas de anúncios, que revelam
fackie em incontáveis atitudes familiares.” Ampliado muito
além da escala humana, o corpo se transforma em paisagem:
“A cútis talhada de Marilyn, seios de pedra-pome esculpida,
coxas vulcânicas, um rosto de cinza. A noiva viúva do Vesúvio” .
Fragmentos do rosto humano, separados do corpo e ampliados
em escala enorme, tornam diminutos os homens e as mulheres
comuns e lançam um lúrido brilho sobre as suas fraquezas.
“Uma imensa fotografia de lacqueline Kennedy apareceu no
retângulo vazio da tela. Um jovem com barba, um tremor neu-
romuscular avançado na parte inferior das pernas, postava-se
na brilhante luz granulada, seu traje laminado banhado pela
imagem amplificada da boca da Sra. Kennedy.”
O protagonista de outra maneira descaracterizado de Bal­
lard — o termo é aqui completamente inadequado, obviamente,
e mesmo os seus nomes variam de um capítulo para outro,
como a enfatizar a sua falta de qualidades pessoais definidoras
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 125

— sofre de uma compreensível obsessão com as imagens que


o rodeiam, imagens de morte virulenta e de incitação erótica,
e com a possibilidade de rearranjá-las de algum modo inteli­
gível. “ Ele quer matar Kennedy outra vez, mas de uma forma
que faça sentido.” Um viciado em imagens, ele estuda absorto
o registro documentário do caos contemporâneo na fútil espe­
rança de que isso renderá algo mais que uma coleção de frag­
mentos de partes humanas separadas e mutiladas. Ele estuda,
sem jamais chegar a nenhuma conclusão sobre elas, uma cole­
ção de pinturas sobre atrocidades realizadas por pacientes de
um hospital para doentes mentais, modelos de desastres auto­
mobilísticos montados por Ralph Nader e seus assistentes, o
filme de Zapruder sobre o assassinato de Kennedy, radiografias
de moléstias exóticas, filmes sobre “neurocirurgia e transplantes
de órgãos, autismo e demência senil, desastres de carros e que­
das de aviões” — um “inquietante diorama de dor e mutilação”.
Naturalmente, ele nunca encontra o que quer que esteja pro­
curando; tampouco é a situação elucidada pelos comentários
didáticos do dr. Nathan, que serve como uma espécie de substi­
tuto da voz narrativa, um narrador maçante cujos monólogos
acompanham e interpretam incessantemente, sem entretanto ilu­
miná-la, a infindável procissão de imagens. Mesmo quando o
dr. Nathan parece fazer sentido, é difícil aceitar a validade dos
enfoques expressos numa paródia de jargão psiquiátrico, da
filosofia existencial e de outros sistemas acabados de explica­
ção, numa época nunca em falta com as explicações.

O problema de Travers é como chegar a um acordo


com a violência que perseguiu sua vida — não apenas a
violência do acidente e da perda, ou dos horrores da guer­
ra, mas o horror biomórfico de nossos próprios corpos, a
canhestra geometria das posturas que assumimos. Travers
afinal percebeu que o real significado desses atos de vio­
lência repousa em outra parte, no que podemos denominar
“a morte do afeto”. . . . O que nossas crianças têm a
temer não são os carros nas vias expressas do futuro, mas
o nosso próprio prazer em calcular os parâmetros mais
elegantes de suas mortes.
126 O

Urna tal linguagem torpã^se parte do ruído de fundo, tão


inexpressiva como muzak,* numa cultura que acha o silêncio
insuportável e preenche cada momento de vigília com anún­
cios pré-gravados. “Vocês precisam entender que para Travers
a ciência é a suprema pornografia, atividade analítica cuja prin­
cipal meta é isolar objetos ou eventos de seu contexto no tempo
e no espaço . . . É possível antever o dia em que a Teoria Geral
da Relatividade e os Princípios venderão mais que o Kama Sutra
nas lojas de livros escondidas nas ruelas.” Não se trata de que
os pronunciamentos do dr. Nathan sejam necessariamente erra­
dos ou mal-formulados: eles simplesmente deixaram de ter im­
portância, em qualquer sentido do termo. Os comentários tor­
naram-se supérfluos e autodefensivos, afirma Ballard, não por­
que as imagens que çjes procuram elucidar sejam auto-expli­
cáveis, mas porque as palavras tomaram-se imagens por si mes­
mas e passaram a servir, enquanto imagens visuais, como ins­
trumentos de manipulação e controle psicológicos. O estudo da
espécie humana transformou-se em mais uma técnica para do­
miná-la. A observação científica e sociológica eliminou o sujeito
ao fazer dele o “objeto”** de experimentos designados a ex­
trair a sua resposta a uma variedade de estímulos, as suas pre­
ferências e as suas fantasias íntimas. Com base no poder de
suas descobertas, a ciência constrói um perfil compósito das
necessidades humanas, sobre o qual é possível fundar um sis­
tema penetrante mas não abertamente opressivo de controle
comportamental.
Ballard propõe, com efeito, uma teoria de realimentação
ainda mais niilista e paranóica que a de Burroughs, em suas
implicações. As imagens controlam as pessoas, ele parece suge­
rir, não apenas através da exploração de seus vícios, mas da
extração de respostas que são elas próprias gravadas, fotogra­
fadas, radiografadas, medidas e minuciosamente analisadas, com
vistas à produção de novas imagens mais precisamente predi-
zíveis em seus efeitos. Segundo Ballard, os estudos científicos
desapaixonados — pesquisas de opinião, enquetes, questionários,
entrevistas, pesquisas de mercado, testes psicológicos — servem

(*) Neologismo que designa a música pasteurizada ouvida nas rá­


dios FM. (N.T.)
(**) No original, subject (sujeito; tema, objeto de estudo). (N.T.)
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA. . . 127

ao mesmo propósito, ao oferecer às pessoas uma opção entre


as fantasias, tornando-lhes possível, assim, participar na fabri­
cação das imagens melhor adaptadas ao controle de suas pró­
prias necessidades emocionais.
Foram realizados estudos a fim de determinar os efei­
tos da exposição prolongada a cine-jornais que retratavam
a tortura de vietcongues: (a) combatentes do sexo masculi­
no, (b) auxiliares do sexo feminino, (c) crianças, (d) feri­
dos. Em todos os casos, registrou-se um crescimento acen­
tuado na intensidade da atividade sexual, com ênfase par­
ticular em práticas orais e anais. A excitação máxima foi
provocada pela combinação das seqüências de tortura com
as de execuções. Filmes trucados mostravam personalidades
públicas associadas à guerra do Vietnã, por exemplo, o
presidente Johnson, o general Westmoreland, o marechal
Ky, substituídos tanto por combatentes como por vítimas.
Com base nas preferências dos -.espectadores, planejou-se
uma seqüência ótima de tortura e execução englobando o
governador Reagan, Madame Ky e uma inidentificável me­
nina vietnamita de oito anos de idade vitimada por Na­
palm. . . . O filme foi exibido subseqüentemente tanto para
crianças deficientes como para pacientes terminais de cân­
cer, com resultados úteis.
Ao converter eventos horríveis em imagens, arrancando tais
imagens de seu contexto, reorganizando-as em novas combinações
e caracterizando as respostas dos espectadores no ameno jargão
da neutralidade científica, a tecnologia das modernas comunica­
ções mantém as pessoas na linha, facilitando-lhes a aceitação do
inaceitável. Ela amortece o impacto emocional dos aconteci­
mentos, neutraliza a crítica e os comentários e reduz mesmo
a “morte do afeto” a mais um slogan ou clichê, que reforça a
própria condição por ele descrita.

A estética da exclusão

Em sua tentativa de captar as características alucinatórias


de um mundo no qual as imagens substituíram os fatos, Ballard
toma muita coisa de empréstimo aos experimentos recentes no
campo das artes visuais. Como nota Burroughs, ele procura re­
128 O MÍNIMO EU

produzir com as palavras efeitos equivalentes aos atingidos pela


arte pop. Praticantes dos estilos pop e minimalista, como Robert
Rauschenberg, Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Olden-
burg, Jasper Johns e Robert Morris, voltaram-se para a mesma
condição subjacente à atmosfera passiva e irreal dos romances
de Ballard, a saturação do meio circundante pelas imagens e a
conseqüente obliteração do sujeito. Adotando um estilo delibe-
radamente destituído de afeto, eles confrontam o espectador
com imagens e objetos familiares — tiras de histórias em qua­
drinhos, anúncios, cartazes de cinema, bandeiras, hambúrgueres,
palitos de dentes, canos de esgoto — ampliados em tamanho
monumental ou colocados em contextos não usuais. Eles toma­
riam como elogio a observação de um crítico, com intuito de
reprovação, de que o isolamento dos objetos cotidianos em
relação aos seus meios circundantes cotidianos produz um "efei­
to estranho e quase alucinatório” ao extraír dós òbjetos o "sen­
tido e o contexto”. O seu propósito é precisamente estimular
tais efeitos e apagar a fronteira entre ilusão e realidade, entre
a arte e a vida cotidiana. É como se eles tivessem saído para
documentar as idéias propostas por Walter Benjamin em seu
famoso ensaio "A obra de arte na época de suas técnicas de
reprodução”. Segundo Benjamin, que recorre, por sua vez, a
Marcei Duchamp e aos teóricos do dadaísmo, a produção de
imagens em massa priva a arte de sua "aura” de mistério e
inimitabilidade, faz com que ela seja acessível a um público
mais amplo e estimula um "modo de participação” na vida
cultural mais próximos do uso habitual dos velhos edifícios
pelos que neles vivem do que da atenção reverente do turista.
As mesmas expectativas foram com freqüência expressas por
aqueles que fizeram reviver a obra e a reputação de Duchamp
nos anos sessenta e que proclamaram a morte ou o suicídio
do artista — a recusa a produzir obras-primas portadoras de
sua assinatura pessoal em cada detalhe de seu colorido e com­
posição —, como primeiro passo rumo a uma sociedade na qual
a criatividade não mais seria monopólio dos indivíduos "cria­
tivos”.10
(10) Tal protesto contra a deificação da arte podia ter efeitos dese­
jáveis, se fosse acompanhado por um protesto contra a degradação do
trabalho e da habilidade artesanal. Porque o gosto pela beleza e o
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA. . 129

O minimalismo e a arte pop não estão sós em sua tenta­


tiva de desmistificar a arte e o culto do artista. O mesmo im­
pulso informa a maior parte das outras escolas e pseudo-escolas
dos anos 60 e 70: pintura sistêmica, arte ótica, arte processual,
arte da terra, conceptualismo. O “estilo minimalista”, como o
comentou John Perrault, é somente uma expressão de “uma ten­
dência maior que pode ser denominada “ sensibilidade minima­
lista” . Tal sensibilidade moldou não apenas a pintura e a escul-

“instinto de habilidade artesanal" não encontram mais satisfação no


trabalho, eles têm que buscar uma saída na moderna religião da arte.
Isso foi claramente compreendido pelos precursores do movimento mo­
dernista, como John Ruskin e William Morris, e mesmo por modernis­
tas precoces como Walter Gropius, que elogiava Ruskin e Morris por
procurarem "encontrar um meio de unir o mundo da arte ao mundo do
trabalho” e lamentava a "ascensão das academias", que "trazem como
conseqüência a decadência gradual da arte tradicional espontânea que
permeou a vida de todas as pessoas”. Todavia, Gropius vai mais longe
ao alertar contra “qualquer recrudescimento do antigo espírito artesanal
diletante”. “A divisão do trabalho, como a própria máquina, não pode
mais ser abandonada. Se a difusão da maquinaria efetivamente destruiu
a anterior unidade básica da produção de uma nação, isso não se deve
nem à máquina em si nem à sua conseqüência lógica dos processos de
fabricação funcionalmente diferenciados, mas à mentalidade predomi­
nantemente materialista de nossa época e à articulação irreal e imper­
feita do indivíduo com a comunidade”. A Bauhaus, acrescentava, “era
tudo menos uma escola de artes e ofícios, se mais não fosse porque
um retomo deliberado a alguma coisa desse tipo teria significado uma
simples volta ao passado".
O movimento modernista nas artes jamais pôs em questão a reali­
dade do progresso e as bênçãos da tecnologia industrial. Mesmo nos
velhos tempos, quando ainda dispensava alguma atenção aos temas so­
ciais, este objetivava meramente livrar-se do individualismo predatório
e da "mentalidade materialista”, sem se descartar da divisão de traba­
lho na qual eles se baseiam. Nos primeiros tempos do modernismo,
arquitetos como Gropius ainda se propunham a construir para os tra­
balhadores. Contudo, partiam do pressuposto de que eles sabiam melhor
que ninguém qual era a necessidade dos trabalhadores. Inbapazes (ou
não desejosos) de refletir sobre a forma como o próprio processo de
trabalho poderia ser tornado mais democrático e, ao mesmo tempo, mais
artístico e gratificante, eles colocavam suas expectativas na ilusão de
que a tecnologia avançada eliminaria todo o trabalho enfadonho e libe­
raria os trabalhadores para uma vida de lazer. Segundo Gropius, a
mecanização “aboliria o esforço físico do indivíduo para prover as suas
próprias necessidades vitais, a fim de que as suas mãos e o seu cére­
bro pudessem ficar livres para outra ordem superior de atividade".
Na prática, esse programa caiu no controle da produção por uns
poucos — e também da arte —, associado a uma forma mais elevada
de desemprego para a maioria, com freqüência combinada a um con­
veniente desemprego real.
130 O MÍNIMO EU

tura, mas a maior parte da literatura, da música e da dança


contemporâneas- A sua marca registrada é a despersonalização
deliberada da obra de arte, a eliminação da atividade artesanal,
a eliminação do próprio artista ou, pelo menos, uma drástica
redução de seu papel como intérprete da experiência. As inten­
ções atribuídas por Jasia Reickardt ao artista op Victor Vasa-
rely podem servir como descrição da arte experimental em
geral, na era do eu mínimo: “Vasarely está empenhado na
despersonalização da arte de artista — ele acredita que as
obras de arte devem tornar-se disponíveis a todos e devem des­
cartar-se de seu caráter único”.
A rápida sucessão de estilos, nos últimos vinte e cinco ou
trinta anos, pode ser vista como uma tentativa de encontrar
meios bastante diferentes para o mesmo fim: a eliminação da
subjetividade. Os minimalistas buscam um “grau mínimo de
auto-expressão”, nas palavras de Perrault, pondo de lado tanto
o tema como o sujeito —, isto é, a inteligência controladora e
ordenadora do artista. Aquilo que Barbara Rose denominava
a sua “impessoalidade e o (seu) anonimato autodestrutivo”, que
se definia em oposição à “auto-indulgência de uma subjetivi­
dade irrefreada”, levou artistas como Donald Judd, Cari Andre,
Frank Stella e Robert Morris a fazer reviver a arte “pronta para
usar” de Duchamp, a qual confere status artístico a' objetos
comuns recorrendo ao simples expediente de rotulá-los como
arte, ou de trabalhar com materiais industriais de fabricação
em massa (espuma de estireno, tijolos refratários, tubos fluores­
centes), organizando-os em formas retangulares e cúbicas deli-
beradamente despidas de qualquer referência ou significado me­
tafóricos. A arte pop perseguia o mesmo objetivo, às vezes, lan­
çando mão de técnicas similares, outras vezes, realizando repre­
sentações fielmente realistas de objetos e imagens comuns, elas
próprias produzidas em série, e recusando qualquer comentário,
de admiração ou ironia, sobre o significado delas. A arte assim
chamada conceptual procurava eliminar a mão do artista ao
planejar cada detalhe do trabalho antes de sua execução, assim
“evitando a subjetividade”, como explicava Sol LeWitt. A idéia
por trás da obra, segundo LeWitt, poderia servir como uma
espécie de substituto do artista, uma “máquina que fabrica
arte”. Alguns artistas, com freqüência considerados conceptua-
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UM A... 13]

listas, saudavam os efeitos completamente aleatórios, por outro


lado, como uma outra forma de reduzir a intervenção do artista
no processo criativo. Robert Barry, cujo trabalho inicial era cons­
tituído de fotografias que registravam o movimento invisível de
gases liberados no ar, explicava: “Eu procuro não manipular
a realidade. . . . O que tiver que ocorrer, ocorrerá. Deixe as
coisas serem elas mesmas”. Um “artista da terra”, Robert Smith-
son, falava de seus “mapas terrestres” e “deslocamentos espe­
culares” da luz solar, de forma bastante semelhante, como uma
tentativa de manipular o meio ambiente físico, mas para per­
mitir que o espectador mergulhasse nele e experimentasse uma
sensação de intemporalidade e de “fim da individualidade” . A
“existência do eu”, segundo Smithson, é a raiz da “falácia ex­
pressiva” na arte. “ Enquanto a arte for pensada como uma
criação, a história será sempre a mesma.” Somente uma arte
que se recuse a definir-se desse modo pode realizar um estado
de espírito, no espectador e no próprio artista, no qual o “ego
desaparece, por algum tempo”.
Ao lançar mão de efeitos aleatórios ou, partindo para o
extremo oposto, ao planejar cada coisa até o último detalhe, os
artistas de vanguarda procuraram, desde meados dos anos 50,
abolir a interioridade e superar o “frenesi de individualismo que
por séculos assolou o Ocidente”, como colocou certa vez Jean
Dubuffet. Numa conferência pronunciada em 1951, Dubuffet
antecipou os traços principais da sensibilidade minimalista, ao
defender a “completa liquidação de todas as formas de pensa­
mento, cuja soma constituía o que tem sido chamado de huma­
nismo e foi fundamental para a nossa cultura, desde a Renas­
cença”. O artista deve suprimir a assinatura pessoal de sua
obra, insistia Dubuffet. Se ele pinta um retrato, deve procurar
“libertar o retrato de quaisquer traços pessoais”. Uma geração
posterior seguiu os passos de Dubuffet em sua busca de uma
arte impessoal, embora não tenha mostrado muito interesse em
sua tentativa de se opor à tradição ocidental com os “valores
da barbárie: instinto, paixão, mau humor, violência, loucura”.
Da paixão, da violência e da loucura é que, justamente, a nova
arte procura se livrar. Por essa razão, ela rejeita o primitivismo,
o surrealismo e o expressionismo abstrato com a mesma veemên­
cia. Ela procura o antídoto do expressionismo romântico não
132 O MÍNIMO EU

nos “valores da barbárie”, mas na ornamentação islâmica ou


no zen-budismo. Ad Reinhardt, outro teórico e precursor da
arte inexpressionista dos anos 60 e 70, salientava, em 1957, que
os ícones islâmicos reduzem as figuras humanas a “fórmulas”,
em vez de procurar erroneamente fazê-las parecer com as “pes­
soas do cotidiano” — a heresia humanista que “surgiu com a
Renascença”. Reinhardt admirava o budismo por razões seme­
lhantes, por sua “intemporalidade” e por sua disposição para
examinar “repetidamente uma coisa até que ela desapareça”.11
Equivocadamente identificado pelos críticos da década de
quarenta com os pintores conhecidos como Escola de Nova Ior­
que, Reinhardt tinha pouca paciência com a subjetividade e a
insistência deles na importância do tema. O seu próprio desen­
volvimento levou-o em direção oposta, prenunciando a revolta
geral contra o expressionismo abstrato, na década de 60. No
início dos anos 50, ele passou a pintar telas amplas e mono­
cromáticas, que deliberadamente desafiavam a interpretação ou
análise de seu “conteúdo” . Enquanto os pintores de Nova Ior­
que — Mark Rothko, Clyfford Still, Barnett Newman, Willem
de Kooning, Jackson Pollock — defendiam que “não existe boa
pintura sobre o nada”, nas palavras de Rothko, Reinhardt, se­
gundo seu biógrafo, “deixa clara a sua oposição a qualquer
assunto ou tema”. Durante os últimos dez anos de sua vida,
de 1957 a 1967, ele não pintou outra coisa senão composições

(11) Outros autores encontraram essa mesma intemporalidade, além


do ecletismo e da exterioridade, na cultura do moderno Japão — rein-
terpretada, como tantas outras culturas não ocidentais, à luz das preo­
cupações comuns peculiares ao Ocidente. Donald Richie, um norte-ame­
ricano que viveu por longo tempo em Tóquio, autor de obras sobre
zen, o teatro noh e o cinema japonês, defende, em entrevista recente,
que o Japão apresenta um antídoto para a “falsidade” de fundo da
cultura ocidental, a crença no eu. "O Japão é um país onde não é
possível ‘ler’ alguma coisa, no nosso sentido. . . À aparência ê a reali­
dade aqui. O ostensivo é-o real. . . . Não importa o rigor com que se
olhe, a máscara ê a face. Não existe a noção do ‘eu real’, um ser de
algum modo separado da pessoa. As pessoas são aqui o que se pode
ver, a partir do exterior. . . . Os japoneses tomam o que é bem conhe­
cido e emblemático no Ocidente e se apropriam dele. E não se trata
de serem pessoas ‘maleáveis’, porque aqui tudo é ‘maleável’. Obvia­
mente, somos nós, no Ocidente, que vivemos uma falsidade, com a nossa
idéia absurda do ‘eu real’, com as noLsas ‘sólidas convicções'. Oh, não!
Platão e São Paulo realmeníe nos induziram ao erro! E também a
Renascença, é certo. Tudo aqui está à vista”.
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 133

cm negro. “Há algo errado, irresponsável e insensato com as


cores”, dizia, em 1960, “algo impossível de controlar. Controle
c racionalidade são parte necessária de qualquer moral”. O seu
texto “Doze regras para uma nova academia” (1957) estabele­
cia os princípios de uma nova estética da exclusão: nenhuma
textura; nenhum trabalho de pincel ou caligrafia; nenhum es­
boço ou desenho (“ tudo . . . deve ser elaborado na mente de
antemão”); nenhuma forma, desenho, cor, luz, espaço, tempo,
movimento, dimensão ou escala; “nenhum objeto, nenhum su­
jeito; nenhum tema; nenhum símbolo, imagem, ou signo; nem
prazer, nem dor”.

è A fusão do eu e do não-eu
•y

Os expressionistas abstratos fizeram reviver uma concep­


ção romântica do artista como um homem concomitantemente
pertencente e contrário ao seu tempo e que dá forma aos con­
flitos mais profundos da sua época. Defendiam a posição de
if que uma era violenta exigia uma arte violenta, como argumentou
.-ff
Adolph Gottlieb, em 1943: “Em tempos de violência, as predi­
leções pessoais por cuidados de cor e de forma parecem irrele­
vantes . . . Uma arte paliativa ou que procura se evadir diante
desses sentimentos (de terror e de medo, ‘experimentados por
muitas pessoas em todo o mundo, hoje em dia’) é superficial e
sem sentido. Eis por que insistimos no assunto subjacente, num
tema que abarque tais sentimentos e permita sua expressão” .
Mark Rothko, ao repudiar o rótulo de “abstracionista”, declarava
que estava “interessado somente em expressar as emoções hu­
manas básicas” e em comunicá-las aos outros. Os pintores de
Nova Iorque deixaram a arte figurativa, não com o intuito de
descartar-se da subjetividade, mas exatamente com o propósito
de explorar a sua dimensão interior. “Ao investigar além do
comum e do conhecido”, dizia Arshile Gorky, “eu crio um
infinito interior”. Por sua vez, o artista pós-romântico busca
desprènder-se da carga da individualidade e “sobreviver apenas
nos baixios”, como o coloca Wylie Sypher. Uma comparação
entre as pinturas em negro, de Reinhardt, e a série de trabalhos
visivelmente semelhantes em negro, de Rothko, mostra a dife­
134 O MÍNIMO EU

rença entre uma arte que, tendo renunciado à esperança de


impor a ordem do artista ao mundo, apega-se, não obstante, à
individualidade, como a única fonte de continuidade num meio
circundante de outra forma caótico e uma arte que, por outro
lado, renuncia à própria possibilidade de uma vida interior.

As pinturas em negro de Rothko (escreve Eliza, Rath-


bone) . . . mantêm a sua preocupação com uma experiên­
cia humanamente vivida. Mesmo naquelas fases em que
Rothko parece mais próximo de negar as cores, os traba­
lhos mais austeros são ricos em permutações sensitivas. . ..
A opção de Reinhardt pelo negro foi o último passo para
evitar qualquer uso da cor — contaminada, como era, pelas
associações ou avivada pelas vibrações de matizes. .. . Rei­
nhardt acreditava que “o negro é interessante não enquanto
cor, mas como uma não-cor e como uma ausência de cor”.
. . . A única idéia de Rothko é uma experiência que possa
se expandir na resposta do espectador, ao passo que Rei­
nhardt recusa qualquer intercâmbio desse tipo entre possi­
bilidades interpretativas. . . . Toda a tensão é resolvida,
eliminada.

Outro crítico, Nicolas Calas, escreveu de forma mais severa


sobre Reinhardt e seus seguidores: as ‘‘suas últimas pinturas
tornaram-se ícones para agnósticos que preferem véus cobrindo
o óbvio a signos que indiquem a presença de um enigma”.
Evidentemente, na sua forma mais pura, a sensibilidade
minimalista não mais acha necessário mascarar o óbvio. Ela
proclama ruidosamente o óbvio, agarra-se à superfície das coi­
sas e recusa-se a olhar sob elas. “ O que você vê é o que você
vê”, diz Frank Stella de sua obra, a maior parte da qual em
pinturas de listras. “ Faz parte do vulgarismo de nossa cultu­
ra”, segundo o escultor minimalista Carl Andie, perguntar: “ O
que isso significa?”. Uma obra de arte significa o que parece
significar e nada mais. Conforme Clement Greenberg, cujas
idéias influenciaram tantos artistas nos anos 60 e 70, a arte
não deve fazer qualquer tentativa de se referir a nada que seja
exterior a ela. A pintura é uma forma de comunicação, apenas
no sentido em que ela consiste de um “discurso sobre o traço,
a cor e a forma”. “ Deixem a pintura limitar-se à disposição
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA.. . 135

pura e simples da cor e do traço, e não nos intriguem com


associações com coisas que podemos experimentar de forma mais
autêntica, em outras partes”. Na visão de Greenberg, as pintu­
ras deveriam insistir na sua bidimensionalidade, em vez de se
esforçar por criar a ilusão de uma terceira dimensão, a ilusão
de profundidade. Um crítico menos simpático ao minimalismo,
Peter Fuller, explica o “ aparecimento da ‘planura’ como um
credo nas belas-artes” (processo que lamenta) como uma reação
a uma “certa experiência urbana que enfatiza o superficial no
lugar do físico, que nega a interioridade”. Numa cidade mo­
derna, afirma Fuller, “tende-se a viver num mundo de super­
fícies. . . . Se você vai a Times Square, em Manhattan, ou viaja
por quase qualquer uma das rodovias americanas, você se de­
para com um fluxo constante de imagens de propaganda que . . .
parecem quase mais reais que a própria realidade. Você tem
a impressão de um mundo físico, onde as coisas foram desma­
terializadas ou reduzidas a superfícies”.
Como Fuller salienta, uma arte que se preocupa com as
superfícies não somente nega a realidade da experiência inte­
rior, como também a realidade dos objetos circundantes. Ela
aniquila igualmente o sujeito e o objeto. Em seu estudo sobre
a arte cênica do final dos anos 60 e início dos 70, Lucy Lippard
enfoca a “desmaterialização do objeto de arte” como um reco­
meço salutar, atingindo a produção de objetos de arte “um
ponto de chegada muito importante”, nas pinturas de quadrados
negros idênticos de Reinhardt. Cari Andre oferece um argu­
mento similar ao explicar por que busca a planura no lugar
do “volume” em sua obra de escultor, que consiste em pilhas
de tijolos, pedras dispostas em fileiras, blocos de concreto orga­
nizados em uma linha única sobre o chão. A nossa cultura já
conta com objetos em demasia, defende Andre, e agora “exige
espaços vazios de significantes, . .. alguma tabula rasa, . . . al­
gum espaço que sugira a existência de um esgotamento dos
significantes. Quando os signos ocupam todas as superfícies, não
há lugar para novos signos”. Gregory Battcock, em sua intro­
dução a uma coletânea de ensaios sobre o minimalismo, consi­
dera uma virtude da escultura recente, inclusive a de Andre,
o fato de que ela não poupe esforços para enfatizar a sua pró­
pria não-permanência. “Nós deixamos de concordar com a qua­
136 O MÍNIMO EU

lidade da permanência (cuja falta é tão deplorada pelos reacio­


nários em termos de cultura) e preferimos ter a certeza de que
nossos monumentos modernos não permanecerão. Dessa forma,
pelo menos, há menor probabilidade de que eles obstruam o
novo do futuro, como os monumentos do passado . . . parecem
obstruir o novo de hoje”. A “ausência de ênfase nos aspectos
materiais”, na expressão de Lippard, conduz ao repúdio “da
inimitabilidade, da permanência e da atração decorativa”. Con­
forme anunciavam dois teóricos do conceptualismo, em 1970,
um tanto prematuramente, como se revelou depois: “O resul­
tado da maior parte da obra ‘conceptual’ dos últimos dois anos
foi limpar cuidadosamente o ar de objetos”.
A sensibilidade minimalista origina-se de um espírito de
redução. Ela reflete um sentimento de que não há espaço para
a arte e de que a sociedade moderna, como a arte moderna,
aproxima-se do fim do caminho. “Eu postulo que não há ama­
nhã”, diz Robert Smithson, “nada senão um vazio, um vazio
escancarado”. Com essa visão do futuro, não admira que os
artistas renunciem à esperança de permanência. Soterrados por
um meio ambiente caótico e superpovoado, pela profusão de
imagens e objetos, por uma tradição de história da arte perce­
bida como ofuscadora e opressiva, pela infindável sucessão de
estilos e vanguardas; soterrados também pela agitação interior,
que responde à agitação exterior e ameaça engolir qualquer pes­
soa que adentre demasiado fundo o interior humano (como en­
goliu os expressionistas abstratos, cujas carreiras terminaram
freqüentemente no alcoolismo, no desespero e no suicídio), os
artistas dos anos 60 e 70 sentiram a necessidade de “restringir
suas operações”, como colocou Andre, de “romper a inércia de
uma produção artística fora de propósito (e de) concentrar-se
em uma linha digna de atenção” . Andre explicava a Peter Fuller
que o “minimalismo para mim significa um estreitamento das
coisas. Para outros, significa recuar para um silêncio autodefen-
sivo. Talvez o minimalismo encontre a sua expressão mais ade­
quada na proclamação de Adrian Piper de que a negação de
exibir qualquer obra constitui uma “medida defensiva”.

A obra originalmente destinada a este espaço foi reti­


rada. A decisão de retirá-la foi tomada como medida de
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 137

proteção contra as condições cada vez mais difusas de medo.


Em vez de submeter a obra à influência mortífera e vene­
nosa de tais condições, eu apresento a sua ausência como
uma prova da incapacidade da expressão artística de gozar
de uma existência significativa sob condições outras que
não a paz, a igualdade, a verdade, a confiança e a liberdade.

Apesar da proibição que ela própria se impôs quanto à


auto-expressão, a arte modernista recente expressa a “aura emo­
cional entorpecida” da época, como escreve Cárter Ratcliff em
um ensaio sobre Robert Morris: o “êxtase do entorpecimento
produzido pela recusa a arriscar-se às dores da auto-revelação” .
Quando Morris posou para um cartaz de divulgação, usando
capacete nazista e correntes (1974), ou expôs uma série de dese­
nhos e esculturas coletivamente intituladas “No Reino de Car-
ceral” (1979), confirmou as suspeitas de que as caixas, espelhos
e labirintos, que apareciam em grande parte de sua obra, apa­
rentemente privados de qualquer conteúdo expressivo ou alu­
sões antropomórficas, representavam efetivamente “imagens hu­
manas aprisionadas em um redutivismo catatônico”. Desde o
início, salienta Ratcliff, Morris apresentou-se como um “admi­
nistrador das possibilidades limitativas”. Em 1961, ele expôs
a “obra minimalista prototípica” (como depois a denominou
Cari Andre), uma caixa que continha uma fita com a gravação
dos sons de sua própria construção. “A meticulosidade com que
a gravação está encaixotada une-se à isolada persistência de seu
som para simbolizar . . . uma situação à prova de fuga.” Os
labirintos e espelhos de Morris produzem o mesmo efeito claus­
trofóbico. Eles eliminam a “ distinção residual entre as imagens
do eu e do não-eu” — a “diferenciação sobre a qual se ba­
seiam todas as distinções subseqüentes” — e, portanto, supõem
um mundo no qual tudo é intercambiável, no qual “a auto-
definição foi reduzida ao jogo da auto-imagem” e o eu interior
aparece apenas como uma “função de signos externos que ou
estão além do controle, ou mudam à vontade”. “Parece legítimo
estender a frase, ‘No Reino de Carceral’, . . . a toda sua pro­
dução,” Segundo Ratcliff, a obra de Morris atinge a sua culmi­
nância lógica nos desenhos executados enquanto ele usava uma
venda ou seguia as instruções de um homem cego. O espetá­
138 O MÍNIMO EU

culo de um “ artista visual equiparando visão e cegueira, como


se não concebesse a última como uma perda”, transmite a “dor
da privação . . . e também a privação de sua incapacidade de
sentir tal dor”.
Ratcliff defende que “ de todos os praticantes do moder­
nismo redutivo, Morris é o único que lança esse anticredo di­
fuso em termos de aprisionamento, de remoção de uma reali­
dade mais ampla e mais rica”. Ao fazê-lo, entretanto, parece-me
que a obra de Morris torna explícito o que está apenas implí­
cito em outros trabalhos da vertente minimalista: que o moder­
nismo, na sua forma mais “avançada”, não mais explora novas
fronteiras da sensibilidade, novas dimensões da realidade; ao
contrário, executa um recuo estratégico e uma regressão a um
reino, para usar a expressão de Ratcliff sobre a arte aprisio­
nada de Morris, “no qual as operações mentais e perceptivas
são de tal modo básicas, que eles não podem sustentar senão
as emoções mais indiferenciadas”. É desnecessário acrescentar
que a arte “avançada” incorpora, assim, a mentalidade da so­
brevivência, característica daqueles que se deparam com situa­
ções extremas: uma redução radical do campo de visão, um
“solipsismo socialmente sancionado”, uma recusa a sentir qual­
quer coisa, seja dor ou prazer. O artista adotou a voz e a visão
— ou a cegueira — de um sobrevivente, não porque ele deseje
entrar imaginariamente nas provações do sobrevivente, mas por­
que ele já experimentou a sua própria versão delas no colapso
das tradições artísticas das quais ele depende, inclusive a tradi­
ção do próprio modernismo. A sobrevivência da arte, tal como
a sobrevivência das demais coisas, tornou-se problemática, não
porque a arte tenha perdido qualquer “existência significativa
sob condições outras que não a paz, a igualdade, a confiança
e a liberdade”, nem porque as comunicações de massa usur­
param a função representativa da arte e tampouco porque a
realidade supere a imaginação artística, mas porque o debilita-
mento da distinção entre o eu e o seu meio circundante — um
processo fielmente registrado pela arte moderna, mesmo em sua
recusa a tornar-se representativa — transforma o próprio con­
ceito de realidade, ao lado do conceito do eu, em algo cada
vez mais insustentável.
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 139

O recuo estratégico em direção à paranóia

Quando Alain Robbe-Grillet lançou o apelo por um “novo


romance”, em ensaios escritos no final da década de cinqüenta
e início dos anos sessenta, ele defendia um deslocamento para
além do realismo, com base no argumento de que isso levaria
a ficção a aproximar-se mais estreitamente da “ realidade”. Com
efeito, um desses ensaios tinha como título “Do realismo à
realidade”. Hoje em dia, seria difícil encontrar um escritor ex­
perimentalista que admitisse tão prontamente um interesse na
realidade. Ao afastar-se do mundo interior, a literatura, como
as outras artes, afastou-se também do mundo exterior ao eu.
Tendo renunciado aos “velhos mitos da ‘profundidade’ ”, como
os denominou Robbe-Grillet, os romancistas descobriram que
tudo o mais também parece ilusório. A única coisa que per­
manece é a própria literatura — o único “tema” da escritura
avançada atualmente, tal como a arte e a história da arte apre­
sentam-se a si próprias como os únicos temas para os artistas
de vanguarda.
Robbe-Grillet, sem perceber o beco sem saída a que isso
rapidamente levaria, deu aos escritores o mesmo conselho que
Jean Dubuffet dera aos pintores: agarrem-se à superfície. Em
vez de “escavar cada vez mais fundo, a fim de atingir alguma
camada ainda mais interior e desenterrar algum fragmento de
um segredo desconcertante”, o escritor deveria acolher a lição
das peças de Samuel Beckett: “Tudo que é está aqui”. Não há,
em outras palavras, nenhuma realidade debaixo ou além da­
quilo que vem ao encontro de nossos olhos, nenhum inferno ou
paraíso, nenhuma profundidade interior e nenhuma altura trans­
cendente, nenhum utopia no futuro, nada exceto o momento
presente. Os personagens, segundo Robbe-Grillet, “não têm ou­
tra qualidade além do presente”. Elas vivem sem passado e sem
futuro, salvo a certeza da morte. O seu mundo — o nosso
mundo — carece da consolação, não apenas da religião, como
da psicologia. “Não apenas deixamos de considerar o mundo
como nosso, como nossa propriedade particular, planejado de
acordo com as nossas necessidades e corretamente domesticado,
como também não mais acreditamos em sua ‘profundidade’. . . .
A aparência (surface) das coisas deixou de ser para nós a más­
140 O MÍNIMO EU

cara de sua essência, um sentimento que levava a toda espécie


de transcendência metafísica” ,
Tanta coisa já foi dita sobre o artista moderno em sua
“jornada interior adentro”, que tendemos a esquecer o movi­
mento contrário, a fuga da individualidade, característica da
arte e da literatura desde os anos 50, No caso da literatura, a
rejeição da profundidade interior é fácil de ser desconsiderada,
porque boa parte dela ainda continua a explorar as praxes de
uma tradição modernista anterior — o monólogo interior, a exal­
tação do artista e da sensibilidade artística — e a preocupar-se,
além disso, numa forma diversa dos pintores e escultores re­
centes, com a descrição dos estados de espírito íntimos. Aquilo
que Nathalie Sarraute dizia, em 1950, pode ainda ser dito, com
significativa idoneidade, de uma parcela importante da prosa de
ficção publicada hoje em dia: “Uma maré em constante eleva­
ção tem nos inundado com . . . romances nos quais um ser
desprovido de contornos, indefinível, intangível e invisível, um
“eu” anônimo, que é, ao mesmo tempo, tudo e nada .. . usur­
pou o papel do herói (e ao mesmo tempo reduziu os outros
personagens) à condição de visões, sonhos, pesadelos, ilusões,
reflexos, qüididades ou dependências desse ‘eu’ todo-poderoso”.
Hoje, entretanto, esse “eu” está longe de ser poderoso; ele não
mais inclui o conjunto da experiência em si, tampouco se retira
do mundo exterior tentando redescobrir os seus próprios recur­
sos interiores, com a intenção de ouvir a voz da memória, ou
de abrir-se às profundezas soterradas de seu ser inconsciente.
“Na literatura norte-americana contemporânea”, observa Tan-
ner, “o recuo em direção ao eu parece um movimento mais
defensivo e menos seguro ou criativo”. Ele toma a forma de
uma “filtragem organizada” da experiência, na expressão do
protagonista de Susan Sontag em Death Kit ou, como dizem os
tralfamadorianos de Vonnegut, de uma decisão “ de se concen­
trar nos momentos felizes da vida e de ignorar os momentos
infelizes”. Em vez de procurar aguçar as suas percepções, o
herói-escritor busca agora embotá-las ou aplicá-las a problemas
que o tiram de -si próprio, sem conduzi-lo a uma maior proxi­
midade com a realidade, como quando o Herbert Stencil, de
Thomas Pynchon, tenta desvendar uma intrincada conspiração
histórica, em vez de admitir que “há mais acaso na vida do
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 141

que poderá admitir um homem, em toda a sua existência, sem


perder a razão”.
Numa tradição de modernismo literário anterior, o monó­
logo interno ainda pressupunha um mundo exterior inteligível.
O escritor desvendava as ilusões aparentes, na expectativa de
achar a verdade escondida por trás delas, mesmo se isso o
levasse a uma jornada ao coração das trevas. Na ficção recente,
a jornada interior não leva a parte alguma, nem a uma maior
compreensão da história tal como se reflete numa vida parti­
cular, nem a um maior entendimento do.eu. Quanto mais se
escavar, menos se encontrará, ainda que a atividade de escavar,
inútil como é, possa ser a única coisa que nos mantém vivos.
Os romances ambiciosos, mas intencionalmente inconclusivos de
Pynchon, da mesma forma que boa parte da prosa de ficção
recente, dramatizam a dificuldade de manter incólume o eu,
num mundo sem significado ou padrões coerentes, onde a busca
de modelos e conexões volta-se para si própria, em círculos
solipsistas cada vez mais estreitos. Todos os seus protagonistas
— Stencil, Tyrone Slothrop, Oedipa Maas — procuram des­
vendar a história secreta dos tempos modernos, baseando-se,
na ausência de dados mais confiáveis, em “sonhos, flagrantes
psíquicos, presságios, criptografias, nas epistemologias das dro­
gas, tudo dançando numa zona de terror, contradição e absur­
do” . Substitutos — o que mais? — do escritor em busca de
um tema, tais personagens vêem “complôs” em toda parte e
efetuam suas investigações com fanática energia. Cada um deles
é aquinhoado, ou amaldiçoado, com a capacidade de imaginar
a si próprio numa variedade de situações e de adotar várias
identidades — uma defesa necessária contra a introspecção,
sugere Pynchon, ainda que isso leve apenas à atividade fora
de propósito e nunca a qualquer visão mais nítida sobre o “ de­
finitivo Complô Que Não Tem Nome”. As personificações de
Stencil e o seu hábito de referir-se a si próprio na terceira
pessoa servem “para manter Stencil em seu lugar, quer dizer,
na terceira pessoa”. “ Seria simples”, diz Pynchon, “ ... chamá-lo
o homem contemporâneo em busca de uma identidade. . . . O
único problema é que Stencil tem todas as identidades com as
quais pode lidar convenientemente no momento: ele é, de for­
ma totalmente pura. Ele Que Procura por V. (isto é, pela “Big
142 O MÍNIMO EU

One, a principal trama do século”) — e quaisquer que sejam


as personificações que isso possa envolver)”. Sem V., a mulher
misteriosa, cuja pista promete levar aos segredos mais íntimos
da história, mas que se transforma, no final, num “conceito ex­
traordinariamente difuso”, Stencil seria deixado com um insu­
portável vazio interior. A paranóia o mantém são, da mesma
forma que mantém Slothrop e Oedipa Maas numa aparência
de sanidade. Em Gravity’s Rainbow (O Arco-íris da Gravidade),
Pynchon descreve o medo de Slothrop de perder a razão. “Se
há uma coisa reconfortante — a religião, se se quer —, frente
à paranóia, há também ainda a antiparanóia, onde nada está
ligado a nada, uma condição que poucos de nós poderíamos
suportar por muito tempo”. A paranóia serve como um substi­
tuto da religião, porque ela oferece a ilusão de que a história
obedece a algum princípio interno de racionalidade, o que é
pouco animador, mas é preferível, de qualquer forma, aos ter­
rores da “antiparanóia” .
O parentesco subjacente da loucura e da arte é uma idéia
antiga, mas ela assumiu um significado, na literatura contem­
porânea, bastante diferente do sentido que tinha no século XIX,
ou mesmo no início do século XX. Para o artista romântico,
isso queria dizer que o eu não socializado é o eu real e que,
quando a arte se despoja das camadas superpostas das conven­
ções civilizadas e do senso comum, ela revela o núcleo autên­
tico da personalidade. Para Pynchon, isso significa que a arte
fabrica uma ilusão de sentido — um “complô” no qual “todas
as peças se encaixam” — sem a qual o peso da individualidade
torna-se insuportável. A paranóia é a “descoberta de que tudo
está ligado”. Todavia, a própria arte de Pynchon — como a
arte contemporânea em geral —, corta essa “ descoberta”. Seus
“complôs” não levam a parte alguma. Stencil nunca encontra
V., do mesmo modo que Oedipa não descobre o sistema secreto
de comunicação subterrânea que “liga o mundo da termodinâ­
mica com „o mundo do fluxo de informações” . Tampouco Slo­
throp desvenda a “megacartel” que opera a moderna máquina
da guerra. Ao contrário, sua perseguição da sinistra e esquiva
“Firma” apenas reforça a suspeita de que nós vivemos em um
mundo onde nada está ligado a nada, um mundo sem governo,
controle ou direção discernível, no qual “as coisas apenas acon­
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 143

tecem” e a história consiste de “ ffatos’ renovadame*ite criados


de um momento para outro”. Pynchon parodia a busca român­
tica de significado a individualidade. Seus protagonistas lem­
bram vagamente os antigos exploradores norte-americanos —
Henry Adams, Isabel Archer, o capitão Ahab — apenas para
chamar a atenção para a situação bastante mais difícil do ex­
plorador contemporâneo em busca da verdade, que começou a
compreender não apenas que a história não tem segredos inter­
nos, mas também que a busca de significados ocultos, embora
o preserve da desintegração, pode originar-se do mesmo impul­
so de controlar e dominar, a mesma destrutiva vontade de po­
tência que deu origem à própria máquina da guerra e à sua
mais aterradora expressão, o míssil teleguiado que desafia a
gravidade. Se a arte divide com a tecnologia a compulsão irra­
cional de escapar da lei natural da entropia, como sugere Pyn­
chon, a única alternativa viável à paranóia parece ser uma acei­
tação resignada do declínio irreversível: a gravidade que atrai
todas as coisas, de forma irresistível, para o nada.

O impasse do modernismo

Inicialmente, Pynchon apresenta suas personagens vivendo


em um estado de sítio, controladas e vitimadas por poderes in­
visíveis e pela “cultura da morte” que impregna o mundo mo­
derno;. então, ele nega inclusive que eles sejam vítimas de uma
conspiração, sugerindo, ao mesmo tempo, que a paranóia, a ilu­
são de uma trama ou “complô” que faz a história inteligível,
fornece a única base estável da individualidade. É difícil ima­
ginar como a ficção poderia ir mais longe na subversão da
própria possibilidade da individualidade ou da ficção mesma,
quanto a isso. Conforme observa John W. Aldridge, em seu
estudo do romance contemporâneo, a “ruptura do vínculo entre
o eu e um meio social passível de comprometimento, a gradual
diluição entre a percepção subjetiva e a realidade objetiva, uma
na outra” , induzem a “sentimentos extremos de ansiedade e pa­
ranóia” — repetidamente refletidos nos romances recentes, bem
como na pintura e na escultura, mesmo quando essas obras
propcAm-se a não retratar qualquer sentimento. O “ desapareci-
144 O MÍNIMO EU

mento de todas as outras formas de avaliação reconhecida” ex­


teriores ao eu, deixou o artista, de acordo com Aldridge, “en­
capsulado em uma bolha de autopercepção que flutua no vácuo” .
Ad Reinhardt representa tal vácuo na forma de quadrados e
retângulos negros intercambiáveis. Pynchon lança mão de uma
técnica bastante diferente para obter os mesmos fins. Ele preen­
che o vazio com uma transbordante profusão de cenas e alusões
históricas que têm, entretanto, o mesmo sabor de irrealidade,
como os cenários das velhas extravagâncias de Hollywood e
as “restaurações históricas” de antigos edifícios, nos quais pa­
recem se inspirar conscientemente as próprias reconstruções de
panoramas históricos de Pynchon — o império britânico em
declínio, a África do sudoeste sob dominação alemã, o cerco
de Malta na Segunda Guerra Mundial, esta mesma guerra, de
modo geral, como para lembrar-nos, mais uma vez, que a his­
tória consiste de ficções e que os personagens históricos repre­
sentam diversas “personificações”. A tentativa de captar mesmo
uma parcela do sabor da história, quando não a textura da ex­
periência histórica, faz com que Pynchon se destaque entre os
romancistas sérios contemporâneos, a maior parte dos quais há
muito abandonou o esforço de transmitir uma idéia da nossa
vida comum; todavia, essa prova de consciência residual de
um mundo além do eu apenas torna tudo ainda mais pungente,
daí o seu fracasso em encontrar algum significado ou substância
nele, a não ser a idéia familiar de que todas as coisas cami­
nham para a ruína.
Apesar de seu brilho inventivo, a ficção de Pynchon deixa,
afinal, alguma coisa da impressão causada pela pintura de Rei­
nhardt, a de esconder o óbvio por trás de um véu de obscuri­
dade. O mesmo pode ser dito da ficção contemporânea, no
conjunto, embora a maior parte dela nunca atinja o nível de
Pynchon. Não há uma escassez de escritores de primeira linha,
mas eles se satisfazem de forma demasiado fácil com temas tri­
viais não mais chocantes ou desconcertantes: a impossibilidade
de uma compreensão objetiva dos fatos, a impossibilidade de
discriminações morais numa época de atrocidades, a impossi­
bilidade de escrever ficção num mundo no qual tudo é possível
e em que as manchetes dos jornais superam a imaginação do
escritor. A melhor escrita atual tem o efeito de remover a his­
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 145

tória do domínio dos julgamentos morais. Ela vê a história como


um sistema de controle total que torna tão inútil atribuir res­
ponsabilidade moral como resistir ao fluxo dos acontecimentos.
Qualquer que seja a concepção que se tenha sobre o sistema de
controle burocrático, conspiratório e totalitário — como governo
invisível da riqueza das corporações ou da colaboração militar-
industrial; como sistema internacional de espionagem e contra-
espionagem; como submundo do crime; como tráfico interna­
cional de drogas; como uma máquina bélica internacional que
faz desaparecer os nacionalismos concorrentes e torna a guerra
não um meio para a resolução das diferenças nacionais, mas
um fim em si mesma; ou como um império estelar de longo
alcance, que colonizou o universo e o domina através de tec­
nologias invisíveis de controle da mente e de programação com-
portamental, bem como através de espetaculares guerras nas
estrelas —, a atitude subjacente é sempre a mesma. Uma vez
que o indivíduo parece programado por agências externas, não
se pode considerá-lo responsável por seus atos. Num sentido ri­
goroso, ele não pode agir, de modo algum; a sua única espe­
rança de sobrevivência encontra-se na fuga, no descompromisso
emocional, numa recusa em tomar parte em qualquer tipo de
vida coletiva ou mesmo nas complicações normais do relacio­
namento humano do cotidiano. O escritor salva a sua pele ba­
tendo em retirada rumo ao mundo de sua própria imaginação
mas, finalmente, perde mesmo a capacidade de distinguir entre
o seu reino interior e o mundo que o rodeia.
Se a literatura de ficção experimental conduz ao mesmo
beco sem saída solipsista a que chegou a arte experimental, o
romance realista dificilmente se sai melhor. A decadência das
sanções autoritárias contra o inconformismo e a emergência
de um sistema bem mais impalpável de controles sociais, que
busca não o reforço de um consenso moral, mas a substituição
do juízo moral pelas pesquisas sociológicas, enquêtes de opinião
pública e aconselhamento terapêutico, priva o romance realista
de seus alvos satíricos: a hipocrisia, a pomposidade, o idealismo
mal-dirigido, o auto-engano. Quando quase todas as instituições
caíram no descrédito, o romancista ainda comprometido com um
sentido cfe injustiça social tem que preocupar-se não tanto com
a injustiça em si — com o abuso do poder atribuído às auto­
146 O MÍNIMO EU

ridades — , mas com as afrontas sofridas por suas vítimas. Se


um escritor contemporâneo procura ressuscitar as normas do
realismo social a fim de expressar a indignação moral em nome
de um grupo específico de vítimas, ele geralmente acha difícil
estabelecer uma base independente para o juízo moral externa
à experiência especial das próprias vítimas. Se ele se fiar na
narração dos males infligidos às mulheres, ou aos negros, aos
pacientes mentais, aos idosos e aos índios, ver-se-á incapaz de
explicar o que faz dessas injúrias fatos esclarecedores ou repre­
sentativos. Ao contrário, ele em geral acaba por tomar a posi­
ção de que uma longa experiência de vitimação torna a opressão
ininteligível para os estranhos. É tão difícil para um branco
entrar na mente de um negro como para um homem compreen­
der o que significa ser mulher, explica-nos ele. A literatura do
relato e da denúncia social, não menos que a literatura da reti­
rada solipsista, reduz a experiência a uma forma de programa­
ção que impossibilita a identificação imaginativa. Se pessoas
programadas como protestantes brancas e anglo-saxônicas * não
podem entrar vicariamente nas vidas de pessoas programadas
como negros, ou índios ou chicanos, a experiência perde a qua­
lidade da casualidade, não apenas no sentido de que o “con­
dicionamento” cultural governa as ações livremente iniciadasr
como também no sentido de que a experiência individual de
uma pessoa não mais se vincula, de nenhum modo, a de outra.
O romance realista chega, portanto, à mesma conclusão alcan­
çada anteriormente pelo romance experimental: como disse Bur-
roughs, “não há nenhum propósito em dizer qualquer coisa”.
De movimento que outrora vicejou baseado no impacto, o
modernismo transformou-se em algo tão predizível em seu ne­
gativismo, como o vitorianismo, na pior das hipóteses, era pre­
visível em seu otimismo e em sua elevação moral. Inicialmente
antiacadêmico, o modernismo congelou-se em um novo acade-
micismo, um conjunto de dogmas críticos tão asfixiante para
a imaginação criadora como os dogmas que substituiu. O fun­
cionalismo enrijeceu-se no formalismo, o monólogo interior no
solipsismo. O conceito corrente de pós-modernismo expressa o
*
(*) White Anglo-Saxon Protesíants (WASP): expressão que designa
a elite dominante dos Estados Unidos. (N.T.)
A ESTÉTICA MINIMALISTA: ARTE E LITERATURA EM UMA... 147

consenso cada vez maior de que o impulso modernista se esgo­


tou, mas não arrisca nenhuma previsão sobre o destino de nossa
cultura ou sobre o que tomará o lugar do modernismo. Em
contraste, na fase de seu pleno vigor criativo, durante a pri­
meira metade deste século, o movimento modernista não hesitava
em proclamar-se a arte do futuro, mesmo quando não se identi­
ficava especificamente com o futurismo. Não somente os pri­
meiros modernistas acreditavam que o século XX poderia ainda
terminar com mais brilho do que havia principiado, como acre­
ditavam que a arte e a literatura modernas, a música e a arqui­
tetura, carregavam presságios de um futuro melhor e, na ver­
dade, ajudavam ativamente a criar o futuro. Os artistas, de
acordo com Walter Gropius, estavam destinados a se tornarem
“arquitetos de uma nova civilização”. A arte moderna conferia
a si própria, mesmo quando muito negativa e desalentada, nada
menos que a tarefa de humanizar a ordem industrial. A arte
deveria corrigir o espírito materialista e aquisitivo e liberar in-
suspeitadas energias criativas no conjunto da sociedade.
O debilitamento dessas esperanças destruiu a confiança do
artista moderno em seu poder até mesmo de compreender a
história, sem falar no de transformá-la. Deixou-o com a atitude
passiva, espectadora e voyeurista frente à história, tão carac­
terística dos sobreviventes. “Nós aprendemos a ficar fora de
nossa história e a observá-la, sem sentir muita coisa”, diz um
personagem em Gravity’s Rainbow; e o mesmo pode ser dito
dos artistas e escritores contemporâneos. Eles podem oferecer
representações eminentemente plausíveis do mundo que nos cer­
ca; podem oferecer relatos vívidos de um certo tipo de expe­
riência interior; mas o que eles raramente conseguem é ligar
os dois aspectos. Quando procuram reviver as técnicas do rea­
lismo, proporcionam, na melhor das hipóteses, relatos da rea­
lidade que pouco transmitem da experiência do real. Quando
renegam o realismo, comunicam a experiência contemporânea
de desamparo, vitimação e autoconsciência paralisada sem, no
entanto, vinculá-la a qualquer vida social mais ampla fora do
eu. A única experiência que eles transmitem com alguma con­
vicção é, em suma, a da irrealidade — pouco importa se “para­
nóica” ou “antiparanóica”.
Á história
interna da Individualidade

Unidade e separação

A relevância fundamental da distinção entre o eu e o nâo-


eu (fonte de todas as outras diferenças, como já foi dito, corre­
tamente) pode sugerir que ela funciona como o primeiro prin­
cípio da vida mental, a premissa axiomática sem a qual esta
sequer pode se iniciar. No entanto, trata-se de uma distinção
aceita, no começo da vida, somente com a maior relutância,
após violentos conflitos internos para negá-la; e ela permanece
como fonte de nossa inquietação existencial, assim como fonte
de nosso domínio intelectual sobre o mundo que nos cerca.
A vida mental, em seu sentido mais amplo (enquanto opos­
ta à vida da mente), não se inicia com uma compreensão clara
das fronteiras entre o eu e o mundo circundante dos objetos,
mas, ao contrário, com o sentimento jubiloso de paz e união
“ oceânicas”, como as denominou Freud. De início, a indivi­
dualidade se apresenta como uma separação dolorosa em rela­
ção ao meio circundante, e essa experiência primária de perda
esmagadora torna-se a base de todas as experiências subseqüen-
tes de alienação, bem como dos mitos históricos de uma idade
de ouro perdida e do mito da queda em desgraça original, pre­
sente em tantas religiões. Tal como as melhores expressões da
arte, a religião procura justamente restaurar o sentido original
150 O MÍNIMO EU

de união com o mundo, mas apenas após reconhecer o fato da


alienação, concebida como pecado original, como hubris (*) se­
guida de punição divina, como isolamento e separação existen­
ciais ou, no campo das artes (especialmente na música, que
transmite essas experiências no seu nível mais profundo), como
o ritmo da tensão e do alívio, conflito seguido pela paz interior.
O que distingue a arte contemporânea da arte do passado,
pelo menos da arte do século XIX e do início do século XX,
é a tentativa de restaurar a ilusão de unidade sem nenhum
reconhecimento de uma experiência intermediária de separação.
Em vez de tentar vencer essa separação e superar as dificulda­
des, a fim de chegar a uma pausa arduamente conseguida, na
luta espiritual, a maior parte da literatura e da arte dos tempos
atuais, bem como a maioria de nossa música “ avançada”, sim­
plesmente nega o fato da separação. Ela vê o mundo circun­
dante como uma extensão do eu, ou vê o eu como algo pro­
gramado por forças externas. Imagina um mundo no qual todas
as coisas são intercambiáveis, onde os sons musicais, por exem­
plo, são sentidos como qualquer outro tipo de som. Elimina a
individualidade em benefício do anonimato. Como a definiu,
em 1958, o compositor de vanguarda Christian Wolff, num
artigo denominado “Música nova e eletrônica”, essa nova mú­
sica incorpora “ uma preocupação por um tipo de objetividade,
quase o anonimato — o som ganha um lugar central. A ‘mú­
sica’ é um resultado simplesmente existente nos sons que ouvi­
mos, não supondo nenhum estímulo das expressões do eu ou
da personalidade” . Dessa forma, a música, como as outras
artes, liberta-se do “ talento e do gosto artísticos” ; exclui “ a
expressão, o drama e a psicologia pessoais” . Na mesma ver­
tente, John Cage, saudando Edgar Varèse como fundador da
nova música, nota que este “patrocinou o ingresso dos ruídos
na música do século XX”, mas lamenta os seus “maneirismos”
que “ se destacam como assinaturas (pessoais)” . Cage exorta
os compositores a “ deixarem os sons serem apenas sons” e a
abandonarem toda tentativa de impor ordem neles, “ desistindo
do controle, para que os sons possam ser sons” .
O artista de vanguarda defende uma suspensão ou aboli­
ção do controle consciente, como vimos, não com o intuito de

(*) Hubris: palavra grega que significa insolência suprema. (N.T.)


A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 151

abrir-se aos impulsos de seus pensamentos e desejos inconscien­


tes, mas com o fim de extinguir toda a sugestão de sua própria
personalidade. É por isso que Cage chega a esforços tão ela­
borados — lançando moedas, consultando o I-Ching, utilizando
um cronômetro para determinar o tempo de atuação — em
sua busca de efeitos aleatórios. Ele faz tudo o que está a seu
alcance para remover a possibilidade de uma determinação in­
consciente de suas idéias musicais. Não obstante, uma agenda
interior ainda está subjacente em boa parte da música, da arte
e da literatura contemporâneas, marcada pela tentativa de reto­
mar um sentido de unidade psíquica, sem levar em conta os
obstáculos, psíquicos ou materiais, que se situam no caminho
dessa unidade. O mesmo pode ser dito de vários dos cultos
religiosos que florescem atualmente, ao lado de uma profusão
de cultos e movimentos terapêuticos, experiências de cura psí­
quica e das autodenominadas contraculturas. Todos eles pro­
curam o caminho mais curto para o Nirvana. Enquanto as
grandes religiões do mundo sempre enfatizaram os obstáculos
à salvação, eles selecionam elementos de anteriores tradições
místicas do Ocidente, de mal-digeridas tradições orientais, de
movimentos de saneamento mental, de diversas expressões do
"Novo Pensamento” e de uma variedade de terapias, a fim de
prometerem a libertação imediata da carga da individualidade.
Em lugar de buscarem reconciliar o ego com o seu meio cir­
cundante, os vários cultos negam a própria distinção entre eles.
Embora reivindiquem estender o conhecimento a áreas outrora
inexploradas, promovem uma retração radical do conhecimento.
Eles se fundamentam na necessidade de não conhecer, cujas
fontes psíquicas devem ser consideradas com algum detalhe.

Fantasias originais de reunião

A dor da separação origina-se da prolongada experiência


de desamparo na infância, uma das circunstâncias que distin­
guem com mais nitidez os seres humanos dos outros animais.
O bebé humano nasce muito cedo. Ele vem ao mundo inteira­
mente incapaz de prover as suas necessidades biológicas e, por­
tanto, completamente dependente dos que cuidam dele, a quem
ele' contempla, em sua imaginação inconsciente, com poderes
152 O MÍNIMO EU

sobre-humanos. A experiência do desamparo é ainda mais do­


lorosa, porque é precedida pela satisfação “ oceânica” do útero
materno, a qual procuramos recuperar pelo resto de nossas
vidas, O trauma da separação inicia-se no nascimento e reapa­
rece sempre que a criança é deixada sozinha por sua mãe ou
sente a dor cruciante da fome, sentimentos aterradores, porque
experimentados como uma ameaça à sua própria existência.
Uma vez que a “criança efetivamente perece quando não é
adequadamente protegida e cuidada”, como observa Bettelheim,
“'não há maior ameaça na vida” que o risco de abandono. Ao
que parece, a maior parte da vida mental inconsciente dos
bebês, das crianças e dos adultos, neste aspecto, consiste eríí
defesas contra o medo do abandono e os sentimentos comple­
mentares de desamparo e inferioridade.
No útero materno, vivíamos em um estado de ditoso con­
tentamento, imperturbado até mesmo pelo desejo, que, como
é possível defender, já pressupõe a experiência da frustração.
A transposição das necessidades do corpo para o registro do
desejo, que parece tão característica dos humanos e tão estra­
nha a outros animais, principia tão-somente com o nascimento,
quando passamos a experimentar exigências instintivas não
como necessidades inseparáveis de sua satisfação, mas como um
assalto clamoroso ao equilíbrio perdido que buscamos restau­
rar. O útero materno nos propiciou uma experiência inesque­
cível de unidade absoluta com o mundo — a base de todas as
nossas sugestões de imortalidade e do infinito, subseqüente-
mente reformuladas como religião. Ao mesmo tempo, ele nos
dá um gosto de completa auto-suficiência e onipotência. A nos­
sa relação original com o universo era, ao mesmo tempo solip-
sista e simbiótica. Autosuficientes e, portanto, independentes
da necessidade de qualquer fonte externa de cuidado e alimen­
tação, nós, entretanto, desaguávamos indistintamente em nosso
meio circundante.
O nascimento põe um fim à experiência da auto-suficiência
e da união narcísicas frente ao mundo, embora muitos pais pro­
curem por algum tempo recriar algo da segurança e da satisfa­
ção do útero materno e, ainda que o próprio bebê recrie, além
disso, a atmosfera do útero, ao entregar-se ao sono por longos
períodos de tempo. O recém-nascido experimenta pela primeira
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 153

vez a fome e a separação e sente a sua posição desamparada,


inferior e dependente no mundo, tão diferente de sua anterior
onipotência. As repetidas experiências de gratificação e a ex­
pectativa de seu retorno dão ao bebê a confiança íntima para
tolerar a fome, o desconforto e a dor emocional. Todavia, estas
mesmas experiências também reforçam a sua consciência de
separação e desamparo. Elas tornam claro que a fonte de ali­
mentação e gratificação está situada fora dele, a necessidade e
o desejo em seu interior. À medida que o bebê aprende a se
diferenciar de seu meio circundante, ele se dá conta da exten­
são de sua dependência em relação aos que lhe fornecem cuida­
dos. Passa a compreender que as suas próprias vontades não
controlam o mundo. A ilusão de onipotência, sustentável en­
quanto a necessidade e a gratificação eram percebidas como
emanações da mesma fonte, dá lugar a uma dolorosa sensação
de dependência diante das fontes externas de gratificação. Em
suma, a separação do nascimento é seguida por experiências
adicionais de separação, que sublinham tanto as insatisfações
que apenas os humanos podem sentir, quanto a criatividade
que unicamente eles são capazes de suscitar. O nascimento pre­
maturo e a dependência prolongada são os fatos dominantes
da psicologia humana.
“Antes do nascimento”, escreve Béla Grunberger em seu
estudo sobre o narcisismo, o bebê “vivia num estado seguro e
estável de satisfação” , mas a sua expulsão do útero o confronta
com “ mudanças esmagadoras que estão constantemente submer­
gindo-o e destruindo o seu equilíbrio” . “Assaltado pela excita­
ção”, ele busca restaurar a ilusão perdida de auto-suficiência,
ao se recusar, por exemplo, a reconhecer em suas fantasias in­
conscientes o que a experiência o compele a reconhecer em seus
pensamentos conscientes. As fantasias grandiosas de onipotên­
cia, como acentuou antes Géza Róheim, representam uma “ ten­
tativa de encontrar o caminho de volta” a um senso primai de
união com o mundo exterior. Entretanto, somente a rejeição
completa da experiência pode proteger tais fantasias diante da
realidade de desamparo e dependência; e um afastamento es­
quizofrênico da realidade não apenas incapacita uma pessoa
para a vida comum como traz, por sua vez, uma nova série de
terrores.
154 O MÍNIMO EU

Um outro tipo de fantasia inconsciente busca mitigar a


frustração e o medo da separação não negando o fato da de­
pendência, mas recusando-se a reconhecer que os adultos dos
quais a criança depende possam vir a frustrar, tanto quanto
gratificar, os seus desejos. A criança idealiza sua mãe (e poste­
riormente também o seu pai) como uma fonte de gratificação
infindável e constante. Ao fazê-lo, ela nega também o seu pró­
prio desejo de ferir aqueles que a frustram ou desapontam.
Desafortunadamente, a superidealização dos objetos com fre-
qüência dá lugar, quando os pais idealizados continuam a inter­
ferir no prazer da criança, a uma “ desvalorização catastrófica
do objeto”, como afirma Otto Kernberg. Da mesma maneira,
as fantasias grandiosas de onipotência, difíceis de sustentar,
face à frustração e à dependência, podem se alternar com sen­
timentos de completa insignificância e abjeta inferioridade.
Em outra espécie de defesa, as fantasias infantis disso­
ciam os aspectos frustrantes dos que fornecem prazer, nos adul­
tos que lhes prestam cuidados. Em suas fantasias, a criança
nega-se a admitir que o prazer e a frustração vêem da mesma
fonte. Assim, ela inventa imagens idealizadas do seio, lado a
lado com imagens de autoridade materna ou paterna de caráter
onipotente, ameaçador e destrutivo: uma vagina devoradora,
um seio ou um pênis castradores. A criança necessita não so­
mente da alimentação da mãe, mas da segurança incondicional
e envolvente com a qual ela está associada. É justamente por­
que a necessidade biológica de nutrição está inundada de de­
sejo que a ganância do bebê é insaciável; mesmo a ausência
temporária da mãe dá origem à frustração e a sentimentos de
raiva. De acordo com Melanie Klein e seus seguidores, a crian­
ça inveja o poder que tem a mãe de oferecer ou recusar a vida
e projeta esse ressentimento na forma de figuras ameaçadoras,
imagens da “própria raiva da criança, aumentada por estar à
mercê dos pais” . Mas a tentativa de restaurar uma sensação
eufórica de bem-estar, separando as imagens associadas com
frustração das imagens gratificantes, origina dolorosos temores
de perseguição e, com efeito, chega mesmo a prejudicar a capa­
cidade para o prazer e a fruição. “ A cobiça, a inveja e a angús­
tia persecutória, vinculadas umas às outras, estimulam-se mutua­
mente, de forma inevitável.” Não é por acaso que a inveja ali­
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 155

nha-se entre os sete pecados capitais. Klein chega a sugerir que


“ ela é inconscientemente sentida como o maior de todos os pe­
cados porque estraga e prejudica o ‘bom’ objeto que é a fonte
da vida” . As associações entre a inveja e o temor da retaliação
expressam-se, em outra tradição religiosa, no conceito grego de
hubris, geralmente traduzido como orgulho, mas melhor com­
preendido como uma forma de inveja e de cobiça, com raízes
na dependência total do bebê diante dos que zelam por ele e
na sua esmagadora necessidade do calor e da alimentação por
eles propiciados. A “hubris impõe-se com mais força”, confor­
me Gilbert Murray, “ rompe limites, quebra a ordem: é seguida
pela Dike, a Justiça, que os restabelece” . A idéia grega de jus­
tiça, que pune a hubris, expressa mais ou menos o que é deno­
tado pelo conceito psicanalítico de superego. O superego repre­
senta o medo interiorizado da punição, no qual os impulsos
agressivos são redirigidos contra o ego. O superego — em todo
caso, a parte primitiva e punitiva do superego —*representa não
tanto as coerções sociais interiorizadas, como o medo da reta­
liação, evocada por poderosos impulsos para destruir a própria
fonte da vida.

Diferenças entre os sexos e a “tragédia das ilusões perdidas”

As fantasias precoces de reunião centram-se na incorpo­


ração dos objetos exteriores dos quais o bebê depende, em ou­
tras palavras, nos desejos orais associados com as experiências
de mamar, morder e sorver. À medida que a criança começa a
descobrir outras partes de seu corpo, às fantasias orais passam
a ser superpostas as fantasias anais e genitais, nas quais, por
exemplo, a criança reapropria-se da mãe e restaura, assim, a
sensação de unidade primai através da instância de seu falo.12

(12) Aqui, como no restante do ensaio, recorro ao pronome mas­


culino, fiando-me no contexto para indicar quando este é usado como
pronome genérico e quando se refere somente a meninos. Tal emprego,
já convencional, parece preferível ao canhestro “ele ou ela”, a fórmulas
como “ele/ela" e “ele(a)”, bem como ao uso do pronome feminino com
função genérica —, expressões corretas, do ponto de vista ideológico,
mas inúteis, no aspecto intelectual; servem apenas para explicitar um
compromisso, em geral inócuo, com a igualdade entre os sexos. Fica
subentendido que a igualdade sexual em si permanece como uma meta
156 O MÍNIMO EU

Quando as fantasias orais sucumbem diante da experiência


(embora, obviamente, elas nunca morram totalmente, sobrevi­
vendo nas regiões subterrâneas da mente), a criança tem que
encontrar novas formas de satisfação do desejo, unicamente para
descobrir, com o decurso do tempo, que o seu equipamento
genital é inadequado à tarefa que lhe é designada por seus
desejos inconscientes. Em cada fase de seu desenvolvimento, o
malogro e a frustração impelem a criança a um novo estágio
de autopercepção. O fracasso das fantasias orais em sustentar

altamente desejável — um objetivo que, entretanto, não parece plausível


de ser atingido apenas com o uso livre dos pronomes femininos.
No presente contexto, onde o pronome masculino é usado mais
uma vez em seu sentido genérico, admito que possa dar lugar a uma
confusão real. A afirmativa de que as meninas, tal como os meninos,
sonham tornar-se o marido de suas mães parece contradizer o senso
comum. Todavia, tal estado de coisas deixa de parecer artificial quando
nos lembramos de que o falo, como explica Juliet Mitchell em Psy­
choanalysis and Feminism (Psicanálise e Feminismo), “não constitui a
mesma coisa que o pênis real porque ele é aquilo que denota ser im­
portante". Obviamente, ele denota potência. Na vida das fantasias in­
conscientes da criança, ele aparenta conferir a seu possuidor a proprie­
dade indivisível da mãe e, ao mesmo tempo, uma certa independência
diante dela. Tanto para as meninas como para os meninos, o falo asse­
gura a posse da mãe sem a dependência desamparada da infância.
Annie Reich relata o caso de várias mulheres, cujas mães trataram-
nas como substitutas de um marido ausente ou insatisfatório, que des­
creviam fantasias atribuíveis ao desejo infantil de desempenhar o papel
do falo ausente da mãe. Uma mulher, tendo alcançado algum sucesso
como atriz, descrevia a euforia de ser admirada por uma audiência
como uma “intensa excitação experimentada em toda a superfície do
corpo e uma sensação de estar em pé, ereta, com todo o seu corpo.
Obviamente", acrescenta Reich, “ela se sentia como um falo, com todo
o seu corpo”. Outra mulher dizia que "durante a relação sexual sentia-se
como se fosse o homem com o corpo fálico fazendo amor com ela
própria, a moça”. Joyce McDougall chama a atenção para a seguinte
passagem do romance de Violette Leduc, Thérèse et Isabelle, que ex­
pressa com clareza a fantasia da menina que pensa desempenhar o papel
de parceiro sexual da mãe: "Então, mamãe está se casando! . . . Eu
costumava dizer que era sua noivinha e ela se ria . . . Agora, eu jamais
serei o seu homem. . . . Ela estragou tudo; tem tudo o que quer —
uma mulher casada. Colocou um homem entre nós duas. E éramos o
bastante uma para a outra; eu sempre estava cálida em sua cama. . . .
Ela quer uma filha e um marido. Minha mãe é uma mulher gananciosa”.
[A nota exige uma explicação: o autor procura justificar o em­
prego dos pronomes masculinos (no caso, his phallus) para o substan­
tivo neutro child (criança), como é uso corrente em inglês. Em nossa
língua, o problema não se coloca, porque o termo criança é feminino.
Não obstante, a nota original foi mantida na íntegra por sua relevância
teórica.]
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 157

a ilusão de auto-suficiência motiva a criança a assumir um inte­


resse mais intenso no restante de seu corpo, ao passo que os
conflitos que nascem da fantasia de relação sexual com a mãe
precipitam o complexo de Édipo — um evento que deve ser
compreendido, coerentemente, como uma outra variação sobre
os temas subjacentes da separação, dependência, inferioridade e
reunião.
Desde Freud, a teoria psicanalítica baseou seus maiores
avanços na descoberta freudiana de uma camada de conflito
psíquico mais profundamente encoberta, “ creto-micênica” , sub­
jacente aos conflitos edipianos, que dominaram a especulação
psicanalítica em sua fase inicial, bem como na sugestão — lan­
çada no final de O Ego e o Id e desenvolvida com maior ex­
tensão em Inibições, Sintomas e Angústia — de que a “ angús­
tia devida à separação da mãe protetora” é a fonte primeira de
conflito mental. Vem à luz agora que é a crescente percepção
da criança com relação à disparidade entre o seu desejo de
reunião sexual com a mãe e a impossibilidade de realizá-lo que
precipita o complexo de Édipo. Como já salientaram tantas ve­
zes poetas, filósofos e teólogos, os seres humanos são amaldi­
çoados com poderes imaginativos que ultrapassam as suas
capacidades corporais. A teoria psicanalítica reitera tal enfoque
quando insiste em que a precocidade do desenvolvimento men­
tal e emocional da criança, a precocidade de suas fantasias se­
xuais em comparação com as suas capacidades físicas, é a chave
não apenas para o complexo de Édipo, como também de todo
o desenvolvimento posterior da criança. O complexo de Édipo
confronta mais uma vez a criança com a “ discrepância entre
seus desejos incestuosos”, na expressão de Janine Chasseguet-
Smirgel, e a “ sua capacidade de satisfazê-los, uma discrepância
que tem suas origens na cronologia biológica do homem. . . .
O desamparo está no centro do problema”. O próprio Freud
notou que o “precoce florescimento da sexualidade infantil”
está “ destinado à extinção” não somente porque o pai proíbe
a relação sexual com a mãe, mas porque os desejos da criança
são “ incompatíveis” com o “estágio inadequado de desenvolvi­
mento (físico) atingido pela criança” . Conforme um grande
número de analistas recentes, tais observações apontam para a
necessidade de reinterpretar outros elementos da teoria freu­
158 O MÍNIMO EU

diana. A inveja do pênis, por exemplo, deve ser reinterpretada


literalmente como um desejo de apropriar-se do pênis do pai,
muito mais adequado aos propósitos da criança que o dela
própria. Ele ocorre tanto nos meninos quanto nas meninas e
significa não um reconhecimento chocante da inferioridade bio­
lógica e social da mulher, como pensava Freud, mas uma per­
cepção intensificada por parte da criança de que as suas
fantasias grandiosas de união sexual com a mãe, construídas em
primeiro lugar como uma defesa contra os sentimentos de de­
samparo, são completamente irrealistas e de que a criança con­
tinua a ocupar uma posição dependente e inferior na relação
com os pais. A inveja do pênis corporifica a “ tragédia das ilu­
sões perdidas”, como afirma Chasseguet-Smirgel. Ela vai mais
adiante para argumentar que, como não podemos jamais nos
reconciliar com o abandono das ilusões perdidas, continuamos
a elaborar fantasias que negam qualquer conhecimento das di­
ferenças sexuais. A própria teoria freudiana do monismo sexual,
aponta esta autora, incorpora elementos de tal fantasia, ao in­
sistir que as crianças não têm consciência da vagina, embora,
efetivamente, essa consciência seja reprimida, de acordo com
Chasseguet-Smirgel, apenas quando fica evidente para a criança
que ela própria (ou ele próprio) sente falta de um falo capaz
de introduzir-se naquela, recapturando, desse modo, o estado
primai de unidade.
A conhecida fantasia da mãe fálica, analisada pela primeira
vez num ensaio de Ernest Jones, atende à mesma necessidade.
Ao equipar a mãe com um falo, a criança nega-se inconscien­
temente a admitir que a mãe precisa do falo do marido. Vale
dizer, a criança rejeita que “ o que ela queria que fosse ver­
dade nunca será verdade”, como afirma Joyce McDougall:
“ que o segredo do desejo sexual funda-se no pênis ausente da
mãe; que somente o pênis do pai irá completar o órgão geni­
tal da mãe e que a criança estará para sempre alienada de seu
desejo sexual primário e de seus desejos narcísicos não satis­
feitos” . A fantasia da mãe fálica proclama, com efeito: “ Não
é verdade (que) os sexos são diferentes; meu pai não tem
importância, nem para mim nem para minha mãe. Eu não
tenho nada a temer da parte dele e, além disso, a minha mãe
apenas ama a mim” .
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 159

Às origens do superego

Um tipo diferente de defesa contra o mesmo sentimento


de inadequação é a desvalorização das características femini­
nas. A fim de negar a extensão de sua persistente necessidade
da mãe e de tudo o que esta representa, a criança edipiana
pode retirar o investimento libidinal dos órgãos e qualidades
maternas ou “projetar o poder delas no pai e em seu pênis” ,
como defende Casseguet-Smirgel. A hipermasculinidade, elevada
à condição de norma cultural, atua não apenas como uma defe­
sa pessoal contra sentimentos de desamparo e dependência, mas
como uma fantasia coletiva que expressa atitudes profunda­
mente enraizadas, características das sociedades pioneiras e das
sociedades industriais de um modo geral, que rejeitam a sua
dependência diante da natureza (a nossa mãe coletiva) e pro­
curam fazer-se auto-suficientes, através da conquista tecnoló­
gica da natureza. Os homens (e também as mulheres, obvia­
mente) que sentem uma esmagadora necessidade de negar a
dependência do apoio maternal e, em seguida, de negar qual­
quer forma de dependência, transformam-se em pioneiros, em
vez de exploradores, na ressonante terminologia de Melanie
Klein — em exploradores da natureza, em vez de amantes e
cultuadores da natureza.
Como a psicanálise tem sido com freqüência acusada de
perpetuar os preconceitos culturais contra as mulheres, é im­
portante notar que a tradição psicanalítica, em seu conjunto,
dá pouco amparo à noção de que o desrespeito pelas mulheres
é invariavelmente natural nos adultos, ou de que os homens
realizam a sua autonomia somente quando extinguem qualquer
traço de feminilidade em si. O desenvolvimento da teoria e da
prática psicanalíticas, desde Freud, tende a confirmar a visão,
expressa exatamente no último texto daquele teórico, de que
um medo da dependência e da passividade, nos homens, amiú­
de transforma-se no “ fundamento” do fracasso terapêutico na
psicanálise. “ Em nenhum outro ponto do trabalho analítico de
uma pessoa”, escreve Freud, “ sofre-se mais de um sentimento
opressivo da vanidade de seus reiterados esforços e de uma
suspeita de se estar ‘pregando para o vento’, do que . . . quan­
do se procura convencer um homem de que uma atitude pas­
160 O MÍNIMO EU

siva . . . nem sempre significa castração e é mesmo indispen­


sável em muitos relacionamentos na vida”. Os analistas
posteriores foram ainda mais longe. O desprezo pela mulher,
de acordo com Chasseguet-Smirgel, “revela a incerteza pessoal
sobre a própria auto-estima” . “ Subjacente a tal menosprezo”,
acrescenta ela, “ encontra-se sempre uma poderosa imagem ma­
terna, invejada e aterradora” .
Essas observações apontam para a conclusão mais geral
de que os sentimentos de dependência e inferioridade não ape­
nas ajudam a precipitar o complexo de Édipo, como desem­
penham uma parte importante em sua resolução. A aceitação
de tais sentimentos e da persistente necessidade de mães torna
possível renunciar ao sonho da união sexual com a mãe sem
negar a necessidade emocional por trás dele. A tradição psica-
nalítica tem. sido acusada de sustentar um modelo inflexivel­
mente patriarcal de desenvolvimento psicológico, segundo o
qual uma resolução adequada do complexo de Édipo depende
da separação total da mãe, do medo da castração e da submis­
são à realidade patriarcal de repressão sexual e trabalho alie­
nado, interiorizada sob a forma de um superego punitivo. To­
davia, nos últimos escritos de Freud, é o ego, e não o superego,
que atua como “ representante do mundo exterior, da realida­
de”, enquanto o superego — o “ herdeiro do complexo de Édi­
po” , como o chamou Freud em O Ego e o Id — “permanece,
em contraste com ele, como representante do mundo interno,
do id” . É correto que o superego consiste de introjeções pater­
nas; mas a obra posterior de Freud e os trabalhos de seus
seguidores deixam claro que as imagens interiorizadas de auto­
ridade paterna guardam pouca semelhança com a figura real
dos pais. Por essa razão, o superego não pode ser entendido
como representante da moral estabelecida, como Freud propôs
anteriormente e muitos de seus comentadores continuam a pro­
por (especialmente aqueles que vêem a psicanálise como o der­
radeiro bastião da moral patriarcal ou, por outro lado, como
a base de uma arrebatadora crítica da moral patriarcal). Ao
contrário, o superego consiste dos próprios impulsos agressivos
da pessoa, inicialmente dirigidos contra seus pais ou substitutos
dos pais, projetado neles, reinteriorizados como imagens agres­
sivas e tirânicas de autoridade e finalmente redirigidos, nessa
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 161

forma, contra o ego. As imagens da autoridade paterna destru­


tiva e punitiva originam-se não nas proibições reais dos pais,
mas no ódio inconsciente da infância, que desperta angústia
insuportável e, desse modo, tem que ser redirigido contra o
eu. De acordo com Freud, quanto mais o indivíduo “ contém
a sua agressividade” contra os outros, mais a inclinação (do
superego) à agressividade contra o ego” expõe o ego a um
implacável fluxo de condenação.13
Se o superego apenas efetivasse as exigências da realidade
quanto à censura dos impulsos anti-sociais, seria difícil com­
preender por que ele condena o ego tão injustamente, com “ as­
pereza e severidade extraordinárias” e com tão pouca consi­
deração quer pelas exigências práticas de conformismo social,
quer pela efetiva inclinação do indivíduo a zombar delas. A
curiosa asserção de Freud, segundo a qual o superego repre­
senta uma “mera cultura do instinto da morte” , parece indi­
car uma origem arcaica do superego e mesmo moderar a visão
de que ele represente o herdeiro do complexo de Édipo. As
mesmas descobertas que levaram Freud, pela primeira vez, a
dar expressão formal à teoria do complexo de Édipo parecem
diminuir a importância decisiva e determinante que ele atri­
buía a este. Elas sugerem que o complexo de Édipo deve ser
enfocado como o ponto culminante de uma longa série de con­
flitos anteriores que ajudam a predeterminar o seu resultado.
Em lugar de dizer que o complexo de Édipo lega à criança um
superego punitivo, baseado no medo da castração, seria possí­
vel dizer que a própria angústia da castração é meramente uma
forma posterior da angústia da separação, que o arcaico e vin-

(13) A terminologia associada com a teoria estrutural da mente de


Freud carrega consigo o risco de que os que a usem comecem a pensar
no id, no ego e no superego — e agora também no narcisismo e no
ideal do ego — como entidades reais, cada uma delas com personalidade
e mente próprias. É, portanto, necessário lembrarmo-nos que tais ter­
mos referem-se a diferentes formas de atividade mental: desejo, auto-
censura, autodefesa, etc. O perigo de reificar essas "instâncias" mentais
não deve impedir-nos de ver porque elas são tão úteis. Elas chamam a
atenção para o modo pelo qual a mente se divide contra si própria.
A objeção de que elas nos levam a confundir as atividades mentais
com coisas reais, bem colocada em si, traz amiúde consigo uma obje­
ção mais profunda e não mencionada à própria hipótese do conflito e
do sofrimento mentais inconscientes. Carrega com ela, vale dizer, um
desejo de ver a mente como total, e feliz.
162 O M ÍNIM O EU

gativo superego deriva do medo da retaliação materna e que,


quando muito, a experiência edipiana tempera o superego pu­
nitivo da infância ao acrescentar-lhe um princípio mais impes­
soal de autoridade, mais “ independente de suas origens emo­
cionais”, como afirma Freud, mais inclinado a apelar a nor­
mas éticas universais, e um pouco menos passível, portanto,
de associar-se com fantasias inconscientes de perseguição. Po­
deríamos especular ainda mais longe, que o superego edipiano
(o “amado e amoroso superego”, como o denomina Roy Schaf-
fer) repousa tanto no desejo de fazer reprimendas quanto no
temor de represálias, embora mesmo aqui seja visível que os
sentimentos de gratificação — as bases emocionais mais im­
portantes do que se denomina consciência — nasçam primeira­
mente em conexão com a mãe.
No conjunto, a teoria psicanalítica conduz à conclusão de
que o desenvolvimento psicológico normal não pode ser com­
preendido simplesmente como a substituição do princípio de
prazer pela autoridade patriarcal ou como uma separação abso­
luta da mãe. Em outras palavras, ela leva à conclusão de que
uma resolução satisfatória do complexo de Édipo aceita o pai,
sem trair a mãe. Análises cada vez mais elaboradas das defe­
sas precoces contra o medo e a dor da separação tornam claro
que tais defesas, tanto edipianas como pré-edipianas, comparti­
lham um impulso comum. Todas elas procuram dissolver a ten­
são entre o desejo de união e o fato da separação, quer imagi­
nando uma reunião extasiada e indolor com a mãe, quer, por
outro lado, imaginando um estado de completa auto-suficiência
e negando qualquer necessidade de objetos externos. A primeira
linha de defesa estimula uma simbiose regressiva; a segunda,
ilusões solipsistas de onipotência. Nenhuma das duas resolve o
problema da separação; ao contrário, ambas negam a sua exis­
tência. Assim, a melhor perspectiva de maturidade emocional
(caso esta fórmula pareça sugerir uma estimativa muito otimis­
ta das probabilidades de um tal resultado, ou uma distinção
muito acentuada entre patologia e desenvolvimento normal: a
melhor perspectiva de infelicidade comum, em oposição ao su­
plício mental danoso) parace basear-se numa tensão criativa
entre separação e união, individuação e dependência. Esta se
baseia num reconhecimento da necessidade e da dependência
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 163

do indivíduo diante de pessoas que, não obstante, permanecem


separadas dele e recusam-se a se submeter a seus caprichos.
Acarreta uma recusa da ilusão de que “ eu existo somente atra­
vés daqueles que nada são fora da existência que eles têm atra­
vés de mim”, como afirmou certa vez Jean Genet, numa defi­
nição que procura combinar as concepções simbiótica e so-
lipsista do eu, numa única sentença.

O ideal do ego

Desse modo, a importância do complexo de Édipo baseia-


se na destruição da ilusão infantil de onipotência. A aspiração
narcisista por trás dessa ilusão sobrevive, porém, na forma do
“ ideal do ego”, ao qual se referiu Freud anteriormente, como
o herdeiro do narcisismo primário. Os analistas subseqüentes
fundamentaram um crescente corpus de teoria nesse enfoque.
Mas, enquanto o próprio Freud passou a ignorá-lo e a empre­
gar os termos “ superego” e “ideal do ego” como intercambiá-
veis, muitos analistas defendem atualmente que o ideal do ego
possui atributos próprios e história distinta. Entretanto, descri­
ções dessa instância apresentam tal variação, que tornam difí­
cil, a princípio, encontrar alguma concordância sobre as suas
propriedades ou o seu desenvolvimento. Kn geral, o ideal do
ego, tal como o superego, consiste em repi tentações interiori­
zadas da autoridade dos pais; mas o superego interioriza o as­
pecto intimidativo dessa autoridade, enquanto o ideal do ego
sustenta imagens reverentes e idealizadas dos pais e de outras
autoridades, vistas como modelos aos quais o ego deve aspirar.
Como o ideal do ego ajuda a sublimar os impulsos libidinais
num desejo de viver de acordo com o exemplo dos pais e
professores, ou com o empenho da perfeição ética, afguns ana­
listas o vêem como uma formação mais altamente desenvolvida
e madura que o superego, melhor integrada e mais próxima da
realidade. Conforme Ernest Jones, o ideal do ego é consciente,
o superego é inconsciente. Segundo Erik Erikson, o “ senso de
identidade do ego” baseia-se na “experiência acumulada da ca­
pacidade do ego para integrar” as identificações infantis com
164 O M ÍNIM O EU

as “ vicissitudes da libido, com as aptidões desenvolvidas a par­


tir dos dotes naturais e com as oportunidades oferecidas nos
papéis sociais” .
Outros observadores, porém, insistem que o ideal do ego
é mais primitivo que o superego, tanto em suas origens como
em sua inclinação para o pensamento mágico e a satisfação alu­
cinatória dos desejos” . De acordo com Annie Reich: “A for­
mação do superego está baseada na aceitação da realidade”,
enquanto o ideal do ego nasce de uma “ negação das limitações
do ego bem como das dos pais” e do desejo de “ reconquistar
a onipotência infantil através da identificação com os pais idea­
lizados” . fohn M. Murray salienta que “ a angústia relacionada
com a perda do ideal do ego (isto é, com a perda da própria
opinião positiva sobre si mesmo) . . . está claramente relacio­
nada ao medo original da perda da mãe” . Ele e vários outros
chamaram a atenção para os traços regressivos do ideal do ego:
suas grandiosas fantasias de onipotência, o seu senso de “intitu-
lação narcisista”, a sua reversão a padrões orais de dependên­
cia, a sua esperança de “ retorno ao Xangrilá perdido ao lado
da mãe da infância” . A formulação do próprio Freud — o
herdeiro do narcisismo primário — sugere uma interpretação
similar.
Em vista da falta de concordância sobre as suas proprie­
dades e o seu desenvolvimento, o ideal do ego pode parecer
um conceito inútil e nebuloso. No entanto, se investigarmos o
problema com mais cuidado, veremos que a dificuldade em
caracterizar o ideal do ego indica precisamente por que o con­
ceito é indispensável. Ele chama a atenção para os vínculos
que se estabelecem entre as formas mais elevadas e as mais
inferiores da vida mental, entre as mais exaltadas aspirações
de transcendência espiritual e as anteriores ilusões de onipo­
tência e auto-suficiência. Mostra como o impulso de restaura­
ção de tais ilusões expressa-se em fantasias regressivas de uma
mágica simbiose com o mundo ou de uma auto-suficiência ab­
soluta, como também em uma dedicada exploração do mundo
por meio da arte, da alegre curiosidade científica e das ati­
vidades da criação e da cultura. O ideal do ego é de difícil
definição porque, mais que qualquer outro conceito psicana-
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 165

lítico, ele apreende a qualidade contraditória da vida mental


inconsciente. Na expressão de Samuel Novey, ele se refere
‘'àquela parte particular dos objetos introjetados, cuja opera­
ção funcional está relacionada com os padrões de pensamento,
com os sentimentos e com as condutas propostas, adquiridas
em uma fase posterior ao superego edipiano, mas que têm
suas raízes nas precoces operações narcísicas pré-genitais con­
tra a angústia (da separação)”. Concomitantemente avançado e
regressivo,

o ideal do ego abarca uma órbita que se estende do nar­


cisismo original ao ‘imperativo categórico’, das formas
mais primitivas de vida psíquica aos níveis superiores das
realizações humanas. Quaisquer que sejam tais realizações,
elas emergem do paradoxo de nunca alcançar a almejada
satisfação ou saciação, por um lado, e de sua busca inces­
sante, por outro. Essa procura estende-se em direção ao
futuro infinito que se funde na eternidade. Assim, o pavor
do caráter finito do tempo, o pavor da própria morte,
torna-se não-existente, como o fora outrora no estado do
narcisismo primário.
Potencialmente, o ideal do ego transcende a angústia
da castração, impulsionando assim o homem para feitos
incríveis de criatividade, heroísmo, sacrifício e desprendi­
mento. Morre-se pelo ideal do ego, mas não se permite
que ele morra. Ele constitui a mais intransigente influên­
cia sobre a conduta do indivíduo maduro.

O conceito do ideal do ego ajuda-nos assim a lembrar que o


homem pertence ao mundo natural, mas possui a capacidade
de transcendê-lo e, ademais, que a capacidade de auto-reflexão
crítica, de adesão aos mais exigentes padrões de conduta e de
heroísmo moral está, ela própria, enraizada no lado biológico
da natureza humana: no medo da morte, no sentimento de de­
samparo e inferioridade e na ânsia de restabelecer um senso
de unidade primal com a ordem natural das coisas.
Na literatura psicanalítica, as descrições parciais do ideal
do ego resultam de uma incapacidade de apreender as suas
qualidades contraditórias e de considerar ambos os lados da
contradição, simultaneamente. Alguns autores conceituam o ideal
do ego, enfocando apenas os seus traços maduros e mitigado-
166 O MÍNIMO EU

res. Outros vêem apenas o seu lado regressivo. Empenhado na


busca da reunião com a mãe, embora constantemente frustrado
nessa procura, o ideal do ego pode tornar-se a base de uma
posterior aceitação carinhosa do mundo e não do medo da pu­
nição. Por outro lado, ele pode também estimular soluções alta­
mente regressivas para o problema da separação. “ Com o fim
de unir-se outra vez com o ego”, escreve Chasseguet-Smirgel,
no estudo definitivo sobre o tema, o ideal do ego “pode esco­
lher quer a rota mais curta, a mais regressiva, quer a evolu­
cionária” . O desejo alimenta obstáculos e a frustração pode
impelir a criança ao complexo de Édipo, no qual o desejo da
simbiose associa-se à fantasia recentemente concebida (e ela
própria destinada à dissolução) da reunião incestuosa com a
mãe. Por outro lado: “ Se a mãe iludiu seu filho, fazendo com
que ele acreditasse que, com a sua sexualidade infantil (pré-
genital), ele poderia ser um perfeito parceiro para ela, . . . o
seu ideal do ego, em vez de investir em um pai genital e seu
pênis, permanece atado a um modelo pré-genital” . Ao invés de
aceitarmos a evidência de nossa dependência e desamparo,
mesmo quando essa evidência torna-se quase impossível de ig­
norar, nós nos aferramos até onde for possível à ilusão de
auto-suficiência. Mesmo o medo da castração é preferível a um
reconhecimento de nossa insignificância. De acordo com Grun-
berger, a fantasia do incesto proibido serve para impedir ou
postergar a aceitação de que a nossa própria incapacidade, não
a ameaça paternal de castração, evita que nos reunamos com
nossa mãe em uma eufórica aproximação do útero materno.
O medo é um sentimento mais fácil de suportar que a impo­
tência. Aqui, mais uma vez, a teoria psicanalítica encontra con­
firmação nas observações dos poetas e filósofos. “ Se cada um
de nós tivesse que confessar o seu mais íntimo desejo” , escreve
o ensaísta E. M. Cioran, “ aquele que inspira todos os seus
atos e projetos, ele diria ‘Eu quero ser elogiado’. Todavia,
nada o levará a confessar tal coisa, pois é menos desonroso
cometer um crime que anunciar uma fraqueza tão humilhante
e deplorável, originária de uma sensação de solidão e insegu­
rança, um sentimento que aflige tanto os afortunados como os
desafortunados, com igual intensidade”.
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 167

O narcisismo enquanto oposto ao egoísmo comum

Se a busca da auto-estima e da perfeição perdida conduz


a resultados contraditórios, isso é um reflexo da qualidade con­
traditória do próprio narcisismo, um desejo esmagador de viver
em uma extática liberdade frente ao desejo. Grunberger defen­
de, em seu estudo sobre o narcisismo, que, como este tem suas
raízes em experiências que antecedem à consciência da separa­
ção, ele deve ser diferenciado tanto das pulsões libidinais como
das pulsões de autoconservação e deve ser compreendido como
um “ sistema” separado, totalmente independente do desejo pul-
sional por gratificação física. O narcisismo evidencia uma certa
indiferença para com os desejos físicos. Ele procura “ existir,
nesta terra, livre tanto do desejo como do corpo” . Por essa
razão, Grunberger rejeita a definição freudiana do narcisismo
como a contraparte libidinál da pulsão de autoconservação. O
narcisismo precede a emergência do ego, que se origina de uma
consciência de individuação. Em sua forma original, o narci­
sismo é indiferente à separação do eu em relação ao seu meio
circundante, ao passo que, em sua forma posterior, ele procura
sempre anular a consciência da separação. Na expressão de
Grunberger, ele tem apenas “ desprezo” pelo “fraco e temero­
so” ego. Em sua busca incessante de equilíbrio e união perfeita
com o seu meio circundante, ele se assemelha não tanto a um
revestimento libidinál do ego como ao impalpável “ princípio
de Nirvana” que Freud procurou captar em sua dúbia formu­
lação sobre a pulsão de morte. Exceto pelo fato de que ele não
constitui uma pulsão e não procura a morte, mas a vida eterna,
o narcisismo se ajusta completamente à descrição freudiana do
anseio da cessação absoluta da tensão, que parece operar in­
dependentemente do princípio de prazer (“ além do princípio
de prazer”) e segue uma “ trajetória inversa que conduz à com­
pleta satisfação” . O narcisismo anseia pela ausência do anseio,
a paz absoluta defendida como o estado mais elevado da per­
feição espiritual, em tantas tradições místicas, e também sus­
tentada, como vimos, em boa parte da arte e da literatura con­
temporâneas. Ele busca libertar-se da prisão do corpo, não por­
que procure a morte — embora possa levar as pessoas a come­
ter o suicídio —, mas porque não possui uma concepção da
morte e encara o ego corporal com uma forma inferior de vida,
168 O M ÍN IM O EU

assediada pelas prementes exigências da carne. Ele segue uma


‘‘trajetória inversa” em direção a um paraíso perdido, mas pode
também tornar-se a base de um maduro idealismo tão exaltado
que sacrificará o conforto físico por uma causa, e mesmo a
própria vida, preferindo a morte à desonra.
O seu desdém pelas exigências do .corpo e pelo ego, que
deve atendê-las, ao mesmo tempo que as mantém sob controle,
distingue o narcisismo do egoísmo comum ou da pulsão de
sobrevivência. Por não compreender a morte, o narcisismo é
indiferente ao tema da sobrevivência.14 A consciência da morte
e a determinação de permanecer vivo pressupõem uma percep­
ção dos objetos como distintos do eu. A existência separada do
ego e a sua desamparada dependência vital em relação a tuto­
res externos a ele fundamentam o meio da mortalidade. Uma
vez que o narcisismo não reconhece a existência separada do
eu, enquanto coisa distinta do ego corporal, ele não teme a
morte. Narciso afoga-se em seu próprio reflexo, sem jamais
compreender que é um reflexo. Ele toma a sua própria imagem
por outra pessoa e procura abraçá-la sem cuidado com a sua

(14) Na prática clínica, de acordo com Grunberger, "verifica-se com


freqüência que a busca de um indivíduo por um ideal narcísico alta­
mente valorizado supera em importância todos os seus interesses do ego,
uma situação que pode, através de uma série sistemática de atos hostis
ao ego, resultar finalmente em sua supressão total (pela morte)”. Eis
aqui outra razão para se rejeitar a primeira das duas conceituações de
narcisismo oferecidas por Freud: investimento libidinal do ego, afasta­
mento de um interesse erótico nos outros. Em seu ensaio "Sobre o nar­
cisismo” e em escritos posteriores, Freud oferecia dois modos totalmente
diferentes de pensar o narcisismo, como já apontou Jean Laplanche,
e foi o segundo que acabou por preponderar. A segunda tese, na expres­
são de Laplanche, “reconstituiria a evolução da psique humana par­
tindo de uma espécie de estado inicial hipotético no qual o organismo
formaria uma unidade fechada em relação a seu meio circundante. Esse
estado não seria definido por um investimento do ego, uma vez que
seria anterior à própria diferenciação de um ego, e sim por uma espé­
cie de estagnação . . . em uma unidade biológica concebida como não
tendo objetos (o grifo está no original)". Assim, o sono seria o estado
narcísico prototípico, e não a excessiva auto-admiração ou uma falta
de interesse nos outros (exceto na medida em que também se considere
que isso está implícito no sono). Quanto aos sonhos, de acordo com
Grunberger, eles nascem não apenas de um conflito entre desejos proi­
bidos e o superego censurador, mas de um conflito ainda mais profundo
entre o anseio narcísico por equilíbrio e desejos pulsionais imperiosos,
que perturbam o equilíbrio. Como salientou Freud, os sonhos não ser­
vem somente como satisfação dos desejos; eles também preservam o sono.
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 169

segurança. O problema da história não é que Narciso se apai­


xona por si mesmo, e sim que ele não consegue reconhecer o
seu próprio reflexo, que perde qualquer idéia da diferença
entre ele próprio e o seu meio circundante. Segundo Grunber-
ger, “ o que o mantém enfeitiçado, sobre a superfície da água
— além da sua própria face — é um retorno ao fluido amnió-
tico, uma profunda regressão narcísica” .
Um estudo do narcisismo confirma a observação de que
a diferenciação entre o eu e o não-eu é a base de todas as ou­
tras distinções, inclusive da distinção entre a vida e a morte.
Vimos já que o anseio narcísico de fusão conduz a uma nega­
ção tanto das diferenças sexuais como das de geração. O nar­
cisismo do bebê ensina-lhe que ele é um perfeito par para sua
mãe a quem ele fornece, ademais, um falo próprio dela, com o
fim de negar a sua necessidade de ter um marido. Uma fanta­
sia equivalente das meninas (que também sonham, diga-se de
passagem, com engravidar a mãe) toma a forma de um desejo
de tornar-se grávida sem nenhuma intervenção paterna. Em
ambos os sexos, o narcisismo rejeita a solução edipiana para o
problema da separação, na qual a criança renuncia à fantasia
de uma reunião imediata com a mãe, na esperança de desen­
volver papéis adultos que prometem algo da mesma potência
anteriormente associada à ilusão infantil de auto-suficiência.
Nas fantasias narcísicas de reunião, que negam a necessidade
de pais, o “ não reconhecimento das diferenças entre as gera­
ções”, conforme Chasseguet-Smirgel, “ está intimamente rela­
cionado ao não reconhecimento da diferença entre os sexos” .
O narcisismo vive de ilusões, ao menos em suas formas mais
regressivas. O “ não reconhecimento” define a sua postura ca­
racterística frente a seu meio circundante. No entanto, pode
também servir como a base de um ideal do ego que busca
restaurar o senso de totalidade, não através das ilusões de oni­
potência e auto-suficiência, mas precisamente através de uma
busca desinteressada da verdade.

A infância numa cultura narcisista

Se a designação da cultura contemporânea como uma cul­


tura do narcisismo possui algum mérito, é porque tal cultura
170 O MÍNIMO EU

tende a favorecer as soluções regressivas no lugar das soluções


“evolucionárias” (na expressão de Chasseguet-Smirgel) para o
problema da separação. Três vertentes do desenvolvimento so­
cial e cultural apresentam-se como particularmente importantes
no estímulo a uma orientação narcisista da experiência: a emer­
gência da assim chamada família igualitária; a crescente expo­
sição da criança a outras agências socializadoras além da fa­
mília; e o efeito geral da moderna cultura de massa, no sentido
de romper as distinções entre ilusões e realidade.
A família moderna é o produto da ideologia igualitária,
do capitalismo de. consumo e da intervenção terapêutica. No
século XIX, uma combinação de filantropos, educadores e re­
formadores sociais passou a defender a domesticidade burguesa
como um corretivo tanto à intemperança como à “ desmorali­
zação” correntes das classes inferiores. Desde o princípio, as
“profissões de assistência” alinharam-se com os membros m^is
fracos da família, contra a autoridade patriarcal. Elas colocaram
a dona-de-casa contra seu marido e procuraram fazer das mu­
lheres os árbitros da moralidade doméstica. Fizeram-se defen­
soras dos direitos das crianças, condenando o poder arbitrário
supostamente exercido pelos pais sobre as suas proles e ques­
tionando também a competência deles. Um resultado de seus
esforços foi submeter as relações entre pais e filhos à super­
visão do Estado, executada pelas escolas, pelas agências de
assistência social e pela justiça de menores. Um outro resultado
foi alterar o equilíbrio de forças no interior da família. Os
homens perderam para as mulheres grande parte de sua auto­
ridade sobre as crianças, ao passo que estas ganharam uma certa
independência frente a ambos os pais, não apenas porque ou­
tras autoridades asseveraram jurisdição sobre a infância, como
também porque os pais perderam confiança nas velhas normas
de educação e hesitavam em afirmar as suas próprias colo­
cações em face de especialistas profissionais.
No século XX, a indústria da propaganda debilitou ainda
mais a autoridade dos pais, com a sua glorificação da juventude.
Tal como as profissões assistenciais, a propaganda insistia em
que os pais deviam aos filhos o melhor de todas as coisas, ao
mesmo tempo que enfatizava que eles tinham um conhecimen­
to rudimentar das necessidades das crianças. A propaganda fo­
A H ISTO RIA INTERN A DA INDIVIDUALIDADE 171

mentou igualmente a “ libertação” da mulher da labuta domés--


(ica e da puritana repressão sexual. De modo geral, a cultura
do consumo pregou a idéia de que as mulheres e as crianças
deveriam ter igual acesso, como consumidores, a uma crescente
abundância de mercadorias. Concomitantemente, reduziu o pa­
pel do pai, na família, à função de ganhar o pão.
Essas transformações dificilmente se combinariam para
gerar uma revolução “ matriarcal”, como defenderam algumas
vezes os antifeministas; tampouco criaram uma família centra­
da na criança, no sentido de dar a ela um poder de veto sobre
a autoridade dos pais. Tais mudanças libertaram as mulheres
e as crianças do despotismo patriarcal no lar, mas pouco fize­
ram para fortalecer a sua posição no mundo exterior. No caso
das crianças, o declínio da autoridade dos pais (por mais
opressiva que tenha sido a autoridade paterna nos velhos tem­
pos) acabou por se transformar numa vantagem duvidosa. Não
somente privou as crianças da orientação paterna, como cami­
nhou de mãos dadas com um segundo padrão de transforma­
ção histórica de longo termo, a substituição parcial da família
pelas outras agências socializadoras, que expuseram as crian­
ças a novas formas de manipulação, de sedução sexual e, mes­
mo, de exploração sexual direta. O sistema escolar, as profis­
sões de assistência à infância e a indústria da diversão apro­
priaram-se hoje de grande parte das atividades disciplinares,
educativas e de custódia, anteriormente efetuadas pela família.
As suas atenções à criança tentam combinar os piores traços
dos antigos sistemas de educação infantil. Por um lado, refor­
çam a segregação social dos jovens, sempre característica da
sociedade burguesa, privando a criança, assim, da exposição
à conversa dos adultos, à experiência prática de mundo e à
participação na vida profissional da comunidade. Por outro,
expõem a criança demasiadamente cedo à vida sexual dos adul­
tos, às vezes na equívoca esperança de divulgar uma cultura
sexual cientificamente fundamentada, outras vezes (como no
caso dos meios de comunicação de massa) com a intenção de­
liberada de enlevar uma audiência jovem. Em muitas socieda­
des pré-industriais, as crianças são também confrontadas bas­
tante cedo com as “ coisas da vida” , mas raramente com tão
completo desdém pela sua capacidade de absorvê-las. A pro­
172 O MÍNIMO EU

míscua sociabilidade descrita pelos historiadores do antigo re­


gime europeu pode ter despertado uma curiosidade sexual pre­
coce nas crianças, mas a educação e a cultura de massa
modernas vão provavelmente mais longe, ao mergulhar a crian­
ça na dimensão sexual da experiência adulta, antes que ela
esteja pronta para compreendê-la ou compartilhá-la. Tampouco
essa doutrinação sexual alcança o seu objetivo (o objetivo de­
clarado pelos educadores, de todo modo) de facilitar à criança
a sua transição para o mundo adulto. Como explica Bruno
Bettelheim, em seu livro sobre os contos de fadas, as mal con­
cebidas tentativas de substituir por uma moral mais realista e
esclarecida o senso de justiça vingativo e punitivo, presente
nos contos de fadas, ou de superar a repulsiva descrição da
sexualidade adulta aí encontrada, através da propaganda sobre
o sexo “ saudável”, colaboram, na realidade, para ampliar a
distância emocional entre adultos e crianças. De acordo com
Bettelheim, confrontar as crianças com informações para as
quasi elas estão psicologicamente despreparadas prejudica a con­
fiança infantil na autoridade adulta. “ A criança passa a sentir
que ela e eles vivem em mundos espirituais diversos.” A ex­
posição prematura ao moderno racionalismo científico e à
sexualidade adulta “ favorece a descontinuidade entre as gera­
ções, dolorosa tanto para os pais como para a criança”.
Se Bettelheim está com a razão, a questão de saber se as
crianças sofrem de uma “ nova precocidade” ou de um período
desnecessariamente prolongado de dependência econômica emo­
cional — interpretações igualmente plausíveis sobre a infância
contemporânea, propostas por críticos das práticas educacionais
correntes — é uma questão mal formulada. Nenhum dos modos
de pensar sobre a condição da criança consegue apreender a
qualidade da infância, numa sociedade que se apresenta indi­
ferente às necessidades não somente das crianças, como das
gerações futuras, de maneira geral. A negligência para com as
crianças é parte de um modelo mais amplo de descaso, que
inclui a imprudente exploração dos recursos da natureza, a
poluição do ar e da água, e o desejo de arriscar-se a guerras
nucleares “ limitadas” como instrumentos de política nacional.
Uma reportagem recente do Globe Sc Mail, de Toronto,
anunciando que a “mística paternal entrou em irreversível de­
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 173

clínio”, dá o tom da atitude predominante sobre a infância.


Um professor secundário, citado nessa reportagem,, nota que
“ as crianças podem ser divertidas, em pequenas doses, mas
também podem ser implacavelmente exigentes. Eles não têm tem­
po para as fantasias dos outros, só para as delas” . Um docente
universitário salienta que as crianças “ transformam a nossa
companheira em mãe, uma das formas mais deprimentes que
um ser humano pode assumir” . Tais afirmativas, ao lado de
uma profusão de outros indícios, sugerem que as crianças pa­
garam um alto preço pela nova liberdade gozada pelos adultos.
Elas gastam um tempo demasiadamente longo assistindo à te­
levisão, uma vez que os adultos usam o aparelho de TV como
baby-sitter e substituto para o cuidado e a disciplina dos pais.
Passam boa parte de seus dias em centros infantis que, em sua
maioria, oferecem a espécie mais precária de cuidados. Alimen­
tam-se com comida ordinária, ouvem música ordinária, lêem
histórias em quadrinhos ordinárias e despendem horas infindá­
veis jogando videogames, porque os seus pais estão demasiado
ocupados ou aflitos para poder oferecer-lhes alimentação ade­
quada ao corpo e à mente. Freqüentam escolas de terceira
classe e recebem dos mais velhos um aconselhamento moral de
terceira categoria. Muitos pais e educadores, após assimilar
uma moral terapêutica e um equívoco conceito de igualitaris-
mo, hesitam em “ impor” os seus padrões morais aos jovens
ou em parecer abertamente “ sentenciosos” . De acordo com um
estudo psiquiátrico citado por Marie Winn em seu livro
Children without Childhood (Crianças sem Infância): “ A maio­
ria dos pais esquivam-se, assustados, de afirmar que eles, e
não as crianças, devem estabelecer as normas, e alguns pais
defendem que todos devem ser iguais” . Os pais de um menino
de onze anos, que empurrou sua mãe por uma porta, quebrou-
lhe uma costela e bateu em seu rosto, enquanto ela estava
estendida no chão, disseram a um entrevistador que lhes pediu
uma avaliação moral sobre os atos da criança: “ Ele não estava
nem certo nem errado” .15

(15) É desnecessário dizer que essas atitudes não são, de modo


algum, universais. Em um estudo comparado sobre centros de atendi­
mento diário, Valerie Polakow Suransky inclui um capítulo sobre uma
escola maternal para crianças de baixa renda voltada basicamente para
meninas e meninos negros, onde professores negros, auxiliados por três
174 O MÍNIMO EU

Um sintoma ainda mais perturbador da presente indife­


rença frente às necessidades das crianças é a crescente tendên­
cia a explorá-las sexualmente no cinema e na propaganda e
talvez mesmo nas práticas reais. Há indícios de que o incesto
está em ascensão. Verdade ou não, “um bando de pesquisa­
dores sexuais, radicais acadêmicos da matéria e outros grupos
e personalidades influentes têm estimulado a idéia”, conforme
nota Vance Packard, em Our Endangered Children (Nossas
Crianças Ameaçadas), de que o incesto pode levar à “ verda­
deira intimidade no seio da família, numa época em que o
nosso mundo está-se tornando cada vez mais despersonalizado” ;
ainda segundo eles, “ as idéias antiquadas sobre o incesto, hoje
vigentes, podem ser comparadas aos temores relacionados à
masturbação, um século atrás” . Packard considera corretamen­
te a idéia do “ incesto salutar” como um dos sinais mais reve­
ladores do fatalismo quanto às crianças que permeia a nossa
cultura atual: o sentimento de que os adultos são desampara­
dos no trato com as crianças, não dispõem de poder para ofe­

avós, põem em prática uma "disciplina tradicional de firmeza e amor",


como a define seu diretor. A supervisão dos professores combina o
carinho físico com a orientação moral sem ambigüidades. Os adultos
não hesitam em separar as brigas entre as crianças, em qualificar as
ações como certas ou erradas ou em insistir no respeito devido a eles
como adultos; contudo, tampouco se conservam pedagogicamente distan­
tes das crianças ou procuram estabelecer um modelo de moderação emo­
cional. A cena seguinte oferece uma vívida idéia de uma atmosfera
moral situada a anos-luz de distância do clima predominante em muitos
lares de classe média:
"Certa manhã, Cedric e Benjamin trocavam tapas, puxavam-se o
cabelo e se esmurravam. Deixou-se que ‘resolvessem a questão’. Entre­
tanto, quando a briga aumentou, a professora Pat dirigiu-se ao armário
e trouxe uma caixa de saquinhos de feijão, dizendo: ‘Aqui está, jo­
guem isso um no outro’. Em poucos minutos as crianças estavam rin­
do, envolvidas numa agitada ‘guerra de favos’. Entraram outras crian­
ças, fizeram-se divisões e logo todos os trinta alunos, os assistentes e
três avós de setenta e cinco anos se esquivavam, arremessavam favos
e faziam a maior algazarra.”
Compare-se a situação contrastante que Suransky encontrou em uma
escola summerhilliana, onde se permitia às crianças maltratarem-se entre
si e provocarem os professores e onde, em conseqüência, “a ‘sobrevivên­
cia do mais forte’ parecia ser a norma”. Dogmaticamente apegados à
“criatividade” e à “livre-expressão”, os adultos desta escola experimental
e progressista nunca defendiam uma opinião própria, ou mesmo uma
resposta emocional que pudesse ajudar as crianças a encontrar uma
postura num mundo marcado pela confusão. Tais adultos "pareciam inti­
midados”, na expressão de Suransky, por sua ideologia antiautoritária.
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 175

recer-lhes um espaço seguro para crescerem, ou para protegê-las


do impacto devastador do mundo adulto; portanto, não são
responsáveis por não conseguir dar-lhes proteção e mesmo por
explorá-las sob formas que fazem o trabalho infantil do século
XIX parecer um fato quase benigno.

Objetos e ilusões fabricados pelo homem

Seria imprudente arriscar amplas generalizações sobre as


implicações psicológicas de tais processos; todavia, não é di­
fícil acreditar que, atualmente, um grande número de crianças
encontra uma oposição cultural cada vez menor às fantasias
de intercambialidade sexual e generacional — as defesas psi­
cológicas mais importantes, como vimos, contra o reconheci­
mento de sua própria debilidade e dependência. Na verdade,
essas fantasias ganharam mesmo uma espécie de sanção cultu­
ral. Seu destino é serem reforçadas pela exposição precoce a
imagens sexuais de todo tipo, inclusive ao espetáculo da pró­
pria sexualidade precoce; pela equívoca tentativa de apresen­
tar as crianças à informação sexual cientificamente saneada, na
mais tenra idade possível; e, em plano mais geral, pela pre­
tensão da igualdade das crianças em relação aos adultos. A
nossa cultura cerca a criança com um imaginário e com infor­
mações sexualmente sedutoras; ao mesmo tempo, procura por
todas as formas poupar-lhes a experiência do fracasso ou da
humilhação. Parte da idéia de que “ é possível ser o que se
quiser ser”; promete sucesso e recompensa, com um mínimo de
esforço. Os adultos dispendem considerável energia a fim de
tranqüilizar a criança quanto à sua importância e ao amor que
eles têm por ela, com o intuito, talvez, de apaziguar a suspeita
de que tenham efetivamente pouco interesse por ela. Esforçam-
se por não lembrar a criança de sua imaturidade e dependên­
cia. Relutantes em reivindicar a autoridade da maior experiên­
cia, os pais buscam tornar-se colegas de seus filhos. Cultivam
uma aparência jovial e gostos jovens, aprendem a gíria mais
recente e se lançam às atividades das crianças. Em suma, fazem
todo o possível para minimizar a diferença entre as gerações.
Mais recentemente, passou a ser moda minimizar também as
176 O MÍNIMO EU

diferenças entre os sexos, sempre — mais uma vez — com a


melhor das intenções.
A combinação da sedução sexual com a pretensão de igual­
dade entre as gerações colabora para reforçar na jovem crian­
ça, com toda a probabilidade, a ilusão de sua potência sexual,
ilusão que, por suas próprias razões, ela procura desesperada­
mente manter. Tais processos da cultura contemporânea refor­
çam o modelo familiar amiúde observado em pacientes narcí-
sicos e esquizofrênicos, que, com freqüência, descrevem seus
pais como “ nulidades”, enquanto caracterizam suas mães como
sedutoras e “mortiferamente perigosas” . “ Todos eles podiam
ser filhos da mesma família”, escreve Joyce McDougall sobre
os seus pacientes em psicanálise. “ O quadro global era inva­
riavelmente o de um pai que fracassou em preencher as suas
funções paternas e de uma mãe que desempenhou suas funções
de modo mais que suficiente.” Em famílias deste tipo, a mãe
transmite à criança que não tem necessidade sexual de seu
marido. Muitas vezes, a mãe sustenta um outro modelo mas­
culino — um irmão ou um amigo favorito, mesmo o seu pró­
prio pai. “ É espantoso perceber por quanto tempo essas crian­
ças foram capazes de acreditar que um dia teriam relações
sexuais com a mãe.” Annie Reich descreveu casos de mulheres
narcísicas que concebem o próprio corpo, no seu conjunto,
como um falo com o qual poderiam substituir um homem au­
sente e satisfazer a mãe. Fantasias como essas protegem a crian­
ça da inevitável desilusão que normalmente acompanha o
complexo de Édipo, mas que, em nossa cultura, parece vir
muito mais tarde, até mesmo na adolescência, sendo ajudada
pela própria mãe, qundo impensadamente deprecia as capaci­
dades sexuais da criança, afasta-a de sua cama tardiamente,
tem outro bebê, arranja um novo parceiro sexual ou, por qual­
quer outra forma, indica que a criança de modo algum será o
seu parceiro por toda a vida.
A ausência emocional do pai tem sido notada repetidas
vezes pelos estudiosos da família moderna; para os nossos pro­
pósitos, a sua importância consiste na remoção de um obstáculo
significativo à ilusão infantil de onipotência. A nossa cultura
não somente atenua os obstáculos à manutenção dessa ilusão:
ela fornece o seu suporte positivo, na forma de uma fantasia
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 177

coletiva de igualdade entre as gerações. Além disso, dá susten­


tação às ilusões em geral, fomenta um senso alucinatório do
mundo. O surgimento da cultura de massa (a terceira vertente
do desenvolvimento histórico referida atrás) debilitou a própria
distinção entre ilusões e realidade. Até mesmo a ciência, que
toma como tarefa o desvendamento do mundo, ajuda a reati­
var os apetites infantis e a necessidade de ilusões que tem a
criança, ao inserir-se na vida das pessoas, como uma série in­
terminável de milagres tecnológicos, de drogas e curas mira­
culosas e de aparelhos eletrônicos que evitam a necessidade de
esforço humano. Dentre as “ forças externas que estimulam o
antigo desejo de reunir o ego e o ideal do ego pelo caminho
mais curto” e que contribuem para as “ transformações na pa­
tologia atualmente observadas”, Chasseguet-Smirgel reserva o
lugar mais importante para “ aqueles fatores que tendem a to­
mar o progresso na ciência como uma confirmação do encontro
do ego com o ideal do ego”, isto é, do restabelecimento das
ilusões infantis de onipotência. A ciência reforça a impressão
dominante de que tudo é possível. Tal como a arte moderna,
as modernas comunicações e a produção dos bens de consumo,
ela “ limpou o ar dos objetos”, permitindo assim o florescer
das fantasias, não mais questionadas por consciência da intra-
tabilidade do mundo material que nos rodeia.
A cultura do narcisismo não é necessariamente uma cul­
tura na qual as restrições morais ao egoísmo entraram em
colapso, ou na qual as pessoas, libertas dos vínculos dos com­
promissos sociais, perderam a si mesmas num excesso de auto-
indulgência hedonista. O que se debilitou não foi tanto a
estrutura dos deveres e preceitos morais, como a confiança num
mundo que sobrevive a seus habitantes. Em nossa época, a
sobrevivência, e com ela a realidade do mundo exterior, o
mundo das associações humanas e das memórias coletivas, apre­
senta-se como cada vez mais problemática. O desvanecimento
de um mundo durável, comum e público — podemos conje­
turar — intensifica o medo da separação, ao mesmo tempo
que enfraquece os recursos psicológicos que tornam possível
enfrentar tal medo de forma realista. Esse processo liberou a
imaginação dos constrangimentos externos, mas a expôs mais
diretamente que antes à tirania das compulsões e angústias
178 O MÍNIMO EU

internas. Os fatos inelutáveis da separação e da morte somente


são suportáveis porque o mundo tranqüilizador dos objetos
fabricados pelo homem e da cultura humana restaura o sentido
de vinculação original em uma nova base. Quando esse mundo
começa a perder a sua realidade, o medo da separação torna-se
quase esmagador e a necessidade de ilusões passa a ser, con-
seqüentemente, mais intensa que nunca.
Talvez a análise mais sugestiva dos vínculos entre psico­
logia e cultura seja a teoria dos “ objetos transicionais” de
D. H. Winnicott. É fato bastante conhecido que cobertores,
bonecas, ursinhos e outros brinquedos proporcionam à criança
gratificação libidinal e servem como substitutos do seio mater­
no. Winnicott, no entanto, questiona o reducionismo psicana-
lítico, que vê tais objetos apenas como substitutos. Em seu
enfoque, os objetos transicionais também ajudam a criança a
reconhecer o mundo exterior como algo separado dela, ainda
que a ela ligado. “ O objeto é um símbolo da união entre o
bebê e a mãe” ; mas é também um reconhecimento de sua se­
paração. “ O fato de não ser o seio (ou a mãe) . . . é tão im­
portante como o fato de estar no lugar do seio (ou da mãe).”
O simbolismo serve para investir os objetos externos com a
satisfação e a segurança eróticas anteriormente associadas à
mãe, mas ele dá origem a um certo desencantamento: a desco­
berta de que o mundo exterior não obedece à vontade da crian­
ça e não está sujeito ao seu controle onipotente.' O simbolismo
dos objetos transicionais situa-se na fronteira entre a subjeti­
vidade e a objetividade. “ O objeto representa a transição da
criança, de um estado de união com a mãe para um estado
em que se relaciona com a mãe como algo externo e separado.”
A criança posteriormente supera a necessidade de objetos tran­
sicionais, mas somente porque “ os fenômenos transicionais tor­
naram-se difusos, espalhados por todo o território intermediário
entre a ‘realidade psíquica interior’ e o ‘mundo exterior tal
como é percebido por duas pessoas em comum’, vale dizer, por
todo o campo cultural” .
A teoria de Winnicott chama a atenção para a importância
do jogo no desenvolvimento do sentido de individualidade. Mos­
tra as ligações entre o jogo e a arte (até aqui rebaixada pela
psicanálise ao status de mais um sucedâneo da satisfação) e
A HISTÓRIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE 179

fornece suporte psicológico ao argumento, defendido por Johan


Huizinga e outros, de que não apenas a arte, mas todas as for­
mas de cultura, contêm um elemento importante de jogo. “ Com
base no jogo constrói-se o conjunto da existência empírica do
homem”, sustenta Winnicott. “ Nós experimentamos a vida na
área dos fenômenos transicionais, no excitante entrelaçamento
da subjetividade e da observação objetiva e numa área inter­
mediária entre a realidade interior do indivíduo e a experiência
partilhada do mundo exterior aos indivíduos.” A cultura faz a
mediação entre o mundo interior e o mundo exterior; e a “ in­
teração entre a originalidade e a aceitação da tradição”, um
traço comum a toda forma de atividade cultural, aparece para
Winnicott como “ apenas mais um exemplo. . . da interação
entre separação e união” .
Portanto, é o reino intermediário dos objetos fabricados
pelo homem que ameaça desaparecer, nas sociedades baseadas
na produção em massa e no consumo de massa. É certo que
vivemos circundados por objetos feitos pelo homem, mas eles
não servem mais para a medição efetiva entre o mundo interior
e o mundo exterior. Por razões já examinadas, num capítulo
anterior, o mundo das mercadorias assume a forma de um
mundo de sonho, um ambiente pré-fabricado que apela direta­
mente a nossas fantasias internas, mas raramente nos tranquiliza
quanto a sermos nós mesmos os responsáveis por sua criação.
As mercadorias não podem substituir os objetos artesanais, da
mesma forma que a ciência não pode tomar o lugar da experiên­
cia secular empírica. Tampouco pode contribuir para um sentido
de investigação e domínio. Podemos externar um orgulho vicário
e coletivo pelas realizações científicas, mas é impossível reco­
nhecê-las como conquistas de nossa autoria. O mundo das mer­
cadorias tornou-se uma espécie de “ segunda natureza”, como
salientaram vários pensadores marxistas, cuja receptividade ao
controle e direção dos homens não é maior que a da natureza
propriamente dita. Ele já não porta o caráter de um meio
ambiente feito pelo homem. Simplesmente nos confronta, a um
só tempo inesperado, sedutor e aterrorizante. Em vez de ofere­
cer um “ espaço potencial entre o indivíduo e o meio ambiente”
(que é como Winnicott descreve o mundo dos objetos transi­
cionais), ele esmaga o indivíduo. Despido de qualquer caracte­
180 O MÍNIMO EU

rística “ transicional”, o mundo das mercadorias situa-se como


algo completamente separado do eu; não obstante, ele assume
simultaneamente a aparência de um espelho do eu, um cortejo
estonteante de imagens, onde podemos ver tudo o que desejar­
mos. Em lugar de estender uma ponte sobre o vazio entre o
eu e o seu meio circundante, ele apaga a diferença entre çstes.
A política da psique

O debate cultural contemporâneo: uma tipologia ideal

Uma vez que o raciocínio apresentado nas páginas prece­


dentes extravasa as fronteiras políticas convencionais, ele pare­
cerá confuso aos leitores que se baseiam nos marcos ideológicos
familiares a fim de manter suas posturas intelectuais. Todavia,
não é somente o meu raciocínio que resiste à classificação polí­
tica fácil. As distinções tradicionais entre esquerda e direita,
liberalismo e conservadorismo, política revolucionária e política
reformista, progressistas e reacionários estão se desmoronando
face às novas questões relativas à tecnologia, ao consumo, aos
direitos da mulher, à deterioração ambiental e aos armamentos
nucleares, questões para as quais ninguém dispõe de respostas
prontas. Os novos temas dão origem a novas configurações
políticas. O mesmo ocorre com a crescente importância -dos-
problemas culturais. A nova esquerda, o movimento das mu­
lheres e o movimento preservacionista desafiam a classificação
convencional, em parte, porque insistem que o “pessoal é po­
lítico”, enquanto os movimentos políticos de outrora dedicavam
pouca atenção às implicações políticas da vida em família, dos
arranjos entre os sexos e da sexualidade.
Para muitos propósitos, a terminologia psicanalítica forne­
ce hoje um guia mais confiável do panorama político que as
182 O MÍNIMO EU

antiquadas distinções entre esquerda e direita, não porque as


polêmicas sobre a cultura contemporânea sejam necessariamente
conduzidas na linguagem psicanalítica (embora efetivamente o
sejam), mas porque remetem a temas melhor iluminados por
Freud e seus seguidores. A fim de oferecer-nos um mapa acu­
rado da geografia da política cultural, podemos distinguir três
posições, cada uma das quais com o seu próprio diagnóstico do
mal-estar cultural, o seu próprio conjunto de remédios e a sua
própria filiação a uma ou a outra das instâncias psíquicas dife­
renciadas por Freud em sua teoria estrutural da mente. Um
esboço geral de tais posições somente visa ajudar à compreensão
de seus delineamentos mais amplos, e não a apreender todas
as nuanças do debate cultural. Ninguém formulou raciocínios
que se adaptem perfeitamente a qualquer das descrições subse-
qüentes. Essas pautas oferecem uma tipologia ideal dos debates
sobre a cultura contemporânea, em lugar de uma descrição his­
tórica exaustiva de tudo aquilo que as pessoas estão dizendo.
Representam o terreno em seu relevo visível, deixando de lado
boa parte dos detalhes mais sutis. Não obstante, tal repre­
sentação é mais fiel que a dos rótulos derivados dos alinha­
mentos políticos do século XIX.
Aqueles que defendem a primeira dessas posições vêem a
crise da cultura contemporânea como uma crise do superego.
Consideram a restauração do superego social, bem como da auto­
ridade paterna efetiva, como a melhor alternativa para a esta­
bilidade social e a renovação no plano da cultura. De acordo
com os partidários da segunda posição, por outro lado, é o ego,
a faculdade racional, que deve ser fortalecido. A nossa socieda­
de necessita de iluminação moral, argumentam, e não de uma
ameaçadora estrutura de proibições e mandamentos morais. Ela
precisa de pessoas com força interior para estabelecer juízos
morais entre a pluralidade de opções disponíveis e não de pes­
soas que, como escravos, seguem as ordens ou se conformam
irrefletidamente aos dogmas morais aceitos.
A primeira posição tem uma óbvia afinidade com a tradi­
ção conservadora e a segunda com o liberalismo, mas nenhuma
delas coincide exatamente com tais categorias. O partido do
superego, como poderíamos denominá-lo, não inclui, de modo
algum, todos os que se consideram conservadores hoje em dia;
A POLÍTICA DA PSIQUE 183

timpouco, por outro lado, inclui somente os conservadores po­


líticos. No espectro de opiniões políticas correntes, ele se
aproxima mais de descrever a posição dos assim chamados neo-
COnservadores, muitos deles ex-liberais desalentados com a anar­
quia moral dos anos 60 e 70, recentemente respeitosos dos
Valores da ordem e da disciplina. A segunda posição representa
0 que considero ser a essência da tradição liberal e humanista,
COm seu respeito pela inteligência humana e pela capacidade
de auto-regulamentação. No entanto, é uma posição que con­
clama não apenas os liberais — isto é, os liberais que ainda
mantêm a velha fé — , mas também os socialistas democráticos
Í5 mesmo muitos dos socialistas revolucionários. É a posição
da velha esquerda em contraposição à nova; e é precisamente a
Sua profunda discordância sobre a cultura e a moral, como
veremos, e não alguns desacordos quanto a pontos obscuros da
doutrina marxista, o que diferencia com mais nitidez esses dois
movimentos.
A terceira posição, aquela que corresponde, aproximada­
mente, ao pensamento da nova esquerda ou, pelo menos, ao
modo de pensar dos defensores de uma “ revolução cultural”
nSo apenas contra o capitalismo mas contra o industrialismo em
geral, é a mais difícil de descrever e a mais fácil de caricaturar.
Por essa razão dedicarei a maior parte de minha atenção a ela,
mas apenas após delinear as outras duas, uma vez que foram
as suas impropriedades que deram origem à crítica e à refutação
construídas pela nova esquerda.

O partido do superego

Aqueles que aderem à primeira dessas posições atribuem


a desordem e a confusão predominantes na cultura contempo­
rânea ao colapso das inibições morais, ao clima de permissivi-
dade e à decadência da autoridade. Eles lamentam o hedonis­
mo, a “ mentalidade do eu-primeiro” e a noção amplamente di­
fundida de “ auto-intitulação” — a crença em que temos o
dever de gozar da felicidade, do sucesso pessoal, da admiração e
do respeito sem fazer por merecer tais coisas, como se elas
fossem parte de nosso direito de nascença. Uma “ cultura de
oposição”, conforme tal balanço, popularizou as atitudes assu­
184 O MÍNIMO EU

midas apenas pelos intelectuais alienados: desrespeito pelas ins­


tituições, pela autoridade e pela tradição; negação das exigên­
cias sociais sobre o indivíduo; ódio à burguesia; reivindicações
de liberdade sexual ilimitada, liberdade de expressão ilimitada
e acesso iberto à experiência. Uma espécie de negativismo por
princípio; uma transposição de todos os valores; um desmasca­
ramento dos motivos básicos subjacentes às exigências de reti­
dão moral: esses hábitos de pensamento, marcas registradas da
sensibilidade modernista, filtraram-se supostamente para os es­
tudantes, roteiristas de Hollywood, artistas comerciais e redato­
res de publicidade, com o resultado de que toda a nossa cultura
ecoa agora a retórica e o imaginário da revolta dionisíaca. A
combinação do “modernismo nas ruas” (como Lionel Trilling
se referiu ao movimento da juventude nos anos 60), de um culto
“ antinomiano” do eu e de uma moral terapêutica e remissiva
ameaça dissipar os últimos fragmentos do dever social. Somente
um revivescimento do “ senso transgressivo”, como o denomina
Philip Rieff (um “renascimento da culpa”), poderá deter a maré
montante do impulso.
A fim de compreender tal posição, precisamos nos precaver
para não aceitar a caracterização apresentada pelos seus opo­
nentes. Aqueles que vêem como única defesa confiável contra
a anarquia moral a presença de um forte superego social —
Rieff, Daniel Bell e Lionel Trilling, para mencionar apenas três
dos expoentes mais destacados desta posição — enfatizam a
importância do consenso moral e a interiorização das restrições
morais. Eles não defendem um aparelho repressivo de leis e
dogmas morais destinado a impor o conformismo moral. Depo­
sitam pouca confiança em controles externos, em leis contra a
pornografia e o aborto ou na restauração da pena de morte,
exceto como expressões simbólicas de crenças amplamente par­
tilhadas, com força suficiente para influenciar a conduta sem a
constante ameaça de sanções punitivas. Eles advogam posições
geralmente identificadas com o conservadorismo mas não lutam
irracionalmente por lei e ordem. Posicionam-se a favor do su­
perego: vale dizer, por uma moral de tal forma interiorizada,
baseada no respeito pela imperiosa presença moral dos pais,
professores, pregadores e magistrados, que não mais dependeria
do medo de punições ou da* esperança de recompensas. É por
A POLÍTICA DA PSIQUE 185

§a razão que o partido do superego não coincide com a direita


lítica contemporânea, embora inclua pessoas situadas à direita.
1ui tos direitistas não possuem qualquer confiança no superego.
U buscam simplesmente impor o conformismo moral e político
tra v é s da coerção direta ou, no caso de boa parte dos conser-
dores do livre-mercado, assumem a mesma visão libertária da
cultura que a que possuem frente à economia, reivindicando
apenas que todos possam gozar da liberdade de seguir o seu
interesse individual. A primeira abordagem não se funda na
Consciência, mas na mera coação. A segunda não pode propria­
mente ser chamada de conservadora, pois lança as suas raízes
Intelectuais no liberalismo do século XIX. Uma posição verda­
deiramente conservadora sobre a cultura rejeita tanto o confor­
mismo impositivo como o laissez-faire. Busca manter unida a
sociedade por meio da instrução religiosa e moral, dos rituais
•coletivos e de um respeito profundamente enraizado pela tradi­
ção, que, no entanto, não é acrítico. Enfatiza o valor da leal­
dade — aos pais, ao lar da infância, ao país. Quando fala de
disciplina, refere-se a uma disciplina moral e espiritual interior,
mais que a correntes, grades e cadeiras elétricas. Respeita o
poder mas reconhece que este jamais pode tomar o lugar da
autoridade. Defende os direitos das minorias e as liberdades
civis. Neste aspecto, o conservadorismo cultural não é incom­
patível com o liberalismo ou o socialismo democrático. De tal
modo, Bell descreve a si próprio como conservador na cultura,
liberal na política e socialista na economia.
Quando afirmo que a crítica conservadora da cultura mo­
derna baseia-se no respeito pelo superego, não pretendo dizer
que ela recorra à psicanálise ou aceite a validade dos métodos
e conceitos psicanalíticos. Ao contrário, muitos conservadores
encaram a psicanálise como uma das influências culturais que
solapou o respeito pela autoridade, contribuiu para o surgimento
de uma moral terapêutica e expôs “ todas as justificações como
ideologias”, nas palavras de Rieff. Não obstante, é possível
formular a posição conservadora em termos psicanalíticos sem
violentá-la, como o demonstraram vários teóricos ao criticar a
cultura americana como uma cultura na qual o id triunfou
sobre o superego. Em sua investigação psicanalítica sobre a
sociedade contemporânea, The Dying of the Ligth (A Agonia
186 O MÍNIMO EU

da Luz), Arnold Rogow inclui um capítulo denominado “ O


declínio do superego”, no qual ele lamenta a “ fuga do super­
ego” e a “ ruptura dos controles sociais” e insiste que “ aqueles
que dão valor à civilização devem, em última instância, optar
entre o superego e o super-Estado” . Há alguns anos, Henry
e Yela Lowenfeld defenderam uma tese similar em um texto
intitulado “ A nossa sociedade permissiva e o superego”. “ Os
jovens de hoje estão sendo desertados por seus pais relativa­
mente ao desenvolvimento do superego” , escrevem esses auto-
rs. “ O superego social é também ineficaz, e seus representantes
não oferecem nenhuma sustentação.” O “ declínio do superego” ,
ao lado da crescente “hostilidade contra a cultura que force o
indivíduo a limitar os seus impulsos libidinais e agressivos”,
põe em risco os alicerces da ordem social, de acordo com os
Lowenfeld.
Tais formulações explicitamente psicanalíticas da posição
conservadora chamam a nossa atenção para a sua principal insu­
ficiência: a superestimação do superergo. Conforme a denúncia
conservadora da cultura moderna, o fracasso da sociedade em
sustentar mandamentos ou “ interdições” morais imperiosos (o
último termo é um dos favoritos de Rieff), abre as comportas
para uma turbulenta horda de impulsos a exigir satisfação ime­
diata. Com efeito, o superego nunca serve como uma instância
confiável de disciplina social. Ele é portador de um parentesco
demasiado estreito com os próprios impulsos que busca repri­
mir; repousa demasiado intensamente no medo. A sua incansá­
vel condenação do ego alimenta um e.spírito de taciturno res­
sentimento e insubordinação. A sua infindável reiteração do
“não farás” cerca o pecado com o encanto e excitação do
proibido. Em nossa cultura, a fascinação com a violência reflete
a severidade com que são proscritos os impulsos violentos. Re­
flete também a violência do próprio superego, que redireciona
para o ego o ressentimento criminoso contra as autoridades. O
superego, ao menos em sua forma mais primária, exemplifica
um tipo de autoridade que só sabe proibir. O estudo cuidadoso
de suas operações confirma o truísmo político de que o poder
trai a sua debilidade quando busca dominar por meio da inti­
midação e das ameaças de retaliação. Para este, nunca é sufi­
ciente sustentar normas éticas e insistir na obrigação de obede-
A POLÍTICA DA PSIQUE 187

las. A menos que tais normas estejam enraizadas numa iden-


jação emocional com as autoridades que as sustentam, elas
lipirarão apenas a obediência mecânica que teme a punição,
teoria política e a filosofia moral sempre reconheceram que
consciência não se funda no medo mas no alicerce emocional
iUito mais sólido da lealdade e da gratidão. Se o “ senso trans-
gtessivo” está se rompendo em nossa sociedade, as razões disso
nfo se encontram somente na incapacidade das autoridades para
prover a segurança e a proteção inspiradoras de confiança, res­
peito e admiração. Um governo que mantém um mortífero arse-
íínl de armas nucleares e fala despreocupadamente de guerras
nucleares “vencíveis”, nas quais milhões de pessoas serão inci­
neradas, não pode mais pretender plausivelmente a proteção de
leus cidadãos contra a invasão estrangeira. Um governo que
prega a lei e a ordem mas fracassa em garantir a segurança
píiblica, em reduzir a taxa de criminalidade ou em enfrentar
as causas subjacentes do crime não pode mais esperar que os
Cidadãos interiorizem o respeito pela lei. Do topo à base da
nossa sociedade, aqueles que defendem a lei e a moral vêem-se
incapazes de manter a ordem ou de oferecer as recompensas
anteriormente associadas à observância das leis sociais. Até
mesmo os pais de classe média acham cada vez mais difícil asse­
gurar um ambiente seguro para sua prole, ou legar as vantagens
sociais e econômicas de seu síatus médio. Os professores não
mais podem asseverar que a educação promete a mobilidade
social ascendente. Em muitas escolas, eles se vêem em grandes
dificuldades mesmo para manter a ordem na sala de aula. As
autoridades não podem garantir nem a segurança dos costumes
herdados e dos papéis sociais tradicionais, o tipo de segurança
que era predominante nas sociedades pré-industriais, nem a
oportunidade de melhoria da posição social, que serviu como
a religião secular das sociedades igualitárias. A ficção da igual­
dade de oportunidades — a base do que se costumava chamar
0 sonho americano — deixou de ter suficiente fundamento para
alcançar o consenso social. Em um mundo imprevisível e em
rápida transformação, um mundo de mobilidade social para
baixo, rebelião social e crônica crise econômica, política e mili­
tar, as autoridades deixaram de servir efetivamente como mo­
delos e guardiães. As suas ordens perderam a persuassão. O
188 O MÍNIMO EU

íado pedagógico, protetor e benevolente da autoridade social e


paterna não mais tempera a sua face punitiva. Sob tais condi­
ções, nada se ganhará pregando contra o hedonismo e a auto-
indulgência. Em vez de tentar transmitir e ilustrar um ideal
claro de conduta moral, aqueles que detêm posições de liderança
moral fariam melhor se ensinassem as habilidades da sobrevi­
vência, na esperança de que a engenhosidade, a persistência
emocional e a força interior do ego — em oposição à segurança
de uma moral herdada — possam capacitar a geração mais
jovem a suportar as tempestades do porvir.

O ego liberal: as origens da ética terapêutica no século XÍX

Educadores e cientistas sociais de orientação liberal defen­


deram por algum tempo a educação centrada no fortalecimento
do ego, sem denominá-la um programa de sobrevivência pessoal.
Eles argumentaram que uma sociedade dinâmica, pluralista e
democrática não pode viver da herança da sabedoria moral do
passado. De acordo com a teoria liberal da socialização, os
pais e as autoridades reconhecem a futilidade de incutir nas
crianças habilidades práticas e dogmas morais que estarão supe­
rados quando elas forem adultas. Em vez de meramente trans­
mitir a informação ética e técnica acumulada no passado, eles
buscam treinar os recursos interiores que permitirão aos jovens
prover as suas próprias necessidades. De acordo com a socio­
logia liberal, os alarmistas culturais tomam de forma equivocada
esse realismo educacional por uma abdicação à autoridade pa­
terna e pedagógica, uma ruptura da família, um colapso da
ordem social. Conforme colocou Talcott Parsons, a família mo­
derna especializa-se na “ produção da personalidade” — isto é,
na capacidade para a adaptação a contingências inopinadas, a
experimentação e a inovação. John Dewey e seus seguidores
descreveram a tarefa com que se defronta o sistema escolar
praticamente nos mesmos termos. Quando se os acusava de
solapar o respeito pela autoridade, eles replicavam que a auto­
ridade democrática, tal como a ciência, alcança o seu maior
sucesso precisamente ao assegurar a sua própria substituição.
Ela supre cada nova geração com as ferramentas intelectuais
e os recursos emocionais necessários para desafiar a autoridade
A POLÍTICA DA PSIQUE 189

Vigente e para formular novos modos de vida melhor ajustados


que os antigos às mutantes condições de uma sociedade em
Constante movimento.
A tradição liberal alinha-se com a faculdade racional que
p6e à prova a realidade -— o ego — em contraposição tanto ao
impulso como à moral recebida em herança. Mesmo no século
XIX, quando a educação liberal ainda recorria ao capital moral
do passado de modo mais intenso do que imaginava, a teoria
social liberal visualizava um novo tipo de personalidade autô­
noma livre da tradição, dos preconceitos e das restrições pa­
triarcais. Em sua forma mais crua, o liberalismo identificava-se
com a moral utilitária do interesse pessoal esclarecido, segundo
B qual o indivíduo busca maximizar o prazer e evitar a dor, não,
evidentemente, cedendo aos impulsos, mas lançando mão do
adiamento da satisfação imediata na antecipação de recompen­
sas futuras. Hoje em dia, a moral do interesse pessoal esclare­
cido sobrevive na psicologia comportamental, que concebe a
educação moral como condicionamento realizado em grande
parte através do reforço positivo. Um behaviorista como B. F.
Skinner situa-se sinceramente na tradição utilitarista quando
insiste em que a punição, uma forma ineficaz de controle social,
deve dar lugar a controles “ não-adversos” . A confiança que
Skinner deposita na ciência como possível base de uma “ ordem
moral aperfeiçoada”, na qual “não há necessidade de conflito
moral”, reafirma outro princípio do utilitarismo, modificado,
como veremos, por um revestimento de progressismo do século
XX.
A duradoura crítica liberal do superego encontrou expressão
no utilitarismo e no behaviorismo bem como na religião liberal
do século XIX, atualizada e secularizada no século XX pela
psicologia do ego, pela psicologia humanista e por outras tera­
pias “ orientadas para a realidade” . A crítica movida ao calvi-
nismo no século XIX, com a denúncia dos pregadores liberais
de que se tratava de uma religião do terror, que alimentava ou
a submissão pusilânime ou a revolta, ilustrou com bastante niti­
dez a diferença entre duas concepções da ordem social, uma
fundamentada na submissão à autoridade divina onipotente e
outra na submissão a um sistema de “ correção” racional. Jacob
Abbot, um pastor, educador e ensaísta congregacional, ainda
190 O MÍNIMO eu

suficientemente próximo do calvinismo para aferrar-se às suas


doutrinas centrais, foi ao centro do problema quando diferen­
ciou duas concepções de punição, “o castigo vingativo do pe­
cado" e as punições “reparadoras” administradas com um olho
em seus “ efeitos salutares” sobre o caráter. O castigo, explica­
va Abbott, não leva em consideração os “ atos futuros” (ou o
faz secundariamente); em vez disso, baseia-se na noção de que
a justiça exige a punição “ como efeito e complemento naturais
e apropriados do ato passado de transgressão”. O castigo, por
outro lado, emprega a punição, ao lado das recompensas, no
interesse da modificação comportamental, como seria denomi­
nada atualmente. Uma personalidade de transição, Abbott podia
ainda encontrar algum valor no castigo, que educa e satisfaz
o nosso senso de" justiça. Ele achava-se incapaz de decidir se a
punição de Deus deveria ser vista como vingativa ou repara­
dora, e a mesma incerteza, pensava, estendia-se ao aparelho da
justiça penal administrada pelo Estado. Mas ninguém poderia
duvidar, segundo acreditava, do caráter indesejável das puni­
ções vingativas na escola e na família. “A punição de uma
criança por parte de seu pai, ou de um aluno por parte do
professor, deve com certeza, é possível propor, excluir total­
mente o elemento de castigo vingativo, devendo ser empregada
unicamente em referência às influências salutares que se deve
esperar delas no futuro” .
Por volta da metade do século XIX, a maior parte dos
liberais viria a encarar todas as formas de autoridade à mesma
luz, até mesmo a própria justiça divina. Eles passaram a acre­
ditar que Deus punia os pecadores para o seu próprio bem,
e não porque a punição oferecesse uma seqüela adequada do
pecado. Os pregadores liberais aplicaram os conceitos utilita-
ristas de justiça aos problemas teológicos e reinterpretaram a
salvação e a danação como uma distribuição de recompensas e
punições destinadas a encorajar o bom comportamento e a de­
sestimular o mau. Da mesma forma que os reformadores penais
opunham-se aos castigos corporais e à tortura pública, com base
não apenas em sua crueldade mas em sua ineficácia na preven­
ção da criminalidade, os teólogos liberais contestaram as dou­
trinas calvinistas do pecado original e da perdição das crianças
argumentando que elas inadvertidamente encorajavam a irres-
A POLÍTICA DA PSIQUE 191

jionsabilidade moral e a desordem na sociedade. Foi esse o tema


principal do célebre “ argumento moral contra o calvinismo” de
William Ellery Channing. “ Ao ferir, como o faz, os princípios
fundamentais da moral e ao revelar uma deidade parcial, o
calvinismo tende fortemente a perverter a faculdade moral e
a formar uma religião sombria, ameaçadora e servil, além de
conduzir os homens a substituir a caridade imparcial pela re­
provação, pela amargura e perseguição.” A nova ética da res­
ponsabilidade pessoal e da “ instância moral” insistia nas puni­
ções (humanas ou divinas) distribuídas estritamente com base
no mérito individual e destinadas ao esclarecimento moral do
pecador, além da correção dos maus hábitos por trás de seu
pecado.

A psicanálise e a tradição liberal de otimismo moral

A teologia liberal do século XIX, ao insistir em que a


saúde e a felicidade seriam um prêmio pela vida íntegra e o
pensamento elevado, já continha em germe as morais remissivas
e terapêuticas que floresceram em profusão em nossa época. É
um lugar-comum que a psiquiatria do século XX serve como
um substituto da religião, prometendo as consolações tradicio­
nais do domínio pessoal, da paz de espírito e da segurança
emocional. Muitos dos fundadores da moderna psiquiatria, in­
clusive os primeiros vulgarizadores de Freud — Ernest Ruther­
ford Groves, Wilfred Lay, Edwin Bissel Holt — tiveram uma
educação cristã liberal e levaram para o seu ofício psiquiátrico
o meliorismo * ético tão característico do protestantismo do sé­
culo XIX. Aqueles que se voltaram para a psicanálise saudaram-
na como uma nova forma de cura mental, um novo sistema
de auto-aperfeiçoamento e crescimento pessoais. Desde o início,
a versão americana da psicanálise minimizou a força das ener­
gias pulsionais e enfatizou a possibilidade de submetê-las ao
controle racional. No “conflito moral” entre os desejos infantis
e o “espírito de evolução social” , como o denominou Lay, o

(*) Doutrina segundo a qual é possível e preciso melhorar o mundo,


que não é de todo bom nem de todo mau. (N.T.)
192 O MÍNIMO EÜ

inconsciente mostrou-se “ ansioso por seguir instruções e por


merecer as recompensas oferecidas'5.
Segundo Freud, a terapia psicanalítica apenas poderia espe­
rar substituir a neurose debilitante pela “infelicidade cotidiana” .
Desenvolvendo a autoconsciência inteligente, poderia reconciliar
os homens e as mulheres com os sacrifícios cobrados pela vida
civilizada ou, ao menos, torná-los mais fáceis de suportar. Pode­
ria mesmo auxiliar no estímulo a atitudes públicas mais escla­
recidas em relação ao sexo. Mas a psicanálise não oferecia
nenhuma cura para a injustiça e a infelicidade; tampouco pode­
ria satisfazer, num mundo sem religião, a crescente demanda
de fé, significado e segurança emocional. Entretanto, foi exata­
mente confiança e poder pessoal que os americanos esperaram
encontrar na psicanálise. Eles se voltaram para a obra de Freud
na esperança de que esta pudesse oferecer uma nova ética
fundamentada no estudo da natureza humana, uma “ ética vinda
da base”, na expressão de Holt, ou na expectativa de que ela
contivesse a chave para a eficácia e o contentamento indivi­
duais. As vulgarizações da psicanálise, nos primeiros anos de
sua aceitação na América, retrataram-na como uma concorrente
da ciência cristã. Um jornalista, Lucian Cary, comparou uma
lembrança reprimida a um abcesso. “Perfure um abcesso e o
alívio será instantâneo. Conte a sua lembrança penosa e você
começará a esquecê-la.” “ Temos que chamar essas moléstias
nervosas por seu verdadeiro nome”, escreveu Max Eastman,
“ . .. e elas se dissolvem como os encantos dos contos de
fadas” .
A transformação da psicanálise num culto da sanidade e
da satisfação individuais, que na América foi mais longe e
ocorreu mais rápido que em qualquer outra parte, já fora pre­
nunciada na Europa pelas primeiras rebeliões lideradas por
Alfred Adler e Cari Jung. Adler despiu as teorias de Freud de
seu conteúdo sexual, reinterpretando a libido como “vontade
de poder” . O “complexo de inferioridade”, e não o complexo
de Édipo, fundamentaria toda a ação humana. A luta por supe­
rar os sentimentos de inferioridade, em busca do “ ideal mas­
culino” de “ segurança e conquista”, seria o “ fato fundamen­
tal do desenvolvimento humano”. A ênfase de Adler na concor­
rência e nas relações interpessoais, sua simpatia social-democra-
A POLÍTICA DA PSIQUE 193

U pelos oprimidos e a sua identificação da vontade de poder


COm a luta pela perfeição moral atraíram a muitos americanos.
Um número significativo de “freudianos” mostrou-se, nos Esta-
do» Unidos, muito mais próximo de Ádler e de Harry Staek
Nuüivan, que desenvolveu uma psicologia nativa de reiaciona-
Ittetnos interpessoais cuja ênfase recaía na necessidade de poder
I de segurança. Esse tipo de terapia, que atribuía à força de
Vontade e ao autodomínio o papel benéfico que Freud conferia
AO autoconhecimento, místurou-se com maior facilidade que as
formas mais estritas de psicanálise numa cultura cujas raízes
lê encontravam no liberalismo religioso do século XIX.
Até mesmo o misticismo junguiano, ao menos em algumas
de suas manifestações, guarda uma certa afinidade com as tra­
dições liberais de empenho moral e de auto-auxílio espiritual.
Jung via a mente inconsciente não como uma massa complicada
de desejos — a visão freudiana — mas como um reservatório
dc experiência coletiva, de mitos de salvação. Na forma como
ele a via, a tarefa da terapia deveria ser a de trazer à cons­
ciência o imaginário soterrado, os “ arquétipos”, a sabedoria
eterna mais profunda que a mera racionalidade que dorme na
alma. Como mostrou Philip Rieff, Jung voltou-se para um mal
que na sociedade moderna não está menos presente que o
•eniido de inadequação pessoal: o empobrecimento da imagina­
ção espiritual. Ele buscou restaurar a ilusão da fé, quando não
a sua própria realidade, ao habilitar o paciente a construir uma
religião particular constituída dos remanescentes em decomposi­
ção de antigas religiões, todas elas igualmente válidas aos olhos
de jung e, portanto, igualmente úteis à crise moderna de des­
crença. O ecletismo espiritual de Jung e o auto-aperfeiçoamento
de Adler, radicalmente diferentes em grande parte de seu tom
e conteúdo, compartilhavam um traço central. Ambos substituí­
ram a auto-introvisão pelo ensinamento ético, transformando
assim a psicanálise em um “novo sistema ético-religioso”, como
0 definiu Freud. A insistência de Jung na necessidade do indi­
víduo de completar a sua “ tarefa vital” (lutar contra a “ pregui­
ça psíquica” e encontrar o seu próprio destino) lembrava a
exortação adleriana ao domínio das circunstâncias. Com toda
a sua desesperança na ciência e na racionalidade, Jung dividia
com Adler a confiança em que a. psicoterapia poderia servir
194 O MÍNIMO EU

como a base de uma nova moral, fundamentada não nas antigas


proibições mas na compreensão científica das necessidades
humanas.
Mesmo esta leitura saneadora de Freud mostrou-se, evi­
dentemente, inaceitável para a maior parte dos psiquiatras ame­
ricanos, e eles passaram a formular terapias sempre mais afir­
mativas e enaltecedoras, que prometiam não somente a regene­
ração pessoal como, em muitos casos, também a regeneração
social, uma versão secular da ordem societária cristianizada
entevista pelos protestantes liberais. No decorrer desse pro­
cesso, eles jogaram ao mar o que restara da psicanálise. Cari
Rogers, exposto quando jovem ao idealismo da YMCA * e à
revigorante atmosfera do companheirismo religioso, considerou
o pessimismo de Freud tão revoltante e incompreensível quanto
seus antepassados espirituais tinham considerado o calvinismo.
“ Quando um freudiano como Karl Menninger me conta. . . que
ele compreende o homem como. . . ‘inatamente destrutivo’,
posso apenas balançar minha cabeça assombrado.” A aborda­
gem terapêutica do próprio Rogers era, como a definiu um
seguidor, “ tão americana como á torta de maçã” . Ela enfatizava
o livre arbítrio, em contraposição ao determinismo de Freud e
de Skinner. Almejava estimular a “ sensibilidade total ao
cliente”, a “ empatia”, a “ atenção positiva incondicional” , a
“ congruência” e a importância de ser “ verdadeiro” . Fiel à
tradição da perfectibilidade humana, sustentava que todo orga­
nismo tinha uma inata “ tendência para o crescimento, a sani­
dade e o ajustamento”. Acima de tudo, frisava a possibilidade
de se alcançar o controle racional sobre o eu e seu meio
ambiente.

A polêmica entre o behaviorismo e a psiquiatria humanista

Os movimentos psiquiátricos modernos, que levaram avante


a tradição religiosa liberal e de auto-aperfeiçoamento, escoran­
do-a com pretensões científicas, podem ser divididos de forma
bastante geral em terapias do jogo e terapias de crescimento,
ambas apresentando-se como soluções “ humanistas” aos pro-

(*) YMCA: Associação Cristã de Moços. (N.T.)


A POLÍTICA DA PSIQUE 195

|y§tnas não exatamente de indivíduos infelizes mas da sociedade


llldustrial em geral. Nas primeiras, pode-se reconhecer o fantas-
iiui de Adler; nas segundas, a presença ainda vaga de Jung.
terapias do jogo incluem as várias escolas do pensamento
psiquiátrico que enfatizam a importância das relações inter­
pessoais, das dinâmicas de grupo, do aprendizado e da comu-
iíieação, dos papéis e seu desempenho, dos jogos e da teoria dos
jogos. A análise transacional de Eric Berne, a “ terapia racional”
de Albert Ellis, a “ terapia da realidade” de William Glasser,
ft terapia do desempenho de papéis de George Alexander Kelly
• w teoria da “ conduta pessoal” de Thomaz Szasz, entre outras,
pertencem a essa categoria. Ao contrário da psicanálise, que vê
• mente humana como o produto de um luta incansável entre
pulsões e cultura, esses programas vêem a mente como exclusi-
Vamente social. Eles se preocupam com as relações entre o
Indivíduo e os outros, não com seus conflitos interiores. Subor­
dinam a busca do autoconhecimento à busca de “ objetivos sig­
nificativos” . Um de seus propósitos principais é levar o paciente
$ estabelecer objetivos mais “ realistas” e a renunciar às ilusões
perfeccionistas. Albert Ellis tenta estimular o ajustamento con­
jugal e sexual por meio do ataque à ideologia irrealista do amor
romântico, ao “ mito” do orgasmo vaginal e ao “ mito” do orgas­
mo simultâneo. George R. Bach e Peter Wyden condenam o
“mito de que o sexo e o amor tenham sempre que andar
juntos”, o “ mito de que o orgasmo simultâneo seja uma exigên­
cia fundamental para o bom ajustamento sexual” e outras
crenças que supostamente estimulem expectativas irrealistas.
í Urna vez que o fracasso em viver de acordo com tais expecta­
tivas conduz à autodifamação e a sentimentos de inferioridade,
n cura mais efetiva da inferioridade, ao que parece, baseia-se
em persuadir o paciente a abandonar os objetivos ilusórios.
Os adeptos das outras psicologias humanistas e existenciais
(Rogers, Abraham Maslow, Rollo May, Anthony J. Sutich,
Ernest L. Rossi) criticaram as terapias do jogo com base em
c|tie estes são repetitivos e desencorajam o crescimento, enquanto
a psicoterapia deveria buscar a transformação da “ realidade
interior” dos clientes, na expressão de Rossi, em “ produtos
criativos”. Eles criticaram a própria psicanálise em bases seme­
lhantes, acusando Freud de ignorar a capacidade de desenvol-
t
196 O MÍNIMO EU

vimento emocional e intelectual. Assim, Charlotte Bühler insiste


que a psicanálise objetivava somente realizar a “ satisfação ho-
meostática” e ignora a necessidade humana de crescimento. Ela
própria “ concebe o homem”, afirma, “ . . . vivendo com um
propósito. O propósito de dar sentido à vida. . . O indivíduo. . .
deseja criar valores”. Aqui, mais uma vez, a autocompreensão
dá lugar ao auto-aperfeiçoamento e à educação morai como
tema da psicoterapia.16
Vigorosamente contrárias não somente à psicanálise como
também ao behaviorismo, as terapias do jogo e as terapias de
crescimento apresentam a sua própria versão da modificação
comportamental, como admitiu Rogers, na esperança de fazer
o cliente um ser com orientação própria. Uma vez que vários
behavioristas reivindicam o mesmo, a controvérsia entre psico­
terapia “ pós-freudiana” e behaviorismo sucumbe em diferenças
de ênfase e estilo. Em debates públicos com B. F. Skinner,
Rogert acusou seu adversário de usar a ciência “ para escravizar
as pessoas de modo nunca antes sonhado, despersonalizando-as,
controlando-as por meios tão cuidadosamente selecionados que
elas talvez nunca se dêem conta da perda de sua individualida­
de” . Contudo, eíe rejeita a visão skinneriana de uma sociedade
totaímente planejada e administrada, apenas com o intuito de
colocar em seu lugar o regime de vida do artista da sobrevi­
vência baseado no “ dia-a-dia”, sem referência a qualquer obje­
tivo além da auto-realização. Ele alerta para os riscos políticos
de um apostolado psiquiátrico, mas o seu próprio compromisso

(16) A psicanálise não apenas desestimula o otimismo moral, como


também fornece pouco amparo à crescente tendência a considerar os
seres humanos como vítimas de circunstâncias externas: outra razão
para sua ascendente impopularidade. A psicanálise nasceu quando Freud
começou a compreender que seus pacientes não podiam ter sido sexual­
mente atacados pelos pais com a freqüência que relatavam; isto é,
quando ele passou a entender tais relatos como uma fantasia recorrente.
Críticos recentes da psicanálise têm tentado reviver a teoria da sedução
em sua forma original. Eles insistem que o pensamento de Freud tomou
um rumo equivocado quando a abandonou. A teoria da sedução adapta-
se à definição corrente do homem como vítima, à crença dominante de
que "somos governados pela realidade externa, mais que pelos nossos
demônios interiores”, na expressão de Janet Maleolm. É essa idéia que
une muitos dos oponentes da psicanálise, mesmo aqueles que à primeira
vista parecem profundamente opostos entre si, como os humanistas e
os behavioristas;
A POLÍTICA DA PSIQUE 197

a democracia funda-se na crença não verificada de que


tfllbora o 44comportamento do organismo húmano possa ser
determinado pelas influências às quais ele foi exposto” pode
tlUibém refletir o “ enfoque criativo e harmonizador do próprio
Organismo”. De maneira característica, ele defende que a ques-
tUo somente pode ser decidida através da pesquisa posterior,
s® uma “sólida pesquisa” susteníá a visão skinneriana da de­
pendência humana, “então uma filosofia social de controle do
•Ipecialista está nitidamente subentendida” . Se isso indica que
í>'i homens e as mulheres têm ao menos uma “ capacidade laten­
te ” para a compreensão e a autoconfiança, “ então está demons­
trada a base psicológica para a democracia” . Depois de criticar
Skinner por defender o domínio de uma elite científica, o pró­
prio Rogers atribui à ciência a decisão de saber se a democracia
tem futuro, Com efeito, ele também propõe que o destino das
Instituições democráticas seja decidido no laboratório e na clí­
nica — basicamente, pelos mesmos cientistas cujo trabalho, em
lua própria avaliação, já estabeleceu uma “base tecnológica efe­
tiva para o controle final pelo Estado” . Em lugar de argumentar
que a capacidade para o entendimento e o autodomínio possa
apenas florescer em condições democráticas, Rogers espera que
o “ estudo objetivo” justifique com provas a fé que ele deposita
na humanidade. Um humanismo desse tipo, que se reduz a um
pensamento veleitário, não coloca desafios ao behaviorismo.
A polêmica entre o behaviorismo e o humanismo liberal,
tal como é ilustrado pela religião liberal do século XIX e pelas
psicoterapias do século XX que procuraram substituí-lo, parece
sustentar a asserção de Arnold Rogow de que a úníca alternativa
ao superego é-o super-Estado. Desde o início, os liberais defen­
deram que a capacidade de autodireção racional torna possível
dispensar os controles sociais externos e os códigos morais auto­
ritários ou, pelo menos, reduzi-los’a um mínimo. Todavia, a
destruição dos antigos credos, dos velhos mandamentos e das
velhas restrições, parece ter liberado imensas capacidades de
agressão, que, ao que tudo indica, somente podem ser contro­
ladas através do retorno a alguma espécie de superego coletivo
ou de um novo sistema de controles científicos ostensivamente
gerido em benefício do conjunto da humanidade (na verdade,
em benefício exatamente de sua sobrevivência) mas conferido
198 O MÍNIMO EU

a uma elite gerencial e técnica. Uma vez que os liberais recusam


por princípio o seu apoio a um revivescimento do “ autorita­
rismo” moral (como o denominam), eles consideram cada vez
mais difícil resistir à lógica de uma nova ordem social, “ além
da liberdade e da dignidade”. O debate entre Skinner e Rogers
sugere que o behaviorismo não pode ser refutado a partir de
uma posição baseada em uma ética ambientalista, terapêutica.
Uma vez aceitas as premissas de Skinner (que o conhecimento
“tradicional” deve dar lugar à “análise científica”; que o fra­
casso é o pior dos mestres e o objetivo da política social é
“evitar a infelicidade”), torna-se difícil opor resistência a sua
concepção de utopia — um “ mundo no qual não há necessidade
de luta moral” .
Skinner escandaliza os liberais ao levar as suas próprias
assunções e preconceitos a conclusões intragáveis. Ele torna
explícito aquilo que os humanistas liberais preferem ignorar:
que a moral terapêutica associada ao liberalismo do século XX
destrói a idéia da responsabilidade moral da qual se origina
e culmina, além disso, na monopolização do conhecimento e do
poder pelos especialistas. Entretanto, Skinner não é de modo
algum um conservador. Ele compartilha a fé liberal em que os
problemas da organização social moderna são administrativos
e psicológicos e não econômicos e políticos. Acredita que a
engenharia social carrega a promessa de um mundo melhor,
contanto que as técnicas de controle social sejam geridas por
uma elite administrativa desinteressada, de forma a não serem
“ utilizadas para o enriquecimento pessoal em um mundo com­
petitivo”. Como muitos socialistas e progressistas, ele exclui o
risco de uma tirania científica e tecnocrática retrucando sem
hesitar que “ a usurpação do poder apenas é uma ameaça numa
cultura competitiva”. A sua idéia de sociedade justa, tal como
é esboçada no romance Walden II e em Além da Liberdade e
da Dignidade, consiste de clichês do liberalismo do século XX.
Pretende substituir a competição pela colaboração, a política
pela administração, as punições pelo “ tratamento”, as rivalida­
des pela “ tolerância e afeto gerais”, o amor romântico pela
“ simples amizade”, o culto dos heróis pela intercambialidade
dos componentes sociais, na qual “não há razão para achar que
uma pessoa seja necessária a qualquer outra” . Da mesma forma
A POLÍTICA DA PSIQUE 199

fue os primeiros educadores liberais, ele propõe-se a ensinar


lo os assuntos mas o “ método científico” . Em Walden II, ele
Abole o estudo da história com o pretexto de que esta estimula
f'S oulto aos heróis; abole a família, que discrimina a mulher
perpetua o individualismo egoísta; extingue a adolescência,
• Míjhstitutindo-a por uma transição “breve e indolor” para a
ldôde adulta; livra-se do “ segredo e (da) vergonha” que cercam
g sexo; decreta o fim da frustração, do sofrimento e do fracasso;
dispensa a “simples democracia”, liberando as massas da “ res­
ponsabilidade de planejar” e libertando-as para o auto-enrique-
ôimento espiritual.
A diferença entre Skinner e seus críticos humanistas é que
ile reconhece sem o menor remorso as implicações antidemo­
cráticas de tudo isso. “ O leitor não encontrará aqui muito da
‘limples democracia’ ”, escreve sobre a sua comunidade modelo.
Os habitantes de Walden II votam como os “ Planejadores”
lhes dizem que votem. Não é difícil enxergar por que os liberais
contrapõem às idéias de Skinner ou por que essas idéias
èl vezes exercem atração, por outro lado, junto a uma geração
do jovens em revolta contra a “hipocrisia” dos mais velhos.
Como está implícito na acusação de hipocrisia, muitos jovens
aceitam os valores dominantes, exigindo apenas uma observância
mais estrita deles. Essa espécie de revolta encontra um porta-
voz ideal em Skinner, que recorre ao liberalismo com o intuito
de condenar os liberais por sentimentalismo e evasão. As suas
idéias atraem a muitos jovens leitores com sua insistência em
tpie a “ transformação (utópica) não se dará através da política
de força”, mas “em outro nível conjuntamente” . Seus freqüen-
tes ataques ao “ consumo e (à) poluição” fazem eco a temas
importantes da contracultura, tal como a sua defesa da “ pe­
quenez” e sua ênfase nos limites sociais do crescimento. O seu
igualitarismo fortalece o “antielitismo” que se tornou pratica­
mente o denominador comum da política contemporânea. Seu
apelo pela “ completa igualdade dos homens e das mulheres” ,
seu ataque aos esportes competitivos e a outras formas de
“ triunfo pessoal” e seu sonho de um “mundo sem heróis” com­
partilham da reação atual contra as distinções odiosas (uma
perversão do impulso democrático que passa a ser perfeitamente
competível com a aceitação de uma oligarquia de especialistas,

l
200 O MÍNIMO EU

que não reivindicam nenhum poder ou privilégio especial além


da autoridade impessoal da ciência).
As idéias de Skinner podem ofender os liberais, mas re­
pousam, em grande medida, em dogmas liberais: ambientalis-
mo, igualitarisroo, engenharia social. Além disso, o behaviorismo
defronía-se com o peso da experiência histórica recente, que
parece indicar que os liberais exageraram a capacidade da inte­
ligência racional para manter sob controle os impulsos destruti­
vos. Tal como a psicanálise, à qual, quanto ao mais, ele se opõe
inalteravelmente, o behaviorismo reconhece a força dos impul­
sos biológicos, ignorados pelas psicoierapias “pós-freudianas”
ou explicados como produto do “condicionamento cultural”. Ele
nega que tais impulsos possam ser superados através da educa­
ção moral ou por terapias destinadas a colocar as pessoas “ em
contato com os seus sentimentos” . Frente a eles, prescreve
remédios mais potentes: a habilidosa manipulação das recom­
pensas sociais por parte de uma elite científica, com o auxílio,
se necessário, das drogas, da cirurgia neurológica e da engenha­
ria genética.17

A psicologia do ego de Hartmann:


a psicanálise como engenharia comportamentaí

Antes de concluir que a psiquiatria liberal não contém


absolutamente respostas aos que proclamam a morte da liber­
dade e da dignidade, é necessário considerar a tradição da
psicologia do ego no seio da própria psicanálise, procurando
defender a causa do ego com base em fundamentos intelectuais
mais seguros que os propiciados pelas terapias que enfatizam
as relações interpessoais ou o crescimento pessoal. A psicologia
do ego, tal como as psicologias “neofreudiana” e “pós-freudía-
na”, rejeita a descrição do homem como uma criatura de ins­
tintos, restritos apenas pelo medo de punição ou a expectativa
de recompensas; mas ela ainda tenta apegar-se ao realismo

(17) Ê preciso salientar que o próprio Skinner rejeitava enfatic


mente o recurso às drogas, à cirurgia de cérebro s à engenharia gené­
tica. Outros behaviorístas. no entanto... não partilham com ele tais es­
crúpulos.
A POLÍTICA DA PSIQUE 201

moral proporcionado pelos conceitos psicanalíticos. Não nega


t. I existência do conflito ou do sofrimento psíquicos; tampouco
.QOllfunde a saúde psíquica com a salvação pessoal. Resiste à
l tentação de apresentar a psicoterapia como uma panacéia tanto
pára o indivíduo como para os males da sociedade. Rejeita a
: moral terapêutica segundo a qual “ não há pessoas morais ou
imorais”, na paráfrase de Heinz Hartmann, mas “ apenas pes-
flOas sãs e pessoas doentes”. Recusa-se a endossar o puro interes­
se individual como base de uma nova moral de saúde e felici­
dade. Em seu livro Psychoanalysis and Moral Values (Psicaná­
lise e Valores Morais), Hartmann ataca a idéia equivocada de
(jue a psicanálise apresente os imperativos e ideais morais como
ilusórias ou defina a saúde mental como a completa liberdade
diante dos códigos morais e dos sentimentos de culpa. “ A
gxpectativa amplamente alimentada de que a máxima conside­
ração do interesse individual forneceria soluções mais satisfató­
rias, de todos os pontos de vista” , escreve ele obliquamente,
“ . .. não foi gerada pela experiência psicanalítica” .
Ao mesmo tempo que resiste à assimilação entre moral e
goúde psíquica ou bem-estar pessoal, a psicologia do ego tam­
bém rejeita os “ absolutos” morais e as posições extremas em
geral. Procura tomar um novo caminho situado entre o dog­
matismo moral e o desmascaramento moral, entre uma ética
fundamentada nas restrições do superego e uma ética baseada
no interesse individual esclarecido. A sua postura mais carac­
terística é a reivindicação de imparcialidade científica, que em
geral serve como urna desculpa para evitar questões difíceis.
A sua ambição inspiradora, frente à qual tudo o mais é secun­
dário, é a de remodelar a psicanálise como uma “psicologia
evolucionária geral”, na expressão de Hartmann. É esta aspira­
ção que diferencia a psicologia do ego, estritamente falando, dos
trabalhos daqueles que buscam- meramente ampliar a obra de
Preud, estudando os mecanismos defensivos adotados pelo ego
face à angústia, a importância dos “ objetos transicionais” na
tentativa efetuada pelo ego de dominação do mundo exterior
ou a gênese e desenvolvimento do ideal do ego. Os autores mais
estritamente identificados com essa escola particular de pensa­
mento psicanalítico — Hartmann, Ernest Kris, R. M. Lowens-
tein, David Rapaport, René Spitz, Roy Schafer — assumiram a

J
202 O MÍNIMO EU

posição de que a psicanálise necessita preocupar-se não somente


com a psicopatologia como também com o desenvolvimento psi­
cológico normal. A execução desse programa leva não apenas
ao estudo intensificado do ego mas a uma certa idealização do
ego. Conforme notaram aprovadoramente Fred Weinstein e Ge-
raíd Platt, a teoria psicanalítica afastou-se da noção do ego
desamparado e sitiado, surpreendido em três frentes pelo id, pelo
superego e pela inexorável realidade, travando por conseqüência
uma constante luta defensiva”. De modo muito mais intenso que
Freud, os psicólogos do ego enfatizam a capacidade do ego para
a ação habilidosa e criativa, embora reprovem outros autores
por exagerarem o poder da razão humana ou ignorarem a inevi­
tabilidade do conflito psíquico.
A fim de tornar-se uma psicologia geral, defende Fíartmann
em seu Ego Psychology an the Problem of Adaptation (A Psi­
cologia do Ego e o Problema da Adaptação), a psicanálise tem
que enfrentar os aspectos do “ processo adaptativo” que são su­
postamente imunes ao conflito — isto é, aquelas “ funções” do
ego que não podem ser reduzidas a mecanismos defensivos con­
trários às exigências conflitantes do id e do superego. Essas
incluem uma gama de atividades notavelmente ampla: a percep­
ção, o pensamento, a linguagem, o desenvolvimento motor e
mesmo a memória. Àqueles que possam argumentar que tais
matérias situam-se fora do escopo da psicanálise, Hartmann
responde que “ se levarmos a sério a reivindicação da psicanálise
de ser uma teoria geral do processo mental, devemos estudar
também essa área da psicologia” . Mas ele jamais se contrapõe
à objeção muito mais densa de que a atribuição de todas essas
importantes atividades à “ esfera livre de conflitos do ego”, como
a denomina Hartmann, resulta precisamente em sua isenção do
exame minucioso da psicanálise. A audácia do repto original
lançado por Freud à psicologia acadêmica repousa em sua rei­
vindicação de ter descoberto a dinâmica inconsciente subjacente
a tais fenômenos mentais ordinários, como a memória — sobre­
tudo a memória — e de ter, assim, tornado impossível enfocá-los
simplesmente como mecanismos de “ adaptação” . A sua obra
mais recente, interpretada pelos psicólogos do ego como uma
garantia para o abandono de uma estieita “psicologia do id”,
tornou mais difícil que nunca enfocar qualquer “ esfera” da
A POLÍTICA DA PSIQUE 20.3

mente como livre de conflitos inconscientes, uma vez que ela


levou à conclusão de que “ no ego, não apenas o que é inferior
como também o que é superior pode ser inconsciente”. A psi­
cologia do ego, ao explicar as atividades superioras da mente
como técnicas de evolução pessoal e social livres de conflito,
adaptativas e basicamente conscientes, retornou à posição de­
fendida pela psicologia acadêmica pré-freudiana.
Freud comparava o ego a “um cavaleiro que deve manter
sob controle a força superior do cavalo” . Para Hartmann e seus
seguidores, essa imagem transmite uma impressão do poder do
liomem sobre a natureza, ao passo que Freud pretendia nitida­
mente apresentá-la como uma advertência sobre a dependência
do homem frente à natureza e sobre o caráter precário de seu
domínio sobre as forças naturais (inclusive sobre a própria
capacidade de destruição, que freqüentou todos os escritos de
Freud posteriores à Primeira Guerra Mundial). Segundo Freud,
a besta interior ameaça cuspir o “ cavaleiro” da sela; todavia,
para aqueles que tomam a psicologia do ego como ponto de
partida, a razão amplia rapidamente o seu controle sobre o
meio ambiente. Um “ domínio cada vez maior do meio ambiente”
e um “controle cada vez mais amplo da própria pessoa”, con­
forme afirma Hartmann, revelam-se tanto no desenvolvimento
do indivíduo como na história humana em seu conjunto. A
máxima freudiana “ Onde está o id deveria estar o ego” (embora
isso “ não signifique que jamais tenha existido, ou possa existir,
um homem puramenete racional”) expressa não somente um
ideal terapêutico mas uma “tendência histórico-cultural”, se­
gundo Hartmann. De acordo com Weinstein e Platt: “ Podemos
identificar historicamente uma crescente capacidade dos indiví­
duos para fazer opções conscientes e orientadas para o ego” .
Em sua perspectiva, os “efeitos do processo de modernização
sobre a personalidade” libertam gradativamente o ego tanto
“das compulsões da consciência como dos impulsos de irracio­
nalidade”.
Aparentemente “ livre de valores” , a psicologia do ego di­
vide com outras ciências e pretensas ciências um compromisso
Com a ideologia da própria ciência. Ela pressupõe que o escla­
recimento científico signifique progresso histórico. Equipara
a razão com a tecnologia (vale dizer, com as atividades mentais
204 O MÍNIMO EU

de resolução de problemas, com a adaptação racional dos meios


aos fins) e, então, procede à remoção da tecnologia do campo
de investigação da psicanálise, com o argumento de que a ca­
pacidade de solução de problema tem uma existência indepen­
dente e “ autônoma”, livre de conflitos interiores ou compulsões
ideológicas.18 Conforme Hartmann, a própria terapia psicana-
lítica importa em um "tipo de tecnologia”, ainda que o “per­
curso da ciência à tecnologia seja, de modo geral, muito mais
lento e complexo nas ciências psicológicas e sociais do que nas
físicas”. Por essa razão, o controle sobre os elementos irracio­
nais da natureza humana está amiúde atrasado em relação ao
controle do homem sobre o meio físico. “ O desenvolvimento
histórico colocou ora um, ora outro desses fatores como metas
de primeiro plano”, escreve Hartmann; na presente conjuntura,
o crescente domínio do homem sobre o mundo externo deve ser
compensado por um crescente domínio do mundo interior. A
tecnologia do eu, em outras palavras, deve se pôr em dia com
a tecnologia industrial.
Vemos agora porque a psicologia do ego não. responde à
ameaça da engenharia comportamental de forma mais efetiva
que a psiquiatria “ humanista”. Uma vez definido o problema
dessa forma (a racionalização da vida mental como a contra-
face da racionalização do meio natural e como um corretivo
à “ irracionalidade implícita na psicologia de massas”, como
afirma Hartmann), a exigência de uma nova forma de controle
comportamental muito mais rigorosa que a psicanálise torna-se
irresistível.

(18) Hartmann empresta diretamente de Max Weber a sua defin


ção de racionalidade. Para ele, um indivíduo age de “forma proposital-
mente racional", quando “confronta racionalmente os meios com os fins,
os meios com as conseqüências secundárias e. finaimente, os vários fins
possíveis entre si”, na expressão de Weber. Essa concepção técnica da
razão ignora a ionga tradição de “razão prática" que se origina em
Aristóteles, segundo a qual o conhecimento deve ser usado não para
realizar um determinado objetivo mas para treinar as virtudes específicas
de uma determinada profissão, ocupação ou prática e, de modo mais
geral, para estimular o desenvolvimento do caráter e a busca da per­
feição religiosa. Uma vez que a psicanálise é uma prática precisamente
neste sentido, enfatizando o insight morai em oposição ao que atual­
mente se denomina de resultados “práticos", é possível esperar de seus
adeptos que sejam os últimos a aceitar uma concepção técnica de ra­
cionalidade.
A POLÍTICA DA PSIQUE 205

É justamente sobre as premissas subjacentes desse debate


— as premissas da psicologia do ego e de toda a exaltação
liberal do ego racional — que se deve levantar as questões.
E se o progresso tecnológico não passar de uma ilusão? E se
ele não levar a um maior controle do meio físico mas a um
meio ambiente cada vez mais imprevisível, a um retorno da ca­
pacidade de destruição reprimida na própria natureza? E se
0 impulso por trás do desenvolvimento tecnológico (embora
não necessariamente por trás do espírito de investigação cientí­
fica) for, ele próprio, patológico? E se a tendência a nos fazer
totalmente independentes da natureza, que jamais consegue atin­
gir a sua meta, se originar da tentativa inconsciente de restaurar
a ilusão de onipotência infantil?
Com o intuito de completar a nossa abordagem da política
da psique, voltamo-nos agora para a obra daqueles que não
hesitaram em levantar essas inquietantes questões, comumente
banidas do discurso “ científico”, e, ao fazê-lo, desafiaram tanto
a tradição de pensamento liberal como a conservadora.
JI
f
i

O assalto
ideológico ao ego
&

O esgotamento das ideologias políticas


»pôs a Segunda Guerra Mundial
i
Os terríveis acontecimentos das décadas de 30 e 40 — a

l
ascensão do totalitarismo, os campos de extermínio, os bom­
bardeios estratégicos aliados sobre a Alemanha, a utilização da
bomba atômica contra o Japão trouxeram à tona profundezas
ínsuspeitadas ou desconhecidas de destrutividade, mesmo na­
queles que lutavam pela democracia e pela liberdade; a fé no
liberalismo viu abalados os seus fundamentos. Não se tratava
simplesmente de que tal ressurgimento da bárbarie em escala
global pusesse em questão as ingênuas concepções de progresso
histórico e perfectibilidade humana. O caráter autodestrutivo da
violência a ele associada parecia minar até mesmo a premissa
de que o egoísmo comum normalmente impede os homens de
@ntregarem-se aos seus impulsos agressivos com completo descaso
pelos interesses de outrem ou pelo medo de represálias. O
desejo de morte, fundamento aparente do reaparecimento do
assassinato em massa, ao lado da incapacidade das tradições
humanistas de antecipar-se ou iluminar esses eventos, levaram
a uma crescente convicção de que a “ teoria social contemporâ­
nea, capitalista ou socialista, nada tem a dizer sobre o problema
208 O MÍNIMO EU

real de nossa época” , como defendeu Norman O. Brown em


Life against Death (Vida contra Morte).
Aqueles que compartilhavam com Brown a crença na “ apo­
sentadoria das categorias políticas” fizeram experiências, no
pós-guerra, com uma variedade de substitutos. Alguns encon­
traram no cristianismo, especificamente na “ nova ortodoxia” ,
a base para uma nova política de “pecado, cinismo e desespe­
rança” , na desdenhosa expressão de Brown. Outros propuseram-
se a substituir a política por uma nova ciência de controle
comportamental, que visava a eliminação da agressividade por
meio do condicionamento psicológico e da engenharia compor­
tamental. Na verdade, defendiam um totalitarismo benigno como
única resposta ao totalitarismo selvagem de Hitler e Stalin. Tal
solução continua atraente a muitas pessoas, a despeito de suas
implicações antidemocráticas, porque retém importantes elemen­
tos da visão de mundo liberal, como vimos: uma confiança na
predizibilidade do “ comportamento” humano, uma psicologia
do prazer e da dor, uma insistência na primazia do interesse
pessoal. O behaviorismo fornece um aparato intelectual agrada­
velmente familiar para um admirável mundo novo.
As exigências de “ sobrevivência emocional” inspiraram um
terceiro curso de ação, conduzindo muitas pessoas com “cons­
ciência mundial”, na expressão de Dorothy Dinnerstein, a tenta­
tivas de renovar a capacidade de devoção na escala modesta da
amizade pessoal e da vida em família, “ a serviço de alguns
equivalentes espirituais das antigas divindades domésticas”. Se­
gundo Dinnerstein, as vicissitudes da Segunda Guerra Mundial
reduziram os radicais de sua geração a um “ estado de choque
moral”, a uma condição de “ desesperança histórica tão aguda
que poucos de nós poderiam reconhecê-la claramente como de­
sespero” . O que fez esses eventos tão destrutivos foi o fato de
não resultarem simplesmente das ações de homens malignos,
mas de parecerem enraizados em . estruturas sociais de larga
escala. “ O impulso de construção de estruturas sociais de íarga
escala, que poderiam conter e mesmo reduzir grandemeníe essas
forças de pesadelo, foi paralisado pela maciça evidência de que
as estruturas sociais de amplo alcance eram per se (não apenas
as dos países capitalistas) o habitat no qual elas procuravam
horrendamente vicejar. ”
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 209

Dinnerstein argumenta que a geração do pós-guerra, mesmo


D sua fuga da política, transmitiu à geração subsequente a
■•.ui “ visão infernal da sociedade” e as sua “ meias-soluções para
|u problema da sobrevivência emocional” . Dessa maneira, plan­
tou inadvertidamente as sementes da política cultural que flo-
*$680011 nos anos 60 e 70. Neste ponto de vista, o radicalismo
BOI anos 60 teria representado não tanto um retorno ao com­
promisso político após um período de refluxo como uma meta-
IfclOrfose da vida pessoal na atividade política. “ Faça o amor,
Olo faça a guerra.” Os traços mais característicos da nova es­
querda derivavam de sua tentativa de “ combinar o ‘pessoal’
LCOtn o ‘político’ ” , como notou Shulamit Firestone, em 1970, e
| 4 e sua convicção de que “os velhos boletins e panfletos e a
Velha análise marxista não são mais o verdadeiro lugar da ação” .
hA suspeita frente às organizações sociais de ampla escala; a
r fSjeição do centralismo democrático; a descrença na liderança
• na disciplina partidária; a confiança nos pequenos grupos; o
fBpúdio ao poder e aos “ enganos do poder”, à disciplina do
Jrabalho e à atividade voltada para um objetivo, de modo
geral; a recusa do pensamento linear — tais atitudes da nova
(..|iquerda, fontes de tanta coisa frutífera em sua ação e também
de tanta coisa inútil c autodestrutiva, originaram-se na alegação
Crucial (conforme defendida pelos Redstockings de São Fran­
cisco em seu manifesto de 1970) de que “ a nossa ação política
, começa com nossos sentimentos” .
Tal política pode assumir várias formas: feminismo radical,
preservacionismo ambiental, pacifismo, niilismo, culto da vio­
lência revolucionária. “ Revolução cultural” é um lema ambíguo.
Na China, ele foi invocado em favor de ataques sistemáticos
contra a inteligência e o ensino, uma revolução contra a cultura.
No Ocidente, a crítica da “ razão instrumental” degenerou algu­
mas vezes em uma exaltação dionisíaca da irracionalidade. A
revolta contra a dominação tecnológica aponta para novas for­
mas de vida comunitária, mas também aponta para o niilismo
® a “ subjetividade vazia”, como a denominou Lewis Mumford.
Mas apesar do antiintelectualismo, da revolta infantil e do gosto
pela destruição, tantas vezes associados com a política cultural,
ela trouxe à luz certos temas ignorados pela tradição política
dominante: os limites da razão: as origens inconscientes do
210 O MÍNIMO EU

desejo de dominação; a corporificação desse desejo na tecnologia


industrial, aparentemente o produto mais elevado da inteligência
racional.

A esquerda neofreudiana

A melhor forma de entender por que a idéia de uma


revolução cultural estimula tais práticas contraditórias é estu­
dar a sua tentativa de fundamentar a teoria social na psicanálise
com a ressalva usual de que muios expoentes desta posição
não mostram nenhum interesse pela psicanálise. Mas aqueles
que efetivamente se voltaram para Freud, nos anos subseqüentes
à Segunda Guerra Mundial, assim o fizeram por boas razões.
A sua obra (em particular A Civilização e seus Descontentes,
que ofereceu tanto a Brown como a Herbert Marcuse o ponto
de partida para suas investigações sobre a cultura) parecia
referir-se mais diretamente que qualquer outra tradição intelec­
tual à questão que rondava o mundo do pós-guerra: por que
precisamente a civilização mais elevada desenvolveu e desen­
cadeou uma capacidade de destruição sem precedentes?
A fim de tratar dessa questão, Brown e Marcuse tiveram
que se descartar de uma tradição anterior de radicalismo psica-
nalítico, desenvolvida na década de 30 por Wilhelm Reich,
Erich Fromm, Karen Horney, Gregory Zilboorg e outros “ neo-
freudianos”, que tentaram colocar a psicanálise a serviço da
reforma social, enfatizando as determinantes culturais e não as
determinantes biológicas da personalidade. A escola cultural
estabeleceu-se com a intenção de despir a teoria freudiana de
seu “ determinismo biológico”, seu “ descaso pelos fatores cul­
turais” e pelas “ condições sociais”, sua ênfase indevida na
sexualidade às custas dos “sentimentos de inferioridade” e da
“ânsia por apreço e afeto”, sua desconsideração das “relações
interpessoais”, seu viés “ patriarcal” e sua teoria “hidráulica”
da energia psíquica — de tudo, em suma, que supostamente
marcava o pensamento de Freud como um produto da ciência
mecanicista e da cultura burguesa do século XIX. Reinterpre-
tada à luz do marxismo, do feminismo e da antropologia cultu­
ral, a psicanálise presumivelmente solapou a noção de que as
diferenças sexuais são estabelecidas divina ou biologicamente e
r O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 211

lmV*tnnto imutáveis, destruiu o mito da família patriarcal e do


*wHtnento monogâmico e desnudou a dinâmica psicológica,
HfflVés da qual a família patriarcal e a moral sexual repressiva
HfViam para “ manter a estabilidade da sociedade de classes” ,
nu expressão de Fromm. De tal modo, o feminismo, o marxismo
<■ a psicanálise pareciam convergir na revelação da família auto-
liiilria e da personalidade “patricêntrica” (que experimenta o
"íflmento como culpa e não como injustiça, aceita a sua sina,
!h lugar de procurar transformar as condições sociais que a
em infeliz e “ identifica-se com o agressor”, em vez de tentar
Ir as vítimas de agressão contra o sistema social vigente).
Em sua ânsia por atualizar a psicanálise e por reconciliá-la
pfBtn as filosofias sociais progressistas, os neofreudianos anularam
que era característico e original na obra de Freud e termina-
com uma teoria psicológica que meramente confirmava
aqui lo que todo homem ou mulher letrado, humano e bem-
nsante já sabia. Como notou Marcuse em sua “ Crítica do re-
llonismo neofreudiano” , eles “horizontalizaram” a “ dimen-
\ mio profunda do conflito entre o indivíduo e sua sociedade” e
transformaram a psicanálise numa “ filosofia moralista do pro­
gresso”. De acordo com Brown, eles reverteram, o axioma se­
gundo o qual a criança é o pai do homem, reafirmado por
Freud e sustentado com novas evidências e, em vez disso, escre-
Veram como se o aprendizado de asseio, as injunções paternas
Contra a masturbação e outras práticas de educação infantil,
repressivas ou esclarecidas, desempenhassem o papel decisivo no
desenvolvimento psicológico. Ao abandonar “ toda a teoria da
Sexualidade infantil” , eles recuperaram o otimismo “facilmen­
te”. Em' lugar da psicanálise eles apresentaram “ acalantos de
doçura e luz”. Até mesmo Reich, que afirmou corretamente
que “ para realizar as suas promessas terapêuticas, a psicanálise
tem de considerar a transformação social”, perdeu-se, segundo
Brown, “ao limitar a transformação social envolvida à liberação
da sexualidade genital adulta”. Como Marcuse procurou de­
monstrar, a transformação da perversidade polimórfica do bebê
na sexualidade genital já refletia o triunfo do princípio de
desempenho sobre o princípio de prazer. Uma revolução que
objetivasse romper o ciclo de dominação e rebelião não poderia
parar na criação de uma moral sexual mais permissiva, Uma
212 O MÍNIMO EU

pretensa revolução sexual que se limitasse ao prazer genital


poderia facilmente levar a novas formas de dominação. A tarefa
com que se defrontaria a revolução cultural não seria a de
guardar mais oportunidades para o prazer erótico, como libe­
ração momentânea das exigências do trabalho alienado, mas a
de erotizar o próprio trabalho. Não seria a de ampliar o domínio
do lazer, mas abolir a própria distinção entre trabalho e lazer,
transformar o trabalho em jogo e livrar-se da atitude agressiva
e dominadora perante a natureza, que informa a presente orga­
nização do trabalho.

Marcuse e a ‘‘repressão excedente” (surplus repression) *

A reformulação da teoria social psicanalítica do pós-guerra


teve que se iniciar, portanto, por uma tentativa de desfazer o
dano causado pela escola cultural dos revisionistas freudianos.
Segundo Marcuse, seria preciso abordar Freud basicamente da
mesma forma que Marx abordou David Ricardo, como um sagaz
adversário ideológico cuja obra deveria ser tomada mais a sério
que a dos aliados ideológicos bem-intencionados mas intelectual-
mente frágeis (os socialistas utópicos, para Marx; os revisionis­
tas neoíreudianos, para Marcuse) e, quando adequadamente com­
preendido, contraditar o seu próprio pressuposto de que a feli­
cidade humana permanece uma miragem. “A própria teoria
de Freud”, dizia Marcuse, “ fornece razões para rejeitar” o
pessimismo de Freud. Marx voltou a economia política contra
ela própria ao defender que as leis do mercado, descritas por
Adam Smith como naturais, inevitáveis e imutáveis, derivavam
de uma série particular de desenvolvimentos históricos, estando
portanto abertas a modificações posteriores. Da mesma ma­
neira, Marcuse historicizou Freud. Enquanto a teoria da civi-
bzação de Freud derivava a necessidade de repressão da des­
proporção “natural” entre os desejos humanos e as exigências
da realidade, Marcuse procurou mostrar que, diante de uma
análise acurada, as categorias “ naturais” revelavam-se históricas
e que a repressão não se originava “na luta pela existência mas
somente em sua organização opressiva” . Através da distinção

(*) Na edição brasileira de Eros e Civilização, esse termo foi tra­


duzido por mais-repressão (p. 51). (N,T.)
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 2.13

Itre repressão e “ repressão excedente”, Marcuse procurava con-


l« rlr uma dimensão psicológica à teoria marxiana do trabalho
uiu-nado, segundo a qual o trabalhe que excede o necessário à
sobrevivência humana participa da produção da “ mais-valia”
ÍUrplus value). A repressão excedente, como a denominou Mar-
lie, origina-se do aparelho organizado de poder e dominação de
lise, que força os homens e as mulheres ao trabalho exce-
jMtfite à satisfação de suas necessidades. À medida que a socie-
torna-se mais complexa, as relações de produção tornam-
i l crescentemente hierarquizadas e as sanções psicológicas que
impõem o trabalho alienado correspondentemente mais severas.
Dsssa forma, a civilização inflinge aos indivíduos uma carga
psicológica de renúncia, de sofrimento e de culpa que excede
$ estritamente necessário para assegurar a reprodução da espé-
Ifiie. O 44sentimento inconsciente de culpa e a necessidade incons­
ciente de punição parecem desproporcionais aos impulsos ‘peca­
minosos’ reais do indivíduo” .
Da mesma forma que a crítica da economia política
elaborada por Marx pressupunha uma análise histórica do
trabalho alienado, a posição de Marcuse parecia pressupor uma
análise histórica de suas conseqüências psicológicas, uma histó­
ria da repressão excedente. Não obstante, enquanto Marx de­
dicou boa parte de sua vida ao estudo dos modos de produção
em transformação, Marcuse, por sua vez, recorreu à ambígua
teoria freudiana da horda primitiva, que traçava a origem do
pfttriarcado até a rebelião abortada contra o pai primai. Os
filhos derrubam o pai mas interiorizam a sua autoridade e a
reimpõem sobre as mulheres e as crianças. Segundo Marcuse,
essa “ contra-revolução patriarcal” torna-se o protótipo de todas
üs revoluções desde então fracassadas. O “ ritmo alternado de
libertação e dominação” origina-se da identificação inconsciente
tios filhos com o pai odiado. Em vez de se livrarem de seu
domínio, eles o reimplantam na forma da “ família monogâmica
patriarcal” , que institucionaliza a renúncia às pulsões, canaliza
si “perversidade polimórfica” para a única saída aceitável (o
casamento monogâmico) e impõe a submissão às normas sociais
C a compulsão patriarcal ao trabalho. O levante dos filhos re­
beldes rompe momentaneamente a “ cadeia de dominação” , no
enfoque de Marcuse; “então, a nova liberdade é outra vez
suprimida — desta vez por sua própria autoridade e atuação” .
214 O m ínim o eu

Uma vez estabelecido, esse padrão repete-se através da história


— como na vida e na morte de Jesus, que Marcuse reinterpreta
como uma luta contra as leis patriarcais em nome do amor,
uma luta posteriormente traída pelos discípulos de Cristo quan:
do deificaram o filho ao lado do pai e codificaram os seus
ensinamentos em novas leis opressoras.
A teoria da horda primitiva serviu a Marcuse, e a outros
teóricos da esquerda freudiana, como um substituto da análise
histórica, um encapsulamento admitidamente "especulativo” e
“ simbólico” de todo o curso da história patriarcal. É fácil sen­
tir a atração que tal idéia teria para a esquerda. Ela não apenas
compromete a família com as origens de uma civilização repres­
siva como também decifra os vínculos psicológicos entre elas.
Dá a entender como o complexo de Édipo e com ele todo o
aparato de dominação patriarcal se transmite de uma geração
para outra. Procura as origens do complexo de Édipo na aurora
da história e ajuda, assim, a definir a necessidade de uma
revolução cultural que transcenda uma mera mudança no poder
e nas instituições e rompa o ciclo de rebelião e submissão. No
entanto, como o próprio Marcuse salienta em sua crítica à escola
cultural, a psicanálise oferece os “ enfoques mais concretos da
estrutura histórica da civilização” precisamente quando ela está
menos preocupada em desenvolver uma teoria geral da cultura,
colando-se, ao contrário, aos conceitos clínicos — “ conceitos
que os revisionistas rejeitam”. Tal advertência — infelizmente
ignorada pela maioria dos autores que se propõem a remodelar
a psicanálise enquanto teoria social, inclusive Marcuse - - apli­
ca-se com força particular às especulações de Freud sobre a
psicologia dos grupos, tanto no ensaio com esse título como em
Moisés e o Monoteísmo, que se fundamenta num modelo de
conflito mental já descartado nos escritos mais estritamente psi­
cológicos de sua última fase. A crescente consciência de Freud
sobre uma camada da vida mental mais profundamente soter­
rada e subjacente ao complexo de Édipo, a sua revisão da teoria
dos instintos (pulsões) e a sua nova psicologia da mulher apon­
tavam para conclusões incompatíveis com muitas das generaliza­
ções que ele continuava a propor em seus textos sociológicos.
Em primeiro lugar, essa nova linha de análise sugeria que o
prazer sexual não é o único objeto de repressão. Em segundo,
sugeria que a instância da repressão não é simplesmente a “ rea-
1
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 215

liilude” . Coerentemente, o surgimento do complexo de Édipo


irtjja teoria Freud deixou agora explícita, pela primeira vez)
mio pode ser enfocado simplesmente como a submissão do prin-
<ipio de prazer a um princípio de realidade imposto pelo pai
•Criança. Não se trata apenas de que as ordens e proibições
ternas, as práticas de higiene e as ameaças de castração de-

t
Qpenhem um papel menos importante no desenvolvimento da
ança que o concebido anteriormente por Freud. Todo o es-
ema conceituai que opõe prazer e realidade, equiparando o
meiro ao inconsciente e o último à adesão consciente à moral
terna, deve dar lugar a um modelo mental diferente.

O próprio Marcuse pôs em questão a psicologia de grupo


Freud em um ensaio publicado em 1963, equivocamente
itulado “ O caráter obsoleto do conceito de homem de Freud” .
itando que Freud via todos os grupos sociais como revives­
cências da horda primitiva, com um “ líder como agente unifi-
ÍMÍaclor” e a “ transferência do ideal do ego para o líder como
imagem do pai”, Marcuse ia mais longe para argumentar que
1 - Ai sociedades modernas prescindiam do imaginário patriarcal e
i th autoridade patriarcal. “ Os chefes fascistas não eram “ pais”
r • os chefes pós-fascistas e pós-stalinistas não apresentam os
traços de herdeiros do pai primai nem, por nenhuma interpre­
tação, da “imaginação ‘idealizadora’ Conforme Marcuse, o
lurgimento de uma “sociedade sem pais” serviu para “invali­
dar” o “ modelo psicanalítico clássico, no qual o pai e a família
dominada pelo pai eram. os agentes da socialização mental” . O
“declínio do papel do pai” refletia o “ declínio do papel da
empresa privada e familiar” e a “gestão do ego nascente dire-
tflmente pela sociedade, através dos meios de comunicação de
massa, da escola, dos times esportivos e das turmas” , ao lado
de outras agências de socialização. Essas mudanças levaram a
Uma “ tremenda liberação de energia destrutiva”, uma “ feroz”
agressividade “ liberada dos vínculos instintivos com o pai, como
autoridade e consciência” .
Evidentemente, o que esses processos invalidam não é a
“concepção freudiana do homem”, mas uma teoria social “ ex­
trapolada” (para usar as palavras do próprio Marcuse) das extra­
polações de Freud a partir de dados clínicos para a pré-história.
216 O MÍNIMO EU

Freud e por boa parte dos trabalhos subsequentemente produzi­


dos pelos kleiníanos, pelos teóricos das relações objetais e pelos
psicólogos do ego, segundo a qual a repressão origina-se na
sujeição do princípio de prazer à compulsão patriarcal ao tra­
balho. Todavia, Marcuse continua, mesmo em seüs trabalhos
posteriores, a condenar o “princípio de desempenho” como a
fonte primai da infelicidade e da alienação humanas. Esque­
cendo-se mesmo de sua própria defesa da união entre trabalho
e jogo, ele insiste em que “ não importa quão justa e racional-
mente possa ser organizada a produção material, ela nunca
poderá ser o domínio da liberdade e da gratificação” . Uma
vez que o trabalho “ serve a fins externos a ele”, permanece
“ inevitavelmente repressivo”, na visão de Marcuse — uma
“neurose” . Por essa razão, ele defende que a libertação de Eros
exige a eliminação tecnológica do trabalho. Rejeitando qualquer
intenção de defesa de um “ regresso romântico para antes da
tecnologia” , ele insiste no potencial liberador da tecnologia
industrial. “ É ainda necessário repetir”, pergunta em seu Ensaio
sobre a Libertação, “ que a ciência e a tecnologia são os grandes
veículos para a libertação e que é somente o uso e a restrição
delas na sociedade repressiva o que as torna veículos de domi­
nação?” . Unicamente a automação possibilita a Orfeu e a Nar­
ciso saírem de seu esconderijo. O triunfo da perversidade poli-
mórfica depende de sua antítese; a racionalidade instrumental
levada ao ponto da arregimentação total. Um exercício presumí­
vel de pensamento dialético, essa linha de raciocínio provoca
hesitação até mesmo entre os regelianos quando lêem (em Eros
e Civilização) que “ a transformação da sexualidade em Eros. . .
pressupõe a reorganização racional de um amplo aparelho indus­
trial, uma divisão de trabalho social altamente especializada,
o uso de energias fantasticamente destrutivas e a cooperação de
vastas massas”. A consecução das “ relações de trabalho libidi-
nais”, ao que parece, requer a organizações da sociedade em
um imenso exército industrial.

Á íanatologia de Brown: a patologia da intencionalidade

Brown, tal como Marcuse, condena a atividade intencional


como substituto de gratificações mais profundas, mas sustenta
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO

m a posição de maneira mais consistente, sem apelos de últirfta


p ra à libertação tecnológica. Além disso, enfrenta o problema
«In “ escassez” em. um espírito mais próximo do de Freud. Re~
InOiona o conflito psíquico não às exigências do trabalho mas
n angústia da separação e, em última instância, ao raedo da
rte. Para Marcuse, a “luta pela existência requer a raodifi-
ção repressiva dos instintos (pulsões) mormente devido à falta
MU íeios e recursos suficientes para a gratificação integral,
(adolor e não exaustiva das necessidades pulsionais” . Para
llfOwn, a “ausência de meios e recursos suficientes” não deriva
d» organização social da produção mas da própria urgência das
jftigências pulsionais. A “ escassez” é antes de tudo experimen-
Ijiila como uma carência do amor materno não dividido .(Deste
ponto de vista, o complexo de Édipo apenas reafirma uma lição
fjpç a criança aprende muito antes.) “ É justamente porque a
Orlança ama tanto a sua mãe que ela sente a separação da mãe
$0mo morte.” O medo da separação contamina o “projeto nar-
CÍlico de união amorosa com o mundo com o projeto irreal
j do tornar-se a si próprio todo o- seu mundo” . Ele não somente
I “pJ5e em ação um desejo regressivo de morte” como. o dire­
ciona externamente sob a forma de agressão. Mesmo o complexo
do Édipo, de acordo com Brown, não se origina tanto no ciúme
do pai quanto no desejo de superar a separação e a dependência
Mtendo um filho pela mãe (e assim) tornando-se pai de si mes­
mo”. Incapaz de suportar quer a separação quer a dependência,
a criança concebe a fantasia da auto-suficiência absoluta (o
projeto causa sui, como o denomina Brown, de tornar-se o seu
próprio pai) que o medo da castração — ainda uma outra
fprma de angústia da separação, porque ameaça o instrumento
*itravés do qual esse projeto seria realizado — a força a re­
primir.
Á leitura browniana de Freud é superior à de Marcuse em
Vários aspectos, Ela se livra da noção de que o prazer sexual
I o único objeto da repressão. Abandona o corolário de que a
neurose nasce de um conflito entre o prazer e a ética patriarcal
do trabalho, entre Eros e a moral civilizada. Expõe a dependên-
oU essas idéias perante as ingênuas teorias do progresso histó-
Hco descartadas por Freud em seus últimos escritos psicológicos,
teoria iniciai de- Freud” , escreve Brown em Life againtt
218 O MÍNIMO EU

Death, “ supõe que aquilo que é reprimido é simplesmente Eros


(ou o jogo); também supõe que a repressão vem do exterior
— do pai ameaçador no complexo de castração, dos pais que
ensinam a ir ao banheiro, no trauma anal análogo” . As escolas
neofreudianas da antropologia cultural e do revisionismo psi-
canalítico conduzem esses pressupostos um passo adiante. Desde
que as culturas apresentam diferenças em sua atitude diante da
sexualidade, as práticas paternas cobrem uma ampla escala entre
a permissividade e a repressão e a estrutura da própria família
varia de uma cultura para outra, segue-se que a cultura, e não
a biologia, é a principal determinante do caráter e, além disso,
que a própria cultura consiste amplamente das “ variáveis reali­
dades das práticas de educação infantil”, como afirma Brown
desdenhosamente. Brown é um crítico mais agudo do revisionis­
mo neofreudiano que Marcuse. Não é apenas a “ ênfase revisio­
nista na influência das ‘condições sociais’ ” que está equivocada,
como sustenta Marcuse. As teorias revisionistas da cultura fun­
damentam-se no equívoco mais fundamental de que a repressão
se origina no controle paterno sobre a sexualidade infantil. Con­
forme salienta Brown: “ Uma das relíquias das teorias iniciais
de Freud, não abandonada de forma consistente em suas for­
mulações posteriores e ainda disseminada nas exposições didá­
ticas sobre a psicanálise, é a noção de que a essência da fase
fálica da sexualidade infantil é a masturbação e de que a
essência do complexo de castração é a repressão da masturba­
ção pelos pais (geralmente pelo pai), através da ameaça de
punição pela castração” . Em seus primeiros tempos, Freud es­
perava que um relaxamento da “moral sexual civilizada’’ redu­
ziria os conflitos e o sofrimento psíquicos. O revisionismo
neofreudiano aferra-se a essa interpretação humanitária, refor­
mista e “ profilática” da missão psicanalítica, com frequência
vinculando-a (como nos trabalhos de Fromm e de Wilhelm
Reich) a uma crítica socialista das instituições “patricêntricas-
aquisitivas” . De tal modo o problema com o revisionismo não
é que ele “glorifique o ajustamento” e faça o indivíduo se
conformar com uma civilização repressiva, como alega Marcuse,
mas que sua visão de liberação sexual continua engastada em
teorias simplistas do conflito psicológico.
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 219

Tendo se livrado da antropologia neofreudiana que se


nUpa das variações superficiais das técnicas de educação infan-
tendo rejeitado mesmo a distinção marcusiana entre repres-
0 e repressão excedente, Brown acha difícil resistir à con-
üsão de que “ há certas dificuldades inerentes à própria natu-
lza da cultura”, como escreveu Freud em A Civilização e seus
êscontentes, “ que não cederão a qualquer esforço de reforma”,
oclavia, Brown não pode aceitar tal conclusão. Ao passo que
Freud se recusava a “ apresentar-se como um profeta diante de
leus semelhantes”, cedendo, dizia, “ à sua censura por não ter
Qualquer consolação a oferecer-lhes”, Brown insiste em que a
psicanálise precisa “ transformar-se em crítica social” e redefinir-
10 como um “ projeto de transformação da cultura humana” . Os
achados da psicanálise, com seu “ doloroso ataque ao orgulho
humano”, seriam insuportáveis, segundo ele pensa, se ela não
pudesse “simultaneamente oferecer uma esperança de coisas me­
lhores”. Apenas a esperança de um “ caminho melhor” torna
possível “ explorar os amargos resíduos da teoria psicanalítica” .
Não se pode dizer de Brown, como disse Marcuse dos neo-
freudianos, que ele recupera o otimismo de forma fácil. Ele cons­
trói a sua defesa da esperança sobre a hipótese freudiana da
pulsão de morte, a mais “ desalentadora” de todas as suas idéias,
como disse Freud, mas também, infelizmente, a mais especula­
tiva e ambígua, a menos sustentada por evidência clínica. O
postulado de uma pulsão de morte (death instinct), defende
Brown, aponta para uma “ saída” do mal-estar humano — uma
“ solução para o problema da agressão” e a “possibilidade de
uma consciência não baseada na repressão” . De acordo com
Brown, o enfoque freudiano de que toda a atividade pulsional
busca o alívio da tensão — o princípio de Nirvana — signi­
fica que no nível biológico a vida e a morte não entram em
conflito. O' objetivo da vida é a morte: isto é, um estado de
absoluto descanso. “ Os lírios do cam po... não se preocupam
com o porvir.” Somente o homem acha impossível aceitar a
vida “adequada a sua espécie”, argumenta Brown. A sua “inca­
pacidade de aceitar a morte” o condena à atividade sem fim.
Ele não pode conceber a possibilidade de uma existência que
reconcilie a vida e a morte. “ Personagens faustianos que somos,
não podemos imaginar o ‘descanso’, o ‘Nirvana’ e a ‘eternidade’,
220 O M ÍNIM O S ij

exceto enquanto morte.” A cultura quebra o “ equilíbrio har­


mônico entre tensão e alívio que governa a atividade dos ani­
mais'’. A cultura deforma a pulsão de morte, a busca pulsional
(Instinctual) de paz, numa “ fixação no passado, que aliena o
neurótico do presente e o compromete com a busca inconsciente
do passado no futuro” . Porque o homem teme morrer, ao con­
trário dos animais, ele direciona a “ tendência inatameníe auto-
destrutiva da pulsão de morte” para fora. de acordo com Brown.
A destrutividade dos humanos representa uma modificação cul­
tural da pulsão de morte. Ela nasce de uma “ obsessão” neuró­
tica e especificamente humana “ com o passado e o futuro”,
que o leva a desviar a ânsia de morrer na -ânsia de matar, a
■impor a sua vontade aos outros, a cercar-se de herdeiros, atin­
gindo assim uma espúria imortalidade.
A “ saída”, portanto, baseia-se em uma nova cultura que
reconheça a possibilidade^de atividade que também está no des­
canso” . Uma taí cultura devería se basear no jogo, a única al­
ternativa satisfatória à “ nossa forma de atividade atual” . A íim
de superar a “objeção emocional” de que a vida sem iuta,
uma vida de “perfeita felicidade”, seria equivalente à morte,
Brown sugere que pensemos no jogo como a forma ideal de
atividade, aquela que mais se aproxima da definição aristotélica
de Deus: “perfeição concebida como atividade”. Tendo conde­
nado todas as gratificações compensatórias como ínerentemente
patológicas, Brown tem que representar o jogo como puro de­
sejo, não reprimido e não sublimado. Ele ignora os fatos mais
visíveis sobre a psicologia do jogo: que esta se origina da
busca de um substituto da mãe, procura recapturar o Nirvana
perdido da infância e todavia serve para nos reconciliar com
a sua perda ao capacitar-nos a assegurar o nosso crescente do­
mínio sobre o meio circundante. Sem querer conceder qualquer
virtude ao impulso de dominar o nosso meio circundante,
vendo-o, pelo contrário, como a fonte de tudo o que é destru­
tivo em nossa cultura, Brown vê-se forçado a reivindicar um
lugar privilegiado para a imaginação. “ O jogo é o modo eró­
tico de atividade”, diz em uma passagem que traz à memória
um esquema conceituai superado ao qual ele se opõe em outra
parte: o “ caráter essencial da atividade governada pelo prin­
cípio de prazer e não pelo princípio de realidade” . Recusando-
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 22 i

tr a reconhecer o compromisso psicológico subjacente ao jogo


à arte, Brown insiste em que a arte, “não sendo um com-
"
uomisso com o inconsciente, . .. proporciona satisfação posi-
Va e não pode ser simplesmente classificada . . . ao lado dos
nhos e das neuroses como um substituto da gratificação” .
O enfoque altamente não psicanalítico de Brown em rela-
iÇlo ao jogo indica que ele extraiu as conclusões erradas do
«nsaio de Freud, Além do Princípio de Prazer, o mais confuso
>de todos os textos freudianos. Em vez de basear a sua própria
teoria na hipótese de uma pulsão de morte, ele teria feito me­
lhor se seguisse Freud na sua tentativa de redefinir o princípio
de prazer como algo além do objetivo puramente negativo de
um alívio da tensão. Tateando em busca de uma compreensão
da pulsão sexual (sexual imtinct) que não a subordinasse sim­
plesmente ao “ princípio de Nirvana” , um anseio pela inércia,
Freud sugeriu que a energia libidinal busca a união com obje­
tos que não eia própria ou, em uma formulação diversa, que
o princípio de prazer representa uma “ modificação” da pre­
tensa “ pulsão de morte” e não pode, portanto, ser reduzido a
uma tendência em direção à homeostase.* Tais especulações
parecem levar à conclusão de que é precisamente a impossibi­
lidade de completa satisfação que impede Eros de tomar o
“caminho inverso” rumo ao esquecido e o impele para a frente
em direção à satisfação compensatória propiciada pela arte, o
jogo e o amor romântico — pela cultura, de modo geral. A
psicanálise não corrobora a-crença de Brown na “morbidez da
sociabilidade humana enquanto tal”, embora eia se negue, por
outro lado, a endossar a idéia de que “ há um instinto de per­
feição em operação nos seres humanos”, como Freud defendeu,
“ que os trouxe ao seu alto nível presente de realização inte­
lectual e sublimação ética e que, pode-se esperar, zelará por
seu desenvolvimento em super-homens” . Ela se recusa a dissol­
ver a tensão entre instinto e cultura, que encara como a fonte
do que há de melhor (e do que há de pior) na vida humana.
Ela sustenta que a sociabilidade não apenas frustra como, ao
mesmo tempo, satisfaz as necessidades pulsionais; que a cul­
tura não somente assegura a sobrevivência das espécies huma-

(*) Capacidade do corpo para manter um equilíbrio estável a des­


peito das alterações exteriores. (N.T.)
222 O m ínim o eu

nas mas também proporciona os prazeres genuínos associados à


exploração e ao domínio do mundo natural; que a investigação,
a descoberta e a invenção recorrem elas próprias a impulsos
lúdicos; e que a cultura representa para o homem precisamente
a vida “ apropriada à sua espécie” . Todos esses elementos desa­
parecem na redução operada por Brown que transforma a cul­
tura numa conspiração compacta contra a natureza e a felici­
dades humanas. Se formos fiéis a Freud, temos que rejeitar
tanto a visão neofrediana do homem como produto exclusivo da
cultura quanto a visão browniana do homem como “ nada mais
do que corpo” e da cultura como a “ negação do corpo” . Con-
seqüentemente, temos que recusar o apelo de Brown por uma
“ressurreição do corpo” como única cura para o mal-estar da
sociabilidade humana.

O feminismo freudiano

O esforço para fundamentar uma teoria da revolução


cultural da psicanálise conduz a dificuldades tão insuperáveis
que torna-se necessário lembrar as razões pelas quais pareceu
importante realizar tal esforço em primeiro lugar. Nem o libe­
ralismo nem o marxismo fornecem uma explicação adequada
para a destrutividade que irrompeu no século XX. A violenta
história de nossa época torna impossível aceitar a fórmula libe­
ral segundo a qual a agressão é uma resposta à frustração, ou
a versão marxista dessa fórmula, que a relaciona à exploração
econômica e à dominação de classe. O problema vai além do
capitalismo e da desigualdade econômica. A busca da maligni­
dade subjacente que deforma os empreendimentos e as aspira­
ções humanas instiga, assim, a um renovado interesse na civi­
lização e em seus descontentes.
O movimento feminista desferiu outro golpe nas ideolo­
gias liberal e marxista. No aspecto histórico, a opressão das
mulheres precede a dos trabalhadores e camponeses; na verda­
de, ela pode ser plausivelmente considerada como a fonte ori­
ginal da opressão, da qual derivam todas as outras formas de
injustiça. Além disso, ela tem uma dimensão cultural, e psico-
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 223

M ea ; não pode ser enfocada como puramente econômica, seja


suas causas seja em seus efeitos. A ascensão do movimento
mulheres parece fortalecer o argumento de que a transfor-
social deve ultrapassar a modificação das instituições
>mi distribuição do poder político e econômico, e deve enfren-
inr a própria psicologia do poder assumindo, em outras pala-
ui]|, a forma de uma revolução cultural. Para aqueles que bus-
. mu fundamentar a defesa de tal revolução no realismo psico-
Ingico de Freud, o feminismo promete uma alternativa teórica
I u beco sem saída a que chegou Brown. Ele oferece a
i íi|HTança de que não seja o empreendimento em si o fato ma­
traco, mas o empreendimento masculino, a agressão e o milita-
iimijo masculinos, a tecnologia e a racionalidade masculinas, a
ipSpulsão masculina a enganar a morte com o recurso à imor­
talidade vicária dos feitos notáveis, das guerras, das conquistas
i das bombas cada vez maiores.
> As primeiras feministas denunciaram Freud como um apo-
ista da supremacia masculina. Ou se recusavam a qualquer
DRjpromisso com a psicanálise ou, como o fizeram Karen Hor-
jíay, Clara Thompson e outras revisionistas, tentaram se con-
^Tftpor ao “determinismo biológico” de Freud com a introdução
uma ênfase corretiva na cultura. A crítica feminista recente
liflo aceita, em sua. maior parte, essas simplificações. Ela não
procura fundamentar o raciocínio feminista em versões atenua­
dos da teoria freudiana das quais todas as contradições foram
^movidas nem, por outro lado, contenta-se com uma resposta
I Freud e seus seguidores que tome a forma de um “ simples
Oposto ideológico” , na expressão de Stephanie Engel. Em vez
d® desprezar ou desnaturar Freud, as feministas procuram então
b-e reapropriar do que é convincente e coerente na teoria psi-
Otnalítica colocando a experiência feminina e as mulheres no
8®ntro do cenário” .
A estratégia interpretativa que emerge dos trabalhos re-
çetites de Engel, Nancy Chodorow, Dorothy Dinnerstein e Jes-
ftlca Benjamin depende da aceitação da teoria freudiana, em
luas linhas gerais, como uma descrição acurada do desenvol­
vimento psíquico sob as condições “ patriarcais” predominantes
por toda a história (que atribuem o cuidado das crianças exclu-
224 O MÍNIMO EU

sivameníe às mulheres e subordinam o ato de alimentação aos


projetos masculinos de conquista e dominação) ao mesmo tem­
po que se sustenta a possibilidade de um sistema de trabalho
e educação radicalmente diferente, que produziria uma estru­
tura de personalidade radicalmente diversa. Nesse enfoque, a
psicanálise revelaria seu viés patriarcal não nos obiter dicta de
Freud sobre a inferioridade feminina (expressões de opinião pes­
soal que não devem empanar os aspectos válidos de sua obra
teórica), mas em sua incapacidade para imaginar qualquer ca­
minho de maturação psicológica que não pressuponha uma re­
jeição radical da mãe, a submissão temerosa ao pai e a inte-
riorização de sua autoridade na forma de uma consciência
culpada. Desse modo, a psicanálise está comprometida por sua
aceitação acrítica do ‘'ideal do homem burguês cheio de culpa,
autocontrole e realismo".
O novo feminismo psicanalítico procura levar avante a
crítica da “racionalidade instrumental’' iniciada por Max
Horkheimer, T. W. Adorno, Marcuse e Brown ao mesmo tem­
po que procura femininizá-la, por assim dizer, demonstrando
que os valores instrumentais viciam a própria “ teoria crítica” ,
que equipara autonomia psicológica com. individualismo bur­
guês e com família “patriarcal“ . Essa linha de argumentação,
que vincula o feminismo à crítica da educação, torna-se mais
explícita no artigo de Jessica Benjamin, “ Um mundo sem
pais” . Segundo Benjamin, Freud, Horkheimer e seus mal-orien-
íados seguidores pressupõem que “ a liberdade consiste no iso­
lamento” e que a “ negação da necessidade do outro” repre­
senta a “ única via para a independência” . Na verdade, a “ ati­
tude objetificadora e instrumentalizante tão pronunciada na pa-
triarquia ocidental . . . implica não somente a subjugação mas
o repúdio da mãe por parte do pai”. É nesse sentido, insiste
Benjamin, que nossa sociedade permanece patriarcal, ao con­
trário da proposição apresentada por Marcuse, Alexander
Mitscherlich e outros de que uma sociedade órfã de pais já
veio à luz. “ Na medida em que prevaleça a racionalidade ins­
trumental, (ainda) estamos longe da falta de pais”.
De acordo com essa linha de raciocínio, os valores pa­
triarcais continuarão a prevalecer enquanto a sociedade atri-
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 225

bur as crianças ao cuidado exclusivo das mulheres e enquanto


jjMta subordinar os atos de educação aos projetos masculinos de
SOnquista e dominação. As feministas freudianas defendem algo
mu is amplo que um papel maior dos homens no cuidado das
feanças. Na companhia de muitos outros tipos de feministas,
cias reivindicam a coletivização da educação das crianças, ba­
stindo-se não apenas no fato de que a família nuclear oprime
nulheres como também de que ela produz um tipo de per-
pnalidade aquisitiva, agressiva e autoritária. “ Estudos sobre
tuações educacionais mais coletivas”, escreve Nancy Chodo-
row, “ (os kibutzim, a China, Cuba) sugerem que as crianças
desenvolvem um sentido maior de solidariedade e de compro­
misso com o grupo, um menor individualismo e menos competi­
tividade, além de serem mais propensas a restabelecer relações
ijfltensas exclusivas dos adultos, que as crianças educadas nas
fimüias nucleares ocidentais” . A família nuclear proporciona,
tini outras palavras, os sustentáculos do “pesadelo do progresso
tecnológico em infinita expansão”, para usar os termos de
^Bíown. Porque o progresso tecnológico parece ter atingido um
perigoso beco sem saída, tornou-se imperativo identificar uma
t ftlternativa para a personalidade “patricêntrica” na forma de
; Um tipo de personalidade narcisista, dionisíaca e andrógina.
* Agora que o homem prometéico está aparentemente à beira da
autodestruição, Narciso parece um sobrevivente mais plausível.
O que alguns críticos condenam como uma regressão cultural
• psicológica aparece para muitas feministas como uma “ femi-
nlzação da sociedade americana” há muito devida — na defi­
nição de Engel. Se o “senso basicamente feminino do eu está
i ligado ao mundo” ao passo que o “ senso basicamente masculi-
tflO está separado”, como defende Nancy Chodorow, a socieda-
Hde moderna não tem, obviamente, futuro enquanto os homens
detiverem o predomínio. Daí o desafio das feministas freudia­
nas às “ definições psicanalíticas tradicionais de autonomia e
moral”, nas palavras de Engel, e a sua tentativa de “ articular
concepções de autonomia que têm como premissa não simples­
mente a separação mas também as experiências de mutualidade,
do relacionamento e de reconhecimento do outro como um su­
jeito total” .
226 O MÍNIMO EU

A defesa do narcisismo: empreendimento


“masculino” versus reciprocidade “ feminina”

A análise conservadora da cultura moderna atribui, como


vimos, o crescimento da violência destrutiva a um declínio do
superego, ao passo que os críticos liberais o relacionam a uma
falência do ego racional. Os defensores de uma revolução cul­
tural apontam para a destrutividade da própria razão e ali-
nham-se ao ideal do ego em sua luta para recapturar um sen­
tido de união com o mundo. Stephanie Engel torna explícita tal
identificação com o ideal do ego quando critica o “ ideal do
homem radicalmente autônomo e individualizado” alegadamen-
te sustentado por Freud e cita os trabalhos de Chasseguet-
Smirgel sobre o ideal do ego para fundamentar a possibilidade
de desenvolvimento psicológico e criação cultural “ que é ‘en­
gendrada’, mais que fabricada” . Numa passagem cuidadosa­
mente equilibrada, ela pleiteia uma união do ideal do ego e
do superego.
O superego, herdeiro do complexo de Édipo, enfatiza
a realidade e a separação da criança em relação à mãe,
enquanto o ideal do ego, herdeiro do estado de narcisismo
primário, restaura a promessa da imaginação, do desejo e
a fantasia da reunião. O reino exclusivo do ideal do ego,
a fantasia infantil do triunfo narcísico, constitui a base
da ilusão, da adesão cega às ideologias e do desejo per­
p étu o ... característicos dos narcisistas. Todavia, o desejo
de reconciliar o ego e o ideal do ego, a tendência a re­
tornar ao indiferenciado estado infantil do narcisismo pri­
mário, ajuda a proporcionar o contentamento e o impulso
para a imaginação, bem como para as emoções que cons­
tituem o núcleo de nossa vida criativa. Desse modo, uma
alternativa (ao modelo freudiano de desenvolvimento emo­
cional com sua alegada enfatização do superego) é a ênfa­
se em que nenhuma instância de moral deve sobrepor-se
a outra — tal desafio à hegemonia moral do superego não
destruiria o seu poder mas, em vez disso, conduziria a
um reino dual.
A defesa do narcisismo nunca foi formulada de modo mais
persuasivo. A causa fracassa, entretanto, tão logo as qualidades
associadas respectivamente ao ideal do ego e ao superego são
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 227

'Hçibuídas a um sexo, de modo que a “ reciprocidade” e a “li-


femininas possam ser contrapostas ao sentido do eu
HiUculino “ radicalmente autônomo” . Esse tipo de raciocínio
dlnjolve a contradição mantida em tensão pela teoria psicana­
lista do narcisismo: nomeadamente, que todos nós, homens ou
mulheres, experimentamos a dor da separação e simultanea­
mente ansiamos por uma restauração do: senso original de
mtlio. O narcisismo se origina da fusão simbiótica do bebê
<ÉQ a mãe, mas o desejo de retornar a tal estado jubiloso não
I'»de ser identificado com a “reciprocidade feminina” sem que
min isso se obscureça não só a sua universalidade como tam-
hi'»u as ilusões de “ autonomia radical” à qual ele dá origem,
iMiito nos homens como nas mulheres. O desejo de completa
mito-suficiência é um legado do narcisismo primário na mesma
mrdida que o desejo por reciprocidade e ligação. É porque o
miSfeisismo não conhece nenhuma distinção entre o eu e os
"iitros que ele se expressa na vida posterior tanto no desejo
«Ir união extática com os outros como no amor romântico,
•Itijmio no desejo de independência absoluta perante os outros,
In»17 meio do qual procuramos reviver a ilusão original de oni-
ifctência e negar a nossa dependência das fontes externas de
ulinicntação e gratificação. O projeto tecnológico que visa ad-
-ijllrlr independência frente à natureza corpor'Tca a face solip-
««IMii do narcisismo, tal como o desejo de união mística com a
natureza corporifica a sua face simbiótica e auto-obscurecedora.
l$EDB vez que ambos brotam da mesma fonte (a necessidade de
iK>;ar o fato da dependência) pode apens causar confusão cha­
mar o sonho de onipotência tecnológica uma obsessão masculi­
na, enquanto se louva a esperança de uma relação mais amável
«um a natureza como uma preocupação caracteristicamente fe­
minina. Tanto uma como a outra se originam do equilíbrio
Indiferenciado do estado pré-natal e ambos, além disso, rejei­
tam o amadurecimento psicológico em benefício da regressão,
o anseio “feminino” pela simbiose não menos que o impulso
nojlpsista “ masculino” de domínio absoluto.
A única saída para o impasse do narcisismo é a criação
d | objetos culturais, “ objetos transicionais”, que restauram um
batido de vinculação com as mães e com a mãe natureza e,
«dlicomitantemente, afirmam o nosso domínio sobre a natureza,

I \s
228 O MÍNIMO EU

sem negar a nossa dependência das mães ou da natureza. En­


tretanto, é precisamente essa atividade compensatória que o
partido do ideal do ego condena — o partido de Narciso —
argumentando que as gratificações substitutivas são inerente­
mente patológicas. Mesmo Dorothy Dinnerstein, que reprova
Brown por confundir o “aspecto maléfico” do empreendimento
com o empreendimento em geral, partilha o seu preconceito
contra a gratificação compensatória. A atividade intencional,
argumenta, “nos proporciona prazer de forma tão direta como
o prazer de fazer amor” ; ela somente assume um “ aspecto ma­
léfico” quando serve de substituto para a “ mágica primitiva
do corpo”. Na verdade, toda a atividade intencional, incluindo
o jogo — que Brown procura privilegiar da mesma forma que
Dinnerstein privilegia a iniciativa não contaminada pelo im­
pulso “ masculino” de dominação — carrega consigo essa “ car­
ga implausível” como ela a denomina.19 O ato de fazer amor,
a criação artística e o jogo não proporcionam de modo algum
a satisfação “ direta” . Com efeito, eles se tornam mais profim-
damente satisfatórios quando nos trazem à mente a tensão que
precede o alívio, a separação que precede a reconciliação, a
perda subjacente à restauração, a inevitável diversidade do

(19) Não obstante o seu descaso pela psicologia do ego, Brown,


Marcuse e seus seguidores, num ponto crucial de seu raciocínio, caem
na mesma estratégia adotada por Hartmann em sua teoria da esfera do
ego livre de conflitos: isto é, a de eximir certas atividades privilegiadas
da investigação psicanalítica. Para Hartmann, a atividade intencional
e a resolução de problemas é que são favorecidas desta maneira; para
a esquerda freudiana, são a arte e o jogo, ou, no caso de Dinnerstein,
a intencionalidade “direta”, que não serve a nenhum fim compensatório
escondido, que não carrega nenhuma "carga implausível". Enquanto
Freud insistia no parentesco subjacente entre arte e neurose, Brown,
Marcuse e Dinnerstein procuram salvar a arte e a atividade lúdica da
crítica psicanalítica às pretensões humanas, da mesma forma que Hart­
mann busca salvar a percepção, a linguagem e a memória.
A arte se assemelha à psicose regressiva mais profunda em sua ten­
tativa de restaurar um senso de unidade com a mãe primai. O que
distingue a arte da psicose ou da neurose é que ela também reconhece
a realidade da separação. A arte rejeita o caminho fácil das ilusões.
Como a realigião, ela representa uma restauração arduamente conseguida
da sensação dc totalidade, que simultaneamente nos lembra da sensação
de divisão e de perda. Peter Fuller, baseando-se no trabalho de Hanna
Segai, nota que “um tratamento do conflito (entre união e separação)
deve penetrar a obra, mesmo se o resultado final for jovial e sereno.
. . . Nas obras mais satisfatórias do ponto de vista estético, a resolu­
ção formal nunca é totalmente completa”.
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 229

nutro. A atividade intencional torna-se patológica não quando


njffye de compensação para as perdas originais mas quando
nn-ye para negar essas perdas. Ela passa a ser patológica quan­
do procura manter viva a ilusão de onipotência: por exemplo,
no assegurar-nos que podemos nos tornar senhores absolutos da
natureza e portanto não sentir falta de nada.
Com seu medo da racionalidade “ masculina” e sua exa-
p ttd a admiração pelo ideal do ego narcísico, que corporifica
mu contrapeso supostamente feminino ao ego racional, os de-
Mores de uma revolução cultural sustentam o narcisismo
mo a cura para uma moléstia que brota da mesma fonte,
recomendam uma simbiose narcisista com a natureza como
1 cura para o solipsismo tecnológico, ele próprio narcisista em
jfÚna origens. Esse tipo de raciocínio, despido de suas sutilezas
ijgicanalíticas e reduzido a um punhado de lemas e chavões
justos pelo tempo, permeia agora não apenas o movimento das
líiulheres como também os movimentos preservacionista e paci-
i&ltfi, cujos adeptos acompanham cegamente as feministas em
?|Ua concepção das virtudes “femininas” como remédio para a
|íSUvastação ambiental, o imperialismo e a guerra. Um livro re-
[-iwnte de Jack Nichols sobre a “liberação dos homens” destaca
f\sm argumento que se tomou um lugar-comum. “ Se nossa preo-
pjupação é a sobrevivência de nossa espécie, é certo que os
valores masculinos sobreviveram à sua utilidade em uma época
^fiuclear e são francamente perigosos” . Em outro livro sobre “ as
laces em transformação da masculinidade americana”, mais
Um de uma avalanche de obras do tipo, Mark Gerzon insiste
Ü© mesmo ponto: “ Os traços 'masculinos’ que anteriormente
asseguravam a sobrevivência, se não forem compensados pelas
Características Temininash poderão agora garantir a destruição.
Á masculinidade que as mulheres outrora reverenciavam por
protegê-las é agora cada vez mais atacada porque as ameaça”.
Philip Slater, Theodore Roszak, Wiiliam írving Thompson e
numerosos simpatizantes do feminismo fizeram eco a essa linha
de análise psicocultural hoje familiar. A cultura do industria-
Hsmo é uma cultura fálica, segundo Thompson, que “ atinge
Mu clímax no estupro tecnológico do Vietnã” . “ O adolescente
que comprou sua Honda através de um anúncio em Playboy
que a mostrava ao lado de uma garota de biquíni é o mesmo
230 O MÍNIMO EU

homem que agora está surrando a Ásia fêmea com sua arma
que faz jorrar balas” . A previsível qualidade de tais argumentos
mostra como os clichês psicopolíticos penetraram no pensamen­
to popular, graças ao feminismo, à psiquiatria e à cultura do
esforço pessoal psíquico.
A crítica aos valores “patriarcais” não se volta apenas
contra os alvos óbvios (agressividade, militarismo, combativi­
dade, o culto da dureza), como também contra a compulsão ao
trabalho, o “mito da consciência objetiva” (como o denomina
Roszak) e a busca da imortalidade vicária através das realiza­
ções, todos os quais são vistos, nesta perspectiva, como ele­
mentos de uma patologia específica do sexo masculino. De
acordo com Slater, os homens sofrem (e não as mulheres)
de uma compulsão a “ perpetuar-se por todo o meio ambiente” .
É por essa razão que as mulheres, em sua opinião, “estão em
melhor posição para libertar emocionalmente a nossa socieda­
de” . Os homens são programados para a realização competiti­
va, alienados de seus corpos e das emoções associadas com o
prazer corporal, enquanto opostos ao alívio orgasmico voltado
para uma meta. Eles invejam a força criativa das mulheres,
que traz sozinha uma nova vida ao mundo, e procuram apro-
priar-se dela inventando máquinas e lançando vastos empreen­
dimentos que simulam a vida e tornam dispensáveis as mulhe­
res. “ Esse esforço para deslocar o sexo feminino”, escreve
Thompson, “parece constituir o fundamento arquetípico da ci­
vilização, pois a espécie humana está empenhada nele desde
então. Embora esteja desafiando a Mãe Natureza ao fugir dela
em foguetes ou ao modificá-la através da engenharia genética,
o homem não abandonou a tentativa de extrair da Grande Mãe
e da religião feminina conservadora os mistérios da vida” . Se­
gundo Mary Daly, a “ destrutividade demoníaca dos homens”
se origina do sonho de dispensar totalmente as mulheres, de
criar a vida sem a colaboração das mulheres. Os projetos mas­
culinos (a guerra em particular) proporcionam uma “máscara
para o vazio pessoal” e a inadequação pessoal. Como explica
Roszak, a guerra e a tecnologia militar nascem de uma “ psico­
logia acossada pela castração” . O establishment político pro­
clama estar preocupado com a “ alta política e a ideologia inte­
ligente” , mas “ a sua competição de foguetes espaciais e mís-
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 231

Ntfis balísticos (corporifica) de forma nítida” uma “ disputa


mundial de pênis inseguros com o objetivo de mostrar tamanho
i- potência” . Valerie Solanas apresenta a mesma interpretação
Mldutiva da guerra em seu S.C.U.M. Manifesto .* “ O macho,
POr sua obsessão em compensar o fato de não ser mulher, com­
binada à sua incapacidade de relacionamento e de compassivi-
»Indc . . . é responsável pela GUERRA. O método masculino
BOrmal de se compensar por não ser feminino, isto é, tirar a
mia Arma para fora, é grosseiramente inadequado, pois ele a
pode tirar somente um número limitado de vezes; então ele a
mica numa escala realmente maciça, provando para o mundo
Iflteiro que ele é um ‘Homem’.”
As mulheres representam a “ solidária ressonância do su-
jilto e do objeto”, segundo Thompson, servindo, portanto, como
fonte e inspiração para uma “epistemologia holística” . Com
Ircqüência, os críticos do militarismo das grandes corporações
i) da tecnologia industrial enfatizam que o individualismo “ mas-
0Ulino”, que nos coloca em desavença com os nossos semelhan-
e com a natureza, deve dar lugar a um novo sentido de
lOlldariedade. “ Uma nova consciência está nascendo” , anuncia
ftine Singer em Androgyny (Androginia), uma “consciência fe­
minina” que rejeita o individualismo, a separação, o “ pensa­
mento lógico” e o “raciocínio linear” . A velha psicologia cen-
inula no ego está cedendo lugar a uma psicologia “holística”
iJUC vê o eu como parte de um continuum ecológico, um “ vasto
plano global” . A nova sensibilidade, de acordo com Marilyn
l?erguson, funda-se num reconhecimento dos limites do “ pensa-
ponto racional” e numa rejeição da “ causalidade”, da “prova
Científica”, da “ lógica” e de uma “ visão linear do mundo” .
Hnlph Metzner argumenta que “ a análise prova, investiga, des­
monta” . “ É uma função dinâmica e masculina”. A síntese, por
iUu vez, “ contém, combina, envolve: é uma função magnética
teminina”. O aparecimento de uma nova “ecologia da mente”,
Segundo Lewis f. Perelman, exige um abandono de nossos “ eus
pbsoletos”, uma “ redução do âmbito do eu consciente” e um
íepúdio da “ separação conceituai entre homem e natureza” . Os
"valores emergentes apropriados tenderão a ser comunitários e
mio individualistas”, escreve Robert Hunter em The Storming

(*) O termo scum significa também "escória". (N.T.)


232 O MÍNIMO EU

of the Minei (A Tempestade da Mente). A preocupação ecoló­


gica, as drogas, a televisão, o rock e as religiões orientais aju­
daram a “propagar as fronteiras entre o interior da mente e o
seu exterior, trazendo assim uma qualidade de ‘união’ ao mun­
do”. Em um estudo recente sobre os movimentos evangélicos e
carismáticos, Jeremy Rifkin e Ted Howard concordam que “ a
noção de autoliberação e a centralidade do indivíduo (elemento
tão familiar à ética protestante e ao ethos liberal) continuarão
a perder a sua força propulsora à medida que a sociedade rea­
lize a sua transformação final em direção a uma economia de
serviços e à medida que a escassez econômica crescente pressio­
ne cada vez mais o setor público para servir como um fórum
para a resolução e o aperfeiçoamento das necessidades econô­
micas coletivas” . Conforme Henry Malcolm, o valor cultural
do narcisismo repousa na “não diferenciação do eu frente ao
mundo”.
A atração dessas idéias fundamenta-se em sua aparente
capacidade de abordar alguns dos lemas mais obviamente im­
portantes de nosso tempo: a corrida armamentista e o perigo
de uma guerra nuclear, a destruição tecnológica do meio am­
biente, os limites do crescimento econômico. Como sustenta
Barbara Gelpis, tornou-se “urgentemente importante para os
homens em nossa sociedade patriarcal reconhecer a parte femi­
nina que está dentro deles antes que a combinação ilimitada da
ciência masculina com a agressividade masculina nos destrua a
todos”. A “ reconstrução metafísica” defendida por E. F. Schu­
macher e outros adeptos da preservação do meio ambiente pa­
rece depender do cultivo de um novo sentido de unidade com
a natureza, uma compreensão de que o “ homem é tão depen­
dente da natureza como uma criança em gestação o é de sua
mãe”, como definiu Kai Curry-Lindahl em seu livro Conserva­
tion for Survival (Conservar para Sobreviver). Em um ensaio
intitulado “ Prometeu Ecoado”, Jean Houston relaciona a crise
ambiental à “ agonia dualista do homem separado da natureza” .
Segundo ela, “possui um enorme significado o fato de que a
crise atual da consciência . . . ocorra concomitantemente com
a destruição ecológica do planeta por meio de meios tecnoló­
gicos” . A necessidade de “ reverter a pilhagem ecológica” con­
fere urgência e sentido a uma crescente insatisfação como o
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 233

jOIlSumismo e com o individualismo competitivo. A própria so­


brevivência da humanidade depende cie “novas formas de cons­
ciência e satisfação diversas das tradicionais, centradas no con­
sumo, no engrandecimento e na manipulação. Chegou o tempo
de retirar das prateleiras psicológicas todos os potenciais ador­
mecidos que não eram necessários ao homem em seu papel
IfDmetéico de homem dominador da natureza” . A “ consciência
enológica”, segundo Robert Disch, renuncia à “ ilusão de sepa-
iiigBo de e superioridade sobre” a natureza. Ela reconhece a
necessidade de uma “ simbiose universal com a terra” , como
a definiu Aldo Leopold muitos anos atrás. Gregory Baíeson,
<'litro precursor e profeta da “psique ecológica”, como esta foi
denominada, defendeu em várias ocasiões que as concepções
ocidentais de individualidade devam ser substituídas por uma
rÇmpreensão da forma como a “ identidade pessoal mistura-se
umu todos os processos de relacionamento em uma vasta eco­
logia ou estética da interação cósmica” . O “ conceito de ‘eu’ ”,
Mistenta Bateson, “ nãõx pode mais funcionar como um argu­
mento nodal na enfatização da experiência”, desde que enten­
demos agora, graças à cibernética, que o sistema ecológico em
n§u conjunto é mais importante que os organismos individuais
qüe o compõem. Na verdade, a “ unidade da sobrevivência (seja
nu ética, seja na evolução) não é o organismo — ou a espécie”
mas o meio ambiente como um todo do qual dependem os
organismos. “ O ‘eu’ é uma falsa retificação de uma parte im­
propriamente delimitada deste campo muito mais amplo de pro­
cessos inter-relacionados.” O pensamento linear e intencional
Ignora as conexões características dos sistemas complexos “ci-
liCrneticamente integrados” . Ele exagera a importância do con-
Irole racional, como quando Freud revira as próprias relações
catre pensamento e sentimento e procura substituir o id pelo
ego. No enfoque de Bateson, a psicanálise é o “ produto de
uma epistemologia quase totalmente distorcida e de uma visão
Iptulmente distorcida sobre que espécie de coisa é o homem, ou
qualquer outro organismo”. Júntamente com outras variações
do materialismo científico, ela fecha os olhos à “vasta e inte­
grada rede da mente” . A psicanálise resulta numa “monstruosa
negação da integração desse todo” .
234 O MÍNIMO EU

intencionalidade, natureza e individualidade:


a questão da consciência culpada

A crítica ao ego racional ou “masculino” , que hoje en­


contra acolhida política em vários movimentos importantes pela
transformação social e cultural, não somente traz à tona temas
de crescente interesse como identifica fragilidades das tradições
políticas dominantes, especialmente na tradição liberal, que não
podem mais ser ignoradas. As minhas objeções à “ nova cons­
ciência” não devem ser mal interpretadas como uma defesa
do humanismo liberal ou como um ataque ao feminismo, ao
movimento preservacionista ou aos pacificistas. Eu acredito nos
objetivos desses movimentos e compartilho a sua reivindicação
de um realinhamento de forças políticas, de um abandono das
antigas ideologias políticas e de uma reorientação de valores.
Eu divido com eles a convicção de que uma “ revolução cultu­
ral” seja uma pré-condição essencial para a transformação polí­
tica, sem ser um substituto desta. É precisamente porque o
partido de Narciso, como o denominei, avançou muito mais
que os outros em chamar a atenção para os riscos da “ razão
instrumental” e da tecnologia industrial que suas idéias devem
ser submetidas a um escrutínio cuidadoso. Uma nova política
de preservação deve fundamentar-se em sólidos alicerces filo­
sóficos, não em uma crítica da razão instrumental que se esten­
de a toda forma de atividade intencional. Ela deve basear-se
num. respeito pela natureza, não numa adoração mística da na­
tureza. Deve fundar-se numa sólida concepção de individuali­
dade, não em uma crença de que “o eu separado é uma ilusão” .
Uma breve retomada desses três temas — intencionalidade,
natureza e individualidade — conduzirá este ensaio a sua
conclusão.
O antídoto para a razão instrumental é a razão prática,
não o misticismo, a espiritualidade ou o poder da “ personali­
dade” . Na tradição aristotélica da teoria política, phronesis ou
razão prática descreve o desenvolvimento do caráter, a perfei­
ção moral da vida e as virtudes específicas a várias formas de
atividade prática. A técnica, por outro lado, preocupa-se exclu­
sivamente com os meios apropriados a um dado fim. Para Aris­
tóteles e seus seguidores, a forma mais elevada de prática é a
política, que procura promover uma vida melhor ao conferir
r
f
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 235

•preitos iguais a todos os cidadãos e ao estabelecer regras e


• <invenções destinadas não tanto a solucionar os problemas da
vida social como a encorajar os cidadãos a testarem-se a si pró-
ptjos frente a exigentes padrões de excelência moral (por exem-
l»ln. cm disputas de habilidade oratória e a bravura física),
•li'senvolvendo assim os seus dons no mais alto grau. A con-
• rpção aristotélica de prática tem mais em comum com o jogo
•l«e com as atividades definidas como práticas, no sentido mo­
derno. As práticas, no sentido aristotélico, nada têm a ver, en­
quanto tais, com a produção de objetos úteis ou com a satisfa-
'.iiO das necessidades materiais. Isso vale inclusive para a
pWtica política. Foi somente no século XVI que Maquiavel e
1'homas Morus definiram a sobrevivência material, a manuten-
i.lo física da vida, como o assunto principal do Estado. A par-
i Ir daí bastou apenas um passo para se chegar à moderna con-
•Ipção da política como economia política, a qual pressupõe,
• nino salientou Jürgen Habermas, que 44os indivíduos são exclu-
njtVfimente motivados a maximizar as suas carências, os seus
desejos e interesses’’.
A concepção clássica carrega consigo um certo desdém pela
pfOdução de confortos materiais e objetos úteis (que ela associa
mi domínio inferior do cuidado com o lar) e uma definição
liiúceitavelmente restritiva de cidadania (que inclui apenas
•i!|Ueles que se libertaram da necessidade material); não obs­
tante, ela nos capacita a identificar um dos traços distintivos
<IK visão de mundo industrial: a sua instrumentalização e de-
H'ildação da atividade prática. O instrumentalismo enfoca a re­
lação entre meios e fins como puramente externa, enquanto a
tradição mais antiga, hoje quase esquecida, sustenta que a es-
• olha dos meios apropriados a um dado fim deve ser conside-
•tida porque contribui igualmente para os valores interiores. Em
•Mitras palavras, a escolha dos meios deve ser governada por
’•mi conformidade a padrões de excelência destinados a estender
ii$ capacidades humanas de autocompreensão e autodomínio. As
Miclcdades industriais concebem a ampliação dos poderes hu­
manos apenas como substituição do trabalho humano pelas má­
quinas. À medida que o trabalho e a política perdem o seu
1'Otlteúdo educativo e degeneram em pura técnica, a própria
distinção entre técnica e prática torna-se incompreensível. As
235 O MÍNIMO EU

sociedades industriais perderam de vista quase completamente


a possibilidade de que o trabalho e a política possam servir
como disciplinas formadoras do caráter. Tais atividades são
atualmente entendidas apenas como meios para a satisfação das
necessidades materiais. Enquanto isso, as idéias morais perdem
a sua vinculação com a vida prática e com as virtudes específi­
cas a práticas particulares, tornando-se em vez disso confundi­
das com o exercício de opções puramente pessoais e a expressão
de preconceitos e gostos individuais, que não podem ser nem
justificados nem explicados, e que, portanto, não devem ser
encarados como capazes de unir a qualquer outra pessoa.
É a deterioração da vida pública, ao lado da privatização
e da trivialização das idéias morais, que impede um assalto
coletivo às dificuldades ambientais e militares com as quais se
defrontam as nações modernas. Mas o partido de Narciso não
compreende a fonte dessas dificuldades: a confusão de prática
com técnica. Ele partilha essa confusão e repudia desse modo
todas as formas de ação intencional em benefício das buscas
lúdicas e artísticas, as quais, por sua vez, considera erroneamen­
te como atividades sem estrutura ou intenção. Quando insiste
na patologia da intencionalidade, ele apenas reverte a ideologia
industrial. Aí onde a ideologia dominante dissolve a prática
num culto da técnica, a “ contracultura” rejeita indiscriminada-
mente a ambas e defende a renúncia à vontade e à intenciona­
lidade como única saída da tecnologia prometéica. Depreciando
a inventividade humana, que associa tão-somente com as tec­
nologias industriais destrutivas, ela define o imperativo domi­
nante da época presente como sendo o retorno à natureza. Ela
ignora a necessidade mais importante de restaurar o mundo in­
termediário da atividade prática que vincula o homem à natu­
reza na condição de um amoroso zelador e cultivador, e não
em uma união simbiótica que simplesmente negue a realidade
da separação do homem em relação à natureza.
Uma ética do meio ambiente deve afirmar a possibilidade
de se viver em paz com a natureza ao mesmo tempo que re­
conhece a separação. A natureza impõe limites à liberdade
humana, mas não define a liberdade; tampouco nos oferece,
por si própria, uma pátria. Nossa pátria é a terra, que inclui
um meio ambiente natural maravilhosamente saudável mas tam-
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 237

lutei inclui o mundo durável dos objetos e associações do


fyDmem. A acusação máxima contra a civilização industrial não
apenas em que ela tenha devastado a natureza, mas que
Inilia minado a nossa confiança na continuidade e perma­
nência do mundo feito pelo homem ao cercar-nos com bens
disponíveis e fantásticas imagens de mercadorias. A confusão
'uijvre a diferença entre prática e técnica está intimamente li-
Küda à confusão referente à relação do homem com a natu-
ii-./.a. Os seres humanos são parte de uma cadeia evolucioná-
lin intrincadamente inter-relacionada, mas a autoconsciência
a .capacidade de ver o eu de um ponto de vista externo ao
— distingue a humanidade de outras formas de vidá e
conduz tanto a uma sensação de poder frente à natureza como
» um senso de alienação diante da natureza. Dependente da
natureza e, ao mesmo tempo, capaz de transcendê-la, a huma­
nidade oscila entre o orgulho transcendente e uma sensação
Injinilhante de fraqueza e dependência. Ela procura dissolver
inl tensão, seja tornando-se totalmente auto-suficiente, seja so­
nhando como uma reunião simbiótica com a fonte primordial
djt vida. O primeiro caminho leva à tentativa de impor a von-
inde humana sobre a natureza através da tecnologia e à ten-
lAtiva de alcançar uma independência absoluta frente àquela;
c),iegundo, a uma rendição completa da vontade.
Se os homens fossem movidos somente pelo impulso e pelo
Interesse individual, eles ficariam satisfeitos, como os outros
nftlmais, apenas em sobreviver. A natureza não conhece nenhu-
nil vontade de poder, apenas uma vontade de viver. Quando
trata do homem, as necessidades transformam-se em desejos;
iflfsmo o empreendimento aquisitivo contém uma dimensão es­
piritual, que faz o homem querer mais do que ele precisa. Por
c|la razão, é inútil exortar os homens a renunciarem aos pra­
zeres materiais em favor de uma existência mais espiritual.
P precisamentee o lado espiritual da experiência humana que
os homens desejarem mais do que é bom para eles. Da
iiiúsma forma, é inútil exortar o homem a ser governado, no
interesse de sua sobrevivência enquanto espécie, estritamente
por suas necessidades biológicas. Mesmo aqueles que compreen­
dem o “ amplo vazio existente entre o impulso puramente na-
lural de sobrevivência e o impulso espiritual especificamente
238 O MÍNIMO EU

humano de orgulho e poder”, como observou Reinhold Niebuhr,


tendem com freqüência a buscar um retorno rápido e fácil à
harmonia de uma existência puramente natural. “ O equívoco
do naturalismo romântico”, escreveu Niebuhr — que reaparece
em muitas fases do movimento preservacionista contemporâneo
— “consiste em seu esforço primitivo para recuperar a inocência
da natureza” e para “ reconstituir a harmonia da natureza em
um novo patamar de decisão histórica” . Um programa como
esse não compreende corretamente a liberdade humana, que faz
impossível recriar a harmonia natural na história. A inocência
da natureza é a harmonia sem liberdade.
Nesta altura da história, é essencial questionar a confiança
ilimitada nos poderes humanos que não conhece fronteiras, a
qual encontra a sua expressão acabada na tecnologia da guerra
nuclear. Mas isso não pode ser feito negando-se todas as formas
de inteligência intencional ou simplesmente dissolvendo a dis­
tinção entre sujeito e objeto que supostamente a fundamenta
— a “ estranha epistemologia dualista característica da civiliza­
ção ocidental”, como a denomina Bateson. A individualidade
— idéia . obsoleta, segundo Bateson e outros defensores da
“ nova consciência” — é precisamente o conhecimento inelutá­
vel do lugar contraditório ocupado pelo homem na ordem na­
tural das coisas. Os adeptos de uma revolução cultural fazem
eco à cultura dominante não apenas em sua confusão entre a
prática e a técnica mas em sua equiparação de individualidade
e ego racional. Tal como seus oponentes, eles vêem a raciona­
lidade como a essência da individualidade. Coerentemente, pro­
pugnam por uma “ ressurreição do corpo”, pela intuição e os
sentimentos femininos em oposição à razão instrumental do sexo
masculino, pela suposta falta de propósito do jogo e pela “ ima­
ginação poética”, como a define Bateson, enquanto um corretivo
para as “falsas reificações do ‘eu’. Entretanto, a característica
distintiva da individualidade não é a racionalidade mas a
percepção crítica da natureza dividida do homem. A indivi­
dualidade se expressa na forma de uma consciência culpada,
um reconhecimento doloroso do abismo existente entre as aspi­
rações humanas e as limitações humanas. “ A má consciência
é inseparável da liberdade”, como nos lembra facques Ellul.
Não há liberdade sem uma concomitante atitude crítica em re-
f
O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO 239

liição ao eu” e tal “excesso de liberdade, bem como o retorno


grítico ao eu que a liberdade origina, estão na raiz do pensa­
mento dialético e da interpretação dialética da história” .
Tanto os defensores como os críticos do ego racional vol-
tflm as costas ao que permanece valioso na tradição do indi­
vidualismo ocidental e judaico-cristã (enquanto oposta à tradi­
ção do individualismo aquisitivo, sua paródia e subversão): a
definição da individualidade como tensão, divisão e econflito.
Como salientou Niebuhr, as tentativas de mitigar uma consciên­
cia apreensiva assumem a forma de uma negação da natureza
dividida do homem. “Tanto o homem racional como o homem
ftntural são vistos como essencialmente bons”. Se o partido do
•go exalta o homem racional, o partido de Narciso busca dis­
solver a tensão à sua própria maneira, ao sonhar com uma
reunião simbiótica com a natureza. Ele exalta o homem natu-
ral, amiúde após haver redefinido a própria natureza, como um
!
Mpecto de alguma mente universal.

Quanto ao partido do superego, ele iguala a consciência


Mo com uma percepção das relações dialéticas entre a liber­
dade e a capacidade para a destruição, mas com a aceitação a
Ulli corpus recebido de leis morais autoritárias. Ele almeja a
restauração das sanções punitivas contra a desobediência e,
gçima de tudo, a restauração do medo. Ele se esquece de que
a consciência (enquanto distinta do superego) se origina não
Ifliito no “temor a Deus” como no ímpeto de fazer reprimen­
das. A consciência não nasce do terror às represálias por parte
daqueles que injuriamos ou pretendemos injuriar, mas da ca­
pacidade de pesar e remorso. No plano dos indivíduos, esse
processo significa a crescente consciência da criança de que os
pais que ela deseja punir e destruir são os mesmos pais dos
QUais ela depende quanto ao amor e à alimentação. Ele repre-
lenta a aceitação simultânea da dependência — dos pais, das
BlSes e da natureza — e de nossa inevitável separação da fonte
primordial de vida.
Na história da civilização, o surgimento da consciência
pOcle ser relacionado, entre outras coisas, à mudança das ati­
tudes em relação à morte. A idéia de que a morte reclama a
vingança, de que seus vingativos espíritos perseguem os viven­
tes e de que os vivos não conhecem a paz enquanto não apla-
240 O MÍNIMO EU

cam tais fantasmas de seus ancestrais, dá lugar a uma. atitude


de genuíno pesar. Ao mesmo tempo, os deuses da vingança
dão lugar aos deuses que também oferecem a compaixão e sus­
tentam a moral do amor ao inimigo. Essa moral nunca conse­
guiu aproximar-se da popularidade geral, mas sobrevive, mes­
mo em nossa época esclarecida, como uma lembrança tanto de
nosso estado cativo como de nossa surpreendente capacidade
para a gratidão, o remorso e o perdão, por meio da qual po­
demos ocasionalmente superá-lo.
gradecimentos
notas bibliográficas
y y i1

Ao invés de sobrecarregar o texto deste livro com um


Iparato enfadonho de referências, decidi mencionar as fontes
r agradecimentos neste ensaio, qqe não só informa sobre a
publicação das obras já referidas, como desenvolve algumas
<Idas, discute outras relevantes e tenta, em geral, expor algo
mo ontexto intelectual e teórico deste trabalho.
Primeiramente desejo agradecer algumas contribuições mais
imediatas. Meus assistentes de pesquisa, Everett Akam, Jona-
j ühan Elwitt, Shelley Gurstein e David Steigerwald ajudaram
t coletar material para este livro.
O manuscrito beneficiou-se da leitura atenta de minha
Vsposa Nell, Jean DeGroat datilografou a cópia final. O Ame­
rican Council of Learned Societies e a Ford Foundation deram
Apoio financeiro num estágio crucial da composição. Sou grato
a todos eles.
b
INTRODUÇÃO: CONSUMO, NARCISISMO E CULTURA
DE MASSA
Ei
O estado da cultura americana
Tanto a crítica de direita ao “ humanismo secular” , ao
pacifismo e à permissividade, como a crítica liberal do con-
lumismo, aludidas no início deste capítulo, são por demais
familiares para exigirem documentação — tais argumentos são
242 O MÍNIMO EU

a moeda corrente no debate político e cultural recente. Por


outro lado, aqueles que negam a existência de um “ mal-estar
nacional” ou de uma “ crise de autoconfiança” formularam
sua posição muito explicitamente em livros que tentam avaliar
o estado da cultura americana e refutar seus detratores. Como
já se observou, aqueles que tomam essa posição nem sempre
concordam entre si. Eles concordam apenas quanto a se opo­
rem à caracterização da cultura contemporânea como “ cultura
do narcisismo” . Alguns são até muito críticos em relação aò
consumismo — no caso de Philip Slater, até mesmo quanto
ao narcisismo, que ele define como sendo a ilusão masculina
de independência e auto-suficiência. Ver o seu Pursuit of
Loneliness (Boston, Beacon Press, 1970) e Earthwalk (Garden
City, Nova Iorque, Anchor Press, 1974); Theodore Roszak,
Person/Planet (Garden City, Nova Iorque, Doubleday, 1978);
e Paul L. Wachtel, The Poverty of Affluence: A Psychological
Portrait of the American Way of Life (Nova Iorque, Free
Press, 1983). Outros trabalhos nessa linha, não remetendo,
contudo, à controvérsia sobre “narcisismo”, incluem Gregory
Bateson, Steps toward an Ecology of Mind (São Francisco,
Chandler, 1972); Morris Berman, The Reenchantment of the
World (íthaca, Nova Iorque, Cornell University Press, 1981),
que se apóia bastante na obra de Bateson; e os muitos livros
e artigos escritos em oposição não apenas ao capitalismo de
consumo, como ao racionalismo, à tecnologia e ao senso de
individualidade ocidentais referidos nas notas bibliográficas do
capítulo 7. Em sua sensibilidade às questões ecológicas e em
sua compreensão de que um modo de vida ecologicamente sen­
sato requer profundas mudanças econômicas e culturais, todas
estas análises diferem das que menosprezam uma crise econô­
mica e política e advogam uma “ revolução cultural” na ver­
dade, como substituto para mudanças econômicas e políticas.
Em New Rules: Searching for Self-Fulfillment in a World
Turned Upside Down (Nova Iorque, Random House, 1981),
Daniel Yankelovich explicitamente recomenda a investigação
da “ genuína revolução cultural”, supostamente em curso, como
antídoto contra a melancolia. “ Eu quero demonstrar que, en­
quanto um prognóstico de nosso futuro baseado apenas nas
perspectivas político-econômicas pode nos tornar pessimistas e
até mesmo desesperados, um prognóstico baseado nas perspec­
tivas culturais — os valores que partilhamos — pode, um tanto
inesperadamente, apontar o caminho para um futuro mais lu­
minoso” . Outros livros que tentam apontar o mesmo caminho
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 243

liicil para um futuro mais luminoso incluem Peter Clecak.


America’s Quest for the Ideal Self: Dissent and Fulfillment in
the 60s and 70s (Nova lorque, Oxford University Press, 1983);
Marilyn Ferguson, The aquarian conspiracy (Los Angeles, J. P.
I'archer, 1980); Alvin Toffler, The Third Wave (Nova forque,
William Morrow, 1980); Betty Friedan, The Second Stage (Nova
torque, Summit Books, 1981); Duane Elgin, Voluntary Sim­
plicity: An Ecological Lifestyle that Promotes Personal and
Social Renewal (Nova lorque, Bantam Books, 1981); e, dentre
#8 livros mais antigos nestes moldes, Charles Reich, The green­
ing of America (Nova lorque, Random House, 1970), e Henry
Malcolm, Generation of Narcissus (Boston, Beacon Press, 1971).

Cultura de massa
r*
Patrick Brantlinger apresenta uma introdução um tanto
jfcOnfusa quanto à controvérsia sobre a cultura de massa em
Bread and Circuses: Theories of Mass Culture as Social Decay
^Ithaca, Nova lorque, Cornell University Press, 1983) — con-
iusa porque ele dedica a maior parte do livro ao ataque à
“síndrome do juízo final’1 apenas para admitir, no último mo­
mento, que nosso “ panorama social . . . merece em grande par­
ti o falatório sobre o juízo final” proporcionado pelos críticos
da cultura de massa. Esses críticos incluem Max Horkheimer,
“ Art and Mass Culture"', Studies in Philosophy and Social
Science, 9 (1941): 290-304; Dwight Macdonald, “ A Theory of
Popular Culture” , Politics, 1 (fev. 1944): 20-33; Max Hor­
kheimer e Theodor W. Adorno, “The Culture Industry:
'Enlightenment as Mass Deception” , em Dialelic of Enlighten­
ment, originalmente publicado em 1944 (Nova lorque, Herder
and Herder, 1972), pp. 120-167; Irving Howe, “ Notes on mass
Culture”, Politics, 5 (Primavera 1948): 120-23; Leo Lowenthal,
“Historical Perspectives of Popular Culture”, American Journal
Sociology, 55 (1950): 323-32; Dwight Macdonald, “ Masscult
and Midcult”, Partisan Review, 27 (1960): 203-33, reimpresso
em Against the American Grain (Nova lorque, Random House,
1962), 3-75. Alguns desses ensaios foram editados junto com
muitos outros de ambos os lados do debate, por Bernard Ro-
lenberg e David Manning White em Mass Culture: The Popular
Arts in America (Glencoe, Illinois, Free Press, 1957).
Todos esses ataques à cultura de massa vêm da esquerda.
A cultura de massa tem sido atacada também pela direita, mas
a crítica conservadora é menos interessante que a radical, em
244 O M ÍNIM O EU

parte porque é ideologicamente previsível, em parte porque par­


te da premissa dúbia de que as massas realmente derrubaram
as elites estabelecidas e adquiriram poder político por si mes­
mas. O melhor exemplo desta espécie de argumento é José
Ortega y Gasset, The Revolt of the Masses (Nova Iorque,
W. W. Norton, 1932).
Os argumentôs-padrão em oposição à crítica da cultura de
massa aparecem em Edward Shils, '‘Daydreams and Nightmares:
Reflections on the Criticism of Mass Culture”, Sewanee Review,
65 (1957): 587-608, e em Herbert Cans, Popular Culture and
High Culture: An Analysis and Evaluation of Taste (Nova
Iorque, Basic Books, 1974). Sobre o argumento de que a '‘‘mo­
dernização” expõe as pessoas a uma abundância sempre cres­
cente de escolhas pessoais, ver Fred Weinstein e Gerald M.
Platt, The Wish to Be Free: Society, Psyche, and Value Change
(Berkeley, University of California Press, 1969).
A coercibilidade do debate sobre a cultura de massa e a
dificuldade em o reformular são sugeridas na réplica de Gans
a um artigo meu (“Mass Culture Reconsidered”, Democracy,
1,10.1981: 7-22), no qual eu argumentei contra a “ crçnça de
que as massas teriam que ser despertas de seu antiqüíssimo
torpor intelectual e ser equipadas com as ferramentas de pen­
samento crítico para que as instituições sociais prosperassem” .
Partindo da afirmação de Randolph Bourne de que o verdadei­
ro cosmopolitismo tem raízes no particularismo, sustentei que
a experiência de deseneraizamento, tão característica das socie­
dades de massa modernas, leva não ao pluralismo cultural, mas
ao nacionalismo agressivo, à centralização e à consolidação do
Estado e do poder das corporações. Gans, porém, logrou en­
contrar neste argumento apenas a velha asserção de que “ os
meios de comunicação capitalistas”, parafraseia, “ continuam a
manter as massas no seu ‘antiqüíssimo torpor cultural’ e . . .
que os Estados Unidos só se tornariam numa democracia política
quando e se os americanos se instruíssem. Em outras palavras,
ele atribuiu a mim as próprias crenças que tentei refutar (esta
discussão aparece em Democracy, 2.4.1982: 81-92. Desneces­
sário dizer que Gans jamais admitiu ter interpretado erronea­
mente minha posição).

Pluralismo
A teoria do pluralismo, subjacente à defesa da cultura de
massa desenvolvida por Çans e Clecak, tem uma ascendência
intelectual tão complicada que me limitarei a citar algumas das
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 245

lias principais. Necessitamos de um estudo histórico sobre


rule conceito, assim como precisamos ainda de um guia histó­
rico para a controvérsia sobre cultura de massa. Os textos bá-
uicos do pós-guerra incluem Louis Hartz, The Liberal Tradition
m America (Nova Iorque, Harcourt, Brace, 1955); Daniel
lloorstin, The Genius of American Politics (Chicago, University
of Chicago Press, 1953); Richard Hofstadter, The Age of
Pcform (Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1955), e Anti-Intellec-
tinilism in American Life (Nova Iorque, Alfred A. Knopf,
Ioc>3); Robert A. Dahl, Who Governs? Democracy' and Power
in an American City (New Haven, Yale University Press, 1963);
Bernard Berelson, Paul F. Lazarsfeld, and William N. McPhee,
Voting (Chicago, University of Chicago Press, 1954); e David
Tinman, The Governmental Process (Nova Iorque, Alfred A.
Knopf, 1951). A crítica à teoria pluralista preocupou-se quase
I'xolusivamente com sua dimensão política, embora tenha esta
leoria aplicação mais ampla, até hoje não estudada ou critica­
da, como uma teoria de cultura. Ver Theodore Lowi, “The
Public Philosophy: Interest — Group Liberalism”, em Ame­
rican Political Science Review, 61 (1967): 5-24; Michael Pa-
êfiti, “ Power and Pluralism: A View from the Bottom” , em

g
Ournal of Politics, 32 (1970): 501-530; Peter Bachrach e
Norton S. Baratz, “ Two Faces of Power” , em American Poli­
tical Science Review, 56 (1962): 947-952; e Peter Bachrach,
fh e Theory of Democratic Elitism: A Critique (Washington,
D.C., University Press of America, 1980).

Consumo, trabalho e disciplina social


Cultural Contradictions of Capitalism, de Daniel Bell
(Nova Iorque, Basic Books, 1976), já foi discutido. Ver tam­
bém sua Corning of Post-Industrial Society (Nova Iorque,
Books, 1973). Minha própria análise de relação entre consu-
ffllsmo e degradação do trabalho começa com Harry Braver-
man, Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work
in the Twentieth Century (Nova Iorque, Monthly Review Press,
1974), obra que examina a introdução da administração cien­
tífica e a divisão de trabalho entre as tarefas de planejamento
é execução. Uma vez reduzido o movimento dos trabalhadores
industriais à rotina, duas coisas se seguiram. Primeiro, os tra­
balhadores tiveram que ser estimulados a encontrar no consumo
I] satisfação que não mais podiam encontrar no trabalho. Se­
gundo, novas formas de disciplina de trabalho tiveram de ser
f fiadas para se tratar dos problemas de “ motivação” e “ moral”
246 O MÍNIMO EU

que começaram a surgir quando os trabalhadores perderam o


controle do projeto e do ritmo do trabalho. Os novos “ recur­
sos humanos” ou “profissões de assistência social” — afirmo
— centrais para ambos os processos. Juntamente com a pro­
paganda e as indústrias de relações públicas, eles articularam
os valores — auto-èxpressão, criatividade e mobilidade pessoa!
— nos quais deveria repousar a cultura do consumo. Eles tam­
bém defenderam um novo conceito de autoridade e um novo
estilo terapêutico de disciplina social, que introduziram nas
fábricas como solução para o “fator humano de produção” ,
como o denominavam. Posteriormente, estenderam as novas téc­
nicas de administração social — que, acima de tudo, depen­
diam, como venho argumentando, de observações sistemáticas
e medição de dados supostamente sintomáticos — para a po­
lítica, educação e quase todos os outros aspectos da vida social.
Este raciocínio se vale, um tanto ecleticamente, de uma
variedade de tradições intelectuais. Vale-se da análise histórica
do “ complexo tutelar” desenvolvido por Michel Foucault em
Discipline and Punish, trad. de Alan Sheridan (Nova Iorque,
Pantheon, 1977), e especialmente por Jacques Donzelot em The
Policing of Families, trad. de Robert Hurley (Nova Iorque,
Pantheon, 1979), um livro que reforça muitos dos pontos por
mim desenevolvidos em Haven in a Heartless World: The
Family Besieged (Nova Iorque, Basic Bõoks, 1977). Minha in­
terpretação do consumismo e do novo sistema terapêutico de
disciplina social vale-se também, embora mais seletivamente, da
recente produção acadêmica histórica referente à ascensão do
profissionalismo e sua relação com os movimentos de reforma:
Robert Wiebe, The Search for Order (Nova Iorque, Hill and
Wang, 1967); Burton Bledstein, The Culture of Professionalism
(Nova Iorque, W. W. Norton, 1976); e Magali Sarfati Larson,
The Rise of Professionalism (Berkeley, University of Califórnia
Press, 1977); dentre outros. Vale-se dos estudos de Ivan Illich
sobre profissionalismo e tecnologia, especialmente Medicai
Nemesis (Nova Iorque, Pantheon, 1976), e de outros críticos
do profissionalismo, notadamente Eliot Freidson, Professional
Dominance: The Social Structure of Medicai Care (Nova
Iorque, Atherton, 1970), e Nicholas N. Kittrie, The Right to
Be Different: Deviance and Enforced Therqpy (Baltimore,
Johns Hopkins University Press, 1970), Vale-se também, é
claro, de fontes primárias, principalmente aquelas referentes à
ascensão das relações “ humanas” na administração e à exten­
são dessas técnicas para outras áreas: Elton Mayo, The Human
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 247

Problems of an Industrial Civilization (Nova Iorque, MacMil­


lan, 1933), Fritz J. Roethlisberger e William J. Dickson,
Management and the Worker (Cambridge, Harvard University
Iless, 1939); Thomas North Whitehead, The Industrial Worker
(Nova Iorque, Oxford University Press, 1938); e a arquivos
«li- revistas, tais como Applied Anthropology, Human Relations,
r Psychiatry, que em muito clarificam a fusão entre ciência
MK’ial, administração de relações industriais e a ciência apli-
i ada da patologia social. Parte deste assunto foi objeto de
uhras e artigos meus: Haven in a Heartless World, The Culture
of Narcissism (Nova Iorque, W. W. Norton, 1979) e “ Demo-
' racy and the ‘Crisis of Confidence’ ” em Democracy, 1 (jan.
1981): 25-40, artigo no qual o leitor encontrará também maio-
108 indicações sobre minhas fontes.
o Sobre política como objeto de consumo, ver David Reis-
iflan, The Lonely Crowd (New Haven, Yalee University Press,
1950), ainda hoje uma análise das mais sugestivas, e Walter
Dean Burnham, “ Party Systems and the Political Process” , em
The American Party Systems, ed. de William Nisbet Chambers
>• Walter Dean Burnham, 2.a ed. (Nova Iorque, Oxford Uni-
Press, 1975). Sobre consumo em geral, ver Stewart
i4wen, Captains of Conciousness: Advertising and the Social
Roots of Consumer Culture (Nova Iorque, McGraw-Hill, 1976);
Stewart Ewen e Elizabeth Ewen, Channels of Desire: Mass
Images and the Shaping of American Conciousness (Nova
Iorque, McGraw Hill, 1982); e os ensaios em The Culture of
piConsumption, ed. de Wightman Fox e T. J. Jackson Lears
j (Nova Iorque, Pantheon, 1983).
Minha análise do “mundo fantástico das mercadorias” e
|Ua obliteração da distinção entre o indivíduo e o não-indivíduo
«leve mais à arte e à literatura (ver cap. 6) que à teoria social
OU à crítica social; todavia, sobre o tema geral do espetáculo,
ver Edgar Morin, L’Ésprit du Temps (Paris, Bernard Grasset,
^962); Guy Debord, La Société du Spectacle (Paris, Buchet-
jChastel, 1967); e Jean Baudrillard, For a Critique of the
Political Economy of the Sign, trad, de Charles Levin (St. Louis,
Telos Press, 1981). Sobre o “ sloanismo” , ver Emma Rothschild,
Paradise Lost: The Decline of Auto-Industrial Age (Nova
Iorque, Random House, 1973). Ver também Hannah Arendt,
The Human Condition (Chicago, University of Chicago Press,
1958), sobre a importância do mundo durável dos objetos fei­
tos pelo homem, especialmentee o cap. 12, “ The Thing-Cha-
racter of the World” .
248 O M ÍNIM O EU

Identidade

Erving Gollman, The Presentation of Self in Everyday


Life (Garden City, Nova Iorque, Doubleday, 1959) e Stigma:
Notes on the Management of Spoiled Identity (Englewood
Cliffs, Nova Jersey, Prentice Hall, 1963); Erik H. Erikson,
Identity: Youth and Crisis (Nova Iorque, W. W. Norton, 1968);
e Peter L. Berger, Invitation to Sociology: A Humanistic-
Approach (Garden City, Nova Iorque, Doubleday, 1963) têm
relação mais direta com minha discussão. Philip Gleason apre­
senta uma boa introdução à história recente deste conceito
em “ Identifying Identity: A Semantic History”, Journal of
American History, 69 (1983): 910-931.

A MENTALIDADE DA SOBREVIVÊNCIA

Os tópicos explorados neste capítulo podem ser divididos


— com certa dificuldade, uma vez que se sobrepõem uns aos
outros — em três compartimentos: o crescente interesse por
situações extremas e instituições totais e pela necessidade de
se preparar para o pior; a tentativa de aplicar à vida diária
lições aprendidas na vivência de adversidade extrema; e a
controvérsia sobre as implicações políticas de uma moral que
tudo subordina às exigências da sobrevivência. Antes de dis­
cutir as fontes que se relacionam com cada uma dessas cate­
gorias, devo reconhecer meu débito para com dois livros sobre
literatura americana pós-Segunda Guerra, livros que apresentam
a sobrevivência como um tema unificador na produção ameri­
cana recente: Warner Berthoff, A Literature Without Qualities
(Berkeley, University of Califórnia Press, 1979), e Josephine
Henedin, Vulnerable People (Nova Iorque, Oxford University
Press, 1978). O estudo de Berthoff é particularmente perspicaz;
baseei-me nele novamente no cap. 4. Veja também o abrangen­
te artigo de Roberí B. Reich, “ Ideologies of Survival”, em
New Republic, 188 (20 e 27 set. 1982): 32-37, e dois artigos
de Louise Kaegi, que oferecem um corretivo necessário à afir­
mação de Reich de que o darwinismo é uma ideologia exclu­
sivamente de direita: “ The Debate over Sex Education”, em
Update, 5 (primavera 1981): 14-59, e “ A Conspiracy against
the Inner Life”, em Update, 6 (outono 1982): 32-57. Kaegi
responde mais diretamente a Reich em uma carta não publi­
cada a New Republic, 29.9.1982.
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 249

Nlluações extremas, instituições totais


u os difíceis tempos futuros
Escritos relevantes sobre situações extremas incluem aque-
Iw que se ocupam de ou se inspiram nos campos de exter­
mínio e campos de concentração nazistas (veja o cap. 3), nos
i limpos de prisão e de trabalho forçado na Rússia stalinista
(wr especialmente Alexandre I. Soljenitsin, The Gulag Archi-
imago, vol. 2, trad. de Thomas P. Whitney, Nova Iorque,
llnrper and Row, 1975), em Hiroshima e Nagasaki (ver, por
1'éemplo, Robert Jay Lifton, Death in Life: Survivors of
Hiroshima, Nova Iorque, Touchstone Books, 1976), e no ge­
nocídio em geral do século XX, bem como todos os livros e
Miljgos (para não mencionar filmes e programas de televisão)
que se ocupam de naufrágios, desastres aéreos, inundações, fu-
nioÕes, terremotos, acidentes de mineração, combates militares
r outros desastres, ou, em outras palavras, de emergências de
vida ou morte, previsíveis ou inesperadas, que compelem o
Indivíduo a somar todas as forças físicas e psíquicas para en-
Itentar desigualdades irresistíveis. A partir de uma amostragem
de escritos sobre esses temas, concluo que a maioria deles de-
lilnvolve uma mensagem dupla, uma problemática e outra su­
postamente esperançosa. O homem moderno, produto de um
meio indolente, frouxo, confortável e permissivo, perdeu a
rijeza necessária à sobrevivência; recuperado, porém, seu equi­
líbrio e autodisciplina sob condições adversas — mesmo que
foto signifique exposição deliberada à adversidade —, ele pode
Inzer de si aquilo que tão claramente não é na vida diária:
'■senhor de seu destino”, como assim coloca Dougal Robertson
no relato de sua provação de 38 dias como náufrago, Survive
(lio Savage Sea (Nova Iorque, Praeger, 1973). Segundo Robert-
fion, “a enorme diferença entre a luta ativa pela sobrevivência
e a espera passiva pelo resgate ou morte efetua uma mudança
lotai na perspectiva do náufrago”. Quando ele e sua família
compreenderam que só sobreviveriam mediante seus próprios
esforços — um navio passou por eles sem os ver — , experi­
mentaram, diz ele, uma nova sensação de força. “A palavra,
de ora em diante, era ‘sobrevivência’ — não ‘resgate’ ou ‘ajuda’
ou dependência de qualquer espécie, apenas sobrevivência . . .
1*.u senti a agressão implacável do predador adentrar minha
m ente... Daquele momento em diante, me tornei um selva­
gem”.
O mesmo anseio pelo perigo, pelo desafio da adversidade
negada a homens e mulheres numa sociedade de consumo per­
250 O M ÍNIM O EU

meia muitos dos comentários sobre o futuro sombrio. Meu


juízo sobre os “ sobrevivencialistas” de coração — e sobre mui­
tos outros temas considerados neste ensaio — deriva de im­
pressões pessoais e de narrativas diversas em jornais, demasiado
dispersas e efêmeras para serem documentadas; contudo ba­
seei-me também em vários relatos detalhados presentes em re­
vistas nacionais: “ Surviving the End of the World” , em New
West 5, 5.2.1980: 17-29; “ Doomsday Boom”, em New Week,
96 11.8.1980: 56; “ Planning the Apocalypse Now”, Time, 116
18.8.1980: 69-71), e no exame da revista mensal de Kurt
Saxon, The Survivor, 1-2 (1976-1977).
Sobre a promessa da viagem espacial, ver Space Colonies,
ed. de Stewart Brand (Nova Iorque, Penguin Books, 1977),
uma coleção de artigos e cartas da CoEvolution Quarterly, Ge­
rard O’Neill, The High Frontier: Human Colonies in Space
(Nova Iorque, William Morrow, 1977); e Ben Bova, The High
Road (Nova Iorque, Pocket Books, 1981). A preocupação com
a sobrevivência entre os preservacionistas, juntamente com a
tendência a definir o preservacionismo como um “ movimento
de sobrevivência” os tem levado algumas vezes a endossar a
viagem espacial e outras fantasias tecnológicas que seria de se
esperar que se opusessem. Além disso, a percepção do fluir do
tempo encoraja estratégias de ação política que operam contra
uma ética conservacionista e uma política democrática de con­
servação. Em vez de fundamentar o movimento de conservação
numa ampla adesão popular, muitos conservacionistas, movidos
por um senso de urgência quase insuportável, defendem um
planejamento administrativo central, reformas instituídas por
uma elite esclarecida, ou “ colônias de sobrevivência” de reta­
guarda, abertas apenas para aqueles tidos como os guardiães
da civilização ocidental nos dias negros que se seguirão. Em
The Last Days of Mankind: Ecological Survival or Extinction
(Nova Iorque, Simon and Schuster, 1971), Samuel Mines ob­
serva, aprovativamente, que os “preservacionistas aprenderam
que o protesto e a publicidade, valiosos como o são — e in­
dispensáveis com o decorrer do tempo — operam por demais
lentamente para impedir que prejuízos desnecessários ocor­
ram” . Relutantes em esperar por uma mudança na atitude pú­
blica, eles exigem reformas instituídas pelos níveis mais altos
do governo e uma maior concentração de poder político. Mines
cita Mike McCloskey, um membro do Sierra Club e senador
dos Estados Unidos, dizendo que “ o verdadeiro inimigo da pre­
servação” é o sistema de governo baseado em unidades locais
e municipais. Robert Hçilbroner conclui seu Inquiry into the
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 251

Hunuin Prospect (Nova Iorque, W. W. Norton, 1974) com o


mpumento de que os controles de superpopulação e de poluição
do meio ambiente só podem ser impostos por um governo cen-
iritl equipado com poderes sem precedentes. Esta espécie de
pensamento geralmente culmina com uma demanda de governo
mundial. Num ensaio recente sobre a corrida de armas nuclea-
iea. The Fate of the Earth (Nova Iorque, Alfred À. Knopf,
l‘>82) — quanto ao mais um trabalho inestimável —, lonathan
Nliell conclui que o sistema de soberania nacional, a “ fonte
mais responsável” pelas dificuldades do mundo, necessita ser
«instituído por um Estado internacional. Segundo Richard
I|lk , This Endangered Planet (Nova Iorque, Random House,
a “defesa da vida na terra”, que tem que se basear na
visão da totalidade da terra”, exige “nada menos que um novo
«líltema de ordem mundial”. Como passos imediatos para se
niingir este objetivo ele defende uma Declaração de Emergên-
i In Ecológica internacional, a instituição de “universidades ou
IaOUldades de sobrevivência da ecologia mundial” e a formação
tlc um partido político mundial. Embora reconheça que uma
'cidade do homem” unificada possa se transformar num “ novo
t gtltro de poder demoníaco com condições de tiranizar e ex-
plijrar a humanidade”, Falk deixa estas reservas de lado e en-
liitiza a possibilidade de uma nova “era de harmonia mundial” .
<'<>m algumas reservas, ele recomenda a sugestão de Warren
Wflgar, de que os ecologistas se preparem para o armagedon
k instituindo colonias de sobrevivência em partes do mundo iso-
lnclas e pouco habitadas. Esta “ arca da civilização”, como assim
a denomina Wagar em seu livro The City of Man (Boston,
llõughton Mifflin, 1963), serviria como núcleo de um governo
mundial quando a catástrofe inevitável finalmente persuadisse
iiN homens de sua necessidade. Consumido pela expectativa fe­
bril do histórico colapso mundial, mas desprovido de qualquer
uc*uso de história ou das condições sociais conducentes à mu-
ilíiiiças política, Wagar crê “não haver momento mais oportuno
puta a mudança radical que aquele resultante de uma catástrofe
11111110131” . “ No final da guerra”, escreve, uma colônia de sobre­
vivência dos esclarecidos ecologicamente “ emergiria como for-
vMarefa conspiratória dedicada a persuadir os outros sobrevi­
ventes no mundo a formar um sindicato mundial indissolúvel
rumo última esperança de impedir a completa extinção ou re­
versão à selvageria” .
O empenho em dramatizar questões ambientais repisando
u problema da sobrevivência leva, pois, muito facilmente, a
inna atmosfera de instância apocalíptica, a propostas de um
252 O M ÍNIM O EÜ

governo mundial gozando poderes quase ditatoriais, e a fanta­


sias de uma revolução global engendrada por colônias auto-sele­
tivas de sobreviventes. É tranqüilizador encontrar preservacio-
nistas como Paul R. Ehrlich e Richard L. Harriman, How to
Be a Survivor: A Plan to Save Spaceship Earth (Nova Iorque,
Ballantine Books, 1971) defendendo — apesar do título melo­
dramático do livro — estratégias política mais modestas: “ edu­
cação pública”, “ boicotes de consumidores”, “poder popular”.
Porém mesmo Ehrlich, alguns anos depois de ter escrito este
livro, sucumbiu à panacéia da viagem espacial — dificilmente
um exemplo de abordagem popular de problemas ambientais.
Sobre Doris Lessing e a disciplina espiritual de sobreviver
The Four-Gated City (Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1969);
Briefing for a Descent into Hell (Nova Iorque, Alfred A.
Knopf, 1971); The Memoirs of a Survivor (Nova Iorque, Alfred
A. Knopf, 1975); sua série recente de romances, Canopus in
Argos: Archives, especialmente Skikasta (Nova Iorque, Alfred
A. Knopf, 1979); e as seguintes entrevistas; com 'Florence
Howe, em Contemporary Literature, 14 (1966): 419-436; com
Minda Bikman, em New York Times Book Review, 30.3.1980;
e com Lesley Hazelton, em New York Times Magazine,
25.7.1982. Ver também Nancy Hardin, “ Doris Lessing and
the Sufi Way”, em Doris Lessing: Critical Studies (Madison,
University of Wisconsin Press, 1973): 148-164, editada por
Annis Pratt e L. S. Dembo; Marion Vlastos, “ Doris Lessing e
R. D. Laing: Psychopolitics and Prophecy”, em Publications
of the Modern Language Association, 91 (1976): 245-258; e
meu próprio ensaio, “ Doris Lessing and the Technology of
Survival”, em Democracy, 3 (primavera 1983): 28-36.
Não devo concluir esta seção sem antes mencionar o ma­
nual da sobrevivência, On Thermonuclear War (Princeton,
Princeton University Press, 1960) de Herman Kahn; ou o ar­
tigo que suscita a pergunta sobre campos de concentração,
“ How Did They Survive? Mechanisms of Defense in Nazi Con­
centration Camps” , American Journal for Psychotherapy, 2
(1948): 3-32.

Sobrevivência cotidiana

Sobre “ vitimação” e “vitimologia”, ver William F. Rayan,


Blaming the Victim, edição revista (Nova Iorque, Vintage
Books, 1976J; Margaret Atwood, Survival: A Thematic Guide
to Canadian Literature (Toronto, Anansi, 1972), que mostra
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 253

quão difícil é falar sobre sobrevivência sem falar também sobre


as “posições básicas da vítima’5; Perspectives on Victimology
(Beverly Hills, California, Sage Publications, 1979), ed. de
William H. Parsonage; Violence and Victims (Nova Iorque,
Spectrum, 1974) ed. de Atfan A. Pasternack; Robert Reiff, The
invisible Victim: The Criminal justice System’s Forgotten Res­
ponsibility (Nova Iorque, Basic Books, 1979); Victims, Offen­
ders, and Alternative Sanctions (Lexington, Massachusetts, Le­
xington Books, 1980), ed. de foe Hudson e Burt Galaway; Te­
rence P. . Thornberry e Edward Sagarin, Images of Crime:
fOffenders and Victims (Nova Iorque, Praeger, 1974); Elaine
dsiiiberman/ The Rape Victim (Nova Iorque, Basic Books,
;*1976); The Victimization of Women (Beverly Hills, Califórnia,
i#l»ge Publications, 1978), ed. de fane Roberts Chapman e Mar­
garet Gates; LeRoy J. A. Parker, What the Negro Can Do
I about Crime (New Rochelle, Nova Iorque, Arlington House,
1974); The Sexual Victimology of Youth (Springfield, Illinois,
H^Thomas, 1980), ed. de Leroy G. Schultz; e Paul H. Hahn, Cri-
\mes Against the Elderly: A Study in Victimology (Santa Cruz,
Califórnia, Davis, 1976). O autor não identificado citado quan-
fto à difusão da “ vitimação” é Zvonimir P. Separovic, “Victi­

Í
mology: A New Approach in the Social Sciences”, em Theore­
tical Issues in Victimology (vol. 1 de Victimology: A New
Focus Lexington, Massachusetts, Lexington Books, 1974), ed.
I de Israel Drápkin e Emilio Vianoa. Sobre “ genocídio” ver
Mary Daly, Oyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism
(Boston, Beacon Press, 1978), Sobre a elevação moral da víti­
ma, ver Jacques Ellul, The Betrayal of the West, trad, de Ma-
P thew J. O’Connell (Nova Iorque, Seabury, 1978), cap. 2; Ri­
chard Senett, Authority (Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1980):
142-154; e Warner Berthoff, A Literature without Qualities,
f caP- 3-
Não há necessidade de documentar a evidência jornalística
que utilizei para mostrar como a retórica da sobrevivência per­
Í meia atualmente a discussão da vida cotidiana. Citarei apenas
’alguns títulos de obras que tratam de grandes organizações e
' “ instituições totais” , iniciando por Asylums: Essays on the So­
cial Situation of Mental Patients and Other Inmates (Garden
City, Nova Iorque, Doubleday, 1961) de Erving Goffman, bem
como sua Presentation of Self in Eveyday Life (Garden City,
f Nova Iorque, Doubieday, 1959), que muito contribuíram para
I dar forma a este discurso. Sobre instituições totais ver também
Stanley. Cohem e Laurie Taylor, Psychological Survival: The
Experience 'of Long-Term Imprisonment (Nova Iorque, Vintage
254 O M ÍNIM O EU

Books, 1974); Hans Toch, Living in Prison: The Ecology of


Survival (Nova lorque, Free Press, 1977); e “ Characteristics of
Total Institutions" de Goffman, em Identity and Anxiety: Sur­
vival of the Person in Mass Society (Glencoe, Illinois, Free
Press, 1960), ed. de Maurice R. Stein, Arthur J. Vidich e David
Manning White. Guias para sobrevivência em grandes organi­
zações incluem Chester Burger, Survival in the Executive Jun­
gle (Nova lorque, MacMillan, 1964) e Executives under Fire
(Nova lorque, MacMillan, 1966); Michael Korda, Success!
(Nova lorque, Random House, 1977); Melville Dalton, “ Con­
formity” , em The Age of the Manager: A Treasury of Our
Times (Nova lorque, MacMillan, 1962) ed. de Robert Manley
e Sean Manley: Andrew J. Dubrin, Survival in the Sexist Jun­
gle (Chatsworth, Califórnia, Books for Bettly Living, 1974);
Bettly Lehan Harragan, Games Mother Never Taught You:
Corporate Gamesmanshisp for Women (Nova lorque, Warner
Books, 1977); e Barrie S. Greiff e Preston K. Munter, Tra­
deoffs: Executive, Family and Organizational Life (Nova
lorque, New American Library, 1980). Ver também Dale Tar-
nowieski, The Changing Success Ethic (Nova lorque, American
Management Association, 1973).
Vincent Cauby apresentou crítica de Pasqualino Sete Be-
lezas de Wertmiiller no New York Times, 22 e 25.1.1976.
Stanly Elkis aplicou a pesquisa dos campos de concentra­
ção nazistas ao estudo da escravidão negra americana em Slave­
ry: A Problem in American Institutional and Intellectual Life
(Chicago, University of Chicago Press, 1959).
Grove Press (Nova lorque) publicou o enredo do filme
Meu Jantar com André, de Wallace Shaw e André Gregory em
1981.

A Guerra Fria e a crítica do sobrevivencialismo

O ataque de Sidney Hook a Russel e Kerman, “ The Mo­


rality of Survival in a Nuclear Face-Off”, apareceu no Los
Angeles Times, 11.5.1083. Os ataques da esquerda ao movi­
mento pela paz incluem Cornelius Castoriadis, “ Facing the
War”, n.° 46 (inverno 1981): 43-61, outro artigo de Castoria­
dis, “ ‘Facing the War’ and the Socio-Economic Roots of Re-
Armament: A Rejoinder”, Telos, n.° 52 (verão 1982): 192-198;
e Ferenc Feher e Agnes Heller, “The Antinomies of Peace” ,
Telos, n.° 53 (outono 1982): 5-16. Ver também Seyla Benhabib,
“ The West German Peace Movement and Its Critics”, Telos,
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 255

ili° 51 (primavera 1982): 148-158, artigo que conclui com o


lembrete de que “ a razão a serviço da autopreservação apenas
iriunfa no mundo destruindo os indivíduos em benefício de
quem foi acionada.” Andrew Arato e Jean Cohen, “The Peace
Movement and Western European Sovereignty”, Telos, n.° 51
(primavera 1982): 158-171, artigo que acusa os defensores do
desarmamento nuclear de apelarem para “ o mínimo denomina­
dor comum capaz de mobilizar as massas, ou seja, vida e
medo”; e Orville Lee III, “ Metacritique of Non-Criticism: A
Itcply to Breines et al.”, Telos, n.° 52 (verão 1982): 108-113,
onde argumenta que “ a sobrevivência, em si mesma, apenas
prepara o indivíduo para uma posterior brutalização” . A obser­
vação de Russel Jacoby sobre narcisismo e auto-sacrifício apa­
rece no seu “ Narcissism and the Crises of Capitalism”, Telos,
£° 44 (verão 1980): 58-65.
A condenação de Reinhold Niebuhr ao acordo de Muni­
que, publicada originalmente em Radical Religion (1938), é ci­
lada por Donald B. Meyer em The Protestant Search for Poli­
tical Realism, 1919-1941 (Berkeley, University of California
Press, 1960), 359-360. A análise de Mumford da paralisia mo­
ral do liberalismo apareceu em “ The Corruption of Libe­
ralism” , New Republic 102 (29.4.1940): 568-573.
» 'i

O DISCURSO SOBRE A MORTE EM MASSA

O holocausto

Ao traçar a história e as implicações da idéia do Holo­


causto, baseei-me na obra de Jacob Neusner, Stranger at Home:
The Holocaust’, Zionism, and American Judaism (Chicago,
University Press, 1981). Meu estudo não pretende cobrir a vasta
literatura sobre este assunto. Estes estudos podem servir como
introdução: Raul Hilberg, The Destruction of the European
lews (Chicago, Quadrange, 1961); Nora Levin, The Holocaust:
The Destruction of European Jewry, 1933-1945 (Nova Iorque,
Thomas Y. Crowell, 1968); Lucy S. Dawidowicz, The War
against the Jews, 1933-1945 (Nova Iorque, Holt, Rinehart, and
Winston, 1975); Richard L. Rubenstein, The Cunning of His­
tory: Mass Death and the American Future (Nova Torque, Har­
per and Row, 1975) e The Age of Triage: Fear and Hope in
on Over-Crowded World (Boston, Beacon Press, 1983). Ver
Uinibém Lucy S. Dawidowicz, The Holocaust and the Histo-
256 O M ÍNIM O EU

rians (Cambridge, Harvard University Press, 1981); Yehuda


Bauer, The Holocaust in Historical Perspective (Seattle, Uni­
versity of Washington Press, 1978); Gerd Korman, ‘.’The Ho­
locaust in American Historical Writing”, Societas, 2 (1972):
251-176; Emil Fackenheim, “ The Nazi Holocaust as a Persis­
ting Trauma for the Non-Jewish Mind” , Journal of the History
of Ideas, 36 (1975): 369-376; e Lawrence L. Langer, The Ho­
locaust and the Literary Imagination (New Haven, Yale Uni­
versity Press, 1975).
A observação de Begin, “ eu sei o que é um holocausto” ,
foi noticiada pela Newsweek, 100 (27.9.1982): 83. David L.
Kirp relata bons exemplos da adulteração e trivialização do
conceito de genocídio no Los Angeles Times, 13.6.1983. Após
citar um trabalhador migrante que acusa as autoridades muni­
cipais de cometer “genocídio” contra os pobres, Kirp prossegue:
“ Arthur Robbins não é o único com propensão para tal retó­
rica. Um grppo de mulheres idosas, imigrantes em Miami, foi
visto recentemente carregando cartazes denunciando seu senho­
rio como nazista; descobriu-se que ele fora displicente com o
aquecimento e o abastecimento de água quente. Um médico em
Fort Lauderdale, que se opunha à legislação sobre honorários
médicos, escreveu ao jornal local: ‘Não obedeceremos calados
como judeus indo para as câmaras de gás, mas resistiremos.’
Mais notoriamente, militantes árabes têm repetidamente descrito
as atividades de Israel na região ocidental e, mais recentemen­
te, no Líbano, como destinadas a dar ao povo palestino uma
‘solução final’
Em The Fate of the Earth, Jonathan Schell diz que o ge­
nocídio cometido contra os judeus na Segunda Guerra Mundial
pode servir como presságio e modelo do aniquilamento nuclear
da humanidade.

Totalitarismo

Dentre os primeiros escritores a usar o conceito de tota­


litarismo estão Herman Rauschning, The Revolution of Nihilism
(Nova Iorque, Longmans, Green, 1939); Franz Borkenau, The
Totalitarian Enemy (Londres, Faber and Faber, 1940); Arthur
Koestler, Darkness at Noon (Nova Iorque, MacMillan, 1941);
e James Burnham, The Managerial Revolution (Nova Iorque,
John Day, 1941). A idéia encontra sua expressão clássica nos
romances anti-utópicos de George Orwell, Animal Farm (Nova
Iorque, Harcourt, Brace, 1946) e Nineteen Eighty-Four (Nova
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 257

Iorque, Harcourt, Brace, 1949), e um Origins of Totalitarianism


(Nova Iorque, Harcourt, Brace, 1951) de Hannah Arendt. Sobre
o contexto dos romances de Orwell, ver William Steinhoff,
George Orwell and the Originis of 1984 (Ann Arbor, Univer­
sity of Michigan Press, 1975), e Bernard Crick, George Orwell:
A Life (Londres, Seeker and Warburg, 1981). Sobre Arendt,
ver Elizabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt: For Love of the
World (New Haven, Yale University Press, 1982); Stephen J.
Whitfield, Into the Dark: Hannah Arendt and Totalitarianism
(Piladélfia, Temple University Press, 1980); Margaret Canovan,
I'he Political Thought of Hannah Arendt (Nova Iorque, Har-
ipurt Brace Jovanovich, 1974); e Hannah Arendt: The Reco­
very of the Public World (Nova Iorque, St. Martin's Press,
1979), ed. de Melvyn A. Hill. As observações de Dwight Mac­
Donald sobre a irracionalidade do totalitarismo, originalmente
publicadas em Politics, 2 (março 1945): 82-93, podem ser en­
contradas na sua Memoirs of a Revolutionist: Essays in Poli­
tical Criticism (Nova Iorque, Meridian Books, 1958).
A tendência crescente de equiparar totalitarismo a “ demo-
ppacia direta” e planejamento social utópico pode ser acompa­
nhada em J. L. Talmon, The Origins of Totalitarian Democracy
(Londres, Seeker e Warburg, 1952); Karl Popper, The Open
Society and Its Enemies (Londres, Rcutledge and Kegan Paul,
1945); e Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium (Lon­
dres, Seeker and Warburg, 1957). Sobre o conceito de totali­
tarismo na ciência política e social, ver Carl f. Friedrich e
Zbigniew K. Brzezinski, Totalitarian Dectatorship and Auto­
cracy, 2.a ed. (Cambridge, Harvard University Press, 1965);
Carl J. Friedrich, Michael Curtis e Benjamin R. Barber, Tota­
litarianism in Perspective: Three Views (Nova Iorque, Praeger,
1969); Robert Burrowes, “Totalitarianism: The Revised Stan­
dard Version”, World Politics, 21 (1969): 272-294; Les K.
Adler e Thomas G. Paterson, “ Red Fascism: The Merger of
Nazi Germany and Soviet Russia in the American Image of
’I'otalitarianism”, American Historical Review, 75 (1970):
1046-1064. Alguns dos exemplos mais proeminentes da equação
de esquerda entre capitalismo, racismo e quase todos os usos
de poder político com totalitarismo, retirados ao acaso dos exa­
geros retóricos dos anos 60, incluem, além de One-Dimensional
Man (Boston, Beacon Press, 1964) de Herbert Marcuse, as alu­
sões freqüentes de Norman Mailer ao caráter totalitário da so­
ciedade americana, tais como em Armies of the Night (Nova
Iorque, New American Libray, 1968), onde ele se refere às
258 O MÍNIMO EU

“ doenças dos Estados Unidos, seu totalitarismo emergente, seu


caráter opressivo, o seu smog”, a referência-padrão de James
Baldwin aos EUA como o “ quarto Reich” ; e a referência de
H. Rap Brown a Lyndon Johnson como “ o filho ilegítimo de
Hitler”, relatada por James Ridgeway em “ Freak-Out in Chi­
cago: The National Conference of New Politics”, New Repu­
blic, 157 (16.9.1967): 11.

Os campos de extermínio e os campos de concentração


Não tenho aqui, mais uma vez, pretensões de cobrir
exaustivamente o assunto. Consultei as obras mais óbvias e
imediatas: David Rousse, The Other Kingdom, trad, de Ramon
Guthrie (Nova Iorque, Reynald and Hitchcock, 1947); Eugen
Kogon, The Theory and Practice of Hell, trad, de Heinz Nor-
den (Nova Iorque, Farrar, Straus, 1953); Elie A. Cohen, Hu­
man Behavior in the Concentration Camp, trad, de M. H.
Braaksma (Nova Iorque, W. W. Norton, 1953); Elie Wiesel,
Night, trad, de Stella Rodway (Nova Iorque, Hill and Wang,
1960); e Alexander Donat, The Holocaust Kingdom (Nova Ior­
que, Holt, Rinehart, and Winston, 1965); destaquei, contudo,
como dignas de atenção especial, algumas obras — escritas,
muitas delas, pelos próprios sobreviventes — que parecem ser
cruciais ao debate sobre se os campos de concentração ofere­
cem ou não lições aplicáveis à vida cotidiana. As obras de
Bruno Bettelheim sobre situações extremas e sobrevivência in­
cluem: “ Individual and Mass Behavior in Extreme Situations” ,
Journal of Abnormal and Social Psychology, 38 (1943): 417-
452, ensaio reeditado em Surviving and Other Essays (Nova
Iorque, Alfred A. Knopf, 1979); The Informed Heart: Autono­
my in a Mass Age (Glencoe, Illinois, Free Press, 1960); e “ The
Holocaust — One Generation Later” , em Surviving. Este últi­
mo ensaio cita o protesto de Elie Wiesel contra a “ deprecia­
ção” do Holocausto e sua explanação sobre a culpa do sobre­
vivente. Viktor Franki, From Death Camp to Existencialista,
trad, de Ilse Lasch, foi publicado pela Beacon Press (Boston)
em 1959. Os escritos relevantes de 1968; Elmer Luchterhand,
“ Early and Late Effects of Imprisonment in Nazi Concentra­
tion Camps: Conflicting Interpretations in Survivor Research” ,
Social Psychology, 5 (1970): 102-110; Stress and Coping, cd,
de Alan Monat e Richard S. Lazarus (Nova Iorque, Columbia
University Press, 1977); e Paul Chodoff, “ The German Con­
centration Camp as a Psychological Stress” , Archives of Gene­
ral Psychiatry, 22 (1970): 78-87. Para uma pequena amostra-
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 259

nem de outros trabalhos sobre stress e adaptação, ver Marion


R. Just e outros, Coping in a Troubled Society: An Envi­
ronmental Approach to Mental Health (Lexington, Massachu­
setts, Lexington Books, 1974); Irving L. Janis, Psychological
Stress (Nova Iorque, Willey, 1958); Richard S. Lazarus, Psy­
chological Stress and the Coping Process (Nova Iorque, Mc-
<3raw Hill, 1966); Aaron Antonorshy, Health Stress and Co­
ping (São Francisco, Jossey-Bass, 1979); William J. Mueller e
Bill L. Kell, Coping with Conflict (Nova Iorque, Appleton-
Oentury-Crofts, 1972); Gustave Simmons, Coping with Crisis
(Nova Iorque, MacMillan, 1972); Norma Haan, Coping and
Defending: Process of Self-Environmental Organization (Nova
Jorque, Academic Press, 1972); William N. Morris e outros,
f ‘Collective Coping with Stress: Group Reactions to Flar, An-
idety, and Ambiguity, “ Journal of Personality and Social
Psychology, 35 (1976): 674-679, Allan Monat, “ Temporal Un­
certainty, Antecipation Time, and Cognitive Coping under
Threat”, Journal of Human Stress, 2 (1976): 32-43; J. K.
Uashimi, “ Environmental Modification: Teaching Social Coping
Skills”, Social Work, 26 (1981): 323-326; Roma M. Harris,
"Conceptual Complexity and Preferred Coping Strategies in
Antecipation of Temporally Predictable and Unpredictable
Threat”, Journal of Personality and Social Psychology 41
(1981): 380-390; Suzanne C. Kabasa, “ Stressful Life Events,
Personality and Health: An Inquiry into Hardiness”, Journal
of Personality and Social Psychology, 37 (1979): 1-11, Mark
S. Pittner Terrence Des Pres são: The Survivor: An Anatomy
òf Life in the Death Camps (Nova Iorque, Oxford University
Press, 1976); a crítica de Pasqualino, “ Bleak Comedies: Lina
Wertmiiller’s Artful Method”, Harper’s, 252 (junho 1976):
26-28; e a filipica contra Bettelheim, “ The Bettelheim Pro­
blem” , em Social Research 46 (1979): 619-647, que contém
iambém a versão revisada de sua opinião sobre Pasqualino.
Outras críticas a este filme, na sua maioria bastante laudató-
rias, incluem as duas de Vincent Cauby já citadas, aquelas de
Pauline Kael, New Yorker, 52 (16.2.1976): 104-109; e as de
Uussel Baker, New York Times, 17.2.1976; Jerzy Kozinski,
New York Times (7.3.1976); Gary Amoel, Washington Post,
18.3.1976; Jay Cocks, Time 107 (26.1.1976): 76; Jack Kroll,
Newsweek, 87 (26.1.1976): 78-79; Robert Hatch, Nation, 222
(7.2.1976) 155-156; William S. Pechter, Commentary, 61
(ttiaio 1976): 72-76; Judith Crist, Saturday Review, 3 (21.
260 O MÍNIMO EU

2.1976): 49-50; John Simon, New York, 9 (2.2.1976): 24; e


Mareia Cavell Aufhauser, New Leader, 59 (16.2.1976): 23-24.
A “pesquisa comparada da sobrevivência” tenta unir es­
tudos sobre campos de concentração a estudos sobre a vida co­
tidiana. Ver, como introdução: Survivors, Victims and Perpe­
trators: Essays on the Nazi Holocaust, ed. de Joel E. Dimsdale
(Washington, D.C., Hemisphere, 1980) que contém, entre ou­
tros ensaios, as reflexões de Robert Jay Lifton sobre a culpa
do sobrevivente, The Concept of the Survivor; “ Coping Beha­
vior of Nazi Concentration Camp Survivor”, de Dimsdade; e
o importante ensaio de Patricia Benner, Ethel Roskies e Ri­
chard S. Lazarus, “ Stress and Coping under Extreme Condi­
tions”. Outros exemplos deste tipo de trabalho incluem: Mas­
sive Psychic Trauma, ed. de Henry Krystal (Nova Iorque, In­
ternational University Press, e B. Kent Houston, “ Response to
Stress, Cognitive Coping Strategies, and the Type A Behavior
Pattern”, Journal of Personality and Social Psychology, 39
(1980): 147-157; Lizette Paterson e Carol Shigetomi, “The Use
of Coping Techniques to Minimize Anxiety in Hospitalized
Children” , Behavior Therapy, 12 (1981): 1-14; Thomas M.
Beers Jr. e Paul Karoly, “ Coping Strategies, Expectancy, and
Coping Style in the Control of Pain”, Journal of Consulting and
Clinical Psychology, 47 (1979): 179-180; Michael Girodo e Ju-
lins Roehl, “Cognitive Preparation and Coping Self-talk: An­
xiety Management during the Stress of Flying”, Journal of
Consulting, 23, and Clinical Psychology, 46 (1978): 978-989;
e Alan Monat, James R. Averill e Richard S. Lazarus, “Ante-
cipating Stress and Coping Reactions under Various Conditions
of Uncertainty, “ Journal of Personality and Social Psychology,
24 (1972): 237-253.

A ESTÉTICA MINIMALISTA

Além da obra de Berthoff já citada, A Literature without


Qualities, baseei-me também na severa análise da ficção recente
de John W. Aldridge, The American Novel and The Way We
Live Now (Nova Iorque, Oxford University Press, 1983), e em
City of Words: American Fiction, 1950-1970 (Londres, Jona­
than Cape, 1971), de Tony Tanner, que é freqüentemente pers­
picaz na interpretação de certos autores, mas me parece gene­
roso demais na avaliação geral do estado da literatura ameri­
cana. Ver também Wylie Sypher, Loss of the Self in Modern
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 261

Literature and Art (Nova Iorque, Vintage Books, 1962), fonte,


entre outras coisas, de várias afirmações de Jean Dubuffet.
O ensaio de Philip Roth, “Writing American Fiction”,
apareceu em Commentary, 31 (março 1961): 223-233. As ob­
servações de Merce Cunningham sobre a desenfatização dos
efeitos de clímax são citadas por Barbosa Rose no seu manifesto
minimalista “ABC Art” (1965), reeditado em Minimal Art: A
Critical Anthology, ed. de Gregory Battcock (Nova Iorque,
Dutton, 1968). A coleção de Battcock apresenta uma boa in­
trodução ao assunto. As citações que fiz do ensaio de Rose e
do ensaio de John Perreault, “Minimal Abstracts”, provêm de
sua introdução. Ver também a contribuição de Yvonne Rainer,
“ A Quasi Survey of Some ‘Minimalist’ Tendencies in . . . Dan­
ce” , que concorda com a oposição de Cunninghan ao “frasea­
do” , ao “ desenvolvimento e clímax”, à “variação”, ao “ ritmo,
forma, dinâmica” e à “ destreza de movimento vituosístico” .
Lembrando também os princípios de Reinhardt para uma nova
academia, a lista das regras de abnegação de Rainer mostra
quão facilmente o programa minimalista, inicialmente formulado
em oposição à pintura e à escultura “narcisistas” e “ auto-indul­
gentes”, pode ser estendido não apenas à dança, mas também a
música e à literatura, Rainer diz: “ Pode-se caracterizar grande
parte da dança ocidental com que estamos familiarizados por
uma particular distribuição de energia: produção máxima ou
‘ataque’ no início de uma frase, seguida de redução e recupe­
ração no final, repressão de energia em algum lugar no meio.
“ O grand jeté, argumenta, tipifica este interesse no “ movimento
suspenso de clímax”. “ Tal como um enredo disperso, românti­
co, esta espécie singular de exibição — com sua ênfase na
nuança e na realização precisa, sua acessibilidade à compara­
ção e à interpretação, seu envolvimento com a perícia, o nar­
cisismo e a autocongratulação — finalmente se esgotou nesta
década (anos 60).”
Outra coleção útil, Concepts of Modern Art, ed. de Nikos
Stangos (Nova Iorque, Harper and Row, 1974), inclui as con­
siderações de Jasia Reichardt sobre op art (1966) e a análise
de Roberta Smith do conceitualismo (1980) — fonte das ad­
vertências de Robert Barry contra a manipulação da realidade.
Ver também Nicolas Calas e Elena Calas, Icons and Images of
the Sixties (Nova Iorque, Dutton, 1971); Calvin Tomkins, The
Bride and Bachelors: The Heretical Courtship in Modern Art
(Nova Iorque, Viking, 1965), que contém ensaios sobre Marcel
Duchamp, John Cage e Robert Rauschenberg; Harold Rosen­
262 O MÍNIMO EU

berg, The De-definition of Art: Action Art to Pop to Earth-


Works (Nova Iorque, Horizon Press, 1972); Christopher Finch,
Pop Art: Object and Image (Nova Iorque, Dutton, 1968); Ro­
bert Pincus — Witten, Post-minimalism (Nova Iorque, Out of
London Press, 1977); e Douglas Davis, “ Post Everything”, Art
in America, 68 (fev. 1980): 11-14. Sobre a objeção um
tanto tola de que o minimalismo cria um efeito alucinatório —
exatamente a sua intenção — ver H. H. Rookmaaker, Modern
Art and the Death of a Culture (Londres, Inter-Varsity Press,
1970). Six Years: The Dematerialization of the Art Object,.de
Lucy R. Lipard (Nova Iorque, Praeger, 1973), uma espécie de
álbum de recortes, contém muito material útil, inclusive as
declarações de Robert Smithson definindo nosso futuro como
“falácia expressiva” e “ vazio tedioso” ; a renúncia de Adrian
Piper (1970); e a declaração da importância de se “limpar o
ar de objetos”, de Ian Burn e Mel Ramsden (1970). As críticas
severas de Sol Le Witt à subjetividade podem ser encontradas
no seu artigo “ Paragraphs on Conceptual Art”, Art-forum (ve­
rão 1967): 79-83. Sobre Ad Reinhardt, ver a biografia de Lucy
R. Lippard, Ad Reinhardt (Nova Iorque, Harry N. Abrams,
1981), que contém as opiniões de Reinhardt sobre a irrespon­
sabilidade da cor, seu louvor aos ícones, seu artigo “Twelve
Rules for a New Academy” (1957), e a defesa do tema básico
por Rothko e Gotlieb (1943).
Sobre os pintores de Nova Iorque, ver E. A. Carmean,
American Art at Mid-Century (Washington, D.C., National Gal­
lery of Art, 1978), fonte de observação de Gorky sobre o infi­
nito interior, da iluminadora comparação entre Reinhardt e
Rothko por Eliza Rathbone, e da descrição que Nicolas Calas
faz das pinturas negras de Reinhardt, “véus cobrindo o óbvio” .
Ver também Clement Greenberg, “ American-Type Painting” em
Art and Culture: Critical Essay (Boston, Beacon Press, 1961).
Beyond the Crisis in Art, de Peter Fuller (Londres, Writers
and Readers Publishing Cooperative, 1980), contém várias en­
trevistas e ensaios admiráveis, dos quais retirei declarações de
Carl Andre, Frank Stella e do próprio Fuller. O ensaio muito
bem argumentado de Carter Ratcliff, “ Robert Morris: Prisioner
of Modernism”, apareceu na Art in America (outubro 1979):
96-109.
Minha análise da ficção recente, assim como minha análi­
se das artes visuais, desconsidera o realismo nas artes, visto ser
ele, atualmente, sejam quais forem seus méritos intrínsecos, con­
trário ao caráter de nossa cultura. O tratamento que dispenso
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 263

aos autores experimentais é, também, reconhecidamente seletivo


embora, espero, não arbitrário: ocupo-me daqueles que exempli­
ficam o equivalente literário da sensibilidade e do programa
minimalistas e cujo trabalho, além do mais, e assim como gran­
de parte da minimal art e da pop art, deriva sua inspiração, ao
menos em parte, da saturação do cotidiano com imagens e obje­
tos de arte de produção em massa. As citações de Henry Miller
provêm de Tropic of Cancer, originalmente publicado em 1934
(Nova Iorque, Grove Press, 1961). Minha discussão sobre Wil­
liam Burroughs se apóia em: Naked Lunch (Nova Iorque, Gro­
ve Press, 1959), Nova Express (Nova Iorque, Grove Press,
1964), Cities of the Red Night (Nova Iorque, Holt, Rinehart
and Winston, 1981), e nas conversas e entrevistas registradas
por Victor Bockris em With William Burroughs: A Report
from the Bunker (Nova Iorque, Seaver Books, 1981). Love and
Napalm: Export U.S.A., de J. G. Ballard (Nova Iorque, Grove
Press, 1972), apresenta um prefácio de Burroughs. Sobre o pro-
grama do “ novo romance”, ver Nathalie Sarraute, The Age of
Suspicion: Essays on the Novel, trad, de Maria Jolas (Nova
Iorque, Braziller, 1963) — o ensaio-título apareceu em 1950
—, e Alain Roble-Grillet, For a New Novel: Essay on Fiction,
trad, de Richard Howard (Nova Iorque, Grove Press, 1965),
que consiste de ensaios escritos, na sua maioria, nos anos 50.
Thomas Pynchon publicou três romances: V (Filadélfia, J. B.
Lippincot, 1963), The Crying of Lot 49 (Filadélfia, J. B. Lip-
pincott, 1966), e Gravity’s Rainbow (Nova Iorque, Viking,
1973), todos reeditados pela Bantam.
O ensaio de Walter Benjamim, “ The Work of Art in the
Age of Mechanical Reproduction”, originalmente publicado na
Alemanha em 1936, aparece na sua obra Illuminations, ed. de
Hannah Arendt, trad, de Harry Zohn (Nova Iorque, Schocken
Books, 1969), 217-251.

A HISTORIA INTERNA DA INDIVIDUALIDADE

John Cage

As citações de John Cage e Christian Wolff provêm da


obra de Cage, Silence (Middletown, Connecticut, Wesleyan Uni­
versity Press, 1961 ); ver também sua Empty Words: Writings,
‘73 — ‘78 (Middletown, Connecticut, Wesleyan University
Press, 1979). O elogio de Cage ao anonimato artístico, sua in­
sistência de que nada ocorre nos bastidores (“ Num dado mo-
264 O MÍNIMO EU

mento, somos quando somos. O agora”), sua afirmação de que


“ tudo vale” em arte, e, é claro, sua longa associação com Merce
Cunningham o ligam à sensibilidade minimalista; enquanto que
suas alusões freqüentes a Norman O. Brown e Buckmunster
Fuller, sua oposição a todas as formas de posse e domínio, sua
defesa de uma cultura global, sua crença de que as simpatias
locais impedem o desenvolvimento de tal cultura ligam suas
idéias à contracultura ecológica discutida no cap. 7. Ambas as
faces de seu pensamento, a estética e a sócio-cultural, são evi­
dentes nesta condenação da memória e do clímax extraído de
“ Lecture on Nothing”, conferência proferida pela primeira vez
em 1949 ou 1950: “ Nossa poesia é, hoje, a conscientização de
que não possuímos nadá . .. Não precisamos destruir o passa­
do — ele se foi . . . a continuidade musical hoje, quando ne­
cessária, é uma demonstração de desinteresse. Isto é, a prova
de que nosso prazer reside em não possuir coisa alguma. Cada
momento apresenta aquilo que acontece. Como é diferente este
senso de forma daquele ligado à memória: temas; temas secun­
dários; seu conflito; seu desenvolvimento; o clímax; a recapi­
tulação (a crença de se poder possuir a própria casa). Contudo
nós, diferentemente dos caracóis, carregamos nossas casas den­
tro de nós, fato que nos permite voar ou ficar — e ter prazer
em ambos”.

A teoria psicanalítica da separação: obras de Freud

Em seu fecundo, porém confuso ensaio, “On Narcissism:


An Introduction”, trad. e ed. de James Strachey, em The Stan­
dard Edition of Complete Psychological Works of Sigmund1
Freud (Nova Iorque, W. W. Norton, 1976), 14: 73-102, em
cujo decorrer se refere ao ideal do ego como um “substituto
do narcisismo perdido da . . . infância”, Freud apresenta duas
diferentes concepções do próprio narcisismo. A primeira o iden­
tifica com uma retirada de interesse libidinal no mundo exterior
e com o investimento libidinal do ego. A segunda parece pres­
supor um estado de “narcisismo primário” anterior a relações
objetais ou mesmo a qualquer consciência de objetos separados;
assim fala Freud do “estado mental jubiloso” da criança, de sua
“incontestável posição-libido”, de sua “perfeição narcísica”.
Pode ter sido a crescente preocupação com o narcisismo nesse
segundo sentido que colocou Freud no caminho da mal conce­
bida hipótese de uma pulsão de morte (Beyond the Pleasure
Principie (1920), Standard Edition, 18: 7-64), melhor descrita
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 265

como um anseio de equilíbrio absoluto: o princípio de Nirvana,


como ele convenientemente o chamou. Porém, a hipótese de
uma pulsão de morte se desenvolveu também da crescente cons­
ciência de Freud quanto à agressão, de modo que também a
pulsão de morte tem um segundo significado, como quando
Freud chama o superego de uma “pura cultura da pulsão de
morte (The Ego and the Id (1923), Standard Edition, 19: 13-66),
querendo com isso dizer que ele redireciona os instintos agres­
sivos contra o próprio ego. A ambigüidade que cerca esses con­
ceitos não nos deve impedir de apreciar a profunda intuição
subjacente a eles: que uma parte da mente busca não a grati­
ficação do desejo pulsional, mas uma satisfação primordial,
“oceânica”, para além do desejo. (Civilization and Its Discon-
tents (1930), Standard Edition, 21: 64-145), e ela se desvia
deste “caminho para trás” (Beyond the Pleasure Principie) ape­
nas porque os desapontamentos e frustações inflingidos pela
experiência impossibilitam, no final, a manutenção da ilusão
infantil de unidade e onipotência, a ilusão de que a criança
é a “possuidora de todas as perfeições” (“On Narcissism”) —
ilusão esta que permanece, contudo, como a origem de todas as
idéias subseqüentes de perfeição.
Esta linha de pensamento, juntamente com a descoberta
de um estágio “creto-micênico” de desenvolvimento mental, sub­
jacente ao estágio edipiano e centrado nas relações entre a
criança e sua mãe (“Female Sexuality” (1931), Standard Edition
21: 225-243), levou Freud a dar cada vez mais atenção à an­
gústia de separação como protótipo de todas as outras formas
de angústia, incluindo o medo de castração (The Ego and the
Id; Inhibitions, Symptons, and Anxiety (1926), Standard Edition,
20: 87-174). Parece que até mesmo o superego — o “Herdeiro
do complexo de Édipo” — tem uma origem anterior: conclusão
sugerida não só pelo curso geral do trabalho posterior de Freud,
mas também por declarações específicas ligando o superego às
pulsões agressivas redirigidos contra o ego, caracterizando-o an­
tes como representativo do id que da realidade exterior, e enfa­
tizando sua “extraordinária aspereza e severidade” (The Ego
and the Id; New Introductory Lectures on Psychoanalysis (1933),
Standard Edition 22: 5-182). A sugestão posterior, de que o
superego edipiano modifica a crueldade do superego arcaico
adicionando um princípio mais impessoal de autoridade, apare­
ce, de forma um tanto confusa, no contexto de uma discussão
sobre diferenças de gênero (“Some Psychical Consequences of
the Anatomical Distinction between the Sexes” (1925), Standard
266 O MÍNIMO EU

Edition, 19: 248-58). Os ensaios de Freud sobre a psicologia da


mulher reforçam a versão de que o “complexo de Édipo é uma
formação secundária” (“ Some Psychological Consequences”)
mas a asserção de que isto é verdadeiro apenas para a mulher
continua sendo fonte de confusão sobre as implicações da teo­
ria estrutural da mente. Também origina confusão a afirmação
de que a inveja do pênis existe apenas na mulher, que parece
ser destruída pela importante observação, presente em Beyond
the Pleasure Principie, de que os desejos sexuais da criança são
“incompatíveis” com o “estado inadequado de desenvolvimento
que a criança alcançou”. Esta observação sugere que a inveja
do pênis, tal como a inveja em geral, deriva da descoberta da
criança de sua inferioridade, desamparo e dependência, tão dolo­
rosamente em conflito com seus desejos sexuais precoces. Ela
também ajuda a explicar porque os homens sofrem tão intensa­
mente do medo da dependência e da passividade, como observou
Freud no seu último ensaio, “Analysis Terminable and Intei-
minable” (1973), Standard Edition, 23: 216-253.

Angústia de separação e narcisismo:


teoria psicanalítica recente

A descoberta da mãe pré-edipiana, da importância da an­


gústia de separação, e desta dimensão mais ampla da inveja,
abriu caminho para os avanços na teoria psicanalista realizados
por Melanie Klein, pela escola de relações objetais e, firiahnen-
te, pelos estudos recentes sobre o narcisismo. Referir-me-ei ape­
nas a obras que têm relação direta com o problema da sepa­
ração ou de outros assuntos tocados no curso de minha dis­
cussão. “ Envy and Gratitude” (1957), de Melanie Klein, em
Envy and Gratitude and Other Works, 1946-1963 (Nova Iorque,
Delacorte Press, 1975): 176-235, trata das relações entre inveja,
ganância e angústia. Seu “ Reflection on ‘The Oresteia’ ” (1963),
presente no mesmo volume, pp. 275-299, continua esta dis­
cussão e retoma também o conceito de hubris. Em um ensaio
anterior, “Love Guilt and Reparation” (1937), em Love, Guilt
and Reparation and Other Works, 1921-1945 (Nova Iorque,
Detacorte Press, 1975): pp. 306-343, examina o impulso de
fazer reparos e a distinção entre a conquista da natureza e a
exploração amorosa da natureza. Ver também Hannah Segai,
Melanie Klein (Nova Iorque, Viking, 1979). Ernest Jones exa­
mina a fantasia da mãe fálica em “The Phallic Phase”, em
International Journal of Psychoanalysis, 14 (1933): 1-33. Sobre
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 267

as primeiras relações objetais, ver Margaret S. Mahler, On Hu­


man Symbiosis and the Vicissitudes of Individuation (Nova
I'orque, International Universities Press, 1968); seu ensaio “On
Sadness and Grief in Infancy and Childhood: Loss and Resto­
ration of the Symbiotic Love Object”, em Psychoanalytic Study
of the Child, 16 (1961): 332-351; Michael Balint, Primary Love
and Psychoanalytic Technique (Londres, Hogarth Press, 1952);
Anna Freud, The Ego and the Mechanisms of Defense (Nova
Iorque, International Universities Press, 1946); Edith Jacobson,
The Self and the Object World (Nova Iorque, International
Universities Press, 1964); e Joyce McDougall, “Primal Scene
and Sexual Perversion”, em International Journal of Psychoana-
\ lysis, 53 (1972): 371-391. Sobre objetos transicionais, ver Do­
nald W. Winnicott, The Child, the Family, and the Outside
World (Baltimore, Penguin Books, 1964) e Playing and Reality
(Harmondsworth, Inglaterra, Penguin Books, 1974). Sobre jogo,
ver também Johan Huizinga, Homo Ludens: A Study of the
Play Element in Culture (Boston, Beacon Press, 1955).
Minha compreensão do narcisismo deriva principalmente
de Otto Kernberg, Borderline Conditions and Pathological Nar­
cissism (Nova Iorque, Jason Aronson, 1975); de Jean Laplan-
che, Life and Death in Psychoanalysis, trad, de Jeffrey Mehlman
(Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1976), que ajuda
a clarificar a diferença entre os dois conceitos de narcisismo de
Freud e também explica a transformação de necessidades bioló­
gicas em desejos humanos; de Béla Grunberger Narcissism: Psy­
choanalytic Essays, trad, de Joyce S. Diamanti (Nova Iorque,
International Universities Press, 1979); e de estudos mais espe­
cializados sobre o ideal do ego citados no próximo subitem.
Ver também Sydney E. Pulver, “Narcissism: The Term and the
Concept”, em Journal of the American Psychoanalytic Associa­
tion, 18 (1970): 319-341. O livro de Grunberger é a fonte da
afirmação de Cioran sobre a sensação humilhante da fraqueza
e da insegurança, e de uma série de afirmações já mencionadas;
porém, a extensão de meu débito para com a obra de Grun­
berger e para com a de sua esposa, Janine Chasseguet Snurgee,
vai além daquilo que é evidente. A obra deles eleva o estudo
do narcisismo a um novo nível. Ela localiza o caráter “pro­
fundamente regressivo” do narcisismo no anseio por um paraíso
perdido, mas desvincula o conceito de princípio de Nirvana do
conceito de uma pulsão de morte. Mostra, por outro lado, que
o narcisismo não serve ao instinto de autopreservação, e que
não pode, portanto, ser definido como um investimento libidinaí

I
268 O MÍNJMO EU

do ego. Força-nos a ver que são precisamente os tumultuosos


desejos.pulsionais que primeiro perturbam o equilíbrio narcí-
sico, e que “manter a ilusão da onipotência em que nasceu”,
como observou fecundamente Grunberger, “parece (ao homem)
mais importante que a gratificação pulsional propriamente”.
Segundo Grunberger, o narcisismo mantém uma relação dialé­
tica e contraditória com o ego. Por um lado, sua indiferença
para com as necessidades de sobrevivência diária do corpo o
faz displicente quanto aos compromissos do ego tanto com a
realidade quanto com as^ exigências pulsionais; por outro, ele
transmite ao ego um ideal de perfeição exato, que encoraja
a exploração e o.domínio do mundo, a base de uma auto-estima
sólida, ao invés de uma tentativa de se refugiar nas ilusões.
Esta “dialética contínua entre ego pulsional e eu narcísico”
explica, entre outras coisas, porque a “pessoa narcísica”, nas
palavras de Grunberger, “é aquela que se ama bastante, mas
também aquela que se ama pouco ou nada”.

O ideal do ego

Minha discussão sobre este assunto se baseia nos seguintes


estudos: Annie Reich, “ Narcissistic Object Choice in Women”,
Journal of the American Psychoanalytic Association, I (1953):
22-44; Samuel Novey, “The Role of the Superego and Ego-
Ideal in Character Formation”, International Journal of Psy­
choanalysis, 36 (1955): 254-259; René Spitz, “On the Genesis
of Superego Components”, Psychoanalitic Study of the Child,
13 (1958): 375-404; Paul Kramer, “Note on One of Preoedipal
Roots of the Superego”, Journal of the American Psychoanaly­
tic Association, 6 (1958): 38-46; Michael Balint, “Primary Nar­
cissism and Primary Love”, Psychoanalytic Quarterly, 29 (1960):
6-43; Joseph Sandler, “ On the Concept of the Superego”, Psy­
choanalytic Study of the Child, 15 (1960): 128-62; Roy Schafer,
“The Loving and Beloved Superego in Freud’s Structural Theo­
ry”, Psychoanalytic Study of the Child, 15 (1960): 163-88; Heinz
Hartmann and Rudolph M. Loewenstein, “Notes on the Supe­
rego”, Psychoanalytic Study of the Child, 17 (1962): 42-81;
Jeanne Lampl-de Groot, “Ego Ideal and Superego”, Psycho­
analytic Study of the Child, 17 (1962): 94-106; Herbert Rosen-
feld, “The Superego and the Ego-Ideal”, International Journal
of Psychoanalysis, 43 (1962): 258-271; “ Superego and Ego
Ideal: A Symposium”, International Journal of Psychoanalysis,
43 (1962): 258-271; Erik H. Erikson, Childhood and Society,
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 269

2.a ed. (Nova Iorque, W. W. Norton, 1963): 261-263 (“ Iden­


tity vs. Role Confusion”); John M. Murray, “The Transforma­
tion of Narcissism into the Ego Ideal”, Bulletin of the Philadel­
phia Association for Psychoanalysis, 13 (1963): 143-145, Joseph
Sandler, Alex Holder, and Dale Meers, “The Ego Ideal and the
Ideal Self”, Psychoanalytic Study of the Child, 18 (1963): 139-
158; Grete L. Bibring, “Some Considerations on the Ego Ideal”,
Journal of-the American Psychoanalytic Association, 12 (1964):
517-521, Helene Deutsch, “Clinical Considerations on the Ego
Ideal”, Journal of the American Psychoanalytic Association, 12
(1964): 512-516; Ives Hendrick, “Narcissism and the Prepu­
berty Ego Ideal”, Journal of the American Psychoanalytic Asso­
ciation, 12 (1964): 522-528; John M. Murray, “Narcissism and
the Ego Ideal”, Jorunal of the American Psychoanalytic Asso­
ciation, 12 (1964): 477-511; Stephen Hammerman, “Concep­
tions of Superego Development”, Journal of the American Psy­
choanalytic Association, 13 (1965): 320-355;. Martin Stein,
“ Current Status of Superego Theory”, Journal of the American
Psychoanalytic Association, 13 (1965): 172-180; Peter Bios,
“ The Function of the Ego Ideal in Adolescence”, Psychoanaly­
tic Study of the Child, 27 (1972): 93-97; George E. Grass e
Isaiah A. Rubin, “Sublimation”, Psychoanalytic Study of the
Child, 27 (1972): 334-359; e Esther Menaker, “The Ego-Ideal:
An Aspect of Narcisism”, The Narcissistic Condition, ed. de
Marie Coleman Nelson (Nova Iorque, Human Sciences Press,
1977): 248-264. As contribuições de Janine Chasseguet-Smirgel
incluem: “ Perversion, Idealization and Sublimation”, Interna­
tional Journal of Psychoanalysis, 55 (1974): 349-357; “Some
Thoughts on the Ego Ideal: A Contribution to the Study of the
‘Illness of Ideality’ ”, Psychoanalytic Quarterly, 45 (1976): 345-
373; e “Freud and Female Sexuality”, International Journal of
Psychoanalysis, 57 (1976): 257-286. Esses ensaios, de diferentes
formas, servem como base de seu estudo L'Idéal du Moi: Essai
Psychoanalytique sur la “Maladie d'idéalité” (Paris, Tchou,
1975). Uma tradução inglesa desta obra será publicada pela
Free Association Books (Londres) e pela W. W. Norton em
1985.

A infância numa cultura narcisista

As observações de Bruno Bettelheim sobre a ameaça de


deserção e sobre a revolta pedagógica contra os contos de fadas
provêm de The Uses of Enchantment: The Meaning and Impor-
270 O MÍNIMO EU

tance of Fairy Tales (Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1976).


Os estudos recentes sobre a infância incluem Marie Winn, Chil­
dren without Childhood (Nova Iorque, Pantheon, 1983); Vance
Packard, Our Endangered Children: Growing Up in a Chan­
ging World (Boston, Little, Brown, 1983); e Valerie Polakow
Suransky, The Erosion of Childhood (Chicago, University of
Chicago Press, 1982). O material psicanalítico, neste capítulo,
vem dos estudos de Joyce McDougall, Annie Reich e Janine
Chasseguet-Smirgel (“Some Thoughts on the Ego Ideal”) já
citados. Tratei da transformação da família na sociedade indus­
trial avançada mais detalhadamente em Haven in a Heartless
World: The Family Besieged e The Culture of Narcissism.
Sobre a alta incidência do incesto, ver Joel Greenberg,
“ Incest: Out of Hiding”, Science News, 117 (5.4.1980): 218-
220; sobre o movimento para enfraquecer o tabu do incesto,
ver Benjamin DeMott, “The Pro-Incest Lobby”, Psychology
Today, 13 (março 1980): 11-16.

A POLÍTICA DA PSIQUE
O partido do superego

Devo, mais uma vez, advertir o leitor de que as três posi­


ções que tentei caracterizar nos dois últimos capítulos deste
estudo são tipos ideais. Não serão encontradas, nesta forma um
tanto quanto estilizada, em obras de qualquer outro autor: tam­
pouco aparecerão sob os títulos que lhes designei. Ao descrever
o partido do superego, tive em mente principalmente as obras
de Lionel Trilling, Beyond Culture (Nova Iorque, Viking, 1965)
e Sincerity and Authenticity (Cambridge, Harvard University
Press, 1972); a de Daniel Bell, The Cultural Contradictions of
Capitalism (Nova Iorque, Basic Books, 1976); e as de Philip
Rieff, The Triumph of the Therapeutic (Nova Iorque, Harper
and Row, 1966), e Fellow-Teachers (Nova Iorque, Harper and
Row, 1973). Ocorre-me que meu próprio livro, The Culture of
Narcissism, poderia ser facilmente, ou erroneamente, lido como
uma defesa desta posição. Embora ligue o narcisismo na cultura
contemporânea menos ao declínio do superego que a um supe­
rego arcaico, o livro não é suficientemente crítico quanto aos
controles do superego. O mesmo vale para o ensaio de Henry
Lowenfeld e Yela Lowenfeld, “Our Permissive Society and ihe
Superego”, em Psychoanalytic Quarterly, 39 (1970): 590-607,
e para o capítulo de Arnold Rogow, “The Decline of the Su-
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 271

perego”, em The Dying of the Light (Nova Iorque, Putnam’s,


1975).

O partido do ego
O comentário de Parsons sobre a “produção de personali­
dade” vem de seu ensaio “The Link between Character and
Society” (1961), em Social Structure and Personality (Nova
Iorque, Free Press, 1964). A idéia de John Dewey sobre a rela­
ção entre “método científico” e educação liberal é exposta sus-
cintamente num ensaio antigo, “Science as Subject-Matter and
as Method”, em Science, 31 (28.1.1910): 121-127. Para argu­
mentos similares, ver Thorstein Veblen, “The Place of Science
in Modern Civilization”, em American Journal of Sociology, 11
(1906): 585-609, e Karl Mannhein, “The Democratization of
Culture” (1933), em From Karl Mannhein, ed. de Kurt H. Wolff
(Nova Iorque, Oxford University Press, 1971): 271-346. O tra­
balho de Lawrence Kohlberg oferece um exemplo mais recente
da filosofia liberal de educação: ver seu “Development of Moral
Character and Moral Ideology”, em Review of Child Develop­
ment Research, ed. de Martin L. Hoffman e Louis W. Hoffman
(Nova Iorque, Russel Sage, 1964), 1: 383-431, “The Adolescent
as a Philosopher: The Discovery of the Self in a Postconven-
tional World”, em Twelve to Sixteen: Early Adolescence, ed.
de Jerome Kagan e Robert Coles (Nova Iorque, W. W. Norton,
1973); e “Moral Development and the Education of Adolescents”,
em Adolescents and the American High Shcool, ed. de R. F.
Purnell (Nova Iorque, Holt, Rinehart, and Wiston, 1970). Kohl­
berg e seus seguidores, notadamente Carol Gilligan, assumem a
posição de que o pensamento claro sobre questões morais é mais
importante do que nunca numa sociedade onde os reforços con­
vencionais de conduta moral se relaxaram. Em tal sociedade, eles
argumentam, a família e a escola tém que assumir a tarefa de
formar personalidades saudáveis e bem ajustadas bem. como per­
sonalidades moralmente esclarecidas. Eles supõem que a “matu­
ridade moral” — uma compreensão intelectual de questões mo­
rais, uma passagem bem-sucedida através dos vários “ estágios
do desenvolvimento moral” — leva à boa conduta. Esta suposi­
ção é, obviamente, o elo mais fraco da corrente de argumentação
liberal. Conforme sempre mostraram os conservadores, distin­
guir o bem do mal não significa necessariamente fazer o bem.
Esta é exatamente a razão porque o conhecimento moral deve,
na visão deles, ser reforçado pelas sanções emocionais de ver­
gonha e culpa. Para os liberais, no entanto, vergonha e culpa
272 O MÍNIMO EU

são profundamente irracionais e culturalmente retrógadas: relí­


quias desgastadas de nosso passado de trevas.
Minha análise das origens no século XIX da ética liberal
moderna se apoia em Jacob Abbott, Gentle Measures in the
Management of the Young (Nova Iorque, Harper, 1982), e em
vários outros tratados sobre educação de crianças, disciplina e
castigo: Theodore Dwight Jr., The Father’s Book, 2.a ed. (Spring-
field, Massachusetts, Merriam, 1834); Artemus B. Muzzey, The
Fireside: And Aid to Parents (Boston, Crosby and Nichoes, 1856);
William A. Alcott, The Young Wife (Boston, George W. Light,
1837); e Lydia Maria Child, The Mother’s Book (Nova Iorque,
C. S. Francis, 1844), dentre outros. Ver também Anne L. Kuhn,
The Mother’s Role in Childhood Education: New England Con­
cepts (New Haven, Yale University Press, 1947), e Peter Slater,
Children in the New England Mind (Hamden, Connecticut,
Archon Books, 1977). As autoridades em castigo do século XIX
algumas vezes confundiam a questão dos castigos vingativos,
como Abbott os denomina, com a questão dos castigos corporais
(muitos historiadores o fazem hoje). Aqueles que não percebe­
ram a distinção entre vingança e justiça terapêutica acolheram
Abbott como um aliado na sua campanha contra a nova “indul­
gência”, porque ele não se opunha ao castigo corporal em si.
Na década de 1840, a oposição de Horace Mann ao castigo cor­
poral em sala de aula encontrou resistência por parte de um
grupo de professores de Boston, que citou esta questão, ao
lado de outras, na sua tentativa de destituir Mann do cargo de
delegado de Educação de Massachusetts. Mann fundamentava
sua condenação do castigo corporal no fato de que ele invocava
não o arrependimento ou espírito de cooperação, mas o medo,
“uma paixão insana e degradante”. Os professores argumenta­
vam que a política de Mann estava mimando a disciplina em
sala de aula. Como apoio à sua posição, citavam as obras de
Abbott, que consideravam — como muitos historiadores hoje
— um clássico em questões de disciplina. Um estudo mais apro­
fundado da posição de Abbott teria dissipado de imediato esta
impressão. Abbott se recusava a se deixar entreter pela questão
específica do castigo corporal. Adotava o ponto de vista comum
de que ele deveria ser usado apenas como último recurso. Mas
o ponto importante, para ele, era que os castigos corporais, tais
corno os outros castigos, deveriam ser administrados em inte­
resse da correção.
“Moral Argument against Calvinism”, de William Ellery
Channing, pode ser encontrado em sua obra Works (Boston,
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 273

George C. Charming, 1849) 1: 217-241. Sobre a declínio do


Calvinismo, ver também Daniel Walker Howe, “The Decline of
Calvinism”, em Comparative Studies in Society and History, 14
(1972): 306-327; Ann Douglas, The Feminization of American
Culture (Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1977); e Joseph Ha-
routunian, Piety vs. Moralism: The Passing of New England
Theology (Nova Iorque, Henry Holt, 1932), ainda hoje o melhor
estudo sobre este assunto.
Sobre a americanização da psicanálise, ver Nathan G. Hale
Jr., Freud and the Americans: The Beginnings of Psychoanalysis
in the United States, 1876-1917 (Nova Iorque, Oxford Univer­
sity Press, 1971), que contém as citações de Lay, Holt, Cary e
Eastman. Sobre Adler, ver The Individual Psychology of Alfred
Adler: A Systematic Presentation in Selections from his Writings,
ed. de Heinz L. Ausbacher e Rowena R. Ausbacher (Nova
Iorque, Basic Book, 1956); sobre Jung, sua obra Memories,
Dreams, Reflections, trad, de Richard Winston e Clara Winston
(Nova Iorque, Pantheon, 1963); sobre Sullivan, sua Interperso­
nal Theory of Psychiatry (Nova Iorque, W. W. Norton, 1953).
A referência de Freud ao “novo sistema ético-religioso” de Jung
aparece no seu artigo “On the History of the Psycho-analytic
Movement” (1914), em Standard Edition 14: 7-66.
Os expoentes da abordagem não-psicanalítica da psicote-
rapia incluem: Eric Berne, Transactional Analysis in Psychothe­
rapy (Nova Iorque, Grove Press, 1961) e Games People Play
(Nova Iorque, Grove Press, 1964); William Glasser, Reality
Therapy (Nova Iorque, Harper and Row, 1965) e Schools wi­
thout Failure (Nova Iorque, Harper and Row, 1965); Albert
Ellis, Reason and Emotion in Psychotherapy (Nova Iorque, Lyle
Stuart, 1962( e The American Sexual Tragedy (Nova Iorque,
Lyle Stuart, 1959); Thomas S. Szasz, The Mith of Mental Illness
(Nova Iorque, Harper and Row, 1961); Charlotte Biihler, Values
in Psychotherapy (Glencoe, Illinois, Free Press, 1962); Abraham
Maslow, Toward a Psychology of Being (Princeton, Nova Jersey,

Í
Van Nostrand, 1962); Rollo May, Existencial Psychology (Nova
Iorque, Random House, 1961) e Love and Will (Nova Iorque,
W. W. Norton, 1969); George Alexander Kelly, The Psychology
of Personal Constructs (Nova Iorque, W. W. Norton, 1955);
A. J. Sutich e M. A. Vich, Readings in Humanistic Psychology
(Nova Iorque, Free Press* 1969); George R. Bach e Peter Wyden,
The Intimate Enemy: How to Fight Fair in Love and Marriage
(Nova Iorque, William Morrow, 1969); George R. Bach e Herb
Goldberg, Creative Aggression (Garden City, Nova Iorque, Dou-
274 O MÍNIMO EU

bleday, 1974); A. J. Sutich, “The Growth-Experience and the


Growth-Centered Attitude”, em Journal of Psychology, 28
(1949): 293-301; e Ernest Lawrence Rossi, “ Game and Growth:
Two Dimensions of Our Psychotherapeutic Zeitgeist”, em Sutich
e Vich, Readings in Humanistic Psychology. A versão de Carl
Rogers da psicologia humanística está delineada no seu livro
On Becoming a Person (Boston, Houghton Mifflin, 1961), e na
biografia veneradora de Howard Kirschenbaum, On Becoming
Carl Rogers (Nova Iorque, Delacorte Press, 1979), que relata o
debate entre Rogers e B. F. Skinner no encontro anual da Ame­
rican Psychological Association, em 1956. Sobre Skinner, ver
suas obras, Science and Human Behavior (Nova Iorque, Mac­
Millan, 1953), Walden Two (Nova Iorque, MacMillan, 1948),
Beyond Freedom and Dignity (Nova Iorque, Alfred A. Knopf,
1971); e sua autobiografia, The Shaping of a Behaviorist (Nova
Iorque, Alfred A. Knopf, 1979).
A melhor introdução à psicologia do ego que consegui en­
contrar é Ego Psychology: Theory and Practice, de Gertrude
Blanck e Rubin Blanck (Nova Iorque, Columbia University
Press, 1974); ver também Marshall Edelson; Ego Psychology,
Group Dynamics, and the Therapeutic Community (Nova Iorque,
Grune and Stratton, 1964). Minha discussão sobre Heinz Hart­
mann se baseia principalmente em duas obras: Ego Psychology
and the Problems of Adaptation (Nova Iorque, International
Universities Press, 1958), e Psychoanalysis and Moral Values
(Nova Iorque, International Universities Press, 1960); ver tam­
bém seus Essays on Ego Psychology: Selected Problems in Psy­
choanalytic Theory (Nova Iorque, International Universities
Press, 1964). Fred Weinstein e Gerald W. Platt tentam integrar
psicologia do ego e ciência social em Psychoanalytic Sociology
(Baltimore, John Hopkins University Press, 1973). Em Ego and
Instinct: The Psychoanalytic View of Human Nature-Revised
(Nova Iorque, Random House, 1970), Daniel Yankelovich e
William Barrett tentam, de forma semelhante, “romper as bar­
reiras (entre psicanálise) e outras disciplinas”, esperando com
isto revitalizar o liberalismo e ir contra a tendência à engenharia
comportamental. “Nos anos futuros”, escrevem, “necessitaremos
de novos indicadores para substituir aquelas ideologias ‘liberais’
que estejam ligadas a uma fé irracional no preservacionismo, na
racionalização, na tecnologia e no planejamento social unilateral.
A utopia Walden II de B. F. Skinner — uma extensão lógica
de sua fé — é um pesadelo moderno que se origina diretamente
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 275

de uma parte da antiga filosofia. É a reductio ad absurdum do


velho liberalismo que tantos estudantes hoje rejeitam” .

O ASSALTO IDEOLÓGICO AO EGO

O esgotamento das ideologias no pós-guerra


e a ascensão da política cultural

As reminiscências de Dorothy Dinnerstein sobre a atmosfera


do pós-guerra aparecem em The Mermaid and the Minotaur:
Sexual Arrangements and the Human Malaise (Nova Iorque,
Harper and Row, 1976). Norman O. Brown inicia Life against
Death': The Psychoanalytic Meaning of History (Middletown,
Connecticut, Wesleyan University Press, 1959) com uma dis­
cussão sobre a “'aposentadoria de categorias políticas”. Sua argu­
mentação de que “a teoria social contemporânea, tanto capita­
lista quanto socialista, nada tem a dizer sobre o real problema
da época” serviu também, de forma um pouco modificada, como
ponto de partida para muitas feministas. Assim, um manifesto
emitido pela Brigada Stanton-Anthony (1969) tomou a posição
de que o capitalismo não é a causa de opressão da mulher e o
socialismo não porá um fim a ela. Em outras palavras, o poder
mesmo, e não a distribuição desigual de poder, é o “real pro­
blema da época” (sobre este manifesto e o manifesto dos Meias
Vermelhas de São Francisco, ver Roberta Salper, “The Deve­
lopment of the American Women’s Liberation Movement, 1967-
1971”, em Female Liberation: History and Current Politics, ed.
de Roberta Salper (Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1972), pp.
169-184. Foi a crença na patologia do poder, da dominação, da
intencionalidade, e da “razão instrumental” que distinguiu a
nova esquerda da antiga e deu .ao movimento a unidade e a
coerência teórica, sejam quais forem elas, que alcançaram.
Não que uma concepção cultural de política tenha, alguma
vez, dominado a nova esquerda. As obras de Lenin e Marx logo
suplementaram e até substituíram as obras nas quais a nova
esquerda tinha originalmente se inspirado: Life against Death,
de Brown; Eros and Civilization, de Marcuse (Boston, Beacon
Press, 1955); The Sane Society, de Erich Fromm (Nova Iorque,
Holt, Rinehart and Winston, 1955); Growing Up Absurd, de
Paul Goodman (Nova Iorque, Random House, 1960). A amorfia
da “contracultura” criou uma necessidade de rigor organizacio­
nal e intelectual avidamente explorada pelas facções e ideolo­
gias socialistas mais convencionais. Muitos socialistas repudia-
276 O MÍNIMO EU

ram a contracultura e seu ramo, o feminismo radical, como


expressões de “subjetividade burguesa”, carentes de “potencial
revolucionário” — classe média na composição, preocupadas
apenas com questões particulares, e, nas palavras de Bernardine
Dohrn, desesperadamente reformistas em sua fascinação pela
“liberação pessoal” e em. sua “evasão da prática” (palavras ci­
tadas por Kathy McAfee e Myrna Wood, em “Bread and Roses”
(1969). Female Liberation, ed. de Saiper). Quando as mulheres,
pela primeira vez, levantaram a questão do “chauvinismo mas­
culino” no SDS,* foram lembradas de que “as mulheres não
são oprimidas como classe”, e foram aconselhadas a se organi­
zarem em torno de questões de trabalho: igual pagamento para
mulheres trabalhadoras empregadas em universidades, direitos
iguais nas universidades onde mulheres trabalhadoras eram edu­
cadas (Saiper, “The Development of the American Women’s
Liberation Movement”). Marlene Dixon queixou-se, em 1972,
de que o “misticismo da irmandade feminina” ignorava “a luta
de classe, a nacionalização da medicina, a abolição do bem-estar
social, e a destruição final do imperialismo americano” e, se
preocupava com questões “subjetivas”, “reformistas”, que inte­
ressavam apenas a mulheres ricas o suficiente para se preocupa­
rem “com o espírito em vez do estômago” (Marlene Dixon,
“Why Women’s Liberation?”, em Female Liberation, ed. de
Saiper, pp. 184-200). Na mesma linha de raciocínio, Karen
Frankel argumentou que as demandadas feministas de “controle
do próprio corpo” renderam-se, de “forma totalmente idealista
e subjetiva”, à “subjetividade da classe média” (Celestina Ware,
Woman Power: The Movement for Women’s Liberation (Nova
Iorque, Tower Publications, 1970)).
Entretanto, tal retórica não podia silenciar o radicalismo
cultural, porque ele fornecia uma explicação — por experimen­
tal, confusa e contraditória que tenha sido — para a devastação
ambiental, cultural e ideológica inerente à organização industrial
em larga escala e à tecnologia de alto nível. Os adeptos de uma
‘“revolução cultural” trataram de questões ignoradas pela antiga
esquerda: os limites da razão, as origens inconscientes do desejo
de dominação, a corporificação deste desejo na tecnologia indus­
trial. Além disso, o radicalismo cultural, na sua forma femi­
nista, se dirigiu ao senso concreto nas mulheres, de dano e
injustiça, em vez de exortá-las a se juntar a uma hipotética

(*) SDS: Students for a Democratic Society, movimento político


bastante influente no meio universitário norte-americano à época das
lutas contra a guerra do Vietnã. (N.T.)
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 277

revolução liderada pelo proletariado. Um livro como Dialect of


Sex: The Case for Feminist Revolution, de Shulamith Firestone
(Nova Iorque, William Morrow, 1970), mostra quão proximo
as preocupações das feministas radicais estiveram, no final das
décadas de 60 e 70, às preocupações de Marcuse, Brown, R. D.
Laing, e outros teóricos da revolução cultural. Mostra, também,
quão facilmente essas preocupações podiam ser reduzidas a
slogans e clichês. Como muitos outros teóricos associados à nova
esquerda, Firestone tentou “correlacionar o melhor de Engels e
Marx. . . com o melhor de Freud”. Tal síntese, argumenta, fez-se
necessária devido ao fracasso da antiga esquerda em estudar a
“psicologia do poder”, em localizar as origens da “estrutura do
sistema econômico de classe no sistema sexual de classe, modelo
para todos os outros sistemas exploradores”, ou em concluir que
apenas uma revolução sexual, que incorporasse e transcendesse
a revolução socialista, poderia pôr um fim não só ao “privilégio
masculino”, como também a todas as outras formas de explora­
ção, inclusive à “própria discriminação sexual”. No entender de
Firestone, a revolução sexual abolirá a repressão e reconciliará
a tecnologia avançada com o gosto pela beleza. Na utopia femi­
nista, “controle e retardamento das satisfações do ‘id’ pelo ‘ego’
serão desnecessárias; o id pode viver livremente”.
A condenação de Lewis Mumford a esta “subjetividade con­
fusa” aparece na The Pentagon of Power (Nova Iorque, Har-
court Brace Jovanovich, 1970), cap. 13; ver também Russel Ja­
coby, “The Politics of Subjectivity”, em Social Amnesia: A Cri­
tique of Conformist Psychology from Adler to Laing (Boston,
Beacon Press, 1975): 101-118.

A esquerda neofreudiana
As principais exposições sobre a “escola cultural” dc revi­
sionismo psicanalítico são: Wilhelm Reich, Character-Analysis,
3.a ed., trad, de Theodore P. Wolfe (Nova Iorque, Farrar, Straus,
1949) e The Sexual Revolution, trad, de Theodore P. Wolfe
(Nova Iorque, Farrar, Straus, and Cudahy, 1962); Erich Fromm,
The Crisis of Psychoanalysis (Nova Iorque, Holt, Rinehart and
Winston, 1970), que inclui seu importante ensaio “The Method
and Function of an Analytic Social Psychology” (1932), uma
das primeiras tentativas de conciliar Marx e Freud, e o ponto
de partida para muitas tentativas subseqtientes; Karen Horney,
The Neurotic Personality of Our Time (Nova Iorque, W. W.
Norton, 1937), e Feminine Psychology (Nova Iorque, W. W.
Norton, 1967), uma coletânea que inclui algumas das primeiras
278 O MÍNIMO EU

tentativas de combinar psicanálise com feminismo, notadamente


seu artigo “Flight from Womanhood” (1926); Clara Thompson,
Psychoanalysis: Evolution and Development (Nova Iorque, Her­
mitage House, 1950) e The Role of Women in This Culture
(1941), em A Study of Interpersonal Relations: New Contribu­
tions to Psychiatry, ed. de Patrick Mullahf, (Nova Iorque, Grove
Press, 1957); e Gregory Zilboorg, “Masculine and Feminine:
Some Biological and Cultural Aspects” (1944) em Psychoanaly­
sis and Women, ed. de Jean Baker Miller (Nova Iorque, Brunner-
Mazel, 1973), uma antologia que contém vários outros ensaios
de revisionistas neofreudianos.
“ Critique of Neo-Freudian Revisionism”, de Herbert Mar­
cuse, em Eros and Civilization (Boston, Beacon Press, 1955), é
um artigo de pouca valia, pelas razões já explicadas; ver também
sua discussão com Fromm, Dissent, 2 (outono .1955): 342-349
e Dissent, 3 (inverno 1956): 79-83; Marcuse tem mais coisas
do que pensa em comum com Fromm e, especialmente, com
Wilhelm Reich, cuja simplória teoria da liberação sexual ele
insenta amplamente em suas críticas severas a outros neofreu­
dianos. Apesar de sua tentativa de confrontar o profundo pessi­
mismo do trabalho final de Freud, a interpretação de Marcuse
da teoria psicanalítica, tal como a dos neofreudianos, se baseia
quase inteiramente à obra inicial de Freud, na qual o sofrimento
mental se origina da submissão do princípio de prazer a uma
realidade opressiva, imposta externamente. Apesar de sua con­
denação à “filosofia do progresso moralista” dos neofreudianos,
Marcuse partilha com eles a fé — parte do legado intelectual
do movimento socialista do século XIX e do Iluminismo em
geral — de que o progresso da razão e da tecnologia, uma vez
libertos das coações capitalistas, tornarão a vida, no final, praze­
rosa e indolor. Eros and Civilization conclui com a piedosa espe­
rança de que até a morte, como o trabalho e outras necessi­
dades”, pode ser transformada em algo racional e indolor.

Marcuse, Brown e as feministas freudianas


Minha discussão sobre Marcuse baseia-se principalmente em
Eros and Civilization, obra já citada; em An Essay on Liberation
(Boston, Beacon Press, 1969), e em Five Lectures: Psychoana­
lysis, Politics, and Utopia (Boston, Beacon Press, 1970), que
inclui “The Obsolescence of the Freudian Concept of Man”
(1963). Minha discussão sobre Brown baseia-se inteiramente em
Life against Death; não tentei acompanhar as obras crescente­
mente místicas, enigmáticas e aforísticas da última fase, Love's
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 279

Body (Nova Iorque, Random House, 1966) e Closing Time (Nova


Iorque, Random House, 1973). O ponto central do trabalho
final de Brown, como eu o entendo — que a distinção entre eu
interior e mundo exterior, entre sujeito e objeto, deve ser “ supe­
rada”, conforme escreve em Love’s Body —, já está implícito em
Life against Death. Ver também a discussão entre Marcuse e
Brown em Commentary, 43, de fevereiro (pp. 71-75) e março
(pp. 83-84) de 1967, no curso da qual Brown declara: “Deve-
se dizer à próxima geração que a luta real não é a luta política,
e sim acabar com a política”. Uma vez que nosso assunto aqui
é política cultural, não há razão para tratarmos de obras que
rejeitam a política, mesmo que a política seja aquela que busca
pôr um fim ao poder e à denominação.
Minha abordagem do feminismo freudiano recente é tam­
bém seletiva. Não considero a obra de Juliet Mitchell, por exem­
plo, uma vez que ela também rejeita a política cultural, por
razões opostas às de Brown. Enquanto Brown não vê absoluta­
mente valor na política, Mitchell se apega à concepção leninista
de política, apesar de seu interesse por Freud e Lacan, e de sua
esperança de que a psicanálise venha a se tornar uma “ciência”
(Psychoanalysis and Feminism (Nova Iorque, Pantheon, 1974)).
Ela não se interessa pela possibilidade de o feminismo poder
vir a substituir a velha agenda de poder e conquista por toda
uma nova agenda política. Ela admite que o recente renasci­
mento feminista comprova a “inadequação da teoria socialista
clássica”, mas acha que esta inadequação pode ser de algum
modo corrigida por uma “análise socialista científica de nossa
opressão”, conforme expõe em Woman’s State (Nova Iorque,
Pantheon, 1971). Ela critica as feministas que tentam “fazer da
experiência concreta de opressão uma ‘teoria”’. Citando Lenin
quanto à impossibilidade de uma “passagem intermediária” entre
“ideologia burguesa e socialista”, ela insiste que as feministas
que se recusam a se tornar socialistas apoiam o capitalismo por
omissão. Grupos oprimidos, explica, têm direito à “sua cons­
ciência oprimida”, mas esta consciência só se torna revolucio­
nária quando assimilada ao movimento socialista; em outras
palavras, apenas quando as mulheres oprimidas, trabalhadores
e minorias raciais consentirem em serem liderados por creditados
intelectuais socialistas. Mitchell aceita como dogma o dito de
Lenin: “Menosprezar de qualquer forma a ideologia socialista,
desviar-se dela por mínimo que seja, significa fortalecer a ideo^
logia burguesa”.
Segundo Mitchell, o confinamento das mulheres na família
280 O MÍNIMO EU

as torna tacanhas, ciumentas, dependentes, passivas e politica­


mente conservadoras. Estas qualidades derivam não do desejo
dos homens de dominar as mulheres, nem da difamação con­
vencional do sexo feminino, mas das “condições objetivas da
mulher dentro da família”. As mulheres, como os camponeses,
habitam “um mundo pequeno e retrógrado” e, “como uma força
revolucionária potencial”, apresentam problemas semelhantes.
Seu atraso se revela, lamentavelmente, numa desconfiança para
com os líderes e para com o princípio da liderança. Mitchell
acha que a “recusa em permitir o surgimento de líderes” no
movimento das mulheres é “perigosa porque, não- tendo ainda
qualquer base teórico-científica através da qual entender a opres­
são da mulher, ela nos deixa vulnerável ao retorno de nossas
próprias características reprimidas . . . Não querer agir como
‘homens’ não implica a necessidade de agirmos como ‘mulheres’.
A ascensão do oprimido não deve ser a glorificação das caracte­
rísticas do oprimido”. Segundo Mitchell, as mulheres precisam
renunciar às “virtudes femininas” e aprender autodefesa e agres­
são. Em outras palavras, elas precisam se tornar tão implacáveis,
cruéis e dominadoras quanto os homens.
Como um exemplo clássico do pensamento “revolucionário”
— que hoje cada vez mais se confunde com o pensamento buro­
crático — , o argumento de Mitchell tem seu fascínio próprio,
porém nada tem em comum com o tipo de feminismo que esta­
mos considerando aqui, que se origina da desconfiança não ape­
nas para com a liderança revolucionária, mas para com toda a
tradição marxista, com a qual o “centralismo democrático” sem­
pre foi intimamente associado. Houve, sem dúvida, muita insen­
satez na oposição da nova esquerda a qualquer forma de lide­
rança. Agora que muitas atitudes anteriormente associadas à
contracultura se propagaram pela sociedade americana como um
todo, a pretensão de absoluta igualdade em grupos pequenos e
a transformação dos líderes em “pessoas-forte” ou “facilitadores”
se tornou não só tola, como enjoativa e sentimental, porque este
simbolismo pseudodemocrático serve para dar uma aparência de
democracia participativa a instituições hierarquicamente organi­
zadas. Porém, nada há de sentimental na idéia de democracia
participativa propriamente dita. Esta idéia foi a mais importante
contribuição da esquerda para a vida política, e a tentativa de
reviver o socialismo “científico”, como corretivo para a anarquia
e o irracionalismo da nova esquerda, é um desenvolvimento
agourento, uma repressão a dogmas cuja “ aposentadoria” a ge­
ração anterior já conheceu amplamente.
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 28]

Das obras feministas aqui consideradas, foi discutida com


maior profundidade a de Dinnerstein, Mermaid and the Mino­
taur, já citada. As outras são: Nancy Chodorow, The Reproduc­
tion of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender
(Berkeley, University of California Press, 1978); Stephanie Engel,
“Feminity as Tragedy: Reexaming the ‘New Narcissism’, Socia­
list Review, n.Q53 (set.-out. 1980): 77-104; e Jessica Benjamin,
“Authority and the Family Revisited: Or, a World without
Fathers”, em New German Critique, n.° 13 (outono 1978): 35-57.
Ver também Richard Wolheim, Psychoanalysis and Feminism”,
em New Left Review, n.° 93 (set.-out. 1975): 61-69,, juntamente
com as réplicas de Nancy Chodorow e Eli Zaretsky, em New
Left Review, n.° 96 (março-abril 1976): 115-118, e o Grupo de
Estudo de Lacan em New Left Review, n.° 97 (maio- junho
1976): 106-109; Jessica Benjamin, “The End of Internalization:
Adorno’s Social Psychology”, Telos, n.° 32 (verão 1977): 42-64;
Nancy Chodorow, “Feminism and Difference: Gender, Relation
and Difference in Psychoanalytic Perspective”, em Socialist Re­
view, n.° 46 (julho-agosto 1979): 51-69; Eli Zaretsky, “Male
Supremacy and the Unconscious”, em Socialist Revolution, n.os
21-22 (jan. 1975): 7-55; Karen Rotkin e Michael Rotkin, “ Freud:
Rejected, Redeemed, and Rejected”, em Socialist Revolution,
n.° 24 (junho 1975): 105-131; “Women’s Exile: Interview with
Luce Irigaray” em Ideology and Consciousness, 1 (1977): 57-76;
Monique Plaza, ‘“Phallomorphic Power’ and the Psychology of
‘Woman’”, em Ideology and Consciousness, 4 (1978): 4-36; e,
sobre a esquerda freudiana em geral, David Fernbach, “ Sexual
Oppression and Political Practice”, em New Left Review, n.° 64
(nov.-dez. 1970): 87-96; Igor Caruso, “Psychoanalysis and So­
ciety” , em New Left Review, n.° 32 (julho-agosto 1965): 24-31;
Richard Lichtman, “Marx and Freud”, em Socialist Revolution
n.° 30 (out.-dez. 1976): 3-55, n.° 33 (maio-junho 1977): 59-84,
e n.° 36 (nov.-dez. 1977): 37-78; Jerry Cohen, “Critical Theory:
The Philosophy of Marcuse”, em New Left Review, n.° 57 (set.-
out. 1969): 35-51; Morton Schoolman, The Imaginary Witness:
The Critical Theory of Hebert Marcuse (Nova Iorque, Free Press,
1980); Paul A. Robinson, The Freudian Left: Wilhelm Reich,
Géza Róhein, Herbert Marcuse (Nova Iorque, Harper and Row,
1969); e André Stéphane, L’Univers Contestationnaire (Paris,
Payot, 1969), um estudo psicanalitico do Movimento de Maio
que também considera a influência da teoria psicanalitica no
movimento e discute autores, tais como Marcuse. A esquerda
freudiana na França, com seu retorno ao Freud da primeira
282 O MÍNIMO EU

fase, sua celebração do princípio de prazer, e sua crítica à


“opressão sexual” também foi objeto da análise de Sherry Turkle,
Psychoanalytic Politics: Freud’s French Revolution (Nova Iorque,
Basic Books, 1978); de vários artigos sobre o “Freud francês”,
em Yale French Studies, n.° 48 (1972); de David James Fisher,
“Lacan’s Ambiguous Impact on Contemporary French Psychoa­
nalysis”, em Contempory French Civilization, 6 (outono-inverno
1981-1982): 89-114; e de Maud Mannoni, “ Psychoanalysis and
the May Revolution”, Reflections on the Revolution in France
1968, ed. de Charles Posner (Harmondsworth, Inglaterra, Pen­
guin Books, 1970). Textos representativos incluem: Jacques La­
can, The Language of the Self, trad, de Anthony Wilden (Nova
Iorque, Delta Books, 1975); Gilles Deleuze e Felix Guattari,
Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, trad, de Robert
Hurley e outros (Nova Iorque, Viking, 1977); Louis Althusser,
“Freud and Lacan”, em New Left Review, n.° 55 (maio-junho
1969): 51-65; Luce Irigaray, Spéculum: De VAutre Femme (Pa­
ris, Editions de Minuit, 1974); e Psychanalyse et Politique, ed.
de Armando Verdiglione (Paris, Editions du Seuil, 1974), que
inclui ensaios de Julia Kristeva e Philippe Sollers, dentre outros.
Um dos principais dogmas desenvolvidos por estes movimentos,
já citados em outra referência, afirma que Freud não deveria
jamais ter abandonado sua teoria original de que as crianças
são regularmente seduzidas pelos pais. Quando decidiu que a
sedução acontece apenas nas fantasias da criança, Freud supos­
tamente transferiu dos pais para a criança a responsabilidade
pelo sofrimento psíquico. Segundo Deleuze e Guattari, na reali­
dade, “culpa é uma idéia projetada pelo pai antes de se tornar
um sentimento interior experimentado pelo filho”. “O primeiro
erro da psicanálise é agir como se as coisas começassem com a
criança. Isto leva a psicanálise a desenvolver uma teoria de fan­
tasia absurda, em termos de que o pai, a mãe e suas paixões e
reações reais devam primeiramente ser mal interpretadas como
‘fantasias’ da criança.” Desprezando o revisionismo neofreudiano
e a psicologia do ego, tidos como diluidores de Freud em bene­
fício do “ajustamento” e da “conformidade”, a esquerda psica-
nalítica francesa vai mais além, despindo o pensamento de Freud
de conteúdo crítico. A ênfase nas “ações reais” representa um
retorno à psicologia pré-freudiana.
Sobre outras tentativas de reviver a teoria da sedução —
que recentemente passou a ser atraente, como já se observou,
porque se conforma intimamente à equação entre individuali­
dade e vitimação —, ver o ensaio de duas partes de Janet Malcon
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 283

(New Yorker, 59 (5.12.1983): 59-152, e 59 (12.12.1983): 60-


119, sobre Jeffrey Masson e Peter Swales, dois aventureiros que
tentaram, separadamente, fazer carreira expondo a desonesti­
dade e a covardia intelectual de Freud ao suprimir os fatos
chocantes da sedução paterna.
Sobre a escola de Frankfurt, a crítica à razão instrumental,
e a teoria da “sociedade sem pai”, ver Max Horkheimer e Theo­
dor W. Adorno, Dialectic of Enlightenment; Max Horkheimer,
The Eclipse of Reason (Nova Iorque, Oxford University Press,
1947); Max Horkheimer, “Authority and the Family Today”,
em The Family: Its Function and Destiny, ed. de Ruth Nanda
Anshen (Nova Iorque, Harper and Row, 1949): 359-374; e
Alexander Mitscherlich, Society Without the Father, trad, de
Eric Mosbacher (Nova Iorque, Schocken Books, 1970).
Freud propôs a teoria da horda primitiva em Moses and
Monotheism (1939) Standard Edition, 23: 7-137, o texto freu­
diano preferido por quase todos os comentadores da esquerda,
freqüentemente seguido por Group Psychology and the Analysis
of the Ego (1921), em Standard Edition-,,.18: 65-143. Outro tra­
balho que se presta a uma interpretação “profilática” da psica­
nálise, como assim a denomina Anna Freud em The Ego and
the Mechanisms of Defense (isto é, uma interpretação que dá
ênfase às raízes sociais da neurose e espera arrancá-la através
de políticas sociais esclarecidas) é um ensaio da fase inicial,
“Civilized Sexual Morality and Modern Nervous Illness” (1908),
Standard Edition, 9: 181-204. Aí ele deplora as restrições à
atividade sexual impostas pela cultura classe-média e pergunta
“se nossa moral sexual ‘civilizada’ vale o sacrifício que nos
impõe”. Os vários escritos que se originam da teoria do Nirvana
narcísico são mais ‘desalentadores’, como disse Freud de sua
teoria da pulsão de morte (Beyond the Pleasure Principle). Em
Civilization and its Discontents, ele anunciou sua recusa em
“elevar-se como o profeta perante meus companheiros” com uma
mensagem de esperança e consolação. Em Beyond the Pleasure
Principle, rejeitou a hipótese de um “instinto de perfeição”.

O partido de Narciso
Livros recentes sobre a “liberação masculina” incluem Jack
Nichols, Men’s Liberation: A New Definition of Masculinity
(Nova Iorque, Penguin Books, 1975); Marck Gerzon, A Choice
of Heroes: the Changing Faces of American Manhood (Boston,
Noughton Mifflin, 1982); Herb Goldberg, The New Man: From
Self-Destruction to Self-Care (Nova Iorque, William Morrow,
284 O M ÍN IM O EU

1979); Marc Feigen Fasteau, The Male Machine (Nova Iorque,


MacGraw-FIill, 1974); Warren Farrell, The Liberated Man (Nova
Iorque, Random House 1974); Joseph E. Pleck, The Myth of
Masculinity (Cambridge MIT Press, 1981); Karl Bednarik, The
Male in Crisis, trad, de Helen Sebba (Nova Iorque, Alfred A.
Knopf, 1970); Joe L. Dubbert, A Man’s Place: Masculinity in
Transition (Englewood Cliffs, Nova Jersey, Prentice-Hall, 1979);
Peter Filene, Him/Her/Self (Nova Iorque, Harcourt Brace Jova-
novich, 1975); Hal Lyon, Tenderness Is Strength: From Ma­
chismo to Manhood (Nova Iorque, Harper and Row, 1978) e
Masculine/Feminine, ed. de Betty Roszak e Theodore Roszak
(Nova Iorque, Harper and Row, 1969). Ver também Barbara
Ehernreich, The Hearts of Men: American Dreams and the
Flight from Commitment (Garden City, Nova Iorque, Doubleday,
1983).
Sobre androginia, ver Carolyn G. Heilburn Toward a Re­
cognition of Androgyny (Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1973);
June Singer Androgyny: Toward a New Theory of Sexuality
(Garden City, Nova Iorque, Doubleday, 1976); Beyond Sex-Role
Stereotypes: Readings toward a Psychology of Androgyny ed. de
Alexandra G. Kaplan e Joan P. Bean (Boston, Little, Brown,
1976); Sandra Lipsitz Bem e outros, “Sex Typing and Andro­
gyny: Further Explorations of the Expressive Domain”, em Jour­
nal of Personality and Social Psychology, 34 (1976): 1016-1023;
Barbara Charlesworth Gelpi, “The Politics of Androgyny”,
Women’s Studies, 2 (1974): 151-160; Cynthia Secor, “Andro­
gyny: An Early Appraisal”, Women’s Studies, 2 (1974): 162-169.
Sobre os vínculos entre feminismo, “liberação masculina”
e ecologia, ver Mary Daly, Gyn/Ecology, já citado; Susan Friffin,
Woman and Nature (Nova Iorque, Harper and Row, 1978);
Rosemary Redford Reuther, Ney Woman, New Earth (Nova
Iorque, Seabury, 1975); e Delores La Chappelle, Earth Wisdom
(Los Angeles, Tudor, 1978).
Sobre a pesquisa de uma “ética preservacionista”, ver, entre
um grande número de obras, Aldo Leopold, A Sand County
Almanac (Nova Iorque, Oxford University Press, 1949); Res-
ponsabilities to Future Generations: Environmental Ethics, ed.
de Ernest Partridge (Buffalo, Prometheus Books, 1981); K. S.
Shrader-Frechette, Environmental Ethics (Pacific Grove, Califor­
nia, Boxwood Press, 1981); Science Action Coalition, Environ­
mental Ethics: Choices for Concerned Citizens (Garden City,
Nova Iorque, Doubleday, 1979); Barry Commoner, Science and
Surviral (Nova Iorque, Viking, 1967); Donella H. Meadows e
AGRADECIMENTOS E NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 285

outros, The Limits to Growth (Nova Iorque, New American


Library, 1972); E. F. Schumacher, Small is Beautiful (Nova
Iorque, Harper and Row, 1973); e A Guide for the Perplexed
(Nova Iorque, Harper and Row, 1977); René Dubos, The
Wooing of Earth: New Perspectives on Man’s Use of Nature
(Nova Iorque, Scribner’s, 1980); Kenneth Boulding “The Inter­
play of Technology and Values: The Emerging Superculture”,
em Values and the Future: The Impact of Technological Change
on American Values, ed. de Kurt Baier e Nicholas Rescher (Nova
Iorque, Free Press, 1969). Kai Curry-Lindahl, Conservation for
Survival: An Ecological Strategy (Nova Iorque, William Morrow,
1972); Raymond Dasmann, The Conservation Alternative (Nova
Iorque, Wiley, 1975); Harold W. Helfrich, Agenda for Survival:
The Environmental Crisis (New Haven, Yale University Press,
1970) ; Kimon Valaskasis e outros, The Conserver Society (Nova
Iorque, Harper and Row, 1979); The Ecological Conscience:
Values for Survival, ed. de Robert Disch (Englewood Cliffs,
Nova Jersey, Prentice-Hall, 1970); Anne Chisholm, Philosophers
of the Earth: Conversations with Ecologists (Nova Iorque, Dut­
ton, 1972); Jean Houston, “ Prometheus Rebound: An Inquiry
into Technological Growth and Psychological Change”, Alterna­
tives to Growth: A Search for Sustainable Futures, ed. de Dennis
L. Meadows (Nova Iorque, Ballinger, 1977); Lewis J. Perelman,
The Global Mind: Beyond the Limits of Growth (Nova Iorque,
Mason-Charter, 1976); Garrett Hardin, Exploring New Ethics
for Survival (Nova Iorque, Viking, 1972); Robert Hunter, The
Storming of the Mind (Garden City, Nova Iorque, Doubleday,
1971) ; Ralph Netzner, Maps of Consciousness: I Ching, Tantra,
Tarot, Alchemy, Astrology Actualism (Nova Iorque, Collier
Books, 1971); William Irwin Thompson, At the Edge of History:
Speculations on the Transformation of Culture (Nova Iorque,
Harper and Row, 1979), e The Time Falling Bodies Take to
Light: Mythology, Sexuality, and Origins of Culture (Nova Ior­
que, St. Martin’s Press, 1981); Adam Daniel Finnerty, No More
Plastic Jesus (Nova Iorque, Orbis Books, 1977); Henlee Barnett,
The Church and the Environmental Crisis (Grande Rapids, Mi­
chigan, Eerdmans, 1972); Steven M. Tipton, Getting Saved from
the Sixties: Moral Meaning in Conversion and Cultural Change
(Los Angeles, UCLA Press, 1982); Jeremy Rifkin, The Emerging
Order: God in the Age of Scarcity (Nova Iorque, Putnam’s 1979),
e Entropy: A New World View (Nova Iorque, Viking, 1980);
Theodore Roszak, The Making of a Counter Culture (Garden
City, Nova Iorque, Doubleday, 1969) e Where the Wasteland
286 O M ÍNIM O EU

Ends: Politics and Transcendence in Postindustrial Society (Gar­


den City, Nova Iorque, Doubleday, 1972); Philip Slater, The
Pursuit of Loneliness (Boston, Beacon Press, 1970), e Earthwalk
(Garden City, Nova Iorque, Anchor Press, 1974); Henry Mal­
colm, Generation of Narcissus (Boston, Little Brown, 1971);
Gregory Bateson, Steps Toward an Ecology of Mind (São Fran­
cisco, Chandler, 1972); Murray Bookchin, The Ecology of Free­
dom (Palo Alto, Califórnia, Cheshire Books, 1982); André Gorz,
Ecology as Politics, trad, de Jonathan Cloud e Patsy Vigderman
(Boston, South End Press, 1980); Rudolph Bahro, Socialism and
Survival, trad, de David Fernbach (Londres, Heretic Books,
1982); e os seguintes relatórios sobre o Partido Verde da Ale­
manha Ocidental: Steve Wasserman, “The Greens’ While-Earth
Politics: A Talk with Rudolph Bahro”, Nation, 237 (8.10.1983):
296-299. William Sweet, “ Can Green Grow?”, Progressive, 47
(maio 1983): 26-33; e James M. Markham, “ Germany’s Vola­
tile Greens”, New York Times Magazine, 13.2.1983.

Intencionalidade, natureza e individualidade


Minha discussão de razão prática apoia-se em Jürgen Ha­
bermas, Theory and Practice, trad, de John Viertel (Boston,
Beacon Press, 1973); Hannah Arendt, The Human Condition
(Chicago, University of Chicago Press, 1958); Richard J. Berns­
tein, The Restructuring of Social and Political Theory (Filadél­
fia, University of Pennsylvania Press, 1978); e Alasdair Mac­
Intyre, After Virtue: A Study in Moral Theory (Notre Dame,
Indiana, University of Notre Dame -Press, 1981). Sobre natu­
reza e individualidade, ver Jacques Ellul, The Betrayal of the
West, trad, de Matthew J. O’Connell (Nova Iorque, Seabrury,
1978), sobre a importância da má consciência como condição
de liberdade; e Reinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of
Man (Nova Iorque, Scribner’s, 1964). No prefácio da edição de
1964 deste trabalho (originalmente publicado em 1941), Niebuhr
descreve sucintamente o eu dividido como visto pela tradição
cristã e nota que “a moderna ‘ego-psicologia’ especialmente
como foi elaborada pelo meu amigo Erik Erikson, desenvolveu
esta posição paradoxal do eu cientificamente. Embora Niebuhr
tenha interpretado mal as implicações da psicologia do ego, sua
sugestão de que a psicanálise resgata algumas das percepções
mais profundas da tradição judaico-cristã apóia-se em uma intui­
ção muito sólida.
B IO G R A F IA

Watson Christopher Lasch, professor de história da Universidade


de Rochester, escreveu seis livros, entre eles: The New Radicalism in
America, Haven in a Heartless World, The Family Besieged e The
Culture o f Narcissism.
Na sociedade pós-industrial qualquer ato
ganha dimensões de um exercício de sobre­
vivência. Basta ler as manchetes de jornal
para que o indivíduo perca a confiança no
futuro e se prepare para o pior: Construir
abrigos anti-radioativos ou, o que é mais co­
mum, voltar-se para si próprio e negar qual­
quer compromisso com um mundo estável,

No livro, o narcisismo — este Eu Mínimo


do indivíduo — não é taxado de simples e
mesquinho egoísmo mas analisado como
uma prática para a sobrevivência psíquica
do homem. As estratégias, características e
inseguranças da mentalidade sitiada do Eu
- Mínimo são determinadas e discutidas no
contexto de uma sociedade consumista,
onde a cultura de massa e o narcisismo pro-
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