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Ficha Técnica

Título original: Histórias Secretas de Reis Portugueses


Autor: Alexandre Borges
Design de capa: Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro, Lda.
Revisão: Ayala Monteiro
ISBN: 9789724621326
CASA DAS LETRAS
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O autor escreve segundo a antiga ortografia


Para os meus pais, contadores das primeiras histórias.
Para a Sónia, que, por gostar de as ouvir,
me faz gostar de as contar.
Nota introdutória

Recordo-me de me ter sentido um Philip Roth dos pequeninos quando


esgotou a primeira edição de Histórias Secretas de Reis Portugueses, um
mês depois de colocada à venda.
O livrinho (não é falsa modéstia. Era mesmo pequenino) tinha sido
escrito poucos meses antes, a meias com o Hugo Louro da Rosa, e na
sequência de um outro da mesma colecção, Dez Histórias de Amor em
Portugal (recentemente reeditado pela Casa das Letras). Resultavam
ambos de um convite da Editorial Notícias e da então recém-fundada
Mundo Perfeito, do Tiago Rodrigues.
Estávamos em 2003, o que, a brincar, a brincar, significa que foi há já
nove anos, vai para dez. A História não era a minha especialidade –
continua a não ser –, mas contar histórias, gosto de pensar, sim. Por isso,
acordámos que nem um nem outro livro seriam escrupulosas leituras da
realidade factual; antes um compromisso entre a verdade conhecida e
alguma liberdade poética que a não pusesse em causa e que, no fundo,
incidia em zonas que ninguém tinha como conhecer (se chovia ou fazia sol
quando o jovem Afonso Henriques se armou cavaleiro; se Dom João VI
vasculhou os bolsos à procura de comida antes de decidir o que fazer à
desalmada mulher com que casara, etc). Eram livros sem outra pretensão
que não a de levar, em tom ligeiro, um pouco da nossa História a quem
não a conhecesse.
A título pessoal, serviram de estreia no mercado editorial. Já antes tivera
o privilégio de sair numa antologia de novos poetas portugueses publicada
no México, uma experiência encantadora e uma óptima história para
contar em jantares, mas, convenhamos, com pouco impacto nesta margem
literária do Atlântico.
Passaram quase dez anos. Publiquei entretanto Heartbreak Hotel
(poesia, Livramento) e Todas as Viúvas de Lisboa (romance, Quetzal
Editores). Não contava regressar às Histórias Secretas de Reis
Portugueses quando o telefone tocou com um convite a isso mesmo, em
edição revista e aumentada. E ainda que não fosse parte do ténue plano
que traçara para esta espécie aparentada de carreira literária, a ideia fazia
sentido como acerto de contas entre o passado de há dez anos e o agora.
Retomar esse livrinho perdido nos escaparates de História, e que tivera
boa aceitação porque os Portugueses, malgrado o que se possa dizer, se
interessam por perceber, afinal, como chegaram aqui.
Tal como a original, esta nova edição não tem pretensões a fazer
História, mas a contar histórias. A contar a História de Portugal como se
estivéssemos à mesa, no fim dum jantar, ou diante duma lareira, com um
copo do que lhe apetecer na mão (imaginemos que, lá fora, está uma noite
fria). A contar a História, enfim, tal como penso que ela interessa ser
contada entre comuns mortais não-académicos: arriscando erros e
imprecisões pelo prazer de embalar um auditório.
A primeira fonte deste livro é, naturalmente, o livro original. A segunda,
perfeitamente indeterminável, é aquilo que se aprende durante dez anos de
leituras, conversas e, particularmente, do trabalho desenvolvido em
documentários escritos para a televisão portuguesa (devo, por isso, um
agradecimento especial a Joana Palminha e José Eduardo Rebelo,
jornalistas com quem tenho tido o prazer de trabalhar e que realizam a
pesquisa que subjaz ao trabalho posterior do guionista). A terceira fonte é
a bibliografia que se apresenta no final e que consiste numa listagem
restrita de obras consultadas nos últimos meses, já com a finalidade
específica de reeditar estas Histórias. A quarta, a infinda peregrinação
pela world wide web para completar datas, nomes, locais e afins.
Importa, no entanto, precisar três fontes fundamentais para contar a
história de Filipe de Brito, rei do Pegu: a peça de The Myanmar Times
onde é relatado o episódio do Grande Sino de Dhammazedi
(http://www.mmtimes.com-/2010/news/531/news013.html), o artigo de
Maria Ana Marques Guedes no portal «Património de Influência
Portuguesa – Fundação Calouste Gulbenkian» (http://www.hp-
ip.org/Default/pt/Homepage/Obra?a=1659), onde a autora presta preciosos
esclarecimentos sobre a presença de Brito no Sirião, e um artigo do blogue
«Aqui Tailândia» (http://aqui-tailandia.blogspot.pt/2007/04/felipe-de-
brito-rei-do-pe-gu.html), onde José Martins, além de outra informação
relevante, apresenta a carta de Dom Filipe II a Dom Martim Afonso de
Castro e o texto do jornal Nova Luz de Myanmar citados neste livro.
Relativamente à edição original, foram subtraídas boa parte das
«liberdades poéticas» porque, olhando agora para elas, tornou-se evidente
que não faziam falta. Mas acarinhou-se, como o leitor cedo perceberá,
muitas das lendas e efabulações que autores e público anónimo foram
entretecendo ao longo de séculos. Permanecem apenas alguns quadros
criados pelo Hugo Louro da Rosa (que, por razões profissionais, não pôde
colaborar nesta nova edição) – os pormenores do rapto de Dona Mécia no
interior da alcova real, o sargento-mor que vê partir o barco que leva Dom
Afonso VI prisioneiro ou o «duelo» entre Brianda Pereira e Pêro Valdez –
que, pelo impacto visual, muito contribuíam para o desígnio de qualquer
história que se preze: levar-nos lá, ao lugar e ao tempo de que falam.
As quinze histórias finais contêm dentro delas muitas outras, mais
pequenas ou apenas sugeridas, e acabam por formar um mosaico onde se
passa, muitas vezes por ruas secundárias, por toda a História de Portugal,
da antecâmara daquilo que seria um país ainda centenas de anos antes da
fundação, até meados do século XX. A opção por seguir, amiúde, pelas
portas dos fundos, é inteiramente deliberada. E embora todos os reis de
Portugal aqui estejam presentes, nem que seja apenas por intermédio de
um fugaz encontro à esquina de outros acontecimentos, entendi que, com
excepção de Dom Afonso Henriques, deveria evitar ter por protagonistas
aqueles que mais reconhecemos dos manuais escolares. Dom Pedro I,
Dom João I, Dom João II, Dom Manuel I, Dom Sebastião, Dom João IV,
Dom Carlos ou Dom Manuel II, por exemplo, surgem aqui apenas como
personagens secundárias das vidas vividas por outros reis portugueses
(que não necessariamente de Portugal).
Agradeço à Marta Ramires o convite e a oportunidade de regressar a
estas histórias, e à Quetzal Editores a delicadeza de me permitir, fora do
vínculo que a ela me liga, a concretização desta edição aumentada.
Termino de escrever um dia depois da morte de José Hermano Saraiva,
historiador com que os leigos como eu aprenderam muito do que sabem
da História do país onde nasceram.
Alexandre Borges
Aldeia do Meco, 21 de Julho de 2012
A profecia
DONA TERESA & DOM AFONSO HENRIQUES

Ah, sim. Diziam que era um gigante de quase dois metros de altura. Que
o próprio Jesus Cristo lhe apareceu um dia, posto na cruz e rodeado por
uma corte de anjos, garantindo-lhe a vitória. Que a espada com que
venceu quase todos os exércitos que enfrentou pesava cinco quilos. Ou 15,
consoante os livros. E que eram precisos três homens para lha tirar.
Lamentavelmente, 400 anos depois, convencido dos poderes sobrenaturais
da relíquia do antepassado, Dom Sebastião tê-la-á pedido e perdido num
desastroso dia de Agosto em Alcácer Quibir – de modo que nunca
saberemos de que era feita. Dizem também que, ainda adolescente, se
armou a ele mesmo cavaleiro. Sozinho, com o metal das armas a ecoar –
ouvimos ainda – pela Catedral de Zamora, e que enfrentou a mãe. E todos
esses múltiplos requintes lendários culminam num episódio: o confronto
entre um filho e a mulher que o pôs no mundo. Ter-lhe-ia batido. Tê-la-ia
prendido e posto a ferros. Um caso de violência doméstica que perdoamos
piedosamente, tendo em vista os fins e a má personalidade que, por
instinto, atribuímos à progenitora. É um mundo de homens, de névoas e
fantasmas medievais. Temos dificuldade em ver claramente por entre eles.
Mas reconhecemos nele o caos inicial donde nasceu o nosso mundo.
Tudo isto se conta sobre Afonso Henriques. E acerca de tudo isto não se
sabe onde traçar a fronteira entre a verdade dos factos e a verdade da
memória colectiva de um povo precisado de heróis, como todos os outros.
E essa é a beleza da História. Das múltiplas histórias de um cavaleiro que
fundou um dos mais antigos estados-nação do mundo. Um rei violento e
autoproclamado, que, pelo caminho, maltratou a mãe, ou um guerreiro
iluminado por Deus, que, por pouco, não foi considerado santo?
As dúvidas começam logo no nascimento. Que pode ter sido em
Guimarães ou em Coimbra ou em Viseu. Não se sabe bem em que mês.
Provavelmente em 1109. Mas também há quem diga que foi baptizado por
Geraldo de Moissac, segundo arcebispo de Braga, depois da recuperação
da arquidiocese, e futuro São Geraldo. Mas esse morreu em Dezembro de
1108, depois de expressar um último desejo: comer fruta. O pormenor é
importante porque, ao que se diz, quando os companheiros abriram a porta
do quarto para lhe mostrar que, lá fora, em pleno Inverno, nada haveria a
não ser neve e algumas castanhas eventuais espalhadas pelo chão, terão
contemplado um cerco de árvores carregadas dos mais variados tipos de
frutos. De modo que é preciso escolher: ou Afonso nasceu em 1108 e
perdeu o pai aos quatro anos, ou em 1109 e perdeu o pai aos três. Duma
forma ou doutra, mal teria idade para se recordar dele, mas seria sempre
mais próximo do espectro desse pai morto do que da mãe de carne e osso,
ali viva ao lado dele.
Dom Henrique de Borgonha era um nobre que tinha participado na
Reconquista Cristã. Combatendo ao serviço de Afonso VI, recuperou
terras aos muçulmanos e, pelos feitos bélicos, o rei de Leão e Castela
ofereceu-lhe duas coisas: a mão da filha bastarda Dona Teresa e o
Condado Portucalense. Ao agora conde Dom Henrique cabia governar o
território, continuando a prestar vassalagem a Afonso VI. Mas a verdade é
que, entre castelos e catedrais, pareciam correr outros anseios.
Poder temporal e poder espiritual não andavam longe naqueles dias. A
religião desempenhou um papel na formação da identidade dos povos,
sobretudo quando se estava na ressaca de trezentos anos de ocupação
árabe. A organização territorial desenhava-se sobre a rede cristã de
paróquias e dioceses e, a pouco e pouco, uma fronteira impunha-se a traço
cada vez mais grosso: a que separava o Minho da Galiza, isto é, a zona de
influência da Sé de Braga e a de Toledo. Em 1102, a coberto da noite, o
bispo de Compostela, D. Diogo Gelmirez, percorre igrejas e capelas
minhotas e rouba os corpos dos santos locais. A razão oficial era a
necessidade de os proteger de saques e profanações; a verdadeira acabar
com a concorrência que os santos de Braga faziam às relíquias de
Santiago. A batalha pelas romarias de peregrinos ficou definitivamente
desequilibrada a favor da Galiza, mas a guerra ainda ia a meio.
A Abadia de Cluny era, por essa altura, o espírito que emanava de
França com o projecto de reformar a Igreja. Nascida com a ambição de ser
a encarnação da Jerusalém celeste, forneceu a grande formação intelectual
de alguns dos homens mais influentes do seu tempo: casos de Dom
Bernardo, bispo de Toledo, Dom Geraldo, de Braga, ou o próprio Papa
Pascoal II. O conde Dom Henrique estava bem ciente da influência dos
cluniacenses, ou não fosse ele próprio sobrinho de um, o abade e futuro
São Hugo. A cidade de Braga, que Dona Teresa recebera do pai como dote
de casamento, foi doada pelos condes aos arcebispos, em sinal de uma
amizade duradoura e frutuosa (ainda hoje, os corpos de Henrique e Teresa
repousam numa capela respeitosamente chamada «dos reis», na Sé de
Braga). Depois de duas viagens a Roma, o arcebispo conseguiria junto do
Papa a vitória tão procurada pela Igreja como pelos condes portucalenses:
a recuperação da primazia de Braga (com a permissão do leitor, servimo-
nos de outro «ainda hoje»: ainda hoje, o arcebispo de Braga usa o título
«Primaz das Espanhas»). A ressurreição da importância da cidade no
contexto da cristandade europeia implicava uma consequência política: a
autonomia face a Toledo, a autoridade de convocar os concílios regionais,
jurisdição própria sobre os seus domínios.
Contudo, Geraldo morreu rodeado de frutos no Inverno e Henrique
morreu também, quatro anos depois, ao que se sabe, sem notícia de
milagres. A autonomia espiritual de Braga já não seria posta em causa; a
relevância política do condado, no entanto, ia começar a correr a perigo…
Com a morte do marido, Teresa passava a governar o condado e,
tratando-se de uma jovem viúva de 32 anos, teria outros homens. O
problema não estaria aí genericamente, mas nos homens que escolheu em
particular: Bermudo Trava, fidalgo galego, e, depois, Fernão Peres de
Trava, irmão do primeiro. Para os valores da época, isto de ser mulher de
dois irmãos podia ser classificado de incesto e não passava em claro sem
julgamento moral. Mais do que isso: Teresa não era uma viúva qualquer;
era a condessa portucalense; ao escolher para companheiro um fidalgo
galego não era apenas uma mulher que se acercava dum homem, era o
condado que se aproximava de uma união com a Galiza. Aparentemente
pouco preocupada com o que em volta se pudesse pensar, Teresa vive
maritalmente com Fernão Peres de Trava e não se inibe de aparecer com
ele em público. Não caía bem numa mulher tão próxima da Igreja, amiga
do arcebispo de Braga e que mantinha já contactos com os Cavaleiros
Templários, criados para proteger os cristãos na Terra Santa e senhores da
vanguarda militar da época, viver com um homem com quem não era
casada perante Deus. Na Sé de Viseu, o prior não deixaria passar impune o
escândalo: fazendo um duro sermão acerca daqueles que «viviam mal
casados», obriga a condessa humilhada a abandonar a missa de braço dado
com o amante, perante o olhar incrédulo de toda a assembleia. A História
não deixaria sem nome este prior destemido que ousou afrontar a
«rainha»: chama-se Teotónio e, depois de duas viagens à Terra Santa,
voltará para se tornar a consciência moral de Dom Afonso Henriques.
Lá chegaremos. Para já, importa-nos Afonso, então pouco mais do que
uma criança perdida entre a morte do pai, o novo casamento da mãe e um
condado de que era herdeiro e que se arriscava a perder. Enquanto Teresa
olhava para Norte, Afonso mirava o Sul e a conquista de terras aos
sarracenos. Fazia-se homem à pressa, alimentado a ambição e revolta
contra os desejos da mulher que o pusera no mundo, mas que, segundo
ele, desonrava agora, pelo coração e pelos projectos políticos, a memória
do pai. Aos poucos, o afastamento entre mãe e filho deixa de ser um
assunto do foro privado da família mais importante de Portucale, torna-se
querela pública e começa a traçar uma linha entre quem está com um ou
com outro. Outrora ao lado da condessa, o arcebispo de Braga escolhe
agora ficar ao lado do filho. É presumivelmente com esse apoio de Dom
Paio Mendes que Afonso, ainda adolescente, se dirige à Catedral de
Zamora, no Dia de Pentecostes do ano da graça de 1122. O que faria então
não é gesto único na História; outros reis, noutras partes e momentos do
mundo, o fizeram e é possível que tenha sido a notícia desses exemplos a
inspirá-lo. Ainda assim, o acto fala pelo carácter de Afonso: atravessa a
igreja, sobe ao altar de São Salvador e retira de lá as armas. Uma a uma,
toma-as para si: veste a loriga, aperta o cinto, coloca o elmo, segura o
escudo e ergue a espada. Não espera que venha alguém armá-lo cavaleiro
– quem poderia vir? –, arma-se a ele mesmo. A declaração de
independência perfeita, não dum putativo reino, mas dum homem.
Atestado de maioridade. Declaração de guerra. Contra a mãe.
A partir dali, a distância entre Teresa e o filho não parará de aumentar.
No condado e fora dele, todos sabem que têm planos diferentes: boa parte
da nobreza está com a condessa e com o projecto de uma união com a
Galiza. Outros aguardam cautelosamente, em silêncio, o desfecho do
conflito, para não correrem o desagradável risco de ficarem do lado
errado, isto é, contra o vencedor. Já os cavaleiros deserdados apoiam
Afonso. São os segundos filhos, aqueles a quem nada caberá por herança,
os que nada têm a perder, os independentistas por convicção ou acaso, a
nobreza que recusa submeter-se ao domínio galego e o sector mais
progressista da Igreja que, em linha com a Abadia de Cluny ou a Ordem
de Cister, começa ali a vislumbrar a oportunidade de fundar um reino onde
o poder temporal se submeta de raiz ao espiritual.
No Verão de 1127, uma tentativa de serenar os ânimos transforma-se,
perversamente, na oficialização do diferendo. O governo do condado é
dividido em dois: Afonso Henriques é senhor das terras de Guimarães até
ao Douro e Dona Teresa daí até ao Mondego. Um condado bicéfalo, com
uma capital oficiosa em Guimarães e outra em Coimbra, que estava
prestes a partir-se ao meio. A tensão acumulava-se e o infante nada fazia
por evitá-la. Neste drama familiar à escala da Península, chega aos
ouvidos do primo, aliás, Afonso VII, rei de Leão e Castela, o rumor de
que o príncipe portucalense granjeia poder a cada dia que passa, escapa
totalmente ao controlo da tia e deseja fazer frente à sombra leonesa.
Afonso VII, que quer ser imperador de toda a Hispânia, decide cortar o
mal pela raiz, antes que alastre. Invade o Condado Portucalense e cerca
Guimarães, com o primo rebelde lá dentro. Temendo pela vida do infante
e daqueles que com ele estavam, o aio Egas Moniz apressa-se a viajar até
Toledo para falar ao rei. Alega que os rumores postos a circular não
passam de mentiras perigosas, orquestradas por inimigos. Que Dom
Afonso nada nutria por Leão e Castela senão uma intensa admiração e
que, como prova disso, em levantando-se o cerco, ali se deslocaria em
pessoa para beijar a mão ao senhor de tão grande poderio militar, seu
primo e seu rei. Convencido da bondade dos argumentos do aio, Afonso
VII ordena o levantamento do cerco. Guimarães podia respirar de alívio,
mas não Egas Moniz.
Chamar-lhe «aio» pode induzir em erro. Egas Moniz era um cavaleiro e
descendente de uma das famílias mais importantes do condado. Foi ele
mesmo quem, ao aperceber-se da crescente influência dos Travas junto de
Dona Teresa, decidiu apoiar Afonso nos desejos autonómicos. Mas o
infante nunca cumprirá a promessa feita a Afonso VII. Pelo contrário: a
partir do momento em que sentir reunidas as forças suficientes, avançará
contra ele. Em consequência disso mesmo, diz a lenda – e diz Camões n’
Os Lusíadas – que Moniz voltará a Toledo, desta vez acompanhado pela
família, para colocar a vida dele próprio e dos seus ao dispor do imperador
como pagamento pela falsa promessa. E diz também a lenda que Afonso
VII se teria compadecido dele, perdoando-o e mandando-o embora em
paz. O caso, contudo, como muitos outros nestes tempos e lugares, carece
de qualquer comprovação histórica.
Ainda antes do final do ano, Afonso Henriques avançaria para a guerra.
A guerra contranatura recordada pelos séculos por colocar, frente a frente,
um filho e a sua mãe. Pela primeira vez, entra nos domínios de Dona
Teresa e Fernão Peres Trava, tomando os castelos de Neiva e da Feira. As
tropas maternais pedem tréguas, mas as tentativas de negociação saem
goradas dos encontros de Vila Nova de Paiva. Alguns meses depois, a 24
de Junho de 1128, dá-se o confronto decisivo. Em Guimarães, no campo
de São Mamede, defrontam-se as tropas de Afonso e Teresa. Infante e
condessa estão lá em pessoa. A batalha é rápida e a conclusão clara: sem
que tivesse corrido demasiado sangue, as tropas do filho, maiores em
número e mais bem apetrechadas de armas, vencem as da mãe. Dom
Afonso Henriques assume o governo do Condado Portucalense para não
mais o perder, isso é certo; quanto ao destino que tenham tido Dona
Teresa e Fernão Peres de Trava, esse já se esconde entre as neblinas
medievais.
É aqui que nascem o mito e todas as dúvidas: Afonso bate fisicamente
na mãe no decorrer da batalha? É pouco provável. Bateu-se contra ela,
sem dúvida, e bateu nos partidários dela, supõe-se. Para o que se passou
depois contam-se pelo menos duas versões: uma diz que Dona Teresa
fugiu para a Galiza com o amante; a outra, que Afonso Henriques a fez
prisioneira e mandou encarcerar no Castelo de Lanhoso. Mas ambas
concordam no que aconteceu a seguir: Teresa não viveu muito mais,
morrendo em 1130 e vindo mais tarde a ser sepultada em Braga, ao lado
do primeiro marido e não de Fernão Peres de Trava.
Nada prova que Afonso Henriques tenha batido na mãe ou que a tenha
posto a ferros num cárcere, mas também não consta que fosse homem
dado a piedades ou perdões. Tê-la-ia deixado fugir com o amante,
correndo o mais que provável risco de um contra-ataque? Se Teresa e
Trava saíram livres de São Mamede, não há notícia de que tenham tentado
qualquer resposta, algo tão mais estranho quanto ambos conheciam
melhor do que ninguém os desejos expansionistas de Afonso. Terão ficado
aquietados pelo medo, assistindo como meros espectadores aos avanços
do infante? Na dúvida, sobram as lendas. E as lendas, como sempre, unem
melhor do que a verdade as pontas soltas da História. Se Afonso pôs a
ferros a mãe, o episódio liga melhor com outro que teria hora marcada
para os últimos anos de vida do rei, não esquecendo de permeio a
passagem pelo misterioso caso do Bispo Negro…
Reza a História que a notícia da prisão de Dona Teresa chegou a Roma,
caindo muito mal junto das altas esferas da Igreja. Em resposta, o Papa
envia a Portugal um emissário encarregue de levar a Afonso Henriques as
premissas de uma negociação pouco amistosa: ou libertava de imediato
Dona Teresa ou o condado seria excomungado. O homem de tez negra e a
quem chamariam bispo atravessou então o Norte de Itália e o Sul de
França, as Hispânias e a fronteira portucalense, entrando em Coimbra já
debaixo de um segredo apenas moderado. A notícia correu rapidamente
entre os populares, receosos das consequências da visita daquele
estrangeiro de mau agoiro. O bispo ter-se-á então dirigido ao Paço e
apresentado ao rei as exigências papais, mas a assinatura do Sumo
Pontífice no final da carta não terá bastado para amedrontar Afonso
Henriques. De pronto, responde ao bispo que, em território portucalense,
mandava ele e que não aceitaria intromissões, nem da Santa Sé. A decisão
estava tomada e não seria alterada.
Afonso não deixava alternativa ao Bispo Negro. Ao cair da noite, o
forasteiro excomungou a terra, mas, antes que conseguisse fugir, já a
notícia do que acabara de fazer tinha chegado aos ouvidos do rei. Afonso
irrompeu pela porta da Sé coimbrã, encontrando reunidos os cónegos e
outros homens da Igreja. Cortando em dois um silêncio nervoso,
perguntou, gritando, se havia por ali algum bispo. Um a um, todos foram
saindo, até que só restasse um homem: o estrangeiro de pele negra.
Sozinhos diante um do outro, bradou o rei que o homem lhe celebrasse a
missa, dado que era bispo. O outro respondeu que não, que nunca havia
sido nomeado bispo e que, portanto, não o poderia fazer. Como se já
esperasse a resposta, Afonso Henriques replicou, sem se perturbar, que ele
mesmo o nomeava bispo naquele instante. «Agora», terá dito, «celebra
uma missa.» Tremendo de medo, olhando fundo nos olhos do rei em busca
de uma segunda intenção que não descortinava, Martim Suleima, como
dizem alguns que se chamava, entrou na sacristia, tomou os paramentos de
bispo e tratou de satisfazer, da melhor forma que soube, o desejo de el-rei.
Findo o cerimonial, Afonso Henriques deixou Suleima partir, para nunca
mais Coimbra o ver.
Uma vez mais, os relatos dos acontecimentos no Condado Portucalense
correram mundo e chegaram aos ouvidos do Papa. Henriques tinha
ultrapassado todos os limites. Era um herege, um bárbaro ignorante dos
preceitos da fé e, como tal, tinha de ser ensinado. O caso era grave e, desta
feita, a solução não seria entregue a nenhum pseudobispo, mas a um
cardeal.
Quando terá ele chegado a terras portucalenses ninguém sabe ao certo.
Tampouco se encontrará quem lhe tenha descrito os traços do rosto. A
estada terá sido muito breve, entrando em Coimbra ainda à luz do Sol e
partindo poucas horas depois, pelo breu da noite. O encontro com o rei
redundou no mesmo resultado: a recusa em libertar Dona Teresa. De modo
que, quando todos dormiam, o cardeal saiu percorrendo as ruas,
excomungando aquela terra e todos os que nela viviam. Cumprida a
missão, pôs-se em fuga a galope no mesmo cavalo que o trouxera,
escoltado por quatro cavaleiros levando ouros, pratas e animais.
Contudo, não termina por aqui a lenda – faltava coroá-la com mais um
episódio heróico de Afonso Henriques. Partindo alegadamente sem o
auxílio de quaisquer companheiros, o rei lançou-se no encalço dos
fugitivos. Tê-los-á alcançado poucas horas depois, no lugar da Vimieira,
perto de Poiares, e obrigado a parar. Com uma mão, arrancou do cavalo o
infame cardeal e com a outra desembainhou a grande espada de cinco ou
15 quilos, conforme. Apavorados, os cavaleiros preveniram-no de que, se
matasse o clérigo, nem ele nem o condado alguma vez teriam o perdão de
Roma. Mas Afonso não queria a cabeça do cardeal; queria que ele
levantasse a excomunhão daquele reino em embrião e que deixasse ali
todo o ouro, prata e animais que levava. No chão, com os primeiros raios
da manhã a rebrilharem na lâmina que tinha junto ao pescoço, o cardeal
aceitou todas as exigências. Então, o rei soltou-o e atirou a espada ao
chão, despiu-se por completo, mostrando todas as feridas e cicatrizes que
lhe marcavam o corpo grande, e disse: «Cardeal, como eu sou herege, bem
se mostra pelos sinais das minhas feridas: estas em tal peleja, e estas em
tal cidade ou vila que tomei, e todas por serviço de Deus, contra os
inimigos da nossa fé. E para esta tarefa levar avante vos tomo este ouro e
prata, porque estou com muita falta deles, e me são necessários para mim
e para os meus.» Terminado o discurso, Afonso vestiu-se, pegou na espada
no ouro e na prata, reuniu os animais e partiu. Do cardeal e dos cavaleiros
não houve mais notícia. Terão voltado a Roma, não se sabe com que
resposta.
Tudo isto, bispo negro e cardeal, excomunhões e ameaças, todos os
esforços para a libertação da condessa, são, uma vez mais, meramente
lendários. Mas, à margem deles, importa contar um facto e uma história…
O facto: Teresa não morreu certamente na prisão, dado que, ainda naquele
ano de 1128, entrou para um convento galego. A história: diz-se que, antes
de o fazer, terá lançado com palavras coléricas uma maldição sobre o
futuro rei de Portugal: «Dom Afonso, meu filho, prendeste-me e
deserdaste-me da terra e honra que me deixou meu pai, e afastaste-me de
meu marido. A Deus peço que preso sejais vós, assim como eu me vejo
agora. E porque puseste ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a
trazer e a criar com muitas dores do meu ventre e fora dele, com ferros
sejam as vossas pernas quebradas, e praza a Deus que assim seja.»
No governo do condado, com ou sem profecias maternas e ameaças
papais, Afonso daria seguimento a missão de que ele próprio se investira
sem sinal de receio ou remorso. Ia avançar de batalha em batalha para
ganhar territórios aos árabes e não perder os que já tinha para Afonso VII.
No entanto, sabia que, no plano espiritual, havia outra guerra a travar:
naquele tempo, nenhum reino era legítimo até ser reconhecido pela Santa
Sé. Era urgente começar a negociar com Roma a plena autonomia da
Igreja portucalense e, depois, o reconhecimento do reino. Se o rei
maltratou de facto bispos e cardeais, seria melhor não alimentar grandes
esperanças, mas é preferível acreditar noutra história, bem mais credível:
aquela que nos diz que, desde o princípio, Afonso Henriques teve boa
parte da Igreja do seu lado…
Por aqueles dias, um grupo de clérigos reformistas tomam a decisão de
fundar em Coimbra um cenóbio de Cónegos Regrantes de Santo
Agostinho. Entre eles, contam-se figuras influentes como Dom Telo e
Dom João Peculiar, mas o primeiro líder da comunidade será Teotónio, o
prior que deixámos em Viseu, anos atrás, expulsando da Sé Dona Teresa e
o homem com quem vivia «mal casada». Teotónio gostava pouco de
títulos e altos cargos hierárquicos. Quando o convidaram para bispo de
Viseu, fugiu para a Terra Santa. Foi lá duas vezes, percorrendo
repetidamente os passos de Jesus Cristo e descobrindo, enfim, o lugar
onde tencionava viver até ao fim dos seus dias: ao lado dos Cónegos
Regulares do Santo Sepulcro, guardando o túmulo do Messias
ressuscitado. Contudo, Dom Telo não lhe permitiria cumprir com o plano.
Convence-se de que é mais necessário aqui do que em Jerusalém, para
ajudar a fazer nascer um reino cristão. Teotónio assume o priorado e, com
a anuência de Dom Afonso Henriques, nasce o Mosteiro de Santa Cruz, o
epicentro da aliança entre monges e guerreiros de que resultaria Portugal.
Não se trata de uma associação de conveniência. Afonso é um homem
genuinamente crente e os cónegos regrantes acreditam verdadeiramente na
mais alta legitimidade da tarefa que tinham a cumprir: conseguir terras
para a cristandade, converter infiéis, educar e reformar em Deus. São as
duas faces da mesma moeda: enquanto Afonso Henriques e os seus
homens se batem no campo de batalha, os monges rezam em Santa Cruz
pela vitória portuguesa no «bom combate». O próprio Afonso terá dito um
dia que as orações de Teotónio valiam mais do que a força do seu braço. O
prior torna-se seu amigo pessoal, conselheiro e confessor. Diz-se que é ele
quem doma os ímpetos mais cruéis do rei e que este lhe obedece sem
contestação, chegando, por ordem do padre, a libertar prisioneiros de
guerra moçárabes e, portanto, cristãos.
Mais confiante do que nunca nas suas capacidades e acreditando ter
Deus do seu lado, Afonso prossegue em combate contínuo. Em 1137, na
batalha de Cerneja, vence as tropas galego-leonesas e coloca um ponto
final nas aspirações do primo Afonso VII de submeter o Condado
Portucalense ao seu domínio imperial. Dois anos depois, em Ourique, diz-
se que triunfa em inferioridade numérica sobre cinco reis mouros num
combate decisivo, após o qual se passa a auto-intitular rei de Portugal.
Mas este é de todos os episódios o mais lendário. A data atribuída à
batalha, 25 de Julho, parece forjada para coincidir com o Dia de Santiago,
o Mata-Mouros. O lugar onde aconteceu permanece um mistério,
sabendo-se que há pelo menos três Ouriques possíveis: um em Leiria,
outro no Ribatejo e outro no Alentejo. E, finalmente, o primeiro relato da
alegada aparição de Jesus Cristo na cruz, rodeado de anjos, garantindo a
Afonso, antes do combate, que venceria, surge apenas no século XIV,
quando Portugal voltaria a lutar pela independência diante de Castela, para
convenientemente caucionar a soberania nacional com um pretenso
desígnio divino.
Duma forma ou doutra, e porque, uma vez mais, a lenda é muitas vez
mais útil do que a História, a batalha de Ourique ocuparia para sempre um
lugar central na mitologia portuguesa. E, até hoje, é recordada no coração
da bandeira nacional, onde cinco escudetes representam os reis mouros
derrotados naquele dia de Julho, cada um deles brilhando com cinco
besantes, simbolizando as cinco chagas do Cristo crucificado que teria
encorajado o rei à vitória.
Quatro anos depois, por acção de João Peculiar, antigo monge de Santa
Cruz promovido agora a arcebispo de Braga, Afonso Henriques voltaria a
Zamora, desta vez para assinar o tratado onde Afonso VII reconhecia,
definitivamente, a independência portuguesa, mesmo que a confirmação
do Papa ainda fosse demorar décadas a chegar. Em 1147, um ano depois
de ter casado, por fim, com Mafalda de Sabóia, o rei conquista Lisboa
com o apoio de cruzados a caminho de Jerusalém. A bandeira que dá a
Portugal, a primeira, é uma simples cruz azul sobre fundo branco.
Reina a partir de Coimbra, próximo dos monges crúzios que rezam por
ele. Teotónio baptiza-lhe Sancho, o filho que lhe há-de suceder, um dia, no
trono. O mesmo Teotónio, por alegada intervenção miraculosa, salva Dona
Mafalda dum parto que a ameaçava levar do mundo dos vivos (o episódio
permanece retratado em quadro no altar de Santa Cruz). No entanto, a
rainha virá a morrer na sequência de novas complicações de parto, em
1157.
Em 1162, chegará a hora do próprio Teotónio, depois de uma longa vida
de 80 anos e muitas lutas, de Coimbra a Jerusalém. No ano seguinte, o
próprio Afonso Henriques dirigirá o processo que conduzirá à
canonização do amigo, transformado assim no primeiro santo realmente
português. No entanto, passados muitos séculos, há quem levante, nos dias
de hoje, a estranha hipótese de ter sido Teotónio e não o pretenso Martim
Suleima o infame Bispo Negro. A teoria baseia-se na improbabilidade de
um Papa atribuir, naquele tempo, tão importante missão a um negro ou
muçulmano convertido ao cristianismo. O «bispo» não seria, pois,
«negro» por causa da cor da pele, mas do hábito. E, com efeito, os hábitos
dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz, como Teotónio, eram pretos…
Por agora, o que importa é a figura deste rei irremediavelmente só. Sem
pai nem mãe, nem muitos dos irmãos, nem mulher, nem mentor espiritual,
Afonso Henriques prossegue na sanha de expandir o reino. Não se sabe se
terá despertado, alguma noite, assaltado pelos velhos fantasmas da
lendária maldição materna, mas, das nuvens de medos antigos, o povo
veria irromper um dia a confirmação da profecia…
Tinha passado muito tempo. Dom Afonso Henriques tinha já 60 anos e
mais do que duplicado o território que herdara do pai. Nunca havia sofrido
uma derrota – até ali… Apesar da idade e de todas as cicatrizes,
continuava a liderar com sucesso o exército português no campo de
batalha. Mas, daquela vez, em Badajoz, não contou com o poder nem com
a estratégia de Dom Fernando II, rei de Leão e da Galiza, nem que este
tivesse um pacto com o governador da cidade. Apanhado numa cilada,
Dom Afonso Henriques é cercado entre o castelo e a orla, entre mouros e
leoneses. Pior: ficava nas mãos de Dom Fernando, filho de Afonso VII e,
portanto, seu primo em segundo grau, educado em jovem por Fernão
Peres de Trava, velho amante de sua mãe, e marido da sua filha Dona
Urraca e, portanto, seu genro… Percebendo que não tinha como dar luta a
duas frentes de batalha, o rei português tenta fugir a galope, mas, ao passar
as portas da cidade, embate com a coxa no pesado cabo de um ferrolho,
mal colhido ao abrir, e cai violentamente ao chão. A perna, quebrada logo
no momento do choque, é depois desfeita quando o cavalo, de igual modo
ferido, tomba sobre ela. Incapaz de se levantar, nem com a ajuda dos seus,
Afonso consegue erguer-se, e o inevitável acontece: o herói de São
Mamede e Ourique e Santiago e Lisboa e tantas outras batalhas era agora
prisioneiro de guerra.
Passados dois meses de negociações que envolveram o pagamento de
um resgate e a devolução de cidades conquistadas a Leão, o rei foi, enfim,
libertado. Mas, a título pessoal, consta que Dom Fernando II até tratou
bem o sogro durante o cativeiro, chamando os melhores médicos do reino
para o tratar. O povo, porém, nunca mais esqueceria as supostas palavras
de Dona Teresa, lançadas sobre o filho trinta anos antes: «A Deus peço
que preso sejais vós, assim como eu me vejo agora. E porque puseste
ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a criar com muitas
dores do meu ventre e fora dele, com ferros sejam as vossas pernas
quebradas.»
A verdade é que Afonso Henriques nunca mais voltaria ao teatro de
combate. Ainda viveria muitos anos no trono e em plena actividade
governativa, mas o tempo dos tambores de guerra havia passado
definitivamente para ele. Talvez por aqueles dias tenha pensado pela
primeira vez que não seria rei para sempre. O reino que criara ia
sobreviver-lhe – era altura de começar a preparar um sucessor.
E Afonso viveu o suficiente para ver o Papa reconhecer, por fim, o
Reino de Portugal. A confirmação só chegou em 1179 e depois de muito
dinheiro posto em Roma. A 6 de Dezembro de 1185, o rei morreu, depois
de pelo menos 76 anos de vida, 46 dos quais passados no trono. Depois
dele, viriam mais 34 reis, mas nenhum governaria mais tempo. Entre o dia
em que nasceu e o último estertor, levou Portugal do Mondego até às
primeiras milhas dos Algarves. O seu corpo repousa em Coimbra, no
Mosteiro de Santa Cruz, perto da mulher, Dona Mafalda, do filho que lhe
sucedeu, Dom Sancho, e do amigo e confessor, São Teotónio.
Muitos séculos depois, durante o reinado de Dom Manuel I e em plena
época dos Descobrimentos, uma proposta de canonização de Dom Afonso
Henriques seria apresentada à Santa Sé, mas o processo não chegou a bom
porto. Dificilmente poderemos culpá-la de velhos traumas em torno de
hipotéticos ataques a bispos e cardeais… Com efeito, é tão pouco provável
que Afonso fosse santo, como um brutamontes que teria batido na própria
mãe. A verdade repousará algures entre uma lenda e outra…
Já no século XXI, uma equipa de investigadores propôs abrir o túmulo do
Fundador e estudar-lhe o corpo. A ciência poderia ter revelado dados
novos e surpreendentes sobre quem foi, afinal, o primeiro rei português. A
proposta foi recusada.
Ainda bem. Não se fosse descobrir que Afonso Henriques era afinal um
baixote, de ossos imaculados sem marcas da guerra, incapaz de erguer um
punhal, quanto mais a sua lendária espada.
Países com mais de 800 anos foram fundados por reis gigantes que
venciam batalhas sozinhos, cuspiam fogo e não temiam deuses nem
maldições.
Mesmo que nunca tenham existido.
O rapto de Dona Mécia
DOM SANCHO II & DONA MÉCIA

Entre reis e clérigos, a vida quase nunca foi fácil em Portugal. Depois de
Afonso Henriques ter tido em homens da Igreja alguns dos maiores
amigos e aliados e mantido com outros relações baseadas no tumulto e na
truculência, a descendência não teria história mais simples. Na verdade,
Roma teve durante muito tempo os olhos postos naquele jovem reino no
extremo ocidental da Europa – olhos de desconfiança, olho para o
negócio, olhar de atenção, curiosidade ou cautela, é difícil dizer. Se
Afonso não tivesse vivido tão longamente como viveu, poderia não ter
chegado a ver sequer o reconhecimento oficial da independência de
Portugal pelo Papado. Saiu-lhe da pele e dos bolsos aquela doce notícia,
chegada quando teria por volta de 70 loucos anos.
O filho e sucessor no trono, Dom Sancho I, também sofreria o seu
bocado para impor o poder temporal naquela Baixa Idade Média, onde
bispos e cardeais ainda se confundiam com príncipes da terra.
É que o reconhecimento papal da legitimidade dum reino não tinha
garantia vitalícia; devia ser renovado anualmente, a troco duma generosa
prestação paga a Roma. Sancho, sabendo bem que o pai pagara para lá de
muitas prestações a fim de acelerar a resolução do processo, entendeu que
tinha crédito junto da banca pontifícia e que, portanto, era justo que, pelo
menos por uns poucos anos, Portugal nada tivesse de pagar. Ora Urbano
III tinha uma leitura diferente desta economia das fronteiras e tanto
reclamou e ameaçou que Sancho I lá regularizou as contas.
Ainda assim, a renda só garantia a paz com o Papa, porque com alguns
clérigos nacionais o ambiente roçava a guerra. A Igreja não aprovava o
casamento do primogénito do rei, Dom Afonso, com Dona Urraca, filha
do rei de Castela e parente do noivo ainda antes do sétimo grau, o que
violava a lei canónica. O bispo do Porto, Dom Martinho Rodrigues,
recusou-se a celebrar a cerimónia e, em resposta, levou com a fúria de
Dom Sancho: o rei mandou prender o bispo durante alguns meses, arrasar
as casas dos seus apoiantes e fez entrar nas igrejas excomungados e
interditos.
Curiosamente, a embirração de Sancho só se manifestava mesmo diante
de padres e bispos porque, na realidade e tal como o pai, era um cristão
fervoroso. Quando esse seu primogénito, Dom Afonso, era apenas um
adolescente de 15 anos, a morte esteve mesmo ali à porta para levá-lo.
Supõe-se que sofria duma variante de lepra, incurável para os padrões de
época. Esgotados os recursos médicos, que fez Dom Sancho? Ouviu falar
duma santa que era muito cultuada em Basto, uma monja que teria vivido
no século X e a quem chamavam Senhorinha. A origem do nome estava
envolta em mistério: é possível que se devesse ao facto de ter ficado órfã
de mãe muito cedo, passando a ser a «senhorinha» da casa e assim tratada
pelo pai, um fidalgo da região, mas também se coloca a hipótese de uma
origem mais prosaica: ser anã – e sabe-se como se atribuíam então aos
anões obscuros poderes sobrenaturais. A razão de ser do nome, na
verdade, era apenas o princípio da difusa história de uma personagem da
qual ainda hoje pouco se sabe (em Basto, na Ponte da Misarela, ainda há
quem baptize as crianças por nascer, aspergindo a barriga das mães com
água do rio, em nome de Senhorinha), mas sabia-se o essencial: que o
túmulo da santa era destino de romarias. Que peregrinos de toda a parte ali
se dirigiam para rezar e que, em resposta, os seus pedidos eram
miraculosamente atendidos. Dom Sancho I montou o cavalo e arrancou,
portanto, para Norte. Em Basto, foi como peregrino anónimo: dirigiu-se à
igreja da santa, ajoelhou-se diante do sepulcro e rezou pela cura do filho.
Por intercessão ou não de Senhorinha e, portanto, milagre ou casualidade,
a verdade é que Afonso se curou. A história é atestada por um documento
do ano de 1200 assinado pelo rei, em que doa à comunidade das monjas
de Basto o couto em volta (há mesmo quem diga que o rei em pessoa
marcou no terreno os limites da propriedade). Um gesto terno do
extremoso pai Sancho, esta atenção para com o jovem Afonso, sobretudo
se tivermos em conta que teve mais 18 filhos e que não lhe faltava com
que se preocupar.
Mais curioso ainda é que, depois de ter ficado aparentemente a dever a
vida a uma intervenção de Deus Nosso Senhor – mediada por alguns
agentes privilegiados –, Afonso se tornaria no primeiro rei português a ser
excomungado pela Igreja cristã.
É que Sancho, o Povoador, morreu onze anos depois e o filho
miraculado sucedeu-lhe como Dom Afonso II, o Gordo. Com efeito e ao
contrário do habitual, o cognome não era feliz, mas, ao que parece, a cura
da doença que o afectara na adolescência não fora completa. Afonso II
viveria sempre num estado de saúde debilitado e sofria, provavelmente,
daquilo a que hoje chamaríamos obesidade mórbida. Chegado ao trono,
deu início a uma guerra que já se vinha adivinhando: a guerra entre a a
Coroa e o clero, resultado do aumento de poderes da primeira e
consequente limitação dos poderes do segundo.
Ao longo de toda a Idade Média, a Igreja foi-se substituindo ao Império
Romano na planificação e administração territorial. Aldeias, vilas e
cidades eram organizadas sobre a estrutura eclesiástica da rede de
paróquias e bispados. Olhando em pormenor, era visível como,
frequentemente, o padre se tornara a autoridade da terra; olhando em
panorâmica, o que se via era uma Igreja que se confundira perigosamente
com o poder civil. A consolidação do Reino de Portugal só podia fazer-se
negando, a pouco e pouco, essa promiscuidade. Havia um poder temporal
claramente estabelecido: emanava do rei e não podia submeter-se ou
confundir-se com o da Igreja.
Dom Afonso II deixou muito claro que os tempos tinham mudado logo
nas Cortes de Coimbra, quando aprova a lei que proíbe mosteiros e ordens
religiosas de adquirirem bens fundiários. Depois, virá a entrar em disputa
com Estêvão Soares da Silva, arcebispo de Braga, pela posse de bens na
região, acabando por forçar o clérigo ao exílio. A resposta não tardaria: os
bispos levariam a queixa a Roma e trariam no regresso a excomunhão do
rei português. Afonso II morreu pouco depois, aos 38 anos, vítima da sua
saúde frágil e sem saber, pois, se seria admitido no céu.
E é neste contexto que chegamos a Dom Sancho II e ao dramático
episódio com que culminaria o seu destino como quarto rei de Portugal: o
rapto de Dona Mécia, sua mulher.
Dom Sancho II, o Capelo, ocupou o lugar do falecido pai, no trono, em
1223. Era um jovem de idade incerta – provavelmente, 13 ou 14 anos. E
não herdava do pai apenas um reino, mas também uma guerra. Contra a
Igreja, contra as tias, com quem teria de discutir a posse de uma série de
castelos e respectivas rendas, outros nobres que se sentiam ameaçados
pela centralização de poderes na Coroa, e ainda contra o estado de alma
dum reino que vivia então a ferro e fogo, entre saques e pilhagens, depois
de uma sequência de anos de más colheitas.
A início, Sancho – ou os conselheiros do jovem rei por ele – conseguiu
gerir, pelo menos, o mais delicado dos imbróglios: fez as pazes com o
arcebispo de Braga e, com elas, acalmou as hostes em Roma. Depois,
partiria para o combate e, já com o apoio de ordens militares de inspiração
cristã, como a Ordem de Santiago, conquistaria definitivamente aos
mouros muitas terras para Portugal: Elvas, Moura, Serpa, Beja, Aljustrel,
Mértola, Tavira, Alvor e Aiamonte fazem parte do seu brilhante currículo
bélico. As vitórias militares, para mais, significavam terras para dividir
pelos vencedores e, enquanto houvesse terras, serenavam-se os palpitantes
corações da nobreza.
No entanto, as qualidades de Sancho II para a política estavam na
proporção precisamente inversa à da sua arte na guerra (e mesmo acerca
dessa se levantam hoje dúvidas. É possível que os méritos no campo de
batalha tenham de ser, na verdade, atribuídos apenas à acção das ordens
militares). Incapaz de perceber ou gerir as sensibilidades em volta,
indeciso e negligente, Sancho foi semeando inimigos internos, tendo por
pano de fundo um reino onde os nobres faziam do uso da força uma
rotina, os bispos se imiscuíam na vida política e o caos e o banditismo
generalizados reinavam por vilas e campos. Os adversários descrevem o
Portugal daqueles dias como um inferno que custa visualizar: túmulos
profanados, igrejas em chamas, freiras raptadas dos conventos, padres e
monges assassinados, assaltos, incestos e, por toda a parte, uma pesada
pestilência de pecado.
Sancho não sabia – não tinha então como saber –, mas ser bisneto de
Dom Afonso Henriques, pai-fundador do reino, não o protegeria no trono
contra todos os males. Na sombra, começava a preparar-se a sua
destituição.
Tempos depois, chega a Coimbra, ao paço real, uma carta; vinha
endereçada de Roma e trazia o inconfundível selo papal. Quebrado o
lacre, desvelava-se a missiva de Gregório IX a Sancho II: um alerta; o
Papa não pactuaria muito mais tempo com o estado do reino, minuciosa e
horrorosamente descrito nos relatos que alguns destacados membros da
Igreja nacional tinham tido a bondade, de forma desinteressada, de lhe
fazer chegar. Como se aquele aviso não surtisse efeito, não tardaria a
chegar nova carta: a formalização da excomunhão. Dom Sancho II
tornava-se o segundo rei português consecutivo a ser mandado pelos
homens para fora do céu.
Bom ou mau político, bom ou mau guerreiro, enfim, bom ou mau rei,
Sancho parecia, no entanto, feito da mesma cepa dos antepassados.
Resistiria. Continuaria a aumentar o reino no campo de batalha,
indiferente às críticas que se avolumavam. Uns lembravam que era fruto
dum casamento reprovado pela Santa Madre Igreja. Outros assinalavam
que, ao contrário da tradição, não fora formalmente investido na passagem
do ceptro real. Acrescentava-se a juventude com que subira ao trono –
pouco mais do que uma criança, decerto mal aconselhada por tutores
interesseiros e corruptos. Tudo valia para tentar retirar a Sancho II a
legitimidade como soberano. Por volta de 1240, já conquistado todo o
Alentejo, Sancho ia agora dedicar-se a arranjar mulher – e a conseguir a
derradeira acha para a fogueira. A fogueira onde ele próprio arderia…
Não era previsível que a história pessoal de Dona Mécia Lopes de Haro,
filha de Dom Lopo Dias de Haro, um dos mais influentes fidalgos
hispânicos da época, e neta de Afonso IX de Leão, viesse algum dia a
cruzar-se com o destino de Portugal. Casara, em 1231, com Dom Álvaro
Peres de Castro e o episódio mais curioso que se contava acerca da vida
que até então levara conta que, certa vez, estando o marido ausente em
combate com os seus soldados, se viu cercada pelos mouros no Castelo de
Martos, perto de Córdova. Sozinha com as aias, ter-se-ia vestido a si
mesma e a elas com armaduras e subido às ameias da fortificação.
Julgando ver o castelo, ao contrário do que garantia a informação que
haviam recebido, vigiado por um numerosa guarnição, os mouros teriam
dado meia-volta e partido, vindo a ser mais tarde interceptados e vencidos
por Dom Álvaro. Os planos de vida de Dona Mécia só mudariam depois e
abruptamente: o marido morre de forma inesperada em 1239. Viúva, a
mulher que ainda era descendente, pelo lado da mãe, de Dom Afonso
Henriques, voltará a casar. O escolhido era nem mais nem menos do que
Dom Sancho II, rei de Portugal e seu primo.
Sancho repetia o crime de que o pai fora acusado: um casamento contra
a lei da Igreja, incestuoso e, para dizer o mínimo, provocador.
Num ambiente de crescente agitação social, em boa parte justificado
pelos desequilíbrios resultantes dum crescimento demográfico que tentava
acompanhar a galopante expansão do território nacional, chegaria a
estocada final. Nobres e prelados portugueses reúnem-se para exigir a
deposição do rei. Mas essa era apenas a primeira parte do problema; a
segunda era: e quem lhe sucederia? Sancho II era bisneto de Afonso
Henriques, neto de Sancho I e filho primogénito de Afonso II; pondo em
causa a legitimidade deste rei, que restaria? Onde se encontraria outro cuja
escolha não corresse o risco de fracturar ainda mais Portugal, em vez de o
unir? O Papa recomendava que, para já, se encontrasse um «governador e
defensor do reino»; alguém activo e prudente que pudesse assegurar a
restauração daquele território vicioso, e que esse alguém só poderia ser
Dom Afonso, irmão mais novo de Dom Sancho II a viver há alguns anos
em França, onde era casado com a condessa de Bolonha, porque, naquele
tempo, nada restava nos solos pátrios aos segundos filhos, de modo que o
melhor era emigrar.
Pouco tempo passado e já em Paris, uma comitiva nacional apresentou a
proposta a Dom Afonso e ouviu do outro lado o juramento de que tudo
faria cumprir conforme o acordado e que à Igreja restituiria tudo aquilo
que tão levianamente seu irmão havia tirado: privilégios, foros e costumes
de municípios, cavaleiros, padres, bispos e monges – todos tudo teriam de
volta. Um verdadeiro candidato em campanha eleitoral.
Estávamos em 1245. Dom Sancho II tinha sido formalmente deposto,
mas continuava no lugar – tal como já antes havia sido excomungado sem
que isso parecesse interferir, de alguma forma, no seu comportamento.
Afonso lembrava então uma questão pertinente: era preciso que fosse rei
único e incontestável. Se acaso o irmão deixasse descendência, haveria
sempre quem defendesse a legitimidade de essa criança subir ao trono – e
Afonso parecia não querer sujar as mãos. Não para já. De modo que
lembrou ao Papa uma questão, um pormenor, coisa de nada: Sancho e
Mécia eram primos – acaso não haveria matéria para anular esse
casamento hediondo? Compreendendo na plenitude, as preocupações de o
Bolonhês, determinou então Inocêncio IV a nulidade daquele matrimónio
medonho e contranatura. E, como tal, ordenou que, a partir daquele
momento, rei e rainha se separassem e não mais se voltassem a ver.
Uma vez mais, Dom Sancho II recusou vergar-se ou fez-se esquecido. A
paciência de todas as partes tinha chegado ao limite. O resultado seria
mais ou menos óbvio: a guerra.
Em finais de 1245, Afonso desembarca em Lisboa – ia começar um ano
de conflito constante. Em Gaia, tropas partidárias do rei defrontam a
oposição. Da violenta batalha resulta uma dupla vitória para Dom Sancho:
uma directa, alcançada em campo pelas forças lideradas por Martim Gil de
Soverosa, e uma indirecta: a salvação do seu casamento. Mas a tentativa
de golpe de Estado continuaria. De Coimbra, contemplando o Mondego e
as margens, Sancho e Mécia compreendem que não resistirão sozinhos à
conspiração. Pedem ajuda a Castela e, assim, do lado de lá da fronteira
chegam a Portugal forças para apoiar o rei, e a Roma pressões para que o
Papa fizesse Afonso rever o seu comportamento diante do irmão. Os
combates prosseguiam em diversos pontos do mapa, mas Sancho II
continuava a sair vencedor de todos eles. Afonso percebia que era
necessário encontrar uma solução drástica. Afinal, no amor e na guerra,
vale tudo…
No Verão de 1246, vencido pelas armas, Afonso congeminou um plano
que derrotasse o irmão onde mais dói: no coração. Um grupo de homens,
liderados por Raimundo Viegas de Portocarreiro, irmão do arcebispo de
Braga, e Gomes Anes, iria dirigir-se a Coimbra, infiltrar-se na corte e
raptar Dona Mécia. Pôr-se-ia assim termo àquele casamento maldito,
fazendo cumprir a ordem do Papa, e desacreditar e humilhar Dom Sancho
aos olhos do povo: um rei que nem soubesse tomar conta da mulher, como
saberia tomar conta de Portugal?
Os raptores chegaram numa plácida madrugada de Julho, já o calor
cobria as noites do reino. Vestiam hábitos de monge, fazendo-se passar
por inofensivos religiosos a caminho do Norte. Sem dificuldade,
conseguiram que lhes abrissem a porta do paço, pedindo guarida naquela
noite, um pouco de descanso na sua longa caminhada, acaso lhes fosse
concedida a honra de algumas horas de paz perto do senhor Dom Sancho.
Por certo Nosso Senhor Jesus Cristo, explicaram, ficaria feliz. Por certo,
até serenaria os ânimos celestiais tão simples gesto de generosidade do
senhor de Portugal para com alguns humildes servidores de Cristo. Mais
fariam: passariam a noite em claro, rezando pelo rei, pela sua saúde, pelo
seu sucesso, pela paz, pela compreensão. E por Dona Mécia – porque não?
– por aquele casamento injustiçado, por aquelas duas nobres almas que
não tinham culpa de se haver enamorado. E rezariam até – sim, apesar dos
seus afazeres celestiais, não podiam ignorar o que nesta terra se passava –
pelo fim da guerra, pelo entendimento de Afonso, por que esse irmão
desavindo se arrependesse de suas atitudes e deixasse aquelas ínvias
pretensões de retirar o trono a Sancho.
Talvez Dona Mécia e Dom Sancho dormissem profundamente, talvez
despidos, depois de terem entregue os corpos um ao outro, ou talvez
dormissem sim, mas afastados, cobertos de tecidos leves, esgotados pelo
calor. A passagem estava livre. Talvez os «monges» tivessem aliciado o
guarda com uns morabitinos e uma espécie de bênção: «Vai, meu filho.
Que os prazeres da carne não os terás no céu», e o homem não tivesse
hesitado, deixando rei e rainha guardados por aquelas boas almas cristãs e
rumando ao bordel mais próximo. Raimundo Portocarreiro e Gomes Anes
introduziram-se no quarto e aproximaram-se de Dona Mécia. Naquele
instante, seria tão fácil acabar com tudo, tirar a vida ao rei, mas a
vergonha era tão mais dolorosa do que a morte… De súbito, um tapou a
boca da rainha enquanto o outro lhe prendeu os braços. Dona Mécia abriu
os olhos, em sobressalto, tentando ver o contorno das figuras entre o breu
da noite. Em poucos segundos, tinha as mãos e os pés atados e a boca
amordaçada com um lenço. Dom Sancho dormia. A mulher e os raptores
lançaram-lhe um último olhar e desapareceram para lá da porta.
O rei só acordaria alguns minutos depois, desassossegado pelo desatino
dos mastins – já os falsos monges descobriam as cabeças e galopavam
pela noite, levando a rainha. Sancho pegou numa espada e desceu. Pouco
depois, já seguia no encalço dos raptores, acompanhado de alguns
homens. Percebia que tomavam a direcção de Ourém, mas o atraso que
trazia era suficiente para o impedir de os travar antes que alcançassem o
castelo. Uma vez lá chegados, Sancho desceu do cavalo, exibiu as
insígnias reais e bradou: «Eu, Sancho, rei de Portugal pela graça de Nosso
Senhor Jesus Cristo, neto do mui nobre e digno Afonso Henriques, ordeno
que me seja devolvida a minha legítima esposa, Mécia Lopes de Haro,
filha de Lopo Dias de Haro, senhor de Biscaia. Mais ordeno que os
raptores sejam trazidos perante a minha pessoa e pela minha espada
confessem quem ordenou semelhante aleivosia para com o rei de
Portugal.»
As palavras roucas de Sancho ecoaram pela noite. Por instantes, apenas
se ouvia o casco de um ou outro cavalo, um resfolgar, um galo cantando,
ao longe. De repente, começa a trovejar. Não eram trovões,
verdadeiramente, mas uma chuva de pedras. Eram lançadas do topo do
castelo. Aproximavam-se, estalavam num elmo, assustavam os cavalos.
Continuavam a cair. Caíam cada vez mais. Sancho dava alguns passos
atrás e assim faziam os seus homens. Protegia a cabeça atrás dum braço e
os seus homens recuavam ainda mais. A chuva de pedra continuava e
Sancho olhou, desamparado, os seus homens; depois, o chão. Talvez tenha
contemplado o castelo uma última voz, gritado o nome de Mécia contra a
muralha. O eco espalhou esse nome pelo horizonte, se ele foi, de facto,
gritado. Sancho montou o cavalo, picou-o com as esporas e partiu, e os
homens atrás dele.
A luta por Dona Mécia terminara ali, em Ourém, mas não a guerra pelo
trono de Portugal. Dom Sancho II voltaria ao campo de batalha, voltaria a
ter o apoio militar do príncipe de Leão e Castela, o futuro Afonso X, filho
de Fernando III. Essa ajuda seria preciosa para que voltasse a derrotar o
irmão, desta feita em Leiria. Mas as pressões do Papa para que abdicasse
do trono continuariam, as batalhas também e Afonso X acabaria por voltar
a Leão e Castela, deixando Sancho só.
Cansado, desiludido e doente, o rei abdicaria do trono em 1247, ainda
que não tivesse perdido uma só batalha para o irmão. Exilou-se em Toledo
e pouco mais durou. Morreu a 4 de Janeiro do ano seguinte, teria 38 ou 39
anos, 25 dos quais vividos como rei. Já não lhe fazia diferença. Primeiro,
ficara sem irmão, depois sem mulher e, por fim, sem reino. Que diferença
fazia agora ficar sem vida?
Uma última curiosidade a propósito do quarto rei de Portugal: foi o
único, em toda a primeira dinastia, que não teve filhos. Nem naturais, nem
bastardos. E não se lhe conheceram amantes.
O momento cruciante da vida de Sancho, aquele em que lhe foi retirado
o último apoio com que contava, a mulher, ficaria para sempre envolto em
dúvida. A rainha fora sequestrada, de facto? Ou apenas levada com a sua
conivência? A verdade é que fora raptada do paço sem grande resistência,
e daí para Ourém, que era um castelo que lhe pertencia, e que, depois
disso, partiu para Castela, vivendo tranquilamente em terras do cunhado.
E que terá morrido provavelmente em Palência, onde possuía terras, em
1270, muitos anos depois do marido. Muitos anos em que nada parece ter
feito em particular para lembrar ou defender a honra desse desgraçado
Sancho II.
Quanto ao irmão usurpador, a verdade é que só aceitaria ser
oficialmente coroado rei depois da morte do irmão. Tornou-se então Dom
Afonso III e, se hoje não o recordamos como um malfeitor ou, pelo
menos, uma das mais dúbias figuras que subiu ao trono nacional, foi
porque Afonso soube apagar depressa a memória daqueles anos de guerra
com o irmão com estrondosas vitórias militares, que fariam com que, logo
em 1249, tivesse conquistado todo o Algarve e alcançado o Mediterrâneo.
E assim, passados pouco mais de cem anos da fundação, Portugal
continental ganhava já, com ligeiros ajustes, o desenho que lhe
conhecemos até hoje.
A história poderia terminar assim, mas falta falar de alguns pormenores
curiosos. É que Afonso III estava longe de ser a pessoa «prudente» que o
Papa recomendara para «governador e defensor do reino». Naqueles 15
anos que vivera por França, levara uma vida folgada e boémia. O
cognome de o Bolonhês pode dar-lhe uma aura de viajante cosmopolita,
mas, em rigor, devia-se apenas ao facto de ser casado com Dona Matilde,
viúva de Filipe Hurupel e condessa de, entre outras terras, Bolonha. O
casamento acontecera em 1238, mas, como sabemos, desde 1245 que
Afonso vivia em Portugal, de modo a dar batalha ao irmão. Ora, quando
Sancho morreu, em 1248, e o Bolonhês se sentiu, enfim, livre de
consciência para tomar a Coroa, decidiu também casar com Dona Beatriz
de Gusmão, como se uma vida nova ali tivesse começado e não houvesse
uma outra para trás, que incluísse uma esposa poderosa, algures deixada
em França.
Tinha muito amor para dar, este novo rei de Portugal. Tanto que se
permitira apaixonar por esta Beatriz, uma criança de nove anos que era
filha do rei Afonso X, esse que ainda há pouco combatera ao lado de Dom
Sancho II contra os avanços deste que era agora seu genro. E veja-se,
coincidência das coincidências, isto junta-se o útil ao agradável, este
casamento permitia assim a Afonso III de Portugal uma saudável aliança
com Castela, assegurando as pazes entre os reinos e garantindo que os
vizinhos do lado de lá deixavam de lhe disputar a parte do Guadiana que
até ali haviam reclamado. Ah! E mais uma coisa: Afonso III era primo
direito do avô da mulher. Isto é, ele e a pequena Beatriz ainda eram
primos.
Tínhamos, portanto, um rei que depusera o irmão e lhe mandara raptar a
mulher, baseado na acusação de que Sancho e Mécia ainda eram parentes.
E este mesmo rei podia agora ser acusado de bigamia, pedofilia e incesto –
para já não falar de uma certa falta de coerência.
Com este comportamento na vida pessoal, não estranha a conduta
política que Afonso III viria a ter. Estamos todos lembrados da jura que
fizera em Paris, quando lhe ofereceram o trono de Portugal, aquele a que
nunca poderia aspirar por ser um segundo filho, e de como prometeu
devolver tudo a todos, particularmente à Igreja. Pois, agora que era rei,
que tinha conquistado todas as terras possíveis até ao mar e assegurado a
paz por intermédio do casamento com a filha do rei vizinho, Afonso
sentiu-se à vontade para esquecer tudo quanto antes prometera. Donde
podia vir a ameaça? A retaliação? De modo que, passo a passo, foi
seguindo o exemplo do irmão e do pai. Compreendendo que era
impossível reinar consentindo contrapoderes debaixo do seu nariz, o
Bolonhês foi retirando posses e poderes a clérigos e nobres, de forma mais
ou menos violenta, consoante a resistência.
Para as mesmas causas, as mesmas consequências: padres e bispos
começam a apontar a lista de queixas e a fazê-las chegar a Roma (muito
trabalho dava então Portugal aos secretários do Papa); o pior, porém, ainda
estava para vir… Em 1253, Dona Matilde descobre que o marido, que há
oito anos partira para a guerra, era agora rei de Portugal e vivia no paço ao
lado de uma rainha que não era ela.
A condessa pôs-se a caminho e, chegada a território nacional, foi tirar
satisfações junto do marido. Afonso não se atrapalhou e expulsou-a do
reino, mas ela não quis ficar atrás: escreveu directamente ao Papa,
explicando minuciosamente o sucedido. A queixa foi juntar-se às 43 do
libelo apresentado pelos bispos do Porto, Coimbra e Braga contra o rei.
De Roma chega uma ordem clara: Dom Afonso III devia abandonar de
imediato a segunda esposa e respeitar o sagrado matrimónio com Matilde.
Será que Afonso pensou, naquele momento, no irmão? Não se sabe. Sabe-
se que fez o mesmo que Sancho: ignorou, olimpicamente, as palavras do
Papa.
Matilde morreria pouco tempo depois, em 1258, de modo que essa parte
do problema estava – digamos – resolvida; agora, faltava tratar da outra…
A querela com a Igreja ia arrastar-se no tempo, até que as Cortes se
reúnem, em Santarém, para deliberar sobre a questão. Formada uma
comissão de inquérito, resulta a decisão de absolver o rei dos seus pecados
– uma conclusão natural, dado que Afonso tinha conseguido infiltrar na
dita comissão abundantes apoiantes. Contudo, mover influências em
Portugal era uma coisa; em Roma, outra… Levado ao limite da paciência,
Gregório X explodiu e fez de Dom Afonso III o terceiro rei português a
ser consecutivamente excomungado.
Os anos passavam e a morte aproximava-se. Afonso olhava para trás e
temia pelo que tivesse pela frente. Não se podia dizer que houvesse levado
uma vida conforme aos ideais cristãos – será que o esperava o fogo eterno
do inferno? Em 1276, Deus parecia pôr-se do lado dele: depois de tanto
problema com tanto Papa, eis que a cadeira de Pedro era ocupada por um
português: Pedro Julião, aliás Pedro Hispano, aliás Papa João XXI, o
primeiro e único Sumo Pontífice nascido nesta terra que Afonso
Henriques começara e ele, Afonso III, completara. Finalmente, haveria
paz. Finalmente, haveria entendimento. Finalmente, pensou, em sentido
literal e metafórico, um Papa que falava a mesma língua do que ele. Mas,
11 meses depois, o tecto do quarto de João XXI, no Palácio de Viterbo,
desabou sobre Sua Santidade. Era muito azar.
Dom Afonso tinha 67 anos; a sua esposa 35. Sentia o mundo em cima
dele, a velhice, a doença, a corrupção, a impotência, a inexorabilidade
disto tudo. E as penas do inferno ali tão perto… E se o inferno não
existisse? Se isso fosse tudo para nos meter medo? E se não fosse? E se
houvesse mesmo fogo eterno? E se ele fosse para lá? E se lá estivesse o
irmão? E Matilde? E os Papas todos?
O rei começou a pedir perdão. Pediu e repetiu. Voltou a jurar, como
tantos anos antes, em Paris. Jurou que devolveria tudo o que tirara ao
clero. E devolveu. Mas Roma já não levantaria a excomunhão, nem os
bispos de cá. Era tarde, muito tarde. Nos últimos dias, o abade de
Alcobaça compadeceu-se dele e, quando Afonso III morreu, a 16 de
Fevereiro de 1279, foi lá a enterrar.
História de um casamento
DOM DINIS & A RAINHA SANTA ISABEL

Repousa no Mosteiro de Odivelas um dos mais importantes reis da


História de Portugal: Dom Dinis.
A origem do edifício está envolta numa lenda. Diz-se que foi o
cumprimento de uma promessa. Que, durante uma caçada, Dom Dinis
teria sido atacado por um urso e que, rezando aos seus santos protectores,
São Dinis e São Luís, jurou fundar ali um mosteiro, caso conseguisse
salvar-se. E assim teria acontecido. Crente de que poderes maiores o
protegiam, o rei teria desembainhado o punhal que trazia à cintura e
investido sobre a fera, cravando-lhe a lâmina no coração. E, se
descontarmos à história a estranheza de haver ursos às portas de Lisboa,
sobram os factos: o mosteiro erguido, depois arrasado pelo terramoto de
1755, mas com o túmulo de Dom Dinis a escapar incólume no interior da
igreja gótica primitiva.
O edifício foi reconstruído e sobrevive até hoje, guardado por uma
estátua da mulher do rei, ela própria também uma figura especialíssima da
História nacional: a rainha Isabel de Aragão.
Não é ali, porém, que repousa o corpo da Rainha Santa. Naquela época,
muitos reis e rainhas europeus não eram enterrados juntos, mas Dom
Dinis tinha mandado fazer o Mosteiro de Odivelas precisamente para que
fosse o Panteão Régio, a última morada dos reis de Portugal. Porque terá
Isabel preferido ser enterrada num mosteiro que ela mesma mandara fazer,
o de Santa Clara, em Coimbra, bem longe do marido?

Dom Dinis foi o sexto rei de Portugal e, depois de Afonso Henriques,


provavelmente o mais determinante de toda a primeira dinastia para a
História nacional.
Se Portugal é hoje um dos mais antigos estados-nação do mundo, isso
deve-se, em grande medida, às decisões que Dinis tomou durante os 46
anos do seu longo reinado. Em 1297, concluída a reconquista do território
aos mouros, assinou com Castela e Leão o Tratado de Alcanizes, pelo qual
ficaram definidas as fronteiras que Portugal mantém, com ténues
alterações, até hoje. Foi também ele quem instituiu o português como
língua oficial da corte e um dos seus primeiros cultores através das mais
de 140 cantigas líricas e satíricas que escreveu e compôs (pensa-se mesmo
que terá sido o primeiro rei português alfabetizado). Criou os Estudos
Gerais, a primeira universidade do reino, inicialmente instalada em Lisboa
e transferida, em 1308, para Coimbra. Introduziu no reino o papel,
substituindo o pergaminho, reorganizou o exército e a marinha de guerra.
Libertou as ordens militares de influências estrangeiras e fundou a Ordem
de Cristo, que recolheu os bens dos Templários quando os Cavaleiros da
Ordem do Templo foram malditos e extintos.
Na senda dos antepassados, prosseguiu a centralização do poder na
Coroa, enfrentando e vencendo, para isso, a resistência da nobreza e do
clero. E, apesar de ter levado essa luta ainda mais longe do que os
antecessores, conseguiu escapar à excomunhão e pôr termo à guerra fria
que desde Dom Afonso II corria entre Portugal e a Santa Sé. A
reconciliação é oficializada em 1289, quando o Papa Nicolau IV publica
da bula Cum Olim.
Com o poder centralizado em si, o rei impulsionou a economia nacional.
Ordenou a exploração de minas de cobre, prata, estanho e ferro, organizou
a exportação dos excedentes e assinou o primeiro tratado comercial entre
Portugal e Inglaterra. As terras que entregou aos camponeses valeram-lhe
o cognome de o Rei Lavrador; o pinhal de Leiria, a que deu franco
desenvolvimento, não só protegeu os terrenos agrícolas ao redor, como se
revelaria fundamental na hora em que Portugal descobrisse a vocação
expansionista e necessitasse de madeira para a construção das
embarcações.
Seria de esperar que a herança de um rei tão influente pudesse ter
ofuscado a memória da mulher; no entanto, sucedeu justamente o
contrário. Isabel de Aragão é tão conhecida como o marido e,
possivelmente, a mais recordada e admirada rainha consorte de toda a
História de Portugal.
Com a sua cultura, formação e acção diplomática, Isabel contribuiu
decisivamente para que o reinado do marido fosse um grande reinado.
Com Dom Dinis, formou uma família real que anunciava já a transição da
Baixa Idade Média para o primeiro renascimento europeu, apoiando as
artes, a cultura, a educação e a afirmação de Portugal no turbulento quadro
político da Europa de então.
No entanto, é sobretudo pela bondade de carácter que Isabel é
recordada. Pela dedicação aos pobres, aos órfãos e aos doentes, pelos
hospitais e asilos que fundou e por um episódio lendário segundo o qual
teria transformado pão em rosas. Afinal, Isabel foi eleita santa pelo povo
imediatamente após a morte, 300 anos antes de ser oficialmente
canonizada pelo Papa Urbano VIII.
Tínhamos então um rei a quem Portugal deve boa parte da afirmação da
identidade nacional e uma rainha santa. Juntos, tiveram dois filhos, um
casal: ele sucedeu ao pai como rei português, ela tornou-se rainha de
Castela. A família real perfeita, certo? Errado. Certamente, uma das mais
atormentadas da História.

Em 1280, Isabel tinha cerca de dez anos e era já uma das princesas mais
desejadas da Europa. No sangue, corriam-lhe múltiplas linhagens reais e
imperiais. Era a filha primogénita do rei Pedro III de Aragão e de
Constança de Hohenstaufen, princesa da Sicília, irmã dos futuros Afonso
III e Jaime II de Aragão, neta de Jaime I e Violante da Hungria, e
descendente, por via materna, de Frederico II, o sacro imperador romano-
germânico, que, por ter passado a vida em guerra com Roma, foi
rebaptizado pelo Papa Gregório IX como o Anticristo. Recuando um
pouco mais, descobria-se um vago parentesco com o futuro noivo, Dom
Dinis, já que ambos se encontravam unidos pelo tetravô Frederico I, o
Barba Ruiva.
Mas Isabel não descendia apenas de grandes senhores do poder
temporal; provinha também de uma casta invulgarmente dada a senhoras
do poder espiritual… Tinha, pelo menos, quatro santas na família: Santa
Edviges, Santa Inês da Boémia, Santa Margarida e Santa Isabel da
Hungria. Casar com esta princesa, portanto, era entrar directamente para
alguns dos salões mais poderosos do Ocidente, incluindo os da Santa Sé.
A complexidade da árvore genealógica não garantia que Isabel viesse a
ser santa ou sequer rainha, mas assegurava que, pelo menos, seria educada
para ser ambas. É primeiro entregue aos cuidados do avô, que lhe chama a
Rosa de Aragão, já que o seu simples nascimento teve o condão de trazer
a paz a uma corte fustigada por intrigas, e depois, quando este morre, aos
pais. Inspira-se no modelo das mulheres da família, cultas, devotas,
rainhas perfeitas, e é educada por clarissas, o ramo feminino da Ordem
Franciscana.
Esta criança, que é disputada por infantes de Inglaterra, França, Nápoles
e Sicília, vai ser entregue em casamento a Dom Dinis, rei de Portugal,
depois de uma longa negociação que se estenderá por mais de um ano e
que incluirá o envio de alguns embaixadores portugueses com a missão
específica de travar as investidas de congéneres estrangeiros.
Para Portugal, casar o rei com a princesa aragonesa significa conseguir
um aliado de peso na guerra contra o clero e a nobreza. Para o rei Pedro de
Aragão, significa fazer da filha imediatamente rainha, uma vez que o
português é o único dos pretendentes que se encontra já sentado no trono –
ainda por cima, tratando-se do herdeiro duma estirpe fundadora de um
reino. Por outro lado, ganha ainda um aliado importante no equilíbrio de
poderes da Península, cercando Castela, e nas lutas contra a França pela
posse de Nápoles e da Sicília. Estávamos na Baixa Idade Média: um
casamento real não era uma união entre um homem e uma mulher, era um
extraordinário pedaço de estratégia política.
O matrimónio acontece por procuração a 11 de Fevereiro de 1281, em
Barcelona. São os embaixadores portugueses quem ouve o «sim» da nova
rainha: «Eu, Isabel, filha do ilustríssimo Dom Pedro, por graça de Deus,
rei de Aragão, entrego o meu corpo como legítima esposa a Dom Dinis,
rei de Portugal e do Algarve, ausente como se estivesse presente.» Ela tem
11 anos, ele tem 20, mas só se conhecerão um ano e quatro meses mais
tarde, depois de uma longa e cautelosa travessia dum lado ao outro da
Península, já que Castela se encontra em guerra. O pai acompanha-a até à
fronteira de Aragão; a partir daí, segue escoltada pelo infante Jaime, seu
primo, com criados, confessores e camareiras carregando as arcas com o
enxoval. Entra em Portugal pela fronteira da Beira, onde a aguarda
Afonso, o cunhado. Marido e mulher só se verão pela primeira vez olhos
nos olhos em Julho de 1282, em Trancoso. Há fogueiras, banquetes e
festejos. Depois, virá a realidade: o amor que Dom Dinis não teve por
Isabel.

Quando Dom Dinis casou com Dona Isabel é provável que o seu
primeiro filho bastardo, Dom Pedro de Barcelos, já tivesse nascido. O
segundo, Afonso Sanches, futuro senhor de Albuquerque, nasce ainda
antes de rei e rainha terem qualquer filho legítimo. O terceiro, João
Afonso, terá vindo ao mundo por volta de 1888, mais ou menos pela
mesma altura de Constança, a primeira filha de Dona Isabel. Ao todo,
Dom Dinis haveria de ter pelo menos oito bastardos, quase todos nascidos
até final do século e quase todos de mulheres diferentes.
Já sabemos que, naquele tempo, invulgar era encontrar o rei que não
tivesse filhos ilegítimos. Era visto como um procedimento normal, que
assegurava a descendência em caso de infertilidade das rainhas e garantia,
frequentemente, um laço de sangue entre a Casa Real e senhoras
escolhidas entre importantes casas senhoriais, mas Dinis, digamos,
abusou. Abusou no número de amantes (até porque não consta que se
tratassem, amiúde, de senhoras nobres), no número de filhos e na total
despreocupação para com as fases da vida da legítima esposa em que os
teve. E abusou ainda num requinte final: entregou boa parte destes
bastardos à mulher, para que os educasse como se fossem dela.
Com Isabel, o rei teve apenas dois filhos: Constança nasceu quando a
rainha tinha já 20 anos, relativamente tarde, sobretudo se levarmos em
conta que estava já casada há oito; Afonso vem no ano seguinte. A filha
foi logo prometida em casamento ao herdeiro do trono de Castela; Afonso
seria o herdeiro natural à Coroa portuguesa. Assegurada esta formalidade,
Dom Dinis parece não ter voltado a preocupar-se com o assunto.
Durante largos períodos do ano, rei e rainha não vivem juntos sequer.
Ele é um homem impetuoso, carnal, viril; ela, uma mulher espiritual, de
grande devoção religiosa, a tal criança que cresceu educada para ser rainha
e santa. Do ponto de vista amoroso, é provável que nunca tenham sentido
qualquer atracção um pelo outro.

Ai flores, ai flores do verde pinho


Se sabedes novas do meu amigo,
Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores, do verde ramo,
Se sabedes novas do meu amado,
Ai Deus, e u é?

O povo vai construir a imagem de um rei que vive entre guerras e


assuntos de alcova, de tal modo que não se conseguirá, depois, separar a
realidade da caricatura. Por isso, as trovas que Dom Dinis escreve hão-de
ser sentenciadas como devaneios sentimentais acerca das suas alegadas
conquistas amorosas.
Por oposição, a imagem da rainha solitária, distante dos prazeres
carnais, sacrificada a educar os filhos dela e os das outras, ajudará a criar
em volta de Dona Isabel a aura de mulher, esposa e mãe perfeitas, em
caminho penitencial rumo à santidade.
À imagem das antepassadas, mas possivelmente indo ainda mais longe,
a rainha vai usar das suas rendas e autonomia para se dedicar a um épico
trabalho de apoio social. Sozinha num mundo de homens, movimenta
dinheiros e influências para construir obras de misericórdia. Em Santarém,
funda o Hospital dos Inocentes Enjeitados; em Leiria, um hospital e uma
gafaria; em Coimbra, o Hospício dos Pobres, o Hospital de Velhas
Inválidas e o Recolhimento para a Regeneração das Desgraçadas. Manda
construir albergarias em Estremoz, Alenquer e Odivelas, e uma gafaria em
Óbidos. A obra mais emblemática, o Mosteiro de Santa Clara, diante de
Coimbra, mandara-a levantar volvidos quatro anos de casamento.
Estes são os factos. Ao redor deles conta-se depois um ror de coisas.
Que acompanhava pessoalmente as obras e dava indicações precisas de
arquitectura e engenharia. Que tinha conhecimentos de medicina e
enfermagem, criando mezinhas próprias (já depois da sua morte, diz-se
que as freiras de Santa Clara tratavam mulheres sem leite para amamentar
com um remédio criado pela rainha à base de penas de galinha branca).
Que vendia as suas jóias para comprar trigo a reinos estrangeiros com que
saciar a fome aos pobres. Que tratava chagados e leprosos com as próprias
mãos e curava doentes no simples movimento de lhes beijar as feridas.
Que saía às escondidas do marido para distribuir esmolas. E que, numa
dessas ocasiões, teria sucedido o célebre «milagre das rosas», descrito
nestes termos por Frei Marcos de Lisboa, na Crónica dos Frades
Menores:
Levava uma vez a Rainha Santa moedas no regaço, para dar aos
pobres. Encontrando-a, el-rei lhe perguntou o que levava. Ela disse:
«Levo aqui rosas.» E rosas viu el-rei, não sendo tempo delas.

Curiosamente, este episódio só surgiria relatado pela primeira vez cerca


de um século depois da morte da rainha. E era em tudo semelhante a um
outro que se contava já acerca da sua tia-avó homónima, Santa Isabel da
Hungria.
Mas há todo um outro género de lendas em volta da Rainha Santa. Um
conjunto menos religioso e mais humorístico, dedicado à toponímia e mais
directamente inspirado nos seus desamores com o marido…
De acordo com uma determinada corrente popular, Dom Dinis não se
teria interessado por Odivelas na tal caçada em que fora salvo pelos santos
dum urso feroz, mas porque a zona seria ponto de encontro recorrente com
as amantes. Assim, de acordo com esta versão, certa vez teria a rainha
perdido a paciência com as ausências do esposo e decidido procurá-lo.
Encontrando-o na dita região às portas de Lisboa, teriam encetado
acalorada conversa. Perante a obstinação do rei em regressar ao palácio
sem antes tratar dos assuntos que ali o haviam trazido, Isabel teria então
respondido: «Oh! Ide vê-las, senhor!» De «Oh-ide-velas» a «Odivelas»
teria sido, pois, um pequeno pulo coloquial.
Na mesma linha de raciocínio, dá-se a explicação para a origem do
nome «Lumiar», ligeiramente mais abaixo no mapa nacional. A mesma
situação, a mesma atitude: estando Dinis ausente, Isabel parte à sua
procura, desta vez acompanhada de alguns criados, empunhando tochas.
Ao ver a mulher por aquelas paragens, Dinis ter-lhe-ia perguntado que
fazia ali, àquelas horas da noite. Resposta da rainha: vinha «alumiar» o
caminho ao esposo, dado que este se encontrava cego de amor.
Também há quem reclame a mesma herança para o lugar de Cegodim,
pretensa degeneração, desta feita não de remate da rainha, mas da
desavergonhada confissão do rei: «Cego vim!» Contudo, é provável que
não se encontre um só linguista que defenda a credibilidade destes mitos,
verdadeiramente, urbanos.
Um último presume explicar a origem do topónimo «Pataias», por uma
vez, sem culpas para Dom Dinis. Iria a rainha de viagem quando as rodas
da carruagem se teriam partido. Descendo para o caminho e prosseguindo
pelo próprio pé, Isabel teria então ordenado às suas damas: «À pata,
aias!», linguajar altamente improvável para uma mulher descrita como
erudita e que dominava, oralmente e por escrito, o português, o catalão, o
castelhano e o latim.

O infortúnio daquela relação entre rei e rainha estender-se-ia aos filhos.


Dona Constança morre com apenas 23 anos, depois de um casamento que
também não terá sido especialmente feliz com Dom Fernando IV de
Castela. Diz-se que Isabel, figura inspiradora de toda a espécie de
histórias, manterá, até ao fim da vida, contactos pós-morte com a falecida
filha. Quanto a Afonso, tornar-se-á a mais espinhosa das suas missões.
Naquele final da Idade Média, os senhores feudais não se vão entregar
sem luta ao poder dos reis. Inteligentemente, nobreza e clero escolhem
para líder nem mais nem menos do que o próprio herdeiro de Dom Dinis.
A partir de 1319, Afonso vai começar a enfrentar no campo de batalha o
pai, quanto este é já um velho rei quase sexagenário. Antes, Dom Dinis
tivera já de se bater, pelas mesmas razões, contra o próprio irmão. Por três
vezes se defrontaram e por três vezes o rei venceu, até que, por fim, se
chegou a um acordo para a rendição do irmão e posterior exílio em
Castela.
Com o filho, o embate será ainda mais duro e contra-natura. Afonso
começa por abandonar a corte para ir pedir à rainha de Castela apoio nas
suas pretensões ao lugar de mordomo-mor. O cargo assegurava o controlo
administrativo do reino, pelo que, se fosse Afonso a ocupá-lo, poderia
travar a política centralizadora de Dom Dinis. Contudo, a ambição do
príncipe também tinha origem num ciúme familiar: desejava ardentemente
afastar aquele que era então o mordomo-mor, Afonso Sanches, filho
bastardo do pai e, portanto, seu meio-irmão.
À medida que se apercebe de que marido e filho podem estar para se
enfrentar de armas na mão, Isabel tenta demover Afonso das suas
pretensões, mas Dom Dinis, julgando que a mulher está a proteger
Afonso, desterra-a para Alenquer. O caso inspiraria a ópera de Handel
Dionisio, Re di Portogallo.
Com o afastamento da mãe, a tensão entre pai e filho prossegue num
perigoso crescendo. Dom Dinis consegue sitiar Afonso em Coimbra e
prepara-se para avançar sobre ele com forças muito superiores. Porém, no
testemunho mais eloquente da sua personalidade, Isabel desobedece
abertamente ao marido e abandona Alenquer para ir demover o filho de
uma guerra onde o melhor a que poderia aspirar seria sair vivo de uma
derrota humilhante.
Todavia, pai e filho eram gente igualmente inflamável – ao menos isso
os unia – e, no ano seguinte, já estariam de volta à carga. No Campo de
Loures, Alvalade, a tragédia adiada parece agora inevitável: os exércitos
de Dinis e Afonso marcham já um contra o outro. Mas, no último
momento, Isabel surge montada numa mula, interpondo-se entre as frentes
de guerra e obrigando-as a pararem.
A rainha tinha arriscado a própria vida, mas, depois daquele dia, o
conflito entre o rei e o príncipe começaria a esbater-se até terminar num
acordo de paz definitivo. Quanto a Isabel, consolidava entre os súbditos a
imagem que haveria de a perpetuar na memória colectiva: a de rainha da
paz.

Dom Dinis não viveria muito mais. Morre em 1325, um ano depois do
armistício com o filho. Nos últimos dias de vida, teve sempre Isabel ao
lado, a dedicada e devota mulher que, ao menos na hora do testamento,
soube respeitar e honrar:

(…) A ella tenho eu por bem que seja a principal, & a maioral
testamenteira, porque som certo que fará por mim, & pella minha
alma todo aquelo que ella poder (…).

Como era seu desejo, el-rei foi então a enterrar no Mosteiro de «Oh-ide-
vê-las» e o filho sucedeu-lhe no trono como Dom Afonso IV. Quanto a
Isabel, vestiu o hábito de clarissa e viveu os onze anos seguintes no
Mosteiro de Santa Clara, que ela mesma mandara construir com um paço
anexo ao convento, por onde entrava e saía e a partir do qual continuaria a
administrar os seus bens e a fazer obras de misericórdia.
A rainha morreu em 1336, quando, uma vez mais, tentava fazer a paz
em nome do filho. Desta feita, o adversário era Afonso XI, rei de Castela,
seu neto e genro de Afonso. O belicoso rei português declarou-lhe guerra
quando este fez menção de repudiar a mulher para assumir uma relação
com Leonor de Gusmão. Dona Isabel partiu em direcção à fronteira para
tentar mediar uma conversação de paz, mas, aos 66 anos, não resistiu a
dias de viagem sob o calor de Julho, morrendo quando se encontrava na
zona de Estremoz.
Para cumprir o desejo que a mãe deixara expresso em testamento de ser
enterrada em Santa Clara, Dom Afon-so IV mandou então ungir-lhe o
corpo com perfumes, ervas e substâncias aromáticas que retardassem a
decomposição do cadáver durante a longa viagem. Sete dias depois, sete
dias sob o ardor do Verão, o povo de Coimbra era surpreendido pelo
maravilhoso aroma que emanava do caixão da rainha. Assentando que se
tratava dum milagre, o episódio tornar-se-ia o epitáfio perfeito à história
duma mulher que há muito era olhada com veneranda admiração.
Nos dias seguintes, surgiria toda a espécie de lendas em torno da Rainha
Santa. Isabel de Aragão tinha ganho, definitivamente, contornos
sobrenaturais.

No entanto, se nos quisermos distanciar dos incertos retratos da fé,


veremos emergir aquilo que Isabel foi para lá de qualquer dúvida ou
especulação: uma das mais influentes rainhas de toda a História da
Península Ibérica.
Como dissemos, extraordinariamente preparada desde criança para
reinar, ligada por laços familiares a casas reais e cristandade e fazendo
prova da sua cultura e inteligência, Dona Isabel foi, acima de tudo, uma
diplomata e um pilar de bom senso numa península onde reis e nobres
ofereciam guerra por tudo e nada.
Ao longo de toda a vida, Isabel nunca deixou de se corresponder
intensamente com reis e papas, havendo cartas datadas e assinadas por ela
de 16 localidades. Por esse meio, mantinha-se informada dos
desenvolvimentos políticos de Portugal, Castela e Aragão, dava
seguimento a uma política de casamentos que assegurasse a paz em vez da
guerra, defendia os interesses dos descendentes, reclamava dívidas e geria
o seu património.
Dom Dinis não ignorava o talento diplomático da mulher e é por isso
que nem tudo foi mau, afinal, no seu casamento: em momentos de crise
política, aproximavam-se. Isabel foi a sua maior conselheira e a razão de
Portugal ter gozado então duma rara e prestigiante posição: a de árbitro
nos acordos e conflitos de toda a Península.
Em benefício directo de Dom Dinis, Isabel não conseguiu apenas pôr
termo à guerra que o opunha ao filho; também fez o mesmo na que antes o
opusera ao irmão. Foi ela quem ofereceu ao cunhado Armamar, Ourém e
Sintra, terras que eram dela, a troco de uma rendição e exílio em Castela.
E foi também ela, a descendente de uma longa linhagem de santas, quem
conseguiu que o Papa ouvisse as razões de um rei que era filho, sobrinho e
neto de três excomungados, e se chegasse a um acordo de paz entre
Portugal e Igreja, depois de mais de 60 anos de guerra.
É por isso, pois, que, apesar da falta de amor, apesar de todas as lendas e
apesar até de o rei repousar para sempre em Odivelas e a mulher em
Coimbra, Dom Dinis parece ter dedicado pelo menos uma trova à sua
legítima Isabel de Aragão.

Pois que Deus vos fez, senhora,


Fazer do bem sempre sempre o melhor
E dele ser tão sabedora,
Em verdade vos direi:
– Assim me valha o Senhor!
Érades boa para Rei!

E pois sabedes entender


Sempre o melhor e bem escolher,
Verdade vos quero dizer,
– Senhora que sirvo e servirei:
– Pois Deus assim o quis fazer,
Érades boa para Rei!
São Joooooooooooooorge!!!
DOM AFONSO IV

A batalha está prestes a começar. Consegue sentir? Os cascos dos


cavalos formando, o sibilar das espadas correndo as bainhas, o metal dos
elmos a fechar, a respiração tensa de algumas centenas de soldados, os
pendões enrolando-se no vento. À frente das tropas, o rei. É Dom Afonso
IV, o Bravo. Ele espera o instante certo. Espera, espera… Roda
ligeiramente o rosto, ouve qualquer coisa ao fundo, apura a visão, cerra os
dentes, benze-se uma última vez. O inimigo está ali. O inimigo que é
Castela. O inimigo que espera como ele espera o momentum. O inimigo
que vai avançar como ele vai avançar… É agora! Afonso vai gritar.
Afonso vai ao fundo das entranhas libertar o famoso grito de guerra dos
Portugueses. Vai encher o peito e soltar:
«Saaaaaaaaaaantiaaaagooooooooooo!!!!» Afonso fecha no punho as
rédeas do cavalo, abre a boca, os soldados já o ouvem por antecipação,
mas, de repente… não lhe sai nada. Ou talvez saia um miserável «Sss».
Pára. Petrifica. Empalidece. Os soldados entreolham-se pelas frestas dos
elmos. Fixam o rei. O Bravo, subitamente desfeito, perdido, sem alma.
Que se passa, majestade?, talvez alguém tenha perguntado. E o rei volta-se
lentamente, muito, muito lentamente. O rei pergunta se não ouviram. Os
soldados entreolham-se outra vez. O rei engole em seco, respira fundo,
deixa as rédeas e diz, por fim, sem bravura: o inimigo… o inimigo tem o
mesmo grito de guerra do que nós.
Foi uma descoberta cruel para Dom Afonso IV, mas a coincidência, na
verdade, não era assim tão extraordinária. Muitos séculos antes dele,
quando se começaram a formar as primeiras comunidades cristãs da
Península Ibérica, era comum que localidades vizinhas e rivais tivessem o
mesmo santo padroeiro. Eram tempos difíceis, de grandes carências, muito
desconhecimento, com o medo que lhe subjaz. A vida fazia-se na aldeia,
entre caras familiares, ao redor da igreja. O que viesse de fora era o mal, o
agressor, o invasor, o corruptor. O santo da preferência dos locais, o orago,
era escudo protector para todos os males: doenças, desavenças,
adversidades meteorológicas e, sim, povoados vizinhos. Só que, se a gente
duma determinada terra tinha ouvido falar de um determinado santo que
apreciou e escolheu para patrono, era altamente provável que a história
desse mesmo santo também tivesse chegado à outra terra, que ficava dois
quilómetros mais acima, e que também tivesse inspirado a devoção da
gente de lá. Uns e outros só não sabiam disto porque não se falavam.
De modo que o mesmo santo, lá onde estivesse, podia receber preces
difíceis de conciliar: da vila de cima, pediam-lhe a vitória sobre a vila de
baixo; da vila de baixo, imploravam-lhe o massacre da vila de cima.
Tempos difíceis, como dizíamos.
Ora, isto foi muito lá atrás, em fins do Império Romano e princípios da
Idade Média. Aos poucos, a informação correu, a galeria de santos
diversificou-se e cada terra passou até a poder reivindicar não um, mas
vários protectores.
Hoje, quantos padroeiros tem Portugal?
Muitos, na verdade, e nem todos são santos. Um é, justamente, o Anjo
de Portugal. Um anjo-da-guarda, mas para todo um país. Foi o rei Dom
Manuel I, em inícios do século XVI, que pediu ao Papa Leão X que
reconhecesse o culto. E de Roma veio um sim. Podia fazer-se a festa.
Outros reinos possuíam outras coisas – ouro, diamantes, marfim –, nós
tínhamos um anjo. O povo já lhe rezava há muito tempo, a resposta do
Papa foi só a confirmação oficial. Uma das orações que então lhe
dedicávamos não era muito diferente, na essência, do espírito da aldeia
medieval que temia o invasor: «Vinde, Anjo de Portugal, livrar a Pátria e
os Portugueses de todo o mal.» Um pouco exclusivista, não muito
ecuménico. Já no século XX, os três pastorinhos de Fátima terão dito que
também o viram, antes de Maria. E ainda haverá, decerto, quem lhe reze
nos nossos dias.
Ora, seria precisamente uma filha do rei Dom Manuel I a inspirar a
conversão de outro dos padroeiros de Portugal. Dona Isabel, irmã dos
futuros reis Dom João III e cardeal Dom Henrique e descrita como a
mulher mais bela do seu tempo, casou com Carlos I, rei de Espanha, que
haveria de se tornar no todo-poderoso Carlos V, senhor da Alemanha,
Itália, França e Flandres, fazendo dela imperatriz do Sacro Império
Romano-Germânico. Depois de 14 anos de um casamento que a memória
colectiva conservou como excepcionalmente feliz, Isabel morreu na
sequência de complicações de parto. Encarregado de a levar à morada
final, o duque de Gandia, há muito apaixonado em segredo pela
imperatriz, foi assombrado pela visão de Isabel morta, no interior do
caixão: a deslumbrante beleza que até poucos dias ainda contemplara era
agora já velozmente devorada pela decomposição da carne. Aterrado pela
fragilidade humana, o duque terá então jurado não mais servir a qualquer
mortal, mas exclusiva e directamente a Deus eterno e omnipotente. Algum
tempo depois, este homem, de nome Francisco Bórgia, bisneto do devasso
Papa Alexandre VI e, portanto, descendente de toda uma família de má
fama, enviúva e como que se liberta do último obstáculo à consumação do
seu voto. Desfaz-se de todos os títulos, ingressa na Companhia de Jesus e
vai levar uma vida de pregador. É eleito superior-geral da Ordem, em
1565, morre em 1572 e é canonizado em 1671.
Pouco antes, nesse mesmo século XVII, outro rei deu-nos outro
padroeiro. Padroeira, melhor dizendo. Foi Dom João IV, que, ao lado da
esposa, Dona Luísa de Gusmão, coroou em Vila Viçosa a imagem de
Nossa Senhora da Conceição. Portugal era agora protegido por um anjo,
pelo bisneto dum Papa e por Maria, a mãe do próprio Messias – não nos
podíamos queixar
Mas, pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, angariámos ainda
mais um padroeiro: Santo António. O português que nascera junto à Sé de
Lisboa quis morrer perseguido, em nome da fé, em África e acabou
celebrado como intelectual e orador em Pádua. O santo que o povo celebra
como gordinho e folião, amigo para todas as ocasiões e casamenteiro, e
que na verdade foi um religioso austero, proclamado depois um dos
únicos 33 doutores da Igreja, intelectuais que mudaram o curso do
cristianismo, ao lado de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino ou Santa
Teresa de Ávila.
António é, pois, padroeiro de Portugal, embora muita gente pense que é
o padroeiro de Lisboa, que, na realidade, é São Vicente, mártir de
Valência, no ano de 304 da nossa era, e uma das muitas vítimas da grande
perseguição ordenada pelo imperador Diocleciano aos cristãos e cujas
relíquias foram mais tarde mandadas trasladar por Dom Afonso Henriques
do cabo de São Vicente para Lisboa, sendo escoltadas na viagem, diz a
lenda, por dois corvos que ainda hoje moram no brasão de armas da
cidade. No entanto e ao que parece, os santos entenderam-se e
distribuíram pelouros: Vicente fica com o patriarcado e não se importa que
António tenha o feriado municipal; nenhum dos dois parece depois
perturbar-se com o facto de o maior símbolo da cidade ser, afinal, o
Castelo… de São Jorge.
São Jorge. Decerto já o viu representado pelo menos uma vez numa das
muitas obras de arte inspiradas na sua lenda, a cavalo, enfrentando um
dragão. E o pendão de Jorge, uma cruz vermelha sobre fundo branco, onde
o terá visto?

Dom Afonso IV é frequentemente tomado pelos portugueses


contemporâneos como pouco menos do que um vilão. A impressão deve-
se ao único episódio que lhe costuma valer uma citação nas salas de aula:
pai de Pedro I, foi ele o monarca cruel que mandou matar Inês de Castro.
A culpa do rei costuma depois ser atenuada por uma contextualização que
explica o receio que então havia de que o casamento do príncipe com Inês
implicasse uma escalada no poder dos seus ambiciosos irmãos. Fraco
consolo. Afonso, o Bravo, resumido a um assassino mal aconselhado…
Não falta que contar acerca de Afonso IV, e quase tudo se passou bem
antes dessa contenda com o filho. Sétimo rei de Portugal, foi o único
homem nascido do casamento de Dom Dinis e Dona Isabel de Aragão.
Desde os quatro anos, cresceu ao lado da futura mulher, Beatriz de
Castela. Casou com ela em 1309 e tornou-se no único rei da primeira
dinastia que, tendo gerado prole, não teve um só filho bastardo (dado tanto
mais curioso quanto acabou por ser neto, pai e avô de alguns dos mais
afamados mulherengos da realeza nacional).
Era, com efeito, um homem diferente. Intransigente, autoritário,
agressivo, difícil de controlar ou demover, mas ninguém o poderia acusar
de trair os seus princípios. Chegou a decretar penas pesadas para homens
ou mulheres que cometessem adultério e a definir leis que restringiam os
vestidos novos que as prostitutas poderiam ter por ano (um) ou que lhes
proibiam o uso de jóias de ouro ou prata.
Contudo, não foi a legislar que Afonso passou a maior parte dos 32 anos
do seu reinado; foi em guerra. Ainda antes de subir ao trono, já avançava
contra o próprio pai, Dom Dinis, em representação dos interesses da
nobreza e do clero. Depois, bateu-se com o meio-irmão, o bastardo
Afonso Sanches, e contra Castela, quase sempre com laços de sangue à
mistura. Afonso XI, por exemplo, era seu genro e teve de enfrentar a fúria
de Afonso quando este soube que a filha, Dona Maria, era maltratada pelo
marido. Mas também guerrearia ao lado dos castelhanos, já em 1340,
enfrentando e vencendo o rei de Marrocos na batalha do Salado.
Bem precisava, pois, Dom Afonso IV de um santo protector. Ou disso
ou de parar de arriscar a vida.
Curiosamente, na prática, esse santo foi a mãe, Dona Isabel, que o
demoveu de muitas guerras, convenceu o pai a perdoá-lo noutras e chegou
a interpor-se entre eles no campo de batalha para que pai e filho não
cometessem um trágico crime um contra o outro. Foi, de resto, em busca
de paz para Afonso que Isabel morreria, depois de, já sexagenária, encetar
uma longa jornada até Estremoz, sob o calor do Verão. Por esses e outros
episódios, seria canonizada em 1625 e eleita por Coimbra padroeira da
cidade.

Por vezes, porém, não vemos o que está demasiado perto. Naquele dia
do século XIV, naquela batalha como tantas outras para Dom Afonso IV, o
rei não vislumbrou imediatamente o rosto da mãe quando ouviu do lado
de lá o inimigo gritar por Santiago.
Santiago, ou São Tiago Maior, fora, por muito tempo, o patrono dos
Portugueses, muito antes de António de Lisboa e Pádua, Francisco Bórgia,
Nossa Senhora da Conceição ou do Anjo de Portugal. E não era um
pormenor de somenos, isto dos patronos. Não era só o seu nome que se
transformava em grito de guerra, com toda a enérgica libertação de fé aí
implicada. Era também uma questão prática: os exércitos faziam-se
identificar com as insígnias do respectivo patrono; de modo que partilhá-
lo com o inimigo poderia facilmente dar azo a embaraçosas confusões.
Naquele instante terrível, naqueles segundos de indecisão quando os
castelhanos avançavam já pelo campo de batalha, Afonso IV deve ter
percorrido mentalmente milhares de rostos, lugares, palavras e histórias.
Precisávamos de deixar cair Santiago e encontrar, urgentemente, outro
santo protector, antes que o inimigo nos caísse em cima e esmagasse sem,
pelo menos, uma oração que nos encomendasse.
Santiago era filho de Zebedeu, natural da Galileia. Fora um dos 12
apóstolos que acompanharam Jesus Cristo e o primeiro a morrer,
martirizado na Judeia por volta do ano 44. Apesar disso e de ser o único
dos 12 a ter a morte bem descrita e localizada no texto bíblico, criou-se
uma corrente de pensamento que defende que, entre a morte de Cristo e a
sua própria, Tiago Maior teria atravessado a Europa para evangelizar a
Hispânia, percorrendo muitos lugares da actual Espanha e daquilo que é
hoje o Minho português. Devido, alegadamente, ao insucesso da
cristianização, o apóstolo teria então regressado à Judeia onde acabaria
assassinado. O seu corpo, porém, regressaria à Galiza para ser sepultado
em Compostela, mudando para sempre a face do mapa peninsular e com
notáveis consequências do ponto de vista do turismo religioso.
Foi este mesmo Santiago que se diz ter aparecido muitas vezes aos
soldados cristãos durante a Reconquista, ganhando a alcunha de Mata-
Mouros. Para já não falar da Ordem Militar de Santiago, que levou muitos
reis à vitória nos combates com os árabes.
Não admira, pois, que os exércitos espanhol e português o tenham
reclamado para si. Mas, agora que se encontravam frente a frente, o caso
levantava um problema de, digamos (em linguagem contemporânea),
«conflito de interesses».
Afonso pensou. O suor corria-lhe pelo rosto, todo o ferro da armadura
parecia, de repente, insuportavelmente pesado. E, de súbito, lembrou-se de
São Jorge. O cavaleiro de lança na mão investindo contra o dragão.
Jorge, segundo a lenda, era um capitão do exército romano natural da
Capadócia. No século IV, teria distribuído os bens pelos pobres e afrontado
o imperador Diocleciano na sua intenção de ordenar uma brutal
perseguição aos cristãos (aquela que vitimaria, por exemplo, São Vicente).
Por esse crime, foi mandado torturar e, tendo-se sempre recusado a
venerar os deuses romanos, degolar. A carreira militar e o exemplo de
coragem fizeram com que se tornasse, depressa, cultuado entre múltiplos
exércitos dos mais distantes pontos do mapa.
Sim, sim. Jorge não era mal pensado. Já dera nome ao castelo de Lisboa,
ao que parece por inspiração no exemplo de outro mártir, Martim Moniz,
o cavaleiro que oferecera a própria vida a troco da vitória de Dom Afonso
Henriques, colocando o corpo entre as portas do castelo para impedir que
os mouros as fechassem e a tropa portuguesa conseguisse entrar.
Sim, sim. São Jorge, porque não?, pensava Afonso IV, o som do galope
dos cavalos adversários e o tinir das espadas e os gritos de guerra cada vez
mais perto e o suor a escorrer cada vez mais das faces nervosas dos
soldados do rei. Afinal, São Jorge estava na moda. Já era padroeiro de
Inglaterra e da Jórgia, irrepreensivelmente experiente em matéria de
batalhas e, vamos lá ver, afinal de contas: Santiago era padroeiro de
quem? Peregrinos e viajantes? Fabricantes de perfume e chapeleiros? Por
amor de Deus! (e os castelhanos cada vez mais perto) São Jorge era
padroeiro de cavaleiros e soldados! Santiago não teria a menor hipótese
contra ele…
O olhar de Dom Afonso IV fixou-se, por fim, no dos seus homens.
Conseguiram então ver que brilhava e começavam a respirar de alívio.
Afonso agarrou nas rédeas e deu meia-volta ao cavalo. Encheu o peito de
ar e gritou: «São Joooooooooooooooooooorge!!!!!»
E vencemos.

Nenhum outro santo patrocinou mais vitórias portuguesas.


Algumas décadas depois de Afonso IV instituir o grito de guerra, Dom
João I, seu neto, proclamaria São Jorge, oficialmente, padroeiro de
Portugal. Terá sido durante o cerco de Lisboa que precedeu a aclamação
do mestre de Avis como rei que se viu, pela primeira vez, a cruz de
vermelho-sangue sobre fundo branco hasteada nas muralhas, junto às
armas da cidade e do reino (talvez por influência dos ingleses que ali
combatiam ao lado dos portugueses contra os castelhanos).
A partir de então, o pendão de São Jorge marcaria indelevelmente
algumas das mais incríveis proezas militares do reino: em Aljubarrota,
Arzila, Ormuz… Em inferioridade numérica ou território hostil,
redundando em vitórias aparentemente impossíveis. E seria nele que Nuno
Álvares Pereira se inspiraria para criar o seu próprio pendão: a mesma
cruz, ladeada pelo próprio São Jorge, Santiago (uma cedência diplomática,
digamos), Cristo crucificado e Santa Maria.
Foi, de resto, a São Jorge que o Condestável dedicou a capela que
mandou construir no campo de Aljubarrota para assinalar a vitória sobre
Castela. Tal como Dom João II dedicaria, 100 anos mais tarde, a Fortaleza
de São Jorge da Mina, grande feitoria e base portuguesa na África
Ocidental. Entre um acontecimento e outro, nesses anos em que Portugal
partiu pelo mundo, foi sempre a cruz de São Jorge que os soldados
nacionais carregaram, tal como expressamente determinado no ponto 53
do Regimento da Guerra de Dom Afonso V:

Cada um de qualquer estado ou condição, ou nação que seja, que na


nossa parte for, traga um sinal das Armas de São Jorge, largo, hum
diante, outro detrás.

A alternativa era correr o risco de ser ferido ou morto por um


companheiro, sem que sobre este pudesse vir a impender qualquer espécie
de castigo. A bandeira de São Jorge tornara-se bandeira de Portugal.

***

Durante o reinado de Dom Manuel I, o mesmo soberano que elevaria o


Anjo de Portugal a padroeiro nacional, a bandeira de São Jorge perderia,
lentamente, para uma semelhante, a da Ordem de Cristo, o lugar de
estandarte português.
Curiosamente, voltaria, 500 anos depois e numa circunstância muito
particular, a servir de emblema nacional. Foi, em 2012, num evento
desportivo, o Campeonato da Europa de Futebol, que uma actualização da
cruz de São Jorge, desenhada sobre toda a camisola alternativa da
selecção, escoltou os portugueses até ao último segundo das meias-finais
da competição.
As três Leonores (uma por cada guerra)
DOM FERNANDO

Fernando é o outro lado da História. É a criança que cresceu sem mãe,


educado por uma aia, enquanto o pai vivia o mais célebre romance do
imaginário nacional. É o filho de Dona Constança, a mulher que morreu
pouco depois de o dar à luz e já nem o pôde amamentar. É o jovem infante
que também perdeu cedo o irmão mais velho, Dom Luís, e que foi
assistindo a tudo isto debaixo da protecção que lhe conseguiam dar os
avós, Dom Afonso IV e Dona Beatriz, reis de Portugal. É, naquele tempo,
apenas o rodapé ao caso do pai, Pedro, e da amante, Inês. O espectador
que não sabemos o que sentiu enquanto via o pai desencantar-se da mãe,
apaixonar-se por uma aia desta, viver com ela uma relação proibida depois
de enviuvar e dar-lhe com Inês meios-irmãos. Todavia, este foi Fernando,
futuro rei, nos seus primeiros anos de vida, o pequeno príncipe que
assistiu à espiral de loucura que tomara conta da família: o avô que manda
matar a mulher do pai, um pai que ensandece, manda matar os assassinos
de Inês e desenterra-a, coroando-lhe a cabeça morta e ordenando que o
povo viesse beijar a mão da rainha-cadáver.
O excesso romântico de tudo isto. E, no entanto, a verdade é que Dom
Pedro, o pai deste rapaz a crescer belo e garboso, seria um rei bem mais
equilibrado e menos dramático do que aqueles episódios faziam prever.
Uns, chamá-lo-iam para sempre o Cruel, mas outros o justo. Equilibrou as
contas do reino e até gostava de se apear da carruagem real para ir dançar
com o povo, no meio dos arraiais.
No entanto, a História é algo bem diferente do que a memória colectiva
depois faz dela. A passagem do tempo apenas deixou visível o que estava
à superfície: o rei Dom Pedro como eterno apaixonado de uma mulher que
amava e fora cruelmente assassinada, e nada mais. Nem uma referência à
relação que manteria com esse filho, que sabia que lhe ia suceder, ou
àquela que esse filho teria com os meios-irmãos, filhos do pai e de Inês, e
que também hão-de desempenhar um papel na história das décadas
seguintes. E quase nada sobre todos os envolvimentos amorosos que Dom
Pedro I levou depois de Inês de Casto, num trajecto bem diferente de uma
hipotética viuvez pudica e melancólica, e que pode ter incluído Dona
Beatriz Dias, o escudeiro Afonso Madeira, que um dia teria mandado
castrar por lhe ter sido infiel com uma dama da corte, e, acima de tudo,
Teresa Lourenço, a dama galega da qual nada se sabe (não é sequer certo
que se trate de Teresa Gil Lourenço ou Teresa Lourenço de Almeida), a
não ser que lhe daria um filho bastardo que, anos mais tarde, haveria de
salvar a independência de Portugal.
Lá chegaremos. Por agora, falamos de Fernando, o tal rapaz que se
punha príncipe garboso e belo e que ficaria oficialmente cognominado de
o Formoso e, oficiosamente, de o Inconstante ou o Inconsciente, dando
razão àquele velho dito de que «beleza não põe mesa» logo a partir do dia
em que sucedesse no trono ao pai, ano da graça de 1367.
Dom Fernando tinha 22 anos, era belo, valente e senhor dum reino que
andava de cofres cheios. O problema, para ele, não começou dentro de
portas, mas do lado de lá da fronteira. Castela estava em guerra depois da
morte do rei Afonso XI. O trono era violentamente disputado entre Pedro,
também cognominado o Cruel, único filho legítimo do soberano falecido,
e o seu irmão bastardo, Henrique de Trastâmara. Fernando começou de
forma prudente, mantendo-se neutral, mas o caso mudou de figura quando
a contenda atingiu o extremo da infâmia: Henrique mata o irmão, saltando
para o trono de forma sanguinária e ilegítima. Temendo pela vida, muitos
dos fidalgos que tinham combatido ao lado do falecido Pedro fogem para
Portugal. Vinham em busca de refúgio e de algo mais: um novo candidato
que representasse o seu partido e destronasse o rei assassino. Dom
Fernando ainda bisneto de Sancho IV, era também um jovem manipulável
e ambicioso – e assim não custou muito a convencer a dar guerra a
Henrique e a reclamar para si a Coroa castelhana.
Começava assim a primeira das guerras fernandinas, todas com Castela,
todas dispendiosas, absurdas e inúteis.
Deslumbrado com a visão de si mesmo como primeiro rei de Portugal e
Castela, isto é, de quase toda a Península Ibérica, Fernando daria início à
vertiginosa sangria dos cofres nacionais que o pai, Pedro, numa rara
ocasião em toda a História nacional, tão bem equilibrados deixara.
Os combates começaram e Fernando precisava de aliados; ter Aragão do
seu lado, por exemplo, era fundamental. Por isso, prometeu aos
Aragoneses todas as terras que conquistassem, financiando-os ainda com
um subsídio, e, para que não houvesse dúvidas de que aquela aliança era
verdadeira e para durar, pedia até em casamento a filha do rei, Leonor de
Aragão.
No terreno, espadas, lanças, setas e archotes escreviam o diário de uma
batalha sem vencedores. Fernando precisava de desequilibrar as forças, de
modo que se dirigiu directamente ao adversário e começou a subornar
fidalgos castelhanos com terras em Portugal. Em certas localidades de
Castela, chegou a ser reconhecido como rei, mas, na prática, isso estava
longe de acontecer.
A guerra, é claro, tinha dois sentidos e Henrique de Trastâmara acabou
por transpor a fronteira. Toma Braga, falha Guimarães e arrasa Trás-os-
Montes. O cenário punha-se difícil para as hostes fernandinas…
Felizmente para o rei português, nunca faltou quem visse em tempo de
crise uma oportunidade: lá longe, bem a sul, o rei mouro de Granada,
percebendo que Henrique concentrava esforços militares no Norte de
Portugal, viu a porta aberta para tentar tomar a Andaluzia. Dividido entre
dois fogos, Henrique voltou atrás e foi estancar a nova ferida que se abria.
Empatados, desgastados e, enfim, tomados de algum pragmatismo, Dom
Fernando de Portugal e Dom Henrique de Castela decidem assinar as
pazes.
O tratado foi assinado em Alcoutim, a 31 de Março de 1371, mas, como
Fernando se revelava já um terrível negociador – para não dizer que sofria
de uma constrangedora falta de memória –, aceitou como condição casar
com a filha de Henrique, Leonor de Castela, desprezando o facto de se
haver já comprometido com o mesmo a outra Leonor, filha do rei de
Aragão. Furioso, o monarca aragonês vingou-se no primeiro português
que lhe apareceu à frente: o pobre Afonso Baraceiro, tesoureiro que lhe ia
entregar o costumeiro subsídio de guerra e que acabou lançado aos
calabouços por razões que talvez nunca tenha chegado a deslindar.
Entre o esforço de guerra, os subsídios, os subornos e as condições dos
tratados de paz, Dom Fernando tinha já conseguido cavar um magnífico
buraco nas contas nacionais. No mercado interno, começam a faltar
géneros e, nas ruas das principais cidades portuguesas, surgem os
primeiros sinais de fome.
Agora, tudo recomendaria um serenar de ânimos. De nada valia chorar
sobre o leite derramado. Uma sequência de erros tremendos tinha sido
cometida, mas, com a paz de volta, cabia a Dom Fernando concentrar-se
na recuperação da economia nacional e dedicar algum tempo livre à
preparação do matrimónio com Leonor de Castela.
Acontece que o belo Dom Fernando, o formoso Dom Fernando, tinha
um coração fraco. Era um jovem impressionável, cheio de sentimentos.
Então, um dia, pondo os olhos numa jovem dama que havia chegado à
corte para visitar a irmã, decidiu imediatamente que seria sua, que
casariam, não importava que estivesse novamente prometido em
casamento a outra; não importava que ela própria fosse já casada.
Coisas do destino, também esta musa se chamava Leonor, Leonor Teles
de Meneses, a terceira Leonor da sua vida – e última, para mal dos seus
pecados. Era natural de Trás-os-Montes e tinha casado aos 15 anos com
João Lourenço da Cunha, senhor de Pombeiro. Coisa pouca para um rei
do calibre de Dom Fernando… Rapidamente, tratou de se conseguir a
anulação daquele infeliz matrimónio: baseou-se o argumento na acusação
de Leonor Teles de que João era impotente, devidamente corroborada por
Dom Fernando que logo explicou que a recebera ainda virgem –
fenómeno extraordinário, tendo em conta que já tinha um filho.
A notícia correu o reino e passou a fronteira. João Lourenço foi procurar
vingança a Castela, sem grandes resultados. Depois, tomou o assunto em
mãos e tentou envenenar o rei. Acabou descoberto e espoliado, por isso,
de todos os bens.
O povo também não aceitava aquele casamento e começava a duvidar
da lucidez deste rei. Naquela que é talvez a primeira grande manifestação
da voz popular de que há registo na História de Portugal, uma multidão de
4000 pessoas comparece diante de Dom Fernando para lhe fazer saber que
não aceitaria que se casasse com aquela mulher, aquela terceira Leonor
acerca de quem corriam os piores rumores e a quem o povo se habituaria a
referir apenas como a Aleivosa. O fraco Dom Fernando estremeceu. Jurou
que sim, que assim faria, que se o seu povo não queria aquela rainha, ele
encontraria outra, e saiu, prometendo mais esclarecimentos para dali a
dias. Porém, na data combinada, o rei não compareceu. O povo ficou a
olhar para um palanque vazio e temendo o pior. Nos tempos seguintes,
veria confirmarem-se esses receios: Fernando casa, de facto, com Leonor
Teles no Mosteiro de Leça do Balio e manda matar os chefes que tinham
organizado a contestação.
Em tudo isto, faltava ainda um pormenor: a quebra de nova promessa de
casamento com uma princesa de Castela, isto é, a quebra de um tratado de
paz com um antigo inimigo de guerra. Felizmente para Dom Fernando,
Henrique de Trastâmara, esse bastardo sanguinário que matara o próprio
irmão para chegar ao trono, parecia ter acalmado naqueles poucos anos
que haviam passado. Fechou os olhos ao caso e anulou a cláusula do
casamento constante do acordo de Alcoutim. Em 1372, em Tui, assinou-se
novo tratado de paz e Henrique casou rapidamente a sua Leonor com
outro homem: Carlos III, de Navarra.
Em português prosaico e contemporâneo, Fernando tinha acabado de
escapar de boa, provavelmente porque Henrique já percebera que mais lhe
valia um partidário navarro do que uma aliança com um rei cuja palavra
tinha a solidez duma gota de água. Fernando, porém, era dado a uma feroz
atracção pelo abismo…
Poucos meses passados da emenda ao tratado, chega à península o
duque de Lencastre, um filho do rei de Inglaterra que tinha pretensões ao
trono de Castela. Como de costume, precisava de apoios para lançar a
candidatura e decidiu bater à porta do rei de Portugal… Certo. O inglês
não tinha obrigação de conhecer a fundo a situação diplomática da
península, até porque ela mudava bem depressa, mas bastaria uma criança
que aqui vivesse para saber que a única resposta possível a dar ao
forasteiro era um não. Bastaria uma criança para perceber que Dom
Fernando já fora inimigo de Henrique, depois amigo e, por pouco, não
voltara a ser inimigo. Que esse mesmo rei já tinha desbaratado o antigo
aliado de Aragão e deixado o país de mão estendida com as suas loucuras
de guerra. Mas isso seria uma criança e quem estava no trono era Dom
Fernando, e Dom Fernando decidiu dizer que sim. Que o duque de
Lencastre contasse com ele. Que o apoiaria numa guerra com Castela.
O acordo foi formalizado a 10 de Julho de 1372 pelo Tratado de Tagilde
e, depois, actualizado pelo Tratado de Westminster. Estalava a segunda
guerra fernandina.
Com o país empobrecido e o exército desgastado pela guerra anterior, a
contenda foi profundamente mais desequilibrada do que a primeira.
Henrique invadiu Portugal e, deparando-se-lhe tão fraca resistência,
avançou depressa, e, a 23 de Fevereiro de 1373, já tinha alcançado Lisboa.
À beira da capitulação, valeu a Portugal a intervenção do cardeal Guido de
Bolonha, que exigia o fim da violência e que as partes se entendessem
num novo acordo de paz. Com efeito, o tratado foi assinado pouco depois,
a 24 de Março, em Santarém, mas, na sua precária condição negocial,
Dom Fernando não conseguiria mais do que um acordo desequilibrado e
dispendioso, cuja única virtude era libertar o país da ocupação estrangeira.
Como se tivesse aprendido, por fim, a lição, o rei amainaria os ânimos
nos anos seguintes. Por uma vez, deixou de olhar para Castela e
concentrou-se nos assuntos internos. Teve três filhos de Leonor; dois
morreram pequenos, mas sobreviveu a mais velha, Dona Beatriz. Focou-se
na administração do reino. Trocou o ataque pela defesa e, assim, mandou
construir novas muralhas em volta de Lisboa e do Porto, reparar muitos
dos castelos destruídos pelo tempo e pelas guerras e fazer outros novos, de
raiz. Revelou, afinal, ser dotado de alguma visão estratégica e apostou no
desenvolvimento da marinha. Mandou construir novas embarcações e
autorizou para esse mesmo fim o abate de árvores para a obtenção da
madeira necessária. Isentou de impostos a aquisição de novos navios e a
importação de ferragens e demais apetrechos para a construção de outros.
E criou ainda a Companhia das Naus, à qual todos os navios pagavam
uma percentagem dos lucros trazidos em cada viagem, criando um fundo
que servia depois para cobrir os prejuízos daqueles que naufragassem ou
necessitassem de reparação.
Uma das consequências mais imediatas dessa política foi a
transformação de Lisboa. O porto da capital era ponto de partida, chegada
e passagem de gente e mercadorias de toda a parte, com os proveitos
comerciais daí decorrentes. No entanto, Dom Fernando atendeu também
ao desenvolvimento da educação, com a transferência da universidade
para Lisboa, e da agricultura, aprovando a Lei das Sesmarias, que, entre
outras disposições, fixava trabalhadores nos campos, travando o
despovoamento do interior, e instituía o princípio da expropriação de
terras que não fossem aproveitadas para cultivo.
Um acontecimento marcante à escala internacional mostraria, contudo,
que a velha sensibilidade de Dom Fernando, o Inconstante ou o
Inconsciente, para a política externa, continuava viva e boa saúde.
Por aqueles dias, a Europa estava dividida pelo grande cisma do
Ocidente: um Papa em Roma e outro em Avinhão reclamavam cada um
para si a autoridade sobre a Igreja cristã. Mais tarde, para complicar mais
a questão, surgiria ainda outro antipapa em Pisa. O continente dividiu-se
em apoios a cada um deles, de acordo com interesses próprios e alianças
políticas, mas Dom Fernando, é claro, não soube bem de que lado se
colocar. Começou, com o habitual sentido de oportunidade, por expressar
o seu apoio ao Antipapa de Avinhão, Clemente VII, indo assim contra a
posição tomada por Inglaterra, Coroa a que permanecia ligado pela aliança
assinada em Westminster. Mais tarde, esclarecido pelos Ingleses, mudaria
de posição, passando a apoiar Urbano VI, de Roma. No entanto, ainda
teria tempo para, no ano seguinte, abandonar esse apoio e quedar-se por
uma posição qualquer pouco clara, que, em todo o caso, já não interessava
a ninguém.
Como se o velho Dom Fernando tivesse ressuscitado do mais absoluto
nada – velho é força de expressão, não tinha então mais de 35 anos –, em
Junho de 1381, volta a envolver-se em escaramuças com Castela, era
agora rei Dom João, ali para os lados da fronteira alentejana. À medida
que o rastilho dos combates acende uma nova guerra, a terceira
fernandina, encomenda a João Fernandes Andeiro a missão de conseguir o
apoio britânico para esta nova contenda. Andeiro era um fidalgo galego
que o tinha apoiado no tempo da primeira guerra, esperançado em tirar daí
alguma promoção pessoal e que, uma vez derrotado, partira para
Inglaterra. Podia ser apenas uma personagem secundária neste processo,
mas não se contentaria com isso. Nas suas viagens de Londres a Lisboa,
vai-se aproximando, de forma suspeita, da rainha…
A 7 de Março do ano seguinte, a armada castelhana consegue entrar no
Tejo e atacar Lisboa. A estrutura defensiva nacional não é capaz de fazer
mais do que assegurar a protecção do castelo, deixando o povo que, por
definição política de então, vivia fora das muralhas, à mercê do invasor.
Contudo, se a terceira das guerras seria a de mais graves consequências
para Dom Fernando, a terceira das «Leonores» não lhe ficaria atrás. Em
primeiro lugar, mantinha aquela duvidosa amizade com o conde de
Andeiro; em segundo, preparava, em segredo, uma jogada terrível…
João, um dos filhos de Pedro e Inês e, portanto, meio-irmão de Dom
Fernando, que deixámos lá atrás perdido na infância e na condição de
figura decorativa na trágica história de amor dos pais, tinha, entretanto,
casado com a irmã de Leonor Teles, Dona Maria, e vinha granjeando
prestígio na corte. Temendo essa ascensão social do cunhado e o que ela
pudesse significar na altura de redistribuir o poder, Leonor monta um ardil
tenebroso… Chama Dom João e apresenta-lhe um negócio onde ambos
tinham tudo a lucrar: oferece-lhe a mão da sua filha única, Dona Beatriz.
Para Leonor, significava transformar um possível obstáculo num aliado;
para Dom João, algo tão simples e directo como transformá-lo,
automaticamente, no herdeiro do trono. Porém, como acima ficou dito,
Dom João era já casado e não com uma mulher qualquer, mas com a irmã
da própria Leonor. Nada que apoquentasse a rainha. A proposta incluía a
seguinte condição: para casar com Beatriz, João devia matar a mulher.
João assim fez, a golpes de punhal, justificando o injustificável com um
suposto comportamento condenável de Dona Maria. Livre da irmã e com a
carreira do cunhado irremediavelmente comprometida por aquele acto
hediondo, Leonor roeu a corda e deu o dito por não dito: casou a infanta
Beatriz com um fidalgo inglês e o miserável João fugiu para o lado de lá
da fronteira.
Entretanto, a guerra aproximava-se do fim. Uma vez mais, Portugal e
Castela sentam-se à mesa para negociar a paz e, também uma vez mais,
Dom Fernando conduz o processo de forma ruinosa para os interesses
nacionais. Ponto um: não informa a aliada Inglaterra de que estabelecia
um acordo para o fim do conflito; ponto dois: aceita que uma das
condições do tratado seja mais um casamento entre as respectivas famílias
reais, o único que ainda tinha para oferecer, o da sua filha – já casada, mas
bem sabemos que isso, para Dom Fernando, era pormenor de somenos –
com outro Dom Fernando, infante de Espanha.
O que acontece depois é curioso: o marido inglês de Dona Beatriz teve a
gentileza de conter a fúria e de se limitar a regressar casa, algures para lá
do canal da Mancha. Dom João de Castela fica, por coincidência, viúvo e
decide que Beatriz, afinal, não casará com o seu filho Fernando, mas com
ele próprio. Dom Fernando de Portugal adoece e deixa o país à beira de
um ataque de nervos.
Os meses seguintes são de pânico e escândalo. Pânico, porque o rei
corria irremediavelmente para a morte, sem deixar filho varão que lhe
sucedesse e tendo oferecido a sua única filha ao rei de Castela, fazendo
deste, portanto, herdeiro legítimo do trono nacional; escândalo, porque
Leonor Teles, com o marido acamado, se sentia livre para dar largas ao
romance com o conde de Andeiro.
Três Leonores, três guerras, algumas boas decisões e incontáveis erros
depois, Dom Fernando morre a 22 de Outubro de 1383. Faltavam nove
dias para que completasse 38 anos de vida, 38 anos em que pegou num
país tranquilo e sólido do ponto de vista económico e o deixou à beira do
colapso. Mais: tinha permitido que chegasse ao fim a linhagem de
Borgonha, aquela que começara em Dom Henrique e Dona Teresa, condes
de Portucale, aquela que dera a Portugal o seu primeiro rei e fundador,
Dom Afonso Henriques. A primeira dinastia, também chamada Afonsina,
chegava ali ao fim, de forma embaraçosa, 240 anos depois.
Aparentemente num beco sem saída, a forma extraordinária como
Portugal sairia daquela situação traumática e a transformaria num tempo
glorioso é contada ao pormenor e de modo soberbo por Fernão Lopes, nas
Crónicas.
Morto o rei, Leonor assumiu a regência e passou a viver com o conde de
Andeiro, acicatando ainda mais o ódio do povo contra ela. E assim, chega
o momento de entrar em cena uma figura decisiva: Dom João, mestre de
Avis, aquele último filho bastardo de Dom Pedro I com uma incerta Teresa
Lourenço, transformado, de figura de terceira ordem na infância de Dom
Fernando, em grande candidato à sua sucessão.
Começa a nascer um movimento de apoio a Dom João. Um movimento
incentivado por alguns nobres, mas, acima de tudo, pela burguesia e pelo
povo, a arraia-miúda que, pela primeira vez, se tornaria protagonista da
História nacional. É esse movimento que eclode numa revolta, um
momento único e decisivo que passou das ruas de Lisboa ao interior do
castelo. Num golpe onde participa o próprio Dom João, os revoltosos
invadem o paço e matam o conde de Andeiro. Agindo de acordo com um
plano previamente arquitectado, um mensageiro desce a colina para gritar
à cidade que atacam o mestre de Avis e que lhe é preciso acudir. O povo
responde em massa, promove Dom João a regedor e defensor do reino e,
pelo caminho, entra na Sé, sobe à torre e atira de lá o bispo de Lisboa,
conotado com o partido de Leonor Teles.
Encurralada, Leonor escreverá ao cunhado, Dom João de Castela, para
que venha com a mulher assumir a Coroa portuguesa. Recomeçará a
guerra. Lisboa viverá debaixo dum longo e doloroso cerco, mas resistirá
dentro das muralhas, enquanto, cá fora, o exército castelhano sofria
sucessivas baixas até à desistência final. Nas Cortes de Coimbra, João das
Regras faria a defesa jurídica do mestre de Avis, conduzindo à decisão da
sua aclamação oficial como rei Dom João I, o primeiro da segunda
dinastia, contra as pretensões de João de Castela e dos filhos de Pedro e
Inês: Pedro e aquele João que caíra no ardil de Leonor Teles.
Como sabemos, a decisão das Cortes não bastaria para que Dom João de
Castela se rendesse. Voltaria à carga em 1385, mas, nessa altura, seria
sucessivamente travado nos Atoleiros, Aljubarrota e Valverde por um
histórico comandante que sonhava ser como Galahad, o cavaleiro virgem
que, na literatura, encontrara o Santo Graal: Dom Nuno Álvares Pereira.
No final do ano, a crise estaria definitivamente resolvida e, a partir dali, a
nova casa real guiaria Portugal para um longo e retumbante tempo de
expansão.
Quanto a Leonor Teles, a Aleivosa, refugiou-se em Castela para fugir à
ira popular. Procurou algum conforto junto da filha e do cunhado, mas,
aparentemente, nem a própria família a conseguiu entender, mandando-a
enclausurar num mosteiro em Tordesilhas. Mas a morte foi clemente para
com Leonor: poupou-a a uma decadência lenta e solitária, levando-a logo
a 27 de Abril de 1386.
Moral da história: há males que vêm por bem. O reinado de Dom
Fernando não poderia ter sido mais desastroso, mas, por misteriosos
caminhos, levou Portugal a um renascimento. Aquele onde, pela primeira
vez, nasceu uma ideia de nação e pátria. O país já não era dos reis e dos
aliados políticos que entendessem fazer, nem dos comandantes dos
exércitos que os representassem no campo de batalha, mas do povo,
daqueles que nele nasciam e viviam e que, por uma vez, não serviram a
um senhor, mas a uma identidade nacional.
Rainha da loucura
DONA ISABEL DE PORTUGAL, RAINHA DE CASTELA

Em 1428, quando Isabel nasceu, ainda era rei seu avô, Dom João I, que,
por acaso, era também seu bisavô.
A história não é fácil de perceber, nem especialmente lisonjeira para a
imagem de Dom João, mestre de Avis, o rei dito de Boa Memória, que,
apoiado pelo povo e escoltado por Nuno Álvares Pereira, segurou a
independência portuguesa perante as legítimas pretensões de Castela na
crise de 1383-85 e deu início à segunda dinastia nacional, a de Avis.
Vamos por partes:
Dom João casou com a inglesa Filipa de Lencastre. Dessa célebre união
nasceu um conjunto de infantes cultos e audazes que ficariam celebrizados
para a História sob a designação de a Ínclita Geração. Dela constavam,
entre outros, Dom Duarte, futuro rei de Portugal, o infante Dom Henrique,
Dom Fernando, chamado o Infante Santo pela sua trágica morte em África
em favor dos interesses nacionais, e Dom João, duque de Beja, sexto e
penúltimo dos irmãos. Ora este João viria a ser pai da nossa menina
Isabel, fazendo dela, portanto, neta legítima do rei Dom João I. Esta parte
é fácil; falta a outra.
Apesar do celebrado casamento com Filipa de Lencastre e da boa
reputação de que sempre gozou, o facto é que o rei Dom João não se
furtou aos costumes da época e também teve a sua relação extraconjugal e
os seus bastardos. A relação em questão deu-se com a senhora Inês Pires
Esteves e dela nasceram dois filhos, um menino e uma menina. Ora, o rei
casaria esse menino bastardo de nome Afonso com Beatriz Pereira de
Alvim, filha única do seu condestável Nuno Álvares Pereira, dotando-os
de terras e bens e dando origem à Casa de Bragança (que muito lá mais
adiante na História se tornará na quarta e última dinastia da monarquia
nacional). Pois bem: Afonso e Beatriz tiveram uma filha de nome Isabel e
essa Isabel acabou por casar com João, o tal sexto e penúltimo irmão da
Ínclita Geração e, portanto, sexto e penúltimo filho legítimo do rei Dom
João I.
Confusos? É natural. Digamos, em resumo, que esta Isabel casou com
um meio-irmão do pai e, portanto, um homem que era mais ou menos seu
tio. Juntos, tiveram uma filha, também baptizada Isabel, aquela com que
começámos a nossa história e que era assim, portanto, neta do rei Dom
João por via paterna e legítima e bisneta do mesmo rei Dom João por via
materna e bastarda. Notável.
A pequena Isabel cresceu, pois, na corte, embora sem privilégios
especiais. O pai tinha bens, mas nunca poderia aspirar a ser rei, tantos
infantes e duques tinha à frente na linha de sucessão. Era um ambiente
dominado pela aura de poder daquela dinastia que, depois de assegurar a
independência nacional, tinha já dado início à expansão, combatendo e
triunfando no Norte de África e lançando as bases dum império
ultramarino. Sobre toda a corte impendia ainda a devoção religiosa e o
carisma do seu outro bisavô, Dom Nuno Álvares Pereira, herói de guerra
que, pelas suas proezas, fora recompensado com inúmeras riquezas e
terras e que, no entanto, depois de se tornar um dos homens mais ricos de
toda a Península Ibérica, preferira distribuir tudo por companheiros de
armas e mendigos, entrando para o Convento do Carmo por ele mesmo
mandado construir, esperando que, algures, o mundo o acabasse por
esquecer.
Este bisavô morreu tinha Isabel três anos; o outro, que também era avô e
rei, quando ela completara cinco. Dom Duarte subiu então ao trono e com
ele chegaram à corte algumas caras novas, como o seu antigo escudeiro
Rui Gomes da Silva e respectivas filhas. Uma destas crianças seria depois
entregue à mãe de Isabel para que viesse a tornar-se aia da pequena
infanta. Chamava-se Beatriz, a menina em questão. Era ligeiramente mais
velha do que Isabel – teria talvez sete anos – e tão bonita que, um dia, um
pintor usá-la-á como modelo para um retrato da Virgem Maria.
Isabel e Beatriz cresceriam, portanto, juntas, entre jogos, bordados e
tertúlias, mas o seu destino não seria o mesmo. Eram ambas fidalgas, mas
Beatriz era uma simples aia particularmente empenhada nas suas orações a
São Francisco de Assis e a Nossa Senhora da Conceição; Isabel, ainda que
por via ínvia, tinha sangue real nas veias e, um dia, deveria casar com um
infante ou duque duma casa estrangeira. Esse dia chegou em 1447, já Dom
Duarte havia morrido e subido ao trono o seu filho Dom Afonso V. Mas
Isabel não tinha à espera uma segunda figura como ela; o noivo era o
próprio rei de Castela…

Don Juan II de Castilla não fazia planos de voltar a casar. Era um


homem fraco de 42 anos – mais 23 do que a noiva que agora lhe
arranjavam –, tinha levado uma vida razoavelmente longa e com mais
aborrecimentos do que contava.
O trono caíra-lhe ao colo aos 22 meses de vida, quando o pai, Henrique
III, morreu. O tio Dom Fernando assegurou a regência enquanto crescia,
mas, quando assumiu oficialmente funções, depressa se percebeu que não
fora talhado para liderar. Era um homem afável, que gostava de cantar e
dançar, aptidões pouco adequadas aos confrontos com a nobreza que o
aguardavam. A partida de Dom Fernando para assumir o trono de Aragão
e o dócil carácter do rei deixaram a Álvaro de Luna caminho aberto para
se impor. Luna era um fidalgo que conhecia Don Juan desde criança; tinha
sobre ele um ascendente, sabia disso e ia explorá-lo até onde lhe fosse
permitido.
Promovido a ministro e favorito pessoal no afecto do rei, Álvaro de
Luna tornou-se, então, no verdadeiro governante de Castela. Fez alianças
políticas com a pequena nobreza e o baixo clero, para combater as
aspirações dos grandes fidalgos de Castela e dos infantes de Aragão, e
arrastou para a guerra as tropas do rei, numa tentativa fracassada de
reconquistar Granada aos mouros (há quem diga, aliás, que o falhanço se
ficou a dever não tanto a questões bélicas, mas a uma carroça cheia de
figos com que os muçulmanos, em momento oportuno, presentearam Luna
– sendo que, dentro de cada figo, estaria uma moeda de ouro…).
Especulações à parte, ao longo dos anos seguintes Luna seria
sucessivamente nomeado condestável de Castela, conde de Santiesteban e
grão-mestre da Ordem de Santiago. Por volta de 1445, a sua autoridade
tinha-se tornado pouco menos do que absoluta.
Relegado para segundo plano e, em boa parte, por vontade própria – ou
falta dela –, Don Juan II pensaria por esta altura ter cumprido a sua parte
no que dizia respeito a garantir a continuidade da dinastia de Trastâmara
no trono. Tinha casado, em 1420, com Dona Maria de Aragão, filha do seu
tio Fernando, e haviam tido quatro filhos. As três meninas morreram ainda
crianças, mas o filho varão, Henrique, estava vivo e de boa saúde.
Naquele ano de 45, porém, a pacata vida familiar do rei foi subitamente
abalada pela inesperada morte da mulher. Don Juan ficava ainda um pouco
mais sozinho no mundo, mas, apesar de tudo, tinha a descendência
assegurada – não havia razão para voltar a casar.
Contudo, Álvaro de Luna, como sempre, via mais longe… Era uma
tragédia aquilo que acontecera a Dona Maria, senhora tão ilustre, uma
tragédia… mas podia ser transformada numa oportunidade… Castela
estava precisada de aliados. Era urgente deixar Aragão isolada no mapa
político da Península. E Portugal estava mesmo ali ao lado – ainda por
cima, tínhamos ainda há pouco assinado com eles o tratado de paz que
punha uma pedra sobre aquele velho assunto das guerras de Aljubarrota e
afins. Que melhor forma de celebrar esta nova amizade do que casar o rei
de Castela com uma infanta portuguesa, ainda para mais, bisneta do nosso
antigo inimigo de guerra, Dom Nuno Álvares Pereira?
O tempo ia passando e Don Juan não se decidia; protelava. Até que
Álvaro de Luna lhe abriu os olhos: já ia para sete anos que o filho
Henrique estava casado com Branca de Aragão – onde estavam os filhos?
Já começava por aí a circular… enfim, vossa majestade sabe como são as
pessoas, mas… quem sabe? Deus move-se por caminhos misteriosos…
comentava-se, enfim, por aqui e por ali, que talvez Henrique… não desse
conta do recado.
Don Juan II dava-se, finalmente, por convencido. Era preciso assegurar
descendência saudável ao trono de Castela e, se o filho não era capaz,
trataria ele mesmo do assunto. Ia voltar a casar.

A 17 de Agosto de 1447, depois de terem recebido dispensa do Papa


Eugénio IV dos laços de consanguinidade que ainda os ligavam, Don Juan
II de Castilla, de 42 anos, e Isabel de Portugal, de 19, casavam em
Madrigal. Como dote, Isabel recebeu o senhorio de algumas localidades
castelhanas, como a vila de Arévalo, e entrava assim para o distinto lote
de descendentes de Dom João I de Portugal que então se distribuiu por
múltiplos lugares de destaque nas casas reais da Europa, e entre os quais
avultava Dona Leonor, imperatriz da Alemanha.
Contudo, Isabel não tinha seguido sozinha para a nova vida em Castela;
com ela, levara quatro ou cinco aias, uma delas, Beatriz.
Não foi pacífica a chegada das portuguesas à corte que se dividia entre
Madrigal e Tordesilhas. A jovem rainha tinha de encontrar o seu lugar
num ambiente perpassado de intrigas e onde depressa percebeu que quem
mandava não era o marido, mas o inseparável Álvaro de Luna. Quanto à
aia, desviava inadvertidamente as atenções de Isabel… Condes e duques
querem desposá-la e a sua beleza começava a arriscar transformar-se em
maldição…
Em 1451, Isabel dá a desejada descendência a Don Juan – sobretudo
porque Henrique e Branca continuam… em branco. É uma menina e
recebe o mesmo nome da mãe, mas o seu nascimento traz implicações
indesejadas: a rainha dá os primeiros sinais de instabilidade mental.
Mergulha numa depressão profunda e recusa-se a falar com quem quer
que seja, excepto o marido. Álvaro de Luna, maquinador do casamento e,
afinal, de tudo quanto se passava em Castela, não poderia imaginar o que
se passaria depois…
Isabel, que deixara Lisboa para ser rainha, nunca apreciara a companhia
do condestável, muito menos a influência que exercia sobre o marido e
ainda menos a forma como tentava controlar tudo quanto às suas vidas
dizia respeito. Conquistado o seu lugar na corte e tendo dado à luz uma
possível herdeira do trono, Isabel decidiu impor a sua autoridade,
sublimada por um estado psíquico que se começava a manifestar em
acessos de histeria. Conhecedora das intrigas, pressões e jogos de
bastidores de Álvaro de Luna, a rainha venceu o marido pelo cansaço e
convenceu-o daquilo que, antes daquele casamento, ninguém acharia
possível: afastar Luna.
Don Juan cedeu. A 4 de Abril de 1453, Álvaro de Luna é detido em
Burgos. A mulher e o filho fogem para Escalona donde pedem ajuda ao
Papa para libertar aquele que é, afinal, o grão-mestre da Ordem de
Santiago. A resposta não chega a tempo (se é que, alguma vez, foi suposto
chegar): no início de Junho, Luna é levado para Valladolid onde é
sumariamente condenado num julgamento que muitos classificarão de
embuste jurídico. No dia seguinte, decapitam-no em praça pública.
Ainda naquele ano de 1453, a 15 de Novembro, Isabel daria à luz um
segundo filho de Don Juan, desta vez um menino: o infante Afonso. Don
Juan ainda terá pensado nomeá-lo herdeiro em vez de Henrique, mas o
receio de lançar mais uma acha para a fogueira das tensões com Aragão
(Maria, a sua falecida mulher e mãe de Henrique, era aragonesa) tê-lo-á
feito desistir ainda antes de começar.
Henrique, justamente, tomara, entretanto, uma decisão: depois de 13
anos de fracasso amoroso com Branca, fazia entrar na Santa Sé um pedido
de anulação do matrimónio por não consumação do mesmo. O príncipe ia
agora tentar a sorte com outra mulher e seguia o exemplo do pai: escolhia
uma portuguesa, a infanta Joana, nem mais nem menos do que uma prima
da sua jovem madrasta.
Chegava assim ao fim, de uma forma mais ou menos feliz, um ano
tumultuoso, mas o seguinte não seria mais pacífico…

Esta história não é contada por toda a parte nem por toda a gente. Os
historiadores espanhóis, naturalmente mais interessados na sequência de
acontecimentos políticos que, afinal, acabariam por conduzir à unificação
do reino, destacam na rainha Isabel de Portugal a mulher que contribuiria
decisivamente para a queda em desgraça do outrora todo-poderoso Álvaro
de Luna. Também a alegada loucura da mulher de Don Juan II seria
analisada mais à luz das consequências que teria para a educação da filha,
futura rainha de Espanha, do que sob qualquer possível implicação sobre o
destino de uma pobre aia, por mais bela que fosse… No entanto, essa aia
teria, um dia, direito a biografias (e mais tarde perceberemos porquê) e
alguns dos seus autores alongam-se sobre um rocambolesco episódio que
teria ocorrido por volta daquele ano de 1454.
Ao longo de todo aquele tempo, mas longe do espírito das intrigas que
minavam a corte, a aia Beatriz permanecera ao lado de Isabel. Continuava
a ser cortejada por muitos dos mais nobres varões de Castela, mas parecia
preferir o recato das suas orações. Bela e delicada, diz-se que o próprio rei
apreciava a sua companhia e gostava de conversar com ela.
De acordo com alguns biógrafos, chegaria o dia em que Isabel, no seu
atormentado estado mental, não suportaria mais a imagem da aia que
crescera a seu lado desde criança conversando com o marido. Pelas suas
próprias mãos ou pelas de criados a sua ordem, conforme as versões, teria
então trancado Beatriz num baú. E a intenção, ao que parece, era nunca
mais voltar a abri-lo.
No entanto, três dias depois, Dom João de Meneses, um tio de Beatriz
que lhe tentava dar algum acompanhamento familiar desde a morte do pai,
no ano anterior, teria aparecido na corte castelhana para visitar a sobrinha.
Isabel teria então acorrido rapidamente ao lugar do palácio onde
aprisionara a aia e mandado abrir o baú. Para perplexidade da rainha,
Beatriz não estava morta ou apresentava, sequer, qualquer sinal de
fraqueza; antes sorria e parecia mais bela do que nunca. A aia terá então
jurado que, durante o cativeiro, lhe aparecera a Virgem Maria,
prometendo-lhe que não morreria, pois tinha uma missão a realizar: fundar
uma ordem religiosa dedicada à Imaculada Conceição. A pretensa
aparição seria retratada, ao longo dos séculos, por inúmeros artistas.
Verdade ou mentira, o facto é que Beatriz da Silva, a bela dama de Dona
Isabel que todos queriam desposar, abandonou naquele ano a corte e
retirou-se para o Mosteiro de São Domingos, o Real, em Toledo. Trocou o
luxo, o conforto e as possibilidades de riqueza por uma reclusão radical,
em oração e penitência. E lá viveu os 30 anos seguintes, sempre de rosto
coberto por um véu para que a sua beleza não mais voltasse a causar
qualquer tipo de ódio.
Numa peça de teatro do século XVII, o poeta e dramaturgo madrileno
Tirso de Molina atribuiria a seguinte frase à personagem do rei Don Juan
II de Castela: «Beatriz, mulher tão bela, só a merece Deus.»

Desiludido, doente e ainda mais fraco do que fora o resto da vida, Don
Juan II morreria naquele mesmo ano de 1454, a 22 de Julho. Isabel ficava
viúva aos 26 anos.
Henrique, o enteado três anos mais velho do que a própria madrasta,
sobe então ao trono como Henrique IV de Castela. Alegando que a morte
do pai agravara ainda mais o débil estado de Isabel, o novo rei afasta-a do
Paço Real e manda-a para Arévalo. Retirada à força do centro de decisão,
a viúva, relegada para um estatuto decorativo de rainha-mãe, parte então
para o pequeno castelo da vila que lhe pertence por dote de casamento
com os dois filhos pequenos – Isabel tem então apenas três anos e Afonso
é ainda um bebé de nove meses –, alguns criados e a própria mãe, que se
deslocou de Portugal para acompanhar a filha naquele cativeiro disfarçado
de retiro espiritual. Isabel ainda não sabia então – talvez o pressentisse –,
mas viveria entre aquelas muralhas até ao fim dos seus dias.
Ao longo dos anos seguintes, várias propostas de casamento foram
chegando à jovem viúva, mas Isabel nunca se mostrou minimamente
disponível para as ouvir. Dedicou-se a uma vida austera, frugal,
concentrada na educação dos filhos; porém, aos poucos, mergulhava numa
melancolia sem regresso. Na solidão e silêncio do castelo de Arévalo, a
rainha-mãe começou então a ouvir vozes. Dizia-se perseguida por
fantasmas, particularmente pelo de Álvaro de Luna, por cujo nome
chamava, dias a fio, vagueando pelo castelo. Progressivamente, deixou de
reconhecer as pessoas em sua volta e, por vezes, não sabia quem ela
própria era.
O agravamento do estado mental de Isabel levou a que os filhos lhe
fossem retirados, em 1461, o mesmo ano em que a sua prima Joana,
segunda mulher de Henrique IV, conseguia, por fim, engravidar. Era uma
notícia extraordinária, tanto mais tendo em conta que o rei ficaria para a
História conhecido pelo cognome de o Impotente. A criança, uma menina
baptizada com o nome da mãe, nasceria em Fevereiro do ano seguinte e
seria desde cedo tratada como Joana, a Beltraneja, pois se a versão oficial
dizia que tinha sido gerada graças a umas fabulosas técnicas científicas
que seriam a antecâmara da inseminação artificial, a oficiosa asseverava
que era fruto de uma técnica tão antiga como o próprio mundo e que
remetia para os amores da rainha com o nobre castelhano Beltrán de la
Cueva.

Apesar do isolamento, o nome de Isabel de Portugal voltaria


ciclicamente às intrigas da corte. Em 1465, o seu filho Afonso, então com
12 anos, é proclamado rei, em Ávila, pelos opositores de Henrique IV e
difamadores de sua filha, Joana, a Beltraneja. Contudo, o envolvimento
de Isabel na «farsa de Ávila», como o episódio ficou conhecido, nunca
seria provado. A verdade é que, três anos depois, o jovem infante morreria
em circunstâncias pouco claras. Aos 40 anos, a rainha-mãe recebia mais
um duríssimo golpe na curta sanidade que lhe restava.
De igual modo, não se sabe até que ponto participou ou teve sequer
conhecimento do golpe de teatro que se preparava para mudar a História
de Espanha: as negociações secretas com vista ao casamento da sua filha
Isabel com Dom Fernando, príncipe herdeiro do trono de Aragão. Com o
meio-irmão e rei Henrique IV a ameaçá-la de reclusão num convento se
persistisse nas suas aspirações políticas, a jovem Isabel pede para se
ausentar e visitar a pobre mãe exilada em Arévalo e que há tantos anos
não vê. Autorizada a partir, a princesa segue afinal viagem para
Valladolid, onde casa com Fernando, dando força às pretensões dos nobres
aragoneses sobre a política de Castela.
A ser verdade tudo quanto se dizia da loucura da rainha-mãe, é pouco
provável que tivesse tido qualquer intervenção nestes casos; contudo, era
preciso descontar aos relatos os exageros com que os opositores políticos
a teriam tentado descredibilizar e, com isso, descredibilizar também
qualquer eventual candidatura da filha. Sabemos como, em tempo de vida
do marido, Isabel de Portugal se revelara perspicaz e hábil nos jogos
políticos; se lhe restasse, afinal, alguma lucidez, então é muito provável
que não lhe tivessem passado ao lado as movimentações que poderiam,
afinal, levar um dos filhos ao trono.

Em 1474, estala a guerra. Henrique IV, o Impotente, morre e deixa vago


o trono para duas candidatas: Joana, filha do seu casamento com Joana de
Portugal, e a meia-irmã Isabel, filha de Isabel de Portugal. Joana é
formalmente a herdeira, mas a maior parte da nobreza recusa reconhecer-
lhe legitimidade. Continuam a chamá-la a Beltraneja, persistindo na
acusação de que não é filha do rei, mas de Beltrán de la Cueva. Em busca
de apoios, Joana casou entretanto com o tio, o rei Dom Afonso V de
Portugal, viúvo de Isabel de Coimbra, que lhe dera já um sucessor ao
trono, o futuro Dom João II, e é por isso apoiada por portugueses, galegos
e por todos aqueles que defendem uma união das coroas de Castela e
Portugal. Do outro lado, está Isabel, sobre cujo sangue real ninguém
levanta dúvidas uma vez que é filha do falecido Don Juan II e de Isabel de
Portugal. Isabel é apoiada pela maioria da nobreza castelhana, por Aragão,
cujo príncipe real é o seu marido, e por todos aqueles que defendem uma
união das coroas de Castela e Aragão.
Ainda que Dona Joana e Dom Afonso V fossem, portanto, reis de
Castela de jure, Isabel é aclamada rainha ainda naquele ano de 1474. Mas
Isabel de Portugal, a rainha-mãe, a viúva louca, não assiste à cerimónia.
Cinco anos depois, a Guerra da Sucessão termina com a vitória dos reis
Isabel e Fernando sobre Dom Afonso V de Portugal e Joana, a Beltraneja.
A paz é assinada no Tratado das Alcáçovas, que estipula também a
primeira divisão do mapa-múndi entre as regiões que serão exploradas por
Espanha e as que cabem a Portugal, mais tarde reajustada pelo Tratado de
Tordesilhas.
Nesse mesmo ano, Fernando sobe ao trono de Aragão como Dom
Fernando II – estava aberto o caminho para a unificação das Espanhas.
Ao longo das décadas seguintes, Isabel e Fernando tornar-se-iam uma
das mais célebres e influentes famílias reais da História. Gerindo
habilmente os destinos da descendência, urdiram uma inteligente política
de alianças que resultaria, anos depois, no imenso império de Carlos V,
seu neto. Unificaram Castela e Aragão, anexaram a pequena Navarra e
venceram, finalmente, o último reduto muçulmano da península: o reino
de Granada. Pela sua arte diplomática, fizeram prevalecer às rivalidades
de séculos um entendimento que se consumou no nascimento da Espanha
unida. Seria já sob essa nova bandeira que patrocinariam a jornada de
Cristóvão Colombo em direcção à América, já depois de Dom João II,
entretanto subido ao trono português, ter recusado financiar o projecto do
navegador, que, na verdade, não passava por descobrir qualquer
continente, mas, antes, alcançar a Índia por Ocidente.
Pelos feitos em prol do catolicismo, Isabel e Fernando receberiam do
Papa o título de Reis Católicos, usado até hoje por todos os reis de
Espanha. De notar, porém, que, entre essa lista de obras devotas, se
contaria a Inquisição e a expulsão de judeus e mudéjares.

E Beatriz? Que seria feito dela agora? Deixámo-la, algumas páginas


atrás, à entrada para o Mosteiro de São Domingos, o Real. A aia que
crescera desde criança ao lado de Isabel de Portugal e que tinha escolhido
trocar todos os privilégios do mundo material pela reclusão entre freiras
dominicanas, debaixo de um véu que, até ao fim dos seus dias, fizesse
segredo acerca da sua beleza.
Pois bem. Como sabemos, essa tomada de decisão radical teria
acontecido, segundo alguns biógrafos, depois de a rainha Isabel a ter
trancado num baú por ciúmes do marido. Ora, o episódio ignorado por
alguns autores e rotulado de fantástico por muitos outros parece, afinal,
encontrar algum sustento no que se passaria nas décadas seguintes.
Se Isabel, a Católica, nunca visitou a própria mãe, condenada ao
degredo em Arévalo, teve outro comportamento para com a antiga aia. Por
diversas vezes, a rainha deslocou-se a Toledo para ver e conversar com
Beatriz, algo que não pode ser explicado por qualquer amizade de criança,
uma vez que, quando a aia deixou a corte, Isabel tinha apenas três anos.
Qualquer coisa no comportamento da rainha, no desprezo a que votava a
mãe e no cuidado que dedicava a Beatriz parece indiciar, afinal, que um
crime algures ocorrido no passado necessitava de ser punido e redimido…
Fosse qual fosse a razão, o que o tempo demonstraria é que Isabel, a
Católica, seria a grande patrocinadora da missão que Beatriz da Silva
dizia ter-lhe sido atribuída pela própria Virgem Maria: a criação de uma
ordem religiosa dedicada à Imaculada Conceição. Se, durante anos, a
ajudou com uma renda a pagar a estada no Mosteiro de São Domingos, a
rainha iria, depois, bem mais longe…
A Imaculada Conceição de Maria, isto é, a tese de que Maria fora
concebida por Deus livre de pecado e, portanto, desde cedo preparada para
ser a mãe do Messias, não era, ao contrário de hoje, um dogma. Os
dominicanos, por exemplo, não a reconheciam – e Beatriz estava num
convento dominicano, de modo que precisava de um novo lugar onde
começar uma nova comunidade, com um novo carisma. Esse lugar foi
Isabel, a Católica, quem lho conseguiu, doando-lhe os Palácios de
Galiana, antiga residência dos reis do tempo da ocupação visigótica.
Em 1484, 30 anos depois de ter deixado a corte, Beatriz da Silva parte
assim de São Domingos para fundar o seu próprio mosteiro. Durante cinco
anos, dirige 12 jovens que a seguem numa nova comunidade, a qual vive
sem uma regra específica escrita, uma vez que, para isso, necessitava da
autorização do Papa, algo dificilmente acessível para uma simples devota
que, outrora, não fora mais do que uma aia. Contudo, Isabel, a Católica,
continuava empenhada no processo e, em 1489, consegue levar a súplica a
Roma. Pela bula Inter Universa, o Papa Inocêncio VIII autoriza,
formalmente, a criação do Mosteiro da Conceição.
Beatriz era, então, já uma mulher de idade avançada – cerca de 66 anos,
provavelmente –, mas ainda viveu para receber a maior alegria da sua
vida. Tomou o hábito e pronunciou os votos como madre fundadora.
Poucos dias depois, morreu.
Alguns anos mais tarde, o Papa Júlio II aprovaria, por fim, a Regra
Concepcionista, autónoma de cistercienses, dominicanos ou franciscanos.
Nascia assim a Ordem da Imaculada Conceição, a única ordem religiosa
do mundo fundada por um português e que hoje se encontra espalhada por
todo o globo.

Contudo, viria o dia em que Isabel, a Católica, voltaria a encontrar a


mãe. Foi no Verão de 1496, quando soube da notícia de que Isabel de
Portugal estava a morrer. A rainha rumou a Arévalo e entrou no castelo
donde partira 35 anos antes. A mãe estava deitada, imóvel, na cama.
Isabel, a filha, aproximou-se e sentou-se junto a ela. Terão trocado
algumas palavras, mas Isabel, a mãe, não a reconheceu.
A 15 de Agosto, faleceu a desditosa rainha-mãe. Tinha vivido 68 anos,
dos quais 42, os últimos, encarcerada entre aquelas paredes. Do dia em
que nasceu até àquele, Portugal tinha conhecido cinco reis e Castela outros
três; todos eles seus parentes por sangue ou casamento. Fora uma vida
longa, mas nunca saberemos exactamente a que velocidade passou dentro
da sua cabeça visitada por fantasmas. Por ordem da filha, foi a enterrar no
convento cartuxo de Miraflores, em Burgos, ao lado do marido e do filho
Afonso.
Séculos depois, voltaríamos a ter notícias da rainha e da sua antiga aia.
A 3 de Outubro de 1976, na Praça de São Pedro, o Papa Paulo VI
anunciaria oficialmente a canonização de Beatriz da Silva, fazendo dela,
assim, a primeira santa portuguesa. Já em 2006, em Espanha,
investigadores da Universidade de Leão abririam os túmulos de Don Juan
II e de sua segunda esposa para realizar um estudo antropológico dos
restos mortais dos reis. Passados 600 anos, o esqueleto de Juan
apresentava-se em surpreendente estado de conservação; de Isabel de
Portugal não sobravam mais do que alguns ossos. E pó.
Contra Deus, os homens e a morte
CARDEAL DOM HENRIQUE

Quis o destino que fosse assim. Que a dinastia de Avis, a que de maior
glória se cobriu em toda a História de Portugal, fosse também aquela que
enfrentaria, porventura, os mais negros dias da Coroa nacional. Avis
começara triunfante, na crise de 1383-85, com o povo a chamar a si, pela
primeira vez, um sentimento patriótico e a levar Dom João ao trono.
Venceu Castela em Aljubarrota debaixo da aura de santidade do
comandante Nuno Álvares Pereira e seguiu à descoberta do mundo aos
ombros da Ínclita Geração. Mas terminaria arrastando-se entre a poeira e a
dolorosa memória de Alcácer Quibir, chorando os mortos, pagando os
resgates dos prisioneiros e desesperando por um milagre que não viria
salvá-la de entregar de bandeja a Castela a independência que tanto lhe
custara a garantir 200 anos antes.
Para muitos, foi a melhor parte de Portugal que terminou ali, quando a
noite caiu sobre as areias de Marrocos. O desaparecimento de o Desejado
era o epitáfio a cinco séculos unidos pelo mesmo sangue, o do pai-
fundador Afonso Henriques, passado da primeira à segunda dinastia por
Dom João I, bastardo de Dom Pedro e Teresa Lourenço, galega de quem
pouco se sabe, a não ser que rompe o mito romântico de que, depois de
Inês, Pedro nunca mais conhecera outra mulher.
Todavia, que esse Portugal original tivesse terminado assim, de repente,
com um rei a desaparecer, de espada erguida, entre a multidão de soldados
adversários, seria ainda uma imagem de um heroísmo reconfortante. Não
foi assim. Foi uma decadência lenta e penosa. Um calvário de dois anos
sentido num país que se arrastava perigosamente para o abismo, mas,
acima de tudo, passado em tumulto no interior da cabeça dum só homem,
um homem só e amargurado, uma das mais complexas figuras da História
nacional: o cardeal Dom Henrique.
Para compreender a dimensão do drama, é preciso recuar no tempo.
Vamos ao princípio do século XVI, quando Portugal tinha acabado de
chegar ao Brasil e era senhor dum império que se estendia a quatro
continentes. Era rei Dom Manuel I, que já tinha casado duas vezes e
tratava agora de arranjar mulher ao filho João, futuro Dom João III, o
príncipe herdeiro. Tudo estava tratado para que fosse a jovem Dona
Leonor da Áustria a escolhida – muito bela, ao que se diz. Porém, chegado
o dia do anúncio oficial, Dom Manuel deixa a corte perplexa: comunica
que vai ele mesmo casar com a jovem. Ele de 49 anos; ela de 20; João a
sentir-se, provavelmente, uma criança. Juntos, Dom Manuel e Dona
Leonor tiveram dois filhos, mas ele morreu ao fim de três anos de
casamento. Com a rainha novamente livre, ainda houve quem sugerisse a
João casar com a madrasta, mas ele não quis (o que não foi suficiente para
evitar os rumores que circulavam sobre um alegado romance entre os
dois). Leonor acabou por partir e tornar-se rainha de França; João casou
com Catarina de Áustria, a mulher que deveria ter sido apenas consorte do
rei português, que acabou por ter de assumir a regência e, por pouco, não
foi rainha.
Por agora, tudo parecia no sítio certo. Dom João III reinava, era senhor
do poder temporal, enquanto Henrique, seu irmão mais novo, era senhor
do espiritual. Eram anos de grande concórdia entre Coroa e Igreja: as
terras conquistadas pela primeira eram evangelizadas pela segunda. A
expansão do território abrandara; era agora tempo de o consolidar e
proteger contra investidas rivais; combater os piratas e viver dos
rendimentos.
Henrique ascendera rapidamente na hierarquia eclesiástica. Estudioso e
aplicado, homem de grande vocação religiosa, terá talvez contado também
com aquele pequeno pormenor de ser filho do rei Dom Manuel I. Aos 20
anos, já era arcebispo de Braga. Mais tarde, lideraria também as
arquidioceses de Évora e Lisboa. Foi inquisidor-mor do reino, o que não
lhe terá valido muitos amigos, e o Papa Paulo III nomeou-o cardeal.
Influente e respeitado em toda a Igreja continental, não faltou muito para
que se tornasse no segundo Papa português, entrando nas contas do
conclave depois da morte de Marcelo I. Era um eclesiástico de carreira.
Um homem feio, soturno e solitário, mas o seu reino não era deste mundo.
Esses assuntos eram para o irmão e para a descendência que deixasse. Mas
é aí que começam os problemas…
É que Dom João III teve dez filhos, incluindo aquele que lhe deu uma
aia antes de casar com Dona Catarina, mas viveu a tragédia de os ver
morrer a todos. Duarte, Afonso, Maria Manuela, Isabel, Beatriz, Manuel,
Filipe, Dinis, João Manuel e António, um a um apontados como
sucessores da dinastia de Avis e um a um desaparecidos, levando aquele
que era à época, provavelmente, o mais poderoso reino do mundo, à
angústia de se encontrar, de repente e sem aviso, à beira do colapso. O
caso mais dramático acontece com o penúltimo filho: o infante Dom João.
Nasce em 1537, torna-se príncipe herdeiro dois anos depois pela morte do
irmão Dinis, vê morrer o irmão mais novo e último que ainda vivia em
1540, casa com Dona Joana em 1552, ela engravida, mas ele morre de
diabetes dezoito dias antes de ela dar à luz. Esse filho, nascido a 20 de
Janeiro de 1554, chamar-se-ia Sebastião e não admira que ficasse
conhecido desde cedo como o Desejado…
Por ora, o reino parecia salvo. Dom João III morre em 1557, quando
Dom Sebastião é apenas uma criança de três anos, mas agora tratava-se
somente de assegurar a regência até que o jovem atingisse a maioridade.
Para a tarefa, são chamados Dona Catarina, a avó e mulher que chorara o
desaparecimento de todos os filhos, e o tio-avô, cardeal Henrique, que
alegadamente nunca se imaginaria metido nestes trabalhos, mas cuja
chamada ao poder terreno não deixava de representar a crescente
influência da Igreja no império português de então.
Enquanto regente, o cardeal teve uma administração discreta e prudente.
Concentrou-se em equilibrar as contas do reino, reduzindo despesas e
pagando dívidas. Passados 11 anos, quando o sobrinho-neto atingiu os 14,
Henrique e Catarina passaram-lhe tranquilamente o poder numa cerimónia
pública realizada no Rossio, em Lisboa. Depois disso, continuaram a
acompanhá-lo na governação, educando-o e aconselhando-o. De resto, o
cardeal seria uma vez mais chamado à regência, desta vez por um curto
período de tempo, quando Sebastião se desloca pela primeira vez a Tânger
e Ceuta, mas o rei e o tio-avô iam cortar relações. Dom Sebastião aceita
perdoar aos cristãos-novos a troco de dinheiro; o cardeal Dom Henrique
não se conforma. Estávamos a um ano de Alcácer Quibir. Henrique e
Sebastião não voltariam a falar.
Tinha que se lhe dissesse, a personalidade do jovem rei português.
Pouco preocupado em encontrar mulher com quem casar e dar
descendência ao reino (diz-se, aliás, que uma doença lhe afectava os
órgãos genitais), vivia com a obsessão de reeditar os grandes feitos
militares dos antepassados. Contra a opinião dos conselheiros e tudo
aquilo que recomendaria o mais elementar bom senso, ansiava pela hora
de partir para África, a fim de recuperar velhas praças portuguesas e
conquistar Marrocos. Involuntariamente, parecia ser Camões, o maior
poeta nacional, a razão de tal delírio. Os feitos cantados n’ Os Lusíadas
empolgavam Sebastião a tomar as armas e arriscar a dinastia que ainda
agora se tinha salvo por milagre. Arriscar a independência do reino a
disputar cidades que, do ponto de vista económico, eram ruinosas e cujo
valor, tendo em vista que o império se estendia já por Brasil, Índia, China
ou Japão, era meramente simbólico. Para não falar do fervor religioso que
o fazia crer ser um soldado de Cristo destinado a revelar aos infiéis a fé
cristã – nem que fosse à força.
A oportunidade tão desejada pelo rei e temida pelo reino surgiu com a
visita de Mulay Mohammed. Afastado do trono pelo tio, vinha pedir o
apoio português para o recuperar. O destino fazia a vontade a Sebastião:
era a sua deixa para tomar Marrocos. Reuniu um exército de entre 15 000
a 23 000 homens e uma frota de 500 navios e partiu, no sufocante Verão
de 1578.
O resto da história é bem conhecido… Desgastados por uma longa
viagem, doentes, enfraquecidos pela fome, pela sede e pelo calor, os
soldados de Sebastião chegaram enfim ao campo de batalha, onde os
aguardava um exército tranquilo e conhecedor do terreno, apoiado pelos
otomanos. Segundo a lenda, a última vez que alguém viu Dom Sebastião,
estava o rei com a espada de Afonso Henriques erguida, a carregar sobre o
exército inimigo, desaparecendo numa nuvem de homens, esperanças e
pó.
… E assim voltamos ao ponto onde começámos. À cabeça do cardeal
Dom Henrique. Um velho padre sentado sozinho a uma imensa mesa do
Palácio Real, em Lisboa, terrivelmente solitário, mesmo que rodeado,
naquele instante, de uma escolta de clérigos e cortesãos. Indesejado,
deslocado no tempo, isolado na sua própria corte, perdido na velhice, no
questionamento das escolhas que fizera ao longo da vida. Tinha 66 anos –
não contava viver muito mais. Mas, agora, era rei à força porque o
sobrinho-neto, o Desejado, o milagre ilusório que vinha salvar uma
dinastia condenada a desaparecer, tinha sucumbido em África, aos 24
anos, entregando à morte, ou, na melhor das hipóteses, ao cativeiro, a nata
da nobreza nacional. Henrique, o velho… Quase foi Papa e era agora rei
dum reino desesperado e com o relógio a contar para cair em mãos
estrangeiras. Um homem com temor a Deus e medo dos homens, que
poderia tão facilmente ser odiado pela cobardia das suas dúvidas, como
objecto da nossa compaixão. Que quereria dele o Senhor com tão duro
teste?
Aclamado rei ainda naquele Agosto de 1578, a simples aparição de
Henrique na ocasião dispensa palavras quanto ao paradoxo de dimensões
históricas com que o país se via forçado a confrontar: apresenta-se diante
do povo de ceptro real na mão, mas ainda vestido nos habituais
paramentos de cardeal.
Nada no seu íntimo tinha mudado. Continuaria a frequentar a missa
diária, e na hora de resolver o problema mais urgente que se lhe levantava
– negociar a libertação dos 16 000 prisioneiros de guerra em Marrocos –
enviaria como diplomatas clérigos da sua confiança.
Eram dias de luto e humilhação nacional. Os cofres reais foram
esvaziados para pagar os resgates. Famílias inteiras empenharam tudo
quanto tinham para recuperar filhos e maridos. Ao mesmo tempo,
procurava-se, em vão o corpo de Dom Sebastião, para dar a Portugal, ao
menos, o cadáver dum rei para chorar.
No entanto, havia um problema ainda maior a resolver: encontrar um
sucessor para o cardeal Dom Henrique. Alguém que evitasse que um
império de meio mundo colapsasse por não ter rei e se oferecesse, de mão
beijada, a outra bandeira.
Vamos por partes. Tínhamos um rei que, pela lei da vida, não duraria
muito mais. Um rei que, ainda por cima, estava doente. Um rei que era
padre, arcebispo, cardeal, comprometido desde a juventude com o
celibato, a quem nem a má-língua alguma vez identificara qualquer
indício de proximidade com mulher. Um rei sem família, sem
descendência possível, sem saída, a quem os gentis cultores da
cognominação da realeza nacional não saberiam que mais chamar senão o
Casto.
Havia, então, duas hipóteses: ou Dom Henrique conseguia dispensa do
celibato, arranjava mulher e ainda se lançava à proeza de a engravidar,
apesar da doença e da idade avançada, ou escolhia um sucessor
razoavelmente legítimo entre uma lista de pretendentes. Apostar na
primeira hipótese era, fundamentalmente, esperar não por um milagre,
mas por vários, em catadupa. Restando a segunda, importava, então,
analisar a lista de candidatos…
O primeiro era Dom António, prior do Crato. Ele próprio tinha
combatido em Alcácer Quibir e caído nas garras do sultão, mas fora um
dos primeiros a conseguir a libertação, depois de ocultar inteligentemente
as origens familiares. É que António tinha sangue real; era neto de Dom
Manuel I e, portanto, sobrinho do cardeal Dom Henrique. O problema é
que o tio não apreciava a personalidade de António e, ainda que o povo o
apoiasse para rei, o cardeal recusaria sempre essa hipótese, chegando a
retirar-lhe a nacionalidade.
Depois, seguia-se uma lista de candidatos de duvidosa legitimidade ou
descendência remota (e, já agora, mau nome para rei), como Manuel
Felisberto, duque de Sabóia, filho de Dona Beatriz, e Rainúncio, filho de
Dona Maria, a irmã mais velha de D. Catarina. Todavia, restava ainda um
candidato, um pretendente forte e perigoso: Filipe II, rei de Espanha, filho
da infanta portuguesa Dona Isabel e, portanto, também neto de Dom
Manuel I e sobrinho de Dom Henrique.
Por mais absurdo que pudesse parecer em termos políticos, a verdade é
que, a título pessoal, o cardeal tinha por Filipe o apreço que não nutria por
António, e que muitos nobres portugueses preferiam dar o seu apoio ao rei
católico do que a um seu compatriota. E que, por fim, um espião
português de má memória, chamado Cristóvão de Moura, se encarregava
de passar ao monarca espanhol as informações mais preciosas acerca de
tudo quanto acontecia no «segredo» da corte portuguesa.
E como o tempo corria! Como era urgente encontrar uma solução,
escrever um nome no topo da lista da sucessão, dar ao reino um destino,
salvá-lo de perder a independência tão bravamente conquistada por
Afonso Henriques e mantida com sangue e fé por Dom Nuno Álvares
Pereira… O cardeal feito rei tinha de tomar uma decisão. Por mais
conselheiros que o rodeassem, só ele podia fazê-lo, entre achaques e
orações, simpatias e embirrações pessoais, com lucidez e sentido de
Estado… Pois, que escolha faria Dom Henrique? A mais difícil, a mais
absurda, aquela que estava condenada a falhar.
Aparentemente pouco disposto a ser mera figura de passagem, breve
garante da soberania nacional, pêndulo numa escolha difícil onde se
limitaria a passar o testemunho a um sucessor de sangue razoavelmente
distante, Henrique decidiu tomar o destino nas mãos. Com o apoio de
alguns sectores da corte (há quem prefira falar em «pressão»), o cardeal
Dom Henrique, antigo candidato a Papa, homem enfermo de 66 anos,
decide que vai casar e ter filhos. Alto dignitário da Igreja, figura
conhecida e respeitada em toda a hierarquia eclesiástica internacional, ia
sacrificar os votos que fizera tantos anos atrás em nome de Portugal. Ia
abdicar da missão de uma vida inteira, da resposta contínua ao
chamamento perpétuo dos céus para dar àquela gente um líder para os
assuntos terrenos. Sonha que vai dar a Portugal um novo rei, um rei
verdadeiro, incontestável, consensual, com o sangue de Avis. Um rei que
trará um futuro de paz, segurança e prosperidade. E decide também que
não o vai comunicar ao povo. Que este será um segredo palaciano. Que o
reino bem pode viver na angústia de não saber o que decidiram para ele
porque se tratava de assunto demasiado delicado. E que um homem da sua
idade e posição talvez não devesse expor-se assim. E que, afinal, tivesse já
sido ou não cunhada a expressão, o segredo era a alma do negócio.
Primeiro do que tudo, pois, precisava de encontrar mulher. Isabel de
Áustria, viúva de Carlos IX de França e irmã de Ana de Áustria, esposa de
Dom Filipe II e rainha de Espanha, era uma das hipóteses. A outra era
Dona Maria, já citada a propósito de Manuel Felisberto, filha mais velha
dos duques de Bragança. Era a mais comentada e desejada. Portuguesa,
bem próxima da família real, mas muito jovem: apenas 13 anos e meio.
Contudo, Dom Henrique, movido por uma qualquer atracção pelo abismo,
ia avançar pelo próprio pé em direcção ao cadafalso…
Numa manhã a que o tempo se encarregaria de conferir sentido,
entregou el-rei a um embaixador da sua inteira confiança uma carta
destinada a Dom Filipe II de Espanha, seu sobrinho.

Senhor
Estou tão determinado a cumprir as obrigações deste cargo de Rei
em que me Nosso Senhor pôs, que chego até a tratar de casar, coisa
tão estranha à vida que dantes tinha, pedindo-mo, e aconselhando-
mo as principais pessoas, e as com que me devo aconselhar, e os
oficiais do governo desta Cidade, em nome dela, e os procuradores
do povo. E sei das mais pessoas que o desejam muito e determinam
de mo pedir. Não quis fazer nada nisto sem primeiro o comunicar a
Vossa Majestade e lhe pedir conselho e ajuda para se poder melhor
efectuar. E lhe hei-de comunicar meus pensamentos, como pudera
melhor fazer, se andar passeando com Vossa Majestade em alguma
parte donde pudéramos falar muito particularmente. Mas à falta
disso, fá-lo-ei nesta carta. Se Vossa Majestade tivera uma filha de
idade conveniente para dela se poder cedo esperar sucessão, este
fora o meu primeiro desejo. E confiara em Vossa Majestade que me
fizera mercê de a querer casar comigo. Mas já que isto não pode ser,
devo desejar a pessoa mais conjunta a Vossa Majestade, como é a
senhora Rainha que foi de França, sua sobrinha e cunhada, em
quem concorrem tantas partes, não posso eu desejar outro
casamento. E porque também há-de correr por conselho, e ordem de
Vossa Majestade em tudo lhe peço conselho, e ajuda para se fazer
como seja mais serviço de Nosso Senhor, bem de nossos Reinos,
contentamento e descanso de Vossa Majestade e meu. Esta carta
mando ao embaixador que a dê a Vossa Majestade sem saber o que
nela lhe escrevo, porque por agora me pareceu que somente devia
ser isto para Vossa Majestade cuja Real pessoa Nosso Senhor
guarde como eu desejo.
De Lisboa, 24 de Setembro 1578

Bom tio de Vossa Majestade


El-Rei

Porém, era necessário atacar em simultâneo noutra frente: a Santa Sé, a


Santa Madre Igreja que ainda tinha de aceitar sacrificar um dos seus
príncipes aos assuntos do século. A 28 de Outubro, outra carta escrita por
Dom Henrique é entregue a João Gomes da Silva, embaixador português
em Roma. Nela, pedia el-rei nestes termos ao Papa Gregório XIII a
dispensa do compromisso celibatário:
(…) Quis coisa para mim ouvir e pôr em prática haver de casar,
quanto mais seja necessário e forçado haver de o pôr em efeito. Seja
Nosso Senhor muito louvado, que assim permitiu, quis e ordenou as
coisas, que me chegasse esta determinação.
Beijarei os santos pés de Sua Santidade, parecendo-lhe e aprovando
o que meus vassalos me pedem (…) por me mandar a sua aprovação
licença e bênção, e dispensar comigo, assim nas ordens como no
parentesco, com a princesa com que Nosso Senhor for servido que
seja este casamento, em que também espero me faça Sua Santidade
mercê do seu conselho e parecer, como senhor e pai universal (…).
E a principal obrigação que eu tenho, é tirá-los do perigo que lhes
poderia suceder, se Nosso Senhor me levasse para si, ficando a
sucessão deles em dúvida, de que se podiam seguir mui grandes
inconvenientes. Além disso, as principais pessoas destes reinos, e os
oficiais do governo desta cidade de Lisboa, me pedem muito, e com
grande insistência, e me aconselham que case, para poder ter filhos,
e lhe dar herdeiro destes Reinos que quietamente os possa governar,
e ser Rei deles. (…)

Quanto teria custado a Dom Henrique escrever estas cartas? Quanto lhe
terá custado encontrar um sentido para os misteriosos caminhos do
Senhor? E que fé depositaria ele próprio nesta solução? Nenhuma destas
epístolas, no entanto, teria qualquer resposta. Seriam apenas as primeiras
de uma longa série de missivas que percorreriam a Europa ao longo de
muitos meses, esbarrando no silêncio, nas delongas e manobras dilatórias
de Filipe II e Gregório XIII.
É bem conhecido o poder que tinha o Império Espanhol no século XVI.
Era a maior Igreja Católica do mundo e o Papado preferia usar de especial
prudência antes de tomar uma decisão que pudesse não ir de encontro aos
anseios do senhor de tais domínios. Não poucas vezes, os dois poderes
terão agido concertados porque, por norma, aquilo que convinha a um,
convinha também a outro. Neste caso concreto, havia mundos novos a ser
descobertos e evangelizados na fé cristã, e os reis portugueses tinham-se
investido, desde o começo, dessa tarefa, que parecia directamente recebida
de Deus todo-poderoso, de levar a Sua palavra a milhões de novas almas.
Até ali, nenhuma missão poderia partir para o canto mais remoto do globo
sem passar, primeiro, pela superior autorização do soberano português. De
modo que, se ele capitulasse, se Lisboa fosse posta fora da equação,
respeitosamente subordinada ao rei espanhol, Roma poderia, enfim, tomar
o seu lugar no centro daquele notável projecto de cristianizar o mundo
inteiro.
E assim, quando Filipe II recebeu a missiva de Dom Henrique pedindo-
lhe a mão da cunhada, de imediato informou os seus embaixadores em
Roma para que pressionassem o Papa no sentido de não ceder ao pedido
de escusa do rei português. Isto se, é claro, desejasse conservar as relações
entre Roma e Espanha que tão bons frutos vinham dando. E Gregório
XIII, naturalmente, nem teve de se pôr de acordo. Jamais lhe passara pela
pontifícia cabeça decidir em contrário.
Seguiram-se novas cartas e, quando começaram a chegar respostas de
ambas as frentes, eram, em tudo, semelhantes: as duas se faziam surdas à
angústia e urgência do velho Henrique, aconselhando-o a melhor meditar
no dilema, a acautelar-se da ira divina perante tal reviravolta no seu
destino, fazendo-o ver – como sempre fora um homem dedicado a Deus –
quão perigosa poderia ser a abertura deste precedente histórico? Além
disso, Filipe II puxava dos galões do parentesco para sensibilizar o tio dos
perigos que poderia correr a sua saúde, em tão debilitado estado, se a fosse
agora sujeitar às atribulações do casamento.
Dom Henrique, contudo, não se deixaria demover. Escreveria mais
cartas, insistiria nos pedidos, clarificaria as razões para o caso de
porventura não o ter feito suficientemente bem da primeira vez.
Sublinhava a urgência e necessidade de uma decisão em seu favor.
Lembrava que não agia contra Deus, era Deus quem assim quisera. Fora
Deus que nos trouxera até aqui, a este beco aparentemente sem saída, para
nos testar e sublimar. De resto, acrescentava um argumento de peso: não
era a primeira vez que esta situação se colocava na história da Igreja. E
recordava depois, a propósito, o exemplo relatado nas crónicas da
Hungria, quando o Papado dispensou do voto de castidade Colomano,
bispo da Panónia, sucessor de seu tio, o rei Ladislau, acabando por casar
com a rainha viúva, para que se prolongasse a dinastia e salvasse o reino
de males maiores.
Mas isso fora na Hungria. Aqui, em Portugal, o reino inquietava-se.
Desconhecendo aquelas movimentações epistolares, as negociações entre
embaixadores, os planos entretecidos nos corredores de palácios e templos
pelos homens fortes dos senhores de grande parte da Europa do século
XVI. Havia quem pensasse que Dom Henrique, pura e simplesmente,
perdera o juízo. Não se ocupava do maior problema nacional. Acometido,
talvez, de insanidade grave ou senilidade imparável, não vislumbrava a
espiral que se abria diante dos seus reais pés, aquela por onde cairia um
povo inteiro. Figuras relevantes da política do reino vinham ao paço
visitar o cardeal e recomendar-lhe que se apressasse a designar um
sucessor, mas el-rei preferia conservar para si e para um círculo restrito de
confidentes a verdade sobre a missão decisiva da sua vida.
Porém, o círculo fechava-se cada vez mais sobre Henrique. O seu estado
de saúde não parava de se agravar. Tinha constantes achaques e
hemorragias. Passavam-se semanas inteiras sem que saísse da cama e era
já lá que recebia, muitas vezes, embaixadores e emissários, mantendo no
cheiro enfermo dos seus aposentos reuniões decisivas quanto ao futuro de
Portugal. Não fazia qualquer ideia do que verdadeiramente se passasse em
Espanha ou em Roma. De como todos aqueles que deveriam ter sido os
últimos a saber do seu calvário haviam sido os primeiros. Da celeridade
rastejante com que Cristóvão de Moura tudo fazia saber a Filipe II. Dos
planos e estratégias arquitectados em silêncio entre o seu sobrinho e o
Papa, os dois homens a quem pedia um pouco de humanidade, um minuto
de compreensão perante a imagem de um velho segurando um reino aflito,
tremendo-lhe nas mãos cheias de escaras e feridas. Tomava remédios para
a fertilidade que lhe recomendavam os médicos; resguardava-se de todas
as exposições; arrastava-se pelas paredes do palácio, encontrando sabe
Deus onde forças e motivos para acreditar que, mesmo que se resolvesse
toda a questão política e religiosa, seria ainda biologicamente capaz de
gerar descendência.
O tempo passava. Os fantasmas visitavam, cada vez mais amiúde, as
vidraças dos salões reais. As cartas continuavam. Com elas, as negativas,
as demoras, as trocas de considerações, os pedidos por mais tempo e
maior ponderação. Era o século XVI. Muito antes do comboio e do
telégrafo e do telefone e da electricidade e do motor de explosão e dos
satélites e faxes e correios electrónicos e sinais digitais e cabos
transatlânticos, transportando tudo num minúsculo fio de fibra. As notícias
corriam a galope, a trote ou a passo, transportadas em letra manuscrita em
cartas lacradas nos alforges de cavalos, com homens empoleirados,
galgando estreitos caminhos de pedra por um continente afora. E, contudo,
no século XVI como no XXI, o eclipse da vida processava-se à mesma
velocidade. Conforme um texto, uma intenção, um destino levava meses a
chegar ao destinatário, o sopro da morte mais se acercava do emissor,
estremecendo no frio do seu quarto, no pavor da solidão, tentando segurar,
como podia, o que lhe restava da vida dentro de si.
No entanto, nenhuma circunstância epocal, nenhum atraso tecnológico,
poderia explicar a demora de todo o processo que envolveria monsenhor
António Maria Sauli, o enviado especial encarregue por Gregório XIII,
passados meses de epístolas, de vir a Lisboa visitar pessoalmente Dom
Henrique e convencê-lo, duma vez por todas, olhos nos olhos, a abdicar
das suas tresloucadas ambições.
Sauli chegou, instalou-se e dirigiu-se ao rei-cardeal, mas a presença
imediata daquele embaixador não perturbava Henrique. Não cederia um
milímetro. Pelo contrário: enviava de volta monsenhor a Sua Santidade
com o especial pedido de que lhe sublinhasse a incompreensão perante a
surdez de Roma aos seus pedidos. Que o Papa pensasse bem. Que, na
serena lucidez da meditação, verificasse as consequências de tal recusa.
(Henrique, na verdade, já mal disfarçava o desespero que lhe tomara o
coração.)
António Maria Sauli abandonou Lisboa, a 12 de Maio de 1579. Pelo
seguro, Dom Henrique escreveu, entretanto, mais algumas cartas a
Gregório XIII antecipando o que lhe diria monsenhor de viva voz,
insistindo na absoluta necessidade de uma resposta afirmativa àquilo que
lhe implorava. Do lado de lá, contudo, o Papa repetia que necessitava de
ouvir Sauli e que só então se poderia comprometer com uma resposta
final.
Sauli, porém, devido a delongas protocolares, curiosamente aquando da
sua estada em Madrid, só atingiria Barcelona, já muito fatigado pela
viagem, a 14 de Julho. Aí, quedar-se-ia um mês à espera de um transporte
para Itália, que, vejam lá bem como são as coisas, que aborrecimento, logo
agora, teimava em não aparecer. Naquele vai-não-vai, como se não
bastasse, parecia que não se sentia bem, qualquer coisa, sabe-se lá, um
mal-estar qualquer, um enjoo, um princípio de febre, um desarranjo, uma
coisa assim que os médicos não sabiam bem explicar, andava a apoderar-
se dele. Preocupado, prudente, porque isto há prioridades e coisas com que
não se brinca, o cardeal Como, secretário da Santa Sé, achou por isso
conveniente escrever a Sauli, autorizando-o, quando chegasse a Itália, a
deter-se em Génova o tempo que fosse necessário, tendo em vista o seu
total restabelecimento.
Sauli só chegaria a Génova a 4 de Setembro. Aí, recebe nova carta de
Como, datada de 29 de Dezembro, reiterando que não havia pressa, que
ele visse bem, que permanecesse o tempo que lhe aprouvesse, e fazendo-
lhe notar que não havia qualquer necessidade de colocar a sua vida em
risco, mesmo neste cenário de tensão internacional. Verdadeiramente
espantosa, quase comovente, esta atenção do secretário para com a saúde
do pobre António Maria Sauli.
Não foi preciso esperar muito mais. No dia 31 de Janeiro de 1580, o
cardeal Dom Henrique completou 68 anos, mas sentia-se especialmente
fraco. Preferiu não tomar parte em qualquer festividade. Ao cair da noite,
morreu na mesma cama a partir da qual governou, durante dois anos, um
país que nunca o desejou para rei na mesma medida em que ele nunca o
ansiou reinar. Estava rodeado pelos padres Leão Henriques e Jorge Serrão
e pelos frades Damião e Luís de Granada. De resto, mais ninguém.
Nenhum elemento de uma família que acabara de morrer com ele.
Nenhum príncipe. Nenhuma mulher.
Das últimas missões que se investiu, conseguiu apenas o resgate de
muitos dos prisioneiros de Alcácer Quibir. De resto, não conseguiu
permissão para casar, não conseguiu com quem casar, não conseguiu saber
sequer, se, casando, poderia ter tido um filho. E não conseguiu dar a
Portugal o corpo de Dom Sebastião, para que, ao menos, o povo não
passasse as décadas seguintes suspenso da vã esperança de que, um dia,
ele voltasse, para lhes restituir a honra e a glória agora estrondosamente
perdidas.
Naquele que foi, provavelmente, o último acto oficial da sua vida,
Henrique nomeou um conselho de governadores para fazer aquilo de que
ele não fora capaz: tomar uma decisão; escolher um sucessor viável. Esse
conselho optaria por entregar a Coroa a Filipe II. Por oferecer Portugal a
Espanha.
No entanto, apoiado por outras facções, o sobrinho odiado pelo cardeal,
Dom António, prior do Crato, não aceitaria a decisão e subiria ao trono.
Portugal estava prestes a cair sob domínio espanhol, mas ainda havia pelo
menos uma história a contar.
Portugal é uma ilha; António, o seu rei
DOM ANTÓNIO, PRIOR DO CRATO

Os primeiros soldados espanhóis haviam desembarcado, há cerca de


uma hora, na pequena baía da Salga, próxima de Porto Judeu. Começavam
a subir a encosta, penetrando já nos pastos desertos, onde deviam aguardar
a concentração de um total de 1000 militares, divididos em 10 batalhões.
Foi quando vislumbraram a figura de uma mulher, uma mulher que
acenava com os braços, em cima de um muro feito de pedra sobre pedra.
Era uma silhueta roliça, onde começavam agora a distinguir umas feições
avermelhadas, ancas largas, que gritava estoicamente todos os impropérios
que conhecia, dedicando-os a todo o povo espanhol. Incansável,
incessante, rematava depois e repetia, com firmeza: «Estamos por Dom
António! Estamos por Dom António.» Os militares acabados de
desembarcar entreolharam-se e, depois, julgando-a louca, romperam numa
gargalhada colectiva. Comentaram entre eles: a julgar por aquela amostra
de sentinela local, a tomada da ilha seria ainda mais fácil do que tinham
imaginado.
O que os espanhóis não viam era que, por detrás de Brianda Pereira,
rente ao solo e encostados ao muro, fora do campo de visão dos soldados,
estavam 32 terceirenses que preparavam a largada de uma manada de
gado bravo sobre o invasor.
Ao mesmo tempo, não longe dali, um pequeno exército formado por
locais que nunca antes tinham pegado numa arma, marchava na direcção
de Porto Judeu. Tratava-se de cumprir o juramento feito perante a cruz de
Cristo, com a intercessão do padre Afonso Capela, pouco tempo antes,
numa pequena igreja de Angra do Heroísmo. Prometeram, na ocasião,
defender até à morte, dos espanhóis, a ilha Terceira. Como Brianda,
gritaram que estavam por Dom António, prior do Crato, e ao lado do gado
bravo que os companheiros soltariam ao longo da baía da Salga.
Pouco tempo passado, do alto da elevação rochosa, já o capitão
espanhol Pêro Valdez observava, atónito, pela primeira vez em muitos
anos de intensos combates por mar e por terra, a investida do gado sobre
os seus homens, apavorados. Uma mancha negra e ruidosa, levantando pó
e medo por aquele descampado que terminava na rebentação das ondas.
Por entre gritos de pânico e confusas tentativas de fuga, viu muitos dos
seus soldados tombarem, desaparecerem entre dorsos e patas, demasiado
assustados para ensaiarem qualquer ataque contra aquele exército de
animais em fúria, que se lançavam contra eles sem hesitação, de corpo
inteiro.
Varrido o campo de batalha, os 32 homens escondidos atrás do muro
saltavam agora e reuniam o gado. Aos olhos do invasor, à medida que o
pó se abatia e o contorno de Brianda Pereira voltava a ser visível, como
estátua negra no exacto lugar onde a haviam percebido a primeira vez,
tornava-se agora evidente o erro de análise. Aquela mulher já não parecia
louca, mas o general de uma tropa mitológica, um comandante com
ligações especiais à natureza, líder de uma táctica de guerra baseada no
mais eterno instinto de sobrevivência. Ali, de cima do muro, o corpo de
Brianda balançava agora, como que imitando o embalo dos animais.
Àquele insólito teatro de guerra chegava agora o improvável exército de
populares que partira de uma igreja de Angra, julgando-se abençoado pela
graça divina e disposto a cumprir até ao fim a missão de que ele mesmo se
havia incumbido, em honra do seu rei. Vinha dar o golpe de misericórdia.
Ocupar-se daquelas sombras de soldados que o gado deixara por terra.
Pêro Valdez fitou a mulher. Não estava certo de que ela continuasse a
gritar ou se era apenas ele mesmo que a ouvia ainda na sua cabeça:
«Estamos por Dom António!» O capitão olhou uma última vez aquele
cenário de desolação, o que restava de 1000 homens bem preparados e
armados fugindo como podiam para os barcos, carregando mortos e
feridos, implorando clemência a um adversário que não conhecia
convenções de guerra. Valdez desceu por fim do morro de onde
contemplara o massacre e apressou-se também ele. Lançou-se ao mar e
nadou furiosamente para o bote que o levaria de regresso ao galeão. Já a
bordo, rosnou que se levantasse o ferro. Os que faltavam nadaram de
modo ainda mais aflito. Agora, na calmaria absurda das águas, olhou a
baía em panorâmica. Fixou um ponto negro que talvez fosse Brianda
Pereira e amaldiçoou o nome que ela gritava e repetia – «António».
«António».

António nasceu em 1531, em Lisboa. Era filho do infante Dom Luís e,


portanto, neto do rei Dom Manuel I. Pelo lado masculino da família, não
havia, pois, dúvidas acerca da realeza do sangue que lhe corria nas veias; a
polémica que no futuro se levantaria em torno da sua pretensa
legitimidade enquanto possível candidato ao trono prendia-se com a
identidade da mãe. Violante Gomes tinha por alcunha a Pelicana e, se uns
diziam que se tratava de uma mulher de famílias da pequena nobreza por
quem Dom Luís se teria apaixonado e com a qual casara em segredo,
outros defendiam que descendia, na verdade, de famílias judias e que era,
portanto, uma cristã-nova. Era uma acusação grave, tendo em conta que
ainda não tinham passado assim tantos anos desde que Dom Manuel I
expulsara do país os judeus e entregara as suas crianças ao cuidado de
famílias cristãs. Essa dúvida e o preconceito que acarretava, somados ao
facto de Dom Luís ter sido prior da Ordem dos Hospitalários em Portugal,
estando por isso impossibilitado de casar sem especial dispensa do Papa,
fizeram com que, durante muito tempo, António não fosse olhado como
mais do que um mero bastardo. Com a família real bem distribuída por
muitos filhos e filhas oficiais, nada levava a crer que, um dia, viesse a
entrar nas cogitações para o lugar de rei.
António cresceu rodeado de figuras religiosas, desde logo o tio, cardeal
Dom Henrique, mas também Frei Bartolomeu dos Mártires, seu mentor
durante a formação em Coimbra, e os padres jesuítas que o instruíram
depois em teologia, na cidade de Évora. Não estranhou, pois, que fosse
ordenado diácono, professasse na Ordem de Malta e recebesse, tal como o
pai, o priorado do Crato.
Inesperado foi o que se passou depois: António recusa as ordens de
presbítero e decide viver no século, ser mundano ou, como outros dirão,
devasso. O comportamento poderá explicar, porventura, uma obra de
1592, intitulada Psalmi Confessionales, verdadeiro acto de contrição cuja
autoria é atribuída a Dom António. Por agora, o facto era este: tinha
comprado uma guerra pela qual pagaria até ao fim dos seus dias: em 1565,
é expulso do priorado pelo Papa Pio IV e ganha a inimizade eterna do tio
Dom Henrique e de Dona Catarina, a regente.
Com a reputação desfeita dentro de portas, encontra-se uma saída airosa
para o neto de Dom Manuel: é nomeado governador de Tânger e, em
breve, estava de partida para África, a fim de assumir as novas funções. E
é justamente em África que se encontrará com o momento determinante
da sua vida e da História do país…
A 4 de Agosto de 1578, Dom António de Portugal é um dos 16 000
soldados que sobrevivem ao horror de Alcácer Quibir. Um dos 16 000 que
vêem morrer 9000 companheiros e desaparecer o rei Dom Sebastião. Um
dos 16 000 que caem em mãos inimigas e são lançados nos calabouços do
sultão. A ascendência real e os cargos que tinha ocupado faziam dele um
dos prisioneiros mais preciosos de todo o lote, mas, com astúcia e muita
fortuna, António conseguiria convencer os captores precisamente do
contrário. De que se tratava de um dos mais pobres e anónimos soldados
portugueses, acabando por ser um dos primeiros a obter a libertação e a
troco de um resgate bem mais pequeno do que pagariam os familiares de
muitos companheiros.
Como sabemos, Dom Sebastião tinha desaparecido sem deixar
descendência. Aliás, tinha desaparecido levando consigo a dinastia de
Avis, pois o pai havia já morrido, bem como o avô e todos os tios. Para
encontrar o novo rei de Portugal era, pois, necessário que se saltasse para
fora da ortodoxia e rezar para que tudo corresse bem. António, acabado de
regressar ao país, apresenta logo uma primeira candidatura ao trono, mas a
pretensão é-lhe prontamente negada pelo regente: o seu tio e inimigo de
estimação, cardeal Dom Henrique. O passado de António volta à liça: o
seu comportamento errante, mas, sobretudo, a origem duvidosa, putativo
filho de uma cristã-nova. O próprio cardeal assume o trono numa
inacreditável fuga para a frente. O problema da sucessão continuava todo
lá; tinha apenas sido adiado por alguns momentos.
A relação entre tio e sobrinho nunca deixará de se deteriorar, mesmo
tendo em conta que, à frente dos problemas familiares, deveria ter sido
colocado o superior interesse do reino. A 23 de Novembro de 1579, o rei-
cardeal decide cortar o mal pela raiz: confisca os bens de António,
expulsa-o do reino e retira-lhe a nacionalidade portuguesa. Mas era uma
das últimas acções que faria em vida: a 31 de Janeiro seguinte, perdia o
longo combate para a morte, deixando Portugal ainda sem o corpo de
Dom Sebastião, sem lhe ter conseguido dar um sucessor natural e sem que
tivesse a coragem de nomear um alternativo.
Medos, especulações e fantasias delirantes tinham agora terreno livre
para medrar. Enquanto os cinco membros da junta governativa não
tomavam uma decisão quanto ao futuro do reino, apresentavam-se
candidatos e faziam-se números de equilibrismo para justificar pretensas
legitimidades genealógicas.
Com o colapso da descendência de Dom João III, era preciso recuar ao
rei Dom Manuel I para procurar uma via alternativa à linha natural da
dinastia. Assim, encontrávamos quatro netos de o Venturoso: Catarina de
Bragança, que tinha em seu desfavor ser a única mulher da lista, mas que
era simultaneamente a única neta por varonia, já que era filha de um filho
de Dom Manuel, o infante Dom Duarte; Manuel Felisberto, duque de
Sabóia e filho de Dona Beatriz; Filipe II, rei de Espanha e filho de Dona
Isabel; e Dom António, prior do Crato, filho de Dom Luís e, portanto, neto
por via masculina, mas sobre quem pesava a dúvida de se poder tratar de
um filho ilegítimo. Acima de todos eles, pairava ainda um fantasma: Dom
Sebastião. Enquanto o cadáver não fosse encontrado, o rei vivia nos
corações do povo, sarava as feridas e recuperava forças para surgir com
um exército salvador, a qualquer momento, na linha do horizonte.
Rapidamente, Dom António e Filipe II de Espanha vão emergir como os
candidatos mais fortes. As estratégias que seguem, no entanto, são
opostas: o primeiro apela ao povo, o segundo, ao poder. António recupera
o espírito da crise de 1383-85 quando, numa situação com alguns
paralelos, o país se uniu em torno de um sentimento patriótico para
aclamar rei Dom João I, em detrimento de João de Castela. O povo adere à
causa, apoia António e recusa entregar-se a mãos espanholas, mas do
outro lado está boa parte da nobreza e do clero. Filipe II consegue seduzi-
la para a ideia que já circulava de uma alegada «União Ibérica», uma
monarquia dual onde os reinos conservariam as respectivas soberanias,
com a vantagem de assegurar a estabilidade financeira de que Portugal tão
necessitado estava. O rei de Espanha beneficiava ainda de outro factor de
peso: o medo de que a questão se arrastasse para um confronto militar no
qual o exército português, desfeito em Alcácer Quibir, não teria qualquer
hipótese. Contudo, pelo sim, pelo não, Filipe jogou ainda mais uma carta:
o suborno das figuras mais influentes do reino – um argumento clássico,
com provas dadas ao longo da História, um pouco por todo o mundo.
Contudo, a facção patriótica não se renderia. A 19 de Junho, o povo
aclama Dom António rei de Portugal, no Castelo de Santarém. Lisboa e
Setúbal seguir-lhe-ão, depois, o exemplo – um terrível atrevimento que
teria a resposta de Filipe…
Poucas semanas volvidas, Fernando Alvarez de Toledo y Pimentel,
duque de Alba, recebe do rei de Espanha a missão de tomar Portugal pela
força. Fá-lo em duas frentes: por terra, com um exército numeroso e bem
preparado, e por mar, com uma frota que descia ao longo da costa, desde o
Norte de Espanha. Cascais, São Julião, Belém e Caparica rendem-se com
facilidade; só os homens que Dom António conseguisse reunir lhe podiam
fazer frente. Mas, com os apoios internos minados pelos subornos e
ameaças de Filipe e os externos, pedidos a França e Inglaterra, a tardarem
em chegar, António não conseguiu mais do que uma pequena tropa, que
aguardou o duque de Alba na margem esquerda da ribeira de Alcântara.
A 25 de Agosto, a batalha foi rápida. Não terá durado mais do que meia
hora, mas foi quanto bastou para semear alguns milhares de mortos dum
lado e doutro da contenda. Ferido, António consegue fugir. Estará
refugiado em França quando as Cortes de Tomar, se reunirem, em Abril
do ano seguinte, e aclamarem formalmente Filipe de Espanha como Filipe
I, rei de Portugal.

António não desistiria da luta e Filipe sabia disso. O novíssimo rei de


Portugal chega a anunciar publicamente uma recompensa de 80 000
ducados de ouro a quem capturasse aquele agitador solitário, mas tinha
ainda de se haver com outro rival: o já citado fantasma do rei que
desaparecera, três anos antes, em Alcácer Quibir.
Com o povo a suspirar por Dom Sebastião, Dom Filipe faria trasladar de
África para o Mosteiro dos Jerónimos aquele que era, alegadamente, o
corpo de o Desejado, mas o esforço e o dinheiro despendidos de nada
serviram e nada calaram. Nada garantia que aquele cadáver que até hoje
jaz num faustoso túmulo de mármore não muito longe dos de Camões ou
Vasco da Gama fosse, com efeito, o de Sebastião ou de outro infeliz
qualquer, que nunca tivesse sido rei ou sequer português. Nenhum teste foi
feito na época ou desde então. Nasciam o mito e o mistério do
sebastianismo. Desprezá-los é não entender Portugal.
Naqueles mesmos dias, aconteceria, aliás, um fenómeno curioso: o
aparecimento de umas quantas figuras que reclamavam ser, nem mais nem
menos, o próprio Dom Sebastião. Alguns, consoante os dotes dramáticos,
ainda conseguiram pôr umas multidões a acreditar neles. Quase todos
acabaram presos. Um foi enforcado.

A guerra não terminara. Ainda não. Logo em 1581, Dom António, que
tinha procurado apoio em França e Inglaterra, ia descobri-lo, afinal, nos
Açores. Ciprião de Figueiredo e Vasconcelos, corregedor na ilha Terceira,
era um daqueles homens para quem Dom Filipe não passava dum
usurpador. Para Ciprião, o rei de Portugal, no exílio ou não, continuava a
ser aquele que o povo aclamara em Santarém.
No início do ano, a ilha de São Miguel tinha tomado partido, conforme
declaração da Câmara Municipal de Ponta Delgada, pela causa de Filipe
de Espanha. Em consequência disso, fora nomeado para governador-geral
dos Açores Dom Ambrósio de Aguiar Coutinho, ao qual se seguiria
Martim Afonso de Melo e cuja principal tarefa seria demover Ciprião de
Figueiredo. Revelar-se-iam vãos, contudo, os esforços do governador:
rapidamente Ciprião o obrigou a regressar a São Miguel, fazendo-lhe
notar que toda a ilha Terceira – e é provável que tenha sublinhado «toda»
– estava por Dom António.
A 25 de Julho, entrando pela baía da Salga às primeiras horas da manhã,
uma força de 1000 espanhóis comandada por Pêro Valdez viria
determinada a fazer Ciprião e os seus terceirenses engolirem a ousadia,
mas uma furiosa bateria de gado bovino mostrar-se-ia insensível perante
os seus argumentos. Empoleirada num pequeno muro de pedra,
confundida com uma rainha no alto da muralha do seu castelo, Brianda
Pereira balançou e gritou até ao fim do combate: «Estamos por Dom
António!»
Aqueles que o gado poupou não tiveram a mesma misericórdia da parte
do exército de populares. O mar levou outros que se afogaram
pesadamente, dentro das armaduras, na tentativa de fuga. Alguns, poucos,
conseguiram alcançar os galeões e viver para regressar a Espanha e contar
a história. Quando o silêncio se abateu sobre a Salga, a espuma do mar
deixava um rasto encarnado nas rochas… Custava olhar aquele retrato
sanguíneo do fim da batalha, mas a vitória fora completa. Sepultados os
corpos caídos do vale à baía, o governador Ciprião marchou até Angra do
Heroísmo, arrastando as bandeiras dos rivais. A cidade celebrou-o como a
um herói antigo. Pêro Valdez faria chegar a Dom Filipe o relato
pormenorizado dos acontecimentos e a vingança viria mais cedo ou mais
tarde, mas, por agora, era tempo de festejar orgulhosamente o crime de
rebelião.

Em resultado da batalha da Salga, a Terceira, bem como as restantes


ilhas dos grupos central e ocidental do arquipélago, firmou uma posição
fora da administração filipina. Oficialmente, Portugal continental, Madeira
e o grupo oriental dos Açores tinham um rei; aquelas sete ilhas, outro. E
esse rei oficioso, popular e marginal, viria agora tomar posse do trono…
Ainda naquele ano de 1581, Dom António vem de França desembarcar
na ilha Terceira. Entre outras personalidades da terra, esperava-o Ciprião
de Figueiredo, o homem que realizara na prática as suas aspirações reais e
que só agora conhecia em pessoa. As fortificações locais assinalaram com
uma salva de tiros o momento histórico.
Durante dois anos, a ilha que nunca vira um rei tinha agora um para ela
quase em regime de exclusividade. António mandou reforçar as defesas de
Angra, cunhou moeda como só um rei poderia fazer e preparou-se para o
embate com Espanha.
A hora acabaria por chegar dois anos depois. Liderada por Dom Álvaro
de Bazán, prestigiado comandante que alcançara a vitória na batalha de
Lepanto, uma armada muito superior em número de homens, barcos e
armas à que tentara subjugar os rebeldes na Salga entrou nos mares dos
Açores. Depois de violentos combates, a resistência açoriana capitulou.
Em 1583, Portugal inteiro estava, finalmente, sob domínio filipino.
Porém, António escaparia uma vez mais.
Depois de meses escondido em casas de amigos e mosteiros, conseguiu
os meios e os contactos que lhe permitiram exilar-se, novamente, no
estrangeiro. Em Inglaterra, obteve o apoio da rainha Isabel I e continuaria
a tentar, sucessivamente, restaurar a independência portuguesa. Mas nem
uma armada comandada pelo célebre Francis Drake conseguiu o assalto ao
poder, esbarrando na peste ao aproximar-se da costa portuguesa e
regressando a casa. Outras tentativas de desembarque, em Peniche, Lisboa
e pelo cabo de São Vicente, redundariam, por razões diferentes, no mesmo
fracasso.
Esgotados os diamantes que lhe asseguraram a subsistência e os apoios
durante aqueles anos, António viveu os últimos dias com uma pensão
atribuída por Henrique IV de França. Morreu em Paris, em 1595, sem que
ninguém se desse disso conta em Portugal. Deixou vários filhos que se
multiplicaram por uma descendência que se prolonga até hoje,
maioritariamente radicada na Europa central. Por serem ilegítimos, nunca
entrariam nas futuras contas para o trono português.
Terminava ali a turbulenta história de uma das controversas figuras da
realeza nacional. Para uns, é o rei que não foi; para outros, foi rei apenas
durante aqueles curtos dois meses entre a aclamação popular, em
Santarém, e a derrota na batalha de Alcântara; para outros ainda, foi rei
durante três anos, quando o Portugal independente se resumiu à Terceira e
às restantes seis ilhas que apoiaram o seu exemplo de resistência. Muitos
historiadores não contam sequer o nome de António, prior do Crato, entre
a lista oficial de reis portugueses. Defendem que a dinastia de Avis
terminou no cardeal Dom Henrique e que António não passou de um dos
protagonistas da crise de 1578-1580, a qual acabaria na aclamação de
Filipe I e consequente início da terceira dinastia, a Filipina. Outros fazem
precisamente a leitura oposta: Dom António foi o último dos príncipes de
Avis, o nono, e, por pleno direito, décimo oitavo rei de Portugal.
O que separa uns e outros prende-se fundamentalmente com a velha
dúvida em volta das origens de António. Se, com efeito, era fruto duma
relação ocasional do prior do Crato com uma cristã-nova, é visto apenas
com um bastardo que lutou galhardamente pela Coroa a que, na verdade,
não tinha direito. No entanto, estudos recentes apontam para o contrário.
Há documentos na Sé de Évora referindo o nome do sogro do infante Dom
Luís, Pedro Gomes, sugerindo que o casamento, afinal, existiu, foi oficial
e que a família de Violante, a Pelicana, não seria assim tão anónima. Por
outro lado, é provável que essa mesma Violante, mãe de António, tenha
terminado os seus dias no Mosteiro de Almoster, algo estranho para quem
era identificada como judia pelos detractores. Por fim, não se pode ignorar
que a educação e os cargos oferecidos a António pela família real,
incluindo o seu amargo tio cardeal Dom Henrique, parecem pouco
condizentes com o tratamento que se daria a um jovem que fosse
considerado um mero bastardo. Não fossem os ódios e os preconceitos e
António poderia, portanto, ter sucedido directamente a Dom Sebastião,
evitando-se o calvário dos dois anos de reinado do cardeal Dom Henrique
e, provavelmente, a perda da independência.
Depois de Filipe I, herdariam o trono português Fili-pe II e Filipe III,
num total de 60 anos de dominação espanhola – ou 57, se a considerarmos
efectiva apenas a partir da capitulação da ilha Terceira. Se o primeiro
viveu algum tempo em Portugal após a aclamação, o segundo só por uma
vez passou a fronteira em visita; e o terceiro, em 19 anos de reinado, nem
isso. Esse abandono progressivo foi desvanecendo, a pouco e pouco, a fé
na «União Ibérica» daqueles que a ela haviam sido convertidos pela arte
do dinheiro.
O descontentamento com a dinastia Filipina subiu de tom com a
degradação do império. Por um lado, a perda da soberania retirara a
Lisboa o papel de capital dos movimentos de missionação que dali
partiam para o mundo, sendo substituída na tarefa pela própria Roma. Por
outro, a decisão espanhola de fechar os portos portugueses aos mercadores
de Inglaterra e Holanda fez com que os dois reinos decidissem passar a
abastecer-se dos produtos do Oriente directamente na fonte. As
consequências são conhecidas: ingleses e holandeses rumaram à Índia e
apoderaram-se de boa parte das praças portuguesas.
Para que o desastre fosse total, Portugal veria ainda a sua armada ser
arrasada, depois de enviada por Espanha para uma batalha naval com a
britânica.
O movimento independentista foi ganhando força e acabaria por
restaurar a soberania portuguesa a 1 de Dezembro de 1640, assegurada
depois por 28 anos de combates. António já não o veria, mas quem subiu
então ao trono como primeiro rei da quarta dinastia nacional foi João, aliás
Dom João IV, um neto da sua prima Dona Catarina de Bragança,
candidata concorrente ao trono na famigerada crise que abalara o país 60
anos antes.
Um rei na Birmânia
FILIPE DE BRITO

A Birmânia, designada República da União do Myanmar a partir de


1989 pela junta militar que desde então tomou o poder, é um imenso país
do Sul da Ásia. Tal como o termo «união» no nome actual denuncia, não é
um território uno, de uma só cultura ou etnia, mas uma construção política
sobre uma região fragmentada e dilacerada por conflitos e colonizações ao
longo de séculos. Filipe de Brito era um humilde carvoeiro de Lisboa no
século XVI. Não era suposto que viesse a morrer na Birmânia. Não era
suposto que, um dia, viesse a ser rei nos confins da Ásia.
Filipe de Brito e Nicote nasceu provavelmente em Lisboa,
provavelmente por volta de 1566. Supõe-se que a mãe fosse Marquesa de
Brito, «Marquesa» de nome, não de título, e o pai um francês de nome
Jules Nicot, depois naturalizado português como Júlio de Nicote. Júlio era,
provavelmente – sempre «provavelmente» –, irmão de Jean Nicot, célebre
linguista francês que foi embaixador em Lisboa de 1559 a 1561,
organizador de um dos primeiros dicionários franceses e o homem que
introduziu o tabaco na corte francesa (razão pela qual se supõe que hoje
chamemos «nicotina» à nicotina).
No entanto, ter parentes mais ou menos ilustres não valeu de muito a
Filipe. Se a data de nascimento que lhe é atribuída está correcta, era ainda
um adolescente quando trabalhava duramente para comer. Era carvoeiro –
e a cor negra com que passava na rua não o deixava fingir que talvez fosse
outra coisa.
Estávamos na capital do Império Português no tempo em que esse
império estava no auge: ilhas atlânticas, costas ocidental e oriental de
África, Índia, China, Japão, Brasil… E, no entanto, Filipe, como muitos
outros milhares de homens, desejava deixar essa capital para procurar
melhor sorte numa qualquer província nos confins do mundo. Em Lisboa,
havia a peste, os mortos, o medo; lá longe, não se sabia o que havia,
portanto, podia ser tudo. Incluindo a felicidade.
E assim, não sabendo exactamente para onde ia, não sabendo de todo o
que o esperava, não sabendo o que faria, apenas confiando, acreditando,
desafiando o destino, como todos os outros homens que enchiam a nau,
acotovelados uns sobre os outros, como todos os outros homens de olhos
postos no mar à procura do futuro, Filipe partiu, um dia, em direcção ao
Oriente mítico.
A viagem durava um ano. Uns morriam pelo caminho; os que
sobreviviam decidiam em que porto descer e aventurar-se, abrir um
comércio, casar com uma nativa ou entregar-se, talvez, como mercenários
a um senhor local. Outros escolhiam o mar, ser piratas e nunca mais voltar
a casa.
Que opção tomou primeiro Filipe, não sabemos. Em que portos desceu?
Como foi que, em poucos anos, foi penetrando de tal forma nas
profundezas da Ásia? Que sucessão de acontecimentos o terão levado até
à ilha da Sundiva? Não se sabe. Não é costume registar, a par e passo, a
história dos milhares de anónimos que deixaram Lisboa em busca de
aventura no império, mas é aí que voltamos a ter notícias dele, nessa ilha
da Birmânia, estabelecido como vendedor de sal na derradeira década do
século XVI. Portugal já perdera, entretanto, a independência para Filipe II
de Espanha, mas os impérios seguiam autónomos. Para quem lá estava,
como Filipe, perdido naquela vegetação imensa e sufocante, pouco
importava quem ocupava o trono na ridiculamente longínqua Península
Ibérica.

Durante alguns anos, a Birmânia estivera mais ou menos unida. Por


volta de 1540, o pequeno reino birmane de Taungu tinha conseguido
submeter o poderoso reino Mon de Pegu, unificando a Baixa Birmânia.
Ao longo da década de 50, foi conquistando, sucessivamente, a Alta
Birmânia, Manipur, Chiang Mai e algumas regiões shans. Mais tarde,
dominara o reino siamês de Ayutthaya e, por fim, em 1574, os laocianos
de Lan Xang, mas, sete anos depois, a morte do rei Bayinnaung precipita o
caos. Os siameses de Ayutthaya, um dos povos que mais longamente
resistiram à ofensiva birmane, libertam-se do controlo real e expulsam os
opressores. A guerra está na rua e Filipe de Brito, que já foi carvoeiro e
vendedor de sal, que terá talvez sido muitas outras coisas que a História
não registou e que trocou Lisboa pela Ásia profunda em busca de riqueza,
vê rasgar-se por entre as neblinas matinais de Sundiva a oportunidade por
que tanto esperou: vai alistar-se. Ser soldado da fortuna. Mercenário.
Depois da morte do rei Bayinnaung, sucedeu-lhe no trono o filho
Nandabayin, tornando-se o quarto monarca da dinastia Tangu a reinar
sobre a Birmânia. Porém, o jovem rei não herdara a autoridade do pai e
tem dificuldade em conter as pretensões dos próprios irmãos, vice-reis de
Taungu, Prome e Ava. Xilimixa, filho de Min Phalong e rei do Arracão,
apoia os vice-reis na revolta e é no seu exército que Filipe de Brito e
Nicote se alista. Em 1599, Filipe e outro mercenário português, Salvador
Ribeiro de Sousa, promovidos a capitães, assaltam directamente Pegu,
transformada em capital do reino Taungu. Depois de saquearem a cidade,
invadem o palácio real e capturam o próprio Nandabayin.
Dias depois, Filipe e Salvador apresentam-se diante de Xilimixa com o
troféu de caça mais desejado: o próprio rei. Xilimixa sobe então ao trono
e, como recompensa pelos extraordinários feitos de Nicote e seus
mercenários, oferece-lhes o porto de Sirião.
Um porto a troco dum reino? Não era pouco. Sirião era o porto mais
importante da Birmânia. Ficava mesmo no rio Pegu, a três milhas da foz,
no distrito de Rangum. Todo o comércio da região passava por ali. A
intenção do rei era a de que o seu brilhante capitão acolhesse eventuais
fugitivos peguanos, mas este via outras potencialidades na zona…
Filipe dirige-se a Xilimixa e apresenta-lhe a ideia de construir ali uma
alfândega. Ele mesmo a dirigiria, controlando o comércio da zona e
garantindo que todas as embarcações que ali passassem pagavam um
imposto ao rei. Perante aquela gloriosa possibilidade de aumentar de
forma extraordinária as suas rendas, Xilimixa aceitou sem pestanejar.
Filipe de Brito tinha a total confiança do rei e liberdade para executar o
projecto como melhor entendesse. A Xilimixa bastava acompanhar à
distância, através dos relatos que lhe fosse fazendo o seu vassalo
Banhadala.
A obra começou e avançava a bom ritmo, mas depressa Banhadala se
apercebeu de que algo de estranho estava a acontecer… Viu os desenhos
do arquitecto João Tharyno (de cujo nome deriva, provavelmente, a actual
designação do Sirião: Thanlyin) e o avanço da construção de pedra e cal:
Nicote não estava a fazer uma casa de alfândega; estava a levantar uma
fortaleza.
Com efeito, não era intenção do português ficar-se pela condição de
homem de confiança do rei, adoçando-o com os impostos que cobrasse; o
plano era erguer ali uma base de operações a partir da qual conquistaria o
reino. Antes que fosse tarde de mais, Banhadala manda os seus homens
cercarem a construção e proíbe todo e qualquer português de se aproximar
dela, com excepção do frade dominicano Belchior da Luz. Mas Filipe age
depressa: reúne Salvador Ribeiro de Sousa e mais dois capitães – João de
Oliva e Paulo do Rego – e junta cerca de 50 homens de confiança, entre os
quais alguns daqueles com quem, pouco tempo antes, derrubara e
capturara Nandabayin. Investem de surpresa e, em pouco tempo, assumem
total controlo do forte.
Contudo, Banhadala tinha escapado com vida à ofensiva. Refugiado
numa ilha próxima, junta uma força de 1000 homens para o contra-ataque,
mas, numa região de etnia Mon, ninguém arriscaria a vida pelo rei
arracanês movido por qualquer espécie de instinto patriótico; era preciso
ganhar alguma coisa com isso. Banhadala invade então o templo de Digan
e saqueia os seus tesouros; reparte-os com os seus mercenários e prepara-
se para a vingança. Só que Nicote movia-se depressa… Gozando da sua
reputação junto do rei, leva-lhe o relato do sucedido: acusa Banhadala de
ser um ladrão imoral, que saqueou um lugar sagrado para pagar aos
esbirros, e Xilimixa, chocado, retira o seu apoio a Banhadala e deixa que
seja Filipe a arbitrar o ambiente de tensão que se vive no Sirião.
Vitorioso, Nicote regressa e conclui a obra. Em pouco tempo, estava
levantado e terminado o forte português na foz do Pegu. Para que aquela
região fosse oficialmente reconhecida como território português do Estado
da Índia, só precisava agora de uma palavra do vice-rei e esse estava em
Goa. Filipe de Brito e Nicote ia partir em viagem diplomática; em campo,
para assegurar a independência do forte do Sirião, bastava Salvador
Ribeiro de Sousa.

Seria um erro confundir Salvador com Filipe de Brito. A forma como


ambos trocaram Portugal pelas humidades sufocantes da Indochina tinha
algumas semelhanças, mas havia uma diferença de fundo: a ambição. A de
Filipe não conhecia limite; Salvador limitava-se a fazer o que tinha de
fazer, sem grandes planos.
Salvador Ribeiro de Sousa nasceu em Ronfe, distrito de Guimarães, em
data incerta. Não era tão pobre como Filipe; crescera na herdade do pai,
Frutuoso Gonçalves de Sousa, e era, acima de tudo, um militar. A 26 de
Março de 1587, partiu para a Índia, integrado na armada de Francisco de
Melo. Com ele seguiram, ou já lá se encontravam, pelo menos dois
irmãos.
Serviu sete anos na Índia, com franco sucesso militar. Cumprida a
missão, decide regressar a casa. Devia vir receber o pagamento pelos seus
serviços e pelos dos irmãos, galhardamente falecidos em combate, e que
tivera de enterrar na Índia, solo pátrio, teoricamente, mas pouco familiar.
No entanto, o acaso ou o destino interpôs-se no caminho. O mau tempo
obriga-o a aportar no golfo do Ganges, a partir de onde a guerra o
chamaria, de parte em parte, até chegar à Birmânia, ao lado de Filipe de
Brito e Nicote. Ali, deixado no comando das operações, enquanto Filipe
corria para Goa em busca de reconhecimento oficial do novo domínio
português, Salvador tornar-se-ia num guerreiro invencível, cuja fama
haveria de correr todo o Sudeste asiático.

Filipe de Brito e Nicote não deixaria o Pegu sem dar satisfações ao


«seu» rei Xilimixa. Segundo o português, agora governador do Sirião, a
expedição tinha por objectivo obter apoio para uma futura conquista de
Bengalo – e Xilimixa logo lhe deu a bênção, agradecido aos deuses por ter
a seu serviço um capitão tão diligente.
Porém, desta vez, o embuste seria desmascarado. Antes mesmo de
partir, Nicote tinha-se desdobrado em contactos com príncipes de reinos
vizinhos, prometendo a cada um deles a mesma coisa: o trono de Pegu,
caso apoiassem o vice-rei português no assalto ao poder. Mas um deles
terá desconfiado e falado com outro, ou as movimentações de Nicote
foram simplesmente demasiado suspeitas… De modo que ainda mal o
português tinha partido com destino a Goa e já a notícia do seu ardil havia
chegado aos ouvidos do rei. A confiança de Xilimixa no seu capitão e
governador estava, abrupta e irremediavelmente, arrasada.
Nos dias seguintes, Banhadala, reinvestido da protecção real, recebe
uma frota com 6000 homens e uma ordem: tomar o forte de Sirião e
capturar todos os portugueses que lá se encontrem. Então, na foz do rio e
com apenas três navios e 30 homens, Salvador Ribeiro de Sousa esperou
Banhadala e atirou a matar. Os 40 primeiros barcos a chegar foram
capturados e muitos dos seus ocupantes mortos; os restantes puseram-se
em fuga. Em poucas horas, Banhadala sofria a sua segunda e humilhante
derrota perante os portugueses. Mas não se rendia.
Com o apoio do rei de Prome, Xilimixa volta a carga. Compreendida a
lição de que, atacando pelo rio, eram presas fáceis para os portugueses
aquartelados no forte, traçam uma ofensiva combinada: enquanto 1200
barcos investem pelo rio, 40 000 homens avançam por terra. Era uma
força avassaladora, mas que não beneficiaria do efeito surpresa da
investida anterior. Salvador Ribeiro de Sousa aguardava um novo ataque a
qualquer momento e reunira uma força militar muito superior àquela com
que conseguira a miraculosa vitória no Pegu. Ao aperceber-se da
aproximação do exército de Xilimixa, Salvador e os seus homens
abandonaram o forte e esconderam-se no mato. Quando a noite caiu,
mataram o general. Sem ordens de comando e tomados pelo medo, os
soldados puseram-se em fuga.
Banhadala, porém, era um osso duro de roer. Pouco tempo depois,
regressaria ao campo da batalha e, desta vez, vinha preparado para ficar o
tempo que fosse preciso. Apoiado por 8000 homens, cercou o forte de
Sirião durante oito longos meses. Desesperados, alguns portugueses
desertam, mas, antes que outros tivessem a mesma ideia, Salvador manda
queimar todos os barcos que se encontravam no porto.
No entanto, para sacudir este quarto embate não bastaria a inteligência
de Salvador Ribeiro de Sousa nem a bravura dos seus irredutíveis
mercenários, transformados em fundadores daquele microrreino
autónomo. Acudindo a um pedido de ajuda, o vice-rei da Índia, Aires de
Saldanha, envia reforços. À frente de 800 soldados, Salvador carrega
então sobre as fortificações que Banhadala construíra em volta durante o
cerco, arrasa-as e coloca, mais uma vez, as forças fiéis a Xilimixa em
fuga.
Com esta última vitória, os portugueses ganhavam algum tempo de paz.
As tropas recebem ordem para dispersar e apenas 200 homens
permanecem para assegurar a defesa do forte de Sirião. No entanto,
Banhadala voltaria para um derradeiro combate… Só que esta nova
tentativa de cerco seria resolvida por uma espécie de intervenção divina:
quando uma bola de fogo recortou o céu nocturno sobre a foz do Pegu, os
homens de Banhadala debandaram, apavorados, deixando armas e
máquinas de guerra para trás. E assim Salvador Ribeiro de Sousa tomou
posse delas e mandou-as destruir, com os agradecimentos a deverem ser
dirigidos àquilo que mais não fora, provavelmente, do que um
providencial meteoro em combustão ao entrar em contacto com a
atmosfera.
Em paralelo, outras forças sob o seu comando triunfam em Camelan,
derrotando e matando o rei Massinga. A fama de Salvador Ribeiro de
Sousa tinha subido o rio e galgado fronteiras. Milhares de nativos
apresentam-se diante dele, desejando serem colocados ao seu serviço.
Filipe de Brito e Nicote ganha então o nome de «Changa» – «Homem
Bom» – e é proclamado rei do Pegu pelo povo Mon, que nunca desejara
reconhecer a soberania do rei birmane. Com Nicote ainda ausente em Goa,
Salvador recebe a coroa em seu nome.
E foi assim, pela acção isolada de alguns aventureiros em busca de
fortuna e que, na verdade, não lutavam ao serviço de qualquer rei, mas
deles mesmos, que, em 1600, Portugal se tornou senhor do reino de Pegu,
na Baixa Birmânia.

Em 1602, Filipe de Brito e Nicote regressou para tomar, oficialmente,


posse da Coroa em nome do rei de Espanha e Portugal. Consigo, trazia os
títulos de «comandante do Sirião», «general das conquistas do Pegu» e
«rei do Pegu». Mais: trazia ajuda militar para manter e assegurar a
soberania do reino, seis navios e um regimento próprio, a troco da
obrigatoriedade de deixar de agir de forma isolada e colocar o território na
dependência da Coroa – a Coroa dessa longínqua península que deixara
um dia, muitos anos e guerras atrás.
No entanto, Nicote trazia ainda algo mais: uma mulher. Tal como um
dia conquistara a confiança incondicional de Xilimixa, o mesmo fizera,
num curto espaço de tempo, com o vice-rei da Índia: Aires de Saldanha
não só acedeu a todos os seus pedidos, como ficou de tal modo fascinado
com a personagem que lhe ofereceu em casamento a sobrinha Luísa,
natural de Goa e filha de uma mulher javanesa.
Se Salvador Ribeiro de Sousa era, sobretudo, um génio militar, a arma
de Filipe de Brito e Nicote era outra: uma tremenda capacidade de
sedução. Agora, o primeiro passava serenamente a coroa ao segundo,
aquela que garantira, só ele sabia à custa de quantos sacrifícios, durante a
ausência do novíssimo rei.
Nos tempos seguintes, os reis de Arracão, Taungu e Prome ainda fariam
as suas investidas. Interessava-lhes sobretudo arrecadar para si os
fabulosos lucros que Nicote fazia com a alfândega de Sirião. Violentos
combates ocorreriam por terra e por mar, sempre com a vitória final a cair
para o lado português. Capitaneados por Paulo do Rego Pinheiro, os
homens fiéis a Filipe de Brito capturariam fortes, frotas inteiras e fariam
incontáveis prisioneiros, incluindo príncipes e a esposa do velho
Banhadala. Por fim, birmanes e aliados baixaram os braços e retiraram-se.
O rei do Pegu podia, finalmente, apreciar um pouco da sua riqueza – e da
sua lenda.
Assegurada a paz e escoltado Filipe de Brito até ao trono, Salvador
Ribeiro de Sousa deu por finda a sua missão na Ásia. Tranquilamente,
como um vulgar soldado que cumprira a sua comissão de serviço,
embarcou de regresso a Portugal. Foi feito comendador da Ordem de
Cristo e há quem diga que viveu o resto dos seus dias na aldeia natal, em
Ronfe. O seu corpo, no entanto, repousa bem longe daí, na casa do
capítulo do convento franciscano de Alenquer. Lá, uma lápide recorda até
hoje o seu nome e a sua história, escrita a milhares de quilómetros de
distância, entre pântanos e soldados a soldo.

De coroa na cabeça e manto real aos ombros, aclamado pelo povo, que
lhe continuava a chamar «Changa», Filipe de Brito e Nicote continuou no
Pegu, transportado no dorso de elefantes. Contudo, a reputação de
«homem bom» entre os Mon não o livraria de, até ao fim, suscitar reservas
entre os seus. Em 1605, recebendo do vice-rei da Índia a descrição do
triunfo de Brito no Pegu, Dom Filipe II, rei de Espanha e Portugal,
responde-lhe por carta datada de 2 de Março desse mesmo ano,
preocupado, sobretudo, em receber a sua parte dos impostos recolhidos
pela alfândega de Sirião, e revelando uma prudente distância em relação
ao carvoeiro que se tornara rei:
(…) E posto que pelas boas informações que tive do procedimento
do dito Filipe de Brito, e serviços que me allegou fizera nesta
empreza, tive por bem de lhe fazer mercê do habito de Christo, que
lhe mandei lançar nessas partes, e depois lha fiz tomar por fidalgo
de minha casa, de que vós lhe levastes o despacho; contudo me
pareceu que, por a materia ser de tanta substancia e qualidade, e se
me não avisar com a particularidade que convinha os individuos
della, de que convem ter informação, ordenar-vos por esta, como
faço, que vós a tomeis mui particular de tudo o que lhe passado
nella, e me aviseis das rasões e fundamentos que houve para o dito
Filipe de Brito de Nicote tomar o dito porto, e as que se offereceram
aos letrados para serem de parecer que eu o devia sustentar e
deffender; e o mesmo parecer deveis tomar de pessoas de
experiencia desse Estado, se convem a meu serviço conservar-se
esse porto, e que interesses o dito Estado recebe disso, e os que se
podem seguir da alfandega que nelle se ha de poer, e as depezas que
serão ellas maiores que o rendimento da dita alfandega; e quando
he o que se delle ha de dar a Filipe de Brito em sua vida, e depois de
seu falecimento a sua mulher, e que proveitos mais haverá elle de
tirar da dita fortalleza; e se convem a meu serviço que elle a tenha e
depois d´elle sua mulher e seu filho; e se os partidos e assento, que
com elle tomou Ayres de Saldanha, são em meu serviço, ou ha nelles
alguns inconvenientes; e se os officias da dita alfandega são postos
em meu nome, e o hão de ser, ou se deu nisso algua autoridade ao
dito Filipe de Brito; e assi vos enformareis do proveito que se segue
á Christandade d´aquellas partes; e de tudo isto, e do mais que
entenderdes convem a meu serviço, me avisareis mui
particularmente, sem se fazer alteração algua no que estiver
assentado, para com vosso parecer me poder melhor resolver na
confirmação do dito assento, e no que mais devo conceder ao dito
Filipe de Brito em beneficio da dita empreza e seu. (…)

A verdade é que Filipe II, entre os imensos títulos que ostentava na sua
denominação, chegou a exibir o de «rei dos reinos de Pegu».
Filipe de Brito e Nicote desafiara os deuses desde que se metera numa
nau e atravessado o mundo em busca de fortuna. A hora do ajuste de
contas chegaria mais cedo ou mais tarde e, provavelmente, ele próprio
sabia disso; só não sabia, porventura, que acontecimento poria esse fatal
relógio a contar…
Com a distância dos séculos, sabemos hoje que a pedra-de-toque para a
queda não foi diferente no Pegu do que seria, por exemplo, no Japão: a
religião.
A partir do momento em que fora oficializada a soberania portuguesa no
Pegu, seguiu-se a habitual etapa seguinte na lógica da expansão: a
cristianização. A partir de 1604, chegou ao Sirião um conjunto de
missionários liderados por Frei Francisco da Anunciação. Sob a protecção
de Brito, os missionários instalaram em volta da fortaleza do Sirião casas,
igrejas e um seminário que ensinaria alguns milhares de almas a ler,
escrever, rezar e outros costumes tidos por bons entre a tábua de valores
do Ocidente cristão.
Mas, na Birmânia, havia muitas religiões e religiões muito antigas;
religiões que não se aceitavam sequer umas às outras, quanto mais a uma
vinda do outro lado do mundo e que não poderia ser mais diferente dos
princípios e ritos que ali se reconheciam.
Com a subida ao trono de um novo rei birmane, Anauk-Hpet-Lun,
começam, em 1607, as tentativas de sitiar os domínios de Brito. Anauk-
Hpet-Lun desejava reunificar a Birmânia e irritava-o, particularmente, ter
sabido que, ali, no Pegu, se andava a doutrinar crianças noutros deuses
que não os dele.
Em 1613, o Sirião é cercado. Em Abril, as forças mistas luso-
birmanesas de Filipe de Brito e Nicote apresentam a rendição e a cidade
cai. O rei português do Pegu, bem como todos os seus homens, é feito
prisioneiro e levado à presença de Anauk-Hpet-Lun. Olhos nos olhos, o
birmanês dá-lhe três dias para o reconhecer como seu único deus.
Por esta altura, Brito já não teria dúvidas de que era chegada a hora.
Tinha vivido muito mais do que poderia imaginar. Vira os confins do
mundo, os animais imensos da selva, comera à mesa de palácios que o
Ocidente não sonhava sequer que existissem. Nada mais tinha a perder ou
ganhar… O prazo passou e, no dia combinado, Anauk-Hpet-Lun voltou a
olhá-lo nos olhos: Brito ia reconhecê-lo como seu deus, único e exclusivo,
daquele dia em diante?
Brito disse não.

Naquele ano de 1613, depois de ter vivido cerca de 47 anos, 13 dos


quais como rei do Pegu, Filipe de Brito e Nicote morreu uma morte lenta e
inimaginavelmente dolorosa, empalado em canas de bambu.
Morto o rei e perdido o Sirião, missionários, portugueses e luso-
birmaneses fugiram para Mergui, a sul, território siamês. Natshinnaung,
um príncipe amigo de Brito, converteu-se ao catolicismo e conseguiu
fugir, sendo baptizado, anos mais tarde, em Goa. Anauk-Hpet-Lun
triunfaria na sua estratégia para reunificar a Birmânia. O cristianismo
nunca lograria implantar-se na região.
Da célebre fortaleza de Sirião e outras construções de Filipe de Brito
assinaladas em mapas da época, nada resta. As fotografias divulgadas em
anos recentes duma ruína tomada pela igreja de Filipe de Brito referem-se,
na verdade, a um templo construído por missionários italianos século e
meio mais tarde. Pensa-se que as lápides com inscrições em português que
se encontram no seu interior correspondam aos túmulos de luso-
descendentes do século XVIII – apesar de tudo, um indício interessante de
que a língua portuguesa possa ter sobrevivido na Birmânia muito para lá
do trágico fim de Filipe de Brito.
Todavia, se o legado físico do efémero senhor do Sirião parece, pura e
simplesmente, ter sido apagado do mapa, o mesmo não se pode dizer da
sua memória. Em Abril de 1994, o jornal Nova Luz de Myanmar
recordava a sua marcante passagem pela Birmânia. No entanto, e como
seria de imaginar, não se trata, propriamente, duma homenagem
agradecida:

Um português aventureiro chamado Felipe de Brito (que a história


da Birmânia lhe dá o nome de Nga Zingar), foi rei de Thanlyin de
1600 até 1613. No princípio do século XVI, aventureiros portugueses,
seguidos pelos espanhóis, mais tarde os ingleses e holandeses,
andaram a pilhar nas águas livres da costa da Birmânia. Os
portugueses, no final do século XVI, rondaram o continente africano,
entraram no Índico e actuam neste oceano como tubarões. Os
imperialistas portugueses desejam tomar conta do poder na
Birmânia. Estudam a profundidade dos estuários para penetrarem
no reino e depois de o terem conseguido, fizeram promessas falsas
ao povo oferecendo-lhe uma vida melhor. Isto aconteceu nos anos de
1590, quando o rei Min Phalong, monarca do estado de Rakhine,
nomeou Filipe de Brito como seu servidor (aliás Nga Zingar). Pouca
depois de Min Phalong apontou o jovem mercenário como
comandante do forte de Thanlyin. Com tamanho poder e armas em
mãos o guerreiro experimentado, colocou o pobre monarca num
prato como peixe frito. O Brito (aliás Nga Zingar), prontamente
proclamou Thanlyin sua colónia e entronizou-se a si próprio rei. (…)
Thanilyin por 13 anos tornou-se uma colónia miserável. Durante
este período, o Brito usou o estratagema de colocar em rivalidades,
que resultaram em lutas entre etnias Mon e Brama. Para consolidar
o seu poder e manter Thanlyin como colónia portuguesa, Brito
ofereceu uma sua filha ao líder Mon de Mottama, Binna Dallah. (…)
Pratica a demolição de templos budistas sagrados e roubou as
riquezas que estão dentro dos mesmos. O imperialista de Brito (aliás
Nga Zingar), não pára as suas atrocidades até 1612 e ajudado pelo
seu genro Binna Dallah, o líder Mon de Mottana. Atacaram a
cidade, real, de Miniayar, o rei Nata Shin Naung foi feito prisioneiro
e levado, com eles, para Thalyin. No ano de 1613 Annakpetlum
Miniayar, um líder Myanma no período Nyamgynn, organizou uma
expedição para reconquistar Thanlyin. (…) O ponto importante
deste feito é que o líder Myanma Tatmadaw eliminou a presença dos
portugueses na Birmânia por 350 anos. Nos anos ainda não muito
distantes a Índia eliminou, também, os portugueses nos seus
territórios em 1962. A campanha de sucesso em 1613 e a
reconquista da Birmânia é bastante significativa para a história do
país, que jamais poderá ser esquecida dos birmaneses. (…)

Mais recentemente, voltámos a ter notícias de Brito. Em 2010, The


Myanmar Times noticiava que Damien Lay, um documentarista
australiano, se encontrava com uma equipa junto ao rio Pegu em busca do
Grande Sino de Dhammazedi.
Que tem isto a ver com Brito? É uma longa história… Tentemos
abreviá-la.
O Grande Sino de Dhammazedi é, crê-se, o maior sino do mundo: 270
toneladas de ouro, prata e cobre, com esmeraldas e safiras incrustadas. Foi
mandado fazer, por volta de 1480, pelo rei Dhammazedi, o nono da
dinastia Mon a reinar sobre a Birmânia.
Algo parecia amaldiçoar este sino desde a origem. A sua feitura não
correspondia a nenhum desígnio particular. Simplesmente, o rei ordenara
um censo e os seus funcionários aproveitaram para cobrar impostos em
todas as casas a cujas portas bateram. Para acalmar a fúria do rei, que não
queria que aquele dinheiro tivesse sido extorquido à população,
sugeriram-lhe fundir as moedas e construir o sino, para que de algum
modo todo aquele metal fosse colocado ao serviço do povo. A sugestão foi
aceite e o sino oferecido ao Buda e colocado no pagode de Shwegadon,
em Rangum. Ao que parece, porém, o som que emitia não era agradável.
Um século mais tarde, o mercador veneziano Gasparo Balbi visitou
Rangum e descreveu a imponência do sino. Acrescentou um pormenor:
que estava integralmente coberto por símbolos gravados no metal, mas,
segundo Balbi, nenhum povo seria capaz de os entender.
Pouco tempo depois, em 1608, Brito, rei do Pegu há já oito anos, terá
ordenado uma expedição ao pagode de Shwedagon. Objectivo: remover o
Grande Sino de Dhammazedi e trazê-lo para o Sirião, onde deveria ser
fundido e transformado em canhões. O sino foi retirado e rolado pela
montanha até a uma imensa jangada, rebocada depois por elefantes até ao
rio. Todavia, já durante a viagem, a jangada quebrou-se e o Grande Sino
de Dhammazedi desceu até às profundezas lamacentas do Pegu.
O sino nunca foi recuperado. Alguns relatos dizem que, até finais do
século XIX, o cimo ainda ficava visível durante a maré baixa.
De acordo com a notícia de 2010 de The Myanmar Times, Damien Lay
acreditava ter localizado o mítico artefacto depois de alguns meses de
investigação no terreno e mergulho no rio. Mas não houve mais notícias
desde então.
A verdade é que, desde 1987, diferentes equipas tentaram encontrá-lo e
trazê-lo à superfície, sem sucesso. Os locais acreditam que o sino está
protegido por espíritos que o impedem de ser recuperado e apontam a
morte de Nay Oo, filho do investigador Chit San Win, durante uma busca,
como prova disso mesmo. E asseguram que o Grande Sino de
Dhammazedi só vem à superfície quando os espíritos querem,
habitualmente em noites de lua cheia.
O monarca arruaceiro
DOM AFONSO VI

De pé, no cais da baía de Angra do Heroísmo, Manuel Nunes Leitão


observava a esquadra que partia rumo a Lisboa. Era fim de Agosto e o
sargento-mor apreciava, pela primeira vez naquele ano, esses longos finais
de tarde. O céu de ouro, o sabor do sal na boca, o alívio, aquele
momentâneo sentimento de liberdade que, no entanto, só se completaria
quando recebesse – se recebesse –, coisa de um mês depois, a confirmação
de que as embarcações tinham chegado com sucesso ao destino. Nenhum
homem em falta. Nenhuma notícia de incidente. Nenhum episódio de
tempestade que os obrigasse a dar meia-volta e regressar, trazendo-lhe de
volta o tortuoso prisioneiro que tivera a cuidado e o consumira durante os
últimos cinco anos – para falar em números redondos.
A esquadra transformava-se já numa vaga silhueta compacta para lá do
Monte Brasil e a caminho da dobra do horizonte – Nunes Leitão não
continha um suspiro. Recordava outra vez como tudo começara. Aquele
dia de 1669, quando recebera a carta do marquês de Minas, notificando-o,
em nome do príncipe regente Dom Pedro, da tarefa que lhe incumbia. O
cativo que receberia e os cuidados que deveria ter com ele, levando em
conta a vulnerabilidade física que o afectava e, sobretudo – e o sargento
voltou a estremecer como cinco anos antes –, o facto de se tratar… do rei.
Manuel Nunes Leitão aconchegou o casaco. Tinha arrefecido
repentinamente. Lançou um último olhar sobre o mar e retirou-se.
Anos antes, num restaurante imundo no centro de Lisboa, um grupo de
homens de aspecto tão duvidoso quanto o local zaragateia na mesa do
fundo. Italianos, portugueses, negros e mestiços empanturram-se em peixe
frito e jarros de vinho. Depois de desafiarem com obscenidades a restante
clientela, saem gargalhando pela noite em direcção a um bordel afamado.
Já de manhã, seguindo tropegamente pelo rio em direcção ao Paço Real,
não dão por terminada a farra sem antes se deter, esporadicamente, para
pontapear os vagabundos que encontram dormindo pelo caminho. De
repente, porém, um desses vadios sem nome levanta-se e olha-os nos
olhos. Não pode lançar-se a todos ao mesmo tempo, de modo que escolhe
o de aspecto mais frágil: um jovem de olhos claros e cabelo comprido, que
coxeia e parece incapaz de mover o lado direito do corpo. O vagabundo
atira-se a ele e esbofeteia-o com tudo o que ainda tem, cai no chão sobre
ele e continua a esmurrá-lo. O outro pragueja, impotente, perante a
surpreendente boa disposição dos amigos, que se limitam a rir e a assistir,
de uma distância segura, àquele espectáculo deprimente. Por fim, já
sangrando em abundância e com dores por todo o corpo, o jovem não
encontra outra forma de se libertar do suplício senão gritar,
tresloucadamente, quem é: o rei. O rei de Portugal.
Estas duas histórias têm o mesmo protagonista: Dom Afonso VI, mas
não estão necessariamente ligadas. É inesperado que um rei seja um
arruaceiro. É inesperado que um rei seja preso no seu próprio reino.
Contudo, não foi pela vadiagem da adolescência que o vigésimo terceiro
rei de Portugal e o segundo da quarta e última dinastia viveu os últimos
anos da sua vida enjaulado e quase sem contacto com o mundo exterior.
Foi por outras razões. Foi porque toda a sua vida foi inesperada – a
começar pelo facto de ser rei.
Era 21 de Agosto de 1643 quando nasceu o sexto filho de Dom João IV
e Dona Luísa de Gusmão, duques de Bragança e reis de Portugal. A
restauração da independência tinha sido proclamada há exactamente dois
anos, oito meses e 21 dias, mas vivia-se em estado de guerra. A Espanha
não reconhecia a soberania nacional; tampouco o faziam os mais
influentes monarcas estrangeiros. Seriam ainda precisos mais de 20 anos
de batalhas, muitos acordos e alianças para que o mundo aceitasse
formalmente que Portugal se libertara de seis décadas de dominação
filipina e recuperara a plena liberdade com que nascera 500 anos antes.
Afonso era apenas um infante. Ainda que a irmã Ana e o irmão Manuel
tivessem morrido pouco depois de nascer e que Joana e Catarina fossem
mais velhas, mas mulheres, havia sempre Teodósio, o primogénito, jovem
tido por brilhante e educado desde cedo para suceder no trono ao pai.
A vaga hipótese de Afonso vir um dia a ser rei tornar-se-ia ainda mais
remota logo por volta dos três anos. Uma enfermidade então descrita
como «uma febre maligna» ataca-o e deixa-lhe marcas terríveis para o
resto da vida: paralisia parcial do lado direito do corpo, boca torta, graves
perturbações físicas e mentais. A doença, possivelmente uma
meningoencefalite, afecta-lhe terrivelmente o sistema nervoso central.
Afonso sofrerá até ao fim dos seus dias de distúrbios de personalidade e
instabilidade emocional, abrindo a porta a toda a espécie de dificuldades
de relação. Naquele mesmo ano, nasce Pedro, o seu último irmão e, a par
da doença, o maior antagonista que terá de enfrentar.
Afonso e Pedro seriam os primeiros Bragança a crescerem em Lisboa,
longe da casa ducal de Vila Viçosa e da paz do Alentejo, por força da
escolha do pai para rei. Seriam também os primeiros infantes portugueses
educados no Paço da Ribeira, no tenso ambiente da guerra e da política,
que parecia deixar pouca atenção à sua formação.
No entanto, só em 1653 os problemas de Afonso se tornaram problemas
do país. Dom Teodósio não resiste à tuberculose que há meses o
perseguia; também Joana, princesa da Beira, morre no mesmo ano;
Catarina, a filha seguinte, está destinada a casar com um rei estrangeiro
para fortalecer alianças que legitimem a independência nacional; Afonso,
o deficiente e mal preparado sexto filho de Dom João e Dona Luísa, é o
novo príncipe herdeiro do trono português.
Era um salto para a ribalta inesperado e, a todos os títulos, pouco
recomendável. Por agora, com o pai vivo, a urgência do drama era adiada,
mas o país não tardaria a dar-se conta da verdadeira dimensão do
problema. Gravemente doente, Dom João IV redige o testamento a 2 de
Novembro de 1656; nele, confia a regência à esposa; seis dias depois,
sucumbe. A 15 de Novembro seguinte, o jovem Afonso, de apenas 13
anos, é jurado e aclamado rei, mas não coroado, já que, oito meses antes,
por sugestão da mulher, o devoto Dom João coroara Nossa Senhora da
Conceição rainha e padroeira de Portugal, razão pela qual a partir de então
nenhum monarca nacional voltaria a usar coroa.
Agora, na cerimónia e com o reino de luto, o diplomata António de
Sousa Macedo preferia ignorar o novo soberano e concentrar o discurso
no passado. Fala do rei falecido como um homem «quase divino» e tece
loas aos feitos e bravura de outros reis anteriores. Custava olhar para o
futuro e pensar que seria àquele jovem ali sentado ao lado, débil e de olhar
vazio e desinteressado de tudo quanto se passava em volta, que caberia
segurar os 16 anos de independência restaurada que Portugal já levava,
bem como conduzir as tropas pelos diferentes teatros da guerra com
Espanha.
Se, durante a infância e enquanto não passou de um dos muitos filhos
dos reis, a verdade sobre a condição clínica de Afonso foi razoavelmente
mantida em segredo, a ascensão meteórica entretanto acontecida
implicava agora um desagradável escrutínio. Os rumores que o dão como
coxo, mentecapto e monstruoso não tardarão a correr, exagerando os
factos, já de si pouco convenientes, mas nada os alimentará tanto como o
comportamento do próprio Afonso. Primeiro, vai somar uma nova doença
àquelas de que já padece: a bulimia. Come muito para lá do que mandaria
o bom senso ou a satisfação, vomitando em seguida. Passa a maior parte
do dia de cama e vai engordar de tal forma que quando somar pouco mais
de 20 anos, já terá dificuldades em mexer-se. Mas o pior é a sua cabeça…
Quando não está ocupado a ingerir alimentos ou a deitá-los fora, deitado
ou a ralhar com quem não lhe faz a vontade, o pequeno rei gosta de se
abeirar da janela do Paço e observar o movimento da cidade. Inveja
provavelmente a liberdade daqueles miúdos que correm pelas ruas, das
travessuras, das conversas do cais, dos mercadores e marinheiros que por
ali negoceiam ou vagueiam. Vai ganhar coragem e começar a abrir a
janela para entrar em diálogo com alguns dos homens que por ali passam
ou vendem bugigangas nas suas tendas. Um deles, o genovês António
Conti, vai desafiá-lo a juntar-se a eles e, em breve, o rei de Portugal, para
já, substituído na regência pela mãe, andará pelas ruas com um bando de
homens de duvidosa reputação em actividades pouco consentâneas com a
sua condição. Afonso, Conti e o irmão e mais uma série de figuras de
aspecto indecoroso divertem-se em lutas de rua, apedrejam janelas,
insultam vulgares transeuntes e bebem até ao fim da noite em lugares de
má fama, num cortejo fantasmagórico e deplorável. Dedicam-se ao
assédio contínuo e deselegante de senhoras e senhoritas de todas as
condições, habitualmente sem qualquer sucesso. Tornam-se assíduos
frequentadores de bordéis ou do Convento de Odivelas, cuja vocação para
os mistérios da carne traz longa tradição desde a fundação, no tempo de
Dom Dinis. Em resultado das suas investidas bélicas e românticas – nem
sempre foi fácil distinguir entre umas e outras –, Dom Afonso VI foi, certa
vez, atingido por um golpe de espada na zona dos genitais, ganhando uma
bolsa de líquido no escroto que o acompanhará até à morte. Noutra
ocasião, para impressionar as freiras Dona Ana Moura e Dona Feliciana
de Milão, mandou levar para o pátio do convento um touro, que enfrentou
depois. O animal poupou respeitosamente a vida ao rei, mas deixou-o pelo
chão, com mais algumas feridas e recordações.
A pouco e pouco, os Conti ganham de tal forma a confiança de Afonso
que se tornam visitas habituais do Paço Real. Contra as regras impostas
por Dona Luísa de Gusmão e os esforços dos preceptores, correm pelos
corredores do palácio e trancam-se nos aposentos do rei com prostitutas e
o mesmo comportamento desordeiro das ruas. Aos 17 anos, Afonso
consegue um quarto para António, com acesso directo ao seu próprio.
Nomeia-o moço do guarda-roupa e moço das chaves, passando a assisti-lo
nas complexas tarefas diárias de se vestir e despir, conseguindo-lhe mais
tarde uma comenda, um título de fidalguia e o hábito da Ordem da Cristo.
Cansada da ridícula conduta do filho, Dona Luísa de Gusmão tenta
abdicar da regência quando este completa 18 anos, mas o Conselho de
Estado implora-lhe que não o faça, pelo menos enquanto não livrar
Portugal de António Conti. Pouco tempo depois, Dona Luísa consegue a
deportação do genovês para o Brasil; sem líder, o grupo é facilmente
desmantelado e escorraçado do paço pelos conselheiros de Estado.
Amputado dos seus únicos amigos, Afonso rebela-se e tem ataques de
fúria, mas em breve dois jovens cortesãos oferecer-lhe-iam companhia e
alguma paz de alma. Os seus objectivos, porém, eram bem diferentes dos
do escandaloso grupo de Conti…
Dom Luís de Vasconcelos e Sousa e Dom Jerónimo de Ataíde,
respectivamente mais conhecidos por conde de Castelo Melhor e conde de
Atouguia, tinham sido nomeados aios de Afonso pela regente. Cabia-lhes
fazer o possível pela desesperada formação do rei, mas o plano voltar-se-
ia contra o intuito original de Dona Luísa.
Não era exactamente um desconhecido, o conde de Castelo Melhor. Já
tinha sido suspeito de envolvimento na morte do conde de Vimioso, vivera
por isso mesmo dois anos exilado em França e regressara para defender a
independência portuguesa no Minho, durante a Guerra da Restauração.
Ferido com gravidade, mas de reputação lavada, regressou à corte,
acumulando cargos, contactos e prestígio. Com o conde de Atouguia, terá
então vislumbrado naquele momento histórico e na débil figura do rei uma
oportunidade única de assaltar o poder. Tornou-se assim no mentor da
manobra que conduziria ao afastamento de Dona Luísa e à subida efectiva
ao trono de Dom Afonso VI…
Por aqueles dias, resignada à precária condição do legítimo herdeiro,
Dona Luísa de Gusmão tomou a decisão mais sensata: convocar o
Conselho de Estado para afastar Afonso e jurar Pedro, seu filho mais
novo. Os condes de Castelo Melhor e de Atouguia retiram então Afonso
do Paço e levam-no para Alcântara, onde o podem controlar melhor.
Convencem-no de que a mãe se prepara para lhe retirar o ceptro real, que
lhe pertence por direito, e entregá-lo ao irmão e ordenam o afastamento da
regente, baseados no argumento público de que era preciso poupá-la às
longas tarefas que se avizinhavam no decisivo combate com Espanha.
Sempre tratada com respeito pelos aios do filho, Dona Luísa manter-se-
ia no paço até Março de 1663, data a partir da qual ingressaria no
Convento dos Agostinhos Descalços. Porém, em carta à filha Dona
Catarina, entretanto rainha de Inglaterra por casamento com Carlos II,
referir-se-ia ao sucedido como «conspiração».
A regente morreria três anos mais tarde, já no Convento de Xabregas,
ficando o país a dever-lhe a sensatez com que geriu a guerra e a
restauração da independência, sobrevivendo às mortes do marido, de três
filhos e às loucuras de Afonso. Quanto a este, tinha assumido finalmente o
governo do reino a 29 de Junho de 1662, nomeando Castelo Melhor
escrivão da puridade, figura que precede, pode dizer-se, a do primeiro-
ministro. O conde tinha conseguido satisfazer a sua ambição pessoal, mas
isso não era necessariamente uma má notícia para o reino: Portugal
ganhava um estadista inteligente, competente e carismático; Afonso VI, o
homem que, na prática, ganhou a Guerra da Restauração, dando àquela
fraca figura real, hemiplégica e instável, o insólito cognome de o
Vitorioso.
Nos anos seguintes, Dom João de Áustria, filho bastardo do rei de
Espanha, invade o Alentejo e aproxima-se perigosamente de Lisboa.
Castelo Melhor organiza as forças defensivas, entrega o comando aos
condes de Vila Flor e Schomberg e repele a investida. Depois, as tropas
portuguesas embalam numa sequência de vitórias determinantes:
reconquistam Évora, tomam Assumar, Ouguela, Veiros, Monforte, Crato,
Borba, Figueira de Castelo Rodrigo e Ameixial. Em 1665, a vitória na
batalha de Montes Claros dá o golpe de misericórdia. Depois dela, seguir-
se-iam apenas insignificantes escaramuças de fronteira e um cansaço
progressivo do adversário, que haveria de resultar, três anos depois, na
assinatura formal da paz e no reconhecimento definitivo da soberania
portuguesa, estipulada pelo Tratado de Lisboa.
Ao mesmo tempo, ao longo daqueles anos, tinha sido necessário
reconstruir a diplomacia e o comércio internacionais. Para reaver o apoio
britânico, Dona Luísa tinha já casado a filha Catarina com o rei Carlos II,
levando para Inglaterra o hábito do chá e algo mais importante: um vasto
dote de casamento que incluía as cidades de Tânger e, sobretudo, a
fulgurante Bombaim. Agora, com os holandeses, que tinham já tomado a
Portugal o Ceilão, Cochim e outras praças fulcrais para o Império
Português no Oriente, era necessário chegar a um acordo: a cedência do
controlo incontestável do Sri Lanka a troco do pleno reconhecimento da
soberania portuguesa em todo o Brasil.
Faltava, contudo, uma última missão ao conde e escrivão da puridade –
e esta, sim, revelar-se-ia fatal: arranjar mulher à figura pouco cativante de
Dom Afonso VI…
As tentativas de casar o rei tinham começado muitos anos antes, ainda
pela mão do pai. Todas redundaram em fracasso, não tanto,
provavelmente, pela fama de Afonso (que, malgrado tudo, ainda não seria
tal que tivesse cruzado a fronteira), mas porque naqueles anos ainda não
era reconhecida internacionalmente dignidade real à Casa de Bragança.
Logo em 1652, tinha Afonso nove anos, falharam as negociações com o
príncipe de Parma com vista ao matrimónio do infante português com a
sua filha. Seguiram-se, com iguais resultados, conversações com
Mademoiselle de Montpensier e com a filha do duque de Orleães.
Finalmente, em 1666, o conde de Castelo Melhor mostraria a sua eficácia:
envia Dom Francisco de Melo e Torres a Paris, e este regressa com o
acordo com o duque de Sabóia para o casamento de Afonso com a
princesa de Nemours, Dona Maria Francisca Isabel.
A aliança é celebrada em La Rochelle por procuração, a 27 de Junho.
Maria Francisca viaja depois para Lisboa aonde chega a 2 de Agosto
seguinte, acompanhada duma grande comitiva e de uma esquadra naval
francesa que a escoltara ao logo de todo o percurso, desencorajando
qualquer hipotética tentativa espanhola de sequestrar a nova rainha de
Portugal. Mas nem a partir daqui a história de Afonso VI começaria a ser
feliz – o destino trágico que o aguardava estava traçado desde os três anos,
quando uma doença sem nome o deixara incapacitado para sempre de
algumas funções vitais…
Volvidos dois miseráveis dias sobre o momento em que conhecera o
marido, já Maria Francisca de Sabóia desabafava a Francisco de Vila, seu
confessor, que não estava a ver como daria sucessores a Portugal aquele
rei. E terminava adjectivando-o de «inábil» e «impotente». O resto…
Bom, o resto talvez tenha sido só política. Política incendiada por amor,
ambição, inveja e outras coisas demasiado humanas.
O casamento da princesa de Nemours com Dom Afon-so VI tinha feito
a França interessar-se pelos destinos de Portugal. Maria Francisca
mantinha contacto com o rei Luís XIV e este procurava estender a
influência de Versalhes sobre o andamento da política portuguesa. Dom
Afonso VI sabemos que não mandava, de modo que não tardaria a estalar
a hostilidade entre a rainha e quem o fazia de facto: o conde de Castelo
Melhor. A experiência e inteligência do escrivão da puridade permitir-lhe-
iam evitar o conflito aberto que Maria Francisca parecia procurar, mas o
mesmo não aconteceria com outras figuras influentes do Governo, que
acabariam, inexoravelmente, demitidas.
Ao mesmo tempo, à medida que a rainha se afastava de Afonso, rei e
marido desagradável, doente, deselegante e incompetente, aproximava-se
do irmão, Pedro, duque de Beja e, aliás, seu cunhado. Eram vistos para os
lados do bosque de Salvaterra, onde o jovem duque gostava de se dedicar
à caça.
Em breve, Pedro apareceria ao lado da rainha para apoiá-la nos seus
intuitos de desmantelamento do Governo que protegia Afonso e,
verdadeiramente, reinava em Portugal. O ataque é feroz: acusa o conde de
Castelo Melhor de o ter tentado envenenar. O irmão – e rei – convoca o
Conselho de Estado, mas as testemunhas prometidas por Pedro nunca
aparecem e conclui-se não haver qualquer motivo para a demissão do
conde. No entanto, perante a pressão da mulher e do irmão, Afonso ia
fraquejando… Pressentindo-o, Castelo Melhor antecipa-se e apresenta ele
mesmo a sua demissão, quando se preparava para conseguir a cedência da
Galiza a Portugal como uma das condições do tratado de paz com
Espanha. O caminho estava livre; Dom Afonso VI – e havia culpas dele
próprio em tudo isto – estava agora completamente só.
Em 1667, após pouco mais de um ano de casamento, Dona Maria
Francisca de Sabóia deixa os aposentos reais e recolhe-se no Convento de
Nossa Senhora da Esperança. No dia seguinte, Afonso recebe uma carta,
escrita pela mão da mulher, onde se lê: «Apartei-me da companhia de
Vossa Majestade, que Deus guarde, por não haver tido efeito o matrimónio
em que nos concertámos.» No Cabido de Lisboa, entra outro documento:
um pedido de anulação de casamento.
Assim, a partir de 9 de Janeiro de 1668, todas as tardes de segunda-
feira, quarta e sábado, decorreria uma espécie de julgamento no paço do
arcebispo de Lisboa. Nele, seriam ouvidas testemunhas em audiência
pública acerca da alegada incapacidade sexual do rei. Já tinha acontecido
tudo a Dom Afonso VI; faltava-lhe sentar-se no banco dos réus, acusado
do crime de inaptidão para o amor.
Joana Tomás declarou que o membro viril do rei em pouco se
assemelhava aos outros que havia conhecido. Em estado de repouso, era
pequeno como o de uma criança; erecto, ficava mais largo na ponta do que
na raiz. Jacinta Monteiro, por seu turno, relatou o que lhe tinha
confidenciado, meses antes, a rainha: que, logo às primeiras noites, Maria
Francisca e o marido se haviam deitado entre os lençóis e que, mesmo
estando ela despida e ele fazendo muitas e esforçadas tentativas, nunca
conseguira penetrá-la. Os médicos remataram a questão, catalogando o rei
em termos pouco usuais. No paço do arcebispo, escutaram-se da boca dos
físicos palavras como «impotente» e «mentecapto».
Ao todo, foram ouvidas 55 testemunhas, na maioria pretensas amantes e
concubinas de Afonso, muitas dos seus tempos de vadiagem ao lado da
trupe de António Conti. As exposições traziam mais do mesmo:
escalpelizavam a disfunção sexual do rei, os problemas de erecção que
apresentava, a ejaculação precoce de que sofria e a deformidade geral do
aparelho genital, consequências da sua deficiência neurológica e da velha
escaramuça de adolescência que terminara com um golpe de espada
abaixo da cintura.
A 23 de Fevereiro de 1668, sem que se tivesse apresentado uma só
testemunha favorável ao rei, as três autoridades eclesiásticas que julgavam
o processo e o júri, composto por quatro desembargadores e outros tantos
cónegos, deram a questão por encerrada. Em breve, Roma comunicaria a
anulação do casamento e autorizaria Dona Maria Francisca de Sabóia a
casar com o antigo cunhado, Dom Pedro.
Finalmente, cedendo às pressões do irmão, Dom Afon-so VI abdicou e
foi desterrado para Angra do Heroísmo, nos Açores. Pedro subiu ao trono
como Dom Pedro II, vigésimo quarto rei de Portugal. Ao lado, estava
Dona Maria Francisca – ainda e sempre rainha.
Na ilha Terceira, não esperava pelo rei deposto nenhum palácio, mas as
longas muralhas do Castelo de São João Baptista, a maior fortificação
mandada construir pelos Filipes em todo o Império Espanhol. Durante os
cinco anos seguintes, Dom Afonso VI viveria ali em cativeiro,
infernizando a vida a guardas e criados. Caprichoso e agressivo como
sempre, não se sabe, no entanto, se encontrou outro Conti com quem se
evadir e incendiar a ordem social.
O que estava destinado àquele infeliz era morrer ali, esquecido, longe de
tudo e todos aqueles que conhecera ao longo de uma vida demasiado
tumultuosa. Faltava, no entanto, um último acontecimento que
espoletasse, enfim, o epílogo…
Em 1674, Dom Pedro II descobre uma conspiração que visa afastá-lo do
trono e fazer regressar o irmão. Temendo os desenvolvimentos que a
questão pudesse ter lá longe, nas ilhas dos Açores, manda regressar
Afonso num fim de tarde de Agosto, para que o tivesse de novo por perto,
onde fosse mais fácil de vigiar. Aos conspiradores que descobre, manda
enforcar na Praça do Rossio; com o irmão seria ligeiramente mais
meigo…
Em Setembro, acabado de desembarcar em Lisboa, Dom Afonso VI é
imediatamente levado para o Palácio Real de Sintra. Durante os nove anos
seguintes, viverá fechado num quarto, saindo apenas para se dirigir à
capela e tendo por única companhia um camareiro que dorme num
pequeno cubículo comunicante com os seus aposentos. A divisão, uma das
mais antigas do palácio mandado construir por Dom Dinis no século XIV,
parecia, segundos alguns relatos, mais concebida para túmulo do que para
habitação. O desgaste que ainda hoje apresenta no pavimento é
popularmente explicado pelo ir e vir do solitário Afonso entre a cama e a
janela; porém, é provável que se deva, simplesmente, à antiguidade dos
materiais.
A partir de Maio de 1683, começou a sofrer de dores terríveis. Foi
sangrado e medicado, perdeu a fala e morreu por fim, a 12 de Setembro,
aos 40 anos. A causa da morte permanece um mistério, mas há quem
defenda que se tenha tratado de uma tuberculose pulmonar, a mesma
doença que lhe levara o irmão Dom Teodósio e que, afinal, o empurrara
acidentalmente para o trono.
Maria Francisca morreu três meses depois, deixando a Pedro II uma
única filha, Dona Isabel Luísa.
Pedro reinaria até à morte, em 1706, beneficiando da paz conquistada
pelo primeiro-ministro do irmão, mas com os cofres esvaziados pelas
despesas de guerra. O seu sucessor no trono, Dom João V, nada teria já a
ver com a princesa de Nemours, sendo antes filho de Maria Sofia de
Neuburgo, com quem Pedro casara em segundas núpcias. Fora isso,
parece ter partilhado o mesmo gosto de Afonso por mulheres de baixa
condição. Distinguia-o, no entanto, a prestação prática, atestada pelos
vários bastardos que deixou.
Uma questão de fé
DOM JOÃO V

Foram tempos de ouro e diamantes, grandes palácios, carruagens


faustosas, música épica escrita propositadamente pelos músicos mais
famosos para salas desenhadas pelos arquitectos mais aclamados. Tempos
ardentes, movidos por uma fé incendiada por uma paixão, obcecada pela
carne.
Este caso começa nos arredores de Lisboa, à noite. Um vulto
luxuosamente vestido de sedas e veludos, escoltado por dois guardas,
dirige-se em passo rápido para o portão dum edifício. Bate com autoridade
e logo lhe respondem. Ouve-se o chiar da porta abrindo entre risinhos
femininos e palavras secretas, trocadas dos lábios para os ouvidos. O
portão de ferro bate com estrondo, ecoando pela noite. E os guardas ficam
do lado de fora, como os gatos que passam, e as árvores do outro lado da
estrada, e o resto do reino, dormindo. Nada haveria a contar acerca deste
caso, não fosse aquele homem o rei e o edifício a que acabara de recolher
não um bordel, mas um convento.
Estávamos no século XVIII, o das luzes. Eram tempos gloriosos nas
cortes europeias. Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda viviam
do luxo dos seus impérios comerciais; já o povo podia entreter-se a
admirar-lhes as roupas, as grandes obras, a comentar as histórias das festas
reais, dos casamentos sumptuosos, dos hábitos extravagantes, das vidas
mais ou menos devassas.
Dom João V foi solenemente aclamado rei ao primeiro de Janeiro de
1707. Tinha 17 anos e muita sorte. Era o quarto rei da quarta dinastia e
nem o avô, nem o tio, nem o pai, que o precederam, reinaram em
circunstâncias fáceis. Entre a reconquista da independência, em 1640, as
guerras com Castela, que se lhe seguiram e prolongaram durante 28 anos,
as mortes, as despesas inerentes, a perda de muitos dos mais importantes
bastiões do Oriente e consequente quebra de proveitos, fora problemas
familiares, legais e médicos, a vida não foi particularmente fácil para Dom
João IV, nem para Dom Afonso VI, nem para Dom Pedro II. Aliás,
também não seria fácil para o homem que sucederia a Dom João V no
trono, Dom José, a braços com uma capital devastada por um dos maiores
terramotos da História. Mas João nasceu bafejado pela fortuna. O destino
entendeu mimar o Rei-Sol português com umas décadas de paz e dinheiro,
muito dinheiro, proveniente do ouro e dos diamantes entretanto
descobertos no Brasil, quando, perdida boa parte da Índia, Portugal se
obrigava a virar atenções para outro recanto do império.
O filho varão do rei Dom Pedro II e da sua segunda mulher, Dona Maria
Sofia de Neuburgo, foi o símbolo do absolutismo em Portugal, em muitos
dos seus defeitos e algumas virtudes. Durante os longos 44 anos do
reinado de Dom João V, Portugal viveu alguns dos mais soberbos
momentos da História e outros dos mais vis, absurdos e antidemocráticos
que se há-de recordar. Dom João terá sido o mais esbanjador e
irresponsável monarca de toda a galeria nacional, mas, dizem alguns
historiadores, também um homem que, como poucos, nascera para ser rei.
Um mecenas das artes e das ciências, um líder capaz de tomar decisões
corajosas em momentos delicados e um monarca com uma visão global
para o império que lhe assegurou, por algum tempo, a sobrevivência e a
prosperidade.
Ainda assim, não foram fáceis os primeiros dias do jovem rei. Havia
guerra do outro lado da fronteira: a corrida à sucessão ao trono espanhol.
Eram pretendentes Dom Fili-pe V, apoiado pelos franceses, e o arquiduque
Carlos, que tinha contado até ali com o apoio de ingleses, holandeses e
portugueses, por decisão de Dom Pedro II. Dom João V entendeu dar
continuidade ao compromisso assumido pelo pai, mesmo que o saldo para
as contas nacionais fosse, até então, nada menos do que desastroso.
Contudo, a sorte de João começaria logo ali, quando Dom José, o irmão
do arquiduque, morreu, deixando livre o trono austríaco. Carlos tornou-se
então imperador Carlos VI da Germânia e a Inglaterra deixou de o apoiar
na guerra em Espanha, para evitar que acumulasse duas coroas. As pazes
foram assinadas, as tropas portuguesas a combaterem na Catalunha
regressaram a casa e os depauperados cofres nacionais agradeceram não
ter de suportar mais o esforço da guerra.
Com a lição aprendida, Dom João V perderia doravante o apetite por
quezílias internacionais, preferindo, antes, reafirmar a aliança com
Inglaterra e concentrar atenções no Brasil. Para a aventura transatlântica,
canalizou fluxos de emigrantes, apostou no aumento de quadros militares
e administrativos, na cultura do açúcar e, sobretudo, na exploração do
ouro. Internamente, fomentava a indústria, a arquitectura barroca, a
música e a pintura. Introduziu em Portugal a ópera italiana, patrocinava
artistas nacionais e mandava vir outros de fora. Tinha uma obsessão:
suplantar Luís XIV, de França, o Rei-Sol original, que dizia que o Estado
era ele. João queria fazer palácios tão belos como os dele, dotá-los de arte
ainda mais extraordinária, dar banquetes ainda maiores – e Deus sabe
como Dom João gostava de comer… Enquanto isso, patrocinava o «padre
voador», Bartolomeu de Gusmão, que tinha feito um balão de ar quente
elevar-se do chão num salão do palácio real, diante dos olhos perplexos do
rei, e trabalhava agora no sonho dos sonhos: uma máquina de voar. A
passarola voadora.
O rei era grande e gostava de fazer as coisas em grande. Não admira,
pois, o tamanho do seu coração… Ao que parece, conheceu a primeira
amante logo aos 15 anos. Chamava-se Dona Filipa de Noronha e o então
príncipe quis casar com ela, mas o pai tinha outros planos. Por imposição
de Dom Pedro, João casaria com Maria Ana de Áustria, pouco dotada de
beleza, a fazer fé nas crónicas, mas dum carácter inabalável, que tudo
haveria de perdoar ao marido ao longo da vida, em nome do sentido de
Estado.
Foi Fernando Teles da Silva, conde de Vilar Maior, o embaixador
extraordinário encarregado por Dom Pedro de ir a Viena pedir a mão de
Maria Ana, filha do imperador Leopoldo e irmã dos aliados de guerra
Dom Carlos e Dom José. Teles da Silva chegou à Áustria a 21 de
Fevereiro de 1708, reunindo com os imperadores em audiências
particulares até chegar a um acordo formal. Depois, vinha o espectáculo.
A 7 de Junho, entra na capital, com toda a solenidade e pompa dos cerca
de 40 coches, alguns mandados vir, de propósito, da Holanda, cada um
puxado por seis cavalos, com destino à cerimónia de apresentação. A 21
de Junho, no Paço da Favorita, Dona Maria Ana era oficialmente pedida
em casamento em nome do rei de Portugal. Na circunstância, o
embaixador terá entregue à futura rainha um retrato de Dom João V, mas,
como se a beleza do rei pudesse não bastar para convencer Maria Ana (e
como se a vontade da noiva importasse alguma coisa perante a decisão
consumada das famílias), a moldura que enquadrava o óleo estava
cravejada de diamantes – um pequeno sinal da sua estima, dir-se-ia… A 9
de Julho, o cardeal da Saxónia celebrava a cerimónia nupcial, ainda sem a
presença do noivo, representado pelos seus embaixadores. Por fim, já a 26
de Outubro e depois de um longo cortejo através da Europa, pontuado, a
cada paragem, pela realização de uma nova festa comemorativa, João e
Maria Ana conheciam-se finalmente em pessoa. A imponente recepção
aconteceu no Paço da Ribeira, prolongando-se por três dias e três noites. A
22 de Dezembro, na Sé de Lisboa, a corte inteira compareceu ao Te Deum,
derradeira comemoração do casamento real, meio ano depois de a noiva
ter dado o «sim» em Viena. Há casamentos, da cerimónia à separação, que
não duram tanto…
Diz-se que o primeiro acto oficial da novíssima rainha de Portugal terá
sido mandar Dona Filipa de Noronha para a clausura. Essa Dona Filipa
que acabara de dar à luz uma menina, sabe-se lá de que pai… O segundo,
ser fiel a Dom João V.
Para a descrição do que foi a vida conjugal deste casal real, basta
regressar ao Memorial do Convento. José Saramago começa o romance
precisamente por aí, relatando uma noite como muitas outras, quando
Dom João V se deslocou solenemente ao quarto da mulher para lhe tentar
fazer um filho, rodeado de criados e rituais e redundando em fracasso. E
explica como, durante dois anos, se repetiu diplomaticamente o cerimonial
as vezes que foram precisas, até que o rei concretizasse, por fim, o grande
objectivo nacional: a produção dum herdeiro. E como, cumprindo a
promessa que havia feito perante tantas dificuldades, mandou levantar um
colossal convento em Mafra, com um palácio que competisse com
Versalhes. E que essa construção se arrastaria pelos anos, consumindo
loucamente os recursos do império e sacrificando uma multidão de
milhares de operários anónimos. E que, depois, el-rei mandou vir músicos
de toda a Europa para compor, de propósito, para os grandes carrilhões
que mandara fabricar e instalar ali. E que tudo isto custou 120 milhões de
cruzados e ficou como paradigma da megalomania de um rei que os
cronistas oficiais preferiram cognominar de o Magnânimo, patrocinador
de outras obras faraónicas, como o Aqueduto das Águas Livres, a Torre
dos Clérigos, o Solar de Mateus, o Palácio do Freixo, e muitas outras de
vocação religiosa, como o escadatório do Santuário do Bom Jesus, em
Braga, e a Capela de São João Baptista, encomendada aos melhores
arquitectos da época, construída em Roma e, depois, desmantelada e
transportada até Lisboa, onde seria remontada peça a peça até se
transformar na jóia de ouro que ainda hoje brilha no interior da Igreja de
São Roque, em Lisboa.
Porém, é preciso que se diga, o cumprimento da promessa parece ter
sido bem recebido entre quem de direito. Depois daquele primeiro filho,
Dom João e Dona Maria Ana teriam mais cinco. Alexandre, Pedro e
Carlos faleceram na infância, mas Dom José sucederia no trono ao pai,
Dona Maria Bárbara tornar-se-ia rainha consorte de Espanha por
casamento com Dom Fernando VI; e Dom Pedro seria Dom Pedro III,
príncipe do Brasil, rei consorte de Portugal por casamento com a sobrinha
Dona Maria I.
Em 1716, no entanto, Dom João V voltaria a envolver o reino numa
contenda internacional. Venezianos, turcos e o Papa estavam em guerra
pela posse de Corfu. Respondendo a um pedido de ajuda de Sua Santidade
em pessoa, o rei português envia uma poderosa esquadra comandada pelo
conde do Rio Grande, que alcança uma vitória clara no cabo de Matapão.
No entanto, como todos os conflitos, também este representava mais um
assalto às finanças nacionais. Dom João tinha-o aprendido cedo e por
experiência própria. Então, porque voltara à guerra? Porque fora o Papa
que lho pedira, tocando no ponto fraco do rei absoluto: uma paixão
porventura excessiva por tudo quanto dissesse respeito à Santa Madre
Igreja.
Desde pequeno, João crescera num ambiente devoto. Poderia tê-lo sido
ainda mais, se acaso João de Brito, padre jesuíta que fora pajem e amigo
de infância de Dom Pedro II, tivesse aceitado o convite do rei para ser
preceptor do herdeiro do trono, em vez de regressar aos confins da Índia,
contra todos os pedidos dos amigos e da família, onde acabaria degolado
por pregar a fé cristã, séculos antes de ser canonizado, e de quem ainda
hoje se conservam seminários e santuários no estado do Tamil Nadu, onde
se acredita que a terra é vermelha por causa do sangue derramado por João
na hora do martírio.
Duma forma ou doutra, o outro João, o rei, seria sempre um crente
fervoroso. A guerra por Corfu, o Convento de Mafra, a Capela de São
João Baptista, o escadatório do Bom Jesus e os Clérigos foram apenas os
destaques duma longa lista de dispendiosas despesas em favor da Igreja.
Na sequência dessa amizade e do testemunho dela dado no Matapão,
Lisboa foi elevada a patriarcado em 1717, tornando-se assim Dom Tomás
de Almeida, arcebispo local, num dos três patriarcas do Ocidente, em
conjunto com os homólogos de Veneza e Roma. Lisboa dividiu-se, então,
em duas: Oriental e Ocidental, isto é, a metropolitana e a urbe patriarcal.
Para comemorar, Dom João fez as coisas ao seu estilo: mandou remodelar
e aumentar a capela real até à bizarria, adequando-a à nova dignidade da
sua condição. Enriqueceu conventos com alfaias e pratas, fundou um
novo, o do Louriçal, doando-lhe ainda 6000 cruzados. Pagou outros 120
000 por uma imagem benzida pelo Papa, mandou 1377 cruzados para
Jerusalém e criou dois bispados no Brasil. Para Roma, enviou um total de
1,38 milhões de cruzados, empregues em indulgências e processos de
canonização e, na missão que lá foi assistir a um conclave, empenharam-
se mais dois milhões, entre muitas outras doações de menor monta,
dispersas por capelas e igrejas nacionais e estrangeiras, viagens de núncios
e ofertas a cardeais.
E aqui chegamos ao centro do coração do rei magnânimo: tudo isto,
toda esta loucura, toda esta fé ardente, toda esta devoção apaixonada, teria
limite? É que, para a História não oficial, ficou-lhe outro cognome: o
Freirático. E Dona Maria Ana, ao que se sabe, engravidou aquelas seis
vezes de Dom João nas poucas vezes em que via o marido, habitualmente
ausente, ocupado entre as obras do reino e os assuntos da alcova…
Naqueles dias, ficaram célebres as incursões nocturnas do rei por
prostíbulos e conventos, mas foi nestes últimos que, a pouco e pouco, se
foi concentrando a predilecção de Dom João. No entanto, entre os
múltiplos pontos do roteiro, um foi ganhando a estima especial do
monarca (a compro-vá-lo, existem as contas do reino: nenhum outro
convento recebeu tantas dotações reais durante aqueles 44 anos): o de
Odivelas – afinal, uma obra lançada por Dom Dinis e, portanto, com
antecedentes na História não oficial do amor em Portugal.
Dom João, pode dizer-se, tinha uma compulsão por freiras e monjas.
Sofria dum impulso incontrolável para o rompimento da clausura das
virgens do Senhor, financiava escandalosamente esses amores entre o
máximo representante do poder temporal e algumas humildes
intermediárias entre o céu e a terra e não parecia particularmente
preocupado em escondê-los do olhar atónito do país.
Era o rei já cliente habitual do Convento de Odivelas quando por lá
apareceu, certa vez, uma nova irmã. Era jovem, bela e chamava-se Paula
Teresa da Silva Almeida. Fulminado por tão encantadora visão – uma
pequena deusa descendo dum coche, suspendendo a noite e cruzando a
porta daquela santa casa nos arredores de Lisboa –, Dom João exigiu de
imediato o relatório completo acerca de quem fosse tão tentadora criatura.
Soube então que Paula tinha 17 anos, mas que era perigoso confundir
juventude com inexperiência. Na verdade, era já amante fixa de um nobre,
o conde de Vimioso. Mas um rei era um rei. Era preciso fazer-lhe a
vontade e a vontade deste rei em particular era que Paula fosse dele e de
mais ninguém, em regime de exclusividade. Encetadas as negociações
com o conde, resolveu-se o assunto. Paula ficava para ele; Vimioso que
encontrasse outros aconchegos.
Talvez Dom João V tenha voltado a sentir aquela palpitação dos tempos
da adolescência, junto a Filipa de Noronha e que nunca lhe aconteceu pela
mulher, Dona Maria Ana; ou talvez tenha sido algo novo, que nunca
experimentara. A verdade é que Madre Paula, como ficaria para a
História, se tornou não exactamente na sua amante única, mas, decerto, na
favorita. Os cerca de 30 anos que os separavam eram pormenor de pouca
monta. Não impedia que se encontrassem praticamente todas as noites,
sempre em Odivelas, de modo cada vez mais natural e com menos
vontade de esconder aquele frenético amor dos demais frequentadores de
tão peculiar lugar de Deus.
Era, ao que se conta, uma relação de dar e receber. Paula, malgrado os
votos, não via mal em desfrutar de certos requintes do mundo material.
Tinha um fraquinho por presentes e deleites, prazeres vários e muito
conforto. Não dizia que não a um mimo, uma atenção, uma lembrança,
porque, afinal, somos todos tão sozinhos neste purgatório antes do céu
que, enfim, seria até ingrato recusar o que se nos oferece para aligeirar a
dor. Dom João satisfazia-lhe estas angústias e ela retribuía tocando-lhe
noutro dos pontos fracos: o apetite. É que o Convento de Odivelas era
célebre por outras artes ainda, e Paula também se apresentava nelas como
uma superiora: a doçaria. Tornou-se famoso, naqueles dias, o pudim da
Madre Paula. E, para além dele, também os toucinhos-do-céu, os suspiros
e os ladrilhos de marmelada (aos quais, consta, o rei era especialmente
afecto).
Em 1736, preocupado com a longevidade desta relação e com o poder
crescente que a freira-amante parecia exercer sobre determinadas decisões
políticas do rei, Bartolomeu de Gusmão, o padre-voador, viaja até Setúbal
para se encontrar em segredo com as salemas, bruxas a quem se atribuíam
poderosos contactos com o sobrenatural. Com elas, Gusmão terá
delineado um plano para lançar um feitiço que pusesse termo àquela
adoração votada por Dom João a Madre Paula. Já não pedia que deixasse
de frequentar conventos, mas que, pelo menos, trocasse de irmã,
frequentasse o quarto de outra, porventura ainda mais jovem e mais bela,
mas o projecto fracassou. Descoberta a maquinação, as bruxas mulatas
foram perseguidas e condenadas; Gusmão escapou, mas, mais tarde, teria
de fugir para Espanha, com a Santa Inquisição à perna por causa dos seus
planos de voar lá em cima, onde só Deus Nosso Senhor podia bailar.
De modo que o romance prosseguiu, na paz dos anjos, enquanto o reino
se afundava.
Em rigor, ninguém pode dizer ao certo que influência teve Madre Paula
nos projectos megalómanos – e geralmente relacionados com oferendas ao
mundo de anjos e santos – de Dom João V. A ordem para a construção do
Convento de Mafra aconteceu bem antes dela, mas os múltiplos adornos
que lhe foram sendo acrescentados ao longo da penosa construção, não.
Terá Paula sugerido algum daqueles investimentos absurdos em capelas e
igrejas e ofertas a clérigos? Ou muitos deles? Terá discutido com o rei,
entre pudins e ternuras, a questão de conseguir o patriarcado para Lisboa?
Terá sido Madre Paula, como alguns sugeriram ao longo dos anos, uma
rainha na sombra? Nada disto se sabe, mas sabe-se doutras coisas. Sabe-se
que aquele amor nocturno e financiado pelos cofres do reino inebriou
suficientemente Dom João V para que este não se poupasse nas oferendas
à mais célebre freira do seu tempo. Foi para ela, para que fosse sua
residência particular e exclusiva, que o rei mandou construir o belo
Palácio dos Galvões-Mexias, ao cimo do jardim do Campo Grande, hoje
absorvido pela cidade de Lisboa.
Ah, sim. O que quer que acontecesse no quarto de Paula, entre missas e
orações soando pelos corredores do convento, valeu-lhe uma vida folgada.
No entanto, os apetites dum rei absoluto não se davam por satisfeitos
assim, sem mais nem menos…
A madre poderia pedir muita coisa a Dom João, mas não que este lhe
fosse fiel. El-rei teve pelo menos três filhos de três freiras e só o último
nascera do ventre de Paula. Para eles, mandou construir na Palhavã o
magnífico Palácio da Azambuja, um dos melhores exemplares solarengos
de Lisboa. Aí, noutra zona mais tarde anexada pela urbe, cresceram e
foram educados com todos os luxos três meios-irmãos que inspirariam o
nome com que o povo rebaptizou a casa: «Palácio dos Meninos da
Palhavã».
O primeiro menino foi António. Viveu uma longa vida de quase 96
anos, no decorrer da qual deu uma estranha continuidade a esta perversa e
inexplicável relação entre infidelidade conjugal e fé católica, tendo-se
doutorado em teologia pela Universidade de Coimbra e trabalhado,
depois, nessa ciência de Deus.
O segundo recebeu o nome de Gaspar. Era filho de Dona Maria Rita,
conhecida como Flor de Murta e monja no Convento de Santos, em
Lisboa. Gaspar decidiu ir um pouco mais longe do que o meio-irmão e
não se ficou pelos estudos. Entrou para o seminário, foi ordenado
sacerdote, subiu na hierarquia eclesiástica e, em 1758, seria nomeado
arcebispo de Braga, dignidade que ocuparia até à morte, 31 anos depois.
Finalmente, veio José, o filho de Paula. «José» tal como o meio-irmão
mais velho, filho do casamento do rei com a rainha Maria Ana e herdeiro
do trono. Este José, o bastardo, viveria até aos 80 anos e jaz sepultado no
Mosteiro de São Vicente de Fora, não muito longe do túmulo do pai. Mas
o outro José, o legítimo, não teria complacências para com este, nem para
com António. Respectivamente terceiro e primeiro «meninos da Palhavã»,
seriam, anos mais tarde, desterrados para o Buçaco por ordem do marquês
de Pombal, primeiro-ministro do rei Dom José legítimo, e por lá
passariam 17 penosos anos. Salvou-se Gaspar, porque um arcebispo de
Braga não se desterrava assim, por dá cá aquela palha.
A dedicação de Dom João V à Igreja teve, pois, que se lhe dissesse. O
ímpeto para a instituição católica corria-lhe de tal modo na massa do
sangue que parece ter sido passada, no código genético, à vasta prole que
deixou.
No entanto, uma vez mais, o Magnânimo não ficaria por aqui. Afinal,
nem só de freiras vive um rei… Segundo deixou escrito Pietro Francesco
Viganego, um espião ao serviço de França, naqueles anos Dom João
pouco se dedicava aos assuntos do reino e passava a maior parte do tempo
na companhia de mulheres a quem pagava, generosamente, os serviços
afectuosos. Entre outras, sabe-se que também teve por amantes Dona
Luísa Clara de Portugal e Petronilla Trabó Bassilli, uma cantora lírica que,
ao que se diz, lhe terá mostrado como um homem da sua idade poderia
beneficiar das vantagens do uso de afrodisíacos.
Tanta agitação, tanta doçaria e tanta fé, é claro, um dia acabariam por
consumir um homem. Dom João tinha o colesterol alto, hipertensão,
convulsões, e consta que padecia de tal forma de flatulência que, certa
vez, acometido de um ataque desmesurado, teve de se isolar em Azeitão
por uma temporada.
Mais grave foi o episódio de 1742, quando lhe aconteceu o primeiro
acidente vascular cerebral. O AVC paralisou-lhe o lado esquerdo do corpo
e deixou-lhe a boca torta. Não conseguia andar ou sequer segurar-se de pé.
A fidelíssima Dona Maria Ana teria de assumir a regência, mas o rei ainda
tinha mais oito anos de vida pela frente. Entregou-se aos médicos. Fez
purgas, sangrias e outros tratamentos cada vez mais dolorosos, entre
frequentes visitas às termas, mas, claro, não deixou um assunto tão sério
entregue à ciência da época. Aplicou-se, com ainda maior fervor, às
causas e questões religiosas, tremendo só de imaginar que talvez não fosse
viver para sempre. Rodeou-se de frades e padres, banhou-se nas águas das
Caldas, decorou novas orações que rezava dia e noite. Só naqueles últimos
anos, terá mandado celebrar para cima de 700 000 missas.
Em 1744, inaugurou, por fim, o Convento de Mafra. Três anos depois, o
Papa deu-lhe a glória de ostentar o título de «Rei Fidelíssimo», extensível
aos descendentes, permitindo a Dom João ombrear agora garbosamente
com o «Rei Católico», atribuído ao soberano de Espanha, e com o «Rei
Cristianíssimo», conseguido pelo de França.
Contudo, a denominação já não lhe salvaria nem a vida nem a
reputação.
Ao longo de 1750, a sua condição foi piorando progressivamente. A 31
de Julho, quando lhe foi administrada a extrema-unção, já o rei estava
praticamente inconsciente. Poucas horas depois, morreu. Tinha 61 anos e,
ao lado, Dona Maria Ana, os filhos legítimos Dom José, Dom Pedro e
Dom António. De gente da Igreja, ao que se sabe, apenas o cardeal Cunha.
Cinco anos depois, no Dia de Todos-os-Santos, um terrível terramoto
arrasaria Lisboa e, com ela, muitas das obras com que Dom João V
empenhou o futuro de Portugal e contou ganhar um lugar na eternidade.
Houve quem falasse, então, de castigo divino… Curiosamente,
sobreviveram as mais polémicas, casos do Convento de Mafra, que resiste
em todo o seu esplendor, do Palácio dos Galvões-Mexias, residência
oferecida a Madre Paula, mais conhecido hoje por Museu da Cidade, e do
Palácio da Azambuja, casa dos seus «Meninos da Palhavã», mais tarde
Embaixada de Espanha.
Até que a morte nos separe
DOM JOÃO VI & DONA CARLOTA JOAQUINA

Dona Maria I ficou para a História como a Piedosa e como a Louca,


mas, se algum acto de loucura cometeu para com o qual os vindouros não
teriam piedade foi aquele acontecido ainda muito antes de ser declarada
mentalmente incapaz para governar: o arranjo político do casamento do
seu filho João, futuro rei Dom João VI, com Dona Carlota Joaquina. O
infeliz encontro daquela que foi talvez a mais infeliz família real
portuguesa, com um dos momentos mais conturbados da História
nacional.
Esta é a história de um casal que nunca se amou. Que não terá vivido
um só período de felicidade. Que, pelo contrário, se odiou e desprezou
mutuamente, que viveu separado em palácios diferentes, se juntou apenas
por razões de Estado e nunca soube ou quis separar os conflitos políticos
das desavenças conjugais. Ele, Dom João, tentou a todo o custo conservar
as aparências, manter o reino a salvo das ambições pessoais da mulher e
criar os filhos com a educação e a dignidade possíveis; porém, falhou
sucessivamente. Ela, Dona Carlota, correu uma infindável lista de
amantes, incitou ao mal-estar entre súbditos e corte, colónias e metrópole,
colocou os filhos uns contra os outros, instigou atentados, golpes de
Estado e conseguiu, como sempre quis, sobreviver ao marido. Todavia, o
assalto ao poder, que tanto procurou, não passaria dum instante fugaz e
ilusório.
Esta é ainda a história dum rei solitário que os Portugueses pouco
recordam. Um rei cuja virtude destacada pelo cognome, «a clemência»,
tanto poderia reportar-se a uma presumível bondade de carácter como
tratar-se de um fino eufemismo para a apatia e cobardia com que fugiu de
Napoleão ou permitiu as sucessivas manobras de sabotagem da mulher.
Dom João VI foi, sobretudo, um rei bem mais amado no Brasil do que em
Portugal, bem mais representado na cultura desse lado do Atlântico do que
deste e, ainda hoje, estudado em toda a América do Sul e resumido a
figura secundária na história da guerra civil que haveria de opor dois dos
seus filhos. No entanto, sem ele, talvez as terras de Vera Cruz se tivessem
desfeito em dezenas de países anárquicos, como sucederia com muitas
outras pelo restante continente. Sem a sua fuga para o Rio de Janeiro,
talvez tivesse caído prisioneiro dos exércitos de Junot, Portugal ficasse em
perigo bem maior e o Brasil, porventura, falasse outra língua e tivesse
outra História, que não aquela que começou quando o filho Pedro clamou
independência nas margens do Ipiranga.
João nasceu a 13 de Maio de 1767. Era já o terceiro filho a quem Dona
Maria I e Dom Pedro de Bragança chamavam João, depois de o primeiro
ter nascido morto e o segundo não ter vivido mais do que 24 dias. Aos 21
anos, já o pai lhe tinha morrido, bem como todos os irmãos, dos mais
novos ao mais velho, José, vítima de varíola e aquele que estava destinado
a ser rei. Pouco depois, a mãe ficaria louca, em boa parte devido à
sucessão de tragédias familiares. Em 1792, uma comissão de médicos
declara-a mentalmente incapaz para o governo do reino e a regência vai
suavemente caindo para o colo de João, mesmo que com contornos de
ilegalidade, já que as Cortes nunca foram convocadas a reunir como
deveriam e a deliberar sobre quem deveria ser o sucessor ao trono.
O olhar abandonado, afundado no rosto gordo de João, sobre o corpo
flácido dum homem que nunca se preparara para a responsabilidade de
governar um império, não queria dizer que estivesse sozinho no mundo –
o príncipe regente era então já casado há sete anos –, mas isso não
significava que não vivesse na mais tremenda solidão.
As negociações com vista ao matrimónio entre João e Carlota Joaquina
arrastaram-se de 1783 a 1785 – dois anos bem empregues… Ela era a
primogénita do futuro rei Dom Carlos IV de Espanha e de Dona Maria
Luísa de Bourbon. A história é tão caricatural que, se fosse ficção,
pareceria inverosímil: é que aquela que um dia haveria de ser conhecida
como «a Megera de Queluz» tinha nome de vilã, fisionomia de vilã (ou
alguém imagina uma princesa de conto de fadas chamada Carlota
Joaquina e ainda menos abençoada pela beleza do que o marido?) e, pelos
vistos, já nascera vilã… O conde do Louriçal, embaixador encarregue pela
rainha Dona Maria de conduzir o processo negocial, antipatiza logo com
ela, apesar de ser ainda uma criança. Nas cartas que escreve a familiares e
amigos, conta que a pequena Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon
e Bourbon é irrequieta e traiçoeira, mal-educada e preguiçosa, recusa-se a
vestir e tem uma tendência natural para não fazer o que lhe mandam. Mas
os desabafos do conde não parecem ter sido levados a sério e, a 8 de Maio
de 1785, João, de 18 anos, e a megera em potência, de 10, casam
solenemente, com o acordo de que a consumação efectiva da união só
acontecesse quando a jovem atingisse a plena puberdade, cerca de cinco
anos mais tarde.
João e Carlota cresceram, portanto, alguns anos lado a lado, mas nem a
companhia, nem a mudança de ares, nem a passagem do tempo parecem
ter feito bem algum pela futura rainha. Cabelo crespo e sujo, a pele
marcada pelas bexigas, um buço contornando-lhe o lábio, sobre dentes
desiguais e a estatura de pouco mais do que uma anã contam-se entre os
seus atributos físicos. Quanto aos traços de carácter, não lhe ficavam
atrás…
À medida que os exércitos napoleónicos galgavam fronteiras pela
Europa fora, crescia a urgência de um plano de defesa. Num primeiro
momento, Dom João decide-se por uma aliança com Espanha, a quem une
a geografia e o casamento com Carlota Joaquina. Depois, porém, o
vizinho da península cai em mãos francesas a passa a combater do lado
rival. Enfrentando agora o antigo aliado, o exército português bate-se na
Guerra das Laranjas, em resultado da qual Espanha ocuparia, até hoje, a
localidade alentejana de Olivença. Com o inimigo mesmo do lado de lá da
fronteira e já a passá-la perigosamente, Portugal precisava ardentemente
de novo apoio militar e vai encontrá-lo na velha aliança com Inglaterra a
quem, entre outras coisas, não interessava ver a arqui-inimiga França
tomar conta de toda a Europa Ocidental.
Contudo, enquanto o mal preparado e mero príncipe regente João tenta
jogar estes equilíbrios diplomáticos, a mulher começa a conspirar na
sombra para lhe tomar o poder. Ainda em 1799, o marido tem de lhe
recusar as pretensões de se imiscuir no Conselho de Regência. Seis anos
passados, descobre que ela está por detrás da conspiração de fidalgos, que
se haviam juntado para o tentar derrubar. Desmascarando-a, expulsa-a do
paço e manda-a para um exílio prolongado na casa de férias, o Palácio de
Queluz. E, a partir daqui, o povo rebaptizará a rainha de «megera», e ela
bem fará por justificar o nome. Dom João nunca mais terá paz.
Da tumultuosa união entre o Clemente e Carlota Joaquina nasceriam
nove filhos: Francisco António, presuntivo herdeiro da coroa, que,
contudo, faleceria em criança; os célebres Dom Pedro e Dom Miguel,
Dona Maria Teresa e as infantas Dona Maria Isabel, Dona Maria
Francisca, Dona Isabel Maria, Dona Maria da Assunção e Dona Ana de
Jesus. Olhando apenas para a vasta prole, poderíamos ser levados a pensar
que as desavenças entre marido e mulher terminavam na política… Nada
de mais errado – prolongavam-se, e de que maneira, para o interior dos
aposentos reais. Diz-se que, daquela extensa lista, só os filhos nascidos até
1801 terão sido de ambos; e que, a partir daí, o único sangue que os unia
era o de Carlota. A ser verdade, a história permite todo um novo olhar
sobre a rivalidade que separaria para a vida Dom Pedro, nascido em 1798,
e Dom Miguel, em 1802. O primeiro será sempre próximo do pai; o
segundo, da mãe. O primeiro terá de declarar guerra ao irmão; o segundo
tentará até prender o «pai». E, no entanto, conta-se que, na infância,
cresceram rodeados de afecto, como dois bons amigos que apreciavam,
acima de qualquer outra, a companhia um do outro…
A fealdade e descuido de Carlota não podiam ser mais enganadores. A
aparência embrutecida com que se apresentava em público e que fazia
com que, por vezes, os visitantes não soubessem se estavam diante dum
homem ou duma mulher, escondia, na verdade, uma ninfomaníaca crónica
e sem emenda. Enquanto foi lúcida, a rainha Dona Maria tentou travar e
disciplinar o ímpeto devasso da nora, aos poucos impossível de esconder,
arrastando com ele o nome da família real para a mesa dos botecos e
conversas trocistas do povo e da fidalguia, de Lisboa ao Rio de Janeiro.
Contudo, a queda da rainha-mãe, sem remissão, na insanidade e a falta de
autoridade de Dom João deixariam Carlota à rédea solta com os seus
apetites carnais que não escolhiam classe, momento ou lugar.
Enquanto João tentava equilibrar o tabuleiro da guerra a partir de
Lisboa, Carlota acolhia na alcova real homens de toda a estirpe. Manuel
Francisco Rodrigo Sabatini, oficial da guarda de Dona Maria I; o marquês
de Marialva e João dos Santos, cocheiro da Quinta do Ramalhão, são
apenas alguns dos nomes dum extenso rol que confirmava que a ganância
da rainha não se confinava ao desejo de poder. A propósito da longa
esteira de amantes, tornou-se famosa à época uma moda popular de
Faustino da Fonseca, que rezava mais ou menos assim: «Miguel não é
filho / De el-rei Dom João / É filho de João dos Santos / Da Quinta do
Ramalhão.»
Outra aventura tornou-se particularmente conhecida dos cronistas do
tempo e, através deles, de todo o reino. Tinha requintes de crime e era
rematada com uma reacção do rei e esposo que dizia bem da peculiaridade
do seu carácter… Conta-se que, certa vez, Carlota se teria perdido de
amores por um homem elegante, de 30 anos, bem tido na sociedade, de
nome João Fernando Carneiro. A rainha e este outro João ter-se-ão
tornado amantes regulares e ela, tal como noutras circunstâncias, fez valer
a sua influência para presentear o apaixonado com uma discreta
progressão na carreira. Em breve, o cavalheiro era notícia pela nomeação
ao lugar de director do recém-criado Banco do Brasil. O problema é que
João Fernando também era casado e a esposa, Dona Gertrudes Pedra,
menos compreensiva do que Dom João VI para com a tão corrente prática
do adultério. Furiosa, despeitada, Gertrudes espalha a história pela cidade,
adornando-a dos mais finos impropérios que soube aplicar ao nome da
rainha. O caso deu a volta a Lisboa e arredores até chegar aos ouvidos da
personagem principal… E Carlota preparou o contra-ataque. Um dia,
quando regressava de um passeio pela cidade, Dona Gertrudes é atingida à
porta de casa com um tiro fulminante no coração – o mesmo que Carlota
já se tinha encarregado de destruir tempos antes.
Não se tratava dum crime qualquer porque não se tratava duma família
qualquer. De modo que Dom João VI foi informado do sucedido,
ordenando, de imediato, que se abrisse uma investigação. Pouco tempo
passado, o desembargador Albano Fragoso já comparecia de novo diante
do príncipe, ainda ofegante e agitado pela informação que descobrira. Ali,
no paço, diante de Dom João, gaguejou até que a frase lhe saísse duma só
vez, como se, em vez de ter sido dita, a tivessem deixado cair ao chão:
«Quem matou Dona Gertrudes foi o mulato “Corta-Orelha” a mando de
Sua Majestade Dona Carlota Joaquina.» Regente e desembargador terão
permanecido por um pouco em silêncio, olhos nos olhos; depois, João não
conteve as lágrimas. Levantou-se, cirandou pela sala e finalmente falou,
de voz embargada, para pedir a papelada do processo. Recebendo-a,
respirou fundo, e começou a rasgá-la, folha a folha, diante da expressão
incrédula de Albano. E concluiu: «Convém, meu bom e fiel amigo, por
Portugal e pelo Brasil, que este processo desapareça para sempre.»
Talvez, como muitos defenderam, Dom João VI nunca tenha passado,
de facto, de um fácil joguete nas mãos de Carlota Joaquina. Um tonto que
nunca foi capaz de a contrariar, nem quando estava em causa o reino, nem
quando estava em causa a sua própria dignidade, o seu amor-próprio, o
seu bom nome e o dos filhos, futuros líderes do país. Com efeito, é uma
imagem difícil de negar por aqueles que procuraram isolar da história do
rei os episódios conjugais e recordá-lo apenas na dimensão de político, um
brilhante administrador de negócios e homem de boa personalidade. Os
homens não se fazem de gavetas, nem a História lhes pode escrever assim
as biografias. É certo que João cedo decifrou a personalidade da mulher, a
procurou travar e se separou dela, mas voltou sempre a oferecer-lhe as
condições para que permanecessem juntos. Ameaçou-a, mas nunca
cumpriu. Deixou que os seus braços se quedassem imóveis, enquanto o
choro lhe toldava a visão de uma mulher que nada mais fez senão traí-lo e
conspirar contra ele e contra o próprio filho, Dom Pedro. Não houve, entre
a secular galeria de reis e rainhas nacionais, figura de pior reputação do
que Carlota Joaquina. Ambicionou e jogou, pela calada e às claras; mexeu,
moveu, mudou e minou tudo quanto pôde até que fosse feita a sua
vontade. Devassa e desregrada, incendiou o país com o seu desatino e as
suas paixões promíscuas e perigosas – curiosamente, ao que parece,
sempre com a imagem do marido ao peito, embutida num pesado
medalhão. Uma trajectória a nenhum título recomendável que, a dar
ouvidos aos boatos, poderá ter culminado num dos mais elementares
lugares-comuns do romance de cordel: dormir com o inimigo. Pois conta-
se que, enquanto Dom João VI dedicava toda a sua vida, todo o seu
coração, na falta dum carisma, a salvar o reino de cair nas mãos de
Napoleão, Carlota recebia, na intimidade de Queluz, o célebre general
Junot, comandante dessas mesmas forças francesas que punham, então, o
continente a ferro e fogo.
Até que chegou o momento determinante daquele tumultuoso princípio
de século. Em 1807, com as tropas francesas a avançarem já pelo interior
de Portugal, Dom João VI determina pôr em prática o plano arquitectado,
50 anos antes, pelo marquês de Pombal: exilar a corte no Brasil. No
espaço de dois breves meses, formou-se uma impressionante esquadra
composta por oito naus, três fragatas, dois briques, uma escuna, uma
charrua de mantimentos e vinte e um navios comerciais. Neles,
embarcaram a família real, ministros, auxiliares e toda a fidalguia que
soube fazer as movimentações necessárias para se apresentar, à hora certa,
no porto de embarque. Ao todo, era uma multidão de milhares de pessoas,
as mais poderosas personalidades do reino, que se punha a salvo, deixando
para trás um país acossado onde não permanecia mais do que o povo e um
Governo interino, capaz de assegurar a unidade do reino e negociar com o
inimigo. Pode dizer-se que Dom João teve ali uma oportunidade única de
deixar Carlota para trás, mas não a quis aproveitar. O povo viu embarcar a
«Megera de Queluz», não, provavelmente, sem algum alívio.
Há duas formas de olhar para aquele rocambolesco episódio: como o
maior acto de cobardia dos mais de 800 anos de História de Portugal, ou
como a solução brilhante que assegurou a independência do reino. Que
diria Dom Afonso Henriques se assistisse àquele espectáculo? Príncipe
regente e consorte, dois feios fugitivos desavindos, correndo agora para o
interior da mesma nave de fuga? Da rainha louca levada pelos criados? Do
Governo e da corte, finas senhoras e condes e duques, disputando um
lugar apertado longe do medo? Que diriam Afonso III, Afonso IV, Nuno
Álvares Pereira? Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, milhares de
marinheiros que entraram em barcos para descobrir e conquistar, não para
fugir? E a verdade, porém, é que, naquele movimento, se punha a salvo o
trono e o poder, a dinastia de Bragança e toda a lista de melhores
prisioneiros que Junot poderia fazer. Ao contrário do que acontecera
noutros reinos europeus, Espanha incluída, onde reis e governantes foram
feitos reféns pelos exércitos de Bonaparte, meio Portugal mudava de
continente e deixava o Atlântico como guarda de honra.
Uma vez no Brasil, Dom João e Carlota continuariam a viver em
palácios separados. No Rio de Janeiro, que tornou capital do reino, o
príncipe aprofundaria os sintomas de depressão e a obesidade que
alimentava a coxas de frango assado que escondia nos bolsos. As
hemorróidas perturbavam-lhe o sono e o sentar no trono, mas, no meio
daquela história de pequenas misérias, encontrava clarividência para
assuntos mais elevados. Assegurou a continuidade do império e, como
nenhum outro monarca antes dele, apostou no desenvolvimento e
emancipação da colónia, elevando-a a reino, unido a Portugal. A presença
da corte portuguesa ali mudou para sempre a face do Brasil. Abriram-se
portos, liberalizou-se o comércio, criou-se a Imprensa Régia, a Real Junta
do Comércio, academias culturais e alicerces para a indústria. Gozando do
novo estatuto, o Rio de Janeiro expandiu-se, transformou o traçado urbano
e a arquitectura; tornou-se cosmopolita, com festas e saraus, animada vida
cultural e política. Até que, em 1818, a cidade preparou a mais pomposa
cerimónia imperial para celebrar a subida oficial de Dom João VI ao
trono. Dona Maria tinha morrido dois anos antes, depois de 24 de loucura
e angústia, tantos quantos João tinha já sido rei, sem poder usar o título.
E Dona Carlota Joaquina? Que seria feito dela?
Segundo as crónicas, nunca, ao longo de todos aqueles anos, quis
corresponder ao carinhoso tratamento com que o povo brasileiro a
recebera. «Terra de mosquitos e carrapatos», era a expressão com que
gostava de descrever o Brasil. Procurou, repetidas vezes, contrariar o
ímpeto governamental para o desenvolvimento do território e tudo fez
para que jamais passasse de uma colónia. Quando soube que o pai e o
irmão tinham sido depostos, encetou movimentações para tentar chegar ao
trono espanhol – em vão. Mais tarde, ambicionou assenhorear-se de um
estado sul-americano vizinho, autónomo e de língua castelhana, mas, mais
uma vez, não encontrou os apoios necessários. Não descansou um só dia
enquanto não regressou à Europa e era frequente ouvi-la gritar que ficaria
cega quando entrasse em Lisboa, dado que vivera anos no escuro, vendo
somente negros. Há, contudo, uma curiosidade em torno da sua estada em
Vera Cruz: de acordo com a historiadora Ana Roldão, é possível que tenha
sido Carlota Joaquina a inventora da caipirinha. A confirmar-se, terá sido
o único contributo da megera-rainha para o bem do Brasil. Ou melhor, da
humanidade.
Durante aqueles 13 anos, reis de Portugal e Portugal propriamente dito
andaram a velocidades bem diferentes. Enquanto a corte descobria as
delícias do hemisfério sul, o Portugal europeu andava em guerra com
Junot. Por três vezes tentaram as tropas napoleónicas invadir o país e por
três vezes falharam. Os exércitos aliados de Portugal e Inglaterra,
comandados pelo duque de Wellington, rebateram sempre as investidas
francesas, até à desistência final. Assegurada a paz, o país descobriu uma
oportunidade única: libertar-se de séculos de regime absolutista. O rei não
voltaria de livre vontade para ocupar confortavelmente o lugar que deixara
vago; seria obrigado a voltar e a reconhecer que os tempos haviam
mudado.
A 3 de Julho de 1821, a comitiva do rei entra no Tejo, mas a família não
vinha completa: o filho Dom Pedro ficara no Brasil. A ideia da partida do
monarca provocara nos Brasileiros o receio de que se perdesse a
autonomia entretanto conquistada. A versão oficial diz que Pedro ficou
como regente e para serenar os ânimos, de comum acordo com o pai; outra
diz que estava já envolvido com os movimentos independentistas; outra
ainda que foi a conselho do próprio Dom João VI que ficou, percebendo o
rei que o Brasil não demoraria a reclamar a independência e que, portanto,
mais valeria ficar Pedro no trono do que deixar o poder livre para o
primeiro aventureiro que o conseguisse tomar de assalto. O desfecho da
História é bem conhecido: passado pouco mais de um ano, a 7 de
Setembro de 1822, Pedro lidera a revolta e proclama a independência do
Brasil, passando a auto-intitular-se «imperador». Tudo poderá ter
acontecido de acordo com o plano delineado entre Dom João VI e o filho,
mas a verdade é que o rei de Portugal só reconheceria a perda do território
três anos mais tarde, a 15 de Novembro de 1825, quando assinou o
Tratado de Paz e Aliança com o Brasil, assegurando, também, as futuras
relações entre os dois lados do oceano.
Mas voltemos àquele dia de Julho de 1821 em que milhares de
populares acorreram ao porto de Lisboa para assistir ao regresso da
família real. Uma Carlota Joaquina radiante surgiu no convés do barco.
Ainda antes de descer, descalçou-se e lançou os sapatos para o fundo do
rio. Perante a estupefacção da multidão, terá declarado: «Não pisarei a
terra dos brancos com os mesmos sapatos com que pisei a terra dos
negros.»
Começam então as negociações entre o rei e o movimento liberal. Em
Outubro de 1822, Dom João VI, forçado ou não, jura a primeira
Constituição portuguesa, aquela que prevê o fim do poder absoluto do rei,
repartido agora com uma assembleia de deputados, eleita livremente de
três em três anos, liberdade de expressão e de imprensa, entre outros
valores saídos das grandes revoluções liberais de França ou dos Estados
Unidos. Já Dona Carlota, que toda a vida ansiara por mais poder, não
podia naturalmente aceitar agora abdicar do pouco que tinha. Recusou
assinar a Constituição e foi devidamente punida: perda do título e de todas
as prerrogativas de rainha, perda da cidadania; perda, enfim, de tudo,
sendo-lhe unicamente consentida a possibilidade de escolher o lugar para
onde desejava ser exilada.
Todavia, João, mais uma vez, seria um coração fraco e, deixando-se
convencer dum alegado estado precário de saúde da mulher, consentiu que
ficasse em território nacional, instalada na sua bem conhecida Quinta do
Ramalhão.
Carlota tinha quase 50 anos. Talvez já não tivesse o fulgor romântico de
outras eras, mas a ambição política continuava mais viva do que nunca…
Não era difícil de prever que tão grande mudança política não seria aceite
de forma pacífica. Era evidente que, distribuído o poder do rei pelo povo,
se desvaneciam também muitos dos privilégios da fidalguia e que essa
mesma fidalguia haveria de os reclamar de volta… Atenta ao evoluir dos
ânimos, a rainha renegada soube potenciá-los e canalizá-los a seu favor –
já não directamente para ela, pois até Carlota Joaquina percebia que o
comportamento de uma vida inteira lhe granjeara tantas e tamanhas
inimizades que nunca semelhante ambição lhe seria consentida, mas para
o filho, esse que talvez fosse fruto não do rei, mas do cocheiro do
Ramalhão: Dom Miguel.
A partir daquele momento, Carlota dedicou-se a uma última e grande
batalha: concentrou todos os esforços no apoio ao filho, convertido em
líder daqueles que desejavam o regresso do absolutismo, isto é, candidato
a depor o próprio Dom João e tomar-lhe o lugar no trono. Apoiou todas
manifestações e tentativas de golpe de Estado, incluindo a que partiu de
Vila Franca de Xira, a 27 de Maio de 1823, liderada por Miguel e
escudada por um regimento de infantaria. Naquela circunstância, Dom
João conseguiu travar os ímpetos do infante, mas ele voltaria à carga em
menos dum ano. No golpe que ficou para a História como a Abrilada,
Miguel logrou ir mais longe: apoiado pelo exército que liderava, na
qualidade de «generalíssimo», capturou e lançou nos calabouços inúmeras
personalidades civis e militares do reino, assassinou o marquês de Loulé,
fiel conselheiro do rei, e tentou prender o próprio pai, cercando-o no
Palácio da Bemposta. Depois de muitas movimentações diplomáticas,
Dom João conseguiria demitir o filho da liderança do exército e libertar os
presos políticos. Finalmente, e por uma vez, não teve contemplações:
expulsou Dom Miguel do país, mandando-o exilar em Viena. Carlota,
essa, continuaria a escapar-se com mão mais leve: foi mandada encerrar
em Queluz. Nada a que já não estivesse habituada ou que lhe deixasse
particularmente vedada a consumação de qualquer desejo.
Nos tempos seguintes e apesar de tudo, Dom João VI viveria,
finalmente, alguns dias de paz – mas eram os últimos. Não chegou a durar
dois anos aquela última fase do reinado. A 4 de Março de 1826, o rei vai
lanchar a Belém; no regresso, sente-se indisposto. Sucederam-se tonturas,
vómitos, diarreia, convulsões; as pernas incharam-lhe ainda mais. A 6 de
Março, teve lucidez para realizar um último acto oficial: assinar um
decreto que estabelecia a regência colegial presidida pela infanta Isabel
Maria, a mais velha das suas filhas solteiras, que visava impedir a subida
ao poder da infame Carlota Joaquina.
A 10 de Março, sucumbiu, por fim, sem mais alma ou convicção do que
aquelas com que, no primeiro dia, ascendera ao trono de Portugal. Tinha
58 anos. Como de costume, sempre que morria um rei, não faltou quem
assegurasse que se tratara de envenenamento. Uns culpavam os liberais;
outros os absolutistas; outros, simplesmente, a rainha. Nos dias seguintes,
a Gazeta de Lisboa falou apenas em indigestão, mas a verdade é que as
descrições diárias dos médicos no boletim clínico da Casa Real, bem
como a de Frei Cláudio da Conceição, cronista-mor do rei, eram bem
pormenorizadas quanto àqueles derradeiros seis dias de agonia e
descreviam sintomas compatíveis com os de envenenamento.
Especulações à parte, morto Dom João, Carlota voltaria à vida. Tentou,
até ao último recurso, convencer as Cortes de que o marido havia morrido,
na verdade, a 4 de Março, insistindo que a assinatura no decreto que
entregava a regência à filha e não a ela não passava duma falsificação.
Uma vez mais, não levou a sua avante. Pouco tempo depois, viu Dom
Pedro, o imperador do Brasil e filho que odiava, regressar como rei, agora
Dom Pedro IV, assinar a Carta Constitucional, um meio-termo entre as
aspirações absolutistas e liberais – e ainda hoje, defendem alguns, a
melhor Constituição que Portugal alguma vez teve – e abdicar em favor da
filha, Dona Maria II, regressando ao Brasil uma semana depois.
A História, no entanto, ainda daria muitas voltas. Maria era uma criança
e Pedro tinha, por isso, autorizado o irmão Miguel a regressar de Viena,
jurar a Carta e assegurar a regência até que a sobrinha atingisse a
maioridade. Mal o irmão partiu, Miguel contradisse todos os juramentos e
reinstaurou o absolutismo. Foi o rápido momento de júbilo da vida de
Carlota Joaquina, pois a verdade é que o filho predilecto nunca a resgatou
do seu exílio. Sozinha e sabe-se lá com que pensamentos, Carlota morreu
pouco depois, a 7 de Janeiro de 1830, no Palácio de Queluz. Já não viu
Pedro regressar e expulsar Miguel do trono, depois de dois anos de guerra
civil.
Contudo, falta ainda mencionar dois aspectos para que fique completa a
história do rei sem amor.
Primeiro aspecto: apesar de todo o comedimento e subserviência de
carácter conhecidos a Dom João, a verdade é que lhe é atribuída uma
aventura extraconjugal. Estávamos em Março de 1803, no tempo em que
Carlota fora já mandada, pela primeira vez, para Queluz, quando surgiu
grávida Dona Eugénia José de Meneses, uma jovem aristocrata, filha do
governador de Minas Gerais. As suspeitas recaíram sobre o rei, que,
temendo que o país tomasse conhecimento do caso ou, simplesmente, a
fúria de Carlota, teria pedido ao seu amigo e médico pessoal, doutor João
Francisco de Oliveira, que levasse e cuidasse da jovem, refugiando-se com
ela em parte incerta no estrangeiro. Meses mais tarde, terá recebido uma
carta onde, entre outros pormenores, era dito que Eugénia tinha dado à luz
uma menina. Ignora-se se Dom João a terá alguma vez conhecido ou
chegado sequer a dar um nome.
Outras fontes atribuem-lhe um caso com Francisco Rufino, seu ajudante
pessoal para o guarda-roupa. Ao que parece, o humilde Francisco terá pelo
menos sido designado barão em 1809, quando Dom João se encontrava já
no Brasil, e promovido no ano seguinte a visconde de Vila Nova da
Rainha.
Segundo aspecto: muitos anos depois da morte do rei, quando Portugal
vivia já num pacificado regime liberal, o historiador Oliveira Martins
retomaria a tese do envenenamento – atribuindo as culpas a Carlota. «A
peçonha fora propinada nas laranjas», escreveu então, voltando a dirigir-
nos o olhar para a inocente merenda com que Dom João fora aconchegar o
estômago naquela tarde de 4 de Março de 1826.
Já em pleno século XXI, investigadores do Instituto Superior Técnico
decidiram estudar as vísceras dos reis da dinastia de Bragança. Aqueles
que morreram em Portugal foram embalsamados, os órgãos retirados e
enterrados no Panteão de São Vicente, em Lisboa. A investigação traria à
luz o final perfeito para esta longa história de intriga, traição e alguns
heróis: a análise aos restos mortais de Dom João VI revelou um teor de
arsénico 475 vezes superior ao normal.
A estátua do imperador Maximiliano
DOM PEDRO IV

Há poucos pontos do mapa de Lisboa tão célebres como o Rossio. Vem


de há 2000 anos o uso daquele lugar como espaço público. No tempo do
Império Romano, era, provavelmente, um hipódromo; depois, foi-se
tornando lugar de feiras e mercados; com o avançar da Idade Média,
começou a ser rodeado de lojas e edifícios. A norte, no século XV, foi
levantado o Palácio dos Estaus, depois da Inquisição; a leste, estendendo-
se por aquela que é hoje a Praça da Figueira, o Hospital de Todos-os-
Santos. A seguir ao grande terramoto de 1755, por ordem do marquês de
Pombal e projecto de Carlos Mardel, ganhou os traços fundamentais que
até hoje se lhe conhecem: uma grande praça rectangular, com 166 metros
de comprimento por 52 de largura. Já depois do colapso do absolutismo,
com Dona Maria II no trono e Almeida Garrett na vida política a
representar os interesses culturais do reino, foi erguido o edifício que
preside à praça: o Teatro Nacional, diante do Arco de Bandeira, cercados
de cafés, farmácias, chapeleiros, tabacarias e afins. Bocage andou por ali,
no Nicola anterior à reconstrução; Eça de Queirós viveu lá; muita gente
cruzou a calçada de pedras brancas e negras num desenho ondulado para ir
ou vir da estação de comboios adjacente. Homens e mulheres perseguidos
pela moral da época ali morreram na fogueira; acusados à luz de leis
momentâneas foram enforcados; houve touradas, festivais, manifestações,
comícios e até uma guerra, na revolução que depôs a monarquia
portuguesa, em Outubro de 1910. Hoje, há turistas e locais a atravessarem
em todas as direcções, desaparecendo depois pela Rua Augusta ou do
Ouro, dos Sapateiros, da Betesga, do Carmo ou do Amparo.
Sobre a parte destes acontecimentos que ocorreu no último século e
meio, uma sentinela paira, distante, intocável, a 27 metros e meio de
altura: a estátua de Dom Pedro IV de Portugal e I do Brasil, vigésimo
nono rei português e primeiro imperador brasileiro, o Rei-Soldado ou o
Libertador, uma das mais fascinantes e complexas figuras da História de
ambos os lados do Atlântico. É esta estátua de bronze, levantada sobre
uma imensa coluna coríntia, ladeada por duas fontes de pedra e ferro e
guardada pelas virtudes da força, moderação, justiça e prudência, uma por
cada vértice da base quadrangular, que dá ao lugar o nome oficial – Praça
Dom Pedro IV –, ainda que, na boca do povo, pareça destinada a ser para
sempre chamada «Rossio».
No entanto, ali, a figura metálica de Pedro, tal como foi desenhada por
Gabriel Davioud e esculpida por Élias Robert, erguida diante da Baixa
pombalina e do teatro baptizado em nome da filha que escoltou ao trono,
sofre dum mal maior do que o esquecimento do nome: a dúvida. Não
saber se representa Pedro, com efeito, ou Maximiliano, fugaz imperador
do sonho francês para o México.
A estátua foi inaugurada a 29 de Abril de 1870, o rumor não se sabe.
Estávamos no reinado de Dom Luís, neto de Dom Pedro IV. Há pelo
menos 20 anos que se falava de fazer ali, no coração de Lisboa, um
monumento ao homem que libertara o Brasil com um grito,
«independência ou morte!», e depois encontrara ainda forças para
atravessar o oceano e vir derrubar o irmão, que lhe usurpara à filha o trono
português. António Feliciano de Castilho, apesar de poeta, apresentou um
projecto arquitectónico. Em 1852, ainda foi colocado no meio da praça um
pedestal, mas não se chegou a completar, dado que a primeira parte da
obra era tão bela ou inspiradora que os Lisboetas rapidamente a
baptizaram de «o Galheteiro». Abriu-se então um concurso internacional,
apresentaram-se 87 projectos e venceu o da dupla francesa Davioud /
Robert.
Não eram exactamente dois desconhecidos, estes artistas. O primeiro,
arquitecto, projectara a Fonte de Saint-Michel, em Paris, dois dos teatros
de Châtelet ou o antigo Palácio do Trocadero. O segundo, escultor, tem
ainda hoje obras visíveis na fachada da Gare de Austerlitz, no
Conservatório de Arts et Métiers de Paris ou no Louvre. Gente acima de
qualquer suspeita, portanto. E contudo…
Há múltiplas referências dispersas pela literatura e imprensa nacionais
ao pretenso logro elevado a obra de arte cravada no coração de Lisboa. E
muitas delas são assinadas por gente igualmente insuspeita… A mais
célebre é, porventura, a passagem de Lisboa – Livro de Bordo, onde José
Cardoso Pires, conhecedor invejável da cidade, cita um poeta amigo para
levantar a questão: «“Que fazemos nós, Lisboa, os dois aqui na terra em
que nascemos e eu nasci”, perguntava Alexandre O’Neill, de ombro na
ombreira a olhar o impera-dor Maximiliano do México, que está na
estátua do Rossio a fingir que é o Dom Pedro IV de Portugal.» E remata
depois, com menos poesia e mais pragmatismo: «Que se lixe, seja o Dom
Pedro, porque não? Assim como assim, o país fica na mesma e o Rossio
ganha ainda mais um caso para entreter.»
Mas como teria acontecido coisa tão absurda? Que se trocasse a estátua
dum herói pela dum desconhecido? Correm, pelo menos, três versões…
Primeira versão: os Mexicanos, os colonos franceses ou o próprio
Maximiliano encomendam a Gabriel Davioud e Élias Robert uma estátua
do novo imperador. Porém, enquanto os artistas trabalham na obra em
França, a situação política complica-se nas Américas. Benito Juárez, herói
nacional mexicano, lidera a rebelião, depõe Maximiliano e manda fuzilá-
lo, em 1867. A estátua, entretanto concluída, deixa de ser desejada do
outro lado do Atlântico e fica esquecida num contentor algures no porto de
escala, em Lisboa, à espera de que alguém a reclame. Quando Câmara e
Governo trabalham na revitalização do Rossio e se confrontam com o
desagrado popular provocado por «o Galheteiro», descobrem uma solução
prática e extraordinariamente em conta: desencaixotar Maximiliano, que,
por sorte, até tem uma figura física parecida com a de o Rei-Soldado, e
metê-la num pedestal com uma placa que não a deixe mentir: «Dom Pedro
IV», rei disto e daquilo. Caso arrumado.
Segunda versão (e a mais pitoresca): os Mexicanos, os colonos
franceses ou o próprio Maximiliano encomendam a Gabriel Davioud e
Élias Robert uma estátua do novo imperador. Ao mesmo tempo, Portugal
lança um concurso para a construção de uma estátua a Dom Pedro IV, que
é ganho pela mesma dupla de artistas. As estátuas são cuidadosamente
embaladas e embarcadas, e descuidadamente trocadas no porto de Lisboa.
O Maximiliano de bronze é içado até ao pico da coluna a meio do Rossio;
o Pedro do mesmo metal cruza o oceano, tal como antes fizera o Pedro
real, mas segue para um destino um pouco mais setentrional. O caso é
delicioso porque significaria que algures, no México, haveria uma estátua
a Dom Pedro e, possivelmente, alguma literatura local discutindo, tal
como nós, o engano «monumental». Porém, é altamente improvável que o
México, depois de depor e fuzilar Maximiliano, ainda lhe quisesse fazer
uma estátua. De modo que o Pedro de bronze, mesmo que ainda tivesse
conseguido seguir viagem a partir de Lisboa, teria sido barrado na chegada
às Américas ou, quem sabe?, lançado ao mar onde ainda hoje more, até ser
descoberto por algum mergulhador, entre algas e peixes de águas
profundas, elevado a tesouro da arqueologia.
Terceira versão: os mexicanos, os colonos franceses ou o próprio
Maximiliano encomendam a Gabriel Davioud e Élias Robert uma estátua
do novo imperador. Porém, enquanto os artistas trabalham na obra, em
França, a situação política complica-se nas Américas. Benito Juárez, herói
nacional mexicano, lidera a rebelião, depõe Maximiliano e manda fuzilá-
lo, em 1867. A estátua, entretanto concluída, deixa de ser desejada do
outro lado do Atlântico – que fariam agora com ela os desalentados
Davioud e Robert? Punham-na na sala? No jardim? Postos nestas dúvidas,
chega-lhes ao conhecimento um concurso aberto em Portugal para a
construção de um monumento que homenageie Dom Pedro IV. Arquitecto
e escultor pegam então no velho Max, amputam-lhe o braço que carrega o
ceptro imperial e trocam-no por outro que ostente a Carta Constitucional,
mudam-lhe os botões da casaca, distinguem-no com um colar da Torre e
Espada e dão-lhe guia de marcha para Lisboa. Vitória. Todos ganham.
Portugal fica com a sua estátua, Davioud e Robert com o seu dinheiro e
até Maximiliano recebe alguma dignidade que o conforte naquela sua
triste partida para o outro mundo.
Contudo, século e meio depois, qualquer breve incursão pela world wide
web – invenção com que nenhum dos artistas ou imperadores terá contado
– revelará que ainda mais abundantes do que as versões do logro são as
teses que o dão como mito urbano. Suportadas em citações do jornalista
Rocha Martins ou do historiador de arte José Augusto França, múltiplos
autores sustentam que o rumor, embora criativo, nunca terá passado disso
mesmo: de um boato criado pela proverbial autocrítica nacional. As fardas
de Pedro e Maximiliano seriam semelhantes, de acordo, mas isso não era
estranho por si só, dada a velocidade com que se espalhavam então as
modas das casas reais; a similitude dos rostos, sim, teria sido a pedra-de-
toque para o espoletar da efabulação. Outras loucas invenções, como as
máquinas fotográficas com teleobjectivas e os milagrosos produtos de
limpeza com que a estátua do Rossio teria sido esfregada em anos
recentes, poriam a nu a verdade: que aquele imperador era mesmo o nosso
e não o desafortunado austríaco que acabou os seus dias em Querétaro,
diante de um pelotão de fuzilamento. A prová-lo estaria na mão direita da
estátua a Carta Constitucional com que Pedro serenou os ânimos entre
liberais e absolutistas em 1826, o grande colar da Torre e Espada,
altíssima distinção honorífica portuguesa, e, por fim, os escudos nacionais
cuidadosamente esculpidos nos botões do casaco.
De facto, a descoberta da Carta, do colar e dos escudos aniquila
qualquer pretensão histórica das duas primeiras versões da tese
«Maximiliano, nascido na Áustria, morto no México, eternizado em
Portugal»; no entanto, pouco podem contra a última. Se Davioud e Robert
retocaram uma estátua já feita ou construíram uma nova, dificilmente se
saberá. A verdade é que o imperador do Rossio apresenta uma barba farta
como a de Maximiliano, mas também há retratos semelhantes de Pedro,
diferentes da habitual representação de bigode, pêra e patilhas ralos.
Sobra uma questão: a inusitada altura do pedestal da estátua, fazendo-a
mais alta do que qualquer prédio da praça; muito, mas muito mais alta do
que a de outro rei, Dom José, construída um século antes numa praça
próxima e incomparavelmente maior, o Terreiro do Paço. À mulher de
César não basta sê-lo; é preciso parecê-lo. E a estátua do Rossio parece ter
sido cuidadosamente colocada longe da vista para que ninguém
percebesse que imperador, afinal, replicava.

Pedro e Maximiliano nunca se conheceram. O segundo era uma criança


de dois anos a viver em Viena quando o primeiro morreu, a 24 de
Setembro de 1834, no mesmo Palácio de Queluz onde nascera.
Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula
Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de
Bragança e Bourbon – nome completo de um homem que viveu depressa.
Não precisou sequer de 36 anos para ter o mundo a seus pés, perdê-lo e
recuperar, ao menos, o direito de voltar a casa.
Filho de um casal que se odiou reciprocamente até à morte, Dom João
VI e Dona Carlota Joaquina, Pedro parece ter escolhido desde cedo estar
ao lado do pai contra a mãe. Faltou-lhe a educação esmerada de outros
príncipes herdeiros, o que talvez ajude a explicar o homem contraditório,
desde criança tão dado a grandes impulsos de afecto como ataques de ira,
com um pé na poesia e na música e outro no vernáculo e na atracção por
andar à bulha. Com Miguel, o irmão quatro anos mais novo do que ele, foi
mesmo assim: entre brigas e abraços. Os ataques de epilepsia de que
padeceu desde pequeno acentuavam nele a impressão geral de
instabilidade, mas Pedro era um duro: gostava de trabalho físico e de
desporto, de andar a cavalo. Há-de cair dezenas vezes da sela e partir nove
costelas. Nada disso o desencoraja; pelo contrário – sente orgulho na
história de cada cicatriz.
O príncipe tem nove anos quando os exércitos de Napoleão invadem o
reino e o pai decide fugir para o Brasil. A travessia do Atlântico vai
tornar-se familiar para os seus olhos negros e brilhantes: fá-la-á quatro
vezes ao longo da vida. Fez-se homem no Rio de Janeiro, entre o povo das
tabernas, mulheres e cenas de pancadaria, muitas vezes com maridos
atraiçoados. Mas foi em São Paulo que casou, aos 19 anos, com a
arquiduquesa Leopoldina, filha de Francisco, último imperador do Sacro
Império Romano-Germânico e primeiro da Áustria, e sobrinha-neta da
célebre Maria Antonieta. O momento determinante da sua vida, contudo,
chegaria três anos depois…
Portugal, o país que tinha visto fugir para o Brasil toda a família real e
elites, que precisou de um comandante estrangeiro, inglês, no caso, para se
defender, podia gabar-se de uma coisa: quase toda a Europa tinha sido
tomada por Napoleão, boa parte dela à primeira tentativa; Portugal sofrera
três investidas francesas e nunca soçobrou. Com a derrota de Bonaparte
em Waterloo e subsequente desterro para a ilha de Santa Helena, ficava o
orgulho de um pequeno país que saía invicto do embate com um gigante
(ainda que os ingleses o viessem a retratar como pouco mais do que um
anão), mesmo que abandonado pelos seus líderes.
Esse orgulho, essa prova de vida e, finalmente, essa certeza de ter
sobrevivido 13 duros anos sem rei, tinham de efectivar-se em qualquer
coisa concreta. Assim, a partir da cidade do Porto e estendendo-se, depois,
a muitos círculos do país, começou a formar-se a convicção de que o
tempo dos senhores absolutos chegara ao fim. O Ocidente, de França aos
Estados Unidos, já fizera as suas revoluções liberais; era chegada a hora
da revolução portuguesa.
Em 1821, a família real é chamada a voltar para renunciar a boa parte
dos seus poderes e assinar os termos de uma monarquia constitucional,
com parlamento, eleições, separação de poderes, liberdade de imprensa,
liberdade religiosa, uma lei fundamental escrita consagrando valores de
igualdade. O rei Dom João VI e aquela que continua a ser formalmente
sua mulher, Dona Carlota Joaquina, despedem-se do Brasil e embarcam
para Lisboa; o filho Miguel, que tem agora 19 anos, também; mas Pedro
não. Ou porque foi ali que cresceu, ou porque apoia os movimentos
autonómicos locais, ou de concerto com o próprio pai, para reinar sobre
um Brasil que evoluía, inexoravelmente, para a independência, Pedro fica.
E passado pouco mais de um ano, tomando conhecimento de que, em
Portugal, se moviam influências diplomáticas para voltar a reduzir o reino
brasileiro à condição de colónia, assume a ruptura: junto ao riacho do
Ipiranga, em São Paulo, grita «independência ou morte». Ganha a
primeira. Pedro é aclamado imperador do Brasil.
Em nome da vontade de fazer daquele território imenso e em boa
medida selvagem um país uno e desenvolvido, o filho de Dom João vai
renunciar a ser rei de meio mundo. A decisão de ficar daquele lado do
Atlântico e emancipá-lo significava, desde logo, recusar o trono português
e o império adjacente de que era herdeiro legítimo, mas outros
chamamentos viriam, e das proveniências mais inesperadas. Libertas de
400 anos de domínio turco, as províncias do antigo Império Romano do
Oriente procuram reis que as dirijam numa nova era enquanto nações
soberanas. A Grécia endereça o convite a um homem que ainda é
descendente dos imperadores da velha dinastia Comnenus, precisamente
Dom Pedro, mas ele recusa. A própria Espanha, emancipada da ocupação
napoleónica e dilacerada pela guerra entre absolutistas e liberais, vê em
Pedro, liberal e libertador do Brasil, o homem certo para a comandar, mas
ele, uma vez mais, prefere ficar do lado de lá a consolidar um novo país.
Dizia assim que não a uma oportunidade sem paralelo em toda a História:
ser imperador da Ibéria e das respectivas províncias ultramarinas, isto é,
de grande parte da América Latina e da África, estendendo-se até Macau
ou Filipinas, na Ásia longínqua.
Pedro só deixaria o Brasil pelo mínimo tempo possível e para acudir a
uma crise familiar que poderia tomar proporções catastróficas…
Em 1826, o pai morre em circunstâncias misteriosas e o irmão Miguel,
com o apoio da mãe, espreita a oportunidade de tomar de assalto o poder.
Pedro regressa então a casa, pela primeira vez em 18 anos. É aclamado rei
como Dom Pedro IV, mas sabe que não lhe permitirão acumular as duas
coroas, portuguesa e brasileira. Toma o pulso ao país, sente a tensão entre
os liberais que fizeram a revolução e os absolutistas que contestam a perda
de privilégios e redige a Carta Constitucional, um compromisso entre a
primeira Constituição de 1822, depurado de radicalismos, e algumas
concessões aos adeptos do antigo regime. Com poucas revisões e
interrupções, este documento, inspirado na Constituição que dera ao Brasil
e defendido por alguns como a lei fundamental mais equilibrada que
Portugal alguma vez teve, estará em vigor até ao expirar da monarquia, em
inícios do século XX.
Por fim, Pedro abdica do trono em favor da filha mais velha, Dona
Maria da Glória. Mas, como ela tem apenas sete anos, determina que Dom
Miguel regresse de Viena, para onde foi exilado depois de tentar dois
golpes de Estado contra o pai, renuncie aos seus velhos ímpetos
absolutistas e cumpra a Carta, case com a sobrinha e seja regente do trono
até que esta atinja a maioridade.
Com invulgar lucidez e sentido de acção, Pedro IV foi rei de Portugal
durante uma semana, mas foi quanto lhe bastou para desatar o nó que
ameaçava destruir o país. Dali a dias, já estava de regresso ao Brasil
amado, depois de protagonizar o mais curto reinado da História
portuguesa, mas, por certo, um dos mais influentes.
No entanto, a aura de herói não duraria para sempre. Em Dezembro
daquele mesmo ano, a arquiduquesa Leopoldina, sua mulher, morre sem
ter sequer 30 anos, e a responsabilidade da tragédia é atribuída a Pedro.
Não lhe bastou ter um número incontável de amantes e filhos ilegítimos,
também os quis trazer para o Paço e apresentar à mulher. Obrigou mesmo
Leopoldina a receber como camareira uma das mulheres com quem
dormia e educou alguns dos bastardos ao lado dos filhos naturais. Os
opositores políticos acusaram-no de maus tratos e agressões à esposa
legítima e, mesmo subtraídos exageros e oportunismos, havia a imagem
precocemente decadente da jovem imperatriz a denunciar um estado de
infelicidade a que o marido não podia ser alheio. Com Domitília de
Castro, marquesa de Santos, manteria um romance assumido e que nem a
morte da mulher faria refrear. Ao todo, imperador e marquesa teriam cinco
filhos, três durante o casamento com Leopoldina; os restantes depois.
O tenebroso retrato da família imperial acendeu o rastilho da
contestação ao pai da pátria. Seguiram-se as acusações de autoritarismo e
indecisão entre ser senhor do Brasil ou de Portugal. O cerco apertava-se
para Pedro, mesmo que tivesse feito o impossível: num continente
dilacerado por tribos e interesses estrangeiros, criou um país unificado de
dimensões ciclópicas, desenvolvido e poderoso. Em 1829, casa em
segundas núpcias com Dona Amélia de Leuchtenberg, têm uma filha,
Dona Maria Amélia, e vivem uma relação aparentemente feliz, que levou
Dom Pedro a afastar-se, por fim, de Domitília de Castro. O imperador
chama a Amélia a sua «salvadora», mas o seu tempo no Brasil tinha
chegado ao fim. A pressão acentuava-se e «o libertador» prefere sair com
dignidade: a 7 de Abril de 1831, abdica em favor do último filho que teve
da malograda Leopoldina: Pedro, de apenas cinco anos, assim tornado
Pedro II, imperador do Brasil.
Pedro de Alcântara Bragança e Bourbon, numa versão resumida do seu
nome, via-se assim, aos 31 anos, numa posição insólita: tinha sido rei de
Portugal e imperador do Brasil, recusara o trono da Grécia e o da Espanha;
foi o soberano de milhões de homens e mulheres; poderia tê-lo sido de
muitíssimos mais… E agora, não tinha nada. Não tinha trono. Não tinha
pátria. Era pai duma rainha e de um imperador, mas não tinha sequer uma
casa a que chamar sua.
Bem, mas a História é generosa para homens como Pedro I do Brasil e
IV de Portugal. Qualquer coisas neles parece atrair os acontecimentos e
chamá-los, de novo, à fila da frente das revoluções.
Como uma actualização dramática da infância, Pedro via-se forçado a
defrontar o irmão. Miguel tinha traído todos os juramentos que fizera ao
regressar de Viena; mandara prender, expatriar ou enforcar os opositores
políticos e auto-proclamara-se rei de Portugal, restaurando o absolutismo.
Pedro regressa à Europa, deixa a mulher e a filha em segurança e embarca
para a ilha Terceira, nos Açores. Aí, assume o comando dos liberais no
exílio e organiza um exército. Em Junho de 1832, desembarca no Norte do
país e cerca o Porto. Tem início o último capítulo verdadeiramente
sangrento da História de Portugal: a guerra civil de 1832-34.
Irmão contra irmão, portugueses contra portugueses, a superioridade
pende quase sempre para o lado de Pedro. A 26 de Maio de 34, a paz é
assinada na Convenção de Évora Monte. Dom Miguel reconhece a derrota
e parte para a Alemanha, onde morrerá 32 anos depois. Apesar de nunca
ter abandonado totalmente as pretensões ao trono e declarar ter assinado a
rendição sobre coacção, oferecerá ao irmão as suas jóias para ajudar a
patrocinar a reconstrução do país após a guerra. A invulgar relação
daqueles dois homens ficaria bem caracterizada no comentário comovido
que o gesto então mereceu de Dom Pedro: «Isto são mesmo coisas do
mano Miguel…»
Esgotado, perdoado, demasiado vivido para alguém que ainda só
contava 35 anos, Pedro, o Rei-Soldado, restaura o poder da Carta
Constitucional e devolve à filha, Dona Maria II, agora com 15 anos, o
trono que o tio lhe usurpara. Já não consegue sequer assistir à cerimónia
da coroação. Acamado em Queluz, sofre do agravamento dos sintomas
que se haviam revelado durante a guerra: dificuldades respiratórias,
cansaço extremo. Redige o testamento, onde lega o seu coração à cidade
do Porto, epicentro do movimento liberal.
Quatro dias depois, morre o Libertador, rei de tudo e nada. A autópsia
indica uma tuberculose como causa de morte. Quando lhe extraíram o
coração, para o submeter a um tratamento de conservação e enviar, como
relíquia, à Igreja da Lapa, no Porto, descobriram algo extraordinário: o
coração de Pedro de Alcântara Bragança e Bourbon era maior do que o
normal.
Pensando bem, poucas coisas faziam tanto sentido.

A história de Maximiliano de Habsburgo-Lorena conta-se mais


depressa. Nascido em Viena a 6 de Julho de 1832, dois dias antes de Pedro
IV desembarcar com o exército liberal no Pampelido e dar início à guerra
civil portuguesa, era filho de Sofia de Baviera e talvez de seu marido, o
arquiduque Francisco Carlos (levantou-se sempre a hipótese de o pai ser,
na verdade, Napoleão II, o que faria de Maximiliano neto de Bonaparte).
Cresceu, serviu na marinha e alcançou em Trieste a vitória sobre a Itália.
Apaixonou-se por uma princesa, Dona Maria Amélia, fez planos de
casamento, mas a jovem morreu, inesperadamente, em 1853. Maximiliano
nunca se recompôs e diz-se que o anel que usaria até ao fim dos seus dias
continha no interior um pequeno tufo de cabelo da princesa desaparecida.
Mas a vida tinha de seguir. Quatro anos depois, Maximiliano casa com
Carlota da Bélgica, aparentemente menos por amor e mais por
necessidade financeira, já que usou o dote de casamento da mulher para
pagar a dívida que contraíra na construção dum castelo em Trieste.
Que planos havia trazido para a vida o arquiduque Max nunca
saberemos bem; a pouco e pouco, o seu destino começou a ser conduzido
mais pelos desejos de terceiros do que pelos seus. A pedido do sogro,
parte para Milão, onde assume o controlo das possessões austro-húngaras
naquele que é hoje território italiano. Sem talento ou vontade para a terra,
vai perdendo domínios até ser afastado do posto pelo imperador e retirar-
se com a mulher para o seu castelo. Depois, veio a sentença de morte…
Convencido pelo imperador francês Napoleão III a fazer no México um
império que competisse com a América anglo-saxónica, Maximiliano
abdica dos seus títulos na Europa e parte para a utopia do outro lado do
Atlântico. Confiante no apoio que recebia de França e da Santa Sé,
desembarca em Veracruz em 1864, com o título de imperador, disposto a
consolidar uma grande monarquia católica a partir do fascinante território
de Maias e Astecas. No entanto, o que o pobre Maximiliano encontrou foi
um povo que não tinha encomendado uma ocupação externa, nem um
imperador estrangeiro, nem alguém que pensasse pelas suas cabeças. A
oposição levanta-se e os apoios partem. Maximiliano olha para Sul, para o
exemplo de estabilidade e prosperidade do Brasil, e vai lá em busca de
inspiração e de uma aliança com o imperador Pedro II, que ainda vem,
afinal, a ser seu primo.
O tempo, porém, corria depressa e Max não fora talhado para perceber a
rapidez com que trabalhava o instinto de sobrevivência dos velhos lobos
da política…
Benito Juárez, presidente mexicano deposto aquando da invasão
francesa, estava em liberdade e plena actividade. Conseguira voltar a
reunir um grande número de partidários e já avançava pelo país em
combates de guerrilha; os Estados Unidos da América, de Abraham
Lincoln, apoiam os republicanos e recusam reconhecer Maximiliano como
imperador legítimo; a França percebe que a única solução seria avançar
para uma guerra cujos custos em vidas e dinheiro nunca compensariam o
ganho. Napoleão III manda então retirar do país as tropas e recomenda a
Maximiliano que pegue na mulher e faça o mesmo, mas o imperador
continuava a acreditar no sonho: assumiu pessoalmente o comando das
tropas e avançou ao encontro de Benito Juárez, que se encontrava,
entretanto, já às portas da capital.
Acabou preso e condenado à morte. Faltavam-lhe poucos dias para
completar 35 anos. De nada servem os pedidos de clemência da mulher,
Carlota, que morrerá louca, num castelo da Bélgica, 60 longos anos mais
tarde, ou do escritor Vítor Hugo. A 19 de Junho de 1867, já rodeado pelo
pelotão de fuzilamento, Maximiliano, imperador de um império que não o
quis, terá pedido que lhe retirassem o medalhão da Virgem Maria que
trazia ao peito e que o enviassem à mãe de Maria Amélia, a falecida noiva
da sua juventude.
Dizem que as suas últimas palavras, antes de as balas o perfurarem,
terão sido: «Viva o México!»

Certamente reparou que Pedro IV e Maximiliano tinham, afinal, algo


em comum. É certo que eram dois príncipes europeus tornados
imperadores nas Américas, mas, ao passo que o primeiro foi um
estrondoso vencedor, o segundo viveu destinado a uma história efémera
que redundaria numa trágica derrota, de modo que não é por aqui que os
queremos comparar. O que os aproxima é um vago laço de sangue, o
parentesco do austro-húngaro com o filho do português, Pedro II,
imperador do Brasil, que Maximiliano admirou e sonhou imitar. Mas há
algo mais, porque o mundo, com efeito, é muito pequeno…
Voltemos à juventude de Maximiliano, aos seus tempos da marinha e
àquele primeiro e arrebatado amor por uma princesa que nem o casamento
com Carlota conseguiria apagar. Chamava-se ela Maria Amélia, tratavam-
na como «a Princesa Flor» e era a única filha de Dona Amélia de
Leuchtenberg e de… Dom Pedro IV.
Órfã de pai aos três anos, Maria Amélia estabeleceu-se com a mãe em
Portugal. Alguns anos depois, ainda criança, conheceu Maximiliano numa
reunião familiar em Munique. O arquiduque nunca a esqueceu e, no início
de 1852, numa viagem da marinha austríaca, desembarcou na ilha da
Madeira, na cidade do Funchal, onde Maria Amélia vivia então, para pedi-
la em casamento. O noivado foi acertado e Maximiliano regressou a
Trieste para ser surpreendido, em Fevereiro do ano seguinte, com a
terrível notícia de que Maria Amélia falecera aos 21 anos, vitimada pela
mesma tuberculose que lhe levara o pai.
Aquele casamento que nunca se concretizaria não teria sido uma mera
união de conveniência entre dois príncipes de grandes casas reais, dois
descendentes de velhas dinastias europeias. Maximiliano estava, de facto,
irremediavelmente apaixonado por Maria Amélia e nunca ultrapassaria a
sua morte. Em 1859, casado há dois anos com Carlota, regressou à ilha da
Madeira para percorrer os lugares onde estivera na companhia da
«Princesa Flor». A casa, na Quinta das Angústias, o hospital que recebera
o nome da falecida e outros que o próprio deixou escritos:

Vejo com tristeza novamente o vale do Machico e a adorável Santa


Cruz onde, há sete anos, vivemos momentos tão doces... sete anos
cheios de felicidades e tristezas, fértil em provas e desilusões
amargas. Fiel à minha palavra, eu voltarei a buscar por sobre as
ondas do oceano um alívio que a Europa não pode mais dar à minha
alma perturbada. Quando comparo as duas épocas, sinto-me
penetrado por uma profunda melancolia. Sete anos atrás eu acordei
para a vida, encarando o futuro com alegria; hoje, sinto-me
exausto; pesa sobre meus ombros o fardo de um passado amargo...
Aqui morreu, de tuberculose, em 4 de Fevereiro de 1853, a única
filha da Imperatriz do Brasil, uma criatura extraordinariamente
talentosa. Ela deixou este mundo imperfeito, pura como um anjo que
retorna para o Céu, sua verdadeira terra natal.

Nas suas memórias, voltaria a referir-se à Madeira como o lugar onde se


extinguiu «a vida que parecia destinada a garantir a minha própria
tranquila felicidade».
Sem Maria Amélia, sem a ilha da Madeira e sem o seu castelo de
Trieste, Maximiliano partiu para a aventura mexicana onde procuraria,
afinal, não o apoio do primo Pedro II, imperador do Brasil, mas o de
Pedro, irmão mais velho da sua falecida noiva. O seu último desejo antes
da morte foi ainda o de estar perto de Maria Amélia e, assim, de fazer
chegar o pequeno medalhão da Virgem Maria a sua mãe, aliás, a
imperatriz Amélia, viúva de Dom Pedro IV.
Talvez nunca venhamos a saber com certeza quem está no topo do
imenso pedestal da Praça do Rossio, em Lisboa. Acima de tudo, trata-se
de um extraordinário caso de estátua à dúvida. Monumento ao mistério.
Àquilo em que quisermos acreditar.
De uma forma ou de outra, Dom Pedro IV está lá. Ou representado em
pessoa, dos pés à cabeça, ou no coração de Maximiliano, trágico
imperador que morreu amando-lhe a filha mais nova.
O mistério da pureza
DOM PEDRO V & DONA ESTEFÂNIA

Não dissemos nada, demos as mãos, ele beijou-me na testa, eu


chorei, ele tinha lágrimas nos olhos, ficámos a olhar-nos por muito
tempo, sem nada dizer, mas compreendendo-nos.

Poderia ser uma entrada no diário dum poeta. Ou o trecho dum


romancista descrevendo um momento perfeito, mas ficcionado, em que
duas criaturas, tão feitas uma para a outra que dispensavam as palavras, se
conheciam, por fim. Contudo, não foram ditas por qualquer escritor de
carreira. São razoavelmente contemporâneas desse género de literatura,
mas pertenciam à vida real. Foi a rainha Dona Estefânia quem as registou
em carta, descrevendo à mãe o momento em que viu pela primeira vez o
noivo, Dom Pedro V, num cais de Lisboa, a 17 de Maio de 1858.
Ela tinha acabado de chegar; ele era como se tivesse. Cada um de 21
anos incompletos. Tinham casado por procuração no dia 29 do mês
anterior, na Igreja de Santa Edwiges, em Dresden. Ela, a princesa de
Hohenzollern-Sigmaringen; ele, rei de Portugal, representado na ocasião
pelo cunhado, o príncipe Leopoldo, irmão da noiva, um procedimento
estranho ao entendimento ocidental no século XXI, mas um ritual
frequente ainda naqueles meados de Oitocentos. Agora, ali, diante um do
outro selavam o pacto em silêncio. No dia seguinte, casavam de novo,
para o país ver, em cerimónia oficial. Casariam as vezes que fossem
precisas, porque o termo poucas vezes fizera tanto sentido. Pedro e
Estefânia tinham acabado de chegar a casa.
Talvez se recorde dele das notas de 1000 escudos, 1000$00. Foi, durante
alguns anos, a nota de maior valor facial em Portugal. Ao centro, um
homem de cabelo e bigode finos, impecavelmente aparados, rosto angular,
olhar claro, fixo num ponto distante, ombros direitos, pose esfíngica, uma
figura cristalizada na juventude eterna de príncipe perfeito. Era Dom
Pedro V, um dos últimos reis de Portugal. E um dos mais amados.
Cresceu rodeado de uma aura de esperança. Era o rei que haveria de
reconciliar um país dilacerado pelos traumas da guerra civil que, anos
antes, opusera o avô, Dom Pedro IV, ao tio-avô, Dom Miguel, e, portanto,
duas visões opostas do mundo: liberalismo e absolutismo. A sua mãe,
Dona Maria II, já sarara boa parte das feridas, mas continuava a ser a
rainha que resultara duma guerra, para desonra dos vencidos. Pedro V era,
pois, o começar de novo, uma figura que inspirava no imaginário popular
uma admiração natural, entre o primeiro Dom Pedro de Portugal, pela
história de amor, e o desaparecido Dom Sebastião.
Todas as histórias que se contavam acerca do jovem alimentavam esse
sentimento. Dele se diz que, com apenas ano e meio, já se fazia entender
em português, francês e alemão. Tocava bem piano, era hábil na esgrima e
no tiro e os críticos apreciavam a firmeza do seu traço no desenho. Crescia
numa educação humanista e cheia de princípios – ou não ficasse a sua
mãe, para a História, como A Educadora. Realizava trabalho social junto
da comunidade. Gostava de escrever e preparar discursos. No futuro,
haveria de colaborar na Revista Contemporânea sob pseudónimo, como
um vulgar opinador sobre matérias internacionais.
Não era, com efeito, um jovem comum. Queixava-se da futilidade das
raparigas que se acercavam da família real quando ia passar férias a
Sintra. Procurou, desde cedo, a companhia de Alexandre Herculano e isso
dizia quase tudo sobre o seu carácter e a forma como preparava as
responsabilidades que o aguardavam como filho mais velho da rainha.
Herculano era, por esta altura, a autoridade moral do reino. Mas não só.
Era a autoridade moral que se desapontara, profunda e irredutivelmente,
com esse mesmo reino. Tinha sido um homem invulgar, um soldado-
escritor. De armas na mão e no campo de batalha, lutou ao lado de Dom
Pedro IV na guerra, realizando na prática os ideais que defendia por
escrito. Vencido o combate, recebeu os naturais convites para ocupar
lugares políticos no regime que ajudara a implantar. E Herculano chegou a
ocupá-los, mas depressa se desiludiu. Preferiu trocar o Parlamento pelas
bibliotecas, o presente efectivo pela redacção da primeira grande História
de Portugal e pelos romances históricos. Depois, quando desistisse
definitivamente dum país que, feitas as contas, continuava a querer títulos
de conde e barão, onde não sentia pulsar a força da regeneração, mas a
soturna decadência de vícios antigos, retirar-se-ia para o campo. As
poupanças de uma vida permitir-lhe-iam comprar uma quinta no Ribatejo,
onde plantar oliveiras e fazer azeite e mal conseguir ouvir os lamentos
daqueles que diziam que deixara órfãos a política, a intelectualidade e o
país. Era este Herculano que Dom Pedro procurava para conversar ao
serão, discutir ciência e cultura ou perder-se, talvez, em assuntos só
aparentemente triviais como o estado do tempo ou o varejamento da
azeitona.
O príncipe, repete-se, não era um jovem qualquer. E diz-se que, em
Portugal, nunca outro foi tão bem preparado para ser rei.
A hora chegou mais cedo do que se poderia prever. A mãe morreu,
deixando-lhe o trono, quando Pedro tinha apenas 16 anos. O pai, Dom
Fernando II, assegurava a regência até que o filho atingisse a maioridade e
permitindo-lhe concluir a sua formação. Já tinha o conhecimento dos
livros e das artes. Faltava-lhe agora uma dose de mundo.
Em 1854, Pedro parte pela Europa na companhia do irmão, Dom Luís, a
bordo do vapor Mindelo. Contacta com filósofos e intelectuais que hão-de
influenciar para sempre a sua acção política, como escreverá mais tarde.
Faz amizades entre as mais influentes casas reais do continente, em
particular no Reino Unido. Cria uma ligação duradoura com a rainha
Vitória e com o marido, e volta a visitá-los no ano seguinte, quando
empreende nova viagem pela Europa.
A 16 de Setembro de 1855, dia em que completava 18 anos, Dom Pedro
V é formalmente aclamado rei. O pai permanecerá a seu lado,
aconselhando-o no governo, mas o momento será todo do filho. Ia
começar um reinado tão breve como marcante, descrito, em geral, numa
palavra: exemplar.
Contra o pessimismo de Herculano e, mais tarde, o de Eça, a verdade é
que Portugal conheceria, naqueles anos, um raro período de
desenvolvimento. Pedro V inaugurou ainda, naqueles últimos meses de
1855, o primeiro telégrafo eléctrico do país; um ano depois, faria o mesmo
pelo primeiro troço de caminho-de-ferro em território nacional, ligando
Lisboa ao Carregado. Um pouco mais tarde, viria a primeira carreira
marítima regular entre Portugal e Angola.
Seria, porém, por outro perfil de actuação do rei que o povo o amaria: a
proximidade; as preocupações sociais. Interessava-lhe a educação da
população. Encomendou traduções de clássicos da literatura europeia e
que se distribuíssem livros pelas crianças; fundou a Escola Real das
Necessidades, perto do paço, e outra junto ao Convento-Palácio Nacional
de Mafra. Aboliu a cerimónia do beija-mão, ritual anacrónico que
sobrevivera ao fim da monarquia absoluta, e colocou uma caixa verde à
porta do palácio real, da qual só ele tinha chave, para as queixas do povo.
Na linha de pensamento humanista que seguia e dando continuidade a
ideais já defendidos pela mãe, recusa assinar sentenças de morte e defende
o fim da escravatura, dois temas fulcrais numa concepção universal dos
direitos humanos em que Portugal virá a ser um dos pioneiros. Contudo, o
país já sentia os efeitos de uma acentuada perda de relevância no contexto
internacional: quando um navio negreiro francês aporta, em Moçambique,
Pedro V ordena que a embarcação seja retida e o comandante preso. A
França reage com fúria, exigindo a libertação imediata do capitão e do
navio e reclamando uma indemnização ao Estado português.
Belo, próximo e com uma acção pautada por estes valores, Pedro era um
rei sonhado que assumia os destinos do país no momento em que este,
porventura, mais precisava de um líder como ele. Naqueles anos, Portugal
era dilacerado por epidemias; primeiro a cólera, de 1853 a 56; depois,
quando esta parecia controlada, a febre-amarela. Milhares de famílias
choravam os mortos; outras tantas viviam no terror do contágio. Casas
inteiras ficaram desertas, os teatros foram encerrados, muitos
estabelecimentos comerciais fecharam. Não eram apenas os mortos e os
doentes – era o medo. Milhares de pessoas trancavam a porta de casa e
deixavam Lisboa na esperança de chegar à província primeiro do que a
epidemia. Os enterros passaram a fazer-se à noite e na presença de muito
poucas pessoas.
Naquele movimento de fuga, a atitude do rei foi precisamente a oposta:
correu para o centro do furacão. Concentrou esforços na erradicação das
epidemias, desviou fundos para os hospitais, para apoio a famílias
destruídas, e acorreu em pessoa aos focos de doença, visitando os
corredores hospitalares e salas febris, esperando lado a lado com parentes
e falando às vítimas, sentado à cabeceira das camas, por muito que os
conselheiros lhe pedissem que se resguardasse e por tudo evitasse o seu
próprio contágio. Mais do que a concentração de esforços financeiros e
logísticos na recuperação do quadro clínico do país e no apoio às
populações mais afectadas, foi aquela atitude do rei que salvou o país.
Primeiro entre iguais, verdadeira sentença de morte à figura do monarca
absoluto. Figura forte e serena, porém próxima, no coração dos cenários
da desolação. O povo deu em chamá-lo «Rei Santo» e encontrou nele o
amparo para se levantar quando as epidemias estavam controladas e os
mortos sepultados.
Não admira, pois, que fosse uma espécie de projecto nacional encontrar
uma rainha para Dom Pedro V. Uma mulher à altura dum rei belo,
elegante, educado e com aquela qualidade humana.
Não faltaram nomes atirados à praça. Especulações e rumores, listas de
candidatas lançadas à mesa da corte, comentadas e acrescentadas um
pouco por todo o império. Nos corredores diplomáticos das casas reais
europeias, jogavam-se os tabuleiros de alianças e influências: procurava-
se noiva para o rei de Portugal.
Espanha tentava uni-lo à princesa das Astúrias, filha da rainha Isabel II.
A Bélgica acenava com a filha do rei Leopoldo I, a princesa Carlota, mas
ela parecia pouco interessada pela conjectura. Acabaria por se tornar noiva
de Maximiliano, efémero imperador do México, arrastando-se, após a
morte daquele, como figura bela e trágica, ao longo de 60 penosos anos.
Internamente, era sugerido o nome de Maria da Conceição, mulher fidalga
e elegante, autora obsessiva de poemas dedicados ao rei. Outros
especulavam acerca de um hipotético romance secreto com Manuela Rey,
actriz que morreria prematuramente aos 22 anos, antes de poder confirmar
uma promissora carreira.
A verdade é que Pedro V parecia indiferente a qualquer destas
mulheres. Observador, sério e triste, preferia concentrar-se no governo do
reino e nas longas conversas com Herculano. O comportamento
celibatário tornava-se ainda mais evidente por contraste com o estilo de
vida do irmão. Luís era um apreciador dos clubes nocturnos e gostava de
disputar e perder o jogo das tentações da carne. A chegada ao trono, anos
mais tarde, não lhe refrearia o ímpeto: manteria uma vida dupla, de dia rei,
à noite um pretenso «doutor Tavares», que aproveitava os benefícios dum
tempo anterior à sociedade mediática para sair à noite sob falsa identidade
e ser só mais um rosto no meio da multidão. Deixava o palácio
acompanhado do amigo Magalhães Coutinho, esse, sim, médico de
verdade, e percorria com ele a cidade na ancestral prática de chercher la
femme. A primeira conquista extraconjugal, ou pelo menos a mais
badalada, seria a actriz Rosa Damasceno, de quem teria um filho, senão
dois.
Todavia, esse era Dom Luís. Pedro só conheceria uma mulher, aquela
que ali estava ao lado dele, no altar da Igreja de São Domingos, a 18 de
Maio de 1858, um dia depois de chegar a Lisboa, para a celebração oficial
de uma união formalizada e assinada por procuração algumas semanas
antes, na Alemanha. Os olhos muito azuis da rainha reluziam ao cimo do
vestido branco, cortado ao meio pelas flores de laranjeira que segurava nas
mãos. Lá fora, um dia glorioso de Primavera contradizia uma estação que,
até então, só trouxera notícias de chuva, vento e temporais – como que o
certificado cósmico da justeza daquele casamento; de como trouxesse,
talvez, o advento dum tempo novo, melhor. E cá fora a multidão esperava
para abençoar também aquela união, seguir o cortejo da igreja ao Palácio
das Necessidades e, no caminho, medir a rainha. Assegurar-se, num juízo
instantâneo e cabal, de que o seu «Rei Santo» ficava bem entregue.
E como chegara ali aquela princesa prussiana? Como quebrou Dona
Estefânia a solidão melancólica de Pedro V? Há quem diga que se tinham
conhecido e apaixonado anos antes, em Düsseldorf, numa das viagens de
Pedro pela Europa. Teriam ambos então 17 anos e o episódio ajudaria a
explicar o desinteresse do rei pelas outras mulheres que lhe apresentavam.
Mas a versão oficial diz que a primeira vez que se encontraram de facto,
olhos nos olhos, foi aquela num cais de Lisboa, na véspera do casamento,
quando deram as mãos e trocaram lágrimas e silêncios. Nesta segunda
hipótese, o caminho que os levou um ao outro foi longo e deu a volta por
Londres…
Desde a primeira visita a Buckingham, Pedro V mantinha-se em
contacto com a rainha de Inglaterra. Vitória gabava-lhe a beleza e o
carácter. Gostava de o casar com uma das filhas e terá confessado a
amigos que só as diferentes igrejas a que pertenciam a impedia de o tentar
fazer. Não podendo ser sua sogra, investiu-se do papel de madrinha,
ocupando-se da tarefa de lhe encontrar uma noiva. E foi nessa missão que
descobriu a segunda filha do príncipe Carlos António e da princesa
Josefina Frederica de Hohenzollern-Sigmaringen. As informações que
recebera traçavam um perfil próximo do daquele amigo português: uma
jovem instruída e delicada, da mesma idade do que ele, com talento para
as artes e as línguas, incluindo o português, que vivera até aos 12 anos no
Castelo de Sigmaringen e acompanhara depois o pai, comandante duma
divisão do exército prussiano, por Düsseldorf, Weinburg e Berlim.
Data de 28 de Abril de 1857 uma carta de Pedro V à rainha Vitória
agradecendo-lhe o empenho na questão e o retrato que enviara daquela
encantadora princesa de Hohenzollern. Não era apenas a beleza que nela
lhe agradava; era, sobretudo, a descrição que lhe fazia dela: os modos
simples, a delicadeza, a sensibilidade humanista. Três meses depois, por
intermédio do conde do Lavradio, já o rei de Portugal pedia ao príncipe
Carlos António a mão da sua segunda filha. Em Abril do ano seguinte,
casavam por procuração. No caminho para Lisboa, pedir-lhe-iam que
fizesse um pequeno desvio: a rainha Vitória insistia em conhecer Estefânia
pessoalmente, antes mesmo do próprio noivo. Viajando por Ostende,
Düsseldorf, Bruxelas e Dover, a nova rainha de Portugal chegava ao
Palácio de Buckingham, a 6 de Maio. Ali, passa cinco dias na companhia
do pai, do irmão Leopoldo e de Vitória, que confirma a intuição inicial e
manda partir uma esquadra naval que escolte a noiva de Pedro até ao
desembarque em Lisboa. Nos meses seguintes, o habitualmente
circunspecto rei de Portugal não se inibirá de escrever por diversas vezes
aos reis britânicos para lhes agradecer a dedicação e confessar a vida
jubilosa que vivia ao lado de Dona Estefânia.
E eis-nos de regresso à Igreja de São Domingos. Os noivos saíam agora
para o cortejo até ao paço entre os vivas da multidão. De repente, uma
pequena nota dissonante. Uma minúscula imperfeição naquele quadro
imaculado. Uma gota de sangue descia pelo rosto branco da rainha. Uma
ferida causada pelo diadema que as aias se apressaram a trocar por uma
coroa de flores. Um incidente casual, insignificante, onde, no entanto, os
supersticiosos se apressaram a ler um significado: mau presságio,
disseram. Mau presságio. Mas o Sol brilhava demasiado naquela manhã.
Pedro e Estefânia formavam um quadro demasiado perfeito para que a
alegria de estar ali, a viver aquele momento, pudesse ser diminuída por
qualquer profeta da desgraça. O desfile seguiu e, com ele, a renovada
capacidade de sonhar de um país.
Dom Pedro V e Dona Estefânia foram um caso especial. Entre tantos
casamentos de conveniência e sacrifício, famílias reais que se
apresentavam como meras instituições públicas onde nada de
verdadeiramente íntimo morava, Portugal foi surpreendido por um rei e
uma rainha que se amavam de facto. Como um vulgar casal de namorados,
eram vistos a passear de mão dada, a caminhar pelos jardins de Sintra, a
olharem-se nos olhos recatadamente no privado silêncio do seu segredo.
Todo o tempo que tinha livre dos afazeres da governação, Pedro dedicava-
o a Estefânia. Se, porventura, isso não era possível, encomendava aos
mensageiros a tarefa de atenuar esse afastamento: «Nós somos dois
adolescentes», escrevia Estefânia numa carta à mãe. «Quando Pedro saiu
para caçar durante três dias, trocámos correspondência, escrevendo quatro
cartas cada um.»
Passados alguns meses, já os jornais asseguravam ter tido acesso a
fontes fidedignas que lhes asseveram que a rainha se encontrava grávida.
Pouco depois, os rumores eram desmentidos por outras «fontes» ainda
mais «fidedignas». Pedro e Estefânia riam dos boatos, das renovadas
formas como apareciam, de coisas simples. Preferiam os passeios por
Benfica, as visitas à infanta Isabel Maria, os chás no paço, o gozo da
«pureza» do seu amor, nas palavras da rainha, que continuava a ter a mãe
por testemunha epistolar daquele raro caso de conto de fadas.
Vida privada à parte, rei e rainha também partilhavam uma mesma visão
política assente em valores sociais. Juntos, fundaram hospitais públicos e
instituições de caridade.
Até que veio aquele dia, no Verão seguinte. Estefânia sente-se mal no
regresso de um passeio de barco pela Trafaria. Dias depois, numa volta a
pé por Vendas Novas, não resiste ao calor intenso. A rainha é internada e o
seu estado de saúde agrava-se. Pedro V passa o tempo inteiro no hospital,
à cabeceira da cama. Já o fizera tantas vezes por desconhecidos; agora,
fazia-o pela mulher, velando como um anjo-da-guarda belo e triste pelo
fim da dor. Dois dias depois de completar 22 anos, à primeira hora da
madrugada de 17 de Julho de 1859, Dona Estefânia sucumbia a uma
angina diftérica. As suas últimas palavras terão sido: «Consolem o meu
Pedro.»
Quando o cadáver era vestido com um traje branco, o médico chamou a
camareira-mor, pedindo-lhe que, em vez do diadema, voltasse a colocar
sob a cabeça de Dona Estefânia uma coroa de flores de laranjeira. Dom
Pedro tentou como pôde conservar a pose de Estado na missiva em que
informava do sucedido o duque da Terceira, presidente do Conselho de
Ministros: «Eu e os meus povos temos sido companheiros de infortúnio.
Diz-me a consciência que os não abandonei… Era um coração para a terra
e um espírito para o céu.» De 15 em 15 minutos, salvas de canhões
cobriram o reino com uma imensa e pesada mortalha, que não seria
esquecida enquanto vivesse o rei esperançoso. A rainha Vitória escreveu
ao rei Leopoldo consolando-o pelo trágico desaparecimento da irmã. Entre
a incompreensão pelo absurdo da morte, tentava fazê-lo ver o mesmo
paraíso onde ela via, agora, Estefânia.
O rei sofreu terrivelmente com a perda da mulher. Tornou-se ainda mais
fechado, solitário e triste. Enquanto viveu, mais nenhuma mulher foi vista
a seu lado nem os jornais se permitiram fazer circular qualquer rumor. E
envelheceu. Envelheceu muito e precocemente. Alexandre Herculano,
amigo e mestre, chamou-lhe «um velho de 22 anos». Esse mesmo
Herculano a quem nunca ninguém vira chorar como no dia em que soube
da morte da rainha.
O cansaço de viver não impediu, contudo, Dom Pedro V de continuar a
governar. Na senda do trabalho da mãe, funda, à custa da sua solitária
teimosia, a Escola Normal, a Direcção-Geral de Instrução e o Curso
Superior de Letras, futura Faculdade de Letras de Lisboa, que financia
directamente com 91 contos saídos das suas rendas pessoais. E, em
cumprimento de um desejo da mulher, manda iniciar a construção de um
hospital dedicado a crianças.
No entanto, não sobreviveria muito tempo a Estefânia, como talvez
fosse seu desejo inconfessável. Depois de ter passado incólume por alas de
hospitais repletas de doentes de cólera e febre-amarela, Pedro V não
resistiu a uma banal viagem ao Alentejo. Em Outubro de 1861, já regressa
doente com um vírus misterioso de uma ida a Vila Viçosa com alguns dos
irmãos. Fernando é o primeiro a sucumbir; a 11 de Novembro, o próprio
rei; depois, Augusto. Por fim, já em Dezembro, é a vez de João, com
sintomas em tudo semelhantes.
De uma penada, desaparecia toda a família real, com excepção de Dom
Luís. O medo voltou a abater-se, mais medonho que nunca, sobre o país.
Circularam teorias da conspiração, envenenamento, assassínio em massa.
Seria um Natal terrível, em luto nacional, interrompido por tumultos nas
ruas. José Estêvão descreveria brilhantemente a angústia daqueles
acontecimentos: era «a anarquia da dor protestando contra o despotismo
da morte».
Pedro V morreu em casa, no Palácio das Necessidades, onde nascera 24
anos antes. Bastaram-lhe os últimos oito para ser um dos mais marcantes
reis de Portugal e viver uma das mais trágicas histórias de amor que o país
conheceu. Causa provável da morte: febre tifóide. Foi a enterrar no
Panteão Real de São Vicente de Fora, ao lado da mulher, belos e puros
como dois anjos caídos, deixando ao país uma suave ilusão de eterna
juventude e perfeição.
Anos mais tarde, a revelação de alguns pormenores contidos no relatório
da autópsia a Dona Estefânia confundiria o país: em consequência da
difteria, as falsas membranas tinham-se propagado à vulva da rainha. Ao
examiná-la, aos médicos deparou-se-lhes o hímen intacto. Os súbditos
preferiram não se fazer muitas perguntas. Se Pedro e Estefânia se
compreenderam, desde o primeiro momento, em silêncio, o país faria o
possível por não o perturbar com palavras.
Único Bragança a sobreviver ao colapso, Dom Luís regressou de França
para subir ao trono. Foi já ele quem inaugurou, a 17 de Julho de 1977, o
hospital iniciado pelo irmão. O serviço de maternidade foi baptizado
«Magalhães Coutinho», seu companheiro nas investidas pela noite de
Lisboa, mas é o nome da cunhada que o hospital ostenta até hoje.
O último da monarquia
PAIVA COUCEIRO

Henrique não foi exactamente rei; foi muito mais do que isso. Enquanto
foi vivo, a monarquia viveu nele, muito para lá da certidão de óbito oficial
passada ao regime a 5 de Outubro de 1910.
Henrique Mitchell de Paiva Couceiro nasceu no final do ano de 1861,
era rei Dom Luís. Era lisboeta, filho de um general português e de uma
protestante irlandesa convertida ao catolicismo. Essa ascendência explica
boa parte daquilo que será toda a vida de Henrique: disciplina, rigor,
autoridade, fortes convicções católicas, crença nas virtudes do exército. O
resto – e não é pouco – não o herdou de ninguém; era dele: uma tendência
inata para a bravura.
Aos 17 anos, ali estava ele no Regimento de Cavalaria Lanceiros de El-
Rei, como voluntário. Um ano depois, era aspirante no Regimento de
Artilharia 1. Mais outro ano e dava entrada na Escola do Exército. Tudo
corria, enfim, na mais estreita normalidade para alguém que desejava ser
militar de carreira. Até que, a 24 de Junho de 1881, Henrique se cruza no
Chiado, quando passeava com a irmã, com Luís Léon de la Torre. Palavra
puxa palavra, Henrique e Luís começam a debater um assunto qualquer.
De repente, não apreciando determinada intervenção do interlocutor, o
quase-alferes entende que o diferendo já não se resolvia com palavras e
espeta-lhe alguns murros. Em consequência da cavaqueira, Luís Léon fica
42 dias de baixa; Paiva Couceiro é preso. Um ano, três meses e 18 dias de
cativeiro depois é libertado e, passados 15 dias, já regressava
tranquilamente à Escola do Exército. A experiência mudou-o de alguma
forma? Traumatizou-o? Amaciou-o? Não consta.
Durante os sete anos seguintes, Henrique Mitchell de Paiva Couceiro
prosseguiu a carreira militar. Estudou esgrima e equitação e foi recebendo
as promoções mais ou menos regulares. Portugal só começaria a perceber
não estar diante dum indivíduo comum no Verão de 1889 quando,
obrigado pela Conferência de Berlim a ocupar efectivamente os territórios
ultramarinos, sob pena de os perder para outras potências europeias,
Henrique se ofereceu como voluntário para uma comissão de serviço em
Angola.
Desembarcado em Luanda a 1 de Setembro, e logo nomeado
comandante do Esquadrão Irregular de Cavalaria da Humpata, começou
por combater os salteadores que espalhavam o terror pelo planalto de
Moçâmedes. Contudo, desagradado com a indisciplina dos seus homens,
rapidamente se entregou a outra missão: a Campanha de Pacificação de
Angola. Penetrando cerca de 1000 quilómetros na savana, liderou um
grupo de homens que avançou, como nenhum outro europeu antes, pelo
interior daquela África que Portugal queria unir de Angola a Moçambique
pelo célebre «Mapa Cor-de-Rosa». Cabia-lhe explorar o território e
conseguir a vassalagem dos senhores locais.
Depois de meses de expedição, é informado de que a deve abandonar,
uma vez que, em Lisboa, o rei Dom Carlos, subido ao trono no ano
anterior, cedeu ao ultimato inglês, abdicando daquelas terras para a Coroa
britânica. Num gesto simples, mas tão brutal como os socos que aplicara,
certo dia, a Luís Léon de la Torre, Henrique Paiva Couceiro abdica ali
mesmo e para sempre de usar o sobrenome Mitchell, como se nunca
tivesse tido qualquer sangue ou costela britânicos.
Depressa, e com o nome abreviado, estava de volta à acção. O
governador-geral, Guilherme de Brito Capelo, encomenda-lhe não uma
missão, mas uma odisseia: encetar uma viagem de 2600 quilómetros pelo
rio Cubango em território totalmente desconhecido e garantir a sujeição
dos sobas locais ao rei de Portugal, antes que o de Inglaterra fizesse o
mesmo.
Henrique partiu como se lhe tivessem pedido a tarefa mais trivial do
mundo. Deixou o Bailundo, a 30 de Abril de 1890, e encetou a descida.
Um a um, assegurou a vassalagem de todos os sobas que encontrou – 16 –
e registou todos os pormenores da geografia e dos povos contactados. A
30 de Julho, precisamente três meses depois, chegava ao Mucusso, o
destino determinado pelo governador, mas, já que estava com a mão na
massa, decide continuar. Desce de canoa até às ilhas de Gomar e regressa
ao Bié, onde, ao lado de Artur de Paiva, depõe o soba Dunduma, que,
meses antes, desafiara a soberania portuguesa. Cumprida mais essa tarefa,
seguiu viagem para Garanganja e explorou o rio Cuanza, visitou as salinas
e tratou de assegurar a vassalagem de mais uns quantos sobas.
Finalmente, regressado ao Cuíto depois de quase ano e meio no mato,
arriscando a vida e sabe-se lá comendo e dormindo em que condições,
sentiu alguma febre. A 17 de Fevereiro de 1891, recebe notícias do
ministro da Marinha e Ultramar: terminara a comissão de serviço. Devia
regressar a casa.
Ainda no hospital e antes de voltar, recebe do povo da região uma
réplica de ouro do colar de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada,
cravejada de diamantes. Já em Lisboa, recebido em glória, é agraciado
com o colar protocolar e, alguns meses mais tarde, elevado a grande-
oficial da mesma Ordem pelos heróicos serviços prestados à pátria. Tinha
29 anos, Henrique, mas já vira e vivera mais do que alguns homens de 80.

Qualquer coisa tinha mudado em Portugal durante a aventura de


Henrique em África: a monarquia era contestada. O país que, ao longo de
sete séculos e meio, sempre tivera um rei que reconhecia e que encarnava,
melhor ou pior, a identidade e unidade da pátria, questionava agora se
seria essa a melhor política. Desde 1876 que havia Partido Republicano,
estavam deputados republicanos no Parlamento e, em 1880, até acontecera
uma grande manifestação de apoiantes da ideia da república, mas agora
havia algo mais. Não era um fenómeno de nicho nem das elites de Lisboa;
tinha-se propagado como possibilidade real.
O ponto de viragem Henrique conhecia-o bem; fora a mesma razão que
o levara a abdicar do nome da mãe: o ultimato inglês, a obediente
cedência do rei Dom Carlos, abdicando pacatamente de territórios
portugueses no ultramar para servir o sonho britânico de dominar África
do Cairo ao Cabo. O povo sentira-se humilhado. Dois artistas escreveram
uma marcha chamada A Portuguesa, invocando a memória dos nossos
egrégios avós e apelando a um levantamento contra os Bretões. E a 31 de
Janeiro de 1891, isto é, poucas semanas antes do regresso de Henrique a
casa, acontecera mesmo aquilo que, ainda há pouco, parecia impensável:
uma tentativa de golpe de Estado no Porto, um ensaio fracassado, mas
ainda assim um ensaio, duma implantação da república.
Por agora, porém, a política parecia não interessar a Henrique. Apesar
de coberto de condecorações, era um soldado.
Em Agosto, é colocado em Santarém; um ano depois, é transferido para
Lisboa. Mas que podia haver num quartel que interessasse a um homem
que andara pelos confins de África, a explorar a savana e a apresentar-se
diante de homens que nunca haviam visto um branco na vida para lhes
dizer que, afinal, quem mandava neles era um senhor Dom Carlos, que
vivia entre Lisboa e Vila Viçosa? Em 1893, supõe-se que, aborrecido de
morte, Henrique de Paiva Couceiro pediu licença do Regimento de
Artilharia 1 para ir para Marrocos, servir na Legião Estrangeira. Licença
concedida.
Entre finais daquele ano e inícios de 1894, combateu em Melila, na
Guerra do Rif. No fim, voltou para o quartel de Lisboa, condecorado por
Espanha com uma medalha de mérito militar.

Desta vez, Henrique só teria de lamentar uns poucos meses de tédio. Em


Outubro, rebenta uma revolta em Moçambique: os povos tsonga atacavam
a capital, Lourenço Marques. Em paralelo, prossegue o braço-de-ferro
possível com Inglaterra, com os Britânicos a ameaçarem tomar o
território, alegando que os Portugueses são incapazes de o gerir. Para
resolver a dupla questão, o Governo de Hintze Ribeiro nomeia António
Enes comissário régio em Moçambique e Paiva Couceiro, herói de uma
outra África, porém próxima, é convidado para o ajudar na missão.
Henrique, é claro, aceita.
A 18 de Janeiro de 1895, Enes e Couceiro desembarcam na costa
oriental africana. O cenário é dramático: os portugueses estão confinados
a Lourenço Marques, cercados pelos rebeldes. Enes será o estratego;
Couceiro, o comandante no campo de batalha – ia começar um ano de
guerra.
Medindo forças particularmente contra Gungunhana, rei dos Vátuas e
senhor, na prática, da maior parte das tribos do Sul, Henrique de Paiva
Couceiro entra num longo combate onde chegará a ser ferido. As batalhas
fulcrais disputa-as em Marracuene, em Fevereiro, e em Magul, em
Setembro, e vence-as. Antes do final do ano, Mouzinho de Albuquerque,
outro herói de África, captura Gungunhana, em Chaimite. A rebelião está
dominada.
Pelo meio, Henrique ainda encontra tempo para outra batalha, uma
contra a imprensa anglo-saxónica, que, segundo ele, andava a ser pouco
simpática com Portugal. Deixou um jornalista inglês estendido no meio da
rua e foi visitar e sovar outro ao quarto de hotel. Um terceiro, norte-
americano, foi interrompido, no bar onde bebericava com os amigos, para
uma sessão de tabefes tanto com as mãos nuas, como com um exemplar
do jornal do qual era correspondente. Um pouco embaraçado, António
Enes teve de repreender o seu ajudante-de-campo, mas, mais tarde,
confessará que o fizera com vontade de o beijar.
A 18 de Dezembro de 1895, Henrique Paiva Couceiro deixa Lourenço
Marques com destino a Lisboa. Ia passar o Natal no alto-mar, mas essa
noite, ainda assim, seria de paz. Paz absoluta com a sua consciência.
Tornara-se uma lenda. Ao chegar a Lisboa, é proclamado «Benemérito
da Pátria» e feito comendador da Torre e Espada, completando de forma
inédita os três graus da Ordem. É nomeado ajudante-de-campo honorário
do rei Dom Carlos e passa a integrar a sua Casa Militar. Recebe múltiplas
medalhas, louvores e homenagens. Tinha 34 anos e mais condecorações
do que alguns exércitos inteiros.
Talvez fosse chegado o tempo de acalmar. Ainda naquele ano de 1896,
casa. A esposa do herói nacional é Júlia Maria de Noronha, filha única do
terceiro conde de Parati, fazendo assim do marido alguém oficialmente
íntimo da Casa Real. De resto, o padrinho de casamento é nem mais nem
menos do que o próprio rei Dom Carlos. Henrique é afastado do campo de
batalha e colocado em funções honoríficas no Estado-Maior do Exército,
tratado como uma espécie de estátua viva.
Quanto tempo aguentaria um soldado aquele mundo de papéis e
salamaleques? Um pouco mais do que noutra fase da vida, é certo, mas
não muito. Em 1901, regressa a Angola. Cabe-lhe supervisionar uma
«experiência de tracção mecânica» entre o rio Lucala e Malanje e é isso
que faz; porém, no relatório que redige, revela algo novo: preocupações
políticas, particularmente com a política que Portugal tem seguido para as
colónias.
Nos anos seguintes, vai afirmar-se como aquilo que será até ao fim dos
seus dias: uma voz incómoda, não alinhada com qualquer partido ou
regime, apenas com os seus princípios. Em intervenções públicas,
entrevistas e artigos de imprensa, crítica a política colonial e o sistema
parlamentar do rotativismo que, segundo ele, conduzira ao presente
declínio de Portugal. Assume-se como uma reserva moral da Pátria, que
aponta caminhos para a salvação da mesma. Em Abril de 1902, escreve às
Cortes para criticar a hipoteca dos rendimentos alfandegários aos credores
estrangeiros e exigir contenção orçamental. Pouco depois, estala de vez o
verniz: chama «traidores» a António Teixeira de Sousa, ministro da
Marinha e do Ultramar, e, por arrasto, a Hintze Ribeiro, chefe do Governo,
por terem concedido a uma companhia inglesa os direitos de construção e
exploração, durante 99 anos, do caminho-de-ferro que ligaria o Lobito a
Benguela. E nisto, de herói nacional, Henrique de Paiva Couceiro passava
automaticamente a inimigo público número um do regime.
Malgrado todas as condecorações, Couceiro é afastado para Évora, em
Dezembro, colocado como adjunto na Inspecção do Serviço de Artilharia;
11 meses depois, quando Luciano de Castro sobe ao poder, como que lhe
atenuam a pena: é transferido para Queluz. Três anos mais tarde, dá o
passo que, em pouco tempo, passara de inimaginável a medianamente
previsível: entra na política activa. Inscreve-se no Partido Regenerador-
Liberal e é eleito deputado. Tem uma participação activa, sobretudo
quando se fala do exército ou das colónias, mas a sua carreira como
parlamentar termina abruptamente a 2 de Maio de 1907, quando João
Franco, apoiado pelo rei, suspende o Parlamento e passa a governar em
ditadura.
Henrique de Paiva Couceiro tinha 45 anos e, para ele, a vida ainda ia a
meio.
Por aqueles mesmos dias, morrera Eduardo da Costa, governador-geral
de Angola. Para substituí-lo, era necessário alguém da maior confiança do
Governo, senão do próprio rei. O escolhido é Paiva Couceiro. África,
afinal, ainda não tinha acabado para ele.

***

Durante dois anos, Couceiro governou Angola de acordo com o


conhecimento que adquirira in loco nas profundezas do país e com as
ideias políticas que desde então desenvolvera e estruturara. Preocupou-se
em ocupar e proteger todo o território de interferências externas,
desenvolver a economia, fixar colonos e criar redes de comunicação. E,
apesar do estatuto de que dispunha e da natureza do cargo que ocupava,
voltou ao campo de batalha para liderar pessoalmente algumas campanhas
militares de pacificação. Em Julho de 1909, apresentou a demissão,
revoltado com a falta de autonomia que o Governo central lhe concedia e
debaixo dos protestos dos europeus a viverem em Angola, que lhe pediam
que ficasse. Anos mais tarde, historiadores estrangeiros compará-lo-iam
aos grandes colonizadores do século, e um futuro alto-comissário da
República em Angola, general Norton de Matos, seu antigo opositor
político, dirá um dia que o seu trabalho só fora possível pelas bases que
Paiva Couceiro deixara.
No entanto, mais uma vez, quando Couceiro chegasse a Portugal,
encontraria um país diferente daquele que deixara. Parecia que, de cada
vez que se ausentava, a monarquia era ferida de morte. Os contínuos
gastos da família real, o aumento da dívida pública, o desagrado
provocado pela ditadura de João Franco e a recente aprovação da lei que
decretava o desterro para as colónias dos implicados em crimes políticos,
entre outros factores, tinham conduzido à tragédia. A 1 de Fevereiro de
1908, regressando de férias com a mulher e os filhos e passeando pelo
Terreiro do Paço em landau aberto para mostrar que não temia a
contestação, o rei Dom Carlos é assassinado a tiro. Também o príncipe
real Luís Filipe é morto, salvando-se apenas o infante Dom Manuel, com
ferimentos ligeiros, e Dona Amélia. Os assassinos Manuel Buíça e
Alfredo Luís de Sousa, membros da Carbonária Lusitana, organização
nascida com o propósito exclusivo de derrubar a monarquia, são mortos
ainda no local pela guarda, mas era impossível não ver o óbvio: a
monarquia até poderia continuar por mais um ano, dois, três… mas seriam
os últimos.
O ditador João Franco foge do país e o infante Manuel sobe ao trono
como Dom Manuel II, um jovem de 18 anos impreparado para reinar e
que viveu o horror de lhe matarem a tiro o pai e o irmão mesmo diante
dele. O Partido Republicano distancia-se do regicídio e tenta negociar um
entendimento, um meio-termo que conceda algumas liberdades e avance
no sentido da laicização do Estado, mas o diálogo é inútil. Começa por ser
formado um Governo de acalmação nacional, mas, pouco tempo passado,
voltam à tona todas as rivalidades. Enquanto a monarquia definha, os
republicanos percebem que não se chegará a uma solução por via pacífica.
No estrangeiro, é já negociado o reconhecimento de uma futura República
Portuguesa; nos quartéis, vão-se arregimentando operacionais. A
revolução está em marcha e toda a gente sabe disso; só não sabe,
exactamente, em que dia sai.
Chegado a Lisboa nesse ambiente a tresandar a fim, Couceiro vai para
Queluz, onde recebe o comando do Grupo de Artilharia a Cavalo. Só volta
a imiscuir-se em assuntos políticos um ano depois, quando publica uma
carta na imprensa onde apela a uma contra-revolução para salvar a
monarquia. É óbvio que não confia no regime vigente, mas é claro que
também não apoia os republicanos. Defende antes o regresso a uma
monarquia tradicionalista, sem Parlamento, nacionalista e católica.
Nesse mesmo Verão de 1910, o rei Dom Manuel II dá,
involuntariamente, o golpe de misericórdia na monarquia. Ao entregar o
Governo à esquerda, particularmente a Teixeira de Sousa – um daqueles a
quem Couceiro chamara traidor anos antes –, perde a direita conservadora.
Egas Moniz, José Maria de Alpoim, o visconde de Ribeira Brava e outros
notáveis monárquicos transitam directamente do apoio ao Governo para o
apoio aos republicanos. Afinal, se a monarquia não servia para combater a
esquerda, servia para quê?
E assim se chegou aos dias 3, 4 e 5 de Outubro de 1910, quando uma
revolução que perde, logo no início, os seus dois chefes – Miguel
Bombarda, assassinado, e Cândido dos Reis, que comete suicídio –, em
que muitos dos quartéis roem a corda e não se levantam e uma série de
outras pequenas coisas corre mal, derruba uma monarquia de 800 anos que
já não tinha quem a defendesse… Ou teria?

Eram quatro da manhã quando acordaram Henrique de Paiva Couceiro,


madrugada de 4 de Outubro de 1910. Estava de férias em casa dos sogros,
em Cascais. Informam-no de que os revoltosos republicanos estão a
assaltar quartéis e a tomar os cruzadores estacionados no Tejo. O rei está
fechado no Palácio das Necessidades, guardado pelo Regimento de
Lanceiros, e é preciso que o velho herói de guerra volte a combater. Ele,
que é um dos maiores críticos do regime. Ele, que até era apontado, dos
cafés aos bastidores da política, como um dos possíveis conspiradores
que, um dia, derrubaria o Governo.
Couceiro veste-se e sai. Os comboios estão parados. Faz todo o caminho
a pé de Cascais até Queluz. Quando chega, ainda tem de procurar a sua
bateria, que, entretanto, saiu para o Alto de Campolide. Só a encontra por
volta do meio-dia, numa triste caricatura daquela que foi a «organização»
defensiva do regime.
Couceiro inteira-se do ponto da situação: os revoltosos estão
concentrados na Rotunda, com poucas peças de artilharia, mas bem
apontadas. Descendo a Avenida, encontramos as tropas monárquicas,
aquarteladas no Rossio e comandadas por Gorjão Henriques, mas sem
actividade particular. No rio, há ainda dois cruzadores tomados pelos
republicanos e um deles já disparou sobre o Palácio das Necessidades.
Não há muito por onde escolher: Couceiro junta as quatro peças de
artilharia que tem e dispara sobre a rotunda. Há fogo cruzado, alguns
mortos e feridos; metade dos seus homens deserta na hora. Couceiro não
tem sequer um corpo de infantaria com que descer e lançar um ataque
efectivo sobre a Rotunda. Tem de ficar ali e cumprir a sua missão até ao
fim. Tem quase 49 anos de vida e é um soldado.
Numa guerra de poucas armas, é a moral quem faz mais baixas. Os
republicanos espalham folhetos com contra-informação, dizendo que a
revolução corre sobre rodas. Por volta das duas da tarde, um dos navios
volta a disparar sobre o Palácio das Necessidades e coloca o rei em fuga
para Mafra, onde conta ter a protecção da Escola Prática de Infantaria. Se
até o rei tinha fugido, quem era suposto ficar a defender a monarquia?
Paiva Couceiro continua pela tarde em duelo de artilharia com a
Rotunda, sem baixas significativas dum lado ou doutro. Arrisca um ataque
com a pouca infantaria que tem e é rechaçado. Com apenas 20 soldados,
tenta assaltar a Artilharia 1, mas é repelido. Não estava no mato de África,
mas no meio de uma cidade, a sua – tudo isto lhe deveria parecer apenas
uma imitação de batalha. Diz que, se lhe derem duas ou três companhias
de tropa de linha e uma de municipais, acaba com a revolta. Mas o general
António Carvalhal não só não lhe manda qualquer ajuda, como ainda lhe
ordena que cesse fogo e retire para o Rossio. Só mais tarde Couceiro
saberá que Carvalhal, na verdade, estava já combinado com os revoltosos,
com a promessa de um bom cargo no novo regime.
A ordem era absurda, mas era uma ordem e Couceiro ia cumpri-la. Para
conseguir chegar em segurança ao Rossio, tem de percorrer um caminho
alternativo que só o traz ao destino já a noite caía. À medida que a
revolução corria e ninguém expulsava os rebeldes da Rotunda, mais gente
ganhava coragem para se juntar a eles. Os carbonários cortavam linhas
férreas, fios telegráficos e telefónicos em volta de Lisboa, sitiando a
cidade. O rei chega a Mafra, mas, afinal, a maioria dos militares da Escola
de Infantaria encontra-se de licença e sobram poucos para o defender.
Perante aquele quadro geral, a que se soma a apatia das tropas
aquarteladas no Rossio, Paiva Couceiro junta os seus homens e sobe à
colina do Torel. Abre fogo sobre a Rotunda com o que tem e o duelo
prolonga-se pela madrugada – às cegas, porque a iluminação pública foi
desligada.
Às primeiras horas da manhã do dia 5 de Outubro, continuava sem se
vislumbrar uma vitória para qualquer um dos lados, mas, temendo o
desembarque de 2000 homens, que se encontram nos cruzadores
amotinados, ou o bombardeamento directo a partir do Tejo, o Quartel-
General monárquico é um impotente quadro de desânimo. O próprio
Teixeira de Sousa, chefe do Governo, já o abandonou prudentemente,
algumas horas antes. Pouco depois, o ministro da Guerra seguiu-lhe o
exemplo. Há cada vez mais civis na Rotunda e menos munições no Torel.
O fim estava próximo, mas aquilo que o precipitaria seria pouco menos do
que anedótico…
Às sete da manhã, o novo encarregado de Negócios da Alemanha deixa
o Hotel Avenida Palace de bandeira branca na mão e vai ao Rossio pedir
um cessar-fogo de uma hora que permita a evacuação dos cidadãos
estrangeiros instalados na zona onde decorrem os combates. Gorjão
Henriques acede, mas, quando o alemão sobe a avenida para pedir o
mesmo aos rebeldes, o povo invade a rua acreditando que aquela bandeira
branca representa a rendição das tropas monárquicas. Com a avenida
tomada de populares que vão vitoriando Machado Santos, o improvisado
comandante dos rebeldes, nem do Torel nem do Rossio alguém tem
coragem de disparar. Mas, quando Couceiro desce a colina e chega ao
Quartel-General, depara-se-lhe um cenário absurdo: rebeldes e soldados,
republicanos e monárquicos, confraternizam alegremente ao som de tiros
para o ar.
Ao mesmo tempo e sem esperar sequer por Machado Santos, o homem
que verdadeiramente lhes dera a vitória, já o directório do Partido
Republicano sobe à varanda da Câmara de Lisboa e proclama a república.
«Unidos todos numa mesma aspiração ideal, o Povo, o Exército e a
Armada acabou de, em Portugal, proclamar a República!» – e depois
destas palavras de José Relvas, passou-se ao anúncio do elenco do novo
Governo provisório, no qual, na véspera, Afonso Costa tinha produzido
algumas alterações, incluindo a introdução do seu próprio nome enquanto
ministro da Justiça.
Atónito com o súbito e insólito desenlace na Baixa de Lisboa, Paiva
Couceiro parte para Mafra a fim de proteger o rei. Ao chegar, recebe mais
uma notícia extraordinária: o rei Dom Manuel II, a rainha Dona Amélia e
Dona Maria Pia tinham deixado o país algumas horas antes no iate real,
saindo da Ericeira como fugitivos perante uma plateia de pescadores
perplexos.
A bordo do Amélia e já a caminho de Gibraltar, Dom Manuel II escreve
ao chefe de um Governo que já não existia:

Meu caro Teixeira de Sousa, forçado pelas circunstâncias vejo-me


obrigado a embarcar. Sou português e sê-lo-ei sempre. Tenho a
convicção de ter sempre cumprido o meu dever de Rei em todas as
circunstâncias e de ter posto o meu coração e a minha vida ao
serviço do meu País. Espero que ele, convicto dos meus direitos e da
minha dedicação, o saberá reconhecer. Viva Portugal!

Só alguns dias depois e pelos jornais, algumas regiões do país saberão


que a monarquia caiu e que agora vivem numa república. O fenómeno de
adesões é notável: muitos monárquicos de toda a vida batem agora no
peito jurando pelo novo regime. Muitos oficiais, autarcas, embaixadores e
afins são os mesmos antes e depois do 5 de Outubro.
Quanto a Paiva Couceiro, é contactado por um emissário do Governo
provisório logo no dia seguinte à revolução para saber qual seria a sua
atitude perante a república implantada. Serenamente, o soldado responde:
«Reconheço as instituições que o povo reconhecer. Mas, se a opinião do
povo não for unânime, isto é, se o Norte não concordar com o Sul, estarei
até ao fim ao lado dos fiéis à tradição.»
Dias depois, demite-se de oficial do exército e explica porquê em
entrevista ao escritor Joaquim Leitão: «Depois de tantos anos de
sacrifícios e de trabalhos à sombra das cores azul e branca e dos castelos e
quinas da nossa bandeira, não me acho com forças para abandonar o
símbolo onde me habituei a ler escrita a história do meu País. Fazer com
que um símbolo tenha raízes na alma de um povo e inspire respeito a todo
o Mundo, é trabalho de muitas gerações. E eu, pela minha parte, acho-me
velho para principiar agora o esforço novo que os louros de uma bandeira
nova implicam.»
Mas a História ainda não tinha acabado.

O ano de 1911 traria muitas novidades. Depois de Gibraltar, Dom


Manuel II tinha partido com a mãe, Dona Amélia, para o exílio em
Inglaterra. Lá, casaria com Dona Augusta Vitória, dois anos depois.
Casado o filho, Dona Amélia partiria para França. Já a velha Dona Maria
Pia, optara por regressar directamente à Itália natal. Morreria ainda
naquele ano de 1911, nove meses depois da revolução. E a jovem
república, como estaria? Terrivelmente.
Machado Santos, o homem que comandou no terreno a revolução,
tornou-se no maior crítico do regime, sobretudo porque as pessoas que
haviam sido chamadas a governar não eram aquelas que tinham sido
combinadas com os operacionais. Pela contestação, chegará a ser preso e
deportado para os Açores. O Partido Republicano entra em cisão e dá
origem a três partidos rivais. As críticas chovem de dentro e de fora,
incluindo de Teófilo de Braga, primeiro presidente do Governo provisório.
Portugal vai entrar num longo ciclo de instabilidade em que os governos
se sucedem, não durando mais do que alguns meses no poder. Henrique de
Paiva Couceiro, é claro, não vai ficar quieto.
Em Maio, sobe ao Ministério da Guerra e depõe a espada. Declara:
«Entrego a minha demissão e saio do país para conspirar. Prendam-me, se
quiserem.» Ninguém fez caso, mas Couceiro falava a sério. A 4 de
Outubro, no primeiro aniversário da república, comanda um golpe que
vem tentar restaurar a monarquia. Vindo de Espanha, hasteia a velha
bandeira na varanda da Câmara Municipal de Vinhais e toma a cidade de
Chaves. Três dias depois, é derrotado por forças republicanas e retira-se
para a Galiza. Em Dezembro, está já em Londres com Dom Manuel II e o
primo deste, Dom Miguel de Bragança, para tratar do Pacto de Dover, o
acordo em que Dom Miguel reconhecerá Dom Manuel como rei legítimo
e este, em troca, assegura que, se morrer sem deixar descendência, entrega
a chefia da Casa Real ao filho de Miguel, Dom Duarte Nuno.
A 17 de Junho de 1912, Couceiro é julgado à revelia no Porto pelo
crime da incursão de Vinhais. É condenado a seis anos de prisão ou dez
anos de degredo, pena que o tribunal considera «suave», uma vez que teve
em conta os serviços anteriormente prestados pelo criminoso à pátria.
A sentença não o deve ter amedrontado muito, pois nem três semanas
depois já conduzia uma segunda incursão com vista à restauração da
monarquia, mas volta a ser derrotado, e outra vez em Chaves. Em
Novembro, é novamente julgado e condenado à revelia.
Em 1914, começa a Primeira Guerra Mundial e, em 1915, Afonso Costa
quer à força que Portugal entre nela. O regime sacode por todo o lado e
não se percebe bem para que lado vai cair. No dia 14 de Maio, tumultos
em Lisboa provocam centenas de mortos e feridos; a casa de Paiva
Couceiro é saqueada e roubam-lhe todas as condecorações, incluindo os
inéditos três graus da Torre e Espada e a réplica de ouro e diamantes que
lhe oferecera a região de Belmonte-Cuíto-Benguela. Em consequência dos
acontecimentos, Manuel de Arriaga demite-se da presidência da
República. Ainda nesse ano, o novo Governo convida Paiva Couceiro para
voltar a ser governador de Angola, mas ele recusa porque não aceita
servir, sob qualquer forma, aquele regime.
Entre 1917 e 1918, viriam transformações dramáticas. Portugal entra na
guerra como aliado da Tríplice Entente a que também se juntam os
Estados Unidos da América e que a Rússia abandona na sequência da
revolução bolchevique. Em Fátima, três crianças afirmam que a Virgem
Maria lhes aparece no dia 13 de cada mês, atraindo um grupo cada vez
maior de crentes e curiosos. Em Dezembro, o militar e antigo embaixador
em Berlim Sidónio Pais lidera um golpe de Estado que o leva o poder.
Apoiado pelos desiludidos da república e pelos críticos da participação na
guerra, proclama a República Nova, revoga muitas das normas da
Constituição de 1911, reaproxima-se da Igreja Católica e governa de
forma ditatorial. Um ano depois, é assassinado. A guerra, entretanto,
termina com a vitória dos aliados. Alguns militares portugueses desfilam
sob o Arco do Triunfo, mas nada há para festejar. Além de muitos mortos
e feridos, o esforço de guerra deixou o país terrivelmente endividado, tão
consumido pela pneumónica como pela inflação, com filas de
racionamento para receber alimentos e motins como pão-nosso-de-cada-
dia.
Naquele cenário de um Portugal à beira da anarquia, Henrique de Paiva
Couceiro vai avançar para o projecto de salvação nacional que há tanto
tempo anda a preparar.

A 23 de Dezembro, ainda no rescaldo do assassínio de Sidónio Pais, o


almirante Canto e Castro chama Tamagnini Barbosa a formar Governo.
Mas, nesse mesmo dia, as Juntas Militares do Norte e do Sul, entidades
criadas para defender a ditadura sidonista, recusam um regresso à
República Velha, tal como foi proclamada em 1910 e estabelecida pela
Constituição de 1911. A Junta nortenha vai mais longe e, a 3 de Janeiro,
institui uma Junta Governativa Militar, que se assume como herdeira do
sidonismo. O debate sobre o regresso ou não à República Velha percorre o
país nos dias seguintes, resultando, normalmente, em cenas de pancadaria
e revoltas que terminam quase antes de começar.
Antes que a tensão dê, definitivamente, lugar ao caos, Canto e Castro e
Tamagnini Barbosa apressam a formação do novo Governo. O segundo
toma posse a 15 de Janeiro e, dois dias depois, o primeiro é nomeado
presidente da República pelo Congresso. Isto é, um mês depois de Sidónio
morrer, a sua República Nova já estava enterrada e tudo preparava para o
regresso da Velha. É então que acontece o golpe de teatro…
A 19 de Janeiro de 1919, Henrique de Paiva Couceiro entra no Porto
com uma parada militar e declara restaurada a monarquia. O alferes
António Carlos de Azevedo, seu genro, hasteia a bandeira azul e branca e
canta-se o hino, não A Portuguesa, mas o da Carta Constitucional legada
quase 100 anos antes por Dom Pedro IV. De igual modo, a própria Carta é
restaurada, abolindo, portanto, toda a legislação republicana aprovada
desde 6 de Outubro de 1910, incluindo a publicada durante a ditadura de
Sidónio. Henrique Paiva Couceiro, de 58 anos, muitas vidas vividas até
chegar ali, discursa, então, aos militares:

Soldados! Tendes diante de vós a Bandeira Azul e Branca! Essas


foram sempre as cores de Portugal, desde Afonso Henriques, em
Ourique, na defesa da nossa terra contra os Moiros até Dom
Manuel II mantendo contra os rebeldes africanos os nossos
domínios em Magul, Coolela, Cuamato, e tantos outros combates
que ilustraram as armas portuguesas. Quando em 1910 Portugal
abandonou o Azul e Branco, Portugal abandonou a sua história! E
os povos que abandonam a sua história são povos que decaem e
morrem. Soldados! O Exército é, acima de tudo, a mais alta
expressão da Pátria e, por isso mesmo, tem que sustentá-la e tem
que guardá-la nas circunstâncias mais difíceis, acudindo na hora
própria contra os perigos, sejam eles externos ou internos, que lhe
ameacem a existência. E abandonar a sua história é erro que mata!
Contra esse erro protesta, portanto, o Exército, hasteando
novamente a sua antiga Bandeira Azul e Branca. Aponta-vos Ela os
caminhos do Valor, da Lealdade e da Bravura, por onde os
portugueses do passado conquistaram a grandeza e a fama que
ainda hoje dignifica o Exército de Portugal perante as nações do
Mundo! Juremos segui-la, soldados! E ampará-la com o nosso
corpo, mesmo à custa do próprio sangue! E com a ajuda de Deus, e
com a força das nossas crenças tradicionais, que o Azul e Branco
simboliza, a nossa Pátria salvaremos! Viva El-Rei D. Manuel II!
Viva o Exército! Viva a Pátria Portuguesa!

Couceiro restaurava a monarquia em nome de Dom Ma-nuel II, exilado


em Inglaterra. De seguida, é anunciada a constituição de uma Junta
Governativa do Reino, a que ele próprio, Couceiro, preside, além de
acumular com a pasta da Fazenda e Subsistências. O restante executivo
seria composto por: António Adalberto Sollari Allegro (pasta do Reino);
visconde do Banho (Negócios Eclesiásticos, Justiça e Instrução); João de
Almeida (Guerra e Comunicações); Luís de Magalhães (Negócios
Estrangeiros); Artur da Silva Ramos (Obras Públicas, Correios e
Telégrafos); e conde de Azevedo (Agricultura, Comércio, Indústria e
Trabalho). Durante os dias seguintes, irão legislar intensamente. Paiva
Couceiro não era rei, mas era como se fosse.
A 22 de Janeiro, os monárquicos de Lisboa concentram-se em Monsanto
para tentar seguir o exemplo do Porto, mas a sublevação é rapidamente
dominada. Todo o Norte, no entanto, tinha já aderido, com excepção de
Chaves, à restauração da monarquia. O Porto torna-se então uma espécie
de capital dum reino que não existe formalmente. E agora é lá, mais
concretamente no Teatro Éden, que muitos republicanos são levados a
interrogatório com vista a posterior prisão, dependendo das respostas.
Mas os dias passam e, enquanto os republicanos preparam um contra-
ataque, Paiva Couceiro não consegue juntar os apoios de que necessita
para completar o plano: restaurar integralmente a monarquia em todo o
país. A 13 de Fevereiro, há combates em todo o litoral-centro que só
terminam com a entrada das forças republicanas no Porto. A Junta
Governativa é deposta e Paiva Couceiro parte para Madrid. A Monarquia
do Norte, como ficou conhecida – ou, entre os detractores, o Reino da
Traulitânia – terminava 25 dias depois de começar.

Naquele ano de 1919, era restaurada a República Velha, ou, como outros
preferiram dizer, começava o tempo da Nova República Velha. Os
governos continuaram a suceder-se em eleições que não chegavam a
motivar a participação de mais de sete por cento dos eleitores. Sucederam-
se greves, motins e ataques bombistas. Para tentar pôr cobro aos
descarrilamentos de comboios, que ameaçavam tornar-se quotidianos, o
Governo determinou que os grevistas teriam de viajar num vagão aberto à
frente da locomotiva, onde eram mais fáceis de controlar. A invenção
ficou conhecida como «o vagão-fantasma». A 10 de Julho de 1921,
António de Oliveira Salazar é eleito deputado pelo Centro Católico. A 19
de Outubro, um grupo de anónimos percorre Lisboa e assassina a sangue-
frio diversos elementos ligados à república, incluindo o líder da revolta de
4 e 5 de Outubro, Machado Santos, e o primeiro-ministro, António
Granjo. Naquela que ficou para a História como «a noite sangrenta», os
assassinos vão ainda libertar e homenagear outro assassino, José Júlio da
Costa, o homem que matara Sidónio Pais.
Os extremos acentuam-se. Em 1923, ano em que António José de
Almeida se torna o único presidente da I República a concluir um
mandato, o Partido Comunista realiza o primeiro congresso; no ano
seguinte, o Governo organiza a primeira Festa da Raça. Nesse mesmo ano,
Henrique de Paiva Couceiro regressa ao país, depois de amnistiado da
pena a que fora condenado na sequência da Monarquia do Norte: 25 anos
de degredo.
A 28 de Maio de 1926, depois de ter conhecido sete presidentes e 45
governos em apenas 16 anos, a I República cai. A morte anunciada
acontece sem que quase se desse por isso, depois de Gomes da Costa e
Mendes Cabeçadas descerem tranquilamente de Braga a Lisboa com uma
coluna militar apoiada por muitos civis. É instaurada uma ditadura militar
que evoluirá depois, já com Salazar a presidir ao governo, para o
autodesignado Estado Novo. Com um nome ou outro, a ditadura
prolongar-se-ia por 48 anos.
Em 1932, Dom Manuel II morre em Londres na sequência de uma
asfixia súbita. O problema terá começado numa amigdalite, seguida de um
edema nas cordas vocais que teria, então, provocado a asfixia, mas a
Scotland Yard investigou o caso, por suspeita de assassínio. Como o
último rei de Portugal não deixara descendência, valia o Pacto de Dover: o
herdeiro a um trono que não existia passava a ser Dom Duarte Nuno.
No entanto, Henrique de Paiva Couceiro ainda estava vivo e igual a si
mesmo. Em 1935, aos 73 anos, critica a política colonial de Salazar e é
por este mandado para o exílio, em Tui, Espanha. Nos primeiros dias de
1937, no mesmo ano em que Afonso Costa, nome central da I República,
morre em Paris, Couceiro é autorizado a regressar, talvez na esperança de
que estivesse, finalmente, dobrado. Puro engano. Poucos meses depois,
escreve uma longa carta ao ditador, onde volta a criticar a sua política
colonial e onde se podem ler coisas como:

(…) A perda de Angola seria, moral e materialmente, a mais


miserável das falências nacionais (...). A morte, numa palavra, de
todas as nossas ambições de proeminência no Mundo, e o
desaparecimento do próprio Portugal histórico, cuja razão de ser e
cujas fibras vitais, residem no Domínio Ultramarino, Império
esparso – é o que nós somos, e não apenas a estreita nesga no
extremo ocidental da Europa.

(...) Deixe-se dessa absorvente preocupação contabilista (...) e


ponha o ouvido à escuta, a ver se ouve, lá das profundezas da
História, a voz de Portugal verdadeiro.
(...) Vela a Polícia e o lápis da Censura. Incapacitados, uns, por esse
regímen de coibições – entretidos, outros, com a digestão, que não
lhes deixa atender ao que se passa, jaz a Pátria Portuguesa em
estado de catalepsia colectiva. Está em perigo a integridade
nacional. É isto que venho lembrar-lhe, Senhor Presidente do
Conselho.

Mas Salazar não achou graça à lembrança e, a 31 de Outubro, mandou a


polícia prender Henrique de Paiva Couceiro, cidadão de 75 anos, residente
em Oeiras. Depois de seis dias numa cela, Couceiro é condenado a retirar-
se da vida política e partir, outra vez, para o exílio. Desta vez, ia para as
Canárias.
Em 1939, Salazar autorizá-lo-ia a regressar. A vida estava perto do fim.
A 11 de Fevereiro de 1944, Henrique morre. No funeral, fala António
Cabral, antigo ministro da Marinha e do Ultramar: «Como soldado, foi
herói em Marracuene e em Magul. Como colonial, serviu, como nenhum
outro, a província de Angola. Como político, foi sempre fiel à sua
bandeira e ao seu rei. Como português, foi uma das mais altas figuras da
nossa vida contemporânea, amando, acima de tudo, a sua pátria.»
Tinha 82 anos. Nenhum historiador concordará, mas foi ele o último rei
de Portugal.
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