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Ah, sim. Diziam que era um gigante de quase dois metros de altura. Que
o próprio Jesus Cristo lhe apareceu um dia, posto na cruz e rodeado por
uma corte de anjos, garantindo-lhe a vitória. Que a espada com que
venceu quase todos os exércitos que enfrentou pesava cinco quilos. Ou 15,
consoante os livros. E que eram precisos três homens para lha tirar.
Lamentavelmente, 400 anos depois, convencido dos poderes sobrenaturais
da relíquia do antepassado, Dom Sebastião tê-la-á pedido e perdido num
desastroso dia de Agosto em Alcácer Quibir – de modo que nunca
saberemos de que era feita. Dizem também que, ainda adolescente, se
armou a ele mesmo cavaleiro. Sozinho, com o metal das armas a ecoar –
ouvimos ainda – pela Catedral de Zamora, e que enfrentou a mãe. E todos
esses múltiplos requintes lendários culminam num episódio: o confronto
entre um filho e a mulher que o pôs no mundo. Ter-lhe-ia batido. Tê-la-ia
prendido e posto a ferros. Um caso de violência doméstica que perdoamos
piedosamente, tendo em vista os fins e a má personalidade que, por
instinto, atribuímos à progenitora. É um mundo de homens, de névoas e
fantasmas medievais. Temos dificuldade em ver claramente por entre eles.
Mas reconhecemos nele o caos inicial donde nasceu o nosso mundo.
Tudo isto se conta sobre Afonso Henriques. E acerca de tudo isto não se
sabe onde traçar a fronteira entre a verdade dos factos e a verdade da
memória colectiva de um povo precisado de heróis, como todos os outros.
E essa é a beleza da História. Das múltiplas histórias de um cavaleiro que
fundou um dos mais antigos estados-nação do mundo. Um rei violento e
autoproclamado, que, pelo caminho, maltratou a mãe, ou um guerreiro
iluminado por Deus, que, por pouco, não foi considerado santo?
As dúvidas começam logo no nascimento. Que pode ter sido em
Guimarães ou em Coimbra ou em Viseu. Não se sabe bem em que mês.
Provavelmente em 1109. Mas também há quem diga que foi baptizado por
Geraldo de Moissac, segundo arcebispo de Braga, depois da recuperação
da arquidiocese, e futuro São Geraldo. Mas esse morreu em Dezembro de
1108, depois de expressar um último desejo: comer fruta. O pormenor é
importante porque, ao que se diz, quando os companheiros abriram a porta
do quarto para lhe mostrar que, lá fora, em pleno Inverno, nada haveria a
não ser neve e algumas castanhas eventuais espalhadas pelo chão, terão
contemplado um cerco de árvores carregadas dos mais variados tipos de
frutos. De modo que é preciso escolher: ou Afonso nasceu em 1108 e
perdeu o pai aos quatro anos, ou em 1109 e perdeu o pai aos três. Duma
forma ou doutra, mal teria idade para se recordar dele, mas seria sempre
mais próximo do espectro desse pai morto do que da mãe de carne e osso,
ali viva ao lado dele.
Dom Henrique de Borgonha era um nobre que tinha participado na
Reconquista Cristã. Combatendo ao serviço de Afonso VI, recuperou
terras aos muçulmanos e, pelos feitos bélicos, o rei de Leão e Castela
ofereceu-lhe duas coisas: a mão da filha bastarda Dona Teresa e o
Condado Portucalense. Ao agora conde Dom Henrique cabia governar o
território, continuando a prestar vassalagem a Afonso VI. Mas a verdade é
que, entre castelos e catedrais, pareciam correr outros anseios.
Poder temporal e poder espiritual não andavam longe naqueles dias. A
religião desempenhou um papel na formação da identidade dos povos,
sobretudo quando se estava na ressaca de trezentos anos de ocupação
árabe. A organização territorial desenhava-se sobre a rede cristã de
paróquias e dioceses e, a pouco e pouco, uma fronteira impunha-se a traço
cada vez mais grosso: a que separava o Minho da Galiza, isto é, a zona de
influência da Sé de Braga e a de Toledo. Em 1102, a coberto da noite, o
bispo de Compostela, D. Diogo Gelmirez, percorre igrejas e capelas
minhotas e rouba os corpos dos santos locais. A razão oficial era a
necessidade de os proteger de saques e profanações; a verdadeira acabar
com a concorrência que os santos de Braga faziam às relíquias de
Santiago. A batalha pelas romarias de peregrinos ficou definitivamente
desequilibrada a favor da Galiza, mas a guerra ainda ia a meio.
A Abadia de Cluny era, por essa altura, o espírito que emanava de
França com o projecto de reformar a Igreja. Nascida com a ambição de ser
a encarnação da Jerusalém celeste, forneceu a grande formação intelectual
de alguns dos homens mais influentes do seu tempo: casos de Dom
Bernardo, bispo de Toledo, Dom Geraldo, de Braga, ou o próprio Papa
Pascoal II. O conde Dom Henrique estava bem ciente da influência dos
cluniacenses, ou não fosse ele próprio sobrinho de um, o abade e futuro
São Hugo. A cidade de Braga, que Dona Teresa recebera do pai como dote
de casamento, foi doada pelos condes aos arcebispos, em sinal de uma
amizade duradoura e frutuosa (ainda hoje, os corpos de Henrique e Teresa
repousam numa capela respeitosamente chamada «dos reis», na Sé de
Braga). Depois de duas viagens a Roma, o arcebispo conseguiria junto do
Papa a vitória tão procurada pela Igreja como pelos condes portucalenses:
a recuperação da primazia de Braga (com a permissão do leitor, servimo-
nos de outro «ainda hoje»: ainda hoje, o arcebispo de Braga usa o título
«Primaz das Espanhas»). A ressurreição da importância da cidade no
contexto da cristandade europeia implicava uma consequência política: a
autonomia face a Toledo, a autoridade de convocar os concílios regionais,
jurisdição própria sobre os seus domínios.
Contudo, Geraldo morreu rodeado de frutos no Inverno e Henrique
morreu também, quatro anos depois, ao que se sabe, sem notícia de
milagres. A autonomia espiritual de Braga já não seria posta em causa; a
relevância política do condado, no entanto, ia começar a correr a perigo…
Com a morte do marido, Teresa passava a governar o condado e,
tratando-se de uma jovem viúva de 32 anos, teria outros homens. O
problema não estaria aí genericamente, mas nos homens que escolheu em
particular: Bermudo Trava, fidalgo galego, e, depois, Fernão Peres de
Trava, irmão do primeiro. Para os valores da época, isto de ser mulher de
dois irmãos podia ser classificado de incesto e não passava em claro sem
julgamento moral. Mais do que isso: Teresa não era uma viúva qualquer;
era a condessa portucalense; ao escolher para companheiro um fidalgo
galego não era apenas uma mulher que se acercava dum homem, era o
condado que se aproximava de uma união com a Galiza. Aparentemente
pouco preocupada com o que em volta se pudesse pensar, Teresa vive
maritalmente com Fernão Peres de Trava e não se inibe de aparecer com
ele em público. Não caía bem numa mulher tão próxima da Igreja, amiga
do arcebispo de Braga e que mantinha já contactos com os Cavaleiros
Templários, criados para proteger os cristãos na Terra Santa e senhores da
vanguarda militar da época, viver com um homem com quem não era
casada perante Deus. Na Sé de Viseu, o prior não deixaria passar impune o
escândalo: fazendo um duro sermão acerca daqueles que «viviam mal
casados», obriga a condessa humilhada a abandonar a missa de braço dado
com o amante, perante o olhar incrédulo de toda a assembleia. A História
não deixaria sem nome este prior destemido que ousou afrontar a
«rainha»: chama-se Teotónio e, depois de duas viagens à Terra Santa,
voltará para se tornar a consciência moral de Dom Afonso Henriques.
Lá chegaremos. Para já, importa-nos Afonso, então pouco mais do que
uma criança perdida entre a morte do pai, o novo casamento da mãe e um
condado de que era herdeiro e que se arriscava a perder. Enquanto Teresa
olhava para Norte, Afonso mirava o Sul e a conquista de terras aos
sarracenos. Fazia-se homem à pressa, alimentado a ambição e revolta
contra os desejos da mulher que o pusera no mundo, mas que, segundo
ele, desonrava agora, pelo coração e pelos projectos políticos, a memória
do pai. Aos poucos, o afastamento entre mãe e filho deixa de ser um
assunto do foro privado da família mais importante de Portucale, torna-se
querela pública e começa a traçar uma linha entre quem está com um ou
com outro. Outrora ao lado da condessa, o arcebispo de Braga escolhe
agora ficar ao lado do filho. É presumivelmente com esse apoio de Dom
Paio Mendes que Afonso, ainda adolescente, se dirige à Catedral de
Zamora, no Dia de Pentecostes do ano da graça de 1122. O que faria então
não é gesto único na História; outros reis, noutras partes e momentos do
mundo, o fizeram e é possível que tenha sido a notícia desses exemplos a
inspirá-lo. Ainda assim, o acto fala pelo carácter de Afonso: atravessa a
igreja, sobe ao altar de São Salvador e retira de lá as armas. Uma a uma,
toma-as para si: veste a loriga, aperta o cinto, coloca o elmo, segura o
escudo e ergue a espada. Não espera que venha alguém armá-lo cavaleiro
– quem poderia vir? –, arma-se a ele mesmo. A declaração de
independência perfeita, não dum putativo reino, mas dum homem.
Atestado de maioridade. Declaração de guerra. Contra a mãe.
A partir dali, a distância entre Teresa e o filho não parará de aumentar.
No condado e fora dele, todos sabem que têm planos diferentes: boa parte
da nobreza está com a condessa e com o projecto de uma união com a
Galiza. Outros aguardam cautelosamente, em silêncio, o desfecho do
conflito, para não correrem o desagradável risco de ficarem do lado
errado, isto é, contra o vencedor. Já os cavaleiros deserdados apoiam
Afonso. São os segundos filhos, aqueles a quem nada caberá por herança,
os que nada têm a perder, os independentistas por convicção ou acaso, a
nobreza que recusa submeter-se ao domínio galego e o sector mais
progressista da Igreja que, em linha com a Abadia de Cluny ou a Ordem
de Cister, começa ali a vislumbrar a oportunidade de fundar um reino onde
o poder temporal se submeta de raiz ao espiritual.
No Verão de 1127, uma tentativa de serenar os ânimos transforma-se,
perversamente, na oficialização do diferendo. O governo do condado é
dividido em dois: Afonso Henriques é senhor das terras de Guimarães até
ao Douro e Dona Teresa daí até ao Mondego. Um condado bicéfalo, com
uma capital oficiosa em Guimarães e outra em Coimbra, que estava
prestes a partir-se ao meio. A tensão acumulava-se e o infante nada fazia
por evitá-la. Neste drama familiar à escala da Península, chega aos
ouvidos do primo, aliás, Afonso VII, rei de Leão e Castela, o rumor de
que o príncipe portucalense granjeia poder a cada dia que passa, escapa
totalmente ao controlo da tia e deseja fazer frente à sombra leonesa.
Afonso VII, que quer ser imperador de toda a Hispânia, decide cortar o
mal pela raiz, antes que alastre. Invade o Condado Portucalense e cerca
Guimarães, com o primo rebelde lá dentro. Temendo pela vida do infante
e daqueles que com ele estavam, o aio Egas Moniz apressa-se a viajar até
Toledo para falar ao rei. Alega que os rumores postos a circular não
passam de mentiras perigosas, orquestradas por inimigos. Que Dom
Afonso nada nutria por Leão e Castela senão uma intensa admiração e
que, como prova disso, em levantando-se o cerco, ali se deslocaria em
pessoa para beijar a mão ao senhor de tão grande poderio militar, seu
primo e seu rei. Convencido da bondade dos argumentos do aio, Afonso
VII ordena o levantamento do cerco. Guimarães podia respirar de alívio,
mas não Egas Moniz.
Chamar-lhe «aio» pode induzir em erro. Egas Moniz era um cavaleiro e
descendente de uma das famílias mais importantes do condado. Foi ele
mesmo quem, ao aperceber-se da crescente influência dos Travas junto de
Dona Teresa, decidiu apoiar Afonso nos desejos autonómicos. Mas o
infante nunca cumprirá a promessa feita a Afonso VII. Pelo contrário: a
partir do momento em que sentir reunidas as forças suficientes, avançará
contra ele. Em consequência disso mesmo, diz a lenda – e diz Camões n’
Os Lusíadas – que Moniz voltará a Toledo, desta vez acompanhado pela
família, para colocar a vida dele próprio e dos seus ao dispor do imperador
como pagamento pela falsa promessa. E diz também a lenda que Afonso
VII se teria compadecido dele, perdoando-o e mandando-o embora em
paz. O caso, contudo, como muitos outros nestes tempos e lugares, carece
de qualquer comprovação histórica.
Ainda antes do final do ano, Afonso Henriques avançaria para a guerra.
A guerra contranatura recordada pelos séculos por colocar, frente a frente,
um filho e a sua mãe. Pela primeira vez, entra nos domínios de Dona
Teresa e Fernão Peres Trava, tomando os castelos de Neiva e da Feira. As
tropas maternais pedem tréguas, mas as tentativas de negociação saem
goradas dos encontros de Vila Nova de Paiva. Alguns meses depois, a 24
de Junho de 1128, dá-se o confronto decisivo. Em Guimarães, no campo
de São Mamede, defrontam-se as tropas de Afonso e Teresa. Infante e
condessa estão lá em pessoa. A batalha é rápida e a conclusão clara: sem
que tivesse corrido demasiado sangue, as tropas do filho, maiores em
número e mais bem apetrechadas de armas, vencem as da mãe. Dom
Afonso Henriques assume o governo do Condado Portucalense para não
mais o perder, isso é certo; quanto ao destino que tenham tido Dona
Teresa e Fernão Peres de Trava, esse já se esconde entre as neblinas
medievais.
É aqui que nascem o mito e todas as dúvidas: Afonso bate fisicamente
na mãe no decorrer da batalha? É pouco provável. Bateu-se contra ela,
sem dúvida, e bateu nos partidários dela, supõe-se. Para o que se passou
depois contam-se pelo menos duas versões: uma diz que Dona Teresa
fugiu para a Galiza com o amante; a outra, que Afonso Henriques a fez
prisioneira e mandou encarcerar no Castelo de Lanhoso. Mas ambas
concordam no que aconteceu a seguir: Teresa não viveu muito mais,
morrendo em 1130 e vindo mais tarde a ser sepultada em Braga, ao lado
do primeiro marido e não de Fernão Peres de Trava.
Nada prova que Afonso Henriques tenha batido na mãe ou que a tenha
posto a ferros num cárcere, mas também não consta que fosse homem
dado a piedades ou perdões. Tê-la-ia deixado fugir com o amante,
correndo o mais que provável risco de um contra-ataque? Se Teresa e
Trava saíram livres de São Mamede, não há notícia de que tenham tentado
qualquer resposta, algo tão mais estranho quanto ambos conheciam
melhor do que ninguém os desejos expansionistas de Afonso. Terão ficado
aquietados pelo medo, assistindo como meros espectadores aos avanços
do infante? Na dúvida, sobram as lendas. E as lendas, como sempre, unem
melhor do que a verdade as pontas soltas da História. Se Afonso pôs a
ferros a mãe, o episódio liga melhor com outro que teria hora marcada
para os últimos anos de vida do rei, não esquecendo de permeio a
passagem pelo misterioso caso do Bispo Negro…
Reza a História que a notícia da prisão de Dona Teresa chegou a Roma,
caindo muito mal junto das altas esferas da Igreja. Em resposta, o Papa
envia a Portugal um emissário encarregue de levar a Afonso Henriques as
premissas de uma negociação pouco amistosa: ou libertava de imediato
Dona Teresa ou o condado seria excomungado. O homem de tez negra e a
quem chamariam bispo atravessou então o Norte de Itália e o Sul de
França, as Hispânias e a fronteira portucalense, entrando em Coimbra já
debaixo de um segredo apenas moderado. A notícia correu rapidamente
entre os populares, receosos das consequências da visita daquele
estrangeiro de mau agoiro. O bispo ter-se-á então dirigido ao Paço e
apresentado ao rei as exigências papais, mas a assinatura do Sumo
Pontífice no final da carta não terá bastado para amedrontar Afonso
Henriques. De pronto, responde ao bispo que, em território portucalense,
mandava ele e que não aceitaria intromissões, nem da Santa Sé. A decisão
estava tomada e não seria alterada.
Afonso não deixava alternativa ao Bispo Negro. Ao cair da noite, o
forasteiro excomungou a terra, mas, antes que conseguisse fugir, já a
notícia do que acabara de fazer tinha chegado aos ouvidos do rei. Afonso
irrompeu pela porta da Sé coimbrã, encontrando reunidos os cónegos e
outros homens da Igreja. Cortando em dois um silêncio nervoso,
perguntou, gritando, se havia por ali algum bispo. Um a um, todos foram
saindo, até que só restasse um homem: o estrangeiro de pele negra.
Sozinhos diante um do outro, bradou o rei que o homem lhe celebrasse a
missa, dado que era bispo. O outro respondeu que não, que nunca havia
sido nomeado bispo e que, portanto, não o poderia fazer. Como se já
esperasse a resposta, Afonso Henriques replicou, sem se perturbar, que ele
mesmo o nomeava bispo naquele instante. «Agora», terá dito, «celebra
uma missa.» Tremendo de medo, olhando fundo nos olhos do rei em busca
de uma segunda intenção que não descortinava, Martim Suleima, como
dizem alguns que se chamava, entrou na sacristia, tomou os paramentos de
bispo e tratou de satisfazer, da melhor forma que soube, o desejo de el-rei.
Findo o cerimonial, Afonso Henriques deixou Suleima partir, para nunca
mais Coimbra o ver.
Uma vez mais, os relatos dos acontecimentos no Condado Portucalense
correram mundo e chegaram aos ouvidos do Papa. Henriques tinha
ultrapassado todos os limites. Era um herege, um bárbaro ignorante dos
preceitos da fé e, como tal, tinha de ser ensinado. O caso era grave e, desta
feita, a solução não seria entregue a nenhum pseudobispo, mas a um
cardeal.
Quando terá ele chegado a terras portucalenses ninguém sabe ao certo.
Tampouco se encontrará quem lhe tenha descrito os traços do rosto. A
estada terá sido muito breve, entrando em Coimbra ainda à luz do Sol e
partindo poucas horas depois, pelo breu da noite. O encontro com o rei
redundou no mesmo resultado: a recusa em libertar Dona Teresa. De modo
que, quando todos dormiam, o cardeal saiu percorrendo as ruas,
excomungando aquela terra e todos os que nela viviam. Cumprida a
missão, pôs-se em fuga a galope no mesmo cavalo que o trouxera,
escoltado por quatro cavaleiros levando ouros, pratas e animais.
Contudo, não termina por aqui a lenda – faltava coroá-la com mais um
episódio heróico de Afonso Henriques. Partindo alegadamente sem o
auxílio de quaisquer companheiros, o rei lançou-se no encalço dos
fugitivos. Tê-los-á alcançado poucas horas depois, no lugar da Vimieira,
perto de Poiares, e obrigado a parar. Com uma mão, arrancou do cavalo o
infame cardeal e com a outra desembainhou a grande espada de cinco ou
15 quilos, conforme. Apavorados, os cavaleiros preveniram-no de que, se
matasse o clérigo, nem ele nem o condado alguma vez teriam o perdão de
Roma. Mas Afonso não queria a cabeça do cardeal; queria que ele
levantasse a excomunhão daquele reino em embrião e que deixasse ali
todo o ouro, prata e animais que levava. No chão, com os primeiros raios
da manhã a rebrilharem na lâmina que tinha junto ao pescoço, o cardeal
aceitou todas as exigências. Então, o rei soltou-o e atirou a espada ao
chão, despiu-se por completo, mostrando todas as feridas e cicatrizes que
lhe marcavam o corpo grande, e disse: «Cardeal, como eu sou herege, bem
se mostra pelos sinais das minhas feridas: estas em tal peleja, e estas em
tal cidade ou vila que tomei, e todas por serviço de Deus, contra os
inimigos da nossa fé. E para esta tarefa levar avante vos tomo este ouro e
prata, porque estou com muita falta deles, e me são necessários para mim
e para os meus.» Terminado o discurso, Afonso vestiu-se, pegou na espada
no ouro e na prata, reuniu os animais e partiu. Do cardeal e dos cavaleiros
não houve mais notícia. Terão voltado a Roma, não se sabe com que
resposta.
Tudo isto, bispo negro e cardeal, excomunhões e ameaças, todos os
esforços para a libertação da condessa, são, uma vez mais, meramente
lendários. Mas, à margem deles, importa contar um facto e uma história…
O facto: Teresa não morreu certamente na prisão, dado que, ainda naquele
ano de 1128, entrou para um convento galego. A história: diz-se que, antes
de o fazer, terá lançado com palavras coléricas uma maldição sobre o
futuro rei de Portugal: «Dom Afonso, meu filho, prendeste-me e
deserdaste-me da terra e honra que me deixou meu pai, e afastaste-me de
meu marido. A Deus peço que preso sejais vós, assim como eu me vejo
agora. E porque puseste ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a
trazer e a criar com muitas dores do meu ventre e fora dele, com ferros
sejam as vossas pernas quebradas, e praza a Deus que assim seja.»
No governo do condado, com ou sem profecias maternas e ameaças
papais, Afonso daria seguimento a missão de que ele próprio se investira
sem sinal de receio ou remorso. Ia avançar de batalha em batalha para
ganhar territórios aos árabes e não perder os que já tinha para Afonso VII.
No entanto, sabia que, no plano espiritual, havia outra guerra a travar:
naquele tempo, nenhum reino era legítimo até ser reconhecido pela Santa
Sé. Era urgente começar a negociar com Roma a plena autonomia da
Igreja portucalense e, depois, o reconhecimento do reino. Se o rei
maltratou de facto bispos e cardeais, seria melhor não alimentar grandes
esperanças, mas é preferível acreditar noutra história, bem mais credível:
aquela que nos diz que, desde o princípio, Afonso Henriques teve boa
parte da Igreja do seu lado…
Por aqueles dias, um grupo de clérigos reformistas tomam a decisão de
fundar em Coimbra um cenóbio de Cónegos Regrantes de Santo
Agostinho. Entre eles, contam-se figuras influentes como Dom Telo e
Dom João Peculiar, mas o primeiro líder da comunidade será Teotónio, o
prior que deixámos em Viseu, anos atrás, expulsando da Sé Dona Teresa e
o homem com quem vivia «mal casada». Teotónio gostava pouco de
títulos e altos cargos hierárquicos. Quando o convidaram para bispo de
Viseu, fugiu para a Terra Santa. Foi lá duas vezes, percorrendo
repetidamente os passos de Jesus Cristo e descobrindo, enfim, o lugar
onde tencionava viver até ao fim dos seus dias: ao lado dos Cónegos
Regulares do Santo Sepulcro, guardando o túmulo do Messias
ressuscitado. Contudo, Dom Telo não lhe permitiria cumprir com o plano.
Convence-se de que é mais necessário aqui do que em Jerusalém, para
ajudar a fazer nascer um reino cristão. Teotónio assume o priorado e, com
a anuência de Dom Afonso Henriques, nasce o Mosteiro de Santa Cruz, o
epicentro da aliança entre monges e guerreiros de que resultaria Portugal.
Não se trata de uma associação de conveniência. Afonso é um homem
genuinamente crente e os cónegos regrantes acreditam verdadeiramente na
mais alta legitimidade da tarefa que tinham a cumprir: conseguir terras
para a cristandade, converter infiéis, educar e reformar em Deus. São as
duas faces da mesma moeda: enquanto Afonso Henriques e os seus
homens se batem no campo de batalha, os monges rezam em Santa Cruz
pela vitória portuguesa no «bom combate». O próprio Afonso terá dito um
dia que as orações de Teotónio valiam mais do que a força do seu braço. O
prior torna-se seu amigo pessoal, conselheiro e confessor. Diz-se que é ele
quem doma os ímpetos mais cruéis do rei e que este lhe obedece sem
contestação, chegando, por ordem do padre, a libertar prisioneiros de
guerra moçárabes e, portanto, cristãos.
Mais confiante do que nunca nas suas capacidades e acreditando ter
Deus do seu lado, Afonso prossegue em combate contínuo. Em 1137, na
batalha de Cerneja, vence as tropas galego-leonesas e coloca um ponto
final nas aspirações do primo Afonso VII de submeter o Condado
Portucalense ao seu domínio imperial. Dois anos depois, em Ourique, diz-
se que triunfa em inferioridade numérica sobre cinco reis mouros num
combate decisivo, após o qual se passa a auto-intitular rei de Portugal.
Mas este é de todos os episódios o mais lendário. A data atribuída à
batalha, 25 de Julho, parece forjada para coincidir com o Dia de Santiago,
o Mata-Mouros. O lugar onde aconteceu permanece um mistério,
sabendo-se que há pelo menos três Ouriques possíveis: um em Leiria,
outro no Ribatejo e outro no Alentejo. E, finalmente, o primeiro relato da
alegada aparição de Jesus Cristo na cruz, rodeado de anjos, garantindo a
Afonso, antes do combate, que venceria, surge apenas no século XIV,
quando Portugal voltaria a lutar pela independência diante de Castela, para
convenientemente caucionar a soberania nacional com um pretenso
desígnio divino.
Duma forma ou doutra, e porque, uma vez mais, a lenda é muitas vez
mais útil do que a História, a batalha de Ourique ocuparia para sempre um
lugar central na mitologia portuguesa. E, até hoje, é recordada no coração
da bandeira nacional, onde cinco escudetes representam os reis mouros
derrotados naquele dia de Julho, cada um deles brilhando com cinco
besantes, simbolizando as cinco chagas do Cristo crucificado que teria
encorajado o rei à vitória.
Quatro anos depois, por acção de João Peculiar, antigo monge de Santa
Cruz promovido agora a arcebispo de Braga, Afonso Henriques voltaria a
Zamora, desta vez para assinar o tratado onde Afonso VII reconhecia,
definitivamente, a independência portuguesa, mesmo que a confirmação
do Papa ainda fosse demorar décadas a chegar. Em 1147, um ano depois
de ter casado, por fim, com Mafalda de Sabóia, o rei conquista Lisboa
com o apoio de cruzados a caminho de Jerusalém. A bandeira que dá a
Portugal, a primeira, é uma simples cruz azul sobre fundo branco.
Reina a partir de Coimbra, próximo dos monges crúzios que rezam por
ele. Teotónio baptiza-lhe Sancho, o filho que lhe há-de suceder, um dia, no
trono. O mesmo Teotónio, por alegada intervenção miraculosa, salva Dona
Mafalda dum parto que a ameaçava levar do mundo dos vivos (o episódio
permanece retratado em quadro no altar de Santa Cruz). No entanto, a
rainha virá a morrer na sequência de novas complicações de parto, em
1157.
Em 1162, chegará a hora do próprio Teotónio, depois de uma longa vida
de 80 anos e muitas lutas, de Coimbra a Jerusalém. No ano seguinte, o
próprio Afonso Henriques dirigirá o processo que conduzirá à
canonização do amigo, transformado assim no primeiro santo realmente
português. No entanto, passados muitos séculos, há quem levante, nos dias
de hoje, a estranha hipótese de ter sido Teotónio e não o pretenso Martim
Suleima o infame Bispo Negro. A teoria baseia-se na improbabilidade de
um Papa atribuir, naquele tempo, tão importante missão a um negro ou
muçulmano convertido ao cristianismo. O «bispo» não seria, pois,
«negro» por causa da cor da pele, mas do hábito. E, com efeito, os hábitos
dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz, como Teotónio, eram pretos…
Por agora, o que importa é a figura deste rei irremediavelmente só. Sem
pai nem mãe, nem muitos dos irmãos, nem mulher, nem mentor espiritual,
Afonso Henriques prossegue na sanha de expandir o reino. Não se sabe se
terá despertado, alguma noite, assaltado pelos velhos fantasmas da
lendária maldição materna, mas, das nuvens de medos antigos, o povo
veria irromper um dia a confirmação da profecia…
Tinha passado muito tempo. Dom Afonso Henriques tinha já 60 anos e
mais do que duplicado o território que herdara do pai. Nunca havia sofrido
uma derrota – até ali… Apesar da idade e de todas as cicatrizes,
continuava a liderar com sucesso o exército português no campo de
batalha. Mas, daquela vez, em Badajoz, não contou com o poder nem com
a estratégia de Dom Fernando II, rei de Leão e da Galiza, nem que este
tivesse um pacto com o governador da cidade. Apanhado numa cilada,
Dom Afonso Henriques é cercado entre o castelo e a orla, entre mouros e
leoneses. Pior: ficava nas mãos de Dom Fernando, filho de Afonso VII e,
portanto, seu primo em segundo grau, educado em jovem por Fernão
Peres de Trava, velho amante de sua mãe, e marido da sua filha Dona
Urraca e, portanto, seu genro… Percebendo que não tinha como dar luta a
duas frentes de batalha, o rei português tenta fugir a galope, mas, ao passar
as portas da cidade, embate com a coxa no pesado cabo de um ferrolho,
mal colhido ao abrir, e cai violentamente ao chão. A perna, quebrada logo
no momento do choque, é depois desfeita quando o cavalo, de igual modo
ferido, tomba sobre ela. Incapaz de se levantar, nem com a ajuda dos seus,
Afonso consegue erguer-se, e o inevitável acontece: o herói de São
Mamede e Ourique e Santiago e Lisboa e tantas outras batalhas era agora
prisioneiro de guerra.
Passados dois meses de negociações que envolveram o pagamento de
um resgate e a devolução de cidades conquistadas a Leão, o rei foi, enfim,
libertado. Mas, a título pessoal, consta que Dom Fernando II até tratou
bem o sogro durante o cativeiro, chamando os melhores médicos do reino
para o tratar. O povo, porém, nunca mais esqueceria as supostas palavras
de Dona Teresa, lançadas sobre o filho trinta anos antes: «A Deus peço
que preso sejais vós, assim como eu me vejo agora. E porque puseste
ferros em minhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a criar com muitas
dores do meu ventre e fora dele, com ferros sejam as vossas pernas
quebradas.»
A verdade é que Afonso Henriques nunca mais voltaria ao teatro de
combate. Ainda viveria muitos anos no trono e em plena actividade
governativa, mas o tempo dos tambores de guerra havia passado
definitivamente para ele. Talvez por aqueles dias tenha pensado pela
primeira vez que não seria rei para sempre. O reino que criara ia
sobreviver-lhe – era altura de começar a preparar um sucessor.
E Afonso viveu o suficiente para ver o Papa reconhecer, por fim, o
Reino de Portugal. A confirmação só chegou em 1179 e depois de muito
dinheiro posto em Roma. A 6 de Dezembro de 1185, o rei morreu, depois
de pelo menos 76 anos de vida, 46 dos quais passados no trono. Depois
dele, viriam mais 34 reis, mas nenhum governaria mais tempo. Entre o dia
em que nasceu e o último estertor, levou Portugal do Mondego até às
primeiras milhas dos Algarves. O seu corpo repousa em Coimbra, no
Mosteiro de Santa Cruz, perto da mulher, Dona Mafalda, do filho que lhe
sucedeu, Dom Sancho, e do amigo e confessor, São Teotónio.
Muitos séculos depois, durante o reinado de Dom Manuel I e em plena
época dos Descobrimentos, uma proposta de canonização de Dom Afonso
Henriques seria apresentada à Santa Sé, mas o processo não chegou a bom
porto. Dificilmente poderemos culpá-la de velhos traumas em torno de
hipotéticos ataques a bispos e cardeais… Com efeito, é tão pouco provável
que Afonso fosse santo, como um brutamontes que teria batido na própria
mãe. A verdade repousará algures entre uma lenda e outra…
Já no século XXI, uma equipa de investigadores propôs abrir o túmulo do
Fundador e estudar-lhe o corpo. A ciência poderia ter revelado dados
novos e surpreendentes sobre quem foi, afinal, o primeiro rei português. A
proposta foi recusada.
Ainda bem. Não se fosse descobrir que Afonso Henriques era afinal um
baixote, de ossos imaculados sem marcas da guerra, incapaz de erguer um
punhal, quanto mais a sua lendária espada.
Países com mais de 800 anos foram fundados por reis gigantes que
venciam batalhas sozinhos, cuspiam fogo e não temiam deuses nem
maldições.
Mesmo que nunca tenham existido.
O rapto de Dona Mécia
DOM SANCHO II & DONA MÉCIA
Entre reis e clérigos, a vida quase nunca foi fácil em Portugal. Depois de
Afonso Henriques ter tido em homens da Igreja alguns dos maiores
amigos e aliados e mantido com outros relações baseadas no tumulto e na
truculência, a descendência não teria história mais simples. Na verdade,
Roma teve durante muito tempo os olhos postos naquele jovem reino no
extremo ocidental da Europa – olhos de desconfiança, olho para o
negócio, olhar de atenção, curiosidade ou cautela, é difícil dizer. Se
Afonso não tivesse vivido tão longamente como viveu, poderia não ter
chegado a ver sequer o reconhecimento oficial da independência de
Portugal pelo Papado. Saiu-lhe da pele e dos bolsos aquela doce notícia,
chegada quando teria por volta de 70 loucos anos.
O filho e sucessor no trono, Dom Sancho I, também sofreria o seu
bocado para impor o poder temporal naquela Baixa Idade Média, onde
bispos e cardeais ainda se confundiam com príncipes da terra.
É que o reconhecimento papal da legitimidade dum reino não tinha
garantia vitalícia; devia ser renovado anualmente, a troco duma generosa
prestação paga a Roma. Sancho, sabendo bem que o pai pagara para lá de
muitas prestações a fim de acelerar a resolução do processo, entendeu que
tinha crédito junto da banca pontifícia e que, portanto, era justo que, pelo
menos por uns poucos anos, Portugal nada tivesse de pagar. Ora Urbano
III tinha uma leitura diferente desta economia das fronteiras e tanto
reclamou e ameaçou que Sancho I lá regularizou as contas.
Ainda assim, a renda só garantia a paz com o Papa, porque com alguns
clérigos nacionais o ambiente roçava a guerra. A Igreja não aprovava o
casamento do primogénito do rei, Dom Afonso, com Dona Urraca, filha
do rei de Castela e parente do noivo ainda antes do sétimo grau, o que
violava a lei canónica. O bispo do Porto, Dom Martinho Rodrigues,
recusou-se a celebrar a cerimónia e, em resposta, levou com a fúria de
Dom Sancho: o rei mandou prender o bispo durante alguns meses, arrasar
as casas dos seus apoiantes e fez entrar nas igrejas excomungados e
interditos.
Curiosamente, a embirração de Sancho só se manifestava mesmo diante
de padres e bispos porque, na realidade e tal como o pai, era um cristão
fervoroso. Quando esse seu primogénito, Dom Afonso, era apenas um
adolescente de 15 anos, a morte esteve mesmo ali à porta para levá-lo.
Supõe-se que sofria duma variante de lepra, incurável para os padrões de
época. Esgotados os recursos médicos, que fez Dom Sancho? Ouviu falar
duma santa que era muito cultuada em Basto, uma monja que teria vivido
no século X e a quem chamavam Senhorinha. A origem do nome estava
envolta em mistério: é possível que se devesse ao facto de ter ficado órfã
de mãe muito cedo, passando a ser a «senhorinha» da casa e assim tratada
pelo pai, um fidalgo da região, mas também se coloca a hipótese de uma
origem mais prosaica: ser anã – e sabe-se como se atribuíam então aos
anões obscuros poderes sobrenaturais. A razão de ser do nome, na
verdade, era apenas o princípio da difusa história de uma personagem da
qual ainda hoje pouco se sabe (em Basto, na Ponte da Misarela, ainda há
quem baptize as crianças por nascer, aspergindo a barriga das mães com
água do rio, em nome de Senhorinha), mas sabia-se o essencial: que o
túmulo da santa era destino de romarias. Que peregrinos de toda a parte ali
se dirigiam para rezar e que, em resposta, os seus pedidos eram
miraculosamente atendidos. Dom Sancho I montou o cavalo e arrancou,
portanto, para Norte. Em Basto, foi como peregrino anónimo: dirigiu-se à
igreja da santa, ajoelhou-se diante do sepulcro e rezou pela cura do filho.
Por intercessão ou não de Senhorinha e, portanto, milagre ou casualidade,
a verdade é que Afonso se curou. A história é atestada por um documento
do ano de 1200 assinado pelo rei, em que doa à comunidade das monjas
de Basto o couto em volta (há mesmo quem diga que o rei em pessoa
marcou no terreno os limites da propriedade). Um gesto terno do
extremoso pai Sancho, esta atenção para com o jovem Afonso, sobretudo
se tivermos em conta que teve mais 18 filhos e que não lhe faltava com
que se preocupar.
Mais curioso ainda é que, depois de ter ficado aparentemente a dever a
vida a uma intervenção de Deus Nosso Senhor – mediada por alguns
agentes privilegiados –, Afonso se tornaria no primeiro rei português a ser
excomungado pela Igreja cristã.
É que Sancho, o Povoador, morreu onze anos depois e o filho
miraculado sucedeu-lhe como Dom Afonso II, o Gordo. Com efeito e ao
contrário do habitual, o cognome não era feliz, mas, ao que parece, a cura
da doença que o afectara na adolescência não fora completa. Afonso II
viveria sempre num estado de saúde debilitado e sofria, provavelmente,
daquilo a que hoje chamaríamos obesidade mórbida. Chegado ao trono,
deu início a uma guerra que já se vinha adivinhando: a guerra entre a a
Coroa e o clero, resultado do aumento de poderes da primeira e
consequente limitação dos poderes do segundo.
Ao longo de toda a Idade Média, a Igreja foi-se substituindo ao Império
Romano na planificação e administração territorial. Aldeias, vilas e
cidades eram organizadas sobre a estrutura eclesiástica da rede de
paróquias e bispados. Olhando em pormenor, era visível como,
frequentemente, o padre se tornara a autoridade da terra; olhando em
panorâmica, o que se via era uma Igreja que se confundira perigosamente
com o poder civil. A consolidação do Reino de Portugal só podia fazer-se
negando, a pouco e pouco, essa promiscuidade. Havia um poder temporal
claramente estabelecido: emanava do rei e não podia submeter-se ou
confundir-se com o da Igreja.
Dom Afonso II deixou muito claro que os tempos tinham mudado logo
nas Cortes de Coimbra, quando aprova a lei que proíbe mosteiros e ordens
religiosas de adquirirem bens fundiários. Depois, virá a entrar em disputa
com Estêvão Soares da Silva, arcebispo de Braga, pela posse de bens na
região, acabando por forçar o clérigo ao exílio. A resposta não tardaria: os
bispos levariam a queixa a Roma e trariam no regresso a excomunhão do
rei português. Afonso II morreu pouco depois, aos 38 anos, vítima da sua
saúde frágil e sem saber, pois, se seria admitido no céu.
E é neste contexto que chegamos a Dom Sancho II e ao dramático
episódio com que culminaria o seu destino como quarto rei de Portugal: o
rapto de Dona Mécia, sua mulher.
Dom Sancho II, o Capelo, ocupou o lugar do falecido pai, no trono, em
1223. Era um jovem de idade incerta – provavelmente, 13 ou 14 anos. E
não herdava do pai apenas um reino, mas também uma guerra. Contra a
Igreja, contra as tias, com quem teria de discutir a posse de uma série de
castelos e respectivas rendas, outros nobres que se sentiam ameaçados
pela centralização de poderes na Coroa, e ainda contra o estado de alma
dum reino que vivia então a ferro e fogo, entre saques e pilhagens, depois
de uma sequência de anos de más colheitas.
A início, Sancho – ou os conselheiros do jovem rei por ele – conseguiu
gerir, pelo menos, o mais delicado dos imbróglios: fez as pazes com o
arcebispo de Braga e, com elas, acalmou as hostes em Roma. Depois,
partiria para o combate e, já com o apoio de ordens militares de inspiração
cristã, como a Ordem de Santiago, conquistaria definitivamente aos
mouros muitas terras para Portugal: Elvas, Moura, Serpa, Beja, Aljustrel,
Mértola, Tavira, Alvor e Aiamonte fazem parte do seu brilhante currículo
bélico. As vitórias militares, para mais, significavam terras para dividir
pelos vencedores e, enquanto houvesse terras, serenavam-se os palpitantes
corações da nobreza.
No entanto, as qualidades de Sancho II para a política estavam na
proporção precisamente inversa à da sua arte na guerra (e mesmo acerca
dessa se levantam hoje dúvidas. É possível que os méritos no campo de
batalha tenham de ser, na verdade, atribuídos apenas à acção das ordens
militares). Incapaz de perceber ou gerir as sensibilidades em volta,
indeciso e negligente, Sancho foi semeando inimigos internos, tendo por
pano de fundo um reino onde os nobres faziam do uso da força uma
rotina, os bispos se imiscuíam na vida política e o caos e o banditismo
generalizados reinavam por vilas e campos. Os adversários descrevem o
Portugal daqueles dias como um inferno que custa visualizar: túmulos
profanados, igrejas em chamas, freiras raptadas dos conventos, padres e
monges assassinados, assaltos, incestos e, por toda a parte, uma pesada
pestilência de pecado.
Sancho não sabia – não tinha então como saber –, mas ser bisneto de
Dom Afonso Henriques, pai-fundador do reino, não o protegeria no trono
contra todos os males. Na sombra, começava a preparar-se a sua
destituição.
Tempos depois, chega a Coimbra, ao paço real, uma carta; vinha
endereçada de Roma e trazia o inconfundível selo papal. Quebrado o
lacre, desvelava-se a missiva de Gregório IX a Sancho II: um alerta; o
Papa não pactuaria muito mais tempo com o estado do reino, minuciosa e
horrorosamente descrito nos relatos que alguns destacados membros da
Igreja nacional tinham tido a bondade, de forma desinteressada, de lhe
fazer chegar. Como se aquele aviso não surtisse efeito, não tardaria a
chegar nova carta: a formalização da excomunhão. Dom Sancho II
tornava-se o segundo rei português consecutivo a ser mandado pelos
homens para fora do céu.
Bom ou mau político, bom ou mau guerreiro, enfim, bom ou mau rei,
Sancho parecia, no entanto, feito da mesma cepa dos antepassados.
Resistiria. Continuaria a aumentar o reino no campo de batalha,
indiferente às críticas que se avolumavam. Uns lembravam que era fruto
dum casamento reprovado pela Santa Madre Igreja. Outros assinalavam
que, ao contrário da tradição, não fora formalmente investido na passagem
do ceptro real. Acrescentava-se a juventude com que subira ao trono –
pouco mais do que uma criança, decerto mal aconselhada por tutores
interesseiros e corruptos. Tudo valia para tentar retirar a Sancho II a
legitimidade como soberano. Por volta de 1240, já conquistado todo o
Alentejo, Sancho ia agora dedicar-se a arranjar mulher – e a conseguir a
derradeira acha para a fogueira. A fogueira onde ele próprio arderia…
Não era previsível que a história pessoal de Dona Mécia Lopes de Haro,
filha de Dom Lopo Dias de Haro, um dos mais influentes fidalgos
hispânicos da época, e neta de Afonso IX de Leão, viesse algum dia a
cruzar-se com o destino de Portugal. Casara, em 1231, com Dom Álvaro
Peres de Castro e o episódio mais curioso que se contava acerca da vida
que até então levara conta que, certa vez, estando o marido ausente em
combate com os seus soldados, se viu cercada pelos mouros no Castelo de
Martos, perto de Córdova. Sozinha com as aias, ter-se-ia vestido a si
mesma e a elas com armaduras e subido às ameias da fortificação.
Julgando ver o castelo, ao contrário do que garantia a informação que
haviam recebido, vigiado por um numerosa guarnição, os mouros teriam
dado meia-volta e partido, vindo a ser mais tarde interceptados e vencidos
por Dom Álvaro. Os planos de vida de Dona Mécia só mudariam depois e
abruptamente: o marido morre de forma inesperada em 1239. Viúva, a
mulher que ainda era descendente, pelo lado da mãe, de Dom Afonso
Henriques, voltará a casar. O escolhido era nem mais nem menos do que
Dom Sancho II, rei de Portugal e seu primo.
Sancho repetia o crime de que o pai fora acusado: um casamento contra
a lei da Igreja, incestuoso e, para dizer o mínimo, provocador.
Num ambiente de crescente agitação social, em boa parte justificado
pelos desequilíbrios resultantes dum crescimento demográfico que tentava
acompanhar a galopante expansão do território nacional, chegaria a
estocada final. Nobres e prelados portugueses reúnem-se para exigir a
deposição do rei. Mas essa era apenas a primeira parte do problema; a
segunda era: e quem lhe sucederia? Sancho II era bisneto de Afonso
Henriques, neto de Sancho I e filho primogénito de Afonso II; pondo em
causa a legitimidade deste rei, que restaria? Onde se encontraria outro cuja
escolha não corresse o risco de fracturar ainda mais Portugal, em vez de o
unir? O Papa recomendava que, para já, se encontrasse um «governador e
defensor do reino»; alguém activo e prudente que pudesse assegurar a
restauração daquele território vicioso, e que esse alguém só poderia ser
Dom Afonso, irmão mais novo de Dom Sancho II a viver há alguns anos
em França, onde era casado com a condessa de Bolonha, porque, naquele
tempo, nada restava nos solos pátrios aos segundos filhos, de modo que o
melhor era emigrar.
Pouco tempo passado e já em Paris, uma comitiva nacional apresentou a
proposta a Dom Afonso e ouviu do outro lado o juramento de que tudo
faria cumprir conforme o acordado e que à Igreja restituiria tudo aquilo
que tão levianamente seu irmão havia tirado: privilégios, foros e costumes
de municípios, cavaleiros, padres, bispos e monges – todos tudo teriam de
volta. Um verdadeiro candidato em campanha eleitoral.
Estávamos em 1245. Dom Sancho II tinha sido formalmente deposto,
mas continuava no lugar – tal como já antes havia sido excomungado sem
que isso parecesse interferir, de alguma forma, no seu comportamento.
Afonso lembrava então uma questão pertinente: era preciso que fosse rei
único e incontestável. Se acaso o irmão deixasse descendência, haveria
sempre quem defendesse a legitimidade de essa criança subir ao trono – e
Afonso parecia não querer sujar as mãos. Não para já. De modo que
lembrou ao Papa uma questão, um pormenor, coisa de nada: Sancho e
Mécia eram primos – acaso não haveria matéria para anular esse
casamento hediondo? Compreendendo na plenitude, as preocupações de o
Bolonhês, determinou então Inocêncio IV a nulidade daquele matrimónio
medonho e contranatura. E, como tal, ordenou que, a partir daquele
momento, rei e rainha se separassem e não mais se voltassem a ver.
Uma vez mais, Dom Sancho II recusou vergar-se ou fez-se esquecido. A
paciência de todas as partes tinha chegado ao limite. O resultado seria
mais ou menos óbvio: a guerra.
Em finais de 1245, Afonso desembarca em Lisboa – ia começar um ano
de conflito constante. Em Gaia, tropas partidárias do rei defrontam a
oposição. Da violenta batalha resulta uma dupla vitória para Dom Sancho:
uma directa, alcançada em campo pelas forças lideradas por Martim Gil de
Soverosa, e uma indirecta: a salvação do seu casamento. Mas a tentativa
de golpe de Estado continuaria. De Coimbra, contemplando o Mondego e
as margens, Sancho e Mécia compreendem que não resistirão sozinhos à
conspiração. Pedem ajuda a Castela e, assim, do lado de lá da fronteira
chegam a Portugal forças para apoiar o rei, e a Roma pressões para que o
Papa fizesse Afonso rever o seu comportamento diante do irmão. Os
combates prosseguiam em diversos pontos do mapa, mas Sancho II
continuava a sair vencedor de todos eles. Afonso percebia que era
necessário encontrar uma solução drástica. Afinal, no amor e na guerra,
vale tudo…
No Verão de 1246, vencido pelas armas, Afonso congeminou um plano
que derrotasse o irmão onde mais dói: no coração. Um grupo de homens,
liderados por Raimundo Viegas de Portocarreiro, irmão do arcebispo de
Braga, e Gomes Anes, iria dirigir-se a Coimbra, infiltrar-se na corte e
raptar Dona Mécia. Pôr-se-ia assim termo àquele casamento maldito,
fazendo cumprir a ordem do Papa, e desacreditar e humilhar Dom Sancho
aos olhos do povo: um rei que nem soubesse tomar conta da mulher, como
saberia tomar conta de Portugal?
Os raptores chegaram numa plácida madrugada de Julho, já o calor
cobria as noites do reino. Vestiam hábitos de monge, fazendo-se passar
por inofensivos religiosos a caminho do Norte. Sem dificuldade,
conseguiram que lhes abrissem a porta do paço, pedindo guarida naquela
noite, um pouco de descanso na sua longa caminhada, acaso lhes fosse
concedida a honra de algumas horas de paz perto do senhor Dom Sancho.
Por certo Nosso Senhor Jesus Cristo, explicaram, ficaria feliz. Por certo,
até serenaria os ânimos celestiais tão simples gesto de generosidade do
senhor de Portugal para com alguns humildes servidores de Cristo. Mais
fariam: passariam a noite em claro, rezando pelo rei, pela sua saúde, pelo
seu sucesso, pela paz, pela compreensão. E por Dona Mécia – porque não?
– por aquele casamento injustiçado, por aquelas duas nobres almas que
não tinham culpa de se haver enamorado. E rezariam até – sim, apesar dos
seus afazeres celestiais, não podiam ignorar o que nesta terra se passava –
pelo fim da guerra, pelo entendimento de Afonso, por que esse irmão
desavindo se arrependesse de suas atitudes e deixasse aquelas ínvias
pretensões de retirar o trono a Sancho.
Talvez Dona Mécia e Dom Sancho dormissem profundamente, talvez
despidos, depois de terem entregue os corpos um ao outro, ou talvez
dormissem sim, mas afastados, cobertos de tecidos leves, esgotados pelo
calor. A passagem estava livre. Talvez os «monges» tivessem aliciado o
guarda com uns morabitinos e uma espécie de bênção: «Vai, meu filho.
Que os prazeres da carne não os terás no céu», e o homem não tivesse
hesitado, deixando rei e rainha guardados por aquelas boas almas cristãs e
rumando ao bordel mais próximo. Raimundo Portocarreiro e Gomes Anes
introduziram-se no quarto e aproximaram-se de Dona Mécia. Naquele
instante, seria tão fácil acabar com tudo, tirar a vida ao rei, mas a
vergonha era tão mais dolorosa do que a morte… De súbito, um tapou a
boca da rainha enquanto o outro lhe prendeu os braços. Dona Mécia abriu
os olhos, em sobressalto, tentando ver o contorno das figuras entre o breu
da noite. Em poucos segundos, tinha as mãos e os pés atados e a boca
amordaçada com um lenço. Dom Sancho dormia. A mulher e os raptores
lançaram-lhe um último olhar e desapareceram para lá da porta.
O rei só acordaria alguns minutos depois, desassossegado pelo desatino
dos mastins – já os falsos monges descobriam as cabeças e galopavam
pela noite, levando a rainha. Sancho pegou numa espada e desceu. Pouco
depois, já seguia no encalço dos raptores, acompanhado de alguns
homens. Percebia que tomavam a direcção de Ourém, mas o atraso que
trazia era suficiente para o impedir de os travar antes que alcançassem o
castelo. Uma vez lá chegados, Sancho desceu do cavalo, exibiu as
insígnias reais e bradou: «Eu, Sancho, rei de Portugal pela graça de Nosso
Senhor Jesus Cristo, neto do mui nobre e digno Afonso Henriques, ordeno
que me seja devolvida a minha legítima esposa, Mécia Lopes de Haro,
filha de Lopo Dias de Haro, senhor de Biscaia. Mais ordeno que os
raptores sejam trazidos perante a minha pessoa e pela minha espada
confessem quem ordenou semelhante aleivosia para com o rei de
Portugal.»
As palavras roucas de Sancho ecoaram pela noite. Por instantes, apenas
se ouvia o casco de um ou outro cavalo, um resfolgar, um galo cantando,
ao longe. De repente, começa a trovejar. Não eram trovões,
verdadeiramente, mas uma chuva de pedras. Eram lançadas do topo do
castelo. Aproximavam-se, estalavam num elmo, assustavam os cavalos.
Continuavam a cair. Caíam cada vez mais. Sancho dava alguns passos
atrás e assim faziam os seus homens. Protegia a cabeça atrás dum braço e
os seus homens recuavam ainda mais. A chuva de pedra continuava e
Sancho olhou, desamparado, os seus homens; depois, o chão. Talvez tenha
contemplado o castelo uma última voz, gritado o nome de Mécia contra a
muralha. O eco espalhou esse nome pelo horizonte, se ele foi, de facto,
gritado. Sancho montou o cavalo, picou-o com as esporas e partiu, e os
homens atrás dele.
A luta por Dona Mécia terminara ali, em Ourém, mas não a guerra pelo
trono de Portugal. Dom Sancho II voltaria ao campo de batalha, voltaria a
ter o apoio militar do príncipe de Leão e Castela, o futuro Afonso X, filho
de Fernando III. Essa ajuda seria preciosa para que voltasse a derrotar o
irmão, desta feita em Leiria. Mas as pressões do Papa para que abdicasse
do trono continuariam, as batalhas também e Afonso X acabaria por voltar
a Leão e Castela, deixando Sancho só.
Cansado, desiludido e doente, o rei abdicaria do trono em 1247, ainda
que não tivesse perdido uma só batalha para o irmão. Exilou-se em Toledo
e pouco mais durou. Morreu a 4 de Janeiro do ano seguinte, teria 38 ou 39
anos, 25 dos quais vividos como rei. Já não lhe fazia diferença. Primeiro,
ficara sem irmão, depois sem mulher e, por fim, sem reino. Que diferença
fazia agora ficar sem vida?
Uma última curiosidade a propósito do quarto rei de Portugal: foi o
único, em toda a primeira dinastia, que não teve filhos. Nem naturais, nem
bastardos. E não se lhe conheceram amantes.
O momento cruciante da vida de Sancho, aquele em que lhe foi retirado
o último apoio com que contava, a mulher, ficaria para sempre envolto em
dúvida. A rainha fora sequestrada, de facto? Ou apenas levada com a sua
conivência? A verdade é que fora raptada do paço sem grande resistência,
e daí para Ourém, que era um castelo que lhe pertencia, e que, depois
disso, partiu para Castela, vivendo tranquilamente em terras do cunhado.
E que terá morrido provavelmente em Palência, onde possuía terras, em
1270, muitos anos depois do marido. Muitos anos em que nada parece ter
feito em particular para lembrar ou defender a honra desse desgraçado
Sancho II.
Quanto ao irmão usurpador, a verdade é que só aceitaria ser
oficialmente coroado rei depois da morte do irmão. Tornou-se então Dom
Afonso III e, se hoje não o recordamos como um malfeitor ou, pelo
menos, uma das mais dúbias figuras que subiu ao trono nacional, foi
porque Afonso soube apagar depressa a memória daqueles anos de guerra
com o irmão com estrondosas vitórias militares, que fariam com que, logo
em 1249, tivesse conquistado todo o Algarve e alcançado o Mediterrâneo.
E assim, passados pouco mais de cem anos da fundação, Portugal
continental ganhava já, com ligeiros ajustes, o desenho que lhe
conhecemos até hoje.
A história poderia terminar assim, mas falta falar de alguns pormenores
curiosos. É que Afonso III estava longe de ser a pessoa «prudente» que o
Papa recomendara para «governador e defensor do reino». Naqueles 15
anos que vivera por França, levara uma vida folgada e boémia. O
cognome de o Bolonhês pode dar-lhe uma aura de viajante cosmopolita,
mas, em rigor, devia-se apenas ao facto de ser casado com Dona Matilde,
viúva de Filipe Hurupel e condessa de, entre outras terras, Bolonha. O
casamento acontecera em 1238, mas, como sabemos, desde 1245 que
Afonso vivia em Portugal, de modo a dar batalha ao irmão. Ora, quando
Sancho morreu, em 1248, e o Bolonhês se sentiu, enfim, livre de
consciência para tomar a Coroa, decidiu também casar com Dona Beatriz
de Gusmão, como se uma vida nova ali tivesse começado e não houvesse
uma outra para trás, que incluísse uma esposa poderosa, algures deixada
em França.
Tinha muito amor para dar, este novo rei de Portugal. Tanto que se
permitira apaixonar por esta Beatriz, uma criança de nove anos que era
filha do rei Afonso X, esse que ainda há pouco combatera ao lado de Dom
Sancho II contra os avanços deste que era agora seu genro. E veja-se,
coincidência das coincidências, isto junta-se o útil ao agradável, este
casamento permitia assim a Afonso III de Portugal uma saudável aliança
com Castela, assegurando as pazes entre os reinos e garantindo que os
vizinhos do lado de lá deixavam de lhe disputar a parte do Guadiana que
até ali haviam reclamado. Ah! E mais uma coisa: Afonso III era primo
direito do avô da mulher. Isto é, ele e a pequena Beatriz ainda eram
primos.
Tínhamos, portanto, um rei que depusera o irmão e lhe mandara raptar a
mulher, baseado na acusação de que Sancho e Mécia ainda eram parentes.
E este mesmo rei podia agora ser acusado de bigamia, pedofilia e incesto –
para já não falar de uma certa falta de coerência.
Com este comportamento na vida pessoal, não estranha a conduta
política que Afonso III viria a ter. Estamos todos lembrados da jura que
fizera em Paris, quando lhe ofereceram o trono de Portugal, aquele a que
nunca poderia aspirar por ser um segundo filho, e de como prometeu
devolver tudo a todos, particularmente à Igreja. Pois, agora que era rei,
que tinha conquistado todas as terras possíveis até ao mar e assegurado a
paz por intermédio do casamento com a filha do rei vizinho, Afonso
sentiu-se à vontade para esquecer tudo quanto antes prometera. Donde
podia vir a ameaça? A retaliação? De modo que, passo a passo, foi
seguindo o exemplo do irmão e do pai. Compreendendo que era
impossível reinar consentindo contrapoderes debaixo do seu nariz, o
Bolonhês foi retirando posses e poderes a clérigos e nobres, de forma mais
ou menos violenta, consoante a resistência.
Para as mesmas causas, as mesmas consequências: padres e bispos
começam a apontar a lista de queixas e a fazê-las chegar a Roma (muito
trabalho dava então Portugal aos secretários do Papa); o pior, porém, ainda
estava para vir… Em 1253, Dona Matilde descobre que o marido, que há
oito anos partira para a guerra, era agora rei de Portugal e vivia no paço ao
lado de uma rainha que não era ela.
A condessa pôs-se a caminho e, chegada a território nacional, foi tirar
satisfações junto do marido. Afonso não se atrapalhou e expulsou-a do
reino, mas ela não quis ficar atrás: escreveu directamente ao Papa,
explicando minuciosamente o sucedido. A queixa foi juntar-se às 43 do
libelo apresentado pelos bispos do Porto, Coimbra e Braga contra o rei.
De Roma chega uma ordem clara: Dom Afonso III devia abandonar de
imediato a segunda esposa e respeitar o sagrado matrimónio com Matilde.
Será que Afonso pensou, naquele momento, no irmão? Não se sabe. Sabe-
se que fez o mesmo que Sancho: ignorou, olimpicamente, as palavras do
Papa.
Matilde morreria pouco tempo depois, em 1258, de modo que essa parte
do problema estava – digamos – resolvida; agora, faltava tratar da outra…
A querela com a Igreja ia arrastar-se no tempo, até que as Cortes se
reúnem, em Santarém, para deliberar sobre a questão. Formada uma
comissão de inquérito, resulta a decisão de absolver o rei dos seus pecados
– uma conclusão natural, dado que Afonso tinha conseguido infiltrar na
dita comissão abundantes apoiantes. Contudo, mover influências em
Portugal era uma coisa; em Roma, outra… Levado ao limite da paciência,
Gregório X explodiu e fez de Dom Afonso III o terceiro rei português a
ser consecutivamente excomungado.
Os anos passavam e a morte aproximava-se. Afonso olhava para trás e
temia pelo que tivesse pela frente. Não se podia dizer que houvesse levado
uma vida conforme aos ideais cristãos – será que o esperava o fogo eterno
do inferno? Em 1276, Deus parecia pôr-se do lado dele: depois de tanto
problema com tanto Papa, eis que a cadeira de Pedro era ocupada por um
português: Pedro Julião, aliás Pedro Hispano, aliás Papa João XXI, o
primeiro e único Sumo Pontífice nascido nesta terra que Afonso
Henriques começara e ele, Afonso III, completara. Finalmente, haveria
paz. Finalmente, haveria entendimento. Finalmente, pensou, em sentido
literal e metafórico, um Papa que falava a mesma língua do que ele. Mas,
11 meses depois, o tecto do quarto de João XXI, no Palácio de Viterbo,
desabou sobre Sua Santidade. Era muito azar.
Dom Afonso tinha 67 anos; a sua esposa 35. Sentia o mundo em cima
dele, a velhice, a doença, a corrupção, a impotência, a inexorabilidade
disto tudo. E as penas do inferno ali tão perto… E se o inferno não
existisse? Se isso fosse tudo para nos meter medo? E se não fosse? E se
houvesse mesmo fogo eterno? E se ele fosse para lá? E se lá estivesse o
irmão? E Matilde? E os Papas todos?
O rei começou a pedir perdão. Pediu e repetiu. Voltou a jurar, como
tantos anos antes, em Paris. Jurou que devolveria tudo o que tirara ao
clero. E devolveu. Mas Roma já não levantaria a excomunhão, nem os
bispos de cá. Era tarde, muito tarde. Nos últimos dias, o abade de
Alcobaça compadeceu-se dele e, quando Afonso III morreu, a 16 de
Fevereiro de 1279, foi lá a enterrar.
História de um casamento
DOM DINIS & A RAINHA SANTA ISABEL
Em 1280, Isabel tinha cerca de dez anos e era já uma das princesas mais
desejadas da Europa. No sangue, corriam-lhe múltiplas linhagens reais e
imperiais. Era a filha primogénita do rei Pedro III de Aragão e de
Constança de Hohenstaufen, princesa da Sicília, irmã dos futuros Afonso
III e Jaime II de Aragão, neta de Jaime I e Violante da Hungria, e
descendente, por via materna, de Frederico II, o sacro imperador romano-
germânico, que, por ter passado a vida em guerra com Roma, foi
rebaptizado pelo Papa Gregório IX como o Anticristo. Recuando um
pouco mais, descobria-se um vago parentesco com o futuro noivo, Dom
Dinis, já que ambos se encontravam unidos pelo tetravô Frederico I, o
Barba Ruiva.
Mas Isabel não descendia apenas de grandes senhores do poder
temporal; provinha também de uma casta invulgarmente dada a senhoras
do poder espiritual… Tinha, pelo menos, quatro santas na família: Santa
Edviges, Santa Inês da Boémia, Santa Margarida e Santa Isabel da
Hungria. Casar com esta princesa, portanto, era entrar directamente para
alguns dos salões mais poderosos do Ocidente, incluindo os da Santa Sé.
A complexidade da árvore genealógica não garantia que Isabel viesse a
ser santa ou sequer rainha, mas assegurava que, pelo menos, seria educada
para ser ambas. É primeiro entregue aos cuidados do avô, que lhe chama a
Rosa de Aragão, já que o seu simples nascimento teve o condão de trazer
a paz a uma corte fustigada por intrigas, e depois, quando este morre, aos
pais. Inspira-se no modelo das mulheres da família, cultas, devotas,
rainhas perfeitas, e é educada por clarissas, o ramo feminino da Ordem
Franciscana.
Esta criança, que é disputada por infantes de Inglaterra, França, Nápoles
e Sicília, vai ser entregue em casamento a Dom Dinis, rei de Portugal,
depois de uma longa negociação que se estenderá por mais de um ano e
que incluirá o envio de alguns embaixadores portugueses com a missão
específica de travar as investidas de congéneres estrangeiros.
Para Portugal, casar o rei com a princesa aragonesa significa conseguir
um aliado de peso na guerra contra o clero e a nobreza. Para o rei Pedro de
Aragão, significa fazer da filha imediatamente rainha, uma vez que o
português é o único dos pretendentes que se encontra já sentado no trono –
ainda por cima, tratando-se do herdeiro duma estirpe fundadora de um
reino. Por outro lado, ganha ainda um aliado importante no equilíbrio de
poderes da Península, cercando Castela, e nas lutas contra a França pela
posse de Nápoles e da Sicília. Estávamos na Baixa Idade Média: um
casamento real não era uma união entre um homem e uma mulher, era um
extraordinário pedaço de estratégia política.
O matrimónio acontece por procuração a 11 de Fevereiro de 1281, em
Barcelona. São os embaixadores portugueses quem ouve o «sim» da nova
rainha: «Eu, Isabel, filha do ilustríssimo Dom Pedro, por graça de Deus,
rei de Aragão, entrego o meu corpo como legítima esposa a Dom Dinis,
rei de Portugal e do Algarve, ausente como se estivesse presente.» Ela tem
11 anos, ele tem 20, mas só se conhecerão um ano e quatro meses mais
tarde, depois de uma longa e cautelosa travessia dum lado ao outro da
Península, já que Castela se encontra em guerra. O pai acompanha-a até à
fronteira de Aragão; a partir daí, segue escoltada pelo infante Jaime, seu
primo, com criados, confessores e camareiras carregando as arcas com o
enxoval. Entra em Portugal pela fronteira da Beira, onde a aguarda
Afonso, o cunhado. Marido e mulher só se verão pela primeira vez olhos
nos olhos em Julho de 1282, em Trancoso. Há fogueiras, banquetes e
festejos. Depois, virá a realidade: o amor que Dom Dinis não teve por
Isabel.
Quando Dom Dinis casou com Dona Isabel é provável que o seu
primeiro filho bastardo, Dom Pedro de Barcelos, já tivesse nascido. O
segundo, Afonso Sanches, futuro senhor de Albuquerque, nasce ainda
antes de rei e rainha terem qualquer filho legítimo. O terceiro, João
Afonso, terá vindo ao mundo por volta de 1888, mais ou menos pela
mesma altura de Constança, a primeira filha de Dona Isabel. Ao todo,
Dom Dinis haveria de ter pelo menos oito bastardos, quase todos nascidos
até final do século e quase todos de mulheres diferentes.
Já sabemos que, naquele tempo, invulgar era encontrar o rei que não
tivesse filhos ilegítimos. Era visto como um procedimento normal, que
assegurava a descendência em caso de infertilidade das rainhas e garantia,
frequentemente, um laço de sangue entre a Casa Real e senhoras
escolhidas entre importantes casas senhoriais, mas Dinis, digamos,
abusou. Abusou no número de amantes (até porque não consta que se
tratassem, amiúde, de senhoras nobres), no número de filhos e na total
despreocupação para com as fases da vida da legítima esposa em que os
teve. E abusou ainda num requinte final: entregou boa parte destes
bastardos à mulher, para que os educasse como se fossem dela.
Com Isabel, o rei teve apenas dois filhos: Constança nasceu quando a
rainha tinha já 20 anos, relativamente tarde, sobretudo se levarmos em
conta que estava já casada há oito; Afonso vem no ano seguinte. A filha
foi logo prometida em casamento ao herdeiro do trono de Castela; Afonso
seria o herdeiro natural à Coroa portuguesa. Assegurada esta formalidade,
Dom Dinis parece não ter voltado a preocupar-se com o assunto.
Durante largos períodos do ano, rei e rainha não vivem juntos sequer.
Ele é um homem impetuoso, carnal, viril; ela, uma mulher espiritual, de
grande devoção religiosa, a tal criança que cresceu educada para ser rainha
e santa. Do ponto de vista amoroso, é provável que nunca tenham sentido
qualquer atracção um pelo outro.
Dom Dinis não viveria muito mais. Morre em 1325, um ano depois do
armistício com o filho. Nos últimos dias de vida, teve sempre Isabel ao
lado, a dedicada e devota mulher que, ao menos na hora do testamento,
soube respeitar e honrar:
(…) A ella tenho eu por bem que seja a principal, & a maioral
testamenteira, porque som certo que fará por mim, & pella minha
alma todo aquelo que ella poder (…).
Como era seu desejo, el-rei foi então a enterrar no Mosteiro de «Oh-ide-
vê-las» e o filho sucedeu-lhe no trono como Dom Afonso IV. Quanto a
Isabel, vestiu o hábito de clarissa e viveu os onze anos seguintes no
Mosteiro de Santa Clara, que ela mesma mandara construir com um paço
anexo ao convento, por onde entrava e saía e a partir do qual continuaria a
administrar os seus bens e a fazer obras de misericórdia.
A rainha morreu em 1336, quando, uma vez mais, tentava fazer a paz
em nome do filho. Desta feita, o adversário era Afonso XI, rei de Castela,
seu neto e genro de Afonso. O belicoso rei português declarou-lhe guerra
quando este fez menção de repudiar a mulher para assumir uma relação
com Leonor de Gusmão. Dona Isabel partiu em direcção à fronteira para
tentar mediar uma conversação de paz, mas, aos 66 anos, não resistiu a
dias de viagem sob o calor de Julho, morrendo quando se encontrava na
zona de Estremoz.
Para cumprir o desejo que a mãe deixara expresso em testamento de ser
enterrada em Santa Clara, Dom Afon-so IV mandou então ungir-lhe o
corpo com perfumes, ervas e substâncias aromáticas que retardassem a
decomposição do cadáver durante a longa viagem. Sete dias depois, sete
dias sob o ardor do Verão, o povo de Coimbra era surpreendido pelo
maravilhoso aroma que emanava do caixão da rainha. Assentando que se
tratava dum milagre, o episódio tornar-se-ia o epitáfio perfeito à história
duma mulher que há muito era olhada com veneranda admiração.
Nos dias seguintes, surgiria toda a espécie de lendas em torno da Rainha
Santa. Isabel de Aragão tinha ganho, definitivamente, contornos
sobrenaturais.
Por vezes, porém, não vemos o que está demasiado perto. Naquele dia
do século XIV, naquela batalha como tantas outras para Dom Afonso IV, o
rei não vislumbrou imediatamente o rosto da mãe quando ouviu do lado
de lá o inimigo gritar por Santiago.
Santiago, ou São Tiago Maior, fora, por muito tempo, o patrono dos
Portugueses, muito antes de António de Lisboa e Pádua, Francisco Bórgia,
Nossa Senhora da Conceição ou do Anjo de Portugal. E não era um
pormenor de somenos, isto dos patronos. Não era só o seu nome que se
transformava em grito de guerra, com toda a enérgica libertação de fé aí
implicada. Era também uma questão prática: os exércitos faziam-se
identificar com as insígnias do respectivo patrono; de modo que partilhá-
lo com o inimigo poderia facilmente dar azo a embaraçosas confusões.
Naquele instante terrível, naqueles segundos de indecisão quando os
castelhanos avançavam já pelo campo de batalha, Afonso IV deve ter
percorrido mentalmente milhares de rostos, lugares, palavras e histórias.
Precisávamos de deixar cair Santiago e encontrar, urgentemente, outro
santo protector, antes que o inimigo nos caísse em cima e esmagasse sem,
pelo menos, uma oração que nos encomendasse.
Santiago era filho de Zebedeu, natural da Galileia. Fora um dos 12
apóstolos que acompanharam Jesus Cristo e o primeiro a morrer,
martirizado na Judeia por volta do ano 44. Apesar disso e de ser o único
dos 12 a ter a morte bem descrita e localizada no texto bíblico, criou-se
uma corrente de pensamento que defende que, entre a morte de Cristo e a
sua própria, Tiago Maior teria atravessado a Europa para evangelizar a
Hispânia, percorrendo muitos lugares da actual Espanha e daquilo que é
hoje o Minho português. Devido, alegadamente, ao insucesso da
cristianização, o apóstolo teria então regressado à Judeia onde acabaria
assassinado. O seu corpo, porém, regressaria à Galiza para ser sepultado
em Compostela, mudando para sempre a face do mapa peninsular e com
notáveis consequências do ponto de vista do turismo religioso.
Foi este mesmo Santiago que se diz ter aparecido muitas vezes aos
soldados cristãos durante a Reconquista, ganhando a alcunha de Mata-
Mouros. Para já não falar da Ordem Militar de Santiago, que levou muitos
reis à vitória nos combates com os árabes.
Não admira, pois, que os exércitos espanhol e português o tenham
reclamado para si. Mas, agora que se encontravam frente a frente, o caso
levantava um problema de, digamos (em linguagem contemporânea),
«conflito de interesses».
Afonso pensou. O suor corria-lhe pelo rosto, todo o ferro da armadura
parecia, de repente, insuportavelmente pesado. E, de súbito, lembrou-se de
São Jorge. O cavaleiro de lança na mão investindo contra o dragão.
Jorge, segundo a lenda, era um capitão do exército romano natural da
Capadócia. No século IV, teria distribuído os bens pelos pobres e afrontado
o imperador Diocleciano na sua intenção de ordenar uma brutal
perseguição aos cristãos (aquela que vitimaria, por exemplo, São Vicente).
Por esse crime, foi mandado torturar e, tendo-se sempre recusado a
venerar os deuses romanos, degolar. A carreira militar e o exemplo de
coragem fizeram com que se tornasse, depressa, cultuado entre múltiplos
exércitos dos mais distantes pontos do mapa.
Sim, sim. Jorge não era mal pensado. Já dera nome ao castelo de Lisboa,
ao que parece por inspiração no exemplo de outro mártir, Martim Moniz,
o cavaleiro que oferecera a própria vida a troco da vitória de Dom Afonso
Henriques, colocando o corpo entre as portas do castelo para impedir que
os mouros as fechassem e a tropa portuguesa conseguisse entrar.
Sim, sim. São Jorge, porque não?, pensava Afonso IV, o som do galope
dos cavalos adversários e o tinir das espadas e os gritos de guerra cada vez
mais perto e o suor a escorrer cada vez mais das faces nervosas dos
soldados do rei. Afinal, São Jorge estava na moda. Já era padroeiro de
Inglaterra e da Jórgia, irrepreensivelmente experiente em matéria de
batalhas e, vamos lá ver, afinal de contas: Santiago era padroeiro de
quem? Peregrinos e viajantes? Fabricantes de perfume e chapeleiros? Por
amor de Deus! (e os castelhanos cada vez mais perto) São Jorge era
padroeiro de cavaleiros e soldados! Santiago não teria a menor hipótese
contra ele…
O olhar de Dom Afonso IV fixou-se, por fim, no dos seus homens.
Conseguiram então ver que brilhava e começavam a respirar de alívio.
Afonso agarrou nas rédeas e deu meia-volta ao cavalo. Encheu o peito de
ar e gritou: «São Joooooooooooooooooooorge!!!!!»
E vencemos.
***
Em 1428, quando Isabel nasceu, ainda era rei seu avô, Dom João I, que,
por acaso, era também seu bisavô.
A história não é fácil de perceber, nem especialmente lisonjeira para a
imagem de Dom João, mestre de Avis, o rei dito de Boa Memória, que,
apoiado pelo povo e escoltado por Nuno Álvares Pereira, segurou a
independência portuguesa perante as legítimas pretensões de Castela na
crise de 1383-85 e deu início à segunda dinastia nacional, a de Avis.
Vamos por partes:
Dom João casou com a inglesa Filipa de Lencastre. Dessa célebre união
nasceu um conjunto de infantes cultos e audazes que ficariam celebrizados
para a História sob a designação de a Ínclita Geração. Dela constavam,
entre outros, Dom Duarte, futuro rei de Portugal, o infante Dom Henrique,
Dom Fernando, chamado o Infante Santo pela sua trágica morte em África
em favor dos interesses nacionais, e Dom João, duque de Beja, sexto e
penúltimo dos irmãos. Ora este João viria a ser pai da nossa menina
Isabel, fazendo dela, portanto, neta legítima do rei Dom João I. Esta parte
é fácil; falta a outra.
Apesar do celebrado casamento com Filipa de Lencastre e da boa
reputação de que sempre gozou, o facto é que o rei Dom João não se
furtou aos costumes da época e também teve a sua relação extraconjugal e
os seus bastardos. A relação em questão deu-se com a senhora Inês Pires
Esteves e dela nasceram dois filhos, um menino e uma menina. Ora, o rei
casaria esse menino bastardo de nome Afonso com Beatriz Pereira de
Alvim, filha única do seu condestável Nuno Álvares Pereira, dotando-os
de terras e bens e dando origem à Casa de Bragança (que muito lá mais
adiante na História se tornará na quarta e última dinastia da monarquia
nacional). Pois bem: Afonso e Beatriz tiveram uma filha de nome Isabel e
essa Isabel acabou por casar com João, o tal sexto e penúltimo irmão da
Ínclita Geração e, portanto, sexto e penúltimo filho legítimo do rei Dom
João I.
Confusos? É natural. Digamos, em resumo, que esta Isabel casou com
um meio-irmão do pai e, portanto, um homem que era mais ou menos seu
tio. Juntos, tiveram uma filha, também baptizada Isabel, aquela com que
começámos a nossa história e que era assim, portanto, neta do rei Dom
João por via paterna e legítima e bisneta do mesmo rei Dom João por via
materna e bastarda. Notável.
A pequena Isabel cresceu, pois, na corte, embora sem privilégios
especiais. O pai tinha bens, mas nunca poderia aspirar a ser rei, tantos
infantes e duques tinha à frente na linha de sucessão. Era um ambiente
dominado pela aura de poder daquela dinastia que, depois de assegurar a
independência nacional, tinha já dado início à expansão, combatendo e
triunfando no Norte de África e lançando as bases dum império
ultramarino. Sobre toda a corte impendia ainda a devoção religiosa e o
carisma do seu outro bisavô, Dom Nuno Álvares Pereira, herói de guerra
que, pelas suas proezas, fora recompensado com inúmeras riquezas e
terras e que, no entanto, depois de se tornar um dos homens mais ricos de
toda a Península Ibérica, preferira distribuir tudo por companheiros de
armas e mendigos, entrando para o Convento do Carmo por ele mesmo
mandado construir, esperando que, algures, o mundo o acabasse por
esquecer.
Este bisavô morreu tinha Isabel três anos; o outro, que também era avô e
rei, quando ela completara cinco. Dom Duarte subiu então ao trono e com
ele chegaram à corte algumas caras novas, como o seu antigo escudeiro
Rui Gomes da Silva e respectivas filhas. Uma destas crianças seria depois
entregue à mãe de Isabel para que viesse a tornar-se aia da pequena
infanta. Chamava-se Beatriz, a menina em questão. Era ligeiramente mais
velha do que Isabel – teria talvez sete anos – e tão bonita que, um dia, um
pintor usá-la-á como modelo para um retrato da Virgem Maria.
Isabel e Beatriz cresceriam, portanto, juntas, entre jogos, bordados e
tertúlias, mas o seu destino não seria o mesmo. Eram ambas fidalgas, mas
Beatriz era uma simples aia particularmente empenhada nas suas orações a
São Francisco de Assis e a Nossa Senhora da Conceição; Isabel, ainda que
por via ínvia, tinha sangue real nas veias e, um dia, deveria casar com um
infante ou duque duma casa estrangeira. Esse dia chegou em 1447, já Dom
Duarte havia morrido e subido ao trono o seu filho Dom Afonso V. Mas
Isabel não tinha à espera uma segunda figura como ela; o noivo era o
próprio rei de Castela…
Esta história não é contada por toda a parte nem por toda a gente. Os
historiadores espanhóis, naturalmente mais interessados na sequência de
acontecimentos políticos que, afinal, acabariam por conduzir à unificação
do reino, destacam na rainha Isabel de Portugal a mulher que contribuiria
decisivamente para a queda em desgraça do outrora todo-poderoso Álvaro
de Luna. Também a alegada loucura da mulher de Don Juan II seria
analisada mais à luz das consequências que teria para a educação da filha,
futura rainha de Espanha, do que sob qualquer possível implicação sobre o
destino de uma pobre aia, por mais bela que fosse… No entanto, essa aia
teria, um dia, direito a biografias (e mais tarde perceberemos porquê) e
alguns dos seus autores alongam-se sobre um rocambolesco episódio que
teria ocorrido por volta daquele ano de 1454.
Ao longo de todo aquele tempo, mas longe do espírito das intrigas que
minavam a corte, a aia Beatriz permanecera ao lado de Isabel. Continuava
a ser cortejada por muitos dos mais nobres varões de Castela, mas parecia
preferir o recato das suas orações. Bela e delicada, diz-se que o próprio rei
apreciava a sua companhia e gostava de conversar com ela.
De acordo com alguns biógrafos, chegaria o dia em que Isabel, no seu
atormentado estado mental, não suportaria mais a imagem da aia que
crescera a seu lado desde criança conversando com o marido. Pelas suas
próprias mãos ou pelas de criados a sua ordem, conforme as versões, teria
então trancado Beatriz num baú. E a intenção, ao que parece, era nunca
mais voltar a abri-lo.
No entanto, três dias depois, Dom João de Meneses, um tio de Beatriz
que lhe tentava dar algum acompanhamento familiar desde a morte do pai,
no ano anterior, teria aparecido na corte castelhana para visitar a sobrinha.
Isabel teria então acorrido rapidamente ao lugar do palácio onde
aprisionara a aia e mandado abrir o baú. Para perplexidade da rainha,
Beatriz não estava morta ou apresentava, sequer, qualquer sinal de
fraqueza; antes sorria e parecia mais bela do que nunca. A aia terá então
jurado que, durante o cativeiro, lhe aparecera a Virgem Maria,
prometendo-lhe que não morreria, pois tinha uma missão a realizar: fundar
uma ordem religiosa dedicada à Imaculada Conceição. A pretensa
aparição seria retratada, ao longo dos séculos, por inúmeros artistas.
Verdade ou mentira, o facto é que Beatriz da Silva, a bela dama de Dona
Isabel que todos queriam desposar, abandonou naquele ano a corte e
retirou-se para o Mosteiro de São Domingos, o Real, em Toledo. Trocou o
luxo, o conforto e as possibilidades de riqueza por uma reclusão radical,
em oração e penitência. E lá viveu os 30 anos seguintes, sempre de rosto
coberto por um véu para que a sua beleza não mais voltasse a causar
qualquer tipo de ódio.
Numa peça de teatro do século XVII, o poeta e dramaturgo madrileno
Tirso de Molina atribuiria a seguinte frase à personagem do rei Don Juan
II de Castela: «Beatriz, mulher tão bela, só a merece Deus.»
Desiludido, doente e ainda mais fraco do que fora o resto da vida, Don
Juan II morreria naquele mesmo ano de 1454, a 22 de Julho. Isabel ficava
viúva aos 26 anos.
Henrique, o enteado três anos mais velho do que a própria madrasta,
sobe então ao trono como Henrique IV de Castela. Alegando que a morte
do pai agravara ainda mais o débil estado de Isabel, o novo rei afasta-a do
Paço Real e manda-a para Arévalo. Retirada à força do centro de decisão,
a viúva, relegada para um estatuto decorativo de rainha-mãe, parte então
para o pequeno castelo da vila que lhe pertence por dote de casamento
com os dois filhos pequenos – Isabel tem então apenas três anos e Afonso
é ainda um bebé de nove meses –, alguns criados e a própria mãe, que se
deslocou de Portugal para acompanhar a filha naquele cativeiro disfarçado
de retiro espiritual. Isabel ainda não sabia então – talvez o pressentisse –,
mas viveria entre aquelas muralhas até ao fim dos seus dias.
Ao longo dos anos seguintes, várias propostas de casamento foram
chegando à jovem viúva, mas Isabel nunca se mostrou minimamente
disponível para as ouvir. Dedicou-se a uma vida austera, frugal,
concentrada na educação dos filhos; porém, aos poucos, mergulhava numa
melancolia sem regresso. Na solidão e silêncio do castelo de Arévalo, a
rainha-mãe começou então a ouvir vozes. Dizia-se perseguida por
fantasmas, particularmente pelo de Álvaro de Luna, por cujo nome
chamava, dias a fio, vagueando pelo castelo. Progressivamente, deixou de
reconhecer as pessoas em sua volta e, por vezes, não sabia quem ela
própria era.
O agravamento do estado mental de Isabel levou a que os filhos lhe
fossem retirados, em 1461, o mesmo ano em que a sua prima Joana,
segunda mulher de Henrique IV, conseguia, por fim, engravidar. Era uma
notícia extraordinária, tanto mais tendo em conta que o rei ficaria para a
História conhecido pelo cognome de o Impotente. A criança, uma menina
baptizada com o nome da mãe, nasceria em Fevereiro do ano seguinte e
seria desde cedo tratada como Joana, a Beltraneja, pois se a versão oficial
dizia que tinha sido gerada graças a umas fabulosas técnicas científicas
que seriam a antecâmara da inseminação artificial, a oficiosa asseverava
que era fruto de uma técnica tão antiga como o próprio mundo e que
remetia para os amores da rainha com o nobre castelhano Beltrán de la
Cueva.
Quis o destino que fosse assim. Que a dinastia de Avis, a que de maior
glória se cobriu em toda a História de Portugal, fosse também aquela que
enfrentaria, porventura, os mais negros dias da Coroa nacional. Avis
começara triunfante, na crise de 1383-85, com o povo a chamar a si, pela
primeira vez, um sentimento patriótico e a levar Dom João ao trono.
Venceu Castela em Aljubarrota debaixo da aura de santidade do
comandante Nuno Álvares Pereira e seguiu à descoberta do mundo aos
ombros da Ínclita Geração. Mas terminaria arrastando-se entre a poeira e a
dolorosa memória de Alcácer Quibir, chorando os mortos, pagando os
resgates dos prisioneiros e desesperando por um milagre que não viria
salvá-la de entregar de bandeja a Castela a independência que tanto lhe
custara a garantir 200 anos antes.
Para muitos, foi a melhor parte de Portugal que terminou ali, quando a
noite caiu sobre as areias de Marrocos. O desaparecimento de o Desejado
era o epitáfio a cinco séculos unidos pelo mesmo sangue, o do pai-
fundador Afonso Henriques, passado da primeira à segunda dinastia por
Dom João I, bastardo de Dom Pedro e Teresa Lourenço, galega de quem
pouco se sabe, a não ser que rompe o mito romântico de que, depois de
Inês, Pedro nunca mais conhecera outra mulher.
Todavia, que esse Portugal original tivesse terminado assim, de repente,
com um rei a desaparecer, de espada erguida, entre a multidão de soldados
adversários, seria ainda uma imagem de um heroísmo reconfortante. Não
foi assim. Foi uma decadência lenta e penosa. Um calvário de dois anos
sentido num país que se arrastava perigosamente para o abismo, mas,
acima de tudo, passado em tumulto no interior da cabeça dum só homem,
um homem só e amargurado, uma das mais complexas figuras da História
nacional: o cardeal Dom Henrique.
Para compreender a dimensão do drama, é preciso recuar no tempo.
Vamos ao princípio do século XVI, quando Portugal tinha acabado de
chegar ao Brasil e era senhor dum império que se estendia a quatro
continentes. Era rei Dom Manuel I, que já tinha casado duas vezes e
tratava agora de arranjar mulher ao filho João, futuro Dom João III, o
príncipe herdeiro. Tudo estava tratado para que fosse a jovem Dona
Leonor da Áustria a escolhida – muito bela, ao que se diz. Porém, chegado
o dia do anúncio oficial, Dom Manuel deixa a corte perplexa: comunica
que vai ele mesmo casar com a jovem. Ele de 49 anos; ela de 20; João a
sentir-se, provavelmente, uma criança. Juntos, Dom Manuel e Dona
Leonor tiveram dois filhos, mas ele morreu ao fim de três anos de
casamento. Com a rainha novamente livre, ainda houve quem sugerisse a
João casar com a madrasta, mas ele não quis (o que não foi suficiente para
evitar os rumores que circulavam sobre um alegado romance entre os
dois). Leonor acabou por partir e tornar-se rainha de França; João casou
com Catarina de Áustria, a mulher que deveria ter sido apenas consorte do
rei português, que acabou por ter de assumir a regência e, por pouco, não
foi rainha.
Por agora, tudo parecia no sítio certo. Dom João III reinava, era senhor
do poder temporal, enquanto Henrique, seu irmão mais novo, era senhor
do espiritual. Eram anos de grande concórdia entre Coroa e Igreja: as
terras conquistadas pela primeira eram evangelizadas pela segunda. A
expansão do território abrandara; era agora tempo de o consolidar e
proteger contra investidas rivais; combater os piratas e viver dos
rendimentos.
Henrique ascendera rapidamente na hierarquia eclesiástica. Estudioso e
aplicado, homem de grande vocação religiosa, terá talvez contado também
com aquele pequeno pormenor de ser filho do rei Dom Manuel I. Aos 20
anos, já era arcebispo de Braga. Mais tarde, lideraria também as
arquidioceses de Évora e Lisboa. Foi inquisidor-mor do reino, o que não
lhe terá valido muitos amigos, e o Papa Paulo III nomeou-o cardeal.
Influente e respeitado em toda a Igreja continental, não faltou muito para
que se tornasse no segundo Papa português, entrando nas contas do
conclave depois da morte de Marcelo I. Era um eclesiástico de carreira.
Um homem feio, soturno e solitário, mas o seu reino não era deste mundo.
Esses assuntos eram para o irmão e para a descendência que deixasse. Mas
é aí que começam os problemas…
É que Dom João III teve dez filhos, incluindo aquele que lhe deu uma
aia antes de casar com Dona Catarina, mas viveu a tragédia de os ver
morrer a todos. Duarte, Afonso, Maria Manuela, Isabel, Beatriz, Manuel,
Filipe, Dinis, João Manuel e António, um a um apontados como
sucessores da dinastia de Avis e um a um desaparecidos, levando aquele
que era à época, provavelmente, o mais poderoso reino do mundo, à
angústia de se encontrar, de repente e sem aviso, à beira do colapso. O
caso mais dramático acontece com o penúltimo filho: o infante Dom João.
Nasce em 1537, torna-se príncipe herdeiro dois anos depois pela morte do
irmão Dinis, vê morrer o irmão mais novo e último que ainda vivia em
1540, casa com Dona Joana em 1552, ela engravida, mas ele morre de
diabetes dezoito dias antes de ela dar à luz. Esse filho, nascido a 20 de
Janeiro de 1554, chamar-se-ia Sebastião e não admira que ficasse
conhecido desde cedo como o Desejado…
Por ora, o reino parecia salvo. Dom João III morre em 1557, quando
Dom Sebastião é apenas uma criança de três anos, mas agora tratava-se
somente de assegurar a regência até que o jovem atingisse a maioridade.
Para a tarefa, são chamados Dona Catarina, a avó e mulher que chorara o
desaparecimento de todos os filhos, e o tio-avô, cardeal Henrique, que
alegadamente nunca se imaginaria metido nestes trabalhos, mas cuja
chamada ao poder terreno não deixava de representar a crescente
influência da Igreja no império português de então.
Enquanto regente, o cardeal teve uma administração discreta e prudente.
Concentrou-se em equilibrar as contas do reino, reduzindo despesas e
pagando dívidas. Passados 11 anos, quando o sobrinho-neto atingiu os 14,
Henrique e Catarina passaram-lhe tranquilamente o poder numa cerimónia
pública realizada no Rossio, em Lisboa. Depois disso, continuaram a
acompanhá-lo na governação, educando-o e aconselhando-o. De resto, o
cardeal seria uma vez mais chamado à regência, desta vez por um curto
período de tempo, quando Sebastião se desloca pela primeira vez a Tânger
e Ceuta, mas o rei e o tio-avô iam cortar relações. Dom Sebastião aceita
perdoar aos cristãos-novos a troco de dinheiro; o cardeal Dom Henrique
não se conforma. Estávamos a um ano de Alcácer Quibir. Henrique e
Sebastião não voltariam a falar.
Tinha que se lhe dissesse, a personalidade do jovem rei português.
Pouco preocupado em encontrar mulher com quem casar e dar
descendência ao reino (diz-se, aliás, que uma doença lhe afectava os
órgãos genitais), vivia com a obsessão de reeditar os grandes feitos
militares dos antepassados. Contra a opinião dos conselheiros e tudo
aquilo que recomendaria o mais elementar bom senso, ansiava pela hora
de partir para África, a fim de recuperar velhas praças portuguesas e
conquistar Marrocos. Involuntariamente, parecia ser Camões, o maior
poeta nacional, a razão de tal delírio. Os feitos cantados n’ Os Lusíadas
empolgavam Sebastião a tomar as armas e arriscar a dinastia que ainda
agora se tinha salvo por milagre. Arriscar a independência do reino a
disputar cidades que, do ponto de vista económico, eram ruinosas e cujo
valor, tendo em vista que o império se estendia já por Brasil, Índia, China
ou Japão, era meramente simbólico. Para não falar do fervor religioso que
o fazia crer ser um soldado de Cristo destinado a revelar aos infiéis a fé
cristã – nem que fosse à força.
A oportunidade tão desejada pelo rei e temida pelo reino surgiu com a
visita de Mulay Mohammed. Afastado do trono pelo tio, vinha pedir o
apoio português para o recuperar. O destino fazia a vontade a Sebastião:
era a sua deixa para tomar Marrocos. Reuniu um exército de entre 15 000
a 23 000 homens e uma frota de 500 navios e partiu, no sufocante Verão
de 1578.
O resto da história é bem conhecido… Desgastados por uma longa
viagem, doentes, enfraquecidos pela fome, pela sede e pelo calor, os
soldados de Sebastião chegaram enfim ao campo de batalha, onde os
aguardava um exército tranquilo e conhecedor do terreno, apoiado pelos
otomanos. Segundo a lenda, a última vez que alguém viu Dom Sebastião,
estava o rei com a espada de Afonso Henriques erguida, a carregar sobre o
exército inimigo, desaparecendo numa nuvem de homens, esperanças e
pó.
… E assim voltamos ao ponto onde começámos. À cabeça do cardeal
Dom Henrique. Um velho padre sentado sozinho a uma imensa mesa do
Palácio Real, em Lisboa, terrivelmente solitário, mesmo que rodeado,
naquele instante, de uma escolta de clérigos e cortesãos. Indesejado,
deslocado no tempo, isolado na sua própria corte, perdido na velhice, no
questionamento das escolhas que fizera ao longo da vida. Tinha 66 anos –
não contava viver muito mais. Mas, agora, era rei à força porque o
sobrinho-neto, o Desejado, o milagre ilusório que vinha salvar uma
dinastia condenada a desaparecer, tinha sucumbido em África, aos 24
anos, entregando à morte, ou, na melhor das hipóteses, ao cativeiro, a nata
da nobreza nacional. Henrique, o velho… Quase foi Papa e era agora rei
dum reino desesperado e com o relógio a contar para cair em mãos
estrangeiras. Um homem com temor a Deus e medo dos homens, que
poderia tão facilmente ser odiado pela cobardia das suas dúvidas, como
objecto da nossa compaixão. Que quereria dele o Senhor com tão duro
teste?
Aclamado rei ainda naquele Agosto de 1578, a simples aparição de
Henrique na ocasião dispensa palavras quanto ao paradoxo de dimensões
históricas com que o país se via forçado a confrontar: apresenta-se diante
do povo de ceptro real na mão, mas ainda vestido nos habituais
paramentos de cardeal.
Nada no seu íntimo tinha mudado. Continuaria a frequentar a missa
diária, e na hora de resolver o problema mais urgente que se lhe levantava
– negociar a libertação dos 16 000 prisioneiros de guerra em Marrocos –
enviaria como diplomatas clérigos da sua confiança.
Eram dias de luto e humilhação nacional. Os cofres reais foram
esvaziados para pagar os resgates. Famílias inteiras empenharam tudo
quanto tinham para recuperar filhos e maridos. Ao mesmo tempo,
procurava-se, em vão o corpo de Dom Sebastião, para dar a Portugal, ao
menos, o cadáver dum rei para chorar.
No entanto, havia um problema ainda maior a resolver: encontrar um
sucessor para o cardeal Dom Henrique. Alguém que evitasse que um
império de meio mundo colapsasse por não ter rei e se oferecesse, de mão
beijada, a outra bandeira.
Vamos por partes. Tínhamos um rei que, pela lei da vida, não duraria
muito mais. Um rei que, ainda por cima, estava doente. Um rei que era
padre, arcebispo, cardeal, comprometido desde a juventude com o
celibato, a quem nem a má-língua alguma vez identificara qualquer
indício de proximidade com mulher. Um rei sem família, sem
descendência possível, sem saída, a quem os gentis cultores da
cognominação da realeza nacional não saberiam que mais chamar senão o
Casto.
Havia, então, duas hipóteses: ou Dom Henrique conseguia dispensa do
celibato, arranjava mulher e ainda se lançava à proeza de a engravidar,
apesar da doença e da idade avançada, ou escolhia um sucessor
razoavelmente legítimo entre uma lista de pretendentes. Apostar na
primeira hipótese era, fundamentalmente, esperar não por um milagre,
mas por vários, em catadupa. Restando a segunda, importava, então,
analisar a lista de candidatos…
O primeiro era Dom António, prior do Crato. Ele próprio tinha
combatido em Alcácer Quibir e caído nas garras do sultão, mas fora um
dos primeiros a conseguir a libertação, depois de ocultar inteligentemente
as origens familiares. É que António tinha sangue real; era neto de Dom
Manuel I e, portanto, sobrinho do cardeal Dom Henrique. O problema é
que o tio não apreciava a personalidade de António e, ainda que o povo o
apoiasse para rei, o cardeal recusaria sempre essa hipótese, chegando a
retirar-lhe a nacionalidade.
Depois, seguia-se uma lista de candidatos de duvidosa legitimidade ou
descendência remota (e, já agora, mau nome para rei), como Manuel
Felisberto, duque de Sabóia, filho de Dona Beatriz, e Rainúncio, filho de
Dona Maria, a irmã mais velha de D. Catarina. Todavia, restava ainda um
candidato, um pretendente forte e perigoso: Filipe II, rei de Espanha, filho
da infanta portuguesa Dona Isabel e, portanto, também neto de Dom
Manuel I e sobrinho de Dom Henrique.
Por mais absurdo que pudesse parecer em termos políticos, a verdade é
que, a título pessoal, o cardeal tinha por Filipe o apreço que não nutria por
António, e que muitos nobres portugueses preferiam dar o seu apoio ao rei
católico do que a um seu compatriota. E que, por fim, um espião
português de má memória, chamado Cristóvão de Moura, se encarregava
de passar ao monarca espanhol as informações mais preciosas acerca de
tudo quanto acontecia no «segredo» da corte portuguesa.
E como o tempo corria! Como era urgente encontrar uma solução,
escrever um nome no topo da lista da sucessão, dar ao reino um destino,
salvá-lo de perder a independência tão bravamente conquistada por
Afonso Henriques e mantida com sangue e fé por Dom Nuno Álvares
Pereira… O cardeal feito rei tinha de tomar uma decisão. Por mais
conselheiros que o rodeassem, só ele podia fazê-lo, entre achaques e
orações, simpatias e embirrações pessoais, com lucidez e sentido de
Estado… Pois, que escolha faria Dom Henrique? A mais difícil, a mais
absurda, aquela que estava condenada a falhar.
Aparentemente pouco disposto a ser mera figura de passagem, breve
garante da soberania nacional, pêndulo numa escolha difícil onde se
limitaria a passar o testemunho a um sucessor de sangue razoavelmente
distante, Henrique decidiu tomar o destino nas mãos. Com o apoio de
alguns sectores da corte (há quem prefira falar em «pressão»), o cardeal
Dom Henrique, antigo candidato a Papa, homem enfermo de 66 anos,
decide que vai casar e ter filhos. Alto dignitário da Igreja, figura
conhecida e respeitada em toda a hierarquia eclesiástica internacional, ia
sacrificar os votos que fizera tantos anos atrás em nome de Portugal. Ia
abdicar da missão de uma vida inteira, da resposta contínua ao
chamamento perpétuo dos céus para dar àquela gente um líder para os
assuntos terrenos. Sonha que vai dar a Portugal um novo rei, um rei
verdadeiro, incontestável, consensual, com o sangue de Avis. Um rei que
trará um futuro de paz, segurança e prosperidade. E decide também que
não o vai comunicar ao povo. Que este será um segredo palaciano. Que o
reino bem pode viver na angústia de não saber o que decidiram para ele
porque se tratava de assunto demasiado delicado. E que um homem da sua
idade e posição talvez não devesse expor-se assim. E que, afinal, tivesse já
sido ou não cunhada a expressão, o segredo era a alma do negócio.
Primeiro do que tudo, pois, precisava de encontrar mulher. Isabel de
Áustria, viúva de Carlos IX de França e irmã de Ana de Áustria, esposa de
Dom Filipe II e rainha de Espanha, era uma das hipóteses. A outra era
Dona Maria, já citada a propósito de Manuel Felisberto, filha mais velha
dos duques de Bragança. Era a mais comentada e desejada. Portuguesa,
bem próxima da família real, mas muito jovem: apenas 13 anos e meio.
Contudo, Dom Henrique, movido por uma qualquer atracção pelo abismo,
ia avançar pelo próprio pé em direcção ao cadafalso…
Numa manhã a que o tempo se encarregaria de conferir sentido,
entregou el-rei a um embaixador da sua inteira confiança uma carta
destinada a Dom Filipe II de Espanha, seu sobrinho.
Senhor
Estou tão determinado a cumprir as obrigações deste cargo de Rei
em que me Nosso Senhor pôs, que chego até a tratar de casar, coisa
tão estranha à vida que dantes tinha, pedindo-mo, e aconselhando-
mo as principais pessoas, e as com que me devo aconselhar, e os
oficiais do governo desta Cidade, em nome dela, e os procuradores
do povo. E sei das mais pessoas que o desejam muito e determinam
de mo pedir. Não quis fazer nada nisto sem primeiro o comunicar a
Vossa Majestade e lhe pedir conselho e ajuda para se poder melhor
efectuar. E lhe hei-de comunicar meus pensamentos, como pudera
melhor fazer, se andar passeando com Vossa Majestade em alguma
parte donde pudéramos falar muito particularmente. Mas à falta
disso, fá-lo-ei nesta carta. Se Vossa Majestade tivera uma filha de
idade conveniente para dela se poder cedo esperar sucessão, este
fora o meu primeiro desejo. E confiara em Vossa Majestade que me
fizera mercê de a querer casar comigo. Mas já que isto não pode ser,
devo desejar a pessoa mais conjunta a Vossa Majestade, como é a
senhora Rainha que foi de França, sua sobrinha e cunhada, em
quem concorrem tantas partes, não posso eu desejar outro
casamento. E porque também há-de correr por conselho, e ordem de
Vossa Majestade em tudo lhe peço conselho, e ajuda para se fazer
como seja mais serviço de Nosso Senhor, bem de nossos Reinos,
contentamento e descanso de Vossa Majestade e meu. Esta carta
mando ao embaixador que a dê a Vossa Majestade sem saber o que
nela lhe escrevo, porque por agora me pareceu que somente devia
ser isto para Vossa Majestade cuja Real pessoa Nosso Senhor
guarde como eu desejo.
De Lisboa, 24 de Setembro 1578
Quanto teria custado a Dom Henrique escrever estas cartas? Quanto lhe
terá custado encontrar um sentido para os misteriosos caminhos do
Senhor? E que fé depositaria ele próprio nesta solução? Nenhuma destas
epístolas, no entanto, teria qualquer resposta. Seriam apenas as primeiras
de uma longa série de missivas que percorreriam a Europa ao longo de
muitos meses, esbarrando no silêncio, nas delongas e manobras dilatórias
de Filipe II e Gregório XIII.
É bem conhecido o poder que tinha o Império Espanhol no século XVI.
Era a maior Igreja Católica do mundo e o Papado preferia usar de especial
prudência antes de tomar uma decisão que pudesse não ir de encontro aos
anseios do senhor de tais domínios. Não poucas vezes, os dois poderes
terão agido concertados porque, por norma, aquilo que convinha a um,
convinha também a outro. Neste caso concreto, havia mundos novos a ser
descobertos e evangelizados na fé cristã, e os reis portugueses tinham-se
investido, desde o começo, dessa tarefa, que parecia directamente recebida
de Deus todo-poderoso, de levar a Sua palavra a milhões de novas almas.
Até ali, nenhuma missão poderia partir para o canto mais remoto do globo
sem passar, primeiro, pela superior autorização do soberano português. De
modo que, se ele capitulasse, se Lisboa fosse posta fora da equação,
respeitosamente subordinada ao rei espanhol, Roma poderia, enfim, tomar
o seu lugar no centro daquele notável projecto de cristianizar o mundo
inteiro.
E assim, quando Filipe II recebeu a missiva de Dom Henrique pedindo-
lhe a mão da cunhada, de imediato informou os seus embaixadores em
Roma para que pressionassem o Papa no sentido de não ceder ao pedido
de escusa do rei português. Isto se, é claro, desejasse conservar as relações
entre Roma e Espanha que tão bons frutos vinham dando. E Gregório
XIII, naturalmente, nem teve de se pôr de acordo. Jamais lhe passara pela
pontifícia cabeça decidir em contrário.
Seguiram-se novas cartas e, quando começaram a chegar respostas de
ambas as frentes, eram, em tudo, semelhantes: as duas se faziam surdas à
angústia e urgência do velho Henrique, aconselhando-o a melhor meditar
no dilema, a acautelar-se da ira divina perante tal reviravolta no seu
destino, fazendo-o ver – como sempre fora um homem dedicado a Deus –
quão perigosa poderia ser a abertura deste precedente histórico? Além
disso, Filipe II puxava dos galões do parentesco para sensibilizar o tio dos
perigos que poderia correr a sua saúde, em tão debilitado estado, se a fosse
agora sujeitar às atribulações do casamento.
Dom Henrique, contudo, não se deixaria demover. Escreveria mais
cartas, insistiria nos pedidos, clarificaria as razões para o caso de
porventura não o ter feito suficientemente bem da primeira vez.
Sublinhava a urgência e necessidade de uma decisão em seu favor.
Lembrava que não agia contra Deus, era Deus quem assim quisera. Fora
Deus que nos trouxera até aqui, a este beco aparentemente sem saída, para
nos testar e sublimar. De resto, acrescentava um argumento de peso: não
era a primeira vez que esta situação se colocava na história da Igreja. E
recordava depois, a propósito, o exemplo relatado nas crónicas da
Hungria, quando o Papado dispensou do voto de castidade Colomano,
bispo da Panónia, sucessor de seu tio, o rei Ladislau, acabando por casar
com a rainha viúva, para que se prolongasse a dinastia e salvasse o reino
de males maiores.
Mas isso fora na Hungria. Aqui, em Portugal, o reino inquietava-se.
Desconhecendo aquelas movimentações epistolares, as negociações entre
embaixadores, os planos entretecidos nos corredores de palácios e templos
pelos homens fortes dos senhores de grande parte da Europa do século
XVI. Havia quem pensasse que Dom Henrique, pura e simplesmente,
perdera o juízo. Não se ocupava do maior problema nacional. Acometido,
talvez, de insanidade grave ou senilidade imparável, não vislumbrava a
espiral que se abria diante dos seus reais pés, aquela por onde cairia um
povo inteiro. Figuras relevantes da política do reino vinham ao paço
visitar o cardeal e recomendar-lhe que se apressasse a designar um
sucessor, mas el-rei preferia conservar para si e para um círculo restrito de
confidentes a verdade sobre a missão decisiva da sua vida.
Porém, o círculo fechava-se cada vez mais sobre Henrique. O seu estado
de saúde não parava de se agravar. Tinha constantes achaques e
hemorragias. Passavam-se semanas inteiras sem que saísse da cama e era
já lá que recebia, muitas vezes, embaixadores e emissários, mantendo no
cheiro enfermo dos seus aposentos reuniões decisivas quanto ao futuro de
Portugal. Não fazia qualquer ideia do que verdadeiramente se passasse em
Espanha ou em Roma. De como todos aqueles que deveriam ter sido os
últimos a saber do seu calvário haviam sido os primeiros. Da celeridade
rastejante com que Cristóvão de Moura tudo fazia saber a Filipe II. Dos
planos e estratégias arquitectados em silêncio entre o seu sobrinho e o
Papa, os dois homens a quem pedia um pouco de humanidade, um minuto
de compreensão perante a imagem de um velho segurando um reino aflito,
tremendo-lhe nas mãos cheias de escaras e feridas. Tomava remédios para
a fertilidade que lhe recomendavam os médicos; resguardava-se de todas
as exposições; arrastava-se pelas paredes do palácio, encontrando sabe
Deus onde forças e motivos para acreditar que, mesmo que se resolvesse
toda a questão política e religiosa, seria ainda biologicamente capaz de
gerar descendência.
O tempo passava. Os fantasmas visitavam, cada vez mais amiúde, as
vidraças dos salões reais. As cartas continuavam. Com elas, as negativas,
as demoras, as trocas de considerações, os pedidos por mais tempo e
maior ponderação. Era o século XVI. Muito antes do comboio e do
telégrafo e do telefone e da electricidade e do motor de explosão e dos
satélites e faxes e correios electrónicos e sinais digitais e cabos
transatlânticos, transportando tudo num minúsculo fio de fibra. As notícias
corriam a galope, a trote ou a passo, transportadas em letra manuscrita em
cartas lacradas nos alforges de cavalos, com homens empoleirados,
galgando estreitos caminhos de pedra por um continente afora. E, contudo,
no século XVI como no XXI, o eclipse da vida processava-se à mesma
velocidade. Conforme um texto, uma intenção, um destino levava meses a
chegar ao destinatário, o sopro da morte mais se acercava do emissor,
estremecendo no frio do seu quarto, no pavor da solidão, tentando segurar,
como podia, o que lhe restava da vida dentro de si.
No entanto, nenhuma circunstância epocal, nenhum atraso tecnológico,
poderia explicar a demora de todo o processo que envolveria monsenhor
António Maria Sauli, o enviado especial encarregue por Gregório XIII,
passados meses de epístolas, de vir a Lisboa visitar pessoalmente Dom
Henrique e convencê-lo, duma vez por todas, olhos nos olhos, a abdicar
das suas tresloucadas ambições.
Sauli chegou, instalou-se e dirigiu-se ao rei-cardeal, mas a presença
imediata daquele embaixador não perturbava Henrique. Não cederia um
milímetro. Pelo contrário: enviava de volta monsenhor a Sua Santidade
com o especial pedido de que lhe sublinhasse a incompreensão perante a
surdez de Roma aos seus pedidos. Que o Papa pensasse bem. Que, na
serena lucidez da meditação, verificasse as consequências de tal recusa.
(Henrique, na verdade, já mal disfarçava o desespero que lhe tomara o
coração.)
António Maria Sauli abandonou Lisboa, a 12 de Maio de 1579. Pelo
seguro, Dom Henrique escreveu, entretanto, mais algumas cartas a
Gregório XIII antecipando o que lhe diria monsenhor de viva voz,
insistindo na absoluta necessidade de uma resposta afirmativa àquilo que
lhe implorava. Do lado de lá, contudo, o Papa repetia que necessitava de
ouvir Sauli e que só então se poderia comprometer com uma resposta
final.
Sauli, porém, devido a delongas protocolares, curiosamente aquando da
sua estada em Madrid, só atingiria Barcelona, já muito fatigado pela
viagem, a 14 de Julho. Aí, quedar-se-ia um mês à espera de um transporte
para Itália, que, vejam lá bem como são as coisas, que aborrecimento, logo
agora, teimava em não aparecer. Naquele vai-não-vai, como se não
bastasse, parecia que não se sentia bem, qualquer coisa, sabe-se lá, um
mal-estar qualquer, um enjoo, um princípio de febre, um desarranjo, uma
coisa assim que os médicos não sabiam bem explicar, andava a apoderar-
se dele. Preocupado, prudente, porque isto há prioridades e coisas com que
não se brinca, o cardeal Como, secretário da Santa Sé, achou por isso
conveniente escrever a Sauli, autorizando-o, quando chegasse a Itália, a
deter-se em Génova o tempo que fosse necessário, tendo em vista o seu
total restabelecimento.
Sauli só chegaria a Génova a 4 de Setembro. Aí, recebe nova carta de
Como, datada de 29 de Dezembro, reiterando que não havia pressa, que
ele visse bem, que permanecesse o tempo que lhe aprouvesse, e fazendo-
lhe notar que não havia qualquer necessidade de colocar a sua vida em
risco, mesmo neste cenário de tensão internacional. Verdadeiramente
espantosa, quase comovente, esta atenção do secretário para com a saúde
do pobre António Maria Sauli.
Não foi preciso esperar muito mais. No dia 31 de Janeiro de 1580, o
cardeal Dom Henrique completou 68 anos, mas sentia-se especialmente
fraco. Preferiu não tomar parte em qualquer festividade. Ao cair da noite,
morreu na mesma cama a partir da qual governou, durante dois anos, um
país que nunca o desejou para rei na mesma medida em que ele nunca o
ansiou reinar. Estava rodeado pelos padres Leão Henriques e Jorge Serrão
e pelos frades Damião e Luís de Granada. De resto, mais ninguém.
Nenhum elemento de uma família que acabara de morrer com ele.
Nenhum príncipe. Nenhuma mulher.
Das últimas missões que se investiu, conseguiu apenas o resgate de
muitos dos prisioneiros de Alcácer Quibir. De resto, não conseguiu
permissão para casar, não conseguiu com quem casar, não conseguiu saber
sequer, se, casando, poderia ter tido um filho. E não conseguiu dar a
Portugal o corpo de Dom Sebastião, para que, ao menos, o povo não
passasse as décadas seguintes suspenso da vã esperança de que, um dia,
ele voltasse, para lhes restituir a honra e a glória agora estrondosamente
perdidas.
Naquele que foi, provavelmente, o último acto oficial da sua vida,
Henrique nomeou um conselho de governadores para fazer aquilo de que
ele não fora capaz: tomar uma decisão; escolher um sucessor viável. Esse
conselho optaria por entregar a Coroa a Filipe II. Por oferecer Portugal a
Espanha.
No entanto, apoiado por outras facções, o sobrinho odiado pelo cardeal,
Dom António, prior do Crato, não aceitaria a decisão e subiria ao trono.
Portugal estava prestes a cair sob domínio espanhol, mas ainda havia pelo
menos uma história a contar.
Portugal é uma ilha; António, o seu rei
DOM ANTÓNIO, PRIOR DO CRATO
A guerra não terminara. Ainda não. Logo em 1581, Dom António, que
tinha procurado apoio em França e Inglaterra, ia descobri-lo, afinal, nos
Açores. Ciprião de Figueiredo e Vasconcelos, corregedor na ilha Terceira,
era um daqueles homens para quem Dom Filipe não passava dum
usurpador. Para Ciprião, o rei de Portugal, no exílio ou não, continuava a
ser aquele que o povo aclamara em Santarém.
No início do ano, a ilha de São Miguel tinha tomado partido, conforme
declaração da Câmara Municipal de Ponta Delgada, pela causa de Filipe
de Espanha. Em consequência disso, fora nomeado para governador-geral
dos Açores Dom Ambrósio de Aguiar Coutinho, ao qual se seguiria
Martim Afonso de Melo e cuja principal tarefa seria demover Ciprião de
Figueiredo. Revelar-se-iam vãos, contudo, os esforços do governador:
rapidamente Ciprião o obrigou a regressar a São Miguel, fazendo-lhe
notar que toda a ilha Terceira – e é provável que tenha sublinhado «toda»
– estava por Dom António.
A 25 de Julho, entrando pela baía da Salga às primeiras horas da manhã,
uma força de 1000 espanhóis comandada por Pêro Valdez viria
determinada a fazer Ciprião e os seus terceirenses engolirem a ousadia,
mas uma furiosa bateria de gado bovino mostrar-se-ia insensível perante
os seus argumentos. Empoleirada num pequeno muro de pedra,
confundida com uma rainha no alto da muralha do seu castelo, Brianda
Pereira balançou e gritou até ao fim do combate: «Estamos por Dom
António!»
Aqueles que o gado poupou não tiveram a mesma misericórdia da parte
do exército de populares. O mar levou outros que se afogaram
pesadamente, dentro das armaduras, na tentativa de fuga. Alguns, poucos,
conseguiram alcançar os galeões e viver para regressar a Espanha e contar
a história. Quando o silêncio se abateu sobre a Salga, a espuma do mar
deixava um rasto encarnado nas rochas… Custava olhar aquele retrato
sanguíneo do fim da batalha, mas a vitória fora completa. Sepultados os
corpos caídos do vale à baía, o governador Ciprião marchou até Angra do
Heroísmo, arrastando as bandeiras dos rivais. A cidade celebrou-o como a
um herói antigo. Pêro Valdez faria chegar a Dom Filipe o relato
pormenorizado dos acontecimentos e a vingança viria mais cedo ou mais
tarde, mas, por agora, era tempo de festejar orgulhosamente o crime de
rebelião.
De coroa na cabeça e manto real aos ombros, aclamado pelo povo, que
lhe continuava a chamar «Changa», Filipe de Brito e Nicote continuou no
Pegu, transportado no dorso de elefantes. Contudo, a reputação de
«homem bom» entre os Mon não o livraria de, até ao fim, suscitar reservas
entre os seus. Em 1605, recebendo do vice-rei da Índia a descrição do
triunfo de Brito no Pegu, Dom Filipe II, rei de Espanha e Portugal,
responde-lhe por carta datada de 2 de Março desse mesmo ano,
preocupado, sobretudo, em receber a sua parte dos impostos recolhidos
pela alfândega de Sirião, e revelando uma prudente distância em relação
ao carvoeiro que se tornara rei:
(…) E posto que pelas boas informações que tive do procedimento
do dito Filipe de Brito, e serviços que me allegou fizera nesta
empreza, tive por bem de lhe fazer mercê do habito de Christo, que
lhe mandei lançar nessas partes, e depois lha fiz tomar por fidalgo
de minha casa, de que vós lhe levastes o despacho; contudo me
pareceu que, por a materia ser de tanta substancia e qualidade, e se
me não avisar com a particularidade que convinha os individuos
della, de que convem ter informação, ordenar-vos por esta, como
faço, que vós a tomeis mui particular de tudo o que lhe passado
nella, e me aviseis das rasões e fundamentos que houve para o dito
Filipe de Brito de Nicote tomar o dito porto, e as que se offereceram
aos letrados para serem de parecer que eu o devia sustentar e
deffender; e o mesmo parecer deveis tomar de pessoas de
experiencia desse Estado, se convem a meu serviço conservar-se
esse porto, e que interesses o dito Estado recebe disso, e os que se
podem seguir da alfandega que nelle se ha de poer, e as depezas que
serão ellas maiores que o rendimento da dita alfandega; e quando
he o que se delle ha de dar a Filipe de Brito em sua vida, e depois de
seu falecimento a sua mulher, e que proveitos mais haverá elle de
tirar da dita fortalleza; e se convem a meu serviço que elle a tenha e
depois d´elle sua mulher e seu filho; e se os partidos e assento, que
com elle tomou Ayres de Saldanha, são em meu serviço, ou ha nelles
alguns inconvenientes; e se os officias da dita alfandega são postos
em meu nome, e o hão de ser, ou se deu nisso algua autoridade ao
dito Filipe de Brito; e assi vos enformareis do proveito que se segue
á Christandade d´aquellas partes; e de tudo isto, e do mais que
entenderdes convem a meu serviço, me avisareis mui
particularmente, sem se fazer alteração algua no que estiver
assentado, para com vosso parecer me poder melhor resolver na
confirmação do dito assento, e no que mais devo conceder ao dito
Filipe de Brito em beneficio da dita empreza e seu. (…)
A verdade é que Filipe II, entre os imensos títulos que ostentava na sua
denominação, chegou a exibir o de «rei dos reinos de Pegu».
Filipe de Brito e Nicote desafiara os deuses desde que se metera numa
nau e atravessado o mundo em busca de fortuna. A hora do ajuste de
contas chegaria mais cedo ou mais tarde e, provavelmente, ele próprio
sabia disso; só não sabia, porventura, que acontecimento poria esse fatal
relógio a contar…
Com a distância dos séculos, sabemos hoje que a pedra-de-toque para a
queda não foi diferente no Pegu do que seria, por exemplo, no Japão: a
religião.
A partir do momento em que fora oficializada a soberania portuguesa no
Pegu, seguiu-se a habitual etapa seguinte na lógica da expansão: a
cristianização. A partir de 1604, chegou ao Sirião um conjunto de
missionários liderados por Frei Francisco da Anunciação. Sob a protecção
de Brito, os missionários instalaram em volta da fortaleza do Sirião casas,
igrejas e um seminário que ensinaria alguns milhares de almas a ler,
escrever, rezar e outros costumes tidos por bons entre a tábua de valores
do Ocidente cristão.
Mas, na Birmânia, havia muitas religiões e religiões muito antigas;
religiões que não se aceitavam sequer umas às outras, quanto mais a uma
vinda do outro lado do mundo e que não poderia ser mais diferente dos
princípios e ritos que ali se reconheciam.
Com a subida ao trono de um novo rei birmane, Anauk-Hpet-Lun,
começam, em 1607, as tentativas de sitiar os domínios de Brito. Anauk-
Hpet-Lun desejava reunificar a Birmânia e irritava-o, particularmente, ter
sabido que, ali, no Pegu, se andava a doutrinar crianças noutros deuses
que não os dele.
Em 1613, o Sirião é cercado. Em Abril, as forças mistas luso-
birmanesas de Filipe de Brito e Nicote apresentam a rendição e a cidade
cai. O rei português do Pegu, bem como todos os seus homens, é feito
prisioneiro e levado à presença de Anauk-Hpet-Lun. Olhos nos olhos, o
birmanês dá-lhe três dias para o reconhecer como seu único deus.
Por esta altura, Brito já não teria dúvidas de que era chegada a hora.
Tinha vivido muito mais do que poderia imaginar. Vira os confins do
mundo, os animais imensos da selva, comera à mesa de palácios que o
Ocidente não sonhava sequer que existissem. Nada mais tinha a perder ou
ganhar… O prazo passou e, no dia combinado, Anauk-Hpet-Lun voltou a
olhá-lo nos olhos: Brito ia reconhecê-lo como seu deus, único e exclusivo,
daquele dia em diante?
Brito disse não.
Henrique não foi exactamente rei; foi muito mais do que isso. Enquanto
foi vivo, a monarquia viveu nele, muito para lá da certidão de óbito oficial
passada ao regime a 5 de Outubro de 1910.
Henrique Mitchell de Paiva Couceiro nasceu no final do ano de 1861,
era rei Dom Luís. Era lisboeta, filho de um general português e de uma
protestante irlandesa convertida ao catolicismo. Essa ascendência explica
boa parte daquilo que será toda a vida de Henrique: disciplina, rigor,
autoridade, fortes convicções católicas, crença nas virtudes do exército. O
resto – e não é pouco – não o herdou de ninguém; era dele: uma tendência
inata para a bravura.
Aos 17 anos, ali estava ele no Regimento de Cavalaria Lanceiros de El-
Rei, como voluntário. Um ano depois, era aspirante no Regimento de
Artilharia 1. Mais outro ano e dava entrada na Escola do Exército. Tudo
corria, enfim, na mais estreita normalidade para alguém que desejava ser
militar de carreira. Até que, a 24 de Junho de 1881, Henrique se cruza no
Chiado, quando passeava com a irmã, com Luís Léon de la Torre. Palavra
puxa palavra, Henrique e Luís começam a debater um assunto qualquer.
De repente, não apreciando determinada intervenção do interlocutor, o
quase-alferes entende que o diferendo já não se resolvia com palavras e
espeta-lhe alguns murros. Em consequência da cavaqueira, Luís Léon fica
42 dias de baixa; Paiva Couceiro é preso. Um ano, três meses e 18 dias de
cativeiro depois é libertado e, passados 15 dias, já regressava
tranquilamente à Escola do Exército. A experiência mudou-o de alguma
forma? Traumatizou-o? Amaciou-o? Não consta.
Durante os sete anos seguintes, Henrique Mitchell de Paiva Couceiro
prosseguiu a carreira militar. Estudou esgrima e equitação e foi recebendo
as promoções mais ou menos regulares. Portugal só começaria a perceber
não estar diante dum indivíduo comum no Verão de 1889 quando,
obrigado pela Conferência de Berlim a ocupar efectivamente os territórios
ultramarinos, sob pena de os perder para outras potências europeias,
Henrique se ofereceu como voluntário para uma comissão de serviço em
Angola.
Desembarcado em Luanda a 1 de Setembro, e logo nomeado
comandante do Esquadrão Irregular de Cavalaria da Humpata, começou
por combater os salteadores que espalhavam o terror pelo planalto de
Moçâmedes. Contudo, desagradado com a indisciplina dos seus homens,
rapidamente se entregou a outra missão: a Campanha de Pacificação de
Angola. Penetrando cerca de 1000 quilómetros na savana, liderou um
grupo de homens que avançou, como nenhum outro europeu antes, pelo
interior daquela África que Portugal queria unir de Angola a Moçambique
pelo célebre «Mapa Cor-de-Rosa». Cabia-lhe explorar o território e
conseguir a vassalagem dos senhores locais.
Depois de meses de expedição, é informado de que a deve abandonar,
uma vez que, em Lisboa, o rei Dom Carlos, subido ao trono no ano
anterior, cedeu ao ultimato inglês, abdicando daquelas terras para a Coroa
britânica. Num gesto simples, mas tão brutal como os socos que aplicara,
certo dia, a Luís Léon de la Torre, Henrique Paiva Couceiro abdica ali
mesmo e para sempre de usar o sobrenome Mitchell, como se nunca
tivesse tido qualquer sangue ou costela britânicos.
Depressa, e com o nome abreviado, estava de volta à acção. O
governador-geral, Guilherme de Brito Capelo, encomenda-lhe não uma
missão, mas uma odisseia: encetar uma viagem de 2600 quilómetros pelo
rio Cubango em território totalmente desconhecido e garantir a sujeição
dos sobas locais ao rei de Portugal, antes que o de Inglaterra fizesse o
mesmo.
Henrique partiu como se lhe tivessem pedido a tarefa mais trivial do
mundo. Deixou o Bailundo, a 30 de Abril de 1890, e encetou a descida.
Um a um, assegurou a vassalagem de todos os sobas que encontrou – 16 –
e registou todos os pormenores da geografia e dos povos contactados. A
30 de Julho, precisamente três meses depois, chegava ao Mucusso, o
destino determinado pelo governador, mas, já que estava com a mão na
massa, decide continuar. Desce de canoa até às ilhas de Gomar e regressa
ao Bié, onde, ao lado de Artur de Paiva, depõe o soba Dunduma, que,
meses antes, desafiara a soberania portuguesa. Cumprida mais essa tarefa,
seguiu viagem para Garanganja e explorou o rio Cuanza, visitou as salinas
e tratou de assegurar a vassalagem de mais uns quantos sobas.
Finalmente, regressado ao Cuíto depois de quase ano e meio no mato,
arriscando a vida e sabe-se lá comendo e dormindo em que condições,
sentiu alguma febre. A 17 de Fevereiro de 1891, recebe notícias do
ministro da Marinha e Ultramar: terminara a comissão de serviço. Devia
regressar a casa.
Ainda no hospital e antes de voltar, recebe do povo da região uma
réplica de ouro do colar de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada,
cravejada de diamantes. Já em Lisboa, recebido em glória, é agraciado
com o colar protocolar e, alguns meses mais tarde, elevado a grande-
oficial da mesma Ordem pelos heróicos serviços prestados à pátria. Tinha
29 anos, Henrique, mas já vira e vivera mais do que alguns homens de 80.
***
Naquele ano de 1919, era restaurada a República Velha, ou, como outros
preferiram dizer, começava o tempo da Nova República Velha. Os
governos continuaram a suceder-se em eleições que não chegavam a
motivar a participação de mais de sete por cento dos eleitores. Sucederam-
se greves, motins e ataques bombistas. Para tentar pôr cobro aos
descarrilamentos de comboios, que ameaçavam tornar-se quotidianos, o
Governo determinou que os grevistas teriam de viajar num vagão aberto à
frente da locomotiva, onde eram mais fáceis de controlar. A invenção
ficou conhecida como «o vagão-fantasma». A 10 de Julho de 1921,
António de Oliveira Salazar é eleito deputado pelo Centro Católico. A 19
de Outubro, um grupo de anónimos percorre Lisboa e assassina a sangue-
frio diversos elementos ligados à república, incluindo o líder da revolta de
4 e 5 de Outubro, Machado Santos, e o primeiro-ministro, António
Granjo. Naquela que ficou para a História como «a noite sangrenta», os
assassinos vão ainda libertar e homenagear outro assassino, José Júlio da
Costa, o homem que matara Sidónio Pais.
Os extremos acentuam-se. Em 1923, ano em que António José de
Almeida se torna o único presidente da I República a concluir um
mandato, o Partido Comunista realiza o primeiro congresso; no ano
seguinte, o Governo organiza a primeira Festa da Raça. Nesse mesmo ano,
Henrique de Paiva Couceiro regressa ao país, depois de amnistiado da
pena a que fora condenado na sequência da Monarquia do Norte: 25 anos
de degredo.
A 28 de Maio de 1926, depois de ter conhecido sete presidentes e 45
governos em apenas 16 anos, a I República cai. A morte anunciada
acontece sem que quase se desse por isso, depois de Gomes da Costa e
Mendes Cabeçadas descerem tranquilamente de Braga a Lisboa com uma
coluna militar apoiada por muitos civis. É instaurada uma ditadura militar
que evoluirá depois, já com Salazar a presidir ao governo, para o
autodesignado Estado Novo. Com um nome ou outro, a ditadura
prolongar-se-ia por 48 anos.
Em 1932, Dom Manuel II morre em Londres na sequência de uma
asfixia súbita. O problema terá começado numa amigdalite, seguida de um
edema nas cordas vocais que teria, então, provocado a asfixia, mas a
Scotland Yard investigou o caso, por suspeita de assassínio. Como o
último rei de Portugal não deixara descendência, valia o Pacto de Dover: o
herdeiro a um trono que não existia passava a ser Dom Duarte Nuno.
No entanto, Henrique de Paiva Couceiro ainda estava vivo e igual a si
mesmo. Em 1935, aos 73 anos, critica a política colonial de Salazar e é
por este mandado para o exílio, em Tui, Espanha. Nos primeiros dias de
1937, no mesmo ano em que Afonso Costa, nome central da I República,
morre em Paris, Couceiro é autorizado a regressar, talvez na esperança de
que estivesse, finalmente, dobrado. Puro engano. Poucos meses depois,
escreve uma longa carta ao ditador, onde volta a criticar a sua política
colonial e onde se podem ler coisas como: