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Oscar Negt - A Carreira de Fausto
Oscar Negt - A Carreira de Fausto
A CARREIRA DE FAUSTO 1
Oskar Negt
Universidade de Hannover
Gostaria de usar o espaço de que disponho aqui para explicar por que o Fausto tem sido
objeto de minhas reflexões. Tenho refletido sobre ele desde meus catorze anos. Lembro-me de
que, como aluno que sempre tomou condução para ir estudar, eu chegava muito cedo ou com
algum tempo de sobra à escola, e, por isso, tinha a chave de várias bibliotecas onde estudei.
Para fugir ao tédio, eu lia tudo o que encontrava nessas bibliotecas. Entre outras coisas, acabei
topando com o Fausto. Eu frequentava então a escola Gottfried Keller em Berlim, que fica
próxima à estação de trem Jungfernheide. Foi ali que o professor de alemão, que era benévolo
comigo, me observou tomando notas num exemplar do Fausto. “O que você está fazendo?”,
perguntou. Eu disse, e certamente de uma maneira um pouco equivoca: “Estou trabalhando o
2
Fausto de Goethe”. Ele pegou o exemplar e me devolveu alguns dias depois, dizendo:
“Agora que ele já não serve para a biblioteca da escola, guarde-o de presente”.
Ainda tenho o voluminho até hoje. E nele há uma anotação que sempre me tem dado o
que pensar durante toda a vida, inclusive durante minha vida acadêmica, foi a pergunta que
me fiz aos catorze anos de idade: como Goethe pôde fazer subir aos céus um caráter tão
miserável, que afinal cometeu crimes?
Com a permissão de vocês, gostaria hoje de responder à pergunta: Por que Fausto?
Creio que Fausto não é uma figura especificamente alemã, mas caracteriza o esfacelamento e
a autodilaceração do homem moderno. No entanto, há algo de alemão nessa figura. Pois, além
do Fausto de Christopher Marlowe, o Fausto inglês, há poucas reelaborações originais dele
fora do âmbito alemão. Há, naturalmente, muitas adaptações, por exemplo, com a música de
Gounod na França ou de Boito na Itália. E, apesar disso, há nessa figura muito daquilo que se
pode designar como um “heroísmo da produtividade”. Esse Fausto é, de alguma maneira, um
“herói produtivista”. Oswald Spengler tentou dissecar a “alma fáustica” recorrendo ao par de
opostos estabelecido por Nietzsche entre as forças de plasmação apolíneas e dionisíacas ― e a
distorceu completamente. Spengler diz que apolínea é a cultura grega, fáustica a nórdica.
1
Este texto é uma versão ampliada e revisada de uma palestra proferida em alemão no teatro de Dresden
(Staatsschauspiel) em 2008.
2
No contexto, o verbo bearbeiten significa “trabalhar, discutir ou investigar” um tema ou questão, mas também
revisar e ampliar um escrito ou um livro. (NT)
2
“Apolínea é a estátua do homem nu, fáustica a arte da fuga”.3 Nunca li algo mais tolo. Pois a
arte da fuga mostra as relações de medida numa variedade extraordinária ― diferentemente
de Fausto. Este corporifica a imoderação, a desmedida.
Certa vez perguntei: o que ocorre se consideramos Fausto simplesmente como um ser
humano normal e sua carreira como uma carreira normal? Como ele se relaciona, como lida
com os homens? De que ele é responsável quando dá a Gretchen o veneno com o qual a mãe
desta morre? Ou quando, induzido por Mefisto, ele mata Valentim na esgrima? Fausto não
assume a responsabilidade por nenhuma atrocidade que comete. Isso o aproxima dos
empresários de hoje. Não pode haver responsabilização, dizem estes, apelando para as
conseqüências da lei: a globalização, afirmam, nos obriga a agir de tal e tal maneira.
Por que afinal Fausto foi encenado mais de trezentas e vinte vezes nos últimos anos
em palcos alemães? (Encontrei esse número numa nota de Klaus Staeck.) A figura de Fausto
guarda alguma coisa de descoberta de tesouro ou de prática de magia. Creio que, em situações
de esfacelamento social, a tentativa de mudar algo pela prática da magia, pelo exercício da
palavra, reatualiza a figura de Fausto. Quando alguém diz, por exemplo, Eu S/A, Eu
Sociedade Anônima. De fato, só há uma pessoa ali, o que é um disparate para uma sociedade
de acionistas, mas a expressão é usada no alemão administrativo. Existem locuções como esta
que pretensamente fornecem soluções ― como fórmulas mágicas de conjuro.
Por que esta é uma tragédia, a única tragédia que Goethe escreveu?
É verdade que desde Sófocles as tragédias deixam bastante espaço livre para a ação.
As tragédias nunca são tão determinadas a ponto de tornar previsível o encadeamento da ação,
o campo de atuação da liberdade. O homem moderno tem um campo de atuação para a sua
liberdade. E creio que Goethe antecipa, na figura de Fausto, a transformação da sociedade, a
transformação da sociedade feudal na moderna sociedade industrial. É nela que Fausto está
ambientado ― se é que ele jamais foi uma figura histórica. É também a época de
transformação do próprio Goethe que se documenta no Fausto. Ele é a figura, a figura literária
que o acompanhou por toda a vida. No final, ele guardou a última parte por receio dos
germanistas de sua época. O que diziam não lhe interessava. É que eles esperavam uma
segunda parte semelhante à primeira. A esse respeito o primeiro ato já mostra: tudo é
inteiramente novo. Goethe tinha razão: os germanistas passaram à difamação e a qualificar
sua obra como expressão de fraqueza.
3
Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes. Umrisse einer Morphologie der Weltgeschichte. München
1971, S. 234. [Inicio do 1º volume, 3º cápitulo II. 6: “Alma apolínea, fáustica, mágica”].
3
Gostaria de entrar no próprio problema de Fausto: creio que o melhor modo de abordá-
lo é pela ocorrência do pacto. No capítulo Wetten und Verträge [Apostas e contratos] de meu
livro4, eu a descrevo assim: o Prólogo no Céu tem como ponto de referência o Livro de Jó. A
questão é comprovar a fidelidade de um ser humano para com Deus. Jó é um homem
absolutamente satisfeito, do qual é tirado tudo; de Fausto, não se tira absolutamente nada. A
única coisa que ele poderia arriscar é sua alma. Daí a questão: qual é o significado da aposta?
Nos últimos anos de vida, o próprio Goethe jamais falou de contrato, mas sempre apenas de
aposta.
Mefisto diz ao Senhor:
Ele exige de certa maneira aquilo que Kant chamou de uma lei permissiva6. E o
Senhor diz:
4
Oskar Negt, Die Faust-Karriere. Vom verzweifelten Intellektuellen zum gescheiterten Unternehmer. Göttingen,
Steidl, 2006.
5
“Que apostais? Perdereis o camarada; / Se o permitirdes, tenho em mira / Levá-lo pela minha estrada!” Fausto
I, v. 312-312. Tradução de Jenny Klabin Segall. (NT)
6
Assinalando o oxímoro da locução, Kant define a “lei permissiva” (Erlaubnisgesetz, lex permissiva) como
aquela que define a posse presumida ou putativa que caracteriza o estado de natureza, mas não a posse legítima,
só possível com a instituição do estado civil. Kant, Paz Perpétua, A/B16. (NT)
7
“Se em confusão me serve ainda agora, / Daqui em breve o levarei à luz. / Quando verdeja o arbusto, o cultor
não ignora / Que no futuro fruto e flor produz.” Fausto I, v. 308-311.
4
tragédia, porque cada ação nela transcorrida e cada fala deixam espaço livre para uma
decisão.
Ao final, Fausto diz:
Este é o seu sentimento: se continuo fazendo uso da magia, não saberei o que eu
mesmo produzi, o que é atribuído a mim. Uma espécie de consciência da liberdade se acende
para ele. Aliás, há anotações de Goethe que mostram que ele pretendia libertar Fausto da
magia. Mas ele abandonou a idéia. Isto é, ele não o libertou dela. Até o final, quando diz
“exorcismo algum vás pronunciar” (sprich kein Zauberwort, v. 11423), ele está preso a esse
recurso que vem de Mefisto. Preso a fontes, portanto, que não são determinadas por ele.
A pergunta que Mefisto faz ao Senhor: “Que apostais?” é uma pergunta retórica. Por
isso é irrelevante se este aceita ou não a aposta. Pois, em termos jurídicos, trata-se de uma
espécie de lei permissiva. Trata-se de ampliar os direitos do diabo na luta pela trajetória de
Fausto, sem que ele seja continuamente impedido de cima. Esse diálogo desigual entre o
Todo-poderoso, que reuniu a criadagem e a corte, e Mefisto, desafiador a despeito de toda
submissão, revela que a proposta de Mefisto não é lhe tão inoportuna assim. Como ele não
pode conduzir completamente a essência da vida de Fausto, uma força que firme o caráter e a
identidade deste mediante constantes estímulos e desafios pode ter toda a sua utilidade. Por
isso, o Senhor diz:
Mas se o “homem bom”, como Fausto aqui definido pelo Senhor, é praticamente
incorruptível, então também se poderia facilmente dispensar as suas provações. Sendo assim,
8
“Pudesse eu rejeitar toda a feitiçaria, / Desaprender os termos de magia [...]” Fausto I, v. 11.404-11.405.
9
“Erra o homem enquanto a algo aspira [...] / Subtrai essa alma à sua inata fonte,/ E leva-a, se a atraíres pra teu
eixo, / Contigo abaixo a tua ponte. / Mas, vem, depois, confuso confessar / Que o homem de bem, na aspiração
que, obscura, o anima, / Da trilha certa se acha sempre a par.” Fausto I, v. 317-329.
5
essa aposta tem um objetivo totalmente outro. Não se sabe exatamente quais as intenções de
Goethe quando faz o Senhor incumbir Mefisto de subtrair “essa alma à sua inata fonte”.
Que outra fonte primordial pode haver para um ser humano além do cerne inequívoco
e único de sua personalidade?!
Em primeiro lugar, não há indicação de uma única ação ou traço de caráter, mas, em
segundo lugar, a força do diabo perde sua função de mero desafio ao homem bom e se torna
subitamente um componente essencial e mesmo fonte de toda a constituição do homem, fonte
esta que se nutre de sua própria fonte primordial. Atividade, trabalho, inquietação e agitação
são os elementos necessários à vida segundo o Senhor, esse Deus burguês que surge com a
pompa dominadora de um senhor feudal. Ele diz:
Com isso está indicado o leitmotiv da carreira de Fausto: a segunda aposta, fechada
com Mefisto num contrato lavrado por escrito, é concebida como o contrato de vassalagem
que concede uma empresa própria a Fausto.
Ora, em que consiste esse pacto, que posteriormente Goethe jamais designou como um
contrato societário [Bündnisvertrag], mas como uma aposta? É preciso ter muito bem presente
essa página do texto contratual. Aqui parece estar formulado o leitmotiv da tragédia de Fausto,
ao menos como eu leio essa tragédia, a partir do quinto ato. Eu a leio a partir do fim, de
maneira retrospectiva. Toda a tragédia de Fausto, sobretudo a segunda parte, ganha então um
caráter inteiramente outro. Isso começa certamente com o rio Leto, com esquecimento e
caducidade, mas o entrecho da ação é bem diferente daquele da primeira parte. Há, com
efeito, duas tragédias. De um lado, há a tragédia do homem letrado [Gelehrtentragödie] ― do
Fausto queixoso, digno de compaixão, que não quer saber daquilo de que é capaz porque não
é capaz de saber tudo; que se queixa de ter estudado, ai dele!, Filosofia e tudo o mais, e de
agora não saber nada e, naturalmente, de também nada ter para ensinar. Aqui há, por sinal,
uma diferença em relação ao Fausto de Marlowe, o Fausto inglês. O Fausto de Marlowe tem
um final bem diferente. É uma tragédia do homem letrado. Quando o diabo toma a alma de
Fausto à meia noite, como está indicado, os colegas dele se encontram no aposento ao lado e
eles dizem: por que Fausto se meteu com o diabo? Ele, um homem de letras tão preparado,
10
“O humano afã tende a afrouxar ligeiro, / Soçobra em breve em integral repouso; / Aduzo-lhe por isso o
companheiro / Que como diabo influi e incita, laborioso.” Fausto I, v. 340-343.
6
especialmente nas escolas alemãs, como consta em Marlowe. Ele não precisava disso! Ele é
um perdido, dizem os colegas. Mas nós o respeitamos como homem letrado, e seu
sepultamento será acompanhado por um cortejo de estudantes. Professores são reverenciados
como ele, o Fausto de Marlowe, porque ainda estudou o que sabia e não ensinou aos
estudantes o que não sabia. O Fausto de Goethe é soterrado. O final é bem terrível, ainda
falarei dele. Deve haver um sentido para Goethe construir esse final totalmente diferente do
desfecho elaborado pelo dramaturgo elisabetano. Aliás, não é inteiramente certo que tenha
lido o Fausto de Marlowe apenas em 1818, como afirma. Há pessoas que pensam que ele já o
havia lido antes e, inclusive, copiado algumas cenas. Mas isso é outro problema.
É preciso ter muito bem presente a página do contrato. Aqui parece estar formulado o
leitmotiv da tragédia de Fausto. Este diz:
Mephisto:
Topp!
Faust:
Und Schlag auf Schlag!
Werd’ich zum Augenblicke sagen:
Verweile doch! Du bist so schön!
Dann magst du mich in Fesseln schlagen,
Dann will ich gern zugrunde gehn!
Dann mag die Totenglocke schallen,
Dann bist du deines Dienstes frei,
Die Uhr mag stehn, der Zeiger fallen,
Es sei die Zeit für mich vorbei! 11
Que nessas quinze linhas haja sete interjeições, é como se na linguagem estivesse
contida uma indicação de que há muita insegurança e medo por trás da declaração enérgica
que sublinha demonstrativamente a confiabilidade do acordo. As frases isoladas também têm,
claro, algo de um assentimento definitivo. Mefisto nota essa incerteza e diz: Bedenk’es wohl,
11
“Fausto: Se eu me estirar jamais num leito de lazer, / Acabe-se comigo já! / Se me lograres com deleite / E
adulação falsa e sonora, / Para que o próprio Eu preze e aceite, / Seja-me aquela a última hora! / Aposto! e tu?
Mefistófeles: Topo! Fausto: E sem dó nem mora! / Se vier um dia em que ao momento / Disser: Oh, para! és tão
formoso! / Então algema-me a contento, / Então pereço venturoso! / Repique o sino derradeiro, / A teu serviço
ponhas fim, / Pare a hora então, caia o ponteiro, / O Tempo acabe para mim!” Fausto I, 1.692-1.706.
7
wir werden’s nicht vergessen12. E esta é a razão por que ele pede algumas linhas escritas com
sangue. Como se pressentisse que toda a carreira de Fausto dependesse de caducidade e
esquecimento.
Disse que se trata aqui de uma espécie de contrato de trabalho [Dienstvertrag] de
cunho calvinista, que faria o júbilo de qualquer puritano. O fundamento disso para a época em
que se localiza historicamente a figura de Fausto foi dado em detalhe por Max Weber, que
investigou o aspecto interno do surgimento do capitalismo, complementando justamente com
isso a concepção de Marx, cuja ênfase recai mais sobre a análise econômica objetiva. Weber
fala de “espírito do capitalismo” e com isso quer dizer também que as metamorfoses
religiosas têm participação na constituição do homem moderno na época de transição do
feudalismo para o incessante afã de ganho do capitalismo. A grandeza do poeta e do homem
de ação que foi Goethe está em detectar, à maneira por assim dizer de um sismógrafo, muito
do que se passa nos deslizamentos, nos deslizamentos de terra da sociedade. Nenhuma figura
em sua obra espelha os transtornos e rupturas marcantes da sociedade tanto quanto Fausto.
Ou seja, o que se formula aqui é um contrato de trabalho calvinista. Com todos
elementos puritanos: “Se vier um dia em que ao momento disser: Oh, pára! és tão formoso!”
― isto é, a fruição, a capacidade de fruição ou, pelo menos, a capacidade de fruição
duradoura, não a momentânea, é colocada em questão. A preguiça é descriminada, e o
constante afã de ganho, motivado. E se os Senhores tomarem agora o arco que vai do
momento em que o pacto é fechado no quarto de estudos, na primeira parte do livro, até o
quinto ato, então terão de um extremo a outro uma figura de Fausto que caracteriza o tipo do
jovem empreendedor dinâmico: ele está sempre destruindo e, se possível, construindo ao
mesmo tempo. Aliás, é no quinto ato que, pela primeira vez na tragédia, Fausto faz algo pelos
outros homens, quando arranja algo assim como postos de trabalho para aqueles que o ajudam
no projeto de drenagem.
Permitam-me aqui uma pequena inserção que tem a ver com a questão do trabalho.
Quero dizer que leio o Fausto pelo viés de alguém que inclui o fundamento disso, as
mudanças sociais, no contexto de interpretação literária. Goethe foi um homem de ação, um
homem de Estado, por sinal o único ministro de defesa, se quisermos, que reduziu pela
metade o orçamento destinado à defesa. Ainda não houve algo assim na história. E certamente
por boas razões. Ele dizia: se a pequena Weimar se armar, isso aumentará a cobiça dos
Estados confederados e dos inimigos. Logo, quanto mais indefesos formos, tanto mais haverá
algo como uma capacidade pacífica de nossa sociedade. Tenho a impressão de que a figura de
12
“Medita-o bem, que em minha mente o gravo”. Fausto I, v. 1.707.
8
Fausto é o antípoda absoluto de Goethe. Tudo o que ele faz, Goethe não faria, e não fez. A
falta de medida, a desmedida, é o que caracteriza essa figura. Nisso Goethe é mais aristotélico
que Aristóteles. Enquanto a primeira parte é mais platônica (ele começa pelas idéias), a
segunda parte é construída desde baixo. O trabalho desempenha um papel muito importante
nessa tragédia de Fausto. Num contexto irônico-espirituoso, na cozinha da bruxa, Mefisto ―
que também não é uma figura constante, mas atua como consultor e em parte também como
consolador de alma ― fala com Fausto sobre rejuvenescimento. Fausto já está envelhecido e
ainda almeja uma segunda carreira. E eles conversam sobre como isso pode ser realizado.
Então diz Mefisto:
E a isso responde o homem de letras, o detentor da palavra, que jamais concebeu sua
atividade como um trabalho:
Das bin ich nicht gewöhnt, ich kann mich nicht bequemen,
Den Spaten in die Hand zu nehmen.
Das enge Leben steht mir gar nicht an.
13
“Mefistófeles: Bem! um meio há, para isso: / Sem médico se obtém, sem ouro e sem feitiço. / Vai para o
campo, incontinentemente, / Maneja a enxada, ativa o arado, / Conserva-te a ti próprio e a tua mente / Num
círculo chão, limitado, / Com alimento puro, nutre-te qual gado, / Vive entre o gado, em suores quotidianos, /
Adubar pessoalmente o campo e o agro não temas; / Por remoçar-te de setenta anos, / Crê-mo, o melhor é dos
sistemas! Fausto: Não me convém; não tenho o hábito disso; / Brandir a enxada é árduo serviço. / A vida rústica
não é comigo. Mefistófeles: Pois venha a bruxa, então, amigo.” Fausto I, v. 2.351-2.365.
9
Que função de dominação Fausto detém? Como foi dito, eu interpreto Fausto como
uma pessoa normal. Ele é o antípoda da vida de Goethe, que a ele dedicou todas as suas
forças. Para muitas pessoas, mesmo para as que conhecem Fausto, a excelência poética é, sem
dúvida, massacrante: são muitas formulações, máximas de sabedoria, frases encadeadas,
gracejos sérios, isto é, cifrados em chave alegórica. Longe de mim pretender ignorar a poesia,
mas o subsolo dessa poesia tem uma força social, a força de um diagnóstico, que é bastante
evidente e que remete à tragédia do homem moderno. “Poder aufiro, posse!” ― Esta é sua
reação ao contrato de vassalagem que ele obtém manhosamente quando apóia o imperador em
sua luta. Ou seja, propriedade é agora a solução para a crise individual de Fausto. O que se
busca é a propriedade ― e aquilo que se consegue com ela. Mas não apenas isso, também a
forma em que se constroem as relações de autoridade. Quando Fausto diz:
Ao que Mefisto responde: Certo... Mas também é preciso que haja poetas para contar a
vitória à geração vindoura. Isso, porém, será uma decorrência natural. Eles hão de aparecer.
Se cabe a eles admirar os vencedores, então eles hão de aparecer. E Fausto diz em relação ao
poder:
Fausto é afinal uma figura que é o oposto exato de Wilhelm Meister, tanto dos Anos de
Peregrinação quanto dos Anos de Aprendizado. Estes dão testemunho do conceito goethiano
de formação, formação esta que ocorre no processo de aprendizado, um nível após outro. No
Fausto há duas marcas características que desempenham grande papel na vida de Goethe, mas
nenhum na vida de Fausto, a saber: a superação-conservação [Aufheben] das experiências.
Cada nível de consciência, que se coloca no lugar do anterior, é mais rico. Fausto não
14
“Poder aufiro, posse, alto conteúdo! / Nada é a fama; a ação é tudo.” Fausto II, v. 10.187-10.188.
15
“Fausto: Grande erro. A quem é dado que comande, / Ventura pode achar só no comando: / Num alto intuito o
peito se lhe expande, / Ninguém percebe o que está planejando. / O que ao mais fiel no ouvido tem soprado, /
Com pasmo o mundo vê realizado.” Fausto II, v. 10.252-10.257.
10
conserva nenhuma experiência no nível seguinte. Ele não aprende nada de um nível de
consciência a outro. E no final o fio de pensamento é cortado, como ele diz, e todo saber o
aborrece. Como empreendedor, ele poderia agora levantar a questão sobre o que assegura a
coesão interna do mundo. Era seu programa, como homem de letras. Mas dele nada restou.
Ele esquece. Nada é superado-conservado. Nessa medida, não se constrói em Fausto uma
história da formação, mas uma história moderna do esquecimento. A gente esquece ―
história é bobagem, como se lê em Henry Ford. Não é preciso se preocupar com o que veio
antes. O que unicamente importa é a aplicação das coisas ao presente, sua transformação em
presente, em hodiernidade. Fausto vive numa hodiernidade absoluta, como se não houvesse
nada passível de conservação. Por fim, também apenas Gretchen aparece nas “Furnas
montanhosas”, na parte final. Ela é a única lembrança daquilo que foi. A industriosidade, a
pretensão pessoal desmesurada, a pressa, o “velocífero” [das Veloziferische], como Goethe o
chamou, o diabolicamente apressado, leva afinal das contas a um Fausto que é uma figura
absolutamente depressiva. Digna de comiseração, quando sente o sopro da Apreensão. E ele
diz: não aceitarei a apreensão! Surgem quatro mulheres, três se vão, e a Apreensão fica. A
Culpa pode ser eliminada. Mas a Apreensão fica e trabalha no seu íntimo. A Apreensão diz:
16
“Quem possuo é meu a fundo, / Lucro algum lhe outorga o mundo; / Ronda-o treva permanente, / Não vê o sol
nascente ou poente; / Com perfeita vista externa / No Eu lhe mora sombra eterna, / E com ricos bens em mão, /
Não lhes frui a possessão. / Torna em cisma azar, ventura, / Morre à míngua na fartura; / Seja dor, seja alegria, /
Passa-as para o outro dia, / Do futuro, só, consciente, / Indeciso eternamente.” Fausto II, v. 11.453-11.466.
11
Mas isso não é tudo. A descrição de sentimentos de todo ambivalentes, com sentido
oposto e autodepreciação, prossegue:
O Fausto que existe em toda a tragédia não é outro senão esse Fausto depressivo. Para
confirmá-lo basta reler com atenção os monólogos de lamento sob esse ponto de vista. No
fundo, isso não macula a extraordinária figura literária. Mas para as pessoas conservadoras,
que querem preservar seu Goethe imaculado, é um ataque. Elas não querem ver que aqui não
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“Deve ele ir-se? deve vir? / Não lhe cabe decidir; / Sobre aberta e chã vereia / Meios passos cambaleia. / Mais
a fundo se perdendo, / Tudo mais disforme vendo, / A si e a outros molestando, / Haurindo o ar e sufocando; /
Respirando ainda e qual morto, / Sem descanso, sem conforto. / Um rolar contínuo, assim, / Renunciar, dever,
sem fim, / Ora folga, ora opressão, / Semi-sono e alívio vão, / Prendem-no em martírio eterno, / E o preparam
para o Inferno.” Fausto II, v. 11.471-11.486.
18
“Até o ar e a luz inda não me hei liberto. / Pudesse eu rejeitar toda a feitiçaria, / Desaprender os termos de
magia, / Só homem ver-me, homem só, perante a Criação, / Ser homem valeria a pena, então.” Fausto II, v.
11.403-11.407.
12
Filemon, que certamente não viu nada de diferente, mas não pode recusar sua
concordância com os emissários oficiais, sucumbe ao fascínio da gigantesca obra e não é
capaz de pensar que sempre há sangue numa legitimação imperial.
13
Ou seja, Filemon é o cidadão crédulo que no fundo não vê nada diferente de Baucis,
mas Baucis, confiante na capacidade de julgar de seus sentidos, reflete para ele o que vê e
estabelece relações:
Eis o traço imperial em Fausto. Ele diz: essa cabana deve desaparecer, essa cabaninha
com seu pequeno sino estraga-me o domínio do mundo. E ele passa a incumbência de
remanejar os dois anciãos para uma espécie de habitação social. Mas eles não querem e são
mortos. Linceu, a personagem-sentinela, vê o que está sendo queimado:
19
“Pecaria o Imperador / Que lhe doara a beira-mar? / Um arauto, com clangor, / Não surgiu, para o anunciar? /
Junto às dunas, lá, foi onde / Deram o primeiro passo; / Barracões! ― Mas, entre a fronde, / Surgiu logo um rico
paço.” Fausto II, v. 11.115-11.122.
20
“Golpes sob o sol ressoavam, / Mas em vão; em noite fria / Mil luzinhas enxameavam, / Diques vias no outro
dia. / Carne humana ao luar sangrava, / De ais ecoava a dor mortal, / Fluía ao mar um mar de lava, / De manhã
era um canal. / Ímpio ele é, nossa cabana / E agro, teima em cobiçá-los; / Da riqueza ele se ufana, / Trata-nos
como vassalos”. Fausto II, v. 11.123-11.134.
14
Fica claro que Linceu ainda não sabe de onde vem tudo isso.
É difícil encontrar um final. A tragédia termina, ao contrário da Tragical History de
Christopher Marlowe, com Fausto sendo jogado na cova pelos Lêmures:
21
“Galhos, crepitando e ardendo, / Ruem em rápida ignição. / Olhos meus, ah! que estais vendo! / Porque tenho
tal visão! / A capela cai em ruínas / Sob a alta haste despencada. / Serpenteiam chamas finas / Pelo cume da
ramada”. Fausto II, v. 11.326-11.333.
22
“Ao longo o mais longo entre vós se estenda, / Cortais, vós outros, o gramado em torno”. Fausto II, v. 11.525 e
seguinte.