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ESPAÇO ABERTO

Francisco Carlos Palomanes Martinho


Colunista convidado

O sabor do ouro
Causou-me espécie o episódio no qual alguns jogadores da seleção brasileira confraternizavam
após a derrota para Camarões

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Por Francisco Carlos Palomanes Martinho


13/12/2022 | 03h00

O Brasil, afinal, não será campeão na Copa do Mundo do Catar. Mas o campeonato continua e
alguma nação, entre as que sobraram, conquistará o torneio. Antes de seu desfecho, no
entanto, alguns temas que não têm necessariamente que ver com o futebol merecem aqui
breves linhas.

Certame estranho este, num país com valores tão distantes da democracia, da tolerância e da
diversidade. Pelas ruas do Catar há uma espécie de presença da ausência: a ausência das
manifestações contra intolerâncias, porque, como sabemos, alguns poucos capitães de
algumas poucas seleções (escrete canarinho fora) pretendiam jogar ostentando, na
braçadeira da capitania, as cores do arco-íris. Mas numa Copa cinzenta como esta, ao colorido
das diferenças apenas se poderia esperar, como resposta, o ato da interdição.

Mas há, também, a presença daquilo que preferiríamos que estivesse ausente (alguns de nós,
pelo menos). De minha parte, causou espécie o episódio no qual alguns jogadores da seleção
brasileira, na companhia do hoje cartola Ronaldo Nazário, confraternizavam, após a derrota
para Camarões, num rega-bofe salpicado de ouro. É isto mesmo: carne com ouro em pó,
servida à farta, com alguns dos presentes salpicando, eles mesmos, a carne com o nobre
mineral.

Haverá quem diga que não é bem assim e que o “ouro comestível” não é tão caro. Mais caro ou
menos caro, pouco importa. O que importam são o apreço ou o desapreço por outros valores
que não os da carne ou do metal ingeridos.

No Brasil, há cerca de 33 milhões de pessoas que (sobre)vivem em estado de insegurança


alimentar. No mundo, são 830 milhões de pessoas, e destes, 193 milhões em situação de
“severa” insegurança alimentar. Em bom português: passam fome.

Mas o que importa? E para que tanto alarde? São meninos (Ronaldo fora, claro), afinal de
contas. Recebem o suficiente para isso e têm o direito de se divertirem um pouco após tão
extenuante derrota. Não queriam ofender ninguém, embora saibamos que “há distância entre
intenção e gesto”. Além do mais, a maioria destes atletas vem de origens populares, de modo
que é absolutamente humano requalificar o prato. Seria como que uma vingança contra um
passado com previsões de futuro pouco otimistas. Pode ser. Mas tenho a impressão de que,
quando Terêncio disse que “nada do que é humano me é estranho”, ele afirmava a importância
de compreender a humanidade de forma abrangente, inclusive nos seus horrores – com a
lembrança, claro, do que disse Isaiah Berlin, para quem “compreender não significa aceitar”.

Porém, outros ainda dirão que se exige muito desses atletas, coitados! Pede-se em demasia
para que se pronunciem sobre qualquer assunto. Ora bolas, eles vieram ao mundo para jogar
bola! A natureza deu-lhes esse dom e é isso o que desejam fazer. Não basta? Querem mais?

“Estão confundindo futebol com política.” Foi mais ou menos isso o que disseram quando da
Copa América de 2021, em plena pandemia de covid-19. Criticaram a cobrança de parte da
imprensa e da sociedade, que gostariam de vê-los decidindo pela não participação no torneio,
em nome da vida. Não tivessem participado, seriam lembrados pela coragem e pelo gesto
humanitário; hoje, são recordados pela derrota diante da Argentina.

Não deixa de ser uma escolha. E ainda um detalhe: como é comum em toda hipocrisia, eles são
adolescentes ou ingênuos quando lhes interessa; mas deixam de sê-lo quando compram seus
carros de marca, suas mansões e declaram (declaram?) seu Imposto de Renda, ou quando
fazem
Um dancinha
último e arminha
argumento em para
favorcertos candidatos
dos atletas resultaem
noeleição.
mais cruel individualismo, aquele da
luta selvagem entre supostos iguais. A ode ao indivíduo sem mediação, que não olha para o
lado, para trás e menos ainda para baixo – onde pisam com suas chuteiras encomendadas e
seus caros sapatos. Um individualismo que não considera natural a desigualdade. É pouco
para eles: natural é a miséria.

Aliás, não faltou quem dissesse que as críticas ao rega-bofe no Catar são injustas e que aquela
atitude poderia ter seu lado positivo. Ela incentivaria os famélicos da Terra a lutarem e
conquistarem um lugar ao sol. Precisa dizer mais? Estamos a falar de cidadãos que diminuem
a cidadania, ridicularizam-na e fazem chacota com ela.

Foi só um jantar? Não esperavam tal repercussão? Não me venham com essa! De uma forma
ou de outra, todos têm plena consciência de que aparecem e repercutem. E repercutem
muito! Eles gostam e precisam disso. Do contrário, o ouro ingerido não seria tão saboroso.

De minha parte, quando vi aquelas cenas, confesso que chorei. E nem sequer poderia me
consolar na ilusão de que “ali, onde eu chorei, qualquer um chorava”.

PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA USP, PESQUISADOR DO


CNPQ, É AUTOR DE ‘PORTUGAL E OS 60 ANOS DA GUERRA EM ÁFRICA’. RIO DE
JANEIRO, FGV, 2022 (COORDENAÇÃO COM HELENA WAKIM MORENO E MARINA
SIMÕES GALVANESE)

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