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O sabor do ouro
Causou-me espécie o episódio no qual alguns jogadores da seleção brasileira confraternizavam
após a derrota para Camarões
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O Brasil, afinal, não será campeão na Copa do Mundo do Catar. Mas o campeonato continua e
alguma nação, entre as que sobraram, conquistará o torneio. Antes de seu desfecho, no
entanto, alguns temas que não têm necessariamente que ver com o futebol merecem aqui
breves linhas.
Certame estranho este, num país com valores tão distantes da democracia, da tolerância e da
diversidade. Pelas ruas do Catar há uma espécie de presença da ausência: a ausência das
manifestações contra intolerâncias, porque, como sabemos, alguns poucos capitães de
algumas poucas seleções (escrete canarinho fora) pretendiam jogar ostentando, na
braçadeira da capitania, as cores do arco-íris. Mas numa Copa cinzenta como esta, ao colorido
das diferenças apenas se poderia esperar, como resposta, o ato da interdição.
Mas há, também, a presença daquilo que preferiríamos que estivesse ausente (alguns de nós,
pelo menos). De minha parte, causou espécie o episódio no qual alguns jogadores da seleção
brasileira, na companhia do hoje cartola Ronaldo Nazário, confraternizavam, após a derrota
para Camarões, num rega-bofe salpicado de ouro. É isto mesmo: carne com ouro em pó,
servida à farta, com alguns dos presentes salpicando, eles mesmos, a carne com o nobre
mineral.
Haverá quem diga que não é bem assim e que o “ouro comestível” não é tão caro. Mais caro ou
menos caro, pouco importa. O que importam são o apreço ou o desapreço por outros valores
que não os da carne ou do metal ingeridos.
Mas o que importa? E para que tanto alarde? São meninos (Ronaldo fora, claro), afinal de
contas. Recebem o suficiente para isso e têm o direito de se divertirem um pouco após tão
extenuante derrota. Não queriam ofender ninguém, embora saibamos que “há distância entre
intenção e gesto”. Além do mais, a maioria destes atletas vem de origens populares, de modo
que é absolutamente humano requalificar o prato. Seria como que uma vingança contra um
passado com previsões de futuro pouco otimistas. Pode ser. Mas tenho a impressão de que,
quando Terêncio disse que “nada do que é humano me é estranho”, ele afirmava a importância
de compreender a humanidade de forma abrangente, inclusive nos seus horrores – com a
lembrança, claro, do que disse Isaiah Berlin, para quem “compreender não significa aceitar”.
Porém, outros ainda dirão que se exige muito desses atletas, coitados! Pede-se em demasia
para que se pronunciem sobre qualquer assunto. Ora bolas, eles vieram ao mundo para jogar
bola! A natureza deu-lhes esse dom e é isso o que desejam fazer. Não basta? Querem mais?
“Estão confundindo futebol com política.” Foi mais ou menos isso o que disseram quando da
Copa América de 2021, em plena pandemia de covid-19. Criticaram a cobrança de parte da
imprensa e da sociedade, que gostariam de vê-los decidindo pela não participação no torneio,
em nome da vida. Não tivessem participado, seriam lembrados pela coragem e pelo gesto
humanitário; hoje, são recordados pela derrota diante da Argentina.
Não deixa de ser uma escolha. E ainda um detalhe: como é comum em toda hipocrisia, eles são
adolescentes ou ingênuos quando lhes interessa; mas deixam de sê-lo quando compram seus
carros de marca, suas mansões e declaram (declaram?) seu Imposto de Renda, ou quando
fazem
Um dancinha
último e arminha
argumento em para
favorcertos candidatos
dos atletas resultaem
noeleição.
mais cruel individualismo, aquele da
luta selvagem entre supostos iguais. A ode ao indivíduo sem mediação, que não olha para o
lado, para trás e menos ainda para baixo – onde pisam com suas chuteiras encomendadas e
seus caros sapatos. Um individualismo que não considera natural a desigualdade. É pouco
para eles: natural é a miséria.
Aliás, não faltou quem dissesse que as críticas ao rega-bofe no Catar são injustas e que aquela
atitude poderia ter seu lado positivo. Ela incentivaria os famélicos da Terra a lutarem e
conquistarem um lugar ao sol. Precisa dizer mais? Estamos a falar de cidadãos que diminuem
a cidadania, ridicularizam-na e fazem chacota com ela.
Foi só um jantar? Não esperavam tal repercussão? Não me venham com essa! De uma forma
ou de outra, todos têm plena consciência de que aparecem e repercutem. E repercutem
muito! Eles gostam e precisam disso. Do contrário, o ouro ingerido não seria tão saboroso.
De minha parte, quando vi aquelas cenas, confesso que chorei. E nem sequer poderia me
consolar na ilusão de que “ali, onde eu chorei, qualquer um chorava”.
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