Você está na página 1de 7

RECENSÃO

Os Anos Sessenta em Portugal:


Duas Governações, Diferentes Políticas Públicas?,
de José M. B. de Brito e P. B. Santos (orgs.),
por Francisco Carlos Palomanes Martinho

Análise Social, lvi (1.º), 2021 (n.º 238), pp. 200-205


https://doi.org/10.31447/as00032573.2021238.12
issn online 2182-2999

edição e propriedade
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9
1600-189 Lisboa Portugal  —  analise.social@ics.ul.pt
200 RECENSÕES

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021238.12

brito, José Maria Brandão de, e santos, Paula Borges (coords.)


Os Anos Sessenta em Portugal:
Duas Governações, Diferentes Políticas Públicas?,
Lisboa, Afrontamento, 2020, 252 pp.
isbn 9789723618211

Francisco Carlos Palomanes Martinho

É consenso largamente aceite entre ditatorial, jamais posta em causa naque-


historiadores que Portugal, durante a les tempos de “modernização conserva-
década de 1960, viveu uma “experiência dora” (Moore Jr, 1983).
de modernidade” (Berman, 1982, pp. Analisar este período é desafio de não
28-29): crescimento económico, urba- pouca monta. Foi o que, entretanto, pro-
nização, ingresso na efta, aumento do puseram José Maria Brandão de Brito e
PIB etc. Modernidade, entretanto, que Paula Borges dos Santos (pp. 9-24) ao
se deparou com forças reativas: guerra organizarem a presente obra. O livro é
colonial, isolamento internacional, fuga composto por uma Introdução e 11 capí-
de mão-de-obra, entre outros. A unifi- tulos, abarcando temas como economia,
car caminhos tão díspares, a condição sociedade, política, educação e justiça.
RECENSÕES 201

O mosaico é vasto, ainda que outros ditada pelas circunstâncias”, resultado


assuntos, igualmente importantes, pudes- dos “complexos compromissos entre uma
sem compor a coletânea, como as políti- corrente modernizadora e uma velha
cas para a cultura ou o desporto. guarda” (p. 31). José Reis problematiza o
Em obra assim tão diversificada, é distanciamento entre o processo indus-
comum, e mesmo compreensível, certo trial português “de costas voltadas para
desequilíbrio entre os seus capítulos. a sociedade”, que desta modernização
Tanto na qualidade do conteúdo como pouco usufruiu, e que justifiva a perma-
nas opiniões expressas. Os organizado- nência da condição periférica de Portu-
res advertem que “não se alcançou uma gal na Europa (pp. 80-81). Parte deste
interpretação unívoca” (p. 21). Pode ser, crescimento, aliás, terá vindo de condi-
embora predomine uma forte unidade cionantes externas impostas ao regime.
tanto no que se compreende por “década Em linhas gerais, nesta “longa década”,
de 1960”, como no que respeita às conti- manteve-se o forte desequilíbrio social e
nuidades e descontinuidades das gover- o isolamento da indústria em relação aos
nações de Oliveira Salazar e Marcello demais setores económicos (pp. 96-97).
Caetano. Nuno Valério percebe uma forte altera-
Correndo algum risco de classifica- ção nas finanças portuguesas em meados
ção arbitrária, e reconhecendo que os da década de 1960. Enquanto nos pri-
temas se entrecruzam, analisaremos os meiros anos se verifica certa turbulên-
capítulos agrupando-os em três blocos cia devido à guerra colonial, a seguir “se
temáticos: economia, política externa e abriram oportunidades de aumento das
sociedade. despesas de fomento económico”. Não
Da economia.1 Os três artigos dedi- obstante a aceleração do crescimento no
cados ao tema afirmam a existência de consulado de Marcello Caetano, Valério
uma modernização, embora marcada afirma que este processo se iniciara com
por contradições e impasses. Guilherme Salazar, através da reforma fiscal e do
Martins destaca o caminho ambivalente iii Plano de Fomento, entre os anos de
do Estado Novo para a superação do 1958-1965 (pp. 105-108).
“modelo autárcico” quando, ao invés “de Da política externa. Os dois ­capítulos
uma estratégia clara e coerente de supe- dedicados ao tema envolvem políticas de
ração […] verificou-se uma paulatina Estado em contexto de relações diplo-
máticas complexas.2 E, nos dois casos,
1 Capítulos de Guilherme D’Oliveira Mar- a centralidade do problema ultramarino
tins (“Estratégias de superação do modelo
autárcico”, pp. 25-35; José Reis (“A economia
portuguesa nos anos sessenta: uma pesada 2 Capítulos de Filipe Ribeiro de Meneses
continuidade”, pp. 51-77); Nuno Valério (“As (“Diplomacia, defesa e guerra”, pp. 51-77);
finanças do Estado português entre finais da Sérgio Neto e Luís Reis Torgal (“Uma nova
década de 50 e meados da década de 70 do política colonial nos anos 60? Os últimos Bra-
século xx”, pp. 99-111). sís em África”, pp. 217-244).
202 RECENSÕES

é evidente. Ribeiro de Meneses destaca com a criação de universidades em


um conjunto não pequeno de iniciati- Angola e Moçambique e a aprovação de
vas diplomáticas ou militares tão con- um “princípio de integração económica
fusas como contraditórias. Frente ao nacional” em novembro de 1961. Eri-
caos que foi aquele ano trágico de 1961 gido à Presidência do Conselho, “com
(tentativa de golpe de Botelho Moniz, alguns créditos de liberal” (p. 231) e até a
perda do Estado Português da Índia; desconfiança de uma extrema direita que
cerceamento diplomático), o regime, não via em Caetano um compromisso
afastado da Europa, nada mais fazia do “orgânico” com o colonialismo (Marti-
que tentar sobreviver (pp. 53-54). Uma nho, 2012; Marchi, 2009), permanecia
sobrevivência que passava pela intransi- o compromisso de se manter em África.
gente defesa do Ultramar, com o recru- Como que um elo entre Salazar e Cae-
descimento da violência e o ataque tano, os autores referem-se às comemo-
sistemático aos organismos internacio- rações do Infante D. Henrique, nas quais
nais, sobretudo a onu, que tanto Sala- se confirmava a “vocação carismática” e
zar como ­Caetano viam com profundo exploratória do personagem responsável
desconforto (­Caetano, 1971, pp. 256-7). pelas primeiras conquistas e pelo com-
Caetano, embora empenhado em cons- bate ao infiel. No discurso de Adriano
truir uma narrativa que o demarcasse Moreira, então ministro das Colónias,
da política ultramarina de Salazar, vetou “a guerra contra os mouros de ontem
quaisquer argumentos que pusessem deveria ser a luta contra o comunismo de
em xeque a “nação pluricontinental” hoje”. A defesa do ultramar significava,
(p. 61), ou seja, a “presença portuguesa então, a continuidade da epopeia do
[…] naquele continente” (p. 67). Desta- século xvi, daí a importância das come-
que também para a quase realização, em morações como a do Mundo Português
1974 (no marcelismo, portanto), de uma (1940) ou da morte do Infante (1960).
aliança com países cujas políticas raciais É necessário lembrar que o colonialismo
em tudo destoavam do argumento “frei- português dos anos 1960 era contem-
riano” tão caro ao regime (p. 51). Sérgio porâneo de movimentos autonomistas
Neto e Reis Torgal analisam os impasses que em Bandung (1955) afirmaram a
de um colonialismo constrangido por “solidariedade aos povos ainda submeti-
um discurso evocativo ao lado de um dos ao colonialismo” (p. 225). Caetano,
frágil, periférico e incapaz capitalismo entre o isolamento nos fora internacio-
(p. 218). Fazem também um balanço da nais e as pressões internas (de campos
legislação colonial dos anos 1930 e das por vezes contraditórios), esperou mais
divergências no seio do regime entre do que propriamente agiu. Afinal, estava
favoráveis e contrários à assimilação ciente do quão difícil e talvez impossível
dos nativos, destacando-se, neste último era “uma solução para a guerra que não
campo, Marcello Caetano. A assimila- pusesse em causa a natureza do regime”
ção, porém, permanecia e era ­justificada (pp. 240-241).
RECENSÕES 203

Da sociedade. Os estudos sobre a socie- tivismo desde a década de 1930 enten-


dade mereceram seis capítulos.3 Villa- dendo-a como uma “primeira vaga”
verde Cabral destaca o que considera os modernizadora; na década de 1960, a
dois extremos do período: a estagnação segunda vaga, que é anterior ao consu-
populacional provocada pela emigração lado de Caetano. Como exemplo, entre
e um inédito crescimento económico outras, a lei referente às reparações por
(p. 38). Dois lados da mesma moeda: acidentes e doenças, de 1965 e, no ano
o primeiro, “um voto com ou pés”, de seguinte, a que tocava no regime jurí-
recusa de um conflito que não lhes dizia dico do contrato individual do trabalho
respeito (p. 43); o segundo, o cresci- (p. 132). Durante o marcelismo, a legis-
mento fantástico de 8% ao ano, que resul- lação do trabalho não apareceu como
tou, a um só tempo, em desequilíbrios e um tema prioritário, traduzindo-se no
complexos movimentos oposicionistas. empenho de “prosseguir a obra legisla-
Afinal, onde passam mercadorias, igual- tiva iniciada poucos anos antes” (p. 137).
mente passam ideias (Braudel, 1996, Enfim, “retoques” houve no sentido, por
p. 43). À frente deste cenário, um con- exemplo, de extirpar certo argumento
junto de acontecimentos ilustrativos, ideológico inviável à época. Novidade
ao mesmo tempo, de crise e de mudan- mesmo, entretanto, foi a lei de duração
ças estruturais: as oposições militares à do trabalho cujo texto, publicado em
guerra colonial, a perda da Índia portu- setembro de 1971, contou com a coor-
guesa, o movimento estudantil, a expan- denação de Baltasar Rebelo de Sousa
são urbana etc. (pp. 47-49). Na linha (p. 145). Rodrigues e Carolo discutem
desta evolução marcada por desigualda- a reforma previdenciária que, instituída
des, a legislação laboral insere-se neste em 1962, se manteve a mesma até 1984.
marco de salto “estrutural” responsável Na base deste processo, o aumento das
pela superação, em 1963, da agricultura despesas do Estado e a tendência para
pela indústria (pp. 121-122). Monteiro a universalização de benefícios (p. 156-
Fernandes faz um balanço do corpora- -159). Para os autores, a reforma iniciada
em 62 “marca o início da convergência
com os modelos do Estado-Providên-
3 Capítulos de Manuel Villaverde Cabral cia europeus” (p. 169). Quanto às polí-
(“A sociedade portuguesa na década de 1960”,
ticas de saúde, elas seguiram diretrizes
pp. 37-50); Eduardo Marçal Grilo (“Políticas
de educação na década de 60”, pp. 113-119); similares às previdenciárias. Portugal,
António Monteiro Fernandes (“A legislação desde o Plano Nacional de Vacinação de
do trabalho e a ‘Primavera’ política”, pp. 121- 1965, incorporou o conceito de saúde
-146); Cristina Rodrigues e Daniel Carolo definido pela oms. Ademais, criaram-se
(“A previdência social”, pp. 147-173); Manuel novas instituições para fomentar a pes-
Valente Alves (“Políticas de saúde”, pp. 175-
quisa científica e o aumento de quadros
-191); Vânia Álvares e Nuno Garoupa (“Evo-
lução da justiça no final do salazarismo”, especializados (p. 178), com realce para
pp. 193-215). a medicina preventiva e cuidados com
204 RECENSÕES

a saúde primária (p. 190). Quanto à tese, predominando a opinião de que a


­justiça, o seu marco modernizador data mudança de governo foi sensivelmente
de 1966, aquando da aprovação do novo marcada pela continuidade. E uma con-
Código Civil, e que avançaria até 1970 tinuidade tanto no que respeita à per-
com a criação dos tribunais de família manência de escolhas tendencialmente
(p. 193). Para os autores é evidente um conservadoras, como também quando se
empenho modernizador que, originário verificam empenhos modernizadores no
já nos anos 1920, se manteve constante regime. Assim sendo, este trabalho con-
até 1966. O Código Civil seria, então, trasta com certa perspetiva que advoga a
“o fim de um ciclo”. A morosidade do tese de uma transição, embora “falhada”,
processo contribuiu para atenuar na do marcelismo (Cruz e Ramos, 2012;
letra da lei os seus aspetos fascistizan- Oliveira e Rosas, 2004). Assim dito, e
tes, à semelhança da legislação colonial guardadas as especificidades de cada
(p. 224). Ao mesmo tempo, reconhe- autor, como também dos seus eventuais
cem os impasses de uma lei que se quer limites, o presente livro constitui leitura
moderna num quadro autoritário. Pena, obrigatória para o entendimento dos
entretanto, que um importante capítulo, últimos anos do regime do Estado Novo
dedicado à educação, se revele tão curto em Portugal.
quanto económico na sua análise, res-
tringindo o seu relato quase exclusiva- referências bibliográficas
mente ao período de Salazar. Abdica-se,
assim, da reflexão acerca do tão pro- berman, M. (1983), Tudo que é Sólido
pagado período de José Veiga Simão Desmancha no Ar: A Aventura da Moder-
à frente do Ministério da Educação nidade, São Paulo, Companhia das
Nacional nos anos 1970-1974 (Proença, Letras.
1998). braudel, F. (1996), O Jogo das Trocas.
Os capítulos do livro oferecem ao lei- Civilização Material, Economia e Capi-
tor um excelente panorama do que foi a talismo: Século xv-xviii, São Paulo: Mar-
“longa década de 1960” para Portugal. tins Fontes.
Quase todos os textos vêm acompanha-
caetano, M. (1971), Portugal e a Inter-
dos de bibliografia atualizada e em alguns
nacionalização dos Problemas Africanos,
constam também fontes primárias, além
4.ª ed., Lisboa, Ática.
de tabelas e gráficos que contribuem
cruz, M. B., ramos, R. (orgs.) (2012),
para a compreensão do leitor. Os artigos
Marcello Caetano: Tempos de Transição,
põem em questão trabalhos anteriores,
Porto, Porto Editora.
tanto em relação à temporalidade da
autarcia (vvaa, 1987), como do com- marchi, R. (2009), Império, Nação, Revo-
passo ou descompasso entre um e outro lução. As Direitas Radicais Portuguesas e
chefe de Governo. Os Anos Sessenta em o Fim do Estado Novo (1959-74), Alfra-
Portugal apresenta-se quase como uma gide, Texto.
RECENSÕES 205

martinho, F. C. P. (2012), “A extrema vvaa (1987), O Estado Novo: das Origens
direita portuguesa em dois momentos”. ao Fim da Autarcia (1926-1959), 2 vols.,
Stvdia Historica, 30, pp. 95-114. Lisboa, Fragmentos.
moore jr, B. (1983), As Origens Sociais
martinho, F. C. P. (2021), Recensão “Os Anos Ses-
da Ditadura e da Democracia, São Paulo, senta em Portugal: Duas Governações, Diferentes
Martins Fontes. Políticas Públicas?, Lisboa, Afrontamento, 2020”.
Análise Social, 238, lvi (1.º), pp. 200-205.
oliveira, P. A., rosas, F. (coords.)
(2004), A Transição Falhada: O Marce- Francisco  Carlos  Palomanes  Martinho » fcpmar-
lismo e o Fim do Estado Novo, Lisboa, tinho@gmail.com » Departamento de História,
Editorial Notícias. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas,Universidade de São Paulo » Av. Prof. Lineu
proença, M. C. (1998), O Sistema de Prestes, 338, Cidade Universitária — cep 05508-
Ensino em Portugal: Séculos xix e xx, Lis- 900 São Paulo, Brasil » https://orcid.org/0000-
0001-7859-9533.
boa, Colibri.

Você também pode gostar